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Á LVA R O K U H N

O casamento do Mafioso

Tatiana Amaral
Copyright © 2024 Tatiana Amaral

All rights reserved

The characters and events portrayed in this book are fictitious. Any similarity to real persons, living or dead, is coincidental and
not intended by the author.

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ISBN-13: 9781234567890
ISBN-10: 1477123456

Cover design by:Renato Klisman


Library of Congress Control Number: 2018675309
Printed in the Brasil
“Dizer eu te amo
Não são as palavras que eu quero ouvir de você
Não é que eu não queira que você diga,
mas se ao menos você soubesse como poderia ser fácil me mostrar o que você sente
Mais do que palavras é tudo que você tem que fazer para tornar real
Então, você não precisaria dizer que me ama
Pois eu já saberia.”
More then Words - Extreme
Para todas as garotas que entenderam. O amor começa dentro da gente, primeiro por
nós, depois pelo outro. Nunca no sentido inverso. Vocês são as princesas dos romances
tortos. As que se salvam sem esperar pelo príncipe. Amem isso. Vivam isso. Sejam isso.
NOTA DA AUTORA
Esse livro conta a história de Isotta e Álvaro, personagem do livro Jean Kuhn, também
disponível como ebook na Amazon e como físico na editora Unicorn.
Todo o universo que envolve a história deste livro começou no livro Noah Moretti,
disponível como e-book na Amazon e como físico na editora Coerência.
Os livros são independentes e podem ser lidos sem ordem, mas se você quiser conhecer
exatamente como cada coisa aconteceu, a ordem de lançamento é Noah Moretti, Jean Kuhn e
Álvaro Kuhn.
Os livros de Jean e Álvaro abordam o tema máfia e é sempre bom lembrar a todos os meus
leitores, para que nunca se desprendam da ideia de que romances com pano de fundo máfia não
correspondem à vida real.
1
ISOTTA
CINCO ANOS DEPOIS

— Não acredito que você conseguiu! — Simona me abraçou pela milionésima vez
enquanto seguíamos na lancha fretada em direção a festa que acontecia no meio do mar.
— Eu sempre consigo.
Fiz um brinde junto a taça dela. Champanhe, o melhor que conseguimos em Ibiza. De
imediato meus olhos cruzaram com os de Elias. Ele sorriu, relaxado, e desviou o olhar.
— Seu pai vai te matar quando descobrir — Letízia riu, animada com mais aquela fuga
minha.
— Ele supera — brinquei.
No entanto, eu não podia pegar pesado. Conhecia quem procurava por mim e não contava
com a benevolência deste. Assim como não contava com a ideia de que ele não apareceria para
estragar a minha vida.
— O que o seu pai faz mesmo? — Diego questionou. Ele era o mais novo no grupo e
conviveu comigo nos nossos últimos meses na escola.
Depois disso, todos seguiram para a faculdade. Menos eu. Não havia necessidade de uma
“De Rosa”, única filha mulher do Capo da Camorra, possuir um diploma. Por isso, aos dezenove
anos, eu era a amiga muito rica que se arriscava e fugia do pai algumas vezes por ano, para se
encontrar com os ex-colegas da escola, meus amigos, que nem imaginavam quem eu de fato era.
— Ele é proprietário de uma rede de hotéis. — Foi Simona quem respondeu por mim. — O
melhor hotel de Ibiza pertencerá a esta coisa linda com cara de anjo e olhos de sereia.
Eles riram, contudo, como eu disse, não faziam ideia de como funcionava aquele jogo.
Meu pai, Juan, Capo da Camorra, aliada da Cosa Nostra, e da Ndrangheta, líder em definitivo
dentro da Campania e Ibiza, tinha dois filhos, Miguel, sua verdadeira decepção, e eu, sua moeda
de troca. Eu nunca seria a dona de tudo. Eu seria a esposa de alguém tão rico quanto, em algum
lugar do mundo, escolhida em uma negociação que fortalecesse a causa.
Vivi com essa história e estive segura enquanto minha mãe viveu. Mas ela partiu há dois
anos e com ela se foi toda a minha esperança.
Dona de uma história de amor digna de filmes, minha mãe convencia meu pai a aceitar as
decisões dos filhos. Desta forma, Miguel teve paz para amar o namorado por mais tempo do que
achei ser capaz, e eu… bom, eu ganhei o direito de ser livre e estudar bastante até estar preparada
para o casamento, que aconteceria quando eu estivesse pronta, garantindo o meu direito de
escolha. Mas quando ela partiu, meu pai arranjou uma noiva para Miguel, decidido a calar aquele
escândalo.
“Seja o que desejar longe dos olhos dos nossos inimigos, meu filho”, ele declarou como
se aquilo de fato pudesse levar a felicidade ao meu irmão. “Logo você será o Capo. Precisará
gerar herdeiros, continuar com o que construímos.”
E, claro, Miguel jamais diria não ao nosso pai. E era infeliz de uma forma que me matava
sempre que nos encontrávamos. Por isso o agravamento da nossa situação. Miguel casou, mas
não consumou o casamento, e isso fez com que meu pai o afastasse e o deserdasse. Eu não seria
a segunda opção do meu pai. Não. Minha mãe queria que eu tivesse voz, que pudesse escolher,
que fosse feliz. E meu pai jurou a ela que seria assim, porém não cumpriu com a sua palavra.
Assim eu voltei a ser a sua moeda de troca.
Mas eu não facilitava. Por mais que ele tentasse, que me cercasse com seus soldados, que
me trancafiasse em uma casa bem protegida, eu escapava.
Sempre.
A prova maior era estar naquela lancha, na direção do iate imenso e maravilhoso, onde
acontecia a mais gostosa e divertida festa em Ibiza. Turistas comuns se divertiam nas boates do
meu pai. Nas ruas festivas. Nos hotéis que ofertavam o mais puro luxo. Pessoas como eu,
encontravam a diversão nos lugares mais discretos, seletos e escondidos.
Naquela noite, como em muitas outras, eu quis beijar Elias, minha primeira paixão, um ano
mais velho, contudo, em completa harmonia com a nossa turma. Ele era lindo, discreto, sexy e
com um ar de mistério que me fazia sonhar. Entretanto, sendo eu uma “De Rosa” quem eu
amasse estaria sempre em risco.
Eu conhecia as consequências, quem correria atrás daquele prejuízo, e não conseguia me
imaginar sendo tão insensível com alguém como Elias. Por isso o deixava apenas nos meus
sonhos mais íntimos. O que não significava que eu não me divertia ou me aventurava com outros
garotos.
Aliás, era exatamente o que eu fazia todas as vezes que conseguia uma noite de paz, ainda
que não fosse até o fim em minhas aventuras, eu teria o máximo de experiências que
conseguisse, antes que meu pai tivesse de mim o que tanto queria, um casamento vantajoso.
— À Isotta — Elias disse, erguendo a taça de champanhe, a nossa última antes de
deixarmos a lancha para embarcarmos no iate ainda ancorado à nossa espera. — Cada ano mais
bonita.
— E mais doidinha — Simona acrescentou.
Eu sorri, sem graça pela primeira demonstração de interesse por parte de Elias desde…
sempre?
Bebemos o líquido de uma vez, e quando a lancha se aproximou do iate, um rapaz alto,
pele bronzeada, camisa de botões branca e bermuda azul, o que dava um toque especial a todo o
cenário, ofereceu a mão para me ajudar a embarcar.
— Srta. Isotta?
— Sim. E meus amigos: Simona, Letizia, Elias e Diego.
Ele sorriu e eu não ignorei os dedos quentes em minha mão fria. O cara era lindo do tipo
que tirava o fôlego de qualquer um.
— Sim, aguardávamos apenas por vocês. Avisarei que já podemos prosseguir.
— Obrigada. — Sorri ainda impactada com a beleza dele, no entanto, ciente de que ele
também se deixava impactar com a minha.
— Boa festa para vocês.
O rapaz se retirou assim que todos estavam no convés. O som alto, misturado com o das
conversas do grupo seleto que participaria daquela aventura, fez meu coração acelerar de
animação.
Escolhi aquele evento para estar com meus amigos porque não ficaríamos fixos em um
local. O convite deixava claro que seguiríamos sem rumo até o sol nascer, logo, se Nicolo, meu
primo, puxa saco do meu pai, tentasse me encontrar, ou não me acharia, ou demoraria a achar. E
eu teria tempo o suficiente para fazer o que bem quisesse.
— Nossa, ele é um gato — Simona disse alto, enquanto andávamos na direção onde a festa
ganhava corpo.
— Muito — rebati sem coragem de olhar para Elias.
Um grupo de mais ou menos quarenta pessoas se reunia na sala principal e se espalhava até
a proa. Eu não conhecia quase ninguém. O dono do iate era um milionário que estava hospedado
no hotel do meu pai e que eu conheci uma noite antes, quando recebi o convite com direito a
convidados.
Mulheres perfeitas desfilavam seus corpos impecáveis, homens incríveis davam o seu
melhor e outros, nem tão incríveis assim, sabiam que não importava o que fizessem, qualquer
uma delas se interessaria pela sua conta bancária. Eu e meus amigos estávamos ali pela bebida e
pela diversão.
— Você descola os rolês mais aleatórios — Diego brincou ao aceitar a bebida azul que o
garçom ofereceu.
— Os melhores — Letizia ressaltou, com uma garrafa de vodka gelada com limão na mão.
— Ainda que eu não faça ideia de quem são essas pessoas — ela riu.
— Nem eu — brinquei. — Tem Mojito?
— No bar, senhorita, mas posso solicitar se desejar — o garçom respondeu.
— Não precisa. Eu vou até lá.
Segui com Simona na minha cola enquanto meus amigos se misturavam. Encostamos no
bar e dois garçons, gêmeos, lindos de uma forma escandalosa, se divertiam fazendo drinks. Eu
faria o meu pedido se um deles não parasse na minha frente, com duas garrafas coloridas, uma
dança cheia de sensualidade e um copo com um canudo colorido, para me servir o que ele
preparava. Ele, assim como muitos faziam, se prendeu ao meu olhar.
— Seus olhos são violetas? — ele fez a pergunta que quase sempre faziam, em especial
quando eu utilizava maquiagem para destacar a minha singularidade.
— Na verdade, um azul diferenciado que dá essa impressão — informei no automático.
Como explicar íris violetas quando era algo raro de encontrar? — O que é isso? — perguntei um
pouco sem graça pela maneira como ele me encarava.
O garçom, olhos azuis e fios baixos, loiros, me deu um sorriso de príncipe encantado.
— Um segredo. Vai arriscar?
Sem nada dizer, presa àquele olhar, levei o canudo à boca e suguei o líquido. Era forte,
cítrico e doce ao mesmo tempo. No primeiro segundo eu achei horrível, mas a mistura se
espalhou por minha língua e logo minha opinião mudou. A bebida era deliciosa.
— E então?
— Um delicioso segredo — eu disse devolvendo o sorriso sedutor que ele dedicava a mim.
— Então agradei.
— Não sei. — Bebi um pouco mais da mistura. — Preciso de um pouco mais para saber.
Eu me inclinei sobre o balcão e o rapaz, sem qualquer demonstração de timidez, me deu
um beijo cheio de promessas, que me acendeu de diversas formas. Quando minha língua roçou o
lábio inferior dele ouvi a risada de Simona.
— Eu vou procurar o pessoal — ela avisou.
— Vou com você.
— Tão rápido? — o rapaz disse com um sorriso que não me deixava adivinhar se ele
queria que eu ficasse ou se aquela seria a minha deixa. — Você nem me disse o seu nome.
— Segredo. — De pirraça, o puxei pela camisa e o beijei mais uma vez. — Vai arriscar?
Então saí em busca dos meus amigos. Simona com uma mão na minha e rindo sem parar,
enquanto eu ria e tentava equilibrar minha bebida com a outra mão.
— O que foi isso? — ela disse alto próximo ao meu ouvido quando adentramos a multidão
que dançava como uma massa só.
— Ele era muito gato.
— Essa festa está repleta de gatos.
— E era gêmeo — continuei. — Meu Deus. Eu deveria voltar lá e beijar o outro.
— Você é louca — ela riu com vontade.
Encontramos nossos amigos na proa. Diego fumava maconha enquanto os demais, com
toda certeza, tinham optado por algo mais forte. Fiquei com a bebida apenas. Eles sabiam que eu
não curtia drogas ilícitas, mas não faziam ideia de que eu não usava porque tinha pleno
conhecimento de que qualquer uma que adentrasse no território da Camorra, passava pelas mãos
do meu pai, logo, eu deveria me manter longe se não quisesse ter um problema maior.
Dançamos sem preocupação. Durante algumas horas esqueci por completo dos problemas
que me cercavam, do destino que eu teria, do medo que sentia por saber que em algum momento,
eu me despediria para sempre dos meus amigos, teria que ser a esposa fiel, trancafiada em seu
castelo e obrigada a gerar herdeiros para um homem que conheceria praticamente no dia do
casamento.
A realidade era uma droga por isso não precisava de outras. Meu refúgio era o álcool,
enquanto eu ainda podia beber. E minhas fugas, enquanto eu ainda conseguia fugir.
Em meio às batidas estimulantes do som que o DJ produzia, Elias se aproximou. Ele me
envolveu pela cintura sem desviar os olhos dos meus. O sorriso que dei não foi de incentivo.
Acima de tudo eu queria preservá-lo e deveria lutar com toda a minha força para que assim fosse.
Por isso, quando ele tentou me beijar eu desviei o rosto, mas não afastei nossos corpos colados
na pista.
— Por que faz isso? — ele disse em meu ouvido. A voz rouca e sensual que me obrigava a
lamentar.
— Isso o quê?
— Você quer tanto quanto eu, Isotta.
Ah, caramba! Eu queria.
Não que Elias fosse o meu grande amor. Ele não era. O que eu sentia era a vontade de
saber como era estar com alguém que me causasse conforto ao invés de medo. Alguém em quem
eu confiasse, que pudesse abraçar, reconhecer os gestos, o cheiro, fechar os olhos e só abrir
quando desejasse.
E esse, dentre todos os homens que me cercavam, era Elias. Por isso eu queria beijá-lo.
Queria experimentar seu gosto, a sensação de tê-lo, de explorá-lo e me deixar explorar.
Mas eu não podia.
— Eu salvo a sua vida todas as vezes que fujo de você — confessei com tom de
brincadeira. Ele riu.
— Eu deveria ser o príncipe na nossa história — ele provocou. Eu o abracei e fechei os
olhos.
Elias ainda usava o mesmo perfume e tudo nele era familiaridade.
— Deixe eu te salvar — ele sussurrou em meu ouvido e eu quis dizer que sim, implorar
para que ele fizesse isso.
Mas eu me afastei com um sorriso falso e uma tristeza latente.
— Eu não preciso ser salva. — Pisquei e, fingindo que me deixava guiar pela dança,
desapareci em meio a multidão.
Saí do outro lado, atordoada. Não sofrida. Não era um sentimento como se eu não pudesse
viver um grande amor, entretanto, a frustração por não poder me permitir nada com ele, porque
se Nicolo colocasse as mãos em Elias, seria o fim.
— Você fuma? — A voz que eu reconhecia de algum lugar chegou de um ponto mais
escuro.
Olhei na direção e vi o rapaz que me ajudou a embarcar. Parcialmente escondido, ele se
mantinha discreto, uma garrafa de bebida em uma das mãos e na outra o cigarro.
— Fumo sim.
Outra coisa que acabaria quando meu futuro marido finalmente tomasse posse da sua
mercadoria.
— Tem um pra mim?
Ele me ofereceu o dele. Aproveitei e me escondi também. Traguei a fumaça. A nicotina fez
minha cabeça girar junto com o álcool, mas também me proporcionou um pouco de alívio.
— É a sua primeira vez aqui? — ele puxou conversa.
— Nesse iate ou em Ibiza?
— Pode ser nos dois?
Eu ri e me perguntei o que ele diria se eu dissesse um simples “eu sou dona de quase tudo
o que tem por aqui”.
— A primeira vez neste iate — eu me limitei a dizer. — Conheci o dono ontem. Ele está…
estamos hospedados no mesmo hotel.
— Ah, então você conheceu o Constantine.
— Isso. — Devolvi o cigarro. — E você é…
— Apollo. Eu sou o… filho.
— Não! — brinquei. — O Constantini deve ter…
— Ele é jovem. Foi pai jovem. E aqui estou eu.
— Que mundo doido — eu disse com mais filosofia para mim e ironia para ele.
— Quantos anos você tem? — ele perguntou, os olhos escuros, curiosos em meu rosto.
— Vinte e um — menti. — E você?
— Vinte e três.
— E o que você faz além de ser o filho de um cara rico que curte fazer festas loucas em
alto mar até o sol nascer?
Ele riu e se aproximou. O corpo trabalhado e a pele bronzeada ganharam a minha atenção,
apesar de ainda estarmos na parte mais escura, se é que era possível ter uma parte mais escura
naquela embarcação.
— Eu estudo Medicina. E você?
Engoli com dificuldade. Eu era a porra de uma garota rica, filha de um mafioso que
buscava com certa ansiedade um marido para quem pudesse entregar o problema que me tornei.
E se não encontrasse, me casaria com o louco do meu primo, o mesmo para quem prometeu a
sucessão ao descobrir que meu irmão era gay e não consumou o casamento.
Ou seja, minha vida era um problema nada interessante.
— Eu vivo para aproveitar a vida — falei por fim. — Herdeira.
— Hum! Eu deveria fazer isso, mas o amor à medicina foi mais forte.
— Não se preocupe, melhor ser médico mesmo, seu pai vai detonar sua herança se
continuar curtindo a vida assim. — Rimos juntos e nos viramos para apreciar o mar escuro, com
uma faixa trêmula, amarela, da lua cheia que tomava conta do céu naquela noite.
— Já posso dizer que quero muito te beijar? — ele me pegou de surpresa.
Àquela altura do campeonato, depois de beijar um dos gêmeos e de lutar contra meus
instintos para não beijar o garoto por quem eu nutria uma paixonite, desisti de encontrar aquele
tipo de diversão. Contudo, Apollo era diferente. Não me passava a mesma sensação de
tranquilidade que Elias, mas me deixava confortável.
— Tem certeza de que quer correr esse risco? — provoquei.
— Alguém aqui te impede?
Ele se aproximou um pouco mais. O cheiro de mar misturado ao perfume masculino era
uma delícia.
— Não aqui.
Apollo olhou para trás quando se postou à minha frente, como se buscasse pela pessoa que
conseguiria impedi-lo de me beijar. Eu ri. Ele segurou meu rosto com segurança e me beijou. E
foi doce, gostoso, sensual o suficiente para me fazer esquecer outra vez dos motivos para não
beijar ninguém de forma pública.
Sua língua enroscou na minha com propriedade e, com o braço enlaçando a minha cintura,
colou nossos corpos. O dele, uma maravilha para quem só poderia sentir e explorar, o meu, o
parque de diversões por onde suas mãos ousavam buscar.
Eu esquentei, meu ventre reivindicou aquela experiência que eu não ousaria ter, o orgasmo
que eu só conhecia pela curiosidade de tocar meu próprio corpo. E eu quis ir além. Quis ir mais
do que me permiti com qualquer outra pessoa. Poderia fazer aquilo. Seria o fim dos meus medos
e também, o motivo para meu pai me deixar em paz.
Só que eu não era corajosa a este ponto.
Uma esposa precisa ser virgem ou desonrará a sua família. Ouvi isso tantas vezes que,
ainda que meu corpo implorasse, minha consciência não permitiria. E foi neste instante que
sentimos o iate diminuir a velocidade.
— Estamos parando? — eu perguntei ainda nos seus lábios.
— Não precisamos — ele gracejou e voltou a me beijar com toda a sua potência.
Até que em um segundo Apollo estava comigo e no outro não mais. Assustada, demorei
para compreender o que acontecia. Soldados da Camorra nos cercavam, dois seguravam Apollo e
no centro da bolha que eles formavam, Nicolo com seus olhos raivosos.
— Você vem comigo — ele ordenou ao me segurar pelo braço.
— Tire as mãos de mim — protestei.
— Ei! Tire as mãos dela — Apollo se intrometeu e bastou um olhar de Nicolo para que o
soldado desse um soco forte no estômago do garoto.
— Você quer um espetáculo — meu primo ameaçou.
Lágrimas chegaram aos meus olhos, mas eu não o deixaria me ver chorar.
— Posso matá-lo agora e contar ao tio Juan que defendi a sua honra.
— Você é patético — rosnei. — Desculpe — sussurrei para Apollo e deixei que eles me
conduzissem para a lancha utilizada para me resgatar.
Naquele momento, mais uma vez, odiei minha vida, Nicolo, até mesmo meu pai. Odiei
tudo e desejei com toda a minha força, não existir mais.
2
ISOTTA

Nicolo dirigia com raiva. Eu sabia que ele não me colocaria em risco, afinal de contas,
além de ele ser subchefe do meu pai, contava com a frustração deste para fazê-lo seu sucessor,
também havia a pior parte daquela história: meu primo nutria um amor por mim, que eu podia
classificar como doentio.
Nicolo nunca escondeu seus sentimentos, assim como eu jamais deixei de expressar a falta
do meu. Quando crianças eu o amava como irmão, até ele crescer e se tornar meu pesadelo.
Durante um tempo eu dizia a mim mesma que era porque ele fazia o papel de irmão mais velho,
uma vez que Miguel, meu irmão legítimo, não possuía essa ânsia de manter o domínio masculino
na máfia. Entretanto, quando completei dezessete anos entendi o que Nicolo era capaz de fazer
pelo que ele chamava de amor.
Desde então eu fugia dele, da sua presença, da sua influência, de todas as formas que
podia. Por isso eu sabia que ele me encontrou naquele iate não porque devia lealdade ao meu pai
e procuraria por mim devido a uma ordem, mas porque ele o faria ainda que meu pai nem
desconfiasse que eu fugi mais uma vez.
Nicolo viraria o mundo para me encontrar, me expor e garantir ao meu pai que apenas ele
seria capaz de me conter. Ou seja, ele era o meu inferno particular.
— Não adianta ficar emburrada, Iza.
— Não me chame assim — rebati com raiva, mas ele riu, porque me atormentar era o seu
paraíso.
— Tio Juan pediu para eu te encontrar. Ele sabia que apenas eu teria essa capacidade.
Eu nada disse. Conhecia aquela conversa e até onde ele a levaria.
— Você insiste em quebrar as regras, Isotta. Por isso, apenas o casamento cuidará dessa
sua revolta.
— Tomara que meu pai encontre um noivo na Austrália, assim eu ficarei longe de você —
provoquei e quase me congratulei ao ver seus dedos se fecharem com força no volante. — Estou
quase reconsiderando a minha decisão. Acho que vou aceitar essa ideia de casamento. Quem
mesmo fez a proposta? Hum! Acho que não importa, desde que não seja você.
Nicolo avançou sobre mim, sem se importar com a direção, agarrou meu queixo e me fez
encará-lo.
— Ninguém, Isotta — avisou. — Não existe proposta. Nenhuma mais. Ninguém quer casar
o filho com uma desmiolada. Não depois de todos os escândalos que provocou. Eu duvido que
acreditem na sua virgindade.
— Ótimo — eu disse, com a mandíbula ainda presa pela sua mão.
Nicolo me soltou com raiva e por pouco não me choquei contra a porta.
— Se duvidarem da minha virgindade eu estarei livre — resmunguei.
— Eu não duvido. Fiz questão de garantir que não acontecesse — ele rebateu com orgulho.
— Porque você será minha esposa. Minha linda e virgem esposa.
— Em um caixão.
— Que seja. Mas você não se casará com ninguém além de mim, nem que para isso eu
mate todos os que ousarem colocar as mãos em você.
E, pela maneira como ele falou, temi por Apollo. Olhei para trás, tentei encontrar os carros
que deveriam nos seguir. Contei mentalmente quantos homens estavam no iate, quantos
desceram com a gente para a lancha, em quantos carros estariam.
A risada de Nicolo fez meu corpo pulsar de ódio.
— Seu desgraçado!
Foi a minha vez de avançar contra ele, batendo em meu primo da maneira como eu
conseguia. O carro perdeu a direção por uma fração de segundo e logo ele a recuperou,
mantendo-me afastada com apenas uma mão.
— Não fiz nada com seu amigo — ele disse sem vontade. — Mas deixo claro que esta é a
última vez. Na próxima eu mato o filho da puta na sua frente.
— Você é doente!
— E você é minha.
— Nunca.
— Veremos.
Ele manobrou e passou pelo portão aberto para a entrada da mansão onde eu vivia
escondida do mundo, protegida por soldados que eram punidos todas as vezes que eu fugia, por
um pai que não cumpria com a sua promessa e um primo decidido a partir minha alma em
pedaços.
Alguns minutos depois, protegidos pelas copas das árvores plantadas de forma estratégica,
Nicolo estacionou na frente da escadaria da porta principal. Diante desta, meu pai aguardava por
nós. Desci do carro com pressa, pois sabia que Nicolo nada faria diante do seu Capo. Subi os
degraus com raiva.
— Por quê? — rosnei para meu pai e só neste instante a primeira lágrima caiu.
— Porque eu preciso te proteger, sua inconsequente — ele rebateu com o mesmo nível de
raiva. — Eu não te proíbo de sair, Isotta. Não te proíbo de nada, desde que os soldados…
— Eu tenho direito a ter a minha vida sem seus cachorros farejando meus passos.
— Um dia você entenderá o peso que eu carrego. Quando tiver seus filhos…
— Eu não terei filhos. Vou me atirar da janela no instante em que chegar no meu quarto.
Meu pai olhou pra cima, mediu a distância e me deu um sorriso debochado.
— Não aprendeu nada na escola? Se você consegue pular a janela para fugir para suas
festas clandestinas, porque acha que morrerá desta vez?
Nicolo riu, mas parou e assumiu sua postura quando meu pai lhe deu um olhar enviesado.
— Onde ela estava?
— Melhor conversarmos lá dentro, tio — Nicolo disse com a voz em tom conspiratório,
como se eu tivesse cometido o pior dos erros.
— Eu estava em um iate com os meus amigos. Era uma festa com muitas pessoas — avisei
antes que Nicolo inventasse a mentira que faria com que meu pai me entregasse a ele.
— Bom, ela não estava com os amigos, tio — Nicolo continuou, a voz baixa, um tom
preocupado. — E os guardas… eles precisaram deter o rapaz.
— Um rapaz? — meu pai me encarou como se eu o tivesse traído. — O que você fez
Isotta?
— O que qualquer garota da minha idade faz. Beijei uma pessoa e seu macaco adestrado
ameaçou matá-lo por causa disso.
— Desculpe, tio — Meu primo continuou, como se fizesse questão de manter aquela
conversa em segredo. — Se não tivéssemos interferido…
— Mentira! — eu disse com raiva.
— Eu lhe entregaria uma filha desonrada — ele continuou, como se eu não estivesse ali
para desmenti-lo.
— Mentira, seu filho da puta!
— Isotta!
Meu pai levantou a voz e seu olhar congelante foi o suficiente para me fazer calar. Novas
lágrimas rolaram.
— Vá para o seu quarto. E não ouse tentar fugir outra vez.
— Mas, pai…
— Agora, Isotta.
Eu sabia que de nada adiantaria contestar. Nicolo envenenaria a cabeça do meu pai,
entretanto, ele não disse que eu não era mais virgem, o que garantiria a minha liberdade. Em
outro momento eu teria uma conversa definitiva com meu pai.
Entrei em casa, desolada, cheia de raiva e vergonha. Então ouvi o que Nicolo disse ao meu
pai antes que eu me afastasse o suficiente.
— O senhor deveria casá-la logo.
Meu pai suspirou com pesar.
— Eu prometi à mãe dela, mas Isotta não facilita.
— Perdão por ser eu a te dizer isso mais uma vez, tio. Na idade dela o Senhor já estava
casado. Isotta não ficará mais jovem enquanto o tempo passa, e com todos esses escândalos que
ela provoca.
— Algum desta vez?
— Não. Conseguimos interceptar uma lancha com um paparazzi, nós detonamos a câmera
dele.
— Melhor assim.
— O senhor não deveria esperar mais. Isotta está disposta a arruinar a honra da família.
— Entre, Nicolo — meu pai falou. — Vamos conversar no escritório.
Rápido corri para debaixo da escada e me escondi deles. Vi quando Nicolo seguiu meu pai
até que desaparecessem. Aguardei para me certificar de que nenhum soldado ousaria entrar na
nossa casa e, na ponta dos pés, fui até o escritório.
A porta fechada me impedia de ouvir com exatidão, porém, o silêncio ajudava a
compreender o que conversavam.
— Eu estou em busca de um acordo que seja favorável para os dois lados, mas você tem
razão. Isotta me envergonha e em segundos cada fuga dela vira manchete. Não sei mais o que
fazer. Os aliados se esquivam. Não há mais propostas de casamento e o que eu posso oferecer
além do que já temos? A Camorra não possui mais a mesma força de antes, não é uma aliança
pela qual os sucessores das demais máfias lutariam. O Capo da Ndrangheta de Ibiza acabou de
assumir compromisso.
— Eu soube — Nicolo disse como se de fato sentisse pela situação. — A minha proposta
continua valendo, tio. Eu caso com Isotta. Amo a sua filha e como o senhor não deseja fazer de
Miguel o seu sucessor, Isotta terá tudo o que precisa sem precisar sair de casa.
— Eu sei. Você sabe que seria a minha primeira opção, Nicolo, mas Isotta…
— Isotta jogará nosso nome na lama. O senhor mesmo disse que não há outro pretendente.
Por que não nos casa de uma vez por todas? Eu sei que ela não me ama, tio, mas sou paciente. O
senhor sabe que quase todos os casamentos em nosso meio não acontecem por amor e sim por
obrigação. Eu prometo ao senhor que Isotta me amará. Não haverá esposa mais feliz do que ela
na Camorra.
— Tem razão — meu pai por fim cedeu.
A voz cansada que utilizou para concordar com Nicolo me fez ter a certeza de que ele
desistia de tentar me fazer criar juízo. Ele me casaria com Nicolo e o faria seu sucessor. A ideia
embrulhou meu estômago. Com medo de alertá-los sobre a minha presença, tampei a boca e
andei o mais rápido possível até alcançar o topo da escada, e então vomitei no jarro com uma
linda palmeira que com certeza amanheceria morta no dia seguinte.
Ainda com as lágrimas embaçando meus olhos, me obriguei a chegar até meu quarto e
vomitei mais uma vez. Chorando, tirei o vestido que escolhi com tanto gosto para aquela noite,
tomei um banho, lavei o cabelo e me encarei no espelho.
No geral eu adorava a minha imagem. A pele bronzeada, o longo cabelo escuro e os olhos
incomparáveis faziam de mim uma linda garota e a promessa de uma mulher estonteante.
Contudo, naquele momento eu não pensava nisso. O que eu via era uma mulher infeliz,
destruída, enojada com a ideia de casar com Nicolo, de ser obrigada a aceitá-lo, a deitar com ele.
Vomitei pela terceira vez e me dei conta de que não havia mais nada em meu estômago
para continuar tendo aquela reação.
Eu precisava fazer alguma coisa. Com o casamento acertado, eles não esperariam para
concretizá-lo. Nicolo daria um jeito de dobrar a guarda, de me impedir de fugir, de me tornar sua
prisioneira pelo resto da vida. E eu não suportaria este destino.
Sem conseguir encontrar o ar, eu me esforcei para manter o raciocínio. Pense, Isotta, você
sempre consegue ter os melhores planos. Levei os dedos à boca e cheguei até mesmo a
mordiscar a unha, a mesma que levei meses para garantir que cresceria e ficaria intacta. Andei
pelo closet disposta a conseguir uma forma de me libertar daquele destino terrível. Nicolo queria
se casar comigo e ele conseguiria porque tinha meu pai ao seu lado, meu irmão afastado das suas
obrigações e todos os pretendentes sob o seu controle.
O que mais eu poderia fazer? Fugir, claro, mas para onde? Até onde eu chegaria sem que
meu pai me alcançasse e me obrigasse a aceitar Nicolo como meu noivo? Sair de casa ainda não
era um problema. Seria no instante em que meu pai desse total liberdade a meu primo, por isso o
tempo corria contra mim.
Eu precisava partir. Se não definitivamente, que fosse de alguma forma que tirasse Nicolo
do meu caminho de uma vez por todas. E eu sabia que não importava para onde eu fosse, meu
pai me encontraria, então o plano precisava ser perfeito.
Peguei o notebook e sentei na escrivaninha. Acessei as empresas de passagens aéreas. O
destino estava em meus pensamentos, bastava saber se encontraria passagem para partir
imediatamente e quais documentos seriam necessários, uma vez que nunca estive no local antes.
E, pela primeira vez, sorri como se naquela tela estivesse a minha única oportunidade.
Restava esquematizar a segunda, entretanto, isso eu podia fazer enquanto viajava. Comprei a
passagem, procurei em minhas coisas, meu passaporte brasileiro e o abracei quando o encontrei.
Uma vez minha mãe me disse que se eu tinha cidadania, que não a deixasse de lado. Quem vive
entre mafiosos não sabe nunca quando precisará de reforços.
E eu tinha cidadania brasileira porque minha mãe e meus avós maternos eram deste país.
Nunca estive lá antes, mas falava a sua língua, pelo menos o suficiente para transitar e colocar a
segunda parte do plano em ação. Então pesquisei sobre a quem pertencia o comércio ilegal do
Brasil e não me surpreendi por constatar que mesmo sendo uma área vasta, de dimensão
continental, a Ndrangheta dominava sem grandes preocupações.
Essa era a minha chance. Camorra e Ndrangheta eram aliadas, o que os obrigaria a me
entregar a meu pai. Salvo se eu conseguisse o que minha mente acelerada me dizia para fazer.
Imprimi minha passagem e parti para a parte mais difícil.
No closet, escolhi um jeans, um tênis, trancei meu cabelo e o enrolei de forma a conseguir
escondê-lo com uma peruca que eu usava quando queria enganar os soldados. Usei um boné para
não ser reconhecida com facilidade, uma camisa larga e um moletom. Na mochila coloquei meus
documentos, óculos escuros e os cartões de crédito, além do dinheiro que consegui juntar desde a
última vez que imaginei que um dia teria que fugir de vez.
Eu precisa ganhar o máximo de tempo possível, então fiz um amontoado de cobertores
para simular um corpo, coloquei a cabeça da manequim que ficava com minhas joias no closet,
sobre o travesseiro e cobri sua careca com outra peruca, certa de que bastaria meu pai acender a
luz para saber que não era eu ali, devido a cor do cabelo. Deixei tudo o mais parecido possível
com uma pessoa dormindo.
O celular ficou sobre a mesa de apoio, ligado ao carregador e saí do quarto. Sabia que
nunca conseguiria deixar a casa pela porta da frente, mas havia um caminho que era a minha rota
de fuga ainda não descoberta e pela qual eu entrava quando ninguém descobria o que fiz.
Caminhei pela sombra, fui até a piscina coberta, saí pela porta que me levava até o jardim dos
fundos, desci as escadas que seguiam até a ala dos empregados.
Naquele horário apenas os soldados que faziam a ronda noturna caminhariam por ali e eu
conhecia a rotina deles. Conferi o relógio e me certifiquei de que ninguém passaria naquele
momento. Corri até estar escondida pelas sombras, passei pelas árvores, dei a volta e segui na
direção do portão da saída dos fundos. Nenhum movimento indicava que deram pela minha falta.
Dois homens cuidavam da guarita.
— Para onde vai nesse horário? — Um deles perguntou e meu sangue congelou.
Por um segundo imaginei que fui reconhecida, mas logo entendi que quem me abordou me
olhava como se me paquerasse e nenhum soldado ousaria tanto.
— Vou encontrar com meu namorado — eu disse com a voz modificada. — Tem um
cigarro aí?
— Vai beijar outro e quer meu cigarro — ele gracejou e mandou o outro abrir o portão. —
Quando precisar de um namorado que pague seus cigarros, me chame.
Dei um sorriso sem erguer o rosto e não demonstrei pressa ao sair. Eu nunca tinha tentado
algo tão ousado. Mas em minhas muitas caminhadas pela madrugada vi aquilo acontecer
algumas vezes. Empregados que saíam no meio da noite por diversos motivos sem que exigissem
muito.
Meu pai estava certo, a Camorra perdeu sua força e a muito não sofria qualquer ameaça.
Pelo menos não desde que a Ndrangheta o aceitou como aliado e tomou parte dos negócios do
local. Pouco havia para fazer em Ibiza que não fosse garantir a segurança da filha do Capo, e eles
falharam nisso ao me darem passagem e permitirem que eu fugisse pela segunda vez naquela
noite.
Caminhei até o final da rua, mais do que meu pai me permitia sem que diversos homens
me seguissem. Consegui um táxi e logo me vi ganhar distância da casa que foi minha por toda a
vida. Eu sabia que eles logo descobririam minha fuga e que buscariam por mim. Sabia que
Nicolo me descobriria. O fato de eu ter levado os cartões de crédito daria a ele essa facilidade,
contudo, eu não pretendia desaparecer, esquecer a família ou fazer de meu pai um vilão.
Eu queria que ele entendesse que eu preferiria qualquer destino àquele. Que nunca me
casaria com Nicolo. E meu pai só teria esta noção quando se desse conta de até onde eu iria para
garantir que a minha vontade fosse respeitada.
O táxi parou no aeroporto e rápido eu segui para o guichê desejado.
— Tenho passagem para o voo que parte para São Paulo em alguns minutos — avisei sem
conseguir controlar minha respiração
A mulher me encarou como se procurasse em mim qualquer sinal de loucura.
— Já encerramos o despacho das malas então…
— Não tenho malas. Aqui está a minha passagem e meus documentos.
Outro olhar como se desconfiasse de mim.
Fiz uma careta. Eu usava uma peruca loira, com corte chanel, além de estar com uma
armação falsa de óculos. Passei o passaporte brasileiro e a identidade e entreguei à mulher. Ela
conferiu minha foto e me encarou. Tirei a armação e sorri. Seria impossível não confirmar os
mesmos olhos.
— Fiz besteira com meu cabelo — eu disse com um sorriso sem graça passando a mão nos
fios claros protegidos pelo boné.
A mulher me deu um sorriso solidário e iniciou o processo.
— Às vezes fazemos isso — ela falou, relaxada pela primeira vez.
— Em especial quando terminamos um relacionamento — completei ao perceber seus
dedos ágeis com a marca inconfundível de uma aliança que esteve ali durante alguns anos. Ela
me deu um olhar triste.
— Sei como é — e suspirou com tristeza. — Isotta De Rosa. Uma passagem para São
Paulo, Brasil. A senhorita precisa ser rápida, o embarque está quase acabando.
— Obrigada!
Corri pelo aeroporto, passei por todo o procedimento até que finalmente me liberaram para
o embarque, quando a aeromoça começava a finalizar seu trabalho. Fingi estar sem graça pelo
atraso e quando passei pelo embarque e segui na direção da aeronave, olhei para trás apenas para
me certificar de que ninguém me seguiu.
Respirei fundo ao sentar, mas só relaxei quando o avião decolou. Era muita sorte ter como
destino o Brasil quando minha mãe fez questão de que eu aprendesse a língua por ser a mesma
dos seus pais. Pelo menos eu conheceria o lugar onde ela passou a infância antes de se mudar
com a família para Campania.
3
ÁLVARO

— Não se preocupe, ele só está ganhando tempo. — O secretário me avisou, visivelmente


tenso. Talvez por saber quem eu era de fato, ou, por estar de frente com um dos maiores
empresários do país.
Pelo menos era o que todos acreditavam. O fato de eu ser da família Kuhn me colocava na
lista dos mais bem sucedidos, contudo as empresas, todas as que atuavam de forma legal, eram
divididas não de forma igual, entre os herdeiros. Desta forma, Jean encabeçava a lista, até porque
tio Stefan faleceu alguns anos após meu primo e melhor amigo assumir o seu posto como Don da
Ndrangheta e sua herança contemplou não apenas o novo comandante, mas também os filhos de
Lícia.
Meu pai estava em segundo lugar em relevância nos negócios da família e eu em terceiro,
no entanto, a ninguém interessava esta hierarquia. Jean se mudou para a Alemanha com os filhos
de Lícia e eu fiquei no Brasil, esquentando a cadeira para um dia Benito, filho mais velho de
Lícia, assumir o posto de Capo. Enquanto isso, eu era para os olhos dos inocentes, o CEO, para
os que participavam do esquema, o Capo do Brasil.
E eu gostava de brincar com as duas funções, em especial quando esta fazia com que me
temessem.
— Tempo é algo precioso — rebati, sem qualquer vontade de continuar naquela sala.
Do lado de fora o baile anual beneficente seguia seu ritmo. Eu representava Jean, como seu
substituto à frente das empresas Kuhn e também, mas esta informação era restrita para poucos, o
Capo à frente da Ndrangheta no Brasil. Desde que Jean assumiu seu cargo como Don, ele se
esquivava de eventos como aquele e deixava a bomba para mim.
E que bomba.
Aquilo era um saco sem fundo.
— Ele logo…
— Eu já entendi.
Conferi o relógio. Quase vinte minutos aguardando pelo novo governador de São Paulo
para apenas reafirmar nossos “acordos”, uma vez que o homem era novo na coisa toda,
entretanto, fora indicado pelo antigo governador antes de ser aceito como candidato, e para ter o
nosso apoio, precisou concordar com os termos.
Aquela era a parte que eu mais detestava. Confesso que assumir o cargo, ainda que
temporário de Capo, me tirava da área que aprendi a atuar e me jogava em uma menos agitada,
cheia de burocracias e muitas vezes entediante. Não sei como Jean suportava aquilo. Eu olhava
os ponteiros que pareciam não se moverem e pensava em quanto tempo faltava para que eu
pudesse tirar a gravata e me esbaldar em uma das nossas muitas garotas que trabalhavam na “A
Casa”.
Eu estava pronto para levantar e impor um pouco mais de respeito ao governador, quando
meu celular vibrou e o nome de Jean surgiu na tela. De imediato senti a adrenalina em minhas
veias. Se era tarde da noite em São Paulo, era madrugada, quase início de manhã na Alemanha,
logo, aquela ligação não teria qualquer cunho amistoso.
— Com licença — eu disse ao atender e levantar. — Aaron, assuma. Preciso atender essa
ligação.
Meu subchefe de imediato assumiu meu lugar, exatamente como eu fazia quando era eu
naquela função, ao lado do meu primo.
O secretário intentou dizer algo, abriu e fechou a boca, até que desistiu de tentar me manter
naquela sala. Ele não tinha poder para argumentar ou para me segurar naquela sala escrota.
Assim que me vi do lado de fora, equilibrei o celular entre o ombro e a orelha e acendi um
cigarro.
— Pra você me ligar de madrugada devo imaginar que aconteceu alguma merda —
comentei com certa alegria, o que fez Jean ri do outro lado.
— Eu não achava o trabalho como Capo tão maçante — ele brincou. — O que foi? Não
arrumou nenhum grande acontecimento para agitar esta semana?
— Ah, claro! Um grande acontecimento esse baile. A melhor parte seria intimidar o
governador, mas você acabou de estragar a brincadeira.
— Desculpe por isso — ele revidou com ironia.
— Do que você precisa, Jean?
— De homens como você, Álvaro. Seria maravilhoso se todos os meus soldados tivessem
o mesmo ímpeto que você.
— Eu amo você, cara, mas vá se foder. Você não deixou Heidi na cama para se declarar e
matar a saudade de mim.
Jean riu, no entanto, eu sabia que ele me enrolava porque com toda certeza eu não gostaria
do que ele me diria.
— Tenho uma missão para você.
Eu sabia.
— Espero que seja melhor do que essa merda de baile.
Jean riu outra vez, contudo, não relaxado, o que me deixou em alerta de imediato.
— Manda, Jean!
— É uma missão teoricamente fácil, mas eu não sei como você vai encarar isso.
— Outro baile?
— Não. Preciso que encontre uma pessoa para mim. Isotta De Rosa. Tem noção de quem
é?
— De Rosa? Alguém ligado a Camorra? Ao Juan De Rosa?
— A filha dele — ele informou e fez uma pausa que me agitou.
A filha do Capo da Campania e de Ibiza desapareceu. Aquilo ou geraria uma guerra que
sugaria para ela todos os aliados, ou seria uma tremenda de uma enrascada. Nenhuma das
possibilidades me agradava.
— Tá. Qual é a história e o que temos?
— Quase tudo. Isotta desembarcou em São Paulo hoje pela manhã. Temos registro do
cartão de crédito dela em um hotel cinco estrelas e de compras realizadas na redondeza.
— Então você não precisa encontrá-la — pontuei com certo alívio.
Se a garota desembarcou em São Paulo por conta própria, não havia nem sequer a
possibilidade de um confronto mais direto. Logo, a única possibilidade era a de que ela era um
problema, do tipo que foge do pai para chamar atenção e por causa da sua educação mimada,
homens como eu, que deveria estar à frente de uma grande negociação, precisaria encontrá-la e
deportá-la.
Que grande merda!
— Não. Você precisa encontrá-la e… mantê-la em segurança até chegarmos?
— Chegarmos? Você vem ao Brasil? Por causa dessa Isotta?
— É uma situação delicada, Álvaro. A garota fugiu de Ibiza e o Juan me procurou para
ajudá-lo por sermos aliados e por ele não poder agir no Brasil sem a nossa autorização.
— Ela fugiu?
De forma involuntária, sorri para o que meu pensamento já havia concluído. Eu podia
formular todos os tipos de motivos para uma garota fugir da família sendo ela membro da máfia.
— É delicado, como eu te disse. Ela tem histórico, o pai tem se desdobrado para mantê-la
na linha e impedir que as mais diversas fofocas abalem os negócios.
Como eu disse: uma grande merda.
— Mas do que ela fugiu?
— Do noivo, pelo que entendi.
Corrigindo: uma merda astronômica.
— Porra, Jean! Você quer que eu seja a babá de uma noiva em fuga?
Jean riu com certo nervosismo.
— Só encontre a garota e se encarregue de não deixá-la fugir até eu chegar aí. Pode ser?
— Eu posso fazer isso e provavelmente é o que farei, mas que porra de missão escrota!
Quando eu pensava que não podia piorar você me pede para cuidar de uma fedelha que não quer
casar. Por que não me deixa colocá-la em um avião e mandá-la embora?
— Porque pelo que Juan me contou, ela não é do tipo que se rende fácil. A garota fugiu da
casa do pai, e não apenas uma vez. Agora desembarcou no Brasil e eu não quero criar uma
confusão maior deixando-a solta para criar mais um problema para o pai. Além disso, você sabe
como funciona. Essa garota sozinha no Brasil, com um noivo decidido a dobrá-la, só vai nos
causar problemas, Álvaro.
— Às vezes eu odeio te obedecer — resmunguei. — Manda tudo o que tem. Vou buscar a
menina. Eu aviso quando conseguir trancafiá-la no quarto.
— Tudo bem. Mas vá com calma. Ela ainda é a filha amada de um aliado. Aguardo o seu
sinal.
Desliguei a ligação e finalizei o cigarro enquanto ouvi o barulho das mensagens que Jean
com certeza me enviava com todas as informações para minhas próximas horas como babá de
uma garota mimada, com certeza ansiosa para causar mais problemas ao pai, que não merecia a
minha paciência, contudo, devido a nossa posição, eu teria que tê-la.
***
A garota não queria se esconder. Cheguei a essa conclusão ao receber o endereço do hotel
em que ela se hospedou. Ninguém que desejasse não ser encontrado faria o que ela fez. Ou, e eu
duvidava dessa teoria, ela era burra.
Quando alguém fugia com o objetivo de não ser encontrado, agia como Giullia, trocava o
nome, arrumaria um endereço sem evidências e jamais, em nenhuma hipótese, usaria os cartões
de crédito, em especial quando usava uma conta controlada pelo pai.
Então, Isotta De Rosa não queria fugir do casamento, mas atrair a atenção do pai, ou do
noivo. E, chegar a essa conclusão me aborreceu ainda mais. Dezenove anos, linda como o diabo,
rainha das páginas de fofocas, foi o que eu consegui descobrir em uma breve busca no google.
Ela não tinha limites.
Corpo escultural, bronzeado, cabelo comprido até a bunda na cor de chocolate derretido
com alguns fios dourados, talvez queimados pelo sol, já que a garota era presença certa nas
praias de Ibiza, e em seus eventos mais escandalosos. Olhos imensos, porém, incríveis como
nunca vi antes. Violetas. De longe pareciam azul em uma tonalidade pouco vista, no entanto, as
pesquisas confirmavam a cor original.
Porra, apenas um por cento da população mundial tinha pupilas como aquelas e em geral,
albinos, peles muito brancas, não como a dela, dourada de forma pecaminosa. Isotta era uma
raridade e talvez ter este conhecimento fosse o motivo para a sua rebeldia. Aos dezenove anos
ela podia ser tudo. Por que aceitaria ser a esposa de algum idiota que morreria cedo por se
envolver com o submundo?
Olhei outra vez uma das fotos que encontrei na internet. Pernas longas, magras e
trabalhadas expostas em um vestido curto enquanto ela deixava um carro de luxo. Se tivéssemos
uma garota como aquela em uma das nossas casas ninguém mais lembraria de Scarlett.
Com toda a certeza Jean me mataria caso eu fizesse tal comentário. Logo, Isotta era um
problema de dezenove anos, linda demais, problemática, prometida em casamento para alguém
de quem ela fugia. E eu era a porra de um homem ocupado, que precisava que o governador de
São Paulo garantisse que nada nos impediria de desembarcar no Porto de Santos as nossas
mercadorias, mas estava sentado na porra do carro esperando que a maldita garota aparecesse
para que eu pudesse prendê-la e não deixá-la aprontar mais nada.
— Ela não está no hotel — Aaron Kuhn, meu subchefe, um primo distante que logo se
envolveu com nosso negócio de família e, devido a fidelidade o escolhi, me avisou. — Acessei
as câmeras e a garota saiu no início da noite, arrumada o suficiente para chamar atenção.
— Imagino que seja exatamente o que ela deseja — resmunguei. — Temos algum indício
de para onde ela foi?
— Indício não. A informação correta. Isotta perguntou qual a melhor boate para se divertir
por aqui.
— Tem uma boa notícia além do fato de que vamos caçar a garota por toda São Paulo?
— Pelo menos por onde iniciar. A boate que indicaram é uma das nossas. Pessoas como
ela gostam de lá, então existe uma boa possibilidade de a encontrarmos logo.
— Tomara. Ligue para quem está à frente da administração da casa esta noite. Peça para
identificarem a garota e para a impedirem de sair antes de chegarmos lá.
— Como quiser — ele disse com um sorriso solto, como se não estivesse aborrecido por
estarmos naquela missão.
Pelo visto apenas eu sentia falta da adrenalina que nossa posição nos proporcionava. Há
quanto tempo eu não precisava lidar com algo de fato arriscado? Algo do tipo… Lícia. Até
mesmo as fronteiras estavam controladas, os inimigos sob controle… nada de novo na front.
— Vamos — alertei meu soldado particular, Valentin, e tentei não ficar tão aborrecido
enquanto seguíamos no trânsito livre da madrugada em busca da garota que resolveu
desembarcar no Brasil só para bagunçar meus planos.
Acessei o programa que localizava e acompanhava nossas mercadorias mais caras e
preciosas e relaxei em constatar que tudo corria conforme o planejado. Depois que Lícia resolveu
se aliar a Yakuza e roubar os diamantes do próprio irmão, refizemos todo o nosso esquema de
segurança. Agora eu sabia exatamente onde cada coisa estava, assim como Jean acompanhava da
Alemanha.
Fechei os olhos e suspirei. No dia seguinte eu precisaria comparecer ao conselho de
acionistas da nossa maior empresa, a de telecomunicações. O que eu fazia? Nada. Ouvia o que
eles achavam que era importante, conferia os números, fingia interesse em todos os seus novos
planos, mas deixava que o presidente me desse alguma deixa sobre a melhor decisão. Esse era o
nosso acordo e até então nada saiu do determinado.
Não demorou para chegarmos à boate. Assim que estacionamos na entrada do fundo, dois
seguranças aguardavam por nós. Não eram meus homens, mas os contratados para garantir que
nada sairia do controle e manteria a qualidade dos nossos serviços.
— Ela está na pista de dança do segundo andar — Aaron avisou após conversar com os
homens. — Os seguranças estão de olho nela. Como quer agir? Posso pedir para dois soldados
tirarem ela de lá e trazê-la, ou, se você quiser tentar a sorte, podemos fingir algum problema com
o acesso dela e levá-la para o escritório. Pelo menos a saída não chamará atenção de ninguém.
Olhei para a porta onde os seguranças aguardavam por nós e suspirei. Era para termos um
fim de noite tranquilo, com uma ou duas garotas da “A Casa” a nossa disposição, sem precisar
pensar em como lidar com uma garota mimada, carente e decidida a atrapalhar minha vida.
— Vamos entrar — ordenei. — Quero dar uma olhada na garota e ter alguma noção do que
enfrentaremos
Eu, Aaron, Valentin e mais dois soldados, entramos no estabelecimento. Logo nos
encontramos com Rodrigo, o gerente da noite. O rapaz, visivelmente nervoso, nos recepcionou
antes de chegarmos à área livre.
— Ela está na pista, próxima ao bar. Chegou sozinha, mas fez amizade — ele disse com
certa tensão.
— Nosso camarote está livre?
— Sim. Sim, senhor — ele se corrigiu com pressa.
— Ótimo!
Seguimos para o camarote e de lá eu encarei a pista de dança, repleto com o que existia de
mais nobre da sociedade. Saquei o celular e conferi mais uma vez a foto da garota. Não foi difícil
encontrá-la. Isotta não fez nada para modificar a aparência, não escondeu o que poderia entregar
a sua presença e desfilava com mais quatro pessoas, com um vestido prata que parecia uma
camiseta e saltos altos.
Linda com propriedade. Ela sabia o que era, o poder que tinha e desfrutava disso. Eu não
duvidava que o tal noivo era fissurado nela ao ponto de rodar o mundo para consumar o
casamento.
— É ela — Aaron disse ao se posicionar ao meu lado. Ele me passou um copo com uísque,
do jeito que eu gostava. — Ela é mais bonita pessoalmente.
Encarei a garota na pista e me obriguei a enxergar além da minha má vontade. Isotta era
mesmo muito bonita, no entanto, nova demais. Uma garota. Não exatamente inocente. Nada nela
indicava isso. Mas jovem o suficiente para você se perguntar se valia a pena obrigá-la a
abandonar tudo para se casar. Por que ela fugia do noivo sem se dar ao trabalho de se esconder
de verdade?
— Como faremos? — Ele perguntou.
— Mande trazê-la.
No mesmo segundo os soldados saíram do camarote. Continuei de olho na garota, na
maneira como ela se movimentava com conforto mesmo usando um vestido tão curto, prestes a
revelar mais do que deveria. Ela ria, bebia… os dedos finos passavam pelos fios sedosos e
longos enquanto ela falava como se ser sensual fosse algo natural dela.
E os carinhas, os dois que se juntavam ao grupo dela, não faziam questão de esconder o
quanto a desejavam. Ela sabia que fascinava os homens e se envaidecia com isso. Agia como se
não houvesse a possibilidade de ter seus planos estragados.
E eu assistiria o cair do seu castelo de areia com certo gosto, se ela não ousasse além do
permitido. Era para meus homens a abordarem e sem explicações, levarem ela até mim. Mas
Isotta, como se planejasse tornar aquela operação um inferno, fez o que com certeza Jean desejou
evitar quando me pediu para resgatá-la. Um dos rapazes que acompanhava seu grupo, a segurou
pela cintura, seguindo seu ritmo, e, com um sorriso de aprovação da garota, a beijou.
Em qualquer outro momento da minha vida eu olharia uma cena daquela e em nada
alteraria a minha vida. Mas não era um dia normal, nem uma situação normal. A porra da garota
era noiva do futuro Capo da Camorra e como prometida, jamais deveria agir daquela forma.
E então eu entendi, se esperássemos que ela fosse encontrada por soldados da Camorra,
teríamos ou um novo escândalo que envolveria nosso nome, ou um assassinato causado por um
noivo disposto a honrar as regras e a eliminar do seu caminho quem ousasse tocar na sua noiva.
— Porra! — resmunguei ao compreender que teria que interferir. — Pirralha dos infernos.
E, acompanhado de Aaron e Valentin, deixei o camarote, decidido a colocar um ponto final
naquela brincadeira.
4
ISOTTA

O Brasil, a parte que consegui conhecer, não tinha nada de maravilhoso nem fantástico.
Em uma pesquisa rápida identifiquei que desembarcar em São Paulo, na capital, não foi a melhor
decisão para quem desejava apenas um tempo como turista, aproveitando a liberdade. Por isso
resolvi embarcar para o Rio de Janeiro no dia seguinte e depois, a depender do tempo que meu
pai levaria para me encontrar, seguiria para o Nordeste.
Mas naquela noite, uma vez que continuaria na cidade, desejei esticar as pernas e passar
algumas horas de liberdade na boate apontada como a melhor que eu encontraria. Escolhi um
vestido provocante, aproveitando o calor da cidade e ao me encarar no espelho tive a certeza de
que poderia tudo naquela noite.
Nicolo, se conseguisse me encontrar, ou manter a palavra dada pelo meu pai e me ter como
esposa, teria que viver com a desonra de ter uma esposa que antes pertenceu a outro, ou a loucura
de me assistir cortar os próprios pulsos diante de todos no altar. Mas eu não passaria uma única
noite com ele. Nunca.
O meu tempo era curto. Sem opção e certa de que não desejava desaparecer de uma vez
por todas, esperava que meu pai repensasse a sua escolha e me deixasse em paz. Eu o amava
apesar de tudo. Quando minha mãe era viva ele era amável e gentil, entretanto, assisti-la morrer
partiu sua alma em pedaços tão pequenos que eu acreditava que nunca mais conseguiria
reconstruí-la. Obrigar Miguel a casar com uma mulher e me oferecer como acordo vantajoso, foi
a maneira que ele encontrou de fazer a vida continuar.
Como aquilo aconteceu? Tínhamos um plano, uma vida feliz e equilibrada e então…
mamãe não mais existia, Miguel era uma vergonha e eu voltei a ser a moeda de troca.
Suspirei com pesar ao retocar o batom e pesquisar sobre a boate no computador da suíte
que ocupei no hotel. As fotos me animaram. As pessoas eram bonitas, alegres, misturadas. Havia
turistas dos mais diversos pontos do mundo, mesclados com a nata da sociedade, pessoas como
eu que desejavam a diversão, ainda que lhes custasse uma suntuosa quantia de dinheiro. A boate
de três andares não perdia para nenhuma que conheci nos mais diversos pontos do mundo. Nem
mesmo para as de Ibiza.
Durante as primeiras horas eu cheguei até mesmo a esquecer a minha situação. Ali não
havia Nicolo e sua obsessão, nem a loucura do meu pai em aceitar me casar com ele. Só pessoas
que assumiam como compromisso a diversão e o momento.
Cada andar possuía um ambiente diferente, tornando possível desfrutar de tudo o que
existia de melhor e de pior que o dinheiro proporcionava. Desta forma, garçonetes desfilavam
com os mais variados produtos, espalhando entre os consumidores. Nada de novo, nem de
atrativo para mim.
Eu conhecia até onde poderia ir, em que chão poderia pisar, por isso, não me aventurei nas
“balinhas”, nem em nenhum tipo de droga diferente do álcool. E sim, eu afrontava meu pai,
quebrava as suas regras e lutava para que aquele mundo não me tragasse, mas havia um limite
até mesmo para alguém como eu, logo, as drogas não podiam fazer parte da minha diversão.
— Vamos ficar aqui? — A garota, alguém que logo entendi que não podia atrair atenção
pois era pessoa pública, perguntou com um sorriso largo e bobo de quem tinha todas as suas
percepções afetadas pela quantidade de droga que ela ingeriu.
— Eu gosto desse andar — O rapaz loiro, que eu não lembrava o nome de forma alguma,
aceitou uma taça de champanhe e o bebericou sem se espantar com a qualidade.
Aliás, todos com quem conversei naquela noite, conviviam com o luxo sem deslumbre, o
que reforçava a ideia de que apenas pessoas com realidades semelhantes a minha, abstraindo
toda a questão da máfia e sobressaltando as contas bancárias, desfilavam pelos seus andares.
— O que acha, espanhola? — Ele me passou uma taça, que aceitei sem questionar, apesar
de desejar uma cerveja.
— Sim, eu gostei.
Eles brindaram em minha taça e me fizeram caminhar na direção do bar ao fundo da pista
de dança. O som apesar de alto, não nos impedia de conversar. Analisei as costas do rapaz de
cabelo escuro que nos seguia sem participar com a mesma empolgação dos outros. Ele era
bonito, alto, corpo impecável e aparentava ser mais velho do que os demais, contudo, mais novo
do que eu gostaria.
— Isotta? — A outra garota, que eu também não lembrava o nome, me chamou. — Vamos
dançar.
Deixei que ela me levasse para o centro da pista, onde pessoas se avolumavam e se
divertiam com músicas que nunca ouvi antes, mas que tinham uma boa batida. Após um tempo
sem conversas, seguindo o ritmo da música eletrônica que guiava nossos corpos, o garoto de
cabelo escuro se aproximou com dois shots e me entregou um, ignorando por completo a outra
garota.
— O que é isso? — eu quis saber, acompanhando pelo canto dos olhos quando a minha
companheira de dança se retirava como se estivesse ofendida com a atitude do amigo.
— Absinto — ele informou em meu ouvido. Próximo demais. Interessado demais. —
Gosta?
— Gosto.
E, para provar que eu não temia o que ele faria, ou para me encorajar a permitir que ele
fizesse antes que Nicolo destruísse tudo, virei o pequeno copo de uma vez e ouvi a risada
admirada do rapaz.
— Vá com calma! — ele disse mais alto.
— A vida é curta. Curta!!!!
Empolgado, ele entornou também sua bebida e balançou a cabeça, como se aquela pequena
dose tivesse o poder de arrancar sua sanidade mais do que a carreira de cocaína que ele cheirou
pouco antes de se atrever a me seguir na pista.
Ele não era o tipo de garoto por quem eu me animaria. Não fazia o tipo de rapaz por quem
eu arriscaria tudo. Porém, minha fuga para o Brasil tinha um propósito, ou alguns. Aquele
poderia ser o primeiro passo.
O garoto retirou o copo da minha mão e o entregou à garçonete que passava por nós, sem
olhá-la, como se a garota fosse um mero acessório no meio daquela pista. Eu conhecia aquele
tipo, aquelas atitudes. Eram mais normais do que as pessoas eram capazes de imaginar.
Quer conhecer o homem? Dê poder a ele. Faça ele se sentir ainda que minimamente
superior a alguém. Pronto, você tinha uma perfeita demonstração de um babaca. Contudo, aquele
babaca demonstrava boa vontade em fazer parte do meu plano, ainda que não soubesse que,
naquele momento, ele era o meu acessório no meio daquela pista. E este foi o único motivo para
eu sorrir para ele.
Eu não sabia o seu nome, tinha uma mera ideia da sua condição social pelas vantagens
contadas e brincadeiras idiotas feitas pelos seus amigos, o que me lembrava do motivo para eu
preservar os poucos que eu mantinha em minha vida. Eu não tinha a menor paciência com
garotos novos demais, bobos demais e prepotentes. Ainda assim, aquele era o que eu tinha em
mãos e teria que servir, já que no dia seguinte partiria para o Rio de Janeiro e não mais precisaria
conviver com eles.
No entanto, naquela noite ele seria o meu primeiro passo e confirmei esta ideia quando
suas mãos tomaram minha cintura e me puxaram para perto com a posse insegura de garotos
inexperientes. Onde estava a paixão que meu corpo experimentou na noite anterior ao beijar o
rapaz grego no iate? Em que lugar se escondeu o desejo que me assolou ao ter os lábios dele nos
meus e as mãos quentes em minha pele?
Ainda assim, beijei o rapaz do qual eu não lembrava nem sequer o nome. Não havia
segurança em seus lábios. Faltava firmeza, certeza, malícia… não sei ao certo, mas fora o beijo
mais sem graça e sem gosto que experimentei na vida. Por isso eu quase agradeci quando ele se
afastou de mim.
Quase.
Até abrir meus olhos e ver que dois homens, soldados com toda certeza, afastavam o rapaz
que erguia as mãos se rendendo fácil demais para o meu gosto. E então, um homem alto, vestido
com um terno que lhe atribuía o tipo de autoridade que me excitava, cabelo em uma bagunça
organizada, claro, mas não loiro, barba por fazer, e um olhar tão seguro que fez minhas pernas
bambearem, apareceu à minha frente.
— Isotta De Rosa — ele sibilou.
Não foi uma pergunta, ou a necessidade de confirmar a minha identidade. Foi uma maneira
única e feroz de dizer que sabia quem eu era, e que estaria disposto a tudo para me impedir de
continuar.
Respirei fundo. Tinha total certeza de que meus olhos demonstravam a minha surpresa e
decepção por ter sido desmascarada tão rápido, sem ao menos iniciar meu plano.
— Não — eu disse, ainda que não tivesse qualquer dúvida de que ele sabia quem eu era. E
se houvesse, meu sotaque entregaria.
— Você vem comigo — ele revelou sem se esforçar para se impor. O homem nem mesmo
levantou a voz, não me tocou, não me ameaçou nem mesmo com o olhar. Porque ele sabia que
teria o que queria.
— Se você tocar em mim eu grito — ameacei.
— Fique à vontade.
Então, sem que eu esperasse por isso, tão rápido que me perguntei como ele conseguiu, eu
me vi em seus ombros, deitada sobre suas costas, com a certeza de que minha bunda estava à
mostra, conduzida com agilidade para um caminho que não foi o que eu fiz para chegar até
aquele andar.
E eu gritei. Bati em suas costas largas e duras. Xinguei. Pedi socorro. Mas, como se ele
soubesse que eu faria exatamente aquilo, todo o ambiente escureceu, a música ficou mais alta e
eu podia apostar minha herança de que ninguém se deu conta do que acontecia, com exceção do
garoto que me beijava segundos antes.
E aquele foi o início da minha desgraça.
***
Desisti de gritar quando saímos em uma rua escura e vazia. Dois seguranças abriram as
portas para que o homem, acompanhado de mais três outros, passasse me carregando em seus
ombros como se eu pesasse uma pluma.
E eu não desisti de gritar porque senti medo, mas porque sabia que de nada adiantaria.
Desde o momento em que ele ignorou os elevadores e desceu pelas escadas comigo em seus
ombros, eu soube que aquele “sequestro” tinha um dedo do meu pai.
Não eram os homens da Camorra e sim os da Ndrangheta, ou seja, minha única chance
seria Nicolo me rechaçar ou a morte. Porque todos conheciam os soldados da Ndrangheta, e eles
não fracassavam. Por isso o respeito e os territórios conquistados. Por isso as alianças com as
máfias mais respeitadas do mundo. E, lógico, meu pai pediria ajuda a eles para me encontrar. Eu
só não esperava que fosse tão rápido.
Entrei no carro logo após um dos homens que foi convocado para me resgatar, em seguida,
o meu sequestrador acomodou-se ao meu lado, incomodado, como se não houvesse espaço para
nós três naquele carro imenso.
— Pode seguir — ele ordenou, a voz grossa e segura ecoou de uma forma estranha dentro
de mim.
— Para onde, senhor?
O soldado que sentou ao lado do motorista perguntou. O “senhor” me alertou. Aquele não
era qualquer um. O encarei ainda que na penumbra dentro do automóvel e conferi outra vez seu
rosto másculo, o queixo bem desenhado e a barba por fazer. Ele não me olhou nenhuma vez.
— Para a cobertura — anunciou.
— Eu quero voltar ao hotel — resmunguei, mas nenhum deles me deu atenção.
O carro ganhou movimento e eu pude ver os faróis de mais dois que nos seguiam no
padrão já conhecido, o que confirmou a importância de quem seguia comigo naquele automóvel.
Um na frente para garantir que não haveria emboscada, outro atrás para fazer a nossa defesa.
Quem era aquele homem?
— Eu disse que quero ir para o hotel — falei mais alto. — Vocês já me acharam. Avisem a
meu pai que volto para casa em um caixão — ameacei. Entretanto, os dois homens ao meu lado
riram. O que me enfureceu.
Só que eles não contavam com o meu desespero. Então, enquanto os soldados se
dedicavam a rir e desfazer da minha verdade, tirei vantagem da minha posição, avancei sobre o
motorista e segurei o volante com toda a força que consegui. Ao mesmo tempo, mãos me
puxaram para trás, vozes gritaram, o motorista tentou me afastar e o rapaz sentado ao seu lado
tentava com todo o esforço fazer o carro voltar para a pista.
— Puta que pariu!
O homem, o mesmo que teve a audácia de me tirar da boate carregada nos ombros, sem se
importar em deixar minha bunda de fora, gritou e me puxou com força, o que me jogou para trás,
obrigando-me a encostar no banco. De imediato ele puxou uma arma e a encostou em meu
queixo.
Armas não era uma novidade para mim. Eu cresci vendo todos os tipos e portes. A
novidade estava em ter uma apontada na minha direção. Mais precisamente, com o cano colado
em meu queixo.
— Mas uma gracinha e eu terei o prazer de te devolver para seu pai em um caixão — ele
disse com a voz rouca e cheia de raiva, contudo, baixa o suficiente para deixar claro que não
perderia a compostura.
Nós nos encaramos, eu sem saber ao certo o que sentia. Era um misto de medo e desafio,
de vontade de deixá-lo acabar com aquele tormento. Enquanto isso, os olhos dele, de um tom
anormal de cinza, quase tão escuro quanto uma tempestade, com pequenas nuances de verde que
deixava as íris impecáveis, descarregavam em mim toda a sua fúria.
— Álvaro… — O rapaz sentado do meu outro lado falou com receio.
Aquele era o tipo de tom que alguém abaixo dele usaria. Então eu soube que ali o tal
Álvaro era o de maior cargo.
— Cara, guarde essa arma.
Um pedido, não uma ordem. E, como se o universo precisasse me confirmar aquilo, Álvaro
não afastou a arma do meu queixo. Ele se aproximou e me deixou experimentar e exalar o cheiro
do seu perfume marcante.
— Não sou sua babá, garota. Não tenho paciência para meninas mimadas. Por mim seu pai
te deserdava, te abandonava aqui no Brasil, te entregava para uma das minhas casas, quem sabe
assim você perderia essa ideia infantil e colorida da vida. Então, não tente nenhuma gracinha, ou
eu vou te mostrar porque a Ndrangheta não tem qualquer receio em criar uma guerra com a
Camorra.
— Pois então comece — eu disse, decidida a desafiá-lo, a obrigá-lo a cumprir com o que
ele sabia, assim como qualquer um naquele carro, que ele não poderia fazer. — Atire. Porque na
primeira oportunidade, eu fugirei. Desaparecerei — rosnei as palavras no seu rosto próximo ao
meu. — E vou rir da sua vergonha em não conseguir conter uma garotinha mimada.
O homem ao meu lado riu de forma contida, mas eu vi quando os olhos de Álvaro se
desviaram dos meus e foram para o outro que tossiu para disfarçar. Álvaro era o mais temido ali.
Alguém com mais poder e autoridade. Um subchefe, com toda certeza. Um Capo não se daria ao
trabalho de me caçar pela noite de São Paulo só para satisfazer a vontade do meu pai. Não. Ele
mandaria o seu cão de guarda.
— Tente — ele disse para mim ao recolher a arma e devolvê-la ao coldre, em seguida,
pegando-me mais uma vez desprevenida, fechou uma algema em meu pulso, a outra no dele, nos
interligando, presos um ao outro.
— Você é um babaca!
— Isso é o melhor que consegue fazer? — desafiou, a voz de repente cansada, os olhos
longe dos meus, mas a mão tão próxima que mexeu comigo de uma forma estranha.
— Não costumo discutir com os cães.
— Não tenho defesa quanto a isso. Eu mordo.
Outra vez o cara sentado ao meu lado riu, no entanto, Álvaro não tratava nada com humor.
Ele falava sério e estava decidido a levar a sua missão até o fim: me devolver para o meu pai,
para Nicolo.
Eu não me renderia sem lutar.
— Cachorro velho não tem mordida — pirracei. Outra vez o outro rapaz abafou o riso.
— Cadela nova só late — ele rebateu.
Sem pensar duas vezes, cuspi no rosto daquele homem rude e misterioso. Álvaro
semicerrou os olhos e o silêncio se fez dentro do carro. Então ele retirou o que acreditei ser uma
gravata do bolso, limpou o rosto com calma e a guardou.
— Deve ser por isso que seu pai precisa te casar — resmungou sem me dar importância.
— E eu vou pedir a sua cabeça em uma bandeja de prata a Nicolo, como presente de
casamento.
— Nicolo com certeza terá coisa melhor para fazer no casamento do que iniciar uma
guerra contra a Ndrangheta — anunciou com certa ironia.
— Vamos ver o que o seu chefe dirá quando souber que você xingou a filha do Capo da
Camorra de cadela — ameacei.
— Eu direi que a filha do Capo da Camorra é uma pirralha mimada e mal educada. E como
Capo da Ndrangheta… — ele fez uma pausa teatral antes de me encarar. Estava escuro, contudo,
a pouca luminosidade que atravessava o vidro fumê me permitia visualizar aquelas íris cinzas
que me deixavam desconfortável de uma maneira estranha. — Estou pouco me fodendo para o
que seu pai vai achar por eu amordaçar uma menina malcriada que não sabe a hora de calar a
boca.
— Seu… bruto!
E eu me calei, até porque, naquele instante, entendi quem era Álvaro, a sua importância, a
magnitude da sua posição naquele país. E eu havia acabado de cuspir em seu rosto. Um pecado
capaz de gerar uma guerra.
Se antes meu pai via motivos para me casar com Nicolo e me conter, agora ele teria a ajuda
do próprio diabo e eu estava algemada a ele.
5
ÁLVARO

Foi um tormento ficar ao lado dela. A garota, apesar de calada depois da nossa breve
discussão, não me deu um pingo de paz. Era como se meu corpo soubesse, se preparasse para
agir a qualquer segundo. Eu mal conhecia Isotta, mas já sabia que ela não aceitaria seu destino
assim, em silêncio, sem lutar.
A algema que a prendia a mim não significava nada. Eu me sentia até mesmo em alerta por
tê-la se movendo comigo, tão perto da minha arma, dos meus soldados.
A inquietação se manteve em mim até quando entramos na cobertura que eu ocupava, a
mesma que Jean mantinha quando ainda morava no Brasil, mas me vendeu quando foi embora,
devido às lembranças. Isotta nada disse, no entanto, observou o local sem muito interesse, como
alguém acostumada ao luxo, ou disposta a me distrair para alcançar sua fuga.
Com aquela garota tudo contava.
E então ela mudou. A garota arrogante e cheia de si, pedante como se aquele chão não
fosse digno dos seus pés, recuou assustada quando Harry Potter, meu cachorro de raça Beagle,
correu para me saudar. Foi engraçado, porque ela queria se afastar, impedir que ele se
aproximasse, mas a algema a limitava.
— E aí, Harry? — eu disse de pirraça, acariciando meu cachorro para animá-lo mais.
E tudo piorou quando Harry finalmente resolveu farejar a novata. Isotta gritou, tentou se
esconder atrás de mim, ao mesmo tempo que Harry achava que ela brincava e pulava nela.
— Meu Deus! — ela exclamou, sem conseguir se manter firme nos saltos. — Pare com
isso. Ele vai me morder! Ele vai me morder!
— Já chega, Harry!
Eu me abaixei e acalmei meu cachorro, pois a garota estava mesmo desesperada.
— No final das contas a leoa não passa de uma gatinha assustada.
— Como você pode achar isso normal? Manter um animal como este, deste porte, dentro
de casa? Você pretende me matar?
— Eu achei que a sua ideia era essa. Morrer para não casar.
Joguei a bola do Harry longe e ele correu pelo apartamento, desviando dos móveis por
poucos centímetros.
— Não comida por um cachorro — ela retrucou.
— Não é uma má ideia. Jean criava tubarões para alimentá-los com os restos dos inimigos.
Eu prefiro cachorros.
— Você é mesmo um…
Mas ela não terminou o xingamento. Harry voltou correndo com a bola e a garota
praticamente subiu em mim e quase me derrubou, o que causou uma imensa confusão com o
animal que tentou me defender.
— Harry, não! Senta! — eu disse alto e fui obedecido de pronto, com Isotta agarrada em
mim.
Foi estranho.
Estranho demais para dizer a verdade.
Fodidamente estranho.
— É só a porra de um cachorro — resmunguei, decidido a afastá-la de mim.
Retirei do bolso a chave das algemas e nos libertei, contudo, o pouco tempo que passei ao
lado daquela garota serviu para não me deixar vacilar. Assim que Isotta esfregou o pulso ao se
sentir livre, segurei em seu braço e a obriguei a subir as escadas comigo. Eu manteria aquela
garota trancafiada até Jean devolvê-la ao pai.
— Fica, Harry — ordenei e não tive dúvidas de que seria obedecido. Pelo menos meu
cachorro não me dava trabalho. — Foge de um batalhão, mas se dobra de medo de um Beagle —
murmurei, enquanto ela se esforçava para atrapalhar meu trabalho de fazê-la chegar ao segundo
andar.
— Seus instintos assassinos não negam a sua posição na Ndrangheta.
— Fique bem atenta, boca sem freios. Eu posso ser pior do que o noivo de quem você tanto
foge.
Ela empalideceu e ali eu soube que o problema era maior do que uma simples birra em
relação ao homem que o pai escolheu para ser marido da sua única filha. Mas… não é problema
meu. Tentei me convencer.
— Sua suíte, Jasmine — eu disse sem a mesma rispidez de antes, talvez indevidamente
impactado com o medo nos olhos dela.
Aqueles olhos violeta que hipnotizavam com facilidade.
Isotta De Rosa era um problema maior do que imaginei.
— O que vai fazer? — ela perguntou sem a arrogância de antes, o que de fato mexia
comigo.
— Avisar que você está bem e em segurança. Enquanto isso, meus homens ficarão aqui, na
sua porta, garantindo que você não fugirá nem mesmo para pedir a minha cabeça em uma
bandeja de prata.
— Você não sabe o que está fazendo.
Ela se projetou sobre meu peitoral, não como um ataque e sim como uma súplica, o que
roubou de mim a reação adequada.
E a verdade era que minha cabeça não funcionava bem de madrugada quando uma garota
bonita como aquela se atirava em meus braços.
Mas que porra eu estou pensando?
Segurei Isotta pelos braços e a afastei de mim, não o suficiente para impedir que seus olhos
violetas me impactassem.
— Por favor, Álvaro. Você não pode me devolver para meu pai. Não pode me devolver
para Nicolo!
Puta que pariu! Aquilo não era problema meu e ainda assim… Havia um código de
conduta tatuado em minha alma, o mesmo que me fez enfrentar Joel e escolher Jean. O mesmo
que não me deixou hesitar quando eliminei Lícia. Nós não machucávamos mulheres,
condenávamos quem o fazia. E tudo o que aqueles olhos saídos do inferno me diziam era que eu
a entregaria para a tortura.
— Eu cumpro ordens — sussurrei, sem acreditar que aquela menina me dobrou com tanta
facilidade.
Mas então os olhos dela endureceram. Apesar das lágrimas que não foram derramadas, seu
rosto se transformou em uma careta de raiva. E ela socou meu peito com toda a força que podia,
o que, na verdade, não era nenhuma.
— Você é um merda! É a porra de um escroto! Pau mandando! Você é como ele. Um
sádico!
Cansado. Abri a porta do quarto, a enfiei lá dentro e tranquei a porta. Ela a esmurrou e não
cessou enquanto eu deixava a ala e descia as escadas.
— Quero dois homens na porta dela o tempo todo. Prestem bastante atenção porque ela é
conhecida por conseguir fugir. — Aaron acenou para dois soldados que logo subiram os degraus.
— E eu não duvido que ela consiga destrancar a porta — murmurei para mim mesmo, certo de
que apenas uma chave e dois soldados não conteriam Isotta De Rosa.
— Vou deixar mais dois homens na saída da ala e outros na segurança de todas as saídas
possíveis — Aaron informou. — Precisa de mais alguma coisa?
— Não.
Retirei o terno como se este pudesse me sufocar, em seguida desabotoei os punhos da
camisa social. Procurei pelo meu cigarro e agradeci quando o acendi e puxei o primeiro trago.
Aquela era a melhor merda já inventada para homens como eu. Depois de uma noite como
aquela, nada como um cigarro e um copo de uísque.
— Então vou dar as ordens e deitar — meu subchefe avisou. — Essa garota é um
problema.
— Nem me fale. Harry? — Meu cachorro, sentado sobre a sua poltrona preferida, com sua
almofada favorita, ergueu a cabeça quando o chamei. — Vamos lá.
Saí para o escritório acompanhado daquele que eu permitia como única companhia nos
dias mais cansativos. Sentei na minha cadeira com meu cachorro deitado aos meus pés e me
permiti mais um pouco de silêncio, álcool e cigarro antes de ligar para Jean. Ele não demorou a
atender. Ao fundo ouvi Heidi reclamar de alguma coisa.
— Por favor, me diga que Heidi sente falta do Brasil — brinquei. Jean estalou a língua e
soltou o ar, como se tivesse corrido para alcançar o celular. — Não me diga que vocês estavam
transando.
— Você sabe que eu mataria qualquer homem que se referisse a minha intimidade com a
minha esposa, não é mesmo?
— Eu não sou qualquer homem — rebati com um sorriso escroto nos lábios. Sentia falta de
Jean e das nossas provocações.
— Que sorte a sua. Encontrou a garota?
— O que você acha, Jean? Eu não seria a porra do homem escolhido para ser o guardião do
título do seu sobrinho se não atendesse a porra de uma missão tão filha da puta como essa.
Desta vez ele riu.
— Ela te deu trabalho — afirmou.
O cretino sabia que não seria como tirar doce da boca de uma criança e ainda assim me fez
assumir aquela missão.
Ele me pagaria.
— Chego em dois dias — ele disse, mas se interrompeu quando Heidi reclamou outra vez.
Eu não conseguia distinguir sobre o que eles conversavam, pois a voz dela estava distante,
mas Jean respondeu preocupado.
— Algum problema?
— Não, nenhum. É só… natural.
E eu sabia que havia mais naquelas palavras.
— Acabou a festa no castelo de vocês? — pirracei.
— Vá se foder, Álvaro.
Não havia nem uma nota de aborrecimento em seu xingamento, pelo contrário. Eu podia
jurar que Jean sorria.
— Então você chega em dois dias?
— Isso.
— Por que não antes? Se Juan quer tanto recuperar a filha, por que esperar dois dias?
— Você parece ansioso para se livrar da garota — ele provocou. — Isso é estranho. Eu
nunca te vi doido para se afastar de uma mulher, em especial uma como Isotta.
— Ela é uma criança, seu animal.
— De dezenove anos. Vinte em alguns dias.
— Eu espero que Heidi esteja ouvindo está conversa.
— Eu sou um homem muito bem casado, Álvaro. Heidi não tem do que reclamar.
— E até onde eu sei, a pirralha está noiva.
— Pirralha? — ele riu.
— Eu tenho trinta e quatro anos, caralho.
— Já deveria estar casado — ele ressaltou o que sempre insinuava para mim.
— Nunca farei esta merda.
— E eu viverei para ver o dia em que uma mulher te colocará de joelhos.
— Várias me colocaram e foram muito bem chupadas. — Jean riu alto. — Isotta De Rosa é
uma fedelha mimada e arrogante. Uma bomba para o noivo dela.
— Futuro noivo — alertou. — O pai não consolidou o acordo. A garota fugiu antes das
formalidades.
— E desde quando existem formalidades além da palavra do pai e do noivo?
— Desde quando Juan prometeu à esposa falecida que daria à filha o direito de escolha.
— Porra, Jean. Você me atirou nessa missão para resgatar uma garota que nem noiva está?
Se ela teria escolha, por que fugiu?
— Isso só ela pode explicar. Mas de acordo com Juan, que não está nada satisfeito com o
comportamento da filha nos últimos anos, ou ela casa com o sobrinho dele, que por sinal é o seu
provável substituto, ou será trancafiada em um convento. Eu sugeriria um manicômio, mas
deixei de ser o vilão dessa história.
Eu ri como há muito não fazia.
— Eu daria o mundo para ver Isotta de freira.
— Bom, não vamos amanhã porque eu tenho um… uma situação para resolver.
— Alguma novidade?
— Não, nada. Ainda — acrescentou. — E Juan não vai sozinho porque eu prefiro estar à
frente nesta confusão.
— Jean, serão dois dias infernais. A garota é um problema. — Meu melhor amigo riu.
— As problemáticas são as melhores.
Ele desligou, eu alisei a cabeça de Harry, finalizei o cigarro e a bebida enquanto pensava
nesta última frase.
Eu não acreditava que as problemáticas eram as melhores, entretanto, adorava desafios. E
Isotta era um dos grandes.
6
ÁLVARO

Quando bateram em minha porta e meus olhos praticamente se recusaram a abrir, eu tive a
impressão de que não dormi nem dez minutos.
Atordoado, levantei o corpo e procurei minha arma e meu relógio. A arma por costume, o
relógio para confirmar o tanto de tempo que tive direito ao descanso, quando bateram pela
segunda vez.
— Sr. Kuhn? — o soldado disse do lado de fora.
Quinze minutos. Exatos quinze minutos que eu havia deitado. Os raios de sol que
ameaçavam cortar a escuridão do céu nem sequer tinham vencido a batalha quando abri os olhos
outra vez.
— Sr. Kuhn? — ele insistiu, e eu tive vontade de atirar no soldado.
Odiava ser chamado daquela forma, em especial porque Jean era o Sr. Kuhn e a porra dos
nossos sobrenomes só confundiam tudo. Bastavam que me chamassem de Álvaro, no entanto,
eles pareciam ter algum problema quanto a isso.
— Entre — ordenei antes que ele me irritasse mais.
O homem abriu a porta e se postou à minha frente, o rosto confuso.
— O que foi?
— É a senhorita Isotta — ele falou com receio.
No automático levantei, sem me importar por estar apenas de cueca.
— Não me diga que deixaram ela fugir.
Passei a calça pelas pernas com o máximo de pressa, sem soltar a arma em nenhum
segundo.
— Não, senhor.
Encarei o homem e tentei entender porque inferno ele me acordou quinze minutos depois
de eu deitar se a fedelha não havia fugido. Só se ela… porra. Fechei a calça com mais pressa e
coloquei a arma presa no cós nas costas.
— O que aconteceu, caralho?
— Bom… — ele começou como se a situação pudesse lhe tirar a vida. — Nós tentamos de
tudo, mas ela não nos deu ouvidos. Agora o administrador interfonou e disse que alguns
moradores querem chamar a polícia. Então…
— Inferno!
Deixei o quarto e segui na direção das escadas, para a ala onde eu deixei a maldita. Antes
de colocar o pé no primeiro degrau ouvi o som alto. Não alto como se ela estivesse ouvindo
música para abstrair e sim um som estridente como se uma festa acontecesse naquele quarto.
— Puta que pariu! — rosnei ao subir com pressa pela escada. — A chave da porta está no
escritório — informei para que o soldado tratasse de encontrá-la enquanto eu tentava conter a
garota.
Quando cheguei à sua porta, quatro soldados se reuniam do lado de fora sem saber o que
fazer. O som estridente não me permitia ouvi-los. E então, como se aquele circo não estivesse no
seu auge da loucura, o barulho de algo contra a parede, se espatifando com força, nos deixou em
alerta.
— Eu vou arrombar a porta — avisei certo de que eles não me ouviriam. — Porra de
fedelha mimada.
Mas não tive tempo de arrombar. O soldado que me acordou subiu correndo com a mão
cheia de chaves. Eu nem sequer me dei ao trabalho de repreendê-lo. Sabia exatamente qual
abriria aquela porta e não perdi tempo. Assim que destranquei, entramos todos no quarto, mas
ninguém reagiu.
De pé sobre a cama, de calcinha e sutiã, dançando de forma a roubar a atenção do mais
insensível dos homens, Isotta se exibia sem perceber a nossa presença.
Pelo chão a bagunça que ela deixou. Uma cadeira com duas pernas quebradas, lençóis
largados por todos os lados, o vestido daquela noite sobre a pequena mesa de apoio ao lado da
cama, uma sandália de salto alto em cada canto, como se ela tivesse atirado as peças enquanto
fazia um striptease.
E eu não vou negar, demorei demais para reagir. Durante um tempo que considerei longo
demais, me deixei guiar pelo corpo gostoso de uma forma escandalosa, pela pele bronzeada que
ostentava um conjunto de lingerie minúsculo, de renda, praticamente inexistente na bunda
redonda e empinada que rebolava como se ela estivesse em uma boate. O cabelo longo como o
de uma sereia, balançava conforme os movimentos do corpo e me fazia pensar em muitas coisas
que eu não podia pensar. Em especial com ela.
Dezenove anos, Álvaro! Contenha-se!
Quase vinte.
E que diferença fazia quando eu tinha trinta e quatro anos, ela se casaria com um primo
apaixonado e ansioso para tê-la apenas para si, enquanto para mim não passaria de uma diversão
gostosa. Isso se houvesse diversão, porque a garota era um pesadelo.
Harry latiu ao meu lado no exato momento em que ela virou na minha direção e me
encarou. Isotta não se acovardou quando nos viu. Não se intimidou pela presença de seis
homens, todos sedentos por ela. Isotta sorriu e passou a mão pelo corpo como um convite.
A porra de um convite para o inferno.
Esse foi o ponto que me fez reagir. Caminhei até o som e o arranquei da tomada, sem
qualquer paciência.
— Tá maluca, porra! — gritei.
Ela não se acovardou, pelo contrário, sorriu para mim com inocência e mordiscou a unha.
Olhei para os soldados que continuavam encarando a garota como se nunca tivessem visto
mulher antes. Aquilo me encheu de raiva.
— Saiam!
Os homens não ousaram demorar nem um segundo dentro daquele quarto. Isotta sorriu
com deboche e se atirou na cama como se estivesse entediada.
— Você é insuportável — ela reclamou.
— Você sabe que horas são?
— Não, pai. Mas com certeza é horário dos velhos estarem dormindo.
Fedelha ousada.
— Agradeça por eu não ser o seu pai — revidei contendo a raiva. — Você levaria vários
tapas na bunda por ser tão impertinente.
Contudo, no mesmo segundo eu me arrependi do que disse. Isotta sorriu como se aprovasse
a ideia e minha mente ficou cheia da imagem daquela bunda deliciosa esquentando na palma da
minha mão.
Dezenove anos, Álvaro! Uma criança praticamente.
— Você tem cara de quem bate mesmo — ela disse, entretanto, não com o tom de quem
me acusava de ser violento, mas com todo o teor sexual que conseguiu empregar naquelas
poucas palavras.
Fedelha escrota!
— Eu faço muitas coisas que garotinhas como você nem conseguem imaginar. Mas não se
anime, eu não curto o cheiro de leite, pirralha.
— Ainda, certo?
— O quê?
— Homens como você, com o avançar da idade, precisam de duas coisas: Viagra e
dinheiro para pagar vadias novas para transar, porque as como eu jamais se interessariam.
— Você é…
E eu me interrompi. Não porque não tinha o que dizer, ou fazer, para que ela engolisse
aquele desaforo. Mas porque eu sabia que aquela era a intenção de Isotta, me fazer perder a
cabeça. Então sorri de forma escrota.
— Seu pai chega em dois dias. Pelo andar da carruagem você sai daqui casada.
Outra vez, sem que eu contasse com isso, recebi Isotta em meu corpo. Ela se jogou contra
mim, com aquelas peças minúsculas, a pele lisa e deliciosa, o corpo tão perfeito que me fazia
desejar o que eu não deveria desejar. Harry rosnou, o que fez Isotta se apertar ainda mais contra
mim e meu corpo reagir mesmo contra a minha vontade.
— Quieto, Harry!
Meu cachorro se colocou em posição de alerta, como foi treinado para ser, ainda que sua
raça não fosse a ideal para isso.
— Eu te imploro, Álvaro! Deixe-me ir. Por favor! Eu faço qualquer coisa. Faço o que você
quiser.
Porra! E eu queria não querer.
— Fique quieta, menina! Eu não posso me intrometer nos seus problemas com seu pai.
— Você pode me ajudar se quiser.
— A Camorra é aliada da Ndrangheta. Nosso Don determinou…
— Foda-se! Meu pai sabe que eu sempre fujo, ele não ficaria aborrecido ou admirado se
acontecesse outra vez.
— Tudo isso por medo do casamento? — desdenhei, ainda que o desespero dela me
tocasse de uma forma que não deveria.
— Foda-se, seu imbecil!
Ela me empurrou e se afastou com pressa, voltando a subir na cama, desta vez, sem a
intenção de aprontar. Ainda assim, para não deixar margens, peguei o aparelho de som e andei na
direção da porta do quarto.
— Durma um pouco, Jasmine.
— Vá para o inferno, Lúcifer.
7
ISOTTA

Ele me desejava. Não havia como esconder aquela verdade. Ainda que eu fosse a garota
mais inocente daquele planeta, perceberia que Álvaro, o Capo da Ndrangheta, um homem
provavelmente acostumado com toda a sorte de mulheres, perdeu a fala por alguns segundos
quando me viu usando apenas calcinha e sutiã.
E eu não era, em definitivo, a garota mais ingênua do mundo. Podia ser virgem, por
imposição, mas conhecia os homens, assim como o meu poder sobre eles. Poucos resistiam à
ideia de seduzir a garota de olhos diferentes e corpo estonteante. Com Álvaro não seria diferente.
E talvez esta tenha sido a minha intenção quando não recuei ao vê-lo entrar no quarto.
Não conhecia Álvaro, não fazia ideia da sua índole e, inclusive, nos primeiros minutos de
interação com ele tive sua arma apontada para o meu queixo, logo, eu deveria descartá-lo com a
máxima urgência, no entanto, o que eu via em seus olhos contradizia com tudo o que ele
demonstrava ser.
Quando Álvaro me olhava, ainda que puto da vida, não havia perversidade, não havia
violência, só… aborrecimento por precisar lidar com a merda do meu noivado.
E eu preferia morrer a casar com Nicolo.
Desta forma, ainda que insegura quanto a minha capacidade de ler as pessoas, Álvaro era
uma opção melhor, mesmo que ele não soubesse disso. Eu precisava tentar, manter o seu desejo
por mim, dobrar aquele homem como já dobrei tantos outros, ainda que fosse apenas para
conseguir que ele me libertasse, ou abrisse a guarda e facilitasse o meu plano de fuga.
— Seu pai chega em dois dias — ele avisou, o que me deixou em alerta. Eu precisava agir
logo. — Pelo andar da carruagem você sai daqui casada.
Só se arrastassem o meu cadáver até o altar. Com o plano formado em minha cabeça, fiz o
meu melhor: me atirei nos braços dele. Pego de surpresa, Álvaro me recebeu, me amparou e se
assustou quando nossos corpos ficaram colados.
Confesso que também me surpreendi. Ele era forte. Não de uma forma absurda, mas com
músculos aparentes e um peitoral digno de filmes de super heróis. Próximos, com ele sem camisa
e uma calça mal ajustada em sua cintura, eu sentia sua pele queimar na palma das minhas mãos,
seu abdômen se contrair e seus quadris… Então o maldito cachorro rosnou e eu esqueci do
quanto Álvaro confundia meus pensamentos e dificultava meus planos e me encolhi em seus
braços em busca de um socorro real.
— Quieto, Harry! — ele disse, mas sem bravura, apenas uma ordem.
Foi apenas uma ordem dada a um cachorro decidido a me estraçalhar, contudo, sua voz
reverberou por minha pele e ludibriou minha mente. Ele voltou a me encarar, as íris de
tempestade, os lábios rosados bem desenhados, o queixo quadrado escurecido pela barba de no
máximo dois dias, as mãos em meus braços, firmes, dispostas a me afastar.
Foco, Isotta! Ele é a sua salvação.
— Eu te imploro, Álvaro! Deixe-me ir. Por favor! — Coloquei o máximo de desespero na
voz, assim como de fragilidade.
Eu tinha que ser a garota frágil, a que precisava ser salva, resgatada, conduzida para um
mundo mais seguro. Eu precisava que ele se apaixonasse pela ideia ao ponto de não resistir a ela.
— Eu faço qualquer coisa. — Aproximei nossos corpos, ainda que suas mãos tentassem
me impedir. — Faço o que você quiser — prometi com os olhos fixos nos dele e os lábios
próximos, como uma donzela implorando por um beijo.
Sim, um beijo! Ele precisava me beijar, experimentar a textura da minha pele, me desejar e
me deixar partir. Quem sabe até mesmo, fugir comigo, colocar-se em risco enquanto encontrava
um local onde me deixasse segura. E quando meu pai nos encontrasse… Nicolo nunca
conseguiria colocar as mãos em mim.
Mas não aconteceu como eu previa. Era para acontecer. Um homem como ele, na idade
dele, em qualquer romance, sucumbiria a uma garota jovem, bonita, sedutora, implorando para
ser salva.
Menos ele.
Por quê?
— Fique quieta, menina! — Ele me afastou outra vez, a voz, apesar de um tom mais rouca,
indicava que eu o aborrecia ao invés de tentá-lo. — Eu não posso me intrometer nos seus
problemas com seu pai.
— Você pode me ajudar se quiser — insisti.
— A Camorra é aliada da Ndrangheta. Nosso Don determinou…
— Foda-se! — Perdi o tom.
Por que ele resistia? Por que ele não cedia como tantos fizeram? Por que ele não
enlouquecia por mim como Nicolo? Por que ele não me salvava?
— Meu pai sabe que eu sempre fujo, ele não ficaria aborrecido ou admirado se acontecesse
outra vez.
— Tudo isso por medo do casamento?
E o brilho debochado em seu olhar fez com que eu me sentisse a mais tola e infantil das
garotas. Em poucos segundos experimentei os piores sentimentos: humilhação, rejeição, medo,
desespero… e tudo porque aquele imbecil não passava de um pau mandado, um soldado
manipulado, medroso e… e…
— Foda-se, seu imbecil! — explodi, empurrando-o como se ele tivesse o poder de me
queimar, machucar, desintegrar.
Aborrecida, subi na cama. A mente funcionando a todo vapor, reformulando o plano,
buscando uma solução, tentando encontrar uma saída, pois eu tinha apenas dois dias para viver
ou morrer. E, para dizer a verdade, eu não estava muito afim de morrer, logo, precisava encontrar
uma maneira de impedir que aquele casamento acontecesse.
Enquanto eu pensava, Álvaro, nem um pouco impactado, com seu corpo escandalosamente
atraente e indiferente a minha dor, pegou o aparelho de som e caminhou até a porta.
— Durma um pouco, Jasmine.
— Vá para o inferno, Lúcifer.
Ele riu. Riu de verdade. Aquilo poderia terminar ali. Álvaro sairia do quarto sem causar
impacto a meu favor e eu tentaria a sorte com qualquer outro homem presente naquele
apartamento, entretanto, a vontade de confrontá-lo era mais forte e eu precisava fazer com que
ele também sentisse.
— Pode ir — eu disse sem demonstrar a raiva que sentia. — Quantos homens você
mantém mesmo nesta cobertura? Um deles aceitará a proposta. E eu transarei com ele aqui, nesta
cama. Fácil e simples. Eu não caso, você perde a sua pose de homem que cumpre as regras e o
mundo fica mais feliz.
Por um segundo eu saboreei o enrijecer das suas costas. Álvaro paralisou, o aparelho de
som ainda em seus braços, cada músculo tenso e ressaltado, o que era belo e… perigoso?
Sedutor? Eu não fazia ideia do que era um homem com um corpo como aquele voltado para
mim.
Sorri, sem deixar que ele surpreendesse a minha satisfação em desarmá-lo quando ele
puxou o ar com força e o soltou em seguida. Então Álvaro virou na minha direção, o rosto sério,
as expressões fechadas, mas os olhos felinos, quase como se ele planejasse um ataque. E aquilo
me confundia de uma forma diferente.
— Você é mesmo uma menininha assustada, Isotta — ele disse sem que seu tom parecesse
uma retaliação, e sim o de um homem sábio prestes a ensinar sobre a vida a uma garota inocente.
Eu o odiei por isso.
Não precisava dos conselhos de um imbecil com barba na cara que perdia a fala por ver
uma mulher de lingerie.
— Se eu estivesse assustada não abriria minhas pernas para qualquer um.
E só de pirraça abri as pernas na cama, os braços para trás para exibir meu corpo, ciente da
calcinha minúscula que eu vestia e da depilação profunda que me deixava lisinha para uma peça
como aquela.
Com deleite, acompanhei os olhos dele até meu centro, meu ponto proibido, ou, o que me
libertaria. Confesso que nunca fui ousada a este ponto, nunca me exibi para um homem, nunca
me ofereci daquela forma, no entanto, o desespero fazia com que minhas questões morais
desaparecessem.
Álvaro engoliu com dificuldade, o que me deu um doce sabor de vitória. Caminhou até a
cama, onde depositou o aparelho de som, e subiu no colchão, se arrastando até estar sobre meu
corpo, entre minhas pernas, sem de fato me tocar.
Talvez este tenha sido o ponto que lhe deu a vitória. Apesar das poucas experiências que
me permiti viver, nunca aconteceu daquela forma, eu com tão pouca roupa, o cara sobre mim,
como se aceitasse a minha oferta. Foi a minha vez de engolir com dificuldade ainda que não
desviasse os olhos dos dele.
Álvaro se aproximou dos meus lábios, tão próximo que eu me via tentada a aspirar o ar que
ele exalava sem compreender o motivo daquela necessidade descabida. E então, ele riu.
Um riso baixo, curto e escroto. Um riso que desfazia de mim, da minha oferta, até mesmo
da minha… alguma coisa estranha inominável que me assolava quando ele se mantinha tão
perto. Até disso ele desfazia. Meus olhos ficaram úmidos, de vergonha e de raiva.
— Não seja tola, Isotta — ele rosnou sem agressividade, ainda próximo demais, com os
lábios em uma promessa que ele nunca cumpriria, mas que me fazia ansiar.
Eu o odiava.
— Se você quisesse mesmo que fosse assim, já teria feito. Fugiu tantas vezes. Se envolveu
em tantos escândalos… o que seria ter um ou mais amantes? Acabaria com a reputação do seu
pai? Talvez. Eu duvido que Nicolo desistisse do casamento por causa disso. Nem todos escolhem
as virgens.
Ele voltou a rir.
— Quem te garante que eu não fiz? — rebati em fúria. O rosto em chama pela vergonha. E
ele continuou com aquele sorriso escroto de quem conhecia a verdade.
— Você não fez — afirmou.
— Eu…
— Você não fez porque tem medo — acusou. — Sabe o quanto desapontaria seu pai, o
quanto de briga compraria, a vergonha que levaria a sua família. Sabe que não sendo mais
virgem terá valor apenas para quem não deseja como marido, logo, essa é a sua única moeda de
troca.
Eu nada disse. Não consegui. Porque ele tinha razão. Se perder a virgindade fosse a minha
salvação eu correria o risco. Faria de qualquer forma, com qualquer um. Mas no fundo eu sabia
que Nicolo ficaria comigo, e seria pior, porque ele me puniria todos os dias pela minha audácia.
E meu pai, envergonhado, não se atreveria a encontrar alguém melhor. Não no nosso meio.
Não me restava outra opção que não fosse casar com outra pessoa, mas quem?
Depois de todas as manchetes que saíram ao meu respeito, de todas as confusões que
causei para que Nicolo desistisse de mim, quem em dois dias compraria aquela briga e me
salvaria?
Álvaro ainda sorria quando eu tive a minha resposta. E eu precisava ser rápida, ainda que
ele nem imaginasse no que se metia.
— Dá licença? — eu disse sem demonstrar aborrecimento.
Ele saiu de cima de mim sem esforço, como se estar tão próximo não o afetasse em nada,
no entanto, manteve-se sentado na cama, me observando. Com a mesma indiferença, levantei,
não sem que antes me colocasse no seu ângulo de visão, certa de que ele manteria os olhos em
mim. De costas, retirei o sutiã como se ele não estivesse ali.
— O que está fazendo, garota?
Sorri ainda que ele não pudesse ver meu rosto quando puxei meus fios longos para meu
ombro direito, permitindo que ele visse minha cintura, minha pele e a marquinha de biquíni que
eu adorava.
— Vou tomar um banho — avisei com inocência, mas não dei tempo pra que ele tentasse
me dissuadir.
Como se Álvaro não estivesse atrás de mim, abaixei a calcinha, inclinando meu corpo,
certa de que ele veria o que ninguém jamais ousou olhar, o que nunca imaginei mostrar. Retirei a
peça e a joguei no chão, sem me voltar para observá-lo em momento algum.
— Tá calor, não?
Pirracei, e, mais uma vez, não esperei pela resposta. Desfilei até o banheiro e me tranquei
nele. Só depois disso me permiti sentir vergonha.
Liguei o chuveiro no máximo para conter não apenas meu rosto vermelho, mas meu corpo
em chamas.
8
ÁLVARO

Eu sabia que, por fidelidade, deveria desviar os olhos no instante em que ela retirou o sutiã.
De costas, com aquele corpo esplêndido e a bunda deliciosa, Isotta continuaria sendo apenas
mais uma gostosa que brincava com a minha imaginação. Isso se eu fosse fiel a causa e desviasse
o olhar.
Entretanto, eu era um filho da puta que não resistia a uma mulher bonita. E Isotta era
bonita pra cacete! Nova demais, mimada demais, diabólica de uma forma inacreditável, porque
bastou ela se abaixar daquela forma, com a bunda empinada, com os lábios vaginais que,
diferente de todo o restante da sua pele, eram rosados, carnudos, lisinhos, em um formato que
impelia ao toque, ao deslizar dos dedos, como se implorassem por um beijo. Ela retirou a
calcinha sem pressa, contrastando com a euforia que avolumou-se entre minhas pernas.
Sim, meu pau ficou duro de imediato. Já estava animado antes, quando fingi que me
renderia a sua sedução inocente e me vi preso a minha própria armadilha. Porque Isotta era linda
demais para ser ignorada. Gostosa demais para ter a minha resistência. E pecaminosa demais
para arrombar com todas as forças as portas para o diabo que habitava em mim entrar com força
em nossas vidas.
Eu quis tocá-la. Quis pegar aquela garota indolente e fazê-la experimentar o que acontecia
quando alguém como ela se atrevia a mexer com alguém como eu. Queria colocá-la de quatro e
fodê-la sem parar enquanto minha mão esbofeteava aquela bunda dourada com uma marquinha
mínima e clara do biquíni. Eu queria passar minha língua ali até encontrar suas partes que eu
nem sequer deveria ver, ou desejar.
— Caralho, Álvaro!
Levantei da cama e fui até a porta do banheiro. Minha mão chegou a tocar a maçaneta, mas
eu me impedi. Não podia romper aquela barreira. Não queria. No entanto, sabia que ainda que
não pudesse tê-la, que não quisesse tê-la, que não desejasse comprar aquele problema por uma
mísera foda, eu perdi a batalha. Porque enquanto eu ouvia o chuveiro ligado, o movimento da
água que me fazia imaginar aquela fedelha se ensaboando, eu não consegui.
Não foderia Isotta. Não tomaria seu corpo. Mas não deixaria aquele quarto de pau duro.
Sem pensar duas vezes, alisei meu pau ainda dentro da cueca e me deixei levar. Eu ouvia o
som da água e imaginava como escorria pelo corpo dela, como deixava os bicos dos seios
arrebitados, como deslizava até a vagina lisa, rosada. Como a lambia da forma como desejei
fazer. E, enquanto minha imaginação brincava, eu segurava no batente da porta com uma mão e
manipulava meu pau com a outra. Eu gozaria rápido, por todos os motivos. Ela me deixou louco,
e eu queria um orgasmo que não deixasse sinais.
Isotta não me venceria tão fácil.
ISOTTA
Embaixo do chuveiro não consegui evitar a sensação. Álvaro era lindo, sexy até mesmo
quando me deixava louca de raiva. E aquele corpo? O que havia naquele corpo que me atiçava
daquela forma? Quantos outros eu toquei, quantas mãos me acariciaram sem que despertasse em
mim aquela vontade impossível de controlar?
Não precisei de muito para que minha mente me levasse até o que meu corpo desejava.
Masturbação não era um segredo para mim. Pelo contrário. Eu gostava de brincar com meu
corpo, de fantasiar situações, de saber o quanto gostoso poderia ser o sexo ainda que fosse além
do que eu poderia me proporcionar.
Entretanto, me masturbar tendo aquele rosto fixo em minha mente foi uma novidade. E não
era apenas um rosto, era um conjunto inteiro. Era ele deitado sobre mim naquela cama, quase me
tocando, o hálito que me fazia aspirá-lo como se ele fosse meu fôlego. Os lábios que não me
beijaram, mas que eu desejei de maneira ilícita.
Eu odiava Álvaro. Odiava o pouco caso que ele fazia da minha situação. Odiava ser ele a
minha única saída, e ainda assim, eu queimava enquanto o odiava. Permitia que meus dedos
brincassem com minha carne, deslizassem por minha vagina, que me tocassem de forma lenta e
sensual, sem que nem por um segundo eu deixasse de pensar naqueles olhos, no peitoral, no
abdômen perfeito, nos lábios que poderiam experimentar meu corpo inteiro sem que eu
questionasse.
— Meu Deus, Isotta! — gemi baixinho, tão entregue que me perguntei se alguma vez foi
assim. — Ah!
ÁLVARO
— Meu Deus, Isotta! — ouvi um leve sussurrar, abafado pelo som do chuveiro, mas tão
íntimo e tão forte em mim que fez meu corpo tremer, meu pau vibrar em minha mão.
Puta que pariu! Ela se masturbava? Porra, eu não suportaria! Não suportaria.
E o orgasmo me dominou de forma tão majestosa que mordi a mão para que não fosse
ouvido. O gozo inundou minha cueca, pulsou minha carne, fez minhas pernas tremerem, minha
mente entrou em parafuso, nada se conectava enquanto os espasmos não passavam.
Porque enquanto eu me recuperava, me alimentava com os gemidos dela, até que Isotta
gozou, de uma maneira deliciosa, gemendo de forma manhosa, a respiração entrecortada.
Eu fiquei ali, na porta do banheiro, melado com meu gozo, aguando pelo dela. Até que o
som da água caindo cessou e eu me vi perdido. Eu deveria ir embora. Fingir que aquilo não
aconteceu, mas não consegui. Então quando o barulho do box abrindo chegou aos meus ouvidos,
caminhei até a cama, capturei o cobertor jogando-o no canto e sentei, após ajustar a calça. Não
sairia dali sem ver o rosto dela após ter se masturbado por mim.
ISOTTA
Eu me encarei no espelho. O cabelo molhado não escondia a face rosada e ainda quente.
Eu gozei pensando nele. No babaca do Álvaro. E foi… eu mentiria com toda certeza. Diria que
foi uma porcaria, o mesmo de sempre e que o mérito era dos meus dedos, não daquele rosto que
não abandonava minha tela mental.
Entretanto, a verdade era que foi delicioso. Talvez não por ser ele. Álvaro com toda certeza
era bruto, insensível, do tipo que pensava em si primeiro. Provavelmente foi pela situação. Pela
tensão. Por ele ser finalmente alguém diferente do que eu estava acostumada.
Ou pela voz. Álvaro tinha uma voz que reverberava em meu corpo, o sotaque português
que bailava quando deixava seus lábios, o rosto simétrico, perfeito, lindo… não, não iria por este
caminho. Aconteceu porque eu era uma mulher e mulheres tinham necessidades, apesar da
sociedade insistir em julgá-las por isso.
Que queimassem os sutiãs. Eu tinha direito de me masturbar pensando em quem eu
quisesse.
E foi com este pensamento que abri a porta e deixei o banheiro. Nua. Sem a preocupação
que normalmente teria, pois estava certa de que estaria sozinha àquela altura do campeonato.
Mas me surpreendi com Álvaro na minha cama, os olhos fixos em mim e meu corpo voltou a
queimar.
ÁLVARO
Fiz uma merda.
Nada tirava isso da minha cabeça. Eu não podia ter deixado aquela merda chegar àquele
ponto. Por isso estava decidido a eu mesmo colocar Isotta em um avião e levá-la de volta ao pai
tão logo conseguisse falar com Jean.
Estava com este pensamento fixo quando ela abriu a porta do banheiro e, como se o
inferno estivesse ansioso para me sugar, saiu nua. Completamente nua. E eu me perdi naquela
história.
De costas, Isotta era uma obra de arte. De frente… os seios pareciam esculpidos, com a
mesma marquinha mínima e diabólica que ela possuía nas partes mais provocantes do corpo. Os
bicos eram rosados assim como sua vagina, pequenos, rígidos como se implorassem por minha
língua. O tamanho… cabiam em minha boca de forma a me permitir fazer o diabo com aqueles
seios.
A cintura fina fazia um conjunto perfeito com a barriga lisa, o umbigo profundo e quando
eu descia os olhos, encontrava quadris na largura ideal, protegendo uma vagina lisinha como se
ela estivesse sempre preparada para me receber.
Puta que pariu!
— ¿Qué haces aquí? — Ela perguntou como se não houvesse nada demais naquilo. Como
se desfilar nua na minha frente não me custasse toda a minha força mental.
Fedelha descarada!
Isotta foi até a cama, deitou sobre o colchão, o corpo de bruços, a bunda empinada como se
ela estivesse em uma de suas espreguiçadeiras em Ibiza. Puxou um travesseiro, acomodou os
braços e me encarou com um sorriso de quem sabia o que fazia comigo.
Eu a odiei por isso. E ainda assim, quis fodê-la ali mesmo.
— Eu coordeno os melhores puteiros do país, menina. Mulher gostosa e nua para mim é
como uma vitrine em um shopping, normal e entediante. A diferença é que sem roupa dá menos
trabalho.
— Imagino que seja assim para alguém da sua idade.
— Eu tenho trinta e quatro anos, sua pirralha.
Fui infantil, eu sabia, mas ela me tirava do sério.
— Tá no limite da capacidade. Melhor aproveitar a chance.
Como se já não estivesse complicado demais até ali, ela se virou de frente, elevou os
braços acima da cabeça e me deu um olhar provocante.
— Fácil como na vitrine — pirraçou. Eu engoli em seco, esforçando-me ao máximo para
não encarar os seios arrebitados que me faziam aguar. — Não tem coragem?
— Você não tem vergonha?
Ela não se intimidou com a repulsa que tentei colocar em minha voz. Pelo contrário, Isotta
sorriu. A desgraçada sorriu porque sabia que mexia comigo.
— Você não respeita os esforços do seu pai? Não tem o mínimo de consideração pelo que
fazemos, pela importância e por tudo o que arriscamos para que você continue gastando como
uma idiota e se bronzeando nas melhores praias do mundo?
— Hum! Então você notou a minha marquinha de biquíni — ela continuou, nada abalada.
E sim, eu notei a porra da marquinha que implorava por minha língua.
— Você é uma idiota mimada.
— E você um babaca arrogante.
Foi demais para mim. Louco, enfurecido, desorientado e outra vez com tesão, segurei
Isotta na cama, rolei sobre o corpo dela, o que me obrigou a lutar contra mim mesmo para não
fazer nenhuma bobagem. Prendi seus braços. Ela sorriu vitoriosa. Então, ciente de que aquela era
a única maneira de contê-la e me manter longe daquela merda toda, algemei seus pulsos na cama.
Ela não acreditou quando o fiz. Olhou para mim magoada, decepcionada.
E eu juro que havia uma parte imensa em mim que protestou com toda a sua força quando
me levantei da cama.
— Você… seu puto!
Sem dizer nada, cobri seu corpo exposto, poupando meus olhos da tentação.
— Durma, Isotta.
Ela se debateu, mas logo parou.
— Eu odeio você — disse com toda a sua mágoa.
— Melhor assim.
Peguei o som e deixei o quarto.
Eu ri quando saí, mas fiquei sério de imediato ao verificar os rapazes ainda lá, na porta,
animados.
— Eu vou matar quem ousar entrar neste quarto — avisei quando entreguei o som a um
deles. — E agora me deixei dormir.
9
ÁLVARO

A pior parte de todas era não conseguir encontrar paz depois de deixá-la algemada na
cama. Harry não me seguiu quando saí do quarto e até agradeci por isso. Meu cachorro, de uma
raça dócil e brincalhona, apesar de adestrado para atacar sob o meu comando, jamais a
machucaria. Eu duvidava até mesmo que ele saísse da posição que ordenei, ainda assim, cada
segundo se arrastava na minha mente como se Isotta nunca conseguisse estar segura sem a minha
vigilância.
Embaixo do chuveiro, lavando da minha pele o cheiro dela misturado ao do meu gozo, eu
me sentia exausto e, contradizendo tudo o que o meu corpo poderia somatizar, elétrico. Não
dormi nada, mal me alimentei, fumei e bebi mais do que deveria para uma madrugada agitada e
tinha uma reunião agendada que exigiria de mim tempo e atenção. E eu não queria desperdiçar
nem um, nem outro com alguma situação diferente da que se mantinha presa no meu quarto de
hóspedes.
Isotta De Rosa era um inferno. Uma garota ardilosa, com uma percepção de ambiente
comum aos melhores soldados do meu meio, nunca as mulheres. Ela reconhecia as fraquezas e
sabia como trabalhá-las para conseguir seus intentos. Ela jogava, e sabia jogar. Eu podia sorrir e
me orgulhar da garota, mas minha mente não permitia enquanto tudo em mim focava nos pulsos
dela algemados na cama.
— Ela precisa ficar algemada — falei para mim mesmo, como se precisasse dizer as
palavras em voz alta para me convencer. — Porra, a garota é escorregadia. Se eu não a impedir,
se não limitá-la, fracassarei nessa merda de missão que Jean me arrumou.
Desliguei o chuveiro, entrei no closet e observei as diversas camisas sociais arrumadas de
forma impecável. Vesti a cueca e pensei na parte daquele conjunto de móveis projetados que
escondia meus acessórios. Não os que eu usava para trabalhar, mas os para me divertir. Com
certeza as algemas que eu tinha ali não feririam a pele de Isotta como a que eu utilizei poderia
fazer caso ela tentasse se libertar.
— Ela vai tentar — disse outra vez em voz alta, a preocupação como uma agulha se
enfiando pela minha pele. — Porra!
Peguei a camisa e a vesti sem pensar direito na imagem. O básico serviria e eu não tinha
tempo. A calça e o paletó seguiriam o mesmo padrão. Deixei a gravata sobre a mesa de centro e
busquei na parte onde meus acessórios ficavam, um par de algemas confortáveis. Manteria Isotta
fora de combate e protegida.
Não calcei os sapatos, não penteei o cabelo e nem me importei com perfume. De repente
eu tinha pressa. Deixei o quarto como se não pudesse suportar mais nenhum segundo. Alcancei
as escadas com o par de algemas enfiado no bolso da calça e vi os dois soldados designados para
proteger a porta da minha hóspede, encarando a madeira como se tivessem dúvidas sobre entrar
ou não.
E não precisei de respostas. Bastou eu me aproximar para ouvir o esforço que Isotta fazia
para se libertar. Os puxões dados na cabeceira da cama, os gemidos de dor e frustração, o
barulho das pernas contra o colchão, provavelmente quando tentava impulsionar e adquirir mais
força.
Destranquei a porta e respirei fundo antes de entrar. Eu sabia que daria merda. A garota
estaria machucada. Tinha experiência de sobra para saber como o pulso dela ficaria em tão pouco
tempo de esforço.
No geral eu não me importava com esse tipo de coisa quando o assunto era manter preso e
desconfortável alguém de quem eu precisava extrair algo, ou apenas punir. Aquela era a minha
vida e havia coisas piores das quais eu fazia que tornavam machucados no pulso uma brincadeira
de criança. Mas não com mulheres. E em especial, não com Isotta.
Fechei a porta atrás de mim certo de que ninguém se atreveria a entrar sem a minha
permissão. Ela estava parcialmente nua, o corpo contorcido enquanto tentava fazer a mão passar
pela argola da algema. Se eu demorasse um pouco mais, ela seria capaz de quebrar o próprio
dedo para se livrar daquilo. O que se tornou um tormento para mim.
Isotta não queria de fato que conseguíssemos entregá-la ao pai e, por tabela, ao noivo. E
aquele tipo de pânico não era nada relacionado a mimo ou infantilidade. Aquele era o tipo de
desespero que colocava aquela situação em outro patamar.
E quando Isotta me encarou, os olhos molhados pelas lágrimas derramadas, o peito arfante
pelo esforço, não existia nada da menina ousada que me desafiaria ou me tentaria. Ela chorou de
verdade, derrotada, desesperada.
Harry choramingou sem sair do lugar. Passei por ele com pressa, sentei na cama e segurei
os braços dela enquanto retirava as algemas.
— Merda, Isotta! — resmunguei com culpa. Que porra eu fiz? — Fique quieta.
Ela gemeu quando livrei suas mãos, os pulsos com leves cortes vermelhos. A menina
puxou o cobertor e se encolheu como se precisasse de proteção. Virou de costas para mim e
manteve o choro.
Certo de que ela não tentaria nada, levantei em busca de um kit de primeiros socorros que
eu tinha certeza existir em cada quarto daquela cobertura. Lembrava que a arquiteta insistiu
quando reformei. Peguei a caixa no banheiro e voltei para cuidar dos machucados dela. Isotta se
mantinha quieta, na mesma posição, porém com o choro menos dramático.
— Preciso cuidar dos seus machucados — avisei ao puxar o lençol com cuidado.
Ela não resistiu, mas apesar de permitir que eu segurasse suas mãos e limpasse as feridas,
não voltou a me olhar.
Em silêncio fiz o que podia. Não eram cortes profundos, porém não poderia considerar
meros arranhões. E quanto mais eu chegava a esta conclusão, mais fodido me sentia por saber
que eu causei aquela dor nela, eu maculei a pele lisa e impecável daquela garota.
Quando terminei, ela recolheu os braços e voltou a se encolher. Eu sabia que não podia
ficar lá, que tinha uma reunião importante, que minha cabeça não tinha nem sequer energia para
gerar o comportamento esperado de mim devido a falta de sono, ainda assim, fiquei.
Sentado na cama eu a observava. Isotta nada dizia, mas as lágrimas ainda rolavam. Ela
continuava sem me olhar, sem tentar me ludibriar ou me seduzir. Ela só… sofria.
Decidido, tirei o paletó e desisti da reunião. Mandei uma mensagem rápida para Aaron e
pedi para que ele avisasse que eu não poderia participar. Em seguida, deixei o celular sobre o
paletó e dediquei toda a minha atenção a ela.
— Vamos lá — eu disse, derrotado. — Conte-me a sua história.
Só neste instante Isotta me encarou, a princípio com receio, incerta sobre aquela conversa.
Ela parecia ainda mais nova quando demonstrava tanta fragilidade, e eu nunca senti tanta
vontade de proteger alguém como senti naquele momento.
E eu nem era a porra de um cara sensível.
— Você não quer casar — eu comecei a falar. — Ou você não quer casar com seu primo
especificamente?
Ela piscou algumas vezes, pigarreou e fechou os olhos. Por um instante acreditei que ela
não falaria. Que me ignoraria.
— Não quero casar com o Nicolo — disse por fim, baixo, a voz rouca e quase inaudível.
— E existe um motivo para isso?
— Que diferença faz? Você vai me entregar para ele de qualquer jeito — acusou.
— Isso vai depender das informações que me fornecer. E da veracidade delas.
Isotta abriu os olhos, me encarou por um tempo. O violeta das suas íris era algo
perturbador de tão lindo.
— Ele é um psicopata. Sádico.
Respirei fundo. Sabia que precisaria averiguar aquela informação, no entanto, também
sabia que qualquer mulher se assustaria se visse um de nós em ação.
— Não é difícil nos classificar assim quando levamos em consideração a nossa atividade,
Isotta. Somos frios, cruéis, sádicos até, mas com nossos inimigos. É o que o nosso negócio exige.
Mas nunca com as mulheres. Apesar dos casos isolados… — Contive um nó na garganta ao
relembrar Joel e Giullia, um dos maiores e piores casos isolados que eu já conheci.
Porém, não podia ser cínico. A Ndrangheta não tinha em suas regras de conduta o respeito
e cuidado com as mulheres até Jean matar Joel e assumir seu lugar.
Quantos homens eu puni por não acatar a nossa nova regra? Quantos eu matei? Contudo, a
Camorra não tinha aquele histórico. Com toda certeza Nicolo saberia tratar Isotta. E a ideia me
incomodou de uma forma que não deveria.
— Você pensa que ele fará o mesmo com você, mas não é verdade. Seu pai nunca
permitiria. E enquanto seu pai estiver na ativa, Nicolo lhe deve obediência.
— Você não entende — ela disse cansada.
— Eu não entenderia se você fosse qualquer garota. Mas você é Isotta De Rosa, filha do
Capo da Camorra. Nicolo não teria coragem de te machucar.
Ela deixou escapar um soluço de choro sentido. Aquilo, de alguma forma, rasgou meu
coração.
— Eu não consigo — disse em lágrimas. — Não consigo gostar dele, confiar, aceitar que
assim que meu pai me entregar a ele, serei a sua mercadoria, serei obrigada a… — ela não
terminou, mas eu sabia exatamente o que diria. — Eu tenho nojo do Nicolo. Prefiro a morte.
Respirei fundo. Não deveria estar ali servindo de psicólogo, terapeuta…sei lá… para a
garota, em especial quando usava meus argumentos para convencê-la a se entregar a outro
homem. Entretanto, assistir ao seu desespero me impedia de ignorar a situação.
— Mas você sabe que em algum momento precisará casar — comentei, sem acreditar que
dizia o que sempre afirmei ser contra.
Ninguém dentro da máfia deveria encarar o casamento como um negócio. Ninguém
deveria casar apenas para que alianças existissem, se fortalecessem e perdurassem.
Ainda assim, aquele era o destino de todos. O problema era que por mais que eu quisesse
convencê-la disso, os últimos casamentos em que estive, serviram para me provar que eu não
estava enganado. Giullia fugiu de Joel, Jean casou com a filha da empregada. Então acreditar que
o mundo seguia seu curso na mais perfeita normalidade era o mesmo que aceitar a existência de
duendes.
Ela manteve os olhos fechados e as lágrimas escorrendo pela lateral do rosto.
— Nicolo foi criado comigo. Eu o tinha como um irmão. Eu o amava como um irmão. Até
que ele… ele é cruel. Ele cresceu cruel. Fez coisas horríveis com meu irmão até convencer meu
pai a afastá-lo. Ele quer ser o seu sucessor.
— Por isso quer casar com você? — ela negou e suspirou.
— Ele criou uma obsessão por mim. Ainda adolescente determinou que se casaria comigo.
Batia nos garotos da escola que se atreviam a falar comigo. Fazia com que meu pai me limitasse,
inventava histórias para conquistar a sua confiança. Ele fez com que todas as propostas fossem
retiradas porque não suportava a ideia de que eu me casasse com outro. Ele me machuca quando
eu o afasto, e faz pior com quem eu deixo se aproximar.
— Ele te machuca? — Aquela era a informação que eu precisava.
— Quando eu fujo e ele me encontra, segura forte em meu braço, me sacode, diz que
prefere me ver morta. Uma vez ele me beijou à força. Estava bêbado e disse que me ensinaria a
amá-lo. Mas eu não o amo, Álvaro. Eu não consigo nem imaginá-lo me tocando. Eu não quero
que ele me toque.
Mais choro e meu coração afundou no peito. Eu precisava ajudar Isotta de alguma forma,
mas como?
— E agora, meu pai aceitou. Ele quer que eu case com Nicolo porque se convenceu de que
eu serei a ruína da família, a vergonha. Um filho gay e uma filha puta, é isso o que Nicolo diz
para me desvalorizar.
— Isso é uma droga.
— Não, você nem imagina como é. Não faz ideia. Se soubesse não me entregaria a eles.
— Isotta, eu não posso interferir nas decisões do seu pai. Mas posso tentar ajudar.
— Casando comigo?
O brilho de esperança nos olhos dela fez meu corpo reagir de uma maneira estranha. Eu me
afastei, tonto, incapaz de me concentrar.
— Não. Você é uma menina e eu não quero casar.
— Nunca?
— Nunca — declarei sem convicção.
— Eu não sou uma menina. Em alguns dias farei vinte anos.
— Continua sendo uma menina para mim.
— Aposto que você se diverte com garotas mais novas do que eu.
— Não queira perder seu dinheiro — desafiei.
Isotta me encarou por um tempo, depois voltou para a sua postura derrotada.
— A Ndrangheta e a Camorra são aliadas — eu disse com pressa. — Seu pai é Capo, como
eu. Mas Jean é Don e a palavra dele vale mais do que a de muitos outros.
— Seu Don não tem o poder de impedir que meu pai me case com Nicolo.
— Não tem, mas se conversarmos da forma correta, podemos encontrar uma solução. Jean
não suporta a ideia de casamentos forçados. Ele readequou toda a nossa maneira de atuar. A
Ndrangheta respeita e cuida das mulheres. Esse é o tipo de luta que ele compra.
— Ele não vai conseguir. Nicolo nunca me deixará em paz — ela sussurrou, sonolenta.
— Eu só posso pedir que confie em mim e não cause mais problemas. Agora durma.
— Não posso — falou, quase adormecida, o que me fez sorrir.
— Por quê?
— Seu cachorro. Ele não para de olhar para mim.
— Isotta De Rosa, você tem medo de um cachorro que é procurado por pais por serem
ótimas companhias para crianças?
Ela abriu a boca para bocejar e se aconchegou melhor no travesseiro.
— Ele me atacaria se você ordenasse.
— Mas eu não ordenei.
Ela ficou quieta e em pouco tempo ouvi seu ressonar. Isotta adormeceu e nem isso me fez
levantar daquela cama e seguir com a minha programação. Eu precisava ajudar aquela garota e
impedir que aquele casamento acontecesse.
10
ÁLVARO

Eu adormeci.
Não sei que merda aconteceu para que minha mente compreendesse que seria uma atitude
normal deitar ao lado de Isotta e dormir como se não houvesse perigo real naquilo. E o perigo era
de todas as formas, jeitos e tamanhos. Porém, esta informação desapareceu da minha
racionalidade e eu adormeci, na mesma cama que ela.
E talvez essa fosse a chance de Isotta, se não levássemos em consideração os dois soldados
que estavam do lado de fora com ordens específicas, os demais que se mantinham pela casa e até
mesmo pelo prédio, sem contar com Harry, que permaneceu no quarto quando cometi a falha de
pegar no sono.
No entanto, a garota não pensou em tudo o que chegou até a minha mente com uma
velocidade inimaginável, quando decidiu que poderia, ao despertar, escapar de mim.
Como eu disse: Isotta De Rosa era escorregadia. Ela agia como uma ladra profissional, sem
grandes estardalhaços, com movimentos leves e bem pensados. Mantive os olhos fechados e a
expressão serena enquanto ela se mexia. Com toda certeza, um homem comum, perderia a garota
naquele instante e talvez algo mais valioso do que o seu corpo delicioso e nu.
Contudo, Isotta lidava comigo, treinado desde os sete anos para nunca, nem mesmo
durante o sono, perder a atenção ao que acontecia ao meu redor. Ela levantou da cama quase sem
deixar que o colchão delatasse a falta do seu peso. Harry choramingou e eu ouvi um leve “shii”.
Tive vontade de rir, mas me contive.
Atento, ouvi quando ela, com passos tão leves que mereciam meus aplausos, deslizou ao
redor da cama e, pelo barulho quase inexistente, vestiu a roupa, o vestido curto e cheio de brilho
que a deduraria ainda que eu não estivesse na minha atenção máxima.
— Fique quieto! — sussurrou, com toda certeza para meu cachorro que choramingou outra
vez.
Eu queria abrir os olhos e ver como ela lidaria com aquela situação. Passar por Harry, sem
que eu tivesse lhe dado o comando para atacar, era a coisa mais fácil do mundo, bastava brincar
com o bobo do cachorro, entretanto, Isotta não sabia disso e sustentava o medo inacreditável,
ainda que a raça, a estrutura do animal, tudo nele, indicasse que havia mais carinho do que
ataque para oferecer. Mas mantive-me impassível, em especial quando a ouvi se aproximar do
meu lado da cama.
Isotta se aproximou do meu rosto e eu tinha esta certeza porque seu cheiro ficou mais forte,
sua respiração esquentou minha face e minha boca… minha boca demonstrou a máxima vontade
de puxar aquele rosto e acabar com aquela farsa. Ainda assim, eu nada fiz. Então ela se afastou e
eu ouvi o máximo de ousadia e coragem que aquela garota conseguiria ter dentro daquele quarto
para garantir a sua fuga.
O barulho das algemas retiradas da mesinha ao meu lado deixava claro o que ela pretendia
fazer, em especial, por eu estar com um dos braços na posição ideal para ela.
Quieto, deixei Isotta fechar a primeira argola na cabeceira da cama. Enquanto ela fazia
isso, abri os olhos e a encarei sem que ela percebesse. Analisei seu rosto impecável, a boca
carnuda, os lábios com um rosado diferente, os cílios longos, os olhos atentos ao que fazia.
Permiti que assim fosse até que ela precisasse prender a outra argola pelo meu pulso.
Só neste instante nossos olhares se encontraram. O átimo que se passou entre o
reconhecimento e a reação não lhe permitiu nada. Sem medo, raiva ou qualquer sentimento que
não fosse graça, eu disse um baixo e discreto:
— Pega, Harry!
— Não! — Isotta pulou para cama, enquanto meu cachorro avançou com tudo para cima
dela com um latido que desfazia toda e qualquer ideia associada a raça.
Acostumado àquilo, levantei o tronco e o segurei antes que o animal conseguisse alcançar
o seu objetivo. Harry rosnou para Isotta, completamente diferente do cachorro pacifico que
deveria ser.
— Para! Senta! — ordenei.
Harry saiu da cama e ficou em posição de comando, pronto para atacar se eu precisasse.
Olhei para Isotta sem me preocupar em parecer alguém pior do que eu já era. Ela, assustada,
mantinha-se encolhida na cama, quase atravessando a cabeceira.
— Eu não curto ter as mãos limitadas — falei como se nada tivesse acontecido. — Prefiro
elas livres e as da garota presas. Acho que fica mais… interessante.
— Você é louco? — ela não se atreveu a gritar ou fazer qualquer movimento brusco. — Ia
deixar seu cachorro me machucar?
— E você ia me prender na cama? Ia fugir?
— Não! Eu…
Isotta corou de uma forma espetacular para aquela pele bronzeada e tentadora e eu quis
colocar minha mão em sua bochecha para verificar a temperatura.
— Não? — Eu me aproximei, por vontade, mas também porque sabia que ela não teria
coragem de se mover.
— Na… não… eu…
— Se você me algemasse, Harry não tiraria os dentes do seu corpo sem um pedaço —
expliquei sem colocar qualquer aborrecimento na voz, como se conversasse com uma criança. A
diferença era que ela não era uma criança e quanto mais eu me aproximava, mais tentadora Isotta
se tornava. — E se ainda assim você conseguisse chegar até a porta, meus homens atirariam nos
seus dois joelhos.
— Você não… — ela expressou sua indignação. — Você não teria coragem.
— Não?
Eu me afastei para que ela tivesse a liberdade de fazer o que pretendia antes de eu agir.
— Então, vá em frente.
— Meu pai te mataria se você deixasse que seus homens atirassem em mim.
— Nicolo me agradeceria. Assim você não fugiria mais.
— Eu te odeio — ela disse cheia de mágoa.
— Duvido, garota. Eu sou a sua única e última esperança.
Levantei da cama, alcancei meu paletó amarrotado e não me atrevi a vesti-lo, porém,
manter minha atenção na peça, me obrigava a não olhar com desejo para uma garota na qual eu
não deveria encostar um dedo.
— Eu disse que conversaria com Jean. E disse para confiar em mim.
— Bom… eu não confio em você.
Aquele tom de desafio que começava a me divertir chegou ao meu corpo repercutindo de
uma forma que eu não poderia aceitar.
— Que azar o seu, não? Agora já chega dessa merda. Levanta. Nós precisamos comer
alguma coisa.
— Você não tem o que fazer, não?
Isotta levantou da cama, ainda com receio por causa de Harry. Chegava a ser estranho
encontrá-la com roupas depois de tudo o que presenciei.
— É estranho um Capo da sua importância passar o dia como minha babá.
— Nem me fale. Já que está pronta…
— Não estou pronta — ela resmungou, passando os dedos pelos fios longos e brilhantes.
— Preciso das minhas coisas se ficarei como sua prisioneira mais uma noite. Joguei minha
calcinha no lixo.
A informação, desnecessária, contudo, que grudou em minha mente como a porra de um
chiclete, fez com que tudo em mim se voltasse para a ideia de que ela estaria sem nada por baixo
do vestido que quase não protegia seu corpo.
— Mandarei meus homens buscarem suas coisas. Não se preocupe com a conta. É cortesia
da casa.
— Então foi assim que me acharam?
Ela juntou todo o volume de fios escuros e os enrolou em um nó frouxo na altura da
cabeça.
A cretina ficava bonita até mesmo despojada.
— Não, Isotta — eu disse colocando o máximo de enfadonho na voz. — Eu te achei
porque você não teve o cuidado de se esconder. O que para mim ficou claro que não pretendia
fugir.
Ela se encolheu, o olhar baixo, contudo, por vezes direcionado a mim, como se estivesse
envergonhada.
— Eu não pretendia fugir do meu pai — revelou. — Eu o amo. E amo Miguel, meu irmão.
Não saberia viver sem eles.
— Mais um motivo para casar com o Nicolo. Não terá que deixar a sua casa — pirracei.
— Prefiro a morte.
Eu ri, mas não havia uma alegria absoluta em pirraçá-la com aquele assunto. Isotta não se
casaria com Nicolo, mas se Juan De Rosa estava determinado a manter o filho afastado dos
negócios da família e faria de Nicolo o seu sucessor, não existia qualquer possibilidade de Isotta
se manter entre eles.
Saquei o celular e liguei para Aaron, mantendo os olhos fixos na garota escorregadia que
poderia agir a qualquer momento para tentar uma nova fuga.
— Álvaro — ele disse de pronto.
— Como estão as coisas?
— Cancelei a reunião como solicitou. Amanda logo entrará em contato para lhe passar
uma nova data, assim que o conselho definir uma.
Aaron se empenhava em falar de Amanda, minha secretária para os negócios legais da
família, como se ele não levasse uma boa parte do seu dia com conversas para conquistar a
garota. A menção me fez sorrir.
— Peça para que Amanda trate disso diretamente com você, pelo menos enquanto eu
estiver de babá — ele riu.
— Amanhã isso acaba.
— Pois é.
Entretanto, a ideia não me trouxe alívio e sim incômodo.
— Preciso que faça uma coisa.
— Pode falar.
— Mande alguém pegar as coisas da garota no hotel e trazer pra cá. Tudo o que encontrar
no local. E feche a conta como cortesia do Jean — meu subchefe riu.
— Algo mais?
— Não. Vou passar o dia todo aqui — avisei, mantendo os olhos nos dela, como se
precisasse que ela tivesse aquela informação antes de tentar outra maluquice.
— Tudo bem.
— Diz para ele não esquecer da gata — Isotta disse com pressa.
— Um momento. — Afastei o celular da orelha, incrédulo com o que ela dizia. — Que
gata?
— Lilica.
— Lilica? Você fugiu da Espanha e se preocupou em trazer uma gata?
— Eu não a trouxe — ela disse como se estivéssemos em uma conversa corriqueira. — Eu
a adotei quando cheguei ao Brasil — informou com naturalidade.
— Tá de brincadeira?
— Não. Eu saí do aeroporto e ela se enroscou em minha perna, então eu a adotei e batizei
como Lilica.
— Você pegou a porra de uma gata de rua e a levou para o hotel?
— Ela é linda! Nem parece que é sem raça.
— Não existe animal sem raça — resmunguei, completamente esquecido de Aaron na
linha. — Ela pode ter pulgas, uma série de doenças ou… sei lá! Tem que ser muito louca mesmo
para pegar o primeiro animal que se enrosca em sua perna e adotar assim que chega em um país
que nem fixará moradia.
— Eu a levei ao veterinário, seu ogro! Ela está ótima, limpa, alimentada, vacinada… quer
dizer… deveria estar, mas você me sequestrou.
— Ela deve ter destruído o quarto do hotel. Porra! — Levei o celular ao ouvido para
encerrar aquela confusão. — Leve a gata para alguma instituição de proteção aos animais.
— Não! — Isotta bradou, avançando sobre mim na tentativa de pegar meu celular.
Pirralha insolente!
— É minha gata! Ela fica comigo. Ou então me leve de volta ao hotel.
— Eu não quero uma gata de rua na minha casa. Ela pode… adoecer o Harry!
— Se a minha gata não pode ficar por causa dessa fera que você trata como se fosse um
doce, eu também não posso ficar — ela cruzou os braços em desafio.
— Eu não lhe dei essa opção — rosnei.
— E eu vou tornar suas próximas horas um inferno se minha gata não chegar junto com
minhas coisas.
— Quem disse que eu me importo, fedelha?
— Eu contarei ao mundo que você abandonou a minha gata.
— Uma gata de rua.
— Melhor do que um cachorro comprado que vale mais do que o que você paga aos seus
soldados — acusou.
— Eu não… — Puxei o ar com força. Não continuaria naquela conversa. Não daquele
jeito. — Aaron, falo com você depois.
— Mas, Álvaro…
Desliguei antes que ele me convencesse a permitir que a gata ficasse.
— Mantenha ela longe do Harry — avisei.
— Não se preocupe. Seu Beagle premiado não terá a chance de colocar as garras na minha
pequena Lilica.
— Ótimo!
— Ótimo!
Nós nos encaramos como se não quiséssemos colocar um fim naquela guerra, até que me
dei conta de que Isotta estava me transformando em um adolescente infantil tal qual ela.
— Desça para comer.
Avisei antes de me retirar do quarto e deixá-la para trás. Ainda aborrecido pela história da
gata.
11
ISOTTA

Álvaro tinha boa vontade, isso era inegável. Apesar de manter aquele animal feroz
próximo de mim o tempo todo, demonstrou preocupação com a minha situação e prometeu que o
próprio Jean Kuhn intercederia por mim, o que me dava alguma vantagem. Contudo, eu só podia
contar com o apoio dos poderosos da Ndrangheta enquanto estivesse em seu território.
De volta a Espanha, duvidava que Nicolo desistisse de me ter e tinha plena certeza de que
ele faria algo para queimar ainda mais a minha imagem com o meu pai, como fazia com Miguel,
mantendo-o longe do que deveria ser seu compromisso quando chegasse a hora certa.
Por isso eu continuava com apenas duas opções: casar com outro ou seguir fugindo. E
casar com outro, diante da atual situação, era uma opção bastante restrita. Álvaro seria um
excelente pretendente, entretanto, ele não queria se casar, afirmava que eu era uma fedelha e,
pelo visto, detestava gatos. Ninguém abaixo dele seria aceito por meu pai, salvo se algo
acontecesse, como eu perder a virgindade ou jurasse estar apaixonada por outro, com o
acréscimo de ser correspondida.
Soaria melhor se eu tivesse tudo no mesmo pacote: perder a virgindade, ter a promessa de
um homem apaixonado e com uma boa colocação nos nossos negócios.
Sim, esse seria o plano perfeito se Álvaro não fosse um idiota. A não ser que… não, ele
nunca toparia algo deste tipo. Mas… será? Não, com certeza não. Ainda assim… Tentar não
tiraria nenhum pedaço.
Com o plano traçado e com todas as justificativas possíveis para agir como eu agi, retirei o
vestido e cobri meu corpo nu com o fino lençol que fazia parte do lindo conjunto de cama. Ele
serviria para o meu intento. Arrumei como pude, enrosquei na cintura para que minhas pernas
ficassem à mostra, prendi embaixo dos braços após a certeza de que daquela forma os bicos dos
meus seios não ficariam tão escondidos.
Pronta, testei a fechadura e encontrei a porta destrancada. Respirei aliviada por aquele voto
de confiança. Os dois homens que guardavam a porta do meu quarto, me olharam sem acreditar
em minha ousadia, no entanto, desviaram o olhar tão logo levei a mão à cintura e os encarei de
volta.
— Onde fica a sala de jantar?
— Bom… — um deles disse, esforçando-se ao máximo para não me olhar diretamente. —
A senhorita está pronta?
— Não vejo porque não — afirmei com ousadia, séria e no meu melhor estilo “não me
conteste”.
— Neste caso… por aqui.
Segui o soldado que seguia na frente, totalmente consciente de que o que me seguia atrás
tinha uma visão privilegiada da minha bunda naquele tecido fino e claro demais para aquele
apartamento repleto de luz natural.
Descemos as escadas, seguimos por um corredor, passamos por duas salas e finalmente
chegamos à ampla sala de jantar com uma imensa mesa repleta de toda sorte de comida. Eu não
fazia ideia de que horas eram, mas acreditava passar do meio dia, ainda assim, havia pão, frutas,
tortas salgadas e um tipo de carne afogada em um molho com azeitonas e pimentões.
Aquilo era comida brasileira?
— Que… — Álvaro disse ao me ver. Ele fechou os olhos, respirou fundo e, derrotado, fez
um gesto para que os soldados deixassem o local. — Que porra é essa, Isotta?
— Não tenho roupas, esqueceu?
— Eu deixei você vestida — ele rosnou.
Ignorando a sua fúria, peguei uma torrada macia e rasguei um pedaço com a ponta dos
dedos.
— O vestido estava sujo, suado. Assim estou melhor.
— Avisasse que eu pediria para te servirem no quarto. Com toda certeza você percebeu
que temos roupões no banheiro.
— Sério?
Fingi inocência e lambi os dedos com o molho da carne que coloquei sobre o pão. Uma
delícia.
— Não percebi. Você poderia me emprestar umas camisas suas enquanto seus homens não
trazem minhas coisas.
Álvaro me encarou sério do outro lado da mesa. Seus olhos seguiram meus dedos quando
estes foram para os meus lábios, em seguida desceram até meus seios, os bicos rígidos devido a
temperatura da sala. Com toda certeza ele esfriou o local para amenizar o calor do dia.
— Quando terminar de comer, não saia da sala. Eu buscarei algo que possa te manter
composta.
— Só até minhas roupas chegarem — pirracei. — Deus me livre de andar por aí vestida
com roupas de velho.
— Eu tenho trinta e quatro anos, fedelha. E com toda certeza, você fica melhor sem roupas
do que com qualquer outra, minha ou sua.
A resposta dele me travou por alguns segundos. Álvaro era o único homem que me viu
nua, isso se eu não contasse Miguel, que nunca se importou em entrar no meu quarto, ou
conversar comigo durante o meu banho, mas ele era meu irmão e não contava.
Ele sorriu de maneira vitoriosa diante do meu silêncio e levou a xícara à boca, relaxado,
vestido com roupas confortáveis e… lindo de uma maneira que deveria ser proibido.
Bom… meu plano não era tão ruim assim.
ÁLVARO
Ela sabia provocar. Sabia que me deixava desconfortável diante do seu corpo quase
exposto. Sabia que mexia comigo, que me enlouquecia até mesmo no mínimo detalhe, e ainda
assim, permanecia com aquele sorriso que enfeitiçava, quase enganando na inocência, com os
dedos lambuzados ora de geleia, ora de molho de carne.
Ela os chupava e meu corpo reagia. Para o bem e para o mal. Porque, ao mesmo tempo que
eu desejava fodê-la, ansiava por puni-la por ser tão atrevida.
Isotta era a personificação do pecado. Jovem, fresca, linda de uma maneira que roubava os
adjetivos da minha mente. Tudo o que nunca quis, almejei, me imaginei querendo para mim.
Garotas jovens demais eram sempre um problema. Eu disse isso ao Jean quando ele escolheu
Heidi como sua amante, na mesma idade em que Isotta se encontrava naquele momento. E eu ri
das infantilidades da garota que ele precisou enfrentar, e lamentei quando ela desapareceu,
magoada por amar um homem mais velho, mais experiente e apaixonado por outra.
Heidi teve a segunda chance, mas eu não era tolo por acreditar que haveria uma história
similar para mim, nem queria vivê-la. Mulher na minha cama tinha que ter experiência. Tinha
que ter maturidade. E, definitivamente, não poderia ser tão irritante.
Ainda assim, eu lutava contra a vontade de observar os bicos dos seios, rígidos sob o tecido
fino do lençol que ela escolheu a dedo para me enlouquecer. O esforço era tamanho que eu não
sentia o sabor do alimento que levava à boca, não fazia ideia se mastigava quantidade suficiente,
se a bebida estava gelada, quente ou do meu agrado. Eu só comia como um lembrete de que
olhá-la não era uma opção.
— Você disse que seu Don, Jean, modificou a maneira como a Ndrangheta trata as
mulheres — ela falou como se cada palavra que saísse dos seus lábios não fosse uma súplica
para mim.
— Hum! — resmunguei, evitando levantar os olhos.
— Na Camorra os homens não possuem regras, mas existe um código, que, claro, com
facilidade pode ser quebrado. Como, por exemplo, trair a esposa com uma das muitas mulheres
que aceitam trabalhar para este meio.
— A ideia te assusta?
Cometi um imenso erro ao conferir a sua reação. Isotta mantinha aqueles imensos olhos
excêntricos atentos a mim. Um fascínio.
— Se eu me casar sem amor, não. De forma alguma.
— Então você não tem um problema.
— Mas os homens da Ndrangheta precisam ser fiéis?
— Você não fez a lição de casa? — ridicularizei seu interesse como uma maneira de fazê-
la se calar e me libertar daquele martírio que era observá-la.
Entretanto, Isotta não era do tipo que se rende rápido. Ela abandonou a comida, jogou o
cabelo para o lado, depois o amarrou como um coque frouxo que deixou em evidência seu
pescoço desfrutável e as clavículas profundas. Ela tinha ombros deliciosos.
E eu nunca prestava atenção nos ombros de uma mulher.
Que porra acontecia comigo?
— São fiéis ou não?
— Defina fidelidade, Isotta.
— Acho que não é necessário para um homem da sua idade — ela provocou.
— Como eu te disse: Jean modificou a maneira como… convivemos com as mulheres.
Estupros são proibidos. Violência de qualquer tipo também. As mulheres não são obrigadas,
desta forma, não as escravizamos, e com certeza você sabe que isso acontece em nosso meio.
Ela engoliu com esforço, mantendo os olhos imensos e sedutores em mim.
— Nossas prostitutas trabalham por vontade própria. São bem remuneradas, por isso
selecionamos as melhores. Possuem o melhor de todos os tratamentos que uma profissional do
sexo pode ter.
— Deve ser interessante ser prostituta neste caso.
Foi a minha vez de engolir em seco. Não pelo medo, nem pelo desejo, mas pelo incômodo
que a ideia me causou. Uma prostituta com os atributos de Isotta não precisaria de nenhum outro
artifício. Eu preferia furar meus olhos a ver algo desse tipo acontecer. Ainda assim, eu ri para
provocá-la.
— Você é nova demais para acreditar em bobagens como essa.
— E você é velho o suficiente para recorrer ao serviço de prostitutas.
Por um segundo eu não soube o que responder. Isotta não me ofendia com a ideia de que
eu era velho, porém, me enfurecia com aquela língua rápida e ferina. Então, disposto a encerrar
aquela provocação, comi, deixando-a sem a minha participação.
— Você não me respondeu — ela disse depois de um tempo. — A fidelidade é uma regra?
— Quem trabalha com o que eu trabalho tem a máxima de que se você não consegue ser
fiel a sua esposa, não consegue ser a mais nada. Mas… como você mesma disse, é fácil quebrar
as regras. O antigo Don, meu tio Stefan, não se apegava a este detalhe. — Ou a quase nenhum
em relação às mulheres, mas eu não quis relembrar aquela história. — Já Jean, é apaixonado pela
esposa e eu acredito que Heidi nunca aceitaria ser traída.
— Então não seria um problema para você ter um casamento aberto? — Suas palavras
ditas em um tom rápido deixava claro que ela não se apegou a quase nada do que eu disse.
— De que inferno você está falando?
Desisti de me impedir de entregar aquela ninfa toda a minha atenção.
— Casamento aberto, Álvaro. — Sua voz saiu enfadonha, como se de fato precisasse me
ensinar aquela merda. — Os dois saem com quem quiserem e continuam felizes.
— Eu sei o que é um relacionamento aberto. Não entendo aonde você quer chegar com
essa ideia.
— Seria um problema ou não? — Insistiu.
— Levando-se em conta que eu nem sequer desejo casar, não.
— Ótimo! — ela disse com alegria.
— O que é ótimo!
— A solução perfeita para o meu problema.
A garota abandonou a comida e ergueu as mãos como se fosse óbvio o que tinha em mente.
Intrigado, não consegui deixar de observá-la, de prestar atenção a todos os detalhes do seu rosto,
a maneira como seus lábios se esticavam com animação quando ela sorria, a diferença entre o
superior e o inferior, tão nítida e gostosa que me fazia ter vontade de beijá-la, a maneira como
seus olhos se abriam ainda mais.
Ela era linda demais.
— O acordo perfeito!
— Eu não dormi direito, Isotta, então não estou conseguindo acompanhar o seu raciocínio.
Ela revirou os olhos, no entanto, continuou sorrindo, o que me fascinou um pouco mais.
—¿No lo ves? Você não quer uma esposa, mas não se importa com essa coisa de
fidelidade. Eu não quero me casar com o Nicolo de forma alguma e se fechar os olhos para o que
o meu marido faz fora do nosso quarto é a solução para escapar do meu primo.¡Es el plan
perfecto!
Ela parou, mantendo aquelas íris encantadoras focadas em meu rosto. Pisquei algumas
vezes e soltei o ar preso nos pulmões.
— Desculpe, eu continuo sem entender.
— Eu sou a esposa perfeita para você, Álvaro! E você, claro, não seria o tipo de partido
que meu pai rejeitaria. A gente casa e o mundo fica perfeito!
Outra vez precisei de alguns segundos para me situar naquela confusão de palavras que ela
largava no ar rápido demais. E então me dei conta, aquela garota louca articulou o que acreditava
ser o plano perfeito e me jogava na fogueira para queimar junto com ela.
E quando tudo fez sentido em minha cabeça, o gole de café que eu deixei descer por minha
garganta enquanto me distraía com os atributos dela, se transformou em um líquido fumegante e
impossível de ser engolido. Eu engasguei e quase coloquei tudo para fora.
Isotta riu da minha reação.
A desgraçada riu.
— Você é Capo, tem um país de dimensão continental nas suas mãos. A Ndrangheta é a
máfia mais poderosa de todas. Eu continuo virgem, o que só importaria mesmo para o meu pai e
nem precisamos levar tal fato em questão. Meu pai não teria coragem de negar o seu pedido de
casamento.
— Isotta…
— E não se preocupe, nem precisamos nos tocar. É um casamento de mentira, Álvaro.
Você fica livre para se divertir com suas prostitutas e eu livre para… sei lá… estudar?
— Isotta…
— Veja só, Nicolo nem Capo é, o que torna tudo ainda mais saboroso.
— Não! — eu disse mais rápido do que ela, antes que ela conseguisse escolher até mesmo
os casais de padrinhos.
Aquela fedelha era muito louca para alguém como eu.
— Não?
— Não! Ficou louca?
— Você disse que me ajudaria — rebateu. Toda a alegria apagada de repente.
— Não casando com você.
— Por quê?
— Porque… você tem dezenove anos.
— Faço vinte em alguns dias.
— Isso não importa. Você é muito nova para alguém como eu, Isotta.
— E você está velho demais para recusar pedidos de casamento.
Encarei a garota sem acreditar naquela conversa sem sentido algum.
— Não — reafirmei.
— Você sabe que se demorar mais um pouco será avô dos seus filhos, não é mesmo?
Eu queria esganar aquela fedelha.
— E eu espero que você saiba como os filhos são feitos.
— É claro que eu sei como os filhos são feitos — ela disse, como se minhas palavras a
ofendesse.
— Ótimo! Então me explique como eu terei herdeiros se o casamento será de mentira?
Ela se calou, o rosto ganhou uma tonalidade deliciosa de vermelho, os olhos abandonaram
os meus e nenhuma palavra escapou daqueles lábios ágeis. E eu confesso que gostei daquilo.
Silenciar Isotta após um embate era como… ter um orgasmo: delicioso e com a sensação de que
a continuação seria deliciosa.
Mas nem eu pude provocá-la, nem ela demonstrou interesse em continuar a conversa. O
soldado entrou na sala de jantar, manteve o olhar fixo em meu rosto, uma demonstração clara de
respeito devido a maneira como a garota se exibia.
— O que foi?
— As coisas da senhorita Isotta, senhor — ele avisou. — Já estão disponíveis no quarto
dela.
— E minha gata? — ela quis saber, desinteressada das provocações, o que me frustrou
bastante.
— No quarto, senhorita. — O rapaz permaneceu me encarando quando a respondeu e
demonstrava certo nervosismo em falhar.
Suspirei.
Eu o entendia.
— Ótimo! — declarou por fim. — Com licença. Preciso encontrar uma calcinha limpa.
Isotta deixou a sala sem precisar dizer mais nada. Eu quis jogá-la em meu colo e estapear a
sua bunda, no entanto, me mantive quieto, e o soldado também.
— Eu vou trabalhar — avisei ao levantar para abandonar a mesa.
12
ÁLVARO

Trancafiado em meu escritório, com a confiança de que Isotta poderia até aprontar, mas
meus soldados dariam conta, ou me avisariam, trabalhei o restante do tempo que consegui. A
verdade era que eu buscava formas de me preservar distante depois daquela ideia insana que ela
teve.
Casar? Com ela?
Nunca!
Nunca para os dois.
E, ainda assim, de tempos em tempos, a cada pequeno intervalo, eu relembrava a pele
dourada, o longo cabelo de um castanho escuro com fios queimados quase mel, os olhos imensos
que me sugavam por ser algo tão diferenciado em um rosto tão… perfeito. Até mesmo as
imperfeições de Isotta se tornavam perfeitas em seu conjunto. Aqueles olhos grandes jamais
seriam atraentes em outro rosto e nunca conseguiria ter o equilíbrio perfeito em uma boca onde o
lábio inferior possuía uma diferença considerável em relação ao superior.
Contudo, nela, parecia uma obra de arte. Porque quando a garota expandia o olhar em
minha direção e me deixava hipnotizado pelas íris violetas, eu esquecia de como se respirava. E
quando ela sorria, quando esticava os lábios e deixava que os dentes brancos aparecessem, eu
não conseguia desviar a atenção.
— Porra, Álvaro! — rosnei, cansado, passando a mão pelo cabelo pela milionésima vez,
pois minha palma ardia, como um lembrete de onde desejava estar.
Acendi um cigarro, e abri o último contrato que precisava assinar de forma eletrônica.
Nossa empresa de transporte fechava negócio com outra empresa de embalagens, também
pertencente ao grupo, para que nossos “produtos” chegassem sem problemas ao seu destino.
Encostei no espaldar da cadeira, puxei um trago e tentei, pela terceira vez, falar com Jean.
Só dava caixa postal. Se eu ainda fosse o subchefe dele, estaria desesperado, mas Jean agora
tinha outra equipe, outro esquema de segurança e se algo estivesse fora do que alinhamos, eu
saberia instantaneamente. Então preferia acreditar que ele se divertia com a esposa ao invés de
estar envolvido em algo que eu não tivesse conhecimento.
Eu queria conversar sobre a questão de Isotta, avisar que solicitaria uma investigação sobre
o tal Nicolo e pedir ajuda para ganharmos tempo com Juan até que a menina não estivesse tão
assustada ou conseguíssemos comprovar que ela não mentia.
Sem ele e com pouco tempo, eu teria que agir e depois me explicar. Então liguei para
Aaron, que me atendeu de pronto.
— A carga chegou? — perguntei sem demonstrar ansiedade em tratar de algo que não
deveria sem a permissão de Jean.
— Eu estou com os olhos nela. Tudo conforme o combinado. Manteremos no calabouço da
Ilha até a segunda ordem.
A Ilha, nossa maior e melhor casa de prostituição, com as melhores mulheres, atrações e
conforto. Eu amava aquele lugar. Amava a liberdade de transitar e gastar o quanto eu quisesse
com as minhas garotas.
Desde que Jean foi embora, eu tinha a minha própria marca registrada. Assim como meu
primo escolheu a sua pedra para colocar no pescoço da sua protegida, eu tinha um diamante
bruto, como minha natureza, e cinza, como meus olhos, que valia uma fortuna e agradava a
qualquer garota que eu escolhesse. No momento: Nina.
Eu deveria estar naquele castelo, fodendo a minha protegida, aproveitando o lado bom da
vida escolhido por mim e sobre a qual eu não reclamava. Entretanto, pensar no meu diamante fez
com que a imagem de Isotta, nua, perfeita, usando apenas a minha pedra, me deixou de pau duro
na mesma hora.
Que merda era aquela?
— Preciso que esquematize uma investigação — avisei.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não. Quer dizer… preciso disso para amanhã, quando Jean chegar.
— Por favor, me peça algo possível — ele gemeu.
Aaron gostava das coisas fáceis. Detestava grandes esquemas e operações que exigiam
muito da gente, ainda assim, era o cara mais inteligente que eu conhecia, astuto e com um QI que
facilmente o daria um diploma de doutor nas melhores universidades do mundo.
— Investigue Nicolo De Rosa.
— O noivo da menina que está como sua hóspede? — seu tom irônico me alertou.
— É uma investigação séria, Aaron. Se não fosse eu não pediria a você. Segundo
informações, o cara tem problemas em conter a sua violência com mulheres e eu tenho motivos
para acreditar que existe mais por debaixo do tapete.
— Ela te disse isso?
— E isso importa?
— Não. Claro que não — ele disse rápido.
— Então faça o seu trabalho e me entregue o quanto antes. Entre em contato com os nossos
de Ibiza, vasculhe a vida do cara. Eu quero tudo o que descobrir.
— Pode deixar, iniciarei agora mesmo.
— Ótimo!
Desliguei a ligação, dei a última tragada no cigarro e após alguns segundos a ideia de que
horas se passaram sem que Isotta causasse qualquer problema me alertou. Aquilo não era normal
para alguém como aquela garota.
Abri a primeira gaveta da mesa, resgatei minha arma e a coloquei presa no cós da minha
calça, depois apaguei o cigarro e deixei o escritório. O silêncio deveria ser um bálsamo, mas
repercutiu em mim como um grito de alerta.
— O que aquela fedelha está aprontando? — resmunguei.
Caminhei pelo espaço, cortei as salas e encontrei os primeiros soldados.
— Onde está Isotta?
Eles se entreolharam e me pareceram nervosos.
— Ela disse que queria nadar, senhor.
— Na piscina?
— Sim, senhor.
Estranho.
Deixei os homens, subi as escadas, cortei o espaço entre os quartos, a sala que antecedia a
piscina e antes mesmo de chegar ao espaço livre vi três soldados se espremendo para observar
algo sem atrair atenção ou se aproximar muito da área.
Puta merda!
Eu nem precisava olhar para ter a certeza de que a fedelha aprontava.
— O que estão fazendo? — eu disse com a voz calma, contudo, grave e cortante.
Os homens se assustaram, se perderam na fala e me fizeram ter vontade de mandar açoitá-
los. Aqueles filhos de uma puta eram soldados da Ndrangheta e não meros seguranças. Foram
treinados e testados até que eu tivesse a confiança para colocá-los em minha guarda pessoal e
ainda assim, se perdiam na compostura por causa de uma fedelha que nadava nua na piscina.
Puta que pariu!
— Vocês estão dispensados — eu disse sem perder a calma ainda que quisesse matá-los.
— Senhor… — Um deles tentou contestar, desfazer aquela bagunça.
— Saiam dessa cobertura antes que eu mande decepar a cabeça dos três. As de baixo.
Sem uma palavra eles se retiraram rápido. Eu me aproximei da porta de vidro e vi a
imagem completa, Isotta, nua, deslizando pela água como uma sereia em seu pleno encanto. Ela
nadava de um lado ao outro sem prestar atenção em nada, nem nos homens, nem no espaço
aberto ou nos demais prédios que se espalhavam naquela região.
E era de fato uma imagem digna de toda a minha admiração. Qual homem não colocaria a
sua vida em risco só para ter parcos segundos daquele corpo esguio, deslizando na água como se
fosse parte da sua composição? Qual ser humano se impediria de admirar o contraste da água
transparente em azulejos marinhos junto a pele dourada daquele jeito único?
Por que ela fazia aquilo?
Dei um passo para o dia ensolarado e um miado chamou a minha atenção. Olhei para a
espreguiçadeira à minha direita e observei uma gata, preta e branca, aparentemente adulta, gorda
demais para uma gata de rua, deitada como se a casa pertencesse a ela, e reclamando como se eu
não tivesse o direito de estar ali.
— Era só o que me faltava — rosnei.
Caminhei na direção da piscina e a gata me acompanhou com miados que talvez
imaginasse me assustar. Harry com certeza cuidaria daquele incômodo.
— Quieta! — resmunguei, mas a gata não se acovardou.
— Você tem o seu monstro, eu tenho o meu.
A voz de Isotta atrás de mim me fez girar na sua direção e encontrá-la na borda da piscina
com um sorriso digno do inferno. As mãos sustentavam o corpo escondido sob a água devido ao
ângulo. Aborrecido demais para ter aquela conversa com minha mente no corpo nu e molhado
dela, peguei a toalha sobre a espreguiçadeira e a abri.
— O que pensa que está fazendo?
Desviei o olhar para deixar clara a minha ordem. No entanto, Isotta não se mexeu.
— O dia está quente e a água está uma delícia. Você deveria aproveitar enquanto pode.
— Saia, Isotta.
E minha voz indicava toda a minha falta de paciência.
— Por quê?
A dela indicava toda a sua confusão.
O que havia de errado com as mulheres da Espanha?
— Você está nua.
— E você está vestido demais para um dia como esse.
Revoltado, fechei a toalha e me agachei para encará-la. Talvez esse tenha sido o meu erro.
— Eu vou trancafiá-la no quarto até seu pai chegar e…
Isotta agarrou minha camisa e me puxou. A desgraçada me puxou. Não com força, mas
com jeito. E meu corpo foi. Simplesmente foi. Eu despenquei na piscina como se todo o meu
treinamento tivesse se evaporado da minha memória. E não bastou isso. Ainda embaixo d’água,
eu vi seu corpo incrível se aproximar enquanto eu submergia e assim que consegui pôr a cabeça
para fora e respirar, ela se agarrou a mim.
Isotta De Rosa, nua, linda como uma sereia, se agarrou ao meu corpo como se aquilo não
fosse um pecado imperdoável. Meu pau, rígido como se implorasse pela brincadeira, não me
dava paz. E ela ria, animada com a brincadeira, inocente, ou, certa de que me comprometeria
daquela forma.
— Que inferno! — rosnei, me obrigando a segurar na sua cintura, fina e deliciosa, para
mantê-la afastada. — O que está fazendo?
— Você é muito sem graça, Álvaro. É só um dia quente na piscina. Meu Deus!
— Você está nua! — Moldei a voz para que não saísse desesperada ou esganiçada.
— Você já pesquisou sobre São Paulo? Não o estado, mas a capital? Eu não achei que
precisaria de um biquíni, então não priorizei quando fiz compras.
— Tão inocente você — provoquei. — Parece um anjo. Satanás é o nome dele.
E a joguei para longe, em especial porque não a queria próxima do meu pau quando ela
começava a dominar minha cabeça de cima com a ideia de que seria maravilhoso nos divertirmos
naquela piscina.
Porque não seria.
Seria desastroso.
Eu odiava aquela fedelha.
A gata miou e ganhou a minha atenção enquanto Isotta ainda se recuperava da minha
reação ao arremessá-la para longe de mim.
— Eu disse que não queria a gata pela casa. Harry vai fazer ela em pedaços.
— Prenda o seu animal então, ou, mande ele não atacar. Ele te obedece, não é?
— Não esqueça que a casa é minha, fedelha atrevida. Harry mora aqui, sua gata não.
— Eu já percebi que você é um péssimo anfitrião — ela disse com mágoa, caminhando em
direção às escadas.
Assisti, com certo desespero, aquele corpo delicioso, deixar a água que a lambia como
despedida. Desinibida, como se andar nua fosse o seu hobby favorito, ela caminhou até onde
deixei a toalha e se escondeu de mim. Fechei os olhos e me afundei na piscina. Eu precisava
fazer meu pau baixar com urgência, em especial por estar com uma calça de moletom que
revelaria a minha situação.
Saí pela outra borda, observei a paisagem, moderei minha raiva e só então eu pude me
voltar para ela, mas encontrei uma Isotta triste, magoada e sem qualquer intenção de manter uma
conversa comigo.
Aquele era o problema de conviver com uma garota tão nova.
13
ISOTTA

Álvaro me jogou para longe mesmo me tendo nua a sua disposição. Eu pensei, apenas
imaginei, que facilitar os seus avanços o faria aceitar o meu plano. O sexo em si não me
assustava como deixei transparecer na sala de jantar. Quer dizer… sim, assustava, mas não me
parecia uma ideia ruim. Em especial quando o homem em questão era Álvaro.
No entanto, quando ele reagia daquela forma, como se abominasse as minhas investidas,
feria meu ego, martirizava minha alma e me magoava como se… como se… como se eu não
fosse o suficiente para ele. E eu nunca fui pouco para ninguém.
As lágrimas chegaram aos meus olhos sem que eu tivesse qualquer controle sobre ela. Eu
me encolhi com a sensação de que nunca fiz algo mais estúpido e humilhante em toda a minha
vida. Que loucura era aquela que me levava a tal exposição? Por que eu não seduzia um dos
soldados e fugia? Por que eu me sentia presa a Álvaro como se houvesse apenas ele capaz de me
livrar daquela enrascada?
Cansada, me enrolei mais na toalha e deitei na espreguiçadeira quando vi Álvaro caminhar
na minha direção. Não queria mais um esporro, nem aquela droga de conversa que não nos
levaria a lugar algum. Fechei os olhos quando ele sentou na espreguiçadeira ao meu lado.
O que ele queria? Rir do meu desespero?
— Abra os olhos — ele disse com a voz calma que eu sabia bem não ser exatamente o seu
estado de humor. — Isotta, olhe para mim — insistiu.
Eu não continuaria sendo a garota infantil que fazia birra. Se Álvaro não queria colaborar
eu teria que arrumar outra forma. E apenas por isso sentei, enrolada na toalha de forma a não
deixar nada que pudesse provocá-lo, e o encarei.
— Você está chorando?
— Não — eu disse com pressa ao limpar o rosto com uma pequena parte do tecido. —
Estou molhada da piscina. O que quer?
Ele suspirou, como se minha resposta o aborrecesse.
— Eu não sei até onde vai a sua loucura, mas se ainda estivéssemos sob o comando do Joel
os soldados não pensariam duas vezes em te estuprar e ninguém seria punido por isso.
— Não estamos sob o comando do Joel. Esse é o seu comando, e é um saco, se quer saber?
Ele riu sem vontade, umedeceu os lábios e olhou para o lado como se me encarar
arrancasse dele as piores reações.
— Não faça mais isso — avisou.
— Eu não tinha biquíni. Mandei seus soldados me deixarem sozinha. Qual o problema? Eu
nem te pedi para vir aqui.
— Você tem ideia do que diz? Consegue se ouvir?
— Consigo, e quer saber o que eu acho? Não faz diferença alguma. Quando você me
entregar nas mãos do Nicolo eu serei estuprada da mesma forma, porque jamais deixarei que me
toque por vontade própria.
— Não… — Álvaro semicerrou os olhos, abaixou a cabeça e puxou o ar com força. —
Caralho, menina! Eu já disse que não vou te entregar ao Nicolo. Que inferno!
— E eu já te disse: a única forma de Nicolo não colocar as mãos em mim é ou me
deixando fugir ou eu me casando com outra pessoa. Do contrário, no instante em que eu
embarcar de volta para a Espanha ele encontrará maneiras de convencer meu pai a realizar o
casamento. Você não o conhece, Álvaro! Não sabe o que ele é capaz de fazer para conseguir o
que quer.
— Isotta, escute… — ele trocou de espreguiçadeira, sentando-se ao meu lado, tão próximo
que por um instante eu não consegui coordenar meus pensamentos.
Todo molhado, a camisa colada ao tórax malhado, ao peitoral definido, com aqueles
ombros largos, o cabelo liso escorrendo pelo rosto em uma bagunça maravilhosa de admirar, a
calça justa nas coxas grossas, Álvaro era uma promessa. Tive vontade de tocá-lo e por isso
prendi as mãos na toalha. Eu não precisava de mais rejeição.
— Eu pedi para investigarem o Nicolo. Se houver qualquer ameaça quanto a você…
— Eu não quero casar com ele! — gritei, desesperada. — Ele é uma ameaça e tudo o que
você encontrará é o mesmo que todos vocês fazem, porque essa é a vida de um homem da máfia.
Esse não é o problema. Eu não o quero! Não quero que ele toque em mim! Não quero ser
obrigada a transar com ele, a ser… eu não quero! E ele vai me obrigar, porque eu serei a porra da
esposa.
Novas lágrimas escorreram, desta vez não mais como um apelo e sim pelo desespero que a
situação impunha ao meu corpo.
— Droga, Isotta — Álvaro sussurrou, as mãos de repente em meu rosto, o dele tão perto
que eu podia sentir a sua respiração. — Confie em mim.
— Cásate conmigo! — pedi pela última vez. — Se quer me ajudar, Case comigo.
— Eu… — Ele não encontrou as palavras.
Parecia que tudo ao nosso redor se modificou. Não era mais pelo meu problema, não
existia mais a necessidade dele de me fazer confiar, nem a minha de fugir. Havia algo de
estranho, de diferente, que pulsava e me eletrizava enquanto suas mãos continuavam em meu
rosto e seus lábios tão perto do meu.
Meu Deus, o que era aquilo?
Fechei os olhos e quase tive a certeza de que ele fez o mesmo. Durante um tempo que não
sei mensurar, mais rápido do que eu desejava e mais lento do que o permitido, nossos lábios
roçaram um no outro. Não um beijo, um leve encostar, quase como se não tivesse acontecido.
Ele respirava de forma pesada, as mãos mais firmes em minha pele e eu me contentava em
acompanhá-lo, em respirar a respiração dele, em experimentar as sensações de cada pequeno
momento daquilo que eu não sabia nomear.
Então, uma mão escorregou até um ponto embaixo da minha orelha, entre minha nuca e
meu pescoço. Com a outra deslizou o polegar por minha bochecha, alcançou meus lábios,
desenhando o inferior. Eu aguardava, presa, rendida, entregue a uma situação nova, diferente e
gostosa.
A respiração ficou mais pesada à medida que seus dedos me acariciavam. A minha e a
dele. Até que, sem que eu tivesse qualquer noção do que fazia, beijei Álvaro. Não exatamente
um avanço meu, uma quebra de limites. A distância entre nossos lábios era tão mínima que
qualquer movimento nos conectaria desta forma.
O que eu não esperava era que aquilo, a distância que eliminei, o beijo que sem pensar bem
no assunto eu me permiti dar nele, se transformasse em algo além de tudo o que eu poderia
esperar. Porque quando nossos lábios se tocaram, quando o beijo aconteceu, foi maior do que nós
dois, mais forte e potente do que qualquer outra sensação desde que nos conhecemos.
As mãos de Álvaro me mantinham firme, os lábios me devoravam de uma forma que
esquentava meu corpo por inteiro. Era macio e saboroso. Cada movimento tinha uma cadência
inusitada, uma demonstração clara da experiência dele em comparação às minhas poucas
vivências. Álvaro me dominou com facilidade quando sua língua deslizou na minha, quando o
beijo adquiriu vida, quando nossos lábios encontraram o passo correto o ritmo ideal.
E eu não queria que acabasse. Não queria que suas mãos se afastassem da minha pele, que
sua língua abandonasse a minha, que seus lábios se impedissem de me consumir como se
houvesse em minha boca o sabor mais potente e inigualável do universo.
Porque era isso o que Álvaro fazia comigo enquanto me beijava com aquele desejo. Fazia
com que eu me sentisse… dele. Como se não houvesse outro lugar para mim no mundo. Como
se não houvesse mais nada que eu pudesse desejar que não fosse aquele beijo.
Encantada demais, com as mãos trêmulas, toquei sua camisa molhada e senti o peitoral por
baixo dela, juntei nossos corpos como pude, porém, nada parecia o suficiente. Um gemido
escapou dos meus lábios, revelando a minha vontade, quando o puxei para mim e coloquei
minhas pernas sobre as coxas dele. Álvaro gemeu em resposta, abandonando meu rosto para me
tocar ali, naquela parte em que a toalha não escondia, não nos impedia de estar pele com pele.
E, Deus, eu ansiava pela pele dele.
O beijo ganhou outro fôlego, mais desejo, mais ardor quando seus dedos se arrastaram por
minha coxa, subindo na direção da minha bunda, arrancando de mim suspiros que nunca me
imaginei emitindo.
Mas então, como se acordasse de um sonho, Álvaro se afastou. E não foi de forma natural,
como se precisasse interromper o beijo. Ele me largou de vez, mãos e lábios. Levantou da
espreguiçadeira como se esta pudesse eletrocutá-lo. Não me encarou quando o fez, só se afastou
e me deu as costas.
— Vá para o seu quarto, Isotta — ele disse, a voz alguns tons mais roucos, mais perigosa,
contudo, não me assustava, alimentava meu desejo.
— Álvaro…
— Agora!
Eu sabia que de nada adiantaria contestar, brigar, fazer birra. Eu também precisava de um
tempo para pensar naquilo tudo. Quando propus casamento, não contabilizei em meus planos
beijos quentes e desejos indecorosos. Era um acordo com total liberdade para ambos os lados.
Segurei Lilica como se precisasse dela para não perder a compostura, arrumei a toalha e
levantei. Passei por Álvaro sem nada dizer. Na entrada do espaço Harry nos observava, o que me
assustou.
— Fica, garoto! — ele disse em seu tom de ordem incontestável.
Mas aquilo, aquela maneira que ele encontrava de controlar tudo, mexia comigo de uma
maneira que eu não sabia explicar. Então caminhei na direção do cachorro e quando passei por
ele eu disse:
— Vem, Harry.
E, de imediato, o animal me seguiu, abanando o rabo como se fôssemos melhores amigos.
— Harry! — Álvaro disse de longe.
— Vem! — Eu repliquei.
O animal olhou para o seu dono, choramingou e, desobediente, me seguiu até meu quarto.
Pelo menos em alguma coisa eu ganhava naquela história.
14
ÁLVARO

— Você acha que consegue alguma coisa contra ele? — Jean questionou de forma baixa,
como se precisasse manter a nossa conversa apenas entre nós enquanto aguardava no aeroporto.
— Sinceramente? Não sei. O cara deve ter o mesmo nível de violência que qualquer um
envolvido com a máfia precisa ter. Quem somos nós para julgar? O problema é que ela não o
aceita de forma alguma. Disse que se mataria se o pai insistisse. E não é uma birra adolescente,
Jean. O pavor de Isotta pelo Nicolo é real.
— Isso é uma droga — ele murmurou. — Não há muito o que eu possa fazer, Álvaro. O
máximo que consigo é ter uma conversa franca com Juan, mas até isso eu acredito que não
conseguirei com facilidade. O rapaz, o tal Nicolo, vai junto com a gente. Ele faz questão e como
é o homem de confiança do Juan acredito que será um problema ainda maior.
— Eu não duvido que ela se mate.
Minhas palavras saíram com sofrimento. Eu continuava impactado pelo beijo, pela maneira
como meu corpo reagiu a Isotta, pela forma como eu desejava protegê-la, ainda que fosse de um
noivado indesejado. Imaginar que a garota poderia atentar contra a própria vida me deixava em
alerta.
— Com certeza ela já fez essa ameaça inúmeras vezes ao pai — meu primo afirmou.
— Ainda assim, Jean. A situação é séria.
— Séria o suficiente para desencadear uma guerra? Por que a minha interferência só pode
ocorrer se eu tiver algo real contra Nicolo. Fora isso eu só posso sugerir ao pai que não o faça,
ou, sequestrar a garota e travar uma guerra, e, em situações como essa, não saberemos quem será
de fato nosso aliado.
— Ela não deveria ser obrigada a casar — reforcei minha opinião.
— Não deveria. Você sabe como eu penso, Álvaro. Eu tenho uma filha e… — ouvi o seu
suspiro. Jean sempre sofria quando precisava pensar no futuro de Ayla. — Ela só casará se quiser
e com quem quiser.
— Isotta merecia este direito. Ela quer estudar, fazer faculdade. Não poderá fazer nada se o
pai a obrigar a casar com Nicolo.
— Como você pode ter esta certeza?
— A maior prova é o fato de ela não estar estudando. Mas também pelos relatos que ouvi
dela, Nicolo não reage bem quando as pessoas se aproximam, em especial os homens.
— E pela beleza dela é um pouco complicado afastar os homens — ele ressaltou com certa
ironia na voz.
— É. Tem isso — assumi de mau grado.
— Existe algum interesse seu, digo… algo realmente do seu interesse nessa história?
— O quê? Não!
Mas de imediato a sensação do beijo, da língua macia, dos lábios nos meus, das mãos
quentes e delicadas dela sobre meu corpo, rechearam minha mente.
— Tem certeza? Seria mais fácil convencer Juan se eu tivesse algo mais vantajoso para
oferecer a ele.
— Tá falando sério? Quer mesmo tratar essa situação como uma negociação?
— Tudo em nosso meio é uma negociação.
— O meu casamento não será. Se eu me casar, o que não acontecerá neste momento.
Jean riu alto. Ele de fato gostava daquilo, de me confrontar com uma garota bonita o
suficiente para burlar minhas convicções, de me atiçar com uma mulher que não se assemelhava
em nada com as consideradas como melhores partidos, todas submissas e de acordo com o
destino escolhido pelo pai, como se vivêssemos no século XI.
— E não é a primeira vez que tomo partido a favor de uma mulher.
— Eu sei — ele disse, de certo relembrando quando precisei puxá-lo para a realidade em
relação a Heidi, pois esta foi a minha intenção. — Vou ver o que consigo fazer.
— Faça o seu melhor. É um pedido de irmão para irmão.
— O que me leva a acreditar que existe algo a mais nessa história.
— Vá se foder!
Ele riu alto outra vez.
— Farei o meu melhor e vamos tentar ajustar essa situação. Mas se nada der certo,
podemos ajustar esse casamento.
— Vá à merda, Jean! Eu não vou me casar com a fedelha.
Com outra risada, ele finalizou a conversa.
— Chego esta madrugada. Aí veremos o que você consegue de informações e eu de
persuasão.
— Certo.
E assim desligamos.
Nem por isso eu deixei meu quarto.
Eu, um cara que nunca me rendi ao perigo, que não temia nada nem ninguém, que brincava
com a ideia de que à minha frente havia apenas um minuto de vida e eu precisava vivê-lo, tinha
receio de sair do quarto depois daquele beijo. E reconhecer isso me enfurecia e me obrigava a
odiar Isotta com a mesma ânsia que eu tinha por beijá-la outra vez.
No entanto, eu não podia beijá-la.
Nunca mais.
— É isso, Álvaro — sussurrei para mim mesmo ao deitar na cama e me obrigar a encarar o
teto. — Você fez a sua parte. Tem pena da garota. Logo Isotta será uma figura do seu passado.
Toda a sua vida estará de volta e você curtirá belos dias na Ilha. Certo, Harry?
O silêncio em meu quarto, junto com a ausência do corpo que logo alcançava minha mão
quando eu chamava o seu nome me fez voltar a Isotta e a maneira fácil como ela inverteu aquela
história e encantou até mesmo meu cachorro.
— Traidor, filho da puta!
Levantei da cama disposto a não ser refém dentro da minha própria casa. Isotta não levaria
mais nada de mim, logo abrir a porta e deixar o quarto era o passo que eu precisava dar. Ainda
assim, demorei longos segundos sem a certeza quanto ao meu ato.
— Inferno de fedelha!
Abri a porta e dei de cara com Valentim, meu soldado particular.
— Quando você chegou?
Ele me deu um olhar curioso, mas não se atreveu a sorrir. Com o meu mau humor era
provável que sobrasse para ele também.
— Eu soube que dispensou três soldados, então vim assumir meu posto. O que manda?
— Eu quero aqueles três longe dos meus olhos.
— Já providenciei.
A postura rígida e o rosto sério dele não me impedia de acreditar que Valentim, assim
como todos os homens que estiveram naquela cobertura sabiam sobre o que acontecia em relação
a Isotta.
— Reúna os homens — avisei. — Jean chega esta madrugada, então reforce a segurança.
Aaron vai recepcioná-lo no aeroporto, nós ficaremos aqui com a mercad… a garota.
Capturei um indício de sorriso brincar nos lábios do meu soldado particular, mas ele logo
se recompôs, para minha sanidade mental e saúde física dele. Eu não me impediria de socar
algumas pessoas se isso me ajudasse a apaziguar a confusão dentro de mim.
— Enquanto eles não chegam — continuei. — Quero todos fora dos espaços comuns da
cobertura. Concentrem-se nos acessos e apenas nisso.
— Apenas no espaço externo?
Desta vez, ele não se impediu de demonstrar o quanto estranhava as minhas ordens, tendo
em vista toda a confusão que a garota provocava.
— Exato.
— Tem certeza?
— E você já me viu brincar, porra?
Valentim reassumiu a postura e aguardou que eu finalizasse as ordens.
— Dispensado.
— Álvaro? — ele disse sem sair do lugar. — Levo Harry comigo?
Harry.
Tive vontade de gritar um comando para que o cachorro me obedecesse de onde estivesse,
mas me calei.
— Harry está bem onde está.
— Certo.
Valentim se retirou, o corredor ficou vazio e eu ouvia apenas o burburinho das ordens
dadas e acatadas. Portas se abriram e fecharam, passos desapareciam. E eu me mantinha de pé,
na porta do meu quarto, sem fazer ideia de como conviveria com Isotta durante as últimas horas
que nos faltavam.
Sem pressa, circulei pela cobertura, subi as escadas e me vi diante do quarto dela. O
silêncio me incomodou. Depois de tudo o que ela aprontou, não ter ideia do que fazia me deixava
louco. Levei a mão à maçaneta e a abri sem me anunciar. Por mais que a etiqueta exigisse o
respeito ao espaço do outro, eu não daria ousadia a Isotta de precisar me anunciar em minha
própria casa. Em especial quando ela teve o disparate de conquistar o meu cachorro.
Entrei no quarto certo de que enfrentaria outra cena que me consumiria de alguma forma,
no entanto, Isotta, sentada em uma poltrona próxima a janela, com as pernas longas e bronzeadas
esticadas sobre um dos braços da peça, mantinha os olhos na janela, a gata no colo e Harry
deitado aos seus pés.
Ela não virou para me olhar. Parecia até mesmo que não percebia a minha presença. O que
me permitiu alguns segundos de contemplação. Com o longo cabelo preso em uma trança lateral
simples, vestindo short jeans e camiseta básica de algodão, naquela posição, com aquela
quantidade de luz natural sobre sua imagem, ela era uma pintura perfeita. Tão linda, ingênua e
pura que enganava até mesmo o próprio lúcifer.
— O que você quer, Álvaro? — ela disse com a voz calma e suave, sem desviar o olhar da
janela ou interromper a carícia que fazia na gata.
Aquilo roubou de mim a minha segurança. De repente, eu não sabia o que queria, o que
fazia ali, o que poderia dizer a ela.
Limpei a garganta e caminhei até ficar próximo para uma conversa, porém, a uma distância
segura dela.
— Jean acabou de ligar. Eles chegam esta madrugada.
— Hum! — ela disse com um tom sem emoção.
O que você está pensando, Isotta? O que pretende fazer? Minha mente gritava por não
conseguir antever o que aquela garota planejava após obter aquela informação. Pelo desespero
apresentado desde que nos conhecemos, era para ela surtar ao contar o tempo, entretanto, Isotta
se manteve da mesma forma, impassível, contemplando a imagem fora da janela, acariciando a
gata.
— Ele disse que fará de tudo para convencer seu pai — continuei.
Não porque desejava dar todos os detalhes a Isotta e sim porque enlouquecia-me não fazer
ideia do que ela pensava, então continuei falando, ansiando por um pouco da sua atenção.
— Ele conseguirá, Isotta.
Eu não podia prometer aquilo, e ainda assim, o fiz. Porque não suportei a apatia dela. Não
depois de ter vivenciado a sua vivacidade, suas imprudências e alegrias. Era como se não
houvesse mais alma em Isotta.
— Vejo que você conseguiu fazer o impossível: juntar a gata e Harry.
— Lilica — ela pontuou com a voz fraca. — O nome dela é Lilica.
— Certo. Nunca imaginei que Harry se adaptaria a isso — continuei, desesperado para que
ela continuasse falando.
— Até os mais ariscos dos animais cedem a doçura.
— Foi o que você fez?
— Não. Mas com toda certeza eu sou uma companhia melhor do que você para Harry, por
isso ele me escolheu.
Eu ri. Aquilo deveria me aborrecer, mas me fez rir. O que finalizou quando Isotta levantou.
A camiseta que usava não cobria toda a barriga, deixava seu umbigo profundo de fora e marcava
a cintura fina por onde meus dedos passearam poucos antes. Engoli em seco quando ela se
aproximou de mim sem medo.
— O que está fazendo?
Não tive coragem de me mexer quando ela parou à minha frente, os olhos incríveis fixos
nos meus. Ela ficou na ponta dos pés sem deixar de me encarar.
— O que está fazendo, Isotta?
— Se vou embora em poucas horas, não posso ter mais um pouco do melhor beijo que já
experimentei?
Eu deveria afastá-la. Impedi-la. Ri da sua inocência ao dizer que meu beijo fora o melhor
que ela experimentou. Desfazer daquilo, porque eu sabia que ela apenas tentava me convencer.
No entanto, apesar da minha mente gritar para que eu saísse dali, minhas células trabalharam
com toda a sua potência para que eu ignorasse os comandos do cérebro.
Isotta só diminuiu um centímetro entre nós dois e no mesmo segundo meus braços estavam
em volta da cintura dela, minha boca tomava a dela com posse, minhas mãos famintas subiam e
desciam pelo corpo que eu desejava apalpar por inteiro.
Fechei os dedos nos fios da sua nuca, como se precisasse puni-la por me seduzir com tanta
facilidade e aprofundei minha língua naquela boca devassa e deliciosa. Isotta gemeu e o vibrar
do som em meus lábios fez com que os neurônios trabalhassem com mais afinco em todas as
informações que levavam pelo meu corpo, por minhas terminações nervosas, em meus pontos
mais sensíveis e desejosos.
Eu a puxei para mim, colei nossos corpos, exigi dos seus lábios, enfiei a mão por baixo da
camiseta e me dei conta da inexistência do sutiã. Um rosnado feroz ecoou pela minha garganta.
O desejo pulsava não apenas em minhas veias, mas em meu pau, como se eu nunca tivesse
tocado antes em uma mulher, como se nunca tivesse experimentado pele igual.
O que ela fazia comigo?
O que eu não podia fazer com ela?
Este pensamento me paralisou. Eu não podia. E não importava o quanto eu quisesse. Não
podia. Afastei Isotta sem violência e a mantive assim até que nossas respirações se ajustassem.
Em nós dois havia um desespero que nos puxava um na direção do outro. Ela para se livrar
do noivo e eu para experimentá-la. Em ambos os casos, o resultado seria catastrófico.
Eu precisava acabar com aquilo
15
ISOTTA

Quando entrei no quarto após Álvaro me expulsar da piscina eu não tinha mais esperança
para nada. Não havia qualquer chance de escapar das garras de Nicolo. Meu ego estava abalado
pela recusa do único que poderia me livrar daquele casamento e minha sanidade comprometida
pela mistura de sentimentos que invadiram meu corpo quando ele me beijou.
A soma de tudo o que vivi nos últimos dias, desde que cheguei ao Brasil, me fez, pela
primeira vez, compreender que encontrar soluções era cansativo demais. Não era uma entrega,
um aceitar a derrota, mas a necessidade de parar de lutar um pouco e se deixar levar.
Esgotada, me impedi de pensar em algum plano. Vesti uma roupa, penteei o cabelo e o
trancei sem conseguir seguir uma única linha de raciocínio. Lilica se enroscou em minhas pernas,
Harry foi até a poltrona no canto do quarto e deitou no pé desta como se fosse algo habitual.
Observei o cachorro, lindo quando não motivado a atacar. Eu ainda o temia, mas havia em
mim o cansaço até mesmo para encarar meus medos menores. Nunca gostei de cachorros. Talvez
porque convivi com muitos que estraçalhariam uma pessoa com apenas uma ordem. Na fortaleza
em que vivi quase toda a minha vida, cachorros faziam parte do exército, não do convívio com a
família.
E com Harry não era diferente. Ele podia ser um animal dócil, de natureza tranquila, mas,
como todos os outros que viviam na casa do meu pai, fora treinado para matar, obedecer, dar a
sua vida pelo seu dono, porque lealdade era a palavra mais importante dentro do mundo em que
nasci, até mesmo para os cachorros.
Um toque leve em minha porta não modificou meu ânimo. Eu sabia que não seria Álvaro.
Ele jamais daria batidinhas educadas e aguardaria a minha permissão para entrar. Álvaro
entendia e cumpria a imponência do seu cargo. Às vezes isso era irritante e às vezes… sexy.
Muito sexy.
— Entre — eu disse após entender que o soldado à minha porta não se atreveria a entrar
sem que eu lhe desse a permissão.
O rapaz entrou. Era jovem, bonito, mas demonstrava tanta insegurança nos olhos que me
deixou apreensiva.
— Srta. Isotta? — ele disse com a voz calma. — Eu tenho… eu preciso… — ele se
aproximou, o que ganhou a minha atenção.
Não havia qualquer sensação de alerta ao observá-lo. Eu reconhecia quando um homem era
um perigo e quando era alguém com quem eu poderia relaxar. Ele olhou para a porta, depois para
mim, então tirou um aparelho celular do bolso e o estendeu na minha direção.
— Seu irmão, Miguel. Ele me pediu para encontrar uma forma de fazê-lo ter contato com
você. — Seu olhar temeroso acompanhava a voz cada vez mais baixa.
Aquele homem, um soldado da Ndrangheta, quebrava as regras para atender a um pedido
do meu irmão, um homem que nem sequer teria o direito de assumir seu posto, ou atuar para o
que foi ensinado a fazer.
— Miguel? — Peguei o aparelho e o escondi de imediato em minhas costas, no cós do
short jeans que eu usava. — Como…
— Não temos tempo — ele disse com pressa. — Acho que não preciso pedir para mentir
por mim. — O rapaz me deu um sorriso mínimo e temeroso. — Para o caso do Sr. Kuhn, digo…
Álvaro Kuhn, o Capo, não o Don, porém, neste caso, os dois… — Deu um risinho baixo e
afetado. — Eles não podem saber que eu te entreguei este aparelho.
— Não se preocupe. Você tem a minha lealdade.
Minhas palavras saíram com determinação. Eu de fato devia algo àquele homem e não
poderia esquecer disso.
— Como Miguel…
— Eu devia um favor a seu irmão — informou, ciente de que aquela situação não era
normal, sendo ambos de máfias diferentes, ainda que aliadas. — Quando Miguel ainda precisava
se esconder.
E eu entendi. Durante anos Miguel escondeu do meu pai a sua paixão por um soldado, e,
por consequência, o seu caso. A vida dentro da máfia parecia acompanhar a evolução da
humanidade, mas a verdade era que não passava de aparência. Vivíamos em séculos perdidos na
história. Gays não eram aceitos, dignos de cargos destinados aos homens. Mulheres eram
mercadorias, as que garantiriam uma boa aliança ou negócio. Filhos eram herdeiros e não tinham
a escolha de viver do seu modo. A violência era algo natural com que todos conviviam.
— Esconda bem o aparelho — alertou.
O rapaz deixou o quarto e eu fiquei com aquele aparelho antigo, tão pequeno que cabia na
minha mão fechada, que não me permitiria acesso a internet, destinado para telefonemas e trocas
arcaicas de mensagens. No entanto, eu entendia o motivo de ser desta forma. Quanto menos
tecnológico menor a chance de não sermos rastreados.
A frente do celular iluminou revelando a chamada. Eu nunca tinha visto um aparelho de
celular tão antigo e diferente como aquele. Demorei mais do que o normal para descobrir que
para atender eu precisaria abri-lo e aceitar a chamada.
— Alô?
A insegurança em minha voz não deixaria ninguém em dúvida quanto a tensão daquele
momento.
— Isotta?
O ar escapou dos meus pulmões no instante em que a voz de Miguel chegou ao meu
ouvido. As lágrimas se avolumaram, porém, não permiti que o choro me dominasse. Aquela
ligação era um risco e eu não podia perder tempo com meu desespero.
— Miguel. Que bom falar com você.
— Seria ótimo se da próxima vez você me procurasse antes de fugir para outro continente
— ele resmungou. — Eu soube que você está sendo bem tratada, mas que ainda assim está
enlouquecendo Álvaro Kuhn.
Meu rosto esquentou e eu não sabia que tipo de coisas meu irmão conseguiu arrancar do
soldado ou, até mesmo, até que ponto aquele soldado sabia a esse respeito para informar a
Miguel.
— Álvaro é um homem bom — eu disse com cautela. — Ainda assim vai me devolver ao
papai.
Ouvi o suspirar de Miguel do outro lado da linha, o que deixava claro que em pouco ele
conseguiria ajudar.
— Preste atenção, o papai não vai te obrigar a casar com o Nicolo.
— Você sabe que ele vai.
— Não. Ele me disse que te dará duas opções: o casamento ou um convento — E havia
certo sarcasmo em seu tom de voz.
— Eu preciso de uma terceira opção.
— Enquanto você estiver sob o domínio da Ndrangheta fica mais fácil.
— Eles não querem esse conflito.
— Imagino que não queiram. Mas a Ndrangheta é mais forte do que a Camorra e o papai
não vai entrar em uma guerra com eles por causa do Nicolo.
— Você fala como se a Ndrangheta tivesse interesse em me livrar das garras do Nicolo.
— Até onde eu sei, eles mandaram investigar nosso primo. Jean é um homem justo, Isotta.
Suspirei com pesar. Jean podia ser um homem justo, assim como Álvaro podia se
interessar em encontrar uma forma de me livrar daquele casamento, no entanto, nenhum deles
me livrariam das garras do Nicolo quando eu estivesse de volta à Espanha. Meu primo
conseguiria arrumar uma nova maneira de convencer meu pai e eu em breve estaríamos no
mesmo impasse.
— E o que você acredita que vai acontecer? Que papai me levará de volta para casa, com
Nicolo como seu homem de confiança, se esforçando ao máximo para convencê-lo a aprovar o
casamento? Eu preciso fugir disso, Miguel.
— E eu quero te ajudar. Ninguém teria mais prazer em impedir Nicolo de ser seu marido
do que eu.
— Então eu preciso de um plano — revelei, ainda cansada demais para articular um.
— E temos. Hoje à noite. Consegui colocar uma coisinha especial em sua mala. Eu
pretendia agir antes de te pegarem, mas precisei improvisar.
— Uma coisinha?
— Sim. Você fará com que durmam.
— E como conseguirei? Isso aqui é uma fortaleza.
— Pelo visto uma como a casa do nosso pai. E você é Isotta De Rosa, a garota que deixa
toda a Camorra de cabelo em pé — ele brincou, contudo havia a seriedade especial que apenas
meu irmão tinha em cada palavra utilizada.
Miguel precisou ser assim para ser feliz. Ele prestava atenção, ouvia mais do que falava,
era um excelente articulador e metade do que eu sabia, aprendi com ele.
— Pegue o vidrinho que te enviei. Vá até a cozinha e jogue nas comidas dentro das
panelas, na água, nas frutas, onde encontrar alimento.
— E então?
— Papai já está indo ao seu encontro. Então, eu só preciso que você venha ao meu. Não
use o cartão de crédito. Desta vez precisa ser uma fuga de verdade. Nada de rastros.
Olhei de imediato para Lilica. Como eu fugiria levando uma gata? Meu coração apertou
quando me dei conta de que não havia esta possibilidade. Segurei a gata e a levei comigo até a
poltrona próxima onde Harry descansava. Sentei com o olhar perdido na imagem do lado de fora
da janela, porém, com a atenção voltada para a porta.
— O que você tem em mente?
— Você consegue chegar ao aeroporto?
— Se eu conseguir fazer todos dormirem, sim.
— Sem rastros?
— Acredito que sim.
— Ótimo! Lá um homem meu vai te encontrar e te levar embora.
— Que homem? Como eu saberei.
— Ele vai te encontrar, Isotta. Melhor você saber o mínimo possível.
— Tudo bem — sussurrei. — Obrigada, Miguel.
— Eu que te agradeço pela chance de dar uma rasteira no Nicolo — gracejou, sem deixar
de evidenciar a mágoa que sentia pelo nosso primo. — Eu amo você, irmãzinha.
— Também te amo.
— Esconda esse celular. Faça de tudo para que não o percebam.
Eu concordei e quando a ligação encerrou, algo estranho se avolumava dentro de mim.
Uma angústia que me consumia, um enjoo que me espantava. Escondi o celular na dobra da
poltrona depois de desligá-lo. Encarei a paisagem e, sem que eu pensasse no que fazia, acariciei
Lilica, absorvendo o máximo de informação quanto eu pudesse.
Não fazia ideia de como conseguiria deixar aquele quarto e chegar até a cozinha. Não tinha
qualquer noção de quantas pessoas trabalhavam naquela cobertura, de que maneira eu teria
acesso às panelas, à água, a qualquer coisa que possibilitasse que eu despejasse o que Miguel me
enviou. Assim como não sabia se todos se alimentavam ali, qual o horário da troca dos soldados,
quantos faziam a nossa segurança e se os próprios funcionários no prédio não estariam
envolvidos na ideia de não me perderem de vista.
E havia Álvaro.
O que eu tinha de desejo de desafiá-lo com aquela fuga, tinha de medo do que lhe causaria,
de como era de fato a relação dele com o Don da Ndrangheta, de como ele se sentiria ao
descobrir que eu o enganei e desapareci. E também… algo que eu não sabia nomear, mas que me
fazia pensar e repensar naquela fuga, como se algo me prendesse a ele. Não. Não a ele. Com
certeza era o medo de estar outra vez solta, sozinha, fugindo de um casamento que não
aconteceria nem que eu tivesse que optar pelo convento.
Por isso, quando ele apareceu em meu quarto, quando eu o senti tão perto, não resisti a
vontade de tocá-lo pela última vez, de beijá-lo, ter seus lábios no meu com aquela fome que
acendia meu corpo e me invadia com tanta intensidade que me deixava tonta.
Eu fugiria naquela noite e daria adeus a Álvaro, a Lilica, ao Brasil. E havia uma parte
dentro de mim que não queria este destino também. E talvez por isso, quando ele me afastou,
com mãos que vibravam como se lutassem para não me puxarem de volta, com olhos que
antecediam uma tempestade, eu me vi fraca. Eu me perderia por Álvaro, já que teria que deixá-
lo.
— Por que tem tanto medo? — Minha voz fraca e repleta de uma coragem que me
consumia, ecoou tentadora até mesmo para mim. — Se me deseja, porque não me toma?
— Você não sabe o que está pedindo, menina.
— Eu sei o que ninguém pode negar, Álvaro — arrisquei. — Você me quer.
— Isotta…
— E eu te quero — resumi, assistindo com prazer o fogo que queimava em seus olhos
ganhar mais força. — Nós temos duas opções: podemos casar e ter o melhor um do outro. Toda a
liberdade que desejamos. Eu não ficarei em seu caminho e nem você no meu. Ou…
aproveitarmos as nossas últimas horas juntos.
— E criar uma guerra entre a Camorra e a Ndrangheta? Você é virgem, menina. É noiva.
— Não sou… noiva
Minha voz perdeu um pouco da força ao dizer este último ponto. Um sorriso travesso
brincou nos lábios do homem que me mantinha firme a uma distância terrível para mim.
— Eu não quero esse tipo de casamento — ele disse de forma lenta. Então piscou como se
despertasse de um sonho e seu olhar endureceu. — Eu não quero casar — determinou.
— Então resta apenas uma opção.
— Não!
— Vai me entregar a Nicolo sabendo que eu prefiro estar na sua cama?
— Pare com isso. — Suas mãos ficaram mais firmes quando eu tentei me aproximar. —
Não acontecerá, Isotta.
— Ele nunca saberá — continuei. — Nicolo nunca terá isso de mim.
— Nem eu.
— Por quê?
— Porque… — Álvaro me encarou sem conseguir completar a frase.
Havia um certo tom de sofrimento no esforço que ele fazia para justificar o motivo pelo
qual o obrigasse a de fato negar a minha oferta. Ele me queria e só esta certeza me deu um pouco
de ânimo, ainda que eu precisasse também encontrar uma forma de deixá-lo depois de conseguir
dele o que eu desejava. Uma despedida correta, uma maneira de nunca mais esquecer o Brasil.
— Vem, Harry! — ele disse por fim.
Eu sorri sem desviar a minha atenção dele quando o cachorro levantou e passou por mim
sem me ameaçar.
— Vejo você no jantar — avisou e se retirou do quarto como se precisasse estar o mais
longe possível de mim.
16
ISOTTA

Deu tudo errado.


Eu encontrei o frasco que Miguel conseguiu infiltrar em minha mala. Era pequeno, logo eu
teria que ser assertiva e rápida. Mas quando abri a porta, disposta a enrolar os soldados com a
desculpa de que eu precisava de um chá para cólicas, os homens sempre ficam estranhos diante
dos inconvenientes femininos, e assim conseguir chegar até a cozinha, não encontrei ninguém.
A situação anormal para um caso como o meu me deixou insegura. Era para no mínimo
dois soldados garantirem que eu não deixaria o quarto, ou, se o fizesse, que fosse acompanhada.
Olhei para os dois lados, certa de que aquilo era uma pegadinha.
Lilica desviou por minhas pernas e andou pelo corredor sem qualquer alerta de perigo. E,
nada melhor do que os gatos para entregar pessoas escondidas dispostas a pularem sobre você no
segundo seguinte. Incentivada, conferi se o frasco estava bem escondido na minha cintura,
protegido pelo moletom largo que escolhi, e fiz o caminho de forma lenta, contudo, fingindo
indiferença, para o caso de ser de fato uma pegadinha.
Contudo, não havia ninguém esperando por mim. Desci as escadas e me surpreendi com
mais silêncio e vazio. Nenhum soldado, nem mesmo o que se atreveu a me entregar o telefone,
circulava pelo local. Nenhum som, nenhum movimento chegava até mim.
Onde estavam todos?
Sem pressa e atenta de uma forma que me deixava tensa, procurei pela cozinha como se
estivesse interessada em explorar a cobertura. Abri e fechei portas, atravessei ambientes e em
momento algum tive companhia.
Então, finalmente, cheguei à cozinha, mas, para minha decepção, não havia nada sobre o
fogão embutido. Nenhuma panela indicava que alguém pelo menos preparou o jantar e já
estávamos em um horário em que a comida deveria estar no fogo.
Olhei ao redor. Não havia vasilhas de porcelanas na mesa, nem de nenhum material que
indicasse que em pouco tempo pelo menos duas pessoas precisariam jantar. Apenas uma pequena
fruteira contendo bananas e três maçãs. Com um suspiro de decepção, retirei o pequeno frasco e
despejei algumas gotas nas maçãs.
Eu precisava de mais vantagem.
Abri a geladeira e dei de cara com quase nada que serviria de ajuda. Não havia garrafas de
água, nem de suco, refrigerantes… nada de líquido.
O que Álvaro fazia ali, vivia de ar?
Não havia nem mesmo vasilhas com sobras do que comemos mais cedo. Era como se…
droga! Álvaro pedia comida e descartava o que sobrava, ou, entregava aos soldados para que
dividissem entre eles.
Não era uma prática comum. No geral os homens da máfia tinham quem cozinhasse, quem
garantisse que ninguém envenenaria a comida. Quando queríamos ir a algum restaurante, ou era
de aliado, ou nosso. Pelo menos com a Camorra era assim. Quer dizer… não para mim, em
especial quando eu fugia, mas…
Fechei a geladeira e procurei por mais alguma coisa. Havia o pequeno aparelho que
fornecia água, porém, esta vinha do encanamento e não de alguma reserva.
Desesperada, abri os armários em busca de algo que não fosse, pratos, talheres, copos, até
que encontrei vinho. Todos lacrados.
Que. Droga.
Então ouvi um barulho próximo a cozinha, como se alguém entrasse na cobertura pela área
de serviço. Uma mulher e um homem conversavam. Escondi o frasco com pressa, alcancei um
copo e corri para enchê-lo com água. Foi no exato momento que os dois entraram.
Por alguns segundos nos encaramos. Eles surpresos, e eu tensa como se pudesse me
quebrar em milhões de pequenos pedaços.
— Srta. Isotta? — O soldado disse com a voz insegura. — Precisa de algo?
— Já consegui. — Levantei o copo e lhe ofereci o sorriso mais sem graça que consegui. —
Estava com sede.
A mulher foi até a mesa e depositou sobre esta as duas sacolas que segurava. O cheiro de
comida inundou todo o espaço da cozinha. O rapaz depositou mais duas sacolas ao lado das
outras, ainda com a atenção em mim.
— Onde estão todos? — eu disse após me obrigar a beber quase toda a água.
— Aconteceu alguma coisa? — o soldado me sondou, atento aos meus movimentos. — A
senhorita precisa de algo?
— Não. Eu… só fiquei curiosa. Cheiro bom. Comida brasileira cheira bem — desviei a
atenção.
— O jantar será servido em alguns minutos — a mulher anunciou com um sorriso educado.
Eu me esforcei para não fazer uma careta. Aquele seria o nosso jantar e eu não teria a
chance de pôr as mãos nele antes da hora.
— Hum! Certo. Eu vou… me preparar.
Deixei a cozinha com a certeza de que o soldado me seguiria, mas ele não o fez. Aquilo era
estranho demais. Subi as escadas e voltei para o meu quarto. Agitada, buscava opções para fazer
o plano dar certo. Eu só tinha aquela noite. Ainda sem saber o que fazer, retirei um vestido da
minha mala. Era bonito, curto e justo ao corpo, o que faria com que Álvaro, ou quem aparecesse
para interagir, prestasse atenção em mim e não no que eu fazia.
E então o plano se formou. Eu me vestiria para chamar atenção. Não como se estivesse
pronta para uma festa, nem tão arrumada nem despojada. Desceria antes da hora e tentaria ir à
cozinha outra vez. Usaria a desculpa de estar com fome, ou de precisar do tal chá, então
derramaria todo o conteúdo do frasco no que eu conseguisse.
O plano renovou meu ânimo. Escolhi a lingerie correta. O frasco ficaria entre meus seios, o
que me obrigava a mantê-los afastados para não me incomodar e próximos o suficiente para
esconder meu segredo. O vestido fez o seu trabalho e minhas curvas ficaram perfeitas nele. A
dúvida sobre deixar o cabelo solto ou preso acabou quando percebi que os fios longos ajudariam
a esconder o frasco, então voltei minha atenção para o que calçaria.
Saltos altos ajudariam a ressaltar minhas pernas e deixaria o conjunto perfeito, porém,
quem colocaria saltos altos para um jantar comum se não tivesse alguma intenção? E se Álvaro
imaginasse que minha intenção era ele, de forma sexual, ficaria na defensiva. Assim, escolhi uma
sapatilha. Elegante para compor o visual e básica o suficiente para não chamar atenção. A
maquiagem seguiu o mesmo padrão. Nada forte ou destacado demais.
Desci as escadas, ainda incomodada por não haver nenhum soldado me acompanhando, e
iniciei o caminho para a cozinha. Mas foi aí que eu percebi que não seria tão fácil.
— Isotta?
A voz de Álvaro em algum ponto atrás de mim fez com que meus músculos se retraíssem.
¡Mierda!
Virei sem pressa e dei de cara com aquele homem incrível, vestindo uma camisa branca
com mangas compridas, puxadas até seu antebraço, e uma calça que não era jeans, mas também
não era moletom. Era de algum tecido solto, maleável e que o deixava ainda mais sedutor.
— Precisa de alguma coisa? — ele perguntou com uma sobrancelha erguida, os olhos
cinzas e intrigantes atentos a mim, vasculhando meus gestos.
— Onde estão os soldados?
Sem deixar de tentar arrancar a verdade da minha alma, Álvaro deu um passo e colocou as
mãos nos bolsos da calça, revelando um quadril magnífico e um volume que… eu não deveria
prestar atenção nisso.
— Do lado de fora — ele disse sem alterar o tom de voz. — Nas áreas por onde não
costumo transitar.
— Ah! Por quê?
Um sorriso escroto e ao mesmo tempo sexy como o inferno, brincou nos lábios dele.
— Para evitar problemas. — Ele deu mais um passo na minha direção, entrando no espaço
mais escuro que nos separava. — Agora posso saber o que você pretendia?
— Um chá — eu disse com pressa. — Estou com um pouco de cólica.
— Um chá? — Outro passo. Seu rosto quase revelado outra vez. As mãos ainda nos
bolsos, repuxando o tecido e desenhando seu corpo.
— Para cólica menstrual — testei a palavra para constatar se ele também se acovardaria.
— Você está menstruada?
Não, Álvaro não se acovardaria. Eu só podia estar louca quando imaginei que o venceria
com aquela conversa. O filho da puta sorriu um pouco mais, na certa ao perceber que o jogo
virou contra mim, deixando-me desconfortável. Abracei o corpo para manter a dignidade.
— Não — revelei. De nada adiantaria mentir. — Mas estou com cólica, o que acontece
sempre um pouco antes.
— Entendi.
Ele se aproximou. Tão perto que minha boca secou quando seu hálito me atingiu. Minhas
pupilas arderam quando me permiti hipnotizar pelo olhar escandaloso que me prendia. Álvaro
esticou um pouco mais os lábios, me provocando.
— Chá de quê?
Eu queria pensar, buscar em minha mente algum chá que não existisse no Brasil, o que
seria a tarefa mais difícil, levando-se em conta que eu nem sequer sabia quais eu encontraria
naquele país. Entretanto, não havia tempo. Eu não tinha cólicas menstruais, então não fazia ideia
de qual chá tomar, ainda que fosse na Espanha.
— Maçã — eu disse, incrédula, confusa e arrependida. — Tem umas…
Ele sacou o celular e com alguns toques tinha alguém na linha.
— Traga um chá de maçã para a senhorita Isotta.
E desligou. Curto, frio e sem nenhuma educação.
— Vamos esperar na sala. O jantar já foi servido.
Outra decepção. A merda do jantar foi servido, o que eliminava minhas chances.
— Já?
— Já.
Álvaro indicou o caminho e só caminhou quando eu segui na frente. Eu queria morrer, no
entanto, me obriguei a continuar. Faria o que pudesse na primeira chance.
Quando alcançamos a sala de jantar, observei que a comida não estava em embalagens do
restaurante, mas em louças, como aconteceu na outra refeição. Também não continha a
quantidade que coubesse em quatro sacolas, o que me levava a crer que em outro ambiente, os
soldados comiam. Menos uma chance para mim.
Suspirei ao observar a mesa posta de forma impecável para acomodar uma comida que ele
nem sabia quem cozinhou.
Era fácil viver no Brasil.
— Quer esperar o chá? — ele perguntou ao passar por mim.
— Não. Temos vinho. É uma opção melhor.
Álvaro se deteve e voltou a me encarar.
— Para cólica?
Não, para embebedar a minha decepção, eu quis dizer, mas sorri de forma educada e
sentei, acomodando-me.
— Para tudo. O que um bom vinho não é capaz de fazer?
— Eu não sei, mas também não acredito que uma garota de dezenove anos saiba me dizer
— provocou. Estreitei os olhos na sua direção.
Com um sorriso escroto Álvaro abriu o vinho, serviu minha taça e em seguida a dele. Inalei
o aroma e levei a bebida à boca e provei o sabor encorpado.
— Bom?
— Sim, muito bom. — Tomei outro grande gole.
A decepção que se alastrava pelo meu corpo rivalizava com a vontade de encontrar uma
forma de ganhar. Se um lado meu queria lamber minhas feridas, o outro gritava palavras de
ordem, obrigando-me a não desistir.
Outro longo gole, perdida em pensamentos, buscando possibilidades, incomodada com o
frasco entre os meus seios.
— Beba devagar, menina — ele disse ao se servir. — E coma, já que quer beber tanto.
— Tanto? — Revirei os olhos. — Pelo amor de Deus, esse provavelmente será meu último
jantar em paz. — Entornei o restante do líquido e mostrei a taça a ele para que pudesse servi-la.
— Qualquer um no corredor da morte tem direito a uma última refeição com dignidade.
Álvaro riu e encheu minha taça. Mais do que a etiqueta ditava e menos do que eu queria
para entorpecer a cabeça.
— Agora coma — ordenou.
Coloquei um pouco da comida no prato. Era algo cremoso que continha arroz e camarão,
além de ervilhas, que eu detestava, e algo que parecia presunto. Separei as ervilhas para o canto
do prato e experimentei sob o som do riso irônico dele.
— Seu paladar é infantil? — provocou. — Por que não come as ervilhas?
— Eu desconfio de pessoas que engolem isso sem protestar. Alguém capaz de comer
ervilha é capaz de qualquer coisa.
— Deve ser por isso que eu adoro.
E, de provocação, ele capturou uma do meu prato e a levou à boca. Eu deveria odiá-lo por
estar tão feliz em minhas últimas horas ali, em especial por saber que me entregaria a Nicolo,
mas a verdade foi que não consegui encontrar outro sentimento que não fosse o desejo quando o
vi roubar a ervilha do meu prato e mastigá-la.
Eu não estava em meu melhor estado. Quem em sã consciência se excita ao ver um homem
mastigar? Desviei a atenção, incomodada, estranha, como um bombardeio de pensamentos
conflitantes em minha mente.
Álvaro bebia, porém, seu copo estava a uma distância segura de mim. Além do mais, eu
nunca conseguiria pegar o frasco, derramar em sua taça sem que ele conseguisse colocar uma
arma em minha cabeça antes. O celular dele tocou, Álvaro atendeu após me pedir licença,
entretanto, a ligação foi breve.
— Seu chá chegou — ele avisou, já levantando.
Ouvi passos próximos a sala onde estávamos. Meu tempo era curto demais para me
inclinar sobre a mesa, mas não para tirar o frasco entre meus seios. Álvaro deu as costas, eu
peguei o que desejava e coloquei entre as coxas escondidas pelo guardanapo no meu colo. Esse
foi todo o meu tempo. O soldado entrou na sala com uma xícara fumegante, Álvaro a pegou da
mão dele e o dispensou. Logo ele estava ao meu lado, depositando a xícara a minha direita.
— Aproveite que está quente — ele disse ao se afastar para voltar a ocupar a cadeira.
— Prefiro frio — eu disse com pressa, inventando a mentira na hora. — E estou no meio
da minha última refeição, lembra?
— Ah, sim — ele brincou, mantendo o sorriso. — Eu não sei se acho todo esse seu drama
válido.
— Poderia me deixar jantar em paz, já que se diverte com a minha dor — tomei mais
vinho, o que o fez estreitar os olhos.
— Você quer ficar bêbada?
— Quero.
Eu o encarei, séria, decidida a não desistir de lutar até minha última chance.
— Mas não vou. Acredite, é preciso mais do que uma garrafa de vinho para me derrubar.
— Vindo de você eu não duvido de nada, Isotta.
E lá estava aquele sorriso escroto e sexy, que logo desapareceu para que ele mastigasse
como se… desfrutasse do meu corpo. Era provocação demais.
Por alguns minutos comemos em silêncio. De tempos em tempos ele me observava, eu
fingia que comia, que não me incomodava enquanto fervia por dentro.
— Você come doce? — ele perguntou assim que me viu engolir a última garfada. —
Sobremesa?
— Em qualquer lugar decente teríamos a entrada, uma salada e o prato principal, tudo isso
antes da sobremesa.
— Bom, não estamos em um lugar decente. Você não come ervilhas, então não pode
reclamar da falta de uma salada, e eu tenho muito receio das suas maluquices para manter um
empregado nos servindo, então, pulamos para o prato principal.
— O que você acha que eu faria, que aproveitaria a faca de frutos do mar para fazer o
empregado de escudo?
— Dentre outras coisas — provocou antes de levar a taça aos lábios que mantinham o
sorriso escroto.
Eu o detestava e ainda assim, me sentia atraída para ele como uma abelha à sua colmeia.
Álvaro atiçava lugares que eu não gostaria que se manifestassem por ele.
— Vai querer a sobremesa?
— Pode ser vinho? — sugeri, apontando para a garrafa vazia. Ele suspirou com certo
aborrecimento antes de responder.
— Já que quer tanto se embebedar, Isotta. Vamos lá. — Ele levantou, o que fez meu
coração disparar. — Vou buscar outra garrafa. Mas será a última.
— Tudo bem. Pode ser na sala de TV?
— Por que na sala de TV? — Ele voltou à posição que indicava que desconfiava de mim.
— É mais confortável e eu estou com cólica, esqueceu?
— Não. Pode ser lá então.
Ele pegou a garrafa vazia e saiu da sala de jantar.
Com o coração acelerado quase festejei quando ele deixou a taça onde ainda restava um
pouco do seu vinho. Arfante, sem querer fazer nenhum barulho, peguei o frasco e despejei um
pouco do conteúdo, misturando a bebida. Sem opção, levei o frasco de volta ao meio dos seios e
me acomodei ao ouvir os passos dele de volta.
Álvaro surgiu com uma nova garrafa de vinho nas mãos. Nada nele demonstrava
desconfiar de mim. Ele a abriu, serviu minha taça e a dele.
— Vamos.
Segurando a taça em uma mão e a garrafa na outra, ele aguardou que eu levantasse. Morta
de medo, joguei o cabelo sobre os seios, certa de que se eu me abaixasse ele descobriria que
havia algo de errado ali, e o segui.
Eu queria me abraçar pela vitória, no entanto, não havia tanto sabor em conquistá-la, afinal
de contas eu derrubaria Álvaro, mas ainda enfrentaria seus soldados e depois disso, nunca mais
nos veríamos.
17
ÁLVARO

Eu estava desconfortável e ainda assim, não conseguia me concentrar direito. Em dois dias
eu tive muitas versões de Isotta e em todas elas eu encontrava algo que me protegesse do feitiço
que aquela garota lançava quando me encarava. Naquele momento eu não encontrava nenhum.
Isotta conseguia ficar ainda mais bonita quando se apresentava simples, sem artimanhas.
Eu a observava ansioso para descobrir o que me tiraria daquela força que me levava a ela, o que
ela aprontaria naquelas últimas horas antes de ser entregue ao pai, e nada acontecia.
Nada.
Ela se mantinha conformada, não tranquila, não fora do que ela de fato era, nada que me
alertasse para algum desvio da sua personalidade. Chegava a ser confortável e exatamente por
isso era desconfortável. Porque eu não podia me sentir assim com aquela garota.
Não com ela.
Peguei a taça, a garrafa de vinho e deixei que ela passasse na minha frente, ainda incerto
quanto a me permitir relaxar perto dela. Isotta não era boba como as garotas da sua idade. O seu
histórico era o suficiente para me fazer acreditar que ela não se renderia com tanta facilidade,
ainda que houvesse a promessa de que Jean intercederia.
Não. Aquela garota lutava. Isotta não desistia, não parava de socar até conseguir o mínimo
de vitória ou até ser eliminada. E, levando-se em consideração a sua total aversão ao primo, sua
luta só acabaria quando ela fosse eliminada. Por isso a Isotta que reclamava de cólica, mas
esqueceu o chá sobre a mesa, que sorria e reclamava sem se sentir mal por isso, que bebia
enquanto aguardava o próximo round, arrancava todo o conforto daquela noite.
— Então… — ela disse quando levei a taça aos lábios, pegando-me de surpresa ao se virar
na minha direção quando entramos na sala de TV e me impedindo de dar aquele gole. — Com o
que exatamente os Kuhns trabalham?
Eu sorri com malícia. Ela não correspondeu. Manteve toda a atenção em meu rosto, como
se precisasse se concentrar para não desviar os olhos para outro lugar. Coloquei a taça sobre a
mesa de centro e indiquei o sofá. Isotta sentou-se revelando uma tensão que não deixou refletir
em nenhum momento daquela noite.
— Transporte, comunicação, mineração… uma gama de diversidade que te deixaria
confusa.
Ela piscou, ainda encarando-me. A taça de vinho na mão, esquecida.
— Você não quer que eu discuta negócios com uma garota da Camorra, certo?
— Basicamente é sempre a mesma coisa, Álvaro. Drogas, armas, mulheres… concessões
dos governos…
Ela desviou a atenção para a minha taça e então bebericou do seu vinho. Tensa. O que
Isotta aprontava?
— Não vai beber?
— Vou, mas não com a mesma pressa que você. Não estou interessado em ficar bêbado.
Ela revirou os olhos e bebeu mais um gole.
— Você consegue ser tão chato quanto meu pai.
— É um elogio, Isotta — provoquei.
— Deve ser. Homens velhos tendem a encarar a chatice como uma qualidade.
Eu ri e peguei a taça.
— Você gosta de ser Capo?
Eu estava com a taça nos lábios quando a pergunta chegou. Ingeri um pequeno gole e
tentei organizar meus pensamentos diante da garota que me prendia com aquelas íris diferentes,
penetrantes, tão bela que me levava a admirá-la o quanto eu pudesse.
— Não — revelei. Isotta fez cara de surpresa. — Esse cargo não é meu, é do sobrinho do
Jean. Ele tem dezesseis anos e está se preparando para assumir quando chegar o momento certo.
— Eu não sabia disso. — Sua voz baixa e hipnotizante revelava que de fato o assunto era
novo para ela.
— Há cinco anos a irmã e o cunhado do Jean foram mortos — informei, ansioso para não
pensar no assunto, afinal de contas, eu matei Lícia para salvar Jean e meu primo matou o irmão
para salvar a cunhada e ex-amante. Uma confusão digna dos melhores enredos para novelas e
complicada de ser debatida com uma menina de dezenove anos. — Jean cria os sobrinhos.
Seguindo a hierarquia, esse cargo não é meu, salvo se não houvesse alguém para ocupá-lo.
— E você vai mesmo entregar quando chegar a hora. — A maneira como ela afirmou,
chocada e satisfeita ao mesmo tempo, me desconcertou.
— Vou. Quando acontecer, meu pai se aposenta e eu assumo como Consigliere do Jean.
— Hum! Um cargo melhor.
— Com mais obrigações também. — Dei outro pequeno gole em minha bebida quando a vi
fazer o mesmo. Isotta suspirou com pesar.
— Você vai embora para a Alemanha — ela disse.
— É. Vou. Por que a consternação?
— Porque eu gostei do Brasil.
Eu ri, de repente mais relaxado do que deveria. Menos focado em manter a guarda para
caso Isotta atacasse e mais preso ao rosto impecável, os olhos expressivos e grandes, os lábios
carnudos que exibiam um sorriso tímido.
— Você não conheceu o Brasil.
— Adoraria conhecer.
— Então, temos um bom plano. — Evitei o riso que insistia em escapar. — Você casa com
Benito. É uma boa forma de Jean convencer seu pai. Não era de um Capo que você precisava?
— Benito?
— O sobrinho do Jean.
— Ele tem dezesseis anos. — O tom indignado me fez rir.
— Em três anos ele atinge a idade ideal e você não estará tão velha para ele.
— Se for para eu perder meu tempo em um casamento sem amor, que seja com quem tem
capacidade em outros ramos. — Ela deu outro gole e me indicou a taça para que eu pudesse
preenchê-la.
— Outros ramos?
— Sexo, Álvaro.
Um calafrio transpassou minha coluna ao me recordar no quanto de desejo havia em mim
por aquela garota.
— Se é pra ser ruim, que pelo menos seja bom.
— E isso te leva a…
— Você — ela disse sem rodeios.
— Você é louca, Isotta.
Deixei a minha taça de lado e pensei em levantar, entretanto, me senti pesado demais para
fazê-lo. Nada de bom sairia daquele quadro. Isotta perto demais, provocante demais, com tanta
facilidade para colocar as mãos em mim, e eu nela.
— Fale-me de você — pedi, como única forma de desviar a sua atenção.
— O que quer saber além do que conseguiu em suas investigações?
Afundei no sofá, incapaz de não me sentir acolhido e puxado pelo sorriso manso e voz
baixa daquela garota, sem considerar o poder dos seus olhos. Eu não conseguia parar de olhá-la.
Suspirei. Era melhor parar de beber, em especial por ter sido um dia complicado depois de uma
noite quase sem dormir.
— Minha mãe era brasileira — ela revelou, como se buscasse na mente o que poderia me
contar. — Ela queria que eu estudasse, que viajasse e conhecesse o mundo antes de meu pai
arrumar um marido para mim. Queria que eu me apaixonasse como eles se apaixonaram.
— Nem todo mundo pode ter tudo — brinquei. — Mas você deveria estudar. O que te
impede?
— Meu pai. — A forma triste como ela confessou, fez com que eu quisesse confortá-la. —
Ele não permitiu. Queria que eu casasse, mas eu consegui afugentar todos os pretendentes.
— E você fez um ótimo trabalho. Ninguém se esquecerá dos seus escândalos, Isotta.
— Duvido que um homem como você se importe com isso.
Eu ri, percebendo que era fácil não pensar nos problemas quando conversávamos daquela
forma. Eu me sentia… leve. De uma forma estranha, não natural.
— Não, eu não me importo. Isso que as máfias insistem em manter para as mulheres é uma
bobagem.
— Concordo.
Ela brindou na minha taça esquecida sobre a mesa e tomou outro gole.
— Não vai beber? — insistiu. Olhei para o vinho e não tive vontade de alcançá-lo.
— Daqui a pouco.
— O que aconteceu com você, Álvaro?
— Como assim?
— Um homem da sua idade, Capo da Ndrangheta, bonito, rico… nunca precisaram de
você em algum acordo que envolvesse casamento?
— Eu só tenho trinta e quatro anos, Isotta. E não, nunca precisaram de mim, graças a Deus.
Ela colocou mais intensidade no olhar enquanto me avaliava como se fosse anormal
homens da minha idade não estarem casados. Era para eu começar a reagir contra ela, no entanto,
eu não conseguia. Isotta se aproximou, os olhos fixos nos meus. Eu deveria me afastar, ou afastá-
la, contudo, minha mente congelou ao ver aquele corpo indiscutível deslizar para perto de mim.
— Você já se apaixonou? — ela sussurrou. Tão linda e sensual.
— Não.
— Nunca? — Mais um movimento e ela estava bem próxima a mim.
— Nunca. O que está fazendo, Isotta?
— Estou… me despedindo de forma apropriada.
— De…
Ela me beijou. Isotta De Rosa, uma garota de dezenove anos, a mesma que me
enlouqueceu nas últimas horas, me silenciou ao juntar os lábios carnudos e sensuais aos meus.
Eu deveria afastá-la, impedi-la, mas seu calor era gostoso, seu sabor era indescritível. Isotta me
beijava e me dominava, como se adentrasse meu corpo, sugasse minhas forças, confundisse meus
pensamentos.
Manhosa, ela se projetou sobre mim e acabou com os únicos fios de sanidade que
poderiam me impedir. Minha mão se alojou em sua nuca e a puxou para intensificar o beijo. A
outra iniciou o processo em sua cintura, mas deslizou pelas costas, desceu até a lombar e
amaldiçoou o tecido que me impedia de sentir a pele.
Isotta se aproveitou da minha entrega, sentou em meu colo e se apertou em minha ereção.
Puta que pariu! Eu me sentia pegando fogo de tanto desejo. Percorri o corpo delicioso com as
mãos me questionando como ela conseguia fazer aquilo ao mesmo tempo que esquecia por
completo dos motivos para não fazermos.
E foi essa incapacidade de raciocinar que me fez romper a barreira do vestido, subindo a
peça pelas coxas delineadas até que meus dedos estivessem na bunda redonda e gostosa,
apalpando a carne enquanto ela rebolava sem pressa, a calcinha, minúscula, fio dental, me
provocando como se eu nunca tivesse vivenciado aquilo antes.
Havia uma fome em mim que eu não reconhecia. Uma necessidade que não pertencia ao
meu estado normal. Isotta rebolou outra vez quando minhas mãos se cercaram de sua bunda, eu
senti todos os movimentos e estremeci de uma forma insana. Um desejo bruto, selvagem, carnal,
me impulsionava.
Ao mesmo tempo, eu me sentia afundar naquelas sensações, como uma névoa que me
cegava, um sonho gostoso no primeiro estágio do sono. Eu queria beijá-la, tocá-la e continuar
beijando e tocando sem nunca encontrar um desfecho.
Eu queria Isotta De Rosa.
Reunindo minhas forças antes que aquele sonho me dominasse, girei nossos corpos, fiquei
por cima dela. Isotta me acolheu com as pernas, o sexo colado ao meu ainda que algumas
camadas de tecido nos afastasse. Descolamos os lábios, interrompendo o beijo longo que nos
roubava o ar, no entanto, eu não conseguia me manter longe da pele bronzeada, quente e
brilhante, então deslizei a boca até que encontrasse os seios cheios.
— Álvaro… — ela ofegou, mas seus dedos adentraram em meu cabelo e puxaram meu
rosto para me impedir.
— Porra, menina, isso não pode continuar — consegui dizer, ainda que não encontrasse
forças para me afastar.
Isotta tentou alcançar minha boca enquanto me mantinha longe dos seios que eu ansiava
por devorar. Por que ela me impedia? E por que fazia aquilo, mas não deixava de erguer os
quadris e se esfregar em mim?
— Por que não? — ela sussurrou, um pouco tensa, um pouco na luxúria. — Esse seria o
melhor de todos os arranjos que conseguiríamos.
— Porque não quero desencadear uma guerra com a Camorra.
Mordisquei seu queixo, lambi a pele e me permiti outro arrepio ao notar que o sabor me
agradava. Eu deveria beijar aquele corpo todo, fazê-la gozar em minha boca antes de me enfiar
em sua carne até encontrar satisfação. Mas aquilo não podia acontecer, ainda que meu corpo
implorasse.
— E o mais importante de tudo, você é virgem.
Ela riu e seu riso adentrou minha mente como um feitiço que me enebriava cada vez mais.
Eu me senti lento, em uma mistura deliciosa de desejo preguiçoso e a necessidade de desacelerar
para estender o prazer.
— E não deveria ser? — ela sussurrou com os lábios quase nos meus. — Todas as garotas
com potencial a esposas da máfia devem ser virgens.
— Não as nossas. — Mordisquei o lábio inferior, lambi a carne ofertada. — E eu nem sei o
que fazer com uma virgem — revelei. Ela riu outra vez.
— Como não? Um homem na sua idade deveria ter o mínimo de experiência para…
Segurei as mãos dela para que não pudesse mais me impedir de chegar onde eu tanto
queria. Isotta me prendeu com o olhar que beirava a inocência, mas perdia para a devassidão.
— Eu não soco fofo, fedelha — murmurei em meu último momento de energia. — Não
sou o príncipe encantado. Eu fodo, de verdade. Pra valer. E isso é uma merda para a primeira vez
de qualquer garota. Então desista dessa ideia antes de se traumatizar de vez.
Era para assustá-la, para forçá-la a se afastar de mim, no entanto, Isotta sorriu, enroscou as
pernas em meus quadris e roçou em minha ereção. Então, eu já não enxergava direito. Respirei
fundo como se o ar não conseguisse entrar nos meus pulmões. Tentei me afastar, mas não havia
forças em mim.
— Álvaro? — ela chamou de algum lugar e se misturou ao choro distante e de alerta do
Harry.
E então, o barulho inconfundível de armas engatilhadas.
— Que porra é essa? — Alguém disse, mas eu fui tragado pelo sonho e nada mais vi.
18
ÁLVARO

— Aqui. — Jean me entregou uma xícara de café enquanto eu tentava, de alguma forma,
me manter acordado. — Ela te pegou de jeito.
— Porra! — resmunguei. — Eu deveria matá-la.
Jean riu e sentou na cadeira à minha frente no escritório. Em algum momento, entre gritos
e confusão que quase fez as duas máfias se enfrentarem, alguém me levou para o escritório e
conseguiu me fazer acordar.
— Você deu sorte por não morrer dormindo. Por pouco Nicolo atira em você.
— Hugt! — grunhi. Um enjoo chato fazia meu estômago protestar contra o café. — Ela me
dopou.
— Não o suficiente para te impedir de colocar as mãos na garota — ele acusou. — E agora
estamos com um problema.
— Imagino. Eu… não aconteceu nada, Jean. Isotta é… ela tirou a minha concentração com
essa merda de sonífero misturada em meu vinho.
— Ela disse ao pai que não foi a primeira vez.
Olhei meu primo e melhor amigo. Enquanto eu obrigava minha mente a encontrar as
respostas, Jean me analisava com olhar atento e eu soube que o problema era maior do que eu
poderia esperar.
— Ela ainda é virgem — rosnei.
— Para a sua sorte.
— Que porra!
Bebi mais um pouco do café amargo e tentei fazer meus pensamentos se ajustarem.
Eu relembrava uma ou outra coisa daquela noite. Os gritos de Isotta implorando ao pai para
conter Nicolo, depois Jean pedindo a Juan para ser sensato e resolver a situação de forma
pacífica. A ira do noivo e a briga com Isotta que se negava a casar com ele. Um monte de flashes
que iam e vinham em uma verdadeira confusão.
Até que eu acordei com Jean estapeando meu rosto e pedindo para eu reagir e me manter
acordado porque Isotta tinha me dopado. Respirei fundo, o enjoo cada vez mais forte.
— Dois soldados estão em um estado pior do que o seu. Pelo que entendi, ela colocou a
mesma substância nas frutas — ele avisou.
— Filha da puta!
— Eu não vi essa raiva quando se atracou com a garota — ele acusou.
— Porra, Jean! Ela… ela…
— É linda. Eu sei. Mas você não podia tocá-la e agora estou com uma bomba nas mãos.
— Juan sabe do que Isotta é capaz. Ele não pode iniciar uma guerra em nosso território por
causa disso.
Jean suspirou, acendeu um cigarro, soltou a fumaça, tudo sem desviar os olhos de mim.
Havia uma tensão tão grande naqueles gestos que eu me senti retornando ao normal. Bebi outro
gole do café e desejei estar desperto o suficiente para encarar aquele problema.
— Por que chegaram antes do combinado?
Ele ergueu uma sobrancelha e deu um sorriso de deboche.
— Graças a Deus chegamos — disse sem pressa. — Ou você transaria com Isotta ou ela
fugiria outra vez. Ou… as duas coisas.
— Ela não passaria pelos soldados.
— Tem certeza? Ela passou por você.
Pressionei a caneca nas mãos e me odiei por ser verdade. Um homem como eu, com o
meu histórico, com a minha bagagem, manchava a minha reputação e minava a confiança do
Don, ainda que este fosse o meu melhor amigo.
— Isotta é escorregadia — resmunguei.
— Ela não parecia ansiosa para escorregar daquele sofá.
— Certo, Jean. O que você quer que eu diga? Isotta me provocou, atiçou, arrancou a minha
capacidade de resistir. Eu errei, porque sou o adulto aqui…
— Ela vai fazer vinte anos.
— Pro inferno com isso! — rebati. — Eu errei e aceito a minha punição, certo? Ela… não
deixe que o pai utilize isso para puni-la.
Outra vez Jean me analisou com curiosidade. Ele evitava, mas eu via o seu esforço para
não sorrir e tratar aquilo de forma leve. Porque não era, e como Don, teria que assumir para si o
meu erro e recompensar Juan de alguma forma, o que não agradava em nada o meu primo.
— Você sabe que não é tão simples assim — ele iniciou a conversa. — Isotta estava sob a
sua proteção. A minha proteção, Álvaro.
— Eu sei.
— O que encontramos naquela sala… nos enfraqueceu.
— Porra!
— E eu tinha uma gama de argumentos contra Nicolo, mas agora, não posso utilizar mais
nada para fazer com que Juan não obrigue a filha a casar com o sobrinho.
— Ah, droga!
De imediato meus pensamentos foram para Isotta e no quanto ela temia que isso
acontecesse. Ela escolheria a morte e eu não podia duvidar disso. Não dela.
— Juan trazia duas opções para a garota — ele continuou. — O convento deixou de ser
uma. — Jean fez uma pausa proposital. O clima tenso pesou em meus ombros. — E eu precisei
arrumar a segunda opção.
— Como assim?
— Você me pediu para não deixá-la casar com Nicolo, e eu vim por isso.
— O que precisou fazer?
— Sugeri a segunda opção.
Jean não precisou me dizer mais nada, e nem a minha mente entorpecida precisou de
tempo para compreender o que acontecia. Só havia uma maneira de resolver aquele problema
depois do que fizemos, porque eu não colocaria a culpa toda nela quando sabia que desejei fazer
o que fiz.
— Você entende a delicadeza da situação, certo? — ele perguntou como se precisasse
confirmar que eu não lutaria contra a decisão tomada.
— Juan aceitou?
Meu primo confirmou com a cabeça.
— Com a ajuda das mentiras da garota — ele completou. — O que me leva a continuar
com essa conversa.
— Nós não transamos. Não passou de uns beijos, Jean.
Meu primo levantou, contornou a mesa e parou à minha frente. O cigarro nos lábios
enquanto ele continuava me analisando.
— De acordo com Isotta, vocês se apaixonaram — ele foi direto ao ponto, sem me deixar
contestar. — Ela disse que você prometeu que ficaria com ela.
— Porra!
Coloquei a caneca sobre a mesa e enfiei os dedos pelos fios bagunçados para puxar minha
sanidade e conseguir me impedir de fazer uma bobagem.
— Essa garota é louca. Nada disso é verdade.
Jean concordou, fumou um pouco mais, apagou o cigarro no cinzeiro e se encostou na
mesa.
— Eu sei. Mas foram as mentiras certas para fazer Juan aceitar a minha proposta, mesmo
sob os protestos do Nicolo. A questão agora é: eu tive que fazer isso, Álvaro. Não porque não
conseguiria conter Juan, mas para salvar a garota, como você me pediu. Iniciar uma guerra com a
Camorra não está na minha lista de afazeres para este ano, mas eu não negaria a vontade de
participar de uma ação mais… intensa.
Por um segundo nos encaramos e não evitamos o sorriso cínico e o brilho nos olhos, pela
sede por uma boa luta. No entanto, logo Jean retomou a tensão e me levou junto com ele.
— Mas, apesar de eu estar com raiva de você por não conseguir domar o pau e de te achar
um filho da puta neste momento, não quero ser responsável pela sua infelicidade. Você é meu
primo, meu melhor amigo e eu te amo. Então você tem a opção de sumir. Eu encubro tudo e
facilito. Você deserda e desaparece, Álvaro. Eu contenho Juan e faço com que ele acredite que a
Ndrangheta não tem participação nisso.
— Eu não vou fugir, Jean — decidi e vi meu primo relaxar um pouco.
— Bom… pelo menos livramos a garota do Nicolo. Você tinha razão, ele a destruiria.
— O que tinha no relatório?
— Um pouco do que fomos ensinados a ser — ele disse com a voz pesada, mórbida. E eu
entendi sem que ele precisasse enumerar os pecados de Nicolo.
— Tudo bem. Eu caso com a fedelha.
Jean estreitou os olhos e me deu o primeiro sorriso real desde o nosso último encontro.
— Que bom.
ISOTTA
Eu não conseguia encarar meu pai. Apesar de já ter feito coisas para o envergonhar, não
aconteceu aquilo, não daquele jeito e definitivamente nunca na frente dele. E eu não suportava a
decepção que ele destinava a mim sempre que eu me atrevia a erguer a cabeça.
— Onde você conseguiu a substância? — ele insistiu.
— Na boate. Antes de eles me abordarem — menti.
— Se ela e o filho da puta do Álvaro Kuhn se apaixonaram, por que ela fugiria, tio? Não
vê que essa é mais uma armação de Isotta? — Nicolo insistiu, desta vez contido.
Quando meu pai entrou na sala acompanhado de Nicolo, toda a cena se formou em minha
cabeça. Meu primo mataria Álvaro se a Ndrangheta não estivesse em maior número e Jean Kuhn
não apontasse uma arma para a cabeça de Nicolo. A situação tensa piorava com Álvaro
desacordado em cima de mim, o que me impedia de me recompor.
A cena durou menos do que cinco minutos enquanto homens gritavam para que baixassem
as armas e aguardavam por uma ordem do Don, no entanto, para mim durou uma eternidade. Eu
queria tirar Álvaro de cima de mim ao mesmo tempo que não queria, que morria de medo de
fazê-lo pagar pela obsessão do meu primo por mim, que sentia vontade de protegê-lo nem que
fosse com o meu próprio corpo.
E eu sabia que precisava mentir mais, criar uma nova confusão, aborrecer meu pai ao
limite até que Nicolo não pudesse mais ser uma ameaça para Álvaro.
— Por que você o dopou? — Meu pai exigiu saber, inclinado a seguir na direção que
Nicolo o guiava.
— Porque eu sabia que vocês chegariam e que havia a possibilidade do senhor não aceitar
e me obrigar a casar com o Nicolo. Eu fugiria, mas não para longe do Álvaro. E voltaria quando
pudéssemos ficar juntos.
Inventei a história com a atenção fixa em meus dedos entrelaçados uns nos outros como se
apenas isso pudesse me manter inteira.
— Ele… — Meu pai hesitou. Eu sabia qual seria a pergunta. — Vocês chegaram a… —
Concordei e fechei os olhos.
Álvaro me mataria, porém, aquela situação saiu do meu controle. Se eu não levasse a meu
pai a necessidade de aceitar meu casamento com o Capo do Brasil da Ndrangheta, daria margens
para Nicolo iniciar a caça e, por consequência, a guerra entre as duas máfias.
— É mentira dela — Nicolo disse com raiva. — Eu sei quando Isotta mente.
— ¡No es una mentira!
Encarei Nicolo com determinação. Se eu não o convencesse do meu amor por Álvaro,
deveria pelo menos deixar bastante nítida a minha aversão a ele.
— Yo lo amo — revelei com certo gosto em poder destruí-lo um pouco depois de tudo o
que ele fez comigo e com meu irmão. — Eu e Álvaro nos apaixonamos. Ele prometeu que Jean
Kuhn iria interceder e que ficaríamos juntos.
— Você é minha noiva! — Nicolo esbravejou, descontrolado, fazendo com que mais uma
vez meu pai se colocasse entre a gente.
— ¡No soy tuya! — rebati. — Jamás me casaria contigo. ¡Te odio! ¡Prefiero la muerte!
— Isotta? — Meu pai voltou-se para mim, pegando-me de surpresa ao me encarar com
pesar. A primeira lágrima rolou pelo meu rosto e as outras a seguiram.
— Eu prefiro a morte — eu disse em um misto de medo, dor e vergonha. — E o senhor
sempre disse que eu teria que ser virgem para o meu marido. Foi o que fiz. Álvaro será o meu
marido. Uma aliança como o senhor desejou. Não há porque me obrigar a casar com Nicolo.
— Eu mato ele — meu primo disse baixo, cheio de raiva, declarando a sentença. — Eu
mato aquele desgraçado antes que ele consiga te aceitar como esposa.
No entanto, para que os homens da Camorra pudessem continuar sob o teto da Ndrangheta,
precisaram entregar suas armas. Podíamos ir embora em paz, Jean Kuhn assegurou a meu pai,
porém, enquanto estivéssemos no território dele, evitaríamos um confronto.
Eu tenho certeza que meu pai não contestou por causa de Nicolo. Meu primo era instável
demais para permanecer armado diante de tudo o que se desenrolaria ali. Eu não tinha dúvidas
que se ele pudesse, já teria me matado, ou iniciado a guerra.
— Chega, Nicolo — meu pai bradou com firmeza na voz. — Essa é uma decisão minha.
— O senhor disse que nos casaria — ele revidou.
— Eu disse que daria a opção a Isotta. Ou o casamento ou um convento. E se for verdade
tudo o que contou, não há mais nada a fazer. Pelo menos ela estará casada e deixará de ser um
problema para mim.
— Ela é minha! — Nicolo gritou outra vez, descontrolado, ensandecido.
— Chega! — Meu pai gritou de volta, assumindo o papel de Capo, com toda a sua força e
autoridade. — Você volta hoje para a Espanha — determinou.
— Tio…
— Não desobedeça uma ordem minha, Nicolo! Você volta.
Ele abriu a porta e chamou os quatro soldados que estavam do lado de fora. Quando estes
entraram no quarto, sem me olharem devido a delicadeza da situação, reconheci entre eles o que
me ajudou.
— Senhores, por favor, meu sobrinho precisa voltar imediatamente para casa. Dois dos
meus homens vão com ele e o restante ficará aqui enquanto eu permanecer. Avisem a Jean Kuhn
que estou pronto para uma conversa.
Nicolo me lançou um olhar tão repleto de ódio que me fez estremecer. Mas ele não
contestou a ordem do meu pai. Seguido dos homens da Ndrangheta e da Camorra, Nicolo deixou
o quarto. E só depois disso eu pude respirar aliviada, com o choro ganhando força e
convulsionando meu corpo.
19
ÁLVARO

Juan sustentava uma postura calma, mas, com anos de trabalho onde observar era minha
melhor arma, eu sabia que a ruga que se aprofundava entre as sobrancelhas dele e nunca
desaparecia, era a sua única demonstração de aborrecimento.
— Ela é virgem — eu afirmei após meu futuro sogro contar sobre as mentiras que Isotta
inventou para garantir o casamento.
— Ela disse que não — ele frisou.
— O que não é difícil de comprovar — rebati.
Jean puxou o ar como se aquele fosse o seu limite naquele embate, no entanto, agilizei meu
compromisso e o impedi de falar.
— Nada disso importa, Juan. Vou casar com Isotta independente das complicações que nos
trouxeram até aqui.
De soslaio observei Jean relaxar, mas não desfiz a minha postura.
— Então precisamos definir os detalhes — Jean se intrometeu, ansioso para pôr um fim na
tensão. — Para quando o casamento?
— O quanto antes — determinei sem desviar meus olhos de Juan De Rosa. Ele concordou,
sem dizer nada. — É importante que saiba que meu cargo como Capo do Brasil da Ndrangheta é
temporário.
A ruga entre as sobrancelhas dele afundou mais na carne. Jean outra vez adotou uma
posição tensa e me lançou um olhar de reprovação.
— Esse cargo pertence a Benito, sobrinho de Jean e eu assumi enquanto ele não completa a
idade mínima.
— Álvaro assumirá como meu Consigliere tão logo Benito tenha o que precisamos para
conduzir adiante nossos interesses.
— Seu Consigliere — ele disse sem emoção. — O que significa que quando isso acontecer
Isotta voltará para a Europa.
— Sim — eu respondi. — Para a Alemanha.
Outra vez Juan concordou sem demonstrar qualquer sentimento.
— Mas não será por agora — Jean manteve o assunto. — Benito tem dezesseis anos e eu
quero que ele assuma quando fizer vinte e um.
— Compreendo. Os homens da Camorra assumem com dezoito.
— Os da Ndrangheta não mais — meu primo disse de forma assertiva, sem deixar margens
para levar o assunto adiante.
— Bom… não me importa onde Isotta estará — Juan concluiu. — Ela casada e longe dos
problemas já é um alívio para mim.
Não consegui evitar um sorriso provocador. Isotta longe de problemas era uma realidade
utópica. A diferença era que ele transferiria a responsabilidade para as minhas mãos e se livraria
do peso.
— E Nicolo? — Mudei de assunto para o mais relevante naquele momento. — Isotta
estava aterrorizada com a ideia de ser obrigada a casar com ele.
Juan olhou de mim para Jean e ajustou o paletó de forma desconfortável.
— Nicolo está sob controle — ele avisou. — Eu o mandei de volta à Espanha. Deixamos
assuntos pendentes por lá.
— Eu preciso perguntar, Juan — Jean falou ao se aproximar mais do homem. — Nicolo
não aceitou bem a sua decisão. Quais as chances dessa recusa se transformar em guerra entre a
Camorra e a Ndrangheta?
— Vocês não precisam se preocupar. O casamento de Isotta é uma decisão minha e
ninguém pode me tirar esse poder. Eu conseguirei uma esposa para Nicolo e ele logo esquecerá
essa confusão.
— Melhor — Jean concluiu. — Álvaro é o meu melhor homem. É a segunda voz dentro da
Ndrangheta. Eu não pensaria duas vezes antes de iniciar uma guerra para defendê-lo.
E ali estava a ameaça. Jean, que até então se posicionou favorável a encontrar uma solução
pacífica para aquela confusão, podia enganar qualquer pessoa, no entanto, eu sabia que por baixo
daquela fachada ele mantinha a atenção em cada passo firmado naquele acordo, e não se
submeteria as vontades de um subchefe inconformado com a predileção de uma garota.
A paz ganhou aquele limite e Juan entendeu o recado.
O que não me livrava do casamento. Contudo, por causa de Isotta, ou seria eu a iniciar a
guerra ao me negar a casar, ou Nicolo, ao não acatar a escolha dela. No fim, não havia uma
forma fácil de resolver aquilo.
— Juan, nós teremos todo o prazer em manter vocês como nossos hóspedes até o
casamento. Eu só preciso conversar com nosso jurídico para ajustar os detalhes e descobrir qual a
melhor data para a realização.
— Eu agradeço. Aguardarei as informações antes de decidir meus próximos passos.
— Não se preocupe. Amanhã mesmo teremos uma definição. Pedirei que Valentim mostre
onde fica o seu quarto e também que acomode seus soldados.
— Obrigado.
O homem apertou a mão de Jean, selando o acordo, em seguida apertou a minha de forma
firme e forte, para deixar claro que apesar de acreditar que um casamento colocaria limites às
ações da sua filha, ele ainda seria o pai e também a defenderia.
Era o mínimo que ele podia demonstrar.
Assim que ele saiu, Jean se deixou desmoronar no sofá e pegou um cigarro para acendê-lo.
— O que tem em mente? — ele quis saber.
— Agora? — Meu primo riu ao acender o cigarro e tragar a fumaça. — Eu queria matar
Isotta, mas terei que casar com ela para manter a paz, então?
— Não seja dramático. É só um casamento.
— Com uma fedelha quinze anos mais nova do que eu.
Ainda impactado com aquele arranjo, sentei no sofá em frente a Jean e acendi um cigarro.
— De quantos dias você precisa?
Encarei meu primo e me perguntei do que ele falava. Se Jean achava que eu me afastaria
do trabalho por causa daquele casamento arranjado só para satisfazer Juan, ele estava muito
enganado.
— Para esfriar a cabeça antes de oficializar a garota como sua esposa — ele esclareceu.
— Uma vida. Mas, como não tenho essa opção, quando você achar melhor.
— Eu te dei uma opção.
— Que entregaria Isotta a Nicolo. Eu sou menos tóxico.
— Não há ninguém menos tóxico em nosso meio, Álvaro. Por isso mesmo buscamos ser o
melhor para nossas mulheres e filhos. Alguma coisa boa precisa brotar desse poço de lama.
— Isotta será minha mulher apenas no papel, Jean — determinei.
— Eu duvido.
Ele me deu um sorriso escroto que me deixou aborrecido. Então levantou, pronto para
encerrar o assunto.
— Passarei mais tempo na Ilha com as garotas de lá do que com essa menina.
— Bom… eu duvido. Mas… — Ele me silenciou quando tentei argumentar. — Você sabe
que esse casamento acontece quando eu disser que acontecerá. E se você está de acordo, eu
preciso afastar Juan do Brasil o quanto antes. Não confio em Nicolo sozinho em um território
que dividimos com a Camorra. Mandarei Isotta e Juan para Florianópolis amanhã, onde
acontecerá o casamento em uma semana, e você… — Ele me calou outra vez. — Vai para o
Amazonas. Precisamos da liberação e o governador precisa de alguma segurança nesse processo.
— Eu vou para o Amazonas? — Bufei, aborrecido.
— Sim. E depois voltará a São Paulo para finalizar a conversa com o novo governador e
também a reunião sobre nossas empresas. Só volte para Florianópolis no dia do casamento e
tente apresentar uma cara melhor. A menina já tem muitos motivos para temer, não precisa ter
medo do marido também.
Eu dei uma risada sarcástica ao me levantar.
— Você não conhece Isotta, por isso se preocupa.
— Se ela for tudo isso mesmo, irmão, será a esposa perfeita para você.
Jean riu quando o encarei enfezado e deixou a sala junto comigo. Mas eu disse que
terminaria o cigarro na piscina e ele seguiu para o quarto que ocupava na cobertura quando
necessário.
Subi as escadas com calma. Não pretendia seguir para a piscina. Eu jamais conseguiria ter
paz ou encontrar uma maneira de me adequar ao casamento sem antes confrontar Isotta. Por isso,
se eu precisava partir para obedecer às ordens do Jean, aquela era a minha única chance.
Com certeza Jean encarregou-se para que Juan ocupasse o quarto mais próximo ao da filha,
desta forma eu teria que ser rápido e discreto. No entanto, me surpreendi quando encontrei dois
homens meus no corredor, mesmo após a minha ordem para que ficassem longe das áreas
comuns.
— O que fazem aqui? — Eles se entreolharam com receio.
— Ordens do Sr. Kuhn. Do Sr. Jean Kuhn.
— Certo.
Sem esperar que eles ousassem me impedir, dei um passo na direção do quarto ocupado
pela minha futura esposa.
— E a Srta. Isotta?
— Está no quarto dela, senhor — o outro soldado respondeu como se precisasse mostrar
serviço.
— Certo — repeti e avancei.
Sem pedir licença, abri a porta do quarto de Isotta, convicto de que ela não estaria, naquele
momento, adormecida, em paz com suas ações. Isotta podia ser louca, mas era esperta o
suficiente para ter a certeza de que eu não aceitaria de forma pacífica aquela resolução.
E, como deduzi, a encontrei desperta, sentada na poltrona em frente a janela, contudo,
ciente da minha presença. Ainda que o quarto estivesse banhado na escuridão e que eu só
pudesse enxergá-la sob a luz que adentrava pela janela, captei a tensão da garota, o que suavizou
um pouco a minha ira.
— Álvaro.
Isotta levantou, mas não andou até mim. Ela aguardou até que eu me aproximasse, ainda
que isso significasse o risco de enfrentar sozinha a minha fúria.
— O que você fez? — rosnei.
— Desculpe, eu não tive opção.
Apesar da sua voz conter o temor, ela não se encolheu com a minha aproximação ou
recuou. Isotta se manteve firme, os olhos fixos em meu rosto.
— Nicolo ia te matar — informou. — Por isso precisei inventar sobre nós. Se meu pai
aceitasse os argumentos do meu primo, teríamos uma guerra.
— Não tenho dúvidas quanto a isso.
— Álvaro, eu… sinto muito.
— Não parece sentir. Conseguiu o seu arranjo perfeito.
— Não. Eu…
— Você conseguiu, Isotta. Essa era a sua intenção o tempo todo. Precisava se livrar do
Nicolo e não importava o que faria para atingir o seu objetivo.
— Álvaro, não…
— Eu deveria te matar e aceitar a guerra, mas não levaria Jean a algo tão drástico.
— Eu sei… eu…
Ela gaguejou e pela primeira vez demonstrou medo. Seus olhos deixaram os meus e
buscaram pelos dedos que se contorciam.
— Bom… você conseguiu. Terá um casamento por conveniência. De mentira.
O seu arfar me deu forças para continuar. Com um passo me aproximei mais dela, tão perto
que me confundia. Eu não sabia se o que vibrava em mim era raiva ou desejo. Optei pela
primeira. Eu precisava odiá-la, porque a segunda opção seria um desastre.
— Eu serei seu marido, Isotta. No papel. Nada mais do que isso.
Ela nada disse, mas eu pude enxergar a decepção em seu olhar.
Que assim fosse.
— Vejo você no altar.
— Álvaro?
Mas eu já tinha dado as costas, me afastado dela o máximo possível, ansioso para deixar
aquele quarto antes que ela conseguisse modificar a minha decisão.
20
ISOTTA

Dormir foi um sacrifício.


Quando Álvaro saiu do meu quarto eu quis segui-lo, obrigá-lo a me ouvir, a compreender o
motivo pelo qual eu levei aquela mentira adiante. Não me alegrava o rumo que aquela história
tomou, ainda que tivesse me livrado de um pesadelo. E eu precisava dizer isso a ele.
No entanto, Álvaro foi embora e eu não me atrevi a deixar aquele quarto e complicar ainda
mais a situação. Então, sem opção, eu me encolhi na cama e encarei o teto até que a escuridão da
noite cedesse para os primeiros raios do sol. Atordoada, me entreguei ao sono que me acolheu
por um instante, depois me atormentou com um pesadelo que me roubou o fôlego.
Nicolo e seu rosto raivoso era a imagem mais nítida que eu tinha na mente quando
despertei ofegante e trêmula. Ainda sem conseguir alinhar meus pensamentos, lembrei de
Miguel, do seu esquema para me ajudar a escapar e me perguntei se o soldado que ele enviou o
alertou sobre os últimos acontecimentos.
Com um suspiro contrariado deixei a cama e fui em busca do celular. Eu precisava me
livrar dele o quanto antes, porém, não sem tentar falar com meu irmão. Para isso me tranquei no
banheiro, liguei o chuveiro e me sentei na privada, atenta a qualquer barulho do lado de fora.
Disquei o número que ele utilizou para me ligar e rezei para que ele atendesse.
— Isotta? — A voz do meu irmão fez com meus olhos marejassem.
— Oi — sussurrei. — Estou trancada no banheiro. Liguei para dizer que preciso me livrar
do aparelho.
— Eu pensei que já tinha feito isso.
— Então você já soube?
Miguel deu um riso contido, relaxado.
— Nosso pai me ligou hoje pela manhã para contar a novidade. Não sem demonstrar má
vontade por precisar falar comigo.
— Sinto muito.
— Tudo bem. Eu soube durante a madrugada, quando meu informante percebeu que você
não conseguiria fugir.
— Ah, Miguel! — suspirei. — Que confusão.
— Pelo menos você não precisará continuar fugindo do Nicolo. Agora me conte, ele
enlouqueceu?
Eu queria sorrir e tratar daquele assunto de forma leve, mas não conseguia.
— Ele disse que me mataria.
— E eu não duvido que ele queira mesmo. Mas casada com Álvaro Kuhn você terá toda a
proteção que precisa. Nicolo nunca mais colocará a mão em você.
— Tomara.
— Eu lamento muito que seja assim, Isotta. — Sua voz ganhou um tom mais preocupado.
— Até onde consegui descobrir, Álvaro é um homem honrado e Jean Kuhn modificou muita
coisa desde que assumiu a Ndrangheta.
— Sim, ele é um bom homem.
— Você ficará bem. Ele nunca vai te machucar ou exigir o que não pode.
Só que este não era o problema. Enquanto Miguel se preocupava com as questões maritais,
eu me consumia em culpa por obrigar Álvaro a viver aquilo comigo.
— O lado bom é que estarei com você em breve — ele disse, outra vez animado.
— Sério?
— Sim. Nosso pai disse que o casamento acontecerá em alguns dias e que eu preciso estar
presente para manter a imagem da família.
Deixei que um suspiro de lamento escapasse dos meus lábios. Era uma droga que em nosso
primeiro encontro como família fosse unicamente para manter as aparências. Eu odiava o que
Nicolo fez com meu irmão.
— E você poderá estar comigo quando quiser — encorajei. — Livre da perseguição de
Nicolo e da reprovação do papai.
— Sim, minha irmã. Estou ansioso para chegar ao Brasil. Dizem que é lindo.
— Não tenho o que contar. Estou presa praticamente desde que cheguei.
— Então vamos desbravar o país juntos — prometeu. — Se Álvaro permitir.
Ele não será meu marido de verdade, eu quis dizer, mas a confissão se perdeu no caminho
entre meus pensamentos e minha boca. Não tive coragem de contar.
— Vamos sim. É melhor eu desligar. Vou jogar o celular fora.
— Faça isso. Com certeza nosso pai está com o seu aparelho.
— Bem lembrado. Vejo você em alguns dias?
— Sim. Amo você!
— Eu também.
Desliguei e encarei a parede suada pelo vapor quente do chuveiro. Então desliguei o
celular, abri o cesto de lixo, uma coisa estranha adotada por alguns países e sobre a qual eu não
sabia se conseguiria me adaptar, e joguei o aparelho, seguindo de vários pedaços de papel
higiênico para esconder. Com certeza ninguém o encontraria, mas se acontecesse, eu mentiria
para Álvaro, afinal de contas, seria apenas mais uma mentira contada.
Com a confiança abalada, tomei um banho, escolhi minha roupa mais comportada e desci
para o café da manhã onde encontrei apenas Jean e meu pai, em uma conversa baixa sem tons
alterados.
— Bom dia — murmurei.
De imediato meus olhos procuraram por ele, meu noivo, o homem que traí para conseguir
minha liberdade e o mesmo que fez questão de deixar claro que não seria meu marido além do
papel. A ideia me deixava nauseada. E não porque eu estava apaixonada. Longe disso. A
confusão do dia anterior ainda me impedia de buscar por qualquer linha coerente para explicar
meus sentimentos. Contudo, pensar em Álvaro, na nossa química, na maneira como ele me
desejava e me tomava para si, e entender que aquele passo eliminou o que poderia ser de nós
dois me fazia lamentar.
Mas Álvaro não estava em lugar algum.
— Bom dia, Isotta — meu pai disse com indiferença. Jean apenas me cumprimentou com
um aceno de cabeça. — Dormiu bem?
— Não muito. Eu gostaria de me desculpar por ontem, Sr. Kuhn.
— Não se preocupe com isso — ele disse sem de fato colocar peso na situação. — Eu e seu
pai conversávamos sobre o casamento — avisou. — Concordamos que deve acontecer em
Florianópolis, local onde Álvaro reside atualmente.
— Florianópolis?
— Sim. Nossas casas ficam em um terreno afastado e discreto. É segura e ficará mais fácil
para acolhermos todos e manter o trabalho dos meus homens.
— Entendo.
Peguei um pequeno pão e o belisquei com os dedos, sem de fato degusta-lo.
— Seguiremos hoje para Florianópolis — meu pai informou com o sotaque carregado e um
pouco de dificuldade em falar o nome da cidade. Em outra situação eu riria, mas não consegui.
— Hoje?
— É o mais apropriado — Jean falou outra vez. — Quando a notícia do casamento se
espalhar precisaremos ter um esquema perfeito de segurança para você.
— Hum!
— E Jean teve o cuidado de solicitar uma reunião com você e o cerimonial que cuida dos
eventos da família. Você se casa em nove dias.
— Nove dias? — Eu me espantei com a pressa desnecessária.
— Eu preciso voltar para casa — meu pai relatou sem pesar. — E não posso deixá-la no
Brasil sem que o casamento esteja sacramentado.
— Em que século o senhor acredita que vivemos?
— Isotta!
— Estou noiva do homem que escolhi, por que acha que fugirei sem cumprir com o
acordo?
Meu pai se agitou, incomodado com a discussão.
— Não posso levá-la para a Espanha enquanto não ajustar a situação com Nicolo.
— Então não me leve. A Ndrangheta tem total condições de me manter em segurança —
rebati.
— Eu só deixo o país com você casada.
— O senhor só pretende deixar o país quando se certificar de que passou o problema para
outra mão.
— Isotta! — ele rosnou, decidido a me calar.
— Álvaro deseja que seja logo, Isotta — Jean apaziguou. — Ele possui muitos
compromissos, já que não prevíamos um casamento para este ano. Quanto mais rápido
concluirmos esta etapa, mais rápido ele volta para as obrigações.
— Se Álvaro está tão interessado, por que não está aqui, definindo as questões com vocês?
Jean Kuhn deu um pequeno e quase imperceptível sorriso ao me encarar. Por um segundo
eu me senti desconfortável, como se ele pudesse ler minha alma e interpretá-la melhor do que eu.
— Como eu disse: Álvaro tem compromissos que precisa cumprir. Ele estará de volta para
o casamento, não se preocupe.
Não consegui encontrar as palavras. A revelação de que Álvaro não estava em lugar algum
ao meu alcance e que só retornaria no dia do casamento fez meu estômago embrulhar.
Ele me odiava. Nunca me perdoaria. Não seria capaz de me fazer mal, mas me puniria da
forma certa, excluindo-se da minha vida. Meus olhos ficaram úmidos e eu precisei de todo o
esforço para não chorar na frente deles.
O assunto morreu neste momento. Os homens ainda conversaram sem que eu me desse
conta do que abordavam. Durante vários minutos eu me obriguei a ficar sentada, a comer e beber
sem que houvesse em meu corpo qualquer necessidade. Toda a minha atenção se manteve focada
em me fazer esconder a apatia.
Eu faria aniversário em cinco dias. Completaria vinte anos. Em outros tempos seria o auge
da minha alegria e eu acreditei que quando conseguisse me livrar de Nicolo festejaria com mais
vontade. Contudo, aquela reviravolta da minha vida arrancou de mim até mesmo a vontade de
festejar. Porque em poucos dias eu estaria casada com um homem que me desprezava.
***
Foram dias da mais completa e indescritível solidão. Jean nos deixou um dia depois de se
certificar de que estaríamos bem instalados. Ele deixou toda uma equipe à nossa disposição e
uma agenda completa de compromissos que eu deveria cumprir.
Duci era o nome da mulher que me acompanhava fazendo o papel de secretária. Fora
escolhida por Jean e possuía um excelente perfil profissional, o que me fazia pensar milhares de
vezes antes de falar ou fazer qualquer coisa. Ela usava um óculos de aro grande que combinava
com seu rosto e era bonita, apesar de não deixar que seus atributos físicos ganhassem mais
atenção do que seu porte e seriedade.
Com Duci eu me obriguei a passar horas ocupada com a paleta de cores do casamento, os
tecidos, a comida, o modelo de convite, o vestido de noiva e tudo mais que eu nem fazia ideia de
que consumiria até o limite da minha energia. E quanto mais eu fazia, as decisões que eu tomava
sozinha, ouvindo pessoas que eu não conhecia, mais triste eu ficava e mais só me sentia.
Não havia ninguém que eu amava ao meu lado. Miguel só chegaria um dia antes do
casamento, meu pai quase não aparecia, trancado sempre no escritório para continuar seu
trabalho ainda que de longe, o noivo, a outra parte daquele passo tão importante, me abandonou
antes mesmo de eu chegar ao altar, e Duci estava longe de ser uma amiga.
Assim, no terceiro dia eu não me importava com os detalhes. Aceitava qualquer sugestão,
comia o que me servissem, cumpria os horários e compromissos sem encontrar sabor em nada.
Apesar de estar outra vez com meu celular, recebi as restrições como se já fosse parte da família
Kuhn. Nem tudo eu podia postar, havia uma assessoria adequada para isso, nem podia conversar
com meus amigos sobre qualquer detalhe de onde eu estava e o porquê, pelo menos até que o
casamento estivesse concretizado.
E Álvaro não me procurou em nenhum dia.
No meu aniversário, quatro dias antes do casamento, eu tinha uma agenda repleta de
atividades que não poderiam ser canceladas. Meu pai me encontrou no café da manhã, me
entregou um presente, um colar de ouro com um pequeno coração de diamante na ponta. Ele me
deu um beijo na testa e, sem demonstrar emoção, se trancafiou outra vez no escritório.
À noite, sem que eu esperasse por isso, uma pequena torta com recheio de pêssego
apareceu na mesa do jantar após finalizarmos a refeição. Duci demonstrou uma postura mais
relaxada quando cantou parabéns para mim e aceitou um pedaço da torta. Depois disso, nada.
Triste e desestimulada, segui para o meu quarto depois de uma longa pausa sozinha, na
sala, sem acreditar que tive mesmo um dia terrível no meu aniversário. Tomei um banho quente,
vesti a camisola simples e deixei o closet ainda espalhando o creme hidratante nos braços.
E então eu o vi.
Álvaro, sentado na minha cama, com os olhos fixos em mim.
21
ISOTTA

A fração de alegria que senti ao vê-lo em casa antes do casamento, se dissolveu no instante
em que minha mente notou sua expressão nada amigável. Álvaro, com seus olhos de tempestade,
seu rosto perfeito tomado por uma barba de alguns dias, me encarava como se travasse uma
guerra.
Contra o quê? Eu não fazia ideia.
Contudo, naquele instante, eu o temi. Não sei dizer o tanto de tempo que levamos nesse
impasse, eu parada na porta do closet e ele sem desviar os olhos de mim, sem nenhuma palavra,
sem qualquer indício do que aconteceria.
— Álvaro? — iniciei a conversa que parecia que jamais teria um início se dependesse dele.
— O que faz aqui?
Ele piscou, como se despertasse de um sonho. Em seu rosto uma determinação estranha
que deixou o sorriso irônico ainda mais ameaçador.
— É seu aniversário — ele disse, arrastando as palavras.
— Você bebeu?
Outro riso irônico, um tanto quanto sádico.
— Um homem na minha posição pode se presentear com um dia de bebedeira, não?
Respirei fundo, ponderando sobre o que ouvi e o que poderia responder. Não era a primeira
vez que eu lidava com um homem com as ações alteradas pelo álcool. Tive contas suficientes de
vivência com Miguel ou Nicolo para compreender que o primeiro passo é avaliar quanto bêbado
ele está e de que forma suas atitudes se transformarão.
— Eu penso que um homem na sua posição não pode se dar ao luxo de perder a
consciência. Como os soldados darão conta se algo acontecer?
Outro riso irônico. Desta vez um calafrio percorreu minha coluna. Álvaro empurrou para o
lado da cama uma caixa pequena com um laço imenso cor de rosa.
Rosa?
Ele me enxergava mesmo como uma menina.
— Seu presente — avisou.
— Obrigada.
No entanto, não saí do lugar. Observei o que ele fazia e como se comportava.
— Não vai abrir?
— Mais tarde.
Ele suspirou, depois empurrou a caixa como se precisasse se afastar dela. Álvaro não dava
nenhum sinal de que encerraríamos aquela conversa, mas também não demonstrava nada que
pudesse me ameaçar.
— O que faz aqui, Álvaro? — perguntei mais uma vez.
Ele deslizou a mão pelos fios já bagunçados do seu cabelo e voltou a me encarar. Sua boca
se abriu diversas vezes, articulando a justificativa, sem que deixasse alguma escapar.
— É o seu aniversário — repetiu. — Jean disse que seria apropriado enviar um presente, já
que encenamos papéis de casal apaixonado.
Engoli com dificuldade ao perceber o tom acusatório que ele impetrou em suas palavras.
— Enviar um presente — salientei, decidida a colocá-lo para fora, mas no mesmo instante
Álvaro me deu um olhar chocado, até mesmo magoado e o arrependimento me dominou. — Mas
eu agradeço pela consideração.
Ainda sob o seu olhar, caminhei até a caixa e a segurei com cuidado. Ele nada disse,
entretanto, me observava, como se estivesse ansioso para me ver abrindo-a.
A caixa cabia na minha palma. Eu a olhava e temia pegar naquele laço rosa. Uma parte por
rebeldia, uma vez que queria dizer a ele que eu não era nenhuma menina e que mulheres com a
minha idade constituíam famílias, mas havia a outra parte, a qual dizia que permitir que Álvaro
me presenteasse me faria amolecer, e eu não podia amolecer por ele, em especial quando tudo
indicava que eu seria só naquele casamento.
— Abra — ele disse com firmeza, contudo calma.
Suspirei. Com resignação, puxei o laço e o deixei sobre a cama, então abri a caixa e encarei
por mais tempo do que deveria, um lindo anel de ouro com uma única pedra em seu centro.
Única e solitária. As lágrimas inundaram meus olhos.
— Não gostou — ele quis saber. — O nosso joalheiro disse que esse era o modelo mais
requisitado para noivas.
— Sim, gostei. Obrigada.
Engoli a vontade de chorar e todas as lamentações que ameaçavam explodir pelos meus
lábios. Eu queria, porém, não podia cobrar nada de Álvaro quando o joguei naquela confusão.
Ainda que doesse em mim a realidade que se estendia à minha frente, o outro caminho seria pior.
Estar longe de Nicolo valia cada segundo de solidão que Álvaro me ofertava.
— Então… — ele levantou, um pouco desengonçado, contudo, com aquele ar de quem
tinha tudo sob controle.
E eu me desesperei. Uma coisa era saber que ele não estaria ao meu lado como casais
normais ficavam, outra era abrir mão dele depois de tantos dias sem encontrar conforto em
ninguém, e, em especial, depois da nossa despedida desastrosa. Com os batimentos acelerados,
avancei sobre Álvaro e tentei segurá-lo.
— Espere! — pedi, mas a junção do álcool na mente dele com o meu desespero, nos
desequilibrou e quando dei por mim, desabamos sobre a cama.
Álvaro por cima.
Foram os segundos mais longos da minha vida. O corpo de Álvaro se encaixou no meu
com perfeição, sem o peso que deveria me sufocar, pois, pelo visto, ainda que ele estivesse
bêbado, havia em sua natureza a capacidade de se manter capaz de evitar desastres. Por isso, uma
mão dele forçava o colchão para manter o corpo suspenso e a outra me envolvia pela cintura,
prendendo-me a ele.
Álvaro ofegou, os olhos antes nos meus deixaram de buscar pelo desastre e se alojaram em
meus lábios, com desejo. Eu queria dizer alguma coisa, qualquer palavra que nos fizesse rir
daquilo e tornar a nossa convivência fácil, entretanto, tornava-se impossível pensar em outra
coisa que não fosse a química entre nós.
Eu sentia saudade de Álvaro de diversas formas, mas aquela… Ah, cacete! Eu ardia
quando pensava em nossos beijos, na maneira como ele me explorava, como me segurava com
posse e certeza. E ele estava ali, confundindo qualquer necessidade da minha mente em me
manter segura, agitando minhas células, atiçando meu corpo com um único olhar.
Sim, eu queria que Álvaro me beijasse.
Eu queria mais do que um beijo.
E tudo em mim acelerou, colapsou e dissolveu quando ele desceu os lábios sobre os meus e
me beijou. O ar escapou dos meus pulmões em um gemido saudoso quando o recepcionei com o
beijo. E havia algo mais. Talvez a certeza de que aquilo nos pertencia, de que não fazíamos nada
de errado.
As mãos de Álvaro não demoraram a me explorar. Com segurança e vontade. Ele me
consumia de todas as formas, com o beijo intenso, com a língua que adoçava minha boca e me
enviava mensagens de luxúria, com as mãos que me prendiam, que tocavam minha pele com
ousadia, incendiavam meu corpo. Com os movimentos dos quadris que me impeliam a continuar,
a desejá-lo com força e sentir a cada momento choques elétricos que percorriam minhas veias até
que não me restasse mais nada que não fosse aceitá-lo.
Com um movimento Álvaro fez com que minhas pernas se abrissem, abrigando-o entre
elas. Ele se movimentava, esfregava-se em mim, o tecido grosso da calça delicado da minha
calcinha e o calor me obrigava a não querer mais nada entre nós, nenhuma peça, nenhum golpe
de consciência.
Gemi com mais força quando ele abandonou meus lábios, roçando o rosto com pelos
grossos por minha pele, o atrito delicioso que se estendeu até que seus lábios traçassem beijos
pelo meu pescoço. Álvaro mordiscou o local e o acariciou com a ponta da língua, o que
reverberou em outro ponto, tão sensual que me fez puxar o ar pela grata surpresa.
Mas eu nada conseguia dizer. Enquanto ele se banqueteava com meu pescoço, uma mão
puxou a alça da camisola até que meu seio ficasse exposto e logo dedos hábeis brincavam com o
bico até que uma espécie de ansiedade vibrasse no local.
Eu nunca senti aquilo. Já tinha experimentado o desejo, a vontade de ir além, de ser tocada
em lugares proibidos para uma garota como eu, no entanto nunca daquela forma, com aquela
intensidade, com pontos que pulsavam em meu corpo como se implorassem por atenção, por
alívio. Como se fosse possível ter diversos orgasmos, um em cada pedacinho desejoso.
Por isso, quando Álvaro juntou os lábios ao trabalho bem arquitetado dos seus dedos em
meus seios, não me reconheci. O gemido alto escapou dos meus lábios e a vibração deste
percorreu por cada partícula nervosa até se alojar entre as minhas pernas. Sem que eu planejasse,
meus quadris se movimentaram, buscaram pelo atrito do corpo dele e se juntaram naquela dança
lenta e sensual que ele iniciou.
E era quente.
Tão quente que me libertava.
Álvaro brincava comigo, chupando, mordiscando e lambendo o bico sensível, arrancando
de mim a força. Segurei seus ombros e avancei até que meus dedos estivessem nos fios sedosos
do seu cabelo. Ele me sugava e meu corpo obedecia, desesperado pelo prazer, pelo alívio e, ao
mesmo tempo, pela continuidade, postergando, perpetuando cada sensação.
— Você é linda — ele sussurrou com a voz rouca, um tanto quanto perdido em seu próprio
devaneio. — Tão gostosa, Isotta!
O vibrar da sua voz tão próxima ao meu seio fez com que eu me movesse com mais
vontade, como se aquele timbre fosse o comando que minhas células obedeciam.
Puxei sua camisa, deslizei minhas mãos para dentro, alcancei a pele quente, os músculos
definidos que se retesavam ao meu toque, me deliciei no corpo felino e esguio, nas costas largas,
nos movimentos que nos impulsionava. Álvaro deixou que eu tirasse a peça sem que precisasse
me abandonar por mais tempo do que o necessário. Ele se inclinou sobre mim, puxou a outra
alça da camisola até que esta se avolumasse em minha cintura e recomeçou a carícia.
Meu corpo arqueou de prazer quando seus lábios sugaram o bico ao mesmo tempo que a
mão provocava o outro seio. Eram tantas descobertas novas, tantas sensações desconhecidas, que
eu gemia e me movimentava como se meu corpo tivesse vontade própria. Não existia nada mais
gostoso do que estar com Álvaro daquela forma, pele com pele, desejo com desejo.
Ele segurou minhas mãos e as ergueu para mantê-las acima da minha cabeça. Seu rosto
voltou para o meu, os olhos flamejantes, a respiração deliciosa em minha pele. Ele me beijou
com urgência, enquanto a mão me explorava, deslizava pela lateral do meu corpo, descia até
minha bunda e me puxava até que não existisse nenhum espaço entre nós. Ele se movimentava
com conhecimento de causa, roçando nos lugares certos, se afastando no momento correto.
— Isotta… — sussurrou ao descolar os lábios dos meus.
Esperei que me dissesse algo e tive medo de que aquele fosse o instante em que ele se
afastaria, cheio de culpa pelo que fazíamos. Que se negaria a continuar. Mas Álvaro me encarou
e eu não fui capaz de manter seu olhar, porque ele se afastou e no mesmo segundo sua mão
adentrou minha calcinha e seus dedos deslizaram pelo meu sexo.
— Ah! — gemi alto, tão deliciada quanto aturdida.
Eu não conseguia formular pensamentos coerentes porque quanto mais aqueles dedos me
tocavam como nunca outra mão que não fosse a minha me tocou, quando eles se esfregavam na
minha umidade e acariciavam minha carne com maestria, eu me via afundar em um mundo
quente, confortável e delicioso.
Álvaro não precisava de um mapa para encontrar meus pontos de prazer, ele os descobria
como se pudesse senti-los e a cada toque eu me desmanchava, me abria, me permitia atender
todas as suas vontades.
— Álvaro… — choraminguei quando o polegar deslizou por meu clitóris e eu me senti em
queda livre.
Era tão gostoso, tão perfeito que causava confusão em minhas células. Eu queria me doar
ao orgasmo ao mesmo tempo que me impedia, que ansiava por estender ao máximo aquela
sensação única.
Eu não tinha mais nenhum controle. Aqueles dedos em mim ditavam minhas ações,
instigavam meus movimentos. Eu me abria, rebolava, gemia, implorava e o mundo ao meu redor
desaparecia. Álvaro manteve os movimentos em meu clitóris quando afundou um dedo em mim.
A sensação indescritível lançou bolas de fogo dentro de mim. Meu corpo aqueceu enquanto ele
me penetrava e acariciava por dentro.
Choraminguei quando entendi que a minha entrega estava além da minha vontade. Para
comprovar tal fato, Álvaro me beijou e arrancou de mim os últimos resquícios de controle
quando descolou os lábios dos meus e sussurrou:
— Goze.
Foi como uma explosão. Uma sensação que eu nunca saberei colocar com exatidão em
palavras. Mas o orgasmo me paralisou, se espalhando como fogo em rastro de pólvora,
explodindo como fogos de artifícios, dominando pontos diferentes em meu corpo até que tudo se
tornasse uma coisa só.
Ofegante, senti o exato momento em que a sensação de preenchimento se desfez, quando
ele retirou a mão de mim. No entanto, Álvaro não se afastou, ele sussurrava em meu pescoço
palavras que eu não tinha condições de compreender, em especial, por não conseguir raciocinar
em português. E deslizava na direção dos meus seios com seu hálito quente e acolhedor.
Fechei os olhos para usufruir melhor da sensação pós gozo, aproveitando os beijos
delicados que ele salpicava pelo caminho enquanto a mão que antes me atiçava de forma íntima
acariciava minha cintura, subia sem pressa até que os dedos habilidosos ajudaram a boca
deliciosa a alcançar meu seio.
Arfei, incrédula por sentir o leve formigar, ainda que tímido, entre as minhas pernas. Não.
Eu não estaria pronta para ele, caso Álvaro quisesse continuar, mas não me negaria, ainda que só
restasse para mim a dor. Esse foi o meu pensamento antes de ter o bico do meu seio acariciado
pela ponta da língua do homem com quem eu me casaria em poucos dias. Antes de sentir a
palma de sua mão cheia da minha carne, do meu seio ofertado como um banquete. Antes de
entender que algo na minha intimidade não funcionava tal qual eu me rendia a masturbação.
Eu ainda estava lá, ativa, com um latejar discreto, mas existente entre as pernas. Sim, eu
ainda podia ter um pouco mais daquilo que me atiçava e enlouquecia antes de satisfazer Álvaro.
Por isso gemi, manhosa, deliciada com tudo o que ele fazia.
Então Álvaro abandonou meus seios e deslizou os lábios com beijos mais intensos até o
meu umbigo. Minha respiração ficou mais rarefeita. Algo lá no fundo, em algum ponto distante
da minha mente me alertava para o que seria aquilo, contudo, eu não encontrava o motivo para
dar atenção a mais nada que não fosse ele, seus lábios, suas mãos.
E, de repente, não havia nada que não fosse lúcido em Álvaro. Ele escorregou os lábios
sem pressa até que sua língua estivesse em uma coxa, depois na outra e em seguida…
— Ah! — gemi um misto de surpresa e prazer quando ele mordiscou minha vagina por
cima da calcinha, os dentes arranhando a carne sensível e enviando choques por todo meu corpo.
Álvaro se ajoelhou entre minhas pernas e sem me pedir permissão, puxou minha calcinha.
Minhas pernas tremeram com o medo natural do que aconteceria e por alguns segundos eu não
me sentia mais tão confortável ou confiante. Ele me encarava com atenção enquanto deslizava a
peça por minhas pernas até que não estivesse mais em mim.
Nua, com as pernas abertas, com Álvaro entre elas, a vergonha fez minha garganta inchar e
meu rosto esquentar. Engoli com dificuldade, esperando que ele fizesse algo, mas Álvaro
continuava me encarando enquanto as mãos gentis acariciavam minhas coxas.
— Relaxe — ele sussurrou em um pedido que deveria me acalmar.
Concordei sem nada dizer e, com a cabeça deitada no colchão, encarei o teto. Tinha que
acontecer. Precisava acontecer. Até porque eu queria muito me livrar da parte chata e encontrar o
caminho que me levaria para a melhor de todas. Se isso significava sentir um pouco de dor, eu
estava preparada. Ou deveria estar.
— Isotta? — Álvaro chamou de forma mansa. Evitei olhar para ele porque sabia que
entregaria o meu medo. — Relaxe. Não vamos fazer nada…
— Não vamos?
A declaração me pegou de surpresa, então me vi erguendo o corpo e buscando seu olhar.
Álvaro me presenteou com um sorriso torto, lindo e tímido. Ele se inclinou sobre mim até
alcançar meus lábios e depositar um beijo casto que me fez desejar mais.
— Não se você não quiser.
— Mas eu quero! ¡Te quiero! — Outra vez atropelei minhas palavras na ânsia de impedi-
lo de me deixar. — Eu quero, Álvaro.
Abracei seus ombros, puxando-o para mim, buscando por sua boca. Havia um pouco de
resistência nele, que se dissolveu quando minha língua pediu pela dele e o beijo adquiriu a
intensidade de antes.
Álvaro me segurou com propriedade, apalpando meu corpo como se não houvesse nada em
mim que não lhe pertencesse. A fome em suas ações, em seus beijos, na maneira como ele me
mordia e chupava, como se apossava dos meus seios, fez com que a confusão retornasse em meu
íntimo. O pulsar gostoso, o formigar que se espalhava, tudo me levava para o caminho em que eu
não desejaria nada além de tê-lo.
E eu adorava aquilo.
Fechei os olhos e me entreguei quando ele deslizou outra vez pela minha barriga. Afundei
os dedos no lençol, apesar de estar louca de vontade para prender os fios dele em minhas mãos,
no entanto, Álvaro sentiria o meu tremor e eu, naquele momento, tinha mais vontade do que
medo.
— Fique quietinha — ele sussurrou quase lá, tão perto que chegava a ser constrangedor.
Tão quente que me conduzia ao inferno. — Preciso te deixar pronta para mim — avisou antes de
permitir que seus lábios me tocassem.
E eu entendi que sexo jamais seria algo simples ou decifrável. Porque no instante em que a
boca de Álvaro deslizou pela minha vagina, eu despertei para uma realidade profana, a qual me
agarrei para nunca mais retornar.
22
ÁLVARO

Isotta tinha cheiro de flores delicadas misturado com algo forte, que eu sabia não ser uma
fragrância do hidratante que ela passava quando me encontrou em seu quarto. Era algo que
exalava da sua pele, que me atiçava, alcançava meus desejos, arrancava de mim a capacidade de
resistir aos seus apelos.
A ideia inicial era deixar o presente dela sobre a mesa de apoio no quarto, ao lado da cama.
Jean me mataria por voltar antes do estipulado por ele e… inferno! Eu não desobedecia as ordens
dele, ainda que tivesse a certeza de que ele me entenderia, se eu tivesse condições de explicar.
A verdade era que eu passei dias longe de Isotta e dizendo a mim mesmo que era o melhor
a ser feito. Enlouqueci com o que ela fez, com o desfecho daquela confusão e por ser obrigado a
casar. Casar com uma menina virgem, quase quinze anos mais nova do que eu. Puta que pariu!
Mas naquela manhã, de posse da informação de que era aniversário dela, eu me senti um
ogro. O tipo de homem que nunca me permiti ser com nenhuma mulher. E a sensação se
agravava à medida que o tempo passava. Encomendei o presente e pedi para entregar, contudo,
antes que eu pudesse raciocinar direito, me vi no avião, cortando o tempo e o espaço para
entregar pessoalmente o presente à minha noiva.
Aquilo também me enlouquecia. Uma angústia estranha se avolumava em meu estômago.
Odiei Isotta um pouco mais por entrar em meus pensamentos e me obrigar a deixar tudo para
trás, as ordens que recebi, pela obrigação de agradá-la, de ser a sua babá, de precisar me
preocupar com os sentimentos dela. Também precisei lidar com a sensação terrível de pensar
nela sozinha naquele dia, cercada por estranhos.
Quando o avião pousou eu já tinha bebido além do que deveria. Mas o álcool me relaxava,
não tirava de mim a capacidade de discernir ou agir se fosse necessário.
Aaron me encontrou na saída do hangar, do lado de fora do carro que solicitei.
— Você pediu para eu não relatar a sua presença — ele falou evitando deixar o sorriso
escroto se apresentar. — Jean vai arrancar minhas bolas se souber que deixei você se aproximar
dela antes do casamento.
— Segundo Isotta, não há mais nada que não já tenhamos feito — provoquei.
— Você sabe que esse não é o motivo, Álvaro.
— Eu sei que não estou com humor para gracinhas. Mantenha a tripulação. Eu retorno
logo.
Mas eu não retornei.
Quando cheguei em casa ouvi o cantar baixo e quase inexistente dos parabéns para Isotta.
Apenas duas vozes faziam coro. Isso aliviou um pouco da minha raiva. Solicitei que ninguém
alertasse a minha presença e me trancafiei no escritório, onde bebi um pouco mais até ter a
certeza de que ninguém se movimentava pelos ambientes do segundo andar.
Chegar até o quarto dela foi fácil, sem encontrar ninguém para me impedir. Abri a porta e
acreditei que cumpriria com o meu plano, colocaria o presente no local e sairia. Entretanto, ouvi
o chuveiro e sentei na cama, incapaz de fazer o que era correto. Quando ela abriu a porta o cheiro
de banho chegou até mim e eu me vi inebriado pela essência floral.
Fiquei quieto, ouvindo seus movimentos pelo closet, de repente com vontade de vê-la, de
conferir se ela estava bem, de ouvir o que ela poderia me contar sobre aqueles dias. E me senti
um idiota por isso. Mas, nem essa ideia me afastou dela.
Então tudo aconteceu. Eu repetia a todo momento que nada aconteceria. Primeiro seria
apenas um beijo, depois apenas uma provocação, então seria apenas um experimentar, até que eu
compreendi que nada entre nós seria “apenas”. Porque eu estava louco de desejo, ansioso por ela,
para estar nela, para saborear cada parte do seu corpo e depois me deliciar com ela embaixo de
mim, eu me movendo entre suas pernas, eu…
Não havia como recuar. Não havia como me afastar de Isotta ou afastá-la de mim. Se ela
seria minha, eu tomaria posse.
Porém, quando abocanhei Isotta, o sabor do orgasmo recente misturado com o sabor dela
na pele lisa e gostosa, seu gemido se perdeu no meu. Foi o ponto que me fez compreender que
estava perdido. Nunca mais conseguiria me afastar diante de algo que se aprofundava em mim e
me incendiava.
Segurei seus quadris com força quando suguei o clitóris. Isotta se debateu em minha boca,
tão atrevida quanto ingênua. Eu me perguntava como aquilo a afetava, como ela me sentia, o que
a levava a se permitir aquela entrega. E me vangloriava pelo orgasmo delicioso dela em meus
dedos, a carne quente pulsando de maneira deliciosa, com todas as suas promessas que
reverberavam em meu pau, que implorava para substituir meus dedos naquele espaço acolhedor.
Isotta era… encantadora. Irritante em muitos momentos, mas não na cama, não quando se
deixava seduzir pelo desejo. Nesses acontecimentos, ela se entregava, ansiava, implorava com
gemidos tentadores e com aquele corpo que demonstrava não se saciar nunca.
Porra! Eu não deveria estar ali, no entanto, nada me fazia recuar. Eu sugava o sexo
molhado, aberto, a carne avermelhada. Tentava manter Isotta quieta, mas a desgraçada rebolava.
Isotta De Rosa rebolava em minha língua, em meus lábios, tão deliciosa quanto as mulheres
experientes com quem eu costumava dividir a cama.
E aquilo me fazia perder o controle. Porque eu queria fazê-la gozar e me alimentar do seu
prazer, ao mesmo tempo que contava os segundos para me enfiar nela, para me perder em seu
calor apertado, me afundar até que não restasse nada de mim, nem espaço nela.
— Álvaro! — ela ronronou entre um gemido e outro, as mãos fechadas no lençol da cama
enquanto ela se contorcia em busca de alívio.
Isotta era deliciosa e nem mesmo a raiva por tudo o que ela fez me impedia de continuar.
Eu a sugava, lambia, chupava seu ponto de prazer e enlouquecia quando ela estremecia e gemia
meu nome. E o tempo todo eu me perguntava como aquela garota podia ter um sabor tão
gostoso? Como seu cheiro, o elixir perfeito, afrodisíaco, conseguia penetrar meu corpo e me tirar
do domínio? Como eu podia me manter ali, entre as suas pernas e não encontrar forças para me
afastar pois minha fome se saciava no seu néctar?
Ela era um mistério. Um delicioso mistério. E eu, naquele instante, só queria decifrar.
Segurei o clitóris entre os dentes e puxei sem pressão no momento em que deixei que meu
dedo se afundasse outra vez nela. O leve pulsar aumentou meu desejo. Suguei um pouco a
porção em minha boca e ela se contorceu liberando mais gemidos deliciosos. Introduzi outro
dedo e Isotta ofegou. Tive medo de machucá-la, no entanto, a desgraçada rebolou, me
incentivando a continuar.
Precisei de esforço para me concentrar em duas ações: entretê-la com os dedos que
entravam e saiam da carne que me sugava, e manter minhas chupadas constantes, até que ela
gozasse.
As coxas de Isotta se fecharam ao redor da minha cabeça. Os músculos tensos, os gemidos
implacáveis, o pulsar em meus dedos e a umidade que ela liberava à medida que se aproximava
do orgasmo. Eu precisava me manter sóbrio, consciente dela e não me deixar consumir pela
beleza que era assisti-la gozar, afinal de contas, depois daquela seria a parte mais difícil.
Isotta estremeceu quando o calor na ponta dos meus dedos aumentou. Sua carne contraiu,
um gritinho manhoso escapou dos seus lábios, as coxas ficaram tensas e se entregou. Isotta
gozou em minha boca de maneira intensa, pulsando nos meus dedos, com rebolados que me
levariam a perdição, me alimentando com seu sabor indescritível.
Retirei os dedos, mas não afastei os lábios, sugando-a de forma a não perder nada e não
deixá-la pensar no assunto. Abri a calça e deixei que ela caísse em meus joelhos. Não dava para
fazer nada além disso. A carteira com as camisinhas que eu sempre levava comigo ficou no
escritório, junto com minha arma, ao lado do copo seco de uísque que entornei antes de procurar
por minha noiva.
Não era a melhor opção, mas a verdade era que eu não tinha opção. Queria Isotta.
Precisava tê-la. Eu a teria.
Puxei seus quadris e a posicionei na beira da cama. Ela ainda voltava do lugar onde o
orgasmo a levou, os olhos sem foco, a respiração ofegante, o sexo com o brilho do seu prazer. Eu
me inclinei sobre ela, beijei os seios tentadores, acariciei todos os lugares possíveis, ciente de
que não podia esperar tanto. Seria melhor para ela se ainda estivesse lubrificada quando me
recebesse.
Segurei seu quadril com firmeza quando me guiei até sua entrada. Isotta ofegou, talvez
com medo, ou de volta ao desejo. Eu não tinha como descobrir. Por uma fração de segundo me
perguntei como deveria fazer. Qual a melhor forma de tirar a virgindade de uma mulher sem
impor tanto sofrimento? Como saber se ela me aguentaria, se suportaria me ter por completo?
Então foi a minha vez de ofegar. Eu fazia ideia do que deveria fazer com ela. E o medo de
machucá-la gritou em minha mente, me estimulando a desistir. Não era a hora. Poderíamos ir
devagar. E eu estava no meio daquela batalha quando a ouvi:
— Álvaro? — ela chamou daquela forma que me enlaçava.
Encarei Isotta. Linda. Deitada naquela cama de forma confortável. O cabelo longo,
volumoso e escuro espalhado pelo lençol. Ela nunca me pareceu tão sedutora, com seu corpo nu
a minha disposição, os lábios inchados pelos beijos que trocamos, o rosto ainda afogueado pelos
dois orgasmos. Ela sorriu. Um incentivo. E eu não consegui pensar em mais nada.
A decisão de como seria aconteceu quando meu pau tocou a carne dela, o calor me
acolheu, o desejo me incendiou. E eu me afundei em Isotta de uma vez só. Uma estocada funda,
não o suficiente para me introduzir todo nela, mas profunda o bastante para que eu a sentisse me
apertar e seu corpo inteiro retesar embaixo do meu.
Isotta mordia os lábios e se esforçava para não deixar que o gemido de dor escapasse. Mas
eu o sentia em cada detalhe sobre aquela cama. Os dedos cravados no lençol, os olhos fechados
com força, as coxas que me apertavam como se pudessem lutar comigo e me expulsar.
Eu deveria me horrorizar por fazê-la passar por aquilo, mas a verdade era que não havia
mais volta. Isotta não era mais virgem, eu já estava dentro dela e nos restava apenas deixar que
amenizasse.
— Calma — sussurrei ao me inclinar sobre ela, entrando um pouco mais com o
movimento. Ela gemeu sem qualquer prazer no ato.
Mantive-me parado, lutando contra meu próprio corpo para não tomar mais nada dela para
mim enquanto ela não se acostumasse com a invasão. E cada segundo contou, porque enquanto
Isotta se recuperava, eu a sentia se apertar em meu pau, a carne se contrair com o intuito de me
expulsar, mas contribuindo para me enlouquecer.
— Não se mexa, Isotta.
Coloquei o máximo de calma em minha voz, quando na verdade o desejo de me enfiar nela
até que o orgasmo me atingisse fazia com que minhas células se chocassem umas contra as
outras.
Ela expeliu o ar em busca de alívio. Abriu os olhos e encarou o teto do quarto, as íris
escurecidas deixando o tom violeta mais evidente. E eu a endeusei. Eu podia odiar a Isotta que
me levou até ali, mas naquele momento, naquela cama, ela era a figura mais bonita com quem já
estive na face da Terra, e eu a reverenciava.
Desci os lábios até alcançar os dela e a beijei com cuidado. Uma mão se enfiou pelo cabelo
até que meus dedos estivessem nos pontos certos da nuca, dispostos a acariciá-la para dissolver a
tensão. Isotta retribuiu o beijo. A maciez daqueles lábios me encantava. E quando ela os abriu
para que a língua passasse, meu pau pulsou. Como ela conseguia?
— Você é linda — murmurei, perdido em seu encanto, na doçura dos seus beijos na
vontade avassaladora de me afundar nela.
Guiei meus lábios até os seios, esforçando-me ao máximo para não movimentar os quadris,
e os beijei, um e o outro, sugando, mordiscando, puxando-a de volta para a minha bolha. A outra
mão deslizou para a bunda, sem provocar o movimento. Aticei Isotta como consegui, até que
suas coxas relaxaram, seus seios sensíveis indicaram ser aquele o ponto.
Eu me movimentei com calma. Isotta não protestou. Mantive meus olhos nos dela usando
como desculpa a necessidade de saber se ela suportaria, porém, a verdade era que a garota me
prendia quando me encarava e estar dentro dela, com tanto desejo, sentindo-a me apertar em sua
carne quente, com o olhar fixo naquele rosto perfeito, era como ganhar dois orgasmos em uma
trepada só.
Mantive os movimentos, entrando e saindo, me afundando aos poucos, ganhando espaço,
me esforçando para não me perder na luxúria que lambia minha pele e me incentivava a
continuar. Isotta emitiu um gemido baixo, quase imperceptível, que indicava a mudança do
clima.
O prazer sussurrado teve efeito em meu pau. Eu me enfiei mais, me afundei nela, aumentei
o ritmo sem encontrar qualquer detalhe que pudesse me fazer recuar. Isotta se movimentou,
testou o corpo, me enlouqueceu quando me tocou e em pouco tempo eu já me movimentava
como se aquele corpo sempre tivesse sido meu, como se aquela boceta fosse íntima do meu pau.
Ela me acolhia, me apertava, me recebia e tirava a minha capacidade de raciocinar quando
rebolava de encontro a meu pau. Todo dentro dela, ergui o corpo, observei como ela se movia e
era tão gostoso e lindo de assistir que arrepiou minha pele.
— Porra! — rosnei, controlando meu tom, certo de que não suportaria muito tempo e
surpreso por Isotta ficar mais lubrificada, facilitando minhas estocadas.
Encarei a menina, preso a tudo o que acontecia, a maneira como ela me acompanhava, os
gemidos que emitia. Apalpei um seio, lambi a barriga lisa, indo tão fundo que não conseguia
acreditar. Quando o ritmo aumentou, quando nossos movimentos se tornaram intuitivos, quando
o raciocínio não fazia parte de mais nada, eu a senti pulsar. Tão quente e gostosa que outro
arrepio transpassou minha coluna e me deixou mais desejoso dela.
Ergui um pouco mais o corpo e coloquei uma mão entre nossos sexos, o polegar sobre o
clitóris, inchado, pronto para mim. Isotta gemeu alto, se contorceu, permitiu que acontecesse. Eu
a masturbei enquanto estocava. Tão gostoso, tão fundo, tão minha…
Isotta se contorceu, gemeu mais alto e gozou. O prazer vibrando em meu pau me atirou
naquele poço violeta, com o orgasmo lambendo minha pele, explodindo em minhas bolas,
contraindo meus músculos e me tirando da realidade por um tempo. Nos últimos segundos,
encostei minha testa entre seus seios e descansei, ofegante. Os dedos gentis de Isotta adentraram
meu cabelo em uma carícia calma, quase como um sonho.
Mas, quando o orgasmo se foi, quando a lucidez me alcançou, quando me dei conta do que
aquilo se tornou, a ideia de estar com ela, naquela cama, com carícias pós sexo como se
fôssemos amantes, me aterrorizou.
Porque não éramos. Casaríamos, sim. Não seríamos amantes. Isotta queria liberdade e para
obtê-la me arrastou para aquele casamento. Eu queria que ela fosse livre, mas depois de tudo,
não suportaria o que seria de nós.
Então a angústia que inflou em meu peito me impediu de respirar. Eu não entendia aquela
reação, ainda assim, não consegui impedi-la de me dominar. Puxei o ar com força e levantei.
Meu corpo abandonou o dela e rompeu a bolha. Isotta procurou pelos meus olhos, entretanto, eu
não conseguia mais olhá-la.
Em meu pau a comprovação da sua virgindade, no lençol mais alguns rastros. Ela se
encolheu quando percebeu o que eu olhava. Levantei a calça e me vesti. Procurei pela camisa,
cobrindo meu corpo sem me preocupar em deixar tudo ajustado.
— O que está fazendo? — Ela perguntou com a voz ainda baixa, doce, no entanto,
assustada.
Puxei o lençol fazendo com que ela saísse de cima. A primeira ideia que passou pela minha
cabeça foi eliminar as provas da mentira dela. Se pela manhã as empregadas encontrassem o
lençol ensanguentado não demoraria para que Juan soubesse do ocorrido.
— O que está fazendo? — ela voltou a perguntar, desta vez angustiada, buscando outro
lençol para cobrir o corpo.
Então meu pensamento me levou para outro lado. Eu não me neguei a casar com Isotta
ainda que minha obrigação estivesse baseada em uma mentira, no entanto, comprovar que eu não
menti faria com que todos entendessem o peso daquela escolha.
Embolei o lençol no braço e a encarei. Recuei quando vi sua expressão, mas não podia
desistir da ideia.
— Recolhendo as provas — avisei.
— Provas?
— Você disse a seu pai que transamos. Isso aqui deixará claro que mentiu.
— Álvaro, não!
Ela avançou sobre mim, os olhos brilhando pelas lágrimas que se avolumaram com
facilidade.
— Por favor, não faça isso.
— Não se preocupe, Isotta. Eu estarei naquele altar no dia do casamento. Minha palavra é
única. Mas isso aqui… — ergui o lençol para que ela o visse mais uma vez. — Mostrará quem
merece a confiança do Jean e da Camorra.
— Álvaro…
— Você já teve o que queria — falei alto o suficiente para silenciá-la. Isotta recuou e uma
pontada em meu peito me incomodou. — Boa noite.
Deixei o quarto com pressa, mas ouvi seu último lamento, choroso. Ela chamou por mim,
tentou me alcançar, porém, eu fechei a porta. Caminhei apressado pelo corredor e encontrei dois
soldados na escada.
— Guarda na porta da senhorita, Isotta — informei. — Ela não pode deixar o quarto até
amanhã pela manhã.
Apressado, me tranquei em meu quarto, sentei na cama e escondi o rosto nas mãos.
Que merda eu fiz?
23
ISOTTA

Eu corri para alcançá-lo.


Álvaro deixou o quarto sem olhar para trás, certo sobre sua ação, sua escolha, sua punição.
E eu não tinha o direito de questioná-lo, ainda assim, o desespero das consequências daquela
mentira, da possibilidade do meu pai desistir do casamento e me levar de volta para Nicolo, me
fez correr atrás dele, ainda que fosse para implorar pela sua misericórdia.
Mas, quando abri a porta, envolta no lençol que arranquei da cama, dois soldados me
encararam confusos. Eles relutaram ao conferir meu estado, contudo, mantiveram-se na frente do
quarto, formando uma muralha que deixava claro o recado: eu não podia sair.
Fechei a porta, deitei na cama e chorei. Durante anos eu tive muitos motivos para chorar,
depois para temer Nicolo, mas nada me preparou para aquilo. Eram infinitas questões e a
sensação de impotência, ainda que esta estivesse associada a minha vida.
As pessoas romantizavam o papel da mulher na máfia, mas elas não fazem ideia do que é
não poder escolher o seu destino. Saber desde nova que deixará a vida reclusa ao lado da família
para viver uma prisão ao lado do marido. E, em especial, não ter voz na escolha deste.
Minha mãe tentou me proteger disso, mas meu pai… Meu pai esqueceu como foi viver
com a mulher que escolheu, casar com uma pessoa que não fazia parte do seu mundo, constituir
uma família com ela. Meu pai esqueceu como amar no dia que minha mãe morreu. E assim ele
destruiu a vida dos filhos.
E, o que achei que me libertaria, ruia à minha frente sem que eu tivesse ao menos o direito
de contestar.
Não sei quando adormeci, talvez quando as lágrimas secaram, quando a mente entrou em
um estado de torpor que expulsava os pensamentos, eu não sei. Porém, posso afirmar que não
descansei. Dormir após o ocorrido me deu uma noite repleta de pesadelos, os mais diversos com
uma infinidade de roteiros.
Álvaro me trancando em uma torre, Nicolo me levando embora, meu pai me dando as
costas e desaparecendo ainda que eu estivesse gritando por ajuda, Miguel enviado para algum
lugar onde não pudesse mais “envergonhar” nosso pai e, em especial, repetido entre ou outro
enredo, Álvaro morto no altar.
Pela manhã eu era apenas um filamento do que fui na noite anterior. Tomei banho sem
pressa, ainda que meu celular apitasse a cada novo alerta para alguma atividade. Em breve Duci
bateria em minha porta para conferir se eu estava viva ou se tinha fugido durante a noite. Ainda
assim, demorei um tempo considerável para escolher a roupa que usaria, apesar da minha pouca
vontade em manter uma boa imagem.
Na saída os soldados ainda estavam lá, porém não tentavam me impedir e sim aguardavam
para me acompanhar. Sem uma palavra deixei o quarto e segui para a sala de jantar onde eu
fingiria comer algo. Meu estômago embrulhava com a mínima ideia de comida. A cada segundo
eu apurava os ouvidos em busca de alguma pista. Onde estava Álvaro? Ele conversou com meu
pai? Em que momento ambos me deixariam saber do meu destino?
Não havia silêncio na casa, no entanto, nenhuma das vozes que chegavam até mim era a de
quem eu buscava. Então, no pé da escada eu ouvi crianças correndo, os risos daqueles que não
temiam o futuro, da inocência dos que ainda não tinham sido sugados para o que definia o papel
de cada um em nosso mundo.
Um menino e uma menina passaram correndo por mim. O menino falava em uma língua
que eu não entendia, e a menina ria enquanto tentava pegá-lo. Atrás deles uma mulher jovem
tentava acompanhá-los e dizia em português:
— Lorenzzo, Ayla, sua mãe pediu para não correrem. — E desapareceu atrás das crianças.
— Você deve ser Isotta — alguém disse a alguns passos de mim. Olhei na direção da voz e
encontrei uma mulher linda, cabelo comprido e loiro, olhos claros, jovem, com um imenso
sorriso como se esperasse por mim. — Eu sou Heidi, esposa do Jean.
— Ah! Sim! — Apertei a mão estendida enquanto encarava a mulher com um imenso
sorriso. — Não sabia que você viria?
— Jean toma muito cuidado com informações que envolvem a família, em especial seus
herdeiros.
Ela tentou disfarçar, contudo eu captei o segundo de apreensão que passou por seus olhos.
Era impossível ser esposa de alguém com a importância que Jean tinha, ser a mãe dos filhos dele,
e se manter tranquila diante de qualquer realidade fora dos portões da sua fortaleza.
— Eu entendo.
— Álvaro não mentiu quando disse que você era linda — ela continuou com empolgação.
— Seus olhos são…
— Violetas — eu disse, familiarizada com o choque daqueles que de fato se davam conta
da cor das minhas íris.
— São… uau! — ela riu de forma relaxada. — Quando Álvaro contou eu achei que ele
mentia. E Jean me disse que não prestou atenção neste detalhe, mas… — revirou os olhos de
forma teatral e me fez rir.
Rir? Como eu conseguia rir depois de tudo o que aconteceu? A verdade era que ter Heidi
ali, ainda com total noção de que ela não conseguiria fazer nada por mim se meu pai decidisse
me levar de volta, significava que Álvaro cumpriria com a promessa e casaria comigo.
— A propósito, parabéns! — Ela se aproximou e me deu um abraço como se fôssemos
antigas amigas. — Trouxemos um presente, mas eu ainda não desfiz as malas.
— Não precisava, mas obrigada.
— Sra. Kuhn? — Duci falou ao entrar na sala. — Não sabia que a senhora estaria aqui.
Eu… — Ela me lançou um olhar rápido e apreensivo.
— Duci, como vai? — Heidi se adiantou para cumprimentar a que foi a minha única
companhia nos últimos dias. — Não se preocupe comigo. Jean me disse que te emprestou para a
Isotta. Vocês devem estar com a agenda cheia.
— Sim, estamos, mas posso cuidar da senhora também.
— Fique tranquila. Meus compromissos serão basicamente os mesmos de Isotta. Eu vim
para ajudar.
— Claro — Duci respondeu um tanto quanto nervosa.
Em silêncio observei a dinâmica das duas e entendi que Duci era a secretária de Heidi no
Brasil. Como Jean não compartilhou com ninguém a presença da esposa, Duci se ateve a minha
agenda, contudo, pesava mais não atender a esposa do Don do que garantir que a futura esposa
do Capo estivesse bem assistida.
— Nosso primeiro compromisso é a escolha das joias que a Srta. Isotta usará no
casamento. O Sr. Kuhn solicitou a visita de um funcionário da joalheria. A senhora deseja algum
estilo de peça? Eu pedi para que trouxessem o estilo tradicional para noivas.
— Algo discreto, por favor, Duci.
Duci concordou, pediu licença e deixou a sala. No mesmo instante Heidi voltou a me
encarar com um imenso sorriso.
— De noiva tradicional você não tem nada.
— Pois é. — Minha voz desanimada fez com que ela entrelaçasse o braço no meu e me
conduzisse na direção da mesa posta para o café da manhã. — E eu queria um casamento
pequeno, discreto e curto. — Heidi riu.
— Para uma garota com histórico festeiro, essa declaração é no mínimo intrigante.
Soltei um suspiro pesaroso quando Heidi me deixou e seguiu para sentar de frente ao local
que eu ocuparia.
— Eu gosto de festas, mas… não acho que seja um bom momento.
— Por que envolveu Álvaro nessa confusão?
Por um segundo eu me assustei por ela saber a verdade, no entanto, Heidi colocou uma
mão sobre a minha e sorriu de forma amigável.
— Jean me conta tudo.
Então ela abandonou minha mão e se serviu de um pouco de suco.
— Álvaro não está muito feliz com esse acordo — confessei.
— Álvaro não demonstra contentamento com frequência. Em especial depois que ele ficou
no Brasil e Jean foi embora para a Alemanha. Esses homens são confusos.
Heidi falava e se servia de pão, queijo, presunto, ovos, bolo… mais do que eu conseguiria
comer. Conferi seus braços esbeltos e me perguntei como ela fazia para queimar tudo o que
comia.
— Bom… Álvaro não é confuso. Ele me disse que não desejava se casar e eu… forcei esse
casamento para me livrar do Nicolo.
— Eles nunca desejam se casar até encontrarem a mulher certa pela frente. Jean me disse
que deu a ele a opção de fugir e Álvaro negou.
— Ele deu?
Sem pensar, peguei um pedaço de bolo e levei a boca. Heidi abriu um imenso sorriso.
— Sim. Jean e Álvaro se amam, por isso meu marido jamais obrigaria o primo a casar se
ele de fato estivesse infeliz com o arranjo.
— Ah!
Baixei o olhar e me concentrei na comida em meu prato. Heidi deu uma risada leve.
— Não fique desanimada, Isotta. Eu também casei para ajustar uma confusão.
— Sério?
Ela concordou com um brilho travesso no olhar.
— Não contei ao Jean que estava grávida e, alguns meses após o nascimento das crianças,
a vida me pôs de frente com ele mais uma vez. O casamento seria para que nossos filhos não
fossem ilegítimos e também para garantir a segurança deles.
— Mas… Álvaro me disse que vocês se amavam.
Desta vez o sorriso dela foi tímido, contudo, o brilho no olhar ficou mais intenso.
— Sim, nos amamos. Mas até aqui enfrentamos muitas barreiras. Meu casamento, por
exemplo, foi dentro de um hospital na Itália.
— Não!
— Sim!
Nós rimos com vontade, eu, de repente esquecida do peso que carregava e Heidi serena,
como se nada do que passou pudesse alcançá-la outra vez.
— Manhã animada — Jean disse ao adentrar na sala.
Eu fiquei tensa de imediato. Não porque Jean Kuhn me intimidava, em especial quando ele
se apresentava tão descontraído, completamente voltado para a esposa. O motivo da minha
apreensão era por não saber o que Álvaro fez após deixar meu quarto.
— Isotta, como vai? Vejo que já conheceu minha esposa.
— E seus filhos — eu disse em uma tentativa de parecer tranquila enquanto por dentro
todos os meus músculos se contraiam.
— Encontrei Duci — Heidi informou. — Espero que esteja preparado para desembolsar
um pouco mais de dinheiro.
— Com você? — ela concordou com um sorriso discreto. — Sempre.
Ele se abaixou e deu um beijo delicado nos lábios da esposa. Sim, eles eram apaixonados.
— O que vai ser desta vez? — Jean perguntou após puxar uma cadeira e sentar ao lado da
esposa.
— Joias.
— Joias?
— Sim. Um funcionário da joalheria virá para Isotta escolher as que usará no casamento e
eu lembrei que as que eu trouxe não fazem jus ao momento.
— Compre todas as joias que desejar, meu amor — ele declarou.
Eu fiquei ali, sentada, observando o quanto Jean parecia um homem normal, feliz,
apaixonado, quando interagia com a esposa. E era tão lindo de assistir que me confundiu. Eu não
estava apaixonada, nem desejava que Álvaro estivesse, contudo, diante do que aconteceu na
noite anterior, eu me peguei pensando em como desejava que aquele casamento fosse real. A
proposta era que fosse de conveniência, no entanto, demos um passo que nos distanciava desta
realidade, e eu já não desejava mais que fosse assim.
Se era para eu ficar casada com alguém, que existisse pelo menos carinho e cumplicidade
e, pensar na ideia, fez com que meus olhos marejassem. Eu e Álvaro caminhávamos por
caminhos opostos e eu não enxergava o ponto em que nos cruzaríamos, ou onde nossas estradas
se misturariam.
— Quase me esqueci — Jean sinalizou, fazendo com que eu engolisse a vontade de chorar
e prestasse atenção nele. — Álvaro viajou hoje cedo, Isotta. Ele pediu desculpas pelo
comportamento de ontem.
Com os olhos fixos no Don da Ndrangheta, engoli com dificuldade. Minhas mãos ficaram
suadas e por um segundo eu me perguntei se eles seriam capazes de ouvir o acelerar do meu
coração. O que Álvaro fez? Ele teria coragem?
— O que ele fez ontem? — Heidi questionou com um toque de ironia em suas palavras.
Não tive coragem de olhá-la, mantive meu foco em Jean, determinada a conseguir o
máximo de informação.
— Até onde eu sei, ele bebeu demais e apareceu no meio da noite para entregar
pessoalmente a Isotta um presente de aniversário.
— Hum! Mas isso é motivo para se desculpar? — ela continuou, provocando. — Eu não
me sentiria ofendida se você fizesse algo tão romântico assim.
— Não reclame — Jean disse à esposa sem qualquer tom de aborrecimento. — Você tem
mais de mim do que qualquer outra pessoa.
— Na verdade… — eu me vi falando, fazendo o maior esforço para impedir que meu
estado de nervos se apresentasse. — Ele não tem motivos para me pedir desculpas. Se ele tivesse
falado direto comigo saberia que eu preferia que estivéssemos conversando do que recebendo um
pedido de desculpas através de você.
— Você é das minhas — Heidi pirraçou, colocando na voz o máximo de animação. —
Quando Álvaro me falou sobre você eu disse: seremos ótimas amigas.
E eu queria que fôssemos, mas não tinha certeza se o que aconteceria depois do “sim”
permitiria que eu tivesse qualquer relação normal com alguém.
24
ÁLVARO

A minha missão era simples: ficar longe de Isotta e aparecer para o casamento. Ainda
assim, falhei de cara no primeiro pré-requisito. Eu não deveria ter aparecido para visitar a garota
no aniversário dela. Não deveria ter sucumbido ao desejo e levado aquilo até o fim. E,
definitivamente, não deveria reviver aquela noite durante cada segundo do meu dia.
Odiar Isotta era mais fácil do que lidar com tudo o que ela fazia comigo e, por isso, eu
deveria me apegar a esse sentimento. Contudo, pensar nela, ainda que com a necessidade de
avivar as chamas do ódio, me levava a nossa primeira noite juntos.
Eu não entendia porque transar com minha noiva me jogava naquele lugar que me aquecia,
ainda que eu lutasse para abandoná-lo. Isotta era apenas mais uma mulher com quem fui para a
cama, logo, o ato não poderia me envolver além do que as outras tiveram.
No entanto, envolvia.
Porque quanto mais eu repetia que não passou de uma transa, mais eu relembrava da
sensação que era tocá-la. Todas as vezes que eu tentava me convencer de que não havia nada de
especial em Isotta, mais a imagem da garota nua, entregue, linda, me atormentava.
No meio do dia desisti de lutar contra a memória do instante em que Isotta gozou em
minha boca e ao final deste eu mal conseguia conter a ereção ao reviver cada detalhe de como foi
penetrá-la.
— Puta que pariu! — resmunguei após esfregar o rosto para que eu pudesse voltar a
atenção para os documentos em minha mão.
— Você deveria descansar — Aaron falou ao meu lado, o que me deixou desconfortável,
uma vez que eu lutava contra uma ereção. — Faltam três dias para o seu casamento, cara.
— Obrigado por me lembrar.
Ao invés de ficar aborrecido, meu subchefe deu risada do meu aborrecimento.
— Por falar em casamento…
— Por favor, esqueça o meu casamento.
E pare de me lembrar sobre Isotta de branco, me esperando para a nossa noite de núpcias,
pelo amor de Deus! - tive vontade de suplicar.
— Não é sobre o seu casamento.
— Você também vai casar? — impliquei.
— Deus me livre.
Aaron se mexeu, incomodado.
— Isso é engraçado, Aaron. Pelo que me lembro…
— É sobre o Vagner — ele me interrompeu, com pressa para não me deixar entrar no
assunto.
— Quem é Vagner?
— O soldado que destinamos para a operação na divisa com a Venezuela.
— Hum! O que tem o Vagner?
— Eu queria que o enviássemos para outra missão, Álvaro.
— Qual é o problema? Não podemos confiar no Vagner? Quem o selecionou?
— Calma — ele riu, sem qualquer indício de preocupação. — A namorada do Vagner está
grávida. Seis meses — informou. — Eu sei que todos assumimos o risco quando iniciamos nesse
trabalho, mas a operação com a Venezuela possui um risco maior e o Jean…
— Eu sei — resmunguei, nada disposto a manter aquela conversa por mais tempo. —
Vamos dar ao Vagner a chance de conhecer o filho.
— Ótimo. Chegamos.
O carro parou na entrada dos fundos da boate onde teríamos a reunião. Aaron abriu a porta,
mas eu não consegui me mover. A conversa sobre Vagner, a ideia de ser pai e os riscos da
profissão me levaram a outro assunto sobre o qual eu precisava agir: Isotta.
— Álvaro? — Meu subchefe se abaixou para verificar o motivo do meu atraso.
— Vá na frente — ordenei. — Eu preciso fazer uma ligação.
Ele concordou e fechou a porta. No mesmo segundo Valentin e o motorista deixaram o
carro e me deram privacidade. Do lado de fora, quatro soldados se posicionaram na frente e mais
quatro atrás para manter a minha segurança.
Com um suspiro pesaroso, procurei pelo contato dela, o mesmo que salvei antes de deixar
a cobertura após o acordo do casamento e para o qual eu nunca liguei. Havia em meu peito um
misto de sentimentos. Enquanto a amargura me deixava desconfortável para iniciar uma conversa
com ela após o que aconteceu, a sensação estranha de necessidade e desejo faziam meu corpo se
comportar como o de um adolescente em seu primeiro contato com a namorada.
— Ela não é sua namorada — murmurei, aborrecido, ao iniciar a chamada.
Contei os quatro toques como se entre estes houvesse um imenso passar do tempo e me vi
mais aborrecido e frustrado por ela não me atender de imediato.
— Alô?
A voz insegura chegou ao meu ouvido e fez com que qualquer ação fora do carro perdesse
a importância.
— Isotta.
Ela não respondeu de imediato. O silêncio que não durou cinco segundos fez com que meu
peito sentisse o peso de uma imensa pedra que o impedia de respirar.
— Álvaro? — sussurrou.
Enquanto eu refletia sobre como iniciar aquela conversa, meus pensamentos se dividiam
em ramificações que tomavam direções próprias. O desânimo ao compreender que ela não tinha
meu número salvo se misturou ao aborrecimento por ela sussurrar como se não pudesse revelar
que falava comigo e tudo isso corria ao lado da sensação incômoda que se formava em meu
estômago ao me perguntar onde ela estava para não falar comigo de forma correta.
— Precisamos conversar — avisei de forma dura, obrigando-me a me afastar dela o quanto
antes.
— Onde você está?
Eu me movi, incomodado. Por que ela queria saber onde eu estava?
— Isso não tem importância — retorqui. — Onde você está?
— Você consegue essa informação sozinho. Foi para isso que me ligou?
Olhei para a tela do celular sem acreditar no quanto insolente Isotta conseguia ser.
— Eu liguei para… — Fechei os olhos e engoli a raiva. — Para me desculpar por ontem.
— Seu primo me disse. Se pretendia me ligar não precisava fazer de Jean o seu garoto de
recados.
— Por que você dificulta tanto as coisas?
— Por que você não facilita? — ela rebateu cheia de si. Puxei o ar com força.
— Agora eu compreendo porque o seu pai demorou tanto para conseguir um noivo para
você — provoquei.
— Talvez porque eu não estivesse em busca de um.
— Para quem não buscava desesperadamente com quem se casar, o seu golpe foi certeiro.
— Para quem afirmou que viveríamos um casamento de mentira, o seu também foi.
Mordi o lábio inferior sem encontrar uma resposta adequada. Isotta me enlouquecia e o
pior, ela estava certa. Eu não deveria entrar no quarto dela, tirar a sua virgindade e tão pouco
ameaçá-la como fiz. Agora eu me via no inferno das lembranças e o medo das consequências.
— É sobre isso que vamos conversar — eu disse sério, no entanto, contendo o rancor. —
Nós… — limpei a garganta e me perguntei por qual motivo conversar sobre aquilo com Isotta
me deixava tão desconfortável? — Nós transamos sem camisinha e… bom, acredito que você
tenha aprendido na escola sobre as consequências, então…
Ela riu. Não um riso divertido, mas um debochado.
— Na escola? É uma boa forma de explorar o tema, mas a vida é uma melhor professora
— Isotta confessou e eu engoli o palavrão que ameaçava escapar por meus lábios.
Até onde ela foi para falar comigo sobre o assunto tão cheia de confiança? E por qual
motivo eu me preocupava tanto com isso?
Puta que pariu! Eu não sobreviveria um dia inteiro ao lado dela. Isotta puxava de mim um
lado que eu não conhecia e que me assustava.
— Não se preocupe — ela continuou, impedindo-me de raciocinar de maneira coerente. —
Eu já cuidei disso.
— Você… o quê?
— Tomei a pílula do dia seguinte — avisou.
— Você… — fechei os olhos, puxei o ar com força e repeti mentalmente que não poderia
explodir com ela. — Por que fez isso?
— Por um monte de motivos sobre os quais não preciso discorrer com você.
— Eu serei seu marido, Isotta — rosnei. — Você não pode tomar decisões como esta
sozinha.
— Pra começar — ela rebateu naquele tom que eu sabia, me faria perder a paciência. —
Qualquer decisão que diga respeito ao meu corpo, eu tomo sozinha. E vou repetir para que você
compreenda: meu corpo, minhas regras.
— Deixa de ser marrenta, menina.
— Eu nem sei o que significa isso, mas com certeza deve ser alguma expressão antiga e em
desuso. Dessas que só os homens da sua idade conhecem.
— É a palavra que usamos para garotas que enchem o saco por um motivo sem sentido.
— Não é um motivo sem sentido. Eu não vou te pedir autorização para fazer algo que só
diz respeito a mim.
Fechei a mão em punho e puxei o ar com força. Isotta minava a minha paciência e não se
importava com isso.
— Olha, Isotta…
— Se você quer uma explicação, eu não quero engravidar. Em especial em um casamento
que deveria ser de mentira.
— Não há garantia cem por cento na pílula do dia seguinte — rosnei. — Você pode estar
grávida. Eu ia avisar que agendaria uma consulta com a ginecologista que atende as mulheres
da…
— Eu cuido disso — ela me interrompeu outra vez.
— Porra, Isotta!
— Esse assunto só diz respeito a mim. Pare de tentar me controlar!
— Esse é um assunto que diz respeito a nós dois. Eu sou o pai dessa criança.
— Que criança, Álvaro? — ela gritou, totalmente inserida naquela briga. — Meu Deus!
Você enlouqueceu?
— Você está me enlouquecendo.
— Era só ficar longe de mim.
— Mas não fiquei — gritei de volta. — Por que você não consegue fazer o que precisa ser
feito?
— Porque eu não nasci para ser submissa — ela disse como se cuspisse as palavras. — E
você não tem o direito de exigir nada. Você é apenas o marido de mentira, esqueceu?
— Isotta… — Engoli com dificuldade, a raiva correndo por minhas veias como alimento
para meu desequilíbrio. — É melhor você fugir de mim — alertei. — Porque quando eu puser
minhas mãos em você será para trancafiá-la em um quarto e nunca mais permitir que você veja a
luz do sol.
— Álvaro… — ela falou baixinho, o que, por um segundo, me passou a sensação de
vitória, contudo, com Isotta, eu nunca poderia festejar antes da hora. — Eu duvido.
Então ela desligou a ligação. Isotta De Rosa desligou a porra da ligação na minha cara. E
eu agradeci a Deus por ela não estar ao alcance das minhas mãos.
— Que inferno!
ISOTTA
— O que foi isso? — Heidi perguntou ao meu lado com um sorriso deliciado.
— Alguém tem que dizer ao Álvaro que eu não tenho medo dele.
Heidi riu e levantou da minha cama.
— Você tomou mesmo a pílula do dia seguinte?
— Não! De qual maneira eu conseguiria essa proeza sem que alguém não alertasse o
Álvaro? Viver na máfia é um saco!
Ela riu outra vez.
— Eu posso resolver isso. Não se preocupe. Tem certeza de que quer tomar?
— Por que me pergunta isso?
— Não sei. Gosto da ideia de Álvaro como pai.
Levantei da cama, abracei meu corpo e caminhei até a janela. O dia acabava do lado de
fora. O sol enfeitava o céu com tons alaranjados enquanto os gêmeos, filhos de Jean e Heidi
brincavam acompanhados de uma das babás, Raika.
Durante todo o nosso dia, Heidi me contou sobre a sua história com Jean, a doença de
Ayla, sua filha, a maneira como ela voltou a conviver com a máfia e o casamento. Não foi fácil
para ela, assim como não seria para mim e aquilo me fazia pensar nas mulheres que eram
entregues a casamentos sem amor, apenas como uma formalidade para acordos que não podiam
existir no papel.
— Não é cem por cento de garantia — eu disse por fim. — Mas não quero engravidar.
— Nunca?
Balancei a cabeça, negando.
— Não desta forma. Eu te disse, inventei uma mentira para fugir de um casamento e acabei
tendo Álvaro como meu inimigo.
Heidi parou ao meu lado, envolveu meu braço no dela e observou os filhos brincarem.
— Álvaro não é seu inimigo — ela murmurou. — Ele só está tão assustado quanto você.
— Não tenho tanta certeza. Depois do que ele fez…
— Você disse que ele não te forçou a nada.
— Não forçou — afirmei, de repente envergonhada. Era a primeira vez que eu conversava
de forma tão direta com alguém. — Mas usou isso para me fazer sofrer.
— Eu sei.
Heidi deitou a cabeça em meu ombro. Eu não entendia o tipo de ligação que se fez entre a
gente. Uma garota que eu não conhecia, com uma história de vida tão confusa quanto a minha,
no entanto, que conquistou a minha confiança de uma maneira que eu me fazia agir como se
fôssemos amigas de longas datas.
— É difícil até que vocês encontrem um equilíbrio. Álvaro e Jean vieram de uma educação
complicada. Apesar de não concordarem com o que a Ndrangheta era, precisavam cumprir com
seus papéis. E foi… difícil, Isotta. Tudo só mudou depois de… Giullia.
— Giullia?
— É uma longa história. Peça para Álvaro te contar. Agora eu preciso descer. Vou
fiscalizar as crianças e providenciar sua pílula do dia seguinte.
— Tem certeza de que não será um problema para você?
Heidi me deu um olhar divertido e determinado.
— É como você disse ao Álvaro: seu corpo, suas regras.
Então ela partiu do quarto.
Desta vez, sentei na cama sem a sensação de solidão. Até mesmo me sentia mais feliz. Ter
Heidi como amiga aliviava o peso que eu carregava, e, conhecer a sua história me dava
esperança de um dia ter algo parecido com o homem com quem escolhi casar, ainda que baseado
em mentiras e desacordos.
Eu me sentia pronta e forte para encarar aquele casamento, bastava fazer com que Álvaro
também estivesse.
25
ISOTTA

Nos dias seguintes todos os meus segundos foram ocupados por Duci e Heidi, que
demonstrava mais animação com a festa de casamento do que eu conseguia fingir.
— Não vamos em muitas festas na Alemanha — ela confessou enquanto eu fazia a minha
última prova do vestido, um dia antes do casamento.
— Eu detesto a ideia de viver trancafiada — revelei. — Preciso ver gente ou enlouqueço.
— Eu te entendo. — Heidi observou o próprio reflexo no imenso espelho do espaço em
que eu aguardava a costureira fazer os últimos ajustes. — Mas Jean tem obsessão com a nossa
segurança, então quase tudo o que fazemos fica dentro dos muros da nossa residência.
— Jean ocupa um cargo importante. É normal esse cuidado — apaziguei.
— Com certeza, mas às vezes eu queria… — ela suspirou. — Agora ele está pior. Não há
nada que eu possa fazer sozinha até que… — Heidi hesitou, conferiu sua imagem mais uma vez
e sorriu de forma doce. — Mas eu entendo o Jean. Sei que ele precisa estar com a mente
tranquila quanto a família, só assim conseguirá se empenhar no trabalho.
— Pronto — a costureira sinalizou.
Desobrigada, troquei de roupa e segui com as duas mulheres para casa e só neste momento
Heidi me deixou para se ocupar com os filhos. Entrei na imensa casa onde eu moraria com meu
futuro marido e me surpreendi com a sua presença. Álvaro, lindo como nenhuma lembrança
minha faria jus, com roupas casuais e escuras, conversava na sala mais distante com dois jovens
de postura rígida, e próximo a eles, Jean.
Este foi o primeiro a me ver e fez um gesto para que eu me aproximasse. Envergonhada,
caminhei na direção deles. Aquele era o meu primeiro encontro com Álvaro desde que perdi a
minha virgindade e fui abandonada de forma catastrófica, então eu não sabia como me portar.
Minhas pernas vacilaram quando meu noivo, ao notar o gesto do amigo, voltou sua atenção
para mim e nossos olhares se conectaram. Foi estranho e… quente. Segurei a bolsa com mais
força, certa de que minhas mãos tremiam, contudo, em momento algum, desprendi meus olhos
dos dele.
— Isotta — Álvaro me cumprimentou quando parei diante deles.
— Álvaro — devolvi no mesmo tom.
— Hum! — Jean limpou a garganta, quebrando o clima estranho que ficou na sala após o
cumprimento sem nenhuma emoção entre duas pessoas que estariam casadas em menos de doze
horas. — Esses são meus sobrinhos, Benito e Alejandro.
De imediato o garoto que parecia ser o mais velho, segurou minha mão e a levou aos lábios
em um cumprimento encantador, o que me fez sorrir ao encarar seu rosto ainda oval,
abandonando as feições infantis para recepcionar o que seria um lindo rosto adulto. Ele tinha um
tom escuro de loiro, com alguns fios mais claros e os olhos exibiam um tom escuro de verde,
fascinante, além dos lábios cheios e rosados.
— É um prazer finalmente conhecê-la, Srta, Isotta — Benito disse com mais maturidade do
que sua idade exigia. — Álvaro deveria ser mais fiel ao descrever a sua beleza.
— Vá com calma, Don Juan — Meu noivo o censurou, contudo, sem qualquer indício de
aborrecimento.
— Eu sou Alejandro — o garoto mais jovem imitou o irmão no gesto, mas corou de
maneira a me fazer ampliar o sorriso. — É um prazer conhecê-la.
— Igualmente — eu disse, fascinada com aquelas duas figuras que pareciam a imagem
perfeita de príncipes encantados.
— Onde está Heidi? — Jean quis saber, sem esconder de ninguém a sua vontade de se
juntar à esposa.
— Com as crianças.
— Meninos, vamos. Vejo vocês no jantar — ele disse sem aguardar por mais nada,
deixando a sala com agilidade, como se sua intenção fosse fazer com que eu e Álvaro tivéssemos
mais aquele momento constrangedor em que não fazíamos ideia do que dizer um ao outro.
— Pensei que você só voltaria amanhã — acusei.
— Esse era o plano, mas eu quis passar um tempo com Alejandro.
Encarei Álvaro, suas íris de um tom de verde quase cinza, que quase sempre me faziam
refletir no quanto de poder havia naquele homem que mantinha uma postura rígida ao meu lado.
— Você não fugiu — observou.
— Você não me intimida.
Um pequeno e quase inexistente sorriso brincou no canto dos lábios dele, e eu não pude
deixar de lembrar do quanto eu gostava quando ele me beijava, ou quando me provocava ao
arrastá-los por minha pele. Então minha pele esquentou e eu precisei desviar o olhar para
disfarçar a maneira ofegante como fiquei.
— Precisamos conversar sobre alguns detalhes — ele quebrou a força do momento ao se
afastar. — Vamos até o escritório.
Acompanhei Álvaro pela casa. Eu me perguntava onde os empregados se escondiam
quando Jean ou Álvaro se movimentavam pelo local, pois sempre tínhamos total privacidade. E,
naquele instante, o silêncio me incomodava. Eu não sabia o que meu noivo faria, o que pretendia
ao me guiar até o escritório, e me vi confusa entre o que queria que ele fizesse e o que não
deveria querer.
Álvaro abriu a porta e deixou que eu entrasse, aguardando que eu passasse para então nos
trancar do lado de dentro. Um calafrio percorreu minha coluna, sem me deixar definir se de uma
forma boa ou ruim. Porque ele conseguia ser meus dois polos, o homem em que eu podia confiar
e, ao mesmo tempo, um inimigo sobre o qual eu não podia relaxar nem por um segundo.
— Sente-se — ordenou ao passar por mim para se servir no bar.
— Não, obrigada.
— Isotta…
— Não vejo qualquer assunto que possamos tratar que exija de mim mais do que breves
minutos — destaquei e me aproximei para me servir também.
Álvaro me observou escolher o copo e em seguida tirar a garrafa de uísque da sua mão
para despejar uma dose generosa para mim.
— Você vai beber? — Havia um leve tom de reprovação em sua voz.
— Não sou mais criança, esqueceu?
Antes que ele pudesse me impedir, levei o copo aos lábios e bebi um gole. A bebida me
aqueceu, levando por minhas células a promessa de relaxamento.
— Você não sabe se está grávida — declarou. Eu ri.
— Nem você — desafiei.
Com um suspiro ele deixou que eu me afastasse.
— Podemos resolver isso. É só…
— Não seja ingênuo, Álvaro. Eu não estou grávida. Relaxe. Não há nada que exija de você
mais do que está disposto a doar neste casamento.
Dei mais um gole da bebida enquanto ocultava o incômodo por ter seu olhar incisivo
fixado em mim. Álvaro mantinha a expressão contrariada, contudo, não entrou naquele assunto
outra vez. Ele bebeu em silêncio, até que tivesse coragem para iniciar o assunto daquela
conversa.
— Duci te falou alguma coisa a respeito da lua de mel?
— Bom, você me deixou confusa agora — pirracei. — De que conversa estamos falando?
Se você espera que Duci faça o papel da minha mãe e me oriente sobre a primeira noite de uma
mulher com um homem, é um pouco tarde para isso, não?
Ele bufou, aborrecido, e, dando a volta na mesa, puxou a cadeira para sentar.
— Eu não acreditei nem por um segundo que você precisasse de orientação, Isotta. E não
se preocupe, qualquer intimidade entre nós dois não voltará a acontecer.
A pausa que ele fez, certo de que eu teria alguma tirada rápida e inteligente para desfazer
da sua afirmação, me deixou constrangida. Eu esperava muitas coisas de Álvaro, mas não aquilo.
Por isso não encontrei palavras para dar seguimento a nossa briga e ele percebeu o meu
abatimento, pois, talvez surpreso, tenha compartilhado comigo o incômodo do momento.
— Sente, Isotta — disse sem o tom autoritário que costumava utilizar.
E eu obedeci. Não queria reagir daquela forma diante da sua determinação em manter um
casamento de mentira, afinal de contas, aquele era o acordo desde… desde que imaginei aquela
possibilidade. E eu deveria estar bem com toda a situação, mas não estava. Então, sentar para não
demonstrar o quanto minhas pernas enfraqueciam e minhas mãos tremiam era a melhor decisão.
— Conversei hoje com Jean — ele disse de forma mais leve, atento a meu rosto enquanto
eu lutava contra minhas emoções. — Após o casamento, à noite, quando todos tiverem ido
embora, eu partirei para cumprir com meus compromissos.
Outra pausa avaliativa. Desta vez não consegui evitar meus olhos úmidos e o desconforto
em meu estômago. Puxei o ar com força e concordei. Por um segundo, encarando Álvaro,
enxerguei em seu rosto algo que me dizia que ele desfaria aquela confusão, que encontraria um
jeito de não me abandonar no dia do nosso casamento, porém, apesar de ele ter aquele momento
de fraqueza, logo desapareceu, as feições determinadas assumiram o que seu rosto de dizia.
— Você sabe que é melhor assim.
— Tudo bem — murmurei, temerosa quanto a minha capacidade de me manter
equilibrada. — Então você vai embora e eu ficarei aqui? Seu plano é me manter sozinha nesta
casa para sempre?
— Não. — Sua voz tinha um tom apaziguador. — Eu ficarei fora por um mês. Como único
Capo no Brasil, minhas obrigações fazem com que eu fique a maior parte do tempo ausente.
— Entendo.
— Mas você está livre. Dentro dos nossos limites, é claro. — Então ele se mexeu na
cadeira, incomodado com algo. — Você é muito nova, Isotta. Não tem vontade de ficar mais
tempo com seus amigos?
De imediato minha mente me levou a Simona, Letizia, Elias e Diego e eu me dei conta de
que pensar em Diego não me causava mais o frisson de antes. Sentia falta dos meus amigos,
lamentava não poder convidá-los para meu casamento, no entanto, quando colocava as duas
situações lado a lado, tê-los comigo ou passar mais tempo com Álvaro… Meu Deus, por que eu
me sentia daquela forma?
Precisei respirar fundo mais uma vez e decidi que não conseguiria responder. Não sem
parecer uma garota boba. Contudo, a minha falta de resposta deu a Álvaro uma ideia deturpada
dos meus sentimentos.
— Você terá permissão para viajar. Existe uma equipe preparada para garantir a sua
segurança. Escolha um lugar, fale com seus amigos.
Concordei sem conseguir expressar o quanto aquilo doía dentro de mim. E era confuso.
Durante anos eu implorei por essa liberdade. Álvaro estava me devolvendo a vida que roubaram
de mim. Casada, nem meu pai, nem Nicolo, ninguém poderia contestar o que ficasse acordado
entre meu marido e eu. Por isso era para eu me sentir grata. Para festejar e fazer planos.
Entretanto, naquele momento, minha única sensação era de solidão, de abandono.
Engoli a dor. Os olhos fixos nele, como se precisassem, com certo desespero, encontrar
algum indício de que não havia conforto em Álvaro em determinar aquele destino para mim.
— Eu só precisarei vetar, por enquanto, a visita a Espanha. Por causa do Nicolo, claro.
Mordi os lábios e concordei.
— E você pode também estudar. Não era a sua vontade? — ele ponderou, desta vez como
se precisasse encontrar mais motivos para justificar a sua decisão, o que só alimentava a mágoa
dentro de mim.
— Sim.
— Ótimo! — disse aliviado. — Eu pedi para nosso consultor agendar um horário junto a
Duci. Ele saberá lhe orientar melhor sobre a universidade adequada. Entrar não é o problema,
mas seu chefe da segurança precisará elaborar um…
Levantei a mão para calá-lo. Aquela conversa me confundia e atormentava como se cada
nova determinação dele fosse como um tapa atingindo meu rosto. Fechei os olhos e puxei o ar
com força.
— Então esses são os termos do nosso casamento?
Álvaro se desconcertou, buscou por palavras que não encontrou. Então me encarou daquele
jeito que sempre me fazia recuar, porém, não daquela vez.
— É isso? Viveremos como dois estranhos?
— Não estranhos…
— Eu posso fazer planos para minha vida, encontrar meu caminho independente do seu?
— Teoricamente você poderia fazer isso ainda que não estivéssemos em um casamento de
mentira.
Eu sorri, mas com tristeza. Porque Álvaro sabia que se existisse a mínima possibilidade de
ele me ver como sua esposa, de me desejar como tal, a realidade não seria aquela. E constatar tal
fato fez com que eu travasse uma nova luta contra as lágrimas.
E foi inevitável não pensar em Heidi e Jean, nos cuidados que ele tinha com ela, na
maneira como a protegia. Eu nunca teria aquilo.
— Isotta…
— É melhor do que ser para sempre prisioneira do Nicolo — rebati em dor.
Álvaro tentou falar algo, contudo eu já não conseguia mais. Precisava finalizar aquela
conversa, me recuperar, encontrar uma maneira de não sofrer diante do que me aguardava.
— E você tem razão, eu sinto falta dos meus amigos, quero estudar, conhecer alguém legal
e…
— Alguém? — ele me interrompeu com o semblante fechado.
— Bom…
Eu me ajeitei na cadeira, de repente confusa demais com a sua mudança de intensidade.
— Eu só tenho vinte anos, Álvaro e você… você é um homem sexualmente ativo. Não
vamos levantar a hipocrisia e fingir que em nenhum momento outras pessoas entrarão em nossas
vidas, porque você sabe que isso vai acontecer, certo?
Ele me encarou, os olhos estreitos, os lábios em uma linha fina enquanto me avaliava.
— Você mesmo me disse que eu estava livre — continuei. — E se não seremos um casal
de verdade…
Ele levantou de supetão, assustando-me, então, puxando o ar com força, Álvaro caminhou
de volta até a garrafa de uísque e preencheu o copo.
— Eu entendi alguma coisa errada?
— Não.
Mas seu tom de voz aborrecido, acompanhado do gole generoso que quase consumiu toda
a dose de uma vez só, me diziam o contrário.
— Neste caso… — levantei também, o que fez com que ele me encarasse outra vez. —
Temos um acordo?
Álvaro demorou para me responder. Durante vários segundos ele manteve os olhos em
mim, com diversas emoções que me confundiam, além de esquentar.
— E então? — Forcei um pouco mais.
— O quê?
— O acordo.
— O que deseja que eu faça, Isotta? Que te dê permissão para me trair?
— Não! Quer dizer…
Eu me afastei, confusa ao ponto de não saber o que poderia dizer. O que diabos Álvaro
queria?
— Você não terá uma vida de celibatário, não é?
Mas ele não me respondeu. Ainda que seus olhos demonstrassem a tempestade que se
formava, Álvaro se impedia de extrapolar o que de fato desejava me dizer.
— Bom, Álvaro, eu não estou te entendendo.
Cruzei os braços no peito e esperei.
— Não tem nada para entender — rebateu impaciente. — Você queria liberdade e eu estou
te dando.
— Tudo bem. Neste caso, não há mais nenhum ponto a discutir. No momento que você
deixar essa casa, eu sigo com a minha vida.
E eu demorei para entender que o que eu dizia, da forma como eu disse e com todos os
sentimentos que me cercavam, eu desafiava Álvaro, coloquei um limite, estiquei uma linha tênue
que definiria o que seria de nós. Ele manteve a atenção em mim, o olhar fixo no meu, a
expressão de pura contrariedade.
Por um segundo eu quis desfazer a situação que criei, mas não pude. Porque bastou que eu
colocasse daquela forma para compreender que eu precisava disso. Se Álvaro partisse no dia
seguinte, como prometeu fazer, eu tinha a minha resposta, e me agarraria a esta para refazer
minha vida.
— Agora preciso tomar banho para não atrasar o jantar.
Deixei meu noivo para trás e segui o mais rápido possível para fora do escritório. E só
quando fechei a porta atrás de mim, percebi que segurava o ar, amedrontada quanto a resposta
que ele me daria.
26
ÁLVARO

Quando Jean abriu a porta do meu quarto sem pedir permissão para entrar, certo de que me
encontraria na cama devido ao avançar das horas, eu não me sobressaltei, pelo contrário.
Encostado na janela aberta, ainda que estivesse frio, com o segundo cigarro nos lábios e um copo
de uísque na mão, encarei meu primo com a esperança de que ele me dissesse que o casamento
seria cancelado pois tínhamos um grande problema para resolver.
Só assim eu conseguiria me afastar dela sem a droga da ideia de que lhe daria permissão
para encontrar alguém. Desde o momento em que Isotta deixou o escritório até eu me trancafiar
em meu quarto, recusando me juntar aos familiares para o último jantar antes do casamento, eu
odiei Isotta um pouco mais, e, ainda que me custasse admitir, me atrelei a ela também.
Isotta não deixava meus pensamentos, não me dava paz. Eu desejava não olhá-la, mas
perdia a batalha, então precisava lidar com a enxurrada de lembranças e sensações. A textura
daquela pele, o cheiro, o gosto… a maneira como os lábios se movimentavam nos meus, como
nos encaixávamos… E eu não podia pensar nela daquela forma.
— Acordado? — ele perguntou com estranheza. — Ainda atormentado com o casamento?
Dei um trago no cigarro e não respondi. Jean conhecia a minha posição quanto ao que
aconteceria. Não estava de acordo com o fato de eu deixar Isotta e me manter longe dela,
entretanto, respeitava a minha decisão.
— Vamos — ele disse, cheio de autoridade. — Temos que estar de volta antes do
amanhecer.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não. De acordo com Aaron, não há nada que possa roubar o nosso sono esta noite.
— Então para onde vamos?
— Você tem cinco minutos — comunicou com um sorriso escroto e deixou o quarto.
Cinco minutos depois estávamos no carro. Jean se recusava a me dizer o que pretendia,
mas Aaron e Valentin faziam parte do comboio e sorriam como se aprontassem algo. Eu só
comecei a entender quando descemos no cais de onde nossas lanchas saíam e encontrei os
soldados mais próximos a mim aguardando por nosso grupo.
Olhei para Jean, que sorria como só fazia quando tínhamos aqueles poucos momentos em
que nossa posição não pesava em nossos ombros. Ainda assim, estranhei demais o seu
comportamento.
— Você sabe que Heidi vai te matar, não é?
Meu primo sorriu um pouco mais e deu dois tapinhas nas minhas costas antes de deixar o
carro.
— É sério, Jean. Não quero causar problemas no seu casamento, cara.
— Relaxe. Eu sou só o padrinho do noivo. Minha função é fazer com que todos se
divirtam.
— Puta que pariu, Jean! — resmunguei antes de encontrar com os demais, que não
escondiam a alegria pelo festejo.
Entramos na lancha e seguimos na direção do nosso maior clube, e o melhor das Américas,
apelidado de “A Ilha”, por ser um imenso castelo, única construção no pedaço de terra de nossa
propriedade, onde as garotas mais bonitas do Brasil desfilavam e não tinham receio de agradar
nossos clientes.
Jean construiu o lugar quando assumiu o posto de Capo da Ndrangheta no Brasil, ao tomar
para si a missão de construir o maior império da prostituição da América Latina. E ele conseguiu.
Juntou sexo, drogas, beleza e qualidade no espaço mais seguro do nosso domínio e assim atraíu a
atenção dos homens mais influentes do mundo.
Em nosso salão desfilavam presidentes, governadores, grandes empresários, representantes
das mais diversas nações. E tudo isso eu passei a administrar quando Jean se tornou Don e
deixou o país. Desde então aquele era o meu lugar preferido no mundo, onde eu podia ter tudo o
que quisesse sem precisar doar nada além do meu dinheiro. Seria perfeito, se Isotta não invadisse
a minha vida.
— Você está tenso — Jean pontuou atrás de mim ao me abordar na proa da lancha que nos
conduzia. — Não me diga que é por causa da despedida de solteiro que organizei.
Passei a mão no rosto, depois deslizei pelo cabelo e olhei para trás para me certificar de
que ninguém nos ouvia.
— O que fez com Juan?
Meu primo sorriu de forma diabólica.
— Preocupado com o futuro sogro?
— Eu ainda não casei. Juan pode encarar isso aqui como uma afronta e causar confusão.
— E você está tentando me enganar? Logo eu? Porra, Álvaro, casar não me deixou burro.
Você sabe tão bem quanto eu que Juan precisaria de um motivo forte o suficiente para declarar
guerra contra a Ndrangheta, e que ele não tem qualquer intenção de procurar por este. Ele só quer
garantir que você vai mesmo ficar com Isotta para voltar para a Espanha sem esse problema.
Fechei a mão em punho, aborrecido pela verdade que Jean narrava. Juan não era um
problema, mas a maneira como ele tratava a filha, como desejava com tanta força se livrar do
problema, me aborrecia. Foi por causa disso que Isotta fez o que fez e nos enfiou naquela
confusão.
— Eu pensei que você estava certo quanto a seguir com o casamento de mentira — ele
sussurrou, ciente de que eu não desejava tornar aquela situação pública.
— E estou — rosnei.
— Então por que está preocupado?
— Não estou!
Meu primo me encarou de forma divertida, os olhos estreitos como se me acusassem de
algo que nem eu tinha noção do que seria.
A lancha atracou no cais frontal, onde os sócios eram recepcionados. Jean havia pensado
em tudo para aquela noite. Funcionários nos receberam com bandejas repletas de bebidas, tochas
de fogo acesas pelo caminho que nos levaria até o castelo e toda a segurança para que ninguém
precisasse se preocupar.
Seguimos direto para o salão principal preparado apenas para o nosso grupo, onde uma
mesa cuidadosamente decorada, repleta de diversas opções de buffet, nos manteria alimentados
por toda a noite. As garotas, cada uma mais bem vestida do que a outra, desfilavam pelo salão
com sorrisos convidativos.
Rápido os homens se espalharam em busca daquela companhia que aqueceria a sua noite.
Eu me detive ao lado da mesa onde Jean costumava ficar.
— Boa noite — Flávia nos cumprimentou com um sorriso educado.
Desde que ela ousou desafiar Jean quando o marido de Lícia assassinou Scarlet, sua
amante, dentro do nosso clube, ela não demonstrava conforto diante da sua presença, apesar de
continuar trabalhando pra gente e se manter fiel. Flávia foi uma das poucas mulheres que
experimentou a fúria do nosso Don, mas soube se redimir, sendo perdoada.
— Os quartos foram arrumados — ela informou, desviando o olhar de Jean, certa de que
não deveria repreendê-lo por estar ali, em uma noite regada por sexo e drogas, enquanto a esposa
aguardava por ele em algum lugar.
Sim, depois que Jean reestruturou nosso modus operandi em relação às mulheres, maus
tratos e traições eram sempre um assunto abominado por todas as que trabalham com nosso
grupo.
— Encaminhei Nina para o seu quarto, Álvaro, mas se desejar um arranjo diferente…
— Obrigado, Flávia — murmurei.
— E o senhor? — disse para Jean, que sorriu como se quisesse provocá-la.
— Eu iria para o quarto se a minha esposa estivesse aqui, Flávia. Como ela não está, vou
acompanhar a diversão do salão.
A mulher concordou com um respeitoso aceno de cabeça e voltou a me encarar com um
sorriso menos tenso.
— Parabéns pelo casamento, Álvaro.
E eu nada consegui responder. A lembrança do casamento fez meu estômago protestar.
Nina, minha protegida, a mulher para quem entreguei minha pedra da exclusividade, a mesma
que me divertia e satisfazia nas noites em que eu só buscava um pouco de paz, aguardava por
mim em meu quarto, pronta para me deixar virá-la do avesso se eu assim quisesse.
Porém, apesar da promessa de prazer garantido, eu não consegui encontrar a vontade de
procurá-la.
— Você gosta dela — Jean disse ao meu lado, o olhar atento aos convidados que
interagiam com as garotas arrancando risadas e conversas animadas.
— Da Flávia?
— Vá se foder!
— Claro que não!
Jean riu, desfazendo da minha afirmação.
— Eu não gosto dela — repeti. — Não desta forma. Isotta é uma boa garota, só… detona
minha paz.
— Vocês conversaram?
Concordei sem nada dizer. Eu ainda ruminava o que ela determinou, o ultimato que deu, e
me perguntava se estava disposto a de fato viver aquilo. E havia Nina pronta para mim, bastava
que eu decidisse, que desse aquele passo. Mas eu não dava.
Porra, Isotta!
— Então será desta forma? Um casamento de fachada?
— É melhor assim.
— Até quando você vai sustentar essa idiotice, Álvaro?
Desta vez ele não se preocupou em sustentar a aparência. Jean se voltou para mim sem se
preocupar com as pessoas ao nosso redor.
— Você sabe que somos incompatíveis.
Ele bufou diante do meu argumento.
— Incompatíveis?
Enquanto ele me encarava com uma sobrancelha erguida eu sentia toda a minha
determinação evaporar. Ninguém me conhecia melhor do que Jean. Ainda assim, eu não podia
permitir que ela me dissuadisse.
— Olhe na minha cara e me diga que entrar no quarto de Isotta e transar com ela te fez
perceber essa incompatibilidade.
Não fez, eu quis dizer. Até porque se havia algo que se encaixava bem entre a gente era o
desejo que sentíamos. O sexo foi… a concentração disso. Não deveria ter sido tão bom, já que
foi a primeira vez dela, mas a química entre nós garantiu que fosse… além das minhas
expectativas.
— Esse é o único ponto que funciona bem entre nós — admiti a contragosto. — Ainda.
— Eu não era apaixonado por Heidi quando…
— Já conversamos sobre isso, Jean. Não estamos vivendo a mesma história. Heidi é a mãe
dos seus filhos. Quando vocês decidiram ficar juntos, existia um motivo maior para que isso
acontecesse. Uma coisa levou a outra. Eu não tenho nada que me ligue a Isotta.
— Só o sexo — ele pontuou.
— Eu transei uma vez com a garota e você está mesmo determinado a acreditar que me
apaixonei.
— Você não está apaixonado, mas precisa admitir que Isotta mexe com você. E, se
conseguisse se desfazer dessa marra, estaria dentro dela esta noite e não aqui.
— Não acho que tive escolha quanto a isso — pirracei.
— Se você estivesse no quarto dela eu não te encontraria.
— E quem te disse que Isotta me quer no quarto dela?
Jean se surpreendeu com a minha resposta. Ele voltou a me encarar como se não
encontrasse uma lógica em minhas palavras. E, confesso, que expressar aquela questão fez com
que eu me perguntasse se Isotta me recusaria, caso eu desejasse desfazer a ideia de casamento de
mentira. Então a ideia dela de conhecer outra pessoa preencheu minha mente e eu me vi outra
vez incomodado até o limite.
— É melhor eu subir — avisei, deixando meu copo sobre a mesa.
— Você vai ver a Nina?
— Não foi para isso que você me trouxe — retruquei, aborrecido, incerto sobre qualquer
ação que se desenrolaria naquela noite.
Jean não tentou me impedir e eu não fiquei para conferir se ele aprovava ou não a minha
decisão de me trancar em meu quarto com a garota que eu mantinha como exclusiva. Ao me
afastar do salão, agradeci pelo ambiente calmo e silencioso que era o corredor que me ligaria ao
meu quarto. Eu queria sentar, beber e descansar minha mente e, se possível, deixar Isotta um
pouco de lado.
Abri a porta e adentrei o quarto amplo com iluminação intimista, provavelmente preparada
por Nina para alguma performance exclusiva como presente de casamento. O som suave
indicava ser aquela uma noite diferente das que tínhamos quando eu buscava seus serviços.
Nina, de pé na frente da cama, usava um vestido justo e transparente, revelando o conjunto
de lingerie verde, perfeito para o tom de pele dela. A garota sorriu com cautela e encostou na
barra de pole dance instalada no meu quarto para a sua performance.
— Terei um show exclusivo?
— Se assim desejar — ela ronronou, completamente à vontade com seu jeito doce e
submisso, ensaiado para satisfazer os homens que conhecia em nosso clube.
Eu sorri, ainda que tivesse certeza de que não demonstrava entusiasmo. A verdade era que
eu estava tenso demais com os últimos acontecimentos e não conseguia encontrar alívio nem
mesmo com a possibilidade de me satisfazer com uma mulher que me daria tudo o que eu queria.
Ainda incerto sobre a decisão de ir ao quarto, andei até o bar e me servi de uma dose dupla
de uísque, depois caminhei até a poltrona de frente para a barra e sentei. De imediato Nina
iniciou o show. Ela rodopiou fazendo com que o corpo trabalhado evidenciasse para mim. Eu vi
as peças minúsculas, a bunda empinada e dura, os seios fartos, no entanto, não encontrei desejo
em mim o suficiente para acreditar que estava no caminho certo.
Eu adorava pole dance. Não as apresentações que aconteciam nas boates sem a mesma
qualidade que a nossa, mas aquelas como a que Nina fazia. Onde ela levantava o próprio peso
com apenas uma mão, se equilibrava de forma leve na barra e se exibia como se esta fosse a sua
fonte de prazer.
Assisti a diversas apresentações da minha exclusiva e este era um dos motivos para eu
mantê-la assim. Nina era flexível, tinha fôlego, era sensual como uma gata sedenta por carinho.
No geral eu a via na barra e a levava em seguida para o quarto, contudo, naquela noite eu a
assistia concentrado, lutando contra minhas lembranças, as comparações que não deveriam estar
ali, me esforçando ao máximo para encontrar um fio de desejo que me fizesse aceitar dela o que
me era ofertado.
Mas, quando Nina finalizou o show e engatinhou até meus joelhos, eu me dei conta de que
não deveria estar ali. Coloquei o copo no chão, encarei o rosto bem desenhado da garota, toquei a
pele com a ponta dos dedos em um último esforço para recuperar o que éramos, e nada encontrei.
— Desculpe, Nina — sussurrei, ainda com os dedos brincando em sua pele, deslizando do
queixo até o pescoço, alcançando a nuca sem qualquer resistência dela. — Eu não…
Ela me encarou como se imaginasse que aquilo aconteceria e deixou escapar um suspiro de
tristeza. Nina não disse nada quando eu tirei o colar do seu pescoço e recuperei o diamante bruto
que a mantinha como minha exclusiva.
— Pedirei a Flávia para garantir que receba uma boa recompensa. Pelos bons tempos.
— Obrigada — ela sussurrou, evitando que as lágrimas descessem.
Levantei com cuidado, coloquei o colar no bolso sem entender ao certo porque fazia
aquilo, e deixei o quarto. Ainda confuso, peguei o caminho por onde apenas os funcionários
podiam transitar e segui com pressa até conseguir deixar o castelo para trás. Alguns soldados me
olhavam surpresos, no entanto nenhum se atreveu a me parar.
Mantive o passo até chegar ao cais onde uma lancha estava sempre a postos para saídas
repentinas, como a minha. Não havia ninguém para me conduzir, o que jamais seria um
problema. Entrei na embarcação e iniciei os trâmites quando ouvi alguém embarcar também.
— Tá fugindo? — Jean perguntou antes mesmo que sua imagem aparecesse para mim.
Soltei o ar sem qualquer noção do que poderia responder a meu melhor amigo, meu
padrinho de casamento e o homem responsável por aquela despedida de solteiro fracassada.
— Jean.
— Álvaro.
Ele me encarou com sua postura autoritária, então riu.
— Tudo bem. Vamos pra casa.
Sem dizer nada, iniciei a nossa volta e, por todo o percurso, o caminho que me separava
dela, eu tive a certeza do que faria. Contudo, sem qualquer noção de como Isotta me receberia.
Pro inferno com todas aquelas questões. Eu precisava tê-la, me certificar de que
funcionávamos bem no sexo, colocar cada questão em seu devido lugar, esquecer a insegurança
que me fazia um idiota adolescente diante de uma garota de vinte anos.
Durante todo o trajeto seguimos em silêncio. Jean se despediu de mim com um tapa nas
costas e desapareceu pela casa escura. Eu segui na direção do quarto em que Isotta estava, sem
me preocupar com nada e nem ninguém. Sabia que os soldados não estariam na sua porta, uma
vez que Jean ordenou que mantivessem a privacidade no interior da residência.
Por isso, eu cheguei diante do quarto, abri a porta sem esperar por mais nada e entrei na
penumbra que acolhia a minha noiva. Isotta não dormia como eu pensava. No instante em que
entrei e fechei a porta, ela sentou na cama e me encarou.
Eu queria dizer muita coisa. Queria definir os nossos limites, entender de que forma
funcionaríamos, mas não consegui. Eu tinha urgência, uma necessidade que me impedia de falar
e me forçava a agir. Por isso, sem desejar perder mais tempo, arranquei a camisa, tirei o sapato
com os pés e me debrucei sobre Isotta.
Um leve arquejar me saudou. O hálito doce aqueceu meus lábios antes de tomar os dela
para mim. Isotta não me rejeitou. Ela me beijou, enfiou os dedos em meu cabelo e me puxou
para si. E eu fui, porque não em mim nada que me impedisse de atendê-la.
27
ISOTTA

Acordei no meio da noite com o coração acelerado e demorei para reconhecer o quarto que
me abrigou nos últimos dias. A sensação de segurança não me abraçou de imediato. Minha boca
estava seca, a pele arrepiada enquanto eu repetia para mim mesma que fora apenas um sonho,
que nada aconteceu a Álvaro. Ainda assim, a imagem do corpo ensanguentado insistia em
permanecer na minha tela mental.
Levantei ainda sem saber se deveria transitar pela casa, vesti meu robe e deixei o quarto.
Trêmula, fui até a cozinha em busca de um pouco de água, no entanto, ainda que nada naquele
local me desse medo, não demorei além do que o necessário.
Quando cheguei ao topo da escada ouvi alguém abrir a porta da sala e em seguida passos
apressados. Por alguns segundos minha mente congelou. O pânico dos pesadelos fresco em
minha memória me fez cogitar as piores situações. Eu me esgueirei no escuro e me inclinei para
tentar descobrir quem conseguiu passar pelos soldados e adentrar a casa no meio da madrugada.
Então eu vi Jean e Álvaro. Sem nada dizerem, se despediram com pressa e Álvaro tomou a
direção das escadas que me escondiam. Apressada, fiz o máximo de esforço para não deixar que
nenhum som me entregasse, abri a porta do meu quarto e entrei.
Cheguei a encostar na porta para me certificar de que ele não teria me visto, quando ouvi
os passos apressados dele. Certa de que meu quarto era o alvo do meu noivo, corri até a cama e
me cobri com pressa. Havia em mim um misto de emoções. O que Álvaro queria comigo no
meio da noite, poucas horas antes do nosso casamento?
A suposição que se instalou em minha mente fez com que vestígio do pesadelo
desaparecesse. Meu corpo esquentou com a expectativa enquanto eu lutava contra as reações que
dariam a Álvaro a certeza de que eu estava acordada. A porta abriu, fechou e eu perdi a batalha.
Sentei no colchão sem qualquer noção do que seria aquele encontro.
O escuro deveria me proteger do que seria a força do seu olhar sobre mim, mas aconteceu
o contrário. Eu não podia ver seus olhos, entender o que ele pretendia, ainda assim, era como se
houvesse energia circulando por minhas veias. Crepitando, incendiando, arrancando de mim a
capacidade de reagir.
E eu nada consegui dizer quando ele se despiu da camisa e dos sapatos e se juntou a mim
na cama. Quando Álvaro me tocou, quando seu corpo se impôs ao meu, estremeci. Havia tanto
de desejo em meu corpo que eu me sentia frágil, vulnerável, cativa de todas as suas vontades e
ansiosa para atendê-las.
Ele me beijou com uma fome que não condizia com o homem que definiu limites para o
nosso relacionamento horas antes de aparecer no meu quarto. O que ele pretendia? O que aquilo
significava? Eu não consegui definir, porque quando Álvaro me beijou, todas as dúvidas
desapareceram.
E eu me perguntei por que nunca, em nenhuma das aventuras que vivi, um beijo foi tão
gostoso? Por que aquele gesto mínimo, o juntar de lábios, atingia pontos em mim que eu nunca
imaginei ser possível? Por que gemi quando a língua dele acariciou meu lábio inferior e por que
essa pequena introdução, o iniciar do que seria o grande ato, me deixava entregue em tão pouco
tempo?
Mas então todas as minhas questões desapareceram quando ele deitou sobre mim, entre as
minhas pernas, com aqueles movimentos que derrubavam de uma vez por todas as barreiras que
restavam, se é que havia alguma quando o assunto era Álvaro em minha cama.
Guiei minha mão até sua cintura, desfrutei da pele quente e dos músculos definidos, me
embriaguei com o gemido dele em minha boca, com o roçar estudado, o movimento perfeito dos
seus quadris se impondo ao meu. Fechei os olhos e desfrutei da deliciosa sensação de ter aqueles
lábios em minha pele. De acompanhar a sua busca pelo meu corpo enquanto me torturava com
beijos quentes, uma língua atrevida e mordidas que atiçavam minha libido.
Álvaro trilhou por meu pescoço enquanto uma mão se apossava de mim, descia a alça da
minha camisola, acariciava meu seio com posse até que esta ofertasse a carne para os lábios
ávidos. Arquejei quando ele me tomou daquela forma, sugando o bico até que se tornasse um
ponto contraído pelo desejo, um delicioso aviso do que aconteceria.
Arfando, mantive uma mão entre os fios lisos, sem guiá-lo, mas disposta a segui-lo por
qualquer lugar que ele ousasse se aventurar no meu corpo. Então, quando os beijos se
estenderam pela minha barriga, quando as mãos dele fizeram o caminho contrário, deslizando
por minha coxa e quadril, não havia mais um fio de controle em mim.
Eu sabia o que Álvaro pretendia e ansiava como se segundos não fossem rápidos o
suficiente, e cada novo beijo, cada parada enquanto ele saboreava minha pele, tinha o efeito de
uma bomba acionada. No entanto, apesar do desejo que guiava meu noivo, havia nele a
segurança de quem não precisava atropelar os acontecimentos. Por isso, ainda que estivesse
perceptível a minha angústia, Álvaro não fez nada para aplacá-la.
Dedos experientes traçaram uma carícia lenta e torturante pela borda da minha calcinha,
enquanto os lábios se mantinham em minha pele. Ele me tocava, porém nunca se atrevendo a ir
além, da maneira como eu ansiava. Os lábios se fecharam em beijos ardentes no espaço em que
minha coxa e minha virilha se encontravam. Eu fechava os dedos em seu cabelo como uma
súplica que ele ignorava com sucesso.
A mão brincou com minha calcinha, os dedos esbarraram em meu sexo passando a ideia de
um gesto inocente, entretanto, eu sabia que nada ali tinha este cunho. Álvaro sabia o que fazer,
sabia provocar, despertar em mim o que jamais imaginei desejar. Enquanto ele brincava com a
peça íntima e me dava furtivos toques, os beijos se aproximavam do seu objetivo e choques se
espalhavam pelo meu ventre sem me deixar concentrar a atenção em um único ponto.
Havia em minhas terminações nervosas uma sucessão de acontecimentos que confundiam
e desorganizavam a minha mente. Eu me sentia imersa em um oceano de prazer, com muitos
pontos dentro de mim estimulados, prontos para a explosão que certamente aconteceria. E aquela
era a promessa mais doce que ele podia me fazer.
Porque naquele momento pouco me importava se ele me deixaria no segundo seguinte, se
Álvaro manteria a sua posição de partir, naquele momento, enquanto ele me tomava como se eu
fosse o seu melhor entretenimento, dedicando a mim tamanha devoção, ainda que esta estivesse
ligada apenas ao sexo, nada mais importava.
E sim, eu disse a mim mesma que o que existia fora da cama não importava. O prazer
ofertado não era uma barganha. Éramos adultos e não só poderíamos, como deveríamos, separar
uma coisa da outra. Álvaro na minha cama era um oásis, uma mistura de aventura com
descoberta, um momento doce, uma fuga merecida da realidade. Fora da cama ele era… eu não
encontrava uma definição, não com aqueles dedos mais incisivos, abandonando os toques
fantasiados de inocência, deixando transparecer sua real intenção.
Eu não conseguiria encontrar uma maneira de descrever quem era Álvaro fora da minha
cama porque enquanto ele estava nela fazia um excelente trabalho para me fazer esquecer. E eu
desassociava uma pessoa da outra. O Álvaro que me abandonaria logo após o casamento
desaparecia, não alcançava espaço na minha mente, deixando apenas o Álvaro amante
determinado, conhecedor dos meus caminhos, dono das minhas reações e vontades.
E esta certeza ganhou força quando ele puxou minha calcinha para o lado. Os dedos
tocaram minha carne deixando claro que aquele era o seu objetivo, enquanto os lábios se
ocupavam das laterais, mantendo a tortura. Ofeguei quando senti seu hálito naquele ponto tão
sensível, antecipando o momento tão esperado. E quando seus lábios me tocaram, gemi surpresa
com a sensação indescritível que me assolou.
Álvaro fechou os lábios em um beijo que espatifou meus neurônios. Minhas pernas
tremeram, meus quadris se moveram de encontro a boca que me torturava. Abafei os gemidos, os
sons de prazer que teimavam em denunciar o meu estado e aceitei tudo o que ele queria para
mim.
Meu corpo adquiriu um tipo de vida diferente, onde todos os meus movimentos seguiam o
guiar dos gestos dele. Eu me retorci quando uma mão voltou para para meu seio em mais um
estímulo delicioso ao mesmo tempo em que ele aprofundava o sugar, me tocava com a língua,
adentrava minha carne e me explorava como tinha vontade.
Tudo em mim vibrava, aquecia, se dissolvia e me jogava em uma realidade alternativa,
onde cada detalhe fazia parte de um esquema perfeito para um único fim. E Álvaro tinha total
controle sobre este ponto, por isso seus toques se tornaram mais efetivos, seus beijos mais
intensos, suas mãos mais firmes ao me manterem no lugar, cativa, entregue ao seu deleite.
Eu já sentia o formigar concentrado quando seus dedos se afundaram em minha carne,
contudo, essa sensação adquiriu um teor mais potente quando, com a ponta dos dedos, ele
alcançou pontos em minhas paredes que ativavam meu corpo, tornaram tudo mais impetuoso.
E eu me tornei partículas de mim mesma quando o orgasmo me atingiu, me desintegrando
nos lábios quentes, me rendendo ao prazer que se dissolvia por minhas células e paralisava meus
pensamentos.
Enquanto eu me contorcia, me entregava e aceitava cada milésimo de segundo daquela
sensação única, Álvaro se tornou mais assertivo. Cada toque me causava outra onda de
estremecimento, cada gesto me fazia afundar outra vez naquela nuvem de luxúria. Até que se
espaçou, acalmou, deixando em seu lugar a impressão de relaxamento.
O silêncio que substituiu meus gemidos só era maculado pelo som dos lábios dele
retornando por minha pele, fazendo o caminho inverso, paciente, disposto a me dar o tempo
necessário. Entretanto, livre do domínio das suas mãos em meu corpo, com meus hormônios
encontrando o equilíbrio outra vez, com minhas células libertas da inquietação que é a busca pelo
prazer, eu ganhava novas vontades.
Eu tinha Álvaro em minha cama sem qualquer certeza sobre o tempo que duraria e com
uma imensa vontade de não abrir mão de nada. Eu queria explorá-lo como ele fazia comigo,
conhecer seu corpo, derrubar seu pedestal, deixá-lo rendido da mesma forma como ele me
deixava.
Sem pensar muito no assunto, no instante em que seu rosto se aproximou do meu, espalmei
as mãos no seu peitoral e o forcei. Sem compreender a minha intenção, Álvaro se deixou
empurrar e não questionou quando avancei junto com ele, invertendo nossas posições.
— Minha vez — eu disse, cheia de um poder que desconhecia, e a segurança que minha
pouca experiência não deveria me permitir ter.
— Isotta…
Mas ele arquejou quando me deliciei em seu peitoral e, ao mesmo tempo, deslizei a mão
até que esta alcançasse sua ereção firme. Certa de que não lhe daria oportunidade de me deter, ou
de ditar as regras, deslizei os lábios até alcançar a barreira da calça que ele usava. Álvaro tinha
um corpo maravilhoso, um abdômen incontestável e pelos baixos que desenhavam o caminho
que eu desejava traçar.
— Ah, Deus! — ele rosnou quando desabotoei a calça e forcei a mão por dentro,
encontrando pela primeira vez seu membro de forma tão ousada.
Eu sabia o que fazer. Seria uma completa farsa se dissesse que era completamente leiga
sobre o assunto. O problema era que existia uma falácia enorme entre o que fazer e como fazer.
E neste ponto a minha insegurança tentou me sabotar.
A verdade era que devido a minha condição absurda e arcaica de filha de mafioso, não
obtive experiências mais contundentes, ainda que me mantivesse virgem. E Nicolo não facilitou
em nada com a sua obsessão. Então, quando minha mão alcançou o pau de Álvaro, quando o
senti em sua magnitude, textura e calor, eu me perguntei se de fato sabia o que fazer com um
homem tão experiente quanto o meu futuro marido.
Ainda assim, apesar do nervosismo, gostei de poder tocá-lo, de beijar sua pele tão próxima
daquela parte que habitava meus pensamentos de forma nada ortodoxa, de ter sua mão entre
meus fios, não como se estivesse impondo uma forma, um ritmo, mas como se ele, assim como
eu, não suportasse a ideia de não fazer parte daquilo.
E era… perfeito, quente, cheio de uma promessa que me impulsionava. Somado a isso
tudo, os sons dele, a maneira como Álvaro verbalizava o que sentia, os gemidos que ecoavam em
mim e alcançavam partes que antes precisavam de mãos e lábios para ativá-las.
Sedenta, certa que independente da minha pouca experiência, ambos desejávamos aquele
momento, me deixei levar por minhas vontades. Abri a braguilha, minha mão ganhou mais
espaço, a pele fina e manuseável deslizou com meus movimentos e Álvaro se contorceu, seus
dedos fizeram mais pressão em minha nuca.
Extasiada, enfiei a outra mão em seu bolso para conseguir um pouco mais de firmeza para
libertá-lo, enquanto minha boca tentava encontrar o ponto ideal para saboreá-lo, quando meus
dedos esbarraram no que parecia uma pedra. Aquilo ganhou minha atenção, contudo, a maneira
como Álvaro se contorcia embaixo de mim fez com que eu voltasse ao meu intento: fazer com
que a calça cedesse e eu pudesse puxá-lo para satisfazer a minha vontade.
Até que em minha incursão, deslizei os dedos em uma tira grossa que prendia a pedra,
como um colar. Decidida a não deixar que nada me tirasse da minha missão, puxei os dedos para
fora, mas a peça, enroscada devido a minha pouca familiaridade em tirar a roupa de alguém,
também abandonou a calça e a fraca luminosidade que ultrapassava os vidros da janela e clareava
justamente aquele ponto, o lugar onde eu uniria o corpo dele a minha boca, fez com que a pedra
brilhasse e ofuscasse todo o restante.
Desviei o rosto do que antes era o meu objetivo e encarei o que se apresentava como um
colar. Meus dedos brincaram com a peça, como se desejassem desvendar logo aquele mistério
para que eu voltasse ao jogo e talvez essa tenha sido a minha ruína.
— O que é isso? — eu disse alto, sem ter noção de que o faria.
Álvaro ergueu o tronco, apenas para identificar o motivo de termos parado. Eu não busquei
seu rosto, não tive vontade de fazer nada além de descobrir o que era aquilo em minha mão.
— É uma joia?
— Isotta…
Ele tentou alcançar a peça, no entanto, eu já tinha projetado o corpo na direção do abajur.
Confesso que a ideia de encontrar uma joia no bolso do meu futuro marido me fez fantasiar com
a possibilidade de ele ter entrado em meu quarto para me presentear, assim como fez no meu
aniversário, talvez por isso não entendi de imediato a sua reação.
— Não é nada — Álvaro falou com pressa, tentando outra vez alcançar o objeto. — Isotta!
— É um diamante? — continuei, incrédula pelo tamanho da pedra e também, pela sua
apresentação rústica, crua. — Um diamante bruto! — sussurrei, espantada com a facilidade como
meu cérebro fez a associação com a pedra que vi apenas uma única vez, entre as tantas que meu
pai presenteava minha mãe. Daquela vez ele deu a ela com o intuito de deixá-la escolher a joia
que se transformaria.
— Sim, é um diamante bruto — Álvaro disse com um tom seco, nada satisfeito com a
minha curiosidade. — Não sei porque ainda me espanto com você.
E, mais uma vez, ele tentou tirar de mim a peça. Eu a escondi em minha mão fechada e a
levei para as costas. Álvaro suspirou, como se precisasse recuperar a paciência.
— Isotta, me entregue isso.
— Por que você tem um diamante desse tamanho no bolso da calça?
— Eu o esqueci aí.
— Esqueceu? — Ri com ironia. — Quem esquece um diamante como esse no bolso?
— Eu estava com pressa — definiu. — Acabei não indo para o quarto para guardá-la no
cofre, como deveria ser.
— Foi por isso que saiu no meio da noite com o Jean?
Com a claridade do abajur, pude observar suas feições. Álvaro se aborreceu com a
pergunta, esfregou a mão no rosto, respirou fundo e quando voltou a me olhar, forjava uma
natureza mais branda, ainda que seus olhos me queimassem com a urgência de encerrar aquele
assunto.
— Entregue-me isso — ele pediu, os dedos quentes deslizando por meu braço. — E vamos
continuar de onde paramos. — Suas mãos envolveram minha cintura, me puxaram para perto,
me fizeram sentar sobre sua ereção, não mais potente como antes.
Álvaro beijou meu pescoço, alisou minha pele sobre a seda da camisola. Era um bom
plano, afinal de contas, toda a minha performance devolveu ao meu corpo o desejo de tê-lo, e eu
o atenderia, se dentro de mim não vibrasse um incômodo.
Percebi quando suas mãos seguiram na direção da minha, na direção da pedra que eu ainda
escondia. Por que Álvaro se incomodava com a minha descoberta? Por qual motivo ele voltou
daquele passeio com um diamante no bolso, preso a uma tira de couro, se… a ideia que
transpassou minha mente me fez estremecer.
Puxei a peça para frente do corpo e a estirei para que eu pudesse analisá-la melhor. Álvaro
tentou me alcançar mais uma vez, no entanto, fui mais rápida, até que me dei conta.
— É uma coleira? — Arfei. Ele enrijeceu embaixo de mim.
— Pela última vez, Isotta, me entregue isso — ele rosnou, totalmente despido do
personagem gentil e amoroso.
— Por que você tem uma coleira com um diamante? Você saiu para buscar uma joia para
seu cachorro?
— Não.
— Por que você colocaria um diamante no seu cachorro?
— Não é para meu cachorro — ele disse, dando voz aos meus pensamentos.
Eu não deveria ter aquela reação. Não poderia me deixar fuminar pelo ciúme, uma vez que
Álvaro foi claro quando determinou que manteríamos o plano: seríamos um casal de mentira. E
não deveria me surpreender ao descobrir que ele se mantinha sexualmente ativo. Entretanto, tudo
aquilo me atingiu com força.
Por que ele estava ali? Por que me procurava com tanto desejo se mantinha em seu bolso
uma coleira para a mulher que o satisfaria?
Impactada, tentei sair do seu colo, mas ele me segurou, lutou contra mim até que eu
deixasse de me debater. Não tive coragem de encará-lo, não queria encontrar em seus olhos as
respostas, não queria sucumbir a dor que fazia meus olhos lacrimejarem e que ameaçava me
jogar em uma crise de choro.
— Para quem é essa coleira? — Eu me vi perguntar, ainda que tal ato exigisse de mim uma
força descomunal.
— Esqueça isso.
— Se você não me responder agora eu acabo com essa farsa de casamento.
Ele riu da minha ameaça, ainda que em seu riso estivesse claro o seu nervosismo.
— Essa farsa é por você.
— Eu corro o risco.
— Isotta… eu duvido — ele repetiu a pirraça que utilizei contra ele em outro momento, o
que me fez tentar sair do seu colo mais uma vez, mas Álvaro conseguiu me conter, obrigando-me
a permanecer com ele.
— Isso é um colar de exclusividade — ele informou com certa relutância.
— Colar de exclusividade?
Com um suspiro Álvaro se rendeu, suas mãos abandonaram meu corpo, me libertando.
Contudo, eu não me movi. Aquela confissão, a ideia de um colar de exclusividade sem qualquer
explicação quanto aquela circunstância, me imobilizou.
— Nós temos um clube — ele começou, cansado e aborrecido, como se precisasse explicar
o óbvio a uma criança. — O melhor e mais exclusivo clube das Américas.
— De prostituição — eu completei e ele concordou.
— Cada sócio possui uma pedra preciosa, uma que faz jus a sua fortuna e importância.
— E o colar? O que significa esse colar de exclusividade?
Ele me encarou, incerto sobre continuar ou não com aquela conversa.
— De tempos em tempos, pagando as devidas taxas, um sócio pode escolher uma garota
para ser sua exclusiva. Havendo comum acordo entre eles, a garota passa a usar um colar.
— Uma coleira. — Precisei moldar minha voz para não deixar transparecer o quanto
aquilo me afetava.
— É o que parece — ele desdenhou, me enfurecendo mais.
— Qual sócio é dono desta pedra, Álvaro?
Enquanto ele me encarava sem nada dizer meu corpo perdia a força. Eu sabia a resposta e
me abalava com a ideia. Por quê? Eu não fazia ideia. Mas imaginar Álvaro colocando aquele
colar em alguém me fez sufocar. Abalada, ergui a peça e a deixei cair na mão aberta dele.
— Saia do meu quarto — eu disse ao me levantar do seu colo.
— Isotta…
— Vá embora!
— Você está fazendo uma tempestade em um copo d’água.
— Por quê? — contestei, atingindo meu limite. — Porque não quero transar com um
homem que se satisfaz com prostitutas?
— Não é…
— Porque não pretendo fazer parte disso? O que estava pensando, Álvaro? Você saiu no
meio da noite para se divertir com a sua exclusiva e esqueceu de devolver o colar?
— Não!
— Você me deixou aqui, sozinha, depois de me dizer que seguiríamos com um casamento
de mentira, para passar seu tempo com uma garota que recebe dinheiro seu para se apresentar
exibindo a sua coleira?
— Você está sendo infantil.
E esse foi o meu limite. A primeira lágrima rolou pelo meu rosto, mas com essa escapou
também toda a minha fúria.
— Pois saia do meu quarto — gritei, pegando-o de surpresa. — E nunca mais ouse
encostar em mim outra vez.
— Pare com isso! — ele rosnou, contudo, baixo, como se desejasse manter aquilo entre a
gente.
Álvaro levantou, me alcançando com facilidade. Ele me puxou para perto, me segurou
contra o seu corpo, no entanto, não avançou além disso.
— Eu adoraria te explicar, Isotta. Mas não vou.
Então ele me abandonou, alcançou a camisa e os sapatos e deixou meu quarto. Atordoada,
com as lágrimas embaçando minha visão, sentei na cama e percebi: esquecida sobre meu
colchão, embolada no lençol, estava a coleira com o diamante bruto que pertencia a Álvaro. Uma
pedra perfeita para um coração que nunca fora lapidado. E o choro chegou com força,
envolvendo-me, dominando-me, até que não restasse mais nada em mim.
28
ISOTTA

— Seu vestido ficará cheio de pelos — uma das ajudantes disponibilizadas para garantir
que eu estivesse pronta no horário combinado, tentou me dissuadir a deixar Lilica afastada.
— Não tem importância — respondi baixinho, com a gata no colo, sem deixar de passar a
mão por seu pelo.
Eu não deixaria ninguém tirar Lilica de mim naquela manhã. Tensa após a nova briga com
o homem com quem eu me casaria, a gata era meu único refúgio. Eu me sentia traída, presa
naquela realidade solitária, envolvida em uma atmosfera onde todos esperavam por sorrisos
gentis e emotivos por ser eu a noiva, quando minha vontade era desaparecer.
Naquela manhã elas não me deixaram sair do quarto. O total de cinco mulheres entravam e
saíam com tudo o que eu precisava. Todas animadas e eufóricas, determinadas a cumprir com
suas obrigações em tempo hábil. Meu café da manhã estava posto na mesa que compunha a
decoração do quarto.
Heidi compareceu apenas para me abraçar e desejar que fosse um lindo dia para mim. Ela
estava ocupada com as crianças e não me acompanharia no processo, me encontrando na porta da
igreja. Álvaro não apareceu e isso me fazia, de tempos em tempos, procurar pela gaveta da mesa
de cabeceira onde deixei a coleira com seu diamante. Eu ainda me perguntava quando ele se
daria conta do esquecimento e apareceria para resgatá-la.
— Ela ficará aqui no quarto até o fim da festa — Duci informou a garota e me deu um
olhar que deixava claro que não havia negociação quanto a isso.
Olhei outra vez para a gaveta, um misto de raiva, indignação e tristeza travava uma luta em
meu estômago. Sem pensar direito, movida pela incômoda sensação, levantei com Lilica em
meus braços e caminhei até a mesinha de cabeceira, abri a gaveta e retirei de lá o colar. Voltei a
sentar na cadeira onde eu aguardava a hora de iniciar o penteado e testei a peça no pescoço da
minha gata.
— É uma linda coleira — uma das ajudantes falou.
Eu não desviei a atenção e tive cuidado ao dar as duas voltas no pescoço de Lilica e testar a
peça. Apesar da pedra grande demais, achei que casava perfeito para a ocasião.
— É exclusiva — revelei, evitando o sorriso escroto que ameaçava surgir em meus lábios.
— Ela usará isso enquanto eu estiver fora.
Então meus pensamentos ganharam outro rumo quando duas batidas na porta fez com que
meu coração palpitasse. Miguel apareceu quando uma das ajudantes foi recebê-lo. E eu me senti
finalmente pertencente a algo.
— Miguel!
Deixando Lilica sobre a cadeira, adiantei meus passos e abracei meu irmão no meio do
quarto. Ele me envolveu com seus braços familiares e me manteve neles até que duas lágrimas
escorressem pelo meu rosto.
— Isotta? — ele falou preocupado ao me ouvir fungar.
— Não é nada — eu me apressei a desfazer aquela confusão antes que virasse mais uma
fofoca. — Eu só estava com saudades.
Ele me afastou um pouco e me encarou. E eu amoleci sob aquele olhar fraterno, cheio do
amor e carinho que quase nunca me alcançava desde que minha mãe faleceu.
— ¿Qué pasó? — ele perguntou, evitando demonstrar preocupação diante de pessoas
desconhecidas e sendo elas contratadas pela Ndrangheta.
— Nada — tentei impor um tom apaziguador. — Solo estoy demasiado emocional hoy.
Miguel me soltou e deu um sorriso preocupado, contudo, disposto a não termos aquela
conversa ali.
— Quando você chegou?
— Hoje cedo, mas nosso pai me prendeu no escritório por bastante tempo, depois me
alertou que você não podia se atrasar, nem eu. Enxugue essas lágrimas.
Aceitei um lenço de papel que Duci me ofereceu e tive cuidado em secar o rosto.
— É por isso que o material utilizado para noivas precisa ser diferenciado — a maquiadora
falou com um sorriso imenso. — Deixe eu ver… — Ela segurou meu rosto e analisou a
maquiagem recém feita. — Impecável!
— Que bom — Miguel disse, um pouco menos alarmado. — Eu detestaria estragar sua
maquiagem, princesa. Juan teria mais motivos para encher meu saco.
Nós rimos, apesar de ser uma situação séria e que nos causava dor. Abracei outra vez meu
irmão e lamentei a distância que o casamento nos imporia. Para escapar de Nicolo, eu teria que
viver longe de Miguel, dos meus amigos, da minha terra.
— Estou te atrasando — ele brincou ao me afastar outra vez.
— Não! Por favor, não vá agora.
— Você está parecendo uma criança, Isotta.
Mas ele não me deixou. Miguel, com um traje completo, negro, com uma postura
impecável e uma beleza incontestável, não possuía em seus gestos qualquer indicação da sua
verdadeira natureza. Criado de forma rígida, em um mundo onde não havia espaço para
homossexuais, Miguel aprendeu a se esconder, a incorporar um personagem que não deixava
brechas para que descobrissem seus segredos.
Até Nicolo descobrir e destruir a vida do meu irmão.
Contudo, para os que não sabiam, como também as garotas desavisadas, aquela beleza
máscula e imponente abria portas. E meu irmão não deixou de abusar do seu poder quando
encarou Duci como se a desejasse e com um sorriso sedutor estendeu a mão para ela.
— Sou Miguel, irmão de Isotta.
— Duci — ela disse, tentando manter a postura profissional. — Até o momento sou a nova
assistente da Srta. Isotta.
— Encantado, Duci.
Ele fez o que eu tinha certeza que faria, inclinando-se como um príncipe encantado, levou
a mão da mulher até os lábios, o que fez com que as garotas rissem.
— Não quero atrapalhar o trabalho de vocês, mas eu conseguiria alguns minutos a sós com
a minha irmã? Acho que todas as garotas precisam de um irmão mais velho, minutos antes de
subir no altar, não acha?
— Eu… bom…
Ela olhou para as garotas, depois para o relógio e então sorriu com o rosto vermelho.
— Acho que podemos fazer uma breve pausa. Não muita. Não podemos ter atrasos.
— Eu entendo. Prometo que não vou comprometê-la.
A mulher fez um sinal para as garotas e então, ainda evitando o sorriso que se alastrava em
seu rosto, deixou o quarto enquanto eu acompanhava tudo com olhos estreitos, dividida entre
estar aborrecida por Duci ser tão fácil de ser conquistada, e agradecida por ter aquele tempo com
meu irmão.
— Graças a Deus — murmurei ao pegar Lilica e sentar com ela em meu colo.
— Isso é um diamante? — ele perguntou com certa malícia na voz. — Você deu um
diamante para uma gata?
— Lilica — avisei. — E ela não é uma gata qualquer. É o símbolo da minha liberdade.
Miguel sentou ao meu lado e acariciou a gata em meu colo.
— Você deveria ter vergonha de iludir mulheres.
— Eu tenho, mas às vezes elas imploram por isso.
— Um absurdo, Miguel.
— Se eu soubesse que você se importaria tanto não teria solicitado esse tempo.
— Bobo! Que bom que solicitou. Eu estava sufocando com tanta gente ao meu redor.
Ele manteve a mão em Lilica, em silêncio por um tempo, para em seguida falar:
— Estive com Álvaro.
Desta vez sua voz ganhou um tom mais sério.
— Ele não desistiu do casamento?
Meu irmão riu, no entanto, não havia alegria em sua voz.
— Eu queria que você se casasse por amor, Isotta — confessou.
— Pelo menos não estou casando com um homem que odeio.
— Verdade — ele disse após soltar o ar aliviado. — Álvaro se preocupa com você. Ele
está decidido a manter Nicolo longe.
Está decidido a se manter longe também, eu quis dizer, mas evitei o comentário.
— Até quando você fica? —
Mudei de assunto, em busca de algo que me fizesse não pensar em Álvaro partindo naquele
dia para o mais longe de mim possível.
— Amanhã.
— Já?
— O que eu tenho para fazer aqui? Nosso pai volta amanhã para a Espanha e eu vou
aproveitar a carona, já que ele não me excluiu da lista dos que têm permissão para usar seu avião.
Acariciei a mão do meu irmão, cansada daquela situação horrível que Nicolo criou. Eu
queria um mundo onde Miguel pudesse ser feliz como ele era e eu pudesse estar ao seu lado para
sempre.
— O Dimas veio?
Meu irmão riu com escárnio.
— Só se eu quisesse que nosso pai infartasse antes do seu casamento. Ou que me mandasse
de volta antes que eu pudesse te abraçar.
— Sinto muito — sussurrei.
— Eu também. Mas a Ava veio.
Eu sorri. Ava, esposa do meu irmão em um casamento de mentira, era uma ótima garota.
Ela amava Miguel do jeito dela e queria a sua felicidade, por isso a existência de Dimas não a
impedia de estar com o marido em eventos como aquele.
— Isso deve deixar o papai esperançoso.
Meu irmão revirou os olhos e sorriu.
— Já dizia Dalai Lama: o mal do homem é o desejar.
— Vocês deveriam ficar — pedi. — Álvaro viaja hoje à noite.
— E você ficará aqui?
A surpresa na voz do meu irmão me deixou sem graça.
— Desculpa, princesa. É a lua de mel de vocês e Álvaro viajar te deixando pra trás vai
levantar suspeitas.
— Ele não está preocupado com isso.
Miguel me deu um olhar triste, certo de que eu selaria um destino tão cruel quanto o dele
ao assumir aquele casamento. Meu irmão acariciou meu rosto e beijou minha testa, entretanto,
não conseguiu me dizer nada. Duci deu duas batidas na porta e a abriu em seguida.
— Perdão, mas não podemos nos atrasar mais.
— Com certeza.
Miguel levantou após fazer mais um carinho em Lilica.
— Vejo você na igreja.
Então meu irmão me deixou e assim que ele saiu, eu voltei a me sentir só, triste e sem
qualquer vontade de ser agradável com ninguém.
***
Encontrei meu pai na sala. Ele estava lindo em seu traje correspondente a sua posição tanto
naquele evento quanto na vida. Ninguém duvidaria do seu poder ao analisar sua imagem. Ele
sorriu e eu me perguntei há quanto tempo não o via sorrir de forma tão leve. A tristeza que já me
consumia desde a hora que Miguel deixou meu quarto, ganhou força.
— Isotta — ele falou com emoção. — Você está tão linda!
Meu pai me abraçou, com cuidado para não desmanchar meu penteado, ou deslocar o véu.
— Sua mãe se desmancharia em lágrimas se te visse assim — confessou ao acariciar meu
rosto, mantendo o cuidado para não arruinar minha maquiagem.
— Não posso chorar — avisei, a voz embargada.
— Tienes razón. Vamos, não podemos atrasar.
— Pai — Eu hesitei quando ele colocou minha mão em seu braço. — E o Nicolo?
Meu pai buscou em meu rosto o motivo para eu perguntar pelo meu primo depois de ter
feito tudo para me livrar dele e nos atirar naquela situação.
— Ele jurou que me mataria — confessei. — E todas as noites eu tenho pesadelos. O
Nicolo aparece e me fere, ou fere o Álvaro, no altar.
— Minha filha — ele sussurrou, consternado, e me puxou para beijar minha testa. —
Nicolo está sob controle. Eu lamento tanto que tudo tenha acontecido assim. Desculpe se não
percebi antes o mal que ele lhe causava. Nicolo foi fiel a mim enquanto havia a esperança de um
casamento amigável com você. Agora… não se preocupe com isso, Isotta. É o seu casamento.
Jean Kuhn tem uma ótima estratégia de segurança. Você ficará bem.
— O que quer dizer com isso? Nicolo não é mais fiel ao senhor?
— Não se preocupe — insistiu de forma mais dura. — O importante é que ele está longe
daqui e Álvaro garantirá a sua segurança.
E eu nada mais consegui dizer. Duci apareceu e nos fez entrar no carro que me conduziria
até a igreja e, depois disso, a confusão de fotógrafos, organização para a minha chegada,
posicionamento dos que seguiriam em meu cortejo, tudo fez com que eu não conseguisse mais
retomar ao assunto ou até mesmo me preocupar com ele.
Fiz tudo como mandaram, incerta sobre ser aquilo de fato o que eu queria, contudo, sem
questionar nem por um segundo o que não tinha mais como modificar. A cerimonialista e sua
ajudante baixaram meu véu, costume levado de geração por geração em nossa família, e me
fizeram aguardar diante de uma porta fechada, de braços dados com meu pai e sem o direito de
evitar os flash que estouravam em minha direção.
Então a porta abriu, o som tradicional da marcha nupcial preencheu o ambiente. Muitas
pessoas que eu não fazia ideia de quem eram faziam a imensa igreja parecer pequena. E na outra
ponta do extenso corredor que me mantinha naquela situação constrangedora, sendo observada
por desconhecidos, estava ele: Álvaro.
Não havia forma de não me impactar com a sua figura. Álvaro ocupava meus pensamentos.
Ele era a minha ira e a minha esperança, meu desejo de fugir e de ficar, ele me confundia, me
transtornava, me deixava insegura e ainda assim, presa a seu olhar penetrante, eu não conseguia
pensar em outro caminho. Cada passo que dei naquela igreja tinha como único objetivo alcançá-
lo.
Tão lindo!
Como alguém conseguia ficar ainda mais desfrutável em trajes como aquele? O cinza da
roupa escolhida destacava as íris de tempestade, contudo, sua postura demonstrou tranquilidade
quando entrei na igreja, como se ele até então não tivesse certeza de que eu apareceria.
Eu quase sorri.
Quase.
Mas não consegui.
Álvaro ainda era uma incógnita. Ele poderia ser uma grata surpresa ou uma amarga
decepção, e, naquele momento, eu não conseguia encarar aquilo de forma leve, não depois do
que aconteceu na noite anterior. Eu ainda sentia mágoa e não sabia o que fazer com isso. Somado
a todos os meus sentimentos estava o fato de ele ainda poder ir embora tão logo a festa acabasse.
Meu pai me conduziu até ele sob o olhar atento de todos. De um lado Jean e Heidi sorriam
como se aquele casamento não fosse uma farsa, uma forma de me salvarem de alguém que seria
muito pior do que o que Álvaro me oferecia. Do outro lado Miguel e Ava faziam o seu papel.
Suspirei quando meu pai afastou minha mão do seu braço e me entregou a Álvaro.
Ele não podia me ver por causa do véu, no entanto, eu acompanhava todos os seus gestos, e
reagia ao seu toque, seu olhar, sua beleza. Ele não deveria ter esse poder sobre mim, mas tinha, e
negar seria confirmar minha infantilidade. Eu só precisava saber o que fazer com isso, como
manter o que viveríamos em equilíbrio.
Então, sem que eu esperasse por isso, Álvaro ergueu meu véu. Houve um burburinho, não
entre os convidados, mas os organizadores e o padre. Álvaro quebrava uma regra e tirava o que
fora milimetricamente orquestrado, dos eixos. Ele me encarou, apesar da minha surpresa e me
consumiu com o alívio em seu olhar.
Por que ele fazia aquilo?
— Você não leu o script? — sussurrei enquanto ele me mantinha naquela bolha.
— Eu precisava conferir se seu pai me entregava a noiva certa — ele murmurou.
— Se eu tivesse fugido você teria sua liberdade.
Álvaro me presenteou com um sorriso de canto, tão lindo que o deixava semelhante a um
deus. E, sem que eu esperasse por isso, segurou em minha nuca e me puxou para um beijo. Desta
vez o burburinho foi geral. Havia risos e comentários sussurrados, para em seguida aplausos
preencherem a igreja.
— Minha palavra não faz curva — ele sussurrou ao me libertar do beijo, com os olhos
fixos no meu, para em seguida se afastar, de volta a fachada fria e impenetrável.
Eu, de fato, não sabia o que fazer com aquele homem. E não fazia ideia se conseguiria
fazer algum dia.
29
ISOTTA

Eu não aguentava mais.


Lutando contra as emoções que sabotavam minha mente, segui com o combinado e
suportei a festa que se estendeu além do que eu previa. A princípio com uma recepção para
todos, consegui sentar pelo menos enquanto os convidados almoçavam. Não senti fome, só sede,
como se nenhum líquido pudesse eliminar a secura em minha garganta.
Uma pequena orquestra tocava músicas clássicas enquanto garçons desfilavam pelo espaço
com bandejas nunca vazias. Em minha mesa, Álvaro mantinha uma conversa civilizada com meu
pai, enquanto Jean e Miguel tratavam de assuntos aleatórios. Heidi, apesar de o tempo todo me
lançar olhares enigmáticos, não conseguiu ficar sozinha comigo em nenhum momento, se
ocupando de entreter Ava, que se desdobrava para entender o que a esposa do Don da
Ndrangheta conseguia desenrolar com um espanhol duvidoso.
Após o almoço, eu e Álvaro posamos para fotos e fingimos sermos um casal animado com
o casamento. Ele só me tocou e falou comigo nesse momento, como uma cena ensaiada, sem
profundidade, sem promessas. E a festa ganhou a tarde com a segunda banda, mais animada, que
puxou grande parte dos convidados para a pista de dança. Observei meu irmão se divertir com a
esposa e me entristeci por ter que concordar que seu verdadeiro amor jamais faria parte de
momentos como aquele.
— Hora de trocar esse vestido — a cerimonialista sussurrou em meu ouvido apenas duas
músicas após a banda começar.
Aliviada, me deixei ser conduzida até o quarto organizado para meus momentos. Elas me
ajudaram a sair do volumoso vestido de noiva, mas quando iniciaram o processo de troca de
roupa e joias, vestida apenas com uma lingerie, meias e salto, Álvaro entrou no quarto deixando
todas estarrecidas.
— Com licença, senhoras. Preciso de um momento a sós com minha esposa.
Com risinhos disfarçados, uma delas me entregou um roupão e em seguida todas deixaram
o quarto. Sem qualquer noção do que ele pretendia, deixei a peça de lado e aguardei. Álvaro se
aproximou, sustentando aquele ar arrogante e distante que me fazia detestá-lo, entretanto, meu
corpo me traiu quando ele conferiu meu estado e roçou o polegar nos lábios, deixando claro seu
desejo.
— O que você quer? — fui direto ao ponto, lembrando-me o que aconteceu na noite
anterior, ainda que meu corpo protestasse, deliciado com a sua atenção.
— Desculpe pelo meu comportamento na igreja — ele expressou sem disfarçar o olhar
guloso em minha direção. — Eu e Jean combinamos que eu precisava fazer com que todos
acreditassem que estávamos apaixonados… Por causa do Nicolo.
— Nicolo? — Outra vez a sensação apavorante me atingiu. — Por quê?
— Tivemos a informação de que Nicolo mantém olhos atentos aqui no Brasil.
— Como? Ele tem infiltrados na "Ndrangheta?
E eu me esqueci de tudo o que me impedia de ir até ele.
Assustada, desfiz a distância que nos afastava e me mantive próxima a meu marido. Em
meu corpo um arrepio perverso, como se Nicolo aguardasse por mim, pronto para me levar
embora.
— Não. Não entre os nossos. Não se preocupe.
Álvaro subiu as mãos por meus braços, e alisou minha pele.
— Você está segura.
No entanto, eu não tinha esta certeza. Se Miguel conseguiu uma pessoa para ajudá-lo a me
resgatar, Nicolo conseguiria duas vezes mais. Contudo, eu não podia contar isso a Álvaro. Não
podia trair a confiança do homem que me ajudou ao entregar o celular, nem do meu irmão, que
poderia precisar dessa aliança em algum momento.
— Eu não me sinto segura — confessei.
Meu marido me deu um olhar apaziguador que na verdade, me aborreceu mais do que me
acolheu.
— Onde você estiver, Isotta, meus olhos estarão.
Poderia ser uma bela declaração, contudo, nada em Álvaro caminhava nesta direção e o
que ele conseguia ao tentar ser alguém agradável, só ressaltava a mágoa que me consumia desde
que eu descobri aquela maldita coleira. Por isso eu me afastei, me desprendendo daquele feitiço
que me envolvia quando ele colocava as mãos em mim.
— Será difícil seus olhos me encontrarem quando você estiver em sua viagem particular —
provoquei.
Ele suspirou, esfregou a mão no rosto, mas quando a levou até o cabelo, desistiu de
bagunçá-lo.
— É uma viagem a trabalho.
— Eu sei como seu trabalho funciona.
— O que você quer que eu faça, Isotta? Eu já tinha esses compromissos antes de você me
jogar nessa furada. Não posso deixar tudo para depois, para viver uma lua de mel de mentira.
E toda a minha atenção se prendeu no “furada” e na “lua de mel de mentira”. Eu não
precisava de mais motivos para detestar o homem com quem me casei. Não merecia alimentar
aquela mágoa infundada e nem sequer sofrer por causa das coisas que ele dizia.
Ainda assim, recebi suas palavras como uma punhalada no coração e não consegui me
entender, descobrir como aquilo funcionava para mim, o motivo para que me machucasse tanto
quando eu sabia a verdade: eu provoquei aquele casamento, Álvaro apenas reagia ao que fora
obrigado a cumprir.
— Quero ir embora — avisei.
— Embora?
— Não quero ficar para a festa. Nós já fizemos a nossa parte. Ninguém duvida que somos
um casal apaixonado.
Dei as costas a Álvaro e procurei pelo vestido escolhido para que eu fizesse a segunda
etapa daquele circo.
— Isotta, sua família está aqui.
— Miguel sabe de tudo e meu pai…
Soltei o ar obrigando-me a não fazer outra cena banhada em lágrimas.
— Meu pai precisava apenas ter a certeza de que você cumpriria com a sua parte. Não há
mais nada a fazer.
— Você gosta de festa, por que não pode aproveitar a sua?
Eu ri, contudo não me divertindo com aquela conversa.
— Pode ser o estilo ideal de festas para um homem da sua idade — provoquei. — Calma,
cheia de regras, com todos os detalhes que fortalecem o patriarcado. Eu não sou esse tipo de
garota, Álvaro. Eu tenho um gosto mais… apurado.
— Um gosto mais infantil — ele retrucou, os olhos em fenda ao me encarar afetado pelo
embate. — Eu imagino o tipo de festa que seja condizente com a sua idade, Isotta, mas não seria
de bom tom fazer com que os convidados acreditem que me sinto feliz em casar com uma
fedelha.
— Ainda assim, você não refutou a ideia de estar na minha cama.
Álvaro puxou o ar, desviou a atenção de mim como se precisasse recuperar a paciência e
desistiu de não bagunçar o penteado, deslizando a mão pelo cabelo.
Puxei o vestido com raiva pelo corpo, me atrapalhando com o zíper nas costas e quase o
rasguei. Álvaro me alcançou, encarando-me através do espelho.
— Eu te ajudo com isso — avisou, sério, a expressão fechada ao me auxiliar com as alças e
em seguida, fechar o zíper com destreza.
O toque, ainda que inocente, em minha pele, me desestabilizou. Eu odiava desejá-lo. No
entanto, odiei ainda mais quando ele se afastou de mim como se precisasse daquela distância.
— Tem certeza que quer ir?
— Fizemos tudo, certo? Tiramos fotos, partimos o bolo e cumprimentamos todos os
convidados. O que mais um casal de noivos precisa fazer em seu próprio casamento?
— Aproveitar a festa — rebateu sem de fato me recriminar.
— Uma festa onde eu conheço um total de pessoas que cabem em minha mão — lamentei.
— Eu te entendo, mas no Brasil precisamos alimentar os laços mais importantes, ainda que
seja em um casamento apressado, com uma noiva que ninguém conhece.
— Fique e alimente seus laços. E, é melhor não chocarmos seus convidados com a
presença da sua esposa tão mais jovem, afinal de contas, o que uma “fedelha” poderia querer
com alguém da sua idade? — Seu olhar endureceu. — Eu estou de partida.
Mas Álvaro segurou meu braço, me impedindo de deixar o quarto como uma noiva em
fuga. Ele suspirou com pesar quando me encarou.
— Tudo bem — disse em um tom tranquilo. — Vou providenciar a nossa saída. Fique aqui
até que alguém venha te buscar.
Concordei, ciente de que voltar sozinha para casa apenas para assistir meu marido me
deixar, seria mais um motivo para a mágoa me dominar. Ainda assim, eu não aguentava nem
mais um minuto naquela farsa.
Porém, eu não fazia ideia do quanto o meu rompante mudaria de uma vez por todas o rumo
da minha história.
ÁLVARO
— Preparem a nossa saída — avisei a Valentin, naquele momento fazendo o trabalho de
Aaron para que meu subchefe aproveitasse a festa.
Fechei os olhos e busquei dentro de mim meu autocontrole. Isotta me afetava de uma
forma que não deveria. Ela era apenas uma garota bonita, gostosa, eu confesso. E era…
interessante a maneira como reagíamos um ao outro na cama. Contudo, não deveria ser algo
além do meu controle. E, durante dias eu buscava uma razão para aquilo sem encontrá-la.
Nossa primeira relação não deveria ter qualquer peso para mim. Isotta era inexperiente e
ainda assim… ela me desestabilizava com sua entrega, sua maneira única de ceder ao desejo e
isso me enlouquecia. Eu deveria me manter longe, tinha total certeza disso e ainda assim, fugi
para a cama dela como se ela fosse a única mulher capaz de me satisfazer.
— Você é um idiota, Álvaro — murmurei, obrigando-me a dar seguimento ao plano.
Frustrado pelo que não aconteceu na noite anterior e inconformado pela ereção que eu
lutava para conter por tê-la visto em peças íntimas, o que, para um homem na minha posição, era
perfeitamente normal, avistei as profissionais que deveriam finalizar a nossa participação.
Quantas mulheres desfilavam para mim com até menos peças do que as que Isotta usava?
Quantas garotas fizeram a minha vontade nos clubes, ou, até mesmo, quando eu decidia variar,
as que não trabalhavam para mim e ainda assim, se aventuravam em minha cama? Então por qual
motivo Isotta me afetava daquela forma?
Por que aquele fascínio por Isotta? Por que ela? Fora o desejo, tudo na minha então esposa
me aborrecia. Não conseguíamos ter uma conversa sem que esta se transformasse em briga e eu
estava o tempo todo impaciente, mas esta nem era a pior parte. Isotta me transformava em algo
que eu não conseguia definir.
Quando brigávamos, ao invés de tirá-la da minha vida, de abominá-la, eu me excitava,
cedia a vontade de dobrar aquela garota, fantasiava fodendo-a com força, desfazendo cada
pedacinho daquela marra que ela sustentava enquanto ela gozava e se desmanchava inúmeras
vezes para mim, por mim e apenas em mim.
E a ideia potencializou a ereção que eu tentava esconder.
Eu deveria voltar para aquele quarto e tomá-la. Dobrar Isotta com o que ela queria: sexo.
Mostrar para aquela garota de quantas formas eu a faria implorar.
— Não! — demandei com raiva. — Acabe com essa merda!
Enquanto isso, no final do corredor que nos separava da festa, o pessoal do cerimonial
aguardava por minha permissão para voltar a cuidar de Isotta. Eu me aproximei com o olhar
atento, como era costume acontecer. Muitos dos profissionais que trabalhavam naquele evento
não faziam ideia de quem nós éramos, pelo menos não de quem nós éramos de verdade.
— De quanto tempo você precisa para deixar Isotta pronta para ir embora? — perguntei à
mulher que organizava todos os passos do casamento.
— Embora? Mas ela ainda precisa…
— Nós temos pressa — eu a cortei para deixar claro que nenhum argumento me faria
desistir de tirar Isotta de lá. — Isotta está cansada. Eu também. A festa continuará até o horário
combinado e terá todos os acontecimentos planejados por sua equipe. Mas não terá mais os
noivos.
— Entendi. Eu acho que… — Ela olhou para trás, conferiu as outras profissionais que
acompanhavam o desenrolar. — Trinta minutos.
— Vinte — demandei. — Vou solicitar o carro, avisar a alguns convidados e volto para
buscá-la.
— Sim, senhor.
Não parei para confirmar a expressão no rosto dela. Com certeza ela acrescentaria minha
falta de delicadeza a sua lista de esquisitices da família Kuhn, afinal de contas, aquela empresa
era a responsável por todos os grandes eventos em nossa família, inclusive pelo enterro do Joel,
além dos de Giullia e Theo, uma farsa elaborada por Jean e eu, que deu muito trabalho no quesito
enrolar até mesmo os cerimonialistas.
Desci as escadas e fui na direção onde deixei Jean conversando com Juan. Havia algo que
meu então sogro desejava tratar com meu primo antes de deixar o Brasil e os dois evitavam o
assunto por estarem em público, entre pessoas que acreditavam sermos apenas empresários bem
sucedidos.
— Isotta me pediu para irmos — anunciei.
— Mas já? — Juan estranhou. — Isotta sempre gostou de festas.
— Não festas como essa
E amarguei o sabor das palavras dela. Isotta roubava o meu equilíbrio.
— Ela está cansada.
Tentei ser o mais tranquilo possível para que Juan não tivesse interesse na minha dinâmica
com minha esposa.
— Jean, vamos fazer uma saída sem alardes. Já pedi para que trouxessem meu carro.
— Nós nos vemos em casa? — meu primo buscou tirar de mim algum indício dos meus
planos, atento ao que eu fazia, como agia e o que dizia.
— Se tudo ocorrer como planejado, sim.
— Que bom. Heidi quer muito falar com Isotta — ele disse de uma maneira estranha,
como se fosse um código.
— Melhor eu verificar se está tudo certo para a nossa saída.
Deixei os homens e fui até a sala de espera, onde alguns convidados descansavam ou
aguardavam por seus carros. Cumprimentei algumas pessoas, grandes empresários que possuíam
negócios conosco, representantes do governo e homens de máfias aliadas que fizeram questão de
conferir a união entre o Capo preferido do Don da Ndraghenta com a filha de um Capo da
Camorra.
Aquele evento era uma bomba relógio.
— E o carro? — Perguntei a Valentin quando este me encontrou próximo à saída.
— Em cinco minutos. Estamos cronometrando todos os passos para não deixar margens.
— E como estamos?
— Sem ameaças.
Valentin olhou para os lados e se aproximou de mim para me passar uma informação que
não deveria chegar em ouvidos errados.
— Eu sei que é seu casamento, mas achei que gostaria de saber que a encomenda acabou
de chegar no porto. Até agora tudo aconteceu conforme o combinado.
— Já conferiram o estoque?
— Sim. Nenhuma baixa. Aaron avisou que acompanhará os passos até que você esteja
livre outra vez.
Concordei com certo incômodo. O novo carregamento de armas que mandamos buscar no
oriente seria o meu material de barganha para as primeiras viagens agendadas, o que significava
que meu plano para me manter longe seguia o ritmo determinado, porém, o que antes parecia ser
a solução perfeita, me atormentava desde que precisei contar a Isotta como seria o nosso
casamento.
Eu não queria deixá-la e detestava assumir esse sentimento. No entanto, o que eu podia
fazer? Atrasar o trabalho não era uma opção depois que insisti com Jean que apenas eu poderia
acompanhar esse processo. Levar Isotta comigo estava fora de cogitação. Ficar com ela também.
A noite anterior era a maior de todas as provas.
— Quatro minutos agora, Álvaro — Valentin me alertou.
— Vou buscar Isotta.
Voltei para o quarto em que ela estava, de repente aborrecido mais do que deveria e incerto
sobre as minhas decisões.
30
ISOTTA

Quando entramos na casa onde eu moraria sem de fato conviver com meu marido, apenas o
som dos meus saltos ecoando no piso quebrava o silêncio que me intimidava. Apesar dos
empregados que permaneceram no local, ninguém transitava ou dava sinal de vida.
— Provavelmente foram instruídos para nos dar privacidade — Álvaro murmurou ao me
ver percorrer a extensa sala com o olhar.
— Pelo menos conseguirei dormir — provoquei. Ele nada disse. — Vou para meu quarto.
— Isotta — ele me chamou quando coloquei o pé na escada que me afastaria dele de uma
vez por todas.
Álvaro caminhou até mim sem me encarar de fato. Ele parecia aborrecido ou incomodado.
Eu só queria que ele me deixasse em paz de uma vez por todas. Teríamos trinta dias antes de nos
vermos outra vez e eu contava com este tempo para eliminar o efeito que ele causava em mim.
— Eu vou sair quando anoitecer — informou. — Seu pai não sabe o tempo que passarei
fora, apenas que preciso resolver uma questão que já estava em minha agenda antes de
acertarmos o casamento, mas se você se sentir confortável para contar, faça isso. Agora que
estamos casados ele nada pode fazer sem iniciar uma guerra contra a Ndrangheta, então não se
preocupe, ninguém colocará Nicolo outra vez no seu caminho.
O nó em minha garganta me impediu de responder, por isso apenas concordei. Aquele era
o fim, o momento em que daríamos seguimento ao que acertamos quando eu o envolvi naquele
esquema. Álvaro seguiria a vida dele e eu teria que arrumar uma maneira de seguir com a minha.
Provavelmente o choro que ameaçava me dominar era fruto do meu medo do que seria
viver em uma terra desconhecida, vigiada por uma máfia que devia lealdade a meu marido e não
ao meu sobrenome, sem qualquer ideia de como me reconstruir ou viver o que durante anos foi o
meu objetivo. A tristeza em meu peito não tinha nada a ver com Álvaro, afirmei a mim mesma.
Eu só estava confusa, solitária e com medo.
— É só isso? — consegui sussurrar.
Álvaro deu mais um passo na minha direção, parando tão perto que intensificou a minha
dor. Porque ele era o de mais confortável e confiável que eu tinha naquele novo mundo e, ainda
assim, eu teria que abrir mão disso e trilhar sozinha.
— Você tem o meu número. Ligue sempre que precisar.
Sua voz baixa e mansa não me acalentava, pelo contrário. Eu queria gritar, acusar Álvaro
da minha dor, cobrar dele um comportamento que correspondesse à nossa posição. Não era justo
ele me abandonar no dia do nosso casamento, me deixar sozinha naquela casa. Eu queria cobrar
dele o que não tinha direito de cobrar, por isso me calei.
Encarei meu marido sem conseguir esconder a dor que havia em mim, ainda que lutasse
contra as lágrimas. E encontrei nele um reflexo. O olhar de Álvaro, antes repleto de força, como
uma tempestade, demonstrava tristeza e culpa. Era isso ou eu enlouquecia com meus próprios
sentimentos e enxergava nele o que eu desejava que ele sentisse.
— Eu… — ele começou, mas, por algum motivo que eu não conseguia explicar, Álvaro se
calou, fechou os olhos e quando os abriu, voltou a ser o homem distante e frio. — Harry —
sussurrou e se abaixou para recepcionar seu cachorro. — Desculpe, amigão, você não podia estar
no casamento.
Seu tom brincalhão me fez puxar o ar em uma última tentativa de conter as lágrimas. Eu
queria chorar, mas no meu quarto, longe de qualquer pessoa. Então virei na direção da escada e
subi seus degraus, ciente de que cada passo quebrava algo dentro de mim.
— Harry! — Álvaro falou firme, mas o cachorro apareceu ao meu lado, me acompanhando
como se houvesse mais vínculos entre a gente do que entre ele e seu verdadeiro dono. — Harry,
vamos! — Ele tentou mais uma vez.
Certa de que o cachorro não obedeceria Álvaro, eu me abaixei e afaguei seu pescoço.
Harry emitiu um som triste e eu me senti acolhida. Abracei seu corpo e aceitei suas lambidas. E
pensar que um dia tive medo dele, que o comparei a um monstro. Naquele momento ele era o
único que me consolava e sofria comigo e eu o amava por causa disso.
— Você precisa ir, Harry — sussurrei sem deixá-lo. — Álvaro precisa de você.
O animal choramingou um pouco mais e eu sentia como se ele pudesse se conectar ao meu
coração. Controlei o primeiro estremecimento que avisava que eu não conseguiria controlar mais
o choro, então levantei. Harry ameaçou me seguir.
— Não, Harry — eu disse firme, fazendo-o parar. — Fica!
Então subi o restante da escada com pressa e praticamente corri a distância entre o final
dos degraus e meu quarto. Quando abri a porta as lágrimas já embaçavam minha visão. Solucei
disposta a colocar para fora tudo o que eu sentia. Tranquei a porta, sem parar para pensar no
motivo pelo qual a chave estar ali pela primeira vez desde que me hospedei naquela casa, e corri
para cama, onde me atirei sem medo de extravasar.
Não sei dizer quanto tempo durou o choro até que ele me interrompesse. Certa de que
estava sozinha, não me preocupei com nenhum detalhe quando me atirei na cama com o choro
que me convulsionava, então aconteceu tudo de uma vez. O colchão afundou ao meu lado e uma
mão adentrou meu cabelo ainda preso no penteado que utilizei para o casamento.
Por um segundo acreditei ser Álvaro ao meu lado, me consolando mais uma vez, me
confundindo com seu jogo. Até que me dei conta, eu tranquei a porta quando entrei então…
assustada tentei conferir quem estava ali, quando os dedos á princípio gentis, aprisionaram meus
fios com força, me firmando no lugar. Ofeguei quando a pessoa se inclinou, aproximando-se do
meu rosto.
— Pobre garota sem amor — ele sussurrou em meu ouvido, e eu entrei em pânico.
— Nicolo?
— Era esse o seu ideal de casamento? Foi para chorar sozinha na cama, que fugiu de mim?
Apesar do aperto em meu cabelo a voz do meu primo permanecia suave. Incrédula da sua
ousadia eu me mantive atenta, certa de que Nicolo não cruzaria o oceano e me esperaria em meu
quarto para ser gentil comigo.
— Nicolo, você está me machucando.
Porém, contrariando o que imaginei que ele faria, Nicolo apertou mais os fios em sua mão
arrancando de mim um gemido de dor para em seguida acariciar minhas costas com a outra mão.
— Isso não chega nem perto do que você me fez, Isa.
— Não seja idiota — eu disse, apesar da dor, me obrigando a mantê-lo consciente pelo
tempo necessário para que alguém procurasse por mim. — A qualquer momento Álvaro entrará
neste quarto e iniciará uma guerra.
— Idiota — ele repetiu como se testasse a ideia. — Ah, Isa! Idiota é justamente o que eu
não sou. Eu sei que Álvaro não virá. Sei que ele viajará hoje, na noite de núpcias de vocês. Quem
será que é o idiota?
Meu primo me virou de frente com uma força que anulava qualquer resistência minha e me
fez encará-lo. Assustada, tentei me afastar, mas Nicolo não permitiu. Ele subiu na cama, se
posicionou sobre meu corpo e, com a mão de volta no meu cabelo, desta vez agarrando o excesso
preso na nuca, me segurou com força e me puxou na sua direção, parando próximo aos meus
lábios.
— Eu nunca te abandonaria, Isa.
Sua voz não me dizia o seu real estado, pois ele a mantinha suave, apesar da força que
exercia para me subjugar.
— Eu nunca a impediria de ter uma noite de núpcias como você merece.
Sem que eu pudesse evitar, ele puxou meu rosto e uniu os lábios nos meus. Eu me debati,
tentei impedi-lo, empurrei Nicolo como pude, reconhecendo que eu não era nada diante da sua
força. E, quanto mais eu tentava afastar o rosto, mais sua mão puxava meus fios, arrancando de
mim gemidos de dor que fizeram novas lágrimas escorrerem.
— Não! — gritei a plenos pulmões, implorando para que alguém me ouvisse. — Vá
embora!
— Nunca! — ele rosnou, lutando contra mim.
Os fios presos do penteado começaram a ceder. Eu sentia os que ele conseguia arrancar.
Uma fina pontada em minhas têmporas dificultava minha concentração, o foco para fazer o
possível para afastar Nicolo de mim.
— Eu amo você, Isa! — sussurrou enquanto se deitava sobre mim, o corpo pesado me
impedindo de empurrá-lo.
Eu queria ter pensado naquela possibilidade antes, ter entendido que Nicolo usaria o que
havia de pior contra mim. Ele me disse tantas vezes que eu seria dele independente do que eu
fizesse, de quem eu escolhesse, e ainda assim, não entendi aquelas palavras até que ele se
manteve entre as minhas pernas, forçando o vestido até que a lateral rasgasse e lhe desse mais
espaço.
— Saia de cima de mim! — gritei mais uma vez. Ele riu ao segurar minhas mãos e erguê-
las acima da minha cabeça.
— Eu te disse que você não me humilharia desta forma.
— Você é louco! Eu te odeio!
— Uma pena, Isotta. Porque eu te amo! Eu te amo e não vou permitir que ninguém te leve
de mim.
Diante de tudo o que ele fazia e da minha certeza de que eu não conseguiria detê-lo, gritei
o máximo que pude, com todo o meu ar, até que Nicolo abafou meu grito com uma mão,
imprensando minha cabeça, finalmente com a raiva revelada não apenas em seu olhar, mas em
suas palavras.
— Sua putinha, desgraçada! — ele rosnou. — Como acha que isso vai acabar? Hein? Eu
vou matar o filho da puta do seu marido. Vou destruir qualquer um que se intrometer em meu
caminho e vou fazer um filho em você, sua cretina. Depois disso, você rastejará por mim.
Implorará para que eu lhe trate outra vez com amor.
Eu me debatia, chorava, lutava, mas Nicolo me vencia. Com a mão em minha boca e nariz,
ele me limitava. Era desesperador não poder respirar, não conseguir me salvar, não ter quem
lutasse por mim. O choro ganhava força quando ouvi o primeiro latido do lado de fora.
Harry! Pensei com uma pontada de esperança. Harry, alerte Álvaro, implorei
mentalmente, enquanto Nicolo se dava conta de que o cachorro do lado de fora arranhava a porta
e latia cada vez mais.
— Não pense que vai se livrar de mim — ele rosnou em meu rosto.
E neste instante ouvimos passos e alguém tentando abrir a porta.
— Isotta? — Álvaro chamou do outro lado.
Eu não pude gritar, fazer nada que me ajudasse a alertar meu marido. Nicolo continuava
com a mão em meu rosto, me sufocando, e quando Álvaro entrou na história, um brilho perverso
transpassou o olhar do meu primo.
— Seria lindo se ele te encontrasse morta na cama — disse com a voz baixa, contudo,
repleta de ódio. — Álvaro não é o seu herói, Isotta.
— Isotta! — Álvaro bateu mais uma vez e eu pude ouvir Harry choramingando e tentando
empurrar a porta. — Isotta, abra a porta!
O aperto em meu rosto ficou mais intenso, o ar acabou e eu me desesperei. Nicolo me
segurou firme no lugar enquanto Álvaro continuava a bater na porta, ameaçando arrombá-la.
— Eu vou voltar — Nicolo avisou. — Da próxima vez alguém morre.
Ele então me soltou, saindo de cima de mim com pressa. Álvaro tentou arrombar a porta
enquanto eu ofegava, buscava o ar sem conseguir reagir a mais nada. O barulho das pancadas na
madeira fazia minha cabeça pulsar, e então, a porta abriu quase que sendo retirada do lugar e
Álvaro apareceu. Outras pessoas estavam atrás dele, mas eu não conseguia enxergar ninguém.
Fechei os olhos e caí sobre o colchão. Ainda ouvi Harry latir com fúria e Álvaro correr até onde
eu estava. Foi quando o choro me dominou.
ÁLVARO
Não me atrevi a subir de imediato. A conversa com Isotta me impactou como não deveria.
Não era justo deixá-la, ainda que uma parte de mim desejasse aquele tempo de paz. O que Isotta
faria viajando comigo para negociações arriscadas? Ela aprontaria com toda certeza e
conseguiria me desconcentrar. Ainda assim, eu me cobrava por deixá-la sozinha quando deveria
ajudá-la a se adaptar.
Harry choramingou ao meu lado. Sentei na escada e acariciei a cabeça do meu cachorro.
— Você vai cuidar bem dela?
O animal deitou a cabeça em minha mão. Manso como a raça determinava que ele era,
ainda que eu o tivesse estimulado a atacar e imobilizar quando necessário.
— Ela é um problema, amigão.
Ele choramingou outra vez, ergueu a cabeça e ficou em alerta, olhando para o lugar por
onde Isotta desapareceu. Acompanhei seu olhar, também tentado em ir atrás dela. Mas o que eu
poderia fazer? O que poderia dizer a Isotta que a deixasse melhor?
Nada.
— Vá atrás dela — liberei meu cachorro que partiu em disparada escada acima.
Tirei um cigarro do bolso do meu traje, acendi e dei a primeira tragada quando ouvi Harry
choramingar. Com certeza Isotta se trancou no quarto e não o atenderia.
— Pra você ver como ela é complicada — murmurei, decidido a aproveitar meu cigarro.
Tirei o paletó, desfiz a gravata quando Harry rosnou forte e o barulho de ele arranhando a
porta chegou até mim.
— O que você está aprontando?
Levantei para buscar meu cachorro quando Jean e Heidi entraram na sala. Em seguida
Alejandro e Benito. Eles pararam para me observar, contudo o barulho de Harry tentando
arrombar a porta de Isotta me alertou.
— Porra!
— O que houve? — Heidi perguntou.
— Não sei. Ele quis subir atrás de Isotta e…
De imediato eu e Jean trocamos um olhar que substituía qualquer palavra.
— Vá para os fundos — Jean disse para Heidi, já com a arma na mão. — Leve os meninos.
— Tio, eu posso ajudar — Benito tentou acompanhar Jean.
— Não! Leve Heidi em segurança e alerte os soldados — Jean o dispensou, não sem antes
dar ao menino uma missão tão digna quanto ele nos seguir para descobrir o que acontecia.
Subimos as escadas com passos largos e do início do corredor avistamos Harry latindo,
rosnando e arranhando a porta. Corremos na direção do meu cachorro, que choramingou ao me
ver. Segurei a maçaneta e tentei abrir a porta.
— Isotta?
Tomei o cuidado de não demonstrar minha preocupação de imediato, contudo não havia
qualquer chance de aquilo ser um engano. Harry jamais me alertaria apenas para conseguir entrar
no quarto. Como minha esposa nada respondeu, tentei ouvir o que acontecia do lado de dentro
sem encontrar algum movimento que me alertasse.
Meu primeiro pensamento foi que Isotta, por causa da minha decisão, atentou contra a
própria vida. E eu jamais conseguiria conviver com aquilo.
— Isotta! — falei mais firme. — Isotta, abra a porta! — gritei ao bater na porta.
Pela minha visão periférica vi quando Valentin apareceu no corredor, também armado e
logo atrás dele Juan e Miguel.
— Eu vou arrombar — avisei.
— Deixe que Valentin faça isso — Jean deu a ordem em voz baixa. — Não sabemos o que
está acontecendo lá dentro.
Puxei minha arma e me posicionei. Eu não esperaria por ninguém, nem delegaria aquela
missão a um soldado. Isotta era minha esposa, eu precisava entrar naquele quarto.
Avancei contra a porta que estremeceu, mas não abriu.
— Porra! Por que vocês insistiram em portas resistentes?
Avancei mais uma vez, arremessando todo o meu peso contra a madeira que estremeceu,
mas não cedeu.
— Álvaro, se afaste! — Jean ordenou, contudo eu não estava disposto a atender suas
ordens naquele momento. — É melhor…
Virei de frente para a porta e a empurrei com um chute.
— Porra, Álvaro! Atire na maçaneta — ele gritou.
— A bala pode atingi-la — rosnei, e junto com Valentin dei mais um chute na porta que
cedeu.
Harry pulou por cima da madeira contorcida e avançou pelo quarto, latindo sem parar.
Valentin empurrou o que restava da porta, mantendo a posição para não ser surpreendido, e então
correu no mesmo instante que eu entrei e encontrei a imagem de Isotta na cama, o vestido
rasgado, tossindo com a mão no pescoço, como se não encontrasse o ar.
Todo o restante foi uma confusão. Eles entraram, em seguida outros soldados apareceram,
no entanto, eu só conseguia pensar nela. Segurei Isotta pelos ombros, puxando-a para mim e a
carreguei para fora do quarto.
— O que aconteceu? — Miguel perguntou.
— Não sei.
— A sala está livre — um soldado gritou.
— Protejam Heidi e as crianças — eu gritei de volta, com Isotta no colo. — Verifique se
meu quarto está livre.
— Precisamos saber o que aconteceu — Jean apareceu ao meu lado. — Tem uma pegada
na parede da janela.
— Porra, Jean!
— O quarto está livre — o soldado gritou.
Levei Isotta até lá, vendo meu primo descer apressado. Deitei a garota na cama e conferi
seu rosto marcado pelas lágrimas e o penteado bagunçado, como se alguém tivesse puxado seu
cabelo. Isotta me encarou, então chorou mais, encolhendo-se em meus braços.
— Está tudo bem — sussurrei. — Está tudo bem.
— Isotta? — Miguel chamou ao lado. — Foi o Nicolo?
Para minha total desgraça, Isotta concordou sem conseguir me deixar, o rosto abafado em
meu peitoral, a mão fechada em minha camisa, puxando o tecido como se me implorasse para
não abandoná-la.
— Avise ao Jean — ordenei ao irmão da minha esposa, que de imediato deixou o quarto.
— Como ele chegou até aqui — murmurei para ninguém específico.
— Não tem ninguém na casa — Valentin falou em algum lugar atrás de mim. — Mas os
homens estão procurando em todo o terreno.
— Procure nas estradas, nos aeroportos, nos hotéis. Deixe todos atentos e em posse da
imagem de Nicolo. Ele não deixa Florianópolis vivo.
Isotta se encolheu um pouco mais. Puxei o lençol e cobri seu corpo, sem deixá-la em
momento algum.
— Está tudo bem — continuei murmurando, certo de que, mais uma vez, mentia para
minha esposa.
31
ÁLVARO

— Ninguém o viu entrar — Jean avisou, tão impaciente quanto eu.


— Ele agiu sozinho — Juan completou.
— Dúvido — Miguel acrescentou sua opinião. — Nicolo fazia o seu próprio exército
enquanto o senhor fechava os olhos para os absurdos que ele cometia.
— Você não tem prova disso — o pai revidou.
— Então me diga de qual forma Nicolo conseguiria entrar aqui, sozinho, atacar a Isotta
sem que ninguém percebesse que alguém subiu para o quarto? Ele tem infiltrados.
— Ou alguém capaz de bolar planos impossíveis — salientei.
Aaron entrou no escritório, demonstrando o mesmo aborrecimento que eu e Jean
compartilhamos.
— Valentin organizou os soldados. Nenhum estava fora da sua posição. Não identificaram
o acesso de ninguém desconhecido. Hoje ninguém diferente dos empregados passou pelos
portões.
— E as gravações — Jean assumiu o controle da situação. — Eu quero todas as gravações,
não só as do quarto de Isotta.
— Eu acabei de verificar algumas, Jean. Ainda não descobrimos como ele entrou, mas
conseguimos as imagens dele pulando a janela do quarto de Isotta. Nicolo não teve medo de
mostrar a cara. Ele se infiltrou na mata. Os soldados estão procurando por algum vestígio com os
cachorros.
— Ele já fugiu — Miguel outra vez contribuíu. — Nicolo não é burro, e é paciente. Como
ele entrou talvez vocês só descubram se verificarem as imagens de ontem. Ele sabe ficar na
espreita e esperar melhor do que qualquer outro que já conheci.
Troquei um olhar com Jean, atento a tudo o que Miguel poderia nos fornecer de
informação.
— Como você acha que ele entrou? — Incentivei.
— Ah! — Miguel se inclinou sobre os joelhos e apoiou a cabeça. — Não diretamente. Ele
se infiltraria. Talvez, como alguém do cerimonial. Um dos funcionários das lojas que entregaram
os presentes. Algo deste tipo. Nicolo não age pela raiva. Ele estuda todos os seus passos e é
bastante focado. Então eu descartaria a possibilidade de um ataque direto. Ele só agiria assim se
não tivesse outra opção. E acreditem, ele prefere atacar a se render.
— Nicolo aproveitou bem tudo o que aprendeu para trabalhar conosco — Juan interferiu.
— Na Camorra você nunca será um bom comandante se não estiver disposto a morrer pela
causa.
— Pois é — Miguel falou mais uma vez. — O seu comandante acabou de declarar guerra.
Havia mágoa na maneira como Miguel acusava o pai, ainda que escolhesse se expressar de
forma educada. Observei Juan se mexer incomodado, mas não rebater a fala do filho.
— Eu cuidarei do Nicolo — Juan determinou. — Colocarei meus homens em alerta. Nós
vamos encontrá-lo.
— E depois? — Miguel deu voz ao meu pensamento.
— Eu quero o Nicolo — avisei. — Ele tentou estuprar e matar a minha esposa. O destino
dele está em minhas mãos.
— Álvaro… — Juan tentou, mas Jean o impediu.
— Álvaro está certo. Nicolo não pode ser uma ameaça em nossas vidas. Não podemos
deixá-lo livre, além de precisarmos puni-lo como exemplo de quem desafia a Ndrangheta.
— Jean… — Juan levantou, constrangido e nervoso. — Nicolo é meu sobrinho. Filho da
minha irmã que já faleceu. O pai dele é Capo do Clã da Costa do Marfim. Matar Nicolo causará
um problema maior.
— A Ndrangheta está ciente — Jean disse da sua forma firme, segura quanto a sua
determinação. — E não está disposta a abrir mão do Nicolo.
— Pai, ele atacou a Isotta! — Miguel rebateu, indignado. — Até quando defenderá o
Nicolo?
— Não estou defendendo, Miguel! Estou tentando encontrar uma solução menos sofrível.
Eu encontrarei Nicolo. Ele será expulso da Camorra e entregue a você, Jean. E que Deus não
permita que Fernán não perca a cabeça. ordenei a Aaron que concordou e deixou a sala.
— Com licença — Jean falou. — Álvaro, venha comigo.
Meu primo deixou a sala e eu o segui pela casa até que encontramos Valentin junto com os
soldados que faziam a busca pela propriedade.
— Encontraram marcas de pneus de moto depois do muro ao norte — Valentin alertou. —
Vamos analisar as imagens da rua, tentar encontrar alguma placa.
— Faça isso — Jean ordenou, ainda aborrecido. — Estarei na biblioteca.
Meu primo seguiu para o lugar indicado e fechou a porta assim que entrei. Cansado, fui até
o carrinho de bebidas e servi dois copos. Jean aceitou o que lhe ofereci, mas não sentou.
— Vou tirar Heidi e as crianças do país — comunicou sem fazer cerimônia.
— Você acha que eles correm risco?
— Não. — Jean deu um gole em sua bebida. Ele estava agitado. — Mas quero estar livre
de distrações para caçar Nicolo.
— Você não precisa fazer isso, Jean. Pelo menos não na linha de frente. Nicolo não é o
maior dos seus problemas.
— Agora ele é.
Meu primo me encarou e eu entendi o quanto aquilo significava para ele. Nicolo não só
desafiou a Ndrangheta, ele me desafiou, entrou em minha casa e agrediu a minha esposa. Jean
nunca trataria aquela situação como apenas mais um caso indigesto.
— Você entende que isso pode virar uma guerra? — Eu o alertei.
Jean confirmou sem nada dizer. Ele deu um longo gole em seu uísque e se serviu de mais
uma dose.
— Eu sei que não fazia parte dos seus planos, mas você precisará levá-la.
— Não viajarei por lazer, Jean.
Meu primo me encarou como se não houvesse outra opção, e despejou mais uma dose em
meu copo.
— Vamos colocar mais homens da nossa confiança com vocês. E uma equipe para vigiá-
los sem que ninguém saiba. Se Nicolo se atrever a segui-los, nós o pegamos.
— Não posso levar Isotta comigo.
— Ela precisa de você. E de uma lua de mel.
Então um sorriso mínimo e escroto surgiu em seus lábios.
— Pare de se torturar e aceite isso como uma ordem, já que não quer assumir que estava
louco para levá-la com você.
— Eu não estava — resmunguei, emburrado. — Isotta não estará segura comigo.
— Com você? — Jean ergueu uma sobrancelha e manteve o sorriso escroto, ainda que
consciente do quanto me irritava. — Não sei se você é o tipo de ameaça que ela teme.
— Isso não é uma brincadeira. O que eu vou fazer com Isotta no meio de tudo isso?
Desta vez Jean riu sem tentar esconder a sua pirraça.
— Até onde eu me lembro, as mulheres diziam que você sabia o que fazer com elas.
Esqueceu como se faz?
— Vá se foder!
— Eu posso te enviar uns vídeos, dar algumas dicas.
— Porra, Jean isso é sério! Isotta vai me distrair, vai me enlouquecer.
— Eu conto com esse detalhe.
— Você sabe que esse casamento é de mentira.
— Ainda é? E o que você foi fazer no quarto dela ontem?
Calei a resposta, aborrecido e envergonhado por ele ter conhecimento desse detalhe.
Entornei toda a minha bebida de vez, tentei encontrar alguma forma de dissuadi-lo, mas Jean
continuava determinado.
— É complicado — confessei. — Por que está me dando esta ordem?
— Estou nos ajudando, Álvaro. Você não conseguiria se concentrar se ela ficasse. Eu
pretendo seguir o rastro do Nicolo e não quero precisar me preocupar com você viajando pelo
país e com ela trancafiada aqui. Isotta precisa se sentir segura. Eu a enviaria à Alemanha para
ficar com Heidi, mas… — ele hesitou, encarou o copo em sua mão e seu sorriso se transformou
para algo mais doce, como sempre acontecia quando ele pensava na esposa. — Heidi está
grávida — confessou.
— Jean!
— Porra! Eu estou… morto de medo. Não quero estressá-la. O que aconteceu hoje foi o
suficiente para que eu decidisse levá-la de volta ao nosso forte. Não posso correr o risco de
Nicolo ser louco o suficiente para ser morto pelos meus homens de frente a nossa casa. Desculpe,
cara.
Eu ri. A notícia me desarmou de vez. Quando Heidi voltou para a vida do meu primo as
crianças já tinham nascido sem que Jean pudesse vivenciar todas as etapas. Ele não viu a barriga
de Heidi crescer, não presenciou todos os pequenos milagres durante a gestação dela. Não esteve
ao seu lado quando Heidi descobriu a doença de Ayla.
Por mais que ele amasse tudo o que vivia com a esposa e os filhos, havia sempre aquela
lacuna pairando entre eles. Jean sempre quis ter mais filhos, contudo, morria de medo de como
seria. Grávidas e crianças eram alvos fáceis, obrigando-o a limitar a vida de todos os que amava.
E ainda havia o receio de que um novo filho também tivesse a AME.
— Cara — eu disse emocionado. — Vá pra casa. Fique com a sua família.
— Você também é minha família.
— Eu sou, Jean, mas vou me odiar se alguma coisa te acontecer.
— Se você levar Isotta eu terei menos dois problemas.
— Dois?
— Sim. A segurança de Isotta e você e sua frustração por desejar tanto a sua esposa. Deixe
de ser idota, Álvaro!
— Você está envelhecendo — rebati, me levantando de imediato. — Passou a acreditar
muito em histórias de amor. Se isso aqui não der certo, abra uma empresa de cupido.
Ele riu e descansou na poltrona.
— Um dia eu vou esfregar essa conversa na sua cara.
— Continue acreditando.
Caminhei até a porta, no entanto, quando a abri Jean chamou por mim.
— Só para você não esquecer: é uma ordem.
Sem conseguir me aborrecer, não após descobrir que Heidi estava grávida, bati a porta e
fui em busca de Aaron. Precisávamos refazer os planos.
32
ÁLVARO

Algumas horas depois, troquei as últimas informações com Aaron e entrei no avião
particular que eu utilizaria para aquela viagem. Eu deveria embarcar com Valentin, mas
acrescentar Isotta em meus planos, além dos soldados extras que Jean escalou para reforçar a
nossa segurança, fez com que meu soldado particular seguisse junto com os outros no voo antes
do nosso.
Desta forma embarquei tendo apenas minha esposa como companhia, além da sua gata
vira-lata que ela insistiu em levar e Harry, que depois do seu ato heróico conquistou o direito de
estar com Isotta pelo tempo que quisesse.
Quando eu entrei na aeronave Isotta já estava acomodada. Introspectiva, mantinha-se
quieta, com o olhar atento à paisagem do lado de fora, ainda que não houvesse nada ali para ela
se prender. Ao seu lado a caixa que abrigava a gata, enquanto Harry viajava sossegado em uma
maior, presa em outra poltrona.
Sentei de frente para Isotta que não se deu ao trabalho de me olhar. Incomodava-me o seu
silêncio, em especial depois do que passou. Saber que ela se mantinha alheia a mim fazia com
que meu lado masoquista reagisse. Acomodado em minha poltrona, observei o vestido justo que
ela usava, as pernas cruzadas, adornadas com sandálias altas, brancas, destacavam as coxas
bronzeadas.
Apesar de haver um certo tom comportado na roupa que escolheu para me acompanhar,
Isotta exibia um decote em formato de x nos seios, permitindo que qualquer pessoa fantasiasse
com o que o pano justo não revelava. E seu rosto impecável, apesar de nada expressar, o que me
fazia compará-la a uma pintura, ganhava um ar diferente ao manter os fios controlados em uma
trança bem feita que descia pela lateral do corpo até quase a cintura.
Isotta era linda demais para ser ignorada e isso era um grande problema.
— Boa noite! — a comissária se aproximou com seu jeito cortês. Isotta não se abalou com
a presença da mulher, mantendo-se imóvel. — Em alguns minutos decolaremos. Posso servir
algo? Uma bebida?
— Uísque duplo, por favor.
Ela concordou e aguardou que Isotta dissesse algo. Minha esposa suspirou, voltou-se para
a mulher e negou com um gesto mínimo com a cabeça, para em seguida retornar a mesma
posição. Tive vontade de provocá-la, apenas para ter alguma reação que me tranquilizasse quanto
ao seu abalo, no entanto, seu silêncio me incomodava o suficiente para me obrigar a deixá-la em
paz.
Recebi minha bebida, puxei a mesinha que ficaria entre nós e liguei o notebook. Não havia
nada que restasse conferir, uma vez que fiz isso com Aaron pouco antes de adentrar na aeronave,
entretanto, eu precisava me manter ocupado, então acessei o programa que acompanhava nossas
cargas em tempo real e me certifiquei de que a primeira estaria no local determinado no horário
certo.
Mantive minha atenção na tela, fingi trabalhar pelo tempo que me restava, até que a
comissária informou que decolaríamos. Precisei fechar a mesa e voltar a encarar Isotta. Nada
mudou. Ela continuava alheia a tudo. Nada expressou enquanto o avião taxiava, nem esboçou
qualquer reação quando decolamos.
— Como você está?
Eu sabia que repetia a mesma pergunta que fiz diversas vezes para ela desde que a
encontrei no quarto, após a saída de Nicolo, contudo não encontrava nada além disso para falar.
Não por não haver assunto, mas por encontrar diversas barreiras levantadas por Isotta desde que
ela me afastou em meu quarto, como se eu tivesse culpa no ocorrido.
E isso me incomodava.
— Bem.
Ela nem sequer me olhou para responder. Aquele comportamento devorava aos poucos
minha paciência e ainda assim, eu me via impelido a continuar, a encontrar uma forma de
desfazer aquilo.
— Seu pai fechará as portas para Nicolo — informei, apesar de ter total certeza de que ela
já tinha aquela informação.
— Nicolo não deixará isso barato — ela murmurou. — Ele já tem todos os motivos para
investir contra meu pai.
— Ele não deveria nem ousar. A Camorra deveria ter força o suficiente para retaliar
comportamentos como este. Um Capo não pode ser desafiado pelo seu soldado.
— A Camorra não possui a mesma hierarquia que vocês. Um clã constantemente insulta
outro e o resultado é este.
— Que bom que você agora faz parte da Ndrangheta. Pelo menos terá mais segurança.
Ela me deu um olhar vazio, sem qualquer contentamento ou acusação e então voltou a
olhar para fora, para o céu escuro.
— Eu não pertenço a lugar nenhum — definiu, mantendo o tom neutro. — E a Ndrangheta
falhou comigo na primeira oportunidade.
O incômodo por ter aquela verdade esfregada em minha cara me fez calar. Isotta tinha
razão, falhamos com ela. Apesar de tudo o que fizemos, de todo o esquema que parecia ser
intransponível, Nicolo a alcançou e por pouco não a matou. E a simples ideia de aquele
desgraçado colocar as mãos nela fazia a ira alimentar meu fluxo sanguíneo. Eu, apenas eu
eliminaria Nicolo. E faria isso de forma cruel. Não daria a ele outra chance de agir.
Seguimos em silêncio por mais um tempo. Eu arrancava de mim os pensamentos
assassinos e para mantê-los sob controle, os substituía por pequenas lembranças, todas ligadas a
ela, a mulher com quem casei e defini que manteria distante de mim, mas que, naquele momento,
eu suplicava por um pouco de sua atenção.
Isotta só reagiu tempos depois, quando abriu a caixa da gata e a pegou no colo. Eu a
observei como um idiota obcecado, inibriado com pequenos gestos que não me deixavam
compreender porque me fascinavam tanto. Como a forma como ela abrigou a gata, a coxa
exposta com a pele iluminada em contraste com o pelo do animal, a maneira como ela a
acariciava sem prestar atenção ao que fazia.
Então, como se de repente despertasse de um transe profundo, meus olhos focaram na
coleira da gata, na pedra que ornamentava o pescoço de uma vira-lata. Meu diamante bruto. Uma
pequena fortuna com a qual Isotta brincava.
Quando levantei os olhos, ela me encarava com um esboço de sorriso cínico nos lábios
convidativos.
— Você não fez isso.
— É uma coleira — provocou.
— Devolva-me — determinei.
Isotta me deu um olhar penetrante, com aquele ar de desafio que ela sempre sustentava
quando entrava em um embate comigo.
— Venha pegar.
Sua voz mansa deveria ser um indício para que eu recuasse, contudo, desafiado, e
condenando-me por me deixar envolver naquele jogo, fiz o que ela pediu, avancei sobre a gata
para recuperar meu diamante bruto quando o animal reagiu e me atacou, defendendo-se com uma
patada que se eu não tivesse ótimo reflexo teria me atingido. Ela sibilou para mim, mostrando os
dentes pontiagudos.
— Porra!
— Tenha modos, Álvaro — Isotta continuou com o mesmo tom, ainda que um brilho
irônico se apresentasse em seu olhar.
— Eu vou matar essa gata.
— Que comportamento inadequado.
— Pro inferno com meu comportamento. Você pendurou um diamante, o meu diamante,
no pescoço de uma gata vira-lata.
— Pitoresco, não? Achei que você não se incomodaria se ela voltasse para o pescoço de
uma gata sem pedigree, afinal de contas, você a usava em mulheres com a mesma qualidade.
— Não fale o que não sabe.
E eu tinha total certeza de que defender as garotas que trabalhavam em nossos clubes
afetaria Isotta da mesma forma como ela me afetava com aquela acusação.
— Tanto faz — rebateu, incomodada.
— Minhas garotas são consideradas as melhores de toda a América. Qualidade máxima é
pré-requisito. Não trabalho com material de segunda.
— Suas garotas?
Isotta deu um risinho de escárnio, sem conseguir esconder o meu sucesso em tirá-la do
pedestal em que ela insistia em ficar. Ainda decidida a manter a pose, levou a gata de volta para a
caixa e a prendeu lá, deixando claro que eu teria trabalho para recuperar meu diamante.
— É interessante observar a sua verdadeira adoração por mulheres que te satisfazem por
dinheiro.
— Tudo é uma questão de percepção. Você está sendo injusta e preconceituosa, além de
soberba, é claro.
— Eu?
— Heidi já foi uma das garotas que trabalharam para a gente.
A expressão de choque no rosto da minha esposa por pouco não me fez rir. Eu adorava
desarmá-la, saber que a vencia em um embate. Isotta perdeu um pouco da arrogância e conferiu
outra vez se a caixa estava segura, como se precisasse se manter ocupada para não se partir em
pedaços.
Enquanto isso, eu adorava a maneira como ela corava sob meu olhar atento e tentava de
alguma forma, manter a compostura.
— Heidi era uma prostituta? — ela murmurou em um misto de choque e incompreensão.
— Não exatamente. Ela foi selecionada sem que soubéssemos, mas Jean a impediu a
tempo.
— Por quê?
— Porque nem todas as garotas nascem herdeiras, Isotta. Quase nenhuma possui tanto
dinheiro que pode dormir e acordar sem pensar em como as contas são pagas. Muitas precisam
lidar com problemas reais, com uma vida cruel e injusta. Heidi, assim como a maioria das
garotas que trabalham pra mim, precisava de dinheiro. Muito dinheiro.
— Para se manter?
— Pra salvar a vida da filha. Ayla nasceu com uma doença rara. Heidi não conseguiria o
dinheiro em tempo hábil, ela não fazia ideia de que Jean era o dono da Ilha quando se deixou
levar para iniciar uma vida como protituta. Foi assim que eles se reencontraram.
— Eu… não sabia. Quer dizer… eu sabia da doença de Ayla.
— Você julga como se elas estivessem nessa por opção. Nós temos o melhor esquema. As
garotas fazem fila para conseguir uma vaga entre as nossas porque sabem que terão proteção,
cuidado, serão bem tratadas, bem remuneradas. Porém, é impossível comparar o que oferecemos
a poucas garotas quando existe um imenso mercado bem mais injusto e cruel fora das nossas
propriedades.
Observei aquelas íris incríveis demonstrarem todo o constrangimento que a minha
acusação lhe causava. O leve brilho de novas lágrimas que se formavam deveriam me fazer
recuar, mas eu não consegui.
— Tem alguma ideia do que é transar com um homem que não lhe atrai? De como é se
subjugar a vontades que não deseja atender? Você tem noção do que é analisar uma proposta e
precisar ceder porque o dinheiro é o seu principal objetivo?
— Eu já entendi — ela murmurou, desviando a atenção para fora.
— Você tem a liberdade de transar por prazer, Isotta, então talvez você nunca entenda.
— Bom — ela falou baixinho, com um leve tom de mágoa em suas palavras. — Levando-
se em consideração a minha atual situação, eu só tenho a opção de ter prazer comigo mesma.
Sobra um pouco da injustiça do universo para todo mundo, não?
— Hum! — Limpei a garganta ao ouvi-la.
— Se bem que preciso concordar que sexo comigo mesma é melhor do que muitas opções.
Era para eu rir da sua inocência, ou, ainda que não houvesse justificativa para tal, provocá-
la. Contudo, ouvi-la me levou para uma lembrança não muito distante, quando, sem qualquer
ideia do que aconteceria entre a gente, ouvi Isotta se masturbar durante o banho, e não resisti em
acompanhá-la. Então fantasias com esta situação preencheram minha mente.
Imaginei como seria aquele corpo delicioso, aquela pele lisa e dourada, embaixo de um
chuveiro. Eu podia visualizar a mão delicada percorrendo o corpo em busca de prazer e
associava cada toque aos gemidos que ela emitia quando a minha mão fazia este trabalho.
De imediato desejei tocá-la. Deslizar meus dedos pela fenda lisa, umedecê-los em sua
excitação, afundá-los na carne quente e apertada. Receber os gemidos cálidos, saborear o seu
prazer.
Olhei para a porta que nos separava da tripulação. Não era a primeira vez que eu viajava
naquele avião com uma mulher, assim como não seria a primeira em que eu transaria naquele
local, porém em todas elas precisei solicitar que não nos atrapalhassem. O que eu faria com
Isotta? Como conduziria aquela situação?
Então encarei a gata presa na caixa ao seu lado e minha excitação recebeu uma dose extra,
a vontade de punir Isotta pela ousadia, de fazê-la sufocar de desejo e só atendê-la depois que
tivesse a sua obediência. Eu queria usar o seu desejo inocente para fazê-la entender como nossa
relação funcionaria.
Com a vontade latejante entre minhas pernas, levantei sem que ela entendesse o que eu
fazia, peguei a caixa com a gata e a coloquei sobre a poltrona que eu ocupava.
— Álvaro? — Isotta arfou ao me ver agir.
— Levante.
— O quê?
— Levante, Isotta.
— Não! — O timbre indignado soou em mim como mais um desafio.
— Eu mandei você levantar — falei de forma firme. — Não queira que eu te arranque daí.
— Álvaro! Você…
No entanto, ela levantou quando fiz menção de que cumpriria minha promessa. Isotta ficou
de pé, os olhos assustados e aborrecidos.
— O que você quer?
Sem respondê-la, sentei na poltrona antes ocupada por minha esposa e a puxei para o meu
colo. Isotta deu um gritinho de surpresa e espalmou as mãos em meu peito para me encarar.
— Pare com isso!
— Eu ainda não fiz nada.
— Você não… — Subi minha mão entre suas coxas, e acariciei a pele próxima ao meu
objetivo. — Álvaro! — Mas ela fechou os olhos, corou e estremeceu. — Pare — sussurrou sem
qualquer determinação quando levei os lábios ao seu pescoço.
Isotta tinha um cheiro delicioso e sua pele esquentava à medida que minha língua provava
seu sabor.
— Mostre pra mim — supliquei, excitado de uma maneira que me fazia pular etapas.
— O quê?
— Como você faz sexo consigo mesma — provoquei com uma leve mordida em sua
mandíbula.
— Não. — Ela tentou me afastar, contudo sem força, sem demonstrar vontade de me
impedir.
— Você disse que era melhor do que muitas opções. Como fui o único homem com quem
transou, devo imaginar que sou o conjunto dessas opções que não se comparam ao seu dedo.
Provoquei Isotta ao subir a mão e acariciá-la por cima da calcinha. Ela ofegou,
molhadinha, as coxas se afastando levemente para me dar passagem.
— Você gosta tanto disso — sussurrei quase em seus lábios, a mão mais incisiva,
massageando os pontos certos. — Por que não me mostra como faz?
— Não — ela resmungou em um misto de gemido e tentativa de parecer forte. — Não
quero fazer isso — definiu ao segurar minha mão e tirar do meio entre as suas pernas.
— O que não quer fazer? Transar comigo ou se masturbar para mim?
— Não vou… — ela engoliu com dificuldade, abaixou o olhar e sua pele adquiriu um tom
mais avermelhado. — Os dois — confessou, entretanto, sem deixar meu colo, ou me impedir de
beijá-la.
Tomei os lábios da garota em meu colo, saboreando a deliciosa sensação daquele beijo. Era
incrível como algo tão corriqueiro, trivial como um beijo, com Isotta tivesse uma potência
desconcertante. Eu poderia passar horas beijando-a, me excitando com aquele pequeno gesto, me
deliciando nos lábios grossos e macios, com a língua delicada e sedutora.
Beijar Isotta era um ato de profanação. Não havia pureza ou inocência quando ela me
ofertava a boca, quando minha língua buscava sua doçura quando ela se movimentava sem presa
no mesmo ritmo dos nossos lábios lançando ondas de prazer pelo meu corpo.
— Álvaro? — ela ronronou ao se afastar. — Alguém pode nos ver.
Encarei Isotta, os lábios inchados, os olhos brilhantes e o rosto afogueado. Ela era a
imagem da perfeição. Dona de uma beleza ímpar.
— Ninguém aparecerá.
— Como você sabe?
— Eu não sei.
Sem que ela esperasse, virei seu corpo, deixando-a sobre meu colo, porém, de costas para
mim e, por consequência, para a porta por onde a comissária poderia entrar. Isotta ofegou ao
constatar minha ereção e ter minhas mãos em seu corpo sem qualquer cautela.
— Álvaro, não!
No entanto, seu tom implorava para que eu continuasse, para que minha mão avançasse
sobre o vestido justo e encontrasse outra vez o sexo desejoso do toque. Mordisquei a nuca da
minha esposa, agradecendo pela trança que facilitava meu trabalho e forcei a mão pelas coxas
que não resistiam enquanto a outra apalpava um seio com o bico intumescido.
— Não? — provoquei ao acariciar a vagina ainda com a calcinha e receber um arquejar
delicioso, empinando a bunda para roçar em meu pau.
— Você não… — ela tentou, mas meus dedos adentraram a calcinha e deslizaram pela
carne molhada. — Ah, Deus!
— É assim que você faz?
Não esperei pela resposta, concentrando meu desejo naquele ponto inchado que derrubaria
todas as barreiras de Isotta. Ela gemeu, rebolou de forma discreta em meus dedos. Tão gostosa
que me fez fechar os olhos para gravar a sensação em minha mente. Isotta era quente, perfeita,
lisa como eu adorava e rebolava como se o ato não fosse uma novidade para ela.
Ciente de que ela se entregava, de que não tentaria me impedir de ter o que eu desejasse
dela, segurei sua mão e a guiei para encontrar a minha em seu sexo. Ela tentou resistir, puxando
a mão, o que me fez rir um pouco.
— Faça pra mim — pedi em uma súplica que entregava toda a minha excitação.
— Não!
— Então me devolva a coleira. — Mordisquei a orelha dela e introduzi dois dedos na
vagina apertada e úmida. Isotta se contorceu, mas eu parei os movimentos com o polegar sobre o
clitóris pronto para me entregar o seu prazer.
— O quê?
— Eu estou te dando duas opções. Ou se masturba pra mim, ou me devolve a coleira.
Como prova da minha determinação, retirei os dedos de dentro dela, mas mantive uma
carícia lenta pelos lábios modelados.
— Não — ela disse decidida.
— Nenhuma das duas opções?
— Eu posso não querer nenhuma das duas. Você não pode me obrigar.
— Exato.
Tirei minha mão sob o olhar reprovador de Isotta. Chegava a ser hilário tudo aquilo. Ela
me encarou sem acreditar no que eu fazia.
— É sério?
Acariciei seu rosto com cuidado, contornei a boca gostosa.
— Eu quero meu diamante de volta.
— Pra entregá-lo a uma prostituta? — atacou. A ofensa estampada em seu rosto.
— Sabe por que ele estava em meu bolso?
— Porque você o entregaria a uma das suas garotas — acusou.
— Não. Eu o recuperei de uma das garotas. Eu tinha uma exclusiva antes de você entrar na
minha vida. Não porque ela fosse especial, mas porque agradava as garotas o cuidado que uma
exclusiva recebia e eu, como chefe delas, tinha todo interesse em mantê-las satisfeitas.
Isotta se movimentou em meu colo, aborrecida com o que eu dizia, contudo, eu a impedi
de levantar, segurei a garota sobre minhas pernas até que ela parasse de tentar escapar. Isotta
desistiu, porém, não fez nada para evitar as lágrimas que desceram, o que me fez desistir de
atormentá-la. Segurei seu rosto e o beijei com mais devoção do que deveria.
— Eu peguei a minha coleira de volta — sussurrei com os lábios perto dela. — Não
poderia manter uma exclusiva sendo casado com você.
— Jura? — ela murmurou em meio ao choro.
— Eu te disse. No meu meio ser fiel é o primeiro princípio.
Porém nem eu acreditava naquilo, ainda assim, imaginar que perderia Isotta por escolher
outras mulheres parecia uma ideia absurda, assim como fechar os olhos e permitir que outro
homem a tivesse, fazia com que meu estômago se contraísse.
— Pega meu diamante.
Desta vez ela levantou, abriu a caixa e sem que a gata protestasse, retirou a coleira e me
entregou. Segurei a peça sem abandonar a mão de Isotta e a puxei de volta para meu colo. Ela
não resistiu. Coloquei a coleira no meu bolso sob o seu olhar atento, em seguida puxei seu rosto
para mim e a beijei.
Isotta se desmanchou em meus lábios, doce, entregue, mansa. Aprofundei o beijo e deslizei
a mão para levantar o vestido. Apalpei a bunda gostosa, recebendo gemidos baixos e excitantes e
então voltei ao meu desejo. Acariciei a calcinha, mas logo avancei e encontrei a carne pronta
para mim. Isotta se contorceu de forma manhosa, voltando a se posicionar sobre meu pau.
Provoquei por mais tempo do que acreditei suportar. Deslizei os dedos pela vagina,
capturando a excitação, acariciei seus pontos sensíveis e me excitei ainda mais ao relembrar o
sabor do seu desejo.
— Tira a calcinha — comandei com a voz baixa, cheia de apelo, deliciado com tudo o que
poderia fazer com aquela garota e com a sua entrega tão verdadeira.
Isotta puxou a calcinha, deslizou a peça pelas coxas que eu desejava envolta dos meus
quadris, abaixou-se para que pudesse retirá-la e com isso a bunda deliciosa se empinou sobre
meu pau, dando-me uma visão capaz de roubar os últimos fios de equilíbrio em meu corpo. Ela
era sexy até mesmo quando não procurava ser, me atiçava mesmo quando não tinha aquela
intenção.
Quando Isotta ergueu o tronco, puxei seu rosto para que eu pudesse beijá-la. Recebi seus
lábios sedentos, a língua que me enfeitiçava com sua doçura única. Ao mesmo tempo, minhas
mãos afoitas queriam tudo dela. Avancei no decote encontrando o seio durinho com o bico
entumescido à espera da minha atenção. Isotta ronronou ao toque, a pele macia eriçada, o corpo
no delicioso pulsar que me indicava a sua necessidade no instante em que meus dedos voltaram a
encontrar a carne úmida.
— Vem cá — chamei ao fazê-la se posicionar de frente para mim.
Havia um leve brilho de insegurança quando ela sentou no meu colo, as pernas abertas, os
joelhos quase sem espaço na poltrona que dividíamos. Isotta não fazia ideia de tudo o que
conseguiríamos fazer ali se tivéssemos tempo. Inexperiente, ela ainda exibia o rubor do seu
desconcerto por se expor daquela forma para mim.
E eu adorava isso nela. Adorava a sua ousadia ainda que o desconhecido lhe assustasse.
Adorava a maneira como ela se entregava mesmo sem ter ideia do quão profundo aquilo soava
para mim. Isotta temia a sua falta de experiência, contudo isso nunca a impediria de se doar, da
maneira como eu a guiava. E, por fim, eu adorava o fato de ser eu a apresentá-la àquele mundo.
Sem cogitar a possibilidade de um dia abrir mão daquela posição.
Beijei outra vez Isotta quando a abaixei sobre minha ereção ainda presa nas calças, ciente
de que sua excitação marcaria o tecido, no entanto, deliciado demais para me impedir de
provocá-la. Acaricie a bunda, segurei os quadris para acompanhá-la no rebolado nato daquela
garota gostosa por natureza.
Sem deixá-la se afastar, introduzi um dedo na vagina, em seguida outro, enquanto ela
intensificava os movimentos. Todas as vezes que Isotta forçava o sexo contra o meu e roçava em
busca do próprio alívio, eu me sentia queimar de desejo.
— Abra minha calça — eu disse ao desfazer o beijo, ainda sem deixar de provocá-la com
os dedos.
Arfante, Isotta obedeceu. Com as mãos trêmulas e os dedos delicados, ela abriu o botão e
desceu o zíper. Não precisei dizer o que deveria fazer. Isotta, demonstrando a mesma ansiedade
que me dominava enquanto eu escorregava os dedos entre sua fenda inchada e a outra entrada
que me convidava a ir além, ela segurou meu pau com a palma quente e o libertou.
Um gemido de satisfação escapou dos meus lábios quando ela me agradou com uma leve
masturbação, subindo e descendo os dedos que prendiam meu pau em seu aperto promissor.
— Agora me coloque dentro de você — rosnei sem qualquer controle, mordiscando o
pescoço impecável, afetado com tamanho desejo.
— Não temos camisinha — ela murmurou com certo lamento.
— Foda-se.
Decidido, segurei seu quadril, puxando-a para nos unir, mas Isotta resistiu, encarando-me
ainda que tudo nela indicasse o quanto ela também desejava aquele momento.
— Álvaro…
— Eu quero você — confessei diante da sua possível recusa.
Cada mínima fração de segundo fazia com que meu corpo reivindicasse aquela entrega,
implorasse pelo corpo dela, pelo calor e aperto da nossa união. Como eu podia desejar tanto uma
mulher?
— Não temos camisinha — ela repetiu.
— Não temos.
— Você vai ficar paranóico outra vez.
— Vou. Mas… foda-se. Ficarei pior se não estiver dentro de você, Isotta.
Ela fechou os olhos e suspirou, contudo, sem pesar. Isotta exibia um sorriso de satisfação
ainda que lutasse para não expressá-lo de forma tão nítida. Ela era linda, única, sensual, gostosa
e… minha.
Contra tudo e todos, Isotta era minha.
Aquele casamento ainda era uma loucura. Suas inconstâncias somada a minha inaptidão ao
compromisso amoroso ,continuavam sendo uma grande muralha, entretanto, vencíamos o
primeiro desafio, e talvez o mais importante para o início de uma vida como casal: no sexo
éramos compatíveis, talvez até mais. Encaixávamos com destreza, alimentávamos com a química
que vibrava nos nossos corpos quando nos tocávamos.
Isotta abriu os olhos quando nos movimentamos para tornar aquele encaixe possível. Eu
me posicionei entre as suas pernas e lutei contra os espasmos de prazer que disparavam por meu
corpo quando a sensação da carne firme me envolveu aos poucos. Ela era tão quente, úmida,
apertada…
Segurei meus instintos ao me obrigar a levar em consideração que aquela seria a segunda
vez em que minha esposa seria penetrada. A rigidez dos seus músculos quando investi em sua
carne, deixava claro que ainda teríamos que lidar com um pouco de dor. Apesar do desejo latente
que me impelia a penetrá-la conforme a minha vontade, eu não queria só a minha satisfação.
Odiaria se não fosse tão bom para ela quanto foi para mim.
Beijei o torso de Isotta, acariciei o seio ainda protegido pelo tecido, ao mesmo tempo,
apalpei a bunda bem desenhada, instiguei, dediquei a garota toda a minha habilidade e paciência
para mantê-la excitada. Com o seio liberto, mordisquei o bico, motivei suas sensações ao prová-
lo de inúmeras maneiras, e, sempre que a sentia menos tensa, avançava em sua carne, empurrava
seu corpo para baixo e sufocava a vontade de ir até o seu limite.
De tempos em tempos, ainda que ela estivesse entregue as carícias e agrados que eu lhe
oferecia, Isotta abria os olhos e conferia a porta em um ponto atrás da poltrona onde
transávamos. Ela ainda se preocupava com a possibilidade de sermos surpreendidos. Quando ela
fazia isso, eu forçava um pouco mais os seus quadris, abria caminho por sua carne e me afundava
nela, obrigando-a a voltar para o que verdadeiramente importava naquele instante.
Não precisei guiar seu ritmo por muito tempo. Isotta podia ser inexperiente, seu corpo com
toda certeza não estava acostumado a intromissão de outro que limitava seus movimentos, no
entanto, havia malícia o suficiente nela para compreender o processo, além de uma real
necessidade de atender aos seus anseios.
Assim que se adaptou ao ato, ainda que encontrássemos a barreira da carne apertada, ela
iniciou uma dança própria, tão gostosa quanto sensual, rebolando em seu ritmo, recebendo-me,
cercando-me, dominando-me, tomando-me para si como se não houvesse nada mais saboroso.
Seus lábios se tornaram mais intensos, a língua mais exigente. Ela subia e descia em meu
pau, cada vez mais úmida, permitindo que eu deslizasse para dentro dela, tão fundo e gostoso
que eu começava a perder o controle.
Agarrada a mim, gemendo de prazer, aprisionando-me naquele encanto impossível de
escapar, com os quadris me puxando para dentro e me libertando para que espasmos me
excitassem cada vez mais, Isotta dava todos os sinais de que gozaria rápido, mas, entre gemidos
mais intensos e rebolados mais contidos, com os braços ao meu redor enquanto eu seguia o
mesmo caminho mordiscando e provocando os seios deliciosos, ela deu um gritinho baixo de
susto.
Eu quis procurar pelo motivo da sua reação, cheguei a levantar o rosto para conferir o que
causou aquele gritinho, contudo minha esposa, com os olhos fixos em algum ponto atrás de nós,
convulsionou, a vagina me apertou de forma a me puxar de volta. Ela gemeu mais alto,
entregando-se ao prazer enquanto intercalava com “ai meu Deus” de forma tão quente que me
fez explodir em seguida.
Puxei Isotta contra mim, me afundando nela com mais propriedade. Mordisquei seu
pescoço e me entreguei ao prazer que lambia minha pele e me incendiava. Eu jorrei dentro dela
me perguntando se em algum outro momento da minha vida foi tão gostoso o orgasmo.
Estremeci os últimos segundos de entrega, agarrando-me ao corpo que ainda ofegava,
adorando as curvas que se encaixavam com perfeição ao meu corpo, tocando com a ponta dos
dedos todos os detalhes expostos para o meu bel prazer. Isotta se afastou um pouco e buscou
meus olhos. Havia um leve traço de preocupação nos dela.
— O que foi? — suspirei a pergunta inevitável, ainda que meu cérebro me obrigasse a
relaxar.
— A mulher — ela sussurrou com um toque rubro de vergonha em sua bochecha. — A
comissária. Ela nos viu — confessou antes de mordiscar o lábio inferior.
Encarei Isotta enquanto juntava as peças. Ela gozou ainda que seu medo tivesse se
concretizado. Qualquer outra garota, estando na situação dela e com esse temor, teria recuado,
mas Isotta gozou tão entregue, inabalável que me levou junto. Não que eu fosse recuar se
soubesse o que ela viu antes, em especial por ela mesma ter continuado.
Entretanto, eu não tinha problemas com surpresas como aquela. Vivi situações semelhantes
tantas vezes que não me recordava de todas. Assim como mantive relações com garotas que não
se importavam em se exibir. Por isso reconheci aquele olhar, a entrega, a forma como o prazer se
espalhou pelo corpo dela.
— Puta merda, Isotta — falei baixo, com certa admiração ao mesmo tempo que me
preocupava. — Você gosta de ser vista.
— Eu? Não! Eu…
Puxei minha esposa para um beijo sedutor. Confuso sobre como lidar com aquela
informação, ou permitir que ela pensasse no assunto, sendo Isotta ainda tão inexperiente,
contudo, ainda que a ideia me abalasse, me excitava na mesma proporção. Não que eu quisesse
expô-la, mas pelo fato de haver muita diversão na quantidade de coisas que conseguiríamos fazer
com aquilo. Restava saber como, ou criar coragem o suficiente para aceitar.
E, quando desembarcamos, eu tinha novos planos e novos temores.
*ATENÇÃO* existe uma ilustração erótica desta cena. Para vê-la, envie um direct para
@tatianaamaraloficial no Instagram
33
ISOTTA

Desembarcamos no Rio de Janeiro quase às quatro da madrugada. Eu, finalmente, me


sentia relaxada, esgotada para dizer com mais precisão. Minha mente uniu o acontecimento
horrível com Nicolo, ao hasteamento da bandeira branca por Álvaro e esse foi o meu desligar.
Álvaro praticamente me carregou até o carro que nos aguardava. Eu dormi durante o
percurso para o hotel. Amolecida, quase não prestei atenção ao local e agradeci quando entrei no
apartamento amplo e me deixei guiar até a suíte, onde uma cama convidativa me esperava.
Chutei as sandálias para longe, sonolenta ao ponto de cogitar adormecer daquele jeito, com
a roupa da viagem, maquiagem e os resquícios da nossa aventura no avião ainda em meu corpo.
Com a porta aberta eu ouvia Álvaro conversar com Valentin na sala que antecedia a suíte, mas
não conseguia me concentrar o suficiente para abrir os olhos e tentar entender.
— Deixe eu desforrar a cama para você — ele disse, de repente ao meu lado, a voz baixa e
doce.
— Eu tenho que tirar a maquiagem — ronronei, sonolenta. — E soltar o cabelo.
A risada curta sem a tensão que sempre nos acompanhava me aqueceu. Álvaro subiu na
cama e, sem me deixar sofrer com puxões, desfez minha trança com cuidado.
— Como que abre esse vestido?
— Não abre — resmunguei, virando-me no colchão e me obrigando a abrir os olhos para
encontrá-lo sobre meu corpo. — Tenho que puxá-lo. É melhor iniciar logo isso.
— Precisa de alguma coisa?
Forcei meus olhos a focarem no homem lindo sobre mim, ainda vestido, sem qualquer
indício de que ele também se entregaria ao sono.
— Não está cansado?
— Nem poderia — revelou com um sorriso mínimo. — Preciso sair.
Ele desceu da cama quando levantei o corpo, tensa, e busquei por alguma resposta em seu
rosto. Álvaro voltou a ficar sério, analisando-me como se esperasse um novo problema.
— Eu tenho que trabalhar, Isotta.
— São quatro e trinta da madrugada.
Ele mordiscou o lábio inferior, os olhos atentos a mim.
— Algumas atividades que exerço não cumprem horário comercial. Isso é novidade para
você?
— Eu vou ficar sozinha?
— Não. Claro que não!
— Mas você vai sair.
— Você está segura. O andar todo é nosso. Reforcei a quantidade de homens que
garantirão que nada acontecerá durante a minha ausência. E eu não pretendo demorar —
acrescentou após confirmar que apesar de tudo o que prometia,eu ainda hesitava diante da sua
oferta de segurança.
Levantei da cama, insegura, o corpo trêmulo, contudo, não contestei a decisão do meu
marido. Aquela viagem não fora planejada para a nossa lua de mel e sim para que ele pudesse
cumprir com seu trabalho, o que, eu não seria ingênua de esperar, quase nunca estava
relacionado a atividades legais.
Ele me incluiu naquela viagem para me deixar menos tensa, entretanto, eu precisava
compreender que nem sempre seria possível e também, em especial, que Álvaro não estaria
comigo a cada minuto da minha vida. Ainda que houvesse receios quanto a capacidade da
Ndrangheta em manter Nicolo longe de mim, havia também a certeza de que eu precisava
confiar, pois eles eram a minha única esperança.
— Tranque a porta do quarto quando eu sair — Álvaro avisou ao me ver caminhando na
direção do banheiro. — Harry ficará aqui com você.
— Eu me sentiria mais segura se estivesse com minha SIG.
— O quê? — A surpresa na voz de Álvaro me fez virar em sua direção.
— Minha pistola. Uma SIG.
— Você tem uma pistola?
Com um suspiro de lamento, voltei alguns passos e abracei meu próprio corpo.
— Tinha. Precisei deixá-la para trás quando fugi de casa.
Álvaro me avaliou por um tempo e eu não entendia porque eu ter uma pistola o surpreendia
tanto.
— Você sabe atirar?
— As garotas em minha posição precisam ter algo que garanta a sua defesa, não?
Ele pensou sobre o assunto e parecia não ter tanta certeza quanto a minha pergunta. Porém,
sem que eu esperasse por isso, Álvaro pôs o pé sobre a cama e puxou uma pistola semelhante à
minha, velada sobre a calça e presa ao calcanhar. Em seguida ele conferiu o pente, voltando a
encaixá-lo para só então voltar a me olhar.
— Eu não deveria fazer isso, Isotta, mas se você se sentirá mais segura… — Ele estendeu
a pistola na minha direção. Não pensei duas vezes antes de aceitá-la e de imediato me senti
menos ameaçada. — Preciso me preocupar com algum tiro acidental?
Olhei para meu marido, incomodada com a sua falta de confiança quanto às minhas
habilidades. Álvaro ergueu as mãos, rendendo-se.
— Por favor, não atire em qualquer pessoa que passe por aquela porta.
— Você mandou que eu a mantivesse trancada.
— Sim, mas pretendo dormir nesta cama.
Meu rosto esquentou com a ideia. Eu deveria estar preparada para aquela nova versão do
meu marido, em especial, com ele sendo meu marido de fato. No entanto, não estava. Nunca
dormimos juntos e a promessa me parecia tanto tentadora quanto assustadora.
— A menos que você não queira — ele se corrigiu diante da minha reação. — Eu posso
dormir no outro quarto.
— Não — sussurrei, cobrando-me para não parecer tão ansiosa. — Durma aqui. Por favor.
Álvaro, com um sorriso provocante, concordou sem nada dizer, contudo, não precisávamos
de palavras para justificar o que nossos corpos diziam. Porque bastou eu concordar com a sua
presença em minha cama para que seus olhos inflamassem e conferissem meu corpo.
— Descanse — sugeriu com um tom rouco.
Eu concordei e assim que Álvaro deixou o quarto, permitiu que Harry, já na porta, entrasse
para me fazer companhia.
Tranquei a porta e suspirei com a testa colada na madeira. Aquela mudança súbita me
esgotava. E, com um sorriso de contentamento, libertei Lilica de sua caixa, arranquei o vestido e
segui para o banheiro.
***
Envolta na bruma que me separava da realidade, sob o efeito de adormecer de bruços, nua,
com o ar-condicionado ao máximo, parcialmente coberta por um edredom fabuloso e amparada
por travesseiros confortáveis, me arrepiei com a sensação morna da carícia em minhas costas
para em seguida lábios depositarem beijos lentos e cálidos no local.
Suspirei, entregue ao sono, com a pele sensível à medida que a carícia ganhava mais
propriedade. Contudo, mais rápido do que eu imaginei ser possível, minha mente resgatou
lembranças da noite anterior, de Nicolo em meu quarto, além do alerta que dominou meus
pensamentos indicando que eu tinha trancado a porta, logo, ninguém podia estar comigo ali.
O pavor fez meus músculos enrijecerem enquanto eu agia por instinto. Escorreguei minha
mão por baixo do travesseiro, onde logo meus dedos encontraram a pistola. Girei o corpo
decidida a impedi-lo de me tocar quando um braço forte me fez deitar outra vez na cama, minha
mão presa pela dele acima da minha cabeça.
— Eu sabia que não era uma boa ideia.
Álvaro falou sobre mim, o cabelo molhado, a pele fria do peitoral na minha ainda morna.
Contemplá-lo fez com que meu corpo recebesse uma injeção de alívio. De imediato meus dedos
abandonaram a pistola e a mão dele deixou de apertar meu pulso.
A boca que antes espalhava beijos em minhas costas, desceu sobre os meus lábios para um
beijo cheio de desejo, e, ainda que este não deixasse clara a sua intenção, a ereção entre minhas
pernas afugentaria qualquer dúvida.
— Desculpe se te assustei — ele sussurrou, nada abalado pela minha tentativa de atirar
nele. — Melhor guardar isso em um lugar mais seguro.
Ele se afastou minimamente, apenas para se apossar da arma e deixá-la no chão. Logo ele
estava de volta, dominante, sem pressa, gentil como não imaginei que conseguiria ser.
— Você chegou agora? — perguntei ao me dar conta de que, apesar das cortinas fechadas,
o dia clareava o ambiente.
— Hum hum — ele ronronou com a boca quente deslizando por meu pescoço.
As mãos de Álvaro tinham a cadência certa ao me tocar, apertando com suavidade,
alcançando os lugares certos, corroborando com a boca que me experimentava e aquecia.
— Por que demorou tanto? — consegui dizer, perdendo-me aos poucos. Um risinho curto
lançou seu hálito no bico do seio que ele torturava com a ponta da língua.
— Precisei pedir a chave mestra para abrir a porta — revelou ainda com o tom zombeteiro.
— Imaginei que você atiraria quando eu a abrisse.
— Eu nunca atiraria em você.
As palavras sussurradas se perderam quando ofeguei por ser puxada pelos quadris para me
posicionar como Álvaro desejava. Sem abandonar minha pele, ele equilibrou o próprio peso,
criando espaço entre nossos corpos para que pudesse me tocar.
Os dedos deslizavam por meu ventre, me arrepiando com toques leves e provocantes,
enquanto a boca me tomava em um beijo lento, sensual, capaz de arrancar de mim todo e
qualquer pensamento que não fosse a minha vontade de passar o resto da vida daquela forma.
— Ainda bem que tenho bom reflexo.
A voz rouca indicava que a conversa não condizia com seus desejos, ainda assim, ele a
manteve, sem nunca deixar de me tocar e seduzir.
— Não para fugir de uma bala — provoquei.
— Não para fugir de você — ele confessou.
A mão deslizou até minha coxa, pressionando os pontos corretos, aquecendo minha pele
com toques que, apesar de suaves, possuíam a sensualidade perfeita. Durante todo o momento
nós nos encaramos, eu sem encontrar resposta e ele decidido a me fazer esquecê-la.
De tempos em tempos, Álvaro me puxava em sua direção, imprensando-se em mim com
mais desejo, para em seguida me afastar com delicadeza, em uma dança que atiçava meus
neurônios.
Quando ele deslizou com as pontas dos dedos, encontrando meu sexo para me tocar com
cuidado, como se me reverenciasse, estremeci. Álvaro me deu um olhar quente ao assistir minha
reação, como se saboreasse cada pequeno tremor, cada arrepio, testando a pressão com meus
gemidos, preparando-me para recebê-lo.
Úmida, com a luxúria como uma fina camada sobre minha pele, tão sensível que me
causava pequenos espasmos, recepcionei o corpo de Álvaro quando ele se encaixou em mim com
investidas curtas e constantes. Não doeu como da última vez. Talvez um leve e quase
imperceptível ardor, tudo bem mascarado pela sensação deliciosa de ter minhas paredes
massageadas pelo seu corpo, as mãos habilidosas que se mantinham firmes em mim, alcançando
partes do meu corpo que me mantinham sedenta.
Álvaro me beijava com sofreguidão, consumindo-me, guiando pela promessa profana do
ato, enquanto bailava entre minhas pernas, movimentando-se com precisão, afundando-se em
meu corpo, gemendo o som que me envolvia e enfeitiçava.
Parecia mágico. Nada mais importava além dos nossos corpos em cima daquela cama, da
maneira como ele se movimentava e me atirava em um mar de sensações, dos lábios que me
exploravam, da língua que deslizava por minha pele, do corpo que me envolvia e me incentivava
a acompanhá-lo.
Eu era tantas sensações que me perdia dentro de mim. Com toques que atiçavam, com
prazeres que explodiam aos poucos em pequenas labaredas, trilhando na direção daquele ponto
que avolumava e ameaçava transbordar.
E assim eu me entreguei. Explodi naquela mistura, segura, certa de que nada mais
importava, estremecendo em seus braços. Álvaro me segurou firme quando se afundou em mim
com tremores deliciosos de sentir, até que seus músculos relaxaram e seus lábios perderam a
urgência, voltando para beijos delicados, cobrindo minha pele, meus seios, até encontrarem meus
lábios outra vez.
Cansado, após um suspiro, ele rolou para o lado e me puxou junto. Deitei sobre seu peito,
deliciada. Ele tinha cheiro de limpeza, produtos de higiene e colônia, nada mais elaborado, o que
combinava com perfeição com tudo o que ele era. Fechei os olhos quando seus dedos
acariciaram minhas costas com movimentos leves.
— Preciso dormir — ele ronronou, quase entregue ao sono. — Por favor, prometa que não
vai aprontar nada enquanto eu durmo.
Levantei o rosto e o encontrei de olhos fechados, tão pleno que parecia um deus em seu
esplendor.
— E o que eu aprontaria?
Álvaro esboçou um sorriso manso.
— Não ande sem roupa — disse baixinho. — Não saia sem mim. E não atire em ninguém.
Melhor deixar a arma no quarto.
Ele abriu os olhos com esforço, projetando-se para buscar pela arma esquecida no chão.
Avancei sobre ele, obrigando-o a deitar outra vez.
— Você deveria confiar mais em mim.
— Impossível, Isotta. Na maioria do tempo não sei o que fazer com você.
— Contanto que continue sabendo o que fazer no restante dele… — Dei de ombros ao me
deitar outra vez em seu peito. — E eu fico com a arma.
Com um suspiro, Álvaro se rendeu, pegando no sono rápido. Eu sorri. Poderia conviver
com aquela parte em que ele sabia o que fazer comigo.
34
ÁLVARO

Olhei para os lados quando Isotta saiu do mar e caminhou na minha direção. Enquanto eu
dormia, ela visitou algumas lojas do hotel, comprou biquínis pequenos demais para o meu gosto
e não me deixou em paz enquanto eu não aceitei passar um tempo na praia.
Aquilo não estava na minha programação. Em pouco tempo eu teria que deixá-la para
participar de mais uma reunião, desta vez uma que cabia nos trâmites legais, aconteceria em um
escritório sofisticado e não precisava de esquemas especiais, ou seja, uma reunião chata que se
estenderia até o início da noite.
Talvez por isso aceitei acompanhá-la. Do que adiantaria levá-la para o Rio de Janeiro se
ela não aproveitaria nada em nossa rápida passagem? E Isotta era jovem, cheia de animação e
energia. Ela amava o mar, amava o sol, se contentava em ficar exposta por um longo tempo,
bronzeando a pele que já era iluminada de nascença.
Mas o que me incomodava mesmo era o biquíni que ela usava. Sendo a única mulher entre
tantos homens, ainda que meus soldados, para o bem das suas vidas, mantivessem os olhos longe
da minha esposa, ela seria sempre uma tentação. Em especial por desfilar pela areia clara, com o
corpo todo molhado do banho de mar, em uma praia quase que exclusiva. Isotta era a miragem
que todo homem sedento daria a vida para tocar.
Eu me mexi outra vez incomodado enquanto analisava as curvas incontestáveis da garota.
Linda como descreviam que Lilith era. E nada se assemelhava mais a Isotta do que esta
comparação. A mulher capaz de tentar os homens, de levá-los à rebelião, ao pecado, aos desejos
mais profanos. Não foi o que aconteceu com Nicolo? Ele não enlouqueceu por não suportar
perdê-la? Quantos mais? Quantos homens lamentavam a falta que Isotta fazia em sua vida?
Quantos desejaram ter um pouco mais daquela garota? E por que a ideia me incomodava?
Precisei de todo o meu controle para não levantar e envolvê-la em uma toalha. Para não
escondê-la daqueles que jamais poderiam tocá-la, mas que arriscariam tudo se tivessem a mínima
permissão. Contudo, me mantive sentado na espreguiçadeira debaixo do imenso guarda-sol
enquanto fingia interesse na água com gás que solicitei.
— A água está maravilhosa — ela disse com deleite, deitando-se ao meu lado, de bruços,
para bronzear as costas e a bunda que me mantinha preso à sua imagem. — Você deveria
aproveitar.
— Eu estou aproveitando.
— Olhar não é o mesmo que sentir.
— Digamos que eu tenho bastante afinidade com a visão.
De pirraça, ainda que tivesse total noção de que não deveria tocá-la daquela forma, ciente
de que soldados nos observavam de pontos afastados, para manter nossa segurança, corri a ponta
dos dedos, sem pressa, pelas costas estreitas.
Isotta estremeceu. Ela se mexeu, jogando o cabelo molhado para o lado e me deu uma
rápida olhada com um sorriso discreto. Sim, ela sabia o efeito que tinha em mim e não hesitaria
em aproveitar disso. Desci os olhos até conferir mais uma vez a bunda deliciosa naquele biquíni
fio dental que roubava a minha paz.
— Não está mais chateado comigo? — Ela perguntou com receio.
— Claro que ainda estou chateado com você.
Suspirei. Isotta deixou o quarto quando adormeci após transarmos mais uma vez. Eu estava
no meu limite de cansaço. A reunião não teve nada que pudesse ativar a adrenalina em meu
corpo e, apesar da minha notável resistência, protestava a falta de sono. Por isso não a vi sair,
nem observei a porta aberta quando ela se aventurou pela suíte.
E até então não havia nada de errado nisso. Adormeci de forma pesada ainda que minha
mente se ocupasse com a necessidade de manter a segurança da mulher com quem casei. Não
tínhamos novas informações sobre Nicolo, não fazíamos ideia se ele permanecia no Brasil ou em
qualquer outro lugar. Jean não tinha notícias do Juan ou do Miguel, ou seja, a ameaça
continuava. Ainda assim, eu adormeci profundamente.
No início da tarde, transitando entre o sono e a realidade, foi que tudo aconteceu. Descobri
depois, quando quase causei uma tragédia ao sacar minha arma, que Isotta, entediada, resolveu
brincar com Harry, arremessando uma bolinha para que meu cachorro pudesse entretê-la. Eu não
gostava da ideia de Harry ser tratado como um cachorro doméstico, ainda que sua raça passasse
esta ideia, mas Isotta tinha o dom de desfazer minhas determinações, e assim, envolveu meu cão,
treinado para destruir no primeiro comando, em uma disputa nada saudável com sua gata vira-
lata.
E a brincadeira desandou quando a gata, Lilica, desvalida de qualquer honestidade, atacou
Harry para desestimulá-lo a pegar a bola, e então meu cachorro avançou sobre a meliante,
disposto a não deixar que ela levasse a melhor.
Até esta parte da história eu trataria como algo que valeria de mim apenas uma orientação
para a minha esposa entediada, no entanto, a gata disparou para o quarto, Harry manteve seu
objetivo e a seguiu, e ao final, acordei com uma gata com unhas afiadas que buscou refúgio
sobre a cama e um cachorro que por pouco não foi baleado quando levantei assustado com a
perseguição.
Todo o processo me enfureceu, mas a minha pouca paciência se esvaiu quando Isotta riu
do meu aborrecimento, tanto que demorou para conseguir me explicar toda aquela confusão.
— Não seja rabugento — ela provocou.
— Eu deveria ter atirado na gata. É uma merda ser racional quando tudo o que eu precisava
era de um tiro acidental.
— Álvaro! — ela ralhou, com um olhar repreensivo. — Eu nunca te perdoaria.
— Claro que perdoaria. Seria acidental. Eu até seria capaz de demonstrar o mais puro
arrependimento.
— Isso é… horrível! Eu fugiria de você.
— Teve todas as chances antes de casarmos.
— E levaria o Harry. Uma pessoa como você não merece conviver com animais.
— Com a sua gata — revidei. — Mantenha ela longe do quarto e estaremos em paz.
— Sairemos do quarto — ela me desafiou, contudo, sem demonstrar estar de fato
aborrecida.
— Você não, Jasmine. Só a sua gata pulguenta.
— Você é tão vira-lata quanto ela.
— Aí você me pegou.
Isotta sorriu, certa de que meu aborrecimento desapareceu no instante em que entendi que
precisaria me preocupar mais com o tamanho do biquíni dela do que com as travessuras daquela
gata ordinária.
— Precisamos conversar — anunciei.
Ela revirou os olhos, rebelde. Linda pra cacete. Sem conseguir me conter, dei um tapa
ousado na bunda redonda. Isotta riu.
— Não finja que isso não te preocupa.
— Claro que me preocupa. Só não me apavora.
— Deveria. Você é nova demais para ser mãe.
— Meu pai não diria isso — disse com sua impertinência irrefutável. — E você precisa
logo de um filho ou será avô.
— Eu deveria agir como o velho que você me pinta e te colocar de castigo.
Outra vez ela revirou os olhos. Eu detestava olhar para Isotta e testemunhar a diferença de
idade que se tornava mais gritante quando conversávamos daquela forma.
— Assim vou acreditar que casei com meu pai.
— Argh! Não me faça sentir nojo desta conversa.
Ela riu, apesar da minha ânsia real.
— Saia um pouco do sol.
— Não.
Fechei os olhos, mordi o lábio para controlar a minha imensa vontade de obrigá-la a me
obedecer. Não estava acostumado com mulheres que não acatavam minhas ordens, ainda que
soubesse que elas só me obedeciam por estarmos em uma relação de trabalho… ou de medo.
Isotta me fazia repensar as decisões que tomei por toda vida. Sem nunca me permitir viver nada
próximo a um relacionamento, estar casado com uma garota teimosa era de fato um teste a minha
paciência.
— Eu vou me sentir melhor conversando fora do sol — sugeri mais uma vez.
— Você está fora do sol e eu estou ao alcance das suas mãos.
Suspirei meu aborrecimento, certo de que não deveria me incomodar tanto com aquele
detalhe.
— Então vamos conversar sobre a possibilidade de você começar a utilizar algum método
anticonceptivo — iniciei a conversa. Isotta ergueu o busto, apoiando-se nos cotovelos, e me
encarou sem nada dizer. — Mas eu me sentiria mais confortável se você se consultasse com uma
ginecologista, e se nos certificássemos de que não há nenhuma chance de você já estar grávida.
— Você não quer mesmo ser pai, não é?
Encarei minha esposa, um pouco impactado com a pergunta. Nunca antes me perguntei
como aquilo seria. Durante anos vivi com a ideia de que ter um filho fruto de uma aventura era
algo inconcebível. Também, com o passar dos anos, determinei que não me casaria, logo, não
teria filhos. No entanto, ali, diante de Isotta, eu não sabia o que responder.
Acreditava que uma criança entre nós, sendo ela tão jovem ainda, não seria um bom plano.
Porém encará-la diante daquela pergunta, com a nítida sensação de que me recusar a faria infeliz,
eu não encontrava uma resposta adequada.
— Isso te preocupa?
A leve expressão de tristeza que se apresentou no rosto dela, logo desapareceu. Isotta
desviou o olhar, deixando a impressão de que não se importava com nada referente a nós dois.
— Eu te disse: se você esperar mais um pouco, será avô dos seus filhos.
— E se eu colocar uma criança em seus braços estarei te dando a chance de brincar de
bonecas — provoquei. — No seu caso, acho que é mais adequado às bonecas tradicionais. Se
você faz tanta questão, posso providenciar algumas.
Ela se empertigou, a bunda levantando levemente quando Isotta se voltou para mim outra
vez.
— Você deveria se envergonhar de dizer que sou muito nova e mesmo assim fazer o que
quer comigo quando deseja.
— Não o que eu quero — murmurei, impactado com a sua acusação. — E nem quando
desejo.
— Que sofrimento, não?
Ela me deu um sorriso tentador, que impactou diretamente em meu pau. Precisei me ajustar
outra vez, desconfortável com a ereção.
— E eu tenho interesse em outros tipos de brinquedos, Álvaro.
Isotta manteve o olhar no meu enquanto eu procurava entender o que ela queria dizer com
aquilo, e quando aconteceu, ela conseguiu todos os pontos que precisava para festejar a sua
vitória em nosso embate. Inclinei meu corpo, apoiando os braços no cotovelo, determinado a
esconder a ereção que logo se destacaria em minha sunga.
— Antes eu podia me divertir com alguns mais inocentes, se é que podemos chamar um
sugador clitoriano de inocente. Mas agora, livre da barreira da virgindade, acho que posso me
aventurar com os mais ousados. O que acha?
Sem que eu estivesse no total controle da minha reação, percorri os olhos pelo corpo
bronzeado, o biquíni mínimo de lacinho, e imaginei aquela marquinha deliciosa acentuada pelo
sol, descendo pela bunda esculpida e se perdendo naquele vale por onde eu adoraria me
aventurar.
E, de repente, a lembrança da minha atual obsessão, Isotta se masturbando, adquiriu outro
patamar. Eu ainda queria a sua imagem molhada, com os dedos passeando pela carne inchada,
estimulando os espasmos que ela teria de olhos fechados, mas também queria Isotta deitada na
cama, os fios do longo cabelo espalhados pelo lençol alvo, os quadris em um movimento
manhoso, a vagina depilada recepcionando o objeto vibrante… Puta merda!
— Eu acho que você precisa disso — sussurrei, encarando-a, preso a ideia de tocá-la
enquanto ela alimentava a minha fantasia. — Logo.
— Meu Deus, você é tão pervertido!
— E você é uma delícia.
Segurei seu rosto e a puxei para mim. Isotta retribuiu ao beijo com a mesma sensualidade
com que deixou o mar, a mesma cadência com que caminhou pela areia em minha direção. Ela
era naturalmente sexy. Dona de um poder maior do que tinha consciência.
— Vamos embora — anunciei ao me levantar, vestindo de imediato a bermuda que me
ajudaria a disfarçar meu estado.
— Já?
— Não me provoque se não estiver disposta a iniciar uma guerra.
Ela sorriu como se fosse inocente e levantou, demorando mais do que deveria para vestir a
roupa e organizar seus poucos pertences, depois caminhou à minha frente, alimentando minhas
vontades. Conferi o relógio e estudei meu tempo. Eu me atrasaria pela primeira vez desde que
assumi as empresas, mas seria por um excelente motivo.
Mordi o lábio e xinguei mentalmente Jean. Meu primo não errou quando disse que um dia
eu o agradeceria por ele mandar Isotta comigo naquela viagem.
Filho da puta!
ISOTTA
— Jordan logo receberá seu coldre — Álvaro avisou sem deixar de passar a mão por
minhas costas nuas.
Eu aproveitava a carícia, ainda sonolenta, deitada de bruços na cama, sem roupas, depois
de ele ter me mostrado o efeito da conversa que tivemos.
— Quero um igual ao seu. O do tornozelo.
Ele deu um riso baixinho, sem interromper os dedos que se mantinham leves em minha
pele. Álvaro estava vestido de forma impecável, com um terno que o deixava magnífico, o
cabelo em uma rebeldia controlada, pronto para seguir para sua reunião, no entanto, sentado na
cama sem me deixar.
— Você não conseguirá se defender se levar a arma desta forma.
— Você ficará surpreso quando descobrir o quanto consigo me defender com uma arma à
minha disposição.
— Isso me assusta, Isotta. E me faz ter muita vontade de levar a arma comigo.
Foi a minha vez de rir. Virei o rosto para olhá-lo mais uma vez, sem nunca cansar do seu
aspecto imponente. Não havia forma de decidir como ele ficava mais sexy.
— Não se preocupe, ela ficará em minha bolsa a maior parte do tempo.
— Ou embaixo do travesseiro.
— Só quando você não estiver na cama comigo.
— Não me acostume mal.
Ele levantou, arrumando o paletó, pronto para partir.
— Não pense que conseguiu me ludibriar — acusou com um tom mais sério — Precisamos
chegar a uma conclusão sobre anticoncepcionais.
— Vá embora, Álvaro — ronronei, abraçada ao travesseiro.
— Tranque a porta — avisou, de volta a sua postura de macho alfa. — Não faça nenhuma
bobagem. — Revirei os olhos e o achei ainda mais bonito ao vê-lo estreitar os dele. — Fique na
suíte, Isotta. Facilite a minha vida.
— Nunca fui uma garota obediente. Você já casou sabendo.
— Você me obrigou a casar, então obedeça minhas regras — ele rebateu sem titubear.
— E você, coitadinho, está aproveitando sem reclamar desse casamento.
Ele soltou o ar como se me repreendesse, depois se inclinou na minha direção, segurou
meu rosto sem forçar e aproximou nossos lábios, sem me beijar.
— Vou te levar para um passeio quando eu voltar, mas só se obedecer.
— Agora eu acredito que você me vê como uma criança.
— Eu te vejo como um peixe, Isotta.
— Um peixe? — quase gritei de tanta indignação. Ele sorriu com gosto, deliciado com a
minha reação.
— Astuto, imprevisível e escorregadio.
Eu quis rebater com algo desaforado, mas no fundo, a comparação me envaideceu.
Levantei o tronco sem me importar com minha nudez, passei o braço pelo pescoço do meu
marido e juntei nossos corpos.
— Uma sereia então. Peixe fede.
— E sereias não existem.
— Eu existo — pirracei, os lábios roçando nos dele.
— Existe — ele sussurrou. — Prometa que vai se comportar.
— Prometo, papai.
Álvaro desferiu um tapa em minha bunda, depois a apertou no mesmo instante em que
tomou meus lábios em um beijo tão intenso que me acendeu. Porém, da mesma forma que
começou, terminou. Ele se afastou com pressa, mas sem deixar de me olhar.
— Use um vestido — instruiu antes de chegar na porta.
— O quê?
— Quando eu vier te buscar. Use um vestido — explicou.
— Mas para onde vamos?
Álvaro sorriu, abriu a porta e foi embora. Com um sorriso bobo, envolvi meu corpo com o
lençol, caminhei para trancar a porta, depois voltei para a cama, deliciada demais com tudo o que
acontecia e adormeci pouco tempo depois.
Despertei com o celular tocando sobre a mesinha de cabeceira. O quarto escurecido
indicava o avançar das horas. Peguei o aparelho e só então percebi que ele disparava um alarme
escrito “levanta”, que eu não programei.
Álvaro.
Sorri ao mesmo tempo que revirava os olhos. Nada me preparou para o que eu vivia com
ele. Ainda na festa do casamento eu evocava todo o meu equilíbrio para uma vida solitária.
Trabalhei minha mente para a reconstrução, para encontrar alegria no pouco de liberdade que
Álvaro me ofertava. Eu estudaria, faria novos amigos, ainda que soubesse que nenhum deles
poderia se aprofundar em minha rotina. Viajaria. Visitaria mais meu irmão. Seguiria um caminho
sem Álvaro e teria que ser feliz desta forma.
Então Nicolo apareceu e nas poucas horas que se passaram desde a sua tentativa de
homicídio, refiz minha rota, arquivei alguns planos e tive medo. Tive tanto medo que em mais
nada pensei até que Álvaro me resgatou. Desde então tudo mudou. E ainda havia o receio de
esperar demais de alguém que pouco antes nem sequer cogitava a possibilidade de seguirmos
uma vida normal como casados.
E eu queria aquilo. Não importava se Álvaro não me amava, talvez fosse até mais fácil a
convivência sem este sentimento para dificultar nossas decisões. E meus sentimentos… eu não
os reconhecia, no entanto, desde que entrei naquele avião com meu marido, estes não me
maltratavam mais. Havia segurança quando ele estava comigo, havia prazer, diversão e… algo
que me fazia ansiar pelos nossos momentos.
Talvez essa fosse a fórmula perfeita para um casamento bem sucedido, pensei ao me
levantar e seguir na direção do closet. As poucas roupas que levei para aquela viagem de última
hora se misturavam às diversas que comprei nas lojas do hotel. Escolhi um vestido que deixava
as costas nuas e revelava as coxas. Era ousado, no entanto, combinava com perfeição com o
clima do Rio de Janeiro. Completaria o look com uma jaqueta preta e sandálias altas.
Deixei tudo sobre a mesa de apoio e segui para o banho. Lavei o cabelo, hidratei a pele e
os fios longos, sequei o máximo possível, iniciei os cuidados com o rosto, escolhi a lingerie,
satisfeita com cada detalhe. Foi quando, diante do espelho, verifiquei qual argola usar que vi meu
celular acender a luz acusando uma nova mensagem.
Com um sorriso imenso caminhei até o aparelho, certa de que Álvaro me avisava sobre o
seu retorno, mas a mensagem vinha de um número desconhecido, sem foto e dizia “não acabou”.
Trêmula, caminhei até a cama e procurei pela pistola embaixo do travesseiro. Assim que
meus dedos tocaram sua superfície fria eu me senti mais segura. Apesar dos olhos marejados e
da sensação angustiante que quase me paralisava, eu sabia o que fazer. Então procurei pelo
contato e iniciei a chamada.
— Isotta? — Álvaro disse baixo, a voz levemente preocupada.
— Preciso de você — sussurrei.
Ele ficou em silêncio por breves segundos que pareceram uma eternidade.
— Estou chegando.
A voz decidida, firme, me fez temer menos, ainda assim, a ameaça velada era real e eu não
a ignoraria.
35
ISOTTA

Álvaro pediu que eu ficasse no quarto, mas eu não conseguiria ficar calma, mantida isolada
do que eles descobriam sobre a mensagem. Por isso, vestida com uma calça jeans e uma
camiseta, observava meu marido conversar com Valentin, seu soldado particular, e Jordan, o
homem selecionado para ser meu soldado particular. O mesmo que me entregou o aparelho para
que Miguel tentasse me resgatar quando ainda existia a possibilidade de Nicolo me ter como
esposa, entretanto, Álvaro não saberia nunca daquele detalhe.
A escolha por Jordan me surpreendeu. Eu não fazia ideia de que voltaria a ter contato com
ele, contudo, engoli o sorriso cúmplice que implorava para se revelar e mantive uma expressão
neutra, assim como ele o fez ao ser apresentado a mim pelo meu marido. Desde então não
tivemos a oportunidade de termos uma conversa franca. Na verdade, evitei tal contato por medo
de que alguém desconfiasse e estragasse a promoção do rapaz.
— O fato de ele não ter tentado contato físico não exclui a possibilidade de termos alguém
ligado a ele nos seguindo — Álvaro disse, preocupado, o celular posto sobre a mesa de centro
com uma ligação em viva voz com Jean e Aaron.
— Jordan recebeu as fotos dos homens que desertaram?
— Sim, senhor — Jordan respondeu com sua postura rígida e séria, nada parecida com a
do homem que entrou no meu quarto para me ajudar a fugir outra vez.
— Miguel deu certeza de que eles deixaram suas posições? — Álvaro perguntou, atento a
tudo o que era dito.
— Deu sim — Aaron tomou a frente. — Juan vai para Costa do Marfim encontrar com o
irmão. Ele acredita que Fernán tenha alguma informação sobre os planos do filho.
— Quais as chances de Fernán cooperar? — Álvaro falou outra vez.
— Não sabemos ainda — Jean afirmou. — Mas acredito que ninguém queira comprar uma
guerra com a Ndrangheta.
— Meu tio comprará — interrompi a divagação dos homens, que fizeram silêncio de
imediato. — Ele é ambicioso. Quando meu pai disse que deserdaria Miguel, ele sugeriu que
Nicolo fosse designado como seu substituto. Ele sempre preferiu o mercado de Campania e
Ibiza. Ter seu filho à frente deste passou a ser o seu objetivo como forma de ampliar seus
domínios.
— Eu pensei nisso — Jean interveio. — Fernán sabe que se Nicolo conseguir assumir a
Camorra de Campania e Ibiza, eles terão força para ampliar seus domínios.
— Mas não para nos enfrentar — Álvaro afirmou com segurança.
— Seria loucura uma guerra aberta contra nós — Jean manteve o tom de voz tranquilo
enquanto conduzia a conversa. — E temos Juan no comando da Camorra de Campania e Ibiza.
Poucos traíram seus compromissos e desapareceram junto com Nicolo.
— Enquanto Nicolo continuar com essa brincadeira de gato e rato eu não terei paz —
Álvaro declarou, visivelmente aborrecido. — Talvez seja melhor eu levar Isotta para casa.
— Eu estou mais segura com você — eu me intrometi mais uma vez, o que fez Álvaro me
direcionar um olhar de censura que em nada me intimidou.
— Só dividiríamos forças, Álvaro — Jean corroborou com a minha posição. — Você tem
tudo sob controle. Vamos disparar um alerta entre nossos aliados no Brasil. Iniciaremos pelo Rio
de Janeiro. Nicolo não conseguirá se esconder quando todos os que estão envolvidos conosco
tiverem uma foto dele e a possibilidade de um prêmio pela sua cabeça.
— Eu quero ele vivo — Álvaro rosnou. — Já disse que quem vai tirar a vida desse
desgraçado será eu.
— Como você quiser — Jean concordou. — Valentin, faça com que o alerta seja
disparado.
— Sim, senhor.
— E certifique-se de que todos os soldados que estão com vocês tenham conhecimento dos
rostos que procuramos.
— Pode deixar.
— Como está a instalação do programa de reconhecimento facial em nossos
estabelecimentos? — Jean indagou.
— Iniciamos hoje pela tarde — informou Álvaro. — Mas precisamos estar um passo à
frente, então solicitei que o mesmo seja feito em todas as nossas paradas.
— Ótimo.
— Jean, acabamos de receber as informações referente ao número utilizado para enviar a
mensagem — a voz de Aaron interrompeu a conversa. — O chip foi adquirido como pré-pago. O
número é de Cotia, São Paulo. Foi cadastrado em um nome laranja, o homem utilizado morreu
há três meses.
— Quais as chances de ele estar em Cotia? — Álvaro questionou.
— Sinceramente? Não se encaixa no perfil de Nicolo — Aaron ressaltou. — Mas enviei a
foto para alguns associados e se ele for reconhecido, saberemos.
— Com certeza adquiriu o número em outra região. Nicolo não permaneceria exposto —
Jean afirmou. — Por enquanto é o que temos. Se o sujeito não deixou o país, será impossível
transitar após nosso alerta. Vamos trabalhar em três frentes: Brasil, Espanha e Costa do Marfim.
— Certo — Álvaro concordou, contudo sem demonstrar satisfação.
— Isotta, você está bem?
A pergunta de Jean fez com que Álvaro me encarasse em expectativa. Desde o seu retorno,
preocupado com o que aconteceu para que eu o tivesse procurado, se deixou envolver pelo
problema e assumiu sua personalidade fria, concentrado.
— Estou sim.
Olhei para meu marido, como se precisasse garantir aquilo para ele.
— Com a pistola eu me sinto mais segura — anunciei e esse foi o ponto que fez com que
eu entendesse que nem tudo Álvaro contava ao seu melhor amigo e chefe.
— O quê? — A voz de Jean indicava a surpresa que me alertou sobre minha falha. —
Você tem uma pistola?
— Eu… Hum! — Encarando meu marido, estremeci.
Álvaro soltou o ar, aborrecido, acendeu um cigarro e encarou o celular sobre a mesa.
— Eu dei uma arma a ela — confessou.
— Álvaro! — Desta vez Jean não fez questão de esconder o quanto a decisão do seu amigo
o irritava.
— Isotta tem porte de arma, sabe atirar e possuía uma pistola quando ainda vivia com o pai
— Álvaro continuou. — Se ela sabe se defender, melhor que tenha as ferramentas.
— Você… — Jean rosnou, no entanto, segurou a bronca. — Porra. Tire o telefone do viva-
voz — ordenou.
Álvaro não me encarou quando obedeceu e seguiu com o aparelho para a varanda do
apartamento que ocupávamos.
Acuada, sem saber de que maneira aquilo impactaria em nosso curto período de paz, olhei
para os homens sentados à minha frente em uma tentativa de obter qualquer informação sobre o
que aconteceria. Valentin sorriu para mim, relaxado, porém, Jordan evitou me olhar,
aproveitando para acender um cigarro.
— Não se preocupe — Valentin disse com um sorriso amigável. — Eles se desentendem
com frequência. Geralmente Jean acata as decisões do Álvaro. E se Álvaro achou que deveria
deixar uma pistola com você, Jean pode ficar aborrecido, mas não passará por cima da decisão
dele.
— Eu não queria que Álvaro tivesse mais problemas por causa disso — confessei,
envergonhada por criar aquele clima. — Como se não bastasse toda essa situação com Nicolo.
— Nicolo deixou de ser um problema seu há muito tempo — Jordan afirmou sem me olhar
diretamente. — Álvaro só engrossou o número de pessoas que desejam a cabeça do seu primo.
Estremeci com a declaração do meu soldado particular. Se Jordan chegou até mim através
de Miguel, em uma tentativa de me resgatar e assim impedir que Nicolo colocasse as mãos em
mim, então meu irmão também fazia parte daquele plano. Miguel, assim como os outros, traçava
uma forma de destruir Nicolo, e isso me assustava mais do que Álvaro estar naquela caçada.
— Tudo bem — Álvaro disse ao voltar para a sala, ainda tenso. — Falo com você amanhã.
Valentin me deu um olhar confiante, deixando de sorrir quando meu marido se aproximou.
— Nós vamos sair em meia hora — Álvaro avisou aos dois soldados que aguardavam por
suas ordens. — Valentin?
— Ah, tudo certo — ele disse de volta a sua postura atenta. — Vamos manter o plano?
— Sim. Providencie tudo para a nossa saída.
Os dois homens levantaram e sem se despedirem, deixaram o apartamento. Álvaro, de pé,
encarando o chão, soltou o ar como se precisasse colocar para fora tudo o que lhe impedia de
respirar.
— Sinto muito — sussurrei, incerta sobre como agir.
— Eu te dei a arma. Uma hora Jean saberia. Só não faça besteira.
— Você confia tão pouco em mim.
— Eu quero confiar, mas eu mal te conheço. O tempo todo preciso lidar com seus
impulsos. Enquanto eu reflito sobre tudo, você passa pela vida como um furacão.
— Eu também mal te conheço e ainda assim estou confiando minha vida a você.
Havia mais a ser dito. Não apenas por mim, como por Álvaro. Mas como ele disse, mal nos
conhecíamos. Entretanto, aquelas íris de tempestade transbordavam quando ele se impedia de
falar e não havia como eu não conhecer aquela característica do homem com quem casei.
Álvaro de fato pensava em cada ponto, cada detalhe. Ele observava, ponderava e quando
agia, cada ato seu fora bem articulado. Enquanto eu vivia como se dentro de mim houvesse
rajadas de vento tão fortes que me impulsionavam, me atiravam conforme a necessidade não
apenas do meu corpo, mas da minha alma.
Éramos opostos, conflituosos, e, apesar disso, não me via seguindo um caminho onde
Álvaro não estivesse. Por quê? Eu não fazia ideia.
— Você vai sair? — Mudei de assunto, assustada demais com aquela conversa.
— Nós vamos.
— Vamos?
— Não era esse o plano?
Meu marido se desarmou um pouco, abandonando a postura defensiva. Ele pegou de volta
o copo com uísque que abandonou sobre a mesa de centro e entornou o líquido de uma vez só.
— Consegue ficar pronta em trinta minutos?
Confusa, levantei, concordando com o tempo que ele estipulava.
— Ótimo.
Então ele deixou a sala. Sem ideia se me sentia de fato segura para segui-lo, fiz o que
combinamos, entrei no closet e me arrumei para aquela noite como se não houvesse a ameaça de
Nicolo sobre nós.
***
Demorei para entrar no clima naquela noite. Álvaro me levou para jantar em um
restaurante sofisticado. Apesar de ele ter segurado minha mão no carro e beijado meus dedos
como se precisasse me confortar, ainda agimos como se um muro se estendesse entre nós. E eu
cheguei a acreditar que demoraríamos para abandonar essa postura formal demais para recém
casados. Até que ele me levou para a boate.
Com uma imensa estrutura, localizado nos três últimos andares de um prédio comercial
rebuscado em uma rua discreta, a boate chamada por todos de “Palácio” fazia parte da Kuhn
Entertainment, a empresa que administrava todas as boates e casas de entretenimento
pertencentes a família Kuhn, tinha uma lista de espera disputada. E foi para lá que Álvaro me
levou naquela noite.
Com os dedos entrelaçados, ladeados pelos soldados que compunham a nossa segurança
pessoal, Álvaro me guiou pelo espaço do segundo pavimento, uma área VIP com sacadas para
que seus ocupantes pudessem assistir a pista de dança localizada no primeiro piso. Outro grupo
de seguranças aguardava por nós no espaço ainda mais reservado, separado para nos recepcionar.
Dentro deste, dois homens e três mulheres aguardavam por nós. Eu não fazia ideia de
quem eram e Álvaro não fez questão de me apresentar quando apertou as mãos dos homens. Ele
me serviu uma taça de champanhe, beijou meu ombro com carinho e sussurrou em meu ouvido:
não se afaste. E eu entendi que aquela era mais uma de suas reuniões sobre a qual eu não poderia
participar.
As mulheres sorriram para mim com expectativa. Eu as cumprimentei, contudo, sem
demonstrar vontade de interagir. Caminhei até a sacada e observei as pessoas que dançavam na
pista. Elas se divertiam e me lembravam de quando eu conseguia fugir para ficar com meus
amigos. E eu senti saudade deles.
Enquanto observava as danças e a maneira como as pessoas agiam como se fossem todos
um corpo só, pensei se, de alguma forma, Nicolo conseguiria furar o esquema de segurança da
Ndrangheta e me seguir até ali. Eram tantas pessoas, a música alta e hipnotizante e tantos lugares
que talvez não fosse humanamente possível cobrir tudo com eficiência.
O pensamento me fez recuar dois passos, como se eu precisasse me manter oculta. Minha
mão se fechou na pequena bolsa que eu levava, onde estava a pistola. Jean não fazia ideia do
quanto eu me sentia mais segura sabendo que pelo menos teria a chance de me defender.
Foi neste momento que Álvaro me alcançou. Ele me abraçou por trás, as mãos me
buscando pelos quadris para que nossos corpos ficassem colados. Ele deu outro beijo no meu
ombro, desta vez mais demorado, mais ousado quando deslizou os lábios em uma carícia
deliciosa até meu pescoço.
— Você está tensa — ele murmurou atrás de mim.
Procurei pelos outros ocupantes que antes compartilhavam o mesmo espaço que nós e não
os encontrei.
— Sua reunião acabou?
— Sim. Era só um detalhe que eu precisava ajustar. Por que está tão tensa?
— Não sei.
Dei o último gole em minha taça para em seguida Álvaro a retirar da minha mão,
entregando-a a Valentin, posicionado um pouco atrás de nós. No mesmo instante, Álvaro
acariciou meus braços com a ponta dos dedos, mantendo os lábios em meu pescoço.
— Está com medo?
— Com receio — confessei.
— Esqueça um pouco os problemas, Isotta. Aproveite a noite. Não é o tipo de evento que
você gosta?
Eu ri, um pouco mais relaxada, e encostei a cabeça em seu peito, observando as luzes
vibrantes que dançavam pelo espaço, tornando o ambiente mais parecido com os quais eu
frequentava.
— Não exatamente assim, mas… sim. É o tipo de evento que eu gosto. Só que com mais
pessoas ao meu redor.
Álvaro me virou de frente para ele e segurou meu queixo com a mão para que eu
mantivesse meu olhar no seu.
— Vamos descer e dançar então.
A sugestão me pegou de surpresa. Em meu universo não havia um Álvaro relaxado ao
ponto de dançar comigo em meio a uma multidão de desconhecidos. Apesar de todas as
concessões que consegui desde que nos conhecemos, aquela era a menos provável de acontecer,
no entanto, não vi em seus olhos qualquer desconforto com a ideia.
— Não sei se seria seguro — eu disse, tentada a aceitar a proposta ainda que um frio em
minha barriga tornasse Nicolo mais próximo sempre que eu pensava em mim no meio da pista.
— Se você não puder dançar em uma boate por causa do Nicolo, é sinal de que seu plano
fracassou.
— Meu plano?
— Esse casamento. Nós dois. Tudo o que fez para conquistar sua liberdade. Nada disso
terá sucesso se Nicolo continuar existindo entre nós.
— Mas…
— Esqueça o Nicolo pelo menos esta noite, Isotta. Detesto a ideia de ele estar em seus
pensamentos mais vezes do que eu estou.
A confissão me pegou de surpresa. Álvaro roubava meu ar quando me dizia coisas como
aquela, ainda que não existisse qualquer certeza em mim quanto a intenção da sua revelação. E,
apesar de haver dúvidas, eu me sentia aquecer por dentro, me envolver em uma bolha
confortável e segura.
— Vamos dançar — eu falei.
O beijo terno que ele depositou em meus lábios ajudou a desmoronar o muro que se
interpôs entre nós desde que eu cometi o deslize de revelar a Jean sobre a pistola. Álvaro colocou
minha bolsa sobre a mesa onde nossos copos foram depositados e fez sinal para que os soldados
mantivessem tudo em segurança.
— Não se preocupe — ele assegurou ao me conduzir para fora do cercado que nos
protegia. — Eu continuo com minhas armas — sussurrou em meu ouvido.
— Quantas você carrega?
— Depende da ocasião.
— Hoje?
— Três.
A revelação me fez parar meus passos para encará-lo. Álvaro exibiu um sorriso tranquilo e
relaxado, como se não estivesse pronto para uma chacina.
— E duas facas — acrescentou.
— Facas?
— Vamos dançar, Isotta.
Ele me virou, disposto a me impedir de continuar tentando descobrir mais sobre seu
arsenal de defesa pessoal. Ainda em choque, permiti que Álvaro me levasse até o andar de baixo.
Atrás de nós, Valentin e Jordan eram os mais próximos. Os outros se espalhavam de forma a não
atrair tanta atenção, entretanto, demonstrando concentração em cada gesto.
Álvaro parou no bar e solicitou nossas bebidas. Rápido duas garrafas azuis e geladas foram
postas sobre o balcão. Ele as segurou com uma só mão e, sem me deixar, me conduziu para o
meio das pessoas que dançavam alheias à nossa presença. Meu marido me entregou minha
bebida e tomou um longo gole da dele. Experimentei o que ele me entregou. Era doce, forte, com
tons de vodka, contudo, misturada a outras coisas que não consegui identificar.
Incerta sobre de que maneira viver o momento, sem qualquer ideia de como seria aquilo
para Álvaro, me movimentei com suavidade, deixando a música cobrir as lacunas entre nós. No
entanto, para a minha surpresa, Álvaro não demonstrou qualquer desconforto. Com os olhos
fixos em mim, ele dançou como se aquele fosse também o seu ambiente, e eu me senti em casa.
De quantas formas meu marido ainda conseguiria me surpreender? Eu não fazia ideia. Mas
aquele momento nos tornou mais próximos, desmanchou as nossas diferenças e derrubou de uma
vez por todas as minhas inseguranças quando ele me segurou pela cintura, unindo o corpo ao
meu, tocando-me como os casais apaixonados faziam, dançando no meu ritmo, porém, sem
deixar de me conduzir.
O tempo passou sem que sentíssemos a sua cobrança. Nós bebemos, dançamos, nos
beijamos, nos provocamos e foi como Álvaro me pediu, sem medos, sem ninguém além dele nos
meus pensamentos, sem as ameaças que pendiam sobre nossas cabeças.
Ali éramos apenas Isotta e Álvaro, como seria se não houvesse o mundo que nos cercava,
se ao contrário das circunstâncias em que nos conhecemos, nos encontrássemos assim, em uma
boate. Como se tudo entre nós acontecesse da maneira tradicional. Ele me veria, me paqueraria,
eu aceitaria, fascinada pelo homem que Álvaro conseguia ser. Nós nos beijaríamos sem reservas,
sem os compromissos que recairiam em nossos colos por sermos quem éramos. E nos
apaixonaríamos assim, em uma pista de dança.
E eu não conseguia pensar em nada diferente disso, enquanto beijava por tempo demais a
boca do homem que buscava me seduzir. Em algum momento daquela noite nossos movimentos
se tornaram mais ousados, os toques mais sedentos, os lábios mais desejosos.
— Vamos — Álvaro chamou quando nada tinha mais força entre nós do que o desejo que
nos abraçava.
Eu não contestei quando ele me guiou de volta ao elevador, onde me beijou outra vez,
livres da presença dos nossos soldados particulares. Eu deveria ter estranhado o fato de Álvaro
não ter observado que Valentin e Jordan não entraram conosco, no entanto, meu marido era uma
excelente distração, em especial quando me imprensava contra a parede e acariciava minhas
coxas expostas.
A porta abriu pouco tempo depois e nós saímos para um andar silencioso, com corredores
claros e desertos. Enquanto eu analisava o local com curiosidade, sem questionar de que forma
aquilo se encaixava em uma boate, Álvaro caminhava com segurança, familiarizado com cada
corredor, cada porta fechada que encontrávamos. Ele parou na única onde dois homens
mantinham a segurança. Sem nada dizer, os homens saíram da frente e Álvaro a abriu, me
levando para uma sala pequena e confortável.
— Que lugar é esse?
— Esse aqui? Uma recepção — avisou, sem demonstrar interesse em ficar.
Na parede da frente, outra porta nos dava passagem. Álvaro segurou minha mão e me
conduziu a outro ambiente, mais reservado, com paredes escuras e o mesmo som da pista de
dança. Ele trancou a porta e só neste momento largou minha mão. Observei o espaço. Havia uma
poltrona virada para uma das paredes, uma cama ao fundo, um extenso sofá em outra direção,
um carrinho de bar com diversas bebidas, um balanço estranho, localizado quase no meio do que
parecia ser um quarto de motel.
Estremeci. Claro que eu queria tudo o que Álvaro desejava me proporcionar, contudo, a
ideia de estarmos em um local onde pessoas guardavam a porta para que pudéssemos transar, me
deixava constrangida. Além disso, se Álvaro era o nome que administrava o local, se aquela
boate fazia parte dos inúmeros estabelecimentos que ele comandava, aquele com certeza era um
dos quartos que ele usava para se divertir com as mulheres que conquistava. A ideia fez meu
estômago se revirar.
Álvaro não percebeu meu repúdio. Sem cerimônia, ele tirou as duas armas que levava de
forma velada no coldre abaixo da jaqueta, deixando-as junto com o celular e a carteira, na
mesinha de apoio. Ele serviu duas taças de champanhe e me ofereceu uma.
— Esse ambiente é seu?
Ele me deu um sorriso enigmático, sem me responder, levando a taça à boca.
— Você vem muito aqui? — continuei, decidida a arrancar dele alguma informação.
Ainda sem me responder, Álvaro se aproximou, roubou um beijo antes que eu conseguisse
impedi-lo, mordiscou meu queixo.
— Não pense muito — pediu. Eu o afastei com a mão.
— Você traz garotas para transar aqui?
— Não, Isotta. Eu sou um homem casado, esqueceu? — respondeu com certa impaciência.
— Casado há poucos dias — acusei.
— Você me perguntou se eu trago, e eu te respondi.
— Vamos embora — demandei.
— Não.
Ele me segurou pela cintura, juntando nossos corpos, me abraçando para me impedir de
afastá-lo.
— Eu não quero ficar.
— Você quer sim, só está sendo infantil.
— Por que não quero transar onde você costuma se divertir com outras mulheres?
— Costumava — corrigiu. — Agora eu me divirto com você.
— Não! — rosnei quando ele tentou me beijar outra vez.
Álvaro se afastou sem me largar, os olhos divertidos em mim, um leve sorriso nos lábios
que me fascinavam.
— Cuidado — ele alertou. — Você parece uma esposa apaixonada.
Eu poderia rebater, desfazer das suas gracinhas para tentar me provocar, ridicularizar a
ideia. Mas meu estômago se contorceu, minha garganta queimou, meus lábios secaram e meus
olhos ficaram úmidos. De repente respirar não era uma tarefa corriqueira. Eu precisava me
afastar, mas Álvaro continuava com as mãos ao meu redor, me impedindo de recuperar o
controle.
— Por que me trouxe aqui?
Não havia mais a acusação em minha voz, só a estranha sensação que me mantinha cativa,
sem forças para desfazer o que se instalou entre nós.
— Eu queria te mostrar uma coisa — ele comunicou, também desprovido da provocação.
— Que coisa?
— Promete que não vai fugir se eu te deixar?
Concordei, incapaz de manter o diálogo. Impactada com o misto de sentimentos que se
avolumava em mim.
— Feche os olhos — ele pediu.
Obedeci. Álvaro acariciou meu pescoço, desceu a carícia pelos meus braços, juntou nossas
bocas em um beijo cuidadoso, gentil. Estremeci quando a língua roçou meus lábios, quando o
beijo adquiriu mais forma e ele me dominou ao cercar minha cintura e me puxar para perto.
Então Álvaro desfez o beijo, as mãos ainda em mim apesar de separar nossos corpos.
— Fique de olhos fechados — ordenou.
Ele se afastou. Sem poder enxergar, o local parecia maior. Meus instintos aguçaram, minha
pele arrepiou quando a música se tornou mais lenta, sensual. Um som cortou o local, como um
deslizar de placas.
— Olhos fechados — Álvaro avisou quando virei o corpo na direção do som, mas não
havia como identificar exatamente de onde vinha pois ele ecoava em todos os lugares.
O que Álvaro fazia?
Eu me sobressaltei quando ele me segurou pelos ombros, me virou na direção desejada, de
costas para ele, voltou a acariciar meus braços com a ponta dos dedos, juntou nossos corpos e
afastou meu cabelo para beijar meu pescoço.
— Pode abrir — sussurrou em meu ouvido.
E eu não estava preparada para o que se tornou aquele espaço. Ofeguei para a iluminação
que preencheu o local devido a ausência das paredes pretas. Em seu lugar o brilho azul de
cabines pequenas, separadas de nós por vidro emoldurado. Eram seis ao todo, duas em cada lado,
restando apenas uma única parede preta, a que ficava atrás da cama.
Mas esta não era a novidade que me impactou e me impediu de fazer qualquer pergunta.
Álvaro se mantinha atrás de mim, as mãos agora sem a carícia, segurando meus braços, como se
ele também estivesse na mesma bolha suspensa que me envolveu, esperando por minha reação.
Eram seis espaços expostos, e em todos eles, pessoas se beijavam, se tocavam, se
estimulavam e transavam, alheios a nossa presença. E eu os observava sem conseguir formular
uma ação adequada. Era… lindo, sensual, capaz de modificar a atmosfera entre nós, mascarar os
sentimentos que antes me cercavam, permitindo apenas que a luxúria permanecesse, se
espalhasse por meu corpo como as mãos que passeavam pelos corpos à minha frente, como
toques ousados, provocantes.
Soltei o ar quando as carícias voltaram a minha pele, desta vez testando minha aceitação,
me conduzindo para aquele cenário, me deixando sensível, expectante, pronta para qualquer
coisa que Álvaro me pedisse. Porque, naquele momento, nada me impediria de atendê-lo.
36
ÁLVARO

Quando direcionei Isotta para uma das paredes, eu me senti de volta à adolescência. Uma
mistura de sensações se avolumavam em meu estômago. Eu não fazia ideia se continuava com o
planejado, após a reação infantil da garota, era o melhor a ser feito, contudo, arrisquei.
E, enquanto aguardava até que ela me desse algum indício de como prosseguiríamos a
nossa noite, eu me dei conta de que, pela primeira vez em anos, de que me sentia inseguro sobre
como agir com uma mulher. Eu queria estar ali, daquela forma, com ela. Confirmar e entender
como o corpo da minha esposa funcionava, do que ela gostava, quais os seus limites… até que
ponto Isotta era visual? Em que momento o sentir e o ver se uniam dentro dela ao ponto de levá-
la ao auge das suas necessidades?
Eu não sabia. Não fazia ideia de como Isotta encararia aquela sala, como se sentiria diante
daquela situação que poderia ser o marco da sua independência sexual ou o motivo da sua
regressão.
Dei a ela todos os minutos necessários para assimilar o que via, e me mantive atento a cada
detalhe do seu corpo, testando sua sensibilidade com o vai e vem descompromissado da ponta
dos meus dedos em seus braços, ouvindo a respiração dela, acompanhando sua atenção à medida
que ela buscava cada ambiente exposto.
Observei o tempo que ela utilizava para assistir cada ação dentro das cabines e ao mesmo
tempo, conferia o efeito em seu corpo. Ela respirava devagar enquanto testemunhava as cenas.
Um homem e uma mulher iniciavam as preliminares, duas mulheres davam prazer uma à outra,
dois homens e uma mulher protagonizavam uma partilha harmônica, onde os dois agiam de
forma a priorizar o prazer da parceira. Em dois espaços havia uma confusão de corpos, cada qual
com cinco pessoas que se tocavam e transavam sem regras. No último, um homem e duas
mulheres se divertiam.
O fato de Isotta não estar tensa ou não ameaçar sair dali me impeliu a agir. Acariciei sua
cintura, deliciado com o leve arquejar dela ao ser tocada de forma mais ousada. Puxei Isotta
contra meu corpo, beijei do seu ombro até o pescoço ao mesmo tempo que mantinha meus dedos
ativos em sua pele.
— Você gosta? — ousei perguntar.
— Eles sabem que podemos vê-los?
A voz rouca e baixa indicava o efeito daquelas cenas na minha esposa. Sim, Isotta gostava
do que via e reconhecer esta resposta fez com que meu pau sofresse pequenos impulsos de prazer
e ansiedade.
— Sim, sabem. Gostam da ideia.
— Sabem que somos nós a observar?
A leve hesitação em seu tom de voz me fez prestar mais atenção às suas reações.
— Não.
Mordisquei seu pescoço e subi minha mão até o seio. Isotta arfou e se contorceu, sem
nunca deixar de olhar para as câmaras expostas.
— Eles podem nos ver?
Ela perguntou por fim. E ali estava toda a minha insegurança. Uma coisa era eu me sentir
excitado com Isotta gozar ao sermos flagrados pela comissária de bordo, outra era exibi-la para
uma série de desconhecidos. Homens e mulheres que transariam e gozariam por se sentirem
estimulados ao assistirem minha esposa.
— Não — respondi mais tarde do que deveria. Isotta sentiu a mudança em meu
comportamento, ainda que eu estivesse disposto a escondê-la.
— Mas podem? — ela perguntou. — Se quisermos?
— Você quer?
Eu não deveria abandonar o seio já cativo, nem afastar meus lábios da sua pele, contudo,
imaginar que aquela era a vontade de Isotta reacendeu minhas inseguranças. Ela se virou para
mim, me encarando com aquelas irís ímpares, com seu jeito curioso e inexperiente. Foram
segundos devastadores entre a minha pergunta e a resposta dela, e enquanto Isotta não definia
aquilo, eu sofria com um medo que nunca existiu em mim.
Ela era minha. Só minha. Nunca de qualquer outro. Nunca para outros olhos.
— Não — sussurrou.
Toquei seu rosto, desenhei a boca perfeita com o polegar. Isotta fechou os olhos,
saboreando a carícia.
— Mas você gostou quando aconteceu no avião?
Testei a ideia, aflito, certo de que não poderia conviver com meias verdades.
— Você quer? — A pergunta tímida surgiu, acompanhada de uma leve reação de
perplexidade. Puxei o rosto de Isotta e beijei seus lábios.
— Não — revelei e me deliciei com a maneira como ela relaxou.
— Eu gostei de ser surpreendida — confessou. — Não exposta e também não me exibindo.
Gostei da ideia do proibido, do medo, da adrenalina.
Cerquei seu corpo com meu abraço, tateei as costas nuas. Isotta era tão linda, tão única, tão
macia. Tomei seus lábios em um novo beijo, este mais exigente, vibrando toda a vontade que eu
tinha dela, a urgência em senti-la, de tê-la ciente de que apenas eu podia devorá-la e de que era
por mim e para mim que ela se entregava.
Quando abandonei sua boca e me aventurei pelo torso em busca dos seios, ela olhou para o
lado, atenta ao que acontecia em um dos quartos. A mulher, de joelhos, chupava o pau do
homem que a acompanhava. Ele, de olhos fechados, encostado na parede, demonstrava um
estado de prazer invejável. Cerquei os seios dela com as mãos ainda por cima do vestido e
mordisquei o volume. Isotta gemeu, as mãos em meu cabelo, contudo, sem deixar de assistir a
cena que se desenvolvia ao lado.
— Você gosta? — ela perguntou com um tom de insegurança.
— Do quê?
— Do que ela está fazendo?
Observei o casal. A mulher engolia o pau do cara ao mesmo tempo que o masturbava e
acariciava suas bolas.
— Gosto. Mas você não precisa fazer…
— Eu quero — ela disse determinada, os olhos hipnotizantes de volta aos meus. — Eu
quero fazer… isso, Álvaro.
Eu tinha total noção do quanto Isotta era inexperiente, assim como conhecia a sua
curiosidade nata. Com toda certeza aquela não era a primeira vez que ela via um boquete e
também aquele não era assunto proibido na roda de amigos há muitos anos. No entanto, havia
um ar de insegurança na garota, misturado a sua determinação. E eu me vi duro, completamente
excitado com a possibilidade de ter Isotta de joelhos, a boca no meu pau, eu indo fundo em sua
garganta.
— Certo — eu me ouvi dizer.
Retirei a jaqueta que escolhi para aquela noite, abandonando-a no chão, descalcei os
sapatos, depois me livrei da camisa, sob o olhar atento da minha esposa, de repente mais
interessada em meu corpo do que nas ações das cabines. Eu gostava daquilo, da forma como
Isotta me olhava.
— Vou tirar seu vestido — avisei.
— Por quê?
Sorri ao observar o rosto rubro. A maneira como ela mordiscava o lábio inferior, os olhos
que de tempos em tempos conferiam meu corpo.
— Levante os braços — ordenei. Isotta não questionou, obedecendo-me, permitindo-se
guiar.
Puxei o vestido por seu corpo, deixando-a apenas com a calcinha tão pequena quanto o
biquíni daquela tarde. Isotta transmitia toda a sua ansiedade com o olhar e eu me perguntei até
quando suportaria provocá-la? Por quanto tempo conseguiria manter meu pau sob controle
quando a minha vontade era de ajoelhá-la para me chupar até que o gozo dissolvesse meus
neurônios.
Acariciei outra vez os lábios carnudos, certo de que adoraria a sensação deles no meu pau.
E me torturei com a expectativa gostosa, aventurando-me nos seios de bicos duros e empinados.
Isotta liberou um gemido baixo quando os apertei entre meus dedos. Arfante, ela me encarava
ainda que o prazer que se espalhava em seu corpo anuviassem as íris escurecidas.
Tomei seus lábios, umedeci a carne inchada, provoquei seu corpo ao buscá-la com a língua
ao mesmo tempo que deslizava a mão pelo ventre liso, na direção do seu ponto mais vibrante.
Isotta gemeu de forma manhosa em meus lábios quando meus dedos adentraram a calcinha e
encontraram a fenda quente e molhada. Com a outra mão, segurei sua nuca, devorando a boca
carregada de luxúria, sem interromper meus dedos que a masturbavam com movimentos lentos e
cadenciados.
Sem me deixar dominar pela pressa, rocei pelas paredes prontas para me receber,
mantendo Isotta cativa dos meus beijos. Afundei meus dedos em sua vagina, engolindo os
gemidos que se intensificavam. Então parei. Isotta ofegou quando afastei minha boca da dela.
— Venha — eu disse com total consciência de que mergulhava no mesmo mar de
ansiedade por onde ela se aventurou quando entregue às minhas provocações.
Abri o botão e o ecler da calça, afastei o tecido o quanto consegui, ao mesmo tempo que,
segurando em sua nuca, ajoelhei Isotta à minha frente. Havia muito prazer na expectativa.
Excitava-me encará-la de cima, expectante, submissa de forma que eu sabia, Isotta não era.
Massageie sua nuca e, com a mão dentro da cueca, manipulei meu pau.
Eu estava tão duro, tão louco para que ela me engolisse que sentia meu pau pulsar em
minha mão. Sem nada dizer, abaixei um pouco a cueca e deixei que meu sexo ficasse exposto,
sem deixar de me masturbar. Eu queria que Isotta tivesse o tempo dela, que agisse quando se
sentisse confortável, ao mesmo passo, me esforçava para não fazê-la abrir a boca e me envolver
com aqueles lábios quentes.
Ela colocou a mão sobre a minha, causando um arrepio que transpassou minha coluna e se
alojou em meu pau. Isotta acompanhou meus movimentos, testando, aprendendo. Quando senti
que ela conseguiria sozinha, retirei minha mão e a deixei brincar comigo.
— Ah! — soltei o ar, sôfrego ao experimentar a palma quente em minha carne sensível.
Isotta me masturbou por algum tempo, primeiro com uma mão, para em seguida me
enlouquecer com as duas, uma que mantinha o movimento e outra para me acariciar, fechando-se
na base e descendo até as bolas. Ela era uma delícia. Contudo, nada se comparou ao momento
em que Isotta, decidida, me colocou em sua boca.
— Ah, Isotta! — ofeguei, tão excitado que sentia meu corpo estremecendo, os espasmos se
espalhando por minha pele, dominando minha mente.
Ela me enfiou em sua boca, cercando os lábios em minha carne para que minha entrada se
assemelhasse a penetrá-la. E quando ela me deixou afundar, quando minha carne tocou a entrada
da sua garganta e sua língua me envolveu em uma carícia cheia de vontade, apertei os dedos em
seus fios.
Eu não queria que Isotta parasse, não queria deixar os lábios que me sugavam, as mãos que
me envolviam. No entanto, eu não podia acabar com tudo daquela forma. A vontade de gozar
crescia com violência em mim. Haveria tempo e oportunidade para Isotta me provar com tudo o
que eu era.
Mordi o lábio e lamentei interrompê-la. Gozar naquela boca passou a ser minha mais nova
fantasia. Em outro momento, com Isotta saciada, demandei, frustrado ao segurá-la e afastar meu
pau.
— Chega por hoje — comuniquei.
Levantei Isotta, conhecedor da sua insegurança. Mas não deixei que esta a dominasse.
Assim que a coloquei de pé, tomei seus lábios em um beijo intenso, devorando aquela menina
que rompia minhas certezas e tirava de mim o controle daquela relação. Caminhei com Isotta em
meus braços sob o efeito do beijo que a mantinha no ritmo que eu queria, até que suas costas se
chocaram com o vidro. Isotta ofegou com o contato.
— Você é deliciosa — murmurei ao deixar seus lábios para me satisfazer nos seios que eu
adorava.
Ouvi seus gemidos enquanto mordiscava o bico, sugava a carne, chupando seus montes
com avidez. Isotta arquejou quando meus dedos voltaram para a sua entrada, afundando na carne
melada. Eu estava louco por aquela garota, ensandecido por tudo o que ela era, por aquele corpo,
aqueles gemidos, aquele sabor.
Girei Isotta, deixando-a de costas para mim, colada ao vidro, diante do casal que inverteu a
posição, sendo o homem a chupar a garota. Suas mãos se apoiaram na placa de vidro que nos
separavam e minha esposa pôde contemplar mais uma vez uma cena que a excitava.
Sem nada dizer, desci as mãos pelas laterais do seu corpo, beijei suas costas pelo caminho,
enrosquei meus dedos na calcinha fio dental e a puxei para baixo, arrastando o tecido pelas coxas
delgadas até retirar a peça e abandoná-la no chão. Subi as mãos pela pele dourada, uma se
alojando na vagina lisa e a outra na bunda que me enlouquecia de desejo.
Então puxei os quadris dela na minha direção. Isotta soltou um gritinho que me divertiu.
Ela olhou para trás, para a nossa posição, o corpo empinado, a bunda a minha disposição, o peito
arfante em expectativa.
— Você é muito linda — murmurei acariciando a pele, forçando as costas a descerem um
pouco mais, deixando-a como eu queria.
Isotta voltou a olhar para o casal, para a mulher que se movia conforme seu prazer ao ter o
homem a devorá-la, tocando os próprios seios, alimentando sua fantasia. Corri a mão até os seios
da minha esposa, apalpando-os, puxando Isotta de volta para suas vontades. Com a outra mão
acariciei a bunda redonda, desci os dedos até encontrar a fenda, deslizei em sua entrada, acariciei
sua carne até ouvi-la gemer outra vez, mais alto, mais excitada.
— Eu vou te comer agora — avisei, no limite, certo de que Isotta também não demoraria.
Quando posicionei meu pau em sua entrada, ela empurrou o corpo para trás, envolvendo-
me por inteiro com a carne apertada. Ofeguei. Inclinei-me em seu corpo, colando a testa em suas
costas, abraçando-a como se precisasse daquilo para não me entregar antes da hora.
— Porra, Isotta! — murmurei.
Isotta gemeu baixinho, o corpo manhoso em minhas mãos, movimentando-se sem pressa,
aproveitando as sensações. Minha mulher era uma delícia, a maneira como ela rebolava, ainda
que sem a urgência que geralmente nos dominava, tomando-me e libertando-me, me apertando
com seu corpo, me fazendo deslizar cada vez mais para dentro dela, me deixava sem foco.
Arfante, ergui o corpo, segurei em seus quadris, limitei seus movimentos, saí de Isotta e
me afundei nela com mais precisão. Seu gemido ecoou pelo quarto. Repeti o movimento,
estoquei fundo, deliciado com a maneira como ela me recebia em seu abraço apertado. Isotta
neutralizava meus avanços com os braços firmes no vidro. Ela ainda assistia o casal, a mulher
prestes a gozar enquanto ela mesma seguia por aquele caminho. Afundei os dedos em seus
quadris e ganhei um ritmo mais gostoso.
Ela estremeceu, rebolou as paredes úmidas em minha carne. Eu estava no meu limite,
esforçando-me ao máximo para não gozar antes dela. Levei a outra mão ao meio entre as suas
pernas e manipulei o clitoris duro, tenso, implorando pelo prazer. Isotta gritou, o corpo tremeu e
então ela convulsionou em meu pau.
Eu me afundei nela com gosto, libertando-me, indo fundo, o corpo inteiro entregue àquele
orgasmo. Inclinado sobre o corpo dela, abracei Isotta com devoção, pele com pele, respiração
descompassada, choques que percorriam de um sexo para o outro.
Gostoso. Intenso. Libertador.
— Álvaro… — ela suspirou, ofegante. — Isso foi…
— Sim. Foi.
Saí de Isotta, puxei minha esposa para meus braços, ainda de costas para mim, beijei seu
ombro, alisei seu ventre, mordisquei o pescoço para em seguida tomar seus lábios.
— Ainda quer ir embora? — provoquei.
Isotta sorriu, voltou os olhos outra vez para as câmaras ainda com atividade e mordeu o
lábio inferior enquanto eu depositava beijos espaçados por sua pele.
— Precisamos?
— Não. Ainda não.
Ela se virou em meus braços, como uma criança animada com seu novo brinquedo. Seu
olhar encontrou o meu em um pedido ousado.
— Eu quero mais — anunciou.
Alisei seu rosto, afastei os fios que se colavam a bochecha rosada.
— Mais do quê?
— Mais de tudo.
Analisei o rosto, as expressões de entrega, a vontade que brilhava naquelas íris
encantadoras. Então puxei Isotta para um beijo que seria a minha resposta. Ela queria mais e eu
não me impediria de lhe dar tudo.
37
ISOTTA

A aeronave estava escura e silenciosa. Álvaro me abraçava, mantendo-me entre suas


pernas em uma posição que com certeza deveria ser desconfortável para um homem do tamanho
dele. Enquanto eu conseguia me encolher e descansar em seu peito, ele se equilibrava como
podia para manter nós dois nas poltronas, sem nos afastar.
Ele nada dizia, só acariciava meu braço, de vez em quando beijava o topo da minha
cabeça. A comissária de bordo há muito desapareceu para nos dar privacidade. Lilica descansava
em sua caixa e Harry havia desistido de nos convencer a soltá-lo. Reinava a paz no céu escuro
que nos acolhia.
Naquela madrugada, depois do que acreditei ser uma noite interminável de prazer, meu
marido me levou de volta ao hotel e me avisou que partiríamos em pouco tempo. Eu queria
dormir, descansar, recuperar a energia que gastei me permitindo vivenciar aventuras que nunca
imaginei viver. Mas fiz as malas, acalmei Lilica e Harry e em pouco tempo ganhávamos o céu.
Álvaro me informou o destino quando já havíamos embarcado. Brasília, ele disse, capital
do Brasil, onde vivia o Presidente da República. Eu perguntei se sua passagem por lá tinha algum
cunho político e ele sorriu, enigmático, entretanto, não me respondeu.
Eu não fazia ideia de quanto tempo ficaríamos em Brasília. Álvaro dizia que as
informações eram confidenciais e que só poderia me informar sobre cada destino quando
estivéssemos a caminho. Era uma estratégia adotada pela Ndrangheta quando o Capo ou o Don
assumia alguma missão. Cada passo era cuidadosamente estudado e uma estratégia era elaborada
para que não houvesse surpresas. Porém, Álvaro também mantinha silêncio por medo do que
Nicolo faria se tivesse essa informação.
— Não consegue dormir? — ele perguntou baixinho, quebrando o silêncio que se estendia.
Eu me movimentei em seus braços, ajustando minha posição.
— Você também não — apontei. — Essa posição é desconfortável para um homem do seu
tamanho.
Um risinho baixo e tranquilizador chegou até meus ouvidos. A mão de Álvaro me
acariciou com mais firmeza e ele depositou outro beijo no topo da minha cabeça.
— Já dormi em condições piores.
Eu imaginava que sim. Não importava qual o nome do grupo que eles seguiam, quando se
envolviam com a máfia, precisavam conhecer e suportar a dor, as privações, o medo. Miguel
evitava falar sobre o assunto quando o levaram para longe de casa para treiná-lo. Ele dizia que
agradecia por saber que eu nunca passaria por aquilo. Já Nicolo se vangloriava com suas
histórias que viravam pesadelos em minha mente. E quando eu pensava em Álvaro vivenciando
o que a Ndrangheta determinava como necessário para seus homens, meu peito apertava.
— Em melhores também.
— Mais confortáveis, com certeza — ele pontuou. — Melhores eu já não sei.
Desta vez ele beijou meu pescoço com carinho, o que fez com que eu me encolhesse,
aquecida com sua atenção.
— Cuidado. Você está parecendo um marido apaixonado.
Joguei para ele a mesma frase que me impactou naquela noite. Eu ainda pensava sobre o
assunto. Quando levava em consideração o que vivíamos naquela lua de mel improvisada, eu
sentia que me apaixonar por Álvaro era o melhor caminho, o mais doce e seguro.
Ao mesmo tempo, eu sabia que não seria sempre daquela forma. Álvaro não hesitava
quando assumia sua personalidade fria e distante, sem levar em consideração o que aconteceu
entre nós. E isso era o que me deixava insegura. Porque eu não fazia ideia do que ele sentia, de
que maneira enxergava a nossa relação.
Enquanto sexo era uma novidade que tomava apenas meu corpo, mas minha mente e meus
sentimentos, para ele, experiente, podia ser uma parcela da vida que ele sabia aproveitar. Um
homem não amava uma mulher porque a respeitava e satisfazia na cama. Era necessário mais, no
entanto, mais o quê?
— Talvez eu seja mesmo — ele disse com calma, fazendo meu coração disparar.
Eu não me movi. Continuei de costas, contendo minha animação, tentando reconhecer
meus sentimentos e emocionada de uma forma que não acreditava ser boa para aquele momento.
— Quando você não me enlouquece — acrescentou.
— Você sempre fala isso, mas a verdade é que não tenho feito nada para merecer esse
julgamento.
Ele riu mais uma vez, relaxado, gentil. Eu adorava aquele Álvaro. Queria passar a vida
com ele. Sem pensar sobre, eu me encolhi em seus braços, me grudando mais ao seu corpo.
— Porque você tem transado mais do que… respirado — pirraçou. — Sexo te mantém em
uma bolha segura, Isotta. E eu quero mesmo te manter nela. Pelo menos até eu mandar o Nicolo
para o inferno.
— Então tudo isso não passa de mais uma estratégia bem definida?
Eu ri, contudo, havia em mim uma tristeza nascente. Uma decepção que mexia comigo
além do que eu podia demonstrar. Álvaro se movimentou atrás de mim, corrigindo a postura. Ele
não me respondeu, no entanto, me abraçou com mais força e beijou outra vez meu pescoço.
— Não desisti de resolver aquele outro assunto — ele disse, desta vez com determinação
na voz. — Preciso te levar em uma ginecologista, Isotta. Se você não estiver grávida, vamos
iniciar seu anticoncepcional. Gosto da ideia do implante hormonal. Vai te deixar mais tranquila.
— Implante hormonal — repeti, ainda impactada com o rumo que aquela conversa ganhou.
Álvaro me via como um problema que precisava ser contido. Aquilo em nada se
aproximava de amor. Eu não deveria me incomodar com essa realidade, porém, não conseguia
ignorar a tristeza que se instalava em meu peito.
— E se eu estiver grávida? — Fiz a pergunta que com certeza o aterrorizava e alimentava
minha frustração. — Você não quer ser pai.
— Se você estiver grávida… — ele hesitou, a mão abandonando meu braço pela primeira
vez desde que ele me puxou para deitar em seu peito. Álvaro se movimentou outra vez, o que me
passou a ideia de incômodo. — Bom… se você estiver grávida, seremos pais.
Não havia animação, desejo, qualquer indício de alegria em sua afirmação. Apenas a sua
praticidade para resolver os pontos e ajustar nossas vidas.
— Você não quer ser pai — repeti, decepcionada por ter sido tão irresponsável comigo
mesma.
— Nós só saberemos disso quando você fizer o exame — ele afirmou. — E você não quer
ser mãe agora, não é?
Não respondi. Se alguém me fizesse aquela pergunta uma semana antes eu afirmaria que
ser mãe tão nova seria desesperador. Entretanto, ali, depois dos dias intensos que passamos,
envolvida com Álvaro mais do que deveria e com a possibilidade real de haver vida em meu
ventre naquele exato momento, eu não conseguia me imaginar sem isso.
Era um sentimento estranho e confuso.
— Você é nova, Isotta — ele continuou, a mão de volta em meu braço, o mesmo
movimento indo e vindo que antes me acalentava, mas que naquele momento me entristeceu. —
E um filho agora só vai tirar meu foco. Não pela vida que eu tenho, mas pela situação que Nicolo
criou. Enquanto ele for uma ameaça não podemos fornecer munição para nos atingir. Um filho
seria exatamente isso. Nicolo se valeria da minha necessidade de protegê-los. Ele saberia que
vocês seriam o meu ponto fraco, que colocar as mãos em vocês valeria mais do que colocá-las
em mim. E ele não abriria mão disso. Com você eu preciso fazer um esforço a mais para não
perder o foco enquanto o caçamos, porque eu tenho medo de cada passo. Tenho medo de te
deixar e ele te alcançar. Tenho medo de que ele consiga me tirar do caminho e não reste mais
ninguém para impedi-lo de…
Eu virei na direção de Álvaro e o encarei. Ele não disfarçou o quanto aquilo o angustiava e
esse sentimento nos cercou enquanto nos olhávamos. Ele acariciou meu rosto com as costas da
mão sem nada dizer. Um aperto em meu peito fez a primeira lágrima cair. Mas eu não sabia ao
certo quais pontos daquela conversa me comoviam. Se eu chorava de medo, tristeza ou emoção.
Álvaro limpou minhas lágrimas com gentileza. Ele me encarava, analisando minha reação.
Então, segurando minha nuca, ele me puxou para um beijo que me impactou. Apesar da
urgência, não havia um teor erótico na maneira como seus lábios exigiam os meus. Era como se
precisássemos garantir que aquilo não aconteceria. Nem filhos, nem ele deixando de existir, nem
Nicolo me alcançando. Nada daquilo seria real, porque estávamos seguros na bolha que ele criou
e assim permaneceríamos.
***
Brasília era uma cidade bonita. Álvaro me explicou que ela foi projetada e construída para
acolher o governo federal e todos os que trabalhavam para que as esferas funcionassem. Por isso
as ruas bem planejadas e arborizadas, os prédios bonitos, as casas estruturadas.
Álvaro comentou que Brasília cheirava a dinheiro e impunidade assim que descemos do
avião. Eu questionei o motivo daquela afirmação e ele disse: o que você pode esperar de um
lugar com tantos políticos juntos? E eu continuei sem compreender. Não pelo dinheiro. Com
certeza ali decidiam sobre grandes fortunas, nem sempre voltadas para investimentos no povo,
ou destinadas a uma boa administração. Mas por que a impunidade?
Ele sorriu, acariciou meu rosto e disse: eu estou aqui a negócios, Isotta. Deixarei uma
quantia exorbitante de dinheiro e não serei conduzido por uma viatura, nem deixarei a cidade
algemado. Eu nada disse. Não deveria me surpreender por a máfia caminhar de mãos dadas com
a política, então deixei o assunto morrer.
Desta vez ficamos em uma casa própria. Álvaro disse que gostava de manter o imóvel pois
muitas vezes precisava passar mais tempo na cidade e receber pessoas importantes. A mansão era
arejada, com um extenso gramado e mais distante, um rio que brilhava naquele início de manhã.
Ele também me disse que os soldados ficavam nas duas casas adjacentes, menores, como
alojamentos para os empregados, por isso, eu não precisava limitar meus passos, nem ficar presa
ao quarto enquanto ele estivesse fora.
Cansados, dormimos sem desfazer as malas, abraçados, levando para a cama a mesma
sensação que nos dominou no avião. No entanto, eu acordei sozinha quando a tarde iniciava.
Procurei por Álvaro pelo quarto sem encontrá-lo e quando desci em busca de comida, Jordan me
informou que meu marido saiu para seu primeiro compromisso.
Almocei sozinha, ainda que cercada de funcionários e soldados que garantiam a minha
segurança. Sem Álvaro para me distrair, eu voltei ao assunto, revivi cada palavra e me angustiei
mais. Decidida, pesquisei as melhores ginecologistas em Brasília, troquei de roupa e chamei
Jordan.
— Não sei, Isotta — ele disse, as mãos nos bolsos, inseguro. — Não há compromissos em
sua agenda e Álvaro não disse que poderíamos deixar a propriedade.
— Ele também não disse que não podíamos.
— Bem… mas…
— Serei rápida, Jordan. É um prédio comercial, não há riscos.
— Ainda assim.
— Jordan… — Dei um passo na sua direção e diminui o tom de voz. — Eu agendei uma
consulta. É importante.
— Uma consulta? Você está se sentindo bem?
— Estou. Mas preciso ir a esta consulta.
Ele me analisou por um tempo, então, mesmo relutante, concordou.
— Vou reunir alguns soldados. Não vamos demorar, certo?
— Certo.
Quarenta minutos depois entrávamos no consultório vazio. Eu sabia que aguardar para ser
atendida, esperando em uma sala pequena junto com outras mulheres, estando eu acompanhada
por homens que vigiariam a porta e por Jordan que não me deixaria sozinha em nenhum
momento, só criaria desconforto. Então, solicitei à secretária da médica que disponibilizasse
todos os horários daquela tarde para mim, pagando por todas as consultas em espécie. Ela
precisou remarcar algumas pacientes, entretanto, minutos depois da minha solicitação, retornou a
ligação e me confirmou que a médica já estava disponível.
Dra. Mônica Sergei era uma jovem senhora de rosto amigável e palavras bem colocadas.
Ela me ouviu com paciência, sem debochar do meu pouco conhecimento, pontuando algo que
acreditava ser importante para me deixar com o mínimo de dúvidas possível.
— Sua primeira relação aconteceu sem proteção há oito dias — ela repetiu a informação,
digitando em seu computador.
— Sim.
— É complicado definir algo com exatidão, Isotta — afirmou calma, decidida a amenizar o
meu nervosismo. — Se você engravidou neste momento estamos com a contagem mínima para
um exame de beta-Hcg, porém, se você continuou tendo relações sem proteção, pode ter
acontecido depois, o que elimina o nosso prazo.
— Então não consigo confirmar agora?
— Agora? É impreciso. Se você engravidou há oito dias seu corpo já está produzindo o
beta-Hcg e conseguiremos identificar em teste rápido ou no laboratório.
— Um ultrassom não captaria?
— Não, querida.
Sua voz doce fez com que eu sentisse falta da minha mãe. Ela teria me orientado melhor e
me ajudado naquele momento.
— Cinco semanas é o prazo mínimo para uma ultrassonografia.
— Então o que eu faço?
— Eu te aconselho a iniciar o uso de algum método. Seu marido não aceita usar
preservativo?
Meu rosto esquentou e minhas mãos suadas tremeram. Álvaro aceitaria o uso de
camisinha? Com certeza não sem que eu precisasse explicá-lo que fiz aquela consulta sem seu
conhecimento. E eu não queria contar a ele sobre minhas dúvidas, em especial depois daquela
conversa. Eu sozinha me consumia por precisar esperar, colocar Álvaro naquela história faria
com que ele se desconcentrasse.
— Hoje, para o seu caso, a camisinha seria o mais indicado, já que você precisará esperar
oito dias para que o exame seja mais certeiro. Ou, esperar pelo atraso menstrual.
Fiz as contas e identifiquei treze dias para a próxima menstruação. Melhor eliminar as
possibilidades em oito dias.
— Nós conversamos sobre implantes hormonais.
— É uma ótima escolha, mas não para este momento específico. Qualquer ciclo que você
inicie agora precisará de tempo para te proteger. Eu posso te prescrever um anticoncepcional,
mas será da mesma forma. Não há garantia de proteção.
— Entendo — eu disse desanimada.
— Vamos fazer o seguinte: eu deixo uma requisição para o exame beta-Hcg e uma receita
prescrita com indicação de um anticoncepcional muito bom. Você espera os dias necessários e
faz o exame. Quando tiver o resultado, entre em contato para termos uma consulta virtual, já que
você não sabe quanto tempo ficará na cidade.
— Obrigada.
— Não se preocupe — ela disse segurando minha mão em acolhimento. — Pode me ligar
quando tiver alguma dúvida. Se eu não puder te atender de imediato, Ruth, minha secretária, me
avisará e eu retorno assim que possível.
— Obrigada, Dra. Sergei.
Guardei a requisição do exame e a receita de anticoncepcional na bolsa, junto com o cartão
com seus números telefônicos e redes sociais, e deixei o consultório. Jordan esperava por mim na
recepção. Ele nada perguntou, aguardou que eu deixasse o local para falar.
— Álvaro ligou algumas vezes — informou.
— Algumas?
Ele me encarou com receio. Peguei meu celular, lembrando naquele instante que o deixei
no silencioso quando entrei no consultório. Álvaro tentou falar comigo em diversos momentos.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, de repente angustiada.
— Fora o fato de termos saído sem ele saber?
Suspirei. Minha vontade de resolver as coisas do meu jeito levava Jordan para um
problema que só respingaria nele.
— Você disse onde estávamos?
— Sim. Avisei que você insistiu em fazer compras e que não estava comigo porque entrou
em uma loja de lingerie. Isso com certeza fará com que Álvaro aceite a minha distância.
Sorri para meu soldado particular, ainda que estivesse com medo de prejudicá-lo.
— Você está bem?
Meu sorriso desapareceu. Abaixei a cabeça e toda a minha atenção se concentrou em
minha bolsa.
— Estou sim. Não queria preocupar Álvaro. É melhor eu ligar para ele.
— E providenciar lingeries novas. Ele cobrará as provas.
Quando peguei o celular Álvaro ligava outra vez. Eu me afastei um pouco de Jordan e o
atendi.
— Isotta? — ele disse com a voz aborrecida.
— Oi! Desculpe, esqueci o celular no silencioso. — Coloquei o máximo de animação em
minha voz.
— Você saiu?
— Não podia?
O exalar dele chegou ao meu ouvido. Álvaro estava mesmo aborrecido.
— Não sem me avisar — bradou. — Não sem eu revisar o esquema de segurança. Droga,
Isotta!
— Você tem em seu celular a minha localização em tempo real — acusei. — Então não aja
como se eu estivesse fugindo.
— Não aja como uma criança birrenta. Você sabe os riscos e ainda assim é inconsequente.
Suspirei. Não queria aquela briga e odiava quando Álvaro me chamava de infantil por
qualquer motivo.
— Você sabe onde estou — declarei. — E cinco dos seus homens não deixam que eu
tropece sem que se aglomerem para impedir minha queda. Então, tchau, Álvaro! Eu tenho
compras a fazer.
— Isotta…
Desliguei a ligação e voltei para o local em que Jordan me aguardava. Guardei o celular na
bolsa, mantendo-o no silencioso e entrei no elevador que cabia exatamente eu, Jordan e os cinco
soldados que nos acompanhavam. Aquela era a definição de segurança.
— Preciso encontrar uma farmácia — informei a Jordan tão logo saímos para as lojas.
— Isotta, Álvaro vai…
O celular dele tocou. Pelo olhar que Jordan me deu eu soube que era meu marido. Ainda
assim não parei. Caminhei pelo espaço até encontrar a farmácia. Dois homens entraram
mantendo uma distância aceitável. Fui até o balcão e entreguei a receita. O rapaz retornou pouco
tempo depois com uma caixa. Agradeci e caminhei até o local de pagamento quando identifiquei
nas prateleiras diversas caixas de exames de gravidez. Respirei fundo me perguntando se valeria
a pena tentar, então peguei uma com pressa e me choquei com Jordan que aguardava por mim.
Ele viu o que eu peguei e soube que eu não queria que ninguém tivesse visto quando me
encarou e compreendeu meu nervosismo.
— Ele não sabe? — perguntou baixinho, analisando meus olhos repletos de lágrimas.
Neguei com a cabeça, sem condições de manter a conversa. Jordan suspirou, pegou as duas
caixas da minha mão e fez sinal com a cabeça para que eu deixasse o local. Obedeci, não sem
antes vê-lo caminhar em direção ao local de pagamento para realizar a compra.
Caminhei entre as lojas próximas até que Jordan se aproximasse e me entregasse o que eu
buscava. Guardei a pequena sacola na bolsa e entrei em uma loja como ele solicitou, de lingerie.
Eu não queria comprar nada, em especial depois da pequena briga com meu marido, no entanto,
não podia voltar para casa com as mãos vazias, por isso escolhi algumas peças sem me importar
com seus detalhes e realizei a compra.
Jordan nada disse quando eu voltei para o seu lado. Caminhamos em silêncio. Entrei em
mais duas lojas apenas para compor as provas que eu precisava. Comprei uma calça preta e dois
vestidos, sem ter noção se gostava mesmo do que escolhia.
Álvaro surgiu quando finalizei minha última compra. Valentin se aproximou de Jordan e
trocou informações. Acuada, vi meu marido, imponente, lindo, tão cheio de autoridade que
chamava atenção das pessoas que passavam. Ele me encarou com fúria, mas aguardou que todos
se afastassem para falar.
— Você desligou na minha cara — acusou.
— E você não perdeu a oportunidade de me chamar de infantil.
Álvaro soltou o ar, deslizou a mão pelo cabelo, desalinhando os fios molhados, e voltou a
me encarar. Ele cheirava a banho e colônia. Usava roupas joviais, calça jeans e uma camisa de
manga comprida que desenhava seu peitoral, além de uma jaqueta verde escura que ressaltava
seus olhos. Lindo demais para ser ignorado.
— O que aconteceu com o que conversamos?
Meu estômago se contraiu. Tive medo do que Álvaro conhecia daquela minha mentira. Ele
me perdoaria? Não.
— Eu quis fazer compras.
— Compras, Isotta? Você não precisa de nada que valha o risco!
A maneira como ele falou, a voz aborrecida, a certeza de que eu fazia exatamente o que ele
me disse no avião: tirava a sua condição de se manter racional diante daquela situação. Meus
olhos encheram de lágrimas, mas eu não chorei.
Eu queria que tudo fosse diferente. Queria poder dizer a Álvaro que procurei a
ginecologista como ele tanto insistiu. Queria compartilhar com ele o medo de estar mesmo
grávida e a angústia por não poder fazer o exame naquele exato momento. Entretanto, colocar
Álvaro naquele plano o levaria para a mesma situação. Enquanto Álvaro não soubesse se eu
estava grávida, não se preocuparia ao ponto de falhar em sua busca por Nicolo. E se eu estivesse,
se ele estivesse comigo quando eu fizesse o teste, viveríamos todos os medos que ele expressou.
Eu não podia envolvê-lo. Não quando sabia que colocava em risco a sua vida. Se eu não
estivesse grávida, Álvaro não precisaria passar por aqueles dias na incerteza e no medo. Se eu
estivesse… precisaria encontrar o melhor momento para deixá-lo saber.
Puxei o ar, obrigando-me a não chorar e piorar tudo. Mas Álvaro percebeu meu
abatimento. Contrariado, ele retirou as mãos dos bolsos da jaqueta e segurou meu rosto,
puxando-me para junto.
— Você me enlouquece — afirmou, a voz mais suave.
— Desculpe — sussurrei.
Ele beijou minha testa, depois levantou meu rosto e beijou meus lábios.
— Vamos — disse ao segurar minha mão e me puxar para o lado oposto da saída.
— Pra onde? — perguntei confusa.
— Já que estamos aqui, vamos ao cinema.
E ele sorriu daquela forma que mudava tudo. Tão lindo e leve que me fazia esquecer dos
medos, das decisões desastrosas, das mentiras que sustentávamos. Eu só pensava no quanto era
bom estar com ele. E isso também era arriscado.
38
ÁLVARO

— Nós avisamos sobre as fronteiras — Valentin alertou para os homens que conseguimos
emboscar.
Eu, dentro do carro blindado, observava meu soldado fazer o trabalho mais chato que nossa
posição permitia: manter a ordem entre nossos distribuidores, ouvindo toda a conversa pela
escuta.
Em outros tempos eu estaria com eles, meus soldados, armado até os dentes, satisfeito por
estar em ação. Em outros tempos Jean estaria dentro do carro após eu muito insistir para que
permanecesse e tentar convencê-lo de que não podíamos confiar somente nos nossos soldados
particulares, apenas porque não suportava estar naquela posição, de longe observando meus
homens se divertirem com o trabalho.
Aquela era uma missão extra, levada por Aaron até mim após uma longa exibição na mídia
relacionada aos confrontos entre traficantes pelas cidades satélites. Roberto, o traficante que
comandava a parte mais elitizada de Brasília e Goiânia, o mesmo que distribuía nossos melhores
produtos, não se contentava com sua imensa fatia, desta forma, criou um terrível mal estar que
eclodiu em Planaltina, quando chacinas foram orquestradas, e o pior, estupro coletivo quando
conseguiam colocar as mãos em qualquer mulher relacionada a seus inimigos.
E isso nós jamais aceitaríamos.
Houve uma época, já tão distante que parecia não ser real, em que fazíamos vistas grossas.
Para Joel, puniamos com mais eficiência quando o estupro era permitido. Essa era a pior parte do
nosso trabalho. Eu odiava Joel por muitos motivos, esse fazia parte dos cinco primeiros. Mas
quando Jean assumiu, tudo mudou. Meu melhor amigo podia comandar um esquema de máfia
com milhares de defeitos sociais, entretanto, falhas como aquela pesavam em suas decisões. O
castigo era um só, sem exceções.
— E estamos respeitando — Roberto respondeu cheio de marra. — O que saiu nos jornais
não é verdade. Eles sabiam que atrairiam a Ndrangheta até aqui.
Eu me mexi incomodado, fazendo com que o soldado ao volante olhasse rapidamente para
trás. Muitas coisas me incomodavam naquela conversa. Primeiro, precisei ficar por tempo
demais naquele espaço estrategicamente vazio entre o Plano Piloto e a primeira cidade satélite,
aguardando que meus soldados levassem os cinco homens, um por um.
Segundo, Roberto dava nos meus nervos. Ser o traficante que saciava a elite de Brasília e
Goiás o colocava em uma posição que acreditava ser privilegiada. O cara não abaixava a cabeça,
agia como se nos fizesse um favor. Naquele final de tarde a arrogância do filho da puta cruzava
uma linha perigosa em mim.
E o terceiro ponto e talvez o mais importante, era o mesmo que sempre me atormentava,
independente de em qual missão eu estivesse: Isotta.
Cinco dias se passaram desde que descobri em sua bolsa o exame rápido de gravidez, uma
caixa de anticoncepcionais e uma guia de requisição para o exame de sangue. Nunca me
imaginei como um homem que confiscava a bolsa da esposa para descobrir seus segredos e segui
com esse princípio até o dia em que o celular dela tocou inúmeras vezes dentro da bolsa, sem que
Isotta interrompesse o banho para identificar qual a urgência da ligação.
Eu entrei no quarto e estranhei as ligações seguidas. Avisei a ela sobre o aparelho, mas
Isotta, entretida com o banho, ignorou. Minha intenção era apenas olhar o visor e decidir se
interrompia o momento dela ou deixava a ligação encerrar. E neste momento encontrei a verdade
sobre sua ida ao prédio comercial.
Como marido e parte interessada nesta questão, eu poderia ter questionado Isotta quanto ao
que encontrei. Contudo, o silêncio dela teve o mesmo efeito em mim do que uma traição. Eu não
entendia Isotta, não encontrava o motivo para que ela escondesse de mim a ida a uma
ginecologista, uma vez que discutimos inúmeras vezes o assunto.
Então cheguei a conclusão de que ela me contaria em algum momento daquela noite. O
que não aconteceu. Dormi incomodado, aborrecido, com a vontade de confrontá-la presa na
garganta. Pela manhã, acreditei que ela abordaria o assunto, dividiria comigo suas dúvidas e
medos, mas Isotta não apenas manteve o segredo como dissimulou toda e qualquer questão
relacionada a uma possível gravidez.
Desta forma eu me envolvi em um espiral que nunca acabava. Conferir a bolsa dela todas
as noites me matava. O teste permanecia intacto, a guia para o exame mantinha-se dobrada e
reservada no mesmo bolso. Apenas o anticoncepcional desapareceu.
Isotta me frustrava. Eu sentia o muro que se estendia entre nós a cada nova constatação, a
cada hora que se passava sem que ela me revelasse a verdade. E eu a deixava mentir, fingir que
nada daquilo acontecia. Nem mesmo confrontar Jordan eu podia fazer, uma vez que não desejava
revelar a minha descoberta.
Pelo mesmo motivo não fui à procura da médica que ela consultou. Em algum momento
Isotta teria que me dar aquela resposta, eu só não sabia se existiria alguma parte de nós quando
acontecesse.
— Não há como desconsiderar tudo o que temos — Valentin disse ainda calmo, ciente de
que eu ouvia a conversa e apenas eu poderia decidir como esta terminaria.
Soltei o ar, incomodado com tudo. Porém, ainda que tivéssemos todas as provas contra os
cinco que conseguimos colocar as mãos, não poderíamos agir de maneira imprudente. Apenas
um deles sobreviveria. Eu ainda não havia identificado quem. Dos cinco relacionados aos
últimos eventos, um deles não participou das atrocidades. Qual?
— Faça com que eles entreguem tudo — avisei a Valentin pelo rádio.
Imediatamente os soldados agiram. Em pouco tempo um deles contaria a verdade e o que
deveria sobreviver acreditaria que o deixamos para que todos soubessem o que fazíamos quando
nossas ordens eram desobedecidas.
Cansado daquela merda, desviei os olhos e encarei a imensidão quase desértica diante de
nós. Neste momento, meu celular vibrou. O nome do Jordan piscava indicando o autor da
ligação. Fiquei tenso de imediato. Deixaríamos Brasília naquela madrugada e seguiríamos até o
Mato Grosso, uma vez que a necessidade de encontrar aquele grupo nos prendeu por tempo
demais ali. Isotta tinha apenas uma obrigação: arrumar as malas e estar preparada.
— Jordan — resmunguei.
A ideia de ter um soldado que mentia para mim para proteger minha esposa, mantinha-se
como pedra em minha garganta. Por um lado Jordan era um traidor, uma vez que devia
obediência a mim e não a Isotta. A ida dela à ginecologista deveria ser reportada, não escondida
ou mascarada. Por outro lado, diante de tudo o que vivíamos, saber que Isotta possuía um
soldado particular fiel a ela, me deixava menos tenso. Por isso eu não decidia o que fazer com
ele.
— Álvaro — ele disse com a voz tensa. — Tem algo de errado com Isotta.
Olhei para a frente. Meus soldados ainda usavam a força para arrancar as informações dos
homens e aquilo poderia continuar até a madrugada.
— O que houve?
Jordan limpou a garganta e respirou fundo antes de falar.
— Ela pediu para ir a um hospital — ele revelou.
— Hospital?
Perdi todo o interesse na cena que se desenrolava à frente, voltando minha atenção para o
que Jordan dizia.
— O que ela tem?
— Não sei, Álvaro.
— Como não sabe, porra?
— Ela saiu do quarto nervosa, perguntou por você, voltou e quando saiu estava chorando.
— Passe o telefone para ela.
— Eu pedi para que te ligasse, mas ela se recusou. Disse que queria ir ao hospital e que
não deveríamos te preocupar. Eu disse que providenciaria tudo, mas resolvi te alertar antes.
— Puta que pariu!
Respirei fundo, tentando obter a melhor informação sobre hospitais em Brasília.
— Leve-a para o Sírio Libanês — ordenei, a cabeça procurando os nomes que eu buscaria
para que a passagem de Isotta fosse o mais discreta possível, contudo, com a melhor qualidade
encontrada. — Eu encontro vocês lá.
— Certo.
— Jordan?
— Sim?
— É melhor você me contar toda a verdade desta vez.
Ele fez um breve silêncio, tomando consciência de que eu já sabia sobre tudo o que ele não
ousou me contar.
— Não se preocupe — Jordan disse com a voz apreensiva.
Desliguei o telefone e encarei a ação do lado de fora. Acionei o rádio, decidido a acabar
com tudo de uma vez.
— Valentin?
Meu soldado particular não me respondeu, apenas inclinou um pouco a cabeça para o lado,
para que eu soubesse que ele tinha me ouvido.
— Acabe logo com isso.
Mais uma vez ele nada disse. Sua cabeça fez um leve meneio, concordando com a ordem.
Ninguém se atreveu a contestar minha decisão, nem eu busquei entender como ele selecionou
quem sobreviveria. Em alguns minutos havia quatro corpos estirados no chão e um homem com
ferimentos que fariam com que ele nunca esquecesse quem mandava ali.
Meus soldados entraram nos carros, Valentin sentou ao meu lado, observando a dinâmica
dos outros veículos que seguiriam para manter minha segurança.
— Alteramos a rota? — ele perguntou tão logo verificou o sistema do carro.
— Vamos para o hospital Sírio-Libânes. Isotta não se sentiu bem.
Valentin nada disse, e no silêncio do veículo eu me perguntava se havia outro motivo para
minha esposa precisar de atendimento médico sem que eu me envolvesse nisso. Não encontrei
nenhuma razão além da mais óbvia, em especial por ser uma emergência. Saquei o celular e
iniciei as ligações que precisava fazer antes que Isotta desse entrada no hospital.
ISOTTA
Álvaro estava estranho e esse detalhe não passou despercebido por mim. Ainda que
sexualmente continuássemos intensos, havia uma separação antes e após o ato. Como ele nada
dizia, acreditei que estava cansado devido ao trabalho que exigia a sua atenção com mais afinco
nos últimos dias. Pouco nos víamos e quando acontecia, ele falava pouco.
Diversas vezes eu enxerguei a luta que ele travava antes de me tomar em seus braços e me
consumir até a exaustão. Então ele adormecia, ou eu, e as dúvidas ficavam para o outro dia, ou se
perdiam quando eu acordava e não o achava na cama.
Assim seguimos por cinco dias.
Preocupada, iniciei o anticoncepcional conforme a orientação, contando os dias para
permitir que a menstruação chegasse e, após isso, poderia pensar em um método que não
exigisse de mim um compromisso diário.
Ainda pesava nas minhas costas o fato de eu estar me medicando sem compartilhar aquele
assunto com meu marido, e confesso que em muitos momentos eu quis abordar a situação, sem
nunca encontrar abertura da parte dele. Então eu segui.
Todos os dias eu pensava no teste de gravidez em minha bolsa e na guia de exame
solicitado pela Dra. Sergei, mas não tinha coragem de fazê-los. Depois da situação que criei ao ir
escondido à ginecologista, não conseguia me imaginar repetindo o processo para fazer o exame
de sangue, nem queria viver a dúvida de um resultado falso do teste rápido.
Preferi contar com o tempo. Se em alguns dias minha menstruação não desse sinal, eu
poderia comentar com Álvaro e fazer os passos corretos, desta vez com o conhecimento do meu
marido.
Naquela tarde, sozinha na casa imensa que ainda ocupávamos em Brasília, recebi o e-mail
de Duci com todas as universidades possíveis para uma dinâmica segura. Ela fez um excelente
trabalho ao detalhar os cursos, as cargas horárias e até mesmo de que maneira conseguiriam me
manter segura enquanto eu estudava.
Eu analisava as opções quando meu telefone tocou e o nome de Miguel apareceu na tela.
Apesar do medo que eu sentia devido a inserção da minha família na busca por Nicolo, eu sabia
que meu irmão não me ligaria com informações que deveriam passar primeiro por Jean e Álvaro.
Por isso sorri para o celular antes de atender.
— Oi, irmão mais maravilhoso do universo.
— Senti falta da sua alegria — Nicolo falou do outro lado.
A voz rouca e baixa lançou fiapos de gelo pelas minhas veias. Olhei outra vez para a tela,
certificando-me de que atendi mesmo uma ligação do número do meu irmão. Sim, era o telefone
de Miguel, então…
— O que você fez? — Perguntei horrorizada com a ideia.
— O que acha que eu fiz, Isotta?
Lágrimas rolaram instantaneamente pelo meu rosto. Meus olhos buscaram por Jordan, sem
encontrá-lo. Minhas mãos tremiam e eu senti o abalo esquentar minha garganta e revirar meu
estômago.
— Se você machucou o Miguel…
— Eu te disse, não será tão fácil se livrar de mim.
— Eu te odeio! — gritei. Ele riu.
— Manteria mais pessoas vivas se me odiasse sem se rebelar. Eu avisei que não facilitaria.
Você tirou tudo de mim, agora vou tirar tudo de você.
— Nicolo… — solucei, tomada pelo choro, sem conseguir dominar minhas emoções. —
Eu vou matar você.
— Eu estou contando com isso. Estou atrás de você, Isotta. Em todos os lugares. Nas
sombras. Quando menos esperar, eu te alcanço.
Ele desligou assim. Desesperada, liguei para o número do meu pai, mas assim que entrou
na caixa postal, corri para o quarto, entrei no banheiro e vomitei. O tempo todo eu pensava em
Miguel, no que aconteceu. Eu precisava avisar a Álvaro. Levantei com pressa e foi quando eu vi
o sangue.
Desesperada, acompanhei o filete que escorria pela minha coxa esquerda. O que era
aquilo? Passei a mão, me certificando de que era mesmo sangue. Então senti a primeira pontada,
não absurda, nem desesperadora. Uma cólica incomoda, leve, mas constante, fez minha mente
perder um pouco do ritmo. Retirei a calcinha e vi a mancha parecida com a de menstruação. No
entanto, nunca foi daquela forma. Só podia…
Voltei para o quarto, procurei o cartão da Dra. Mônica Sergei, peguei o celular sobre a
cama e me tranquei outra vez no banheiro. Disquei o número. Os três toques reverberavam em
minha mente como badaladas em um sino, estando eu dentro dele. Minha cabeça pulsou o início
de enxaqueca.
— Sim?
— Dra. Mônica? É Isotta De… Isotta Kuhn — corrigi sem saber como ainda conseguia
dizer algo coerente.
— Isotta. Fez o exame?
— Não. Doutora… eu… comecei a sangrar — revelei com a voz embargada que logo
voltou ao choro intenso.
— Oh, querida — ela sussurrou. — Pode ser sua menstruação.
— Não está na data — eu disse com pressa. — Ainda faltam muitos dias.
— Eu entendo. Como é o sangramento?
— Intenso para um primeiro dia de menstruação.
— Você sente dor?
— Um pouco de cólica e dor de cabeça.
— Fique calma, Isotta. Com tão pouco tempo não podemos levantar a hipótese de um
aborto. Mas se te fará ficar mais tranquila, vá para um hospital e peça para que façam um teste.
Enquanto você estiver sangrando é possível identificar se sofreu ou não um aborto. E não
podemos descartar a hipótese de que seja mesmo a menstruação, você está tensa, pode acontecer,
ou até mesmo a implantação no útero do óvulo fecundado.
— Tanta coisa — gemi, ainda com o choro abundante.
— Eu sei, querida. Vá para um hospital. Ligue quando chegar para me dizer onde está. Eu
irei em seguida.
— Obrigada — murmurei.
Desliguei o celular e encostei a testa no chão gelado do banheiro. Ali, ainda que minha
situação exigisse uma ação rápida, chorei todo o meu desespero. Então fiz o que achei adequado
para aquele momento, liguei outra vez para meu pai. Ele atendeu de imediato.
— Isotta?
— Pai? — Chorei sem controle. — Pai?
— Isotta, o que aconteceu?
— Nicolo… ele… pegou o Miguel. — Minha voz quase não saiu.
— O que está dizendo?
— Ele me ligou do número do Miguel, pai. Ele… ele machucou meu irmão.
— Isotta, não! — Meu pai exclamou com a voz firme. — Ninguém machucou o Miguel.
Seu irmão está comigo.
Encarei a parede sem acreditar no que ele dizia. Miguel estava bem? Mas então como
Nicolo conseguiu me ligar do número dele?
— Isotta? — meu irmão chamou.
— Miguel? — E eu me perdi outra vez em choro. Um misto de alívio e desespero. —
Como ele conseguiu?
— Nicolo te ligou do meu número? Tem certeza?
— Sim. Eu não atendo números desconhecidos. Era o seu número, Miguel.
— Ele clonou meu chip — ele disse provavelmente para meu pai. — Filho da puta! Isotta,
você está bem?
Olhei para minhas coxas e constatei mais sangue. Fechei os olhos e me perguntei o que eu
poderia dizer a eles?
Nada.
— Só estou assustada.
— Onde está Álvaro?
— Trabalhando.
— Você contou a ele?
— Não. Eu… eu liguei para o papai.
— Fique calma, querida. Precisamos deixar o Jean saber disso, e o Álvaro também.
— Você… você pode contar a eles? — pedi com a voz cansada.
Eu queria deitar e dormir um pouco, esquecer aquela loucura, no entanto, não podia.
— Claro, querida — Miguel disse daquela forma que me acarinhava. Eu sentia falta dele.
Sentia falta da mamãe. Ela me ajudaria naquele momento.
— Obrigada — sussurrei.
— Tem certeza de que está bem?
— Sim. Eu vou beber um copo com água e me acalmar.
— Certo. Ligo mais tarde. Amo você!
— Também te amo.
Miguel desligou, eu levantei, procurei por um absorvente diário, troquei de roupa e deixei
o quarto já com tudo o que eu precisava na bolsa. Jordan estava na sala, com o rosto preocupado.
— Jordan — eu disse com pressa. — Preciso que me leve ao hospital.
— Aconteceu alguma coisa?
Novas lágrimas caíram, eu as enxuguei.
— Sim. Muitas coisas, mas eu preciso ir ao hospital.
— Não se sente bem?
— Jordan, por favor…
— Isotta, eu preciso saber o que dizer a Álvaro.
— Ele não voltou, então não podemos fazer com que ele perca o foco em sua missão.
— Ainda assim… — ele tentou.
— Eu preciso mesmo ir — supliquei. Ele hesitou, mas concordou com um aceno de
cabeça.
— Vou providenciar sua saída.
Controlando o choro, aguardei que meu soldado particular deixasse a sala para abandonar a
necessidade de manter as aparências. Sentei no sofá e cheguei a cogitar ligar para Álvaro,
entretanto, não consegui. Então Jordan voltou e eu preferi primeiro ouvir o que o médico me
diria, depois envolveria meu marido naquela história. Ele já teria muito o que pensar quando
soubesse o que Nicolo aprontou daquela vez.
39
ÁLVARO

Por causa do trânsito caótico do final de um dia que se encerrava, cheguei no hospital
muito tempo depois de Isotta. Jordan me manteve informado. A entrada dele, assim como a sua
permanência diante da porta do quarto que acolhia minha esposa, se deu por causa da influência
que meu cargo exercia. Naquele momento Isotta era mantida isolada, atendida apenas por um
punhado de profissionais escolhidos para que ninguém além deles tivessem acesso ao caso.
Mas nem isso me acalmou. Enquanto eu era mantido dentro de um carro, impossibilitado
de avançar, recebi a ligação do Jean e foi o suficiente para romper a minha paz.
— Jordan não está ciente do ocorrido? — Jean perguntou.
— Se ele soube de algo não me informou — resmunguei.
De repente fiquei ainda mais tenso. Nicolo poderia estar em qualquer lugar, próximo de
nós, prestes a dar aquele passo.
— Isotta se sentiu mal e pediu para ir ao hospital — revelei. — Deve ser por isso.
— Ela se sentiu mal?
— Eu não sei te dizer, Jean. O celular dela continua na caixa postal. Estou preso nesse
inferno de trânsito e agora mais puto da vida com essa ameaça do Nicolo, e tudo o que Jordan me
disse foi que ela faria alguns exames e que sete soldados mantinham a segurança.
— Vou resolver isso, Álvaro.
— O que você vai fazer?
— Primeiro vou te livrar desse trânsito. Já solicitei que nosso pessoal descubra de onde
partiu a ligação. Miguel afirmou que o número foi clonado. Nicolo teve acesso às conversas
particulares. Ou ele buscava descobrir como a Camorra estava lidando com a situação, ou está
reunindo provas contra Miguel.
— E pra quê ele quer reunir provas contra Miguel?
— Pra convencer quem ele precisa para apoiá-lo.
— Sim, mas por que contra o Miguel e não contra o Juan?
— Porque Juan confirmou que, devido às circunstâncias, Miguel é o seu sucessor.
— Entendi. Eu acredito que ele deseje as duas coisas.
— Eu também. Mas não pense nisso agora. Continuarei atrás do Nicolo. Vá para o hospital
e cuide de Isotta.
— Que merda, Jean!
— É. Eu sei.
O tom utilizado por meu primo me passou a ideia de conforto. Jean sabia como eu me
sentia, ainda que eu não conseguisse entender muito bem toda aquela intensidade. De fato, não
deveríamos amar. Não havia harmonia entre o amor e a vida que levávamos. Sozinhos éramos
destemidos. Matar ou morrer era só uma questão de tempo e hora. Amando restava apenas o
medo e morrer deixava de ser uma opção.
Porra, Isotta! O que você fez?
Após avançarmos a uma velocidade lenta e quase inexistentes, consegui desviar do tráfego
ao receber a oferta do ministro para utilizar seu helicóptero particular, o qual me levaria até o
heliporto do hospital. Assim, poucos minutos depois, eu, Valentin e mais um soldado,
desembarcamos com toda uma equipe para nos direcionar até Isotta.
Caminhamos a passos largos sem encontrar qualquer barreira que me impedisse de chegar
logo onde Isotta estava. Jordan guardava a porta fechada em um corredor vazio. Ele me encarou,
sério, quando me aproximei disposto a destruí-lo.
— Por que não me contou que Nicolo ligou para Isotta? — rosnei.
Jordan, apesar de não se afastar ou tentar se defender da minha fúria, me lançou um olhar
confuso, como se aquela pergunta estivesse fora do contexto.
— Responda, porra!
— Nicolo ligou? — ele perguntou, ainda confuso.
— Você não estava com ela?
— Estava na casa, como costumo ficar, Álvaro. Isotta conferia alguma coisa no
computador quando eu a deixei. Quando voltei, ela retornava para a sala afirmando que precisava
vir ao hospital.
— Ela não te disse nada?
— Não. Eu te contei tudo o que sabia. Isotta estava bem e, de repente, não estava mais.
— E o que o médico disse até agora?
— Bom… — Ele olhou para Valentin e o soldado, próximos a mim. — Até onde eu sei,
ela teve um sangramento.
— Sangramento?
Puta merda!
Puxei o ar com força, controlando a raiva.
— Você tem mais alguma coisa para contar, Jordan?
— Não, senhor.
Encarei o soldado particular da minha esposa. Isotta conseguiria enrolar Jordan ao ponto de
impedi-lo de saber sobre o anticoncepcional e o teste rápido de gravidez? E junto com a raiva
veio também a razão. Se fosse da vontade de Isotta, sim, ela seria capaz de ludibriar qualquer
pessoa.
— Saia da minha frente — eu disse, a cabeça fervendo em um turbilhão de pensamentos.
Isotta teve um sangramento. Ela estava grávida? Ela sabia? A ligação de Nicolo provocou
aquela situação?
Abri a porta do quarto escuro, iluminado apenas pela lâmpada de apoio, isolada em um
ponto distante. Na cama hospitalar, Isotta se manteve imóvel, encolhida, virada para o lado
oposto. Eu me aproximei e vi que ela encarava a lâmpada acesa no canto do quarto. Ela não me
olhou nem mesmo quando me posicionei de maneira a ser impossível não perceber a minha
presença.
— Estou aguardando o resultado do exame — avisou, a voz baixa e rouca indicando o
choro.
Isotta fungou e fechou os olhos. Uma parte da minha ira perdeu a força. Era impossível
acusá-la ou exigir qualquer coisa diante da sua fragilidade. Mudei de posição e parei à sua frente.
— Por que não me ligou?
Tentei ao máximo não colocar meu aborrecimento na voz, mas Isotta me conhecia o
suficiente para saber que aquele comportamento me deixaria nervoso.
— Eu não… — Ainda sem me encarar, uma lágrima escorreu até a ponta do nariz. Ela não
se moveu para limpá-la. — Não consegui — afirmou um pouco mais baixo.
— O que aconteceu, Isotta?
— Meu pai te ligou?
— Jean.
Ela concordou. Novas lágrimas escorreram sem ganhar nenhuma reação dela. Aquilo me
angustiava. Nunca vi Isotta tão devastada, fragilizada.
— Nada aconteceu a Miguel — eu disse como se precisasse consolá-la.
No fundo eu sabia que me protegia. Desfazer a dor da minha mulher como se esta estivesse
focada na possibilidade de Nicolo ter matado seu irmão era, na verdade, uma forma de não
encarar a minha dor. Nicolo foi a ação, a causa. Isotta estar em um hospital após um sangramento
era a reação, a consequência. E esta mergulhava em algo mais profundo. Tão devastador que eu
sentia aquele abismo que crescia aos poucos, à medida que ela mantinha segredo de mim, se
consolidar.
— Eu sei — ela murmurou quase sem emitir som.
Com as mãos nos bolsos eu aguardava. Incapaz de dar aquele passo, de confrontá-la, de
escancarar a porta e deixar que o problema transbordasse de uma vez por todas. Então a porta
abriu, um homem de jaleco entrou acompanhado de uma mulher bem vestida.
— Boa noite — eles cumprimentaram.
O médico me olhou com surpresa, depois conferiu Isotta sobre a cama, ainda sem reagir.
— O senhor é o marido? — ele perguntou.
— Sim. Álvaro Kuhn.
— Ótimo. Eu sou o Dr. Paulo Bonato, clínico responsável pelo atendimento da sua esposa.
Esta é a Dra. Mônica Sergei, ginecologista solicitada pela Sra. Isotta.
Rapidamente olhei para Isotta, sem encontrar nela qualquer vontade de se explicar. Isotta
não me olhou, não se mexeu. A Dra. Mônica, ignorando o clima estranho entre nós, caminhou
até Isotta, abaixando-se para que pudesse olhá-la.
— Isotta, estamos com o resultado do exame — ela disse com calma. A voz firme,
contudo, doce, gentil. — Como você está se sentindo?
— Não sei — minha esposa respondeu ainda com a voz tão baixa que se não estivéssemos
em total silêncio não a ouviríamos.
— Ainda sente dor?
Isotta negou com a cabeça.
— E o sangramento? Continua?
— Um pouco — ela informou.
— Eu acho que vocês precisam me explicar o que houve? — Interrompi a interação entre
elas.
Eu precisava saber o que aconteceu, ainda que significasse adentrar de uma vez por todas
naquele inferno. A médica levantou e me encarou, mas foi o Dr. Paulo quem iniciou aquela
conversa.
— A senhora Isotta deu entrada no hospital com cólica, dor de cabeça e sangramento
vaginal — ele relatou de forma profissional.
— Ela menstruou?
Por um segundo eu quis acreditar que aquela era a questão. Podia ser o período menstrual
de Isotta e, ainda que não fosse, a situação de estresse vivenciada poderia antecipar o processo.
Em muitos casos a menstruação era acompanhada de cólicas, enxaqueca, além de deixar a
mulher mais sensível. Contudo, algo dentro de mim pulsava com a certeza de que mais uma vez
eu tentava me enganar, descobrir uma forma de não permitir que a bolha que criei ao nosso redor
estourasse.
— Ainda que houvesse esta suspeita, a senhora Isotta informou que havia a possibilidade
de estar grávida — ele informou e de imediato senti meus músculos enrijecerem. — Então
solicitei dois exames para que pudéssemos confirmar ou excluir a hipótese de um aborto
espontâneo.
Eu nada disse. Não conseguia. Assim como não conseguia olhar para Isotta.
— E então?
— A sua esposa sofreu um aborto espontâneo — comunicou de forma rápida e segura.
Ao fundo ouvi o choro baixinho de Isotta, no entanto, era a minha vez de não ter reação. O
médico me analisou por um tempo, então voltou os olhos para os exames em sua mão. Eu ouvia
a médica sussurrar algo para Isotta. Alguma coisa crescia dentro de mim, tão forte que me
assustava.
— É mais comum do que as pessoas acreditam, ocorrer um aborto espontâneo na primeira
gestação, em especial, nos primeiros momentos, ou seja, antes da vigésima segunda semana —
Dr. Paulo começou a explicar. — A Dra. Mônica informou que caso houvesse de fato uma
gestação, era recente demais para causar danos consideráveis. Se o senhor se sentir confortável,
podemos manter a sua esposa aqui para acompanharmos o sangramento e a cólica, mas, pelo que
analisamos, não ocorrerá nenhuma complicação.
Ele aguardou que eu falasse mais uma vez, no entanto, eu não conseguia.
— No caso de Isotta, é recomendável uma semana de repouso — a médica pontuou,
intrometendo-se. — Nos dois primeiros dias ela não pode consumir álcool e por duas semanas
não recomendamos relações sexuais. Eu acredito que o sangramento cessará logo, assim como a
dor, mas recomendo, se o Dr. Paulo estiver de acordo, que ela faça uso de um antiinflamatório
AINE.
— Sim, acho apropriado — o médico concordou. — Posso prescrever as opções quando a
senhora Isotta tiver alta. Enquanto ela estiver aqui faremos a medicação intravenosa tanto para
evitar uma infecção quanto para aliviar a cólica.
Assenti sem conseguir assimilar aquela conversa. O tempo todo eu lutava contra algo que
ameaçava explodir em mim, e temia por Isotta. Não apenas pela sua situação delicada, mas pela
raiva que vibrava em meu corpo e que encontrava nela um alvo.
— Ficaremos o tempo que o senhor achar necessário — eu disse ao médico. — Agora, por
favor, eu preciso… de um tempo com a minha esposa.
O médico concordou de imediato, dirigindo-se a porta após avisar que solicitaria os
medicamentos para Isotta, mas a médica sussurrou algo para minha esposa e deixou o quarto sem
se despedir de mim.
Assim que eles saíram, fechei os olhos, ainda tentando compreender o que eu sentia. Havia
dor e mágoa, raiva e medo, tristeza e culpa, tudo ao mesmo tempo, misturando-se em uma
confusão que não cessava, não encontrava uma linha harmônica, não me permitia pensar.
— Álvaro? — ela chamou com a voz chorosa.
Não consegui olhá-la. Eu não podia.
— Você sabia — acusei.
— Não.
— Esteve com a médica. Pediu o exame. Não minta pra mim, Isotta! — rosnei, a voz
elevada, a explosão em um ponto próximo, quase me alcançando.
— Eu… não quis te aborrecer — ela confessou. — Não quis que se preocupasse enquanto
ainda não havia nenhuma certeza.
— Quantas vezes… quantas vezes eu te pedi para que fizéssemos isso? Em quantos
momentos levantei a hipótese e você desfez da situação?
— Eu não… Álvaro, por favor!
— Eu te disse que precisávamos saber porque no meio do fogo cruzado que nos
encontramos, se você estivesse grávida eu precisaria te proteger exatamente contra isso — gritei,
incapaz de controlar o que eu sentia. — Mas você ignorou. Agiu sozinha. Mentiu para mim e a
sua inconsequência matou nosso filho.
— Não! — ela chorou, completamente arrasada. — Eu não sabia. Eu juro que não sabia.
— O tempo todo havia um exame rápido em sua bolsa. O mesmo que você ignora há cinco
dias. E não me diga que é idiota ao ponto de acreditar que no meio dessa merda toda, Nicolo não
conseguiria te afetar ao ponto de causar um aborto.
— Ai meu Deus! — ela soluçou.
Em algum lugar dentro de mim havia o sentimento contrário a todas as acusações que eu
não conseguia evitar que saíssem da minha boca. Em algum lugar no fundo da minha
consciência, havia a necessidade de confortá-la, de colocar o maior peso em Nicolo, de me
preocupar em não tornar tudo pior. Porém, a explosão que me dominava, que circulava por
minhas veias e me alimentava com a mais pura raiva só conseguia enxergar a mentira, o fato de
Isotta não ter confiado em mim.
Ela não confiou em mim quando Nicolo ligou, não confiou quando descobriu o
sangramento, não confiou quando decidiu encarar aquela possível gravidez sozinha.
E eu a odiava tanto naquele momento que não conseguia deixar de lado o peso. Eu
simplesmente não conseguia.
— Eu não queria… não sabia… — ela murmurava entre uma crise de choro e outra.
— Você sabia — acusei.
— Não.
— De agora em diante, não confio mais em você, Isotta.
— Álvaro…
— Acabou.
— O quê?
— Você não terá mais um celular — determinei. — Não terá acesso a internet.
— Álvaro?
— Não terá liberdade para sair de casa. Toda e qualquer situação deverá passar por mim
primeiro — continuei. — E, depois que eu matar Nicolo, você voltará para a Espanha.
Só neste momento eu a olhei. Isotta, sentada na cama, com os olhos vermelhos e o rosto
molhado, me encarava de volta. O sofrimento que eu acreditei que veria fora substituído por uma
frieza que não imaginei enxergar nela. Ela concordou, os lábios formando uma linha fina.
— Que bom que não estou mais grávida — ela disse tão cheia de fúria quanto eu. — Seria
horrível estar presa a você pelo resto da vida.
Eu quis rebater. Tinha em mim raiva o suficiente para machucá-la um pouco mais.
Contudo, a frieza de Isotta me abalou, alimentando a mágoa que eu sentia.
Machucado de forma a me tornar um perigo para Isotta, abri a porta do quarto e deixei o
local com pressa. Valentin e o soldado me seguiram. Jordan continuou na porta, aliviando a
minha consciência e me permitindo não pensar na segurança dela por um tempo.
40
ÁLVARO

Jean me encontrou no escritório quando quase uma garrafa inteira de uísque começou a
amenizar a minha dor. Nós nos encaramos. Eu sabia que não estava com uma boa aparência.
Bêbado, o ambiente tomado pela fumaça dos tantos cigarros que me permiti fumar, ainda usava a
mesma camisa e calça que escolhi quando deixei aquela casa pela manhã. Sem nada me dizer, ele
caminhou até o bar e se serviu de uma dose.
— Não precisava ter vindo — comentei, encostando o copo na testa para encontrar foco.
— Eu sei. Mas vim mesmo assim.
— Como está Heidi?
Jean sentou no sofá ao lado, inclinou o corpo para apoiar os braços nos joelhos, o copo
entre as mãos sem que ele desse um único gole. Ele me avaliou por um tempo.
— Ela não sabia que estava grávida, Álvaro.
Bufei, sem qualquer vontade de ter alguém advogando a favor de Isotta.
— Você me disse que eu deveria casar com ela. Eu obedeci. Você me disse que Isotta não
era um problema e eu acreditei. Você me pediu para que ela viesse comigo e eu, mais uma vez,
obedeci. Não me diga para perdoá-la, porque eu vou mandar você se foder, Jean.
Ele riu um pouco, mantendo os olhos nos meus.
— Você a ama, irmão.
Engoli o gemido de lamento que por pouco não escapou da minha garganta e bebi todo o
conteúdo do meu copo de uma vez só. Levantei, cambaleante, em busca de outra dose. Jean não
tentou me impedir. Ele sabia que eu precisava passar por aquele processo. Vivenciar o luto por
tudo o que perdi naquela noite.
— Paulo já dizia que melhor seria se o homem não conhecesse a mulher.
— E você nunca foi fã da Bíblia.
— Porque ela diz mais verdades do que consigo suportar.
Voltei para a poltrona e me deixei cair sobre ela, derramando um pouco do uísque em
minha camisa já arruinada. Jean deu um tapinha no meu joelho e finalmente bebericou sua
bebida.
— Ela estava grávida — sussurrei. — Porra!
— Sei como é. Isotta pelo menos ficou. Heidi foi embora com meus filhos no ventre e por
meses se arriscou em tecidos acrobáticos porque se recusava a me contar a verdade.
Desta vez ele bebeu com vontade, depois acendeu um cigarro e se encostou no sofá.
— Perdi as contas de quantas vezes quis matar Heidi — revelou. — Você sabe o quanto
ela me enlouqueceu.
— Porque ela acreditava que você matou Giullia e Theo. Ela tinha medo.
Acendi outro cigarro, encostei na poltrona e fechei os olhos.
— Isotta nunca teve motivos para ter medo de mim — aleguei. — Eu dei a ela tudo o que
ela queria. Atendê-la nos jogou nessa guerra contra Nicolo e nem isso me fez recuar. Eu… —
engoli a emoção que ousava se apresentar. — Eu deveria me manter longe dela, mas Isotta não
quis e mais uma vez atendi as suas vontades.
— E se apaixonou.
— E me apaixonei — confessei.
Por algum tempo ficamos em silêncio, apreciando o fumo e a bebida. Trancado naquele
escritório a ira cedeu lugar para a tristeza. Eu pensava em Isotta sozinha naquele hospital em um
dia tão difícil, ao mesmo tempo, tinha consciência de que não conseguiria ficar com ela. Não sem
novas acusações, sem uma nova briga.
— Ela não sabia que estava grávida — Jean repetiu, quebrando o silêncio confortável entre
nós.
— Ela tinha o exame na bolsa — fortaleci minhas defesas. — Tinha uma requisição para
fazer o de sangue. Isotta não fez porque teve medo de descobrir e precisar enfrentar a mentira.
— Álvaro, você também sabia que o exame estava lá. Isotta errou em esconder de você que
procurou uma ginecologista, em não te contar que também levava em consideração a
possibilidade. Mas, cara, você sabia que o exame estava lá e não fez nada.
— Jean…
— Você sabia que ela podia estar grávida, sabia que Nicolo estava à espreita, que um único
movimento dele poderia prejudicar a gravidez, e o que você fez?
— Ela mentiu para mim.
— Vá se foder, Álvaro! — ele disse como se estivesse cansado, sem colocar um teor
aborrecido na voz. — Você é o maduro desta história e não me faça desacreditar disso.
Eu ri sem vontade. Eu era o mais velho comparado a Isotta. Tinha mais experiência,
bagagem suficiente para enfrentar até mesmo uma guerra mundial. No entanto, isso não fazia de
mim alguém capaz de entender e mediar algo que nem mesmo eu compreendia. O que eu vivia
com Isotta era novo, forte, complicado, desconcertante. Eu não fazia ideia do que fazer.
— Por que você não disse nada?
— Eu queria que ela me contasse. Que confiasse em mim.
— Essa é a merda do amor — ele resmungou. — Pare de lamber suas feridas e encare a
situação como ela realmente é.
— Do que você está falando?
— Você não disse nada porque também estava com medo. Todas as vezes que
conversaram sobre o assunto apenas analisaram a possibilidade, mas nunca colocaram um ponto
nisso. Nem você nem ela. E quando Isotta esqueceu propositalmente o exame na bolsa, ela se
deixou envolver pela mesma motivação da sua. O medo de descobrir a verdade e encarar as
consequências disso.
Engoli com dificuldade e puxei o ar para impedir que a umidade em meus olhos se
transformasse em lágrimas.
— Ela é muito nova — falei baixinho.
— Sim, ela é.
— Isotta me odiaria quando percebesse que eu podia ter evitado isso.
— Ela também podia.
— Eu era o experiente. Eu a estava conduzindo, Jean.
— Por que Isotta te odiaria?
— Porque ela perderia tudo o que buscava. Um filho me tornaria obsessivo. Enquanto
Nicolo caminhasse por essa terra, eu não teria paz, mas…
Engoli outra vez com dificuldade. A emoção e a culpa se avolumando em minha garganta.
— Mas não vou dizer que seria apenas por causa dele. Eu… teria tanto medo. Isotta seria
um alvo constante. Meu filho seria um alvo constante. Não haverá paz vivendo no mundo que eu
vivo, Jean. E eu não suporto a ideia de que algo aconteça com ela.
Fechei os olhos quando a lágrima escorreu pelo meu rosto. Puxei o ar algumas vezes para
aplacar a dor.
— Ainda que não houvesse Nicolo, que eu pudesse protegê-la dos nossos inimigos,
existiria sempre o risco. Quando eu penso que hoje perdemos um filho é… inacreditável o vazio
que toma conta do meu coração. E eu nem queria ser pai.
— Eu também não — Jean disse com um sorriso na voz. — Eu sei exatamente o que você
sente, irmão. Heidi poderia ter demorado mais para me encontrar e com isso Ayla não ter acesso
ao remédio a tempo. E essa nova gravidez de Heidi… — Ele suspirou com a mesma angústia que
me dominava. — Eu estou procurando o que fazer para não enlouquecer.
— Como você consegue?
— Não sei. Acho que amo Heidi demais para correr todos os riscos só para assistir um
pouco da sua felicidade. Heidi ama ser mãe, e eu amo nossos filhos, mas conviver com o medo
de perdê-los é… sufocante.
— Sufocante — repeti a palavra que melhor refletia meus sentimentos. — Agora ela me
odeia.
— Não odeia.
— Eu disse que ela matou nosso filho.
— Porra! — Jean murmurou. — Ela agora com certeza te odeia.
— Ela não matou nosso filho — continuei. — Nicolo fez isso.
— Ou… a natureza fez. É comum abortos espontâneos na primeira gravidez.
Dei uma olhada irônica para Jean. Quando ele se tornou conhecedor profundo da
maternidade?
— Eu acompanho Heidi nas consultas e sempre tenho mais dúvidas do que ela. O médico
com certeza pensa que sou louco — explicou.
Eu sorri, um pouco orgulhoso do meu melhor amigo, um pouco triste por não ter tido a
chance de vivenciar aquelas etapas. Seríamos pais juntos se aquela merda não tivesse acontecido.
Depois daquilo, Isotta não mais me aceitaria e eu não desejava ter filhos com outra mulher. Não
desejava outra mulher.
O que eu fiz?
Suspirei com pesar, uma nova lágrima rolando pelo meu rosto.
— Converse com ela — Jean disse com cuidado. — Seja sincero com Isotta como tanto
quis que ela fosse com você. É o justo, Álvaro.
— Não sei se alguma conversa desfaria o que aconteceu. Eu estava com tanta raiva…
Agora estou… bêbado — assumi. — Bêbado o suficiente para chorar como um idiota. — Jean
riu. — Bêbado o suficiente para desejar voltar ao hospital e implorar pelo perdão dela. Isotta me
escorraçaria de lá. Ela me odeia.
— Ela vai te perdoar.
— Ela vai fugir de mim na primeira oportunidade.
— Não se você se desculpar da maneira correta.
— Ela nunca vai me perdoar — defini. — E não existe maneira correta de se desculpar.
Qualquer ideia mirabolante não a impedirá de solicitar ao hospital que eu não me aproxime do
seu quarto.
— Isotta não faria isso.
— Você não conhece Isotta — rebati.
— Álvaro, você me obrigou a pagar dez milhões por uma noite com Heidi.
— E daí?
— Se você não teve medo de que eu matasse Heidi naquela noite, vai ter medo de se
desculpar com Isotta?
Encarei Jean que mantinha um sorriso escroto nos lábios. Puxei um trago do cigarro,
entornei o restante da minha bebida e deixei o copo sobre a mesa.
— Você fala isso porque nunca perdeu para a determinação de Isotta. Foi assim que
casamos, Jean.
Ele riu outra vez, apagou o cigarro e levantou.
— Vamos, irmão. Você precisa tomar um banho e dormir.
— Você vai me dar banho?
— Não seria a primeira vez.
— Vá se foder, Jean!
Ele riu quando me ajudou a levantar. O escritório girou à minha frente. Pensei outra vez
em Isotta sozinha no hospital. Jean me fez caminhar, cambalear pelo corredor, entrar no quarto e
me despir para um banho. E eu aceitei tudo porque tinha um objetivo, mas para isso precisava
afastar Jean da minha cola.
ISOTTA
Eu encarava o tubo preso à minha veia para que eu pudesse ser medicada. A comida
servida pouco depois da última avaliação médica permanecia intacta. Em silêncio eu ouvia o som
do ar-condicionado e nada mais. Jordan entrava no quarto de tempos em tempos, demonstrando
preocupação. Ele não falou de Álvaro em nenhum momento. Eu também não perguntei.
Miguel ligou para o celular de Jordan, uma vez que o meu foi confiscado tão logo meu
marido deixou meu quarto. Apesar de estar irritada com a determinação de Álvaro, e magoada
com tudo o que ele disse, não me importei naquele primeiro momento por meu irmão precisar
ligar para o celular de um soldado amigo para conseguir falar comigo. Atender Nicolo fez com
que eu sofresse um aborto e eu ainda não sabia como me recuperar daquilo.
— Como você está? — Ele perguntou cheio de preocupação. — Jean nos comunicou seu
quadro. Sinto muito, princesa.
Uma lágrima rolou pelo meu rosto, mas eu não funguei. Não emiti nenhum som que
entregasse a minha dor.
— Nicolo arrancou tudo de mim — sibilei.
— Não permita que ele tenha mais poder sobre essa situação, Isotta. Nicolo não pode nos
vencer.
Pensei em Álvaro, em tudo o que vivemos e no quanto desmoronou em pouco tempo. Não,
Miguel não sabia o que era aquilo, a sensação de fracasso. Porque eu fugi, desafiei meu pai,
abandonei minha casa, forcei uma situação com Álvaro e… me apaixonei por ele, e nada disso
impediu Nicolo de continuar me machucando.
Ainda que a Ndrangheta tivesse mais força e capacidade de exterminar Nicolo, ainda que a
Camorra estivesse determinada a fazer com que meu primo pagasse, Nicolo venceu. No final, ele
morrendo ou não, a vitória nunca seria nossa. Porque ele destruiu meu casamento, me causou um
aborto e despertou em mim a vontade de ficar longe de Álvaro. Onde estava a vitória?
— E Álvaro? — ele perguntou.
Fechei os olhos e me perguntei se deveria contar a Miguel o que aconteceu de verdade. Até
que ponto as palavras de Álvaro comprometeriam a aliança com a Camorra na busca por Nicolo?
— Procurando uma forma de encontrar Nicolo mais rápido — menti. — Ficarei sem
celular por um tempo. Depois do que aconteceu hoje, Álvaro acha melhor que Jordan atenda as
ligações, receba as mensagens.
— Normalmente eu não seria a favor disso, você sabe, mas diante de tudo o que aconteceu,
talvez seja a melhor opção.
— Talvez — murmurei.
— O lado bom é que Jordan é um bom amigo, então, eu nunca terei dificuldade para te
encontrar.
— Sim, sempre existe um lado bom, não é mesmo?
Não havia nada de positivismos em minha voz, porém eu precisava daquilo, acreditar em
algo nem que precisasse mentir repetidas vezes até que se tornasse uma verdade.
— Já é tarde aí na Espanha. — Mudei de assunto. — O que está fazendo?
— Basicamente acompanhando a busca pelo Nicolo.
— E o que descobriu?
— Até agora eu sei que ele invadiu minhas conversas e teve acesso a muita coisa que não
deveria.
— Sinto muito.
— Nada se compara ao que aconteceu com você. Mas Jean disse que conseguiria
identificar de onde partiu a ligação, então é por isso que estou de vigília.
— Você acha que ele ainda está aqui no Brasil?
— Sim, eu acho. Ele já deu provas de que tem você como objetivo, então não tem sentido
abandonar o país.
— Verdade.
Procurei minha bolsa pelo quarto, só relaxando quando a avistei sobre o sofá. Minha
pistola estava lá dentro, o que me garantiria pelo menos a chance de reagir.
— Descanse um pouco, irmãzinha. Falo com você amanhã. Amo você!
— Amo você também.
Desliguei a ligação, desci da cama e fui até a porta para devolver o celular a Jordan.
— Você precisa comer — ele comentou ao entrar no quarto e verificar a bandeja intacta.
— Talvez depois. Jordan, eu preciso de algumas coisas. Teria como mandar alguém buscar
para mim?
— Claro. Faça uma lista. Vou chamar um dos rapazes.
— Obrigada.
Ele saiu, eu fui até a bolsa e conferi a pistola, depois voltei com ela até a cama e a escondi
no travesseiro. Álvaro queria matar Nicolo, contudo, não mais do que eu desejava assistir à sua
morte. E para isso, eu precisava estar preparada e contar com a sua persistência em me encontrar.
41
ISOTTA

Despertei com a sensação de que não dormi. Meu corpo doía, talvez pelo tempo que fiquei
imóvel, contemplativa, presa em algum lugar dentro de mim. Durante um tempo pensei no
aborto, em como seria se não tivesse acontecido. Como seria me descobrir grávida, viver uma
gestação, passar por um parto, amamentação? Como seria descobrir se era menino ou menina,
escolher cada roupinha, aprender a ser mãe? Como seria viver tudo isso que deixou de ser uma
realidade para mim no instante em que Nicolo me ligou?
Eu nunca saberia? Foi pouco tempo, uns diriam. Você nem sequer teve a sensação de estar
grávida, vai superar, ousariam me dizer. A verdade era que ninguém sabia o que era aquilo. Eu
não sabia que estava grávida, tinha apenas em minhas mãos a possibilidade, com uma
porcentagem tão pequena que não seria levada em consideração, e, ainda assim, sofrer aquele
aborto roubou um pouco da minha alma.
Eu não me encontrava, não me entendia.
Então, em algum momento, a dor pela perda me trouxe Álvaro. A sua reação. Suas
acusações. Tentei ao máximo assumir a minha porcentagem de culpa naquela história, mas não
consegui. Se eu deveria ter maturidade para fazer o teste e descobrir de uma vez por todas a
gravidez, ele deveria se valer do mesmo para exigir de mim uma posição.
Erramos. Nós dois erramos. Éramos culpados pela perda? Não. E aí estava a maior e mais
gritante diferença entre nós. Eu jamais acusaria Álvaro. Ele me acusou na primeira oportunidade,
como se estivesse pelos cantos, em posse da informação, aguardando pelo meu deslize para que
pudesse usar isso contra mim e alegar seu direito de me deixar.
Todos tínhamos motivos para odiar Nicolo, para desejar a sua cabeça, no entanto, Álvaro
me deu um motivo para me reinventar. Se antes Nicolo era uma ameaça a minha liberdade,
depois do que aconteceu ele seria o meu passaporte.
Adormeci em algum momento entre a mágoa por Álvaro e o ódio por Nicolo, e acordei
como se apenas um segundo tivesse se passado desde o momento em que meus olhos se
fecharam. Encarei a janela coberta por uma cortina pesada, contudo, permitindo que a claridade
iluminasse o quarto. Suspirei com pesar, permitindo meus olhos se adaptarem à luz.
Conferi o local com lentidão. O que antes eram contornos no escuro, ganhava forma. Uma
mesa, duas cadeiras, uma poltrona, uma espécie de suporte para soro próxima a uma imensidão
de aparelhos que não tinham utilidade para o meu caso, e um sofá… com Álvaro deitado sobre
ele, adormecido.
Em que momento ele chegou?
Permaneci quieta, desta vez pelo choque, toda a minha atenção voltada para o homem
adormecido naquele pequeno móvel. Um misto de mágoa e… amor - sim, amor. Eu precisava
assumir o sentimento para conseguir matá-lo. - se avolumava dentro de mim e formava um nó
em minha garganta.
Tão lindo! Tão… cretino. Céus!
Álvaro usava roupas menos sóbrias, como se tivesse escolhido a primeira coisa que
encontrou no closet. Ele estava de tênis. Eu nunca o vi de tênis. No rosto a sombra da barba por
fazer, o cabelo bagunçado, não de forma organizada como ele gostava de deixar, mas de fato
bagunçado.
Fechei os olhos e me obriguei a não admirá-lo. Quanto antes eu o arrancasse de dentro de
mim, menos sofreria. E eu estava cansada de sofrer.
Sentei na cama em silêncio, conferi a arma embaixo do travesseiro, levantei e testei a
frieza do chão.
— O que foi? — Álvaro disse, levantando-se rápido como se precisasse me amparar. Dei
um passo para trás, impedindo-o de me tocar.
— Vou fazer xixi — anunciei. — Posso ou estou proibida disso também?
Ele suspirou, recuperando-se do momento apoteótico, então deslizou as mãos no cabelo em
uma tentativa falha de arrumar a bagunça.
— Dr. Paulo esteve aqui — informou, voltando a ficar na defensiva. — Queria saber sobre
o sangramento. Disse que te dará alta ainda pela manhã.
— Só isso? Com licença.
— Isotta?
Álvaro segurou meu pulso, impedindo-me de seguir. Contudo, assim que se deu conta do
que fazia, ele me largou, levando as mãos aos bolsos da calça jeans e demonstrando embaraço
pela atitude.
— Precisamos conversar.
— Não, não precisamos — eu o corrigi. — Você pode tratar sobre qualquer assunto com o
Jordan.
Tentei outra vez deixá-lo, entretanto, Álvaro deu um passo, parando à minha frente. Ele me
encarou com aqueles olhos de tempestade que antes tanto me fascinavam, mas que naquele
momento só despertou a minha ira. O que ele queria? O que mais restava dizer?
— Isotta, não seja…
— O quê? — Levantei a voz, nada acuada com a sua postura.
Álvaro estreitou os olhos, mas mordeu os lábios engolindo as palavras.
— Diga! — provoquei. — Infantil? Era isso que pretendia dizer?
Ele se manteve calado, atento a minha reação, e até isso me irritava.
— Quer conversar? Então eu vou falar o que definirá todas as nossas conversas a partir de
agora. Vá se foder, seu babaca escroto de merda!
Valendo-me da sua surpresa, empurrei Álvaro para o lado e passei com firmeza em direção
ao banheiro. Tranquei a porta, encostei nela e fechei os olhos, puxando o ar aos poucos para
tentar me acalmar. Escorreguei até o chão e sentei na superfície gelada. Duas lágrimas desceram,
no entanto, eu sorri, precisando esconder o rosto e morder a toalha que puxei para abafar o riso.
Eu só podia estar louca. Não havia outra explicação.
ÁLVARO
Isotta não voltou a falar comigo. Ela aceitou ser avaliada pelo Dr. Paulo, depois pela Dra.
Mônica. Teve alta sem contestar nenhuma das recomendações médicas e manteve o rosto virado
para a rua durante todo o trajeto do hospital até a casa em que estávamos.
Jean esperava por nós. Isotta não foi arisca com ele, pelo contrário. Perguntou por Heidi e
pelas crianças, depois pediu licença com a desculpa de que precisava cumprir com a
recomendação médica e descansar o máximo possível, e se recolheu no quarto.
— Tenha paciência — Jean recomendou ao observar minha esposa sair sem nem sequer
olhar para mim. — Vocês ficarão bem.
— Segundo ela, eu sou um babaca escroto de merda.
Meu amigo sorriu para mim, como se meu sofrimento o divertisse.
— Vá se foder, Jean!
Ele riu outra vez e pousou a mão no meu ombro, me obrigando a seguir na direção do
escritório.
— Temos ótimas notícias — comunicou assim que abriu a porta e me deixou passar. —
Nicolo deixou o país.
— Como? Quer dizer… de que forma ele conseguiu escapar?
— Como todo mundo que deseja entrar ou sair do Brasil sem precisar dar satisfações. Não
se esqueça de que não temos só aliados no Brasil.
— Ele teve ajuda da Camorra?
— Aaron conseguiu a informação através da Yakuza.
— Troca de informações? Como podemos confiar?
— Fizemos algumas concessões. Eles não queriam comprar essa briga, mas também não
desejavam enfrentar nossa ira quando descobríssemos que Nicolo encontrou passagem pelo
território deles. A negociação para a retirada de Nicolo do país foi feita por Fernán. Ele forneceu
armas e rompeu com nossa aliança.
— Forneceu armas? O filho da puta forneceu armas em nosso território?
— Não se preocupe, já estamos arquitetando a resposta. Por pouco Aaron não consegue
interceptá-los, mas Férnan sabia da possibilidade de uma traição e agiu mais rápido.
— Então Nicolo está na Costa do Marfim?
— É o que vamos descobrir.
Jean caminhou em silêncio e sem pressa pelo espaço. Eu conhecia aquela atitude. Ele
queria me dizer algo, entretanto, não sabia como fazê-lo.
— O que houve?
— Eu acho que você deveria voltar com Isotta para Florianópolis.
— Por quê?
Jean suspirou, cansado, então sentou no sofá que ocupou na madrugada anterior.
— Você precisa de um tempo, Álvaro. Isotta precisa de um tempo. Aaron pode assumir
daqui e teremos o mesmo resultado.
— Puta que pariu! — resmunguei.
— Álvaro, o que é mais importante para você? Manter a agenda ou salvar o seu
casamento?
Encarei meu melhor amigo, no entanto, não consegui responder de imediato. Em qualquer
outra situação eu diria que minhas responsabilidades com a Ndrangheta eram mais importantes.
Fui criado assim, com a responsabilidade da escolha que fiz. Viver, lutar e ser a Ndrangheta era
tudo o que eu sabia fazer.
Até Isotta entrar em minha vida.
Porra, Isotta precisava de mim. E eu… eu também precisava dela. Perdemos um filho,
estragamos tudo. Eu estraguei tudo, então não podia simplesmente seguir como se nada tivesse
acontecido, nem manter meus planos e esperar que ela se curasse sozinha.
Jean tinha razão. Aaron conseguiria cumprir com meus compromissos sem alterar em nada
nossos negócios e eu podia tirar alguns dias para estancar a correnteza que arrastava meu
casamento junto com ela.
— Isotta não pode viajar agora — informei, de repente exausto. — Ela precisa de repouso
absoluto.
— Então fiquem aqui. Vamos manter uma quantidade segura de soldados para garantir a
segurança de vocês. Com Nicolo fora do país fica mais fácil.
— Você tem razão.
— Eu sempre tenho — ele brincou.
— O casamento lhe fez bem — pirracei. — O Jean esquentado deu lugar para um que
consegue até mesmo dar conselhos amorosos.
— Isso não é o que me espanta — ele afirmou sério. — Mas ter sido você o cara que me
aconselhava e agora ser isso, um cara que não faz ideia de como agir.
— Eu ia mandar você se foder, mas estou cansado demais para isso.
Jean riu e levantou, batendo nos joelhos.
— Já que estamos resolvidos, eu vou embora.
— Você pretende ir para Costa do Marfim?
— Não — declarou de forma desdenhosa. — Com toda certeza Nicolo não está lá, e eu não
preciso estar presente para dar uma boa lição no Fernán.
— O que vai fazer então?
— Acho que vou visitar o Emilio Ortiz.
— Capo de Ibiza?
— Sim. Algo me diz que é lá que devemos estar.
— E sua intuição nunca falha.
— Exatamente.
Sem Jean e com minha agenda alterada, passei um tempo no escritório organizando com
Aaron como tudo aconteceria. Ele teria que me manter informado e eu participaria de algumas
reuniões, as que tinham aspecto legal, de forma remota, para que assim pudesse continuar ao
lado de Isotta.
Contudo, apesar de todo o esquema para tentar salvar o nosso casamento, não imaginei que
seria tão difícil. Isotta se trancou no quarto. Ela não queria falar comigo, recusava a minha
presença independente do motivo, fez todas as refeições sem mim, muitas vezes no quarto para
evitar encontros. E eu passei a dormir no quarto de hóspedes, me sentindo um miserável, sem
qualquer avanço e com a certeza de que ela escapava de mim com facilidade.
42
ISOTTA

Abri a porta e dei de cara com Álvaro. Ele aguardava por mim diante do nosso quarto. Por
um segundo, ainda que sempre houvesse a possibilidade de haver um soldado guardando a porta
do meu quarto, levei a mão às costas e senti a pistola que passei a carregar em meu corpo desde
que Nicolo ameaçou que me encontraria.
Álvaro ajeitou a posição quando me viu, talvez cismado com aquele detalhe, ou na
defensiva depois da nossa última conversa, quatro dias antes, no hospital. Consegui evitá-lo
desde então, contudo, com a sua permanência na casa, tornava-se cada vez mais impossível não
encontrá-lo.
Fechei a porta, disfarçando meu movimento em busca da pistola e o encarei. Por alguns
segundos nos mantivemos assim, nos olhando, alimentando ou destruindo aos poucos a névoa
densa que nos cercava, repleta de mágoa e dor.
— O que você quer? — eu disse, outra vez na defensiva.
— Não pode continuar me ignorando.
— É isso o que tem para dizer?
— Isotta…
Intentei deixá-lo, contudo, havia a certeza em mim de que Álvaro não permitiria que assim
fosse. Tornava-se um hábito ele me impedir. Por este motivo, não me surpreendi quando ele me
segurou pelo braço e me girou, prendendo-me na parede entre seus braços que formavam uma
pequena e limitada prisão.
Ele estava mais perto do que eu gostaria de suportar.
— Pare com isso, Isotta — pediu com a voz baixa, tensa, contudo, mansa. Como se
estudasse cada detalhe daquele momento.
Aquele era o Álvaro que eu conhecia, o que não agia sem pensar. Que arquitetava suas
ações, que observava mais do que agia. Aquele era o homem com quem acreditei ter me casado,
mas que cedo demais me mostrou ser apenas uma máscara, uma forma de esconder a sua
verdadeira natureza.
— Deixe-me em paz! — rosnei. Ele não recuou com a minha ameaça.
— Nós temos que conversar.
— Não há nada para conversarmos. Você deixou bem claro isso quando me acusou de ter
matado o meu filho.
— Nosso filho — ele me corrigiu.
E a mágoa por precisar reviver aquele momento fez meus olhos ficarem úmidos. Eu não
queria chorar na frente dele. Não queria continuar sendo a garota frágil que ele precisava
proteger.
— Um filho que você nunca quis — acusei.
Álvaro fechou os olhos e suspirou. Por um segundo eu acreditei que havia sofrimento nele,
no entanto, nada em mim queria continuar encontrando brechas para voltar a justificá-lo.
— Isotta, eu errei. Eu… estava com raiva, magoado. Você não confiou em mim!
— Como você pode me cobrar confiança quando nunca depositou a sua em mim?
— Como eu não confiei em você? — ele disse um pouco exaltado.
— Não preciso enumerar todas as maneiras que demonstrou a sua falta de confiança.
Agora me deixe em paz.
— Não!
— Você não pode me obrigar a nada!
— Mas obrigarei se continuar fugindo de mim.
Ao invés de me chocar com sua afirmação, de rebater o que ele disse, eu relaxei. Era muito
melhor lutar contra aquele Álvaro do que contra o bom rapaz que me seduziu logo após o
casamento. Por isso encostei na parede, cruzei os braços e o encarei com um sorriso cínico no
rosto. Álvaro notou a mudança em meu comportamento. Ele se afastou, como se tentasse
resgatar a máscara a tempo.
Eu não deixaria que fosse desta forma.
— Assim fica melhor — eu observei. — Não tente ser um homem correto porque você não
é. Esse é você, Álvaro. Cruel, egoísta, um ditador.
— Nem você acredita nisso.
— Sejamos sinceros, funcionou enquanto eu demonstrava boa vontade em jogar o seu
jogo.
— Do que você está falando?
Ele passou a mão pelo cabelo, uma leve mudança em suas expressões, um toque quase
imperceptível de constrangimento.
— Você nunca jogou o meu jogo, Isotta — acusou.
Ampliei o sorriso. Era tão mais fácil desprezá-lo quando eu encarava a sua verdadeira face.
— Então nunca funcionou — ataquei. — Sabe, fiz o possível porque você tinha razão, eu
te joguei nesse casamento, mudei seus planos, te obriguei a viver o que você não queria.
— Eu quis casar — afirmou com tanta fé em suas palavras que por um segundo eu recuei.
Entretanto, não havia verdade em Álvaro. Não podia haver ligação entre o homem que me
acusou de ter matado nosso filho e o que me encarava com intensidade ao afirmar que desejou
aquele casamento.
— Eu quis casar com você, droga!
— Não quis! E agora eu também não quero — declarei.
— Enlouqueceu?
— Um casamento de conveniência, de mentira, essa foi a sua sugestão.
— Isotta!
— É assim que viveremos. Eu voltarei para a Espanha e…
— Você não vai para a Espanha! — ele rebateu, visivelmente abalado.
— Claro que vou.
— Não, não vai.
— Vou! Você disse que eu voltaria, e eu quero voltar.
— Eu estava com raiva.
— Problema seu!
— Isotta, pare!
Álvaro estendeu um braço na frente quando tentei deixá-lo.
— Não use sua raiva para justificar a sua natureza perversa — disparei, alto, incapaz de me
conter.
Pouco importava se os empregados ouviriam, se os soldados presenciariam uma briga de
casal. Nada mais importava ou fazia sentido naquela conversa. Com o dedo em riste na cara do
meu marido, disparei, avançando, acusando-o, colocando para fora o que por dias me destruiu.
— Talvez a posição de Capo tenha lhe dado a ideia de que todos precisam atender às suas
expectativas, mas eu não sou mais um dos seus soldados! Não estou aqui para te satisfazer,
Álvaro! Não estou aqui para ser um bibelô, um brinquedo com o qual você se diverte em seu
tempo livre. Eu sou uma mulher, não uma garota infantil como tantas vezes me acusou. Eu sou
adulta, responsável, dona de mim, do meu corpo. Capaz de tomar decisões que são importantes
para mim. Tenho direito de me calar enquanto ainda estou digerindo problemas, situações, uma
gravidez em um casamento fadado ao fracasso! Então me respeite!
— Isotta, fique calma — ele tentou, mas a droga da torneira rompeu e eu não poderia mais
conter o fluxo.
— Eu perdi um filho! — gritei ainda mais alto. — Pode não significar nada para você e sua
vida fodida! Mas me destruiu! Arrancou uma parte de mim. E você não tinha direito nenhum de
me acusar de…
Álvaro me agarrou. Seu corpo se impôs ao meu, me encostando outra vez na parede. Os
braços estavam ao meu redor, colando nossos corpos. O rosto estava tão próximo ao meu que eu
sentia a sua respiração ofegante.
— Eu também perdi um filho — ele sussurrou, a voz rouca com tons de emoção. — Eu
também estou sofrendo — confessou.
— Não acredito no seu sofrimento.
De olhos fechados, eu tentava entender o que acontecia dentro de mim. Por dias odiei
Álvaro e acreditei que aquela seria a minha verdade até o fim. E era fácil odiá-lo. Eu tinha
lembranças vívidas de cada palavra, cada acusação, da maneira como o corpo dele reagiu quando
ele se voltou contra o que éramos.
Mas, ali, com Álvaro abraçado a mim, com a voz sofrida, com tudo o que ele foi antes de
sermos tomados pela tragédia, eu me segurava para não abraçá-lo de volta, para não tentar
confortá-lo. Ele não é isso, Isotta, minha mente gritava. Ele sempre vai te machucar, a voz dizia.
— Eu não preciso que acredite em meu sofrimento — afirmou. — Não mereço a sua
condolência. Não depois do que fiz.
Puxei o ar para controlar as lágrimas que ameaçavam cair. Não acredite nele. Álvaro não é
confiável. Mas eu o amava. Não pode amá-lo. Eu o amo. Fuja dele. Fuja!
— Eu quero voltar para a Espanha.
Minha voz saiu firme, decidida. Porque aquela era a verdade. No Brasil, Álvaro sempre
voltaria para casa e eu sempre viveria aquela dor. Em mim, o amor e o ódio se encaravam,
divididos por uma linha tênue. A única forma de conseguir seguir em frente, era colocando um
oceano entre a gente. Uma distância real. Definitiva.
Álvaro afastou o rosto do meu, ainda se impondo com o corpo, ainda limitando meus
movimentos. Sua mão alcançou meu pescoço enquanto ele analisava a veracidade das minhas
palavras.
— Você não vai voltar para a Espanha — definiu.
— Eu vou.
— Não vai. Não vou deixar, Isotta. Você é minha mulher.
— Tente me impedir!
Explodi outra vez. Como ele se atrevia a me dizer aquilo? Como acreditava que poderia
utilizar aquele tipo de autoridade comigo? Em especial depois de tudo o que fez. Não. Álvaro
não tinha aquele poder. Ele não definiria meus passos, minha vida. Não limitaria as minhas
decisões. Irritada, empurrei Álvaro para conseguir afastá-lo. Ele apertou mais o corpo contra o
meu, segurou meu rosto e me obrigou a encará-lo.
— Eu não vou te impedir — afirmou sem perder a segurança. — Vou te convencer.
— Não vai!
— Vou te conquistar outra vez, Isotta — determinou, a testa colada à minha, o corpo
grudado no meu.
Tão perto… Eu não queria. Não deveria.
— Eu o proíbo!
— Tente — desafiou.
E esse é o ponto em que eu me perco. Fluía em minhas veias a mais pura indignação.
Álvaro conseguia arrancar de mim o equilíbrio. Ele me irritava, me provocava, me limitava e,
apesar disso, ainda que eu tivesse todos os motivos para recusá-lo, não consegui rejeitá-lo.
Quando Álvaro me desafiou, algo dentro de mim explodiu. Eu estava pronta para lutar
contra ele, contudo, ele falou perto demais, os lábios roçando nos meus , as mãos em minha
cintura, uma perna encaixada entre as minhas. E… céus. Por que eu esquentava quando ele me
tocava? Por que meus lábios abriram quando ele se aproximou? Por que eu aceitei seu beijo?
Álvaro me beijou sem cuidado. Mais do que me censurar por aceitá-lo, eu me senti
alimentada, como se por quatro dias meu corpo apenas sobrevivesse e, naquele momento, sua
necessidade voltasse com ímpeto, me atingindo, me cobrando, exigindo de mim aquela entrega.
Eu o beijei com dor, com tristeza, com a certeza de que o amava além do que deveria, com
a perturbante ideia de que o mínimo com Álvaro era melhor do que o máximo sem ele. Com o
castigo que atingia os amantes quando estes esqueciam que maior do que o outro deveria ser ele
mesmo. Eu não conseguia. Porque quando Álvaro se aproximava, se tornava o meu ar. Quando
ele me tocava definia meu eixo. Ele rompia minhas barreiras, minhas defesas. Conseguia me
convencer de que não havia peso no que aconteceu, das suas verdades e mentiras, dos
sentimentos que eu sabia, não estavam lá.
Álvaro não me amava. Ele seguia um código de honra. Os homens da Ndrangheta eram
fiéis, esse era o primeiro fundamento, não foi isso o que disse? E eu era a sua conveniente
esposa, nada mais do que isso. Álvaro não me amava, eu dizia a mim mesma em uma tentativa
inútil de me convencer a pará-lo, a interromper o beijo, a impedi-lo de me tocar.
Então sua mão, ao perceber que eu não resistia, levantou minha camisa e afagou minhas
costas. Minha pele ficou arrepiada, entretanto, mal tive tempo de assimilar a sensação de ter as
mãos dele em mim, Álvaro alcançou a pistola e, em seguida, ele me afastou, surpreso.
— Você está armada?
Assustada, eu me encolhi, protegendo as costas contra a parede para que ele não
conseguisse tirar a pistola de mim. Ele não podia, apesar de eu ter plena consciência de que o
faria se desejasse. Mas eu precisava dela. Nicolo me alcançaria, ele prometeu. Como eu me
protegeria se Álvaro me desarmasse?
Ele continuava me encarando, aguardando por uma justificativa, os olhos de tempestade
estreitos, avaliando-me.
— O que você acha? — respondi irônica, retornando à postura anterior. Na defensiva. —
Como acha que vou me defender?
Ele ainda levou um tempo em que buscava as respostas em meu rosto. Então, enfim, disse
o que me tranquilizou.
— Está com medo de mim?
Eu sorri cheia de deboche. Em parte relaxada por ele não levar a situação para a
possibilidade de Nicolo estar mais próximo do que em todos os outros momentos, em parte por
eu saber que aquilo também o atingiria.
— Não infle tanto o seu ego.
Então a confusão de sentimentos recuou dentro de mim. A mágoa, a dor, a raiva, ganharam
espaço.
— Você não me assusta como acredita. Se eu achasse que a ameaça estava na minha cama,
já teria te matado.
Álvaro mordeu o lábio inferior sem perceber o que fazia. Os olhos se mantinham fixos em
mim, avaliativos.
— É melhor não mantê-la assim dentro de casa — avisou.
— É melhor você me deixar em paz.
— Isotta…
— Vá à merda!
Então eu saí. Fugi de Álvaro, de mim, do que significou aquele beijo. Eu não podia recuar,
não podia perder a força que me impelia a afastá-lo, a manter a minha segurança mental. Álvaro
era um perigo, uma ameaça a qual eu me agarraria se permitisse sua aproximação. Então eu teria
que ficar longe. Eu ficaria longe.
43
ISOTTA

— Quando vamos embora?


Perguntei a Jordan que me acompanhava com passos lentos na minha primeira caminhada
na direção do lago, depois do ocorrido. Sete dias se passaram desde que sofri o aborto
espontâneo. Ninguém tinha notícias de Nicolo. Álvaro se trancava no escritório durante uma boa
parte do dia. Apesar de ter optado ficar para acompanhar minha recuperação, era com a máfia
que ele passava a maior parte do seu tempo.
— Não sabemos ainda. Você sabe como funciona.
— Arrumei o máximo que consegui das minhas malas — avisei. — Ainda não posso fazer
esforço, então guardei apenas o que tenho certeza de que não usarei nos próximos dias.
— Como está se sentindo hoje?
Jordan era sempre agradável, preocupado. Um alívio em meio aquela confusão. Na frente
de Álvaro ou dos demais soldados, ele era sério, compenetrado e distante. Quando estávamos
sozinhos ele era um amigo valioso.
— Estou muito bem. Cansada de não fazer nada, mas bem.
Ele riu um pouco. Com as mãos para trás, mantinha a coluna ereta e o olhar vigilante,
apesar de não demonstrar qualquer tensão.
— Em breve você poderá fazer tudo. Por enquanto, se concentre em curar seu corpo.
— Tão cedo não poderei fazer tudo — resmunguei. — Álvaro tirou minha liberdade,
esqueceu?
— Por um lado, Isotta, acho que foi uma boa decisão tirar das suas mãos um celular.
Nicolo continuará tentando. Se você estiver incomunicável, ele não te afetará tanto.
— Incomunicável — repeti a palavra, pensativa, tentando compreender até que ponto
aquela determinação se referia a influência do Nicolo. Suspirei de pesar. — Eu me sinto em uma
prisão.
— É por pouco tempo. Logo Jean encontrará Nicolo e você voltará a ter liberdade.
— Só quando eu voltar para a Espanha.
Jordan me deu uma rápida olhada e parou no ponto onde uma espreguiçadeira foi colocada
para que eu pudesse descansar. Havia uma tenda armada, tremulando devido a brisa, uma
pequena mesa posta com suco e uma variedade de biscoitos. Eu não solicitei nada além da
espreguiçadeira, por isso acreditei que aquela arrumação tinha um dedo do meu marido.
— Vocês ficarão bem — ele disse ao meu lado, de pé, uma vez que executava o papel de
meu soldado particular, não de um amigo. — Permita que Álvaro se aproxime. Você está muito
arisca.
— Eu não preciso repetir outra vez o que ele disse, Jordan. Melhor, você o ouviu gritar no
hospital.
— Sim, eu ouvi. Pra ser sincero, já ouvi coisas piores. Não do Álvaro — ele se corrigiu
rápido. — Apesar de não ter vivido a fase do Joel, servi ao Amadeu, cunhado do Jean.
— Você estava presente quando tudo aconteceu?
Ele ficou sério, atento, como se revivesse o momento.
— Eu me recusei a trair o Jean — confessou. — E quase paguei com a vida.
— Oh! Sinto muito.
— Amadeu era… como eu posso descrevê-lo?
— Mal — defini.
— Mal todos somos, Isotta. — Um sorriso tranquilizador se apresentou em seu rosto bem
desenhado. — Amadeu era pior. Dizem que ele era o mais próximo do que Joel foi.
Estremeci. Nicolo era cruel, desalmado, estrategista, insensível, capaz das piores
atrocidades. Eu não conseguia me imaginar em uma vida onde ele tivesse poder sobre mim, por
isso doía a ideia de Jordan precisar obedecer a alguém daquele tipo. Eu olhava o homem que
cuidava de mim como um irmão mais velho e me perguntava por quantas coisas horríveis ele
passou sendo ainda tão novo?
— E Jean permitia? Digo… Amadeu era casado com a irmã dele.
— Lícia era dissimulada. E Amadeu não passava dos limites com ela. Ele sabia exatamente
onde pisava. Foi desta forma que Lícia conseguiu ser o pulso forte da relação. Ela permitia que
ele fosse o que desejava, enquanto isso ela gerenciava os negócios, tomava decisões, articulava
contra o irmão.
— Jean deve ter sofrido.
— Sim, ele sofreu.
Jordan se calou por um tempo. Observou o lago à nossa frente, as demais casas que
compunham o extenso local. Naquela tarde ele só aceitou levar à Álvaro a minha solicitação para
caminhar depois que soldados se posicionaram para garantir que não seríamos surpreendidos.
Jordan, assim como Álvaro e Jean, também assumiu a obrigação de fazer Nicolo falhar em
sua busca. E eu sabia que havia mais da sua própria história nisso do que sua inquestionável
fidelidade.
— Mas Álvaro nunca foi assim — ele declarou. — Sinceramente nunca vi ou ouvi Álvaro
perder a paciência com uma mulher.
— Pra você ver o quanto ele me detesta.
— Ele te ama, Isotta.
— Em uma realidade alternativa, talvez.
Jordan riu mais uma vez.
— Álvaro nunca gritou com uma mulher porque com elas ele era o que defendia. Não
havia nada além do trabalho, respeito e prazer. Ele nunca se apaixonou, logo, nunca soube o que
é enlouquecer de amor.
— Bobagem.
— É uma boa teoria.
— É uma forma de validar a violência doméstica — rebati.
— Ele não foi violento.
— O que ele fez foi abuso moral.
— Você está mesmo disposta a não amá-lo, não é?
Puxei o ar com força e desviei o olhar. Eu queria manter a minha postura, no entanto, não
conseguia. O tempo passava e me convencia de que esquecer Álvaro não seria tão fácil. Eu
continuava amando com a mesma intensidade, e alimentando a mágoa para que o ódio não
perdesse a batalha.
— Não sei se isso é possível — confessei.
— Não é.
— A verdadeira definição para “injustiça” — reclamei.
— Se Álvaro tivesse sido violento com você, eu teria arriscado tudo, Isotta, mas te levaria
de volta para o Miguel. Ele errou. Nunca se esqueça disso. Porém, entenda que as pessoas erram
o tempo todo. Você escondeu dele a consulta com a ginecologista, não fez o exame.
— Eu sei de tudo isso, Jordan — resmunguei, abatida, cansada de pensar e repensar em
tudo o que aconteceu.
— Se quiser mesmo voltar para a Espanha, eu estou aqui por você. Devo isso ao Miguel.
Mas se eu puder te aconselhar, dê uma chance ao Álvaro.
— Qual é a sua história com o Miguel?
Resolvi mudar o foco da conversa. Jordan era o meu porto seguro naquela casa. Minha
única companhia desde que Álvaro me isolou do mundo. Ainda assim, eu não estava pronta para
repensar sobre minha vida. Álvaro continuava sendo um vilão. Não com a mesma potência de
Nicolo, mas o homem que conquistou meu coração e o pisoteou na primeira oportunidade.
Eu ainda queria ficar longe dele.
— Meu pai trabalhou a vida toda com a família Kuhn — ele começou. — Eu cresci neste
meio, aprendi a ser isso como se não houvesse outra opção.
— Essa parece ser a história de todos nós.
— Verdade. Mas nem sempre eu quis. Havia uma imensa pressão para que eu me juntasse
à causa. Cedo despertei o orgulho do meu pai por causa da minha ótima mira. Ele era um
associado. Passava muito tempo fora de casa, era agressivo com minha mãe quando voltava
bêbado, tinha outras mulheres, no entanto, mantinha minha mãe na linha. Eu o odiava.
Acreditava que sua atitude era a essência dos homens que se envolviam com a máfia. Por causa
do que eu via ele fazer, quando me descobri… na minha condição…
Ele aliviou a verdade talvez por medo de ser ouvido. E de fato, quem convivia com Jordan
apenas no trabalho, não desconfiaria. Naquele momento meu carinho por meu soldado particular
aumentou. Ele também precisava se esconder, como Miguel, por causa da intolerância do meio
em que vivíamos. Era triste e injusto.
— Lutei contra o que sou. Cheguei até mesmo a acreditar que estava doente, que era
apenas uma forma de me rebelar contra meu pai. Até que, sem conseguir encontrar felicidade em
me esconder e com o medo de ser descoberto, eu fui embora.
— E como voltou para a Ndrangheta?
Ele sorriu como um irmão mais velho narrando uma história sombria para a irmã caçula.
— Primeiro eu fui para a Espanha.
— Para a Espanha?
— Morei lá por quatro anos.
— Foi assim que conheceu o Miguel?
— Foi assim que Miguel me salvou… do Nicolo.
— O quê?
A pergunta saiu exatamente como eu me sentia, assustada. Jordan tentava aliviar as
expressões, entretanto, a sombra em seu olhar refletia exatamente o que aquela história era, um
pesadelo.
— Na Espanha eu vivia em outro mundo. Eu era livre. Não havia a dor da minha casa, nem
a vergonha de ser algo que meu pai repudiaria. Eu tinha dois empregos: atendente em uma
lanchonete e segurança de boate nos finais de semana à noite. E conheci o Manolo.
— Seu namorado?
— A primeira pessoa que eu amei. — Havia pesar na maneira como ele exalou. — O
Manolo era como eu. Firme, sério, mantinha uma pose bem construída. Eu tomei um susto
quando descobri que ele era gay. — Um leve sorriso brincou em seus lábios. — Ele era
misterioso. Aparecia na boate quando eu menos esperava. Através dele eu conheci o Dimas.
— Namorado do Miguel — sussurrei. Ele concordou.
— Na época eles não falavam disso. Sabiam sobre mim e Manolo. Mas era tudo estranho.
Eu fui muito inocente. — Ele deu uma risada nervosa. — O fato do meu pai ser um associado
não me permitiu identificar como aquilo funcionava. Então eu nunca soube que Manolo
trabalhava para a Camorra, assim como não identifiquei que Dimas e Miguel eram parte do
contexto.
Jordan fez uma pausa longa. Eu sabia que aquela seria a parte mais difícil da história, por
isso nada falei, aguardei por ele, deixei que tivesse o tempo, que se sentisse confortável para
contar ou não o que aconteceu.
— Chovia naquela noite, por isso eu me atrasei. Era alta madrugada, eu trabalhei na boate
e quando a chuva aliviou segui para o apartamento do Manolo, como combinamos. Mas nunca
cheguei lá. Do início da rua vi o movimento estranho. Dos três carros saíram homens armados,
todos vestidos de preto, alguns com o rosto coberto. No prédio havia apenas uma janela
iluminada, e era a do apartamento do Manolo. Eu tinha certeza de que algo aconteceria. Acelerei
os passos. Com toda certeza eu seria morto, mas naquela hora não pensei no assunto. Eu só
queria chegar até ele. Então uma moto atravessou a rua e parou ao meu lado. Suba, Miguel disse
com pressa. Olhei para o local onde apenas três homens ficaram e hesitei. Ele vai te matar,
Jordan. Suba! Ele disse nervoso. E o Manolo? Perguntei. Sinto muito, foi o que ele respondeu.
— Ah, Jordan! Nicolo matou o Manolo?
— Nicolo descobriu que Manolo era gay e que tinha um namorado. Na verdade ele queria
conseguir provas contra o Miguel, então alegou que daria o exemplo ao grupo e executou
Manolo por envergonhar a Camorra, depois de nada conseguir arrancar dele.
— Meu Deus!
Escondi o rosto entre as mãos. Até onde ia a crueldade de Nicolo?
— Eu subi na moto. Miguel me levou para longe e me contou toda a verdade. Ele disse que
Manolo conhecia o risco, que Nicolo farejava uma forma de destruí-lo, mas ele não recuou.
Miguel me disse que Manolo não queria desistir de mim.
— O que eu posso dizer? É tão vergonhoso ouvir isso e saber que meu pai nada fez. Que
meu pai foi capaz de deserdar meu irmão depois que Nicolo conseguiu o que queria.
— Você não tem culpa, Isotta. Miguel também não. E seu pai… ele é mais um homem da
máfia. Assim como o meu. — Ele suspirou, ajustando a postura para se livrar das lembranças
ruins. — Quando Miguel soube que meu pai era associado da Ndrangheta, me levou até os
soldados conhecidos. E foi assim que eu ingressei.
— Então você também quer matar Nicolo.
— Agora com mais um motivo para isso.
— Justo.
Ficamos em silêncio por mais um tempo. Contemplamos o lago, a água que brilhava com
os últimos raios de sol. Eu me sentia triste. Carregava um pouco de culpa pelos horrores que
minha família cometeu.
— Você acha que Álvaro…
Comecei a pergunta, no entanto, não tive coragem de terminar. Como seria descobrir que
estava casada com um homem que também julgava como vergonha alguém como meu irmão,
como Jordan? Eu suportaria? Não. Jamais olharia para aquilo sem sentir nojo.
— Não — Jordan afirmou rápido. — Álvaro sabe, Isotta. Jean também. Quando eles me
resgataram após eu ter sido torturado por Amadeu, contei a verdade.
Soltei o ar, aliviada por não precisar somar mais aquele ponto na minha lista de coisas para
odiar Álvaro.
— Eu estava tão… destruído. No meu limite. Queria que acabassem logo com aquilo.
Sinceramente, nem acreditava que conseguiria passar daquele dia. Os homens da Ndrangheta, os
mais valiosos, são treinados para fazer suas vítimas sentirem muita dor sem uma morte rápida.
Conhecem a anatomia humana com destreza. Amadeu me destruiu. Mas Álvaro me devolveu
toda a dignidade. A escolha de me manter longe das rodas de fofocas é minha. Álvaro obrigaria
todos a me respeitar, mas eu decidi que não poderia abrir a minha vida para mais ninguém.
Quantos amores eu perderia só porque escolhi amar?
— Nicolo roubou até isso de você — lamentei.
— Roubou. Por isso eu quero tanto que você não desista do Álvaro. Nicolo não pode te
roubar mais nada. Agora vamos. Está escurecendo. Você precisa entrar.
Sem contestar, segui Jordan de volta para casa. Pensativa, triste e certa de que não havia
mais espaço naquele mundo para Nicolo. Nós precisávamos pará-lo.
44
ISOTTA

Joguei a bola mais uma vez para que Harry corresse atrás e a trouxesse de volta. A
dinâmica há muito ganhara um ritmo automático, sem que eu precisasse pensar nos meus
movimentos. Minha mente estava além, em diversos pontos da minha vida que insistiam em me
perturbar.
Depois que Jordan me revelou o seu motivo para ser fiel a Miguel eu não conseguia mais
pensar na Camorra como antes. Havia Nicolo e a sua maneira desumana de agir, e que também,
refletia como pensamento de muitos homens que desertaram para segui-lo. Mas acima de Nicolo
estava meu pai e esta era a minha maior frustração.
Quando mais nova eu tinha uma visão romântica sobre o homem que ele era. Apaixonado
por minha mãe ao ponto de se deixar ser conduzido, de não contestar qualquer decisão dela.
Depois, quando mamãe faleceu, Juan De Rosa não conseguiu ser nada além do Capo que fora
ensinado a ser.
Ele sabia que Miguel era gay, no entanto, ao invés de lutar pelo filho, ele preferiu sufocá-
lo, obrigando-o a casar com uma mulher e quando nem isso evitou o escândalo, deserdou o filho
e deu poder a Nicolo.
Porque ser gay era pior do que ser desumano. Ser gay era uma doença contagiosa. Ser gay
era mais vergonhoso do que encobrir um estupro dentro da sua própria casa. E agora, não apenas
meu pai, mas todos nós, precisávamos lidar com o que Nicolo se tornou. A ameaça que ele era.
Sem saber o que mais perderíamos.
Por isso, entender que meu pai era o grande culpado daquilo tudo deveria me deixar
aliviada por não estar mais sob os seus cuidados. Como Álvaro disse, eu agora pertencia a
Ndrangheta. Contudo, nem direito a esta paz eu tinha. Porque eu não pertencia a nenhum lugar.
Eu vagava entre os dois mundos, sem desejar estar em nenhum deles.
E o motivo para que eu não aceitasse a minha mais nova condição caminhava apressado
em minha direção.
Álvaro.
Observei meu marido atravessar o jardim onde eu estava com passos decididos. Nem
mesmo a roupa nada formal, escolhida para mais uma tarde trancafiado em casa, uma bermuda
clara e uma camisa polo de mangas curtas, além dos chinelos de dedos, aliviava a tensão que ele
exalava. No rosto a determinação de quem se preparava para uma guerra. Suspirei.
Qual seria o problema daquela vez?
— Isotta?
A voz fria e cortante disparou antes que ele me alcançasse. Quando Álvaro agia daquela
forma eu me sentia a criança que ele tanto buscava em mim. Era como se eu tivesse aprontado
alguma coisa e ele fosse o responsável pelo meu castigo.
Harry correu na minha direção com a bola na boca. Antes que Álvaro conseguisse nos
alcançar, atirei o brinquedo para longe, fazendo com que o cachorro disparasse em uma corrida
animada para resgatá-lo. Álvaro parou por um segundo, acompanhando o animal com os olhos,
depois soltou o ar como se até aquilo o aborrecesse.
— Ele não é um cão doméstico — disparou.
— Diga isso a ele quando voltar. Quem sabe assim você o convença — desdenhei.
— Basta que você não o trate assim. Harry foi treinado para identificar drogas, atacar
quando necessário e…
— O que você quer, Álvaro?
Meu marido colocou as mãos na cintura e me encarou sem esconder o descontentamento.
Ele olhou outra vez na direção do cachorro, então desistiu de seguir por aquele caminho.
— Onde está aquela gata vira-lata?
— Lilica?
— Só existe uma gata nesta casa.
Encarei Álvaro. O rosto aborrecido continuava digno de contemplação. Sem suas reuniões
intermináveis que exigiam uma aparência mais séria, ele parecia mais jovem. O cabelo
bagunçado, a barba por fazer, a postura que não era sempre relaxada, mas deixava para trás a
ideia de executivo chato. Eu gostava muito mais daquele Álvaro.
Exceto quando ele insistia em ser insuportável. Como naquele momento.
— E então?
— O que ela fez?
— Aquele animal selvagem entrou em meu escritório, destruiu os documentos que deixei
sobre a mesa. Arranhou o estofado da minha cadeira. Mijou em três lugares diferentes.
— Os gatos só agem assim quando estão sob estresse. O que você fez a ela?
— Eu? Onde ela está?
Seus olhos se estreitaram como uma acusação e Álvaro assumiu uma postura mais
intimidadora. Ele deu um pequeno passo em minha direção, se aproximando ao ponto de se
fundir ao meu espaço pessoal. Sua energia caótica adentrando a minha, agitando meu estado até
então pacífico.
— Não sei. Gatos são independentes.
— Ótimo! — ele rosnou. — É melhor que ela esteja escondida mesmo, porque eu vou
matá-la.
— Nem mesmo a Lilica acredita em suas ameaças — provoquei.
— Não me desafie.
— Não tente me intimidar. Você é o Capo furioso e implacável para quem não te conhece.
Álvaro se inclinou em minha direção, o rosto a centímetros do meu.
— Eu sou implacável principalmente com quem me conhece — sibilou.
— Eu não tenho medo de você.
— Deveria.
Arqueei uma sobrancelha, encarando-o sem compreender quando aquela história deixou se
ser sobre gatos e cachorros e passou a ser sobre nós dois.
— Vai precisar se esforçar mais — desafiei.
Um sorriso se esticou na lateral dos lábios dele. Álvaro se tornou mais sinistro, crescendo
sobre meu espaço de forma a tomá-lo todo para si. Tão lindo e tão imponente que abandonava
sua condição humana. Naquele momento era como se Álvaro assumisse os poderes de um deus.
— Eu contava com isso — rosnou.
Consciente da sua superioridade, da sua capacidade de ter o que quer quando quiser, ele
desfez aquela distância que ainda existia entre nós, segurando-me pela cintura com tamanha
velocidade que eu nem sequer consegui assimilar o que acontecia.
Enquanto um braço cercava minha cintura, a mão segurava minha nuca, tornando-me
assim cativa. Minha única reação foi um suspiro de surpresa, e então, meu cérebro se
desconectou do meu mundo. No instante em que Álvaro me envolveu com tudo o que ele era,
tomou para si o controle sobre minhas ações.
Seus lábios tomaram os meus sem encontrar resistência. Dias distante dele, dos seus
toques, da sua maneira de me envolver em suas vontades, deveriam arrancar de mim toda aquela
gana, arrefecer o desejo, enfraquecer a paixão. Mas não foi o que aconteceu.
Eu deveria odiar Álvaro acima de todas as coisas, contudo, sentia a sua falta como uma
dependente, e confessar tal realidade deveria ser o suficiente para me obrigar a afastá-lo, no
entanto, beijei Álvaro como se apenas aquele beijo pudesse devolver vida ao meu corpo. Cedi,
me entreguei, tomei para mim o que ele me ofertava sem impedi-lo de também tomar tudo de
mim para si.
Meu corpo pulsou de desejo quando a língua incentivou a minha, quando minhas mãos
subiram pelos braços definidos, puxando-o para mim como se toda e qualquer distância fosse
intolerável.
E tudo durou poucos segundos, apesar de me roubar do conceito de tempo. Álvaro me
tomou, me consumiu e me afastou, ainda presa a ele, ainda com suas mãos em mim. Ainda tonta,
perdida, sem qualquer noção do certo ou errado. Ele afastou o rosto do meu, os dedos enroscados
no meu cabelo, as íris de tempestade fixas em mim.
— A sua sorte é que não posso te foder agora mesmo, garota. Eu arrancaria essa arrogância
sua com orgasmos. Tantos e tão intensos, que quando eu te largasse não sobraria pernas para
sustentar seu corpo.
— Eu…
Engoli com dificuldade. A mente uma bagunça, incapaz de alinhar o certo do errado.
Enquanto meu corpo vibrava com aquela promessa, acendia com as vontades que não deveriam
mais me invadir, eu buscava com todas as forças alguma coisa que me colocasse de volta no
caminho, que me lembrasse do motivo que eu tinha para afastá-lo.
Puxei o ar com força. Tudo ao meu redor era Álvaro, seu corpo, seu gosto, seu cheiro, sua
força. Ele me embriagava, me dominava, e eu já não encontrava mais uma saída.
— Fique longe de mim — determinei com a voz rouca, baixa, sem a força que eu precisava
ter para que aquela exigência fosse real.
Álvaro sorriu outra vez. Ele me enfraquecia quando ignorava os apelos que nem eu
conseguia acreditar.
— Você não me quer longe.
— É só se afastar para saber — provoquei, irritada por não conseguir afastá-lo, por não
encontrar dentro de mim uma motivação adequada.
Ele deu um passo para trás, abandonando-me por completo. Tão rápido que me senti tonta,
vazia, incompleta.
— Você não quer que eu me afaste — constatou, os olhos atentos, felinos, quentes.
— O que meu corpo deseja não é o que eu desejo.
Por um segundo vi Álvaro se desfazer da sua arrogância, das suas certezas. Foi um breve
segundo, tão rápido que quando ele se recompôs eu me perguntei se de fato aconteceu.
— O que seu corpo deseja, o meu aplaca. O que você deseja, está aqui.
Ele abriu os braços, não se evidenciando, mas ampliando o nosso universo, o mundo que
poderia ser nosso, a vida que merecíamos ter. Meus olhos ficaram úmidos. A verdade era que
aquela realidade seria perfeita, se Álvaro não tivesse destruído tudo. E eu não podia ignorar
aquela mácula em nossa história. Era recente demais. Cruel demais.
Ele se aproximou outra vez enquanto eu o encarava, lutando contra as lágrimas que se
avolumavam cada vez mais, contra o nó que se instalava em minha garganta e impedia as
palavras de saírem. Álvaro tocou meu rosto, segurando-o com as duas mãos de forma delicada.
— Isotta… — sussurrou. O hálito em meu rosto, causando reconhecimento, pertencimento,
tudo o que eu não poderia sentir. — Me perdoe.
Estremeci ao ouvir seu pedido tão genuíno, despido da altivez, da arrogância que Álvaro
tanto sustentava. Outra vez ele juntou os lábios aos meus em um beijo lento, calmo, breve,
afastando-se para que nossos olhares se encontrassem, testando minha permissão.
— Perdoe minhas falhas — disse baixinho, os polegares capturando as lágrimas que
desciam, os lábios tocando os meus com beijos sedutores. — Aceite o meu amor.
Fechei os olhos quando o choro se tornou real. Virei o rosto quando Álvaro tentou outra
vez me beijar. Eu não podia. Queria. Mas não podia. Ele me abraçou, acolhendo minha dor como
deveria ter feito naquele dia, quando ao invés de me acalmar preferiu derramar em mim toda a
sua raiva.
E eu sentia falta disso, do seu apoio, da sua maneira de me segurar em seus braços e
consertar todos os meus medos, minhas dores. Álvaro perdeu o time, errou o momento e desfez a
mágica. Por isso, ainda que houvesse um apelo imenso em meu corpo para que eu fizesse o que
ele me pedia, aceitasse o seu amor, eu não conseguia.
Por isso o afastei. Álvaro não me impediu. Limpei as lágrimas e me esforcei para controlar
as emoções. Quando voltei a encará-lo, eu tinha força o suficiente para aquela mínima ação.
— Não — declarei sem parecer rancorosa. — Você não me ama, Álvaro. Não me ofereça o
que não pode me dar.
— Isotta…
— Seja honesto com nós dois. Nada do que fizemos foi real. Isso que você me oferece, é
um castelo de cartas. Ele desmonta, despenca, se destrói sob a mínima brisa.
— Não é verdade.
Mas estava lá aquela pose, a máscara que ele vestia quando era conveniente, a frieza que o
tornava intocável, distante, mítico.
— Eu acreditaria em você e compraria essa farsa se você tivesse me abraçado assim
quando eu sofri o aborto. Se você tivesse acolhido a minha dor.
— Droga! — rosnou, levando a mão ao rosto para esfregá-lo.
— Eu aceitaria esse pseudo amor se você tivesse fingido se importar.
— Eu me importo, Isotta.
Foi a minha vez de sorrir. Amargurada, sofrida, ferida como se jamais conseguisse me
recuperar.
Harry choramingou ao meu lado. Era como se ele sentisse a minha tristeza. Como se
tivesse a capacidade de compreender o que acontecia ali.
— Eu errei.
A maneira como ele falou, hesitando no último segundo, como se precisasse dominar suas
ações, repensar suas palavras, me fez lembrar que à minha frente estava um estrategista, um
Capo, um homem que não se deixava conduzir pelos impulsos.
E eu odiava aquele Álvaro.
— Porra, Isotta! O que quer que eu diga? Eu pedi perdão. Estou a dias como um cachorro
atrás de você e… caralho! Eu não sou assim.
— Não. Você não é.
Álvaro passou as mão pelo cabelo, aborrecido, vibrante como uma bomba prestes a
explodir.
— Você é um babaca arrogante que não sabe o que fazer com a esposa que quer te deixar.
— O quê?
— Você não sabe o que fazer com a rejeição porque é o bandido sedutor que escolheu se
envolver com prostitutas porque elas não contestam as suas escolhas.
Ele deixou escapar uma risada nervosa. Seus olhos chispavam fogo na minha direção. As
mãos na cintura, como se precisassem encontrar alguma função que não fosse me esganar.
— Você não me ama. O que está sentindo é o ego gritando por não ter conseguido me
ludibriar por um mês.
— Inacreditável — murmurou.
— E a sua questão comigo não é o sexo com o qual tenta me dissuadir. É a sua imagem
perante uma comunidade que cobrará a existência de uma esposa. Que nunca te deixará esquecer
que você não tem pulso para me manter ao seu lado.
— Já chega!
Ele me segurou outra vez, puxando-me ao seu encontro. Não havia mais a leveza do amor
que tentava me fazer acreditar, contudo, aquele fogo que ardia em seus olhos entrava pelo meu
corpo e lutava para me dominar. Álvaro me mantinha firme com uma mão fechada em meu braço
e outra em minha nuca.
— Você é uma menina mimada que o pai não teve pulso para colocar nos trilhos.
Sua voz, baixa e raivosa, não surtia o efeito correto em mim. Álvaro se tornou perigoso
como nunca antes, sem os cuidados que sempre demandava até mesmo quando brigávamos.
Havia força em seu toque, mas minha mente entendia como fogo, ardente, pulsante, verdadeiro.
Incontestável era a química que existia entre nós. Ela estava sempre ali, na espreita, como
uma névoa que se aproximava sem chamar atenção, nos envolvendo aos poucos, penetrando
nossos poros, circulando por nossas veias, se apossando dos nossos neurônios.
— É só me mandar embora.
— Não!
— Por quê?
— Porque eu te amo, porra!
Aquela era a mesma declaração que me fez fugir de casa. A mesma que me abalou por
anos. A que me fez temer Nicolo e a sua obsessão. No entanto, quando Álvaro a pronunciou,
daquela forma, naquela intensidade, minhas barreiras enfraqueceram.
Álvaro atacou minha boca. Não mais como antes. Havia fúria na forma como seus lábios
se moviam nos meus, e também, assumo, na maneira como o meu retribuía. Havia dor, mágoa,
desespero em cada investida, na língua que me buscava, nas mãos que me exploravam e me
prendiam ao seu corpo. E nas minhas, que, como se fosse possível, tentavam puxar para dentro
de mim aquelas palavras, aquela verdade.
Harry latiu, em seguida choramingou. Álvaro desfez o beijo, me segurando com posse.
— O que você está fazendo comigo? — ele suspirou, perdido, testando como aquela
confissão funcionava.
Então ele me deixou de vez. Afastando-se. Criando um espaço entre a gente que dizia mais
do que os centímetros de distância. Era como se ele criasse uma falange entre nós. Suas mãos
correram pelos fios bagunçados e seus olhos buscavam alguma verdade em meu rosto.
— Porra, Isotta!
E assim ele se foi. Intenso. Confuso.
Álvaro me deu as costas e retornou para casa com passos rápidos. Harry se ergueu, deu
alguns passos em sua direção, parou, olhou para mim, choramingou, voltou a olhar para Álvaro.
— Vá com ele, garoto.
Sem insistir, Harry também me deixou, correndo atrás de um Álvaro que já tinha
desaparecido dentro de casa.
Sentei na cadeira percebendo minhas pernas trêmulas e meu corpo fraco. Passei as mãos
pelo rosto em busca de clareza. O que foi aquilo? Levei os dedos aos lábios inchados e sensíveis.
Álvaro ainda estava ali, no seu gosto, nas minhas vontades.
— Puta merda! — murmurei.
Ouvi o miado de Lilica e quando olhei em sua direção ela pulou em meu colo, aninhando-
se em mim. Passei a mão por seu pelo, acariciando a gata manhosa.
— O que você fez, menina?
Lilica ronronou, se enroscando em meu colo.
— Não me diga que fez isso de propósito. — Ela miou em resposta. — Não, você não
pode tentar consertar as coisas assim. — A gata miou outra vez e pulou do meu colo.
Ela não voltou para casa. Lilica era a mais esperta naquele jogo. Ela sabia que em situações
como aquela, o melhor a fazer era se esconder e deixar os ânimos se acalmarem.
E era o que eu faria. Não havia mais espaço para outra dose de Álvaro.
***
Olhei para trás, para a casa escura, a sala vazia e silenciosa, e me perguntei como fui parar
ali? Eu sentia medo e frio. Observei as portas que davam acesso ao jardim e ao lago e estas
estavam fechadas. Eu usava uma camiseta justa ao corpo. Ela era fina e me passava a sensação
de estar exposta. A pele arrepiada me fazia buscar o tempo todo a fonte daquele frio, sem
encontrá-la.
Dei um passo e só então observei meus pés descalços sobre o porcelanato gelado. Minhas
coxas nuas reforçaram a sensação de exposição incômoda e angustiante. Eu queria me cobrir. Se
algum soldado me encontrasse com tão pouca roupa Álvaro ficaria furioso.
Álvaro.
Outra vez a sensação de medo percorreu meu corpo. Onde Álvaro estava? Como eu fui
parar ali?
— Senti falta da sua alegria.
A voz de Nicolo preencheu o ambiente, ecoando como se tivesse sido reproduzida de
algum ponto distante. Assustada, olhei ao redor, procurando por ele, sem encontrá-lo. Levei a
mão às costas e não encontrei minha pistola. Por que eu estava desarmada? Como eu cheguei ali?
— Eu te disse, não será tão fácil se livrar de mim.
Outra vez a voz se arrastou em minha direção como um animal prestes a dar o bote.
Alarmada, girei ao meu redor em busca dele. A escuridão escondia o perigo à minha espreita.
Um suor frio escorreu pelas minhas costas.
— Jordan! — gritei, entretanto, minha voz não saiu. Não havia força.
— Eu avisei que não facilitaria — Nicolo advertiu.
Então aquela conversa ganhou sentido. Foi o que ele me disse quando me ligou.
Exatamente as palavras que me fizeram abortar. A raiva fluiu em minhas veias.
— Eu avisei que não facilitaria.
Desta vez a voz adquiriu mais potência. Virei com pressa ao senti-lo atrás de mim. Nicolo
não estava lá, mas estava em algum lugar, muito perto, pronto para me atacar.
— Estou atrás de você, Isotta — sussurrou. A voz grudou em minha pele como se ele a
tivesse colado em mim. — Em todos os lugares. — Girei outra vez, imagens se formando à
minha frente, as palavras chegando de todos os lados. — Nas sombras. — O rosnado ativou meu
sensor de defesa. — Quando menos esperar, eu te alcanço.
Então Nicolo me atacou. Saindo das sombras ele avançou sobre mim, as mãos em meus
braços, me impedindo de me defender. Ele me arremessou contra o sofá. Eu gritava sem voz e
me debatia com loucura. Não queria que ele me tocasse. Não queria que ele estivesse perto de
mim. Não queria…
Minhas mãos, em toques desesperados, arranhavam a pele, puxavam a camisa dele para
que se afastasse, até que esbarrei na arma que ele portava de forma velada nas costas, como eu
fazia.
Nicolo passou os braços por baixo de mim, posicionado para me carregar. Aquela era a
minha oportunidade. Puxei a arma com pressa.
— Isotta?
Chutei Nicolo até que conseguisse afastá-lo de mim.
— Isotta, não!
Apontei a arma, no entanto, a imagem de Nicolo estremeceu.
— O que está fazendo?
A voz não era mais a mesma. Ele avançou com pressa. Não havia tempo. Sua mão
esbarrou na minha no mesmo segundo em que eu atirei. A arma caiu da minha mão, lançada para
o lado. O barulho do tiro, misturado ao sonoro “porra”, me despertou.
Eu estava na sala de TV, no sofá. A luz acesa, tudo claro demais de forma a me assustar. A
porta se escancarou com um estrondo e homens armados entraram como se eu estivesse diante de
uma cena Hollywoodiana. Contudo, assim que me dei conta de que acordava de um pesadelo,
meus olhos se encontraram com o de Álvaro, na outra ponta do sofá, a mão no braço
ensanguentado, os olhos fixos em mim com a mais pura reprovação.
E assim eu soube que atirei em meu marido.
Se antes eu não encontrava uma forma de nos ajustarmos, aquele era o ponto que colocaria
um fim definitivo em nosso casamento.
45
ÁLVARO

— Onde ela está? — Perguntei a Jordan ao encontrá-lo.


— Na sala de TV — ele avisou.
Eu deveria passar direto pelo soldado, porém, minha cabeça não funcionava bem desde que
nomeei meus sentimentos por Isotta. Naquele mísero segundo, entre ouvir em voz alta o que eu
sentia e me dar conta de que não havia mais como suportar a distância que ela impunha, eu me
enxerguei como um miserável.
Amava Isotta, mas isso não resolveria nossos problemas. Eu não podia ser um novo Nicolo
em sua vida. Não podia me impor com a justificativa de que a amava. Não podia forçá-la a me
amar nem sequer a me aceitar em sua vida. E era tão fodidamente contraditório que me sufocava.
Ela era minha esposa. Não existia divórcio em nosso meio. Não havia como abrir mão
dela. E eu me apegava a isso porque apenas essa conveniência obrigaria Isotta a permanecer
comigo, como minha esposa, contudo, não como minha mulher.
— Como ela está?
Perguntei baixo, constrangido por precisar das informações de um soldado para saber o
humor da minha esposa. Jordan me deu um olhar rápido, tão estranho quanto eu buscar nele um
ponto de apoio. Ele estreitou os olhos enquanto pensava no assunto. Sua cabeça se inclinou um
pouco para o lado e eu desejei sair dali antes de ouvir o que ele me diria.
— Você quer que eu te fale sobre a segurança de Isotta ou sobre como ela se sente em
relação a você?
Abri a boca e fechei várias vezes. Não era a primeira conversa que eu tinha com Jordan
que não abrangesse o trabalho dele. Mas, assim como eu, ele era fechado, sério. Jordan não fazia
amigos em nosso meio. Na verdade, era um cara tão compenetrado em suas atividades que
rápido conquistou a nossa confiança.
Porém era apenas isso. Um soldado e seu Capo. Nunca um homem louco de amor e o
único homem próximo o suficiente da minha esposa para me fornecer informações.
E eu não me sentia de volta a adolescência porque nem mesmo neste período precisei
disso. Perdi a virgindade em um puteiro e depois, tive as mulheres que desejei sem precisar me
esforçar. Eu de fato era inexperiente naquele quesito.
Ainda assim, não consegui dizer para Jordan que queria que ele fizesse aquele papel. Não
consegui nem mesmo dizer a ele que não queria que o fizesse. Eu só o encarei, calado, perdido
pela primeira vez em anos, sem qualquer noção do que deveria fazer.
Jordan suspirou, olhou para frente em posição de soldado e falou:
— Isotta te ama.
Eu não deveria sorrir. Até mesmo lutei contra o sorriso que insistiu em esticar meus lábios.
E também não deveria me sentir tão enlevado ao ouvir aquelas palavras, contudo, a verdade era
que fiquei.
— Mas ela está muito magoada. Você pegou pesado.
— Eu sei — admiti, constrangido.
Claro que Jordan ouviu quando enlouqueci no quarto do hospital e acusei Isotta de coisas
terríveis. Eu deveria me envergonhar mesmo, e me sentir humilhado por ter um soldado dizendo
aquilo para mim.
— Ela quer ir embora.
— Eu sei.
Desta vez a dor e o medo se juntaram a todos os outros sentimentos que me castigavam.
— Isotta não será feliz sem você, Álvaro.
— Bom, isso eu já não sei.
Jordan sorriu de forma discreta, sem abandonar a pose atenta.
— Disso pode apostar que eu realmente sei — ele finalizou.
E eu que nunca defini minhas relações pessoais tomando como base os benefícios que o
outro lado me fornecia, passei a olhar Jordan de uma forma mais positiva.
— Obrigado — eu disse, me esforçando para não parecer alegre demais.
De fato, o que não vivi na adolescência tomava posse de mim na vida adulta. Hesitei diante
da porta da sala de TV. Tentei captar um pouco de como Isotta estava para termos aquela
conversa, no entanto, eu apenas ouvi o som baixo da televisão.
Abri a porta devagar. O cômodo iluminado parecia intacto. Se não fosse pelo filme
reproduzido eu diria que não havia ninguém ali.
Caminhei até o sofá e vi Isotta encolhida, dormindo. Linda! Normalmente eu amava seus
olhos abertos, a cor que me fascinava, as emoções que ela nunca conseguiria esconder. Mas eu
amava observá-la adormecida. Tão quieta, com os lábios desenhados semi abertos, o rosto
inocente, o cabelo que costumava cair sobre seu rosto.
Com cuidado me aproximei. Eu deveria acordá-la, mas não consegui. Sentei ao seu lado e
desenhei suas feições com a ponta dos dedos, quase tocando-a. Isotta se mexeu, o pescoço à
mostra. Eu quis beijá-la ali, sentir seu cheiro, ouvir seu ronronar preguiçoso enquanto ela se
contorcia com meus toques.
— Isotta? — sussurrei.
Ela não se mexeu outra vez. Não reagiu. Por isso resolvi levá-la para o quarto. Nossa
conversa ficaria para outro momento. Porém, quando passei as mãos por baixo do seu corpo,
Isotta tentou me afastar. Encarei seu rosto adormecido. Ela choramingou, como se não me
quisesse perto.
— Isotta? — Chamei para saber se ela de fato me rejeitava ou se sonhava.
Isotta me empurrou com força. Pego de surpresa, me desequilibrei, deixando-a cair sobre o
sofá. Ela não despertou, mas se debateu em desespero. Com certeza sonhava, pois mantinha os
olhos fechados e gemia angustiada como se travasse uma briga com alguém. Comigo? Eu era o
fruto do pesadelo dela. Tentei segurar seus braços e acordá-la, mas ela reagiu rápido demais.
Eu não esperava por isso. Em nenhuma das realidades traçadas para aquele momento, levei
em consideração a pistola que eu portava quase como uma parte do meu corpo. Isotta nunca
tentou pegá-la. Nunca. Contudo, ela pegou naquele instante, de forma tão rápida e precisa que
considerei a sua consciência. Ela não podia estar dormindo, não quando tentava apontar a arma
para mim.
— Isotta, não!
Gritei com pressa, horrorizado por ver seus olhos fechados, ainda que ela agisse com
determinação.
— O que está fazendo?
Ela atiraria. Acordada ou não, o que acontecia em sua mente a faria atirar para se defender.
Eu não tinha mais nenhuma dúvida. Por isso fiz o que sabia fazer, tentei desarmá-la, porém Isotta
foi mais rápida. No instante que meu cérebro enviou a mensagem para que tirasse a pistola da
mão dela, Isotta atirou.
— Porra!
Eu não senti o tiro de imediato, porém, tinha total certeza de que me atingiu. Ainda assim,
bati na mão dela e a segurei até que a pistola estivesse longe do seu alcance. Então Isotta abriu os
olhos, atordoada. Os soldados adentraram a sala, com armas em punho, prontos para aniquilarem
o perigo.
Soltei Isotta quando senti meu braço arder e a manga da camisa ficar molhada e quente.
Sentei no sofá, os olhos fixos nela até que ela se desse conta do ocorrido.
— Álvaro? — ela sussurrou, mas dentro da sala a confusão se fazia.
— O que aconteceu? — Valentin perguntou, tenso, ainda com a arma na mão apontando
para Deus sabe quem.
— Um acidente — declarei.
— Você foi atingido?
Isotta olhou para meu braço, em seu rosto todo o pânico pelo ocorrido.
— Álvaro! Ai meu Deus!
Mas ela, ainda que tivesse se inclinado em minha direção, não conseguiu me tocar. Isotta
tremia como nunca vi antes. Nem mesmo quando Nicolo lhe atacou.
— Porra, chamem um médico — Valentin ordenou aos soldados, que começavam a
entender que não havia perigo ali.
— Isotta, você está bem? — Jordan perguntou, deixando de lado toda a formalidade ao se
preocupar com minha esposa.
— O que eu fiz? O que eu fiz? — Ela balbuciou.
— Você atirou? — ele questionou, tão surpreso quanto todos naquela sala.
— Foi um acidente — eu repeti.
Valentin passou para o meu lado, levantou minha camisa e conferiu a gravidade. Eu não
conseguia tirar os olhos dela. Isotta estava tão chocada que não conseguia chorar. Ela ofegava
com o olhar petrificado.
— Foi de raspão — Valentin informou. — Mas vai precisar que um médico olhe isso.
— Jordan, leve Isotta daqui — ordenei. Ela não contestou. — Faça com que o médico
atenda primeiro ela.
Jordan a ajudou a levantar, ciente de que Isotta agia no automático. Ela não deixava de me
olhar e eu tinha certeza de que se a deixasse ali, ela teria um colapso nervoso.
— Está tudo bem — eu a tranquilizei, no entanto, parecia que ela não me ouvia. — Vá
com Jordan.
Isotta deixou a sala. Valentin recolheu minha pistola do chão e me devolveu. Meu braço
ardia como o inferno. Só depois que ela saiu, eu encostei no sofá e conferi o machucado. Havia
muito sangue. Não foi apenas um arranhão, entretanto, uma ferida real, ainda que nada grave.
Não era a primeira vez que eu levava um tiro. Na verdade, no mundo em que eu vivia, ter
uma arma apontada em minha direção não me assustava. Contudo, quando Isotta o fez, eu sabia
que aquilo dividiria muitas questões em nossas vidas. Eu não queria que ela tivesse passado por
isso.
— Não é melhor irmos ao hospital? — Alguém falou atrás de mim. — Ele está perdendo
sangue rápido.
— Álvaro? — Valentin perguntou.
— E o que vamos justificar?
— Você sabe que não precisa justificar nada.
— Não foi grave.
— Não foi, mas pode ficar.
— Se eu deixar essa casa para ir ao hospital, Isotta vai enlouquecer.
— Cara… — Valentin lamentou, mas não insistiu. — Alguém já ligou para a porra do
médico?
Fechei os olhos e tentei ignorar a dor. Eu precisava ver Isotta, contudo, procurá-la
alimentaria sua aflição. Ela não podia ficar comigo enquanto eu exibia o que fez.
— Veja como Isotta está — ordenei.
Valentin fez sinal para alguém atrás de mim, mas não me deixou.
— Temos uma marca de tiro na parede — ele comentou.
— Pois é. E uma nova em meu braço.
Ele riu, não sem demonstrar preocupação.
ISOTTA
Tudo passava por mim como flashes. Eu não conseguia reagir, não conseguia responder as
perguntas que me faziam. Jordan me levou para outra sala, me fez sentar em um dos sofás
enquanto eu via a movimentação de homens armados por todos os lados. “Não foi nada” ele
dizia, não sei se para mim ou para os outros. “Mantenham as posições”.
E assim o tempo passou por mim. Se ele se arrastou ou se correu, eu nunca saberia dizer.
Fechei os olhos e escondi o rosto entre as mãos. O que eu fiz? Por que não percebi que era um
pesadelo? Por que Álvaro me deixou pegar a arma? Eu era um perigo. Não deveria conviver com
ninguém. Estava louca. Louca. Louca! LOUCA!
— Isotta? — Jordan chamou. — Você está muito nervosa. Responda as perguntas do
doutor.
Doutor? Então senti o aperto em meu braço e ao meu lado, um homem que não me olhava
aferia a minha pressão.
— Está tonta? Com náuseas? Como está a sua visão?
Ele perguntava, mas eu não conseguia responder.
— Como ele está? — murmurei. O médico olhou para Jordan.
— Álvaro será atendido assim que o doutor finalizar com você — Jordan avisou.
— Não!
Puxei meu braço com força. O homem não reagiu.
— Você precisa cuidar dele — eu disse sem saber ao certo se havia força em minha voz ou
não.
Tudo se movimentava tal como meu pesadelo, no entanto, daquela vez, Nicolo era apenas
uma sombra, um aviso de que ele conseguiria arrancar tudo de mim.
— A senhora está muito nervosa — ele observou.
— É claro que estou!
— Isotta — Jordan se abaixou à minha frente. — Álvaro está bem. Ele precisa que você
também esteja.
— Eu posso aplicar um calmante e…
— Não! — rosnei.
— Tudo bem — Jordan interveio. — Nada de calmantes. O senhor pode atender Álvaro.
Eu fico com Isotta.
O homem levantou. Os soldados continuavam armados, o que me fez compreender que
naquele momento não precisávamos esconder quem éramos. Era normal nos cercamos de todos
os tipos possíveis de profissionais. Um médico não seria novidade. Algumas máfias tinham até
mesmo seu próprio hospital, para abafar os casos.
— Obrigada — sussurrei para Jordan.
— Eu diria que tinha sorte por desacatar uma ordem justamente quando Álvaro foi atingido
no braço, mas para meu azar ele atira muito bem com os dois.
— Droga, Jordan!
Voltei a esconder meu rosto nas mãos.
— O que eu fiz?
— Atirou em seu marido.
— Porra!
Ele riu. Eu estava à beira de um colapso nervoso e Jordan ria da minha situação.
— Acho que agora vocês estão quites.
Encarei meu soldado sem acreditar naquelas palavras. Com certeza eu estava louca. Não
havia explicação para que eu risse, depois para que eu não conseguisse me controlar, deixando o
riso dominar todo o meu corpo, e em seguida me entregar para um choro desesperador.
— Tá tudo bem, Isotta — Jordan me consolou.
— Não. Não está — eu solucei. — Se Álvaro depois disso não me trancafiar em um quarto
eu serei obrigada a acreditar que ele é mais louco do que eu.
— Ou, acreditar que ele realmente te ama.
— Ah, Jordan! — Lamentei.
— Está tudo bem — ele repetiu de forma carinhosa, como um bom irmão.
E eu agradeci mentalmente por Miguel ter escolhido Jordan para estar comigo, pois se não
fosse ele eu enlouqueceria na solidão.
46
ISOTTA

Adormeci no sofá quando o choro acalmou. Jordan se manteve ao meu lado, não como um
soldado, mas como um amigo gentil. Sentado comigo, ele tentou muitas vezes me convencer a ir
para o quarto, e não me censurou quando declinei todas as ofertas. Eu queria ver Álvaro, me
certificar de que ele estava bem ainda que precisasse encarar a sua fúria.
Mas o sono me venceu.
Desta vez não sonhei. Meu cérebro desligou, impedindo que Nicolo ou Álvaro me
alcançassem. Foi como se tudo deixasse de existir para que eu pudesse me recuperar. Então senti
a mão de Jordan em meu braço, para em seguida sua voz me forçar a abrir os olhos.
— Vamos. Você precisa descansar — Jordan insistiu.
— Não. O médico já saiu?
— Já. Tem mais ou menos meia hora que ele foi embora — informou. — E Álvaro já
procurou saber sobre você.
Engoli com dificuldade. Claro que Álvaro perguntaria por mim. Precisava se certificar de
que eu nunca mais teria a chance de apontar uma arma para ele. Apesar do meu medo, da certeza
de que ouviria mais coisas ruins, apesar de que em nada eu poderia acusá-lo daquela vez, eu
precisava vê-lo. Precisava me desculpar, justificar, mesmo ciente de que de nada adiantaria.
Álvaro poderia me manter trancada em um quarto até Nicolo deixar de ser uma ameaça,
assim como poderia desistir de me proteger e me devolver para a minha família. Qualquer
decisão seria justa, contudo, qualquer uma delas me faria sofrer como nunca imaginei ser capaz.
Se antes eu tinha certeza de que uma vida ao lado do Nicolo seria torturante, uma vida
longe do Álvaro tornava-se um cenário pior. Puxei o ar com força. A ideia me atormentava, me
machucava, roubava meu ar. Passei as mãos trêmulas no rosto e sequei as primeiras lágrimas que
escorreram. Eu estava com medo. Muito medo.
— Ele está bem — Jordan assegurou. — Está no quarto.
— No quarto de hóspedes? — perguntei baixinho, a voz presa junto com o choro.
— No quarto de vocês.
A informação me surpreendeu. Desde o meu aborto Álvaro dormia no quarto de hóspedes.
A princípio por determinação minha, quando tranquei a porta e o impedi de entrar. Depois, por
aceitação. Ele não tentou me persuadir, não impôs sua presença nem exigiu sua permanência ao
meu lado.
Mas nem isso me acalmou. Ele poderia estar lá para me dar a sentença, ou, para me obrigar
a fazer as malas.
E era incrível como até o final da tarde eu estava decidida a ir embora, a não viver com ele,
a deixar de ser sua mulher. Eu ainda me ressentia pelo que ele disse, pelas acusações injustas.
Acreditava que não seria capaz de perdoá-lo. Até atingi-lo com um tiro, ainda que sem a
intenção. Ver Álvaro machucado derrubou mais minhas barreiras do que ouvi-lo se declarar.
Saber que eu o feri e que isso poderia nos afastar de vez, tornou-se desesperador.
— Certo.
Levantei, no entanto, minhas pernas não estavam fortes ainda. Jordan me auxiliou. Eu me
sentia tremer dos pés a cabeça, ainda que tentasse me controlar. Observei a sala vazia. Com
certeza os soldados nos davam privacidade, ficando apenas Jordan para garantir que eu ficaria
bem. Mas eu não ficaria. Álvaro me mandaria embora, ou me desprezaria para sempre.
Caminhamos sem pressa até a porta do meu quarto, quando Jordan se afastou, permitindo
que eu fizesse todo o restante sozinha. Respirei fundo, abri a porta e encontrei o quarto vazio.
Fechei a porta, observei a cama arrumada. Lilica não estava por lá, nem Harry. Provavelmente
Álvaro os enxotou do caminho.
Dei os primeiros passos e só então ouvi o som da pia recém aberta, depois a movimentação
no banheiro. Congelei no lugar. Eu ansiava por vê-lo, confirmar seu estado, me certificar de que
não o machuquei de forma irreversível. Ainda que isso me custasse uma sentença. Que eu
precisasse enxergar em seu rosto o desprezo, a vontade de me manter longe.
Sem conseguir me mexer, senti o ar congelar em meus pulmões quando o som da água se
extinguiu e os passos indicaram que Álvaro voltava para o quarto. Ele apareceu demonstrando
estar ciente da minha presença. Usava uma calça de moletom cinza e nada mais. O peitoral à
mostra, sem qualquer machucado, no braço um curativo. Ele secava o cabelo com uma toalha,
mas a arremessou de volta para o banheiro ao me encarar.
Não controlei as lágrimas. Ainda que minha dignidade exigisse que eu me mantivesse de
pé para encarar minha sentença, não consegui. Álvaro não demonstrava fraqueza, não parecia
nem mesmo alguém que acabara de ser atingido por um tiro. Ele estava tão lindo e tranquilo que
foi como se minha mente dissesse: certo, Isotta, você não o matou. Relaxe!
E foi o que meu corpo fez. Só que relaxar significava não mais conter a emoção. E o que
mais havia em mim era emoção. O medo por ser um risco constante, o pavor do que fiz, o amor
que crescia em meu peito e me sufocava, a certeza de que ele me afastaria de vez, a vontade de
não me afastar. Tudo se misturava e me impedia de agir, de falar, até mesmo de olhá-lo.
Ouvi os passos dele em minha direção e me preparei para o pior, porém, assim que Álvaro
me alcançou, eu me vi envolvida em seus braços. Era tão acolhedor que me desmontava, destruía
minhas barreiras, desfazia minhas resoluções.
— Está tudo bem — ele sussurrou enquanto acariciava minhas costas. — Eu estou bem,
Isotta.
— Eu podia ter te matado — falei com a voz esganiçada, sem conter o choro constante. Ele
deu uma risada curta e beijou o topo da minha cabeça.
— Não podia não.
— Claro que podia. Eu peguei a sua arma e… meu Deus, Álvaro! Eu atirei.
— Você tem uma péssima mira, Jasmine.
Eu ri um pouco, em parte aquecida e surpresa pela reação dele, em parte por ainda não
conseguir me conectar com aquela realidade. Talvez eu ainda estivesse dormindo, sonhando, me
escondendo do que encontraria quando abrisse os olhos.
— Não tenho não.
— Ah, tem sim.
— Eu estava de olhos fechados.
— Hum! Talvez tenha sido isso.
Eu tentei me afastar, conferir de fato o seu estado, mas Álvaro enlaçou mais os braços ao
meu redor.
— Vai me mandar embora?
Os braços de Álvaro me seguraram com mais afinco, como se precisassem me garantir de
que ali era o meu lugar.
— Eu pensei que era o que queria. Tentou até me matar.
De olhos fechados, a testa em seu peito, absorvendo seu cheiro divino pós banho, deixei
que outra lágrima caísse.
— Por favor, me desculpe. Eu sou mesmo uma ameaça. Não mereço a sua confiança.
— Não se puna tanto — ele pediu, dando mais um beijo carinhoso na minha cabeça, para
em seguida segurar meu rosto com as duas mãos e erguê-lo até que nossos olhares se
encontrassem. — Não é a primeira vez que alguém atira em mim.
— Álvaro! — sussurrei, horrorizada com aquela ideia.
— Mas eu matei todos os que tentaram — ele completou.
— Você vai…
Engoli em seco, sem acreditar que de fato cogitava aquela possibilidade, contudo, Álvaro
era uma caixinha de surpresas e eu não podia mais prever as suas reações. Ele sorriu diante do
meu medo. Tão lindo e tão perigoso.
— Eu deveria? — insistiu. Mordi os lábios sem conseguir encontrar uma forma correta de
reagir a sua provocação. — Você vai me prometer uma coisa, Jasmine. Quando precisar se
defender, atire pra matar.
Insegura, abracei sua cintura e de olhos fechados voltei a esconder meu rosto em seu peito.
Eu não queria pensar naquilo. Um pesadelo me fez atirar em Nicolo e atingir meu marido. O que
aconteceria se eu precisasse usar a pistola para me defender de verdade? Não, nada me preparou
para aquilo. Nada me deixou ciente de que atirar em alguém exigia muito mais do que atirar em
um alvo parado em um ambiente controlado.
— Por que você me chama de Jasmine?
Seus dedos percorreram meu cabelo. Álvaro descansou o rosto entre os fios soltos e meu
pescoço e aspirou o cheiro.
— Por que você parece a princesa do Aladim — revelou com a voz abafada, o hálito
alcançando minha pele e me esquentando. — Linda, presa em um palácio sem poder conhecer o
mundo depois dos portões. Claro, tem o cabelo longo e escuro, além de ser rebelde ao ponto de
escolher como marido um bandido disfarçado de príncipe.
— Eu não tive muita escolha.
— Nem eu — ele brincou.
E eu sorri. Em nenhum universo possível eu imaginaria Álvaro consciente dos personagens
de uma história de princesa. Em nenhum dos finais desenhados após o ocorrido eu apostaria em
Álvaro abraçado a mim, leve, disposto a eliminar aquela rusga em nossas vidas.
Eu o amava. Amava tanto que me agarrava a ele para que aquele momento não acabasse.
Para que ninguém me despertasse do sonho. Para que meus olhos não abrissem.
— Estamos bem? — ele perguntou com um leve toque de insegurança na voz.
— Você quer ficar bem comigo mesmo depois de eu ter tentado te matar?
— Depois do que eu fiz, levar um tiro é uma excelente maneira de ajustar as coisas.
— Não está falando sério.
Eu me afastei um pouco para encará-lo. Não havia nada em Álvaro que indicasse o
contrário do que ele dizia.
— No mundo em que eu vivo, Isotta, quando a relação vale a pena, resolvemos uma ofensa
com socos. Quando não vale, com tiros.
— Eu deveria ter te dado um soco então?
— Teríamos menos desgastes.
— E depois dos socos fica tudo bem?
— É como funciona.
— Vou lembrar disso na próxima.
— Não acerte o meu nariz. Deu trabalho fazer ele ficar assim.
— Você fez cirurgia no nariz? — Eu ri, impactada com aquela confissão e enlevada com a
maneira como Álvaro afastava de mim a culpa e a tristeza.
— Depois que Jean o destruiu. Nem sempre concordamos em tudo. Não se assuste, você
precisava ver como ele ficou.
— Isso é tão… homens das cavernas!
— É o que somos.
Álvaro me segurou outra vez e me levou na direção da cama.
— Já posso beijar a princesa?
— Por favor — sussurrei.
E ele me beijou.
Tudo desapareceu em um segundo, ficando apenas Álvaro, o beijo lento e cheio de
cadência, as mãos firmes em minhas costas, movimentando-se em conjunto. Corpo, dedos,
lábios, língua, todos na mais perfeita harmonia, me envolvendo, me guiando, me fazendo desejar
que nada o impedisse de continuar.
47
ISOTTA

Ele se juntou a mim na cama, evitando o peso do corpo, sem deixar de me beijar, de me
mostrar o quanto me queria, o quanto também estava envolvido. Álvaro estava em todos os
lugares, quente e cuidadoso ao mesmo tempo. Entre as minhas pernas, ele se movimentava,
esfregando-se em mim, me puxando para perto enquanto a mão vagava por minha coxa,
deslizando até o joelho, puxando minha perna para melhor acolhê-lo.
Os lábios sedutores deixaram minha boca, mas se mantiveram em minha pele, traçando um
caminho de fogo, descendo por meu pescoço, seguindo a direção dos meus seios. Céus! Aquilo
era normal? Antes de Álvaro eu sentia a deliciosa sensação de estar excitada quando alguém me
beijava, ou quando o beijo evoluía para carícias até então inocentes. Eu sempre tinha medo.
Mas nada se comparava aquelas sensações. Álvaro me incendiava, provocava, fazia meu
corpo desejar com tanta volúpia que por ele, para tê-lo eu arriscaria tudo. Não teria medo e sim
certezas. Ainda que fosse uma aventura, uma única noite. O motivo da minha ruína. Eu seria de
Álvaro quando ele me quisesse.
Porque meu corpo parecia configurado para aceitá-lo, para desejá-lo ao mínimo estímulo.
Quando Álvaro deslizava os dedos por minha bunda e me puxava na direção da sua ereção,
pequenos espasmos se espalhavam por minha pele, certificando-me daquela verdade. Era um
toque, um beijo e eu me rendia.
— Eu estou morto de saudade de você, Isotta — ele suspirou, os dedos desenhando o
contorno da minha calcinha, sem nunca chegarem no ponto que mais pedia a sua atenção.
— Eu também — admiti.
Álvaro escondeu o rosto em meu pescoço e deixou escapar um gemido de frustração.
Acariciei seu cabelo, tomando o cuidado para não tocar em seu braço machucado.
Ele se manteve assim por um tempo. Sem voltar a se mexer sobre mim, apenas os dedos
subiram pela minha barriga, acariciaram a pele, levantando o tecido enquanto continuava a me
explorar. Quando alcançou o sutiã, seus lábios se fecharam em meu pescoço, me jogando em
uma nova onda de desejo.
Sua mão buscou outro ângulo, abandonando a blusa para brincar com a alça desta,
descendo por meus ombros junto com o sutiã, porém, sem desnudar meu seio. Ele desenhou o
contorno com a ponta dos dedos, se demorando próximo ao bico. Ofegante, acompanhei a
deliciosa expectativa, desejando-o com intensidade.
— Duas semanas sem relações — murmurou com a voz rouca e lenta. — Vale apenas para
a penetração ou também para o orgasmo? — Seus lábios desceram na direção dos meus seios. Eu
me sentia latejar.
— Eu acho que… — umedeci os lábios quando ele, mantendo beijos gentis em meus seios,
desceu a mão por minha barriga, voltando a brincar com o desenho da calcinha. — Penetração.
— Orgasmo pode?
Os dedos adentraram de leve minha calcinha, sem me tocarem de fato, só abaixando-a
minimamente.
— Eu acho que… — Ofegante, eu me perguntava se aquilo era correto, ao mesmo passo
que me convencia de que um orgasmo jamais prejudicaria meu corpo. — Sim — sussurrei como
se implorasse pelo toque.
— Tem certeza?
Os dedos de Álvaro desceram pela lateral, quase em minha vagina, e apertaram a junção
entre minha coxa e meu sexo. Involuntariamente, minhas pernas se afastaram e meus quadris se
movimentaram.
— Não — respondi, confusa, incerta sobre aquilo.
— Não sabe ou não acha que eu deveria? — provocou.
— Álvaro…
Ele passou os dedos para o outro lado, por dentro da minha calcinha, roçando minha carne
úmida.
— Não sei — admiti. — Acho que deveríamos.
Ele deu um risinho baixo e rouco antes de levar a mão em concha até meu sexo. Eu me
contorci, apesar de não ter acontecido nada além daquilo.
— Bom… — ele lamentou, retirando os dedos, levando a mão até meu ventre, onde a
manteve como uma tentação. — Mas eu não consigo. Meu braço está machucado.
— Álvaro!
— Você atirou em mim, Isotta. O médico disse que eu preciso manter repouso, deixar o
braço quieto por pelo menos vinte e quatro horas.
— Droga! — resmunguei baixinho.
— Mas você pode me recompensar — ele prosseguiu, outra vez a mão descendo entre
minhas pernas, por cima da calcinha molhada. — Pode fazer por mim.
— Como assim?
— Fácil.
Ele me puxou, ainda que alegasse precisar manter o braço em repouso, e me posicionou
por cima, sentada sobre seu corpo, a ereção entre as minhas pernas. Estreitei os olhos, acusando-
o. Álvaro abriu um imenso sorriso, levando o braço machucado para atrás da cabeça.
— Assim está melhor.
— Não vou fazer o que está me pedindo.
— Eu só tenho um braço bom.
— Um braço bom faz muita coisa.
— A sua mão também.
— Álvaro!
— Você atirou em mim.
— E você me disse coisas horríveis.
Ele pareceu pensar no caso, ponderar nosso diálogo e analisar as justificativas.
— Eu continuo achando que levar um tiro é pior — declarou por fim.
— Um tiro de raspão.
— Porque você tem uma péssima mira.
— Eu estava de olhos fechados.
— O que prova que teria me matado se eu não tivesse um ótimo reflexo.
— Eu… você… Álvaro!
Ele sorriu outra vez, movimentando-se embaixo de mim, a mão em meus quadris para me
puxar, causando uma fricção deliciosa.
— Vamos lá, me recompense.
Suspirei. Encantada. Apaixonada demais para me impedir de fazer o que ele tanto
desejava.
— Você é obsessivo. — Tirei a blusa. — E suas fantasias são pornográficas. — Ele riu.
Lindo. Lindo demais.
— O sutiã também.
— Sem exigências.
— Como quiser.
Álvaro se calou quando tirei o sutiã. Sua expressão mudou rápido de divertido para
excitado. Havia labaredas em seus olhos de tempestades e me atingia com toda a sua potência.
Eu queria fazer aquilo, desde que ele continuasse me olhando.
Abri os botões da saia e a puxei por cima do corpo, ficando apenas de calcinha. Sem pressa
rebolei em sua ereção, arrancando um gemido baixo e delicioso do meu marido, então me
inclinei sobre ele, bem próxima dos seus lábios.
— Uma condição — estipulei. — Você vai usar o braço bom para se satisfazer.
— Agora?
— Junto comigo. Vai se masturbar por mim.
— Porra, Isotta!
Álvaro esqueceu o braço que precisava manter repouso e segurou minha bunda com as
duas mãos, me obrigando a roçar em seu pau, enquanto ele me beijava com devassidão. Os dedos
longos se afundavam em minha carne, me tocando por dentro da calcinha de forma pecaminosa,
devassa. Meu corpo vibrou, minha carne umedeceu e eu me senti pronta.
Ergui o corpo, atenta a ele. Acariciei meus seios, deliciada com o ofegar de Álvaro, atento
aos meus movimentos. Apertei minha carne, provoquei os mamilos. Tudo funcionava como
ondas elétricas que se espalhavam, ativavam meu corpo. Eu estava tão pronta. Deslizei as mãos
por meu corpo, enrosquei os dedos na calcinha e a puxei até o início da coxa. Eu não queria
removê-la, mas fazer com que Álvaro tivesse uma excelente visão do que eu faria.
Depois, excitada apenas por assistir a sua excitação, levei a mão por minha carne e adentrei
a calcinha, alcançando o clitóris.
Eu podia ser inexperiente quando o assunto era sexo a dois, mas masturbação era algo real
e presente em minha vida. Eu me conhecia, conhecia meu corpo, sabia onde cada ponto ficava,
de que forma atiçá-los, com qual pressão, com qual movimento.
Com os dedos, fiz movimentos circulares pequenos e lentos sobre o meu clitóris. Um
arrepio gostoso transpassou minha coluna, se alojando naquele ponto. Sem que eu precisasse
pensar no assunto, meus quadris se moveram, também sem pressa, acompanhando o movimento
dos meus dedos.
— É assim que você quer? — pirracei, encarando um Álvaro inebriado, as mãos fixas em
meus quadris, apenas acompanhando.
— Você gosta assim? — ele perguntou com aquela voz rouca que me excitava.
— Gosto — ronronei, alisando meu sexo, pressionando aquele pontiho que me levaria para
um orgasmo reparador. — E você?
Ciente de que aquele ato não poderia ser apenas para mim, desci os quadris sobre a ereção
dele e rocei minha carne, pressionando-o, ao mesmo passo que mantinha meus dedos ativos.
Álvaro mordeu o lábio inferior e suas mãos fizeram pressão em minhas coxas, me conduzindo
naquele bailar fruitivo.
— Gosto — ele confessou. — Não pare.
Então Álvaro me segurou pela cintura e ergueu o corpo, mantendo-me sentada em seu
colo, contudo, com o tronco próximo ao meu, um pouco inclinado para trás, o que o obrigava a
se equilibrar com o braço bom.
— Não foi esse o nosso acordo.
— Eu vou fazer o que você quer — ele prometeu, descendo os lábios por meu pescoço,
atiçando minha libido, enviando mensagens que encontravam respostas exatamente onde meus
dedos tocavam. — Mas antes preciso sentir seu gosto.
Ele abocanhou um seio, chupando-o com vontade. Pequenos espasmos fizeram minha pele
ficar ainda mais sensível sob meus dedos. Ele endireitou a coluna, ganhando liberdade com o
braço bom, sem que a boca me abandonasse.
— Continue, Isotta — implorou.
A mão desceu até minha bunda, me provocando de forma a arrancar meus primeiros
gemidos. Ele mantinha os lábios exigentes e os dentes perturbadores em meus seios, ora em um,
ora em outro, enquanto me puxava contra sua ereção, obrigando meus dedos a fazerem mais
pressão em meu sexo.
— Ah! — gemi, deliciada, pronta, entregue.
Álvaro se afastou. A testa entre meu pescoço e minha clavícula. Eu sabia que ele me
assistia. Na posição em que estávamos, eu também conseguia me ver, observar meus dedos na
carícia instigante, úmidos da minha excitação. Então eu o vi colocar a mão dentro da calça e
desnudar o pau ereto. Lindo. Tão perfeito quanto o próprio Álvaro. Lambi os lábios, relembrando
a sensação de tê-lo em minha boca.
— Safada — ele sussurrou ao capturar meus lábios e me libertar em seguida. — Você me
quer em sua boca — afirmou.
— Quero — confessei.
— Porra, Isotta! — ele rosnou. — E eu quero me afundar em você.
Gemi alto, tão deliciada, excitada, quente, saudosa dele, daquela voz, daquele corpo,
daquele jeito único de me tentar.
— Álvaro! — Gemi quando entendi que entrava por um caminho sem volta. O orgasmo
vibrando próximo do meu ponto, avisando a sua chegada.
— Goze — ele pediu. A mão ainda na masturbação, sem a mesma energia dos meus dedos.
— Goze pra mim — ordenou. Choraminguei um gemido, suas palavras vibrando em minha pele,
se alojando em meu clitóris. — Goze por mim.
E eu gozei, tão forte que me desestabilizou. Foi potente, gostoso, liberando toda a energia
acumulada em meu corpo, explodindo como uma bomba que dissolvia minhas células e
desativava meu sistema nervoso.
— Que delícia! — exclamou com mais vontade. — Você goza muito lindo, garota.
Abracei Álvaro e busquei seus lábios. Ele me beijou com desejo, enquanto sua mão
trabalhava de forma mais frenética entre minhas pernas. Apaixonada, encantada com tudo o que
acontecia, levei minha mão até a dele. Álvaro estremeceu, mas não me impediu.
Trabalhamos juntos por um tempo, nos beijando, atiçando, até que ele retirou a mão e me
deixou fazer sozinha. Eu arfei, encantada, inebriada com a ideia. Eu queria que Álvaro gozasse
em minha mão, que gozasse por mim, daquela forma.
Ele aproveitou a liberdade para me tocar como queria, os dedos tomando posse do meu
corpo, pressionando, acariciando, provocando, se deliciando em mim com volúpia e devassidão.
— Como você é gostosa — ele murmurou como se falasse sozinho, perdido em seu prazer.
— Não pare. Assim, meu bem.
Álvaro sussurrava, a respiração entrecortada, as mãos em meu cabelo, adentrando meus
fios, me aprisionando em sua boca.
— Eu vou gozar.
Ele avisou, a mão de volta a minha em um movimento ritmado, até que me segurou,
impedindo-me de subir e descer a mão em seu pau, e jorrou seu gozo quente, abundante,
enquanto o membro pulsava cativo em nossos dedos unidos.
Ofegantes, ele me puxou para que caíssemos sobre o colchão, satisfeitos. Eu me
aconcheguei em seu peito e em silêncio, Álvaro acariciou meu couro cabeludo até que eu
começasse a fechar os olhos, sonolenta.
— Que bom que atirou em mim — ele disse com a voz também arrastada pelo sono.
— Você tem uma tremenda dissonância cognitiva.
Ele riu, me puxou para perto e me deixou adormecer. E eu me senti como a Jasmine do
Aladim, agora com o príncipe que escolhi, vivendo feliz em meu palácio, alheia a realidade de
que fora daquele quarto, meu mundo desmoronava.
48
ÁLVARO

— O orçamento será aprovado em uma semana — Aaron comunicou. — Ele está com
nossa proposta, porém exigiu além do combinado.
— Quem esse filho da puta pensa que é? — reclamei, incomodado por ser Aaron a estar à
frente daquela que seria a nossa principal negociação, uma vez que abrir aquela estrada não só
engordaria nossas contas bancárias como facilitaria nosso trabalho.
E o problema não era a competência do meu subchefe. Essa era inquestionável. Eu jamais
permitiria que ele assumisse minhas atividades se não tivesse competência para isso. O que me
incomodava era não estar lá, de frente com o maldito governador que fingia ser mais do que era
para nos peitar.
Aaron era implacável, mas acreditava que negociar era a melhor solução. Eu só falava uma
vez, se precisássemos de mais uma conversa, esta não seria em um escritório.
— Estamos falando de milhões, Álvaro. Nossa empreiteira conseguirá mascarar as contas
sem qualquer risco de sermos descobertos. E, considerando os benefícios que apenas nós
colheremos, não há grande perda em atendermos as exigências.
— Não atendemos exigências. Nós fazemos exigências, Aaron. Quanto ele solicitou a
mais?
— Dez.
— Dez por cento? Isso fecha em vinte e cinco. Nada feito.
— A Yakuza deu uma cartada. Pelo visto eles querem ampliar os negócios.
— Foda-se! Talvez seja hora de eliminar a Yakuza no Brasil.
— Não sei se Jean gostaria de enfrentar duas guerras ao mesmo tempo — ele provocou.
— Por que não pendurou pelos pés aquele filho da puta?
— Não acho que precisamos chegar a tanto.
— Você nunca acha. Às vezes um tiro bem dado resolve todos os nossos problemas.
— Eu acredito que sim — disse com ironia, e eu sabia que ele se referia ao tiro que levei
de Isotta.
— Diga a Francisco que ele fica com os quinze por cento acordado e nós garantiremos que
a família dele continuará no poder na próxima eleição. Ele continuará socando no rabo o dinheiro
público.
Aaron riu, mas eu não estava com o bom humor que ele sempre ostentava. Há dois dias eu
apenas contava os minutos para a alta médica de Isotta. Queria me afundar na minha esposa e
esquecer do mundo. As brincadeiras eram divertidas, mas não me saciavam. Eu me sentia
torturar todas as manhãs quando acordava ao lado de Isotta nua, e me obrigava a não ir além de
carícias e masturbação.
Marturbação. Puta merda! Quando aquilo me atraiu tanto? Nunca. Eu gostava de sexo, de
sentir o aperto dela ao redor do meu pau, os espasmos deliciosos quando ela gozava, do vai e
vem enquanto ela subia e descia, me acolhendo em sua quentura.
Porra!
Naquela manhã eu deveria acompanhá-la na consulta com a Dra. Mônica Sergei, no
entanto, Aaron avisou que a negociação esbarrou em alguns entraves e eu precisei ficar,
deixando Isotta com Jordan, sem mim outra vez diante daquele assunto que deveria ser nosso.
— Você vem mesmo pra cá? — Aaron perguntou após o meu longo tempo em silêncio.
— Não sei ainda. Assim que Isotta chegar da consulta, defino. Mas talvez seja bom eu não
assumir. Não tenho a sua paciência para lidar com o Francisco. Se eu chegar aí, e ele não tiver
aprovado essa licitação, a família encontrará os pedaços dele pregados em árvores.
— Deve ser por isso que Isotta atirou em você.
E, claro que ele não suportaria uma conversa profissional. Aaron, ainda que mantivesse a
compostura diante dos soldados, não se importava com esta quando o seu objetivo era me
infernizar. Esse era o problema de trabalhar com a família.
— Cuide da sua vida — resmunguei. — Ela teve um pesadelo, e eu vacilei com a arma.
— Até onde eu sei você deu uma pistola a ela. Cuidado. O próximo pode pegar em lugares
mais cobiçados.
— Vá se foder, Aaron!
— Da próxima vez que se achar no direito de ofender Isotta, esconda as armas.
— Não lembro de te pedir conselho.
— Deveria. Você sempre foi estranho, Álvaro, mas levar um tiro e se apaixonar está no
topo das suas esquisitices.
— Claro.
Com um sorriso escroto, encostei na cadeira do meu escritório, pronto para aquela batalha.
Sinceramente eu não entendia como Aaron ainda seguia por aquele caminho. Ele sempre perdia,
não importava a situação.
— Eu jamais conseguiria concorrer com o fato de você ter se apaixonado por uma ladra
que em uma noite lhe roubou oito milhões.
— Eu não sabia que ela era uma ladra — argumentou, ainda que tivesse a noção de que
nada superaria o seu desastre amoroso.
Porque, pelo visto, todos os Kuhn teriam um desastre em seu currículo. Eu não ficaria de
fora.
— Você ia pedi-la em casamento — pirracei.
— Não desisti de matá-la.
— Isso se a encontrar.
— Vou encontrá-la — rosnou. — E vou matá-la.
— Eu torço pela Aline — declarei. — Não será mais divertido se você conseguir matá-la.
E será sempre divertido poder contar essa história.
— A sua sorte é que Jean te ama. Eu te mataria sem pensar duas vezes. E minha pontaria
não é como a de Isotta.
— Por que não tenta? Sabe onde me encontrar. Está sempre às minhas costas. Seria tão
fácil, Aaron!
Ele deu uma risada baixa e irritada.
— Pensarei a este respeito. Ainda não decidi se prefiro te manter vivo, torturado com as
peripécias de Isotta De Rosa.
— Isotta Kuhn, filho da puta!
Aaron riu outra vez.
— Talvez eu a ensine a atirar. Posso garantir que ela não erre na próxima.
— Encoste em minha esposa e eu arranco sua pele.
— O Álvaro apaixonado é um pé no saco.
— Bom, você é um pé no saco o tempo todo.
Outra ligação entrou em meu aparelho. Olhei para o visor e vi o nome do Jean.
— Eu adoro ser o cara que te faz lembrar o quanto é um imbecil que perdeu oito milhões
em uma noite para uma ladra, mas Jean está na linha, então, faça o seu trabalho e tchau, Aaron.
Desliguei sem esperar pela resposta dele. De imediato atendi Jean.
— Fala.
— Onde você está?
A voz tensa e baixa me alertou. Eu reconhecia aquele modus operandi do meu melhor
amigo. De imediato meu humor se alterou, assim como minha postura.
— Em casa.
— E Isotta?
— O que aconteceu?
— Uma merda. Onde está Isotta?
— Em uma consulta. O que houve, Jean?
Ouvi meu amigo caminhar, como se buscasse um lugar mais livre para conversarmos. Ele
se afastou dos murmúrios de vozes tensas e logo tudo estava em silêncio. Dentro de mim, tudo se
voltou para o que Jean diria. Minha mente bloqueou qualquer outra questão, atenta e preparada
para a ação. Foi assim que aprendi a ser, aquele era eu. Contudo, naquele dia, junto a minha
preparação para uma guerra, também havia o medo do que aconteceria.
Jean tinha razão. Tudo mudava quando nos apaixonávamos. O foco podia ser o mesmo,
mas o eixo sempre nos puxaria para outro lado, onde ela estivesse, latejando como uma ferida
infeccionada, exigindo atenção, alimentando o medo, roubando a energia que deveria ter um
único objetivo.
— Juan — ele disse, sério, frio, compenetrado. — Houve um acidente. Uma explosão na
casa dele.
Puxei o ar com força e ainda que minha mente bem treinada continuasse alerta ao que Jean
dizia e tentava encontrar os pontos para traçar um plano, uma parte de mim buscava por Isotta.
Ela não podia passar por mais aquilo.
— Nicolo?
— Não há como provar. Nicolo foi banido. No entanto, sabemos que uma parte dos
soldados da Camorra o apoiam. Ele conseguiria explodir a casa se quisesse. E eu tenho motivos
para acreditar que quis.
— Que merda, Jean!
— Miguel assumiu o comando — avisou. — Juan… não resistiu.
Eu estava preparado para tal informação, mas não para tornar aquilo realidade diante da
minha esposa. Eu, preparado para as piores situações, não encontrava uma forma de levar Isotta
para aquela.
— Isotta ainda está sem celular? — ele quis saber.
— Sim. Toda comunicação é através do Jordan.
— Ótimo!
— Peça para Miguel não tentar contato. Pelo menos enquanto eu a preparo.
— Já pedi. Ele está ocupado. Iniciamos uma investigação criminal. A morte já é de
conhecimento público. Não deu para esconder um incêndio na proporção que foi. Agora
precisamos descobrir se Juan morreu por complicações ou se o incêndio foi para encobrir algo.
Ficava cada vez pior. A julgar pelo comportamento de Nicolo, eu apostaria na sua
participação. E não apenas na explosão da casa, mas não teria medo de apontar uma morte mais
sofrida. Nicolo não fazia o tipo que só tirava alguém do seu caminho. Ele descarregava a sua
frustração com a desculpa de que precisava dar o exemplo, ou de que uma boa liderança só era
garantida com demonstração de força.
E esse era o ponto que me pegava. Nicolo eliminou Juan para assumir o poder, mas
também porque o tio lhe tirou Isotta. Porém, ele jamais se contentaria com apenas isso. Toda e
qualquer ação tinha o foco em minha esposa. Ele a punia, mas também estreitava o caminho até
ela. Porque Isotta não aceitaria ficar no Brasil enquanto o pai era enterrado. Então eles estariam
outra vez no mesmo espaço, no mesmo território, onde a Camorra estava acostumada a dividir
força com a Ndrangheta.
— Ela não deveria vir, Álvaro — Jean aconselhou.
Ele reconhecia as intenções de Nicolo tanto quanto eu. Ainda assim, havia na maneira
como ele falou, a certeza de que aquela seria uma missão impossível.
— Você sabe que não é justo impedi-la.
— Eu sei. Mas Isotta conhece os riscos. Estamos perto de eliminar Nicolo de uma vez por
todas. Ele tentará assumir o comando. A Camorra está dividida. É uma guerra, irmão.
Suspirei com pesar. O que eu poderia fazer? Eu tinha força para proibir Isotta de deixar o
país, contudo, isso faria com que ela me odiasse outra vez. E eu não queria entrar em outra briga
tão pouco tempo depois da última. Ainda que colocasse Isotta em risco.
— Eu preciso deixar que ela decida, Jean — partilhei a minha postura diante daquele
impasse. — Se Isotta decidir que vai, viajarei com um exército, mas Nicolo não terá a chance de
colocar as mãos nela.
— Nós vamos garantir que não, mas tomara que ela não venha.
Eu nunca vi Jean falar algo como aquilo. Ele não arriscava tanto. Tirou Heidi e os filhos do
país assim que Nicolo se tornou uma ameaça. Ele não trouxe ou expressou qualquer divergência
quanto a este assunto. Por isso sempre parecia seguro e determinado. No entanto, Jean não tinha
controle sobre Isotta. Pra falar a verdade, há tempos concordávamos que ninguém tinha, logo,
tudo se tornava imprevisível. Não havia como garantir que daria certo e isso fodia a minha
cabeça.
— Eu tenho a certeza de que ela não ficará aqui esperando a morte do primo. Porque eu
embarco para Ibiza hoje. Nicolo morre por minha mão.
— Essa sua ansiedade me preocupa, Álvaro. Você acabou de levar um tiro. Não deveria se
arriscar.
— Um tiro de raspão.
— Ainda assim compromete o reflexo.
— Você não vai me tirar dessa, Jean.
Meu primo suspirou e eu sabia o quanto aquilo custava para ele. Se Jean acreditasse que
me protegia, ordenaria que eu ficasse. Entretanto, eu não queria que fosse assim. Nicolo tirou
muito de mim. Eu deveria testemunhar a sua morte. Deveria ser a mão que apertaria o gatilho.
— Tudo bem, Álvaro. Assim que estiver com tudo organizado, me avise. Vamos montar
um esquema impenetrável e blindar Isotta.
— Não se preocupe.
— Vejo você depois.
Acendi um cigarro tão logo Jean desligou. Eu sabia que tinha que ligar para Jordan,
acelerar o retorno de Isotta para casa, mas não me sentia pronto, o que era estranho pra caralho.
Pensativo em meu escritório, eu precisava encontrar uma forma de contar a Isotta, acolher
a sua dor, tomar todas as decisões e planejar a viagem. Nada poderia ficar em aberto. Nada
poderia ficar para depois. Entrávamos na parte mais estreita, no gargalo da garrafa, onde o
confronto não poderia ser adiado. Por isso, cada detalhe importava.
E me afetava concluir que não haveria tempo para cuidar das dores de Isotta.
Lilica subiu em minha mesa e miou, chamando a minha atenção. Soltei a fumaça,
encarando a gata que eu detestava, mas sem energia para entrar naquela briga.
— Vá embora! — demandei. Ela não me obedeceu, miando uma vez mais. — Não estou
com paciência para você, pulguenta.
Lilica caminhou sobre minha mesa, desta vez sem os papéis para que ela destruísse. Eu não
sabia como ela conseguia entrar em meu escritório, assim como não sabia porque ainda a
tolerava pela casa.
Porque você ama a dona dela, minha mente disse de forma aveludada, como se precisasse
me lembrar de tudo o que eu seria capaz de fazer por Isotta, em especial, naquele momento.
— Não estrague tudo — eu disse a gata, que me encarava como pudesse me compreender.
— Isotta precisará de todos nós. Finja que se importa com ela.
A gata miou, então, de forma surpreendente, desceu da mesa, subiu no sofá e se aninhou,
comportada.
— Pelo menos isso — resmunguei, decido de que era hora de ligar para Jordan e enfrentar
a dor da minha esposa.
49
ISOTTA

Em nosso quarto, Álvaro me abraçava, me mantinha em sua bolha de proteção, me


amparando e confortando. Deixando que eu chorasse toda a tristeza que era encarar um mundo
no qual meu pai não existia mais. Pior, um mundo em que Nicolo arrancou meu pai dele.
Acomodados em nossa cama, ele me mantinha entre suas pernas, encostada em seu peito,
os braços ao meu redor. E aquilo bastava. Receber a notícia da morte do meu pai me pegou
desprevenida, apesar de ter crescido com esta ameaça constante.
Pertencer a máfia era viver com um alvo pendurado no peito, e ele nunca me deixou
esquecer disso. Ainda assim, me chocou e me quebrou de diversas formas.
Naquela manhã deixei a casa sentido-me completa, ainda que o sentimento de insegurança
me acompanhasse. Eu estava bem com Álvaro. Concordamos que esperaríamos para tentar uma
nova gravidez. Fizemos planos. Eu estudaria, ele me levaria para conhecer o mundo. Eu poderia
me reconectar com meus amigos em um futuro próximo.
Porém, todo e qualquer plano seguiria as sombras de Nicolo. Tudo aconteceria quando ele
morresse. Quando não houvesse mais uma ameaça tão incisiva.
Então eu voltei para casa esperançosa. Meu corpo estava bem, minha alma precisava ficar.
Recomeçaríamos, desta vez da forma certa, apaixonados. Até que o mundo fora da nossa bolha
cobriu tudo, me tomou de assalto, arrancou meu chão.
E eu entendi o que Álvaro tentou me fazer entender antes do aborto. Enquanto Nicolo
estivesse vivo, nós não viveríamos. Não existia uma realidade onde eu conseguisse sustentar uma
gravidez e sobreviver a tudo o que acontecia. Não existia a possibilidade de Álvaro se
concentrar, precisando se preocupar com esposa e filho. Em algum momento sucumbiríamos.
— Eu me sentiria melhor se você ficasse — expressou a sua preocupação.
Com toda certeza, Nicolo estando na Espanha, e ninguém discutiria o fato de que ele
permaneceria lá por saber que eu também estaria, deixaria a minha estadia mais tensa. Não dava
para ignorar o conhecimento daquele plano. Era a cartada para colocar as mãos em mim. Ainda
assim, quando eu pensava nisso, meu peito apertava.
Miguel estava só, mesmo acompanhado das pessoas que amava. Com a morte do nosso
pai, restávamos apenas nós dois. Ninguém mais. E meu irmão também era um alvo, em especial
por meu pai tê-lo nomeado seu sucessor antes de morrer. Nicolo só assumiria se o tirasse do seu
caminho.
Eu precisava ir. Jamais superaria o luto se não enterrasse meu pai. E saber que aquele
simples ato, dado a todos como direito, também me era roubado por meu primo, ativava a minha
ira.
Fechei a mão na camisa de Álvaro e apertei meu rosto em seu peito, negando a
possibilidade.
— É arriscado, Isotta — ele continuou tentando.
— Por favor, não faça isso.
Seus braços se fecharam mais ao meu redor, o que me confortava. Parecia que aquele
abraço me impedia de quebrar, de me espatifar em muitos pedaços. Álvaro me mantinha
completa, mesmo com tantos arranhões perigosos em minha alma.
— Não farei. Seguirei o que você decidir. Mas não posso deixar de pontuar o risco.
Concordei, mantendo-me escondida em seu peito, de olhos fechados, permitindo que as
lágrimas caíssem.
— Detesto ser a pessoa que dirá isso, mas há a possibilidade de Nicolo não ter
envolvimento.
— Você não acredita nesta possibilidade. Por que a está levantando?
Álvaro levou a mão até meu pescoço, subiu por minha nuca, onde iniciou uma massagem.
— Porque precisamos analisar de todos os ângulos. Independente do que achamos, Isotta.
E Jean está com Miguel. A polícia está investigando, mas nossos melhores técnicos também. Se
nada apontar para Nicolo, precisamos acreditar nisso.
— Nem assim acreditarei. Conheço Nicolo melhor do que vocês. Vi coisas que ele fez,
vidas que destruiu.
Ele deu um beijo em minha cabeça e suspirou com pesar.
— É preocupante você apontá-lo desta forma. Não quero defendê-lo, mas todos somos
cruéis, Isotta. Não existe segunda chance em nosso meio. A violência é a única forma de
sobrevivermos.
— Não vou justificar isso, Álvaro. Você talvez esteja nessa por opção. Eu nunca tive
escolha. Não vou romantizar o que fazem. Mas Nicolo vai além. Ele é cruel. É sujo. Eu nunca
tive dúvidas de que ele se voltaria contra meu pai, já que não teve medo de prejudicar Miguel e
nem de me colocar como seu alvo. Infelizmente meu pai permitiu que fosse assim. Ele aceitou.
Nunca puniu Nicolo por suas ações, pelo contrário. Ele puniu o próprio filho quando Nicolo fez
com que todos soubessem que Miguel era gay.
Soltei o ar, cansada, indisposta. Limpei o rosto e me afastei um pouco para encarar meu
marido.
— É horrível, no dia em que perco meu pai, pensar em tudo de ruim que ele permitiu
acontecer. No final das contas, Juan De Rosa também é culpado pelos crimes do Nicolo.
— Não pense nisso agora — ele pediu de forma gentil, acariciando meu rosto.
— É impossível — confessei. — Eu queria ter tempo para apagar as lembranças ruins, para
construir outras mais felizes. Mas a verdade é que eu vivo um paradoxo. A dor por tudo que
precisei silenciar e a tristeza por tudo o que me fez feliz.
— Todo mundo erra — ele tentou apaziguar a minha dor, no entanto, Álvaro não fazia
ideia da profundidade dela.
— Havia uma garota na casa em que cresci. Leonor. — sussurrei o nome há tempos não
mencionado.
No fundo eu sentia medo de reviver aquela história, trazer à superfície outra vez a dor e a
indignação. Um dos primeiros conflitos que tive com meu pai após a morte da minha mãe.
— Você sabe como funciona. As mulheres que trabalham na casa normalmente são
esposas dos soldados de confiança, os filhos vivem em segurança dentro dos nossos muros. Essa
garota cresceu comigo. Era minha amiga. Enquanto eu vivia emburrada, amaldiçoando o mundo
e a minha condição, ela fantasiava com aquela realidade, era romântica, sonhadora, feliz. Éramos
tão novas!
De repente o rosto dela voltou a minha mente. Os cachos ruivos, olhos verdes tão
destacados em especial quando ela sorria. Leonor era linda! Quando crianças, eu dizia que ela se
casaria com Miguel, e ela nunca disse o contrário. Ela era um pouco mais velha, mas não fazia
diferença.
— Tenho medo de perguntar o que aconteceu — Álvaro interrompeu meu devaneio.
— Porque você sabe o que aconteceu.
Ele retesou em meus braços e suas mãos ficaram mais firmes.
— Nicolo?
Concordei.
— Um dia ela era a Leonor de sempre, no outro, fugiu da gente, perdeu todo o brilho, se
escondia pelos cantos, chorava. Não ia mais ao meu quarto, nem passava as tardes comigo. Eu
soube que Nicolo a machucou porque ouvi a briga no escritório do meu pai, que, claro,
minimizou o ocorrido.
— Ah, Isotta! — ele gemeu, me abraçando outra vez. — Perdi as contas de quantas vezes
assisti esse filme.
— Meu pai convenceu o pai dela a aceitar uma compensação. Eles deixaram a Camorra.
Mais tarde eu soube, pelo próprio Nicolo, que ela tirou a própria vida.
— Desgraçado! — ele rosnou.
— Você entende que isso é uma cadeia? Meu pai não puniu Nicolo e ele continuou
errando. Quando Miguel foi exposto, Nicolo deveria ser punido, mas nada aconteceu a ele.
Quando se tornou uma ameaça para mim, meu pai lhe deu mais força ao dar a ele a missão de me
manter na linha e depois, permitindo que Nicolo acreditasse que se casaria comigo. Tudo o que
aconteceu, teve a permissão do meu pai, até mesmo a sua morte.
— Por que você acha isso?
— Porque Nicolo não conseguiria entrar naquela casa se meu pai não tivesse permitido.
Não teria seduzido os soldados se meu pai tivesse restringido seu poder. E no fim, meu primo
conseguiu o que queria, mesmo sobre o cadáver do homem que o criou como um filho.
— Sinto muito por você precisar viver isso, mas não pense mais no assunto. Miguel
assumiu a Camorra, Jean está lá para apoiá-lo. A Ndrangheta manterá a força da Camorra em
Nápoles e Ibiza. Nicolo não tem chance contra tudo o que somos.
— Precisamos matá-lo — eu afirmei, determinada. — Não há mais espaço para
possibilidades, Álvaro. Nicolo precisa morrer.
Meu marido, com os olhos pesarosos fixos nos meus, concordou sem nada dizer. Ele me
puxou para seu peito e me manteve assim até que o tempo acabou. Precisávamos sair, embarcar,
encarar a guerra declarada e enterrar o meu pai. Depois disso eu poderia chorar por todas as
minhas perdas.
ÁLVARO
Emílio Ortiz, Capo da Ndrangheta em Ibiza, nos recebeu em sua casa. Jean preferiu assim,
para nos manter mais seguros.
Estávamos em Ibiza há três dias sem que pudéssemos enterrar Juan. No total a polícia tinha
oito corpos carbonizados para identificar e descobrir a causa da morte. A investigação criminal
nos impedia de agilizar os passos e a cada hora gasta, eu me perguntava quando enfrentaríamos
Nicolo.
Tínhamos total certeza de que ele sabia sobre a localização de Isotta. Estávamos prontos
para qualquer investida. Armados como se precisássemos nos proteger de um ataque nuclear. No
entanto, ele não aparecia, não ameaçava e a cada hora a tensão crepitava entre nós.
Eu pensava em Isotta, sozinha naquela casa estranha enquanto eu me mantinha ocupado na
elaboração das estratégias necessárias até mesmo para que pudéssemos caminhar no jardim. Ava,
esposa de Miguel, lhe fazia companhia, contudo minha esposa se esquivava das pessoas, se
trancafiava dentro dela mesma, passava mais tempo no quarto que ocupávamos do que em
qualquer outra parte.
Isotta sofria, isso era indiscutível. Contudo, o que me impactava em enxergar o seu
sofrimento era compreender o quanto aquilo ia além da morte do pai. Como se o fato de Nicolo
ter matado Juan abrisse as comportas para tudo o que ela armazenava. A morte da mãe, a
expulsão de Miguel, o estupro da amiga, a obcessão de Nicolo.
Ela sofria de saudade por um homem que amava, mas sobre o qual possuía mais
lamentações do que boas lembranças. E se cobrava, como se as escolhas de Juan fosse culpa
dela.
— Temos tudo o que precisamos — Jean avisou ao parar do meu lado, fora da casa,
distante um pouco daquele núcleo de tensão que tanto me afetava.
Eu não conseguia me concentrar e o tempo inteiro me via perdido, como se estivesse
prestes a fracassar, como se no meu primeiro vacilo, Nicolo entrasse por nossos portões,
decidido a recuperar a mulher que um dia, contra a minha vontade, tirei dele, mas que desde
então, tornou-se a pessoa mais importante do mundo para mim.
— Miguel chegou com os laudos.
— Os laudos?
— Oito corpos — ele esclareceu. — Quatro soldados, três funcionárias da casa e Juan.
Concordei, cansado, com todo o peso daquela merda sobre meus ombros.
— Juan foi torturado — alertou. — Talvez seja melhor Isotta não saber disso.
— Ela saberá — confessei. Jean concordou.
Nós sabíamos que nada ficava escondido de Isotta. Ela descobriria em algum momento, e
eu não estava disposto a criar uma situação por esconder algo que era dela por direito.
— Foi muito ruim?
Jean puxou o ar, os braços cruzados na frente do peito. Ele não olhou para mim quando
sinalizou que sim. E eu me perguntei o que Nicolo fez com Juan ao ponto de espantar Jean, um
dos caras mais acostumados com técnicas de tortura que já conheci.
— Ele teve tempo.
As inúmeras possibilidades preencheram minha mente. Talvez Isotta não precisasse dos
detalhes.
— E Miguel, como está?
— Ele é mais forte do que esperávamos — Jean observou. — Está com Dimas, o cara que
escolheu como seu subchefe.
— O namorado dele — comentei.
— Se queremos que a Camorra apoie Miguel, não podemos espalhar esta verdade.
— Que merda!
— Esse é o nosso mundo, Álvaro.
— Um mundo que precisa urgentemente se reestruturar.
— Um passo de cada vez.
Jean me ofereceu um cigarro, eu aceitei, ele acendeu outro e manteve o olhar fixo na
paisagem à nossa frente. Ele estava sério, compenetrado, exatamente como era antes de Heidi
voltar para a sua vida. Exalava tensão e tristeza.
— Você já está há muito tempo longe da sua família — eu mencionei. — Por que não vai
pra casa?
Ele deu um trago, sem me olhar nem por um segundo.
— Eu quero ir — confessou. — Sinto falta das crianças. Heidi está grávida, ansiosa com a
minha distância. Mas eu não posso, Álvaro — disse com pesar.
— É claro que pode. Tá todo mundo aqui. Você não precisa estar à frente disso.
— Tem alguma coisa de errado.
— Como assim?
— Não sei.
Jean fez uma careta, que demonstrava todo o seu desagrado. E a maneira como ele falou
fez meu corpo gelar.
— Não é normal Nicolo conseguir se manter escondido por tanto tempo. Nós já
deveríamos saber onde ele está, o que pretende.
— Nicolo tem o apoio do pai e de uma parcela significativa dos soldados que seguiam
Juan.
— Mesmo assim. A Camorra nunca teria essa capacidade.
— Você acha que alguém da Ndrangheta…
— Depois de tudo o que vivi, não duvido de nada — admitiu de forma sombria.
Eu não queria acreditar naquilo, contudo, era exatamente como Jean apontou. Nicolo não
conseguiria se esconder por tanto tempo se tivesse apenas o pai e alguns soldados ajudando.
Havia algo mais naquela história. Mas quem? Onde? Por quê?
Pensar naquilo destruiu a minha pouca paz. Porque se havia um traidor entre nós, Isotta
estava exposta e Nicolo um passo à nossa frente.
— Emílio quer falar com vocês — Miguel disse, juntando-se a nós. — Precisamos definir
cada passo do velório. Não podemos deixar nenhum ponto vulnerável.
— Vamos.
Jean apagou o cigarro, mantendo o mesmo espírito sombrio, e passou por mim, deixando
aquela sensação acentuada.
Eu precisava descobrir quem era, antes que fosse tarde demais.
50
ÁLVARO

Entrei no quarto muito depois de Isotta se recolher. Naquela noite jantamos separados e
praticamente não conversamos. Eu me mantive o máximo possível presente na organização da
operação que aconteceria no dia seguinte, quando enfim poderíamos velar e sepultar Juan.
Isotta não chorou quando Miguel contou a ela sobre o que Nicolo fez com o pai antes de
matá-lo. Ela ouviu com atenção, concordou sobre abreviarmos o velório e sobre a sua rápida
passagem pelo local. Não compartilhei com ela as suspeitas que Jean levantou. De nada
adiantaria assustá-la quando não havia qualquer pista significativa.
Quando fechei a porta atrás de mim, o quarto iluminado apenas pela noite clara do lado de
fora, que adentrava o espaço pela porta da varanda, aberta, por onde Isotta, deitada na cama,
contemplava o silêncio do início da madrugada. Tirei a roupa sem nada dizer. Eu sabia que ela
estava acordada pela maneira como respirava, como se chorasse baixinho.
Deitei ao seu lado e abracei seu corpo coberto apenas por uma camisa longa. Isotta se
encolheu em meus braços, aceitando meus cuidados. Beijei o topo da sua cabeça e, por alguns
minutos, também contemplei a noite estrelada, abençoada pelo som do mar há poucos metros de
distância.
Apesar de não ser a casa onde Isotta cresceu, era o local onde ela viveu até fugir para o
Brasil. Eu imaginava o quanto confuso aquilo lhe parecia. Ela era muito nova. Qualquer garota
na idade de Isotta se preocupava com faculdade, amigos, amores, o início de uma vida
profissional, os primeiros passos para uma vida adulta.
Entretanto, tudo isso lhe foi tirado desde o momento em que ela nasceu. Como mulher,
Isotta tinha uma missão, sendo uma De Rosa. Como membro da máfia, ela tinha um destino. E
aquilo era uma droga.
Quando aceitei que casarmos seria dar a Isotta a liberdade que ela merecia, desejei que ela
estudasse, que tivesse a chance de conhecer o mundo, que tivesse uma rotina mais tranquila. Só
que nada disso foi possível, por causa das coisas ruins que o amor faz.
Nicolo a amava e por isso a perseguia, destruía tudo o que estivesse à sua frente
impedindo-o de alcançá-la. E depois dele, estava eu, igualmente apaixonado, incapaz de me
manter distante, de libertá-la, de aceitar perdê-la.
A ideia de afastá-la de mim agiu como uma mão se fechando em meu coração. Puxei Isotta
um pouco mais para perto de mim. Como eu conseguiria protegê-la? Como eu descobriria onde
estava o perigo? Como agir como fui preparado para agir, se para isso eu precisava tirar os olhos
dela? Eu não podia, e por isso sabia que Nicolo me alcançaria. Porque ele também sabia como
funcionava, e que, enquanto eu estivesse focado em Isotta, ele teria tudo o que precisava para me
atingir.
Mas eu morreria por ela. Talvez ele não contasse com isso.
— Álvaro? — ela chamou baixinho, a voz castigada pelo choro.
— Sim?
— Faz amor comigo.
A voz carregada de súplica me atingiu não como se aquele chamado afetasse meu âmago.
Não havia nada de desejo na fala de Isotta. Era horrível admitir, mas seu pedido chegou
carregado de medo. Ela, assim como eu, entendia a seriedade do que nos aguardava. Isotta só
tinha vinte anos, porém, sua pouca idade não afetava sua capacidade de reconhecer o campo.
No dia seguinte, quando deixássemos os portões da mansão do Emílio para sepultar Juan,
seríamos alvos. Não havia como estimar as consequências. E eu quis, desde o momento em que
Miguel chegou naquela noite confirmando a participação de Nicolo na morte do seu pai, colocar
Isotta em um avião e enviá-la para longe. Eu quis impedi-la de ir ao enterro, trancafiá-la em
algum lugar onde Nicolo nunca alcançaria. Mas não era justo.
E, desde então, o mesmo medo me incomodava. A mesma sensação de despedida, como se
cada segundo, cada respiração, nos tirasse um pouco mais um do outro. Por isso, quando Isotta
me pediu para fazer amor com ela, recusar não era uma opção. Eu precisava daquilo, da nossa
união, do elo que nos juntou e de como aquilo se transformou rápido no amor que me fazia
gravitar em torno dela.
Eu amava Isotta como se dependesse dela para viver. Ela era a estrela na qual eu orbitava.
Meu começo e meu fim. Todos os meus motivos, não importava por qual objetivo, era ela. Isotta
De Rosa, uma fedelha ousada, uma garota instigante, uma mulher incomparável.
Minha mulher.
Levantei um pouco o corpo para que ela pudesse se encaixar melhor entre meus braços. O
rastro das lágrimas derramadas ainda estavam lá. Ela me encarou com aquelas íris que nunca
perderiam o encanto, e inclinou a cabeça quando acariciei seu rosto.
— Não é uma despedida — sussurrei as palavras, permitindo que elas se tornassem
mágicas e convencessem não apenas a Isotta, mas a mim também.
Outra lágrima rolou pela lateral do rosto dela. Isotta tocou meu braço com dedos trêmulos,
descendo até minha mão para que eu não desfizesse o carinho.
— Eu preciso… — Ela hesitou, engolindo para que a voz ficasse mais estável. — Preciso
que você me ame.
Concordei com sua súplica, um pouco transtornado pelo que aquilo era, um pouco
embriagado pelo efeito dela em mim.
Havia dor quando a beijei. Porque eu amava aqueles lábios, o beijo só nosso, o sabor
excepcional daquela língua. Amava a maneira como, com apenas o juntar das nossas bocas, o
desejo surgia. Amava o calor gostoso que iniciava o processo, os movimentos a princípio
tímidos, o reconhecimento dos toques. Eu amava o que sempre parecia eterno, inacabável. A
bolha que se formava e nos isolava do mundo, da vida, dos problemas, do medo. Eu amava o que
éramos, o que nos tornamos e tudo o que ainda merecíamos viver.
Mas também odiava.
E ali, enquanto eu permitia que a dor nos conduzisse, que as incertezas nos motivasse, eu
odiava aceitar que o medo me fizesse acreditar na necessidade daquele momento. Odiava não
conseguir afastar de nós aquele desespero. Odiava tocá-la como se me despedisse de cada parte
dela. Eu odiava não ter sido mais. Não tê-la amado mais vezes. Não ter preenchido Isotta com
tudo o que eu era.
Eu odiava o ventre liso onde um dia uma história se formou e nos deixou. Eu odiava não
ter mais o que não cheguei nem sequer sonhar viver com ela.
E, enquanto eu a despia, enquanto beijava seu corpo, eu queria tudo o que nos era tirado.
Eu queria Isotta, os dias que seguiriam depois daquela noite, a família que não formamos, as
viagens que não fizemos, as noites em que não nos amamos, as alegrias que não compartilhamos.
Isotta chorou baixinho em sua entrega, com mãos que demonstravam o mesmo desespero
que o meu. Eu chorei quando nos fundimos o mais íntimo que nossos corpos permitiam, incapaz
de segurar a quantidade de amor que habitava em mim.
Eu queria que o amor salvasse, que fizesse o que sempre prometeu, que transformasse a
nossa história, que tornasse possível um mundo em que venceríamos o mal. E chorei porque eu
sabia que não havia nada em mim que justificasse o bem. Eu era o mau, assim como Nicolo.
Naquela guerra, talvez vencesse o menos mau, se é que isso era possível. Se é que havia justiça
para quem desfazia da justiça.
Agarrado a Isotta, sem interromper a dança dos nossos corpos, sofrendo pelo o que aquele
ato significava, eu queria poder tirar dela tudo o que a machucava. Queria ser o seu escudo, a sua
chance de continuar, a sua possibilidade. Eu e Nicolo éramos fruto da mesma massa escura, mas
Isotta era o fio de luz que nos cortava.
Ela precisava vencer.
Ela teria que viver.
Nem que esse fosse o meu último ato.
Isotta estremeceu, apertou os braços e as pernas ao meu redor. Encarei seu rosto molhado e
me permiti o direito de assisti-la, de ter em minha memória aquela entrega, quando ela se
desvinculava do mundo, das dores, dos medos, quando a névoa encobria suas vistas e a segurava
em algum lugar confortável, bom, acolhedor. Isotta gemeu. Era o som mais bonito que existia, eu
soube naquele momento. Ela gozou, perdendo-se em seus poucos segundos desconectada.
Eu a amei mais por isso.
E quando gozei, desejei que algo daquilo sobrevivesse. Que um pouco de mim ficasse com
ela. Que Isotta me tivesse para sempre em sua vida. Eu quis, de uma forma que nunca imaginei
querer, que ela engravidasse.
Talvez por isso aquela não foi a nossa última vez. Talvez por isso, ainda que a dor nos
emudecesse, que as palavras desaparecessem, o desejo não cedeu. Nós nos amamos e choramos
durante quase toda a noite e adormecemos sob o som das ondas do mar, que ousavam nos brindar
com um pouco de esperança.
***
O silêncio que se estendia naquela manhã fazia mais barulho do que se estivéssemos em
meio a um tiroteio. Tudo o que fazíamos dentro daquele quarto parecia seguir um script onde
cada detalhe era pensado para quando estivéssemos em meio a guerra. E aquilo também doía em
mim.
Para provar a minha teoria, Isotta escolheu roupas práticas. Seguindo a paleta escura que
um sepultamento exigia, ela não fez questão de exibir roupas que indicassem a sua posição
social. Para o mundo, Isotta De Rosa era a herdeira da rede de hotéis mais impressionante nos
principais pontos turísticos da Europa. Ela tinha uma posição social que exigia uma melhor
apresentação. E a comoção pela maneira como a morte se deu, ainda que não soubessem as reais
circunstâncias, fazia com que os veículos de comunicação estivessem atentos ao cerimonial.
Mas ela vestiu uma calça justa, uma blusa de manga comprida solta e botas. Tudo na cor
preta. Deixou o cabelo solto e até isso me fez puxar o ar. Eu sabia que Isotta não prendia o
cabelo porque facilitaria se tentassem capturá-la. Escolheu brincos simples e discretos, o colar de
ouro que Juan lhe presenteou, o anel que lhe dei de aniversário, o qual ela nunca tirava, e a
aliança. Tudo estrategicamente pensado para uma fuga sem surpresas.
Ela me observou vestir o coldre axilar velado duplo, e durante todo o momento expressava
angústia no olhar. Encaixei as pistolas depois de conferir o pente e as travas. Ainda levava em
uma perna uma pequena arma e na outra uma faca de golpe. Aquela era a típica situação em que
eu não podia ser surpreendido com a falta de equipamentos.
— Onde está a sua pistola?
Quebrei o silêncio e minha voz cortou o ambiente, deixando tudo estranho.
— Na bolsa — ela respondeu baixo. — Álvaro?
Isotta chamou quando caminhei até a bolsa sobre a cama e peguei a pistola que lhe dei dias
antes.
— Por favor, não me deixe desarmada.
— Não vou deixar — avisei. — E o coldre?
Isotta levantou, buscou no closet o que solicitei e levou até mim, insegura ao se aproximar.
— Preciso garantir que você tenha vantagem — eu disse, deixando de lado a ideia de que
não trabalharíamos aquela hipótese. — Você sempre a carrega nas costas. Esse é o seu melhor
ponto? Foi assim que aprendeu a sacar rápido?
— É a única forma de mantê-la velada.
Encarei Isotta, atento a tudo o que ela dizia. Eu precisava encontrar a melhor maneira de
fazê-la portar a arma, levando em conta a facilidade de sacá-la se necessário. Manter a arma
velada, daria a ela a vantagem da surpresa. Se Nicolo ou algum dos seus homens tentassem pegá-
la, não teriam a informação de que ela poderia atirar.
Decidido, encaixei o coldre nas suas costas. Conferi o pente e a trava, então mostrei a arma
a Isotta.
— Não saque até ter certeza de que pode atingi-lo. Nicolo não desconfiará que está
armada. Não dê a ele a chance de te desarmar.
Ela concordou. Encaixei a pistola no coldre, soltei a blusa dela e verifiquei a possibilidade
de que alguém percebesse o que ela portava. O cabelo de Isotta disfarçava o volume extra. Isso
me deixou mais seguro.
Prontos para deixarmos o quarto e seguirmos em direção ao velório, eu senti meu ar rarear.
Estávamos a um passo do fim. E eu não queria dá-lo. Isotta me encarou com olhos úmidos, mas
sem chorar. Eu me deixei mergulhar naquela cor ímpar, única como ela. Quis pedir para que ela
não tivesse medo. Quis prometer que nada aconteceria. No entanto, eu não queria mentir. E
Isotta não acreditaria em nada além da verdade. Então segurei seu rosto e o puxei para mim.
Ela veio com facilidade, como se flutuasse em minha direção, como se não houvesse outro
caminho que desejasse trilhar. Beijei Isotta com cuidado, com amor, com a necessidade de
eternizar a sensação.
Logo não podíamos mais esperar. Segurei a mão da minha esposa, abri a porta do quarto,
encontrando dois soldados que faziam a segurança. A casa toda parecia um quartel general.
Descemos juntos, nos juntamos ao grupo. Miguel beijou Isotta deixando transparecer a mesma
angústia que nos consumia desde a última noite. Jean me deu um olhar intenso, e eu soube o que
ele dizia sem precisar das suas palavras.
Eu o amava. Queria que ele não estivesse ali. Que acompanhasse a situação de longe, no
lugar que ele deveria estar, com a sua família. Queria que Jean não precisasse mais enfrentar
situações como aquela. Quantas vezes a cabeça de uma pessoa suporta encarar o fim sem que ela
mesma se destrua? Eu não sabia dizer.
O plano era sairmos em carros blindados, de vidros tão escuros que impediria que qualquer
pessoa identificasse quem estava em qual carro. Seguiríamos por caminhos diferentes, saindo em
momentos distintos, para enganar quem planejasse nos surpreender. Valentin seguiu comigo.
Jordan em um dos carros que nos auxiliariam. Mantivemos contato durante todo tempo.
Com alívio recebi a notícia de que Jean chegou em segurança e já estava entre os
convidados para o velório. Eu e Isotta chegamos um tempo depois, quando faltava pouco para
seguirmos para o enterro. Miguel, Dimas e Ava chegaram em seguida.
O corpo encontrava-se em um salão pequeno, para poucos convidados. Restringimos ao
máximo a presença de estranhos, ou dos que não precisavam permanecer no meio do fogo
cruzado. Isotta e Miguel se detiveram ao lado do caixão por poucos minutos, eu aguardei por ela
junto a Jean, atento a tudo, ainda que os soldados da Camorra e da Ndrangheta tivessem um
excelente esquema e preparação.
Eu sentia meu corpo doer devido a tensão. Como se meus músculos empedrassem e
rachassem à medida que o tempo passava sem que nada acontecesse. E eu tinha medo de me
permitir sentir esperança. De acreditar que Nicolo não tentaria nada. Que no final voltaríamos
para casa, com Isotta em meus braços.
A imprensa ficou do lado de fora, longe o suficiente para não acompanharem o
sepultamento. Contidos por seguranças eficientes. Nada passava. Seria melhor desta forma do
que permitir que capturassem uma possível emboscada. Estávamos todos expostos e, naquele
momento, Jean precisava pensar em tudo, não apenas em nossa segurança.
Isotta não chorou quando o caixão desceu. Escondida por trás dos óculos escuros, ela não
demonstrava a mesma tensão do restante do grupo. Séria, calada, ela olhava sempre para frente.
Eu me mantinha as suas costas, Jordan ao seu lado, Jean do outro. Por todos os lados, cobrindo
todos os ângulos, os soldados. Entre os convidados, mais soldados. Era para eu me sentir seguro,
mas eu não conseguia.
Os convidados se dispersaram tão logo o padre deu o cortejo por terminado. Cumprimos
todos os protocolos, Isotta aguardou com paciência enquanto mais uma vez alguns convidados
davam a ela e Miguel as condolências. Jean sinalizou para sairmos.
E foi quando tudo aconteceu. Não esperávamos que fosse daquela forma. Em um segundo
estávamos envoltos por nossos soldados, iniciando o processo de deixarmos o espaço, e no outro,
novos homens se fundiram ao nosso grupo, soldados da Camorra, até então como homens que
seguiriam Miguel, se voltaram para nosso grupo e sacaram as armas.
Aconteceu tudo de uma vez só. Eles sacaram as armas em nossa direção e nós sacamos na
deles. Puxei Isotta para trás de mim e Jordan se juntou para protegê-la. Era um grupo grande,
equiparado, onde todos aguardavam pela ação sem nenhum atirar. Parecia que a consciência do
quanto aquilo nos prejudicaria era geral, até mesmo para os traidores que se voltavam contra nós.
Então Nicolo surgiu. Saindo entre os homens que lhe protegiam, ele caminhou sem pressa,
sem puxar a arma, como se soubesse que não atiraríamos se não fôssemos obrigados. Ele olhou
para o grupo que tanto o buscou e então seus olhos pousaram em Isotta atrás de mim. Ele deu um
sorriso que por pouco não roubou a minha sanidade para iniciar aquela guerra.
— Você tem muita coragem — Jean afirmou.
A voz calma e segura contradizia com o que de fato se passava dentro do meu melhor
amigo. Eu o conhecia o suficiente para poder afirmar.
— Não estou aqui para nos expor — Nicolo declarou com a mesma tranquilidade, ainda
que seus olhos demonstrassem a raiva que sentia ao precisar desviá-los de Isotta para o Don da
maior e mais poderosa máfia do planeta. — Não precisamos disso, Jean. Estou aqui para
concretizar o que é meu por direito. Eu sou o novo Capo da Camorra em Ibiza e Nápoles. Essa
sempre foi a vontade do meu tio.
— Juan nomeou Miguel como seu substituto e ainda que não o fizesse, você perdeu
qualquer direito quando o assassinou — Jean continuou, calmo, seguro.
Nicolo sorriu e eu o odiei ainda mais por isso. Ele não tinha o direito de sorrir quando
colocava a vida de Isotta em risco.
— Miguel não pode assumir. Veja… — ele indicou os homens que o protegia. — Miguel
não tem ninguém além da Ndrangheta para assumir este cargo. Os homens da Camorra não
querem um viado como seu comandante.
Alguns homens ousaram rir, outros demonstraram constrangimento. Miguel não se mexeu,
mas quando falou todos silenciaram.
— Eu terei o prazer de arrancar sua língua antes da sua morte.
— Eu de fato conto com isso, Miguel — Nicolo o desafiou.
— A Camorra não te reconhece como Capo, Nicolo. Não seja idiota. Você não tem força
para nos desafiar — Jean determinou.
Nicolo abriu a boca para contra-atacar, no entanto, Jean aumentou o tom de voz, crescendo
sobre todos que estavam naquele embate. Assumindo o que sempre foi: imbatível, forte, o
homem capaz de definir aquela guerra.
— Vocês que seguem Nicolo, saibam que ele é um traidor. Nem a Camorra nem a
Ndrangheta terão piedade de quem o seguir, assim como não teremos dele. Nicolo será caçado
por assassinar Juan De Rosa, por invadir nossa propriedade, por ousar desafiar o Capo do Brasil.
Quem o acompanhar terá o mesmo destino. Aqui eu assino a sentença de morte de quem seguir
Nicolo, hoje ou em qualquer outro momento.
Com prazer assisti a insegurança de muitos dos soldados que se puseram à disposição de
Nicolo. Eu sabia que quando deixassem o cemitério eles fugiriam, tentariam desaparecer no
mundo. O que indicava que a guerra se estenderia por um longo período.
Mas Nicolo não demonstrou medo. Ele manteve o sorriso no rosto quando voltou a
procurar Isotta às minhas costas.
— Como vai, Isotta? — disse, o que fez com que eu precisasse de todo o meu equilíbrio
para não descarregar minhas duas armas naquele desgraçado.
— Não ouse falar com minha esposa, seu filho da puta! — eu rosnei. Ele riu.
— Ah, sim. Aproveite o tempo que ainda tem com ela — ameaçou.
E foi demais pra mim.
A tensão se solidificou entre nós. As armas ganharam mais energia ao serem destravadas e
direcionadas para os alvos. Nicolo continuou sem medo, sem puxar a dele. Senti Isotta se afastar
das minhas costas e Jordan se posicionar entre nós dois. Valentin estava a meio passo de mim e
Jean mantinha Nicolo como seu alvo principal.
Seria tão fácil atirar, mas fazê-lo tornaria real meu medo. Eles também atirariam, e eu
perderia alguém, qualquer um deles me mataria um pouco. Então Nicolo deu um passo para trás,
seus homens entenderam a retirada e o acobertaram. Eu tive que assisti-lo deixar o local ainda
vivo, ainda sendo uma ameaça. Tudo em mim doía, enrijecido, tenso.
— Vamos — Jean disse ao puxar meu ombro.
Eu não me mexi, ainda com as armas apontadas para o grupo que protegia Nicolo. Ainda
pensando em como matá-lo sem arriscar qualquer um de nós.
— Álvaro, é uma ordem — ele reiterou com mais energia.
Por instinto meus braços perderam a firmeza, acatando a ordem que eu não desejava acatar.
Mas eu o fiz. Guardei as armas quando os homens assumiram à frente, nos protegendo. Então
busquei por Isotta. Jordan continuava à sua frente.
Entretanto, não consegui ir até ela. Não consegui puxá-la para mim. Não consegui
comemorar as horas que ganhamos com aquele embate. Eu não conseguia. Porque festejar seria
dar a Isotta a esperança que ela não podia ter. E fraquejar também.
Pensamos naquela possibilidade por muito tempo. Havia um plano esquematizado, mas,
para executá-lo, eu teria que me despedir dela. E não seria tão fácil, ainda que me desse a mínima
chance de salvá-la. Então não olhei para Isotta, porque eu precisava me despedir dela e não tinha
forças para isso.
51
ÁLVARO

— Você precisa tirá-la daqui — Jean advertiu ao me fazer caminhar com pressa.
Os dedos de Isotta envolveram os meus. Eu não conseguia olhá-la. Não conseguia fazer
aquilo sem fraquejar.
— Estamos com tudo pronto — Jean prosseguiu, revelando aquela parte do plano que
minha esposa desconhecia. — Isotta e Ava vão para a Alemanha. O avião espera por elas e
nossos homens já sabem como conduzi-las.
— Eu não vou — Isotta declarou sem se preocupar se desobedecia o Don da Ndrangheta.
Jean me deu um olhar sério, deixando claro que daquela vez não aceitaria a minha
submissão a minha esposa. E ele tinha razão. Eu precisava que Isotta estivesse em segurança.
Puxei Isotta pela mão, adentrando o prédio por onde seguiríamos para nos separarmos.
Todos caminhavam apressados, ordens foram dadas. Ouvi Ava concordar com Miguel e desejar
boa sorte ao marido e ao seu amante. Eu não compreendia como aquele trio funcionava, mas
desejava que eles tivessem tempo para continuar. Porém, ditava ordens para que minha mente
não se iludisse com sentimentos de esperanças para mim e Isotta. Era melhor que eu não
acreditasse em nada.
Isotta viveria. Meu pai e Aaron estavam prontos para recebê-la e cuidarem para que a
Ndrangheta sufocasse aquele conflito. Nicolo era ingênuo ao acreditar que o seu alvo estava ali,
naquele grupo, sem entender que éramos muitos, espalhados pelo mundo todo, voltados para
aquele objetivo, exterminá-lo, assim como todos que seguissem seus passos.
Então ele podia me matar, podia atingir Miguel, Valentin, Jordan, Dimas e até mesmo
Jean, mas não iria além disso. E nós, todos nós, morreríamos investindo contra ele. Porque se
Nicolo chegou a pensar que seria mais esperto do que nós, mostrou que não tinha maturidade
para jogar aquele jogo.
Quando Jean desconfiou do que acontecia, compartilhou suas suspeitas com Miguel, que
chamou Celso, seu homem de confiança e soldado particular, para se infiltrar. Quando os
homens seguiram Nicolo e se voltaram contra a gente no cemitério, Celso estava entre eles, os
seguiu quando Nicolo fugiu. Por isso ele não mais seria uma surpresa. Nós o alcançaríamos, e o
eliminaríamos, ainda que alguém não retornasse desta missão.
— Eu não vou! — Isotta afirmou com firmeza ao pararmos diante do carro onde Jordan a
esperava.
— Isotta… — Soltei o ar, puxando de dentro de mim a raiva necessária para fazer aquilo.
— Entre no carro.
— Não!
— Porra, Isotta! Não temos tempo.
— Eu não vou!
— Você vai! — Aumentei a voz, ciente de que éramos muitos e que inevitavelmente nos
ouviriam.
— Não vou! Você não pode me obrigar.
— Posso!
Ela recuou quando a olhei determinado a fazê-la entrar naquele carro. Eu sabia que seria
daquele jeito, que ela se recusaria, que tornaria tudo mais difícil. Jean me avisou que seria assim
e fez questão de me lembrar do quanto era importante afastá-la. Eu não podia ceder. Não podia
deixá-la comigo quando tudo caminhava para um confronto onde eu não poderia desviar meu
foco.
— Entre no carro — ordenei, contudo com a voz mais controlada.
— Não! — Ela chorou, desta vez sem se esconder por trás das lentes escuras dos óculos.
— Eu vou ficar com você.
— Não!
— Vamos fazer isso juntos.
— Não vamos. Está louca? Você vai entrar nesse carro e embarcar para a Alemanha.
— Não vou! — Desta vez ela chorou livremente, sem medo ou receio da plateia que nos
assistia. — Não vou te deixar. Por favor, Álvaro! Eu não quero ficar sem você. Por favor!
Aquilo partiu meu coração. Eu acreditei que me despediria de Isotta na noite anterior e que
isso bastaria. Achei que teria tudo dela que eu precisava para fazê-la entrar naquele carro sem me
sentir péssimo por isso. Eu queria salvá-la. Precisava salvá-la. Mas me perdia naquele pedido
que eu sabia, comprometeria nós dois, e todos os que se arriscariam para defendê-la.
Uma coisa era entrar naquela guerra para matar Nicolo. Fizemos isso inúmeras vezes
quando as diferentes máfias se desentendiam. Fizemos aquilo quando precisávamos dar o
exemplo, quando alguém tentava tirar o que era nosso. Era o mundo em que vivíamos.
Estávamos dispostos a entrar sem perguntar se sobreviveríamos porque fomos criados para isso.
Era diferente quando tentávamos salvar alguém. Giullia quase morreu para salvar Matheus,
Jean quase morreu para salvar Heidi e as crianças da própria irmã, eu morreria para salvar Isotta.
Mas Isotta não precisava morrer para me salvar. E aquele era o caminho que tomaríamos se eu
cedesse, se ela ficasse. Alguém se machucaria no processo, e eu não suportaria a culpa.
Ainda assim, não consegui manter a máscara fria que vesti no instante em que Nicolo
apareceu. Eu não podia. Dei um passo em sua direção, encarei seus olhos úmidos, seu rosto
sofrido.
— Ele sabe que você é a minha fraqueza — sussurrei, desejando que aquele fosse o nosso
momento. Mais um. Talvez o último. — Ele sabe que terá mais chance contra mim se você
estiver em algum lugar onde ele possa te alcançar. E Nicolo tentará. Ele colocará mais energia
para chegar até você, porque ele sabe que se conseguir… se te colocar como escudo, eu abro
mão de tudo. Esqueço a lealdade, as pessoas que eu amo… abro mão da minha vida, Isotta.
Porque eu não posso viver sem você.
— Eu não posso viver sem você — ela confessou, a voz fraca pelo choro. — Álvaro, eu…
E eu sorri. Era a primeira vez que ela me dizia aquilo. Em nenhum momento, desde que
confessei meu amor por Isotta, ela admitiu me amar. Eu sabia que ela me amava pelo jeito como
me olhava, pela sua entrega na cama, pela vontade de permanecer ao meu lado, pelos sorrisos
que se abriam quando eu me aproximava. Eu sabia e isso deveria bastar. Mas não bastava.
Mas era maravilhoso e destratoso que ela me dissesse ali, naquele momento. Eu morreria
sem dor se ela nunca me dissesse. Sabendo, não havia como impedir meu coração de desejar a
vida, o tempo, as possibilidades.
Por isso puxei Isotta para mim. Beijei seus lábios com todo o amor que eu me permitia
sentir naquele momento. E eternizei as palavras que calei.
— Não diga — implorei, sofrido, angustiado.
— Diga que vai me encontrar — ela suplicou, as mãos fechadas em minha camisa. —
Prometa que vai me buscar. Prometa que estará lá quando estiver pronto para ouvir.
— Prometo — menti.
E me condenei por mentir. Mas não havia nada mais gentil e doce do que fazer planos com
ela enquanto a morte me espreitava.
Isotta me segurou com força, chorou, então se afastou, sem conseguir me olhar. Jordan,
segurando a porta do carro, me lançou um olhar que deveria me passar confiança. Mas não
passava. Ainda assim concordei quando ele entrou e o carro ganhou movimento. Jean se
aproximou, contudo, eu mantive meus olhos fixos no carro que se afastava.
— Temos o que precisamos — ele informou. Eu concordei.
Dei as costas e segui meu amigo ao carro que nos levaria até Nicolo. E eu não podia mais
pensar em Isotta, ainda que ela fosse a minha escolha de último pensamento.
***
— Ele está preparado para um ataque — Miguel sinalizou ao vestir o colete a prova de
balas. — O lugar apontado por Celso é afastado de tudo. Não haverá surpresas. Será um
confronto direto que precisa ser assertivo.
— Nicolo não estará na linha de frente — Jean tomou a palavra. — Nós também não.
Vamos avançar conforme sempre trabalhamos. Cobrir o máximo de área possível e enfraquecê-
los. Precisamos ser rápidos. Nicolo não pode fugir. Álvaro? — Ele me chamou enquanto eu
conferia minhas armas e verificava minhas munições. — Deixe os soldados trabalharem —
ordenou.
Eu não gostava daquilo, da maneira como Jean tentava me proteger. Ele sabia, assim como
eu, que Nicolo não ficaria aguardando até que entrássemos. Por isso seguiríamos em frentes
diferentes, cada um por uma entrada possível, cobrindo toda a área e eliminando as fugas.
Porém, Jean me conhecia o suficiente para saber que se houvesse a chance, eu passaria na
frente. Nenhum deles tinha uma mira melhor do que a minha e o que para eles era uma
vantagem, para mim era uma maldição.
Jean me queria atrás, na segurança de quem observa a guerra para escolher os melhores
alvos. Eu os faria recuar em minha posição de sniper, com Valentin como observador,
eliminando a chance de escaparem pelos fundos da casa escolhida para aquele confronto. Ele
contava com minha capacidade psicológica, contudo, eu mesmo não acreditava nisso. Minha
cabeça estava uma merda.
— Vários homens abandonaram Nicolo — Emílio informou, já vestido com seu colete e
pronto para o embate. — Estamos em vantagem em número de homens e armas.
— E Fernán? — Eu perguntei. — Ele não estava entre os homens que acompanharam
Nicolo no cemitério.
— Até onde sabemos, Fernán só se envolveu na fuga de Nicolo do Brasil — Jean ressaltou.
— E desde então manteve-se na Costa do Marfim. Vamos pensar nele depois de eliminarmos
Nicolo e assegurarmos o estabelecimento de Miguel como Capo.
Concordei. De fato Fernán não ganhava o pódio das minhas preocupações. Com todas as
armas separadas e distribuídas, segui com Valentin no carro que nos levaria até o local do
confronto. Emílio nos alcançaria depois que iniciássemos a ofensiva. Ele atacaria de cima, no
helicóptero equipado para dizimar as chances do exército que ainda se mantinha ao lado de
Nicolo.
— Não se preocupe — Valentin falou ao meu lado. — Todos concordam em deixar Nicolo
para você.
Mais uma vez, apenas concordei. Eu queria que minha mente estivesse limpa para
conseguir fazer o trabalho que Jean confiou a mim, mas a cada segundo eu só pensava em
quando eu receberia a mensagem de que Isotta estava bem e em segurança.
— Álvaro? — Jean chamou, caminhando em minha direção com pressa.
Meu melhor amigo e chefe afastou Valentin sem precisar dizer nada. Ele se aproximou
sem esconder a preocupação. Jean estaria no grupo que tentaria invadir pela frente, seguiria um
caminho diferente e combateria sem que eu estivesse ao seu lado protegendo-o, e aquilo também
me atormentava.
Se algo acontecesse a Jean eu nunca mais conseguiria encarar Heidi.
— Você deveria ir pra casa — tentei pela última vez, mesmo ciente de que Jean jamais
recuaria.
Ele me deu um sorriso despretensioso, puxou um último trago do cigarro que fumava e o
apagou.
— Não posso deixar toda a diversão pra você.
Abracei Jean apesar de aquele não ser o nosso protocolo. Nunca antes senti tanto medo de
perdê-lo. Talvez porque daquela vez era por algo meu, não por causa do nosso compromisso com
a Ndrangheta, nem por causa dos desafios que a vida dele exigia.
— Você esteve comigo quando minha família me traiu — ele disse com cuidado. — Você
salvou Ayla quando Lícia a ameaçou. Agora é minha vez de retribuir.
— Tome cuidado — supliquei.
— Você também.
Então ele me deixou, andando com passos rápidos na direção do comboio que seguiria com
ele. Valentin abriu a porta do carro para que eu entrasse e quando a porta fechou, eu sentia como
se o mundo se dividisse em diversas nuances, com pontos afastados que exigiam a minha
atenção, me confundindo, me esgotando.
Como eu conseguiria fazer aquilo?
O carro ganhou velocidade. Comigo apenas três carros seguiriam. Ficaríamos distantes,
quase quatrocentos metros da residência onde Nicolo aguardava por nós. Posicionados para
aniquilar qualquer vantagem deles. Todo o restante se concentraria em cercar a propriedade.
E assim seguimos até quase chegarmos ao nosso destino.
Foi Valentin quem recebeu a ligação. Jean não quis falar comigo, pois sabia que aquilo me
enlouqueceria. Meu soldado particular ordenou que encostasse o carro e, pelo que pareceu, os
demais também receberam a mesma ordem.
— O que aconteceu? — eu perguntei.
— Tivemos um problema. Jean já deslocou uma parte do pessoal. Você vai seguir com ele
de helicóptero.
— O que aconteceu? — repeti a pergunta com mais energia.
No fundo eu já sabia a resposta, só sabotava meu cérebro do choque, me protegia do medo,
adiava a dor.
— Nicolo está com Isotta — ele informou.
E ali eu soube que me preparar para morrer por ela jamais seria tão sofrido do que me
preparar para viver sem ela.
52
ISOTTA

Eu sabia que não seguíamos o caminho para o aeroporto, de onde certamente voaríamos
para Barcelona e de lá para a Alemanha. Essa, na minha cabeça, era a rota mais segura e rápida,
eliminando assim qualquer ação de Nicolo contra o comboio que nos levava embora. Mas,
naquele momento, eu não conseguia pensar direito.
Álvaro ficou para trás, para um confronto mortal, talvez o mais mortal de todos que ele já
enfrentou. Por mais que dissessem que Nicolo não tinha o mesmo poder bélico dos que se
juntavam para combatê-lo, não havia como garantir quem sobreviveria. E todos sabiam que em
uma luta como aquela, as perdas eram inevitáveis.
Meus pensamentos se prendiam a isso. As perdas. Álvaro, Miguel, Dimas, Jean, todos
estavam ali por minha culpa. Eu não deveria ter fugido. Deveria ter matado Nicolo na primeira
oportunidade. Impedido que aquela guerra se estabelecesse. Se eu tivesse tomado uma decisão
mais sábia, apenas eu seria punida, todos seguiriam suas vidas, Álvaro não teria me conhecido
e…
E eu não sabia como seria uma vida sem ele.
Talvez por isso meu coração estivesse tão pequeno naquele momento.
Em algum lugar no espaço entre eu e ele, algo se rompia, esfarelava e se dissolvia no ar.
Algo ficava para trás, nas infinitas variações de “e se”. Algo não se encaixava mais em minha
realidade.
— Coloque o cinto — Jordan insistiu, pela, talvez, quinta vez. — Isotta, por favor, afivele
o cinto.
Obedeci, apenas para que ele parasse de me ditar coisas para fazer, como se me colocar em
ação conseguisse me trazer de volta pra superfície, mas Jordan não sabia que eu estava tão fundo
em mim que nada que ele fizesse, ou dissesse, mudaria meu quadro.
Eu não disse que o amava.
Deixei Álvaro sem minhas palavras. Sem a certeza que ele mesmo me garantiu outras
tantas vezes sem nunca encontrar uma devolutiva. Pulsava em meu corpo agora a necessidade
insuportável de corrigir aquele erro.
Por favor, Deus, permita que seja possível.
Por favor, Deus, nos dê uma chance.
Mais uma chance.
Por favor, por favor, por favor…
Minha mente repetia sem encontrar exaustão. Como se repetir incansáveis vezes aquelas
palavras pudesse mudar alguma coisa naquele destino cruel que se fechava ao meu redor.
— Vai ficar tudo bem — ele murmurou, de forma quase inaudível, quando guardou o
celular no bolso após enviar uma mensagem, apressado.
Olhei em sua direção e vi que Jordan estava aflito. Por causa da sua missão comigo ou por
causa dos que ficaram para lutar?
— Você também queria estar com eles?
Ele negou sem dizer nada. No rosto uma expressão sofrida.
— Por favor, me perdoe — ele disse, ainda baixo, sem que os dois soldados da frente nos
ouvissem.
— Por que eu precisaria te perdoar?
— Até onde você iria por amor?
Encarei Jordan, a princípio sem entender do que ele falava, entretanto, a dor em seu olhar e
a determinação me levaram pelo caminho correto.
— O que você fez? — sussurrei, aturdida, assustada.
— E por vingança? — ele prosseguiu.
Foi quando ouvimos o primeiro estrondo. Olhei para trás e vi o carro que nos seguia, o
qual Ava estava, subir em uma labareda e capotar inúmeras vezes.
— Segure com força — ele gritou quando o carro que estávamos acelerou.
Foi tudo rápido demais. Em um instante eu me prendia na escuridão da minha mente, no
outro sentia Jordan me puxar e me proteger com seu próprio corpo.
O carro, acelerado em uma fuga insana, rodopiou, inclinou, colidiu com força em alguma
coisa. Eu nunca conseguiria descrever o que exatamente aconteceu, nem o que ouvi. Mas quando
o carro parou após um som terrível de ferro se contorcendo, tudo ficou em silêncio.
Presa pelo cinto, observei o mundo de cabeça para baixo. Os dois soldados que estavam na
frente não se mexiam. Eu ofegava, ainda sem compreender a realidade. Batemos? Capotamos? O
que aconteceu? Fomos atingidos? Os vidros, todos os que eu conseguia visualizar, estavam
trincados, rachados em mosaicos que desfiguravam o que acontecia do lado de fora.
— Isotta? — Jordan chamou por mim.
Pisquei algumas vezes. Confusa com a pressão em minha cabeça, devido a posição. Ouvi
um clique, depois um barulho e então ele entrou no meu campo de visão.
— Eu preciso te soltar — avisou.
— Jordan… Ava…
— Não pense nisso agora.
— O que você fez?
Ele me segurou quando soltou meu cinto e me puxou para que eu me acomodasse no teto
do carro de cabeça para baixo.
— O que você fez? — repeti, em pânico.
— Fique calma — ele implorou.
Ouvimos vozes próximas ao veículo, pessoas que tentavam abrir as portas.
— Ninguém alcançaria Nicolo — ele explicou rápido. — Ele fugiria por mais tempo do
que vocês suportariam. Ele te destruiria, destruiria Álvaro. Alguém precisava detê-lo.
— Você vai me entregar a ele? — Choraminguei.
Jordan me encarou com tristeza, então fechou os olhos com força e quando os abriu, só
havia firmeza em suas decisões.
— Ele enfrentaria um exército sem se arriscar — esclareceu. — Mas se houvesse a chance
de pôr as mão em você, ele arriscaria tudo.
— Jordan! — ofeguei.
— Nicolo deixou seus homens para morrer naquele combate inútil. Ele deixaria de
qualquer jeito. Eu não podia deixá-lo escapar.
— Ele vai nos matar.
— Não. Ele não te mataria.
Então seus olhos se tornaram mais doces. E eu entendi o seu plano. Meus olhos não
fizeram questão de conter o choro. Aquele era o plano mais louco de todos os que ouvi, e, ainda
assim, era o único que poderia dar certo.
— Jean sabe onde estamos. Eu o avisei.
— Por favor, não faça isso — supliquei quando ele deu a primeira porrada na porta com o
pé. — Jordan, por favor!
— Você está armada? — ele perguntou baixinho.
Assustada, sem acreditar que aquilo estava acontecendo, encarei meu soldado particular.
Ele tinha um machucado na testa manchada pelo sangue.
— Por favor! — insisti.
— Não pense em nada agora — sussurrou. — E mate aquele desgraçado.
Eu quis segurá-lo com força, implorar para que não desse aquele passo. Quis impedi-lo de
abrir aquela porta e nos expor, mas Jordan golpeou-a outra vez com o pé e logo mãos nos
puxavam para fora. Homens seguraram Jordan e o afastaram de mim. Eu não lutei contra. Sabia
que quanto mais me debatesse mais exigiria das mãos deles em meu corpo, e eu não podia ser
desarmada.
Só haveria uma única chance.
Uma.
Eu não podia desperdiçá-la.
Por todo lado havia fogo e estilhaços de carros revirados. Os homens que nós atigiram
forçavam as portas e arrancavam as pessoas de dentro. Eu vi Ava ser estirada no chão,
desacordada. Morta? Eu não sabia dizer. Então ouvi tiros. Não como se lutassem, mas disparos
certeiros. Os homens de Nicolo eliminavam os soldados que sobreviveram.
Era a cena mais cruel que já assisti.
Nicolo apareceu sem pressa. Ele desceu do carro e caminhou na direção de Jordan, não
sem antes retirar os óculos escuros e me observar com um sorriso de vitória no rosto. Eu queria
gritar para que ele deixasse Jordan em paz. Quis salvá-lo. Porém, quando Jordan nos jogou
naquela confusão, ele sabia que Nicolo não o pouparia.
Jordan colocou em minhas mãos a definição daquela guerra.
Por isso, ao invés de gritar e implorar pela vida do meu soldado, eu analisei Nicolo.
Observei minha melhor oportunidade. Como seria? Onde eu deveria atingi-lo? Ele usava um
colete a prova de balas. Então não poderia ser um disparo apenas para afastá-lo. Eu precisava
eliminá-lo de vez.
Revivi em minha cabeça tudo o que aprendi nas aulas de tiro ao alvo, no entanto, as dicas
mais importantes eu obtive do meu irmão. Miguel, com sua preparação para ingressar naquele
mundo, sabia o que nenhum instrutor me ensinaria.
— Eu a trouxe para você — Jordan disse, tentando não parecer intimidado por estar
desarmado diante de Nicolo. O homem que matou o amor da sua vida.
— Sim, estou vendo.
Mais uma vez Nicolo me olhou. Ainda no chão, afastada deles por seus homens que
pareciam não se preocuparem comigo. Eu era só a garota frágil por quem seu líder lutava e que,
naquele momento, nada poderia fazer contra eles.
Ele me deu um sorriso contido, os olhos cheios de euforia. Eu nunca vi Nicolo tão
confortável em sua posição como vi naquele momento. E então entendi o que Jordan fez. Ele
tinha razão.
Nicolo não se arriscaria em um confronto direto com Álvaro e Jean. Não. Morrer por
ofendê-los não tinha qualquer sabor para ele. Nicolo lutava por mim e se não havia a
oportunidade de me tirar dos braços de Álvaro, ele não tinha pelo que se arriscar.
Nicolo sabia que se eu chegasse na Alemanha, exigiria esforço maior dele, sem qualquer
garantia de vitória. Sua única chance de me ter seria me capturando quando eu estivesse longe de
Álvaro, por isso aceitou a ajuda de Jordan e pelo mesmo motivo o mataria.
E eu enxerguei isso naquele instante, naquele mínimo segundo que se passou desde o
momento em que ele sorriu para mim, até quando sacou a arma e se voltou para Jordan, atirando
em sua cabeça sem qualquer aviso. Assim, eliminando de uma vez qualquer pessoa que pudesse
atrapalhar seus planos.
Eu não gritei. Não consegui. Tudo o que senti ao assistir o assassinato do soldado que
cuidou de mim como um irmão, ficou preso em minha garganta e queimou em minhas costas, no
local onde Álvaro escondeu a pistola. Também não fechei os olhos. Encarei Nicolo, o rosto ainda
com respingos do sangue. Ele não se importava com o corpo caído ao seu lado. Ele não se
importava com nada que não fosse me ter à sua disposição.
Com dois passos ele me alcançou e estendeu a mão para mim. Os homens se afastaram,
dando-lhe privacidade, organizando os demais para a fuga. Coloquei minha mão sobre a de
Nicolo. Ele me içou, atento ao meu rosto, ansioso por aquele momento, onde teria tudo o que
quisesse de mim.
Nicolo sabia que eu não resistiria. Quantas vezes passamos por aquilo? Aquela mesma
situação. Ele me encontrava, me resgatava e me levava de volta. Eu não lutava porque de nada
adiantaria. Nicolo sempre me devolvia para meu pai e assim fortalecia a promessa de que seria
ele a me desposar.
Só que meu pai não estaria mais no fim do caminho para me acolher. Nicolo cuidou
daquilo também. Não havia ninguém a quem ele precisasse impressionar. Não havia motivo para
se dedicar e merecer o prêmio. Ele só precisava… estender a mão e me tomar.
E enquanto eu me deixava içar do chão, ouvimos as hélices dos helicópteros que se
aproximavam.
Álvaro.
Jordan cumpriu com sua promessa.
Eu precisava cumprir com a minha.
Nicolo virou o rosto na direção do barulho, dando-se conta do que aconteceria. E eu
lembrei da minha mãe, seu rosto doce, seu sorriso impecável, sua força inquestionável. Ela
costumava deitar ao meu lado na cama e contar histórias sobre princesas que não queriam
príncipes, vilões que subestimavam a força das suas escolhidas.
Eu ria, achando engraçado aquela versão nada tradicional, quando a princesa jogava a
maçã fora e o príncipe a encontrava lutando contra um dragão, ou quando a princesa se rebelava
contra a madrasta malvada e fazia todos os tipos de armadilhas para expulsá-la de sua casa, então
quando recebia o convite para o baile, ia sem precisar de uma fada madrinha.
Minha mãe, se pudesse me observar naquele momento, sorriria e diria: e a princesa que
não usava rosa, que preferia as calças aos vestidos, as armas às bolsas de marca, salvou a ela
mesma e viveu feliz para sempre.
Sim, eu viveria feliz para sempre, mamãe.
Os tiros iniciaram do alto. Eu encarava Nicolo processar a informação. Ele não percebeu
que minha mão estava nas costas. Não imaginou que eu estivesse armada. Jamais seria capaz de
prever aquele roteiro.
Os homens atiravam de volta e tentavam sair do alvo. A mão de Nicolo se fechou com
força em meu braço. Ele mantinha os olhos fixos nos dois helicópteros que se aproximavam, sem
perceber que seu fim seria por minha mão.
Eu assisti, como quem assiste uma cena de ação em câmera lenta, Nicolo me buscar com
os olhos antes de decidir me tirar dali. A arma em sua mão deixava claro que ele resistiria até que
Álvaro precisasse escolher entre me colocar na linha de fogo ou deixá-lo fugir e me levar junto.
Eu sorri para ele, presa ao seu corpo, com a adrenalina pulsando em meus ouvidos, o resto
todo bloqueado. Eu não tremia, não tinha medo, não sentia dor.
— Eu disse que te acharia — ele ousou dizer.
— E eu disse que te mataria — declarei quando levei minha pistola até seu pescoço,
pressionando sua jugular.
— Isotta? — Ele murmurou.
— Pobre garoto sem amor.
Em minha boca o prazer de assistir o medo refletido em seus olhos.
Nicolo era um monstro, um ser desprezível, uma ameaça a humanidade. Por isso minha
mão não tremeu, meus dedos não vacilaram. E eu só me dei conta do que aconteceria quando
atirei, com os olhos fixos nos dele, assistindo sua morte.
— Isotta, não!
Álvaro gritou de algum lugar.
Mas eu não procurei por ele. O sangue de Nicolo atingiu meu rosto, algo maior, mais
forte, me atirou para trás. A mão de Nicolo que me segurava perdeu a força. Desabei no chão
certa de que o coice da arma, junto com a fragilidade do momento, me desequilibraram.
— Isotta!
Álvaro gritou, desesperado.
Eu ainda ouvia tiros, gritos, hélices, passos. Puxei o ar e me assustei com a dor. Levei a
mão até o ponto que ardia no mesmo segundo em que percebi minha blusa molhada. Eu tinha
sangue nas mãos. Sangue? Meu? De Nicolo? Eu não sabia dizer. Mas, à medida que a dor me
alertava, a tontura me atingia. Deitei no chão e encarei o céu.
— Isotta!
Álvaro falou perto de mim. Eu não o enxergava. Era um dia bonito com céu quase sem
nuvens, o sol brilhava e aquecia meu rosto. Fechei os olhos, gostando da sensação.
— Isotta? Abra os olhos — ele suplicou com desespero. — Por favor, fique comigo.
Eu sorri.
Matei Nicolo, eu quis dizer. Mas não consegui. O sol me tragava, o dia me exigia para si.
Eu me sentia nas nuvens, como parte daquele momento, como parte do céu.
Mas eu precisava.
Matei Nicolo. Acabei com todo o medo, a raiva, a perseguição. Então eu estava livre.
— Álvaro? — sussurrei, surpreendida com a fraqueza da minha voz.
— Eu vou te tirar daqui. Você vai ficar bem.
Ele afirmou, determinado, e eu sorri um pouco mais. Aquele era o Álvaro que eu amava.
Gemi quando ele me levantou, a dor tornando-se intensa, aguda.
— Você vai ficar bem — reiterou.
O sol deixou de atingir meu rosto, um frio estranho fez minha pele arrepiar. Abri os olhos e
vi o rosto de Álvaro. Lindo, apreensivo.
— Pressione o local — ouvi Jean dizer com tanta preocupação quanto meu marido.
Algo pressionou o local que doía em meu corpo, próximo a minha cintura. Mãos
vasculhavam meu corpo.
— A bala perfurou e saiu pelo outro lado — alguém comunicou. — Ela está respirando
bem.
Eu encarava Álvaro enquanto ele assentia para quem me examinava.
— Eu vou no outro com Ava — Jean voltou a falar.
Álvaro me encarou, a mão no meu rosto.
— Você vai ficar bem — ele garantiu sem perder a apreensão. — Nós vamos para o
hospital.
— Ela está perdendo muito sangue — a mesma voz que me vasculhava, alertou.
— Nós vamos chegar a tempo — Álvaro declarou sem desviar os olhos dos meus. —
Fique com os olhos abertos — implorou.
— Estou com sono.
— Por favor, não durma — suplicou.
— Álvaro, eu… — precisei puxar o ar. Tinha algo de errado comigo. — Eu te…
— Não — ele me interrompeu. — Ainda não. Você vai ficar bem. Diga quando ficar bem.
Concordei, fechando os olhos, cansada, sugada pelo dia que me tragava a cada segundo.
Álvaro beijou minha cabeça e me pediu outra vez para que eu abrisse os olhos, mas eu não
conseguia mais. Apesar disso, fiquei com ele até que ele não estava mais comigo.
Em algum lugar do tempo, Álvaro deixou de ser os braços que me seguravam e eu flutuei
para uma imensidão de nada.
53
ISOTTA

A consciência invadiu minha mente até então apagada, sem qualquer aviso de como seria.
Eu apenas… despertei.
Pisquei algumas vezes, perdida entre o interno e o externo. Ouvi o barulho constante dos
aparelhos ligados a mim no mesmo instante onde um leve puxar em minha barriga, quase na
imediação da cintura, um pouco acima dos quadris, me fez relembrar o ocorrido.
Levei a mão ao local, percebendo o curativo volumoso.
— Um tiro.
A voz de Jean chegou até mim, obrigando-me a procurá-lo. Ele estava sentado no sofá um
pouco distante da cama, os braços apoiados nos joelhos e os olhos presos à minha imagem.
— Nicolo?
Ele concordou. Tentei desvendar o que seu rosto sério me transmitia. Com um suspiro,
Jean levantou e se aproximou de mim.
— Como está se sentindo? — ele quis saber.
— Depende — murmurei, a boca seca, os lábios rachados, ressecados. — Eu vou morrer?
Ele sorriu, eliminando de uma vez a expressão circunspecta. Jean era lindo e intimidador
com todas aquelas tatuagens, mas quando sorria tornava-se a figura mais doce que já conheci.
— A bala atravessou sem pegar em nenhum órgão.
Ele passou a mão pela boca, desenhando a barba baixa, bem cuidada, sem deixar o sorriso
desaparecer.
— Eu nunca imaginei que sua mira fosse melhor do que a de Nicolo.
— Não sei se pensamos em mira em algum momento.
Ele concordou, os olhos endurecendo um pouco.
— Como eu estou?
— Bom, você vai sobreviver — pirraçou ao caminhar em direção ao celular que deixou
sobre o sofá. — Perdeu muito sangue. Álvaro doou quase todo o dele.
— Álvaro! — ofeguei baixinho, de repente sem conseguir conter a vontade de ver o meu
marido.
— Eu vou avisar que…
A porta abriu e Álvaro entrou, flagrando Jean de pé, o celular na mão.
— Tudo bem? — ele questionou.
Jean fez um gesto na minha direção e só então Álvaro me olhou. Ele puxou o ar ao me ver
de olhos abertos. Observei suas roupas amassadas, as mesmas que usava quando se despediu de
mim, em algum tempo perdido na minha mente. O cabelo bagunçado e o rosto que não escondia
seu abatimento formavam a imagem mais perfeita que eu desejaria encontrar ao voltar da minha
quase morte.
Bom… não exatamente uma quase morte.
Eu sorri, sentindo meus lábios ressecados puxarem além da sua capacidade elástica.
— Isotta — ele sussurrou, se aproximando da cama.
— Eu vou…
Jean não terminou a frase. Ele abriu a porta, ainda com um sorriso imenso no rosto, e nos
deixou. Álvaro procurou minha mão sobre a cama e enroscou os dedos nos meus.
— Como você está? — ele perguntou baixinho, como se o volume da sua voz pudesse
piorar meu quadro.
E eu sorri um pouco mais, provocando meus lábios.
— Eu te amo — murmurei, deixando as palavras escaparem de uma vez por todas.
Os olhos de Álvaro ficaram úmidos. Tão lindo! Tão doce! Ele beijou minha mão com
cuidado, depois meus lábios.
— Repita — suplicou.
— Eu te amo — obedeci.
— Porra, Isotta — ele soltou como se prendesse o ar por tempo demais.
Então me beijou outra vez, com mais vontade, mais amor, mais doçura.
— Eu também te amo.
— Acho bom me amar mesmo — resmunguei quando seus lábios se afastaram dos meus.
— Eu não morri, o que significa que ficaremos juntos por muito tempo e…
Ele me silenciou com um novo beijo, desta vez sufocando um risinho que deixou escapar.
— Eu te amo — sussurrou em meus lábios, então se afastou. — Mas, por favor, não faça
mais isso.
— O quê? Eu matei Nicolo — pirracei.
— Bom, quanto a isso ninguém tem certeza.
Álvaro sentou ao meu lado na cama e me encarou com ironia, umedecendo os lábios.
— Dei um tiro certeiro na cabeça dele quando vi o que ele pretendia.
— Eu atirei nele — rebati. — Eu vi Nicolo morrer.
Os olhos do meu marido se estreitaram, como se sentisse prazer naquele embate.
— Eu recuperaria o corpo dele se tivesse sobrado algo para comprovar a minha ação.
Abri a boca em choque com a revelação de Álvaro.
— O quê? Você acha mesmo que eu deixaria algo para Fernán enterrar? Ele atirou em
você, Isotta!
— E eu o matei — defini, ainda horrorizada.
— Eu o matei — ele sorriu, se aproximando mais uma vez para me beijar. Então seus
olhos ficaram doces outra vez. — Foi um belo tiro o seu.
Voltei a sorrir, mas meus lábios protestaram.
— Jordan?
Ele me deu um olhar triste, que deixava claro que a morte do meu soldado particular não
fora uma invenção da minha cabeça.
— Ele será enterrado no Brasil, com honras.
E eu me perguntei o quanto Álvaro sabia do plano de Jordan, no entanto, não me atrevi a
tocar naquele assunto. Jordan se sacrificou por mim. Ele me deu a chance que nenhum outro me
daria. Entregou em minhas mãos a sua própria vingança.
— E Ava?
— Ava? — Álvaro desta vez fez uma careta, depois sorriu. — Ela quebrou um braço e
bateu forte a cabeça.
Respirei aliviada, ainda encarando meu marido e suas expressões confusas.
— Eles são um trio? — ele perguntou por fim.
Demorei um tempo considerável para compreender o que Álvaro perguntou. Eu nunca
pensei neles daquela forma. Miguel e Dimas se amavam há tempo demais para eu imaginar Ava
entre eles. Álvaro riu e eu percebi que também fazia uma careta confusa.
— Posso beber água?
— Um pouco.
Álvaro se afastou, pegou o copo com água sobre a pequena mesa ao lado da cama e trouxe
até meus lábios. Bebi dois pequenos goles e ele logo afastou o líquido dos meus lábios.
— Só um pouco — repetiu com cautela, devolvendo o copo para a mesinha. — Vou cuidar
de você, Jasmine.
Sua voz, com tanta devoção, fez meu coração acelerar. Álvaro olhou para o visor que
apitou uma única vez, depois me encarou como se buscasse o motivo para aquilo. Eu sorri outra
vez, extasiada por estar viva, por não existir mais ninguém para nos atrapalhar, por poder viver
ao lado do homem que eu amava, sem medo, sem dúvidas.
— O que quer fazer? — ele perguntou.
— Eu acho que… merecemos uma lua de mel.
— Concordo.
Seus dedos arrumaram meus fios bagunçados, descendo por meu rosto, meu pescoço…
céus, eu queria que nada mais me impedisse de ser daquele homem.
— E eu quero conhecer o mundo.
— Providenciarei.
— E você vai dançar comigo nas boates.
Álvaro sorriu, e endireitou a postura.
— Mais alguma exigência?
— Sim, só mais uma. Você vai fazer amor comigo todos os dias.
Álvaro umedeceu mais uma vez os lábios e suas íris de tempestade tornaram-se mais
intensas.
— Todos os dias?
A voz rouca, baixa e sedutora fez meu corpo se comportar de forma imprópria para alguém
que acordava após uma cirurgia delicada. Outra vez o aparelho apitou. Um sorriso torto, lindo e
cheio de malícia brincou nos lábios de Álvaro, quando as pontas dos seus dedos desceram por
meu pescoço e se projetaram entre meus seios.
— Todos os dias — defini com a voz fraca, repleta de um desejo ilícito.
— Combinado.
E ele me beijou mais uma vez, selando o que seria daquele casamento tão improvável. Da
fuga louca que um dia o jogou em meu caminho. Dos embates preciosos que nos alimentaram e
nos tornaram o que somos. E tudo o que nós éramos estava ali, naquele beijo, naquele amor,
naquele cuidado que amadurecia, que nos cercava, no desejo que nos conduzia e nos alimentava.
Em tudo o que sentíamos e vivíamos.
Porque não há caminho que um dia não se cruze, não há estrada que não se funda. Álvaro
se tornou a minha estrada e quando eu olhava para o chão que nos aguardava, eu sentia seus
dedos nos meus, e nada me assustava.
Não mais.
Dois anos depois
ÁLVARO

— Onde está Aaron?


Perguntei a Flávia enquanto observava os membros da Ilha se entreterem com as garotas
antes do próximo espetáculo.
— Ele atendeu uma ligação e saiu em seguida — Flávia informou, sem demonstrar
preocupação. — A propósito, está tudo como pediu.
A informação arrancou a preocupação com Aaron da minha cabeça. Olhei de relance para
Flávia, que continuava atenta às garotas disponíveis no salão principal. Verifiquei o relógio,
cronometrando o tempo que seria razoável para que eu pudesse me ausentar sem gerar
burburinhos.
Eu tinha exatas duas horas antes de precisar conferir a remessa que seria entregue naquela
madrugada. Por instinto olhei para cima, para o ponto que ligava o salão ao corredor. E então eu
a vi.
Isotta usava uma capa com capuz, que escondia seu rosto caso algum curioso a avistasse.
Ainda assim, saber que ela estava ali, mesmo quando eu fui claro sobre seus limites, me
enfureceu. Puxei o ar com força, me controlando para não agir de forma a alertar todos.
— Perfeito — afirmei, ainda contrariado. — Não esqueça de me avisar sobre o arremate.
Desde que Heidi enlouqueceu uma noite e optou por ser leiloada, quando ainda era uma
das garotas que se apresentavam na Ilha, as garotas demonstraram interesse em fazer o mesmo.
E, lógico que ninguém atingiu o recorde de Heidi. Não era todos os dias que alguém abria mão
de dez milhões por uma noite. Mas a ideia movimentou os negócios da casa.
Flávia estabeleceu regras que protegiam as garotas, eu as aprovei e de tempos em tempos,
quando uma garota demonstrava o desejo, ou os membros apontavam uma escolha, havendo
acordo entre as partes, realizávamos o leilão. Aquela era uma dessas noites.
— Não vai ficar? — ela perguntou surpresa.
Passei a mão no cabelo, aborrecido, com pressa de dar por encerrada a noite, e, mais uma
vez, conferi a figura etérea, escondida, quase invisível, observando o salão.
— Vá me chamar quando chegar a hora.
Deixei Flávia e odiei precisar sorrir e cumprimentar algumas pessoas quando o meu desejo
era disparar na direção de Isotta e arrancá-la dali. Soltei o ar quando entrei no corredor de baixo,
apressando meus passos até alcançar as escadas de uso restrito aos funcionários.
Dei a volta e saí num ponto distante de onde Isotta estava. Ela não percebeu minha
aproximação e se assustou quando a puxei pelo braço.
— O que faz aqui? — rosnei, no limite com aquela desobediência.
Isotta me encarou, assustada, depois soltou o ar e levou a mão ao peito, arfante.
— Droga, Álvaro! Você me assustou!
Puxei minha esposa para longe daquele canto escondido onde ela assistia o desenrolar no
salão e a tirei de vista antes que algum curioso a visse.
— Eu disse que não podia sair do quarto.
— E eu disse que queria conhecer o salão.
— O salão é para as…
Ela ergueu uma sobrancelha e cruzou os braços na frente do peito, me desafiando a
continuar. Eu odiava quando Isotta fazia aquilo. Odiava quando ela me desobedecia, quando
quebrava as minhas regras e ainda me olhava como se eu fosse o errado. Eu odiava como ela me
tinha nas mãos mesmo quando agia como uma criança mimada.
— Não saia do quarto — informei. — Eu sabia que não era uma boa ideia te trazer aqui.
Ela sorriu daquele jeito que sabia que me enrolava, então envolveu meu pescoço com os
braços e levou a boca bem próxima a minha.
— Aqui, ou em uma das suas boates… que diferença faz?
— Você é minha esposa, porra!
Ainda assim, mesmo com toda a raiva que me corroía, abracei sua cintura por baixo da
capa, percebendo não haver nada além desta cobrindo o seu corpo. Isotta sorriu, maliciosa.
— Eu amo ser sua esposa, porra! — rebateu com a voz imitando a minha, contudo, com
ousadia, sedução.
Aquela garota me enlouquecia.
— Já pensou o que aconteceria se alguém te encontrasse aqui?
— Já pensou como seria se alguém nos encontrasse aqui?
Sua coxa roçou minha perna, os quadris se insinuando no meu. No olhar o mais puro
atrevimento.
— Você não tem juízo, Jasmine — murmurei próximo aos seus lábios. Seduzido, prestes a
fazer uma loucura. — Vamos para o quarto.
Ela sorriu, atrevida, mas não me impediu de levá-la. Isotta me acompanhou ainda que
meus passos demonstrassem toda a minha pressa de chegarmos. Passamos pelos soldados que
guardavam o corredor, não mais a minha porta e eu senti vontade de ordenar que nunca
deixassem minha esposa ultrapassar dali, no entanto, não queria iniciar uma briga naquele
momento.
Isotta entrou quando abri a porta e lhe dei acesso. Ela não estava com medo, nem tensa
devido a minha raiva por surpreendê-la onde não deveria, pelo contrário. Isotta se divertia com
aquilo tudo.
Dois anos após o nosso casamento eu cedi aos seus apelos. Isotta era curiosa, gostava do
clima proibido dos meus espaços reservados em nossas boates. Gostava de transitar por onde a
luxúria fluía. Sempre atenta, excitada, me levando por um caminho que nunca imaginei viver
com alguém que eu amava. Por isso estabelecemos limites e na maioria das vezes eu resistia aos
seus pedidos.
Naquela vez eu a levei comigo para A Ilha, nossa casa de prostituição mais próspera, a
melhor de todas das Américas. Tão exclusiva que tínhamos membros de todo o mundo. Ela me
atormentava todas as vezes que eu precisava estar presente. Insistia em conhecer, tinha ciúmes e
curiosidade. Então eu cedi. Levei Isotta comigo com um limite rígido, ela não colocaria os pés
no salão. Assistiria tudo do meu quarto, pelas imagens das câmeras de segurança.
— Não temos muito tempo — alertei, ainda contrariado, mas excitado demais para termos
aquela conversa.
Ela manteve o sorriso tranquilo no rosto quando retirou a capa revelando o corpo delicioso,
nu. Uma tentação que me perturbou na mesma medida que me aborreceu.
— Isotta, você saiu assim?
Sem se importar com a minha reação, caminhou sem pressa até a pilastra de madeira,
grossa, com ganchos estratégicos, que eu mandei fazer com objetivo específico. Isotta se
encostou nela e ergueu as mãos.
Puta merda!
Meu pau pulsou dentro da minha calça.
— Por que não me prende?
Umedeci os lábios, conferindo o corpo exposto do qual eu jamais me cansaria. Eu amava
aquela cintura fina, os quadris desenhados, as pernas roliças. Amava o sexo depilado, liso e
molhado de forma a me permitir escorregar por ele até que toda a minha sanidade estivesse no
espaço.
Eu amava aqueles seios empinados, levemente cheios, com marquinha de biquíni que ela
nunca deixava esmaecer. Amava até mesmo a pequena cicatriz um pouco acima do osso do
quadril, a qual nunca me deixaria esquecer do motivo para amá-la todos os dias.
Céus, eu amava aquela mulher!
— Você quer que eu te prenda?
Perguntei, ao me aproximar, as mãos nos botões da minha camisa, desabotoando um por
um com toda a pressa que a ocasião pedia. Isotta mordeu o lábio inferior e conferiu meu peitoral
quando arranquei a peça e a joguei sobre a cama.
— Se eu prender sua mão farei o que quiser com seu corpo — ameacei.
As íris violetas, tão únicas e extraordinárias, ganharam um tom mais afogueado, como se
escurecessem diante da ideia de se submeter a mim.
— Faça o que quiser com o meu corpo.
Porra! O que aquela mulher fazia comigo?
Arrastei minhas mãos pelos braços estendidos até segurar os pulsos no local exato por onde
os grilhões a manteria cativa. Isotta emitiu um gemido baixo e curto quando deslizei as mãos por
seu corpo, percorrendo a lateral até encontrar os quadris, quando a puxei contra minha ereção.
— Eu vou foder você por ser tão teimosa — ameacei outra vez. Ela mordeu o lábio
inferior, a respiração um pouco mais ofegante. — Mas antes…
Sem permitir que ela pensasse no assunto, me afastei de Isotta, deixando-a presa e nua no
cômodo, sem que conseguisse me acompanhar para antever o que eu fazia. No closet, abri o
cofre e resgatei de lá algo que deveria ser dela há muito tempo. Voltei para o quarto e parei
diante da minha esposa.
— Acho que você precisa disso.
Passei a coleira por seu pescoço. Isotta arfou, não de uma forma ruim, mas como se aquilo
potencializasse seu desejo. Passei o dedo pela pedra fria, meu diamante bruto, o mesmo pelo qual
brigamos uma vez.
— Álvaro… — ela sussurrou.
— Pra estar aqui precisa ser minha.
— Sua exclusiva — ela disse com cuidado.
— Sim, minha exclusiva.
Isotta semicerrou os olhos quando provoquei seus lábios com meu polegar, e quando os
abriu, havia um incêndio incontrolável nela.
— Eu sou sua puta? — ela perguntou com a voz rouca, baixa, que atingia com força meu
pau.
— Porra, Isotta! — gemi meu desejo.
Tomei seus lábios como se precisasse deles para aplacar minha fome. Eu queria aquela
mulher com tudo o que ela era, tudo o que me oferecia, tudo o que me permitia fazer. Isotta
gemeu quando meus dedos encontraram seu sexo úmido, provocando, alisando a carne,
arrancando dela o prazer.
Desci os lábios até encontrar um seio. O bico intumescido brincou em minha boca quando
o chupei. Isotta gritou ao ter o bico capturado por meus dentes enquanto meus dedos castigavam
seu clitóris. Os quadris dançavam em minha mão com seu rebolado incomparável.
Escorreguei os lábios pelo ventre liso, mordisquei a pele enquanto minha mão vagava pela
bunda empinada, puxando-a para mim quando me ajoelhei à sua frente. Isotta gritou quando
minha língua percorreu sua carne molhada e sensível. Ela se abriu para mim, a coxa sobre meu
ombro. Suguei seu sexo, devorando seu prazer, deliciado com seu gosto, com sua excitação.
Em todo o ambiente havia apenas o som do nosso sexo misturado com o das correntes que
mantinham Isotta suspensa. Eu a devorava, chupava, mordia, empurrando sua mente para um
único objetivo: o orgasmo. Isotta rebolava em minha boca quando afundei dois dedos nela e
suguei o clitóris. Ela se debateu, gemendo sem pudor. Eu queria que ela gozasse daquele jeito,
em minha boca, em minha língua.
Os gemidos ficaram mais altos, mais curtos. Os quadris mais lentos, com movimentos
restritos, até que ela explodiu, alimentando-me com seu doce prazer. Isotta gozou em minha
boca. A sensação única da sua carne pulsando em minha língua, repercutia em meu pau.
Rocei a língua pela pele sedosa, do sexo até um seio, depois outro. Isotta deixava que
espasmos escapassem quando eu chupava. Então alcancei sua boca. Ela devorou meus lábios
daquela forma que eu já estava habituado, com vontade do seu próprio gosto, excitada por me ter
misturado com seu gozo em sua boca.
Isotta era uma grata surpresa.
Nada a espantava. Nada lhe fazia recuar. Ela aceitava tudo do sexo com uma verdeira
paixão. E isso me excitava pra caralho.
Abri minha calça, libertei minha ereção, rocei a cabeça do meu pau em sua entrada
convidativa. Com Isotta presa eu podia fazer mais do que me afundar em sua boceta apertada. Eu
podia penetrá-la por trás e me satisfazer naquela bunda deliciosa. Não seria a primeira vez e isso
também me agradava. O que para muitas mulheres era um tabu, para Isotta foi um desafio. Ela
quis e eu não coloquei nenhum empecilho em satisfazer as suas vontades.
Porra, Isotta me enlouquecia!
Mas eu ainda tinha compromissos para aquela noite e me afundar em sua bunda exigia um
ritmo menos… emergencial.
Segurei em sua cintura puxando-a para cima. Isotta enroscou as pernas em meus quadris, o
sexo melado roçando no meu. Uma delícia!
— Boa garota — provoquei.
Eu me encaixei em Isotta, enlouquecendo aos poucos com seus gemidos deliciados por ser
preenchida. Entrei todo nela. Tão fundo que sentia a carne pressionar meu pau por completo.
Acariciei as coxas quando comecei a me movimentar. Entrando e saindo à princípio sem pressa,
esperando Isotta se recuperar e pegar o ritmo, escorregando para dentro e para fora em um
serpentear delicioso.
Fui mais firme, forçando meu pau em sua carne, saboreando os espasmos que se
espalhavam por minha pele. Os quadris de Isotta se chocando contra a madeira quando eu
avançava. Eu a segurava para que seus pulsos não sofressem pelo peso suspenso. Chupava os
seios empinados enquanto arremetia com vontade, aumentando a velocidade.
Os sons ficaram mais gostosos. O atrito intenso dos nossos sexos reverberando pelo
ambiente, os gemidos dela… ah, os gemidos de Isotta eram um incentivo a mais. Ela estava tão
pronta, tão excitada que acabava comigo. Eu sentia seu corpo pulsar ao meu redor, apontando o
orgasmo que logo se apresentaria.
— Eu vou gozar, meu amor — avisei em seus lábios, vivenciando o mais puro desejo.
Carnal, vivo, tão instintivo e selvagem que me arrancava de mim.
— Álvaro… — ela choramingou antes de explodir em meu pau, me levando com ela
naquele orgasmo sem descrição.
Gememos juntos, nos apertando, colando nossos sexos, permitindo que o prazer se
espalhasse como fogo em pólvora. Uma deliciosa explosão.
— Álvaro… — ela sussurrou quando nossas bocas voltaram a se procurar.
— Hum!
— Ela… — suspirou de forma pesada. — Ela nos viu.
Abri os olhos e encarei Isotta. A pele avermelhada e suada que indicava a deliciosa foda
que tivemos. As íris violetas ardiam pela travessura e também pelo… prazer de ser flagrada.
Puta merda!
— Ela quem?
Olhei para a porta do quarto, encontrando-a semiaberta.
— Flávia — Isotta informou.
— Porra, Isotta!
E eu vivi um misto de sentimentos. Isotta gozou ciente de que Flávia nos via. Ela gostava
daquilo, do flagra, da adrenalina que percorria seu corpo ao ser descoberta. Ao mesmo tempo, eu
senti ciúmes. Isotta sabia que entre nós dois, era ela quem Flávia admiraria. E aquilo me deixou
muito puto.
Soltei suas mãos, arrumei minha roupa e, puxando o lençol da cama, cobri o corpo dela.
Isotta riu.
— Isso não tem graça — resmunguei.
— Por que Flávia gosta de mulher?
— Flávia pode gostar de mulher, não da minha mulher.
— Deixe de bobagem.
Ela subiu na cama e deitou relaxada, como se nada daquilo tivesse acontecido. Observei
Isotta, linda, minha, com aqueles lábios inchados devido aos meus beijos, e o rosto de quem
tinha por mim a mais profunda admiração. Ela ergueu a mão e me convidou a deitar. E então a
raiva evaporou.
Flávia foi até meu quarto porque eu pedi para que me avisasse quando o leilão fosse
começar. Não imaginei que seria daquela forma. Quando deixei o salão eu queria apenas levar
Isotta de volta para o quarto e reforçar a importância de ela ficar lá, mas não havia nada de
previsível quando o assunto era Isotta.
— Deite comigo — ela pediu quando sentei ao seu lado.
— Eu tenho que voltar.
— Foi por isso que Flávia veio?
Fiz uma careta, sem querer pensar naquele assunto.
— Sim.
Isotta abriu um imenso sorriso.
— Não faça isso.
— Isso o quê? — ela perguntou manhosa.
— Não fique toda feliz porque Flávia nos flagrou.
— Sua reação seria muito pior se fosse um dos seus soldados.
Meus músculos ficaram rígidos no mesmo instante.
— Porra, Isotta!
— Você deixou a porta aberta.
— Vamos mudar de assunto — rebati, incomodado demais para pensar.
— Vamos sim.
Ela sentou no colchão, o lençol preso no corpo escondia sua nudez. Isotta acariciou meu
rosto e me beijou com cuidado, me envolvendo outra vez em seu feitiço. Eu gostava daquilo, da
sua fome insaciável, de como ela ficava quando tinha um desejo atingido, ainda que este me
aborrecesse.
— Eu estou pronta — ela sussurrou em meu ouvido.
— Já?
Mordisquei seu pescoço, a mão roçando a coxa por cima do lençol de seda que deixava
tudo mais sensual.
— Álvaro! — Ela se afastou e procurou meus olhos. — Não assim.
Então abriu um imenso sorriso.
— Não assim. Então…
Então eu me dei conta. Há dois anos tivemos aquela conversa. Depois de tudo o que
aconteceu, quando precisei me despedir de Isotta, acreditando que Nicolo, de alguma forma,
venceria, arrancando-me dela quando eu o matasse, eu desejei que ela engravidasse.
À princípio desejei que Isotta tivesse um filho meu para que eu pudesse para sempre estar
em sua vida.
Depois, quando sobrevivemos, eu quis um filho porque me culpava pela perda do outro. E
então a ideia de ser pai cresceu dentro de mim com força. Eu vivi todas as justificativas quando
pedia que ela engravidasse, os mais variados motivos para convencê-la, mas Isotta não queria.
Ela não se sentia pronta. E eu respeitei.
Até aquele momento.
Isotta abriu um sorriso genuíno quando viu minha emoção.
— Tem certeza?
Ela concordou, mordendo o lábio inferior, me encarando em expectativa.
— O que te fez mudar de ideia?
Isotta buscou alguma resposta em meu rosto, perdendo um pouco do brilho de antes. O que
me fez sorrir. Isotta estreitou os olhos.
— A sua idade — provocou com aquele tom de voz que me garantia que eu tinha
conseguido irritá-la.
— Eu tenho trinta e seis anos, amor.
— Exato. Se eu demorar mais para te dar um filho, você será o avô dele.
— Eu tenho certeza de que muitas mulheres vão adorar cuidar de uma criança com um pai
maduro.
— Esqueça, Álvaro.
Eu ri quando ela deitou no colchão, os braços cruzados como uma criança birrenta. Deitei
sobre Isotta, prendendo-a no lugar.
— Eu quero — anunciei, beijando e mordiscando seu pescoço. — Eu quero um filho,
Jasmine. Vários filhos.
O risinho dela aqueceu meu coração e meu corpo ganhou vida quando seus braços se
fecharam ao meu redor.
— Tem certeza? — ela perguntou.
— Vamos providenciar logo — determinei, atacando-a. — Deus me livre de ser avô dos
meus filhos.
Isotta riu, e me beijou, e me envolveu com braços e pernas, e me puxou para aquele
encanto, aquele mundo só nosso. Tão certo e perfeito que me fazia esquecer de todo o restante.
— Mas antes…
Eu me afastei, pulando da cama.
— Pra onde vai?
— Trancar a porta. Chega de Flávia por hoje.
Isotta riu.
Eu voltei para a cama e amei aquela garota que um dia invadiu minha vida, me
enlouqueceu, me desestruturou, só para me provar que seu plano era sim, o melhor de todos os
planos.
Quem podia duvidar de Isotta?
Agradecimentos
Mais um livro pra conta. Mais um universo de gratidão pra eternizar.
Primeiro agradeço a Ary Nascimento por ser generosa e me emprestar seus personagens.
Miguel e Juan são personagens secundários dos livros da Ary, e, para que eu conseguisse ter uma
Isotta da Camorra em Ibiza, precisei fazer com que ela estivesse neste mundo que Ary criou.
Então, Ary, minha amiga, irmã de alma, obrigada por tudo. Eu amo você e sou grata todos os
dias por te ter em minha vida.
Vou agradecer as betas Winnie Wong - minha CEO maravilhosa -, Sheila Pauer, Jana
Perla, Marcira Lima, Lívia Guanabara e, estreando, Juh Barbosa, a mais nova beta, que fez um
lindo trabalho. As betas tiveram todo o peso para a construção deste livro. Elas amaram Álvaro
no livro do Jean e pediram até que eu não tivesse outra opção, um amor para ele. Meninas, vocês
são maravilhosas. Amo vocês.
Preciso agradecer às minhas leitoras do FC Tatiana Amaral, por serem tão atenciosas e me
animarem a cada novo livro. Vocês tornam tudo mágico.
E agradeço a todos os novos leitores que chegaram aqui.
Obrigada! Obrigada! Obrigada!

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