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Antropologia dos jogos de RPG e como

isso afeta os jovens.


No contexto atual do mundo em que vivemos, a tecnologia tem
se mostrado cada vez mais presente e constante. Assim, os
jovens de hoje em dia, acabam por ficar mais presos que o
comum em redes sociais, filmes, séries e muito mais.
Nos últimos anos, algo que tem entretido bastante os jovens e
até mesmo os adultos, são os jogos online, principalmente os de
RPG, nos quais você pode viver aventuras e ter uma vida ali
dentro do jogo. Diversas pessoas veem isso como um avanço,
outras veem como um atraso, e nesse relato etnográfico, espero
esclarecer toda essa situação, para que você mesmo, possa ter
sua opinião sobre o assunto e não se prenda a uma visão
preconceituosa.

Muitos pais e responsáveis relatam uma falta dos seus filhos, por
conta de agora, eles estarem muito entretidos com os jogos e
não saírem mais do computador ou celular. Também é muito
relatado, uma preocupação de que todo esse tempo passado nos
jogos, não seja um tempo bem gasto, uma preocupação enorme
de que os filhos estejam apenas perdendo tempo nos jogos
online, quando na verdade poderiam estar fazendo coisas
produtivas e aproveitando a vida de maneira mais efetiva.

Em contrapartida, diversos jogadores falam sobre como eles não


veem esse tempo passado nos jogos como um desperdício, já é
isso é um gosto deles e que não deveriam se privar de algo
apenas por conta de alguns não verem isso como um tempo bem
gasto. Mas mesmo assim, visando dar motivos mais “válidos”
para que eles possam curtir seu tempo jogando, pedi para que
me falassem de coisas que eles passaram nos RPG’s, coisas que
poderiam convencer as pessoas de que eles não estão perdendo
tempo.

Epidemia de World of Warcraft:


O primeiro relato que quero contar aconteceu em Wolrd of
Warcraft, um jogo de RPG online mundialmente famoso, onde
ocorreu a primeira epidemia virtual da história, algo que foi tão
marcante que virou até mesmo objeto de estudo científico. O
game havia disponibilizado uma nova área no mapa do jogo, essa
área era chamada de “Zul’gurub”. Nessa nova área do evento,
havia um chefão chamado “Hakkar, o esfola almas”. Até aí, tudo
bem, coisa comum de um evento de jogo, uma nova área, um
novo chefão, era basicamente só mais uma atualização
inofensiva... pelo menos era o que os jogadores pensavam, até
mesmo os próprios criadores pensaram que era só mais uma
atualização inofensiva e não tinham noção do que estava por vir.
Hakkar possuía uma habilidade chamada “sangue corrompido”,
que após atingir adversários, fazia com que sua vida fosse
drenada de 2 em 2 segundos, além de ser infecciosa, o que
significa que ela passava de jogador para jogador e para seus
pets no jogo, assim, se espalhando na mesma forma que uma
doença. O evento tinha como base, fazer com que essa “doença”
só funcionasse em Zul’gurub, para meio que dificultar que os
jogadores vencessem a novo chefão tão rápido. A ideia era ótima
e inovadora para o jogo, mas por conta de um bug desconhecido,
as coisas saíram do controle quando um dos pets saiu dessa área
com a infeção e levou ela para uma das grandes cidades do jogo.
Não demorou muito para que todos jogares ficassem histéricos,
já que ninguém estava entendendo o motivo dessa infeção estar
matando diversos jogadores fora de Zul’gurub, principalmente os
jogadores novatos, que possuíam uma barra de vida menor por
conta de seu nível baixo. Obviamente, por se tratar de uma
infecção, ela não ficou apenas em uma cidade, ela se espalhou
quase que completamente por todos os cantos do mapa de
world of Warcraft. Diante dessa situação de crise e pânico,
alguns jogadores bondosos se uniram e ficaram de guarda na
frente dos portões das cidades para alertar todos sobre a
doença. Outros jogadores, os que possuíam poderes de cura,
organizam filas enormes para curar o máximo de jogadores
possível. Eles não conseguiam curar a doença do sangue
corrompido, mas os podres de cura maximizavam a barra de vida
dos jogadores, assim retardando o efeito da doença e dando
mais tampo para eles, apenas impedindo que morressem.
Entretanto, assim como na realidade, também existiam
jogadores que não tinham nada para fazer e se infectavam de
propósito, tentavam transmitir a doença e assim matar pessoas,
apenas por diversão. Depois de um bom tempo, o bug foi
corrigido e os jogadores puderam andar em paz novamente
pelas cidades, sem o medo de morrerem a qualquer momento.
No fim, o que restou, foi a história sobre a primeira epidemia
que durou cerca de um mês.

Isso foi algo que aconteceu em um jogo, não é algo que de fato
existiu na realidade, mas todos que jogaram, acabaram
presenciando como era uma epidemia, aprenderem a como se
portar e ajudaram como puderam. Seja ficando de guarda nos
portões avisando sobre a infeção, seja usando poderes de cura
para retardar a doença ou apenas evitando de passar a doença
para mais jogadores. Os jogadores que passaram por isso
afirmam que foi bizarro, mas que os ajudou muito para criar
responsabilidade e senso de dever comum em prol de um bem
maior. Com isso, afirmaram como o RPG de Wolrd of Warcraft os
ajudou em sua formação como pessoa.

Ditadura de Lineage:
O segundo relato se passou em Lineage, um jogo de RPG online
bastante conhecido e muito prestigiado. O jogo possui um
sistema de clãs, onde você pode juntar uns amigos e montar um
grupo, é quase como se você montasse uma família no jogo, para
ter companhia e ajuda nas missões. A ideia do sistema de clãs é
muito boa e ainda é bastante usada em basicamente todos os
jogos de RPG, já que jogar sozinho não é muito divertido. Mas
como nem tudo são rosas, alguns jogadores poderosos se
juntaram e formaram um clã de extremo poder, denominados
“Dragon Knights”, também conhecidos como “DK”. Até aí tudo
bem, isso é um direito deles, possuem o livre arbítrio para
fazerem isso. Mas como esse clã era composto por jogadores
poderosos, o poder subiu à cabeça. Eles tinham consciência de
que nenhum jogador ou clã conseguiria bater de frente com o clã
deles, então a DK começou a impor regras em todas as áreas do
jogo que eles conseguiam dominar. Regras como controle das
áreas de caça, e o impedimento da chegada de outros jogadores
com monstros mais poderosos. Assim impossibilitando que
jogadores passassem de level em um ritmo normal, e a obtenção
de itens mais fortes, eles basicamente estavam quase que
impedindo a evolução dos demais jogadores. Com o passar do
tempo, a DK só crescia e queria ainda mais, os jogadores desse
clã estavam loucos pelo poder, e nesse período a DK optou por
fazer algo que lhe deu um controle ainda maior sobre os
jogadores, ela decidiu se aliar com outros dois clãs e assim
estabelecer a Aliança DK. De forma extremamente rápida, a
aliança conseguiu se tornar o grupo mais forte do primeiro e
maior servidor do jogo!
Com todo esse poder nas mãos, a aliança DK criou uma espécie
de ditadura cibernética, que estaria disposta a atacar e matar
qualquer jogador que não seguisse suas regras. Eles restringiram
o acesso ao mapa de caça principal e pra piorar, começaram a
taxar a venda e compra de itens dentro dos territórios que
dominavam. Com todo esse clima de ditadura, uma insatisfação
surgiu e cresceu entre os jogadores que começaram a se unir e
ansiar por libertação! E essa ânsia atingiu seu ápice quando a
aliança DK anunciou que iria aumentar os impostos territóriais de
10% para 15%. Nesse momento, todos jogadores que estavam
sob a ditadura decidiram tomar a primeira atitude que os levaria
à libertação: A criação da revolução vermelha! (Nome um pouco
irônico haha)
E foi no castelo Kiran, enquanto os membros da aliança estavam
distraídos, que ocorreu a primeira investida bem-sucedida que
lhe deu domínio do território e permitiu zerar os impostos que
ali existia. Só que é claro, a aliança não deixaria isso barato, e
logo em seguida, reconquistaram tudo de volta. Entretanto, esse
acontecimento, essa investida da revolução vermelha, acabou
por chamar a atenção de outros clãs menores que também
insatisfeitos com a ditadura, uniram-se a revolta e criaram a
“Aliança contra DK”.
Então rapidamente, a nova aliança atacou as áreas do “governo
ditatorial”, mas devido às restrições da aliança DK, a maioria dos
jogadores não era forte o suficiente e foram completamente
mascarados..., Mas mesmo que tenha sido um fiasco, o fracasso
fortaleceu o senso de justiça entre todos os jogadores! E esse
sentimento se fortaleceu tanto, que um jogador de outro
servidor escreveu um comunicado no site do jogo que comoveu
toda a comunidade. Aqui embaixo deixarei o comunicado:
“A guerra que ocorre no servidor Bartz terminará em derrota
sem a colaboração das forças dos jogadores menos experientes.
Mesmo que seja um personagem de level 1 pareça não ser de
grande, uma investida simultânea de inúmeros personagens de
level 1 trará um grande impacto psicológico.
(...)
O resultado dessa guerra está sendo observado por todos os
servidores – não apenas o servidor Bartz. Lembre-se que os
incontáveis jogadores oprimidos estão torcendo pela vitória
nessa guerra.
Vamos dar esperança a eles. Vamos dar confiança a eles.
Vamos mostrar que nenhuma ditadura poderá prevalecer em
nenhum servidor.
Nesse momento, estou criando um personagem no servidor
Bratz e me aliarei à resistência.
Lutarei em prol da justiça, e, um dia, irei estufar meu peito e
dizer às pessoas que, apesar de ter sido em um jogo, lutei por
uma independência de verdade.”
Após essa declaração, vários jogadores de outros servidores
decidiram largar seus personagens e criar um novo servidor em
que ocorria toda a situação, apenas no intuito de ajudar a
resistência. E enquanto a resistência foi ganhando força, uma
briga interna ocorria na aliança DK, fazendo com que um dos clãs
deixasse o grupo e se juntasse à resistência que a partir de agora
lutaria contra a ditadura que já perdurava por bastante tempo.
Inclusive, o movimento contra a DK se tornou algo tão grandioso
que um conglomerado de 32 clãs, totalizando mais de 200 mil
jogadores, se uniram em uma guerra colossal no maior castelo
do jogo, que era o símbolo de poder da aliança DK. Só é bom
lembrar que mesmo com um número maior de jogadores, a
resistência possuía um poder de luta bem menor que a aliança
DK, afinal, quase todos da resistência eram novatos ou eram
jogadores que não conseguiram evoluir tão bem por conta da
ditadura, por isso, bastante fracos ainda. Contudo, eles possuíam
uma estratégia bem ousada: Mandar os jogadores fracos na
frente para que, à medida que fossem morrendo, formasse uma
barricada humana que impediria os avanços dos membros
adversários, bem como a movimentação deles. E através dessa
condição, os jogadores mais fortes mais fortes avançaram sobre
o castelo e travaram uma longa batalha!
Então após horas e mais horas de sangue e suor, finalmente veio
a tão aguardada vitória! Que fez com que todos ficassem
confiantes e esperançosos, a ponto de reconquistarem todos
territórios e castelos que pertenciam à aliança DK!
Assim a ditadura que reinava nessa comunidade, finalmente
havia acabado! E o que ficou foi a história, sobre o dia que o
fator emocional e o teor humano juntaram diversas pessoas para
lutarem contra uma ditadura cruel.

Essa ditadura ocorreu em um jogo, mas todos os jogadores que


participaram dela, veem ela como algo de extrema importância,
pois foi. Eles fizeram amizades em meio um período conturbado
de ditadura, se uniram com desconhecidos e deram tudo de si
para conseguirem ter a liberdade de jogar como quiserem. Todos
que participaram afirmam como essa ditadura foi importante
para eles, já que nela que muitos despertaram seu senso de
justiça de sede por liberdade para todos e todas.

A Lenda de Kerafyrm, o dragão avassalador:


O último e terceiro relato que me foi contado, se passa no
mundo virtual do RPG de Everqueste, que não é tão conhecido
como os dois últimos citados, mas sua história é tão importante
quanto. Em Everqueste, existe uma fera extremamente forte e
temida por todos, conhecida como Kerafyrm, o dragão
avassalador. Segundo a lenda, Kerafyrm nasceu do cruzamento
de diferentes raças de dragões e era tão forte que teria matado
inúmeros dragões e desafiado o deus deles com o seu poder. Por
esse motivo, essa fera estava selada em um dos cantos do
grande mapa do game. Para ter acesso a esse ser mítico, era
preciso enfrentar quartos guardiões muito fortes que protegiam
o selo onde Kerafyrm estava. Em especial, o quarto chefão era
quase impossível de ser derrotado. Isso fez com que vários
jogadores decidissem abortar a missão quando chegavam nele.
Entretanto, uma guilda denominada de “EE”, tida por muitos
como a guilda mais forte do game, para eles esse desafio virou
questão de honra e após uma longa batalha, eles conseguiram
derrotar o quarto guardião e assim despertar a criatura mais
poderosa e assustadora, que a partir de agora atormentaria a
todos por muito tempo. Obviamente a batalha da guilda EE,
contra Kerafyrm, não durou muito tempo, e os jogadores foram
destroçados um por um. Após isso, o dragão se viu livre de seu
selo e saiu voando pelo mapa do game. O dragão possuía o
poder de atacar qualquer jogador ou npc dentro do game, ou
seja, assim que ele foi liberto, saiu matando a todos que
encontrava pela frente!
O negócio ficou tão sério que até os chefes de eventos que
ocorriam naquele momento sofreram e foram derrotados.
Simplesmente nada ficava vivo em frente a Kerafyrm. Contudo,
depois de sair pelo jogo trazendo caos e destruição generalizada,
ele sumiu e a destruição enfim, havia acabado. Kerafyrm foi um
monstro que trouxe tanto prejuízo a todos, que uma espécie de
tabu foi estabelecida entre os jogadores: A de que seria proibido
libertar novamente essa criatura, já que era praticamente
indestrutível. Assim foi feito e durante um bom tempo, o dragão
permaneceu selado em outros servidores. Entretanto, anos
depois, uma guilda com más intenções, anunciou que faria
exatamente aquilo que muitos haviam concordado em não fazer,
em nome da paz. Sabendo do poder daquela criatura e como
seria impossível controlar Kerafyrm após a quebra do selo,
outras três guildas extremamente poderosas se juntaram e
foram para luta, decidindo que eles matariam o dragão e não
deixariam que alguém apenas o liberasse para ele propagar o
caos como já havia feito anos antes. Após todo planejamento,
eles foram a luta, uma luta que durou três horas e foi bastante
difícil, mas por conta da grande habilidade individual de cada
jogador, somada a um incrível trabalho de equipe, o dragão
estava perdendo. Mas após ele ficar com 25% de vida, ele
simplesmente sumiu num passo de mágica, não, os jogadores
não haviam derrotado ele, Kerafyrm simplesmente sumiu. Os
jogadores ficaram extremamente revoltados e foram reclamar
com a empresa responsável pelo game, depois se muita
reclamação, a administração do game veio dar uma explicação
sobre o ocorrido. Segundo eles, Kerafyrm foi criado para ser
praticamente indestrutível, o que fez com que o jogo entendesse
que a iminente derrota do dragão, seria um bug ou hacker de
algum usuário, e então o apagou. Após toda a situação, a
administração pediu desculpas pelo ocorrido e informou que
invocariam o monstro novamente. Assim mais três horas de
batalha se passaram e finalmente eles conseguiram derrotar
Kerafyrm, o dragão avassalador. Apesar de ter sido uma luta
extremamente difícil, o dragão não liberou nenhum item após
sua derrota, alguns jogadores ficaram decepcionados, tendo que
se contentar somente com a honra de poder dizer que um dia
participaram de uma das maiores batalhas de todos os tempos!
O jogo foi tão real que os jogadores montaram um tabu de não
quebrar o selo do dragão, eles possuíam uma cultura baseada no
medo de perder seu mundo, então quando se viram ameaçados,
se juntaram e derrotaram o dragão em prol de um bem maior, e
mesmo ganhando nada, eles sempre vão ter a história de que um
dia se uniram para fazer com que a paz prevalecesse em todo o
jogo. Os jogadores entrevistados falam desse feito como algo
histórico, que mudou eles para sempre, pois juntos eles foram
tão fortes que nem o próprio jogo conseguiu acreditar e pensou
que era um bug ou coisa do gênero. Eles afirmam como isso os
ensinou que suas habilidades individuais, quando combinadas,
podem fazer muito.

Trouxe esses três relatos a fim de mostrar um pouco do que os


jogadores de RPG já passaram e passam até hoje. Os jogos
possuem uma cultura parecida com a nossa, passam por
epidemias, guerras, revoluções e muito mais. O âmbito do RPG é
enorme e extremamente rico em cultura, a maneira como a
maioria dos jogadores age como uma verdadeira família é algo
extremamente rico. Muitos deles nunca se viram pessoalmente,
mas isso pouco importa, pois para eles, o que é importante de
verdade, é como você vai agir lá dentro. Se você vai fazer de tudo
para ajudar numa epidemia ou se vai simplesmente espalhar o
vírus só por diversão, se você vai se juntar a uma revolução ou
continuar de cabeça baixa enquanto sofre de jogadores mais
forte, se você vai se unir para matar uma fera que ameaça seu
mundo ou se você vai ficar com medo e nem tentar ajudar seus
companheiros. São situações como essa que formam o caráter e
personalidade das pessoas que assim como eu, também jogam
RPG.
Temos um mundo extraordinário para explorar, mas cabe a você,
decidir se quer se aventurar ou não.

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