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Copyright © 2023 Loren Santos

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos


descritos são produtos de imaginação do autor. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Capa: L.A Designer Editorial
Diagramação Digital: Cristina Clini | Loren Santos
Revisão: Lidiane Mastello
Todos os direitos reservados.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa
obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o
consentimento escrito da autora.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº 9.610/98 e
punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Edição Digital ǀ Criado no Brasil
1ª Edição
Setembro de 2023
Artur é o caçula dos irmãos Albuquerque. Um veterinário
descomplicado, tranquilo e apaixonado pela fazenda. Desejado pelas

mulheres de toda a região, não buscava romance até um furacão ruivo e


indefeso atravessar o seu caminho, transformando completamente a vida

antes tão pacata.

Diferente dos que as pessoas pensavam, ser filha do prefeito não


garantia a Rebeca Moreira uma vida fútil e sem graça. Na verdade, poucas

pessoas conheciam a garota doce, altruísta, aparentemente frágil, mas com

muita vontade de viver e proteger sua mãe das atrocidades do pai.

Em uma noite em que tudo parecia perdido, Rebeca se verá obrigada

a tomar uma decisão inadiável que poderá mudar os rumos de sua vida para

sempre.

Um homem carinhoso, racional e extremamente protetor.


Uma garota indefesa fugindo de um futuro cruel.
Um encontro inesperado. Um ato impulsivo.
Duas vidas transformadas.

Este é um conto de fadas moderno com direito a príncipe no cavalo

branco e muitos suspiros apaixonados.


SINOPSE
ÍNDICE
NOTA DA AUTORA
PLAYLIST
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
EPÍLOGO
CENA BÔNUS 1
CENA BÔNUS 2
REDES SOCIAIS
OUTRAS OBRAS
Olá!

Seja bem-vinda(o) ao terceiro livro da série Família Albuquerque.

Se ainda não conhece os outros livros da série, recomendo que leia


os anteriores. A ordem de leitura não afeta o desenvolvimento dos casais,

pois cada livro conta a história de um dos irmãos. Entretanto, possuem um


mesmo panorama de fundo. Assim, você poderá encontrar spoilers. Fique à

vontade para decidir se continuará com a leitura de Artur e Rebeca ou se

prefere mergulhar nas anteriores.

Embora se aproxime de um conto de fadas moderno, este livro

aborda temas atuais e sensíveis como violência (doméstica, física,

psicológica, sexual e patrimonial), assuntos políticos e depressão. Não pode

ser considerado um livro dark, mas é importante destacar que há cenas


gráficas dos assuntos descritos, assim como sexo explícito. Se de algum
modo forem temas complicados para você, não leia. Sua saúde mental é

mais importante do que um momento de entretenimento.

No entanto, se decidiu seguir em frente, prepare-se para conhecer ou


revisitar a fazenda Canto dos Pássaros. Ela te espera de porteiras abertas.

Beijos e boa cavalgada!

Loren Santos
Se você já é minha leitora, sabe que a playlist conta muito sobre a

personalidade dos meus personagens, assim como de todo o enredo da


história. Mas se está chegando agora, junte-se a nós, prepare os fones de

ouvido e escaneie o código a seguir ou clique aqui.


ARTUR ALBUQUERQUE

AGOSTO

A fazenda estava em festa comemorando mais uma colheita muito

produtiva.

Os negócios tinham crescido muito nos últimos meses e agora


estavam sendo passados gradativamente para Antônio, já que Aloísio estava

em campanha eleitoral para a prefeitura de Alta Colina.

A noite estava bonita, sem nuvens e fresca. A fogueira crepitava

alto, enquanto os violeiros puxavam as modas antigas, fazendo as pessoas

se jogarem na dança.

Girei mamãe em meus braços sem perdermos o ritmo da música

animada, arrancando seus sorrisos sinceros e leves. Quem a via tão


tranquila naquela noite sequer imaginava o quanto ela era mulher forte e

atenta, ciente de cada movimento que acontecia no nosso império, sem

nunca perder o tato para resolver situações complexas que ocorriam

constantemente.

— Sabe — ela comentou, como quem não quer nada —, estava

olhando o tanto de moça bonita nos prestigiando esta noite. Filhas de

fazendeiros da região, moças da cidade, filhas dos nossos funcionários e,

principalmente, uma certa ruiva linda que infelizmente é filha do prefeito.


— Fez careta ao mencionar o homem, mas sorriu, circulando a minha

cintura ao voltar a falar: — E você aqui, perdendo tempo com a sua velha

mãe. Por que não tira uma delas para dançar e comece a providenciar os

meus netinhos, hein? Estou ficando velha, preciso ser avó dos seus filhos
logo.

Ri, alisando o rosto com algumas linhas de expressão, mas

extremamente bonito.

— A senhora não está feliz com os seus três netos espoletas? A

Aurora acabou de nascer — cortejei, apertando meus braços ao redor do


corpo estreito.

— Eu não tive três filhos para ficarem me regulando netos —

respondeu dando três tapinhas no meu rosto. Seus olhos brilhavam, repletos
de vida, — Quero essa casa cheia de Albuquerquinhos. E seus eu quero pelo

menos uns quatro.

Gargalhei, tirando-a do chão em um abraço apertado.

— Me põe no chão, menino — gritou.

Demorei mais alguns segundos a irritando, mas fiz o que pediu.

Mamãe ajeitou a camisa de botão e, em seguida, fez o mesmo com a minha.

— Mas falando sério, filho, está na hora de pousar esse coração em

um terreno seguro. É um menino de ouro, mas chega dessa vida boêmia que

você e Antônio tinham.

Fiz uma careta só para vê-la brava.

— Vou pensar no seu caso, Dona Marta.

— Pensa com carinho. Quero estar bem nova ainda para cuidar dos

meus dez netos — respondeu, me fazendo rir. Uma creche só para os

herdeiros Albuquerque seria pouco para ela. Segurou as laterais do meu

rosto, forçando-me a abaixar a testa para que ela pousasse um beijo

carinhoso. — Agora vou me juntar ao restante dos convidados.

Assenti, vendo-a se afastar.

Peguei o copo de cerveja que abandonei antes de tirar a mamãe para

dançar, pensando enquanto o enchia novamente.


Meus irmãos dançavam com suas esposas, felizes e radiantes.

Aloísio, embora fosse o mais impetuoso de nós três, se tornava outro

homem quando estava com Luiza. Mais leve e bem-humorado.

Antônio perdeu completamente a postura de libertino que sustentava

antes da chegada de Marcela. Agora, além de rendido, ele era um pai babão,

homem de família.

Eu os admirava como casais, mas isso não queria dizer que eu


estava buscando por alguém. A verdade era que aos 27 anos eu gostava da

liberdade de ser solteiro.

Diferente dos meus irmãos, eu não era avesso a relacionamentos.

Pelo contrário, não tinha nada contra. Havia tido duas namoradas sérias, a

relação mais longa tinha sido no período da faculdade.

Foram especiais, mas o nosso fim era esperado. Eu amava a fazenda


e sabia que aquele sempre seria o meu lugar no mundo, ao contrário delas.

Nunca fui o tipo de cara que forçava uma mulher a nada, não seria diferente

quando se tratava sobre viver em um lugar como aquele.

Conferi o relógio robusto e pesado, notando que ainda era cedo.

Parei próximo aos meus amigos em silêncio, ouvindo a quantidade de

bobagens que normalmente diziam, dando uma golada na cerveja gelada.


Eu gostava muito de bebida alcoólica, natural para alguém que

cresceu na fazenda vendo o pai beber. Entretanto, era consciente e sabia

frear quando sentia meus limites sendo atingidos. Raramente ficava bêbado

e era comum ser o responsável pelos meus amigos malucos e

inconsequentes. Eram doidos, mas tirando os meus irmãos, eram os

melhores caras da fazenda.

Técnicos do campo, Jonas era responsável pelos dados da

propriedade coletados através de drones, e Washington, técnico

agropecuário, atuava em um pouco de tudo das atividades diárias.

— Está no mundo da lua, peão? — Jonas indagou, vendo-me quieto.

— Pensando na vida — disse, sem me estender.

Passei meus olhos pelos convidados espalhados. Alguns dançando,

três fazendeiros de pé conversando com meu pai e crianças correndo

próximas à fogueira. Do outro lado, algumas moças bonitas pareciam me

olhar como se eu fosse um aperitivo gostoso. Uma ou outra tentava ser

discreta, mas a maioria não fazia questão de esconder. Suspirei, sorvendo a

bebida outra vez, chegando à conclusão de que nenhuma delas despertava

algum sentimento diferente em mim.

Ainda que as palavras de mamãe ainda estivessem ecoando em

minha mente, não iria me cobrar. Sabia que se em algum momento


acontecesse, é porque seria para acontecer.

Continuei observando ao redor, enquanto ouvia os dois levantando

mil teorias. Vi Rodrigo e Joe rindo juntos em uma conversa descontraída.

Eles tinham assumido a relação homoafetiva há algum tempo, o que

fez o prefeito e pai de Rodrigo explodir. Quando criança, o irmão do meio

de Rebeca e Renata tinha sido enviado para um colégio interno, desculpa


perfeita para o filho da mãe isolar o herdeiro que começava a dar sinais da

orientação sexual, inadmissível para alguém como Deodato Moreira.

Machista, homofóbico e pilantra era pouco para ele.

— Devo admitir, as irmãs do Rodrigo são bonitas pra porra —

Washington comentou, relaxado. — A Renata não vale nada e merece se

foder muito, mas aquela ruivinha... Meus amigos, tenho vontade de pôr no

colo e oferecer mamadeira.

— Para de falar merda, cara — ralhei. Embora gostasse muito dele,

odiava quando tinha aqueles papos escrotos.

— É Washington, larga de ser besta — Jonas endossou. — Mas que

eu queria ser uma mosquinha para saber como é o relacionamento da

família Moreira, eu queria. Dizem que Rebeca é uma santa, mas acho difícil

acreditar vindo daquela casa.

Poderia ser cruel, mas ele tinha razão.


Os Moreira tinham muita história na cidade de Alta Colina. Deodato

tinha sido vereador por muitos anos, em seguida prefeito por alguns

mandatos. Atualmente, estava concorrendo à reeleição pela quarta vez.

Era influente na região e teria tudo para ganhar as eleições se sua

filha Renata não tivesse se metido com a nossa família. Com sangue nos

olhos, Aloísio tinha decidido concorrer à prefeitura da cidade, e eu tinha

sérias convicções de que venceria.

Parei meu olhar na garota ruiva ao lado de Rodrigo. Rebeca parecia

dispersa olhando para o céu, completamente alheia ao que acontecia ao seu


redor. Eu a tinha visto mais cedo na festa, mas diferente das outras, ela não

parecia estar muito atenta às pessoas, mas sim à paisagem.

Os olhos castanhos, quase dourados, brilhavam observando o céu

escuro e estrelado, deslumbrada. Ainda que os braços estivessem cruzados


na frente do corpo encolhido, parecia feliz como se apreciasse a liberdade.

Franzina, tinha o corpo com uma leve curva nos seios e quadris,

totalmente proporcionais. A pele tão clara como uma folha de papel. Os


cabelos ruivos, brilhantes e longos chamavam muita atenção,

principalmente quando expostos ao Sol. Os lábios eram grossos e


chamativos. Ela não parecia ter mais do que 1,65cm de altura, bem mais
baixa do que os meus 1,83cm. Parecia frágil, tão delicada quanto uma
boneca.

Quem olhava à primeira vista, jamais dizia que era irmã de Renata.

As duas não tinham absolutamente nada em comum. Enquanto Rebeca era


baixinha, tímida e ruiva; Renata era o exato oposto. Alta, loira e

completamente desinibida. Talvez fosse a única filha benquista e amada


pelo pai, enquanto os irmãos mais novos sofriam com a ira do patriarca.

Notei o exato momento em que Joe deu um leve tapa em seu ombro,
chamando sua atenção. Rebeca se curvou levemente para frente e contorceu

o rosto como se estivesse sentido dor com o gesto. Corrigiu a postura


rapidamente, sorrindo de modo educado, mas sem vontade.

Foi quase imperceptível, mas notório o suficiente para não passar

despercebido por mim, que mantinha os olhos fixos nela.

Inconscientemente, juntei as sobrancelhas, como sempre fazia

quando achava algo estranho ou estava concentrado. De tanto mamãe e


meus irmãos falarem, acabei aprendendo a perceber quando fazia.

Continuei observando-a, levantando alguns cenários para o fato de

ela parecer se sentir livre, assim como a expressão em sua face.

— Perdeu alguma coisa na ruivinha, peão? — A voz de Washington

me fez olhá-lo rapidamente. — Aposto meu cavalo que ela é virgem.


— E o que isso tem a ver com você? — retruquei.

Washington levantou as mãos em sinal de rendição.

— Ui! Ele ficou bravinho! — debochou, bebericando o copo, antes


de continuar: — Tem a ver que eu adoraria ser o sortudo a estrear aquela
Ferrari vermelha.

Engoli o desconforto que se instalou em minha garganta quando


imaginei aquela possibilidade, principalmente porque era a segunda vez que

ele se referia a ela daquele modo desrespeitoso.

— Vou te avisar pela última vez — alertei. — Se você se referir a

ela desse jeito outra vez, vou te fazer engolir uns dentes.

— Tudo bem, chefe — falou, levantando a mão em rendição.

Tentei analisar o que foi aquela onda de emoção repentina. Eu não

tinha absolutamente nada a ver com quem ela se relacionava, mas uma
vontade de mandar meu amigo ir à merda veio com força. Dei de ombros,

voltando minha atenção para a garota, enquanto ele e Jonas conversavam


besteiras.

Alguns segundos se passaram, e Rebeca parecia novamente

desconectada do mundo à medida que contemplava o horizonte. A brisa fria


atingiu o seu rosto, bagunçando os cabelos longos. Atento, observei-a

levantar o braço devagar ao mesmo tempo em que inflava os pulmões para


segurar o ar, a boca contorcia e os olhos estreitavam. Algo não estava bem e

aquilo me deixou cauteloso.

Infelizmente, eu precisava concordar com Washington quando disse


que dava vontade de colocá-la no colo, mas de um modo completamente

protetor. Tudo na garota clamava por suavidade e cuidado.

Não sei dizer se o olhar triste ao mesmo tempo deslumbrado, ou a

pureza de uma flor faziam com que eu me sentisse incrivelmente mexido.


Algo forte como uma sensação de poder cuidá-la e protegê-la. Quem sabe

fosse a compaixão e empatia por saber que talvez a vida da caçula não fosse
tão fácil quanto todos pensavam.

Eu precisava agir, ao menos para ter certeza de que ela não

precisava de ajuda.
REBECA MOREIRA

— Você está bem, ruivinha? — Joe indagou, observando-me com


atenção quando fiz uma careta de dor ao puxar o ar com um pouco mais de

força.

Ele tinha sido uma benção na minha vida e na do meu irmão. Era
conflituoso, porque atiçou ainda mais a ira do meu pai, mas a sua presença

abrandava um pouco o peso em nossas costas, nos enchendo de amor e

carinho.

Tentei desviar o olhar, procurando disfarçar aquela situação, mas

tudo doía. Nem mesmo a melhor atriz do Oscar conseguiria fingir estar bem

sentindo tamanho desconforto. Eu estava preocupada, temerosa demais com


a possibilidade de ter fraturado a costela. No entanto, não poderia ir ao
médico ou contar para ninguém, nem mesmo o meu irmão. Se a notícia se

espalhasse não sei o que poderia ser de mim.

Segurei a emoção na garganta, sentindo os olhos querendo


lacrimejar. Respirei fundo, modulando a voz para um tom mais firme e fingi

um sorriso amarelo para que ele não notasse nas entrelinhas.

— Sim, só uma cólica forte. Coisa de meninas.

— Sei... — devolveu desconfiado, erguendo uma sobrancelha.

Joe parecia ter visão de águia. Talvez pela malícia que a vida lhe
ensinou a ter a duras penas, sabia identificar quando alguém não estava

bem, e era exatamente por isso que eu tentava evitá-lo, principalmente nos

dias mais críticos.

Em seguida, descontraiu quando Rodrigo abraçou sua cintura:

— Ainda bem que desse mal eu não sofro, fico só com a parte boa.

— Sorriu, um pouco sacana.

Meu amigo era 8 ou 80. Quando levava as coisas a sério, era sério

demais. Quando levava na esportiva, ia sempre para o lado sexual.

Aos poucos, meu irmão foi se abrindo com o namorado até que um

fosse a base do outro para enfrentar a ira de Deodato Moreira, e Rodrigo

finalmente tomar a decisão de sair de casa, desta vez sem volta. Contudo,

eu não tive a mesma sorte.


Tinha medo do meu pai, sem sombra de dúvidas. Porém, se eu fosse

sozinha, daria um jeito de fugir e sumir no mundo. Nem que tivesse de

morar embaixo da ponte, mas não ficaria no mesmo lar que um homem tão

perverso quanto ele. No entanto, não podia, mais pessoas precisavam de

mim.

Não era fácil ser uma Moreira.

Há algum tempo, minha família tinha prestígio e era bem-vista por

todos, até que meu pai e irmã começaram a tropeçar em suas próprias

armadilhas. De filha caçula e recatada do prefeito, eu me tornei a filha do

bandido corrupto e irmã da advogada mau-caráter. De coitada, eu passei a

ser encarada como a próxima Moreira capaz de cometer o crime do ano. Era

como se eu tivesse um alvo nas costas o tempo todo.

Nunca me vangloriei ou achei que era melhor do que alguém pelo

fato de ter sido concebida pelo político. Na verdade, até poderia parecer

ingratidão, mas se pudesse escolher, preferia ter tido outro pai ainda que

essa possibilidade jamais tivesse sido cogitada, uma vez que minha mãe
sempre foi uma esposa fiel, diferente dele.

Enquanto eu crescia, Vânia e Olegário — a nossa governanta e o seu

marido, também nosso motorista — eram o mais próximo do que eu tinha


de uma família normal. Não tiveram herdeiros, então projetaram em mim o
amor do tão sonhado filho. Era muito grata aos dois. Se hoje tinha forças e

lucidez para cuidar da minha mãe era porque eles tinham me sustentado em

cada momento em que precisei.

Não consegui fazer uma faculdade e isso era um fato que dividia as

minhas emoções. Por um lado, sentia-me cumprindo a tarefa de boa filha e

fazendo de tudo para o bem-estar da minha mãe. Quando seus sintomas se

agravavam, eu morria de medo de ela tentar algo contra a própria vida,

como já tinha ocorrido. Desde então, nunca mais me senti segura para

deixá-la sozinha por muito tempo.

Em contrapartida, sentia que minha vida estava escorrendo pelos

meus dedos. Era como se aos 23 anos eu não tivesse nenhuma história para

contar além de ter um pai e irmã bandidos, uma mãe doente e um irmão

maravilhoso que começava a trilhar o seu caminho.

Em meio a tantos pensamentos, perdi meu olhar pela noite escura

em campo aberto, sentindo o cheiro gostoso da fazenda. Era uma sensação

incrível de liberdade poder apreciar o brilho do céu estrelado e a brisa

fresca, porém, ao invés de me acalmar, ela me lembrava que eu nunca fui

protagonista da minha história.

— Você está me ouvindo, ruivinha?


O cutucão afetou o meu braço, fazendo-me contrair em reflexo,

espalhando a dor que tinha me esquecido em meio aos meus devaneios de

liberdade. Na noite passada, por tentar mais uma vez me posicionar frente

ao meu pai e defender o meu direito de estudar, sofri com a sua fúria.

— Desculpe. Me perdi na imensidão desse campo lindo —

expliquei, plácida após respirar fundo.

— Eu entendo. Não troco essa fazenda por nada. O melhor lugar do

mundo para se morar. — Joe sorriu, alisando o topete escovado.

— O mundo deve ser muito grande. Acho que pode ter locais tão

belos quanto — comentei desanimada, movimentando os ombros.

— Nunca viajou para o exterior? — ele indagou, curioso. Acenei em

negativa, observando-o continuar. — Achei que tinha conhecido outros

países, assim como seus irmãos.

Se ele soubesse!

Suspirei. Estava preparando-me para responder quando senti os

pelinhos da minha nuca se arrepiarem em um prenúncio de que Artur se

aproximava.

Não sei explicar que coisa louca era aquela, mas toda vez que

acontecia, algo em mim sabia identificar. Mais louco ainda era que, de
algum modo, me acalmava. Virei-me devagar, observando ele e seus amigos

caminharem em posturas confiantes.

Jonas e Washington eram bonitos, mas uma beleza comum. Não

chegava nem perto do impacto que Artur causava. Mais alto que os outros,

ele tinha o corpo robusto, com braços e pernas bem definidos, sem exagero.

Observei-o se aproximar sorridente, como era tão característico


dele. Embora fosse a mistura perfeita entre a seriedade de Aloísio e a

descontração de Antônio, Artur tinha um jeito próprio de ser. Era calado,

observador, mas não perdia a oportunidade de dar um sorriso sincero. Isso o

deixava incrivelmente lindo.

Olhar para Artur era o mesmo que contemplar o céu ensolarado

deitada sob a sombra de uma árvore frondosa. Transmitia calma, leveza e

tranquilidade. Parecia tão descomplicado, tão fácil ser ele. Por um momento

tive inveja. Não por sua posição social, mas pelo modo como guiava sua

vida. Eu não conseguia sequer pensar em uma situação que pudesse tirá-lo

de sua serenidade.

O Lobinho — como descobri ser chamado por Antônio e confesso

ter achado o máximo uma intimidade tão grande — parou à minha frente,

deixando-me encabulada pelo olhar intenso. Era como se pudesse enxergar

a minha alma. Ainda que eu fosse treinada em tentar esconder meus


sentimentos, sabia que dificilmente conseguiria despistar pessoas tão

analíticas quanto ele e Joe. Só me restava segurar na mão de Deus e tentar

não falhar miseravelmente.

Artur estava belíssimo de calça jeans escura, camisa de botão clara

dobrada com mangas dobradas até os cotovelos, fivela com o brasão da

fazenda, botina, e chapéu. Contive o suspiro para não parecer deslumbrada

em sua frente.

Embora aquelas vestes fossem comuns na região, nele parecia

destacar de um modo muito charmoso e elegante. Ele era lindo demais!

Vez ou outra o avistava no centro da cidade, normalmente

resolvendo algo da fazenda, e em todas eu parava para admirá-lo. Talvez o


carisma e sensualidade inata mexessem comigo.

Voltei à realidade quando percebi sua piscada em minha direção,

lenta e com os dois olhos. Não era uma tentativa de seduzir, pelo menos não
conscientemente. Ficou claro que Artur fazia aquilo como algum tipo de

mania. Naquele instante, ele fez propositalmente para que eu voltasse da


Nave da Xuxa. Sorriu descontraído, e eu fiquei tímida. Repentinamente

nervosa.

— Tudo bem? — perguntou baixo, aproveitando a distração dos

demais.
Mexi na ponta dos dedos, temendo gaguejar. Eu nunca fui o que
podemos chamar de alguém comunicativa, mas em sua presença parecia ter

perdido a capacidade de raciocinar. O sangue começou a correr rápido nas


veias e, quando fixei meu olhar ao seu, senti o rosto esquentar. Sem dúvidas

estava corada, morrendo de vergonha.

Mesmo diante tanto conflito entre as famílias Albuquerque e


Moreira, eu era grata por ser sempre bem recebida na fazenda dos maiores

produtores rurais da região.

Em um primeiro momento, Marta e os demais me encararam com

certa desconfiança, o que é totalmente compreensível tendo em vista o


histórico das nossas famílias. Entretanto, a matriarca foi a primeira a me

acolher e abrir as porteiras da Canto dos Pássaros.

— Si... — limpei a garganta — sim, tudo bem.

Artur me observou em silêncio, com o olhar cerrado, curioso. Olhou

para os demais, em seguida para a escuridão do campo, e então me encarou


outra vez.

— Quer dar uma volta?


ARTUR

Com o rosto corado e a cabeça baixa, Rebeca me olhava tímida


enquanto mexia nas pontas dos dedos, desconfortável.

— É claro que ela aceita, Lobinho — Joe afirmou categórico, ao

mesmo tempo em que tocava o ombro da bela ruiva, deixando-a quase tão
rubra quanto os cabelos brilhantes.

— Joe! — Rebeca resmungou, sendo interrompida pelo nosso

amigo.

— Depois não se esqueçam de me agradecer — anunciou alto,

dando uma piscadinha marota e sem nenhum resquício de timidez

Encarei o chão rapidamente, movimentei a cabeça e sorri das

besteiras que ele dizia. Joe era um bom rapaz e tinha o dom de deixar todos
ao seu redor envergonhados em algum nível, exceto Antônio que sempre foi

cara de pau e entrava na onda sem se abalar.

Levantei o rosto, observando os traços angelicais à minha frente.


Em um gesto nervoso, Rebeca abraçou o próprio corpo como se sentisse

frio e subiu o olhar até encontrar o meu rapidamente para então desviar.

— Vamos? — perguntei, movimentando a mão em um sinal de


passagem. Ela assentiu, andando à minha frente devagar. O cheiro delicado

de flores adentrou minhas narinas, fazendo-me inspirar profundamente para

captar mais daquele perfume tão gostoso. Pisquei, despedindo-me dos

rapazes: — Voltamos logo.

— Ah, não se preocupe, Lobinho. A noite é uma criança. Divirtam-

se!

— Juízo! — Jonas avisou.

— Nada de juízo, dê um pouco de alegria àquela menina — Joe


falou um pouco mais baixo quando Rebeca já tinha tomado uma distância
segura. — Agora vai!

Anuí, mas antes que pudesse me afastar senti um tapa forte na

minha bunda, fazendo-me contrair imediatamente. Literalmente tranquei.

Nem mesmo meus irmãos se davam aquela liberdade comigo. Dei de

ombros não me importando por ser o Joe. Ele tinha a Síndrome de Gabriela:

nasceu assim, viveu assim e ia morrer assim, doido e gente boa.


Em duas passadas largas eu já estava ao lado de Rebeca, ela ainda

estava com os braços cruzados em frente ao corpo e ombros fechados.

Começamos a caminhar em silêncio, mas pareceu pesado demais quando

ouvi o seu ofego. Ela estava nervosa pra caramba e eu precisava derrubar

aquela barreira entre nós.

— Aceita alguma bebida? — indaguei ao nos afastarmos dos

demais.

— Água — respondeu, quase em um sussurro.

Assenti, pagando nossos copos no caminho.

Guiei-a até um banco de madeira recentemente pintada de branco

sob uma mangueira frondosa e enfeitada com lâmpadas amareladas.

Esperei que se sentasse e fiz o mesmo logo em seguida, encostando

as costas no espaldar do banco e o tornozelo sobre o joelho, em uma postura


relaxada.

— Não bebe cerveja? — perguntei, tranquilo, observando-a segurar

o copo d’água com as duas mãos, nervosa.

— Nunca experimentei — confidenciou, baixo.

— Mesmo? — Ergui a sobrancelha.

Não que estivesse completamente surpreso, afinal, Rebeca era tão

acanhada que, sem sombra de dúvidas, ainda não tinha vivido muitas
aventuras.

— Quer tentar? — Estiquei o copo da bebida dourada com uma leve

tira de espuma branca em sua direção.

Ela encarou meus olhos por alguns segundos, fitando o copo em

seguida. Sorri quando percebi a sua dúvida. Ela era espontânea e ingênua.

Uma combinação perigosa para um homem como eu.

Deu de ombros e aceitou, sorvendo pouca quantidade. Abaixou a

mão devagar enquanto engolia com delicadeza. Por fim, passou a língua

sobre os lábios grossos e rosados e, sem que se desse conta, tomou toda a

minha atenção.

Analisei-a por alguns instantes em silêncio. Esperei sua reação e não

contive o riso quando fechou um dos olhos, fez careta e tremeu os ombros.

Havia sido natural, espontâneo e contava muito sobre ela. Embora retraída,
a menina tinha um lado curioso e desbravador. No entanto, quando notou a

minha atenção sobre si ficou desconfortável.

— Não gostou? — investiguei, cuidadoso.

— É... diferente.

— Só diferente? Não quis dizer que é ruim?

— Isso é você que está falando. — Sorriu. Rebeca se defendeu sem

se comprometer. Garota esperta.


— Quer que eu pegue outra bebida para você? — ofereci gentil, mas

ela negou com um aceno.

— Vou continuar na água.

Meneei a cabeça, mudando de assunto.

— Está gostando da festa?

Rebeca pousou o copo próximo aos joelhos, apoiando-o na mão,

com os ombros encolhidos.

— Está perfeita! — Suspirou, apaixonada. — Esse lugar é tão lindo,

tão gostoso, me faz sentir tão...

— Tão? — incentivei, quando sua voz foi interrompida pela


emoção. Segundos depois, Rebeca soltou o ar devagar, completando:

— Livre.

Movimentei a cabeça, não precisando de muito para entender aquele

desabafo. Somando ao que conhecia de sua família e o fato de quase não a

ver na cidade, ficava óbvio que a garota não tinha o hábito de sair de casa.

Entretanto, a palavra que usou me fez associá-la a um pássaro preso na


gaiola.

Observei-a sorrir de olhos fechados sentindo a brisa fresca. Rebeca

era transparente, não fingia emoções ou tentava chamar a atenção, forçar


com que gostassem dela. Era apenas ela e ponto. Sem subterfúgios ou

joguinhos.

Era exatamente por isso que conseguiu prender a minha atenção. Na

verdade, comecei a observá-la desde que tivemos os primeiros encontros

quando Rodrigo começou a se relacionar com o Joe. Mas nada superou

aquele momento, ao fato de poder enxergá-la como verdadeiramente era.

Doce, delicada e frágil.

Contudo, ainda que parecesse ser lida facilmente, Rebeca tinha

algumas características peculiares que me faziam ficar curioso sobre ela.

— Não costuma sair muito? — perguntei como se não estivesse

curioso para decifrá-la.

— Não — respondeu simplesmente.

— Por quê?

Ela me olhou de cabeça baixa, desconfortável antes de dizer:

— Não quero falar sobre isso. Não agora.

Assenti, respeitando o seu momento.

— Então vamos conversar sobre o que não é complicado. — Ela me

encarou, atenta. — Como já deve saber, sou o caçula da família. Ao


contrário do que as pessoas devem pensar, não sou o mais mimado dos

irmãos, esse papel é do Antônio. — Ri, quebrando o gelo e fazendo-a sorrir.


— Como um bom mineiro, amo pão de queijo, curto andar a cavalo, mas

um dos meus hobbies favoritos é praticar arte marcial.

Ela arregalou os olhos, um pouco surpresa.

— Você é tão tranquilo, centrado. Nunca poderia te imaginar

lutando.

Meus lábios subiram levemente. Era costume aquele espanto quando

descobriam que eu era lutador.

— O meu preferido é Jiu Jitsu, embora goste de lutar boxe com os

meus irmãos. Às vezes, um de nós acerta um golpe errado garantindo uns


roxos pelo corpo, mas no geral, é bom — brinquei, e ela sorriu. — Relaxa,

diminui o estresse e libera energia.

Rebeca me ouvia atenta, com o olhar brilhante, como se estivesse


presenciando o discurso do mais eloquente palestrante. Mentiria se dissesse

que aquilo não mexia comigo. Mexia, e não era pouco.

— Deve ser muito legal — comentou, tímida.

— É sim. Lá em casa, Marcela, Luiza e até o Davi praticam, embora

não dê muito certo. Elas mais fofocam do que treinam. — Ri, despertando
um sorriso lindo em seus lábios também. — Se você quiser, posso te

ensinar alguns golpes quando tivermos a oportunidade.


— Eu quero. — Seus olhos brilharam, verdadeiramente interessada.
Fiz uma anotação mental para cumprir aquela promessa.

— Agora que já sabe um pouco de mim, acho justo também

conhecer algumas curiosidades suas.

— O que quer saber? — devolveu, um pouco desconfortável.

— O que quiser me contar. — Beberiquei novamente, ajeitando a


postura relaxada. — Acabei de descobrir que não gosta de cerveja e pelo
jeito prefere bebidas doces. Já experimentou drinks ou bebidas destiladas?

— Me achará uma extraterrestre se eu disser que não?

Neguei, observando o brilho amarelado de seus olhos refletindo as

luzes do mesmo tom.

— Claro que não. Te acharei apenas uma garota que tem muita
vontade de conhecer o mundo, mas por alguma razão ainda não fez.

Rebeca bebeu um pouco da sua água em silêncio, desviando o olhar


do meu, observou o céu estrelado, deu um suspiro longo e então respondeu:

— É quase isso. Na verdade, eu me preocupo com as consequências

do depois.

— Por quê?

— É complicado... — Suspirou novamente.


Milhares de possibilidades passaram pela minha cabeça. Ela era
uma garota nova, cheia de vida pela frente, tinha uma vida financeira

estável, mas o comportamento não era compatível.

— Se não se sentir confortável, não precisa contar.

Seus olhos encontraram os meus novamente, desviando para o copo.

Um sorriso pequeno se fez no rosto delicado, confessando sem me encarar:

— Estranhamente eu me sinto bem na sua presença. Estava nervosa,

admito, mas acho que a cerveja me deu coragem.

Ri, brincando e deixando-a mais à vontade:

— Você nem bebeu. Acha que aqueles dois ml que tomou realmente

fizeram alguma diferença no seu sistema nervoso?

Os lábios grossos e chamativos emolduravam um sorriso brilhante e

lindo, deixando-me atento a tamanha beleza.

— Para alguém que não bebe nada, dois ml podem ser muita coisa.

Anuí tranquilo, virando-me completamente para ela, preparando

meus ouvidos para o que ela quisesse me dizer.

— Ao contrário do que muitas pessoas podem pensar, eu não tive e


nem tenho uma vida fácil. É complexo e não gostaria de entrar em detalhes

sobre isso, mas muitas coisas me impedem de colocar em prática o lado


aventureiro que você bem notou.
Escutei-a atento, conjecturando sobre o que ela poderia estar se

referindo, mas não seria indiscreto a ponto de questionar. Por isso, deixei
com que ela se sentisse confortável.

— Compreendo. Se um dia quiser compartilhar, estarei aqui e

prometo ser um bom ouvinte, sem julgamentos.

Ela assentiu, permanecendo alguns instantes calada. Nitidamente

seus pensamentos não a deixavam quieta um só segundo, mas como uma


boa introvertida, Rebeca não verbalizava. Não era difícil de ser interpretada,

mas o meu instinto alertava a existência de algo profundo, que quando


viesse à tona poderia ter muito impacto.

— É engraçado... — soltou sem que eu esperasse, tirando-me de

minhas análises.

— O quê?

— O quanto me sinto bem aqui e na sua companhia.

— Isso foi uma cantada? — brinquei, mas ela se engasgou.

O rosto rapidamente foi tingido de vermelho enquanto tentava tossir.

Mais que depressa me coloquei de pé, segurando seus braços na tentativa de


levantá-los. No entanto, parei no meio do caminho, surpreso pelo gemido
alto de dor e o rosto contorcido ao mesmo tempo em que ela se encurvava.
— O que você tem? Está ferida? — indaguei, preocupado, a tocando

com cuidado, mantendo meu olhar questionador sobre ela.

— Não... não é nada. — Tentou se recuperar rápido, embora o ofego

a denunciasse.

— O que aconteceu? — insisti, atento a cada microexpressão dela.

— Não foi nada demais, não se preocupe...

Segurei sua mão e acariciei a cintura delicada, observando-a prender


o ar e não demonstrar dor.

— Eu quero saber o que te deixou assim — afirmei sério, fixando

meu olhar ao seu, notando o exato momento em que engoliu em seco.

— Sou um pouco estabanada. Escorreguei no banho, acabei batendo

a lateral do corpo na parede, só isso.

Passei meus olhos com cuidado observando cada detalhe dela.


Estava sensível a ponto de um simples roçar sobre a sua costela a fazer

suspirar dolorosamente. Como um bom médico, ainda que veterinário, eu


sabia que ferimentos como aqueles não eram advindos de um simples

acidente no banho.

Rebeca estava machucada e se esforçava para não demonstrar. Era

evasiva, tentava não dar a importância que a situação merecia.


Meu pensamento voava em milhares de hipóteses, levantando
possíveis prognósticos e nenhum deles era bom. A suspeita estava lá, se

fazendo presente e me deixou ainda mais reflexivo quando ela se sentou no


banco tentando retomar a conversa em um esforço falho de mudar o foco da
minha atenção.

Franzi o cenho, analisando os cenários. Seria cauteloso e a


respeitaria, mas de modo algum desistiria de confirmar ou não minhas

suspeitas.

Rebeca finalizou a sua bebida com calma, para então dizer:

— Não, não estou te cantando. Eu até te acho um cara bonito, mas é

meio estranho, esquisito.

Compreendi o que ela queria dizer, mas admito que soou engraçado

o seu modo de se atrapalhar. Com a atenção dividida entre analisá-la para


colher maiores informações e não a deixar sem graça, contive o sorriso

observando-a tentar se corrigir.

— Não, não quero dizer que te acho esquisito. Quero dizer que te
acho meio estranho... bonito. Não, pera...

Não consegui mais me segurar e ri de modo amplo quando ela


abanou as mãos como o Chaves fazia ao seu empolgar. Olhou para cima,

respirou fundo, murmurando alguma coisa para si mesma e se retificou:


— Recapitulando: Você é um cara bonito. E não! Não estou te
cantando, estou dizendo que é ajeitadão, e apenas isso. O que acho estranho

é essa facilidade com que me sinto bem em compartilhar com você aspectos
da minha vida que quase ninguém sabe.

— Fico lisonjeado por isso — afirmei, entendendo que eu poderia


partir desse pressuposto para descobrir o melhor modo de defendê-la.

Rebeca sorriu delicadamente.

— Não sou de muitos amigos, na verdade, posso contar nos dedos.


Entretanto, me sinto à vontade com você. — Acomodou-se melhor no

assento, declarando em tom apaixonado: — O meu maior sonho é ser


psicóloga.

Desci o olhar para analisá-la de modo amplo e percebi que sim, ela

tinha características de terapeuta. Só de olhar era possível notar a

serenidade que ela transmitia.

— Mesmo? E está fazendo faculdade? — sondei.

Com pouco tempo de conversa, eu estava aprendendo a ler Rebeca.


Descobri que o suspiro longo seguido de seus ombros caídos precedia o
assunto “caixinha a não ser aberta”. Tive certeza quando ela respondeu:

— Infelizmente, tive que priorizar outras coisas. Quem sabe um


dia...
Sorvi o restante da bebida, a observando sobre o copo e
conjecturando sobre o porquê de uma garota jovem, bonita e rica não estar

seguindo o fluxo esperado. Somado às suas dores, eu conseguia ter um


palpite forte, e esperava verdadeiramente estar equivocado.

— Tenho certeza de que será uma terapeuta incrível — garanti,


circunspecto.

Seu rosto ruborizou e me vi preso ao quanto ela ficava linda

encabulada, fazendo um calor desconhecido espalhar pelo meu peito. Era


gostoso, dava vontade de não parar de sentir nunca.

Para minha surpresa, Rebeca continuou falando sobre a sonhada


faculdade empolgada, como se tivesse pesquisado a respeito e ter plena
certeza do que queria.

— Nas minhas pesquisas, descobri que a Psicologia tem um campo


gigantesco de atuações. Tem área clínica, jurídica, social, escolar,
organizacional, desportiva e mais uma infinidade que a maioria das pessoas
desconhecem.

— Sério? Sempre pensei que fosse só como terapeuta. E você já tem

uma noção de em que área irá atuar quando se formar?

Rebeca assentiu, dizendo com certeza:

— Com atendimento social para pessoas vítimas de violência.


Naquele instante, a minha suspeita se comprovou. O comportamento
estranho, os ferimentos e o discurso. Senti meu semblante endurecer

quando constatei que Rebeca era vítima de violência doméstica, fazendo


com que a preocupação se transformasse em raiva à medida que meus olhos
fixavam na pele delicada e imaginava o que estava por trás do que ela
escondia.

Respirei fundo, lutando bravamente para não demonstrar o que senti

e assustá-la.

Sempre fui racional, agora não seria diferente. Eu tinha minhas


suspeitas de quem estava por trás disso, mas não poderia agir sem estratégia
e piorar tudo. Não quando Rebeca poderia ser a maior prejudicada.
REBECA

Artur me analisava com minúcia, como se fosse capaz de me ler a

partir de um suspiro. Temendo ser descoberta, coloquei-me de pé com


cuidado, sentindo minhas costelas reclamarem.

Sem dar tempo de me afastar, ele fez o mesmo, segurando a minha

mão com sutileza. O contato espalhou uma onda poderosa em meu corpo,
eletrizando-me inteira.

— Espera. — Sua voz saiu baixa, mais grave do que o normal.

Parecia estar se contendo e aquilo me fez ter uma vontade absurda de beijá-
lo.

Meu olhar percorreu do toque da sua pele na minha até encontrar o


olhar brilhante e perturbador, em uma mistura de verde e mel. Bonito o

suficiente para me fazer esquecer de que precisava fugir.


Senti o calor espalhar pelo meu corpo e cada pelinho arrepiar com a

intensidade daquele momento. Artur era um homem incrível, e eu o

admirava. Suspirei, tentando conter uma vontade absurda de contar tudo,

me jogar em seus braços e chorar, colocando para fora o vulcão de

sentimentos que me assolava.

Eu não podia sequer cogitar envolvê-lo em uma bagunça tão grande

quanto a que eu me encontrava. Não me perdoaria jamais se algo de ruim

acontecesse a ele.

Era paradoxal e me confundia, mas ao mesmo tempo em que eu

sabia que ele ainda desconfiava de que eu pudesse ter a mesma índole da

minha irmã, Artur me fazia ter a sensação desconhecida de estar protegida.

— Já está tarde. Preciso ir — avisei, tentando não tremular a voz.

Pareceu clichê, naqueles livros em que a mocinha foge do mocinho,

e quem sabe fosse. Talvez eu estivesse tão mergulhada no caos que as

poucas válvulas de escape que eu tinha fosse a minha imaginação e os

livros que papai não me permitia ler, mas fazia escondido.

— Ei, espera! — ele pediu.

Meu coração estava acelerado, eu só queria sair de perto dele antes

que não aguentasse mais e me acabasse em lágrimas. A angústia travava


minha garganta e congestionava minhas narinas. Estava a um passo de

chorar.

— Artur... — chamei quase como uma súplica.

Não sabia o que sentia, apenas que estava forte demais. Por um

segundo, achei que poderia estar rolando um clima entre nós, até a sua voz

explodir a minha bolha.

— Não faça movimentos bruscos — alertou, baixo. — Mas tem um

sapo ao lado do seu pé.

Demorou alguns segundos para que a imagem gosmenta do bicho se


materializasse em minha mente e eu finalmente compreendesse sobre o que

ele se referia. Virei o meu olhar para o lado e notei o anfíbio marrom,

papudo e imenso. Um arrepio horrendo subiu pela minha coluna e espalhou

pelos membros. Daquela vez, não era nada bom.

— O quê? — gritei, só então tendo o reflexo de dar um mini salto

em sua direção, sendo recebida pelos braços fortes, quentes e muito, muito

cheirosos.

Não foi intencional e senti meu rosto corar tamanha vergonha por

ter sido tão ingênua ao achar que pudesse rolar algo entre nós. Entretanto,

tudo evaporou dos meus pensamentos quando senti a mão grande alisar as

minhas costas com carinho, afastando-nos calmamente do animal.


ARTUR

O cheiro de flores me invadiu outra vez, fazendo-me inalar com

mais intensidade. Quando percebi, minhas mãos subiram de sua cintura

para as costas delicadas, puxando-a para mim, querendo prolongar ao

máximo aquele toque gostoso.

O vento trouxe alguns fios revoltos em direção ao meu nariz,

deixando-me ainda mais inerte. A boca secou, o coração acelerou e meus


braços a trouxeram para mais perto de mim. Como se compartilhasse da

mesma emoção, Rebeca se manteve cativa em meu abraço, pousando a

cabeça em meu peito.

O tempo parou ao nosso redor. Nada mais importava, a não ser o

modo como parecia tão certo estarmos ali.


Os gritos das crianças assustaram-na, fazendo-a se distanciar

envergonhada. Deixando-me encantado por seus movimentos, ela levou as

mãos ao rosto, abaixando a cabeça levemente ao tentar se justificar:

— Desculpe-me, não estou acostumada com uma natureza tão

selvagem. Na minha casa nem temos um cachorro, então ver um sapo tão de

perto me assustou.

Sua reação teria sido divertida, se eu não continuasse

completamente absorto por tudo o que senti naquele momento.

Tudo se apagou, deixando de lado qualquer suspeita ou

preocupação. Sem verbalizar nenhuma palavra, fui guiado pelo instinto.


Com gentileza, colei seu corpo ao meu, notando os olhos de Rebeca

arregalados e a respiração errática. Sem pedir licença, convidei-a

silenciosamente para uma dança diferente de todas as outras que já tinha

tido. Calma, repleta de entrega e sentimentos ao som marcante da música

Promete do Luan Santana.

Eu não sabia, mas aquela música era como uma espécie de

declaração do que eu me tornaria para Rebeca. E ela para mim.

Se o mal chegar entro na frente pra te proteger

Eu te amarei por mil e um motivos

Vou perguntar baixinho ao pé do ouvido:


Promete que vai ser só minha? Que vai me entender num olhar?
Promete que vai visitar os meus sonhos de noite à luz do luar?

Guiei nossos corpos no ritmo cadenciado da música, aproveitando o

calor do seu corpo contra o meu e o seu perfume inesquecível.

Quando meus irmãos me contaram que sentiram seus corações

baterem fortes por suas mulheres, achei que era besteira, o tipo de coisa que

só acontecia com gente apaixonada. E eu não estava apaixonado.

Todavia, com Rebeca em meus braços eu sentia o peito agitado, o


sangue bombeando com tanta intensidade a ponto de me deixar ansioso e

com a respiração entrecortada. Eu nunca tinha sentido isso com nenhuma

mulher antes. Era intenso, diferente e assustador.

A música acabou, e antes que eu pudesse raciocinar, Rebeca se

afastou caminhando depressa na direção do irmão, me deixando em uma

profunda bagunça de sentimentos.

Meio disperso, vi quando se despediram rapidamente, entraram no


carro e foram embora quase fugidos.

Coloquei as mãos nos bolsos frontais da calça, olhei para o chão

analisando tudo o que tinha acontecido naquela noite. Embora estivesse

muito preocupado com Rebeca, não pude conter um sorriso quando aquele

calor gostoso se espalhou pelo meu peito.


Levantei o olhar novamente e encontrei a minha família me

encarando de longe ao lado de Joe que apontou dois dedos para os próprios

olhos e em seguida para mim como se dissesse que estava me observando.

Ri. Estava ferrado. Seria o motivo de assunto por uns três meses.
REBECA

O coração disparava no peito enquanto me afastava de Artur. As


mãos tremiam e suavam. A garganta estava travada, mal me deixando

respirar.

O contato do corpo e dos braços dele me fez sentir protegida como


só acontecia quando recebia os carinhos de Vânia. Entretanto, eram em

proporções completamente diferentes. Vânia era fraternal. Artur era... era...

Era diferente. Talvez em algum nível romântico, carnal... não sei


explicar.

— Você está bem?

Olhei meu irmão dirigir, me encarando de lado vez ou outra. Desde

que fugi dos braços de Artur implorei para que fôssemos embora, não dava
para simplesmente continuar na fazenda diante da sua presença e sentindo

uma vontade esmagadora de provar o gosto dos seus lábios.

Pensar nisso me fez passar a língua pelos meus, ainda sentindo


alguns traços do sabor da cerveja que ele havia me ofertado. Não queria

nem pensar na vergonha que passei ao fazer careta. Que vexame!

Aprender a beber era algo na minha lista de desejos a curto prazo,


assim como fazer faculdade e explorar muitas atividades até então

desconhecidas.

— O que deu para todo mundo me fazer essa pergunta hoje? —


questionei, recordando que era a terceira pessoa em poucas horas.

— Talvez o fato de você estar agindo diferente? Começou com essa

história de ter escorregado no banho, depois ter ficado um tempão


conversando com o Artur, parecendo um casal de namorados apaixonados.

E por último, mas não menos importante, sair fugida como se tivesse

cometido um crime.

Encarei o meu irmão sem ter muito o que dizer. Ele tinha razão, mas

o que eu poderia fazer? Era mais forte.

— Você gostou? — perguntou, com um ar apaixonado e bem gay.

Rodrigo mantinha o ar sério e másculo que tanto aprendeu a fingir

com o passar dos anos, porém, a convivência com Joe começava a


evidenciar um ar meio afeminado. Eu achava legal, e diferente do que os

outros poderiam pensar, não me fazia amá-lo mais ou menos. Rodrigo era

meu irmão e sempre teria o meu amor todinho.

Afastei o cinto um pouco para que pudesse virar em sua direção,

confidenciando como uma menina apaixonada:

— Vai me julgar se eu disser que senti vontade de beijá-lo?

— Vou! Vou julgá-la porque não o beijou.

— Ai, Dri, sei lá... Fiquei com medo dele me achar uma oferecida,

aproveitadora das oportunidades. E se o papai ficasse sabendo?

Rodrigo desviou a atenção da estrada por alguns instantes,

encarando-me com seriedade.

— E daí? Precisa aprender a não se importar com a opinião dos

outros, Rebeca. Estou te dizendo isso por experiência de causa. Sofri por

tempo demais me preocupando com o que as pessoas achariam e me ferrei.

Então como seu irmão mais velho, eu te intimo a se arriscar, a fazer o que

tem vontade, a explorar o mundo.

— Tenho medo.

— Sei que tem — adulou, deslizando os dedos sobre meus cabelos.

— Deodato tem o poder de sugar o melhor de todos ao seu redor. Você, eu,

a mamãe... Sabe bem disso, irmã. Então para o seu bem, vá viver a sua vida.
— Você não entende, Rodrigo. Tem a mamãe, a Vânia, o Olegário...

Se eu sair, papai pode acabar com tudo.

— Está dizendo isso para convencer a mim ou a você?

Arregalei os olhos, ele sabia me ler.

— Sabe que está dizendo isso para se autoafirmar que permanecer

na zona de conforto — que não é tão confortável assim — é melhor do que

se arriscar. Mas saiba, maninha, que você é a dona do seu juízo e eu estou

aqui. Se está com medo de ir morar na rua e passar fome, você tem a mim,

jamais te abandonaria. Quanto à mamãe, ela pode vir morar comigo. Tenha

ciência de que não poderá ajudá-la por muito tempo se também adoecer

naquela casa. Saia de lá, viva a sua vida.

Meu pai jamais me deixaria tirar a minha mãe de casa. Sem

nenhuma dúvida ele nos infernizaria, não porque nos amava, mas sim
porque o divórcio complicaria a sua tentativa de reeleição.

Mamãe via os dias passarem apáticos, tinha perdido o interesse na

vida, presa em suas memórias. Era triste e muitas vezes eu me sentia

incapaz por não a poder ajudar mais.

O mundo era grande e a minha vontade de ser livre era maior ainda,

experimentar mais vezes aquela sensação incrível de liberdade que tinha

vivido há pouco na fazenda. Estava com dor, mas ela se resumia a nada
quando a contemplação da brisa fria, o céu estrelado e o cheiro de liberdade

me invadiam.

Almejava lutar e fugir, ter a minha profissão, uma casinha minha em


que eu pudesse fazer o que bem quisesse, um cantinho para chamar de meu.

Queria me sentir útil, saber que poderia somar para mudar a vida das

pessoas. Entretanto, tinha medo de sair das garras do meu pai e cair nas de

um marido tão ruim quanto. Sem dúvidas, Deodato moveria céus e terras

para não perder o controle da prefeitura, ainda mais considerando a possível

vitória de Aloísio.

— Eu acho que depois da sintonia que vi hoje você terá motivos a

mais para querer sair da gaiola em que vive. — Rodrigo me trouxe de volta

à realidade.

Não falei nada, ele estava certo. Ainda assim, a prática não era tão

simples quanto a teoria.

Meu irmão estacionou nos fundos da minha casa, agora não mais

dele após ter sofrido muito nas mãos de papai e ter decidido voar.

Respirei fundo, me preparando para entrar o mais delicadamente

possível. Estava se tornando insustentável não poder ter liberdade para ir e

vir quando queria.


Tirei o cinto de segurança com cuidado, sentindo o corpo dolorido.

Rodrigo colocou a mão sobre a minha perna, chamando minha atenção com

delicadeza.

— Saiba que você tem a mim. Se ele — apontou o queixo para a

casa, se referindo ao nosso pai — fizer qualquer coisa contra você, não

hesite em me ligar.

Engoli em seco. Meu irmão já tinha uma carga pesada demais para

lidar. Eu não seria mais uma. Por isso, apenas meneei a cabeça.

— Obrigada. A gente se vê.

Dei um beijo em seu rosto e desci do carro. Tirei as botas e entrei

pela porta da cozinha, orando para que Deodato não estivesse em casa.

Atravessei a sala de jantar, dando glórias por encontrar tudo escuro e


silencioso. Subi as escadas com a cabeça baixa e devagar.

Tudo ia bem, até que senti a alma desconectar do corpo quando

avistei o homem idoso, barrigudo e calvo descendo os degraus encontrando-

me no meio da escada.

Fingindo uma segurança que não tinha, continuei subindo, tentando

não encarar seus olhos. Porém, ele agarrou meu braço em um aperto
doloroso, fazendo-me encarar seus olhos crispados de raiva, despertando

todo o meu temor outra vez.


Sabia que seria alvo de sua fúria, mas tentei me apegar às

expectativas de que ele pudesse desistir. Inútil. Cheio de ódio, ele me

sacudiu, vociferando:

— É muita insolência de sua parte comparecer à fazenda daqueles

Albuquerques malditos e ainda ficar de agarração com o caçula. Acha que já

não sei da vergonha que está me fazendo passar, Rebeca Moreira?

O coração acelerou e a boca secou. Olhei para o lado, calculando a


possibilidade de fuga. Em vão.

— Pai...

— Calada! — berrou, desferindo um tapa pesado em meu rosto,

fazendo com que eu me desequilibrasse, sem conseguir me segurar e rolasse


pela escada. Senti a dor irradiar por todo o meu corpo, principalmente no
tórax à medida que o corpo quicava nos degraus secos. Se a surra de ontem

não tinha quebrado as minhas costelas, a de hoje com certeza o faria. —


Está muito enganada se acha que vai continuar nessa vida boa, não

contribuindo com nada nesta casa além de manchar ainda mais a minha
imagem.

— Eu já disse que quero estudar e trabalhar — murmurei com o


corpo parado no chão da sala, sentindo tudo doer ao mesmo tempo em que

o via descer os degraus furioso.


— Não diga asneiras. Estudar para quê? Para ser uma imbecil como
a sua irmã que se achava tão esperta e caiu no conto mais antigo do mundo?

— Pai... — implorei, sentindo as lágrimas descerem grossas.

— Cala a porra da boca! Se eu ouvir sua voz outra vez, quebro todos
os seus dentes. — Chutou minhas pernas. — Aliás, não vou quebrar porque

preciso deles para executar o meu plano.

— O que o senhor vai fazer? — supliquei, mal sentindo a minha


voz. Tudo doía e respirar era uma tarefa árdua.

Deodato abaixou próximo à minha cabeça, os olhos crispavam um


ódio comum desde que soube que seus planos de desvios de verbas estavam

comprometidos.

— Não seja tola a ponto de achar que irei te contar. Por ora, você

precisa saber apenas que vai sair de cena. Quando voltar, o futuro dessa
família e, principalmente da sua mamãe e daqueles empregadinhos de
merda que você tanto ama, só dependerão de você.

Passou as pernas por cima do meu corpo e saiu pela porta batendo-a
com força. Em segundos vi a imagem de Vânia e Olegário vindo em minha

direção. Nas mãos dela, uma toalha branca para secar o sangue que escorria
dos meus lábios.

Chorei.
Como todas as vezes em que esse tipo de situação acontecia, os
olhos dela estavam lacrimejados ao se abaixar na minha frente enquanto os

do esposo eram de puro ódio.

— Vai ficar tudo bem, minha menina. Vamos cuidar de você!


ARTUR

Era cedo quando entrei no único hospital de Alta Colina, notando


que o local estava levemente cheio. Peguei a senha e cumprimentei alguns

conhecidos na fila enquanto aguardava para fazer o cadastro.

Após passar os meus dados para a recepcionista, pus-me de pé


próximo às portas de coleta e aguardei ser chamado para realizar o exame

de sangue, rotina que Dona Marta não abria mão de que todos nós

fizéssemos anualmente.

Estava um pouco disperso, notando os sinais claros de uma noite

mal dormida. Na verdade, de algumas noites mal dormidas.

Desde a festa da colheita no sábado, não consegui mais dormir

direito, preocupado com Rebeca e com o que ela passava naquela casa.
Na noite em que estivemos juntos, não consegui dormir. Fui deitar-

me tarde e pulei da cama muito cedo, com os pensamentos tomados pela

garota.

Impulsivamente, bati à sua porta na manhã do domingo, mas não

encontrei nenhum sinal de movimentação na casa. Saí de lá preocupado,

procurei na padaria e na pracinha em que costumava vê-la esporadicamente.

Nenhum sinal.

O peito estava apertado, sabia que algo não ia bem. Mamãe dizia

que era intuição, mas eu preferia chamar de instinto todas as vezes que

sentia quando algo não ia bem. Foi assim no dia do acidente de Antônio,

anos atrás. No nascimento da Bia e com a Rosa. Em todas as vezes, eu senti


uma angústia forte e quando procurei a causa, a encontrei.

Naquela semana, a procurei outras vezes, mas ninguém a tinha visto.

Entrei em contato com Rodrigo e fiquei ainda mais apreensivo quando ele

comentou estar viajando e não saber do paradeiro da irmã.

Ouvi meu nome ser chamado pela técnica de enfermagem, tirando-

me dos pensamentos que chegavam sem pedir licença. Entrei na sala de

coleta notando que ela parecia um pouco surpresa por ser eu.

Tinha me acostumado, mas ainda achava graça do pessoal ficar tão

assustado quando alguém da minha família ia à cidade fazer alguma


atividade básica, como exames de rotina, por exemplo. De certo modo,

ainda éramos vistos como alguma espécie de famoso, espalhando

curiosidade por onde passávamos, ainda que tentássemos ser pessoas

comuns.

— Bom dia, Márcia — cumprimentei, entrando no pequeno espaço

e me acomodando na cadeira de coleta.

— Oh... — Pareceu sem jeito. — Você... — limpou a garganta —

você sabe o meu nome?

Optei por não a frustrar ao dizer que li a sua identificação no crachá

preso ao jaleco branco. Por isso, apenas dei um sorriso simpático.

Acompanhei seus movimentos enquanto trazia a pequena bandeja

com o material a ser utilizado. Suas mãos tremiam levemente, estava

nervosa e levei a situação numa boa, pensando que talvez tivesse que ser eu

mesmo a puncionar a minha veia se não quisesse meu braço todo furado.

Não que duvidasse da capacidade da profissional, mas pela sua emoção

momentânea. Era engraçado.

Meus pensamentos foram interrompidos quando ouvi uma conversa

baixa no biombo ao lado, o que parecia ser a copa da unidade de

atendimento, me fazendo prestar atenção no assunto quando ouvi se

referirem à Rebeca.
— Pois é, Cleide, na madrugada da festa na fazenda dos

Albuquerque, a filha do prefeito — aquela ruivinha — deu entrada no

pronto socorro bastante ferida. Mal tinha recebido o tratamento quando um


dos seguranças do pai dela a colocou dentro do carro e foram embora. Não

assinou alta, nem nada. Achei tão esquisito. Até pensei em chamar a

polícia, mas eu é que não me atrevo a ir contra o poderoso.

A voz da mulher desencadeou um filme em minha mente,

conseguindo visualizar perfeitamente a cena. Lembrei-me que naquela noite

Rebeca estava com a região do tórax dolorida, mas com o quadro clínico

aparentemente estável. Entretanto, se tinha dado entrada ferida, como a

funcionária afirmou, algo muito sério tinha acontecido depois que nos

despedimos.

Sempre fui um homem controlado, mas não honraria as calças que

vestia se ouvisse aquele absurdo e permanecesse tranquilo, ainda mais se

tratando da ruiva frágil que não saía da minha mente.

Levantei-me depressa, sequer notando que a Márcia tinha acabado

de colar o adesivo sobre a pele. Sem vê-la direito, agradeci

automaticamente e caminhei a passos largos para a porta ao lado.

Abri a maçaneta sem anunciar a minha chegada, deparando-me com

duas mulheres uniformizadas e sentadas ao redor da pequena mesa. No


susto, uma delas derrubou o café que bebia.

Quis perguntar para onde foram, mas era óbvio que ela não saberia.

Então, expressei a pergunta que não saía da minha mente, preocupado


demais com a garota tão frágil.

— Como ela estava quando ele a levou?

De olhos arregalados, uma delas gaguejou:

— Vo... você não pode entrar aqui!

— Senhora, não teria entrado se você não tivesse cometido a

indiscrição de conversar sobre uma paciente ainda mais tão perto da área de

atendimento.

A mulher engoliu em seco, amedrontada.

— Por favor, Senhor Albuquerque, não queremos problemas.

Não fui grosseiro, mas não deixei margem para objeção.

— Não quero que esse assunto tome proporções desnecessárias,

então apenas me responda como ela estava quando o segurança a levou.

— Ela tinha alguns cortes na boca, um hematoma no rosto e duas

costelas quebradas — afirmou, resignada.

Sem qualquer controle, o rosto de Rebeca veio à minha mente.

Imaginar os lábios grossos e vermelhos machucados fez a emoção travar na


minha garganta. Uma raiva desenfreada que não me lembrava de ter

sentido. Um desejo absurdo de protegê-la e acabar com o patife que causou

tamanha barbaridade.

— É a primeira vez que ela chega com sintomas parecidos com

esses? — inquiri, sentindo o sangue correr violentamente pelo corpo.

As mulheres vacilaram, mas ali tive a resposta que precisava.


Contudo, sentindo o peso do meu olhar, a que havia derrubado o café

abaixou a cabeça, fazendo um sinal negativo.

Era o que eu precisava saber.

Virei as costas para as mulheres e caminhei a passos largos em

direção à saída. Sob o sol quente, entrei na caminhonete e, em instantes,

estacionava novamente na porta de casa de Rebeca.

Toquei o interfone diversas vezes, mesmo sabendo que ela não

estaria.

— Droga! — praguejei, batendo a lateral da mão na parede.

— Não tem ninguém há pelo menos três dias, chefe.

Olhei para trás, notando o jardineiro da casa ao lado informar.

Sentia o maxilar travado, a respiração em haustos como um animal


correndo atrás da presa.
— Sabe para onde foram?

— Sei não, senhor.

Acenei a cabeça em agradecimento, entrando no veículo novamente

com destino à prefeitura. Desci, sem me preocupar em trancá-lo. Andei

direto para o gabinete do prefeito, deparando-me com sua secretária em

uma mesa na lateral à porta.

Por fora, parecia controlado, mas só eu sabia a confusão emocional


que me atingia internamente. Estava agindo pela emoção, diferente do

homem calmo e estratégico de sempre. Não falei nada ou pedi permissão,


apenas abri a porta do escritório encontrando tudo vazio.

— Não pode entrar aqui, senhor. — Em segundos a mulher se


materializou atrás de mim, nervosa.

— Cadê ele? — arguí, com a voz calma e grave.

— Eu.. eu vou chamar a segurança.

— Faça melhor, chame a polícia para esclarecermos algumas ações


do seu chefe. Mas antes, me diga onde ele está.

Dois seguranças surgiram atrás da mulher, prontos para agir. Todos


deviam se perguntar porque o mais tranquilo dos Albuquerque agia daquele

modo na prefeitura.
— Pedimos que se retire, Senhor Albuquerque, ou iremos usar a
força — um deles alertou.

Ignorei, encarando a mulher com o celular nas mãos, tensa.

— Onde está o Deodato?

Trêmula, gaguejou:

— Cum... cumprindo agenda em Brasília.

Respirei fundo, sabendo que de nada adiantaria agir daquele modo.


Encarei-a novamente sabendo que dizia a verdade. Passei por ela e pelos

homens, andando a passos largos.

Destravei a caminhonete, entrando de qualquer jeito e manobrando


para sair dali. A cabeça era um turbilhão, frustrado, só conseguindo pensar

em como e onde Rebeca poderia estar.

Estaria sendo cuidada e medicada ou jogada à própria sorte em

algum canto?

Pensei nos locais onde poderia encontrá-la, mas foi em vão. Ela
quase não saía de casa, a não ser para frequentar padaria e a pracinha

central. Era frustrante, pois reduzia a zero as minhas possibilidades.

Rodei a região por mais algum tempo, sem sucesso. Desanimado,

voltei para a fazenda.


À medida que o carro avançava pela estrada e a paisagem ficava
para trás, os olhos dourados e brilhantes tomavam a minha mente, como se

me pedissem socorro.

Era uma completa loucura estar tão envolvido e agindo

impulsivamente, guiado totalmente pela emoção. Todavia, era muito mais


forte do que a minha razão e só conseguia pensar que ela confiava em mim

e, se algo de pior acontecesse, eu teria falhado.

Absurdo assumir uma responsabilidade que não era minha? Sem


dúvidas.

Eu conseguia controlar? De forma alguma.


ARTUR

Desci do lombo de Ventania com os pensamentos a mil, ainda não


tinha conseguido engolir tudo o que tinha acontecido naquela manhã.

Passei o dorso da mão na testa suada, cansado e irritado.

Um potro arredio havia se ferido durante a tentativa de fuga. Os

peões o encontraram bastante machucado em um local de difícil acesso para

veículos, sendo necessário utilizar o Ventania para socorrê-lo.

Após muito esforço e alguns coices recebidos, direcionei o pequeno

potro para os cuidados dos demais veterinários e, com o tratamento correto,

ficaria bem.

Removi os arreios, oferecendo água e alimento. Em seguida, bati na

madeira e assobiei para o cavalo, informando que ele precisaria entrar na

baia. Bem treinado e muito comportado, Ventania entendeu e assim o fez.


— Você nunca me decepciona, amigão — parabenizei, alisando o

focinho antes de fechar a portinhola.

Ele relinchou, seus olhos deixavam claro todo o carinho e parceria


que tinha por mim, assim como eu por ele.

Ventania era um Puro-Sangue lusitano de pelagem tordilho branco.

Alto, tinha quase 1,60 de pura imponência. O pelo, tão alvo quanto algodão
reluzia, deixando evidente o quanto era bem tratado.

Sem sombra de dúvidas foi o melhor presente que papai poderia ter

me dado. Crescemos juntos. Talvez por isso nossa personalidade fosse tão
parecida. Quase sempre tranquilo, Ventania era paciente, amoroso, gentil e

muito corajoso, me acompanhando em diversos locais que outros cavalos

teriam medo. Embora fosse meu, ele era o melhor cavalo para aprender a

montar, devido à docilidade e facilidade de adestramento.

O que apenas eu sabia era que a linha entre a sua submissão e

altruísmo era muito tênue com sua altivez e explosão — de velocidade e

temperamento.

Tranquei a portinhola, certificando de que estava tudo em ordem no

estábulo e me despedi.

O dia estava quase se pondo, me obrigando a acelerar de volta para

casa. Embora não fosse tão perto, fiz o percurso andando. Normalmente
gostava de aproveitar a paisagem, mas naquele dia em específico, a minha

L200 Triton Sport tinha sido enviada para lavar e os capatazes a deixaram

na garagem do casarão. Pensando na vida, rumei para lá.

A brisa tocou meu rosto, anunciando que a noite se aproximava.

Adiante, o céu estava em uma mistura belíssima de laranja e roxo, quase

escurecendo completamente.

Sem que eu pudesse controlar, a analogia daquelas cores trouxe a

imagem dos longos e cheirosos cabelos alaranjados. O sorriso tímido da

ruiva surgiu, deixando-me novamente irritado por não ter notícias suas.

Ainda não conseguia ver o casarão quando a caminhonete azul de

Aloísio parou ao meu lado. Ele abaixou o vidro e colocou o cotovelo sobre

a janela.

— Perdido por aqui essa hora? Entra aí!

Dei de ombros, dando a volta no veículo e entrando pela porta do

passageiro. O som potente das modas de viola ecoava em volume

moderado.

— Fui atender uma emergência, acabei perdendo a hora —

expliquei.

Aloísio assentiu, acelerando de volta. Trocamos amenidades no


carro, mas nada muito profundo. Ele era seis anos mais velho, e talvez por
isso não tínhamos tido tanta intimidade como era com Antônio.

O nosso irmão do meio era o mais comunicativo entre nós e tinha

uma facilidade absurda de se relacionar. Talvez o seu maior desafio tenha

sido Marcela e, exatamente por isso, ela o laçou.

Ísio, por outro lado, era mais na dele, o mais sofisticado de nós

todos. Decidido, sério e um paizão. Admirava a sua serenidade em assumir

a responsabilidade da fazenda e, como se não fosse o suficiente, se


candidatar a prefeito.

— Tenho percebido você diferente desde a festa da colheita — ele

disse, com a atenção na estrada.

Aloísio nunca foi de perguntar sobre a minha vida pessoal, por isso,

levantei uma sobrancelha, estranhando a indireta.

— Diferente como? — Encarei-o.

— Que você sempre foi na sua e mais observador, todos sabemos.

Porém está com o olhar diferente, um que eu conheço bem — constatou,

com um sorriso sabedor.

— Que olhar?

— O mesmo que eu me recusava aceitar quando Luiza entrou na

minha vida.
Ri, lembrando-me de que naquela época ele tinha o apelido de

ranzinza. E o pior é que o descrevia perfeitamente até a chegada da

professora.

Segurei no apoio sobre a porta quando a caminhonete chacoalhou no

cascalho, desconversando:

— Acho que está vendo coisas demais, Ísio.

Ele riu.

— Ainda que possa achar que está bem solteiro, confie no seu irmão

mais velho. Tentei me enganar tempo demais fingindo acreditar nisso, mas

desde que Luiza chegou, compreendi que todos nós precisamos de alguém

para dividir a vida. É o tipo de coisa que você só vai saber quando sentir.

Ok, não estava preparado para essa versão conselheira e amorosa do

meu irmão. De Antônio até poderia ser, claro com boas doses de ironia e

sacanagem, mas vindo de Aloísio foi inesperado.

— Por que está me falando isso? Está me soando mais sentimental

do que você realmente é.

Aloísio fez uma gracinha. Rara de acontecer.

— Sei lá, talvez porque eu queira mais um filho e esteja trabalhando

muito para isso.

— Sabe que a mamãe vai ficar louca se vier outro neto por aí, né?
— Vai. — Segurou em meu ombro, olhando-me nos olhos. —

Desejo que você descubra essa emoção, Artur. Verá que amar alguém e

constituir uma família é o melhor caminho que um homem pode seguir,

infinitamente melhor do que a vida de solteiro.

Assenti, me despedindo antes de descer quando ele parou na entrada

do casarão, observando-o acelerar até a casa ao lado, onde morava com

Luiza e as crianças. Estava feliz por Aloísio. Adorava ser tio e tinha certeza

de que iria amar a vinda de mais bebês na família.

Por um segundo a possibilidade de ser pai brilhou em minha mente,

mas balancei a cabeça, dispersando aqueles pensamentos.

Entrei em casa notando somente a movimentação na cozinha. Pelo

horário, mamãe e papai já tinham chegado e deveriam estar se lavando

enquanto a Neide preparava o jantar.


Entrei na cozinha após um banho rápido sentindo o cheiro de carne

frita adentrar minhas narinas. Neide sabia o prato preferido de cada um de

nós e, para a minha sorte, aquela noite parecia ser o meu.

— Boa noite, meninas! Não vão me dizer que fizeram aquele bife

acebolado e bem suculento que só vocês sabem — galanteei, assustando-as.

Neide e Rute se assustaram levando a mão ao peito, fazendo um

barulho alto de metal tocando a pedra da pia. Dei um pequeno sorriso


ouvindo reclamarem. Esta era uma rotina que eu repetia todas as noites,

mas ainda assim não se acostumavam.

Ouvi passadas logo atrás de mim quase no mesmo instante em que

as mãos quentes de mamãe rodearam meu abdômen e seus lábios tocaram


minhas costas.

— Oi, bebê! — saudou, amorosa:

Passei minha mão sobre os seus dedos, segurei com carinho levando
à boca em um beijo delicado.

— Acho que não sou bebê já faz um bom tempo, não é, Dona
Marta?

Ela riu, se posicionando ao meu lado.

— Vai ser pra sempre o meu caçulinha.


Sorri pensando que ela ficaria louca quando soubesse que em breve
só faltariam seis para a sua meta de dez netos.

— Bença, pai! — pedi, dando um tapinha amistoso em seus ombros.

Nos sentamos à mesa de jantar, apenas os três. Começamos a comer


trocando amenidades do dia, vez ou outra em um silêncio tranquilo, até que

mamãe suspirou desanimada.

— Não estou pronta. — Soltou os talheres sobre o prato.

— Pra que, meu amor? — papai expressou em tom meloso a mesma

pergunta que me fiz.

— Pra ver essa casa vazia. — Virou o rosto para os lados,

apontando: — Olha isso, só nós três.

Ri do seu drama.

— Mãe, Aloísio e Antônio estão nas casas ao lado com as suas

respectivas famílias — lembrei-a.

— Por muitos anos fomos eu, seu pai, você, seus irmãos e o Davi.
Ainda é difícil para mim — suspirou — não estou reclamando. Inclusive

quero muito que chegue a sua vez ou acha que não estou acompanhando
esse silêncio mais do que de costume e esse olhar brilhante?

— Eu e sua mãe aprovamos a garota. — A voz de meu pai me


surpreendeu.
Observei-os por alguns instantes, ponderando se reagia ou
permanecia neutro. Sabia bem do que estavam falando, mas se nem eu

mesmo tinha clareza do que sentia, não iria me expor.

— Tem horas que te acho muito pior de lidar do que os seus irmãos,

sabia? Essa cara de quem pensa tudo antes de falar e agir me faz querer te
dar uma coça. Me lembra quando você era criança.

A fala de mamãe me fez voltar no tempo, quando éramos crianças e

aprontávamos. Por muitas vezes Antônio agia mais rápido, jogando a culpa
em mim. Mas os anos se passaram e comecei a usar mais da inteligência e

estratégia. Foi engraçado quando o feitiço começou a virar contra o


feiticeiro.

— Compartilha com a gente o que está te angustiando, bebê — ela


tocou a minha mão.

— Para de me chamar assim, mãe. Uma hora vai pegar mal —

resmunguei como um garoto de 10 anos.

— Ah! Quem liga? Então, bebê — enfatizou, provocando —, conta

para os seus pais o motivo desse olhar estar tão distante ultimamente.

Pousei os talheres, bebendo o restante do vinho. Mamãe parou de


comer, olhando-me com os olhos brilhantes em pura expectativa. Revelei
brevemente o que tinha ocorrido pela manhã, não dando detalhes, mas

deixando claro que Rebeca não estava bem em nosso último encontro.

— O fato de não saber absolutamente nada sobre aquela família é o


que mais me preocupa. Não tem como saber como ou onde Rebeca possa

estar.

— Deodato não deixará impune quando souber da sua invasão. —

Papai cruzou os braços em frente ao peito.

Repeti a sua postura, sem me abalar.

— O único arrependimento que sinto foi de não o encontrar.

Enquanto ele mantiver a coragem de resolver de homem para homem está


tudo certo.

— Nós entendemos as suas razões, filho. Embora esteja tentando


compreender o que está sentindo, a sua mãe te conhece bem. Sei que no
fundo — tocou sobre o meu coração — você também sabe. — Recostou-se

novamente, tornando o tom mais sério: — O problema é que não podemos


esperar tal hombridade daquele calhorda.

Ela tinha razão. Deodato era tudo, mesmo honrado. Covarde do


caralho.

— No passado, Célia, a mãe de Rebeca, foi muito apaixonada pelo

marido. Era uma mulher dedicada ao casamento, íntegra e, assim como a


filha, quase não era vista na rua. Porém, em um piscar de olhos tudo

mudou, e ela se isolou definitivamente. Desde então, só é vista em hospitais


quando precisa de algum cuidado específico. Até onde soube, ela vive em

uma espécie morte em vida, mas ninguém sabe o que pode ter
desencadeado.

Ouvi o relato calado. De fato, a esposa do prefeito quase não


aparecia em conversas na cidade. Só sabíamos que ela não tinha falecido

porque geraria muito falatório. Em contrapartida, os casos extraconjugais


dele não eram segredos para ninguém.

— Não nos resta dúvidas de que ela sofre agressões do pai. Todavia,

não podemos simplesmente arrastá-las para a fazenda. Precisamos agir com


estratégias e fazer Deodato pagar por tudo o que fez — mamãe esclareceu,

em tom calmo, embora preocupado.

— E se ela não tiver esse tempo, mãe? Se ele teve coragem de

quebrar duas costelas da própria filha, sabe Deus como, imagina o que mais
fará se tiver tempo.

De certo modo, me sentia culpado. Provavelmente a ira do prefeito

foi tão grande ao saber que Rebeca veio à fazenda, e certamente


comentaram também sobre a nossa proximidade, que o fez projetar toda a

raiva na filha. Talvez se eu não tivesse me aproximado naquela noite, ele


não teria agido com tanta violência. Essa constatação apenas me fez ficar
ainda mais furioso, embora quem olhasse de fora achasse que estava calmo.

— Eu bem sei que não é nada fácil, filho. Convivo com situações

como esta todos os dias, e é exatamente por isso que iremos ajudar essa
menina e a mãe, mas vamos agir dentro da legalidade.

Milhares de possibilidades sobre como encontrar Rebeca passavam


pela minha cabeça.

A mão de mamãe pousou sobre a minha em tapas leves, chamando a

atenção.

— Mas queremos que saiba de uma coisa, filho. Se acontecer

alguma situação em que você entenda que precisa agir de imediato, saiba
que eu, seu pai e seus irmãos estaremos sempre com você — alertou, com

seriedade e carinho. Anuí acariciando a pele macia, com algumas


manchinhas da idade.

— Obrigado, mãe.

— Não tem que agradecer. Somos uma família e famílias se apoiam


quando uns precisam dos outros, assim como seus irmãos já precisaram. —

Sorriu, acolhedora.

Recebi um beijo na testa, papai se levantou apertando meu ombro e


quebrando o clima.
— O papo está muito bom, mas vou assistir meu futebol.
REBECA

SEMANAS DEPOIS...

— Promete ler meus pensamentos, decifrar o meu coração... Porque

só assim vai saber que minha vida inteira está em suas mãos.

Com o som no último volume eu cantarolava a música que não saía


da minha mente desde que dancei com Artur.

Diante da janela com vista para uma pequena horta, eu esfregava a

forma de alumínio que tinha utilizado para fazer um bolo para a mamãe.
Sentia-me feliz, de certo modo, livre.

Tanta coisa havia acontecido naquelas semanas, inclusive uma

recuperação quase total das minhas costelas.


A única que não mudava era o número de vezes em que eu

rememorava tudo o que tinha sentido naquela noite nos braços dele. Do

quanto me senti livre para ser eu mesma, das vergonhas passadas, seu

sorriso e, principalmente, a segurança que me transmitia apenas pelo olhar.

Artur era um homem do campo simples, mesmo que tivesse dinheiro

para as próximas gerações. Todas as conversas que ouvi sobre ele em Alta

Colina eram positivas, apenas confirmando o quanto tinha um bom coração,

era humilde e muito querido por todos.

Um homem em que eu ouvia falar desde moleca, mas que nunca

tivemos contato direto, a não ser desde o momento que meu irmão começou

a namorar o Joe — melhor amigo de Marcela — e passamos a frequentar


um pouco mais a fazenda.

Poderia parecer imaturo para uma mulher de 23 anos se sentir tão

abalada pelo que viveu em uma única noite, e talvez fosse. Entretanto,

pensar em Artur e no quanto ele me fazia bem apaziguava meu coração

cheio de temor e incertezas.

Após o ocorrido na escada, Vaninha e Olegário me levaram ao

hospital. Fui retirada como uma bandida pelos seguranças de meu pai. O

olhar de julgamento das pessoas nos corredores deixava claro o quanto

pensavam coisas erradas sobre mim. Ainda que a equipe médica tenha sido
persistente ao averiguar as causas do ferimento, insisti no mesmo discurso

de que havia caído no banheiro.

Eles sabiam que eu mentia. Eu sabia que eles não acreditavam. E

tudo seguiria bem se continuasse assim.

Por que insistir em proteger um bandido como o meu pai?

Medo. Medo de ele fazer algo pior comigo, maltratar mamãe, Vânia
ou Olegário. Impotência e temor da loucura dele. Sabia que se agisse

tomada pela emoção e sem estratégia seria muito pior quando ele me

achasse.

Sim, quando. Deodato tinha certeza de que era o dono daquela

região e criava uma competição imaginária entre ele e Alfredo

Albuquerque. Ao contrário de papai, o fazendeiro não parecia se importar

com este tipo de status. Ainda assim, o prefeito tinha muita gente que lhe

jurava confiança eterna. Então achar a filha inconsequente, com pouco

dinheiro guardado e sem a malícia do mundo seria muito fácil. No momento

em que isso acontecesse seria o meu fim. Meu e dos que eu amava.

Fomos enviadas para uma cidadezinha ainda menor do que

morávamos nos confins de Goiás. Não tive mais contato com o carrasco que

se dizia meu pai, mas sabia que algo ruim me aguardaria quando

voltássemos.
Nos primeiros dias, Vânia esteve conosco até que me recuperasse

fisicamente, mas a ordem para voltar foi clara e imperativa. Mesmo diante

das incertezas daquela vida provisória e vigilância dos brutamontes que


cercavam a casa, foi bom.

Tirando o calor e saudade de Vânia e Olegário, eu me diverti.

Sentia-me livre para ligar o som alto, cantar, cozinhar o que bem quisesse e

agradar mamãe. Tinha descoberto que adorava arrumar a casa e cozinhar.

Os dias eram tranquilos, quase sempre tomados pelo Artur em meus

pensamentos.

Como ele estava? Será que recordava daquela noite? De mim?

Ainda estaria solteiro?

Inúmeros questionamentos me assolavam a maior parte do tempo e

justamente para ter algo importante para me preocupar e ter um futuro,

tomei a decisão de me matricular em uma faculdade EAD. Tinha visto

algumas avaliações de que a qualidade não seria tão boa quanto a

presencial, mas precisava arriscar. O preço era bom e conseguiria pagar

com o dinheiro que guardei ao longo de tantos anos, meu pai jamais saberia.

Com o coração em paz, terminei de arrumar a cozinha e fui para o

ateliê de costura onde mamãe passava a maioria dos seus dias sem grandes

surpresas.
— Posso? — pedi, após dar três batidinhas à porta, sem resposta.

Adentrei, observando o ambiente com uma máquina de costura de

frente para a janela, cortina branca e alguns baús de madeira.


Particularmente, o achava escuro e empoeirado, mas mamãe não deixou que

eu arrumasse. Nas poucas vezes em que dizia algo, deixou claro que aquele

era o seu canto.

Concentrada, ela estava de cabeça baixa, sentada na cadeira de

balanço enquanto arrematava algumas linhas na mão.

Mergulhada em uma depressão profunda e ora ou outra de lucidez,

mamãe confeccionava roupas e mais roupas com os diversos tecidos que eu


havia comprado desde que percebi que costurar lhe fazia bem. Algumas

peças eram lindas, outras não passavam de alguns retalhos sem sentido,

reflexo de como ela estava se sentindo.

Meu coração ficava apertado todas as vezes que a observava

submersa em tanta tristeza e dor. Sentindo raiva ao entender que a loucura

de meu pai enlouqueceu a minha mãe.

Há alguns anos Célia Moreira não era mais dona de suas faculdades

mentais devido a uma crise de depressão profunda na qual não conseguiu

sair. Em um universo paralelo, ela se refugiou das maldades do marido.


Havia momentos de sutil melhora, embora nunca mais tivesse sido a

mesma mulher. De fato, a nossa vida nunca mais foi a mesma.

Renata nunca valorizou a nossa mãe, principalmente depois que eu

nasci e ela começou a apresentar alguns sinais de desgaste emocional.

Há alguns meses, minha irmã, se posso chamá-la assim, tinha

sumido e confesso que fiquei surpresa com sua aparição repentina no


casamento do Antônio. Tinha fé de que ela nunca mais apareceria nas

nossas vidas, que amargasse a maldade que fez bem longe de nós. Era

muito mais suportável passar por tudo aquilo longe de seu veneno e

crueldade.

Rodrigo, por outro lado, tomou o caminho certo. Estava aprendendo

a viver a sua vida longe do preconceito do nosso pai. Então, éramos apenas

mamãe e eu.

Eu tinha vontade de nos tirar daquela realidade, mas qualquer passo

em falso poderia significar o nosso fim. Por isso, aguentava tudo o que ele

fazia conosco sabendo que, em algum momento, conseguiria nos tirar

daquela situação.

— Está com fome? — indaguei, percebendo que sua garrafinha

d’água estava completamente vazia, assim como a vasilha em que trouxe


algumas uvas mais cedo. — Mamãe, está me ouvindo? — Passei a mão em

seus cabelos com carinho ao não ter reação.

Mais uma vez não tive nenhuma resposta. Era comum e eu já tinha

me habituado a esta condição dela. Parei ao seu lado depositando uma

pequena bandeja e suco de laranja natural.

— Fiz um bolinho de ganache com chocolate para nós. Espero que a

senhora goste — avisei, mesmo sem esperar a sua reação, mas para minha
surpresa, seu olhar sem vida encontrou o meu. Dei um sorriso pequeno,

entreguei o pratinho em suas mãos e mantive o copo ao seu lado.

De um jeito moleca, como fazia quando pequena, sentei no chão,

próximo às suas pernas claras e finas. Depositei um beijo delicado em seu


joelho e programei a música que não saía da minha mente para tocar baixo.

Começamos a comer enquanto eu tagarelava sobre novidades da cidade


descobertas quando fui ao mercadinho. Inclusive da sensação de estar sendo

seguida.

Parecia fria e impessoal, mas essa era uma rotina na qual eu prezava
em seguir com mamãe. Sabia que mesmo em silêncio ela gostava daqueles

pequenos momentos e, de certa forma, fazia bem para a sua melhora.

A depressão não tinha cura, mas eu tinha fé que mamãe um dia

sairia desse mar de dor. Faria o que estivesse ao meu alcance para isso.
Precisei apanhar muito de Deodato para conseguir dar a ela o direito
a um terapeuta, porém, repetiria tudo se fosse necessário. Já tínhamos tido

evolução, mas além de todo tratamento, muito da melhora se dava pelo


interesse do paciente. E algo me dizia que a presença de papai fazia com

que ela perdesse toda a vontade de lutar.

Terminei de comer e esperei pacientemente a sua vez. Não tínhamos


pressa ou motivos para correr, então eu tinha todo tempo do mundo para

ela.

Empolgada, eu conversava sem parar em um monólogo sobre as

matérias do primeiro período de faculdade. Ainda que não interagisse, eu


sabia que ela estava atenta.

Minha atenção foi interrompida quando meu celular vibrou no bolso

do jeans. O coração acelerou. Ninguém me ligava, então aquilo só poderia


significar uma coisa: Deodato.

O nome dele brilhou na tela, fazendo com que minha respiração


ficasse em haustos. Trêmula, aceitei a chamada levando o celular à orelha

em silêncio. Direto, a voz rouca pelos exagerados anos de fumo, alertou:

— Seu tempo acabou. Os seguranças já estão a postos para as


trazer de volta imediatamente.

Fechei os olhos sob o olhar de mamãe. Ela sabia. Eu sabia.


O conto de fadas havia acabado, a vida real batia à porta novamente.
ARTUR

Passei o braço sob a cabeça do meu oponente, movimentando meu

corpo em sua lateral e prendi meu ombro entre seu pescoço e queixo.
Cansado, fixei o olhar em seu rosto, notando que mal respirava. No mesmo

instante, ele deu dois tapas em meu ombro, sinalizando a passagem de


guarda.

Levantei-me sobre o tatame, estendendo a mão para que se

levantasse.

— Oss! — expressei em bom tom, inclinado o corpo em sinal de

respeito.

— Artur, pode acompanhar o Bruno? Estamos com poucos alunos

hoje. — A voz do professor me impediu de descer do tatame.


Olhei para o relógio em uma das paredes notando que estava no meu

horário, mas não negaria um pedido de Danilo. Éramos amigos de longa

data, e além de amizade, tínhamos grande respeito e cumplicidade. Embora

não fosse com a cara de Bruno, devido à sua prepotência e arrogância,

atenderia ao meu amigo.

— Claro, Sensei — afirmei, alinhando novamente o quimono azul,

de faixa marrom com ponta vermelha e quatro tarjas brancas.

Embora gostasse de praticar boxe com os meus irmãos nas horas

vagas, o Jiu Jitsu era, sem dúvidas, o meu esporte favorito. Embora tivesse

escolhido não participar da Confederação Brasileira, já tinha me tornado

mais que um aluno comum devido aos mais de dez anos de prática. Sempre
que precisava, Danilo me pedia apoio quanto instrutor.

Além da definição da musculatura e condicionamento físico, a luta

me proporcionou agilidade, coordenação motora, redução de estresse,

defesa pessoal e os principais: concentração, estratégia e respeito ao

próximo. Um movimento errado significava muito.

Bruno era muito bom taticamente, mas tinha a impulsividade como

sua maior inimiga. Por esta razão, quase não tinha parceiros de treino.

Sempre machucava os demais e não levava as ordens do tatame tão à risca

quanto nós. Certa vez, em um arroubo de agressividade, quase chegou a ser


expulso. Só não aconteceu porque prometeu ao sensei que tal ação não se

repetiria. Desde então, continua treinando conosco, mas sabíamos que ele

poderia ser uma bomba prestes a explodir.

— Hoje você vai enfrentar um adversário à sua altura. — Ele deixou

no ar, antes de batermos as mãos em cumprimento.

Bruno avançou contra a minha perna sem que eu esperasse, travando

o pé contra a base da minha virilha, chamando para uma guarda ofensiva.

Esvaziei a mente, me colocando em sua posição e previ seus movimentos,

travando o joelho e estourando a sua pegada. Bruno fechou a expressão, não

gostando de ter sido derrotado naquele primeiro tempo.

Começamos novamente, fazendo mais algumas séries. Ele se

tornava cada vez mais audacioso. Em um movimento de perna, travou a

minha respiração a ponto de começar a faltar o ar. Sem ter como corrigir,

dei três tapas em sua perna, reconhecendo a derrota, mas ele não diminuiu a

força. Minha respiração se tornou insuficiente, fazendo-me tossir, tentar me

soltar e bater incisivamente no chão.

Ele fez ainda mais força, como se estivesse sentindo algum tipo de

prazer em me imobilizar. Achei que estava começando a perder a

consciência quando a voz grossa do sensei ecoou e o vi à minha frente,


tirando a perna de Bruno sobre mim.
Joguei-me de lado, puxando todo o ar possível, tossindo muito com

as mãos sobre a garganta ardida. Levantei-me, cambaleante pelo tatame em

busca de água. Soltei algo inteligível quando alguém me entregou a minha


garrafinha, surpreso pelo que tinha acontecido e ainda tomando a linha de

raciocínio.

— Eu avisei que não permitiria outro ato antidesportivo como esse

aqui, Bruno. Você está expulso do CT[1].

— Tá maluco, cara? — ele reagiu exasperado.

Danilo não alterou o tom de voz. Enquanto todos observavam a cena

atentos, e eu voltava a respirar normal, ele foi certeiro.

— Eu exijo respeito dentro do meu Dojo. Quem tem cara é cavalo,

eu sou sensei ou professor.

— Só pode estar brincando... — O outro passou as mãos pelos

cabelos bagunçados. — Você não pode me expulsar.

— Não só posso como vou. Eu tinha te avisado que não haveria

outras chances para o seu comportamento inadequado. Você está proibido

de entrar aqui.

Bruno deu as costas, furioso. Chutou o banco, pegou a mochila e

bradou antes de sair descalço:


— Quer saber?! Que se foda! Eu quem não quero mais treinar nessa

espelunca.

Observei sua saída em silêncio, sabia que aquilo iria acontecer em


algum momento, mas não tinha imaginado que eu estaria envolvido.

— Não deveria ter feito isso, Sensei. Ele era um aluno importante.

Danilo ajeitou a faixa preta, dizendo tranquilo:

— Todos são, incluindo você. Está bem?

Assenti.

— Não foi nada. Poderia ter me defendido, apenas fui pego de

surpresa.

— Na verdade, eu já tinha percebido que Bruno não gostava de você

e que em algum momento pudesse usar dessa rivalidade que existe apenas

na cabeça dele e do pai contra você e a sua família.

— Besteira.

Caminhamos até o vestiário vazio. Danilo estava sério, alertando:

— Bruno não é má pessoa, mas existe uma raiva dentro dele que o

deixa muito próximo de cometer as mesmas maldades que o coronel.

Aceitei ele na equipe por achar que pudesse aprender os valores do esporte
e o respeito, mas vi que me enganei. Escute o que vou te falar não só como

professor, mas como amigo: cuidado.


REBECA

Estar de volta mexeu completamente com o meu emocional. A casa

luxuosa tinha o mesmo efeito de uma mal-assombrada, como nos filmes de


terror. Despertava em mim todos os momentos de tensão e medo que vivi

naquele local.

De frente para o espelho, terminava de pentear os cabelos, sentindo


o coração apertado e o estômago embrulhando. Em nada condizia com a

imagem refletida. Estava bonita um vestido florido em tom lilás, um leve

brilho nos lábios já naturalmente vermelhos e brincos pequenos.

A ordem tinha sido clara: estar bonita, ser gentil e bem-educada na

noite em que eu conheceria meu noivo.

Noivo.
A palavra soava como uma bigorna na minha cabeça. Sabia que

papai não perderia a oportunidade de lucrar, mas me prender em um

casamento arranjado em troca de dote e parceria política era demais para

mim.

Não que ele tivesse deixado claro, mas ainda que parecesse, eu não

era boba.

Era uma ideia tão absurda e ultrapassada que eu ainda estava

estarrecida. Havíamos chegado naquela tarde de domingo e ele não perdeu

um segundo. Deu a ordem no instante em que coloquei a mala no chão.

Meus dedos tremiam, a garganta e os lábios estavam secos. Nervosa

demais, certifiquei-me de que a porta estava trancada. Andei até o guarda-

roupa, pegando o pouco dinheiro que tinha escondido dentro de uma

jaqueta grossa.

Era pouco. Muito pouco para alguém que precisaria se estabelecer

em algum lugar com a mãe adoecida. Passagem, aluguel, comida,

necessidades básicas...

O trovão alto me fez sobressaltar e voltar à realidade. Retornei o

dinheiro para o lugar, garantindo que estivesse bem escondido. Abri a porta

respirando fundo e me preparando para o que viria.


Desci as escadas encontrando papai de costas enquanto se servia

uma dose de uísque no bar. Era feio, não pela estatura mediana e roliça, mas

principalmente pela maldade que emanava de seus poros.

— Não ouse me envergonhar na frente do seu futuro marido —

repreendeu-me em tom imperativo, ostentando uma carranca grotesca.

Mal sentia as minhas pernas, trêmula e ansiosa. Tentando passar

uma confiança que não me pertencia, aproximei-me dele, suplicante:

— Papai, por favor...

— Não me chame de pai, sua estúpida. Te suportei tempo demais


dentro da minha casa. Chegou o momento de retribuir tudo que gastei com

você e as coisas que me fez perder.

— Se o problema for esse, eu posso trabalhar. Te devolver cada

centavo.

A risada alta e irônica soou rouca. Com desdém, falou altivo:

— Além de sonsa é muito burra mesmo. Não percebe que nunca

significou nada para mim, além de uma grande pedra no sapato? Você só

trouxe desgraça para minha vida desde que soube da sua existência. Só não

me livrei da sua presença antes porque Célia não deixou e você se mostrou

bem útil desde que ela preferiu se fingir de besta nessa modinha de
depressão. Se tivesse tanta preocupação na cabeça e responsabilidades

como eu tenho, não teria essa frescura.

Eu tremia, abalada pela maldade de suas palavras. Embora achasse

que estava acostumada com tamanha crueldade, ele sempre conseguia me

surpreender. Não havia dúvidas de que ele me odiava, mas cada palavra me

feria de um modo irreversível. Ainda assim, mamãe só tinha a mim para

defendê-la, por isso, juntei forças para responder:

— A depressão é uma doença, não frescura. E se a mamãe está

assim, algum motivo teve. Não resta dúvidas que a culpa foi sua, crápula.

O copo em sua mão acertou a parede com força ao mesmo tempo

em que o rosto ficou tão vermelho quanto um morango. Sua voz soou baixa

e mordaz:

— A sua sorte é que o Coronel chega em poucos minutos e não


merece ver a noiva com a cara toda destruída. Não no primeiro encontro.

Mas eu juro, Rebeca, que se você fizer isso aqui — juntou o polegar e

indicador em uma distância curta —, eu vou te dar justificativa para ficar

no hospital um ano em coma. Agora vá chamar a empregada para limpar

essa bagunça que me obrigou a fazer.

De olhos arregalados, todos os meus instintos diziam para correr,

mas minhas pernas não entendiam.


— Vai logo, imprestável — vociferou.

Não consegui responder, virando-me em direção à cozinha,

pensando no que ele tinha dito. Papai — ou melhor, Deodato — tinha


deixado claro que nunca me quis e eu tentava desesperadamente entender o

porquê.

Vânia parou à minha frente, segurou minha mão com carinho e

alisou meu rosto. Tinha o costume de observar minha interação com meu

pai escondido. Era o seu modo de me defender e acolher.

— Acalme seu coração, minha menina. Vai passar.

A lágrima escorreu silenciosa pelo meu rosto. Ela a secou, beijou

minha bochecha, se abaixou pegando os materiais de limpeza ao seu lado.

Vânia parecia estar sempre preparada para tudo.

— Agora preciso ir antes que ele se enfureça mais.

Fiquei sozinha na cozinha pensando no que eu tinha feito para ele

me odiar tanto.

Pouco depois, a campainha tocou, limpei as lágrimas respirando

fundo. Precisava me recompor ou não sobreviveria àquela noite.

— Limpe essa lambança imediatamente, serviçal. Eu mesmo abro a

porta para o meu convidado de honra.


A humilhação era algo constante naquela casa, não só comigo, mas

com ela e Olegário. Por várias vezes me perguntava a razão deles ainda se

submeterem a isso. Eram excelentes profissionais, tinha certeza de que

conseguiriam empregos melhores na região.

Como se um interruptor tivesse sido acionado, o comportamento de

Deodato mudou completamente, expondo o sorriso falso e amarelado ao

cumprimentar o convidado tão velho e feio quanto.

O homem era de estatura mediana, muito barrigudo e com um

bigode branco horroroso. Vestia um terno claro, camisa branca e gravata

preta, totalmente evidente pelo paletó aberto. Por um segundo foi como se

estivesse olhando aquelas imagens de coronelismo e voto de cabresto nos

livros de história.

Era óbvio que Deodato fosse se aliar a um coronel que pudesse

privilegiá-lo com o aumento significativo de votos vindos de funcionários

com baixa escolaridade e com seus empregos ameaçados.

— Você não mentiu quando disse que a minha noiva era linda. Só

espero que esteja realmente intocada ou teremos problemas, meu amigo.

Parando à minha frente, seu olhar era como o de um predador

faminto. Sem qualquer cerimônia, me encarou como se eu estivesse nua. O

arrepio pelo asco percorreu o meu corpo. Eu já o odiava.


Fiquei imóvel, incapaz de me mexer quando ele beijou a minha

mão. Não sabia dizer o que sentia: medo, nervoso, apreensão, nojo... tudo

junto.

— Não vai cumprimentar o seu futuro marido? — Tocou meu

queixo. Pisquei, tentando sair daquele transe macabro.

— Perdoe a reação de minha filha, Coronel Vilela. Está nervosa em

conhecer o homem com quem passará o restante dos seus dias. Vamos nos
sentar, em breve o jantar será servido. Que tal um uísque 18 anos para abrir

o apetite?

— Sabe como tratar os amigos bem, Prefeito — o asqueroso

respondeu, se sentando confortavelmente no sofá. Parecia até ser o dono da


casa.

Eu via tudo acontecendo em câmera lenta e não estava conseguindo

reagir. A sensação era de estar em um universo paralelo, presenciando uma


realidade que não era minha.

— Não fique parada, menina. Vá servir o que seu noivo mandou.

Forcei minhas pernas a andarem, pedindo a Deus para não fazer

nada de errado e piorar tudo. Naquele instante, Vânia finalizou a limpeza e


passou por mim. Papai tinha dispensado as outras empregadas, dizendo que
a noite era importante demais para ser presenciada pelos suburbanos.
— Teve um acidente no bar, amigo Deodato? — o velho questionou,
nitidamente querendo provocar mais discórdia, claramente tendo entendido

o que aconteceu antes da sua chegada.

Servi a bebida em dois copos e coloquei em uma bandeja de prata.


Direcionei-me primeiro ao homem, inclinando-me levemente para que ele

pegasse a bebida. Tive vontade de bater o objeto em minhas mãos em sua


cabeça com toda força quando o percebi esticando o olhar em direção ao

meu decote.

Era cru, inescrupuloso, nojento. O coronel parecia ser ainda pior do

que o meu progenitor. Rodeou o líquido âmbar levemente dentro do copo


com os olhos presos nos meus. Bebeu, apreciando a bebida, enquanto

virava o rosto e passava a me ignorar.

Papai fitou o bar, em seguida a mim quando me aproximei,


afirmando em tom severo, mas soando engraçado para o tal coronel:

— Às vezes não é fácil corrigir esses jovens, sabe como é.


Acabamos perdendo a paciência.

— É totalmente compreensível, faço isso com frequência. Ainda

bem que meu moleque puxou ao pai. Corajoso, viril, macho de verdade. Já
a mais nova — de dezoito anos — se tornou um demônio desde que a mãe

morreu, mas não a deixo me vencer pelo cansaço. Lá em casa, se aprende


por bem ou eu encontro outras alternativas digamos... mais corretivas e
eficazes. Sempre foi assim com as mulheres que passaram por lá,

continuará sendo com as que vierem.

Eu não estava enganada. Ele era mesmo perverso. Sentia prazer ao

machucar e humilhar.

— Não se fazem mais filhos obedientes como antigamente, amigo.


Hoje em dia, essa tal modernidade e empoderamento virou um inferno.

Qualquer coisa é crime. Geração mimimi.

Papai riu, à vontade. Eu só pensava que não conseguiria suportar

uma versão piorada dele. Respirei aliviada quando ordenou:

— Vá acompanhar o jantar, preciso finalizar alguns detalhes do


casamento. Aproveite a empregadinha que tanto gosta, porque essa

mordomia vai acabar.

— Com certeza vai — o outro endossou. — Até porque lá em casa a

empregada será você. — Sorriu de um jeito sinistro e me deixou ainda mais


enojada.

Não precisei de um segundo aviso para sair. Cheguei à cozinha

soltando todo o ar que tinha prendido naquela interação que parecia ter
sugado toda a minha energia.
O choro forte transbordou quando Vânia me abraçou. Estava

vulnerável, amedrontada. O abraço quente e acolhedor foi como um


bálsamo necessário.

Vânia foi paciente, me acolhendo até que estivesse mais calma.

Vindo pela porta dos fundos, Olegário acarinhou meus cabelos, estendendo
uma caixinha de lenços que ficava na cozinha.

— Não vou suportar um homem como ele. Vou enlouquecer igual à


mamãe. Eu preciso fugir e levá-la comigo.

— Essa é a melhor opção, meu bem, mas precisa agir com calma.

Não pode tomar uma decisão tão precipitada — ela consolou. — Nós
podemos ir com você.

— Não. Não posso envolver vocês nisso. Ele se vingaria sem


misericórdia, sem contar que é o sustento de vocês.

— Estamos aqui por você, filha. Apenas por você. Prometemos te

proteger, lembra?

Desde criança, Vânia sempre me fez sentir segura. Nunca entendi

bem a razão, mas a verdade era que eles eram os únicos com quem eu sabia
que podia contar, então não fazia muitos questionamentos.

— Finalize esse jantar, entenda os planos deles e te ajudaremos a

agir. Eles nunca vão te achar.


Apoiei a testa em seu ombro, prometendo a mim mesma que tudo

ficaria bem. Eu faria ficar.

Não demorou até que estivesse novamente na presença deles,

degustando a comida que eu sabia estar incrível, mas não conseguia sentir o
gosto de nada. Comia sem emitir nenhum tipo de som, tentando me fazer

invisível.

— Amanhã bem cedo o motorista do coronel vem te buscar para


irem a São Paulo e darem início aos preparativos do casamento. A

cerimônia acontecerá no próximo sábado.

Soltei os talheres espantada, fazendo o som chamativo ecoar pela

sala de jantar.

— Tão... tão rápido? — indaguei, engolindo o bolo em minha


garganta.

Vilela tocou a minha mão sobre a mesa, fazendo-me sobressaltar


com o aperto firme e as mãos ásperas. Esticou o canto dos lábios de um

jeito assustador. Quase vomitei quando percebi que tinha molho em seu
bigode.

— Estou ansioso para desposá-la logo, minha noiva. Sou um

homem muito exigente e, quando fecho um acordo, quero usufruir logo dos
serviços que contratei. Se é que me entende.
Arregalei os olhos, sentindo os dentes baterem uns contra os outros.
Eu entendi. E me imaginar na cama com ele fez a comida voltar.

— Com licença — consegui pedir, antes de levantar às pressas e

despejar o jantar no lavabo.

Fiquei alguns segundos tentando mudar o foco dos meus

pensamentos, pois a cada vez que a imagem grotesca surgia, uma nova onda
de ânsia a acompanhava. Sentindo-me levemente melhor, lavei o rosto e

voltei. Sabia que não podia demorar.

Os dois homens me encararam sérios, no que parecia ser raiva


contida. No olhar do coronel, era nítido que ele entendeu o motivo da minha

reação. Sua resposta silenciosa era “aguarde o que farei quando tiver posse
sobre você”.

Sabia que estava perdida.

O jantar não durou muito, graças a Deus. O homem se despediu,


sisudo e foi embora.

Quando achei que poderia respirar aliviada ao fechar a porta, não


tive tempo de raciocinar antes de sentir o tapa forte em meu rosto.

Desequilibrei, mas ele não me deixou cair. Puxou meus cabelos com força,
fazendo-me inclinar a cabeça para trás, choramingando. Bateu com a outra
mão prendendo o olhar ao meu. A bochecha ardia, o sangue escorria pelos
cantos da boca ferida internamente quando mordi a mucosa.

— Isso é para você aprender a nunca mais me submeter a uma


vergonha como a que fez ao correr para o banheiro — vociferou. — Ele

será o seu marido e terá direito sobre o seu corpo. Irá usar e abusar como
quiser e ai de você se recusar.

— Monstro! — Cuspi sangue em seu rosto.

Ele me soltou, deixando-me cair no chão frio. Passou a mão no rosto


manchando-o todo de vermelho.

— Sua putinha desgraçada. Acha que sou um monstro? Não

conheceu metade do que o seu futuro marido é capaz. Só para você saber, é
a terceira esposa dele. As anteriores morreram de desgosto e desejo que

com você seja muito pior.

— Por que está fazendo? — perguntei, mantendo-me o mais firme


possível, embora me sentisse devastada.

— Primeiro, porque preciso pensar na minha carreira, necessito de


aliados fortes para vencer aquele Albuquerque de merda. Embora nunca
tenha atuado na política, o infeliz é benquisto na cidade e é honesto. Então,

preciso lutar com as armas que tenho. — Deodato se abaixou perto de mim,
dizendo em tom rascante: — Em segundo, mas não menos importante, para
me vingar de toda a desgraça que você trouxe para a minha vida.

Passou por cima de mim, abriu a porta e saiu.


REBECA

Chega!

Não dava mais para suportar tamanha humilhação e crueldade. Eu

precisava tomar uma decisão, e era isso que faria agora. Não havia tempo a
perder.

Com dificuldade, levantei-me do chão, prometendo a mim mesma

que esta tinha sido a última vez que um homem me trataria dessa maneira.

Vânia e Olegário apareceram na sala, prontos para me apoiarem,


mas recusei.

Erguer-me sozinha foi muito mais do que um ato físico. Foi


simbólico. A metáfora de que eu me levantaria, lutaria e viveria a vida que

sempre sonhei.
— Nós ouvimos tudo, minha querida. Como você está? — ela

perguntou, preocupada.

Minha cabeça estava confusa, trabalhando muito rápido a ponto de


não pensar direito.

— Com medo, mas preciso agir. Vou pegar algumas peças de roupas

minhas e da mamãe, vamos fugir antes dele voltar — informei, limpando a


mão suja de sangue no vestido.

Vânia tocou meus dedos, direcionando minha atenção para ela.

— Minha menina, me escute. Não será um início fácil. Sua mãe

aspira cuidados, não se adaptará em qualquer lugar e dificultará a sua fuga.

Não acha melhor se estabelecer primeiro e depois buscá-la?

Neguei de imediato.

— Ele vai matá-la quando descobrir que eu fugi. Não posso

abandoná-la assim.

— Não vai, porque seria prejudicial para a campanha dele. Além

disso, temos o Rodrigo, ele pode ficar com ela.

— Não. Ela não iria, só confia em mim. Rodrigo não saberia cuidar

da nossa mãe, não como ela precisa. Não consigo deixá-la.

Serena, Vânia insistiu:


— Você não está a abandonando, apenas estruturando a sua vida

para levá-la com você. Prometo que quando você deixar essa casa, tirarei

Célia daqui e a manterei segura no ranchinho onde a minha mãe mora. Não

é longe para você buscá-la, nem perto para seu pai achá-la.

Eu estava confusa, fugir sozinha nunca esteve nos planos. Seria

mais fácil, mas não poderia. Fechei os olhos, tentando pensar em uma

alternativa.

— Suba, vou ajudá-la a arrumar as suas coisas enquanto você toma

a decisão — ela orientou com afeto.

Assim fizemos. Troquei o vestido por uma calça e blusa quentinha.

Em uma pequena mala, coloquei poucas peças de roupa, um sapato, uma

manta, meus documentos e todo o dinheiro que juntei. Teria que ser o

suficiente para começar.

Coloquei a pequena mochila nas costas, sentindo o peso na

consciência por ter que deixar a mamãe. Sentia-me uma filha ingrata que

estava jogando a própria mãe na cova dos leões. Se algo ruim acontecesse a

ela, eu jamais me perdoaria.

Fui até o seu quarto, e ela dormia tranquila. Era tarde e, somado à

quantidade de remédios que tomava, não conseguiria acordar. Quis me


despedir, deixar claro que estava fazendo isso porque não tinha outra opção,

mas não pude.

Ajoelhei-me próximo à sua cama, beijei os dedos quentinhos e

pousei sobre a minha cabeça como se me desse a sua benção enquanto as

lágrimas grossas desciam pelo meu rosto. Orei baixinho, pedindo que Deus

abençoasse os nossos caminhos e que colocasse pessoas boas em nossa

trajetória.

Chorei, sentindo medo do desconhecido e do que poderia passar

pela frente. A possibilidade de ficar retornou, mas soube que se cedesse,

nunca mais teria a chance de ser feliz. Era uma decisão difícil, mas

necessária.

— Eu te amo, mamãe. Volto para te buscar assim que tiver o

mínimo de estrutura para a senhora.

Pousei o pequeno bilhete onde me despedia dentro do seu cesto de

linhas. Sabia que seria o último lugar que Deodato olharia ao sentir a minha

falta e o primeiro dela ao começar o seu dia de costura.

Fechei a porta do quarto, e Vânia me acompanhou do corredor até a

porta dos fundos.

— Sabe para onde vai? — ela indagou, com a postura derrotada.


— Ainda não, mas vou trocar de número do telefone e darei um

jeito de te avisar.

— Faça isso, minha menina. Não sabe o quanto estou preocupada


com você, ao mesmo tempo sei que coisas boas virão pela frente. —

Abraçou-me forte, beijando minha testa em seguida. — O Olegário vai te

acompanhar até a cidade vizinha para que possa pegar um ônibus.

Neguei em um aceno.

— É melhor não. Os carros têm rastreadores e serão o primeiro

lugar a serem procurados. Vou sair daqui. Está chovendo e está tarde,

ninguém vai ver.

Vânia tentou argumentar, mas não aceitei. Dei um abraço nele, ela

me entregou uma sombrinha e sacola com algumas comidas e coloquei na

mochila impermeável.

— Para garantir que você comerá bem nesses primeiros dias.

Abracei-a novamente, despedindo-me.

— Obrigada. Se cuidem e cuidem dela, por favor. Mando notícias

assim que for possível.

— Que Deus te acompanhe, minha menina.

Acenei, sentindo o peito apertado enquanto me afastava dos dois

abraçados no portão dos fundos.


A chuva não estava mais tão forte, mas sim fria e contribuía para

que o meu medo aumentasse. Nunca tinha vivido nada parecido. Não tinha

nada planejado, então precisaria me virar.

Pensei em ir para a rodoviária e pegar qualquer ônibus, contudo,

seria óbvio demais, sem contar que seria reconhecida por qualquer pessoa.

Táxi também não era uma opção viável, já que além disso, era muito caro

para alguém com a grana curta.

Enquanto andava de cabeça baixa e analisando as possibilidades,

sentia minhas calças molhadas pela chuva, começando a esfriar meu corpo.

Cogitei ir andando de uma cidade a outra, mas estar na estrada em dia de

chuva era quase a combinação perfeita para uma tragédia.

Arrisquei-me muito passando pela pracinha central da cidade, de

frente o CAVALBAR, mas não haveria outra alternativa para ir de uma

ponta à outra. Tentei andar pela sombra das áreas agradecendo pela noite

estar escura.

Sobressaltei-me quando percebi o carro de papai pela rua. Tensa,

não poderia dar brecha para ele me notar. Com o coração acelerado, não

pensei direito. Parei próxima a uma caminhonete cinza e só me atentei à

placa. Era de Uberlândia. Isso queria dizer que, em algum momento, a

pessoa iria para lá, nem que eu precisasse ficar alguns dias escondida.
Passei o braço removendo o excesso de água da lona, afastei-a um

pouco, conferi rapidamente se tinha espaço, joguei a mochila e entrei,

fechando em seguida.

Foi a maior loucura que tinha cometido até então. Estava em um

carro desconhecido, refém de um destino também desconhecido, mas era a

minha melhor opção.

O interior estava seco e escuro, tinha algumas cordas enroladas, mas


de modo geral, estava vazio. Agradeci, pois seria suficiente para me esticar.

Sentia toda a musculatura rígida pelo frio, mas seria temporário.

Usei a mochila para me aquecer. Pensei em colocar uma roupa seca,

mas qualquer movimento da caminhonete poderia levantar suspeita, então


optei por permanecer molhada, no entanto, precisei pegar a coberta.

Estava com medo, porém, no fundo do peito havia uma esperança de

que tudo iria ficar bem e foi a ela que me agarrei.

Estava tão cansada física e emocionalmente que só percebi que

havia cochilado quando ouvi a porta do motorista ser aberta e o motor ser
acionado logo em seguida. Não houve conversa, apenas um country

romântico um pouco difícil de ser compreendido.

A apreensão voltou a tomar conta de mim, imaginando para qual


local estaria sendo levada e qual seria a pessoa a dirigir aquele carro.
Novamente o medo de estar fazendo a maior merda da minha vida
digladiava com a sensação de ser o maior acerto.

O carro atingiu alta velocidade num piscar de olhos e, a cada

conversão, sentia meu corpo e a mochila se chocarem contra a lataria. Em


uma freada forte, senti a cabeça se chocando contra a lataria nas costas do

motorista, arrancando-me um “au” involuntário. Em seguida, o carro


começou a fazer ziguezague proposital, como se para confirmar de que algo

estava diferente.

Não demorou até perder velocidade até parar de vez no que pareceu

ser uma estrada de terra. Será que tínhamos chegado?

Esperaria um tempo após o motorista descer e depois confirmaria.

Estava tudo bem, até ouvir passadas abafadas na lama, se

aproximando cada vez mais de onde eu estava. Uma luz passou sobre a lona
penetrando pouca luminosidade, mas o suficiente para eu identificar como

uma lanterna de celular.

Meu coração gelou. Orei para não ser descoberta ou estaria perdida.
Se qualquer pessoa me encontrasse naquelas condições, me denunciaria ao

meu pai e eu seria uma mulher arruinada.

Os dedos começaram a desfazer os ganchos da lona e soube que

naquele momento teria um ataque cardíaco. No entanto, nada me preparou


para a surpresa que tive ao encontrar o dono do veículo.

— Rebeca?! O que está fazendo aqui desse jeito?


ARTUR

Havia algumas semanas em que eu não saía para beber em Alta

Colina. Ainda que gostasse muito do local, estava um pouco saturado de ver
as mesmas pessoas todas as vezes.

Nos sábados anteriores, eu tinha conhecido outros locais das cidades

vizinhas, inclusive revisitado os meus preferidos de Uberlândia. Todavia,


cheguei à conclusão de que o problema não eram os lugares, mas eu. Algo

em mim já não se animava mais com aquela rotina de barzinho aos finais de

semana. Ficar na fazenda curtindo uma roda de viola ou assistindo seriados

tinham se tornado estranhamente gostoso.

Naquele domingo, Washington tinha me arrastado para o seu

aniversário, só assim para me fazer sair da fazenda à noite e debaixo de

chuva.
Não podia reclamar, tinha sido legal. Rimos, bebemos e nos

divertimos. Como acontecia há algum tempo, não fiquei com ninguém. Não

que eu fosse o garanhão pegador, mas só terminava à noite sem ninguém se

quisesse.

Devo admitir que tanta mudança me deixou um pouco preocupado,

mas atribuí também ao fato de estar envelhecendo. Como dizia a mamãe,

uma hora a bateria social acaba.

Já estava tarde, a semana na fazenda tinha sido cansativa e eu queria

ficar sozinho. Porém, estava aqui deixando os pensamentos fluírem livres

ao encarar o copo de cerveja e ouvir o falatório ao meu redor sem realmente

prestar atenção.

Voltei minha atenção quando Washington deu uma cotovelada em

meu braço.

— Peão, por que não admite que ficou interessado e vai atrás da

ruivinha? Soube que ela retornou para a cidade hoje.

A ruivinha...

Segurei o leve sorriso bobo que sempre me atingia quando pensava


nela. Rebeca me enchia de emoções boas e preocupantes, na mesma

proporção. Os olhos quase dourados estiveram presentes em meus

pensamentos por alguns bons dias desde a conversa com os meus pais.
O que meu amigo não sabia é que eu não só tinha ido atrás dela,

como me certificado de que ela esteve bem todo esse tempo em que

permaneceu longe.

Contratei um investigador, descobri que esteve em uma cidadezinha

tão charmosa quanto Alta Colina, chamada Campos Belos, na divisa dos

Estados de Goiás, Tocantins e Bahia. Não fiquei em paz até viajar para o

lugar e me certificar de que ela realmente estivesse bem.

Estacionado do outro lado da rua, sob uma árvore frondosa, eu

esperava ansioso o momento em que Rebeca fosse sair de casa. Tínhamos

conseguido um informante em sua equipe de segurança, o qual nos contou

que fazia parte da rotina ela sair todos os dias para ir ao mercadinho.

Senti uma certa euforia me atingir quando os cabelos ruivos

começaram a aparecer atrás do portão de grade. Em um vestido florido,

Rebeca surgiu linda e reluzente. O reflexo do sol em seus cabelos a deixava

ainda mais cativante. Estava mais corada, com o semblante leve. Parecia

feliz.

Desci do carro a acompanhando à distância, logo atrás do

brutamonte em sua cola. Talvez estivesse tão bem longe da presença

negativa do pai que sequer se importava.


A fragrância de flores deixava um rastro leve, atingindo minhas

narinas e reavivando memórias da única noite em que nos tocamos.

Rebeca entrou em um mercadinho simples e o homem ficou parado

do lado de fora. Ajustei a aba do boné e os óculos escuros. Se ele soubesse

quem eu era, dificilmente me reconheceria, já que não estava com as

roupas habituais, mas sim uma bermuda cargo e camisa básica.

Acompanhei de longe e pelo espelho convexo sobre as prateleiras


cada um de seus movimentos. Rebeca agia de modo tranquilo, lendo

pacientemente o rótulo das embalagens antes de colocá-las no pequeno

carrinho. Minha parte preferida foi observá-la na fila da padaria, olhando

para os lados como se estivesse deslumbrada com o lugar simples. Era

nítido o quanto ela estava bem e se sentia livre longe do pai.

Estava adorando tê-la tão perto, presenciando quem de fato era

Rebeca Moreira. Uma menina inocente, ingênua e apaixonada pela vida

que permaneceu tempo demais sob as garras do pai.

Constatar que estive certo este tempo todo fez com que a fagulha

acesa se transformasse em pequena chama. Conhecendo-me bem, sabia que

se desse vazão, poderia se tornar uma labareda sem controle.

Senti vontade de me aproximar, tocá-la, certificar-me de que

realmente tinha se recuperado. Mas me refreei.


Durante a nossa dança, na festa da colheita, percebi o quanto ela

também se sentiu abalada. A nossa ligação parecia ter sido muito mais do

que física, e incrível. Por isso, sabia que abordá-la naquele instante

poderia desencadear emoções inesperadas em nós dois.

Enquanto pudesse poupá-la, seja física ou emocionalmente, eu

faria.

A angústia começou a fazer morada no meu peito ao perceber que

nosso breve momento de contato estava acabando quando ela se direcionou

ao caixa.

Saí do local, a aguardando do outro lado da rua. O homem que a


vigiava estava disperso, mexendo no celular e fumando. Estava mais com

jeito de capataz do que segurança. Não me passava confiança, e por isso,

pediria que o nosso infiltrado redobrasse os cuidados com Rebeca.

Sorri quando saiu do lugar e empurrou as sacolas pesadas para o

homem. Ela era ingênua, não boba.

Voltou para casa parecendo ouvir música no fone sem fio,


cantarolando — não tão baixo — a música Promete. Acho que não era

apenas eu que a ouvia com tanta frequência.

Ao chegar em frente à residência simples, Rebeca parou, levantou a

cabeça com calma e olhou para trás, como se sentisse que estava sendo
seguida. Observou sua retaguarda rapidamente, passando o olhar por mim,

não tão escondido quanto deveria. Não me reconheceu, voltando a atenção

ao portão. Milésimos de segundos depois, olhou na minha direção

novamente, mas já não estava mais lá, acompanhava atrás de uma árvore o

seu olhar perdido. Coçou a cabeça, confusa e se deu por vencida, entrando

novamente na casa.

Em meu peito, um certo contentamento fez morada. Tinha

comprovado que estava bem, e isso me deixou seguro o suficiente para

voltar para casa, não sem antes orientar o homem ao meu serviço a

acompanhar a garota de perto e não deixar que nada lhe faltasse.

Era hora de voltar para casa e seguir a vida com a tranquilidade de

que ela ficaria bem.

— Ei, está me ouvindo? — O tapa forte em minha cabeça me fez

voltar à realidade.

— Desculpe, dispersei.

— Ah, mesmo? Quase não percebi. Como se não estivesse

acontecendo sempre. — Washington se ajeitou na cadeira. — Mas então,

não vai procurar a ruivinha?

— Não sei. O retorno dela foi repentino, ainda não pensei no que

vou fazer.
— Cara, para todos nós já está mais do que claro que está rendido

pela garota. Sabendo o quanto o pai dela não presta, acho que está perdendo

um tempo crucial.

Anuí, compreendendo que ele estava certo. Tinha tomado ciência do

seu retorno naquela manhã através do investigador. No entanto, Deodato

estava sendo cauteloso, arquitetando tudo às escondidas e não deixando

margem para erros.

— Tem razão, mas preciso pensar antes de agir. Agora vou nessa.

Mais uma vez, parabéns!

Ele assentiu, em um cumprimento de mão e batida de ombro.

Finalizei a bebida, me despedindo do restante do pessoal.

Paguei a conta, direcionando-me à saída. Olhei para o céu


contemplando a beleza da chuva e acelerei para entrar no carro.

Fiz o caminho de volta tranquilo. Nos alto-falantes, uma playlist de


country romântico soava baixo. A melodia triste chamou minha atenção,

fazendo-me focar na tradução da música que o painel mostrava se chamar


Bone Dry, da Shania Twain. Basicamente, um pedido de socorro de alguém

que se via à beira do fim.

Era triste que as vidas de muitas pessoas pudessem chegar a um


ponto tão drástico, muitas vezes em decorrência de ações de outras. Não
conseguia entender como existiam seres humanos capazes de fazer tanto
mal ao outro.

Tive minha reflexão interrompida ao notar algo estranho na

carroceria. Eu preferia andar com ela vazia justamente por não gostar de
objetos soltos batendo nas laterais. Ouvi um baque atrás do banco do

passageiro. Fiquei em alerta.

Ressabiado, acelerei fazendo movimentos acentuados no volante,

constatando que tinha algo fora do comum na carroceria.

Reduzi a velocidade até parar na estrada. Desci com a lanterna do


celular acesa, atento e pronto para reagir a qualquer momento. A lona

estava presa de um jeito no qual eu não costumava deixar, como se tivesse


sido fechada por dentro. Preparei-me para o pior.

Desfiz os ganchos e enrolei a cobertura devagar, esperando


encontrar um criminoso que estivesse fugindo da polícia ou coisa parecida.

Meu olhar subiu lentamente no instante em que o tecido desvendava as


pernas cobertas por uma calça molhada e tênis rosas, em igual estado de

precariedade.

Era uma mulher.

Direcionei a lanterna para o rosto dela, e nada me preparou para

encontrar Rebeca abraçada a uma mochila, toda molhada e assustada. Os


olhos estavam cerrados pela iluminação repentina. Aos poucos, os cílios,
tão ruivos quanto os cabelos, piscaram rápido, escancarando o pânico que

sentia.

— Rebeca?! — perguntei, atônito. — O que está fazendo aqui desse

jeito?

A garota tremia, completamente ensopada. Fixei a luz em seu rosto,


percebendo que estava machucada, com alguns cortes na boca e as

bochechas inchadas.

Como se estivesse sentindo algum alívio em me ver, a sua reação foi

liberar um choro que começou com lágrimas silenciosas, mas em segundos


se tornou um som gutural e poderia ser ouvido à distância. Um grito de

socorro vindo da alma.

Não pensei.

Apenas abri um pouco mais a lona e pulei para dentro. Deitei-me à

sua frente, encolhendo as pernas para caber no pequeno espaço. Tirei a


mochila de seus braços, a puxando para os meus em um abraço acolhedor.

— Ei, se acalme. O pior já passou — garanti, acariciando suas

costas e os cabelos molhados.

Rebeca se agarrou em minha camisa com força ao mesmo tempo em

que o choro ganhava proporções ainda maiores. Estava trêmula e


catatônica. Não conseguia falar ou se expressar, apenas chorar.

— Shhh... Está tudo bem. Estou aqui e prometo que nada vai

acontecer com você.

Rebeca chorava sentido, um pranto que misturava alívio e

desespero. A cada soluço, eu a apertava mais contra mim, na tentativa de


tirar a sua dor.

Não sei quanto tempo permanecemos daquele modo, mas aos

poucos o choro foi diminuindo até se transformar em pequenos murmúrios.


Abaixei o meu olhar, fitando o rosto vermelho e banhado em lágrimas.

Ainda assim, era a mulher mais linda que já tive o privilégio de pousar
meus olhos.

— Quem fez isso com você, Bruxinha? — indaguei baixinho,


passando o polegar com cuidado sobre os cortes nos lábios. O apelido saiu

sem que eu tivesse qualquer controle. Talvez ela ainda estivesse sob torpor
que sequer percebeu.

Tentei aparentar tranquilidade, pois sabia que era o que ela precisava

naquele momento. No entanto, sentia meu coração bater acelerado,


imaginando os milhares de cenários que pudessem tê-la deixado naquelas

condições.

— Só me abraça, por favor — suplicou, com a voz embargada.


Eu sabia que não poderia forçá-la, mas isso não queria dizer que eu

não estivesse ansioso.

Fiz o que pediu, apertando-a mais uma vez, pousando o queixo

sobre a sua cabeça. Ainda que estivessem úmidos, os cabelos tinham um


cheiro suave, gostoso. Vi-me diante do prazer que era simplesmente respirar

e sentir o seu perfume. O paradoxo ficava por conta de eu estar nervoso,


preocupado pelo que ela havia passado e com vontade de acertar as contas

com o pai dela, ao mesmo tempo em que o seu cheiro me acalmava.

Sua respiração foi se normalizando, a ponto de eu pensar que tinha


dormido. Fitei-a com cuidado, feliz por saber que eu também a

tranquilizava. Observá-la tão perto, vulnerável e entregue fez meu coração


acelerar de um modo como nunca antes. Tinha consciência de que aquele

encontro não tinha sido sem propósito.

Senti minhas pernas doerem encolhidas no pequeno espaço,

completamente encharcadas de lama. Começávamos a perder calor


significativamente para o descampado, escuro a ponto de não ser possível
enxergar nada além do pisca-alerta da caminhonete.

Tirei o celular do bolso, notando que a noite dava lugar a


madrugada. Em breve o frio naquele descampado seria quase insuportável.

Chamei-a baixo, tirando os cabelos do seu rosto.


— Rebeca, acorde. Está ficando tarde, precisamos ir.

Ela levantou a cabeça devagar, um pouco perdida.

— Eu... — limpou a garganta rouca. Afastou-se um pouco mais,

pousando a mão no meu peito — não tenho para onde ir.

— Não se preocupe com isso agora. Vou cuidar de você — declarei,


acariciando a bochecha, em tom baixo e rouco. — Agora vamos, antes que

adoeça.

Ela anuiu, começando a se levantar. Coloquei-me de pé, sentindo

certa cãibra. A chuva tinha diminuído, mas estávamos em estado de


calamidade. Pulei no barro, peguei sua mochila com pouca coisa, a jogando

sobre o banco de trás.

Rebeca se movimentou para descer, mas impedi estendendo a mão.


Olhou-me confusa, mas aceitou. Estiquei os braços em sua direção e a desci

da carroceria. O olhar dourado se prendeu ao meu, causando arrepios da


base da minha coluna à nuca quando seu corpo desceu devagar rente ao

meu.

Não podia dar ouvidos àquela voz, não agora.

Auxiliei-a a entrar na caminhonete não perdendo o contato visual

até que a porta estivesse totalmente fechada. Dei a volta no veículo,


pensando no que faria, para onde levar Rebeca.
Precisávamos de um ambiente neutro em que ela pudesse me
explicar tudo o que aconteceu com calma e sem nenhuma interrupção.

Entrei no carro vendo-a encolhida, tremendo de frio. Aumentei o


aquecedor, esticando a mão no banco de trás e pegando uma camisa de

manga comprida. Aproximei-me de seu corpo delicado, pousando o tecido


delicadamente sobre seus ombros. Não era exatamente quente, mas ajudaria

a se aquecer até chegarmos.

Respeitei o seu silêncio, entre um lamurio e outro. Dei meia-volta na


estrada de barro e acelerei.
REBECA

Deus tinha ouvido as minhas orações.

Era apenas o que eu conseguia pensar enquanto saíamos da estrada

de terra e entrávamos na rodovia.

Não sabia para onde estávamos indo, também não sentia vontade de

perguntar. Eu tinha pedido a Deus que colocasse pessoas boas no meu

caminho durante aquela fuga, e ele me colocou justamente na caminhonete

do Artur.

Não havia dúvidas de que o ocorrido tinha sido por um bem maior.

Era domingo à noite, quase ninguém ficava até aquela hora no


CAVALBAR, mas ele estava lá. Era louco, mas algo dentro de mim parecia

dizer que me esperava.


Na hora do desespero, quando vi o carro de papai, eu só pensei em

não dar chances para ele me encontrar. Não prestei atenção em nada mais

do que a cidade descrita na placa da caminhonete. Jamais passou pela

minha cabeça que pudesse ser a dele.

Enquanto ele acelerava e a música melancólica tocava baixo, eu

sentia seu cheiro gostoso vindo da camisa sobre os meus ombros. Cheguei à

conclusão de que Artur tinha uma energia tão poderosa e forte que me

deixava segura a ponto de não pensar mais nada quando estava com ele.
Prova disso foi que consegui cochilar alguns segundos em seus braços.

Devo admitir, saí de um momento de puro desespero para um estado

de relaxamento impressionante. Se contasse, ninguém acreditava.

Naquele momento, Artur poderia me levar para onde quisesse,

porque eu sabia que estaria segura com ele.

Uma vez, mamãe me disse para nunca confiar nos homens. Eu

levava essa regra à risca, até conhecer Artur. Ele jogava por terra todos os

argumentos que tive para acreditar que homens eram maus, partindo do

exemplo de meu pai e seus aliados.

Observei-o de canto de olho enquanto dirigia. Estava todo

lambuzado de lama, molhado e com os cabelos bagunçados. A expressão

estava fechada, compenetrado.


Lindo demais!

A mais pura imagem de alguém que se permitiu chegar àquele

estado para me ajudar. Jamais poderia agradecer o suficiente.

Chegamos ao que parecia ser Uberlândia. Um bairro com belas

residências e um volume considerável de prédios. O carro foi perdendo

velocidade até entrar em um estacionamento no subsolo de um edifício bem

chique.

Estava cansada emocionalmente e morrendo de frio, mas ainda

assim, me perguntei se seria de propriedade da família Albuquerque ou até

mesmo de Artur.

Minhas divagações foram interrompidas quando ele estacionou,

desceu, abriu a porta de trás, pegou a minha mochila e rodeou o carro, me

ajudando a descer da caminhonete alta. Ativou o alarme, passando o braço

carinhosamente sobre meus ombros e me direcionou ao elevador.

— Vamos sujar tudo — constatei, vendo o estado em que nossas

pernas estavam.

— Não se preocupe com isso. Agora vamos, pois você precisa de

um banho quente.

Assenti, admitindo que estava adorando o calor do seu corpo e tanto


cuidado. Sabia que por trás do homem complacente, havia alguém que
estava se segurando muito para não me pressionar a dizer o que havia

acontecido. Eu o faria, só precisava de um tempo.

Subimos até o oitavo andar em silêncio, melecando o piso claro.

Artur pousou o dedo indicador sobre a fechadura digital e a luz verde

apareceu, liberando a porta.

Automaticamente, uma sala linda, toda espelhada e com iluminação

amarelada e um tom aconchegante me recebeu. Entrei, encantada com a


beleza do lugar. Deixei o par de tênis no canto e caminhei descalça,

descobrindo que o interior do lugar era tão belo e acolhedor quanto a

entrada.

— Vem — Artur falou gentil, apontando para o corredor —, vou te

levar ao quarto para que tome seu banho e tire essa friagem do corpo.

Assenti em silêncio, o seguindo um pouco trêmula até um quarto


igualmente bonito.

— Aqui está sua mochila. — Ele depositou o objeto sobre uma

poltrona mantendo os olhos fixos em mim. Em seguida, balançou a cabeça,

rumando em direção à porta. — Te esperarei lá fora. — E saiu.

Observei-o se afastar sentindo minha cabeça confusa. Era tanta

coisa acontecendo ao mesmo tempo...


Suspirei, caminhando para o banheiro da suíte, me despi e, quando a

água quente me abraçou, senti que estava no céu. Fechei os olhos,

apreciando cada pedacinho de pele em que a friagem era substituída pelo

aconchego.

Deslizei o sabonete levemente pelo corpo só então me permitindo

focar em tudo o que tinha acontecido naquela noite tumultuada.

Ainda que vivesse um cenário onde nada era certo, eu me senti livre.

Sabia que teria muito o que lutar, mas prometi a mim mesma que jamais

voltaria para a casa do meu pai e me submeteria às mesmas condições.

Após um banho revigorante, voltei para o quarto com uma toalha


enrolada no corpo e outra nos cabelos. Abri a mochila, sentindo vontade de

me vestir melhor para encontrar o Artur, mas não tinha levado além de

poucas roupas básicas. Sem opções, coloquei um moletom simples.

Mais calma, passei meus olhos pelo quarto, só então me dando conta

do ar masculino. Era sóbrio, em tons de cinza. Mas o que me chamou

atenção foram as faixas, medalhas e troféus sobre um nicho bonito. Sobre a

escrivaninha, uma foto de Artur um pouco mais novo, de pé usando um

quimono azul com os polegares presos em uma faixa verde.

Prendi a respiração, presa naquela imagem. Estava lindo, suado e

com o cabelo bagunçado. A seriedade para o fotógrafo apenas destacava


sua postura e beleza. Meu Deus!

Eu apreciava vê-lo nos trajes típicos da fazenda e com os cabelos

arrumados ou de chapéu, mas amava quando estava mais despojado e tão

natural, como naquele momento.

Passei os dedos de leve sobre os seus méritos, recordando quando

comentou que gostava de jiu jitsu. Nunca imaginei que ele pudesse ficar
ainda mais bonito do que eu tinha me acostumado.

Voltei à realidade, percebendo que tinha viajado tempo demais.

Peguei a roupa suja colocando em um saco plástico e saí do quarto.

Caminhei devagar o procurando pela casa, porém, não estava preparada

para vê-lo de costas, parado em frente à pia da cozinha concentrado

enquanto cortava algo.

Admirei o dorso definido, ainda com algumas gotas de água

escorrendo pelos ombros. Mais abaixo, as nádegas firmes deixavam a calça

cinza de moletom justa. Fechei a boca, chocada demais.

Artur sentiu a minha presença, pois se virou devagar e deu um

sorriso lindo.

Jesus! Nunca poderia pensar que terminaria a noite diante aquela


cena!

— Gostou do banho?
— Lindo! ... Digo, estava perfeito — corrigi-me a tempo de passar

uma vergonha ao não conseguir esconder a minha avaliação. Aproximei-me

envergonhada, colocando alguns dos lanches que Vânia havia preparado

antes de eu fugir.

Artur deu um sorriso de canto, entendendo perfeitamente a minha

gafe, enquanto eu quis me esconder embaixo do balcão.

Sequer parecia a mesma garota que tinha fugido algumas horas atrás
e que precisava de ajuda naquele instante. Artur era assim, tinha uma força

estranha que me tirava do sofrimento sem eu sequer perceber.

— Coloque dentro da máquina junto às minhas roupas. Amanhã

estarão secas — orientou, e eu anuí, colocando as peças para lavar. Ele


jogou alguns legumes na panela, fazendo um cheiro maravilhoso espalhar

pelo ambiente. — Os lanches parecem maravilhosos, mas eu já tinha


começado a preparar o nosso jantar. Gosta de sopa?

— Muito. Podemos comer o lanche no café da manhã — respondi,

um pouco deslocada.

Ele percebeu.

— Sente-se na banqueta, em poucos minutos estará pronta. Não sou


um grande cozinheiro, porém, não morro de fome. Aprendi a me virar
sozinho na época da faculdade.
Sorri, me acomodando, gostando de saber um pouco mais sobre ele.
Artur era uma caixinha de surpresas e adorava descobrir mais sobre todas

elas.

Estava desconcertada, sem saber o que fazer ou falar. Também não


me sentia preparada para dizer o que tinha acontecido.

Pegando-me de surpresa, Artur saiu rapidamente da sala em direção


aos corredores, quando voltou vestia uma camisa branca.

— Perdoe pelos modos, mas a camisa tinha ficado no quarto em que

você estava.

— Desculpe por isso, não queria invadir o seu espaço. — Juntei os

ombros.

— Deixe disso. — Ele caminhou até a geladeira, tirando uma

garrafa de vinho, servindo duas taças bonitas sobre o balcão. Em seguida,


empurrou uma levemente em minha direção. — Beba, precisa relaxar.

Peguei o cristal com delicadeza e inalei o cheiro. Tinha visto

algumas pessoas fazerem e achava chique. Soltei um pequeno riso fazendo-


o arquear uma sobrancelha curioso.

— O que foi?

— Não quero falar, você vai me achar uma boba.


— Jamais faria isso — garantiu, piscando levemente daquele jeito
que me derretia.

Relaxei os ombros sentindo toda a segurança e acolhimento que seu


tom brando me transmitia.

— A taça é quase do tamanho do meu rosto — sorri, tímida, focada

na abertura do cálice.

Artur me presenteou com um sorriso lindo, e eu me senti bem pra

caramba com aquele pequeno gesto.

— Também nunca entendi para que esse exagero. Mas é bom que

cabe mais — devolveu, descontraído.

Levei a taça aos lábios, sentindo a suavidade da uva e do álcool.

— Bom? — indagou em expectativa?

— Muito.

Sob o olhar cerrado, bebi mais um pouquinho apreciando o sabor.

— Sem caretas dessa vez? — zombou.

Assenti com os lábios curvados em um leve sorriso, lembrando-me

do vexame da cerveja.

— Sem caretas.
O clima estava de certo modo leve, ambos fingindo que não havia

um elefante branco na sala. Ele queria me deixar confortável. Eu jamais


esqueceria de tanta consideração.

De repente, um barulho horroroso e abafado ecoou entre nós. Senti

meu rosto esquentar com brutalidade e quis me enfiar embaixo do balcão


quando percebi ser a minha barriga.

Eu nem sabia que estava com fome até aquele momento.

Mais uma vez Artur foi um príncipe. Não fez piada, se virando para
a panela e experimentando da colher em um bico incrivelmente sedutor.

Não consegui tirar meu olhar de tanta sensualidade transvestida de um


momento comum.

— Vamos te alimentar.
ARTUR

Quando chegamos, tomei um banho rápido na suíte de Antônio,


aproveitando uma calça qualquer esquecida em suas gavetas. Na verdade,

dei sorte, já que desde o retorno de Marcela ele nunca mais tinha estado no
apartamento.

Mandei uma mensagem para mamãe avisando que dormiria fora de

casa, mas que não se preocupasse, pois daria notícias no dia seguinte. Não

que desse satisfação de tudo o que fazia, mas porque ao sair, avisei que não

demoraria. Sabia que Dona Marta teria uma pequena síncope se não a
avisasse que estava bem, ainda mais na chuva. Limpei a lama que

espalhamos e segui para preparar uma comida para nós.

Coloquei o prato de Rebeca na sua frente observando os olhos

brilharem, sentando-me ao seu lado em silêncio. Embora curioso, minha


preocupação em tê-la confortável era maior. Era madrugada, e eu também

sentia um pouco de fome, resultado do corpo trabalhando para nos manter

aquecidos na chuva.

— O seu quarto é lindo. — Rebeca me surpreendeu ao quebrar o

silêncio. Conta muito da sua personalidade.

— É mesmo? — Arqueei a sobrancelha. — E o que viu lá?

— Um homem focado, atencioso e com um coração gigante como o

de um menino.

Movimentei a cabeça, comendo um tanto sem graça diante o elogio.

Percebendo o desconforto, ela apontou ao redor.

— Eu amei esse lugar. É seu?

Ótimo! Ela era esperta e seguiria por um caminho confortável para

mim. Não que não gostasse de elogios, mas me sentia um pouco encabulado

com eles.

— Sim e não. — Peguei a taça de vinho, levando aos lábios. —

Assim como meus irmãos, morei aqui na época da faculdade.

Não precisava entrar no mérito que após esse período o lugar foi

muito utilizado para fins, digamos, menos católicos. Até porque, havia um

bom tempo que não trazíamos ninguém.


A verdade era que eu não gostava de ter muita rotatividade na minha

cama. Adorava sexo, mas entendia que o ato exigia uma troca de energia

muito forte, preferia fazê-lo quando sentia ao menos um carinho especial

pela mulher. Não era libertino, tampouco santo.

Rebeca anuiu e continuamos comendo, agora totalmente em

silêncio, mas eu podia ver a fumaça saindo de suas orelhas.

Ela esperou até que eu finalizasse, entrelaçou os dedos sobre a pedra

de mármore, suspirou longamente para então dizer envergonhada:

— Desculpe te envolver em tudo isso. Eu... só queria fugir.

— Fugir do quê? — incentivei que continuasse quando sua voz

embargou.

Rebeca suspirou, tomando coragem.

— Do casamento arranjado que papai pretende me colocar.

Nos minutos seguintes, ouvi com atenção as barbaridades que

Rebeca contou sobre como tinha sido o seu retorno para casa e confesso que

não me surpreendia com a articulação de Deodato. Era previsível.

— E como conseguiu esses machucados? — Apontei para o seu

rosto e boca.

Rebeca me olhou sem pressa, em seguida, abaixou a cabeça,

desconfortável. Ela não precisava nomear para eu saber o que de fato


aconteceu.

Com gentileza, toquei a ponta de seu queixo, fazendo-a olhar para

mim. Fitei os olhos tristes, mas cheios de esperança. Os lábios, tão carnudos

e vermelhos, dividiam espaço com alguns cortes nas laterais. O peito ficou

quente, cheio de algo que não soube explicar.

Senti vontade de trazê-la para os meus braços e beijá-la em seguida,

mas não podia. Não quando a sua vida estava do avesso e, eu, a única
pessoa que poderia ajudá-la.

— Por favor... — suplicou baixo.

— Soube que deu entrada no hospital da cidade na noite da festa da

colheita — afirmei, baixo.

— O... o que você quer dizer? — Os olhos quase dourados se

arregalaram, surpresos.

— Suspeito que sofra violência em casa e realmente quero te ajudar,

mas não posso fazer se não souber de fato o que você passa.

Envergonha, Rebeca desceu da banqueta e caminhou pela sala de

jantar sem saber como se portar.

— Eu não posso te falar. Se ele sonhar que envolvi alguém nisso,

com certeza vai me matar antes mesmo de me fazer casar com o coronel.

Caminhei até ela, parando a alguns passos de distância.


— Eu sei que está tentando proteger seu pai, mas antes, pense em si

e na sua mãe. Quer mesmo deixá-la sob o mesmo teto que ele?

A lágrima grossa escorreu. Novamente, Rebeca voltava para o


estado de torpor que a atingia ao se referir aos pais.

— É tão arriscado. Não quero te envolver nisso.

— Eu me envolvi no dia em que te vi com dor e olhar assustado.

Acha mesmo que vou te deixar ir embora como se não tivesse acontecido

nada?

— Artur... por favor... — lamuriou.

O corpo miúdo tremia, nervoso demais. Parei a poucos centímetros,

deslizando o dedo sobre a bochecha molhada.

— Deixe-me te ajudar — pedi, baixo.

— Você não precisa — resmungou, vacilante.

— Não, mas eu quero.

— Por quê?

— Não há porquê. Eu apenas acredito que tudo tem uma razão e

você não teria vindo parar na minha caminhonete sem motivo.

Rebeca se deu por vencida, e eu a abracei. Uma força inexplicável

que me fez acolhê-la em meu abraço. Seus braços rodearam o meu corpo
com força, e apreciei aquele momento. Era como se, por um instante, eu

fosse toda a proteção e cuidado que ela precisava.

A toalha em sua cabeça caiu, deixando os fios soltos escorrerem

entre nós dois. Observei a cena entorpecido, principalmente quando o

cheiro dela adentrou minhas narinas. O toque despretensioso em meus

braços fez um arrepio quente subir pelo meu corpo. Acariciei as mechas

com calma sabendo que nada mais seria como antes.

— Meu pai — Rebeca cortou o silêncio, confessando em um

lamento quase inaudível. — Ele não aceita quando eu o contrario e... faz

isso.

Fechei os olhos, internalizando toda a concentração que aprendi no

jiu jitsu para não extravasar equivocadamente e acabar assustando-a.

Minhas suspeitas estavam certas o tempo todo. A vontade era de encontrar

o prefeito e ensiná-lo a como tratar uma mulher com as minhas próprias

mãos.

Contrariando toda raiva e revolta que sentia, mantive Rebeca em

meus braços, transmitindo a calmaria que ela precisa.

— O que você pretende fazer agora?

— Eu... não sei. Arrumar um jeito de fugir para bem longe. Sei que

se ele me achar, me obrigará a casar com aquele homem. Eu prefiro morrer


— garantiu, chorosa.

— E quanto a sua mãe?

— Vou me estabilizar e voltar para buscá-la. Não pensei direito

ainda, mas não vou deixá-la como um homem feito ele.

Embora a compreendesse, sabia que Rebeca realmente não tinha um

bom plano, mas eu precisava pensar antes de sugerir algo que realmente

fosse efetivo.

Permaneci em silêncio, sentindo o cheiro gostoso adentrar minhas

narinas ao permanecermos de pé no meio da sala, presos em nossos


pensamentos. Meu relógio apitou, constando que já eram três horas da

manhã.

— Está tarde, você precisa descansar — disse baixo, afastando


Rebeca sutilmente dos meus braços.

— Não vou conseguir, estou confusa.

Eu também, pensei, mas não falei. Ela não precisava de um homem


inseguro ao seu lado naquele momento.

— Sei que sim, mas precisa tentar. Amanhã será um dia longo em
que você tomará decisões importantes. Precisará estar bem para isso.

Ela assentiu, limpando os olhos, descolando totalmente os nossos

corpos. Por um instante, senti a falta da pele quente contra a minha. Tive
vontade de trazê-la de volta, mas não fiz. Não podia.

— Vou te mostrar onde estão as cobertas. Talvez não estejam em


perfeitas condições de uso devido ao tempo guardadas. — Guiei-nos em

direção ao quarto.

— Não se preocupe com isso. Tenho certeza de que será muito

melhor do que dormir molhada na rua.

Ela tentou soar descontraída, mas o impacto daquilo era pesado


demais. Ela esteve muito perto de um destino trágico. Pensar naquela

possibilidade deixava-me louco.

Entramos no quarto e fui direto à parte superior do closet, descendo

as cobertas e travesseiros. Ajudei-a a organizar os lençóis ouvindo-a


contestar.

— Não me sinto bem em te tirar da sua cama. Eu posso dormir em


outro lugar.

— Não diga bobagens. Todas as camas aqui são muito confortáveis

e nem sentirei a diferença.

— É exatam...

— Shhh... — interrompi-a, parando na sua frente. Em uma

necessidade mais forte que eu, segurei as laterais do seu rosto, olhei no
fundo de seus olhos lendo muito mais do que os lábios diziam. Beijei sua
testa com carinho, antes de me afastar. — Durma bem, amanhã — ou
melhor, daqui a pouco — será um novo dia.

Eu sentia tantas coisas ao estar com ela, mas não podia ouvi-las.
Não com a responsabilidade que tinha caído no meu colo sem que

esperasse. Ainda que não soubesse exatamente o que faria, sabia que estava
pronto para o que viesse.

Saí do quarto sentindo-me agitado ao deixá-la de pé me observando.

Voltei à cozinha finalmente dando vazão aos meus pensamentos enquanto


organizava as coisas que sujamos no jantar.

Estava com raiva daquele prefeito de merda. Ódio e vontade de


enchê-lo de porrada. Contudo, precisava agir com cautela e pegá-lo de

surpresa. Algumas ideias passaram pela minha cabeça, mas nenhuma delas
parecia certa o suficiente. Se ajudasse Rebeca a fugir, ela poderia conviver

com o fantasma de ser encontrada a qualquer momento por ele ou o tal


coronel, que inclusive se mostrou tão escroto quanto o prefeito.

Além disso, um passo em falso poderia manchar o nome da minha

família e colocar a candidatura do meu irmão em risco. Por outro lado,


Rebeca me fazia ser passional, ligado unicamente em defendê-la de

qualquer mal que pudesse ocorrer.


Uma ideia absurda passou tão rápido quanto o relâmpago que

rasgou o céu à medida que a chuva aumentava. E se...

Não! Inconcebível uma possibilidade daquela. Recriminei-me


tamanha impulsividade.

Terminei de arrumar a louça, mas não estava com sono, ligado


demais em como ajudaria Rebeca. Caminhei em direção à janela,

observando desacostumado as luzes da cidade. Na fazenda era tudo tão


escuro e eu já não dormia fora de casa há algum tempo, sequer tinha sentido

falta do barulho e claridade.

De pé, com os braços cruzados sobre o peito e ombro encostado na


janela de vidro, perdi a noção do tempo. A chuva tinha parado e voltado a

engrossar. Vi tudo isso sem realmente enxergar.

Senti a adrenalina abaixar quando faltava pouco para amanhecer.

Caminhei pelo corredor com o intuito de ir para o quarto descansar um


pouco ainda sem ter tomado nenhuma decisão. Entretanto, me vi parando

próximo à porta do quarto em que Rebeca estava quando ouvi algo que
parecia um choro e murmúrio.

Preocupado, abri levemente a porta e notei o abajur ao seu lado

aceso. Estava encolhida e estendia o braço como em posição de defesa.


Parei próximo à cama, notando que ela chorava copiosamente mesmo

dormindo.

— Para, pai, por favor. Para! — suplicava.

O lamento se transformou em palavras nítidas, fazendo-me fechar a

mão cheio de raiva ao imaginá-la apanhando de um covarde como ele.


Tinha certeza de que quando o encontrasse perderia o meu réu primário.

— Socorro! — pediu, chorando.

Compadeci-me de tanta vulnerabilidade. Sem pensar, afastei a


coberta e me deitei ao seu lado, puxando-a para mim.

— Shhh.. você está em segurança agora — sussurrei.

Rebeca veio para o meu peito como se sentisse protegida, parando

de chorar instantes depois. Parecia tão certo e tão errado tê-la em meus
braços, como se tivessem sido feitos exatamente para o corpo frágil e

miúdo.

A ideia que antes parecia tão absurda e inconcebível, passou a fazer


cada vez mais sentido à medida que a noite virava dia. Fiquei naquela

posição sem mover ao menos um músculo com medo de acordá-la. Estava


cansado, com o olhar pesado e o corpo dolorido.

O ressonar baixinho e tranquilo em meu peito me fez tomar a


decisão mais impulsiva e certa da minha vida.
Com essa certeza, peguei no sono e me rendi à exaustão.
ARTUR

O céu estava em um tom de azul claro, límpido e ensolarado naquela


manhã de segunda-feira. Nem mesmo lembrava o temporal da noite

anterior.

Não dormi muito, mas foi o suficiente para descansar e colocar os


pensamentos em ordem. Levantei-me antes de Rebeca, preocupado em

como ela poderia se sentir ao ver que tínhamos dormido juntos. Embora não

tivesse passado de proteção, me deixava receoso o quanto ela poderia se

sentir desconfortável.

Sem barulho, peguei nossa roupa na secadora e fui para o banheiro

do quarto ao lado. Estava terminando de passar o café quando ouvi a


movimentação vinda do quarto. Ao olhar para trás, Rebeca estava com os
cabelos desalinhados, com o nariz vermelho e coçava o olho ainda com

sono.

Linda!

— Bom dia — disse, baixo.

— Bom dia! Como se sente? — Coloquei as xícaras de café sobre o


balcão da cozinha junto aos lanches que ela tinha trazido.

Rebeca espirrou, coçando o nariz.

— Eu estou... Atchin!... Bem.

Levantei uma sobrancelha desconfiado de que tinha se resfriado. Fiz


uma anotação mental para providenciar alguns remédios quando saíssemos.

Ela se sentou, bebendo o líquido quente e forte.

— Espero que goste. — Apontei para a xícara.

— Está delicioso.

Sentei-me ao seu lado em silêncio, tentando imaginar em como

reagiria à minha proposta. Tomamos nosso café daquele modo, levemente

constrangidos. Rebeca esperou que eu terminasse, em seguida, pegou a

louça e lavou na pia. Posteriormente, parou à minha frente, mexendo nas

pontas dos dedos, envergonhada.


— Desculpe-me por essa confusão e ter te atrapalhado. Nunca serei

grata o suficiente pelo que fez por mim e saiba que, quando precisar, pode

contar comigo. Agora vou me arrumar e dar um jeito na minha vida.

Observei-a com intensidade, notando cada nuance de seu rosto. As

pequenas sardas clarinhas, os rajados em tons de dourado nas íris castanhas

e os cílios longos e ruivos.

Chamá-la de bela é eufemismo.

Coloquei as mãos nos bolsos frontais da bermuda, me segurando

para não a tocar novamente. Tinha passado a ser um desejo quase

insuportável, porém, me contive.

— O que pretende fazer?

— Vou à rodoviária comprar uma passagem para longe. Talvez fazer

algumas paradas e tentar dificultar ao máximo as chances dele me


encontrar.

— Possui dinheiro o suficiente para se manter por quanto tempo?

— Não muito, mas não tenho medo de trabalhar. Consigo me ajustar

em qualquer lugar.

Eu admirava muito a sua coragem. Não era fácil se jogar no mundo

de um modo tão abrupto com pouco dinheiro no bolso e fugindo de um

homem poderoso como o prefeito. No entanto, não era um bom plano.


Infelizmente, o fato de ser mulher não era um ponto a favor para Rebeca,

ainda mais tão bonita. Poderia se tornar alvo fácil nas mãos de homens

muito mais poderosos do que o pai.

— Sabe que ele não vai demorar a te encontrar, não é? Com a

influência que possui, é questão de dias para isso.

— Eu sei — soou desanimada —, mas preciso arriscar, Artur, ou

vou viver naquele inferno para sempre.

— Eu pensei em um modo de te ajudar. É definitivo e, se você

aceitar, ele não terá mais como fazer nada contra você.

Sua postura mudou, muito interessada no que eu dizia.

— Quero casar com você.

— O quê? — gritou, assustada. — Eu estou fugindo de um

casamento arranjado, lembra?

— Eu sei que a ideia parece absurda, talvez seja. No entanto, é a

melhor opção no momento. Vamos aos pontos: É um casamento de

contrato, mas você será livre para fazer o que bem entender. Trabalhar,

estudar, ter a sua vida e ser independente. No entanto, passará a ser uma

Albuquerque, poderá ficar próxima da sua mãe. Por último, mas não menos

importante, seu pai não poderá te obrigar a nada.


— Você não precisa fazer isso, Artur. De verdade, me ajudou muito

e nunca poderia agradecer. Mas preciso assumir daqui.

— Sei que não, mas não posso simplesmente a deixar sofrer algo
pior. Quando te achar, Deodato é capaz de te matar, Rebeca, sabe disso.

A Bruxinha suspirou, cruzou os braços e mexeu os lábios cogitando

a ideia.

— E como funcionaria essa dinâmica?

— Não sou o tipo de homem com o qual você conviveu a vida

inteira. Nem eu, nem ninguém da minha família. Você vem para a fazenda

morar comigo, podemos trazer a sua mãe.

— Certo. — Caminhou em círculos de cabeça baixa, analisando

tudo. — E nós dois? Digo: o relacionamento.

— Não quero te prender, Rebeca. Podemos nos casar em comum

acordo por determinado período até a ira do seu pai passar e você ter a sua

independência. Se nesse tempo a gente entender que pode acontecer alguma

coisa entre nós, ok. Senão, tudo bem também. O que eu não gostaria é de

que nos relacionássemos com outras pessoas, ao menos não às vistas de

todo mundo. Não ficaria bem para a imagem de nenhum de nós dois.

Não falaria, mas imaginar Rebeca com outro cara me gerava um

sentimento perigoso.
— O que a sua família acharia disso?

Lembrei-me de quando mamãe aconselhou que haveria momentos

em que eu precisaria tomar uma decisão. Tinha chegado a hora.

Sorri, pensando que certamente os demais me chamariam de louco,

mas apoiariam. Antônio sem dúvidas faria muita chacota.

— Loucura, mas te receberiam muito bem. Sabem que eu não faria

algo tão sério sem ter motivos plausíveis.

Rebeca se sentou, cruzando os dedos e pousando sob o queixo.

— Eu não sei. Nunca tinha pensado em algo tão radical.

— Tome seu tempo para pensar, mas saiba que o relógio está contra

nós. Seu pai já deve ter descoberto a sua fuga e estar movendo céus e terras

para te encontrar.

— Eu não entendo muito de casamentos, mas não existe um prazo

mínimo de antecedência para marcar a cerimônia no civil?

— Tenho alguns contatos, consigo em bem menos tempo.

Rebeca se levantou, me encarou e falou, decidida:

— Eu aceito.
REBECA

Artur era um príncipe!

Não sei se encantado ou no cavalo branco, mas era um príncipe para

conto de fadas nenhum colocar defeito.

Ainda que estivesse correndo para apresentar nossa documentação,

ele me levou para almoçar em um restaurante aconchegante. Foi super-

rápido, mas o gesto ficaria marcado em mim, tamanho cuidado em seu

olhar, principalmente, ao fitar meu rosto com os hematomas da noite


passada.

Não soube explicar o que senti quando tomou a iniciativa de me


deixar em um salão de beleza próximo ao cartório enquanto resolvia outras

pendências. De modo despretensioso, comentou o quanto gostaria de que eu


me sentisse bem na cerimônia, mas era nítido que além de estar nervoso,

Artur se incomodava com as marcas em meu rosto.

Confesso que pedi para a maquiadora esconder, mas não permiti que
fizesse nada muito carregado. No cabelo, uma modelagem básica e um

arranjo gracioso.

Queria que, durante os votos, ele pudesse me ver como eu realmente


era.

Prendi o ar ao vê-lo entrar no pequeno ateliê trajando as roupas de

ontem, calça jeans escura, blusa social preta com as mangas dobradas nos
antebraços e uma fivela com o brasão da fazenda. Para arrematar, o chapéu

sombreava o rosto másculo. O som dos suspiros das profissionais e clientes

ecoou forte. Todos domados pela beleza, elegância e virilidade do peão.

Ao se aproximar, ele fez aquilo que eu descobri amar.

Sorriu.

Um sorriso doce, sensual e apaixonante.

— Trouxe para você. — Apontou a sacola de uma marca famosa. —

Acho que a data merece algo especial.

Peguei de sua mão, abrindo e olhando com curiosidade. Meus olhos

umedeceram quando me dei conta do que se tratava.


Toquei o tecido macio, delicado e branco. Abri-o e coloquei em

frente ao corpo, embargada. Era um vestido lindo que terminava na altura

do meu joelho.

— Dizem que dá azar o noivo ver o vestido antes da cerimônia —

comentei, com a voz embargada.

O sorriso cativante estava lá, acolhedor e lindo.

— Tenho certeza de que o cara lá de cima — apontou para o céu —

não se importará com um detalhe como este. Além disso, sei que é

importante para a noiva, mesmo em uma situação como a nossa. Lembre-se,

pequena Bruxinha, o que importa para mim é que você esteja bem.

A lágrima escorreu. Sem que tivesse controle, o abracei apertado,

sendo retribuída com a mesma intensidade.

Sabia que estava fazendo errado, me apegando a algo que era de


fachada, com prazo para durar. No entanto, Artur era tão incrível que,

mesmo sem interesse, ele me fascinava. Sabia que ele poderia fazer aquilo

por qualquer mulher em minha situação, mas era tão fácil me iludir e sonhar

que, mesmo pouco, ele pudesse sentir algo por mim.

Algo me dizia que quando tudo isso acabasse, eu sairia destroçada.

— Vá se trocar, te espero lá fora. — Afastou-nos com gentileza.


Anuí, virando-me devagar. Vesti-me com cuidado para não estragar

a produção.

Pronta em frente ao espelho, fitei o quanto estava bonita e um filme

se desenrolou em minha cabeça, tudo o que havia passado e do que estava

fugindo.

Há dois dias nunca tinha se passado pela minha cabeça a ideia de me

casar tão cedo. Queria que acontecesse, mas seguindo a ordem natural das
coisas, não de modo abrupto, a minha única opção.

Estava com medo do que viria pela frente, a ponto de sentir os

dentes rangendo. Embora Artur tivesse se mostrado um cara legal, estava

temerosa de que pudesse se revelar tão ruim ou até pior do que o meu pai.

Pior ainda, e a família dele? E se eu fosse rechaçada, humilhada e

machucada?

Por outro lado, justamente o fato de ser Artur o meu futuro marido

me acalmava. Algo me dizia que eu poderia confiar nele e em sua família

de olhos fechados.

Irresponsabilidade? Talvez, mas era a essa voz que eu ouvia.

— Ainda bem que a maquiagem é à prova d’água ou teria que

refazer tudo de novo — a dona do salão de beleza brincou atrás de mim. —

O caubói está te esperando lá fora, ruivinha, e tenho certeza de que não


poderia ter escolhido homem melhor. Tudo mundo aqui notou o quanto o

olhar dele para você é apaixonado. Desejamos que seja duradouro e muito

frutífero.

Encarei-a, piscando devagar e tentando não chorar. Ouvir aquilo

doía.

Doía por saber que não era real.

— Obrigada, dona Cora. Quanto ficou?

— Ah, nada disso! — Abanou a mão quando tentei pegar a carteira.

— O mocinho lá fora já acertou, e fez questão de dar uma gorjeta bem

gorda.

Ah, Artur...

Não insisti, até mesmo porque esta não era uma despesa contida no

meu planejamento financeiro.

Finalmente saí do local, avistando-o escorado na caminhonete com

um pé na lataria. Ao me ver, encerrou a ligação com poucas palavras.

— Só vem, aqui te explico, cara. Não esqueça de fazer o que te


falei.

Artur desencostou, caminhando até mim enquanto guardava o

celular no bolso. O sorriso largo se expandiu, sem nenhum controle. Parou à


minha frente, acariciou meu rosto, tirando um fio que o vento trouxe para a

minha boca.

— Você está absolutamente linda! — murmurou.

— O vestido é lindo! — Desfiz um amassado invisível na peça.

— É — falou, sério, mirando meus olhos. — Mas eu não me referi a

ele.

Engoli em seco, confusa e nervosa demais.

— Vamos? — sugeri, encabulada.

Artur assentiu, estendendo a mão e me auxiliando a entrar no carro.

Sentada no saguão quase vazio do cartório, eu sentia minhas mãos

suarem frio. Nem mesmo o sol quase se pondo me fazia relaxar.

Não sei o que precisou fazer, mas Artur conseguiu agendar a

cerimônia do nosso casamento para o final daquele mesmo dia. Seríamos os


últimos e isso estava me deixando inquieta. Andei de um lado para o outro a

ponto de cavar um buraco.

— Ei. — A voz branda me distraiu. Artur estendeu a mão. — Sei

que está nervosa, mas vem aqui.

Fiz o que pediu, me sentando ao seu lado.

Sem desfazer o nosso toque, Artur orientou:

— Puxe o ar inflando o diafragma, em seguida, solte devagar até


não sobrar mais nada, assim. — Fez o movimento.

Revirei os olhos, pensando que aquele papo não colaria agora. Não

no estado em que eu me encontrava.

— Artur, isso não vai resolver.

— Verdade? Por que não tenta?

Sem acreditar, fiz o movimento uma vez, notando que algo estava
diferente. Ele sorriu apenas com os lábios, incentivando a fazer outra vez.

Na terceira, eu já estava zen.

— Mais calma? — indagou, com cuidado.

— Sim. Como você sabia?

— Muitos anos praticando consciência corporal.

Anuí.
Artur observou-me sério, hábito esse que eu já tinha percebido ser
costumeiro. Intenso, compenetrado, capaz de detectar qualquer coisa fora

do lugar.

— Tem certeza de que quer mesmo fazer isso? Ainda que não
pareça, podemos tentar outra saída.

Levantei o meu olhar, focando nos olhos lindos e brilhantes.


Loucura? Sim. Estava com medo? Com certeza. Mas eu não escolheria

outra pessoa no mundo para mergulhar naquela aventura.

— Sim. — Juntei a pouca voz que ainda tinha. Apertei seus dedos
com carinho. — É isso que você quer também?

Em resposta, Artur levou minhas mãos aos lábios e sorriu.

— Quero, Bruxinha.

Ah, droga! Ele me derretia quando fazia isso.

— Por que Bruxinha? — repeti o apelido em que já me chamou


algumas vezes, mas não tive condições de rebater.

Fomos interrompidos por uma mulher bem arrumada, dizendo que o

juiz de paz nos aguardava.

— Outra hora te explico. Agora vamos que chegou a nossa vez —

Artur desconversou.
Levantei-me nervosa, preocupada por sequer termos as testemunhas.
Fato que eu tinha me dado conta apenas ao ver os casais ao nosso redor

acompanhados de suas famílias e padrinhos.

Começamos a caminhar para a sala, mas fomos interrompidos pela

presença do homem alto e viril, chamando pelo Artur. Ao seu lado, meu
irmão estava surpreso.

— Desculpe o atraso, cara. Mas não entendi porque me ligou com

tanta urgência para vir ao cartório e pedindo para trazer o Rodrigo.

Antônio parou, observando com curiosidade a mão do seu irmão

atrelada à minha. Franziu a sobrancelha.

— O que está acontecendo?

— Precisamos de vocês como testemunhas do nosso casamento.

— É o quê? — Antônio foi o primeiro a reagir. — Eu sequer sabia


que estavam juntos.

— Como assim, casar? — Escandalizado, Rodrigo arregalou os

olhos, a ponto de me devorar. — Que história é essa, Beca?

— É uma longa história, pessoal. Explicamos depois, o juiz nos

aguarda — Artur foi direto.

Antônio olhou preocupado. Rodrigo pegou meu braço, falando


baixinho em meu ouvido:
— É sério isso?

Assenti.

— Sim.

— Você está sendo obrigada? — Soou preocupado.

Se ele soubesse...

— Não. Prometo que depois te explico melhor.

Claramente eles estavam espantados, mas confiavam em nosso


juízo. Entramos na sala, sendo recebidos com alegria pelo senhor em frente

à mesa. Ele olhou ao redor, talvez na busca por mais convidados. Não disse
nada e iniciou a cerimônia.

Artur pegou a minha mão com carinho e sorriu.

— Esperem um pouco. — Meu irmão interrompeu, e eu gelei, tensa.


Olhei em sua direção, vendo se esticar em direção às flores em um vaso de

cristal. Tirou-as da água, sacudindo para tirar o excesso e esticou na minha


direção. — Toda noiva que se preze, precisa de um buquê.

Sorri, respirando aliviada. Peguei o pequeno buquê improvisado de


lírios delicados.

Ao meu lado, Artur segurava minha mão com firmeza e segurança.


Aquele toque me passava toda a certeza de que eu precisava. Estava
nervosa demais, com dificuldade em me concentrar na mensagem proferida

pelo juiz. Sei que era bonita e calorosa, mas só consegui focar novamente
quando chamou o meu nome.

— Rebeca Moreira, é de sua livre e espontânea vontade se unir ao


matrimônio com Artur Albuquerque?

Olhei para a minha mão, em seguida, para Artur. Parecia tão ansioso

quanto eu, mas o sorriso polido me acalmou.

— Sim — assegurei.

— Artur Albuquerque, é de sua livre e espontânea vontade se unir

ao matrimônio com Rebeca Moreira?

— Sim, senhor.

Segurei sua mão grande e quente entre as minhas, deslizando a


aliança dourada pelo dedo robusto e bronzeado pelo sol. Não era hora, mas

tremi. Não soube explicar a emoção que me lambeu naquele instante, era
nova, diferente. Meu corpo inteiro esquentou, senti o rosto ruborizar e calor
e vergonha por mal conseguir repetir os votos do juiz.

Meu Deus! Será que a gente vai... transar?

E se ele não me quiser? Se preferir outras?

Sem controle, arregalei os olhos constatando os caminhos dos meus

pensamentos. Eu não tinha esse direito.


Que vergonha!

É apenas um casamento de contrato, Rebeca. A voz da minha


consciência me lembrou.

Mas ele falou que se acontecesse, tudo bem. Não se puna por isso,
mulher. A outra assoprou, esperta.

Um riso preso na garganta chamou minha atenção para Antônio.

Ruborizei. Era como se soubesse o rumo dos meus pensamentos.

Sério e ansioso, Artur não demonstrou qualquer brincadeira,

pegando-me desprevenida ao expressar os próprios votos:

— Tenho certeza de que este momento sela o início de um ciclo que

somente eu e você poderemos entender. É do meu desejo que floresça e, se


você permitir, que compartilhemos cada momento como se fosse único —
finalizou, beijando o anel delicado em minha mão.

Sem reação, meu cérebro tentava processar tudo o que ele disse com
aquelas palavras. Será que o casamento de fachada poderia não ser tão de

fachada assim?

Os olhos de Rodrigo brilhavam emocionados. Antônio, posicionado


atrás do irmão, parecia um tanto quanto incrédulo, mas sensibilizado. Para

encerrar, o juiz continuou:


— Após mais de 20 anos de profissão, aprendi a ler os casais
durante as cerimônias e detectar quando um matrimônio tende a ser

duradouro. Este, sem sombra de dúvidas, será um deles. Em seu olhar, meu
rapaz, é possível notar o quanto está apaixonado por sua amada. E a

recíproca é verdadeira.

Artur engoliu em seco, assim como eu. Não tivemos tempo de

raciocinar, pois ele continuou:

— Agora, chegou a hora mais esperada por todos: pode beijar a


noiva.

Fiquei paralisada. Havia me esquecido completamente de que


aquela era uma etapa fundamental para concretizar o casamento. Nós nunca

havíamos chegado próximo disso e tudo em mim se agitou. Eu queria,


queria muito, mas não soube como agir, então aguardei o que ele faria.

Artur deu um passo à frente, quase colando seu corpo ao meu. Os


dedos quentes subiram sorrateiros pelos meus braços, deixando um traço de
arrepio onde passavam. Percorreram pelo meu pescoço até pararem nas
laterais do meu rosto. Lentamente aproximou nossos rostos, com o olhar

fixo ao meu.

Tremi.
Não havia sido assim que tinha imaginado o nosso primeiro beijo,
ainda mais na frente de tanta gente. Mas eu queria muito e sentia o

friozinho gostoso de antecipação.

Fechei os olhos pronta para o que fosse acontecer, doida para sentir
sua boca na minha.

Suspirei, frustrada, quando seus lábios tocaram a minha testa. Quase


gritei.

O juiz riu.

— Ah, meu jovem, beijo na testa é coisa de irmãos. Agora vocês


estão casados, podem fazer muito mais do que isso — incentivou.

Artur sorriu, sem graça. Eu não sabia onde enfiar a cara. Nunca
tinha passado por uma situação parecida.

Porém, tudo se apagou quando sua mão pousou entre a minha

bochecha e a lateral da orelha. A outra mão se entrelaçou em minha cintura


e me tornei pura expectativa, desejosa, carente daquele beijo.

Seu olhar desceu ébrio sobre a minha boca. Deixei de perceber


qualquer coisa que não fosse nós dois quando os lábios quentes e macios
pousaram delicadamente sobre os meus. A princípio, um toque gentil, sem

segundas intenções.
Contudo, tão rápido quanto começou, se tornou mordaz. A pressão
da sua boca na minha ficou mais intensa e, quando vi, a sua língua pedia

passagem entre os meus lábios. Correspondi, embriagada pelo seu gosto,


cheiro e toque.

Em segundos, estávamos envolvidos em um beijo intenso, faminto e


totalmente entregue. Naquele instante, alguma coisa em mim se acendeu,
deixando uma marca inigualável e potente. Nunca mais eu veria Artur do

mesmo modo.

O juiz limpou a garganta, e o suspiro do meu irmão nos tiraram


daquela bolha. Envergonhada, olhei para ele encarando meus pés em
seguida. Nas etapas finais, o senhor colheu as nossas assinaturas, assim

como as de Antônio e Rodrigo.

Artur me encarava com o olhar cerrado e quente. Desviei,


envergonhada depois. Tudo piorou quando percebi o volume no jeans.

Ele tinha ficado excitado por mim.

Excitado.

Por.

Mim.

Meus Deus!
Quase agradeci de joelhos quando os protocolos acabaram. Fomos

informados sobre a certidão de casamento, nos despedimos do senhor e


caminhamos em direção à saída do cartório.

Artur pediu ao meu irmão para que jantasse na fazenda e levasse o


Joe.

— Depois quero saber de toda essa história direito, Beca — Rodrigo

cochichou em meu ouvido antes de se despedir e ir embora.

Antônio caminhou até nós, carrancudo. Estava muito calado, não me


lembrava de vê-lo tão fechado. Aquilo me fez temer a reação dos demais.
Artur se antecipou quando o irmão parou à nossa frente:

— Sei que vai me dar sermão, mas eu tinha um bom motivo.

Aos poucos, os ombros de Antônio foram relaxando e um sorriso

matreiro se expandiu lentamente.

— Sermão, eu? — Deu um tapa amigável no ombro do irmão. —


Lobinho, você é o cara mais racional que eu conheço e tenho certeza de que
se decidiu se casar na surdina sem sequer ter dado o primeiro beijo na ruiva,

é porque teve seus motivos. Além disso, essa carinha inocente engana. Ela é
mais poderosa do que todos pensam.

Antônio puxou Artur para um abraço cúmplice, fazendo o mesmo


comigo e nos parabenizando em seguida.
— A mamãe vai pirar quando souber, mas desejo que sejam muito

felizes. Esse casamento surpreenderá a todos, menos a mim. — Piscou em


minha direção, ponto o chapéu preto no cabelo. — Afinal, eu vi a
temperatura subir... Fui!

Ele se afastou, entrando na grande caminhonete. Artur tocou minha


mão com sutileza e abriu aquele sorriso que me fazia bambear as pernas.

— Enfim casados, Bruxinha. Preparada para conhecer a sua nova


família?

— Só se você me explicar o apelido.

Ele riu, abrindo a porta da caminhonete e me apoiando para subir.

— Uma hora você descobrirá sozinha. Agora vamos, porque temos

uma Marta enérgica para acalmar.


REBECA

Desde que passamos a porteira sofisticada da fazenda, sentia que


poderia vomitar meu estômago a qualquer instante. O nervosismo era tanto

que não consegui descer do carro quando Artur estacionou em frente ao


casarão.

Notando meu estado, ele rodeou o veículo e me encarou de pé com a

porta aberta e a mão esticada:

— Ei, está tudo bem. Venha comigo.

Mexi nas pontas dos dedos trêmulos, sentindo o peso da aliança. Era

tradicional e sem enfeites, mas incrivelmente linda e dizia muito sobre o

gosto de Artur. Simples e elegante. Não a trocaria por nada.

— E... se eles não gostarem de mim?


— Eles já te conhecem, esqueceu? Já gostam de você.

Fechei as mãos e mordi o indicador em um gesto nervoso.

— É diferente. Agora eu sou sua... esposa. — Testei aquela palavra

como se fizesse cócegas nos lábios.

Caramba! Eu era a sua esposa. E ele, o meu marido. Parecia


surreal.

— E eles nem fazem ideia — completei.

Artur apoiou um braço sobre a porta e curvou o corpo em minha

direção.

— Eu sei que soa estranho, mas conheço cada um deles como a

palma da minha mão. Todos irão te receber muito bem. — Endireitou a

postura e estendeu a mão. — Agora vamos? Está esfriando aqui fora e você

não está totalmente recuperada da chuva de ontem.

Anuí, lembrando-me de que ainda sentia o leve resfriado. Mais um

ponto positivo para ele, que havia passado em uma farmácia e me feito

tomar alguns remédios.

Aceitei o seu convite e desci. A mão grande apoiou a base da minha

coluna, e eu me forcei a andar, praticamente sem conseguir respirar.

O curto caminho entre os degraus na entrada do casarão e a varanda

pareceu eterno.
Antes que Artur pudesse esticar o braço, a porta principal foi aberta

de modo ansioso.

Travei a respiração na garganta quando a figura madura e de

semblante sério apareceu. Marta parou sob limiar, encarando o filho em

silêncio. Em uma lentidão angustiante, seus olhos pousaram em mim,

desceram até a minha mão entrelaçada à dele. Por fim, subiu ao meu rosto

novamente, estreitando as pálpebras ao notar os cortes em minha boca. Com

cuidado, segurou meu queixo e analisou meu rosto de perto.

Era como se ela pudesse desnudar a minha alma com aquela

avaliação.

A ansiedade varreu meu corpo por não saber o que esperar. Será que

era esse o momento em que ela me enxotaria de sua casa e mandaria para o

olho da rua?

Contrariando tudo o que esperei, Marta me puxou para um abraço

caloroso. Eu amava o modo como me sentia acolhida por Vânia, mas estar

dentro do abraço quentinho de Marta me remeteu a amor de mãe. A emoção

me atingiu com força, por um segundo tinha me esquecido do que estava

acontecendo.

Ficamos algum tempo assim, trocando um acolhimento que jamais

esperei naquele instante.


Com carinho, ela me afastou segurando-me pelos ombros. Disse,

como uma constatação:

— Então é mesmo verdade? Vocês se casaram.

— Co.. como a senhora sou... — tentei perguntar, mas o meu marido

foi mais rápido.

— Antônio... — Artur rangeu os dentes, puxando-me para a

pequena abertura que a mãe nos deu. Paramos ao lado da porta, sua mão

presa à minha a todo instante. Irritado, elevou o tom de voz encarando o

irmão sentado no sofá ao lado de Marcela. — Qual a dificuldade de guardar

a língua dentro da boca, cara?

— E perder a chance de contar a fofoca do ano em primeira mão?

— Jogou um amendoim para cima e abocanhou no ar. — Me respeite, eu

tenho uma fama de filho atentado para zelar. — Deu de ombros. — Não
prometi segredo e nem tenho culpa se você escolheu a mim. Eu sou o

melhor, eu sei.

Marcela bateu em seu ombro com força, aproveitando que a bebê

estava no carrinho perto deles.

Voltei minha atenção para a sala ampla, em uma mistura perfeita de

rústico e elegante. Não consegui focar nos detalhes, uma vez que meus
olhos pousaram em Alfredo, parado de pé no que parecia ser o pequeno bar

no canto. Com um copo de uísque na mão, apenas observou sem intervir.

Aloísio, a esposa e os dois filhos surgiram da cozinha.

Pelo jeito, a família toda veio para a inquisição, e eu só queria sair

correndo.

— Não acreditamos quando o Antônio contou. Fiquei passada ao

ver os pombinhos chegando, tão curiosa que atalhei[2] pela porta da cozinha

— Luiza confessou, com semblante conspiratório.

— Pequena, menos... — Aloísio amainou, com a bebê fofa no colo.

— Ah, qual é, ursão? Você também está se roendo, só é polido

demais para admitir.

— Ok — Artur tomou a palavra, impaciente. — Vocês podem ficar

quietos agora e nos deixar explicar o que aconteceu?

— Achei que não ia falar — Antônio debochou, indo rapidamente à


cozinha. — Vou até abrir uma latinha para apurar os meus ouvidos.

Artur revirou os olhos, me contando através deles para não levasse o

seu irmão a sério, e eu estava começando a entender o porquê. Pelo jeito, o

que comentavam na cidade era real: depois que se acertou com Marcela,

voltou a ser o homem leve e descontraído.


Artur me colocou a meio passo à sua frente, deixando-nos lado a

lado. Acariciou meus dedos transmitindo segurança ao começar:

— No dia da festa da colheita, eu percebi que algo não estava bem

com a Rebeca. Não vou entrar em detalhes agora, mas aquilo ficou na

minha cabeça e fui atrás.

Meus músculos enrijeceram com a confissão. Tinha plena


consciência de que naquela noite ele tinha visto muito além do que eu me

permiti mostrar, mas jamais imaginei que pudesse buscar as razões, muito

menos para o que confessaria a seguir:

— Descobri que Deodato tinha enviado Rebeca e a Dona Célia para

longe, e não descansei até vê-la bem com os meus próprios olhos.

Virei meu rosto em sua direção bruscamente, estarrecida. Com uma


mansidão angustiante, Artur virou ao meu encontro, mirando meus olhos

com intensidade.

— Eu fui atrás de você em Campos Belos — declarou com a voz

branda.

— Por... por que não... conversou comigo? — gaguejei, sem

acreditar.

— Porque vi o quanto estava livre e feliz. Não me perdoaria se lhe

causasse qualquer coisa ao contrário disso.


Pisquei, incrédula. Em um insight, me recordei de quando me senti

observada no caminho para o mercadinho. Caramba, então era ele!

Eu tinha o costume de pensar em Artur sempre, mas naquele dia

parecia mais forte.

Meu Deus, eu não estava doida!

Permaneci perdida em pensamentos enquanto Artur continuava

narrando todo o nosso cenário até me encontrar na carroceria ontem à noite.

— Está dizendo que Rebeca tem sofrido violência doméstica

cometida pelo próprio pai todo esse tempo? — Aloísio questionou, de


braços cruzados e semblante sério.

— Exatamente.

— Desgraçado! — Antônio vociferou, alterado. Todos na sala


estavam nitidamente nervosos, mas ele parecia fora de si, em uma

brutalidade que não me lembro de ter visto nele. Não naquelas proporções.
— Um filho da puta desses sequer pode ser chamado de pai. Se alguém faz

isso com uma filha minha, sou capaz de matar!

Marcela se levantou, pegando a filha assustada no carrinho. Em


seguida, foi até ele.

— Se acalme, você vai assustá-la, assim.


Exasperado, passou a mão nos cabelos, soltando o ar devagar e
depois acolheu-as nos braços, alisando os cabelinhos da filha. Era uma cena

de se encher os olhos[3]. Por um segundo, desfoquei do que estava

acontecendo e me perguntei se um dia viveria uma cumplicidade e amor tão


grande quanto aquele.

— Essa história é absurda, mas ainda não entendi por que se


casaram. Não seria mais fácil simplesmente trazê-la para a fazenda? —

Luiza indagou o óbvio.

A matriarca observava tudo calada, ainda de pé.

— Sim — Artur se adiantou. — Se ele não a tivesse negociado

como moeda de troca com o Coronel Vilela.

O choque se fez presente no rosto de todos, exceto de Alfredo, que


caminhou tranquilo em direção à sua poltrona de couro preta, sentando-se

imponente, como o fazendeiro que era.

— Em troca de votos durante a campanha contra o seu irmão, posso

supor.

— São dois velhos escrotos do cacete — Luiza soltou, brava. Em

seguida, trouxe a cabeça da filha para o seu peito. — Desculpa falar isso na
sua frente, bebê. Desculpe, Aurora. Mas ainda são muito novinhas para
entenderem essas coisas. Ainda bem que o Davi subiu para o antigo quarto.
Marta parou à minha frente, puxando-me novamente para um abraço
carinhoso e fraternal.

— Sei que está com medo do futuro, mas agora você é uma
Albuquerque, minha menina, e estará sempre protegida — declarou.

Senti as lágrimas quentes escorrerem pelas minhas bochechas

quando suas mãos afagaram meus cabelos. Murmurou para que só eu


ouvisse:

— Vejo em você a força e coragem que precisou para tomar essa


decisão e isso me faz voltar no tempo e me ver nesta mesma posição. Conte

comigo, minha flor, serei sua maior aliada. — Afastou-se com cuidado,
limpou minhas lágrimas sorrindo e pronunciou, antes de beijar a minha

testa: — Seja bem-vinda a esta família! Nenhum de nós irá permitir que seu
pai ou qualquer outra pessoa faça algum mal a você.

Assenti. Ela olhou para o Artur, puxando-o para um abraço

apertado. Em seguida, beijou-lhe a testa, confessando:

— Eu não esperava outra atitude de você, meu filho. Não depois de

ver esses olhinhos brilhando diferentes.

— Obrigado, mãe — agradeceu, retribuindo o carinho em seus


cabelos.
A seguir, todos vieram nos parabenizar, em uma mistura de

empolgados e incrédulos.

Por último, Alfredo se aproximou pensativo. Segurou em nossas


mãos, fitando-nos nos olhos, orientando, sério:

— Vocês fizeram um juramento muito sério hoje. Um casamento


não é algo que possa ser desfeito porque não deu certo. Ainda que tenha

sido nestas circunstâncias, vocês têm o dever enquanto marido e mulher de


lutarem todos os dias para o fortalecimento desta união. Não seguiu a

ordem natural da vida, mas eu não estaria dando a minha benção agora se
não enxergasse nos olhos de vocês dois que existe sentimento de ambos.

Talvez não seja forte ainda, mas se regarem com cuidado, tenho certeza de
que será semeado.

Minhas mãos estavam geladas dentro de sua palma quente, meu

corpo inteiro tremia diante a profecia.

O patriarca me abraçou com afeto, fazendo-me sentir acolhida. Em

seguida, sentenciou:

— Enquanto uma Albuquerque você poderá confiar sempre em nós.


Mas não confunda, o seu pai terá o que merece.

Tremi. Não por estar errada ou com medo de sofrer alguma


consequência de sua ira. Mas sim porque nunca tinha imaginado o
fazendeiro tão rigoroso.

Logo depois, abraçou o filho com fervor.

Eu estava confusa, precisaria de ao menos alguns dias para


internalizar o que havia acontecido e entender que a minha vida tinha

mudado da água para o vinho. Ao longe, a voz grossa de Antônio


perturbou:

— Mamãe, manda colocar mais água no feijão, pois farei questão de


vir aqui todos os dias saber como está o desenrolar dessa história. Um

casamento de fachada que de falso não tem nada. Pelo menos não se
depender do Artur. — Voltou a comer o amendoim em uma vasilha

esquecida na mesa de apoio. — Acreditam que ele ficou de calças justas na


frente do juiz de paz? — Deu de ombros. — Se é que me entendem.
REBECA

A água quente caía sobre os meus ombros, relaxando toda a tensão


daquele dia. Estava exausta física e emocionalmente. De olhos fechados,

rememorei cada detalhe.

Após o anúncio para a família de Artur, o jantar com menu e toalhas


de mesa especiais — segundo a Dona Marta — foi servido na presença do

meu irmão e Joe.

A princípio, eles também não entenderam nada. Depois, Joe xingou

até a décima geração do meu pai. Ficou revoltado quando soube, inclusive
comigo que, segundo ele, não tive a confiança de revelar as violências.

Embora nervoso, entendeu minhas razões.

Gentilmente, Artur avisou que nos recolheríamos. Nós nos


despedimos sob os olhares curiosos e furtivos, principalmente do meu
amigo.

Subimos com a promessa de que no outro dia Artur me levaria para

conhecer todo o casarão e os principais locais da fazenda.

Entrei no quarto totalmente masculino, muito mais rústico se

comparado ao do apartamento. Entretanto, não consegui prestar atenção em

muita coisa, além de pegar minha mochila e rumar para o banheiro.

Desde que entendi o que o olhar de Joe quis dizer, não consegui

pensar em mais nada. Sabia que precisava consumar o casamento,

principalmente, porque quando papai descobrisse, faria de tudo para


contestar.

Sei que Artur não me cobraria um passo tão importante, até porque

deixou claro de que nosso casamento seria de contrato e se acontecesse,


seria com o tempo. Entretanto, só de me recordar do nosso primeiro beijo, a

vontade de descobrir como seria me deixava acesa.

Senti os seios endurecerem e um calor diferente tomar a minha

intimidade. Não era boba, sabia que provavelmente era o meu corpo

reagindo a tudo o que o peão causava em mim.

Fiquei algum tempo com aquilo em mente, até me secar e sair do

banheiro já vestida. Encontrei-o sentado na espreguiçadeira da varanda do


quarto, sem camisa e com a mão esquerda atrás da cabeça enquanto bebia

uma taça de vinho.

Tinha percebido que ele gostava de uma pequena dose para relaxar

em dias exaustivos como os dois últimos que tivemos.

Terminei de pentear meus cabelos, passando meu olhar pelo

ambiente amplo e caminhei devagar até ele. Em uma parede espelhada,

notei que eu não estava nada sexy no mesmo moletom de ontem.

Que bela roupa para a noite de núpcias!

Balancei a cabeça, deixando aquilo de lado. Precisaria comprar


roupas novas urgentemente nos próximos dias.

— Foi rápida — Artur comentou, antes mesmo de me ver chegar.

Aproximei-me sem graça, sentando na beirada em que ele estava

quando foi um pouco para o canto.

— Como sabia que eu estava chegando? — indaguei, notando que o

banheiro não era tão próximo da varanda.

— Seu perfume a denunciou. — Inspirou prazerosamente. — Está

muito cheirosa.

Enrubesci, abaixando a cabeça. Ele sabia me deixar encabulada.

Tentando não parecer uma boba, mudei de assunto:


— Sua família foi muito legal comigo. Nunca poderei agradecer o

acolhimento de todos eles.

— Não te falei que a receberiam bem? — Deu um sorriso de canto,

sabedor.

— E estava coberto de razão.

Notando o meu desconforto, esticou o cálice à minha frente. Com as

mãos levemente trêmulas, o peguei e bebi um pouquinho. Era bom sentir o

sabor da uva tirando a tensão daquele dia, mesmo que momentaneamente.

Permanecemos alguns segundos inertes em nossos pensamentos, até

que inquieta, soltei:

— Estamos casados.

Bati na testa três vezes em pensamento, recriminando-me por ter

sido tão idiota e óbvia.

— Estamos — respondeu baixo. Em seguida, levantou o meu

queixo com as pontas dos dedos, fitando-me com atenção. — Está com

medo? — questionou, carinhoso.

— Muito — admiti.

— Se te acalma, eu também estou. — Foi sincero.

— Mesmo? Parece estar levando de modo tão tranquilo.


— Tudo fachada. — Sorriu. — A consciência corporal e inteligência

emocional ajudam muito nisso. Mas lá no fundo, fui pego tão de surpresa

quanto você.

— Precisa me ensinar a ser assim, tão controlado.

— Tenho certeza de que teremos muito tempo para isso. — Então

fez aquilo que me arrebatava: piscou lentamente.

Concordei, bebendo um pouco mais de vinho para tentar camuflar a

confusão de sentimentos que me bagunçava. Abaixei a taça, sendo mais

transparente do que gostaria, ao perguntar, nervosa:

— Como será daqui para frente? Digo a veracidade do nosso

casamento. Onde vamos morar? O que vou fazer com a minha mãe?

Artur tocou meu queixo com brandura, fitando-me intensamente.

Seu contato disparou uma onda de arrepios pelo meu corpo, principalmente

diante a voz macia e segura.

— Ei, primeiro se acalme. Estou vendo que realmente precisarei te

ensinar algumas coisas para se manter no foco. — Sorriu.

— Por favor... — lamuriei.

Desceu as pontas dos dedos levemente pelos meus braços,

deixando-me completamente alerta daquela proximidade. A voz mansa e

branda apaziguando qualquer medo e insegurança.


— Aos poucos, tudo vai se ajeitando. Os meus irmãos construíram

suas casas aqui nas terras. — Apontou para as residências imponentes ao

redor do casarão. Não eram longe, mas garantiam a privacidade de todos.

— Se quiser, podemos fazer a nossa, mas acredito que vá demorar algum

tempo até ficar pronta. Enquanto isso, podemos morar aqui.

— E a mamãe?

— Aqui tem vários quartos livres, ela poderá ficar em algum deles.

— Quando poderemos trazê-la? — Minha voz saiu baixa.

— Logo. Mas antes, precisamos te estabelecer primeiro. Comprar

roupas novas e te ambientar até mesmo para que a adaptação dela seja mais

fácil. — Segurou os meus dedos sobre as coxas. — Quanto a nós,

seguiremos nossas rotinas normalmente e...

Imediatamente, um alerta piscou em minha mente. Interrompi,

demonstrando mais ciúmes do que gostaria:

— Isso quer dizer que continuará ficando com as mulheres com que

tem costume?

Artur sorriu, tocando meu queixo.

— Embora para você possa ser um casamento de contrato com

prazo de validade, eu estou disposto a viver a nossa relação.

Seu olhar era penetrante, arrebatador. Nervosa, senti a voz falhar.


— O que... — firmei a voz — quer dizer com isso?

— Como meu pai bem disse, invertemos a ordem, mas isso não quer
dizer que não podemos ir com calma e termos o privilégio de construirmos

um relacionamento sólido. Estou dizendo que, embora para o mundo nós

estejamos casados, em nossa intimidade quero te conhecer a ponto de saber

o que sente apenas pelo olhar. Quero que possamos ser um casal sólido o

suficiente para sermos eu e você contra o mundo se for preciso. — Deslizou

o polegar nos meus lábios, fazendo-me suspirar, emocionada. — E quero,


principalmente, poder te beijar sempre que tiver vontade e que você tenha a

liberdade e intimidade para fazer o mesmo comigo.

Pisquei, incrédula demais. Busquei a voz e ela não saiu. Em um


sorriso lindo, Artur terminou de me arrebatar:

— E caso ainda não tenha ficado claro, eu quero namorar você,


Bruxinha. Ser o homem que você merece ao seu lado. E, se depois de nos

entregarmos, entendermos que não somos o que o outro precisa, tudo bem,
podemos nos separar com a absoluta certeza de que fizemos o máximo que

estava ao nosso alcance para que essa relação fosse duradoura. Não quero
que você se sinta presa a algo que, porventura, possa não te fazer bem.

Nem em mil anos eu poderia pensar em ouvir tamanha declaração

vinda dele. Abalada, tentei buscar alguma resposta que não entregasse o
quanto eu estava deslumbrada, porque a verdade era que Artur sempre
superava todas as expectativas reais e ilusórias que eu criava para ele.

Poderia ser a pior coisa a se dizer naquele instante, mas eu precisava

saber antes de tomar qualquer decisão.

— Se eu aceitar, como será quanto a... — limpei a garganta — a...

consu... você sabe... aquelas coisas do nosso casamento?

Artur sorriu, com certeza me achando uma tonta que nem mesmo
conseguia falar a palavra sexo com o próprio marido.

Envolveu minha cintura, puxando-me mais para perto, praticamente


colando nossos corpos. Parei de respirar, focada nos olhos verdes, quase

mel, e a barba levemente espessa emoldurando a pele clara.

Escandalosamente lindo!

Alisando meu rosto com carinho entre as duas mãos, colocou a

franja atrás da orelha, encarando-me sério.

— Entenda de uma vez que o que importa para mim é o seu bem-

estar. Não sou um peão xucro movido a sexo ou com a mentalidade


atrasada. Quero que seja no seu tempo, quando você sentir vontade e estiver

pronta.

— E se meu pai contestar quando souber do casamento?


— Ele não vai fazer isso, porque eu não vou permitir que aquele
homem interfira em nada mais na sua — e agora nossa — vida. E,

principalmente, não admitirei tamanha violação ao seu corpo.

A garganta travou, emocionada.

Ter crescido sob uma criação patriarcal e retrógrada como a de meu

pai me fez perder um pouco da noção de realidade em alguns momentos. A


fala de Artur serviu exatamente para me mostrar que agora eu tinha um

homem de verdade ao meu lado.

E mais uma vez me mostrava que ele era um príncipe. O meu

príncipe.

— Eu quero tentar — garanti. — Quero viver tudo isso ao seu lado.


REBECA

Aquele sorriso lindo que eu amava surgiu lentamente em seus


lábios, deixando-me embriagada. Não esperei que dessa vez ele tomasse a

atitude. Eu queria, queria muito sentir seu beijo outra vez.

Por isso, quando dei por mim, estava com a ponta dos meus dedos
em sua barba enquanto aproximava nossos lábios.

Em câmera lenta, seu olhar cálido encontrou o meu, observando-me

com atenção até que nossas bocas se encontrassem. Artur permitiu que

fosse um contato lento, a princípio um leve explorar.

O seu gosto natural me atingiu como um pavio aceso, prestes a

explodir.
Aos poucos, Artur passou a exigir tudo de mim, intenso, profundo e

muito gostoso. Gemi quando ouvi a taça caindo no chão, no mesmo instante

em que ele me puxou, sentando-me de lado em seu colo.

A mão grande e possessiva se embrenhou pelos meus cabelos

enquanto a outra dominava a minha cintura, deslizando lentamente sobre a

ereção que começava a se fazer presente.

Muito presente, diga-se de passagem.

Sentir a carne robusta e rija em contato com a minha coxa, fez um

calor diferente subir pelo meu ventre. Sem pensar, ajeitei-me sobre os
joelhos, ficando montada em seu colo, de frente para ele.

Artur gemeu quando desci devagar, aproveitando para senti-lo roçar

em minhas nádegas.

Era bom. Caramba! Era muito bom!

Avancei em sua boca, sendo retribuída com ainda mais intensidade.

A mão em meus cabelos se manteve presa ali, ditando o ritmo que ele

impunha, enquanto a outra mapeava minha cintura, tocando minha pele por

baixo da blusa. A pegada era firme, viva e penetrante.

Minhas mãos desceram pelo seu peitoral quente e maciço, podendo

sentir seus batimentos tão acelerados quanto os meus.


Rebolei novamente, enlouquecendo com aquela sensação de tê-lo

cada vez mais potente.

Em um lapso de insanidade, tirei a blusa, louca para sentir nossa

pele colada.

— O que você está fazendo, Bruxi...

Eu o interrompi, avançando novamente em seus lábios, dizendo


entre beijos:

— Eu não sei o que você tem, mas... me faz ter vontade de tirar toda

a roupa.

Ele grunhiu, claramente entregue. Tentando se controlar, afastou

levemente o rosto do meu, com o intuito de me fazer observá-lo.

— Escute, Bruxinha... Porra! — praguejou quando me remexi. Mal

conseguia me reconhecer, sentindo-me uma safada, entorpecida por ele. —

Rebeca... — Respirou fundo, sussurrando enebriado com as mãos firmes

em minha nuca: — Esse é o limite que você não pode passar se não quiser

que a nossa primeira vez aconteça.

— Eu quero, Artur. Agora. E com você — confidenciei, gemendo

em sua boca.

— Você está entorpecida sob o calor do momento. Depois poderá se

arrepender. — Analisou-me, nitidamente travando uma batalha contra o


próprio desejo.

Seus olhos eram brasa pura, assim como todo o seu corpo quente e

viril.

Beijei-o outra vez para que sentisse que era real, não apenas fogo de

momento.

— Eu realmente quero que seja agora e com você.

Ele se manteve sério, e eu precisei agir. Sabia que Artur manteria a

palavra para que eu não me arrependesse depois, mas a minha decisão

estava tomada.

Sem dar chance de ele me tirar de seu colo, levei a mão ao fecho do

sutiã, abrindo-o. Lentamente, deixei que as alças caíssem pelos meus braços

e permiti que o tecido desnudasse a minha pele devagar.

Seus olhos acompanharam o movimento completamente

compenetrados. Artur engoliu em seco, passando a língua sedutoramente

sobre os lábios de modo inconsciente. Sorri quando senti que tinha ganhado

aquela batalha.

As pontas de seus dedos subiram levemente pela minha barriga,

causando um arrepio delicioso até chegarem aos meus seios. Ronronei, com

a mais pura certeza de que nunca tinha sentido algo parecido com aquilo.

— São lindos! — murmurou, venerando-os.


Acolheu-os nas palmas quentes e ásperas, fazendo-me fechar os

olhos e contorcer, estufando o peito em sua direção. Aproximou o rosto

entre o vale dos meus seios, deslizando o nariz lentamente, deixando-me em

pura expectativa.

Em meu íntimo, eu ardia, ansiosa demais pelo resto.

Os lábios macios exploraram as laterais rechonchudas sem pressa

parecendo evitar o mamilo de propósito. O olhar subiu para o meu, e vê-lo

desbravando aquela região apenas piorava a minha excitação.

Artur fechou os lábios abrasadores ao redor do mamilo esquerdo, e

no mesmo instante o melado quente escorreu da minha intimidade. A minha


respiração saiu ofegante e só então notei que estava prendendo o ar.

Suas mãos espalmavam minhas costas, ao passo que a boca,

inicialmente com beijos delicados, agora sugava o pequeno o brotinho.

Segurei seus cabelos com força, pedindo por mais.

Pegando-me desprevenida, Artur puxou-o suavemente com os

dentes, causando ondas de um desejo absurdo em meu corpo. Cravei as


unhas em seus ombros, tremendo da cabeça aos pés, sentindo-me zonza

enquanto o corpo contraía, seguido de um relaxamento languido.

Meu Deus, eu nunca tinha sentido coisa parecida.


Sem ar, Artur não deixou que eu me recuperasse. Colocou-me

sentada onde ele estava, descendo até minhas pernas, ajoelhando-se logo à

frente. Levou as mãos ao cordão da minha calça, desfazendo o nó sem

muita delicadeza.

Prendi o ar quando a tirou, voltando com beijos pela minha perna

para repetir o gesto com a calcinha, desta vez desvendando cada pedaço de

pele com calma.

À medida que me despia, Artur me fitava de modo quente e cálido.

Seus cabelos estavam revirados, os olhos brilhavam de tanta

excitação. Parecia um animal enjaulado, lutando para permanecer no

controle das próprias ações. Nunca o tinha visto daquele modo, e devo

admitir que tinha adorado. Como em confirmação, uma nova fisgada

atingiu a minha intimidade.

Pensei que sentiria vergonha na primeira vez em que um homem me

deixasse daquele jeito, mas com ele eu só queria mais.

Artur tirou o tecido fino, jogando de lado. Puxou-me para a ponta da

chaise, pondo minhas pernas ao redor do seu pescoço. Fitou minha

intimidade de modo lascivo, elogiando enquanto um sorriso de canto

brincava em seus lábios:

— Você é linda!
Gemi quando distribuiu beijos intensos e molhados nas partes

internas das minhas coxas, dando chupadinhas que levavam os raios de

prazer para o meu centro.

Fechei os olhos e quase me engasguei quando senti os lábios

quentes e macios tocando o meu sexo nunca explorado. Ofeguei, segurando

o estofado abaixo de mim.

Artur começou suave, como se quisesse que eu me acostumasse com


aquele novo estímulo. Em seguida, usou o polegar para explorar toda a

região até o massagear clitóris. Beijou-me, lambeu, chupou e deu algumas


mordidinhas.

Seus suspiros de prazer só não eram maiores que os meus. Entre um


gemido e outro, entrei em êxtase ao abrir os olhos e vê-lo observando cada

reação minha sem parar de me dar prazer.

Fui acometida por uma fisgada forte, cheia de prazer, e ele percebeu.
Em resposta, introduziu a pontinha do indicador, fazendo-me ofegar e

fechar os olhos. Uma onda muito intensa se avolumou em meu ventre,


deixando-me a um passo de explodir. Agarrei seus cabelos, perdendo o

controle.

— Olhe para mim quando estiver gozando — ordenou,

intensificando o estímulo.
Tentei segurar, querendo prolongar o prazer.

— Eu... Eu... — Não fui capaz de responder, contraindo-me toda,


explodindo em milhares de pedacinhos em seguida.

Contraí o corpo em sua direção, apertei as pernas ao redor de seu


pescoço, puxei os fios curtos e quase rasguei o estofado. O ar me faltou, a

razão também. Era inteiramente sensações puras e latentes.

Joguei-me novamente no encosto quando a sensibilidade começou a


diminuir. Encarei meu antebraço preso entre meus dentes, não sendo capaz

de identificar em que momento tinha me mordido para não gritar.

Meu olhar desceu para Artur no meio das minhas pernas, ainda

ajoelhado no chão, sorrindo com o olhar convencido e chupando devagar o


restante do meu prazer.

Cacete!

Outra fisgada atingiu o meu âmago. Sorri, boba e feliz.

Nunquinha na vida imaginei que fosse capaz de sentir tanta luxúria

como naquele momento.

Artur pousou um último beijo sobre o monte, subindo o olhar


vagarosamente pelo meu corpo até encontrar o meu. Encarava-me

charmoso, cheio de tesão.


Retribuí, entorpecida, mas fiquei tímida ao perceber que estava
inteiramente nua à sua frente, diante do olhar profundo.

— Não sabe o quanto adorei o presente — gracejou, se levantando


devagar.

— Presente?

— Cortinas e tapete ruivos.

Fiquei confusa, pensando que nem mesmo tínhamos comprado nada

para a casa. Seu olhar recaiu outra vez para o meio das minhas pernas e
notei meus cabelos tocando a barriga.

Senti meu rosto pegar fogo quando entendi ao que ele se referia.

Meu Deus, que vergonha!

Encolhi as pernas, tapando minha nudez.

— Não quero que fique tímida comigo. — Artur sorriu, tocando o

meu joelho.

Eu não estava tímida. Estava morta de vergonha.

— Eu não tinha me preparado para isso — confessei em um

murmúrio. — Quer dizer, está aparadinho e eu gosto assim, mas pode ser
que tenha crescido um pouco. Desculpe, eu realmente não achei que ia

acontecer.
— Ei, sem neuras. — Acariciou meu rosto. — Não ligo para isso.

Mas fui sincero quando disse que gostei de saber que é ruiva por inteiro.
Quero que mantenha assim, não sabe o tesão que me despertou.

Ainda estava encabulada, pensando se comprava ou não a ideia do

que havia me pedido. No entanto, perdi o foco quando Artur se colocou de


pé, só então notando o tamanho da ereção marcada na calça. Engoli em

seco. Era muito maior do que tinha visto na cerimônia.

O desejo me acendeu novamente, querendo muito terminar o que

começamos.

Encarei o volume no jeans escuro novamente, excitada. Eu queria


muito, mas fiquei com medo de ser grande demais para mim. Na mesma

hora, o anjinho sexual que habitava o meu corpo naquela noite alertou:

Se Deus fez é porque cabe!

Balancei a cabeça, voltando minha atenção para o terceiro indivíduo

naquele quarto. Sim, porque daquele tamanho, sairia uma outra pessoa
quando ele tirasse a cueca.

Entendendo o rumo dos meus pensamentos, um sorriso sedutor


tomou o canto dos seus lábios. Carinhoso, ele se inclinou, passando os

braços sob o meu corpo, pegando-me no colo em uma pose de —


literalmente — recém-casados.
— Se não entramos em casa como manda a tradição, o faremos ao

menos em nosso quarto até termos a nossa — avisou.

Nosso quarto!

Passei meus braços em seu pescoço, alisando seu rosto e beijando

seus lábios. Sentia-me plena e ansiosa para chegarmos aos finalmentes.

Eu queria. Queria muito!

ARTUR

Com o quarto à meia-luz, coloquei Rebeca sobre a cama com


cuidado, embevecido por seus beijos excitantes contrastando com seu jeito

delicado. Seus braços rodeavam o meu pescoço, enquanto tomava a minha


boca de um jeito voraz, impensável em um primeiro momento.
Rebeca tinha se mostrado muito mais esperta do que o rostinho
ingênuo aparentava.

Eu gostei pra caramba!

Estava disposto a esperar o seu tempo, mas quando evidenciou os


seios médios com mamilos pequenos e rosados, não enxerguei nada além da

pele pálida contrastando com a vivacidade dos fios ruivos.

Quase gozei nas calças quando descortinei a única boceta ruiva que
já tive o prazer de experimentar. Caralho! A verdade era que depois de tê-la

provado eu não queria ter outra. Isso porque nem mesmo tinha tido o prazer
de estar dentro dela, mas tinha certeza de que ficaria louco.

Retribuí os beijos quentes em igual intensidade. A Bruxinha tinha


descoberto um modo muito efetivo de me enfeitiçar.

Era preocupante, pois eu sabia que somado ao que começava a

sentir por ela, poderia se tornar um caminho sem volta. Por isso, tentei me
afastar.

— Onde pensa que vai? — indagou, ofegante e com os lábios


inchados.

— Preciso de um banho, Bruxinha.

Rebeca me puxou com mais força contra o próprio corpo, tocou o


indicador em meus lábios, murmurando ao me encarar excitada:
— Eu quero que a nossa primeira vez seja assim, com o seu cheiro
natural. O cheiro do meu lobo.

Algo como soberba aqueceu meu peito, orgulhoso ao notar que


Rebeca não tinha frescuras.

Beijei-a faminto, ansioso. Deitei-a sobre os travesseiros, espalhando

beijos por todo o seu corpo até que estivesse novamente pronta. Parei na
boceta inchada, excitada e linda.

Um arrepio de pura excitação percorreu meu corpo e alojou no pau


dolorido pelo aperto da roupa. Após fazê-la gozar outra vez, vesti a

camisinha e me deitei sobre ela, apoiando-me nos cotovelos.

— Quero que seja prazeroso para você. Se doer muito, me avise que
eu paro. — Rebeca não respondeu, mas eu queria ter certeza de que ela não

se colocaria em risco para me agradar. — Ouviu, Bruxinha?

— Sim... — murmurou, jogando a cabeça para trás quando resvalei


o membro rijo entre nós em um roçar gostoso.

Entre gemidos, Rebeca respirava aos poucos quando comecei a


penetrá-la. Fechei os olhos, me concentrando para não queimar a linha de
largada. Estava com tesão reprimido desde a noite anterior e chupá-la só

piorou meu estado.


Entrei mais um pouco, sentindo as pontas de seus dedos apertarem
as minhas costas. À medida que eu a invadia, ela aumentava as unhadas.

Seus gemidos cresciam, em uma mistura de prazer e dor.

— Ai... ai! — lamuriou, quando faltava pouco para entrar tudo.

Enrijeci as costas, travando a mandíbula em uma tentativa


desesperada para não gozar. Ela era quente, apertada e muito molhada.

— Quer... — minha voz quase falhou — que eu pare?

— Não! — Puxou meu corpo contra o dela. — Eu quero te sentir

todo. Quero que me faça mulher, a sua mulher.

— Caralho, Bruxinha!

Em um último golpe a penetrei até o fundo, parando quietinho.


Tapei sua boca com a minha, absorvendo seus gritos e distraindo sua
atenção com mais beijos. Aos poucos, Rebeca foi relaxando, deixando-me

pirado ao senti-la me embrulhar completamente.

— Porra! — grunhi, sentindo o gozo na beira.

— Me faça sua, Artur. Só... me faça sua — implorou, com os olhos


marejados, inebriada.

Alucinado de tesão, mexi os quadris devagar, iniciando lento, mas

arrancando gemidos meus e dela. Aumentei as estocadas aos poucos,


sentindo o suor escorrer pela testa, absorto com a bela visão da minha
Bruxinha devastada pelo mesmo desejo que o meu.

Sob mim, Rebeca arranhava minhas costas e gemia cada vez mais
entregue.

A minha ruivinha gozou primeiro, abafando o som ao morder o meu


ombro, tremendo dos pés à cabeça. Esporrei logo em seguida, tendo a
confirmação de que, depois de conhecer Rebeca, nenhuma outra mulher

chamaria a minha atenção.

Ofegante sobre o seu corpo, apoiei o peso nos antebraços, tirando os


fios molhados de sua testa suada.

— Vou providenciar a nossa casa com a máxima urgência —


prometi, ofegante.

— Por quê? — indagou, alisando minhas costas de baixo para cima


enquanto buscava normalizar a respiração.

Afastei-me um pouco, tirando os fios molhados do seu rosto.

— Para que você possa gritar o quanto quiser e aproveitar ao


máximo os muitos orgasmos que pretendo te proporcionar.

O sorriso doce e tímido surgiu, deixando-me bobo. Se Antônio me


visse naquele estado, nunca mais deixaria de me perturbar.
Era diferente do que eu estava acostumado, mas mentiria se dissesse

que não estava gostando de cada detalhe.

— Você deve ter me achado uma depravada — disse, baixinho.

Sorri, beijando a boca carnuda e inchada.

Se ela soubesse tudo o que eu achei e as tantas coisas que pretendo


fazer...

— Uma mulher linda e autoconfiante que soube ouvir os desejos do

próprio corpo — admiti.

Rebeca abaixou o olhar, brincando com os pelinhos do meu peito.

— Na verdade, não sei o que fez comigo, mas toda essa confiança
só aparece quando estou com você.

Levantei a sobrancelha. Sabia que a criação de Rebeca tinha sido

muito opressora, e que desencadeava resultados péssimos para a sua


autoestima. No entanto, se dependesse de mim, não duraria muito.

Deitei-me sobre os travesseiros, puxando-a para o meu peito.


Abaixei a cabeça, levantando o queixo para que me olhasse.

— Que tal um acordo? — propus.

— Acordo? — repetiu, confusa.


— Cada vez que você se diminuir — para si mesma ou para outro

— eu vou te beijar.

Rebeca piscou, se ajeitando em meus braços.

— Não sei se isso daria certo.

— Por quê?

— Porque eu poderia correr um sério risco de começar a me


rebaixar de propósito só para receber o prêmio.

Gargalhei. Sua espontaneidade e a ingenuidade me deixavam


arriado por essa menina.

— Vou melhorar a proposta então. Comece a se valorizar e ressaltar


as suas qualidades que a recompensa será muito melhor do que um simples
beijo.

— E qual seria?

— Coloque em prática e verá.


ARTUR

— O que acha de um banho? — indaguei, mordiscando seus lábios


devagar.

O sangue circulava rápido, evidenciando o meu desejo de tê-la outra

vez. Ela anuiu, preparando para se levantar.

— Vou primei...

— Juntos — interrompi-a.

— O quê? — reagiu assustada. — Não!

Rebeca me deixava na lona quando reagia de modo tão espontâneo e

tímido. Sorri feito um bobo, esgueirando-me da cama como um gato e a

pegando no colo como um lobo faminto.


Precisaria de muito autocontrole para respeitar seu corpo dolorido e

não agir como uma animal irracional.

Porra, era a nossa noite de núpcias! Diferente do convencional, mas


era.

— Artur... Artur! — reclamou, passando os braços pelo meu

pescoço.

— Ah, Bruxinha... Não sabe o monstro que despertou quando

decidiu acordar o lobo que habita em mim. — Minha voz saiu baixa,

pingando desejo.

Rebeca riu, depositando a cabeça no meu ombro e cheirou meu

peito.

— Agora eu posso admitir.

— Admitir o quê? — questionei, entrando no banheiro e a

colocando sentada sobre a bancada de mármore.

— Que fiquei impactada ao te ver sem camisa ontem — confessou,

meio tímida, dobrando as pernas e tapando os seios com as mãos.

— Acha mesmo que não percebi? Quase limpei a babinha que

escorreu do canto da sua boca.

— Artur! — repreendeu-me, envergonhada.


Gargalhei, beijando sua testa, em seguida, caminhei até a banheira,

preparando-a para nós. Ajustei a iluminação, deixando o cômodo à meia-

luz, um ar romântico.

— Estou aprendendo a te ler, Bruxinha... Você não imagina o

quanto.

— O que isso quer dizer?

Eu não poderia falar a Rebeca tudo o que passava por minha cabeça.

Contar que a cada instante em que escolhi minuciosamente os detalhes do

nosso casamento o sentimento por ela ficava mais forte.

Queria eternizar aquele dia de um jeito muito especial em sua

memória.

Não poderia dizer que quando vi olho no vestido branco e delicado

no manequim a imaginei linda e tímida, contrastando com a cabeleira ruiva.


Que a aliança grossa e tradicional era para deixar claro a quem quisesse ver

que ela não estava mais sozinha. Agora eu estaria ao seu lado em todos os

momentos.

Que, quando senti o gosto dos seus lábios pela primeira vez soube

que nada mais seria como antes, pois o vulcão em erupção no meu peito

deixava evidente o quanto o sentimento por ela poderia crescer e ser muito

mais forte do que nós poderíamos prever.


Aos olhos de outras pessoas, o que fizemos poderia parecer

precipitado e irresponsável. No entanto, só nós dois sabíamos explicar a

intensidade do sentimento que nos atingiu.

No instante em que a vi ensopada e tremendo de frio na carroceria,

soube que a minha vida tranquila e controlada não seria mais a mesma.

Presenciá-la tão indefesa e frágil despertou o meu lado mais

instintivo: o protetor. Nada mais importava, a não ser a certeza de que ela
estivesse bem.

Era verdade que ainda tínhamos muito a nos conhecer, mas sem

dúvidas, ficava cada vez mais rendido diante da mulher que Rebeca

descortinava aos poucos.

Se minhas suspeitas se confirmassem, ela me teria em suas mãos em

um piscar de olhos.

Era gostoso, mas igualmente aterrorizante.

Ciente demais sobre tudo o que sentia, desviei o olhar para a

banheira cheia, mudando o foco da conversa.

— Que o nosso banho está pronto.

— Não foge do assunto, lobinho...

Caminhei devagar até ela, envolvendo suas pernas em minha cintura

e o seu peito contra o meu, apreciando o quanto era pequena, delicada e


cheirosa.

— Acho que precisarei pensar em algumas estratégias para te fazer

parar de me chamar assim.

— Por quê?

— Porque esse é um apelido que Antônio me deu.

— E qual o problema? Eu gosto e acho que super tem a ver com

você. Calado, observador, astuto.

— Sei... Mas agora, que tal mudarmos de assunto e falarmos de

nós?

— Sobre tudo estar indo incrivelmente rápido e já termos uma


intimidade assustadora como se estivéssemos casados há anos? — brincou.

— É um bom tema. Principalmente se dermos atenção ao tesão que

você despertou em mim.

Rebeca encolheu o pescoço em uma risada abafada quando rocei a

barba começando a nascer, fazendo-me sorrir.

— Tem um negócio enorme cutucando a minha bunda —

murmurou, estremecida.

— Acha que não sei? É ele quem está doido para fazer um monte de

coisas com você.


Coloquei-a no chão, próximo à banheira. Varri seu corpo outra vez

admirando tanta beleza e delicadeza.

Ela era toda miúda, com curvas proporcionais nos seios e quadris

levemente arredondados. Os fios alaranjados e volumosos caíam ao seu

redor como um manto, deixando-a ainda mais angelical.

Linda demais!

— Porra! — O som gutural saiu forte quando encarei as coxas

branquinhas manchadas discretamente de sangue.

Seu olhar desceu na mesma direção. Envergonhada, fechou as

pernas no mesmo instante em que notou a marca.

— Não — ordenei, desligando a racionalidade. Colei nossos corpos,

ajoelhando-me em frente à boceta quase imaculada, afastando os seus

joelhos.

— O que você vai fa... — Sua voz ficou presa na garganta quando

escorreguei a língua do meio até o topo das coxas.

Com beijos molhados e indecentes, brinquei em toda a região até

que ficassem inteiramente limpas, mas sem tocar os lábios nos pelos ruivos

aparados e levemente corados do líquido rubro.

O gosto do sangue agindo diretamente em minhas papilas

encaminhou alertas contínuos para o pau molhado da lubrificação, sedento


por aquela menina. Agora, minha mulher.

Passei o nariz pela vulva delicada, sentindo seu cheiro misturado


com o meu.

— Artur... pa... pa...

Inebriado, não deixei que terminasse sua súplica, deslizei a língua

em um movimento longo até chegar ao clitóris pequeno, arrancando

gemidos manhosos. A mão trêmula agarrou meus cabelos, pedindo por mais
silenciosamente.

Abri os lábios com os dedos, invadindo-a com a língua, sugando


tudo dela. O restante do sangue, lubrificação, gemidos e sanidade, até que

gozasse forte em minha boca.

Excitado pra caralho, levantei-me com a plena certeza de que sim,


eu me parecia mesmo com um lobo. Não pelas características que diziam,

mas sim porque tinha acabado de descobrir que o sangue de Rebeca


despertava um prazer vertiginoso no meu corpo.

— Você é maluco! — brincou, ruborizada pelo gozo e timidez.


Olhou para baixo, notando minha ereção apontando para cima. — O que

fará com isso?

Toquei sua mão, dando suporte e indicando para entrar na banheira.

— Não se preocupe, eu me viro.


Rebeca parou colada a mim. Com menor estatura, obrigava-me a
olhar para baixo, encontrando os olhos brilhantes e desejosos.

— Eu quero — sussurrou, descendo a ponta dos dedos pelo meu

abdome, tocando na glande, acanhada.

Fascinado, acompanhei Rebeca explorando o meu corpo. Os dedos

finos deslizaram com delicadeza sobre toda a extensão. O contato recatado


desencadeou um arrepio gostoso da base da coluna ao pescoço.

— Eu... não sei fazer isso — confessou, baixinho.

— Continue... Você está indo bem — incentivei, com a voz um


pouco falha. Excitado demais.

Trêmula, Rebeca abaixou o olhar, focada totalmente em acariciar o


corpo do pênis com cuidado, talvez com medo de machucá-lo.

Explorou, insegura, por alguns instantes.

— É grande, grosso — disse para si mesma, despertando o meu


sorriso envaidecido.

Suspirei quando ela levou a outra mão, deixando-me louco ao ser

recebido pelo calor de ambas. Deslizou as palmas fechadas para baixo e


para cima, o início de uma masturbação deliciosa.

Rebeca estava vidrada em cada reação do meu corpo, assim como


eu em tudo o que ela fazia.
Seus lábios se curvaram em um sorriso meigo e lascivo quando
tomou ritmo, conquistando a lubrificação na ponta. Olhou sapeca, mas o

brilho em seu olhar mudou quando percebeu a luxúria no meu.

Agarrei sua nuca com vontade, roubando sua boca em um beijo

cheio de promessas. Colei sua cintura em minha pelve, deixando-a me


masturbar entre nossos corpos.

Os gemidos ecoavam altos pelo banheiro. Rebeca aumentava a

velocidade. Nossas bocas sugavam tudo um do outro.

— Eu quero provar você — sussurrou, entre beijos.

— Terá muito tempo para isso. — Apertei mais nossos corpos. A


glande tocando seu abdome, roçando o ventre macio. — Agora continua
assim, tá gostoso demais.

Rebeca acelerou, ajeitando o corpo para que os toques em seus seios


fossem constantes.

Fiquei maluco!

Voltei a beijá-la avidamente, gozando feito um cavalo sobre os


peitos delicados.

Segurei sua nuca mantendo nossos lábios colados despejando até a


última gota.
— Para alguém virgem até uma hora atrás, você se saiu muito bem

dando prazer a um homem — murmurei, abobalhado.

Rebeca ficou rubra, séria. Entretanto, me surpreendeu quando


rebateu, segura:

— Dois pontos. Primeiro: Eu era virgem, não boba. Segundo: Não é


um homem qualquer. É você. O homem que me salvou de um destino

imprevisível e, e por quem cultivo muito mais do que carinho.

Suas palavras me deixaram sem reação.

— Porra, você vai acabar com o meu juízo, assim.

Puxei-a para outro beijo, dessa vez profundo, cheio de sentimentos


que ainda não era a hora de se tornarem palavras.

Guiei-a para a banheira, sentando-me atrás dela. Ao som de um

country romântico, beijei sua nuca, pescoço e ombros, sorrindo ao vê-la se


encolher e arrepiar.

Deslizei as mãos sobre o seu corpo macio. Subi pela barriga até
chegar aos seios lambrecados do meu gozo, excitando-me outra vez.

A vontade de estar dentro dela me despertou para uma questão

importante. Sem deixar de acariciá-la com a espuma, perguntei:

— Você toma anticoncepcional?


Rebeca virou o rosto rapidamente, de olhos arregalados. Com uma

criação tão arcaica, com certeza era um tabu.

— Eu... não. Nunca tomei.

— Você faz acompanhamento ginecológico?

— Já fui algumas vezes, principalmente quando me tornei moça.


Mas já tem um bom tempo que não vou.

Assenti, beijando sua nuca.

— Vamos agendar uma consulta para você.

— Eu não tenho nenhuma doença — soou ofendida.

— Sei que não, e em nenhum momento coloquei isso em xeque. A

questão é que você precisa ver se está tudo bem com a sua saúde íntima e
checar com a médica o melhor método contraceptivo. Embora adore ser tio,

acho que não é o momento ideal para ser pai, ainda mais diante do nosso
cenário.

Rebeca anuiu, observando minhas mãos em seu corpo. Segurei seu


queixo, virando o rosto delicadamente para mim, beijei seus lábios.

— Não sabe o quanto estou louco para sentir essa boceta sem nada

entre nós.

Ri quando seu rosto ficou tão vermelho quanto os cabelos.


Após o banho, busquei a roupa de Rebeca ainda aos pés da chaise
na varanda, dizendo antes de entregá-la:

— Amanhã providenciaremos roupas novas para você.

Esticou a mão encabulada de me ver pelado. Aos poucos ela se


acostumaria.

— Sim. Eu tenho um dinheirinho guardado, acho que será o

suficiente para algumas peças novas.

Vesti uma cueca boxer preta, caminhando para a cama, erguendo os

lençóis enquanto ela fazia o mesmo.

— Não quero que se preocupe com isso. Agora você é minha

esposa, minha responsabilidade.

Sentada, Rebeca se virou séria para mim, linda com os cabelos


soltos caindo sobre os ombros.

— Artur, não quero que me veja assim ou pense que, de algum


modo, eu sou problema para você. Não quero parecer ingrata, mas estou

cansada de ser um peso na vida de outras pessoas. Antes era o meu pai,
agora não quero que seja você. Pretendo trabalhar, ter meu dinheirinho,
poder pagar e continuar a minha faculdade. Ser independente.

Observei-a com atenção, sabendo que o desejo de liberdade gritava


dentro dela. Orgulhoso para caramba.
— Acho admirável a sua visão e concordo. Mas vamos combinar
que algumas coisas, principalmente financeiras, são responsabilidades

minhas.

Rebeca soltou o ar dos pulmões, relaxando os ombros.

— Não acha isso machista?

— Não. Se pensar bem, mulheres possuem muito mais gastos do


que os homens. Produtos de beleza, roupas, acessórios, essas coisas...

Estendi a coberta para que se ajeitasse, apreciando muito aquele

calor gostoso no peito.

— Não vou discutir agora, porque nem mesmo tenho um emprego.

Mas em breve voltaremos a falar sobre isso.

Rebeca se ajeitou no travesseiro, virada para mim, observando-me

um pouco sem jeito.

— Eu nunca dormi com ninguém antes — confidenciou em um

sopro.

— É novo para mim também. — Alisei seus cabelos. — Sei que é


muita coisa junto para você se acostumar, mas quero que fique à vontade
não só comigo, mas na fazenda como um todo.

Ela deu um sorriso pequeno.


— Agora vem cá. Já temos intimidade o suficiente para dormirmos
abraçados.

Ela sorriu e a puxei para mim, ajeitando nossos corpos em uma

conchinha gostosa.

Havia sido um dia agitado, nos rendemos ao sono em poucos


instantes.

Pisquei com preguiça, sentindo minhas pernas presas e um peso


diferente no peito. Ao abrir os olhos, a cabeleira alaranjada me saudou com
um bom dia diferente de tudo o que eu já tinha vivido.

O sorriso brotou em meus lábios sem pedir licença quando o cheiro

de rosas adentrou minhas narinas, deixando-me bem consciente da sua


dona.
Estiquei o pescoço, encontrando Rebeca dormindo com a mão sob a
bochecha arroxeada, diretamente sobre o meu tórax como se fosse a sua

morada há muito tempo.

Meu olhar foi atraído para a boca machucada, despertando a raiva


de seu pai asqueroso. Isso não ficaria assim.

Soltei todo o ar preso, tentando limpar a mente.

O brilho da aliança grossa em seu dedo anelar me trouxe de volta à

realidade, tudo tinha sido mesmo real.

Estávamos casados.

Observá-la tão serena despertou o calor que já se tornava familiar


em meu peito. O sorriso escapou de meus lábios ao constatar que
acordaríamos daquele modo todos os dias.

Ainda estava admirado com o quanto Rebeca se adaptou rápido a

tantas mudanças.

Em menos de 48 horas ela havia sido agredida, fugido de casa e de


um noivo que poderia ser seu avô. Se casado, ido morar em um lugar
desconhecido, perdido a virgindade e agora dormia tranquilamente sobre

mim.

Fitei os lábios carnudos e chamativos, sendo sacudido pelas


lembranças da noite passada.
Sorri, bobo com o quanto ela era incrível.

Ingênua e ousada na medida certa.

Insegura e curiosa.

Tímida e corajosa.

Alisei os fios sedosos caídos sobre a bochecha rosada, admirando


tamanha delicadeza, sussurrando:

— Sinto que vou te amar muito.


REBECA

Eu tinha o costume de despertar e ficar curtindo a preguiça de olhos


fechados na cama. Naquele início de manhã não tinha sido diferente.

Quando despertei e senti o corpo maciço sob mim, abri os olhos

devagar, sorrindo, apaixonada com o quanto Artur era lindo, até mesmo
dormindo.

Parecia com os príncipes encantados dos contos de fadas que lia na

infância, e agora, com os personagens de romances que eu tinha aprendido


a gostar.

As sobrancelhas eram em tom castanho-claro, assim como os


cabelos. O nariz bem desenhado. A boca naturalmente rosada em um

contorno perfeito, o lábio de cima em com M perfeito, enquanto o de baixo

parecia levemente mais grosso.


Senti vontade de beijá-lo, mas fechei os olhos um pouco assustada

quando o senti mexer sob mim. Quis abrir os olhos, denunciar que estava

acordada, porém ao sentir o toque delicado em meus cabelos, mantive-me

cativa, percebendo a intensidade do seu olhar sobre mim.

Artur tinha o poder de me fazer sentir acolhida, benquista e

desejada. A melhor sensação que já tinha sentido.

Aproveitava tamanho prazer quando suas palavras me atingiram

como um tiro, deixando-me completamente sem reação.

— Sinto que vou te amar muito.

Não soube como agir, apenas continuei do mesmo modo, sentindo o

embargo tomando o meu ar.

Ao longe, a movimentação dos peões se fazia presente, assim como

o cantar do galo. Agradeci quando Artur me colocou sobre o travesseiro


com cuidado e se levantou, caminhando em direção ao banheiro.

Abri um dos olhos, admirando o quanto era lindo, o corpo grande,

cheio de gominhos e muito bem definido. A cueca preta apenas destacando

aquele bumbum grande e bem trabalhado. Gostoso demais!

Quando a porta se fechou, respirei fundo, espreguiçando-me.

Levantei-me devagar, caminhando descalça até a varanda.


O dia amanhecia em um alaranjado lindo. Saudando a beleza

daquela alvorada, os pássaros cantavam alegres, tão felizes quanto eu me

sentia diante aquela sensação indescritível.

Com a claridade, era possível ver melhor as casas de Antônio e

Aloísio, uma de cada lado do casarão principal.

Eram espaçosas, bonitas e modernas. Embora a fazenda fosse

tradicional, todas as casas tinham ar de modernidade, repletas de vidros e

cores neutras, mas sem perderem o ar campesino e bucólico.

Lembrei-me de Artur comentar que poderíamos fazer a nossa.

Pareceu tão certo, conseguia até enxergá-la pronta.

Era como estar vivendo um sonho de princesa.

Respirei fundo, sentindo a lágrima escorrer quando a sensação de

liberdade me invadiu.

De olhos fechados, abri os braços e pendi a cabeça para trás,

agradecendo silenciosamente a Deus por ter ouvido as minhas preces e estar

me dando muito mais do que sonhei.

O fantasma do meu pai e do coronel ainda se faziam presentes, tinha

ciência de que não reagiriam quietos diante do que aconteceu, mas não

permitiria que aquilo me abatesse. Não quando me sentia tão feliz como
naquela manhã.
Perdi-me no tempo apaixonada pela paisagem incrível. Campos a

perder de vista, árvores, ao longe, o estábulo, as baias, aparentemente uma

vila de casas e uma lagoa.

Tudo lindo demais!

— Bom dia, esposa!

A voz de Artur me fez sobressaltar, com a mão sobre o peito.

Segurou minha cintura, virando-me para ele, aproximando o rosto para me

beijar.

Afastei, sem graça. Curioso, o meu lobinho levantou uma

sobrancelha.

— O que foi? Não quer mais me beijar? — sondou, divertido.

Coloquei as duas mãos em frente à minha boca, balançando a

cabeça para os lados.

— Preciso escovar os dentes, estou com bafo de sono.

Artur gargalhou, puxando-me contra ele. Tentou outra vez, mas não

facilitei.

— Hum-hum... — neguei.

Ele riu.

— Não ligo para isso, Bruxinha. Estou com saudade da sua boca.
— Mas eu ligo, pelo amor de Deus. Você não é obrigado.

Saí correndo para o banheiro, ouvindo sua gargalhada.

Após a higiene em dia e banho tomado, coloquei um vestidinho

simples, penteei os cabelos e conferi se estava bonita. Queria estar linda

para a nossa primeira manhã oficial de casados.

As marcas roxas e chamativas ainda denunciavam as agressões

sofridas há alguns dias. Tive vontade de tapar, mas não tinha levado

nenhum item de maquiagem na pequena mochila. Suspirei, irritada. Passei a

mão pela roupa e abri a porta, ansiosa.

Artur terminava de fechar o cinto de couro marrom com um grande

brasão da fazenda. A camisa xadrez vermelha, a calça jeans escura e botina

deixando-o um peão ainda mais atraente. Umedeci os lábios repentinamente

secos.

Imagens de tudo o que fizemos em nossa noite de núpcias invadiram

a minha mente sem qualquer controle. Abafei um ofego, doida para repetir.

Artur borrifou o perfume amadeirado no pescoço, braços e peito.

Estava cada vez mais difícil me concentrar em qualquer coisa que não fosse

nós dois grudados sobre a cama.

Caminhou em minha direção, observando-me como um predador

faminto. Passou os braços pela minha cintura, abaixando a cabeça, fitando


meus olhos fixamente.

— Agora tenho a permissão para dar um bom dia decente à

senhora?

— Sem sombra de dúvidas.

Sorriu docemente, segurando meu queixo, beijando-me com

carinho. Acariciou meu queixo, subindo para as bochechas e, por fim,

colocando o cabelo atrás da orelha. Se notou as marcas, preferiu não

comentar.

— Você está linda! Como foi sua primeira noite na nova cama?

Ajeitei o botão da sua camisa, alisando alguns poucos pelos.

— Perfeita. Até mesmo porque alguém me deixou bem cansada

antes de dormir.

Riu, safado.

— A sua sorte é que saiu correndo para o banheiro e estamos com o

horário apertado. Caso contrário, te prenderia naquela cama por mais algum

tempo antes de sairmos desse quarto.

Sorri, sentindo uma fisgada gostosa entre as pernas. Ainda estava

um pouco dolorida, mas nada capaz de impedir o meu desejo de tê-lo


novamente em mim.
Artur pegou em minha mão, fazendo-nos parar próximo à cama,

onde uma caixa grande chamou a minha atenção.

— Abra, é seu — incentivou, com um sorriso de canto.

Encarei-o sentindo meus olhos brilharem. Em seguida, caminhei

devagar até a cama, notando um calafrio gostoso no ventre.

Tirei a tampa, desembrulhando o papel seda de proteção. Suspirei,

encantada quando vi o chapéu country branco modelo americano. Peguei-o


com delicadeza, virando-me para o belo peão que me observava

intensamente.

Fitei novamente o objeto em minha mão, emocionada ao ler em suas

laterais: REBECA ALBUQUERQUE. Por um instante, fechei os olhos,


absorvendo o impacto que aquele sobrenome teria.

— É lindo! Obrigada — ciciei, apaixonada. — Coloca em mim?

Artur assentiu, parando à minha frente, ajustou as abas e posicionou


suavemente sobre os meus cabelos.

— Linda é você! Ele é apenas um adereço.

Suas mãos passearam do meu pescoço para as bochechas, fitou


meus olhos com atenção e me beijou. Calmo e apaixonado.

Nós nos afastamos lentamente, acariciei seu rosto, confessando com

vergonha:
— Eu não comprei nada para você. Desculpe.

— Não se preocupe com isso. — Beijou-me suavemente. — Vi esse


chapéu quando fui comprar as nossas alianças. Assim que o vi, te imaginei

com ele. Não consegui resistir.

Ah, Artur! Se o seu objetivo é me fazer apaixonar, está indo pelo

caminho certo.

— Vamos?

— Sim. Eu amei o presente, mas volto para buscá-lo antes de

sairmos.

Artur concordou, pegando minha mão e nos guiando para a escada.

— Vamos tomar café com todo mundo, tenho certeza de que estarão

todos aqui, curiosos para saber como foi a nossa noite.

— Não é assim todos os dias? — questionei, curiosa.

— Era, antes de Aloísio e Antônio se mudarem. Normalmente


durante a semana cada um toma café na sua casa, mas almoçamos juntos.

— Deve ser gostoso ter uma família tão calorosa assim — comentei

ao chegarmos ao último degrau.

— É divertido, às vezes complicado. Vai ver que Antônio consegue

ser bem irritante quando quer.


Ri, lembrando de sua oscilação de humor na noite passada. Às vezes
relaxado e brincalhão, em outras, bruto e nervoso.

— Aloísio, por outro lado, é mais fechado, mas tem um coração de


ouro. Marcela e Luiza são muito gente boa, tenho certeza de que te

acolherão com muito carinho.

Assenti, pedindo em pensamentos que fosse assim mesmo. Ainda


tinha receio de ser rechaçada ou algo assim por ter entrado naquela família

de modo tão abrupto.

— Se não é o casal de pombinhos! — Antônio não perdeu a

oportunidade assim que nos viu de mãos unidas entrando na cozinha. —


Lobinho, precisa ser mais cuidadoso. Vi essa bunda branca andando na

varanda tarde da noite.

Gelei, pensando no que ele poderia ter visto. Meu Deus! Fiquei tão
entorpecida que nem me lembrei dos riscos de estarmos na varanda.

— Você não tem uma esposa e uma bebê para cuidar? — Artur
rebateu, mas não parecia irritado. — Fique tranquila, ele está blefando —

falou baixinho próximo ao meu ouvido.

Anuí, sentando-me na cadeira que Artur puxava para mim. Todos


pareciam nos observar, espantados pelas marcas agora sem nenhum tipo de

maquiagem para amenizar.


— Bom dia! — cumprimentei, baixo.

Artur fez o mesmo, sentando-se ao meu lado.

Salvando-nos do clima levemente constrangedor, Marta aproximou


a garrafa de café da minha xícara, perguntando com gentileza:

— Bom dia, minha querida. Bebe um cafezinho? — Assenti, e ela


sorriu, despejando o líquido fumegante ao indagar: — Como passou a
noite? Espero que não tenha estranhado tanto.

Era uma pergunta simples, fácil de ser respondida. Entretanto, cenas


quentes passaram como um flash em minha mente, fazendo-me engasgar ao

dizer:

— Be... bem. E não se preocupe, a casa é linda e muito

aconchegante.

E seu filho fez um trabalho espetacular para me fazer dormir como


uma princesa.

Pensei, e embora eu não tenha falado, Marta entendeu nas


entrelinhas.

Droga! Todo mundo ao redor parecia saber o que eu tinha feito na

noite passada, com exceção de Davi, que comia me observando de canto.

Artur me mostrou as opções na mesa, deixando-me confortável para

comer. Preparei um pãozinho francês com café, lembrando-me de Vânia


que preparava meu café da manhã com muito carinho todos os dias.

— E então, o que pretendem fazer hoje? — Marcela indagou,


mordendo uma torrada com geleia de morango.

Olhei para o meu Lobinho. Como se soubesse que deixaria a

resposta para ele, se manteve calado, estimulando-me a socializar.

— Artur me levará para conhecer melhor a fazenda e depois vamos

à cidade comprar algumas roupas já que deixei as minhas na minha antiga


casa.

Ela assentiu, dando-me um sorriso cúmplice. Marcela emanava um

ar de mulher forte, surrada pela vida, mas que finalmente teve o seu final
feliz. Sua imagem era pura e simplesmente de uma mulher que amava o

marido que tinha, embora tivesse vontade de esganá-lo às vezes. Mas,


principalmente, que amava estar gestando o bebezinho em seu ventre.

— E quando será a festa para comemorar o casamento? — Luiza


indagou, empolgada.

— Festa? — Encolhi os ombros. — Não chegamos a pensar nisso.

— Como não, ruivinha? — devolveu, quase ofendida. — Você


entrou para família Albuquerque, não está entendendo que é obrigatório ter

um festão de arromba?

— Obrigatório? — Arregalei os olhos.


Artur riu, vindo ao meu socorro.

— Calma. O que Luiza quer dizer que nós gostamos de festejar em


toda data comemorativa que temos. E casamento é a principal delas.

— Ai, vou adorar montar a celebração de vocês. Conseguirei


aproveitar vários fornecedores do casamento da Marcela.

Estava meio tonta com o quanto ela falava empolgada. Toquei sua

mão com cuidado, como em um aviso não verbal para ela ir devagar.

— Luiza — interrompi-a, sem jeito —, o nosso casamento nem é de

verdade. Não acho que seja adequado fazer uma festa, tornando isso um
grande evento na boca do povo.

O olhar indecifrável de Artur encontrou o meu. Mas era verdade.


Ainda que estivéssemos namorando, isso não garantia o nosso matrimônio.
Caso não déssemos certos juntos, seria coisa demais para processar.

— Como não? — ela questionou. — É justamente por essa razão


que vocês devem fazer a maior festa que essa região já viu. Para esfregar na

cara de todo mundo que não casaram escondidos porque está grávida ou
milhares de outras coisas que o povo inventa.

— Luiza tem razão. — A voz de Alfredo finalmente soou,

chamando toda atenção para si. — A primeira coisa que vão falar quando
aparecerem casados sem ninguém ter ficado sabendo é que nós não fomos a
favor dessa união. Para deixar claro nossa posição, acho melhor
escancararem à moda antiga que estão juntos.

Só de imaginar como papai e o Coronel Vilela poderão reagir a essa


festa me deixava apreensiva. De qualquer jeito isso iria acontecer. A única

coisa que poderíamos fazer é trabalhar a redução de danos.

Encarei Artur, ele entendeu o meu questionamento mudo e assentiu.


Mirei Luiza que me observava com expectativa e fiz um leve movimento de

cabeça em concordância.

— Então é isso, pessoal! Em breve teremos o maior festão que essa

fazenda já viu. Ai... — ela bateu palminhas — estou empolgada.

Davi se empolgou com a alegria da mãe, assim como Bia sacudia as


perninhas protegidas pela calça rosa no carrinho.

Inquieto, perguntou sem rodeios:

— Tia Rebeca, é verdade que agora você é minha titia igual à titia

Marcela?

— Sou sim — respondi um tanto sem graça. Era horrível ser o


centro das atenções.

Davi sorriu, faltando alguns dentinhos nas laterais enquanto outros

maiores nasciam na frente.


— E, titia Rebeca, você e o titio Artur vão me dar um priminho
igual o tio Antônio?

Arregalei os olhos, chocada com a pergunta à queima-roupa.

Contudo, antes que pudesse dizer alguma coisa, Antônio foi mais rápido:

— Priminho? Moleque, você vai ter outro irmão!

— Irmão? — Davi indagou com o dedinho na boca. — Igual a Bia?

— Que história é essa? — Marta indagou, observando os filhos mais


velhos com curiosidade.

— Antônio, seu bocudo! — Luiza repreendeu, jogando a bolinha de


guardanapo amassado em seu rosto.

Ele não se abalou, abrindo a boca para morder uma rosca. No


mesmo instante, Aloísio empurrou-a inteirinha até o fundo de sua garganta,
fazendo-o se engasgar. Artur, Davi e Marcela caíram na gargalhada.

— Vou ter outro neto e ninguém me contou? — A matriarca elevou


o tom, quase indignada.

— Era para ser surpresa, mãe. Mas esse pentelho não colabora.

Vermelho, Antônio se levantou, batendo com a mão fechada sobre o


peito na tentativa de desengasgar. Tossiu diversas vezes, voltando a respirar

normalmente quando Marta se colocou ao seu lado, dando tapinhas em suas


costas e oferecendo-lhe um copo d’água.
— Não tenho culpa se o bebê está quase nascendo e vocês ainda não
contaram para os avós.

— Não sabem quanto me deixam feliz ao receber a notícia que serei


vovó outra vez. — Marta puxou Luiza e Aloísio, acolhendo-os em um
abraço apertado.

Alfredo fez o mesmo, começando pelo filho e terminando na nora.


Era contido, mas seu rosto evidenciava a alegria em saber que a família

estava crescendo.

Marta segurou o rosto de Aloísio, afastando para olhá-lo melhor,


indagando, desconfiada:

— Como assim quase nascendo? Sabiam há muito tempo e não me


falaram?

— Exagero do Antônio, mãe. Íamos contar agora, estávamos apenas


esperando a euforia pelo casamento surpresa passar. — Ele se inclinou em
direção ao carrinho de Bia, tirando uma caixinha de presente do cesto. Em
seguida, estendeu para a mãe, continuando: — Mas essa peste abriu o porta-

luvas do meu carro ontem e encontrou o exame antes da hora. Não


consegue guardar a língua dentro da boca.

— É claro. Você se esqueceu que preciso sustentar a minha fama de


filho atentado? Você e o Lobinho são muito amadores — gabou-se,
cruzando os braços ainda de pé.

Acompanhei o exato momento em que Artur e Aloísio se

comunicaram pelo olhar. Sem uma única palavra verbalizada, eles pareciam
arquitetar algo maquiavélico.

Com um assentir de cabeça do meu marido, eles se levantaram com


brusquidão, pegando-nos de surpresa. Artur imobilizou os membros

superiores de Antônio enquanto Aloísio fez o mesmo com as pernas.

Sob tentativa de escapar e ameaças do grandão, eles saíram da


cozinha sendo acompanhados pelas mulheres e Marta gritando para o
soltarem.

— Leoa, me ajuda! — ele berrou.

Marcela acariciou a filha no colo, colocou-a novamente no carrinho

com calma, pegou o celular do esposo sobre a mesma e começou a gravar.

— Eu não, foi você quem provocou. Vou guardar de recordação para


a Aurora — desdenhou.

— Seus filhos da put... — O grito de Antônio foi interrompido


quando ele imergiu na piscina.

Artur bateu as mãos como se estivesse limpando uma poeira, olhou


para mim e piscou. Encolhi os ombros. Cada estímulo que ele me dava
parecia ter o mesmo destino. Lá embaixo!
Antônio emergiu, chacoalhando os cabelos para os lados e tirando o

excesso de água do rosto. Nadou até a borda, impulsionando sobre os


braços musculosos e saindo da piscina.

— Que água fria do cacete! Vocês me pagam, podem anotar.

Sem esperar, Marta caminhou brava até ele, surpreendendo a todos


quando torceu o lóbulo de sua orelha.

— Ai... aiai, mãe. Por que a senhora está fazendo isso?

— Para você aprender a respeitar a sua mãe, menino insolente.


P.U.T.A — soletrou para que Davi não entendesse — é o teu nariz.

Observei Alfredo tomando seu café tranquilamente, acompanhando


toda a confusão sem se abalar. Deveria estar acostumado com as

maluquices da família.

Levantou-se, sem pressa, chamando Artur apenas com o olhar. Eles


se afastaram para a varanda.

A família se dispersou. Marcela, Antônio e Aurora voltaram para


casa para que ele pudesse se trocar. O restante voltou para a cozinha ao som

das risadas empolgadas de Davi.

Marta veio até mim, convidando-me para um cantinho na sala de


estar. Atenta, pegou minha mão entre as suas, alisando com afeto.

— Está feliz?
Anuí, sentindo a ponta macia de seus dedos fazendo cócegas na

minha palma.

— E por que esses olhinhos demonstram um pouco de tristeza? —


perguntou, em tom doce.

— Não é nada — respondi baixo. — Muitas mudanças acontecendo

juntas. Ainda estou tentando me acostumar.

— Imagino que sim, querida. Mas quero que se sinta à vontade para
conversar sobre qualquer assunto comigo ou até mesmo com as meninas.
São todas anjos que Deus colocou na vida dos meus filhos, assim como
você. Desejo que se sinta igualmente acolhida.

— Obrigada, Dona Marta. — Tentei soar firme, mas ela sentiu que
havia algo não dito.

— Pode falar, meu bem. Eu já estive no seu lugar e estou aqui para
apoiá-la no que for preciso.

— Pode parecer ingratidão o que vou dizer, mas não quero que

compreenda assim.

— Fique tranquila. Sou macaca velha e sei separar muito bem as


coisas.

— Eu só fico um pouco desconfortável em chegar assim, tão de


repente na vida de vocês, impondo a minha presença.
Marta sorriu, afável, confortando-me com a sua mansidão.

— Minha querida, todos nesta casa concordam que tudo acontece


quando tem que acontecer. A história de vocês não foi diferente. — Deu
batidinhas suaves no dorso na minha mão, brincando em tom conspiratório:
— E acredite, eu venho conversando muito com Ele para colocar uma moça

boa no caminho do meu caçula, afinal, 27 anos não são 17. Estava passando
da hora.

Relaxei os ombros, em um sorriso de canto. Com certeza ela estava


doida para casar o filho. E pelo que vi há pouco, sedenta por mais netos.

— Compreendo perfeitamente que muitas questões estejam

passando por sua cabeça neste momento e estou aqui para ajudá-la como
puder.

Meus olhos percorreram pela sala ampla, bem decorada e


aconchegante. Ao fundo, ouvi as vozes na cozinha e os funcionários

passando ao longe. Movida pela segurança que ela me passava, confessei:

— Embora não trabalhasse fora enquanto morava na casa dos meus


pais, sempre ocupei meus dias cuidando da minha mãe e, recentemente,
com a faculdade. Não estou reclamando, Dona Marta, mas preciso me sentir
útil, e não com um fardo na vida de vocês, ainda mais com planos de uma

festa tão grande, com certeza cara.


— Não sabe o quanto o seu gesto diz muito sobre o seu caráter,
minha menina. Mas agora você é da nossa família e nunca será um fardo
para nós. — Apertou meus dedos com carinho. — Sabe, me vejo muito em
você e sei que aqui — tocou próximo ao meu coração — grita o desejo de

ser independente.

Observei-a atenta, feliz por ela entender as minhas razões.

— Soube que está fazendo faculdade de Psicologia. Pensa em seguir


alguma área específica?

— Acolhimento psicossocial.

O sorriso lindo se expandiu no rosto maduro e com algumas linhas


de expressão.

— Não acredito! Eu estava mesmo precisando de uma assistente


para me apoiar com a área social da fazenda — anunciou com empolgação.
— O que acha de trabalhar comigo?

— A senhora... — suspirei — está falando sério?

— Totalmente. Tire os próximos dias para ajustar sua chegada,


conhecer a fazenda, dar os primeiros passos para a organização da festa e
sua lua de mel. Mesmo que curtinha, não pode deixar de ter. Quando estiver
pronta, você começa. Vai te preparando como uma espécie de estágio.

— Não sei como agradecer, Dona Marta.


— Ah, minha menina — abraçou-me com amor —, sendo e fazendo
o meu filho feliz.

Em seus braços Marta me acolheu, fazendo-me relembrar de como


era estar nos braços da minha mãe. A saudade bateu com força. Não

demoraria até trazê-la para morar conosco.

Luiza se aproximou alegre, chamando nossa atenção.

— Com licença, sogrinha. Será que posso roubar a nossa noiva


rapidinho? Quero deixá-la bem maravilhosa para poder ir à cidade com o
seu marido. Seu dia será de rainha e merece estar maravilhosa.

Marta sorriu, anuindo.

— Vá, querida. Aproveite muito o seu dia.

Encarei-as com cuidado, notando o quanto pareciam sinceras.


Despedi-me de Marta, caminhando até Luiza e tendo meu braço entrelaçado
ao dela.

Estava agradecida por tudo o que estava acontecendo em minha vida


desde que tomei a decisão de sair da casa de meu pai.

Seria a última vez que recorreria à maquiagem para tampar os


estragos de suas agressões em meu corpo.

Poderia ser o centro das atenções na cidade, mas seria pelo

casamento, não porque ainda estava com o rosto cheio de hematomas.


REBECA

Artur foi o meu cicerone pelo casarão. A cada cômodo conhecido eu


me surpreendia mais com a mistura de imponência e simplicidade da

construção, o reflexo da personalidade de seus donos.

A casa principal era grande, cheia de quartos. Dois deles tinham


sido de Antônio e Aloísio, após suas mudanças, permaneceram com ar

masculino embora as decorações fossem sóbrias.

Parando na porta ao lado do antigo quarto do irmão mais velho,


Artur a abriu, dando passagem para um lugar lúdico, com decoração de

selva, cheio de brinquedos organizados e de fotos do garotinho sozinho e

com a família.

— Esse é o cantinho do Davi — comentou, com um tom ameno. —

Quando se mudou com os pais e a Bia, fez questão de frisar para ninguém
mexesse em nada, pois o continuava sendo o quartinho dele. E de vez em

quando ele escapa e vem dormir aqui.

Sorri, encantada com o quanto o garotinho era cativante. Nunca


tinha tido a oportunidade de conviver com uma criança com Síndrome de

Down e, pelo que pude conhecer de Davi no pouco contato até então, me

surpreendi com o quanto era risonho, independente e carinhoso.

— Ele é muito esperto. — Peguei uma foto em que estava sobre um

cavalo bonito.

Era um menino lindo. Loirinho, com sorriso faceiro e franja sobre os


olhinhos oblíquos. Estava bem maior do que quando as fotos foram tiradas.

Começava a perder os traços de criança, assumindo o rostinho de um garoto

na casa dos sete anos.

— Ele sempre foi enérgico e alegre. Porém, depois que Luiza

chegou na vida dele e do meu irmão, desenvolveu uma autonomia que

ninguém esperava — Artur continuou explicando, enquanto saíamos do

quarto e descíamos as escadas para explorar o andar de baixo.

Sempre achei que o casarão fosse muito bonito, mas não imaginava

naquela proporção, o contraste perfeito entre o moderno e o rústico.

Absurdamente lindo, principalmente a vista das varandas e da piscina

enorme.
Deixamos a sede, andando sob o sol quente daquela manhã.

— Sabe montar? — Artur indagou, sério.

Neguei, ajeitando o chapéu na cabeça.

Calado, assentiu, guiando-me em direção aos estábulos. Observei-o

atentamente, mas não disse nada.

Havia percebido que estava diferente desde que tomamos o café.

Fechado, comentando apenas o essencial e sem emoção. Muito diferente do

homem tranquilo e leve com o qual me acostumei.

Começamos a caminhar, mas o incômodo aumentou quando percebi

que não havia procurado o meu toque. Naqueles poucos dias, tinha se

tornado natural estarmos sempre de mãos dadas.

Os braços fortes soltos ao redor do corpo sem encontrar uma

posição para as mãos denunciavam que ele estava sem jeito, sentindo o

mesmo.

Abaixei o olhar, procurando sua mão com a minha. A princípio,

Artur não aceitou, mantendo-se imóvel ao caminhar sério sem me encarar.

Insisti, passando as pontas dos dedos em sua palma.

Sua respiração pesou, agitada, como se estivesse irritado.

Dois funcionários passaram por nós, analisando-nos com estranheza,

principalmente por nunca terem me visto na fazenda em um dia comum


como aquela terça-feira.

Diferente de como estava agindo comigo, Artur acenou,

cumprimentando-os de longe. Era naturalmente observador, mas havia algo

errado naquele silêncio repentino e ele não queria me falar.

Compreendi ser eu o motivo de toda aquela carranca. Por isso, parei,

fazendo-o interromper a caminhada alguns passos adiante e me encarar.

— Por que está fazendo isso? — Fui direta, um pouco irritada.

— Isso o quê? — questionou, cruzando os braços em frente ao

corpo.

Os bíceps avantajados tomaram a minha atenção por um instante,

fazendo-me lamber os lábios sem perceber. Fechei os olhos rapidamente,

balançando a cabeça para retomar a linha de raciocínio.

— Me ignorando. Dando atenção para todo mundo, menos para

mim.

Seu olhar brilhou sob a sombra do chapéu preto. Não soube

desvendar toda a emoção que passava por eles.

Intenso. Magoado. Furioso.

Muito diferente dos olhos doces do homem apaixonado daquela

manhã, o mesmo a confidenciar o seu sentimento de que me amaria muito.


— Tornei você o centro da minha vida nos últimos dias. A única

coisa na qual você não pode me acusar é de estar te ignorando, Rebeca.

Dei um passo para trás atingida pelo impacto de suas palavras duras.
Senti-me ingênua, sem saber se realmente deveria levantar uma discussão.

Ele estava certo, eu não tinha o direito de reclamar, mas me feriu.

— Achei que fosse demorar mais — reagi, sem pensar.

— Demorar o quê?

— Para o conto de fadas desmoronar. Para jogar na minha cara o

que fez por mim. — Arrependi-me assim que as palavras saíram da minha

boca, mas era tarde demais.

— Não reduza a tudo que a gente está construindo, não me torne o

monstro que eu não sou.

— Então me diga por que está agindo tão friamente comigo. Eu fiz

ou disse algo que não gostou?

Artur soltou o ar dos pulmões com força. Tirou o chapéu e passou a

mão pelos fios curtos, angustiado, depositando-o novamente sobre os

cabelos.

Enxerguei a sua alma por trás da casca de virilidade. Um homem

completamente balançado por tudo o que nos envolvia.


Era confuso, sabia que estava agindo de modo impulsivo e errado.

Ainda que estivesse irritada, queria tê-lo de volta. Aproximei-me, tocando

seu peitoral, subindo até o pescoço, mas fui interrompida pelo seu toque

firme, sentindo as veias sobressaltadas no dorso de sua mão.

— Rebeca... — A voz saiu como em uma súplica no instante em

que os dedos quentes e grossos deslizaram pelos meus pulsos, como um

aviso para não avançar, mas não ouvi.

Quando se tratava de Artur, eu confiava em meus instintos. Sabia

que diante ao grande homem que ele havia se mostrado, jamais seria capaz

de me fazer mal.

O que sentíamos nos sacudia em uma velocidade impressionante. Às

vezes, tranquilo, delicado e gentil. Noutras, alvoroçado, bruto e intenso.

Sempre penetrante, vivo e pujante. Mais forte que nós dois, capaz de nos

fazer tomar atitudes impensadas.

Colei nossos corpos. Seu olhar queimava sobre o meu. Rígido.

Rocei nossos lábios, cheia de vontade de quebrar aquela armadura e ter de

volta o meu Artur.

Meu Artur. Meu Deus, as coisas estavam indo rápido demais.

Mantive o tom suplicante:

— Fala para mim o que está te chateando.


Artur engoliu em seco, tirando minhas mãos de seu corpo,

afastando-nos como se precisasse estar longe para pensar. Falou firme,

embora fosse palpável a chateação em seu tom:

— Eu mergulhei de cabeça, Rebeca. Estou nessa de corpo e alma,

muito mais envolvido do que julgo ser prudente. Então, se não está disposta

a fazer o mesmo, quero que me diga agora.

— Do que está fala...

Não finalizei a pergunta, compreendendo exatamente o que tinha

acontecido. Artur estava sentido pelo que eu disse para Luiza no café.

Droga, tinha feito merda!

Suspirei, sendo sincera em cada palavra.

— Eu me equivoquei ao dizer aquilo. Estava nervosa, fui


surpreendida pela festa e... Acabei não medindo direito o que disse.

Desculpe.

As pupilas esverdeadas brilhavam intensamente, registrando cada


microexpressão minha. Ainda que pudesse ler toda a verdade em mim, ele

fez questão de ressaltar:

— Se para você não é de verdade, para mim é. Não sou um moleque

imaturo que decide se casar da noite para o dia por diversão. Eu mudei os
rumos da minha vida por você, por ouvir o que o meu coração gritava. Se
não consegue se abrir para a chance de sentir o mesmo, me diga agora.
Talvez ainda esteja em tempo de tentar preservar alguma parte de mim.

Sua voz exprimia uma agonia palpável.

Joguei-me novamente contra seu corpo, segurando o seu rosto com


ânsia, observando sua entrega, de corpo e alma. Respirações erráticas,

corações acelerados. Nós dois sentindo muito mais do que éramos capazes
de expressar.

— Eu estou tão envolvida quanto você. Ainda é confuso, rápido

demais, mas a única certeza é de que eu te quero e... — confessei, baixo.

Não consegui terminar a frase. Sua boca tomou a minha em um

arroubo desesperado. Passei os braços pelo seu pescoço, beijando-o com a


mesma vontade. Desespero, desejo, paixão.

Perdemos o ar e começamos outra vez, sem nos desgrudar. Não sei


quanto tempo ficamos entregues na bolha que nos enlaçava. Apenas voltei à
realidade quando escutamos a voz familiar:

— Vão para o quarto vocês dois. A fazenda inteira está


testemunhando essa safadeza toda.

Ri, com nossas bocas ainda coladas quando Artur estendeu o dedo
do meio para Antônio sem nem mesmo precisar olhá-lo. Resmungando, ele

deu as costas e saiu andando.


Artur finalizou o nosso beijo com leves mordiscadas, fazendo-me
ter vontade de voltar para o quarto e cumprir tudo o que elas prometiam

silenciosamente.

Alisei o rosto, agora relaxado e com ar apaixonado.

— Não acredito que tivemos a nossa primeira briga de casal. —

Beijei-o outra vez, pedindo, com sinceridade: — Desculpe, mais uma vez.
Não quis te magoar.

Ele acariciou meu rosto, ainda enlaçado em minha cintura:

— Eu também preciso me desculpar. Agi como um menino birrento,

não como um homem.

— Já passou, está esquecido. — Peguei sua mão, nos afastando


para começar a andar novamente. — Agora vamos, porque alguns

funcionários ainda estão nos encarando um tanto chocados. Além disso,


quero conhecer a fazenda toda como você me prometeu.
ARTUR

Assustei-me com tudo o que estava sentindo por Rebeca. Era tão
intenso que a possibilidade de ela não estar envolvida me abalou.

O eu te amo ficou entalado na garganta, mas segurei. Ainda não era

o momento.

Mais calmo e com o peito tomado por um sentimento gostoso,

entrelacei nossos dedos, notando a falta danada que aquele pequeno gesto

fazia.

Caminhamos até o estábulo diante o olhar espantado dos

funcionários da fazenda. Era a primeira vez que uma mulher me


acompanhava por aquelas terras.

Fiz questão de apresentar Rebeca como minha esposa. Tímida, ela

ruborizou a cada vez que os olhos arregalados dos trabalhadores


expressavam incredulidade diante da cena.

Entramos no estábulo e o suspiro de encantamento da minha

ruivinha encheu o meu peito de orgulho. Cada pequena atitude como aquela
mostrava o quanto gostava da fazenda e não havia nada que me deixasse

mais feliz do que ela se sentir bem no meu lugar preferido no mundo.

— Eles são lindos! — confidenciou, com ar apaixonado deslizando


os dedos nas portinholas ao passar lentamente pelas baias de Alazão, Gaia e

Afrodite.

A menos de um passo de distância, eu admirava a sua exploração,


encantado por tamanha inocência e simplicidade. Rebeca parecia em outra

dimensão, como uma criança conhecendo o mundo.

Continuou caminhando, mas se assustou, dando um gritinho e


pulando para trás diante ao relincho do quarto de milha de pelagem escura e

reluzente. Acolhi-a em meus braços, alisando os cabelos cheirosos.

Rebeca escondeu a cabeça em meu peito, instantes depois o encarou

de canto de olho ainda um pouco assustada com a respiração pesada do

cavalo.

— Esse aqui me dá medo.

Ri, apertando-a em meu abraço. Era gostoso demais senti-la assim.


— Esse é o Fúria, cavalo do Antônio. E não, não estou chamando

meu irmão de cavalo, embora às vezes ele seja.

Não pude conter a piadinha.

Rebeca gargalhou, apertando-me.

— Ele é grande, nervoso e assustador!

— O Fúria faz jus ao nome que tem. Somente o meu irmão, Marcela

e Dinho, um dos criadores, conseguem amansá-lo.

Rebeca levantou a cabeça, olhando-me com espanto.

— A Marcela doma esse cavalão aqui?

— Desde menina. É a única veterinária que ele permite se

aproximar.

— Não creio — brincou, espontânea.

— Marcela tem aquele jeitão na dela, mas é uma das mulheres mais

fortes que eu conheço. Voltou para a fazenda há algum tempo fugindo do

passado, mas adivinhe só? Ele voltou, trouxe Antônio junto e uma série de

acontecimentos que nenhum de nós esperávamos. Uma hora ela te conta


com mais detalhes.

Beijei sua cabeça sorrindo, guiando-a mais adiante.


— Oi, amigão! — Alisei o focinho claro, virando-me para ela ao

explicar. — Este é Ventania, o meu cavalo.

Rebeca soltou um risinho tímido, evoluindo aos poucos para uma

risada gostosa.

— O que foi? — indaguei, sem entender.

— Eu realmente estou vivendo um conto de fadas com direito a um

príncipe no cavalo branco.

Trouxe-a para mim, dizendo envaidecido antes de beijar sua boca:

— Esqueceu de falar sobre a Bruxinha desta história. Diferente dos

contos de fadas tradicionais, ela é a mocinha mais linda e encantadora que

autor nenhum foi capaz de criar.

Rebeca enrubesceu. O relincho dele chamou a nossa atenção, e

continuei explicando:

— Ventania é o melhor cavalo para você aprender a montar, mas a

primeira coisa que precisa fazer é ganhar a confiança dele. — O corpo

delicado estremeceu quando me posicionei atrás dela. Sem pressa, pousei a

mão sobre a sua, fazendo-a esticar o braço. — Deixe que ele sinta o seu

cheiro.

Levemente trêmula, ela o fez, prendendo a respiração a cada vez que

ele aproximava o focinho de sua pele. Quando se sentiu mais relaxada,


olhou para mim e sorriu.

— É incrível.

— É sim. E vai melhorar.

Encaminhei-a para a lateral do cavalo, ao fundo da baia. Espalmei

sua mão no lombo dele, guiando-as pela pelagem branca. Ventania

relinchou, ela se assustou, dando um salto para trás.

— Relaxe — sussurrei em seu ouvido, colando suas costas em meu

peito. O cheiro de flores invadiu meu nariz, ativando todos os sentidos. —

Ele precisa estar em sintonia com você, sentir a sua segurança.

Afastei os fios acobreados de seu ombro, não resistindo e passando

os lábios vagarosamente sobre a pele sedosa.

— Eu... — fremiu, vacilante — não sei se o que estou sentindo

nesse momento é segurança.

Meus lábios esticaram em um sorriso lascivo, percorrendo

lentamente até o lóbulo com um brinco delicado. Lambi, mordiscando ao

mesmo tempo em que espalmei a mão sobre a barriga plana, incentivando-a

a roçar a bunda gostosa no meu pau desperto por ela.

— Mantenha as mãos firmes nele, não se mexa — mandei, descendo

os dedos da mão direita ainda sobre a dela pelo braço arrepiado.


Deslizei pelos seios gostosos e não resisti, apertando-os com desejo.

Subi a outra mão pela saia do vestido, espalhando arrepios por suas coxas

até chegar à bocetinha gostosa.

— Artur... — ciciou, desejosa — ele pode se assustar e alguém pode

chegar... Ai meu Deus! — gemeu mais alto quando invadi sua calcinha,

explorando os lábios molhados.

Mordi sua orelha, sussurrando com a pele delicada entre os dentes:

— Só virão aqui se você chamar atenção. Então, se não quiser que

alguém me veja te comendo como um animal no cio, geme baixinho.

— Hum... — arquejou, entregue, mantendo as mãos espalmadas no

Ventania.

Ele, por sua vez, continuou comendo o feno como se sequer tivesse

nos vendo. Conhecia o meu cavalo como a palma da minha mão e, se decidi

fazer aquela proeza em sua baia, é porque sabia que não se estressaria.

Espalhei a lubrificação dos lábios até o clitóris, em uma brincadeira

sacana de afundar e tirar o dedo de dentro dela, louco para mergulhar

inteirinho na carne quente. Com a outra mão, abri a fivela, ajeitando as

calças de qualquer jeito para liberar o pau melado da cueca apertada.

Guiei a cabeça robusta até afastar a calcinha úmida, doido nos

gemidos baixinhos que escapavam de seus lábios. Travei a mandíbula


quando a senti encharcada. Virei seu rosto para o meu, tomando sua boca na

mesma medida em que a penetrava.

A cada polegada nossos ofegos aumentavam. Senti-me no céu ao

estar completamente enterrado em seu interior. Seus braços caíram na

lateral do corpo perdidos se buscavam pelo próprio corpo ou por mim.

— Mãos aqui, como mandei — grunhi, entre dentes, estendendo-os

novamente no lombo do animal.

— Ah... preciso tocar você... — suplicou.

Curvei seu braço esquerdo para trás, os dedos trêmulos derrubando


meu chapéu na ânsia de puxar os fios. Segurei seu pescoço firmando pela

nuca a invadindo furiosamente por cima e por baixo. Mantive sua cabeça
apoiada em meu ombro, descendo a mão direita para os seios túrgidos,
tirando-os para fora do vestido e apertando com um tesão descabido.

A esquerda parou na boceta recheada pelo meu pau. Investi no


clitóris fora do capuz, deixando-a louca com tanto estímulo simultâneo.

Suas pernas vacilaram, bambas. Seu beijo se tornando voraz, quase


dominante, mas não permiti.

Rebeca fazia com que eu me tornasse passional, alheio a qualquer


coisa que não fossem as necessidades e vontades dela.
Quando o orgasmo a atingiu como uma avalanche, se manteve
cativa sob meu toque, ondulando durante as três vezes seguidas em que

gozou com os meus estímulos em sua intimidade, seios e, por fim, com o
beijo erótico o qual me contive para lhe dar até aquele instante.

Porra! Eu era o homem mais sortudo do mundo ao fazer a minha

mulher ter orgasmos múltiplos de pé dentro de um estábulo.

Com um esforço sobre-humano, esperei até que ela conseguisse se

estabilizar sobre as pernas e saí de dentro dela, esporrando no chão.

— Precisamos... — ofeguei — urgentemente de um método


contraceptivo ou teremos um herdeiro antes mesmo do que imaginamos.

Rebeca riu, abaixando o rosto e arrumando o vestido.

— Agora vou te levar para dar uma volta nas principais instalações

da fazenda. Depois, com mais tempo, quero te mostrar cada cantinho desse
lugar, e principalmente, estrear como fizemos no estábulo.

Ah, Rebeca, quando disse que você liberou o lobo que havia em

mim, não estava brincando.


REBECA

A sensação de liberdade trazida pelo vento enquanto galopávamos


no lombo de Ventania foi, sem dúvidas, uma das melhores experiências que

pude desfrutar.

Na sede administrativa conheci os escritórios de Alfredo, Aloísio e


Marta. Artur me contou que, com os compromissos da campanha eleitoral,

Antônio estava assumindo o lugar do irmão mais velho, agora como

administrador da fazenda. E Marcela, como interina na função dele. Por sua

vez, Artur tinha assumido como chefe dos veterinários e seus olhos
brilhavam quando falava da profissão.

Fiquei encantada com tudo que ele me mostrou.

Devido a correria daquela manhã não pudemos ir até a cachoeira,

mas seria o meu roteiro preferido para os próximos dias. Levamos o cavalo
de volta ao estábulo e depois seguimos de carro até a cidade.

Admirei Artur dirigindo com apenas uma mão enquanto a outra se

mantinha sobre a minha coxa. Tinha gozado muito no estábulo, mas


observar o movimento sexy de seus dedos, subindo pela pulseira de couro

preta adornando o punho grosso, o braço forte cheio de veias saltadas, além

do modo másculo e despretensioso como ele girava o volante, me fez sentir

outra fisgada gostosa entre as pernas.

O chapéu preto o deixava com um ar de caubói sensual, piorando

todo o calor que eu sentia.

Estava começando a achar que o lobo sexual no qual ele se referia

habitava em mim, não nele.

Corei, e o jeito como desviou os olhos da estrada ao me fitar de


canto deixou claro ter compreendido exatamente as indecências que eu

imaginava.

Toquei seus dedos suavemente, tentando reprimir aquela safadeza e

prestar atenção na nossa música que tocava nos alto-falantes.

Promete ler meus pensamentos

Decifrar o meu coração


Porque só assim vai saber

Que minha vida inteira está em suas mãos[4].


— Nunca mais consegui ouvir essa música sem pensar em você,

Bruxinha — revelou.

O coração bateu forte no peito diante da sua declaração. Suspirei,

apaixonada, ao confessar:

— Foi ao que me apegava quando sentia sua falta, lembrando

daquela noite.

Sua mão procurou a minha, beijando-a com ternura.

Permanecemos naquele clima gostoso durante todo o percurso até

Alta Colina. No entanto, a inquietação me atingiu quando a realidade voltou


a bater à porta. As razões pelas quais eu tinha fugido retornando vívidas à

mente.

Artur estacionou em frente a um escritório bonito e imponente,

tocando minhas mãos agora geladas, chamando minha atenção suavemente.

— Vamos consultar um advogado especialista em direito da família,

em breve sua mãe estará conosco. — Encarei-o por alguns instantes, um

pouco assustada, mas assenti. — Estou aqui com você para tudo. Conte
comigo — garantiu, alisando meus dedos carinhosamente.

— Obrigada.

— Não por isso. Agora vamos porque ele já deve estar nos

aguardando. — Tirou o cinto, avisando antes de destravar a maçaneta: —


Espere aqui.

Olhei sem entender até o instante em que ele rodeou o carro, abriu a

porta e me guiou, o tempo todo de mãos dadas. Enquanto entrávamos no

ambiente extremamente chique, Artur me confidenciou que o escritório era

idôneo e prestava serviços para sua família há muitos anos.

O homem de meia-idade e bem apessoado nos recebeu com

presteza, não poupando esclarecimentos sobre o meu caso e como sairíamos


daquela situação.

Meu pai não poderia recorrer quanto ao meu casamento, porque ele

era válido perante a lei. Além disso, se fosse do meu desejo, eu poderia

prestar queixa contra suas agressões, o que acarretaria a um processo e

consequentemente o enfraquecimento de sua campanha eleitoral. O olhar do

meu marido deixava claro o quanto ele era a favor disto.

Era o certo a ser feito, papai merecia todas as consequências do que

causou. Entretanto, tinha medo de que se vingasse projetando a sua ira

sobre a minha mãe. Por isso, preferi deixar como estava e faria todo o

possível para tirá-la de casa antes que fosse tarde demais.

Com os dedos entrelaçados aos de Artur, saí da reunião mais

tranquila, porém, um tanto calada, pensando em algumas estratégias daqui

em diante. Paramos em um restaurante aconchegante, fizemos os nossos


pedidos e, quando o garçom se afastou, Artur pegou minha mão sobre a

mesa, alisando carinhosamente.

— Te apoiarei no que decidir — garantiu, com um sorriso


tranquilizador.

— Nunca serei capaz de te agradecer o suficiente pelo que fez por

mim.

— Então comece agora, assumindo o papel em que você merece

estar. Uma garota forte, dona de si. Não precisa ficar agradecendo por tudo.

— Sorriu, continuando: — Lembra do trato que fizemos? Quero você

empoderada e confiante, Bruxinha.

Beijou meus dedos, e eu me questionei se aquele homem

apaixonado à minha frente era mesmo real ou parte dos meus devaneios

românticos.

O burburinho chamou a minha atenção, obrigando-me a virar o rosto

e encontrar as mulheres que nos olhavam incrédulas. Meu rosto começou a

esquentar, mas antes que pudesse parecer um pimentão, Artur olhou na


mesma direção, levantando a mão esquerda, apontando para a aliança

dourada e dando uma piscadinha marota como se dissesse “sinto muito,

garotas, mas agora eu sou um homem casado.”

— Você não existe. — Escondi o rosto entre as mãos rindo.


— Existo, e estou cada vez mais enfeitiçado por você.

Abri a boca, surpresa, só então entendendo o significado do apelido.

Eu estava vivendo um daqueles romances clichês gostosos de ler.

Era a única coisa que explicava o quanto estava feliz diante de tantas

incertezas.

Comprei um novo chip, ansiosa para falar com Vânia e ter notícias

de mamãe. Liguei algumas vezes, mas não atendeu. Imaginei que estivesse
entretida em suas atividades domésticas e tentaria mais tarde.

Artur me proporcionou uma tarde de compras digna de filmes. Nas

lojas, as vendedoras nos encaravam sem acreditar. Nas ruas e praças,

diversas pessoas pararam para nos observar como se fôssemos alguma

alteza real britânica ou algo do tipo. Nunca tinha me sentido tão exposta.
Contudo, a mão firme do meu marido em minha cintura e o modo

descontraído como reagia me fez relaxar, embora um pressentimento chato

me alertasse que aquilo não demoraria a chegar aos ouvidos do meu pai.

Tivemos um pequeno desentendimento no momento de pagar. Bati o

pé, firme na decisão de que eu mesma arcaria. Argumentei que se ele me

incentivava a ser uma mulher empoderada, começaria por aquele gesto. No

entanto, com aquele jeito tranquilo e doce, me arrebatou com uma simples

frase.

— Agora sou seu marido, eu cuido de você. Não é como se tivesse


alguma posse, mas apenas quero ter o prazer em agradar a minha mulher.

Encantada, não tive reação a não ser aceitar e garantir que ao menos
o sorvete seria por minha conta.

Sentia-me cansada no final daquela tarde, doida por um banho, mas

feliz demais. Caminhamos até o estacionamento ao lado da loja, rindo da


reação escandalizada de uma senhorinha católica fervorosa quando notou

que havíamos nos casado “às escondidas”.

Alfredo tinha razão ao endossar a importância da cerimônia no

religioso e uma grande comemoração para a cidade. Seria definitivo para


parar com os burburinhos que se estenderia até lá.
Artur destravou a caminhonete, abrindo a porta traseira para colocar
as compras. Senti o medo me paralisar quando a voz asquerosa do meu pai

invadiu os meus ouvidos:

— Te encontrei, sua vadia traidora.

Antes que eu pudesse reagir, Artur fechou a porta depressa,

colocando-me atrás dele em um gesto extremamente protetor. Grunhindo,


entredentes:

— Vá embora, Deodato, antes...

— Antes do que, seu moleque de merda? — o velho vociferou,


tomado pela raiva à frente de três seguranças aterrorizantes. — De se meter

no que não era da sua alçada e tentar estragar o meu plano?

— De te quebrar inteiro e ensinar a nunca mais agredir uma mulher.

Segurei Artur pela camisa, o corpo estava rígido e quente, pronto

para o ataque. Tremi inteira, sabendo que aquela era uma tragédia
anunciada. Não me perdoaria jamais se ele se prejudicasse por minha causa.

Papai deu uma risada maléfica, apoiando as duas mãos sobre a


barriga avantajada. Fitou-me dos pés à cabeça, me julgando com asco.

— Seu franguinho mal saído das fraldas, é tão imbecil quanto essa

vagabunda que fugiu de um casamento próspero.


Artur preparou para avançar, mas me joguei entre os dois,
desesperada.

Seu olhar era diferente de tudo o que eu já tinha visto no rosto doce
e tranquilo. Exalava ódio, pronto para fazer uma grande burrada.

— Não! — gritei. — Não vale a pena, só ignore.

— Não me peça algo que eu não sou capaz de cumprir, Rebeca. Dê


licença antes que se machuque.

O aperto doloroso tomou meu braço direito, sacolejando com ira.

— Para com essa ceninha ridícula, Rebeca Moreira. Dê-se ao


respeito de mulher comprometida. A sorte é que o seu noivo ainda não

soube da sua aventura tola ao fugir de casa. Caso contrário, tenho certeza de
que não seria tão benevolente quanto eu e vir te buscar tão tranquilamente.

Olhei para os lados, aterrorizada ao encontrar o local vazio e quase


totalmente escuro pela noite que se aproximava. Em milésimos, o olhar de

Artur desceu para o aperto cada vez mais firme e soube que se ele revidasse
às provocações, uma catástrofe aconteceria.

Como se uma linha tênue o reconectasse com o homem centrado

que sempre foi, ele deu um passo à frente, segurando o pulso do outro de
um jeito que o fez soltar o aperto na hora, o imobilizou nas costas e fez meu

pai se contorcer com muita dor.


Os seguranças avançaram, mas Artur foi mais rápido ao fazer o

papai gemer de dor em um aviso para que parassem.

— Ela não é noiva daquele velho com idade para ser o avô dela.
Agora, Rebeca é a minha esposa, uma Albuquerque — rosnou, furioso.

— Não pode ter se casado com ele, Rebeca — meu pai berrou. —
Vou recorrer, anular esse casamento.

Tão baixo para que só papai e eu ouvíssemos, Artur advertiu em seu

ouvido:

— Não há o que fazer, Deodato. Se tiver amor à sua vida suma da

nossa, ou vai perder muito mais do que a prefeitura.

Papai reagiu, tentando se libertar e gemendo de raiva. O brilho

furioso cintilou a íris escura em uma promessa silenciosa de que não ficaria
assim. Perder o acordo com o coronel seria desastroso, mas lembrá-lo da
perda de tudo o que viria junto com a derrota na campanha o enraivecia

ainda mais.

Cuspiu em minha direção, com escárnio:

— Puta de quinta, vagabunda. Não abriu mão de trepar na primeira


oportunidade e perder a única coisa útil que tinha. Você merece sofrer,
Rebeca. Nunca valeu nada assim como a dissimulada da sua mãe.
A lágrima grossa escorreu em meu rosto, sentindo-me um lixo ao

ser humilhada mais uma vez pelo meu pai. Tinha jurado que aquilo nunca
mais aconteceria e, por isso, não tentei impedir quando Artur o virou de

frente e deu um soco violento em seu rosto. Não permitiu que caísse,
segurando em sua camisa e batendo mais duas vezes até que os seguranças

o agarraram.

Gritei por socorro, completamente em desespero. Artur se defendeu

dos golpes tão ágil quanto um gato. Deodato se levantou com a mão sobre o
olho esquerdo e cuspindo sangue no chão. Lentamente, caminhou como se
canalizasse toda a raiva para golpear o meu marido, imobilizado pelos

seguranças.

Joguei-me à frente, berrando, tentando impedir, mas fui empurrada

de lado como um inseto chato. No chão, vi rapidamente algumas pessoas se


aglomerando para assistir, mas ninguém teve coragem de intervir.

Levantei-me um pouco zonza, sentindo os joelhos e palmas das


mãos arderem, mas não liguei. Pulei nas costas do velho, fazendo de tudo
para distraí-lo, porém, ele agarrou meus cabelos e me jogou contra a

caminhonete. Artur se debatia, acertando alguns golpes de pernas nos


seguranças, mas não conseguia escapar dos três brutamontes.
Fechei os olhos não querendo ver o instante em que Deodato
desferisse o primeiro golpe contra o meu marido. Pedi a Deus que nos

ajudasse, quase no mesmo instante ouvindo a voz potente tomar os meus


ouvidos:

— Encoste no meu filho e se arrependerá amargamente de ter

nascido.

Arregalei os olhos, chorando ao encontrar Alfredo entre os dois

filhos mais velhos saindo da multidão e vindo em nossa direção.

A gargalhada perversa não conseguiu esconder a apreensão que meu


pai sentiu ao se deparar com os homens Albuquerque.

— Por que não fazemos uma luta justa? Quatro contra quatro. —
Antônio tinha assumido aquele ar animalesco, quase irracional. Estava

longe de ser o cara brincalhão. — Solta meu irmão e cai no braço —


.incentivou, gesticulando.

Aloísio se manteve calado, mas o olhar foi muito mais sombrio do

que se tivesse expressado qualquer palavra. Parou em frente aos seguranças,


ordenando apenas com o olhar para que soltassem seu irmão.

Ansioso, Artur veio até mim, tirando-me do chão e me puxando


contra o seu peito, afagando com ternura embora seu coração estivesse

acelerado e a respiração descompassada.


— Ora, ora... Então o clã Albuquerque decidiu sair da fazenda
intocada para proteger o galinho de briga de vocês.

Embora se mostrasse tranquilo com a família, Alfredo demonstrou a


versão fazendeiro bruto.

— Vou avisar uma vez: não se aproxime da minha família. Isto

inclui a Rebeca, filha que agrediu e vendeu num acordo para ganhar votos.

Papai se agitou, erguendo as calças em um gesto horroroso, como se

aquilo o fizesse se manter no controle. Aproximou do poderoso


Albuquerque, franzindo o cenho em zombaria para se sentir vitorioso. No

entanto, eu o conhecia bem e sabia que estava com medo.

— Está me ameaçando? — soou ofendido.

— Não sou vil como você, Deodato, que gosta de ameaçar e colocar

medo no adversário mais fraco. Luto de homem para homem e ensinei aos

meus filhos a serem assim. Isto foi um aviso, não haverá o segundo.

Caminhou até a caminhonete de Artur, comunicando-se com o filho


pelo olhar. Meu lobinho sabia o quanto eu tinha ficado abalada e, por isso,
sentou-me em seu colo no banco de trás empurrando as sacolas para o lado,
ao passo em que seu pai assumiu a direção e acelerou de volta à fazenda.

Sentindo seu cheiro gostoso só conseguia pensar no que papai havia


dito sobre a minha mãe. Dissimulada.
Em todos aqueles anos ela foi apaixonada por ele e nunca deu
motivos para ser tratada daquele modo.

— Está tudo bem, Bruxinha, se acalme — Artur disse com doçura,

passando a mão pelo meu rosto, não se parecendo em nada com o homem
furioso de minutos antes.

Mirei seu rosto suado e os dedos vermelhos e inchados dos golpes.


Toquei-as com cuidado, em um murmúrio:

— Tive tanto medo dele te machucar ou fazer coisa pior.

— Não se preocupe com isso. — Beijou meus cabelos e me


apertando novamente contra o peito. — Eu sempre estarei aqui para
proteger você.
JOE

Algum tempo antes...

Com o celular descarregado em mãos, entrei em casa percebendo

que Rodrigo já havia chegado do trabalho.

Procurei o carregador sobre o aparador onde sempre ficava, mas não

encontrei. Dei de ombros, colocando-o sobre o móvel e segui para dentro,

doido por um banho com o meu boy-delícia, rotina que fazíamos sempre.

— Rodri, cheguei! — avisei, alto.

— Estou aqui, amor — gritou da cozinha.

Ao ouvir os latidos de Groove, nosso pinscher zero, entendi que

estavam brincando.
Abri os primeiros botões da camisa, preparando-me para ir até eles,

mas fui interrompido pela chamada no telefone dele.

— Traz para mim — solicitou.

Peguei o aparelho, não reconhecendo o número na tela.

— Coloca no viva-voz — pediu, com as mãos molhadas. Assim que


o fiz, ele atendeu. — Alô!

Do outro lado, a voz feminina parecia um sussurro, embora

estivesse agitada e nervosa.

— Rodrigo, meu filho, é a Vânia.

— Oi, Vaninha. O que aconteceu? — indagou, com a expressão

preocupada.

— O seu pai. Ele descobriu que a Rebeca está na cidade com o filho

do fazendeiro e está preparando uma emboscada para eles. Você precisa

impedir.

Fiquei em alerta no mesmo instante. Corri até o aparador pensando

em ligar para Alfredo ou Antônio, mas bufei ao lembrar que a porcaria

estava desligada.

Rodrigo se despediu rápido, garantindo que tudo ficaria bem.


— Corra até a cidade, eu vou avisar a família — elucidei,

preparando-me para sair.

Ele assentiu, um tanto assustado, mas não tínhamos tempo a perder.

O seu pai era ardiloso, precisávamos ser rápidos.

Saí de casa sem pensar direito, focado apenas em encontrar alguém

que pudesse impedir.

Nunca corri tanto na minha vida.

Pelos campos verdes, eu parecia uma gazela louca fugindo da presa,

com a diferença de que não tinha uma em meu encalço.

A distância entre a vila e a sede administrativa nunca pareceu tão

longa, embora eu a percorresse todos os dias caminhando.

Suspirei, aliviado ao encontrar Alfredo conversando com os filhos

logo na entrada, como se estivessem me esperando.

Obrigado, Deus!

— O que aconteceu, Joe? — Aloísio questionou, curioso ao me ver

aflito.

Calculei mal o tempo de parada e quase os derrubei ao não

conseguir frear a tempo.


— Deo... — inclinei, pousando as mãos sobre os joelhos, ofegante

— Deodato está armando... uma emboscada para... o Artur na cidade.

Os olhares se tornaram apreensivos.

Alfredo sacou o celular rápido do bolso, começando a andar até os

carros.

— A caminhonete dele está parada próximo ao centro — avisou. —

Vamos!

— Obrigado, cara. — Antônio bateu em meu ombro agradecendo,

correndo em seguida atrás dos dois, já a alguns passos à frente, apressados.


ARTUR

Durante todo o caminho, Rebeca se manteve cativa em meu colo,


muito abalada, pensativa e chorosa. Alisando os cabelos macios, acolhi-a

em meu abraço, transmitindo uma serenidade que não sentia.

Papai dirigia em silêncio, focado na estrada, mas ora ou outra, seu


olhar encontrava o meu, sendo capaz de ler a raiva que circulava minha

corrente sanguínea. Sem nenhuma palavra, ele me disse que o ocorrido não

ficaria assim.

Quando o carro parou em frente ao casarão, Rebeca desceu, secando

o rosto molhado.

— Eu... preciso ficar um pouco sozinha — murmurou, sem jeito.

— Tudo bem. — Alisei seu rosto.


Observei-a entrar na sala, ao mesmo tempo em que Antônio e

Aloísio desciam da caminhonete atrás de nós. Ambos sérios e tensos.

Seguimos o nosso pai até o escritório em silêncio. Ísio fechou a


porta no instante em que Alfredo parou no bar ao canto, servindo quatro

copos de uísque, virando o seu em uma golada, servindo outro em seguida,

enquanto caminhava pela sala, falando:

— Como previsto, a situação se agravou ainda mais. Deodato não

aceitará tamanha afronta pacificamente. Precisamos agir com cautela se

quisermos evitar uma tragédia.

Sua fala iniciou uma conversa ácida, mas necessária. Permanecemos

por um bom tempo planejando as próximas ações, para que nada desse

errado.

Deodato não representava apenas um sogro que não aprovava a

relação da filha com o genro. Nossa situação era infinitamente mais

complexa. Havia uma rixa passada, envolvendo as maldades da sua filha

mais velha, acarretando indiretamente nas investigações de desvio de

dinheiro supostamente feitas pelo político. Deodato tomaria como ofensa

qualquer pessoa que disputasse as eleições, mas o cenário se tornava ainda

mais complexo quando o seu principal oponente, tinha sido o responsável

pelas denúncias.
Na época, Aloísio estava colérico por justiça quanto a violência

sofrida por Davi na escola[5]. Com a apuração, havia suspeitas de que a

instituição estava sendo utilizada para lavagem de dinheiro. Isto justificava

a omissão das responsáveis quando Luiza quis denunciar os feitos de

Renata para o Aloísio.

Em resumo, a supervisora era uma das amantes do prefeito, e

juntamente com a diretora, aceitou fazer parte do esquema. Como se já não

fosse o bastante, Carolina, a progenitora de Davi, se prostituía com o velho,

e boa parte dos recebíveis vinha de dinheiro sujo.

Era confuso, mas este panorama deixava claro todo o precedente

entre as duas famílias.

As investigações ainda não tinham sido finalizadas ou o caso

julgado, mas não precisávamos ser nenhum juiz para enxergar o óbvio.

Assim, ainda que fosse mais sujo do que pau de galinheiro[6], Deodato

poderia concorrer e ser votado nas eleições[7].

Por garantia, a equipe de segurança estaria conosco sempre quando

saíssemos da fazenda, ao menos até o período da eleição passar e

tivéssemos certeza de que não haveria ameaça. Saímos do escritório com

várias outras decisões tomadas, como a situação da mãe de Rebeca. Mas

esta eu faria surpresa.


O silêncio presente durante o jantar deixava o clima pesado, em

nada compatível com o dia leve e incrível que tivemos. Desviei meus olhos

para Rebeca, notando que mal havia tocado na comida, presa em suas

preocupações desde que chegamos.

O fato de Deodato ter a capacidade inacreditável de destruir o

equilíbrio emocional da minha ruivinha me deixava ainda mais colérico

para quebrá-lo inteiro.

Mamãe observou Rebeca com carinho, chamando-a em tom

afetuoso:

— Filha, coma. Precisa estar forte para enfrentar as batalhas futuras.

Alisei seu pulso, endossando silenciosamente a afirmação.

A Bruxinha suspirou, triste.


— Desculpe, Dona Marta, mas só consigo pensar no que ele pode

estar fazendo nesse exato momento com a minha mãe. Eu... — falou,

agitada — eu preciso ir até lá.

Porra, não dava para esperar.

— Vem, Bruxinha, vou te levar a um lu... — Antes que eu

finalizasse, a campainha tocou. Não pude conter o sorriso pequeno, ansioso

para ver sua reação. Levantei-me, caminhando até ela e peguei a sua mão,

sob seu olhar confuso. — Você vai gostar, confie em mim.

Rebeca assentiu, se colocando de pé. Fomos até a porta, abrindo-a

com a minha Bruxinha ao meu lado. O arquejo deixou seus lábios quando
encontrou a mulher amparada por Rodrigo.

— Mãããeee...

Sua voz, mais baixa do que imaginei, era de surpresa e alívio.

Abraçou-a emocionada.

Observei a senhora com cuidado, entendendo as razões da reação da

ruivinha ter sido contida.

Célia parecia um cristal frágil. Pequena, magra e encolhida. Dava

vontade de pegá-la no colo e colocar numa redoma de vidro. Em silêncio,

abraçou a filha de modo carinhoso.


— Que saudade! — Rebeca disse entre beijos e carinhos nos cabelos

da mais velha. Afastou o rosto, analisando-a com cuidado. — A senhora

está bem? Ele te machucou?

Célia movimentou a cabeça para os lados em silêncio. Atrás dela,

Rodrigo e Joe apreciavam a cena, talvez tão impressionados quanto eu.

Rebeca pegou a mão dela, virando-se para mim.

— Mãe, esse é o Artur. Meu marido.

A senhora arregalou os olhos, como se, por um instante, tivesse

saído do transe.

— Marido? — perguntou em um sussurro, quase impossível de

ouvir a voz falha.

— Sim, mamãe. Eu vou explicar tudo para a senhora.

— Muito prazer, Dona Célia. — Estendi a mão um pouco receoso

de machucá-la. Por fim, ela tocou a minha palma e deu um sorriso pequeno.

Parecia ter gostado. — Vamos entrar, por favor.

Em instantes, todos já estavam na sala, assim como meus pais,

cuidadosos ao cumprimentar Célia, pedindo que se sentasse. Poderia ser

exagero, mas a sensação era de que ela iria quebrar a qualquer instante.

Nunca tinha visto uma pessoa tão franzina e pálida.


Só então pude compreender toda a preocupação de Rebeca com a

mãe. Deodato seria capaz de quebrá-la sem sequer precisar tocá-la.

— Desculpem não tê-los acompanhado no socorro de Rebeca e

Artur na cidade — Rodrigo comentou, se sentando ao lado de Joe, pegando

a xícara de café que mamãe lhe entregava. — Obrigado, Dona Marta. —

Fitou-nos novamente. — Mas quando Vânia ligou, e Joe me avisou que

Alfredo e os filhos estavam cientes, eu só pensei em tirar a mamãe daquela

casa. Eu sabia que ao ter seus planos frustrados, meu pai não a pouparia de
sua fúria.

— Fez bem, Rodrigo. Aqui na fazenda ele não poderá fazer mal a

nenhum de vocês — afirmei.

De pé ao lado do sofá, senti o peito mais tranquilo ao presenciar o

carinho entre elas. Rebeca era apaixonada pela mãe, tocando-a com carinho
e cuidado. Nem se parecia com a garota triste de minutos antes. Sabia que

agora ela se sentiria mais tranquila. Como se soubesse o rumo dos meus
pensamentos, levantou o olhar e sorriu para mim.

Porra! O que eu estava sentindo por essa menina era muito mais

forte do que jamais imaginei sentir.

Quando Joe me avisou que Rodrigo estava com a mãe, não pensei

em outra coisa senão a trazer para perto de Rebeca.


— O que farão a seguir? — Joe indagou.

— Primeiro vamos acomodar a Dona Célia no casarão para que ela


se sinta confortável. Depois vamos resolver as coisas com o prefeito —

expliquei.

Como se naquele instante tivesse percebido que falávamos dela,

Célia levantou a cabeça, olhando para Rebeca.

— Não. Minha casa.

— Mãe — Rebeca pegou sua mão delicadamente— , sei que é

complicado, mas agora a senhora vai morar aqui comigo por algum tempo.

— Não. Minha casa.

— Mamãe... — A voz de Rebeca saiu frustrada.

Eu conseguia compreendê-la. Não deveria ser nada fácil ter a


própria vida modificada de um dia para o outro.

— Dona Célia, por que não dorme aqui só hoje, amanhã nós
pensamos em outra solução — sugeri, fazendo focar seus olhos escuros em
mim. Assentiu em um movimento quase imperceptível, voltando para a

prisão da própria mente em seguida.

— O que aconteceu com a Vânia e Olegário? — Rebeca perguntou,

preocupada.
— Enquanto me entregava as malas da mamãe, ela me disse que
voltaria para a casa da família em um sítio. Não entendi direito — o irmão

esclareceu. Em seguida, ele, papai e Joe continuaram conversando sobre os


acontecimentos do dia. Rebeca permaneceu com a mãe no sofá, enquanto o

quarto de hóspedes era preparado para a senhora.

Senti o toque macio da minha mãe, convidando-me em silêncio para

o canto da sala.

— Filho, não acredito que a Célia queira ficar conosco, e a


compreendo muito bem. No entanto, há uma casa disponível na vila, talvez

considere, juntamente com a Rebeca, a possibilidade de levá-la para lá.


Podemos direcionar alguma funcionária para ajudá-la.

— Obrigado, mãe. Pode ser uma possibilidade, mas precisamos


pensar. Ela parece tão frágil.

— Só parece, filho. — Deu duas batidinhas sobre o meu braço. —

Pode estar debilitada, mas se não quebrou vivendo sob o mesmo teto que
aquele homem, não quebra nunca mais. Quem sabe os ares da fazenda não

fazem bem para ela, não é?

Não demorou para que Joe e Rodrigo fossem embora. Rebeca

abraçou a mãe, andando devagar com ela até o quarto, aproveitou para
mostrar alguns cômodos pelo caminho, mas a senhora pareceu não ter visto
nada. Eu ainda achava um pouco estranho lidar com uma condição como

aquela. Além de solitário, parecia doloroso demais.

Parei com as duas malas na porta do quarto, saindo logo em seguida


para dar privacidade.

Fui para o meu tomar banho e tentar relaxar um pouco até Rebeca
voltar. Sob a água morna, deixei os pensamentos fluírem soltos. Parecia

cada vez mais difícil manter o raciocínio coerente diante tudo o que estava
acontecendo.
REBECA

— Quero a minha casa — mamãe repetia insistente, quando a


coloquei deitada na cama do quarto de hóspedes.

Sentei-me ao seu lado, sentindo o peito apertado ao precisar explicar

novamente:

— Mamãe, agora nós moramos aqui no casarão. É por pouco tempo,

eu prometo.

— As costuras.

— As suas coisas estão nas malas, conseguirá costurar aqui também.

Prometo que se adaptará tão bem quanto quando ficamos em Campos

Belos, lembra?
Ela me olhou, mas não disse nada. Precisando desabafar, acariciei

sua mão quentinha, confidenciando:

— Nunca pensei que fosse me casar tão cedo, sabe, mãe?


Principalmente como aconteceu, mas me sinto tão bem com o Artur. Não

sei como, mas de algum modo, eu me encontrei estando com ele. Claro que

tenho os meus sonhos e vontades, mas estar com ele deu mais cor, mais

vontade de fazer acontecer.

Mamãe me ouviu, embora não parecesse. Tudo que eu mais queria

era que ela pudesse me aconselhar, não aconteceu. Às vezes, eu achava que

não compreendia o que eu falava. Noutras, pensava que preferia se manter

presa em si mesma.

Conformada, levantei-me, beijando seus cabelos, subindo a manta

até o tórax coberto por um pijama quente. Fazia bastante frio na fazenda.

— Estou muito feliz pela senhora estar aqui. Prometo que nunca

mais precisará voltar para aquela casa ou para as crueldades daquele

homem.

Surpreendendo-me, ela pegou a minha mão, mantendo o olhar fixo

ao meu, disse, baixinho:

— Artur é um bom menino. Ele ama.


Aquele gesto me emocionou por duas razões. A primeira, ela ter se

expressado. E segundo, por ter gostado dele e conseguido compreender o

grande homem que Artur era.

Permaneci no quarto até ter certeza de que havia dormido. Em

seguida, fui para o meu quarto. Ainda era estranho, mas começava a me

acostumar com aquela ideia.

Prendi a respiração ao passar pela porta. Artur estava apenas de

bermuda, sentado sobre a cama, com uma perna estendida para o chão e a

outra dobrada no colchão, sustentando o violão.

De olhos fechados, ele cantava em inglês algo como um country

romântico. A voz grossa ganhava a entonação certa nos momentos

necessários.

Era uma cena e tanto.

Embora fosse muito excitante, a dedicação com a qual cantava teve

ligação direta com o meu emocional. Senti a garganta travar à medida que

caminhava ao seu encontro.

Artur abriu os olhos, como se fosse parar, mas não deixei.

— Continua — pedi, baixo.

Ele anuiu, prosseguindo.


Subi sobre os lençóis, pegando um travesseiro, colocando de frente

para ele e me deitando próximo à sua perna.

Artur tinha o dom incrível de transformar momentos de angústia e

desespero em recordações doces e inesquecíveis. Foi assim na noite em que

me encontrou na caminhonete e está sendo assim, nesse dia cheio de

emoções.

Toquei seu joelho, brincando com os pelinhos. Eu adorava observá-


lo com pouca roupa e tão à vontade. Era um peão de respeito, mas não um

brucutu. Se cuidava, era bonito, cheiroso, inteligente e muito educado. E

cada pequena vertente dessas me fazia apaixonar ainda mais por ele.

— Canta mais — insisti quando a música acabou.

Ele concordou, cantando outras. Ficamos assim por mais alguns

instantes, até ele colocar o violão de lado, fazendo-me sentar em seu colo.

— Vou cobrar cachê — brincou, cheirando o meu pescoço.

— Talvez eu possa pagar. — Toquei seus lábios, alisando os

cabelos.

— Não estou falando de dinheiro.

— Eu também não.

Apertou minha cintura, arrancando um gemido dos meus lábios.


— Eu gosto das músicas que você escuta. Me acalma, e parece que

me deixa ainda mais apaixonada por você. É proposital, não é?

Artur sorriu, pegando o celular sobre a mesa de cabeceira. Em


segundos, a playlist tomou o quarto.

— Claro, assim como foi quando te encontrei naquela noite.

Era verdade. Lembro-me de entrar na caminhonete e ouvir música

do mesmo estilo. E aquela era mais uma vertente de Artur, o peão

apaixonado e apaixonante.

— Não sei como você consegue se manter tão sereno diante tudo o

que aconteceu hoje — desabafei, quando ele me deitou, alisando meus

cabelos antes de me beijar.

— Não estou, mas preciso de alguns recursos para me manter no

eixo e não fazer besteira. Como te amar sob essa trilha sonora, deixando

todos os problemas da porta para fora.


Na manhã seguinte, tomamos banho juntos. Era um pouco estranho

dividir tanta intimidade com outra pessoa, mas Artur tornava tudo muito
natural.

Saí primeiro do boxe, desembaraçando os cabelos em frente ao

espelho enquanto ele enrolava a toalha pela cintura.

— Acha que sua mãe se adaptará aqui?

Virei-me em sua direção, deslizando a escova pelos fios longos.

— Eu não sei. Ela se adaptou bem durante o período em que

estivemos em Campos Belos, mas acho que o fato de se sentir invadindo a

casa dos seus pais pode ser um problema para que ela se sinta confortável.

— Soube que vagou uma casa na vila. É simples, mas consegue

atender muito bem as necessidades dela. Acha que ela pode gostar?

— Eu não sei, e não quero que ela fique longe. Embora consiga

fazer as necessidades básicas sozinha, mas sempre tem que ter alguém para
lembrá-la.

Artur se aproximou, tocando minha cintura.

— É só uma ideia para que ela se sinta mais confortável. Se você

acha viável, posso levá-las para conhecer. Quanto aos cuidados dela,

podemos destinar alguma funcionária ou até mesmo chamar a Vânia. Se ela

quiser, consigo outra casa também.

Levantei o olhar, fitando as esferas verdes e brilhantes. Artur era um


homem incrível! Eu nunca me cansaria de todo o seu cuidado.

— Faria isso por mim?

Seus lábios se esticaram em um sorriso de canto.

— Me diz o que eu não faria por você, Bruxinha?

Trocamos carinhos por alguns segundos, até ele se afastar, tirando os

meus cabelos do ombro.

— Você tem algum parente ruivo?

Franzi o cenho, sendo pega de surpresa pela pergunta.

— Por que diz isso?

— Notei que seus pais têm os cabelos escuros. Fiquei curioso.

— Uma vez mamãe me contou que eu havia puxado a genética da

avó do meu pai, mas ela faleceu antes do meu nascimento, e naquela época
não era muito comum tirar fotos. Então, nunca a vi.

Aquele era um questionamento que eu já tinha me feito, mas deixei


de lado quando a vida ficou corrida demais.

Artur assentiu. Nós nos arrumamos rapidamente e descemos para o


café. Antes, passei no quarto em que mamãe estava e a preparei para descer

conosco.

Contei sobre a possibilidade que Artur tinha levantado, e ela pareceu


gostar. Assim, logo após o desjejum, ele nos levou para conhecer a pequena

casa.

Embora tenha passado pela vila ontem, não tive tempo de descer e

apreciar o quanto era charmosa. Parecia uma mini cidade e todas as casas
ficavam ao redor da lagoa. A igrejinha ficava na praça central, próxima a

um posto médico. Não muito distante, havia uma obra em construção.

Artur nos avisou que o espaço da escola havia ficado pequeno para
atender nos três turnos e com atividades extracurriculares. Assim, Marta e

Luiza estavam construindo um espaço ainda maior, mais perto da vila. O


prédio antigo seria aproveitado para expansão da área administrativa da

fazenda, já que os negócios estavam crescendo exponencialmente.

Marta era uma mulher justa. Queria que todos os moradores da

fazenda tivessem atendimento de qualidade semelhante ao que os patrões


recebiam. Por isso, o posto médico também seria expandido para que a área
assistencial da fazenda pudesse ser melhorada. A ideia era implantar

atendimento de equipes multidisciplinares, médicos, psicólogos,


enfermeiros, fisioterapeutas e vários outros.

Meus olhos brilharam. Eu queria muito fazer parte disso tudo e


estava empolgada para começar logo.

Artur ajudou minha mãe a descer da caminhonete alta, amparando

até que estivesse em frente à porta de madeira. O restante era todo branco.
Destranquei, não podendo conter o suspiro ao olhá-la. Mamãe fez o mesmo,

segurando em meu braço. Era mobiliada e aconchegante.

Após conhecermos os cômodos, paramos na sombra de uma

jabuticabeira na calçada, divisa com a casa ao lado. Não pude conter o


sorriso quando ela estendeu a mão, apanhando uma fruta no pé e comendo.

Parecia uma cena corriqueira, mas para ela era um grande avanço. Sinal de
que estava mentalmente presente. Isso dizia muito para mim.

Acariciei seus cabelos, analisando os traços delicados com carinho.

— A senhora gostou da casa? — Ela assentiu. Satisfeita, continuei:


— Prefere ficar aqui ao casarão? — Concordou outra vez. — Então, vamos

trazer as suas coisas para cá, irei te acompanhar até estar totalmente
adaptada, tudo bem?
Ela assentiu com um gesto. Peguei algumas jabuticabas para que ela

pudesse comer no caminho de volta. Assustando-nos, uma voz grave e um


tanto grosseira chamou nossa atenção.

— Bom dia, patrão!

Olhamos para trás, deparando-nos com um homem na casa dos


cinquenta e poucos anos, alto, magro, de cabelos escuros e bigodudo.

— Bom dia, Milton! — Artur devolveu com o dom tranquilo de

sempre. — Conheça sua nova vizinha, Dona Célia, mãe da minha esposa,
Rebeca.

— Fiquei sabendo do casamento. Parabéns! — Apertou a mão de


Artur com força, dando-lhe um tapa no ombro.

O homem tinha um ar xucro, meio agressivo. Não pude deixar de


me assustar quando ele parou à nossa frente, invadindo consideravelmente o
nosso espaço pessoal.

— Seja bem-vinda, senhora. — Estendeu a mão grossa e bronzeada


pelo sol. Franziu o cenho quando minha mãe não devolveu o cumprimento.

Constrangida, o fiz em seu lugar.

— Tenho certeza de que ela também gostou de conhecê-lo, senhor


Milton. Ela só não demonstra muito — tentei amenizar o clima pesado.

— Bruxinha, ele é pai da Marcela e gerente da fazenda.


Arregalei os olhos. Embora tivesse as marcas do trabalho no sol e

fosse um tanto fechado, ele era bonitão, não parecia ter uma filha daquele
tamanho.

— Seja bem-vinda à fazenda, senhora Rebeca. E parabéns pelo


casamento. Pode contar comigo para o que precisar.

— Obrigada.

Nós nos despedimos e voltamos para a sede para buscar as coisas


dela. Artur nos deixou novamente na vila, dizendo que voltava para nos

levar ao casarão para almoçar.

A casa estava fechada, mas não demorei a deixar tudo no jeito para
ela.

Liguei para Vânia, sendo atendida daquela vez. Estava satisfeita por
ter ouvido a voz dela. A saudade era enorme. Convidei-a para nos visitar

naquela tarde e tomar café conosco. Queria fazer a proposta presencial.

Pela janela da sala, vi quando Artur estacionou a caminhonete em


frente à varanda.

— Vamos almoçar, mãe? Prometo que amanhã tudo funcionará


perfeitamente para que a senhora não precise ficar nessa andança de um

lado para outro.

Ela concordou em silêncio.


Gentil, ele veio até nós, ajudando-a a se acomodar no carro. Era fofo
ver o quanto ele se empenhava para fazê-la se sentir bem.

— Como foi a manhã de vocês? — indagou, tocando meus lábios

antes de me ajudar a subir.

— Foi ótima. E a sua?

Ele deu a volta, se posicionando atrás do volante, acelerando e

contando um pouco do que havia feito.

Ao entrarmos no casarão, todos começavam a se acomodar. Era

diferente acompanhar a união de tantas pessoas durante a refeição quando


havia me acostumado ao fato de sermos somente eu, mamãe, Vânia e

Olegário.

Percebi que ela ficou um pouco desconfortável, presa em si


novamente. Sentei-me entre ela e o Artur, servindo seu prato e observando-

a comer enquanto fazíamos o mesmo.

— Eu acho que vocês precisam ver isso. — Rute surgiu da cozinha,

agitada.

— O quê? — todos perguntaram em uníssono, exceto mamãe.

Ela caminhou até a sala, ligando a TV no jornal local. Todos se

viraram na mesma direção, acompanhando a explicação da apresentadora:


O prefeito de Alta Colina, Deodato Moreira, postou um vídeo em
suas redes sociais nesta manhã em que aparece com hematomas no rosto. O

político informou ter sido covardemente agredido pelo fazendeiro Artur


Albuquerque ao não ter cedido a mão de sua filha, Rebeca, em casamento,

uma vez que ela já estava noiva de outro influente da região que não teve o
seu nome divulgado.

Ao ser procurado por nossa produção, o prefeito não quis gravar


entrevista, mas disse ter prestado queixa contra o fazendeiro. Procurada, a
equipe de Artur informou que não houve ataque, mas sim defesa frente a

uma ação covarde armada pelo político. As imagens de câmeras de


seguranças do local e do veículo do fazendeiro mostram o instante em que

quatro homens, incluindo Deodato, abordam o casal na saída de uma loja.


Os advogados finalizaram a nota reiterando que medidas legais serão

tomadas frente ao ato covarde.

Vale lembrar que a rivalidade entre as duas famílias se estende há


algum tempo, inclusive, partindo dos Albuquerque a denúncia de

enriquecimento ilícito e desvio de dinheiro supostamente feitas por


Deodato Moreira. Acompanharemos os desdobramentos deste caso e
traremos em primeira mão para você.

Lívida, ouvi cada palavra da reportagem sem acreditar que papai


tinha sido capaz de tamanha exposição. O que seria para alavancar suas
chances na campanha, resultaria exatamente no contrário diante o
contragolpe dos Albuquerque. Ainda que fossem tranquilos e amorosos,

aquela ação tinha deixado muito claro o poder daquela família. Não eram
arrogantes, mas se precisassem usar seu poder, ela o faria.

Sentia-me no meio de um fogo cruzado, em briga de cachorro


grande. Estava exposta, vulnerável e me tornando um dos temas preferidos
para fofoca em toda a região. Perdi completamente a fome, pensando em

como uma vida pacata poderia ter tomado tanta reviravolta.

— Esse cara é muito abusado. — Antônio parecia indignado,


rolando a tela do celular. — Desculpe, Rebeca e Dona Célia. Mas é a
verdade. Além de abusado, ele é burro. Deu dois tiros nos próprios pés e
perdeu qualquer chance de se reeleger.

Artur aproximou o corpo do meu, tocando meu antebraço. Seu olhar


dizia que não estava satisfeito com aquele circo. No fim, ele só queria me
proteger.

— Desculpe, Bruxinha, mas não podíamos simplesmente


aguardarmos inertes enquanto seu pai tentava se fazer de vítima. Mas saiba,

não deixarei que ele te exponha ou a nossa relação. Deodato terá o que
merece, mas não será a qualquer custa.
— Está tudo bem. Infelizmente, ele vai começar a colher tudo o que
plantou — afirmei, triste.

Artur me abraçou, conseguindo abrandar, mesmo que por um


instante, aquela confusão toda dentro de mim.

Ao meu lado, mamãe não parecia se ater ao que acontecia. Foi bom,
ela não merecia tamanho desgosto.

Papai que se preparasse, porque seria, sem dúvidas, o início de sua

derrocada.
REBECA

DIAS DEPOIS...

Terminei de escrever a última frase, sentindo os olhos cansados de

ficar tanto tempo focados na tela do computador. Alonguei os braços e o

pescoço, deixando os olhos vagarem pela janela do quarto pequeno. Não


pude conter a alegria ao encontrar a mamãe de pé em frente à jabuticabeira

apreciando o sabor das frutas enquanto Peludo se lambia ao seu lado.

Após todo o drama que papai causou na TV, saímos da fazenda

poucas vezes, apenas para levar a mamãe à terapia. Os dias se passaram


relativamente tranquilos ainda que a campanha eleitoral estivesse fervendo.

Papai e Aloísio tinham ido para o segundo turno, e os debates estavam

acirrados entre eles. O coronel não tinha dado notícias, e eu não sabia dizer
se aquilo era bom ou ruim. No entanto, ia seguindo a minha vida do modo

mais tranquilo possível.

Artur era maravilhoso, protetor e dedicado. Naquele período, eu


tinha me consultado com o ginecologista e começado a tomar o

anticoncepcional. Com o convívio, estávamos nos descobrindo a cada dia

mais, nossas semelhanças e diferenças. A nossa intimidade sendo

construída gradualmente, nos tornando um casal cada vez mais forte.

Foi incrível quando nos sentamos com a equipe de obras e

começamos a planejar a nossa casa, que já tinha saído do papel. Às vezes,

parávamos em frente à construção abraçados e eu me perguntava se não

estava sonhando. Tanta coisa tinha acontecido em tão pouco tempo.

Vânia e Olegário tinham desistido de voltarem para a cidade dela

no dia em que a convidei para conhecer a Canto dos Pássaros. Não precisei

de muitos argumentos para convencê-los, pois a paisagem e a tranquilidade

daquele lugar falavam por si só. Ela ficou responsável por cuidar da casa da

mamãe, e o esposo havia se tornado peão da fazenda.

Ainda que estivesse ansiosa para começar a trabalhar, Marta

orientou para que eu continuasse cuidando da minha mãe até que ela

estivesse totalmente adaptada. Além disso, Luiza e eu estávamos


resolvendo os preparativos do casamento. Eu estava animada, feliz por

finalmente estar me sentindo a personagem principal da minha história.

A mudança de ares estava fazendo bem para todos nós. Agora, a

energia negativa do meu pai não nos assolava mais como na casa da cidade.

A diferença era perceptível, principalmente nos comportamentos da mamãe.

Nos primeiros dias morando na casa nova, ela se manteve presa em

seu quarto, em que adaptamos um cantinho de costura. Ainda que a

incentivássemos e tivéssemos mantido a terapia, cheguei a pensar que

continuaria aprisionada dentro de si, em um silêncio angustiante.

No entanto, tudo começou a mudar no dia em que deixei a janela

aberta e, quando fui chamá-la para comer, encontrei um gato preto deitado

sobre seu colo enquanto ela costurava. Tentei tirá-lo, mas me pegando

completamente de surpresa, ela segurou o meu pulso e murmurou um “não”

categórico. Desde então, o Peludo, como o batizamos, não saía mais de

perto dela. Às vezes saía de casa para dar uma volta, mas ficava a maior

parte do tempo ao seu lado, onde quer que ela estivesse.

Assim, mamãe começou a explorar os outros ambientes da casa para

procurá-lo. Iniciou caminhando pelo quarto ao lado do seu, no qual eu havia

adaptado uma mesa de estudos para poder ficar com ela enquanto fazia as
aulas on-line. Aos poucos, se aventurou para a cozinha, o jardim dos fundos
e, quando vi, o acompanhava pela varanda. Ora sentada na mureta de frente

para a lagoa perdida em seus pensamentos e alisando o bichano, ora de pé

comendo jabuticaba enquanto ele se lavava, como naquele momento.

Não era um processo rápido ou fácil. Havia dias em que nada a fazia

sair do quarto imersa naquela tristeza sem fim, mas eu tinha certeza de que

em breve ela se recuperaria. Infelizmente, a depressão não tinha cura, mas

com tratamento, compreensão, amor e paciência, com certeza ela poderia

ter uma boa qualidade de vida.

Soube que a moradia da mamãe tinha sido de Luiza e Marcela antes

de se casarem. Era engraçado, pois agora era habitada pela minha mãe,

sogra do último irmão Albuquerque a se casar.

Meu celular vibrou sobre a mesa, uma mensagem de Artur

sinalizando que em breve passaria para me levar ao casarão. O sol estava

quase se pondo e a rua estava movimentada de trabalhadores voltando para

as suas casas.

Essa rotina estava sendo muito boa para nós. Enquanto ele e os pais

trabalhavam, eu cuidava da minha mãe e aproveitava para estudar. No final

da tarde, Vânia vinha fazer companhia até que ela dormisse, depois voltava

para a sua casa, a poucos metros. A princípio, fiquei muito receosa de

deixar a mamãe dormir sozinha na casa, e Vânia a acompanhou. No


entanto, partiu da idosa o desejo de ficar sozinha. Não foi fácil aceitar, mas

me dava muito orgulho em ver a sua melhora e luta por independência.

Fechei o material que estava usando e desliguei o notebook quando


o som de uma caminhonete chamou minha atenção. Pensei que seria o meu

lobinho, mas a voz grossa e altiva chamou minha atenção.

— Eu já não falei que não te quero mexendo na minha árvore?

Assustada com a grosseria gratuita, me levantei observando pela

janela Milton gesticular aparentemente nervoso. Saí do quarto rápido,

caminhando até a varanda a passos largos, ouvindo-o continuar, sério:

— Há tantas outras jabuticabeiras por aqui, por que insiste na

minha?

Mamãe se mantinha pacífica, continuando a comer como se nem

mesmo o tivesse visto. Ao seu lado, Peludo parecia ser três vezes maior,

todo eriçado e miando bravo para defendê-la. Groove, o pinscher do meu

irmão, saiu correndo da casa dele e apareceu latindo, chamando atenção dos

moradores. Em segundos, o que era um simples final de tarde virou uma


balbúrdia.

— Qual o seu problema? Não está me ouvindo? — o homem

continuou.
Cheguei rápido, elevando o tom da minha voz, posicionando-me na

frente da minha mãe:

— Eu que pergunto qual o seu problema, Senhor Milton? O que tem

demais ela comer as frutas no pé?

— É a minha árvore. Não a deixei comer.

— A árvore está na calçada, você não pode impedi-la.

Milton estava irritado. Eu estava brava. Mamãe no mundo da lua.

Peludo e Groove a ponto de avançar nele.

Uma cena ridícula.

O homem passou a mão nos cabelos a ponto de continuar

esbravejando. Pois que ele continuasse, porque tinha me deixado doida para

brigar. Ponderado, deu as costas entrando em casa. Virei-me para mamãe,

tocando sua mão quentinha, ao mesmo tempo em que sentia meu coração

acelerado.

— A senhora está bem? Ele te machucou.

Puxando mais uma bolinha escura da árvore, ela levou à boca,

tranquila:

— Docinha. Vou pegar mais para comer à noite.


Abaixei a cabeça, não acreditando que tinha feito uma cena daquelas

para mamãe se manter indiferente. Riria, se não estivesse tão zangada.

O som potente da caminhonete de Artur se aproximou, estacionando

à nossa frente. Ele desceu, vindo até nós e tocou a mão da minha mãe de

modo carinhoso.

— Boa tarde, Dona Célia. A senhora está bem?

Ela deu um leve aceno, esticando a blusa para guardar as frutas que
apanhava. Parecia uma criança.

Artur sorriu diante a peraltice, em seguida, beijou a minha testa,


franzindo o cenho ao me ver agitada.

— O que aconteceu?

— Aquele homem — apontei para a casa do vizinho —, começou a


brigar porque ela está aqui. Não entendi nada.

O semblante de Artur voltou a ficar sóbrio, ajudando minha mãe a

pegar as mais altas, depois nos guiando para dentro da pequena casa. Ao
fechar a porta, ela caminhou até a cozinha, e Artur explicou:

— Aquele pé de jabuticaba foi plantado pela falecida esposa dele,


por isso, o motivo de tanto ciúme. É uma lembrança dolorida para o Milton.

Arregalei os olhos, sentindo-me mal pelo que tinha dito a ele.


— Eu não sabia. — Fiz uma pausa, pensando um pouco. — Mas
ainda assim, ele não pode ficar regulando.

Artur mordiscou minha orelha, apertando a minha cintura com a

mão forte e grossa. Sua voz provocante, sussurrada de um modo lascivo,


espalhou ondas de um desejo quente por todo o meu corpo:

— Estou te ensinando defesa pessoal para que consiga se resguardar


quando necessário, não para sair arranjando confusão por aí, Bruxinha.

Passei meus braços por seus ombros, mordendo seus lábios e

apertando uma perna contra a outra, sentindo o calor se espalhar pelo


ventre.

— E que tal a gente ir para casa e você continuar com aquelas aulas,
só que agora, com nós dois pelados.

Artur gargalhou, jogando a cabeça para trás.

— Eu criei um monstro.

Desci a mão lentamente pelo peitoral levemente suado, numa

mistura erótica do seu cheiro natural com o perfume que passava todas as
manhãs. Passei pelo brasão na fivela, até parar na braguilha, apertando o

volume que já se fazia presente.

— Criou mesmo. E ele está doidinho para te devorar.


REBECA

Senti o suor escorrendo pelo vão entre os meus seios e o cabelo


desamarrando do rabo de cavalo já frouxo. O corpo estava quente e

cansado, mas não do modo como me acostumei nos últimos dias.

Daria qualquer coisa para estar por baixo ou por cima de Artur, mas
não à sua frente ouvindo-o me ditar ordens, ainda que seu tom não fosse

grosseiro. Quando ele me presenteou com o quimono preto com alguns

detalhes rosa, nunca achei que fosse levar tão a sério a história de defesa

pessoal.

— Vamos, Bruxinha, coloque força nesses braços — mandou outra

vez, agarrando forte os meus pulsos ao me obrigar a empurrá-lo para trás.

— Eu vou te machucar — declarei, sentindo-me mal.


Quebrando-me inteira, Artur lançou aquele sorriso de canto, capaz

de me sacudir.

— Se não se esforçar, não conseguirá nem chegar perto disso. —


Seu olhar se tornou mais severo. — Acha mesmo que seu adversário vai ter

pena de você ao te atacar?

— Você não é meu adversário, é meu marido.

Ele segurou o meu rosto entre as mãos, dizendo atento:

— Eu nunca vou te machucar, mas aqui sou seu professor e estou te


preparando para a pior situação, então me veja como seu inimigo.

— Não consigo te machucar de propósito.

— Sei que não, mas pense que a sua vida ou a vida da sua mãe corre

perigo. Isso fará com que você tenha foco.

Assenti, mas por alguma razão, eu só conseguia pensar no que eu

sentiria se ele estivesse em perigo.

— Agora força. Me empurre com tudo de si.

Posicionei uma perna para frente, levando as duas mãos ao seu peito
sobre o quimono azul, impulsionando com força. Fiquei frustrada quando

ele mal balançou.


— Assim não vale. Você tem que pelo menos fingir que sentiu —

reclamei, deixando os ombros caírem, fazendo charme.

— Sem desânimo, tenta de novo.

Repeti mais duas vezes, sem muito sucesso.

— Está vendo que você não tem força para derrubar o seu

adversário assim? Se estiver lutando contra um homem, não conseguirá sair


no soco com ele, então, não importa o tamanho, a melhor solução é

imobilizá-lo. Agora veja o que farei com você, e isso não depende apenas

de força, mas de estratégia — instruiu — tenha cuidado para não bater a

cabeça no tatame. — Gesticulou com a mão, chamando: — Vem, tenta de

novo duas vezes seguidas.

Fiz novamente, e nada me preparou para o momento em que, ao

empurrá-lo, ele se abaixou, agarrando nos meus joelhos, deixando-me cair

para trás. Em segundos, mexeu o corpo para a minha lateral, passando um

braço sob o meu pescoço e outro sobre o meu tórax. Em seguida, passou a

perna sobre o meu pescoço, me imobilizando.

— Viu? É assim que você imobiliza o seu oponente. Agora vou te

ensinar o passo a passo.

Sentia-me uma massa de modelar. Não tinha entendido nada do que

havia acontecido, apenas que ele fez um monte de movimento e me tinha


sob o seu domínio.

— Eu nunca vou conseguir fazer isso com ninguém — fui sincera,

totalmente consciente das minhas limitações.

Sem que eu esperasse, Artur enfiou as mãos pelos fios soltos da

minha nuca e me beijou. Não manso ou carinhoso como ele costumava

fazer, mas de um modo bruto, fazendo-me sentir o leve gosto do sangue.

Em segundos, meu corpo aqueceu, agora do jeito gostoso que eu adorava


sentir.

Ainda jogada no chão, sua mão adentrou pelo quimono, apertando

meu seio com força sobre a rash guard[8]. O toque era diferente de tudo o

que ele já me fez sentir, com certo ar grosseiro. Seu corpo se posicionou

sobre o meu quando sua mão segurou meus braços sobre a cabeça. A ereção
roçou em minha pelve, mesmo protegida pelo tecido grosso.

Excitei-me, sentindo a minha intimidade esquentar, em um

prenúncio gostoso de que em instantes ele estaria se movendo com toda

aquela virilidade dentro de mim. Arquejei, inalando seu cheiro natural,

misturado ao suor e perfume.

Retribuí o beijo gemendo por mais, para que ele me desse tudo.

Reclamei quando sua boca se afastou da minha, seus braços

soltaram os meus e a ereção deixou de me pressionar.


— Por que parou? — reclamei, manhosa. — Estava tão gostoso.

— Lembra do nosso acordo?

— No momento, só consigo pensar no quanto desejo ter você dentro

de mim. — Embrenhei a mão em sua nuca, puxando a boca carnuda para a

minha, mas ele resistiu.

— Quer mais? — provocou, mordendo meu lábio inferior.

— Quero tudo. — Deslizei o joelho preguiçosamente em seu pau

duro.

— Quando você se dedicar para valer ao nosso treino e parar de se

menosprezar, poderá ter muito mais do que isso. — Riu irritantemente, me

deixando frustrada ao se afastar.

— Isso não vale! — resmunguei, me colocando de pé. — Você vai

ver, só por isso vou fazer greve.

Ele se aproximou, deslizando o nariz pelo meu colo até a orelha,

fazendo-me encolher.

— Vai ser um prazer lutar contra as suas armaduras — sussurrou,


mordendo o meu lóbulo. — Agora vamos, tem muita coisa para você

aprender.

Artur foi muito paciente ao explicar o passo a passo de cada

movimento. A sua serenidade e didática me surpreendiam. Repetimos


várias vezes cada movimento, até que eu conseguisse realizar o golpe

inteiro.

Artur tirou a parte de cima do quimono, jogando-a de lado,

incentivando-me a fazer o mesmo.

— Como esta é uma preparação para situações reais, vamos treinar a

luta sem quimono — gesticulou. — Pronta?

Meneei, e ele veio com tudo. A princípio, era um pouco assustador

um homem daquele tamanho vindo te atacar, mas logo me acostumei,

abaixando-me, puxando seus joelhos, fazendo-o cair de costas. Movimentei

ao seu lado, até que tivesse minha perna ao redor de seu pescoço e seu

braço preso entre os meus.

— Está ficando boa, Bruxinha — elogiou, dando três tapinhas na


minha perna. — Vamos ajustar algumas coisas para você ganhar

velocidade. Em breve, poderá aprender outros golpes. É importante que

faça musculação para ganhar força.

Soltei-o, ficando de pé.

— Sim, Sensei — insinuei, dando uma piscadinha.

— Garota, não faça isso. — Entrou na onda. — Vamos repetir para

fixar e daqui a pouco a gente para.


— Só se me prometer que me recompensará por ter sido uma boa

aluna. — Estiquei-me na ponta dos pés para beijar sua boca.

Artur deslizou os dedos pelo meu rosto, ajeitando os cabelos que

deveriam estar em estado de calamidade.

— Vou pensar no seu caso.


ARTUR

Virei-me na cama, a sentindo estranhamente fria. Ainda sonolento,


passei a mão sobre os lençóis notando-os vazios. Abri os olhos com

preguiça, procurando Rebeca pelo quarto.

— Bruxinha? — chamei, levantando a cabeça do travesseiro.

Em resposta, o som do mais absoluto silêncio. Com a viagem dos

meus pais e a folga dos funcionários do casarão, só era possível ouvir o som

do canto dos pássaros.

Naquelas semanas juntos, aprendi a ler a ruivinha sem que ela

precisasse dizer uma única palavra.

Rebeca costumava ser barulhenta e meio desastrada, então aquela

calmaria me deixava preocupado. Levantei-me vestindo um short qualquer,


caminhando descalço pelo quarto. Nenhum sinal no banheiro ou na

varanda.

O sangue passou a correr um pouco mais rápido diante da falta de


respostas. A fazenda era segura, e Rebeca não sairia sem falar comigo.

Ainda assim, acelerei os passos pelo corredor, procurando-a pelos cômodos

grandes, levemente escurecidos pelas portas e janelas ainda fechadas. Não

estava parecendo que Rebeca havia saído de casa.

Comecei a relaxar quando escutei o barulho de vasilhas caindo na

cozinha. Não consegui conter o sorriso, sabendo que a Bruxinha estava lá.

Parei de braços cruzados no batente da porta ao vê-la de costas

preparando o café da manhã com a minha camisa branca que, para ela,

ficava na altura das coxas.

O pé pequeno e descalço chamou minha atenção ao roçar o

tornozelo delicado em movimentos repetitivos para cima e para baixo. Os

cabelos estavam presos displicentes em um coque frouxo, deixando o

charme por conta dos fios soltos. Ao fundo, um dos diversos countries que

ouvíamos juntos tocava baixo.

Observá-la cozinhar tão à vontade apenas legitimou o que eu já

sabia. Rebeca me tinha nas mãos. O que eu sentia por aquela garota se
tornou tão forte, intenso e avassalador a ponto de eu jamais poder sentir

algo parecido por qualquer outra pessoa.

O jeito delicado permanecia, embora em alguns momentos o

desastre falasse mais alto. Aos meus olhos, apenas aumentava o encanto e o

modo único pela qual eu a amava. Sim, embora ainda não tenha expressado

para ela, eu a amava e este era um fato inegável.

Em contrapartida, a menina frágil e indefesa que conheci estava

dando lugar a uma mulher corajosa e independente. Embora estivesse

prestes a trabalhar com a minha mãe, Rebeca tinha começado a vender as

roupas que Célia costurava para as funcionárias da fazenda. Em poucos

dias, havia fila de espera pelas peças bonitas e com preços acessíveis.

A Bruxinha foi inteligente ao transformar o entretenimento da mãe

em fonte de renda enquanto ela conseguia conciliar o trabalho com a parte

administrativa dos negócios e a sua faculdade on-line. Vez ou outra eu a

apoiava com alguma burocracia, mas a Bruxinha era esperta, aprendia com

uma única explicação.

A princípio, pareceu um pouco estranho, já que tudo o que era meu

também era dela. No entanto, ficou muito claro de que Rebeca prezava pela

independência financeira, principalmente para os custos com a mãe.


Embora não fosse necessário e eu fizesse questão de assumir a
responsabilidade, me enchia de orgulho vê-la se desenvolver e amadurecer.

Em nada parecia com a pessoa assustada que encontrei escondida na

caminhonete.

— So, let’s close your eyes. And strip it down[9]... — A voz macia

cantarolava enquanto se esticava para pegar a geleia no armário alto.

Se eu inglês ainda era básico, mas à medida que praticávamos

juntos, ia melhorando.

Não consegui assistir àquela cena de longe e sem fazer nada.

Caminhei até ela, pousando a mão sobre a sua, garantindo que não

derrubaria o vidro. Os dedos da outra pousaram sobre a cintura macia no

mesmo instante que deslizei o nariz pelo pescoço cheiroso até o lóbulo

adornado por um brinco pequeno.

— Te vendo assim tão linda, não consegui resistir ao seu convite...

— sussurrei, prendendo a pele macia entre os dentes, enquanto ela se

assustava, dando um leve pulo para trás e levando a mão ao peito.

Pousei o pote sobre a bancada, achando graça do seu espanto.

— Quer me matar do coração? — Olhou sobre o ombro. — E que

convite?

— Nesse exato momento quero te ensinar inglês, cumprindo todas

as indecências que você pediu cantando essa música.


— Não foi intencional, eu apenas gosto dela. — Rebeca abaixou a

cabeça, fechando os olhos e rindo.

— Sei que não. — Toquei a pele quente sob a camisa, encontrando


os seios pesados, fazendo-a gemer. — Mas não posso desperdiçar o fato de

que estamos sozinhos. É a oportunidade perfeita para te ensinar inglês com

uma boa dose de sacanagem.

Rebeca suspirou quando apertei os dois montes.

— Agora, traduza so, lets close your eyes.

— Artur... — tentou se esquivar.

— Tenho certeza de que não significa Artur. — Apertei mais firme,

quase dolorido. — Não vou pedir outra vez, Rebeca.

Deitando a cabeça no meu ombro, ela se deixou levar pelo

movimento sutil do meu corpo no ritmo da música. Levantou o braço para

segurar meu pescoço, sussurrando:

— Então feche os seus olhos.

— Não. Então vamos fechar os seus olhos — corrigi, descendo uma


mão por dentro da sua calcinha, rouco pelo desejo. — Agora traduza and

strip it down.

— E dispa-se — respondeu quase inaudível.


Desencostei meu peitoral de suas costas, encolhendo levemente a

camisa até tirá-la pela cabeça, fazendo o cabelo cair em cascatas ao redor

do corpo gracioso.

— Está certo, mas prefiro tire a roupa. — Virei-a para mim com

certa brusquidão. — Agora só aproveite — ordenei, antes de beijar sua boca

com paixão.

Coloquei-a sentada sobre a bancada da pia, livrando-a da calcinha.

Envolvi suas coxas, ajeitando melhor o seu corpo para que estivesse

completamente aberta para ser chupada como eu ansiava.

A cada vez que transávamos, era como se o seu sabor de pureza

desse lugar ao de mulher lasciva e desejosa. Deixava-me maluco.

Desci minha boca pelo seu queixo, pescoço e colo. Dei atenção aos
bicos túrgidos sem pressa. Beijei, chupei, lambi e mordi. Suas lamúrias

aumentavam a cada nova ação, ecoando pela cozinha de um modo

indecentemente gostoso, provocando o aumento significativo do meu tesão.

Contra o tecido do short, sentia o pau babar, desejoso demais para estar

dentro da minha ruivinha.

Seus dedos embrenharam em meus cabelos, empurrando minha

cabeça em direção à boceta brilhante. Fiz o que ela implorava, pousando

seus pés nas laterais do corpo e deslizando os dedos pelos lábios melados.
— O que você quer? — provoquei.

Adorava fazê-la se soltar, expressando todas as sacanagens que tinha


vontade.

— A sua boca lá.

— Lá onde? — Mordi abaixo do umbigo, arrancando um murmúrio.

— Na boce... oh! — lamuriou, quando a minha língua levemente

contraída a atingiu, varrendo toda a vulva pequena.

Minha boca trabalhava dedicada enquanto os dedos exploravam os


seios macios em apertos firmes e a parte interna de sua coxa, subindo pelo

períneo, lábios vaginais e clitóris.

Rebeca gozou na minha boca, tremendo e ondulando

incessantemente com o olhar preso ao meu. Os cabelos ruivos caíam em


mantos pelos ombros, o rosto e colo estavam corados. Os olhos, languidos.

O sorriso, feliz e satisfeito.

Tocou o cós da minha bermuda, tirando o membro quente e pesado.


Sorriu, espalhando o líquido pré-ejaculatório por todo o comprimento.

Ostentando um olhar safado, roçou a glande por toda a região onde minha
boca brincou minutos antes, incitando-me de um jeito maravilhoso.

Impossível não suspirar, entregue.


Por fim, direcionou em sua entrada, deixando-me à beira do gozo ao
inserir a cabeça em um jogo perigoso de colocar e tirar.

— O que você quer? — devolveu a pergunta sacana, sua mão entre

nós, impedindo a penetração completa.

Mas ao contrário dela, não titubeei.

— Sua boceta.

Tirei o obstáculo entre nós e empurrei tudo de uma vez dentro dela,
arrancando um grito alto no instante em que sua mão puxou meu cabelo

com brusquidão. Movimentei-me devagar, até que ela se acostumasse com a


invasão. Não polpei as palavras sujas, estimulando sua imaginação.

— Quero a sua boceta completamente preenchida pelo meu pau.


Engolindo e apertando com força, até gozar outra vez e me sentir te

lambrecar inteira de porra.

Rebeca rebolou, completamente embriagada.

— Eu adoro ter você dentro de mim assim — ciciou, ofegante.

Tomado pela luxúria, investi com força contra seu corpo. Levantei

sua perna, a colocando na apoiada em meu peito, deixando o pé pequeno a


poucos centímetros do meu rosto. Mordi o tornozelo e a panturrilha. Rebeca

tentava abafar os gritos a cada estocada intensa, em um prazer vertiginoso.


Ela estava a ponto de gozar, mas eu queria mais. Iria potencializar as suas
reações.

— Olhe para mim — ordenei, rouco.

Ela relutou, mas o fez. Sentindo-me no limite, fechei os dedos ao


redor do seu pescoço. Ela gostou, os olhos brilharam à medida que a

respiração se tornava cada vez mais escassa.

Acelerei as estocadas, sentindo seu corpo se contrair. Diminuí o

ritmo, substituindo por movimentos longos e vagarosos. Por um segundo, vi


frustração em seus olhos, mas tudo seria para que ela pudesse experienciar

um orgasmo violento.

— Mais... Mais rápido — implorou, afundando as unhas nos meus


braços.

— Shhh... eu sei o que é melhor para você, Bruxinha.

Acelerei outra vez, fazendo-a jogar a cabeça para trás, alternando

vez ou outra. Rebeca tremia dos pés à cabeça, estava pronta. Estimulei o
clitóris mantendo o ritmo intenso, e ela gozou, mas não parei. Saí do seu
interior, roçando a glande no pequeno nervo, entrando com tudo outra vez,

arrebatando seus gritos altos.

— Artur, para. Não estou conseguindo controlar. Vou fazer...


Seus apelos foram interrompidos quando repeti outras vezes, ainda

mais impetuoso. Parei ao sentir seu corpo pegar fogo por dentro e
expulsando meu pau.

Rebeca se descompensou quando os seus jatos fortes me obrigaram

sair de dentro dela, espirrando na minha pelve. Alucinado, meti outra vez,
gozando em seu interior enquanto ela esguichava sem parar.

Porra! Tinha sido a melhor transa da minha vida.

Quando as últimas gotas saíram, Rebeca me abraçou, ofegante,


escondendo a cabeça no meu peito.

Acariciei seus cabelos, tentando voltar a respirar.

Pouco depois, notei que ela não conseguia me encarar, mesmo após

ter a respiração normalizada.

— Bruxinha... — chamei-a, notando que algo não estava bem, pois


evitava me olhar. Não tive resposta. Franzi o cenho, afastando seus braços

da minha cintura ao sair de dentro dela. — O que foi?

— Estou com vergonha. — Forçou o abraço em minhas costas,

escondendo o rosto em meu peito.

— Vergonha de quê? — questionei, tentando fazê-la me encarar.


Rebeca movimentou a cabeça para os lados, ainda sem falar nada. — Ei,

fale comigo.
— Eu... — murmurou , retraída — eu fiz xixi em cima da pia da

cozinha. Que coisa horrorosa!

Não pude conter o riso. Pousei a mão sob o seu queixo, fazendo-a

olhar para mim, mas ela desviou.

— Olhe para mim.

— Não, é muito humilhante.

— Se acalme, você não fez xixi.

— Fiz sim. — Passou a mão sobre o líquido abaixo dela. — Olha


só, está tudo molhado.

— Não, Bruxinha. — Prendi seu olhar ao meu. — O que você teve


foi um squirting. Ou seja, sentiu tanto prazer que esguichou ao gozar.

Rebeca arregalou os olhos, com a boca aberta.

— É sério?

Pousei minha mão sobre a sua, notando a consistência grudenta.

Estendi diante o seu rosto.

— Sim. Está vendo isso, é a mistura do nosso orgasmo. Não é xixi.


E ainda se fosse, estaria tudo bem. Um casal tem intimidade para essas

coisas.

— Não mesmo! Você nunca será obrigado a ver essas coisas minhas.
Ri, beijando novamente seus lábios.

— Está mais calma? — Ela assentiu, me abraçando. — Que bom,


porque agora temos que lavar toda a lambreca que fizemos.

Sorriu.

— Nunca mais vou ver essa cozinha com os mesmos olhos. Se a


Neide ou a sua mãe souberem que transamos aqui, serão capazes de nos

matar.

— É por isso que nenhum de nós irá contar. Além disso, estou

ansioso para que a nossa casa fique pronta logo, e que cenas como essas se
tornem corriqueiras.

— Seu safado. Nunca pensei que o lobinho centrado e educado que


conheci fosse se tornar esse libertino. — Bateu em meu ombro, fazendo um
riso gostoso surgir. — Em pensar que eu só queria fazer uma surpresa

romântica para o café da manhã.

— E foi uma surpresa, só não tão romântica, mas igualmente

deliciosa. — Puxei seus lábios. — Vamos agilizar. Depois de passarmos na


sua mãe, quero te levar na cachoeira.

— Só se você prometer que lá também teremos essa dose de

sacanagem.
Ajudei-a a descer, só então percebendo o tamanho da lambança
maravilhosa que havíamos feito.

— Depois o lobo sexual sou eu... — debochei, ganhando outro tapa.

Após o café da manhã atípico, tomamos um banho juntos e


seguimos para a vila.

No espelho do quebra-sol, Rebeca ajeitava os cabelos, passando o

batom um pouco mais rosado que a cor natural de seus lábios. Admirei de

canto de olho em silêncio, sem conseguir esconder o sorriso.

Logo no início da rua foi possível perceber a Dona Célia de pé


próxima à árvore, como fazia todos os dias. A situação vinha se repetindo
com frequência e, seria uma cena cômica se eu não soubesse o quanto era
dolorida para o Milton. Mas no fundo, talvez fosse bom para ele. Ao menos

com uma vizinha teimosa, ele não ficasse tão solitário.


Ainda que o nascimento de Aurora tivesse amenizado a sua dor,
somente ele poderia dizer quanta falta sentia da esposa.

— Todo dia isso — Rebeca reclamou quando estacionei em frente à

casa deles.

— Você precisa admitir que a sua mãe também não colabora, né,
Bruxinha? — brinquei. Estava mais do que ciente de suas condições, e feliz
pela melhora gradativa. Contudo, de algum modo, sentia que ela fazia

aquilo para implicar o velho.

A briga de vizinhos já tinha se espalhado pela fazenda inteira,


gerando risos e apostas sobre quanto tempo o velho Milton iria precisar
para ceder aos encantos da senhorinha.

Quando Marcela soube, riu bastante da situação, assim como

Antônio não perdeu a oportunidade de zombar do sogro.

Luiza, casamenteira e doida por festas, já estava pensando que daria


uma boa história.

Célia, frágil, delicada em processo de divórcio de um marido


ganancioso.

Milton, forte, grosseiro e viúvo.

As pessoas eram maldosas, mas no fundo, todos desejavam um final


feliz para eles.
Desci do carro, dando a volta e ajudando Rebeca a fazer o mesmo.
Nós nos aproximamos, os cumprimentando.

— Bom dia, patrão — Milton devolveu, com o cenho fechado.

Célia, por sua vez, deu as costas, voltando para casa com algumas
jabuticabas escondidas na blusa. Mesmo que fizesse aquilo todos os dias,
ela seguia padrões. Sempre calada, acompanhada do Peludo e usando a
blusa para guardar as frutas. Ao entrar em casa, seguia até a cozinha para

higienizá-las e só então colocar em uma vasilha.

Segundo o terapeuta, era um mecanismo de defesa que ela criou. Ao


seguir os padrões todos os dias, o cérebro dela entendia que tudo estava
bem e seguia bloqueando o que lhe fazia mal.

Embora estivesse no início do curso, a convivência durante anos

com a sua mãe proporcionou à Rebeca conhecimento de mundo sobre a


depressão e outras patologias psíquicas.

Somado ao que estava aprendendo na faculdade, ela suspeitava de


que Célia tinha passado por uma situação tão traumática que, na tentativa de

se proteger, sua mente havia a deixado naquela condição. Era como se fosse
melhor tê-la daquele modo do que enfrentando o trauma. Além disso, as
mazelas do casamento com Deodato corroboravam para que ela
desenvolvesse a depressão.
— Desculpe, patrão, mas não sei como conseguiu arrumar uma

sogra tão teimosa quanto essa mulher — Milton reclamou, coçando a


cabeça. — Ela parece que não me escuta, ou se escuta, não liga para o que
eu digo. Não sei mais o que fazer.

Toquei seu ombro em um gesto de parceria.

— Por que não relaxa e a deixa? Uma hora as frutas vão acabar e ela

para.

Ele me olhou como se eu fosse um alienígena, mas não retrucou.


Apenas se despediu, dizendo que tinha muita coisa para fazer naquele
domingo e saiu caminhando em direção ao estábulo.

Preparei-me para entrar na casa de Célia, mas fui interrompido pelas

duas figuras masculinas e sem camisa, descendo a rua com uma bola de
futebol na mão.

Escorei na viga da varanda, esperando chegarem em minha direção.

— E aí, peão, depois que se casou esqueceu dos amigos? Não


participa mais das peladas de domingo com a gente. — Jonas estendeu a

mão, flexionando meu braço em toque de ombros.

Washington fez o mesmo, tirando sarro:

— Até eu que sou mais besta preferiria me perder nos braços de


uma ruivinha como a dele do que ficar correndo atrás de uma bola com
gente feia que nem nóis.

Ri, roubando a bola de sua mão, testando se ainda sabia fazer


embaixadinhas. Quando souberam do casamento, meus amigos
perguntaram se eu tinha ficado doido ao me casar na surdina. Depois de
algum tempo para assimilarem o ocorrido, receberam Rebeca de braços
abertos, brincando que agora ela era patroa.

Depois que a apresentei oficialmente como minha esposa, ninguém


havia se atrevido a fazer gracinhas usando o nome dela, e isso se estendia
aos meus amigos. Embora vez ou outra a elogiassem — o que era esperado
devido à sua beleza delicada —, as brincadeiras pesadas tinham sido

extintas.

— Prometo que vou tirar um tempinho para ficar com vocês.


Andam muito carentes ultimamente — zombei.

— Qual é, Lobinho? Tá me estanhando? Eu gosto de mulher —


Jonas entrou na onda.

Chutei a bola em sua direção, iniciando uma disputa para não deixar
a bola cair enquanto continuávamos conversando.

— Por falar em estranhando, ceis tão sabendo que o prefeito tá pros

côco[10] com as pesquisas eleitorais, né? — Washington comentou. — Além

do seu irmão estar ganhando de lavada[11] e o fato da Dona Célia ter saído
de casa estar gerando repercussão negativa, parece que o coronel está

mexendo os pauzinhos[12] para fazer o prefeito se ferrar. Deve ser alguma


retaliação pelo fato de ele não ter cumprido com a palavra ao entregar a

noiva. Só Deus sabe o que virá pela frente. Te cuida, viu, Lobinho? Da
ruivinha também.

Eu estava na mira de Deodato. E ele na minha. Soube que realmente


tentou anular o meu casamento, mas não houve como pelo fato de ser legal.
No entanto, embora fosse um homem ambicioso, ele era covarde. Se

atacasse não faria de igual para igual, esperaria alguma vulnerabilidade. Por
isso, todas as barreiras se manteriam levantadas.

Embora o coronel também me preocupasse, entendi que não gastou


sua energia em se vingar de Rebeca, mas sim do pai dela, com quem tinha

um acordo. Sentia-me comovido pelas suas vítimas, porque um homem


como ele nada mais era do que um pedófilo, agressor de mulheres
indefesas. Se não tivesse tido sucesso com uma, substituía por outra, assim
como já era sabido na cidade de que ele iria se casar em breve com uma

moça ainda mais nova do que sua filha.

De todo modo, eu estaria preparado para o caso de meus adversários


decidissem nos atingir.
REBECA

Peguei algumas fotos sobre a mesa de centro na ampla sala do


casarão, encantada com cada detalhe dos itens que escolhemos para o

casamento. Bolo, docinhos, decoração, flores... tudo incrivelmente delicado


e lindo.

Há alguns dias, tínhamos encomendado o meu vestido e, ao prová-

lo, senti-me mais uma vez estar vivendo um conto de fadas. Agora,

analisando a decoração, senti o coração bater mais forte.

Decidir os detalhes para me casar novamente com Artur, agora do

modo tradicional, legitimava a minha escolha inicial. Há pouco mais de um

mês, eu não me veria casada tão cedo, mas hoje, repetiria sem sombra de
dúvidas. Eu o amava, e queria surpreendê-lo com esta declaração no altar.
— Ei! — Luiza acenou a mão em frente ao meu rosto. — Alguém

aqui?

— Desculpe, me distraí com tanta coisa linda.

— Esse olhar apaixonado diz que se perdeu foi em um certo peão

igualmente rendido. — Ela riu, prendendo os cabelinhos de Bia em duas

marias-chiquinhas. A garotinha de aproximadamente um ano e meio


caminhava de um jeito engraçadinho pela sala tomada de brinquedos

distraída entre um e outro.

— Sabe, Rebeca, eu sempre soube que a mulher que conquistasse o


coração do Artur teria tudo dele, mas não imaginei que fosse do modo

como aconteceu — Marcela confidenciou, acariciando os cabelinhos de

Aurora que mamava embalada em um sono tranquilo.

Ela era uma mulher de poucas palavras, mas de sorriso lindo,

verdadeiro, enérgico e acolhedor. Era uma mulher inspiradora, conectada

com a natureza e com uma força que parecia vir de dentro dela.

Contrariando a introspecção de Marcela, Luiza era alegre e

espalhafatosa. Gostava de rir alto, provocar e parecia ser o exato oposto de

Aloísio. Assim como Marcela, Luiza era intensa, sem medo de enfrentar

desafios e batalhas.
Na poltrona ao canto, Marta observava nossa interação bebericando

uma xícara de café. Enquanto os homens estavam no trabalho, tínhamos

tirado aquele final de tarde para finalizarmos os preparativos do casamento

que aconteceria em breve.

— Ele... — suspirei, mantendo meu olhar na foto em minha mão —

é incrível.

— É mesmo — a matriarca garantiu, orgulhosa do filho. — Estou

feliz por finalmente ver os meus bebês casados e enchendo essa fazenda de

netinhos. Sabem que não aceito menos que dez, não é?

— A minha parte está sendo cumprida com êxito, sogrinha. Você

tem que cobrar da Rebeca e da Marcela. — Luiza passou a mão na barriga

ainda plana, olhando Bia entre os brinquedos.

— Acabei de dar à luz, preciso de um prazo para engatar outro. —

Marcela sorriu, guardando o seio dentro do sutiã. Em seu colo, Aurora

deglutia com a boquinha cheia de leite, enquanto a mãe a colocava para

arrotar. — A responsabilidade é sua, Rebeca.

Arregalei os olhos, engolindo em seco. Encarei as duas bebês,

conjecturando que adoraria ser mãe, mas no momento certo. Por fim, um

pequeno sorriso se fez presente em meus lábios.

— Eu a cumprirei, mas daqui há algum tempo.


— Ah, que gracinha! Ela é toda tímida ainda — Luiza gracejou. —

É novinha, está certa em priorizar a sua vida, profissão e aproveitar o

casamento primeiro. Porque vou te contar uma coisa, ter filho dá trabalho,
viu? Mas é maravilhoso, eu recomendo a experiência.

Meneei a cabeça, aproveitando para guardar as imagens que

havíamos espalhado.

— Eu quero sugerir uma coisa para a sua entrada — Luiza afirmou


empolgada. Em seguida, relatou cada detalhe do que havia pensado. Achei

genial, mas confesso que a ideia me deixou um pouco apreensiva.

— É lindo, mas não vai dar certo! Eu vou cair e passar vergonha na

frente de todo mundo.

— Fique tranquila, Ruivinha. Vai ser inesquecível e o Lobinho vai

amar. Confie em mim, sei do que eu estou falando.

— Eu também acho que ele vai gostar. É a cara de Artur. E arrisco a

dizer que vai arrancar lágrimas dele — Marcela reforçou.

Por um instante, imaginei como ele se sentiria, e aceitei. Ansiosa

para saber como ficaria.

— Ah! — Ela bateu palmas, vibrando. — Então está tudo

praticamente pronto para o casamento. Vou conversar com o Ursão para

disponibilizar as ferramentas que vamos precisar, em seguida, ajustar o


melhor espaço junto ao cerimonial para que não dê nenhum problema. A

segurança também será reforçada, já que com a derrota nas eleições, seu pai

deve estar possesso preparando algum tipo de ataque.

Soltei o ar dos pulmões, sentindo o clima ficar um pouco pesado

com aquela afirmação.

Pensar em papai ou no coronel era como jogar um balde de água fria

na minha alegria. Desde o resultado discrepante nas urnas, ele se mantinha

isolado. Havia saído da cidade e ninguém sabia o seu paradeiro, já que a

cidade estava sendo administrada pelo vice-prefeito.

Ainda assim, eu me apegava à ideia de que ele estava recluso para


se recuperar de tudo o que viveu no último mês. Mesmo tendo ido para o

segundo turno, ele não conseguiu vencer Aloísio em nenhum debate. A

situação ficou vexatória, pois os memes nas redes sociais não só zombavam

de sua capacidade política, mas principalmente, do fato de sua filha e

esposa terem saído de casa repentinamente antes das eleições, assim como o

fato da denúncia malsucedida da emboscada.

No fim, sua vida estava uma catástrofe e muito me preocupava o dia

em que ele decidisse se vingar.

— Ei, Ruivinha, sem essa cara de funeral, hein? Vamos animar,

porque o melhor casamento da região está se aproximando.


Ela tinha razão, eu não podia me deixar abater todas as vezes que

ele viesse em alguma conversa. Por isso, decidi mudar os rumos dos meus

pensamentos.

Peguei na mão de Luiza, expressando com muita sinceridade:

— Muito obrigada pelo seu empenho. Sem você, e o apoio de vocês

— me virei para Marta e Marcela —, eu não saberia nem por onde começar.
Talvez, nem estivesse fazendo essa festa. Querendo ou não, toda a minha

situação virou piada na cidade.

— Ah, mas fique tranquila que eu jamais deixaria esse casório

passar em branco. — A morena me puxou para um abraço acolhedor. —

Além disso, cada uma de nós tem uma vergonha diferente para contar. Uma

vez, a Dona Marta encontrou a minha calcinha no assoalho da caminhonete

do Aloísio, acredita?

Ri alto, olhando a nossa sogra balançar a cabeça para os lados como

se tivesse desistido das maluquices da nora. Luiza me soltou com cuidado,

caminhando até a mais velha.

— Foi humilhante quando eu soube, mas agora já temos intimidade

o suficiente até para comprarmos lingerie juntas, não é, sogrinha? — Passou

os braços nos ombros de Dona Marta, pousando a cabeça sobre a dela. Em

retribuição ao carinho, a senhora tocou a mão da nora com um sorriso doce.


— A gente troca altas ideias, esses dias a fiz comprar uma camisola sensual

de parar o trânsito. Quase matou o Alfredão do coração. No outro dia, a

fazenda estava moendo de problemas e o velho estava só sorrisos para todos

os cantos.

Gargalhei alto, sentindo o ar faltar e a barriga doer. Marcela entrou

na onda, e Bia começou a bater palminhas feliz.

— Algo me diz que esses dois eram piores que coelhos na


juventude.

— A tal da intimidade é a pior coisa que se pode dar a uma pessoa


— Marta fingiu ultraje, cerrando os olhos.

Após as risadas, Marcela continuou caminhando pela sala com a


bebê no colo, batendo levemente em suas costinhas.

— Já que estamos falando de nossas mazelas, preciso confessar uma

coisa, Rebeca. — Olhou-me, parecendo constrangida. — Quero que fique


claro que não passou de uma atitude impulsiva.

— Essa história é boa! — Luiza riu, em antecipação, se sentando no


braço da poltrona de Marta.

— Pode falar, Marcela — incentivei curiosa, sem entender o motivo

daquele suspense todo.


Ela suspirou, como se tomasse coragem, confessando em um único
fôlego:

— Uma vez, quando ainda nem estávamos juntos, Antônio quis me

fazer ciúme ficando com outra garota na minha frente. Na hora da raiva,
não vi nada e me virei para o homem mais próximo e, acabei beijando o

Artur.

Arregalei os olhos, com dificuldade de engolir o bolo da garganta,

mas consegui raciocinar ao indagar:

— Foi na época em que vocês eram adolescentes?

— Não, pouco antes de eu engravidar da Aurora.

Era ruim admitir, mas um sabor amargo se espalhou pela minha


boca. De repente, o ciúme em imaginar os dois se beijando me atingiu. A

irritação por pensar que, de algum modo, eles tivessem sentido ou ainda
sentissem alguma coisa um pelo outro.

— Ei — Marcela veio até mim, tocando a minha mão —, foi uma

atitude impensada na qual eu me envergonhei muito, mas que já está bem


resolvida e enterrada no passado.

Fitei Marcela, podendo enxergar sinceridade em seu olhar. Ainda


assim, estava enciumada. Não deveria ficar, já que aconteceu muito antes de
eu chegar. Mas, porra! Eles eram cunhados e, até pouco tempo, trabalhavam
juntos. Não sabia o que pensar.

— Quis eu mesma te contar antes que soubesse pela boca miúda


para que não imaginasse coisa que não existe — garantiu, com as

esmeraldas verdes focadas em mim. Depois suavizou, rindo: — Você não


tem noção do susto que levei quando vi que era ele, passei um bom tempo

sem conseguir encará-lo.

— Está tudo bem — afirmei baixo, meneando a cabeça.

— Gente, foi muito engraçado — Luiza zombou. — Antônio

chegou aqui tão irritado, estava completamente rendido pela Marcela, mas
ela não facilitava para o lado dele. Eu assisti tudo de camarote.

Marcela sorriu, relaxando os ombros. Eu podia imaginar tudo

acontecendo, porém, mentiria se dissesse que não fui mordida pelo bichinho
do ciúme.

— Bom, já que esta história foi esclarecida, preciso de vocês na


cozinha comigo. Estou pensando em fazer um jantar especial e quero ter um

momento só de mulheres com as minhas noras e netas — Marta anunciou,


se levantando e começando a caminhar no rumo da cozinha.

Com isso, ela encerrou qualquer chance de manter a energia pesada

embora soubesse que eu ainda ficaria pensando naquilo por um tempo.


O ciúme ainda estava escondido no peito, mas eu sabia que não

tinha motivos. A interação entre Artur e Marcela sempre foi muito amigável
e respeitosa. Além disso, não fazia sentido algum ele se casar comigo se

sentisse alguma coisa por ela.

Caminhamos para a cozinha e qualquer pensamento se dissipou em


minha mente quando observei a bancada da pia. Toda vez que entrava ali eu

me lembrava do que Artur e eu tínhamos feito e, em todas elas, a fisgada


atingia a minha intimidade e um sorriso bobo nascia em meus lábios.
ARTUR

De pé no limite entre a varanda e o campo, coloquei as mãos nos


bolsos da calça do terno claro estilo country americano, observando, mais

introspectivo e emotivo do que o de costume, a imensidão verde enfeitada


com flores para o meu casamento.

Meu casamento.

O sorriso pousou em meus lábios ao pensar em tudo que estávamos

vivendo até aqui. Estar ao lado de Rebeca, vivendo cada segundo e


auxiliando-a a desbravar o mundo parecia cada vez mais certo. O seu

sorriso doce e grato deixava o meu coração em paz.

— Acho que nunca vi um noivo com o olhar tão entregue.

A voz grossa do meu irmão mais velho e o toque amistoso em meu

ombro me trouxeram de volta à realidade.


Aloísio estava sorridente, sem barba, com o cabelo penteado para

trás e o terno um pouco mais claro que o meu. Exigência de Rebeca e

Luiza, todos deveriam obedecer à paleta de cores.

Toquei sua mão, permanecemos nos encarando levemente de lado.

— Não sei explicar o que estou sentindo, Ísio. Uma mistura de

felicidade, encantamento e euforia. Na mesma medida, receio de algo que


não sei explicar. Mas a única certeza é de que Rebeca é tudo o que eu

quero. Somente ela, e nunca haverá qualquer outra pessoa que me fará

sentir algo parecido.

— Parabéns! Você está se sentindo como um noivo apaixonado e

devoto à futura esposa.

— Se sentiu assim quando se casou com Luiza?

— Meu casamento foi meio conturbado, você sabe, não é? —


Sorriu, cúmplice. — Mas quando avistei Luiza caminhar até o altar, deixei

de pensar racionalmente. É uma emoção inexplicável, na qual você só quer

estar junto e que aquilo dure eternamente.

Aloísio me puxou para um abraço lateral, tomando cuidado para não


me amassar.

— Estou orgulhoso de você, Artur. Ouviu meu conselho quando te

falei que ainda descobriria a importância de uma mulher na vida de um


homem. Você merece! É um moleque de ouro, embora tenha um sorriso

irritantemente sedutor que atrapalhava meus esquemas antes do Davi

nascer.

Ri, emocionado, tentando não chorar.

Existia uma cultura machista e ridícula de que homem não chora,

mas nunca a levei a sério. Minha mãe criou homens fortes, fiéis aos seus

sentimentos. Claro que, com a fase adulta, não acontecia muito. No entanto,

talvez o equilíbrio emocional que todos admiravam em mim viesse

justamente de me permitir extravasar a emoção na forma que ela viesse,

fosse lutando, cavalgando, rindo ou chorando. Não me sentia menos homem

por isso.

— Para, cara, se eu sair nas fotos com o rosto inchado, o Antônio

vai me zoar a vida inteira.

Aloísio riu. Como se estivesse esperando o momento ideal, o

atentado apareceu.

— Fique tranquilo, nenhuma zoação será capaz de superar o fato de

que você se casou na surdina sem sequer ter beijado a moça.

— Pelo menos eu tinha beijado a sua — provoquei, recebendo um

peteleco na cabeça de imediato.


— Isso, fica aí contando vantagem dessa cena patética. Não se

esqueça de que agora você é casado e sua esposa também fica enciumada

por isso.

— Fique tranquilo, mostrei a ela o quanto esse episódio foi

insignificante para mim e Marcela. No caso, é prazeroso apenas para ver

essa sua cara feia.

— Só não te jogo no chiqueiro porque está todo engomadinho nessa

roupa de pular córgo[13].

— Pelo jeito estão em uma reunião de homens e ninguém me

chamou. — A voz de papai nos fez virar. — Excluíram o velho que colocou

vocês no mundo?

— Espere aí — Antônio interveio. — Quem colocou a gente no

mundo foi a mamãe. O senhor contribuiu com, no máximo, umas

bombadinhas.

— Bombadinha é seu nariz, moleque. Me respeite que aqui sempre

foi espada.

— Gente — atraí a atenção de todos —, tudo o que a gente não

precisa agora é imaginar o pai e a mãe transando, não é? Por favor.

Antônio fingiu colocar o dedo na garganta, colocando a língua para

fora, enojado.
— Então não me provoquem. Porque, meus queridos, já vivi cada

coisa com a mãe de vocês...

— Pai, tá bom... — Aloísio cortou, rindo.

Por fim, Davi surgiu mexendo no botão do blazer.

— Eu tô bonito? Será que a Ana vai gostar?

— Moleque — Antônio brincou —, se a sua mãe te ouve falando

uma coisa dessas, te dá uma coça.

Meu coração passou a bater acelerado quando a cerimonialista

sinalizou o início da celebração.

— Você vai dar conta de dirigir, Lobinho? — Antônio provocou,

notando o meu nervosismo ao assumir a direção do trator.


Confesso que, quando Rebeca e Luiza me contaram a ideia para a

minha entrada, não acreditei.

Achei maluco, mas no fim, não poderia ter gostado mais.

— Claro que vou. Agora vá ajudar a sua esposa a subir.

Ele levantou as mãos em rendição, indo para o carretão com os

demais padrinhos e madrinhas. Enquanto os via se posicionar, coloquei o

chapéu à minha frente, fechando os olhos e tocando sobre a imagem de

Nossa Senhora da Aparecida, protetora do povo sertanejo, minha Santa

preferida. Em silêncio, agradeci. Somente ela seria capaz de entender o que

eu sentia naquele momento.

— Bora, Lobinho, se não a noiva vai fugir — Luiza brincou

empolgada, sobre o carretão em um vestido rosé, assim como Marcela e o


terno de Joe.

Foi engraçado quando ele bateu o pé dizendo que não entraria de

vestido, mas não renunciaria ao fato de que seu paletó fosse da cor dos

vestidos. Para os padrinhos, nada de gravata, apenas o chapéu preto.

— Todos estão seguros? — gritei, certificando-me de que Luiza,

Marcela e Joe estivessem sentados e firmes. Atrás delas, seus parceiros


estavam de pé, animados. — Então bora casar!

O trator roncou tão forte quanto as batidas do meu coração.


Desfilamos pelo caminho de terra enquanto eu tocava

insistentemente a buzina, levando os convidados à loucura quando entramos

no campo de visão. Ao fundo, o country americano tocava alto e animado,

deixando todo mundo eufórico.

Foi divertido. Todos cantando, gritando, e Joe, o mais animado de

todos, se remexia todo espalhafatoso. Assim que paramos em frente ao

caminho para o altar, os padrinhos desceram, entrando aos pares. Confesso

que não lembro muito deste momento, tamanho nervosismo que me


consumia. Sequer parecia que já estávamos casados.

Não perante Deus, Artur. A voz da consciência me lembrou.

Após entrar com o meu pai, mamãe deu a volta e veio ao meu
encontro. Ainda que estivesse nervoso, não pude deixar de notar o quanto

ela estava elegante em um vestido rosa vibrante e os cabelos loiros presos


em um penteado moderno.

Se existia um consenso entre todos da nossa família era que a

matriarca da Fazenda Canto dos Pássaros ficava ainda mais bela com o
passar dos anos.

— A senhora está uma gata! O pai que não se cuide para ver —
elogiei, acariciando suas mãos.
— E você continua o mais galante dos meus bebês — devolveu,
sorridente. — Agora vamos, uma ruivinha linda e sortuda está lá dentro

ansiosa para se casar outra vez.

Sorri, ajeitando nossas posturas para a entrada.

— Ela está bonita?

— Você nem imagina o quanto, filho.

— Eu imagino sim, mãe, porque amo aquela garota em todas as suas


vertentes.

Começamos a caminhar lentamente sob o escrutínio dos convidados


enquanto a banda do cerimonial tocava Strip it Down. Sorri, embargado.

Com certeza tinha sido escolha da Bruxinha e ela optou por me fazer uma
surpresa. A emoção se acumulava lentamente, mas eu sabia que em algum

momento não aguentaria mais represá-la.

Paramos em frente ao padre, que nos recebia sorridente.

Pousei um beijo carinhoso na testa da mamãe, fazendo-a abaixar a

cabeça. No mesmo instante, ouvi um clique e posso jurar que a foto tinha
ficado incrível. Sem sombra de dúvidas, iria para o aparador de fotos da

sala.

— Obrigado por tudo, Dona Marta. A senhora é a melhor mãe do


mundo.
Ela levantou os olhos, acariciando o meu rosto com o olhar
marejados.

— Estou muito orgulhosa do homem que se tornou, meu filho.


Nunca esperei nada menos altruísta de você, e sei que hoje está se casando

por amor, não apenas por um ato de proteção. Que Deus abençoe o seu
casamento com Rebeca e me conceda a chance de ser avó de muitos

netinhos vindos de vocês.

Sorri, beijando suas mãos antes de ela se afastar.

No altar, meus irmãos, cunhadas e Joe se posicionaram felizes. Na

primeira fila, Dona Célia estava linda, em um vestido claro, ressaltando a


beleza delicada.

Empolgada, Luiza pegou o microfone, anunciando eufórica.

— Lobinho, se prepare, porque a noiva vem aí!

Se eu tinha ficado feliz ao entrar de trator, apegado à terra e às

minhas origens, imagina o que senti quando a colheitadeira verde e


imponente surgiu em meu campo de visão, com um véu branco preso no
topo do elevador balançando ao vento. Na frente, Rebeca de pé, linda com

os cabelos vermelhos e vibrantes destacando no meio da roupa clara.

À medida que a máquina agrícola se aproximava, todo o sentimento

veio à tona, intenso demais para ficar preso em mim.


Eu não sabia explicar quando comecei a gostar de Rebeca. No

entanto, encontrá-la na carroceria toda molhada e indefesa foi o ponto de


ruptura para que se tornasse amor, ainda que não soubesse disso naquela

época.

O veículo parou na entrada do caminho para o altar, assim como fiz


com o trator. Rodrigo a ajudou descer e, acolhendo com gentileza o seu

braço, passando a caminhar lentamente até mim ao som instrumental de


Promete, do Luan Santana.

No início, Rebeca se mostrou triste ao não entrar com o pai. Era


compreensível, afinal ele não tinha morrido, só era um canalha de marca

maior. Contudo, sua expressão se alegrou quando Rodrigo segurou a sua


mão garantindo que estaria ao seu lado. Meu pai também se colocou à
disposição se ela quisesse, deixando claro o quanto ela tinha sido bem

acolhida pela nossa família.

Emocionado, percebi a lágrima quente escorrendo pelo meu rosto,

sentindo-me totalmente entregue àquela garota.

Eles pararam à minha frente, tão emocionados quanto eu. Rodrigo

tentava segurar o embargo, mas estava tocado. Minha Bruxinha, em


contrapartida, estava vermelha, levemente trêmula.
Rodrigo tocou a mão de Rebeca com cuidado, direcionando-a para

mim. Manteve o olhar sério no meu.

— Não tenho dúvidas do seu sentimento pela minha irmã, assim

como sei que é o homem certo para ela. Mas se ousar a ser menos do que
essa garota merece, se verá comigo.

Sorri, puxando-o para um abraço emocionado

— Ah, vem cá, cara.

Por fim, ele a abraçou e se afastou. Toquei a mão de Rebeca,


tentando secar as lágrimas de meus olhos com a outra.

— Nunca viu seu marido tão chorão, não é? — Em seguida, beijei


sua testa com carinho, focado em cada detalhe dela. — Você está linda!

Ela sorriu, beijando minhas mãos, emotiva ao dizer para que só eu


ouvisse:

— Eu ia deixar para te falar nos votos, mas não quero que pense que

foi pelo ritual do casamento. Então preciso te falar agora. Eu te amo, Artur!
Amo muito, e jamais serei capaz de demonstrar em palavras tudo o que

você me faz sentir.

Não que suas ações não tivessem deixado claro, mas ouvi-la dizer

com todas as letras causou uma paz inexplicável no meu peito.


— Acho que você leu os meus pensamentos, Bruxinha Feiticeira —
confidenciei, a abraçando forte. — Porque eu também ia me declarar para

você antes dos votos, mas ansiosa e impulsiva como sempre — brinquei,
tocando seu nariz —, não me deixou começar. — Alisei a bochecha
maquiada, ressaltando ainda mais a sua delicadeza. — Eu te amo, Bruxinha.

Cada pequeno detalhe seu. A sua pureza, a timidez, o seu jeito meio
desastrado, a sua simplicidade, o quanto ama esta fazenda tanto quanto eu e

o principal, amo como me faz sentir completo. Com você, eu encontrei o


que nem sabia estar procurando.

Passei meus braços pela cintura fina, tomando cuidado para não
puxar o véu, e tomei sua boca sem me importar com os protocolos. Rebeca

riu contra os meus lábios quando os convidados se eriçaram, e o padre


limpou a garganta atrás de mim.

— Ainda está cedo para beijar a noiva, meu filho. Espera um

pouquinho.

Afastei-me de Rebeca rindo, limpando levemente o seu batom,

enquanto pegava em sua mão e em seguida e nos posicionava em frente ao


sacerdote.

Carismático, ele saudou a todos, começando a cerimônia.


— Meus queridos e minhas queridas, outro dia, encontrei com um
amigo por acaso e, empolgado, contei que celebraria a união de Artur e

Rebeca esta tarde. Imaginem só qual não foi a minha surpresa ao descobrir
que ele tinha sido o juiz responsável por realizar o matrimônio diante as leis

do homem? — brincou, fingindo ultraje. Ainda assim, sua voz era branda e
acolhedora. — Embora seja muito comum hoje em dia este tipo de

dinâmica, devo ressaltar que vocês não poderiam ter escolha melhor do que
se casarem perante o Pai Celestial. Naquele dia, João me contou que os

noivos exalavam paixão e, diante aos olhinhos brilhantes e a cena


protagonizada há pouco — arrancou risada dos demais —, não poderia

negar o quanto ele estava certo.

As palavras sobre a construção e manutenção do amor diário nos


fizeram refletir, até a entrada das alianças.

Luiza fez o maior suspense sobre como seria, e cheguei a pensar que
seria algum dos meus sobrinhos. No entanto, não pude deixar de me
emocionar ao ouvir a voz de Davi vindo da mesma direção em que

entramos anteriormente, chamando a atenção de todos nós.

Com as mãos de Rebeca firmes entre as minhas, observei cada


detalhe da cena à nossa frente. O garoto estava sobre o lombo de Ventania.
O cavalo estava com a crina bem cortada, arreio marrom, cascos bem
cuidados e enfeitado para o casamento. No peito, uma plaquinha escrita a
giz “Deixei de ser o único amor do papai, mas te aceito como mamãe,
Rebeca.”

As gargalhadas soaram altas com a brincadeira, assim como as

minhas.

Eles pararam na entrada do caminho e me vi um pouco perdido


quanto ao que fazer.

Rebeca acariciou meus dedos, encorajando:

— Vai, ele está te esperando.

Assenti, pousando suas mãos com carinho sobre o vestido angelical,


caminhando até o meu cavalo.

Acariciei o focinho, pousando minha testa em sua fronte, não


contendo a lágrima quando ele relinchou, como se dissesse que continuaria
comigo para o que der e vier.

— Eu te amo, cara! E quero te apresentar aos meus filhos, assim


como fazer com que eles cresçam juntamente com os seus filhotes, como
nós dois fomos por muitos anos.

Ele reagiu, fazendo-me continuar as carícias.

— Aqui embaixo, titio. — Davi apontou para o embrulho delicado.

Tinha até me esquecido das alianças.


— Valeu, carinha! Você foi demais! — Bati a mão aberta, em
seguida, fechada na sua.

— Tá bom, titio. Agora vou levar ele de volta antes que faça cocô e
suje aqui tudo. A mamãe mandou eu ser rápido.

Gargalhei. Virando-me para o altar novamente quando ele se


afastou. Limpei o rosto outra vez, aproximando-me de Rebeca enquanto
desamarrava as alianças.

— Você sabia de tudo, não é, Bruxinha?

— Não poderia estragar a surpresa. Sabia que você iria gostar.

— Eu amei — confessei, entregando os círculos de ouro para a


benção do padre.

Decidimos manter as alianças antigas porque valorizamos a


importância delas quando decidimos nos unir no cartório. No entanto, eu

tinha mandado fazer outra como uma espécie de aparador para Rebeca,
sendo assim, duas alianças para ela.

O religioso entregou o microfone para minha esposa, deixando-a à


vontade para os seus votos.

— Artur, diferente da primeira vez, em que eu estava muito abalada


por tudo o que tinha acontecido, hoje eu quis te dizer tudo o que sinto por
você. — Sorriu docemente, trêmula ao segurar os meus dedos. — Ainda
que nossas famílias tivessem suas diferenças, isso nunca atingiu a mim e a

você. De longe, eu admirava o homem tranquilo e centrado que você


sempre se mostrou. Em todas as vezes, uma espécie de carinho diferente
tomava o meu peito. Então os dias foram passando, e quando eu menos
esperava, você me olhou como se visse a minha alma. Naquele instante eu
soube que nada entre nós seria igual, mas jamais imaginei que fosse

acontecer tão rápido e tão intenso como foi. Você me tornou protagonista de
minha própria história. Somente nós dois podemos entender o que sentimos
um pelo outro, ainda assim, não conseguimos explicar. Você é muito mais
do que eu poderia sonhar para mim. Um homem protetor, valente e muito

carinhoso. Hoje, quero que receba esta aliança como prova de tudo o que
sinto por você. Todo o meu amor e a minha fidelidade. — Deslizou o anel
pelo meu dedo, tocando seus lábios quentes em seguida.

Segurei a emoção na garganta, alisando o dorso macio, recebendo a


sua aliança em seguida.

— Padre, inicialmente, queria deixar claro ao senhor que não estou


cometendo nenhuma heresia. Esse é apenas o meu modo carinhoso de me
referir à minha noiva.

Ele meneou a cabeça, em concordância. Segurei a mão de Rebeca

entre a minha, confessando:


— Bruxinha, por você eu mudei os rumos da minha vida e faria

quantas vezes fossem necessárias. Como a chuva de verão, você chegou e


inundou todo o meu peito. Talvez eu não esteja sendo tão metafórico assim,
já que tudo aconteceu em um dia frio e chuvoso. — Eu a fiz sorrir
emocionada. Ao fundo, pude ouvir alguns suspiros apaixonados. — A

grande ironia se deu porque era para eu te aquecer, mas no fundo, você
trouxe calor para a minha vida, eu sequer sabia que precisava, até você
chegar. Sou privilegiado por você ter escolhido a minha caminhonete para
se esconder e o meu peito para fazer morada. — Deslizei a nova aliança ao

lado da outra. — Como disse no nosso primeiro voto, agora mais forte do
que nunca, é do meu desejo que a nossa relação floresça e perdure por
muitos anos. — Beijei sobre o anel, com o coração em paz. — Eu te amo,
Rebeca. Amo demais!

Ela fungou, quando terminei, beijando seus dedos na sequência.

Pegando a todos de surpresa, ela se virou para o sacerdote,


gracejando:

— Desculpe, padre, mas não tem como um homão dessa estirpe —


deslizou a mão no ar apontando de cima para baixo — se declarar para mim
e eu não poder beijá-lo.
O senhor riu, achando graça de toda a maluquice daquela família.

Ainda bem que estava acostumado conosco.

— Bom, o rito manda o noivo beijar a noiva, mas... essa


modernidade está muito para frente. Podem se beijar.

Rebeca riu, levantou os pés para se esticar em minha direção, mas

não deixei.

— Ãhn, Ãhn... Eu sou à moda antiga, Bruxinha — declarei,


enfiando a mão por sua nuca, centrado no rosto bonito. Meus olhos caíram
para os lábios carnudos, evidenciados pelo batom avermelhado. Curvei o
corpo para trás, arrancando gritos e aplausos quando a beijei apaixonado.
REBECA

A cerimônia tinha sido ainda mais encantadora do que eu poderia


imaginar. Acompanhar Artur tão emotivo deixava claro o quanto ele era

perfeito. Não tinha medo de se entregar aos seus sentimentos e isso só


aumentava a minha admiração por ele.

Em cada canto, os detalhes provavam que este era um casamento de

princesa. Fiz questão de que a iluminação externa estivesse como na noite

em que dançamos pela primeira vez. Fios com lâmpadas amareladas faziam

o caminho entre as árvores, causando um clima de aconchego e alegria às


pessoas que dançavam animadas sob o comando de uma dupla sertaneja.

Desde que a nossa festa de casamento foi anunciada, a cidade toda

estava em polvorosa, soube que havia uma disputa sobre os nomes a serem
convidados. Artur era benquisto por todos, então a festa estava lotada, ainda

que todos tivessem passado pela segurança criteriosíssima na porteira.

Um touro mecânico fazia a alegria das crianças e de alguns adultos,


arrancando gargalhadas e apostas. Joe gritava ensandecido sobre o

brinquedo.

A Lua estava majestosa no céu, como se estivesse tão alegre quanto


todos nós, eternizando ainda mais no nosso momento.

— Agora não tem mais volta, esposa, você disse sim duas vezes —

gracejou, enlaçando minha cintura enquanto dançávamos no meio das


pessoas.

Tinha tirado o paletó, mantendo apenas a calça clara, a camisa

branca com o primeiro botão aberto e o chapéu preto. Lindo!

— Eu nunca quis que tivesse — fui sincera.

Artur me presenteou com um sorriso lindo, pousando sutilmente

minha mão direita sobre o seu ombro. Se ele soubesse o poder que esse

simples gesto tinha sobre mim...

— Está feliz?

— Me sentindo uma princesa da Disney. — Rodeei os braços pelo

seu pescoço, apaixonada.


— Não digo da Disney, mas uma princesa você é. A princesa da

Canto dos Pássaros. A princesa do Artur.

— Príncipe Artur — corrigi, com o dedo em riste.

Riu alto, jogando a cabeça para trás, aproveitei para fechar os lábios

em seu queixo.

— Príncipe? De onde tirou isso?

— Do meu conto de fadas, ué. Onde o príncipe encontra a princesa

em apuros e a salva. Eles se casam e vivem felizes para sempre.

— Não se esqueça de que estamos no século XXI, onde as mocinhas

não são mais indefesas. Agora, elas conseguem se defender sozinhas.

— Assim como você me ensinou.

— Não. — Acariciou minha bochecha, sério. — Como você se

esforçou para aprender. Assim como foi corajosa ao fugir de casa, forte ao

cuidar da sua mãe e está se tornando independente. É assim que quero te

ver, destemida a ponto de não precisar de mim ou de ninguém para viver a

sua vida.

A sua fala me atingiu de modo ambíguo. Feliz por ele ser o tipo de

homem que encoraja e não se sente fragilizado por isso. Angustiada porque

talvez estivéssemos vivendo situações boas há algum tempo. No fundo do

peito, uma certeza de que algo poderia acontecer e afetar a nossa alegria.
— Quero que você esteja nela. — Abracei-o com força.

— Não estou dizendo ao contrário, Bruxinha. Quero estar ao seu

lado te vendo desabrochar. Gosto do seu jeito delicado e inocente, mas

aprecio ainda mais a mulher forte e corajosa a qual você está amadurecendo

para se tornar.

— Você é incrível, sabia? — Beijei-o, apaixonada.

Ficamos trocando carícias pelo que pareceu horas. No entanto, o

arrepio subiu na espinha quando notei Roberto, o chefe de segurança da

fazenda, se aproximando de Artur discretamente, dizendo baixo em seu

ouvido:

— Desculpe interrompê-lo, chefe, mas há um homem fazendo

tumulto na porteira, disse que não vai embora enquanto não falar com o

senhor. Devo chamar a polícia?

O arrepio subiu pela espinha. Pensei ser o meu pai ou o coronel, mas

seria pouco provável eles se exporem diante de praticamente a cidade toda.

Segurei no braço de Artur, entrelaçando nossos dedos.

— Qual o nome dele? — O tom de Artur era sério, o semblante

fechado em nada se parecia com o do homem de segundos antes.

— Bruno Vilela, senhor.


Franzi o cenho. Não reconhecia o nome, mas pelo sobrenome sabia

que estava ali pelo coronel. Meu peito se contraiu novamente.

— Certifique-se de que ele não está armado e leve-o para perto da


arena.

O segurança assentiu, saindo tão sutil quanto chegou.

— Artur, não o deixe entrar. Deixe que os seguranças chamem a

polícia — pedi aflita, agarrando seu braço.

Ele se virou para mim, segurando meus braços com gentileza.

— Ele não será louco de fazer alguma burrada na frente de tanta

gente, Bruxinha, mas preciso saber o que eles estão armando. — Segurou

meu rosto entre as mãos e beijou minha testa. — Junte-se à minha mãe,

volto logo.

— Artur, espera... — insisti, vendo-o desfazer o nosso contato e se

afastar.

Fiquei parada em meio à multidão dançante, um pouco absorta pelo

que poderia acontecer. Voltei à realidade quando ele já caminhava alguns

metros à frente.

Tentei não causar alarde, saindo discretamente. Ao sair do campo de

visão dos convidados, andei apressada, mas trombei com Marta, fitando-me

atenta.
— Estava te procurando. Você está bem?

Meneei a cabeça para os lados, continuando a caminhar com ela ao

meu lado.

— O Artur foi se encontrar com um tal de Bruno Vilela e eu não sei

o que pode acontecer — disparei de uma só vez, nervosa.

— Não se preocupe, querida. Alfredo e os meninos já estão cientes e

foram até lá. Agora fique calma.

— Não conseguirei enquanto este homem não for embora.

— Vou com você.

Ao nos aproximarmos, vi Artur de pé, notando-o em posição de

defesa, como havia me ensinado. Os braços estavam cruzados sobre o peito

e as pernas bem firmes no chão. Sabia que ele não permitiria qualquer

ofensiva.

— Diga logo a que veio, Bruno — disse, sério.

Ainda que a música tocasse alta, era possível o homem com nitidez,

parecia estar embriagado.


ARTUR

— Eu vou te matar — Bruno ameaçou, trôpego e cuspindo saliva no

ar.

Franzi o cenho, irritado por ter tido a minha festa de casamento

atrapalhada por um homem que nitidamente não estava são. Concentrado


em um possível ataque, indaguei, impaciente:

— Cara, qual é o seu problema? Na boa, o que eu te fiz para ser tão

obcecado por mim? Nunca te fiz nada.

— Eu acho que é paixão reprimida — Antônio zombou, ainda que

estivesse sério, não muito distante de nós, ao lado do meu pai e Aloísio.

— Cala sua boca! — Bruno cuspiu outra vez, alterado.

Em seguida, avançou em minha direção, mas seus movimentos

languidos e descoordenados me permitiram imobilizá-lo com uma chave de


braço.

Bruno se debateu, tentou se soltar, mas estava bêbado demais para


ser assertivo. Descontrolado, vociferou, xingou e, quando eu menos

esperava, chorou.

— Você a tirou de mim — gritou, perdendo as forças. — Ela era

minha!

— Ela quem? — inquiri, tentando achar algum sentido no que ele


dizia.

Percebi que o ataque de fúria havia passado, naquele momento ele


era apenas um homem entregue à tristeza. Por isso, o soltei. Bruno caiu de

joelhos na terra, limpando as lágrimas com as costas das mãos.

— A Amanda.

— Que Amanda? — Tentei puxar pela memória, mas nada me

ocorreu.

Ele se levantou, mexendo os braços com euforia ao explicar:

— Ela era minha namorada e terminou comigo para ficar com você.

Sabe o que ela me disse? Que o seu jeito doce era o que a encantava. Meu
ovo pro seu jeito doce — esbravejou com o dedo em riste.

Só então me lembrei da garota loira de um passado muito distante.


— Isso já tem mais de 10 anos. Nunca tivemos nada mais do que
alguns poucos beijos — revelei, notando as pessoas se aproximando.

De canto de olho, vi Rebeca de pé, destacada pelo vestido branco


em meio à parca iluminação dali. Estava rígida, de braços cruzados e

mesmo de longe pude sentir que estava tensa, agora não apenas pela
presença de Bruno, mas pelo que ele havia dito.

— Ela era e ainda é o amor da minha vida. A perdi por sua culpa.

Alterado e gritando palavras desconexas, Bruno tentou me acertar


alguns golpes. Ri, sem humor, ao constatar que um maluco havia invadido o

meu casamento para desenterrar uma aventura que tive no passado.

— Não está aqui para um acerto de contas em defesa do seu pai? —


questionei, apenas para garantir.

— É claro que não. Nunca concordei com o fato de ele ser um


doente e se casar com meninas mais novas que a minha irmã caçula.

Bruno parecia sincero, até ofendido por eu ter pensado aquilo dele.
Estava bêbado, despido de qualquer armadura. Naquele instante eu percebi
que ele não era uma má pessoa, apenas um homem mimado, acostumado a

ter o mundo aos seus pés que não sabia como lidar quando os
acontecimentos não seguiam o esperado.
Embora merecesse uma coça para aprender a ser gente, não seria eu

a fazer. A vida se encarregaria disso, assim como já estava fazendo. Deste


modo, amenizei.

— Se quer um conselho, a vida passa e ela nem deve se lembrar

mais de mim, assim como eu não me recordava dela. Então, se realmente


não a esqueceu, por que não vai para casa, se cure dessa ressaca e depois

vai procurá-la?

Bruno piscou em minha direção, como se não acreditasse na minha

hombridade.

— Sem ressentimentos? — Esticou a mão.

— Sem ressentimentos — garanti. — Desde que você não se torne

uma ameaça.

Surpreendendo-me, Bruno me puxou para um abraço, chorando em


meu ombro.

— Desculpe por esse vexame. O que eu puder fazer para amenizar,


farei, basta dizer.

— Apenas mantenha seu pai longe da minha mulher. — Mantive


meu olhar preso ao seu, sério.

— Fique tranquilo, ele nem se lembra mais dela.


— Está tudo muito lindo, mas agora você precisa ir para a sua casa

— Antônio anunciou, parando próximo a nós, olhando para o Bruno. — E o


Artur, limpar a cagada que você aprontou. — Virou-se para mim. —

Lobinho, nunca vi a ruivinha com o olhar tão assassino.

Busquei-a no lugar que estava antes, mas apenas vi o vestido branco

ao longe. Rebeca caminhava rápido, de cabeça baixa. Parecia furiosa.

— Estou vendo que alguém vai morrer no dia do próprio casamento


e deixar a viúva jovem e rica — meu irmão continuou.

— Foi mal, cara. — Ouvi a voz de Bruno antes de menear a cabeça


e me afastar.

Enquanto corria até ela, notei que Aloísio e meu pai já tinham

dispersado a multidão.

— Amor, espera — gritei.

Ao invés de parar, ela acelerou.

Embora estivesse irritado com o que Bruno causou, não pude conter
um leve sorriso ao notar o quanto a minha baixinha era ciumenta.

Ela entrou no casarão, eu segui logo atrás.

— Ei, me escuta — pedi, ao passarmos pela sala.


Rebeca havia se fechado em uma concha, sua expressão corporal
denunciava toda sua exasperação. Ela não iria me ouvir.

Antes que pudesse subir as escadas, passei meu braço ao redor de

sua cintura, puxando-a para dentro do escritório, fechei a porta e a


imprensei contra a parede.

— Me solta — ordenou, só então me olhando.

Os olhos dourados crispavam um dourado tão intenso como o fogo.


As narinas fremiam. O rosto estava rubro.

Nunca pensei que pudesse ficar tão linda nervosa.

— Apenas quando você falar comigo.

Rebeca cruzou os braços, mordeu o lábio inferior e soltou o ar preso

de uma vez.

— Quem é Amanda?

Não consegui segurar o riso. Afundei o nariz em seu pescoço,

deixando-a ainda mais irritada, empurrando meu peito.

— Você ri? — bradou, indignada. — Eu pareço uma piada para

você?

Colei meu corpo ainda mais contra o seu, colocando toda a cabeleira
ruiva sobre o ombro esquerdo, expondo o pescoço delicado. Ela suspirou,
em uma mistura de desejo e irritação. Desci as alças finas, espalhando
beijos suaves entre a clavícula e a orelha, sussurrando:

— Se soubesse o quanto fica adorável enciumada, teria pena do seu


marido.

Ela encolheu os ombros, se arrepiando com o roçar da minha barba.

— Não tente me ludibriar. Quem é Amanda?

— Uma garota que fiquei há muitos anos, nem sonhava em te


conhecer. — Passei a língua até a sua orelha, mordendo o lóbulo,

provocando rouco. — Mas que tal a gente parar de falar dela e antecipar a
nossa noite de núpcias?

Fechei meus dedos sobre os seus, colocando sobre a minha ereção,


fazendo-a me apalpar com gosto.

— Olha como me deixa, Bruxinha. — Mordi seu queixo, sentindo-a


estremecer, esquecendo qualquer coisa que não fosse a lascívia que a varria.

— Artur... — gemeu, mantendo o toque mesmo depois que tirei a


minha mão. — Estamos no escritório, alguém pode ouvir.

— Que se dane, somos os noivos!

Ela arquejou quando mergulhei minha língua em sua boca, cheio de


tesão. Apertei os seios macios sobre o vestido, embolando-o em sua cintura,

descendo a mão até a boceta pequena. Gemi quando ela abriu a minha
calça, procurando avidamente o meu pau, começando uma masturbação
gostosa ainda por cima da cueca. Em seguida, abaixou a peça apenas o

suficiente para que ele saísse.

Afastei nossos lábios, preparando para chupá-la embora ela


estivesse completamente molhada em meus dedos. Fiquei louco quando ela
não deixou, ao mandar:

— Sem preliminar. Quero te sentir logo dentro de mim.

— Você quem manda, Bruxinha.

Flexionei os joelhos, rasguei a calcinha e guiei a glande até sua


entrada. Rangi os dentes, sentindo-a abrir lentamente, a carne quente e
molhada abraçando o pau sedento por ela. Rebeca arquejou alto, não
conseguindo conter o tesão tão forte quanto o meu.

Arremeti com força, não diminuindo por nenhum segundo a

intensidade, a ponto de fazê-la gritar em minha boca, puxando meus cabelos


ensandecida. A acústica de nossas pelves se chocando e os nossos arquejos
foram o suficiente para me fazer pirar.

Acariciei o clitóris inchado, puxando os fios de sua nuca com a

outra mão. Em um beijo voraz, Rebeca gozou forte puxando os meus


cabelos, arrastando-me para o abismo logo em seguida.
— Depois dessa reação — ofeguei, sentindo meu esperma
escorrendo dentro dela — vou te provocar ciúmes frequentemente.

Ela sorriu de olhos fechados, lânguida encostando a cabeça na porta.

— Se a reconciliação for sempre for assim, eu não me oponho.


ARTUR

Parei no batente da porta, cruzando os braços e admirando a minha


ruivinha pentear os longos fios com calma. Rebeca sorriu ao me ver,

concentrada na tarefa. Era um de meus passatempos favoritos admirá-la se


cuidar, embora não precisasse de qualquer artifício.

Os movimentos delicados e repetitivos embalaram minhas

recordações desde o nosso casamento.

Rebeca e eu embarcamos para o arquipélago de Fernando de


Noronha para a nossa lua de mel. Foi incrível vê-la pisar na praia pela

primeira vez, parecia uma criança descobrindo um brinquedo novo.

Os pés pequenos com unhas pintadas de esmalte claro se

confundiam com a areia. Segurando o chapéu praiano e vestida em uma

saída de praia branca, ela agarrou minha mão, fazendo-me acompanhá-la


em uma corrida até a água cristalina. Foi impossível segurar o riso diante

sua felicidade.

Quando me contou que mal tinha saído de Alta Colina, eu soube que
ela amaria qualquer lugar que eu escolhesse para a nossa lua de mel.

Contudo, quando dei as opções de praia ou neve, seus olhos brilharam com

a primeira opção, então não tive dúvidas ao planejar o nosso roteiro nos

mínimos detalhes.

Aproveitamos tudo o que um casal tem direito. Ficamos em um

hotel romântico, visitamos os melhores restaurantes, fizemos trilhas,

conhecemos as ilhas, mergulhamos, vimos os golfinhos e, é claro,

transamos muito. Embalados pelo alvorecer, entardecer e anoitecer nas ilhas


paradisíacas e românticas.

Foi incrível!

Prometi que a levaria para conhecer o mundo apenas para presenciar

aquele sorriso arrebatador.

A nossa conexão parecia ainda mais forte, a ponto de, em alguns

momentos, eu saber exatamente o que ela estava pensando apenas pela

intensidade do brilho de seu olhar.

— O que foi? — ela indagou, fitando-me no reflexo do espelho.


Embora a cena como um todo fosse despretensiosa, assim como o

semblante angelical, Rebeca estava sensual em uma camisola preta de seda

que havia ganhado de Luiza.

Caminhei até ela, encostando o peito em suas costas, rodeando

minhas mãos pela sua barriga.

— Estava aqui pensando no quanto nunca pensei que amar fosse tão

bom.

— Ah é? — Sorriu, virando-se para mim.

Mordisquei seus lábios, me declarando:

— Sim, e amo o modo como você me ama. Como o meu nome soa

nos seus lábios. Como o som da sua risada faz as batidas do meu coração

acelerar. O modo como me beija, me olha, me toca, como se sente segura e

protegida comigo e até como morre de ciúmes.

Rebeca rodeou os braços pelo meu pescoço, alisando meus cabelos

enquanto salpicava beijos pelo meu rosto.

— Acordou inspirado esta manhã?

— Você me inspira. — Beijei seu queixo.

Seu olhar se tornou apaixonado, ao confessar:


— Tenho tanto medo de acordar e perceber que tudo o que estamos

vivendo não passou de um sonho bom. Eu te amo tanto que a mera

possibilidade de ficar sem você faz o meu peito doer.

Apertei seu corpo contra o meu, afagando seus cabelos ao garantir:

— Isso não vai acontecer, meu amor. Eu te prometo.

Levei-a para o banho naquele clima gostoso. Em seguida, descemos

para o café com todos à mesa, empolgados com os preparativos das festas

de final de ano na fazenda.

Mamãe tinha incumbido à Rebeca a tarefa de auxiliar nas muitas

ações sociais que a fazenda prestava aos funcionários naquele período do

ano. Ela estava radiante ao finalmente começar a trabalhar conosco.

Todos sabíamos que Rebeca não poderia estagiar na sua área sem ter

uma psicóloga registrada no CRP[14] para a supervisionar. Por isso, até que a

expansão do posto médico fosse concluída e essa profissional contratada, a

Bruxinha cuidaria de atividades administrativas da área social.

Após o café, a levei até a casa de sua mãe, de onde faria alguns

orçamentos com fornecedores por telefone enquanto acompanhava Dona

Célia. Rebeca havia entrado de férias da faculdade, então seria mais fácil

conciliar com a correria de final de ano.


Com o afastamento de Aloísio para assumir a prefeitura no início de

janeiro, nós havíamos feito o remanejo de funções, cada um passando a

assumir total responsabilidade por suas áreas. Agora era oficial.

— Vai doer, mas vou cuidar de você e ficará bem, cara — afirmei,

ao desligar o aparelho de ultrassom.

Ainda que não aceitasse outro veterinário que não fosse Marcela,

Fúria não teve escolha quando lesionou o ligamento suspensório em um de

seus arroubos impetuosos. Ele se mexia inquieto na cocheira, nervoso e,

provavelmente, com muita dor, mas permitiu que eu me aproximasse para

examiná-lo.

Fiz a prescrição, mediquei e deixei as observações para que o seu

cuidador o acompanhasse.

— Melhoras, rapaz — avisei, afastando-me da baia. — Dinho,

qualquer coisa, me liga.

— Pode deixar, Artur.

Despedi-me, entrando na caminhonete e dirigindo em direção à vila

para buscar a Bruxinha para almoçarmos. À tarde, ela e mamãe tinham

combinado de ir à cidade.

Percebi que alguma coisa não estava certa quando parei em frente à

casa de Célia e notei Vânia e Olegário gesticulando agitados de pé na


varanda. Na porta da sala, algumas jabuticabas e cacos de vidro espalhados

pelo chão. Estranhei, franzindo o cenho preocupado e descendo rápido da

caminhonete.

— Ah, Artur! Que bom que você chegou. — Ela se aproximou

rápido antes mesmo de eu pisar na calçada. Parecia nervosa.

— O que aconteceu?

— A Rebeca... — Soltou o ar preso, tentando dizer sem fazer alarde

para as outras casas. — Ela descobriu a verdade e se revoltou. Aproveitou a

caminhonete do Olegário e saiu daqui desembestada.

— Que verdade? — indaguei, aflito.

Vânia estava trêmula, mas a cada palavra que proferia, eu conseguia

imaginar o desespero crescendo em Rebeca. Meneei a cabeça, dando as

costas e voltando para a caminhonete e acelerei.

Saí da vila em alta velocidade, vendo a poeira da estrada levantar,

mas sem efetivamente enxergar.

Dirigi como um louco, só conseguindo pensar nos perigos que

Rebeca estava correndo ao pilotar desesperada e completamente fora de si.

Depois que voltamos de viagem, eu havia começado a ensiná-la dirigir

mesmo que ainda estivesse nas aulas teóricas da autoescola. Porra! Ela
ainda não tinha segurança para andar sozinha, ainda mais naquele estado.

Eu jamais me perdoaria se algo acontecesse.

O som do telefone tocando nos alto-falantes me trouxe de volta à

realidade. Ao ver o nome do meu pai no painel, pensei em desligar, mas

desisti. Poderia ser alguma notícia sobre Rebeca.

Assim que aceitei a chamada, a voz grossa e preocupada ecoou alto:

— O que aconteceu para você passar por mim como um foguete?

Sentia meus ombros tensos, a boca seca e o coração acelerado.

Quanto mais eu avançava, mais a cidade parecia estar longe.

— Artur, consigo ouvir sua respiração. Para onde você está indo?

— Para a casa do prefeito, tentar impedir que Rebeca acabe com a

própria vida.
REBECA

Pela janela, observei a mamãe em sua tarefa diária de apanhar


jabuticabas acompanhada de Peludo. Ao telefone, ouvia o vendedor

detalhar as melhores condições para o alto volume de cestas natalinas que a


fazenda estava comprando para os funcionários.

Nos últimos dias eu tinha me habituado a vê-la mais consciente.

Respondia-nos, às vezes conversava baixinho consigo mesma e até cantava

ora ou outra uma canção antiga.

Anotei todas as informações na planilha de custos, agradecendo e

desligando em seguida. Estava satisfeita por ter conseguido o melhor custo-

benefício e prazo de entrega. Tinha certeza de que Marta também gostaria.

Ela havia me recebido tão bem, era importante para mim estar à

altura de suas expectativas.


Saí do quarto procurando pela minha mãe, surpreendendo-me ao

encontrá-la parada de pé na porta da sala com os olhos vidrados no

noticiário da TV. Ao seu redor, as frutas ainda rolavam pelo tombo recente.

— Mamãe. — Andei até ela, notando pela visão periférica as

imagens do meu pai em uma reportagem. Parei, tocando suas mãos,

alarmando-me com o quanto estavam geladas. — Mamãe, a senhora está

me ouvindo?

Ela não expressou nenhuma reação.

Pousei a mão em suas costas, tentando fazê-la entrar e se sentar, mas


quando seu olhar perdido encontrou o meu, ela me empurrou, fazendo-me

desequilibrar para trás e me chocar contra a maçaneta.

— Maldito! Maldito! — repetiu várias vezes aos gritos.

Arregalei os olhos, estarrecida com a reação repentina. Senti o


incômodo nas costas, mas não liguei. Vê-la em tamanho descontrole me

deixou confusa por um instante, sem saber o que fazer para acalmá-la.

Caminhei até o controle, desligando a TV. Em seguida, voltei-me

para ela, tentando distraí-la:

— Mãe...

— Maldito! — gritou mais alto, se agitando. — Cruel. Ela morreu

por sua culpa.


Absorvi o impacto de suas palavras pesadas e dolorosas sem

entender ao que se referia. Apressei-me à cozinha, trazendo água.

— Se acalme, mãe, está tudo bem. Ele não está aqui. Beba, vai te

ajudar a se acalmar. — Estendi o copo, recebendo um tapa forte no braço. O

vidro caiu, se espatifando próximo aos nossos pés.

— Não merece perdão. Não merece perdão. Não merece perdão —

entoava como um mantra, puxando os próprios cabelos pela raiz.

Nunca a tinha visto tão alterada, nem mesmo quando estava

completamente lúcida.

— O que está acontecendo aqui? Ouvi os gritos lá de casa — Vânia

indagou ofegante, ao parar próximo à porta. Olhou para o chão molhado,

entrando com cuidado na sala.

— Ela estava bem, mas ficou assim ao ver o meu pai na TV —


expliquei.

Vânia meneou a cabeça, aproximando-se dela, conversando de

modo brando e conseguindo afastá-la dos cacos, enquanto eu ligava para o


psiquiatra.

As horas seguintes passaram como um borrão. O médico chegou

rápido para avaliá-la. Ela relutou, mas algum tempo depois, estava
medicada e dormindo. Soltei o ar preso nos pulmões quando ele deixou o
quarto explicando que o episódio deve ter sido desencadeado pelo contato

com algum estímulo aversivo, no caso, o meu pai. Explanou sobre a

importância de intensificarmos o tratamento e os próximos passos.

Levei-o até a porta garantindo que faríamos todo o necessário. Ele

se foi, e eu me sentei no sofá soltando o ar preso nos pulmões, apoiando os

cotovelos nos joelhos e sentindo toda a carga emocional recair sobre os

meus ombros.

Notei Vânia parando ao meu lado, estendendo um copo de água com

açúcar. Aceitei, levantando o olhar, encontrando o seu semblante tão

apreensivo quanto o meu. Virei a bebida extremamente doce de uma vez na

esperança de que ela pudesse me deixar um pouco mais calma.

— Você sabe o que causou tudo isso — afirmei baixo, o tom soou

mais rude do que eu gostaria. — Não acha que é o momento ideal para me

contar?

Vânia demorou alguns segundos para responder, deixando-me ainda

mais apreensiva.

— Vou te contar, mas antes me prometa que não vai fazer justiça

com as próprias mãos.

— Van... — Franzi o cenho, sendo interrompida pelo seu tom

circunspecto.
— Me prometa, Rebeca.

— Tudo bem. — Meneei a cabeça.

Ela se sentou ao meu lado, focou o olhar no piso claro, respirando

fundo e começando a narrar em um tom penoso:

— Como você sabe, eu comecei a trabalhar na casa do seu pai há

muitos anos, quando ele e Célia tinham acabado de se casar. Não demorou

para que eu cultivasse muito carinho por ela. Sempre fomos mais do que

patroa e empregada, nos tornamos amigas e passamos a confidenciar tudo

uma para a outra. Não é segredo que ela foi muito apaixonada por ele. Nos

primeiros anos, até fingiu não ver a verdadeira face do homem com quem
se casou. Deodato sempre foi um homem arrogante, duro e não media

esforços para tomar o que queria, nem sempre agindo pelas regras.

Ouvi calada, mas ansiosa demais para saber onde ela queria chegar.

— O nascimento de Renata ainda estava recente quando seu pai quis

quebrar o resguardo. Na época, a sua avó materna ainda estava apoiando

com a chegada do novo bebê e, ao entender as intenções do seu pai,


intercedeu. Ele saiu de casa furioso naquele dia, mas voltou sereno durante

a madrugada. Todas nós entendemos que ele tinha ido buscar na rua o que

não teve em casa. Embora magoada, sua mãe fingiu não ver. Talvez ele já a

traísse antes, mas a partir desse dia, não fez questão de esconder.
Fechei os olhos e os punhos sentindo uma imensa tristeza pela

minha mãe e raiva pelo meu pai. De algum modo, eu sabia que ele nunca a

amou. Tive ainda mais certeza diante daquela história. Em minha cabeça,

quem amava jamais seria capaz de trair.

Mesmo inconformada, continuei ouvindo-a contar.

— Dois anos depois, o Rodrigo nasceu e, com duas crianças em


casa, foi necessário ter uma babá. Noemi era uma garota novinha, de sorriso

doce e angelical. Órfã de pai e mãe, tinha crescido na casa de parentes que a

maltratavam. Por isso, quando foi contratada para morar e trabalhar na casa

do vereador, ficou radiante e cheia de expectativa para um futuro melhor.

Continuei em silêncio, ficando cada vez mais nervosa a ponto de

sentir o suco gástrico queimar.

Milhares de possibilidades surgiam em minha mente, todas ruins. Eu

tinha medo do que Vânia poderia contar porque sabia que me destruiria por

dentro. Ainda assim, deixei-a falar.

— Sua mãe gostava muito dela. Noemi era sempre carinhosa com as

crianças, tratando-os como se fossem seus próprios filhos. Célia enxergava

pureza e sinceridade na garota. Quando lúcida, sempre foi muito caridosa e

teve bom coração. Nas horas de descanso dos seus irmãos, ela aproveitava
para alfabetizar a Noemi. Foi uma festa a primeira vez em que a menina

conseguiu ler um livro de histórias infantis para os pequenos.

O semblante de Vânia era saudoso, narrando com tanto sentimento a

ponto de fazer um sorriso triste surgir em meus lábios e meus olhos

externarem em lágrimas grossas. Não queria que o fim daquela história

fosse trágico, embora tudo apontasse para isso, já que eu nunca tinha

ouvido falar de Noemi.

ALERTA DE GATILHO!
(Caso não queira ler, passe para o próximo capítulo.)

— Algum tempo depois, o comportamento da menina mudou. Ficou


mais fechada e arredia. O semblante se tornou triste, a pele cada dia mais
pálida. Notei que algo não estava bem quando ela passou a beber chá de

canela várias vezes ao dia, às vezes, escondido de nós. Sua mãe também
percebeu e a chamou para conversar. Lembro-me como se fosse ontem de

ouvir o choro sofrido de Noemi e as palavras de carinho de Célia.

“Muito abalada, a garota confessou estar grávida, mas não poderia

ter o bebê, já que não tinha condições de sustentá-lo e não poderia contar
com o pai da criança. Os olhos arregalados e expressivos da garota
deixavam claro que ela não gostaria de falar sobre o pai, mas não explicou a
razão. Compadecida e sem pedir maiores explicações, Célia a acolheu,

pedindo que não atentasse contra a vida do bebê, porque ele não tinha
culpa. Ela a apoiaria durante a gestação e após o nascimento. Foi uma das

cenas mais lindas que já presenciei na minha vida.

“Até que em uma noite, Célia acordou achando ter ouvido Rodrigo
chorar. O quarto estava vazio, mas ela não estranhou, já que seu pai mal

dormia em casa.”

O arrepio subiu pela minha coluna à medida que imaginava toda a

cena. De olhos fechados e com o rosto inundado, eu repetia mentalmente:

Que não seja o que eu estou pensando. Que não seja o que eu estou
pensando. Que não seja o que eu estou pensando.

— Naquela mesma noite, eu ainda não tinha conseguido dormir,


então me levantei para tomar água e conferir se todas as portas estavam

fechadas. Encontrei sua mãe saindo do quarto dos seus irmãos ao se


certificar de que estivessem bem. Ela me viu, acenando para que eu voltasse

para a cama, mas um barulho no quarto de Noemi chamou a nossa atenção.


Ao nos aproximarmos da porta, ouvimos uma súplica pedindo para ir

embora. Vi o sangue sumir do rosto de Célia, assim como deve ter ocorrido
comigo. Sem pensar, ela girou a maçaneta devagar, encontrando seu pai nu
sobre a garota que se debatia na cama, pedindo repetidas vezes para ele
parar, que ela não queria e que estava doendo.

Sem conseguir reprimir a aversão que senti, puxei o cesto de costura


da mamãe sobre a mesa de apoio e vomitei. Tremendo e chorando. Ao

fechar os olhos, eu conseguia ver aquela cena horrenda e imaginar a dor que
Noemi sentiu ao ser violentada.

— Essa história é pesada demais para você. — Vânia alisou minhas

costas, comovida. — Vou parar por aqui.

— Não. — Segurei sua mão com urgência. — Continua. Eu preciso

saber de tudo.

— Filha...

— Por favor, eu tenho direito de saber o que deixou a minha mãe

assim. Ela pensou que estava sendo traída?

Vânia fungou, movendo a cabeça para os lados. Secou as lágrimas

com a manga da blusa, tomando fôlego para continuar.

— Não. Embora o histórico de amantes do seu pai fosse longo, ela


compreendeu pela reação de Noemi que se tratava de um... — Vânia parou

de falar, incapaz de verbalizar a palavra estupro — um crime como aquele.


No desespero, Célia pegou o primeiro objeto que encontrou à sua frente e
acertou na cabeça do seu pai, fazendo-o perder a consciência e cair da

cama.

“Noemi estava com a camisola toda rasgada, chorando muito,


encolhida na cabeceira e abraçado aos joelhos. Um estado lastimável. Por

um segundo, cheguei a pensar que Célia iria para cima dela. Mas para a
nossa surpresa, perguntou apenas se o bebê tinha sido concebido daquele

modo. Amedrontada, a menina concordou, então Célia fez o que me


permitiu admirá-la ainda mais. Acolheu-a em um abraço cúmplice e pediu

perdão pela atitude do marido. Tirou-a daquela casa, garantindo teto,


alimento e segurança. Célia tinha tudo para achar que Noemi era amante do

seu pai, mas preferiu acreditar na essência e bondade da garota.

“Ela passou a trabalhar em um mercadinho da cidade, às vezes fazia


alguns bicos como manicure e não diminuiu a carga de trabalho mesmo

após o estado avançado de gestação. Estava aprendendo a ser corajosa,


lutando pelo bebê em sua barriga e conseguindo montar o enxoval como

queria. Nas vezes em que Célia me levou para a visitar, pude perceber o
carinho e apego que ela passou a ter com o filho. Então tudo desmoronou

quando o parto chegou.”

— O que aconteceu? — perguntei depressa, me colocando de pé,

agitada.
Seus ombros caíram, desolada.

— Foi repentino, as contrações começaram quando Noemi ainda


estava no trabalho. O entregador veio avisar que ela tinha sido levada ao

hospital, mas quando chegamos lá, veio a notícia. Devido às complicações


inesperadas, os médicos precisaram escolher entre a mãe e o bebê. E

então...

— Eles escolheram o bebê — concluí, triste.

— Sim. Alguns anos depois, surgiram boatos de que seu pai pagou

para que matassem Noemi, mas nunca foi possível provar.

A repulsa e indignação me atingiram com força, sentindo tanto ódio


daquele desgraçado que nunca pensei ser capaz de sentir. Deixando-me

tonta, muitos questionamentos vieram de uma só vez. O principal deles


quase me fez desmaiar.

O que toda aquela história tinha a ver comigo?

A cabeça latejou quando a possibilidade gritou em minha mente.


Não fazia nenhum sentido.

Célia era a minha mãe, seu nome estava na minha certidão de


nascimento. Foi ela quem me criou e sempre me amou.

Levantei-me confusa, sentindo a respiração falhar, à beira de um


ataque de pânico. Passei a mão pelos cabelos, tentando puxar o ar, sem
conseguir sequer levantar aquela possibilidade, mas eu precisava saber.
Encarei Vânia sentada com as mãos sobre o colo, perguntando ansiosa:

— Quando isso aconteceu?

Seu olhar lacrimoso encontrou o meu, afirmando, resignada:

— Há 23 anos.

Senti o coração batendo nos ouvidos, os olhos arregalados, a

respiração acelerada e a incredulidade me atingir. Por um segundo, pensei


que fosse desmaiar.

Então veio tudo junto: o bombardeio de memórias da infância, a


falta de fotos de Célia grávida de mim, nenhum traço nosso em comum,

embora tivesse alguns do meu pai.

Aquela era a primeira vez que tanta coisa fazia sentido. O desprezo
do meu pai, a tristeza infindável da minha mãe, a cor do meu cabelo.

Todas as vezes em que eu questionava sobre ser diferente, tinha


respostas efusivas. Porra! Era por isso, eu não era filha biológica dela.

Pior, tinha sido fruto de um estupro.

Meu peito estava dilacerado, comprimido de ódio, tristeza e


inconformismo. Noemi não merecia ter morrido. E eu não merecia ter

perdido a minha mãe biológica.


Caí de joelhos chorando inconsolável pelo luto tardio. Não sabia
explicar o que sentia, apenas que doía demais. Uma dor tão forte e

angustiante que só o abraço de Artur seria capaz de amenizar.

Vânia passou os braços ao meu redor, chorando junto. Circulei sua

cintura, sentindo o tempo parar enquanto o pranto e a devastação nos


corroíam.

FIM DO GATILHO!
REBECA

— Como eu vim parar nesta família? — perguntei um pouco mais


calma, ao ajudar Vânia se levantar.

Ela deu um pequeno sorriso saudoso, limpando as próprias lágrimas.

— Eu vi quando Célia te segurou no colo pela primeira vez. Em

meio à tristeza da morte de Noemi, Célia se apaixonou pela garotinha de

poucos cabelinhos ruivos. Naquele instante, eu soube que ela não aceitaria

te perder. Por isso, obrigou o seu pai a te registrar sob a ameaça de que
poderia acabar com a promissora carreira política que ele estava

conquistando. Em seguida, mandou fazer um testamento, garantindo que

Deodato só receberá a parte dela no matrimônio e na herança recebida após


a morte dos pais, se ela morresse de causas naturais e você estivesse casada.
Nunca imaginei que a mulher frágil e inofensiva que dormia no

quarto ao lado tivesse sido tão sagaz. Senti ainda mais orgulho dela.

— Por isso ele fazia tanta questão de me casar com o coronel, além
da chance de conseguir mais votos, é claro — pensei alto.

— Desde que Célia se mudou para a fazenda, tenho visto muita

melhora em seu estado, embora haja algumas crises. Mas tenho muita
esperança de que ela possa se recuperar para ter uma qualidade de vida boa,

o que não iria acontecer na casa de Deodato. Ela estava cada vez mais

debilitada, não demoraria até fazer a passagem, e ele sabia disso.

A raiva latejava em minhas veias, um sentimento cru e repulsivo

que nunca pensei ser capaz de sentir. Sem condições de me manter quieta,

andei agitada pela sala repentinamente abafada.

— Por que Noemi não o denunciou?

Vânia meneou a cabeça, descontente.

— Ah, minha filha, se hoje as mulheres ainda não são ouvidas como

deveriam, imagine naquela época. Quem daria ouvidos a uma empregada

que denunciava um político em ascensão?

Revoltante, mas ela tinha razão. Seria injusto remoer algo que foi

tão difícil para Noemi.


Eu finalmente tinha as explicações que tanto buscava. Se por um

lado me gerava ódio, por outro, me confortava saber que fui privilegiada

por ter o amor de duas mães. Naquele instante, Deodato passou a ser nada

para mim, embora fosse pagar caro pelo que tinha feito.

Deixei-o na caixinha de assuntos a serem resolvidos em breve.

Naquele momento, eu só queria saber um pouco mais da minha mãe. Era

como se, de algum modo, me gerasse conforto ao sentir a sua presença.

— Como ela era?

Vânia sorriu, entristecida.

— Era o mesmo que olhar para você, minha menina. Principalmente

o jeitinho delicado e os longos cabelos ruivos. Em muitos momentos, eu

conversava com você e me perdia, achando estar olhando para ela.

Beijei seus cabelos, sentindo extrema gratidão.

— Obrigada por não ter ido embora e cuidado da gente. Nunca

poderei te agradecer o suficiente.

Ela beijou minha testa, carinhosa.

— Ah, minha menina, não tem nada que agradecer. Suas mães

foram mulheres incríveis, eu devia isso a elas.

— Está tudo bem aqui? — A voz de Olegário nos tirou daquela

bolha. — Van, me assustei quando cheguei para almoçar e não te vi.


Olhei para a porta, voltando a sentir raiva e revolta de Deodato. Era

hora de acertar as contas.

— Cuida dela. Eu volto logo. — Beijei as mãos de Vânia.

— Ei, aonde você vai?

Passei pelo homem alto na porta, o abracei rápido grata por também

não ter saído do meu lado. Ele não entendeu, mas retribuiu.

— Você prometeu não fazer justiça com as próprias mãos — ela

gritou, mas já era tarde.

Sem dizer nada, saí pela varanda pensando em como faria para

chegar mais rápido na cidade. Então vi a caminhonete de Olegário parada

em frente à casa deles, para a minha sorte, com a chave na ignição.

Não pensei duas vezes, abri a porta e dei partida. Apanhei um pouco

com as marchas e embreagem, mas consegui arrancar cantando pneu,

vendo-o pelo retrovisor, parado no meio da rua, levantando as duas mãos na

cabeça.

À medida que avançava pelas terras, a raiva ganhava força e o pé

afundava no acelerador. Não vi o que fazia, e sabia que estava sendo

impulsiva. Mas aquele monstro merecia o pior de mim para fazer jus a

maldade do seu sangue que corria em minhas veias.


Repetir tudo em um looping infinito me dava ainda mais forças e me

permitia analisar outros pontos daquela história. Embora fosse lamentável,

não pude deixar de sentir orgulho pelas atitudes das minhas mães.

Noemi foi muito guerreira por ter passado por tudo sozinha e ainda

assim ter tido forças para seguir adiante com a gestação. Eu a admirava e

jamais a esqueceria. Prometi a mim mesma que faria todo o possível para

que Deodato amargasse os crimes que tinha cometido. Era uma dívida em

nome da sua memória.

Por outro lado, Célia foi a mulher forte que criou uma filha que não

era sua. A mãe que me defendeu e cuidou de mim com todo carinho até o

momento em que a dor e o desgosto falaram mais alto. Eu a admirava pela

sororidade, perspicácia, sabedoria e atitude. Amava-a muito e era grata por

ter mudado os rumos da minha vida. Se não fosse por ela, eu sequer

existiria.

Ao chegar à cidade, o sol estava forte, indicando que deveria ser

próximo ao horário do almoço. Sabendo que Deodato tinha voltado aos

compromissos da prefeitura, mas sempre almoçava em casa, arrisquei a ir

primeiro no lugar em que morei tantos anos e tinha péssimas lembranças.

— Sou filha do prefeito — bradei, quando o segurança barrou a

minha entrada. — Podem interfonar, ele vai querer falar comigo.


Sustentando a cara feia, ele o fez. Como previ, não demorou até

permitirem o meu acesso.

Passei pelo jardim furiosa, mas ainda assim, não deixei de notar que

o carro de Renata estava na garagem. Franzi o cenho, pensando se ela

estaria de volta mesmo tendo casado com o velho da lancha, que de lancha

não tinha nada.

Meus pensamentos foram interrompidos quando a porta da sala

abriu no mesmo instante em que me aproximei. Mais magra, porém altiva,

minha irmã me recebeu com ironia.

— Ora, ora, se não é a mais nova bandeada pelos Albuquerque. Veio

fazer o que aqui, fedelha? Pisotear a desgraça que você causou ao nosso

pai?

— Você não tinha se casado e sumido daqui? — rangi entre dentes.

— Bobinha, acha mesmo que eu ficaria presa com um velho doentio

como aquele? — Sorriu asquerosa.

Não sabia se era verdade, mas não me importei. Estava colérica

demais para me focar nela, independentemente se pudesse ser uma ameaça.

Empurrei Renata ao avançar para dentro, fazendo-a cambalear para

trás.

— Cadê o Deodato? — vociferei.


— O que você quer? — Ele surgiu da sala de jantar com o

guardanapo de pano encaixado na gola da camisa.

— Vingar o que você fez com a minha mãe biológica — grunhi,

prosseguindo a passos largos pelo espaço enorme.

— Cadê o fazendeirinho de merda? Não veio proteger a pobre

donzela indefesa? — ele provocou.

Senti o sangue crepitando nas veias, ansiando em fazê-lo sentir dor.


Ele pagaria por tudo o que tinha feito.

— Finalmente descobriu que é uma bastarda? — A voz nojenta da


minha irmã soou atrás de mim.

Virei-me para ela lentamente, odiando o fato de ela saber.

— Por que nunca me falou?

— Não faltou vontade. — Colocou-se ao lado do pai, em uma clara


demonstração de força, continuando com sarcasmo. — Mas ele não deixou.

Temia que ao saber, você colocasse tudo o que é nosso a perder.

— Eu nunca quis esse dinheiro maldito! — berrei, empurrando-a

novamente.

Renata cambaleou, mas foi apoiada pelo velho.


— É claro que não. Se antes você iria viver de brisa, agora tem a
fortuna dos Albuquerque te dando conforto, não é? Se fazia de pobre

coitada, mas agora está aí, se arreganhando para o caçula deles como a boa
puta que é.

Em seguida, avançou em minha direção para pegar os meus cabelos.

Desviei do seu ataque, agarrando os fios loiros pela nuca, sentindo o mega
hair se soltando em minhas mãos. Deodato veio em minha direção, para me

segurar, mas o barrei.

— Fique aí — adverti, colocando a Renata, se contorcendo, entre

nós. Abaixei o tom, deixando escorrer o veneno que ela tanto merecia. —
Estou. E confesso que nunca poderia ter sonhado em me lambuzar em um

homem melhor. Estou fazendo o que você sempre quis, mas nunca foi
capaz: fazer parte daquela família incrível.

— Não diga bobagens. Eu odeio todos eles. — Ela tentava amenizar

o aperto de minhas mãos, sem nenhum sucesso.

— Rebeca, pare com isso. — A voz do homem foi altiva, causando

um total de zero receio em mim. Eu não tinha mais medo dele, apenas ódio.

— Cale a sua boca, porque o que é seu ainda está guardado. —


Estiquei o braço em sua direção. — Todas as vezes em que foi perversa

comigo foi por ciúme da atenção que a mamãe me dava, não é? Quando
colocou cola no meu cabelo. Iniciou o motim na escola para me chamarem
de alaranjada sardenta. Pisoteou na minha autoestima. E, principalmente,

por me odiar tanto.

— Ela só dava atenção para você e aquele projeto de gay. Esqueceu

que eu era filha também, então eu esqueci de que ela era a minha mãe —
bramiu. — Não me arrependo e faria de novo.

Joguei Renata no chão.

— Pois saiba que eu nunca me senti tão orgulhosa dos meus cabelos
e da minha origem. Minhas mães e a Vânia me deram o que você recusou

da sua: amor e caráter.

— Papo de perdedor — ela bradou, se levantando, pronta para me


atacar, no instante em que dei um soco em seu olho a desnorteando, e senti

Deodato me agarrar por trás.

— Virou uma galinha de briga, vagabunda? — ironizou. — Está

com saudade de apanhar do seu pai? Vá embora da minha casa se não


quiser sair daqui direto para o hospital.

Lembrei-me de todos os golpes que Artur tinha me ensinado e nunca

imaginei que pudesse ficar tão feliz ao executá-los.

— Você nunca mais me baterá — garanti com a mandíbula cerrada.


Fervendo de ódio, dei uma cabeçada para trás, acertando o seu nariz.

Sentindo-o me soltar e bambear, firmei as pernas no chão, me abaixando,


passando uma delas atrás dos joelhos dele, descendo as mãos para o mesmo

lugar. Por fim, as puxei em sincronia, me afastando e fazendo-o cair para


trás, batendo a cabeça no degrau da escada.

Zonzo, seus olhos vacilaram no instante em que ele levou a mão ao

local, sentindo o sangue escorrer.

— O que você fez? Está tentando me matar? — acusou, assustado.

— Garantindo que nunca mais você irá estuprar nenhuma mulher.

O sorriso amarelo e asqueroso surgiu enquanto ele falava:

— Aquela puta da Noemi se fingia de sonsa e pedia para parar, mas

sei que ela gostava. Era só charme.

— Seu imundo. — Cuspi em sua cara, chutando para que afastasse


os seus joelhos. — Desfrute do sangue ruim que você fez correr em minhas

veias. Tudo isso é culpa sua, você despertou o pior de mim.

Sem pensar em mais nada se não a vingança pela alma da minha

mãe e as tantas outras que ele deve ter ferido, chutei seus testículos com
toda força e raiva que havia em mim. Ouvi Renata gritando, tentando me
afastar, mas o ódio me estabilizou no lugar. Quanto mais ele gritava, mais

eu dava forças para continuar a chutar.


Fui tirada à força quando um dos seguranças me agarrou pelas

costas e levou até a porta da sala. Não me debati, satisfeita e ofegante


demais pelo que tinha feito.

— Não quero ver vocês nunca mais — assegurei, andando até o


portão.

Sentia-me de alma lavada, pronta para voltar à fazenda, me acalmar

nos braços de Artur e seguir o tratamento da minha mãe. Tinha certeza de


que sabendo de tudo, eu poderia fazer mais pela sua recuperação.

Quando cheguei à calçada, vi a caminhonete de Artur virar a


esquina. Era específica demais para eu não a reconhecer. Ele acelerou,

parando próximo a mim, descendo aflito ao meu encontro.

Comecei a correr até ele sorrindo por poder abraçá-lo. Estávamos a


pouco menos de dois metros de distância, quando a voz furiosa de Deodato

às minhas costas me fez parar.

— A culpa é sua, fazendeirinho de merda.

Virei-me para ele, mas paralisei ao notar a arma empunhada e o seu

olhar crepitando ira na direção de Artur.

— Te vejo no inferno!

E atirou.
ARTUR

O alívio percorreu o meu corpo quando avistei Rebeca ao converter


a rua. Estacionei de qualquer jeito, descendo rápido para abraçá-la e me

certificar de que estava bem.

Contudo, a voz enfurecida de Deodato nos fez parar assustados.

— A culpa é sua, fazendeirinho de merda.

Deparei-me com ele na saída do portão, sangrando, contorcido com

uma das mãos entre as pernas. Meus instintos me alertaram sobre o perigo,
advertindo que sua fúria naquele instante era para mim.

Enquanto o seu alvo fosse eu não haveria problemas.

Ele levantou a arma lentamente e então eu soube que deveria me

afastar de Rebeca, para o seu bem. Na ânsia de protegê-la, recuei para o


lado, saindo de perto dela e vi o brilho do desespero em seu olhar ao se

virar para mim.

— Te vejo no inferno! — ele vociferou, atirando em seguida.

Foi tudo muito rápido, mas pude acompanhar como se tivesse sido

em câmera lenta.

O tiro veio em meu rumo e me preparei para a dor, mas sem que eu

esperasse, a vi correndo em minha direção e meu corpo foi empurrado com

brusquidão para o lado. O manto de cabelos ruivos confundiu minha visão

ao se espalhar diante dos meus olhos.

Não poderia ser!

— Rebecaaa! — Desesperei-me, segurando o corpo mole, perdendo

as forças e caindo ao chão.

Ajoelhei no asfalto, tomando-a em meus braços, aflito ao encontrar

muito sangue na região toráxica.

Ao fundo, ouvi algo que pareceram tiros, mas o meu coração

acelerado demais parecia bater nos ouvidos, me impedindo de escutar

qualquer coisa que não fossem os seus gemidos de dor.

— Por que fez isso? — Toquei seu rosto pálido.

— Porque... — tossiu gotículas de sangue, com dificuldade para

respirar — eu não consigo viver sem você.


— Isso nunca vai acontecer, amor — prometi. Não esperei sua

resposta, levantei-me com ela nos braços e segui de volta para a

caminhonete. Cada segundo era vital. — Fica comigo, amor. Só fica

comigo.

— Vá atrás com ela, eu dirijo. — Ouvi, parando próximo à porta

traseira. Levantei o olhar encontrando minha mãe muito preocupada.

Não sei como ela tinha ido parar ali. Talvez estivesse com o meu pai

no momento da ligação, mas isso não importava agora.

Entrei com a Rebeca no colo, tentando comprimir a hemorragia.

Mamãe fechou a porta, se acomodou atrás do volante e acelerou.

— Não dorme, fica comigo — implorei, chorando, quando suas

piscadas passaram a ficar mais lentas.

— Eu te amo muito — Rebeca murmurou, lutando contra a


inconsciência. Levantou a mão ensanguentada com muito esforço tocando o

meu rosto quase sem forças. — Continuarei te amando de onde estiver.

— Não diga isso nem de brincadeira. Você vai ficar bem. — Segurei
seu pulso, pousando a mão sobre a dela que começava a ficar fria. Seus

olhos se fecharam lentamente e a tormenta me atingiu. — Rebeca! Rebeca!

Não! Não!
Nossos corpos sacolejaram com as curvas em alta velocidade, mas

ainda assim, não parecia rápido o suficiente. Chegar ao hospital foi uma

eternidade.

Entrei correndo com Rebeca no colo quando alguns profissionais se

aproximaram com a maca. Coloquei-a sobre o instrumento frio, os

acompanhando na corrida até a sala de emergência enquanto descrevia o

que tinha acontecido.

— Você não pode passar daqui, senhor. Agora é com a gente. —

Uma enfermeira me segurou quando nos aproximamos da porta.

— Eu preciso estar com ela. — Ofeguei, sentindo o corpo inteiro

contraído.

— Nós faremos de tudo para salvá-la. Mas enquanto isso, preciso

que preencha os dados de entrada.

— Dane-se a ficha! — berrei, mesmo sabendo que não era culpa

dela. Mas a devastação dentro de mim necessitava culpar alguém. — Eu

preciso da minha mulher viva!

Dei um passo para trás, agarrando a raiz dos cabelos, tentando me

controlar para não fazer uma loucura. Aproveitando a deixa, ela entrou na

sala. A vontade de chutar e esmurrar me varreu, mas soube que não


adiantaria nada. Apoiei as mãos na parede e abaixei a cabeça, deixando a

angústia me consumir.

Estava sufocado, a ponto de não conseguir respirar direito. Irascível,


não pensei, apenas fui guiado pelo instinto.

Saí pelo corredor longo e frio sentindo todo o calor anteriormente

em meu sangue se transformar em gelo. Deixei de sentir qualquer coisa que

não fosse a raiva e desejo de fazer justiça.

— Aonde você vai? — A voz da minha mãe me atingiu, assim como

seu toque em meu braço ao se virar depressa da recepção onde fazia o

cadastro de Rebeca.

— Me dê o controle da caminhonete — sentenciei em um tom frio.

— Não! — ela reagiu temerosa. — Não vou deixar você acabar com

a sua vida.

— Mãe, a minha vida está dentro daquela maldita sala lutando para

sobreviver. Eu não fui capaz de defendê-la quando ela mais precisou. Não

posso e nem vou deixar o homem se livrar. Então, me dá a chave.

Ela nunca tinha me visto daquele jeito. Para ser sincero, nem eu me

recordo de ter ficado assim um dia. Não havia uma gota de razão em meu

corpo, apenas instinto em sua forma mais feroz.


Resignada, ela levou a mão trêmula no bolso do jeans. Fitar o

sangue seco em seus dedos me deixou com mais ódio. Era sangue inocente,

o sangue da minha Bruxinha.

— Eu vou com você — disparou, nervosa.

— Não, a senhora vai ficar aqui cuidando da Rebeca e me dando

notícias. — Estendi a mão.

— Filho, não estrague a sua vida, em breve ela estará bem e vocês

poderão viver felizes. — Entregou-me a chave, frustrada. Mamãe sabia que

não tinha o que ser feito. Era uma luta minha em que eu precisava tomar a

frente.

— Volto logo.

Caminhei a passos furiosos até o carro, joguei-me atrás do volante e

acelerei sem enxergar nada.

Estava quase chegando à casa de Deodato quando o nome de

Antônio brilhou no painel. Chamou duas vezes, mas não atendi, deparando-

me com a rua interditada por carros de polícia, imprensa e muitos

fofoqueiros.

Preparava-me para descer quando a mensagem de áudio chegou e

por alguma razão, decidi abri-la antes de descer. Ao fundo, um barulho

como o vento atrapalhava a sua voz agitada.


— Artur, mamãe nos contou que você saiu furioso. Não vá para a

casa daquele merda, temos algo melhor para você no casebre da fazenda.

Aquele áudio me fez parar por um segundo. Encarei melhor a rua e

não vi nenhum sinal do desgraçado, era possível ouvir apenas suposições do

que tinha acontecido.

Entendi o que havia acontecido e rumei para a fazenda. Ao longe,

pude ver várias caminhonetes, incluindo as dos seguranças no lado de fora.

Parei de qualquer jeito, descendo com fogo nas ventas. Abri a porta

com brusquidão, não conseguindo me segurar ao ver Deodato amedrontado


de pé, amarrado em uma pilastra de madeira no centro do casebre. A manga

da blusa coberta de sangue deixava claro que ele tinha recebido um tiro no
braço, provavelmente para ser neutralizado quando atentou contra Rebeca.

— Vocês vão se arrepender por me sequestrarem. Quando tudo isso

acabar, vou ter prazer em desmoralizar cada membro dessa família de


merda! — ameaçou, acuado.

Em uma leitura rápida, notei alguns raios de sol entrando pelos vãos
da madeira, destacando o lugar empoeirado e esquecido. Ao canto, meu pai

estava calado, de braços cruzados e sério. Seu olhar era indescritível. Ao


seu lado, os meus irmãos sustentavam a mesma postura altiva e silenciosa.
Avancei furioso, acumulando o ódio a cada passo ao me preparar
para o primeiro soco.

— Seu fazendeir... — A voz de bandido foi interrompida quando o

primeiro golpe acertou seu queixo, fazendo voar um dente misturado ao


sangue antes do velho apagar.

— Desamarra esse filho da puta, não sou o tipo de homem covarde


de bater em adversário amarrado — ordenei ao capataz.

— Cara, já está bom, não vá foder a sua vida por um lixo desse —

Aloísio tentou me trazer de volta à razão, embora seu olhar também


estivesse colérico.

— Eu ainda não comecei. — Meu tom saiu cortante.

Os peões desamarram o velho e seu corpo caiu como um saco de

batatas. Um deles jogou água em seu rosto, fazendo-o acordar assustado e


se engasgando. Peguei pelo colarinho, bramindo:

— Fique de pé, seu miserável. Mostre a coragem que você tem para

bater e estuprar mulheres.

O homem cambaleou, mas o mantive preso pela gola, desferindo

outro soco forte.

— Moleque... — cuspiu sangue em meu rosto com escárnio — fiz e


faria de novo. Por mim, que Rebeca, Noemi e todas as outras que trepei
tenham o mesmo fim. Que elas morram sem misericórdia.

— Você é doente. — Agarrei seu pescoço, tirando-o do chão. — Se

Rebeca morrer, você vai se arrepender de ter nascido. Vou foder tanto a sua
vida que irá preferir nunca ter nascido. E irei começar enfiando um cabo de

vassoura na sua bunda para que aprenda a estuprar mulheres.

— Essa eu quero ver — Antônio incentivou, embora seu olhar não


tivesse nada de cômico.

Deodato sacudiu os pés sem ar, forçando minha mão para soltar o
seu pescoço. O odor característico de urina tomou o ambiente, atraindo

minha atenção para as suas calças molhadas e o líquido começando a pingar


no chão.

Não me movi, apertando-a ainda mais, sentindo um prazer que

nunca imaginei sentir ao agredir alguém. Nunca fui um cara violento, mas
naquele instante, tudo o que eu queria era justiça.

Quando seu rosto ficou roxo, soltei-o no próprio xixi misturado à


poeira do chão imundo, tossindo muito com a mão na garganta.

— Levanta-se — vociferei.

Ele não o fez. Para sua própria desgraça, estendeu-me o dedo do


meio. Com a mesma frieza com que saí do hospital, peguei sua mão e, em

um único movimento, a quebrei, fazendo-o urrar alto.


— Levante-se se não quiser que eu faça o mesmo com a outra.

Chorando como o belo covarde que era, Deodato se colocou de pé

com muita dificuldade em meio ao choro de dor. Pouco liguei, alertando:

— A cada vez que pensar em tocar em uma mulher, quero que se

lembre do meu punho na sua cara e o que um homem de verdade faz para
defender a mulher que ama. — Desferi vários socos, e a cada um deles, uma

frase nova frase. — Isso, é para você se arrepender eternamente de ter


machucado a Rebeca. Pelas vezes em que a desprezou. Humilhou. Bateu.

E, principalmente, por ter atirado nela.

O rosto do velho estava todo cortado, assim como as minhas


falanges.

Eu poderia ficar o dia todo ali, mas Rebeca precisava de mim.


Então, não tinha tempo a perder. Deixei-o arrebentado no chão, inundado

em meio aos próprios fluidos.

— Isso não vai ficar assim. — Cuspiu sangue no chão. — Vocês se


verão comigo. E você, seu petulante — encarou Aloísio —, vou acabar com

a sua carreira política antes mesmo de ela começar.

Preparei-me para responder, mas naquele momento, o timbre

poderoso do meu pai tomou o ambiente. Os olhos sob a penumbra do


chapéu crepitavam um ódio velado que nunca tinha visto nele.
— Vão! Cuidem de Rebeca e da mãe de vocês. Agora esse sujeito se

verá comigo.

— Pai! — meu irmão do meio tentou interpelar.

— Agora, Antônio. Vocês não serão cúmplices do farei daqui para

frente.

Saí primeiro do casebre, rumando para o meu carro. Parei, sentindo

a pele molhada sob a camisa úmida. Fitei minhas mãos esfoladas, sujas do
sangue de Rebeca e Deodato, além da poeira.

Embora nada pudesse reparar o que tinha acontecido tanto com

Rebeca quanto com sua mãe, senti que precisava exorcizar aquela energia
bruta dentro de mim, fazendo-me respirar um pouco mais leve.

Um som como o destampar de garrafa térmica chamou minha


atenção. Só então notei Antônio com um frasco de 5 litros que costumava

carregar na caminhonete.

Despejou a água lentamente enquanto eu esfregava as mãos. À


medida que o líquido avermelhado batia na terra e espalhava pequenas

gotas sobre as nossas botinas, fui voltando para o eixo, em uma espécie de
transe.

Precisava voltar para o hospital, Rebeca e mamãe precisavam de


mim.
— Como ela está? — A voz de Aloísio soou preocupada.

— Ainda não sei, não havia tido notícias quando saí do hospital.

— Estaremos aqui com você, cara. — Antônio bateu em meu ombro

amigavelmente. Em seguida, me puxou para um abraço triplo.

O peso da dor me atingiu com força outra vez, arrancando um medo


horroroso por não saber o que aconteceria dali em diante. Em silêncio meus

irmãos me confortaram, uma cumplicidade apenas nossa, desde a infância.

— Agora que já extravasou a sua ira, vamos sair daqui. As coisas

ficarão feias — Aloísio advertiu, quando o grito agudo de Deodato fez as


aves voarem assustadas das árvores.

— Voltarei para o hospital — informei, entrando na caminhonete.

— Estaremos logo atrás de você.


Não me lembro de absolutamente nada do caminho até a instituição.
Entrei apressado acompanhado dos meus irmãos, encontrando mamãe de

cabeça baixa nas cadeiras da sala como se estivesse em oração.

— Ah, meu filho! — Ela se levantou rápido ao me ver, abraçando-

me, aflita. Tocou meu rosto procurando algum machucado, descendo até
encontrar minhas mãos machucadas. — Me diz que não o matou.

Meneei a cabeça.

— Alguma notícia da Rebeca?

— Está em cirurgia desde que você saiu.

Anuí, afastando-me até a parede mais próxima. Estendi as duas

mãos sobre a cabeça, pendendo-a para baixo, devastado. Sem que eu me


desse conta, as lágrimas jorraram sem controle junto com o sentimento de

derrota.

A adrenalina foi dando lugar à angústia, à imensa sensação de

fracasso de não ter protegido Rebeca quando ela mais precisou. A dor me
aniquilou, enchendo-me de arrependimento e inconformismo. Eu nunca me
perdoaria se algo pior acontecesse com a minha Bruxinha.

Senti um toque macio no meu ombro e a voz branda preencher os

meus ouvidos, mas permaneci na mesma posição.


— Não se culpe pelo que aconteceu, filho. Não estava em suas
mãos.

— Eu falhei, mãe — falei baixo, destruído.

— Olhe para mim. — Senti sua mão abaixando meu braço e a outra
tocando o meu rosto, fazendo-me a olhar. — Desde pequenininho, mesmo
sendo o caçula, você sempre foi mais cuidadoso e protetor que os seus
irmãos. Eu o admirei cada vez mais ao acompanhar o homem defensor que

se tornou, mas nunca deixei de me preocupar com o dia em que você se


cobraria mais do que seria capaz de fazer.

Engoli em seco, fitando sua imagem embaçada pelas lágrimas.

— Aquela bala era para mim. Não é justo que ela tenha que estar lá
dentro entre a vida e a morte por minha culpa.

— Não se martirize, meu amor. Não tinha como prever que Rebeca

arriscaria a própria vida para defender a sua. O casamento é uma entrega


mútua e talvez esse tenha sido o modo como ela encontrou para entregar
tudo de si.

Seus braços rodearam o meu corpo, confortando-me com um abraço

amoroso. Em seu ombro, chorei como um menino, incapaz de dizer


qualquer coisa. Nunca me vi tão perdido, sem chão e sem saber o que fazer.
Seus dedos embrenharam em meus cabelos, em um deslizar
cadenciado que amainou um pouco de tudo o que eu sentia. Levantou o

meu rosto na altura do seu, limpando as minhas lágrimas. Ela também


chorava, embora se mantivesse forte. Sorriu triste, tentando me consolar:

— Se antes eu achava que você tinha sido um grande homem por ter
se casado com ela para defendê-la, agora não sou capaz de nomear um
adjetivo que consiga definir o patamar de mulher que Rebeca se tornou. Se

eu já era apaixonada por ela antes, agora prometo a carregar no colo quando
tiver alta desse hospital.

— É tudo que eu mais quero, mãe. Tirar Rebeca sã e salva deste


lugar.

— Tenho certeza de que sim. Rebeca é forte e te ama muito. Em


breve, estará conosco e encherá a fazenda de crianças. — Fitou meus olhos
sendo capaz de enxergar a minha alma. Em seguida, beijou minha testa. —
Não se esqueça de que tem o nosso apoio.

Meneei a cabeça.

— Obrigado, mãe.

— Não tem que agradecer. — Apontou o queixo para os meus


irmãos de pé ao lado das cadeiras. — A sua alcateia sempre estará com
você, Lobinho.
Chamou-me pelo apelido que nunca havia usado. Um sorriso triste

surgiu em meio ao meu pranto sofrido.

Mamãe se sentou para aguardar notícias da cirurgia. Cada segundo


parecia uma tortura, e eu tinha perdido as contas de quantas preces tinha
feito para Deus pedindo que Rebeca ficasse bem.

— Ah, meu Deus, então é verdade! — A voz de Joe preencheu o

corredor silencioso. Ao me virar, notei-o abraçado a Rodrigo, aflito e


abatido.

Joe se jogou nos braços da minha mãe. Eu acolhi o meu cunhado,


inconsolável.

— Não acredito que aquele homem teve coragem de atirar na

própria filha. Velho maldito! Nunca mereceu as pessoas boas que tinha ao
seu redor. — Chorou, no meu ombro.

— Aquele tiro era para mim, cara. — Bati em suas costas, não
conseguindo conter novas lágrimas. — Me perdoe.

— Não se desculpe. — Ele se afastou, segurando meus braços e

encarando os meus olhos. — Nunca duvidei da intensidade do amor de


Rebeca, e isso só mostra que você é o único homem que o merece.

— Ela vai ficar bem — declarei com fé, abraçando-o outra vez. Só
queria que esse pesadelo acabasse.
Algum tempo depois, a médica finalmente apareceu, deixando-nos

ansiosos ao dizer o nome de Rebeca. Após se apresentar, ela explicou:

— Conseguimos reverter a hemorragia causada pelo rompimento


dos vasos sanguíneos, e felizmente a bala não atingiu nenhum órgão vital
ou artéria. Rebeca foi encaminhada para a UTI, agora precisaremos esperar
que acorde para identificarmos se haverá algum tipo de sequela.

A médica explicou mais alguns detalhes técnicos antes de se afastar.


A comoção nos atingiu, e o abraço de alívio foi coletivo. Agora era
aguardar a minha Bruxinha se recuperar.
ARTUR

— Se o mal chegar entro na frente pra te proteger... — cantarolei

baixo, penteando os cabelos ruivos com cuidado como Rebeca gostava de


fazer.

Uma rotina que repetia dedicadamente dia após dia desde que ela

tinha sido internada.

Observei o rosto ainda pálido, mas em nada comparado aos dias

anteriores. Embora tivesse tido melhora em seu quadro geral, ainda aspirava
observação constante, por isso, mandei adaptar uma unidade semi-intensiva

em um dos quartos do hospital.


Assim, ela tinha um ambiente exclusivo para se recuperar, e eu uma

poltrona confortável na qual permanecia muitas horas do dia, a não ser

quando mamãe ou as enfermeiras me obrigavam a voltar para a fazenda.

Tinha me habituado a aproveitar cada segundo possível ao lado dela.

Porém, com o tempo aprendi que precisava do trabalho, uma ou duas horas

por dia, para me restabelecer emocionalmente e cuidar dela.

No decorrer daquelas três semanas, o som do monitor cardíaco não

me incomodava mais, e a equipe médica tinha se acostumado comigo.

Nos primeiros dias, a desesperança me atingiu. A ansiedade por ver


Rebeca consciente era tão grande que a frustração ao ir embora sem que

isso tivesse acontecido me feria muito.

Minha família estava preocupada, mas eu jamais renunciaria o


cuidado da minha Bruxinha. Eles começaram a se tranquilizar quando

perceberam que eu também era cuidado pela equipe de Psicologia do

hospital.

No início, fui resistente, não querendo sair de perto dela um segundo

sequer para conversar com qualquer outra pessoa. Todavia, após muita

serenidade e apoio através de palavras de cuidado, me abri para o diálogo.

Devo admitir, me ajudou muito a entender que Rebeca iria acordar em

algum momento, apenas precisava ter condições, e eu, paciência.


Além disso, a psicóloga também teve um papel muito importante

para que eu pudesse separar o que estava ao meu alcance e o que não

estava. Embora mamãe e os outros já tivessem dito, é diferente quando um

profissional te faz enxergar. A partir desta disruptura, passei a enxergar

cada novo dia como uma chance de recomeço.

Em um dos encontros, foi como se pudesse ver Rebeca atendendo e,

caramba, combinava muito com ela.

Renata tinha sido capturada pouco depois. Ela era a principal

suspeita pelo assassinato do ex-marido encontrado morto dias antes e estava

foragida. Para uma bandida que se achava tão esperta, foi amadora com a

ideia de foro privilegiado do pai ao passar na residência para buscar

dinheiro em espécie antes de fugir definitivamente.

Contudo, os homens que papai, meus irmãos e eu colocamos para

investigar o prefeito, descobriram o plano e entregaram para a polícia. Os

agentes à paisana se preparavam para prendê-la quando Rebeca chegou e

tudo aconteceu. Mesmo assim, após termos ido para o hospital, os homens
da lei não impediram quando papai sumiu com Deodato por algumas horas

antes de jogá-lo na prisão.

Meneei a cabeça, deixando os pensamentos de lado. Naquele


instante, nada mais importava, a não ser a minha Bruxinha deitada naquele
leito timidamente decorado com um buquê de lírios em um jarro de vidro e

uma foto dela.

— Você precisa acordar, Bruxinha — disse, baixo. — Todos estão

sentindo a sua falta, principalmente a sua mãe. E eu, é claro.

Era verdade. Depois do ocorrido, Vânia se manteve à frente dos

cuidados de Célia, inclusive, para acompanhá-la ao tratamento. Não havia

tido mais crises e perguntava frequentemente pela filha. Neste período,


Rodrigo também assumiu o importante papel de filho, estreitando os

vínculos com a mãe. Até o ranzinza do Milton tinha se penalizado pela

senhora e estava menos carrancudo. Outro dia, soube que caminharam

juntos pela lagoa e depois voltaram para suas casas são e salvos. Era um

bom sinal, visto que sempre brigavam quando estavam juntos.

— Artur! — Cleide, a enfermeira daquele turno, colocou metade do

corpo para dentro do quarto. — Sabe que já deu seu horário, não é?

— Só mais cinco minutos, Cleidinha — pedi, piscando sedutor

enquanto segurava a mão de Rebeca.

— Você disse isso há dez.

— Por favor.

Ela suspirou, relaxando os ombros.


— Diacho[15] de homem bonito — resmungou para si mesma, e

segurei o sorriso, fingindo não ter ouvido. — Voltarei em cinco minutos e


não terá mais conversa.

Agradeci, e ela saiu.

— Está vendo? Você precisa acordar logo para irmos embora desse

hospital de uma vez. A equipe não me suporta mais — brinquei.

Embora estivesse ferido por dentro, eu evitava levar esse sentimento

de tristeza para Rebeca, principalmente ao ter que ir embora e deixá-la

sozinha. Sabia que podia me ouvir e sentir a energia que eu passava, por

isso, sempre me policiava para que ela pudesse se sentir bem ao recobrar a

consciência.

— Não queria ir, mas preciso — confessei. — Prometo que amanhã

estarei com você bem cedinho. E gostaria muito de chegar e te ver com um

sorriso lindo me esperando.

Preparava-me para soltar sua mão quando um movimento sutil

chamou a minha atenção. Foi leve, quase imperceptível, mas o suficiente

para eu sentir e me encher de esperança.

— Você mexeu? — indaguei de olhos arregalados, empolgado com

a ideia de que ela pudesse estar acordando. No entanto, nada aconteceu. —


Bruxinha, sou eu, Artur. Estou aqui com você — tentei estimulá-la,

esperançoso.

Esperei ansioso por qualquer sinal. Alternei o olhar agitado entre o

seu rosto e mão, mas não tive nenhuma resposta.

— Amor, acorda. Estou aqui ansioso te esperando — incentivei,

acariciando seu rosto.

— Artur, seu tempo acabou — Cleide entrou, afirmando categórica.

— Eu a senti mexer. Ela está querendo despertar.

A senhorinha baixinha e robusta franziu o cenho, se aproximando de

Rebeca. Demorou alguns segundos a analisando com cautela, por fim, se

afastou respirando fundo.

— Está querendo me enganar para ficar mais tempo com ela, não é?

— Colocou as mãos na cintura. — É o nosso combinado diário.

— É sério, Cleide. Estava me despedindo quando senti um leve

aperto.

— Você precisa ir para casa descansar. Amanhã poderá ficar mais

tempo com ela.

— De novo — avisei agitado, sentindo o contato um pouco mais


firme em meus dedos. — Chame um médico, por favor.
Ainda que a medicina veterinária me desse base para avaliar os

sinais vitais de Rebeca, não o quis fazer, pois a emoção poderia ser mais

forte que a razão.

Desconfiada, Cleide chamou pelo médico de plantão. Acompanhei

ansiosamente enquanto ele passava a luz pelas pupilas, a tocava e realizava

estímulos nos pés e mãos de Rebeca. Sem nenhum sucesso.

Por fim, colocou o estetoscópio ao redor do pescoço, suspirando


antes de dizer:

— Você está cansado, há muitos dias vem se dedicando totalmente


ao hospital. Talvez a ansiedade em vê-la acordada tenha lhe feito confundir

um espasmo com sinais de consciência.

— Doutor, eu sei o que senti. Não foi um reflexo ou espasmo. Ela


está acordando.

— Vá para casa, querido. Qualquer coisa, te avisamos — Cleide


informou, branda.

Irritado, pedi que eles saíssem do quarto para me despedir de


Rebeca. Aproximei os lábios de seu ouvido, acariciando a mão sobre o

colchão ao lado do quadril.

— Volte para mim, minha Bruxinha — pedi, confiante, sentindo


uma energia diferente no ar. — Sei que você também quer.
Alguns segundos se passaram, ainda que eu pudesse sentir que ela
estava comigo, não tive nenhuma reação. Frustrado, acariciei os seus dedos,

despedindo-me:

— Eles me obrigaram a ir embora, mas volto no mesmo segundo


que você precisar de mim.

Beijei a testa sentindo o peito apertado por ter que deixá-la.


Suspirei, não permitindo chorar.

Saí do quarto notando que já era noite. Caminhei até o

estacionamento permitindo que as lágrimas finalmente caíssem. Embora


estivesse lutando para me manter forte emocionalmente, era devastador

conviver com aquela expectativa de que a qualquer momento ela pudesse


acordar, mas voltava para casa sempre sozinho.

Entrei no carro devastado, sentindo o peito apertado e a saudade de


vê-la sorrindo, tímida e delicada como sempre fazia. Pousei os braços sobre

o volante e me permiti ser fraco.

Não sei quanto tempo fiquei daquele modo, até que levantei, sequei
os olhos e liguei a caminhonete. Abaixei os vidros, soltando todo o ar dos

pulmões, enquanto deixava a brisa fria da noite acalmar o meu peito.

Faltava pouco para entrar na rodovia quando o telefone do hospital

brilhou no painel. Mais que depressa atendi, sentindo que a qualquer


momento meu coração poderia pular do peito.

— Artur? — a voz de Cleide indagou do outro lado.

— Sim.

— Você estava correto. A Rebeca acordou!

Avancei pelos corredores sem conseguir conter a euforia. Era como


se não estivesse acreditando que ela finalmente havia voltado para mim.

Preparei-me para abrir a porta do quarto quando o toque de Cleide em meu


antebraço me fez parar e a olhar.

— Eu sei que é um período de muita emoção, mas você precisa ir


com calma. Ela está confusa.

Franzi o cenho, mas ainda assim respirei fundo para tentar controlar
a minha alegria. Meneei a cabeça e entrei.
A expectativa em vê-la acordada era tão grande que sequer parecia

que estive no mesmo ambiente minutos antes.

Rebeca estava escondida atrás do médico que lhe fazia algumas


perguntas. Caminhei lentamente até os seus pés, sentindo o meu coração

acelerado. Meus olhos subiram pelo seu corpo, incapazes de conter a


emoção quando a notei recostada sobre a cama inclinada para frente.

Como eu senti saudades dos olhos dourados tão expressivos e


brilhantes.

— Bruxinha... — Seu apelido escapou dos meus lábios em um

murmúrio quando a emoção se tornou forte demais para ficar contida.

Ela desviou o olhar em minha direção, encarando-me por alguns

segundos em total silêncio. Passou os olhos pelo quarto, encarou o médico,


em seguida, parou em mim outra vez. Então, surpreendeu-me com a frase

seguinte:

— Você é ainda mais lindo do que imaginei — sua voz soou baixa,
mas carregada de encantamento.

Não pude esconder a minha dúvida. Por um instante, pensei que não
estivesse me reconhecendo.

— Se lembra de mim? — perguntei baixo, parando ao seu lado.


Rebeca me olhou confusa, forçou os lábios, expressou alguns sons

incompreensíveis, mas parecia ser difícil ter o controle da fala. Parou,


puxando o ar dos pulmões, tentando outra vez.

— Lembro da sua voz, de te ver estudando sentado naquela


poltrona, mas não me recordo do seu rosto ou nome.

Olhei na direção da cadeira em que tantas vezes mergulhei em livros

de anatomia e fisiologia humana, tentando entender as razões pelas quais


ela não acordava.

— Você acordou antes? — Senti a garganta embargar.

Ela movimentou a cabeça, perdida.

— Algumas vezes, mas então algo que fazia voltar para onde estava.

Arrepiei-me ao recordar que naqueles momentos eu conseguia sentir


uma energia poderosa ao meu redor, como se estivesse sendo observado. Eu

acreditava em uma energia superior, e algo me dizia se tratar exatamente


disso.

Seus olhos tremulavam. Ela estava confusa, curiosa e temerosa.

— Ei, está tudo bem — tranquilizei-a, embora estivesse apreensivo.


— Posso te tocar?

Ela olhou para os próprios dedos, em seguida para as minhas mãos,

subindo pelos braços. Mordeu o canto do lábio inferior e assentiu devagar.


Procurei seus dedos sobre os lençóis, incapaz de explicar a alegria
que era poder senti-los quentinhos outra vez e olhar para as íris douradas.

Rebeca arquejou com o toque, prendendo a respiração à medida que acolhi


sua mão entre as minhas palmas e a levei delicadamente aos lábios,
beijando-a.

O ar pesou, o sangue circulou mais rápido. Naquele instante, fitá-la


de volta à vida foi como me apaixonar por ela pela primeira vez. Rebeca

também sentiu, pois sua respiração mudou, afetada.

Preparei-me para me apresentar, mas o seu sussurro me

interrompeu:

— Cacetada, você é muito, muito, muito bonito! Será que eu estou


sonhando?

Sorri com sua espontaneidade. Ainda que estivesse voltando aos


poucos, Rebeca jamais perderia o jeitinho pelo qual me conquistou.

— Você não está sonhando. E ainda bem que gosta do que vê, ainda

mais porque estou barbudo e cheio de olheiras — descontraí.

— Por quê? Você é mais bonito do que isso? — perguntou,

genuinamente surpresa.

Ri, acolhendo sua mão entre as minhas, beijando-a com extremo


carinho.
— Porque eu sou o Artur, seu marido.

— Marido? — indagou, chocada.

Assenti, tirando a correntinha escondida sob a roupa, mostrando os

anéis presos nela.

— Essas são as suas alianças. Esta é a minha. — Estendi a mão

esquerda para ela. Seus dedos tocaram com delicadeza o anel dourado que
adornava meu dedo. Mantive minha atenção integralmente nela,

conhecendo perfeitamente cada reação da minha garota. Rebeca estava


tentando entender o que acontecia, ao mesmo tempo em que parecia gostar

da ideia.

— Artur — o médico me chamou —, podemos conversar lá fora?

Assenti, desviando suavemente meu contato com Rebeca. Tirei a

minha corrente do pescoço, pousando sobre suas mãos.

— Tome. Volto logo.

Beijei sua testa e saí.

— Qual a sua avaliação, doutor? — questionei ao fechar a porta


atrás de mim.

— Rebeca está se recuperando bem. Vamos observá-la nos


próximos dias e, se tudo ocorrer como o esperado, deve receber alta em

breve.
— E sobre a memória? — verbalizei o que estava me preocupando.

— Ela não teve nenhum trauma cerebral. Por isso, vamos


acompanhar se está relacionado apenas ao quadro de confusão mental após

tanto tempo desacordada ou se há algum indício de amnésia retrógrada.

Concordei, sabendo que havia grandes chances de ser apenas a


primeira opção, uma vez que ela permaneceu quase três semanas
inconsciente.

Ele explicou mais algumas questões e nos despedimos.

Voltei para o quarto e parei de braços cruzados observando a minha


ruivinha compenetrada, alisando suas alianças com o olhar brilhante.

Todo o cansaço e receio foram embora, deixando apenas um homem


apaixonado e disposto a conquistar novamente a mulher amada se fosse
preciso.
REBECA

Era estranho definir o que vivi nos últimos dias.

Não poderia ser chamado de sono, pois em muitos momentos eu era

capaz de ouvir vozes ao meu redor, principalmente a masculina cantando

em um tom doce e tranquilo.

Também não poderia ser chamado de realidade, porque embora

estivesse em uma fazenda linda, podia sentir meu corpo voando sobre os

pastos verdejantes em diversos momentos do dia, no amanhecer, entardecer


e anoitecer. Na maioria deles, me via ansiosa por acompanhar o moço da

voz bonita. Não podia ver seu rosto, mas sua energia me fazia querer estar

junto dele apenas pelo que me fazia sentir.

Às vezes, eu não conseguia encontrá-lo, então me dedicava a

passear na companhia de uma mulher tão ruiva quanto eu, porém um pouco
mais velha. Seus olhos eram idênticos aos meus. Seu toque, macio e

delicado. A voz, aveludada. Ela não quis me dizer seu nome, mas tornou

meus momentos inesquecíveis. Eu adorava quando estávamos juntas.

— Não há lugar melhor para você estar do que ao lado dele, querida

— ela afirmou, tocando minha mão enquanto caminhávamos entre as flores.

— Por que diz isso? — indaguei, concentrada em sua delicadeza.

Suas roupas sempre brancas davam-lhe um ar de inocência, porém,

seus conselhos eram sábios.

— Porque já passei por muita coisa difícil na vida. Hoje eu sei o que

é melhor para você.

— Mas... nós mal nos conhecemos, eu nem sei o seu nome.

Era verdade, embora já tivéssemos muita intimidade, nos

conhecemos há pouco tempo.

— Acredite, eu estou com você antes mesmo de vir a esse mundo,

filha. — A voz era amorosa.

— Filha? — perguntei, parando de repente, encarando-a.

Ela fez o mesmo, o rosto se tornou sério. Em seguida, sorriu.

— É só o jeito de falar. — Segurou as minhas mãos, fixando seus

olhos nos meus. — Agora precisamos nos despedir.


— A senhora não vai entrar comigo?

Notei que estávamos diante da entrada do casarão bonito e moderno

que visitávamos sempre. Era um dos meus lugares favoritos na fazenda.

Cheio de uma energia poderosa, não só atrelada à autoridade, mas de

acolhimento e amor.

— Não, querida. Me prometa que vai viver em plenitude ao lado do

seu marido, sem remoer o passado e sem buscar vingança. Confie na justiça

divina e tudo se resolverá.

— Não estou entendendo. Achei que fôssemos ficar juntas.

— Você precisa voltar, eles estão te esperando. — Apontou para a

sala. — Enquanto eu, preciso retornar para preparar aquelas crianças para

chegarem na hora certa.

Ela virou o rosto na direção da arena e notei três crianças de


cabelinhos ruivos e cacheados brincando rindo alto, jogando a água dos

cavalos para o ar e pulando nas poças do chão.

— Eu não os conheço — pensei alto.

— Porque ainda não está na hora. Acontecerá no momento certo. —

Ela me abraçou, fazendo-me inalar o cheiro inesquecível de flores do

campo. — Prometa que ficará bem?

Balancei a cabeça em afirmativa, emocionada.


— Vou sentir saudades. — Afastei-me com o peito apertado.

Sentiria falta de todas as conversas em que me contou sua

experiência de vida, a gravidez inesperada, o amor que sentiu pelo pequeno

bebê e o seu curto período com ele.

— Não fique. — Ela sorriu docemente, acariciando meus dedos. —

Agora vá! Ele está ansioso para te receber.

Soltei sua mão, dei alguns passos em direção à varanda e parei. Ao

me virar para olhá-la novamente, ela estava entre as crianças, alisando os

cabelos e sorrindo das suas peraltices. Senti a lágrima escorrer sabendo que

a amava muito e jamais me esqueceria dela.

Respirei fundo, preparando-me para entrar na sala.

Ao passar pelo batente da porta, foi como se holofotes potentes

tivessem apontados para o meu rosto, deixando-me confusa e desorientada.

Em meio à tanta luz, a voz do homem parecia me chamar com muito

carinho. Embora tentasse passar descontração, ele estava triste.

— ... Você precisa acordar logo para irmos embora desse hospital

de uma vez... Não queria ir, mas preciso. Prometo que amanhã estarei com

você bem cedinho.

Não queria que ele se fosse. Gostava da sua voz, de sua presença e

até de quando o via de cabeça baixa lendo um livro com capa de um corpo
humano.

O toque em sua mão espalhou ondas de calor pelo meu corpo.

Ansiosa, tentei segurá-lo e pedir que ficasse, ele sentiu.

— Você mexeu? — indagou, animado.

— É claro que mexi, você não está sentindo? — respondi como se

fosse óbvio, mas ele pareceu não ver.

Inclinou o corpo em minha direção. Ainda que tentasse muito, não

conseguia ver o seu rosto.

— Bruxinha, sou eu, Artur. Estou aqui com você.

— Estou te vendo. Sei que está aqui comigo.

— Amor, acorda. Estou aqui ansioso te esperando.

Apertei sua mão com força várias vezes, começando a me irritar ao

perceber que ele não estava me vendo.

O médico entrou na sala, incomodou-me com aquela luz horrorosa

em meus olhos, fez cócegas nos meus pés e mãos, e mesmo diante das

minhas contorções e pedidos para parar, só se deu por satisfeito quando eu

já não conseguia parar de rir.

Por fim, o homem de jaleco e enfermeira o mandaram embora.


Desesperei-me quando se aproximou do meu ouvido se despedindo

e acariciando a minha mão.

— Eles me obrigaram a ir embora, mas volto no mesmo segundo

que você precisar de mim.

— Fique, por favor — implorei, segurando a sua mão antes de ele se

afastar.

Observei-o caminhar até a porta, não contendo o choro, me sentindo

abandonada e sozinha naquele ambiente frio como em todas as vezes em

que ele ia embora até encontrá-lo na fazenda.

Tudo o que aconteceu em seguida foi um grande borrão. Os

aparelhos começaram a disparar em um barulho infernal. Meu peito estava

acelerado, a garganta sufocada, o desespero latente.

Outro clarão forte me atingiu, roubando os meus sentidos.

Só entendi que estava novamente no quarto quando a equipe médica

entrou correndo e a enfermeira sorriu ao me encarar.

— Você acordou, Rebeca? Artur vai ficar maluco quando souber.

Minha boca estava seca, o corpo dolorido, assim como o peito

parecia queimar. Pisquei, perdida. O quarto que vi tantas vezes parecia

diferente, não sabia explicar. Era tudo confuso.


— Que... — Tentei molhar os lábios para perguntar, mas não

consegui.

— Espere. — Ela estendeu um copo com água. Suguei o canudo

com muita dificuldade, mas um alívio maravilhoso tomou o meu corpo

quando o líquido hidratou minhas cordas vocais.

Só então consegui dizer:

— Quem... — arranhei a garganta testando a voz — quem é Artur?

— Você não se lembra? — Neguei em um movimento, ela

continuou: — Não vou estragar a surpresa então. Enquanto o médico faz a


sua avaliação, vou ligar para o homem que não saiu do seu lado por um só

instante.

Tentei argumentar, mas sentia-me muito fraca, completamente


diferente de minutos atrás quando me sentia flutuar sem nenhum tipo de

dor.

Desci o olhar com dificuldade, notando um curativo próximo aos

meus seios. Esforcei-me para espiar, mas desisti diante da dor.

Não sei quanto tempo fiquei sob avaliação médica. No entanto, senti
a energia mudar quando a porta abriu, e ele surgiu.

Petrifiquei, completamente sem reação ao notar o quanto era


absurdamente lindo, principalmente ao sorrir. Quando sua mão tocou a
minha, eu soube que tínhamos uma ligação forte e que poderia confiar
minha vida a ele.

O amor em seu olhar, carinho e cuidado ao perguntar se poderia se

aproximar me fez derreter.

Não acreditei quando afirmou ser meu marido. Quase perguntei se

ele estava doido, mas algo me dizia ser verdade. Tudo se multiplicou
exponencialmente quando me mostrou as nossas alianças.

Enquanto ele saiu para conversar com o médico, alisei os metais em

minhas mãos sem saber direito o que pensar, mas com o sangue correndo
tão rápido em minhas veias que me fez ter uma única certeza: eu gostava

muito de estar com ele.

Levantei a cabeça sentindo sua presença novamente no quarto. Ele

me olhava de braços cruzados, compenetrado a ponto de me fazer


questionar se conseguia ver a minha alma.

— Por que eu tenho duas alianças? — externei o pensamento,

apreciando a tradicionalidade de uma e a delicadeza da outra.

Artur se aproximou, sentando-se ao meu lado. Deslizou o polegar

suavemente pelo meu antebraço, explicando em tom brando:

— Nos casamos duas vezes. A primeira, porque você tinha fugido

de um noivado arranjado pelo seu pai. A segunda, porque nos apaixonamos


e para fazer uma grande festa e ninguém da cidade duvidar no nosso amor.

Ouvi atentamente, um tanto surpresa por aquele relato. Por um

segundo, a pontada de incerteza se realmente éramos apaixonados surgiu,


mas então eu me lembrei de tudo o que senti ao vê-lo entrar naquele quarto

e o quanto o ar mudou. Imagens dos momentos em que o acompanhei pelos


campos e do quanto me sentia bem em estar com ele.

Flashes de um homem barrigudo pipocaram em minha mente,

desencadeando pontas em minhas têmporas.

— Você está bem? — indagou, preocupado.

— Acho que sim. Apenas algumas memórias, não sei direito.

— Não se esforce. — Tocou meu queixo.

Pousei meus dedos em sua palma quente, tentando criar coragem.

— Será que... você pode me dar um abraço? — pedi, sem jeito.

Artur sorriu, envolvendo meu corpo com cuidado até estar


completamente acolhida em seus braços. Inspirei o cheiro gostoso, uma

mistura do seu cheiro másculo natural e perfume.

O tempo parou, senti-me que estava em casa.

— Estou tão feliz que acordou. Senti tanto a sua falta — declarou,

beijando o topo de meus cabelos.


Apertei-o com mais força, mesmo sentindo o incômodo no peito. A

necessidade de estar com ele parecia ser maior do que qualquer coisa.

Levantei o rosto, quase encostando em seus lábios. Perdi-me


naquele paraíso lindo, cercado por uma barba crescida há algum tempo.

Tinha um ar selvagem, maduro, despertando em mim a vontade de beijá-lo.

Meu Deus! Mal tinha acordado e as coisas estavam indo rápido

demais.

Não resisti ao desejo de tocá-lo. Primeiro com a ponta dos dedos,


sentindo a sua respiração acelerada, tão necessitado quanto eu. Artur soube

o que eu iria fazer e se manteve quietinho em expectativa, mas deixando


claro que esperaria o meu tempo.

Fechei os olhos com a respiração suspensa. Encostei meus lábios


nos seus, explorando lentamente, primeiro o de baixo, depois o de cima.

Insegura, deslizei a ponta da língua por eles, ouvindo sua respiração ficar
pesada, quase dolorida. Por fim, o urro surgiu de sua garganta e ele perdeu a

civilidade.

Embrenhou a mão pela minha nuca e tomou meus lábios com


voracidade impondo ritmo, lascívia e muita saudade. Retribuí com tudo de

mim, uma emoção tão forte que me fazia ter vontade de chorar.

Beijei e fui beijada.


Todas as emoções que ele despertava em mim vieram à tona,

fazendo-me recordar que eu o amava.

Afastamo-nos devagar, imersos em muito sentimento. Coloquei os

anéis entre as nossas mãos, observando as minhas inchadas.

— Será que ainda cabem em mim? — perguntei, baixo, mergulhada


em nossa bolha.

— A equipe médica tirou quando você passou pela cirurgia — Artur


explicou, tocando meus dedos com cuidado. — Desde então, eu aguardava

ansiosamente você acordar para colocar de novo. — Inseriu primeiro a mais


grossa, a tradicional. — Essa foi a do nosso primeiro casamento. Foi um dia

muito corrido, mas assim que a vi, imaginei como ficaria, assim como o seu
vestido de noiva.

Sua fala despertou um filme em minha mente. Nós dois no que

parecia ser um cartório de pé em frente ao celebrante. Em seguida,


conseguia me ver usando um vestido branco na altura dos joelhos. Percebi

que sorria ao me lembrar de um homem me entregando um buquê


improvisado, só então compreendi que se tratava de Rodrigo, o meu irmão.

— Eu me lembro — murmurei.

— Mesmo? — Artur sorriu. — Isso é muito bom. Essa — apontou


para o segundo anel mais fino colocado junto ao anterior — foi a do nosso
casamento do religioso. Aconteceu na fazenda, com direito a um festão.

Então pude me ver de noiva pela segunda vez, entrando na


cerimônia em uma máquina verde enorme. Naquele instante, entendi que se

tratava do mesmo lugar em que tantas vezes voei durante o período do


coma.

— Está se lembrando de algo?

— Eu... conheço a fazenda. Tem muito verde, gado, plantações e um


casarão lindo.

O seu sorriso doce se expandiu e me vi perdida em um gesto tão


sincero.

— Tudo isso e muito mais. Em breve você estará de volta e farei


questão de te levar para aproveitar tudo.

Concordei. Então fiz a pergunta que estava me deixando apreensiva.

— Como eu vim parar nesse hospital?

Seu semblante se tornou sério, sem desfazer o nosso contato.

— É uma longa história e não acho que seja o melhor momento para

te contar.

— Por favor.
Artur suspirou, mas começou a contar tudo o que havia acontecido
até o instante em que me atirei em sua frente. Ouvi calada, recordando-me

de algumas cenas soltas, mas o suficiente para acompanhar a linha do


tempo que ele narrava. Era estranho, mas não senti raiva ou qualquer outro

sentimento ruim. Em meu peito, havia apenas gratidão por estar viva e junto
ao homem que eu amava.

— Embora eu seja totalmente contra o que você fez, sou muito


grato, Bruxinha. Obrigado.

Em silêncio, convidei-o novamente para um abraço. Ele veio,

enchendo-me da sua energia vibrante.

Poderia ser louco, mas eu não tinha palavras para descrever o que

Artur causava em mim. Talvez nunca tivesse, mas sabia que se precisasse
me atirar outra vez em frente a uma bala para salvá-lo, eu faria.
REBECA

No dia seguinte, Artur chegou ao hospital antes mesmo de eu


acordar. Abri os olhos lentamente ainda sob efeito da medicação, notando-o

entrar empolgado enquanto eu me espreguiçava.

Estava absurdamente lindo em um jeans escuro, camisa de botão


com mangas dobradas nos cotovelos e uma fivela bonita no cinto preto. Por

si só, isso foi capaz de me fazer derreter. Contudo, o buquê de rosas

vermelhas em seus braços desvendou um sorriso radiante destacado pela

pele sem nenhum sinal da barba presente no dia anterior. Não pude conter o
suspiro apaixonado.

Caramba! Ainda não tinha estrutura para apreciar tamanha beleza.

— Bom dia, Bruxinha! — Aproximou-se, esticando o ramalhete

bonito. — Trouxe para você.


— Bom dia. — Peguei-o, apreciando o cheiro gostoso das flores,

encantada. — São lindas, obrigada.

Artur se inclinou para me beijar, mas no reflexo, coloquei a mão em


frente à minha boca, balançando a cabeça para os lados.

— Preciso escovar os dentes.

Ele riu.

— Ainda não perdeu essa mania?

Neguei.

— Não ligo para isso — afirmou, tentando outra vez, porém, me


afastei.

— Mas eu ligo. — Pousei as flores sobre a cama. — Vem, me ajuda


a descer.

Paciente, ele me apoiou até chegar ao banheiro, quis entrar comigo,


mas neguei veementemente.

Tirei a camisola de algodão delicada e quentinha, refletindo que

cada canto daquele quarto demonstrava o quanto tinha sido pensado com
carinho para mim. Da decoração com dois jarros de flores até a minha

vestimenta.
Demorei algum tempo encarando a marca da cirurgia cicatrizando,

mais uma vez agradecida por estar viva. Fiz a minha higiene matinal,

sentindo-me feliz apenas por conseguir urinar sem precisar de sonda ou da

ajuda das enfermeiras, como tinha acontecido algumas vezes naquela

madrugada.

— Amor, você está bem? Precisa de ajuda? — A voz dele soou

preocupada atrás da porta.

— Sim, já estou saindo.

Vesti-me outra vez, ansiosa para lavar os cabelos emaranhados. Saí

do banheiro, deparando-me com seu olhar especulativo.

— Você caiu? — sondou-me, oferecendo o braço.

— Não. Estou bem mesmo.

Ele meneou a cabeça, guiando-me até a cama. Ajudou-me a sentar, e

fiquei sem entender quando deu a volta, parando atrás de mim. Esticou o

braço no pequeno móvel de cabeceira, apanhando uma escova de cabelo.

Achei que fosse me entregar, mas para o meu completo fascínio, soltou os
fios, começando a desembaraçar mecha por mecha, de baixo para cima,

com a destreza e cuidado de quem estava acostumado a fazer isso todos os

dias.
— Você existe mesmo ou ainda estou sonhando? — zombei, cada

segundo mais apaixonada.

Ele riu, terminando o trabalho bem feito. Colocou-se à minha frente,

tocando meu rosto suavemente, ainda que seu olhar fosse intenso e

penetrante. Inalei o seu cheiro gostoso, evidenciando o perfume masculino.

Ajeitou alguns fios atrás da orelha, dizendo rouco:

— Existo. E estou louco para te beijar. Será que agora posso?

Consenti, sorrindo, cheia de expectativa para sentir sua boca contra

a minha outra vez. Meu Deus! Foi mágico.

Artur me beijou com carinho como tinha feito na noite anterior. No

entanto, passou a ganhar intensidade, exigindo mais de mim. Agarrei-me a

ele com mais força, arquejando quando me pegou no colo.

Entrelacei minhas pernas ao redor de sua cintura, sentindo minha

intimidade roçando em sua ereção. O coração acelerou, o ar faltou e achei

que fosse desmaiar quando um calor intenso se alojou em meu ventre. Era

como se apenas o beijo tivesse se tornado pouco e meu corpo implorasse

por mais.

Embrenhei os dedos por seus cabelos curtos, mordendo seu lábio e

arrancando um gemido baixo dele.


— É melhor a gente parar enquanto consigo me controlar — arfou,

de olhos fechados, apertando com força a minha coxa e bunda.

— Não quero que pare. — Avancei contra sua boca outra vez.

— Bruxinha, você está se recuperando. Pode se machucar se

continuarmos. — Ele estava rendido, lutando contra o desejo.

— Eu adoro te ouvir me chamando de Bruxinha, mas quero que faça

isso enquanto me ama.

— Porra! — Começou a andar comigo em direção ao banheiro sem

desgrudar a boca da minha. — Você aniquila o meu juízo.

Sorri, vitoriosa e muito ansiosa.

No ambiente pequeno, ele trancou a porta me colocando de pé

contra ela. Agitado, abriu o cinto e desceu o zíper da calça. Ofeguei diante

do volume robusto na cueca preta. Passei a ponta dos dedos sobre o tecido,

ansiosa para descobri-lo quando a voz de uma mulher no quarto nos fez

parar assustados.

— Filho? Você e Rebeca estão aqui?

Arregalei os olhos assustada. Artur jogou a cabeça para trás com as

pálpebras cerradas, respirou fundo, passando a língua pelos lábios,

frustrado.

— Já vamos, mãe.
A adrenalina de quase ser pega me fez ter vontade de continuar,

ainda que fosse errado. Segurei o rosto dele entre as mãos, beijando-o

novamente.

— Não me provoque ou a situação ficará ainda mais constrangedora

— sussurrou, muito excitado.

Ri, pousando um último beijo em seus lábios, seguindo para o


chuveiro e deixando ligado para disfarçar até que ele se recuperasse. Passei

os dedos ajeitando os cabelos alvoroçados e nos preparamos para sairmos

segundos depois.

Assim que meus olhos pousaram na mulher de costas observando as

rosas tive memórias de sua dona. Ela se virou em nossa direção, sorrindo ao

me ver, vindo me abraçar.

— Ah, minha querida! Que bom vê-la acordada. — Alisou meu

rosto. — Está até mais coradinha do que eu esperava. — Olhou o filho

desconfiada, deixando-o sem graça, mas não falou nada.

Tive vontade de rir, mas me segurei. Não senti vergonha, ela que

chegou na hora errada.

— Não achei que a senhora fosse vir agora cedo — ele falou, indo
se sentar na poltrona, na tentativa de esconder a protuberância que não tinha

cedido completamente.
— Decidi mudar os planos. Não tinha hora para sair do mercado e

fiquei com medo de ficar muito tarde, afinal, é hoje é 23 de dezembro.

— Já é Natal? — questionei, surpresa.

— Sim, querida. E se o médico permitir, você passará conosco. Se

não permitir, vamos passar com você.

— Obrigada, Dona Marta.

— Você se recordou de mim? — Juntou as mãos, alegre. — Artur


comentou que estava recobrando a memória aos poucos, então me preparei

para caso não me reconhecesse. Trouxe isso. — Apontou para uma bolsa
térmica. — Café da manhã de hospital é triste, então quis trazer algo bem

saboroso para você, já que seu marido só pensava em chegar cedo.

Sorri e fomos para a mesinha ao canto, onde a enfermeira tinha


trazido um pão, café e gelatina. Marta colocou alguns recipientes pequenos

com bolo, pães de queijo, quitandas e uma garrafinha de café sobre a mesa.
Artur se juntou a nós na organização e começamos a comer em seguida.

— Estou me lembrando aos poucos — informei. — Lembro-me de


quase tudo, mas uma coisa ou outra ainda é como um borrão.

— Tenho certeza de que sim. — Tocou minha mão com delicadeza.

— Os demais virão te visitar também, mas quis vir primeiro para agradecer
o que fez pelo meu menino. Serei eternamente grata pela sua coragem e
demonstração de amor.

Emocionei-me diante da sua sinceridade. Levantei-me com cuidado

e a abracei, dizendo com apenas um gesto muito mais do que mil palavras.

O carro avançava pelas ruas enfeitadas para o Natal enquanto eu só

conseguia pensar em quanta coisa tinha vivenciado naquele ano.

Estava feliz por estar viva, longe das maldades do meu pai e
voltando para a fazenda em que aprendi a chamar de lar, para o seio da

família que me acolheu tão bem a tempo de comemorarmos juntos o


nascimento de Cristo.

Eu estava sem nenhuma sequela, então não havia razão para


continuar no hospital, desde que mantivesse o repouso.
Agitei-me no banco quando nos aproximamos do casarão todo
enfeitado com luzes natalinas. Na varanda, todos aguardavam ansiosos para

a nossa chegada.

Artur me ajudou a descer e para a minha alegria, mamãe veio em

minha direção, abraçando-me cheia de saudade.

— Fiquei tão preocupada com você, filha — confidenciou,


segurando o meu rosto entre as mãos.

Ela parecia consciente, dona de si mesma, muito diferente da mulher


que vi nos últimos anos, principalmente daquele dia fatídico.

— Como a senhora está? — Observei-a com atenção.

— Feliz por você estar de volta. — Sorriu. Em seguida, estendeu o


braço para Rodrigo vir até nós.

Não pude negar a surpresa quando ele se aproximou e nos abraçou.


Mamãe e Rodrigo não tinham conflitos, mas não eram exatamente

próximos. E constatar que as coisas estavam mudando era o melhor


presente que eu poderia ter.

— Quase me matou do coração, Ruivinha! Se fizer isso outra vez,

eu te mato — brincou, apertando os braços grandes ao meu redor, fazendo-


me rir de olhos fechados, acolhida.
— Bicha — Joe veio todo alegre e espalhafatoso —, acho bom tu se

lembrar de mim. Caso contrário, vou te bater até se recordar.

— Isso não se faz, quer me mandar de volta para o hospital? —


provoquei, recebendo seu carinho gostoso.

— Não, quero te mandar é a conta do meu cardiologista. Já é a


terceira vez que me deixa desesperada. Achei que ia te perder.

— Prometo que será a última.

— Acho bom, agora vem porque está todo mundo ansioso para te
ver.

Joe entrelaçou um braço em mim e outro no Artur, seguimos os três


como marias fifis até a entrada da varanda. Ele era divertido e querido por

todos.

A família me acolheu com muito carinho. Artur me ajudou a tomar


um banho rápido, fazendo o mesmo em seguida. Tive vontade de

finalmente aproveitarmos nossa intimidade, mas precisávamos descer para a


ceia.

Ao redor da mesa farta e enorme, nos juntamos aos demais. Não


pude deixar de notar Milton sentado entre Marcela e a minha mãe. Levantei
uma sobrancelha encarando o meu irmão que apenas assentiu ao meu
questionamento silencioso e sorriu faceiro ao movimentar os dedos

indicador e médio como se dissesse “estão andando juntos”.

Não vou mentir, me preocupava, mas me deixava igualmente feliz

por saber que mamãe estava melhorando gradualmente e voltando a viver.


Vânia e Olegário também estavam presentes, afinal, sempre fizeram parte

da minha família.

Ao lado esquerdo de Alfredo na ponta da mesa, Marta se levantou


com calma, chamando a nossa atenção ao pronunciar:

— As noites de Natal sempre foram muito importantes nesta


fazenda, e neste ano não poderia ser diferente. Desde a chegada de Luiza, a

nossa família tem aumentado significativamente. No ano passado vieram a


Beatriz e a Marcela. Neste ano, Aurora e Rebeca. Uma netinha para cada

nova nora. — Riu, arrancando sorrisos dos demais. — Desde a primeira vez
que pousei meus olhos nos seus, querida — fitou-me — soube que seria

parte desta família, só não sabia que cresceríamos tanto. — Olhou os


demais. — E estou muito feliz por isso. Mesmo em tempos difíceis, quando
ainda não tínhamos as condições financeiras que temos hoje, Alfredo e eu

sempre quisemos ter uma família grande, não é, meu bem? — Tocou o
braço dele sobre a mesa.
— Há controversa — ele zombou, fazendo careta. — Cada notícia
de gravidez que ela me dava na época era um teste cardíaco diferente. Se

não morri é porque meu coração aguenta ter vários netos.

— Larga de ser besta, homem. — Ela deu um safanão no braço dele.

— Brincadeiras à parte, Marta tem razão. — O tom dele assumiu o

modo fazendeiro dono da porra toda. — Muito me alegra ver a nossa casa
cheia e a família crescendo. Sejam todos muito bem-vindos.

— Agora o velho falou bonito. — Antônio bateu palmas, enchendo

a paciência do pai. Mas tinha razão, Alfredo falava pouco, mas sempre nos
momentos certos.

— Peço que todos se coloquem de pé para agradecermos a Deus


pelo que temos, mas principalmente, pela vida em abundância. Por livrar-

nos todos do mal e permitir que Rebeca estivesse conosco novamente.

Fitei-a emocionada, sem palavras para agradecer o fato de estar


entre todos que eu amava.
REBECA

MARÇO

Saí do lavabo ainda um pouco nauseada e apreensiva. Há alguns

dias, vinha notando meu corpo diferente, mais lento, sensível e um sono que

não cabia em mim. Ainda não tinha feito nenhum exame, mas quando me
levantei enjoada naquela manhã, tive a certeza.

Pensativa sobre qual seria a reação de Artur, caminhei descalça pela

casa ampla, arejada e com vista para o amplo horizonte. Toquei os móveis

novinhos ainda sem acreditar que realmente estava vivendo aquela vida de
princesa.

Peguei o porta-retrato do nosso casamento na fazenda, não

conseguindo conter o sorriso orgulhoso. Nunca tive tanta certeza da


felicidade. De me sentir amada, acolhida e realizada.
Parei no parapeito da varanda, observando os cavalos correrem

livres no redondel enquanto os pensamentos vagavam sem controle.

Há alguns meses, não poderia imaginar que para me sentir


protagonista da minha própria história, eu precisaria passar por tantos

desafios. Porém, a verdade era que se aquela Rebeca cheia de medos e

sonhos me perguntasse hoje se tinha valido a pena, sem sombra de dúvida

eu diria que sim e a incentivaria a fazer tudo outra vez.

A vida foi boa demais em me dar o Artur como marido. Chegava a

ser engraçado o fato de que nos casamos por conveniência, mas nunca

enxergamos a nossa relação assim.

Tirando o primeiro dia como esposa, em que tudo ainda era confuso

e assustador, eu sempre vi o nosso matrimônio como verdadeiro e sincero,

como na verdade ele sempre foi. Artur se entregou sem medo, porque

embora a armadura de homem controlado encobrisse, ele era muito intenso.

Já eu não fui muito diferente, porque me apaixonei por ele no dia da festa

da colheita, no instante em que seus olhos profundos foram capazes de

lerem a minha alma.

Qual mulher nunca sonhou com um príncipe encantado? Aquele que

além de bonito, a encheria de amor e seria a resolução de todos os seus

problemas.
Pode parecer um pensamento machista ou retrógrado, mas a verdade

é que, ao menos por um segundo, todas nós procuramos esse príncipe

encantado. E eu tive a sorte de encontrar o meu.

Na realidade, Artur era muito melhor do que qualquer sonho que eu

tive. Um homem carinhoso, observador, protetor e muito família. Desde o

atentado, sentia que nossa ligação estava ainda mais forte. A mera

possibilidade de que um dia essa cumplicidade pudesse se desfazer me

deixava de coração apertado.

Eu o amava, e daria minha vida por ele quantas vezes fossem

necessárias, assim como tinha certeza de que ele faria o mesmo por mim.

— O que está fazendo aqui tão quietinha? — Sua voz grossa

penetrou meus ouvidos no instante em que as mãos abraçaram a minha

cintura. Os lábios quentes tocaram a minha nuca, espalhando uma emoção

quente pelo meu corpo. Era tesão, mas principalmente uma energia tão

intensa incapaz de ser nomeada. Era muito mais que amor.

Virei-me para ele, passando meus braços sobre os seus ombros.

— Pensando no quanto eu amo a nossa vida, a nossa casa e tudo o

que o futuro reserva para nós. — Beijei seu queixo.

— Eu faço tudo por você, Bruxinha. Nunca pensei que pudesse ficar

tão entregue assim a uma mulher. — Ele retribuiu, apertando os braços


musculosos ao meu redor, deixando-me cativa e ainda mais apaixonada.

Mentiria se dissesse que não me senti inflamar com a sua

declaração. Artur me surpreendia em alguns momentos a ponto de fazer

meu peito esquentar.

— Espero que essa entrega se estenda aos novos integrantes que

estão por vir. — Acariciei o seu peitoral sem camisa, plantando um beijo

sobre o coração.

Ele precisou de meio segundo para processar o que eu tinha dito.

Não consegui conter o riso. Suavemente, ele me afastou pelos ombros,

levantando uma sobrancelha curiosa.

— Como assim novos integrantes?

Mordi o lábio nervosa, pousando sua mão sobre a minha barriga

plana.

— Eu estou grávida.

Artur arregalou os olhos, engolindo o fôlego um pouco assustado.

Em seguida presenteou-me com o mais lindo sorriso do mundo.

— Grávida? É sério? Você fez o teste?

— Ainda não fiz nenhum teste, mas eu sei que estou. E serão

trigêmeos, dois meninos e uma menina.


— Três? — Acariciou minha cintura, ainda sem acreditar. — Como

você sabe?

Sorri, lembrando dos momentos que vivi com a minha mãe durante
o coma e as crianças que brincavam alegre quando nos despedimos.

— Eu apenas sei.

Artur me abraçou forte, tirando-me do chão e rodopiando pela

varanda.

— Eu vou ser pai! Caralho, eu vou ser pai! — Beijou-me, alegre. —

Parece muito incrível!

Eu sabia que sua reação seria receptiva, mas nunca imaginei que

fosse ficar tão feliz quanto um menino ganhando um brinquedo novo.

— Sabe o que vamos fazer agora? — Mordeu meu lábio,

acariciando a minha bunda.

— Fazer um teste? — arrisquei, com a sobrancelha erguida.

— Não. — Deu-me um beijo rápido. — Eu confio na sua intuição.

Se você disse, é verdade. — Pegou-me no colo, fechando a porta da sala. —


Comemorar estreando esse sofá.

Deitou-me sobre o estofado, se livrando da minha camisola

enquanto saqueava a minha boca com muito desejo. Desceu beijando meu

pescoço, os seios onde gostava de chupar e mordiscar, deixando-me louca.


Contorci quando os dentes prenderam o mamilo em uma puxadinha que

espalhou brasa pelo meu corpo, alojando diretamente na intimidade.

— Tenho que aproveitar, porque daqui a algum tempo, terei que

dividir com três cópias nossas chorando famintos.

Ri, suspirando quando a língua percorreu pela barriga e os dedos

ágeis desceram a calcinha. Embora tivéssemos transado na noite passada,


eu havia me descoberto uma mulher muito sexual. Gostava de estar com

ele, de fazer tudo o que nossos corpos pediam.

Sua boca quente me fez fincar as unhas no tecido, gemendo cada

vez mais alto a cada lambida e sugada. Artur sabia exatamente onde tocar,

como lamber, a força e velocidade necessária para me fazer ir às alturas

com um orgasmo violento.

— Isso, Bruxinha, grita! — incentivou, com o dedo em mim, lento e

fundo. Em seguida, acelerou e não pude me conter. A voz estava rouca,

carregada de luxúria. — Agora você pode gritar o quanto quiser, na sua

casa, para o seu homem.

Gozei muito agarrada em seus cabelos.

Ainda meio aérea, não permiti que me penetrasse. Minha boca


salivava, em um desejo lascivo para tê-lo entre os meus lábios.
Empurrei-o no sofá, sentindo-me uma loba faminta ao descer a

bermuda e encontrá-lo completamente ereto, cheio de veias e muito, muito

duro.

Passei a língua na ponta arrancando gemidos dele e meus. Comecei

devagar, apenas explorando, mas quando vi, estava ensandecida chupando

como se a minha vida dependesse disso.

Artur gemia alto com os dedos embrenhados em meus cabelos. Ora


me deixava guiar, ora ditava o ritmo que queria, atiçando ainda mais a

minha excitação.

— Vem cá, se continuar desse jeito, vou gozar. — Deitou-se sobre

mim, mas não deixei.

Coloquei-o deitado de costas, ajoelhando-me sobre ele, iniciando


uma cavalgada lenta a princípio. Senti-o me abrindo, como em todas as

vezes em que transávamos. Havia momentos em que eu pensava ser


pequena para o seu tamanho, até me acostumar e pensar que não poderia

haver medidas melhores para nós dois.

Eu gostava de senti-lo me rasgar. Ele gostava de me sentir esmagá-

lo.

Estávamos ofegantes e suados em busca do prazer absoluto. Gozei


de novo, e antes que ele pudesse fazer o mesmo, peguei sua mão pousando
nos meus glúteos.

Ele virou o rosto um pouco de lado, um tanto surpreso.

— Eu estou entendendo certo?

— Quero aqui. — Suspirei, sentindo seus dedos descerem


lentamente até a entrada do meu ânus. — Você gosta?

Seu sorriso resplandeceu.

— Se eu gosto? Eu adoro! Principalmente quando a vontade parte


de você. — Saiu devagar de dentro de mim, colocando-me de bruços.

Fiquei tensa. Com a voz mansa, percorreu minhas costas com as pontas dos
dedos: — Agora só relaxa e aproveite.

Arquejei, assentindo, tremendo em expectativa.

Assustei-me quando a língua quente e úmida lambeu o meu


buraquinho.

— Artur — resmunguei, fechando as pernas. — Assim não.

— Shhh... eu sei o que é melhor para você, lembra? — Deslizou o


dedo da minha vagina para o ânus, explorando lentamente.

Era difícil controlar a vergonha. Caramba, eu estava muito exposta.

Ele voltou a lamber, suspirando de prazer, fazendo-me relaxar e me


entregar ao quanto aquilo era gostoso.
Travei quando a ponta do dedo pediu passagem na entrada do canal,
mas a língua macia continuava varrendo tudo.

Lentamente entrou o primeiro dedo, em seguida, o segundo. Senti-


me alargar, mas ele era paciente. Sem pressa, ele esperou que eu me

acostumasse para então começar a inserir o pênis.

Contraí-me outra vez ao sentir a glande quente e robusta.

— Está em tempo se quiser desistir — avisou, embora a voz

estivesse rouca de desejo.

— Não. Estou com medo, mas quero tudo.

Ele riu, mordendo o meu glúteo direito.

— Então relaxe e só aproveite.

Fiz como ele pediu e aos poucos senti o seu membro ganhando
espaço. Era desconfortável e queimava, mas vi tudo rodar em mais absoluto

prazer à medida que ele entrava. Tremi, me sacudindo, sentindo o corpo


todo suar.

— Se acalme, já estou completamente dentro de você. — Beijou


meu ombro, mantendo-se quieto até eu me sentir mais confortável.

Aos poucos, ele tomou tudo de mim. Quando percebi, estava deitada

à sua frente, com seu peito colado em minhas costas enquanto arremetia
ferozmente e segurava minha perna para o alto.
Seus dedos acariciaram meu clitóris e a língua afundou em minha

boca. Gozei como nunca, sem saber exatamente por onde. Ele esporrou em
seguida, ofegante.

— Sofá estreado — se divertiu — agora falta o restante da casa até

nossos filhos nascerem.

Ri, mole. Ainda bem que estava deitada.

— Machuquei você? — ele perguntou, preocupado, saindo do meu

interior.

— Não. E eu gostei muito assim, vou querer sempre.

Artur gargalhou, se levantando e me pegando no colo, seguindo para


o banheiro.

O horário do jantar se aproximava quando ele estacionou em frente


ao casarão, buzinando e fazendo festa. No caminho de volta para a fazenda,

ele ligou pedindo que todos nos encontrassem na varanda de Marta,


inclusive minha mãe, Joe e Rodrigo. Então não demorou para que todos

aparecessem.

— Qual o motivo da festa? O Deodato morreu? — Luiza perguntou,

vindo em nossa direção. Sua barriga já estava bem evidente. Ao seu lado,
Davi segurava a mão de Bia ainda um pouco cambaleante.

— Luiza... — Aloísio a repreendeu, logo atrás.

— Ah, qual é? Vai dizer que a gente vai achar ruim quando isso
acontecer?

Antônio segurava a Aurora. Ao seu lado, Marcela limpava a

boquinha da bebê.

— O que aconteceu, meu filho? — Marta nos recebeu animada no

topo da escada, deixando o esposo alguns passos atrás.

Artur passou o braço pelos meus ombros ao pararmos na frente de

todos eles, nos olhando curiosos.

— Vocês estão preparados? — ele atiçou.

— Fala logo, pirralho. — Antônio estava tão inquieto quanto Luiza.

Artur tocou minha mão, passando a palavra para mim

silenciosamente.

— A família vai aumentar! — anunciei, animada.


— Ahhh, não acredito! Que benção! — Marta fechou as duas mãos
em uma palma em frente ao rosto. Em seguida, me abraçou apertado,

alegre. Na sequência, abracei a minha mãe e Marta fez o mesmo com Artur.
— Finalmente você ouviu os pedidos da sua mãe e vai me dar um netinho.

Ele sorriu, colocando-a delicadamente ao seu lado para que pudesse

ver os demais comemorando também.

— Na verdade, é uma gravidez múltipla — explicou, causando um

efeito de surpresa geral.

— Dois bebês? — minha mãe perguntou, tocando minha barriga.

Olhei para o Artur fazendo um pouquinho de suspense e achei que

Joe fosse ter um treco, tamanha ansiedade.

— Fala logo, gente! Eu sou cardíaco.

— São três — confidenciei.

Joe pulou no colo de Rodrigo. Marcela e Antônio comemoraram,


embora ele parecesse um tanto incrédulo. Alfredo sorriu em silêncio. Marta

agarrou a cintura de Artur, assim como minha mãe fez comigo.

— Eu adoro a capacidade que essa família tem de multiplicar


herdeiros — Luiza comemorou.

— Herança do papai aqui, querida. — Alfredo bateu no peito


estufado, orgulhoso.
— Por que está todo mundo se abraçando? — Davi indagou
perdido, pegando a irmã no colo e repetindo o gesto.

— Você vai ter mais três primos, Davi. — O avô se aproximou dele,
pegando a Bia no colo e acariciando as costas do garotinho.

— Três? — Davi estendeu os dedos com a numeração. — De uma

vez? — O avô assentiu, ele continuou: — Isso é demais!

— E como o primo mais velho, precisará ajudar os seus tios, tias e o

vovô a cuidarem deles.

— Pode deixar, vovô. Eu vou cuidar de todo mundo — o pequeno


garantiu, muito seguro.

— Não acredito que meu sonho de ser avó de dez está cada vez mais
próximo. Agora só fal... — Marta foi interrompida pela voz de Antônio.

— Segura a nelorezinha aqui, Ísio. — Ele direcionou a filha para o


irmão. Aloísio a pegou, um pouco assustado. — Volto logo.

— O que você está fazendo? — Marcela indagou confusa quando o


marido a pegou no colo, descendo as escadas em direção à casa deles.

— Temos uma meta a cumprir, leoa. Desta vez não aceito menos do
que uma gravidez quádrupla. Nem que para isso eu precise ficar todo

esfolado.
ARTUR

OUTUBRO

Atrás do arco de madeira e flores brancas, a lagoa refletia o

alaranjado do céu, como em aprovação de mais um laço matrimonial

ocorrido na fazenda.

Do lado direito do casal, Marcela e Antônio estavam sentados,

felizes por também serem os padrinhos da união de Joe e Rodrigo.

Na esquerda, Rebeca segurava o pequeno arranjo de flores que o


nosso amigo havia entregado, em frente à barriga muito maior do que o

esperado para os sete meses de gestação. Como o belo marido dedicado e o

pai babão que havia me descoberto, mantive-me sentado ao seu lado, com a

mão enlaçada em sua cintura atento a qualquer reação dela.


Ao longo daquele pouco mais de um ano casados vi minha Bruxinha

se desenvolver pessoal e profissionalmente. Após a recuperação do tiro,

Rebeca havia começado a trabalhar efetivamente na fazenda conciliando

com a faculdade. Era dedicada, esforçada e muito amorosa com os

funcionários da fazenda. No entanto, à medida que a gestação avançava, ela


precisou reduzir o ritmo de trabalho.

Estava sendo incrível nos descobrirmos pais. O crescimento da

barriga, os primeiros chutes, os desejos de grávida, o amor incondicional e


até o sexo estava sendo diferente. Embora estivesse mais cansada, Rebeca

manteve um grande apetite sexual. Devo admitir, nunca achei que transar de

ladinho, levantando uma de suas pernas e com o braço abaixo do seu corpo,

alisando os seios enquanto tomava sua boca em beijos ardentes fosse tão
bom.

Ela estava aprendendo a ser uma mãe forte. Por muitas vezes, a

observei se perder no tempo sentada na poltrona do nosso quarto em

conversas longas com os nossos pequenos. Eram momentos em que, de

algum modo, Rebeca se conectava com os nossos filhos e com a sua mãe. O

choro vinha silencioso, em uma mistura de tristeza e conforto. Algumas

vezes eu a abraçava, tentando a acalentar. Noutros, sabia que ela precisava

de espaço e eu o fazia.
Enquanto a mim, não acreditava que seria pai de três numa única

vez. No início o susto foi grande, mas o amor por eles era exponencial. Fiz

questão de ajudar Rebeca a escolher a decoração dos quartos, montar todos

os berços e mimar a minha ruivinha como ela merecia.

Por muitas noites deitados em nossa cama, imaginávamos se nossos

pequenos seriam loiros ou ruivos. Eu tinha esperança de que se parecessem

comigo, ainda que Rebeca tivesse sido categórica ao dizer que seriam

ruivos. Contou que durante o coma viu dois meninos e uma menina com

cabelinhos cor de fogo. Por isso, não quisemos saber os sexos durante o

pré-natal, apenas se estavam bem.

O suspiro ao meu lado e a sua mexida desconfortável me trouxeram

de volta à realidade.

— Está se sentindo bem, amor? — perguntei baixo, analisando seu

rosto com cuidado. Estava vermelha e chorosa.

— Sim, apenas emocionada por ver meu irmão se casando com uma

pessoa que o faz feliz.

Meneei a cabeça, sabendo que tinha razão. Rodrigo e Joe eram duas

almas sofridas que tiveram que lidar com as adversidades da vida e o

preconceito. Embora não tenha sido fácil, estávamos muito felizes por

aquele momento. Eles mereciam a felicidade de se casarem e serem pais


como tanto sonhavam. Há alguns meses, visitaram um orfanato e se

apaixonaram por Pedro, um garotinho sapeca e amoroso que arrebatou o

coração de todos e tinha sido o convidado de honra para festa. Desde então,
aguardavam o trâmite da adoção.

— Rodri... — Joe limpou a garganta, começando os votos

emocionado. — Lembro-me da primeira vez que te vi na balada. Você

tranquilo, em um canto do bar, olhando para as pessoas, acuado, como um

bichinho do mato indefeso. Já eu, uma libélula saltitante e espalhafatosa que

escondia muitos traumas por trás do comportamento maluco. Eu não

pensava em me aquietar, mas aí você veio e pousou na minha revoada,

trazendo a serenidade que eu nunca pensei que precisava. É claro, você

trouxe outras coisas também que o horário não me permite dizer. A Marce

lembra quando cheguei na casa dela arrebatada por você, né, amiga? —

Olhou para a minha cunhada, rindo e arrancando risos dos demais. —


Naquele dia eu soube que você seria meu e eu seria sua ou seu, não ligo

para o pronome utilizado. Mas o que eu realmente não consigo é viver sem

você e o seu amor. Receba esta aliança como prova da minha entrega,

respeito e fidelidade. Eu te amo.

Em seguida, deslizou o anel no dedo anelar de Rodrigo e o beijou

com carinho. Emocionado, meu cunhado pegou as duas mãos de Joe, se

declarando:
— Naquela mesma noite, eu não queria sair de casa, porém algo

mais forte me fez ir. Então te vi completamente escandalosa, irreverente e

muito sincera. Vi em você, a dose de alegria que faltava em mim. Juntos,

estamos sendo capazes de amenizar toda a dor e sofrimento que

infelizmente tivemos que passar. Mas valeu e continua valendo a pena cada

segundo, porque nos tornamos mais fortes e inabaláveis. Eu te amo e quero

passar o resto da minha vida com você, Joelson Rodrigues.

— Ai! Esse nome horroroso que me batizaram não, por favor —

brincou, fazendo-nos rir, inclusive Júlia, a sua irmã, também madrinha do

casamento. Rodrigo colocou o anel dourado no dedo do esposo,

emocionado. Ansioso, Joe não esperou: — Me beija logo, veado!

— Que haja sempre respeito — falei baixo, rindo. Rebeca e os

demais concordaram.

Eles saíram do altar sob uma chuva de aplausos e assovios. Antônio

foi o primeiro a animar.

Com a gravidez bem avançada, Rebeca não conseguia ficar muito

tempo de pé. Por isso, seguimos para a festa e logo a coloquei sentada ao

lado de sua mãe à mesa reservada para nós.

Milton estava de pé ao meu lado, também atento a elas. Sim, por

mais improvável que pudesse parecer, o coroa estava se abrindo novamente


para o amor. Com a Dona Célia cada vez mais lúcida, eles passaram a se

relacionar mais e acabou não sendo surpresa para ninguém quando

anunciaram que estavam juntos.

A festa avançou noite adentro com direito a fotos, cantoria, touro

mecânico, diversão e muita comilança. Observei Rebeca comendo com

calma, como havia se acostumado a fazer. A cada mês, reclamava de estar

ganhando peso. Aos meus olhos, estava cada vez mais linda.

A médica comentou que havia chances de Rebeca ter um parto

precoce devido à gestação múltipla, então eu me mantinha atento. Seu

suspiro chamou minha atenção outra vez, ainda que respirar já não fosse tão

simples para ela.

— O que você está sentindo, Bruxinha? — indaguei, preocupado.

Ela passou a mão sobre a barriga, ajeitando a postura na cadeira.

— Não é nada, apenas cansaço e um desconforto nas costas. —

Franzi o cenho, e ela tentou me tranquilizar tocando a minha mão em seu

ombro e sorrindo. — É sério, vamos aproveitar a festa.

Assenti, em silêncio.

Algum tempo se passou, mas Rebeca parecia cada vez mais

inquieta. O rosto bem maquiado começava a brilhar de suor e em nada tinha


a ver com o calor daquela noite. Ela fechou os olhos e antes que pudesse

dizer qualquer coisa, me adiantei:

— Vamos para o hospital. Você não está bem.

— Não seja exagerado, amor. Não vou estragar o casamento do meu

irmão.

— A festa vai continuar sem a gente. Vou ligar para a sua médica no

caminho.

— Art... — sua voz foi interrompida pelo gemido e a careta — está

bem, não vou discutir.

— Vou com vocês — Dona Célia nos surpreendeu ao se posicionar.

— Não, mamãe. O Rodri pode achar ruim — Rebeca resmungou,

aceitando a minha ajuda para se levantar.

— Sem discussão, filha. Ele se casou, você terá seus bebês. Quer
data melhor que essa? Vou buscar as malas e encontro vocês no carro.

Rebeca se emocionou, eu teria ficado se não tivesse preocupado


com ela.

— Vem, vou te levar no colo.

— Não, eu consigo andar. — Ela fez uma careta.


— Deixa de ser teimosa — finalizei a conversa, pegando-a. Seu
braço rodeou o meu pescoço e os suspiros dolorosos invadiram os meus

ouvidos.

Atenta a tudo ao seu redor, mamãe veio até nós, apreensiva


enquanto eu andava para a caminhonete.

— Chegou a hora? — perguntou com expectativa.

— Ainda não sabemos, mãe. Mas estamos indo para o hospital.

— Ah, nem acredito! Vou com vocês.

Não discuti, ansioso para chegar logo.

Entrei no carro com pressa, pousando Rebeca no banco de trás.


Mamãe e Dona Célia foram com ela enquanto eu dirigia acelerado e ligava

para a médica. Pelo retrovisor pude ver mais dois carros atrás de nós.

Demos entrada no hospital, Rebeca foi logo encaminhada para a sala

de exames e, como esperado, as crianças nasceriam prematuramente. Meus


olhos arregalaram, a apreensão me atingiu, mas precisei me manter calmo,

para o bem de Rebeca e dos meus filhos.

— Estou com medo — ela confessou ao entrarmos na sala de parto.

— Eu estou aqui, Bruxinha. — Peguei sua mão fria, beijando o topo

de sua cabeça coberta pela touca. — Não sairei do seu lado.


Não desfiz o nosso toque por nenhum segundo. Quando o primeiro
bebê nasceu, senti a maior emoção da minha vida me atravessar como um

vendaval.

— É um menino! — a médica avisou, colocando-o no colo de

Rebeca em seguida.

Tão pequeno e frágil. A coisinha mais linda que eu já tinha feito na


vida.

— Oi, meu amor! — Rebeca o recebeu amorosa.

— Bem-vindo ao mundo, filho. — Embargado, alisei os cabelinhos

finos e claros. Não dava para ver direito, mas tinha grandes chances de ser
ruivo. — Você será o Bernardo.

O bebê chorou, e Rebeca riu do meu desespero. Antes eu estava

acostumado com os meus sobrinhos, quando eles choravam, eu entregava


logo para mãe ou o pai. Agora, eu era o pai, e meu Deus! Eu. ERA. O. PAI.

As emoções se confundiam, principalmente quando o segundo bebê


nasceu, vindo para o outro braço da mãe. O nosso Bento.

A Bruxinha e eu havíamos combinado de que, se fosse menino, ela

escolheria. Mas se fosse menina, seria minha decisão. Quis muito


surpreendê-la com uma homenagem. E quando a nossa caçulinha veio, não

pude conter a emoção ao pegá-la nos braços pela primeira vez.


Sentado ao lado de Rebeca, acomodamos os nossos filhos em seu

colo e não havia emoção maior no meu peito. As lágrimas escorreram pelos
meus olhos, embargado demais para não chorar sorrindo e sorrir chorando.

— Qual o nome dela, papai? — Rebeca perguntou, amorosa.

— Noemi — respondi, mantendo meu olhar fixo no seu, captando o


exato segundo em que uma nova onda de choro a atingiu.

— É sério? — Sua voz falhou.

— Sim. — Alisei seus cabelos, beijando em seguida a sua testa. —


Quero que a nossa filha tenha o mesmo nome e força da avó materna.

— Eu te amo — Rebeca se declarou, sorrindo entre lágrimas.

— Eu te amo mais, Bruxinha. Obrigado pelo presente mais lindo da


minha vida.

Horas depois, meus pais, irmãos e dona Célia estavam radiantes no


quarto, babando nos três netos ruivos. Por fim, Rebeca tinha acertado na

previsão dos nossos filhos. Dois meninos, uma menina e todos ruivinhos.
Eu estava ansioso para saber como seriam a cor dos olhos deles.

— O que está achando das primeiras horas como pai? — Aloísio

indagou baixo, alisando a cabecinha de Bento.

E sim, embora ele e Bernardo fossem idênticos, eu estava

começando a diferenciar os sons deles.


— Acho que ainda estou um pouco entorpecido. Não sei explicar.

Ele riu, me abraçando.

— Parabéns! O Alfredo Neto mal completou cinco meses e eu já


estou louco para encomendar mais um.

— Deixa a Luiza ficar sabendo disso — Antônio provocou. — É


muito gostoso a hora de fazer, mas cuidar dá trabalho.

— Acha que eu não sei? Tenho um filho de oito anos, uma de dois e
outro de cinco meses, uma mulher brava e a prefeitura totalmente
desorganizada dessa cidade para gerir. Mas acha mesmo que por isso não

irei ter mais filhos? A vida passa, cara. Ser pai é a melhor coisa do mundo
e, se eu fosse você, encomendaria mais uns três na Marcela — Aloísio

implicou o nosso irmão. — Sempre zoou o Lobinho, mas ele conseguiu


fazer três de uma vez, já você...

— Cala a boca, Aloísio — Antônio ralhou.

— Apelou, perdeu. — Rimos dele.

Mamãe estava toda apaixonada com Bernardo no colo, mimando-o e

cantando baixinho como fazia com todos os netos. Na poltrona, Célia


parecia em outra dimensão ao acarinhar Noemi. Ela se emocionou muito

quando contamos o nome escolhido, não tenho dúvidas de que em sua


mente, o filme da vida teve replay. De algum modo, a vinda dos nossos
filhos significava recomeço para todos nós.
ARTUR

MESES DEPOIS...

Naquela manhã de domingo, havíamos voltado da missa sob o Sol

escaldante e convidativo para o típico churrasco da família Albuquerque.

Enquanto preparava a carne no quiosque do casarão, observei as


crianças brincarem empolgadas sob a vigilância dos adultos. Era engraçado

como a energia ao nosso redor estava ainda mais forte, com muito amor e

união.

Rebeca estava sentada em um dos sofás da varanda amamentando a

pequena e faminta Noemi. Dos três, era a mais mandona. Deveria ser algum

tipo de herança genética das netas de Dona Marta. Enquanto os meninos

eram mais tranquilos e amorosos, as meninas pareciam um pequeno furacão


varrendo tudo com suas vontades.
Bento, Bernardo e Alfredo Neto estavam no chão brincando sob o

olhar atento da minha esposa. Luiza e Marcela estavam na cozinha

ajudando mamãe a preparar o almoço farto. Na piscina, Davi nadava de um

lado para o outro brincando de ser o tubarão. Antônio e Aloísio também

estavam na água cuidando das suas filhas. Era engraçado ver dois homens
daquele tamanho molhados, sem camisas e de bonés todos preocupados

com as bebês em suas boias rosas.

O pior de tudo era que eu estava ansioso para que os meus


crescessem um pouco mais para fazermos o mesmo.

— Esse churrasco sai hoje, peão? — A mão firme do meu pai bateu

em meu ombro.

— A primeira remessa já está na churrasqueira, pai.

— Bom — disse, indo até o freezer. Serviu nossos copos com uma

cerveja trincando. Perguntou, colocando o meu à minha frente: — Qual o

motivo de estar no mundo da lua?

— Ísio tinha razão quando disse que ser pai era maravilhoso. — Pus

o espeto para assar, limpando a mão no pano em meu ombro. Em seguida,

virei-me para ele. — Não sei qual foi a última vez que tive uma noite inteira

de sono, mas não trocaria essa vida por nada.


Ele encostou o quadril ao lado da bancada da pia, cruzando os

braços em frente ao peito e sorriu daquele jeito tão característico dele,

misterioso e sabedor. Para a minha surpresa, confidenciou:

— Um dia sentirá dos seus filhos o mesmo orgulho que eu sinto de

vocês. Embora eu brinque com isso hoje, trabalhei muito nessa vida para

que vocês não passassem pelo mesmo desespero que eu passei quando

descobri a paternidade. Sem dúvida foi o melhor presente que Marta

poderia ter me dado, mas sempre quis que vocês pudessem desfrutar desse

momento com tranquilidade, sem o sufoco de uma vida difícil.

— O senhor quase não conta do passado de vocês para a gente.

Era verdade. Embora minha mãe contasse algumas coisas e papai

zombasse de uma situação ou outra, ainda não era muito claro para nós a

trajetória dos nossos pais.

— Tudo tem a hora certa de acontecer, meu filho.

Assenti. Sabia que ele não se estenderia, por isso, mudei de assunto,

picando as carnes prontas.

— Notícias de Deodato?

— Além do fato de que virou mulherzinha de bandido na cadeia,

nenhuma. Mas ele não é bobo, sabe que meus homens estão de olho nele.
Nunca mais terá a coragem de se aproximar de nós. Claro, se um dia sair do

presídio.

Nossos inimigos estavam neutralizados, dando-nos paz de espírito.

Embora o prazo de denúncia para o crime de estupro tivesse

prescrito, ou seja, passado o limite de tempo para a denúncia, Deodato

amargaria na prisão pelos crimes cometidos na prefeitura e a tentativa de

homicídio.

Renata também estava presa pelo assassinato do marido e de ter sido

cúmplice do pai no desvio de verbas. Durante as investigações, foi

descoberto que a escola em que Davi estudava antes de vir para a fazenda

era utilizada para lavagem de dinheiro. Por isso, Renata estava lá quando

atacou o garoto[16].

O coronel tinha sido encontrado morto em um dos silos da própria

fazenda. A polícia encerrou o caso como mal súbito, porém, as condições

do ocorrido deixavam claro se tratar de retaliação pela opressão aos

funcionários e justiça com as próprias mãos em defesa das garotas que ele

violentou e agrediu. Houve boatos de que a própria filha tinha fornecido

condições e informações para que o crime ocorresse. Era maldoso dizer,

mas a cidade estava mais aliviada com a partida de um homem tão cruel.
Ao contrário do que todos imaginavam, Bruno seguiu a própria

vida. Ouvi dizer inclusive que estava amando. Ele não era uma pessoa ruim,

apenas um playboy que se prendeu em um amor do passado e cometeu

muitas burradas por isso.

— O almoço está pronto — Marcela avisou, indo até a piscina para

buscar a Aurora.

A garotinha estava esperta e toda engraçadinha, mas fez escândalo

ao ser tirada da água. A cena se repetiu com a Bia, um pouco maior,

igualmente brava.

Sentamo-nos ao redor da enorme mesa de madeira que papai tinha


mandado fazer para comportar toda a família. O almoço foi o puro suco do

caos. Criança aprendendo a comer, comida caindo no chão, risadas altas e

muita alegria.

Em seguida, coloquei um colchão de casal no chão e os pequenos

apagaram. Era simples, mas cultivávamos com nossos filhos as mesmas

memórias que tivemos quando éramos menores.

Milionário e José Rico cantavam Vontade Dividida, uma das

músicas preferidas do meu pai. Ele por sua vez, serviu uma dose de cachaça

para cada um dos filhos e Marcela, a única nora com mesmo gosto para
bebida que ele. O velho ficou radiante quando ela parou de amamentar e

voltou a acompanhá-lo naqueles momentos.

— Um brinde à nossa família! Às crianças que aqui estão e às que

ainda estão por vir — ele anunciou, batendo nossos copos, virando em

seguida.

Caminhei para o sofá, trazendo Rebeca para o meu peito.


Confortável, ela estendeu os pés sobre o estofado aproveitando a preguiça

gostosa após o almoço.

— Quer ir para casa? — perguntei baixinho, alisando os cabelos

ruivos e mais curtos.

Minha Bruxinha tinha assumido traços mais maduros, talvez vindos

da responsabilidade trazida pela maternidade. Como é possível explicar eu a


amar cada dia mais?

— Está tão gostoso assim — devolveu no mesmo tom. — Se formos

para casa, eles irão acordar.

Concordei. Momentos de tranquilidade como aqueles tinham se

tornado raros na nossa casa.

Aloísio estava concentrado no celular resolvendo problemas da

prefeitura como tinha se tornado comum. Não sei como ele conseguiu se

adaptar tão bem naquela nova profissão. Embora ele precisasse estar na
cidade todos os dias, não renunciou ao fato de continuar morando na

fazenda.

Luiza e mamãe trouxeram o pudim de leite.

— A senhora quer mesmo que o nosso tanquinho vire o buxinho do

papai, né, mãe? — Antônio se levantou para se servir.

— Eu já falei que você não vai ser gostosão assim para sempre. A

idade chega — ela devolveu.

— Mas o velho é bonitão. Entendo suas razões para se apaixonar

por ele. — O pirralho distribuiu as porções para todos. Parou à minha


frente, zombando: — E aí, Lobinho, já pagou as doze multas que a mamãe

ganhou na sua caminhonete ao levar a Rebeca para o hospital?

Todos riram, mas ela fez careta.

Mamãe era extremamente cautelosa quando falávamos de direção.

Em tantos anos habilitada, ela nunca tinha cometido uma única infração de
trânsito. Por isso, quando as doze multas chegaram, foi motivo de piada

interna, principalmente porque ela ficava toda ruborizada. Agora não tinha
mais lugar de fala quando passávamos da velocidade.

— Vai te catar, menino. — Bateu no ombro do meu irmão, fingindo

estar zangada.
— Vem cá, amor, eu protejo você. — Papai a puxou para o seu colo
como um legítimo casal de apaixonados.

O casamento dos meus pais era um exemplo para os filhos. Quase

35 anos juntos, com muito amor, briguinhas bobas como todo casal, mas
acima de tudo, admiração e respeito.

Eu apreciava observá-los juntos. Embora fossem mais contidos, seus


olhares gritavam silenciosamente a paixão entre eles.

Mamãe se sentou sobre as pernas dele, encolhendo os ombros ao

receber um beijo no pescoço.

— Ih, já vai começar a sacanagem na nossa frente — zombei.

— O que tem, menino? Você acha que velho não transa? — ela
brincou. — Pensa que nasceu como?

— Mãe, a gente não precisa saber detalhes de como viemos ao

mundo. — Aloísio fez uma careta.

Todos riram.

— Mas então, que tal nos contarem como começou a história de

amor de vocês? — Marcela pediu, colocando uma colherada generosa de


doce na boca.

— Acho justo, afinal, vocês sabem das nossas — Luiza endossou.


Mamãe olhou meu pai sobre os ombros em um olhar cúmplice,
sorrindo ao tocar a mão dele sobre a sua cintura.

— Acha que a gente deve contar, bem?

Ele nos olhou, fazendo um certo suspense ao finalmente dizer:

— A tarde está linda! Propícia para uma bela, e não tão simples,

história de amor.

Acomodei-me melhor no sofá ansioso para ouvir o que eles tinham a

contar. Passei meu olhar pelas crianças dormindo tranquilas apenas de


fraldinha e uma manta fina para proteger dos mosquitos.

Eu sempre seria muito grato por tudo o que meus pais passaram para

que hoje os filhos pudessem ter conforto. No entanto, não havia nada
melhor do que a simplicidade de estar com a minha família compartilhando

o nosso amor e a brisa fresca daquela tarde.

Apertei Rebeca em meu abraço, sentindo o cheiro gostoso de seus

cabelos espalhar ondas de calmaria e felicidade em meu peito ciente de que


não poderia ser mais feliz e realizado.
ALFREDO ALBUQUERQUE

— Agora teremos uma conversa na qual eu tentei fazer de tudo para


não acontecer, mas você não colaborou — avisei, quando a porta se fechou

atrás de Aloísio.

— O que você vai fazer comigo? — Deodato gritou desesperado no


chão sujo.

— Te ensinar a ouvir os avisos da vida. Levante-se. — Meu tom

ecoou cortante pelas paredes finas.

Ele continuou no chão, deitado em meio ao sangue e urina. Uma

cena deplorável.

— Se eu precisar te levantar para você me encarar de homem para

homem, pode ter certeza de que o cabo de vassoura será o seu tripé.
Ele arregalou os olhos, amedrontado. Seu rosto estava

completamente ensanguentado, o olho inchado, o supercílio e a boca

cortados. Gemendo, se arrastou pelo chão imundo até a pilastra central,

tateando-a para ficar de pé.

— Você... não pode me matar. A polícia está me esperando — o

covarde tentou se defender.

— Para a sua sorte. Caso contrário, eu mesmo daria um jeito em

você — adverti.

— Me solta! — Tentou fugir, mas caiu fraco meio passo à frente.

Caminhei até o canto pegando um pedaço de pau grande encostado

na parede. Voltei-me para ele, levantando uma sobrancelha. O aviso estava

em meu olhar. Se ele tentasse fugir de novo, eu não teria piedade.

Pacientemente, esperei-o se levantar outra vez.

— Eu falei para você não se aproximar da minha família, não foi?

O ódio e a raiva por aquele monte de estrume tinham dado lugar a

uma gelidez nefasta.

— Eles foram até a minha casa. Eu só me defendi.

— Não se faça de idiota. — Meu punho encontrou seu olho inchado

com força. — A situação estava resolvida, mas por vingança você iria atirar

contra o meu filho se Rebeca não tivesse se jogado na frente.


Aproveitando que ele estava no chão, pisei em seu antebraço direito,

abaixando-me lentamente enquanto tirava o revólver da cintura.

— Agora, vou garantir que você nunca mais consiga atirar em

ninguém. — Engatilhei a arma lentamente à sua frente, satisfeito em ver o

pânico em seu olhar.

— Não! Não... — O lixo humano se debateu, mas não tive dó.

Um tiro. Foi o que precisei para inutilizar o seu dedo indicador

enquanto ele gritava.

Não me orgulhava do que estava fazendo, mas um homem na minha


posição precisava de algumas atitudes bruscas para defender a família de

pessoas como Deodato. Caso contrário, nunca teríamos sossego.

— Se alguém souber do que aconteceu aqui ou se você sonhar em

atacar a minha família de novo, eu volto para buscar os outros nove que te
sobraram.
RODRIGO MOREIRA

ALGUM TEMPO DEPOIS...

Nunca fiquei tão nervoso em toda minha vida, nem mesmo na


assinatura da papelada de adoção do Pedro.

A boca estava seca, as mãos suando frio e o coração acelerado. Estar

naquele presídio, observando meu pai caminhar em minha direção era a


pior coisa que já tinha feito em toda minha vida. Contudo, eu precisava

exorcizar todo o mal que ele causou em mim. Seria a primeira e última vez

que eu pisaria em um lugar como esse.

Franzi o cenho quando ele chegou perto o suficiente para que eu

pudesse observá-lo melhor. Estava mais magro, abatido e mancava. A barba

estava feita, embora os cabelos calvos estivessem grandes a ponto de

amarrar.
— O que veio fazer aqui? — ele indagou com asco, como sempre se

referia a mim, ao se sentar.

Para Deodato, eu nunca fui filho, nem mesmo quando criança. A


verdade era que ele nunca gostou de ninguém além dele mesmo. Nem de

Renata, apenas a usava para conseguir o que queria. Eles eram iguais.

— Você está usando batom? — respondi com outra pergunta,


estarrecido com a cor rubra em seus lábios. Desci meu olhar em sua mão

direita, notando a falta do indicador. — O que aconteceu com você?

Nervoso ao ver a direção em que eu olhava, ele gaguejou como se


estivesse buscando as palavras, mas desistiu. Depois atacou:

— Veio tripudiar vendo a minha desgraça? Conferir com os próprios

olhos que me tornei mulher de bandido e sou obrigado a fazer tudo o que
eles querem? Lavar, cozinhar, me vestir de mulher, transar...

Ainda que eu estivesse impressionado, prometi a mim mesmo que

nada me impediria de falar tudo o que estava entalado na minha garganta.

Controlei o tom de voz e disse, firme:

— A culpa não é minha ou de ninguém. O fato é que você está


colhendo o que plantou com as próprias mãos.

Deodato nunca tinha me visto encará-lo tão altivamente, deixando a

surpresa evidente em sua expressão.


— Por muito tempo eu pensei se realmente viria aqui. Cheguei à

conclusão de que você merece saber que, embora sempre tenha me

humilhado, desprezado, me batido e gerado traumas que mesmo com a

ajuda da terapia nunca serão esquecidos, eu não te desejo mal.

Tirei uma foto da carteira em que estávamos eu, Joe e Pedro na

cachoeira, alegres sob a queda d’água. Continuei:

— Está vendo esse garotinho esperto? É o meu filho, sou capaz de

dar a minha vida por ele. E este ao lado dele é o meu marido. Eles me dão

tanto amor que às vezes eu não me sinto preparado para a intensidade do

carinho. — Sorri, orgulhoso da minha família. — Eles cuidam de mim de

um jeito tão gostoso como você nunca fez e, para ser sincero, acho que

nunca receberá algo parecido. Então, respondendo à sua pergunta, eu vim

até aqui somente para te dizer que você não foi capaz de me destruir. Eu
não desejo o seu mal, mas espero, do fundo do meu coração, que continue

colhendo exatamente tudo o que plantou.

Sem esperar sua resposta, levantei-me caminhando até a saída sem


olhar para trás. Estava mais leve, sentindo-me com a alma lavada. Agora eu

voltaria para a minha família e continuaria vivendo a vida tranquila e

amorosa que sempre quis ao lado do meu marido e do meu filho.

FIM.
UAU! Chegamos ao fim da história de Artur e Rebeca.
Estou curiosa para saber o que você achou. Não se esqueça de
avaliar na Amazon, tire alguns minutinhos para me contar o que sentiu
lendo A PROTEGIDA DO COWBOY, é muito importante para mim e para
que mais pessoas conheçam o livro. Além disso, me estimula a trazer
histórias melhores.
Me acompanhe nas redes sociais e fique por dentro de todos os
lançamentos. Sinta-se à vontade para me chamar e vamos trocar muitas
figurinhas.
A Família Albuquerque tem um cantinho muito especial no meu
coração, e de muitas das minhas leitoras também. Espero que Artur e
Rebeca tenham te cativado assim como a nós.
Sou muito grata a Deus por guiar meus caminhos e fazê-los cruzar
com pessoas tão incríveis que conheço a cada lançamento. Neste, em
específico, muitas coisas foram diferentes para mim.
Diversos desafios pessoal e profissional, prazos apertados,
perrengues e muita gente maravilhosa em meu caminho.
Agradeço em especial as minhas leitoras betas que estão sempre
comigo (Fabi Almeida e Fabi Souza), obrigada por todas as considerações a
respeito do Lobinho e da Bruxinha. À Karen Helena, minha amiga Ka,
obrigada por tudo. Te tenho em um cantinho muito especial do coração,
você sabe disso. A cada lançamento, está sempre empolgada, engajada e
muitas vezes, me joga para cima quando o cansaço, o desânimo e a correria
batem. Obrigada por tudo.
Para este livro, agradeço em especial a querida amiga, Cristina
Clini, um anjo que Deus colocou no meu caminho, a responsável por todas
as artes deste lançamento. Cris, muito obrigada por ter se mantido no eixo e
não ter pirado comigo quando as coisas apertaram. Você é uma pessoa
muito iluminada.
Obrigada, Lidi, minha revisora maravilhosa que foi super parceira e
paciente. Sei que não foi fácil, mas sou muito grata por tudo.
Gratidão ao meu esposo que me apoia e incentiva a cada livro.
Obrigada, querido(a) leitor(a) por ter me acompanhado até aqui e
espero te ver nos próximos lançamentos. Marta e Alfredo vem por aí. Ainda
sem datas, mas tenho certeza de que será uma história maravilhosa para
fechar com maestria a série Família Albuquerque.
Beijos,
Loren Santos
(Para acessar, clique na imagem.)

UMA MÃE PARA O FILHO DO COWBOY (Família Albuquerque,


Livro 1)

Luiza nunca pensou que sua vida mudaria completamente ao


proteger com unhas e dentes o pequeno Davi, por quem nutre um imenso
amor e carinho. Avessa a fazendas e agroboys, a professora terá todas as
suas certezas abaladas ao aceitar o convite para trabalhar na escola da
fazenda, principalmente, ao ter que enfrentar o temido Aloísio
Albuquerque.
Fazendeiro bruto, Aloísio vive mergulhado na seriedade do trabalho
e terá os seus limites testados diante da chegada da professorinha petulante
e desaforada. Decidido, apenas se permite relaxar na presença do filho
Davi, um garotinho esperto e cativante, abandonado pela progenitora ao ter
nascido com a Síndrome de Down.
Uma professora sem papas na língua.
Um fazendeiro ranzinza.
Um garotinho que sonha em ter uma mãe.

Seria a receita perfeita para um romance doce, divertido e

apaixonante?
(Para acessar, clique na imagem.)

A REDENÇÃO DO COWBOY (Família Albuquerque, Livro 2)

Antônio é conhecido como o mais alegre dos irmãos Albuquerque.


Zootecnista e dono de uma sensualidade provocante, esconde através do
sorriso e da libertinagem a dor de um amor proibido e a constante sensação
de ter perdido uma parte importante de sua vida.
Após o adoecimento da mãe, Marcela se vê obrigada a quebrar a
única promessa que havia feito: jamais voltar à Fazenda Canto dos
Pássaros. Veterinária renomada, aceita chefiar a equipe mesmo sabendo que
precisará lidar diretamente com Antônio, a quem escolheu odiar.
Um homem em busca de respostas, abalado pelo retorno da única
mulher que amou.
Uma mulher independente, forjada na dor e no lombo de um cavalo,
esconde traumas do passado e feridas mal curadas.
Um amor que ultrapassou as barreiras do sofrimento e do tempo,
repleto de memórias, novas histórias, simplicidade, aventuras, provocações
e paixões arrebatadoras.
(Para acessar, clique na imagem.)

CEO: O PREÇO DE UM SONHO

Manuela Barreto é uma jovem empresária, dedicada, amorosa e


desastrada. Cresceu sonhando em ser bem-sucedida profissionalmente e
nutrindo um amor platônico pelo seu vizinho mais velho.
Tendo o pai como maior fonte de inspiração, Leonardo Galvão é um
bom filho, marido apaixonado, workaholic e aspirante a CEO. Focado em
seus objetivos, dedica-se tanto ao trabalho que não perceberá quando os
outros aspectos de sua vida começarem a mudar.
Manu e Leo são dois jovens de origem simples que lutam para
atingir a tão sonhada estabilidade financeira. Todavia, os caminhos serão
transformados quando os planos do casal já não se tornam mais os mesmos.
Ele sonha em se tornar CEO e está disposto a trabalhar horas
infindas para isso.
Ela sonha em ser mãe e coloca sempre a família em primeiro lugar.
Tendo objetivos tão diferentes, qual preço eles estarão dispostos a
pagar por seus sonhos?
Com uma cunhada-cupida que não mede esforços para unir o casal,
será tarde demais para corrigir as ações do passado?

Uma história contada no coração de Minas Gerais. Regada a muita


música caipira, café, broa e pão de queijo. Prepare-se para se deliciar, dar
boas risadas e ficar com o coração quentinho.
Avaliação:

Apoie e incentive os autores nacionais na Amazon, avalie este livro


e ajude a literatura brasileira.

[1]
Centro de Treinamento.
[2]
Encurtar o caminho.
[3]
História contada no livro A Redenção do Cowboy, Série Família Albuquerque, livro 2.
Disponível na Amazon.

[4]
Promete, Luan Santana.
[5]
Cena descrita no livro Uma Mãe Para o Filho do Cowboy, Série: Família Albuquerque,
livro 1. Disponível na Amazon
[6]
Pessoa desonesta.
[7]
Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010).
[8]
Camisa de compressão usada por baixo do quimono.
[9]
Strip it down, Luke Bryan.
[10]
Nervoso, alterado.
[11]
Grande vantagem.
[12]
Agindo na surdina.
[13]
Expressão para se referir a calça muito curta. Córgo pode ser interpretado como
córrego.
[14]
Conselho Regional de Psicologia.
[15]
Interjeição referente a indignação.
[16]
Esta cena aparece no primeiro livro desta série, chamado: UMA MÃE PARA O FILHO
DO COWBOY – FAMÍLIA ALBUQUERQUE. Disponível na Amazon.

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