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Jacques Derrida

Estados-da-alma
da psicanálise
O impossível para além da soberana crueldade

Tradução
Antonio Romane
Isabel Kahn Marin


escuta
© by Editora Escuta para edição em língua portuguesa
1ª edição: março de 2001
Título original: États d'ítme de la psychanalyse, Galilée
EDITORES
Manoel Tosta Berlinck
Maria Cristina Rios Magalhães
~· CAPA
Ediara Rios, a partir de projeto de Yvoty Macambira
Pl!ooUÇÃO EDIIORIAL
Araide Sanches

Catalogação na Fonte do Depto. Nacional do Livro


D438e
Estados-da-alma da psicanálise. O impossível para
além da soberana crueldade / Jacques Derrida ;
tradução: Antonio Romane Nogueira, Isabel Kahn Marin
- São Paulo : Escuta, 2001.
104 p. ; 13xl8 cm.

ISBN 85-7137-177-6

Tradução de: États d'âme de la psychanalyse.


1. Psicanálise 1. Título.
CDD-150.195

Editora Escuta Ltda.


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www.editoraescuta.com.br
Nota do editor

O título original do texto de Jacques Derrida é


Etats d'âme de la psychanalyse - L'impossible au-delà
d'une souveraine cruauté, que traduzimos para Esta-
dos-da-alma da psicanálise - O impossível para além da
soberana crueldade, por similitude a estados-da-a.rte, plu-
ral de estado-da-arte, o nível atual atingido numa téc-
nica, numa ciência etc.
Trata-se da palestra proferida por Derrida no
evento Estados Gerais da Psicanálise, acontecido em
julho de 2000 na Sorbonne, em Paris.
O sucesso desse encontro foi comprovado pela
participação de 1000 pessoas representando 34 paí-
ses, sendo que desse total 200 eram brasileiros que
responderam por 30% dos trabalhos inscritos.
Estiveram também representados países como
Coréia do Sul, Emirados Árabes Unidos, Cingapura,
Federação Russa, Taiwan, Malásia, Bulgária,
Romênia, Turquia, Tunísia e outros considerados "paí-
ses não psicanalíticos"
Primeira digressão, em confidência. Se digo,
num repente, na direção de vocês, mas sem destina-
tário identificável: "Sim, eu sofro cruelmente", ou
ainda "Fazem você sofrer ou deixam você sofrer cruel-
mente", ou mesmo "Você a faz ou você o deixa so-
frer cruelmente", e mesmo "eu me faço ou eu me
deixo sofrer cruelmente", bem, essas variações gra-
maticais ou semânticas, essas diferenças entre fazer
sofrer, deixar sofrer, deixar... fazer* etc., essas mudan-
ças de pessoa - e bem poderia aí haver outras, no sin-
gular ou no plural, no masculino ou no feminino,
"nós", "vós", "ele(s)", "ela(s)", "a gente" - essas pas-
sagens para formas mais reflexivas ("Eu me faço ou
me deixo cruelmente sofrer", "tu te fazes ou tu te dei-
xas cruelmente sofrer" etc.), todas essas modificações

Lalsser. .. falre, no original, lembra o lema do liberalismo econômi-


co lalsser falre (os homens), /a/sser passar (as mercadorias).
[N. daT.]

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possíveis deixam intacto um advérbio, uma invariá-
vel que parece de uma vez por todas qualificar um
sofrimento, a saber, a crueldade: "cruelmente".

No decorrer dessas frases, sob quaisquer ende-


reçamentos, impassível, "cruelmente" não muda.
Como se nós entendêssemos o sentido dessa palavra.
Fiando-nos nesse "como se", fazemos como se nós
nos entendêssemos sobre o que "cruel" quer dizer. Quer
assinalando a palavra crueldade em sua ascendência
latina, isto é, a uma necessária história de sangue
derramado (cruor, crudus, crudelitas), de crime de san-
gue, dos laços de sangue, quer situando-a em outras
línguas e outras semânticas (Grausamkeit, por exem-
plo, é a palavra de Freud) sem ligação com derrama-
mento de sangue, no caso, mas para designar o
desejo de fazer ou de se fazer sofrer por sofrer, mes-
mo de torturar ou de matar, de se matar ou de se tor-
turar por torturar ou por matar, para sentir um prazer
psíquico no mal pelo mal, mesmo para gozar do mal
radical, em todos esses casos a crueldade seria dili-
cil de determinar ou de delimitar. Nietzsche, por exem-
plo, reconhece nisso a essência astuciosa da vida: a
crueldade seria sem termo* e sem termo oponível,
quer dizer sem fim e sem contrário. Mas para Freud,

• Convém atentar para as várias acepções de termo. [N. da T.]

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no entanto, tão próximo de Nietzsche, como sempre,
a crueldade seria talvez sem termo, mas não sem ter-
mo oponível, isto é, sem fim, mas não sem contrário
- e esta será uma das nossas questões. Pode-se es-
tancar a crueldade sanguinária (cruor, crudus, crude-
litas) ou pôr um fim ao assassinato por arma branca,
por guilhotina, nos teatros clássicos ou modernos da
guerra sangrenta, mas, segundo Nietzsche ou Freud,
uma crueldade psíquica aí restará para sempre in-
ventando novos recursos. Uma crueldade psíquica
será, então, certamente, uma crueldade da psique,
um estado da alma, portanto do ser vivente, mas
uma crueldade não sanguinária.
Uma tal crueldade, se existe, e sendo propria-
mente psíquica, seria ela um dos horizontes mais
apropriados à psicanálise? E seria, esse horizonte,
reservado à psicanálise como a profundeza sem fun-
do disso que somente a ela seria dado tratar, o fun-
do último sobre o quaLela um dia tomou figura?
Dessa reflexão sobre a crueldade psíquica, isto é,
exangue ou não necessariamente sangrenta, sobre o
prazer agudo tomado pelo mal na alma, eu não es-
tarei abusando se lembro uma história judia: psica-
nalista que dizia ter escolhido essa disciplina
terapêutica porque não suportava ver sangue. Não
o farei para não reabrir um debate já canônico de
uma ligação entre a universalidade potencial da psi-

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canálise e a história judaica ou do judaísmo.
Perguntemo-nos tão-somente se, sim ou não, isso que
se chama psicanálise não abriria o único caminho
que levaria, se não a saber, se não mesmo a pensar, r-
pelo menos a perguntar o que poderia significar
essa palavra estranha e familiar "crueldade", a pior
crueldade, o sofrer por sofrer, o fazer-sofrer, o fazer-
se ou deixar sofrer pelo, se se pode assim dizer, pra-
zer do sofrimento. Mesmo que a psicanálise sozinha
ainda não nos ensejasse sabê-lo, pensá-lo, tratá-lo -
no que estou inclinado a acreditar - pelo menos não
se pode projetar fazê-lo sem ela. Hipótese sobre uma
hipótese: se existe alguma coisa de irredutível na
vida do ser vivo, na alma, na psique (por que não
limito meu propósito a esse ser vivo que se chama
homem e, portanto, deixo em suspenso a imensa e
temível questão, a meu ver ainda aberta, da anima-
lidade em geral e de saber se a psicanálise é ou não,
de fora a fora, uma antropologia) e se essa coisa ir-
redutível na vida do vivo é bem a possibilidade da
crueldade (a pulsão, se preferirem, do mal pelo mal,
de um sofrimento que jogaria o jogo do gozo de so-
frer de um fazer sofrer ou de um fazer-se sofrer pelo
prazer), então nenhum outro discurso - teológico,
metafísico, genético, fisicista, cognitivista etc. - sa-
beria abrir-se para tal hipótese. Eles seriam, todos,
feitos para reduzi-la, excluí-la, privá-la de sentido. Se

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há um discurso que poderia, hoje em dia, reivindi-
car a causa da crueldade psíquica como assunto pró-
prio, este é o que se chama, de mais ou menos um
século para cá, psicanálise. A psicanálise pode não
ser a única linguagem possíveL nem mesmo o úni-
co tratamento possível quanto a essa crueldade que
não teria termo contrário, ou termo simplesmente.
Mas "psicanálise" seria o nome disso que, sem álibi
teológico ou outro, voltar-se-ia para o que a cruel-
dade psíquica teria de mais própria. A .psicanálise,
para mim - se me permitem esta outra confidência
- seria o outro nome do "sem álibi". A admissão de
um "sem álibi". Se fosse possível. Seria, em todo o
caso, isso sem o que não se pode encarar, seriamen-
te, algo como sendo crueldade psíquica - portanto,
uma especificidade psíquica - e qualquer coisa como
a única relação consigo dessa crueldade, antes de
todo saber, antes de toda teoria e toda prática, antes
mesmo de toda terapêutica Por toda parte onde uma
questão do sofrer por sofrer, do fazer ou deixar fazer
o mal pelo mal, por toda parte, em suma, onde a
questão do mal radical ou de um mal pior que o mal
radical não estaria mais abandonada à religião ou à
metafísica, nenhum outro saber estaria disposto a se
interessar por algo como a crueldade - salvo o que
se chama psicanálise. Esta cujo nome, sempre asso-
ciado ao mal, tornar-se-ia, por seu turno, mais

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indecifrável que nunca, ainda mais que somente uma
revolução psicanalítica estaria, em seu próprio pro-
jeto, à altura de dar conta da sintaxe, das conjuga-
ções, das flexões e das pessoas gramaticais que eu
desfiava no começo: gozar em fazer ou deixar sofrer,
a se fazer ou a se deixar sofrer, a si mesmo, ao outro
como outro, o outro e os outros em si, mim, ti, ele,
ela, vós, nós, eles ou elas etc. Permitam-me poupar
os exemplos dessa crueldade, a economia dos exem-
plos, ainda que, pelo tempo de que dispomos, pos-
sam ser os mais inéditos e os mais inventivos, os
insustentáveis e os imperdoáveis.
Depois dessa sonhosa digressão, eu deixaria ain-
da em suspenso a última palavra de uma última
questão.
Essa questão não será: existe pulsão de morte
(Todestrieb), isto é- e Freud as associa regularmen-
te -, uma pulsão cruel de destruição ou de aniqui-
lamento? Ou ainda: existe uma crueldade inerente
à pulsão de poder ou de posse soberana
(Bemiichtigungstrieb) para além ou aquém dos prin-
cípios - por exemplo, princípios de prazer ou de rea-
lidade? Minha questão será, antes, e mais tarde: exis-
te para o pensamento, para o pensamento psicanalí-
tico futuro, um outro além, se posso assim dizer, um
além que se dá para além desses possíveis que ainda
o são e os princípios de prazer e de realidade e as

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pulsões de morte ou de domínio soberano que pa-
recem exercer-se por toda parte onde a crueldade se
anuncia? Dizendo de outra maneira, outra maneira
dito, pode-se pensar essa coisa aparentemente im-
possível, mas impossível de maneira outra, a saber,
um para além da pulsão de morte ou de posse sobe-
rana, portanto o além de uma crueldade que não te-
ria nada a ver nem com as pulsões, nem com os prin-
cípios? Portanto, nem com todo o resto do discurso
freudiano que se ordena, com sua economia, sua tó-
pica, sua metapsicologia, e sobretudo com isso que
Freud, nós o ouvimos, chama também sua "mitolo-
gia" das pulsões? Além do mais, ele fala de sua "mi-
tologia" das pulsões evocando ao mesmo tempo a
hipótese de uma natureza igualmente "mitológica"
do saber científico o mais pesado, o mais positivo, a
física teórica einsteiniana, por exemplo. Quanto a
esse para além do além, é possível uma resposta
decisível?*Isso que eu chamaria os estados-da-alma
da psicanálise hoje, eis ó que testemunharia, a esse
propósito, enfim, alguma experiência do indecisível.
Uma ordália do indecisível.

* Décfdabfe, no original, termo que no Petit Robert consta haver sur-


gido em 1957: "Diz-se de um sistema hipotético-dedutivo que se
pode determinar por um procedimento efetivo que uma proposição
qualquer é determinável". Dai a preferência pelo aportuguesamen-
to do termo, em vez do uso de resolúvel, por exemplo. [N. da T.]

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É nomeando o além do além do princípio do
prazer, o para além da pulsão da morte, o para além
da pulsão de poder soberano, portanto a maneira
outra impossível, impossível outro, que eu gostaria
de saudar os Estados Gerais da Psicanálise.
Para quem quer dar salvas* aos Estados Gerais
da Psicanálise, de que salvação pode tratar-se? Exis-
te uma salvação para a psicanálise?
Por que render graça aos Estados Gerais da Psi-
canálise? E como agradecer aos amigos psicanalistas
que tiveram nisso, segundo tudo indica, histórica ini-
ciativa?
Tentarei, mais tarde, pensar minha salvação.
Mas antes de começar, supondo que eu comece al-
guma vez, devo, afinal de contas, tendo em vista a
questão do impossível que venho de suspender, fa-
zer recair minha escolha em dois nomes comuns.
Elas acabam de bater à porta, ou de simplesmente
bater; nós lhes respondemos sem poder ainda res-
ponder, a essas palavras crueldade e soberania.
Gostaria de privilegiar, no tempo que me é gra-
ciosamente acordado, duas formas, a meu ver maio-
res, disso que resiste. Ainda hoje e durante muito

* Em principio, o melhor seria o termo saudar, mas isso faria com


que se perdesse o jogo de palavras de salvar, dar salvas, e salvar,
socorrer, que o autor retoma várias vezes. [N. da T.]

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tempo. A crueldade resiste, a soberania resiste. Uma
e outra, tanto uma quanto a outra, elas resistem à psi-
canálise, sem dúvida, mas tanto quanto a psicanálise
também lhes resiste, no sentido mais equívoco des-
sa palavra. Soberania e crueldade, coisas bastante
obscuras, resistem diferentemente, mas resistem, tan-
to uma como a outra, tanto fora quando dentro da psi-
canálise. Entre o dentro e o fora disso que define a
contração da preposição de com o artigo a, "da" psi-
canálise, a fronteira suportará toda carga, em parti-
cular a carga histórica, ética, jurídica ou política -
portanto, a própria empreitada das nossas questões.
Crueldade, soberania, resistência: estou longe de
estar seguro de saber, mesmo que se saiba no geral,
o que essas palavras querem dizer, apesar do seu uso
em suma bastante corrente, em Freud e na psicaná-
lise em geral. No fundo, de maneira não equívoca,
o .que significam crueldade, soberania, resistência? O
que é que fazem-nas significar? E, sobretudo, o que
isso que se chama a psicanálise pode oferecer, mu-
dar mesmo, no sentido dessa questão levantada? Eis,
em suma, o cuidado que, em sinal de reconhecimen-
to, gostaria de partilhar com vocês.
Não teria eu, aqui, o tempo e os meios necessá-
rios exigidos para as hipóteses de trabalho que gos-
taria de submeter a vocês. Aceitem, portanto, que, ao
contrário do meu costume, e antes mesmo de come-

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çar, eu desenhe como ponto de partida, sem mean-
dros e retomadas, sem tantas torções, a silhueta um
tanto espectral. Não me contentarei em fundear so-
bre um conceito de resistência que trabalhei alhures,
formalizando especialmente os usos heterogêneos
que Freud lhe propõe, tentando assim colocá-los em
pauta para analisar duas resistências em curso e a re-
sistência à psicanálise, no mundo, e a resistência ao
mundo no interior de uma psicanálise que resiste a
si própria, que se dobra em si mesma para resistir,
se assim posso dizer, para se inibir ela mesma, de
maneira quase auto-imunitária. Tentando dar um
passo a mais, eu me perguntaria se, atualmente, aqui,
agora, a palavra e o conceito de resistência continuam
apropriados. Representam eles o patamar mais estra-
tégico, o mais econômico, para pensar o que não vai,
o que não vai bem no mundo a propósito e em tor-
no da psicanálise, contra ela, bem como o que, aos
olhos do mundo, não vai, não vai bem dentro da psi-
canálise, entre ela e ela, se assim posso dizer? O que
é que não vai? O que é que não vai bem? Quem so-
fre e se lamenta? Quem sofre do quê? Qual a queixa
da psicanálise? Que livro de condolências abre ela?
Quem assina? O que é que não marcha a bom passo
de acordo com as marcações prevalentes de seu dis-
curso, de sua prática, de sua hipotética ou virtual co-
munidade, de suas inscrições institucionais, de suas

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relações com o que se chamava, outrora, sociedade
civil e Estado, na perturbação de sua sociologia, e de
maneira diferente em cada país, na mutação que afe-
ta a figura dos pacientes e dos praticantes, na trans-
formação da demanda, da cena e do que ainda
ontem se chamava "situação analítica" - sobre a qual
eu me lembro de ter falado, há decênios, de sua pre-
cariedade e artificialidade histórica?
O que faz aquele que diz "isso não vai" e, so-
bretudo, "isso não vai bem"? "isso* sofre", isto sofre
por parte daqueles que fazem do sofrimento, do mais
cruel sofrimento, o seu negócio? Aquele que diz "isso
não vai bem" anuncia, desde logo, uma preocupa-
ção reparadora, terapêutica, restauradora ou reden-
tora. É preciso salvar, é preciso assegurar a salvação:
que a psicanálise seja salva, que viva ou sobreviva a
psicanálise. Esse cuidado saudável, sanitário ou imu-
nitário, pressupõe simultaneamente um gesto de
guerra: o militante gostaria de curar ou salvar justa-
mente derrotando uma resistência. Não estou segu-
ro de que esse desejo de salvamento, esse projeto de
saúde e de salvação, esse voto de saúde pública, não
seja também, em parte, ou mesmo em segredo, aque-
le dos Estados Gerais, já engordado, virtualmente, à

• No original, ça, isso", pronome demonstrativo, mas ça pode ser


equivalente a id. [N. da T.]

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sombra de algum shadau:f Comitê de Saúde Pública.
Desde já, não estou seguro, nesse ponto, de ser real-
mente um dos seus, mesmo que, por uma parte, eu
continue orgulhoso de reivindicar isso ao partilhar
da inquietude de todos.
Eu já tinha posto em dúvida a estrutura homo-
gênea desse conceito múltiplo de resistência
(Widerstand) em Freud. Eu o farei diferentemente,
hoje. O mundo, o processo de globalização do mun-
do, tal qual vai, com todas as suas conseqüências -
políticas, sociais, econômicas, jurídicas, tecnocientí-
ficas etc. - sem dúvida resiste, hoje, à psicanálise. E
o faz segundo formas novas que vocês sem dúvida
estão pensando. Ele resiste de maneira desigual e di-
fícil de analisar. À psicanálise opõe-se, notadamen-
te, afora um modelo de ciência positiva, ou melhor,
positivista, cognitivista, fisicista, psicofarmacológica,
genetista, às vezes também o academismo de uma
hermenêutica espiritualista, religiosa ou chãmente
filosófica - ou, pior, porque tudo isso não se exclui -,
instituições, conceitos e práticas arcaicas do ético, do
jurídico e do político que parecem ainda dominadas
por uma certa lógica, isto é, por uma certa metafí-
sica ontoteológica da soberania (autonomia e onipotên-
cia da pessoa - individual ou estatal -, liberdade,

* Alusão a shadow cabiáet. [N. da T.]

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vontade egóica, intencionalidade consciente, se se
quiser, o eu, o ideal do eu e do supereu etc.). Tal so-
berania, o primeiro gesto da psicanálise teria sido o
de explicá-la para dar conta de sua inelutabilidade,
ao mesmo tempo projetando desconstruir sua genea-
logia - que também passa pelo assassinato cruel.
Quanto às ciências físicas, neuronais ou genéticas,
Freud foi o primeiro a não rejeitá-las, mas a esperar
muito delas - desde que se saiba esperar, justamen-
te, e articular sem confundir, sem homogeneizar
precipitadamente, sem esmagar as instâncias, as es-
truturas e as leis, respeitando os turnos, os tratos e,
ousaria dizer, o diferido da diferença. De fato, no
mundo e nas comunidades analíticas, esses modelos
positivistas ou espiritualistas, esses axiomas metafí-
sicos de ética, de direito e de política ainda não aflo-
raram, nem sequer foram "desconstruídos" pela re-
volução psicanalítica. Eles resistirão a isso por muito
tempo, eles estão feitos, .na verdade, para resistir a
isso. E pode-se, de fato, chamar isso de "resistência"
fundamental. Sem dúvida, diante dessa resistência,
a psicanálise - nas formas estatutárias de sua comu-
nidade, na maior autoridade de seu discurso, em
suas instituições as mais visíveis - resiste duplamen-
te ao que continua arcaico nessa globalização. Ela não
a quer, mas ela não se dispõe à luta, não a analisa. E
essa resistência é também uma resistência a si pró-

17
pria. Há um mal, em todo caso urna função auto-
imunitária na psicanálise como em tudo o mais, uma
rejeição de si, urna resistência a si, ao seu próprio
principado, ao seu próprio princípio de proteção. A
psicanálise, acho eu, ainda não empreendeu e, por-
tanto, ainda menos conseguiu pensar, penetrar e
mudar os axiomas da ética, do jurídico e da política,
notadamente nos lugares sísmicos onde tremula o
fantasma teológico da soberania e onde se produzem
os mais traumáticos acontecimentos geopolíticos, di-
gamos ainda, confusamente, os mais cruéis destes
tempos. Esse tremor de terra humano dá lugar a urna
nova cena, estruturada, desde a Segunda Guerra
Mundial, por performativos*jurídicos inéditos (e to-
das as "mitologias" sobre as quais Freud fala, em
particular a mitologia psicanalítica das pulsões, são
ligadas a ficções convencionais, isto é, à autoridade
autorizada por atos performativos), tais como a nova
Declaração dos Direitos do Homem - e da mulher -,
a condenação do genocídio, o conceito de crime con-
tra a humanidade (imprescritível na França), a cria-
ção, em andamento, de novas instâncias penais in-
ternacionais, sem falar da luta crescente contra os
grandes vestígios dos castigos ditos "cruéis", que

• Performatifs, no original; da palavra Inglesa performative, enuncia-


do que constitui, simultaneamente, o ato ao qual se refere (p. ex.
Eu autorizo você a partit é também uma autorização).[N . da T.]

18
continuam o melhor emblema do poder soberano do
Estado sobre a vida e a morte do cidadão, a saber,
afora a guerra, a pena de morte em massa aplicada
na China, nos Estados Unidos e inúmeros países ára-
be-muçulmanos. É sobretudo aí que o conceito de
crueldade, conceito confuso e enigmático, viveiro de
obscurantismo, na psicanálise e fora dela, pede aná-
lises indispensáveis para as quais deveríamos nos
voltar. São muitas as coisas a propósito das quais, se
não me engano, a psicanálise como tal, em seus dis-
cursos estatutários e autorizados, mesmo na quase
totalidade de suas produções, ainda pouco disse ou
quase nada teve a dizer de original. Isto onde é dela
que se espera a resposta mais específica, na verdade
a única resposta apropriada. Quer dizer: sem álibi.
Tudo isso produz uma mutação que ouso chamar re-
volucionária, em particular uma mutação da pessoa
da pessoa e da pessoa cidadã, isto é, nas relações en-
tre democracia, cidadania e não cidadania, quer di-
zer, o Estado e o além do Estado. Se a psicanálise não
leva em conta essa mutação, se não se engaja nisso,
se não se transforma nesse ritmo, ela será - e já o é,
em larga medida - deportada, ultrapassada, deixa-
da à beira da estrada, exposta a todas as derivas, a
todas as apropriações, a todos as amputações; ou, en-
tão, inversamente, ela continuará enraizada nas con-
dições de uma época que foi aquela do seu nasci-

19
mento, ainda afásica em seu berço centro-europeu:
um certo amanhã equívoco da Revolução Francesa
sobre a qual a psicanálise, acho eu, ainda não pen-
sou o acontecimento. Em particular ante a isso que,
na Revolução Francesa e sua descendência, dirá res-
peito aos conceitos obscuros de soberania e de cruel-
dade. Que ela não seja a única - muito longe disso -
no momento destes novos Estados Gerais, a não ter
pensado essa Revolução e seus amanhãs, isso é uma
derrisória consolação, sobretudo para aqueles que,
como eu, acreditam que a psicanálise deveria ter, ten-
do-o anunciado desde o seu nascimento, alguma coi-
sa de indispensável e de essencial a dizer e também
a fazer a esse respeito. Sem álibi. O que aí teria de
decisivo a dizer e a fazer a esse respeito deveria re-
gistrar a onda de choque de uma ou várias revolu-
ções psicanalíticas. A propósito notadamente do que
se chama, portanto, soberania e crueldade. Mas, en-
tão, se a globalização do mundo, tal como é, dizem-
nos, se ela resiste de maneira múltipla à psicanálise,
desautorizando-a a tocar nesses axiomas fundamen-
tais de ética, direito e política; se, inversamente, a
psicanálise resiste de maneira múltipla e auto-
imunitária, portanto encalhando ao analisar e ao
mudar esses axiomas, será então que o conceito de
resistência, mesmo lá onde ele está tão estratificado
e complicado como tentei demonstrar, não é assim

20
tão problemático quanto aqueles de soberania e
crueldade? Mesmo em sua multiplicidade enigmá-
tica (eu contei 5 + ou - 1 conceitos ou lugares de "re-
sistência", segundo Freud), será que esse conceito de
resistência não implica ainda linhas de fronteira, de
traçados de front ou de teatros de guerra cujo mode-
lo é justamente o que caduca hoje em dia? Se ainda
há, e por muito tempo, guerra, ou em todo caso
crueldade guerreira, agressão guerreira, torturante,
em massa ou sutilmente mortíferélt não é mais certo
que, em compensação, a figura da guerra - e sobre-
tudo a diferença entre guerras individuais, guerras
civis e guerras nacionais - corresponde de agora em
diante a conceitos assegurados rigorosamente. É ne-
cessário um novo discurso sobre a guerra. Nós es-
peramos, atualmente, novas "Considerações atuais
sobre a guerra e a morte" (cito títulos de Freud, 1915:
Zeigemiisses über Krieg und Tod) e um novo "Por que
a guerra?" (1932: Warum Krieg?), ou, pelo menos, no-
vas leituras dos textos desse gênero. Para já, o con-
ceito de front, a figura de linha de front ou de trin-
cheira indivisível, de cabeça-de-ponte, de front
capital indissociável ao da guerra, nada disso pare-
ce fornecer um modelo a algo como resistência - in-
terior ou exterior. Tanto quanto os conceitos de so-
berania e crueldade, talvez seja acima de tudo o
conceito de resistência que espera uma revolução, a

21
sua, depois da Revolução Francesa de dois séculos
atrás e das revoluções políticas que se seguiram,
como depois a citada revolução psicanalítica de um
século atrás e porventura aquelas que a seguiram.
Porque sempre existe mais de uma revolução possí-
vel numa revolução. E o que se poderia chamar a re-
volução técnica ou tecno-científica (quer diga respei-
to à microeletrônica, à televirtualização ou à
genética) não é jamais somente exterior às outras. Por
exemplo, existe uma dimensão do virtual teletécni-
co, da revolução teletécnica do possível onde a psi-
canálise, em seu eixo dominante, encalhou, ainda
encalha - sem dúvida outra resistência a ser rigoro-
samente levada em conta e que ainda por cima deve
ter desempenhado um papel essencial no princípio
de convocação, nos trabalhos preparatórios e na ul-
timação, no tipo de trocas destes Estados Gerais, em
seu espaço, seu espaçamento, seu devir-tempo do
espaço mundial, sua colocação em rede horizontal,
portanto, em sua des-hierarquização potencial, ain-
da que limitada, nas redes do World Wide Web.
Numa palavra, o que é revolucionário? e pós-revo-
lucionário? e o que é guerra mundial e pós-guerra
para a psicanálise hoje em dia? Eis aí, talvez, outras
formas da mesma questão.
De início, tentei; depois, à falta de tempo, tive
de resistir à tentação de levar bem adiante a análise

22
comparativa dos Estados Gerais de 1789 e dos Esta-
dos Gerais da Psicanálise. De onde vem o Apelo?
Quem convoca quem? Qual é, aqui, a hierarquia su-
posta ou dissimulada? Quem tem o poder ou quem
se apresta a tomá-lo? Quem saberá renunciar a ele?
Como ter-se-á operado o que então se chamava "ve-
rificação dos poderes" cujo desenvolver-se desenca-
deou o processo revolucionário? Ainda que não se
deva levar muito longe a analogia, o que resvalaria
para o delírio histórico, existe algum sentido em ima-
ginar na nação e na internacional psicanalítica atual,
e aqui mesmo, o equivalente a um Terceiro Estado
(sem dúvida majoritário e em si mesmo heterogêneo)
- supondo que se tenha podido pagar seus direitos
de entrada -, um clero, com sua fração aliada ao Ter-
ceiro Estado, enquanto a maioria dos sacerdotes e
intérpretes psicanalíticos tende a votar com uma no-
breza que conta com dissidentes em suas fileiras, al-
guns tipos pré-revolucionários, algum Lafayette*
decidido a fazer alguma coisa por novos Estados

* Marie Joseph Paul Yves Roch Gllbert Motler, marquês de La Fayette


(1757-1832), político e general. Ligado a Franklin esteve na Amé-
rica para ajudar os rebeldes (1777), juntando-se às tropas da Vlr-
glnla. Franco-maçon, foi eleito deputado da nobreza aos Estados
Gerais de 1789. Nomeado comandante da guarda nacional depois
da queda da Bastilha, pretendeu a conciliação do rei e a Revolu-
ção. Partldério de uma monarquia llberal, separou-se dos jacobi-
nos. Chegou a participar da revolução de 1830. [N. da T.]

23
Unidos da América. Lanço a vocês estas questões:
quem representaria aqui a nobreza? e o clero? e o bai-
xo-clero? e a fração do clero ou da nobreza pré-re-
volucionária aliada ao Terceiro Estado? Quem
representa aqui o Terceiro Estado da psicanálise
mundial, quer dizer, na verdade, uma psicanálise es-
sencialmente européia - se não em seu território e
em suas margens, ao menos nas raízes de sua cultu-
ra, em particular sua cultura religiosa, jurídica e po-
lítica?
Por que essas questões estariam ultrapassadas?
Se eu não tivesse resistido à tentação, teria privile-
giado o momento do livro de condolências que pre-
cederam os Estados Gerais. A unidade desse motivo,
eu teria fingido cindi-la em dois, a morte e a técnica.
Se a psicanálise não está morta, ninguém pode
duvidar que ela é mortal, ela o sabe, como as civili-
zações das quais falava Valéry*. Em todo caso, ela
parece carregar um luto que não sabe se é ou não o
seu. Qual é a condolência, ou melhor, a dor e o agra-
vo, o sofrimento e o luto que a psicanálise, depois
de um século de existência, encontra para lamentar?
Qual é o lamento da psicanálise hoje em dia? Do que
vocês se queixam? De quem vocês se queixam? Ao

• Paul Valéry, ensaísta e poeta (1871-1945). Dono de vasta obra, tem


em O cemitério marinho uma de suas mais conhecidas, e chegou
a escrever, entre outros, um Discurso aos cirurgides. [N. da T.]

24
pé de quem? Do que os psicanalistas do mundo in-
teiro aceitam ou recusam prestar-llie luto, de reco-
nhecer seu voto de luto, seu agravo, mas também seu
agravamento, seu agravo, sua reivindicação, sua recla-
mação, sua demanda? Se resta uma promessa em so-
frimento numa psicanálise jovem ou vellia de um
século, o que é que nela se respira de morte ou de
ameaça de morte? Regicídio em curso? Regicídio imi-
nente, regicídio por vir? E se a promessa fosse uma
ameaça, ambigüidade intolerável à teoria dos speech
acts? Pergunta-se, também, quem seria, aqui, o Pai,
quem o Rei. A mão se encontra, então, presa num
enxame de questões prévias, enquanto as vespas não
deixarão vocês em paz. Não se sabe mais quem se
queixa ao pé de quem. 56 existem álibis. Nos Esta-
dos Gerais da história política, até em 1789, um po-
der constituído era o destinatário habilitado da
queixa. Entre vocês, ao contrário, procura-se tal po-
der, o destinatário resta por ser identificado, e não
se sabe se os protocolos de sua identificação (prévia
da prévia) devem ou não ser já psicanalíticos. E se
são psicanalíticos, de qual "escola", se vocês prefe-
rem, estão eles autorizados a se autorizar? A queixa
pode concernir o suposto interior da psicanálise: a
inexistência ou disfunção de uma comunidade na-
cional ou internacional dos psicanalistas, o caráter
sempre problemático de uma institucionalização d.is-

25
so que se chama psicanálise, a dispersão espetacu-
lar inegável dos seus lugares de saber e de ensino,
bem como de seus discursos teóricos, em seus mo-
rnas mesmo, sua retórica, sua linguagem, seus mo-
dos de exposição e de legitimação, a ausência radical
de consenso em tomo das regras práticas, dos pro-
tocolos de formação didática etc.; a ausência radical
de um discurso ético, jurídico, político e, em todo
caso, de um consenso constitucional a tal propósito
etc. - poder-se-ia estender essa lista - são somente
exemplos indicativos, e talvez eu privilegie um ou
dois mais tarde. A queixa pode dizer respeito ainda
ao suposto exterior da psicanálise: relações com aso-
ciedade ou com o Estado, com a corporação médica
clássica, não reconhecimento ou ameaça apropriado-
ra por autoridades estatais, recessão aparente ou
transformação ininteligível e da demanda da psica-
nálise e da sociologia dos analistas, concorrência de
discursos fármaco-psiquiátricos que poderia deslegi-
timar, pior, desacreditar ou corromper, na opinião
pública, a especificidade do psicanalista, desenvol-
vimento de uma ideologia política cuja hegemonia
cria condições desfavoráveis à cultura psicanalítica;
incapacidade, por uma psicanálise sem fôlego, a co-
meçar, em razão de sua cultura de origem - européia,
greco-abraâmica, burguesa-liberal etc.-, a medir-se
ante todos os processos de globalização em curso.

26
Nesses dois casos - queixa a propósito de um supos-
to interior da psicanálise ou queixa por um suposto
exterior a ela-, quer se trate de negócios estrangei-
ros ou negócios interiores, é preciso perguntar-se, a
princípio: 1. se esse limite existe e qual o seu valor,
entre o interior e o exterior, o que é ou não próprio
à psicanálise; depois, 2. quem endereça a queixa a
quem. A originalidade vertiginosa dos Estados Ge-
rais de vocês é que eles têm por tarefa radical, e de
maneira quase auto-analítica, instituir seu próprio
destinatário ou de instituir-se em primeiros ou últi-
mos destinatários dos seus livros de condolências.
Eles têm de inventar a destinação e os destinatários
de uma queixa ainda um tanto louca. "Louca" seria
a trajetória de um movimento que, não tendo ainda
telas ou alvo, deve produzir sua própria destinação.
Se se tenta traduzir essa questão em linguagem já
psicanalítica - o que me parece, aqui, a mínima das
coisas -, dir-se-á que o movimento de transferência
ou de contratransferência em curso, aqui, ainda não
aconteceu. Ele busca seu lugar e seus propósitos. Este
grande anfiteatro já é, mas ainda não é um lugar ana-
lítico. A ameaça de morte da qual eu falava, da qual
se carregariam o luto e a queixa previamente, se pos-
so dizê-lo, está invadindo este lugar deixado vago
pela destinação transferencial. Talvez seja uma chan-
ce, esta ameaça, o momento em que se começa a pen-

27
sar, diria o Estrangeiro, quero dizer aquele que, no
fundo, endereçando-se a vocês, não pertence a um
suposto interior da comunidade psicanalítica. A mor-
te e a técnica, dizia eu. Haverá um liame entre elas?
E pensar a morte, supõe que se pense, de início, a
técnica? Se eu tivesse tido tempo, teria ligado, como
o fiz outrora, essa questão da morte àquela da técni-
ca, em particular de uma técnica não derivável, não
secundária, e cujo dispositivo teletécnico inédito des-
tes Estados Gerais me teria servido de exemplo,
numa história que se elevaria mais alto que o bloco
mágico*. Mas abandono também esse caminho, por
falta de tempo.
Para além das aparências formais e estatutárias,
é difícil saber quem chama a quem aos Estados Ge-
rais e quem, no fundo, nunca os convoca. Eu falo de
todos os Estados Gerais em geral, bem antes destes
aqui, sobre os quais eu gostaria de me perguntar, jun-
to com vocês, o que será que eles, no curso dessa tra-
dição que se avocam, também inauguram. Àqueles
e àquelas que têm o poder aparente de lançar esse
apelo, não se lhes escapa que já responderam, eles já
entenderam o chamado que caberia justamente aos

* Ref. ao artigo de Freud "Uma nota sobre o bloco mágico" apare-


cido em 1925; no volume 19 da E.S.B., Rio de Janeiro: Imago,
1980. [N. da T.]

28
Estados Gerais, eles próprios, determinar, e a fonte
e o sentido, o quê e o quem. Porque se isso que se cha-
ma psicanálise, isso que chama à psicanálise nos en-
sinou pelo menos uma coisa: desconfiar da
espontaneidade alegada - de autonomia e de liber-
dade suposta.
Sempre antes de começar, eu tomaria, agora, um
outro passo. Para aclarar com um luar ainda frágil e
parcial alguns dos lugares nos quais gostaria de me
encontrar a fim de cruzar esses léxicos de cruelda-
de, de soberania e de resistência, lerei algumas fra-
ses trocadas entre Einstein e Freud (em Warum
Krieg?, justamente, tendo sido o primeiro título, Recht
und Gewalt, direito e violência, direito e autoridade,
direito e força de lei,, rejeitado por Freud). Essa troca
aconteceu, vocês sabem, em 1931-1932- o que não é
qualquer data -, quando o Comitê permanente para
a Literatura e as Artes da Sociedade das Nações ti-
nha-lhes pedido para publicar uma correspondência
sobre questões candentes da época. Sabe-se agora
analisar - e René Major não está aí à toa - o que
Freud pensava do pai mais ou menos legítimo da
Sociedade das Nações, Woodrow Wilson*. Freud não
acreditou muito nessa proposta de correspondência

* "O presidente Thomas Woodrow Wiison. Retrato psicológico", arti-


go de Freud de 1938, em colaboração com William e. Bullitt, pu-
blicado postumamente. [N. da T.]

29
com Einstein, como se sabe, sorrindo um pouco e
confiando a Ferenczi:
Ele [Einstein] conhece tanto de psicologia quanto
eu de física, então nós tivemos tuna conversa agradável.

Observação desabusada, e bastante injusta,


diga-se de passagem, como o atesta a carta de Eins-
tein, que mais ou menos antecipa o que Freud po-
deria responder-lhe. O próprio Freud o atesta. A
alusão cética de Freud às respectivas incompetências
dos dois grandes sábios fala por si; ela diz por nós,
aqui, do front e da fronteira dos saberes entre physis
e psichê, entre ciências da natureza e ciência da alma
ou do homem, entre, de uma parte, uma teoria física,
um tempo e um espaço cósmicos, das ciências físi-
cas, físico-biológicas, físico-químicas ou farmacoló-
gicas e, de outra parte, uma ciência psicanalítica. Eu
destacaria, somente, nas duas cartas, o que unir, ao
menos provisoriamente e a título indicativo, as ques-
tões da soberania, da crueldade e da resistência.
Aí entra, claro, a guerra e a paz entre as nações.
Já mal se define o conceito de guerra, notadamente
a diferença entre uma guerra civil e uma guerra in-
ternacional. Einstein oferece uma visão final, e não
acredito que, nisso, exista uma palavra a mudar ain-
da hoje. Eis o fragmento de uma troca que, inicial-
mente, aconteceu em alemão:

30
Sendo eu mesmo um homem livre de todo afei-
çoamento de natureza nacionalista [ich selber ein von
Affekten natíonaler Nature freíer Mensch bín], o aspecto
exterior, isto é, organizacional do problema, me pare-
ce simples: os Estados criam uma autoridade legislati-
va e judiciária para arbitrar todos os conflitos que
surjam entre eles. Eles se dispõem a submeter-se às leis
estabelecidas pela autoridade legislativa, a apelar à ju-
risdição em todos os casos litigiosos, a curvar-se incon-
dicionalmente a suas decisões, bem como a executar
todas as medidas que a jurisdição estime necessárias
para transformar em realidade as suas decisões. 1 *
Einstein deduz disso o que ele chama sua "pri-
meira constatação" (Feststellung), seu primeiro
"axiom" (diz a Standard Editian), a saber, que a segu-
rança internacional implica a "renúncia incondicio-
nal dos Estados (bedingungslosen Verzicht der Staaten)

1. Pourquol la guerre, Oeuvres Complàtes XIX, 1931-36, PUF, tr. J.


Laplanche et a/li, p. 66. "As one lmmune from nationalist blas, I
personnal/y see a simp/e way of deal/ng with the superficial (i. e.
admlnlstrative) aspect of the problem: the settlng up, by intematlonal
consent, of a /egislative and judicial body to settle every confllct
arlslng between natlons. Each natlon would undertake to ablde by
the orders issued by thls leglslatlve body, to invoke its decision ln
every dispute, to accept its judgments unreservedly and to carry
out every messure the tribunal deems necessary for the executlon
of lts decrees. •
"Por que a guerra?" consta do volume 22 da E.S.B. [N. da T.]

31
a uma parte de sua liberdade de ação (einen Teil ihrer
Handlungsfreiheit), isto é, de sua soberania
(Souveriinitiit)2. Ainda aqui- e a proposição não per-
deria nada de sua pertinência ainda hoje - Einstein
notou que um tribunal internacional não tem à sua
disposição a força necessária para aplicar suas deci-
sões e depende, portanto, de "influências extrajurí-
dicas" (ausserrechtlichen Einflüssen). Ele parte do que
chama "fato" (Tatsache) com o qual é preciso contar,
a saber, que a força e o direito (Macht und Recht) vão
de par. As decisões jurídicas só vingam como ideal
de justiça exigido pela comunidade humana à me-
dida de uma força constrangedora que essa comu-
nidade possa ter para fazer respeitar seu ideal. Kant
já havia dito isso melhor do que ninguém: não há di-
reito sem possibilidade de coerção. Mas, infelizmen-
te, outro fato, acrescenta Einstein, é que hoje em dia
nós estamos longe - e isso ainda é verdade, no ano
2000 - de dispor de uma organização supranacional
competente para ditar veredictos cuja autoridade seja
ao mesmo tempo incontestável e aplicável. Preconi-
zando expressamente e sem rodeios o abandono in-
condicional, por parte de cada nação, ao menos de
uma parte de sua soberania, Einstein reconhece, en-
tão, a finitude das instituições humanas e as "poten-

2. lbid.

32
tes forças psicológicas" (miichtige psychologische
Kriifte) que paralisam os esforços que visam a essa
justiça internacional. Uma pulsão de poder, poder-
se-ia dizer (das Nachtbedürfnis)- o que se traduz em
inglês por craving for pawer, em francês por besoin de
puissance politique* - caracteriza a classe governante
de toda nação. Esta classe é espontaneamente "so-
beranista", ela se opõe a uma restrição dos direitos
soberanos do Estado. Essa pulsão de poder político
se curva às atividades e exigências de um outro gru-
po cujas aspirações são puramente, acusa Einstein,
mercenárias e econômicas. Malgrado a ingenuidade
que Freud lhe atribui quanto às coisas da psique,
Einstein avança uma hipótese que vai no mesmo
sentido do que será a resposta de Freud, a saber,
aquela de uma pulsão de crueldade (quer dizer, no
fundo, uma pulsão de morte), o que vai de par, sem
se reduzir a isso, com aquela pulsão de poder
(Bemiichtigungstrieb) que tem lugar original em
'~lém do princípio do prazer"*ª. O que fazer de uma
irredutível pulsão de morte e de uma invencível pul-
são de poder numa política e num direito progressis-
tas, isto é, confiantes, como no tempo das Luzes, em

* Besoln tem, como em português, várias acepções, inclulda "sentir


a necessidade de", "querer". [N. da T.]
*• Artigo de Freud de 1920; consta do volume 18 da E.S.B. [N. da T.J

33
alguma perfectibilidade? Muito lúcido, Einstein nota
ainda que a minoria no poder nos Estados-nações
tem a mão sobre a escola, a imprensa e a Igreja e que
se as populações respondem com entusiasmo a essa
minoria de homens de poder, a ponto de lhes sacri-
ficar suas vidas, é que, eu cito, "no homem vive uma
necessidade de odiar e de aniquilar" 3• Ele fala mes-
mo, muitas vezes, de uma "psicose" de raiva e de
aniquilamento que não seria apanágio das massas
incultas, mas mesmo da intelligentsia. Esta satisfaz
essa pulsão ou esse desejo até na escrita e na "pági-
na impressa". E para concluir, pedindo a opinião de
Freud, Einstein vai mais longe, e de maneira ainda
mais interessante, em sua evocação de uma pulsão
de agressão. Esta não se exerce apenas nos conflitos
internacionais, mas mesmo nas guerras civis e na
perseguição de minorias raciais. Einstein, então, se
serve da palavra inglesa que se traduz por "cruel"
(cruel), termo que voltará com força na resposta de
Freud. A tradução francesa diz: "Mais j'ai mis
consciemment en relief la forme de conflit entre
communautés humaines la plus représentative et la
plus funeste [c'est unheivollste: nefaste, sinistre,
maléfique, perverse, cruelle), car la plus débridée
(zügelloseste, déchainée, déliée] parce que c'est peut-

3. lbid., p. 67.

34
être sur elle qu'on peut le mieux démontrer comment
pourraient être évités des conflits guerriers". 4 *
Se a pulsão de poder ou a pulsão de crueldade
é irredutível, mais velha, mais antiga que os princí-
pios (de prazer ou de realidade, que são no fundo o
mesmo, como gostaria eu de dizer, o mesmo na di-
ferença), então nenhuma política poderá erradicá-la.
Esta só poderá domesticá-la, apartá-la, aprender a
negociar, a transigir indiretamente, mas sem ilusão a
seu respeito, e é esta indireção, esse desvio diferente,
esse sistema de tum.os e tratos diferenciais que dita-
rá a política ao mesmo tempo otimista e pessimista,
corajosamente desabusada, resolutamente desembo-
tada de Freud - e ante a soberania e ante a cruelda-
de. Isso no momento mesmo, no entanto, em que o
pai da psicanálise declara não dever livrar-se a uma
avaliação ética das pulsões. Nós ouviremos sua res-
posta num instante, e veremos nisso o discreto, mas
essencial papel que aí desempenha por duas vezes
a palavra "indireto".

4. lbld., p. 68.
• "Mas eu coloquei conscientemente em relevo a forma de conflito
entre comunidades humanas a mais representativa e a mais funesta
[unheívol/ste: nefasta, sinistra, maléfica, perversa, cruel), porque a
mais desenfreada (zlJgel/oseste, encolerizada, desbragada), pois é
talvez com ela que se pode melhor demonstrar como poderiam ser
evitados conflitos guerreiros." [N. da T.)

35
Interrompendo-me, neste ponto, apenas tendo
começado, gostaria, dizia eu, de saudar os Estados
Gerais da Psicanálise.
Por que render graças aos Estados Gerais da Psi-
canálise? E como agradecer aos amigos psicanalistas
que tiveram nisso, segundo tudo indica, histórica ini-
ciativa? Como lançar um sinal de reconhecimento a
todos estes e a todas estas que cedo os escutaram,
no mundo inteiro, com a resolução de contribuir com
tal evento, tão imprevisível que ele ainda é e tão
enigmática que fica a cena? Cena insólita e fami-
liar, ao mesmo tempo, mas unheimlich, uncanny,
bem para além de sua "mise-en-scene"*. Familiar-
mente insólita, intimamente estranha porque, de
uma parte, nada é mais familiar à psicanálise, apa-
rentemente, do que uma cena conforme com o ima-
ginário corrente dos Estados Gerais: franqueamento
de uma espontaneidade reencontrada, linguagem li-
berada, direito à palavra enfim chegado, interdito le-
vantado, resistência vencida etc. Ousar-se-ia dizer
que o que deveria acontecer, de certa maneira, a cada
sessão de análise, seria uma espécie de micro-Revo-
lução precedida de uma música de câmara dos Es-
tados Gerais dando voz a todas as instâncias e a to-
dos os estados do corpo social ou do corpo psíquico.

* Mise, grifada pelo autor; do verbo mettre (colocar, pôr). [N. da T.]

36
Isso deveria recomeçar toda vez que um paciente se
põe no divã ou, como o que se faz mais e mais atual-
mente, na análise face a face. O analisando dispara-
ria, então, uma revolução, talvez a primeira revolu-
ção que conta, abriria virtualmente seus Estados
Gerais e dar-se-ia livremente a palavra a todos os
estados, a todas as vozes, a todas as instâncias do
corpo psíquico como corpo social múltiplo. Sem áli-
bi. Após consignação de todas as queixas, lutos e
agravos. Nesse sentido, e de direito, uma psicanáli-
se deveria ser, de parte a parte, um processo revo-
lucionário, a primeira revolução, talvez, precedida
por Estados Gerais.
Em compensação, sem mesmo lembrar a pouca
simpatia de Freud pelas revoluções francesas5, nada,
entretanto, de outra parte, foi mais estranho à psica-
nálise, até agora, mais inquietante para ela que o es-
paço público destes Estados Gerais, que este cená-
rio, estes protocolos, a duração e o dispositivo téc-
nico que há mais ou menos dois anos condicionam
o encontro de vocês. Uma outra cena ainda invisí-
vel, por certo, continua camuflada perante vocês. Os
sinais que esta cena velada lhes envia continuam in-
decifráveis por detrás de toda uma "mise-en-scene"

5. Cf. Elisabeth Roudlnesco, "Freud et la régicide: Eléments d'une


réflaxion• (no prelo).

37
ordenada para deliberações comuns, coordenada sob
as decisões e as declarações performativas dos orga-
nizadores ou mesmo dos participantes. Ora, o que
chega, o acontecimento do outro como chegante, é o
impossível que excede e sempre derrota*, às vezes
cruelmente, o que a economia de um ato performa-
tivo supunha produzir soberanamente quando uma
palavra já legitimada se prevalece de alguma con-
venção. Se coisas chegam, se uns e outros chegam,
sobretudo os outros, os chegantes, é sempre como o
impossível para além de todos os enunciados insti-
tuintes, para além de todas as convenções, para além
do controle, para além do "eu posso", para além da
economia de apropriação de um "isto está em meu
poder", de um "isto me é possível", do "este poder
me pertence", do "este possível me é conferido", tan-
tas presunções que os atos performativos sempre
implicam. Se os outros chegam, de perto ou de lon-
ge, da família ou do estrangeiro mais longínquo, eles
o fazem, como tudo o que chega, como todo evento
digno desse nome, como tudo o que vem, sob a for-
ma do impossível, para além de toda convenção e de
todo controle cênico, de todo princípio do prazer ou
de realidade, para além de toda pulsão de poder e

* No original, déroute, derrota, que tem em francês, corno em portu-


guês, também o sentido de "tirar, sair da rota". [N. da T.)

38
talvez de toda pulsão de morte. Hospitalidade de vi-
sitação, não de convocação, quando o que chega do
outro excede as regras de hospitalidade e toma-se
imprevisível aos hospedeiros. Não sei se por trás de
suas regras estatutárias e por trás dos signatários ofi-
ciais do Apelo e da convocação, por trás dos mes-
tres-de-cerimônia, os Estados Gerais da história, até
1789, teriam tido um verdadeiro e soberano metteur-
en-scene. O que é certo é que nenhum metteur-en-scene
jamais pôde prever e programar o que quer que
seja além do primeiro ato de abertura. E isso ainda
é assim!
Isso não deveria nos impedir, muito pelo con-
trário, de buscar identificar, por meio de seus repre-
sentantes ou portadores oficiais, pelas suas pessoas
ou seus sintomas, as verdadeiras forças que estão tra-
balhando na organização destes Estados Gerais. Será
que é preciso lembrar que em princípio estes Esta-
dos Gerais, estes EstadosGerais da Psicanálise, deve-
riam ter por missão constitutiva - eu ousaria dizer
"por dever de origem", mas seja como for-, esten-
der ao mais longe possível a auto-análise de sua mise-
en-scene, mas também a análise das forças, pulsões,
desejos que neles estão secretamente laborando, para
além de toda mise-en-scene, melhor ainda, para além
de todo ver, de toda visibilidade, de toda fenome-
nalidade?

39
Conhece-se a velha ligação entre a psicanálise
e a cena, entre a psicanálise e o teatro*. Seria sempre
a mesma estrutura teatral? Seria ainda, amanhã, no
próximo milênio, o mesmo modelo, o mesmo dispo-
sitivo, a mesma família teatral, uma família sempre
mais ou menos real*ª, antes patriarcal e heterosse-
xual, instalada na diferença sexual como oposição
binária? Seria também, de agora em diante, uma fa-
mília monoparental ou triparenta!, por exemplo? A
referência teatral da psicanálise será ainda amanhã
o teatro grego, shakespeariano, elisabetano, quer di-
zer, simplesmente, supondo-se que não tenha havido
jamais um outro, um teatro europeu, por exemplo?
Não se sabe mais direito o que ainda liga a psicaná-
lise à história da Europa grega, judia, cristã. E se eu
acrescento - ou ainda que eu não acrescente - mu-
çulmana para completar os monoteísmos abraâmicos,
abro o abismo de uma imensa interrogação. Suas di-
mensões não são apenas demográficas. Por que a
psicanálise nunca fincou pé no vasto território da
cultura árabe-islâmica? Isso sem falar no Extremo
Oriente. Mais amplamente, vocês se perguntam por
que a psicanálise continua sem penetrar ali, e sem
ilusão mosaica de terra prometida, à margem exter-

* Primeiramente, em Estudos sobre a histeria, 1893. [N. da T.]


*• Royale, no original, real, realeza. [N. da T.]

40
na da imensa e crescente maioria dos homens e mu-
lheres que povoam a face de uma terra em vias de
uma "globalização". Não citarei, mesmo que fosse
para dizê-la desesperada, a ilusão mosaica da terra
prometida sem lembrar, numa palavra - a insistên-
cia do espectro de Moisés desde as primeiras atas de
psicanálise e, sobretudo, decênios antes de "O ho-
mem Moisés e o monoteísmo", pouco antes da
Segunda Guerra Mundial - isso que Freud disse um
dia a Jung numa carta de 1900. Foi o ano no qual este
desmaiou em frente dele, o mesmo ano de sua pri-
meira viagem à América, de onde ele trará de volta
essa "colite americana" que exigiria, ainda hoje, uma
incansável seqüência e um interminável tratamento.
Foi também pouco depois de Jung ter organizado o
Primeiro Congresso Internacional de Psicanálise (42
participantes, "evento histórico", diz o bom Jones*).
Aqueles anos foram, vocês sabem, os anos de uma
Internacionalização - bem relativa, bastante eurocen-
trada - da psicanálise. Essa internacionalização, nós

• Ernest Jones (1879-1958), natural do Pais de Gales, formado em


medicina, participou do primeiro congresso de psicanálise em
Salzburgo, em 1908. A ele se deve a formação, em 1913, de um
comitê secreto pela defesa da obra de Freud, do qual faziam parte
Abraham, Ferenczi, Rank, Sachs, Eltlngton e A. von Freund. São
os sete nomes, os •sete anéis" aos quais o autor se refere adian-
te. [N. da T.]

41
bem sabemos, nunca se tomou uma globalização.
Freud, então, cita a terra prometida da psiquiatria
- sim, da psiquiatria, e a psiquiatria, a psiquiatrização,
é, no fundo, o que se alia à fármaco-psiquiatria e to-
das as novas terapêuticas, químicas ou genéticas, que
pretendem hoje em dia, no mundo, sobretudo na
América, seja emancipar-se da psicanálise freudiana,
rejeitando-a, condenando-a à morte, seja compor
com ela transações inéditas e sempre problemáticas.
Assim, nomeando a psiquiatria e o futuro das rela-
ções entre esta e a psicanálise, Freud lança então a
Jung a apóstrofe bastante conhecida:
Vós sereis aquele que, como Josué, se sou eu Moi-
sés, tomará posse da terra prometida da psiquiatria,
que não posso perceber senão de longe.
De longe. De qual distância, de quais lonjuras
poderia tratar-se no espírito de Freud? O que pen-
sar disso hoje em dia?
Conhece-se a seqüência do caso Josué Jung.
Quanto àquilo que se tem em reserva do lado da psi-
quiatria, quanto ao destino cruel de um nome pró-
prio, quanto ao nome de um Moisés da psicanálise,
a história continua em aberto, e estou convencido de
que esses fantasmas deviam alojar-se nos debates de
vocês.
Não há Estados Gerais sem teatro. Não houve,
até aqui, Estados Gerais sem isso ao qual, na psica-

42
nálise, o teatro privado da família se liga de manei-
ra essencial, a saber, o teatro propriamente dito,
aquele que requer um espaço público. Na insistente
visão que se impõe a mim, estes Estados Gerais da
Psicanálise pareceriam, portanto, uma cena inédita,
ou melhor, a um primeiro teatro da crueldade que
resistiria, de maneira auto-imunitária, a seu próprio
espetáculo, à sua tentação especular e espetacular. O
que se intitula, o que se chama a si mesmo Estados
Gerais da Psicanálise, eis o que se meteria em cena
para submetê-lo à hipótese de uma mutação, uma
certa crueldade. Qual? Aquela que se exerce em
nome de uma soberania ou aquela que deve sofrer
uma soberania?
No palco desse novo teatro da crueldade*, a pro-
pósito do qual eu me explicarei ao meu ritmo, que
será - peço-lhes perdão - bastante lento, avanço.
Gostaria de evitar o álibi. (Se eu tivesse uma posi-
ção sobre a sessão de análise, bem, vocês saberiam
isso hoje, à própria custa, vocês vão sofrer com isso,
porque serei resolutamente, incorrigivelmente a fa-
vor de sessões longas, muito longas. E apesar da pa-
ciência exigida, não está aí a posição de um paciente,
muito pelo contrário.)

* A expressão teatro da crueldada foi proposta por Antonln Artaud


(1896-1948). [N. da T.]

43
Sem saber - no essencial -, sem nada saber, eu
avanço. Não tenho nada de simples, nem de simples-
mente possível a lhes dizer, e no fundo eu não sei
nada*. Não sei nem mesmo como esclarecê-lo, isso
de que não somente não sei nada, mas que nem sei
mesmo aonde me meter, eu e meu não-saber, não
mais que minhas questões sobre o saber e o poder,
sobre o possível e o além do possível. Não sei, para
começar, do que, a qual título, nem de quem me au-
torizar, sobretudo não de mim mesmo, para saudar,
como venho de fazê-lo, em lhes rendendo graças,
algo como os Estados Gerais da Psicanálise. E, no en-
tanto, vocês me ouvem bem, fui autorizado a me di-
rigir a vocês neste instante. E se eu chegasse, direta
ou indiretamente, a responder sem álibi à pergunta
"por que fui eu autorizado? por que e por quem, afi-
nal?", talvez desse alguns passos na direção da auto-
análise que invoquei há pouco. A minha, talvez, que
não interessa a muita gente, apenas a mim, por
exemplo em tomo das razões que me fizeram esco-
lher para falar a vocês, hoje, de pulsão de morte,
como o faço muitas vezes, mas sobretudo sobre o
cruel sofrimento, e dessa crueldade que se encontra
no centro de um seminário, o último, que alhures eu
acreditei dever consagrar, e não fortuitamente, à

O "sei que não sei nada" de Sócrates. [N. da T.]

44
pena de morte. Mas para além da minha, que não
merece a atenção de vocês, é em· direção à auto-aná-
lise dos Estados Gerais da Psicanálise que mais se-
guramente eu me arriscarei.
Sempre impor-se-á a questão de princípio, a
questão dos princípios e a questão do princípio - do
principal, do soberano príncipe e do principado. A
psicanálise freudiana, a psicanálise como ciência, a
psicanálise que não renuncia jamais a ser uma ciên-
cia, mas uma ciência à parte, terá contado bastante
com os princípios - isto é bastante sabido. Esses prin-
cípios, tais como a distinção entre os processos pri-
mários e os processos secundários, ela os tratou cien-
tificamente, mas como indispensáveis ficções teó-
ricas, tanto que Freud fala, em sua resposta a Eins-
tein, de nossa "teoria mitológica das pulsões", como
se o "como se" devesse ainda resistir ele mesmo à
crítica que Freud lhe dispensa em "O futuro de
uma ilusão"*, em tomo de Die Philosophie des Als
Ob de Vaihinger*ª· Freud muita vez nomeou e
sobrenomeou esses princípios, por exemplo o prin-
cípio de prazer ou o princípio de realidade, como

• 1927. [N. da T.]


•• Hans Vaihlnger (1852-1933), filósofo alemão, definia sua própria fi-
losofia como "idealismo positivista" ou "Irracionalismo positivista•
A filosofia do •como se• data de 1921 . (N. da T.J

45
sobrenomeou "mitologicamente" o que lhes põe em
crise, para além ou aquém dos princípios, a saber,
uma certa pulsão de morte que, justamente na ori-
gem de toda crueldade, pode tomar a forma destrui-
dora de um sadismo, de uma ferocidade que a libi-
do narcisística teria deslocado do eu para exercê-lo
sobre o objeto - a menos que não seja aquela de um
masoquismo primário sobre o qual Freud dedicou
também uma hipótese. Quais seriam as formas iné-
ditas de crueldade que um psicanalista do ano 2000
deveria interpretar, com renovado frescor, fora e den-
tro da instituição? Haverá quanto ao político, ao
geopolítico, ao jurídico, à ética, conseqüências, ao
menos lições a tirar da hipótese de uma irredutível
pulsão de morte que parece inseparável disso que se
chama obscuramente crueldade, em suas formas ar-
caicas ou modernas? Para além dos princípios, ha-
verá ainda, dando alguns passos a mais, um para
além do além, um além da pulsão da morte e, por-
tanto, da pulsão de crueldade? Seria necessário per-
correr as ocorrências da palavra "crueldade" em
certos textos políticos de Freud e decifrar seu alcan-
ce. Num horizonte mais amplo dessas questões,
anunciar-se-ia a necessidade de situar, ao mesmo
tempo que o tema psicanalístico da soberania ou do
controle (Herrschaft, Bemiichtigung), tão presente pelo
menos sob a forma· de uma metáfora política em

46
"Além do princípio do prazer", o tema de um
Bemiichtigungstrieb, de uma pulsão de ascendência,
de poder ou de possessão. Tentei mostrar isso alhu-
res, numa longa Carte Postak*, que a palavra e o con-
ceito de Bemiichtigung, por mais discretos e pouco
analisados pelos leitores de Freud, estão presentes
desde os "Três ensaios sobre a teoria da sexuali-
dade"*ª e desempenham em "Além do princípio do
prazer" um papel decisivo, para além ou aquém dos
princípios, justamente, como pulsão principal, se
posso assim dizer, notadamente na ambivalência
amor/ódio e no desencadeamento da crueldade que
atrai a hipótese de um sadismo originário. Indisso-
ciável daquele de Bewiiltigung (exercício do poder, da
ascendência ou da possessão, movimento de apro-
priação etc.), haveria então o conceito de pulsão de
poder - isto é, do poder, do "eu posso", 1 can ou 1
may, e em particular do poder performativo que or-
ganiza, através de alguma fé jurada, toda a ordem
disso que Lacan chamava simbólico. Essa pulsão de
poder anuncia, sem dúvida, antes e além de todo
princípio, antes e para além mesmo de todo poder
(o princípio sendo o poder, a soberania do poder),
um dos pontos de articulação do discurso psicanalí-

* Carte posta/e: de Socrate .!t Freud et au-del.!t, 1980. [N. da T.]


*• 1905. [N. da T.]

47
tico freudiano com as questões jurídicas e políticas
em geral, com tudo o que concerne aos dados inédi-
tos, hoje em dia, dessa dupla problemática da sobe-
rania e da crueldade. Quanto às relações, presentes
ou futuras, entre as instituições ou as práticas psica-
nalíticas, de uma parte, e o Estado de outra parte
(quer se trate de estatuto, de visibilidade ou de
transparência, de fiscalidade, de articulação com
os dispositivos de segurança social, do segredo etc.),
faz-se necessário levar em conta não apenas uma
profunda transformação no campo da oferta e da
procura de psicanálise, mas das transformações que
concernem, sobretudo na Europa, à soberania dos
Estados, aos abandonos de soberania, à harmoniza-
ção das legislações etc. Em razão de sua própria ex-
cepcionalidade, as relações da psicanálise com o es-
paço público da sociedade civil e do Estado sempre
foram criticadas. A transformação profunda dessas
duas dimensões do espaço público cria um novo
dado. Ela pede análises inéditas, novos axiomas e
invenções estratégicas. Se posso confiar a vocês o
sentimento de um observador estrangeiro, parece-me
que resta tudo por fazer e que não há, nem haverá
jamais, o mínimo consenso à vista de qualquer des-
ses assuntos, nem entre os psicanalistas do mundo
inteiro, nem entre seus interlocutores sociais, políti-
cos, jurídicos. Mas não excluo que assim deva ser, e

48
que o dissenso deva continuar sendo uma feliz fata-
lidade.
Eis aqui, portanto, sob uma outra forma, a ques-
tão do princípio e, assim, do começo, do ato inau-
gural que se espera produzir o evento, o poder
performativo do apelo ou da convocação que com-
porta sempre o como se" de uma convenção desde
11

a qual, autorizada ou autorizando-se a si mesma, um


11
ato de autoridade detém o poder de dizer eu pos-
so", I can, I may. Tudo se passa, tudo já se passou como
se entre vocês alguém, ou alguns, segundo o como se
de uma convenção, tivessem tido o direito, tivesse to-
mado ou tivesse visto, reconhecido o direito de cha-
mar ou de convocar aos Estados Gerais, de abrir uma
primeira sessão ou de pronunciar um discurso ou
convites inaugurais endereçados a uma assembléia
geral, uma assembléia nacional ou uma assem-
bléia internacional. Antes mesmo de saber quem abre
a primeira sessão, perguntar-se-á quem chama, quem
se chama, quem convoca" e quem convoca quem aos
11

Estados Gerais em geral, descontando-se a justo tí-


tulo uma resposta já pronta. Quem, desde a morte
de um certo rei da França, o único habilitado a fazê-
lo desde o século XIV até a Revolução, inclusive 1788-
1789? Foi ainda, em princípio e de direito, um rei da
França, vocês sabem, que em agosto de 1788, por de-
creto, convocou os últimos Estados gerais nos quais

49
todos nós pensamos e no curso dos quais se operou
uma primeira mudança, uma série de transgressões
afetando o número de deputados do Terceiro Esta-
do, infletindo essa coisa que se chama "verificação
dos poderes", impondo o voto por cabeça, pela "voz"
e não pela ordem, isto é, por pessoa individual, por
"mim-eu", todos os egos sendo iguais, para finalmen-
te conduzir à transformação dos Estados Gerais em
Assembléia Nacional Constituinte depois que um
certo Juramento do Jeu de Paume* tivesse contraído
essa coisa heterogênea identificada sob o nome de
Revolução Francesa - que passou, antes mesmo do
Terror, por um parri-regicídio, eu diria mesmo um
parregicídio. Jamais se poderá responder sem álibi
à angustiante questão de saber se, convocados por
um rei, os Estados Gerais foram ou não o prelúdio
fatal ao parregicídio, o primeiro gesto de cruel enca-
minhamento do rei à morte, o pai da nação, ou, ao
contrário, o último esforço, o derradeiro ajuntamen-
to de todas as forças que ainda se esforçavam, em

* Refere-se às reuniões dos deputados do Terceiro Estado naquela


sala, depois das ameaças do rei de cassar suas deliberações e do
fechamento da sala dos Menus-Plaisirs. Foi ali, em 20 de junho de
1789, sob a proposição de Mounier, que eles prestaram juramento
solene de "jamais se separar e juntar-se por toda parte onde as
circunstâncias o exigirem até que a constituição do reino seja es-
tabelecida e confirmada em fundamentos sólidos". [N. da T.]

50
vão, em prevenir, sob a ameaça do parregicídio, o
cruel Terror. Ir-se-ia decapitar o rei ou salvar sua
cabeça? Ir-se-ia erigi-lo em decapitando-a ou reerigi-
la, ressuscitá-lo, para além do ano 2000? Quem pre-
tenderá, seriamente, que nossa república não é
monárquica e que a democracia moderna, tal como
a conhecemos, ultrapasse um princípio monárquico
e uma referência fundadora a um príncipe, a um
princípio de soberania? Ir-se-ia reerigir a função
patriarco-monárquica de maneira tão interminável e
infinita quanto essa análise dita finita-infinita? Nun-
ca se saberá. Por definição, não se saberá jamais se
os Estados Gerais, no momento de sua primeira con-
vocação, estavam destinados a perder ou a salvar a
cabeça do rei, e pouco importa, sem dúvida, porque
de toda maneira os dois gestos, perder ou salvar, con-
tinuam indissociáveis. Eles inscrevem nos conceitos
de soberania e de crueldade uma ambigüidade tão
irrelevável quanto o próprio auto-imunitário. É tar-
de demais, mesmo para a questão. Eis aí, talvez, a
significação última de todo parregicídio, de todo Édi-
po e de todo totem-e-tabu, de toda instauração re-
publicana ou democrática de igualdade dos irmãos
depois de qualquer parregicídio: é muito tarde, não
mais álibi, o parregicídio aconteceu sem ter aconte-
cido, quer ele tenha havido ou não, antes de toda
questão, antes de toda questão a seu respeito, a res-

51
peito do que foi sua véspera e do que poderia ter
sido. Muito tarde, quer dizer, a Revolução pôs fim à
própria possibilidade dessa questão. Mais precisa-
mente, é isso o que se chama revolução e é o signo
pelo qual se reconhece que ela aconteceu. Isso, sem
dúvida, se pode dizer de qualquer acontecimento em
geral, do que chega e de quem chega, da chegança do
chegante que é sempre uma revolução. Esta, o even-
to, o quem e o quê do que chega faz perigar anteci-
padamente a questão que a seu respeito já chega
tarde demais. É muito tarde, indelevelmente tarde
demais para a questão. Diria o mesmo, mutatis
mutandis, da revolução psicanalítica, que já aconte-
ceu e resta indelével. Diria o mesmo de todas as fi-
guras e nomes do pai que ali presidiram arriscando
nisso sua cabeça, perdendo-a e salvando-a ao mes-
mo tempo, morrendo e sobrevivendo numa só vez,
como tantos espectros incansáveis ocupando por tur-
nos ou simultaneamente não apenas dois mas 2 + n
corpos do rei. A psicanálise é indelével, sua revolu-
ção é irreversível - e, no entanto, como civilização,
ela é mortal.
Ninguém poderá jamais dizer se o momento
próprio dos Estados Gerais estava, em si mesmo, em
sua instância original, destinado a perder ou a salvar
a cabeça do rei. E se o próprio rei, convocando os
derradeiros Estados Gerais, voltando a crueldade

52
contra ele mesmo, não terá assinado, de próprio pu-
nho, sua sentença de morte. Talvez como Freud de-
cidindo que não tomaria a direção da IPA*, porque
assim ele erigir-se-ia (foi apenas um primeiro exem-
plo na história da psicanálise) em mestre absoluto,
todo-poderoso e impotente, impotente em sua oni-
potência de soberano, antecipadamente decapitado
e ressuscitado. Mais de dois séculos depois, os Es-
tados Gerais da psicanálise estão destinados a sal-
var ou a perder um Rei ou um Pai da pátria? Qual
rei, qual pai, qual nação? Será muito tarde para tal
questão? Estarão destinados, sem sabê-lo, estes Es-
tados Gerais aqui, a consagrar a morte do Pai ou a
salvar a cabeça do Pai - ou, ainda, terceira hipótese,
a começar a pensar o que está em jogo? Ou mais ain-
da, mais confusamente, seria esse o preço a pagar
por sua originalidade, os três ao mesmo tempo? E,
então, transposição inevitável, quem seria aqui o
rei ameaçado ou o rei suicida? O que seria um par-
regicida, sem se falar de Terror, em psicanálise?

* Slgla em Inglês da lnternatlonal Psychoanalytic Association, cuja


fundação foi decidida em 1910 durante um segundo congresso so-
bre pslcanállse em Nurenberg, e o primeiro tinha sido em 1908 em
Salzburgo. "Deixei que elegessem C. G. Jung como primeiro pre-
sidente, Iniciativa bastante Infeliz, como se revelou mais tarde", es-
creverá Freud em Minha vida e a ps/canál/sa. O terceiro congresso,
em Weimar, 1911, foi precedido pela dissidência de Adiar e segui-
do pela ruptura de Jung. [N. da T.]

53
Nós somos alguns, aqui, a ter insistido no fato
de que a psicanálise, como ciência - e se ela quer ser
também uma ciência teórica, uma instituição e uma
comunidade científicas -, é a única a engajar de ma-
neira intrínseca o nome próprio de seu fundador,
numa lógica de filiação transferencial que ela preten-
de poder analisar e da qual ela justamente produziu
o conceito. Dir-se-á, aqui, que o nome de Freud, o
nome de uma psicanálise ainda freudiana é, sob essa
forma literal ou sob formas metonímicas mais sutis,
a jogada do parregicídio auto-imunitário por provo-
car, por evitar ou por pensar? Esta questão não se li-
mita a tal ou qual morte de Freud. A sobrevida, como
uma crueldade em tomo de si mesma, consiste sem-
pre em suportar mais de uma morte, e isso já em
vida, mesmo que tal ou qual de suas mortes pareça
mais significativa que a outra, por exemplo aquela
que Elisabeth Roudinesco chama de morte de Freud
na América. "Freud morto na América", diz ela em
seu último livro. Eu faço alusão aos Estados Unidos
para indicar virtualmente isso que deveria ser uma
volta mais insistente sobre o que esse nome de país
indica para nós, aqui, hoje, quer se trate da globali-
zação em curso - na qual a hegemonia americana é
ao mesmo tempo evidente e cada vez mais critica-
da, digo, vulnerável -, quer se trate da língua anglo-
americana em trânsito para ser, irresistivelmente, a

54
única língua efetivamente universal, quer se trate do
mercado em geral, da teletécnica, do princípio de so-
berania estado-nacional que os Estados Unidos pro-
tegem de maneira intratável quando se trata da sua
e limitam quando se trata da dos outros, países me-
nos potentes (cf. Arendt)*, quer se trate do destino
da psicanálise freudiana, cada vez mais relegada ao
ostracismo nos EUA, ou ainda, e sobretudo - vejo nis-
so um índice dos mais significativos -, quer se trate
da crise convulsiva que esse país atravessa quanto à
pena de morte. Haveria muito o que dizer, aqui, so-
bre a história passada, recente e presente desse pro-
blema, notada.mente nos Estados Unidos. Mesmo
afirmando muito rapidamente que, enquanto ne-
nhum discurso psicanalítico conseqüente trata (em
meu conhecimento, ele não o fez ainda) do proble-
ma da pena de morte e da soberania em geral, do
poder soberano do Estado sobre a vida e a morte do
cidadão, isso manifesta uma dupla resistência, e
aquela do mundo à psicanálise e aquela da psicaná-
lise a ela mesma bem como ao mundo, da psicanálise à

• Ref. a Hannah Arendt (1906-1975), filósofa americana de origem


alemã, discípula de Heidegger e Karl Jaspers. Fugiu ao nazismo
e, depois de breve estada na França, instalou-se nos EUA em 1941.
Entre seus livros, destacam-se As origens do totalitarismo e
Eichmann em Jerusalém, que criou multa polêmica por sua teori-
zação da banalização do mal. [N. da T.]

55
psicanálise como ser-no-mundo. Desse imenso e ur-
gente problema da pena de morte, em sua nova fase,
posso aqui reter um sinal. Eu o escolhi em razão do
duplo motivo da soberania e da crueldade que deci-
di privilegiar. Foi porque a pena de morte foi julga-
da "cruel", "a cruel and unusual punishment" que ela
foi julgada, pela Corte Suprema dos Estados Unidos,
incompatível com duas emendas da Constituição
americana e suspensa em sua aplicação em 1972
(uma dessas emendas condenando os "cruel and
unusual punishments"). As execuções foram retoma-
das cinco anos depois, no ritmo monstruoso que vo-
cês sabem, quando alguns Estados dos Estados
Unidos julgaram, com a concordância da Corte Su-
prema, que a injeção letal não era "cruel". Isso ape-
sar de tantas convenções internacionais sobre os
direitos do homem que, também elas, num grande
número de versões equívocas, sem jamais violar a so-
berania dos Estados, denunciam, mas sem proscrevê-
la, a pena de morte como tortura "cruel". Nessa história
toda, da Constituição americana às modernas decla-
rações internacionais que venho de lembrar, como
ainda no discurso da doxa comum de há séculos, an-
tes e depois de Sade, é a obscura palavra crueldade
que condensa todo o equívoco. O que quer dizer
"cruel"? Dispõe-se, dispunha Freud, de um concei-
to rigoroso dessa crueldade sobre a qual ele tanto fa-

56
lou, assim como Nietzsche (quer se trate da pulsão
de morte, da agressão ou do sadismo etc.)? Onde co-
meça e onde termina a crueldade? Uma ética, um di-
reito, uma política, poderiam eles pôr um fim nisso
- e o que é que a psicanálise teria a nos dizer a res-
peito disso? Chamo, de passagem, a atenção devo-
cês para o traço de uma aparente coincidência, na
verdade um fato que não creio fortuito, mas mere-
cedor de longas e pacientes análises. Ainda que não
se tenha até hoje um discurso psicanalítico como tal,
discurso psicanalítico majoritário ou estatutário, nem
discurso de Freud, criticando expressamente a pena
de morte e o princípio estado-nacional, acontece que,
com a notável exceção dos Estados Unidos, única
democracia de tipo ocidental - e dominada pela cul-
tura cristã - a manter a pena de morte e a continuar
intratável sobre sua própria soberania, todos os Es-
tados da velha Europa, berço da psicanálise, aboli-
ram ao mesmo tem-po a pena de morte e iniciaram um
processo ambíguo que, sem abolir a soberania esta-
do-nacional, expõe-na em todo caso a uma crise ou
uma contestação sem precedente.

Antes de questionar a resposta de Freud a Eins-


tein, tive de fazer referência ao último livro de Eli-
sabeth Roudinesco e ao que ela diz da América,
mesmo que não aborde esses temas (crueldade, so-

57
berania, pena de morte etc.). Importa não dissimu-
lar o que estes Estados Gerais devem às premissas,
aos trabalhos e aos trajetos, oh quão diferentes, mas
aqui não por acaso aliados, de Elisabeth Roudines-
co e de René Major. Estes, junto com todos aqueles
e todas aquelas que, numa admirável colegialidade
sem hierarquia, orientaram os comitês dos Estados
Gerais - cada um e cada uma com sua história, sua
trajetória, sua obra própria -, eu não os nomeio por
amizade, por polidez obrigatória, por reconhecimen-
to de agradecido ou para obedecer, por complacên-
cia convencional, a algum rito de hospitalidade.
Deve-se, aqui, não somente por honestidade respon-
sável, mas por lucidez analítica e política, analisar,
apontar mesmo, em tantos trabalhos tão diferentes,
mas cruzados, em sua situação no interior ou ao lado
do campo analítico mundial, nas interpretações, nos
engajamentos, as alianças políticas e teóricas contraí-
das há tempos puderam tomar possível e necessá-
rio o estabelecimento destes Estados Gerais. Não se
compreenderia a gênese deste encontro inaudito,
nem mesmo o nome Estados Gerais se, por ficção,
por pudor ou por desconhecimento, se evitasse le-
var em conta, ainda que para discuti-los, tudo o que,
há tempos, têm de fôlego as pesquisas, as publica-
ções e os engajamentos de Major, de Roudinesco e
de todos os membros dos dois comitês de prepara-

58
ção, o francês e o internacional. Refiro-me aqui ao
que há de legível em seus livros, através de seus li-
vros, em suas tomadas de posição ético-político-ins-
titucionais, nas afinidades e nos conflitos que eles
determinam, dentro e fora das comunidades psi-
canalíticas, na França e fora da França. Apesar do
que possa distinguir ou separar as posições e as
obras de todos estes e todas aquelas que tomaram a
iniciativa destes Estados Gerais, o que deveria ser
analisado como um dos sintomas, dos segredos, dos
segredos públicos do evento do qual falo, é sua as-
sociação, aqui, seu acordo, a rede de solidariedades
nacionais e internacionais pela qual seu trabalho veio
a se inscrever e que carrega esta causa comum. Não
prestar a necessária atenção a essa situação e suas
motivações sob o pretexto de que, de direito, estes
Estados Gerais teriam espontaneamente oferecido
sua lei, de maneira auto-nomos, sob o pretexto de que
eles seriam autoconvocados e não heteroconvocados,
tudo isso seria, acho, uma falha política, uma dene-
gação ou, pior, uma demissão analítica. Como uma
autêntica autonomia (igualitária e democrática) se
institui, e deve fazê-lo, a partir de uma hetero-nomia
que sobrevive ainda ao que lhe sobrevém, a partir
de uma lei do outro, como vinda do outro sobre-vi-
vente, eis aí uma das formas da questão "que fa-

59
zer?*", tal como eu gostaria, sem álibi, levá-la para
além de toda soberania e de toda crueldade possí-
vel. Esta questão não é estrangeira àquela do
parregicídio.
Venho de dizer "segredo público". O juramen-
to do Jeu de Paume foi público. Ele se comprometia
a não debandar antes de ser votada uma constitui-
ção, e vocês se perguntariam qual constituição, de
qual nova Carta vocês tomariam a responsabilidade
antes de se separar, de que novas instituições, de que
formas de transição ou de transmissão, em qual lín-
gua, por qual poder estatal ou transestatal.
Ah, os juramentos! A força performativa dos ju-
ramentos e das promessas! Ah, a fé jurada! Ah, os
perjúrios! Ah, a fatal crueldade dos perjúrios! Para
selar a primeira comunidade institucional da psica-
nálise, de maneira secreta e independentemente da
fundação pública da Sociedade Internacional de Psi-
canálise, pouco depois dela, houve também juramen-
to, fé jurada e anéis, mais de dois, sete, finalmente,
para engajar o Comitê. Sete anéis, sete vezes uma só
vez por todas, cada vez um entalho grego - nem

* Que fazer? é um dos tltulos mais conhecidos na obra de Lênin,


que tem como subtítulo "Problemas candentes do nosso movimen-
to'', publicado em 1902. Nele, o revolucionário russo expõe suas
idéias para a uníflcaçao num só partido dos círculos marxistas dis-
persos. [N. da T.]

60
egípcio, nem judeu -, provindo de uma coleção de
Freud: uma cabeça de Júpiter! Eu renunciei, por eco-
nomia, a fazer girar toda essa conferência em círcu-
los em tomo do contorno desse anel. Ou melhor, desses
anéis, e do que eles se tomaram, quer tenham sido
perdidos, confiados em herança ou voltado para seu
estojo. É preciso levar a sério, na psicanálise e alhu-
res, essa questão do segredo, em suas implicações éti-
cas e políticas, lá onde ela delimita a autoridade
mesma e o poder, a legitimidade do político - não
somente do político em geral, de seu direito de ve-
lar sobre a vida e a morte, a consciência, as trocas
(econômicas ou não) das pessoas cidadãs, mas mes-
mo do político no interior da instituição analítica. O
segredo profissional da psicanálise não deve ser - em
todo caso ele pretende não ser - um segredo pro-
fissional como um outro. Inútil precisar, aqui - vo-
cês conhecem melhor do que eu-, as conseqüências
sócio-econômico-políticas dessa vocação ao segredo,
quer seja ou não respeitada. E ainda por cima as re-
lações entre o Estado (polis, politeia, polícia e políti-
ca) e vocês. E nós. Insisto nesse episódio do Comitê
que até se pode ter por anedótico ou inessencial, por-
que no momento dos 7 anéis Freud reconhece, cla-
ro, que existe 11 algo de infantil" e talvez um
''elemento romântico nessa concepção", mas ele exi-
ge que 11 a existência e a ação desse Comitê" fiquem

61
"absolutamente secretas". Pode-se dizer que de mil ma-
neiras esse segredo foi mesmo constitutivo e alego-
ricamente representativo disso que, na psicanálise,
continua e talvez deva continuar rebelde à res publi-
ca do político, mesmo do democrático, quer dizer, em
todo caso, de uma democracia fundada, por algum
tempo ainda, num conceito estatista, estado-
nacionalitário, soberanista e, portanto, cidadão do
político - mas também rebelde à publicidade de sua
própria institucionalização, porque o Comitê secre-
to continuava exterior e inacessível à Associação In-
ternacional. Pode-se perguntar o que Freud teria
pensado dos Estados Gerais mundiais da psicanáli-
se. Em 1913, antes da primeira guerra chamada mun-
dial, todos os discípulos de Freud eram europeus.
Tanto quanto aquela do Comitê secreto, a cena da IPA
é essencialmente incompatível com uma idéia de Es-
tados Gerais. Essa incompatibilidade pode ser des-
crita como uma alergia ao seu outro mesmo.
Por trás da cena da instituição e dos estatutos,
outros poderes, secretos ou não, estão sempre a tra-
balhar. Para voltar um instante aos Estados Gerais
de 1789: sob a habilitação estatutária, a saber, o po-
der oficial do rei, sob os dois corpos de um rei ele
próprio autorizado por Deus o Pai do Cristo, pode-
se sempre perguntar quem, na verdade, convocava
aos Estados Gerais; Como também se pode ainda

62
perguntar, aqui mesmo, hoje. Trata-se de uma
heteroconvocação de alguns pelo outro? Ou de uma
autoconvocação espontânea de forças que ainda não
têm nome? Ou de uma heteroconvocação pela força
de um outro ainda inominável, de visitantes inespe-
rados e de chegantes imprevisíveis ou não identifi-
cáveis? O quê de hierarquia e de heteronomia neste
negócio? E o que é que a rede Web des-hierarquisa,
afetando tanto a cena analítica quanto aquela da
transferência e da contratransferência? Essa questão
levaria a uma série de outras, a mesma e tantas ou-
tras: quem convoca quem aos Estados Gerais, desta
vez mundiais, mas sempre na França e em Paris,
numa França pós-revolucionária? Quem os convoca,
todavia, para além do Estado-Nação? e dos Estados
Gerais da psicanálise, mais de dois séculos mais tar-
de, um século depois do nascimento da psicanálise
e a Traumdeutung*, num momento em que se está no
direito de se perguntar se o que se chama psicanáli-
se supõe de alguma maneira, inscrita no coração de
sua própria possibilidade, a memória, o arquivo
consciente ou inconsciente, da Revolução Francesa
e de algumas outras revoluções, todas européias, que
se seguiram em fevereiro, depois junho de 1848, logo

* A lnterpretaçSo dos sonhos, cuja primeira edição data de 1900.


[N. da T.]

63
depois da Comuna, depois em 1917. Enorme memó-
ria sem fundo em que as piores crueldades, a cruel-
dade de um parregicídio que ainda resta por pensar,
a crueldade do Terror, a crueldade da pena de mor-
te em escala de massas, a crueldade de todas as tor-
turas e de todas as condenações à morte dos
amanhãs da Revolução de 17, a lista não concluída
das crueldades as mais encarniçadas, shoah, genocí-
dios, deportações em massa etc., avizinha-se indis-
sociavelmente - como se fossem dois processos
inseparáveis - da invenção dos direitos do homem,
a fundação dos fundamentos do direito internacio-
nal moderno em vias de transformação, do qual de-
rivam a condenação dos crimes contra a humanidade
(imprescritíveis na França desde 1964) e a condena-
ção do genocídio, bem como a promessa, desde o 4
Brumário do ano IV, pela Convenção, de abolir a
/1
pena de morte na República francesa, datada do dia
da publicação geral da paz". Esse dia de abolição da
pena de morte só chegaria à França perto de dois sé-
culos mais tarde, em 1981, e isso dá o que pensar so-
bre a escala histórica e do que pode significar a /1

publicação geral da paz", na Europa, na União Eu-


ropéia, lugar de nascimento da psicanálise (onde a
pena de morte está abolida), antes que nos Estados
Unidos, o último dos países ocidentais, de filiação
européia e cristã, que mantém e aplica maciçamen-

64
te, com uma crueldade cada vez mais obscena, in-
justa e bárbara, uma crueldade já não sangrenta, a
"lethal injection".
Multiplico à vontade as alusões aos Estados
Unidos, onde o destino da psicanálise joga, hoje em
dia, sua partida mais crítica e, pode ser, em mais de
um front, a mais decisiva. Na mata folhuda, espes-
sa, espinhosa das ligações perigosas entre a psicaná-
lise e a América do Norte, destaco uma passagem
pouco citada de "O futuro de uma ilusão"*. Aí Freud
compara o povo americano ao povo eleito, àquele
que se acredita escolhido por Deus o pai único, des-
de esse "núcleo paternal" que Freud lembra estar
"dissimulado, mas presente em todas as figuras
divinas". Cada povo volta-se para os "começos his-
tóricos da idéia de Deus" desde que esse povo pre-
tenda representar a justiça ideal, aquela que
recompensa o bem, castiga o ma1, pelo menos depois
da morte (o que facilita e legitima a pena de morte),
junta a parte invisível do espectro à parte visível etc.
Freud então acrescenta:
Desde que Deus era o único, as relações do ho-
mem com ele podiam recobrir a intimidade e a inten-
sidade das relações da criança com o pai. Quem tinha

* 1927. [N. da T.]

65
feito tanto pelo pai quereria também ser recompensa-
do por isso; pelo menos ser a única criança amada pelo
pai, o povo eleito. Bem mais tarde, a pia América de-
veria anunciar a pretensão de ser God's own country, e
no que tange a uma das formas pelas quais o homem
adora a divindade, essa pretensão é justificada.6
Pode haver aí, de um povo eleito, o outro, de um
Pai outro, a matriz de uma eficaz decifração da glo-
balização ou disso que alhures eu já havia chamado
mundialatinização da religião em curso, disso que, em
ato ou em potência, constitui e ameaça as hegemo-
nias. Remeto, também, em poucas palavras e por
todas as razões que citei, a pelo menos duas das
obras de René Major a esse respeito essenciais: De
l'élection7 (1986) e Au commencement - la vie la mort
(1999). Sublinho que, no primeiro capítulo de De
l'élection, "De la fondation", ele analisa o delírio de
eleição, isso que, diz ele, "a política faz à psicanáli-
se" e o que "a psicanálise faz ao político". No
capítulo "Le recommencement", Major comenta por
duas vezes, pelo menos, textos do Freud de 1914-
1915 onde este se serve - também eu sublinho - da
palavra crueldade; e isso em condições, que julgo ain-

6. L'avenlr d'une il/us/on, tr. fr. M. Bonaparte, PUF, 1971, p. 27. Ver
original alemão.
7. René Major, De l'élection, Aubier 1986.

66
da dever sublinhar, a ambigüidade essencial e orga-
nizacional. De um lado, uma ética e uma política se
implicam na correspondência a uma condenação e
tendem, portanto, a uma eliminação da crueldade,
claro, mas ao mesmo tempo, de outro, dado o cará-
ter originário e irrevogável da pulsão de morte ou
da agressividade, tanto quanto a pulsão de poder -
e, portanto, da soberania -, nenhuma ilusão se pode
vislumbrar quanto à erradicação do mal. De onde
uma figura - eu diria uma lição - ao mesmo tempo pro-
gressista e pessimista, ainda fiel e já infiel a um certo
espírito das Luzes. Eis as passagens que Major lem-
bra - citarei outras análogas mais tarde, na resposta
a Einstein, e na trilha de "Além do princípio de pra-
zer", onde se inspira estreitamente a carta a Einstein.
Primeira citação:
Numa carta endereçada a Frederik van Eeden*
alguns meses depois do começo da guerra, Freud ob-
serva a seu correspondente que "as crueldades [eu su-
blinho] e as injustiças pelas quais são responsáveis as
nações as mais civilizadas, a maneira diferente pelas
quais elas julgam suas próprias mentiras e malfeitos
em comparação com seus próprios inimigos" mostram
a que ponto a psicanálise tem razão ao inferir de suas
observações que os impulsos mais primitivos do ho-

• 1914. [N. da T.]

67
mem não serão jamais abolidos em cada um de nós e
que estamos sempre prontos a nos conduzir de manei-
ra enganosa ou estúpida à sua menor ressurgência. 8
Em seguida ele vai, mais precisamente, ao lia-
me indissociável dessa crueldade com a soberania do
Estado, com a violência do Estado, com o Estado que,
longe de combater a violência, monopoliza-a. Este
será, alguns anos mais tarde, o tema de Benjamin*
em Crítica da violência (Zur Kritik der Gewalt) em tor-
no da qual elaborei algumas proposições sobre direi-
to e justiça em Force de loi. Esse monopólio da
violência faz um*a.com o motivo da soberania. É as-
sim também aquele que sempre fundará a pena de
morte, o direito pelo Estado, o direito pelo soberano
de punir com a morte. Referindo-se de perto às Con-
siderações atuais sobre a guerra e sobre a morte, Major
escreve - o que é minha segunda citação:
Dois motivos de desilusão, provocados pela guer-
ra de 1914, serão ressaltados. Um, o pouco de morali-
dade dos Estados que não deixam de posar, por aí,
como garantes dos valores morais. Dá a pensar que

8. René Major, idem, p. 88-89.


• Walter Benjamin, filósofo alemão (1892-1940). morto nos Pireneus
durante fuga aos nazistas. Fez parte da chamada Escola de Frank-
furt. [N. da T.]
*• Grifo da Tradução.

68
em tempos de paz o Estado não proíbe a violência para
aboli-la, mas para monopolizá-la e que em tempos de
guerra ele se subtrai sem vergonha aos tratados e con-
venções que o ligam a outros Estados pedindo a seus
cidadãos a aprová-lo em nome do patriotismo. O ou-
tro motivo é conseqüência do primeiro. Ali onde a co-
munidade não levanta objeção à conduta do Estado, as
pessoas se livram a atos de crueldade [eu sublinho] e
de perfídia, de traição e de barbárie tão incompatíveis
com seu grau de civilização que se acreditaria impos-
síveis.9
Por que falar da parte a mais crítica e a mais de-
cisiva que se joga aqui, hoje, em mais de um front,
para a psicanálise notadamente nos Estados Unidos?
Se há um traço comum a todos os Estados Gerais da
história, será aquele que todos os historiadores não
deixam jamais de lembrar: os Estados Gerais são
sempre convocados em momentos críticos, quando
uma crise política pede uma deliberação, e de início
uma liberação da palavra em vista de uma decisão
de exceção que deveria introduzir o futuro. Assim,
não se evitará a questão: qual é a crise da psicanáli-
se mundial hoje? Ou ainda, ou antes, qual é a crise
da globalização para a psicanálise? Qual é sua crise
específica? Será somente, o que não creio, uma crisis,

9. lbid., p. 90-91.

69
uma crise passageira e ultrapassável, uma Krisis da
razão psicanalítica como razão, como ciência euro-
péia ou como humanidade européia (para dizer mais
do que parodiar o título de Husserl*)? É uma difi-
culdade decisível e pedindo uma decisão, um krinein
que passaria, ainda, por uma reativação das origens?
São questões que só se podem elaborar supondo sa-
ber o que é ou quer ser, hoje, especificamente, em sua
regularidade irredutível, a psicanálise ou a razão psi-
canalítica, e a humanidade do homem psicanalítico,
ou, mais ainda, o direito do homem à psicanálise. Em
quais critérios de reconhecimento fia-se ela? E quan-
to à crise, esse saber seria o saber sobre o que põe a
psicanálise em crise, certo, mas também que revolu-
ção psicanalítica põe ela mesma em crise. As duas
coisas parecem, aliás, tão indissociáveis quanto duas
forças de resistência: resistência à psicanálise, resis-
tência auto-imunitária da psicanálise a seu entorno
como a ela mesma. É em seu poder de pôr em crise
que a psicanálise está ameaçada e entra, portanto, em
sua própria crise. Quando perguntado sobre o que
não vai numa globalização que começou mais ou
menos após a Primeira Guerra Mundial e nos tais

* Edmund Husser!, filósofo alemão (1859-1938). O titulo do livro a


que Derrida se refere é A crise das ciências européias e a feno-
menologia transcedental (1936). [N. da T.]

70
projetos de direito internacional, nos tais apelos ao
abandono da soberania, pela constituição dessa So-
ciedade das Nações que prefiguravam, então, as Na-
ções Unidas em sua impotência mesma de pôr fim à
guerra e às exterminações mais cruéis, é sempre em
tomo da palavra "crueldade" e do sentido da cruel-
dade que a argumentação de Freud se faz ao mesmo
tempo a mais política e, em sua lógica, a mais rigo-
rosamente psicanalítica. Não que o sentido da pala-
vra "crueldade" (Grausamkeit) seja claro, mas ela
desempenha um papel operatório indispensável, e é
por isso que eu faço recair sobre ela a carga da ques-
tão. Recorrendo mais de uma vez a essa palavra,
Freud a inscreve numa lógica psicanalítica de pul-
sões destruidoras indissociáveis da pulsão de mor-
te. Ele faz mais de uma vez alusão ao "prazer
tomado na agressão e na destruição" (Die Lust an der
Aggression und Destruktion}, às "inumeráveis cruelda-
des da história" (Grausamkeiten der Geschichte), às
"atrocidades da história" (Greueltaten der Geschichte),
às "crueldades da Santa Inquisição" (Greueltaten der
hl. Inquisition ).10 Servindo-se mais uma vez, como em
"Além..." da palavra "especulação", aqui associada
àquela de "mitologia", ele afirma que essa pulsão de

10. Pourquoi la gue"e?, op. clt., p. 76-77.

71
morte, que trabalha sempre a carregar a vida, pela
desagregação, à matéria não-vivente, toma-se pulsão
de destruição quando ela se volta, com a ajuda de
órgãos particulares (e as armas podem ser sua
prótese), para o exterior, para os "objetos".
Será que - e, então, como - essa lógica pode in-
duzir, senão fundar uma ética, um direito e uma
política capazes de medir-se de uma parte com a
revolução psicanalítica deste século, de outra, com
os eventos que constituem uma mutação cruel da
crueldade, uma mutação técnica, científica, jurídi-
ca, econômica, ética e política, e étnica e militar e
policial desses tempos? O que dá a pensar more
psychanalytico seria, então, a mutação mesma da
crueldade - ou pelo menos as figuras históricas no-
vas de uma crueldade sem idade, tão velha e sem dú-
vida mais velha que o homem. Revolução psicanalí-
tica, sim, houve uma há um século exatamente.
Tempo bem curto, tempo bem longo. Seria necessá-
rio analisar de perto a resposta de Freud a Einstein
e os motivos que a articulam com outros textos de
Freud. À falta de poder fazê-lo aqui, isolo o esque-
ma de uma estratégia singular na articulação freu-
diana. E digo exatamente articulação, o que supõe lia-
me e dissociação: articulação entre psicanálise de
uma parte; ética, direito, economia e política de ou-
tra. Tratar-se-ia de esboçar os limites, ou melhor, o

72
horizonte (o horizonte é um limite) como fundo so-
bre o fundo do qual essa originalidade se levanta.
Esses limites, parece-me, ainda não foram pensados
por e desde isso que se chama psicanálise.
Tratando, no começo, da relação entre o direito
e o poder (Recht und Macht), Freud propõe derivar
um do outro a partir de uma genealogia que remon-
ta à pequena horda humana, ao assassinato do
inimigo que satisfaz uma inclinação pulsional. A pas-
sagem da violência ao direito é a comunhão, a união
que faz a força, como diz ele em francês. O direito
provém do poder ou da violência da comunidade
que, monopolizando a força, se protege da violên-
cia individual. Força contra força, economia diferida
da força, eis aí o direito. É no decurso da análise des-
se processo que Freud observa que - verdade ainda
hoje - a Sociedade das Nações não obteve esse po-
der apropriado a uma nova união porque os Estados
separados não estão prontos para renunciar à sobe-
rania de seu próprio poder. Assim, não existe ainda
um verdadeiro direito internacional. É bastante in-
teressante o que Freud nota de passagem a propósito
da história do pan-helenismo, dos Estados cristãos
e do comunismo, mas só posso lembrar, aqui, que o
que ele afirma, na segunda parte de sua resposta, na
que chama glosa dos propósitos de Einstein, marca
a esperança pacifista e progressista, a responsabili-

73
dade a ser assumida nesse sentido, mas também a
ausência radical de ilusão dada a existência irrevo-
gável de pulsões de ódio e de destruição. Servindo-se
por diversas vezes da palavra 11 crueldade", de pul-
são de agressão, de ódio e de pulsão de morte, Freud
denuncia uma ilusão: aquela da erradicação das pul-
sões de crueldade e das pulsões de poder e de
soberania. O que é preciso cultivar (porque é preciso
que um 11é preciso" se anuncie e, assim, o liame de
uma obrigação ética, jurídica, política) é uma tran-
sação diferencial, uma economia do meandro e da
diferença, a estratégia, pode-se mesmo dizer o mé-
todo (porque trata-se, aqui, de caminho, de
trilhamento e de rota) do encaminhamento indireto.
Uma via indireta, sempre indireta, de combater a
pulsão de crueldade. A palavra indireta articula-se
como que a charneira dessa progressividade sem ilu-
são. Freud pensa, como o Nietzsche da Genealogia
da moral., que a aueldade não tem contrário, que ela está
ligada à essência da vida e da vontade de poder.
Quando falo, ainda uma vez, na dupla esteira de
Nietzsche e de Freud, de uma crueldade que não te-
ria contrário ou que, em todo caso, seria irredutível,
de tal sorte que todo contrário teria somente a com-
por-se com ela, quero dizer que: existem somente
diferenças de crueldade, diferenças de modalidade,
de qualidade, de intensidade, de atividade ou de reati-

74
vidade na mesma crueldade. Freud escreve, por
exemplo (mas poder-se-ia multiplicar tais exemplos):
Não leva a nada querer abolir os pendores agres-
sivos dos homens.[ ... ] Os bolcheviques também espe-
ram poder fazer desaparecer a agressão humana
garantindo a satisfação das necessidades materiais e
instaurando, além disso, a igualdade entre aqueles que
fazem parte da comunidade. Tenho comigo que isso é
ilusão. (Ich halte das für eine lllusion). 11
Depois de ter explicado por que o ódio não de-
saparece e que não se trata de erradicar as pulsões
de agressão cruel, Freud preconiza um método, na
verdade uma política de diversionismo indireto: fa-
zer de tal sorte que essas pulsões cruéis sejam des-
viadas, diferidas e não encontrem sua expressão na
guerra. E acrescenta:
A partir de nossa mitológica doutrina das pulsões,
encontraremos facilmente uma fórmula indicando as vias
indiretas para combater a guerra (indirekte Wege zu
Bekii.mpfung des Krieges: a palavra indireta está sublinha-
da na versão inglesa que apareceu simultaneamente.)
Indireção, astúcia do meandro (Unweg), nisso
consiste - para dizê-lo brevemente, mas não é o es-
sencial do que importa aqui - o fazer jogar a força

11. Pourquol la guerre?, op. cít., p. 78.

75
antagonista de Eros, o amor e o amor à vida, contra
a pulsão de morte. Existe, então, um contrário à pul-
são de crueldade mesmo que esta não conheça fim.
Esse estratagema indireto do antagonismo entre Ta-
natos e Eros opera de duas maneiras, quer dizer, cul-
tivando dois tipos de liames, e liames emocionais. De
início, aqueles que nos ligam ao amado, ao objeto do
amor, mesmo sem fins sexuais. A psicanálise, ajunta
Freud, não tem por que corar ao falar de amor, como
o faz a religião, com as mesmas palavras que Freud
cita sem lembrar que não são palavras de qualquer
religião ("Amarás o teu próximo como a ti mesmo").
Coisa mais fácil de dizer do que de fazer, assinala ele
sorrindo. Mas esse "como a ti mesmo" define o se-
gundo liame, o segundo tipo de ligadura ou de
obrigação que venha limitar o desencadeamento,
a desobrigação. Utilizando mais uma vez a pala-
vra "indireto" (Die anderen Weg einer indirekten
Verhinderung des Krieges", "another suggestion for the
indirect combatting of the propensity to war", "une
seconde invite à combattre indirectment le penchant à la
guerra"* 12, Freud propõe que se leve em conta a de-
sigualdade irrevogável e inata dos homens que os
divide em duas classes, as massas dependentes da-

• "Uma segunda convida a combater indiretamente o pendor pela


guerra." [N. da T.]
12. lbid., p. 79.

76
queles que seguem os guias (Abhiingige). Seria, pois,
necessário, educar uma camada superior de homens
de espírito independente, capazes de resistir à inti-
midação e cuidadosos da verdade, para que dirijam
as massas dependentes. Claro que o Estado e a Igre-
ja tendem a limitar a produção de tais espíritos. O
ideal, diz então Freud, e ele chega a falar de utopia,
seria uma comunidade cuja liberdade consistiria em
submeter a vida pulsional a uma "ditadura da razão"
(Diktatur der Vernunft, dictatorship of reason 13 ). A filo-
sofia freudiana de cultura, de civilização ou de his-
tória, nesta carta um tanto sumária, aliás, sempre
volta a este motivo: teleologia de um progresso por
deslocamento indireto e restrição das forças pulsio-
nais, portanto, de uma crueldade que, sendo indes-
trutível, produz a guerra ou o assassinato e pode
conduzir - é a palavra de Freud- à exterminação do
adversário. Quais são as arestas mais significativas
e mais problemáticas dessa progressividade e desse
racionalismo desassombrado, dessas novas Luzes
para o nosso tempo?
1. Primeiro, esse difícil conceito de indireção,
duma certa "irretitude", de um não-endireitamento
oblíquo, anguloso ou mediatizante. Esse conceito ao

13. Pourquoi la guerre?, op. cit., p. 79.

77
qual creio se deva prestar atenção sem abusar do tex-
to, não significa apenas o desvio, a astúcia estraté-
gica, a transação contínua com uma força intratável,
por exemplo, com a pulsão de crueldade ou de po-
der soberano. Ainda que Freud não o diga, sobretu-
do dessa maneira, o conceito de indireto me parece
levar em conta, na mediação do desvio, uma descon-
tinuidade radical, uma heterogeneidade, um salto na
ética (portanto, também no jurídico e no político) que
nenhum saber psicanalítico enquanto tal saberia im-
pulsionar ou autorizar. A propósito da polaridade
amor/ódio (que ele compara polidamente, para
Einstein, à polaridade atração/repulsão), Freud diz
claramente que, como a polaridade conservação/
destruição cruel, ela não deve ser entregue a julga-
mentos éticos que avaliem "o bem e o mal" 14 • O psi-
canalista, enquanto tal, não tem de avaliar ou
desavaliar, desacreditar a crueldade ou a soberania
sob um ponto de vista ético. Primeiro porque ele sabe
que não há vida sem a concorrência das duas forças
pulsionais antagonistas. Quer se trate de pulsão de
crueldade ou de soberania, o saber psicanalítico en-
quanto tal não tem nenhum meio, nem direito, de
condená-las. Ele é por esse aspecto e deve continuar,

14. lbid, p. 76.

78
enquanto saber, na neutralidade do indecisível. De
onde isso a que chamo "estados-da-alma" da psica-
nálise. Para passar à decisão é preciso um salto que
expulse fora do saber psicanalítico enquanto tal. Nesse
hiato, diria eu, abre-se a chance ou o risco da deci-
são responsável, para além de todo saber concernen-
te ao possível. Quer dizer que não há nenhuma
relação entre psicanálise e ética, direito ou política?
Existe, deve haver aí uma conseqüência indireta e des-
contínua: a psicanálise, enquanto tal, não produz ou
não causa nenhuma ética, nenhum direito, nenhuma
política, claro, mas trata-se de responsabilidade, nes-
ses três domínios, de levar em conta o saber psica-
nalítico. A tarefa é imensa e é tudo o que resta a fazer
- para os psicanalistas ou por quem quer que seja,
cidadão, cidadão do mundo ou metacidadão*, cui-
dadosos de responsabilidade (ética, jurídica, políti-
ca) -, é organizar esse levar em conta da razão
psicanalítica sem reduzir a heterogeneidade, o sal-
to no indecisível para além do possível, objeto do
saber e da economia psicanalíticas, incluído seu dis-
curso mitológico sobre a pulsão de morte e além dos
princípios. É nesse lugar difícil de cingir, no espaço
da indecisibilidade -portanto, da decisão aberta pela

Lembrando o Metaps/cologla, reunião de artigos de Freud dos anos


1910. [N. da T.]

79
descontinuidade do indireto - que a transformação
por vir em ética, direito e política deveria levar em
conta o saber psicanalítico (o que não quer dizer que se
busque nisso um programa) e que, reciprocamente, a
comunidade analítica deveria levar em conta a his-
tória, notadamente a história de um direito cujas
mudanças performativas recentes ou em curso não
lhe interessam - salvo exceção - nem para com ela
contribuem. Tudo isso, parece-me, fica por fazer, de
ambas as partes.
2. No mesmo momento em que lembra que não
há avaliação ética na descrição das polaridades pul-
sionais e que não existe sentido em querer se desem-
baraçar das pulsões destrutivas sem as quais a
própria vida cessaria, Freud continua, visivelmente,
a enraizar na vida, na vida orgânica, na economia
autoprotetora da vida orgânica - portanto num dos
pólos da polaridade -, toda a racionalidade ético-po-
lítica em nome da qual ele propõe submeter ou res-
tringir as forças pulsionais. Assim é que ele justifica,
pela vida, pela vida orgânica, o direito à vida (por-
tanto, implicitamente, a condenação não apenas da
guerra, mas da pena de morte - e vocês sabem que
é acrescentando aos direitos do homem o "direito à
vida" que várias convenções internacionais deste úl-
timo meio século se levantaram contra a crueldade
da pena de morte, mas de maneira implícita, sem

80
condená-la e sobretudo sem pressionar os Estados
soberanos nesse aspecto). Quanto ao direito à vida,
ao fato de que cada homem guarda um "direito so-
bre sua própria vida" 15 (jeder Mensch ein Recht auf sein
eigenes Leben hat), Freud o reconhece explicitamente
na carta a Einstein. Mas ele avança nesse argumen-
to com precaução. A questão continua em aberto a
seus olhos, a saber, se "a comunidade não deve ter
igualmente um direito sobre a vida do indivíduo".
Porque, precisa ele, "não se pode condenar todas as
espécies de guerra num mesmo grau. ..". Então ele se
volta para uma posição, que não busca justificar, pelo
direito ou pelo apelo à ética de uma razão pura prá-
tica ou de um imperativo categórico. Ele se volta sim-
plesmente sobre os dados factuais de um gosto
pessoal ou de uma natureza biológica, idiossincráti-
ca mesmo, sobre a constituição de cada um, em
suma, sobre o que cada um é capaz de fazer, na eco-
nomia do que lhe é possível. "Nós", diz Freud [e esse
nós reúne os homens que ergueram a "ditadura da
razão" acima das pulsões cruéis], somos pacifistas
porque, por razões orgânicas (aus organischen
Gründen), não podemos não sê-lo". Nossa rejeição à
guerra e à crueldade, acrescenta ele, não é somente

15. Pourquoi la guerre?, op. cit., p. 80.

81
intelectual ou emocional. "É, entre nós pacifistas,
uma intolerância constitucional, uma idiossincrasia
de alguma forma estendida ao extremo. E é claro que
os aviltamentos estéticos da guerra não têm uma par-
te pequena nesta nossa revolta, tanto quanto suas
crueldades" - [aquelas da guerra]16•

"Se minha exposição vos decepcionou, peço-vos


perdão". Estas são as últimas palavras de Freud a
Einstein no momento de saudá-lo cordialmente ("Ich
grüsse Sie herzlich und bitte Sie um Verzeihung, wenn
meine Ausführungen Sie enttauscht haben." "I trust you
will forgive me if what I have sai disappointed you.")
De minha parte, também pedindo perdão a vo-
cês por decepcioná-los e impacientá-los, precipito
minha conclusão de maneira secamente programá-
tica - telegráfica. E algébrica, isto é, hiperformaliza-
da. Não sei se o que me leva a expedir assim define
uma tarefa ou um horizonte para a psicanálise, nos
termos destes Estados Gerais. Trata-se, antes, para
mim, do que ainda resta a pensar, a fazer, a viver, a
sofrer, com ou sem gozo, mas sem álibi, para além
mesmo do que se pode chamar horizonte ou tarefa,
portanto, além do que continua não somente neces-
sário, mas possível. O que vou nomear, rapidamen-

16. lbid., p. 81.

82
te, é o que eclode o horizonte de uma tarefa, isto é,
excede a antecipação do que deve vir como possível.
Como dever possível. Para além de todo saber teóri-
co, portanto de toda constatação, mas também para
além de todo poder, em particular de toda institui-
ção performativa. O que vou declinar desafia a eco-
nomia do possível e do poder, do "eu posso". E
economia em todos os sentidos do termo, aquela da
lei do próprio (oikonomia) e a da domesticidade fa-
miliar, aquela do Estado soberano, do direito de pro-
priedade, do mercado, do capital, dos modos de
apropriação em geral, e mais amplamente de tudo o
que Freud chama também de economia psíquica.
Chamo a isso um além da economia, portanto, do
apropriável e do possível. Pode-se acreditar que a
economia é desafiada pela especulação dita "mito-
lógica" sobre a pulsão de morte e sobre a pulsão de
poder, portanto sobre a crueldade, como sobre a so-
berania. Na pulsão de morte, a saber, o além dos
princípios de prazer e de realidade, pode-se reconhe-
cer, com efeito, uma aparência de aneconomia*. E o
que é mais aneconômico, dir-se-á, do que a destrui-
ção? E do que a crueldade?

* Com o prefixo grego a- ou an-, no sentido de privação, negaçllo.


[N. daT.]

83
Na verdade, essa aneconomia é trabalhada por
Freud sem cessar para reintegrá-la, portanto levá-la
em conta, dar-lhe sentido, de maneira calculável,
numa economia do possível. E não se saberia
reprová-lo. É sempre a essa economia do possível
que ele conduz o saber e a ética, bem como o direito
e a política. Mesmo se se contempla o desvio pelo
indireto, e mesmo quando o indireto supõe um hia-
to, trata-se, se se segue a obliqüidade mais visível da
interpretação de Freud por Freud, de uma estratégia
do possível e, portanto, da condicionalidade econô-
mica. Apropriação possível como poder do "eu pos-
so" (I can, I may), mestria do performático que ainda
domina e, portanto, neutraliza (simbolicamente, na
ordem do "simbólico", justamente) o evento que ele
produz, a alteridade do evento, a chegada mesma do
chegante.
Ora, eu afirmaria que existe, é preciso que exis-
ta alguma referência para o incondicional, um incon-
dicional sem soberania, portanto sem crueldade,
coisa sem dúvida difícil de se pensar - é preciso para
que essa condicionalidade econômica e simbólica se
determine. Essa afirmação, que adianto, ela adianta-
se em si mesma, em avanço, sem mim, como a afir-
mação originária depois daquela, portanto, para além
da qual as pulsões de morte e de poder, a crueldade
e a soberania se determinam como "além" dos prin-

84
cípios. A afirmação originária, que de avanço avan-
ça-se, ela se presta antes que se dê. Não é um prin-
cípio, um principado, uma soberania. Ela vem, assim,
de um além do além, portanto, do para além da eco-
nomia do possível. Ela diz de uma vida, claro, mas
de uma vida outra que aquela da economia do pos-
sível, uma vida iro-possível, sem dúvida, uma sobre-
vida não simbolizável, mas a única que valha ser
vivida, sem álibi, uma vez por todas, a única a par-
tir da qual (repito: a partir da qual) um pensamento
da vida é possível. Da vida que ainda valha ser vi-
vida, uma só vez por todas. Justificar um pacifismo,
por exemplo, e o direito à vida, isto só pode se fazer
de maneira radical, a partir de uma economia da vida,
ou disso que Freud alega, nós o ouvimos, sob os no-
mes de constituição biológica ou de uma idiossincra-
sia. Isso só se faz depois de uma sobre-vida que não
deve nada ao álibi de qualquer além mito-teológico.
Essa afirmação originária do além do para além
se dá a partir de inúmeras figuras do incondicional
impossível. Estudei algumas alhures: a hospitalida-
de, o dom, o perdão - e, de início, a imprevisibili-
dade, o "pode ser", o "e se" do evento, a vinda e a
vinda do outro em geraL sua chegança. Sua possibi-
lidade se anuncia sempre como a experiência de um
iro-possível não negativo.
A exposição hospitaleira ao evento, à vinda, à
visitação do chegante imprevisível, não podemos fa-

85
zer disso o horizonte de uma tarefa, mesmo para a
psicanálise que, no entanto, detém algum privilégio
na experiência da vinda imprevisível do outro, a che-
gada do chegante. Mas o que pode, possa ser, tomar-
se uma tarefa, amanhã, para a psicanálise, para uma
nova razão psicanalítica, para novas Luzes psicana-
líticas, é uma revolução que, como todas as revolu-
ções, transigirá com o impossível, negociará o
não-negociável tornado não-negociável, calculará
com o incondicional como tal, com a incondiciona-
lidade inflexível do incondicional.
Acredito reconhecer, aqui, para essa revolução
da razão psicanalítica, a ordem heterogênea de três
instâncias - não ouso dizer três ordens ou três estados.
Ordens a conclamar, a reunir, depois a articular até
uma linha de desarticulação ou à margem externa de
uma inarticulação. Por comodidade, pelo menos, e
para pôr ordem nessas ordens, eu me serviria de três
categorias, de atos de linguagem aos quais já me so-
corri mais de uma vez até aqui: de uma parte, o cons-
tatativo (a saber, a ordem do saber teórico ou da
ciência como tal, a ordem da descrição neutra, a con-
sideração do que é de Jato como tal); de outra, o per-
formativo, que recobriria, aqui, com o poder ou a
possibilidade do /1 eu posso", ou a obrigação do /1 eu
devo" (fazer o que posso), com a ordem da promes-
sa, da fé jurada e, portanto, da lei, do simbólico, toda

86
a institucionalidade em geral, a responsabilidade éti-
ca, jurídica, política e, mais singularmente, psicana-
lítica.
Três instâncias, portanto, ou três estados.
1. Na ordem do constatativo, isto é, do saber teó-
rico e descritivo, que habitualmente se opõe ao per-
formativo, a psicanálise poderia no futuro levar se-
riamente em consideração, para ter nisso uma conta
rigorosa, como Freud prescrevia, ele próprio, a tota-
lidade do saber, em particular saberes científicos que
se mantêm à borda do psíquico supostamente puro
(o orgânico, o biológico, o genético com seus pode-
res teóricos e terapêuticos - porque, não nos esque-
çamos, nosso tema terá sido o sofrimento, o tormen-
to, a tortura), mas também as mutações tecnocientí-
ficas que lhes são inseparáveis, mas também o que
na ordem da prescrição performativa dá lugar a um
saber (por exemplo, a história do direito, da moral e
da política; como história do que acontece, por exem-
plo nestes tempos).
2. Na ordem do perfarmativo mesmo, lá onde não
se trata somente de saber ou de descrever, mesmo a
prescrição, a psicanálise tem de tomar suas respon-
sabilidades, inventar ou reinventar seu direito, suas
instituições, seus estatutos, suas normas etc. Supo-
nho que vocês estejam aqui por isso. Ela tem de fa-
zer o balanço de seu próprio saber, de seu saber o

87
mais específico e o mais inflexível (por exemplo, a
propósito da crueldade, do desejo de fazer e de dei-
xar sofrer - por prazer), mas também o que se passa
nesse tempo (por exemplo, as transformações no
campo econômico, do mercado e do que nele depen-
dem ainda a tecnociência, o campo social, o campo
político e o jurídico - e penso sobretudo nos proble-
mas de soberania, portanto de crueldade, nos perfor-
mativos jurídicos concernindo uma humanidade do
homem que continua por se repensar, e os direitos
do homem, e os crimes contra a humanidade, e o cri-
me de genocídio, e o futuro internacional do direito,
e a guerra das línguas e, portanto, o conceito mes-
mo de língua, nacional ou não etc.). Mas, permitam-
me insistir nisso, entre a ordem do saber constatativo
e a ordem simbólica da instituição performativa, a ar-
ticulação, ainda que continue indireta, não pode fa-
zer a economia de um hiato absoluto, o hiato de uma
heterogeneidade que deve continuar aberta para
sempre, justamente como um hiato, aquela da boca
que fala ou da ferida que sangra. A indireção desse
indireto passa pelo outro, pelo outro indireto, por
uma alteridade infinita na indireção, pela heterono-
mia: ela marca, aqui, um corte absoluto. Essa descon-
tinuidade exige um salto, essa interrupção oferece
sua chance, uma chance ameaçada e ameaçadora, fe-
rida ou feridora, à responsabilidade ou a isso que os

88
filósofos humanistas clássicos chamavam liberdade,
ou de maneira ainda mais problemática, a liberdade
da pessoa. Não se deduzirá jamais essa livre respon-
sabilidade de um simples ato de saber.
3. E aqui, para além do mais difícil, o im-pos-
sível mesmo. Mesmo lá onde elas registram ou pro-
duzem o evento, as ordens do constatativo e do
performativo continuam ordens do poder e do pos-
sível. Elas pertencem, portanto, à economia do re-
apropriável. Mas um evento, a vinda de um evento
digno desse nome, sua alteridade imprevisível, a che-
gada do chegante, eis o que excede mesmo todo po-
der, todo performativo, todo "eu posso" e mesmo
todo "eu devo", todo dever e toda dívida num con-
texto determinável. Por toda parte onde existe lei e
performativo, ainda que heteronômicos, deve por
certo haver o acontecimento e o outro, mas que logo
são neutralizados, no essencial, e reapropriados pela
força performativa ou pela ordem simbólica. A vin-
da incondicional do outro, seu acontecimento inan-
tecipável e sem horizonte, sua morte ou a morte
mesma, são irrupções que podem e devem mesmo
pôr em derrota as duas ordens do constatativo e do
performativo, do saber e do simbólico. Pode ser que
para além de toda crueldade.
Com alguns outros, vocês, psicanalistas, o sa-
bem. Vocês poderiam ou deveriam sabê-lo melhor

89
que ninguém. A prova: não lhes foi suficiente supor
saber, vocês souberam dar o salto para o im-possí-
vel, expondo-se, pelo dom gracioso de uma hospi-
talidade quase incondicional, à visita de um
estrangeiro vindo salvar vocês, sim, em sinal de re-
conhecimento, mas sem a segurança da salvação, aos
seus riscos e perigos.
O estrangeiro fala mal do mal, ele não mais acre-
dita no soberano, nem no soberano bem, nem no so-
berano mal.
Ele apenas sofre com isso, mas ele espera, sem-
pre, saibam vocês, o fazer saber.
Sem crueldade, com a humilde gratidão para
quem a ele terá prestado atenção - e sem álibi.
Fala-se raramente de álibi, aliás, sem nenhuma
presunção de crime. Nem de crime sem suspeita de
crueldade.

Post-scriptum
"Sem álibi"? Nenhum "crime sem suspeita de
crueldade", realmente?
Ainda a questão do "Não matarás". Mas quem,
justamente? Freud parecia admitir, nós o ouvimos,
a necessidade de guerras justas.
Eu me pergunto hoje se a última palavra desse
endereçamento, a saber, um "crime" que não seria
jamais "sem nenhuma suspeita de crueldade", pode

90
ainda acordar-se com a primeira palavra de uma hi-
pótese inicial: a psicanálise seria, dizia eu no come-
ço, a única aproximação possível, e sem álibi, de to-
das as traduções virtuais entre as crueldades do so-
frer "pelo prazer", do fazer sofrer ou do deixar sofrer
assim, do fazer-se sofrer ou do deixar-se sofrer, a si
mesmo, um ao outro, uma ao outro, uns aos outros
etc., segundo todas as pessoas gramaticais e todos os
modos verbais implícitos - ativo, passivo, transitivo,
intransitivo etc. Mas contradizendo essas premissas,
a conclusão que vimos de ler poderia, então, pare-
cer autorizar pelo menos uma diferença entre dois
crimes, entre duas transgressões do "tu não mata-
rás": entre, de uma parte, o assassinato que consiste
em matar o outro, nele mesmo ou em si, e, de outra,
isso que se chama suicídio, ou crime contra si. Nun-
ca se apagará essa diferença, certamente, sem arrui-
nar a seriedade de um certo princípio de responsa-
bilidade. Mas eu seria tentado a dizer, apressada-
mente, que essa diferença é ao mesmo tempo infini-
ta e nula. Pode-se até concordar: aqui estaria talvez
a orig~ mas também o sentido aporético dessa cruel-
dade que questionávamos no começo, sem jamais
responder, como se terá notado: o que é isso [ça*], a

* Ver N. da T. na pág. 15.

91
crueldade? Onde isso [ça] começa? Onde isso [ça]
acaba? E se aí houvesse, às vezes, crueldade em não
dar à morte? E o amor em querer se dar a morte a
dois, um ao outro, um pelo outro, simultaneamente
ou não? E se houvesse "isso [ça] sofre cruelmente em
mim" sem que se possa suspeitar de quem esteja a
exercer uma crueldade? de desejá-la [la vouloir]? Ha-
veria, então, crueldade sem que alguém seja cruel.
Nenhum crime, nenhuma incriminação ou recrimi-
nação possíveis, nenhum julgamento, nenhum direi-
to. Crueldade aí existe. Crueldade aí haverá, antes
de toda figura pessoal, antes que "cruel" tome-se
atributo, menos ainda o erro de alguém.
Pode-se disso tirar uma maldosa conseqüência,
entre tantas outras, que diz respeito à maldade mes-
ma, à maldade insignificante do mal, ao aleatório do
encontro, no amor ou no ódio: se um perdão pode
ser pedido, a acreditar no bom senso, pelo mal infli-
gido, pelo erro, pelo crime, pela ofensa da qual o ou-
tro, por minha causa, é vítima, não posso eu me fazer
perdoar pelo mal de que sofro? "Perdoa-me de estar
mal, meu coração, aqui onde ninguém me quer mal,
porque daí vem o mal que te faço, eu, sem querê-lo,
capaz de tudo ... "
Estar mal [avoir mal], fazer mal [faire mal], que-
rer o mal [vouloir du mal], desejá-lo a alguém [en
vouloir à quelqu'un]: eu já imagino o sofrimento do

92
tradutor ou da tradutora que queira respeitar cada
um desses três termos, de avoir [ter, haver] até faire
mal [fazer mal], sem falar de vouloir du mal [desejar
o mal] para alguém. 1radução aparentemente impos-
sível. A língua francesa me parece ser a única a dar
um destino, ou uma tal acolhida à configuração inau-
dita e absolutamente singular a essas palavras, es-
sas três grandes palavras: avoir [ter, haver], faire
[fazer], vouloir [querer, desejar] e mal [mal].
- E eu lá tenho culpa, nessa suposta impossi-
bilidade de traduzi-lo? Nessa impossibilidade de tra-
duzir ao pé da letra?
- Não, claro, faz parte da língua. Tu herdas isso.
- Sim, ao contrário, veja o que eu faço dessa
herança. Eu traio sua verdade.*
- O álibi ainda é evitável? Não será muito
tarde?

16 de julho de 2000

* Herdeiros da llngua portuguesa, os tradutores acreditam ter tra-


duzido Oerrida. Sem álibi. [N. da T.)

93
Psican6/ise, judaísmo: ressonõncias, Renoto Mezon (esg.)
Do gozo criador, Carlos D. Pérez
O manuscrito perdido de Freud, H. Hoydt de S. Mello
O psicanalista e seu ofício, Conrod Stein
Elementos da interpretação, Guy Rosoloto
A pulsão de morte, André Green et oi.
Psican6/ise de sintomas sociais, Sergio A Rodriguez/Manoel T. Ber-
linck (orgs.)
Famflia e doença mental, Isidoro Berenstein
Narcisismo de vida, narcisismo de morte, André Green
As Erínias de uma mãe, Conrad Stein
Notas de psicologia e psiquiatria social, Armando Bouleo
Trauma, amor e fantasia, Franklin Goldgrub
Clfnica psicanalftica: estudos, Pierre Fédido
Psicanólise da clinica cotidiana, Manoel Tosto Berlinck
O acalanto e o horror, Ano Lucio C. Jorge
A Representação. Ensaio psicanalftico, Nicos Nicolaidis
O desenvolvimento kleiniano 1. Desenv. clínico de Freud, Donold
Meltzer
Édipo africano, Marie-Cécile e Edmond Ortigues
Comunicação e representação, Pierre Fédida (org.)
Ensaios de psican6/ise e semiótica, Miriam Chnoidermon
Freud e o problema do poder, León Rozitchner
Melanie Klein: evoluções, Elias M. do Rocha Barros (org.)
Figurações do feminino, Daniela Brun
14 conferências sobre Jacques Lacan, Foni Hisgoil (org.)
Introdução 6 psicanó/ise, Luis Hornstein
O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro, Piero Aulognier

95
O desenvolvimento kleiniano li. Des .. clínico de Melanie Klein,
D. Melfzer
Tausk e o aparelho de influenciar na psicose, Joel Birman ( org.)
A construção do espaço analítico, Serge Viderman
Um intérprete em busca de sentido - I, Piera Aulagnier
Um intérprete em busca de sentido - li, Piara Aulagnier
Ter um talento, ter um sintoma, Denise Morei
A dialética freudiana 1: Prática do método psicanalítico, Claude
Le Guen
O inconsciente: vórias leituras, Felicia Knobloch (org.)
Psicose: uma leitura psicanalítica, Chaim S. Katz (org.)
História da histeria, Etienne Trillat
A rua como espaço clínico, Equipe de A.T. do Hospital-Dia A CASA
(org.)
A clínica freudiana, Isidoro Vegh
O título da letra, Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe
Quando a primavera chegar, M. Masud R. Khan
O Deus odioso. O diabo amoroso. Psicanólise e representação
do mal, Mareio Peter de Souza Leite e Jacques Cazotte
As bases do amor materno, Margarete Hilferding, Teresa Pinhei-
ro e Helena B. Vianna
Transferências, Abrão Slavutzky
Do sujeito à imagem. Uma história do olho em Freud, Hervé Huot
O sentimento de identidade, Nicole Berry
Gigante pela própria natureza, Emílio Rodrigué
Freud e o homem dos ratos, Patrick J. Mahony
Nome, figura e memória, Pierre Fédida
A supervisão na psican6/ise, Conrad Stein et alii.
O lugar dos pais na psicanálise de crianças, Ana Maria Sigal (org.)
Perturbador mundo novo, SBPSP (org.)
Cidadãos não vão ao paraíso, Alba Zaluar (Co-ed.Edunicamp)
Casal e família como paciente, Magdalena Ramos (org.)
Mancar não é pecado, Lucien Israel]
Crônicas científicas, Anna Veronica Mautner

96
Penare, Celia Eid e Maria Lucia Arroyo
A histérica, o sexo e o médico, Lucien Israel
Olho d'ógua. Arte e loucura em exposição, João Frayze-Pereira
Vida bandida, Voltaire de Souza
Figuras da teoria psicanalítica, Renato Mezan (Co-ed. EDUSP)
Em busca da escola ideal, Neda Lian Branco Martins
A casca e o núcleo, Nicolas Abraham e Maria Tõrok
Ah! As belas lições/, Radmila Zygouris
Sigmund Freud. O século da 6anólise (3 vol.), Emilio Rodrigué
A dialética da falta, Alba Gomes Guerra e Patrícia Simões
A interpretação, Elisabeth Saporiti
Fato em psicanólise, /JPA
O corpo de Ulisses. Modernidade e materialismo em Adorno e
Horkheimer, Paulo Ghiraldelli Jr.
Considerações sobre o psiquismo do feto, Therezinha Gomes de
Soum-Dias
A psiconó/ise e a vida, Bela Sister e Marilsa Taffarel (orgs.), Isaías
Melsohn
Outra beleza. Estudo da beleza para a psicanó/ise, Claudio
Bastidas
O sítio de estrangeiro, Pierre Fédida
Psicoterapia breve psicanalítica, Haydée C. Kahtuni
O processo analítico, /JPA
Elaboração psíquico. Teoria e clínica psicanalítica, Paulina Cymrot
A linguagem dos bebês, Marie-Claire Busnel
Uma pulsão espetacular. Psicanó/ise e teatro, Mauro P. Meiches
Freud. Um ciclo de leituras, Silvia Leonor Alonso e Ana Maria Si-
queira Leal
Cadernos de Bion 1, Júlio C. Conte (org.)
O estrangeiro, Catarina Koltai (org.)
Eu corpando. O ego e o corpo em Freud, Liana Albernaz de M.
Bastos
Diólogos, Gilles Deleuze e Claire Parnet
O sintoma da criança e a dinõmico do casal, Isabel Cristina Gomes

97
A escuta, a transferência e o brincar, IJPA
Sexo, Rosely Sayão (Co-ed. Via Lettera)
A prova pela fala, Roland Gori (Co-ed.UCG)
O instante de dizer, Marie-Jose Dei Volgo (Co-ed.UCG)
O desenv. kleiniano Ili. O significado clínico da obra de Bion, Do-
nald Meltzer
Achados chistosos da psicanálise nas crônicas de José Simão, Jane
de Almeida (Co-EDUC)
A história de Tobias. Um estudo sobre o animus e o pai, Fabíola
Luz
Freud e a consciência, Oswaldo França Neto
Pulsões de vida, Radmila Zygouris
Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi, Luis Cláudio Figueire-
do
Transferência, sedução e colonização, IJPA
Febem, família e identidade. O lugar do Outro. Isabel Kahn
Marin
Á criança adotiva na psicoterapia psicanalítica, Gina K. Levinzon
Mosaico de letras. Ensaios de psicanálise, Urania Tourinho Peres
Cadernos de Bion li, Júlio César Conte (org.)
Memórias de um autodidata no Brasil, Mauricio Tragtemberg
Ética e técnica em psicanálise, Luís Claudio Figueiredo e Nelson
Coelho Jr.
A arte do encontro de Vinícius de Moraes, Sonia Alem Marrach
Educação para o futuro. Psicanálise e educação, M. Cristina M.
Kupfer
Política e psicanálise. O estrangeiro, Caterina Koltai
Catástrofe e representação, Mhur Nestrovski e Márcio Seligmann-
Silva (orgs)
O que é ser brasileiro? Carmen Backes
Conformismo, ética, subjetividade e objetividade, IJPA
A histérica entre Freud e Lacan, Monique David-Ménard
Como a mente humana produz idéias, J. Vasconcelos
Mulher no Brasil. Nossas marcas e mitos, Marisa Belém

98
Os avatares da transmissão psíquica geracional, Olga B. R. Cor-
rea (org.)
Abertura para uma discoteca, Roland de Candé
A conversa infinita - 1. A palavra plural, Mourice Blanchot
A morte de Sócrates. Monólogo filosófico, Zeferino Rocha
COLEÇÃO-
BIBLIOTECA DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL
Melancolia, Urania Tourinho Peres (org.)
Histeria, Manoel Tosta Berlinck (org.)
Autismos, Paulina S. Rocha (org.)
Depressão, Pierre Fédida
Põnico e desamparo, Mario Eduardo Costa Pereira
Anorexia e bulimia, Rodolfo Urribarri (org.)
Dor, Manoel Tosta Berlinck (org.)
Toxicomanias, Durval Mazzei Nogueira Filho
Diferenças sexuais, Paulo Roberto Ceccarelli
Os destinos da angústia na psicanólise freudiana, Zeferino Rocha
Psicopatologia fundamenta/, Manoel Tosta Berlinck
Culpa, Uranio T. Peres (org.)
COLEÇÃO - PSICANÁLISE DE CRIANÇA
Rumo à palavra. Três crianças autistas em psiconólise, M.-Christine
Laznik-Penot
Sublimação da sexualidade infantil, Paulo A. Buchvitz
A criança e o infantil em psican61ise, Silvia Abu-Jamra Zornig
COLEÇÃO - O SEXTO LOBO
Hei/o Brasil/, Contardo Calligaris
Clinica do social. Ensaios, Luiz Tarlei de Aragão (org.)
Exflio e tortura, Moren e Marcelo Vinar
Extrasexo. Ensaio sobre o transexualismo, Catherine Millot
Alcoolismo, delinqüência, toxicomania, Charles Melman
Imigrantes. Incidências subjetivas das mudanças de lfngua e pafs,

99
Charles Melman
Fantasia de Brasil, Octavio Souza
Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos, Luis Cláudio Fi-
gueiredo (Co-ed. EDUC)
A face e o verso. Estudos sobre o homoerotismo - li, Jurandir
Freire Costa
O que é ser brasileiro? Carmen Backes
COLEÇÃO - ENSAIOS
Merleau-Ponty. Filosofia como corpo e existência, Nelson Coelho
Jr. e Paulo Sérgio do Carmo
O inconsciente como potência subversiva, Alfredo Naffah Neto
O pensamento japonês, Hiroshi Oshima
Comunicação e psicanálise, Jeanne Marie Machado de Freitas
Clarice Lispector. A paixão segundo C.L., Berta Waldmann
A pulsão anarquista, Nathalie Zaltzman
Escutar, recordar, dizer, Luís Claudio Figueiredo (Co-ed. EDUC)
Sintoma social dominante e moralização infantil, Heloísa Fernan-
dez (Co-ed.EDUSP)
Na sombra da cidade, Maria Cristina Rios Magalhães (org.)
COLEÇÃO - TÉLOS
Ensaios de clínica psicanalítica, François Perrier
A formação do psicanalista, François Perrier
Afeto e linguagem nos primeiros escritos de Freud, Monique Sch-
neider
Como a interpretação vem ao psicanalista, René Major (org.)
COLEÇÃO - LINHAS DE FUGA
A invenção do psicológico. Quatro séculos de subjetivação (1500-
1900), Luís Cláudio Mendonça Figueiredo (Co-ed. EDUC)
Limiares do contemporôneo, Rogério da Costa (org.)
A psicoterapia em busca de Dioniso, Alfredo Naffah Neto (Co-
ed. EDUC)

100
As órvores de conhecimentos, Pierre Lévy e Michel Authier
As pulsões, Arthur Hyppólito de Moura (org.) (Co-ed. EDUC)
COLEÇÃO - TRANSVESSIAS
O corpo erógeno. Uma introduçóo à teoria do complexo de Édipo,
Serge L.eclaire
COLEÇÃO - PLETHOS
A palavra in-sensata. Poesia e psicanó/ise, Eliane Fonseca
Contratransferência, Suzana Alves Viana
Poética do erótico, Sarnira Cholhub
A Escola. Um enfoque fenomenológico, Vitória Helena Cunha
Espósito
Psican6/ise, polftica, lógica, Célio Garcia
A eternidade da maçã. Freud e a ética, Flóvio Carvalho Ferraz
A cara e o rosto. Ensaio de Gestalt Terapia, Ana Maria Loffredo
(esg.)
Pacto Re-Velado. Psicanólise e clandestinidade polftica, Maria Au-
xiliadora de Almeida Cunha Arantes
A poesia, o mar e a mulher: um só Vinfcius, Guaraciaba Micheletti
Psiquismo humano, Marco Aurélio Baggio
Semiótica da canção. Melodia e letra, Luiz Tatit
A cientificidade da psican6/ise. Popper e Peirce, Elisabeth Saporiti
A força da realidade na c/fnica freudiana, Nelson Coelho Junior
Corpoafecto: o psicólogo no hospital geral, Marilia A. Muylaert
Crianças na rua, Ana Carmen Martin dei Collado
Um olhar no meio do caminho, Sônia Wolf
Doenças do corpo e doenças da alma, Lazslo A. Ávila.
Os dizeres nas esquizofrenias. Uma cartola sem fundo, Mariluci
Novaes

101
PRÓXIMOS LANÇAMENTOS

O que é diagnosticar em psiquiatria


Jorge Saurí

Cenários sociais e abordagem clínica


José Newton Garcia e Teresa Carreteiro (orgs.)

Os gregos e o irracional
E. R. Dodds

Ensaio sobre o simbólico


Guy Rosolato

O problema da perversão na mulher


Wladimir Granoff

O Homem dos lobos pelo Homem dos lobos


Muriel Gardner

Escutando com o terceiro ouvido


Theodor Reik
1
Spinosa. Filosofia prática
Gilles Deleuze

102
Titulo: Estados-da-alma da psicanálise
Traduçé1o: Antonio Romane e Isabel Kahn Marin
Projeto gráfico: Araide Sanches
Composiçé1o Araide Sanches
Revisé1o Dirceu Scali Jr.
Formato 13 x 18 cm
Tipologia Palatino - 11/14
Papel Cartão Royal 250g/m2 (capa)
Offset 7Sg (miolo)
Número de páginas 104
Tiragem 1.500
Impresslio BookRJ

103

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