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A FILOSOFIA E A IMAGEM CIENTÍFICA DO HOMEM 1, 2

Wilfrid Sellars
Tradução de Renato Duarte Fonseca (Dept. Filosofia UFRGS)

I. A BUSCA FILOSÓFICA
O objetivo da filosofia, abstratamente formulado, é compreender como as coisas, no
sentido mais amplo possível do termo, conjugam-se no mais amplo sentido do termo.
Sob ‘coisas no sentido mais amplo possível’, incluo não apenas itens radicalmente
diferentes como ‘repolhos e reis’3, mas igualmente números e deveres, possibilidades e
estalos de dedo, a experiência estética e a morte. Ser bem-sucedido em filosofia seria,
para usar de uma expressão contemporânea, ‘saber orientar-se’ em relação a todas essas
coisas, não daquele modo irrefletido como a centopéia da estória sabia orientar-se antes
de enfrentar a questão ‘como caminho?’4, mas daquele modo reflexivo que importa em
não ter restrições intelectuais.
Saber orientar-se é, para usar uma distinção corrente, uma forma de ‘saber como’ em
contraste com ‘saber que’. Há toda diferença do mundo entre saber como andar de
bicicleta e saber que uma pressão firme das pernas sobre os pedais por uma pessoa em
equilíbrio resultaria em um movimento para frente. Ou ainda, para usar um exemplo
algo mais próximo de nosso tema, há toda diferença do mundo entre saber que cada
passo de uma dada prova matemática segue-se dos passos anteriores e saber como
encontrar uma prova. Às vezes, ser capaz de encontrar uma prova é questão de ser capaz
de seguir um procedimento estabelecido; é mais frequente que não seja. Pode-se
argumentar que qualquer coisa que possa propriamente ser denominada ‘saber como
fazer algo’ pressupõe certo corpo de saber que; ou, dito de outro modo, um
conhecimento de verdades ou fatos. Fosse assim, o enunciado de que ‘patos sabem

1
O texto do presente ensaio foi originalmente apresentado por Sellars em duas conferências na
Universidade de Pittsburgh, em dezembro de 1960. O ensaio foi inicialmente publicado em Robert
Colodny, ed., Frontiers of Science and Philosophy (Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1962),
com o título de “Philosophy and the Scientific Image of Man”. Foi republicado por Sellars em seu
Empiricism and the Philosophy of Mind (London: Routledge & Kegan Paul Ltd, 1963), pp. 1-40. [Nota de
tradução.]
2
Esta é uma versão preliminar, incompleta e demandando revisão de uma tradução em curso do
conhecido ensaio de Sellars. Sugestões críticas e correções de qualquer sorte são bem-vindas. Não
reproduzir, total ou parcialmente, sem a permissão escrita do tradutor.
3
Alusão aos famosos versos de “The Walrus and the Carpenter” (“A Morsa e o Carpinteiro”), poema
recitado pelos personagens Tweedledum e Tweedledee no capítulo 4 de Through the Looking-Glass
(Através do Espelho), de Lewis Carroll: “‘The time has come’, the Walrus said, / To talk of many things:
/ Of shoes. . . and ships. . . and sealing-wax. . . / Of cabbages. . . and kings. . .” Na tradução de Maria
Luiza X. de A. Borges: “‘É chegada a hora’, disse a Morsa, / ‘De falar de muitas coisas: / De sapatos. . . e
barcos. . . e vazas. . . / De repolhos. . . e reis. . . e lousas. . .”. Cf. Lewis Carrol, Alice: edição comentada,
(Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002). [Nota de tradução.]
4
O dilema da centopéia
como nadar’ seria tão metafórico quanto o enunciado de que eles sabem que a água os
sustenta. De qualquer maneira, saber como fazer algo no plano da atividade
caracteristicamente humana pressupõe uma grande extensão de saber que, e é óbvio que
o saber reflexivo de como orientar-se na ordem das coisas, que é o objetivo da filosofia,
pressupõe uma grande extensão de conhecimento reflexivo de verdades.
Ora, o objeto desse conhecimento de verdades pressuposto pelo ‘saber-como’ filosófico
situa-se, em certo sentido, inteiramente sob o escopo das disciplinas especiais. Em um
sentido importante, a filosofia não tem um objeto especial da mesma maneira que as
outras disciplinas. Se os filósofos realmente tivessem esse objeto especial, poderiam
delegá-lo a um novo grupo de especialistas, como delegaram outros objetos especiais a
não-filósofos ao longo dos últimos 2500 anos, primeiro com a matemática, mais
recentemente com a psicologia e a sociologia e, atualmente, com certos aspectos da
linguística teórica. O que é característico da filosofia não é um objeto especial, mas o
propósito de saber orientar-se em relação aos objetos de todas as disciplinas especiais.
Agora bem, as disciplinas especiais sabem orientar-se em relação aos seus objetos e
cada uma aprende a fazê-lo no processo de descobrir verdades sobre seu próprio objeto.
Mas cada disciplina especial deve também ter uma compreensão de como sua área
insere-se no território como um todo. Em muitos casos, essa compreensão consiste em
pouco mais do que o ‘saber orientar-se’ irrefletido que é posse comum de todos nós. E
ainda, o especialista deve compreender como não apenas seu objeto, mas também os
métodos e os princípios de seu pensamento sobre ele inserem-se na paisagem
intelectual. Assim, o historiador reflete não apenas sobre os próprios eventos históricos,
mas sobre o que é pensar historicamente. É parte de sua atividade refletir sobre seu
próprio pensar – seus propósitos, seus critérios, suas armadilhas. Ao lidar com questões
históricas, ele deve enfrentar e responder questões que não são, elas próprias, em um
sentido primário, questões históricas. Mas ele lida com essas questões na medida em
que elas surgem na tentativa de responder questões especificamente históricas.
A reflexão sobre qualquer disciplina especial pode rapidamente levar alguém à
conclusão de que o praticante ideal dessa disciplina veria seu objeto especial e seu
pensamento sobre ele à luz de um discernimento reflexivo da paisagem intelectual como
um todo. Há uma boa dose de verdade na concepção platônica de que as disciplinas
especiais são levadas à perfeição pela filosofia, mas a concepção que a acompanha, de
que o filósofo deve saber orientar-se em cada disciplina da mesma maneira que o
especialista, tem sido um ideal cada vez mais esquivo desde que iniciou a revolução
científica. Contudo, se o filósofo não pode esperar saber orientar-se em cada disciplina
da mesma maneira que o especialista, há um sentido em que ele pode saber orientar-se
em relação ao objeto dessa disciplina e deve fazê-lo se há de se aproximar do propósito
filosófico.
A multiplicação das ciências e disciplinas é uma faceta familiar da cena intelectual.
Dificilmente menos familiar é a unificação dessa multiplicidade, que vem tomando
lugar através da construção de pontes científicas entre elas. O que não é tão óbvio ao
leigo é que a tarefa de ‘enxergar todas as coisas em conjunto’ tem sido ela própria
(paradoxalmente) decomposta em várias especialidades. E há lugar para especialização
em filosofia. Pois assim como alguém não pode chegar a saber orientar-se no sistema
viário como um todo sem saber orientar-se nas vias, assim também não pode esperar
saber orientar-se nas ‘coisas em geral’ sem saber orientar-se nos principais grupamentos
de coisas.
É, portanto, o ‘olhar sobre o todo’ que distingue o empreendimento filosófico. Do
contrário, há pouco que distinga o filósofo do especialista persistentemente reflexivo; o
filósofo da história, do historiador persistentemente reflexivo. Na medida em que o
especialista está mais preocupado em refletir sobre como seu trabalho de especialista se
conecta com outras ocupações intelectuais do que em fazer e responder questões no
interior de sua especialidade, diz-se propriamente que ele tem uma mente filosófica. E,
de fato, alguém pode ‘ter seus olhos sobre o todo’ sem fixar-lhe olhar o tempo inteiro.
Tratar-se-ia de um empreendimento infrutífero. Além do mais, como outros
especialistas, o filósofo que se especializa retira muito da sua compreensão do todo da
orientação pré-reflexiva que é nossa herança comum. Por outro lado, dificilmente
poder-se-ia dizer que um filósofo tem seus olhos sobre o todo, no sentido relevante, a
menos que ele tenha refletido sobre a natureza do pensamento filosófico. É essa reflexão
sobre o lugar da própria filosofia na ordem das coisas que é o traço distintivo do
filósofo, em contraste com o especialista reflexivo; e na falta dessa reflexão crítica sobre
o empreendimento filosófico, alguém é, quando muito, um filósofo em potencial.
Tem-se dito frequentemente em anos recentes que o propósito do filósofo não é
descobrir novas verdades, mas ‘analisar’ o que já conhecemos. Mas embora o termo
‘análise’ tenha sido útil ao sugerir que a filosofia, enquanto tal, não faz qualquer
contribuição substantiva ao que conhecemos e se ocupa de algum modo em aperfeiçoar
a maneira como o conhecemos, é demasiado enganoso por seu contraste com ‘síntese’.
Pois em virtude de tal contraste esses enunciados sugerem que a filosofia é
progressivamente míope, divisando partes no interior de partes enquanto perde cada
parte de vista quando novas partes caem sob os olhos. Somos tentados, portanto, a
contrastar a concepção analítica da filosofia enquanto miopia com a visão sinóptica da
verdadeira filosofia. E deve admitir-se que se o contraste entre ‘análise’ e ‘síntese’ fosse
a conotação operante na metáfora, então uma filosofia puramente analítica seria uma
contradição em termos. Mesmo se interpretarmos ‘análise’ com base na analogia de
fazer mapas em escala cada vez menor do mesmo terreno, o que faz mais justiça ao
elemento sinóptico, a analogia atrapalha, pois teríamos de comparar a filosofia à
elaboração de mapas de pequena escala a partir de um mapa de larga escala original; e
um mapa de escala menor, nesse sentido, é uma trivialidade.
Mesmo se mudarmos a analogia para a de ajustar o foco de uma imagem, o que preserva
o elemento sinóptico e o tema de trabalhar no interior do quadro de referência do já
conhecido enquanto se acrescenta uma dimensão de ganho, há dois aspectos em que a
analogia atrapalha: (a) Ela sugere que as disciplinas especiais são confusas; como se o
cientista tivesse de esperar pelo filósofo para esclarecer seu objeto, torná-lo nítido. Para
dar conta do papel criativo da filosofia, não é necessário dizer que o cientista não sabe
orientar-se em sua própria área. O que devemos dizer, em vez disso, é que o especialista
sabe orientar-se em sua própria vizinhança, considerada como sua vizinhança, mas não
sabe igualmente orientar-se nessa vizinhança considerada como uma parte da paisagem
como um todo.
(b) Ela sugere que a mudança essencial produzida pela filosofia é o desdobramento de
detalhes no interior de uma imagem que é apreendida como um todo desde o começo.
Mas, é claro, na medida em que há uma imagem a ser apreendida reflexivamente como
um todo, a unidade da visão reflexiva é uma tarefa, ao invés de um dado inicial. A busca
por essa unidade no nível reflexivo é, portanto, mais propriamente comparável com a
contemplação de uma pintura grande e complexa que não é vista como uma unidade
sem uma exploração prévia de suas partes. A analogia, contudo, não estará completa até
considerarmos um segundo modo como falta unidade no dado original do filósofo
contemporâneo. Pois ele se defronta não com uma imagem, mas, em princípio, com
duas, e, de fato, com muitas. A pluralidade que tenho em mente não é aquela que
concerne à distinção entre a descoberta de fatos, o ético, o estético, o lógico, o religioso
e outros aspectos da experiência, pois esses não são senão aspectos de uma única
imagem complexa a ser apreendida reflexivamente como um todo. Como tal, ela
constitui um dos termos de uma dualidade crucial com a qual se defronta o filósofo
contemporâneo no exato início de seu empreendimento. Aqui, a analogia mais
apropriada é a visão estereoscópica, em que duas perspectivas diferentes sobre uma
paisagem são fundidas em uma única experiência coerente.
Pois o filósofo não se defronta com uma única imagem complexa multidimensional,
cuja unidade, tal como é, ele deve chegar a apreciar, mas com duas imagens que têm
essencialmente a mesma ordem de complexidade, cada uma das quais pretende ser uma
imagem completa do homem-no-mundo, as quais, após seu escrutínio em separado, ele
deve fundir em uma única visão. Deixem-me referir-me a essas duas perspectivas,
respectivamente, como as imagens manifesta e científica do homem-no-mundo. E
deixem-me explicar meus termos. Em primeiro lugar, ao denominá-las imagens não
pretendo negar a uma delas ou a ambas o status de ‘realidade’. Para usar o termo de
Husserl, estou colocando-as ‘entre parênteses’, transformando-as de modos de
experienciar o mundo em objetos de reflexão e avaliação filosóficas. O termo ‘imagem’
é oportunamente ambíguo. De um lado, sugere o contraste entre um objeto, por exemplo
uma árvore, e a projeção do objeto em um plano, ou sua sombra na parede. Nesse
sentido, uma imagem é tão existente quanto o objeto de que é imagem, embora, é claro,
tenha um status dependente.
No outro sentido, uma ‘imagem’ é algo imaginado, e o que é imaginado pode muito
bem não existir, embora o ato de imaginá-lo exista – nesse caso podemos falar da
imagem como meramente imaginária ou irreal. Mas o imaginado pode existir; como
quando se imagina que alguém está dançando no quarto ao lado e alguém está. Essa
ambiguidade me permite sugerir que o filósofo se defronta com duas projeções do
homem-no-mundo sobre o entendimento humano. Chamarei uma dessas projeções de
imagem manifesta, a outra de imagem científica. Essas imagens existem e fazem parte
tanto quanto esta plataforma ou a Constituição dos Estados Unidos. Mas além de se
defrontar com essas imagens enquanto existentes, ele se defronta com elas no sentido de
‘coisas imaginadas’ – ou, melhor se diga de imediato, concebidas, pois estou usando
‘imagem’ nesse sentido como uma metáfora para concepção, sendo um fato familiar que
nem tudo que pode ser concebido pode, no sentido ordinário, ser imaginado. O filósofo,
pois, se defronta com duas concepções, igualmente públicas, igualmente não-arbitrárias,
do homem-no-mundo e não pode esquivar-se da tentativa de ver como elas se juntam
em uma única visão estereoscópica.
Antes de começar a explicar o contraste entre ‘manifesto’ e ‘científico’ tal como usarei
esses termos, permitam-me deixar claro que ambos são ‘idealizações’ em um sentido
análogo ao sentido em que um corpo sem atrito ou um gás ideal é uma idealização. E
moldados para iluminar a dinâmica interna do desenvolvimento de ideias filosóficas,
como idealizações científicas iluminam o desenvolvimento de sistemas físicos. De um
ponto de vista algo diferente, pode-se compará-los aos ‘tipos ideais’ da sociologia de
Max Weber. A trama se complica pelo fato de cada imagem ter uma história, e embora
os principais contornos do que chamarei de imagem manifesta tenham tomado forma
nas brumas da pré-história, a imagem científica, notas promissórias à parte, tomou
forma diante de nossos próprios olhos.

II. A IMAGEM MANIFESTA


A imagem ‘manifesta’ do homem-no-mundo pode ser caracterizada de dois modos, os
quais são complementares ao invés de alternativos. Ela é, primeiro, o quadro de
referência em termos do qual o homem tornou-se consciente de si mesmo como
homem-no-mundo. É o quadro de referência em termos do qual, para usar de um
fraseado existencialista, o homem primeiramente encontrou a si mesmo – que é, claro,
quando ele tornou-se homem. Pois não é uma faceta meramente incidental do homem
que ele tenha uma concepção de si mesmo como homem-no-mundo, assim como é
óbvio, sob reflexão, que ‘se o homem tivesse uma concepção radicalmente diferente de
si mesmo ele seria uma espécie radicalmente diferente de homem’.
Dei proeminência a essa dimensão quase-histórica de nosso constructo porque pretendo
realçar desde o início o que pode ser chamado de o paradoxo do encontro do homem
consigo mesmo, o paradoxo consistindo no fato de que o homem não poderia ser
homem até ter encontrado a si mesmo. É esse paradoxo que sustenta o derradeiro apelo
da Criação Especial. Seu tema central é a ideia de que o que pode propriamente ser
chamado de pensamento conceitual só pode ocorrer no interior de um quadro de
referência de pensamento conceitual em termos da qual ele pode ser criticado,
defendido, refutado, em suma, avaliado. Ser capaz de pensar é ser capaz de mensurar os
próprios pensamentos segundo parâmetros de correção, de relevância, de evidência.
Nesse sentido, um quadro de referência conceitual diversificado é um todo que, mesmo
de maneira incipiente, é anterior às suas partes, e não pode ser interpretado como algo
composto de partes que já tenham um caráter conceitual. É difícil evitar a conclusão de
que a transição de padrões pré-conceituais de comportamento para o pensamento
conceitual tenha sido holística, um salto a um nível de consciência irredutivelmente
novo, um salto que consistiu no surgimento do homem.
Há uma verdade profunda nessa concepção de uma diferença radical de nível entre o
homem e seus precursores. A tentativa de compreender essa diferença faz parte da
tentativa de abarcar em uma única visão as duas imagens do homem-no-mundo que
comecei a descrever. Pois, como veremos, essa diferença de nível aparece como uma
descontinuidade radical na imagem manifesta, embora como, em um sentido que exige
análise cuidadosa, uma diferença redutível na imagem científica.
Caracterizei a imagem manifesta do homem-no-mundo como o quadro de referência em
termos do qual o homem encontrou a si mesmo. E essa, creio, é uma maneira útil de
caracterizá-la. Mas é também enganosa, pois sugere que o contraste que estou traçando
entre as imagens manifesta e científica corresponde àquele entre uma concepção pré-
científica, acrítica, ingênua do homem-no-mundo, e uma concepção refletida,
disciplinada, crítica – em suma, científica. De modo algum é isso que tenho em mente.
Pois o que entendo como a imagem manifesta é um refinamento ou sofisticação daquela
que poderia ser chamada de imagem ‘original’; um refinamento em um grau que a torna
relevante para a cena intelectual contemporânea. Esse refinamento ou sofisticação pode
ser interpretado sob dois títulos: (a) empírico; (b) categorial.
Por refinamento empírico, entendo o tipo de refinamento operado no interior do quadro
de referência geral da imagem e que, abordando o mundo em termos de algo como os
cânones de inferência indutiva definidos por John Stuart Mill, suplementados pelos
cânones da inferência estatística, realiza uma ampliação ou redução dos conteúdos do
mundo tal como ele é experienciado nos termos desse quadro, assim como uma
ampliação ou redução das correlações que se acredita haver entre tais conteúdos.
Assim, o quadro de referência conceitual que estou chamando de imagem manifesta é,
em um sentido apropriado, ele própria uma imagem científica. Ele não é apenas
disciplinado e crítico; ele também faz uso daqueles aspectos do método científico que
poderiam ser agrupados sob o título ‘indução correlacional’. Há, porém, um tipo de
raciocínio científico que ele, por estipulação, não inclui, a saber, o que envolve a
postulação de entidades imperceptíveis, bem como os princípios que lhes são próprios,
com vistas a explicar o comportamento das coisas perceptíveis.
Isso deixa claro que o conceito da imagem manifesta do homem-no-mundo não é o de
um estágio histórico e ultrapassado no desenvolvimento da concepção que o homem
tem do mundo e de seu lugar nele. Pois é um fato familiar que métodos correlacionais e
postulacionais acompanharam de mãos dadas a evolução da ciência e, na verdade,
estiveram dialeticamente relacionados – hipóteses postulacionais pressupondo
correlações a serem explicadas e sugerindo possíveis correlações a serem investigadas.
A noção de uma visão científica das coisas puramente correlacional é uma ficção tanto
histórica quanto metodológica. Ela envolve abstrair os frutos correlacionais das
condições de sua descoberta e das teorias em termos das quais eles são explicados.
Todavia, ela é uma ficção útil (portanto, não uma mera ficção), pois nos permitirá
definir um modo de ver o mundo que, embora disciplinado e, em um sentido limitado,
científico, nitidamente contrasta com uma imagem do homem-no-mundo que está
implícita nos e pode ser construída a partir dos aspectos postulacionais da teoria
científica contemporânea. E, realmente, o que designei aqui como a imagem ‘científica’
do homem-no-mundo, contrastando-a com a imagem ‘manifesta’, poderia ser melhor
chamada de imagem ‘postulacional’ ou ‘teórica’. Mas, creio, não será demasiado
enganoso se eu continuar, na maior parte do tempo, usando o primeiro termo.
Agora bem, a imagem manifesta é importante para nosso propósito, pois define um dos
polos para os quais a reflexão filosófica foi conduzida. Não são apenas os grandes
sistemas especulativos da filosofia antiga e medieval que são construídos em torno da
imagem manifesta, mas também muitos sistemas e quase-sistemas no pensamento
recente e contemporâneo, alguns dos quais, à primeira vista, parecem ter pouco, se algo,
em comum com os grandes sistemas clássicos. Que eu inclua as principais escolas do
pensamento continental contemporâneo seria esperado. Que eu junte a elas as
tendências da filosofia britânica e americana contemporânea que enfatizam a análise do
‘senso comum’ e da ‘linguagem ordinária’ pode ser um tanto mais surpreendente.
Todavia, esse parentesco tem-se tornado cada vez mais evidente em anos recentes e
creio que as distinções que estou fazendo neste capítulo possibilitarão uma compreensão
e interpretação desse parentesco. Pois todas essas filosofias, creio eu, podem ser de
modo frutífero concebidas como articulações mais ou menos adequadas da imagem
manifesta do homem-no-mundo, articulações tomadas então como uma descrição
completa e adequada, em termos gerais, do que são realmente o homem e o mundo.
Deixem-me desenvolver esse tema introduzindo outro constructo que denominarei –
tomando de empréstimo um termo cujo sentido não é estranho à discussão – a filosofia
perene do homem-no-mundo. Esse constructo, que é o ‘tipo ideal’ em torno do qual
agrupam-se filosofias naquela que pode ser chamada, em sentido suficientemente
amplo, a tradição platônica, é simplesmente a imagem manifesta endossada como real, e
cujos contornos são tomados como um mapa de larga escala da realidade, para o qual a
ciência contribui com um detalhamento refinado e uma elaborada técnica de leitura
cartográfica.
Provavelmente ocorreu-lhes, a essas alturas, que estão subentendidos aspectos negativos
em ambos os constructos: a ‘imagem manifesta’ e a ‘filosofia perene’. E, em certo
sentido, de fato esse é o caso. Eu estou sugerindo que a filosofia perene é análoga ao
que se tem quando se olha por um estereoscópio com um dos olhos dominando a visão.
A imagem manifesta domina e desvia a imagem científica. Mas se a filosofia perene do
homem-no-mundo é nesse sentido distorcida, uma consequência importante se faz à
espreita. Pois também sugeri que o homem é essencialmente aquele ser que concebe a si
mesmo em termos da imagem que a filosofia perene refina e endossa. Pareço, portanto,
estar dizendo que a concepção que o homem tem de si mesmo no mundo não acomoda
facilmente a imagem científica; que há uma tensão genuína entre elas; que o homem não
é tipo de coisa que concebe ser; que sua existência é em alguma medida erigida em
torno de erro. Fosse isso que eu quisesse dizer, estaria em distinta companhia. Pode-se
pensar, por exemplo, em Spinoza, que contrastou o homem como ele falsamente
concebe a si mesmo com o homem tal como ele próprio descobre ser no
empreendimento científico. Poder-se-ia muito bem dizer que Spinoza traçou uma
distinção entre uma imagem ‘manifesta’ e uma imagem ‘científica’ do homem,
rejeitando a primeira como falsa e aceitando a última como verdadeira.
Se na articulação de Spinoza, porém, a imagem científica, como ele a interpreta, domina
a visão estereoscópica (a imagem manifesta aparecendo como um adorno de erro
eliminável na explicação), o próprio fato de eu usar a analogia da visão estereoscópica
sugere que, como a vejo, a imagem manifesta não é sobrepujada na síntese.
Mas para que essas comparações adquiram algum sentido, devo caracterizar essas
imagens como mais detalhes, dando carne aos meros ossos que dispus diante de vocês.
Devotarei o restante dessa seção e a seção III para desenvolver a imagem manifesta.
Nas seções finais, caracterizarei a imagem científica e tentarei descrever alguns
aspectos-chave de como as duas imagens se combinam em uma verdadeira visão
estereoscópica.
Distingui acima entre duas dimensões do refinamento que converteu a imagem
‘original’ na imagem ‘manifesta’: a empírica e a categorial. Nada se disse até aqui sobre
a última. Todavia, é aqui que as coisas mais importantes devem ser ditas. É tendo isso
em vista que serei capaz de descrever a estrutura geral da imagem manifesta.
Uma questão fundamental com respeito a qualquer quadro de referência conceitual é ‘de
que tipo são os objetos básicos do quadro?’. Essa questão envolve, de um lado, o
contraste entre um objeto e o que pode ser verdadeiro sobre ele em termos de
propriedades, relações e atividades; e, de outro, um contraste entre os objetos básicos do
quadro e as várias espécies de grupos que eles podem compor. Os objetos básicos de um
quadro de referência não precisam ser coisas no sentido restrito de objetos físicos
perceptíveis. Assim, os objetos básicos da física teórica atual são notoriamente
imperceptíveis e inimagináveis. Seu caráter básico consiste no fato de que eles não são
propriedades ou agrupamentos de nada mais básico (ao menos em princípio). As
questões, ‘são os objetos básicos do quadro de referência da teoria física como coisas?
e, sendo, em que medida?’ são questões dotadas de significado.
Agora bem, perguntar ‘quais são os objetos básicos de um (dado) quadro de referência?’
não é perguntar por uma lista, mas por uma classificação. E a classificação será mais ou
menos ‘abstrata’ dependendo da finalidade da investigação. O filósofo está interessado
em uma classificação que seja abstrata o bastante para fornecer uma visão sinóptica dos
conteúdos do quadro de referência, mas que não chega a referir-se a eles simplesmente
como objetos ou entidades. Assim, nos aproximamos de uma resposta à questão ‘quais
são os objetos básicos da imagem manifesta?' quando dizemos que ela inclui pessoas,
animais, formas mais simples de vida e coisas ‘meramente materiais’, como rios e
pedras. A lista não pretende ser completa, embora pretenda ecoar os estágios mais
baixos da ‘grande cadeia do ser’ da tradição platônica.
A primeira observação que desejo fazer é que há um importante sentido em que os
objetos primários da imagem manifesta são pessoas. E compreender como seja assim é
compreender temas centrais e, de fato, cruciais da história da filosofia. Talvez a melhor
maneira de apresentar o ponto seja nos reportarmos ao constructo que denominamos a
imagem ‘original’ do homem-no-mundo, caracterizando-a como um quadro de
referência em que todos os ‘objetos’ são pessoas. Desse ponto de vista, o refinamento
da imagem ‘original’ sob a forma da imagem manifesta é a gradual ‘despersonalização’
de objetos que não pessoas. Que algo semelhante tenha ocorrido com o avanço da
civilização é um fato familiar. Mesmo pessoas, diz-se (erroneamente, creio), estão
sendo ‘despersonalizadas’ pelo avanço do ponto de vista científico.
A observação que desejo fazer agora é que embora essa despersonalização gradual da
imagem original seja uma ideia familiar, ela é radicalmente distorcida se for assimilada
ao gradual abandono de uma crença supersticiosa. Um homem primitivo não acreditava
que a árvore à sua frente era uma pessoa, no sentido de pensar nela simultaneamente
como uma árvore e como uma pessoa, assim como eu poderia pensar que este tijolo à
minha frente é um calço de porta. Se fosse assim, abandonada a ideia de que árvores
sejam pessoas o seu conceito de uma árvore poderia manter-se inalterado, embora suas
crenças sobre árvores tenham sido alteradas. A verdade, em vez disso, é que
originalmente ser uma árvore era um modo de ser uma pessoa, assim como, para usar
uma analogia próxima, ser uma mulher é um modo de ser uma pessoa, ou ser um
triângulo é um modo de ser uma figura plana. Que uma mulher seja uma pessoa não é
algo que se possa dizer que alguém acredite; embora o exemplo conte com solavancos
históricos que recomendam usar-se o exemplo distinto de não podermos dizer que
acreditamos que um triângulo seja uma figura plana. Quando os homens primitivos
deixaram de pensar no que nós chamamos árvores como pessoas, a mudança foi mais
radical do que uma mudança de crença; ela foi uma mudança de categoria.
Agora bem, a mente humana não está limitada em suas categorias àquilo que foi capaz
de refinar da visão de mundo do homem primitivo, não mais do que os limites do que
possamos conceber sejam fixados pelo que podemos imaginar. As categorias da física
teórica não são essências destiladas do quadro de referência da experiência perceptual,
ainda que, se a mente humana pode conceber novas categorias, ela também pode refinar
as antigas; e tão importante quanto não superestimar o papel da criatividade no
desenvolvimento do quadro de referência em termos do qual experimentamos o mundo
é não subestimar o papel dela no empreendimento científico.
Indiquei acima que no constructo que denominei a imagem ‘original’ do homem-no-
mundo todos os ‘objetos’ são pessoas e todos os tipos de objetos são modos de ser
pessoas. E permitam-me deixar claro que por ‘pessoas’ não entendo ‘espírito’ ou
‘mente’. A ideia de que um homem seja uma junção de duas coisas, uma mente e um
corpo, é uma ideia para a qual muitas razões de diferentes tipos e pesos foram dadas no
curso do desenvolvimento intelectual humano. Sob reflexão, porém, é óbvio que seja o
que for que filósofos tenham feito da ideia de uma mente a concepção pré-filosófica de
um ‘espírito’, onde quer que se encontre, é a de uma pessoa fantasmática, algo análogo
às pessoas de carne e osso que ela ‘habita’, ou às quais está intimamente conectado de
algum outro modo. Trata-se, portanto, de um desenvolvimento no interior do quadro de
referência de pessoas e seria incorreto interpretar a imagem manifesta de um modo tal
que pessoas sejam objetos compostos. Por outro lado, para funcionar o quadro de
referência manifesto deve ser tal que conceda significado à asserção de que o que
ordinariamente chamamos pessoas são compostos de uma pessoa em sentido próprio e
um corpo – e, ao fazê-lo, conceda significado à visão contrária segundo a qual, embora
o homem tenha diferentes tipos de habilidade, desde aquelas que possui em comum com
as coisas mais inferiores até a habilidade de engajar-se em reflexão científica e
filosófica, ele é, não obstante, é um único objeto e não uma junção de coisas. Pois
veremos que o dualismo essencial da imagem manifesta não é aquele entre mente e
corpo como substâncias, mas entre duas maneiras radicalmente distintas de o indivíduo
humano relacionar-se com o mundo. Todavia, deve-se admitir que a maioria das teorias
filosóficas dominadas pela imagem manifesta são dualistas no sentido substancial. Há
muitos fatores que explicam isso, a maioria dos quais está fora do escopo deste ensaio.
Dos fatores que nos concernem, um diz respeito à influência do desenvolvimento da
imagem científica do homem e será discutido na seção seguinte. O outro surge da
tentativa de dar sentido à imagem manifesta em seus próprios termos.
Agora bem, para compreender a imagem manifesta como um refinamento ou
despersonalização da imagem ‘original’ devemos nos lembrar do rol de atividades
características de pessoas. Com efeito, ao dizer que os objetos da imagem manifesta são
primariamente pessoas, estou sugerindo que aquilo que os objetos desse quadro de
referência primariamente são e fazem é o que pessoas são e fazem. Assim, pessoas são
‘impetuosas’ ou ‘imersas em rotinas’. Elas aplicam velhas práticas ou adotam novas.
Elas fazem coisas pela força do hábito ou ponderam alternativas. Elas são imaturas ou
têm um caráter estável. Para meus presentes fins, os contrastes mais importantes são
aqueles entre ações que são expressões de caráter e ações que não são expressões de
caráter, de um lado, e entre ações habituais e ações deliberadas, de outro. A primeira
observação que quero fazer é que se pode propriamente dizer que age, seja
impulsivamente ou por hábito, apenas um ser capaz de deliberação. Pois no sentido
pleno e não-metafórico uma ação é a espécie de coisa que pode ser feita
deliberadamente. Falamos de ações como tornando-se habituais e isso não é um
acidente. É importante perceber que o uso do termo ‘hábito’ quando se diz que uma
minhoca adquire o hábito de tomar a direita em uma bifurcação é uma extensão
metafórica do termo. Não há nada de perigoso na metáfora até cometer-se o erro de
supor que os hábitos de pessoas são o mesmo tipo de coisa que os ‘hábitos’
(metafóricos) de minhocas e ratos brancos.
Além disso, quando dizemos que algo que uma pessoa fez foi uma expressão do seu
caráter, queremos dizer que isso foi ‘característico’ – que era esperado. Não queremos
dizer que foi uma questão de hábito. Ser habitual é ser ‘característico’, mas o inverso
não é verdadeiro. Dizer sobre uma ação que ela é ‘característica’, que ela era esperada, é
dizer que ela era previsível – não, contudo, previsível ‘sem qualificações’, mas
previsível com respeito a evidências concernentes ao que a pessoa em questão fez no
passado e às circunstâncias em que ela o fez, desde o seu ponto de vista. Assim, uma
pessoa não pode, logicamente não pode, começar agindo ‘caracteristicamente’, não
mais do que pode começar agindo por hábito.
É particularmente importante ver que, embora ser ‘característico’ seja ser previsível, o
inverso não é verdadeiro. Não se segue do fato de que uma porção de comportamento
humano é previsível que ela seja uma expressão de caráter. Assim, o comportamento
que tem diante do fogo uma criança que sofreu uma queimadura é algo previsível, mas
não uma expressão de caráter. Se usamos a locução ‘a natureza de uma pessoa’ para
resumir as previsibilidades sem qualificação que pertencem àquela pessoa, devemos ter
cuidado para não tomar a natureza de uma pessoa como equivalente ao seu caráter,
embora o seu caráter venha a ser uma ‘parte’ da sua natureza no sentido amplo. Assim,
se tudo o que uma pessoa fez era previsível (em princípio) dado suficiente
conhecimento sobre a pessoa e as circunstâncias em que ela estava situada, sendo,
portanto, uma ‘expressão da sua natureza’, disso não se seguiria que tudo o que a pessoa
fez tenha sido uma expressão do seu caráter. Obviamente, dizer sobre uma pessoa que
tudo o que ela faz é uma expressão de seu caráter é dizer que sua vida é simplesmente o
desdobramento de hábitos e práticas já formados. Essa espécie de pessoa é apenas
aproximativamente exemplificada na vida real. Nem mesmo uma pessoa madura age
sempre caracteristicamente. Todavia, se o determinismo é verdadeiro, tudo o que ela
tenha feito terá sido expressão de sua ‘natureza’.
Estou agora em posição de explicar o que quero dizer quando afirmo que os objetos
primários da imagem manifesta são pessoas. Quero dizer que ela é a modificação de
uma imagem em que todos os objetos são capazes do inteiro rol da atividade pessoal, a
modificação consistindo na gradual redução das implicações de dizer, sobre uma coisa
que nós denominaríamos um objeto inanimado, que ela fez algo. Assim, na imagem
original dizer que o vento derrubou a casa de alguém sugeriria que o vento, ou decidiu
fazê-lo com uma finalidade em vista e poderia, talvez, ter sido persuadido a não fazer o
que fez, ou que ele agiu sem pensar (seja por hábito ou impulso), ou talvez
inadvertidamente, em cujo caso outra ação apropriada da vítima poderia tê-lo
despertado para a enormidade do que estava para fazer.
Nos estágios iniciais do desenvolvimento da imagem manifesta, o vento não mais era
concebido como agindo deliberadamente, com um fim em vista, mas antes por hábito ou
impulso. A natureza tornou-se o locus de ‘pessoas truncadas’; o que se poderia esperar
que as coisas fizessem, seus hábitos; o que não exibe ordem alguma, seus impulsos. As
coisas inanimadas não mais ‘faziam’ coisas no sentido em que pessoas as fazem – não,
porém, porque se alcançara uma nova categoria de coisas impessoais e processos
impessoais, mas porque a categoria de pessoa é agora aplicada a essas coisas de uma
forma podada ou truncada. É de um exagero notável dizer, sobre uma pessoa, que ela é
uma ‘mera criatura de hábitos e impulsos’, mas nos estágios iniciais do
desenvolvimento da imagem manifesta o mundo inclui pessoas truncadas que são meras
criaturas do hábito, agindo de acordo com rotinas – quebradas por impulsos – em uma
vida que nunca ultrapassa o que as nossas vidas são em nossos momentos mais
irrefletidos. Finalmente, retirou-se do sentido em que o vento ‘fez’ coisas, salvo para
fins poéticos e expressivos – e, alguém será tentado a acrescentar, para fins filosóficos –
quaisquer implicações atinentes a ‘saber o que se está fazendo’ e ‘saber quais são as
circunstâncias’.
Do mesmo modo que é importante não confundir o ‘caráter’ com a ‘natureza’ de uma
pessoa, vale dizer, entre uma ação ser previsível diante de evidências relativas a ações
prévias e ser previsível sem qualificações, também é importante não confundir entre
uma ação ser previsível e ser causada. Esses termos são frequentemente tratados como
sinônimos, mas apenas confusão pode surgir daí. Assim, na imagem ‘original’, uma
pessoa é causa de outra pessoa fazer algo que do contrário não teria feito. Mas a maioria
das coisas que as pessoas fazem não são coisas que essas pessoas são causalmente
determinadas a fazer [not things they are caused to do], mesmo se aquilo que elas fazem
seja altamente previsível. Por exemplo, quando uma pessoa tem hábitos bem-
estabelecidos, o que ela faz em certas circunstâncias é altamente previsível, mas não é
em razão disso algo causado. Assim, a categoria de causação (enquanto contrastada
com a categoria mais inclusiva de previsibilidade) trai sua origem na imagem ‘original’.
Quanto todas as coisas eram pessoas, por certo não era uma concepção do quadro de
referência que tudo o que uma pessoa fizesse fosse causado; nem, é claro, era um
princípio desse quadro de referência que tudo o que uma pessoa fizesse era previsível.
Na medida em que relações entre as ‘pessoas’ truncadas do quadro de referência
manifesto seriam análogas às relações causais entre pessoas, a própria categoria
continuou a ser usada, embora podada de suas implicações com respeito a planos,
propósitos e diretivas. No nível inanimado, o análogo mais óbvio de causação no
sentido original é uma bola de bilhar causando na outra a mudança de seu curso, mas é
importante notar que ninguém que distinga entre causação e previsibilidade perguntaria
‘qual a causa de uma bola de bilhar continuar em uma linha reta em uma mesa lisa?’. O
traço distintivo da revolução científica foi a convicção de que todos os eventos são
previsíveis com base em informação relevante sobre o contexto em que eles ocorrem,
não que eles sejam todos, em qualquer sentido ordinário, causados.
III. A FILOSOFIA CLÁSSICA E A IMAGEM MANIFESTA
Caracterizei o conceito de imagem manifesta como um dos polos em direção dos quais é
conduzido o pensamento filosófico. Isso me compromete, claro, com a ideia de que a
imagem manifesta não é um mero padrão externo em relação ao qual alguém
interessado no desenvolvimento da filosofia classifica posições filosóficas, mas tem à
sua maneira uma existência objetiva no próprio pensamento filosófico e, na verdade, no
pensamento humano em geral. E ela pode influenciar o pensamento filosófico apenas
tendo uma existência que transcende de alguma maneira o pensamento individual de
indivíduos pensantes. Voltarei-me para esse tema em breve e perguntarei como uma
imagem do mundo, a qual, afinal, é um modo de pensar, pode transcender o indivíduo
pensante que ela influencia. (As linhas gerais da resposta devem ser óbvias, mas ela tem
implicações que nem sempre são extraídas.) O que desejo sustentar agora é que, dado
que essa imagem tem um ser que transcende o indivíduo pensante, há verdade e erro
com respeito a ela, mesmo que a própria imagem tenha de ser rejeitada, em última
análise, como falsa.
Assim, seja ou não o mundo como o encontramos na percepção e na autoconsciência
algo em última instância real, é decerto incorreto, por exemplo, afirmar como alguns
filósofos fizeram que os objetos físicos do mundo encontrado são ‘complexos de
sensações’ ou, igualmente, dizer que as maçãs não são realmente coloridas, ou que os
estados mentais são ‘disposições comportamentais’, ou que alguém não pode ter a
intenção de fazer algo sem saber que tem tal intenção, ou que dizer que uma coisa é boa
é dizer que se gosta dela, etc. Pois há um modo correto e um modo incorreto de
descrever essa imagem objetiva que temos do mundo em que vivemos, e é possível
avaliar a correção ou incorreção de tal descrição. Já sustentei que muito da filosofia
acadêmica pode ser interpretado como uma tentativa por indivíduos pensantes de figurar
a imagem manifesta (não reconhecida como tal, desnecessário dizer), uma imagem que
é igualmente imanente no e transcendente ao seu pensamento. Com respeito a isso, uma
filosofia pode ser avaliada como perceptiva ou imperceptiva, errônea ou correta, ainda
que se esteja preparado para dizer que a imagem que elas figuram é apenas um modo
como a realidade aparece à mente humana. E de fato é uma tarefa de primeira
importância figurar essa imagem, particularmente na medida em que ela concerne ao
próprio homem, pois, como foi assinalado anteriormente, o homem é o que ele é porque
pensa a si mesmo em termos dessa imagem, e a última tem que ser compreendida antes
que seja adequado perguntar ‘em que medida o homem manifesto sobrevive na visão
sinóptica que faz igual justiça à imagem científica que ora nos confronta?’.
Penso ser correto dizer que a assim chamada tradição ‘analítica’ na filosofia britânica e
americana recente, particularmente sob a influência do último Wittgenstein, tem feito
crescente justiça à imagem manifesta e tem crescentemente logrado em isolá-la como
que em sua forma pura, tornado claro o desatino de tentar substituí-la gradativamente
por fragmentos da imagem científica. Ao fazê-lo, ela tornou evidente e veio a perceber
sua continuidade com a tradição perene.
Agora bem, uma das mais interessantes facetas da filosofia perene é sua tentativa de
entender o status, no indivíduo pensante, do quadro de ideias em termos do qual ele
apreende a si mesmo como uma pessoa no mundo. Como indivíduos tornam-se capazes
de pensar em termos desse complexo quadro de referência conceitual? Como eles
chegam a dispor dessa imagem? Duas coisas devem ser notadas aqui: (1) A imagem
manifesta não apresenta o pensamento conceitual como um complexo de itens que,
considerados em si mesmos e apartados dessas relações, não têm caráter caráter
conceitual. (Os mais plausíveis candidatos são imagens, mas todas as tentativas de
interpretar pensamentos como padrões complexos de imagens falharam e, como
sabemos, estavam fadadas a falhar.) (2) Seja quais forem os constituintes últimos de
pensamento conceitual, o próprio processo, tal como ocorre na mente individual, deve
ecoar, mais ou menos adequadamente, a estrutura inteligível do mundo.
Havia, claro, a forte tentação não apenas de pensar os constituintes do pensar como
qualitativamente similares aos constituintes do mundo, mas também pensar o mundo
como determinando causalmente que constituintes ocorram em padrões que ecoam os
padrões de eventos. A tentativa, por precursores da psicologia científica, de
compreender a gênese do pensamento conceitual no indivíduo em termos de uma
‘associação’ de processos elementares que não sejam eles próprios conceituais, por uma
ação direta do ambiente físico sobre o indivíduo - o caso paradigmático consistindo na
criança queimada que teme o fogo - foi uma tentativa prematura de construir uma
imagem científica do homem.
A tradição perene não tinha simpatia por tais tentativas. Ela reconheceu (a) que a
associação de pensamentos não é uma associação de imagens e uma vez que pressupõe
um quadro de pensamento conceitual não pode explicá-lo; (b) que a ação direta da
natureza perceptível, enquanto perceptível, sobre o indivíduo pode explicar a conexão
associativa, mas não as conexões racionais do pensamento conceitual.
Contudo, de algum modo o mundo é a causa da imagem que o indivíduo tem do mundo,
e, como é bem sabido, por séculos a concepção dominante da tradição perene foi a de
uma influência causal direta do mundo, enquanto inteligível, sobre a mente individual.
Esse tema, iniciado por Platão, pode ser rastreado através do pensamento ocidental até
os dias de hoje. Na tradição platônica esse modo de causação é atribuído a um ser que é
análogo, em maior ou menor grau, a uma pessoa. Mesmo o aristotélico distingue entre o
modo em que sensações tornam a estrutura inteligível das coisas disponível ao homem e
o modo como contingências da experiência perceptual estabelecem expectativas e
permitem uma acomodação não-racional dos animais ao seu ambiente. E como hoje
sabemos, embora a realidade seja a ‘causa’ do pensamento conceitual humano que a
representa, esse papel causal não pode ser considerado equivalente a um
condicionamento do indivíduo por seu ambiente de um modo que poderia em princípio
se dar sem a mediação da família e da comunidade. A concepção de estilo ‘Robinson
Crusoé’, segundo a qual o mundo gera o pensamento conceitual diretamente no
indivíduo é um modelo simples demais. A tradição perene por longo tempo limitou-se a
dar conta da presença do quadro de referência do pensamento conceitual no indivíduo
em termos de um tipo único de ação da realidade, enquanto inteligível, sobre a mente
individual. As tentativas diferiram sob aspectos interessantes, mas seu principal ônus
permaneceu o mesmo. Foi apenas nos tempos de Hegel que o papel essencial do grupo
enquanto um fator de mediação dessa causação foi reconhecido, e embora seja fácil para
nós ver que a imanência e a transcendência de quadros de referência conceituais com
respeito ao indivíduo pensante é um fenômeno social, bem como encontrar um
reconhecimento desse fato implícito na própria forma de nossa imagem do homem no
mundo, foi apenas no século dezenove que essa faceta da imagem manifesta foi levada
em conta, mesmo que de maneira inadequada.
A teoria platônica das habilidades conceituais como o resultado da ‘iluminação’ da
mente por essências inteligíveis limitou o papel do grupo e, em particular, da família ao
de chamar essas habilidades ao exercício – um papel que poderia, em princípio, se
exercido pela experiência perceptual – e ao de ensinar os meios de dar expressão verbal
a essas habilidades. Todavia, o caráter essencialmente social do pensamento conceitual
vem claramente à mente quando reconhecemos que não há pensamento desvencilhado
de padrões comuns de correção e relevância, que relacionam o que eu de fato penso ao
que qualquer deve pensar. O contraste entre ‘eu’ e ‘qualquer um’ é essencial ao
pensamento racional.
É prática corrente comparar os padrões intersubjetivos sem os quais não há pensamento
ao padrões intersubjetivos sem os quais não há algo como um jogo; e a aquisição de um
quadro de referência conceitual a aprender a jogar um jogo. Vale notar, porém, que o
pensamento conceitual é um jogo único sob dois aspectos: (a) não se pode aprender a
jogá-lo sendo informado das regras; (b) seja o que for o que pensamento conceitual
possibilite adicionalmente – e sem ele não pode haver nada caracteristicamente humano
– ele o faz em virtude de conter um modo de representar o mundo.
Quando disse que o indivíduo enquanto pensador conceitual é essencialmente um
membro de um grupo, isso não significa, claro, que o indivíduo não possa existir à parte
do grupo – por exemplo, como o único sobrevivente de uma catástrofe atômica –, assim
como o fato de que o xadrez é um jogo jogado por duas pessoas não significa que não se
possa jogar xadrez sozinho. Um grupo não é um grupo no sentido relevante a menos
que consista de vários indivíduos, cada um dos quais pensa a si mesmo como ‘eu’ em
contraste com ‘outros’. Assim, um grupo existe da maneira como os membros do grupo
representam a si mesmos. O pensamento conceitual não é por acidente aquilo que é
comunicado aos outros, assim como a decisão de mover uma peça de xadrez não é por
acidente aquilo que encontra expressão em um movimento de tabuleiro em um jogo
entre duas pessoas.
A imagem manifesta deve, portanto, ser interpretada como contendo uma concepção de
si mesma como um fenômeno de grupo, o qual faz a mediação entre o indivíduo e a
ordem inteligível. Mas qualquer tentativa de explicar essa mediação no interior do
quadro de referência da imagem manifesta estava fadada ao fracasso, pois a imagem
manifesta contém os recursos para uma tal tentativa apenas no sentido de fornecer a
fundação sobre a qual uma teoria científica pode construir um quadro de referência
explicativo; e embora as estruturas conceituais desse quadro de referência sejam
construídas sobre a imagem manifesta, elas não são definíveis em seu interior. Assim, o
hegeliano, como o platônico do qual ele é um herdeiro, via-se limitado à tentativa de
compreender a relação entre a ordem inteligível e as mentes individuais em termos
analógicos.
É na imagem científica do homem no mundo que começamos a enxergar os contornos
principais de como o homem veio a ter uma imagem de si-mesmo-no-mundo. Pois
começamos a enxergá-lo como uma questão de desenvolvimento evolucionário
enquanto fenômeno de grupo, um processo ilustrado, em um nível mais simples, pelo
desenvolvimento evolucionário que explica a correspondência entre a dança de uma
abelha operária e a localização, relativa ao sol, da flor de onde chegou. Essa
correspondência, como a relação entre a imagem ‘original’ do homem e o mundo, não
pode ser explicada em termos de um impacto do ambiente que diretamente condiciona o
indivíduo enquanto tal.
Chamei a atenção para o fato de que a imagem manifesta envolve dois tipos de impacto
causal do mundo sobre o indivíduo. Como havia assinalado, é essa dualidade de
causação – e a associada irredutibilidade, no interior da imagem manifesta, do
pensamento conceitual em todas as suas formas a processos mais elementares – que
constitui o dualismo primário e essencial da filosofia perene. A concepção dualista de
mente e corpo característica (mas de modo algum uma faceta invariável) da philosophia
perennis é em parte uma inferência a partir desse dualismo de causação e de processo.
Em parte, contudo, como veremos, é um resultado do impacto de certos temas presentes
mesmo nos menores estágios da imagem científica em desenvolvimento.
A preocupação primária deste ensaio é com a questão ‘em que sentido e em que medida
a imagem manifesta do homem-no-mundo sobrevive à tentativa de unir essa imagem
em um único campo de visão intelectual com o homem concebido em termos dos
objetos postulados da teoria científica? O peso dessa questão reside, como vimos, no
fato de que o homem é aquele ser que concebe a si mesmo em termos da imagem
manifesta. Na medida em que a visão manifesta não sobrevive na visão sinóptica, nessa
medida o próprio homem não sobrevive. Se a adoção da visão sinóptica transformaria o
homem servil em homem livre, como acreditava Spinoza, ou o homem livre em homem
servil, como muitos temem, é uma questão que propriamente não emerge até que as
alegações da imagem científica tenham sido examinadas.
IV. A IMAGEM CIENTÍFICA
Nas seções anteriores, devotei minha atenção a definir o que denominei a imagem
‘manifesta’ do homem-no-mundo. Argumentei que essa imagem deve ser interpretada
como uma sofisticação e um refinamento da imagem em termos da qual o homem
tornou-se primeiramente consciente de si mesmo como homem-no-mundo; em poucas
palavras, tornou-se homem. Apontei que em qualquer sentido no qual tal imagem, por
pertencer ao homem, seja uma imagem ‘falsa’, tal falsidade ameaça o próprio homem,
na medida em que ele é, em um sentido importante, o ser que tem tal imagem de si
mesmo. Argumentei que o que vem sendo chamado de tradição perene em filosofia –
philosophia perennis – pode ser compreendido como a tentativa de entender a estrutura
dessa imagem, saber orientar-se nela reflexivamente sem limitações intelectuais.
Analisei alguns dos principais traços da imagem e mostrei como as categorias em
termos das quais ela aborda o mundo podem ser compreendidas como progressivas
retiradas de categorias pertencentes à pessoa e à sua relação com outras pessoas e o
grupo. Argumentei que a tradição perene deve ser compreendida como incluindo não
apenas a tradição platônica no seu sentido mais amplo, mas filosofias do ‘sentido
comum’ e da ‘linguagem ordinária’. Argumentei que o que é comum a todas essas
filosofia é a aceitação da imagem manifesta como a real. Elas tentam entender as
conquistas da ciência teórica em termos desse quadro de referência, subordinando as
categorias da ciência teórica às suas categorias. Sugeri que a maneira mais frutífera de
abordar o problema de integrar a ciência teórica com quadro de referência do senso
comum sofisticado em uma visão sinóptica compreensiva é ver isso não como uma
tarefa gradativa – por exemplo, primeiro uma adequação mútua entre a concepção do
senso comum acerca dos objetos físicos e aquela da física teórica, e então, como uma
iniciativa separada, uma adequação mútua entre a concepção do senso comum acerca do
homem e aquela da psicologia teórica –, mas antes como uma questão de articular dois
modos inteiros de ver o conjunto das coisas, duas imagens do homem-no-mundo, e
tentar reuni-las em uma visão ‘estereoscópica’.
Meu presente propósito é acrescentar ao tratamento que dei da imagem manifesta um
esboço comparável do que denominei a imagem científica e concluir este ensaio com
alguns comentários sobre as respectivas contribuições das duas à visão unificada do
homem-no-mundo que é o objetivo da filosofia.
A imagem científica do homem-no-mundo é, claro, uma idealização tanto quanto a
imagem manifesta – e mesmo mais, por estar ainda no processo de vir a ser. É oportuno
lembrar que o contraste que tenho em mente não é entre uma concepção não-científica
do homem-no-mundo e uma científica, mas entre a concepção que se limita ao que
técnicas correlacionais podem nos dizer sobre eventos perceptíveis e introspectíveis e
aquela que postula objetos e eventos imperceptíveis com a finalidade de explicar
correlações entre perceptíveis. Concedeu-se, claro, que no tocante aos fatos históricos
muitas das correlações posteriores foram sugeridas por teorias introduzidas para
explicar correlações previamente estabelecidas, de sorte que houve uma interação
dialética entre procedimentos correlacionais e postulacionais. (Assim, poderíamos não
ter notado que o papel de tornassol torna-se vermelho em contato com ácidos até que
essa hipótese tenha sido sugerida por uma teoria complexa relacionando a absorção e
emissão de radiação eletromagnética pelos objetos à sua composição química;
entretanto, essa correlação familiar poderia em princípio ter sido e, de fato, foi
descoberta antes de qualquer teoria do tipo ser desenvolvida.) Nosso contraste, portanto,
é entre dois constructos ideais: (a) o refinamento correlacional e categorial da ‘imagem
original’, refinamento que estou chamando de imagem manifesta; (b) a imagem
derivada dos frutos da construção teórica postulacional que estou chamando de imagem
científica.
Pode-se objetar neste momento que não há tal coisa como a imagem do homem
construída a partir de entidades e processos postulados, mas antes tantas imagens
quantas são as ciências em contato com aspectos do comportamento humano. E, claro,
em um sentido isso é verdade. Há tantas imagens científicas quantas são as ciências que
tem algo a dizer sobre o homem. Assim, há o homem tal como ele aparece ao físico
teórico – um turbilhão de partículas, forças e campos físicos. Há o homem tal como ele
aparece ao bioquímico, ao fisiologista, ao estudioso do comportamento, ao cientista
social; e todas essas imagens devem ser contrastadas com o homem tal como aparece a
si mesmo no senso comum sofisticado, a imagem manifesta que ainda hoje contém a
maior parte do que ele sabe sobre si mesmo em um nível propriamente humano. Assim,
a concepção do que seja a imagem científica ou postulacional é uma idealização, no
sentido de ser uma concepção de uma integração de um variegado de imagens, cada
uma das quais é a aplicação ao homem de um quadro de conceitos que tem uma certa
autonomia. Pois cada teoria científica é, do ponto de vista metodológico, uma estrutura
construída em um ‘lugar’ diferente através de diferentes procedimentos no interior do
mundo intersubjetivamente acessível de coisas perceptíveis. Assim, ‘a’ imagem
científica é um constructo a partir de várias imagens, cada uma das quais é sustentada
pelo mundo manifesto.
56. O fato de que cada imagem teórica seja uma construção sobre uma fundação
proporcionada pela imagem manifesta e, nesse sentido metodológico, pressuponha a
imagem manifesta, torna tentador supor que a imagem manifesta seja anterior em um
sentido substantivo; que as categorias de uma ciência teórica sejam logicamente
dependentes de categorias pertencentes à sua fundação metodológica no mundo
manifesto do senso comum sofisticado de uma maneira tal que haveria um absurdo
noção de um mundo que exemplifique seus princípios teóricos sem também
exemplificar as categorias e princípios do mundo manifesto. Entretanto, quando
voltamos nossa atenção sobre a imagem científica que emerge de diversas imagens
próprias às diversas ciências, notamos que embora a imagem seja metodologicamente
dependente do mundo do senso comum sofisticado e, nesse sentido, não se erga com
seus próprios pés, ainda assim ela pretende ser uma imagem completa, isto é, definir um
quadro de referência que seria a inteira verdade sobre aquilo que pertence à imagem.
Assim, embora metodologicamente um desenvolvimento no interior da imagem
manifesta, a imagem científica apresenta-se como uma imagem reval. Desse ponto de
vista a imagem manifesta sobre a qual repousa é um símile “inadequado” mas
pragmaticamente útil de uma realidade que encontra pela primeira vez seu símile (em
princípio) adequado na imagem científica. Digo ‘em princípio’ porque a imagem
científica ainda está no processo de vir a ser – um ponto ao qual retornarei na conclusão
deste capítulo.
57. A tudo isso, é claro, a imagem manifesta ou, de maneira mais acurada, a
filosofia perene que endossa suas alegações retruca que a imagem científica não pode
substituir a manifesta sem rejeitar sua própria fundação.
58. Mas antes de tentar lançar alguma luz sobre as alegações conflitantes dessas
duas perspectivas de mundo, mais deve ser dito sobre a constituição daquela que é a
imagem científica a partir de diversas imagens científicas das quais ela é a suposta
integração. Há relativamente pouca dificuldade em condensar algumas das imagens
“parciais” em uma imagem. Assim, com a devida precaução, podemos unificar as
imagens bioquímica e física; pois fazê-lo requer apenas que se aprecie o sentido em que
os objetos do discurso bioquímico podem ser equiparados a padrões complexos dos
objetos da física teórica. Realizar essa equivalência, claro, não é equiparar as ciências,
pois enquanto ciências elas têm diferentes procedimentos e conectam suas entidades
teóricas mediante diferentes instrumentos a facetas intersubjetivamente acessíveis do
mundo manifesto. Mas diversidade dessa espécie é compatível com a “identidade”
intrínseca das próprias entidades teóricas, isto é, com a afirmação de que compostos
bioquímicos são “idênticos” a padrões de partículas subatômicas. Pois realizar essa
“identificação” é simplesmente dizer que as duas estruturas teóricas, cada uma com sua
própria conexão com o mundo perceptível, poderiam ser substituídas por um quadro de
referência teórico conectado em dois níveis de complexidade mediante diferentes
instrumentos e procedimentos ao mundo enquanto percebido.
59. Distingui acima entre a unificação de entidades postuladas próprias a duas
ciências e a unificação das ciẽncias. É também necessário distinguir entre a unificação
das entidades teóricas de duas ciências e a unificação dos princípios teóricos das duas
ciências. Pois embora dizer que substâncias bioquímicas são complexos de partículas
físicas seja em um sentido importante sustentar, por implicação, que as leis obedecidas
por substâncias bioquímicas são “casos especiais” das leis obedecidas por partículas
físicas, há um perigo real de que o sentido em que isso se dá seja mal-compreendido.
Obviamente, um padrão específico de partículas físicas não pode obedecer em
bioquímica leis diferentes das que obedece em física. Pode, contudo, ser o caso que o
comportamento de padrões muito complexos de partículas físicas não encontre qualquer
relação simples com o comportamento de padrões menos complexos. Assim, pode
muito bem ser o caso que o único modo como as leis concernentes àqueles padrões
complexos de partículas que são compostos bioquímicos poderiam ser descobertas seja
através das técnicas e procedimentos da bioquímica, isto é, técnicas e procedimentos
apropriados para lidar com substâncias bioquímicas.
60. Há, consequentemente, uma ambiguidade no enunciado: As leis da bioquímica
são “casos especiais” das leis da física. Isso pode significar: (a) a bioquímica não
necessita de variáveis que não possam ser definidas em termos das variáveis da física
atômica; (b) as leis relativas a certos padrões complexos de partículas subatômicas,
contrapartes de compostos bioquímicos, são relacionadas de um modo simples a leis
concernentes a padrões menos complexos. A primeira, claro, é a única proposição à qual
se está comprometido pela identificação dos objetos teóricos das duas ciências no
sentido descrito acima.
61. Considerações similares se aplicam, mutatis mutandis, às imagens fisiológica e
bioquímica do homem. Fundi-las em uma única imagem seria mostrar que entidades
fisiológicas (em particular, neurofisiológicas) podem ser equiparadas com sistemas
bioquímicos complexos e, portanto, que no sentido mais fraco, pelo menos, os
princípios teóricos concernentes às primeiras podem ser interpretados como “casos
especiais” dos princípios concernentes às últimas.
62. Problemas mais interessantes surgem quando consideramos qual seria o lugar do
homem tal é como concebido na ciência comportamental no interior da imagem
científica. Em primeiro lugar, o termo ‘psicologia comportamental’ tem mais de um
significado e é importante, para nossos fins, ver que em pelo menos um sentido do
termo seu lugar não é na imagem científica (no sentido em que estou usando o termo),
mas antes na incessante sofisticação correlacional da imagem manifesta. A psicologia é
comportamental no sentido amplo, se, embora se permita o uso da total gama de
conceitos psicológicos pertencentes ao quadro manifesto, ela sempre confirma hipóteses
sobre eventos psicológicos em termos de critérios comportamentais. Ela não tem
quaisquer ansiedades com respeito aos conceitos de sensação, imagem, sentimento,
pensamento consciente ou inconsciente, todos os quais pertencem ao quadro manifesto;
mas requer que a ocorrência de dor, por exemplo, seja afirmada apenas sobre bases
comportamentais. O comportamentalismo, assim compreendido, é simplesmente bom
senso. Não é necessário redefinir a linguagem dos eventos mentais em termos de
critérios comportamentais para ser verdadeiro que o comportamento observável fornece
evidência de eventos mentais. E, claro, mesmo no mundo do senso comum, mesmo na
imagem manifesta, o comportamento perceptível é a única evidência intersubjetiva de
eventos mentais.
63. Claramente, o “comportamentalismo” nesse sentido não nos impede de prestar
atenção ao que as pessoas dizem sobre si mesmas. Pois usar enunciados
autobiográficos como evidência do que uma pessoa está pensando e sentindo é diferente
de simplesmente concordar com esses enunciados. É parte da força de enunciados
autobiográficos no discurso ordinário – não sem relação com a maneira como as
crianças aprendem a fazê-los – que, mantido tudo o mais igual , se uma pessoa diz ‘eu
estou em um estado ψ’, é razoável acreditar que ela está em um estado ψ; a
probabilidade indo de quase certeza no caso de ‘estou com dor-de-dente’ a
consideravelmente menos certeza no caso de ‘eu não odeio o meu irmão’. O desprezo
de comportamento verbal e não-verbal como evidência não se limita a psicólogos
profissionais.
64. Assim, o comportamentalismo no primeiro sentido é simplesmente uma sofisticação
no interior do quadro manifesto, contando com evidências preexistentes de correlações
entre comportamentos verbais e não-verbais publicamente observáveis, de um lado, e
estados e processos mentais, de outro, e deve, portanto, ser considerado como
pertencente à imagem manifesta em vez de à científica, tal como defini esses termos. O
comportamentalismo em um segundo sentido não apenas restringe sua base de
evidências ao comportamento publicamente observável, mas concebe sua tarefa como a
de encontrar correlações entre constructos que introduz e define em termos de
características publicamente acessíveis do organismo e seu ambiente. A questão
interessante aqui é: ‘Há razão para pensar que um quadro de correlação entre
constructos desse tipo poderia constituir uma compreensão científica do comportamento
humano?’. A resposta a essa questão depende em parte de como ela é interpretada, e é
importante ver por que é assim.
65. Considere primeiramente o caso do comportamento animal. Obviamente,
sabemos que animais são sistemas fisiológicos complexos e, do ângulo de uma
abordagem mais minuciosa, sistemas bioquímicos. Significa isso que uma ciência do
comportamento animal deve ser formulada em termos neurofisiológicos ou
bioquímicos? Há um sentido em que a resposta é ‘obviamente não’. Trazemos ao nosso
ciência do comportamento animal um conhecimento de fundo [background knowledge]
acerca de algumas das variáveis de larga escala relevantes para a descrição e a predição
do comportamento de animais em relação com seus ambientes. O fato de que essas
variáveis de larga escala (o tipo de coisas que são agrupadas sob títulos como
‘estímulo’, resposta’, ‘comportamento-fim’, ‘privação’, etc.) são tais que podemos
compreender o comportamento do animal em termos delas é algo não apenas sugerido
por nosso conhecimento de fundo, mas, na verdade, é explicado pela teoria evolutiva.
Mas as próprias correlações podem ser descobertas por procedimento estatísticos; e,
claro, é importante estabelecer essas relações. Sua descoberta e confirmação pelos
procedimentos da ciência comportamental devem, claro, ser distinguidas de sua
explicação em termos das entidades e processos postulados pela neurofisiologia. E, de
fato, embora essas considerações fisiológicas possam sugerir correlações a serem
testadas, as próprias correlações devem ser passíveis de estabelecimento
independentemente de considerações fisiológicas, se – e esse é o ponto “definicional” –
elas pertencem a uma ciência distinta do comportamento.
66. Assim, se entendermos por ‘ciência do comportamento das minhocas’ o
estabelecimento de correlações em termos de larga escala acerca da minhoca e seu
ambiente, pode não haver muito dele, pois uma correlação não pertence ao “ciência do
comportamento de minhocas” a menos que seja uma correlação nesses termos de larga
escala. Por outro lado, é óbvio que nem toda verdade científica sobre minhocas é parte
de uma ciência do comportamento das minhocas, a menos que o último termo seja tão
esticado a ponto de ser privado de seu sentido distintivo. Segue-se que não se pode
explicar tudo o que uma minhoca faz em termos da ciência do comportamento das
minhocas assim definida. A ciência do comportamento das minhocas funciona no
interior de um conhecimento de fundo das “condições-padrão” – condições nas quais
correlações em termos de categorias de comportamento de minhocas são suficientes
para explicar e prever o que minhocas fazem, na medida em que seja possível descrevê-
lo segundo essas categorias. Esse conhecimento de fundo é obviamente uma parte
essencial da compreensão científica do que as minhocas fazem, embora não uma parte
da ciência do comportamento das minhocas, pois é simplesmente a aplicação às
minhocas da física, da química, da parasitologia, da medicina e da neurofisiologia.
67. Devemos também levar em consideração o fato de que a maioria dos constructos
da ciência correlacional do comportamento serão propriedades “se” [iffy] de
organismos, propriedades tais que, se em dado momento certo estímulo ocorresse, certa
resposta se daria. Assim, para usar um exemplo de outra área, podemos traçar uma
correlação entre aplicar-se uma corrente elétrica em uma espiral em forma de mola na
qual inseriu-se um pedaço de ferro e a propriedade “se” de ser tal que, se limalha de
ferro fosse colocada perto dela, seria atraída.
68. Agora bem, pode ou não ser útil em dado momento do desenvolvimento
científico supor que propriedades “se” de organismos estão conectadas com estados de
sistemas postulados de entidades que operam de acordo com certos princípios
postulados. É útil se as entidades postuladas forem suficientemente específicas e
possam ser contectadas a uma suficiente diversidade de variáveis comportamentais de
larga escala para possibilitar a predição de novas correlações. A utilidade metodológica
de procedimentos postulacionais para a ciência do comportamento de organismos
inferiores foi, talvez, exagerada, primariamente porque até recentemente pouco se sabia
em neurofisiologia apropriado a lançar luz sobre correlações no nível de larga escala da
ciência do comportamento. Na ciência do comportamento humano, contudo, a situação
tem sido um tanto diferente desde o princípio, pois uma faceta do comportamento
caracteristicamente humano é que dois itens sucessivos de comportamento observável
envolvem essencialmente fatos “se” complexos, muito complexos, sobre o que a pessoa
teria dito ou feito em certo momento intermediário se lhes fossem feitas certas questões;
e acontece que nosso conhecimento de fundo torna razoável a suposição de que esses
fatos “se” ocorrem porque está acontecendo um processo interno que é, sob
importantes aspectos, análogo ao comportamento verbal aberto, cada estágio do qual
encontraria uma expressão natural no discurso aberto. Esse é um ponto ao qual
retornarei posteriormente.
69. Assim, realmente se mostra útil na ciência do comportamento humano posular
uma sequência interna de eventos a fim de interpretar o que poderia em princípio ser
austeramente formulado como correlações entre estados e propriedades
comportamentais, incluindo as muito importantes, de fato essenciais, propriedades “se”.
Mas (e esse é um ponto importante) os episódios postulados não são postulados sobre
bases neurofisiológicas – pelo menos isso não era verdade até muito recentemente –,
mas em razão de nosso conhecimento de fundo de que algo análogo ao discurso está se
dando enquanto as pessoas estão sentadas “como estátuas”.
70. Para nossos presentes fins, não faz muita diferença se dissermos que a ciência do
comportamento humano enquanto tal postula processos internos análogos à fala ou que,
seja qual for sua contribuição para a explicação ou a descoberta, esses processos caem
por definição fora dos limites da ciência do comportamento propriamente dita. Quer ou
não a ciência do comportamento humano inclua, como uma ciência distintiva, quaisquer
enunciados sobre entidades postuladas, as correlações que ela estabelece devem
encontrar suas contrapartidas na imagem postulacional, como vimos ser verdade no caso
das correlações estabelecidas pela ciência do comportamento das minhocas. Assim, a
explicação científica do comportamento humano deve levar em conta aqueles casos em
que as correlações características do organismo em circunstâncias “normais” se
quebram. E, de fato, nenhum cientista do comportamento negaria que as correlações que
ele procura e estabelece são em algum sentido as contrapartidas de conexões
neurofisiológicas e, consequentemente, bioquímicas, nem que as últimas são casos
especiais em um espectro de conexões bioquímicas (pertencentes aos organismos
humanos), muitas das quais são refletidas em fenômenos observáveis que, sob o ângulo
da ciência do comportamento, representam quebras na explicação. Por conseguinte,
suporei provisoriamente que embora a ciência do comportamento e a neurofisiologia
permaneçam ciências distintas, o conteúdo correlacional da ciência do comportamento
aponta para uma estrutura de processos e princípios postulados que se unificam junto
com aqueles da teoria neurofisiológica, com todas as consequências que daí se seguem.
Sob essa suposição, se rastrearmos essas consequências a imagem científica do homem
se revelará a de um sistema físico complexo.
V. O CONFLITO DAS IMAGENS
71. Como, então, devemos avaliar as alegações conflitantes da imagem manifesta e
da imagem científica, provisoriamente interpretada como constituindo a caracterização
verdadeira e, em princípio, completa do homem-no-mundo?
72. Quais são as alternativas? Será útil examinar o impacto dos primeiros estágios
da ciência postulacional sobre a filosofia. Algumas reflexões sobre a tentativa cartesiana
de uma síntese são oportunas, pois realçam as principais pressões e tensões envolvidas
em qualquer tentativa de uma visão sinóptica. Obviamente, à época de Descartes a
ciência teórica não havia ainda alcançado o nível neurofisiológico, salvo na forma de
uma desajeitada nota promissória. O desafio inicial da imagem científica dirigia-se à
imagem manifesta da natureza inanimada. Ela propôs interpretar as coisas físicas, de
uma maneira já esboçada pelo atomismo grego, como sistemas de partículas
imperceptíveis que não dispõem das qualidades perceptíveis da natureza manifesta. Três
linhas de pensamento pareciam se abrir: (1) Os objetos manifestos são idênticos aos
sistemas de partículas imperceptíveis naquele sentido simples em que uma floresta é
idêntica a uma multiplicidade de árvores. (2) Os objetos manifestos são o que realmente
existe; sistemas de partículas imperceptíveis são maneiras “abstratas” ou “simbólicas”
de representá-los. (3) Os objetos manifestos são “aparições” [appearances] a mentes
humanas de uma realidade constituída por sistemas de partículas imperceptíveis.
Embora (2) mereça uma consideração séria e tenha sido defendida por filósofos
capazes, ocupar-me-ei primariamente da exploração de (1) e (3), em particular da
última.
73. Primeiro algumas breves observações sobre (1). Não há nada imediatamente
paradoxical com a visão de que um objeto pode ser a um só tempo um objeto
perceptível com qualidades perceptíveis e um sistema de objetos imperceptíveis,
nenhum dos quais tem qualidades perceptíveis. Não é possível sistemas terem
propriedades que suas partes não têm? Ora, a resposta a essa questão é ‘sim’, se ela for
tomada em um sentido do qual o exemplo paradigmático seria o fato de que um sistema
de pedaços de madeira pode ser uma escada, embora nenhuma de suas partes seja uma
escada. Aqui alguém poderia dizer que, dado um sistema como um todo, que ele seja
uma escada significa que suas partes são de tais e tais formas e tamanhos e estão
relacionadas uma às outras de certas maneiras. Assim, não há qualquer dificuldade em
sistemas terem propriedades que suas partes não têm se essas propriedades são uma
questão de as partes terem tais e tais qualidades e serem relacionadas de tais e tais
maneiras. Mas o caso de um cubo de gelo rosa, pareceria claro, não pode ser tratado
dessa maneira. Não parece plausível dizer que, dado um sistema de partículas, que ele
seja um cubo de gelo rosa significa que elas têm tais e tais qualidades imperceptíveis, e
serem relacionadas uma com a outra de forma a constituir um cubo aproximado. Rosa
não parece constituir-se de qualidades imperceptíveis da maneira como ser uma escada
constitui-se de ser cilíndrico (os degraus), retangular (a armação), de madeira, etc. O
cubo de gelo manifesto se faz presente a nós como algo que é rosa inteiramente, como
um contínuo de rosa, todas as regiões do qual, por pequenas que sejam, são rosas. Ele se
faz presente a nós como radicalmente homogêneo [ultimately homogeneous]; e um cubo
de gelo com diversas cores, embora não seja homogêneo em sua cor específica, é
“radicalmente homogêneo”, no sentido para o qual estou chamando atenção, com
respeito ao traço genérico de ser colorido.
74. Agora bem, a reflexão sobre esse exemplo sugere um princípio que pode ser
formulado de maneira aproximada como segue:
Se um objeto é no sentido estrito um sistema de objetos, então toda propriedade
do objeto deve consistir no fato de que seus constituintes têm tais e tais
qualidades e encontram-se em tais e tais relações ou, sumariamente, toda
propriedade de um sistema de objetos consiste de propriedades de e relações
entre seus constituintes.
Como algo como esse princípio em mente, argumentou-se que se um objeto físico é em
um sentido estrito um sistema de partículas imperceptíveis, então ele não pode como um
todo ter as qualidades perceptíveis características de objetos físicos na imagem
manifesta. Concluiu-se que objetos físicos manifestos são “aparências” para
percipientes humanos de sistemas de partículas imperceptíveis, a alternativa (3) acima.
75. Essa alternativa, (3), contudo, está exposta a uma objeção que é ordinariamente
dirigida, não contra a própria alternativa, mas contra uma formulação pouco inteligente
dela, como a tese de que as coisas perceptíveis ao nosso redor “na realidade não têm
cor”. Contra essa formulação a objeção tem o mérito de chamar a atenção para o fato de
que no quadro de referência manifesto é tão absurdo dizer que um objeto visível não
tem cor quanto é dizer de um triângulo que ele não tem forma [shape]. No entanto,
contra a formulação acima da alternativa (e), a saber, que os próprios objetos, eles
mesmos, são aparências a percipientes de sistemas de partículas imperceptíveis, a
objeção revela não ter peso quando submetida a exame. A abjeção pela qual é direta ou
indiretamente responsável G. E. Moore, filósofo britânico do “senso comum”, procede
assim:
Cadeiras, mesas, etc., tal como ordinariamente pensamos que são, não podem
ser “aparências” de sistemas de partículas que carecem de qualidades
perceptíveis, porque sabemos que existem cadeiras, mesas, etc., e é uma
característica estrutural [framework feature] de cadeiras, mesas, etc. que elas
têm qualidades perceptíveis.
Elas simplesmente desaparece tão logo se reconhece que, propriamente compreendida,
a alegação de que objetos físicos não têm realmente qualidades perceptíveis não é
análoga à alegação de que algo que geralmente se acredita ser verdadeiro sobre certa
espécie de coisa é efetivamente falso. Não se trata da negação de uma crença no interior
de um quadro de referência, mas um desafio ao quadro de referência. Trata-se da
alegação de que, embora o quadro de referência de objetos perceptíveis, o quadro
manifesto da vida cotidiana, seja adequado para os fins cotidianos da vida, ele é em
última instância inadequado e não deve ser aceito como uma concepção, tudo
considerado, do que há. Uma vez que vejamos isso, vemos que o argumento com base
no “conhecimento” não tem êxito, por o raciocício
Sabemos que há cadeiras, cubos de gelo rosa, etc. (objetos físicos). Cadeiras e
cubos de gelo rosa são dotados de cor, são objetos perceptíveis com qualidades
perceptíveis. Portanto, objetos físicos perceptíveis com qualidades perceptíveis
existem,
opera no interior do quadro de referência da imagem manifesta e não pode sustentá-lo.
Ele não consegue proporcionar um ponto de vista externo à imagem manifesta, a partir
do qual a última possa ser avaliada.
76. Um argumento mais sofisticado seria que lidamos de modo bem-sucedido com
as coisas na vida utilizando o quadro de referência conceitual dos objetos físicos
dotados de cor no espaço e no tempo, por conseguinte esse quadro representa as coisas
como elas são. Esse argumento tem força, mas é vulnerável à réplica de que o sucesso
do viver, do pensar e do agir em termos do quadro de referência manifesto pode ser
explicado pelo quadro de referência que se propõe a substituí-lo, mostrando que há
suficientes similaridades estruturais entre os objetos manifestos e suas contrapartidas
científicas para explicar esse sucesso.5

5
77. Que se lembre de uma estratégia exemplar com vistas a defender a realidade da
imagem manifesta contra considerações de cunho lógico, em vez de científico. Assim,
objetou-se que o quadro de referência de objetos físicos no espaço e no tempo é
incoerente, envolvendo antinomias ou contradições, e que, portanto, esse quadro de
referência é irreal. A réplica a essa objeção frequentemente foi, não uma meticulosa
refutação dos argumentos que alegam mostrar que o quadro de referência é incoerente,
mas antes algo nos seguintes termos:
Sabemos que essa colisão ocorreu em um lugar e um momento diferentes daquela
colisão.
Portanto, o enunciado de que a primeira colisão ocorreu em um lugar e um
momento diferentes da outra colisão é verdadeiro.
Portanto, o enunciado de que as duas colisões ocorreram em momentos e lugares
diferentes é consistente.
Portanto, enunciados sobre eventos que acontecem em diversos momentos e
lugares são como tais, consistentes.
Esse argumento, como aquele que já consideramos, não prova o que pretende provar
porque opera no interior do quadro de referência a ser avaliado e não fornece um ponto
de vista externo a partir do qual defendê-lo. Ele faz a suposição tácita de que se um
quadro de referência é inconsistente, sua incoerência deve ser tal que leve a
inconsistências imediatas e no dia-a-dia, como se forçasse as pessoas que o usam a
contradizer-se em todas as ocasiões. Isso certamente é falso. O quadro de referência do
espaço e do tempo poderia ser internamente inconsistente e ainda assim ser uma
ferramenta conceitual bem-sucedida no nível do dia-a-dia. Temos exemplos disso na
teoria matemática, onde pode haver inconsistências que não se revelam na prática
rotineira.
78. Não estou, contudo, preocupado em argumentar que a imagem manifesta é irreal
porque seria em última instância incoerente em um sentido lógico estrito. Filósofos que
seguiram por esse caminho ou (a) deixaram tudo como estava (Hume; ceticismo), ou (b)
tentaram localizar a fonte da inconsistência em facetas do quadro de referência e
interpretaram a realidade como uma estrutura inadequadamente conhecida análoga à
imagem manifesta, mas sem precisamente as facetas responsáveis pela inconsistência.
Em contraste com isso, a crítica da imagem manifesta em que estamos engajados
baseia-se em considerações lógicas em um sentido mais amplo e construtivo, que
considera essa imagem sob uma luz desfavorável em comparação com uma concepção
mais inteligível do que há.
79. É um fato familiar que aquelas facetas do mundo manifesto que não têm
qualquer papel na explicação mecânica foram relegados por Descartes e outros
intérpretes da nova física às mentes dos sujeitos percipientes. A cor, por exemplo, foi
dita existir apenas na sensação, seu esse sendo percipi. Argumentou-se, com efeito, que
os estados que a reflexão motivada cientificamente reconhece serem estados do
percipiente são conceitualizados na experiência ordinária como traços de coisas físicas
independentes; de fato, que essas coisas dotadas de cor supostamente independentes são
na realidade construções conceituais que mimetizam os sistemas mecânicos do mundo
real.
80. As mesmas considerações que levaram filósofos a negara realidade de coisas
perceptíveis os levaram à teoria dualística do homem. Pois se o corpo humano é uma
sistema de partículas, o corpo não pode ser sujeito de pensamento e sentimento, a
menos que pensamento e sentimento sejam capazes de interpretação como interações
complexas de partículas físicas; a menos, vale dizer, que o quadro manifesto do homem
como um ser, uma pessoa capaz de fazer tipos radicalmente diferentes de coisas, possa
ser substituído sem perda de poder descritivo e explicativo por uma imagem
postulacional na qual ele é um complexo de partículas físicas, e todas as suas atividades
sejam uma questão de partículas mudando de estados e relações.
81. O dualismo, é claro, negou que tanto sensação quanto sentimento ou pensamento
conceitual pudessem ser interpretados, nesse sentido, como interações complexas de
partículas físicas, ou o homem pudesse ser interpretado como um sistema físico
complexo. Eles [sic] estavam preparados para dizer que uma cadeira é realmente um
sistema de partículas imperceptíveis que “aparece” no quadro manifesto como um
“sólido dotado de cor” (cf. nosso exemplo do cubo de gelo), mas não estavam
preparados para dizer que o próprio homem seria um sistema físico complexo que
“aparece” a si mesmo sendo o tipo de coisa que o homem é na imagem manifesta.
82. Consideremos em mais detalhes a tentativa cartesiana de integrar as imagens
manifesta e científica. A coisa interessante de notar aqui é que Descartes deu por certo
(à maneira de uma nota promissória) que a imagem científica incluiria itens que seria as
contrapartidas das sensações, imagens e sentimentos do quadro de referência manifesto.
Essas contrapartidas seriam estados complexos do cérebro que, obedecendo a leis
puramente físicas, possuiriam entre si relações de semelhança e diferença que
corresponderiam às semelhanças e diferenças entre estados conscientes com os quais
estariam correlacionados. Todavia, como é bem sabido, ele negou que houvesse estados
cerebrais que fossem, no mesmo sentido, contrapartidas cerebrais do pensamento
conceitual.
83. Ora, se perguntássemos a Descartes ‘Por que não podemos dizer que sensações
“na realidade são” processos cerebrais complexos da mesma forma como, de acordo
com você, podemos dizer que objetos físicos “na realidade são” sistemas complexos de
partículas imperceptíveis?’, ele teria várias coisas a redarguir, algumas das quais seriam
uma consequência de sua convicção de que sensações, imagens e pensamentos
pertencem à mesma família da crença, da escolha, da curiosidade, em suma, são
exemplos (de grau inferior) de pensamento conceitual, compartilhando sua suposta
irredutibilidade a estados cerebrais. Mas quando chega a hora decisiva restaria o
seguinte argumento:
Retiramos qualidades perceptíveis do ambiente físico e as colocamos nas
sensações. Se agora dissermos que tudo em que consiste a sensação é uma
interação complexa de partículas cerebrais, então as excluímos totalmente de
nossa visão de mundo. Teremos tornado ininteligível como as coisas poderiam
sequer parecer dotadas de cor.
84. No tocante ao pensamento conceitual, Descartes não apenas rejeitou identificá-lo
com um processo neurofisiológico, ele não viu isso como uma opção real, porque
pareceu-lhe óbvio que nenhum processo neurofisiológico poderia ser suficientemente
análogo ao pensamento conceitual para ser um candidato sério a constituir o que o
pensamento conceitual “realmente é”. Não é que Descartes teria concedido que poderia
muito bem haver processos neurofisiológicos que são notavelmente análogos ao
pensamento conceitual, mas que seria filosoficamente incorreto identificar com o
pensamento conceitual (da maneira como ele identificou objetos físicos do mundo
manifesto com sistemas de partículas imperceptíveis). Ele não levou a sério a ideia de
que haja tais processos neurofisiológicos.
85. Mesmo se ele o tivesse, porém, está claro que teria rejeitado essa identificação,
tendo por fundamento que possuímos uma ideia “clara e distinta”, bem-definida, do que
seja o pensamento conceitual antes de sequer suspeitarmos que o cérebro tenha algo a
ver com o pensar. Sumariamente: sabemos o que é o pensar sem concebê-lo como um
processo neurofisiológico complexo, por conseguinte ele não pode ser um processo
fisiológico complexo.
86. Ora, é claro que o mesmo é verdade dos objetos físicos. Sabíamos o que seria
um objeto físico muito antes de saber que havia partículas físicas imperceptíveis. Por
paridade de raciocínio, devemos concluir que um objeto físico não pode ser um
complexo de partículas imperceptíveis. Assim, se Descartes tivesse tido razões para
pensar que existem processos neurofisiológicos notavelmente análogos ao pensamento
conceitual, pareceria que ele deveria ou ter mudado seu tom com respeito aos objetos
físicos ou ter dito que o pensamento conceitual na realidade é um processo
neurofisiológico.
87. Ora, à luz dos recentes desenvolvimentos na neurofisiologia, filósofos passaram
a ver que não há razão para supor que não pode haver processos neurofisiológicos que
estão pelo pensamento conceitual como estados sensórios do cérebro estão por
sensações conscientes. E, de fato, não faltaram filósofos (dos quais Hobbes foi talvez o
primeiro) que argumentaram que a analogia deveria ser vista filosoficamente como uma
identidade, isto é, que uma visão do mundo que incluísse tanto pensamentos quanto
contrapartes neurofisiológicas dos pensamentos conteria uma redundância, exatamente
como uma visão do mundo que incluísse tanto os objetos físicos da imagem manifesta
quanto padrões complexos de partículas físicas conteria uma redundância. Todavia, a
essa proposta advém a óbvia objeção de que, assim como a alegação de que “objetos
físicos são complexos de partículas imperceptíveis” nos deixou como o problema de
explicar o status das qualidades perceptíveis dos objetos manifestos, assim também a
alegação de que “pensamentos, etc., são processos neurofisiológicos” nos deixa com os
problemas de explicar o status das qualidades introspectíveis dos pensamentos. E
pareceria óbvio que há um círculo vicioso na alegação de que essas qualidades existem
na consciência introspectiva dos pensamentos que parecem tê-las, mas não nos próprios
pensamentos. Pois certamente, assim segue o argumento, a introspecção é ela própria
uma forma de pensamento. Dessa forma, um pensamento (Pedro) teria sua qualidade
furtada apenas para dar-lhe em pagamento a outro (Paulo).
88. Podemos, portanto, entender a tentação de dizer que mesmo se há processos
cerebrais que são notavelmente análogos ao pensamento conceitual, eles são processos
que correm paralelamente ao pensamento conceitual (e não podem ser identificados
com ele), como os estados sensórios do cérebro correm paralelamente à sensação
consciente. E podemos, portanto, entender a tentação de dizer que todos esses enigmas
surgem de levar-se a sério a alegação de que qualquer parte da imagem científica é o
que realmente há, recuando até a posição segundo a qual a realidade é o mundo da
imagem manifesta e todas as entidades postuladas da imagem científica são
“ferramentas simbólicas” que funcionam (algo como os dispositivos de medição de
distância dispostos sobre mapas) para nos ajudar em nossa orientação no mundo, mas
que não descrevem eles próprios objetos e processos efetivos. Nessa visão, as
contrapartes de todas as facetas da imagem manifesta seriam igualmente irreais e seria
correta aquela concepção filosófica do homem-no-mundo que endossasse a imagem
manifesta e localizasse a imagem científica no interior dela como uma ferramenta
conceitual usada pelo homem manifesto na qualidade de cientista.
VI. A PRIMAZIA DA IMAGEM CIENTÍFICA: UM PROLEGÔMENO
89. É essa a verdade da questão? É a imagem manifesta, sujeita, é claro, a
refinamentos empíricos e categoriais contínuos, a medida do que realmente há? Não
penso assim. Já indiquei que das três alternativas que estamos considerando com
respeito às alegações comparáveis das imagens manifesta e científica, a primeira – que,
como uma criança, diz “ambas” – é descartada por um princípio que não estou
defendendo nesse capítulo, embora ele demande defesa. A segunda alternativa é aquela
que acabei de reformular e rejeitar. Proponho, portanto, reexaminar o argumento contra
a terceira alternativa, a primazia da imagem científica. Minha estratégia será argumentar
que a dificuldade levantada acima, que parece um obstáculo à identificação do
pensamento com processos cerebrais, surge do erro de supor que na autoconsciência o
pensamento conceitual apresenta-se a nós com uma feição qualitativa. Sensações e
imagens efetivamente apresentam-se, como veremos, com um caráter qualitativo, o que
explica o fato de serem empecilhos à tentativa de aceitar a imagem científica como real.
Mas dificilmente é necessário hoje em dia assinalar que, não importa o quão
intimamente o pensamento conceitual seja relacionado a sensações e imagens, ele não
pode ser tomado como equivalente a elas, nem a complexos que constituídos por elas.
90. Não é por acidente que quando um romancista deseja representar o que está se
passando na mente de uma pessoa ele o faz “citando” os pensamentos da pessoa como
citaria o que a pessoa diz. Pois pensamentos não são apenas o tipo de coisa que encontra
expressa aberta na linguagem, nós os concebemos como análogos ao discurso aberto.
Assim, pensamentos na imagem manifesta são concebidos não em termos de sua
“qualidade”, mas antes como “ocorrências” [goings-on] que são análogas à fala e
encontram sua expressão aberta na fala – embora possam ocorrer, é claro, na ausência
dessa expressão aberta. Não é por acidente que se aprende a pensar no processo mesmo
de aprender a falar.
91. Desse ponto de vista pode-se apreciar o risco de incompreensão contido no
termo ‘introspecção’. Pois embora haja, de fato, uma analogia entre o conhecimento
direto que temos de nossos pensamentos e o conhecimento perceptual que temos do que
ocorre no mundo à nossa volta, a analogia vale apenas na medida em que tanto a
autoconsciência quanto a observação perceptual são formas básicas de conhecimento
não-inferencial. Elas diferem, contudo, pelo fato de que enquanto na observação
perceptual conhecemos os objetos como sendo de uma certa qualidade, no
conhecimento direto que temos do que estamos pensando (por exemplo, estou pensando
que está frio lá fora) o que conhecemos não-inferencialmente é que algo análogo à e
propriamente expresso pela sentença ‘Está frio lá fora’ está ocorrendo em mim.
92.

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