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Ano 1 Ed.

nº0 – Distribuição Gratuita

A segunda revista de todo RPGista

aventura de bolso
por naomi maratea

conto inédito
de elisa guimarães

entrevista
com thiago “shinken” rosa

e muito mais...
CARTA DO EDITOR
Olá, pessoa leitora! Seja bem vinda a edição piloto da CHA RPG. Depois de um
longo ensaio com idas, vindas e reescritas, estamos confiantes para colocar o bloco
na rua com a edição piloto da publicação que vem com a proposta de ser a segunda
revista de todo rpgista e a primeira de todo questionador das mono narrativas.
Mas o que diferencia as próximas quarenta e tantas páginas de outras revistas
de RPG que você encontra por aí na rede mundial dos computadores? Primeiro e
mais importante: a diversidade da nossa equipe editorial. No nosso expediente,
você encontrará diversas identidades entre os colaboradores de cada edição. E
este caleidoscópio de visões de mundo traz não somente universos mais coloridos
e interessantes às páginas do que uma equipe capaz de tocar um samba de uma
nota só criaria, como ajuda a garantir o princípio jornalístico da pluralidade de
vozes e opiniões.
Outro diferencial da CHA RPG é que o principal objetivo dela não será dar suporte
aos sistemas da casa ou criar conteúdo focando os sistemas A, B ou C ou as vertentes
X ou Y. Para mim, é mais interessante inspirar você a criar suas próprias histórias do
que entregar algo pronto para ser consumido. A jornada muitas vezes vai ser mais
cansativa do que os textos de fácil digestão por aí, mas prometo que, no final da
maioria dos textos, existe a chance real de você sair mais sábio, seja como pessoa
jogadora/mestra ou como ser humano do que era minutos antes. Pois, como diria
um certo Doctor por aí, nada mais somos do que a soma de nossas histórias – e um
tanto de poeira cósmica e rolagens aleatórias. Então, que sejamos personagens de
histórias que no final do dia nos tragam mais orgulho do que tristeza.
Aproveite a leitura,
Max “Myandro” Fischer

EXPEDIENTE COLABORADORES Vinhetas ilustradas


Thiago Egg (@thiagoegg)
editor chefe Clarice França
Max Mendes Fischer Elisa Guimarães Fontes usadas na revista
Alegreya (família)
Kazz
Alegreya Sans (família)
editora Lisa Yurika Taguchi Alegreya Sans SC (família)
Stella Mendes Fischer Naomi Maratea
Nina Bichara Elementos gráficos
diagramação e revisão Norpetor Imagens de divulgação
Stella Mendes Fischer Licença paga freepik.com
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SUMÁRIO DA EDIÇÃO
20P 20 (e poucas) perguntas: Thiago Rosa 04
por Max “Myandro” Fischer

RES Resenha: Fallout 1 16


por Norpetor

RES Resenha: The Purge 20


por Max “Myandro” Fischer

VAV Vale a Visita? Ardham 24


por Clarice França

CP Ciência Popular: Castelo da rua Apa 28


por Max “Myandro” Fischer

FLASH Ficção Relâmpago: A caçada da Bruxa 30


por Elisa Guimarães

ADB Aventura de Bolso: A Princesa e o Dragão 36


por Naomi Maratea

99M 99 Missões: Aventuras medievais 40


por Nina Bichara

GD101 Criação de Jogos 101: Masmorra do Aprendizado 42


por Lisa Yurika Taguchi

GM 101 Mestrando 101: Multimídia na sua mesa 46


por Kazz

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com Thiago Rosa

Com um apelido que remete às espadas com lâminas afiadas, Thiago Rosa é um
veterano na indústria de RPG brasileiro. Com menos de 15 anos de idade fez sua es-
treia como redator da Dragão Brasil (que será referida como DB neste texto), a mais
influente revista do gênero no país da época, com uma adaptação de Dragon Ball Z
em uma das poucas edições da primeira fase da revista que teve a tiragem esgotada
na banca. Iniciou uma faculdade de Letras em japonês, mas seu trabalho como ope-
rador de rádio bilíngue em sondas de pré-sal por quatro anos o fez viajar por todo o
litoral do País e o sonhado diploma ficou para depois. Hoje trabalha como coorde-
nador pedagógico em uma escola de inglês, além de contribuir para quase todas as
editoras de RPG do Brasil e estar envolvido em pelo menos um projeto internacional.
Neste 20 (e poucas) perguntas conversamos sobre seu processo de criação de jogos,
influências, visões de mercado, e, logicamente, seu sabor de chá favorito.

Como suas experiências de vida influen- é exatamente isso o que eu faço. Geral-
4 ciam no Thiago de hoje e como elas apa- mente eu pego um interesse e tento
recem na criação dos seus jogos? apresentar ele de uma forma de jogo de
que as pessoas possam se engajar da for-
Os meus jogos são fruto das minhas pre- ma que elas preferirem. No Karyu Den-
ferências pessoais. Geralmente gosto setsu (KD) foi o primeiro. Eu brinco que
de experienciar as coisas que aprecio e o Julio Mattos diz que depois de fazer o
quero ver como apresentá-las ao mun- primeiro faz um milhão e eu disse que
do. Diferente de pessoas como o Jorge não, mas tenho vários em criação. Ba-
Valpaços, que cria jogos mais pessoais sicamente tenho interesses que quero
– literalmente tem um pedaço do Jorge dividir com o mundo e jogos e RPG são a
em cada jogo dele – nos meus jogos não forma de dialogar e expressar.

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Quais são suas maiores influências que estou jogando para uma aventura
no campo do RPG? que estou escrevendo naquele momen-
to. A maior parte das minhas aventuras
A maior influência sem dúvida foi Ewen são baseadas em alterações em alguma
Cluney. Eu só escrevo por causa dele. E coisa que estava acontecendo em al-
depois a DB, que foi o meu primeiro tra- gum jogo que estava jogando na época
balho remunerado. Eu comecei a escre- em que me chamaram para escrever.
ver ficção depois de ler um conto do Tre- E muito anime, eu passo muito tempo
visan e eu percebi que conseguia mexer assistindo animes velhos e novos. No
com regras graças ao 3D&T, porque era caso do KD tem muita influência de
simples e me possibilitava fazer isso. Street Fighter, dessa estética de poderes
Tirando eles, no Brasil tem o Jorge Val- sobrenaturais vindo de artes marciais.
paços. Jonh Wick, Cam Banks, Kenneth Além disso, outros jogos de videogame
Hite, Robin Laws, Monte Cook, que tem influenciaram muito o KD. Um de Samu-
muita coisa que não gosto, mas seria rai X de PS chamado “Rurouni Kenshin:
falso dizer que ele não tem influência. Meiji Kenkaku Romantan Saisen” que é
Eloy Lasanta e Olivia Hill também tive- um RPG de turno que o combate é meio
ram uma grande influência sobre mim, pedra-tesoura-papel e isso influenciou
principalmente na parte de questões uma das mecânicas básicas do combate
sociais dentro dos meus jogos. No caso e o “Yū Yū Hakusho: Tokubetsu Hen”, que
do KD, as principais influências foram é um jogo de luta misturado com RPG
o Thrash, do Ewen Cluney, que estabe- que também influenciou a mecânica de
leceu a base, o Marvel Heroic, o Tenra triângulo do jogo.
Bansho Zero influenciaram muito o sis-
tema de customização do KD.
Thiago “Shinken” Rosa
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E fora do RPG? Quais são suas maio-
res influências fora do hobby na hora
de criar uma semente de aventura,
personagem ou ambiente quando
você está criando algo?

Eu ouço muitas bandas de rock alter-


nativo e isso influencia o que eu faço.
Videogame também. Muitas vezes eu
tento transpor uma ideia que eu vejo no

5
Como foi o processo de criação do KD? cesso junto aos apoiadores e qual é a
sua opinião sobre o último debate na
O KD foi mais uma questão de necessi- comunidade sobre “financiamento
dade do que uma ideia que eu tive. Era coletivo é ou não é pré-venda?”
o tipo de jogo que eu queria jogar, mas
não tinha um jogo como ele. O mais O KD não foi o primeiro financiamento
próximo era o Thrash do Ewen Cluney, que teve atrasos. Na real, a reação dos
meu mentor de game desing. O dia apoiadores foi muito compreensiva
que percebi que tinha que criar o KD e apenas uma minoria reclamou de
foi quando perguntei para ele quando fato. A situação de não dar atualiza-
ia sair o Trash 2 e ele respondeu que ções constantes e ser transparente foi
nunca, pois ele estava envolvido em ou- pelo fato que estávamos em uma sinu-
tros projetos e não ia mais trabalhar no ca de bico que era muito difícil de sa-
jogo. E aí eu percebi que, se ninguém ber o que fazer. Era um caso que se eu
fosse fazer o jogo que eu queria, eu dissesse especificamente o que esta-
mesmo teria que fazer, senão eu não jo- va acontecendo eu jogava a culpa em
garia. A partir daí eu comecei a me inte- cima de um membro da minha equipe
ressar pelo design de verdade, isso em e eu não queria fazer isso, já que quem
2013. Comecei a pesquisar como o jogo estava gerenciando o projeto era eu e
podia fazer o que eu queria, porque eu sou eu que deveria lidar com a recep-
não sabia. Até então, eu precisava que ção. Tirando a questão da gráfica que
alguém fizesse aquilo por mim. Fiquei aí eram coisas claras. Mas até chegar lá
estudando e jogando e lendo sobre jo- eu não queria apontar dedos em nin-
gos até ele estar pronto. guém e por isso as atualizações eram
Eu tinha o jogo quando falei com a um pouco vagas e isso gerou insatisfa-
Nina Bichara, em 2016. O KD era só ção em algumas pessoas.
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as minhas notas. Eu chamei ela para Sobre o debate em si, não acredito que
escrever o cenário. Mas o papel dela tenha resolvido alguma questão por-
cresceu e se tornou co-autora e é tão que ele fica andando em círculo. Para
importante quanto eu. Reestrutura- fim é muito simples: FC não é pré-ven-
mos tudo e integramos o cenário com da. Eu falo isso desde o começo. Não
as mecânicas. sei se isso é uma dificuldade do de-
bate, mas isso não quer dizer que pré-
-vendas não possam ocorrer utilizan-
O Karyu Densetsu teve um atraso de do as ferramentas de financiamento
quase um ano e meio em relação à coletivo. Não é a mesma coisa. Se eu
previsão inicial. Como foi esse pro- falo que bola não é vermelho não quer

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dizer que não há bola que não seja uma trilha de cursos do Coursera que
vermelha. E chegou uma hora que eu é gratuito se você não pegar o certifica-
cansei de engajar nessa conversa. Mas do no final que dá bases muito boas e
isso não é o pior. Muita gente diz que tem coisas que você pode ler como au-
eu falei que o produtor não tem cul- todidata. A vanguarda de game design
pa de atraso, quando na verdade eu você só vai ter acesso se for autodidata,
sempre disse que eu era culpado pelos senão você só vai continuar estudando
atrasos do KD. o que já era estudado há décadas e vai
ficar lendo Huizinga pelo resto da vida.
Existe game design além disso. Tem
O que uma pessoa que deseja criar vários canais, como o Miguel Sicart, do
um jogo deve estudar? Play Matters, que vale a pena conhecer.

É um quadro muito amplo. Se você quer


fazer um jogo basta vontade. Não preci- Você acredita que o atual momento
sa de conhecimento especializado para do RPG nacional merece ser classifi-
criar um jogo. Se você já jogou outros cado como Era de Ouro ou você acre-
jogos, e eu acredito que todo mundo dita que a época dourada do hobby no
já jogou alguns jogos na vida, você tem Brasil foi durante os anos 90-2000?
condições de criar um jogo. Porém, no
meu caso específico eu venho de uma Eu não chamo o momento atual de Era de
família mista com pai branco e mãe Ouro. Em 2014, quando teve os financia-
negra e desde muito cedo me falaram mentos paralelos de Fate, Our Last Best
que eu tenho que ser o melhor ou as Hope e Numenera, eu acreditei que o
pessoas não vão te dar atenção. Então RPG nacional estava entrando em uma
quando eu resolvi começar a fazer os nova fase. Inclusive, nessa época eu entre-
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meus jogos ele precisava ser bom e eu vistei o Matheus Bueno da Solar na época
estudei até que ele ficasse bom. Sim- e ele ficou surpreso quando eu perguntei
ples assim. Então se alguém quer fazer se ele achava que esses financiamentos
um jogo, basta vontade. Agora, se você marcavam o início da Era de Platina do
quer fazer do seu jogo algo comercial RPG no Brasil. Eu acredito que foi um
antes de estudar game design vale a marco ali e uma mudança da relação do
pena estudar marketing. Porque o que leitor com a editora e o que constitui uma
mais importa em um primeiro momen- editora. A era de ouro foi nos anos 90 e
to não é se o seu jogo é bom ou não, mas ela foi importante pelo alcance que ela
se você sabe vender ele. Agora, se você teve. Acho que o alcance de bancas ainda
quer que ele seja bom eu recomendo é maior do que o alcance que temos pela

7
Ilustração de Karyu Densetsu.
internet. Mas hoje é muito mais fácil tan- do ruim também. Theodore Sturgeon,
to produzir como distribuir do que era nos um autor de ficção científica ameri-
anos 90. Eu acho que se for comparar os cana que eu gosto muito, costumava
anos 90 e agora hoje é melhor. Acho que dizer que 90% de tudo que é produzi-
é importante valorizar o nosso passado, do é um lixo. E os 10% que sobram é o
8 mas estamos em outro momento agora. que você deveria morrer defendendo.
Acho que a maior parte das coisas que
são produzidas não são excepcionais,
Com a facilidade da distribuição de inclusive pelo o que significa algo ex-
conteúdo existem questionamentos cepcional. É meio que necessário que
sobre a queda da qualidade da pro- a maior parte não seja boa, para que
dução nacional como um todo. Como exista algo que seja realmente bom.
você vê essa crítica? Você faz tanto a cobertura dos lança-
mentos das editoras como fazer análi-
Quando mais você produz, a tendência ses, resenhas, críticas dos produtos das
é você produzir mais conteúdo bom, mesmas ao mesmo tempo que presta
mas isso acaba gerando mais conteú- serviços para elas. Em outros segmen-

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tos essa divisão parece ser fundamen- Existe certa solidariedade entre os
tal em nome da imparcialidade jorna- grandes canais de boardgame e ou-
lística, mas no RPG não parece existir tros segmentos de entretenimento,
problema nessa dupla jornada. Como mas isso não é visto muito entre os
você vê essa relação? grandes portais de RPG. Existe algum
Eu não acho que exista imparcialida- motivo para isso?
de jornalística. Todo mundo tem um
viés e você tem que ser honesto sobre Na verdade, cada um prefere trabalhar
isso. Todo mundo produz de modo di- um pouco no seu quadrado. Tanto que
ferente e isso faz parte da graça dos existe o editor de um grande portal
seres humanos. Curiosamente, todo de RPG que me bloqueou em todas
mundo que me disse que iria fazer as redes e não cita o meu nome ou de
uma cobertura imparcial de RPG nun- quem ele não gosta mesmo que seja
ca conseguiu apresentar essa impar- do interesse público a notícia e isso é
cialidade por muito tempo. No RPGN mais uma prova que não existe impar-
nós tentávamos ser verdadeiros com cialidade na comunicação. No entan-
o nosso público. O Leandro Pug, por to, já ocorreram momentos em que as
exemplo, sempre dizia em live que equipes se juntam para se ajudarem.
adorava a New Order e chamava ela No último Diversão Offline que ocor-
de queridinha, mas isso não impedia reu no Rio de Janeiro juntou a equipe
a gente de falar quando tinha algum do RPG Notícias junto com o canal que
problema ou atraso em algum finan- o Roxo e o Mestre PedroK estavam na
ciamento deles. A gente dava a nota época, o CyberGoblin e mais uma ga-
e divulgava, mas não era algo que a lera e a cobertura ficou muito boa.
gente achava digno de gastar energia Em termos de cobertura foi o melhor
escrevendo um artigo de duas mil pa- DOFF que o RPG Notícias teve em toda
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lavras a respeito. E concentrar as ener- sua história.
gias no que a gente queria produzir ou
no que estávamos interessados de fato Como você vê questões ligadas a to-
foi uma força motriz em toda história xicidade e discursos de ódio dentro
do RPGN. A Nina Bichara resume tudo das comunidades de RPG brasileiras?
isso em uma única frase: “Engage na- Você tem alguma sugestão de solu-
quilo que te move”. Então aquilo que ção para esse problema?
a gente queria que acontecesse era o
que a gente ia atrás. Infelizmente acho que sempre vai
existir toxicidade dentro da comuni-
dade de RPG. Eu sou um dos modera-

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dores do Masmorra de Valkaria (grupo O afrofuturismo são várias coisas: é um
do Facebook oficial de Tormenta) e lá movimento político, um gênero literá-
a gente faz o possível para coibir esse rio e uma estética. Como estética acho
tipo de comportamento. Temos regras que vai ter um futuro muito brilhante,
e quando as pessoas passam do limi- pois ele tem diversos representantes
te a gente tira. Mas eu acredito que as muito fortes na cultura pop e isso não
pessoas merecem uma segunda chan- vai sumir tão cedo. Como movimento
ce. Não adianta só excluir e proibir. Se político não acho que vai vingar pela
alguém pede para voltar, normalmen- dificuldade de dialogar com essa esté-
te ela recebe uma segunda chance. É tica. Vários autores afrofuturistas que
importante ser didático e explicar o pensam como política em suas obras
porque aquele comportamento está não relacionam isso diretamente ao
sendo tóxico ou preconceituoso e ten- pan-africanismo, que é a voz política
tar entender o porquê ela pensa da- do filme do Pantera Negra, que é o
quele jeito se ela quiser. O ideal seria ápice da estética. Então essa relação é
existir algum tipo de conscientização complicada.
para isso não ocorrer, mas eu não sei No Brasil, por enquanto, temos o afro-
como fazer isso. E depois de começar, futurismo no Nova Ifé e Neo Guanaba-
como lidar? Na minha opinião, o im- ra, que tem uma pegada mais tropical.
portante é não dar espaço e papo por- Acredito que mais pessoas vão criar jo-
que senão essas páginas e grupos só gos com essa temática em um futuro
tendem a crescer. próximo.
Já sobre RPGs afrocentrados, o sucesso
do Kalymba mostrou o poder comercial
Em 2021 existem dois RPGs previs- que diversidade vende sim e comercial-
tos com temática afrocentradas para mente é viável. Então acredito que em
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serem lançados no Brasil: Kalymba breve teremos mais RPGs, principal-
e Nova Ifé. Esses lançamentos, junto mente estrangeiros, com essa temática
com outros elementos culturais liga- chegando ao mercado brasileiro.
dos à África, como o afrofuturismo Por fim, sobre trazer novas pessoas
na literatura, e o pan-africanismo na para o hobby, não acredito que ape-
política, podem resultar na criação de nas os lançamentos desses jogos vão
novos jogos e pode atrair mais pes- trazer centenas de novos jogadores.
soas, principalmente negras, para o Ainda existe um longo caminho para
hobby já que elas se verão represen- essas pessoas se sentirem confortáveis
tadas nesses jogos? para jogar e consumir RPG sem sofrer
preconceito.

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Você trabalha em atividades ligadas e a produção nacional. Temos uma


ao RPG tanto no Brasil como nos Es- grande quantidade de jogos em cus-
tados Unidos (projeto Level Up). Exis- tomização. Eu vejo com reflexo da DB,
te alguma diferença entre trabalhar 3D&T, D&D 3.5, que foi uma versão al-
com brasileiros e uma equipe inter- tamente customizável. Nossa produção
nacional além da língua? reflete isso. E o contrário. Temos jogos
minimalistas que fogem de tudo isso.
Sim, existe. Acho muito muito mais Então a produção nacional orbita entre
fácil trabalhar com equipes brasilei- esses dois extremos. Não são todos os
ras do que internacionais. A apro- jogos que se pode dizer que claramente
ximação cultural faz o trabalho ser tem cara de “jogo feito no Brasil”, mas
muito mais fácil e isso facilita o tra- se eu fosse citar alguns exemplos fica-
balho como um todo. Existem alguns ria como o Godness Save the Queen do
comportamentos, principalmente Julio Mattos, como exemplo de atre-
culturais, que soam estranhos e às lar a temática e fugir da customização
vezes eu acho estranho, como no que excessiva; o Violentina, do Eduardo
você vai interagir, ou dar feedback Caetano, que para mim é o story game
ou até mesmo reclamar e nisso você tipicamente brasileiro, principalmente
perde muito tempo com coisas des- como as mecânicas são explicadas; o
necessárias. Por exemplo, às vezes Tormenta 20, que o texto é claramen-
acontece uma discussão de dias e no te brasileiro e representa muito bem o
final o editor chega e diz que fugiu estilo da customização extrema e, por
completamente do que deveria ter fim, o Através das Trevas do Ramon Mi-
sido feito e ele que vai decidir o que neiro que, do jeito que ele foi desenvol-
será feito. vido, representa bem a vibe de “vamos
fazer e ver o que acontece”.
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Você acredita que já podemos falar
que exista uma “identidade brasilei- Em 2019 você escreveu um artigo in-
ra” nos jogos desenvolvidos no Brasil titulado “A bolha do d20” relembran-
assim como se fala de uma “identida- do sobre a bolha das licenças d20 e
de norte-americana” ou “identidade OGL nos anos 2000. Passado quase
europeia”? um ano e meio da publicação desse
artigo, você acredita que o risco de
Acho que sempre vamos influenciar uma nova bolha devido aos D&D com
pelo que vem de fora, mas o tipo de lasers ou alguma outra temática/li-
jogo reflete muito o que é popular aqui cença/sistema nos próximos anos au-

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mentou, diminuiu ou continua igual que sempre pegava as recompensas
ao que você pensava em 2019? mais altas nos financiamentos coleti-
vos em 2015 e garantir sua tiragem para
Racionalmente eu acho que não exis- vender do que fazer um esforço a mais
te risco de uma nova bolha. Hoje a e fazer uma outra tiragem, outro preço,
gente tem distribuição mais frag- outra gráfica… Querendo ou não uma
mentada e esse foi o principal causa- tiragem de livro em capa dura quase
dor da crise lá atrás. sempre é lucro garantido. Em resumo:
Só que volta e meia eu vejo uma até que ponto vale a pena arriscar o lu-
Green Ronin da vida anunciando que cro e público da sua editora para alcan-
vai fazer Blue Rose pra D&D e eu mor- çar algo maior? No KD eu tinha definido
ro de medo. desde o começo que o miolo seria preto
Então, basicamente, eu não acho que e branco e seria formatinho de mangá
vai ter outra bolha. Mas morro de medo para não ficar caro. Queria que se fosse
da possibilidade do mesmo jeito. o jogo que você gostasse comprasse na
hora e não ficasse meses namorando
para juntar dinheiro e comprar. Eu já
Hoje em dia raramente um livro de passei muito por isso e não queria que
RPG é vendido abaixo dos 3 dígitos, o ninguém passasse por isso. Mas eu sei
que dificulta a compra dele. Ao mes- que em algum momento terei que fa-
mo tempo, edições populares pare- zer um livro de 500 páginas colorido
cem não ter caído no gosto do rpgis- em capa dura que vai ser comprado por
ta médio brasileiro. Existe alguma 300 pessoas para publicar um projeto
fórmula ou meio termo para garantir meu. Eu só fazia questão que não fosse
que mais pessoas consigam comprar o primeiro projeto.
o seu jogo sem abrir mão de quem
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está disposto a pagar muitas vezes
mais de R$ 150,00 em um livro que Você está se aventurando no mundo
poderia ser considerado de luxo em dos quadrinhos com All Star Under-
outros segmentos? dog (ASU), no qual assina o roteiro
junto com a Clarice França e arte de
Essa é uma questão muito difícil. Para Odmir Fortes. Quais foram as princi-
tornar o seu jogo mais acessível você pais diferenças e dificuldades de tra-
tem que investir mais nele. É mais bara- balhar em uma nova mídia ou para
to você vender o livro de capa dura e co- você não existe essa barreira da mí-
lorido de 500 páginas para o “clube dos dia interferir no tipo de história que
300”, como a gente chamava o pessoal será contada?

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Tanto existe essa barreira que foi por não sou uma pessoa que organiza as
isso que eu convidei a Clarice. Eu tinha coisas e no meu caso a pessoa que con-
a ideia do ASU faz muitos anos já, mas segue pegar as minhas ideias e transfor-
não me sinto confortável trabalhando mar elas em algo real é a Nina. Na parte
sozinho com roteiro de quadrinhos de escrita o Glauco Lessa, André Soares,
ainda. Calhou de ter uma pessoa ab- Luciano de Jesus, Clarice França e a Al-
surdamente talentosa em que eu con- lana Dilene. Ilustração de Odmir Fortes,
fio e que decidiu entrar nessa comigo, Lud Magroski, Bruna Nora e Mariana
então acho que dei muita sorte. Petrovana e na diagramação, o Ramon
O grande diferencial do formato, pra Mineiro. Inclusive, muitas pessoas desse
mim, é pensar visualmente. Eu estou meu “time dos sonhos” estão trabalhan-
acostumado em me concentrar na for- do comigo em um projeto, mas não pos-
ma do que eu escrevo, quando é prosa, so entrar em detalhes por enquanto.
e na compreensão, quando é regra. Só
que quando você faz um roteiro você
precisa fazer meio que as duas coisas, Quais são seus projetos futuros?
tem que projetar a forma numa instru-
ção que funcione pro ilustrador. E não Até 2021 eu só vou trabalhar no KD e em
tem comparação, Clarice faz isso mui- artigos da Dragão Brasil. Mas para 2022
to melhor que eu. e além estou trabalhando no Sonho Su-
Já fiz outros trabalhos com quadri- blime para a Jambô, que é um RPG com
nhos, que é uma mídia que eu aprecio estética afrofuturismo. É como se você
muito, mas sempre com co-autoria; ligasse o seu Super Nintendo para jogar
um exemplo é Onde Fica O Coração, Chrono Trigger, mas ao invés de encon-
que saiu numa edição da Dragão Bra- trar aquela vibe de anime você vai en-
sil, que eu dividi com o Glauco Lessa. contrar uma vibe afrofuturista. Além
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Um dia eu faço um roteiro sozinho, pro- disso, para a Retropunk, estou traba-
vavelmente. Só não vai ser amanhã. lhando em um compêndio de anime
para Savage Worlds, para a New Order
o Chou, que é um RPG de super heróis,
Se você pudesse montar o seu time dos que é a premissa é que existe um apli-
sonhos para criar um projeto, quem cativo japonês que você chama super
estaria nesse time e qual função cada heróis para fazer serviços para você.
uma dessas pessoas ocuparia? Além disso, tem um PBtA que é o Love
at High Noon que é um RPG que é um
O meu time dos sonhos é ter a Nina Bi- simulador de namoro no Velho Oeste,
chara na edição/coordenação, pois eu que eu tenho trabalhado desde 2017

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em parceria com o Doğa Corin Eskier vezes você até tem o tempo, mas seus
(Matadores de Dragão). clientes não vão ter demanda suficien-
te para você.
Outra coisa, mostre e engaje. Eu vejo
Para alguém que queira viver de RPG, muita gente entrando em um grupo,
seja criando jogos, complementos ou jogando um link e saindo. Mas quan-
romances ligados a um mundo pró- do você engaja e conversa sobre o que
prio, você tem alguma dica para essas você está fazendo você ganha mais a
pessoas? longo prazo.

Inicialmente estudar escrita criativa.


Até poucos anos não tínhamos cursos Muitas pessoas consideram que você
formais de escrita criativas e isso pode é “polêmico demais”, principalmen-
ajudar bastante. E nunca parar de es- te por suas declarações nas redes
crever. Você pode estudar a vida intei- sociais. O que você tem a dizer sobre
ra, mas sem escrever de fato você nun- isso?
ca vai melhorar. Já sobre criar jogos me
perguntaram uma vez quantos jogos Acho que todo mundo tem um pou-
você precisa criar antes de ser autor de co disso. Uma coisa que ouço sempre
RPG. E a minha resposta é zero. Você quando conheço alguém é que elas
pode fazer um artigo, um hack, uma acham que eu sou mais alto pelo jeito
aventura e você já é um autor de RPG. que eu falo, afinal tem que ser alguém
Se você quer trabalhar com RPG você grande para sair peitando por aí. Mas
não precisa iniciar criando um jogo. Às todo mundo tem uma voz diferente
vezes é até melhor você não começar nas redes sociais. Mas eu tenho que
criando um jogo. O esforço é muito diminuir um pouco disso. Eu acho que
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grande e se você não tem tanta expe- a comunicação é mais prática quando
riência o resultado pode não ser tão ela é menos combativa e estou ten-
bom. Então começa com algo menor e tando me comunicar de forma menos
depois faz seu jogo. agressiva. Acho que tem dado bons re-
Outra dica importante: Não abando- sultados.
ne o seu emprego estável mesmo que
você odeie não largue ele, pois até
você ganhar o mínimo possível para Para finalizar, qual é o seu sabor de
você viver dele vai demorar. Trabalha chá favorito?
nisso como hobby, nas suas horas va-
gas até você se estabelecer. Porque às Hortelã.

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fallout: depois das bombas,
a opressão retrofuturista
por Norpetor

Quando se fala em Fallout é comum fria para se transformar no definitivo


puxar imediatamente à cabeça o acla- e derradeiro confronto nuclear mun-
mado Fallout 3, que colocaria jogos de dial. Em apenas duas horas o mundo
mundo aberto em primeira pessoa em da superfície terrestre seria devasta-
um novo patamar. Já os fãs de RPG ele- do – o que não significa toda a Huma-
trônico mais ‘velha guarda’ têm gran- nidade. Por ter sido um desastre tão
des chances de carregar boas lembran- antecipado, a empresa Vault-Tec Cor-
ças do primeiro jogo da trilogia. Criado poration receberia do governo norte-
pelo visionário produtor e programa- -americano, décadas antes da guerra
dor Tim Cain e publicado em 1997 pela de fato, a concessão para que produ-
Interplay, Fallout: A Post Nuclear Role zisse abrigos subterrâneos e os comer-
Playing Game é o primeiro jogo da cializasse – e boa parte, se não todos,
série e entrega exatamente o que seu os sobreviventes, acabariam sendo es-
título promete. tes que resolveram ouvir seu corretor e
Seu conceito é relativamente simples: “investir” em seu futuro. Acontece que
pela escassez de recursos, sobretudo ao longo do desenvolvimento do jogo,
16 petróleo e urânio, o mundo como o mas sobretudo da série, você descobre
conhecíamos deixaria de existir. Os que as intenções da empresa iam mui-
Estados Unidos anexaram o Canadá, to além de simplesmente salvar a vida
os países europeus se dissolveram de humana; mas aí é jogar para ver.
uma vez por todas em União Europeia Uma curiosidade do jogo é que ele foi
e a China invadiu o Alasca; um cená- inicialmente pensado para GURPS,
rio tenso que percorreria boa parte do mas dificuldades com o licenciamen-
século XXI e que, no ano de 2077, dei- to do sistema de Steve Jackson, que
xaria de ter contornos de uma guerra achou o jogo violento demais, fez a

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equipe de desenvolvedores ser obri- des do jogo é justamente pegar o joga-


gada a criar seu próprio sistema: o dor desavisado; em um mundo como
SPECIAL. Formado pela inicial de cada este, de sobrevivência, não há espaço
atributos-chaves da personagem, o para a curva de aprendizado. Ao contrá-
sistema está presente em todos os rio do que se imagina, da porta de sua
jogos da franquia e faz parte da mi- casa, a Vault 13, para fora, a radiação é o
tologia da série. Inclusive, existe uma menor de seus problemas. É necessário
Wiki criada por fãs para transformar o sempre estar em estado de alerta, ser
SPECIAL em um sistema de mesa além político e, na maior parte das vezes, evi-
de diversas adaptações dos jogos para tar o confronto, pois quase todo mundo
diversos sistemas passando por todas está armado – e cada encontro aleató-
as vertentes do GNS. rio que pipocar no mapa da costa oeste
A primeira grande lição de Fallout para americana, território onde se passa o
construir um universo pós-apocalíptico jogo, pode ser o seu último. O jogo, no
é acabar com a ideia de que o mundo te- entanto, não te pune por sair roubando
nha apenas apertado o reset, e seja en- e matando cada alma que atravessa seu
tão campo aberto e frutífero para a nova caminho. Você inclusive pode encontrar
gênese. O mundo é um lugar frio, peri- um final muito específico à sua perso-
goso e opressivo. Nele, a sua vida está nagem se tiver matado uma quantida-
em risco o tempo todo. Uma das virtu- de mínima de pessoas.

Como todo RPG seus primeiros inimigos são ratos. Mas esses são bem mais mortais.

17

17
Outro ponto interessante que o jogo são do jogo. Vale destacar que Game
traz é um elemento moderno e que Timer pode estar alterado dependen-
pode enriquecer o mapa de qualquer do da versão que você estiver jogando
campanha de mesa: o retrofuturismo. deste clássico.
Esta é uma tendência das artes em que Esse senso de urgência pela “bomba-
se faz uso de conceitos antigos aplica- -relógio” e o peso de salvar toda sua
dos com a tecnologia e o contexto do comunidade também eleva bastante
futuro. Apesar de você estar em pleno o grau de intensidade de Fallout. Nas
ano de 2161, referências de arte, mú- mãos de um mestre criativo no univer-
sicas, propagandas e a arquitetura de so do RPG de mesa, essa pode ser uma
tudo o que permaneceu de pé, passa- carta na manga para mudar o ritmo
do tamanho holocausto, o remete aos entre uma campanha e outra.
Estados Unidos dos anos 50 do Século Vale lembrar que o apocalipse nuclear
XX. Além de ser um detalhe estetica- de Fallout é um bom exemplo de varie-
mente enriquecedor, o retrofuturismo dade de criaturas e oferece um campo
de Fallout também tem razão de ser: é fértil para seres bizarros, como os Rad
clara referência a um dos períodos de Scorpions, escorpiões gigantes e letais,
maior tensão da Guerra Fria entre os os Ghouls, alguns dos poucos sobrevi-
Estados Unidos e a União Soviética. ventes à enorme exposição radioativa,
E até mesmo um dos pontos mais cri- e por isso parecem zumbis, além de
ticados do jogo pode criar uma boa mutantes gigantes. Coisas que fazem
dinâmica para campanhas de RPG do primeiro Fallout um rico universo
de mesa. Fallout possui um chamado do drama humano, em uma misce-
Game Timer, que nada mais é que um lânia de sofrimento, medo, loucura e
tempo limite para cumprir sua mis- resiliência, e até hoje uma das melho-
são no jogo. Seu primeiro desafio é o res fontes para a criação de universos
de encontrar uma Water Chip, peça pós-apocalípticos também em RPGs
essencial para o funcionamento do de mesa.
18 maquinário que trata a água da Vault
13, para que se torne potável a seus Se você gostou, vale a pena conhecer
residentes – e você tem, de início, ape- também: Wasteland 2 (Jogo de Vi-
nas 150 dias para isso, mas você pode deogame, 2014); Mad Max (Série de
ganhar mais 100 dias com uma missão Filmes).
opcional especifica. Mas como nada
vem de graça, ganhar 100 dias para
fazer a primeira missão traz um efeito
negativo para a segunda grande mis-

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Queremos ouvir vocês! Tem algum
feedback ou sugestão?
Conta para a gente!
charpg@editoracha com br . .

19
the purge: o homem como o
lobo do homem
por Max “Myandro”

The Purge ou Noite de Crime, como fi- franquia em uma ordem específica. Mi-
cou conhecido no Brasil, é um daqueles nha sugestão é assistir a primeira tem-
filmes B de terror que seria um dos gran- porada da série – na qual você acompa-
des favoritos ao Framboesa de Ouro se a nha a “Noite do Expurgo” pela visão de
premiação tivesse uma categoria home- diferentes núcleos – e somente se você
nageando o gênero. Segundo a crítica se interessar em assistir os outros produ-
americana, as principais conquistas do tos na ordem que você escolher.
primeiro filme foram conseguir quase Em um Estados Unidos afundado em
US$ 90 milhões em bilheterias ao redor crises políticas e econômicas, um par-
do mundo com um orçamento de ape- tido chamado Novos Pais Fundadores
nas US$ 3 milhões e ter Lena Headey, na consegue se eleger e passar uma lei
época já interpretando Cersei Lannister que dita uma noite por ano para que
em Game of Thrones, como atriz prin- qualquer crime seja permitido. As úni-
cipal. Apesar do roteiro de qualidade cas exceções são tentar matar o presi-
questionável – e a clara falta de senti- dente e seus assessores e usar armas
mento de autopreservação de alguns químicas e nucleares.
20 personagens –, o sucesso de bilheteria Então, durante 12 horas de uma noite,
foi o suficiente para James DeMonaco, todo e qualquer estadunidense pode
diretor e escritor do filme, convencer os “acertar as contas” com quem quiser,
figurões de Hollywood do sucesso da do jeito que quiser. O pai da sua na-
ideia e construiu uma franquia com 5 fil- morada não quer aceitar seu namo-
mes e uma série de TV. Como cada filme/ ro? Seu chefe é um completo idiota e
temporada se passa em uma cidade e abusador sexual? Está cansado de ser
em um ano específico com conexões mí- o segundo da sala? A Noite do Expur-
nimas entre si, não é necessário assistir a go resolve essas e muitas outras ques-

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tões nessa distopia que leva às últimas apenas considerados sem caráter por
consequências a máxima do filósofo quem está segurando a arma. Então
inglês Thomas Hobbes: “A condição sabe aquele vizinho que você divide
natural do homem é uma condição de uma cerveja após um dia de trabalho?
guerra de todos contra todos”. Ao fazer Ele pode matar toda sua família com
que a maioria dos americanos acredi- crueldade pelo fato de você nunca o
tassem na “verdade” que a humanida- ter convidado para jantar e a chance
de é má e destrutiva por natureza e ao simplesmente surgiu.
concentrar a um período a chance de Trazendo a conversa para o mundo do
transbordar todas as mágoas, traumas RPG de mesa. Você, pessoa jogadora, res-
e acertos de contas, os Pais Fundado- ponda: como o sua personagem vai agir
res conseguiram fazer que a sociedade ao encontrar uma vila ou reino que exista
vivesse sob máscaras de uma falsa civi- uma Noite do Expurgo ou algo parecido?
lidade e hipocrisia sempre a espera do Vai defender os oprimidos? Vai tentar
grande ritual de purificação anual. mudar a lei com as autoridades locais de
E você não precisa ser muito esperto alguma maneira? Vai usar a oportunida-
para saber quem normalmente morre de para realizar um grande roubo ou con-
nas Noites de Expurgo: todos aqueles seguir alguma vantagem?
que são considerados incapazes pela Já você, pessoa narradora, responda:
visão capitalista, patriota e ou talvez Como é a relação deste local com a Noite
Gente bonita, elegante e sincera (e com espírto assassino).

21

21
Feira da Carne: Pela quantia certa, reviva as grandes torturas da História.

do Expurgo? Existem regras não oficiais do se purificar por meio da morte de


como não atacar voluntários que pres- alguém ou pessoas também podem
tam serviços de primeiros socorros ou chamar aventureiros para defenderem
toda crueldade é permitida? Existem suas casas e família de supostos inve-
santuários onde ataques não ocorrem? josos. Responda novamente, pessoa
Quem são os principais agentes e quais jogadora: o que a seu personagem,
são suas agendas? Como as pessoas po- contratado para defender um alguém
22 dem ganhar dinheiro e poder durante durante uma Noite do Expurgo fará ao
esse período? Responder a todas essas descobrir que quem está tentando ma-
questões vai te ajudar a criar camadas tá-lo são as vítimas que tem aquela úni-
narrativas e sementes de aventuras para ca noite como chance de vingança? Vai
servir de iscas às pessoas jogadoras. respeitar o contrato ou vai quebrá-lo?
Além das agendas pessoais das perso- Outro elemento que precisa ser levado
nagens e principais agentes da cidade, em conta em uma história que se passa
contratos menores também podem es- em uma Noite do Expurgo é a questão
tar ligados à Noite do Expurgo. Alguém do limite de tempo. Todas as pessoas
pode chamar os aventureiros buscan- têm apenas 12 horas para cumprir seus

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objetivos. Então, colocar na mão dos à saúde mental de quem está jogando
jogadores como eles vão gerenciar o (recomendação particular: use fichas
tempo pode gerar situações bem dra- de consentimento e a dinâmica do “X
máticas para a mesa. Voltando a situa- card”). Afinal, estamos falando de ex-
ção do parágrafo anterior, como você vai tremos da única espécie com capacida-
descobrir quem está falando a verdade de de organizar de maneira sistemática
quando quem está tentando matar seu modos de exterminar membros da
contratado falar que quem você está de- mesma espécie. E se a História nos ensi-
fendendo na verdade é quem oprime? na algo é que a mente humana é capaz
Noites do Expurgo podem ser usa- de criar as coisas mais belas ao mesmo
das em basicamente qualquer tipo tempo que cria as mais horripilantes.
de campanha ou sistema, da fantasia
medieval aos jogos cyberpunk e ficção Se você gostou, vale a pena conhe-
científica. Basta saber adaptar as prin- cer também: The Purge (Série de TV,
cipais premissas ao seu universo. No 2 Temporadas, Encerrada, USA Net-
entanto, mais do que um cenário para work); O Leviatã (Livro escrito por Tho-
aventuras, utilizar esse tropo narrativo mas Hobbes).
exige cuidados, principalmente ligados

23

23
Ardham pode parecer uma cidade nor- família) para depois pegar a Massachu-
mal em um primeiro momento para setts Turnpike em direção ao oeste logo
quem não conhece a história por trás pela manhã. Você vai saber que está
da área. Mas permita ter olhar atento, chegando na cidade após um dia intei-
viajante, e logo você vai notar que o lu- ro de viagem e observar as cores do céu
garejo tem coisas escondidas. Ardham mudarem de azul para vermelho. Outro
pode ser um lugar interessante – mas sinal que você está chegando perto do
nem sempre proporcionará uma boa destino será a batida das forças policiais
experiência boa para quem precisar locais avisando da existência um toque
passar por lá. de recolher na região desde a Guerra Ci-
Ardham fica no condado de Devon, vil e que eles podem te executar no ato
em Massachusetts, nos Estados Uni- se te pegarem após o sol se pôr. Portan-
dos. Para viajantes desavisados, Ar- to, viajante, tome cuidado. Recomendo
dham pode parecer o nome de outra acelerar o carro após essa experiência,
cidade muito famosa pelos escritos de mas sempre respeitando os limites de
H.P Lovecraft: Arkham. Mas ao contrá- velocidade local. Felizmente Ardham
24 rio do lar da Universidade Miskatonic, fica a poucos quilômetros de onde essa
do Necronomicon e de Herbert West, batida normalmente ocorre, então você
Ardham é bem real, apesar de não es- deve chegar lá sem grandes dificulda-
tar em nenhum dos mapas oficiais do des, considerando que tudo dê certo.
Estado do Feijão Cozido. Você terá muitas coisas para fazer em
Para chegar em Ardham minha suges- Ardham, mas a principal atração é a
tão de caminho é primeiro passar em Sa- hospedaria da organização conhecida
lém para conhecer a história das bruxas como Os Filhos de Adão. Fundada por
(e comprar lembrancinhas para toda a Titus Braithwhite em 1813, depois que

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ele descobriu o Livro dos Nomes, com As duas organizações tiveram uma sé-
feitiços que abordam a vida, a trans- rie de conflitos nas sombras por mais
formação e a gênese, a cidade com de 30 anos até o casamento dos netos
pouco mais de quinhentos habitantes de Titus e Horatio em 1865 quando
cresceu ao redor da organização e ba- voltaram a ser uma só. Hoje, a orga-
sicamente vive para servi-la. nização é liderada por Christina Brai-
Os Filhos de Adão tem diversos mo- thwhite, descendente direta dos dois
mentos interessantes em sua histó- homens e oferece visitas guiadas a
ria secular, mas três deles chamam grupos especiais às quartas e sextas,
a atenção de todos que cruzam o seu mas apenas com hora marcada. As vi-
caminho de alguma forma. Em 1832 sitas têm direito a um café colonial no
eles tiveram sua primeira grande ci- jardim da organização. É uma boa op-
são. Liderados por Horatio Winthrop, ção para quem quer conhecer melhor
alguns membros cansados de apenas a história da cidade.
Titus e seus descendentes serem alfa- A hospedaria, no entanto, não é a mes-
betizados na língua antiga para ler o ma construída por Titus. Ela mudou
Livro dos Nomes, roubaram algumas muito ao longo dos anos. Em 1833, Ti-
páginas e fugiram na calada da noite tus morreu junto com os outros mem-
em direção a Chicago, onde fundaram bros da irmandade em um grande
os Filhos de Caim. incêndio que destruiu toda a cidade,
Croqui da primeira hospederia dOs Filhos de Adão.

25

25
Shoggoths: Uma especíe de lobo que só existe da região de Ardham

sem sobreviventes registrados. Foi um gos da Crucificação, e os escondeu em


acidente muito comentado na época, um labirinto debaixo da casa. Samuel
e até hoje, dependendo da região que também reconstruiu a cidade ao redor
você visitar. Curiosamente, o Livro dos da hospedaria, mas apaixonado pela
Nomes foi encontrado anos mais tar- história americana se inspirou na ar-
de, com algumas partes queimadas, quitetura dos primeiros dias da Inde-
26 mas ainda inteiro. pendência. Então, ao andar pela cida-
Samuel Braithwhite, filho de Titus, de, não estranhe ao encontrar pessoas
que estava na Europa durante o incên- se comportando como se estivessem
dio de 1833, reconstruiu a hospedaria fisicamente e mentalmente na Era Fe-
em 1860, acrescendo alguns quartos deralista (1788–1800).
e detalhes que não estavam no proje- No entanto, se isso ainda não é exa-
to original da casa – inclusive lendas tamente o que você espera para as
locais afirmam que Samuel trouxe suas férias, Ardham ainda pode te
tesouros sagrados, entre eles os pre- surpreender. Cercada pela vegetação

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nativa, é possível encontrar os mais E é por conta desses e outros mistérios


diferentes tipos de animais andando que existem em Ardham, que qual-
pela região. Se você é um amante da quer um deve tomar muito cuidado
vida silvestre não perca a chance de ao visitar o local, ou talvez até mesmo
conhecer os Shoggoths, uma espécie evitá-lo se você não pretende perder
de lobo que só existe nesta região do alguma parte de sua saúde física ou
mundo. Com certeza será um encontro mental. Talvez nada de mais aconte-
inesquecível que você jamais esquece- ça – ou talvez o perigo e o inexplicável
rá. Mas tome cuidado, eles não são os estejam bem ao lado. De qualquer for-
tipos de animais mais amigáveis. ma, será inesquecível.

27

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ajude essas histórias a chegar mais longe.

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ciência popular
castelo da rua apa
por Clarice França
por Max “Myandro”
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O Castelo da Rua Apa – ou Castelinho da Rua Apa, como é conhecido pelos mora-
dores da região – é um imóvel localizado perto do Viaduto Costa e Silva, no bair-
ro da Santa Cecília em São Paulo que foi construído em 1912 com clara influência
da arquitetura medieval dos castelos franceses com elementos da belle époque.
Seria considerada mais uma das diversas casas dos herdeiros dos barões do café
da metrópole paulistana se não fosse o infame assassinato sem solução ocorrido
em 1937, quando toda família proprietária foi encontrada morta junto com um
revólver automático sem balas no tambor.
Os registros policiais apontam o irmão mais velho como responsável pelo crime de
assassinato da mãe idosa e do irmão mais novo seguido por suícidio. No entanto,
os próprios médicos-legistas discordam da opinião dos policiais. Segundo os jor-
nais da época, há três prováveis teorias para o crime: ou um dos irmãos é responsá-
vel pelo crime ou ocorreu uma chacina encomendada por um crime passional por
uma pessoa amante desconhecida de um dos dois irmãos, ambos frequentadores
das rodas da alta sociedade paulistana da década de 1930. Sem herdeiros diretos,
o terreno passou por uma batalha judicial entre o poder público – que herdaria
a casa pelas leis da época – e familiares até acabar nas mãos do Inss. Enquanto o
destino da casa era decidido nos tribunais, diversos relatos de passos, choros e la-
múrias dos espíritos dos mortos no lugar fizeram com que a construção ganhasse
fama de mal-assombrada nos quatro cantos da terra da garoa.
Além das histórias de terror que circulavam a casa, o fato dela ter sido ocupada
por usuários de drogas, moradores em situação de rua e ter sido usada como de-
pósito de sucata de cooperativas também não ajudou na sua fama em uma das
cidades mais conservadoras do Brasil. Apesar de ignorada pelo poder público,
as estruturas da casa quase centenária permaneceram de pé, como se suas colu-
nas quisessem ser lembradas como os últimos vestígios da época que São Paulo
contava com menos de 400 mil habitantes.
Foi somente na década de 1990 que seu processo de tombamento foi iniciado e 29
em 1996 que ganhou suas atuais guardiãs: as responsáveis pela ONG Mães do
Brasil. A casa foi totalmente reformada durante os anos 2000 com o objetivo de
torná-la um centro cultural e social para os habitantes da cidade, tornando-se
um espaço de convivência, banho, alimentação e geração de renda. Hoje, pinta-
do de amarelo, quem passa por ele enquanto pratica esporte sob o Viaduto aos
finais de semana muitas vezes não tem ideia que está diante de um monumento
da cidade, afinal, não há uma placa que identifique o local ou sua importância
histórica.

29
caçada da bruxa
por Elisa Guimarães
Madalena parou no centro da velha capela soterrada e direcionou o feixe de luz
do acessório em seu pulso em direção ao teto. Ainda estava repleto de imagens
reconhecíveis. Os afrescos foram bem preservados com o desmoronamento da
entrada e um bolsão de ar manteve a atmosfera preservada – o que afirmavam
os especialistas, inclusive ela mesma.
Mas a verdade era um pouco divergente da explicação mundana e começava em
outra vida, quando ainda era Rosa, e não Madalena. Pouco antes de ser arrasta-
da de sua casa no meio da noite, com gritos ensurdecedores em seus ouvidos e
a luz bruxuleante de tochas da multidão deixando sua vista inexata, ela havia
condenado um homem ali.
Um homem santo, diziam, um frade pintor, vindo diretamente de Lisboa a pedi-
do da Diocese para enfeitar a maior igreja da região, localizada dentro de uma
caverna, como o Filho pregava aos discípulos em seus primeiros dias, com san-
tos, anjos e belezas, até a maldição se abater sobre ele, roubar seu juízo e per-
turbar seu trabalho. Passou a dedicar-se a cobrir aquelas paredes e tetos com
gravuras que revelavam a verdade grotesca de seu coração sombrio e luxurioso.
30 E assim, mesmo após a morte, provocada por ele mesmo na fatídica capela, fra-
de José continuou pintando e repintando monstros e passagens que pareciam
ter saído do coração do próprio Mal. Para sempre selado em forma de espírito
até que Rosa o liberasse de sua penitência eterna. A Igreja ter selado o local com
pólvora foi a última gota de fel naquele cálice já transbordante que Madalena
trazia consigo.
E esse era seu intuito quando cruzou o Atlântico: rever José. Depois de séculos,
finalmente falar com ele, saber seus motivos. Talvez agora que Rosa era só uma
sombra de seu passado, Madalena pudesse achar em seu coração uma forma de
perdoar o homem que a matara, tantos séculos atrás.

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Fora pega pela Inquisição, acusada de bruxaria. Entre as “provas” de seu poder
como serva de Satã estava a afirmação categórica sobre ter tentado seduzir um
homem santo, azedar o leite, o mau olhado em animais e crianças e até mesmo
pelos abortos que aconteciam na vizinhança, entre outras baboseiras. O único
motivo pelo qual ela havia se permitido ser arrastada pela Inquisição, naquele
ritual de folguedo ridículo, tinha sido para preservar o livro que havia sido seu
legado, passado sempre à filha mais velha, de geração em geração, remontando
desde a época que Roma era um império dominando boa parte do mundo, cheio
de poder e mistério; além de proteger suas duas amadas irmãs, tão versadas nas
artes místicas quanto ela mesma: Margarida e Magnólia. Afinal, se houvesse um
confronto direto, o trio seria superado graças à superioridade numérica dos seus
inimigos, já convencidos de sua culpa além de qualquer dúvida. Uma vez expos-
ta, o melhor a fazer era findar aquela vida pacata de donzela da província dando
aos homens o que tanto desejavam: sangue e dor.
E ela havia dado um verdadeiro espetáculo em praça pública, para aqueles uru-
bus carolas e sedentos. Gritos de desespero ecoaram pela praça quando o fogo
lambeu sua carne, e a fumaça quente e fedorenta preenchia seus pulmões ar-
fantes. Assim, em meio ao sofrimento e olhares cruéis, a vida de Rosa Pessoa
Dias findou. Por mais poderosa que fosse, Rosa demorou décadas para conse-
guir se recuperar das queimaduras e voltar à cidade para reencontrar suas irmãs.
No entanto, quando bateu na porta da antiga casa não encontrou nem as irmãs,
nem sinais de suas magias ou do Malleus Maleficarum, nem um recado. Ambas
haviam desaparecido. Foi como se os fogos da Inquisição tivessem sido acesos
novamente ao seu redor.
Restava agora descobrir, de uma vez por todas, o real papel de José na doloro-
sa morte de Rosa. Era a peça final para que finalmente voltasse a ser comple-
ta. Só conseguiria descansar uma vez que estivesse diante de todas as peças do
intrincado quebra-cabeças que a separara de suas irmãs. Quando finalmente a
identidade de seu denunciante estivesse confirmada acima de qualquer dúvida 31
razoável. E naquele tribunal instaurado por ela seria promotora, júri e, acima de
tudo, carrasca.

Quando o laser sônico cortou a última camada dos escombros, um som sinistro
veio do interior da câmara. Um gemido de dor agudo e profundo escapou pela
abertura empoeirada, como se aguardasse anos para sair de sua clausura. Uma
rajada de ar moveu as máscaras de proteção do rosto, brincou com os cabelos,

31
sujando-os de pó, e eriçando os pelos da nuca de todos os acadêmicos que espe-
ravam ansiosamente para estudar seu interior.
Diante disso, mal pode guardar seu sorriso.
– Não conseguiu sair, não é mesmo? Espero que tenha sido agradável – sussur-
rou em um tom quase terno. – Vai ser ótimo revê-lo, José.
Seu diálogo íntimo foi interrompido com um breve pigarro.
– Professora Madalena, a senhora gostaria de entrar junto com o professor Má-
rio e os engenheiros de segurança? – perguntou o funcionário da UNESCO encar-
regado do trabalho bruto, mal escondendo seu desconforto diante da câmara. O
homem tremia de medo.
Com um sorriso de orelha a orelha, mal contido pela máscara, respondeu em
tom suave:
– Ah... será um prazer indescritível. Obrigada.
A entrada era pedregosa, e incerta, as pedras rolavam sob suas botas e o ar es-
tava estagnado, levando um odor estranho que deixava os demais ainda mais
inquietos: enxofre.
– Ah... José... Por que precisou terminar assim? – sussurrou e passou as mãos pe-
los cabelos azuis e lisos, sentindo a presença atormentada ao seu lado, enquan-
to fitava o altar enfeitado ainda com os demônios e suas carrancas.
Todos trabalhavam em silêncio, com pressa de sair dali o mais rápido possível.
Madalena, entretanto, não tinha nem um pouco de pressa, pretendia demorar-
-se ali tanto quanto fosse necessário. Retirando-se para um dos lugares mais
afastados, posicionou seu banquinho dobrável onde costumava ser o confessio-
nário.
Calmamente, abriu sua mochila e retirou de dentro um velho livro, com uma
encadernação de couro já muitas vezes renovada, as páginas amareladas tei-
mavam em estalar quando as virava com cuidado. Finalmente achou o feitiço
de que precisava. Sorriu levemente enquanto lia atentamente as palavras e pa-
32 drões herméticos desenhados a sua frente. Abriu uma garrafa térmica e deu um
grande gole em um líquido carmesim que manchou seus lábios.
– Khronos, ducor ergo. Khronos, me duco. – disse com voz solene e baixa, em
seguida começou a cantar baixo e ritmadamente.
O ar ao seu redor começou a estalar e a exalar ozônio como logo após uma tem-
pestade elétrica. O solo tremeu levemente e o ar parou. A vida congelou naquele
momento recortado do fluxo do tempo. Tal qual uma tela de natureza morta.
Tudo, exceto Madalena e um homem alto e loiro, com uma barba cheia e des-
grenhada, olhos negros e profundos. Vestido em trajes sacerdotais antigos. Ele

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parecia cansado, muito cansado, as mãos sujas de tinta e os pulsos ensanguen-


tados.
– Rosa... Minha Rosa, voltou para rir da minha desgraça?
Bufando de leve, a bruxa revirou os olhos.
– Não seja dramático, meu querido José. Eu deixei você pensando no que fez co-
migo por um tempinho... Espero que tenha refletido a respeito das consequên-
cias de suas atitudes, meu bom frade.
– Minhas atitudes?! Minhas atitudes? Ora, moleca, meu erro foi ter vindo para
essa terra esquecida por Deus, amada pelo Diabo. Ter deitado meus olhos em
você. Ter ouvido suas doces palavras sussurradas em meu ouvido, dizendo que
me queria tanto quanto eu te queria. Ter acreditado em você, sua mentirosa!
– Mentirosa? Eu dei meu corpo e meu coração para você! – falou com lágrimas
vindo aos olhos. Era surpreendente que depois de tanto tempo, ainda fosse tão
afetada assim pelas lembranças de um passado tão distante. – Foi você que co-
meçou os rumores de que eu era uma bruxa, que tinha te seduzido. Foi a culpa,
José? Foi essa maldita culpa que o seu Cristo fica grasnando em seus ouvidos?
– Não! Eu renunciei aos meus votos quando nossos lábios se tocaram na capela
quando eu fazia os esboços, e você sabe disso. Sempre foi poderosa, Rosa, mas
nem você consegue mudar o passado.
– Então, você se diz inocente? Inocente? Eu não atravessei um oceano para ouvir
essa baboseira de um fantasma! – disse tremendo de raiva. Não era possível ta-
manha petulância!
– Rosa... Rosa... A vida toda, você só viu o que quis. Criou uma mentira e me fez
sofrer por ela. Por que não vê por si mesma? Por que você acha que pintei um
único rosto em todos os demônios nessas paredes por tantos séculos? – adian-
tando-se e encostou um dedo na testa da bruxa.

Estava de costas, rabiscando um novo afresco, no canto esquerdo do altar, seria 33


uma bela Nossa Senhora, quando o bispo entrou ofegante pela nave, correndo
quase.
– Frade José! Frade! Pare agora o que está fazendo e veja o que acabei de receber!
– o rosto redondo do bispo estava vermelho pelo esforço e suava em profusão,
em suas mãos roliças, estava uma carta com um lacre aberto.
– Mas... O que houve, eminência? O que está acontecendo?
– Vou precisar chamar o cardeal! É Rosa Pessoa! Ela foi acusada... ela é... O Se-
nhor seja louvado! É bruxaria, José! Uma bruxa embaixo de nossos narizes!

33
Incrédulo, ele toma o documento das mãos de seu superior eclesiástico. E, no
papel branco, destaca-se a inconfundível letra de Margarida, irmã de Rosa.

Os olhos dela queimavam e a boca estava seca, mal conseguia acreditar no que
acabara de ver! Margarida a traíra! Sua irmã caçula, que tanto amava, cuidou e
ensinou todas as complicadas artes mágicas.
A lâmina mais dolorida é aquela inesperada fincada nas costas!
Mal conseguia respirar diante de tal revelação! Suas mãos suavam e sua vista
turvava.
Enquanto isso, o espectro sorria para ela, com os olhos mortiços com uma últi-
ma fagulha de vida. Finalmente, ele se sentia vingado por toda dor e sofrimento
causados por ela.
– Agora, Rosa... Como vê, não sou quem procura. Liberte-me e vá atrás de quem
realmente lhe fez mal. Eu mereço meu descanso e a minha paz, onde quer que
seja.
Respirando fundo, Rosa, que agora voltou a ser Madalena, invocou palavras má-
gicas, furou seu próprio dedo com uma agulha e esfregou em uma das paredes
próximas, e beijou o vento onde os lábios de José deveriam estar. Um estalo seco
como um galho se partindo se fez e um murmúrio de alívio ecoou pelo local.
– Adeus José. Me perdoe por tudo. Não foi sua culpa.
Com um leve tremeluzir iridescente, a vida retornou a câmara empoeirada re-
tornou a vida com o ar retornando aos pulmões de todos que lá estavam parali-
sados, uma estranha sensação de paz e tranquilidade tomou o ambiente parca-
mente iluminado.
Parada no centro da nave, a bruxa de tantos nomes e séculos de vida encara-
va o teto. Lá reconheceu os traços e olhos de sua própria irmã desenhados de
novo e de novo nos rostos de demônios ridicularizando os mais sagrados rituais
34 cristões. Um breve sorriso escapou de seus lábios, ainda tintos de carmim. Seu
trabalho ainda não estava terminado. Agora finalmente sabia o que precisava
fazer para recuperar-se de vez das feridas na alma causadas tantos anos antes.
Ela encontraria as irmãs, principalmente Margarida, e recuperaria o que era seu
de direito. Esse era só o começo. Só o primeiro passo havia sido dado na direção
correta.

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a princesa e o dragão
por Naomi Maratea

Essa é uma aventura de fantasia e o homem que está para se tornar seu
pode ser adaptada e expandida para genro. Quando os jogadores encon-
qualquer sistema que comporte esse tram o Rei e o futuro príncipe do Rei-
tipo de cenário: D&D, Dungeon World, no, o monarca explica o que lhe aflige:
Tormenta etc. Pode ser usada como sua filha, a princesa, foi levada por um
início de um arco narrativo, aventura dragão para uma torre no meio da flo-
única ou aventura intermediária entre resta. O Rei está muito preocupado e
arcos maiores. disposto a fazer de tudo pela segurança
de sua preciosa e delicada filha. O pai
Uma missão como qualquer outra se mostra preocupado também com o
Essa aventura começa como a narrativa fato de que não é a primeira vez que a
mais padrão do gênero: durante uma filha é sequestrada por dragões, e teme
de suas viagens, o grupo é chamado que ela esteja sozinha e sentindo medo
para realizar uma missão secreta. “O nesse exato momento.
pagamento vai ser bom, é claro!”, pro- O futuro-príncipe, por sua vez, diz aos
mete o representante do contratante. heróis que ama muito a princesa, e
36 Ofereça um generoso número de peças que está animado para seu casamen-
de ouro, informações ou algo que as to, que acontecerá na semana seguin-
personagens desejam muito. O próprio te. Pede encarecidamente para que o
Rei encontra o grupo em algum lugar grupo traga sua noiva de volta em se-
escondido para explicar os pormeno- gurança e em tempo para a cerimônia,
res da missão. Pode ser no castelo, em pois esta não é só importante para o
uma sala reservada de uma taverna ou seu coração apaixonado como é im-
em algum local que faça mais sentido portante para seu reino natal, que pas-
dentro do cenário. Junto do Rei, está sa por problemas econômicos.

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A caminho da Torre Resgate?!


O Reino possui dois castelos: O caste- Os heróis finalmente chegam nas ruí-
lo onde o Rei e a família real vivem, e nas do castelo e observam a grandiosa
um castelo abandonado localizado torre com um imponente dragão os ob-
no coração da floresta. O castelo servando. Junto com ele também está a
abandonado foi o primeiro castelo princesa! Mas ela não está de vestido, e
da família real, porém uma floresta sim com uma roupa de combate e não
dotada de criaturas mágicas e mons- parece ser refém do dragão, pois está
truosas cresceu ao redor da constru- em cima de sua cabeça, como se fosse
ção há muitos anos e a construção de sua dona! Ao se aproximarem, os heróis
um novo castelo e capital foi neces- percebem a verdade: a princesa não foi
sária. A família precisou abandonar levada pelo dragão, a princesa que levou
a construção e suas ruínas foram es- o dragão! Ela foi pintada pelo seu pai
quecidas e hoje tudo que sobra da e seu noivo como uma mulher frágil e
antiga construção é a sua torre mais indefesa, mas na verdade é uma habili-
alta. E é na torre deste castelo aban- dosa treinadora de dragões. A partir do
donado onde o grupo precisa ir para momento em que o grupo cita que está
resgatar a princesa. Testemunhas vi- a serviço do Rei, ela ordena que o dragão
ram o dragão voando com a princesa ataque e o dragão, que demonstra ami-
naquela direção, e é conhecimento zade com ela, o faz! Começa um comba-
popular que dragões gostam de fi- te entre o grupo e o dragão da princesa.
car por lá. Durante a incursão dos Construa a ficha do dragão em um ní-
heróis pela floresta alguns monstros vel adequado para o grupo, mas não
aparecerão para tentar arranjar o al- deixe ele forte demais; a princesa não
moço do dia. Os heróis vão ter que quer machucar ninguém, apenas está
os enfrentar as feras para continuar lutando pois não quer ser levada de
seguindo, mas não coloque desafios volta pra casa. O combate pode termi-
grandes demais: o objetivo aqui é nar com a derrota do dragão ou com o
drenar recursos e acostumar joga- fato dos heróis se mostrarem dispostos 37
dores novatos com as mecânicas de a conversar com a princesa e entender
combate do sistema, Não se esque- melhor sua situação. Em qualquer uma
ça que uma batalha com um dragão dessas duas opções, a princesa explica o
espera o seu grupo de aventureiros que realmente está ocorrendo: ela não
logo a frente! Peça para que façam leva o menor jeito para ser governante
testes de rastreio ou navegação e, e não gosta da realeza, sua verdadeira
para cada falha, adicione mais um paixão é criar e treinar dragões, criatu-
perigo ou um monstro selvagem. ras pelas quais é fascinada, porém, seu

37
pai jamais permitiria tal prática, por ser decidirem: levar a princesa de volta e
“perigoso demais para uma mulher”. receber sua recompensa, ou ajudar a
Insatisfeita com a sua vida de princesa, princesa a fugir de seu casamento ar-
seguiu treinando dragões em segredo: ranjado e conquistar sua liberdade?
fugia do castelo com roupas de plebeia
para não ser percebida entre os súditos Epílogo
e ia até a floresta passar tempo com as Caso você esteja narrando uma campa-
criaturas aladas, momentos esse que o nha, ou esteja narrando uma “one-shot”
Rei chamava de “sequestros.” queira fazer um gancho narrativo, e o
Quando ficou sabendo que, em nome grupo decida não ajudar a princesa a
de um tratado de auxílio entre reinos, fugir, faça com que ela retorne mais tar-
seu pai arranjara um casamento com de como oposição ao grupo ou vilã final
um príncipe de um país vizinho, deci- de um arco narrativo próprio, acom-
diu que não queria isso, e fugiu. Nesse panhada de dragões mais poderosos
momento, estava na floresta reunindo ainda. Procure fazer o grupo entender
suprimentos e outros dragões para como as correntes e a falta de liberdade
voar pra longe de vez. apenas fazem mal para as pessoas.
Agora, os heróis têm uma decisão a Caso o grupo a ajude a fugir, a princesa
tomar e, como a princesa foi derrota- pode retornar eventualmente como
da, ela está disposta a fazer o que eles uma personagem aliada.

Dragões? Por que sempre são dragões?

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38 REVISTA CHA RPG EDIÇÃO 0 - 1t 2020 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA


Existem maneiras mais seguras de ganhar moedas de
ouro do que explorar masmorras e lutar contra monstros.
Escrever para a CHA RPG é uma delas.

Acesse nosso manual de colaborador e


saiba como enviar seu texto.
Por Nina Bichara

Ponte das Palavras

A ponte que liga as cidades de Serena e Bango está ruindo e o


Conde de Serena procura aventureiros para solucionar o proble-
ma. Construída como símbolo de aliança entre dois povos antiga-
mente antagônicos, a ponte é a única ligação entre os dois lados
do Vale de Etna e é extremamente importante para o comércio e
estabilidade política de toda região.
Reparos foram feitos, mas todos os dias mais rachaduras apare-
cem na ponte e um construtor adoece. Um deles relatou que havia
runas estranhas na base da ponte. Esta manhã, assim que o sol
raiou outra grande rachadura se abriu, desde então a comuni-
cação com Serena está beirando a guerra. Nos ajudem. Ninguém
mais tem coragem de chegar perto da ponte.
Vizir Farim de Bango

Rosnado Estelar

A companhia de mineradores Argonautas de Ouro procu-


ra pessoas diligentes e audaciosas em busca de riquezas e
aventuras. Haverá uma viagem para uma terra longínqua e
há igual potencial de risco de encontrar criaturas selvagens
e riquezas. O grupo fará parte da segurança dos minerado-
res e terá direito a uma parte dos tesouros, terras e metais
preciosos obtidos na empreitada.
O local do acampamento é belo, há muita fartura de comida
e trabalho (e metais precisos) para todos. No entanto, nos-
sa vanguarda avisa que todas as noites há tremores no chão
e um rosnado ecoa pelo céu.

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Não fomos nós!

Reconheço que roubamos mercadorias da feira, pilhamos silos


dos nobres e afanamos do cofre de impostos, mas não ma-
tamos ninguém. Isso só pode ser culpa daquele assassino do
duque de Roubardia que está usando nós, os honrados Cães
Infernais como bodes expiatórios por seus crimes.
Se você acredita na justiça divina e não na dos homens que
nada conhecem sobre as dificuldades da vida, me procure na
estalagem Águia Cega. Tenho contatos e riquezas para ofe-
recer em troca de provas irrefutáveis de nossa inocência ou
de provas fortes de quem foi o verdadeiro culpado da morte
daquela mercadora. Lembre-se apenas: meus irmãos serão
executados no Festival das Flores daqui há poucos dias.

Direito de Viver

A cidade de Cruz Real pede ajuda. Uma quantidade importante de re-


médios desapareceu durante a noite. Sem o lote, a cidade entrará em
colapso, já que há muito pouco que as equipes de saúde podem fazer
sem o remédio. Os clérigos da Deusa da Saúde já avisaram que se os
remédios não forem devolvidos haverá mais pessoas doentes, faltarão
leitos nos templos e casos leves passarão a ser graves.
Não há nenhuma pista relevante de quem possa ser o culpado. O
conselho da cidade suspeita de alguns nobres
de uma cidade próxima que estavam bastan-
te irritados quando os clérigos não deixaram
eles e suas famílias furarem a fila de priori-
dade. Procurar o conselheiro Iamarino na
41
câmara da cidade para mais informações.
GAME DESIGN 101
Masmorra do Aprendizado
por Lisa Yurika Taguchi

Na medida em que jogadores progridem aventura, trazendo um novo ar para a


em uma aventura ou sistema, mais fami- mesa sendo uma das formas de man-
liarizados estão em relação aos diferentes ter a mesa interessante e divertida
elementos de jogos que já foram apre- para que todos continuem engajados e
sentados. Se assuntos como atributos de imersos no jogo por muito mais tempo.
personagem, habilidades, mecânicas, Lembre-se, porém, que os elementos
monstros e até elementos da narrativa de jogo sempre devem estar vinculados
podem causar estranheza nas primeiras com os principais objetivos da aventura.
sessões, essa estranheza dá lugar à na- Inserir um elemento que não se conecta
turalidade quanto mais horas de jogo o com o objetivo induz os jogadores a er-
grupo tiver. É assim tanto em narrativas ros e possivelmente a resultados indese-
de videogames como em RPGs de mesa. jados e menos memoráveis para todos.
No entanto, o uso repetitivo e excessivo Existem duas formas de introduzir no-
desses elementos podem tornar a ex- vidades para os jogadores: elementos
periência de jogo monótona e tediosa. auxiliares e modificadores de elemen-
Introduzir novos elementos como me- tos já existentes. Ambos têm diferen-
42 cânicas e narrativas são ótimas maneiras tes usos e finalidades.
de manter os jogadores interessados em Elementos auxiliares expandem as pos-
uma aventura e jogo e acredito que você, sibilidades no jogo. Podem ser mecâni-
pessoa interessada no desenvolvimento cas novas como habilidades, classes e
de jogos, deseja que as pessoas tenham itens ainda não vistos pelos jogadores
uma boa experiência quando estiver jo- ou elementos narrativos como persona-
gando algo criado por você, certo? gens relevantes, cidades e pontos chave
Introduzir novas mecânicas propor- da história. Quando se cria e apresenta
ciona novas formas de interagir com a um elemento auxiliar, é essencial consi-

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derar os benefícios que o elemento trará possa utilizar da característica de classe


ao(s) jogador(es), como a experiência Ataque Furtivo (página 96 do Livro do Jo-
do(s) jogador(es) será afetada e se esse gador). No entanto, adicionar uma runa
elemento trará efeitos de fato positivos no chão em lugares-chaves que permita
para a diversão na mesa. acelerar a velocidade de objetos peque-
Em D&D 5E, as novas habilidades que nos e com isso somar um dado extra ao
personagens destravam quando chegam Ataque Furtivo ao atingir um inimigo
em diferentes níveis no sistema são me- (afinal, a flecha atinge o alvo com maior
cânicas auxiliares e são novidades para velocidade e impacto) pode incentivar
os jogadores ao longo da aventura. Existe ainda mais o jogador a tentar manobras
uma diferença visível em jogadores de e movimentações diferentes para utili-
algumas classes após seus personagens zar o novo recurso.
chegarem ao 5º nível e ganharem um A introdução de novas mecânicas e nar-
ataque extra por turno. Não é à toa que a rativas para os jogadores deve ser feita
passagem marca também a escalada de com parcimônia e em um ritmo cons-
heróis locais para heróis do reino. tante evitando sobrecarregar jogadores
Modificadores de elementos, por sua de novas informações. Caso contrário,
vez, utilizam de um elemento já conhe- é comum que esses novos elementos
cido pelo jogador, mas com pequenas acabem sendo esquecidos e não utili-
modificações. Inclusive, podem ser me- zados, afetando a diversão e a imersão
cânicas já introduzidas sendo utilizadas no jogo e o planejamento realizado.
em novos contextos. Por exemplo, um É necessário, assim, mapear em quais
encontro com um efeito único que pro- momentos é desejado apresentar va-
porciona uma nova forma de utilizar riedades e novos elementos de jogo,
mecânicas já dominadas pelos joga- considerando a curva de aprendizado
dores. Eles são uma forma de desafiar e atual conhecimento dos jogadores da
a habilidade de um jogador sobre um mesa em relação ao sistema e narrativa.
elemento anteriormente apresentado Outra decisão muito importante é o
e já familiarizado, assim incentivando o momento da introdução ao novo ele- 43
jogador a descobrir e aprender novas e mento de jogo. Proporcionar um mo-
melhores formas de utilizar o elemento mento de segurança no qual o jogador
para superar novos desafios apresenta- pode experimentar esse novo elemento
dos pelo narrador. é essencial para ele usá-lo mais tarde.
Como exemplo, pode-se criar uma mas- Por exemplo, permitir que o jogador use
morra em D&D 5E que apresenta vários uma nova habilidade contra inimigos
corredores interligados para que um não tão ameaçadores ou permitir que o
grupo formado unicamente por ladinos jogador interaja com um novo ambien-

43
te na narrativa sem se preocupar muito quear novas habilidades e itens pode
com punições pesadas são formas inte- ser um tipo de feedback que incentiva o
ressantes de permitir que o jogador crie jogador a progredir ainda mais no jogo,
um vínculo e aprenda sobre a função e assim como descobrir mais detalhes so-
utilidade do novo elemento no jogo. bre a narrativa do cenário e universo da
Uma vez que o jogador compreenda mesa. Muitos sistemas usam a pergunta
como utilizar a nova mecânica de jogo “A personagem aprendeu algo sobre os
ou a função desse elemento dentro da perigos do mundo em que vive?” como
narrativa pode ser um momento inte- questão para determinar se o jogador
ressante para propor novos desafios merece ou não aquele ponto de expe-
para o jogador. Esses desafios sempre riência que pode ser usado para conse-
devem estar relacionados com o novo guir aquela habilidade tão desejada.
elemento apresentado e devem estar Ao descobrir novos elementos de jogo,
ligados a progressão de algum arco nar- tanto mecânicos e narrativos, o jogador
rativo de alguma maneira. retorna ao ponto de introdução, no qual
Dentro dos RPGs tradicionais, a pro- ainda não existe uma total familiarida-
gressão é medida a partir da exploração, de com o que foi apresentado a ele. E
domínio e entendimento do sistema de nesse ciclo de eterno aprendizado do
jogo e do universo da narrativa apre- mundo e de suas próprias habilidades
sentada. Pontos de experiência, desblo- que a história será contada.

Guacamelee!2 : Todo novo poder vem com a chance de um novo treinamento

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44 REVISTA CHA RPG EDIÇÃO 0 - 1t 2020 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA


Tem uma loja, blog ou
projeto e quer ver ele
nas páginas da CHA RPG?
Manda um oi para nós no
charpg@editoracha.com.br
GAME MASTER 101
Multimídia na sua mesa
por Kazz

Quando comecei a transmitir nossas Trilha sonora


partidas de RPG na Twitch em meados Esse foi meu primeiro passo. Afinal,
de 2015, rapidamente descobri algo era um dos atrativos do Roll20: a pos-
que me inquietava em relação àque- sibilidade de utilizar trilha sonora em
la mídia: como ela era subutilizada. E seus jogos. No início, fazia uma play-
não somente nos nossos jogos no Tear list geral do jogo e deixava tocando em
dos Mundos, mas por praticamente loop. Mas logo notei que isso, além de
todo mundo que estava produzindo desinteressante, era enjoativo. O som
naquela época. de fundo basicamente só servia para
De certa forma, os jogos eram muito preencher os silêncios e não agregava
parecidos com os que eu tinha quando a experiência de jogo ou a narrativa.
comecei a jogar na mesa da cozinha Então comecei a fazer várias playlists
de um amigo em meados dos anos 90, menores baseadas no humor da cena
quando a gente só estava equipado ou situação.
com folhas de cadernos, lápis, canetas
e alguns dados (nem livros de RPG a Por exemplo, na campanha de Crows,
46 que foi a primeira que fiquei satisfeito
gente tinha).
com os resultados, tinha as seguintes
Mas, diferente daquela época, hoje playlists: Combate; Comédia; Cotidia-
estou na frente de um computador no; Esperança; Tensão e Canções. Es-
e, mesmo com recursos limitados, sas músicas possuem múltipla função
as possibilidades são infinitamente no jogo. Serviam para reforçar o clima
maiores e aos poucos essa inquietação da cena ou situação, alinhando as ex-
se transformou em experimentação. E pectativas dos jogadores e do público
é justamente dessas experimentações e também colorir o jogo.
que falarei hoje.

46 REVISTA CHA RPG EDIÇÃO 0 - 1t 2020 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA


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Então quando uma música cômica co- Já em Kids on Bikes, onde comecei a
meçava a tocar, os jogadores já sabiam fazer bastante experimentações, ten-
que aquela situação era leve e engraça- tando importar técnicas de outras mí-
da. Já quando a música evocava tensão, dias, quis simular um Jumpscare. Se
as piadas eram evitadas e até a postura fosse em uma mesa presencial, poderia
mudava, como uma cena entre o vilão simplesmente utilizar um movimento
e o herói. Muitas vezes eu, como narra- brusco para assustar os jogadores, mas
dor, utilizava a música para estabelecer através da Webcam isso seria bem im-
o clima, já outras vezes eu apenas se- provável. Então brinquei com a essên-
guia os jogadores e só utilizava para re- cia do Jumpscare, que é a antecipação.
forçar o clima que os jogadores criaram. Para isso escolhi uma música da trilha
Como você pode observar, a playlist sonora de “IT: A Coisa”: Memory, de
“Canções” não é referente a nenhum Benjamin Wallfisch. Uma música que
humor específico. Ela era utilizada para tem um crescente em seu ritmo. E na
tocar músicas no início e final das ses- minha preparação eu a ouvi diversas
sões. Isso ajudava a dar uma sensação de vezes, até estar familiarizado com ela.
início e fim nas sessões e também criava Então durante o jogo, enquanto ela
uma pegada episódica de série, que gos- tocava eu fui narrando em cima de seu
to tanto de trazer para os nossos jogos. ritmo. À medida que a música ia cres-
Além disso, também utilizava essas cendo eu ia falando mais rápido e mais
músicas cantadas para pontuar mo- alto. Então a narração começou muito
mentos especiais. Seguindo com Cro- calma, pausada e vagarosa, e terminou
ws como exemplo, mais ou menos no comigo quase gritando o desfecho, jun-
meio da primeira temporada tivemos to com a música explodindo!
uma cena de beijo na chuva, onde co- Ainda em Kids on Bikes tivemos toda
loquei A Little Pain da Olivia Lufkin uma sequência que foi de um show
como música de fundo. Então todas onde um dos jogadores cantava em
as vezes que essa música começava a uma viagem através de vídeo clipes. E 47
tocar, tanto os jogadores quanto o pú- a música foi bastante central na narra-
blico já esperavam por um momento tiva dessa sequência.
romântico entre o casal.
Seguindo essa ideia, na segunda tempo- Efeito sonoro
rada de Crows comecei a utilizar música
tema para personagens específicos. En- A função dos efeitos sonoros é similar
tão toda vez que um personagem apa- à da trilha, porém de maneira mais
recia em cena, a mesma música tocava. pontual. E talvez até vão para um lado
mais imersivo no qual a trilha sonora

47
não é capaz de chegar. Sons de chuva sente que tem algo errado.
e tempestades, sons de caverna e até Então mesmo que os jogadores não
efeitos que colorem um ataque espe- tenham notado de imediato que to-
cial ajudam bastante os jogadores a cava esse som de fundo toda vez que
imergir no jogo. o monstro aparecia, eles sentiam que
Na campanha de Kids on Bikes, fiz al- tinha algo de errado. A atmosfera mu-
gumas experimentações com efeitos dava. Acredito que ajudou bastante na
sonoros. O primeiro foi colocar um construção do clima e trouxe imersão
efeito sonoro característico que toca- ao jogo.
ria baixo de fundo todas as vezes que o A outra experimentação foi narrar uma
sobrenatural se manifestasse. E à me- cena inteira, uma espécie de sonho ou
dida que os jogadores chegavam mais alucinação, a partir de uma onomato-
perto da origem dessa manifestação peia: Whack! Que é o som de uma bola
mais alto o som ficava. de baseball sendo rebatida. Então usei
Para fazer isso, eu peguei um tic tac de tanto a palavra escrita bem grande na
relógio e no Audacity, um editor de áu- tela, quanto o efeito sonoro tocando no
dio gratuito, mudei o tempo do toque. fundo e narrei a cena a partir daí.
Então ficou um som bem perturbador Podcast e audiodramas
e até irritante, que quando você ouve
Nas sessões 0 que costumo conduzir
Crows, a trilha sonora fez toda diferença no jogo

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48 REVISTA CHA RPG EDIÇÃO 0 - 1t 2020 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA


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eu sempre pergunto quais elementos A recepção dos jogadores foi muito


os jogadores gostariam de ver no nos- positiva e acredito que isso serviu bem
so jogo. E um dos pedidos que recebi para colorir o mundo e passar várias
na campanha de Chosen Rangers foi informações úteis para os jogadores
que o mundo fosse vivo e que reagisse de maneira rápida e dentro do con-
a existência dos personagens jogado- texto do jogo. Foi um bom exercício do
res, ex-rangers que salvaram o mundo princípio da Comunicação de “Mostre,
de um destino cruel. não conte”.
Então eu fiquei quebrando a cabeça Agora na campanha de Bubble-
pra descobrir qual seria a melhor for- gumshoe, segui com a ideia, mas des-
ma de fazer, já que exigiria um bocado sa vez convidando amigos para fazer
de infodump, o que não costuma ser essa gravação. Nesse jogo os jogado-
muito fácil de passar de uma maneira res são fãs do gênero crime real (do
satisfatória. inglês true crime), e achei pertinente
Infodump, para quem não conhece o eles ouvirem um podcast especializa-
termo (e essa é uma daquelas palavras do nisso. E Secrets & Lies tem sido es-
chatas que não existe um equivalente sencial, já que se trata de um mistério.
satisfatório em português), são aque- Assim consigo passar pistas e informa-
las informações de histórico do mun- ções importantes de maneira colorida,
do que precisamos passar para con- imersiva e prática.
textualizar o leitor, telespectador, e no Ainda em Bubblegumshoe eu quis dar
nosso caso, também o jogador, sobre um passo além e utilizar um clichê de
aquele mundo ficcional. Como exem- histórias de mistérios, onde nós, o pú-
plo, pense em toda sequência inicial blico, vemos uma cena de assassinato
de Senhor dos Anéis com a narração do ponto de vista da vítima, mas que
da Galadriel contando sobre os anéis e não revela a identidade do assassino.
a guerra que derrotou Sauron. Então contratei os serviços de um lo-
A minha solução foi criar um mini-po- cutor profissional para gravar um au- 49
dcast que os personagens jogadores diodrama curto narrando uma cena
ouviriam dentro do jogo. Então entre dessas.
várias sessões eu gravava um áudio de A cena revela muito pouco, impedindo
2 ou 3 minutos interpretando podcas- a maior parte do metagame, mas ela,
ters que reagiam às ações dos jogado- além de colorir o jogo – para os joga-
res e acontecimentos do mundo. Fun- dores e para o público – cria expectati-
cionava como uma espécie de opinião va e mantém a motivação de todos os
pública. envolvidos.

49
Adereços e material de suporte Ainda sinto que existem diversas pos-
Adereços e material de suporte (ou sibilidades a serem exploradas. Mas
props e handouts) são elementos bem algumas ainda estão além do meu
conhecidos para jogadores de RPG, es- alcance, pois carecem de conhecimen-
pecialmente em jogos como Chama- tos e habilidades que ainda não tenho.
do de Cthulhu e Rastro de Cthulhu. E Ou grana pra pagar alguém pra fazer
com toda certeza são elementos que por mim.
enriquecem demais a experiência de Continuo achando que exploramos
quem joga. Contudo, nessa vibe de ex- pouco ainda, especialmente a questão
perimentação, queria entregá-los de de vídeo. No entanto, isso vem mudan-
maneiras diferentes. do aos poucos, pelo menos no cenário
Em jogos situados em 1920 é comum brasileiro de streams de RPG, com jo-
um handout ser um documento, um gos de alto valor de produção, como é
diário, uma carta que tem a comunica- o caso do Cellbit. Mas obviamente essa
ção obscura entre dois cultistas de alto não é essa não é a realidade de todos
escalão. Mas em um jogo adolescente os jogadores.
situado em 2020 os diários são substi- Acho que outro fator a ser observado
tuídos pelo Twitter e cartas por men- é que muitas das coisas que explorei
sagens de Telegram. nos exemplos anteriores podem pa-
Então em Bubblegumshoe esses ele- recer mais destinadas a um produto
mentos eram essenciais, mas como de entretenimento, como é o caso das
entregá-los? Prints estáticos de con- transmissões do Tear, do que seu jogo
versas pareciam um pouco entedian- pessoal. Mas acredito, de verdade, que
tes. Por isso, com a ajuda de meus ami- muito do que dividi aqui pode sim
gos de canal, trabalhamos com vídeos acrescentar a sua experiência de jogo,
e animações de diálogos de Telegram, independente se ela é transmitida
visitas de perfis de Instagram e até ti- para terceiros ou não.
50 melines de Twitter. No geral o resulta- Continuarei a explorar e experimentar.
do foi bem satisfatório, trazendo mais Tenho certeza que muita coisa não vai
imersão. Mas traz um trabalho extra funcionar (omiti as tentativas frustra-
bem grande, além de é claro, exigir o das), outras, no entanto, darão muito
conhecimento de ferramentas de ani- certo e pretendo dividir com vocês no
mação e edição de vídeo. Mas aposto futuro. Sigo na busca.
que você achou que tinha criado todos
aqueles perfis e mensagens de modo
manual.

50 REVISTA CHA RPG EDIÇÃO 0 - 1t 2020 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA


Edital aberto: Relatos do Grande Irmão!
Uma antologia de contos de distopia!

Confira o regulamento no site da CHA e


envie sua história alternativa até 15/03/2021.
#CONTRAAHISTORIAUNICA

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