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Wilfrid Sellars
Tradução de Renato Duarte Fonseca (Dept. Filosofia UFRGS)
I. A BUSCA FILOSÓFICA
O objetivo da filosofia, abstratamente formulado, é compreender como as coisas, no
sentido mais amplo possível do termo, conjugam-se no mais amplo sentido do termo.
Sob ‘coisas no sentido mais amplo possível’, incluo não apenas itens radicalmente
diferentes como ‘repolhos e reis’3, mas igualmente números e deveres, possibilidades e
estalos de dedo, a experiência estética e a morte. Ser bem-sucedido em filosofia seria,
para usar de uma expressão contemporânea, ‘saber orientar-se’ em relação a todas essas
coisas, não daquele modo irrefletido como a centopéia da estória sabia orientar-se antes
de enfrentar a questão ‘como caminho?’4, mas daquele modo reflexivo que importa em
não ter restrições intelectuais.
Saber orientar-se é, para usar uma distinção corrente, uma forma de ‘saber como’ em
contraste com ‘saber que’. Há toda diferença do mundo entre saber como andar de
bicicleta e saber que uma pressão firme das pernas sobre os pedais por uma pessoa em
equilíbrio resultaria em um movimento para frente. Ou ainda, para usar um exemplo
algo mais próximo de nosso tema, há toda diferença do mundo entre saber que cada
passo de uma dada prova matemática segue-se dos passos anteriores e saber como
encontrar uma prova. Às vezes, ser capaz de encontrar uma prova é questão de ser capaz
de seguir um procedimento estabelecido; é mais frequente que não seja. Pode-se
argumentar que qualquer coisa que possa propriamente ser denominada ‘saber como
fazer algo’ pressupõe certo corpo de saber que; ou, dito de outro modo, um
conhecimento de verdades ou fatos. Fosse assim, o enunciado de que ‘patos sabem
1
O texto do presente ensaio foi originalmente apresentado por Sellars em duas conferências na
Universidade de Pittsburgh, em dezembro de 1960. O ensaio foi inicialmente publicado em Robert
Colodny, ed., Frontiers of Science and Philosophy (Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1962),
com o título de “Philosophy and the Scientific Image of Man”. Foi republicado por Sellars em seu
Empiricism and the Philosophy of Mind (London: Routledge & Kegan Paul Ltd, 1963), pp. 1-40. [Nota de
tradução.]
2
Esta é uma versão preliminar, incompleta e demandando revisão de uma tradução em curso do
conhecido ensaio de Sellars. Sugestões críticas e correções de qualquer sorte são bem-vindas. Não
reproduzir, total ou parcialmente, sem a permissão escrita do tradutor.
3
Alusão aos famosos versos de “The Walrus and the Carpenter” (“A Morsa e o Carpinteiro”), poema
recitado pelos personagens Tweedledum e Tweedledee no capítulo 4 de Through the Looking-Glass
(Através do Espelho), de Lewis Carroll: “‘The time has come’, the Walrus said, / To talk of many things:
/ Of shoes. . . and ships. . . and sealing-wax. . . / Of cabbages. . . and kings. . .” Na tradução de Maria
Luiza X. de A. Borges: “‘É chegada a hora’, disse a Morsa, / ‘De falar de muitas coisas: / De sapatos. . . e
barcos. . . e vazas. . . / De repolhos. . . e reis. . . e lousas. . .”. Cf. Lewis Carrol, Alice: edição comentada,
(Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002). [Nota de tradução.]
4
O dilema da centopéia
como nadar’ seria tão metafórico quanto o enunciado de que eles sabem que a água os
sustenta. De qualquer maneira, saber como fazer algo no plano da atividade
caracteristicamente humana pressupõe uma grande extensão de saber que, e é óbvio que
o saber reflexivo de como orientar-se na ordem das coisas, que é o objetivo da filosofia,
pressupõe uma grande extensão de conhecimento reflexivo de verdades.
Ora, o objeto desse conhecimento de verdades pressuposto pelo ‘saber-como’ filosófico
situa-se, em certo sentido, inteiramente sob o escopo das disciplinas especiais. Em um
sentido importante, a filosofia não tem um objeto especial da mesma maneira que as
outras disciplinas. Se os filósofos realmente tivessem esse objeto especial, poderiam
delegá-lo a um novo grupo de especialistas, como delegaram outros objetos especiais a
não-filósofos ao longo dos últimos 2500 anos, primeiro com a matemática, mais
recentemente com a psicologia e a sociologia e, atualmente, com certos aspectos da
linguística teórica. O que é característico da filosofia não é um objeto especial, mas o
propósito de saber orientar-se em relação aos objetos de todas as disciplinas especiais.
Agora bem, as disciplinas especiais sabem orientar-se em relação aos seus objetos e
cada uma aprende a fazê-lo no processo de descobrir verdades sobre seu próprio objeto.
Mas cada disciplina especial deve também ter uma compreensão de como sua área
insere-se no território como um todo. Em muitos casos, essa compreensão consiste em
pouco mais do que o ‘saber orientar-se’ irrefletido que é posse comum de todos nós. E
ainda, o especialista deve compreender como não apenas seu objeto, mas também os
métodos e os princípios de seu pensamento sobre ele inserem-se na paisagem
intelectual. Assim, o historiador reflete não apenas sobre os próprios eventos históricos,
mas sobre o que é pensar historicamente. É parte de sua atividade refletir sobre seu
próprio pensar – seus propósitos, seus critérios, suas armadilhas. Ao lidar com questões
históricas, ele deve enfrentar e responder questões que não são, elas próprias, em um
sentido primário, questões históricas. Mas ele lida com essas questões na medida em
que elas surgem na tentativa de responder questões especificamente históricas.
A reflexão sobre qualquer disciplina especial pode rapidamente levar alguém à
conclusão de que o praticante ideal dessa disciplina veria seu objeto especial e seu
pensamento sobre ele à luz de um discernimento reflexivo da paisagem intelectual como
um todo. Há uma boa dose de verdade na concepção platônica de que as disciplinas
especiais são levadas à perfeição pela filosofia, mas a concepção que a acompanha, de
que o filósofo deve saber orientar-se em cada disciplina da mesma maneira que o
especialista, tem sido um ideal cada vez mais esquivo desde que iniciou a revolução
científica. Contudo, se o filósofo não pode esperar saber orientar-se em cada disciplina
da mesma maneira que o especialista, há um sentido em que ele pode saber orientar-se
em relação ao objeto dessa disciplina e deve fazê-lo se há de se aproximar do propósito
filosófico.
A multiplicação das ciências e disciplinas é uma faceta familiar da cena intelectual.
Dificilmente menos familiar é a unificação dessa multiplicidade, que vem tomando
lugar através da construção de pontes científicas entre elas. O que não é tão óbvio ao
leigo é que a tarefa de ‘enxergar todas as coisas em conjunto’ tem sido ela própria
(paradoxalmente) decomposta em várias especialidades. E há lugar para especialização
em filosofia. Pois assim como alguém não pode chegar a saber orientar-se no sistema
viário como um todo sem saber orientar-se nas vias, assim também não pode esperar
saber orientar-se nas ‘coisas em geral’ sem saber orientar-se nos principais grupamentos
de coisas.
É, portanto, o ‘olhar sobre o todo’ que distingue o empreendimento filosófico. Do
contrário, há pouco que distinga o filósofo do especialista persistentemente reflexivo; o
filósofo da história, do historiador persistentemente reflexivo. Na medida em que o
especialista está mais preocupado em refletir sobre como seu trabalho de especialista se
conecta com outras ocupações intelectuais do que em fazer e responder questões no
interior de sua especialidade, diz-se propriamente que ele tem uma mente filosófica. E,
de fato, alguém pode ‘ter seus olhos sobre o todo’ sem fixar-lhe olhar o tempo inteiro.
Tratar-se-ia de um empreendimento infrutífero. Além do mais, como outros
especialistas, o filósofo que se especializa retira muito da sua compreensão do todo da
orientação pré-reflexiva que é nossa herança comum. Por outro lado, dificilmente
poder-se-ia dizer que um filósofo tem seus olhos sobre o todo, no sentido relevante, a
menos que ele tenha refletido sobre a natureza do pensamento filosófico. É essa reflexão
sobre o lugar da própria filosofia na ordem das coisas que é o traço distintivo do
filósofo, em contraste com o especialista reflexivo; e na falta dessa reflexão crítica sobre
o empreendimento filosófico, alguém é, quando muito, um filósofo em potencial.
Tem-se dito frequentemente em anos recentes que o propósito do filósofo não é
descobrir novas verdades, mas ‘analisar’ o que já conhecemos. Mas embora o termo
‘análise’ tenha sido útil ao sugerir que a filosofia, enquanto tal, não faz qualquer
contribuição substantiva ao que conhecemos e se ocupa de algum modo em aperfeiçoar
a maneira como o conhecemos, é demasiado enganoso por seu contraste com ‘síntese’.
Pois em virtude de tal contraste esses enunciados sugerem que a filosofia é
progressivamente míope, divisando partes no interior de partes enquanto perde cada
parte de vista quando novas partes caem sob os olhos. Somos tentados, portanto, a
contrastar a concepção analítica da filosofia enquanto miopia com a visão sinóptica da
verdadeira filosofia. E deve admitir-se que se o contraste entre ‘análise’ e ‘síntese’ fosse
a conotação operante na metáfora, então uma filosofia puramente analítica seria uma
contradição em termos. Mesmo se interpretarmos ‘análise’ com base na analogia de
fazer mapas em escala cada vez menor do mesmo terreno, o que faz mais justiça ao
elemento sinóptico, a analogia atrapalha, pois teríamos de comparar a filosofia à
elaboração de mapas de pequena escala a partir de um mapa de larga escala original; e
um mapa de escala menor, nesse sentido, é uma trivialidade.
Mesmo se mudarmos a analogia para a de ajustar o foco de uma imagem, o que preserva
o elemento sinóptico e o tema de trabalhar no interior do quadro de referência do já
conhecido enquanto se acrescenta uma dimensão de ganho, há dois aspectos em que a
analogia atrapalha: (a) Ela sugere que as disciplinas especiais são confusas; como se o
cientista tivesse de esperar pelo filósofo para esclarecer seu objeto, torná-lo nítido. Para
dar conta do papel criativo da filosofia, não é necessário dizer que o cientista não sabe
orientar-se em sua própria área. O que devemos dizer, em vez disso, é que o especialista
sabe orientar-se em sua própria vizinhança, considerada como sua vizinhança, mas não
sabe igualmente orientar-se nessa vizinhança considerada como uma parte da paisagem
como um todo.
(b) Ela sugere que a mudança essencial produzida pela filosofia é o desdobramento de
detalhes no interior de uma imagem que é apreendida como um todo desde o começo.
Mas, é claro, na medida em que há uma imagem a ser apreendida reflexivamente como
um todo, a unidade da visão reflexiva é uma tarefa, ao invés de um dado inicial. A busca
por essa unidade no nível reflexivo é, portanto, mais propriamente comparável com a
contemplação de uma pintura grande e complexa que não é vista como uma unidade
sem uma exploração prévia de suas partes. A analogia, contudo, não estará completa até
considerarmos um segundo modo como falta unidade no dado original do filósofo
contemporâneo. Pois ele se defronta não com uma imagem, mas, em princípio, com
duas, e, de fato, com muitas. A pluralidade que tenho em mente não é aquela que
concerne à distinção entre a descoberta de fatos, o ético, o estético, o lógico, o religioso
e outros aspectos da experiência, pois esses não são senão aspectos de uma única
imagem complexa a ser apreendida reflexivamente como um todo. Como tal, ela
constitui um dos termos de uma dualidade crucial com a qual se defronta o filósofo
contemporâneo no exato início de seu empreendimento. Aqui, a analogia mais
apropriada é a visão estereoscópica, em que duas perspectivas diferentes sobre uma
paisagem são fundidas em uma única experiência coerente.
Pois o filósofo não se defronta com uma única imagem complexa multidimensional,
cuja unidade, tal como é, ele deve chegar a apreciar, mas com duas imagens que têm
essencialmente a mesma ordem de complexidade, cada uma das quais pretende ser uma
imagem completa do homem-no-mundo, as quais, após seu escrutínio em separado, ele
deve fundir em uma única visão. Deixem-me referir-me a essas duas perspectivas,
respectivamente, como as imagens manifesta e científica do homem-no-mundo. E
deixem-me explicar meus termos. Em primeiro lugar, ao denominá-las imagens não
pretendo negar a uma delas ou a ambas o status de ‘realidade’. Para usar o termo de
Husserl, estou colocando-as ‘entre parênteses’, transformando-as de modos de
experienciar o mundo em objetos de reflexão e avaliação filosóficas. O termo ‘imagem’
é oportunamente ambíguo. De um lado, sugere o contraste entre um objeto, por exemplo
uma árvore, e a projeção do objeto em um plano, ou sua sombra na parede. Nesse
sentido, uma imagem é tão existente quanto o objeto de que é imagem, embora, é claro,
tenha um status dependente.
No outro sentido, uma ‘imagem’ é algo imaginado, e o que é imaginado pode muito
bem não existir, embora o ato de imaginá-lo exista – nesse caso podemos falar da
imagem como meramente imaginária ou irreal. Mas o imaginado pode existir; como
quando se imagina que alguém está dançando no quarto ao lado e alguém está. Essa
ambiguidade me permite sugerir que o filósofo se defronta com duas projeções do
homem-no-mundo sobre o entendimento humano. Chamarei uma dessas projeções de
imagem manifesta, a outra de imagem científica. Essas imagens existem e fazem parte
tanto quanto esta plataforma ou a Constituição dos Estados Unidos. Mas além de se
defrontar com essas imagens enquanto existentes, ele se defronta com elas no sentido de
‘coisas imaginadas’ – ou, melhor se diga de imediato, concebidas, pois estou usando
‘imagem’ nesse sentido como uma metáfora para concepção, sendo um fato familiar que
nem tudo que pode ser concebido pode, no sentido ordinário, ser imaginado. O filósofo,
pois, se defronta com duas concepções, igualmente públicas, igualmente não-arbitrárias,
do homem-no-mundo e não pode esquivar-se da tentativa de ver como elas se juntam
em uma única visão estereoscópica.
Antes de começar a explicar o contraste entre ‘manifesto’ e ‘científico’ tal como usarei
esses termos, permitam-me deixar claro que ambos são ‘idealizações’ em um sentido
análogo ao sentido em que um corpo sem atrito ou um gás ideal é uma idealização. E
moldados para iluminar a dinâmica interna do desenvolvimento de ideias filosóficas,
como idealizações científicas iluminam o desenvolvimento de sistemas físicos. De um
ponto de vista algo diferente, pode-se compará-los aos ‘tipos ideais’ da sociologia de
Max Weber. A trama se complica pelo fato de cada imagem ter uma história, e embora
os principais contornos do que chamarei de imagem manifesta tenham tomado forma
nas brumas da pré-história, a imagem científica, notas promissórias à parte, tomou
forma diante de nossos próprios olhos.
5
77. Que se lembre de uma estratégia exemplar com vistas a defender a realidade da
imagem manifesta contra considerações de cunho lógico, em vez de científico. Assim,
objetou-se que o quadro de referência de objetos físicos no espaço e no tempo é
incoerente, envolvendo antinomias ou contradições, e que, portanto, esse quadro de
referência é irreal. A réplica a essa objeção frequentemente foi, não uma meticulosa
refutação dos argumentos que alegam mostrar que o quadro de referência é incoerente,
mas antes algo nos seguintes termos:
Sabemos que essa colisão ocorreu em um lugar e um momento diferentes daquela
colisão.
Portanto, o enunciado de que a primeira colisão ocorreu em um lugar e um
momento diferentes da outra colisão é verdadeiro.
Portanto, o enunciado de que as duas colisões ocorreram em momentos e lugares
diferentes é consistente.
Portanto, enunciados sobre eventos que acontecem em diversos momentos e
lugares são como tais, consistentes.
Esse argumento, como aquele que já consideramos, não prova o que pretende provar
porque opera no interior do quadro de referência a ser avaliado e não fornece um ponto
de vista externo a partir do qual defendê-lo. Ele faz a suposição tácita de que se um
quadro de referência é inconsistente, sua incoerência deve ser tal que leve a
inconsistências imediatas e no dia-a-dia, como se forçasse as pessoas que o usam a
contradizer-se em todas as ocasiões. Isso certamente é falso. O quadro de referência do
espaço e do tempo poderia ser internamente inconsistente e ainda assim ser uma
ferramenta conceitual bem-sucedida no nível do dia-a-dia. Temos exemplos disso na
teoria matemática, onde pode haver inconsistências que não se revelam na prática
rotineira.
78. Não estou, contudo, preocupado em argumentar que a imagem manifesta é irreal
porque seria em última instância incoerente em um sentido lógico estrito. Filósofos que
seguiram por esse caminho ou (a) deixaram tudo como estava (Hume; ceticismo), ou (b)
tentaram localizar a fonte da inconsistência em facetas do quadro de referência e
interpretaram a realidade como uma estrutura inadequadamente conhecida análoga à
imagem manifesta, mas sem precisamente as facetas responsáveis pela inconsistência.
Em contraste com isso, a crítica da imagem manifesta em que estamos engajados
baseia-se em considerações lógicas em um sentido mais amplo e construtivo, que
considera essa imagem sob uma luz desfavorável em comparação com uma concepção
mais inteligível do que há.
79. É um fato familiar que aquelas facetas do mundo manifesto que não têm
qualquer papel na explicação mecânica foram relegados por Descartes e outros
intérpretes da nova física às mentes dos sujeitos percipientes. A cor, por exemplo, foi
dita existir apenas na sensação, seu esse sendo percipi. Argumentou-se, com efeito, que
os estados que a reflexão motivada cientificamente reconhece serem estados do
percipiente são conceitualizados na experiência ordinária como traços de coisas físicas
independentes; de fato, que essas coisas dotadas de cor supostamente independentes são
na realidade construções conceituais que mimetizam os sistemas mecânicos do mundo
real.
80. As mesmas considerações que levaram filósofos a negara realidade de coisas
perceptíveis os levaram à teoria dualística do homem. Pois se o corpo humano é uma
sistema de partículas, o corpo não pode ser sujeito de pensamento e sentimento, a
menos que pensamento e sentimento sejam capazes de interpretação como interações
complexas de partículas físicas; a menos, vale dizer, que o quadro manifesto do homem
como um ser, uma pessoa capaz de fazer tipos radicalmente diferentes de coisas, possa
ser substituído sem perda de poder descritivo e explicativo por uma imagem
postulacional na qual ele é um complexo de partículas físicas, e todas as suas atividades
sejam uma questão de partículas mudando de estados e relações.
81. O dualismo, é claro, negou que tanto sensação quanto sentimento ou pensamento
conceitual pudessem ser interpretados, nesse sentido, como interações complexas de
partículas físicas, ou o homem pudesse ser interpretado como um sistema físico
complexo. Eles [sic] estavam preparados para dizer que uma cadeira é realmente um
sistema de partículas imperceptíveis que “aparece” no quadro manifesto como um
“sólido dotado de cor” (cf. nosso exemplo do cubo de gelo), mas não estavam
preparados para dizer que o próprio homem seria um sistema físico complexo que
“aparece” a si mesmo sendo o tipo de coisa que o homem é na imagem manifesta.
82. Consideremos em mais detalhes a tentativa cartesiana de integrar as imagens
manifesta e científica. A coisa interessante de notar aqui é que Descartes deu por certo
(à maneira de uma nota promissória) que a imagem científica incluiria itens que seria as
contrapartidas das sensações, imagens e sentimentos do quadro de referência manifesto.
Essas contrapartidas seriam estados complexos do cérebro que, obedecendo a leis
puramente físicas, possuiriam entre si relações de semelhança e diferença que
corresponderiam às semelhanças e diferenças entre estados conscientes com os quais
estariam correlacionados. Todavia, como é bem sabido, ele negou que houvesse estados
cerebrais que fossem, no mesmo sentido, contrapartidas cerebrais do pensamento
conceitual.
83. Ora, se perguntássemos a Descartes ‘Por que não podemos dizer que sensações
“na realidade são” processos cerebrais complexos da mesma forma como, de acordo
com você, podemos dizer que objetos físicos “na realidade são” sistemas complexos de
partículas imperceptíveis?’, ele teria várias coisas a redarguir, algumas das quais seriam
uma consequência de sua convicção de que sensações, imagens e pensamentos
pertencem à mesma família da crença, da escolha, da curiosidade, em suma, são
exemplos (de grau inferior) de pensamento conceitual, compartilhando sua suposta
irredutibilidade a estados cerebrais. Mas quando chega a hora decisiva restaria o
seguinte argumento:
Retiramos qualidades perceptíveis do ambiente físico e as colocamos nas
sensações. Se agora dissermos que tudo em que consiste a sensação é uma
interação complexa de partículas cerebrais, então as excluímos totalmente de
nossa visão de mundo. Teremos tornado ininteligível como as coisas poderiam
sequer parecer dotadas de cor.
84. No tocante ao pensamento conceitual, Descartes não apenas rejeitou identificá-lo
com um processo neurofisiológico, ele não viu isso como uma opção real, porque
pareceu-lhe óbvio que nenhum processo neurofisiológico poderia ser suficientemente
análogo ao pensamento conceitual para ser um candidato sério a constituir o que o
pensamento conceitual “realmente é”. Não é que Descartes teria concedido que poderia
muito bem haver processos neurofisiológicos que são notavelmente análogos ao
pensamento conceitual, mas que seria filosoficamente incorreto identificar com o
pensamento conceitual (da maneira como ele identificou objetos físicos do mundo
manifesto com sistemas de partículas imperceptíveis). Ele não levou a sério a ideia de
que haja tais processos neurofisiológicos.
85. Mesmo se ele o tivesse, porém, está claro que teria rejeitado essa identificação,
tendo por fundamento que possuímos uma ideia “clara e distinta”, bem-definida, do que
seja o pensamento conceitual antes de sequer suspeitarmos que o cérebro tenha algo a
ver com o pensar. Sumariamente: sabemos o que é o pensar sem concebê-lo como um
processo neurofisiológico complexo, por conseguinte ele não pode ser um processo
fisiológico complexo.
86. Ora, é claro que o mesmo é verdade dos objetos físicos. Sabíamos o que seria
um objeto físico muito antes de saber que havia partículas físicas imperceptíveis. Por
paridade de raciocínio, devemos concluir que um objeto físico não pode ser um
complexo de partículas imperceptíveis. Assim, se Descartes tivesse tido razões para
pensar que existem processos neurofisiológicos notavelmente análogos ao pensamento
conceitual, pareceria que ele deveria ou ter mudado seu tom com respeito aos objetos
físicos ou ter dito que o pensamento conceitual na realidade é um processo
neurofisiológico.
87. Ora, à luz dos recentes desenvolvimentos na neurofisiologia, filósofos passaram
a ver que não há razão para supor que não pode haver processos neurofisiológicos que
estão pelo pensamento conceitual como estados sensórios do cérebro estão por
sensações conscientes. E, de fato, não faltaram filósofos (dos quais Hobbes foi talvez o
primeiro) que argumentaram que a analogia deveria ser vista filosoficamente como uma
identidade, isto é, que uma visão do mundo que incluísse tanto pensamentos quanto
contrapartes neurofisiológicas dos pensamentos conteria uma redundância, exatamente
como uma visão do mundo que incluísse tanto os objetos físicos da imagem manifesta
quanto padrões complexos de partículas físicas conteria uma redundância. Todavia, a
essa proposta advém a óbvia objeção de que, assim como a alegação de que “objetos
físicos são complexos de partículas imperceptíveis” nos deixou como o problema de
explicar o status das qualidades perceptíveis dos objetos manifestos, assim também a
alegação de que “pensamentos, etc., são processos neurofisiológicos” nos deixa com os
problemas de explicar o status das qualidades introspectíveis dos pensamentos. E
pareceria óbvio que há um círculo vicioso na alegação de que essas qualidades existem
na consciência introspectiva dos pensamentos que parecem tê-las, mas não nos próprios
pensamentos. Pois certamente, assim segue o argumento, a introspecção é ela própria
uma forma de pensamento. Dessa forma, um pensamento (Pedro) teria sua qualidade
furtada apenas para dar-lhe em pagamento a outro (Paulo).
88. Podemos, portanto, entender a tentação de dizer que mesmo se há processos
cerebrais que são notavelmente análogos ao pensamento conceitual, eles são processos
que correm paralelamente ao pensamento conceitual (e não podem ser identificados
com ele), como os estados sensórios do cérebro correm paralelamente à sensação
consciente. E podemos, portanto, entender a tentação de dizer que todos esses enigmas
surgem de levar-se a sério a alegação de que qualquer parte da imagem científica é o
que realmente há, recuando até a posição segundo a qual a realidade é o mundo da
imagem manifesta e todas as entidades postuladas da imagem científica são
“ferramentas simbólicas” que funcionam (algo como os dispositivos de medição de
distância dispostos sobre mapas) para nos ajudar em nossa orientação no mundo, mas
que não descrevem eles próprios objetos e processos efetivos. Nessa visão, as
contrapartes de todas as facetas da imagem manifesta seriam igualmente irreais e seria
correta aquela concepção filosófica do homem-no-mundo que endossasse a imagem
manifesta e localizasse a imagem científica no interior dela como uma ferramenta
conceitual usada pelo homem manifesto na qualidade de cientista.
VI. A PRIMAZIA DA IMAGEM CIENTÍFICA: UM PROLEGÔMENO
89. É essa a verdade da questão? É a imagem manifesta, sujeita, é claro, a
refinamentos empíricos e categoriais contínuos, a medida do que realmente há? Não
penso assim. Já indiquei que das três alternativas que estamos considerando com
respeito às alegações comparáveis das imagens manifesta e científica, a primeira – que,
como uma criança, diz “ambas” – é descartada por um princípio que não estou
defendendo nesse capítulo, embora ele demande defesa. A segunda alternativa é aquela
que acabei de reformular e rejeitar. Proponho, portanto, reexaminar o argumento contra
a terceira alternativa, a primazia da imagem científica. Minha estratégia será argumentar
que a dificuldade levantada acima, que parece um obstáculo à identificação do
pensamento com processos cerebrais, surge do erro de supor que na autoconsciência o
pensamento conceitual apresenta-se a nós com uma feição qualitativa. Sensações e
imagens efetivamente apresentam-se, como veremos, com um caráter qualitativo, o que
explica o fato de serem empecilhos à tentativa de aceitar a imagem científica como real.
Mas dificilmente é necessário hoje em dia assinalar que, não importa o quão
intimamente o pensamento conceitual seja relacionado a sensações e imagens, ele não
pode ser tomado como equivalente a elas, nem a complexos que constituídos por elas.
90. Não é por acidente que quando um romancista deseja representar o que está se
passando na mente de uma pessoa ele o faz “citando” os pensamentos da pessoa como
citaria o que a pessoa diz. Pois pensamentos não são apenas o tipo de coisa que encontra
expressa aberta na linguagem, nós os concebemos como análogos ao discurso aberto.
Assim, pensamentos na imagem manifesta são concebidos não em termos de sua
“qualidade”, mas antes como “ocorrências” [goings-on] que são análogas à fala e
encontram sua expressão aberta na fala – embora possam ocorrer, é claro, na ausência
dessa expressão aberta. Não é por acidente que se aprende a pensar no processo mesmo
de aprender a falar.
91. Desse ponto de vista pode-se apreciar o risco de incompreensão contido no
termo ‘introspecção’. Pois embora haja, de fato, uma analogia entre o conhecimento
direto que temos de nossos pensamentos e o conhecimento perceptual que temos do que
ocorre no mundo à nossa volta, a analogia vale apenas na medida em que tanto a
autoconsciência quanto a observação perceptual são formas básicas de conhecimento
não-inferencial. Elas diferem, contudo, pelo fato de que enquanto na observação
perceptual conhecemos os objetos como sendo de uma certa qualidade, no
conhecimento direto que temos do que estamos pensando (por exemplo, estou pensando
que está frio lá fora) o que conhecemos não-inferencialmente é que algo análogo à e
propriamente expresso pela sentença ‘Está frio lá fora’ está ocorrendo em mim.
92.