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Folha de rosto
Sumário
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Prefácio

Dolores Claiborne
Livro de recortes

Sobre o autor
Créditos
Para a minha mãe,
Ruth Pillsbury King
O que uma mulher quer?
Sigmund Freud

R-E-S-P-E-C-T, nd out what it means to me.


Aretha Franklin
Na região noroeste do Maine, na área conhecida como Lakes District, a
cidadezinha de Sharbot se curva como uma lua crescente em volta de um belo
corpo d’água chamado lago Dark Score. O Dark Score é um dos lagos mais
profundos da Nova Inglaterra, com mais de noventa metros em algumas partes.
Dizem que certos moradores da região já alegaram que o lago não tem fundo…
mas normalmente só depois de algumas cervejas (em Sharbot, seis cervejas são
consideradas “algumas”).
Se fosse para desenhar uma linha reta pelo mapa do estado do noroeste para
o sudeste a partir do pontinho cartográ co que representa Sharbot e
continuando pelo ponto maior que marca a cidade de Bangor, acabaríamos no
menor ponto de todos: um grão verde pequenininho no Atlântico, a uns 25
quilômetros de Bar Harbor. Esse grãozinho verde é a ilha Little Tall, com uma
população de 204 pessoas de acordo com o censo de 1990, uma queda em
relação ao recorde de 527 no censo de 1960.
Essas duas comunidades minúsculas, com uma distância exata de 225
quilômetros uma da outra, ladeiam os aspectos marítimo e costeiro do maior
estado da Nova Inglaterra como um par de suporte de livros qualquer. Não têm
nada em comum; seria bem difícil, na verdade, encontrar um cidadão em
alguma das duas que tivesse algum conhecimento da outra.
Mas, no verão de 1963, o último antes de os Estados Unidos (e o mundo
todo) serem mudados para sempre por uma bala assassina, Sharbot e Little Tall
foram ligadas por um fenômeno celestial impressionante: o último eclipse total
visível no norte da Nova Inglaterra até o ano de 2016.
Tanto Sharbot, no extremo oeste do Maine, quanto a ilha Little Tall, na
região mais a leste do estado, caram no caminho da totalidade do eclipse. E,
embora mais de metade das cidades na trilha do fenômeno tenha tido a visão
bloqueada por nuvens baixas naquele dia parado e úmido, tanto Sharbot
quanto Little Tall tiveram condições de visibilidade perfeitas. Para os
residentes de Sharbot, o eclipse começou às 16h29, horário local; para os
residentes de Little Tall, às 16h34. O período de totalidade que percorreu o
estado durou quase três minutos exatos. Em Sharbot, a escuridão total foi de
17h39 até 17h41; e em Little Tall, de 17h42 até quase 17h43, um período de 59
segundos, na verdade.
Quando essa escuridão estranha se espalhou pelo estado, as estrelas
apareceram e preencheram o céu diurno; os pássaros foram para os ninhos;
morcegos voaram sem destino certo acima de chaminés; e vacas se deitaram
nos campos onde estavam pastando e foram dormir. O sol se tornou um anel
ardente no céu e, quando o mundo dentro daquela faixa de escuridão nada
natural cou suspenso e silencioso e os grilos começaram a cantar, duas
pessoas que jamais se encontrariam sentiram uma à outra, e se viraram uma
para a outra como as ores se voltam para o calor do sol.
Uma delas era uma garota chamada Jessie Mahout; ela estava em Sharbot,
no oeste do estado. A outra era uma mãe de três lhos chamada Dolores St.
George; ela estava na ilha Little Tall, no leste do estado.
As duas ouviram corujas piarem durante o dia. As duas caram em vales
profundos de terror, geogra as de pesadelo das quais acreditaram que nunca
falariam. As duas acharam que a escuridão fora totalmente adequada, e
agradeceram a Deus por aquilo.
Jessie Mahout se casaria com um homem chamado Gerald Burlingame, e a
história dela é contada em Jogo perigoso. Dolores St. George voltaria a assumir
o nome de solteira, Dolores Claiborne, e conta a própria história nas páginas a
seguir. As duas histórias são de mulheres atravessadas pelo eclipse e como elas
emergem da escuridão.
O que você perguntou, Andy Bissette?
Se eu “entendo esses direitos que você acabou de explicar pra mim”?
Pelo amor de Deus! Por que será que alguns homens são tão perdidos?
Não, você ca quieto aí… fecha essa matraca e me escuta um pouco. Tenho a
sensação de que vai me ouvir boa parte da noite, então é melhor já ir se
acostumando. Porque eu entendo o que você acabou de ler! Tenho cara de ter
perdido os miolos desde que te vi no mercado? Foi na segunda à tarde, caso
tenha esquecido. Eu falei que a sua esposa ia arrancar o seu couro por comprar
pão dormido. Como se diz por aí, é economia burra, e aposto que eu estava
certa, né?
Entendo os meus direitos direitinho, Andy; a minha mãe não criou
nenhuma idiota. Também entendo as minhas responsabilidades, que Deus me
ajude.
Qualquer coisa que eu diga pode ser usada contra mim no tribunal, é? Uau,
as surpresas não têm m! E pode arrancar esse sorrisinho da cara, Frank
Proulx. Você pode até ser um policial importante na cidade agora, mas não faz
muito tempo desde que eu te vi correndo por aí de fralda cagada com o mesmo
sorriso idiota. Vou dar um conselhinho: quando se meter com uma bruxa velha
como eu, é melhor dar uma segurada. Consigo te entender melhor do que uma
propaganda de calcinha num catálogo qualquer.
Maravilha, já nos divertimos; melhor irmos direto ao ponto. Vou contar a
vocês três um monte de coisas, e vou começar agora; um monte dessas coisas
provavelmente poderia ser usada contra mim em um tribunal se, a esta altura,
alguém quisesse. A piada é que o pessoal da ilha já sabe da maior parte, e eu já
estou cagando faz tempo, como o velho Neely Robichaud dizia quando enchia a
cara. O que acontecia o tempo todo, como qualquer um que o conhecia poderia
atestar.
Mas eu me importo com uma coisa, e é por isso que vim aqui por conta
própria. Eu não matei aquela lha da puta da Vera Donovan, e
independentemente do que você acha agora, pretendo fazer com que acredite
em mim. Não a empurrei daquela merda de escada. Tudo bem se quiser me
tranca ar pelo outro, mas não tenho nem uma gota do sangue daquela lha da
puta nas mãos. E acho que você vai acreditar em mim quando eu terminar,
Andy. Você sempre foi um bom garoto, ou pelo menos o melhor que um garoto
pode ser — estou falando que você é justo, virou um homem decente. Mas não
deixe subir à cabeça; você cresceu igual a todos os outros homens, com uma
mulher que lava as suas roupas, limpa o seu nariz e te coloca no caminho certo
quando você toma a direção errada.
Mais um detalhe antes de começarmos: eu te conheço, Andy, e Frank, claro,
mas quem é essa mulher aí com o gravador?
Meu Jesus, Andy, eu sei que ela é a estenógrafa! Não acabei de falar que a
minha mãe não criou nenhuma idiota? Posso até estar na beirada dos sessenta
e seis anos em novembro, mas a cabeça ainda funciona. Sei que uma mulher
com um gravador e um bloco é uma estenógrafa. Assisto a todos os programas
de tribunal, até aquele L.A. Law em que ninguém consegue car de roupa por
mais de quinze minutos.
Qual o seu nome, meu bem?
Aham… e de onde você é?
Ah, para, Andy! O que mais você tem pra fazer hoje? Por acaso estava
planejando ir até o litoral ver se tem gente pegando marisco sem permissão?
Acho que seria mais agitação do que o seu coração aguenta, né? Rá!
Isso. Assim é melhor. Você é Nancy Bannister de Kennebunk, e eu sou
Dolores Claiborne, bem daqui, da ilha Little Tall. Já disse que vou fazer um
festival de tanto falar até terminarmos aqui, e você vai ver que eu não estava
mentindo nadinha. Se precisar que eu fale mais alto ou mais devagar, é só
dizer. Não precisa car com vergonha de mim. Quero que anote cada
palavrinha, começando com isto: vinte e nove anos atrás, quando o chefe de
polícia Bissette aqui estava no primeiro ano e ainda comia meleca, eu matei o
meu marido, Joe St. George.
Estou sentindo uma corrente de ar aqui, Andy. Talvez pare se você fechar
essa matraca de merda. Não sei por que a cara de surpresa. Você sabe que eu
matei Joe. Todo mundo em Little Tall sabe, e provavelmente metade das
pessoas do outro lado do mar em Jonesport também. É só que ninguém
conseguiu provar. E eu não estaria aqui agora, admitindo na frente de Frank
Proulx e Nancy Bannister de Kennebunk, se não fosse aquela idiota lha da
puta da Vera e aquelas cretinices de sempre dela.
Bom, ela nunca mais vai fazer nenhuma, né? Tem isso de consolo, pelo
menos.
Chega esse gravador um pouco mais pra perto de mim, Nancy, meu bem. Se
é pra fazer, vamos fazer direito, pode ter certeza. Esses japoneses não fazem
umas coisinhas danadas? Fazem demais… mas acho que nós duas sabemos que
o que vai na ta dentro desse aparelhinho pode me deixar na prisão pelo resto
da minha vida. Só que eu não tenho escolha. Juro por Deus que sempre soube
que Vera Donovan seria o meu m, soube desde a primeira vez que a vi. E olha
o que ela fez, olha só o que a velha lha da puta fez comigo. Dessa vez, ela
peidou na farofa. Mas é o que os ricos fazem; se não podem te matar no chute,
matam com beijos carinhosos.
O quê?
Ah, Deus! Eu vou chegar lá, Andy, me dá um pouco de paz! Só estou
tentando decidir se devo contar de trás pra frente ou de frente pra trás. Será
que não dá pra eu tomar alguma coisinha?
Ah, não me venha com café! Pega o jarro todo e en a no seu ofó. Se você é
canguinha demais pra me dar um gole daquela birita que você guarda na
gaveta, então me traz um copo de água. Eu não…
Como assim “como eu sei disso”? Ué, Andy Bissette, assim qualquer pessoa
pode achar que você nasceu de uma caixinha de biscoitos ontem. Acha que eu
ter matado o meu marido é a única coisa que essa gente aqui da ilha tem pra
falar? Ora, isso é notícia antiga. Já você… você ainda tem umas novidades pra
contar.
Obrigada, Frank. Você sempre foi um bom garoto também, apesar de ter
sido difícil até olhar pra você na igreja antes da sua mãe te curar daquele hábito
de car cutucando o nariz. Deus, às vezes você en ava o dedo tão fundo que
não sei como não saía o cérebro junto. E por que está cando vermelho? Não
tem uma criança no mundo que não limpa o salão de vez em quando. Pelo
menos você sabia que não era pra car com a mão en ada na calça mexendo
nas bolas, ao menos na igreja, e tem um monte de garotos que nunca…
Tudo bem, Andy, já entendi. Eu vou contar. Credo, você nunca aprendeu a ter
paciência, né?
Olha só: vamos fazer um acordo. Em vez de contar de trás pra frente ou de
frente pra trás, vou começar na metade e seguir nas duas direções. Se você não
gostar, Andy Bissette, pode anotar na sua lista de reclamações e enviar para o
capelão.
Eu e Joe tivemos três lhos, e quando ele morreu, no verão de 1963, Selena
tinha quinze, Joe Junior tinha treze e o pequeno Pete tinha só nove. Bom, Joe
não me deixou nem um penico…
Acho que você vai ter que consertar algumas partes, né, Nancy? Eu sou só
uma velha mal-humorada e boca-suja, mas é isso que acontece quando a gente
tem uma vida difícil.
Onde eu estava? Não me perdi, né?
Ah, sim. Obrigada, meu bem.
O que Joe deixou pra mim foi aquela casinha modesta perto de East Head e
dois hectares e meio de terra, a maior parte de arbustos de amora e o tipo de
mato que cresce depois de uma operação de desmatamento. O que mais?
Vamos ver. Três veículos que não funcionavam, duas picapes e um
transportador de celulose, quinze metros cúbicos de madeira e uma dívida no
mercado, uma na loja de materiais de construção, uma no posto de gasolina e
uma na funerária… e quer saber qual é a cereja da porra do bolo? Não fazia
nem uma semana que ele estava enterrado quando aquele pé de cana do Harry
Doucette apareceu com uma porcaria de cobrança dizendo que Joe devia vinte
dólares de uma aposta de beisebol!
Ele me deixou isso tudo, mas vocês acham que deixou algum dinheiro de
seguro? Nananinanão! Se bem que talvez isso tenha sido uma bênção
disfarçada, no m das contas. Acho que vou chegar nessa parte antes de
terminar, mas o que estou tentando dizer é que Joe St. George não era homem
de verdade; era uma porra de pedra que eu carregava pendurada no pescoço.
Pior, até, porque uma pedra não ca bêbada e volta pra casa fedendo a cerveja e
querendo meter em você à uma da manhã. Nada disso foi o motivo pra eu ter
matado aquele lho de uma quenga, mas acho que é um bom lugar pra
começar.
Uma ilha não é um bom lugar pra matar ninguém, isso eu posso provar.
Parece que sempre tem gente por perto, se coçando pra meter o nariz nas suas
coisas quando você menos pode ser dar ao luxo. Foi por isso que z na hora que
z, e vou chegar nessa parte também. Por enquanto, basta dizer que z uns
três anos depois que o marido de Vera Donovan morreu em um acidente de
carro perto de Baltimore, que era onde os dois moravam quando não estavam
passando o verão em Little Tall. Naquela época, a maioria dos parafusos da
Vera ainda estava no lugar.
Com Joe fora da jogada e nenhuma fonte de renda, quei encrencada, veja
bem… Acho que ninguém no mundo ca tão desesperado quanto uma mulher
sozinha com lhos que dependem dela. Eu tinha decidido que era melhor
atravessar o mar e ver se conseguia um emprego em Jonesport, de caixa em
algum supermercado ou de garçonete em um restaurante, quando aquela
piranha de repente decidiu que ia morar na ilha o ano todo. Quase todo mundo
achou que ela estava doida, mas não quei tão surpresa; naquela época, ela já
estava passando muito tempo aqui.
O sujeito que trabalhava pra ela na época, não lembro o nome dele, mas
você sabe de quem estou falando, Andy, aquele cara burro que sempre usava a
calça apertada pra mostrar que tinha bolas maiores do que potes de geleia, ele
me ligou e disse que A Dona (era assim que a chamava, A Dona; nossa, como
ele era burro) queria saber se eu aceitava trabalhar pra ela em tempo integral
como empregada. Bom, eu tinha feito trabalhos de verão pra família desde
1950, e acho que era bem natural que ela me ligasse antes de falar com outra
pessoa, mas na época pareceu a resposta para todas as minhas orações. Eu
aceitei na hora e trabalhei pra ela até ontem à tarde, quando a mulher caiu da
escada e bateu a cabeça oca dela.
O marido dela trabalhava com o que mesmo, Andy? Aviões, não era?
Ah. É, acho que eu ouvi falar disso, mas você sabe como as pessoas da ilha
são. A minha única certeza é a de que ele tinha uma vida confortável, bem
confortável, e ela cou com tudo quando o homem morreu. Menos o que o
governo levou, óbvio, e duvido que tenha chegado perto do que deveria.
Michael Donovan era inteligente. E malandro. E apesar de todo mundo se levar
pelo jeito dela nos últimos dez anos, Vera era tão malandra quanto ele… e teve
os seus dias de malandragem até morrer. Será que ela sabia em que tipo de
encrenca ia me en ar se zesse qualquer coisa além de morrer na cama de um
belo e tranquilo ataque cardíaco? Passei o dia quase todo em East Head,
sentada naquela escada bamba e pensando nisso… nisso e em umas outras
cem coisas. Primeiro, achei que não, já que uma tigela de aveia tem mais
cérebro do que Vera Donovan no m, mas aí eu lembrei como ela era com o
aspirador e pensei que talvez… é, talvez…
Mas isso não importa mais. A única coisa que importa é que eu pulei da
frigideira para o fogo, e adoraria sair fora antes de queimar mais a bunda. Se é
que ainda é possível.
Eu comecei como empregada de Vera Donovan e acabei como algo que
chamam de “cuidadora”. Não demorei muito pra entender a diferença. Como
empregada da Vera, eu tinha que aguentar merda oito horas por dia, cinco dias
por semana. Como cuidadora, tinha que aguentar vinte e quatro horas por dia.
Ela teve o primeiro derrame no verão de 1968, enquanto assistia à
Convenção Nacional Democrática em Chicago na televisão. Esse foi pequeno, e
ela botava a culpa em Hubert Humphrey.
“Chegou ao ponto em que eu tinha olhado pra aquele babaca feliz vezes
demais, e aí um vaso sanguíneo estourou”, disse ela. “Eu devia saber que ia
acontecer, e poderia muito bem ter sido Nixon.”
Ela teve outro maior em 1975, e nessa época não havia político nenhum pra
ela culpar. O dr. Freneau a aconselhou a parar de fumar e beber, mas teria sido
melhor poupar as palavras: nenhuma bonitona arrogante como Vera Não
Gostou En a No Cu Donovan ia dar atenção a um médico de interior como
Chip Freneau.
“Eu vou enterrar ele e tomar um uísque com soda sentada na lápide”, dizia
ela.
Por um tempo, parecia que ia ser isso mesmo: ele a repreendia, e Vera
continuava velejando como se fosse o Queen Mary. Aí, em 1981, ela teve o
primeiro derrame grande, e o bonitão morreu em um acidente de carro no
continente no ano seguinte. Foi nessa época que fui morar com ela, em
outubro de 1982.
Eu precisava? Sei lá. Acho que não. Tinha o meu Seguro Sociável, como a
velha Hattie McLeod chamava. Não era muito, mas as crianças já tinham
partido — o pequeno Pete da face da Terra, coitadinho — e eu tinha
conseguido guardar uma graninha. Morar na ilha sempre foi barato, e apesar
de não ser mais como antes, ainda é muito melhor do que morar no
continente. Então, acho que eu não precisava ir morar com a Vera, não.
Mas àquela altura a gente já estava acostumada uma com a outra. É difícil
explicar pra um homem. Eu esperaria que a Nancy aqui com os blocos, as
canetas e o gravador entendesse, mas acho que ela não pode falar. A gente
estava acostumada uma com a outra do mesmo jeito que eu acho que dois
morcegos velhos se acostumam a car pendurados de cabeça pra baixo ao lado
um do outro na mesma caverna, apesar de estarem longe de ser melhores
amigos. E não foi uma grande mudança. Pendurar as minhas roupas de
domingo no armário ao lado dos meus vestidos de car em casa foi a maior
mudança, porque no outono de 1982 eu já cava lá o dia todo e na maioria das
noites. Eu ganhava um pouco melhor, mas não tanto a ponto de ter dado
entrada no meu primeiro Cadillac, se é que você me entende. Rá!
Acho que eu fui mais porque não havia mais ninguém. Ela tinha um gerente
em Nova York, um homem chamado Greenbush, mas Greenbush não ia pra
Little Tall pra ela poder gritar da janela do quarto pra ele não deixar de usar
seis pregadores na hora de pendurar o lençol, e não quatro, e ele também não
ia se mudar para o quarto de hóspedes e trocar a fralda dela e limpar a merda
daquela bunda gorda enquanto ela o acusava de roubar as moedas da porcaria
do porquinho de porcelana e dizia que o colocaria na cadeia por isso.
Greenbush mandava os cheques; eu limpava a merda e a ouvia delirar sobre os
lençóis, as bolinhas de poeira e a porcaria do porquinho de porcelana.
E daí? Não quero nenhuma medalha por tudo isso, nem mesmo um Purple
Heart. Já limpei muita merda na vida, ouvi mais merda ainda (fui casada com
Joe St. George por dezesseis anos, lembra?), e nunca quei doente por isso.
Acho que, no m das contas, continuei com Vera porque ela não tinha mais
ninguém; era eu ou o asilo. Os lhos nunca iam vê-la, e eu cava com pena.
Não pensem que era o que eu esperava, porque não era; eu não entendia por
que não podiam deixar de lado o ranço dos velhos tempos, fosse qual fosse, pra
ir de vez em quando passar um dia ou talvez um m de semana com ela. Vera
era uma lha da puta desgraçada, sem dúvida, mas era a mãe deles. E estava
velha. Claro que hoje eu vejo as coisas com muito mais clareza do que na
época, mas…
O quê?
Sim, é verdade. Juro pela minha mãe mortinha, como os meus netos gostam
de dizer. Pode ligar para o tal Greenbush se não acredita em mim. Imagino
que, quando a notícia se espalhar, e vai se espalhar, sempre se espalha, vão
escrever um daqueles artigos melosos no Daily News de Bangor dizendo como
tudo é maravilhoso. Bom, eu tenho novidades: não é maravilhoso. É um
pesadelo. Seja lá o que aconteça aqui, vão dizer que z lavagem cerebral na
Vera pra ela fazer o que fez e que depois a matei. Eu sei, Andy, e você também
sabe. Não tem poder no Céu nem na Terra que possa impedir as pessoas de
pensarem o pior quando querem pensar o pior.
Bom, nadinha disso é verdade. Eu não a forcei a fazer nada, e ela não fez o
que fez porque me amava, a nal nem gostava de mim. Acho que talvez tenha
feito por achar que me devia algo. Do jeito peculiar dela, poderia ter pensado
que me devia muita coisa, e não teria sido a cara dela falar alguma coisa. Pode
até ser que o que fez foi o seu jeito de me agradecer… não por trocar as fraldas
cagadas, mas por estar lá nas noites que os os se soltavam dos cantos e as
bolinhas de poeira saíam de debaixo da cama.
Você não entendeu essa parte, eu sei, mas vai entender. Antes de abrir
aquela porta e sair desta sala, prometo que você vai entender tudo.
Ela tinha três jeitos de ser uma lha da puta. Conheço mulheres que tinham
mais, mas três é bom pra uma velha senil que cava presa em uma cadeira de
rodas ou na cama durante a maior parte do tempo. Três é muito bom pra uma
mulher assim.
O primeiro jeito era quando ela era uma lha da puta porque não conseguia
se segurar. Lembra o que falei sobre os pregadores de roupas, que eu tinha que
usar seis pra pendurar lençóis e nunca só quatro? Bom, isso é só um exemplo.
Havia certos jeitos como as coisas tinham que ser feitas se você trabalhasse
pra sra. Vera Não Gostou En a No Cu Donovan, e era bom que você não
esquecesse nenhum. Ela explicava como as coisas seriam logo de cara, e eu sou
a prova de que eram assim mesmo. Se esquecesse uma vez, você ouvia até os
seus tímpanos estourarem. Se esquecesse duas, ela descontava do pagamento.
Se esquecesse três, já era: você ia para o olho da rua, e ela não ouviria
nenhuma desculpa. Essa era a regra da Vera, e por mim tudo bem. Eu achava
rigorosa, mas justa. Se você ouvisse duas vezes em que prateleira ela queria que
o bolo fosse colocado quando saísse do forno, e que não era nunca pra colocar
no parapeito da cozinha pra esfriar, como os irlandeses faziam, e você ainda
assim não conseguisse lembrar, havia uma boa chance de você nunca conseguir
lembrar.
A regra era: três erros e rua. Não havia exceções, e eu trabalhei com muitas
pessoas diferentes naquela casa ao longo dos anos por causa disso. Ouvi mais
de uma vez que, no passado, trabalhar para os Donovans era como entrar em
uma daquelas portas giratórias. Você poderia dar uma volta, ou duas —
algumas pessoas chegavam a dar dez ou doze —, mas sempre acabava jogado
na calçada no nal. Então, quando fui trabalhar pra Vera, isso em 1949, fui
como se estivesse prestes a entrar na caverna de um dragão. Mas ela não era
tão ruim quanto as pessoas gostavam de dizer. Se você casse de ouvidos
abertos, dava para se manter lá. Eu quei, e o bonitão cou também. Mas era
preciso pisar em ovos o tempo todo, porque ela era alerta, porque sempre sabia
mais do que estava acontecendo com o pessoal da ilha do que qualquer um dos
turistas de veraneio… e porque sabia ser cruel. Mesmo naquela época, antes
de todos os problemas, ela sabia ser cruel. Era tipo um hobby pra ela.
“O que está fazendo aqui?”, ela perguntou pra mim no primeiro dia. “Não
deveria estar cuidando daquele seu bebezinho e fazendo um jantar caprichado
pra tampa da sua panela?”
“A sra. Cullum ca feliz de cuidar da Selena quatro horas por dia”, falei. “Eu
só posso trabalhar meio período, senhora.”
“Eu só preciso de meio período, como acredito que o meu anúncio nessa
merda barata que alega ser um jornal dizia”, respondeu ela na lata… apenas
para me mostrar a ponta daquela língua ferina, mas não exatamente me
cortando como faria tantas vezes depois.
Pelo que lembro, Vera estava tricotando naquele dia. Aquela mulher
tricotava como um raio: um par de meias em um dia não era problema pra ela,
mesmo que começasse às dez da manhã. Mas dizia que tinha que estar com
humor pra isso.
“Sim’sora”, falei. “Dizia.”
“O meu nome não é ‘Sim’sora’”, retrucou ela, botando o tricô de lado. “É
Vera Donovan. Se eu te contratar, você vai me chamar de sra. Donovan, pelo
menos até nos conhecermos bem o bastante pra mudar, e eu vou te chamar de
Dolores. Está claro?”
“Sim, sra. Donovan.”
“Tudo bem, estamos começando bem. Agora, responda à pergunta. O que
está fazendo aqui se tem a sua casa pra cuidar, Dolores?”
“Quero ganhar um dinheirinho para o Natal”, expliquei. Eu já tinha decidido
no caminho que diria isso se ela perguntasse. “E, se eu for satisfatória até lá, e
se gostar de trabalhar pra senhora, claro, talvez eu que um pouco mais.”
“Se você gostar de trabalhar pra mim”, repetiu ela, e revirou os olhos como se
fosse a coisa mais idiota que já tinha ouvido. Como que alguém poderia não
gostar de trabalhar pra maravilhosa Vera Donovan? Então ela repetiu:
“Dinheirinho para o Natal”. Ela fez uma pausa, sem tirar os olhos de mim, e
disse de novo, ainda mais sarcástica: “Dinheirinho de Nataaaal!”.
Como se descon asse que eu estivesse lá porque mal tinha limpado os grãos
de arroz do cabelo e já estava tendo problemas no casamento, ela só queria me
ver corar e baixar os olhos pra ter certeza. Então não corei e não baixei os
olhos, apesar de só ter vinte e dois anos e ser quase aquilo. Também não teria
admitido pra ninguém que já estava tendo problemas; não teria falado nem sob
tortura. Dinheiro para o Natal estava bom pra Vera, por mais sarcástico que
fosse o seu modo de falar, e a única coisa que eu admitiria pra mim mesma era
que o dinheiro estava meio apertado naquele verão. Só anos depois conseguiria
admitir o verdadeiro motivo pra eu ter ido enfrentar o dragão na toca naquele
dia: precisava encontrar um jeito de recuperar uma parte do dinheiro que Joe
estava bebendo durante a semana e perdendo nos jogos de pôquer de sexta à
noite na Taverna do Fudgy, no continente. Na época, eu ainda acreditava que o
amor de um homem por uma mulher e de uma mulher por um homem era
mais forte do que o amor pela bebida e pela confusão, que o amor acabaria
vindo à superfície, como a nata em uma garrafa de leite. Aprendi a verdade nos
dez anos seguintes. O mundo é uma sala de aula lamentável às vezes, não?
“Bom”, disse Vera, “vamos nos experimentar, Dolores St. George… se bem
que, mesmo que você dê certo, imagino que vai estar grávida de novo em um
ou dois anos, e depois eu não vou ver mais a sua cara.”
O fato era que eu já estava com dois meses de gravidez, mas também não
teria revelado isso nem sob tortura. Queria os dez dólares por semana que o
emprego pagava, e recebi, e pode acreditar quando digo que mereci cada
centavinho. Trabalhei como louca naquele verão, e quando chegou o Labor
Day, Vera me perguntou se eu queria continuar depois que eles voltassem pra
Baltimore, a nal uma casa grande daquelas precisa de alguém que cuide dela o
ano todo, sabe como é, então eu disse que tudo bem.
Fiquei no trabalho até um mês antes de Joe Junior nascer, e voltei antes
mesmo de ele ter largado a teta. No verão, eu o deixei com Arlene Cullum;
Vera não aceitava um bebê chorando em casa, não. Mas quando ela e o marido
iam embora, eu levava ele e Selena comigo. Selena podia car sozinha quase
sempre; mesmo com dois anos, quase três, ela era con ável na maior parte do
tempo. Joe Junior eu levava comigo nas atividades do dia. Ele deu os primeiros
passos na suíte principal, mas pode acreditar que Vera nunca cou sabendo.
Ela me ligou uma semana depois do parto (quase não mandei o anúncio de
nascimento, mas decidi que, se ela achasse que eu estava querendo ganhar
presente, o problema era dela), me deu parabéns por dar à luz um lho e disse
o que acho que realmente ligou pra dizer: estava segurando a vaga pra mim.
Acho que queria me lisonjear, e conseguiu. Era o maior elogio que uma mulher
como Vera pode fazer, e signi cou bem mais pra mim do que o cheque de 25
dólares de bônus que recebi pelo correio em dezembro daquele ano.
Ela era dura, mas justa, e naquela casa era sempre a chefe. O marido só
cava lá um de cada dez dias mesmo, até no verão, quando os dois
supostamente moravam lá direto, mas quando ele estava, ainda dava pra sentir
quem mandava. Talvez ele tivesse duzentos ou trezentos executivos que
baixavam a calça cada vez que ele os mandava cagar, mas Vera era a chefe na
ilha Little Tall, e quando mandava que o marido tirasse os sapatos e parasse de
espalhar terra no tapete limpo, ele obedecia.
E como eu falei, ela tinha um jeito próprio de fazer as coisas. E se tinha! Não
sei de onde tirava as ideias, mas sei que Vera era prisioneira delas. Se as coisas
não eram feitas de certo jeito, ela tinha uma dor de cabeça ou dor de barriga.
Passava uma parte tão grande do dia veri cando tudo que eu pensei um monte
de vezes que ela teria mais paz de espírito se tivesse desistido e cuidado
pessoalmente da casa.
Todas as banheiras tinham que ser esfregadas com Spic and Span, isso era
uma coisa. Nada de Lestoil, nem Top Job, nem Mr. Clean. Só Spic and Span. Se
ela visse você esfregando uma banheira com qualquer outro produto era um
Deus nos acuda.
Quando o assunto era passar roupa, você tinha que usar um spray especial
de goma nas golas das camisas e blusas, e havia um pedaço de gaze que você
tinha que colocar em cima da gola antes de borrifar. Pra mim, a porcaria da
gaze não tinha serventia nenhuma, e eu devo ter passado pelo menos dez mil
camisas e blusas naquela casa, mas, se ela entrasse na lavanderia e visse que
você estava passando camisas sem aquele pedacinho de rede na gola, ou pelo
menos pendurada na ponta da tábua de passar, era um Deus nos acuda.
Se você não se lembrasse de ligar o exaustor na cozinha quando estava
fritando alguma coisa era um Deus nos acuda.
As latas de lixo na garagem, isso era outra coisa. Eram seis. Sonny Quist ia
uma vez por semana pegar o lixo orgânico, e a governanta ou uma das
empregadas, quem estivesse mais disponível, tinha que levar as latas de volta
pra garagem no mesmo minuto, no mesmo segundo que ele ia embora. E não
era pra arrastar até o canto e largar lá; elas tinham que ser en leiradas duas a
duas na parede leste da garagem, com as tampas de cabeça pra baixo. Se você
se esquecesse de fazer assim era um Deus nos acuda.
Também havia os capachos. Eram três: um na porta de entrada, um na porta
para o pátio e um na porta dos fundos, que tinha uma daquelas placas
arrogantes de até o ano passado, quando me cansei de
bater os olhos nela e tirei. Uma vez por semana, eu precisava tirar os capachos
e colocar em uma pedra grande no fundo do quintal, ah, eu diria a uns
quarenta metros da piscina, e bater neles com uma vassoura pra tirar a poeira.
Tinha que fazer a poeira voar mesmo. E se você atrasasse, Vera acabava
pegando. Ela não olhava todas as vezes que você batia nos capachos, mas olhava
muitas vezes, sim. Parava no pátio com um binóculo do marido. E a questão era
que quando você levava os capachos de volta pra casa, tinha que garantir que
- estava virado para o lado certo. O lado certo era o que a pessoa
chegando na porta, qualquer uma delas, pudesse ler. Se você colocasse um
capacho ao contrário era um Deus nos acuda.
Devia haver mais de quarenta regrinhas dessas. Antigamente, quando
comecei como diarista, muita gente falava mal da Vera Donovan no mercado.
Os Donovans ganhavam bem, durante toda a década de 1950 tiveram muitos
funcionários, e normalmente quem mais reclamava era alguma garotinha que
havia sido contratada pra trabalho de meio período e foi demitida por esquecer
uma das regras três vezes seguidas. Ficava dizendo pra quem quisesse ouvir que
Vera Donovan era uma morcega velha cruel e de língua ferina, além de uma
louca de pedra. Bom, talvez ela fosse louca ou talvez não fosse, mas vou dizer
uma coisa: se você lembrasse, ela não pegava no seu pé. E o que penso é o
seguinte: qualquer um que lembre quem está dormindo com quem em todas
aquelas novelas que passam de tarde pode muito bem se lembrar de usar Spic
and Span nas banheiras e deixar os capachos virados para o lado certo.
Mas os lençóis. Ah, essa era uma coisa que você nunca ia querer errar.
Tinham que ser pendurados com perfeição nos varais, com as bordas alinhadas,
sabe? E tinha que ser com seis pregadores em cada um. Nunca quatro, sempre
seis. E se você arrastasse um na lama não precisaria nem esperar errar três
vezes. Os varais cavam na lateral da casa, bem debaixo da janela do quarto
dela. Vera ia até a janela ano após ano e gritava:
“Seis pregadores, Dolores! Presta atenção aqui! Seis, não quatro! Estou contando,
e os meus olhos não envelheceram nada!”
Ela…
O quê, meu bem?
Ai, que saco, Andy. Deixa a mulher em paz. É uma boa pergunta, e uma que
nenhum homem pensaria em perguntar.
Eu vou te dizer, Nancy Bannister de Kennebunk, Maine: sim, ela tinha
secadora, uma das boas, grandona, mas nós éramos proibidas de colocar os
lençóis lá, a não ser que houvesse cinco dias de chuva na previsão.
“O único lençol que vale a pena ter na cama de uma pessoa decente é o que
secou a céu aberto”, ela dizia, “porque ca com um cheiro doce. Pega um pouco
do vento que o balança e guarda, e esse cheiro joga a gente no mundo dos
sonhos bons.”
Vera era cheia de frescura, mas não com o cheiro de ar fresco nos lençóis;
sobre isso eu achava que ela estava certíssima. Qualquer um sente a diferença
entre um lençol que secou na máquina e um sacudido por um bom vento do
sul. Mas havia muitas manhãs de inverno em que fazia menos doze graus, e o
vento vinha do leste forte e úmido, direto do Atlântico. Em manhãs assim, eu
abriria mão do cheiro doce sem um pio. Pendurar lençóis no frio absoluto é
uma espécie de tortura. Só sabe como é quem já fez, e, quando se fez, você
nunca esquece.
Você leva a cesta até o varal e o vapor sobe de cima, e o primeiro lençol está
quente, e talvez você pense — isso se nunca tiver feito aquilo antes — Ah, até
que não é tão ruim. Mas quando tiver pendurado o primeiro lençol e ajeitado as
bordas e colocado os seis pregadores, o tecido já parou de soltar vapor. Ainda
vai estar molhado, mas frio também. Os dedos cam molhados, frios. Mas você
vai para o próximo, depois para o próximo, depois para o próximo, e os seus
dedos cam vermelhos, lentos, e os ombros doem, e a boca ca dormente de
segurar os pregadores pra que as suas mãos quem livres e ágeis o tempo todo,
mas a maior parte da infelicidade está ali, nos dedos. Se cassem dormentes,
tudo bem. A gente até torce pra isso. Mas eles só cam vermelhos, e se houver
lençóis su cientes, a pele adquire um tom roxo pálido, como as bordas de
alguns lírios. Quando você termina, as suas mãos viraram garras. Mas o pior é
que você sabe o que vai acontecer quando entrar com aquela cesta vazia e o
calor atingir as suas mãos. Elas começam a formigar, depois começam a latejar
nas juntas… só que é um sentimento tão profundo que está mais pra chorar do
que latejar; eu queria poder descrever pra que você soubesse, Andy, mas não
consigo. Nancy Bannister ali parece saber, pelo menos um pouco, mas tem
uma grande diferença entre pendurar as roupas no continente no inverno e
pendurar aqui na ilha. Quando os seus dedos começam a se aquecer de novo,
parece que tem um enxame de insetos neles. Você os esfrega todinhos com
algum creme pras mãos e espera que a coceira passe, mas sabe que não importa
quanto creme de loja ou simplesmente sebo de carneiro esfregue; quando
chegar o m de fevereiro, a pele vai estar tão rachada que vai se abrir e sangrar
se você a fechar com força. E às vezes, mesmo depois de você ter se aquecido
de novo e talvez até depois de ir pra cama, as suas mãos vão te acordar no meio
da noite, com a lembrança daquela dor. Você acha que estou brincando? Pode
rir se quiser, mas eu que não vou rir, nem um pouco. Quase dá pra ouvir as
mãos, como criancinhas que não conseguem encontrar a mãe. Vem lá de
dentro, e você ca deitada ouvindo, sabendo o tempo todo que vai lá pra fora
de novo mesmo assim, não pode fazer nada sobre isso, e é a parte do trabalho
de uma mulher do qual nenhum homem sabe ou quer saber.
E enquanto você passava por aquilo, as mãos dormentes, os dedos roxos, os
ombros doendo, com catarro escorrendo do nariz e congelando acima do lábio
superior, era bem comum que ela casse parada de pé ou sentada na janela do
quarto, olhando. A testa estaria franzida e os lábios repuxados e as mãos
apertando uma à outra. Toda tensa, como se fosse uma operação hospitalar
complicada em vez de só pendurar lençóis pra secar no vento de inverno. Daria
pra ver que ela estava tentando se segurar, car de boca calada dessa vez, mas
depois de um tempo não conseguiria mais, então abriria a janela, se inclinaria
pra fora de forma que o vento frio do leste soprasse o cabelo dela pra trás e
berraria:
“Seis pregadores! Se lembra de usar seis pregadores! Não deixa o vento soprar os
meus lençóis bons para o canto do quintal! Presta atenção! É melhor que preste,
porque eu estou olhando e estou contando!”
Quando março chegava, eu estava sonhando em pegar a machadinha que eu
e o bonitão usávamos pra cortar lenha para o fogão da cozinha (até ele morrer,
quer dizer; depois disso, o trabalho era todo meu, olha só que sorte a minha) e
cravá-la entre os olhos daquela lha da puta bocuda. Às vezes até conseguia me
ver fazendo isso de tanto que ela me irritava, mas acho que eu sempre soube
que havia uma parte dela que odiava gritar daquele jeito tanto quanto eu odiava
ouvir.
Este era o primeiro jeito de Vera de ser lha da puta: quando não conseguia
se segurar. Era pior pra ela do que pra mim, principalmente depois de ela ter os
derrames graves. Havia bem menos roupa lavada pra pendurar, mas ela
continuava tão louca com isso quanto antes de a maioria dos aposentos da casa
carem fechados e quase todas as camas de hóspedes carem vazias e os
lençóis em sacos de plástico carem guardados no armário.
O que di cultou pra ela foi que, por volta de 1985, os dias de surpreender as
pessoas acabaram: Vera dependia de mim até pra se deslocar. Se eu não
estivesse lá pra levantá-la e colocá-la na cadeira de rodas, ela cava na cama.
Ela tinha engordado muito, sabe; foi de uns sessenta quilos mais ou menos, no
começo dos anos 1960, pra mais de oitenta e cinco, e a maior parte do peso que
ganhou foi aquela gordura amarelada que se vê nas pessoas velhas. Pendia dos
braços e das pernas como massa de pão em um palito. Algumas pessoas cam
magras como carne seca no ocaso da vida, mas não Vera Donovan. O dr.
Freneau disse que era porque os rins dela não estavam trabalhando direito.
Acho que era mesmo, mas em muitos dias pensei que ela ganhou aquele peso
só pra me dar trabalho.
E o peso não era tudo; ela estava cando cega também. Foram os derrames.
A visão que ainda tinha ia e vinha. Alguns dias Vera enxergava um pouco com o
olho esquerdo e muito bem com o direito, mas na maioria dos dias ela dizia
que era como olhar através de uma cortina cinza espessa. Acho que dá pra
entender por que isso a deixou doida, a nal ela era do tipo que cava de olho
em tudo. Algumas vezes, ela chorou por causa disso, e pode acreditar que era
bem difícil fazer uma mulher durona daquele jeito chorar… e mesmo depois
que os anos a tinham dobrado, ela ainda era durona.
O quê, Frank?
Senil?
Não tenho certeza, e essa é a verdade. Acho que não. E se ela estava, não era
do mesmo jeito que os velhos cam senis. Não estou dizendo isso só porque, se
ela estivesse mesmo, o juiz encarregado do testamento é capaz de usar o
documento pra assoar o nariz. Aliás, por mim, ele pode até limpar a bunda
com aquele testamento; eu só quero sair dessa confusão em que Vera me
colocou. Mas tenho que dizer que ela provavelmente não estava com a cabeça
completamente vazia, nem mesmo no nal. Alguns cômodos estavam livres,
mas não todos.
O motivo principal pra eu dizer isso é que tinha dias em que ela estava quase
tão a ada quanto antes. Em geral eram os mesmos dias em que ela enxergava
um pouco, ajudava no esforço de se sentar na cama e até andava os dois passos
até a cadeira de rodas, em vez de ter que ser levantada como um saco de grãos.
Eu a colocava na cadeira de rodas pra poder trocar a cama, e ela queria estar
nela pra poder ir até a janela, a que tinha vista pra lateral da casa e para o
porto. Vera me contou uma vez que caria louca de verdade se tivesse que car
deitada dia e noite, sem nada além do teto e as paredes pra olhar, e eu
acreditei.
Ela tinha os dias confusos, sim. Dias em que não sabia quem eu era e quase
nem sabia quem ela era. Nesses ela parecia um barco que tinha se soltado das
amarras, só que o mar em que ela estava à deriva era o tempo: Vera podia
muito bem pensar que era 1947 de manhã e 1974 de tarde. Mas tinha dias bons
também. Estes foram reduzindo em quantidade com o passar do tempo e à
medida que ela continuou tendo os pequenos derrames — o que o pessoal de
antigamente chama de “choques” —, mas os dias bons existiam. Existiam e
eram os meus dias ruins, porque, se eu deixasse, ela voltava a ser cem por cento
a velha lha da puta de antes.
Ela era cruel. Esse era o segundo jeito de Vera ser lha da puta. Aquela
mulher sabia ser cruel como cocô de gato quando queria. Mesmo presa a uma
cama na maior parte do tempo, usando fralda e calça plástica, ela era
insuportável. As sujeiras que fazia nos dias de limpeza são um bom exemplo do
que quero dizer. Ela não fazia toda semana, mas, por Deus, vou te dizer que
fazia às quintas com frequência demais pra ser mera coincidência.
Quinta-feira era o dia de faxina na casa dos Donovans. É uma casa enorme
— e você só tem ideia disso depois que anda lá dentro —, mas a maior parte
está fechada. Os dias em que poderia haver umas seis garotas com o cabelo
preso em lenços, polindo aqui, lavando janelas ali e tirando teias de aranha dos
cantos do teto em algum outro lugar já acabaram há mais de vinte anos. Eu
andei por aqueles aposentos sombrios algumas vezes, observando os móveis
cobertos por lençóis, e pensei em como o lugar era nos anos 1950, quando
davam festas no verão. Sempre havia lanternas japonesas de cores diferentes no
gramado, disso eu me lembro muito bem! Ao andar por lá, sinto sempre um
arrepio esquisito. No m das contas, as cores fortes sempre desbotam da vida,
já reparou? No m, é tudo cinzento, como um vestido que foi lavado vezes
demais.
Nos últimos quatro anos, a parte aberta da casa é composta pela cozinha, a
sala de estar, a sala de jantar, a varanda fechada com vista pra piscina e o pátio,
e quatro quartos no andar superior: o dela, o meu e dois de hóspedes. Os
quartos de hóspedes não eram muito aquecidos no inverno, mas cavam
arrumados para o caso de os lhos dela aparecerem pra passar uns dias.
Mesmo nesses últimos anos, eu tinha duas garotas da cidade que me
ajudavam nos dias de faxina. A rotatividade de funcionárias sempre foi alta lá,
mas desde 1990, mais ou menos, são sempre Shawna Wyndham e Susy, a irmã
do Frank. Eu não daria conta sem elas, mas ainda tem muitas tarefas que eu
mesma faço, e, quando as garotas vão pra casa às quatro da tarde de quinta, eu
estou mortinha. Ainda tem muita coisa depois disso: o resto da roupa pra
passar, a lista de compras de sexta pra fazer, e o jantar da Sua Alteza pra
preparar, claro. Quem pode, pode; quem não pode, se sacode, como dizem.
Só que antes de qualquer uma dessas coisas sempre havia alguma merda dela
pra resolver.
Na maior parte do tempo, Vera era regular nos chamados da natureza. Eu
en ava a comadre debaixo dela de três em três horas, e ela soltava um jatinho.
E na maioria dos dias haveria algo sólido junto com o xixi depois do meio-dia.
Menos às quintas.
Não todas as quintas, mas nas quintas em que ela estava bem, eu podia ter
quase certeza de que haveria confusão… e com uma dor nas costas que me
deixaria acordada até a meia-noite. Nem um analgésico aliviava no nal. Fui
saudável como um touro durante a maior parte da vida e continuo saudável
como um touro, mas sessenta e cinco anos são sessenta e cinco anos. Não dá
pra se recuperar como antes.
Às quintas, em vez de encher meia comadre com xixi às seis da manhã,
vinha só um respingo. A mesma coisa às nove. E ao meio-dia, em vez de um
pouco de xixi e um cocô, era capaz de não haver nada. Nessa hora, eu sabia que
o dia talvez seria daqueles. As únicas vezes em que tinha certeza era quando eu
não tinha nenhum prêmio sólido na quarta também.
Estou vendo que você está segurando a risada, Andy, mas tudo bem. Pode
soltar, se precisar. Não era motivo de riso na época, mas agora acabou, e o que
você está pensando não passa da verdade. A lha da mãe tinha uma poupança
de merda, e parecia que em algumas semanas ela não fazia retiradas pra juntar
o lucro… só que quem recebia todas as retiradas era eu. Eu recebia, quisesse
ou não.
Eu passava a maior parte das tardes de quinta subindo as escadas correndo,
tentando chegar a tempo, e às vezes até conseguia. Mas fosse qual fosse o
estado dos olhos dela, não havia nada de errado com os ouvidos, e Vera sabia
que eu nunca deixava nenhuma das garotas da cidade aspirar o tapete
Aubusson na sala. Quando ouvia o aspirador ser ligado, ela acionava a fábrica
velha de churros e aquela Poupança de Merda começava a distribuir os
dividendos.
Aí eu pensei em um jeito de pegá-la. Gritava pra uma das garotas que estava
indo aspirar a sala. Gritava mesmo que as duas estivessem no cômodo ao lado.
Ligava o aspirador, mas, em vez de usá-lo, ia até o pé da escada e cava parada
lá com um pé no primeiro degrau e a mão no começo do corrimão, como um
corredor agachado à espera do tiro de largada.
Uma ou duas vezes, subi cedo demais. Não foi bom. Como um corredor
desquali cado por queimar a largada. Era preciso chegar lá em cima quando o
motor já estava indo rápido demais pra desligar, mas antes de ela ter engatado a
marcha e largado um carregamento em uma daquelas calcinhas pra
incontinência que usava. Eu quei boa nisso. Você também caria se soubesse
que, caso errasse o momento, acabaria tendo que erguer uma velha de oitenta e
cinco quilos. Era como tentar lidar com uma granada de mão carregada de
merda em vez de explosivos.
Eu chegava lá e Vera estava deitada naquela cama de hospital, com o rosto
vermelho, a boca toda retorcida, os cotovelos en ados no colchão e as mãos
fechadas. Fazia “Unnh! Unnnnnhhhh! !”. Vou te dizer
uma coisa: ela só precisava de uns pedaços de mata-moscas pendurados no teto
e um catálogo da Sears no colo pra parecer que estava em casa.
Ai, Nancy, para de morder as bochechas por dentro. Melhor soltar e
aguentar a vergonha do que segurar e aguentar a dor, como dizem. Além do
mais, existe um lado engraçado; merda sempre tem. Pode perguntar a qualquer
criança. Eu até consigo achar um pouco engraçado agora que acabou, e isso é
uma coisa e tanto, né? Por mais encrencada que eu esteja, o meu tempo de
aguentar as Quintas de Merda da Vera Donovan acabou.
Se ela cava com raiva ao me ouvir chegando? Com tanta raiva quanto um
urso pego com uma pata en ada no mel.
“O que você está fazendo aqui em cima?”, perguntava ela, com aquele jeito
besta de falar que usava sempre que alguém a pegava fazendo besteira, como se
ainda frequentasse Vassar, Holy Oaks ou fosse qual fosse das Sete Irmãs pra
qual os pais a mandavam. “É dia de faxina, Dolores! Vá cuidar do seu trabalho!
Eu não te chamei e não preciso de você!”
Ela não me assustava mais.
“Eu acho que você precisa de mim, sim. O cheiro vindo da sua bunda não é
de Chanel Número Cinco, é?”, eu retrucava.
Às vezes, ela até tentava bater nas minhas mãos quando eu puxava o lençol e
o cobertor. Ficava me olhando de cara feia como se quisesse me transformar
em pedra se eu não fosse embora, e projetava o lábio inferior em um biquinho
como uma criança que não quer ir pra escola. Mas eu nunca deixava nada disso
me impedir. Não Dolores, lha de Patricia Claiborne. Eu abaixava o lençol em
uns três segundos, e nunca levava mais do que cinco pra puxar a calça e abrir a
ta adesiva da fralda que ela usava, quer Vera batesse na minha mão ou não. Na
maioria das vezes ela parava depois de tentar duas vezes, porque tinha sido
pega no agra e nós duas sabíamos. O equipamento dela estava tão velho que,
quando ela começava, as coisas tinham que seguir o rumo. Eu en ava a
comadre embaixo dela com a maior facilidade do mundo, e quando descia a
escada pra realmente aspirar a sala, ela muitas vezes cava lá me xingando
como um estivador. Nessas horas, não parecia nem um pouco uma garota de
Vassar, isso eu posso a rmar! Porque ela sabia que daquela vez havia perdido o
jogo, entende, e não havia nada que a Vera odiasse mais do que isso. Mesmo
senil, ela odiava muito perder.
As coisas foram assim por um bom tempo, e comecei a pensar que eu tinha
vencido a guerra em vez de algumas batalhas. Eu deveria saber que não era
bem assim.
Chegou um dia de faxina, tipo um ano e meio atrás, quando eu estava com
tudo pronto pra sair correndo pela escada e pegá-la no agra de novo. Eu até
tinha passado a gostar, de certa forma; compensava várias vezes no passado em
que ela tinha me passado a perna. E achei que Vera estava planejando um
tornado de merda daquela vez, se conseguisse. Todos os sinais estavam lá, e
alguns outros. Primeiro, ela não estava tendo só um dia bom, estava tendo uma
semana boa; na segunda-feira, tinha até me pedido pra colocar a tábua sobre os
braços da cadeira pra poder jogar paciência, como antigamente. E, no que dizia
respeito ao intestino, estava passando por uma fase de baixa produção; não
tinha feito nenhum donativo à comadre desde o m de semana. Achei que
naquela quinta ela estivesse planejando me dar um presente de Natal pra
acompanhar a renda da poupança.
Naquele dia, depois que tirei a comadre de debaixo dela ao meio-dia e vi que
estava seca como o deserto, perguntei:
“Você não acha que poderia fazer alguma coisa se tentasse mais, Vera?”
“Ah, Dolores”, respondeu ela, me olhando com os olhos azuis
esbranquiçados com a inocência de um cordeirinho de Maria, “eu me esforcei
ao máximo. Tentei tanto que doeu. Acho que estou constipada.”
Concordei na hora.
“Acho que está, e se não der jeito logo, querida, vou ter que te dar uma caixa
inteira de laxante pra soltar tudo de uma vez.”
“Ah, acho que tudo vai se resolver com o tempo”, disse ela, e abriu um
daqueles sorrisos. Vera não tinha mais nenhum dente e não podia usar a
dentadura de baixo se não estivesse sentada na cadeira, pois existia a
possibilidade de ela acabar tossindo, a coisa entrar pela garganta e ela se
engasgar. Quando sorria, o seu rosto parecia um pedaço de tronco de árvore
velho com um buraco. “Você me conhece, Dolores. Eu acredito em deixar a
natureza seguir o seu rumo.”
“Eu te conheço muito bem”, meio que murmurei, ao me virar.
“O que você disse, querida?”, perguntou ela, num tom tão doce que parecia
que açúcar nem derreteria na sua boca.
“Eu falei que não posso car parada aqui esperando que você faça o número
dois. Tenho trabalho pra fazer. É dia de faxina, sabe?”
“Ah, é?”, disse ela, como se não soubesse que dia era desde o segundo em que
acordou naquela manhã. “Então vai, Dolores. Se eu sentir necessidade de usar
a comadre, eu te chamo.”
Aposto que vai, eu pensei, só que uns cinco minutos depois de acontecer.
Mas não falei; só desci a escada.
Peguei o aspirador no armário da cozinha, levei pra sala e o liguei na
tomada. Mas não o liguei de cara; passei alguns minutos tirando o pó com o
espanador. Tinha chegado ao ponto de poder depender dos meus instintos, e
estava esperando que algo dentro de mim dissesse que era a hora.
Quando a coisa se manifestou, gritei pra Susy e Shawna que ia aspirar a sala.
Gritei tão alto que acho que metade das pessoas do vilarejo ouviu, além da
Rainha Mãe no andar de cima. Liguei o Kirby e fui para o pé da escada.
Naquele dia, não esperei muito; foram só trinta ou quarenta segundos. Achei
que ela devia estar por um o. Então subi, dois degraus de cada vez, e o que
você acha?
Nada!
Nadinha.
Só que…
Só que ela estava me olhando de um jeito, sabe? Com uma calma e doçura
danada.
“Esqueceu alguma coisa, Dolores?”
“Aham. Eu me esqueci de largar este emprego cinco anos atrás. Vamos parar
com isso, Vera.”
“Parar com o quê, querida?”, perguntou ela, meio que balançando os cílios,
como se não tivesse a menor ideia do que eu estava falando.
“Vamos parar por aqui, é isso que eu quero dizer. Só me diz de uma vez:
você precisa da comadre ou não?”
“Não preciso”, respondeu ela, com a voz mais honesta possível. “Eu já falei!”
Ela só sorriu pra mim. Não disse nada, mas não precisou. O rosto dela falou
tudo que precisava ser dito. Eu te peguei, Dolores. Te peguei de jeito.
Mas eu não tinha terminado. Eu sabia que Vera estava segurando uma
bomba e sabia que seria um inferno se conseguisse começar antes de eu
colocar a comadre embaixo dela. Então desci a escada e quei ao lado do
aspirador, esperei cinco minutos e subi correndo de novo. Só que dessa vez ela
não sorriu pra mim quando entrei. Dessa vez, estava deitada de lado, dormindo
profundamente… ou foi o que pensei. De verdade. Ela me enganou direitinho,
e você sabe o que dizem: errar é humano, repetir o erro é burrice.
Quando desci pela segunda vez, realmente aspirei a sala. Quando terminei a
tarefa, guardei o Kirby e fui dar uma olhada nela. Vera estava sentada na cama,
bem acordada, com a coberta afastada, a calça plástica empurrada até os
joelhos gordos e ácidos e a fralda aberta. Se tinha feito sujeira? Meu bom
Deus! A cama estava cheia de merda, ela estava coberta de merda, tinha merda
no tapete, na cadeira de rodas, nas paredes. Tinha merda até na cortina.
Parecia que ela tinha segurado um punhado e arremessado, do jeito que
crianças arremessam lama umas nas outras quando estão nadando em um
laguinho.
Fiquei puta da vida! Tão puta a ponto de cuspir!
“Vera, sua FILHA DA PUTA imunda!”, gritei.
Eu não a matei, Andy, mas, se fosse matar, teria sido naquele dia, quando vi
aquela imundície e senti o cheiro do quarto. Tive vontade de matá-la, sim; não
adianta mentir sobre isso. E ela só cou me olhando com aquela expressão
tonta que fazia quando a mente estava pregando peças nela… mas eu vi o
diabo dançando naqueles olhos e soube muito bem quem pregou peça em
quem daquela vez. Errar é humano, repetir o erro é burrice.
“Quem é? Brenda, é você, meu bem? As vacas saíram de novo?”, ela
perguntou.
“Você sabe que não tem vaca nenhuma a cinco quilômetros daqui desde
1955!”, berrei.
Atravessei o quarto a passos largos, o que foi um erro, porque pisei em um
cocô e quase caí de costas. Se tivesse caído, eu talvez a tivesse matado mesmo;
não conseguiria me segurar. Naquela hora, estava preparada pra semear vento
e colher tempestade.
“Não seeeei”, disse ela, tentando parecer a velha coitada e lamentável que
realmente era em muitos dias. “Não seeeei! Eu não consigo ver, e o meu
estômago está tão embrulhado. Acho que vou vomitar. É você, Dolores?”
“Pode ter certeza de que sou eu, sua sapa velha!”, falei, ainda berrando a
plenos pulmões. “Eu sou capaz de te matar!”
Imagino que àquelas alturas Susy Proulx e Shawna Wyndham estivessem
paradas no pé da escada, ouvindo tudo, e imagino que você já tenha falado com
as duas e elas tenham me jogado na fogueira. Não precisa responder, Andy; o
seu rosto é um livro aberto.
Vera percebeu que não estava me enganando nem um pouco, ao menos não
mais, então desistiu de tentar me fazer acreditar que tinha entrado em uma
fase ruim e cou furiosa em legítima defesa. Acho que talvez eu a tenha
assustado um pouco. Pensando melhor, assustei a mim mesma… mas, Andy, se
você tivesse visto aquele quarto! Parecia a hora do jantar no inferno.
“E acho que vai mesmo!”, ela gritou pra mim. “Um dia você vai mesmo, sua
bruxa velha, feia e mal-educada! Você vai me matar como matou o seu
marido!”
“Não, senhora. Não exatamente. Quando for a hora de cuidar de você, não
vou me dar ao trabalho de fazer parecer que foi acidente. Eu vou te empurrar
pela janela e vai ter uma bruxa fedorenta a menos no mundo.”
Eu a segurei pela cintura e a levantei como se eu fosse a Supermulher. Senti
na coluna naquela noite, isso eu posso te dizer, e na manhã seguinte mal
consegui andar de tanta dor. Procurei aquele quiropraxista em Machias, e ele
fez algo que me fez me sentir um pouco melhor, mas nunca mais fui a mesma
depois daquele dia. Só que na hora não senti nada. Eu a puxei daquela cama
como se fosse uma garotinha furiosa e ela fosse a boneca de pano na qual eu ia
descontar minha raiva. Vera começou a tremer, e só de saber que ela cou com
medo consegui me controlar de novo, mas eu estaria mentindo se dissesse que
não quei feliz de ela estar com medo.
“Aaaaiiiii!”, gritou ela. “Aaaaiii, não! Não me leva pra janela! Não me joga, não
se atreva! Me coloca no chão! Você está me machucando, Dolores! AIII, ME
COLOCA NO CHÃÃÃÕ!”
“Ah, fecha essa matraca”, falei, e a coloquei na cadeira de rodas com tanta
força a ponto de fazer os dentes baterem… se ela tivesse dentes pra baterem,
óbvio. “Olha a sujeira que você fez. E nem vem com essa de que não consegue
ver, porque eu sei que consegue. Olha só!”
“Desculpa, Dolores”, disse ela. Vera começou a balbuciar, mas vi aquela
luzinha cruel dançando nos olhos dela. Vi como se vê peixes em água límpida
quando se ca de joelhos em um barco e se olha pela lateral. “Desculpa, eu não
queria fazer sujeira, só estava tentando ajudar.”
Era isso que ela sempre dizia quando cagava na cama e esmagava um pouco a
merda… se bem que aquele dia foi o primeiro em que ela tentou fazer pintura
a dedo com a merda também. Eu só estava tentando ajudar, Dolores… pelo amor
de Deus.
“Fica sentada aí e cala a boca. Se você realmente não quiser uma viagem
rápida por aquela janela e mais rápida ainda para o jardim de pedras, é melhor
pensar antes de falar.”
E aquelas garotas lá no pé da escada, não tenho a menor dúvida, ouvindo
cada palavra que eu estava dizendo. Mas naquela hora eu estava com raiva
demais pra pensar nisso.
Ela teve bom senso de calar a boca como eu mandei, mas pareceu satisfeita,
e por que não? Tinha feito o que queria. Daquela vez, venceu a batalha e
deixou claro como água que a guerra não tinha acabado, aliás não estava nem
perto de acabar. Fui trabalhar, limpar e ajeitar as coisas. Levou quase duas
horas, e quando acabei a minha coluna estava cantando a “Ave Maria”.
Contei sobre os lençóis, sobre como isso era, e vi pela cara de vocês que deu
pra entender uma parte. É mais difícil entender as sujeiras dela. Eu não tenho
nojo de merda. Eu limpei merda a vida toda e ver merda nunca me deu nojo.
Não tem cheiro de jardim orido, claro, e é preciso tomar cuidado porque tem
doenças como meleca, baba e sangue, mas dá pra lavar, sabe? Qualquer um que
já teve um bebê sabe que dá pra lavar. Então não foi isso que tornou a situação
tão ruim.
Acho que foi o fato de ela ter sido muito cruel. Muito sorrateira. Ela esperou
e, quando teve oportunidade, fez a pior sujeira que pôde, e fez o mais rápido
que pôde, porque sabia que eu não daria muito tempo a ela. Vera fez aquela
coisa horrível de propósito, entende onde eu quero chegar? Até onde o cérebro
confuso permitiu, ela planejou, e isso pesou no meu coração e fechou a minha
cara enquanto eu limpava tudo. Enquanto tirava a roupa de cama; enquanto
levava o protetor de colchão sujo de merda e os lençóis sujos de merda e as
fronhas sujas de merda para o buraco da roupa suja; enquanto esfregava o chão,
as paredes e as vidraças; enquanto tirava a cortina e colocava uma limpa;
enquanto fazia a cama dela de novo; enquanto trincava os dentes e tentava
manter a coluna no lugar ao limpá-la e trocar sua camisola; enquanto a tirava
da cadeira e colocava na cama de novo (e Vera sem ajudar em nada, apenas um
peso morto nos meus braços, embora eu soubesse muito bem que era um
daqueles dias em que ela poderia ter ajudado se quisesse); enquanto eu lavava o
chão; enquanto eu lavava a maldita cadeira de rodas, e tinha que realmente
esfregar porque, àquelas alturas, a porcaria estava seca… Enquanto eu fazia
isso tudo, meu coração estava pesado, e o meu semblante, fechado. Ela sabia.
Sabia e cou feliz.
Quando voltei pra casa naquela noite, tomei um analgésico pra dor nas
costas, deitei e me encolhi em posição fetal apesar de isso machucar a minha
coluna também, então chorei, chorei e chorei. Não conseguia parar. Nunca,
pelo menos desde aquilo com Joe no passado, eu tinha me sentido tão
desanimada e desesperada. Tão velha.
Esse era o segundo jeito de ela ser uma lha da puta: sendo cruel.
O que você disse, Frank? Se ela fez de novo?
Você está brincando? Ela fez de novo na semana seguinte, e na outra. Não
foi tão ruim quanto na primeira aventura, em parte porque ela não conseguiu
economizar aquela merda toda, mas principalmente porque eu estava
preparada. Só que eu fui pra cama chorando de novo depois da segunda vez
que aconteceu, e quando quei deitada lá sentindo aquela infelicidade na
lombar, decidi pedir demissão. Não sabia o que aconteceria com ela nem quem
cuidaria dela, mas na hora eu não dava a mínima. Por mim, ela podia morrer
de fome deitada na cama toda cagada.
Eu ainda chorava quando peguei no sono, porque a ideia de pedir demissão,
de ela me vencer, me fez me sentir pior do que nunca. Mas, quando acordei, eu
estava me sentindo bem. Acho que é verdade que a nossa mente não dorme
mesmo que a gente ache que durma; a mente continua pensando, e às vezes faz
um trabalho ainda melhor quando a pessoa no comando não está lá pra
atrapalhar com a falação habitual que acontece na cabeça: tarefas a fazer, o que
almoçar, o que ver na televisão, coisas assim. Deve ser verdade, porque o motivo
pra eu me sentir tão bem foi que acordei sabendo como ela estava me
enganando. O único motivo pra eu não ter percebido antes era por ter a
tendência de subestimá-la… Sim, até eu, e eu sabia como ela podia ser
traiçoeira de tempos em tempos. Quando entendi o truque, soube o que fazer.
Doeu perceber que eu teria que con ar em uma das garotas de quinta pra
aspirar o Aubusson… e a ideia de Shawna Wyndham fazendo isso me deu o
que o meu avô chamava de “ataques de tremor”. Você sabe como ela é
estabanada, Andy… todos os Wyndhams são estabanados, mas ela ganha o
troféu. Parece que tem uns caroços no corpo feitos especialmente pra derrubar
as coisas quando passa. Não é culpa dela, está no sangue, mas não consegui
suportar pensar em Shawna andando pela sala com todos os bibelôs de vidro e
Ti any da Vera pedindo pra serem derrubados.
Mesmo assim, eu tinha que fazer alguma coisa: errar é humano, repetir o
erro é burrice. Por sorte, havia Susie pra ajudar. Ela não era nenhuma bailarina,
mas foi quem aspirou o Aubusson no ano seguinte, e nunca quebrou nada. Ela
é uma boa menina, Frank, e não consigo nem começar a expressar como quei
feliz de receber aquele anúncio de casamento dela, mesmo o sujeito sendo de
longe. Como os dois estão? O que você soube?
Ah, que ótimo. Ótimo. Fico feliz por ela. Por acaso não tem um bebê no
forninho, né? Ultimamente parece que as pessoas esperam até quase a hora de
ir para o asilo pra…
Sim, Andy, eu vou! Eu só queria que você lembrasse que é da minha vida que
estamos falando aqui, a porcaria da minha vida! Então por que você não se
senta nessa sua cadeira velha, levanta os pés e relaxa? Se continuar assim, vai
acabar tendo uma hérnia.
En m, Frank, manda um beijo pra Susie e diz que ela salvou a vida de
Dolores Claiborne no verão de 1991. Pode contar a história das merdas de
quinta e como eu z parar. Nunca contei pras duas exatamente o que estava
acontecendo; elas só sabiam que eu estava em um embate com Sua Alteza
Real. Vejo agora que eu tinha vergonha da situação. Acho que não gosto de ser
vencida tanto quanto Vera não gostava.
Era o som do aspirador, entende? Foi isso que eu percebi quando acordei
naquela manhã. Falei que não havia nada de errado com os ouvidos dela, e era o
som do aspirador que dizia se eu estava realmente aspirando a sala ou parada
no pé da escada, à espera. Quando um aspirador está parado, ele faz um som
só, entende? Só ZOOOOOO, assim. Mas quando se está aspirando um tapete,
ele faz dois sons, que sobem e descem em ondas. Whoop quando você o
empurra. E zoop quando você puxa pra perto pra empurrar de novo. WHOOP-
zoop, WHOOP-zoop, WHOOP-zoop.
Parem de coçar a cabeça, vocês dois, e olhem o sorriso da Nancy. Pra saber
qual de vocês já passou um tempo usando um aspirador, é só olhar a cara de
vocês. Se realmente achar que isso é importante, Andy, experimenta. Você vai
ouvir na hora, se bem que acho que a Maria cairia mortinha se chegasse e
encontrasse você aspirando o tapete da sala.
Naquela manhã, cheguei à conclusão de que ela havia parado de prestar
atenção em quando o aspirador era ligado, porque percebeu que isso já não era
su ciente. Estava prestando atenção se o som se deslocava como acontece
quando o aspirador está em funcionamento. Ela só faria o truquezinho sujo
quando ouvisse a onda de WHOOP-zoop.
Eu estava doida pra experimentar a minha ideia nova, mas não pude fazer
isso de cara, porque ela entrou em uma das fases ruins nessa época, e por um
tempo fez as necessidades na comadre ou um pouco de xixi na fralda se
precisasse. Comecei a car com medo de estar chegando a hora em que Vera
não sairia mais daquele estado. Sei que soa estranho, porque era bem mais fácil
cuidar dela quando ela cava com o pensamento confuso, mas quando se tem
uma ideia boa assim, dá vontade de fazer um teste. E, quer saber, eu sentia
alguma coisa por aquela lha da puta além de vontade de dar na cara dela.
Depois de conhecê-la por mais de quarenta anos, seria esquisito se não
sentisse. Ela tricotou uma colcha pra mim uma vez, sabia? Isso foi bem antes
de ela car mal, mas ainda está na minha cama, e me aquece nas noites de
fevereiro em que o vento ca cruel.
Aí, um mês ou um mês e meio depois que eu acordei com a minha ideia, ela
começou a voltar. Via Jeopardy! na televisãozinha do quarto e repreendia os
participantes se não soubessem quem foi o presidente durante a Guerra
Hispano-Americana ou quem fez Melanie em E o vento levou. Começou a
falação de que os lhos poderiam ir visitá-la antes do Labor Day. E, claro, me
perturbou pra ser colocada na cadeira pra poder me ver pendurar os lençóis e
ter certeza de que eu estava usando seis pregadores em vez de quatro.
Aí chegou uma quinta em que tirei a comadre de debaixo dela ao meio-dia
seca como o deserto e vazia como as promessas de um vendedor de carros. Não
sei explicar como quei satisfeita ao ver aquela comadre vazia. Vamos lá, sua
raposa velha e matreira, pensei. Agora a gente vai ver só. Desci e chamei Susy
Proulx pra sala.
“Eu quero que você aspire aqui hoje, Susy”, falei.
“Tudo bem, dona Claiborne”, disse ela.
Era como as duas me chamavam, Andy… como a maioria das pessoas na
ilha me chama, na verdade. Eu nunca z questão disso na igreja e em nenhum
outro lugar, mas é assim. Pelo jeito acham que fui casada com um sujeito
chamado Claiborne em algum momento do meu passado tumultuado… ou
talvez eu só queira acreditar que a maioria não se lembra do Joe, embora eu
ache que muitos lembram, sim. Não importa muito, de qualquer forma, no m
das contas; acho que tenho o direito de acreditar no que eu quiser acreditar. A
casada com o lho da mãe era eu, a nal.
“Eu não me importo, mas por que você está cochichando?”, continuou ela.
“Deixa isso pra lá, só fala baixo. E não quebra nada aqui, Susan Emma
Proulx. Nem sonhe.”
Bom, ela cou tão vermelha quanto a lateral de um carro de bombeiros; foi
até meio engraçado.
“Como você sabe que o meu segundo nome é Emma?”
“Não é da sua conta. Passei a vida em Little Tall e sei bastante coisa sobre
bastante gente. Só toma cuidado com os cotovelos perto dos móveis e dos vasos
de vidro colorido da Dona Deus, principalmente quando tiver que dar alguns
passos pra trás, e aí você não vai ter com que se preocupar.”
“Vou tomar muito cuidado”, disse ela.
Liguei o Kirby pra ela e fui para o saguão, coloquei as mãos em volta da boca
e gritei:
“Susy! Shawna! Vou aspirar a sala agora!”
Susy estava bem ali, claro, e vou te dizer que a cara toda da garota era um
ponto de interrogação. Meio que balancei a mão pra ela, dizendo que era pra
ela cuidar da própria vida e não me dar atenção. E ela fez isso mesmo.
Fui nas pontas dos pés até a base da escada e quei no lugar de sempre. Sei
que é bobagem, mas não cava empolgada assim desde que o meu pai me levou
pra caçar pela primeira vez, quando eu tinha doze anos. Foi o mesmo tipo de
sensação, o coração disparado e meio espalhado no peito e pescoço. A mulher
tinha dezenas de antiguidades valiosas além de todo aquele vidro caro na sala,
mas nunca parei pra pensar na Susy Proulx lá, girando entre tudo como um
dervixe. Você acredita?
Eu me obriguei a car ali pelo tempo que pude, cerca de um minuto e meio,
acho. Aí saí correndo. E quando entrei no quarto lá estava ela, com o rosto
vermelho, os olhos apertados e as mãos fechadas, fazendo “Unhh! Unhhhhh!
!”. Mas ela abriu os olhos depressa assim que ouviu a porta do
quarto ser aberta. Ah, eu queria ter uma câmera. Foi impagável.
“Dolores, sai daqui agora!”, disse ela, mais parecendo um guincho. “Estou
tentando cochilar e não vou conseguir com você entrando aqui como um touro
de pau duro a cada vinte minutos!”
“Bem”, falei, “eu vou, mas primeiro acho que vou botar a cumbuquinha de
bunda embaixo de você. Pelo cheiro, eu diria que bastou um sustinho para o
seu problema de prisão de ventre car resolvido.”
Ela bateu nas minhas mãos e me xingou; ela sabia xingar quando queria, e
queria sempre que alguém a contrariava. Mas não dei atenção. Coloquei a
comadre embaixo dela com agilidade e rapidez e, como dizem, tudo saiu
direitinho. Quando acabou, olhei pra ela, e ela olhou pra mim, e nenhuma de
nós precisou dizer nada. Nós nos conhecíamos havia tempos, entende?
A minha cara dizia: Pronto, sua piranha nojenta. Eu te peguei de novo. Gostou?
A cara dela retrucava: Não muito, Dolores, mas tudo bem; porque você ter me
pegado não quer dizer que vai continuar me pegando.
Mas eu continuei, pelo menos daquela vez. Houve mais algumas sujeiras,
mas nunca como aquela vez sobre a qual eu contei, quando havia merda até na
cortina. Aquele foi o último suspiro. Depois disso, as vezes em que a mente
dela estava lúcida foram cando cada vez menos frequentes e, quando vinham,
eram curtas. Foi bom pras minhas costas doloridas, mas também me deixou
triste. Vera era um saco, mas era um saco ao qual eu tinha me acostumado, se é
que você me entende.
Posso pedir outro copo de água, Frank?
Obrigada. Falar dá sede. E se você decidir tirar aquela garrafa de Jim Bean da
sua escrivaninha pra pegar um ar fresco, Andy, eu nunca vou contar pra
ninguém.
Não? Bom, é o de se esperar de gente como você.
Agora… onde eu estava?
Ah, já sei. Como ela era. Bom, o terceiro jeito de ela ser uma lha da puta
era o pior. Vera era uma lha da puta porque era uma velha triste que não tinha
nada pra fazer além de morrer em um quarto de segundo andar em uma ilha
longe dos lugares e das pessoas que havia conhecido pela maior parte da vida.
Isso era bem ruim, mas ela estava perdendo a sanidade ao mesmo tempo… e
havia uma parte que sabia que o resto dela era como uma margem de rio em
erosão, pronta pra desmoronar no uxo de água.
Ela era solitária, sabe, e isso eu não entendia. Nunca entendi por que Vera
jogou fora a vida toda pra vir pra ilha. Pelo menos até ontem. Mas ela tinha
medo também, e isso eu entendia muito bem. Mesmo assim, a mulher tinha
um tipo de força horrível e assustadora, como uma rainha moribunda que não
larga a coroa nem no m; é como se Deus em pessoa tivesse que soltar um
dedo de cada vez.
Havia os dias bons e os ruins, já contei isso. O que chamo de “ataques”
sempre aconteciam entre os dois, quando ela estava passando de alguns dias
bem pra uma ou duas semanas confusa, ou de uma semana ou duas confusa pra
uma época boa de novo. Quando ela estava mudando, era como se estivesse em
lugar nenhum… e parte dela sabia disso. Era nesse momento que ocorriam as
alucinações.
Se é que eram alucinações. Não tenho mais tanta certeza sobre isso. Talvez
eu conte essa parte, talvez não. Vou ter que ver como me sinto quando a hora
chegar.
Acho que nem todas eram nas tardes de domingo ou no meio da noite; acho
que é só que eu me lembro dessas melhor porque a casa cava muito
silenciosa, então eu morria de medo quando Vera começava a gritar. Era como
uma pessoa jogar um balde de água gelada em você em um dia quente de
verão; não houve nenhuma vez que eu não tenha achado que o meu coração
pararia quando os gritos começavam, e nunca houve uma vez que eu não tenha
achado que entraria no quarto dela e a encontraria morrendo. Mas as coisas de
que ela tinha medo nunca faziam sentido. Eu sabia que ela tinha medo, e fazia
uma boa ideia de quais eram esses medos, mas nunca o motivo deles.
“Os os!”, ela estava gritando às vezes quando eu entrava. Ficava toda
encolhida na cama, com as mãos unidas entre os peitos e a boca velha
repuxada e tremendo; ela cava pálida como um fantasma, e as lágrimas saíam
rolando pelas rugas embaixo dos olhos. “Os os, Dolores, para os os!”
E ela sempre apontava para o mesmo lugar… o rodapé do canto mais
distante.
Não havia nada lá, óbvio, mas havia pra ela. Vera via os saindo da parede e
rastejando pelo chão na direção da cama… pelo menos é o que eu acho que via.
O que eu fazia era correr lá pra baixo pra pegar um facão na cozinha e voltar
pro quarto. Eu me ajoelhava no canto, ou mais perto da cama se ela agia como
se os os tivessem se deslocado, e ngia cortar tudo. Fazia isso, movendo a
lâmina suavemente no chão pra não riscar o piso, até ela parar de chorar.
Depois eu me aproximava e limpava as lágrimas do rosto dela com o avental
ou um daqueles lenços de papel que ela sempre deixava embaixo do
travesseiro, então a beijava uma ou duas vezes e dizia:
“Pronto, querida, já foram. Eu cortei todos os os danados. Pode ver.”
Ela olhava (se bem que, nas ocasiões em que eu estou contando, ela não
conseguia ver nada) e, na maioria das vezes, chorava mais, depois me abraçava
e dizia:
“Obrigada, Dolores. Eu achei que dessa vez eles iam me pegar mesmo.”
Ou às vezes ela me chamava de Brenda quando me agradecia. Brenda era a
empregada que os Donovans tiveram na casa de Baltimore. Outras vezes, ela
me chamava de Clarice, que era irmã dela e morreu em 1958.
Em alguns dias, eu subia para o quarto e ela estava meio fora da cama,
gritando que havia uma cobra no travesseiro. Outras vezes, estava com os
cobertores por cima da cabeça, gritando que as janelas estavam ampliando o
sol e que ia se queimar. Às vezes, jurava que já sentia o cabelo fritando. Não
importava se estivesse chovendo ou com uma neblina mais densa do que a
cabeça de um bêbado lá fora; Vera tinha certeza de que o sol a fritaria viva,
então eu fechava as janelas e a abraçava até ela parar de chorar. Às vezes, eu a
abraçava por mais tempo, porque mesmo depois de ela car quieta eu a sentia
tremer como um cachorrinho maltratado por crianças malvadas. Vera me pedia
pra ver se tinha alguma bolha na pele dela. Eu dizia que não, e depois de um
tempo ela às vezes adormecia. Em outras vezes, não; caía em um estupor,
murmurando com pessoas que não estavam lá. Às vezes, falava em francês, e
não estou falando daquele francês “parlê vu” da ilha. Ela e o marido amavam
Paris e iam pra lá em todas as oportunidades, às vezes com os lhos e às vezes
sozinhos. Às vezes, ela falava sobre isso quando estava animada: os cafés, as
casas noturnas, as galerias e os barcos no Sena. E eu amava ouvir. Ela tinha
jeito com as palavras, a Vera, e quando descrevia algo, quase dava pra ver.
Mas a pior coisa, da qual ela sentia mais medo, eram as bolinhas de poeira.
Você sabe do que estou falando: aquelas bolinhas que se formam debaixo da
cama e atrás da porta e nos cantos. Parecem vagem de serralha. Eu sabia que
era isso mesmo quando ela não sabia explicar, e na maioria das vezes eu
conseguia acalmá-la, mas o motivo de Vera morrer de medo de uns cocôs de
fantasma, porque era isso que ela achava que eram, isso eu não sei, embora
uma vez tenha tido uma noção. Não ria, mas me ocorreu em sonho.
Por sorte, a questão das bolinhas de poeira não surgia com tanta frequência
quanto o sol queimando a pele dela ou os os no canto, mas quando era isso, eu
sabia que teria que aguentar uma bomba. Sabia que eram as bolinhas de poeira
mesmo se fosse no meio da noite e eu estivesse no meu quarto, dormindo
pesado de porta fechada, quando Vera começava a gritar. Quando ela cava
nervosa por causa dos outros motivos…
O quê, querida?
Ah, não estava?
Não, você não precisa chegar o seu gravadorzinho fofo mais pra perto. Se
quiser que eu fale mais alto, eu falo. Em geral, sou a bruxa mais escandalosa
que você vai encontrar. Joe dizia que queria encher os ouvidos de algodão
sempre que eu estava em casa. Mas o jeito como ela cava por causa das
bolinhas de poeira me dava arrepios, e se a minha voz baixou é uma prova de
que ainda me dá. Mesmo com Vera morta, ainda sinto arrepios. Às vezes, eu
dava bronca nela por isso.
“Por que você acorda por causa dessa idiotice, Vera?”, eu perguntava.
Mas não era idiotice. Não pra Vera, pelo menos. Pensei mais de uma vez que
sabia como ela acabaria batendo as botas: literalmente morreria de medo
daquelas bolinhas de poeira. O que, pensando agora, não está muito longe da
verdade.
O que eu tinha começado a contar foi que quando ela cava nervosa por
causa das outras coisas, como a cobra na fronha, o sol e os os, ela gritava. Mas
quando eram as bolinhas de poeira, ela berrava. Na maioria das vezes, não
eram nem palavras. Apenas berros longos e altos que transformavam o coração
da gente em cubos de gelo.
Eu corria até lá e a encontrava arrancando o cabelo ou arranhando o rosto
com as unhas, parecendo uma bruxa. Os olhos cavam tão grandes que quase
pareciam ovos cozidos, e sempre estavam olhando pra um canto ou outro.
Às vezes, ela conseguia dizer:
“Bolinhas de poeira, Dolores! Ah, meu Deus, bolinhas de poeira!”
Em outras vezes, ela só chorava e tinha ânsia de vômito. Colocava as mãos
sobre os olhos por um ou dois segundos, e aí as tirava. Era como se não
conseguisse suportar olhar, mas também não conseguisse suportar não olhar.
Depois voltava a arranhar o rosto com as unhas. Eu as deixava o mais curtas
possível, mas muitas vezes ela conseguia arrancar sangue mesmo assim. Nessas
ocasiões, eu me perguntava como o coração dela suportava aquele pavor,
considerando que ela já estava velha e gorda.
Uma vez, Vera caiu da cama e cou deitada, com uma perna virada embaixo
do corpo. Aquilo me deu um susto danado. Entrei correndo e a peguei no chão,
batendo com os punhos nas tábuas como uma criança tendo um ataque de
birra e gritando como se quisesse acordar o bairro todo. Essa foi a única vez em
todos os anos que trabalhei pra ela que liguei para o dr. Freneau no meio da
noite. Ele veio de Jonesport na lancha do Collin Violette. Eu liguei porque
achei que Vera tivesse quebrado a perna, ela devia ter quebrado, pelo jeito
como a perna estava curvada debaixo do corpo, e eu tinha quase certeza de que
ela morreria de choque. Mas não estava. Não sei como não estava, mas o dr.
Freneau disse que foi só um estiramento. No dia seguinte, ela entrou em um
período bom de novo e não se lembrou de nada. Perguntei sobre as bolinhas de
poeira algumas vezes, quando ela estava com o mundo mais ou menos em foco,
e Vera me olhou como se eu fosse louca. Não tinha a menor ideia do que eu
estava falando.
Depois que aconteceu algumas vezes, eu aprendi o que fazer. Assim que a
ouvia gritar daquele jeito, pulava da cama e saía pela porta. O meu quarto
cava a duas portas do dela, o armário de roupa de cama entre nós. Eu deixava
uma vassoura no corredor com uma pá pendurada no cabo desde a primeira
vez das bolinhas de poeira. Entrava correndo no quarto dela, balançando a
vassoura como se tentasse chamar um trem dos correios, e gritava, porque era
a única forma de ela me ouvir.
“Eu vou pegar, Vera!”, eu gritava. “Eu vou pegar! Segura o telefone!”
E eu varria o canto pra onde ela estava olhando, depois varria o outro por
garantia. Às vezes, Vera se acalmava depois disso, mas era mais comum que
começasse a gritar que estavam embaixo da cama. Então eu cava de quatro e
fazia como se estivesse varrendo lá embaixo também. Uma vez, a velha burra,
assustada e lamentável quase caiu da cama em cima de mim ao tentar se curvar
pra olhar. Acho que teria me esmagado como uma mosca. Que comédia teria
sido!
Depois de ter varrido todos os lugares que a assustavam, eu mostrava a pá
vazia e dizia:
“Pronto, querida, está vendo? Eu peguei todas essas porcarias.”
Ela olhava primeiro pra pá e depois pra mim. Não parava de tremer, com os
olhos tão afogados nas próprias lágrimas, que dançavam como pedras quando
se olha pra elas dentro de um riacho, então sussurrava:
“Ah, Dolores, elas são tão cinzentas! Tão horríveis! Leva embora. Por favor,
leva embora!”
Eu deixava a vassoura e a pá vazia perto da minha porta, prontas para o
próximo episódio, e voltava a tentar de tudo pra acalmá-la. Pra me acalmar
também. E se você acha que eu não precisava me acalmar um pouco, tenta você
acordar sozinho naquele museu enorme no meio da noite, com o vento
gritando lá fora e uma velha maluca gritando lá dentro. O meu coração parecia
uma locomotiva, e eu mal conseguia respirar… mas não podia deixar que Vera
percebesse o meu estado, senão ela começaria a duvidar de mim, e aí aonde
nós iríamos parar?
Depois desses eventos, o que eu fazia na maioria das vezes era pentear o
cabelo dela. Era o que parecia acalmá-la mais rápido. Vera gemia e chorava no
começo, mas às vezes estendia os braços e me abraçava, com o rosto encostado
na minha barriga. Lembro como as bochechas e a testa dela sempre cavam
quentes depois que tinha um ataque de bolinhas de poeira, e que às vezes ela
chegava até a deixar a minha camisola molhada de lágrimas. Coitada! Nenhum
de nós aqui sabe como é ser velha assim, como é ter demônios no seu encalço
que você não sabe explicar nem pra si mesmo.
Às vezes, nem meia hora com a escova de cabelo funcionava. Ela cava
olhando para o canto além de mim, e de vez em quando inspirava e
choramingava. Ou balançava a mão pra escuridão da cama e depois a puxava de
volta, como se esperasse que alguma coisa lá embaixo tentasse morder. Uma ou
duas vezes, até eu pensei que vi alguma coisa se mexendo lá embaixo, e tive que
botar a mão na boca pra me segurar e não gritar. Era só a sombra da mão dela
se mexendo, óbvio, eu sei disso, mas é um exemplo do estado em que ela me
deixava, né? Sim, até eu, que costumo ser tão cabeça-dura quanto barulhenta.
Quando nada adiantava, eu me deitava na cama com ela. Os braços dela me
envolviam e me agarravam, e Vera deitava a cabeça no que restou dos meus
seios, e eu envolvia os meus braços nela e a abraçava até ela pegar no sono.
Depois, saía da cama, bem devagar pra não a acordar, e voltava para o meu
quarto. Houve algumas vezes em que nem isso eu z. Nessas vezes, que eram
sempre quando ela me acordava no meio da noite com a gritaria, eu dormia
com ela.
Foi em uma dessas noites que sonhei com as bolinhas de poeira. Só que no
sonho eu não era eu. Eu era ela, presa naquela cama de hospital, tão gorda que
não conseguia nem me virar sem ajuda, com a perereca ardendo por causa de
uma infecção urinária que não passava porque ela sempre cava úmida lá
embaixo e não tinha resistência a mais nada. Era como um capacho dando
boas-vindas pra qualquer germe ou bactéria que aparecesse, pode-se dizer, e
sempre cava virado na direção certa.
Olhei para o canto e vi uma coisa que parecia uma cabeça feita de poeira. Os
olhos estavam virados pra cima e a boca, cheia de dentes longos e tortos de
poeira, estava aberta. Começou a vir na direção da cama, mas devagar, e
quando rolou para o lado do rosto de novo, os olhos estavam me observando, e
percebi que era Michael Donovan, o marido da Vera. Mas na segunda vez que o
rosto apareceu, era o meu marido. Era Joe St. George, com um sorriso cruel no
rosto e muitos dentes compridos de poeira batendo. Na terceira vez, não era
ninguém que eu conhecesse, mas estava vivo, estava com fome, e pretendia rolar
até onde eu estava pra me comer.
Acordei com um pulo tão grande que quase caí da cama. Era bem cedo, com
o sol nascendo e deixando uma listra no chão. Vera ainda dormia. Ela havia
babado no meu braço todo, mas de primeira nem tive força pra limpar. Só
quei deitada, tremendo e toda coberta de suor, tentando me convencer de que
eu estava mesmo acordada e de que estava tudo bem, como se faz, sabe, depois
de um pesadelo bem ruim. Por um segundo eu ainda vi aquela cabeça de poeira
com os olhos grandes e vazios e os dentes compridos de poeira no chão ao lado
da cama. Pra você ver como o sonho foi ruim. Depois, sumiu; o chão e os
cantos do quarto estavam limpos e vazios como sempre. Mas, desde aquele dia,
me pergunto se talvez Vera não tivesse me enviado aquele sonho, se eu não vi
um pouco do que ela via nas vezes em que gritava. Talvez eu tenha captado um
pouco do medo dela e me apropriado dele. Você acha que essas coisas
acontecem na vida real ou só nos jornais baratos que vendem no mercado? Sei
lá… mas sei que o sonho me deixou morrendo de medo.
Bom, não importa. Basta dizer que gritar como louca nas tardes de domingo
e no meio da noite era o terceiro jeito dela ser uma lha da puta. Mas era
muito triste mesmo assim. Toda a sacanagem dela era triste no m das contas,
embora não me impedisse de às vezes querer girar a cabeça dela como um
carretel em um fuso, e acho que qualquer um menos a Santa Joana D’Arc teria
sentido o mesmo. Acho que quando Susy e Shawna me ouviram gritando
naquele dia que eu quis matá-la… ou quando as pessoas me ouviam… ou nos
ouviam gritando crueldades uma com a outra… bom, elas devem ter pensado
que eu puxaria a saia e sapatearia no túmulo de Vera quando ela nalmente
morresse. E acho que você deve ter tido notícias de algumas dessas pessoas
ontem e hoje, certo, Andy? Não precisa responder; todas as respostas de que
preciso estão estampadas na sua cara. Parece um outdoor. Além do mais, eu sei
que as pessoas amam falar. Falaram sobre mim e a Vera, e houve uma falação
danada sobre mim e Joe também, algumas antes de ele morrer e mais ainda
depois. Aqui no m do mundo, a coisa mais interessante que uma pessoa pode
fazer é morrer de repente, já reparou?
Então chegamos ao Joe.
Ando com medo dessa parte, e acho que não adianta mentir. Já contei que o
matei, então isso já está dito, mas a parte difícil ainda está por vir: como… e
por quê… e quando teve que ser.
Pensei muito no Joe hoje, Andy. Mais nele do que na Vera, pra falar a
verdade. Fiquei tentando lembrar como foi que acabei me casando com ele, e
de cara não consegui. Depois de um tempo me deu um pânico, como a Vera
quando achava que tinha uma cobra dentro da fronha. Aí percebi qual era o
problema: eu estava procurando a parte do amor, como uma daquelas
garotinhas tolas que a Vera contratava em junho e despedia antes da metade do
verão porque não conseguiam seguir as regras. Eu estava procurando a parte do
amor, e havia tão pouco disso mesmo em 1945, quando eu tinha dezoito anos e
ele dezenove, e tudo era novo.
Sabe a única coisa que me ocorreu quando eu estava na escada hoje,
congelando até a alma e tentando lembrar a parte do amor? Que ele tinha uma
testa bonita. Eu me sentava perto dele na sala de estudos quando a gente estava
no ensino médio — durante a Segunda Guerra Mundial, isso — e me lembro
da testa dele, como era lisinha, sem uma única espinha. Havia algumas nas
bochechas e no queixo, e Joe tinha tendência a ter cravos nas laterais do nariz,
mas a testa era lisa como creme. Eu me lembro de querer tocar nela… de
sonhar com isso, pra falar a verdade; de desejar provar se era tão lisa quanto
parecia. E quando ele me convidou para o baile do segundo e do terceiro anos,
eu aceitei e tive minha chance de tocar na testa dele. Era tão lisa quanto
parecia, com o cabelo pra trás em ondas lindas. Eu z carinho no cabelo dele e
na testa lisa no escuro enquanto a banda dentro do salão do The Amosse Inn
tocava “Moonlight Cocaia”… Depois de algumas horas sentada naqueles
degraus bambos tremendo, isso me ocorreu, pelo menos, então você pode ver
que havia alguma coisinha lá, a nal. Claro que eu acabei tocando em bem mais
do que só a testa em poucas semanas, e foi aí que eu cometi um erro.
Agora vamos deixar uma coisa bem clara: não estou dizendo que acabei
passando os melhores dias da minha vida com aquele bêbado velho só porque
gostava da aparência da testa dele durante o sétimo período na sala de estudos,
quando a luz batia inclinada nela. Porra, não. Mas o que estou tentando dizer é
que essa é a parte amorosa de que consegui me lembrar hoje, e que isso me faz
me sentir mal. Sentada na escada hoje perto do East Head, ao pensar nesses
velhos tempos… foi uma trabalheira danada. Foi a primeira vez que percebi
que talvez tenha me vendido barato, e talvez tenha feito isso porque achei que
barato era o melhor que gente como eu poderia esperar. Eu sei que foi a
primeira vez que ousei pensar que merecia ser amada mais do que Joe St.
George poderia amar alguém (exceto ele mesmo, talvez). Você pode achar que
uma velha insensível como eu não acredita no amor, mas a verdade é que é a
única coisa em que eu realmente acredito.
Mas não teve muito a ver com o motivo de eu ter me casado com ele, isso
preciso admitir logo. Eu estava de seis semanas de uma menininha na barriga
quando aceitei o pedido e disse que caria com ele até que a morte nos
separasse. E essa foi a parte mais inteligente de tudo… é triste, mas é verdade.
O resto foram os motivos burros de sempre, e uma coisa que eu aprendi na vida
é que motivos idiotas levam a casamentos idiotas.
Eu estava cansada de brigar com a minha mãe.
Eu estava cansada de levar bronca do meu pai.
Todas as minhas amigas estavam se casando, conquistando a própria casa, e
eu queria ser adulta como elas. Estava farta de ser uma garotinha boba.
Joe disse que me queria, e eu acreditei.
Ele disse que me amava, e eu acreditei também… e depois que ele falou e
me perguntou se eu sentia o mesmo, pareceu que a resposta educada era dizer
que sim.
Eu estava com medo do que aconteceria comigo se eu não me casasse: se eu
teria pra onde ir, o que teria que fazer ou quem cuidaria do meu bebê enquanto
eu estivesse trabalhando.
Sei que tudo isso vai parecer bobagem se você um dia escrever, Nancy, mas o
mais bobo é que eu conheço umas dez mulheres, garotas com quem estudei um
dia, que se casaram pelos mesmos motivos, e a maioria ainda está casada, e
muitas delas estão só aguentando na esperança de viver mais do que o homem
pra poder enterrá-lo e sacudir os peidos de cerveja dele do lençol pra sempre.
Em 1952, mais ou menos, eu já tinha me esquecido da testa, e em 1956
também não tinha muita utilidade para o resto dele, e acho que comecei a
odiá-lo quando Kennedy assumiu depois do Ike, mas só pensei em matá-lo
depois. Achei que caria com Joe porque meus lhos precisavam de um pai,
mesmo que não houvesse nenhum outro motivo. Não é uma piada? Mas é a
verdade, juro que é. E juro outra coisa também: se Deus me desse uma segunda
chance, eu o mataria de novo, mesmo que eu ardesse no fogo dos infernos pra
sempre… o que deve acontecer mesmo.
Acho que todo mundo que não é recém-chegado em Little Tall sabe que eu o
matei, e a maioria deve achar que sabe o motivo: acham que é por causa do
jeito que ele colocava as mãos em mim. Mas não foram as mãos dele em mim
que o levaram à morte, e a verdade é que, apesar do que as pessoas da ilha
achavam na época, ele não relou a mão em mim durante os últimos três anos
do nosso casamento. Eu o curei dessa tolice no nal de 1960 ou começo de
1961.
Até lá, ele me batia muito, sim. Não posso negar. E eu aguentava, também
não posso negar isso. A primeira vez foi na segunda noite após o casamento.
Tínhamos ido passar o m de semana em Boston, a nossa lua de mel, e camos
no Parker House. Éramos dois ratinhos do interior, sabe?, com medo de nos
perdermos. Joe disse que não ia gastar de jeito nenhum os 25 dólares que os
meus pais tinham nos dado de presente em um trajeto de táxi só porque ele
não conseguia chegar no hotel. Nossa, como aquele homem era burro! Óbvio
que eu era também… mas uma coisa que Joe tinha e eu não (e co feliz por
isso) era aquela natureza eternamente descon ada. Ele achava que toda a raça
humana queria fazê-lo de idiota ou ferrar com a vida dele, e eu pensei muitas
vezes que, quando Joe cava bêbado, era por ser o único jeito de ele conseguir
dormir sem permanecer com um olho aberto.
Bom, mas isso não tem nada a ver com nada. O que eu queria contar é que
fomos para o restaurante na noite de sábado, jantamos bem e voltamos para o
quarto. Lembro que Joe já estava andando torto no corredor. Ele tinha tomado
quatro ou cinco cervejas no jantar, depois das nove ou dez que tinha tomado ao
longo da tarde. Quando entramos no quarto, ele cou parado me olhando por
tanto tempo que perguntei se ele estava vendo alguma coisa em mim.
“Não”, disse ele, “mas eu vi um homem lá no restaurante olhando embaixo
do seu vestido, Dolores. Os olhos dele estavam quase saltados. E você sabia que
ele estava olhando, né?”
Quase falei que Gary Cooper poderia estar sentado no canto com Rita
Hayworth que eu nem teria percebido, mas pensei pra quê? Não adiantava
discutir com Joe quando ele bebia; eu não tinha entrado naquele casamento
cega, e não vou tentar ngir que entrei.
“Se tinha um homem olhando embaixo do meu vestido, por que você não foi
lá mandar ele fechar os olhos, Joe?”, perguntei.
Era piada, talvez eu estivesse tentando desviar do assunto, não lembro, mas
ele não achou que era piada. Disso eu me lembro. Joe não era um homem de
piadas; na verdade, eu tenho que confessar que ele quase não tinha senso de
humor. Isso é algo que eu não sabia quando me casei com ele. Na época, achava
que senso de humor era que nem nariz ou um par de orelhas: que alguns
funcionavam melhor do que outros, mas todo mundo tinha.
Ele me segurou, me jogou em cima do joelho e me bateu com o sapato.
“Pelo resto da sua vida, ninguém além de mim vai saber qual é a cor da sua
calcinha, Dolores”, ele disse. “Está me ouvindo? Ninguém além de mim.”
Até achei que era uma brincadeirinha de amor, ele ngindo estar com
ciúmes pra me elogiar… isso pra você ver como eu era boba. Foi ciúme, sim,
mas não teve nada a ver com amor. Foi mais como um cachorro que bota a pata
sobre o osso e rosna se você chegar perto demais. Eu não sabia disso na época,
então aguentei. E aguentei depois porque achei que um homem bater na
esposa de tempos em tempos fazia parte do casamento; não uma parte boa —
só que limpar privada também não é uma parte boa, e a maioria das mulheres
sempre fez uma boa cota disso depois que o vestido de noiva e o véu são
guardados no sótão. Não é, Nancy?
O meu próprio pai colocava as mãos na minha mãe de tempos em tempos, e
eu acho que foi daí que tirei a ideia de que era assim mesmo: só uma coisa que
eu precisava aguentar. Eu amava muito o meu pai, e os dois se amavam muito,
mas ele era um homem agressivo quando algo o incomodava.
Eu me lembro de uma vez, eu devia ter uns nove anos, quando o meu pai
chegou depois de cortar feno no campo de George Richards, lá no West End, e
a minha mãe não estava com o jantar dele pronto. Não lembro mais por que
não estava pronto, mas me lembro direitinho do que aconteceu quando ele
entrou. O meu pai estava só de macacão (tinha tirado as botas e as meias na
entrada porque estavam sujas), e o rosto e os ombros estavam bem vermelhos,
queimados. O cabelo suado grudava nas têmporas e havia um pedaço de feno
na testa, bem no meio das linhas que a atravessavam. Ele parecia estar com
calor, cansado e pronto pra car furioso.
Entrou na cozinha e não tinha nada na mesa além de uma jarra de água com
ores dentro. Ele se virou pra minha mãe e disse:
“Cadê o meu jantar, sua idiota?”
Ela abriu a boca, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele en ou a
mão na cara dela e a empurrou pro canto. Eu estava parada na entrada da
cozinha e vi tudo. Ele veio andando na minha direção com a cabeça baixa e o
cabelo meio que caindo nos olhos. Sempre que vejo um homem andando pra
casa daquele jeito, cansado do dia de trabalho e com a marmita na mão, penso
no meu pai. Fiquei com medo. Quis sair da frente porque achei que ele viria
pra cima de mim também, só que as minhas pernas estavam pesadas demais
pra eu me mexer. Mas ele não fez isso. O meu pai me ergueu com as mãos
grandes e quentes e me tirou do caminho pra sair pelos fundos. Ele se sentou
no bloco de cortar lenha com as mãos no colo e a cabeça baixa, como se
estivesse observando-as. Assustou as galinhas de primeira, mas elas voltaram
depois de um tempo e começaram a bicar em volta dos sapatos dele. Achei que
o meu pai as chutaria, faria as penas voarem, mas também não fez isso.
Depois de um tempo, olhei pra minha mãe. Ela ainda estava sentada no
canto. Tinha colocado um pano de prato no rosto e chorava embaixo. Os braços
estavam cruzados sobre os seios. É disto que mais me lembro, apesar de não
saber por quê: os braços dela cruzados sobre os seios daquele jeito. Eu me
aproximei e a abracei, e, quando ela sentiu os meus braços, me abraçou
também. Em seguida, tirou o pano do rosto e o usou pra secar os olhos. Falou
pra eu ir lá atrás perguntar para o meu pai se ele queria um copo de limonada
gelada ou uma garrafa de cerveja.
“Fala pra ele que só tem duas garrafas”, disse ela. “Se ele quiser mais, vai ter
que ir até o mercado, então é melhor nem começar.”
Fui lá fora e falei com ele, que disse que não queria cerveja, mas um copo de
limonada seria perfeito. Fui correndo buscar. A minha mãe estava preparando
o jantar. O rosto dela ainda estava meio inchado de chorar, mas ela cantarolava
uma melodia, e naquela noite os dois balançaram as molas da cama como
faziam na maioria das noites. Ninguém fez nada nem deu mais um pio sobre o
assunto. Na época, esse tipo de coisa era chamada de “corretivo doméstico”, e
era parte do trabalho de um homem, e se eu pensei nisso depois, foi só que a
minha mãe devia ter merecido, senão o meu pai nunca teria feito o que fez.
Houve algumas outras vezes em que o vi dar um corretivo nela, mas essa é a
que lembro melhor. Nunca o vi dar um soco nela, como Joe fazia comigo às
vezes, mas uma vez ele bateu nas pernas dela com um pedaço de vela de lona
molhada, e isso deve ter doído de um jeito absurdo. Só sei que deixou marcas
vermelhas que caram até o m da tarde.
Ninguém mais chama isso de “corretivo doméstico”. O termo saiu de moda,
até onde eu sei, e já vai tarde, mas cresci com a ideia de que quando mulheres e
crianças saem da linha, é função do homem levá-las de volta. Mas não estou
dizendo que, só porque eu cresci com a ideia, achava certo. Não vou me deixar
me safar tão fácil. Eu sabia que um homem colocar as mãos em uma mulher
não tinha muito a ver com correção… mas deixei Joe fazer isso comigo por
muito tempo mesmo assim. Acho que eu estava cansada demais de cuidar da
casa, fazer faxina para os turistas de verão, cuidar da família e tentar resolver os
problemas de Joe com os vizinhos pra pensar nisso.
Ser casada com Joe… ah, merda! Como é qualquer casamento? Acho que
todos são diferentes, mas não tem um que seja o que parece pra quem olha de
fora, isso eu posso dizer. O que as pessoas veem da vida de um casal e o que
realmente acontece entre os dois costuma ser no máximo parecido. Às vezes é
horrível, e às vezes é engraçado, mas normalmente é como todas as outras
partes da vida: os dois ao mesmo tempo.
O que as pessoas acham é que Joe era um alcoólatra que batia em mim e
provavelmente nos lhos também quando estava bêbado. Acham que a coisa
chegou ao limite e que eu carimbei o passaporte dele por isso. É verdade que
Joe bebia e que às vezes ia a reuniões do em Jonesport, mas não era mais
alcoólatra do que eu. Ficava bêbado em intervalos de quatro a cinco meses, em
geral com gentinha como Rick Thibodeau ou Stevie Brooks, homens que eram
de fato alcoólatras. Mas aí cava sem encher a cara, exceto por um golinho ou
outro quando chegava de noite. Não mais do que isso, porque, quando tinha
uma garrafa, gostava de fazer durar. Dos verdadeiros alcoólatras que conheci na
vida, nenhum estava interessado em fazer nenhuma garrafa de nada durar:
nem Jim Bean, nem Old Duke, nem mesmo anticongelante coado em tecido de
algodão. Um verdadeiro bêbado só está interessado em duas coisas: acabar com
o que tem em mãos e procurar mais.
Não, ele não era alcoólatra, mas não se importava que as pessoas achassem
que era. Era bom pra conseguir trabalho, principalmente no verão. Acho que o
jeito como as pessoas pensam sobre os Alcoólicos Anônimos mudou ao longo
dos anos, sei que agora falam bem mais sobre o assunto, mas algo que não
mudou é o jeito como tentam ajudar alguém que alega que começou a se
esforçar pra mudar. Joe passou um ano inteiro sem beber, ou pelo menos sem
falar sobre isso quando bebia, e zeram uma festa pra ele em Jonesport. Deram
um bolo e uma medalha, até. Então, quando ia procurar um serviço no verão, a
primeira coisa que ele dizia era que era um alcoólatra em recuperação.
“Se você não quiser me contratar por isso, eu não vou ter ressentimento”,
dizia, “mas eu tenho que contar. Estou indo a reuniões do há mais de um
ano, e eles dizem que a gente não pode car sóbrio se não puder ser honesto.”
Aí ele tirava o medalhão dourado de um ano e mostrava pra pessoa, o tempo
todo parecendo apenas se penitenciar por um mês inteiro composto de
domingos. Acho que um ou dois até choraram quando Joe contou que estava
dando um passo de cada vez e indo devagar no processo de deixar tudo pra trás
e permitir que Deus agisse cada vez que a vontade de beber batia… o que
acontecia a cada quinze minutos, de acordo com ele. As pessoas aceitavam na
hora e, várias vezes, por cinquenta centavos ou um dólar a mais do que
pretendiam pagar. Era de se pensar que o truque não funcionaria mais depois
do Labor Day, mas deu muito certo até aqui na ilha, onde todo mundo o via
todos os dias e devia saber a verdade.
A verdade é que na maioria das vezes em que me bateu, Joe estava sóbrio.
Quando enchia a cara, não me dava a menor bola. Aí, em 1960 ou 1961, ele
chegou uma noite depois de ajudar Charlie Dispenzieri a tirar o barco da água,
e quando se inclinou pra pegar uma coca-cola na geladeira, percebi que a calça
dele estava rasgada na bunda. Dei risada. Não consegui me segurar. Ele não
disse nada, mas quando fui até o fogão olhar o repolho, porque eu estava
fazendo um jantar cozido naquela noite, lembro como se fosse ontem, ele
pegou um pedaço de pau e bateu na minha lombar. Doeu pra cacete. Só quem
já levou um soco nos rins sabe do que estou falando. Eles parecem pequenos,
quentes e pesados, como se fossem se soltar do que os segura no lugar e
afundar, como chumbo jogado num balde.
Manquei até a mesa e me sentei em uma cadeira. Teria caído se a cadeira
estivesse mais distante. Fiquei ali, esperando pra ver se a dor passaria. Não
chorei exatamente, porque não queria assustar as crianças, mas as lágrimas
escorreram pelo meu rosto mesmo assim. Não consegui segurá-las. Foram
lágrimas de dor, do tipo que não dá pra conter por ninguém nem por nada.
“Nunca ria de mim, sua lha da puta”, disse Joe, e então jogou a lenha que
usou pra me bater de volta na caixa de madeira e se sentou pra ler o American.
“Você já devia saber disso há mais de dez anos.”
Levei vinte minutos pra conseguir sair daquela cadeira. Tive que chamar
Selena pra abaixar o fogo dos legumes e da carne, apesar de o fogão estar a
quatro passos de distância.
“Por que você não faz isso, mamãe?”, perguntou ela. “Eu estava vendo
desenho com o Joey.”
“Eu estou descansando”, respondi.
“Isso mesmo”, disse o Joe, por trás do jornal. “Ela falou demais e a boca cou
frouxa.”
Então ele riu. Foi isso; bastou aquela risada. Foi naquela hora que decidi que
ele nunca mais bateria em mim, a não ser que quisesse pagar caro por isso.
Jantamos como sempre, e depois vimos televisão como sempre, eu e as
crianças maiores no sofá e o pequeno Pete no colo do pai na poltrona. Pete
cochilou lá mesmo, como fazia com frequência, por volta das sete e meia, e Joe
o levou pra cama. Mandei Joe Junior ir dormir uma hora depois, e Selena foi às
nove. Normalmente, eu ia pra cama às dez e Joe cava acordado até por volta
de meia-noite, cochilando, vendo um pouco de televisão, lendo as partes do
jornal que tinha perdido da primeira vez e tirando meleca. Isso pra você ver,
Frank, que você não é tão ruim; algumas pessoas nunca perdem o hábito, nem
quando adultas.
Naquela noite, não fui pra cama como nos outros dias. Fiquei sentada na sala
com Joe. As minhas costas estavam um pouco melhores. Boas o su ciente pra
eu fazer o que tinha que fazer, pelo menos. Talvez eu estivesse nervosa, mas, se
estava, não lembro. Estava esperando que ele cochilasse, e ele nalmente
cochilou.
Eu me levantei, fui até a cozinha e peguei a jarrinha de leite na mesa. Não
fui até lá especi camente pra pegar isso; estava lá porque era a noite de Joe
Junior tirar a mesa, e ele tinha se esquecido de guardar na geladeira. Joe Junior
sempre esquecia alguma coisa: de guardar a jarrinha de leite, de botar a tampa
da manteigueira, de dobrar o pacote de pão pra que a primeira fatia não casse
dura. Agora, quando eu o vejo na televisão, fazendo um discurso ou dando uma
entrevista, é nisso que acabo pensando… e me pergunto o que os Democratas
pensariam se soubessem que o Líder Majoritário do Senado pelo Estado do
Maine não conseguia nem esvaziar a mesa toda quando tinha onze anos. Mas
sinto orgulho dele, e nunca, nem por um segundo, duvide disso. Sinto orgulho
mesmo ele sendo um maldito democrata.
En m, ele conseguiu esquecer a coisa certa naquela noite; era pequena, mas
era pesada, e a sensação foi perfeita na minha mão. Fui até a caixa de madeira e
peguei a machadinha de cabo curto que deixávamos na prateleira de cima. Aí,
voltei pra sala, onde Joe cochilava. Eu estava com a jarrinha na mão direita e
bati com ela na lateral da cara dele. Acho que se quebrou em uns mil pedaços.
Ele se sentou rapidinho quando z isso, Andy. E você devia ter ouvido o
barulho que ele fez. Alto? Deus do céu! Estava mais para um touro com o pinto
preso no portão. Os olhos se arregalaram, e ele levou a mão à orelha, que já
sangrava. Havia pontinhos de leite secando na bochecha e naqueles pelos ralos
na lateral do rosto que ele chamava de costeleta.
“Adivinha, Joe. Não estou mais cansada”, falei.
Ouvi Selena pular da cama, mas não ousei me virar. Correria sério risco se
zesse isso; quando queria, ele sabia ser rápido. Eu segurava a machadinha
com a mão esquerda, na lateral do corpo, com o avental quase cobrindo. E
quando Joe começou a se levantar da cadeira, mostrei a machadinha a ele.
“Se não quiser isso na sua cabeça, Joe, é melhor você se sentar de novo”,
falei.
Por um segundo, achei que ele ia se levantar de qualquer jeito. Se tivesse se
levantado, teria sido o m dele ali mesmo, porque eu não estava de
brincadeira. Ele percebeu, e parou com a bunda a uns dez centímetros do
assento.
“Mamãe?”, chamou Selena da porta do quarto.
“Volta pra cama, meu bem”, falei, sem tirar os olhos de Joe nem por um
segundo. “Seu pai e eu estamos tendo uma pequena discussão aqui.”
“Está tudo bem?”
“Está. Não está, Joe?”, falei.
“Aham. Tudo ótimo”, concordou ele.
Eu a ouvi dar alguns passos pra trás, mas não ouvi a porta do quarto se
fechar por um tempo — dez, talvez quinze segundos —, e soube que ela estava
ali parada nos olhando. Joe não se mexeu, com um braço apoiado na poltrona e
a bunda levantada do assento. Aí, ouvimos a porta ser fechada, e isso pareceu
fazer Joe perceber como ele devia parecer um pateta, meio na poltrona, meio
levantado, com a outra mão sobre a orelha e pontinhos de leite escorrendo pela
lateral do rosto.
Ele se sentou de vez e afastou a mão. Ela e a orelha estavam cheias de
sangue, mas a mão não estava inchando, e a orelha, sim.
“Ah, lha da puta, você vai pagar caro”, disse.
“Vou? Então é melhor você se lembrar do seguinte, Joe St. George: o que
você zer comigo vai receber em dobro.”
Ele estava sorrindo pra mim como se não conseguisse acreditar no que
estava ouvindo.
“Ora, então acho que vou ter que te matar, né?”
Entreguei a machadinha quase antes de as palavras terem saído pela boca
dele. Não tinha pensado em fazer isso, mas assim que o vi a segurando, soube
que era a única coisa que eu poderia ter feito.
“Vai”, falei. “Mas faz de uma vez, pra eu não ter que sofrer.”
Ele olhou de mim pra machadinha e então pra mim de novo. A expressão de
surpresa no rosto dele teria sido cômica se a situação não fosse tão séria.
“Aí, depois que acabar, é melhor esquentar o jantar e comer mais um pouco”,
falei. “Come até estourar, porque você vai ser preso e que eu saiba não servem
nada de bom preparado em casa na prisão. Você vai pra Belfast primeiro, acho.
Aposto que tem um daqueles macacões laranja do seu tamanho.”
“Cala a boca, vadia”, ele disse.
Mas eu não calei.
“Depois disso, é provável que você vá pra Shawshank, e eu sei que lá não tem
comida quente na mesa. Não deixam você sair pra jogar pôquer na sexta à
noite com seus amigos. Só peço que você seja rápido e não deixe as crianças
verem a sujeira quando acabar.”
Nessa hora, fechei os olhos. Tinha quase certeza de que ele não faria, mas
ter quase certeza não adianta de nada quando é a sua vida em jogo. Foi algo que
descobri naquela noite. Fiquei parada, de olhos fechados, na total escuridão e
me perguntando como seria sentir aquela machadinha partir o meu nariz, os
meus lábios e os meus dentes. Eu me lembro de pensar que era provável que
sentisse o gosto das farpas de madeira na lâmina antes de morrer, e me lembro
de ter cado feliz de ter a ado a machadinha dois ou três dias antes. Se ele ia
me matar, eu não queria que fosse com uma machadinha cega.
Tive a impressão de car ali parada por uns dez anos. Mas aí ele falou, meio
mal-humorado e puto da vida:
“Você vai se aprontar pra cama ou vai car aí parada como Helen Keller
tendo um sonho erótico?”
Quando abri os olhos, ele tinha colocado a machadinha embaixo da
poltrona. Dava pra ver a ponta do cabo saindo por baixo da saia. O jornal estava
caído nos pés dele, em formato de tenda. Ele se curvou, pegou-o e o sacudiu,
tentando agir como se nada tivesse acontecido, mas havia sangue escorrendo
da orelha pela bochecha e as mãos dele estavam tremendo a ponto de o jornal
farfalhar. Joe tinha deixado marcas de digital em vermelho na primeira e na
última página, e decidi queimar aquela porcaria antes de ele ir pra cama, pra
que as crianças não vissem e cassem se perguntando o que havia acontecido.
“Vou vestir a camisola daqui a pouco, mas vamos ter uma conversinha sobre
isso primeiro, Joe.”
Ele olhou pra cima e disse, com a boca apertadinha:
“Não me venha com abusos, Dolores. Seria um erro muito, muito grande.
Você não vai querer me provocar.”
“Eu não estou provocando”, falei. “Seus dias de me bater acabaram, é só isso
que eu quero dizer. Se zer de novo, um de nós vai para o hospital. Ou para o
necrotério.”
Ele me olhou por muito tempo, Andy, e eu o encarei de volta. A machadinha
não estava na mão dele, e sim embaixo da poltrona, mas isso não importava; eu
sabia que, se baixasse os olhos antes dele, os socos no pescoço e as porradas nas
costas não terminariam nunca. Mas ele nalmente olhou para o jornal de novo
e murmurou:
“Vá ser útil, mulher. Traz uma toalha pra minha cabeça, já que você não
consegue fazer mais nada. Estou enchendo a camisa de sangue.”
Essa foi a última vez que ele me bateu. Lá no fundo, Joe era um covarde,
entende? Apesar de eu nunca ter dito a palavra em voz alta pra ele, nem
naquela ocasião, nem nunca. Fazer isso é a atitude mais perigosa que alguém
pode ter, eu acho, porque um covarde tem mais medo de ser descoberto do que
de qualquer outra coisa, até de morrer.
Óbvio que eu sabia que Joe tinha um ponto fraco; nunca teria ousado bater
na cabeça dele com aquela jarra se não tivesse achado que tinha uma boa
chance de sair na vantagem. Além do mais, percebi algo quando me sentei
naquela cadeira para esperar que os meus rins parassem de doer depois que ele
bateu em mim: se não o enfrentasse naquele momento, eu provavelmente
nunca o enfrentaria. Por isso z o que z.
E, quer saber, bater em Joe com a jarrinha foi a parte fácil. Pra fazer isso, tive
que me libertar da lembrança do meu pai empurrando a minha mãe e batendo
na parte de trás das pernas dela com aquele pedaço de lona molhada. Superar
essas lembranças foi difícil, porque eu amava muito os dois, mas no nal eu
consegui… acho que porque precisei. E estou grata por ter precisado, no
mínimo porque Selena nunca vai ter que se lembrar da mãe sentada no canto
chorando com um pano de prato na cara. A minha mãe aguentava quando o
marido batia nela, mas eu que não vou car julgando os dois. Talvez ela tivesse
que aguentar e talvez ele tivesse que bater pra não ser diminuído pelos homens
com quem tinha que conviver e trabalhar todos os dias. Eram outros tempos, a
maioria das pessoas não percebe o quanto, mas isso não signi cava que eu tinha
que aguentar só porque havia sido pateta a ponto de me casar com Joe. Não
tem nada de corretivo em um homem bater em uma mulher com os punhos ou
um pedaço de lenha, e no m das contas decidi que não ia aguentar aquilo de
gente como Joe St. George, nem de nenhum outro homem.
Houve ocasiões em que ele ergueu a mão pra mim, mas aí pensava melhor.
Às vezes, quando a mão estava levantada, querendo bater, mas sem ousar bater,
eu via nos olhos dele que Joe estava se lembrando da jarra… e talvez da
machadinha também. Aí ele ngia que havia erguido a mão porque precisava
se coçar ou secar a testa. Essa foi uma lição que ele aprendeu de primeira.
Talvez a única.
Outra coisa resultou da noite em que ele me bateu com o pedaço de lenha e
eu bati de volta com a jarra. Não gosto de tocar no assunto, sou uma dessas
pessoas antiquadas que acredita que o que acontece entre quatro paredes deve
car entre quatro paredes, mas acho que tenho que falar, porque acho que é
parte do motivo de as coisas terem tomado o rumo que tomaram.
Apesar de estarmos casados e continuarmos morando sob o mesmo teto por
mais dois anos — talvez quase três, não consigo lembrar direito —, ele só
tentou se aproveitar dos privilégios dele comigo poucas vezes depois disso.
Ele…
O quê, Andy?
Claro que estou falando da impotência! De que mais seria, do direito de Joe
de usar as minhas calcinhas se tivesse vontade? Eu nunca recusei; ele que não
conseguia mais fazer. Ele não era o que se chamaria de “homem que quer todas
as noites”, nem no começo, e eu também não era de querer; era sempre pá-
pum, obrigado, boa noite. Ainda assim, ele cou interessado a ponto de subir
em mim uma ou duas vezes por semana… até eu bater nele com a jarrinha.
Em parte, deve ter sido a bebida. Ele estava bebendo bem mais naqueles
últimos anos. Mas acho que não foi só isso. Eu me lembro de, uma noite, ele
rolar de cima de mim depois de uns vinte minutos bufando inutilmente com
aquela coisinha pendurada, mole como um macarrão. Não sei quanto tempo
depois da noite da jarra isso aconteceu, mas sei que foi depois porque me
lembro de sentir os rins latejando e pensar que logo eu me levantaria pra tomar
uma aspirina e ver se parava de sentir dor.
“Olha aí”, disse ele, quase chorando. “Espero que esteja satisfeita, Dolores.
Você está?”
Fiquei quieta. Às vezes, qualquer coisa que uma mulher diga pra um homem
vai ser a coisa errada.
“Está? Está satisfeita, Dolores?”, ele repetiu.
Continuei quieta, deitada encarando o teto e ouvindo o vento lá fora. Estava
vindo do leste naquela noite, e dava pra ouvir o mar. É um som que sempre
amei. Me acalma.
Ele se virou e senti o bafo de cerveja na minha cara, rançoso e azedo.
“Apagar a luz ajudava, mas não ajuda mais. Dá pra ver sua cara feia mesmo
no escuro.” Joe esticou a mão, pegou meu peito e sacudiu. “E isto aqui. Mole e
achatado como uma panqueca. A sua boceta é pior ainda. Meu Deus, você não
tem nem trinta e cinco anos, e comer você é como comer uma poça de lama.”
Pensei em dizer se eu fosse uma poça de lama ainda dava pra en ar mesmo
mole, Joe, e como isso te daria alguma paz?, mas quei de bico calado. Patricia
Claiborne não criou nenhuma trouxa, como eu falei.
Passamos mais um tempo em silêncio. Eu tinha praticamente decidido que
Joe havia dito coisas cruéis o su ciente pra conseguir pegar no sono e estava
pensando em ir buscar a aspirina, quando ele falou de novo… e, dessa vez, eu
tenho quase certeza de que estava mesmo chorando.
“Eu queria nunca ter visto a sua cara”, disse ele, e depois: “Por que você não
usou aquela maldita machadinha pra cortar fora, Dolores? Teria dado no
mesmo.”
Isso pra você ver que eu não era a única que achava que a porrada com a
jarra de leite — e ouvir que a dinâmica em casa ia mudar — pode ter tido a ver
com o problema dele. Mas continuei em silêncio, só esperando pra ver se ele ia
dormir ou tentar pôr as mãos em mim de novo. Ele estava deitado ali, pelado, e
eu sabia qual era o primeiro lugar que eu ia atacar se ele tentasse. Pouco
depois, ouvi ele roncar. Não sei se foi a última vez que ele tentou ser homem
comigo, mas, se não foi, foi uma das últimas.
Nenhum dos amigos dele cou sabendo de nada, claro. Ele que não ia contar
que a esposa tinha dado nele com uma jarra e que a fuinha não levantava mais
a cabeça, né? Não o Joe! Então, quando os outros enchiam a boca pra falar de
como estavam botando as esposas na linha, ele enchia a boca junto, dizendo
que tinha me dado uma surra por ter sido abusada com as palavras, ou talvez
por ter comprado um vestido em Jonesport sem perguntar se tinha problema
pegar dinheiro no pote de biscoitos.
Como eu sei? Ué, porque tem horas em que consigo prestar atenção no que
estou ouvindo, em vez de abrir a boca. Sei que é difícil de acreditar depois de
me ouvir aqui hoje, mas é verdade.
Eu me lembro de uma vez em que estava trabalhando em meio período para
os Marshall — lembra do John Marshall, Andy, que sempre cava falando de
construir uma ponte até o continente? — e a campainha de lá tocou. Eu estava
sozinha na casa, então corri pra atender e escorreguei em um tapete. Caí com
tudo na quina da lareira. Ficou um hematoma enorme no meu braço, acima do
cotovelo.
Três dias depois, quando o hematoma estava passando de marrom-escuro
para aquele verde-amarelado, encontrei Yvette Anderson no vilarejo. Ela estava
saindo do mercado, e eu estava entrando. Ela olhou para o hematoma no meu
braço e, quando falou comigo, a voz dela transbordava pena. Só uma mulher
que viu algo que a deixa mais feliz do que um porco chafurdando pode
transbordar daquele jeito.
“Os homens são horríveis, Dolores”, ela disse.
“Bom, às vezes eles são, e às vezes não são”, respondi.
Eu não tinha a menor ideia do que ela estava falando; estava mais
preocupada em comprar as costeletas de porco em promoção naquele dia antes
que acabassem.
Ela bateu no meu braço de levinho, o que não tinha hematoma, e disse:
“Você tem que ser forte. Tudo vai dar certo. Já passei por isso e sei bem. Vou
rezar por você, Dolores.”
Ela falou essa última parte como se tivesse acabado de me dizer que ia me
dar um milhão de dólares e saiu andando pela rua. Entrei no mercado, ainda
intrigada. Teria achado que ela tinha perdido um parafuso, mas qualquer um
que já passou um tempo com Yvette sabe que ela não tem muitos a perder.
Eu estava na metade das compras quando me dei conta. Fiquei olhando
Skippy Porter pesar as minhas costeletas, com a cesta do mercado pendurada
no braço e a cabeça jogada pra trás, soltando uma risada que vinha do fundo da
barriga, como se faz quando se sabe que não dá pra fazer mais nada além de
gargalhar. Skippy olhou pra mim e disse:
“Está tudo bem, dona St. George?”
“Estou ótima. Só pensei em uma coisa engraçada”, respondi, e voltei a rir.
“É, estou vendo”, disse Skippy, e voltou a olhar a balança.
Que Deus abençoe os Porter, Andy; enquanto eles carem, vai ter pelo
menos uma família na ilha que sabe cuidar da própria vida. Enquanto isso,
continuei rindo. Algumas outras pessoas me olharam como se eu tivesse cado
maluca, mas não me importei. Às vezes, a vida é tão engraçada que a gente tem
que rir.
A Yvette é casada com Tommy Anderson, claro, e Tommy era um dos amigos
de cerveja e pôquer de Joe no nal dos anos 1950 e começo dos 1960. Um
grupo tinha ido à nossa casa um ou dois dias depois que machuquei o braço,
pra tentar fazer a compra mais recente de Joe, uma picape Ford, funcionar. Era
o meu dia de folga, então levei uma jarra de chá gelado pra eles, na esperança
de deixá-los longe da espuma da cerveja pelo menos até o pôr do sol.
Tommy deve ter visto o hematoma quando eu estava servindo o chá. Talvez
tenha perguntado ao Joe o que tinha acontecido depois que entrei, ou talvez só
tenha comentado. En m, Joe St. George não era sujeito de perder uma
oportunidade, pelo menos não uma assim. Na volta pra casa do mercado,
enquanto pensava no assunto, a única coisa que quei curiosa para saber era o
que Joe havia dito para Tommy e os outros que eu tinha feito: se tinha me
esquecido de deixar os chinelos dele debaixo do fogão pra estarem quentinhos
quando ele os calçasse, talvez, ou se tinha deixado o feijão car mole demais na
noite de sábado. Seja lá o que for, Tommy foi pra casa e contou pra Yvette que
Joe St. George tinha precisado dar um corretivo na esposa. E tudo que eu z foi
bater na quina da lareira dos Marshall quando corri pra ver quem estava à
porta!
É disso que estou falando quando digo que tem dois lados em um
casamento: o de fora e o de dentro. As pessoas da ilha viam a mim e Joe como
viam a maioria dos casais da nossa idade: nem felizes demais, nem tristes
demais, em geral apenas levando a vida como dois cavalos puxando uma
carroça… podem não notar um ao outro como antes, e podem não se dar tão
bem quanto antes quando se notam, mas estão presos lado a lado seguindo pela
estrada mesmo assim, sem morder um ao outro, nem enrolar, nem fazer
nenhuma das outras coisas que fazem o chicote cantar.
Mas as pessoas não são cavalos e um casamento não é muito como puxar
uma carroça, apesar de eu saber que às vezes parece isso pra quem olha de fora.
O pessoal da ilha não sabia da jarrinha de leite, nem que Joe chorou no escuro
e disse que desejava nunca ter visto minha cara feia. E isso não foi o pior. O
pior só começou por volta de um ano depois que deixamos de ter alguma
relação na cama. É engraçado, né, que as pessoas podem olhar uma coisa e tirar
uma conclusão completamente diferente sobre o motivo de ter acontecido.
Mas é natural, desde que você lembre que a parte de dentro e a de fora de um
casamento em geral não são muito parecidas. O que vou contar agora estava na
parte de dentro do nosso, e até hoje sempre achei que caria lá.
Ao olhar pra trás, acho que o problema deve ter surgido de verdade em 1962.
Selena tinha começado o ensino médio no continente. Estava muito bonita, e
lembro que, no verão, quando o nono ano acabou, ela se dava melhor com o pai
do que nos dois anos anteriores. Eu estava com medo dos anos de adolescência
dela, porque previa muitas brigas entre os dois à medida que ela crescesse e
começasse a questionar as ideias dele e o que Joe via, cada vez mais, como
direitos dele sobre a lha.
Mas houve um pequeno período de paz, tranquilidade e sentimentos bons
entre os dois, quando ela ia vê-lo trabalhar nas latas-velhas dele atrás da casa
ou se sentava ao lado do pai no sofá enquanto a gente via televisão à noite (o
pequeno Pete não gostou muito desse arranjo, pode ter certeza) e fazia
perguntas sobre o dia dele durante os comerciais. Joe respondia de um jeito
calmo e pensativo com o qual eu não estava acostumada… mas meio que
lembrava. Eu lembrava do ensino médio, de quando a gente estava começando
a se conhecer e ele estava decidindo que, sim, queria me cortejar.
Ao mesmo tempo, ela se afastou de mim. Ah, ainda fazia as tarefas que eu
mandava, e às vezes falava sobre o dia na escola… mas só se eu me esforçasse e
arrancasse as informações. Tinha uma frieza que não estava lá antes, e foi só
depois que comecei a juntar as peças e perceber como tudo apontava pra noite
em que ela saiu do quarto e nos viu, o pai com a mão sobre a orelha e sangue
escorrendo entre os dedos, e a mãe parada na frente dele com uma
machadinha.
Joe nunca foi o tipo de homem que deixava certas oportunidades passarem,
eu já falei, e isso foi mais do mesmo. Ele tinha contado a Tommy Anderson um
tipo de história; a que contou à lha era de uma perspectiva diferente, mas
saída do mesmo livro. Acho que, no começo, não havia nada na cabeça dele
além de ressentimento; ele sabia o quanto eu amava Selena, e deve ter pensado
que contar pra ela como eu era cruel e mal-humorada, talvez até perigosa, seria
uma bela vingança. Tentou virá-la contra mim e, apesar de nunca ter se saído
bem nisso, conseguiu car mais próximo dela do que quando ela era
pequenininha. E por que não? Selena sempre teve um coração grande, e eu
nunca tinha visto um homem com tanto talento para o coitadismo como Joe.
Ele entrou na vida dela e, depois disso, deve ter reparado como a lha estava
cando bonita e decidido que queria mais dela do que só que ouvisse o que ele
falava ou entregasse uma ferramenta quando ele estava embaixo do motor de
uma lata-velha qualquer. Enquanto tudo isso estava acontecendo e eu percebia
as mudanças, cava por perto, trabalhando em quatro empregos diferentes e
tentando manter as contas em dia pra guardar um pouco toda semana pra
faculdade das crianças. Não percebi nada até quase ser tarde demais.
Ela era uma garota cheia de vida e faladora, a minha Selena, e sempre queria
agradar. Quando você pedia pra ela pegar alguma coisa, ela não ia andando; ia
correndo. Quando cou mais velha, cuidava do jantar enquanto eu estava fora
trabalhando, e nunca precisei pedir. No começo, ela queimou a comida
algumas vezes e Joe chamou a atenção ou debochou dela — Selena chegou a ir
chorando para o quarto mais de uma vez —, mas ele parou de fazer isso nessa
época da qual estou falando. Nessa ocasião, na primavera e no verão de 1962,
ele agia como se todas as tortas da lha fossem pura ambrosia, mesmo que a
massa parecesse cimento, e babava pelo bolo de carne dela como se fosse
culinária francesa. Selena cava feliz com os elogios, claro, qualquer um teria
cado, mas não cava in ada demais. Ela não era esse tipo de garota. Mas vou
te dizer uma coisa: quando Selena nalmente saiu de casa, ela era uma
cozinheira melhor no seu pior dia do que eu no meu melhor.
Quando o assunto era ajudar em casa, uma mãe não poderia ter lha
melhor… principalmente uma mãe que passava a maior parte do tempo
limpando a sujeira dos outros. Selena nunca se esquecia de cuidar pra que Joe
Junior e Pete estivessem com o almoço pronto na hora de saírem pra escola de
manhã, e encapava os livros deles todo começo de ano. Pelo menos Joe Junior
poderia ter feito isso sozinho, mas ela nunca deixava.
Selena foi uma das primeiras da turma no nono ano, mas nunca perdeu o
interesse no que acontecia em casa, como alguns adolescentes fazem nessa
idade. A maioria das crianças entre doze e catorze anos decide que qualquer
um com mais de trinta é um velho chato, e acaba saindo pela porta uns dois
minutos depois que os velhos chegam. Mas não a Selena. Ela pegava o café e
ajudava com a louça ou qualquer outra coisa, depois se sentava na cadeira perto
do fogão e ouvia os adultos conversarem. Fosse eu com uma ou duas amigas, ou
Joe com três ou quatro, ela ouvia. Teria cado até quando Joe e os amigos
jogavam pôquer, se eu deixasse. Mas eu não deixava porque eles falavam muita
baixaria. Aquela criança consumia conversas como um ratinho roendo um
pedaço de queijo, e o que não conseguia absorver ela guardava.
Mas aí ela mudou. Não sei quando começou, mas percebi pela primeira vez
não muito depois de ela iniciar o primeiro ano do ensino médio. Perto do m
de setembro, se não me engano.
A primeira diferença que notei era que ela não estava voltando pra casa na
balsa mais cedo como fazia no m da maioria dos dias de aula do ano anterior,
apesar de isso ter funcionado direitinho, porque ela conseguia terminar o dever
de casa no quarto antes de os meninos aparecerem e depois limpar a casa ou
começar o jantar. Em vez de pegar a balsa das duas, começou a pegar a que sai
do continente às quinze para as cinco.
Quando perguntei sobre isso, ela disse que tinha decidido que gostava de
fazer o dever de casa na sala de estudos depois da aula, só isso, e me olhou de
lado de um jeito engraçado que indicava que ela não queria mais tocar no
assunto. Achei que vi vergonha naquele olhar, e talvez uma mentira também.
Essas coisas me preocuparam, mas decidi não insistir a não ser que tivesse
certeza de que havia algo errado. Falar com a minha lha era difícil, entende?
Eu tinha sentido a distância que havia surgido entre nós e tinha uma boa ideia
da origem de tudo: Joe meio levantado da poltrona, sangrando, e eu parada na
frente dele com a machadinha. Pela primeira vez, percebi que ele devia estar
falando com ela sobre isso e sobre outras coisas. Dando a versão dele da
história, por assim dizer.
Pensei que, se eu pressionasse Selena demais sobre o motivo de ela estar
cando até tarde na escola, o nosso problema poderia piorar. Todos os jeitos
que eu pensava de fazer mais perguntas acabavam parecendo um o que você
anda fazendo, Selena?, e se eu tinha essa impressão, uma mulher de trinta e
cinco anos, como uma garota de quase quinze interpretaria? É tão difícil falar
com adolescentes dessa idade; é preciso ter toda cautela do mundo, como se
faz com um pote de explosivos na mão.
Bom, tem uma coisa chamada Noite dos Pais logo depois do começo das
aulas, e dessa vez me esforcei pra ir. Não fui tão suave com a coordenadora da
Selena como havia feito com a minha lha; fui até ela e perguntei se sabia de
algum motivo especí co pra Selena estar cando na escola pra pegar a balsa
mais tarde naquele ano. A professora disse que não sabia, mas achava que era
pra Selena poder fazer o dever. Bom, eu pensei, mas não disse: ela estava
fazendo o dever direitinho na escrivaninha do quarto no ano passado, então o
que mudou? Talvez eu tivesse falado se achasse que a professora teria respostas,
mas cou óbvio que ela não tinha. Ora, ela provavelmente sumia da escola
assim que o último sinal tocava.
Nenhum dos outros professores ajudou. Eu os ouvi elogiarem Selena, o que
não foi nada difícil pra mim, depois voltei pra casa, me sentindo estagnada, no
mesmo lugar de quando saí da ilha.
Peguei um lugar na janela da balsa e observei um garoto e uma garota não
muito mais velhos do que Selena parados do lado de fora, perto da amurada, de
mãos dadas vendo a lua nascer sobre o mar. Ele se virou para ela e disse algo
que a fez rir. Você é um bobão se perder uma chance dessas, menino, eu
pensei, mas ele não perdeu. O garoto se inclinou na direção dela, segurou a
outra mão e a beijou com dedicação. Nossa, como você é boba, eu disse pra
mim mesma enquanto olhava. Ou isso ou que estava velha demais pra lembrar
como era ter quinze anos, com todos os nervos do corpo à or da pele o dia
todo e na maior parte da noite. Selena havia conhecido um garoto, era isso.
Havia conhecido um garoto e eles deviam estar estudando juntos naquela sala
depois da aula. Estudando um ao outro mais do que os livros, provavelmente.
Fiquei aliviada, posso garantir.
Fiquei pensando nisso nos dias seguintes. Se tem uma certeza em lavar
lençóis e passar camisas e aspirar tapetes é que há muito tempo pra pensar. E
quanto mais eu pensava, menos aliviada eu cava. Por um lado, ela não tinha
falado de nenhum garoto, mas por outro Selena não era de car calada sobre o
que estava acontecendo na vida dela. Não estava mais tão aberta e simpática
comigo como antes, não, mas também não havia um muro de silêncio entre
nós. Além do mais, sempre achei que, se Selena se apaixonasse, ela
provavelmente faria um anúncio no jornal.
O detalhe importante, o detalhe assustador, era a forma como os olhos dela
me observavam. Eu sempre reparei que quando uma garota está louca por
algum garoto, os olhos dela brilham tanto que parece que acenderam uma
lanterna por trás deles. Quando procurei isso nos de Selena, não estava lá…
mas essa não foi a parte ruim. A luz de antes também tinha sumido. Essa era a
parte ruim. Olhar nos olhos da minha lha foi como olhar pelas janelas de uma
casa da qual as pessoas saíram sem lembrar de fechar as persianas.
Ver isso foi o que nalmente abriu os meus olhos, e comecei a reparar em
vários sinais que devia ter visto antes… teria visto antes, eu acho, se não
estivesse trabalhando tanto e tão convencida de que Selena estava com raiva de
mim por ter machucado o pai daquela vez.
O primeiro sinal que percebi foi que não era mais só comigo. Ela também
havia se afastado de Joe. Parado de sair pra falar com o pai quando ele estava
mexendo em um dos carros velhos ou no motor da lancha de alguém, e parado
de se sentar ao lado dele no sofá à noite pra ver televisão. Se casse na sala, ela
se sentava na cadeira de balanço perto do fogão, com um trabalho de tricô no
colo. Mas na maioria das noites nem cava. Ia para o quarto e fechava a porta.
Joe não parecia se importar, não parecia nem notar. Ele só voltava pra poltrona,
segurando o Pete no colo até dar a hora do pequeno ir pra cama.
Outro sinal foi o cabelo: ela não o lavava mais todos os dias como antes. Às
vezes, cava tão ensebado que daria pra fritar um ovo nele, e isso não era típico
de Selena. A pele dela sempre tinha sido tão bonita, devia ser a pele de pêssego
que ela herdara do lado de Joe da árvore genealógica, mas naquele outubro
espinhas surgiram na cara dela como dentes-de-leão na praça da cidade depois
do Memorial Day. A cor dela estava pálida demais e o apetite estava fraco.
Ela continuava indo ver as duas melhores amigas, Tanya Caron e Laurie
Langill, de vez em quando, mas não tanto quanto no fundamental. Isso me fez
perceber que nenhuma das duas tinha ido à nossa casa desde o começo das
aulas… e talvez nem durante o último mês de férias. Isso me assustou, Andy, e
me fez observar a minha garota com mais atenção. O que vi me assustou ainda
mais.
O jeito como ela tinha mudado as roupas, por exemplo. Não só um suéter
por outro, ou uma saia por um vestido. Selena tinha mudado todo o estilo de se
vestir, e todas as mudanças foram ruins. Não dava mais pra ver o corpo dela,
por exemplo. Em vez de usar saias ou vestidos pra ir à escola, ela usava
macacões largos, todos grandes demais pra ela. Faziam com que parecesse
gorda, o que ela não era.
Em casa, usava suéteres grandes que iam até os joelhos, e eu nunca a vi sem
a calça jeans e as botinas. Ela enrolava um lenço feio que parecia um pedaço de
pano em volta da cabeça sempre que saía, uma coisa tão grande que caía até a
sobrancelha e fazia os olhos parecerem dois animais espiando de dentro de
uma caverna. Selena parecia um garoto, e eu achava que tinha deixado essa
fase pra trás quando completara doze anos. Uma noite, quando me esqueci de
bater na porta antes de entrar no quarto dela, Selena quase quebrou as pernas
pra pegar o roupão na porta do armário. E estava usando uma camisola, não
estava pelada nem nada.
Mas o pior era que ela não estava mais falando muito. Não só comigo;
considerando a situação, eu poderia ter entendido isso. Mas tinha parado de
falar com todo mundo. A minha lha se sentava à mesa de jantar com a cabeça
baixa e a franja comprida que tinha deixado crescer caindo nos olhos, e quando
eu tentava puxar conversa, perguntar como tinha sido o dia dela na escola e
coisas assim, eu só recebia como resposta um “foi bom” e “pois é”, em vez da
enxurrada de informações que ela soltava antes. Joe Junior também tentou e
deu de cara com o mesmo muro de pedra. Uma ou duas vezes, ele me olhou,
meio intrigado. Só dei de ombros. E assim que a refeição acabava e a louça
estava lavada, ela saía da cozinha ou subia para o quarto.
E, Deus me ajude, a primeira coisa que pensei depois que concluí que o
problema não era um garoto foi em maconha… e não me olha assim, Andy,
como se eu não soubesse do que estou falando. A gente chamava de “bagulho”
e dizia que “ia dar um tapa” em vez de chamar de baseado, mas era a mesma
coisa e tinha muita gente da ilha disposta a revender se o preço da lagosta
caísse… ou mesmo que não caísse. Muita maconha vinha das ilhas costeiras na
época, como agora, e uma parte cava. Não havia cocaína, o que era uma
bênção, mas quem quisesse fumar erva sempre conseguia encontrar. Marky
Benoit tinha sido preso pela Guarda Costeira naquele verão: tinham
encontrado quatro fardos na carga do Maggie’s Delight. Deve ter sido isso que
acendeu a ideia na minha cabeça, mas, mesmo agora, depois de tantos anos, eu
me pergunto como consegui complicar tanto algo que era tão simples. O
verdadeiro problema estava ali, sentado à minha frente à mesa todas as noites,
normalmente precisando de um banho e de uma navalha pra barbear, e ali
estava eu, olhando pra ele, Joe St. George, o maior pau pra toda obra e mestre
de ninguém da ilha Little Tall, me perguntando se minha garotinha ia pros
fundos da escola à tarde pra fumar maconha. Logo eu, que gosto de dizer que a
mãe não criou uma boba. Afe!
Comecei a pensar em entrar no quarto dela e revirar o armário e as gavetas
da escrivaninha, mas quei com nojo de mim mesma. Posso ser muitas coisas,
Andy, mas espero nunca ser xereta. Ainda assim, só de ter a ideia percebi que
tinha passado tempo demais rondando o problema, torcendo para que se
resolvesse sozinho ou que Selena me procurasse por vontade própria.
Chegou um dia — não muito antes do Halloween, eu lembro, porque o
pequeno Pete tinha colocado uma bruxa de papel na janela de entrada — em
que eu tinha que ir à casa dos Strayhorn depois do almoço. Eu e Lisa
McCandless íamos virar os tapetes persas chiques do andar de baixo; é preciso
fazer isso a cada seis meses pra não desbotarem, ou pra desbotarem igual, ou
algo assim. Vesti o casaco, abotoei e estava saindo pela porta quando pensei: O
que você está fazendo com esse casaco pesado de outono, sua pateta? Está
quase vinte graus lá fora, um tempo típico de veranico. E uma outra voz surgiu
e disse: Não vai estar vinte graus lá longe, vai estar mais pra uns dez. E úmido.
E foi assim que percebi que não ia pra casa dos Strayhorn naquela tarde. Ia
pegar a balsa pra Jonesport e conversar com a minha lha. Liguei pra Lisa, falei
que teríamos que virar os tapetes outro dia e fui pegar a balsa. Cheguei a tempo
de pegar a das duas e quinze. Se eu a tivesse perdido, talvez a tivesse perdido, e
quem sabe como as coisas poderiam ter sido diferentes?
Fui a primeira a sair da balsa; ainda estavam prendendo a última corda no
último poste quando pulei na doca, depois fui direto para a escola. No
caminho, pensei que não a encontraria na sala de estudos, apesar do que ela e a
professora haviam dito, que a minha lha estaria atrás da escola com o resto
dos vagabundos… todos rindo, apertando as bundas uns dos outros e talvez
passando uma garrafa de vinho barato em um saco de papel. Se você nunca
esteve em uma situação assim, não sabe como é e eu não tenho como
descrever. Só sei que eu estava descobrindo que não tem como se preparar pra
um coração partido. Você tem que seguir em frente e torcer pra que não
aconteça.
Mas quando abri a porta da sala de estudos e espiei, ela estava lá, sentada a
uma mesa perto da janela com a cabeça inclinada sobre o livro de álgebra. Não
me notou de primeira, então quei parada, observando a minha lha. Ela não
estava com as más companhias, como eu temia, mas o meu coração se partiu
um pouco mesmo assim, Andy, porque pelo jeito ela não tinha companhia
nenhuma, e isso podia ser ainda pior. Talvez a professora não visse nada de
errado em uma garota estudar sozinha depois da aula naquela sala enorme;
talvez até achasse admirável. Mas eu não vi nada de admirável naquilo, nem de
saudável. Não havia nem sequer os alunos da detenção por perto, porque
deixam esses maus elementos na biblioteca em Jonesport-Beals High.
Ela deveria estar com as amigas, ouvindo discos ou babando por algum
garoto, mas estava sentada ali, sob um raio poeirento de sol da tarde, em um
lugar com cheiro de giz, cera de chão e daquela serragem vermelha horrível
que colocam depois que os alunos vão pra casa, com a cabeça tão perto do livro
que era de se imaginar que todos os segredos da vida e da morte estavam lá.
“Oi, Selena”, falei.
Ela se encolheu como um coelho e derrubou metade dos livros da mesa ao se
virar pra ver quem deu oi. Os olhos estavam tão arregalados que pareciam
ocupar toda a metade de cima do rosto dela, e o que consegui ver das
bochechas e testa estava pálido como nata em uma xícara branca. Exceto pelos
lugares onde havia espinhas, claro. Estas se destacavam em vermelho, como
marcas de queimadura.
Aí ela percebeu que era eu. O terror sumiu, mas não deu lugar a um sorriso.
Foi como se uma persiana descesse sobre o rosto da minha lha… ou como se
ela estivesse dentro de um castelo e tivesse puxado a ponte levadiça. Sim, isso
mesmo. Entende o que estou tentando dizer?
“Mamãe! O que você está fazendo aqui?”
Pensei em dizer vim levar você pra casa e ter uma conversinha, querida, mas
algo me disse que teria sido errado naquela sala — naquela sala vazia onde dava
pra sentir o cheiro do que estava errado com ela com a mesma pungência que o
cheiro de giz e de serragem vermelha. Eu sentia o cheiro e pretendia descobrir
o que era. Pela cara dela, eu já havia esperado tempo demais. Não achava mais
que eram drogas, mas, fosse o que fosse, estava com fome. Estava comendo a
minha lha viva.
Falei que tinha decidido abandonar o trabalho da tarde e ir olhar umas
vitrines, mas não tinha encontrado nada de que gostasse.
“Aí, achei que talvez você e eu pudéssemos voltar na balsa juntas. Você se
importa, Selena?”, perguntei.
Ela nalmente sorriu. Eu teria pagado mil dólares por aquele sorriso, pode
ter certeza… um sorriso que era só pra mim.
“Ah, não, mamãe. Vai ser bom ter companhia.”
Descemos a colina até a estação da balsa juntas, e quando perguntei sobre
algumas aulas, ela me contou mais do que tinha contado em semanas. Depois
daquele primeiro olhar que lançou pra mim, como um coelho encurralado
olhando para um gato, pareceu mais a antiga Selena do que em meses, e
comecei a ter esperanças.
Bom, a Nancy aqui pode não saber como a balsa das quinze para as cinco pra
Little Tall e pras outras ilhas é, mas acho que você e Frank sabem, Andy. A
maior parte das pessoas que trabalham e não moram no continente volta pra
casa na das cinco e meia, e o que chega na das quinze para as cinco são
pacotes, cartas, mercadorias de lojas e produtos para o mercado. Então, apesar
de ser uma linda tarde de outono, não tão fria e úmida quanto achei que seria,
estávamos com o convés de popa praticamente só pra gente.
Ficamos lá por um tempo, observando a espuma e as ondas indo na direção
do continente. O sol já estava no oeste e deixava uma trilha na água, que a
espuma quebrava e fazia com que parecesse pedaços de ouro. Quando eu era
pequena, o meu pai me dizia que era ouro, e que às vezes as sereias subiam pra
pegar. Disse que elas usavam os pedaços de sol do m da tarde como telhas dos
castelos mágicos no fundo do mar. Quando eu via aquele tipo de re exo
quebrado na água, sempre procurava sereias, e até estar quase da idade de
Selena, nunca duvidei que elas existiam, porque o meu pai havia me dito que
existiam.
Naquele dia a água estava de um tom escuro de azul que só se vê nos dias
calmos de outubro, e o som do motor foi tranquilizador. Selena desamarrou o
lenço que usava na cabeça, levantou os braços e riu.
“Não é lindo, mãe?”, perguntou ela.
“É”, falei. “É, sim. E você também era linda, Selena. Por que não é mais?”
Ela me olhou, e foi como se tivesse duas caras. A de cima estava intrigada e
meio que ainda rindo… mas por baixo havia uma expressão cuidadosa de
descon ança. O que eu vi na cara de baixo era tudo que Joe havia dito pra ela
naquela primavera e naquele verão, antes de ela começar a se afastar dele
também. Não tenho amigos, era isso que a cara de baixo dizia. Nem você, nem
ele. E quanto mais nos olhávamos, mais aquela cara se destacava.
Selena parou de rir e se virou pra olhar a água. Isso fez eu me sentir mal,
Andy, mas eu não podia deixar que me atrapalhasse, assim como não pude
deixar Vera ser uma lha da puta comigo depois, por mais triste que tudo fosse
no fundo. O fato é que às vezes nós temos que ser cruéis pra sermos gentis,
como um médico que dá uma vacina em uma criança, apesar de saber que a
criança vai chorar e não vai entender. Olhei pra dentro de mim e soube que
podia ser cruel se precisasse. Fiquei assustada ao perceber isso na hora, e ainda
co um pouco. É assustador saber que você consegue ser tão dura quanto a
situação exigir sem nenhuma hesitação, sem olhar pra trás depois nem
questionar o que fez.
“Não entendi, mãe”, disse ela, mas me examinava com um olhar cauteloso.
“Você mudou. A sua aparência, o jeito como se veste, como age. Tudo isso
me diz que você está metida em algum tipo de problema.”
“Não tem nada de errado”, respondeu ela, mas enquanto falava, se afastava
de mim.
Segurei as mãos dela antes que Selena estivesse longe demais.
“Tem, sim, e nenhuma de nós vai sair desta balsa até você me contar o que
é.”
“Nada!”, gritou ela. Selena tentou soltar as mãos, mas não larguei. “Não tem
nada de errado, agora me solta. Me solta!”
“Ainda não”, retruquei. “O problema que for não vai mudar o meu amor por
você, Selena, mas não posso nem começar a te ajudar a sair dele se você não
me contar o que é.”
Ela parou de resistir e apenas me olhou. E eu vi uma terceira cara embaixo
das outras duas: uma cara astuta e infeliz da qual não gostei muito. Exceto pela
pele, Selena puxou o meu lado da família, mas naquela hora estava parecida
com Joe.
“Me conta uma coisa primeiro”, começou ela.
“Conto se puder”, respondi.
“Por que você bateu nele? Por que bateu nele daquela vez?”
Abri a boca pra perguntar “Que vez?”, mais pra ter alguns segundos pra
pensar, mas soube de uma coisa na hora, Andy. Não me pergunte como; pode
ter sido um palpite, o que chamam de intuição feminina, ou talvez eu tenha
conseguido ler a mente da minha lha, mas eu soube. Soube que, se eu
hesitasse mesmo que por um segundo, eu a perderia. Talvez só naquele dia,
mas provavelmente pra sempre. Foi uma coisa que eu soube, então não hesitei
nem por um segundo.
“Porque ele me bateu nas costas com um pedaço de madeira no começo
daquela noite. Praticamente esmagou os meus rins. Acho que decidi que não ia
mais permitir aquilo. Nunca mais.”
Selena piscou do jeito que se faz quando alguém move a mão rapidamente
na direção do seu rosto, e a boca se abriu em um grande O surpreso.
“Não foi isso que ele te contou, né?”
Ela fez que não.
“O que ele disse? Que foi por causa da bebida?”
“Isso, e dos jogos de pôquer”, disse ela com uma voz quase baixa demais pra
ouvir. “Ele disse que você não queria que ele nem ninguém se divertisse. Que
era por isso que você não permitia que ele jogasse pôquer e porque você não
me deixou ir dormir na casa da Tanya ano passado. Disse que você quer que
todo mundo trabalhe oito dias por semana como você. E quando ele se
defendeu, você bateu nele com a jarra e disse que cortaria a cabeça se ele
tentasse fazer alguma coisa. Que faria isso quando ele estivesse dormindo.”
Eu teria rido, Andy, se não fosse tão horrível.
“Você acreditou?”
“Não sei”, disse ela. “Pensar naquela machadinha me deu tanto medo que eu
não sabia em que acreditar.”
Isso entrou no meu coração como uma lâmina de faca, mas não demonstrei.
“Selena, o que ele disse é mentira.”
“Só me deixa em paz!”, retrucou ela, se afastando de mim. Aquela expressão
de coelhinho encurralado surgiu no rosto dela de novo, e percebi que Selena
não estava escondendo alguma coisa só por estar com vergonha ou preocupada.
Estava morrendo de medo. “Eu vou resolver sozinha! Não quero a sua ajuda, só
me deixa em paz!”
“Você não pode resolver sozinha, Selena”, falei. Estava usando o tom baixo e
tranquilizador que se usaria com um cavalo ou com uma ovelha presa no
arame farpado. “Se fosse possível, você já teria feito. Agora, me escuta: sinto
muito que você teve que me ver com aquela machadinha na mão; sinto muito
por tudo que viu e ouviu naquela noite. Se eu soubesse que ia te deixar com
tanto medo e infeliz, eu não teria ido pra cima dele, por mais que ele tivesse
me provocado.”
“Você não pode só parar?”, perguntou ela, e nalmente tirou as mãos das
minhas e botou por cima dos ouvidos. “Não quero ouvir mais. Não vou ouvir
mais.”
“Não posso parar porque isso acabou, não dá mais”, falei. “Mas isto não.
Então me deixa ajudar, meu bem. Por favor.”
Tentei passar um braço em volta dela e me puxar pra perto.
“Não! Não bate em mim! Nem toca em mim, sua lha da puta!”, gritou ela, e se
empurrou pra trás.
Selena esbarrou na grade e eu tive certeza de que ela ia virar pra trás e cair
na água. O meu coração parou, mas graças a Deus as minhas mãos não. Estendi
as mãos, peguei-a pela frente do casaco e a puxei pra mim. Escorreguei no
molhado e quase caí. Mas recuperei o equilíbrio e, quando ergui o rosto, ela se
soltou e bateu na minha cara.
Não dei bola, só a abracei de novo, pertinho de mim. Se você desiste de uma
lha da idade de Selena em uma hora dessas, acho que muito do que você tinha
com ela se vai de vez. Além do mais, o tapa não doeu nadinha. Eu só estava
com medo de perdê-la, e não só do meu coração. Por aquele segundo eu tive
certeza de que ela viraria por cima da grade com a cabeça pra baixo e os pés pra
cima. Tive tanta certeza que consegui até visualizar. É chocante que o meu
cabelo não tenha cado grisalho nessa hora.
Ela começou a chorar e pedir desculpas, dizendo que não pretendia me
bater, que nunca quis fazer aquilo, e eu falei que sabia.
“Para de falar um pouco”, pedi, e o que ela disse em resposta quase me
deixou paralisada.
“Você devia ter me deixado cair, mamãe. Você devia ter deixado.”
Eu a afastei um pouco, mas sem soltá-la. Nessa hora, estávamos as duas
chorando.
“Nada me permitiria fazer uma coisa assim, querida.”
Selena balançava a cabeça.
“Eu não aguento mais, mamãe… Não aguento. Eu me sinto tão suja e
confusa, e não consigo ser feliz, por mais que tente.”
“O que é?”, perguntei, começando a car com medo de novo. “O que é,
Selena?”
“Se eu contar, você provavelmente vai me empurrar por cima da grade.”
“Você sabe que não. E vou te contar outra coisa, meu amorzinho. Você não
vai pisar em terra rme enquanto não se abrir comigo. Se car indo pra lá e pra
cá nesta balsa for o necessário, é o que a gente vai fazer… se bem que acho que
vamos as duas congelar antes do m de novembro, se não morrermos de
intoxicação alimentar pelo que servem naquela lanchonete de merda.”
Achei que isso a faria rir, mas não fez. Ela curvou a cabeça pra olhar o
convés e disse uma coisa com voz fraca, muito baixa. Com o som do vento e
dos motores, eu não consegui ouvir o que foi.
“O que você disse, meu bem?”
Selena repetiu, e ouvi na segunda vez, apesar de ela não ter falado muito
mais alto. Na mesma hora entendi tudo, e a partir daquele momento os dias de
Joe St. George estavam contados.
“Eu nunca quis fazer nada. Ele me obrigou.” Foi isso que ela disse.
Por um minuto eu só pude car parada, e quando nalmente estendi as
mãos pra minha lha, ela se encolheu. O rosto estava branco como papel. A
balsa, a velha Island Princess, deu um salto. O mundo já estava torto embaixo de
mim, e acho que eu teria caído sentada na bunda magrela se Selena não tivesse
me segurado pela cintura. No segundo seguinte, eu a estava abraçando de novo,
e ela chorava junto ao meu pescoço.
“Vem”, falei. “Vem sentar comigo. A gente já sacudiu demais neste barco,
né?”
Fomos para o banco na passagem lateral com os braços uma em volta da
outra, andando com os pés arrastados como duas inválidas. Não sei se Selena se
sentia inválida, mas eu sim. Estava com os olhos lacrimejando um pouquinho,
mas ela chorava tanto que parecia que as tripas iam se soltar se não parasse
logo. Mas foi bom ouvi-la chorar assim. Só quando a ouvi chorando e vi as
lágrimas rolando pelas bochechas dela que percebi o quanto dos sentimentos
dela haviam sumido também, junto à luz nos olhos e às formas debaixo das
roupas. Eu teria gostado de ouvi-la rir muito mais do que ouvir chorar, mas
estava disposta a aceitar o que viesse.
Nós nos sentamos no banco e eu a deixei chorar mais um pouco. Quando
nalmente começou a passar, dei a ela um lenço que guardava na bolsa. Selena
nem usou no começo. Só olhou pra mim, com as bochechas molhadas e vãos
marrons fundos embaixo dos olhos, e disse:
“Você não me odeia, mamãe? Não mesmo?”
“Não”, respondi. “Nem agora, nem nunca. Juro por Deus. Mas quero
entender direito. Quero que você me conte tudo, em detalhes. Estou vendo no
seu rosto que você acha que não consegue, mas eu sei que consegue. E lembre-
se disto: você nunca vai precisar contar de novo, nem para o seu próprio
marido, se não quiser. Vai ser como tirar uma farpa. Juro por Deus sobre isso
também. Entendeu?”
“Sim, mamãe, mas ele disse que, se eu te contasse… às vezes você ca com
tanta raiva, ele disse… como na noite em que bateu nele com a jarrinha… ele
disse que se eu sentisse vontade de contar, era pra eu me lembrar da
machadinha… e…”
“Não, não é assim. Você precisa começar do começo e seguir direto. Mas eu
quero ter certeza de que entendi uma coisa direito desde já. O seu pai anda se
metendo com você, né?”
Selena só deixou a cabeça pender e não disse nada. Era a única resposta de
que eu precisava, mas acho que ela precisava se ouvir falar em voz alta.
Coloquei o dedo embaixo do queixo dela e ergui a sua cabeça até estarmos
nos olhando nos olhos.
“Né?”
“É”, ela respondeu, e caiu no choro de novo.
Mas, dessa vez, não durou tanto nem foi tão intenso. Deixei que ela chorasse
um pouco mesmo assim, porque demorei um tempo pra entender como eu
deveria continuar. Não podia perguntar O que ele fez com você? porque achei
que haveria uma boa chance de ela não saber direito. Por um tempo, a única
coisa em que consegui pensar foi Ele trepou com você?, mas achei que ela
poderia não ter certeza mesmo que eu falasse dessa forma, crua. E soava tão
horrível na minha cabeça.
Finalmente, eu falei:
“Ele en ou o pênis em você, Selena? Ele en ou na sua xoxota?”
Ela fez que não.
“Eu não deixei.” Ela engoliu um soluço. “Ainda não, pelo menos.”
Nós duas conseguimos relaxar um pouco depois disso, ao menos uma com a
outra. O que senti por dentro foi pura fúria. Era como se eu tivesse um olho
interno, um que eu não conhecia antes daquele dia, e com ele só conseguia ver
o rosto longo de cavalo de Joe, com os lábios sempre rachados, a dentadura
sempre meio amarelada e as bochechas sempre ressecadas e vermelhas no alto.
Eu via o rosto dele por perto todas as vezes depois daquilo, aquele olho cava
aberto até quando os outros dois se fechavam e eu estava dormindo, e comecei
a perceber que não se fecharia enquanto ele não estivesse morto. Era como
estar apaixonada, só que do avesso.
Enquanto isso, Selena foi contando a história, do começo ao m. Ouvi e não
a interrompi nenhuma vez, e claro que começou com a noite em que bati no
Joe com a jarrinha e Selena chegou à porta a tempo de vê-lo com a mão em
cima da orelha ensanguentada e eu segurando a machadinha como se
realmente pretendesse cortar a cabeça dele fora. Eu só queria fazer com que
ele parasse, Andy, e arrisquei a minha vida pra isso, mas ela não viu essa parte.
Tudo que viu foi o lado dele da história. Dizem que a estrada para o inferno é
feita de boas intenções, e eu sei que é verdade. Sei por experiência amarga. O
que não sei é por que… por que tentar fazer o bem tantas vezes leva a coisas
ruins. Isso é pra cabeças mais inteligentes do que a minha, acho.
Não vou contar a história toda aqui, não por respeito a Selena, mas porque é
longa demais e dói muito, mesmo agora. Mas vou contar a primeira coisa que
ela disse. Nunca vou esquecer, porque quei impressionada de novo com a
diferença que há entre como as coisas parecem e como elas realmente são…
entre o exterior e o interior.
“Ele parecia tão triste”, disse ela. “Tinha sangue escorrendo entre os dedos
dele e lágrimas nos olhos e ele parecia tão triste. Eu te odiei mais por aquela
expressão dele do que pelo sangue e pelas lágrimas, mamãe, e decidi
compensar. Antes de ir pra cama, eu me ajoelhei e rezei. ‘Deus’, eu falei, ‘se
você não deixar que ela o machuque mais, vou compensar o papai. Juro que
vou. Por Jesus, amém.’”
Você tem alguma ideia do que senti ao ouvir isso da minha lha um ano ou
mais depois de eu achar que aquilo estava no passado? Tem, Andy? Frank? E
você, Nancy Bannister de Kennebunk? Não, estou vendo que não. Rezo pra
Deus que nunca tenham.
Ela começou a ser gentil com Joe: levar lanches especiais quando ele estava
no barracão dos fundos, trabalhando no veículo de neve ou no motor de lancha
de alguém, passou a se sentar ao lado do pai enquanto estávamos vendo
televisão à noite e no degrau da varanda enquanto ele entalhava madeira, ouvir
enquanto ele falava as baboseiras de política de Joe St. George, que Kennedy
estava deixando os judeus e católicos mandarem em tudo, que eram os
comunistas que estavam tentando colocar os crioulos nas escolas e refeitórios
do sul, que em pouco tempo o país estaria arruinado. Ela ouvia, sorria pras
piadas, passava pomada nas mãos dele quando rachavam, e Joe não era surdo a
ponto de não ouvir a oportunidade batendo. Ele parou de falar mal de política
pra Selena e passou a falar mal de mim, que eu cava louca quando me irritava,
e tudo que havia de errado no nosso casamento. De acordo com ele, era tudo
eu.
Foi no nal da primavera de 1962 que ele começou a tocar nela de um jeito
mais do que paternal. Mas no começo foi só isso mesmo: carinhos na perna
quando os dois estavam sentados no sofá juntos e eu estava fora da sala,
tapinhas no traseiro quando ela levava cerveja pra ele no barracão. Foi assim
que começou e continuou daí. No meio de julho, a coitada da Selena tinha
tanto medo dele quanto tinha de mim. Quando nalmente en ei na cabeça
que ia para o continente arrancar respostas dela, Joe tinha feito praticamente
tudo que um homem pode fazer com uma mulher além de foder… e a
intimidou pra que ela zesse várias coisas com ele também.
Acho que ele teria tirado a virgindade dela antes do Labor Day se não fosse o
fato de Joe Junior e Pete estarem sem aulas e por perto por boa parte do tempo.
Pete só estava lá, no caminho, mas acho que Joe Junior tinha uma boa ideia do
que estava acontecendo e decidiu atrapalhar de propósito. Que Deus o abençoe
se foi isso, é só o que posso dizer. Não fui de ajuda nenhuma trabalhando doze
e às vezes catorze horas por dia como fazia na época. E, durante todo o tempo
em que eu estava fora, Joe estava rondando, tocando nela, pedindo beijos,
pedindo que ela o tocasse nos “lugares especiais” (era assim que chamava) e
dizendo que não conseguia se segurar, ele tinha que pedir; Selena era legal com
ele, e eu não era, e um homem tinha certas necessidades, e não passava disso.
Mas ela não podia contar. Se contasse, ele dizia, eu talvez matasse os dois. Joe
cava lembrando a ela da jarrinha e da machadinha. Ficava dizendo que eu era
uma lha da puta fria e temperamental e que ele não podia se segurar porque
um homem tinha certas necessidades. Ele en ou tudo isso na cabeça dela,
Andy, até ela car meio maluca. Ele…
O quê, Frank?
Sim, ele trabalhava, mas o tipo de trabalho dele não interferia muito quando
o assunto era ir atrás da lha. Falei que Joe era um faz-tudo, e era exatamente
isso. Ele fazia tarefas pra várias das pessoas que só visitavam a ilha no verão e
cuidava de duas casas (espero que as pessoas que o contrataram pra fazer isso
mantivessem um bom inventário dos bens). Havia quatro ou cinco pescadores
que o chamavam pra tripulação quando estavam com muito trabalho; Joe
jogava a rede como um dos melhores quando não estava de ressaca. E, claro,
ele tinha os motores como trabalho a mais. Em outras palavras, trabalhava
como muitos dos homens da ilha trabalham, embora não tanto quanto a
maioria: um pouco aqui e um pouco ali. Um homem assim pode fazer as
próprias horas, e naquele verão e começo de outono, Joe organizou os horários
pra poder estar em casa o máximo possível quando eu estava fora. Pra estar
perto de Selena.
Será que você entende o que preciso que entenda? Percebe que ele estava se
esforçando pra entrar tanto na cabeça dela quanto na calcinha? Acho que o que
exerceu mais poder sobre Selena foi me ver com aquela maldita machadinha
na mão, então era o que Joe mais usava. Quando viu que não podia mais usar
aquilo pra conseguir pena, usou pra assustar a lha. Disse várias vezes que eu a
expulsaria de casa se descobrisse o que os dois estavam fazendo.
O que os dois estavam fazendo! Meu Deus!
Selena disse que não queria, e Joe disse que era uma pena, mas era tarde
demais pra parar. Falou que ela o tinha provocado até ele estar meio louco, e
disse que esse tipo de provocação era o motivo de a maioria dos estupros
acontecerem, e que mulheres boas (querendo dizer lhas da puta
temperamentais que portavam machadinhas como eu, acho) sabiam disso. Joe
cou dizendo que ele caria calado enquanto ela casse também…
“Mas”, ele disse pra ela, “você tem que entender, meu amor, que se alguma
coisa escapar, tudo vai ser contado.”
Ela não sabia o que Joe queria dizer com tudo, e não entendia como levar um
copo de chá gelado de tarde e contar sobre o cachorrinho novo da Laurie
Langill tinha dado a ele a ideia de que podia en ar a mão entre as pernas dela e
apertá-la lá quando quisesse, mas ela estava convencida de que devia ter feito
alguma coisa pra fazer com que o pai agisse de um jeito tão ruim, e isso a
deixou com vergonha. Isso foi o pior, eu acho: não o medo, mas a vergonha.
Ela disse que um dia decidiu contar a história toda pra sra. Sheets, a
coordenadora da escola. Até marcou uma conversa, mas perdeu a coragem do
lado de fora da sala, quando a sessão de outra garota passou da hora. Isso tinha
sido menos de um mês antes, logo que as aulas voltaram.
“Comecei a pensar em como soaria”, disse ela quando estávamos sentadas no
banco na passagem lateral da balsa. Estávamos na metade do caminho e já dava
pra ver o East Head, todo iluminado com o sol da tarde. Selena tinha parado de
chorar. Dava fungadas úmidas de vez em quando, mas estava, no geral, sob
controle, e eu estava morrendo de orgulho da minha lha. Mas ela nunca
soltou a minha mão. Ela a segurou com uma força danada o tempo todo em que
falou. Fiquei com hematomas no dia seguinte. “Pensei em como seria me
sentar lá e dizer ‘Sra. Sheets, o meu pai está tentando fazer aquilo comigo’. E
ela é tão burra e tão velha que provavelmente diria ‘Aquilo o quê, Selena? De
que você está falando?’. Só que ela diria falano, como faz quando se empolga. E
aí eu teria que contar que o meu próprio pai queria me comer, e ela não
acreditaria, porque as pessoas não fazem isso lá de onde ela vem.”
“Eu acho que acontece no mundo todo”, falei. “É triste, mas é verdade. E eu
acho que uma orientadora de escola também saberia, a não ser que fosse uma
idiota lunática. A sra. Sheets é uma idiota lunática, Selena?”
“Não”, disse Selena, “eu acho que não, mamãe, mas…”
“Querida, você achou que foi a primeira garota com quem isso aconteceu?”,
perguntei.
Selena disse uma coisa de novo que não consegui ouvir porque ela falou
baixo demais. Tive que pedir pra repetir.
“Eu não sabia se era ou não”, disse ela, e me abraçou. Eu a abracei de volta.
“Aí, quando estava lá esperando, percebi que não ia conseguir falar. Talvez, se
eu tivesse entrado direto, eu teria botado pra fora, mas não depois de ter tempo
de car sentada revirando na cabeça, me perguntando se o papai estava certo e
você me acharia uma menina ruim…”
“Eu nunca pensaria isso”, falei, e dei outro abraço nela.
Ela abriu um sorriso que aqueceu o meu coração.
“Agora eu sei”, disse ela, “mas na hora não tive certeza. E enquanto eu estava
sentada lá, vendo pelo vidro a sra. Sheets terminando de falar com a garota que
foi antes de mim, pensei em um bom motivo pra não entrar.”
“Ah, é? E qual foi?”, perguntei.
“Bom, não era assunto de escola.”
Achei engraçado e comecei a rir. Em pouco tempo, Selena estava rindo
comigo, e as risadas foram cando mais altas, até estarmos sentadas naquele
banco de mãos dadas e rindo como duas mobelhas na época do acasalamento.
Gargalhávamos tão alto que o homem que vende balas e cigarros no andar de
baixo colocou a cabeça na janela por um segundo pra ver se estávamos bem.
Houve duas outras coisas que ela disse no caminho de volta, uma com a boca
e uma com os olhos. A que disse em voz alta foi que estava pensando em
arrumar as coisas e fugir; que isso pareceu pelo menos um jeito de escapar.
Mas fugir não resolve o problema quando se está sofrendo muito; no m das
contas, você leva a sua cabeça e o seu coração junto aonde quer que vá, e o que
eu vi nos olhos da minha lha foi que o pensamento de suicídio havia mais do
que passado pela cabeça dela.
Eu pensava nisso, em ver a ideia de suicídio nos olhos da minha lha, e aí via
o rosto de Joe ainda mais claramente por aquele olho dentro de mim. Via como
ele devia parecer enquanto a incomodava, tentando en ar a mão debaixo da
saia até ela só usar calça jeans pra se defender, sem conseguir o que queria (ou
tudo que queria) por sorte, a dela boa e a dele má, e não por falta de tentativa.
Pensei no que poderia ter acontecido se Joe Junior não tivesse parado de
brincar com Willy Branhall pra voltar pra casa mais cedo algumas vezes, ou se
eu não tivesse nalmente aberto os olhos pra prestar atenção nela. Mais do que
tudo, pensei em como ele a manipulou. Joe a conduziu como um homem de
coração ruim com um chicote ou uma vara verde conduziria um cavalo, sem
nunca parar, nem por amor nem por pena, até o animal cair morto aos seus
pés… e ele provavelmente parado ao lado com a vara na mão, se perguntando
por que aquilo tinha acontecido. Foi pra isso que querer tocar na testa dele,
querer ver se era tão lisa quanto parecia, me levou; foi nisso que tudo resultou.
Os meus olhos estavam completamente abertos, e percebi que estava vivendo
com um homem sem amor e impiedoso que acreditava que qualquer coisa que
ele pudesse alcançar com o braço e pegar com a mão era dele, até a própria
lha.
Eu tinha chegado a esse ponto do pensamento quando a ideia de o matar
surgiu pela primeira vez. Essa não foi nem a hora em que decidi agir, meu
Deus, não, mas eu estaria mentindo se dissesse que o pensamento foi só uma
fantasia. Foi bem mais do que isso.
Selena deve ter visto alguma coisa nos meus olhos, porque colocou a mão no
meu braço e disse:
“Vai ter alguma confusão, mamãe? Por favor, diz que não. Ele vai saber que
eu contei e vai car com raiva!”
Eu queria acalmar seu coração dizendo o que ela queria ouvir, mas não
consegui. Teria, sim, uma confusão, só que o tamanho e a gravidade da
confusão dependeria de Joe. Ele havia recuado na noite em que bati nele com a
jarrinha, mas isso não queria dizer que faria de novo.
“Eu não sei o que vai acontecer”, falei, “mas vou te dizer duas coisas, Selena:
nada disso é culpa sua, e os dias dele de botar as mãos em você e te incomodar
acabaram. Entendeu?”
Os olhos dela se encheram de lágrimas de novo, e uma delas transbordou e
escorreu pela bochecha.
“Eu só não quero confusão”, disse ela e parou um minuto, mexendo a boca.
Depois falou: “Ah, eu odeio isso! Por que você bateu nele? Por que ele veio se
meter comigo? Por que as coisas não puderam car como eram?”.
Eu segurei a mão dela.
“As coisas nunca cam, querida. Às vezes elas dão errado e precisam ser
consertadas. Você sabe disso, né?”
Selena assentiu. Eu vi dor no rosto dela, mas não dúvida.
“Sei. Acho que sei.”
Estávamos chegando à doca nessa hora, e não havia mais tempo pra
conversar. Achei bom; não queria ela me olhando com aqueles olhos cheios de
lágrimas, querendo o que acho que todo lho quer, que tudo casse bem, mas
sem dor e sem ninguém sofrer. Querendo que eu zesse promessas que não
podia fazer, porque eram promessas que eu não sabia se poderia cumprir. Eu
não sabia se aquele olho interno me permitiria cumprir. Descemos da balsa sem
dizer mais nada, e por mim estava ótimo assim.
Naquela noite, depois que Joe voltou da casa dos Carstair, onde estava
construindo uma varanda nos fundos, mandei as três crianças para o mercado.
Vi Selena lançar olhares rápidos pra mim no caminho, o rosto branco como um
copo de leite. Cada vez que ela virava a cabeça, Andy, eu via aquela
machadinha dupla nos olhos da minha lha. Mas via outra coisa também, e
acho que essa outra coisa era alívio. Pelo menos, as coisas vão parar de ser
daquele jeito, ela devia estar pensando; mesmo com medo, acho que parte dela
devia estar pensando isso.
Joe estava sentado perto do fogão lendo o American, como fazia todas as
noites. Parei ao lado da caixa de lenha, encarando-o, e aquele olho interno
pareceu se abrir mais do que nunca. Olha só ele, pensei, sentado ali como Sua
Majestade Pomposa da Puta que Pariu. Como se não tivesse que vestir a calça
uma perna de cada vez, como todo mundo. Como se passar a mão na lha fosse
a atitude mais natural do mundo todo e qualquer homem pudesse dormir
tranquilo depois de fazer isso. Tentei pensar em como tínhamos ido do baile do
segundo e do terceiro anos no Samoset pra onde estávamos naquele momento,
ele sentado junto ao fogão lendo o jornal com a calça jeans velha remendada e
a camiseta térmica de baixo, e eu parada junto da caixa de lenha com
assassinato no coração, e não consegui saber. Era como estar em uma oresta
mágica onde você olha pra trás e vê que o caminho desapareceu.
Enquanto isso, aquele olho interno viu mais e mais. Viu as cicatrizes
cruzadas na orelha de quando eu bati nele com a jarra; viu as veias pequeninas
em zigue-zague no nariz; viu o jeito como o lábio inferior se projetava de forma
que ele quase parecia estar emburrado; viu a caspa nas sobrancelhas e o jeito
como ele puxava os pelos que cresciam pra fora do nariz ou dava um puxão na
virilha da calça de vez em quando.
Tudo o que aquele olho via era ruim, e me ocorreu que me casar com Joe
havia sido bem mais do que o maior erro da minha vida; era o único erro que
importava de verdade, porque não era apenas eu que acabaria pagando por ele.
Era com Selena que Joe estava ocupado agora, mas havia dois garotos logo atrás
dela, e se ele não parasse na tentativa de estuprar a irmã mais velha, o que ele
poderia fazer com os dois?
Virei a cabeça e aquele olho viu a machadinha na prateleira acima da caixa
de lenha, como sempre. Estendi a mão e fechei os dedos no cabo, pensando, eu
não vou só botá-la na sua mão desta vez, Joe. Aí pensei em Selena se virando
pra me olhar quando os três saíram de casa, e decidi que, fosse lá o que
acontecesse, a maldita machadinha não seria parte disso. Então eu me curvei e
peguei um pedaço de pau na caixa de lenha.
Machadinha ou lenha, quase não importava. A vida de Joe chegou a um
apo de acabar ali, naquela hora. Quanto mais olhava pra ele sentado com a
camisa suja, puxando os pelos que saíam pra fora do nariz e lendo os
quadrinhos, mais eu pensava no que havia feito com Selena; quanto mais eu
pensava nisso, mais furiosa eu cava; e quanto mais furiosa eu cava, mais
perto chegava de andar até lá e abrir o crânio dele com aquele pedaço de
madeira. Conseguia até ver o lugar onde acertaria a primeira porrada. O cabelo
dele havia começado a rarear muito, principalmente atrás, e a luz do abajur ao
lado da cadeira deixava um brilho lá. Dava pra ver as sardas na pele acima dos
poucos os de cabelo que tinham sobrado. Bem ali, eu pensei, naquele lugar. O
sangue vai jorrar e sujar toda a cúpula do abajur, mas eu não ligo, porque é feia
e velha mesmo. Quanto mais eu pensava, mais queria ver o sangue esguichando
na cúpula, como eu sabia que aconteceria. E aí, pensei que as gotas voariam na
lâmpada também e fariam um chiado quente. Pensei em tudo isso e, quanto
mais eu pensava, mais os meus dedos apertavam o pedaço de madeira, com
mais rmeza. Foi loucura, ah, foi, mas eu não conseguia dar as costas pra ele, e
eu sabia que aquele olho interno continuaria olhando mesmo que eu desse.
Falei pra mim mesma pra pensar no que Selena sentiria se eu zesse, todos
os piores medos dela virariam verdade, mas isso também não funcionou. Por
mais que eu a amasse e por mais que quisesse que ela gostasse de mim, não
adiantou. Aquele olho era forte demais para o amor. Nem imaginar o que
aconteceria aos três se ele estivesse morto e eu estivesse em South Windham
por tê-lo matado fez aquele olho interno fechar. Ficou escancarado, e cava
vendo mais e mais coisas feias na cara de Joe. O jeito como arrancava os ocos
brancos de pele da bochecha quando se barbeava. Uma mancha de mostarda do
jantar secando no queixo. A dentadura grandalhona de cavalo, que ele comprou
pelo correio e não encaixou direito. E cada vez que via uma coisa nova com
aquele olho, eu apertava a lenha um pouco mais forte.
No último minuto, pensei em outra coisa. Se você zer isso aqui e agora,
não vai estar fazendo por Selena, pensei. Também não estaria fazendo pelos
meninos. Estaria fazendo porque toda a baixaria aconteceu debaixo do seu
nariz por três meses ou mais e você foi burra demais pra notar. Se vai matá-lo e
ser presa e só ver os seus lhos nas tardes de sábado, é bom que entenda o
motivo: não é porque ele foi pra cima de Selena, mas porque te enganou, isto é
algo que você tem em comum com a Vera: o que você mais odeia no mundo é
ser enganada.
Por m, foi isso que me segurou. O olho interno não se fechou, mas se
reduziu e perdeu muito poder. Tentei abrir a mão e deixar o pedaço de lenha
cair, mas eu estava apertando com força demais e não conseguia soltar. Tive
que usar a outra mão pra puxar os dois primeiros dedos e largá-la na caixa de
lenha, os outros três dedos caram curvados, como se ainda estivessem
segurando algo. Precisei exionar a mão três ou quatro vezes pra senti-la voltar
ao normal.
Depois que z isso, andei até Joe e bati no ombro dele.
“Quero falar com você”, disse.
“Então fala”, respondeu ele por trás do jornal. “Eu não estou te segurando.”
“Quero que você me olhe quando eu falar. Abaixa essa porcaria.”
Ele largou o jornal no colo e me olhou.
“Essa boca não para, hein?”
“Eu cuido da minha boca”, falei, “e você cuida das suas mãos. Se não cuidar,
elas vão meter você em mais problema do que você aguentaria mesmo que o
ano todo fosse feito de domingos.”
Joe ergueu as sobrancelhas e perguntou o que aquilo queria dizer.
“Quer dizer que eu quero que você deixe a Selena em paz”, respondi.
Foi como se eu tivesse metido o joelho nas joias da família dele. A cara dele
foi o melhor daquela história toda, Andy, a cara de quando ele percebeu que
havia sido descoberto. A pele dele cou pálida, a boca se abriu e o corpo todo
meio que tremeu naquela cadeira de balanço vagabunda e velha dele, do jeito
como o corpo se sacode às vezes quando a gente está pegando no sono e tem
um pensamento ruim.
Ele tentou ngir que havia sentido uma contração muscular nas costas, mas
não enganou nenhum de nós dois. Pareceu meio envergonhado, mas isso não o
fez ganhar nenhum desconto comigo. Até um cachorro tem bom senso de
parecer envergonhado se você o pegar roubando ovos de um galinheiro.
“Não sei do que você está falando”, disse ele.
“Então por que fez cara de que o diabo en ou a mão na sua calça e apertou
as suas bolas?”, perguntei.
O trovão começou a surgir na testa dele de novo.
“Se aquele peste do Joe Junior andou contando mentiras sobre mim…”,
começou ele.
“Joe Junior não andou dizendo nem sim, nem não, nem talvez sobre você, e
pode parar de ngir, Joe. Selena me contou. Ela me contou tudo: que tentou
ser legal depois da noite em que eu bati em você com a jarrinha de leite, como
você retribuiu e o que disse que aconteceria se ela contasse.”
“Ela é uma mentirosa!”, retrucou ele, jogando o jornal no chão como se isso
provasse. “Uma mentirosa e provocadora! Vou pegar o cinto, e quando ela der a
cara de novo… se ousar aparecer por aqui de novo…”
Joe começou a se levantar. Estendi uma das mãos e o empurrei de volta. É
bem fácil empurrar uma pessoa que está tentando se levantar de uma cadeira
de balanço; quei um pouco surpresa com a facilidade. Claro que eu quase
havia esmagado a cabeça dele com o pedaço de lenha menos de três minutos
antes, e isso talvez tenha tido algo a ver.
Joe semicerrou os olhos até se tornarem frestas nas e disse que era melhor
eu não me meter com ele.
“Você já fez isso antes, mas isso não quer dizer que você pode me peitar toda
vez que quiser”, ameaçou.
Eu estava pensando exatamente a mesma coisa, e não muito tempo antes,
mas não era a hora de dizer isso pra ele.
“Pode guardar os seus discursos para os seus amigos. O que você vai querer
fazer agora não é falar, é ouvir… e prestar atenção no que eu tenho pra dizer,
porque cada palavra é séria. Se você se meter com Selena de novo, eu vou te
en ar na Prisão Estadual por molestar uma menor ou por estupro de
vulnerável, a acusação que te mantiver lá por mais tempo.”
Isso o deixou estupefato. Ele abriu a boca de novo e só cou parado por um
minuto, me olhando.
“Você não”, começou ele, mas parou. Porque ele viu que sim, eu faria isso.
Então mudou de tática, projetou o lábio inferior ainda mais do que antes.
“Você ca do lado dela, né? Nem perguntou o meu lado, Dolores.”
“Você tem um? Quando um homem com quase quarenta anos pede pra lha
de catorze tirar a calcinha pra ele ver quanto pelo cresceu na xoxota dela, dá
pra dizer que esse homem tem lado?”
“Ela vai fazer quinze mês que vem”, retrucou ele, como se isso mudasse tudo.
Ele era uma peça mesmo.
“Você está se ouvindo?”, perguntei. “Ouviu o que saiu da sua própria boca?”
Joe me olhou mais um pouco, depois se curvou e pegou o jornal no chão.
“Me deixa em paz, Dolores”, disse ele com a melhor voz mal-humorada de
coitadinho. “Quero terminar esse artigo.”
Senti vontade de arrancar a porcaria do jornal das mãos dele e jogar na cara,
mas com certeza haveria uma briga de sangue se eu zesse, e eu não queria que
as crianças, principalmente Selena, chegassem e dessem de cara com uma
coisa assim. Então só estendi a mão e abaixei a parte de cima com o polegar.
“Primeiro você vai prometer que vai deixar Selena em paz, pra que a gente
possa deixar essa história de merda pra trás. Promete que não vai tocar nela
assim nunca mais, pelo resto da vida.”
“Dolores, você não…”, começou ele.
“Promete, Joe, senão eu vou tornar a sua vida um inferno.”
“Você acha que isso me assusta?”, gritou ele. “Você já tornou a minha vida
um inferno nos últimos quinze anos, sua piranha. A sua cara feia não é páreo
pra esse seu temperamento infernal! Se você não gosta de como eu sou, a culpa
é sua!”
“Você não sabe o que é um inferno, mas, se não prometer deixá-la em paz,
vou me encarregar pessoalmente de que você descubra.”
“Tudo bem! Tudo bem, eu prometo! Pronto! Feito! Está satisfeita?”
“Estou”, falei, apesar de não estar.
Joe nunca mais conseguiria me deixar satisfeita. Não teria importado nem se
tivesse multiplicado pães e peixes. Eu pretendia tirar as crianças daquela casa
ou vê-lo morto antes da virada do ano. Pra mim, não faria muita diferença qual
dos dois acontecesse, mas não queria que ele soubesse que havia algo a
caminho até não dar mais tempo de ele tomar uma atitude.
“Ótimo. Então está tudo acertado, né, Dolores?” Mas Joe me olhava com um
brilho esquisito nos olhos do qual não gostei muito. “Você se acha bem
inteligente, né?”
“Sei lá”, falei. “Eu achava que tinha uma boa cota de inteligência, mas olha
com quem eu acabei me casando.”
“Ah, para com isso”, respondeu ele, ainda me olhando daquele jeito
esquisito, meio espertinho. “Você se acha tão fodona que deve achar que caga
ouro. Mas não sabe de tudo.”
“O que quer dizer com isso?”
“Descobre você.” Ele sacudiu o jornal como um cara rico que quer ver se a
bolsa de valores não o prejudicou muito naquele dia. “Não deve ser difícil pra
uma espertalhona.”
Não gostei, mas deixei pra lá. Em parte porque não queria bater mais no
vespeiro do que precisava, mas não foi só isso. Eu achava mesmo que era
inteligente, mais inteligente do que ele, pelo menos, e isso era o resto. Achava
que, se Joe tentasse se vingar de mim, eu notaria o que ele estava tramando uns
cinco minutos depois que começasse. Foi orgulho, em outras palavras, orgulho
puro e simples, e a ideia de que ele já tinha começado nunca passou pela minha
cabeça.
Quando as crianças voltaram do mercado, mandei os meninos pra dentro de
casa e andei para os fundos com Selena. Tem um emaranhado grande de
arbustos de amoras lá, praticamente desfolhados naquela época do ano. Uma
brisa havia começado, provocando um barulho. Era um som solitário. E meio
sinistro. Tem uma pedra branca grande saindo do chão ali, e nos sentamos
nela. Uma meia-lua tinha surgido acima do East Head, e quando ela segurou as
minhas mãos, os dedos dela estavam tão frios quanto a lua parecia.
“Não tenho coragem de entrar, mamãe”, disse ela, com a voz falhando. “Vou
pra casa da Tanya, tudo bem? Por favor, diz que eu posso.”
“Você não precisa ter medo de nada, querida. Está tudo resolvido.”
“Eu não acredito”, sussurrou ela, embora o seu rosto dissesse que ela queria.
Que queria, mais que tudo, acreditar naquilo.
“É verdade”, falei. “Ele prometeu deixar você em paz. Joe nem sempre
cumpre as promessas, mas vai cumprir essa agora que sabe que estou de olho e
que sabe que você não vai car calada. Além do mais, está morrendo de medo.”
“Morrendo de med… Por quê?”
“Porque falei que o veria em Shawshank se ele zesse mais alguma coisa
com você.”
Ela ofegou e as mãos apertaram as minhas de novo.
“Mamãe, você não disse isso!”
“Disse, sim, e falei sério. É melhor você saber disso, Selena. Mas eu não me
preocuparia muito; Joe provavelmente não vai chegar a três metros de você nos
próximos quatro anos… e até lá você vai estar na faculdade. Se tem uma coisa
nessa Terra redonda que ele respeita é a própria pele.”
Ela soltou as minhas mãos devagar, mas com segurança. Vi a esperança
surgir no rosto dela, além de outra coisa. Era como se a juventude estivesse
voltando, e só então, sentada sob o luar perto da amoreira com a minha lha,
foi que percebi como ela havia passado a parecer velha naquele outono.
“Ele não vai me dar uma surra nem nada?”, perguntou ela.
“Não”, respondi. “Está resolvido.”
Selena acreditou em tudo, descansou a cabeça no meu ombro e começou a
chorar. Foram lágrimas de alívio, puro e simples. O fato de ela ter que chorar
assim me fez odiar Joe ainda mais.
Acho que, nas noites seguintes, havia uma garota na minha casa dormindo
melhor do que nos três meses anteriores ou mais… mas eu cava acordada.
Ouvia Joe roncar ao meu lado. Olhava pra ele com aquele olho interno e sentia
vontade de me virar e arrancar a garganta dele no dente. Mas não estava mais
louca, como quei quando quase dei nele com aquele pedaço de lenha. Pensar
nas crianças e no que aconteceria com elas se eu fosse presa por assassinato
não havia tido nenhum poder sobre o olho interno naquela hora, mas depois,
quando prometi a Selena que ela estava segura e tive a chance de esfriar um
pouco, teve. Ainda assim, eu sabia que o que Selena provavelmente queria, que
a vida continuasse como se as coisas que o pai fez nunca tivessem acontecido,
não era possível. Mesmo que ele cumprisse a promessa e nunca mais tocasse
nela, não era possível… e, apesar do que eu tinha dito a ela, não tinha certeza
se ele cumpriria a promessa. Mais cedo ou mais tarde, homens como Joe
costumam persuadir a si mesmos de que podem se safar da próxima vez; de
que, se tomarem um pouco mais de cuidado, podem ter o que quiserem.
Deitada no escuro e nalmente calma de novo, a resposta pareceu bem
simples: eu tinha que pegar as crianças e me mudar para o continente, e tinha
que ser logo. Estava bem calma na hora, mas sabia que não caria assim;
aquele olho interno não me deixaria. Na próxima vez que eu casse com raiva,
ele veria melhor ainda, e Joe caria ainda mais feio, e talvez não houvesse
pensamento nenhum na face da Terra que pudesse me impedir de agir. Era um
jeito novo de sentir raiva, pelo menos pra mim, e eu fui sábia de perceber o
mal que podia fazer se me permitisse. Precisava sair de Little Tall com os meus
lhos antes que a loucura levasse a melhor. E quando tomei a primeira atitude
pra isso, descobri o que signi cava aquela expressão estranha e meio sabichona
nos olhos dele. E como descobri!
Esperei um tempo pra que as coisas se acalmassem e peguei a balsa das onze
da manhã para o continente numa sexta-feira. As crianças estavam na escola e
Joe no mar com Mike Stargill e o irmão dele, Gordon, brincando com as
armadilhas de lagosta. Ele só voltaria perto do pôr do sol.
Eu estava com os documentos das poupanças das crianças comigo.
Estávamos guardando dinheiro pra faculdade deles desde que nasceram… eu,
pelo menos; Joe estava cagando se os lhos fariam faculdade ou não. Sempre
que o assunto surgia, e era sempre eu que trazia à tona, ele cava sentado
naquela cadeira de balanço de merda com o rosto escondido atrás do Ellsworth
American e mostrava a cara só pra dizer:
“Em nome de Cristo, por que você quer tanto mandar essas crianças pra
faculdade, Dolores? Eu não z e estou ótimo.”
Bom, tem coisas sobre as quais não dá pra discutir, né? Se Joe achava que ler
o jornal, tirar meleca e limpar o dedo depois embaixo do braço da cadeira de
balanço era estar ótimo, não havia espaço nenhum pra discussão; era uma
conversa totalmente inútil desde a primeira palavra. Mas tudo bem. Enquanto
eu pudesse obrigá-lo a contribuir com uma parte se arrumasse algo de bom,
como quando entrou na equipe de manutenção rodoviária do condado, eu não
ligava se ele achava que todas as faculdades do país eram controladas por
comunistas. No inverno em que ele trabalhou na manutenção de estradas no
continente, z com que ele colocasse quinhentos dólares nas contas deles, e
Joe choramingou como um lhotinho. Disse que eu estava tirando o lucro dele.
Mas eu sabia a verdade, Andy. Se aquele lho de uma égua não ganhou dois
mil, talvez dois e quinhentos naquele inverno, eu beijo um porco com um
sorriso na cara.
“Por que você sempre pega tanto no meu pé, Dolores?”, perguntava ele.
“Se você fosse homem pra fazer a coisa certa pelos seus lhos, eu não
precisaria pegar no seu pé”, eu dizia, e a conversa seguia assim, blá-blá-blá.
De tempos em tempos, eu cava de saco cheio, Andy, mas quase sempre
tirava dele o que achava que as crianças mereciam. Não podia car tão de saco
cheio a ponto de parar, porque os três não tinham mais ninguém pra garantir o
futuro deles quando chegasse a hora.
Não havia muito nas três contas pelos padrões de hoje em dia: uns dois mil
na de Selena, uns oitocentos na de Joe Junior e quatrocentos ou quinhentos na
de Pete. Mas estamos falando de 1962, e naquela época era uma grana bem
razoável. Mais do que su ciente pra fugir, com certeza. Pensei em sacar a
conta do Pete em dinheiro e levar cheques ao portador das outras duas. Havia
decidido ir embora de vez e mudar pra Portland, arrumar um lugar pra morar e
um emprego decente. Não estávamos acostumados a morar na cidade, mas as
pessoas conseguem se adaptar a quase qualquer coisa se precisarem. Além do
mais, Portland não era uma cidade tão grande assim na época, não como é
agora.
Quando eu me rmasse, poderia começar a repor o dinheiro que tinha
precisado pegar, e eu achava que conseguiria. Mesmo que não conseguisse, os
três eram crianças inteligentes, e eu sabia que existiam bolsas. Se não
conseguissem bolsas, concluí que não era orgulhosa demais para pedir um
empréstimo. O principal era levá-los pra longe. Naquela hora, isso pareceu
muito mais importante do que a faculdade. Uma coisa de cada vez, como dizia
o adesivo no trator Farmall velho de Joe.
Estou falando de Selena há quase quarenta e cinco minutos, mas não foi só
ela que sofreu por causa de Joe. Ela levou o pior, mas sobrou muita coisa para
Joe Junior também. Ele tinha doze anos em 1962, era a idade de um garoto
começar a brilhar, mas só de olhar pra ele dava pra saber que não era o caso.
Ele quase nunca sorria nem ria, o que não era de se admirar. Ele mal entrava
no aposento e o pai ia pra cima como uma fuinha em cima das galinhas,
mandando que en asse a camisa pra dentro da calça, penteasse o cabelo,
endireitasse a postura, crescesse, parasse de agir como uma mulherzinha com
o nariz sempre en ado num livro, pra ser homem. Quando Joe Junior não
entrou no time principal da liga infantil no verão antes de eu descobrir qual era
o problema com Selena, era de se pensar, se ouvisse o pai dele falar, que Joe
Junior tinha sido expulso da equipe de corrida da Olimpíada por tomar
anabolizantes. Somando isso com o que ele viu o pai fazer com a irmã, a
situação era complicada. Às vezes, eu notava Joe Junior olhando para o pai e
havia ódio de verdade no rosto do garoto: ódio puro e simples. Durante a
semana ou duas antes de eu ir para o continente com os documentos das
contas no bolso, eu percebi que, quando se tratava do pai, Joe Junior tinha um
olho interno próprio.
Além disso, havia o pequeno Pete. Quando tinha quatro anos, ele andava
atrás de Joe, com a cintura da calça puxada igual a como o pai usava, e puxava a
ponta do nariz e das orelhas como Joe fazia. Pete não tinha pelos lá pra puxar,
óbvio, então só ngia. No primeiro dia no primeiro ano, voltou pra casa
choramingando, com terra na bunda da calça e um arranhão na bochecha. Eu
me sentei ao lado dele no degrau da varanda, passei o braço pelos seus ombros
e perguntei o que tinha acontecido. Ele disse que aquele maldito judeuzinho
Dicky O’Hara o havia empurrado. Eu disse que ele não devia falar daquele jeito
e perguntei se ele sabia o que era “judeuzinho”. Eu estava curiosa pra saber o
que sairia da boca dele, pra falar a verdade.
“Óbvio que sei”, disse ele. “Um judeuzinho é um idiota como o Dicky
O’Hara.”
Falei que não, que ele estava errado, e Joe Junior me perguntou o que
signi cava. Disse pra ele deixar pra lá, que não era um jeito legal de falar e eu
não queria que ele falasse mais aquilo. Ele cou me olhando de cara feia com o
lábio de baixo em um beicinho. Estava igualzinho ao pai. Selena tinha medo do
pai, Joe Junior o odiava, mas, de certa forma, era o pequeno Pete quem mais
me assustava, porque Pete queria crescer e car igualzinho ao pai.
Então peguei os documentos no fundo da gavetinha da minha caixa de joias
(eu guardava lá porque era a única coisa que eu tinha que dava pra trancar;
andava com a chave pendurada no pescoço, numa correntinha) e entrei no
Coastal Northern Bank de Jonesport por volta de meio-dia e meia. Quando a
la andou e chegou a minha vez, entreguei os documentos pra funcionária,
disse que queria fechar as três contas e expliquei como eu queria o dinheiro.
“Só um momento, sra. St. George”, pediu ela, e foi até o fundo da área dos
caixas pra ver as contas.
Isso foi muito antes dos computadores, e tinham que mexer em muita
papelada.
Ela pegou os documentos, viu que eram três, depois abriu as pastas e olhou.
Uma linha surgiu no meio da testa dela, e a funcionária disse alguma coisa pra
uma das outras mulheres. As duas olharam por um tempo, comigo parada ali
do outro lado do balcão, observando-as e dizendo a mim mesma que não havia
nenhum motivo no mundo pra eu car nervosa, mas me sentindo bem nervosa
mesmo assim.
Aí, em vez de voltar, a funcionária foi até um daqueles cubículos que eles
chamavam de sala. Tinha paredes de vidro, então eu a vi falando com um
homenzinho careca de terno cinza e gravata preta. Quando voltou para o
balcão, ela não estava mais com os arquivos. Havia deixado na mesa do careca.
“Acho que é melhor você falar sobre a poupança dos seus lhos com o sr.
Pease, sra. St. George”, disse ela, e me devolveu os documentos. Fez com a
lateral da mão, como se os papéis pudessem ter germes e ela fosse se infectar se
tocasse demais ou por muito tempo.
“Por quê? Qual é o problema?”, perguntei.
Nesse momento, eu já tinha desistido da ideia de que não havia motivo pra
nervosismo. Sentia o coração pular num ritmo acelerado e a boca seca.
“Eu não saberia dizer, mas tenho certeza de que, se houve algum mal-
entendido, o sr. Pease vai poder resolver”, explicou ela, mas não me encarou e
eu percebi que ela não achava aquilo de verdade.
Fui pra sala dele como se estivesse com dez quilos de cimento em cada pé. Já
tinha uma boa ideia do que devia ter acontecido, mas não entendia como teria
acontecido. Caramba, eu estava com os documentos, não estava? Joe não havia
tirado da minha caixa de joias e colocado de volta, porque a fechadura teria
sido arrebentada, e não foi. Mesmo que ele tivesse conseguido arrombar de
algum jeito (o que é uma piada; aquele homem não conseguia levar uma
garfada de feijão à boca sem deixar metade cair no colo), os documentos
mostrariam as retiradas ou teriam o carimbo de com a tinta
vermelha que o banco usa… e nenhum papel tinha isso.
Mesmo assim, eu sabia que o sr. Pease ia me dizer que o meu marido havia
feito alguma escrotice, e quando entrei na sala, foi exatamente isso que ele me
contou. Pease explicou que as contas de Joe Junior e Pete haviam sido fechadas
dois meses antes e a de Selena menos de duas semanas antes. Joe escolhera
aquele momento porque sabia que eu nunca botava dinheiro na conta depois
do Labor Day enquanto não achasse que tinha o su ciente para as contas de
Natal guardado na sopeira que ca na prateleira do alto da cozinha.
Pease me mostrou as folhas verdes de papel pautado que os contadores
usam. Joe tinha tirado a última soma gorda, de quinhentos dólares da conta da
Selena, no dia seguinte a quando falei que sabia o que ele estava fazendo com
ela e ele cou sentado na cadeira e disse que eu não sabia de tudo. Ele
realmente estava certo sobre isso.
Repassei os números umas seis vezes, e quando olhei pra frente, o sr. Pease
estava esfregando as mãos com cara de preocupado. Eu via gotículas de suor na
cabeça careca. Ele sabia tão bem quanto eu o que tinha acontecido.
“Como você pode ver, sra. St. George, as contas foram fechadas pelo seu
marido e…”
“Como isso é possível?”, perguntei. Joguei os documentos das três contas na
mesa dele. Fizeram um ruído seco, e ele meio que piscou e se afastou um
pouco. “Como pode ser, se os documentos das contas de poupança estão aqui
comigo?”
“Bem”, começou ele, lambendo os lábios e piscando como um lagarto
pegando sol em uma pedra quente, “sabe como é, sra. St. George, essas são —
eram — o que chamamos de ‘poupanças de menores’. Isso quer dizer que a
criança em cujo nome a conta está pode — podia — tirar dinheiro com você ou
com o seu marido pra assinar junto. Também signi ca que qualquer um de
vocês dois pode, como pais, tirar dinheiro das três contas na hora que quiserem
e como quiserem. Como você teria feito hoje se o dinheiro ainda, hã-ham,
estivesse nas contas.”
“Mas aqui não mostra nenhuma retirada!”, retruquei, e eu devia estar
gritando, porque as pessoas no banco nos olhavam. Eu as via pelas paredes de
vidro. Não que me importasse. “Como ele tirou o dinheiro sem a merda dos
documentos?”
Pease esfregava as mãos cada vez mais rápido. Faziam um som áspero, e se
ele estivesse com um graveto seco entre as duas, acho que teria colocado fogo
nas embalagens de chiclete no cinzeiro.
“Sra. St. George, se eu puder pedir que mantenha a voz baixa…”
“Eu me preocupo com a minha voz”, falei, mais alto ainda. “Você se preocupa
com o jeito como este banco de merda trabalha, amigão! Pelo jeito, você tem
muito com que se preocupar.”
Ele pegou uma folha de papel e olhou.
“De acordo com isto, o seu marido declarou que os documentos tinham sido
perdidos”, disse ele, por m. “Ele pediu para que emitíssemos novos. É bem
comum…”
“Que se dane o comum!”, gritei. “Vocês nunca me ligaram! Ninguém do
banco me ligou! Essas contas cavam sob a responsabilidade dos dois, foi assim
que me explicaram quando eu abri a de Selena e de Joe Junior em 1951, e ainda
era assim quando abrimos a de Peter em 1954. Você vai me dizer que as regras
mudaram depois?”
“Sra. St. George…”, começou ele, mas foi como tentar assobiar com a boca
cheia de farofa; eu pretendia deixar minha opinião bem clara.
“Ele contou uma história pra boi dormir e vocês acreditaram. Pediu
documentos novos, e vocês deram. Meu Deus do céu! Quem você acha que
botou o dinheiro no banco? Se acha que foi Joe St. George, você é muito mais
burro do que parece!”
Nessa hora, todo mundo no banco tinha parado de ngir que estava
cuidando da própria vida. Todo mundo cou parado no lugar, nos encarando. A
maioria deve ter achado um bom show, a julgar pela expressão no rosto das
pessoas, mas me pergunto se teriam gostado tanto se fosse o dinheiro da
faculdade dos lhos deles que havia saído voando como um pássaro. O sr. Pease
cou mais vermelho que a parede do celeiro do meu pai. Até mesmo a careca
suada.
“Por favor, sra. St. George”, pediu ele. Àquela altura, o homem estava com
cara de choro. “Garanto que o que zemos não só foi perfeitamente legal, mas
uma prática bancária padrão.”
Nessa hora, baixei a voz. Senti a revolta transbordar em mim. Joe havia me
enganado, e feio, e dessa vez eu não precisava esperar que acontecesse duas
vezes pra dizer bem-feito.
“Talvez seja legal, talvez não”, falei. “Eu teria que arrastar você pra um
tribunal pra descobrir, né? Mas eu não tenho tempo nem dinheiro pra isso.
Além do mais, não é a questão do que é legal ou não que foi um soco na cara
pra mim… Foi vocês nunca pensarem que outra pessoa poderia querer saber o
que aconteceu com o dinheiro. As ‘práticas bancárias padrão’ não permitem
que vocês façam uma ligação, cacete? O número está aí nos formulários, e não
mudou.”
“Sra. St. George, eu sinto muito, mas…”
“Se tivesse sido o contrário, se eu tivesse aparecido com uma história de que
os documentos tinham se perdido e pedido novos, se eu tivesse começado a
sacar o que levou onze ou doze anos pra poupar… vocês não teriam ligado para
o Joe? Se o dinheiro ainda estivesse aqui pra eu sacar hoje, como eu pretendia,
você não teria ligado pra ele assim que eu saísse pela porta, pra avisar — só
como cortesia, veja bem! — o que a esposa dele tinha feito?”
Porque eu estava esperando exatamente isso, Andy, e foi por esse motivo que
escolhi um dia em que Joe tinha saído de barco com o Stargills. Eu esperava
voltar à ilha, pegar as crianças e sumir bem antes de ele chegar com uma caixa
de cerveja em uma das mãos e a marmita vazia na outra.
Pease me olhou e abriu a boca. Fechou-a em seguida e não disse nada. Nem
precisou. A resposta estava na cara dele. Óbvio que ele, ou alguma outra pessoa
do banco, teria ligado para Joe, e caria tentando até conseguir falar com ele.
Por quê? Porque Joe era o homem da casa, por isso. E o motivo pra ninguém se
incomodar de me avisar era porque eu não passava da esposa. O que eu sabia
sobre dinheiro, além de como ganhar um pouco de quatro, esfregando pisos e
rodapés e privadas? Se o homem da casa decidisse tirar todo o dinheiro da
faculdade dos lhos, ele devia ter um bom motivo, e, mesmo que não tivesse,
não importava, porque ele era o homem da casa e ele mandava. A esposa era só
uma mulherzinha, e ela só mandava na limpeza dos rodapés e das privadas e no
jantar de domingo.
“Se há um problema, sra. St. George”, disse Pease, “eu sinto muito, mas…”
“Se você disser que sente muito mais uma vez, vou dar um chute tão forte na
sua bunda que você vai car corcunda”, falei, mas não havia perigo real de eu
fazer nada. Naquela hora, não tinha forças nem pra chutar uma lata de cerveja
até o outro lado da rua. “Só me diz uma coisa e eu largo do seu pé. O dinheiro
foi gasto?”
“Eu não teria como saber!”, respondeu ele com aquela vozinha metida e
chocada.
Seria de imaginar que eu tinha dito que eu mostraria a minha se ele
mostrasse o dele.
“Este é o banco onde o Joe teve conta a vida toda”, falei. “Ele poderia ter
seguido pela estrada pra Machias ou Columbia Falls e guardado em um
daqueles bancos, mas não fez isso. É burro demais e preguiçoso demais e tem
as manias dele. Não, ou en ou em uns potes e enterrou em algum lugar, ou
botou numa conta aqui. É isso que eu quero saber: se meu marido abriu uma
conta nova aqui nos meses anteriores.”
Só que a sensação era de que eu precisava saber, Andy. Descobrir que ele
havia me enganado me deixou enjoada, e isso era ruim, mas não saber se ele
tinha feito uma merda monumental… isso estava me matando.
“Se ele… isso é informação con dencial”, retrucou Pease, e aí já parecia que
eu tinha dito que tocaria no dele se ele tocasse na minha.
“É. Achei que era. Estou pedindo que você viole a regra. Sei só de olhar que
você não é um homem que faz isso com frequência; estou vendo que é contra
os seus princípios. Mas o dinheiro era dos meus lhos, sr. Pease, e Joe mentiu
pra botar a mão nele. Você sabe disso; a prova está aí, no seu mata-borrão. É
uma mentira que não teria funcionado se este banco, o seu banco, zesse a
cortesia de uma ligação.”
Ele limpou a garganta e começou a falar.
“Nós não temos a obrigação…”
“Eu sei que não”, falei. Eu estava com vontade de agarrá-lo e sacudi-lo, mas
vi que não adiantaria, não com um homem como ele. Além do mais, a minha
mãe sempre disse que se pega mais mosca com mel do que com vinagre, e eu
sabia que era verdade. “Eu sei disso, mas pense no sofrimento que você teria
me poupado com essa ligação. E, se quiser compensar um pouco… e sei que
não precisa, mas, se quiser, me diga se Joe abriu uma conta aqui ou se eu vou ter
que começar a cavar no quintal de casa. Por favor. Eu não vou contar. Juro pelo
nome de Deus que não vou contar.”
Pease cou me olhando, batendo com os dedos nas folhas verdes. As unhas
estavam limpas de um jeito que parecia que ele tinha ido a uma manicure
pro ssional, embora eu ache que isso não era muito provável… a nal, estamos
falando de Jonesport em 1962. Devia ter sido a esposa dele. Aquelas unhas
bonitinhas faziam um som baixo e abafado nos papéis cada vez que batiam, e
eu pensei, ele não vai fazer nada por mim, não esse tipo de homem. Por que se
importaria com pessoas da ilha e os problemas delas? Ele está protegido e só se
importa com o próprio nariz.
Então, quando ele falou, senti vergonha do que estava pensando sobre os
homens em geral e sobre ele em particular.
“Não posso olhar uma coisa assim com você sentada aqui, sra. St. George.
Por que não vai até o The Chatty Buoy e pede um doce e uma boa xícara de
café? Está com cara de quem precisa de algo assim. Encontro você lá em
quinze minutos. Não, melhor combinar daqui a meia hora.”
“Obrigada. Muito obrigada”, falei.
Ele suspirou e começou a recolher os papéis.
“Eu devo estar cando louco”, comentou ele, e riu de nervoso.
“Não. Você está ajudando uma mulher que não tem mais pra onde se voltar,
só isso.”
“Damas em apuros sempre foram uma fraqueza minha. Me dá meia hora.
Talvez um pouco mais.”
“Mas você vai?”
“Vou”, disse ele. “Vou.”
E foi mesmo, mas levou quase quarenta e cinco minutos, e não meia hora, e
quando ele nalmente chegou ao Buoy, eu já tinha aceitado que Pease me
deixaria na mão. Quando ele entrou, achei que tinha más notícias. Achei que
consegui ler no rosto dele.
Ele cou parado na porta alguns segundos, dando uma boa olhada pra ter
certeza de que não havia ninguém no restaurante que pudesse causar problema
pra ele se fôssemos vistos juntos depois da confusão que z no banco. Em
seguida, se aproximou do compartimento onde eu estava, no canto, se sentou à
minha frente e disse:
“Ainda está no banco. A maior parte, pelo menos. Um pouco menos de três
mil dólares.”
“Graças a Deus!”, falei.
“Bom, essa é a parte boa. A parte ruim é que a conta nova é só no nome
dele.”
“Claro que é”, falei. “Ele não me deu documento nenhum pra assinar. Isso
teria me dado dica do joguinho do Joe, né?”
“Muitas mulheres não teriam ideia”, concluiu ele, então limpou a garganta,
deu um puxão na gravata e olhou rapidamente pra ver quem havia entrado
quando o sino da porta tilintou. “Muitas mulheres assinam qualquer coisa que
o marido bota na frente delas.”
“Bom, eu não sou como muitas mulheres.”
“Eu reparei”, comentou ele, meio seco. “Bom, eu z o que você pediu, agora
preciso voltar para o banco. Queria ter tempo de tomar um café com você.”
“Sabe, eu não acredito nisso.”
“Eu também não”, concordou ele, mas ofereceu a mão, como se eu fosse
outro homem, e eu entendi isso como elogio.
Fiquei lá até ele ir embora, e quando a garota voltou e perguntou se eu
queria outro café, falei que não, obrigada, que estava com azia por causa do
primeiro. E estava mesmo, mas não foi o café que provocou.
Sempre dá pra encontrar alguma coisa pra car agradecida, por piores que as
coisas estejam, e enquanto voltava pra balsa, quei agradecida por pelo menos
não ter feito a mala; assim, eu não precisava desfazer tudo. Também quei feliz
por não ter contado pra Selena. Eu ia falar, mas acabei cando com medo de o
segredo ser pesado demais, ela contar a uma das amigas e a notícia acabar
chegando ao Joe. Até passou pela minha cabeça que ela poderia teimar e dizer
que não queria ir. Não achei provável, não com o jeito como ela se afastava do
pai cada vez que ele chegava perto dela, mas, quando estamos lidando com
uma menina adolescente, tudo é possível. Tudo mesmo.
Eu estava agradecida por algumas coisas, mas não tinha ideias. Não podia
tirar dinheiro da poupança que eu tinha com Joe; devia haver uns quarenta e
seis dólares lá, e a nossa conta-corrente era uma piada ainda maior; se não
estivéssemos no vermelho, estávamos perto. Mas eu não ia pegar as crianças e
partir sem nada; não mesmo. Se zesse isso, Joe gastaria o dinheiro só de
sacanagem. Eu sabia disso tão bem quanto sabia o meu próprio nome. De
acordo com o sr. Pease, Joe já havia conseguido gastar uns trezentos dólares…
e, dos quase três mil que restaram, eu havia depositado pelo menos dois mil e
quinhentos, que ganhei esfregando chão, lavando janelas e pendurando os
lençóis daquela lha da puta da Vera Donovan, com seis pregadores, não só
quatro, durante todos os verões. Na época, não estava tão ruim quanto cava
no inverno, mas não era fácil, não mesmo.
Eu e as crianças iríamos embora, isso eu tinha decidido, mas eu não ia sem
dinheiro. Queria que os meus lhos tivessem a grana que era deles. Ao voltar
pra ilha, parada no convés do Princess com o vento fresco do mar batendo no
rosto e jogando o meu cabelo pra trás, eu sabia que teria que tirar aquele
dinheiro de Joe. A única coisa que não sabia era como.
A vida seguiu em frente. Olhando super cialmente, parecia que nada havia
mudado. Na ilha, as coisas nunca parecem mudar muito… isso se você olhar
super cialmente, claro. Mas tem muito mais em uma vida do que os olhos
conseguem ver, e, pelo menos pra mim, o que se ocultava sob a superfície
parecia completamente diferente naquele outono. O jeito como eu encarava as
coisas tinha mudado, e acho que isso era o mais importante. Não estou falando
só daquele terceiro olho agora; quando a bruxa de papel de Pete havia sido
retirada e os perus e peregrinos estavam expostos, eu vi tudo que precisava
com os meus dois olhos naturais.
O jeito ávido e babão com que Joe olhava pra Selena às vezes quando ela
estava de roupão, por exemplo, ou como ele encarava a bunda dela se ela se
curvasse pra pegar um pano de prato embaixo da pia. A forma como ela
passava longe e atravessava a sala pra ir para o quarto quando o pai estava na
cadeira; como ela tomava cuidado pra mão não tocar na dele quando estava
passando uma travessa de comida na mesa do jantar. O meu coração doía de
vergonha e pena, mas eu também sentia tanta raiva que passava a maioria dos
dias enjoada. Ele era pai dela, cacete, o sangue dele corria nas veias dela,
Selena tinha o cabelo preto irlandês dele e os dedinhos com juntas duplas, e
mesmo assim os olhos dele cavam enormes se a alça do sutiã dela caísse pelo
braço.
Eu também tinha percebido como Joe Junior passava longe do pai e não
respondia o que Joe perguntava, não se conseguisse escapar, e quando não
conseguia soltava um murmúrio. Lembro o dia em que Joe Junior me mostrou
o trabalho sobre o presidente Roosevelt quando recebeu corrigido da
professora. Ela tinha dado A+ e escrito na frente que era o único A+ que tinha
dado em um trabalho de história em vinte anos dando aula, e que achava que
era tão bom que poderia ser publicado em um jornal. Perguntei a Joe Junior se
ele gostaria de enviar para o Ellsworth American ou talvez para o Bar Harbor
Times. Eu disse que pagaria o selo. Ele só fez que não e riu. Não gostei muito
daquela risada; foi dura e cínica, como a do pai.
“E aguentar ele no meu pé pelos próximos seis meses?”, perguntou Joe
Junior. “Não, obrigado. Você não ouviu o papai chamando o cara de Franklin D.
Merdavelt?”
Eu o vejo agora, Andy, com apenas doze anos, mas já com quase um metro e
oitenta de altura, parado na varanda dos fundos com as mãos en adas nos
bolsos, olhando pra mim de cima enquanto eu observava o trabalho com o A+.
Não havia boa vontade naquele sorriso, nenhum humor, nenhuma felicidade.
Era o sorriso do pai dele, embora eu nunca fosse contar isso pra aquele garoto.
“De todos os presidentes, o que o papai mais odeia é o Roosevelt”, disse ele.
“Foi por isso que eu o escolhi para o trabalho. Agora, devolve, por favor. Vou
queimar no fogão a lenha.”
“Não vai, não, lho, e se você quiser ver como é ser jogado da varanda no
quintal pela própria mãe, tenta só tirar de mim.”
Joe Junior deu de ombros. Fez isso igualzinho ao Joe, mas o sorriso dele cou
mais largo, e foi mais doce do que qualquer um que o pai dele já tenha dado na
vida.
“Tudo bem”, disse ele. “Só não deixa o papai ver, tá?”
Falei que não deixaria, e Joe Junior foi jogar basquete com o amigo Randy
Gigeure. Eu o observei se afastar enquanto segurava o trabalho do meu lho e
pensava no que havia acabado de acontecer entre nós. O que mais pensei foi
que ele tinha recebido o único A+ que a professora deu em vinte anos e que
conseguiu isso por escolher o presidente que o pai mais odiava como tema do
trabalho.
Também havia Pete, sempre andando rebolando com a bunda e o lábio
inferior com beicinho, chamando as pessoas de “judeuzinhos” e tendo que car
até mais tarde umas três vezes por semana por ter se metido em confusão. Uma
vez, tive que ir buscá-lo porque ele tinha brigado e batido em outro garoto na
lateral da cabeça com tanta força que saiu sangue pela orelha. O que o pai dele
disse sobre aquela noite foi:
“Acho que ele vai saber que não é pra se meter mais com você, né, Petey?”
Vi como os olhos do garoto se iluminaram quando Joe disse isso, e vi o
carinho com que Joe o levou pra cama uma hora depois. Naquele outono,
parecia que eu conseguia ver tudo, menos a coisa que eu mais queria… um
jeito de me livrar dele.
Sabe quem acabou me dando a resposta? Vera. Isso mesmo, a própria Vera
Donovan. Ela foi a única que soube o que z, pelo menos até agora. E foi quem
me deu a ideia.
Ao longo dos anos 1950, os Donovans… bom, Vera e os lhos, pelo menos,
eles eram os veranistas supremos: chegavam no m de semana do Memorial
Day, não saíam da ilha por todo o verão, e voltavam pra Baltimore no m de
semana do Labor Day. Não sei se daria pra acertar o relógio com base neles,
mas sei que dava pra acertar o calendário. Eu levava uma equipe de limpeza pra
lá na quarta depois que a família ia embora, e limpava a casa todinha, tirava a
roupa de cama, cobria os móveis, recolhia os brinquedos e guardava os quebra-
cabeças no porão. Acho que, por volta de 1960, quando o marido morreu, devia
ter mais de trezentos quebra-cabeças lá embaixo, empilhados entre pedaços de
papelão e mofando. Dava pra fazer uma limpeza completa daquelas porque eu
sabia que a chance era grande de só botarem o pé naquela casa de novo no m
de semana do Memorial Day do ano seguinte.
Houve algumas exceções, claro; no ano em que Pete nasceu, eles zeram o
Dia de Ação de Graças na ilha (o lugar era todo adaptado para o inverno, o que
achamos engraçado, mas é claro que os veranistas eram engraçados), e alguns
anos depois passaram o Natal. Lembro que as crianças Donovan levaram
Selena e Joe Junior pra andar de trenó com eles na tarde de Natal, e que Selena
voltou depois de três horas em Sunrise Hill com as bochechas vermelhas como
maçãs e os olhos cintilando como diamantes. Ela devia ter no máximo oito ou
nove anos, mas tenho certeza de que cou gamadinha no Donald Donovan
mesmo assim.
Eles passaram o Dia de Ação de Graças na ilha uma vez e o Natal em outra,
mas foi só. Eram veranistas… ou pelo menos Michael Donovan e os lhos
eram. Vera era de fora, mas no nal acabou sendo uma mulher da ilha tanto
quanto eu. Talvez mais.
Em 1961, as coisas começaram como em todos os anos, apesar de o marido
dela ter morrido naquele acidente de carro no ano anterior: Vera e os lhos
chegaram no Memorial Day, e ela começou a tricotar e montar quebra-cabeças,
colecionar conchas, fumar cigarros e planejar a hora do coquetel especial de
Vera Donovan, que começava às cinco e terminava por volta de nove e meia.
Mas não foi o mesmo, até eu percebi, e eu era só a empregada temporária. Os
lhos estavam recolhidos e calados, ainda em luto pelo pai, acho, e não muito
depois do Quatro de Julho, os três tiveram uma discussão horrível quando
estavam comendo no The Harborside. Lembro que Jimmy DeWitt, o garçom de
lá na época, disse que achava que tinha alguma coisa a ver com o carro.
Fosse o que fosse, os lhos foram embora no dia seguinte. O bonitão os
levou para o continente naquela lancha grande que eles tinham, e imagino que
alguma outra pessoa que trabalhava pra família foi buscá-los. Nunca mais vi
nenhum dos dois. Vera cou. Dava pra perceber que ela não estava feliz, mas
cou. Foi um verão ruim pra estar perto dela. Deve ter dispensado umas seis
garotas temporárias antes do Labor Day, e quando vi o Princess partir da doca
com ela, pensei, aposto que não vamos ver a cara dela no verão que vem, nem
tão cedo. Vera vai ajeitar as coisas com os lhos, vai ter que resolver, porque é
só o que ela tem agora, e se eles estiverem de saco cheio de Little Tall, ela vai
ceder e vai pra outro lugar. A nal, eles estão crescendo agora, e ela vai ter que
reconhecer isso.
Isso só mostra como eu conhecia pouco Vera Donovan na época. No que
dizia respeito a ela, não era preciso reconhecer porra nenhuma que ela não
quisesse. Vera apareceu de balsa na tarde do Memorial Day de 1962, sozinha, e
cou até o Labor Day. Foi sem companhia e não foi simpática comigo nem com
mais ninguém, bebeu mais do que nunca e parecia a avó da morte na maioria
dos dias, mas foi, cou, montou os quebra-cabeças e foi pra praia, sozinha
dessa vez, pegar as conchas como sempre fazia. Uma vez, ela me disse que
achava que Donald e Helga passariam agosto em Pinewood (que era como eles
sempre chamavam a casa; você deve saber disso, Andy, mas Nancy não), mas
nunca apareceram.
Foi em 1962 que ela começou a vir regularmente depois do Labor Day. Ligou
em meados de outubro e me pediu pra abrir a casa, e eu abri. Ela cou três
dias; o bonitão foi junto e cou no apartamento acima da garagem. Depois, ela
foi embora. Antes de sair, ela me ligou e me mandou chamar Dougie Tappert
pra veri car a fornalha e deixar os móveis sem lençóis.
“Você vai me ver bem mais agora que as questões do meu marido estão
resolvidas”, disse ela. “Talvez mais do que você gostaria, Dolores. E espero que
veja os meus lhos também.”
Mas algo na voz de Vera me faz pensar que ela sabia que parte daquilo era
um sonho, mesmo na época.
A próxima vez que apareceu foi no m de novembro, uma semana depois do
dia de Ação de Graças, e ligou logo mandando que eu aspirasse e zesse as
camas. Os lhos não foram, claro, isso foi durante uma semana de aulas, mas
ela disse que talvez decidissem no último minuto passar o m de semana com
a mãe em vez de car no colégio interno. Ela devia saber, mas Vera era uma
escoteira de coração: acreditava em estar preparada, sempre.
Consegui ir logo de imediato, pois era uma época fraca na ilha pras pessoas
da minha área de serviço. Fui pra lá numa chuva fria com a cabeça baixa e a
mente trabalhando, como sempre acontecia nos dias depois que descobri onde
tinha ido parar o dinheiro das crianças. A ida ao banco tinha sido quase um
mês antes e, desde então, aquilo estava me corroendo assim como ácido de
bateria faz um buraco na roupa ou na pele se espirrar em você.
Eu não conseguia fazer uma refeição decente, não conseguia dormir mais de
três horas seguidas sem que um pesadelo me acordasse, mal conseguia me
lembrar de trocar a roupa íntima. A minha mente nunca se afastava do que Joe
tinha feito com Selena, nem do dinheiro que ele havia tirado do banco e como
eu faria pra recuperar. Eu entendia que tinha que parar de pensar nessas coisas
por um tempo pra encontrar uma resposta; se eu conseguisse, talvez uma
solução aparecesse sozinha. Mas eu não conseguia. Mesmo quando a minha
mente ia pra outro lugar por um tempo, a menor coisa a jogava de volta no
mesmo buraco. Eu estava presa em uma marcha e aquilo estava me
enlouquecendo, e acho que esse foi o verdadeiro motivo de eu acabar falando
com Vera sobre o que tinha acontecido.
Eu não pretendia falar com Vera; ela vivia azeda como uma leoa com um
espinho na pata desde que tinha dado as caras em maio depois que o marido
morreu, e eu não tinha a menor intenção de soltar o verbo com uma mulher
que agia como se o mundo tivesse virado de costas pra cagar em cima dela.
Mas, quando cheguei naquele dia, o humor dela nalmente estava melhor.
Ela estava na cozinha, prendendo um artigo que havia recortado da primeira
página do Globe de Boston no quadro de cortiça que cava ao lado da porta da
despensa. Ela disse:
“Olha isso, Dolores. Se tivermos sorte e o tempo cooperar, vamos ver uma
coisa bem incrível no verão.”
Ainda me lembro da manchete daquele artigo palavra por palavra, mesmo
depois de tantos anos, porque, quando li, senti como se uma chave tivesse
virado dentro de mim.
, dizia. Havia um mapinha que mostrava que parte do
Maine estaria no caminho do eclipse, e Vera tinha feito um pontinho de caneta
vermelha no local onde cava Little Tall.
“Só vai ter outro no nal do século que vem”, disse ela. “Os nossos bisnetos
talvez vejam, Dolores, mas nós já vamos estar mortas… então é melhor
apreciarmos esse!”
“É capaz de chover pra caramba no dia”, respondi, sem nem pensar direito, e
com o humor ruim que tomou conta da Vera quase o tempo todo desde que o
marido morreu, achei que ela seria grossa comigo. Mas ela só riu e subiu a
escada, cantarolando. Eu me lembro de pensar que o clima na cabeça dela
tinha mesmo mudado. Ela não só estava cantarolando, como não havia nem
sinal de ressaca.
Cerca de duas horas depois, eu estava no quarto dela, trocando os lençóis da
cama onde ela passaria tanto tempo deitada incapacitada nos anos posteriores.
Ela estava sentada na cadeira perto da janela, tricotando um quadrado de
colcha e ainda cantarolando. A fornalha estava ligada, mas o calor ainda não
havia se espalhado pela casa; aquelas casas grandes levam um século pra
carem quentes, mesmo quando preparadas para o inverno, e Vera estava com
o xale rosa sobre os ombros. O vento soprava forte do oeste, e a chuva que batia
na janela ao lado dela parecia areia sendo jogada no vidro. Quando olhei pra lá,
vi o brilho de luz vindo da garagem que signi cava que o bonitão estava no
apartamento, aconchegado e protegido.
Eu estava prendendo os cantos do lençol de baixo (Vera Donovan não
aceitava lençol de elástico, pode apostar o seu último centavo nisso; lençol de
elástico teria sido fácil demais), sem pensar em Joe e nos meus lhos pra
variar, e o meu lábio inferior começou a tremer. Para com isso, falei pra mim
mesma. Para agora. Mas o lábio não parou. Acho que o de cima também
começou a tremer. De repente, os meus olhos se encheram de lágrimas e as
minhas pernas caram fracas, então eu me sentei na cama e chorei.
Não. Não.
Se é pra falar a verdade, que seja inteira. O fato é que eu não só chorei; eu
botei o avental na cara e gritei. Estava cansada e confusa, e a minha cabeça
estava no limite. Não tinha dormido quase nada em semanas e não conseguia
achar um jeito de seguir em frente. O meu único pensamento era Pelo jeito você
se enganou, Dolores. Pelo jeito estava pensando no Joe e nas crianças, sim. E óbvio
que eu estava. Havia chegado a um ponto em que eu não conseguia pensar em
mais nada, e era exatamente por isso que eu estava chorando.
Não sei por quanto tempo chorei assim, mas sei que, quando nalmente
parei, tinha catarro na minha cara toda, meu nariz estava entupido e eu estava
tão sem fôlego que parecia que tinha acabado de correr uma maratona. Fiquei
com medo de tirar o avental da cara, porque eu achava que, quando zesse isso,
Vera diria: “Que show, Dolores. Pode pegar o seu último envelope de
pagamento na sexta. Kenopensky vai entregar pra você” — pronto, esse era o
nome do bonitão, Andy, eu nalmente lembrei. Teria sido a cara dela. Só que
qualquer coisa era a cara dela. Não dava pra prever o que Vera faria nem
naquela época, antes de o cérebro dela virar quase todo mingau.
Quando tirei o avental da cara, ela estava sentada junto à janela com o tricô
no colo, me encarando como se eu fosse um tipo de inseto novo e interessante.
Eu me lembro das sombras rastejantes que a chuva descendo pela vidraça fazia
nas bochechas e na testa dela.
“Dolores, me diz que você não foi descuidada a ponto de permitir que aquela
criatura maligna com a qual você mora tenha te dado barriga de novo”, disse
ela.
Por um segundo, eu não tive a menor ideia do que ela estava dizendo.
Quando Vera falou “dar barriga”, a minha mente foi direto pra noite em que Joe
me bateu com o pedaço de madeira e eu bati nele com a jarrinha. Quando
entendi, comecei a rir. Em poucos segundos, eu estava gargalhando com tanta
intensidade quanto tinha chorado antes, e sem conseguir me controlar, assim
como não tinha conseguido controlar antes. Sabia que era mais de horror — a
ideia de estar grávida de novo de Joe era a pior coisa em que eu conseguia
pensar, e o fato de que não estávamos mais fazendo aquela coisa que faz os
bebês não mudou nada. Mas saber o que estava me fazendo rir não ajudou a
parar.
Vera me olhou um ou dois segundos mais, pegou o tricô no colo e voltou a
trabalhar, com a maior calma do mundo. Até voltou a cantarolar. Era como se
ter a empregada sentada na cama desarrumada, berrando como um bezerro ao
luar, fosse a coisa mais natural do mundo pra ela. Se era, os Donovans deviam
ter empregados peculiares em Baltimore.
Depois de um tempo, as risadas voltaram a se transformar em choro, do jeito
como a chuva vira neve por um tempinho no inverno quando o vento vira para
o lado certo. Aí a emoção nalmente morreu e eu quei sentada na cama, me
sentindo cansada e com vergonha… mas também limpa, de certa forma.
“Desculpe, sra. Donovan. De verdade”, falei.
“Vera”, corrigiu ela.
“Como?”
“Vera”, repetiu ela. “Eu insisto pra que todas as mulheres que têm ataques
histéricos na minha cama me chamem pelo meu nome de batismo daí em
diante.”
“Eu não sei o que me deu”, falei.
“Ah”, respondeu ela na mesma hora, “eu acho que sabe. Vai se limpar,
Dolores. Parece que você en ou a cara em uma tigela de purê de espinafre.
Pode usar o meu banheiro.”
Fui lavar o rosto e quei muito tempo lá. A verdade era que eu estava com
um pouco de medo de sair. Tinha parado de achar que ia ser demitida quando
ela me mandou a chamar de Vera e não sra. Donovan, não é assim que se trata
alguém que você pretende despedir em cinco minutos — mas eu não sabia o
que ela ia fazer. Podia ser cruel; se você não entendeu pelo menos isso de tudo
que eu já contei, estou só perdendo tempo. Ela sabia cutucar muito bem
quando e onde queria, e, quando fazia, costumava ser com força.
“Você se afogou aí dentro, Dolores?”, gritou ela, e eu sabia que não dava mais
pra adiar.
Fechei a torneira, sequei o rosto e voltei para o quarto. Comecei a pedir
desculpas de novo assim que entrei, mas ela descartou os pedidos. Ainda me
olhava como se eu fosse um tipo de inseto que ela nunca havia visto.
“Sabe de uma coisa? Você me deixou me cagando de medo, mulher”, disse
ela. “Durante todos esses anos, nunca soube se você era capaz de chorar. Até
achei que você era de pedra.”
Murmurei qualquer coisa sobre não estar descansando ultimamente.
“Estou vendo”, respondeu ela. “Você está com olheiras do tamanho de malas
Louis Vuitton e as suas mãos estão com um tremor curioso.”
“Estou com olheiras o quê?”
“Deixa pra lá. Me conta o que aconteceu. Um pãozinho no forno era o único
motivo de uma explosão dessas em que consegui pensar, e devo confessar que
ainda é a única coisa em que consigo. Então, me conta, Dolores.”
“Não posso”, falei, e Deus que me perdoe, mas senti a coisa toda pronta pra
despencar em cima de mim de novo, como o tranco que o velho Ford Model-A
do meu pai dava quando não se segurava direito; se eu não tomasse cuidado,
logo estaria na cama dela de novo com o avental na cara.
“Você pode e vai”, disse Vera. “Não pode passar o dia chorando assim. Vai
acabar me dando dor de cabeça e eu vou ter que tomar aspirina. E eu odeio
tomar aspirina. Faz mal para o meu estômago.”
Eu me sentei na beira da cama e olhei pra Vera. Abri a boca sem a menor
ideia do que ia dizer. O que saiu foi o seguinte:
“O meu marido está tentando comer a própria lha, e quando fui pegar o
dinheiro da faculdade deles no banco pra poder fugir com ela e os meninos,
descobri que ele tinha limpado as poupanças. Não, eu não sou feita de pedra.
Não sou nem um pouco feita de pedra.”
Comecei a chorar de novo, e chorei por um tempo, mas não tanto quanto
antes e sem sentir necessidade de esconder a cara no avental. Quando terminei
de fungar, ela disse pra eu contar a história toda desde o começo e sem deixar
nadinha de fora.
E eu contei. Nunca pensei que conseguiria contar a história pra qualquer
pessoa, muito menos pra Vera Donovan, com o dinheiro e a casa em Baltimore
e o bonitão de estimação, que ela não mantinha por perto só pra cuidar do
carro, mas contei, e senti o peso no coração car mais leve a cada palavra.
Contei tudo, como ela falou pra eu fazer.
“Eu estou encurralada”, concluí. “Não consigo decidir o que fazer com o
lho da puta. Acho que posso ir pra algum lugar se zer as malas das crianças e
seguir para o continente, eu nunca tive medo de trabalho, mas esse não é o
ponto.”
“Qual é o ponto, então?”, perguntou ela.
O quadradinho da colcha em que estava trabalhando estava quase pronto. Os
dedos dela eram os mais rápidos que eu já vi.
“Ele fez tudo, menos estuprar a própria lha. Ele a deixou com tanto medo
que talvez Selena nunca supere, e se recompensou com quase três mil dólares
pelo mau comportamento. Não vou deixar que ele se safe. É esse o ponto.”
“É?”, perguntou ela com aquela voz moderada, e as agulhas continuaram no
clique-clique-clique, e a chuva continuou caindo pelas vidraças, e as sombras
tremeram pela bochecha e pela testa dela como veias pretas.
Olhar pra Vera daquele jeito me fez pensar em uma história que a minha avó
contava sobre as três irmãs nas estrelas que tricotavam nossas vidas… uma
tricotando, uma segurando e uma cortando cada o quando dava vontade.
Acho que o nome dessa última era Átropos. Mesmo se não for, esse nome
sempre me deu arrepios.
“É”, con rmei, “mas não consigo pensar em um jeito de dar a Joe o que ele
merece.”
Clique-clique-clique. Tinha uma xícara de chá ao lado dela, e Vera fez uma
pausa longa pra tomar um gole. Chegaria uma época em que ela tentaria tomar
o chá pela orelha direita e acabaria de cabelo encharcado, mas, naquele dia de
outono de 1962, ainda estava a ada como a navalha do meu pai. Quando me
olhou, os olhos dela pareceram abrir um buraco até o outro lado.
“O que é o pior, Dolores?”, perguntou ela, por m, botando a xícara de lado e
pegando o tricô de novo. “O que você diria que é o pior? Não pra Selena nem
os meninos, mas pra você?”
Nem precisei parar e pensar.
“Aquele lho de uma quenga está rindo de mim”, respondi. “Isso é o pior pra
mim. Vejo na cara dele às vezes. Nunca falei, mas ele sabe que eu fui ao banco,
sabe muito bem, e sabe que eu descobri.”
“Isso pode ser só a sua imaginação.”
“Não faz a menor diferença se for. É o que eu sinto.”
“Sim. É o que você sente que importa. Eu concordo. Continua, Dolores.”
Como assim? Era isso que eu ia dizer. Acabou. Mas acho que não tinha
acabado, porque uma outra coisa saiu, como um palhaço de mola de uma caixa
surpresa.
“Ele não estaria rindo de mim se soubesse como cheguei perto de parar o
relógio dele pra sempre algumas vezes”, falei.
Vera só me encarou, com aquelas sombras nas e escuras perseguindo umas
às outras pelo rosto dela e passando pelos olhos, de forma que não consegui
interpretá-los, e pensei nas mulheres que tricotam nas estrelas de novo.
Principalmente na que segura a tesoura.
“Estou com medo”, falei. “Não do Joe, de mim. Se não tirar as crianças de
perto dele logo, algo de ruim vai acontecer. Sei que vai. Tem uma coisa dentro
de mim que está piorando.”
“É um olho?”, perguntou ela calmamente, e um arrepio danado subiu pelo
meu corpo nessa hora! Era como se Vera tivesse encontrado uma janela pra
dentro da minha cabeça e usado pra espiar os meus pensamentos. “Uma coisa
tipo um olho?”
“Como você sabe?”, sussurrei, e enquanto estava ali sentada, meus braços
caram arrepiados e eu comecei a tremer.
“Eu sei”, disse ela, e começou a tricotar uma leira nova. “Sei sobre isso,
Dolores.”
“Bom… eu vou acabar com ele se não tomar cuidado. É disso que tenho
medo. Se acontecer, posso esquecer o dinheiro. Posso esquecer tudo.”
“Besteira”, disse ela, e as agulhas continuaram clique-clique-clique no seu
colo. “Maridos morrem todos os dias, Dolores. Deve ter um morrendo agorinha
mesmo, enquanto estamos aqui conversando. Morrem e deixam o dinheiro
deles pras esposas.” Vera terminou a carreira e me olhou, mas ainda não
consegui ver o que havia nos olhos dela por causa das sombras que a chuva
provocava. Percorriam o rosto dela como cobras. “Eu deveria saber, certo?
A nal, olha o que aconteceu com o meu.”
Não consegui dizer nada. Senti que a língua cou grudada no céu da boca
como um inseto em papel mata-moscas.
“Um acidente”, disse ela com voz clara, parecida com a de uma professora,
“às vezes é o melhor amigo de uma mulher infeliz.”
“O que você quer dizer?”, perguntei.
Foi só um sussurro, mas quei meio surpresa de descobrir que consegui falar
mesmo isso.
“Ué, o que você quiser”, respondeu ela, e então abriu um sorrisinho; não um
sorriso largo, um apertadinho. Para falar a verdade, Andy, aquele sorrisinho fez
o meu sangue gelar. “Você só precisa lembrar que o que é seu é dele e o que é
dele é seu. Se Joe sofresse um acidente, por exemplo, o dinheiro que ele está
guardando nas contas bancárias seria seu. É a lei nesse nosso grande país.”
Os olhos dela se xaram nos meus, e só por um segundo as sombras
sumiram e consegui observá-los claramente. O que vi me fez afastar o olhar
depressa. Por fora, Vera era fria como um bebê sentado em um bloco de gelo,
mas por dentro a temperatura era bem mais quente; tão quente quanto o meio
de um incêndio na oresta, eu diria. Quente demais pra gente como eu olhar
por muito tempo, isso com certeza.
“A lei é uma coisa ótima, Dolores”, disse ela. “E quando um homem ruim
sofre um acidente grave, isso pode às vezes ser uma coisa ótima também.”
“Você está dizendo…”, comecei.
Consegui falar um pouco mais alto do que um sussurro, mas não muito.
“Eu não estou dizendo nada”, disse ela. Na época, quando Vera decidia que
tinha encerrado um assunto, ela o fechava como um livro. Ela en ou o tricô no
cesto e se levantou. “Mas vou dizer uma coisa: essa cama nunca vai car
arrumada com você sentada nela. Vou descer pra esquentar a água do chá.
Talvez, quando você terminar aqui, queira descer e experimentar uma fatia da
torta de maçã que eu trouxe do continente. Se tiver sorte pode ser até que eu
acrescente uma bola de sorvete de creme.”
“Tudo bem”, falei.
A minha mente girava, e minha única certeza era a de que a torta da padaria
de Jonesport parecia certa. Eu estava com fome pela primeira vez em mais de
quatro semanas; desabafar havia servido pelo menos pra isso.
Vera chegou à porta e se virou pra me olhar.
“Não sinto pena de você, Dolores”, disse ela. “Você não me contou que
estava grávida quando se casou com ele, nem precisava; até uma tonta em
matemática como eu sabe somar e subtrair. Estava de três meses?”
“Seis semanas”, falei. A minha voz havia voltado a ser um sussurro. “Selena
nasceu um pouco prematura.”
Ela assentiu.
“E o que uma garotinha convencional da ilha faz quando descobre que tem
pãozinho assando? O óbvio, claro… mas os que se casam de olhos fechados
muitas vezes se arrependem quando os abrem, como você parece ter
descoberto. Pena que a sua santa mãe não te ensinou isso, e que os brutos
também têm sentimentos, e que você deve usar a cabeça pra salvar o resto. Mas
vou te dizer uma coisa, Dolores: chorar com o avental na cara não vai salvar a
virgindade da sua lha se aquele bode velho fedorento realmente pretende ir
até o m, nem o dinheiro dos seus lhos se ele realmente quiser gastar. Mas às
vezes os homens, principalmente os que bebem, sofrem acidentes. Caem de
escadas, escorregam em banheiras e às vezes o freio falha e eles batem a
em um carvalho quando estão voltando com pressa do apartamento da amante
em Arlington Heights.
Com isso, Vera saiu e fechou a porta ao passar. Enquanto fazia a cama,
pensei no que ela havia dito… que quando um homem ruim sofre um acidente
ruim, às vezes isso pode ser uma coisa ótima. Comecei a ver o que estava na
minha cara o tempo todo, o que eu teria visto antes se a minha mente não
estivesse correndo de um lado para o outro em um pânico descontrolado, como
um pardal preso em um sótão.
Depois que comemos a torta e eu a levei pra cima, pra soneca da tarde, a
possibilidade estava clara na minha cabeça. Queria me livrar de Joe e queria o
dinheiro dos meus lhos de volta, mas, mais do que tudo, queria fazê-lo pagar
por tudo que ele havia nos feito passar… principalmente a Selena. Se o lho da
puta sofresse um acidente, o tipo certo de acidente, tudo isso aconteceria. O
dinheiro que eu não podia pegar com ele vivo viria pra mim quando Joe
morresse. Ele podia ter tirado o dinheiro escondido, mas não tinha se dado ao
trabalho de fazer um testamento pra me tirar da jogada. Não era uma questão
de cérebro; o jeito como ele pegou o dinheiro mostrava que sabia ser mais
astucioso do que eu achava. Mas era como a mente dele funcionava. Tenho
certeza de que, lá no fundo, Joe St. George acreditava que não ia morrer nunca.
E, como esposa dele, tudo viria direto pra mim.
Quando saí de Pinewood naquela tarde, a chuva tinha parado, e andei pra
casa bem devagar. Não estava nem na metade do caminho quando comecei a
pensar no poço velho atrás do barracão onde cava a lenha.
Estava com a casa só pra mim quando voltei. Os garotos estavam brincando
e Selena tinha deixado um bilhete dizendo que tinha ido pra casa da sra.
Devereaux ajudar com a roupa pra lavar… ela lavava todos os lençóis do The
Harborside Hotel naquela época. Eu não tinha a menor ideia de pra onde Joe
tinha ido e não ligava. O importante era que a picape dele não estava na
garagem, e com aquele silenciador quase caindo como estava, eu teria um
ótimo aviso se ele voltasse.
Fiquei um minuto olhando o bilhete de Selena. É engraçado, são as
pequenas coisas que levam uma pessoa a nalmente tomar uma decisão, que a
levam da possibilidade à probabilidade, e da probabilidade à certeza, por assim
dizer. Mesmo agora, não tenho certeza se realmente pretendia matar Joe
quando cheguei da casa de Vera Donovan naquele dia. Pretendia olhar o poço,
sim, mas isso poderia ter sido mais um jogo, como as crianças brincam de faz
de conta. Se Selena não tivesse deixado aquele bilhete, talvez eu nunca tivesse
feito o que z… e aconteça o que acontecer depois disso tudo, Andy, Selena
não pode saber de nada nunca.
O bilhete dizia algo assim: “Mãe, fui pra casa da sra. Devereaux com Cindy
Babcock pra ajudar a lavar as coisas do hotel. Eles receberam bem mais gente
no m de semana de feriado do que o esperado, e você sabe como a artrite da
sra. Devereaux piorou. A coitada parecia estar surtando quando ligou. Volto
pra ajudar com o jantar. Beijos, te amo. Sel”.
Sabia que Selena voltaria com uns cinco ou sete dólares, mas feliz da vida
pelo que tinha conseguido. Ela caria feliz de voltar se a sra. Devereaux ou
Cindy ligassem de novo, e se oferecessem uma proposta de camareira em meio
expediente no hotel no verão, provavelmente me convenceria a deixar que
aceitasse. Porque dinheiro é dinheiro, e naquela época, na ilha, a troca ainda
era comum e dinheiro vivo era algo difícil de conseguir. A sra. Devereaux
ligaria de novo, e caria feliz da vida de escrever uma carta de referência para o
hotel indicando Selena se ela pedisse, porque Selena era uma boa funcionária,
sem medo de meter a mão na massa e fazer trabalho duro.
Em outras palavras, a minha lha era como eu quando tinha a idade dela, e
olha só no que eu tinha me transformado: só mais uma bruxa da limpeza
mancando sempre e com um comprimido de analgésico no armário de
remédios por causa de dor nas costas. Selena não via nada de errado com
aquilo, mas tinha acabado de fazer quinze anos, e aos quinze uma garota não
sabe o que está vendo nem quando está na cara dela. Li aquele bilhete um
monte de vezes e pensei: Ah, não, ela não vai acabar como eu, velha e quase
destruída aos trinta e cinco. Não vai, nem que eu tenha que morrer pra
impedir. Mas sabe de uma coisa, Andy? Não achei que as coisas teriam que ir
tão longe. Achei que talvez Joe fosse o único que teria que morrer na nossa
casa.
Coloquei o bilhete dela de volta na mesa, fechei a capa de chuva e calcei as
galochas. Fui para os fundos e parei ao lado da pedra branca grande onde eu e
Selena nos sentamos na noite em que eu falei que ela não precisava mais ter
medo de Joe, que ele tinha prometido que a deixaria em paz. A chuva tinha
parado, mas eu ainda ouvia a água pingar na área de arbustos de amora atrás de
casa e via as gotas penduradas nos galhos expostos. Pareciam os brincos de
diamante de Vera Donovan, só que não tão grandes.
Aquelas plantas ocupavam uns dois mil metros quadrados, e quando abri
caminho por ali, quei feliz de estar com a capa e as botas altas. O molhado era
o de menos; os espinhos que eram assassinos. No nal dos anos 1940, aquela
área era de ores e grama, com o poço do lado do barracão, mas uns seis anos
depois que Joe e eu nos casamos e nos mudamos para o local, que o tio Freddy
deixou pra ele quando morreu, o poço estava seco. Joe chamou Peter Doyon
pra fazer um novo, no lado oeste da casa. Nunca tivemos problema de água
depois disso.
Quando paramos de usar o poço velho, a área atrás do barracão virou aquele
emaranhado de arbustos de amoreira que vai até o peito, e os espinhos
puxaram e arranharam a minha capa enquanto eu andava, à procura da tampa
de tábua do poço. Depois de ter cortado a mão em três ou quatro lugares, puxei
as mangas sobre elas.
No nal, só encontrei o desgraçado quase caindo dentro dele. Pisei em uma
coisa meio solta e ao mesmo tempo esponjosa, houve um estalo debaixo do
meu pé e eu recuei assim que a tábua onde eu havia pisado cedeu. Se eu tivesse
dado azar, teria caído pra frente, e a coisa toda teria desmoronado. Tim-tim,
seria o m.
Fiquei de joelhos, mantendo uma das mãos na frente do rosto pra que os
espinhos não arranhassem as minhas bochechas nem arrancassem um dos
meus olhos, e dei uma boa olhada de perto.
A abertura tinha mais ou menos um metro e vinte de largura e um metro e
meio de comprimento; as tábuas eram todas brancas e estavam tortas e podres.
Empurrei uma com a mão, e foi como empurrar um palito de alcaçuz. A tábua
onde eu tinha apoiado o pé estava toda curvada, e vi farpas novas saindo dela.
Teria caído dentro, com certeza, e naquela época eu pesava cinquenta e cinco
quilos. Joe pesava pelo menos dez quilos a mais.
Eu estava com um lenço no bolso. Amarrei-o em cima de um arbusto no lado
mais perto do barracão, pra conseguir encontrar de novo depressa. Voltei pra
casa. Naquela noite, dormi como um anjo, e não tive pesadelos pela primeira
vez desde que Selena havia me contado o que o Príncipe Encantado do pai dela
andava fazendo com a lha.
Isso foi no m de novembro, e eu não pretendia fazer mais nada por um
tempo. Duvido que eu precise explicar o motivo, mas vou dizer mesmo assim:
se alguma coisa acontecesse com Joe tão pouco tempo depois da nossa
conversa na balsa, Selena poderia descon ar de mim. Eu não queria que isso
acontecesse, porque havia uma parte dela que ainda o amava e provavelmente
sempre amaria, e porque eu tinha medo do que ela sentiria mesmo se só
descon asse daquilo. Do que ela sentiria por mim, claro, acho que isso nem
precisa ser dito, mas eu estava com mais medo ainda do que Selena sentiria
sobre si mesma. Quanto a como isso se desenrolou… bom, agora não importa.
Vou chegar lá, eu acho.
Então deixei o tempo passar, mesmo que essa sempre fosse a parte mais
difícil pra mim depois de tomar qualquer decisão. Mesmo assim, os dias
viraram semanas, como de costume. De vez em quando eu questionava Selena
sobre Joe. “Seu pai está se comportando direito?”, era o que eu perguntava, e
nós duas entendíamos o que eu queria saber de fato. Ela sempre dizia sim, o
que era um alívio, porque se Joe começasse de novo, eu teria que me livrar dele
de imediato, e que se danassem os riscos. Ou as consequências.
Quando o Natal passou e o ano de 1963 chegou, tive outras preocupações.
Uma era o dinheiro: todos os dias, acordava pensando que aquele poderia ser o
dia em que Joe começaria a gastar. Por que eu não me preocuparia com isso?
Ele tinha gastado os primeiros trezentos de cara, e eu não podia impedi-lo de
torrar o resto enquanto eu esperava o tempo dar tempo ao tempo, como
gostam de dizer nas reuniões dele do . Perdi a conta de quantas vezes
procurei a porcaria do documento que tiveram que dar quando ele abriu a
conta dele com aquela grana, mas nunca encontrei. Então, a única coisa que eu
podia fazer era vê-lo voltar pra casa com uma serra elétrica nova ou um relógio
caro no pulso e torcer pra que não tivesse perdido uma parte, ou talvez tudo,
em um daqueles jogos de pôquer com apostas altas que alegava frequentar
todos os ns de semana em Ellsworth e Bangor. Nunca me senti tão impotente
na vida.
E tinha a questão de quando e como eu faria… e se, no nal, teria coragem
de fazer, na verdade. A ideia de usar o poço velho como armadilha era boa, por
si só; o problema é que não chegava a ser boa o su ciente. Se Joe morresse de
uma vez, como acontece na televisão, tudo caria bem. Mas mesmo trinta anos
atrás eu já tinha vivido o bastante pra saber que as coisas raramente são como
na televisão.
E se ele caísse e começasse a gritar, por exemplo? A ilha não era na época
como é agora, mas nós tínhamos três vizinhos naquele trecho da East Lane: os
Caron, os Langill e os Jolander. Talvez eles não ouvissem gritos vindo da área
de amoreiras atrás da nossa casa, mas talvez ouvissem… principalmente se o
vento estivesse forte e soprando na direção certa. E não era só isso. Como ca
entre o vilarejo e o Head, a East Lane às vezes cava bem movimentada. Havia
caminhões e carros passando pela nossa casa o tempo todo, não tantos naquela
época, mas o su ciente pra preocupar uma mulher que estava pensando no que
eu estava pensando.
Eu já tinha praticamente decidido que não poderia usar o poço pra resolver a
questão, que era tudo arriscado demais, quando a resposta veio. Mais uma vez,
foi Vera que me deu, apesar de que acho que ela não sabia.
Ela estava fascinada pelo eclipse, entende? Passou boa parte da estação na
ilha, e quando o inverno estava no m, havia um novo recorte sobre isso preso
no quadro de avisos da cozinha toda semana. Quando a primavera veio, com os
ventos fortes e as frentes frias, ela cou mais tempo lá, e os recortes apareciam
a cada dois dias. Havia artigos dos jornais locais, dos jornais de longe como o
Globe e o New York Times, e de revistas como a Scienti c American.
Ela cou animada porque tinha certeza de que o eclipse nalmente atrairia
Donald e Helga de volta a Pinewood, me disse isso várias vezes, mas também
estava empolgada por si só. Em meados de maio, quando o tempo nalmente
começou a esquentar, tinha se mudado de vez; ela nem falava de Baltimore.
Aquela porcaria de eclipse era o único assunto possível. Vera tinha quatro
câmeras, e eu não estou falando de básicas como uma Brownie Star ash. No
armário de entrada, três já estavam montadas em tripés. Também tinha uns
oito ou nove óculos de sol especiais, caixas abertas que ela chamava de “visores
de eclipse”, periscópios com espelhos escuros dentro e sei lá mais o quê.
Perto do m de maio, cheguei lá e vi que o artigo no quadro de avisos era do
nosso jornalzinho, The Weekly Tide. “ ”
, dizia a manchete. A foto mostrava Jimmy
Gagnon e Harley Fox cuidando da carpintaria do terraço do hotel, que era tão
achatado e amplo na época como é agora. E sabe o que mais? Senti uma coisa
dentro de mim de novo, como senti quando vi aquele primeiro artigo sobre o
eclipse preso no mesmíssimo lugar.
O artigo dizia que os donos do The Harborside planejavam transformar o
telhado em um observatório a céu aberto no dia do eclipse… só que pra mim
parecia a mesma coisa de sempre com fachada de nova. Disseram que o
telhado estava passando por “reformas especiais” pra ocasião (se parar pra
pensar, a ideia de Jimmy Gagnon e Harley Fox reformando qualquer coisa é
bem engraçada), e que esperavam vender trezentos e cinquenta “ingressos pro
eclipse”. Os veranistas poderiam escolher primeiro, depois os residentes
permanentes. O preço até que era bem razoável, dois dólares por manta, mas
claro que planejavam servir comida e montar um bar, a nal, é nesses lugares
em que os hotéis arrancam dinheiro das pessoas. Principalmente nos bares.
Eu ainda estava lendo o artigo quando Vera entrou. Não a ouvi, e quando ela
falou dei um pulo de meio metro.
“E aí, Dolores? O que vai ser? O terraço do The Harborside ou o Island
Princess?”, disse ela.
“O que tem o Island Princess?”, perguntei.
“Eu o aluguei pra tarde do eclipse.”
“Não acredito!”, falei, mas soube na mesma hora que era verdade; Vera não
falava nada por falar, nem era de se gabar. Ainda assim, a ideia de alugar uma
balsa grande como o Princess tirou o meu fôlego.
“É verdade”, disse ela. “Está custando um rim, Dolores, principalmente por
causa da balsa que vai ter que substituir a Princess e fazer as viagens dela nesse
dia, mas aluguei mesmo. E se você vier no meu passeio, vai de graça e com as
bebidas por conta da casa.” E aí, me espiando por baixo de pálpebras
semicerradas, ela disse: “A última parte deve atrair o seu marido, você não
acha?”.
“Meu Deus, por que você alugou a balsa, Vera?” O nome dela ainda soava
estranho pra mim cada vez que saía da minha boca, mas ela já havia deixado
bem claro que não estava brincando; não queria que eu voltasse a chamá-la de
sra. Donovan mesmo que eu quisesse, e às vezes eu queria. “Quer dizer, eu sei
que você está animada com o eclipse e tal, mas poderia ter conseguido um
barco quase do mesmo tamanho em Vinalhaven, e provavelmente com um
gasto bem menor.”
Vera deu de ombros e balançou o cabelo comprido ao mesmo tempo; era a
cara dela de não gostou en a no cu.
“Eu a aluguei porque eu amo aquela banheira velha”, disse ela. “A ilha Little
Tall é o meu lugar favorito no mundo todo, Dolores. Você sabia disso?”
Na verdade, sabia, sim, então assenti.
“Claro que sabe. E foi o Princess que quase sempre me trouxe aqui, a
princesa esquisita, gorda e torta. Me disseram que acomoda quatrocentas
pessoas com conforto e segurança, cinquenta a mais do que o terraço do hotel,
e eu vou levar qualquer um que queira ir comigo e os meus lhos.” Ela sorriu, e
esse sorriso foi bonito; foi o sorriso de uma garota que está feliz de estar viva.
“E sabe de outra coisa, Dolores?”
“Não. Estou perplexa.”
“Você não vai precisar se rebaixar a ninguém se…” Vera parou e me olhou
do jeito mais engraçado do mundo. “Dolores? Você está bem?”
Mas não consegui responder. A ideia mais horrível e mais maravilhosa do
mundo havia surgido na minha cabeça. Visualizei aquele terraço amplo do The
Harborside cheio de pessoas sentadas com os pescoços inclinados pra trás, e o
Princess no meio da água entre o continente e a ilha, os conveses também
lotados de gente olhando pra cima, e acima de tudo um círculo preto enorme
cercado de fogo em um céu cheio de estrelas diurnas. Era uma ideia
assustadora, pra dar calafrios até num morto, mas não foi isso o soco no meu
estômago. Foi pensar no resto da ilha que fez aquilo.
“Dolores?”, perguntou ela, e encostou a mão no meu ombro. “Você está com
cãibra? Vai desmaiar? Vem se sentar aqui à mesa. Vou pegar um copo de água.”
Eu não estava com cãibra, mas de repente achei que ia desmaiar, então fui
pra onde Vera queria e me sentei… só que os meus joelhos estavam tão fracos
que quase caí na cadeira. Eu a vi pegando água e pensei em uma coisa que ela
havia dito em novembro, que até uma tonta em matemática como ela era capaz
de fazer adição e subtração. Bom, até uma pessoa como eu conseguia somar os
350 do terraço do hotel com 400 no Island Princess e chegar a 750. Isso não era
todo mundo que estaria na ilha em meados de julho, mas era uma boa parte das
pessoas, por Jesus. Eu achava que o resto estaria na rua olhando para o céu ou
vendo o eclipse da praia e das docas da cidade.
Vera levou água pra mim, e eu bebi tudo de uma vez. Ela se sentou na minha
frente com expressão preocupada.
“Você está bem, Dolores?”, perguntou ela. “Precisa se deitar?”
“Não”, falei. “Só me senti esquisita por uns segundos.”
E tinha me sentido mesmo. Acho que descobrir de repente em que dia você
planeja matar o seu marido é o tipo de coisa capaz de fazer qualquer um se
sentir esquisito.
Umas três horas depois, com a roupa toda lavada, as compras feitas e
guardadas, os tapetes aspirados e uma caçarola pequena na geladeira para o
jantar solitário dela (Vera podia compartilhar a cama com o bonitão de tempos
em tempos, mas nunca a vi compartilhar a mesa de jantar), eu me preparei pra
ir embora. Vera estava sentada à mesa da cozinha, fazendo as palavras cruzadas
do jornal.
“Pense sobre ir com a gente no barco no dia vinte de julho, Dolores”, disse
ela. “Vai ser bem mais agradável lá no mar do que naquele terraço quente, pode
acreditar.”
“Obrigada, Vera”, falei, “mas, se eu tiver o dia de folga, duvido que vá pra
qualquer um dos dois lugares. Acho que vou car em casa.”
“Você caria ofendida se eu dissesse que isso me parece chato?”, perguntou
ela, erguendo os olhos pra mim.
Quando você já se preocupou em ofender a mim ou qualquer outra pessoa, sua
lha da puta arrogante?, pensei, mas óbvio que não falei. Além do mais, ela
pareceu preocupada mesmo quando achou que eu poderia desmaiar, embora
isso possa ter sido por medo de eu cair de cara e sangrar no chão da cozinha,
que eu tinha encerado na véspera.
“Não”, falei. “Eu sou assim, Vera. Chata como um prato.”
Ela me olhou de um jeito engraçado.
“É mesmo? Às vezes eu acho que sim… e às vezes co em dúvida.”
Eu me despedi e fui pra casa, revirando a ideia sem parar, à procura de
brechas. Não encontrei nenhuma, só alguns talvez, e talvez faz parte da vida,
não é? Sempre há chance para o azar, mas, se as pessoas se preocupassem
demais com isso, nada seria feito. Além do mais, pensei, se der errado, eu posso
cancelar. Posso fazer isso quase até o nzinho.
Maio foi embora, o Memorial Day chegou e passou, e as férias escolares
começaram. Eu me preparei pra impedir Selena se ela viesse me encher sobre
trabalhar no The Harborside, mas, antes mesmo de termos a nossa primeira
discussão sobre isso, algo maravilhoso aconteceu. O reverendo Hu , que era o
pastor metodista na época, foi falar comigo e com Joe. Disse que o
Acampamento da Igreja Metodista em Winthrop estava com vagas pra duas
monitoras que tivessem quali cações avançadas em natação. Bom, tanto
Selena quanto Tanya Caron nadavam como peixes, Hu y sabia, e pra resumir
um pouco pelo menos, eu e Melissa Caron levamos as nossas lhas para a balsa
uma semana depois do m das aulas, elas acenando da embarcação, nós duas
acenando da doca, e todas as quatro chorando como umas bobas. Selena usava
um terninho rosa lindo para a viagem, e aquela foi a primeira vez que tive uma
imagem clara da mulher que ela viria a ser. Quase partiu o meu coração, ainda
parte. Alguém tem um lenço de papel?
Obrigada, Nancy. Muito obrigada. Onde eu estava?
Ah, sim.
A questão da Selena estava resolvida; mas ainda sobravam os meninos. Fiz
Joe ligar pra irmã dele em New Gloucester e perguntar se o marido dela se
importaria de car com os dois nas últimas três semanas de julho e a primeira
de agosto, pois nós tínhamos cado com os dois diabinhos deles por um mês
no verão mais de uma vez quando eram menores. Achei que Joe daria pra trás
com a ideia de mandar Pete, mas não falou nada. Acho que pensou em como a
casa caria tranquila com os três longe e gostou da ideia.
Alicia Forbert, esse era o nome de casada da irmã dele, disse que cariam
felizes em receber os meninos. Eu acho que Jack Forbert cou um pouco
menos feliz do que ela, mas Alicia abanava o rabo daquele cachorro, então não
havia problema… pelo menos, não lá.
O problema era que nem Joe Junior nem Pete queria ir. Eu não os culpava;
os garotos Forbert eram adolescentes e não teriam saco pra dois pirralhos. Só
que eu não ia deixar que isso me impedisse; não podia deixar. No m das
contas, bati o pé e os obriguei. Dos dois, Joe Junior acabou dando mais
trabalho. Por m, tive que puxá-lo de lado e falar:
“Pensa nisso como férias do seu pai.”
Isso o convenceu depois que todos os argumentos acabaram, mas, quando
paro pra pensar, acho que foi bem triste.
Quando os garotos estavam com a viagem resolvida, não havia mais nada a
fazer além de esperar que eles fossem, e acho que, no nal, os dois caram
felizes de ir. Joe andava bebendo muito desde o Quatro de Julho, e acho que
nem Pete achava agradável car perto do pai.
Joe beber não era surpresa pra mim; eu estava ajudando com isso. Na
primeira vez que ele abriu o armário embaixo da pia e viu uma garrafa de
uísque novinha lá, achou estranho. Eu me lembro de ele me perguntar se eu
havia batido a cabeça. Mas, depois, não fez mais perguntas. Por que faria?
Desde o Quatro de Julho até o dia que morreu, Joe St. George passava um
pouco do tempo completamente bêbado e a maior parte do tempo meio
bêbado, e um homem nessa condição não demora pra ver a sorte como um dos
seus direitos constitucionais… principalmente um homem como Joe.
Por mim, não havia problema nisso, mas o tempo depois do Quatro de Julho
— a semana antes de os meninos viajarem e a semana seguinte, mais ou menos
— não foi exatamente agradável mesmo assim. Eu ia pra casa da Vera às sete
com ele deitado ao meu lado como um pedaço de queijo azedo, roncando com
o cabelo todo em pé. Eu voltava às duas ou três e ele estava sentado na varanda
(tinha levado aquela cadeira de balanço velha horrorosa pra lá) com o American
em uma das mãos e a segunda ou terceira bebida do dia na outra. Nunca tinha
companhia pra ajudar com o uísque; o meu Joe não tinha o que se chamaria de
coração generoso.
Houve um artigo sobre o eclipse na primeira página do American quase todos
os dias daquele mês de julho, mas acho que, mesmo lendo tanto jornal, Joe
tinha só uma ideia vaga de que algo fora do comum aconteceria no m do mês.
Não ligava nadinha pra essas coisas, sabe? As preocupações de Joe eram os
comunistas e os lutadores pela liberdade (só que os chamava de “pretos do
Greyhound”) e aquele maldito católico amante de judeus na Casa Branca. Se
soubesse o que aconteceria a Kennedy quatro meses depois, acho que quase
teria conseguido morrer feliz. Ele era horrível assim.
Mas eu me sentava ao lado dele do mesmo jeito e o ouvia reclamar de
qualquer coisa que o irritasse no jornal daquele dia. Queria que ele se
acostumasse comigo por perto quando eu voltasse pra casa, mas se eu dissesse
que o trabalho foi fácil, estaria mentindo. Não teria me importado tanto com a
bebedeira se ele tivesse uma disposição mais alegre quando enchia a cara.
Alguns homens cam mais alegres, eu sei, mas Joe não era assim. Beber
despertava a mulher que havia nele, e pra mulher dentro de Joe era como se
sempre faltassem dois dias pra ela menstruar.
Mas conforme o grande dia se aproximava, sair da casa da Vera passou a ser
um alívio, apesar de ter apenas um marido fedorento e bêbado me esperando
em casa. Ela tinha passado o mês de junho todo agitada, falando sobre isso e
aquilo, veri cando e con rmando o equipamento para o eclipse, ligando pras
pessoas. Deve ter ligado pra empresa que forneceria comida ao passeio de balsa
pelo menos duas vezes por dia na última semana de junho, e eles eram só um
item na lista diária dela.
Eu tinha seis garotas trabalhando comigo em junho e oito depois do Quatro
de Julho; foi o máximo de funcionários que Vera já teve, antes ou depois de o
marido morrer. A casa foi esfregada de cima a baixo, até brilhar, e todas as
camas foram feitas. Até acrescentamos camas temporárias no solário e na
varanda do segundo andar. Vera estava esperando pelo menos doze hóspedes
pra dormir no m de semana do eclipse, talvez até vinte. Não havia horas
su cientes no dia pra aquela mulher, e ela cava correndo de um lado pro
outro como uma barata tonta, mas estava feliz.
Por volta da época em que mandei os garotos pra casa da tia Alicia e do tio
Jack, por volta do dia 10 ou 11 de julho, e ainda uma semana antes do eclipse, o
bom humor dela despencou.
Despencou? Ah, não. Não foi bem isso. Estourou, como um balão espetado
por um al nete. Um dia, ela estava voando como um jato; no dia seguinte,
estava com a maior tromba e os olhos tinham assumido aquela expressão cruel
e assombrada que eu via muito desde que Vera começara a passar tanto tempo
na ilha sozinha. Ela despediu duas garotas naquele dia, uma por subir em um
pufe pra lavar as janelas da sala e a outra por gargalhar na cozinha com um
homem do serviço de bufê. Essa segunda foi bem ruim, porque a garota
começou a chorar. Ela disse pra Vera que conhecia o jovem da escola, não o via
desde aquela época e queria colocar os velhos tempos em dia. Pediu desculpas
e suplicou pra não ser despedida. Disse que a mãe dela caria com mais raiva
do que um touro de tourada se isso acontecesse.
Não adiantou nada.
“Olha o lado bom, meu bem”, disse Vera com aquela voz de lha da puta. “A
sua mãe pode car com raiva, mas você vai ter bastante tempo pra conversar
sobre o quanto se divertiu na Jonesport High.”
A garota, Sandra Mulcahey, saiu da casa com a cabeça baixa, chorando como
se o coração dela fosse se partir. Vera cou no saguão, meio inclinada pra
conseguir olhá-la pela janela ao lado da porta. O meu pé coçou de tanta
vontade de chutar a bunda dela quando a vi parada daquele jeito… mas quei
meio triste também. Não era difícil saber o que ocasionara a mudança de
humor, e em pouco tempo eu tive certeza. No nal, os lhos não iam ver o
eclipse com ela, com balsa alugada ou não. Talvez só tivessem feito outros
planos, como os lhos fazem sem nem pensar nos sentimentos dos pais, mas o
meu palpite era que o que tinha dado errado entre ela e eles continuava errado.
O humor da Vera melhorou quando os primeiros dos outros hóspedes
começaram a chegar nos dias 16 e 17, mas eu continuava feliz de ir embora a
cada dia, e na quinta, dia 18, ela despediu outra garota. Dessa vez foi Karen
Jolander. O grande crime foi deixar cair um prato que já estava rachado. Karen
não estava chorando quando saiu da casa, mas dava pra ver que cou se
segurando até passar a primeira colina pra soltar tudo.
Bom, eu z uma coisa idiota, mas você precisa lembrar que eu estava bem
tensa na época. Consegui esperar até Karen estar longe, pelo menos, mas aí, fui
procurar Vera. Eu a encontrei no quintal. Ela havia puxado o chapéu de sol
com tanta força que a aba tocava nas orelhas, e ela cortava de um jeito com
aquela tesoura de jardinagem que dava pra pensar que ela era Madame Dufarge
cortando cabeças em vez de Vera Donovan cortando rosas pra sala de estar e de
jantar.
Eu me aproximei e falei:
“Que horrível o que você fez, despedir a garota daquele jeito.”
Ela se levantou e me lançou o olhar mais arrogante de senhora da casa.
“Você acha? Que bom ouvir a sua opinião, Dolores. Eu desejo tanto, sabe;
cada vez que vou pra cama à noite, eu me deito lá no escuro repassando o dia e
fazendo a mesma pergunta enquanto cada evento passa perante os meus olhos:
O que Dolores St. George teria feito?”
Isso me deixou com mais raiva do que nunca.
“Vou te dizer uma coisa que Dolores Claiborne não faz”, falei, “e essa coisa é
descontar em outras pessoas quando ela está irritada ou decepcionada. Acho
que não sou tão lha da puta pra isso.”
O queixo dela caiu como se alguém tivesse tirado os parafusos que
mantinham a mandíbula fechada. Tenho quase certeza de que foi a primeira
vez que eu a surpreendi de verdade, e saí dali correndo, antes que Vera pudesse
ver como eu estava com medo. Quando cheguei à cozinha, as minhas pernas
tremiam tanto que eu precisei me sentar e pensei: você é maluca, Dolores, de
cutucar ela daquele jeito. Eu me levantei pra espiar pela janela acima da pia,
mas ela estava de costas pra mim, usando a tesoura de novo com toda vontade.
As rosas caíam na cesta como soldados mortos com cabeças ensanguentadas.
Quando eu estava me arrumando pra ir pra casa naquela tarde, ela chegou
por trás e me mandou esperar um minuto, pois queria falar comigo. Senti o
coração despencar até os sapatos. Não tive dúvida nenhuma de que a minha
hora tinha chegado: ela diria que os meus serviços não seriam mais
necessários, me daria um último olhar de não gostou en a no cu, e eu seguiria
pela rua, dessa vez pra sempre. Era de se imaginar que eu estaria aliviada de
me livrar daquela mulher, e acho que de certas formas teria sido um alívio
mesmo, mas senti uma dor no coração mesmo assim. Eu tinha trinta e seis
anos, trabalhava desde os dezesseis e nunca havia sido despedida de um
emprego. Mesmo assim, tem certos tipos de babaquice que uma pessoa precisa
contestar, e eu estava tentando com todas as forças me preparar pra fazer isso
quando eu me virei pra olhar pra ela.
Mas, quando vi o rosto de Vera, eu soube que ela não ia me despedir. Toda a
maquiagem que ela tinha passado de manhã havia sido tirada, e o jeito como as
pálpebras estavam inchadas me fez achar que ela tinha cochilado ou chorado
no quarto. Ela estava com um saco de papel de compras nos braços e meio que
empurrou pra mim.
“Toma”, disse ela.
“O que é isso?”, perguntei.
“Dois visualizadores de eclipse e duas caixas re etoras. Achei que você e o
Joe poderiam gostar. Eu por acaso tinha…” Ela parou e tossiu na mão fechada
antes de me encarar. Uma coisa que eu admirava em Vera, Andy: não
importava o que estava dizendo nem o quanto era difícil pra ela, sempre olhava
pra você ao falar. “Eu por acaso tinha dois de cada sobrando.”
“Ah, é? Lamento saber disso.”
Ela descartou a frase como quem espanta uma mosca e me perguntou se eu
tinha mudado de ideia sobre sair na balsa com ela e os amigos.
“Não”, respondi. “Acho que vou car na varanda vendo de lá com o Joe. Ou,
se ele vier com liberdades, vou para o East Head.”
“Falando em liberdades”, disse ela, ainda me encarando, “quero pedir
desculpas por hoje de manhã… e perguntar se você poderia ligar pra Mabel
Jolander e dizer que eu mudei de ideia.”
Ela precisou de muita coragem pra dizer aquilo, Andy. Você não a conhecia
como eu, então acho que vai ter que acreditar na minha palavra, mas ela
precisou de muita coragem. Quando o assunto era pedir desculpas, Vera
Donovan era abstêmia.
“Claro”, falei, com um tom mais gentil. Quase toquei na mão dela, mas
acabei me segurando. “Só que é Karen, não Mabel. Mabel trabalhou aqui uns
seis ou sete anos atrás. Ela está em New Hampshire agora, diz a mãe dela,
trabalhando na companhia telefônica e indo muito bem.”
“Karen, então. Pede pra ela voltar. Só diz que eu mudei de ideia, Dolores,
nem mais uma palavra. Entendeu?
“Entendi. E obrigada pelas coisas do eclipse. Vão ser úteis, com certeza.”
“De nada”, disse ela. Eu abri a porta pra sair, e ela continuou: “Dolores?”.
Olhei pra trás e ela assentiu de um jeito engraçado, como se soubesse de
coisas que não tinha nada que saber.
“Às vezes, a gente precisa ser muito lha da puta pra sobreviver”, disse ela.
“Às vezes, ser uma lha da puta é a única coisa que uma mulher tem pra se
agarrar.”
Aí ela fechou a porta na minha cara… mas delicadamente. Não a bateu.
Muito bem; agora chegou o dia do eclipse, e se vou contar o que aconteceu,
tudo que aconteceu, não vou fazer de bico seco. Pelo meu relógio, estou falando
há quase duas horas sem parar, ou seja, o bastante pra deixar uma pessoa
desnorteada, e ainda tenho muito pra percorrer. Então, vou te dizer uma coisa,
Andy: ou você compartilha um dedo do Jim Bean que tem na sua gaveta, ou
encerramos por hoje. O que você diz?
Isso, obrigada. Nossa, mas isso foi certeiro! Não; guarda. Com um só já dá
pra apertar o acelerador; dois podem acabar entupindo os canos.
Tudo bem, lá vamos nós de novo.
Na noite do dia 19, fui pra cama tão preocupada que estava quase enjoada,
porque o rádio dizia que havia uma boa chance de chover. Estava tão ocupada
planejando o que ia fazer e tomando coragem que a possibilidade de chuva
nem sequer havia passado pela minha cabeça. Vou car rolando na cama a
noite toda, pensei quando me deitei, e aí pensei não vai, não, Dolores, e vou te
dizer por quê: você não pode fazer nada em relação ao tempo, e não importa
mesmo. Sabe que pretende fazer mesmo que chova canivete o dia todo. Foi
longe demais pra voltar atrás agora. Eu sabia disso, então fechei os olhos e
apaguei como uma lâmpada.
O sábado, dia 20 de julho de 1963, começou quente, abafado e nublado. O
rádio disse que havia uma boa chance de não chover, exceto por algumas
pancadas de chuva à noite, mas as nuvens iam car no céu boa parte do dia, e
qualquer chance de as comunidades costeiras verem o eclipse era de cinquenta
por cento.
Mesmo assim, era como se um peso enorme tivesse sido tirado dos meus
ombros, e quando fui pra casa da Vera pra ajudar a servir o brunch que ela
havia planejado, a minha mente estava calma e as minhas preocupações
tinham cado pra trás. Não importava se estivesse nublado, entende? Não
importaria nem se casse chovendo e parando. Desde que não fosse um
temporal, o pessoal do hotel estaria no telhado e o pessoal da Vera, no mar,
todos na esperança de haver uma brecha nas nuvens pra que vissem o que não
aconteceria de novo na vida deles… pelo menos, não no Maine. A esperança é
uma força poderosa na natureza humana, sabe? Ninguém sabe disso melhor do
que eu.
Pelo que lembro, Vera acabou recebendo dezoito convidados naquela noite
de sexta-feira, mas houve mais ainda no brunch de sábado de manhã, uns
trinta ou quarenta, eu diria. O resto das pessoas que sairiam com ela de barco
(e a maioria era gente da ilha, e não de longe) começaria a se reunir na doca da
cidade por volta da uma, e o velho Princess estava marcado pra sair por volta
das duas. Quando o eclipse começasse, umas quatro e meia, os primeiros dois
ou três barris de cerveja provavelmente estariam vazios.
Eu esperava encontrar Vera nervosa e prestes a pular da própria pele, mas às
vezes acho que ela tinha começado a encarar a possibilidade de me
surpreender como uma carreira. Estava usando um troço vermelho e branco
esvoaçante que pra mim parecia mais uma capa do que um vestido, acho que
chamam de túnica, e tinha prendido o cabelo em um rabo de cavalo simples
que cava longe dos penteados de cinquenta pratas que ela costumava usar na
época.
Ficou andando em volta da mesa comprida do bufê que foi montada no
quintal perto do roseiral, conversando e rindo com todos os amigos, a maioria
de Baltimore, a julgar pela aparência e pelo som. Mas, naquele dia, estava
diferente do que tinha estado durante a semana antes do eclipse. Lembra que
eu falei que ela cava voando como um jato? No dia do eclipse, estava mais pra
borboleta voando entre as plantas, e a risada dela não estava tão estridente nem
tão alta.
Vera me viu levando uma travessa de ovos mexidos e correu pra me dar
instruções, estava andando como nos dias anteriores — como se preferisse
estar correndo —, e o sorriso cou no rosto dela. Pensei: Ela está feliz, só isso.
Vera aceitou que os lhos não vêm e decidiu que pode ser feliz mesmo assim. E
era isso… a não ser que você a conhecesse, e eu sabia como era raro Vera
Donovan car feliz. Vou te contar uma coisa, Andy: eu convivi com aquela
mulher por mais quase trinta anos, mas acho que nunca mais a vi feliz de
verdade de novo. Contente, sim, e resignada, mas feliz? Radiante e feliz, como
uma borboleta voando por um campo de ores em uma tarde quente de verão?
Não.
“Dolores!”, chamou ela. “Dolores Claiborne!”
Só me dei conta bem depois de que ela tinha me chamado pelo meu nome
de solteira, apesar de Joe ainda estar vivo e bem naquela manhã, e de ela nunca
ter feito aquilo antes. Quando eu percebi, tremi toda, do jeito como acontece
quando um ganso passa pelo local onde vai ser sua cova um dia.
“Bom dia, Vera. Sinto muito que o dia esteja tão cinzento”, falei.
Ela olhou para o céu, que estava com nuvens baixas e úmidas de verão, e
sorriu.
“O sol vai sair até as três da tarde.”
“Pelo jeito como você está falando, parece até que mandou uma ordem pra
ele.”
Eu só estava brincando, claro, mas ela assentiu com seriedade e disse:
“Sim, foi isso mesmo que eu z. Agora corre até a cozinha, Dolores, e vê por
que aquele banqueteiro idiota não trouxe um bule de café fresco ainda.”
Fui fazer o que ela pediu, mas antes de dar quatro passos na direção da
cozinha, ela me chamou como tinha feito dois dias antes, quando me disse que
às vezes uma mulher tem que ser muito lha da puta pra sobreviver. Eu me
virei achando que ela ia me dizer a mesma coisa de novo. Mas não disse. Estava
ali, com o lindo vestido vermelho e branco, as mãos nos quadris e aquele rabo
de cavalo caído no ombro, parecendo não ter mais de vinte e um anos naquela
luz branca da manhã.
“Sol por volta das três, Dolores! Você vai ver só se não estou certa!”,
exclamou ela.
O bufê acabou às onze, e eu e as meninas estávamos com a cozinha só pra
nós ao meio-dia, o banqueteiro e o pessoal dele já no Island Princess pra
começar a preparar o Segundo Ato. A própria Vera saiu bem tarde, por volta de
meio-dia e quinze, levando os últimos três ou quatro do grupo pra doca no
velho Ford Ranch Wagon que tinha na ilha. Fiquei lavando louça até uma hora
mais ou menos e falei pra Gail Lavesque, que era mais ou menos minha
ajudante imediata naquele dia, que estava com um pouco de dor de cabeça e
enjoada, e que ia pra casa já que o pior da bagunça estava resolvido. Na saída,
Karen Jolander me abraçou e me agradeceu. Estava chorando de novo. Juro por
Deus, aquela garota nunca parou de vazar pelos olhos em todos os anos que eu
a conheci.
“Eu não sei quem anda conversando com você, Karen, mas você não tem
nada que me agradecer. Eu não z nadinha”, falei.
“Ninguém me disse nada, mas eu sei que foi você, dona St. George. Mais
ninguém ousa falar com o dragão velho”, disse ela.
Dei um beijo na bochecha dela e falei que ela não teria nada com que se
preocupar desde que não deixasse mais nenhum prato cair. E fui pra casa.
Eu me lembro de tudo que aconteceu, Andy, tudo, mas a partir do momento
em que saí do terreno da Vera e entrei na Center Drive, é como me lembrar de
coisas que aconteceram no sonho mais brilhante e mais aparentemente real
que você já teve na vida. Ficava pensando eu vou pra casa matar o meu marido,
eu vou pra casa matar o meu marido, como se pudesse en ar na cabeça como
quando se martela um prego em madeira grossa como teca ou mogno, se ao
menos eu continuasse por tempo su ciente. Mas, ao olhar pra trás, acho que
estava na minha cabeça o tempo todo. Era o meu coração que não conseguia
entender.
Apesar de ser só por volta da uma e quinze quando cheguei ao vilarejo, e o
começo do eclipse fosse apenas mais de três horas mais tarde, as ruas estavam
tão vazias que foi sinistro. Aquilo me fez pensar naquela cidadezinha na parte
sul do estado, onde dizem que não mora ninguém. Aí olhei para o terraço do
The Harborside e foi mais sinistro ainda. Já devia ter umas cem pessoas ou
mais lá em cima, andando e observando o céu como fazendeiros na época do
plantio. Olhei pra doca e vi o Princess lá, a prancha posicionada e o convés
cheio de gente em vez de carros. Estavam andando com drinques nas mãos,
como em um coquetel a céu aberto. A doca em si estava cheia de gente, e devia
haver uns quinhentos barquinhos, mais do que eu já tinha visto lá de uma vez
só, pelo menos, já no mar, ancorados à espera. Parecia que todo mundo que
você visse, fosse no telhado do hotel ou na doca da cidade ou no Princess, usava
óculos escuros e segurava um visor de eclipse de vidro escuro ou uma caixa
re etora. Nunca houve um dia assim na ilha, nem antes nem depois, e mesmo
que eu não tivesse em mente o que eu tinha, acho que teria parecido um sonho
pra mim.
A loja de bebidas estava aberta, com ou sem eclipse. Imagino que esse buraco
funcione como sempre mesmo na manhã do apocalipse. Parei, comprei uma
garrafa de Johnny Walker Red e andei pela East Lane até em casa. Dei a garrafa
para Joe assim que cheguei. Não enrolei nem z nada, só coloquei no colo dele.
Entrei e peguei a sacola que Vera havia me dado, com os visores de eclipse e as
caixas re etoras dentro. Quando voltei pra varanda, ele segurava a garrafa
erguida pra ver a cor.
“Você vai beber ou só admirar?”, perguntei.
Ele me olhou com uma certa descon ança e disse:
“Que diabos é isso, Dolores?”
“É um presente pra comemorar o eclipse. Se não quiser, é só jogar pelo ralo.”
Fiz que ia pegar a garrafa, e ele a puxou de volta rapidinho.
“Você anda me dando um montão de presentes ultimamente. A gente não
pode bancar isso, com ou sem eclipse.”
Mas isso não o impediu de pegar o canivete e cortar o lacre; não pareceu
nem fazer com que ele fosse mais devagar.
“Bom, pra falar a verdade, não é só o eclipse”, falei. “É que eu ando me
sentindo tão bem e aliviada que quis compartilhar um pouco da minha
felicidade. E como reparei que boa parte do que faz você feliz sai de uma
garrafa…”
Eu o vi tirar a tampa e servir uma dose. A mão dele tremia um pouco, e não
achei ruim. Quanto pior Joe estivesse, mais chances eu teria.
“O que aconteceu pra você se sentir bem? Alguém inventou uma pílula pra
curar feiura?”, perguntou ele.
“Que coisa cruel pra se dizer pra alguém que acabou de comprar uma
garrafa de uísque bom pra você”, falei. “Talvez eu devesse mesmo pegar de
volta.”
Estendi a mão pra garrafa de novo, e ele a puxou de volta outra vez.
“Nem sonha”, retrucou ele.
“Então seja legal. O que aconteceu com toda a gratidão que você deveria
estar aprendendo no seu ?”
Ele nem ligou para o comentário, só continuou me olhando como um
vendedor tentando decidir se o cliente havia entregado pra ele uma nota de dez
falsa.
“O que te fez se sentir tão bem?”, perguntou ele de novo. “São os moleques,
né? Eles estarem fora de casa.”
“Não, eu já estou com saudade”, falei, e era verdade.
“É a sua cara”, disse ele, e bebeu o uísque. “Então o que é?”
“Te conto depois”, falei e z menção de me levantar.
Ele segurou o meu braço e disse:
“Conta agora, Dolores. Você sabe que eu não gosto quando você é abusada.”
Olhei pra ele e falei:
“É melhor você tirar a mão de mim, senão essa garrafa de birita cara vai
acabar quebrada na sua cabeça. Não quero brigar com você, Joe,
principalmente hoje. Comprei salame, queijo suíço e biscoito de água e sal.”
“Biscoito de água e sal! Meu Deus do céu, mulher!”, exclamou ele.
“Deixa pra lá. Vou preparar uma travessa de hors d’oeuvres tão boa quanto as
que os convidados da Vera vão comer na balsa.”
“Comida chique assim me dá caganeira. Deixa os horrores deles pra lá. Faz
um sanduíche pra mim.”
“Tudo bem. Vou fazer”, concordei.
Ele estava olhando para o mar nesse momento, provavelmente porque eu
mencionei a balsa, com o lábio inferior projetado daquele jeito feio que ele
fazia. Havia mais barcos lá do que nunca, e me parecia que o céu estava um
pouco mais aberto.
“Olha só pra eles!”, disse Joe com aquele jeito de desprezo típico, o que o
lho mais novo estava tentando tanto copiar. “Não vai acontecer nada que seja
muito diferente de uma nuvem passando na frente do sol, e está todo mundo
quase que cagando na calça. Espero que chova! Espero que caia uma chuva
danada e afogue aquela piranha metida pra quem você trabalha junto com todo
o resto!”
“Esse é o meu Joe”, falei. “Sempre alegre, sempre caridoso.”
Ele me olhou, ainda segurando aquela garrafa de uísque junto ao peito como
um urso com uma colmeia.
“O que, em nome de Deus, você está resmungando mulher?”
“Nada”, falei. “Vou lá dentro preparar a comida, um sanduíche pra você e
uns hors d’oeuvres pra mim. Aí, vamos nos sentar e beber um pouco e ver o
eclipse. Vera mandou um visor e uma caixa de re etir aí pra cada um de nós.
Quando acabar, vou te contar o que me deixou tão feliz. É surpresa.”
“Eu não gosto de surpresa porra nenhuma.”
“Eu sei que não. Mas vai adorar essa, Joe. Você nunca imaginaria, nem em
mil anos.”
Fui pra cozinha, pra ele poder começar pra valer a garrafa que eu tinha
comprado na loja de bebidas. Queria que Joe apreciasse, queria mesmo. A nal,
era o último álcool que ele beberia. E nem precisaria do pra car longe. Não
no lugar pra onde ele ia.
Aquela foi a tarde mais longa da minha vida, e a mais estranha. Ali estava
ele, sentado na cadeira de balanço na varanda, segurando o jornal em uma das
mãos e a bebida na outra, reclamando comigo pela janela aberta da cozinha
sobre alguma coisa que os Democratas estavam tentando fazer em Augusta.
Tinha esquecido sobre tentar descobrir o que estava me fazendo feliz, e sobre o
eclipse. Eu estava na cozinha fazendo um sanduíche pra ele, cantarolando uma
música e pensando: Capricha, Dolores. Coloca aquela cebola roxa que ele adora e
mostarda pra deixar meio picante. Capricha, porque é a última coisa que ele vai
comer.
De onde eu estava, dava pra olhar na direção do barracão e ver a pedra
branca e o começo dos arbustos. O lenço que eu tinha amarrado em cima de
um dos arbustos ainda estava lá; eu também via isso. Ficava indo pra lá e pra cá
na brisa. Cada vez que balançava, eu pensava naquela tampa esponjosa logo
embaixo.
Lembro como os pássaros cantaram naquela tarde e que eu ouvi algumas
pessoas no mar gritando umas pras outras, as vozes baixas e distantes.
Pareciam vozes no rádio. Até lembro o que estava cantarolando: “Amazing
Grace! How sweet the sound”. Continuei cantarolando enquanto preparava os
meus biscoitinhos com queijo (estava com a mesma vontade de comê-los
quanto uma galinha quer uma bandeira, mas não queria Joe se perguntando
por que eu também não estava comendo).
Devia ser umas duas e quinze quando voltei pra varanda com a bandeja de
comida equilibrada em uma das mãos como uma garçonete e a sacola que Vera
tinha me dado na outra. O céu ainda estava nublado, mas dava pra ver que o
dia estava mesmo mais claro.
A comida foi boa, no m das contas. Joe não era dado a elogios, mas vi pela
forma como deixou o jornal de lado e olhou para o sanduíche enquanto comia
que estava gostando. Pensei em uma coisa que eu tinha lido em um livro ou
visto em um lme: “O condenado fez uma lauta refeição”. Quando en ei isso
na cabeça, não consegui me livrar da porcaria do pensamento.
Mas isso não me impediu de traçar o meu lanchinho; quando comecei,
continuei até todos os biscoitinhos com queijo terem acabado, e tomei uma
garrafa inteira de Pepsi. Uma ou duas vezes, me peguei pensando se a maioria
dos carrascos tem bom apetite no dia de fazer o trabalho. É engraçado o que
passa na cabeça de uma pessoa quando está tomando coragem pra fazer alguma
coisa, não é?
O sol apareceu no meio das nuvens na hora que estávamos terminando.
Pensei no que Vera havia me dito naquela manhã, olhei para o relógio e sorri.
Eram três horas, em ponto. No mesmo instante, Dave Pelletier, o cara que
entregava a correspondência na ilha naquela época, voltou dirigindo pra cidade
com o pé fundo no acelerador e deixando uma nuvem de poeira ao passar. Só
voltei a ver carros na East Lane bem depois de escurecer.
Eu me inclinei pra apoiar os pratos e a garrafa vazia de refrigerante na
bandeja, e antes que me levantasse, Joe fez algo que não fazia havia anos: botou
uma das mãos na minha nuca e me deu um beijo. Já tive melhores; o bafo dele
era de puro álcool, cebola e salame, e ele não tinha se barbeado, mas era um
beijo mesmo assim, e não houve nada de cruel, nem meia-boca, nem suave. Foi
só um beijo gentil, e eu não conseguia lembrar a última vez que ele havia me
dado um. Fechei os olhos e permiti. Eu me lembro disto: de fechar os olhos e
sentir os lábios dele nos meus e o sol na minha testa. Um tão caloroso e gostoso
quanto o outro.
“Até que isso não foi ruim, Dolores”, disse ele.
Era um elogio e tanto vindo de Joe.
Por um segundo, meio que hesitei. Não vou chegar aqui e dizer que não. Foi
um segundo em que não foi Joe botando as mãos em Selena que eu vi, mas a
testa dele na sala de estudos em 1945, como eu via isso e queria que ele me
beijasse da mesma forma que ele estava me beijando naquela hora; como eu
pensei: Se ele me beijasse, eu levaria a mão a tocar a pele da testa dele… pra ver se
é lisa como parece.
Levantei a mão e toquei na testa dele nessa hora, como havia sonhado em
fazer tantos anos antes, quando eu não passava de uma garota inexperiente, e,
assim que z, aquele olho interno se abriu mais arregalado do que nunca. O
que vi foi que ele continuaria se eu o deixasse vivo, não apenas pra ter o que
queria com Selena, ou gastando o dinheiro que tinha roubado das poupanças
dos lhos, mas afetando-os: diminuindo Joe Junior pelas notas boas e pelo amor
por história; dando tapinhas nas costas de Pete sempre que ele chamava
alguém de judeuzinho ou dizia que um dos colegas de turma era um crioulo
preguiçoso; trabalhando neles, sem parar. Continuaria até os meus lhos ou
quebrarem, ou estragarem, e no nal morreria e nos deixaria sem nada além de
contas e um buraco onde o enterrar.
Bom, eu tinha um buraco pra ele, um com quarenta palmos em vez de sete,
com paredes de pedra natural em vez de terra. Pode apostar que eu tinha um
buraco pra ele, e um beijo depois de três anos, ou talvez até cinco, não ia
mudar nada. Nem tocar na testa dele, que tinha sido bem mais a causa de todo
o meu problema do que a bingolinha dele… mas toquei nela de novo, mesmo
assim; passei um dedo e me lembrei de quando ele me beijou no pátio do The
Samoset Inn enquanto a banda lá dentro tocava “Moonlight Cocktail” e que eu
tinha sentido o cheiro da colônia do pai dele nas bochechas quando ele fez isso.
E aí, endureci o coração.
“Que bom”, falei e peguei a bandeja de novo. “Por que não dá um jeito de
entender como a gente pode usar esses visores e essas caixas enquanto eu lavo
a louça?”
“Estou pouco me fodendo para o que aquela piranha rica te deu”, disse ele, “e
estou pouco me fodendo pra essa merda de eclipse. Já vi escuridão. Acontece
toda noite.”
“Tudo bem. Faz o que quiser.”
Quando cheguei à porta, ele disse:
“Quem sabe a gente pode fazer umas coisinhas depois. O que você acharia
disso, Dee?”
“Pode ser”, falei, o tempo todo pensando que ia ter muitas coisinhas mesmo.
Antes de escurecer pela segunda vez naquele dia, Joe St. George teria feito
mais coisinhas do que já tinha sonhado.
Fiquei com o olho bom nele enquanto lavava a pouca louça na frente da pia.
Ele não tinha feito nada na cama além de dormir, roncar e peidar em anos, e
acho que sabia tão bem quanto eu que a bebida tinha tanto a ver com isso
quanto a minha cara feia… até mais. Fiquei com medo de que a ideia de afogar
o ganso mais tarde fosse fazer com que ele botasse a tampa da garrafa de
Johnny Walker de volta, mas não dei esse azar. Para Joe, foder (perdoe a
linguagem, Nancy) era só uma fantasia, como me beijar havia sido. A garrafa
era bem mais real pra ele. A garrafa estava bem ali, ao seu alcance. Ele havia
tirado um dos visores de eclipse da sacola e o segurava pela alça, virando pra lá
e pra cá, semicerrando os olhos para o sol através dele. Joe me lembrou uma
coisa que vi na televisão uma vez: um chimpanzé tentando sintonizar um
rádio. Aí, ele colocou de lado e se serviu de mais bebida.
Quando voltei pra varanda com a cesta de costura, percebi que ele já estava
cando com aquela cara de coruja, com um vermelho em volta dos olhos, que
aparecia quando ele estava passando de moderadamente embriagado pra
radicalmente bêbado. Joe me olhou com intensidade mesmo assim, sem dúvida
se perguntando se eu ia pegar no pé dele.
“Não se incomode comigo”, falei, doce como uma fatia de torta. “Só vou
car aqui sentada costurando um pouco pra esperar o eclipse. Que bom que o
sol saiu, né?”
“Meu Deus, Dolores, você deve achar que é o meu aniversário”, disse ele, e a
voz havia começado a car rouca e arrastada.
“Bom… algo assim, talvez”, falei, e comecei a costurar um rasgo em uma
calça jeans de Pete.
A hora e meia seguinte passou mais devagar do que qualquer outro período
desde que eu era garotinha e a minha tia Cloris prometeu me levar pra ver o
meu primeiro lme em Ellsworth. Terminei a calça de Pete, costurei remendos
em duas de Joe Junior (mesmo naquela época, esse garoto não usava jeans;
acho que uma parte dele já havia decidido que ele ia ser político quando
crescesse) e remendei duas saias de Selena. A última coisa que z foi costurar
um zíper novo em uma das duas ou três calças boas de Joe. Eram velhas, mas
não estavam totalmente surradas. Eu me lembro de pensar que ele seria
enterrado com aquilo.
Quando eu estava começando a achar que não ia acontecer nunca, reparei
que a luz nas minhas mãos parecia um pouco mais fraca.
“Dolores. Acho que é isso que você e aqueles outros idiotas estão esperando”,
disse Joe.
“É”, falei. “Parece.”
A luz no pátio havia passado daquele amarelo forte da tarde que tem em
julho pra uma espécie de rosado pálido, e a sombra da casa na entrada de
carros tinha assumido um aspecto no engraçado que eu nunca tinha visto e
nunca mais vi.
Peguei uma das caixas re etoras na sacola, segurei do jeito que Vera tinha
me mostrado umas cem vezes na semana anterior e, quando z isso, tive um
pensamento doido: aquela garotinha está fazendo isso também, pensei. Aquela
sentada no colo do pai. Ela está fazendo a mesma coisa.
Não sabia o que esse pensamento queria dizer, Andy, e não sei direito agora,
mas estou contando mesmo assim… porque decidi que ia contar tudo e porque
pensei nela de novo depois. Só que, no segundo seguinte, eu não estava só
pensando nela; estava vendo, do jeito que se vê pessoas nos sonhos, ou do jeito
que eu acho que os profetas do Velho Testamento deviam ter enxergado nas
visões: uma garotinha de uns dez anos, com a caixa re etora nas mãos. Usava
um vestido curto com listras vermelhas e amarelas, daqueles com alças em vez
de mangas, sabe? E batom da cor de bala. O cabelo era louro e estava preso
atrás, como se ela quisesse parecer mais velha do que era. Vi outra coisa
também, uma que me fez pensar em Joe: a mão do pai dela estava na perna
dela, bem alto. Mais alto do que deveria estar, talvez. E aí, sumiu.
“Dolores? Você está bem?”, perguntou Joe.
“Como assim? Claro que estou”, respondi.
“Você fez uma cara engraçada por um minuto.”
“É o eclipse”, falei, e acho mesmo que foi isso, Andy, mas também acho que
aquela garotinha que eu vi naquela hora e de novo depois era uma garotinha
real, e que ela estava sentada com o pai em algum lugar no caminho do eclipse
na mesma hora que eu estava sentada na varanda com Joe.
Olhei pra caixa e vi um solzinho branco, tão intenso que foi como olhar pra
uma moeda de cinquenta centavos em chamas, com uma curva escura em um
lado. Olhei por um tempo e depois para Joe. Ele estava segurando um dos
visores e olhando por ele.
“Caramba. Está desaparecendo mesmo”, disse ele.
Os grilos começaram a cricrilar na grama nessa hora; acho que tinham
decidido que o pôr do sol seria mais cedo naquele dia e que era hora de botar a
boca no mundo. Olhei para o mar, pra todos os barcos, e vi que a água onde
utuavam estava de um azul mais escuro; havia algo de sinistro e maravilhoso
ao mesmo tempo. O meu cérebro cava tentando acreditar que todos aqueles
barcos debaixo daquele céu de verão escuro e estranho eram só uma
alucinação.
Dei uma olhada no relógio e vi que faltavam dez pras cinco. Isso signi cava
que por uma hora, mais ou menos, todo mundo na ilha só estaria pensando
nisso e vendo isso. A East Lane estava completamente vazia, os nossos vizinhos
estavam no Island Princess ou no telhado do hotel, e, se eu de fato pretendia
acabar com ele, a hora era aquela. As minhas entranhas pareciam enroladas
como uma mola, e eu não conseguia tirar da cabeça aquela imagem que havia
visto, a garotinha sentada no colo do pai, mas não podia deixar nada disso me
impedir ou mesmo me distrair, nem por um minuto que fosse. Sabia que, se
não agisse naquela hora, não agiria nunca.
Deixei a caixa re etora ao lado da costura e falei:
“Joe.”
“O quê?”, perguntou ele.
Ele tinha falado mal do eclipse antes, mas depois que começou, parecia que
não conseguia tirar os olhos do céu. A cabeça estava inclinada pra trás e o visor
de eclipse pelo qual estava olhando lançava uma daquelas sombras engraçadas
e meio desbotadas na cara dele.
“Está na hora da surpresa”, falei.
“Que surpresa?”, perguntou Joe.
Quando ele baixou o visor de eclipse, que era só uma camada dupla de vidro
polarizado especial em uma moldura, pra me olhar, vi que não era fascinação
pelo eclipse, a nal, ou não só isso. Estava quase totalmente embriagado e tão
grogue que quei com um pouco de medo. Se ele não entendesse o que eu
estava dizendo, o meu plano iria por água abaixo antes mesmo de começar. E o
que eu faria? Não sei. A única coisa que eu sabia me deu um medo danado: eu
não ia dar pra trás. Por mais que desse errado ou o que quer que acontecesse
depois, eu não voltaria atrás.
Ele estendeu a mão, me segurou pelo ombro e me sacudiu.
“Em nome de Deus, mulher, do que você está falando?”, disse ele.
“Sabe o dinheiro nas poupanças das crianças?”, perguntei.
Ele semicerrou os olhos um pouco, e percebi que ele não estava nem de
longe tão bêbado quanto pensei. Também entendi outra coisa: aquele beijo não
tinha mudado nada. Qualquer um pode dar um beijo, a nal; foi com um beijo
que Judas Iscariotes mostrou aos romanos quem era Jesus.
“O que tem?”, perguntou ele.
“Você pegou.”
“Porra nenhuma!”
“Ah, pegou. Depois que descobri que você estava se metendo com a Selena,
eu fui ao banco. Pretendia tirar o dinheiro, pegar as crianças e ir pra longe de
você.”
O queixo dele caiu, e por alguns segundos Joe só me olhou, boquiaberto. Em
seguida, começou a rir; encostou na cadeira e soltou as risadas enquanto o dia
ia cando mais escuro.
“Bom, você foi trouxa, né?”, disse ele, e então se serviu de mais uísque e
olhou para o céu pelo visor de novo. Dessa vez, eu nem conseguia ver direito a
sombra no rosto dele. “Já foi metade, Dolores! Já foi metade, talvez até um
pouco mais!”
Olhei pra minha caixa re etora e vi que ele estava certo; só metade daquela
moeda de cinquenta centavos restava, e havia mais sumindo a cada momento.
“É”, falei. “Já foi metade mesmo. Quanto ao dinheiro, Joe…”
“Esquece isso”, disse ele. “Não deixe a sua cabecinha pontuda se preocupar
com isso. O dinheiro está ótimo.”
“Ah, eu não estou preocupada”, falei. “Nem um pouco. Mas o jeito como
você me enganou… isso mexeu com a minha cabeça.”
Ele assentiu, um tanto solene e pensativo, como se pra mostrar que entendia
e até se solidarizava, mas não conseguiu sustentar a expressão. Em pouco
tempo, caiu na gargalhada de novo, como um garotinho sendo repreendido por
um professor do qual não tem medo nenhum. Riu tanto que borrifou uma
nuvenzinha de baba no ar na frente da boca.
“Desculpa, Dolores”, disse ele, quando conseguiu falar de novo. “Eu não
queria rir, mas eu preguei uma peça e tanto em você, né?”
“Ah, sim”, concordei.
Era a pura verdade, a nal.
“Te enganei direitinho”, disse ele, rindo e balançando a cabeça como se faz
quando alguém conta uma grande piada.
“É, mas você sabe o que falam por aí.”
“Não sei”, disse ele. Ele largou o visor de eclipse no colo e se virou pra olhar
pra mim. Tinha rido tanto que tinha lágrimas naqueles olhinhos vermelhos de
porco. “É você que tem um dito pra cada ocasião, Dolores. O que dizem sobre
maridos que nalmente dão uma lição nas esposas intrometidas?”
“‘Quem ri por último ri melhor’. Você riu da minha cara na história da
Selena e riu de novo por causa do dinheiro, mas agora acho que é a minha vez.”
“Talvez seja, talvez não, mas, se você está preocupada de eu ter gastado o
dinheiro, pode parar, porque…”
Eu o interrompi aí.
“Eu não estou preocupada. Já falei. Não estou nem um pouco preocupada.”
Ele me olhou intensamente nessa hora, Andy, o sorriso murchando um
pouco.
“Você está com aquela cara de esperta de novo. A que eu não gosto muito”,
disse ele.
“Caguei”, retruquei.
Ele me olhou por muito tempo, tentando entender o que se passava na
minha cabeça, mas acho que era tão misterioso pra ele quanto em qualquer
outra ocasião. Ele projetou o lábio de novo e suspirou com tanta intensidade
que soprou a mecha de cabelo que tinha caído na testa.
“A maioria das mulheres não entende nada de dinheiro, Dolores, e você não
é exceção. Eu depositei tudo em uma única conta, foi só isso… pra render
mais. Não falei porque não queria ter que car ouvindo as suas baboseiras
ignorantes. Bom, tive que ouvir de qualquer jeito, como sempre, mas tem um
limite, né?”
Ele ergueu o visor de eclipse de novo pra mostrar que o assunto estava
encerrado.
“Uma conta no seu nome”, completei.
“E daí?”, perguntou ele. Àquela altura, parecia que a gente estava no m do
crepúsculo, e as árvores tinham começado a sumir no horizonte. Eu ouvia um
bacurau cantando atrás da casa, e um noitibó em algum outro lugar. Pelo jeito a
temperatura tinha começado a cair. Me deu uma sensação estranha… de estar
vivendo em um sonho que de alguma forma virou realidade. “Por que não
deveria ser no meu nome? Eu sou o pai deles, né?”
“Bom, o seu sangue está neles. Se isso torna você o pai, então acho que você
é.”
Eu o observei tentando entender se valia a pena responder e reclamar
daquilo e então decidir que não.
“Você não quer mais falar sobre isso, Dolores. Estou avisando”, disse ele.
“Bom, talvez só mais um pouco”, falei, sorrindo. “Você esqueceu a surpresa,
né?”
Ele me olhou, descon ado de novo.
“De que porra você está falando, Dolores?”
“Bom, eu fui falar com o homem responsável pelo departamento de
poupança no Coastal Northern, em Jonesport. Um homem simpático chamado
sr. Pease. Expliquei o que aconteceu, e ele cou bem chateado. Principalmente
quando mostrei que os documentos originais não tinham sumido, como você
falou pra ele.”
Foi nessa hora que Joe perdeu o pouco interesse que tinha no eclipse. Ficou
naquela cadeira de balanço velha de merda, me encarando com os olhos
arregalados. Havia um trovão na testa dele e os lábios estavam apertados em
uma linha na como uma cicatriz. Ele havia soltado o visor no colo e as mãos
se abriam e fechavam bem devagar.
“Acontece que você não podia ter feito aquilo”, falei pra ele. “O sr. Pease
veri cou se o dinheiro ainda estava no banco. Quando viu que estava, nós dois
demos um grande suspiro de alívio. Ele me perguntou se eu queria chamar a
polícia e contar o que tinha acontecido. Pela cara dele, percebi que ele estava
esperando que eu dissesse não. Perguntei se ele podia passar o dinheiro pra
mim. Ele consultou um livro e disse que podia. E falei ‘Vamos fazer isso, então’.
E ele fez. É por isso que eu não estou mais preocupada com o dinheiro das
crianças, Joe. Eu estou com a grana, e não você. Não é uma surpresa e tanto?”
“Mentira!”, gritou Joe pra mim, e se levantou tão rápido que a cadeira quase
tombou. O visor de eclipse caiu do colo dele e se espatifou no chão da varanda.
Queria ter uma foto da cara dele nessa hora; foi uma facada nas costas mesmo,
e en ada até o cabo. A expressão na cara do lho de uma quenga imunda quase
fez valer tudo pelo que eu tinha passado desde o dia na balsa com Selena. “Eles
não podem fazer isso!”, gritou ele. “Você não pode tocar em um centavo
daquela grana, não pode nem olhar a porra do documento…”
“Ah, não? Então como é que eu sei que você já gastou trezentos dólares? Fico
agradecida de não ter sido mais, mas co fula da vida sempre que penso nisso.
Você não passa de um ladrão, Joe St. George. Um ladrão tão baixo que roubaria
até dos próprios lhos!”
O rosto dele cou branco como o de um cadáver na penumbra. Só os olhos
estavam com vida, e ardiam de ódio. As mãos estavam na frente do corpo, se
abrindo e se fechando. Olhei pra baixo por um segundo e vi o sol, já menos da
metade, só um crescente gordo, re etido nos pedaços quebrados de vidro
escuro caídos aos pés dele. E olhei pra ele de novo. Não seria bom eu afastar os
olhos de Joe por muito tempo, não com ele naquele humor.
“Com o que você gastou os trezentos, Joe? Prostitutas? Pôquer? Um pouco
com cada? Eu sei que não foi outra lata-velha porque não tem nenhuma nova lá
nos fundos.”
Ele não disse nada, só cou parado com as mãos se abrindo e fechando, e
atrás dele vi que os primeiros vagalumes espalhavam a luz pelo quintal. Os
barcos no mar já tinham virado fantasmas, e pensei em Vera. Pensei que, se ela
não estivesse ainda no sétimo céu, estaria quase lá. Não que eu tivesse que
pensar em Vera; o meu foco estava em Joe. Queria botá-lo em movimento, e
achava que mais um cutucão serviria.
“No m das contas, eu nem ligo com o que você gastou”, falei. “Estou com o
resto e está bom pra mim. Você pode ir se foder… se conseguir fazer essa vara
mole car de pé, claro.”
Joe tropeçou pela varanda, esmagando os pedaços de visor de eclipse com os
sapatos, e me segurou pelos dois braços. Eu poderia ter fugido, mas não quis.
Não naquela hora.
“Olha essa boca abusada”, sussurrou ele, soprando hálito de uísque na minha
cara. “Se você não cuidar dela, vou acabar tendo que cuidar.”
“O sr. Pease queria que eu depositasse o dinheiro de volta no banco, mas eu
não quis. Pensei que, se você conseguiu tirar da conta das crianças, poderia dar
um jeito de tirar da minha também. Aí ele quis me dar um cheque, mas eu tive
medo de que, se você descobrisse o que eu estava fazendo antes que eu quisesse
que você descobrisse, você pudesse impedir o pagamento. Então falei para o sr.
Pease me dar em dinheiro vivo. Ele não gostou, mas, no nal, me deu, e agora
está comigo, cada centavo, e eu guardei em um lugar seguro.”
Nessa hora, Joe me pegou pela garganta. Eu tinha quase certeza de que ele
faria isso, e estava com medo, mas queria também. Faria com que ele
acreditasse bem mais na última coisa que eu tinha a dizer quando eu
nalmente a dissesse. Mas isso nem era o mais importante. Ele me pegar pelo
pescoço assim faria com que parecesse mais legítima defesa, de alguma forma.
Isso era o mais importante. E era legítima defesa, independentemente do que a
lei achasse; eu sei porque eu estava lá e a lei não estava. No m das contas, eu
estava me defendendo e defendendo os meus lhos.
Ele cortou o uxo de ar e me sacudiu, gritando. Não me lembro de tudo;
acho que ele deve ter batido com a minha cabeça em um dos suportes da
varanda uma ou duas vezes. Falou que eu era uma lha da puta escrota, que me
mataria se eu não devolvesse o dinheiro, que aquele dinheiro era dele, umas
besteiras assim. Comecei a car com medo de ele realmente me matar antes de
eu poder dizer o que ele queria ouvir. O quintal estava bem mais escuro e
parecia cheio daquelas luzinhas piscantes, como se os cem ou duzentos
vagalumes que eu tinha visto antes tivessem recebido a companhia de uns dez
mil mais. E a voz dele soou tão distante que eu achei que tudo tinha dado
errado, que eu tinha caído no poço no lugar dele.
Joe nalmente me soltou. Tentei car de pé, mas as minhas pernas não me
sustentaram. Tentei cair de volta na cadeira, mas ele tinha puxado pra longe, e
a minha bunda só raspou na borda. Caí no chão da varanda ao lado dos cacos
de vidro que eram tudo que havia restado do visor de eclipse dele. Havia um
pedaço grande, com um crescente de sol brilhando nele como uma pedra
preciosa. Mexi a mão pra pegá-lo, mas parei. Não ia cortá-lo, nem que ele me
desse oportunidade. Não podia cortá-lo. Um corte assim, de vidro, poderia não
parecer certo depois. Isso pra você ver como eu estava pensando… sem muita
dúvida de que era ou não primeiro grau, né, Andy? Em vez do vidro, peguei a
minha caixa re etora, que era feita de madeira pesada. Eu poderia dizer que
estava pensando que bater nele com aquilo serviria se precisasse, mas não seria
verdade. Naquela hora, eu não estava pensando muito.
Mas eu estava tossindo, tanto que quei impressionada de não estar saindo
sangue com cuspe. Sentia a garganta pegando fogo.
Ele me puxou pra car de pé com tanta força que uma das alças do meu
vestido anágua arrebentou, depois pegou a minha nuca na dobra do braço e me
puxou até estarmos tão perto a ponto de beijar… não que ele fosse voltar a me
beijar.
“Eu falei o que aconteceria se você não parasse de ser abusada comigo”, disse
ele. Os olhos estavam úmidos e estranhos, como se Joe tivesse chorado, mas o
que me assustou neles foi a forma como ele parecia estar olhando através de
mim, como se eu não estivesse mais ali. “Falei um milhão de vezes. Você
acredita agora, Dolores?”
“Acredito”, falei. Ele tinha machucado tanto a minha garganta que parecia
que eu estava falando com a boca cheia de lama. “Acredito, juro.”
“Diz de novo!”, gritou ele. Ainda estava com o meu pescoço preso pelo braço
e nesse momento o apertou tanto que pinçou um dos nervos lá. Gritei. Não
pude controlar; doeu demais. Isso o fez sorrir. “Diz com sinceridade!”
“Eu acredito! Eu falei com sinceridade!”
Eu tinha planejado ngir medo, mas Joe me poupou desse trabalho; no m
das contas, não precisei ngir nada naquele dia.
“Que bom”, disse ele. “Fico feliz de ouvir. Agora me diz onde está o dinheiro,
e é melhor que cada centavo esteja lá.”
“Está lá perto do barracão”, falei.
Não pareceu mais que eu estava falando com a boca cheia de lama; eu já
estava parecendo o Groucho Marx em You Bet Your Life. Que meio que
encaixava na situação, se é que você me entende. Aí falei que havia guardado o
dinheiro em um pote e escondido o pote no meio dos arbustos de amoreira.
“Coisa de mulher!”, disse ele com desdém e me deu um empurrão na direção
da escada da varanda. “Bom, vamos lá. Vamos buscar.”
Desci os degraus e percorri a lateral da casa com Joe logo atrás. Já estava
quase tão escuro quanto ca de noite, e quando chegamos ao barracão, vi uma
coisa tão estranha que me fez esquecer tudo por alguns segundos. Parei e
apontei para o céu acima da área de arbustos.
“Olha, Joe! Estrelas!”, falei.
E tinha mesmo: vi o Grande Carro com a mesma clareza de uma noite de
inverno. Fiquei com o corpo todo arrepiado, mas não foi nada para Joe. Ele me
deu um empurrão tão forte que quase caí.
“Estrelas? Você vai ver muitas se não parar de enrolar, mulher. Eu garanto.”
Comecei a andar de novo. As nossas sombras tinham desaparecido
completamente, e a pedra branca grande onde eu e Selena tínhamos nos
sentado naquele m de tarde no ano anterior se destacava quase como um
holofote, como reparei que acontece quando a lua ca cheia. A luz não estava
como o luar, Andy. Não consigo descrever como estava, como era sinistra e
estranha, mas vai ter que servir. Sei que as distâncias entre as coisas tinham
cado difíceis de avaliar, como acontece no luar, e que não dava pra identi car
um único arbusto de amora. Eles todos viraram uma grande mancha com
aqueles vagalumes dançando pra lá e pra cá na frente deles.
Vera tinha me dito várias vezes que era perigoso olhar direto para o eclipse,
porque podia queimar a retina ou até cegar. Ainda assim, não consegui resistir
a virar a cabeça e dar uma olhada rápida por cima do ombro, da mesma forma
que a esposa de Ló não conseguiu resistir a olhar uma última vez pra cidade de
Sodoma. O que eu vi cou na minha memória. Semanas, às vezes meses
inteiros se passam sem que eu pense em Joe, mas é raro ter um dia em que eu
não pense no que vi naquela tarde quando olhei pra trás, para o céu. A esposa
de Ló virou uma estátua de sal porque não conseguiu manter os olhos à frente
e o foco, e às vezes pensei que era incrível eu não ter pagado o mesmo preço.
O eclipse ainda não era total, mas estava chegando perto. O céu em si estava
de um azul real profundo, e o que vi pairando nele acima do mar parecia uma
pupila preta grande com um véu no de fogo espalhado em quase toda a
circunferência. Do outro lado havia um o de sol ainda crescente, como
gotículas de ouro derretido em uma fornalha. Eu sabia que não tinha nada que
olhar pra aquilo, mas, quando olhei, parecia que não dava pra desviar.
Parecia… bom, você pode rir, mas vou dizer mesmo assim. Parecia que aquele
olho interno havia se libertado de mim de algum jeito, que tinha utuado para
o céu e olhava pra baixo pra ver como eu ia me sair. Mas era tão maior do que
eu tinha imaginado! Tão mais preto!
Eu provavelmente teria olhado até car cega, só que Joe me deu outro
empurrão e me jogou na parede do barracão. Isso meio que me despertou, e
voltei a andar. Havia um ponto azul grande, do tipo que se vê depois que
alguém tira uma foto com ash, pairando na minha frente, e eu pensei: Se você
tiver queimado as retinas e tiver que olhar pra isso o resto da vida, vai ser bem-feito,
Dolores. Bem parecido com a marca que Caim teve que carregar.
Nós passamos pela pedra branca, Joe logo atrás de mim, segurando a gola do
meu vestido anágua. Senti o tecido escorregar de um lado, onde a alça havia
arrebentado. Com a escuridão e aquele ponto azul-escuro pairando no meio das
coisas, tudo pareceu torto e deslocado. O m do barracão não passava de uma
forma escura, como se alguém tivesse pegado uma tesoura grande e cortado
um buraco em forma de telhado no céu.
Ele me empurrou na direção dos arbustos, e quando o primeiro espinho
perfurou o meu tornozelo, eu me lembrei de que daquela vez havia me
esquecido de colocar a calça jeans. Isso me fez pensar no que mais eu podia ter
esquecido, mas óbvio que era tarde pra consertar qualquer erro; eu via aquele
pedacinho de pano balançando no nzinho da luz e só tive tempo de pensar
nas tábuas embaixo. Eu me soltei da mão de Joe e corri pelos arbustos, como
quem está com o diabo nos calcanhares.
“Ah, não, sua puta!”, gritou ele, e ouvi os arbustos se quebrarem à medida que
ele corria atrás de mim.
Senti a mão dele tentar pegar a gola do vestido de novo e quase conseguir.
Eu me soltei e continuei correndo. Era difícil, porque o vestido anágua
escorregava e cava prendendo nos arbustos. No nal, cortaram uma tira
comprida dele e arrancaram carne das minhas pernas também. Fiquei
sangrando dos joelhos aos tornozelos, mas só reparei quando voltei pra casa, e
isso foi bem depois.
“Volta aqui!”, berrou ele, e dessa vez senti a mão dele no meu braço.
Eu o puxei e ele tentou agarrar o vestido, que estava voando atrás de mim
como uma cauda de vestido de noiva. Se o tecido tivesse aguentado, talvez Joe
tivesse me puxado como um peixão sgado, mas o vestido estava velho e puído
de ter sido lavado umas duzentas ou trezentas vezes. Senti a tira que ele havia
segurado rasgar e o ouvi soltar um palavrão, alto e sem fôlego. Ouvi os arbustos
quebrando, estalando e chicoteando, mas não via quase nada; quando entramos
no meio dos arbustos, cou mais escuro do que no cu de uma marmota, e no
nal aquele lenço amarrado não ajudou em nada. Vi a borda do poço, um
brilho branco suave na escuridão na minha frente, e pulei com toda força.
Passei por pouco, e como estava de costas pra ele, não o vi pisar em cima.
Houve um grande som de crraaaaack, e ele gritou…
Não, não foi assim.
Ele não gritou, e acho que você sabe disso tão bem quanto eu. Ele berrou
como um coelho com o pé preso em uma armadilha. Eu me virei e vi um
buracão grande no meio da tampa do poço. A cabeça de Joe estava pra fora e ele
se segurava em uma daquelas tábuas quebradas com toda força. As mãos dele
sangravam, e havia um o de sangue descendo do canto da boca até o queixo.
Os olhos estavam do tamanho de maçanetas.
“Meu Deus, Dolores. É o poço velho. Me ajuda a sair, rápido, antes que eu
caia”, disse ele.
Fiquei parada, olhando, e depois de alguns segundos os olhos dele mudaram.
Percebi que Joe tinha compreendido o que aconteceu. Nunca senti tanto medo
quanto naquela hora, parada ali do outro lado da tampa do poço encarando o
meu marido com aquele sol preto no céu a oeste de nós. Eu tinha esquecido a
calça jeans, e ele não tinha caído direto como deveria. Pra mim, parecia que
tudo havia começado a dar errado.
“Ah. Ah, sua lha da puta.”
Então ele começou a se agarrar e se remexer pra sair.
Disse a mim mesma que eu precisava fugir, mas as minhas pernas não se
moveram. Pra onde eu iria se ele saísse? Uma coisa que descobri no dia do
eclipse: se você mora numa ilha e tenta matar alguém, é melhor fazer direito.
Se não zer, não tem pra onde correr nem onde se esconder.
Eu ouvia as unhas dele arranharem as farpas daquela tábua velha enquanto
ele se esforçava pra sair aos poucos. Aquele som é tipo o que eu vi quando olhei
para o eclipse: algo que sempre esteve bem mais perto de mim do que eu
queria que estivesse. Às vezes eu até escuto nos meus sonhos, só que nos
sonhos Joe consegue sair e vai atrás de mim de novo, e não foi isso que
aconteceu. O que aconteceu foi que a tábua em que ele se apoiou pra subir de
repente se partiu com o peso e ele caiu. Aconteceu tão rápido que quase foi
como se Joe nunca tivesse estado lá; de repente, não havia nada além de um
quadrado cinza de madeira mole com um buraco preto irregular no meio e
vagalumes voando pra lá e pra cá por cima.
Ele gritou de novo ao cair. Ecoou pelas laterais do poço. Outra coisa em que
eu não tinha pensado: ele gritar quando caísse. Houve um baque, e ele parou.
Simplesmente parou. Do jeito que um abajur para de emitir luz se alguém tirar
da tomada.
Eu me ajoelhei, abracei o meu tronco e esperei pra ver se haveria mais. Um
tempo passou, não sei quanto, mas o que restava de luz no dia sumiu. O eclipse
total havia chegado e estava escuro como a noite. Ainda não havia som vindo
do poço, mas tinha uma brisa suave vindo de lá na minha direção, e percebi
que eu conseguia sentir o cheiro… sabe aquele cheiro de água que às vezes vem
de poços rasos? É um cheiro acobreado, úmido e não muito bom. Senti esse
cheiro e me fez tremer.
Percebi que o meu vestido estava caído quase até o sapato esquerdo. Estava
todo rasgado e em farrapos. En ei a mão pela gola do lado direito e arrebentei
a outra alça. Então puxei a peça toda. Estava embolando o tecido ao meu lado e
tentando pensar no melhor jeito de contornar o buraco do poço quando de
repente pensei naquela garotinha de novo, sobre a qual falei antes, e aí a vi com
a clareza do dia. Ela também estava de joelhos, olhando debaixo da cama, e eu
pensei: Ela está tão infeliz, e está sentindo aquele mesmo cheiro. O que parece de
moedas e ostras. Só que não vinha do poço; tem alguma coisa a ver com o pai dela.
E aí, de repente, foi como se ela olhasse direto pra mim, Andy… acho que
ela me viu. E quando se voltou pra mim, entendi por que estava tão infeliz. O
pai tinha feito alguma coisa com aquela garotinha, e ela estava tentando
encobrir. Além disso, tinha percebido que, do nada, alguém estava olhando pra
ela, que uma mulher Deus sabe a quantos quilômetros de distância, mas no
caminho do eclipse, uma mulher que tinha acabado de matar o marido, estava
olhando pra ela.
Ela falou comigo, mas eu não ouvi com os ouvidos; veio das profundezas no
meio da minha cabeça.
“Quem é você?”, perguntou ela.
Não sei se eu teria respondido ou não, mas, antes que tivesse oportunidade,
um grito longo e oscilante soou no poço:
“Do-loooooooores…”
Senti o sangue congelar dentro de mim e sei que o meu coração parou por
um segundo, porque, quando começou a bater de novo, precisou compensar
com três ou quatro batimentos ao mesmo tempo. Eu segurava o vestido anágua,
mas senti os dedos relaxarem quando ouvi aquele grito, e caiu da minha mão e
cou preso em um dos arbustos espinhentos.
“É só sua imaginação trabalhando em hora extra, Dolores”, falei pra mim
mesma. “Aquela garotinha olhando embaixo da cama pra pegar as roupas e Joe
gritando assim… você imaginou tudo. Uma foi uma alucinação que surgiu de
sentir cheiro de ar parado do poço, e a outra foi só a sua consciência culpada.
Joe está caído no fundo daquele poço com a cabeça quebrada. Está morto e
nunca mais vai incomodar você e as crianças.”
Não acreditei no começo, mas mais tempo passou e não havia mais som,
exceto uma coruja piando em algum lugar em um campo. Eu me lembro de
pensar que parecia que estava perguntando por que estava tendo que começar
o trabalho tão cedo. Uma brisa suave percorreu os arbustos e os sacudiu. Olhei
pras estrelas no céu diurno e depois para o poço de novo. Era quase como
utuar no escuro, e o buraco no meio pelo qual Joe havia caído parecia um
olho. O dia 20 de julho de 1963 foi o dia em que vi olhos em toda parte.
Aí a voz dele veio do poço de novo.
“Me ajuda, Do-looooooores…”
Gemi e cobri o rosto com as mãos. Não adiantava dizer a mim mesma que
aquilo era a minha imaginação, a consciência culpada ou qualquer outra coisa
diferente do que era: Joe. Pra mim, soava como se ele estivesse chorando.
“Me ajuuuuuuda, por favooooooor… POR FAVOOOOOOOR…”, gemeu ele.
Andei aos trancos em volta do poço e voltei correndo pelo caminho que
tínhamos aberto em meio aos arbustos. Não estava em pânico, ainda não, e vou
explicar por que sei disso: parei pra pegar a caixa re etora que estava na minha
mão quando fomos pra área dos arbustos. Não conseguia me lembrar de ter
deixado cair quando corri, mas, quando a vi pendurada em um daqueles galhos,
peguei. E foi bom mesmo, considerando como as coisas se desenrolaram com
aquele maldito do dr. McAuli e… mas isso ainda é longe de onde estou agora.
Eu parei pra pegar, essa é a questão, e pra mim isso diz que eu ainda estava sã.
Mas sentia o pânico tentando chegar por baixo, assim como um gato tenta
en ar a pata debaixo da tampa de uma caixa se estiver com fome e sentir
cheiro de comida dentro.
Pensei em Selena, e isso me ajudou a manter o pânico longe. Consegui
imaginá-la na praia do lago Winthrop com Tanya e uns quarenta ou cinquenta
pequenos campistas, cada um com a própria caixa re etora que haviam feito na
Cabine de Artesanato, e as garotas mostrando exatamente como usá-la pra ver
o eclipse. Não foi tão clara quanto a visão que eu tive perto do poço, a da
garotinha olhando embaixo da cama atrás do short e da camiseta, mas foi clara
a ponto de eu ouvir Selena falando com os pequenos com aquela voz lenta e
gentil, acalmando os que estavam com medo. Pensei nisso e que eu precisava
estar lá pra ela e os irmãos quando os três voltassem… e que, se eu cedesse ao
pânico, provavelmente não estaria. Tinha ido longe demais e feito demais, e
não havia ninguém com quem eu pudesse contar além de mim mesma.
Fui até o barracão e peguei a lanterna grande de Joe na mesa de trabalho.
Liguei-a, mas não funcionou; ele tinha deixado as pilhas acabarem, o que era a
cara dele. Mas deixou a gaveta de baixo da mesa cheia de pilhas novas, porque
cávamos sem energia com frequência no inverno. Peguei seis e tentei
encaixar na lanterna. As minhas mãos tremiam tanto na primeira vez que
deixei as pilhas grandes caírem no chão e precisei tatear pra procurar. Na
segunda, consegui, mas devo ter colocado uma ou duas na posição errada na
pressa, porque a luz não acendeu. Pensei em deixar pra lá. Até porque o sol
voltaria em breve. Só que estaria escuro no fundo do poço mesmo depois que
voltasse, e, além do mais, havia uma voz no fundo da minha mente dizendo
que eu podia enrolar o quanto quisesse; que talvez, se demorasse bastante,
descobriria que ele nalmente tinha batido as botas quando eu voltasse lá.
Finalmente z a lanterna funcionar. Emitiu uma luz intensa ótima, e pelo
menos consegui voltar até o poço sem arranhar as pernas mais do que já
estavam arranhadas. Não tenho a menor ideia de quanto tempo havia se
passado, mas ainda estava meio escuro e ainda havia estrelas no céu, então
acho que nem eram seis horas e o sol continuava quase todo coberto.
Antes de chegar na metade do caminho, percebi que ele não estava morto;
dava pra ouvi-lo gemendo e chamando o meu nome, suplicando pra eu ajudá-lo
a sair. Não sei se os Jolander, os Langill ou os Caron teriam ouvido se
estivessem em casa. Decidi que era melhor não tentar adivinhar; já tinha
muitos problemas sem isso. Precisava decidir o que fazer com Joe, isso era o
mais importante, mas eu não conseguia ir muito longe. Cada vez que tentava
pensar em uma resposta, uma voz dentro de mim começava a gritar. “Não é
justo”, gritava a voz, “não era esse o acordo, ele deveria estar morto, caramba,
morto!”
“Me ajuuuda, Do-loooooores!”, soou a voz dele.
Estava com um som seco e ecoado, como se Joe estivesse gritando de dentro
da caverna. Acendi a luz e tentei olhar pra baixo, mas não consegui. O buraco
na abertura cava muito no meio, e a lanterna só me mostrava o topo do
abismo: grandes pedras de granito com musgo por cima. O musgo estava preto
e parecia venenoso à luz da lanterna.
Joe viu a luz.
“Dolores? Pelo amor de Deus, me ajuda! Eu estou todo quebrado!”, gritou
ele.
Agora era ele que parecia estar falando com a garganta cheia de lama. Eu não
responderia. Achava que, se tivesse que falar com ele, caria maluca de vez.
Então deixei a lanterna de lado, estendi a mão até onde deu e consegui segurar
uma das tábuas que ele tinha quebrado. Puxei e a madeira quebrou com a
facilidade de um dente podre.
“Dolores!”, gritou ele quando ouviu o barulho. “Ah, Deus! Ah, obrigado
Deus!”
Não respondi, só quebrei outra tábua, depois outra, depois outra. Já dava pra
ver que o dia tinha começado a clarear de novo, e pássaros cantavam como
fazem no verão quando o sol nasce. Mas o céu ainda estava bem mais escuro do
que deveria àquela hora. As estrelas haviam sumido de novo, mas os vagalumes
ainda circulavam. Enquanto isso, continuei quebrando as tábuas em direção ao
lado do poço onde eu estava ajoelhada.
“Dolores!”, a voz dele subiu pelo poço até mim. “Pode car com o dinheiro!
Todo! E eu nunca mais vou tocar na Selena, juro perante Deus Todo-Poderoso
e os anjos que não vou! Por favor, meu bem, só me ajuda a sair deste buraco!”
Puxei a última tábua, e tive que puxá-la do meio das amoreiras pra soltar, e a
joguei atrás de mim. Em seguida, apontei a lanterna para o fundo do poço.
A primeira coisa que o facho de luz encontrou foi o rosto dele virado pra
cima, e gritei. Parecia um círculo branco com dois buracos pretos grandes nele.
Por um ou dois segundos achei que Joe tinha colocado pedras nos olhos por
algum motivo. Mas aí pisquei e eram só os olhos dele, a nal, me encarando.
Pensei em como deviam estar enxergando, só a forma escura da cabeça de uma
mulher atrás de um círculo intenso de luz.
Ele estava de joelhos e havia sangue por todo o queixo e pescoço e na frente
da camisa. Quando ele abriu a boca e gritou o meu nome, saiu mais sangue
ainda. Ele tinha quebrado a maioria das costelas quando caiu e deviam estar
perfurando os pulmões dos dois lados como espinhos de porco-espinho.
Eu não sabia o que fazer. Fiquei agachada, sentindo o calor voltar ao dia, no
pescoço, braços e pernas eu sentia bem, e com a luz virada pra ele. Joe levantou
os braços e meio que os balançou, como se estivesse se afogando, e não
consegui suportar. Apaguei a luz e recuei. Fiquei sentada na beira do poço, toda
encolhida, segurando os joelhos ensanguentados e tremendo.
“Por favor!”, gritou ele. “Por favor! Por favooor!” E nalmente: “Por
favooooooooor, Do-looooores!”.
Ah, foi horrível, mais horrível do que qualquer pessoa possa imaginar, e
continuou assim por muito tempo. Continuou até eu achar que me deixaria
louca. O eclipse acabou e os pássaros pararam de circular (ou talvez fosse eu
que não conseguisse mais vê-los) e no mar ouvi os barcos buzinarem uns para
os outros como fazem às vezes, aquelas musiquinhas engraçadas, e mesmo
assim Joe não parou. Às vezes, suplicava e me chamava de meu amor; dizia
todas as coisas que ia fazer se eu o tirasse de lá, que iria mudar, que iria
construir uma casa nova pra nós e comprar o Buick que ele achava que eu
sempre havia desejado. Em seguida, me xingava e dizia que iria me amarrar na
parede e en ar um ferro quente na minha xereca só pra me ver me contorcer,
até ele nalmente me matar.
Uma hora, perguntou se eu jogaria aquela garrafa de uísque lá embaixo. Dá
pra acreditar nisso? Queria a merda da garrafa e me amaldiçoou e me chamou
de boceta velha suja e usada quando viu que eu não ia dar.
Finalmente, começou a escurecer de novo, escurecer de verdade agora, então
deviam ser pelo menos oito e meia, talvez até nove horas. Eu tinha começado a
prestar atenção em carros que passavam na East Lane de novo, mas até então
não havia nada. Isso era bom, mas eu sabia que não podia esperar que a sorte
durasse pra sempre.
Um momento depois, levantei a cabeça em um trancão e me dei conta de
que tinha cochilado. Não podia ter sido por muito tempo porque ainda havia
claridade no céu, mas os vagalumes tinham voltado, fazendo as coisas de
sempre, e a coruja piava de novo. Pareceu um pouco mais confortável da
segunda vez.
Mudei um pouco de lugar e precisei trincar os dentes por causa do
formigamento que começou assim que me mexi. Fiquei tanto tempo ajoelhada
que estava dormente dos joelhos pra baixo. Mas não ouvia nada do poço, e
comecei a ter esperanças de que ele nalmente estivesse morto, de que tivesse
partido enquanto eu cochilava. Mas aí, ouvi ruídos de movimento, grunhidos e
choro. Isso foi o pior, ouvi-lo chorando, porque se mover provocava dor demais.
Eu me apoiei na mão esquerda e apontei a lanterna para o poço de novo. Foi
difícil demais me obrigar a fazer isso depois que cou quase completamente
escuro. Ele tinha conseguido car de pé, não sei como, e eu vi a lanterna se
re etindo de volta pra mim em três ou quatro pontos de água ao redor das
botas que ele usava. Isso me fez pensar em como eu tinha visto o eclipse
naqueles pedaços de vidro escuro quebrado depois que ele se cansou de me
enforcar e eu caí na varanda.
Ao olhar lá pra baixo, nalmente entendi o que havia acontecido, como ele
conseguiu cair nove ou dez metros e apenas se machucar pra valer, sem morrer
na hora. O poço não estava mais seco. Não tinha voltado a encher, se tivesse
acho que ele teria se afogado como um rato em um barril, mas o fundo estava
molhado e cheio de lama. Isso amorteceu um pouco a queda, e provavelmente
o fato de ele estar bêbado não atrapalhou.
Joe estava com a cabeça baixa, balançando de um lado para o outro com as
mãos apoiadas nas paredes de pedra pra não cair de novo. Olhou pra cima, me
viu e sorriu. Aquele sorriso provocou um arrepio em mim todinha, Andy,
porque foi o sorriso de um homem morto… um homem morto com sangue na
cara e na camisa toda, um homem morto com o que pareciam ser pedras
en adas nos olhos.
E aí, ele começou a escalar a parede.
Eu estava olhando xo, mas não conseguia acreditar. Ele en ou os dedos
entre duas das pedras grandes projetadas na lateral e se ergueu até conseguir
en ar um dos pés entre outras duas. Descansou um minuto assim, e eu vi uma
das mãos dele tatear acima da cabeça de novo. Parecia um inseto branco gordo.
Encontrou outra pedra em que se segurar, se apoiou bem e botou a outra mão
junto. Subiu mais. Quando parou pra descansar na vez seguinte, virou o rosto
ensanguentado para o raio da lanterna, e vi pedacinhos de musgo da pedra em
que ele se segurava caírem nas bochechas e nos ombros dele.
Joe ainda sorria.
Posso tomar outra coisa, Andy? Não, não o uísque, chega disso hoje. Só água
vai dar daqui em diante.
Obrigada. Muito obrigada.
Ele estava com a mão estendida à procura do próximo apoio quando os pés
escorregaram e ele caiu. Houve um som úmido de lama quando ele caiu
sentado. Joe gritou e levou a mão ao peito como fazem na televisão quando
estão tendo ataques cardíacos, e aí a cabeça dele caiu pra frente sobre o peito.
Eu não suportava mais. Cambaleei em meio às amoreiras e voltei correndo
pra casa. Entrei no banheiro e vomitei as tripas. Depois fui para o quarto e me
deitei. O meu corpo inteiro tremia, e eu cava pensando: E se ele ainda não
estiver morto? E se car vivo a noite toda, e se car vivo por dias, bebendo a
água que estava vazando entre as pedras e pela lama? E se ele car gritando e
pedindo ajuda até que um dos Caron, Langill ou Jolander escute e chame
Garrett Thibodeau? E se alguém vier aqui em casa amanhã, um dos amigos de
bebedeira dele, ou alguém querendo que ele trabalhe no barco ou conserte um
motor, e ouvir gritos vindo das amoreiras? E aí, Dolores?
Houve outra voz que respondeu a todas essas perguntas. Acho que pertencia
ao olho interno, mas pra mim soou mais como Vera Donovan do que como
Dolores Claiborne; soou intensa e seca e com tom de não gostou en a no cu.
“Óbvio que ele está morto”, disse aquela voz. “E, mesmo que não esteja, vai
morrer em breve. Vai morrer de choque e frio e dos pulmões perfurados. Deve
haver gente que não acreditaria que um homem poderia morrer de frio em
uma noite de julho, mas seriam pessoas que nunca passaram algumas horas
nove metros abaixo da superfície, sentadas sobre um leito de pedra úmido. Sei
que nada disso é agradável de se pensar, Dolores, mas pelo menos signi ca que
você pode parar de se preocupar. Dorme um pouco e, quando você voltar lá, vai
ver.”
Eu não sabia se o que a voz estava falando fazia sentido ou não, mas parecia
fazer, então tentei dormir. Só que não consegui. Cada vez que começava a
pegar no sono, achava que ouvia Joe cambalear pela lateral do barracão em
direção à porta dos fundos, e cada vez que a casa estalava, eu pulava de susto.
Chegou uma hora que não aguentei. Tirei o vestido, coloquei uma calça
jeans e um suéter (como trancar a porta do celeiro depois que o cavalo já foi
roubado, acho que você diria) e peguei a lanterna no chão do banheiro, ao lado
do armário, onde a larguei quando me ajoelhei pra vomitar. Em seguida, voltei
pra lá.
Estava mais escuro do que nunca. Não sei se havia lua naquela noite, mas
não teria importado, porque as nuvens tinham voltado. Quanto mais perto eu
chegava do emaranhado de arbustos atrás do barracão, mais pesados os meus
pés cavam. Quando consegui ver o poço de novo com a luz da lanterna, achei
que não conseguia mais levantá-los.
Mas os levantei, eu me obriguei a andar até lá. Prestei atenção por quase
cinco minutos e não houve som nenhum além dos grilos, do vento sacudindo
os arbustos de amora e de uma coruja piando em algum lugar… provavelmente
a mesma que eu tinha ouvido antes. Ah, e mais distante ao leste eu ouvia as
ondas batendo no litoral, só que esse é um som com o qual você se acostuma
tanto na ilha que acaba não escutando mais. Fiquei parada com a lanterna de
Joe na mão, a luz apontada para o poço, sentindo um suor oleoso e grudento
surgir em todo o corpo, o que fez os cortes e arranhões dos espinhos de
amoreira arderem, e falei a mim mesma que era pra eu me ajoelhar e olhar no
poço. A nal, não era isso que eu tinha ido fazer lá?
Era, mas quando cheguei lá, não consegui. Só quei tremendo e fazendo um
som alto de gemido na garganta. O meu coração não estava batendo de
verdade, pulava no peito como as asas de um beija- or.
Mas aí uma mão branca toda suja de terra, sangue e musgo saiu daquele
poço e agarrou o meu tornozelo.
Larguei a lanterna. O objeto caiu nos arbustos no limite do poço, o que foi a
minha sorte; se tivesse caído dentro do poço, eu estaria numa merda danada.
Mas, naquele momento, não estava pensando na lanterna nem na minha sorte,
porque a merda em que eu estava metida já era bem funda, e a única coisa em
que eu estava pensando era a mão no meu tornozelo, a mão que estava me
puxando para o buraco. Isso e uma frase da Bíblia, que ecoou na minha cabeça
como um sino de ferro: Cavei um buraco para os meus inimigos e fui eu que nele
acabei caindo.
Gritei e tentei me soltar, mas Joe me segurava com tanta força que parecia
que a mão dele havia sido mergulhada em cimento. Os meus olhos tinham se
ajustado um pouco à escuridão, então deu pra vê-lo mesmo com a lanterna
virada pra direção errada. Ele quase conseguiu sair do poço, no m das contas.
Só Deus sabe quantas vezes deve ter caído de volta, mas quase chegou ao topo.
Acho que teria conseguido sair se eu não tivesse voltado na hora que voltei.
A cabeça dele não estava a mais de sessenta centímetros do que restava da
cobertura. Ele ainda sorria. A mandíbula inferior estava um pouco projetada
pra frente… Ainda consigo ver isso com a mesma nitidez com que vejo você
aqui na minha frente, Andy. Parecia os dentes de um cavalo quando sorri pra
você. Alguns estavam pretos por causa do sangue.
“Do-loooo-res”, disse ele, ofegante, e continuou me puxando. Gritei, caí de
costas e fui arrastada na direção daquele buraco maldito. Ouvia os espinhos de
amoreira arranharem a minha calça jeans quando passei pelo lado e por cima
deles. “Do-loooo-res, sua lha da puta”, repetiu ele, mas aí parecia mais que ele
estava cantando pra mim. Eu me lembro de pensar: Daqui a pouco ele vai
começar “Moonlight Cocktail”.
Agarrei os arbustos e quei com as mãos cheias de espinhos e sangue.
Chutei a cabeça dele com o pé que Joe não estava segurando, mas estava um
pouco baixa demais pra acertar; rocei o cabelo com o calcanhar do tênis duas
vezes, mas só isso.
“Vem, Do-loooo-res”, disse ele, como se quisesse me levar pra tomar sorvete
ou dançar na noite de country e western no Fudgy’s.
A minha bunda chegou a uma das tábuas que ainda havia na lateral do poço,
e eu soube que, se não zesse alguma coisa logo, a gente ia cair lá dentro
juntos, e lá nós caríamos, provavelmente um nos braços do outro. E quando
fôssemos encontrados, haveria gente, pessoas limitadas como Yvette Anderson,
em geral, que diria que aquilo só mostrava o quanto nos amávamos.
Isso fez a diferença. Encontrei um pouco de força e dei um puxão nal pra
trás. Joe quase conseguiu se segurar, mas a mão escorregou. O meu tênis deve
ter batido na cara dele. Ele gritou, a mão encostou na ponta do meu pé umas
duas vezes e sumiu de vez. Esperei ouvir o baque no fundo, mas isso não
aconteceu. O lho da puta nunca desistiu; se vivesse da mesma forma como
morreu, acho que nunca teríamos tido problemas, ele e eu.
Fiquei de joelhos e o vi oscilar pra trás no buraco… mas conseguiu se
segurar. Ele me olhou, tirou uma mecha ensanguentada de cabelo dos olhos e
sorriu. A mão saiu do poço de novo e tateou o chão.
“Do-LOOO-res”, disse ele, meio que em um grunhido. “Do-LOOO-res, Do-
LOOO-res, Do-LOOOO-resss!”
Então começou a sair.
“Dá na cabeça dele, sua pateta”, disse Vera Donovan nessa hora.
Não na minha cabeça, como a voz da garotinha que eu havia visto. Você
entende o que eu estou dizendo? Ouvi a voz como você está me ouvindo agora,
e se o gravador da Nancy Bannister estivesse lá, daria pra repetir aquela voz
sem parar. Tenho certeza disso como tenho certeza do meu próprio nome.
Peguei uma das pedras que havia no chão na borda do poço. Ele poderia ter
segurado o meu pulso, mas agarrei a pedra antes de Joe encontrar apoio. Era
uma pedra grande, cheia de musgo seco grudado. Eu a ergui acima da cabeça.
Ele a olhou. A cabeça dele já estava fora do buraco, e parecia que os olhos
estavam em caules. Bati com a pedra com toda a força. Ouvi a mandíbula
inferior quebrar. Foi o som de quando se larga um prato de porcelana em uma
lareira de tijolos. Nessa hora, Joe sumiu, caiu pelo poço, e a pedra foi junto.
Nesse momento, eu desmaiei. Não me lembro de desmaiar, só de me deitar e
olhar para o céu. Não havia nada pra ver por causa das nuvens, e eu fechei os
olhos… só que, quando os abri, o céu estava cheio de estrelas de novo.
Demorei um tempo pra perceber o que havia acontecido, que eu tinha
desmaiado e as nuvens foram embora enquanto eu estava apagada.
A lanterna ainda estava nos arbustos ao lado do poço e a luz continuava
forte. Eu a peguei e apontei pra dentro do poço. Joe estava caído lá no fundo,
com a cabeça inclinada sobre o ombro, as mãos no colo e as pernas abertas. A
pedra que eu tinha usado estava entre as duas.
Segurei a luz apontada pra ele por cinco minutos, esperando pra ver se ele se
mexeria, mas não se mexeu. Eu me levantei e voltei pra casa. Precisei parar
duas vezes quando enxerguei tudo embaçado, mas consegui chegar. Fui até o
banheiro, tirando a roupa no caminho e deixando cada peça onde caiu. Entrei
no chuveiro e quei parada debaixo da água mais quente que aguentei por uns
dez minutos, sem me ensaboar, sem lavar o cabelo, sem fazer nada além de
car parada com o rosto virado pra cima pra que a água lavasse tudo. Acho que
poderia ter dormido ali, no chuveiro, só que a água começou a esfriar. Lavei o
cabelo rápido, antes que casse gelada, e saí. Os braços e as pernas estavam
todos arranhados, e a garganta ainda doía demais, mas não achei que fosse
morrer de nada disso. Nunca passou pela minha cabeça o que alguém poderia
achar de tantos arranhões, sem mencionar os hematomas na minha garganta,
depois que Joe fosse encontrado no poço. Não nessa hora, pelo menos.
Coloquei a camisola, caí na cama e peguei no sono rapidinho, de luz acesa.
Menos de uma hora depois, acordei gritando com a mão de Joe no meu
tornozelo. Tive um momento de alívio quando percebi que era sonho, mas aí
pensei: E se ele estiver subindo a parede do poço de novo? Sabia que não estava,
eu tinha acabado de vez com ele quando bati com a pedra e ele caiu pela
segunda vez, mas uma parte de mim tinha certeza de que ele estava subindo, e
de que estaria fora em um ou dois minutos. Quando saísse, viria atrás de mim.
Tentei continuar deitada e esperar, mas não consegui; a imagem dele
escalando a parede do poço cou cada vez mais clara, e o meu coração batia
com tanta força que parecia que iria explodir. Finalmente, calcei os tênis,
peguei a lanterna de novo e fui lá correndo de camisola. Dessa vez, engatinhei
até a borda do poço; não consegui andar, de jeito nenhum. Estava com medo
demais da mão branca de Joe emergir da escuridão e me agarrar.
Finalmente apontei a luz pra baixo. Ele estava deitado lá, do mesmo jeito
que antes, com as mãos no colo e a cabeça virada para o lado. A pedra ainda
estava no mesmo lugar, entre as pernas abertas. Olhei por muito tempo, e
dessa vez, quando voltei pra casa, já tinha começado a entender que ele estava
mesmo morto.
Subi na cama, apaguei a luz e logo peguei no sono. A última coisa que me
lembro de pensar foi agora vou car bem, mas não quei. Acordei duas horas
depois com a certeza de que estava ouvindo alguém na cozinha. Com a certeza
de que era Joe na cozinha. Tentei pular da cama, mas os meus pés se enrolaram
no cobertor e caí no chão. Eu me levantei e comecei a tatear à procura do
interruptor, com a certeza de que sentiria as mãos dele no meu pescoço antes
de conseguir achar.
Isso não aconteceu, claro. Acendi a luz e olhei a casa toda. Estava vazia.
Calcei os tênis, peguei a lanterna e corri para o poço.
Joe ainda estava caído no fundo com as mãos no colo e a cabeça no ombro.
Tive que olhar por muito tempo pra me convencer de que estava no mesmo
ombro. E uma vez achei que vi o pé se mexer, se bem que era mais provável que
fosse uma sombra se mexendo. Havia muitas, porque a mão segurando a
lanterna não estava nada rme, tenho que dizer.
Enquanto estava agachada, provavelmente com a mesma cara da mulher do
rótulo de White Rock, uma vontade louca tomou conta de mim: quis me deixar
cair pra frente de joelhos até despencar no poço. Seria encontrada com ele.
Não era o jeito ideal de morrer, quer dizer, mas pelo menos eu não seria
encontrada com os braços de Joe em volta de mim… e não teria que continuar
acordando com a certeza de que ele estava lá comigo ou com a sensação de que
precisava correr lá pra fora com a lanterna pra veri car se ele ainda estava
morto.
A voz da Vera falou de novo, só que dessa vez foi na minha cabeça. Tenho
certeza disso assim como tenho certeza de que ela havia falado bem no meu
ouvido da primeira vez.
“O único lugar onde você vai cair é na sua cama”, disse a voz. “Dorme um
pouco e, quando acordar, o eclipse vai mesmo ter acabado. Você vai car
surpresa com o quanto as coisas vão parecer melhores quando o sol estiver no
céu.”
Achei que era um bom conselho, e decidi segui-lo. Mas tranquei as duas
portas da casa e, antes de subir na cama, z algo que nunca havia feito antes e
nunca mais z: apoiei uma cadeira embaixo da maçaneta. Tenho vergonha de
admitir isso, as minhas bochechas estão quentes, então acho que estou
corando, mas deve ter ajudado, porque peguei no sono assim que a minha
cabeça tocou no travesseiro. Quando abri os olhos, a luz do dia entrava pela
janela. Vera tinha me dito pra tirar o dia de folga; disse que Gail Lavesque e
algumas outras garotas podiam se organizar pra arrumar a casa depois do festão
que ela estava planejando na noite do dia 20. E eu quei feliz.
Eu me levantei, tomei outro banho e me vesti. Levei meia hora pra fazer isso
tudo porque estava toda dolorida. O principal eram as minhas costas; é o meu
ponto fraco desde a noite em que Joe bateu nos meus rins com aquele pedaço
de lenha, e tenho certeza de que estirei o músculo de novo quando arranquei
do barro a pedra com que bati nele, e depois quando a levantei acima da
cabeça. Fosse o que fosse, estava doendo pra cacete.
Quando consegui me vestir, eu me sentei à mesa da cozinha sob a luz do sol,
tomei uma xícara de café preto e pensei em tudo que tinha que fazer. Não era
muito, apesar de nada ter acontecido do jeito que eu tinha desejado, mas eu
precisava fazer do jeito certo; se esquecesse algum detalhe ou deixasse algo de
lado, seria presa. Joe St. George não era muito amado em Little Tall, e não
tinha muitas pessoas que teriam me culpado pelo que z, mas ninguém te dá
uma medalha nem faz um des le comemorativo quando você mata um
homem, por mais que ele seja um inútil de merda.
Servi outra xícara de café preto e fui pra varanda dos fundos beber… e dar
uma olhada nos arredores. Ambas as caixas re etoras e um dos visores estavam
dentro do saco de mercado que Vera tinha me dado. Os pedaços do outro visor
estavam caídos no mesmo lugar desde que Joe pulou do nada e o visor
escorregou do colo dele e se quebrou no chão da varanda. Pensei por um bom
tempo sobre aqueles pedaços de vidro. Acabei entrando, pegando a vassoura e a
pá e varrendo tudo. Decidi que, sendo como eu sou e com tanta gente na ilha
sabendo como eu sou, seria mais suspeito deixar tudo lá.
Tinha começado com a ideia de dizer que não vi Joe naquela tarde. Pensei
em dizer às pessoas que, quando voltei da casa de Vera, ele já tinha saído sem
deixar nem um bilhete informando onde estava, e que eu virei aquela garrafa
de uísque caro no chão porque quei com raiva. Se zessem exames que
mostrassem que ele estava bêbado quando caiu no poço, não me atrapalharia
em nada; Joe poderia ter conseguido bebida em muitos lugares, inclusive
debaixo da pia da nossa cozinha.
Uma olhada no espelho me convenceu de que isso não funcionaria. Se Joe
não estivesse em casa pra deixar o meu pescoço com aqueles hematomas, iam
querer saber quem havia causado os hematomas, e o que eu ia dizer? Papai
Noel? Por sorte, eu tinha antecipado esse problema: havia falado pra Vera que,
se Joe começasse a agir de forma agressiva, eu o deixaria sozinho enchendo a
cara e veria o eclipse de East Head. Eu não tinha nenhum plano em mente
quando falei isso, mas abençoei cada palavra depois.
O East Head não serviria; havia gente lá que saberia que eu não fui junto.
Mas Russian Meadow ca a caminho do East Head, tem uma boa vista para o
oeste e ninguém tinha ido pra lá. Eu tinha observado isso da minha cadeira na
varanda, e con rmado enquanto lavava a louça. A única pergunta…
O quê, Frank?
Não, eu não estava preocupada com o fato de a picape dele estar em casa.
Ele tinha sido parado por dirigir alcoolizado umas três ou quatro vezes seguidas
em 1959, entende? E perdeu a habilitação por um mês. Edgar Sherrick, que era
o chefe de polícia na época, tinha ido dizer que ele podia beber até cair, mas, se
fosse pego de novo bêbado no volante, o arrastaria para o tribunal e tentaria
fazer com que a habilitação dele fosse suspensa por um ano. Edgar e a esposa
tinham perdido uma lhinha por causa de um motorista bêbado em 1948 ou
1949, e embora fosse um cara tranquilo com tudo, não queria ver um bêbado
dirigindo nem pintado de ouro. Joe sabia e parou de dirigir quando havia
tomado mais de duas doses logo depois que ele e Edgar tiveram a conversinha
na nossa varanda. Não, quando voltei de Russian Meadow e vi que Joe não
estava em casa, achei que um dos amigos devia ter passado lá e o levado pra
algum lugar pra comemorar o dia do eclipse. Era essa a história que eu
pretendia contar.
En m, o que eu tinha começado a dizer que era a única pergunta real que eu
precisava responder era o que fazer com a garrafa de uísque. As pessoas sabiam
que eu andava comprando as bebidas dele ultimamente, mas isso não era um
problema; eu sabia que achavam que eu fazia isso pra ele parar de me bater.
Mas onde aquela garrafa teria ido parar se a história que eu estava inventando
tivesse sido real? Podia não importar, mas podia importar bastante. Quando se
comete um assassinato, nunca se sabe o que pode voltar pra te assombrar
depois. Esse é o melhor motivo pra não se matar uma pessoa. Eu me coloquei
no lugar de Joe, e não era tão difícil quanto você poderia pensar, e soube na
hora que Joe não teria ido a lugar nenhum com ninguém se houvesse um único
gole de uísque naquela garrafa. Precisava ir pra dentro do poço com ele, e foi
pra lá que foi… mas sem a tampa, claro. Isso larguei no lixo, junto à pilha de
vidro quebrado.
Fui até o poço com que restava de uísque balançando na garrafa e pensando:
Ele tomou a birita toda e tudo bem, eu não esperaria menos do que isso, mas aí
confundiu o meu pescoço com uma alavanca de bomba e isso não foi bom, então fui
com a minha caixa re etora pra Russian Meadow sozinha, xingando o impulso que
me fez parar e comprar aquela garrafa de Johnnie Walker. Quando voltei, Joe havia
sumido. Eu não sabia pra onde nem com quem, também não me importei. Só limpei
a sujeira e torci pra ele estar com o humor melhor quando voltasse. Sei que pareceu
bem dócil e que passaria como algo crível.
Acho que o que menos gostei da maldita garrafa foi que me livrar dela
signi cava voltar lá e olhar pra Joe de novo. Ainda assim, o que eu gostava ou
não gostava não fez muita diferença naquela hora.
Estava preocupada com o estado dos arbustos, e alguns já estavam voltando
para o lugar. Achei que estariam normais quando eu relatasse Joe como
desaparecido.
Torcia pra que o poço não fosse tão assustador à plena luz do dia, mas era,
sim. O buraco no meio da abertura estava ainda mais sinistro. Não parecia
tanto um olho com algumas das tábuas puxadas, mas nem isso ajudou. Estava
mais pra uma órbita vazia em que uma coisa havia nalmente apodrecido tanto
que tinha caído fora. E senti aquele cheiro úmido e acobreado. Isso me fez
pensar na garotinha que eu tinha vislumbrado na mente, e me perguntei como
ela estava na manhã seguinte.
Queria dar meia-volta e ir pra casa, mas segui até o poço sem arrastar um pé
sequer. Queria passar por aquilo o mais rápido possível… e não olhar pra trás.
O que eu precisava fazer dali em diante, Andy, era pensar nos meus lhos e
olhar pra frente a qualquer custo.
Eu me agachei e olhei. Joe ainda estava lá, com as mãos no colo e a cabeça
apoiada no ombro. Havia insetos na cara dele, e essa foi a prova nal de que ele
estava morto mesmo. Estendi a garrafa com um lenço enrolado no gargalo, e
não foi questão de digitais, só não queria tocar naquilo, então larguei. Caiu na
lama ao lado dele, mas não quebrou. Só que os insetos correram; desceram
pelo pescoço e entraram pela gola da camisa. Nunca me esqueci disso.
Eu estava me levantando pra ir embora. A visão daqueles insetos indo se
esconder me deixou com vontade de vomitar de novo, sabe? Mas aí os meus
olhos se xaram nas tábuas que eu tinha arrancado pra poder dar uma olhada
nele da primeira vez. Não era boa ideia deixá-las ali; levantariam todos os tipos
de pergunta se cassem.
Pensei nisso por um tempo e, quando percebi que a manhã estava passando
e alguém poderia aparecer lá em casa a qualquer momento pra falar do eclipse
ou dos grandes feitos de Vera, mandei tudo para o inferno e joguei os pedaços
de tábua podre no poço. Aí voltei pra casa. Fui voltando pra casa, devo dizer,
porque havia pedaços do meu vestido e do vestido anágua pendurados em
muitos espinhos, e recolhi o máximo que consegui. Mais tarde, voltei e peguei
três ou quatro que havia deixado passar da primeira vez. Havia pedaços da
camisa de anela de Joe também, mas isso eu deixei. Que Garrett Thibodeau
interprete isso como quiser, pensei. Que qualquer pessoa interprete como quiser.
Vai parecer que ele cou bêbado e caiu no poço de qualquer jeito, e com a reputação
que Joe tem por aqui, o que quer que decidam provavelmente vai ser a meu favor.
Mas aqueles pedacinhos de tecido não foram pra lixeira com os cacos de
vidro e a tampa da garrafa de uísque; eu os joguei no mar mais tarde. Havia
atravessado o quintal e estava me encaminhando pra subir os degraus da
varanda de novo quando um pensamento me ocorreu. Joe tinha agarrado um
pedaço do meu vestido anágua que estava caindo na parte de trás. E se ele
ainda estivesse com aquele pedaço? E se estivesse na mão encolhida no colo
dele no fundo do poço?
Isso me fez gelar… literalmente. Parei no quintal debaixo do sol quente de
julho, com um arrepio nas costas e um gelo nos ossos, como um poema que li
no ensino médio dizia. Mas aí Vera falou dentro da minha cabeça de novo.
Como você não pode fazer nada sobre isso, Dolores, aconselho deixar pra lá, disse
ela. Pareceu um bom conselho, então fui até os degraus e voltei pra dentro de
casa.
Passei boa parte da manhã andando em volta da casa e na varanda, à procura
de… bem, sei lá. Não sei o que eu estava procurando exatamente. Talvez
estivesse esperando que aquele olho interno visse outra coisa que precisasse ser
feita ou resolvida, assim como havia acontecido com a pequena pilha de
tábuas. Se tinha, não vi nada.
Por volta das onze horas, dei o passo seguinte, que foi ligar pra Gail
Lavesque em Pinewood. Perguntei o que ela havia achado do eclipse e tal, e
depois como estavam as coisas na Sua Excelência.
“Bom”, disse ela, “eu não posso reclamar, já que não vi ninguém além
daquele sujeito mais velho careca com bigode de escova de dentes. Sabe de
quem estou falando?”
Eu con rmei.
“Ele desceu por volta de nove e meia, foi para o jardim, andou devagar e
meio que segurando a cabeça, mas pelo menos se levantou, o que é mais do que
se pode dizer do resto. Quando Karen Jolander perguntou se ele queria um
copo de suco de laranja fresco, ele correu até a ponta da varanda e vomitou nas
petúnias. Você devia ter ouvido, Dolores: Bleeeeargh!”
Ri até quase chorar, e nenhuma risada soou melhor pra mim.
“A festa deve ter sido boa quando voltaram da balsa”, disse Gail. “Se eu
ganhasse dez centavos pra cada guimba de cigarro que recolhi hoje de manhã,
só dez centavinhos, vai vendo, eu poderia comprar um Chevrolet novinho. Mas
vou deixar a casa brilhando pra hora que a dona Donovan trouxer a ressaca
dela aqui pra baixo, pode apostar.”
“Eu sei que vai, e, se precisar de ajuda, sabe pra quem ligar, né?”, falei.
Gail riu.
“Não precisa. Você trabalhou como uma mula semana passada, e a dona
Donovan sabe disso tão bem quanto eu. Ela só quer ver você amanhã de
manhã, e eu também.”
“Tudo bem”, falei, e então z uma pequena pausa. Acho que ela estava
esperando que eu desse tchau, então, quando continuei, ela prestou especial
atenção… que era exatamente o que eu queria. “Você não viu o Joe por aí, né?”
“Joe? O seu Joe?”, perguntou ela.
“É.”
“Não, eu nunca vi o Joe por aqui. Por que a pergunta?”
“Ele não voltou pra casa ontem.”
“Ah, Dolores!”, disse ela, parecendo horrorizada e interessada ao mesmo
tempo. “Bebeu?”
“Óbvio. Não que eu esteja preocupada. Não é a primeira vez que ele ca fora
a noite toda uivando pra lua. Ele vai aparecer. Vaso ruim não quebra.”
Desliguei com a sensação de que tinha feito um bom trabalho plantando a
primeira semente.
Preparei um queijo quente para o almoço, mas não consegui comer. O
cheiro de queijo e pão torrado deixou o meu estômago quente e suado. Tomei
duas aspirinas e me deitei. Não achei que dormiria, mas dormi. Quando
acordei, eram quase quatro horas e o momento de plantar mais sementes.
Liguei para os amigos de Joe, os poucos que tinham telefone, e perguntei a cada
um se o tinham visto. Ele não tinha voltado pra casa de noite, falei, e ainda não
estava em casa, e eu estava começando a car preocupada. Todos me disseram
que não, claro, e todos quiseram saber os detalhes sórdidos, mas o único que
disse alguma coisa foi Tommy Anderson… provavelmente porque eu sabia que
Joe havia se gabado para Tommy antes sobre manter a mulher na linha, e o
pobre e simplório Tommy havia engolido. Mesmo assim, tomei o cuidado de
não exagerar; só falei que eu e Joe tínhamos brigado e Joe devia ter saído com
raiva. Fiz mais algumas ligações naquela noite, inclusive algumas pras pessoas
pra quem eu já havia ligado, e quei feliz de ver que as histórias já estavam
começando a se espalhar.
Não dormi muito bem naquela noite; tive sonhos terríveis. Um foi com Joe.
Ele estava de pé no fundo do poço, olhando pra mim com a cara branca e os
círculos escuros acima do nariz que fazia parecer que ele tinha en ado um
pedaço de carvão nos olhos. Falou que estava solitário e cava pedindo pra eu
pular no poço pra fazer companhia pra ele.
O outro foi pior, porque foi com Selena. Ela tinha uns quatro anos e estava
usando o vestido rosa que a avó Trisha havia comprado pra ela logo antes de
morrer. Selena se aproximou de mim no quintal, e vi que ela estava com a
minha tesoura de costura. Estendi a mão pra ela me entregar, mas ela só
balançou a cabeça.
“É culpa minha e eu que tenho que pagar”, disse ela.
Selena levantou a tesoura na direção do rosto e cortou o nariz, snip. Caiu na
terra entre os sapatinhos pretos de couro, e eu acordei gritando. Eram só
quatro horas, mas eu não era tão burra a ponto de não perceber que não ia mais
dormir naquela noite.
Às sete, liguei pra Vera de novo. Dessa vez, Kenopensky atendeu. Falei que
sabia que Vera estava me esperando naquela manhã, mas eu não podia ir, pelo
menos enquanto não descobrisse onde o meu marido estava. Falei que ele
estava desaparecido havia duas noites, e uma noite fora bêbado sempre havia
sido o limite dele.
Perto do m da conversa, Vera pegou a extensão e me perguntou o que
estava acontecendo.
“Acho que eu perdi o meu marido”, falei.
Ela cou em silêncio por alguns segundos, e eu teria dado um dedo pra saber
o que estava pensando. Em seguida, quando falou, disse que, se estivesse no
meu lugar, perder Joe não a teria incomodado em nada.
“Bem”, falei, “nós temos três lhos, e eu me acostumei com Joe. Vou mais
tarde se ele aparecer.”
“Tudo bem”, disse ela, e acrescentou: “Você ainda está aí, Ted?”.
“Estou, Vera”, respondeu ele.
“Bom, vai fazer alguma coisa masculina. Vai empurrar ou bater em alguma
coisa. Não me interessa o quê.”
“Sim, Vera”, respondeu ele, e houve um clique na linha quando Ted desligou.
Vera cou em silêncio por mais alguns segundos mesmo assim. Então disse:
“Talvez ele tenha sofrido um acidente, Dolores.”
“É”, falei, “não me surpreenderia em nada. Ele anda bebendo muito nas
últimas semanas, e quando tentei conversar sobre o dinheiro das crianças no
dia do eclipse, ele quase me enforcou.”
“Ah, é?”, disse ela. Mais alguns segundos se passaram, e ela disse: “Boa sorte,
Dolores”.
“Obrigada. Eu posso precisar.”
“Se eu puder fazer alguma coisa, me avisa.”
“É muita gentileza sua.”
“De jeito nenhum. Eu só detestaria perder você. É difícil achar ajudantes
atualmente que não varram a sujeira pra debaixo do tapete.”
Sem mencionar ajudantes que se lembrem de botar os capachos virados na
direção certa, pensei, mas não falei. Só agradeci e desliguei. Esperei mais meia
hora e liguei pra Garrett Thibodeau. Não havia nada tão chique e moderno
como um chefe de polícia em Little Tall naquela época; Garrett era o policial
da cidade. Havia assumido o posto quando Edgar Sherrick teve o em 1960.
Falei que Joe não tinha ido pra casa por duas noites e eu estava cando
preocupada. Garrett falou com uma voz arrastada, acho que não havia nem
tomado mais do que uma xícara de café depois que acordou, mas disse que
faria contato com a Polícia Estadual no continente e veri caria com algumas
pessoas na ilha. Eu sabia que seriam as mesmas pessoas pra quem eu já havia
ligado, duas vezes em alguns casos, mas não falei. Garrett terminou dizendo
que tinha certeza de que eu veria Joe até o almoço. Isso mesmo, seu velho
murcho, pensei, desligando, espera sentado. Acho que o sujeito até tinha
neurônios su cientes pra cantar “Yankee Doodle” enquanto cagava, mas
duvido que conseguisse lembrar a letra toda.
Levou uma semana inteira até o encontrarem, e eu já estava cando meio
louca. Selena voltava na quarta. Liguei pra ela no m da tarde de terça-feira pra
dizer que o pai dela tinha sumido e que a situação estava começando a car
séria. Perguntei se queria voltar pra casa, e ela disse que sim. Melissa Caron, a
mãe da Tanya, foi buscá-la. Deixei os meninos onde estavam; lidar com Selena
já era o bastante pra começar. Ela me pegou na hortinha na quinta, dois dias
antes de encontrarem Joe, e disse:
“Mãe, me conta uma coisa.”
“Claro, querida.”
Acho que falei com calma, mas tinha uma boa ideia do que estava vindo. Ah,
tinha demais.
“Você fez alguma coisa com ele?”, perguntou ela.
De repente, o meu sonho voltou: Selena com quatro anos com o vestido rosa
lindo, erguendo a minha tesoura de costura pra cortar o próprio nariz. Então
eu pensei, rezei: Deus, me ajude a mentir pra minha lha. Por favor, Deus. Nunca
vou pedir mais nada se Você me ajudar a mentir pra minha lha de forma que ela
acredite em mim e não duvide nunca.
“Não”, respondi. Estava com as luvas de jardinagem, mas tirei pra poder
botar as mãos nos ombros dela. Eu a encarei profundamente. “Não, Selena. Ele
estava bêbado e horrível, e me enforcou com tanta força que deixou estas
marcas no meu pescoço, mas eu não z nada com ele. Só saí de casa, e z isso
porque tive medo de car. Você entende isso, né? Entende e não me culpa?
Você sabe como é sentir medo dele. Não sabe?”
Ela assentiu, mas os olhos não desgrudaram dos meus. Estavam de um azul
mais escuro do que nunca, da cor do mar logo depois de uma linha de
instabilidade. No meu olho mental, vi as lâminas da tesoura reluzirem e o
botãozinho que era o nariz dela cair na terra. E vou te dizer o que acho: acho
que Deus ouviu parte da minha oração naquele dia. É como Ele costuma
atendê-las, eu já reparei. Nenhuma mentira que contei sobre Joe era melhor do
que a que contei pra Selena naquela tarde quente de julho em meio aos feijões
e aos pepinos… mas ela acreditou? Acreditou sem dúvida nenhuma? Por mais
que eu queira achar que a resposta é sim, não consigo. Foi a dúvida que deixou
os olhos dela tão escuros, naquele momento e depois pra sempre.
“O meu único erro foi comprar a garrafa de bebida pra ele, tentar suborná-lo
pra que fosse legal, sendo que eu deveria saber como o seu pai é”, concluí.
Selena olhou pra mim por mais um minuto, se curvou e pegou a sacola de
pepinos que eu havia colhido.
“Tudo bem. Vou levar isto pra dentro pra você”, disse ela.
E isso foi tudo. Nunca mais tocamos no assunto, nem antes de Joe ser
encontrado, nem depois. Selena deve ter ouvido muita gente falar de mim,
tanto na ilha quanto na escola, mas nós nunca voltamos nisso. Mas foi nessa
época que a frieza começou, naquela tarde no quintal. E quando a primeira
rachadura no muro que as famílias erguem entre elas e o restante do mundo
surgiu entre nós. Desde essa época, só foi alargando. Ela liga e escreve com a
regularidade de um reloginho, é boa nisso, mas permanecemos distantes
mesmo assim. Afastadas. O que z foi principalmente por Selena, não pelos
meninos nem pelo dinheiro que o pai dela tentou roubar. Foi mais por Selena
que eu o levei à morte, e o preço de protegê-la de Joe foi a parte mais profunda
do amor dela por mim. Uma vez ouvi o meu próprio pai dizer que Deus deu
chilique no dia em que fez o mundo, e ao longo dos anos passei a entender o
que ele quis dizer. E sabe o pior? Às vezes é engraçado. Às vezes, é tão
engraçado que não dá pra não rir mesmo enquanto tudo ao redor está
desmoronando.
Enquanto isso, Garrett Thibodeau e os seus amigos de barbearia trabalharam
sem parar e não encontraram Joe. Chegou ao ponto em que achei que eu
mesma teria que “tropeçar” nele, por menos que gostasse da ideia. Se não fosse
pelo dinheiro, caria feliz em deixá-lo lá até a última trombeta do apocalipse.
Mas o dinheiro estava em Jonesport, em uma conta com o nome dele, e eu não
queria esperar sete anos para Joe ser declarado legalmente morto e eu poder
recuperar a grana. Selena ia começar a faculdade em pouco mais de dois anos e
ia querer uma parte do dinheiro.
A ideia de que Joe poderia ter levado a garrafa para o bosque atrás da casa,
pisado em uma armadilha ou caído voltando pra casa, bêbado no escuro,
nalmente começou a se espalhar. Garrett alegou que foi ideia dele, mas tenho
uma di culdade enorme de acreditar, considerando que estudei com o homem.
Não importa. Ele colocou uma lista de voluntariado na porta da prefeitura na
tarde de quinta-feira e, na manhã de sábado, uma semana depois do eclipse,
reuniu um grupo de busca de quarenta ou cinquenta homens.
Todos formaram uma la no lado do bosque Highgate, onde ca o East End,
e vieram revirando tudo na direção da casa, primeiro pelo bosque e depois por
Russian Meadow. Eu os observei atravessar a campina em uma linha comprida
por volta de uma hora, rindo e brincando, mas as brincadeiras pararam e os
xingamentos começaram quando entraram na nossa propriedade e na área dos
arbustos de amora.
Fiquei parada na porta, vendo-os se aproximar, com o coração na garganta.
Eu me lembro de pensar que pelo menos Selena não estava em casa, tinha ido
ver Laurie Langill, e isso era uma bênção. Em seguida, comecei a pensar que
todos aqueles arbustos espinhentos fariam com que mandassem a busca às
favas antes de chegarem perto do velho poço. Mas eles seguiram em frente. De
repente, ouvi Sonny Benoit gritar:
“Ei, Garrett! Aqui! Vem aqui!”
E soube que, para o bem ou para o mal, Joe havia sido encontrado.
Fizeram uma autópsia, claro. No mesmo dia que o encontraram, e acho que
ainda devia estar acontecendo quando Jack e Alicia trouxeram os meninos de
volta no nzinho da tarde. Pete estava chorando, mas parecia confuso. Acho
que não tinha entendido o que havia acontecido ao pai. Mas Joe Junior
entendeu, e quando me puxou de lado, achei que ia fazer a mesma pergunta
que Selena, então me preparei pra contar a mesma mentira. Mas fez uma
pergunta completamente diferente.
“Mãe, se eu casse feliz por ele estar morto, Deus me mandaria para o
inferno?”
“Joey, as pessoas não podem controlar os sentimentos, e acho que Deus sabe
disso”, respondi.
Ele começou a chorar e disse algo que partiu meu coração.
“Eu tentei amar o papai.” Foi isso que Joe Junior disse. “Sempre tentei, mas
ele não deixava.”
Eu o tomei nos braços e o abracei o mais forte que consegui. Acho que foi o
mais perto que cheguei de chorar nessa história toda… mas é óbvio que você
precisa lembrar que eu não estava dormindo bem e ainda não fazia a menor
ideia de que rumo aquilo iria tomar.
Haveria um inquérito na terça, e Lucien Mercier, que era dono do único
necrotério de Little Tall na época, me disse que eu nalmente poderia enterrar
Joe em The Oaks na quarta-feira. Mas, na segunda, no dia anterior ao
inquérito, Garrett me ligou e perguntou se eu podia ir até o escritório dele por
uns minutos. Era a ligação que eu estava esperando e temendo, mas não havia
nada que eu pudesse fazer além de ir, então pedi a Selena pra dar o almoço dos
meninos e fui. Garrett não estava sozinho. O dr. John McAuli e também estava
presente. Eu meio que esperava isso também, mas o meu coração cou pesado
mesmo assim.
McAuli e era o médico do condado na época. Morreu três anos depois,
quando um limpador de neve bateu no fusca dele. Foi Henry Briarton quem
assumiu o trabalho quando McAuli e morreu. Se Briarton fosse o médico do
condado em 1963, eu teria cado bem mais tranquila sobre a nossa
conversinha naquele dia. Briarton é mais inteligente do que o coitado do
Garrett Thibodeau era, mas só um pouquinho. Mas John McAuli e… ele tinha
uma mente como a lâmpada que brilha no farol de Battiscan.
Ele era um escocês genuíno que apareceu nestas partes depois da Segunda
Guerra Mundial, com sotaque e tudo. Acho que devia ser cidadão
estadunidense, porque era médico e tinha um cargo no condado, mas não
falava como o pessoal daqui. Não que importasse pra mim; eu sabia que teria
que enfrentá-lo, fosse ele estadunidense, escocês ou chinês pagão.
Ele tinha cabelo branco como a neve, apesar de com certeza não passar dos
quarenta e cinco anos, e olhos azuis tão intensos e penetrantes que pareciam
brocas. Quando olhava pra você, era como se estivesse olhando dentro da sua
cabeça e colocando os pensamentos que via lá em ordem alfabética. Assim que
entrei e o vi sentado ao lado da mesa de Garrett e ouvi a porta do resto da
prefeitura se fechar, soube que o que acontecesse no dia seguinte no
continente não importava nadinha. A verdadeira investigação ia se dar bem ali,
naquela sala do policial daquela cidadezinha, com um calendário da Weber Oil
pendurado na parede e uma foto da mãe do Garrett na outra.
“Desculpe por incomodá-la durante o seu luto, Dolores”, disse Garrett. Ele
estava esfregando as mãos, meio nervoso, o que me lembrou o sr. Pease do
banco. Só que Garrett devia ter mais calos nas mãos, porque o barulho que as
palmas faziam com o movimento era de uma lixa em uma tábua seca. “Mas o
dr. McAuli e aqui tem algumas perguntas que quer fazer a você.”
Pela cara intrigada do Garrett para o doutor, percebi que ele não sabia que
perguntas poderiam ser, e isso me assustou mais ainda. Não gostei da ideia
daquele escocês tranquilo pensando que a situação era tão séria que preferiu
car na dele e não dar ao coitado do Garrett Thibodeau uma chance de
atrapalhar.
“Meux pêsames, sra. St. George”, disse McAuli e, com aquele sotaque
escocês carregado. Era um homem pequeno, mas compacto e bem distribuído.
Tinha um bigodinho bem-cuidado, tão branco quanto o cabelo da cabeça, usava
um terno de lã de três peças e não tinha cara do pessoal daqui, tanto quanto
não falava como o pessoal daqui. Aqueles olhos azuis perfuravam a minha
testa, e percebi que ele não estava nem um pouco solidário a mim, mesmo ao
me dar os pêsames. Provavelmente não era solidário a ninguém… nem mesmo
a si próprio. “Sinto muitcho muitcho pela sua dor e infelicidade.”
Claro, e se eu acreditar nisso, você vai dizer de novo, pensei. A última vez
que sentiu muito, doutor, foi na última vez que precisou usar o banheiro pago e
o barbante da sua moedinha da sorte arrebentou. Mas, nesse momento, decidi
que não demonstraria como estava com medo. Talvez ele tivesse me
descoberto, talvez não. Você precisa lembrar que, até onde eu sabia, ele iria me
dizer que, quando deitaram Joe na mesa no porão do County Hospital e
abriram as mãos dele, um pedacinho de náilon branco caiu de uma delas; um
pedaço de roupa íntima feminina. Era possível, sim, mas eu que não daria a ele
a satisfação de me remexer sob as suas vistas. E ele estava acostumado a pessoas
se remexendo quando ele olhava; tinha passado a ver isso como algo natural, e
gostava.
“Muito obrigada”, falei.
“Quer se sentar, dona?”, perguntou ele, como se estivesse no próprio
escritório, e não no do coitado e confuso Garrett.
Eu me sentei, e ele perguntou se eu lhe daria permissão de fumar. Falei que
por mim o sinal estava verde. Ele riu como se eu tivesse feito uma piada… mas
os olhos não riram. Ele pegou um cachimbo preto grande no bolso do casaco,
um de roseira-brava, e o encheu de tabaco. Os olhos não se afastaram de mim
nem por um segundo. Mesmo depois que ele estava com o cachimbo entre os
dentes e havia fumaça exalando, ele não tirou os olhos de mim. Aquilo me deu
arrepios, aqueles olhos me espiando pela fumaça daquele jeito, e me zeram
pensar no farol de Battiscan de novo: dizem que brilha por quase três
quilômetros mesmo em uma noite com a neblina tão densa que dá pra abrir
caminho com as mãos.
Comecei a me remexer sob aquele olhar dele, apesar de todas as minhas
boas intenções, e aí pensei em Vera Donovan dizendo “Besteira. Maridos
morrem todos os dias, Dolores”. Passou pela minha cabeça que McAuli e
poderia olhar pra Vera até os olhos caírem da cara e não conseguiria nem que
ela cruzasse as pernas para o outro lado. Pensar nisso me acalmou um pouco, e
eu voltei a me aquietar; apenas cruzei as mãos sobre a bolsa e esperei.
Finalmente, quando ele viu que eu não ia cair da cadeira e confessar ter
matado o meu marido, e acho que McAuli e teria gostado que eu derramasse
uma chuva de lágrimas nessa parte, ele tirou o cachimbo da boca e disse:
“Você falou para o policial que foi o seu marido que fez esses hematomas no
seu pescoço, sra. St. George.”
“Aham”, falei.
“Que você e ele se sentaram na varanda pra ver o eclipse e houve uma briga.”
“Aham.”
“E sobre o que foi a briga, se eu posso perguntar?”
“Dinheiro principalmente, mas também bebida.”
“Mas você mesma comprou a bebida que ele tomou naquele dia, sra. St.
George! Não é verdade?”
“É.”
Senti que queria falar mais, me explicar, mas não falei, apesar de poder. Era
o que McAuli e queria, entende? Que eu saísse falando. Que me explicasse
tanto até ir parar numa cela qualquer.
Ele nalmente desistiu de esperar. Remexeu os dedos como se estivesse
irritado e xou aqueles olhos de farol em mim de novo.
“Depois do incidente do enforcamento, você deixou o seu marido; foi pra
Russian Meadow, no caminho para o East Head, pra ver o eclipse sozinha.”
“É.”
Ele se inclinou pra frente de repente, as mãozinhas nos joelhinhos, e disse:
“Sra. St. George, você sabe a direção do vento naquele dia?”
Parecia aquele dia em novembro de 1962, quando eu quase encontrei o poço
velho caindo nele. Foi como se eu ouvisse o mesmo som estalado e eu pensei:
Toma cuidado, Dolores Claiborne; toma muito cuidado. Tem poços pra todos os
lados hoje, e esse homem sabe onde ca cada um deles.
“Não”, falei. “Não sei. E quando não sei de onde o vento está vindo,
normalmente signi ca que o dia está calmo.”
“Na verdade, tinha só uma brisa…”, Garrett começou a dizer, mas McAuli e
levantou a mão e o cortou como uma lâmina de faca.
“Estava vindo do oeste”, informou ele. “Um vento oeste, uma brisa do oeste,
se você preferir, de onze a catorze quilômetros por hora, com sopros de até
vinte e quatro. Me parece estranho, sra. St. George, que o vento não tenha
levado os gritos do seu marido quando você estava em Russian Meadow, a
menos de oitocentos metros.”
Não falei nada por pelo menos três segundos. Havia decidido que contaria
até três em pensamento antes de responder a qualquer pergunta. Fazer isso
podia me impedir de agir com precipitação e pagar ao cair em um dos poços
que ele havia cavado pra mim. Mas McAuli e deve ter pensado que tinha me
confundido desde o começo, porque se inclinou pra frente na cadeira, e vou
declarar e jurar que, por um ou dois segundos, os olhos foram de um azul
quente para um branco quente.
“Não me surpreende”, falei. “Primeiro porque onze quilômetros por hora
não passam de um soprinho de ar em um dia abafado. Além disso havia uns mil
barcos no mar, todos buzinando uns para os outros. E como você sabe se ele
gritou? Você não ouviu grito nenhum.”
Ele se encostou com expressão decepcionada.
“É uma dedução razoável de se fazer”, disse ele. “Sabemos que a queda em si
não o matou, e as provas da perícia sugerem fortemente que ele teve ao menos
um período prolongado de consciência. Sra. St. George, se você caísse em um
poço sem uso e casse com uma canela quebrada, um tornozelo quebrado,
quatro costelas quebradas e um pulso torcido, você não gritaria pedindo ajuda e
socorro?”
Esperei os três segundos contando carneirinhos e respondi:
“Não fui eu que caí no poço, dr. McAuli e. Foi Joe, e ele tinha bebido.”
“Tinha. Você comprou uma garrafa de uísque, apesar de todo mundo com
quem falei dizer que você odiava quando o seu marido bebia, apesar de Joe
car desagradável e briguento quando bebia; você comprou uma garrafa de
uísque, e ele não bebeu pouco, porque estava bêbado. Estava muitcho bêbado. A
boca estava cheia de sangue e a camisa, suja de sangue até o cinto. Quando se
junta o fato desse sangue e a informação das costelas quebradas e as lesões
concomitantes que ele havia sofrido nos pulmões, sabe o que isso indica?”
Um carneirinho… dois carneirinhos… três carneirinhos.
“Não”, falei.
“Várias costelas fraturadas tinham perfurado os pulmões. Essas lesões
sempre resultam em sangramento, mas raramente em um sangramento tão
extensivo. Um sangramento desse tipo deve ter sido causado, deduzo, pelo
falecido ter gritado repetidamente pedindo salvaminto.” Foi assim que ele
falou, Andy. Salvaminto.
Não foi uma pergunta, mas eu contei até três mesmo assim.
“Você acha que ele estava lá embaixo pedindo ajuda. É isso, né?”
“Não, senhora”, retrucou ele. “Eu num só acho; eu tenho uma surteza moral.”
Dessa vez, eu não esperei nada.
“Dr. McAuli e, você acha que eu empurrei o meu marido dentro daquele
poço?”
Isso o abalou um pouco. Aqueles olhos de farol não só piscaram, mas por
alguns segundos perderam o brilho. Ele mexeu um pouco no cachimbo, en ou
na boca e tragou, o tempo todo tentando decidir como deveria lidar com isso.
Antes que pudesse, Garrett falou. O rosto dele havia cado vermelho como
um rabanete.
“Dolores”, disse ele, “sei que ninguém acha… quer dizer, que ninguém nem
considerou a ideia de que…”
“É”, interrompeu McAuli e. Eu havia atrapalhado o uxo de pensamento
dele por alguns segundos, mas percebi que ele tinha voltado pra direção
principal sem di culdade nenhuma. “Eu considerei. Você precisa entender,
sra. St. George, que parte do meu trabalho…”
“Ah, não precisa disso de ‘sra. St. George’”, interrompi, “se você vai me
acusar de primeiro empurrar o meu marido no poço e depois car olhando
enquanto ele pedia ajuda, pode me chamar de Dolores de uma vez.”
Eu não estava exatamente tentando cutucá-lo nessa hora, Andy, mas foi o que
eu z, a segunda vez em poucos minutos. Duvido que ele tivesse sido tratado
assim depois da faculdade de medicina.
“Ninguém está te acusando de nada, sra. St. George”, disse ele, todo rígido, e
o que vi nos olhos dele foi pelo menos ainda não.
“Que bom”, falei. “Porque a ideia de eu empurrar Joe no poço é idiota, sabe?
Ele era pelo menos vinte e cinco quilos mais pesado do que eu, talvez um tanto
mais. Tinha engordado consideravelmente nos últimos anos. Além disso, Joe
não tinha medo de usar os punhos se casse irritado ou alguém o atrapalhasse.
Estou dizendo isso como esposa dele há dezesseis anos, e você vai encontrar
bastante gente que vai dizer o mesmo.”
Óbvio que Joe não batia em mim havia muito tempo, mas nunca tentei
mudar a impressão geral na ilha de que ele fazia isso com frequência, e nessa
hora, com os olhos de McAuli e tentando penetrar na minha testa, quei bem
feliz por isso.
“Ninguém está dizendo que você empurrou o seu marido no poço”, disse o
escocês. Ele estava recuando rápido agora. Dava pra ver pelo rosto dele que
sabia disso, mas não tinha ideia de como havia acontecido. Seu rosto dizia que
era eu que deveria estar recuando. “Mas Joe devia estar berrando, sabe. Deve
ter gritado por um bom tempo, horas, talvez, e bem alto.”
Um carneirinho… dois carneirinhos… três.
“Acho que estou entendendo”, falei. “Talvez você ache que ele caiu no poço
por acidente e eu ouvi os gritos e ngi que não ouvi. É aí que você quer
chegar?”
Eu vi pelo rosto dele que era exatamente ali que ele queria chegar. Também
vi que ele estava com raiva de as coisas não estarem saindo como ele esperava,
como havia sido sempre que fazia essas pequenas entrevistas. Uma bolinha
vermelha intensa havia aparecido em cada uma das bochechas dele. É mais
fácil lidar com um homem como McAuli e quando ele está com raiva, porque
homens como McAuli e estão acostumados a manter a compostura enquanto
as outras pessoas perdem a própria.
“Sra. St. George, vai ser muitcho difícil chegar a algo de valor aqui se
continuar respondendo às minhas perguntas com outras perguntas.”
“Ora, você não fez uma pergunta, dr. McAuli e”, falei, arregalando os olhos
com inocência. “Você me disse que Joe devia estar gritando, na verdade você
disse ‘berrando’, então eu só perguntei se…”
“Tudo bem, tudo bem”, disse ele, e botou o cachimbo no cinzeiro de metal
do Garrett com tanta força que fez barulho. Agora, os olhos dele ardiam, e uma
listra vermelha na testa acompanhava as bolinhas de cor nas bochechas. “Você
o ouviu berrando pedindo ajuda, sra. St. George?”
Um carneirinho… dois carneirinhos…
“John, acho que não tem a menor necessidade de importunar a mulher”,
interrompeu Garrett, parecendo mais incomodado do que nunca, e isso
destruiu a concentração daquele escocês almofadinha de novo.
Quase ri em voz alta. Teria sido ruim pra mim se eu tivesse cedido, não
duvido, mas foi quase mesmo assim.
McAuli e se virou e disse para Garrett:
“Você concordou em me deixar cuidar disso.”
O coitado do Garrett chegou pra trás na cadeira tão rápido que quase virou,
e tenho certeza de que cou com dor no pescoço.
“Tudo bem, tudo bem, não precisa se irritar assim”, murmurou ele.
McAuli e se virou pra mim, pronto pra repetir a pergunta, mas nem deixei.
Já havia tido tempo pra contar até quase dez.
“Não”, falei. “Não ouvi nada além de as pessoas no mar buzinando nos
barcos e gritando como loucas quando viram que o eclipse tinha começado.”
Ele esperou que eu me alongasse na resposta, o velho truque de car em
silêncio e deixar as pessoas se afobarem, mas o silêncio se prolongou entre nós.
Mantive as mãos cruzadas sobre a bolsa e deixei rolar. Ele me olhou, e eu olhei
pra ele.
Você vai falar comigo, mulher, disseram os olhos dele. Vai me contar tudo que
eu quero saber… duas vezes se eu quiser.
E os meus olhos responderam: Não vou, camarada. Você pode car aí me
perfurando com esses olhos azul-bebê de diamantes até o inferno virar rinque de
patinação, mas não vai arrancar mais nenhuma palavra de mim, a não ser que abra
a boca e peça.
Continuamos em silêncio por quase um minuto inteiro, em um duelo de
olhares, poderíamos dizer, e perto do m eu me senti enfraquecer, querendo
dizer alguma coisa pra ele, mesmo que fosse “Sua mãe não te ensinou que é
falta de educação encarar?”. Mas aí, Garrett falou… ou o estômago dele falou.
Fez um som looooongo.
McAuli e olhou pra ele com uma expressão de absoluta repulsa, e Garrett
pegou o canivete e começou a limpar debaixo das unhas. McAuli e puxou um
caderno do bolso interno do casaco de lã (lã! Em julho!), olhou alguma coisa e
o guardou.
“Joe tentou sair”, disse ele, por m, com a casualidade de um homem que diz
tenho um compromisso no almoço.
Foi como se tivessem en ado um garfo na minha lombar, no mesmo lugar
onde Joe havia batido em mim com o pedaço de madeira daquela vez. Mas
tentei não demonstrar.
“Ah, é?”, falei.
“É”, disse McAuli e. “A parede do poço é cheia de pedras grandes (só que ele
disse ‘peidras’, Andy), e nós encontramos marcas de mão de sangue em várias.
Parece que ele se levantou e começou a subir devagar, aos poucos. Deve ter
sido um esforço hercúleo, feito apesar de uma dor mais excruciante do que eu
consigo imaginar.”
“Sinto muito que ele tenha sofrido”, falei. A minha voz continuava calma,
pelo menos eu acho que estava, mas senti o suor começando a surgir nos meus
sovacos, e me lembro de car com medo de surgir na minha testa ou nas
têmporas, onde ele poderia ver. “Coitado do Joe.”
“De facto”, concordou McAuli e, os olhos de farol mirando e desviando.
“Coitado… do… Joe. Acho que ele poderia ter saído sozinho. Talvez tivesse
morrido logo depois de sair, mas, sim; acho que ele poderia ter saído. Mas algo
impediu.”
“O que foi?”
“Ele sofreu fratura de crânio”, disse McAuli e. Os olhos continuavam
brilhando, mas a voz estava suave como a de um gato ronronando.
“Encontramos uma pedra grande entre as pernas dele. Estava coberta com o
sangue do seu marido, sra. St. George. E, nesse sangue, achamos uma pequena
quantidade de fragmentos de porcelana. Sabe o que eu deduzo a partir disso?”
Um… dois… três.
“Pelo jeito, a pedra deve ter quebrado os dentes falsos além da cabeça”, falei.
“Que pena. Joe gostava deles, e eu não sei como Lucien Mercier vai deixar que
ele que apresentável para o caixão aberto sem aqueles dentes.”
Os lábios de McAuli e se repuxaram, e dei uma boa olhada nos dentes dele.
Nada de dentadura ali. Acho que ele queria que parecesse um sorriso, mas não
pareceu. Nem um pouco.
“É”, disse ele, mostrando as duas leiras de dentinhos até as gengivas. “Sim,
esta é a minha conclusão também: os estilhaços de porcelana são da arcada
inferior. Agora, sra. St. George… você tem alguma ideia de como aquela pedra
pode ter atingido o seu marido quando ele estava à beira de escapar do poço?”
Um… dois… três.
“Não. Você tem?”, perguntei.
“Tenho”, respondeu ele. “Descon o que alguém tenha arrancado a pedra da
terra e batido com crueldade e malícia no rosto virado e suplicante de Joe.”
Ninguém disse nada depois disso. Eu queria, Deus sabe que queria; queria
falar o mais rápido possível: Não fui eu. Pode ser que alguém tenha feito isso, mas
não fui eu. Mas não podia, porque eu estava de volta nos arbustos de amora e,
dessa vez, havia porcarias de poços pra todos os lados.
Em vez de falar, eu o encarei, mas senti o suor ameaçando brotar em mim de
novo, e senti as mãos unidas querendo apertar uma a outra. As unhas cariam
brancas se eu zesse isso… e ele notaria. McAuli e era um homem feito pra
reparar nesses detalhes; seria outra rachadura pra qual apontar a versão dele do
farol de Battiscan. Tentei pensar em Vera e como ela teria olhado pra ele, como
se McAuli e fosse uma bosta de cachorro pisada em um dos sapatos dela, mas
com os olhos dele xados em mim como estavam naquele momento, isso não
ajudou em nada. Antes, havia sido quase como se ela estivesse ali na sala
comigo, mas não estava mais assim. Agora, não havia ninguém lá além de mim
e aquele doutorzinho escocês engomadinho, que devia se imaginar como os
detetives amadores nas histórias de revista (e cujo testemunho já tinha enviado
mais de dez pessoas por toda a costa pra prisão, eu descobri depois), e senti que
estava chegando mais e mais perto de abrir a boca e falar alguma besteira. E o
pior de tudo, Andy, é que eu não fazia a menor ideia do que seria quando
nalmente saísse. Ouvia o relógio na mesa de Garrett tiquetaquear. Era um
som alto e seco.
E eu ia dizer algo quando a pessoa de quem eu havia me esquecido, Garrett
Thibodeau, falou de repente. A voz dele estava preocupada e rápida, e percebi
que ele também não aguentava mais aquele silêncio. Devia achar que ia
continuar até alguém ter que gritar só pra aliviar a tensão.
“Ora, John”, disse ele, “achei que a gente tinha combinado que, se Joe tivesse
puxado aquela pedra do jeito certo, poderia ter se soltado sozinha e…”
“Porra, será que você não pode calar essa boca?”, gritou McAuli e em uma voz
alta e frustrada, e eu relaxei.
Tinha acabado. Eu sabia, e acredito que o escocês sabia também. Era como
se nós dois estivéssemos em um aposento escuro juntos, ele fazendo cócegas
no meu rosto com o que poderia ser uma navalha… e aí o estabanado do
policial Thibodeau deu uma topada, caiu na direção da janela e a persiana
subiu com um estardalhaço, deixando a luz do dia entrar, e eu vi que o que ele
estava usando pra tocar em mim era só uma pena, a nal.
Garrett resmungou algo sobre não haver necessidade de McAuli e falar com
ele daquele jeito, mas o doutor não prestou atenção. Ele se virou pra mim e
disse:
“E então, sra. St. George?”, perguntou, de um jeito duro, como se eu
estivesse encurralada, mas àquelas alturas nós dois sabíamos que a situação não
era bem essa.
Ele só podia torcer pra eu cometer um erro… mas eu tinha três lhos em
quem pensar, e ter lhos torna uma pessoa cuidadosa.
“Eu já contei o que eu sei”, respondi. “Joe cou bêbado quando estávamos
esperando o eclipse. Fiz um sanduíche pra ele, achando que podia ajudar deixá-
lo um pouco mais sóbrio, mas não ajudou. Ele começou a gritar, me enforcou e
me bateu um pouco, e eu fui pra Russian Meadow. Quando voltei, ele tinha
sumido. Achei que tinha saído com um dos amigos, mas ele estava no poço o
tempo todo. Acho que devia estar tentando pegar um atalho pra estrada. Talvez
até estivesse me procurando pra pedir desculpas. Isso é algo que eu nunca vou
saber… e talvez seja melhor assim.” Lancei um olhar severo pra ele. “Talvez
você devesse experimentar um pouco desse remédio também, dr. McAuli e.”
“Não se preocupe em me dar conselhos, senhora”, disse McAuli e, e aquelas
bolas de cor nas bochechas dele estavam mais fortes do que nunca. “Você está
feliz de ele estar morto? Me diz isso!”
“O que isso tem a ver com o que aconteceu com ele? Meu Deus, qual é o seu
problema?”
McAuli e não respondeu, apenas pegou o cachimbo com a mão que estava
tremendo um pouquinho e foi acendê-lo. Não fez nenhuma outra pergunta; a
última que recebi naquele dia foi feita por Garrett Thibodeau. McAuli e não a
fez porque não interessava, pelo menos pra ele. Mas era importante para
Garrett, e mais ainda pra mim, porque nada acabaria quando eu saísse da
prefeitura naquele dia; na verdade, eu sair seria só o começo. Essa última
pergunta e o jeito como eu responderia importavam muito, porque em geral as
coisas que não signi cariam nada em um tribunal são as mais comentadas nas
cercas de quintal enquanto as mulheres penduram a roupa lavada ou nos
barcos de pesca de lagosta enquanto os homens estão com as costas na cabine
almoçando. Essas coisas podem não mandar ninguém pra prisão, mas podem
enforcar a pessoa aos olhos da cidade.
“Por que em nome de Deus você comprou uma garrafa de bebida pra ele?”,
Garrett praticamente baliu. “O que deu em você, Dolores?”
“Achei que ele me deixaria em paz se tivesse alguma coisa pra beber”, falei.
“Achei que a gente ia poder car sentado em paz vendo o eclipse, e ele me
deixaria em paz.”
Não chorei, não de verdade, mas senti uma lágrima escorrer pela bochecha.
Às vezes, acho que foi esse o motivo de eu conseguir continuar morando em
Little Tall por mais trinta anos, aquela única lágrima. Se não fosse isso, as
pessoas talvez tivessem me expulsado daqui com os cochichos, acusações e
dedos apontados pra mim pelas costas… é, no m das contas podia ter
acontecido. Sou durona, mas não sei se é possível alguém ser durão a ponto de
aguentar trinta anos de fofoca e bilhetinhos anônimos dizendo coisas como
“Assassina”. Recebi alguns, e tenho uma boa ideia de quem mandou, apesar de
não importar mais a esta altura. Mas pararam quando as aulas voltaram no
outono. Então acho que podemos dizer que devo todo o resto da minha vida,
inclusive esta parte aqui, àquela única lágrima… e a Garrett espalhar que, no
nal, não tive um coração tão de pedra assim a ponto de não chorar por Joe.
Não houve nada de calculado naquilo, então não vai achando que teve. Eu
estava pensando em como lamentava que Joe houvesse sofrido do jeito que o
escocês engomadinho havia dito. Apesar de tudo que ele havia feito e como eu
havia passado a odiá-lo desde que descobri o que estava tentando fazer com
Selena, nunca pretendi que ele sofresse. Achava que a queda iria matá-lo na
hora, Andy, juro em nome de Deus que eu achava que a queda seria su ciente
pra matá-lo de uma vez.
O coitado do Garrett Thibodeau cou vermelho como uma placa de pare.
Pegou uma bola de lenços de papel na caixa sobre a mesa e meio que empurrou
na minha direção sem olhar; acho que pensou que aquela primeira lágrima
seria o começo de uma choradeira. Também pediu desculpas por me fazer
passar por um “interrogatório tão estressante”. Aposto que essas eram as
palavras mais complexas que ele conhecia.
Ao ouvir isso, McAuli e soltou um Hunf!, disse algo sobre estar no inquérito
pra ouvir quando tomassem o meu depoimento e saiu… furioso, na verdade,
depois bateu a porta com tanta força que sacudiu o vidro. Garrett esperou que
ele se afastasse pra me levar até a porta, segurando meu braço, mas ainda sem
me olhar (foi meio cômico, até) e sem parar de murmurar. Não sei bem sobre o
que ele estava murmurando, mas acho que era o jeito de Garrett de pedir
desculpas. Aquele homem tinha um coração bom e não conseguia suportar ver
gente infeliz, isso eu tenho que dizer a favor dele… e vou dizer outra coisa a
favor de Little Tall: em que outro lugar um homem desses podia ser não só
policial por quase vinte anos, mas ganhar um jantar em sua homenagem com
ovação de pé e tudo quando nalmente se aposentou? Vou dizer o que acho:
um lugar onde um homem de coração bom pode ter sucesso como agente da
lei não é um lugar ruim pra se passar a vida. Nem um pouco. Mesmo assim,
nunca quei tão feliz de ouvir uma porta se fechar do que quando a de Garrett
se fechou naquele dia.
Isso tudo foi um saco, e o inquérito no dia seguinte não foi nada em
comparação. McAuli e me fez muitas das mesmas perguntas, e foram
perguntas difíceis, mas não tinham mais poder sobre mim, e nós dois
sabíamos. A minha única lágrima foi ótima, mas as perguntas de McAuli e,
além do fato de todo mundo poder ver que ele estava puto como um urso
comigo, ajudaram muito a dar início às fofocas que correram pela ilha desde
então. Ah, bom; teriam falado de qualquer jeito, né?
O veredito foi morte por infortúnio. McAuli e não gostou, e no nal leu as
descobertas dele com uma voz dura e seca, sem erguer os olhos nem uma vez,
mas o que disse foi o cial: Joe caiu no poço quando estava bêbado,
provavelmente pediu ajuda por um tempo, mas sem resposta, e tentou escalar
o poço sozinho. Conseguiu percorrer a maior parte do caminho até o topo, mas
apoiou o peso na pedra errada. A pedra se soltou, acertou a cabeça dele e
fraturou o crânio, sem mencionar a dentadura, e o derrubou de volta para o
fundo do poço, onde ele morreu.
Talvez a minha maior sorte, e isso eu só percebi depois, foi que não
conseguiram encontrar motivo pra jogar nas minhas costas. Claro que as
pessoas da cidade (e o dr. McAuli e também, não tenho dúvida) achavam que,
se eu tivesse matado Joe, teria sido pra me livrar das surras que ele me dava,
mas isso por si só não tinha peso su ciente. Só Selena e o sr. Pease sabiam
quais seriam os meus verdadeiros motivos, e ninguém, nem mesmo o
espertinho do dr. McAuli e, pensou em interrogar o sr. Pease. E o sr. Pease
também não se apresentou por conta própria. Se tivesse, a nossa conversinha
no The Chatty Buoy teria sido divulgada, e ele provavelmente caria
encrencado com o banco. Eu havia convencido o sujeito a violar regras, a nal.
Quanto à Selena… bom, acho que Selena me julgou em um tribunal
próprio. De vez em quando eu notava os olhos dela em mim, escuros e
tempestuosos, e na minha mente eu a ouvia perguntando: Você fez alguma coisa
com ele? Fez, mãe? É culpa minha? Sou eu que tenho que pagar?.
Acho que ela pagou, essa é a pior parte. A garotinha da ilha que nunca havia
saído do estado do Maine até ir a um encontro de natação em Boston quando
tinha dezoito anos se tornou uma pro ssional inteligente e de sucesso em
Nova York. Saiu um artigo sobre ela no New York Times dois anos atrás, sabia?
Ela escreve pra um monte de revistas e ainda encontra tempo pra escrever pra
mim uma vez por semana… mas parecem cartas por obrigação, assim como os
telefonemas duas vezes por mês parecem telefonemas por obrigação. Acho que
as ligações e os bilhetinhos são o jeito como ela paga ao coração pra car
quieto por ela nunca voltar pra cá, por ter cortado os laços comigo. Sim, acho
que ela pagou, sim; acho que a pessoa com menos culpa de todas pagou mais, e
ainda está pagando.
Ela tem quarenta e quatro anos, nunca se casou, está magra demais (vejo nas
fotos que ela manda às vezes) e acho que ela bebe; já percebi pela voz dela mais
de uma vez quando me liga. Acho que esse pode ser um dos motivos pra ela
não vir mais em casa; não quer que eu a veja bebendo como o pai bebia. Ou
talvez porque tem medo do que poderia dizer se bebesse demais comigo por
perto. Do que poderia perguntar.
Mas não importa; são águas passadas. Eu me safei, e é isso que importa. Se
tivesse seguro ou se Pease não tivesse cado de boca calada, não sei se teria.
Das duas possibilidades, um seguro de vida polpudo talvez fosse pior. A última
coisa nessa Terra redonda de Deus de que eu precisava era de um investigador
espertinho de seguro se unindo àquele doutor escocês sabichão que já estava
puto da vida com a ideia de ser vencido por uma mulher burra moradora de
uma ilha. Não, se fossem dois, acho que teriam me pegado.
Então, o que aconteceu? Ora, o que imagino que sempre aconteça em casos
assim, quando um assassinato foi cometido e o culpado não foi descoberto. A
vida seguiu, só isso. Ninguém apareceu com informações de último minuto,
como nos lmes, não tentei matar mais ninguém e Deus não mandou um raio
pra me matar. Talvez Ele tenha achado que jogar um raio em mim por causa de
gente como Joe St. George seria desperdício de eletricidade.
A vida continuou. Voltei pra Pinewood e pra Vera. Quando voltou pra escola
no outono, Selena retomou as velhas amizades e às vezes eu a ouvia rindo ao
telefone. Quando nalmente caiu a cha, o pequeno Pete sofreu muito… e Joe
Junior também. Joey sofreu mais do que eu esperava, na verdade. Perdeu peso e
teve alguns pesadelos, mas no verão seguinte parecia bem de novo. A única
coisa que realmente mudou durante o resto de 1963 foi que chamei Seth Reed
pra cimentar a abertura do velho poço.
Seis meses depois que ele morreu, o inventário de Joe foi fechado no Juízo
do Inventário do Condado. Eu nem estava presente. Uma semana depois,
recebi um papel me informando que era tudo meu: eu podia vender, trocar ou
jogar no mar azul. Quando terminei de veri car tudo que ele tinha, achei que a
última opção era a melhor. Mas descobri algo meio surpreendente: se o seu
marido morre subitamente, pode ser útil que todos os amigos dele sejam uns
idiotas, como os de Joe eram. Vendi o rádio de ondas curtas velho em que ele
estava mexendo havia uns dez anos pra Norris Pinette por vinte e cinco
dólares, e três picapes velhas que estavam no quintal pra Tommy Anderson.
Aquele trouxa cou feliz da vida de car com os carros, e eu usei o dinheiro pra
comprar um Chevy 1959 que chiava, mas funcionava direito. Também transferi
o dinheiro que estava na conta de Joe pra mim e reabri as poupanças das
crianças pra faculdade.
Ah, e mais uma coisa: em janeiro de 1964, voltei a usar o meu nome de
solteira. Não gritei aos quatro ventos nem nada, mas eu que não ia car
arrastando o St. George atrás de mim pelo resto da vida, como uma lata
amarrada no rabo de um cachorro. Acho que daria pra dizer que cortei o
barbante que prendia a lata… mas não me livrei dele tão fácil quanto do nome,
isso eu posso dizer.
Não que eu esperasse; eu tenho sessenta e cinco anos e sei por pelo menos
cinquenta que um ser humano passa a maior parte da vida fazendo escolhas e
pagando boletos no vencimento. Algumas dessas escolhas são horríveis, mas
isso não dá a uma pessoa o direito de dar as costas pra essa obrigação,
principalmente quando outros dependem dela pra fazer por eles o que eles
mesmos não podem fazer. Em um caso assim, você só precisa fazer a melhor
escolha que puder e pagar o preço. Pra mim, o preço foram as muitas noites em
que acordei suando frio por causa dos pesadelos e as outras tantas em que não
consegui dormir; isso, e o som que a pedra fez quando bati na cara dele,
quebrando o crânio e a dentadura, aquele som de um prato de porcelana em
uma lareira de tijolos. Eu o ouvi por trinta anos. Às vezes isso me acorda, às
vezes é o que me impede de dormir e às vezes me surpreende em plena luz do
dia. Posso estar varrendo a varanda em casa, polindo a prata na casa de Vera,
ou me sentando pra almoçar com a televisão ligada na Oprah, de repente eu o
ouço. Aquele som. Ou o baque de quando ele bateu no fundo. Ou a voz dele,
saindo do poço: “Do-looo-resss…”.
Acho que esses sons que às vezes escuto não são tão diferentes do que Vera
via quando gritava sobre os os nos cantos ou as bolas de poeira embaixo da
cama. Havia ocasiões, principalmente depois que ela começou a piorar, em que
eu me deitava com ela na cama, abraçava-a e pensava no som que a pedra havia
feito, então fechava os olhos e via um prato de porcelana se espatifando
todinho numa lareira de tijolos. Quando eu via isso, eu a abraçava como se ela
fosse a minha irmã, ou como se fosse eu mesma. Ficávamos deitadas, cada uma
com o seu medo, até nalmente cochilarmos, eu com ela pra afastar as bolas de
poeira e ela comigo pra afastar o som do prato de porcelana. E às vezes, antes
de dormir, eu pensava: É assim. É assim que se paga por ser uma lha da puta. E
não adianta dizer que se você não tivesse sido uma lha da puta você não teria tido
que pagar, porque às vezes o mundo faz de você uma lha da puta. Quando tudo
está horrível e escuro lá fora, e só tem você dentro pra primeiro acender uma luz e
depois cuidar dela, você tem que ser uma lha da puta. Mas, ah, o preço. O preço é
terrível.
Andy, será que posso tomar mais um dedinho daquela sua garrafa? Não vou
contar pra ninguém.
Obrigada. E obrigada a você, Nancy Bannister, por aguentar uma velha
matraca como eu. Como estão os seus dedos?
É? Que bom. Não perde a coragem agora; comecei errado, eu sei, mas acho
que nalmente cheguei à parte sobre a qual vocês querem ouvir. Isso é bom,
porque está tarde e eu estou cansada. Trabalhei a vida todinha, mas não
consigo me lembrar de estar tão cansada quanto agora.
Eu estava pendurando a roupa lavada ontem de manhã… sinto como se
tivesse sido seis anos atrás, mas foi só ontem. Vera estava tendo um dos dias
bons. Por isso tudo foi tão inesperado, e em parte por que quei muito nervosa.
Quando tinha os dias bons, ela às vezes se tornava uma lha da puta, mas
aquela foi a primeira e última vez que cou maluca.
Eu estava lá embaixo no pátio lateral, e ela estava lá em cima na cadeira de
rodas, supervisionando a operação como gostava de fazer. De vez em quando
gritava:
“Seis pregadores, Dolores! Seis pregadores em cada um dos lençóis! Não vai
tentar se safar só com quatro porque eu estou olhando!”
“É, eu sei, e aposto que você queria que estivesse fazendo vinte graus a
menos e com um vento de vinte soprando”, falei.
“O quê?”, gritou ela pra mim. “O que você disse, Dolores Claiborne?”
“Falei que alguém deve estar espalhando estrume no jardim, porque estou
sentindo mais cheiro de merda aqui do que o habitual.”
“Você está dando uma de espertinha, Dolores?”, gritou ela, com a voz
falhada e instável.
Falou como em qualquer dia em que houvesse alguns raios de sol a mais do
que o habitual entrando no sótão da cabeça dela. Eu sabia que ela poderia ser
sacana mais tarde, mas não me importei muito; àquela altura, cava feliz só de
Vera falar coisas com sentido quando estava daquele jeito. Pra falar a verdade,
era como nos velhos tempos. Ela andava mais confusa do que prova de
matemática em grego nos últimos três ou quatro meses, e foi bom tê-la de
volta… ou tanto da antiga Vera quanto daria pra ter, se é que você me entende.
“Não, Vera. Se eu fosse esperta, teria parado de trabalhar pra você muito
tempo atrás”, gritei de volta.
Esperava que ela gritasse alguma outra coisa pra mim nessa hora, mas ela
não falou nada. Continuei pendurando os lençóis, as fraldas, os paninhos e
todo o resto. Mas aí, quando faltava metade da cesta, eu parei. Tive uma
sensação ruim. Não sei dizer por quê, nem quando começou. De repente,
estava lá. E só por um momento um pensamento muito estranho me ocorreu:
Aquela garota está com problemas… aquela que eu vi no dia do eclipse, a que me
viu. É adulta agora, quase da idade da Selena, mas está com um problemão.
Eu me virei e olhei pra cima, quase esperando ver a versão adulta daquela
garota com o vestido listrado colorido e o batom rosa, mas não vi ninguém, e
aquilo estava errado. Estava errado porque Vera deveria estar lá, quase se
pendurando pra fora pra ter certeza de que eu estava usando a quantidade
certa de pregadores. Mas ela tinha sumido, e eu não entendi como isso era
possível, porque eu mesma havia a colocado na cadeira e acionado o freio
quando estava junto à janela, como ela gostava.
Mas aí ouvi o grito dela.
“Do-loooo-ressss!”
Senti um arrepio me subir pela espinha quando ouvi isso, Andy! Era como se
Joe tivesse voltado. Por um momento, quei paralisada. O grito veio de novo, e
na segunda vez reconheci que era ela.
“Do-loooo-ressss! São as bolinhas de poeira! Elas estão por todo lado! Ah, Deus
do céu! Ah, Deus do céu! Do-loooo-ress, socorro! Me ajuda!”
Eu me virei pra correr pra casa, tropecei na porcaria da cesta de roupas
lavadas e caí em cima dos lençóis que havia acabado de pendurar. Consegui me
emaranhar não sei como e tive que me esforçar pra sair. Por um minuto,
pareceu que haviam crescido mãos nos lençóis, e que os tecidos estavam
tentando me estrangular ou me segurar. Vera não parou de gritar nem por um
segundo, e pensei no sonho que havia tido aquela vez, o sonho da cabeça de
poeira com aqueles montes de dentes a ados. Só que o que vi na minha mente
foi a cara de Joe naquela cabeça, e os olhos estavam escuros e vazios, como se
alguém tivesse en ado dois pedaços de carvão em uma nuvem de poeira e eles
tivessem cado lá utuando.
“Dolores, ah, vem rápido! Por favor, vem rápido! As bolinhas de poeira! AS
BOLINHAS DE POEIRA ESTÃO POR TODA PARTE!”
Depois disso, ela só berrou. Foi horrível. Nem nos seus sonhos mais loucos
você imaginaria que uma lha da puta velha e gorda como Vera Donovan podia
gritar tão alto. Foi como se um incêndio, uma inundação e o m do mundo
tivessem começado todos de uma vez.
Lutei pra me livrar dos lençóis e, quando me levantei, senti uma das alças do
vestido anágua arrebentar, como no dia do eclipse, quando Joe quase me matou
antes de eu conseguir me livrar dele. E sabe aquela sensação que a gente tem
quando parece que já esteve em um lugar e sabe tudo que as pessoas vão dizer
antes que digam? Essa sensação veio tão forte que parecia que havia fantasmas
em volta de mim, me fazendo cócegas com dedos que eu não conseguia ver.
E sabe de outra coisa? Pareciam fantasmas de poeira.
Corri pra porta da cozinha e subi a escada dos fundos tão rápido quanto
minhas pernas permitiram, e o tempo todo ela só berrava sem parar. O meu
vestido anágua começou a escorregar, e quando cheguei ao patamar dos fundos
olhei pra trás com a certeza de que veria Joe tropeçando atrás de mim pra
agarrar a barra.
Aí olhei na outra direção e vi Vera. Ela estava três quartos do caminho do
corredor na direção da escadaria da frente, andando aos trancos e barrancos de
costas pra mim e berrando no caminho. Havia uma mancha marrom grande na
parte de trás da camisola, onde ela havia se cagado… não por maldade nem
sacanagem nessa última vez, mas de puro medo.
A cadeira de rodas estava entalada de lado na porta do quarto. Ela devia ter
soltado o freio quando viu o que a havia assustado tanto. Em todas as outras
vezes, quando tinha um ataque de horror, a única coisa que Vera conseguia
fazer era car sentada ou deitada onde estava e gritar por ajuda, e havia muita
gente que diria que ela não podia se mover por vontade própria, mas ela andou
ontem; juro que andou. Soltou o freio, virou a cadeira e empurrou-a pelo
quarto, depois conseguiu sair quando cou presa na porta e foi andando pelo
corredor.
Fiquei paralisada por um ou dois segundos ao vê-la se movimentar e me
perguntando o que Vera tinha visto que era tão terrível a ponto de levá-la a
fazer o que estava fazendo, a andar depois que os seus dias de caminhada
deviam ter acabado… o que era aquilo que ela só conseguia chamar de bolinha
de poeira.
Mas entendi pra onde ela estava indo. Direto pra escada.
“Vera! Vera, pode parar com essa besteira! Você vai cair! Para!”, gritei pra
ela.
Saí correndo o mais rápido que consegui. Aquela sensação de que tudo
estava acontecendo pela segunda vez surgiu em mim de novo, só que dessa vez
pareceu que eu era Joe, que era eu que estava tentando segurar algo.
Não sei se ela não me ouviu ou se ouviu e pensou com aquele cérebro velho
e dani cado que eu estava na frente, e não atrás. A única coisa de que tenho
certeza é que continuou gritando. “Dolores, me ajuda, Dolores. As bolinhas de
poeira”, e andou um pouco mais rápido.
Estava quase no m do corredor. Passei correndo pela porta do quarto e
arranhei o tornozelo com força em um dos apoios de pé da cadeira de rodas;
aqui, dá pra ver o hematoma. Corri com toda a velocidade, gritando “Para,
Vera! Para!”, até a minha garganta doer.
Ela atravessou o patamar e lançou um pé no espaço. Eu não poderia tê-la
salvado nessa hora, não importa o que eu zesse; a única coisa que eu poderia
ter feito era me jogar com ela, mas em uma situação assim a gente não tem
tempo de pensar nem de avaliar a consequência. Pulei na direção dela assim
que aquele pé desceu no ar e o corpo dela começou a se inclinar pra frente.
Tive um último vislumbre do rosto de Vera. Acho que ela não sabia que ia cair;
não havia nada ali além de pânico e olhos esbugalhados. Eu já tinha visto
aquela cara, se bem que nunca tão distorcida. E posso dizer que não tinha nada
a ver com medo de cair. Vera estava pensando no que estava atrás dela, não no
que estava à frente.
Estendi a mão no ar. Mas não peguei nada além de uma leve dobra da
camisola dela entre o meu segundo e terceiro dedos da mão esquerda. O tecido
escorregou, como um sussurro.
“Do-loooo…”, gritou ela, e em seguida houve um baque sólido e pesado.
O meu sangue gela só de lembrar daquele som; foi como o que Joe fez
quando bateu no fundo do poço. Eu a vi dar uma cambalhota e ouvi algo
quebrar. O som foi limpo e seco, como um pedaço de graveto quando a gente
quebra no joelho. Vi o sangue jorrar pela lateral da cabeça dela, e isso foi tudo
que quis ver. Eu me virei tão rápido que os meus pés se emaranharam um no
outro e caí de joelhos. Olhei pelo corredor na direção do quarto, e o que eu vi
me fez gritar. Era Joe. Por alguns segundos, eu o vi com a mesma clareza que
vejo você agora, Andy. Vi o rosto sujo e sorridente me espiando por baixo da
cadeira de rodas, pelos raios do aro que havia entalado na porta.
De repente sumiu, e eu ouvi os gemidos e o choro de Vera.
Não conseguia acreditar que ela tinha sobrevivido à queda; ainda não
consigo. Joe também não morreu de cara, óbvio, mas ele era um homem no
auge da vida, e ela era uma velha fraca que havia sofrido uma dezena de
pequenos derrames e pelo menos três grandes. Além do mais, não tinha lama
nem musgo pra amortecer a queda dela, como teve no caso dele.
Eu não queria me aproximar, não queria ver onde ela estava quebrada e
sangrando, mas não tinha o que discutir; eu era a única presente, e isso
signi cava que a escolhida era eu. Quando me levantei (precisei me apoiar no
alto do corrimão de tão bambos que os meus joelhos estavam), pisei na barra
do meu próprio vestido anágua. A outra alça arrebentou. E levantei um pouco o
vestido, pra poder tirá-lo… e isso também foi como antes. Eu me lembro de
olhar pra baixo, pras pernas, pra ver se estavam arranhadas e sangrando por
causa dos espinhos das amoreiras, mas óbvio que não tinha nada assim.
Eu me sentia febril. Se você já cou doente e a sua temperatura subiu muito,
sabe do que estou falando. Você não se sente fora do mundo exatamente, mas
também não se sente dentro. É como se tudo tivesse virado vidro e não
houvesse nada em que fosse possível se apoiar com rmeza, tudo ca
escorregadio. Foi assim que me senti quando parei no patamar, segurando o
corrimão com força e olhando pra onde Vera havia caído.
Ela estava deitada um pouco depois da metade da escada, com as duas
pernas tão torcidas embaixo do corpo que nem dava pra vê-las direito. O
sangue escorria por um lado daquele rosto maltratado. Quando desci aos
trancos e barrancos até onde Vera estava, ainda agarrada ao corrimão, um dos
olhos dela rolou pra cima pra me olhar. Era a expressão de um animal preso em
uma armadilha.
“Dolores, aquele lho da puta está atrás de mim todos esses anos”, sussurrou
ela.
“Shh. Não tenta falar”, aconselhei.
“Está, sim”, disse ela, como se eu a tivesse contrariado. “Ah, que lho da
mãe. Que lho da mãe maldito.”
“Vou lá embaixo. Preciso chamar o médico.”
“Não”, respondeu ela, e então segurou o meu pulso com uma das mãos.
“Nada de médico, nada de hospital. As bolinhas de poeira… até lá. Em todos os
lugares.”
“Você vai car bem, Vera”, a rmei, soltando a mão. “Desde que que
paradinha e não se mexa, vai car bem.”
“Dolores Claiborne diz que eu vou car bem!”, exclamou ela, e era aquela
voz seca e feroz que usava antes de ter os derrames e car com a cabeça
confusa. “Que alívio ter uma opinião pro ssional!”
Ouvir aquela voz depois de tantos anos foi como levar um tapa na cara. Senti
um choque tão grande que fui arrancada do pânico e olhei de verdade no rosto
dela pela primeira vez, da forma que se olha pra uma pessoa que sabe
exatamente o que está dizendo e pronuncia cada palavra com convicção.
“Estou praticamente morta. E você sabe disso tão bem quanto eu. Acho que
quebrei a coluna”, disse ela.
“Você não sabe, Vera”, falei, mas não estava tão ansiosa pra ir pegar o
telefone como antes.
Acho que sabia o que estava por vir, e, se ela me pedisse o que eu achava que
iria pedir, eu não via como poderia recusar. Eu tinha uma dívida com ela desde
aquele dia chuvoso de outono em 1962, quando me sentei na cama dela e caí
no choro com o avental na cara, e os Claiborne sempre pagam as suas dívidas.
Quando Vera falou comigo de novo, foi com a clareza e a lucidez de trinta
anos antes, quando Joe estava vivo e os meus lhos ainda moravam comigo.
“Sei que só tem uma decisão que vale a pena”, disse ela. “E essa decisão é se
vou morrer no meu tempo ou no tempo do hospital. O tempo do hospital seria
demorado demais. O meu tempo é agora, Dolores. Estou cansada de ver a cara
do meu marido nos cantos quando estou fraca e confusa. Estou cansada de ver
tirarem aquele Corvette do rio ao luar, com a água escorrendo pela janela
aberta do lado do passageiro…”
“Vera, eu não sei do que você está falando”, falei.
Ela levantou a mão e acenou pra mim daquele jeito impaciente de antes por
um ou dois segundos; depois, a mão voltou para o lugar na escada ao lado do
corpo.
“Estou de saco cheio de mijar pelas pernas e esquecer quem veio me ver
meia hora depois que a pessoa foi embora. Quero que isso acabe. Você vai me
ajudar?”
Eu me ajoelhei ao lado dela. Peguei a mão que havia caído na escada e
segurei junto aos seios. Pensei no som que a pedra tinha feito quando bateu na
cara de Joe, aquele som de um prato de porcelana se quebrando em pedacinhos
em uma lareira de tijolos. Eu me perguntei se conseguiria ouvir aquilo de novo
sem perder a cabeça. E sabia que seria o mesmo som, porque quando ela gritou
o meu nome foi igual, quando ela caiu na escada foi igual, e quando ela se
quebrou em pedacinhos, como sempre havia tido medo de que as empregadas
quebrassem os cristais delicados que ela tinha na sala, foi igual, e o meu
vestido anágua estava no patamar do alto da escada em uma bolinha de náilon
branco com as duas alças arrebentadas, e isso também foi igual a antes. Se eu
acabasse com ela, o som seria igual a quando z com Joe, eu sabia. Aham.
Tinha certeza disso assim como sei que a East Lane termina naquela escada
velha e bamba pela lateral do East Head.
Segurei a mão dela e pensei em como o mundo é: às vezes os homens maus
sofrem acidentes e as mulheres boas viram lhas da puta. Olhei para o jeito
horrível e indefeso com que os olhos dela se reviraram pra olhar o meu rosto, e
percebi como o sangue do corte no couro cabeludo descia pelas rugas fundas
na bochecha, assim como a chuva de primavera corre nos sulcos colina abaixo.
“Se é isso que você quer, Vera, eu vou te ajudar”, falei.
Ela começou a chorar. Foi a única vez em que não estava confusa e perdida
que eu a vi fazer isso.
“Isso”, disse ela. “Sim, é o que eu quero. Que Deus te abençoe, Dolores.”
“Não se mexa”, falei, e então levantei a mão velha e enrugada dela até os
lábios e a beijei.
“Rápido, Dolores. Se você quer mesmo me ajudar, vai rápido”, disse ela.
Antes que a gente perca a coragem, era o que os olhos dela diziam.
Beijei a mão dela de novo, coloquei-a sobre a barriga e me levantei. Não tive
di culdade dessa vez; a força tinha voltado às minhas pernas. Desci o resto da
escada e fui até a cozinha. Tinha preparado tudo pra cozinhar antes de ir
pendurar a roupa; naquele dia, havia decidido que era um bom dia pra fazer
pão. Vera tinha um rolo de macarrão, um objeto grande e pesado, feito de
mármore cinza com veios pretos. Estava na bancada, ao lado da lata amarela de
farinha. Eu o peguei ainda com a sensação de estar em um sonho ou com febre
alta e andei pela sala na direção do saguão de entrada. Quando passei pelo
cômodo com todos aqueles objetos velhos e lindos, pensei em todas as vezes
que tinha feito o truque com o aspirador de pó e que Vera havia se vingado de
mim por um tempo. No nal, ela sempre entendia tudo e se vingava… Não é
por isso que eu estou aqui?
Saí da sala e fui para o saguão, depois subi a escada na direção dela,
segurando o rolo de macarrão por um dos cabos de madeira. Quando chegasse
ao lugar onde Vera estava com a cabeça apontada pra baixo e as pernas
retorcidas embaixo do corpo, eu não pretendia fazer pausa nenhuma. Sabia
que, se hesitasse, não conseguiria fazer o que precisava fazer. Não haveria mais
conversa nenhuma. Quando eu chegasse, pretendia me apoiar em um joelho e
bater na cabeça dela com aquele rolo de mármore com o máximo de força que
eu pudesse, o mais rápido que pudesse. Talvez parecesse algo que aconteceu
quando ela caiu, ou talvez não, mas eu pretendia fazer de qualquer jeito.
Quando me ajoelhei ao lado dela, vi que não havia necessidade. Vera tinha
feito tudo sozinha, a nal, como fazia quase tudo na vida. Enquanto eu estava
na cozinha pegando o rolo de macarrão, ou talvez voltando pela sala, Vera
simplesmente fechou os olhos e morreu.
Eu me sentei ao lado dela, coloquei o rolo de macarrão na escada, peguei a
mão dela e a segurei no colo. Há ocasiões na vida de uma pessoa em que
parecem não haver minutos reais, e por isso não dá pra contar. Só sei que eu
quei com ela um tempo. Não sei se falei algo ou não. Acho que falei, acho que
agradeci a ela por ir, por me deixar ir, por não me obrigar a passar por tudo
aquilo de novo. Mas talvez eu só tenha pensado nisso tudo. Eu me lembro de
colocar a mão dela na minha bochecha, virá-la e beijar a palma. De olhar pra
pele e pensar em como era rosada e limpa. As linhas haviam quase sumido, e
parecia a mão de um bebê. Eu sabia que precisava me levantar e ligar pra
alguém e contar o que tinha acontecido, mas estava exausta, exausta demais.
Parecia mais fácil car sentada lá, segurando a mão de Vera.
Mas aí a campainha tocou. Se não tivesse tocado, eu teria cado sentada lá
por mais tempo, acho. Mas você sabe como é quando alguém toca a
campainha: dá aquela sensação de que você tem que atender a qualquer custo.
Eu me levantei e desci a escada um degrau de cada vez, como uma mulher dez
anos mais velha do que sou. E a verdade é que eu me sentia dez anos mais
velha, agarrada ao corrimão o tempo todo. Eu me lembro de pensar que o
mundo ainda parecia ser feito de vidro e que eu precisava tomar um cuidado
danado pra não escorregar e me cortar na hora de soltar o corrimão e
atravessar o saguão até a porta.
Era Sammy Marchant, com o chapéu de carteiro virado pra trás na cabeça
daquele jeito bobo de sempre. Ele deve achar que usar o boné assim dá um ar
de astro do rock. Ele estava com as cartas em uma das mãos e na outra um
daqueles envelopes acolchoados que chegam por carta registrada quase toda
semana de Nova York, notícias do que estava acontecendo com as nanças
dela, claro. Era um sujeito chamado Greenbush que cuidava do dinheiro dela,
eu já falei isso?
Falei? Está certo, obrigada. Já teve tanta coisa que eu nem consigo lembrar
direito o que já falei e o que não falei.
Às vezes, naqueles envelopes registrados, chegavam uns documentos pra
assinar, e, na maioria das vezes, Vera conseguia fazer isso se eu ajudasse a
rmar o braço. Mas houve algumas vezes, quando ela estava mal, em que
assinei o nome dela eu mesma. Não havia nada demais, e nunca ninguém
perguntou nada sobre as que eu assinei. Nos últimos três ou quatro anos, a
assinatura dela não passava de um rabisco mesmo. Então essa é outra
informação que você pode usar pra me prender se quiser muito: falsi cação.
Sammy começou a me oferecer o envelope acolchoado assim que a porta se
abriu, querendo que eu assinasse, como eu sempre fazia com as registradas.
Mas, quando deu uma boa olhada em mim, os olhos dele se arregalaram e ele
deu um passo pra trás no degrau. Foi, na verdade, mais um pulo do que um
passo, e considerando que se tratava de Sammy Marchant, essa parece ser
exatamente a palavra certa.
“Dolores! Você está bem? Tem sangue em você!”, disse ele.
“Não é meu”, falei, e a minha voz estava tão calma quanto teria estado se ele
tivesse me perguntado o que eu estava vendo na televisão. “É da Vera. Ela caiu
da escada. Ela morreu.”
“Meu Deus do céu”, disse ele, e entrou correndo na casa com a bolsa
balançando e batendo no quadril.
Nunca passou pela minha cabeça tentar impedir, e você precisa se perguntar
o seguinte: de que teria ajudado se eu tivesse tentado?
Eu o segui devagar. Aquela sensação de vidro estava passando, mas parecia
que as solas dos meus sapatos haviam se tornado de chumbo. Quando cheguei
ao pé da escada, Sammy estava na metade, ajoelhado ao lado da Vera. Antes,
havia tirado do ombro a bolsa de correspondência, que havia caído quase pela
escada toda, espalhando as cartas e as contas do Bangor Hydro e os catálogos
da L.L.Bean pra todo lado.
Subi até lá com os pés se arrastando de um degrau para o outro. Nunca havia
me sentido tão cansada. Nem depois de matar Joe eu me senti tão cansada
quanto ontem de manhã.
“Ela está morta mesmo”, disse ele, olhando em volta.
“Está, sim. Eu falei que estava”, respondi.
“Achei que ela não conseguia andar. Você sempre me disse que ela não
conseguia andar, Dolores.”
“Bom, acho que eu me enganei.”
Eu me senti idiota de falar algo assim com ela deitada ali como estava, mas o
que mais havia a dizer? De certa forma, foi mais fácil falar com John McAuli e
do que com aquele burro do Sammy Marchant, porque eu havia feito
praticamente tudo o que McAuli e suspeitava. O problema de ser inocente é
que você ca meio que presa na verdade.
“O que é isso?”, perguntou ele, e apontou para o rolo de macarrão.
Eu o tinha deixado na escada quando a campainha tocou.
“O que você acha que é? Uma gaiola de passarinho?”, perguntei pra ele.
“Parece um rolo de macarrão.”
“É isso mesmo”, falei. Parecia que eu ouvia a minha própria voz vinda de
longe, como se eu estivesse em um lugar e o resto de mim, em outro. “Você vai
acabar surpreendendo todo mundo e demonstrando que tem capacidade pra ir
pra faculdade, Sammy.”
“É, mas o que um rolo de macarrão está fazendo na escada?”, perguntou ele.
Na mesma hora, percebi o jeito como ele me olhava. Sammy não passa dos
vinte e cinco anos, mas o pai dele estava no grupo de busca que encontrou Joe,
e eu percebi que Duke Marchant devia ter criado Sammy e todo o resto dos
lhos não muito inteligentes com a ideia de que Dolores Claiborne St. George
havia matado o marido. Lembra que falei que quando você é inocente, ca
mais ou menos preso na verdade? Bom, quando vi o jeito como Sammy me
olhava, decidi que aquela podia ser uma hora em que menos seria bem mais
seguro do que mais.
“Eu estava na cozinha me preparando pra fazer pão quando ela caiu”, falei.
Outra coisa sobre ser inocente é que qualquer mentira que você decida
contar é uma mentira não planejada; gente inocente não passa horas
trabalhando nas histórias como trabalhei na minha, sobre ter ido até Russian
Meadow ver o eclipse e nunca mais ter visto o meu marido até olhar pra ele na
funerária Mercier. Assim que aquela mentira sobre fazer pão saiu da minha
boca, entendi que era capaz de se voltar contra mim, mas se você tivesse visto a
expressão nos olhos dele, Andy, escura e de descon ança e medo, tudo ao
mesmo tempo, talvez tivesse mentido também.
Ele se levantou, começou a se virar e parou onde estava pra olhar pra cima.
Segui o olhar dele. O que Sammy viu foi o meu vestido anágua, todo amassado
em uma bola no patamar.
“Parece que ela tirou a anágua antes de cair”, disse ele, olhando pra mim de
novo. “Ou pulou. Ou o que quer que tenha feito. Você acha que foi isso,
Dolores?”
“Não. É minha”, falei.
“Se você estava fazendo pão na cozinha”, disse ele, falando bem devagar,
como uma criança que não é muito inteligente tentando resolver um problema
de matemática no quadro, “então, o que a sua roupa de baixo está fazendo no
patamar?”
Não consegui pensar em nada pra dizer. Sammy deu um passo pra trás na
escada, depois outro, ele se movia tão lentamente quanto falava, segurando o
corrimão, sem nunca tirar os olhos de mim, e na hora entendi o que ele estava
fazendo: abrindo espaço entre nós. Porque estava com medo de eu ter a ideia
de empurrá-lo como ele achava que eu havia empurrado Vera. Foi aí que soube
que estaria aqui em pouquíssimo tempo contando esta história. Os olhos dele
poderiam muito bem estar falando em voz alta, dizendo: Você se safou uma vez,
Dolores Claiborne, e considerando o tipo de homem que o meu pai diz que Joe St.
George era, talvez tudo bem. Mas o que esta mulher fez pra você além de te
alimentar, te dar um teto e pagar um salário decente?. E, acima de tudo, o que os
olhos dele diziam era que uma mulher que empurra uma vez e se safa pode
muito bem empurrar de novo. Que, nas circunstâncias corretas, ela vai
empurrar de novo. E se o empurrão não for su ciente pra fazer o que ela
decidiu fazer, essa mulher não vai precisar pensar muito pra decidir terminar o
trabalho de outra forma. Com um rolo de macarrão de mármore, por exemplo.
“Isso não é da sua conta, Sammy Marchant”, falei. “É melhor você cuidar da
sua vida. Tenho que ligar pra ambulância da ilha. Só não deixa de pegar as
cartas antes de ir embora. Senão, vai ter um monte de empresa de cartão de
crédito no seu pé.”
“A sra. Donovan não precisa de ambulância”, retrucou ele, descendo mais
dois degraus sem tirar os olhos de mim nem por um segundo, “e eu não vou a
lugar nenhum, ainda. Acho que em vez da ambulância, é melhor você fazer a
sua primeira ligação para Andy Bissette.”
Como você bem sabe, foi isso que z. Sammy Marchant me observou.
Depois que desliguei o telefone, ele pegou as cartas que havia deixado cair,
dando uma olhada rápida com aquele rolo na mão, e depois cou parado no pé
da escada como um cão de guarda que encurralou um ladrão. Ele cou em
silêncio, então também quei. Passou pela minha cabeça que eu poderia
atravessar a sala de jantar e a cozinha até a escada dos fundos pra pegar o meu
vestido anágua. Mas de que isso teria adiantado? Ele havia visto, não é? E o rolo
de macarrão ainda estava na escada, não estava?
Não demorou pra você chegar com o Frank, Andy, e um pouco depois fui pra
nossa delegacia novinha e z uma declaração. Isso foi ontem à tarde, então
acho que não precisamos repassar tudo, né? Você sabe que não falei nada sobre
a anágua. E quando você me perguntou sobre o rolo de macarrão, eu falei que
não tinha certeza de como havia ido parar lá. Foi a única coisa que consegui
pensar em dizer, pelo menos até alguém aparecer e tirar a plaquinha de
do meu cérebro.
Depois que assinei o depoimento, entrei no carro e dirigi pra casa. Foi tudo
tão rápido e tranquilo, a parte do depoimento, que eu quase me persuadi de
que não tinha nada com que me preocupar. A nal, eu não tinha matado a Vera,
ela realmente caiu. Fiquei dizendo isso a mim mesma, e quando entrei no
terreno de casa já havia me convencido de que tudo caria bem.
Essa sensação só durou o tempo que levei pra sair do carro e andar até a
porta dos fundos. Havia um bilhete preso lá. Só uma folha de caderno. Tinha
uma mancha de graxa, como se tivesse sido arrancada de um caderno que um
homem estivesse carregando no bolso. , dizia o
bilhete. Só isso. Bom, foi o su ciente, você não diria?
Entrei em casa e abri as janelas da cozinha pra deixar o cheiro de ar parado
sair. Odeio esse cheiro, e a casa parece estar sempre impregnada com aquele
fedor agora, quer eu areje o ambiente ou não. Não é só porque passo a maior
parte do tempo morando na casa de Vera agora, ou passava, pelo menos, se
bem que, claro, é uma parte do problema. É mais porque a casa está morta…
tão morta quanto Joe e o pequeno Pete.
As casas têm uma vida, que tiram das pessoas que vivem nelas; eu realmente
acredito nisso. A nossa casinha de um andar sobreviveu à morte de Joe e à ida
dos dois lhos mais velhos pra faculdade, Selena pra Vassar com bolsa integral
(a parte dela daquele dinheiro da faculdade com o qual eu estava tão
preocupada foi pra comprar roupas e livros) e Joe Junior um pouco acima na
estrada, pra Universidade do Maine em Orono. Até sobreviveu à notícia de que
Pete havia sido morto em uma explosão de quartel em Saigon. Aconteceu logo
depois que ele chegou lá e menos de dois meses antes de a coisa toda acabar. Vi
os últimos helicópteros decolarem do teto da embaixada na televisão na sala de
Vera e só consegui chorar. Fiz isso sem medo do que ela poderia dizer porque
ela tinha ido pra Boston fazer compras.
Foi depois do enterro de Pete que a vida sumiu da casa; depois que a última
pessoa tinha ido embora e nós três, eu, Selena e Joe Junior, camos sozinhos.
Joe Junior falava sobre política. Havia acabado de conseguir o trabalho de
administrador municipal em Machias, o que não era nada mau pra um garoto
com a tinta ainda molhada no diploma da faculdade, e pensava em concorrer
para o legislativo estadual dali a um ou dois anos.
Selena falava um pouco sobre os cursos que ensinava na Albany Junior
College. Isso foi antes de ela se mudar pra Nova York e começar a escrever em
tempo integral. Depois, ela cou calada. Nós duas estávamos guardando os
pratos, e de repente senti algo. Eu me virei rapidamente e a vi olhando pra
mim com aqueles olhos escuros. Poderia dizer que li a mente dela… os pais
podem ler a mente dos lhos às vezes, sabe? Mas o fato é que não precisei. Eu
sabia em que ela estava pensando, sabia que nunca havia saído totalmente da
cabeça dela. Vi as mesmas perguntas de doze anos antes nos olhos dela,
quando ela me procurou no jardim, no meio dos feijões e dos pepinos: Você fez
alguma coisa com ele? É culpa minha? Por quanto tempo eu tenho que pagar?.
Eu me aproximei, Andy, e a abracei. Ela retribuiu o abraço, mas o corpo
permaneceu rígido junto ao meu, rígido como um atiçador de ferro. Foi nessa
hora que senti a vida sumir da casa. Foi como o último suspiro de um homem
moribundo. Acho que Selena também sentiu. Joe Junior, não. Ele coloca a foto
da casa na primeira página de alguns dos folhetos de campanha dele. Notei que
isso dá a ele um ar de pessoa comum que os eleitores gostam. Mas ele não
sentiu quando a casa morreu, porque nunca a havia amado. Por que amaria,
a nal? Pra Joe Junior, aquela casa era só o lugar pra onde ele ia depois da aula,
o lugar em que o pai o maltratava e o chamava de veadinho que lia livros.
Cumberland Hall, o alojamento onde ele morou na universidade, foi mais um
lar pra Joe Junior do que a casa em East Lane.
Mas era um lar pra mim, e era um lar pra Selena. Acho que a minha boa
menina continuou morando lá bem depois de ter sacudido a poeira da ilha
Little Tall dos pés. Acho que morou lá nas lembranças… no coração… nos
sonhos. Nos pesadelos.
Aquele cheiro úmido, não dá pra se livrar disso quando se espalha.
Fiquei sentada ao lado de uma das janelas abertas pra inspirar a brisa fresca
do mar por um tempo, mas comecei a me sentir estranha e decidi que era
melhor trancar as portas. A da frente foi fácil, mas o trinco da dos fundos
estava tão emperrado que só consegui fazê-lo se mexer quando apliquei a força
de três pessoas no movimento. Finalmente virou. E, quando aconteceu,
entendi por que havia sido tão difícil. Era só ferrugem. Às vezes passo cinco ou
seis dias seguidos na casa da Vera, mas eu não conseguia me lembrar de
quando havia sido a última vez que eu me dera ao trabalho de trancar a minha
casa.
Esse pensamento pareceu tirar toda a coragem de mim. Fui para o quarto,
me deitei e coloquei o travesseiro em cima da cabeça, como fazia quando era
garotinha e mandada pra cama cedo por me comportar mal. Chorei, chorei e
chorei. Nunca teria acreditado que havia tantas lágrimas em mim. Chorei por
Vera, por Selena e por Pete; acho que até chorei por Joe. Mas, principalmente,
chorei por mim. Chorei até o meu nariz car entupido e eu sentir pontadas na
barriga. Acabei pegando no sono.
Quando acordei, estava escuro e o telefone estava tocando. Eu me levantei e
tateei até a sala pra atender. Assim que falei alô, alguém, uma mulher, disse:
“Você não pode matá-la. Espero que saiba disso. Se a lei não te pegar, a gente
pega. Você não é tão inteligente quanto acha que é. Não somos obrigados a
conviver com assassinos aqui, Dolores Claiborne. Não enquanto ainda houver
cristãos decentes na ilha pra impedir.”
A minha cabeça estava tão confusa que primeiro achei que era um sonho.
Quando entendi que estava mesmo acordada, a mulher já havia desligado. Fui
em direção à cozinha com intenção de esquentar água e fazer um café, ou
talvez pegar uma cerveja na geladeira, mas o telefone tocou mais uma vez. Era
uma mulher de novo, mas não a mesma. Um monte de coisas horríveis
começou a sair da boca dela, e eu desliguei rapidamente. Senti vontade de
chorar de novo, mas não iria chorar de jeito nenhum. Decidi soltar o plugue do
telefone da parede. Fui pra cozinha e peguei uma cerveja, mas o gosto não foi
muito bom, e acabei derramando quase tudo na pia. Acho que o que realmente
queria era um pouco de uísque, mas não tenho uma gota de destilado em casa
desde que Joe morreu.
Peguei um copo de água e percebi que não conseguia suportar o cheiro. Era
um odor de moedas que haviam sido carregadas o dia inteiro na mão suada de
uma criança. Aquilo me fez lembrar aquela noite no meio dos arbustos de
amora, quando o mesmo cheiro chegou a mim em um sopro de brisa. Isso me
fez pensar na garota de batom rosa e vestido listrado. Pensei em como havia
passado pela minha cabeça que a mulher que ela era agora estava com
problemas. Eu me perguntei como ela estava e onde, mas nenhuma vez me
perguntei se ela estava, se é que você me entende. Eu sabia que ela estava. Está.
Nunca duvidei.
Mas isso não importa; a minha mente está divagando de novo e a minha
boca está indo logo atrás, como o cabritinho da Mary. O que eu tinha
começado a contar era que a água da minha torneira não me caiu melhor do
que a cerveja especial do sr. Budweiser. Nem uns cubos de gelo conseguiram
tirar aquele cheiro acobreado. Acabei assistindo a um programa idiota de
comédia e bebendo um dos Hawaiian Punches que guardo no fundo da
geladeira para os gêmeos de Joe Junior. Esquentei um jantar congelado, mas
não tive apetite quando cou pronto e acabei jogando tudo no lixo. Decidi
tomar outro Hawaiian Punch. Levei-o pra sala e quei sentada na frente da
televisão. Uma comédia havia acabado e outra começado, mas não pareceu
fazer a menor diferença. Acho que era porque eu não estava prestando muita
atenção.
Não tentei pensar no que faria; tem certas coisas que é melhor não pensar à
noite, porque é a hora em que a cabeça tem mais tendência a sabotar você. Em
nove a cada dez vezes, o que você decide depois que o sol se põe vai ter que ser
refeito de manhã. Por isso mesmo quei sentada sem fazer nada, e um tempo
depois que o noticiário local terminou e o programa Tonight começou, dormi
de novo.
Tive um sonho. Foi comigo e com Vera, só que Vera estava do jeito que era
quando eu a conheci, quando Joe ainda estava vivo e todos os nossos lhos, os
dela e os meus, ainda estavam em casa e por perto na maior parte do tempo.
No meu sonho, estávamos lavando a louça: ela lavando, e eu secando. Só que
não estávamos na cozinha; estávamos em frente ao fogão à lenha na sala da
minha casa. E isso foi engraçado, porque Vera nunca foi à minha casa.
Nenhuma vez na vida dela todinha.
Mas estava lá no sonho. Estava com os pratos em uma bacia de plástico em
cima do fogão; não a minha louça velha, mas a louça boa de porcelana Spode
dela. Lavava um prato e depois entregava pra mim, e todos escorregavam das
minhas mãos e se quebravam nos tijolos em que o fogão ca apoiado. Vera
dizia:
“Você precisa tomar mais cuidado, Dolores; quando acidentes acontecem e
você não toma cuidado, a confusão sempre é enorme.”
Eu prometia tomar cuidado e tentava, mas o prato seguinte escorregava dos
meus dedos, e depois outro, e depois outro, e depois outro.
“Isso não está bom”, Vera acabou dizendo. “Olha só a sujeira que você está
fazendo!”
Olhei pra baixo, mas em vez de pedaços de pratos quebrados, os tijolos
estavam cobertos de pedacinhos da dentadura de Joe e de pedra quebrada.
“Não me entrega mais nenhum, Vera”, falei, começando a chorar. “Acho que
não sirvo pra lavar pratos. Talvez esteja muito velha, sei lá, mas não quero
quebrar tudo, sei disso.”
Mas ela continuou a me entregar os pratos mesmo assim, e eu continuei
deixando-os cair, e o som que faziam quando caíam nos tijolos cou cada vez
mais alto e mais intenso até soar mais como um estrondo do que aquele
barulho estridente que a porcelana faz quando bate em algo duro e se espatifa.
Na hora eu soube que era um sonho e que aqueles estrondos não eram parte
dele. Acordei tão de repente que quase caí da cadeira. Houve outro daqueles
estrondos, e dessa vez eu soube o que era: um tiro.
Eu me levantei e fui até a janela. Duas picapes passaram na rua. Havia gente
nas caçambas, uma na caçamba da primeira e duas, acho, na caçamba da
segunda. Parecia que todos estavam armados, e a cada dois segundos um deles
disparava para o alto. Havia um brilho intenso na ponta do cano, depois outro
estrondo alto. Pelo jeito com que os homens (eu acho que eram homens, apesar
de não poder ter certeza) oscilavam, e pelo jeito como as picapes estavam meio
que em zigue-zague, eu diria que todo mundo estava caindo de bêbado. Até que
reconheci uma das picapes.
O quê?
Não, eu não vou te contar; já estou encrencada o su ciente. Não planejo
arrastar mais ninguém comigo por causa de uns tiros bêbados na madrugada.
Acho que talvez eu não tenha reconhecido a picape, a nal.
Abri a janela quando vi que não estavam deixando buracos em nada além de
em umas nuvens baixas. Achei que usariam o ponto largo no pé da nossa colina
pra fazer a volta, e foi isso mesmo. Uma delas quase entalou, e como isso teria
sido engraçado.
Eles voltaram, berrando e gritando como loucos. Levei as mãos em concha
ao redor da boca e gritei:
“Saiam daqui! Tem gente querendo dormir!”
Gritei o mais alto que consegui. Uma das picapes fez uma curva um pouco
mais ampla e quase caiu na vala, então acho que dei mesmo um susto neles. O
sujeito que estava de pé na caçamba dessa picape (foi o que achei que havia
reconhecido até alguns segundos atrás) caiu de bunda. Tenho que admitir que
tenho pulmões poderosos, sei gritar com tudo quando quero.
“Cai fora da ilha Little Tall, sua lha da puta assassina!”, gritou um deles, e
disparou mais alguns tiros no ar.
Mas acho que esse só era o jeito deles de me mostrar como eram corajosos,
porque não zeram mais nada. Eu os ouvi em disparada em direção à cidade, e
eu apostaria um biscoito que estavam indo para aquele bar maldito que abriu
dois anos atrás, com os silenciosos do escapamento berrando e os canos de
descarga soltando fogo, como faziam quando forçavam o motor. Você sabe
como os homens são quando dirigem picapes bêbados.
Bom, isso fez o meu humor melhorar um pouco. Não estava mais com medo
nem com a menor vontade de chorar. Estava era bem puta da vida, mas não
com tanta raiva a ponto de não conseguir pensar, ou entender por que as
pessoas estavam fazendo o que estavam fazendo. Quando a raiva tentou me
levar além, eu a z parar ao pensar em Sammy Marchant, em como os olhos
dele haviam cado quando ele se ajoelhou na escada e olhou primeiro para o
rolo de macarrão e depois pra mim: caram tão escuros quanto o mar logo
depois da linha de estabilidade, como os da Selena naquele dia no jardim.
Eu já sabia que ia ter que voltar aqui, Andy, mas foi só depois que aqueles
homens foram embora que parei de me enganar ao pensar que ainda poderia
escolher o que iria contar e o que iria esconder. Percebi que teria que deixar
tudo claro. Voltei pra cama e dormi em paz até nove e quinze da manhã. Foi o
mais tarde que dormi desde antes de estar casada. Acho que estava
descansando pra poder falar a noite inteira.
Quando me levantei, pretendia resolver a questão assim que possível; um
remédio amargo é melhor tomado de uma vez. Mas algo me fez parar antes que
eu saísse de casa, senão eu teria acabado contando tudo isso pra você mais
cedo.
Tomei um banho e, antes de me vestir, coloquei o plugue do telefone de
volta na parede. Não era mais de noite, e eu não estava mais no meio de um
sonho. Pensei que, se alguém quisesse me ligar pra me xingar, eu devolveria
algum dos xingamentos, começando com “covarde” e “fofoqueira nojenta”. E
realmente, eu mal tinha acabado de colocar as meias quando tocou mesmo. Eu
atendi, pronta pra dar pra pessoa do outro lado da linha uma dose do veneno
dela, quando uma voz de mulher disse:
“Alô. Posso falar com Dolores Claiborne?”
Assim que ouvi soube que era uma ligação de longa distância, e não só por
causa do eco que a gente tem aqui quando a ligação é de longe. Soube porque
ninguém na ilha me chama direto pelo nome. Aqui, nós somos senhorita,
senhora ou dona, mas chamar alguém direto pelo nome ainda era coisa do
continente, que a gente só via na estante de revistas da farmácia.
“Sou eu”, falei.
“Aqui é Alan Greenbush”, disse ela.
“Que engraçado”, falei, debochada, “a sua voz não parece de um Alan
Greenbush.”
“Aqui é do escritório dele”, disse ela, como se eu fosse a pessoa mais burra do
universo. “Você pode aguardar na linha pra falar com o sr. Greenbush?”
Ela me pegou tão de surpresa que o nome não quis dizer nada pra mim de
primeira; eu sabia que já havia ouvido antes, mas não sabia onde.
“Qual é o assunto?”, perguntei.
Houve uma pausa, como se ela não estivesse autorizada a dar esse tipo de
informação, mas aí ela disse:
“Acredito que esteja relacionado à sra. Vera Donovan. Você pode aguardar,
dona Claiborne?”
Aí a cha caiu: Greenbush, que enviava a correspondência em envelopes
acolchoados.
“Aham”, falei.
“Perdão?”
“Eu vou esperar.”
“Obrigada.”
Houve um clique, e eu quei esperando por um tempo, só de roupa de baixo.
Não demorou, mas pareceu demorar. Logo antes de ele falar, me passou pela
cabeça que devia ser por causa das vezes em que assinei o nome da Vera; eles
haviam me pegado. Pareceu bem provável; você não reparou que, quando uma
coisa dá errado, tudo parece dar errado junto?
Ele atendeu.
“Sra. Claiborne?”, disse ele.
“Sim, aqui é Dolores Claiborne”, con rmei.
“O agente da lei da ilha Little Tall me ligou ontem à tarde e me informou
que Vera Donovan faleceu. Estava meio tarde quando recebi a ligação e por isso
decidi esperar até hoje de manhã pra ligar pra você.”
Pensei em dizer pra ele que havia gente na ilha que não tinha problema com
a hora em que me ligava, mas claro que não falei.
Ele pigarreou e falou:
“Recebi uma carta da sra. Donovan cinco anos atrás me instruindo
especi camente a dar à senhora certas informações sobre os bens dela vinte e
quatro horas depois do falecimento dela.” Ele pigarreou de novo e disse:
“Apesar de eu ter falado com ela no telefone com frequência depois, essa foi a
última carta de verdade que recebi”.
Ele tinha uma voz seca e agitada. O tipo de voz que, quando conta alguma
coisa, não dá pra não ouvir.
“Do que você está falando, homem? Para de enrolação e fala!”, disse.
“Fico feliz em informá-la que, fora uma pequena doação para o Lar de Jovens
Andarilhos da Nova Inglaterra, você é a única bene ciária do testamento da
sra. Donovan.”
A minha língua grudou no céu da boca, e a única coisa em que eu conseguia
pensar era em como Vera havia entendido sobre o truque do aspirador de pó
depois de um tempo.
“Você vai receber um telegrama de con rmação hoje mesmo”, continuou
ele, “mas estou muito feliz de ter falado com você antes da chegada do
documento. A sra. Donovan era muito enfática em relação aos próprios desejos
nessa questão.”
“Aham, ela sabia mesmo ser enfática”, falei.
“Tenho certeza de que você está sofrendo com o falecimento da sra.
Donovan; todos nós estamos. Mas quero que saiba que você vai ser uma
mulher muito rica, e se eu puder fazer algo pra ajudá-la nas novas
circunstâncias, caria feliz de orientá-la, assim como z com a sra. Donovan.
Claro que vou ligar pra dar atualizações do processo do testamento pelo
inventário, mas imagino que não vá haver nenhum problema e nenhum atraso.
Na verdade…”
“Opa, calma aí, camarada”, falei, e saiu como um grunhido rouco. Tipo um
sapo em um lago seco. “De quanto dinheiro você está falando?”
Claro que eu sabia que ela era rica, Andy; o fato de que nos últimos anos
Vera só usava camisolas de anela e vivia de uma dieta regular de sopa
Campbell e papinha de bebê Gerber não mudava isso. Eu via a casa, os carros, e
às vezes olhava um pouquinho mais os papéis que chegavam naqueles
envelopes acolchoados além da linha da assinatura. Alguns eram formulários
de transferência de ações, e eu sei que quando se está vendendo duas mil ações
da Upjohn e comprando quatro mil da Mississippi Valley Light and Power, a
pessoa não está a caminho da pobreza.
Eu não estava perguntando pra poder começar a pedir cartões de créditos e
encomendar itens do catálogo da Sears; não vai car com essa ideia. Eu tinha
um motivo melhor. Sabia que o número de pessoas que achavam que eu a havia
matado provavelmente aumentaria pra cada dólar que ela deixasse pra mim, e
eu queria saber o quanto eu iria sofrer com isso. Achei que podiam ser uns
sessenta ou setenta mil dólares… Se bem que ele havia dito que ela tinha
deixado um dinheiro pra um orfanato e eu pensei que isso diminuiria um
pouco a quantia.
Também tinha uma outra coisa me incomodando, do mesmo jeito que uma
muriçoca de junho faz quando pousa na sua nuca. Havia algo de errado na
proposta toda. Mas não consegui identi car o que, tanto quanto não consegui
identi car quem era Greenbush quando a secretária disse o nome dele.
Ele disse algo que não entendi. Pareceu blá-blá-blá cerca de trinta milhões de
dólares.
“O que o senhor disse?”, perguntei.
“Que depois do inventário, dos impostos e de algumas outras pequenas
deduções, o total deve estar em cerca de trinta milhões de dólares.”
A minha mão no telefone havia começado a car daquele jeito de quando
acordo e percebo que dormi a maior parte da noite em cima dela… dormente
no meio e formigando em volta. Os meus pés também formigavam, e de
repente o mundo pareceu feito de vidro de novo.
“Perdão”, falei. Ouvi a minha boca pronunciar perfeitamente bem e de
forma clara, mas eu não parecia estar conectada a nenhuma das palavras que
estavam saindo. Os meus lábios só estavam batendo, como uma janela ao vento
forte. “A ligação aqui não está muito boa. Achei que você tivesse dito algo com
a palavra milhão no meio.”
Aí eu ri, só pra mostrar como eu sabia que isso era bobagem, mas uma parte
de mim devia ter pensado que não era bobagem, porque foi a risada mais falsa
que já ouvi sair de mim: Ia-ia-ia, foi o que pareceu.
“Eu falei milhão”, disse ele. “Na verdade, eu falei trinta milhões.”
Quer saber? Acho que ele teria rido se não fosse por causa da morte de Vera
Donovan que eu estava ganhando aquele dinheiro. Acho que ele estava
empolgado: que por baixo daquela voz seca e formal, estava empolgado pra
caramba. Acho que se sentia como John Beresford Tipton, o sujeito rico que
dava um milhão de dólares do nada naquele programa de televisão antigo. Ele
queria trabalhar pra mim, claro que isso era uma parte da questão; eu tive a
sensação de que dinheiro é como um trenzinho elétrico pra sujeitos como ele,
e ele não queria ver uma quantia tão grande quanto a da Vera sendo tirada das
suas mãos. Mas acho que a maior parte da diversão pra ele era me ouvir
gaguejar como eu estava fazendo.
“Eu não entendi”, falei, e agora a minha voz soava tão fraca que eu mal
conseguia me ouvir.
“Acho que entendo o que você está sentindo”, disse ele. “É uma quantia
muito grande, e é claro que vai demorar um tempo pra você se acostumar.”
“Quanto é de verdade?”, perguntei, e dessa vez ele riu mesmo.
Se eu pudesse ir até ele, Andy, acho que teria dado um chute naquele
traseiro.
Ele me falou de novo, trinta milhões de dólares, e pensei que, se a minha mão
casse mais dormente, eu iria acabar deixando o telefone cair. Então comecei a
entrar em pânico. Parecia que havia alguém dentro da minha cabeça sacudindo
um cabo de aço. Eu pensava trinta milhões de dólares, mas eram só palavras.
Quando tentava entender o que signi cavam, a única imagem que eu
conseguia formar na cabeça era tipo aquelas dos quadrinhos do Tio Patinhas
que Joe Junior lia para Pete quando Pete tinha quatro ou cinco anos. Eu via um
cofre enorme cheio de moedas e notas, só que em vez do Tio Patinhas nadando
naquela grana toda com as nadadeiras nos pés e os óculos redondos na ponta
do bico, eu via a mim mesma fazendo isso usando os meus chinelos de pano. Aí
essa imagem sumia, e eu pensava nos olhos de Sammy Marchant quando se
moveram do rolo de macarrão pra mim e depois de volta até o rolo de
macarrão. Ficaram iguais aos da Selena naquele dia no jardim, escuros e cheios
de perguntas. Aí pensei na mulher que havia ligado e dito que ainda havia
cristãos decentes na ilha que não precisavam conviver com assassinos. Eu me
perguntei o que aquela mulher e as amigas pensariam quando descobrissem
que a morte de Vera havia deixado trinta milhões de dólares pra mim… e esse
pensamento chegou perto de me deixar em pânico.
“Você não pode fazer isso!”, falei, meio enlouquecida. “Está me ouvindo?
Você não pode me obrigar a aceitar!”
Aí foi a vez dele de dizer que não estava conseguindo ouvir direito; que a
ligação devia estar ruim devido à distância. E eu não quei nem um pouco
surpresa. Quando um homem como Greenbush escuta alguém dizer que não
quer trinta milhões de dólares, acha mesmo que deve ter algum problema no
equipamento. Abri a boca pra dizer de novo que ele teria que car com o
dinheiro, que podia dar cada centavo para o Lar de Pequenos Andarilhos da
Nova Inglaterra, quando de repente entendi o que havia de errado em tudo
aquilo. Não foi uma coisa que eu só percebi de repente; foi algo que caiu como
um carregamento de tijolos em cima da minha cabeça.
“Donald e Helga!”, falei.
Devo ter soado como um participante de game show da televisão quando
tem a resposta certa no último segundo da rodada de bônus.
“Como é?”, perguntou ele, meio cauteloso.
“Os lhos! O lho e a lha dela! O dinheiro pertence a eles, não a mim! Eles
são da família! Eu não passo de uma empregada de con ança!”
Houve uma pausa tão comprida que eu tive certeza de que a ligação devia ter
caído e não lamentei nem um pouco. Achava que iria desmaiar, pra falar a
verdade. Estava quase desligando quando ele falou com uma voz seca e
engraçada:
“Você não sabe.”
“Não sei o quê?”, gritei pra ele. “Eu sei que ela tem um lho chamado
Donald e uma lha chamada Helga! Sei que os dois se achavam bons demais
pra virem fazer uma visita aqui, apesar de Vera sempre deixar um espaço pra
eles, mas acho que não vão ser bons demais pra dividir uma grana do tamanho
da que você está falando agora que ela morreu!”
“Você não sabe”, disse ele de novo. E aí, como se estivesse fazendo perguntas
a si mesmo e não pra mim, ele disse: “É possível que você não saiba, depois de
todo o tempo que trabalhou pra ela? É possível? Kenopensky não teria
contado?”. E antes que eu dissesse algo, ele começou a responder às próprias
perguntas. “Claro que é possível. Foi só uma notinha numa página interna do
jornal local no dia seguinte, ela escondeu tudo. Trinta anos atrás dava pra fazer
isso se você estivesse disposto a pagar pelo privilégio. Acho que não teve nem
obituário.” Ele parou e disse, como um homem faz quando acabou de descobrir
algo novo, enorme, sobre alguém que conheceu a vida toda: “Vera falava deles
como se estivessem vivos, certo? Todos esses anos!”.
“Do que você está falando?”, gritei. Parecia que havia um elevador descendo
no meu estômago, e naquele momento todos os tipos de coisas, pequenas
coisas, começaram a se encaixar na minha mente. Eu não queria, mas foi
acontecendo mesmo assim. “Claro que ela falava deles como se estivessem
vivos! Eles estão vivos! Ele tem uma imobiliária no Arizona, a Golden West
Associates! E ela desenha vestidos em São Francisco… Gaylord Fashions!”
Só que ela sempre lia uns romances históricos enormes com mulheres de
vestidos decotados beijando homens sem camisa, e a editora desses livros era a
Golden West; era o que estava escrito numa faixa metalizada no alto da capa de
cada um. E na hora me ocorreu que ela havia nascido em uma cidadezinha
chamada Gaylord, no Missouri. Quis pensar que era outra coisa, Galen, ou
talvez Galesburg, mas sabia que não era. Ainda assim, a lha dela podia ter
colocado o nome na empresa de vestidos em homenagem à cidade onde a mãe
havia nascido… ou foi o que eu disse a mim mesma.
“Sra. Claiborne”, começou Greenbush, em uma voz baixa e meio ansiosa. “O
marido da sra. Donovan morreu em um acidente infeliz quando Donald tinha
quinze anos e Helga tinha treze…”
“Eu sei disso!”, falei, como se eu quisesse que ele acreditasse que, se eu sabia
disso, devia saber de tudo.
“… e em consequência houve muitos estranhamentos entre a sra. Donovan
e os lhos.”
Eu também sabia disso. Eu me lembrava das pessoas comentando sobre
como as crianças estavam quietas quando foram lá no Memorial Day de 1961,
passar o verão na ilha, como sempre, e que várias pessoas mencionaram que
ninguém via mais os três juntos, o que era bem estranho, considerando a morte
súbita do sr. Donovan no ano anterior. Normalmente, uma coisa assim une as
pessoas… se bem que eu acho que o pessoal da cidade pode ser um pouco
diferente em relação a esse tipo de assunto. E aí, eu me lembrei de outra coisa,
uma coisa que Jimmy DeWitt me contou no outono daquele ano.
“Eles tiveram uma discussão horrível em um restaurante logo depois do
Quatro de Julho de 1961”, falei. “O garoto e a garota foram embora no dia
seguinte. Lembro que o bonitão, estou falando do Kenopensky, levou os dois
até o continente naquela lancha enorme que eles tinham na época.”
“Isso”, disse Greenbush. “Acontece que eu soube por Ted Kenopensky qual
foi o assunto da discussão. Donald havia tirado a carteira de habilitação
naquela primavera, e a sra. Donovan havia comprado um carro para o lho de
aniversário. A garota, Helga, disse que queria um carro também. Vera, a sra.
Donovan, aparentemente tentou explicar pra garota que a ideia era bobagem,
um carro seria inútil se ela não tivesse uma carteira de habilitação, e que ela só
poderia tirar uma aos quinze anos. Helga argumentou que aquilo podia ser
verdade em Maryland, mas que não era assim no Maine, que dava pra tirar
habilitação lá aos catorze anos… a idade que ela tinha. Isso podia ser verdade,
sra. Claiborne, ou foi só fantasia adolescente?”
“Era verdade na época”, falei, “mas acho que é preciso ter pelo menos quinze
anos agora. Sr. Greenbush, o carro que Vera deu para o lho de aniversário…
era um Corvette?”
“Era. Era, sim. Como você sabe disso, sra. Claiborne?”
“Devo ter visto uma foto em algum momento”, falei, mas quase nem ouvi a
minha própria voz.
A voz que ouvi foi da Vera. Estou cansada de ver tirarem aquele Corvette do rio
ao luar, disse ela quando estava morrendo na escada. Cansada de ver a água
escorrendo pela janela aberta do lado do passageiro.
“Estou surpreso de Vera ter uma fotogra a”, disse Greenbush. “Donald e
Helga Donovan morreram naquele carro, sabe? Foi em outubro de 1961, quase
um ano certinho depois que o pai deles morreu. Parece que a garota estava
dirigindo.”
Ele continuou falando, mas eu nem ouvi direito, Andy; estava ocupada
demais preenchendo as lacunas sozinha, e fazia isso tão rápido que acho que
devia saber que os lhos dela estavam mortos… em algum lugar lá no fundo,
eu devia ter sabido o tempo todo. Greenbush disse que os dois haviam bebido e
estavam dirigindo aquele Corvette a mais de cento e sessenta quilômetros por
hora quando a garota errou uma curva e caiu no riacho; ele disse que os dois
deviam ter morrido bem antes de aquele carro caro ter chegado ao fundo.
Ele disse que foi um acidente, mas talvez eu soubesse um pouco mais sobre
acidentes do que ele.
Talvez Vera soubesse também, e talvez sempre tenha sabido que a discussão
que tiveram naquele verão não teve porra nenhuma a ver com o fato de Helga
tirar ou não uma habilitação do estado do Maine; esse foi só o problema mais
fácil pra abordar. Quando McAuli e me perguntou sobre o que Joe e eu
discutimos antes de ele me enforcar, respondi que havia sido por dinheiro
principalmente, mas também por bebida. O tema principal das discussões, em
geral, é bem diferente do verdadeiro motivo das discussões, eu já reparei, e
pode ser que o que eles realmente estavam discutindo naquele verão era o que
havia acontecido com Michael Donovan no ano anterior.
Ela e o bonitão mataram o sujeito, Andy. Só faltou Vera me contar. E ela
nunca foi descoberta, mas às vezes tem gente dentro das famílias que têm
peças do quebra-cabeça que a lei não vê nunca. Gente como Selena, por
exemplo… e talvez gente como Donald e Helga Donovan também. Eu me
pergunto como os dois olhavam pra ela naquele verão, antes de terem aquela
discussão no The Harborside Restaurant e irem embora de Little Tall pela
última vez. Tentei lembrar como estavam os olhos deles quando olhavam pra
mãe, se estavam iguais aos de Selena quando olhava pra mim, mas não consigo.
Talvez só precise de tempo, mas não é algo que esteja ansiosa pra lembrar, se é
que você me entende.
O que eu sei é que dezesseis anos era jovem pra um diabinho como Don
Donovan ter uma carteira de habilitação, jovem demais, e quando você junta
isso àquele carro esportivo, ora, é a receita pra um desastre. Vera era
inteligente o su ciente pra saber disso e devia estar morrendo de medo; ela
podia odiar o homem, mas amava o lho como a própria vida. Sei que amava.
Mas deu o carro pra ele mesmo assim. Mesmo durona como era, colocou
aquele foguete no bolso dele, e no da Helga também, no m das contas,
quando ele ainda estava no segundo ano do ensino médio e devia ter acabado
de começar a se barbear. Acho que era culpa, Andy. E talvez eu queira pensar
que era só isso porque não gosto de pensar que havia medo no meio, que talvez
duas crianças ricas como eles pudessem chantagear a mãe pelas coisas que
queriam por causa da morte do pai. Eu não acho isso de verdade… mas é
possível, sabe? É possível. Em um mundo em que um homem pode passar
meses tentando levar a própria lha pra cama, eu acredito que tudo é possível.
“Eles estão mortos. É isso que você está me dizendo”, falei.
“É”, disse ele.
“Eles estão mortos há mais de trinta anos.”
“Estão.”
“E tudo o que ela me contou sobre eles era mentira.”
Ele pigarreou de novo… Se a nossa conversa de hoje for exemplo, aquele
homem é dono dos maiores pigarros do mundo. Quando ele voltou a falar,
pareceu quase humano.
“O que ela contou sobre eles, sra. Claiborne?”
E quando pensei nisso, Andy, percebi que Vera havia me contado muita
coisa, a começar pelo verão de 1962, quando ela chegou parecendo dez anos
mais velha e dez quilos mais magra do que no ano anterior. Eu me lembro de
ela me contar que Donald e Helga talvez passassem o mês de agosto na casa e
que era pra eu ver se tínhamos aveia su ciente, que era a única coisa que os
dois comiam no café da manhã. Eu me lembro de ela voltar em outubro; foi no
outono em que Kennedy e Khrushchov estavam decidindo se iam explodir o
mundo ou não. E ela me disse que eu os veria muito mais no futuro. “Espero
que você também veja as crianças”, dissera ela, mas havia algo naquela voz,
Andy… e naqueles olhos…
Foi mais nos olhos dela que pensei quando quei ali parada com o telefone
na mão. Ela me contou um monte de coisas com a boca ao longo dos anos,
onde os dois haviam estudado, o que estavam fazendo, com quem estavam
saindo (de acordo com Vera, Donald se casou e teve dois lhos, e Helga se
casou e se divorciou), mas percebi que desde o verão de 1962, os olhos dela me
contavam uma só história sem parar: eles estavam mortos. Sim… mas talvez
não completamente mortos. Não enquanto houvesse uma empregada magrela e
simplória em uma ilha na costa do Maine que ainda acreditasse que os dois
estavam vivos.
De lá, a minha mente pulou para o verão de 1963, o verão em que matei Joe,
o verão do eclipse. Ela estava fascinada pelo eclipse, mas não só porque era um
evento único na vida. Não, senhor. Estava apaixonada porque achava que era o
evento que traria Donald e Helga de volta pra Pinewood. Ela me disse isso
várias vezes. E aquela coisa nos olhos dela, a coisa que sabia que os dois
estavam mortos, sumiu por um tempo na primavera e no começo do verão
daquele ano.
Sabe o que acho? Acho que entre março ou abril de 1963 e o meio de julho,
Vera Donovan estava louca; acho que naqueles poucos meses ela realmente
acreditou que os lhos estavam vivos. Apagou da memória a visão daquele
Corvette saindo do rio; acreditava que os dois haviam voltado à vida pela mera
força de vontade. Fez com que voltassem à vida por acreditar? Não, não foi isso.
Ela os eclipsou de volta à vida.
Vera cou louca, e eu acredito que queria permanecer louca; talvez pra poder
tê-los de volta, talvez pra se punir, talvez os dois. Mas, no nal, havia sanidade
demais naquela cabeça, e ela não conseguiu. Na última semana, ou dez dias
antes do eclipse, tudo começou a ruir. Eu me lembro daquela época, quando
todo mundo que trabalhava pra ela estava se preparando para aquela merda de
passeio no eclipse e pra festa que aconteceria depois, lembro como se fosse
ontem. Ela tinha cado de bom humor por todo mês de junho e começo de
julho, mas na época em que mandei os meus lhos pra fora da ilha, tudo virou
um inferno. Foi nesse período que Vera começou a agir como a Rainha de
Copas em Alice no País das Maravilhas, gritando com as pessoas caso olhassem
pra ela meio estranho e despedindo os funcionários a torto e a direito. Acho
que isso foi quando a última tentativa dela de trazê-los de volta com a força da
vontade desmoronou. Ela soube que os dois estavam mortos pra sempre, mas
prosseguiu com a festa que havia planejado mesmo assim. Dá pra imaginar a
coragem necessária pra isso? A coragem pura vinda das entranhas?
Também me lembro de algo que ela disse; isso foi depois que eu a enfrentei
sobre despedir a garota Jolander. Quando Vera me procurou, tive certeza de
que ela iria me demitir. Mas ela me deu um saco cheio de equipamento pra ver
o eclipse e fez algo que signi cou, pelo menos pra Vera Donovan, um pedido
de desculpas. Disse que às vezes uma mulher tinha que ser muito lha da puta.
“Às vezes, ser uma lha da puta é a única coisa que uma mulher tem pra se
agarrar”, disse ela.
Aham, pensei. Quando não tem mais nada, tem isso. Sempre tem isso.
“Sra. Claiborne?”, disse uma voz no meu ouvido, e foi nessa hora que eu
lembrei que ele ainda estava na linha; eu havia me perdido completamente.
“Sra. Claiborne, ainda está aí?”
“Ainda estou aqui”, respondi.
Ele havia me perguntado o que Vera tinha me contado sobre os lhos, e isso
bastou pra me fazer pensar naquela época triste de antigamente… mas eu não
tinha como contar tudo aquilo pra ele, não pra um homem de Nova York, que
não sabia nada sobre como a gente vive aqui em Little Tall. Como ela vivia em
Little Tall. Em outras palavras, ele sabia muita coisa sobre Upjohn e Mississippi
Valley Light and Power, mas nada sobre os os nos cantos.
Nem sobre as bolinhas de poeira.
Ele começou a falar:
“Eu perguntei o que ela contou…”
“Ela me dizia pra deixar a cama deles pronta e ter sempre aveia Quaker na
despensa. Que queria estar preparada porque os dois podiam decidir voltar a
qualquer momento.”
Isso era bem próximo da verdade, Andy. Próximo o su ciente pra
Greenbush, pelo menos.
“Nossa, que incrível!”, disse ele, e foi como ouvir um médico experiente
dizer: Nossa, mas é um tumor cerebral!.
Depois, conversamos mais um pouco, mas não tenho muita ideia do quê.
Acho que falei de novo que não queria, não queria nem um centavo, e sei pela
forma como ele falou comigo, todo gentil, agradável e meio que me bajulando,
que quando ele falou com você, Andy, você não repassou nada do que Sammy
Marchant deve ter contado pra você e pra qualquer um de Little Tall que
quisesse ouvir. Acho que você pensou que não era da sua conta, pelo menos
ainda não.
Eu me lembro de ter dito pra ele dar tudo para os Pequenos Andarilhos, e de
ele dizer que não podia fazer isso. Falou que eu podia quando o testamento
tivesse passado pelo inventário (se bem que o maior idiota do mundo poderia
ter dito que ele não achava que eu faria uma coisa dessas quando nalmente
tivesse entendido o que havia acontecido), mas que ele mesmo não podia fazer
nadinha sobre o assunto.
No nal, prometi que ligaria pra ele quando estivesse “com os pensamentos
um pouco mais claros”, nas palavras dele, e depois desligamos. Fiquei parada ali
durante muito tempo; devem ter sido uns quinze minutos ou mais. Eu
estava… nervosa. Parecia que aquele dinheiro estava todo em cima de mim,
grudado na minha pele como os insetos que grudavam no papel de pegar
moscas que o meu pai pendurava na nossa casinha durante o verão quando eu
era pequena. Tive medo de grudar cada vez mais quando eu começasse a me
mover, de me envolver e me enrolar até eu não ter a menor chance de tirá-lo
de mim.
Quando comecei a me mexer, já havia esquecido sobre vir até a delegacia
falar com você, Andy. Pra falar a verdade, quase me esqueci de me vestir. No
nal, coloquei uma calça jeans velha e um suéter, apesar de o vestido que eu
pretendia usar estar esticadinho na cama (e ainda está, a não ser que alguém
tenha arrombado a minha casa e descontado no vestido o que teria gostado de
fazer com a pessoa que costuma vesti-lo). Acrescentei as galochas, e achei que
estava bom.
Contornei a pedra branca entre o barracão e os arbustos de amora, parando
um pouquinho pra olhar e ouvir o vento sacudir os galhos cheios de espinhos.
Mal dava pra ver o branco da cobertura de concreto. Olhar para aquilo me
deixou trêmula, como uma pessoa ca quando está pegando um resfriado forte
ou uma gripe. Peguei o atalho por Russian Meadow e andei até onde a rua
termina em East Head. Fiquei parada lá por um tempo, deixando o vento do
mar esvoaçar o meu cabelo e me limpar, como sempre faz, depois desci a
escada.
Ah, não faz essa cara de preocupação, Frank. A corda no alto e a placa de
alerta ainda estão lá; é só que eu não estava muito preocupada com aquela
escada bamba depois de tudo que eu havia tido que enfrentar.
Desci tudo, de um lado para o outro, até chegar às pedras lá embaixo. A
velha doca da cidade, que o pessoal de antigamente chamava de Doca
Simmons, estava lá, você sabe, mas não sobrou nada além de alguns postes e
dois anéis de ferro grandes presos no granito, enferrujados e escamosos.
Parecem como imagino que as órbitas oculares no crânio de um dragão seriam
se essa criatura existisse. Pesquei naquela doca muitas vezes quando era
criança, Andy, e acho que pensava que sempre estaria lá, mas, no m das
contas, o mar leva tudo.
Eu me sentei no último degrau, com as galochas balançando, e quei
durante as sete horas seguintes. Vi a maré descer e subir quase tudo de novo,
até não querer mais saber daquele lugar.
Primeiro, tentei pensar no dinheiro, mas não consegui. Talvez as pessoas
que já tiveram uma quantia assim a vida toda consigam, mas eu não consegui.
Cada vez que tentava, só via Sammy Marchant olhando do rolo de macarrão…
pra mim. Era isto que o dinheiro signi cava pra mim, Andy, e o que ainda
signi ca: Sammy Marchant me olhando com o olhar sombrio e dizendo:
“Achei que ela não conseguia andar. Você sempre me disse que ela não
conseguia andar, Dolores”.
Depois, pensei em Donald e Helga.
“Se me engana uma vez, a errada é você”, falei pra ninguém, ainda sentada
ali, os pés tão perto das ondas que às vezes encostavam na espuma. “Se me
engana de novo, a trouxa sou eu.”
Só que Vera nunca me enganou de verdade… os olhos dela nunca me
enganaram.
Eu me lembro de perceber, acho que deve ter sido no nal dos anos 1960,
que eu nunca os tinha visto, nem uma vez, desde que o bonitão os levou para o
continente naquele dia de julho de 1961. E isso me perturbou tanto que rompi
uma regra antiga minha de não falar sobre os dois a menos que Vera tocasse no
assunto primeiro.
“Como estão as crianças, Vera?”, perguntei. As palavras pularam da minha
boca antes que pensasse duas vezes… com Deus como testemunha, foi
exatamente assim. “Como estão de verdade?”
Lembro que ela estava sentada na sala na ocasião, tricotando na cadeira
próxima aos janelões, e quando z a pergunta ela parou pra me olhar. O sol
estava forte naquele dia, batia no rosto dela em um feixe intenso e luminoso, e
houve algo de tão assustador na aparência dela que, por um ou dois segundos,
cheguei perto de gritar. Só quando o ímpeto passou que eu percebi que foram
os olhos dela. Eram olhos fundos, círculos pretos naquele feixe de sol em que
todo o resto brilhava. Pareciam os olhos dele quando me olhou do fundo do
poço… como pedrinhas pretas ou pedaços de carvão en ados em massa
branca. Por aquele segundo ou dois, pareceu que eu tinha visto um fantasma.
Mas ela moveu a cabeça um pouco e voltou a ser Vera de novo, sentada ali com
cara de que tinha bebido demais na noite anterior. Não teria sido a primeira
vez.
“Eu não sei de verdade, Dolores. Nós estamos afastados.”
Isso foi tudo que Vera disse, e foi tudo que precisava dizer. Todas as histórias
que havia me contado sobre a vida dos lhos, que agora sei que foram
inventadas, não disseram tanto quanto aquelas três palavras: Nós estamos
afastados. Muito do tempo que passei hoje na doca Simmons foi pensando
nessa palavra horrível. Afastados. Tremo só de pensar.
Fiquei sentada ali remexendo nesses ossos velhos uma última vez, coloquei-
os de lado e me levantei de onde havia passado a maior parte do dia. Decidi
que não ligava muito para o que você ou qualquer outra pessoa acreditasse.
Acabou, entende? Pra Joe, pra Vera, pra Michael Donovan, pra Donald e
Helga… e pra Dolores Claiborne também. De um jeito ou de outro, todas as
pontes entre aquela época e agora foram queimadas. O tempo também é como
um corpo de água, assim como o que ca entre as ilhas e o continente, mas a
única balsa que pode atravessá-lo é a memória, e ela é como um navio
fantasma: se você quiser que desapareça, depois de um tempo, vai desaparecer.
Mas deixando isso tudo de lado, ainda é engraçado como tudo acabou, não
é? Lembro o que passou pela minha cabeça quando me levantei e voltei pra
escada bamba — o mesmo que havia passado quando Joe tirou o braço do poço
e quase me puxou pra dentro com ele: Cavei um buraco para os meus inimigos e
fui eu que nele acabei caindo. Pensei que, quando me segurei naquele corrimão
velho cheio de farpas e comecei a subir todos os degraus de volta (sempre
supondo que me aguentariam uma segunda vez, claro) que isso nalmente
havia acontecido, e que eu sempre soube que aconteceria. Só demorei um
tempo a mais pra cair no meu do que Joe pra cair no dele.
Vera também tinha um poço onde cair… e se tenho algo pelo que agradecer
é por não ter precisado sonhar que os meus lhos estavam de volta à vida como
ela. Se bem que, às vezes, quando falo com Selena ao telefone e a ouço arrastar
as palavras, eu me pergunto se existe fuga pra nós das dores e do sofrimento da
vida. Não consegui enganá-la, Andy. Azar o meu.
Ainda assim, vou aguentar ao máximo e trincar os dentes pra parecer um
sorriso, como sempre z. Tento sempre lembrar que dois dos meus três lhos
continuam vivos, que são mais bem-sucedidos do que qualquer um em Little
Tall teria esperado quando eles eram bebês, e muito mais bem-sucedidos do
que poderiam ter sido se o pai imprestável deles não tivesse sofrido um
acidente na tarde de 20 de julho de 1963. A vida não é uma proposição de
“uma coisa ou outra”, entende? E se eu me esquecer de agradecer pelo fato de
que a minha menina e um dos meus meninos viveram enquanto o menino e a
menina da Vera morreram, vou ter que justi car o pecado da ingratidão
quando eu chegar perante o trono do Todo-Poderoso. Não quero fazer isso. Já
tenho o su ciente na minha consciência e provavelmente na alma também.
Mas me escutem, vocês três, e escutem isto se não ouvirem mais nada: tudo
que z, z por amor… o amor que uma mãe tem pelos lhos. É o amor mais
forte que existe no mundo, e o mais mortal. Não tem lha da puta maior na
face da Terra do que uma mãe que teme pelos próprios lhos.
Quando cheguei ao topo da escada e parei no patamar logo depois daquela
corda de proteção, olhando para o mar, pensei no meu sonho; o sonho em que
Vera cava me dando pratos e eu deixava todos caírem. Pensei no som que a
pedra fez quando bateu na cara dele, e que os dois sons eram iguais.
Mas, mais do que tudo, pensei em mim e em Vera, duas lhas da puta
moradoras de um pedacinho de rocha perto da costa do Maine, convivendo
durante a maior parte do tempo nos últimos anos. Pensei em como as duas
lhas da puta dormiam juntas quando a mais velha estava com medo e como
passaram os anos naquela casa grande, duas lhas da puta que acabaram
passando a maior parte da vida sendo lhas da puta uma com a outra. Pensei
em como Vera me enganava, e eu a enganava de volta, e ambas cávamos
felizes quando vencíamos uma rodada. Pensei em como ela cava quando as
bolinhas de poeira iam pra cima dela, como gritava e tremia como um animal
encurralado por uma criatura maior que pretende deixá-la em pedacinhos.
Lembro que eu subia na cama, a abraçava e a sentia tremendo como um vidro
delicado em que alguém bateu com o cabo de uma faca. Eu sentia as lágrimas
dela no meu pescoço, fazia carinho naquele cabelo no e ressecado e dizia:
“Shhh, querida… shhh. Essas bolinhas de poeira danadas já foram embora.
Você está segura. Comigo”.
Mas, se eu descobri uma coisa, Andy, é que elas nunca vão embora de vez,
não de verdade. Você acha que está livre, que limpou tudo e não tem mais
bolinhas de poeira em lugar nenhum, mas aí elas voltam, parecem rostos,
sempre parecem rostos, e os rostos sempre são os das pessoas que você não
queria ver nunca mais, nem acordada, nem em sonho.
Pensei também em Vera caída na escada dizendo que estava cansada e que
queria que acabasse. E, naquele patamar bambo, com as galochas molhadas, eu
soube muito bem por que tinha escolhido estar naquela escada que está tão
podre que nem as crianças mais pestinhas brincam ali depois da aula, nem nos
dias em que matam aula. Eu também estava cansada. Vivi minha vida da
melhor forma que pude pelos meus padrões. Nunca fugi de trabalho, nem dei
desculpa pra escapar do que precisava fazer, mesmo quando era algo terrível.
Vera estava certa quando disse que às vezes uma mulher precisa ser muito lha
da puta pra sobreviver, mas ser uma lha da puta dá trabalho, isso eu posso
dizer pra quem quiser ouvir, e eu estava muito cansada. Queria que tudo
acabasse, e me passou pela cabeça que não era tarde demais pra descer aquela
escada de novo, e que eu não tinha que parar lá embaixo dessa vez… não se
não quisesse.
Mas aí, eu a ouvi de novo. Vera. Eu a ouvi como ouvi naquela noite ao lado
do poço, não só na minha cabeça, mas no meu ouvido. Foi bem mais sinistro
dessa vez, garanto; em 1963, ela pelo menos estava viva.
“Em que você pode estar pensando, Dolores?”, perguntou Vera com aquela
voz arrogante de não gostou en a no cu dela. “Eu paguei um preço maior do que
você; paguei um preço maior do que qualquer pessoa vai saber, mas mesmo
assim vivi com a barganha que havia feito. Fiz mais do que isso. Quando as
bolinhas de poeira e os sonhos do que poderia ter acontecido foram as únicas
coisas que restaram, peguei os sonhos e os transformei em meus. As bolinhas
de poeira? Bom, podem ter me pegado no nal, mas eu vivi com elas por
muitos anos antes disso. Agora, você tem as suas pra enfrentar, mas se perdeu a
coragem que tinha no dia em que me disse que despedir a garota Jolander era
uma coisa horrível de fazer, vai lá. Vai lá e pula. Porque, sem a sua coragem,
Dolores Claiborne, você não passa de mais uma velha burra.”
Recuei e olhei em volta, mas só havia o East Head, escuro e molhado, com
aquele borrifo que vem pelo ar nos dias de vento. Não havia uma alma viva por
perto. Fiquei ali mais um pouco, olhando o jeito como as nuvens percorriam o
céu; gosto de olhar as nuvens porque estão tão no alto, e são livres e silenciosas
enquanto seguem caminho lá em cima. Depois, eu me virei e voltei pra casa.
Tive que parar e descansar duas ou três vezes, porque tanto tempo sentada no
ar úmido no pé da escada maltratou as minhas costas. Mas consegui. Quando
cheguei em casa, tomei três aspirinas, entrei no carro e vim direto pra cá.
E é isso.
Nancy, estou vendo que você empilhou umas dez dessas tas e que seu
gravadorzinho danado deve estar cansado. Também estou, mas vim aqui pra
falar, e falei… cada palavra do que aconteceu, e cada palavra é verdade. Faz o
que tiver que fazer comigo, Andy; z a minha parte e estou em paz comigo
mesma. É só isso que importa, acho; isso e saber exatamente quem você é. Eu
sei quem eu sou: Dolores Claiborne, a dois meses de fazer sessenta e seis anos,
democrata registrada, residente da ilha Little Tall por toda a vida.
Nancy, acho que quero dizer mais duas coisas antes de você apertar o botão
de parar desse seu aparelhinho. No m, são as lhas da puta do mundo que
permanecem… e, quanto às bolinhas de poeira: vão se foder!
Do Ellsworth American, 6 de novembro de 1992 (p. 1):

MORADORA DA ILHA INOCENTADA


Dolores Claiborne, da ilha Little Tall, acompanhante antiga da sra. Vera
Donovan, também de Little Tall, foi absolvida de toda a culpa na morte da sra.
Donovan em um inquérito especial do legista feito em Machias ontem. O
objetivo do inquérito era determinar se a sra. Donovan havia sofrido “morte
irregular”, ou seja, morte resultante de negligência ou ato criminoso. As
especulações relacionadas ao papel da sra. Claiborne na morte da empregadora
foram alimentadas pelo fato de que a sra. Donovan, que estava supostamente
senil na ocasião da morte, deixou para a acompanhante e empregada todos os
seus bens. Algumas fontes estimam o valor dos bens em mais de dez milhões
de dólares.
Do Boston Globe, 20 de novembro de 1992 (p. 1):

BENFEITOR ANÔNIMO DOA 30 MILHÕES PARA ORFANATO


UM DIA DE AÇÃO DE GRAÇAS FELIZ EM SOMERVILLE
Os diretores perplexos do Lar de Pequenos Andarilhos da Nova Inglaterra
anunciaram em uma coletiva de imprensa convocada às pressas no nal desta
tarde que o Natal está chegando um pouco mais cedo para o orfanato de 150
anos este ano, graças a uma doação de trinta milhões de dólares feita por um
doador anônimo.
“Nós recebemos a informação dessa doação incrível por meio de Alan
Greenbush, um advogado renomado de Nova York e contador público
certi cado”, disse um visivelmente abalado Brandon Jaegger, líder do comitê de
diretores do Lar. “Parece estar tudo regularizado, mas a pessoa por trás dessa
contribuição… ou, talvez eu deva dizer, o anjo da guarda por trás disso está
comprometido com o anonimato. Nem precisamos dizer que todos nós
envolvidos com o Lar estamos felizes da vida.”
Se a doação de vários milhões de dólares for real, a sorte dos Pequenos
Andarilhos seria a maior contribuição de caridade única para a instituição de
Massachusetts desde 1938, quando…
Do The Weekly Tide, 14 de dezembro de 1992 (p. 16):

NOTAS DE LITTLE TALL


DE “NETTIE ABELHUDA”
A sra. Lottie McCandles ganhou o prêmio de Natal no Festão de Sexta em
Jonesport semana passada; o prêmio totalizou 240 dólares e dá para comprar
muitos presentes de Natal! Nettie Abelhuda está morreeeendo de inveja!
Falando sério, parabéns, Lottie!
O irmão de John Caron, Philo, veio de Derry para ajudar John a calafetar o
barco dele, o Deepstar, enquanto estava em doca seca. Não há nada como o
“amor fraternal” nessa estação abençoada, não é, rapazes?
Jolene Aubuchon, que mora com a neta, Patricia, terminou um quebra-
cabeça de 2 mil peças do monte Santa Helena na quinta passada. Jolene diz
que vai comemorar o nonagésimo aniversário ano que vem fazendo um de 5
mil peças da Capela Sistina. Viva, Jolene! Nettie Abelhuda e todos do Tide
gostamos do seu estilo!
Dolores Claiborne vai fazer compras para mais uma pessoa esta semana! Ela
sabia que o seu lho Joe, o “sr. Democrata”, iria para casa com a família depois
dos trabalhos em Augusta para um “Natal na ilha”, mas agora ela disse que a
lha, a famosa jornalista de revistas Selena St. George, vai fazer a sua primeira
visita em mais de vinte anos! Dolores diz que se sente “muito abençoada”.
Quando a Abelhuda perguntou se eles falariam sobre a mais recente coluna de
opinião de Selena no Atlantic Monthly, Dolores apenas sorriu e disse: “Vamos
ter muita coisa para conversar, tenho certeza”.
Do Departamento de Recuperações Precoces, Abelhuda soube que Vincent
Bragg, que quebrou o braço jogando futebol americano em outubro…

Outubro de 1989 — Fevereiro de 1992


nasceu em Portland, no Maine, em 1947. Em 1974, publicou
Carrie, seu primeiro livro, que logo se tornou best-seller e clássico
contemporâneo. Desde então, King escreveu mais de setenta livros, alguns dos
quais caram mundialmente famosos e deram origem a adaptações de sucesso,
como O iluminado, Sob a redoma, It, a Coisa, À espera de um milagre, A torre
negra, entre outros.
Em 2003, recebeu a medalha de Eminente Contribuição às Letras
Americanas da National Book Foundation e, em 2007, foi nomeado Grão-
Mestre dos Escritores de Mistério dos Estados Unidos. Atualmente, mora em
Bangor, no Maine, com a esposa, a escritora Tabitha King.
Copyright © 1993 by Stephen King

Publicado mediante acordo com o autor através da The Lotts Agency, Ltd.

Gra a atualizada segundo o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil
em 2009.

Título original
Dolores Claiborne

Capa
Alceu Chiesorin Nunes

Imagem de capa
Adobe Stock

Design de conteúdo extra e ilustrações


Rogério Borges

Preparação
Angélica Andrade

Revisão
Natália Mori
Juliana Cury | Algo Novo Editorial

Versão digital
Rafael Alt

978-85-5651-218-5

Todos os direitos desta edição reservados à


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