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1ª.

Edição
2021
Copyright© 2021 Julia Fernandes
Essa é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas.
Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são
produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.


São proibidos o armazenamento e/ ou a reprodução de
qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios — tangível
ou intangível — sem o consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil.
Revisor – Grupo TBJ
Adaptação de capa – Gialuidesign
Diagramação – Julia Fernandes
Sinopse

Capítulo um

Capítulo dois

Capítulo três

Capítulo quatro

Capítulo cinco

Capítulo seis

Capítulo sete

Capítulo oito

Capítulo nove

Capítulo dez

Capítulo onze

Capítulo doze

Capítulo treze
Capítulo quatorze

Capítulo quinze

Capítulo dezesseis

Capítulo dezessete

Capítulo dezoito

Capítulo dezenove

Capítulo vinte

Capítulo vinte e um

Capítulo vinte e dois

Capítulo vinte e três

Capítulo vinte e quatro

Capítulo vinte e cinco

Capítulo vinte e seis

Capítulo vinte e sete


Capítulo vinte e oito

Capítulo vinte e nove

Capítulo trinta

Capítulo trinta e um
Sinopse
Iran, um forte guerreiro do reino de Flós, enviado a outro
mundo com a missão de proteger sua rainha.

Já Vida é uma mulher solitária, que só conhece o mundo por


sua televisão, mora em uma cabana afastada de tudo e sua única
companhia é Bravo, seu lobo de estimação.

Em meio a sua rotina sem cor, no seu vigésimo aniversário


Vida tem seu mundo transformado, quando é atacada por lobos
ferozes e mesmo protegida por Bravo fica ferida na batalha e acaba
perdendo os sentidos.

No momento que acorda, tudo está diferente: se vê morando


em Flós, é a rainha desse reino e descobre que seu lobo de
estimação, na verdade, não é mais o mesmo Bravo e sim Iran, um
homem lindo, sisudo e seu guerreiro protetor.

Contudo, ela não teria só essa novidade para lidar, mas


também uma maldição, um reino inimigo, magia, casamento
arranjado e uma guerra que depende dela e de Bravo para terminar.
Dedicado a Larah, João
Paulo
e a todas as Marias.
A flor de lótus tem suas
raízes na lama, passa por águas
turvas, até que na superfície,
encontra a luz que precisa para
florescer.
Prólogo
Meus olhos fixaram nos corpos machucados e sem vida
jogados de qualquer jeito no chão e bem na minha frente. Havia
sangue por todo lado e eu sabia o que tinha que fazer, mas meu
corpo estremecido pelo desespero e choro compulsivo, não permitia
que eu parasse de observar aquela cena.

Abaixei-me ao lado dos meus pais, chorei ainda mais em um


grito forte de dor, os puxei para mim e ambos já não respondiam.
Olhei seus corpos falecidos e pelas diversas dilacerações e marcas
de batalha, tive a certeza que haviam morrido por ataque de lobos.
Algo que sempre me alertavam para ter cuidado.

Alguns dos lobos com aparências medonhas encontravam-


se caídos mais distante e era claro a luta que havia acontecido ali.

Chorei ainda mais segurando suas mãos e me perguntei o


que seria de mim sem eles. No entanto, meu choro foi cessado
quando um barulho ao redor chamou a minha atenção, como se um
galho fosse pisado. Imediatamente enxuguei as lágrimas e decidi
que precisava tirá-los dali.

Com dificuldade, usando a força que nem sabia que tinha,


os arrastei até tirá-los do bosque e os levei até a campo com mato
baixo, próximo da nossa cabana.

Em meio a minha dor, arrumei coragem para passar o dia


preparando a cerimônia que ambos haviam me ensinado e ao final
dele, havia cavado duas covas fundas.

Meus braços estavam doloridos, minhas roupas sujas de


terra, as mãos cheia de bolhas estouradas e em carne viva, mas
mesmo em meio a dor física, forcei-me a lembrar bem, de todos os
ensinamentos que meus pais, de forma contida, me passaram
durante a vida, como se soubessem que aquele momento
aconteceria.

Com o coração em pedaços, o corpo exausto e o rosto


tomado de lágrimas, joguei as últimas pás de terra, os cobri de
flores e falei em meio as lágrimas as palavras que uma vez me
instruíram, contando-me que era como seus antepassados faziam:

— Da terra para terra. Seu fim chegou e sua batalha


terminou... Eu amo vocês.

Deixei meu corpo cair sobre a terra mexida e naquela noite


não entrei para cabana, dormi entre os dois me sentindo mais
solitária do que sempre fui.

Pensei que ao menos antes, mesmo que fossem sempre tão


sucintos, eu tinha meus pais, mas daquele dia em diante seria
apenas eu, sozinha no mundo... Sozinha.

Com o sol batendo em meu rosto, acordei no dia seguinte


cheia de tristeza e me arrastei até em casa, mas para minha
surpresa, assim que encarei a porta da frente da cabana, faltando
poucos metros para chegar, tomei um susto ao ver um lobo sentado
lá como se me esperasse.

Carregava olhos tão azuis que pareciam brilhar e me


encaravam com atenção, seu pelo preto era brilhoso, como uma
estrela na noite escura, e era muito grande, praticamente do meu
tamanho.

Encarava-me como se analisasse cada movimento meu, seu


rosto tinha um machucado e até pensei ser um dos lobos que
atacaram meus pais. Contudo, este não levava a estranha
aparência maquiavélica daqueles que avistei mortos ao lado dos
corpos, mas sim uma aparência imponente, tão cheio de vida e
lindo. Porém, sua beleza não camuflava sua cara de bravo e eu não
tive medo nenhum dele.
Capítulo um
Estava frio, muito frio, e quando abri a janela do meu quarto
na manhã em que completaria vinte anos, senti o vento cortar o meu
rosto e fechei meus olhos repelindo a sensação que o toque da
brisa gelada me causava.

Não gostava nada quando a temperatura caía, o frio me


trazia um pressentimento ruim, assim como os dias cinzas. Sentia
como se aquela cor me fizesse mal.

Voltei a abrir meus olhos, admirei o bosque que ficava bem


próximo da minha casa, por onde eu caminhava todos os dias e não
me cansava de aproveitá-lo. Mesmo antes, a contragosto dos meus
pais, e continuei depois que tudo aconteceu.

Naquele dia, alguma coisa parecia diferente em mim, uma


sensação de que algo bom ia surgir, me invadia a cada minuto e me
deixava ansiosa, até mesmo à espera de um evento ou algo
parecido, mas que dentro de mim eu tinha consciência de que não
aconteceria, já que minha vida era calma, silenciosa, solitária e sem
cor, sempre a mesma rotina e nada de novo.

Eu morava sozinha no meio do nada e sempre estranhei o


fato de vivermos ali, sem vizinhos e sem civilização. Antes de
morrerem, meus pais plantavam o que comíamos e criavam poucos
animais que nos eram úteis para sobrevivência e que conforme fui
crescendo aprendi a cuidar, a abater e a usá-los quando necessário,
mas sempre com respeito a cada um.
Nunca fui à escola, aprendi a ler, escrever e tudo que sabia,
em casa com os meus pais, que apesar de me tratarem de forma
contida, sempre me deram atenção, um pouco de carinho e tudo
que eu precisava.

Ensinaram-me a usar espada, como se eu fosse uma


guerreira, a montar a cavalo e a me defender. Adoravam me ver
aprendendo tudo que tinha nos livros que enchiam nossa estante,
na sala pequena, da cabana de madeira em que morávamos.

Para agradá-los nunca pedi para conhecer o resto do


mundo, apesar de algumas poucas vezes já ter desejado.

Como passatempo comecei a ler cada vez mais e com isso


passei a amar todo o conteúdo dos livros que, segundo eles, eram
dos seus antepassados e eu devia aprender. Me interessei em não
apenas só conhecer, mas sim aperfeiçoar tudo que lia em cada
exemplar.

Nossa vida era um tanto antiquada para o século em que


vivíamos e o pouco de modernidade que tínhamos era a luz elétrica
e uma televisão por onde eu acompanhava o mundo fora da
imensidão verde onde morávamos. E era só por causa da TV que
eu sabia que existia um mundo diferente daquele que eu conhecia
ali.

Nossa casa ficava no meio de uma espécie de pasto com


mato baixo, seus arredores eram cercados por arame enrolado em
toras de madeira e sua frente dava para uma estrada de terra que
seguia para lugar nenhum ou, caso fosse para o outro lado,
chegaria em uma pequena cidade depois de horas de viagem.

Fui à cidade apenas uma única vez e só fui porque fiquei


doente. Meus pais evitavam a todo custo que eu tivesse contato
com o mundo fora dos arredores da nossa casa e tinham sempre
muito cuidado para que me mantivesse saudável e bem, assim não
precisariam encarar o mundo fora da cerca novamente.
Quando perguntei o motivo disso, apenas disseram que o
mundo era perigoso, mas eu acreditava que eles não conheciam
muito bem nada do que tinham medo.

O bosque próximo a casa, que a cada manhã me parecia


mais convidativo, era a minha única distração, como se me
chamasse, isso desde que eu era uma menina. Meus pais não
gostavam muito que eu fosse até lá, temiam insistentemente que me
acontecesse o pior.

Muitas vezes quando diziam isso, demonstravam medo de


algo concreto, outras parecia apenas medo de que eu me
machucasse mesmo, e assim, embora contrariados, me deixavam
passear pelo bosque. Apenas até o início dele e me pediam sempre
muita atenção e cuidado, isso quando não me seguiam para se
certificarem de que eu estava bem.

Ainda que sempre os notava atrás de mim, à espreita e


tomando conta de todos os passos que eu dava.

A cada dia visitar o bosque se tornava mais meu


passatempo favorito, principalmente depois que conheci os livros
que ensinavam sobre remédios feitos com plantas e tudo ligado a
botânica.

Acordava querendo encontrar plantas novas, aproveitava o


cheiro do mato, admirava a cor das borboletas e algo naquele
colorido me parecia muito familiar.

No dia do meu aniversário, da janela do meu quarto e


pensando na minha pouca diversão, decidi que não seria o frio que
me impediria de ir até o lugar que eu mais amava, principalmente
por ser a manhã em que eu completaria duas décadas. Sendo
assim, voltei para dentro do pequeno cômodo e comecei a me
agasalhar para sair.

Enquanto colocava algumas camadas de roupa, flashes do


sonho estranho que tive durante a noite, com bichos se curvando
diante de mim, invadiam a minha mente e eu me perguntava o
motivo daquele sonho ter me marcado tanto e de ficar indo e
voltando insistentemente no meu consciente.

Fui tirada dos meus pensamentos quando ouvi um ganido


forte e alto do meu lobo de estimação.

Encarei o grandão que chamava-se Bravo, mas de bravo


não tinha nada, e ele me olhou de volta. Logo se levantou do tapete
onde antes dormia e se aproximou de mim, colocando sua grande
pata na minha perna.

— Claro que vou sonhar com bichos, você não me deixa


sozinha nem um minuto, seu grandão — falei, sorrindo para o meu
melhor amigo e passei a mão em sua cabeça grande, enquanto ele
me olhava de volta, encarando os meus olhos como se tentasse me
dizer algo.

Vi-o lamber uma marca que eu levava na mão desde


sempre e voltou a me encarar. Olhei para mancha vermelha no
dorso da minha mão e ela lembrava o formato de um coração. Às
vezes, mudava de cor, ficando de um rosa clarinho a um vermelho
escuro. Bravo sempre a lambia, nem parecia um animal selvagem.

— Nós já vamos sair para nossa caminhada. — Meu lobo


pareceu entender o que falei e mesmo com sua cara de mau
demonstrou animação.

Eu o adotei quando apareceu na minha casa, há mais ou


menos um ano, no dia seguinte a morte dos meus pais, e por mais
que eu tentasse expulsá-lo nos dias que seguiram, Bravo insistiu em
ficar, até que me venceu pelo cansaço e comecei a amá-lo, se
tornando assim minha única companhia e amigo.

De início imaginei que ele fizesse parte dos lobos que


mataram meus pais, mas o achei estranhamente domesticado e
dócil o que me fez concluir que não.
Nunca tive amigos e depois que meus pais morreram, não
tinha nem família. Então era apenas Bravo e eu. Sentia-me tão
deslocada quanto solitária, como se aquele lugar não fosse o meu.

O que contribuía para esse pensamento era que nem meus


pais eram pais de sangue, ambos me contaram que eu havia sido
deixada na porta deles ainda bebê e só contaram a minha
verdadeira história quando fiz dez anos, pois era difícil esconder
nossas diferenças físicas, já que eu era negra, com os olhos cor de
mel, cabelos volumosos e cacheados e os dois eram muito brancos.
Minha mãe era ruiva. No entanto, mesmo depois de saber a
verdade, sempre os vi como meus pais.

No mesmo dia que soube sobre não ser filha biológica,


também me contaram que haviam se mudado para casa em que
morávamos no dia anterior ao que apareci e que os dois não tinham
família, ou seja, fora eles eu realmente não tinha mais ninguém no
mundo.

Apenas o Bravo.

No dia de suas mortes, estranhei quando saíram juntos, com


rostos sérios e preocupados, me pediram para não sair de casa e
disseram para que eu trancasse tudo. Entretanto, por mais
obediente que eu sempre tivesse sido, tive que desobedecê-los pela
primeira vez e depois de horas em que ambos não voltavam, decidi
procurá-los e os encontrei já sem vida.

Lembrei-me de tudo que vivemos, de como sempre me


alertavam sobre o perigo e constatei da pior maneira que tinham
razão, só que nem assim deixei de me sentir atraída pelo bosque.

Durante suas vidas pareciam sempre querer me passar


ensinamentos e conversavam comigo até sobre suas mortes, como
se esperassem por elas. Diziam que se um dia morressem por
qualquer motivo que fosse e eu ficasse sozinha, que não era para
eu ir para cidade ou chamar alguém para me ajudar com o que
fosse e sim era para que fizesse sozinha seus rituais de passagem
e a cerimônia que me ensinaram.

E assim eu fiz. Sozinha.

Quando me ensinavam, nunca se aprofundaram sobre suas


culturas e crenças, apenas poucas e rasas explicações e me
mandavam ler seus livros. Diziam que era onde eu aprenderia tudo
que precisava.

Em respeito, nunca perguntei muito mais do que os livros


me mostravam, apesar de me interessar e querer perguntar tudo
sobre eles. Quando por acaso citavam o dia em que morreriam,
davam a entender que eu não ficaria sozinha para sempre e que
algo maior me esperava.

Os dias pós-morte dos dois, foi o momento que mais sofri e


mesmo sempre achando que meus pais me tratavam com mais
respeito do que amor, eu sabia que me amavam e amavam tanto,
que durante suas vidas sempre me trataram como se eu fosse uma
rainha e só faltavam me reverenciar a cada dia.

O que me consolou, apesar do sofrimento e da saudade, foi


Bravo e sua insistência em ficar comigo. Ainda que me sentisse
completamente deslocada e perdida naquele mundo que realmente
nunca foi o meu, com meu lobo lado a lado foi mais fácil aguentar a
solidão.

O frio no dia do meu vigésimo aniversário não estava fácil,


mas enfrentei o caminho para o bosque. Bravo a minha volta
andava empolgado, atento e para tentar esquentar, corri com meu
lobo dócil que parecia um cachorro, e rumei sentido a mata verde
que balançava com a brisa fria.

Assim que passei pela primeira árvore alta antes de adentrar


de verdade em meio a mata, senti uma eletricidade tomar meu
corpo e juntei a sobrancelha com a sensação.
Bravo fez um som como um rosnado.

— Sentiu isso, garoto? — perguntei para o meu lobo, olhei


para o alto e depois constatei: — Acho que foi minha imaginação.

Continuei andando e já completamente em meio às árvores,


olhei novamente para cima e observei o sol tímido, que não
esquentava o dia frio de inverno. Seus raios passavam por entre as
folhas e pelos galhos mais altos, depois tocavam o chão com mato
rasteiro, fazendo as flores brancas nativas brilharem ao serem
iluminadas.

Ouvi o canto dos pássaros, vi as borboletas à minha volta e


eu amava tudo aquilo, principalmente as cores e o cheiro de mato.

Sentia-me acolhida na natureza e naquela manhã tudo dava


a impressão de estar mais colorido, parecia algo mágico e eu até
sentia que o bosque estava em festa por meu aniversário.

Respirei fundo, senti o ar encher meus pulmões e soltei-o a


seguir, imediatamente a sensação que eu vinha carregando durante
toda a semana, como se algo fosse acontecer, voltou a tomar conta
do meu corpo e tornei a ficar ansiosa e à espera.

Antes eu pensava que a sensação estava me tomando por


ser meu aniversário, embora eu não tivesse ninguém além de Bravo
para comemorar comigo, entretanto, a data chegou sem surpresas,
como sempre, e o frisson prosseguiu.

Andei por entre as árvores, desviando das raízes,


respirando o ar fresco e com cheiro de mato que tanto me fazia
bem. Cores, muitas cores e flores, muitas flores que eu amava.

Tudo seguia perfeito, até que desviei a atenção da natureza


a minha volta e tive a impressão de que estava sendo observada,
até ouvi um estalar de galho, como se alguém tivesse pisado sobre
um.
Olhei em volta e não vi nada nem ninguém, encarei meu
lobo a alguns metros longe de mim e o notei em alerta. Mais uma
vez observei em volta, mas minha atenção voltou ao meu lobo,
quando Bravo rosnou soltando um barulho forte e imponente que
me deixou receosa.

Rosnou novamente e se mexeu como se me chamasse para


ir até onde ele estava.

Não costumávamos ir para aquele lado do bosque, na


verdade, nem para o outro. Era sempre em linha reta, sem ir muito
longe e voltávamos para casa, seguindo o que meus pais instruíram,
mas por ser meu aniversário decidi diversificar, me arriscar pelo
novo e segui apenas um dos seus conselhos de todas as vezes:
levei uma adaga comigo.

Notei que Bravo parecia insistir para que eu o seguisse,


tinha o olhar atento como um caçador, a expressão corporal
indicando estar a postos para atacar se preciso.

Fez alguns barulhos mais uma vez, até que seu rosnado
forte carregou uma ferocidade excessiva que arrepiou meu corpo,
me deixou séria e com medo.

Soltei um suspiro e contrariando o que meus pais sempre e


repetidamente me diziam, adentrei ainda mais na mata e decidi ir
com o Bravo.

Comecei a andar em sua direção e quanto mais eu andava,


mais Bravo se afastava, correndo e olhando para mim e para frente,
claramente pedindo que eu o seguisse.

— Espera, Bravo! — gritei.

Corri em meio ao mato, desviando com atenção das muitas


árvores e raízes para que não tropeçasse e caísse.
Não muito tempo depois de me embrenhar pelo caminho
diferente, cheguei em frente à três árvores com troncos enormes,
onde Bravo me esperava sentado, como se dissesse que
chegamos.

A sensação de que era observada ainda me acompanhava e


a calmaria de quando entrei no bosque deu espaço a uma pequena
excitação misturada com a fagulha de medo que parecia crescer.

Observei as árvores a minha frente e eram tão grandes que


se eu as abraçasse não conseguiria unir as minhas mãos do outro
lado. Estavam dispostas na diagonal, como se tivessem sido
plantadas dessa forma, propositalmente. O que me causou
curiosidade, já que naquela mata as árvores não foram plantadas,
era um bosque natural, não tinha donos e a minha casa era a única
nas redondezas.

Ainda observava as árvores, quando notei que Bravo


começou a se esgueirar pelo pequeno espaço entre elas, até que
novamente me olhou e fez um barulho, que entendi como se
dissesse para que o acompanhasse.

Estranhamente o obedecendo passei pela primeira árvore,


tomando cuidado para não cair ao passar por suas grandes raízes
que saíam muito acima da terra, depois passei pela segunda que
estava um pouco mais atrás e com pouco espaço de distância da
anterior, até que cheguei à terceira e última árvore, onde o espaço
entre ela e a segunda era ainda menor, sendo assim, me apertei
pelo vão e enfim cheguei onde Bravo me esperava.

Afastando-me das árvores, encontrei um ambiente de terra


batida, com algumas rochas pelo chão e era como se fosse um
pequeno salão, cercado por grandes pedras, redondo e com clima
gelado. Ao fundo vi um grande buraco escuro, como uma caverna
que de tão breu o seu interior, não consegui ver o fim.

Olhei em volta e tive a impressão que as três grandes


árvores fechavam propositalmente aquele espaço e até mesmo
serviam para esconder a entrada da caverna atrás delas.

Bravo mais uma vez grunhiu fazendo com que seu barulho
ecoasse pelo ambiente e para dentro do breu que era o túnel
caverna adentro. Seu gesto chamou a minha atenção, o olhei e ele
dava alguns passos em direção ao escuro e me encarava, como se
quisesse me encorajar a acompanhá-lo para dentro da escuridão.

Cogitei a ideia, mas um morcego saiu voando lá de dentro, o


que me fez soltar um pequeno grito.

Bravo com mais pressa, outra vez me chamou com uma


espécie de latido rouco e seu olhar emitia atenção.

— Ah, eu não vou entrar aí não, Bravo. E acho melhor irmos


embora.

Meu lobo tirou os olhos de mim, encarou algo em minhas


costas e imediatamente os seus pelos se ouriçaram, Bravo começou
a rosnar, assumindo uma postura ofensiva e em alerta, que eu
nunca o tinha visto ter.

— O que foi, amigão? — perguntei preocupada.

Antes que pudesse pensar, vi um lobo magro com pelos


cinzas e com um rosto aterrorizante, pular em direção ao Bravo, que
com uma patada o derrubou e mordeu seu pescoço, fazendo com
que jorrasse sangue em seu focinho. Eu gritei.

Em seguida outro lobo, que parecia babar com sua ira,


passou pela fenda estreita entre as árvores e pulou em minha
direção. Soltei um grito de medo e fechei meus olhos em desespero,
já esperando dentes afiados me atingirem, mas antes que isso
acontecesse, Bravo novamente pulou de encontro ao outro animal e
me defendeu, o estraçalhando.

Tive a impressão de ouvi-lo dizer para que eu entrasse na


caverna, mas imediatamente caí em mim e pensei que eu só podia
estar ficando louca ou o medo me fazia ouvir coisas.

Encarei meu lobo, paralisada, enquanto o via lutar com


lobos maus que continuavam pulando em nossa direção, um a um
passando por entre a fenda estreita da terceira árvore.

Perguntei-me o que estava acontecendo, enquanto olhava


em volta procurando um modo de fugir dali, mas não tinha outro
caminho a não ser por onde entrei ou para dentro da caverna.

Imediatamente meus pais invadiram meus pensamentos e o


medo me atingiu com ainda mais força, junto com a angústia de
imaginar que os dois haviam passado o mesmo medo que eu sentia
naquele momento.

Enquanto pensamentos borbulhavam em minha mente,


Bravo seguia lutando com os lobos maus e mesmo no meu impasse
sobre ir ou ficar, notei que seu peito sangrava em abundância em
algumas partes, além da pata e das orelhas.

O desespero me tomou ao pensar que se Bravo não


aguentasse firme, eu seria a próxima e ao mesmo tempo que o
encarava lutando para me proteger, não percebi quando mais um
lobo passou pela fenda e se esgueirou em minha direção.

No momento em que enfim o percebi-, já encontrava-se


muito perto, como se estivesse pronto para me devorar.

— Bravo! — gritei desesperada e pedindo ajuda ao meu


lobo que enfrentava dois lobos maus ao mesmo tempo.

Bravo me olhou ao ouvir meu grito e encarou o animal que


andava vagarosamente em minha direção. Levava um olhar faminto
como se analisasse qual a maneira mais rápida de me matar.

Comecei a andar de costas, em direção à caverna escura,


ao mesmo tempo que encarava o lobo para que ele não me
pegasse de surpresa. Com olhares rápidos a minha volta eu
procurava algo para me defender, mas não encontrava
absolutamente nada.

Meu olhar assustado entregava o medo e nas brechas das


árvores eu notava que do lado de fora mais lobos tentavam entrar
pela fenda estreita.

Seria o fim.

Continuei andando de costas para dentro da caverna,


ouvindo rosnados tanto de Bravo que lutava fortemente, quanto dos
lobos que o atacavam.

Em um momento de desatenção, tropecei em uma grande


pedra e bati minha cabeça em outra, o que fez minha vista embaçar,
uma dor forte me atingir em cheio e deixou-me completamente
zonza.

Tornei-me um alvo fácil para o lobo monstruoso que andava


vagarosamente, se deleitando com o provável banquete que eu era,
como se ansiasse pelo instante em que acabaria comigo.

Contudo, não nos venceria tão fácil assim e no momento em


que o bicho se via muito próximo de mim e eu quase desmaiava por
conta da dor, novamente tive a impressão de ouvir Bravo dizer para
eu ser forte e antes que fechasse meus olhos de vez, o vi destroçar
a garganta do lobo que lutava com ele.

O animal asqueroso ainda se deliciava com cada passo que


dava para mais perto de mim e eu carregava a esperança de que
Bravo nos salvaria, no entanto, sem forças para acabar com mais
aquele inimigo, meu lobo amigo caiu machucado ao meu lado e com
a respiração cansada.

O lobo do mal que encontrava-se prestes a me atacar,


vendo que Bravo parecia mais vulnerável, virou-se para matá-lo
primeiro, imaginando que seria mais fácil acabar comigo depois que
estivesse sozinha.
O animal até parecia sorrir.

Lembrei-me da adaga que sempre carregava comigo por


ordem dos meus pais e aproveitando o momento de distração,
estiquei o braço para tirá-la do porta facas que eu levava na perna e
com força a enfiei no pescoço do lobo, que caiu após um barulho
fino de dor.

Movida pelo desespero, o acertei mais algumas vezes para


me certificar que estava morto, até que tonta, caí ao lado de Bravo,
que respirava de forma acelerada e me observava sem forças para
levantar.

A dor forte pela queda e a batida na cabeça se tornou


insuportável e meus olhos tomados por uma nuvem de dor insistiam
em fechar.

Antes que tudo fosse escuridão, vi lobos passando pela


fenda e se aproximando de nós.

É o fim...
Fechei os olhos e ia me entregar, no entanto, antes de
perder os sentidos ouvi vozes ao longe dizendo:

— Ajudem o guerreiro protetor... Salvem a rainha.

A escuridão cegou meus olhos e desmaiei.


Capítulo dois
Acordei e estava deitada em uma cama com dossel e um
tecido fino, branco e quase transparente pendurado a ele, balançava
movido pela leve brisa que adentrava pela janela aberta no cômodo
em que me encontrava.

Tentei levantar e senti que a minha cabeça doía, latejava e a


dor me deixava tonta a qualquer pequeno movimento.

Esperei a minha visão se estabilizar e com dificuldade me


sentei e observei todo o espaço a minha volta. Era amplo e exibia
uma parede feita de grandes pedras empilhadas, no estilo medieval,
parecida com as das imagens dos livros que meus pais tinham em
casa.

O teto adornado por um forro de madeira escura e as portas


e as janelas eram confeccionadas com o mesmo material que dava
um ar imponente ao ambiente.

Além da cama, os móveis eram um espaçoso guarda-roupas


de madeira e uma mesa com duas cadeiras. Estranhei ao ver uma
grande banheira branca ao lado de uma lareira e me perguntei o
motivo pelo qual a banheira não ficava em um banheiro. No chão,
aos pés da cama, pousava-se um lindo tapete felpudo.

Não reconhecendo aquele espaço, ainda tonta forcei-me a


levantar e imediatamente ao ficar de pé, senti minha cabeça pulsar
com a dor e dessa vez acompanhada por uma tontura mais forte.
Tentei me segurar e com o equilíbrio um pouco
comprometido, acabei derrubando um copo com água que estava
na mesa ao lado da cama, fazendo um barulho alto ecoar por todo o
grande cômodo.

Como um filme, lembrei-me de toda a cena que vivi com os


lobos na entrada da caverna e do motivo de eu estar sentindo
aquela dor. De imediato olhei em volta procurando por Bravo, mas
ele não estava ali comigo, o que fez meu coração se apertar e meus
olhos se encherem de lágrimas e preocupação.

Meu lobo amigo lutou bravamente, foi ferido e tudo para me


defender.

— O que aconteceu com você, meu amigo? — perguntei em


um sussurro, como se Bravo pudesse me ouvir e fiz uma prece para
que estivesse bem em algum lugar.

Aprumei-me após a tontura passar e notei uma sacada no


quarto, por onde a claridade entrava e repetindo o mesmo gesto que
fiz quando acordei naquele dia, fui devagar até a porta e assim que
a abri, senti a brisa tocar meu rosto. Fechei meus olhos para
aproveitá-la e a diferença era que não estava mais frio.

Andei um passo para fora e ao sair na sacada, olhei para o


céu que exibia tons de azul, roxo, laranja e rosa, como se o sol já
estivesse se pondo e era uma verdadeira pintura, até parecia
mágica.

Encostei-me ao parapeito, olhei ao redor e em minha


confusão, entendi que encontrava-me em uma espécie de castelo
com vários andares e o quarto em que acordei parecia ficar em um
segundo ou terceiro andar dele.

Olhei para baixo e contemplei tudo ao redor, de modo que


meus olhos se espantavam com o que viam. Era tudo muito
colorido, com muitas flores e árvores, tudo parecia brilhar de um
jeito diferente e radiava vida por todos os cantos.
No grande pátio logo abaixo da sacada, muitas pessoas
andavam com sorrisos nos rostos e entre elas também grandes e
lindos cavalos brancos e de todas as cores, com crinas penteadas e
pelos sedosos que mesmo os vendo de longe conseguia notar que
eram cuidados com esmero.

Do lado de fora dos muros altos, eu conseguia enxergar


fileiras de telhados idênticos, provavelmente do povoado mais
próximo.

Todas as pessoas no pátio eram magras, tinham a pele


muito clara, cabelos loiros ou ruivos e eu, com a minha cor, se me
misturasse a eles, certamente destoaria de todos.

— Vejam, nossa rainha! — alguém gritou e apontou para


mim.

— Viva a rainha! — outra pessoa gritou.

— Viva! — todos responderam e começaram a fazer


reverência em minha direção, bem debaixo da janela.

Assustada e sem entender se toda aquela comoção era


para mim, andei de costas de volta para dentro do quarto, passo
após passo, sem me virar e até pensei em correr, mas a tontura não
me deixaria ir muito longe.

O que estava acontecendo?


Antes que pudesse me virar, dei de encontro com alguém
muito alto, parado logo atrás de mim e me virei em um pulo.

Um homem, forte, alto e com a pele clara como os outros


que eu tinha visto, me observava com atenção. Carregava olhos tão
azuis que pareciam brilhar em seu rosto. Exibia o cabelo loiro,
quase cinza, que lembrava muito os do meu pai e estava amarrado
em um pequeno rabo de cavalo.
Nem os atores que eu assistia na pequena TV da cabana,
eram tão bonitos como aquele homem na minha frente. Ele era
lindo.

Olhava-me como se me conhecesse e esperasse a mesma


reação de mim, só que quando percebeu que eu não diria nada e
muda o olhava assustada, enfim falou, parecendo receoso:

— Desculpe a intromissão, mas ouvi um barulho. Fiquei


preocupado e entrei sem bater para ver como a senhora estava. —
Abaixou o olhar e tinha as mãos para trás. Sua voz era grossa e
soava como um carinho de tão boa de ouvir.

Juntei as sobrancelhas e o analisei mais um pouco,


admirada com sua beleza e sem saber o motivo de me tratar com
tamanha educação e respeito como se eu fosse alguma divindade.
Seu tratamento e modo de falar, até me lembrou um pouco os meus
pais e senti uma paz me atingir.

Voltou a me encarar e analisei seu rosto bem-desenhado,


com o maxilar alinhado e uma leve barba por fazer que o deixava
com um ar másculo.

Imediatamente tive a impressão de já tê-lo visto, seus olhos


azuis me pareciam familiar, entretanto, não tive contato com mais
ninguém que não fossem meus pais e o médico que me atendeu
uma vez.

Usava uma camisa cinza de mangas longas, confeccionada


com um pano fino que se ajustava aos seus músculos, calças pretas
e botas também pretas, como se fosse montar, completava sua
vestimenta.

Notei que levava uma adaga no coldre, que possuía um


cabo em metal e o desenho de uma flor de lótus, como a que meu
pai carregava.
Balancei a cabeça na intenção de parar de vagar com os
pensamentos nas minhas lembranças e perguntei tudo de uma vez,
tirando meu olhar dele:

— Quem é você? Onde eu estou? Como volto para minha


casa? E cadê meu lobo? — Nitidamente demonstrei meu
desespero, quando desviei do seu corpo e como se tivesse saído de
um transe, comecei a andar de um lado para o outro. — Cadê o
Bravo? Cadê o meu lobo?

Levei a mão a cabeça sentindo dor.

— Eu estou aqui — me respondeu baixo, com uma voz forte


e grossa, mas parecia tão nervoso quanto eu.

Juntei minhas sobrancelhas e o encarei sem dizer nada.

— Sou eu... o Bravo. — Engoliu em seco como se estivesse


com medo da minha reação. — Vida, você... está em seu reino, que
se chama Flós. — Percebi que disse meu nome e me perguntei
como ele sabia que me chamava Vida.

Olhei para o seu pescoço que levava um curativo e depois


para o seu rosto que tinha uma cicatriz clara na vertical. Sentindo-
me muito desnorteada comparei com a cicatriz que o meu Bravo
levava desde o dia que chegou machucado na minha casa, no dia
seguinte a morte dos meus pais.

O encarei muito confusa, mas balancei a cabeça em


negativo e voltei a andar pelo quarto, sendo fitada por aquele
homem grande e bonito, tão grande que sua presença parecia
encher todo espaço do quarto. Já seu olhar exalava receio como se
não soubesse o que fazer para me acalmar.

Notando a minha confusão, começou a me explicar:

— Sei que é surpreendente e vai ser difícil de encarar essa


nova realidade, no entanto, vou tentar te contar e amenizar a sua
confusão.

Balancei a cabeça em negativo.

— Eu quero ir para casa e quero o meu lobo... meu melhor e


único amigo, o único ser que eu amo.

Vi seu semblante sério se amenizar, um leve sorriso tomou


seus lábios, depois olhou para o chão como se tentasse se
recompor e com um olhar fixo recomeçou a falar:

— Vida, aos arredores de Flós existem muitos reinos. Tem o


reino Fidelium que são nossos aliados, mas com a localização
distante de nós, assim como Militibus que é ainda mais longe e não
temos contato. Tem também o reino de Cinere, que são nossos
vizinhos, e nossa história de tormento começa com eles. — O vi
engolir em seco. — Há muitos anos, um mago do reino de Cinere,
transformou o nosso reino em cinzas por causa do casamento do
nosso rei Kaynaon e da rainha Evoen, do reino de Animalis, outro
dos nossos vizinhos. — Naquele momento eu o encarava com as
mãos na cintura, claramente mostrando interesse no que me dizia.
— O rei de Cinere, Malum, era apaixonado pela rainha Evoen e não
aceitou ser rejeitado, quando ela escolheu se casar com o nosso rei.
Com isso, ele ordenou que o seu mago lançasse uma maldição que
mataria aos poucos o reino de Flós.

— Maldição?

— Sim.

— Isso existe mesmo? Sempre li nos livros que meus pais


guardavam na estante e achei que era lenda.

Encarou-me de forma que eu não soube decifrar no


momento.

— Sim, existe e a que foi lançada sobre nós foi a pior delas,
que só começaria a ser quebrada quando uma criança com a pele
como a noite e os olhos como o sol, nascesse no nosso reino, o que
era impossível, já que todos os habitantes do reino de Flós são
brancos e nunca na história da nossa genealogia uma criança com
essas características havia nascido aqui. — Apesar de ser difícil de
acreditar, eu estava me interessando por tudo o que ele contava. —
Com o passar dos anos, os alimentos foram ficando cada vez mais
escassos e cada árvore foi morrendo e se transformando em cinzas
como era em Cinere, o reino das cinzas. Mesmo o nosso rei e
rainha sendo solidários com seu povo e dividindo cada pão com
seus súditos, passávamos cada vez mais fome e cada vez menos
bebês nasciam aqui, com isso, tornando impossível a quebra da
maldição.

— E quando isso aconteceu? Porque agora, ainda que tão


magros, vejo que vivem bem. — Apontei para o lado de fora da
janela, indicando o que eu tinha visto minutos antes.

— Começou um pouco antes de sua mãe biológica ficar


grávida e você nascer. Foi uma surpresa e uma alegria. Sua pele
como a noite foi admirada por seus pais e a cor dela era vista como
uma benção e uma salvação para todos. — Involuntariamente eu
sorri. — Depois, investigando, foi descoberto que sua mãe nasceu
aqui, mas seus avós vieram de um reino distante e as pessoas de
sua genealogia tinham a pele como a noite.

Juntei a sobrancelha tentando assimilar tudo e ele


continuou:

— A primeira vez que você os olhou, com seus olhos cor de


mel, os dois choraram de alegria e logo a notícia se espalhou por
Flós. A garota de pele escura como a noite e os olhos claros como
o sol havia nascido para salvar o nosso povo. Festas começaram a
serem organizadas, as flores e frutos reviveram, as árvores voltaram
a ser verdes e o povo tinha alimento. No entanto, misteriosamente
no mesmo dia em que a notícia se espalhou, a casa dos seus pais
pegou fogo e ambos morreram no incêndio dias após seu
nascimento. Meu pai conseguiu salvar apenas você das chamas
que consumiram a sua casa e, desse dia, você leva a cicatriz na
mão.

Minha cicatriz de coração...

Olhei para minha marca e me sentia muito confusa, mas


tudo fazia sentido e eu o ouvia falar cada palavra com atenção, ao
mesmo tempo sentia o meu coração bater acelerado como se tudo
fosse um sonho ou como se uma lembrança esquecida, estivesse
sendo reavivada em meus pensamentos.

Bravo continuou a falar:

— Com medo de que a salvadora do povo morresse com


mais um atentado misterioso, o rei e a rainha ordenaram que um
casal de guerreiros muito corajosos de Flós, saíssem do reino pelo
portal que levava para o mundo paralelo onde você foi criada. Era
algo que ninguém aqui conhecia direito, sabíamos da existência do
mundo e a passagem sempre esteve ao nosso dispor, mas nunca foi
usada por ser algo ainda desconhecido. Contudo, alguns guerreiros
foram até lá e sondaram tudo antes da sua chegada, em seguida o
casal de guerreiros aceitou o desafio, deixaram suas vidas e família
para trás e partiram com você, para o desconhecido que era o único
jeito de mantê-la segura. — Ele me encarou e pude ver seriedade
em seus olhos, como se me contar a próxima parte fosse
importante. — Por todos esses anos, ambos te mantiveram segura e
viveram na espera de que você completasse seus vinte anos e
assim os dois pudessem voltar para o reino com você. Enquanto
após a sua partida há vinte anos, aqui vivíamos nas cinzas e à
espera.

— Mas por que apenas com vinte anos?

— Achamos que a maldição tem ramificações, uma delas,


que o nosso antigo mago descobriu, era a idade de duas décadas.
Se você vivesse por vinte anos acabaria de vez com o feitiço do
mago de Cinere.
— Então meus pais adotivos eram guerreiros? — perguntei
baixo, mais para mim mesma, só que Bravo respondeu:

— Sim, e fizeram um excelente trabalho, te defenderam


contra tudo de ruim que ameaçava a sua vida, mesmo em um
mundo que não conheciam, porém aprenderam, se reinventaram e
quando estavam perto de cumprir seus trabalhos com êxito,
sentiram os lobos se aproximando de onde morávamos e para
afastá-los de você, saíram de casa ao encontro deles, infelizmente
eram muitos e ambos não resistiram a luta.

Bravo parecia sofrer ao me contar essa parte da história e


ao ouvir sobre meus pais eu também sofri.

— Meus pais... digo os adotivos... quando eles morreram...


— Eu estava confusa e acreditando na história mesmo parecendo
loucura, mas tudo fazia tanto sentido.

— Eles morreram em um ataque dos Cineres. O povo


Cinere leva a forma de lobo no outro mundo, só que lobos maus,
com a aparência carregada da feiura que levam em seus corações.
Eles também têm uma passagem em seu reino.

— Todos aqui viram lobos no outro reino também?

— Não, nós levamos a forma que o nosso coração desejar


ou da nossa personalidade, mas também podemos escolher a forma
humana. Eu fui enviado pelo guardião do trono, para ajudá-los no
final da empreitada e já estava à espreita, tomando conta de vocês
de longe. Porém, quando percebi os guerreiros sendo atacados foi
tarde, tentei os ajudar, mas... foi tarde. — Notei sua tristeza evidente
ao falar da morte dos meus pais... adotivos. — Matei os Cineres
antes que conseguissem chegar até você e então, como estava
sozinha, fiquei te protegendo por lá, mesmo quando insistentemente
me mandava embora.

Sorri com a lembrança do quanto eu tinha brigado com o


Bravo e o chamava de cachorro feio, desmerecendo sua beleza de
lobo.

— Você? O meu... o Bravo?

— Sim, sou eu. Sou guerreiro do seu reino, o reino de Flós.


Fui consagrado seu guerreiro protetor pelo guardião do trono e...
considerado por vossa majestade um amigão... como me chamava.
Sinto-me honrado. — Fez uma reverência e parecia tímido.

— Você consegue virar lobo aqui? Agora?

Conteve um sorriso.

— Sim, quando eu quiser, mas não vou fazer isso.

— Prefiro que não faça mesmo. Acho que teria um pouco de


medo.

Sorri e tudo fazia sentido, por mais doido que parecesse,


aquilo tudo sim parecia ter sentido, a minha vida enfim fazia sentido.

Vossa majestade...

— Eu sou a rainha? Não, espera! Por que eu sou rainha se


meus pais não eram os reis? Onde estão o rei Kaynaon e a rainha
Evoen?

— O rei e a rainha morreram e não tiveram filhos por causa


da maldição e com isso, atestaram que quando a salvadora do reino
regressasse, ela seria a rainha.

— Eu sou a rainha... salvadora do reino... — falei baixo,


mais para mim do que para ele.

— Sim, majestade. — Me lançou um sorriso discreto. — Seu


povo está em festa por seu retorno e ficariam felizes se os
cumprimentassem. — Ele apontou para sacada onde eu tinha ido
antes e agora ouvia música alta vinda de lá, como se
comemorassem.
Comecei a andar devagar em direção a sacada e
novamente quando saí, houve uma comoção. Aplausos soaram e
uma multidão estava a minha espera.

Olhei os rostos felizes, saudáveis e observei que todo o


reino onde meus olhos pousavam era florido, colorido e frutífero,
não parecia ter vivido tantos anos de fome.

— O povo não parece ter vivido em cinzas.

— Assim que você... digo a senhora... majestade.

— Você. Me chame de você.

Assentiu.

— Assim que você pisou em Flós, quando fomos resgatados


na entrada da passagem, como um encanto quebrado tudo coloriu,
floriu e ressurgiu das cinzas. O povo está voltando ao normal aos
poucos.

Ergui a mão e acenei meio que de maneira involuntária e a


multidão reagiu instantaneamente.

— Seu povo te ama, rainha. Seja bem-vinda de volta ao lar.

Pensei que mesmo que eu estivesse de volta e a maldição


tivesse sido quebrada, os inimigos de Cinere ainda estavam à
espreita, julgando pela forma que quase me mataram para que eu
não retornasse.

— E quanto ao inimigo?

— O povo de Cinere segue nos tratando como inimigos e a


vingança de amor do rei ficou em segundo plano, agora nos querem
fracos para tomar nosso reino, mas resistimos fortemente quando
tentaram e por anos os ataques ficaram adormecidos, mas com a
chegada da sua idade de retorno, como pôde ver eles voltaram a
dar sinais de que estão à espreita, como aconteceu na morte dos...
seus pais e como tentaram nos impedir de voltar. Aqui você está
segura, voltou e aqui eles não podem mais fazer nada contra sua
vida.

— Por que não?

— A maldição foi quebrada, a criança de pele escura como


a noite e os olhos como o sol nasceu em Flós, completou seus vinte
anos e retornou. O povo se sente revigorado e nada nos destruirá
novamente. Estamos mais fortes com a volta da rainha da salvação.

Fiquei encarando o céu colorido a minha frente e apesar da


loucura que envolvia toda a verdade sobre a minha vida, eu preferia
viver na loucura a retornar a vida que levava antes de acordar na
manhã sem graça do meu aniversário.

— Obrigada, por ter me protegido, Bravo.

Sorriu ao perceber que eu havia aceitado a verdade, mas


logo seu rosto ficou sério novamente.

— Eu me chamo Iran, majestade.

— Será sempre Bravo.

Bravo... a constante presença da feição séria em seu rosto


mostrava isso.
— Você se sente bem?

— Sim — respondeu contido.

— Você sabe quem me deu meu nome?

— Vida... Soube que sua mãe biológica te deu esse nome


assim que a viu.

Encarei-o e sorri, querendo saber tudo sobre mim e ao olhar


para aquele homem educado, encantador e lindo apesar da
seriedade, tive a certeza que seriamos ótimos amigos, como éramos
quando ele era apenas um lobo tão doce quanto um cachorro
grande.

Sendo muito ousada, passei a mão na sua cabeça, como se


ainda fosse um lobo de estimação e sem jeito, parecendo em dúvida
se retribuía ou se mantinha-se sério, acabou dando um sorriso
discreto de volta, no entanto, seus olhos demonstravam querer
passar mais que apenas a alegria pela minha volta e pareciam
carregar uma névoa ou até mesmo uma tristeza.

Imediatamente lembrei-me do tempo de fome que devia ter


passado e entendi que muito daquele olhar carregado, era pelo
peso da memória de tudo que viveu durante os tempos que esperou
meu retorno.
Capítulo três
Já faziam dois dias que eu vivia em Flós, era inacreditável
como tudo ali era familiar e me fazia tão bem. Não sentia falta de
absolutamente nada da minha antiga casa, nem mesmo dos objetos
pessoais ou da facilidade da eletricidade.

No reino, muitas pessoas gostavam de mim, me tratavam


como algo bom, com carinho e eu me sentia em casa. Não vivia
mais solitária.

Olhei-me dos pés à cabeça pelo reflexo no espelho e


admirei o quanto encontrava-me diferente de quando cheguei. Não
usava mais as roupas do outro mundo, como calça jeans e blusa de
moletom, eu usava botas pretas sem saltos, calça da mesma cor,
usada por dentro das botas e na parte do tronco vestia uma linda
blusa de mangas cumpridas, justa no corpo e que deixava o meu
colo à mostra, era verde com dourado e os fios da costura pareciam
feitos de ouro, o que fazia com que destacasse ainda mais a minha
pele e meus olhos cor de mel.

Sorri ao encarar meu reflexo, satisfeita por não ser mais a


Vida de antes. Ergui meu olhar e admirei meu cabelo cacheado que
caía brilhoso e comprido sobre minhas costas, enfeitado por uma
tiara dourada que havia sido colocada em minha cabeça por uma
das mulheres que cuidavam de mim.

Muitas mulheres viviam a minha volta, o tempo todo, e


sempre estavam dispostas a fazer o que eu as pedisse, mesmo que
nunca pedisse nada.
Vez ou outra as ouvi falando algumas palavras em outra
língua e fiquei curiosa para conhecer aquele idioma.

Não me sentia como a rainha que eles diziam, para mim eu


ainda era a mesma Vida de sempre, só que mais feliz, porque
naquele momento tinha amigos e pessoas com quem conversar.

Ainda sentia-me um pouco tímida em interagir, mas apesar


disso puxava assunto com quem estava a minha volta, na intenção
de que continuassem gostando de mim e para saber mais sobre
cada canto do reino.

Cresci apenas com duas pessoas ao meu redor e ambas


não eram tagarelas, o que contribuiu ainda mais para o meu jeito
introvertido, no entanto, ali eu era insistentemente incentivada a
falar.

Na porta do meu quarto sempre ficava um guerreiro disposto


a enfrentar qualquer mal que aparecesse para me proteger e Bravo,
que comecei a chamar de Iran, sempre passava por ali à espreita e
tomando conta de tudo, apesar de quase não conversarmos desde
o dia que acordei sozinha no quarto.

Tentei por diversas vezes uma interação maior com Iran,


mas meu ex-lobo de estimação em sua forma humana era
realmente bravo e arredio, diferente do que era no meu antigo
mundo, quando ele passava a maior parte do tempo a minha volta e
dormindo.

Em Flós, Bravo parecia até mesmo fugir de mim, desviava o


olhar sempre que me encontrava e algumas vezes até tive a
impressão de que mudava o caminho para que não precisasse falar
comigo.

Eu sentia falta do meu antigo Bravo e tinha dificuldade de


assimilar que ele e Iran eram a mesma pessoa, mas sabia que
apesar do pouco contato, eu podia contar com a sua ajuda.
Nas poucas vezes que ficamos a sós o chamei pelo nome
que lhe dei, tentando com isso uma intimidade que estava difícil de
conseguirmos um com o outro, porém, foi em vão e passei a chamá-
lo apenas de Iran mesmo e ele me chamava de majestade, por mais
que eu insistisse para me chamar apenas de Vida.

Em Flós o nome Bravo caía perfeitamente bem sobre ele, já


que Iran em sua forma humana era sério e carrancudo na maior
parte do tempo e todos pareciam temê-lo por ser o guerreiro mais
importante de Flós.

Ninguém gostava muito de falar do passado, pois a maioria


ali havia perdido seus familiares para fome, poucas famílias ainda
eram completas, mas com isso o reino acabou se tornando uma
grande família.

Tentei sondar sobre a história de vida do Iran, mas ninguém


me contou mais do que sobre sua coragem, beleza e o quanto ele
era disputado pelas moças para um possível casamento.

Na manhã do meu segundo dia em Flós, mais uma vez saí


do meu quarto e caminhei pelos corredores do castelo
acompanhada por Mica, uma espécie de dama de companhia, que
tinha sido designada por uma das mulheres mais velha a me ajudar
no que precisasse e que com poucos dias ao meu lado, se tornou
uma amiga.

Ela, assim como as muitas mulheres que me serviam com


carinho, morava no castelo e cuidava das costuras, dos tecidos e
das trocas de tudo. Por causa do muito tempo de fome e da falta de
um rei e um rainha em Flós, muitas mulheres passaram a viver ali,
ajudando no que podiam e assim evitando morrer de fome.

Por Mica, consegui saber muito do passado antes da minha


chegada, contou-me sobre os dias de fome e tormento, coisas que
fizeram meu corpo se arrepiar e até mesmo me senti culpada por
viver exilada por tantos anos, enquanto o povo sofria daquela
maneira.
Ao dizer isso a minha nova amiga, ela me consolou dizendo
que foi só eu pisar de novo no reino que a riqueza e abundância
voltaram comigo.

Em uma das nossas andanças, pedi que ela me levasse ao


túmulo dos meus pais biológicos, onde depositei flores e agradeci
por terem me gerado.

Mica era fácil de gostar e me afeiçoei a ela logo de cara, de


modo que me fez falar mais em pouco tempo de amizade, do que
falei na minha vida toda. Seu olhar transmitia serenidade, exibia o
rosto com sardas e os cabelos tão loiros que até brilhavam, era
muito falante e a alegria em pessoa, além de muito bonita.

Inicialmente pensei que ela não tinha mais que dezoito


anos, mas depois me contou ter dezenove. O que faltava em mim
em comunicação, sobrava nela e talvez foi isso que nos completou.

Depois que saímos do quarto, enquanto andávamos ainda


sem destino certo e com um sorriso animado, perguntei a minha
nova amiga:

— Que tipo de língua é aquela que, às vezes, vocês usam


para dizer palavras aleatórias?

Mica sorriu.

— É a língua dos ancestrais. Todos em Flós aprendemos as


duas línguas desde pequenos.

— Vou querer aprender.

— Posso te ensinar quando tivermos tempo.

Assenti.

— Por onde andaremos hoje, Rainha?


— Já disse que não precisa me chamar de rainha, me
chama de Vida.

Sempre me olhava com ultraje quando a pedia para me


chamar pelo nome.

— Não acho que seja adequado.

— Somos amigas, Mica. — Olhou-me como se eu tivesse


dito a coisa mais maravilhosa do mundo.

— Eu, amiga da rainha? Nem acredito nisso! Nunca nem


tinha visto uma rainha antes de você. — Ri.

— Bom, nem eu. — Riu e eu perguntei: — Mica, você sabe


onde é a passagem que me trouxe do outro mundo para cá?

— Sim, é na fronteira de Flós.

— Todos aqui sabem?

— Sim, mas ninguém tem coragem de entrar nela.

Chegamos ao salão principal do castelo, que era amplo,


com suas paredes feitas de pedras, como as do quarto em que eu
estava alojada, e o chão era de um piso claro e brilhoso, onde havia
o desenho de uma flor de lótus nas cores preta e lilás, que Mica me
contou ser o símbolo do nosso povo.

Eu já me referia a Flós como meu povo, realmente me


sentia em casa e tive facilidade em me assumir rainha.

— Bom dia — cumprimentei os guardas ao passar por eles.


Andavam pelo castelo a todo momento, e em resposta paravam e
me faziam reverência.

Com as reverências ainda não havia me acostumado.


Atravessei a grande porta principal e admirei o espaçoso
pátio com várias árvores e flores que ficava em frente a porta. O céu
de Flós parecia mágico e sempre exibia nuances com cores
diversas.

Varri o pátio com o olhar e não demorei a avistar Iran


supervisionando o treinamento de várias crianças entre meninas e
meninos, que usavam lanças e faziam movimentos rápidos com
elas.

De longe ele me olhou e lançou um meneio de cabeça


discreto, que parecia mais como uma reverência. E aquele seu jeito
sisudo, diferente do meu primeiro dia ali, me incomodava.

Se preservava afastado e ao mesmo tempo por perto e eu


ainda tinha dificuldade de saber se ele gostava ou não de mim como
antes. Sentia-me confusa e a pergunta se ele só ficou comigo no
outro mundo por ser obrigado a isso martelava em minha mente.
Além de confusa pela falta que me causava e com a estranheza que
sua presença deixava.

— Mesmo em meio a muita fome, tristeza e dias cinzas,


ainda tínhamos esperança de dias melhores, de construir família,
amor... e Iran, antes de ir para o mundo paralelo te proteger, sempre
foi um guerreiro muito disputado pelas solteiras — Mica disse
olhando para mim e notando que eu o encarava.

— Você já me disse isso

Mica sorriu.

— Repito, porque ainda tem moças que sonham com isso.


Principalmente a Ravina. Sobre ela não te contei.

— Ravina?

— Sim, eles meio que tinham um namoro antes de Iran


seguir para o mundo paralelo para te proteger.
— Namoro?

— Bem, não exatamente, mas Iran dava a sua parte da


comida para ela e ambos sempre eram vistos juntos. Ele a ensinou
a usar a espada, porque ela não tem pai.

— E onde está Ravina?

— Ela não mora no castelo, mora com a tia nas redondezas


dos muros do castelo. Quase não a vi mais depois que Iran partiu
para ser seu guardião. Depois que ele voltou também não os vi
juntos. Talvez tenham se desgostado por ficarem mais de um ano
sem se verem. Sei que ele não a procurou e as moças que
trabalham no castelo estão muito interessadas nele.

O observei mais um pouco e entendi o motivo, ele era forte


e muito bonito, naquele momento usava uma espécie de uniforme
na cor azul marinho que destacava ainda mais seus olhos claros,
além de ser sempre educado e solícito com todos, mesmo em meio
a sua carranca de guerreiro.

— Imagino que sim. — Encarei-o e pensei se ele não estava


me tratando com indiferença em Flós por me culpar por separá-lo da
tal Ravina, mas logo deixei essa hipótese de lado ao pensar que ele
não a procurou após voltar.

— Posso espalhar o boato de que você está interessada


nele.

— Está louca! Por que faria isso?

Deu de ombros.

— Imaginei que estivesse, pelo modo como estava o


admirando.

— Não estava o admirando, só... olhando-o enquanto você


contava a história. — Olhei novamente para ele.
— Sei... — disse desconfiada e mudou de assunto: — Vida,
no outro mundo... Como era?

Tirei meus olhos do Iran e encarei Mica.

— Bom, não sei como é para as pessoas normais, no meu


caso era solitário e triste, cinza e sem graça. Não muito diferente de
vocês, com o bônus de que eu não passava fome.

— Não passar fome é bom. Você namorou alguém?

Encarei Mica para entender a sua pergunta, mas logo


minhas bochechas ficaram quentes e respondi, envergonhada:

— Não, na verdade, não entendo muito sobre namoro, lá eu


não tinha amigos nem vizinhos ou sequer alguém que não fosse
meus pais... os guerreiros... para conversar, depois que ambos se
foram, eu tinha apenas Bravo... digo o Iran.

Eu sabia o que era um namoro, apesar de meus pais


adotivos nunca terem me contado nada a respeito, eu lia livros e
assistia novelas, filmes e programas de TV no único canal que
funcionava na TV da casa longínqua em que eu morava.

Sabia um pouco do que acontecia entre um homem e uma


mulher, nunca vivenciei nada parecido, nem sequer um beijo ou um
aperto de mão, mas sabia.

— Eu queria conhecer seu mundo.

— Meu mundo é Flós e acredite, aqui é muito melhor. — Ela


sorriu feliz.

Para mudar de assunto e me afastar de Iran que claramente


parecia desconfortável com minha presença, incentivei Mica a
sairmos dos muros do castelo e continuarmos andando pelas ruas
de Flós, onde ela me mostrou tudo e me contou a história do que
conhecia.
Observei as construções que eram de casas umas ao lado
das outras e todas iguais, grandes construções com telhas de barro
e paredes de pedras, a única coisa que as diferenciava eram as
flores que cada morador enfeitava sua casa. Já as ruas eram todas
largas e de paralelepípedo.

— Está vendo a igualdade delas? — Mica apontou para as


casas a nossa frente, enquanto andávamos devagar e eu assenti. —
Nosso reino sempre teve a igualdade como lema, por isso todos têm
moradias iguais e cada um contribui de um modo para o
funcionamento de tudo. A única casa diferente é o castelo, mas
apenas para que a hierarquia funcione e mostre quem é o líder do
nosso reino.

— Que interessante!

— Antes de você chegar, quando aqui era tudo cinza e


quase sem vida, o castelo sempre esteve aberto como agora, para
que dividíssemos o pouco que tínhamos com todas as famílias.

— Que bonito.

— Sim. Tivemos um ótimo rei e rainha que cuidaram de tudo


em vida, depois o pai do Valery, o Valery e agora temos você, nossa
rainha.

Senti o peso do comentário.

— Não sei se estou à altura.

— Tenho certeza que está e o guardião do trono terá


orgulho de passá-lo a você.

— Ainda não conheci o guardião.

— Valery é o nome dele. Um ótimo homem. Você ainda não


o conheceu, porque no dia que soubemos do seu retorno,
imediatamente ele saiu para uma ronda nos limites do reino e assim
resguardar a sua segurança. Tenho certeza que no mesmo
momento em que voltar, a primeira coisa que fará será uma visita.

— Então ele é uma boa pessoa?

— Sim, muito boa — Mica falou e notei seus olhos


brilharem. — Ele herdou este cargo quando o pai morreu, senhor
Mailon, que era braço direito do rei e também ótima pessoa.
Tivemos muitas perdas importantes no reino. — Mica ficou triste
como se lembrasse de momentos difíceis, mas logo se recuperou e
completou: — Valery desde a partida do pai cumpriu suas
obrigações com destreza e cuidou bem do castelo até você voltar.
Todos gostam dele aqui.

Enquanto Mica e eu andávamos pelas estradas de pedra do


reino, observei que todos eram muito magros e quando apontei isso
para ela, me contou que naquele momento estavam bem e a cada
dia ganhavam peso e um pouco de cor, isso desde que voltei e a
comida, como mágica, se tornou abundante.

— Você não faz ideia de como era a nossa aparência nos


tempos cinzas. — Um calafrio percorreu seu corpo. — Espero nunca
mais voltar a vivê-lo. — Os únicos que eram um pouco mais fortes
eram os guerreiros e a guarda, mas por causa da nossa proteção
em um possível ataque.

— Ataque?

— Sim, Cinere não pode entrar em Flós, mas... nunca se


sabe.

Mudei de assunto para tirar de seu rosto aquele ar


preocupado e continuamos andando por Flós, enquanto eu a
perguntava tudo sobre o que via por ali.

— E vocês tem festas, bailes ou algo assim?


— A Mariev, que trabalha no castelo muito antes de tudo
isso começar, conta que as festas eram uma beleza e que o que
fizemos para manter as tradições vivas, não chega nem perto do
que era antes da maldição. Ontem ela me disse que está ansiosa
para primeira festa de verdade do reino.

Sorri.

— Nisso somos iguais, também nunca fui a uma festa.

— As casas próximas do castelo são sempre as


responsáveis pela animação. As meninas aprendem a dançar logo
que aprendem a andar. É bonito de ver. Isso aconteceu mesmo em
meio a fome. Os mais velhos dizem que podemos perder tudo,
menos nossas raízes e tradições.

— Que bonito.

— Sim, Flós é flor e as raízes são essenciais.

Quanto mais andávamos, mais eu me apaixonava por minha


nova casa e por meu povo, que eram extremamente carinhosos
comigo e deixavam muito clara a gratidão que tinham por eu estar
de volta.

A cada passo Mica me dava mais informações sobre tudo e


eu prestava atenção em cada palavra, queria entender bem como
era Flós.

— Está vendo aquela construção? É onde ficam os cavalos,


que ir até lá? —perguntou animada.

— Vamos. Amo cavalos.

Andamos mais alguns metros, até que chegamos ao que


parecia uma espécie de estábulo. Um espaço grande, todo feito em
madeira e pintado de branco, dentro dele tinham diversas baias, que
em cada uma estava alojado um lindo cavalo e todos eram muito
grandes.

— Se você quiser podemos dar uma volta, se não estiver


cansada.

— Cansada nada, adoraria andar pelos arredores.

— Você vai ver como Flós é linda.

— Ainda mais do que já vi?

— Ainda mais.

Mica chamou um senhor simpático que cuidava dos animais,


ele os selou para nós e assim que estavam prontos para serem
montados, saímos a galope por entre as ruas do reino.

Passamos por diversos vilarejos pelos arredores do castelo


e Mica foi me explicando o que cada um era especialista em fazer
para o funcionamento do reino. Tinha o que era responsável pela
agricultura, outro pelas frutas, outro pela confecção de roupas e daí
por diante. Os vilarejos levavam os nomes de suas especialidades.

Mica me explicou que durante os anos de cinzas tudo ficou


parado, pois nada que se plantasse se colhia e o povo fazia o menor
esforço possível para que assim evitasse gastar o pouco de energia
que tinham e consumir menos recursos que eram disponíveis para
sobrevivência de todos.

Soube que em uma estufa dentro do castelo era produzido


alguns alimentos que sempre foi dividido entre o povo, em pouca
quantidade apenas o suficiente para que os mantivessem bem e
vivos.

Depois de visitarmos vários vilarejos, eu já me sentia um


pouco cansada e com fome, então pedi a Mica para que
voltássemos para o castelo.
— Tem certeza, Vida?

— Mica, estou começando a ficar com fome.

— Então estamos no lugar certo. Está vendo aquele morro?


— perguntou apontando para um pequeno monte a uns cem metros
a nossa frente, e eu assenti. — Logo atrás dele fica um vilarejo, ao
lado do rio e que divide a fronteira entre Cinere e Flós. Esse vilarejo
faz o melhor pão de todo o reino e é conhecido como vilarejo do
Trigo.

— Ah, então vamos até eles. — Animei-me e Mica riu.

Cavalgamos depressa com os nossos cabelos ao vento e


sorrindo, até a brisa ali me parecia mais acolhedora e fresca.

Eu sorria feliz, Mica me acompanhava e assim que


chegamos ao topo do morro, nosso sorriso sumiu. Para nossa
surpresa, uma fumaça espessa saía do vilarejo logo abaixo e a
poucos metros de nós.

Olhei para Mica e vi seu rosto se transformar em algo


sombrio e o medo era evidente nele, mas ainda assim bateu com as
pernas na barriga do cavalo para descer até lá e eu a segui.

A galope descemos o pequeno monte e chegamos a uma


parte plana, onde dava início a rua do vilarejo, no entanto, antes que
pisássemos na primeira pedra dela, os cavalos empinaram ficando
apenas nas patas traseiras e relincharam alto. Por pouco não nos
derrubaram.

Notamos que a nossa frente tinha uma espécie de barreira


invisível que não permitia que entrássemos no vilarejo.

Mica cavalgou mais à frente, rente a barreira invisível, e


voltou com uma expressão muito preocupada e eu a acompanhava,
apesar de não saber nada do que acontecia.
— Não, não, não... de novo não — repetia freneticamente e
com seu rosto tão apavorado quanto alguém que estava vendo a
morte.

— O que está acontecendo, Mica?

Ela andava com o cavalo de um lado para o outro, ainda


perto da barreira e de onde estávamos conseguíamos apenas
observar o cenário assustador que mudava por completo bem a
nossa frente.

Do campo verde com árvores vistosas e céu azul não


restava nada, as casas estavam cobertas com uma espécie de
fuligem e uma névoa branca pairava pelo lugar o deixando sombrio
e com a aparência morta.

Mica estava com o semblante em pânico, continuava


andando com o cavalo de um lado para o outro, como se tentasse
achar um jeito de entrar, mas era em vão.

— Mica, me fala o que está acontecendo — pedi


preocupada.

— Eu não sei. — Seus olhos estavam cheios de lágrimas. —


Eu não sei.

Foi então que um homem muito magro, com feições


cansadas e com dificuldade de andar começou a aparecer em meio
a fumaça e seguir em nossa direção. O avaliei e era pele e osso,
estava descalço, vestia trapos e seus ossos eram tão aparentes que
mais parecia um esqueleto.

Mica levou a mão a boca contendo um soluço, descemos


dos nossos cavalos como que para ampará-lo, mas a barreira não
deixava, só podíamos escutá-lo.

— Minha Rainha — falou com a voz arrastada e com muita


dificuldade.
— O que está acontecendo? — Mica perguntou, agoniada.

— A maldição... ela voltou e está muito, muito pior.

— Não! — Mica gritou. — Como? Por quê? A Rainha está


aqui, a maldição foi quebrada.

— Os Cineres... eles estiveram aqui, querem tomar Flós e...


— O homem parava para tentar respirar. — Transformar tudo em
cinzas. A maldição não foi quebrada. O mais importante era o
retorno da de pele como a noite. Seu retorno teve um momento de
pausa na maldição, mas... tem mais...

— Mais? Nunca soubemos de mais.

— Os cineres disseram algo sobre as ramificações...

Ouvimos um uivo de lobo ao longe, que fez meu corpo se


arrepiar.

— Eles não podem entrar em Flós. Como conseguiram


entrar em Trigo? — Mica perguntou.

— Talvez por sermos os mais próximos deles. Mas vão


embora. — Olhou para Mica. — Peça para que protejam a rainha. O
mal está à espreita.

— E vocês? — perguntei.

— Ainda conseguimos nos manter vivos, mas não sei por


quanto tempo.

Novamente ouvimos um uivo de lobo e dessa vez parecia


mais perto.

— Procurem um ancião de Flós, um mago ou alguém que


possa reviver a maldição e assim desvendar o que falta para que
fiquemos livre desse mal. — O homem parecia ter tanta dificuldade
para falar, como se gastasse suas últimas forças e eu carregava a
impressão de que ele desmaiaria a qualquer momento.

O uivo voltou a preencher nossos ouvidos e ainda mais


perto, quando olhamos para o lado do qual achávamos que era de
onde o barulho vinha, uma nuvem cinza se aproximava e o homem
disse alto, com o pouco de força que tinha:

— Corram! Procurem um jeito de nos ajudar.

Mica subiu em seu cavalo e também montei novamente no


meu, depois com um aceno rápido a certifiquei de que era para
cavalgarmos depressa para o mais longe possível dali.

Começamos a galopar, mas logo no início, em meio a uma


névoa densa que se aproximava, o meu cavalo se assustou,
empinou e caí de cima dele batendo com a lateral do corpo no chão
e sentindo o impacto me atingir.

Mesmo com a dor pulsando, forcei-me a levantar, porque


sabia que não podia ficar ali por muito mais tempo, mas para o meu
desespero quando olhei em volta vi meu animal sair em disparada,
me deixando para trás e Mica, provavelmente por causa da névoa,
não notou o que aconteceu.

Levantei-me, meio mancando e comecei a correr com a


maior velocidade que meu corpo e minhas pernas aguentavam.
Senti meus pulmões queimarem e pedirem por uma pausa, mas eu
estava com muito medo, meu coração batia acelerado e carregava o
pressentimento que se eu parasse, seria o fim.

Gritei por Mica pedindo que voltasse para me buscar, mas a


névoa era cada vez mais densa e eu mal sabia se estava correndo
para o lado certo.

Ouvi o uivo alto e apavorante muito perto e tive a sensação


de que a qualquer momento eu seria devorada por um lobo, então
me mantive em movimento, mesmo sem saber para qual lado
seguir.

Corri desesperada e sem noção de por quanto tempo, talvez


apenas segundos, e novamente o barulho do uivo se fez presente
muito perto, tentei correr ainda mais, só que meu corpo não
obedecia.

Em um momento em que o desespero tomou conta de mim,


senti uma presença forte se aproximar e vencida por minhas pernas
cansadas, tropecei em uma raiz e caí ficando à mercê do pior.

Tentei me arrastar, já pensando que seria devorada por um


lobo ou pelo que fosse que estava em meu encalço, olhei em volta
aflita e à procura de algo que eu pudesse usar como arma, não
achei nada e tentei levantar ao ouvir passadas pesadas.

Relembrei o horror e desespero que havia vivido há poucos


dias quando cheguei em Flós, meu coração saltitava no peito e de
tanto pavor eu quase não respirava.

Foi então que as passadas chegaram ao meu lado, olhei


para cima e vi um grande cavalo branco, que bruscamente parou
perto de mim.

Mesmo com dificuldade pela névoa, aliviada percebi quem


montava o animal e com sua voz grossa, ouvi Iran pedir:

— Me dê sua mão. — Esticou o braço em minha direção e


depressa venci a dor, levantei e aceitei a sua oferta.

Iran juntou seu antebraço ao meu e como se eu fosse muito


leve, me puxou para cima do seu cavalo, colocou-me sentada de
lado na sua frente e entre seus braços.

Segurava as rédeas com uma das mãos e com a outra me


prensava de encontro ao seu corpo, como que me protegendo do
que quer que fosse que pudesse me fazer mal. Eu sentia a sua
respiração ofegante próximo do meu rosto e pescoço e isso, apesar
do medo que eu sentia, fazia com que me sentisse segura e até me
acalmava.

Perguntei-me como Iran sabia que precisávamos dele, como


apareceu para nos salvar tão depressa e me senti aliviada por tê-lo
por perto.

Depois de alguns poucos minutos cavalgando muito rápido


em meio a névoa, ela foi se dissipando e enfim chegamos a um
campo verde, onde avistei Mica com um semblante preocupado e
andando impaciente de um lado para o outro em cima do seu
cavalo.

— Rainha! — Cavalgou em nossa direção. — Está bem? Me


perdoa, eu não te achei, tentei voltar, mas a névoa me deixou
perdida, foi quando encontrei com Iran e pedi que ele a achasse.

— Você não tem culpa de nada, Mica — acalmei-a.

— Me desculpa. — Seus olhos lacrimejaram.

— Não fique assim, está tudo bem.

— Vamos para o castelo que ainda estamos muito


vulneráveis aqui — Iran disse sisudo, sem nos deixar dizer mais
nada e começou a cavalgar muito rápido, sendo acompanhado de
perto por Mica.
Capítulo quatro
Passamos a galope pelos portões do castelo e quando
chegamos em frente a porta principal, o cavalo parou subitamente
freado pelas rédeas nas mãos de Iran.

Ele desceu primeiro do animal e depois ergueu os braços


em minha direção para me ajudar a descer.

— Vamos entrar o mais rápido possível.

— Não estamos seguros aqui? — perguntei.

— Sim, até onde eu sei, mas como está tudo muito incerto,
é melhor sermos cautelosos. — Assenti.

Seguimos para dentro e Iran ficou a todo tempo muito perto


de mim. Olhava para todos os lados, como se à procura de qualquer
coisa que pudesse me fazer mal. Seu rosto transmitia seriedade e
parecia até mesmo com raiva.

Mica andava a nossa volta com os olhos cheios de lágrimas


e sentindo-se culpada por algo que ela não tinha culpa nenhuma.

Assim que entramos no salão principal, fomos recebidos por


um homem, alto e branco de não mais que trinta anos, seus cabelos
eram dourados e seus olhos azuis, mas não como o azul do Iran,
era de um azul escuro quase preto. Exibia um sorriso receptivo no
rosto e disse assim que me aproximei:
— Majestade. — Fez uma reverência. — Sou Valery, o
guardião do trono, e me sinto honrado em enfim conhecê-la.

— A honra é toda minha — respondi envergonhada e


admirada com sua beleza. Quando pensei em um guardião, não
imaginei que pudesse ser tão jovem.

Notando o semblante preocupado de Mica e o rosto sério do


Iran, logo o sorriso de Valery se apagou e ele os perguntou olhando
de um para outro:

— Tem algo de errado acontecendo?

Iran lhe contou o que sabia, depois Mica contou tudo o que
o homem no vilarejo do Trigo nos contou e eu completei contando
sobre uivos horripilantes e a névoa densa que me cercou.

— Malditos Cineres — Valery esbravejou, olhando para um


ponto fixo, como se pensasse no que faria a partir de tudo o que
tinha ouvido.

— Não era para estarem conseguindo novamente — Bravo


disse pensativo. — Nem para estarem do nosso lado.

— Não.

— O povo de Trigo precisa de nós. Estão sofrendo. — Mica


tinha a voz embargada pelo choro.

— Precisamos fazer o que o senhor de Trigo disse,


conversar com um mago ou um ancião — sugeri. — Saber o que
está faltando para quebrar de vez a maldição. Talvez eu nem seja a
rainha e por isso não deu certo.

— Você é — Iran falou com certeza, eu o olhei. Ele


encarava ao Valery.

Agia como se estivesse irritado comigo ou nervoso com


alguma coisa que não fosse apenas pelo fato de eu quase ter sido
atacada.

— Foi por pouco, Valery, eles quase a pegaram. O vilarejo


de Trigo está debaixo de fuligem, estão novamente nas cinzas e se
não fizermos nada, logo seremos todos nós novamente. Temos que
protegê-la e deixá-la segura — disse Iran.

— Quem é o morador mais velho de Flós? E o mago, temos


um? Precisamos falar com eles o mais rápido possível — falei.

Sentia que aquela luta era minha e queria achar um jeito de


vencê-la. O olhar do senhor magro não saía da minha cabeça.

Valery pareceu pensar em outra coisa que não o que


perguntei, não me respondeu e voltando seu olhar para Mica, pediu:

— Me conta novamente o que o homem em Trigo te disse.

Mica começou a contá-lo tudo de novo, nervosa e


transmitindo muito medo, já eu estava ficando irritada, parecia que
todos simplesmente me ignoravam, me tratavam como um amuleto
que não podia se quebrar e não como a rainha que diziam que eu
era.

Continuei parada ao lado deles, enquanto perguntavam tudo


apenas para Mica e permaneciam me excluindo de toda a conversa.
Eu sentia a raiva borbulhando dentro de mim, queria ajudar, queria
defender o que para mim naquele momento era a minha casa e a
minha família, pois eu não tinha nada nem ninguém fora aquele
reino e o povo de Flós.

Foi então que Iran sugeriu a Valery que ambos fossem até a
sala onde guardavam as escrituras, lá investigassem tudo o que os
antepassados deixaram escrito sobre a maldição e tentassem achar
o que estava acontecendo e o motivo de as cinzas terem voltado.

— Iran, leve a rainha para o quarto e deixe alguns guardas


de vigia na porta, depois me encontre na sala de escritos.
Como se eu fosse mesmo um objeto, Iran assentiu para o
Valery, virou-se em direção à porta e com um sinal com a mão
chamou alguns guardas que estavam por ali, depois virou-se para
mim e com um meneio de cabeça indicou que eu passasse a sua
frente e subisse para meu quarto.

Sem dizer nada, nem perguntar minha vontade, apenas


indicando o que eu devia fazer.

Parada onde estava, pensei que eu podia ser nova ali e não
conhecia nada desse negócio de reino e de ser rainha, mas pelo
pouco que eu sabia, rainhas deveriam ao menos ter poder de fala.

Movida pela indignação e me sentindo subjugada, fiquei


exatamente onde me encontrava.

— Majestade... — falou, como se chamasse a minha


atenção, e quando o olhei ele indicou a escada.

Soltei o ar impaciente e a passos largos fui até o guarda que


havia acabado de parar próximo a mim, depois sem que ele
esperasse tal movimento, puxei a espada que levava na bainha e a
empunhei.

— Pode me emprestar a sua espada? — perguntei já com


ela na mão, de queixo erguido e encarando o confuso guarda a
minha frente, que assentiu parecendo com medo.

Depois encarei ao Iran e sustentei a espada erguida em sua


direção, fazendo-o me olhar de volta com espanto.

— Majestade, algum problema? — Valery perguntou


preocupado, provavelmente imaginando que eu estava possuída por
algum espírito Cinere.

Iran tinha conhecimento de que eu manuseava bem uma


espada. Por diversas vezes no outro mundo enquanto ele era
apenas o Bravo, me viu treinando para passar o tempo, por isso
naquele momento me olhava com atenção.

Contudo, para acalmá-lo abaixei a espada e a entreguei de


volta para o guarda, que exibia o rosto coberto por uma expressão
de surpresa.

— Bela espada — elogiei e o pobre homem apenas


assentiu.

Eu já tinha conseguido a atenção que precisava, sendo


assim, falei com a voz calma:

— Me diga você, Guardião, se têm algum problema comigo,


pois todos dizem que sou a rainha, mas não me ouvem ou me dão
atenção. Me tratam apenas como um amuleto que não pode se
quebrar. Se eu sou a rainha, vou começar a agir como tal, mas não
a rainha que manda e desmanda, mas a que luta junto aos seus, é
ouvida, ajuda no que for preciso e o principal, que faz tudo por seu
povo.

Todos ficaram em silêncio, claramente sem saber o que me


dizer, então repeti:

— Se querem que eu seja a rainha de vocês não vou


permitir que finjam não me ouvir quando dou a minha opinião ou que
me tranquem em um quarto como se eu fosse um objeto ou uma
prisioneira. Eu serei a rainha e quero ser ouvida.

Olhei para Mica que tinha os olhos com um brilho de


admiração, já Iran e Valery me encaravam com o que eu pensava
ser um misto de vergonha e compreensão. Depois ambos se
olharam como em uma conversa silenciosa e em seguida os vi dar
um meneio de cabeça sem graça.

— Nos perdoe, Rainha — Valery falou, enquanto Iran só me


encarava.
— Não por isso. Não quero perder tempo lendo escritos
enquanto o povo de Trigo sofre, quero falar com o meu povo e saber
o que os mais velhos sabem, quero ouvir um mago e saber o que
ele pode fazer para quebrar a maldição ou ao menos nos dizer o
que falta para que possamos quebrá-la. Enfim... quero ouvir
pessoas. Já passei tempo demais com livros e escritos.

— Rainha, não temos um mago — Valery me informou. — O


último morreu.

— Mas temos uma bruxa — Mica lembrou, receosa em dar


sua opinião.

— Valery, eu pedi para que todos me chamem apenas de


Vida. Apenas Vida. — Olhei para Iran que insistia em se referir a
mim como majestade.

— Tudo bem, Vida. — Valery me lançou um sorriso discreto.

— Mica, você será a minha conselheira e meu braço direito.


Pode me levar até a bruxa?

Vi seu rosto se iluminar.

— Claro, Rainha... Vida.

— Vida, nunca tivemos uma conselheira mulher e tão jovem


— Valery contou.

— Eu acredito que a mudança pode trazer benefícios. Você


continua como guardião do trono e responsável pela segurança do
castelo, junto com Iran que é o chefe da guarda, não é?

Balançaram a cabeça afirmando.

Iran não parecia feliz.

— Alguma objeção? — perguntei de maneira geral.


— Nenhuma — Iran foi o único que respondeu.

Sem mais os dois assentiram e quando olhei para Mica


novamente ela irradiava alegria.

— Agora temos que ir até a tal bruxa.


Capítulo cinco
Após a refeição cavalgamos por um tempo considerável e já
era noite quando chegamos a uma cabana, localizada entre árvores
de troncos largos e compridos e em um campo afastado. Não fazia
parte de nenhum vilarejo específico de Flós.

Era uma construção pequena, feita de grandes pedras e


também de madeira e palha. Do lado de fora, muitos vasos com
vários tipos de plantas ornamentavam a entrada, além de alguns
totens esculpidos em troncos de árvores, que carregavam o formato
de animais. Já a iluminação era por conta de tochas acesas e
colocadas em diferentes cantos da casa.

— Qual o nome dela? — perguntei para Mica.

— Záia.

Assenti e chamei alto por duas vezes o nome da mulher


que, segundo Mica ouviu, era a bruxa mais poderosa que Flós já
viu, mas se mantinha afastada, porque os reinos só permitiam
magos.

Poucos segundos depois ao meu chamado, a porta da


frente rangeu ao ser movimentada. Senti um arrepio tomar meu
corpo e observei, quando uma mulher usando uma capa, com um
capuz sobre a cabeça apareceu na frente da cabana.

Usava um vestido na cor vinho um tanto surrado e lateral ao


seu corpo uma grande trança castanha, quase loira, caía por seu
ombro.
Ainda observava seus trajes quando meus olhos foram
imediatamente capturados para cima, ao notar o movimento da
mulher tirando o capuz e em seguida lhe ouvi perguntar:

— Quem me procura? — Observei seu rosto na claridade


feita pelas tochas e fui surpreendida ao ver que era muito bonita e
uma jovem mulher, bem diferente do que imaginei.

Levava em seu rosto um dos olhos na cor verde e o outro


azul, ambos faziam uma combinação perfeita com seus lábios
carnudos e rosados, em meio a sua pele tão pálida que parecia
brilhar na escuridão da noite.

Além de Mica que seria para sempre meu braço direito,


junto comigo também estavam Valery, Iran e mais dois guardas.

— Eu procuro. Sou Vida, a rainha de Flós. — Foi então que


seu olhar se acendeu e Záia deu um sorriso.

— Majestade. — Fez uma reverência, depois me encarou.


— A pela escura e bela como a noite e os olhos claros como a luz
do sol. — Admirou meu rosto. — Eu sabia que viria me procurar.

— Sabia?

— Entrem. — Sem me responder ela virou-se, entrou na


cabana e deixou a porta aberta para que a seguíssemos.

Não esperei a opinião dos meus aliados e caminhei casa


adentro atrás da mulher, sendo seguida por Mica, Iran e Valery, já os
dois guardas ficaram do lado de fora da cabana, de olho em cada
barulho ou movimento que pudesse surgir enquanto estivéssemos
conversando.

Tudo era muito incerto, nada do que acreditavam antes da


minha chegada podia mais ser relevado depois de o povo de Trigo
voltar para as cinzas, então, não podíamos arriscar.
Já dentro da cabana varri todo o ambiente com meus olhos
e era tudo simples e impecavelmente limpo, todos os móveis eram
feitos em madeira, o espaço era iluminado por alguns candelabros
com três braços e onde em cada braço pousava uma vela. No seu
armário havia diversos vidros com o que pareciam ervas, raízes e
pequenos bichos.

— Sentem-se — falou Záia.

Sentei-me no banco de madeira abaixo da mesa e Mica


sentou-se ao meu lado, ao contrário de Iran e Valery que ficaram de
pé observando cada movimento dela. — Aceitam um vinho ou um
chá?

— Não, obrigada — agradeci e todos recusaram também.

Záia balançou a cabeça em positivo ao mesmo tempo que


me encarava com um sorriso faceiro nos lábios, que me deixou sem
jeito.

— Você é realmente bonita, Rainha. Parece uma pintura —


ela falava tudo com calma e me analisava.

— Obrigada — agradeci e senti minhas bochechas quentes.

— Acho que sua beleza e seu jeito de ser, será capaz de


mudar muitas coisas por aqui. — Záia olhou séria para alguém atrás
de mim, bem para o lado onde Iran encontrava-se.

— Espero que minha coragem se sobreponha a beleza que


você diz que tenho.

Assentiu e pareceu satisfeita com minha fala, depois mudou


de assunto:

— Não imaginei que viessem tão depressa até mim. Você


sabia que Flós é um excelente reino, mas as mulheres não são
muito valorizadas por aqui? — Ergueu os braços como se falasse
dela mesma.

— Percebi. — Ela sorriu e eu tive vontade de revirar os


olhos ao me lembrar de como quase tive que enfiar a espada em um
para ser ouvida.

— Bom, a contar pela presença de vocês em minha casa,


creio que os problemas já começaram e vai ser preciso mais do que
só o seu retorno em Flós para quebrar a maldição, não é isso? —
falou, cruzando os braços apoiados na mesa.

— Como sabe?

— Há coisas que a natureza me conta, muitas eu sinto,


outras eu vejo, algumas eu sonho e poucas eu sei com exatidão,
mas imaginei que Chain... — Notou em meu olhar que eu não sabia
quem era e me explicou: — O mago de Cinere. — Assenti. — Ele
não deixaria as coisas tão fáceis assim para nós.

— Fáceis? Mais de vinte anos em cinzas, guerreiros


morreram, fui afastada dos meus pais biológico que foram mortos e
também dos que cuidaram de mim, além de Bravo... digo Iran... e eu
quase termos morrido tentando voltar.

— Talvez você precise quase morrer mais algumas vezes


até tudo realmente acabar... Ou morrer e voltar.

Encarei-a e engoli em seco. Ela dizia não saber de quase


nada, mas eu sentia certeza em cada palavra que saía de sua boca.

Pensei no que eu faria por aquele povo e a resposta foi


tudo. Eu morreria por eles se fosse preciso, faria qualquer coisa
para salvar as pessoas daquele reino, que haviam me recebido tão
bem e em poucos dias se tornaram minha família.

Como se lesse meus pensamentos Záia perguntou:


— O que está disposta a fazer para salvar seu povo?

— O que for preciso — respondi de imediato e sem titubear.

Ela assentiu com seu sorriso insinuante, me encarou como


se tentasse notar alguma fagulha de que eu não estivesse sendo
sincera, porém, não encontrou nada e balançou a cabeça em
positivo.

— Pois bem, Flós exigirá muito de você, pode ser que tudo
acabe em um piscar de olhos ou que haja uma guerra.

— Guerra?

— Sim e em uma guerra pode ser que ao seu lado lutarão


pessoas que te amam e outras nem tanto ou algumas que passaram
a te amar depois que te conheceram. Esteja preparada para
decepção. — Mais uma vez olhou para cima e novamente pensei
ser para Iran, mas como não segui seu olhar, também podia ser
para Valery. Franzi a testa em desentendimento aos seus olhares
insinuadores, porém, inqueri querendo achar uma solução:

— Záia, você pode nos ajudar?

— Eu? Uma simples bruxa solitária?

— Soube que é muito poderosa e faço questão que seja


você. — Notei uma pequena mágoa em sua pergunta e tentei
agradá-la.

— Depende em que precisam da minha ajuda.

— Bom, estamos aqui para descobrir mais sobre a


maldição, se você sabe algo que nos ajude a acabar com isso e que
livre o povo de Flós desse martírio, nos diga. Estamos sob um
ataque velado e não sabemos como contra-atacar.

Contei rapidamente sobre o vilarejo atingido pelas cinzas e


sobre os uivos.
— Olha, pode parecer que sei mais do que vocês sabem, no
entanto, sei muito pouco.

— Conte o que você sabe.

— Querida, uma maldição é como um vaso quebrado, ela


pode apenas se rachar ao meio em dois pedaços e com isso ser
fácil de colá-la ou pode ser como um vaso que se estilhaça em
vários pedaços e assim dar mais trabalho para reconstrui-lo.
Entendem?

— E você acredita que a de Flós seja qual tipo de maldição?


A cheia de estilhaços?

Záia alisou a trança que caía pela lateral do seu corpo.

— Bom, eu, como todo Flós, pensava ser a primeira opção,


com apenas uma ou duas condições, que era o retorno da rainha e
a idade, mas considerando que em tão pouco tempo após a sua
volta, um vilarejo já retornou ao que era... — Ela pensou por um
instante e logo voltou a falar: — E considerando que foi Chain, o
belzebu cego, que lançou a maldição, claro que ele não facilitaria e
faria de um jeito que fosse difícil nos livrarmos do seu feitiço.

— E como saberemos todas as ramificações do feitiço e


tudo que temos que fazer para quebrá-lo de vez? Será que tem
alguém que presenciou o mago o desferir e se lembre?

Ergueu uma sobrancelha para mim.

— Mesmo que alguém tenha presenciado, não foi alguém


de Flós, o que não o torna confiável e se fosse, após mais de vinte
anos da maldição, faz com que seja impossível alguém se lembrar
de tudo o que foi dito tanto tempo depois.

Respirei fundo e soltei o ar desanimada, enquanto tentava


achar um jeito de ajudar meu povo. O homem magro de Trigo não
saía dos meus pensamentos e meu coração estava apertado por
não poder fazer nada, além de saber que enquanto eu estava ali
segura e bem fisicamente, eles gemiam de fome.

— Como saber o que fazer? Tem algum jeito? — perguntei


aflita.

— Conheço um. — Ela passou a mão na testa como se


pensasse com mais atenção. — Seria como voltar no tempo,
porém... é muito perigoso.

Arrumei-me no banco, sentando-me ereta e destinando a


Záia toda a minha atenção. Ela mostrava uma opção e uma fagulha
de esperança tomou conta de mim.

— E como seria?

A bruxa parecia indecisa se me contava ou não, ela sabia,


pelo modo como reagi, que mesmo sendo perigoso eu tentaria o
que fosse preciso para acabar com a maldição e salvar Flós.

Depois de um instante, por fim decidiu pelo sim e começou a


falar:

— É um feitiço que anda pela linha da vida e da morte, em


que uso o corpo de uma pessoa envolvida no feitiço e envio a alma
dela para o momento em que ela quiser. Não temos mais o rei e a
rainha que eram os envolvidos diretos, depois seriam seus pais, que
geraram a salvadora e que também não estão mais aqui. Sobram o
rei de Cinere morto e o mago que é o novo rei, que obviamente não
é recomendável e... — Encarou-me deixando a fala no ar.

— Eu vou. Eu tenho ligação direta com a maldição.

— Não! — Iran exclamou imediatamente ao ouvir me


oferecer.

— Eu vou — repeti com afinco.


Záia encarou Iran com uma sobrancelha arqueada,
demostrando dúvida sempre que o olhava. Parecia analisá-lo a todo
momento e desgostar da presença dele ali, em contrapartida Iran
parecia desconcertado.

Estranhei o jeito de ambos, mas dispersei quando Záia


voltou a me olhar e começou a explicar:

— Se você quiser mesmo voltar ao momento em que a


maldição foi lançada, eu posso fazer o feitiço para isso, mas como
eu disse, é perigoso, pode custar sua vida e com a sua morte a
maldição não será quebrada nunca.

— É um risco que temos que correr — falei, sem o menor


medo da morte. Depois que eu tinha experimentado a vida em Flós,
percebi que o que fazia antes dali não era viver. — Já que se eu não
fizer nada, o povo pode sofrer ainda mais.

— Outra pessoa não pode ir no lugar dela? — Iran


perguntou.

— Você não — Záia respondeu com certa impaciência.

— Eu? — Valery perguntou.

— Ou eu? — Mica também se ofereceu e me orgulhei por


ter pessoas tão corajosas a minha volta.

— Até podem, mas é mais provável que o feitiço funcione


com mais precisão se for feito em uma pessoa diretamente
envolvida com a maldição, no caso aqui, a Vida é a mais envolvida.
A única de Flós, na verdade. Vida você é um milagre que aconteceu
em nosso reino, considerando a genealogia.

Senti-me tímida e disse:

— Se é assim não tem outra opção e está decidido. Farei.


Estou disposta a arriscar tudo o que for preciso para salvar Flós.
Záia assentiu.

— Tem também a questão da lua, daqui dois dias teremos o


primeiro dia de lua cheia e será quando faremos o ritual, se
tentarmos outra pessoa e não der certo, apenas será possível
refazer na próxima lua cheia.

— Eu farei.

— Então será daqui dois dias.

— Dois dias? Apenas na lua cheia e não tem como


anteciparmos? — perguntei pensando no povo de Trigo.

— Tem que ser na lua cheia. Essa fase da lua serve como
um portal e a uso para diversos feitiços.

Respirei fundo.

— E como vai ser?

— Farei um elixir com ervas, que inclusive preciso de tempo


para encontrá-las. O que torna muito propício a lua cheia ser em
dois dias ou teríamos que esperar a próxima. Depois você o tomará
e ele te levará para o momento em que a maldição foi lançada.
Agora vem a parte perigosa. Para isso acontecer, você terá que
estar com todos os sentidos em uma espécie de pane, o que
acontece em um afogamento, por exemplo.

— Afogamento? — Mica perguntou preocupada e Iran bufou


claramente irritado.

— Teriam outras formas, mas creio que o afogamento é o


menos doloroso — a bruxa explicou.

— Se é o que temos que fazer, será o que faremos.

Záia assentiu com o seu sorriso faceiro, que eu estava


começando a reconhecer como um sorriso orgulhoso, e continuou a
explicar:

— Te colocarei debaixo da água do rio e você terá alguns


minutos ou segundos para descobrir tudo que precisa antes de
voltar para o seu corpo. Se sair rápido demais não conseguirá ouvir
tudo e se demorar muito pode não voltar.

— Poucos minutos... — Pensei alto sobre o tempo que teria.

Sentia-me corajosa e ao mesmo tempo com muito medo,


mas não queria deixar transparecer e sim tentava mostrar aos
meus, que podiam confiar em mim e que eu seria capaz de fazer o
que esperavam.

— Eu consigo, sempre fui muito observadora e tenho uma


boa memória.

Záia sorriu.

— Isso é bom.
Capítulo seis
Após acertarmos tudo com Záia, a volta para o castelo
estava sendo em silêncio, ouvíamos apenas o barulho dos bichos
da noite, do vento que balançava as árvores e das patas dos nossos
cavalos pisando firmes no chão.

Todos pensávamos no que a bruxa nos tinha dito e no feitiço


para retornar no tempo. Seria perigoso, mas era preciso e eu não
pensaria duas vezes em pôr a minha vida em risco e assim salvar
outras pessoas de uma vida de fome, tristeza e ranger de dentes.

— Podemos ver os escritos ou procurar um ancião — Mica


sugeriu, rompendo o silêncio da noite.

— Sim, pode haver outra saída menos perigosa — foi a vez


de Valery concordar, mas apressei-me em encerrar o assunto.

— Já está marcado e não vou desistir. É o jeito mais


rápido...

— E o mais arriscado — Iran me interrompeu, eu o encarei


sem dizer nada e voltamos a ficar em silêncio.

— Eu vou.

— Daxnare! — resmungou algo que não entendi na língua


dos ancestrais, que pensei ser um xingamento.

Cavalgávamos devagar e eu sabia que ele estava


preocupado comigo, mas os olhares lançados em sua direção pela
bruxa Záia ainda martelavam na minha cabeça. Ela aparentava
saber mais do que nos demonstrava e claramente guardava consigo
algo contra Iran. Em minha mente cogitei que talvez ambos se
conhecessem antes daquele encontro.

Pensei no que Mica disse sobre ele ter muitas moças


interessadas e cogitei se assim como com Ravina, Iran talvez
pudesse ter namorado Záia.

Analisei sua postura imponente no cavalo e em apenas dois


dias, já quase não o via mais como o meu lobo Bravo, até sentia
falta do meu animal de estimação e pensava que era como se
tivesse morrido.

Ao menos se ele me tratasse como amiga, tamparia o


buraco que a ausência do Bravo me causava.

E pensar que quando cheguei em Flós, no meu primeiro


contato com Iran até achei que podíamos ser íntimos e amigos
como eu era com sua forma animal, mas ele acabou se mostrando
fechado e distante.

Saí dos meus pensamentos quando notei Valery pareando


seu cavalo com o meu e disse:

— Eu sei que vai dar certo e você vai conseguir salvar


nosso reino, Rainha — Passou a mão de leve no meu ombro como
um gesto de conforto e eu assenti.

— Obrigada, agradeço muito o apoio.

No momento em que fui voltar meu olhar para frente, passei


meus olhos por Mica e notei seu rosto apreensivo. A encarei e ela
me lançou um sorriso sem jeito.

Eu não entendia nada sobre sentimentos amorosos, sobre


romance ou algo assim, mas pensei que talvez Mica pudesse nutrir
por Valery um sentimento que guardasse apenas para si.
Não era a primeira vez que eu notava algo nesse sentido,
como um sorriso em sua direção, um olhar e uma admiração ao
falar dele. O que não era de se estranhar, já que Valery era um bom
homem, leal e muito bonito.

Quando chegamos ao castelo, após desmontar do meu


cavalo e entregá-lo ao cuidador, andei em direção a escada e fui
seguida por Mica, Valery e Iran. Já no salão, me despedi deles e
disse que iria para o meu quarto descansar.

— Precisa de companhia, Vida? — Mica ofereceu.

— Não, obrigada, nos vemos amanhã. — Sorri.

Assentiu e quando ia seguir para o corredor que levava para


ala dos quartos das mulheres que trabalhavam no castelo, Valery a
chamou:

— Mica, preciso agradecer por sua coragem de hoje em


diversos momentos, principalmente em se oferecer para o feitiço.
Você foi muito corajosa.

Mesmo tímida, abriu um largo sorriso e respondeu:

— Era a minha obrigação com meu povo e com a rainha.

— Muito corajosa — concordei e ela pareceu sem jeito.

— Muito corajosa — Iran reafirmou.

— Obrigada — agradeceu ainda mais tímida.

Valery virou-se para mim e perguntou:

— Podemos conversar?
— Sim — respondi, mas olhei rapidamente para Mica e vi
seu olhar brilhoso se apagar, talvez vendo em mim uma
concorrente.

— Boa noite, para vocês — Mica se despediu e após um


meneio de cabeça andou corredor adentro.

— Boa noite — respondemos em uníssono.

Pensei que no dia seguinte eu sondaria mais sobre os


sentimentos de Mica por Valery e a faria me contar o que sentia.

— Boa noite a todos. Vou dar uma ronda pelos arredores do


castelo — Foi a vez de Iran dizer e se afastar, com o costumeiro
semblante sério, mas que naquela noite seguia ainda pior.

— Boa noite — Valery e eu respondemos.

— Agora que estamos a sós, Vida, gostaria de dizer que


pode confiar em mim e que se tudo for demais para você, não há
necessidade de enfrentar, posso ir no seu lugar ou podemos mesmo
tentar outra solução. Você não tem que ser o cordeiro a ser imolado
para salvar o povo.

— Não há escolhas, Valery. — Sorri, tentando mostrar que


estava tudo bem. — Não estou com medo.

— Mas se estiver, está tudo bem também.

Sorri mais uma vez em gratidão.

— Obrigada. — Respirei fundo. — Vou subir, porque hoje foi


um longo dia.

— Realmente. Um longo e preocupante dia.

— Boa noite, Valery.


— Boa noite, Rainha. — Fez uma pequena reverência
apenas abaixando um pouco a cabeça e lançou-me seu bonito
sorriso.

Sorri de volta, depois virei-me para subir em direção ao meu


quarto, sentindo os pensamentos borbulhando em minha mente,
como água fervendo.

Passei pelos guerreiros de plantão na porta do meu quarto,


que eram quatro guardas munidos de espadas, adagas e
machados. Todos apostos para qualquer surpresa que pudesse
surgir, inclusive um ataque, um rapto ou um assassinato, como Iran
me alertou que podia acontecer quando falei que não era necessário
a presença de guardas na frente do meu quarto.

Normalmente era apenas um, mas naquela noite ele havia


enviado mais, o que me deu um certo medo.

Cumprimentei os homens transparecendo leveza, passei


pela porta do quarto e a fechei atrás de mim, onde enfim respirei,
senti o medo me atingir e meu corpo estremecer.

Em dois dias eu tomaria um elixir, seria afogada e voltaria no


tempo, de onde, talvez, não pudesse mais voltar.

Era tudo muito louco. Me afogar...

Pensar melhor em tudo que me aconteceu naquele dia e


aconteceria em breve, fez com que eu sentisse como se o ar
estivesse sendo tirado dos meus pulmões, parecia que era sufocada
por alguém apertando meu pescoço ou como se já estivesse me
afogando.

Corri para porta que dava para sacada do quarto, em


desespero a abri e com o peito subindo e descendo depressa, por
conta da dificuldade de respirar, eu me segurei ao guarda corpo.
Fechei meus olhos tentando me controlar e insistentemente
pensava que aquele sentimento era apenas coisa da minha cabeça,
que nada me acontecia naquele momento e eu estava bem.

O vento fresco da noite iluminada pelas muitas estrelas,


cortava a minha pele e foquei nele para me acalmar. Abri os olhos e
fitei as tochas acesas logo abaixo da minha janela e que iluminavam
os arredores do castelo, no entanto, o que me chamou atenção foi
que Iran encontrava-se parado e me observando com atenção.

Suas mãos pousadas na lateral do corpo e sua pose tensa


dava a ideia de que iria ao meu encontro a qualquer momento, além
de seus olhos sérios que transmitiam preocupação.

Forcei-me em me manter novamente centrada e disfarcei


meu desespero, apertei os dedos no guarda corpo tentando manter
a normalidade e descarregar naquele aperto o meu destempero
momentâneo, depois dei a Iran um meneio de cabeça, entrei
novamente para dentro do quarto e fechei a porta fugindo de
possíveis perguntas sobre desistir.

Sentei-me na cama e já sentindo a respiração se aquietar,


no silêncio do meu aposento repensei em tudo que aconteceu
comigo naquele único dia e um calafrio outra vez tomou meu corpo.
Sim, eu sentia medo, mas apesar dele em nenhum momento pensei
em desistir.

Ao menos se eu morresse seria tentando fazer algo que


valeria a pena.

Tomei banho e era um ritual totalmente diferente do que eu


estava acostumada. A banheira que ficava no quarto, próxima da
lareira, era enchida de forma manual pelos empregados do castelo e
a água era puxada por uma engenhoca a manivela para dentro de
uma espécie de cano de cobre, que passava no meio do fogo da
lareira e voltava quente para banheira. Era muito bem arquitetada e
sinceramente gostei mais do banho dali, apesar do trabalho para
carregar a água.
Na água morna, eu relaxei e deixei a minha mente
descansar, acalmando meus medos e me mantendo tranquila.

Após o banho coloquei uma das muitas roupas que as


mulheres que cuidavam do castelo disponibilizavam para mim no
guarda-roupa do quarto e me servi de uma caneca de chá que
também haviam deixado em uma mesa próxima da porta.

Eu tinha tudo que precisava ao dispor das minhas mãos e o


que eu não via por perto, elas providenciavam.

O castelo era cuidado por muitas mulheres e o único homem


que morava ali era Valery, que descobri que não era casado, seus
pais morreram por causa da fraqueza causada pela pouca comida e
como guardião do trono, ele tinha o direito de morar no castelo. Os
demais homens que trabalhavam para o funcionamento da grande
construção moravam nas redondezas.

Naquele dia, após o banho pulei o jantar e já recuperada do


ataque de pânico, fiquei olhando para Flós da sacada do meu
quarto. Era tudo tão lindo e radiante, que ficava difícil imaginar
aquele lugar parecido com o vilarejo de Trigo.

Só de me lembrar de tudo que vi lá, o pânico tentava voltar,


mas fechei meus olhos e balancei a cabeça involuntariamente na
intenção de dissipar os pensamentos negativos.

Voltei para dentro e talvez pela intensidade de tudo que me


aconteceu naquele dia, pela primeira vez desde que cheguei em
Flós senti-me sozinha e também pela primeira vez lembrei como me
sentia na minha antiga casa.

Nela era tudo tão silencioso e solitário, mas ao menos lá eu


tinha o Bravo que dormia comigo e conversava... bom, não
conversava, mas me ouvia falar coisas sem sentido sobre os
animais ou sobre um programa que passava na TV velha.

Desejei que meu lobo estivesse comigo.


Flós não possuía aparelhos eletrônicos ou mesmo luz
elétrica, era tudo um tanto arcaico e parecia ser centenas de anos
antes ao que eu vivi na antiga casa, entretanto, eu não sentia falta
de nada e as pessoas eram muito informadas, até mesmo me
pareciam a frente daquele tempo.

Decidi parar de pensar, arrumei minha cama e estava pronta


para deitar quando ouvi uma batida leve na porta do quarto.
Caminhei até ela e assim que abri, Iran estava parado com seu
rosto sério de sempre.

— Rainha — disse como cumprimento e com sua voz


grossa.

— Sim.

— Posso entrar? — Assenti, estranhando a pergunta e abri


um pouco mais a porta dando passagem para ele, enquanto do lado
de fora os guardas nos encaravam curiosos.

Assim que Iran passou pela porta eu a fechei e fui até a


cama, indicando que ele fosse até lá também. Juntos nos sentamos
e o encarei como que silenciosamente o perguntasse o que queria.

— Vida, vim aqui pedir para que você repense o ritual.


Podemos pensar em outra saída e...

Bufei e me levantei, impaciente por mais uma vez alguém


tentar fazer com que eu desistisse.

— Quando vocês vão simplesmente entender que eu vou


fazer e está decidido?

Levantou-se e andou até perto de mim.

— Não tem como aceitar que se sacrifique e fiquemos


apenas assistindo.
— Não vou me sacrificar, vou conseguir. — Após dizer com
tanta certeza, acreditei mesmo que iria.

— Acho que podemos tentar achar outro caminho...

— Não temos tempo para isso, por enquanto é apenas o


povo de Trigo, mas em breve pode ser outro vilarejo até chegar no
castelo e tudo voltar a ser cinza. E está decidido. Parem de tentar
me fazer desistir.

Ele suspirou, estava de cabeça baixa depois assentiu,


concordando comigo.

— Sim, confesso que minha intenção era te fazer desistir,


mas vejo que isso é impossível.

— Sim.

Ficamos em silêncio.

— Vou indo então.

Imediatamente senti o vazio.

— Era só isso? — perguntei um tanto carente demais,


sentindo falta do Bravo.

— Sim. — Começou a andar em direção a porta.

— Iran... — Peguei sua mão para que olhasse para mim. —


Sinto falta... do meu amigo Bravo.

Deu um riso sem graça e pareceu pensar algo, depois ficou


sério novamente e disse:

— Aqui eu sou só o Iran. O Bravo não existe.

Balancei a cabeça em positivo, sentindo o soco da sua


resposta fria e sem emoção me atingir.
— Te entendo, porque aqui não sou mais só a Vida e sim a
rainha, mas apesar disso, continuo sendo a sua Vida de antes.

Coloquei-me como dele e Iran me olhou com o que parecia


dúvida, mas novamente vi passar em seu rosto algum sentimento
escondido por sua carranca séria.

Ele engoliu em seco lutando com algo no seu interior, até


que disse:

— Boa noite, Rainha. — O desprezo era presente na sua


voz.

Pensei se a tal Ravina tinha algo a ver com o seu


distanciamento, se eles ainda se viam e se ela me via como uma
ameaça, mas éramos apenas amigos e eu queria continuar tendo-o
por perto.

— Seu afastamento de mim... tem a ver com Ravina? —


perguntei e senti meu coração acelerar.

Olhou-me com atenção.

— Quem te falou dela?

— Porque se for, gostaria de conhecê-la, poderíamos ser


amigos... os três e...

— Ela te procurou?

— Não!

— Não sou nada de Ravina.

Virou-se para sair.

— Boa noite — respondi sentindo-me triste e sem entender


sua revolta ao ouvir o nome da tal mulher.
Acostumei-me a tê-lo por perto e sempre ter sua atenção
como lobo, que ter sua indiferença como humano me doía de modo
que eu não conseguia entender.

Contudo, antes que fosse de vez, lembrei-me de uma


pergunta que estava pairando em meus pensamentos desde aquele
dia mais cedo, quando ele me salvou, e tinha esquecido de fazê-la.

— Iran, espera. Só mais uma pergunta. — Virou-se para


mim novamente. — O que você fazia próximo de Trigo, quando Mica
e eu fomos atingidas pela névoa?

O vi engolir em seco e falou:

— Vi que vocês saíram a cavalo e fiquei preocupado, resolvi


segui-las para qualquer eventualidade.

Assenti.

— Obrigada. Não tive a oportunidade de agradecê-lo.

Iran apenas me deu um meneio de cabeça e saiu porta


afora sem olhar mais uma vez para trás, me deixando sozinha outra
vez.
Capítulo sete
No dia seguinte depois do café da manhã, saí por Flós para
apreciar mais um pouco daquele lugar que em tão pouco tempo eu
tinha aprendido a amar.

Foi inevitável não pensar que podia ser a última vez que eu
veria as pessoas, sentiria o cheiro doce das flores ou seria recebida
por sorrisos como se eu fosse de verdade amada.

Não esperei que Mica fosse ao meu quarto e antes que ela
aparecesse, resolvi descer, tomei café e rumei para o lado de fora
com a expectativa de aproveitar o dia. No entanto, quando ia passar
pela entrada principal do castelo a encontrei, sorridente como
sempre.

— Bom dia, rainha Vida.

Sorri.

— Você não vai aprender nunca? Apenas Vida.

— Um dia eu aprendo.

— Bom dia, Mica. Já tomou café?

— Sim.

— Que tal uma volta? — perguntei com um sorriso e ela


balançou a cabeça em positivo. — Mas, com uma condição, que
você não toque no assunto maldição. Quero apenas aproveitar o dia
no reino. Hoje e amanhã podem ser os últimos.

Lançou-me um sorriso triste.

— Combinado.

Fomos andando pelo pátio em frente a porta principal e Mica


tagarela não se controlou, até que perguntou:

— Juro fazer só essa pergunta. Você está com medo?

Sorri.

— Sim e não.

— Você é tão corajosa.

— Assim como você que também se ofereceu.

— Não, eu não me comparo a você.

Juntei as sobrancelhas.

— Não diga bobagem! Você é uma mulher muito corajosa e


nunca duvide disso.

Não descordou e mudou de assunto, como se para me fazer


esquecer dos problemas e eu já a amava por isso.

— Tem gostado do seu quarto?

— Muito. Não podia ser melhor.

— Ele é mesmo muito bonito. E das roupas?

— Digo o mesmo. São incríveis. — Naquele dia eu usava


um conjunto de calça azul marinho bota de montaria e uma espécie
de vestido, de um roxo muito vibrante por cima.
— Que bom que está gostando. As que você chegou eram
tão sem graça.

Ri.

— Comparadas a essas eram um lixo.

— Concordo.

Ficamos em silêncio por alguns segundos enquanto


andávamos e pensei em perguntá-la sobre o que sentia por Valery,
mas por coincidência antes que eu conseguisse tocar no assunto o
encontramos junto com alguns guardas.

Estavam treinando com espadas e Valery se mexia de forma


muito atraente, exibia um pouco de suor no rosto e parecia
concentrado em seus movimentos.

No momento em que Mica o viu, notei que só de olhá-lo seu


rosto se abriu e seus olhos brilharam, logo um leve tom rosado
apareceu em suas bochechas e ela colocou um fio solto do seu
cabelo atrás da orelha.

— Vamos nos aproximar? — perguntei-a.

Mica pareceu indecisa, mas concordou e alguns passos


mais já estávamos próximas de Valery.

— Bom dia, Guardião — cumprimentei.

Valery tirou o olhar do guarda que treinava, mas antes


ergueu o dedo indicador como se o pedisse um minuto, depois me
encarou com um sorriso e após uma leve reverência, falou:

— Vida... — tirou os olhos de mim e deu um meneio de


cabeça para Mica, falando seu nome a seguir: — Mica... — Sem
graça ela retribuiu com um sorriso. — Desejam algo?

O interesse dela por ele era claro e eu só tinha mais certeza.


— Bom, já que perguntou, eu gostaria que ajudasse Mica
com a espada e a desse algumas aulas. Agora como minha
conselheira, preciso que ela tenha destreza ao manusear uma.

— A mim? — Mica perguntou envergonhada.

— Sim.

— Será um prazer — Valery respondeu de imediato. — Mas


e a rainha, sabe manusear uma espada ou só fez uma cena ontem
ao apontá-la ao Iran? — Ele sorria.

— Sei, mas posso testar com você os meus dotes e com


isso saber se meus pais... os guerreiros que me criaram, me
ensinaram direito. Mas não quero que pegue leve comigo.

Valery pareceu pensar e depois de um tempo grande


demais, respondeu meio contrariado.

— Acho que não devo ser o professor ideal para dar aula a
rainha e...

— Dar aula?

O interrompi, marchei até um dos guardas e o pedi sua


espada emprestada, depois voltei a ficar em frente a Valery e falei
com o queixo erguido e com a espada apontada em sua direção:

— Eu te desafio. — Eu sabia que desafiar um guerreiro não


era algo que ele podia deixar passar, aprendi isso nos muitos livros
que li sobre espadas que meus pais tinham na estante da nossa
casa no outro mundo.

Ele sorriu e ergueu sua arma em minha direção.

— Aceito.

Começamos uma dança, em que demostrei toda a destreza


aprendida com os meus pais adotivos e aperfeiçoei nos muitos anos
que passei sem ter muito o que fazer. Com isso, treinei com muita
perseverança e me considerava ao menos boa.

Notando que eu sabia o que fazia e não estava brincando,


Valery começou a levar mais a sério e a nossa volta só era ouvido o
tilintar das espadas batendo uma na outra e o barulho das nossas
botas batendo no chão.

Em um certo momento pisei em falso e quando ia cair,


Valery se aproximou com rapidez, me segurou pela cintura e
prendeu-me bem perto do seu corpo, evitando assim que eu
atingisse o chão.

Amparada por seus braços, fiquei com o rosto a centímetros


do dele, encarei seus olhos bem de perto e em questão de
segundos vi tudo a nossa volta parar e meu olhar instintivamente
foram puxados para outra direção, se cruzou com os de Iran que me
encarava de longe e tinha assistido toda a cena.

Firmei-me em pé e me separei de Valery.

— Você é boa, mas precisa de um pouco mais de treino.

— Vou pensar sobre isso. — Sorri. — Mas prefiro que você


treine a Mica. — Olhei para onde havia deixado minha amiga, na
intenção de juntá-la a Valery, mas ela não estava mais lá, depois
varri o lugar a sua procura e não a encontrei. — Bom, quando eu vê-
la peço para te procurar para aula.

Ele assentiu com um sorriso nos lábios, mas logo me


encarou sério e olhou em volta para ver se algum guarda podia nos
ouvir, quando teve certeza que não, falou:

— Vida, sobre o ritual, estive pesquisando e conversei com


um dos anciãos de Flós, ele me disse algo sobre a maldição dizer
que você tem que viver aqui ou ela não seria quebrada. Talvez o
que precisamos é apenas esperar que você passe mais um tempo
vivendo junto a nós para que tudo volte ao normal...
Balancei a cabeça em negativo, já deixando claro que eu
não concordava.

— Não temos tempo para testes, pois enquanto eu espero


vivendo bem em Flós o povo de Trigo sofre. Temos que agir o mais
rápido possível e já decidi pela forma mais eficaz. Pode não ser a
mais segura, mas acredito que será a mais certa.

— E se der errado?

— Vai dar certo. — Virei-me de costas para ele, rumei


sentido ao soldado para lhe devolver a espada e depois sozinha
voltei para o interior do castelo, com a ideia de procurar por Mica.

No caminho, varri o pátio à procura do olhar bravo de


sempre que Iran carregava em seu rosto, mas assim como Mica ele
também não encontrava-se mais por ali.
Capítulo oito
A noite do ritual chegou e novamente intimei os mesmos
acompanhantes de duas noites atrás para estarem comigo naquela
que seria a mais importante da minha vida.

Além deles, Valery achou importante levar conosco um dos


anciãos para nos ajudarem a desvendar qualquer que pudesse ser
as condições para acabar com a maldição, principalmente se entre
elas tivesse algo do passado que apenas os mais velhos saberiam.

Antes daquele momento eu não havia visto Mica desde a


luta de espadas com Valery e quando fui procurá-la, uma das
mulheres da cozinha me disse que ela estava muito atarefada com
tecidos e costuras.

Estranhei esse distanciamento repentino, já que desde que


cheguei ao reino, Mica quase não saiu de perto de mim, mas a
deixei com seus afazeres.

Iran também não tinha ido mais me procurar ou tentado me


fazer desistir, ao contrário do Valery que ficou muito próximo durante
o dia, me convidou para um chá da tarde onde por diversas vezes
tentou me fazer achar outra opção para quebrar a maldição, que
não fosse uma que colocasse a minha vida em risco, porém não
aceitei nenhuma.

Logo, ali estávamos nós novamente cavalgando juntos,


mas dessa vez para o rio que a Záia instruiu para nos encontrarmos.
Em meio ao silêncio da noite, em que só se ouvia os bichos
e os cascos dos cavalos batendo no chão, Iran resolveu me
questionar, tentando colocar minha decisão sobre o ritual em
cheque:

— Você disse que seria o tipo de rainha que ouve o povo e


decide junto com ele.

Olhei-o

— Sim.

— E se disséssemos que não queremos que faça?

— Não ouviria.

— Então não escuta o povo.

— Sobre a conduta em que arrisco a minha vida, a decisão


é só minha. Sei que se eu deixar para vocês decidirem, vão me
privar de tudo como estavam fazendo no começo.

Ninguém respondeu e voltamos a ficar em silêncio.

Minutos depois olhei para Mica, que seguiu durante todo o


tempo calada e cavalgando de cabeça baixa, já Iran tinha o rosto
tomado por uma carranca, que quem o olhasse podia sair correndo
de medo, enquanto Valery exibia-se apenas pensativo.

Chegamos à margem do rio, que tinha uma faixa de areia


branca, era bem largo, de modo que eu mal conseguia enxergar a
outra extremidade, e cercado de árvores altas.

Assim que desci do meu cavalo, puxei assunto com Mica


aproveitando que os homens estavam checando o perímetro para
prevenir qualquer perigo:

— Você sumiu. Que tanto de trabalho tinha que não pode


ficar com a sua amiga aqui, no que pode ser o último dia de vida
dela? — Sorri para ela, que me deu um sorriso forçado de volta,
diferente do que estava acostumada a dar. — Ei, o que você tem?

— Nada, apenas me sentindo culpada.

— Culpada?

— Sim, sou só uma ingrata com dor de cotovelo. — Bufou.


— Me perdoa?

Franzi a testa sem entender e perguntei novamente:

— Dor de cotovelo?

Ela suspirou e parecendo juntar coragem começou a falar


muito baixo:

— Notei como o Valery te olhou quando te teve nos braços e


ele nunca me olhará daquela forma. — Deu de ombros. — Acho que
ele gosta de você.

Juntei as sobrancelhas, balancei a cabeça em negativo para


o que ela disse e falei em seguida, como se Mica tivesse dito uma
grande besteira:

— Mica, eu notei que você tem sentimentos por Valery e


talvez por causa desse sentimento você tenha visto algo que não
existe.

Ela pareceu pensar, não disse nada e eu continuei a falar:

— Na verdade, notei que ele te olha com bastante simpatia.

— Você acha? — perguntou já retomando o brilho no olhar e


o sorriso feliz de sempre.

— Eu acho sim, e se Valery não notar o quanto você é


especial, ele estará sendo um burro. Você é maravilhosa.
Mica tampou o rosto com as mãos, envergonhada e falou:

— Me perdoa, sou uma boba, não devia estar com as


minhas lamurias sem sentido em um dia tão importante para você.
Eu devia ter ficado ao seu lado.

— Não se preocupe com isso e o bom, é que você até me


fez esquecer a loucura pela qual eu vou passar em breve. — Sorri e
ela também sorriu. — Nunca mais fique longe de mim, Mica. Já te
tenho como uma irmã.

Seus olhos brilharam com o que eu disse e ela me puxou


para um abraço.

— Me desculpa, irmã — falou chorosa. — Nunca mais me


afastarei de você.

— Já é uma despedida, porque se for é melhor nem


tentarmos. — Záia apareceu do nada ao nosso lado e quando Mica
e eu nos afastamos, nem sabíamos de que lado havia vindo.

— Não é uma despedida, é só um incentivo para que eu


volte.

Todos os outros perceberam a chegada de Záia e se


aproximaram.

— O que temos que fazer para começar? — Iran perguntou


com o rosto sério.

Záia o encarou e como sempre sem um pingo de paciência


com ele, disse:

— Parece que você está muito ansioso para se livrar dela.

Ele a encarou com raiva, olhando-a de cima e se


aproximando com seu corpo alto da bruxa que não era muito
grande, depois falou com o maxilar cerrado:
— Só quero que tudo se resolva logo. Não invente maldade
onde não tem.

Záia ergueu uma sobrancelha sem demonstrar medo e o


analisou.

— Hummm... — Depois virou-se para mim. — Está


preparada?

— Quando você quiser. — Sorriu orgulhosa.

— Vou me preparar.

A seguir caminhou até a beirada do rio, se ajoelhou e


começou a dizer baixo palavras indecifráveis, enquanto com as
mãos no chão as abria e fechava pegando e soltando punhados de
terra.

De uma bolsa de couro que levava transversal ao corpo,


Záia tirou uma cuia, um frasco com um líquido roxo e algumas ervas
que em seguida colocou no recipiente e amassou junto com o
líquido, continuando a dizer palavras incompreensíveis.

A lua estava redonda, cheia e muito clara no céu,


acompanhada de muitas estrelas que clareavam o rio de água
calma e limpa. Uma brisa leve tocava nosso rosto e o clima estava
fresco, quase frio.

Involuntariamente comecei a tremer, talvez mais de nervoso


do que pela temperatura da noite e nesse momento, sem que eu
notasse sua aproximação, Iran me puxou para perto do seu corpo,
de um jeito protetor que até então não tinha mais tido comigo desde
que era Bravo. Depois passou a mão sobre a marca de coração no
dorso da minha mão e com isso me acalmou. Em poucos minutos
parei de tremer.

Após pouco tempo, mas que pareceu uma eternidade, Záia


enfim me chamou para perto dela, eu me desvencilhei do abraço de
Iran e ia seguir para beirada do rio, mas ele me segurou pela mão,
enquanto os demais continuaram andando e nos deixaram a sós.

— Eu... — Engoliu em seco. — Não queria que você fosse,


mas já que vai, saiba que estarei aqui... te esperando voltar. —
Olhei em volta e ninguém nos ouvia.

— Me esperando para continuar me evitando?

— Xiuu... — Passou a mão em meu rosto. — É complicado,


Lulchra. — Juntei as sobrancelhas sem entender do que me
chamou no outro idioma. Nunca havia escutado Iran falar comigo
com tamanho carinho.

— Estou achando que vou morrer.

Olhou-me sem me entender.

— Você está muito doce e me chamou de algo que nem sei


o que é, pode até ser um xingamento.

Iran sorriu, mas o riso não atingiu os olhos.

— Não é um xingamento, Dami cordis mei.


Juntei as sobrancelhas novamente, ia perguntar, mas Záia
me chamou:

— Preciso ir. Vou logo ali no passado e já volto, aí você me


ensina essa língua diferente. — Iran olhou-me sério ou até com
medo e não disse mais nada, então virei-me e comecei a andar em
direção aos outros.

Aproximei-me de Záia e senti a água gelada e calma do rio


tocar meus pés. Elas iam e vinham mexidas pela pouca correnteza.

— Podemos começar? — perguntou e sem conseguir falar


eu apenas assenti. — Então beba.
— Espera. — A bruxa parou a cuia perto da minha boca. —
Záia, o que quer dizer Dami cordis mei? — perguntei a ela, porque
sabia que me diria a verdade.

— Dona do meu coração.

Semicerrei os olhos para Iran, que olhou para o lado e


pareceu soltar um xingamento. Sem entender voltei-me para Záia,
que me entregou a cuia com o líquido e antes que eu tomasse, Mica
me puxou para um abraço.

— Eu sei que você consegue.

— Obrigada.

Separei-me dela, olhei para Iran que tinha os braços


cruzados na frente do peito e me encarava com o rosto indecifrável,
nem parecia que tinha acabado de me abraçar, ser tão carinhoso e
me chamar de... dona do seu coração?

— Boa sorte — disse apenas, com o rosto sério e reprimi a


vontade de fazer uma careta.

— Tenho certeza que você vai conseguir descobrir tudo o


que precisamos e vai acabar com essa maldição sem sentido —
Valery falou, pegando a minha mão e sendo encarado com
seriedade por Iran.

Já o ancião me desejou sorte e disse que Flós estava em


boas mãos. Os guardas também desejaram coisas boas e após
virei-me de costas para todos, tirei a capa com capuz que eu usava
e entreguei a Mica.

Sem pensar muito tomei o líquido que Záia me entregou, de


uma única vez e tinha o gosto muito doce.

— Preciso que vocês dois venham comigo — Záia chamou


Valery e Iran para entrar conosco mais para o fundo do rio.
Entramos com a água até a altura da cintura e realmente era
muito fria, tanto que fez meu corpo todo se arrepiar e imediatamente
comecei a tremer. Assim que paramos onde Záia disse estar bom
para começar o ritual, fiquei tonta e com a vista embaçada, a ponto
de ter que piscar para conseguir enxergar.

O elixir começava a fazer efeito.

A bruxa pediu que eu deitasse de costas na água e boiasse


olhando para o céu, então sem demorar e me sentido grogue, fiz o
que ela me instruiu com a ajuda de Valery e Iran, que apoiaram as
minhas costas com suas mãos grandes.

Fiquei deitada na água, olhando para o céu estrelado e com


a lua enorme nos iluminando. Encarei o grande círculo redondo e
iluminado a minha frente, ouvi Záia começar a falar, ao mesmo
tempo em que eu piscava repetidas vezes por causa da minha visão
que ficava cada vez mais turva:

— Preste atenção em tudo e em cada palavra. Lembre-se


do vaso que quando quebrado ao tentarmos colar, se estiver
faltando uma peça ele nunca será reconstruído, então você terá que
guardar fala por fala do que Chain disser no momento em que lança
a maldição. Não importa quantas pessoas tiverem por perto, foque
no que Chain diz.

Assenti depressa demais e meu coração estava batendo tão


rápido que parecia que saltaria por minha boca a qualquer
momento.

— Ninguém vai conseguir te ver, então depois que ouvir


tudo o que Chain disser e ele terminar de lançar a maldição sobre
Flós, tente observar o que conseguir de Cinere, pois quando um
vaso se quebra mesmo que todas as peças sejam encontradas e
coladas, sempre haverá a rachadura. Sempre viveremos em guerra
com Cinere. — Assenti. — Agora olhe para lua e pense com força
para que momento você quer voltar.
Tremendo o queixo de medo e frio, voltei a olhar para lua
que estava cada vez mais embaçada na minha visão.

Com um pensamento muito forte, pedi com clareza que


queria ir exatamente para o momento em que Chain desferiu a
maldição sobre Flós.

Foi então que ouvi vagamente Záia pedir que Valery e Iran
se afastassem e ela colocou suas mãos sobre o meu peito. Nesse
momento encarei seus olhos que estavam purpuras e com as
pupilas enormes.

Sem demora ou aviso prévio a bruxa me afundou na água


me empurrando com a mão em meu peito e com seus olhos
brilhantes a ouvi dizer, ao mesmo tempo que a água me afogava:

— Ash eri makro soirfebam...


Debati minhas pernas e braços em desespero, mas sentia-
me tão mole e em transe por causa do elixir, que, na realidade,
penso que mal me mexia.

Ao fundo ouvia a voz de Záia dizer alto, palavras que eu não


entendia o significado enquanto me afundava no rio insistentemente.

Senti a água entrar em meus ouvidos, nariz, boca e molhar


todo o meu corpo. Senti meus pulmões se apertarem pela falta de ar
dentro deles e sem forças para lutar, tudo em mim entrou em
colapso.

Calmaria...

Tudo ficou preto...

Clareou...

Abri meus olhos, puxei o ar e com a respiração ofegante vi


tudo como se fosse um sonho.
Eu estava em um lugar frio e coberto de fuligem, no
entanto, ao contrário de Trigo ali as pessoas eram todas bem
vestidas, tinham as bochechas rosadas e pareciam completamente
saudáveis apesar de suas aparências esnobes no meio daquele
lugar sem vida.
Era o habitat deles e ali eles se sentiam bem.
Lembrei-me das histórias que Mica tinha me contado sobre
os reinos e eu tinha certeza que estava em Cinere.
Recordei-me da maldição e de que eu tinha que ser rápida.
Olhei em volta e me vi sentada em uma espécie de banco de pedra
e ao meu redor pessoas andavam apressadas.
Levantei-me, as acompanhei e comecei a andar me
esgueirando por entre as paredes com aparência decadente e que
davam a impressão que cairiam a qualquer momento.
Foquei em pegar a maior quantidade de informação que eu
pudesse. Corri o mais rápido que consegui ao mesmo tempo que
me escondia pelas ruas cinzas de Cinere e observava tudo.
Mesmo sabendo que eu não poderia ser vista, achei
melhor não arriscar.
Ao passar por duas casas que tinham suas paredes quase
caindo, um pouco de cor me chamou atenção entre elas, foi então
que parei de andar por poucos segundos e vi que a cor saía de
muitas flores de lótus, que eram destruídas pelas mãos de homens
protegidos por roupas pretas, que não deixavam parte nenhuma dos
seus corpos à mostra.
Pela pressa tive que continuar andando e logo cheguei ao
que era um pátio na frente do castelo do rei. Lá uma grande pira de
fogo estava sendo acesa, muitas pessoas observavam e ao lado
dela um homem forte, vestido de forma imponente, com uma coroa
na cabeça e exibindo uma grande barba, sorria para outro que tinha
os olhos vermelhos, usava uma túnica preta e olhava para o fogo,
como se invocasse algo de lá.
Na ânsia de mesmo escondida conseguir chegar mais
perto, acabei esbarrando em alguém que nem sequer notou a minha
presença ali, o que fez com que eu tivesse a certeza de que não
podia ser vista. Com isso, sem medo fui bem perto de onde o rei e o
mago encontravam-se e ouvi o rei dizer:
— Ninguém, eu disse ninguém, em todos os reinos pode
debochar do rei de Cinere. Hoje é o casamento daquela que me
rechaçou e isso não ficará assim. — Olhou para o mago. —
Comece, Chain.
O mago de olhos vermelhos ao receber o aval do rei,
começou a dizer em alto e bom som, as palavras que eu sabia que
eram as que eu tinha que guardar uma por uma na minha mente,
então de olhos fechados para conseguir memorizar, ouvi:
— Nas cinzas como nós irão viver, até o impossível
acontecer e a nascida de pele preta como a noite e olhos como o
sol, na terra de Flós florescer. O mal lá pode ir e voltar, mas só
perecerá quando duas décadas completar e com a redenção e um
casamento a nascida o povo salvar, porém, tudo enfim se encerrará
quando... — Comecei a sentir meu peito doer e a sensação de que
o ar me faltava me atingiu. Engoli a dor tentando ouvir o final do que
Chain dizia. — ... flor sem vida... — Eu sabia que era hora de voltar,
mas eu precisava saber tudo e não voltaria até saber... — e dos três
envolvidos nada restar.
O Rei gargalhou e disse:
— Isso tudo nunca acontecerá.
Após ouvir a última palavra dada pelo rei, uma dor forte
tomou meu corpo fazendo com que eu caísse de joelhos e sem
conseguir suportá-la fechei meus olhos, prendi a respiração e em
seguida a escuridão me tomou.
A linha da vida e da morte.
Capítulo nove
— Vida... Vida... Vida... Volta, Vida.

Acordei cuspindo água, tossindo e sentindo meu nariz


queimar, enquanto meu peito doía e a minha volta Záia, Mica, Valery
e Iran me olhavam com preocupação.

— Como você está se sentindo? Você está bem? — Mica


perguntou, dizendo as palavras rapidamente e tinha o rosto molhado
de lágrimas.

— Esperem, não falem com ela. Se afastem! — Záia pediu a


todos enquanto eu ainda tossia, depois me disse com a voz calma:
— Vida, não diga nada, feche os olhos e volte para sua viagem no
tempo, reviva tudo e nos conte o que você descobriu — me
ordenou.

Tossi mais algumas vezes, respirei fundo e me sentei ereta,


depois espalmei a minha mão pedindo tempo a todos e fiz o que
Záia me orientou após todos me darem espaço para pensar.

De olhos fechados, repeti:

— Nas cinzas como nós irão viver, até o impossível


acontecer e a nascida de pele como a noite e com olhos como o sol,
na terra de Flós florescer. O mal lá pode ir e voltar, mas só perecerá
quando duas décadas completar e com a redenção e um casamento
a nascida o povo salvar, porém tudo enfim se encerrará quando...
— Eu tinha uma memória muito boa, mas foi nessa parte que
comecei a sentir a dor no peito e por isso ouvi falhado o que Chain
estava dizendo. — ... flor sem vida... Ele disse algo sobre o rei sem
vida... sobre nada dos envolvidos restar. — Esfreguei meu rosto. Eu
guardei todas as rimas, mas no final... a dor... — Comecei a chorar,
enquanto Záia se levantou do meu lado, se juntou ao ancião que
havia escrito tudo o que falei e juntos começaram a divagar cada
palavra que eu os tinha dito, enquanto andavam em direção ao rio.

Sentei-me, limpei as lágrimas e fiquei tentando me lembrar


de tudo, mas apenas o que eu tinha ouvido antes da dor estava
claro em minha memória, tão claro que eu podia repetir diversas
vezes se precisassem.

— Eu não consigo me lembrar do final com exatidão. Não


consigo.

Iran vendo que eu sentia-me culpada e me martirizava por


não ter conseguido guardar tudo que precisava, deu passos rápidos
em minha direção e se aproximou, depois se abaixou até mim e me
aninhou em seus braços, dizendo a seguir:

— Está tudo bem. Você fez muito em se arriscar pelo reino.

— Sim, Vida, você foi, andou na linha da morte e voltou para


nós, isso é o mais importante — Mica completou.

Limpei as lágrimas, me afastei de Iran e me levantei, me


recompondo.

— Vocês têm razão. — Limpei o rosto mais uma vez. —


Agora vamos trabalhar com o que temos até que tudo esteja
reestabelecido. — Eu não gostava de me mostrar fraca.

Novamente de pé Iran concordou comigo e Valery


completou:

— E você sempre poderá contar conosco. — O olhei com


gratidão.
Notei o ancião e a Záia voltando da margem do rio e assim
que se aproximou de mim o senhor de rosto cansado, falou:

— Você disse casamento, não é? Disse: “com uma


redenção e um casamento a nascida o povo salvar”

Pensei.

— Sim.

— Pode me dizer como era a cena em Cinere quando Chain


proferia as palavras? — Záia perguntou.

— Ele olhava fixamente e apenas para o fogo e tinha os


olhos vermelhos brilhantes.

— Olhava apenas para o fogo? — Záia perguntou para que


eu confirmasse e eu pensei um pouco, voltando para o momento
que testemunhei em Cinere, depois balancei a cabeça em positivo
reafirmando. — Creio que foi uma maldição com clarividência —
Záia concluiu.

— O quê? — Mica perguntou.

— Acredito que Chain estava lançando a maldição que o rei


pediu e como ele tem o dom de prever o futuro, lançou a maldição
criando empecilhos. Ele sabia o que podia acontecer, mas não tinha
certeza, pois o futuro pode ser mudado por nossas escolhas. —
Olhou para Iran. — Sendo assim, Chain criou várias... — Ela pensou
um pouco como se tentasse nos explicar da melhor maneira
possível. — ...etapas para dificultar que a Vida conseguisse quebrá-
la por completo.

— Então ele já previu tudo o que vai acontecer e estamos


de mãos atadas? — Valery perguntou com uma irritação evidente.

— Não, ele pode ver o futuro, mas não com certeza. Como
eu disse, tudo depende das escolhas dos envolvidos, mas por
exemplo, ele pode ver que lançando o feitiço que pedia o
nascimento da de pele como a noite, mesmo isso sendo quase
impossível, ela podia sim nascer aqui, então ele ligou ao nascimento
a exigência de tempo, no caso todos aqui sabíamos que Vida só
viveria segura em Flós quando completasse vinte anos.

— E qual a próxima etapa? — perguntei.

— Pelo que o senhor Mancler e eu achamos. — Ela olhou


para o ancião que balançou a cabeça em positivo. — O próximo
passo é um casamento.

— Casamento? — perguntei com os olhos arregalados.

— Sim, cremos que foi o modo dele caracterizar um vínculo


seu com o povo, já que passou a vida toda fora.

— Eu tenho um vínculo, me sinto mais daqui do que de


qualquer outro lugar.

— Mas na cabeça de Chain, você se negaria a se casar


quando voltasse, por ter passado tanto tempo longe. — Soprei
exasperada e ela continuou a falar: — Se quiser quebrar a maldição
você terá que se casar em Flós, Vida, e pelo que vemos, não tem
muito tempo para escolher um noivo.

— Isso nunca terá fim? — Joguei as mãos para o céu, me


sentindo muito pressionada. — Nunca vai acabar? Quantas etapas
terei que enfrentar?

— Sete — Záia respondeu e eu a encarei com as mãos na


cintura e juntando as sobrancelhas em pergunta. — Esse tipo de
maldição tem sete ramificações.

— Por que sete? — Mica perguntou.

— Porque para os magos e bruxos é o número da perfeição.

Ri sem vontade e falei:


— E quantas será que ainda me faltam? O que significa
essa tal redenção que ele menciona?

— Pensamos que pode ser pelo casamento a sua


reconciliação com seu povo. — Mais uma vez Záia olhou para o
Iran, pareceu pensar e seu rosto se abriu com o entendimento. —
Ou pode ser a salvação por amor... o arrependimento de alguém de
Flós ou o seu... Bom, o tempo dirá. — Ela bateu uma palma
parecendo empolgada.

— Não temos tempo — falei.

— Então, minha filha — senhor Mancler começou a falar


com a voz rouca pela idade já avançada. —, como eu sei que você
não tem ninguém na família para te instruir, eu peço desculpas e
tomo a liberdade de sugerir um marido para você.

— E quem seria?

— Sou um dos mais velhos do reino, conheço todos e sei


que o Valery, seria um ótimo candidato, assim como é um ótimo
guerreiro. Sei de sua índole e sei que ele é o certo.

— O quê? — Mica perguntou alto e meio que


involuntariamente.

Todos olharam para ela e seus olhos já estavam


lacrimejando, mas sentiu-se envergonhada. Senti o quanto a fala do
ancião a havia machucado, mas disfarçou:

— Casar sem amor?

— Sim, presamos o casamento com amor. Na verdade, pela


tradição exigimos que o casamento seja por amor — senhor
Mancler explicou. —, mas não temos tempo de esperar Vida se
apaixonar.
— Não — falei, trazendo a atenção de todos de volta para
mim. —, não me casarei.

O velho homem a minha frente arregalou os olhos e


perguntou abismado:

— Você aceita enfrentar a morte, mas não um casamento?

— Digo... não me casarei com Valery. — Valery me olhou e


eu não consegui decifrar o que vi em seus olhos, não sei se ofensa
ou alívio.

— Mas Valery é um excelente candidato — o ancião


indagou completamente admirado.

Olhei para Mica e ela estava com o olhar triste, enquanto


Iran parecia raivoso.

— Não acho que seja propício o meu casamento com o


guardião do trono, creio que tenha que ser alguém... — Limpei a
garganta enquanto pensava em algo que me impedisse de casar
com Valery. — ...que não esteja morando no castelo. Não acho que
seja apropriado.

O senhor pensou, enquanto Záia me encarava com o que


parecia ser um sorriso desconfiado no rosto, até que o ancião,
disse:

— Talvez pudesse ser o Iran. Ele não mora no castelo, é um


guerreiro forte e um homem de bem. — Záia soprou como se
deixasse escapar um riso e eu a encarei com dúvida por seu
comportamento debochado de repente, em resposta ela balançou a
mão para que o ancião continuasse a falar. — Iran é dos nossos e
pode ser um excelente rei.

— Não tenho objeção contra Iran — falei e o encarei.


Iran bufou, balançou a cabeça em negativo e olhou ao
longe.

— Alguma objeção, Iran? — Záia perguntou.

Ele a encarou e disse sem vontade:

— Não sei se sou o melhor candidato para ocupar esse


cargo.

Levantei uma sobrancelha, mas não falei nada e Záia o fez:

— Eu também não sei. Suas escolhas irão nos dizer, no


entanto, você é o que temos no momento e precisamos arriscar.

Iran a encarou com seriedade e eu, me sentindo um tanto


ofendida por sua recusa, entrei na conversa dos dois:

— Bom, como sua rainha, peço que aceite esse fardo tão
pesado e prometo te recompensar no futuro se conseguirmos
acabar com tudo isso, porém, faço questão de te lembrar que o seu
povo está sofrendo e eu não tenho tempo de procurar outro homem
que não ache que se casar comigo seja algo tão difícil de fazer.

Ele soprou.

— Não estou dizendo que é difícil... só que... Eu aceito e


não foi o que eu...

— Que bom que você aceita — o interrompi e virei-me para


o ancião. — Quando podemos fazer o casamento?

— Quando os noivos quiserem — respondeu.

— O mais rápido possível. — Olhei para o Iran que assentiu.

— Em dois dias podemos arrumar tudo — Mica disse.


— Dois dias? — perguntei com raiva. — Não pode ser
antes?

— Acho melhor arrumarmos um casamento como deve ser,


não podemos arriscar nada. Além de o povo... Bom, todos
aguardam ansiosos por uma festa.

Assenti.

— Tudo bem. Agora vamos, porque preciso descansar o dia


de hoje e me preparar para o de amanhã que pode me trazer mais
surpresas indesejadas. — Olhei para Iran quando falei
“indesejadas”, virei-me e andei pisando duro em direção ao cavalo
que me esperava por ali.

Quando o calor do momento passou comecei a sentir o frio


tomar conta do meu corpo, pelas roupas ensopadas que eu usava,
minhas mãos começaram a tremer, enquanto meu queixo batia
balançando meus lábios roxos.

Peguei as rédeas do cavalo e no momento em que ia


montá-lo Iran se aproximou de mim e colocou sobre o meu ombro a
capa que eu havia tirado antes de entrar no rio.

Irritada por não conseguir decifrar se Iran queria cuidar e


ficar perto ou desdenhar e ficar longe, eu o encarei e falei mais
ríspida do que desejava:

— Decida-se, Iran!

Vi seu maxilar se enrijecer, fechou os olhos e parecendo


confuso falou com a voz baixa:

— O que eu mais ando querendo desde que te conheci, é


me decidir.

O encarei por mais alguns segundos, mas sentindo-me


exausta soltei o ar, balancei a cabeça em negativa e montei no
cavalo.

Sem esperar os outros, saí galopando para o castelo, mas


rapidamente sendo seguida pelos guardas.

O vento fazia a roupa molhada ficar ainda mais gelada,


entretanto, durante o caminho, o gelo da roupa não era mais frio que
o olhar que Iran me lançou quando sugeri o nosso casamento, nem
mais frio que o modo como ele me tratava.

Dona do meu coração... Falso! Só disse isso porque achou


que eu ia morrer.

A galope e ouvindo os outros no meu encalço, eu só


pensava que precisava logo chegar no castelo, descansar e me
preparar para enfrentar o dia seguinte e os próximos, até que enfim,
eu conseguisse quebrar a maldição e viver em paz sem o peso dela.

Um casamento... Eu não sabia como enfrentaria mais


aquela novidade que surgiu na minha vida de maneira tão repentina,
novidade essa que eu não esperava passar tão cedo, no entanto, se
o meu povo precisava de mim, eu estaria sempre disposta a fazer
tudo por aqueles que me acolheram tão bem e a quem eu
considerava como minha família.
Capítulo dez
Casamento não era algo que eu pensava para mim tão
cedo, na realidade, nunca nem pensei. Entretanto, envolvida nas
voltas da vida, me via com um casamento marcado para o dia
seguinte.

— Vida, para de se mexer ou este vestido não vai dar certo


— Mica chamou a minha atenção.

Nem notei que estalava os dedos enquanto me olhava no


espelho e encarava meu reflexo. Um pano branco liso que em horas
seria um vestido de noiva, cobria meu corpo e ia do colo até os pés,
enquanto ao meu lado mais duas mulheres confeccionavam um
cinto onde colocariam flores naturais que rodearia a minha cintura e
cairia sobre a saia longa do vestido, enquanto um tecido esvoaçante
pousaria sobre meus ombros como uma capa.

— É mesmo necessário tudo isso, sabendo as condições do


casamento? — perguntei.

— Claro que é necessário. Nosso povo não tem um


casamento feliz há muito tempo e este, apesar das condições é
muito feliz, pois acreditamos que irá nos salvar de vez da maldição.
— Mariev, a costureira principal do castelo, disse com os olhos
brilhando de alegria.

Era uma senhora de mais de cinquenta anos, cabelos


grisalhos e exibia um sorriso amistoso que fazia com que qualquer
pessoa dissesse sim para ela.
— E vai dar tempo de fazer tudo isso até o pôr do sol de
amanhã? — questionei meio que desacreditando.

— Não nos subestime, Vida — Mica disse sorrindo.

Ao final de horas servindo de estátua para que as


costureiras ajustassem o que era necessário para confeccionar o
vestido, saí da sala de costura e decidi andar pelo castelo para
espairecer.

Já havia procurado Valery na hora em que acordei, para


saber mais sobre o povo de Trigo e sobre as rondas pelo reino. Para
o meu alívio e tristeza apenas Trigo seguia tomada pelas cinzas,
mas eu queria ficar me atualizando sobre tudo a cada segundo e
andei procurando-o para saber se continuava igual.

O que martelava em meu pensamento era que precisava ser


rápida para tirar o povo daquele sofrimento o quanto antes.

Andei pelo castelo e ao passar pelo salão principal observei


a correria de todos. Onde do lado de dentro preparavam o que seria
a recepção do casamento e do lado de fora o local da cerimônia,
corriam com vários bancos de madeira e muitas flores.

Tudo era feito com muito esmero e esperava-se toda a


população do reino presente.

Respirei fundo e controlei toda a ansiedade misturada com


frustração que tomava conta de mim. Sentia-me assim por não
conseguir resolver tudo sem precisar impor um casamento ao Iran.

Eu sabia que ele não queria, não que eu desejasse


ardentemente, mas tinha para mim que fazer isso com Iran era bom,
por isso fiquei um pouco incomodada com sua recusa tão imediata e
seu grande incomodo em se casar comigo.

Sabia que Iran faria de tudo para salvar o seu povo, quanto
a esse ponto eu não tinha dúvidas, e por isso não entendi o motivo
de ter se incomodado tanto com um simples casamento.

— A julgar por sua aparência preocupada, creio que


também não está feliz com o casamento — Iran falou, surgindo ao
meu lado repentinamente.

— Também? Fica claro com sua frase que você não está —
soltei, magoada demais.

— O problema não é você.

Virei-me e o encarei com seriedade.

— Que bom, porque não tenho problema nenhum com você


e não entendo o motivo de estar me tratando diferente do que me
tratava no outro mundo. Uma hora parece doce e na seguinte azedo
como um limão.

Riu sem vontade e me senti uma boba.

— Como eu te tratava no outro mundo? Lá eu era um lobo.

— Pois é, e mesmo sendo um animal, era muito mais afetivo


do que como humano.

Voltou a ficar sério.

— Sinto muito, não sei como ser afetivo.

Olhando para as pessoas arrumando o casamento, falei:

— E eu sinto muito por ter que fazer você passar por esse
martírio que é se casar comigo.

— Não é martírio, mas penso no que virá depois do


casamento... O que teremos que fazer.

Fiquei em silêncio apenas encarando as pessoas felizes a


minha frente.
— Viu, já estamos discutindo a relação antes mesmo de nos
casar — tentou descontrair, mas eu não sorri.

— O importante é manter o sorriso do meu povo. Faço o que


for preciso, enfrento o que precisar. Já passaram por tanto
sofrimento pela maldade alheia enquanto eu vivia regada de
privilégios, que só consigo pensar em mantê-los felizes e seguros.
Não julgo se alguns deles me culpar por não voltar antes ou por ter
levado uma vida boa.

Iran ficou quieto por uns segundos até que olhei para o lado
para encará-lo e o vi engolir em seco e depois dizer:

— Quem alguma vez pensou isso sobre você não merece te


ter como rainha, nem ao menos estar na mesma mesa ou desfrutar
da sua companhia... Não merece nada. Você não tem culpa da
maldade de Cinere. Agora eu sei disso.

— Agora?

— Não só agora, mas desde que te vi pela primeira vez.

Ele não me encarou e se manteve olhando apenas para


frente. Até que depois, como se tentasse se recompor do momento
de indignação, mudou de assunto radicalmente:

— Há muito tempo não temos um casamento em Flós.

Sorri.

— Uma pena que quando aconteça seja tão falso e por


motivos nada felizes.

— Podemos ao menos fingir felicidade?

— Claro. Na verdade, ver o povo feliz, me deixa feliz, então


minha felicidade será real.

Ergueu uma sobrancelha e lançou-me um olhar divertido.


— Então amanhã ficaremos felizes na frente do ancião?

— Sim, me sentiria lisonjeada se pudesse ao menos fingir


uma alegria.

Sorriu e até parecia mais leve que há pouco.

— Vida, temos que decidir assuntos burocrático... onde


iremos morar, por exemplo. Não tenho castelo, para levar a rainha
de Flós após o casamento. Moraria comigo na minha cabana perto
do estábulo? — perguntou, sem jeito.

— Não, apesar de já ter morado com você em uma cabana,


se sou rainha você será o rei e virá morar no castelo comigo.

Ele engoliu em seco e assentiu, parecia querer entrar em


um assunto delicado, mas antes que pudesse, Mica apareceu em
uma das portas laterais do castelo a alguns metros e gritou:

— Vida, vamos. Você precisa experimentar o vestido.

— Ai, de novo — resmunguei.

Iran riu.

— O vestido está sendo sacrificioso?

— Um pouco... E você, não devia também estar preparando


uma roupa?

Olhou-me divertido.

— Não se preocupe, no estábulo tem vários sacos de


estopa que posso usar.

— Não se atreva! Se eu tenho que passar pelo tormento do


vestido, você ao menos esteja apresentável.

— Pentearei o cabelo.
— Vida! Anda que a Mariev irá nos matar pela demora —
Mica gritou.

Tirei meus olhos da minha amiga e encarei ao Iran.

— Faça uma trança.

Ele riu, mordeu o lábio de forma divertida e encarou as


pessoas que ainda arrumavam o pátio do castelo. Sem mais, saí de
perto dele e segui para tortura do vestido.

Estávamos tão leves que nem parecia que na noite anterior


eu queria arrancar a cabeça dele pela desfeita de praticamente se
negar casar comigo.

A noite caiu e na solidão do meu quarto pensei no sorriso do


Bravo em forma humana e era lindo. Devia sorrir mais vezes e não
ficar tão carrancudo como eu costumava vê-lo.

Ainda não conseguia entender sua maneira de ser. Em um


minuto era distante e no outro até parecia ser meu amigo.

Fiquei um tempo pensando no que aconteceria no dia


seguinte e rolei na cama de um lado para o outro, não conseguia
dormir e insistentemente refletia sobre o bendito casamento, então
para tentar aliviar o estresse decidi levantar e dar uma volta pelo
castelo.

Assim que abri a porta do quarto, dei de cara com três


guardas parados bem de frente.

— Boa noite — os cumprimentei e em resposta apenas me


deram um meneio de cabeça contido. Alguns deles ainda tinham por
mim uma espécie de respeito exagerado.

Continuei andando pelo corredor que levava outras portas


além da do meu quarto, que conheci uma por uma no meu segundo
dia ali e eram outros dormitórios, biblioteca, sala de descanso,
escritório, entre outras coisas.

Pensei em entrar em alguns daqueles cômodos e mexer em


algo para ver se ocupava a minha mente ou o sono aparecia, mas
nada me chamou atenção e continuei andando.

Desci as escadas e cogitei ir até a cozinha, mas sabia que


se fizesse isso escutaria uma enxurrada de mandamentos para que
eu fosse dormir e descansar para o tão esperado acontecimento do
dia seguinte.

Decidi seguir pelo corredor que levava para o lado contrário


e quando dei por mim estava em uma sala grande, com prateleiras
de madeira nas quatro paredes e todas elas cobertas com pastas
cheias de papeis. Imaginei que aquela fosse a sala onde eram
guardados os escritos.

Assim como os corredores e cômodos do castelo, era pouco


iluminado, apenas com lamparinas a base de querosene e
candelabros com velas.

Peguei uma lamparina, aproximei-me de uma das estantes e


comecei a observar os calhamaços de papeis embalados por capas
de couro. Nelas continham datas marcadas a ferro quente que
deixavam as letras na cor preta.

— Vida.

Dei um pequeno pulo de susto por ouvir alguém me chamar


e acabei batendo em uma mesa próxima a mim, com o destempero
derrubei o peso de papel, que fez um barulho agudo ao tocar o
chão.

Olhei para porta e quem estava ali era Valery.

— Desculpa, te assustei?
— Não. Bem, sim, mas só porque eu estava distraída. O que
são? — Apontei para as estantes e abaixei-me para pegar o peso
de papel do chão.

Valery andou em minha direção.

— São manuscritos feitos pelos secretários do castelo


durante os anos.

— Quem é o secretário hoje?

— Não temos. O último morreu também de fraqueza. Os


mais velhos foram os mais afetados.

— Sinto muito. — Deu-me um meneio de cabeça e


perguntei: — Quando foi a última atualização? — Passei o dedo
indicador na capa de couro, conferindo as datas.

— Dois anos antes da sua volta. Após isso ninguém mais foi
nomeado, já que não acontecia nada no reino a não ser fome e
cinzas. Também não podíamos trazer mais ninguém para o castelo
e fazer com que gastassem suas poucas forças catalogando
acontecimentos. Nossos recursos eram escassos. — Deu de
ombros e seus olhos pareciam tristes por lembrar do passado
recente.

— Compreendo.

Olhei para as pastas.

— Então meu retorno não foi registrado?

Valery sorriu.

— Creio que não oficialmente.

— Mas que afronta! Em dias já dei muito assunto para o


próximo secretário, em uma semana será quase um livro.
— Sim, temos que arrumar um secretário o mais rápido
possível. E o pobre já vai começar com trabalho atrasado.

Valery e eu estávamos rindo abertamente quando notamos


uma presença alta preencher a porta e nos encarar com seriedade.

— Atrapalho? — Iran perguntou parecendo incomodado.

— De maneira nenhuma — Valery quem respondeu.

— Ouvi um barulho, estava fazendo uma ronda pelo castelo


e resolvi conferir o que era.

— É que derrubei o peso de papel — contei.

Assentiu e continuou me observando da porta, com olhar


carrancudo como se quisesse dizer algo. Depois focou em Valery
como se esperasse uma explicação.

— Algum problema? — perguntei.

Ergueu o queixo, exibiu um olhar ofensivo, até que colocou


para fora o que o incomodava.

— Sei que o casamento é apenas para quebrarmos a


maldição — Engoliu em seco e manteve o olhar cheio de incomodo.
—, no entanto, vocês dois aqui... sozinhos... Bom, se ambos
quiserem ainda dá tempo de trocar o noivo.

O quê?

— Não é nada... — Valery tentou explicar, mas ergui a mão


pedindo que ficasse em silêncio e perguntei a Iran:

— O que você está insinuando? Diga as claras.

Trocou de pé e parecia ter dificuldade para se expressar.

— É só que não quero ser... feito de bobo para todo o reino.


Balancei a cabeça em negativo e ele conseguiu me tirar do
sério.

— Bobo você não é, mas um imbecil... Ah, isso eu tenho


certeza.

Saí da sala pisando duro e segui corredor afora fazendo


todo o caminho de volta para o meu quarto.

Como ele podia insinuar que Valery e eu estávamos tendo


algo naquela sala?

E se Mica soubesse de uma coisa dessas? Ela sofreria!

Passei pelo salão principal, subi as escadas e entrei no


corredor comprido que levava para o meu quarto, o último dele.

Avistei os guardas ainda de plantão bem em frente à minha


porta, ia dar mais um passo, mas mãos nos meus braços me
pararam, fazendo com que eu virasse para trás e encarasse ao Iran.

— Espera.

— O que você quer? — perguntei sem paciência. — Vai me


acusar de algo mais?

— Quero me desculpar, creio que a minha insinuação tenha


sido um pouco rude. E pelo que Valery me contou, não há nada
acontecendo entre vocês.

Ri em desdém.

— Um pouco? Não dá para acreditar! Você acha que eu


tenho cabeça para pensar em qualquer coisa que não seja salvar
Flós?

— Me desculpe.

— Você deve pensar muito mal ao meu respeito.


— Mais uma vez peço desculpas. Não tenho que pensar
absolutamente nada.

— Mesmo que houvesse algo acontecendo entre mim e


qualquer outra pessoa, afinal, você se importa? Porque não tem se
importado comigo desde que cheguei.

— Me importo — respondeu com a voz baixa e encarando


diretamente meus olhos. Meu coração pulou uma batida.

— Se importa? — consegui perguntar de novo, sentindo


como se minha respiração falhasse.

Olhos nos olhos, Iran engoliu em seco, até que como se


jogasse um balde de água na minha expectativa, respondeu:

— Sim, tenho uma reputação de guerreiro no reino, que


preciso zelar.

Assenti sem saber o que responder, encarei-o e seus olhos


não eram serenos, pareciam esconder algo, pareciam querer me
contar algo ou até mesmo, podia ser que no fundo, ainda acreditava
que Valery e eu tínhamos um envolvimento.

Balancei a cabeça em negativo.

— Até amanhã, Iran. Nós nem tínhamos que estar de pé


uma hora dessas. — Virei-me e segui para o meu quarto.

Passei pelos guardas que observavam toda a cena e fechei


a porta para tentar dormir.
Capítulo onze
Meu reflexo me mostrava vestida de noiva e pronta para o
casamento.

Olhava-me no espelho e não acreditava que elas


conseguiram costurar aquela beleza de vestido em tão pouco
tempo.

O pano era delicado que pensei ser uma espécie de cetim, o


modelo era justo no tronco e rodado da cintura para baixo. Dos
meus ombros caía a capa branca anexada ao vestido e um cinto
com flores de lótus deixava-o acinturado e ainda mais bonito.

Meu cabelo cacheado apresentava-se em uma trança fofa,


com alguns fios soltos e pequenas flores brancas penduradas a ele.
No meu rosto fizeram uma maquiagem característica dos
casamentos em Flós, feita com um palito muito fino e tinta preta que
usaram para fazer o delineado em meus olhos, com um fino traçado
que ia quase até a raiz do cabelo e me deixou com um olhar intenso
que gostei muito.

Já a minha boca, pintaram esfregando um morango,


passando a fruta diversas vezes, esperando secar e passando de
novo, até ficar de um rosa bem escuro, quase vermelho.

Mica disse que esse ritual era para que o noivo ficasse louco
para experimentar a boca da noiva, depois falou que Iran ia amar.
Senti-me envergonhada e mudei de assunto exclamando que
aquele dia estava quente. Realmente estava.
Nas maçãs do rosto, quase perto dos olhos, esfumaram um
pó dourado, feito de uma mistura extraída das flores. Mariev disse
que significava: “Que meus olhos vissem riqueza e fartura”.

Já pronta para tudo o que me esperava, alisei o vestido,


encarei mais uma vez meu reflexo no espelho e falei:

— Nunca na minha vida vi algo tão lindo.

— Gostou mesmo, Rainha? Podemos mudar o que quiser,


talvez atrase, mas tentaremos — disse Mariev.

— Não tem nada para mudar, está perfeito! Se fosse em


outro momento eu estaria muito feliz em me casar usando este
vestido.

— Você está incrível, Vida — Mica disse me olhando.

Sorri.

— Vocês todas também. — Fitei as mulheres a minha volta,


havia umas dez, e todas usavam vestido coloridos, cada um de uma
cor e de cores vibrantes.

Mica usava um lilás, mas para completar o tom mais claro,


fios dourados adornavam os arremates do vestido.

— Ainda não acho que esteja digno de uma rainha, mas foi
o melhor que consegui fazer com o tempo disponível. — Mariev
juntou as mãos na frente do corpo e me admirou.

Ia responder que estava muito mais do que eu merecia, mas


minha atenção foi tomada por um barulho alto de tambores do lado
de fora.

— O que é isso? — perguntei assustada.

As mulheres a minha volta sorriram.


— O casamento vai começar — Mica falou animada, sorriu e
aplaudiu. — Os tambores anunciam a chegada do noivo.

Suspirei ao pensar em Iran e a ansiedade percorreu meu


corpo.

— Eu não sei nada dos rituais ou coisa assim. Como devo


me comportar? Não aprendi nada. — De repente um pequeno
desespero me atingiu.

— Fica tranquila, Rainha. Todas as mulheres em Flós


aprendem cada parte das tradições com suas mães conforme os
anos vão passando. É normal você não saber de nada — disse
Elica, uma das ajudantes na cozinha.

— Eu, por exemplo, nunca vi um casamento feliz, aprendi as


danças e tradições com a minha mãe, mas nunca tinha realmente
colocado em prática. A fome e a tristeza em Flós não nos deixava
viver esses momentos. Por isso hoje nos vê tão feliz. — Mica
apontou para as mulheres a nossa volta. — Vou enfim dançar para
noiva. — Aplaudiu.

Sorri.

— Mas e eu? O que devo fazer?

— Só seguir para o noivo e sorrir — Mariev instruiu.

Balancei a cabeça em positivo, não fazia ideia de como era


a cerimônia, mas o barulho vindo do lado de fora fez um arrepio
percorrer meu corpo e eu estava pronta para ver o que me
aguardava.

Quando enfim fiquei pronta, saí do quarto e de ambos os


lados do corredor vi mulheres posicionadas, entoando cantos e
batendo palmas no ritmo. Seus sorrisos quando me viram se
tornaram radiantes, enquanto eu, me senti sem jeito e
insistentemente ponderava se era digna de toda aquela ovação.

O casamento era para salvar o povo, apenas isso, e me


perguntava se aquelas pessoas comemorando felizes, não
lembravam que o povo de Trigo gemia de fome naquele mesmo
momento.

— Já te conheço o suficiente para saber no que está


pensando. Não se martirize, o povo de Trigo também está feliz com
o casamento. Fique feliz conosco, porque essa alegria já é a
comemoração da vitória — Mica falou, bem perto do meu ouvido
para que somente eu a ouvisse.

Encarei-a e dei um meneio de cabeça, tentando ver aquilo


tudo com os olhos deles e assim, pensar que apesar das
circunstâncias aquele casamento era motivo de alegria.

Imaginei como Iran devia estar se sentindo...

Será que se sente muito triste por se casar comigo?


Respirei fundo, tentei não pensar e falei para Mica:
— Tudo bem, me leva para o meu noivo.

Mica riu.

— Te levarei até lá com alegria.

Ela se posicionou na minha frente, uma mulher mais velha


ergueu um braço e gritou:

— Vivatsmus adus sponsi et spontsael. — Olhei para Mica


para que traduzisse aquela língua, que até então eu não havia
ouvido assim tão nitidamente, só em resmungos e pequenas frases
do Iran.
Mica sussurrou a tradução para mim:
— Viva a noiva e o noivo.
— Qualê adul Fertilitalti.
— Que sejam férteis.
— Iubentium.
— Saudáveis.
— Pugnabit enilm regnumin.
— Lutem pelo reino.
— Amaant se iduln sempiternun.
— Se amem eternamente. — Mica sorriu largamente ao
traduzir essa parte.

Todas as mulheres gritaram juntas com rostos felizes e a


seguir começaram a cantar uma música alegre, em que batiam
palmas, gritavam e dançavam com o ritmo.

Mica se posicionou na minha frente novamente e com um


meneio de cabeça indicou que eu a seguisse. Ela dançava passos
coreografados e cantava a mesma música que as mulheres
enquanto andava pelo corredor.

A segui e conforme fui andando, as mulheres enfileiradas no


corredor me seguiam, formando uma procissão de lindas viventes
de Flós usando roupas coloridas, cabelos arrumados e sorrisos
felizes.

A música parecia ser cantada na mesma língua com que as


palavras foram proferidas e mais uma vez fiz uma nota mental de
aprendê-la depois.

Descemos as escadas e cada vez eu era seguida por mais e


mais mulheres, porém quando chegamos ao salão principal Mica me
parou:
— Agora você fica aqui dentro e quando ouvir três batidas
de tambor, será para anunciar a sua entrada, então você segue pelo
corredor entre as pessoas e anda em direção ao arco, onde Iran te
espera.

Assenti e não consegui falar. Sentia-me nervosa e tomada


por uma emoção indescritível.

Mica lançou-me um largo sorriso, depois me deu um abraço


rápido e seguiu com as demais mulheres para o lado de fora do
castelo, deixando-me apenas com o silêncio que se formou após a
partida delas.

Parada a alguns metros da porta, como um filme os dias que


passei ali e tudo que vivi em tão pouco tempo tomaram meus
pensamentos, mas foi a lembrança de antes de tudo que me
emocionou.

Fechei os olhos e me lembrei dos olhos azuis lindos de


Bravo, de como ele cuidou de mim no outro mundo quando fiquei
sozinha e de como ficou ao meu lado, mesmo quando o mandei ir.
Nunca imaginei que viveria isso.

Abri meus olhos quando ouvi uma batida forte de tambor,


seguida de outra e mais uma... Chegou a hora.

Respirei fundo...

Dei um passo...

Depois outro...

Saí na claridade do dia, que já se encontrava no final e até o


céu parecia estar em festa com suas nuances. Caminhei em direção
a multidão que me aguardava eufórica e era muita gente, para onde
se olhava via-se cabeças e sorrisos.
Olhei ao longe, na direção em que eu tinha que seguir e a
primeira pessoa que avistei foi Iran, mal conseguia vê-lo, mas sabia
que exibia seu rosto sério costumeiro.

Caminhei pelo espaço livre que deixaram para minha


passagem e fui contemplando tudo o que via.

Muita cor... nas roupas, nas pessoas, nas muitas flores que
decoravam tudo, inclusive o chão que eu pisava. Todo o povo
cantava e batia palma para eu passar e provavelmente viam em
meu rosto, toda a curiosidade que eu sentia e falta de experiência
com aquilo tudo.

Após andar alguns metros depois de sair do castelo, chegou


o momento em que eu entraria na reta que me levaria diretamente
para Iran. Meu corpo formigava.

Assim que virei para entrar no caminho entre os bancos, a


primeira pessoa que vi foi ele. Estava vestido todo de branco,
camisa de botões, de manga comprida e de um pano fino, como
linho. A calça era um pouco solta, mas desenhava seu corpo,
deixando claro o quanto ele tinha músculos. Calçava botas pretas e
na cintura levava um cinto muito parecido com o que eu usava, com
a diferença de que o dele não havia flores, apenas folhagens de um
verde bem escuro e o cabelo...

Sorri ao ver.

Como eu pedi, seu cabelo apresentava-se preso em uma


trança que o deixou com um ar ainda mais másculo, bravo e...
lindo... Muito lindo. Pegava desde o alto da cabeça e findava na
nuca. Um verdadeiro guerreiro.

Continuei andando, ouvido a música a minha volta, mas os


meus olhos estavam em Iran, o meu Bravo, o meu lobo. Nunca tinha
o visto tão lindo e uma timidez tomou meu corpo ao imaginar que
estava me casando com ele. Um casamento arranjado, mas ainda
sim... estava me casando com meu lobo.
Meus pensamentos corriam a mil enquanto eu andava em
sua direção e em um deles, relembrei o que acontecia entre um
homem e uma mulher, toda a intimidade que teríamos e que eu não
sabia de nada.

Respirei fundo e tentei deixar para pensar nisso depois.

Nos primeiros bancos avistei Mica, Valery, Mariev com todas


as mulheres do castelo que me arrumaram e até Záia estava
presente, me olhando com sua sobrancelha arqueada e seu olhar
cheio de mistério de quem sabe tudo e ao mesmo tempo diz não
saber de nada.

Sorri para eles, mas um riso contido que demonstrava muito


do que eu vivenciava e sentia: receio e ansiedade pelo que estava
por vir.

Aproximei-me do arco florido na frente de todos e Iran deu


dois passos ao meu encontro, após pegou minha mão direita onde
pousou um beijo que arrepiou meu corpo.

Nunca tive um contato tão íntimo com ninguém e novamente


o pensamento sobre o que aconteceria naquela noite, ao final do
casamento, tomou a minha mente.

Ele me ajudou a subir os três curtos degraus que levavam


até o ancião que celebraria o casamento, mas antes desse
momento sussurrou:

— Ainda pode desistir.

— Você também.

— Nunca faria isso, agora menos ainda. E... você está muito
bonita. — Olhou diretamente para os meus lábios rosados.

Seu elogio desajeitado me fez segurar o riso e pensei se ele


ainda pensava em desistir, porém logo nos aproximamos do ancião
e o ouvimos dizer:

— Que a flor dos nossos antepassados viva, floresça e


nunca pereça em nós.

— Flós. Flós. Flós! — Todos gritaram em uníssono e


erguendo suas mãos para o alto.
O ancião ergueu uma de suas mãos, como se pedisse
silêncio.

Dentro do meu peito, meu coração saltitava.

— Como o mais velho do reino, é com alegria que estou


aqui para realizar este enlace que será além de festivo, a salvação
de todos nós. Sabemos que alguns dos nossos estão neste
momento comemorando de longe e esperando que os frutos
venham.

Quando o homem de aparência cansada a nossa frente


citou fruto, Mica apareceu com uma cesta com morangos, parou
próxima a nós e o ancião continuou a falar:

— Começo a cerimônia dizendo que por Flós seremos o


fruto, nos multiplicaremos, deixaremos a herança e a história do
nosso reino. — Apontou para cesta de morangos.

Engoli em seco e não fazia ideia do que era para fazer,


então Iran me olhou entendendo meu impasse, pegou ele primeiro
um dos morangos da cesta e colocou na minha boca, a seguir
entendi o ritual e fiz o mesmo, ao mesmo tempo que seus olhos
encaravam fixamente os meus.

Todo o povo gritou:

— Flós! Flós! Flós!


O ancião continuou:
— Que sejam juntos a alegria do reino e o pulso forte que
manterá Flós em ordem.

Mica de novo se aproximou e trouxe com ela a bandeja,


dessa vez com duas doses de uma bebida de cor verde e sem dizer
nada o ancião apontou e eu soube que eu teria que bebê-la.

Peguei o pequeno copo e sem titubear virei de uma vez a


bebida, que parecia álcool puro, mas tinha gosto de hortelã.

Tentei disfarçar a careta, mas creio que não consegui já que


Iran me olhou e conteve um sorriso, depois virou sua bebida
também, sem demonstrar nenhum desconforto.

— Por último, todos aqui presentes desejamos o bem.


Aquele que vai unir e tornar dias tristes em felizes, o que vai
transformar o mau em bom e o ódio em amor... Desejamos amor. —
O ancião apontou para nós com um sorriso feliz e disse: — Se
tornem um casal.

— Flós! Flós! Flós! — a multidão gritou como


comemoração.
Fiquei em dúvida do que fazer, mas logo Iran deu um passo
em minha direção, ficou bem perto a ponto de seu cheiro tomar meu
nariz, depois o vi engolir e notei que aquele momento era difícil para
ele, como era para mim.

Passou o dedo de leve em meu rosto, pedindo permissão, e


nesse momento foi como se todas as pessoas a nossa volta
tivessem sumido.

Iran deslizou com o dedo até o meu queixo, me puxou para


perto e delicadamente colou seus lábios nos meus.

Senti meu coração disparar e meu corpo todo reagir ao seu


toque, fiquei arrepiada e a sensação foi... boa. Tão boa que eu
queria mais.
Ele se manteve parado apenas com seus lábios nos meus.
O gosto de hortelã e morango era presente e involuntariamente
senti vontade de abocanhar seus lábios e beijá-lo como nas novelas
que eu assistia no outro mundo, queria sentir seu gosto a fundo e
queria que ele me tomasse em seus braços de forma mais firme, no
entanto, depois de alguns segundos Iran separou-se alguns
centímetros e voltou a juntar nossos lábios, para depois afastar-se
novamente.

Abri meus olhos e o encontrei ainda perto com os seus


fechados, porém logo se abriram para me encarar e separou-se
imediatamente, retomando a postura fria, olhar sério e parecendo
tão distante como se nunca tivesse se aproximado.

Meu coração pulava dentro do peito e eu me xingava


mentalmente por ter tido aqueles pensamentos em relação ao Iran,
quando nosso casamento era apenas um arranjo para acabar uma
maldição.

A nossa volta a multidão comemorava gritando e


aplaudindo. Os tambores eram tocados a toda altura e o dia que era
quase completamente noite, foi iluminado por diversas tochas que
foram acesas ao redor do espaço onde estávamos.

— Vocês estão casados. Pelo poder investido a mim por


minha experiência neste mundo, eu declaro que vocês são um
casal, rei e rainha de Flós. Pode floreá-lo, você é a flor de seu rei —
disse o ancião, sorrindo para mim.

— O quê? — perguntei, completamente perdida.

— Pegue uma flor do seu cinto e coloque no meu — Iran


instruiu.

— Ah!

Tirei uma flor de lótus amarela e me aproximei dele para


colocar em seu cinto, enquanto eu fazia isso, ele disse em alto e
bom som:

— Minha flor, cor do meu mundo e... — Olhei para cima,


para encará-lo, quando terminei de prender a flor, encontrei Iran me
observando muito intensamente e completou: — Luz na minha
escuridão.

Perdi uma batida do meu coração e mais uma vez Iran colou
nossos lábios como e fosse algo muito normal.

Eu não sabia mais se era real, se ele sentia a mesma


intensidade que eu, se era tudo combinado ou se era mesmo só o
ritual do casamento, entretanto, o olhar com que me encarou ao
dizer que eu era a luz na sua escuridão, tocou meus sentimentos de
tal maneira que dificilmente ele voltaria a ser como era antes daquilo
tudo acontecer.
Capítulo doze
Sentada em um trono na parte mais alta do salão do castelo,
vi a alegria tomar conta de todos que bebiam e dançavam
comemorando o enlace.

Já havíamos comido, o que eu pensava ser algo como porco


assado, e bebido um vinho delicioso, que mais parecia um suco de
uva bem forte de tão gostoso que era.

Ao meu lado Iran ocupava o outro trono, destinado ao rei, e


observava tudo com sua cara de poucos amigos. Um pouco antes
de chegarmos ali, após o casamento, foi feito um rápido ritual e
discreto como Iran pediu, em que ele foi nomeado rei de Flós.

Como o novo rei era um guerreiro, em sua homenagem


aconteceu uma apresentação de espadas em que um dos homens
saiu ferido e todos riram como se aquilo fosse divertido. Já eu achei
uma barbárie.

Também aconteceu uma dança com cinco mulheres lindas,


praticamente nuas e que dançavam sensualmente para o Iran. Pelo
que entendi era uma espécie de dança afrodisíaca que pedia para
natureza, fertilidade o casal.

Pelo que Mica me contou em uma das nossas caminhadas,


em Flós eles não tinham uma religião ou algo assim, acreditavam na
ajuda dos antepassados, no poder da natureza, das plantas, flores,
frutos e animais. Além de acreditarem na força das cores que cada
um carrega.
Mariev disse enquanto me maquiava que a minha cor, com
certeza, era o dourado e que eu brilhava.

Durante a dança, notei que uma das dançarinas não parecia


muito feliz e olhava diretamente para o Iran que desviava o olhar e
mantinha-se tão sério e bravo quanto o nome que o dei permitia.

A mulher tinha cabelos compridos e castanhos, que iam até


a cintura, olhos verdes intensos pintados com um delineado em
preto e sua pele era branca como de todos ali. Era linda.

Por não conhecer nada das tradições, eu encarava tudo


com atenção e curiosidade, já interação da dançarina com o Iran
encarei com mais que isso e sim, incomodo.

Sentia-me incomodada não só por não saber de tudo que


envolvia o reino, mas também por não saber o motivo daquelas
trocas de olhares que pareciam um tanto mal resolvidas entre eles.

— Você podia ao menos disfarçar — falei quando não


aguentei mais guardar meu incomodo só para mim.

— O quê? — perguntou como se a minha voz o tirasse do


transe que seu pensamento o prendia.

— Seu olhar para dançarina de verde.

— Não tem olhar nenhum.

Revirei os olhos sem paciência e ele perguntou:

— Vai ser uma esposa ciumenta?

— Não, mas se você se achou no direito de pensar


inverdades sobre mim quando eu estava com o Valery, posso
pensar sobre você também.

— Fique à vontade.
Bufei, desdenhando do seu comentário e ficamos em
silêncio até a dança acabar, mas eu ainda sentia em meu peito o
desconforto estranho.

Lembrei-me de Ravina e cogitei que a dançarina de verde


poderia ser ela. Pensei em perguntar se era mesmo, mas não queria
dar a ele mais munição para me chamar de esposa ciumenta. Não
era ciúme, eu só queria saber de tudo às claras.

Após as apresentações acabarem e só restarem pessoas


felizes ainda comemorando a nossa frente, cansei-me do silêncio e
falei para Iran

— Você, está mais sério que o normal. Bravo!

— Não estou. — Voltou a olhar para frente e revirei os olhos.

— Está.

— Estou agindo normalmente. Como você queria que eu


estivesse?

Dei de ombros.

— Como um noivo.

— Não sei como um noivo tem que agir, nunca fui um. Muito
menos nessas condições.

— Grosso! — Acusei exagerando e ele riu sem vontade. —


Não sei por que está agindo dessa maneira. Eu quem deveria estar
chateada, a considerar que fui acusada injustamente ontem por
você, mas é você que parece tão animado quanto se estivesse indo
para forca... ah, e trocando olhares com a dançarina.

— O casamento é arranjado, Vida.

— Eu sei. E devia ter lembrado disso ontem quando


insinuou que eu tinha algo com Valery, já que o casamento era
arranjado e se eu tivesse não teria problema nenhum. — Notei que
fechou o cenho. — Hoje, ao menos poderia fingir uma animação
para que eu não fosse tão humilhada publicamente, diante de todo o
reino.

Ele respirou fundo como se criasse força para algo e sem


dizer nada se levantou, parou na minha frente e me estendeu a
mão.

— Vamos dançar?

— Ham?
— Dançar. Você não queria animação? Não sei o que é
mais animado do que dançar.

— Você me parece tão irônico quanto debochado. — Olhei


em volta me sentindo tímida.

— Nenhum dos dois, só seguindo os costumes e fazendo o


que me pediu. Vamos, Vida! Ou vai me deixar com a mão estendida
diante de todo o reino.

Olhei em volta novamente, vi algumas pessoas me


observando com mais atenção e expectativa.

— Eu não sei dançar — falei baixo.

— Não tem segredo... Vai me humilhar publicamente, diante


de todo o reino?

Bufei por ele usar as mesmas palavras que eu e enfim


aceitei sua mão sem saber onde estava me metendo.

Iran nos guiou até o centro da pista, onde todos os


presentes abriram espaço para que nos acomodássemos, enquanto
uma música alegre era tocada por instrumentos que eu não
conhecia, mas pareciam gaitas, flautas ou algo assim.
— O que eu faço agora?

Iran segurava o riso.

— Lembra quando pegava a minha pata no outro mundo e


dançava comigo pela casa? — Assenti e mesmo tensa sorri ao
lembrar. — É parecido. — Puxou-me pela cintura e juntou seu corpo
ao meu. — Com a diferença que terá uma multidão nos olhando e a
tradição da cobertura de flores que cerca a dança do casal.

Neste momento a música alegre deu lugar a uma melodia


calma e que eu classificaria como romântica.

— Cobertura de flores?

Sem responder de imediato, Iran me manteve junto ao seu


corpo, iniciou a dança nos movendo um passo para o lado e outro
para o outro e assim começamos a dançar.

Deixei-me ser completamente conduzida por ele, já que não


fazia a menor ideia de como era a dança ali e nem no outro mundo.
Nunca havia dançado em lugar algum, só mesmo com o Bravo na
sala de casa.

As pessoas a nossa volta aplaudiam no ritmo e se


balançavam de um lado para o outro.

— Logo eles irão jogar sobre nós um pano escuro e pintado


com flores — falou com sua voz grossa bem perto do meu ouvido e
arrepiei. — Faz parte da tradição. Quando os noivos tomam o centro
do salão para dança, é como se estivessem se despedindo da festa,
para noite de núpcias. O pano é como um símbolo de privacidade
para o tempo que antecede a partida.

Senti meu rosto pegar fogo e a vergonha sobre o que me


contou tomou conta de mim. Pensei sobre aquele momento mais
íntimo, mas não tão a fundo, era tanta preocupação com o povo,
que esqueci de tudo. No entanto, após Iran mencioná-lo, várias
perguntas martelaram na minha cabeça.

Será que terei que ter relações sexuais com Iran para a
maldição ter efeito?
Como seria a minha primeira vez?
O que eu teria que fazer?
— Respira, Vida, não precisa ficar tão tensa.

As pessoas nos rodeavam e eu notava o sorriso em seus


rostos. Todos pareciam levar o casamento muito a sério e nem
sequer pensavam que aquele não passava de um arranjo para
salvar Flós.

Tudo bem que a maioria ali podia ser que não soubesse,
pela pressa com que tudo foi arranjado, mas as notícias corriam.

— Só estou pensando em tudo... que eu não sei... como


funciona aqui.

— Não pensa muito.

As tochas e lamparinas do salão foram apagadas e um


grande pano escuro, com contornos de flores desenhado nele,
passou por nossas cabeças e seguiu até a outra extremidade do
salão, deixando apenas nós dois embaixo dele.

Era enorme, com muitos remendos e suas várias pontas


foram seguradas pelos habitantes de Flós que seguiam animados
com a cena que não viviam há muito tempo. Vários ali nunca nem
haviam visto.

Embaixo do pano eu sentia a ansiedade disparar meu


coração e não sabia o que devia ou não fazer para me acalmar,
fechei os olhos e respirei fundo com a testa encostada ao ombro de
Iran.
— Parece tão nervosa.

— Acho que sou controladora demais e não saber como


tudo vai se desenrolar realmente me deixa nervosa.

— Vou narrando para você.

Assenti e sussurrando bem perto do meu ouvido começou:

— Agora eles vão entoar o canto que todos aprendemos


com os nossos antepassados e fala de saúde, prosperidade,
fertilidade e abundância. Exatamente tudo o que não tivemos por
uma vida e agora temos a esperança de ter eternamente.

Como Iran disse, as vozes formaram um coro calmo e


ritmado, cada palavra dita no idioma que eu não conhecia, mas que
era claramente um desejo caloroso de coisas boas.

Como mágica, as flores no tecido se acenderam, vibrantes


como luzes neons e eu me assustei.

— Dizem, que quando o tecido acende é que o casamento


foi abençoado pelos antepassados.

Não sabia o que dizer e continuei olhando para o alto,


admirando o pano que brilhava magicamente.

Tirei meus olhos do tecido para encará-lo e Iran me olhava


fixamente e muito de perto, tão perto que imaginei que fosse me
beijar. Engoli em seco, olhei para os seus lábios e pensei em me
afastar, mas fiquei paralisada. Encarei sua boca novamente, exalava
uma respiração morna que tocava a minha.

Meu peito subia e descia com a respiração desritmada


sendo sufocada pelo vestido apertado, minha boca estava seca e
meu olhar completamente capturado pelo dele.

Notei Iran também tocado, seus olhos encaravam os meus,


iam de um para o outro e depois fixavam nos meus lábios
novamente. Sua respiração tão acelerada quanto a minha indicava
que sentia-se afetado pelo momento tanto quanto eu.

Olhou para o lado como se procurasse uma saída e eu


segui seu olhar para ver quase nada que não fosse silhuetas de
pessoas no meio da pouca luz que exalava dos desenhos
brilhantes.

Voltei a encará-lo e seus olhos estavam de novo em mim,


até que como se não soubesse mais como fugir do momento que
ele próprio criou, Iran pegou-me pela nuca, enfiou seus dedos por
debaixo da minha trança fofa e me puxou para um beijo.

Inicialmente fiquei paralisada, sem saber como agir, mas


desejava ardentemente que ele continuasse o que começou, então,
diferente do beijo do casamento que foi casto e sem muita emoção,
naquele Iran enfiou a língua em minha boca e parecendo me querer
para si, despertou em mim o mesmo sentimento, fazendo-me ansiar
por mais dele.

Meu corpo e meus sentidos misturavam-se em um mundo


de desejos, queria algo que nem eu sabia ao certo o que era e
desejava que Iran me mostrasse mais do que podia fazer, mais
daquela sensação e do seu calor.

Beijou-me como eu havia ansiado que fizesse antes, no


altar, e foi muito melhor do que eu pensei que fosse.

Parecendo querer terminar nosso beijo, chupou lentamente


meu lábio inferior e depois roçou levemente o superior, seus braços
me puxaram para perto, tão perto, que nem ao menos um filete de
ar passaria entre nós.

— Vida... — sussurrou com os lábios colados ao meu.

Parecia tentar controlar sua respiração e seus atos. Eu não


sabia o que dizer. Entretanto, quando enfim separou-se de mim,
olhou em volta como se tentasse pensar no que fazer, até que se
recompôs e disse:

— Agora é o momento que temos que ir para que acendam


as luzes.

Procurou novamente para que lado seguir, deu a volta em


mim, pegou-me pela mão e juntos andamos meio abaixados sob o
pano, até que conseguimos chegar a um dos corredores e logo nos
afastamos das pessoas que no caminho nos encararam com
sorrisos insinuantes, que mesmo com pouca luz consegui ver.

Tímida eu mal os olhei, pois sabia o que pensavam que eu


faria depois de sair dali.
Capítulo treze
Após nos esgueirarmos por alguns corredores do castelo
que até então eram desconhecidos para mim, entrei no meu quarto
e imediatamente segui até a sacada. Precisava de ar.

Meus lábios ainda formigavam e meu corpo queimava com a


sensação causada pelo beijo intenso que Iran me deu.

Eu queria repetir e havia gostado muito, mas naquele


momento eu não sabia se ele também.

O encarei e a contar por sua carranca brava, cheguei à


conclusão que não, ele não queria e parecia arrependido, então só
me restava tomar um ar. No momento em que coloquei a mão na
maçaneta que abriria a porta da sacada, Iran me parou:

— Não — O encarei sem entender e ele disse: — Pela


tradição teremos que nos manter reclusos... por um tempo.

— Ah! — Voltei de onde estava, completamente perdida e


como se estivesse em um ambiente que nunca havia frequentado
antes.

Meio desnorteada, cheguei até minha cama e observei o


que foi deixado sobre ela. Haviam toalhas e como se fosse um
lençol de tecido fino, com uma flor de lótus bordada nele.

Passei minha mão sobre o desenho e fiquei pensando qual


seria a tradição por trás daquilo, queria perguntar, mas achei melhor
que ele me contasse se achasse necessário. Eram tantas tradições
e rituais que eu me via completamente perdida.

Sentia os olhos de Iran em mim, mesmo estando a alguns


metros longe, enquanto ele ainda se mantinha parado, encostado à
porta e com os braços cruzados na frente do peito.

Observava cada movimento meu e isso fazia com que me


sentisse tímida e quisesse saber o que ele pensava enquanto me
encarava.

Será que pensava no beijo?


Será que gostou de me beijar?
Eu nem sequer sabia beijar.
Será que ele já beijou muitas mulheres de Flós?
Por que nem toca no assunto?
Fui até a mesa que ficava próxima à porta e nela havia
muita comida e bebida, além de uma cesta com uma infinidade de
frutas. Ao lado, alguns barris que eram usados para encher a
banheira, estavam cheios de água. Também muitas flores
decoravam o quarto.

— Por que tanta coisa para uma noite? — Enfim resolvi


dizer alguma coisa.

— Porque não será uma noite.

Juntei as sobrancelhas sem entender.

— Não?

— Não. Pela tradição, após o casamento os noivos ficam


dois dias fechados do mundo e desfrutando da companhia um do
outro. Se conhecendo melhor.
— Vou ter que ficar dois dias aqui com você? — falei
inconformada em demasia e ele ficou sério.

— Sim, é uma das tradições que envolvem o pós-


casamento.

— Uma das? Se puder, gostaria que me contasse de uma


vez por tudo que ainda tenho que passar.

Notei que ficou meio desconfortável, não me disse nada e


eu continuei:

— Ao invés de tanta preocupação com isso, as mulheres


podiam ter me alertado sobre... tudo. — Bati com as mãos no
vestido de noiva, respirei fundo e soltei o ar em frustração.

Ficamos em silêncio, até que me lembrei o motivo daquele


bendito casamento e perguntei:

— E a maldição? Não podemos ficar dois dias aqui


trancados por conta de tradições e não resolver coisas importantes
como salvar o nosso povo, como investigar se o casamento deu
certo, se mais algum povoado foi tomado pelas cinzas. — Joguei as
mãos para o alto.

— As tradições são algo também muito importante para o


nosso povo. Os viventes de Flós levam todas muito a sério. Você
chegou agora, Vida, e não sabe como funcionam, mas pense que
mesmo vivendo com fome, as famílias passaram para os seus as
tradições que envolvem um casamento. Uma cerimônia festiva que
eles nem sabiam se viveriam de novo. — Senti a impaciência em
sua voz e a parte que citou que eu havia acabado de chegar, como
se eu fosse uma forasteira, mexeu comigo. — Talvez salvar o povo
está muito mais do que só quebrar a maldição.

— Bom, Iran, desculpe por ter chegado agora, mas ser


exilada em outro mundo e longe do MEU povo, não foi escolha
minha — falei o “meu” com um tom mais forte
Andei em direção a cama, ainda sentindo o desconforto de
sua acusação.

— Nem minha escolha... e ainda assim sofri as


consequências dela.

Encarei-o tentando entender o que quis dizer, mas Iran


virou-se de costas e começou a tirar seu cinto, puxou a camisa para
fora da calça e depois livrou-se das botas.

Sua postura era tensa, mas sentia-me ainda mais que ele.
Será que ele não pensava que aquilo tudo era desconfortável para
mim também? Será que pensava que eu era acostumada a
conhecer outra vida, quase morrer, me casar e beijar noivos
arranjados sempre?

Ele nem sequer disse nada sobre o beijo e agia como se


não houvesse acontecido.

Para ele podia ser que beijos acontecessem com


frequência, mas era o meu primeiro beijo.

Com indignação perguntei, sem mais aguentar esperar que


ele dissesse:

— E o beijo também faz parte da tradição?

Manteve-se de costas.

— Sim.

— Todos eles?

— Sim.

Senti-me uma boba.

— Entendi... Está certo... Me desculpa por falar sobre as


tradições, levei tudo muito a sério. Tão a sério quanto você, mas a
partir de agora vou levar apenas como... obrigações.

— Faça isso — praticamente rosnou.

Bravo demais... Mas não o meu Bravo. Bravo como um


burro chucro. Como um grosseirão.

Bufei e comecei a pensar em também me preparar para


dormir. Desfiz a cama e tirei as flores, panos e toalhas pousados
sobre ela, porém, antes que eu terminasse, Iran andou até onde eu
encontrava-me e me parou:

— Espera! — Olhei-o sem entender e ele continuou: —


Apesar de você não conhecer e não se importar com as tradições,
preciso...

Irritei-me. Não era assim, eu me importava sim com as


tradições, então o interrompi:

— Ei, espera você! Não disse que não me importo. Não as


conheço e isso não é segredo, mas estou muito aberta a conhecer e
viver cada uma, basta alguém ter paciência de me explicar.

Como se eu não tivesse dito nada ele continuou a falar:

— Precisamos fazer a primeira que envolve o pós-


casamento.

Encarei-o.

— O que eu tenho que fazer?

Ficou muito perto.

— Você nada.

Abaixou-se, pegou o pano bordado com a flor de lótus e o


esticou sobre a cama. Parecia mesmo um lençol pequeno ou uma
bandeira.
A seguir afastou-se, andou até a mesa onde estavam as
comidas e subiu a manga da camisa até a altura do cotovelo, depois
ergueu o braço e pegou uma faca a pousando sobre a pele branca
exposta.

Quando percebi o que parecia prestes a fazer, corri até ele e


perguntei desesperada:

— Espera! O que você está fazendo?

Encarou-me, soprou, fechando os olhos com impaciência e


disse:

— A tradição.

— Com uma faca? Se cortando? Que diabos de tradição é


essa?

— Após o casamento os noivos têm que ter a relação


sexual... — Exibia uma certa dificuldade em me contar. — Na nossa
tradição é bonito exibir a castidade... Em vários reinos e culturas, as
pessoas... — Apertou os lábios com certo constrangimento. —
Bom... aqui em Flós, preservamos isso e nos orgulhamos de nos
guardar para as pessoas que amamos. Com isso, após o
casamento colocamos um pano com a mancha dos fluídos da perda
da virgindade para fora do quarto, para que o povo veja que foi
consumado, que o casal se conectou.

Imediatamente lembrei-me de já ter visto algo parecido no


outro mundo, em uma novela sobre ciganos.

Senti meu rosto corar e a vergonha por conta do teor


daquela conversa tomou conta de mim. Eu não estava preparada.

— Fica tranquila você não vai precisar fazer nada.

Sem mais uma palavra ele fez um corte superficial em seu


antebraço e quando o sangue surgiu, Iran andou em direção à cama
e o esfregou de maneira desordenada no meio do pano, o pegou e
pousou na cadeira.

— Pronto, pode dormir — falou secamente e virou-se de


costas, indo em direção ao tapete nos pés da cama.

— E você? Vai dormir no chão?

— Quer que eu durma com você?

Peguei um travesseiro da cama, uma das cobertas e o


entreguei de maneira brusca.

— No chão, mas ao menos use isso.

— Fica tranquila, não estou acostumado com conforto.

Pensei se naquela fala havia alguma espécie de ironia sobre


eu estar acostumada, mas achei melhor encerrar a conversa e deitei
para dormir, ainda usando o vestido.

Quando ficamos completamente quietos, consegui ouvir um


pouco da festa que ainda acontecia no salão, já que dentro do
quarto a tensão era tanta que eu evitava até respirar mais alto.

Involuntariamente pensei sobre Iran se cortar para me


proteger e isso aqueceu meu coração, mesmo brava, senti-me grata
por ele me poupar. Afinal, Iran já devia ter experiência com mulheres
e seria fácil para ele, mas como para mim não, preferiu me
preservar ... Ou será que, na verdade, ele não queria?

Esse pensamento me machucou.

Perguntei-me se por acaso ele tivesse me proposto


consumar o casamento, qual seria a minha reação. Imediatamente
relembrei nosso beijo, o jeito com que me tocou e me olhou no salão
e isso fez meu corpo se aquecer.
Depois, só de apenas imaginar Iran completamente nu, meu
rosto já esquentou e cheguei à conclusão que eu não estava
preparada, mas faria. Tudo para salvar o reino.
Capítulo quatorze
A claridade do dia entrava pelas frestas da porta da sacada
e iluminava o cômodo que eu dividia com Iran.

Eu já havia acordado há algum tempo e relembrei que no


outro mundo diversas vezes dormi na cama enquanto Bravo se
aconchegava no tapete aos meus pés, da mesma maneira que
estávamos naquele momento.

Ainda que muito grande também dormíamos juntos na


cama, enquanto eu ouvia sua respiração de lobo e me aconchegava
nos seus pelos macios.

Sorri e senti saudade.

Durante a noite eu mal consegui dormir e me mantive


praticamente na mesma posição, ouvindo a festa animada que
durou quase até de manhã, o que também dificultou meu sono.

Claro que eles não pensavam estar atrapalhando os noivos


dormirem, já que acreditavam que Iran e eu também festejávamos
no quarto.

Senti minha barriga roncar de fome e olhava para comida


do outro lado do quarto, mas tinha medo de me mexer, acordar o
homem dormindo no chão e assim ter que interagir com ele.
Entretanto, lembrei-me que isso teria que acontecer, já que
ficaríamos dias trancados ali.
Levantei-me apoiada nos cotovelos a fim de ver se Iran já
estava acordado, mas só consegui ver seus pés e pernas esticados,
então bolei um plano e decidi andar pé com pé até a mesa e pegar
uma fruta.

Sentei-me na cama com o maior cuidado e estiquei o


vestido para que ele não me atrapalhasse andar. Dei um passo de
leve, depois outro, até que quando fui dar o terceiro, a minha capa,
que fazia parte do modelito noiva, enganchou na cama, me fez
tropeçar no vestido e cair no chão, completamente desengonçada.
Com o tombo, um barulho alto que acordou o Iran.

— Ai — gemi, esfregando o braço que bateu na madeira da


cama.

Iran levantou-se em um pulo e correu até mim, tinha os


olhos inchados de quem acabou de acordar ou de quem, assim
como eu, não dormiu.

— O que você está fazendo? Você está bem?

— Estava tentando chegar até a mesa para comer, sem te


acordar.

— Eu não estava dormindo. — Iran examinou meu braço. —


Vai ficar roxo.

Ri.

— Vão pensar que você me bateu na lua de mel.

Ele ergueu as sobrancelhas.

— Eu nunca faria isso.

— Eu sei, estou brincando. Não precisa levar tudo tão a


sério.
Separei-me dele e levantei, depois fui em direção a mesa,
mas foi só eu ficar de pé que me deu uma grande vontade de fazer
xixi e se tinha uma coisa em Flós que eu não gostava muito era o
banheiro.

Não era de todo ruim, era até ajeitadinho, exibia um forro de


madeira como o do quarto, uma mesa de madeira com uma cuia
feita em pedra, um espelho e um pequeno banco de madeira, no
entanto, o que não me agradava era que ao invés do vazo sanitário
de cerâmica que havia na minha antiga casa, ali tinha um quadrado
de pedra com um buraco no meio e um cano que levava os dejetos
até a fossa. Sendo assim, levando em consideração que eu estava
com um vestido de noiva cheio de panos esvoaçantes e capa, não
seria fácil usá-lo.

— Você está bem? — Iran perguntou, notando meu silêncio.

— Preciso ir... ao banheiro.

Levantou uma sobrancelha para mim, como se perguntasse


qual o problema e eu continuei:

— Não consigo desabotoar o vestido e preciso trocar de


roupa. Não vou conseguir usar o banheiro com isso tudo. — Olhei
para o vestido.

— Posso te ajudar a desabotoar.

Fiquei em silêncio pensando na possibilidade dele me ver


sem roupa, até que falei:

— Só os primeiros botões, depois vire-se de costas para eu


me trocar.

Iran sorriu.

— Esqueceu que sempre se trocou na minha frente quando


eu era apenas o Bravo? Não há nada em você que eu ainda não
tenha visto.

Fiquei com o rosto em chamas. Ele tinha razão, por diversas


vezes me troquei na frente de Iran, imaginando que ele fosse
apenas um lobo de estimação.

Já tinha me visto nua e eu nem sequer imaginava isso.

— Ai, que vergonha.

— Não precisa, não tem nada em você com que precise se


envergonhar e eu era apenas um lobo.

— Você sabe que não é assim... simples.

Cruzou os braços na frente do peito, claramente deliciando


com a minha vergonha.

— Por quê? Eu era seu amigo... Continuo sendo. Eu sou o


mesmo de sempre.

Fiquei séria.

— Definitivamente não é. — Virei-me de costas. — Bom, já


que não posso sair e você é o único aqui que está disponível para
me ajudar, pode, por favor... — Apontei para os botões.

Sabia que ele estava se divertindo com o meu desconforto.


Ouvi seus passos pesados andando em minha direção, até que se
posicionou muito perto de mim. Senti uma de suas mãos hábeis
puxar minha trança bagunçada para o lado e a seguir seus dedos
delicadamente se posicionaram no primeiro botão e o abriram.

Um arrepio tomou meu corpo quando tocou a minha pele no


processo e os arrepios já eram característicos quando eu estava
perto do Iran.

— Está com frio?


— Sim.

— Mas o clima está agradável.

— Eu sinto bastante frio.

Percebi que estava rindo, só por seu tom de voz. Ele sabia
que o arrepio foi causado por seu toque, mas tinha que perguntar e
esfregar a vergonha em minha cara.

Um botão após o outro Iran desabotoou o vestido em


silêncio, chegou até a minha cintura e pareceu tocar em minha pele
nua propositalmente.

— Pronto, acho que já dá para você tirá-lo.

Segurando o vestido na frente do corpo, andei até o armário


onde as mulheres do castelo deixavam as minhas roupas e peguei
uma calça preta que ficava justa ao corpo e uma espécie de bata
azul turquesa.

Antes de fechar a porta, observei que do outro lado do


móvel os pertences do Iran, que não eram muitos, haviam sido
arrumados, fazendo a constatação do casamento ser ainda mais
real.

Observei se ele me olhava e quando vi que não, deixei o


vestido cair no chão, dei um passo para fora dele e coloquei
rapidamente a bata, depois a calça. Sabia que precisava de um
banho, mas iria deixá-lo para mais tarde.

Imediatamente imaginei o quão constrangedor seria o


momento, já que a banheira ficava no quarto.

— Pronto, pode se virar se quiser — falei após estar


completamente vestida e segui para o banheiro.

Fechei a porta pesada de madeira, fiz xixi e depois a minha


higiene bucal usando a água do jarro deixado especialmente para
isso.

A limpeza dos dentes era feita com uma mistura de ervas


refrescantes, como alecrim, hortelã e folhas de menta, que eu
gostava muito. Lavei meu rosto para me livrar da maquiagem do
casamento e soltei a trança que parecia uma verdadeira bagunça,
depois penteei meus cachos e os umedeci para prendê-los em um
coque alto.

Quando saí do banheiro encontrei Iran sentado no chão e


com o rosto um pouco entediado. Logo que saí, levantou-se e
seguiu para o banheiro também.

Sentia-me morrendo de vontade de abrir a porta que dava


para sacada, deixar a claridade do dia entrar e até sair para saber
como estava o povo de Trigo. Queria conversar com Mica, saber o
que o povo estava falando do casamento e tantas outras coisas,
mas eu tinha que ficar ali presa com o meu Bravinho. Ri.

Dirigi-me para mesa e tudo parecia muito suculento e


delicioso, afastei uma cadeira e servi-me de suco e uma fatia de pão
que tinha uma casca dura por fora e era macio por dentro.

Perguntei-me se devia esperar meu marido para o café, mas


ri comigo mesma ao ver Iran como marido.

Não esperei e comecei a comer.

Logo ele saiu do banheiro, andou até a mesa e sentou-se na


minha frente.

— Acordou com fome mesmo — constatou.

— Sim. — Imediatamente parei o pão no caminho para boca


e perguntei: — Tinha alguma tradição que eu devia ter feito antes de
começar a comer?

Ele riu.
Ele riu? Bravo feliz.

— Não dessa vez.

— Iran... mais uma vez preciso me desculpar. Não quis


desrespeitar quando falei das tradições. — Pedi desculpas
novamente, porque quando pedi antes não foi como naquele
momento em que eu me sentia mesmo arrependida.

— Eu sei. Peço desculpas por minhas insinuações também.


Sei que fui rude... algumas vezes.

Começamos a comer em silêncio, Iran se serviu de frutas e


uma delas era o morango. Ele olhou para fruta, em seguida para
mim e eu corei lembrando do nosso beijo no casamento. Achei que
ele fosse fazer como na noite anterior e fingir que os beijos não
aconteceram ou dizer que foi apenas para seguir tradições, mas
parecia ter acordado com mais vontade de conversar.

— O beijo do casamento fazia parte da tradição — explicou


sem que eu perguntasse.

Encarei-o.

— Sim, você já me disse isso ontem.

— Mas o da cobertura de flores não.

Senti um frenesi tomar meu corpo e fitei seus olhos que me


encaravam com apreensão, mas antes que pudéssemos continuar a
conversa ouvimos o barulho de três batidas de tambor e um
burburinho alegre vindo do lado de fora do castelo.

Juntei as minhas sobrancelhas sem saber o que estava


acontecendo e Iran me iluminou:

— Viram a prova de castidade. Estão felizes que nosso


casamento deu certo.
— Ah. — Fiquei tímida, mas completei sem olhá-lo. —
Espero mesmo que tenha dado certo.

— O que faz você pensar que não? — Colocou um pedaço


de pão na boca.

— Isso. — Apontei para sacada onde o pano havia sido


exposto. — Não consumamos. O casamento é uma mentira.

Iran ficou em silêncio, quando ouviu a palavra mentira, sua


leveza pareceu ter sido tirada com a mão, fazendo com que seu
olhar carrancudo tomasse seu rosto novamente, mas além da
seriedade costumeira, vi algo parecido com culpa ou vergonha.

— E se tivesse que consumá-lo? — perguntou, me olhando


intensamente.

— Eu faria. — Segurei seu olhar e nos encaramos até que


quebrei o contato visual e olhei para as minhas mãos sobre a mesa.
— Mas sei que isso não é algo que você gostaria. — O ouvi respirar
fundo, soltar o ar e não me corrigiu.

Terminei de comer em silêncio, até que levantei-me da mesa


após terminar o suco, sentindo o meu corpo inquieto, a ponto de
querer sair dali.

Simplesmente não havia nada para fazer naquele quarto.


Dois dias inteiros seriam uma tortura.

Andei até a cama e me deitei nela, vi Iran levantar-se da


mesa também e em seguida deitar-se no chão. O silêncio era
ensurdecedor e cada minuto uma eternidade, mas era assim que eu
ficaria até que os dias passassem e eu pudesse sair do quarto para
longe da presença sufocante de Iran.
Capítulo quinze
Ainda deitada na cama e olhando para o forro de madeira do
grande quarto, sentia-me cansada e solitária mesmo estando na
companhia do Iran.

Já havia contado cada madeira presa no teto e sabia


quantos pregos foram necessários para prendê-las.

Não consegui conversar com ele mais do que coisas frívolas


sobre o tempo, pessoas do castelo e do reino e mesmo assim foram
frases rápidas e diretas.

Queria sair dali ou ia acabar enlouquecendo, mas como sair


não era uma opção, então cogitei o que eu poderia fazer na minha
prisão para passar o tempo e dentre as coisas que estavam ao meu
alcance, resolvi que precisava tomar banho.

— Iran? — falei seu nome em pergunta, testando se estava


acordado.

— Sim — ouvi sua voz grossa responder imediatamente,


como se esperasse que eu puxasse assunto a qualquer momento.

— Preciso tomar banho, você me ajudaria com isso?

Ficou em silêncio e logo notei como minha fala saiu, mas


antes que eu pudesse corrigir, ele disse com ironia:

— Achei que fosse grandinha e soubesse tomar banho


sozinha.
— Muito engraçado! Estou pedindo ajuda com a banheira e
depois você vai ficar no banheiro enquanto eu tomo banho.

— Você pode me dar banho depois, como fazia quando eu


era um lobo domesticado. Era um dos momentos em que eu
gostava muito de ser lobo. Super relaxante.

Sentei-me na cama para encará-lo.

— Você decida-se se quer usar comigo a personalidade


engraçadinha ou a chata.

Ele levantou do tapete e também me encarou.

— Não tenho duas personalidades.

— Tem sim. E uma parece que gosta de mim, já a outra me


odeia. — Iran baixou o olhar, ficou em silêncio e eu continuei a falar:
— Ah! E eu te dava banho, pois era muito necessário ou então teria
que conviver com o seu fedor de lobo. Aqui eu consigo lidar com o
seu cheiro de guerreiro protetor. — Ele riu.

Andei até os barris de água e investiguei como ia colocá-la


na banheira e acender o fogo da lareira. Já tinha visto as mulheres
do castelo fazendo, mas todas as vezes que ia ajudá-las, todas
sentiam-se incomodadas e alegavam que a rainha não podia
preparar seu próprio banho. Sempre revirava os olhos para isso, já
que no mundo que cresci, era eu quem cuidava de tudo sozinha.

Enquanto eu investigava como agiria, não demorou e senti


Iran muito próximo de mim e falou:

— Vou te ajudar. Deixa que eu preparo para você.

Dei espaço para que passasse, o vi pegar o barril como se


não pesasse nada e admirei seus músculos fortes se retesarem. Foi
difícil não olhar.
Iran virou uma parte da água do barril na banheira, que já
estava pela metade e girou a manivela que puxava a água, a seguir
acendeu a lareira e me disse:

— Só esperar um pouco que a água já fica morna.

— Obrigada. Agora você vai para o banheiro e fica lá até eu


terminar.

Ele riu.

— Considerando que o quarto é nosso, acho isso meio


injusto. E eu posso ficar deitado aqui, prometo não olhar. — Pensou
um pouco. — Se bem, que você é a rainha e pode mandar e
desmandar.

— E você o rei. Pare de usar isso para conseguir me dobrar.


— Ele riu e eu o analisei. — Você jura que não vai olhar?

Revirou os olhos.

— Sim. E já te falei que te vi sem roupas muitas vezes.

Fechei meus olhos.

— Dá para parar de dizer isso? — De novo ele riu.

Parecia mais amistoso, talvez ser obrigado a conviver


comigo, fez com que ele lembrasse que era meu amigo.

Vi-o andar até a cama, deitou-se nela e disse:

— Pronto. Prometo não olhar. — Respirei fundo e resolvi


confiar nele, afinal, não seria justo deixá-lo preso no banheiro
enquanto eu tomava banho.

Tirei minha roupa e assim que notei que a água estava


morna, coloquei um pé depois o outro e entrei nela. Comecei a
passar o sabão em barra no meu corpo, que exalava um cheiro
delicioso de coco e camomila.

No processo eu espiava em direção a cama para saber se


ele olhava, mas Iran mantinha-se de costas para mim.

Para evitar que somente o barulho da água se mexendo


com meu banho fosse a trilha sonora do quarto, puxei assunto:

— Bravo, você pode virar um lobo aqui se quiser, certo?

— Iran — corrigiu-me.

— Quero perguntar para o Bravo que era meu amigo e


conversaria comigo.

— Eu também sou seu amigo.

— Tenho minhas dúvidas. — Ouvi-o soltar o ar como um


riso. — E então já andou livre pelas ruas de Flós como um lobo?

— Posso virar lobo quando e onde eu quiser, mas não faço


aqui. Nunca precisei. No reino poucas pessoas me viram de lobo e
uma única vez.

— Como assim precisou?

— A minha [1]licantropia é mais como uma defesa.

— Entendi... Todo mundo aqui vira bicho?

— Não. Algumas pessoas nunca se permitiram.

— Por quê?

— A primeira mudança dói um pouco. E elas não tiveram


motivo para sentir essa dor. Além de todos esses anos... viverem
muito fracas para isso.
— Você tinha motivo?

— Sim.

— Qual? — Eu sabia, mas queria ouvir.

— Que pergunta! Te proteger.

Fiquei em silêncio.

— Foi por isso que disse que teve que aguentar as


consequências da maldição? Foi obrigado a isso?

O vi se mexer parecendo incomodado, mas não se virou.

— Não fui obrigado, me voluntariei. O que tinha nessa


água? Desandou a perguntar depois que entrou nela.

— Só para passar o tempo. Você fica muito mais forte de


lobo?

— Sim. Minha audição melhora, olfato e todos os sentidos.

— Que interessante. — Sorri e ficamos em silêncio até que


perguntei: — Iran, como foi sua infância aqui em Flós?

Ele se manteve em silêncio e quando achei que estivesse


dormindo, desmaiado ou não fosse responder minha pergunta, ele
enfim o fez:

— Foi solitária e triste. Fui criado por tio Nelin, o cavalariço


de Flós. Ele é meu tio por parte de pai, meu único parente vivo até
hoje, mas não gosta muito de companhia, prefere ficar sozinho.

Meu coração ficou apertado.

— O que houve com seus pais? — Me doeu perguntar, mas


eu estava curiosa para saber como ele ficou sozinho no mundo e
saber mais da história de vida de Iran.
— Ambos morreram em uma batalha contra os Cineres.
Quando fiquei sozinho, eu tinha apenas quatro anos.

Engoli em seco e senti o quanto aquilo o machucava por seu


tom de voz baixo e gélido.

Imaginar uma criança sem seus pais e com apenas quatro


anos partia meu coração. Eu já era uma mulher e ainda assim sofri
demais ao perder meus pais adotivos.

— Sinto muito.

— Eu me lembro muito bem deles e acho que ambos se


envergonhariam do homem que me tornei. E de algumas coisas que
fiz. Eu me envergonho e me arrependo.

Olhei em direção a cama e observei suas costas bem-


desenhada ainda coberta pela camisa branca de pano fino que usou
no casamento. Uma vontade grande de abraça-lo me atingiu.

— Eu penso o contrário. Penso que ambos estariam muito


orgulhosos do homem de bom coração que se tornou.

Manteve-se em silêncio e eu, notando o rumo triste que a


conversa tomou também me mantive e foquei em terminar o banho
depressa.

Ao final, fiquei de pé na banheira para pegar a toalha, me


enrolei a ela e sequei-me para vestir a roupa. Coloquei a mesma
que havia colocado há pouco e só troquei a roupa íntima.

— Pode se virar se quiser, já terminei.

Iran sentou-se na cama e me observou.

— Foi rápida, apesar de tanta pergunta. Agora você se


importa se eu fizer o mesmo?
— Não, fique à vontade — respondi tentando não parecer
nervosa, mas já o imaginando nu, no mesmo cômodo que eu.

— Agora eu que vou entrar na água das perguntas e quem


sabe eu não te faça algumas também.

— Pode perguntar o que quiser, não tenho nada a esconder


e, na verdade, não tem nada que você não saiba. Sabe mais de
mim do que eu mesma.

Iran levantou-se, seguiu para a banheira e a esvaziou,


depois pegou mais um barril de água e tornou a enchê-la. Andou até
a lareira, atiçou o fogo mexendo as madeiras de lugar para que as
brasas se ouriçarem e formassem de novo labaredas.

Voltou para banheira e rodou a manivela que fazia a água


passear pelo cano de cobre aquecido pelo fogo. Após, vi-o tirar a
camisa e admirei o seu corpo bem-desenhado. Suas costas exibiam
músculos torneados e se parecia com aqueles desenhos do corpo
humano que têm nos livros, em que o homem sempre tem zero
gordura e são a mais pura perfeição.

Desci com o olhar por suas costas até chegar na sua cintura
e observei seus glúteos redondos e avantajados cobertos pela calça
branca e de pano fino.

Respirei fundo e tive vontade de andar até ele e apertá-lo,


nunca vi o sexo oposto com esses olhos, não tive amigos ou
namoros e Iran... Ah... ele despertava em mim pensamentos que eu
não conseguia controlar e que eu não entendia o motivo de tê-los,
por alguém que desde que conheci na forma humana, eu mais me
estranhava do que interagia com amizade.

Balancei a cabeça em negativo para deixar de ter


pensamentos inadequados.

Em um momento em que virou-se para colocar sua camisa


sobre a cadeira pegou-me o olhando e um sorriso presunçoso
surgiu em seu rosto.

Imediatamente tirei meu olhar do dele, voltei a ficar de


costas e encarei a fresta da porta que dava para sacada. Meu rosto
queimou de vergonha, mas meu corpo ansiava por ver mais e mais
daquele homem lindo que mais parecia uma escultura.

Ouvi o barulho da água mexendo e suspeitei que ele


estivesse entrando na banheira, então permiti-me espiar mais um
pouco e quando olhei em sua direção, vi Iran de costas para mim,
completamente nu.

Eu me xinguei mentalmente para que tirasse os olhos dele e


mantivesse o respeito, mas a curiosidade era maior que meu
decoro. Iran manteve-se de pé e com uma cuia de banho pegou a
água na banheira e jogou sobre a cabeça para que tirasse o sabão
que ele havia acabado de passar.

Com o olhar acompanhei os filetes de água percorrendo seu


corpo e por mais impróprio que pudesse parecer, torci para que ele
virasse de frente e eu pudesse ter a visão completa do seu corpo,
por ao menos alguns segundos.

Fechei meus olhos e virei-me de costas na cama, querendo


que aquele banho acabasse logo e eu não passasse mais por tanta
tentação em espiá-lo.

Ouvi o barulho da água se mexendo, o que pensei ser


quando enfim saiu da banheira. Fiquei imaginando os seus passos,
ele se secando e colocando a roupa.

Continuei ouvindo seus movimentos pelo quarto, ouvi o


barulho do armário e Iran pegando algo lá de dentro, até que não
demorou para que me desse permissão para me virar, mas
provocou-me:

— Gostou do que viu, Rainha?


Arregalei os olhos como uma criança que foi pega fazendo
bagunça e me fiz de desentendida:

— Não entendi.

Como ele sabia que eu havia olhado?

Iran sorriu e balançou seu cabelo molhado na intenção de


secá-lo, depois o jogou de lado passando os dedos de maneira tão
charmosa, que qualquer mulher que o visse soltaria um suspiro.

Usava uma calça preta e uma camisa cinza com a gola em


V, com um cordão que transpassava na gola como um cadarço e os
fios caíam soltos.

Ouvimos leves batidas na porta e Iran disse:

— Acho que é o almoço.

Seguiu para porta, a abriu e lá tinha uma espécie de


carrinho com uma bandeja sobre ele, mas nenhuma pessoa. Iran
pegou a bandeja e fechou a porta, depois a pousou na mesa e a
abriu, exibindo uma peça de carne assada que tinha um cheiro
delicioso.

Iran nos serviu, apontou a cadeira para mim e sentou-se à


minha frente, depois começamos a comer em silêncio e eu o olhava
entre uma garfada e outra.

Realmente era um homem muito bonito e qualquer pessoa


se apaixonaria facilmente por ele, pois além disso era gentil,
corajoso e protetor.

Pensei sobre suas oscilações de humor, mas nem isso lhe


deixava feio, ao contrário, fazia com que eu me interessasse ainda
mais e quisesse desvendar o motivo de em um momento ele estar
feliz e no seguinte parecer triste, raivoso ou até mesmo culpado.
Ele devia esconder algo e eu precisava descobrir o que o
afligia para que deixasse o mau humor de lado.

Lembrei-me de Ravina e claro que sendo bonito assim,


haveria uma mulher em seu passado ou mais de uma, já que vi os
olhares de Záia para ele e os dele para a dançarina na nossa festa
de casamento.

— Quer me perguntar alguma coisa?

— Ham? — perguntei em resposta, sendo pega de surpresa


e tirada dos meus pensamentos em relação a ele.

— Você parece pensativa e não para de me olhar.

— Só estava pensando...

— No quê?

— Você ainda gosta da Ravina?

Bufou impaciente e seu olhar mudou de leve para sério.

— Não.

— Então quer dizer que já gostou?

Ele parou de comer e cruzou os braços sobre a mesa.

— E você gosta de alguém?

— Que pergunta é essa? Você sabe que no outro mundo


era só eu e você.

— E aqui em Flós?

Foi a minha vez de parar de comer, cruzar o braço sobre a


mesa e o encarar.
— Pergunte logo o que quer perguntar.

— Você e o Valery?

— O que tem?

— Você sabe.

— Ele é o guardião do trono... apenas. E a dançarina?

— O que tem ela?

— Você já teve algo com ela também?

— Também?

— Sim. Com Ravina e com ela?

Riu em desdém.

— A dançarina é a Ravina.

Naquele momento entendi os olhares. O que deixou claro


que existia algo mal resolvido entre eles.

— O que está pensando? Sua cabeça parece estar


mexendo as engrenagens.

— Que se a dançarina é a Ravina, então está mais do que


claro que existe algo inacabado entre vocês e que você gosta dela.
— Essa constatação deu uma pontada no meu coração e
experimentei um sentimento não muito bom.

— Não é por ela que tenho sentimentos. — Voltou a comer


sem me olhar.

Então quer dizer que existe alguém...


O analisei por algum tempo e ele olhava apenas para o
prato de carne a sua frente, assim resolvi fazer o mesmo e
terminamos de comer em silêncio, mas senti-me imediatamente
desapontada.
Capítulo dezesseis
Terminamos o almoço, juntamos os pratos e os colocamos
na bandeja, depois deixamos o carrinho do lado de fora do quarto.
Voltei a deitar na cama, ele no chão e o silêncio continuou a ser
nossa companhia. As horas passaram e a inquietação aumentou,
porque naquele momento o silêncio me incomodava ainda mais que
antes, já que eu tinha provado um pouco da conversa com Iran e
queria mais.

Queria tentar ser sua amiga, queria saber mais dele e não
pretendia mais ficar no silêncio. Decidi que se estávamos juntos
naquilo, podíamos passar conversando e sendo amigos.

— Iran, você está dormindo?

— Não.

— Quer vir aqui na cama comigo?

— Acho melhor eu ficar aqui.

— Por quê?

— Porque se eu for aí sei que vai ter mais milhares de


perguntas que não sou capaz de responder.

Ri.

— Prometo não perguntar nada.


Levantou-se para me encarar.

— Por que quer que eu deite aí?

— Porque se estamos juntos nessa, precisamos passar


juntos. De nada vai adiantar ficarmos longe um do outro, em silêncio
ou nos estranhando a cada duas palavras. Isso só vai fazer o tempo
demorar ainda mais a passar. — Pareceu pensar um pouco e por
fim, mesmo ainda parecendo contrariado, levantou do tapete e
deitou-se ao meu lado.

Sorri, estendi a mão em sua direção e perguntei:

— Podemos ser amigos como éramos no outro mundo?

— Quer que eu vire lobo?

— Não seria ruim, mas não, Iran, quero que fique perto de
mim sem a estranheza que me trata desde que viemos para cá.

Olhou-me, analisando meu rosto com atenção.

— Amigos. — Apertou a minha mão e demorou um pouco


para soltá-la

Deitou-se ao meu lado e seu cheiro misturado com as ervas


de banho, o deixava com um perfume delicioso, fazendo com que
ficar perto dele se tornasse ainda mais prazeroso.

No primeiro momento que ficamos deitado um ao lado do


outro, parecíamos desconfortáveis, mas logo Iran quebrou o silêncio
e disse para descontrair:

— Que bom que me chamou para cama. Meu corpo já


estava começando a doer deitado apenas no tapete.

— Oras, oras... não é você que não está acostumado com


conforto?
— Acho que ser tão bem cuidado por você como lobo, meio
que me deixou mal acostumado.

Rimos.

— Iran, qual a forma de bicho você acha que eu carrego?

Encarou-me e sentou-se na cama com as costas apoiadas


na cabeceira. Sentei-me também e fiquei de frente para ele. Ambos
muito próximo um do outro e eu já estava feliz em ter pedido para
que se aproximasse.

— Bom, você é mandona e dona da razão... Acho que uma


leoa.

— Ei! Não sou mandona.

Vi-o rir largamente como nunca vi fazer em Flós.

— Sim, você é! Chegou ao reino e mostrou a que veio. —


Deu de ombros. — Gostei disso.

— Ah, é? E do que mais você gostou, porque tive a


impressão de que não gostava de nada que eu fizesse.

— Eu gostei sim, só me senti um pouco... estranho.

— Em relação a mim?

— Sim e não. — Notei que ele ia se fechar e mudei o


assunto:

— Eu queria ser uma loba.

Sorriu.

— Você é fiel. Acho que loba combina sim com você.

Ri da sua maneira de elogiar.


— O que mais gosta em Flós?

Pensou.

— Gosto do céu.

— Do céu?

— Sim, acho que em nenhum lugar o céu é mais lindo que


aqui.

— Sabe que quando cheguei, o que mais me encantou


foram as cores do céu.

Ele sorriu.

— Vem aqui. — Levantou, pegou-me pela mão e abriu uma


pequena fresta na janela, de modo que não fôssemos vistos.

Olhamos o horizonte, o céu já estava se pondo e a paleta de


cores pintadas nele era algo incrível. Podíamos ver uma mistura de
laranja, amarelo e rosa, já mais acima uma fina linha lilás com
degradê para o roxo se formava, indicando que a noite em breve
chegaria.

— Que vista linda! — Tinha certeza que meus olhos


brilhavam ao contemplar a beleza a minha frente. Com certeza o
céu de Flós era o mais lindo.

— Linda, muito linda.

Olhei para o lado e Iran me encarava, mas mudou


rapidamente o olhar para o céu a nossa frente.

— Esse é o horário que mais gosto de vê-lo — falou, sério


após engolir em seco.

— Maravilhoso.
— Vem, agora vamos fechar a janela ou se alguém nos ver
aqui minha fama não será das melhores.

Juntei as sobrancelhas sem entender.

— Por quê? Ainda não entendi essa tradição de ficar


trancada aqui.

Iran pareceu desconfortável, mas ainda assim me explicou:

— Todos os homens de Flós, aprendem com os mais velhos


da família a como... satisfazer sua esposa nos dias de reclusão pós-
casamento.

— Satisfazer? — perguntei e ele sorriu de modo que


pareceu rir de mim e não para mim.

— Você é tão inocente, Vida.

Fiquei sem jeito e me senti desconfortável com seu riso,


como uma criança que não conhece nada do mundo e quando Iran
continuou a falar, senti-me ainda mais boba:

— Sim, satisfazer sexualmente, mas creio que seja melhor


mudarmos de assunto.

Meu rosto corou de raiva.

— Sim, tem razão sou muito inocente. — Fechei o cenho. —


Talvez se eu tivesse sido criada da maneira normal em Flós, eu
saberia tudo que preciso saber, sem ter que ficar perguntando e
sendo motivo de riso. — Virei as costas para Iran, andei até o
banheiro e me fechei lá.

Sentia-me envergonhada por ser tão inocente, como ele


mesmo disse, e não saber absolutamente nada do que pelo visto,
todos em Flós sabiam.
Senti raiva das mulheres do castelo que me deixaram viver
isso e não tiveram o mínimo de empatia em me contar por tudo que
eu passaria ou ao menos o básico para não ser uma boba que não
sabia de nada.

Sentei no banco de madeira no banheiro e não queria sair


para conversar com Iran. Ele sabia de tudo e eu de nada, por isso
sentia-se superior a mim desde o início.

— Vida... — Bateu de leve na porta e me chamou, mas eu


não respondi. — Saia para conversarmos. — Sua voz era mansa.

Eu não queria sair, pois naquele momento além da vergonha


por não saber de nada, também sentia vergonha por me trancar no
banheiro, comprovando que era mesmo como uma criança, mas eu
estava chateada e não queria encará-lo rindo de mim novamente.

Fiquei alguns minutos em silêncio, puxei minhas pernas


para cima do banco e as abracei. De olhos fechados desejei ter uma
vida normal.

— Se você não abrir, vou arrombar. — Suspirei.

Troglodita! Ele não arrombaria a porta...

— Vida... Vou contar até três. Não vou deixar que fique
trancada no banheiro.

Mesmo envergonhada levantei do banco, segui até a porta,


a abri e passei por ele, adentrando no quarto e indo até a cama.

Meu coração apertado despertava em mim uma vontade de


chorar de vergonha. Eu não chorava com facilidade. Não havia
sentido vontade de chorar por tolice como naquele momento, desde
que cheguei ali e em toda a minha vida eu só lembrava-me de
chorar ao enterrar meus pais.
Não olhei para Iran, não falei nada e me mantive em
silêncio, olhando apenas para o lado oposto ao que ele estava.

Senti-o sentando na cama e sabia que estava me


encarando.

— Quando eu disse que você era inocente... não foi de


modo depreciativo.

Ri em desdém, mas não o olhei.

— Você não está errado. Sou mesmo muito inocente. Deve


me ver como uma menina boba.

— Não a vejo assim.

Não o encarei.

— Me... desculpa?

Mantive-me em silêncio, porque eu ainda me sentia como


uma criança e se ele pensava que eu era, então podia agir como
uma.

— Eu gosto do seu jeito... Do seu modo inocente... —


Parecia medir cada palavra que dizia. — Isso te faz diferente e eu...
amo o diferente.

O encarei e explodi:

— Eu não. Odeio não saber de nada, odeio ser motivo de


riso, odeio não ser de Flós, apesar de me sentir daqui. Odeio ter
você e não ter você, ser sua amiga e não ser. Odeio não conhecer
tudo ao que eu teria direito. — Fechei meus olhos com força e uma
lágrima escorreu. — Odeio essa maldição. Odeio não pertencer a
lugar nenhum, a nada e nem a ninguém.

Iran subiu mais na cama e me puxou para perto, me


envolvendo em seus braços.
— Você pertence a Flós e a mim. Me perdoa por te fazer
sentir-se assim. Eu não ri de você. Queria que você soubesse o que
eu... — deixou a frase no ar parecendo preocupado com meu choro.

Pela primeira vez chorei. Permiti-me chorar copiosamente


por tudo. Pela mudança repentina em minha vida, por ter tanta
responsabilidade sobre mim, pela maldição, por um casamento
arranjado, por ter sido beijada e ansiado loucamente por mais e pela
loucura de descobrir que meu lobo de estimação era na verdade um
homem lindo por quem eu estava desenvolvendo sentimentos que
antes nunca vivi, a ponto de um simples riso dele, ser gatilho para
um choro cheio de sentimentos, culpas e tantos outros motivos.

— Vida, me desculpa. — Separou-se e pegou meu rosto


tomado de lágrimas entre as mãos. Tinha desespero em seu olhar e
sentia-se culpado.

Encarei seus olhos, de um para outro e Iran me observava


de volta de modo que eu não mais conseguia lê-lo. Dos meus olhos
os seus desciam para minha boca.

A nossa volta tudo sumiu e o meu coração acelerado junto


com minha respiração entrecortada indicavam o que eu sentia.

Tum, tum, tum, tum, tum, tum...

Podia senti-lo bater em meus ouvidos e imediatamente uma


vontade louca de repetir nosso beijo e sentir novamente como era
estar nos braços dele me tomou, fazendo com que eu rompesse a
distância entre nós e juntasse nossos lábios em um beijo.

Iran não me afastou ou me parou, pelo contrário, uma de


suas mãos me puxou pela nunca enquanto a outra abraçou-me pela
cintura me trazendo para perto. Sua língua imediatamente entrou
em minha boca, começando uma dança deliciosa que eu queria
mais e mais.
Com um impulso leve seu corpo caiu sobre o meu na cama,
estiquei minhas pernas e logo Iran se posicionou ainda mais sobre
mim, fazendo com que eu sentisse a sua masculinidade dura e rija
entre nossos corpos.

Eu não entendia quase nada sobre sexualidade, mas eu


sabia o que o seu membro duro significava e eu sabia que ele me
queria.

Suas mãos passeavam por meu corpo e senti uma delas


deslizar por baixo da bata que eu usava, tocando a minha pele com
delicadeza e fazendo com que arrepios de prazer percorressem
meu corpo.

Sua boca devorava a minha sem cessar e não desgrudou


nem um só momento. Seus dedos escorregaram por meu tronco até
que alcançou meu seio e levemente acariciou o bico com o polegar,
me fazendo gemer de encontro a sua boca.

Eu não queria que ele parasse, queria mais, ansiava por


mais e sentia-me à mercê dele, entregue para que me mostrasse o
quanto podia ser bom.

Tentei não pensar na loucura que era aquilo e me abri para


Iran, passei a mão em seu rosto e corpo, como se dissesse que
para mim estava tudo bem o que estávamos compartilhando e o que
quer que fosse que estava por vir.

— Vida... — falou meu nome e com dificuldade afastou-se


com a respiração ofegante.

— O que foi? Fiz algo de errado — perguntei também


ofegante e abaixando minha roupa.

— Não, mas... isso... não é certo.

Encarei-o sem saber o que dizer e sem entender o que não


era certo. A seguir encostei-me na cama sentindo-me envergonhada
e fechei meus olhos ao mesmo tempo que balançava a cabeça em
negativo. Quando voltei a abri-los olhei para o lado contrário ao que
Iran estava sentado e ainda me observando.

O silêncio havia voltado a ser presente entre nós e eu não


aguentaria mais nem uma hora daquilo.

Logo o pensamento de que eu precisava me distanciar


tomou conta de mim e misturou-se com a vergonha, com o
sentimento de rejeição e toda a demais bagunça que me atingiu
após um simples riso de Iran sobre a minha inocência, que pelo
visto era mesmo um problema.

Levantei-me da cama e decidi que aquele casamento já


tinha dado, aquela reclusão já tinha sido demais e se não íamos
mesmo ser um casal, não tínhamos motivo para continuar com
aquela farsa. Se a maldição seria quebrada sem o casamento ser
consumado, ela também podia ser quebrada sem que eu precisasse
ficar trancada em um quarto com alguém que não queria isso.

Precisava sair dali.


Capítulo dezessete
— Aonde você vai?

— Vou sair desse quarto.

Iran levantou-se e entrou na minha frente a caminho da


porta.

— Não pode fazer isso.

— Por quê?

Engoliu em seco.

— Será uma vergonha para mim.

— Por quê?

— É como se... Eu não tivesse conseguido satisfazê-la.

Ergui meu queixo, o encarei e falei com coragem:

— E não conseguiu. Não consegue nem me explicar algo


sem rir de mim, quem dirá na prática. Ah! Na verdade, acho que eu
que sou boba demais para você.

— Eu não ri de você.

Ri em desdém, vi Iran engolir em seco e depois perguntou:


— O que você quer que eu faça, Vida?

— O que tem que fazer!

— Você não sabe o que está me pedindo.

— Eu sei, não sou tão inocente assim como pensa e...


quero. — Eu o encarava com altivez, apesar de meus olhos
vermelhos pelo choro que havia me tomado há pouco, entregando a
minha fragilidade.

— Você quer?

— Quero.

— E depois... o que será depois?

— Só estou pensando no agora.

A respiração de Iran era ofegante e estávamos a poucos


centímetros de distância um do outro.

Vi-o fechar os olhos como se ponderasse e isso me


machucou. Perguntei-me se era tão difícil assim para ele me tomar
como sua e me mostrar tudo o que devia acontecer entre um
homem e uma mulher. Também me perguntei se para ele eu era tão
inocente a ponto de não conseguir consumar nosso casamento.

Eu tinha provado do seu toque e do seu beijo, sabia


exatamente o que queria, apesar de não conhecer nada e não ter
experiência nenhuma.

Cansada de esperar que ele me tomasse para si, dei a volta


em seu corpo e rumei para porta do quarto, no entanto, quando
coloquei a mão para abri-la e me ver livre de Iran, ele pegou-me
pela mão, me prensou de encontro a porta com seu corpo e disse
com sua mão erguendo meu queixo para que eu o encarasse:
— Se é isso que deseja, então diga. Diga-me sem
arrependimentos futuros e com todas as palavras. O que deseja,
Vida?

— Desejo que me satisfaça, Iran.

Suas pupilas dilataram como se minhas palavras tivessem


ligado algo dentro dele. Sua boca tomou a minha novamente, mais
ardente do que das outras vezes enquanto a sua mão no meu
pescoço mantinha-me imobilizada e presa aos seus movimentos.

Afastou-se de mim e com um movimento rápido, como se eu


pesasse menos que uma pena, Iran me tomou em seus braços e me
levou de volta para cama. Deitou-me nela e sem tirar seus olhos dos
meus começou a tirar minhas roupas lentamente.

Enfiou seus dedos no cós da calça que eu usava e a


deslizou por minhas pernas junto com a calcinha, deixando-me nua
e com a minha feminilidade exposta. Olhou diretamente para ela,
como se admirasse minha parte mais íntima.

— O que eu tenho que fazer? — perguntei, chamando sua


atenção e querendo saber se havia alguma tradição ou ato que
dependia de mim.

— Aproveitar o momento e avaliar se aprendi direito. — Sua


voz era grossa e rouca, completamente tomada de excitação.

Balancei a cabeça em positivo e deitei na cama entregue a


ele. Senti Iran deslizar levemente suas mãos pelas minhas pernas,
até que chegou à minha abertura, fazendo um arrepio tomar meu
corpo.

— Está com frio?

— Dessa vez não — respondi de olhos fechados, mas sabia


que em seu rosto ele exibia um sorriso satisfeito.
Posicionou-se de joelhos na cama e entre minhas pernas,
as abriu para ele enquanto eu esperava cheia de ansiedade qual
seria o seu próximo passo.

Com a mão levemente passeando por minhas pernas, ele


subiu dando mordiscadas nelas, passou por meus pelos pubianos e
beijou minha barriga, a seguir rodeou meu umbigo com a língua
fazendo minha respiração falhar.

Ergueu ainda mais minha bata e com as mãos, uma em


cada um dos meus seios, os juntou e lambeu o bico de um, o
rodeando lentamente com a língua, e depois deu a mesma atenção
ao outro, me fazendo soltar um gemido baixo.

Após soltá-los, indicou que eu levantasse para que


passasse a bata por minha cabeça e assim eu fiz, ficando
completamente nua e disponível para Iran fazer o que quisesse.
Enquanto eu esperava ansiosa por todos os passos.

Deitou-me novamente e pousou um rastro de beijos por meu


pescoço, colo e de volta aos meus seios que pediam por atenção.
Desceu beijando-me e passou seus lábios no pé da minha barriga,
fazendo-me contorcer de desejo.

Levantei minha cabeça para encará-lo e notei que ria


parecendo feliz com minha reação, no entanto, logo tive que deitar e
jogar a cabeça para trás quando seu dedo indicador adentrou em
minha abertura e levemente passeou por ali.

Nunca tinha sentido aquilo, era bom e involuntariamente abri


minhas pernas dando espaço para que ele explorasse, deixando
claro que eu queria mais.

Com seu dedo indo e voltando na minha parte mais íntima,


eu sentia os olhos do Iran em mim, como se aproveitasse cada
gemido baixo que eu soltava incentivada por seu toque.
Sentia-me molhada e o dedo dele deslizava facilmente em
um ponto específico que fazia com que meu rosto esquentasse com
a sensação deliciosa que eu experimentava.

Notando que estava bom para mim, Iran aventurou-se mais


um pouco e com seu dedo médio desceu do ponto sensível e enfiou
o dedo vagarosamente para dentro de mim.

De início senti uma pressão, mas depois que ele entrou e


saiu lentamente com o dedo algumas vezes, comecei a gostar. Notei
que ele também, já que soltou um respiro alto como se apreciasse a
sensação de me proporcionar prazer.

Posicionou-se de novo entre as minhas pernas e tirando o


dedo de dentro de mim abriu-me e posicionou sua boca na parte
mais sensível, dando lugar a sua língua que lambia vagarosamente,
indo para frente e para trás e repetia o processo ao mesmo tempo
que dois dedos com afinco entrava e saía.

Senti meu corpo esquentar, gemi aproveitando a sensação e


balancei o meu quadril de encontro a boca de Iran que tomava a
minha abertura com gosto. Eu queria mais e mais e mais, esperava
por algo que nem sabia o que era.

Até que sentindo como se meu corpo pegasse fogo, agarrei-


me ao lençol e deixei a sensação antes nunca sentida tomar meu
corpo e enchê-lo com espasmos que me levaram ao céu.

Minha respiração estava rápida e Iran subiu com seu corpo


sobre o meu, olhou-me nos olhos e de modo orgulhoso, perguntou:

— Acho que consegui te satisfazer.

— Sim.

— Diz a lenda, que todas as vezes que uma mulher sente


prazer em Flós, uma Flor de lótus nasce.
— Por isso que aqui tem tantas?

— Sim, somos treinados para manter as flores de Flós


sempre vivas.

Reprimi um sorriso e Iran me beijou.

— Mas falta algo. Sei que não acabou.

Encarou-me com seus olhos muito azuis.

— O que você pensa que falta?

— Falta mais de você. Eu também quero te satisfazer.

— Já estou satisfeito.

— Não se faça de bobo, Lobo! — Ele sorriu. — Sei que deve


me achar inocente, mas sei o que falta e quero.

— Então me diga.

— Quero te ver nu, quero que faça com que nosso


casamento seja consumado e me tome por completo, como deve
ser.

— Tem certeza do que está me pedindo?

Seus olhos pareciam em chamas.

— Sim.

— Então peça.

Libertei-me da vergonha e com a voz sussurrante e cheia de


vontade, pedi bem perto da sua orelha:

— Me penetre.
Iran me beijou e logo se afastou para tirar sua roupa, o fez
de maneira tão rápida que percebi que sentia tanta vontade quanto
eu.

Quando enfim o vi completamente nu na minha frente,


comtemplei toda a sua extensão e era muito maior do que imaginei
quando o admirei de costas no banho e torci para que virasse de
frente para mim.

Engoli em seco e encarei seu abdômen marcado com as


duas linhas em seus músculos que levavam diretamente para o seu
membro duro.

Seu corpo era o mais perto da palavra perfeição.

Iran pareceu gostar da expressão em meu rosto, sorriu com


satisfação e andou até mim. Subiu na cama e posicionou-se com
seu corpo sobre o meu.

Parecendo mais carinhoso do que nunca, pousou beijos por


todo o meu rosto, pescoço e colo. Chupou minha pele e roçou seus
lábios nos meus de maneira sexy e excitante.

Abri minhas pernas indicando que tê-lo era o que eu


necessitava naquele momento e Iran fechou os olhos, depois soltou
o peso do seu corpo e se mexeu indo para trás e para frente, até
que encaixou a ponta do seu pênis na minha abertura.

— Você está tão molhada.

— Isso é ruim?

— Isso é... — Fechou os olhos e deu-me um beijo. —


Delicioso.

Beijou novamente meu rosto e pressionou um pouco seu


corpo no meu.

— Pode ser que sinta dor.


Engoli em seco.

— Quero sentir você.

— Se quiser que eu pare...

— Quero você.

Assentiu e devagar começou a entrar para dentro de mim.


Tirei minhas mãos do lençol e as coloquei em suas costas, a seguir
desci para sua bunda e o vi fechar os olhos como se estivesse se
controlando, enquanto entrava centímetro a centímetro.

Apertei meus lábios para conter a dor, ao mesmo tempo que


recebia beijos carinhosos de Iran, tentando com esse gesto tirar a
minha atenção do seu próximo ato. Até que não demorou e
arremeteu todo o seu membro rijo para dentro e uma dor latente me
atingiu.

Soltei o ar que segurava e encarei os olhos azuis que me


observava de volta com atenção e em chamas pelo prazer que
sentia.

— Está tudo bem? — perguntou e eu apenas balancei a


cabeça em positivo e apertei-o de encontro ao meu corpo, indicando
que me penetrasse novamente.

Entendendo o que pedi, lentamente saiu e entrou para


dentro de novo, fazendo com que eu sentisse um pequeno
desconforto e segurasse-o pelo quadril.

— Quer que eu pare?

— Não. — Empurrei-o pelo quadril para que saísse de novo


e se movimentasse e assim ele fez, levemente, ao mesmo tempo
que pousava beijos no meu pescoço, rosto e boca.

Não demorou até que a dor foi dando espaço ao prazer e a


ardência inicial se dissipou enquanto eu começava a apreciar o ato.
Iran me encarava com seus olhos em chamas e me beijava
de maneira possessiva como se com cada beijo ele me marcasse
para ele e eu me deleitava com isso.

Cravei minhas unhas em suas costas e o ouvi gemer baixo


com a boca perto do meu ouvido, gemi também e chupei seu
pescoço.

Era tanto estimulo que notei o quanto estava difícil para Iran,
mas não aliviei e passei minhas mãos por seu corpo, o beijei e o
excitei até que não aguentou mais segurar e se aliviou me
preenchendo com seus fluídos.

Tremores de prazer tomaram seu corpo e senti seu líquido


me preencher.

Estava feito. Iran e eu havíamos consumado o casamento e


éramos verdadeiramente casados. Eu era dele.
Capítulo dezoito
Ainda ofegante Iran saiu de cima de mim e deitou ao meu
lado, depois encarou-me com uma expressão que eu não consegui
decifrar, mas parecia pensativo.

Puxou-me para deitar no seu peito, enquanto me mantive


em silêncio. Sabia que nossa relação havia mudado e decidi esperar
que ele dissesse algo que mostrasse a que pé estávamos, só que
não disse.

Em meio ao silêncio comecei a pensar no quanto Iran devia


ter treinado com outras mulheres para que soubesse exatamente
onde me tocar e onde me satisfazer do modo como fez e esse
pensamento trouxe o gosto amargo do ciúme e a insegurança em
pensar se eu tinha o agradado também ou não, então meio
envergonhada, perguntei:

— Iran... você gostou?

Passou a mão em meu rosto, delicadamente.

— Para os homens de Flós a obrigação dessa pergunta é


nossa e aí torcemos para que a resposta seja positiva. Se for
negativa você pode me devolver para minha família e me
envergonhar diante de todo o reino. — Senti seu peito trepidar com
um riso nervoso.

— Que difícil.

Sentei-me e puxei o lençol para cobrir meu corpo.


— Vocês treinam muito... com outras mulheres? — fiz a
pergunta que estava martelando na minha cabeça.

— Nunca.

— Nunca?

— Nunca estive com outra mulher.

— Nem com Ravina?

Ficou sério.

— Não. Em Flós a castidade é importante para ambos,


mulheres e homens. Não banalizamos o sexo. Acreditamos no amor
verdadeiro e nos guardamos para ele.

— Hummm... — Engoli em seco e pensei que eu, ao menos


sentia algo por Iran, já ele não sentia nada por mim e por isso foi tão
contra a ideia do casamento.

Repensei o que vivemos e eu praticamente forcei Iran a ter


relações comigo. Ele havia tido comigo a sua primeira vez e quando
houvesse alguém que ele amaria de verdade, não seria a mesma
coisa.

Relembrei os momentos que antecederam a nossa relação


e ele não queria que tivesse acontecido nada entre nós, eu havia
insistido e talvez sua recusa tivesse sido porque não quisesse e não
para me proteger.

— Você se sente bem? — perguntou com o semblante sério


e me tirando dos pensamentos.

— Sim.

— Está com dor?

— Não.
— Para quem há pouco perguntava a cada minuto, você
ficou muito séria e calada.

Sorri sem vontade e ele me avaliou.

— Só aproveitando o momento.

Ficamos em silêncio e vi Iran se levantar sem vergonha da


sua nudez, a seguir esvaziou a banheira e encheu-a de novo,
depois girou a manivela para água circular e andou novamente até a
cama.

— Vem, você precisa de um banho para relaxar.

— Me sinto muito... relaxada.

Ele riu.

— Isso é um bom sinal.

— É?

— Sim. De que aproveitou bem o nosso momento.

Como se eu não fosse capaz de andar, Iran abaixou-se e


me pegou no colo, novamente como se eu não pesasse nada, e me
levou até a banheira. Pousou-me com cuidado na água que já
estava morna e sentou-se na borda da banheira de ferro.

Pensei novamente na sua fala sobre o sexo com amor e me


sentia culpada. Eu o havia feito banalizar o sexo.

— O que você tem? — perguntou.

— Nada.

— Você mudou.

Sorri e balancei a cabeça em negativo e mudei de assunto:


— Não vai entrar comigo?

— Você quer que eu entre?

— Se você quiser sim. Eu ficaria feliz com isso.

Iran entrou logo atrás de mim e puxou-me para perto para


que me apoiasse em seu peito rijo. Seu corpo forte fez com que a
água aumentasse de nível até quase transbordar e ele começou a
jogá-la sobre meu ombro, carinhosamente.

— Não tem mais perguntas?

— Tenho tantas.

— Então as faça, porque vê-la em silêncio me deixa


nervoso.

Ri sem jeito e pensei que eu precisava saber mais sobre a


tradição que envolvia o sexo e o quanto eu o tinha pressionado.

— Então, fora a vergonha, o que aconteceria se eu saísse


do quarto antes dos três dias?

— Nenhuma mulher mais se casaria comigo. Eu seria a


vergonha da minha família. Seria como um impotente.

— Isso já aconteceu alguma vez?

— Não que eu tenha visto, mas meu tio contou que sim. Há
muitos anos.

— Me conta.

— Bom, o povo de Flós preza pelo amor entre os casais,


mas em todos os reinos existem exceções. Nessa história em
questão, meu tio disse que os noivos não se amavam, na verdade, a
noiva amava outro, mas foi forçada a se casar com um guerreiro.
Foi forçada pela família e pelo próprio guerreiro que a amava, então
ela aceitou o casamento e na primeira noite, quando a festa ainda
acontecia, fugiu do quarto e o envergonhou aparecendo diante de
todos.

— No lugar dela eu faria o mesmo.

— Confesso que sempre ouvi sobre isso e nunca quis saber


a fundo, mas quando você decidiu que nos casaríamos. — Ele riu.
— Perguntei para o tio, ele me contou essa história e fiquei com
medo de passar pelo mesmo.

Fiquei em silêncio e tive a minha resposta, ele havia tido


relações comigo por medo de perder sua reputação. Por isso me
parou com tanto fervor antes que eu saísse do quarto.

Não era por mim, era por ele, não era porque me queria,
mas para se preservar.

Eu sou tão burra!

Retesei meu corpo e Iran notou que minha expressão


corporal transparecia tudo que eu pensava e antes que
perguntasse, me antecipei.

— Acho que vou dormir. Me sinto com um pouco de sono.

Levantei-me da banheira e puxei a toalha que estava


pendurada próxima a ela, enquanto Iran me encarava com
seriedade.

— Tão de repente?

— Sim, acho que foi a água — sorri sem vontade e virei-me


de costas.

Enquanto me enxugava, pensei que Iran não me contou


absolutamente nada de Ravina, esquivou-se de todas as perguntas
que fiz, talvez, ela fosse quem ele realmente gostava, se guardava
para ela e eu sentia-me completamente culpada por ter tirado isso
dele.

Por isso a recusa do casamento...


Por isso a recusa em me beijar...
Eu sou uma pessoa horrível e egoísta.
Novamente a vontade de chorar me atingiu e eu não sabia o
que acontecia comigo. Talvez fossem muitos sentimentos
conflituosos tomando o meu coração. Não queria prendê-lo a mim,
mas também não queria perdê-lo e com isso acabei condenando-o a
ficar forçadamente comigo.

Coloquei um vestido qualquer de dormir, depois em silêncio


segui para cama de onde tirei o lençol com a marca de sangue que
indicava que eu havia me entregado para ele e o pousei no chão.
Depois me cobri com outro e virei-me de lado para dormir sem mais
olhar para Iran.

Não demorou até que senti a cama se mexer quando ele


subiu nela e se acomodou bem perto de mim com seu corpo grande.

— Posso dormir aqui? — sussurrou em meu ouvido.

— Claro. Fique à vontade — respondi sem me virar.

Puxou-me para o seu braço, eu não o parei e permiti-me só


mais aquele momento.

— Não sei o que está passando por sua cabeça, mas pode
falar comigo.

Balancei a cabeça em positivo, porém, eu sentia-me muito


envergonhada e me mantive em silêncio até que adormecemos.
Capítulo dezenove
No dia seguinte, acordei com a claridade invadindo o quarto
por todas as frestas possíveis. Provavelmente já era bem tarde e
dormimos muito por conta da noite anterior que mal cochilamos.

Iran dormia pesadamente ao meu lado e olhá-lo fazia a


culpa voltar com força.

Queria que aquele dia passasse muito rápido, não tinha


ideia de que horas que podíamos sair dali, mas só queria que
passasse.

Eu não sabia como o encararia, ele havia notado a minha


mudança e ao acordar era certo que perguntaria.

Não queria contar a verdade e dizer que fiquei brava por


algo que ele estava apenas se defendendo. Inclusive ia parecer que
eu cobrava o que não tinha direito nenhum de cobrar. Não se cobra
sentimento.

Fui ao banheiro, fiz minha higiene pessoal e quando saí Iran


havia acordado, mas exibia sua habitual cara de bravo.

— Bom dia, rainha.

— Bom dia — cumprimentei-o sem olhá-lo e ele seguiu para


o banheiro.

Fui até a mesa de comidas e encontrava-me com muita


fome, já que pulamos o jantar e dormimos direto.
Coloquei um morango na boca e o doce da fruta me trazia
lembranças ainda mais doces: o beijo de Iran.

Consequentemente a lembrança do beijo lembrou-me


também o momento mais quente que já vivi, o mais sensual e o
mais intenso, que eu ardentemente sentia vontade de repetir.

Dei um pequeno pulo de susto quando o barulho da porta do


banheiro se abrindo tirou-me dos meus pensamentos e Iran andou
até a mesa. O encarei e só então notei que estava sem camisa e
vestia apenas uma calça de pano leve. Engoli em seco e tentei não
ficar encarando seu corpo perfeito, mas era difícil.

Pensei que eu repetiria tudo de novo se ele quisesse. A


lembrança de suas mãos, boca e todo resto por meu corpo ainda
estava vívida e até me deixava sem ar.

— Vai ficar me olhando sem dizer nada? Porque eu ainda


estou tentando descobrir se você é a Vida que faz perguntas ou a
que vai dormir calada.

Fiquei sem jeito, desviei o olhar e mantive-me quieta.

— E eu que tenho duas personalidades? — perguntou e ele


tinha razão, mas não o respondi.

Em silêncio sentamos para comer, mas mesmo com fome


não consegui ingerir mais nada além do morango, já que os olhares
furtivos de Iran em minha direção me deixavam nervosa.

Comi mais um morango e após algum tempo de silêncio


excessivo decidi perguntar:

— Que horas podemos sair do quarto?

Ele me analisou.

— Está ansiosa para isso, não é? — Não respondi e ele


continuou: — Já podemos. — Tirou o olhar de mim e tomou seu
suco.

Assenti, levantei-me e ia me preparar para sair, quando Iran


se levantou bruscamente e parou na minha frente impossibilitando
minha passagem. Ergui o olhar para encará-lo e ficamos muito perto
um do outro.

— O que você quer? — perguntei e engoli o caroço que se


formou na minha garganta.

— Você não vai sair daqui até me dizer o que está


pensando. — Sua voz era autoritária.

— Agora que casamos vai querer mandar até nos meus


pensamentos?

— Nesse caso sim.

Balancei a cabeça em negativo, como se ele estivesse


dizendo bobagem, ia dar a volta em seu corpo, mas Iran pegou-me
pelo braço e me virou para que ficasse de frente novamente.

— Estou falando sério quando digo que você não vai sair
daqui até me contar.

Juntei as sobrancelhas em descrença.

— E eu digo que você não vai me prender aqui.

— Vida, você não vai mexer ainda mais com a minha


sanidade.

Soltei-me de sua pegada e andei até próximo a cama, mas


com passos rápidos Iran me seguiu, novamente virou-me de frente
para ele e me beijou de forma possessiva.

Pensei em afastá-lo, mas por mais confusa que eu


estivesse, ansiava por beijá-lo também.
— Você bagunça com meus sentimentos, Vida! — falou
quando nos separamos do beijo e colou sua testa a minha. —
Responde, por que mudou tão de repente? — sua respiração era
ofegante.

— Não aconteceu nada.

— Eu sei que sim. Algo está te incomodando. Me fala.

Antes que eu respondesse, ele pegou-me pelas pernas e as


enganchou em sua cintura, depois deitou-me sobre a cama e
prensou-me com seu corpo.

— Iran, precisamos parar...

Segurou meu rosto para encará-lo.

— Só vou sair daqui quando me disser o motivo que te fez


mudar.

Tentei me levantar e sair de baixo do seu corpo pesado, mas


Iran ergueu meus braços acima da cabeça e me imobilizou com
apenas uma das mãos, enquanto a outra ainda se mantinha no meu
rosto para que eu o encarasse.

— Você vai me forçar a ficar aqui?

— Vou.

— Iran, isso é imoral. Você não pode me forçar. — Tentei me


mexer, mas foi em vão, encontrava-me completamente imobilizada.

— Posso e vou, até que me conte. Imoral é você mexer


comigo como faz e sabe que faz.

Encarei seus olhos azuis muito claros e respirei fundo,


fechando os olhos e soltando o ar em seguida, até que falei:
— Sinto que você... ontem... você não me queria de verdade
e eu meio que te forcei a ter relações mais íntimas... Você só me...
— Engoli em seco, sentia-me envergonhada. — Porque estava com
medo de ser exposto no reino. Não me queria de verdade, talvez até
quisesse outra, se guardar para o amor...

Iran riu em desdém e não deixou que eu terminasse quando


devorou meus lábios com vontade, como se quisesse me possuir
com a língua. Ainda me mantinha presa embaixo do seu corpo forte,
ao mesmo tempo que me beijava com fervor e cheio de desejo
esfregava seu corpo sobre o meu.

Eu sentia-me excitada por estar presa por ele e por mais


que parecesse errado o modo possessivo como me prendeu, seu
jeito de conseguir com que conversássemos e eu contasse o que
me incomodava, me deixou ainda mais atraída por ele.

— Sinta. — Esfregou sua virilha em mim e consegui sentir


seu membro duro em minha pélvis. — Acha que não te desejo, que
não te quero e que o que tivemos foi forçado?

Eu só o encarava de volta, hipnotizada por seus olhos azuis


em chamas e sua voz grossa.

— Responda, Vida.

— Não.

— Você acha que te quero agora? — Assenti e ele passou


seus lábios nos meus, fazendo um arrepio de desejo percorrer meu
corpo. — E você me quer?

Demorei alguns segundos até que respondi:

— Quero.

Fechou os olhos em contentamento antes de dizer:


— Eu podia facilmente repetir tudo, degustar cada
pedacinho do seu corpo e te mostrar como eu te desejo, mas
preciso esperar você se recuperar do desconforto da primeira vez.

— Iran, sinto-me perfeitamente bem.

Como um animal feroz ele encarou meus olhos com


atenção, depois soltou-me, tirou minha calcinha e abaixou sua
calça. Quando voltou para mim, sem doçura ou cuidado ele me
penetrou, deslizando para dentro de maneira fácil, por eu estar
extremamente excitada por ele. Senti de início uma pequena
ardência, mas que logo passou.

Ficou parado esperando que eu demonstrasse algum


desconforto e quando certificou-se que não, mexeu-se em um ritmo
intenso de vai e vem, encarando meus olhos em cada estocada,
revezando entre pousar beijos e chupar minha pele, fazendo com
que eu gemesse alto e sentisse que ele tentava marcar meu corpo,
estava verdadeiramente me possuindo e mostrando que me queria,
precisava de mim da mesma maneira que necessitava respirar.

Passou levemente seus dentes no meu ombro e o incentivei


que me marcasse como queria e cheia de desejo, pedi:

— Me morde, Lobo. — Ouvi-o gemer.

— Não me provoque, Vida. — Arremeteu forte.

— Me morda e me marque como sua — ordenei e ele


agarrou meu pescoço com uma das mãos para que eu não virasse o
rosto, ao mesmo tempo que seus dentes cravaram em meu ombro
me dando uma mordida que me encheu de prazer e me penetrou
com vontade, me fazendo gemer alto.

— Eu. Desejo. Você — falou pausadamente enquanto


estocava para dentro de mim.

— Também te desejo. — E eu o desejava muito.


Mesmo ele sendo grande, enganchei minhas pernas na sua
cintura e virei sobre seu corpo, ficando por cima e cavalgando no
seu membro.

Segui meu instinto, não sabia nada sobre a relação entre


homem e mulher, mas sabia que desejava mais e queria sentir
prazer. Queria cada vez mais.

Enquanto subia, descia e deslizava sobre seu corpo, eu


encarava seu rosto cheio de prazer e via meus seios balançarem
com o movimento que me levava a loucura e fazia meu corpo
esquentar.

Novamente me preparei para experimentar a sensação de


frenesi que havia vivido na noite anterior e por isso intensifiquei o
ritmo, continuei me mexendo, até que uma explosão de prazer e
espasmos me tomou, senti-me aliviar e deixei meu corpo cair sobre
o dele.

Iran se deliciou com a visão do meu deleite, depois virou-me


na cama e arremeteu com vontade para dentro do meu corpo, para
também sentir o desejo explodir em espasmos e me encher com
seu líquido quente.

Ainda em cima de mim, deixou beijos na minha boca, rosto e


testa, até que deitou-se ao meu lado e ambos ficamos nos
encarando, ofegantes e saciados.

Já na banheira com água morna, no banho que Iran


preparou para nós, me via sentada na frente dele enquanto
aproveitávamos um ao outro. Com a voz grossa e de forma que
parecia querer me seduzir, ouvi Iran sorrir convencido e dizer:

— Tenho a impressão que gostou mais da segunda vez.

— Só um pouco mais — desdenhei, mas havia amado.


— Podemos ter a terceira e assim te mostro que podemos
sempre evoluir.

Assenti com um riso satisfeito no rosto, peguei um punhado


de água e a soltei de volta na banheira.

— Vida, estamos bem? — perguntou fazendo voltas com o


dedo indicador no meu ombro nu.

— Sim.

— Quando quiser saber algo ou tiver dúvidas a meu


respeito, quero que me conte.

Assenti envergonhada, mas brinquei:

— Prefiro ficar em silêncio e você tirar de mim a força como


fez. — Ele riu.

— Não me deixe louco ou não duro nem mais um ano.


Morrerei de loucura causada por minha esposa.

Ouvi-lo me chamar de esposa foi bom.

— Iran, sobre conversarmos, digo o mesmo. Me conte tudo.


— Ficou em silêncio. — Não quero te forçar a gostar de mim, já te
tirei muita coisa.

Vi-o respirar fundo, depois ficou de pé na banheira fazendo


a água chacoalhar e sentou-se de frente para mim.

— Eu gosto de você desde que eu era apenas um lobo


machucado e te esperando sentado na porta da sua casa. Você não
me deve nada.

Ri.

— Não gostei de você naquele momento, achei que fosse


me atacar.
Ele riu e com facilidade passou minhas pernas por cima das
suas, me puxou para o seu colo e falou com a voz mansa:

— Confesso que pensei em te dar umas mordidas sim. —


Sorri para ele.

— E eu confesso que se elas fossem como a que me deu há


pouco, eu teria gostado das suas mordidas, Lobo.

Deu-me um beijo no ombro onde antes mordeu, em seguida


beijou minha boca tão natural como se fizéssemos aquilo há anos e
com os olhos nos meus me tranquilizou:

— Vida, ontem eu te tomei para mim porque você pediu,


mas também porque eu quis muito que acontecesse... desejei cada
toque. — Subiu com as mãos por minhas costas. — Desejei cada
beijo. — Beijou meu queixo e bochecha. — Desejei você.

Reprimi um suspiro e acreditei no que ele dizia. Tentei deixar


de lado a sensação de que tudo só havia acontecido por eu ter
insistido e também a sensação de que me apaixonava por todas as
palavras que saíam de sua boca.

Senti seu membro ficar rijo novamente e pensei em dizer


que eu já estava pronta para outra, mas achei melhor não parecer
tão desesperada por ele, por mais que eu estivesse.

Precisava me preservar... além de meu corpo o meu


coração, que pelo visto, a cada dia, a cada toque e a cada
descoberta, parecia mais rendido e entregue a ele.
Capítulo vinte
Quando enfim saímos do quarto a noite já tinha caído e
fiquei tímida ao encarar as pessoas que me encontravam pelos
corredores e pelos arredores do castelo. Todos sabiam o que havia
acontecido entre Iran e eu e isso era muito constrangedor.

Assim que Mica me viu longe do meu marido, correu para


perto de mim e fez muitas perguntas um tanto íntimas sobre a minha
lua de mel, mas que notei serem normal ali. Já que os viventes de
Flós levavam o sexo como algo normal e perguntas como se Iran
era bom, se eu havia conseguido alcançar o ápice e quantas vezes
havíamos consumado o casamento, eram muito comuns.

Eu corava sempre que uma das mulheres as faziam.

No dia seguinte, a primeira coisa que fiz foi cavalgar com


Iran, Valery e Mica até Trigo e ver com meus olhos, se realmente
como todos diziam, a maldição havia acabado.

Mica me contou que demorou um dia após o enlace para


que o povo de Trigo saísse das cinzas e pensei que foi quando Iran
e eu consumamos o casamento. Claro que omiti dela que havíamos
demorado tanto para tal.

O ato sexual para eles era como uma espécie de ligação


profunda entre o casal, então claro que a maldição estaria atrelada a
isso.
Assim que chegamos ao pequeno monte que antecedia o
povoado de Trigo, relembrei a última vez que estive ali e um calafrio
percorreu meu corpo, no entanto, assim que descemos e avistei o
povoado totalmente livre da névoa, pude perceber que era um lugar
lindo, assim como os outros que conheci, e a alegria por termos
conseguido, me invadiu imediatamente.

Descemos dos cavalos, os amarramos em frente a uma


casa de pão com um cheiro delicioso e enquanto andávamos pelas
ruas de paralelepípedo do povoado, fomos ovacionados pelos
moradores.

Eles agradeciam com alegria por termos salvado o povo e


pareciam extremamente felizes que Iran e eu fôssemos rei e rainha
de Flós.

Senti-me envergonhada, já que não fiz quase nada para


salvar o povo a ponto de receber tantos agradecimentos e pelo visto
Iran sentia-se da mesma forma, pois quando o agradeciam, ele
fechava ainda mais o cenho, apenas assentia contido e parecia
mais incomodado que eu.

Seguimos até o ancião de Trigo e ele nos recebeu em sua


casa, que era igual as outras e só mudava a cor das flores que
adornavam a entrada.

— Sentem-se — convidou o senhor Penin que tinha os


costumeiros olhos azuis dos viventes de Flós e cabelos brancos.

Sentamos nas cadeiras de uma bonita mesa de madeira e


ele se acomodou na cabeceira dela.

— E então, tudo aqui voltou mesmo ao normal? — perguntei


e ele sorriu.

— Nem sabemos mais o que é o normal, Rainha, já que


vivemos mais de vinte anos nas cinzas. Para as poucas crianças
que nasceram nesse tempo, por exemplo, o que estamos vivendo
não é o normal, é uma benção. Para elas o normal são as cinzas.

— Tem razão — concordei triste.

— Para nós, Flós das flores e das cores é como um sonho.


E estamos felizes nesse sonho — falou sorrindo. — Entretanto,
como somos o povo mais perto da fronteira de Flós com Cinere,
ainda nos sentimos ameaçados pelo pesadelo... Eu, ainda mais
depois de ontem à noite.

Seu rosto se fechou e uma nuvem cobriu seus olhos.

— O que houve à noite? — Iran perguntou.

— Pensei muito se devia contar ou era o meu medo me


pregando peças.

Peguei em sua mão como um gesto de apoio.

— Deve nos contar tudo.

— Tive um sonho... e nele... Chain apareceu. Foi muito real


e só de pensar sinto-me tomado por tristeza. — Respirou fundo. —
Bom, nossos antepassados costumavam se comunicar assim, por
sonhos através de magia. Vocês jovens, talvez não entendam...
Ficaram muito tempo sob cinzas e com as vidas paradas.

— Eu entendo e acredito em tudo que o senhor disser que é


real. Minha vida se transformou e por mais irreal que qualquer coisa
possa parecer, eu acredito em tudo depois dessa transformação —
apressei-me em tranquilizá-lo e ele assentiu.

Sentia-me ansiosa para saber o que aconteceria com o


povo, queria saber se a maldição havia mesmo acabado, sem a
possibilidade de voltar.

— No sonho ele disse que a maldição tem apenas mais uma


ramificação faltando ser quebrada e assim irá acabar para sempre.
Foi por isso que Trigo se livrou das cinzas, porque ele disse que a
que falta está quase concluída. No entanto, ele sorria maquiavélico
deixando claro que não vencemos e que um acordo do passado fez
com que as barreiras entre os reinos fossem quebradas e a
qualquer momento Flós pertencerá a Cinere. Será uma extensão do
reino de Cinere e todos nós teremos que nos acostumar
eternamente com as cinzas e o mago se tornará o rei dos dois
reinos.

— Isso não pode ser — Valery rosnou.

— Se eles podem entrar em Flós, teremos que nos preparar


para uma guerra — disse Iran para Valery, já assumindo seu papel
de guerreiro. — Eu não vou deixar que isso aconteça.

— Precisamos procurar por Záia, ver com o que ela pode


nos iluminar sobre isso — Mica sugeriu.

— Que barreiras são essas entre os reinos e como as


quebrou? — perguntei meio perdida com tanta informação.

— Dizem os escritos, que no passado os reinos fizeram um


tratado, de que o exército de um reino só poderia entrar no outro
com um convite dos monarcas. Usaram magia dos cinco reinos e
formaram uma barreira invisível que foi sempre respeitada. Eu
conhecia a história do tratado dos reinos, mas não sabia que podia
ser quebrada se houvessem acordos entre pessoas dos reinos —
Iran me explicou muito sério e preocupado.

— E que acordo do passado é esse? Por que ele apareceu


em sonho para nos avisar que uma guerra está chegando? Não
seria melhor para ele o elemento surpresa? — perguntei.

Iran se levantou e cruzou os braços na frente do corpo, se


demonstrando incomodado.

— Talvez tenha algo por trás desse aviso — Mica pensou


alto.
— Concordo com Mica, precisamos procurar a Záia com
urgência e concordo com Iran, precisamos organizar a guarda,
acordar os guerreiros.

— Podemos deslocar alguns homens para ajudar proteger


Trigo? — perguntei.

— Aqui temos bons guerreiros, Rainha, mas concordo que


se pudermos nos manter resguardados, traria um pouco de
tranquilidade para o povo — senhor Penin, disse.

Olhei para Iran e Valery em busca de respostas e ambos se


olharam como que em uma conversa interna, depois Iran, disse:

— Podemos mandar alguns homens. — Respirei aliviada e


sorri para o senhor Penin.

Após alguns ajustes sobre quem em Trigo estava apto a


lutar caso fosse preciso e de como seria feito a proteção das
entradas do povoado, deixamos Trigo com a promessa de
resolvermos tudo o mais rápido possível, quando na realidade, não
fazíamos ideia de como faríamos aquilo.

Cavalgamos até a cabana de Záia, não tínhamos tempo a


perder e cada minuto sem uma resposta sobre como nos proteger
de Cinere, poderia ser crucial para nossa queda.

Quando chegamos até a bruxa, ela parecia já nos esperar e


assim que descemos dos cavalos, Záia abriu a porta e a primeira
coisa que fez foi cumprimentar a mim e a Iran:

— Parabéns pelo casamento consumado, casal. Achei que


fosse demorar mais.

Senti meu rosto pegar fogo e mudei de assunto:

— Záia, pode ser que tenhamos conseguido quebrar a


maldição, mas temos mais com o que lidar e precisamos da sua
ajuda.

— A maldição não está quebrada, ainda tem a parte que cita


uma redenção. Esta ainda está em aberto — Záia disse pensativa,
depois encarou Iran.

— Mas o que importa é que o povo de Trigo está livre das


cinzas, no entanto, outra ameaça nos cerca e uma guerra está por
vir — Iran disse mais impaciente do que eu o tinha visto aquele dia.

— O que sabe sobre o tratado entre os reinos? — perguntei


a ela.

— Este tratado é centenário. Há muitos anos foi feito entre


os magos dos cinco reinos e os reis da época. Faz tanto tempo e
sempre foi respeitado, no entanto, como eu já havia dito, nosso
destino é feito por escolhas e com algumas erradas podemos mudá-
lo e de todos a nossa volta.

— Você consegue saber se o sonho do ancião de Trigo é


real ou só o medo dele falando? — perguntei.

— É real. Tive o mesmo sonho. O que é uma afronta aquele


belzebu cego entrar em minha mente — Záia respondeu indignada.

— E você sabe, porque ele está nos avisando sobre o


possível ataque?

— Provavelmente tem uma carta na manga, que eu não sei


qual é, mas tomem cuidado, Chain usa das fraquezas para atacar.
Ele vai atacar com guerreiros, mas também atacará com o
emocional. Lembrem-se sempre que são nossas escolhas que nos
fazem vencer ou perder. Escutem seus corações, intuições e
desejos.

Novamente Záia falava como se já soubesse de tudo e ao


mesmo tempo não soubesse de nada.
Capítulo vinte e um
No dia seguinte bem cedo, enviamos mensageiros para os
anciãos dos doze povoados de Flós e organizamos uma reunião
urgente. Eram os moradores mais velhos de cada povoado e em
Flós os mais experientes eram respeitados, então cada um
respondia pelo seu.

Com isso, quando o sol já estava se pondo, nos reunimos


na sala de guerra que ficava no subsolo do castelo. Uma grande
sala iluminada apenas por lamparinas, onde havia uma mesa
grande com exatos vinte lugares, estantes de madeira em lados
paralelos e um carrinho rústico com diversas bebidas alcoólicas. Na
parede atrás da cadeira do rei havia um desenho feito com tinta
branca e formava o contorno de uma flor de lótus.

Pedi que um jarro com muitas flores fosse colocado sobre a


mesa, para que o símbolo do nosso reino fosse lembrado e
enquanto esperava por todos, eu encarava a delicadeza das flores
de lótus e sua beleza, ao mesmo tempo que meu pensamento
vagava sobre como consertar tudo.

Conforme iam chegando, os anciãos começaram a se


acomodar na mesa, enquanto Iran e eu ocupávamos os lugares da
cabeceira.

No momento em que chegamos à sala, havia apenas uma


cadeira na ponta, mas colocamos duas para que coubéssemos nós
dois. Já Valery, por ser o guardião do trono estava acomodado do
lado direito, Mica do lado esquerdo e Záia ao seu lado.
Notei que os anciãos lançavam para mim, Mica e Záia
olhares questionadores e até pareciam cochichar entre si sobre nós,
o que me causou um desconforto imediato.

Quando todos haviam chegado e sentado à nossa frente,


começamos a reunião e Iran indicou com a mão para que eu falasse
primeiro:

— Boa noite a todos, convocamos vocês aqui, pois


precisamos tomar decisões que envolvem os doze povoados. Flós
está sob um possível ataque e precisamos nos resguardar.

Houve um burburinho entre eles, até que um se posicionou:

— Com sua licença, Rainha — quem falou foi ancião do


povoado de Frutas e acenei com a cabeça para que ele continuasse
a falar. — Nunca, em toda a vida em Flós, a rainha e outras
mulheres participaram de uma reunião de guerra. Não seria
inapropriado?

Olhei para Iran que tinha o cenho franzido e Valery o


acompanhava. Não consegui identificar o que pensavam, se
concordavam com o senhor ou se discordavam, no entanto, resolvi
respondê-lo:

— E o senhor acha que devemos nos retirar?

— É a tradição, Rainha. — Deu de ombros como se fosse o


óbvio.

Encarei a Iran com indignação, então meu Bravo se


levantou e disse com uma certa impaciência:

— Bom, então os senhores acham que tiraremos a Záia que


é a bruxa que nos ajuda com a magia, que enviou a rainha para o
passado e tem nos auxiliado com tudo que lhe cabe. Tiraremos da
sala também a Mica que tem sido o braço direito da rainha,
corajosa, tem ótimas ideias e está sempre disposta a correr os
riscos que forem para salvar Flós e, por fim, tiraremos a rainha que
é nascida para salvar o povo, tem ligação direta com tudo, foi
exilada, correu risco de morrer indo ao passado e que está sempre
pronta a viver e morrer pelo reino. Retiraremos elas da sala só
porque a tradição é assim? — Foi encarado com surpresa e para
não parecer desrespeitoso, completou: — Sei que nosso povo preza
a tradição, respeita os mais velhos e os antepassados, mas
estamos passando por algo que nunca antes vivemos, então creio
que cabe a nós nos adaptarmos e respeitarmos quem nos ajuda na
luta.

Senti-me acolhida por Iran e lhe lancei um olhar que podia


ser descrito como apaixonado.

Ele sugeriu quebrar tradições para me proteger e um


sentimento doce me tomou.

Suspirei e o agradeci com o olhar, que me respondeu com


um aceno de cabeça quando voltou a sentar-se. Enquanto todos os
demais se olharam parecendo envergonhados, até que o ancião de
Frutas, disse:

— Perdoem-nos e, por favor, continue, Rainha.

Assenti e comecei a reunião que durou horas de muito


debate, discussões acaloradas e enfim chegamos à decisão de
seguir até os reinos aliados para conseguirmos apoios em uma
possível guerra. O reino que decidirmos seguir primeiro foi o de
Animalis, o lugar de origem da antiga rainha de Flós e nossos
maiores aliados.

Ficou decido que alguns guerreiros sairiam ao final da tarde,


do dia seguinte e Iran como chefe deles e rei, seria quem chefiaria a
comitiva ao reino vizinho. Teria como missão, convencer o rei de
Animalis a nos ajudar enviando suas tropas para vencer Cinere.

A cavalgada duraria em torno de um dia de viagem para ir e


outro para voltar. Valery por ser o guardião do trono e eu, por ser a
rainha, ficaríamos tomando conta de Flós junto com alguns guardas
experientes.

Eu queria ir com Iran, mas segundo ele e a tradição, a


rainha nunca ia em negociações com o rei e já estávamos
afrouxando demais como tudo era em outros tempos, com isso,
muito do que era Flós poderia se perder.

Aceitei, porque ele ter protegido a mim, Mica e Záia na


reunião, já havia sido extremamente importante para algumas
mudanças que pudessem surgir no reino.

Na mesma noite da reunião, quando subimos para o quarto,


Iran parecia preocupado e inquieto e decidi agradecê-lo de maneira
carinhosa, para assim tentar quebrar o silêncio.

— Gostei muito do modo que me defendeu na reunião.


Quebrou a tradição para me deixar participar.

Deu de ombros como se não fosse nada.

— Era o justo a ser feito. Se tinha alguém que não merecia


estar ali não era você, era eu.

— Por quê?

— Não sou digno.

— Se você não é, eu também não sou. Não nasci da


realeza.

— Você nasceu para salvar o nosso povo, já eu, sempre fui


só um qualquer do reino de Flós. Não sou digno de ser rei.

— Não fala bobagem! Você é o guerreiro protetor, o melhor


e mais forte chefe da guarda. Você é o meu Bravo e merece muito
ser o rei. — Sorri e ele andou até mim e passou a mão em meu
rosto com delicadeza.
— Sou seu Bravo e você é a luz na minha escuridão... é
minha Vida. — Sorriu sem vontade e seu semblante era cabisbaixo,
parecia que algo mais o afligia que não somente a guerra e a
reunião que tivemos há pouco. — Não sou digno de você. Não sou
digno de nada. — Fechou o rosto em seriedade. — Vou dar uma
volta para espairecer. Não me espere para dormir.

Sem deixar que eu dissesse algo ou perguntasse, Iran virou


as costas para mim e saiu do quarto, me abandonando com a
solidão que a sua ausência sempre me causava.

Encaminhei-me para sacada e minha atenção foi tomada


pelo céu estrelado de Flós que assim como o do dia, era a
perfeição. Não tinha onde não houvessem estrelas e a imensidão
escura ficava naturalmente iluminada.

Pensei que aquilo não podia acabar, o povo não podia viver
nas cinzas e assim como os viventes de Flós faziam, também fiz
uma prece para que os antepassados nos ajudassem a consertar a
bagunça que o rei de Cinere criou e o mago continuou.

Pedi para que eles acalmassem a mente de Iran e


cuidassem para que o meu Bravo não ficasse tão aflito com tudo.
Não era culpa dele, mas parecia sempre sentir-se culpado.

No momento em que abri meus olhos após terminar a prece,


olhei para baixo e encarei o pátio vazio do castelo, entretanto, meus
olhos foram capturados para um movimento mais ao longe, no
portão, em que consegui avistar Iran em cima do seu cavalo branco,
o único animal que costumava ficar no pátio à noite.

O observei por um momento e notei que parecia conversar


com alguém que era encoberto pela sombra e a escuridão da noite.
Vi Iran descer do cavalo como que para conversar mais diretamente
com quem quer que fosse e quando estava no chão, quem
encontrava-se na sombra se mostrou, ficou bem embaixo de uma
tocha e reconheci... Ravina.
Meu coração logo disparou como se estivesse em perigo.

Da sacada não dava para ver direito muito menos ouvir,


sendo assim, só me restava tentar ler a expressão corporal de
ambos.

Vi Ravina se aproximar e Iran não a afastou, eles pareciam


um tanto exaltados e eu daria um dedo para saber sobre o que
conversavam. Não demorou até que vi Iran subir no cavalo
novamente, dizer algo mais para Ravina e depois fazer um
movimento como se fosse olhar para sacada do nosso quarto.
Nesse momento me escondi.

Fiquei um tempo abaixada e quando fui olhar novamente,


nenhum dos dois estavam mais no mesmo lugar e meu coração
traidor sentiu a fisgada do ciúme atingi-lo de maneira arrasadora,
enquanto em minha mente diversas perguntas martelavam e a
desconfiança era o sentimento que prevalecia.

Decidi ir para cama e me preparar para o dia seguinte, que


aconteceria uma cerimônia de envio. Pelo que Mica me contou, era
uma espécie de benção de Flós aos guerreiros que viajariam até
Animalis, também para os que iriam para Trigo e os que ficariam
cuidando do reino.

Vesti minha roupa de dormir, andei de um lado para o outro


no quarto esperando que Iran voltasse, mas ele não voltou, então
decidi enfim deitar para dormir.

Tentei ficar de olhos fechados buscando o sono que não


vinha, rolei de um lado para outro e Iran e Ravina não saíam da
minha cabeça. Pensava e repensava se ambos estavam juntos, o
que estavam fazendo, que tipo de conversa tinham em comum e
porque se encontraram na penumbra da noite.

Apesar de não ter motivo concreto ou nem mesmo o direito


de me sentir assim, já que meu casamento era um arranjo para
salvar Flós, eu me sentia traída.
Horas haviam se passado e Iran não voltou, o que fez com
que eu fosse vencida pelo cansaço e acabasse pegando no sono.

Acordei pouco depois sem saber que horas eram, mas


parecia estarmos no meio da madrugada já que o mais absoluto
silêncio tomava conta de Flós. Sentei-me na cama olhei em volta e
nem sinal de Iran. Fechei meus olhos e meu coração apertou.

Levantei-me e fui até a sacada, de onde consegui avistar o


cavalo dele no pátio e não demorou até que eu escutasse barulho
na porta do quarto e em seguida Iran entrasse cambaleando.

Assim que fechou a porta e virou-se, derrubou um jarro de


água, que por sorte estava vazio, e com isso notei que encontrava-
se completamente bêbado.

O encarei sem entender o que estava acontecendo e a


seguir atravessei o quarto em sua direção.

— Qual o motivo de você estar assim? — perguntei,


analisando se tinha algum machucado.

Suas roupas cheiravam a fumaça e tinham cinzas em suas


botas.

— Por onde você andou?

Ele não me respondeu e sentou-se desengonçado na


cadeira, quase se jogando, para tirar sua bota.

— Iran! — falei seu nome como forma de chamar atenção.

— Não comece com suas perguntas e seu modo mandona


de ser. — Encarei-o com surpresa por seu jeito ríspido de falar.

— Você está bêbado!

— Muito observadora.
Levantou-se sem me olhar e, meio tonto, tirou a camisa
deixando-a cair no chão.

Entrei na sua frente para lhe cobrar explicações mais uma


vez, mas cambaleante Iran se desequilibrou e quase caiu em cima
de mim. Ao me esquivar dele, tropecei no tapete e caí de bunda no
chão.

— Daxnare! — Tentou abaixar-se para me ajudar, mas com


um safanão recusei sua mão e levantei sem ajuda.

— Me deixa!

— Eu faço tudo errado. Me desculpa?

— Só me deixa.

— Você vai me odiar.

Seu olhar era repleto de arrependimento, mas não o


respondi, virei-me de costas e segui para cama com meu orgulho
ferido e raiva.

Antes de me deitar o encarei, muito séria, não


reconhecendo naquele homem o Iran carinhoso e responsável de
antes.

Ele estava errado em chegar bêbado em um dia que teria


que descansar para uma viagem importante e o pior, era que
parecia tão bravo comigo como se eu tivesse culpa de algo.

Imediatamente a culpa que senti na nossa primeira vez,


voltou com tudo e não tinha como não pensar que ele esteve com
Ravina e me culpava por não poder ficar mais com ela.

Sentindo-me ainda mais triste, com um fio de voz e olhando


para baixo, o perguntei:

— Você estava com ela?


Vi-o andar até mim e quando parou muito perto, pude sentir
o cheiro forte de álcool misturado com a essência de ervas
perfumadas que sempre sentia nele.

— Do que você está falando?

— Eu te vi no portão... com ela.

— Está me vigiando?

— Não seja ridículo.

Saí de perto dele e andei até a sacada que ainda estava


aberta e o vento da noite entrava para amenizar o calor que eu
sentia pelo momento.

— Eu não estava com ela. Não quero estar com ela.

Virei-me para ele, que deu a volta na cama e deitou do seu


lado:

— Então aonde estava, Iran?

— Tentando arrumar as coisas. Vamos dormir, porque


amanhã será um dia importante. — O vi fechar os olhos para dormir,
sem nem trocar de roupa.

Voltei a olhar para fora, mas ao olhá-lo de novo logo notei


que sua respiração rapidamente se tornou pesada e ele havia
dormido. Decidi fazer o mesmo, porque o dia seguinte precisaria de
mim o mais lúcida possível.

Encarei-o e não queria dormir ao seu lado.

Peguei meu travesseiro e uma coberta e foi a minha vez de


passar a noite no tapete felpudo no chão.
Capítulo vinte e

dois

Acordei mais cedo que Iran. Meu marido ainda se mantinha


na mesma posição e dormindo pesado.

Saí do quarto para tomar café e me inteirar de como seria a


cerimônia de envio dos guerreiros. Dessa vez não queria ser pega
de surpresa com alguma tradição que dependesse de mim e eu não
soubesse como agir.

Pensei em perguntar ao meu marido, mas na noite anterior


ele mal conseguia parar em pé, quem dirá conseguir me explicar
algo. Mais uma vez senti-me traída por ele, com a sensação de que
estava com Ravina.

Tomei café da manhã na cozinha e aproveitei para


conversar um pouco com as mulheres que cuidavam do espaço.
Todas me tratavam com tanto carinho, de modo que eu sentia-me
completamente acolhida.

Precisava dar um jeito de proteger Flós para que sempre as


tivesse comigo.

Após o café andei pelo castelo e para onde eu olhava


avistava guardas, muitos deles, que antes da ameaça de guerra não
ficavam por ali, o que evidenciava que esperávamos um ataque a
qualquer momento.

Vi também homens, mulheres e muitos jovens treinando


com espadas e adagas. Um arrepio tomou meu corpo em imaginá-
los tendo que usar o que aprendiam.

No pátio, onde preparavam tudo para cerimônia, notei


também guardas por todas as partes, em cima dos muros e no
portão, o que fez com que o medo me preenchesse. Eles
esperavam mesmo por uma guerra.

Alguns dos guardas vestiam uniformes na cor azul marinho


e outros usavam a cor verde, eu já tinha reparado que os uniformes
eram de cores distintas, mas nunca me perguntei o motivo, como
também notei que muitas vezes Iran e Valery usavam o termo
guerreiros e guardas e eu não sabia qual a diferença.

— Bom dia, Vida — Mica me cumprimentou.

— Bom dia. Queria mesmo falar com você. Mica, preciso


que me explique tudinho o que vai acontecer na cerimônia de envio.
Não quero passar vergonha.

Ela riu.

— Dessa vez você não terá que fazer nada, a não ser ficar
sentada e assistindo. A rainha não pode participar da cerimônia, só
o rei e os guerreiros.

— Ufa, que bom. — Mica riu e perguntei: — Você sabe o


motivo de os uniformes serem distintos. — Apontei para os homens.
— E por que alguns são chamados de guerreiros, como o Iran que
era meu guerreiro protetor, e alguns de guardas?

— Sim. Os de azul já se transformaram alguma vez, são os


mais fortes, já os de verde ainda estão no processo, se preparando
para passar por esse momento que pede muita força e auto controle
para aguentar a dor da transformação. — Assenti.

— Como eles treinavam durante o tempo de cinzas? E como


conseguiam forças para se transformar?

— As pessoas que precisavam de mais alimento, recebiam


uma porção maior e os guardas precisavam. Era questão de
segurança, já que teriam que ter força caso precisassem enfrentar
uma guerra repentina, como a que estamos passando.

— Entendo. Você já viu alguma transformação?

— Já, a do Iran. — Olhei-a depressa.

— E como foi?

— Normalmente, as transformações são privadas, apenas o


guarda e o Valery, mas quando decidiram que o casal de guerreiros
que te protegia precisava de apoio, Valery reuniu a tropa no pátio e
anunciou que iam escolher alguém para ajudar na sua proteção.
Iran não deixou ninguém nem tentar, imediatamente se ofereceu e
se transformou na frente de todos. Na transformação ele liberou
uma luz muito forte, soltou um urro alto de dor e se transformou no
lobo mais lindo que já vi. Com todo respeito.

Ri.

— Concordo, ele é mesmo, o lobo e o homem mais bonito


que já vi.

Mica me analisou.

— Seus olhos brilham quando fala dele.

— Não brilham não.

— Brilham... ainda mais como o sol.


Sorri sem jeito e balancei a cabeça como se Mica estivesse
dizendo bobagem.

— Continua me contando — pedi.

— Bom, ele exalou uma luz azul ao se transformar e mesmo


fraco por não comer tanto, porque dividia com Ravina sua comida,
conseguiu concluir a transformação. — Fechei o cenho ao ouvir o
nome de Ravina. — Não precisa ficar com ciúmes dela, é nítido
como Iran te ama.

— Não acho que seja verdade, mas vai... continue me


contando sobre as tropas.

Mica me encarou notando o meu desconforto, mas


continuou contando:

— Desde o dia que você chegou que pessoas por todo o


reino estão se preparando noite e dia talvez tenhamos muitas
transformações. Ah, inclusive eu estou muito bem com uma espada
— disse orgulhosa. — Quero me transformar.

— Muitas mulheres já se transformaram?

— Poucas, por isso quero e tenho me preparado nos últimos


dias.

— Que bom! Valery tem te ensinado?

— Não, ele designou outro guerreiro para isso. — Pareceu


irritada.

— Por quê?

— Disse que não tem tempo para me ensinar, mas acho que
só não quer ficar perto de mim mesmo. — Deu de ombros.

Ia confortá-la, mas a voz grossa que me causava arrepios


tomou meus ouvidos, quando Iran apareceu bem perto de mim.
— Bom dia.

— Bom dia — respondemos em uníssono, mas eu mal o


olhei.

Iran parou receoso ao lado de Mica e tinha os olhos


inchados, o cabelo loiro penteado para trás e amarrado em um
pequeno rabo de cavalo na nuca. Seu cabelo estava molhado como
se tivesse acabado de sair do banho e já usava seu uniforme azul
muito escuro.

— Não vai se preparar para cerimônia? — perguntou-me.

— Preciso me preparar? — Olhei para Mica.

— Ah, sim. Provavelmente estão preparando o seu banho


nesse momento. — Minha amiga sorriu, porque sabia como eu não
gostava dessas preparações.

Ficamos em silêncio e Mica notando o desconforto, disse:

— Vou subir para ver se está tudo pronto. Com licença. — E


com isso se foi.

O silêncio se fez presente entre Iran e eu.

— Me desculpa por você ter dormido no chão.

Fiquei em silêncio e não o respondi.

— Podia ter me acordado ou me empurrado da cama.

Apenas balancei a cabeça em negativo e continuei olhando


para frente.

— Não quis me esperar para sairmos do quarto juntos? —


Parecia muito envergonhado e olhava para a arrumação da
cerimônia no pátio do castelo.
— Achei melhor deixar com que se recuperasse e também
pensei que minha companhia fosse algo que não apreciasse muito.

Soprou o ar em frustração.

— Me desculpe por ontem — pediu e fiquei em silêncio. —


Por tudo... — completou e deixou a frase inacabada como se não
soubesse todos os motivos pelo qual devia se desculpar.

Apenas assenti, porque imaginá-lo com outra me doía.

— Vou subir para me preparar para cerimônia. — Ia me


afastar, mas ele segurou-me pela mão e me parou:

— Sinto muito, Vida.

— Eu não sei pelo que você sente e, sinceramente, me dói


imaginar onde esteve e com quem esteve. Sei que nosso
casamento é uma farsa, mas peço apenas para que espere que
terminemos com a guerra e todo o resto e aí você ficará livre de
mim. — A dor ao dizer o final me atingiu. — Para ficar com quem
quiser.

— Pretende me deixar? — Me encarou com seriedade.

— Parece que é você quem deseja isso.

Encaramo-nos e eu controlava minhas emoções para que


não transbordassem pelos olhos. Engoli em seco o caroço em
minha garganta e falei:

— Vou subir para me arrumar. — Ia me afastar, mas Iran


parou-me novamente.

— Vou sentir sua falta enquanto estiver longe.

Não consegui dizer nada, o encarei e era incrível como o


olhar dele fazia com que tudo em mim se acendesse.
Livrei-me da sua pegada e rumei para o quarto, onde
começaria a minha tortura de arrumação para mais uma cerimônia e
assim aproveitaria para saber mais sobre o que aconteceria e não
pensaria mais no que me machucava.

Foram colocados dois tronos no pátio do castelo um ao lado


do outro, em uma parte elevada com uma escada no centro.

Eu usava uma calça marrom apertada ao corpo, botas da


mesma cor, uma bata na altura da coxa na cor bordô e com flores
bordada nas mangas. Meu cabelo estava solto com os cachos
esvoaçantes, com duas tranças prendendo apenas a metade dele e
se unindo na parte de trás.

Encontrava-me sentada em um dos tronos e Iran ao meu


lado. Ele apresentava-se sério como sempre, vestia uma calça bege
de pano fino, estava descalço e cobria-se com um roupão com
flores desenhadas.

Observava tudo o que acontecia a nossa volta com muita


atenção, inclusive a mim, já eu evitava olhá-lo.

Avistávamos logo abaixo e de frente para nós, guardas e


guerreiros se posicionando de maneira enfileirada e usavam o
mesmo traje de Iran. Pareciam tensos, compenetrados e ansiosos
pelo ritual que aconteceria logo mais.

Uma música começou a tocar e os tambores foram batidos


três vezes, anunciando o início do ritual. De imediato vi Iran se
levantar, descer os degraus e se acomodou na frente de todos os
homens, sendo o único em destaque por ser o rei.

O tambor foi batido mais três vezes e todos os homens a


minha frente tiraram seus roupões, continuando descalço e vestidos
apenas com a calça branca.
Assim como os outros, Iran assumiu uma postura ereta, com
as mãos para trás e o peito estufado, enquanto via o senhor Mancler
assumir a frente de tudo e começar a proferir palavras na mesma
língua do casamento, que por sinal eu ainda não tinha começado a
aprender.

Por mais que eu não quisesse olhá-lo, era impossível parar


de admirar aquele homem forte e sem camisa bem na minha frente,
que olhava fixamente para mim.

Logo atrás dele encontravam-se tantos outros homens


lindos, mas apenas Iran me chamava atenção. Ainda que eu o
evitasse.

Após uma curta leitura de um livro grosso, que falava sobre


lealdade, força e união, uma música alegre começou a tocar e o
ancião, senhor Mancler, disse na língua que eu entendia.

— Que a beleza e a graça da dança da força, embeleze o


caminho e os atos de cada um, que a leveza dela faça com que
derrotem os inimigos com facilidade como se estivessem apenas
dançando e a pintura das flores os acompanhem para que consigam
enfrentar tudo com beleza e mente leve.

Ao fundo o nome do reino foi gritado três vezes por todos,


enquanto eu tentava segurar a minha ansiedade por não saber o
que ia acontecer. Entretanto, a música se intensificou, a tal dança da
força começou e fez com que meu coração fosse a mil movido pelo
ciúme.

Na mesma quantidade dos guerreiros, mulheres vestidas de


maneira provocante entraram no pátio e cada uma parou na frente
de um homem. Com movimentos sensuais começaram a dançar e
quando olhei para dançarina que estava parada na frente de Iran,
reconheci a Ravina.

O encarando fixamente ela dançava de maneira insinuante,


dava a volta nele e deslizava o indicador em seu peito. Todas faziam
o mesmo movimento, mas era o movimento de Ravina o que me
incomodava.

Em minha mente martelava a pergunta de por qual motivo a


escolheram para dançar para Iran e não outra dançarina qualquer?
Teria ele a escolhido? Será que mantinham um romance em
paralelo ao nosso casamento.

Eu encarava ao meu marido e meus olhos com certeza


demonstravam a minha ira, já que Iran me encarava de volta com
seriedade, como se não pudesse fazer nada.

— Por que tem que ter essa dança? — perguntei baixo para
o senhor Mancler que encontrava-se parado ao meu lado e
observando tudo com atenção, a mim principalmente por notar meu
desconforto.

— As mulheres são como a tentação da guerra, o inimigo.


Por isso que os homens têm que se manter imóvel como forma de
dizer que suas mentes estarão em paz na batalha. Como apenas se
vissem uma dança. Tudo aqui tem seu significado, minha cara. —
Os olhos de Iran estavam em mim.

Uma batida alta de tambor anunciou o final da música e as


mulheres tiraram de suas saias um pequeno pote com tinta preta e
um palito. Em seguida, ao som de flautas tocando uma música
suave, todas começaram a pintar o peito dos guerreiros.

A risca do palito com a tinta preta parecia um desenho tribal


ou um tipo de arabesco com flores no final. Eu conhecia aqueles
desenhos e já os tinha visto nos livros dos meus pais no outro
mundo.

Avistei Ravina com a mão no peito nu de Iran e meu


coração começou novamente a acelerar.

Vi que falou algo para ele, fazendo Iran tirar seus olhos de
mim pela primeira vez e a encarar. Meu corpo todo formigava de
ciúme, nervoso e raiva. Todos ali sabiam que Iran tinha uma ligação
no passado com Ravina e eu me sentia com vergonha de me ver
naquela situação.

Percebi que Ravina estava cada vez mais se fazendo


presente, primeiro no casamento, depois na noite anterior e então
aquilo. Não parecia pensar que eu era a rainha e devia-me respeito.

Ela e Iran tiveram um caso, talvez ainda tivesse, mas


naquele momento eu era casada com ele e sentia os olhares a
minha volta como se notassem o meu desconforto.

Movida pela raiva e a vergonha de ser exposta daquela


maneira e na frente de todo o reino, sem pensar muito nas
consequências, levantei-me e segui até onde os dois estavam.

Naquele momento senti ainda mais todos os olhares sobre


mim, principalmente os de Iran.

— Olá — cumprimentei Ravina com um sorriso e encarei


seus enormes olhos verdes, que me olhavam de volta sem entender
o que eu fazia ali. Talvez pensou que eu fosse apenas ficar olhando
de longe e não fosse ter coragem de intervir.

— Olá.

— Vida... — Iran começou a dizer, mas ergui minha mão


para interrompê-lo e sorri.

Voltei-me para Ravina e falei paciente:

— Ravina seu nome, não é? — Ela assentiu. — Ravina,


pode deixar que eu faço isso. — Ergui minha mão em sua direção e
ela me entregou o palito de desenho, sem tirar seus olhos dos
meus, depois soltou um riso falso como se estivesse tudo bem.

— À vontade, mas você não sabe onde está se metendo...


Rainha.
Senti o desprezo na sua fala, afastou-se com um sorriso
irônico no rosto e dançando como se estivesse muito alegre, nos
deixou.

Em silêncio e cercada por alguns olhares em cima de mim,


comecei a dar seguimento aos riscos que Ravina iniciou. Não era
difícil e o traço era rústico e longo, terminado em uma flor nas
extremidades, como ombro, cintura e barriga.

— Por que fez isso, Vida? — sussurrou com os dentes


cerrados.

Mantive-me focada no desenho em seu peito e ele


continuou:

— Você está me envergonhando na frente de todos.

O encarei, claramente irritada.

— Você também me envergonhou ontem e decidiu continuar


hoje.

— Eu?

— Não se faça de cínico.

Voltei a olhar para seu abdômen e ficamos em silêncio, até


que quando percebeu que finalizei, sussurrou:

— Você quebrou mais uma tradição hoje. Rainhas não


descem para pintar os guerreiros.

— Não pintei os guerrei ros, pintei o guerreiro.

— Isso nunca foi feito, Vida — falou baixo.


— Como pode ver, não sou uma rainha como as outras e se
alguma mulher vai pintar o rei para guerra, serei eu.
Dei um passo para trás sustentando seu olhar com o meu,
até que vi as dançarinas se afastarem e partirem.

Eu as segui sem olhar para trás.


Capítulo vinte e dois
Subi para o quarto sem falar com ninguém e dentro dele
andei de um lado para o outro, estralando os dedos e esfregando
minha marca de coração na mão, para tentar controlar meus
pensamentos e sentimentos.

Sabia que o que fiz tinha sido demais e provavelmente havia


ofendido muitas pessoas, não só Iran.

Pensei no que a Ravina me disse e sua fala me confundiu.


O que ela quis dizer com: “você não sabe onde está se metendo.”?

Ouvi batidas na porta que eu sabia não serem dele e


quando abri era Mica.

— Vida, o que você fez?

Ela exibia os olhos arregalados e eu sabia que perguntava


sobre a minha afronta a tradição, então soltei o ar em frustração e
abri ainda mais a porta para que ela entrasse, fechando-a em
seguida.

— Me desculpa, eu sei que... — Tentei começar a minha


desculpa, mas fui interrompida:

— Amiga, não se desculpe, as mulheres pelo castelo estão


te ovacionando... na verdade, até os homens estão. Acharam
extremamente romântico e corajoso o que você fez.

— Acharam?
— Sim. — Bateu duas palmas, animada.

— Mica, eu estava movida pela raiva. Não era para ser


romântico.

— Mas foi. Romântico, corajoso e uma verdadeira marcação


de território. — Suspirou.

— Você sabe o motivo de Ravina ser a dançarina do Iran?


Sabe se foi ele quem pediu?

— Não! E ninguém permitiria uma afronta dessa a rainha.


Ela entrou para dançar por conta própria. Mas a esqueça. —
Balançou a mão no ar. — Subi correndo até aqui para perguntar se
você não vai se despedir de Iran. Daqui uns minutos, ele e os
demais estarão partindo para Animalis.

Juntei as sobrancelhas e me senti triste por ele não me


procurar para se despedir. Talvez pudesse achar que fosse uma
espécie de punição pelo que fiz.

— Não. Não quero falar com ele.

— Vocês estão brigados apenas pela dança ou tem algo a


mais?

— O casamento arranjado é o algo a mais.

— Mas vai se despedir. Ele vai gostar.

Ri sem vontade e tive uma ideia que provavelmente o


deixaria doido, no entanto, era o que eu sentia vontade de fazer e
qual era vantagem de ser rainha de Flós se eu não pudesse fazer o
que desejava.

— Mica, você acha que se eu arrumasse rapidamente uma


bolsa e fosse com eles até Animalis, Iran me faria voltar.

— Ele não faria nada que pudesse te deixar triste.


— Quero ir. Algo está me mandando ir com eles.

— Então se arrume. Ele vai ficar feliz em ter sua companhia


nos dois dias de viagem.

Revirei os olhos.

— Você vê romance onde não tem.

Ela riu.

— Todos vemos que vocês estão apaixonados. O


casamento foi arranjado, mas o amor surgiu com o arranjo.

Encarei-a e soltei o ar desanimada.

— Olha... eu... — Fechei meus olhos. — Preciso confessar...


que nunca havia sentido antes, o que sinto quando estou com Iran,
acho que sinto-me completamente apaixonada, já ele... acho que
casou mesmo forçado e segue fazendo tudo forçado simplesmente
para ajudar o reino.

— Você está enganada, minha cara Rainha.

Ouvimos uma trombeta e uma batida de tambor.

— O que isso quer dizer?

— Que em breve a comitiva que vai para Animalis e para


Trigo vai partir.

— Me ajuda a arrumar uma bolsa que vou com eles. A


rainha também precisa estar na negociação, ainda mais que hoje
estou ocupando o lugar da nascida em Animalis. Foi por um desejo
dela que me tornei rainha. — Pisquei um olho para Mica que sorriu.

— Verdade. Vida, será que você vai aguentar a viagem. É


muito cansativa.
— Eu aguento. — Sorri.

— Você é louca e maravilhosa! Os anciãos não vão gostar,


mas vão aceitar o que a nascida para salvar o povo fizer.

Rapidamente Mica e eu arrumamos uma bolsa com alguns


objetos de higiene pessoal, poucas peças de roupa e peguei a
adaga que sempre carreguei comigo mesmo no outro mundo.

Mantive-me com a mesma vestimenta, que era confortável e


prática para andar a cavalo, só adicionei um lenço no pescoço para
me proteger da poeira.

Quando me vi pronta para ir, ouvimos mais uma batida de


tambor e Mica alertou:

— Vamos correr ou você vai ficar. Ah, vamos por trás do


pátio seguimos até o estábulo, onde você pega o cavalo e volta para
o castelo para ir com Iran.

— Ele vai ficar bravo comigo.

— Não é você quem diz que ele sempre está bravo?

Sorri.

— Tem razão.

— E o lado bom é que ainda vai fazer uma viagem e


passear pelos arredores.

— Se não fosse as condições em que estamos indo, eu te


levaria conosco.

— Ainda vamos passear por todos os reinos e conhecer as


maravilhas do mundo, mas confesso que prefiro ficar onde Valery
está.

— Não sou a única apaixonada do reino.


— De maneira nenhuma, Rainha. — Fez uma reverência.

Puxei-a para um abraço.

— Você é a irmã que Flós me deu. — Abraçou-me de volta


sem graça e quando nos separamos, disse:

— Ah, lembro-me que em uma de nossas andanças pelo


castelo, você havia me pedido para lhe mostrar onde ficava a
passagem para o seu mundo. — Assenti e ela continuou: — No
caminho você poderá vê-la.

— Ah, jura?

— Sim, pergunte ao Iran que ele te mostrará.

— Não que eu queira voltar para o outro mundo, mas é bom


saber onde fica.

Outra batida de tambor soou.

— Vida, vamos ou você vai ficar para trás.

Pendurei a bolsa transversal ao corpo e saímos do quarto


depressa para nos esgueirarmos pelos corredores do castelo. Por
sorte não tinha nenhum guarda na porta do meu quarto naquele
momento.

Passamos pela cozinha onde Mica pegou um cantil com


água, algumas frutas, entre elas muitas bananas que até achei um
pouco de exagero, mas minha amiga me alertou que era bom para
câimbras.

Pegou também ataduras e plantas medicinais que eu


conhecia bem por aprender nos livros.

Saímos pelos fundos e rodeamos o muro para chegar na rua


principal, por onde corremos até chegar aos estábulos. Lá peguei o
mesmo cavalo que montei das outras vezes, que era manso, forte e
já me conhecia. Por sorte o animal já se encontrava selado e só
pendurei a bolsa na sela.

Montei e Mica subiu logo atrás, para juntas cavalgarmos


pela estrada de paralelepípedo que levava de volta ao portão
principal do castelo.

Entrei no pátio a galope e a primeira pessoa que vi, foi Iran


montado em seu cavalo branco. Levava a espada pendurada nas
costas, exibia sua pose imponente com a cara de bravo e estava
lindo como sempre. Parecia uma pintura.

Por sua feição eu sabia que não estava contente em me ver


montada.

Em seguida avistei os outros doze guerreiros que o


acompanharia, todos vestindo azul escuro e um de cada povoado.
Prontos para partir.

Os olhos do rei fixaram em mim e suas sobrancelhas se


juntaram em pergunta, rapidamente seus olhos pousaram sobre a
bolsa presa à sela e assim tomou entendimento do que eu estava
prestes a fazer. O vi fechar ainda mais o cenho e já o conhecia bem
para saber que não gostou da ideia.

Antes que perguntasse ou dissesse algo para me impedir,


limpei a garganta e falei:

— Como rainha de Flós e nascida para salvar o povo,


decidi que quero estar a par de todas as etapas e negociações.
Estamos à mercê de uma maldição ainda não quebrada
completamente e também vivemos uma ameaça de guerra. Sendo
assim, preciso estar por dentro de tudo para tentar salvar o povo
quando precisarem de mim. Irei com a comitiva até Animalis.

Não havia mais uma multidão no pátio do castelo, a maioria


já tinha seguido para suas casas e afazeres, mas os que ainda
estavam presentes, sussurraram entre si, o que eu pensava que
fosse o espanto por minha audácia.

— Alguma objeção? — perguntei em alto e bom som.

— Nenhuma, Rainha. Creio até que seja uma excelente


ideia — disse o senhor Mancler com um sorriso cúmplice e dei-lhe
um meneio de cabeça em agradecimento.

Em seguida o vi se despedir do filho que seguiria conosco


para Animalis. Um rapaz que parecia ter a mesma idade que eu.

Mica desceu do cavalo e andou até Valery que a fitava com


seriedade, no entanto, percebi que ela o esnobou e quando chegou
ao seu lado apenas virou-se para mim e acenou um adeus em meio
a um sorriso muito alegre, como os que eu costumava ver em seu
rosto desde a primeira vez que a vi no meu quarto em Flós.

— Vamos ou chegaremos muito tarde amanhã — foi só o


que Iran disse e bateu com as pernas na barriga do cavalo,
segurou-o pela rédea e em sua pose de rei, saiu galopando portão
afora.

Acenei para Mica e fiz o mesmo que Iran, indo sentido a


Animalis.
Capítulo vinte e três
Cavalgávamos por horas a fio e sentia-me cansada. A noite
já havia caído e o céu estrelado era o nosso cenário.

Notei que os doze guerreiros dos povoados de Flós, tinham


carinho por mim e talvez por ser a única mulher entre eles, a rainha
e a nascida para salvar o povo, todos se revezavam a minha volta
como se me protegessem ou talvez também pudesse ser que Iran
os mandou fazer isso.

Não consegui guardar os nomes de todos e como não


trocaram mais que duas palavras comigo, não deu para perguntar.

Em horas de cavalgada Iran não se aproximou de mim


nenhum momento, manteve-se distante e a frente do grupo,
liderando a comitiva acompanhado da sua cara de bravo e seu olhar
atento.

Sentia-me muito cansada, minhas costas doíam e minha


garganta parecia ter espinhos de tanta sede, já que de cima do
cavalo eu não conseguia alcançar o cantil na bolsa e eu não queria
ser a que pediria uma pausa.

Eu descansaria quando eles descansassem... se


descansassem. O que eu estava começando a achar que não iria
acontecer.

Ao meu lado vi o filho do senhor Mancler tomar água e até


me deliciei com a sensação do líquido descendo por sua garganta e
mexendo seu pomo-de-adão. O vi secar a boca com as costas da
mão e um filete de água escorreu por seu queixo.

— Aceita, rainha? — perguntou-me, quando viu que eu lhe


encarava. Senti-me envergonhada, mas aceitei, porque minha
garganta queimava.

Sorri sem jeito.

— Olha, aceito sim, porque deixei meu cantil na bolsa.

Vi-o parear seu cavalo com o meu e me entregou o


reservatório de água. Tentando não parecer tão desesperada, bebi o
líquido como se fosse a melhor água da vida, dei goles generosos e
devolvi o cantil para ele.

— Obrigada.

— Se quiser mais, está ao seu dispor, Rainha.

— Obrigada. Qual o seu nome?

— Me chamo, Kay.

— Muito prazer, Kay. Você é filho do senhor Mancler, certo?

— Certo. — Sorriu orgulhoso.

— Seu pai é um bom homem.

— Ele igualmente te admira e preciso frisar que eu também.


Pelo que tenho ouvido a seu respeito, tem sido uma excelente
rainha.

Fiquei tímida.

— Bom, sou uma rainha que quebra tradições ao invés de


preservá-las. Sou uma fraude. — Dei de ombro, ri e ele me
acompanhou.
— Fica tranquila que todos entendemos que é pelo bem de
tudo.

Nesse momento, pela primeira vez na noite, Iran olhou para


trás e encarou a mim e a Kay com o semblante sério, claramente
incomodado com a nossa aproximação.

Percebi o rapaz se retesar ao meu lado e logo Iran ordenou:

— Kay, assume a dianteira. — Fechei o cenho.

Ele queria mesmo me excluir.

Kay me deu um meneio de cabeça e seguiu para frente da


comitiva. Quem assumia a dianteira era quem ficava mais atento a
tudo e a qualquer movimento suspeito, a fim de proteger o grupo.

Fui tomada pela curiosidade ao pensar em que animal o


filho do senhor Mancler seria quando transformado.

Gostei de Kay e enquanto eu conversava com ele até


esqueci da dor, no entanto, quando voltei a ouvir apenas o barulho
das patas dos cavalos batendo no chão de terra, o incomodo voltou
a me assombrar e retornei ao tormento de desejar com força uma
parada para descansar.

Iran cavalgou ao meu lado, mas não deu uma palavra e


quando eu estava quase implorando para pararmos um pouco, ele
disse com sua voz imponente, rompendo o silêncio da noite:

— Vamos parar na caverna Requiene para descansar


durante o resto da noite e antes do sol nascer levantaremos para
fazer o resto do percurso.

Houve uma comoção de todos e então percebi, que assim


como eu também desejavam parar, mas se mostravam fortes. Senti-
me orgulhosa por não ter implorado antes da hora.
Iran era mesmo tão forte quanto mostrava ser e quando
chegamos a tal caverna o vi descer do seu cavalo com facilidade
como se passar horas cavalgando não fosse nada.

Esforcei-me para tirar meus olhos de cima dele e tentei


descer do meu cavalo sem fazer careta de dor. Minhas costas
gritavam assim como meus braços, ombros e todo o resto do corpo.

Sem olhar para Iran ergui a perna para desmontar e quando


com esforço a estiquei para tocar o chão, senti as mãos dele nas
minhas costelas apoiando-me para descer com segurança.

— Não era necessário — falei sem olhá-lo, ao mesmo


tempo que abria a bolsa para pegar o cantil de água. Apesar de ter
bebido a água de Kay ainda sentia sede.

— Não matou a sede ao dividir água com um dos guerreiros.


— Sua voz era carregada de acusações veladas.

— Sim, mas sigo com sede. Kay foi muito solícito.

— Vocês estavam em uma conversa animada.

Sua carranca era evidente em seu rosto bonito.

— Sim, Kay é muito simpático.

— E você tem tantos adjetivos para ele em tão pouco tempo


de conversa?

— Talvez se você não o tivesse chamado, eu teria mais.

Ouvi-o dizer algo na língua que eu não conhecia, mas


parecia ser um xingamento. Depois encarou-me com seriedade e
disse:

— Vida, você é a mulher mais imprevisível que já conheci.


— Conheceu muitas mulheres? — Coloquei o cantil na
boca.

— Muitas.

Revirei os olhos mesmo sem querer, porque o ciúme me


atingia com força ao pensar nele com outras, entretanto, Iran
apressou-se em se explicar:

— Não da maneira que pensa, dessa maneira você sabe


que só conheci você.

— Não estou pensando nada.

— Sei que está. Bom, nenhuma mulher que passou por


minha vida era igual a você.

Encarei-o.

— Talvez elas não tivessem o mesmo incentivo para serem


como sou.

Deu de ombros e notou que quando fui guardar o cantil de


volta na bolsa, estiquei o braço e fiz uma careta de dor.

— Está tudo bem?

— Perfeitamente bem.

— Parece com dor.

— Apenas um desconforto.

Analisou-me por um momento, até que falou:

— Temos que conversar.

— Não estamos conversando?


Bufou.

— Quero falar sobre hoje mais cedo... e sobre ontem


também.

— Agora você quer conversar? Ontem saiu de maneira


repentina e voltou deplorável.

— Já pedi desculpas.

— Então responda por que permitiu que Ravina dançasse


para você? Não tínhamos combinado que conversaríamos e não
mais fugiríamos? Se quer ficar com ela, não precisa sair na calada
da noite para isso, podemos encerrar o casamento.

Iran respirou fundo.

— Ontem à noite...

— Esteve com ela. Já disse que vi vocês dois juntos.

— Não foi premeditado, apenas nos encontramos no portão


e sobre a dança, eu não sabia que Ravina estaria lá.

— Se soubesse a teria impedido de dançar para você?

— Sim. Em respeito a você e porque eu não a queria ali. —


Ergui uma sobrancelha o analisando e ele se apressou em dizer: —
E você, por que está aqui? Foi sua maneira de me punir?

— Minha presença é uma punição para você?

— Não, mas sua afronta publicamente, sim.

Encarei-o sem saber o que dizer, até que fomos


interrompidos por um dos guerreiros:

— Chefe, podemos acender uma fogueira?


— Sim, pequena e bem para dentro da caverna, para
claridade do fogo não chamar atenção de possíveis inimigos.

Após um meneio de cabeça em positivo o guarda se foi.

— Vamos nos acomodar e descansar, porque sinto-me


exausta — fugi quando a conversa virou para o que eu fiz.

— Vida, vamos ficar bem e se precisar de mim... estou aqui


para você.

Assenti e desejei ser autossuficiente para não precisar,


embora fosse reconfortante saber que Iran encontrava-se disponível
para mim.

Todos acomodados em volta da fogueira e o silêncio era


presente. Alguns dos guerreiros e guardas encontravam-se deitados
e descansando, enquanto outros tomavam conta do entorno e
certificavam-se de que seguíamos seguros.

Eu mantive-me um pouco mais reclusa, mais para o fundo


da caverna, de onde encarava em silêncio a língua de fogo
chicoteando o ar e queimando a madeira seca. Ao mesmo tempo,
meus pensamentos vagavam pela incredulidade do que estava
acontecendo comigo. Perguntava-me como em dias eu saí de uma
vida monótona e sem graça para tudo o que testemunhava desde a
minha chegada em Flós.

Parei de pensar e voltei para o momento, quando um arrepio


de frio tomou meu corpo e a voz de Iran invadiu meus ouvidos:

— Sente-se mais perto da fogueira, parece com frio.

Não percebi que meus braços rodeavam meu corpo, até


ouvi-lo e vê-lo sentar-se ao meu lado.

— Aqui está bom. Foi só um ar frio que passou.


Sem pedir permissão, Iran passou seus braços ao redor dos
meus ombros e puxou-me para junto dele. De imediato retesei-me,
mas não me afastei. Olhei em volta e nenhum dos homens a nossa
volta se importaram com nosso momento mais íntimo.

— Mesmo em meio a noite fria, você está quente —


comentei para quebrar o silêncio.

— Os lobos normalmente são.

— Às vezes, esqueço do seu lado mágico.

— Você também tem um escondido aí dentro.

Ficamos em silêncio por algum tempo, enquanto eu sentia o


calor do seu corpo me aquecer e era reconfortante ficar perto dele,
sentir seu cheiro e seu calor. Desejei que tivéssemos mais
momentos juntos e menos de desentendimentos.

— Me desculpa se te magoei — pediu e eu assenti.

— Me desculpa se te envergonhei. — pedi e ele assentiu.

— Vamos recomeçar? — perguntou.

— Quantas vezes vamos fazer isso?

— Espero que quantas forem preciso para que sempre


fiquemos bem.

Sorri e perguntei:

— Iran, por que você muitas vezes muda de humor de forma


tão repentina?

— Tenho alguns demônios que me assombram.

— Sabe... por vezes já pensei que você tem algum


problema comigo.
Manteve-se quieto por um tempo, até que disse:

— Você não é o problema... é que existem coisas... —


Mesmo sem olhá-lo por estar com a cabeça encostada em seu
peito, soube que engoliu em seco como se fosse difícil falar. — Que
me arrependo e não queria que houvesse mais uma.

Juntei as sobrancelhas ia perguntar, mas vi um dos guardas


dividindo um pão em pequenos pedaços entre os doze homens.

— Vocês não trouxeram comida para viagem?

— Apenas um pão. Dividimos o que usaríamos na viagem


um pouco para cada carregar. Como não era um percurso muito
longo decidimos ficar sem comer e comeríamos apenas em
Animalis. Já somos pesados para que os animais nos carreguem,
eles sofreriam se trouxéssemos muita coisa.

Sorri ao lembrar de Mica e levantei-me, dei alguns passos


em direção a bolsa, que encontrava-se junto aos pertences de todos
e lá de dentro tirei as frutas enquanto era fitada pelos homens.

— Gostam de banana? — perguntei e fui recebida com


sorrisos, como se eu tivesse mostrado a comida mais deliciosa de
todas.

Distribuí as bananas e cortei maçãs em quatro para que


para todos recebessem a mesma quantia. Após vê-los felizes com
suas porções de comida, peguei a minha parte e a de Iran, andei de
volta para onde estávamos anteriormente e de onde ele me
encarava com um semblante divertido, até mesmo com orgulho.

Sentei-me ao seu lado, entreguei-o a sua parte das frutas e


ele riu, depois comecei a comer a minha.

— Acho que você está tentando comprar a minha tropa e


com isso se tornar a chefe da comitiva.
— Sou a chefe desde que saímos de Flós. Você que não
percebeu.

Riu.

— Não tenho dúvida disso, Luxmihá.

Encarei-o, terminando de comer minha parte das frutas.

— Ainda vou descobrir o que são as palavras que você diz


na antiga língua de Flós. Certeza que me xinga em segredo.

Iran colocou um pedaço de maçã na boca e com um lindo


sorriso, disse:

— Minha luz... é o que você é, Luxmihá.

Contive um suspiro, observei seus olhos e uma enorme


vontade de beijá-lo me atingiu, mas eu guardaria para quando
voltássemos para o castelo, então perguntei:

— Iran, como se diz motivo da minha alegria?

— Caiex est meum gadimihá.


Sorri e eu o achava extremamente atraente conversando
naquela língua.

— Que interessante! Sabe como diz motivo da minha alegria


na minha antiga língua?

Ele juntou as sobrancelhas em desentendimento, pois sabia


que eu não tinha outra língua.

— Como? — perguntou com um sorriso desconfiado.

— Iran... ou Bravo se preferir.

Vi seu olhar se intensificar e depois fitou meus lábios como


se quisesse devorá-los a qualquer momento, porém, em seguida
voltou seus olhos para os meus. O vi respirar fundo e logo seu rosto
foi tomado por uma escuridão.

— Vem cá. — Puxou-me novamente para os seus braços e


eu me acomodei em seu peitoral rijo. Vi quando deu mais um
suspiro profundo e em seguida, disse: — Quando voltarmos,
teremos uma conversa difícil, mas que preciso ter e te contar algo
muito sério. Espero que ainda pense isso sobre mim depois de me
ouvir e aí, poderei te mostrar tudo que escondo em meu peito.

Pensei em perguntar o que era afinal, mas aquele não era o


momento, pois percebi que o que quer que fosse que Iran tinha para
me contar, devia ser algo sério e que o atormentava sempre que
estava ao meu lado. Sendo assim, apenas segui sentindo sua
respiração e peguei no sono deitada em seu peito.
Capítulo vinte e quatro

— Não! — gritei alto, com a voz cheia de dor e levantei-me


do peito de Iran.

— Vida, o que foi?

Meu corpo suava, minha respiração estava ofegante e


passei a mão em Iran para conferir se seguia inteiro, depois olhei
em volta e entendi que eu ainda estava na caverna.

— Um sonho... pesadelo.

— Com o quê?

— Sangue... Muito sangue em Flós. Muito sangue...

— Calma, foi só um sonho.

Olhei para frente.

— Majestade... — Kay entregava-me um cantil de água.

— Grata — agradeci e ele recebeu um meneio de cabeça de


Iran.

Ao beber água encarei todos ali que me olhavam


assustados, provavelmente por meu grito desesperado ao acordar.
— Me desculpem o destempero. É que... parecia muito real.
— Meus olhos se encheram de lágrimas. — Muito real.

— Está tudo bem. — Iran puxou-me para seu peito e os


guerreiros dispersaram. — Acalme-se.

Quando percebeu que eu estava mais calma, Iran


perguntou-me:

— Com o que você sonhou exatamente?

— Flós toda tomada de sangue, muitos mortos e Mica era


uma.

Iran ficou em silêncio, como se pensasse em tudo, mas logo


levantou-se e ordenou:

— Vamos levantar acampamento e seguir para Animalis.


Quanto antes chegarmos lá, antes voltaremos para Flós e
poderemos proteger nosso reino em um possível ataque.

Iran aparentava estar nervoso, os sonhos eram levados a


sério e se o meu acontecesse, seria uma carnificina.

Não demorou até que juntássemos todas as coisas,


preparássemos os cavalos e seguíssemos em silêncio para
Animalis.

O percurso foi feito com muita atenção, já que partimos


muito antes do sol nascer e cavalgávamos no escuro, com o medo
de um ataque surpresa nos fazer reféns.

Em minha mente a imagem que vi no sonho, reaparecia


repetidas vezes como um filme ruim.

...as cinzas tomavam conta de tudo...

...no chão diversos corpos, caídos de qualquer maneira,


enquanto os vivos gemiam de dor ou tinham seus corpos
mutilados...

...lobos horrorosos, ienas e javalis com rostos deformados


atacavam pessoas que corriam. Em contrapartida, animais que
transmitiam luzes fluorescentes lutavam para protegê-las. Vi durante
a batalha uma águia que ao seu redor brilhava uma luz amarela
vibrante. No entanto, testemunhei o momento que um lobo cinza de
olhos vermelhos pulou em sua direção e a atacou, fazendo com que
a luz a sua volta apagasse e ela se transformasse novamente em
uma humana sem vida... Mica.

Balancei a cabeça para esquecer os pensamentos ruins que


me rondavam e com o coração aflito, foquei na estrada a minha
frente e na escuridão em volta, torcendo para que minha amiga
estivesse bem.

— Chegaremos à Animalis logo depois daquela colina —


anunciou Iran, que cavalgou durante todo o percurso ao meu lado.

Sentia me cansada, mas torcia para que acertássemos tudo


com o rei de Animalis o mais rápido possível e voltássemos logo
para Flós. Só aquietaria meu coração quando isso acontecesse e eu
soubesse que o sonho foi apenas fruto da minha preocupação.

Enquanto subíamos a colina lembrei-me que Mica me


contou em uma das nossas andanças, que os viventes de Flós
podiam se transformar em bichos graças a ancestralidade que
tínhamos de Animalis, antes mesmo da rainha Evoen.

Minha amiga me disse que um dos primeiros casamentos de


Flós, foi de um vivente do nosso reino com um de Animalis por isso
somos aliados e por isso nosso coração e corpo assume a forma
animal.

Já Cinere, Mica contou que segundo a lenda vinda dos


primórdios, eles roubaram, por meio de magia, o dom de virarem
animais, por isso os guerreiros transformados de lá, carregam uma
aparência sombria após a transformação.

Acabamos de subir a colina e logo avistamos a entrada de


Animalis que de cara demonstrava do que aquele reino se
orgulhava, já que dois totens enormes de animais eram exibidos: um
macaco e um rinoceronte.

Passamos pelo portão que cercava o reino e galopamos em


disparada até o castelo que ficava a alguns quilômetros da entrada.

Assim como Flós, Animalis era um reino com diversos


povoados, com a diferença de serem muito mais habitados, terem
muito mais idosos e crianças.

Logo que começamos a ver os moradores, fomos recebidos


com sorrisos e todos transmitiam amizade. Percebi que pareciam
gente de bem, como o meu povo.

Ao ver pessoas estranhas entrando em seu reino, não


demorou até alguns homens da guarda se aproximarem para nos
interceptar e após Iran se apresentar, fomos escoltados ao rei.

Notei que aquele reino era muito mais desenvolvido que


Flós, e claro que seria, considerando que não viveu uma vida de
fome, à mercê de uma terrível maldição, no entanto, talvez por Flós
ser o reino das flores, lá parecia haver muito mais cor do que em
Animalis e até mais alegria.

Paramos os cavalos em frente à entrada principal do


Castelo, descemos e Iran indicou que os guerreiros se
alimentassem, bebessem e descansassem, já que assim que
acertássemos tudo, partiríamos de volta para Flós

O castelo de Animalis era diferente do nosso, ao invés de


pedras, era construído em madeira e não parecia tão alto. O salão
principal exibia paredes de madeira brilhosa e o chão era verde
escuro, tão limpo que parecia um espelho.
Um serviçal muito bem-vestido nos levou até o gabinete do
rei, que nos esperava de pé em frente a sua grande mesa de
madeira.

— O povo de Flós — o serviçal nos anunciou.

— É um prazer recebê-los, vejo que enfim se livraram da


maldição — disse o rei de Animalis sorrindo. Um senhor de cabelos
grisalhos, gorducho e barba Branca, usava uma roupa verde com
estampas amarelas e nos analisava com atenção.

— Como vai, Rei Calei? Obrigado pela recepção. Sobre a


maldição, estamos a caminho de nos livrarmos dela. — Iran fez
uma pequena reverência, esquecendo-se que também era rei e
apontou para mim. — Apresento-lhe a rainha de Flós e minha
esposa, Vida.

O senhor virou-se para mim, me observou e seus olhos


brilharam, de modo que me senti sem jeito.

— Um prazer em conhecê-la, bela Rainha. — Beijou minha


mão.

— Igualmente.

Soltou-me e olhou para o Iran.

— É a primeira vez que vejo uma rainha presente em uma


conversa entre reinos.

— Vida não é uma rainha como as outras — Iran explicou e


o homem sorriu.

— Percebo que não. — Analisou-me e Iran fechou o cenho.

— Minha esposa é uma excelente rainha, gosta de


acompanhar tudo de perto e de dividir as responsabilidades sobre o
reino. — Sorriu um tanto sem vontade e apressou-se em frisar que
eu era sua esposa, camuflando seu desconforto aos olhares do
homem, já que estávamos ali para pedir um favor.

Encarando ao Iran o rei Calei, disse:

— Sua, não é? — Sorriu como se entendesse que Iran


marcava território. — Então virou rei? Lembro-me quando você
esteve aqui há alguns anos com o antigo guardião, em busca de
mantimentos, que depois eu soube que sumiram assim que
ultrapassaram a fronteira de Flós.

— Exatamente, estive sim. Eu era muito jovem, o senhor


tem uma excelente memória. — O Rei assentiu orgulhoso e Iran
contou: — Tentamos essa manobra naquela época, mas a maldição
sumia com qualquer comida que entrasse que não fosse de Flós. No
entanto, hoje vivemos em abundância, Vida regressou ao reino e
tem ajudado na quebra da maldição.

— Sinto muito pelo tormento que passaram por anos e fico


alegre em saber que estão se recuperando. Sentem-se. — Apontou
para as cadeiras a frente da mesa, deu a volta nela e sentou-se do
outro lado. — Mas o que os traz de volta a Animalis? Há muitos
anos que não temos interação com nosso maior aliado.

Nos acomodamos e Iran começou a explicar com detalhes


tudo que enfrentamos nos últimos tempos. Contou o quanto
estávamos perto de quebrarmos de vez a maldição e vivermos livres
de Cinere, depois disse o motivo de estarmos ali.

Ao final da explicação o rei recostou-se na cadeira,


parecendo pensar em tudo que ouviu.

— Entendi, mas por qual motivo eu colocaria meus homens


para lutar uma guerra que não é minha?

— Bom, se o mago de Cinere conseguir tomar Flós e se


tornar o rei dos dois reinos, você acha que ele vai parar? — Iran
perguntou.
— O próximo alvo da maldade de Chain, com certeza será
Animalis — falei pensando alto. — É o reino mais próximo.

— São um povo ganancioso e mau. Vocês não vão querer


se ver como alvo da ira deles. Garanto — Iran disse.

— Preciso de um tempo para analisar — falou e voltou a


ficar ereto.

— Não temos muito tempo, estamos sob ameaça, mas


agradecemos por ao menos decidir pensar sobre.

Rei Calei assentiu e se levantou, indicando que a reunião


estava encerrada, em seguida apertou a mão do Iran e pegou a
minha mão para beijá-la, no entanto, antes que saíssemos, decidi
apelar para o coração.

— Obrigada por nos receber. Saiba que sempre terá em


Flós um reino amigo. Temos a honra de ter tido a rainha Evoen de
Animalis na nossa história e se um dia precisar de nós, estaremos
dispostos a ajudar.

O Rei sorriu, provavelmente notando a minha apelação


velada e fez uma leve reverência.

— Levarei isso em consideração.

Em seguida saímos da sala do rei, que pediu que nos fosse


servido comida e bebida, nos mandassem para aposentos onde
pudéssemos tomar banho e nos preparar para viagem de volta.
Capítulo vinte e cinco
Selávamos os cavalos para seguir a viagem de volta para
Flós e após um banho sentia-me mais descansada.

Apesar de o rei ter insistido que pousássemos em Animalis


naquela noite, meu coração dizia que devíamos voltar o mais
depressa possível, mesmo que sem a ajuda do rei Calei.

Éramos fortes, apesar de não fisicamente, mas éramos


unidos e lutaríamos até a morte.

As horas passaram e não tivemos uma resposta de Calei,


nem mesmo uma recusa, então decidimos partir sem mais insistir.

Novamente saímos no final da tarde para evitar o sol


quente. Iran e eu tomamos a dianteira da comitiva e cercados de
doze homens do nosso povo, deixamos Animalis e regressamos
para Flós.

O caminho foi silencioso e cheio de tensão, já que como foi


na ida, na volta também tínhamos medo de sermos atacados de
surpresa.

Aproveitei o silêncio da cavalgada para pensar no que Iran


tinha para falar comigo. Parecia aflito quando prometeu que
chegando em Flós me contaria tudo.

Cogitei se tinha algo a ver com a minha vida no outro mundo


ou com o meu passado e não consegui pensar em nada a não ser
que tivesse a ver com ele e Ravina.
Meu coração se apertou com a ideia dele me contar tudo e
me deixar para ficar com ela, mas balancei a cabeça para esquecer
e não deixar meu ciúme falar mais alto.

Após um tempo em silêncio para não pensar em coisas que


me afligiam, resolvi puxar conversa:

— Iran, Mica me disse que no caminho eu passaria em


frente ao local onde fica a passagem para o meu antigo mundo.
Gostaria de saber onde é.

— Está pensando em me deixar? — perguntou sério e olhou


em volta para certificar-se que os outros não nos ouviam, como
estávamos distantes, era impossível.

— Acho mais fácil você fazer isso.

— Por que pensa assim?

— Bom, eu não tenho ninguém, já você...

— Eu também não tenho ninguém... Só você.

Reprimi um suspiro e sorri.

— Mas e quanto a caverna?

— Te mostro quando chegarmos lá. Fica na entrada de Flós.

— E como é para voltar para o meu antigo mundo. — Ele


me analisou e completei: — Não quero voltar, apenas curiosidade;
saber como funciona.

Iran lançou-me um bonito sorriso.

— Só entrar na escuridão da caverna e dizer Flós em voz


alta para voltar e para ir, eu dizia mundo gelado ou pode dizer algo
que te remeta ao outro mundo. Sempre falei mundo gelado, porque
lá era sempre muito frio.
— Sim, nunca gostei do frio também. Para você o bom era
que seu pelo de lobo te aquecia.

— Mas nem todo pelo me aquecia mais do que quando eu


deitava para dormir com você.

— Iran! — usei seu nome para chamar atenção e olhei em


volta para saber se alguém nos ouvia, mas estavam completamente
alheios a nossa conversa.

— É a verdade. — Deu de ombros se divertindo.

— Você nunca me disse o motivo de ser tão arredio comigo


em Flós. Faz parte do que vai me contar quando chegarmos?

Seu sorriso sumiu.

— Sim. — Olhou para frente parecendo envergonhado e a


nossa conversa acabou.

Mais tarde paramos para descansar na mesma caverna da


ida e embora tivesse passado muito tempo em cima do cavalo, não
sentia-me cansada fisicamente como na ida e sim mentalmente.

O pensamento de que devíamos continuar e chegar em Flós


o mais rápido possível, me atormentava. Até tinha sugerido que
continuássemos, mas após olhar em volta notei que todos estavam
cansados e não tiveram o mesmo sonho que eu para assombrá-los
e movê-los mais rápido para casa.

Podia ser só um sonho e eu encontrava-me desesperada


por nada, mas também podia ser uma premonição.

Levantei-me do chão onde me acomodei para passar uma


parte da noite e sentindo meu corpo elétrico comecei a andar de um
lado para o outro.

As lembranças do sonho tão real que vivenciei naquela


mesma caverna iam e voltavam em minha mente, tirando a minha
paz.

Mica ensanguentada apareceu na minha vista como se


fosse real e o ar foi drenado dos meus pulmões imediatamente,
fazendo todo o meu corpo formigar de preocupação.

Olhei para saída da caverna e vi Iran conversando com um


dos guerreiros, enquanto outros encontravam-se deitados e
descansando. Queria conversar com meu marido, pois sabia que a
sua calma faria com que aquela sensação passasse, porém, ele
estava ocupado e eu não queria incomodá-lo e parecer uma
desesperada.

Olhei em volta e achei uma saída lateral que dava para as


árvores do lado de fora balançando com o vento da noite. De
imediato pensei que precisava daquilo para respirar melhor e saí da
caverna.

Desci o pequeno barranco de pedras e depressa cheguei ao


chão para andar em meio às árvores que rodeavam o lugar.

Tentei respirar fundo, puxando a brisa fresca da noite,


depois sem chamar atenção andei alguns passos para longe da
caverna, até que olhei para trás e consegui ver a pequena claridade
da fogueira a alguns metros.

Apoiei-me em uma árvore e fechei os olhos para respirar


fundo, depois soltei o ar e tentei pensar em coisas boas.

Olhei novamente em direção a caverna e afastar-me deles


um pouco pareceu o melhor a fazer, não queria causar uma cena e
parecer fraca ou deixá-los preocupados.

Meu peito queimava, subia e descia com a respiração


ofegante. Era a segunda vez que eu sentia aquilo desde que
cheguei em Flós. Tudo o que eu vivi ali era muito intenso e por
vezes me sufocava, principalmente quando eu sentia medo do que
estava por vir. Como naquele momento.
Mais uma vez respirei fundo, mas senti minhas pernas
titubearem, contudo, quando achei que fosse cair, mãos fortes
pegaram-me pela cintura e me firmaram de pé novamente.

— Vida... O que você tem? — Me prensou de encontro a


árvore e só de tê-lo tão perto minha respiração começou a se
controlar.

— Viu alguma coisa? O que está sentindo, mihá slatis? —


Sua voz preocupada invadiu meus ouvidos e as sua voz carinhosa
me trouxe de volta

— Estou... bem... ficando bem. Não vi nada, foi só... o


pânico que tomou conta de mim. — Minha respiração ainda estava
um pouco ofegante, mas voltando ao normal.

Iran puxou-me para junto do seu peito e pude sentir seu


cheiro que eu amava.

— Não saia mais de perto de mim, fiquei preocupado


quando não te vi... Achei que os inimigos tivessem capturado você.
— Notei o desespero em sua voz.

— Me desculpe. — Deu um beijo delicado em minha testa.

— Está tudo bem. Quer conversar?

— Não, só me abraça forte.

Acabando com o pouco espaço que ainda existia entre nós,


Iran me puxou para junto do seu peito, a ponto de eu ouvir seu
coração batendo forte. E tê-lo tão perto, saber que ele conseguia
acalmar minhas crises, me deixava tranquila e fazia com que eu me
sentisse especial.

Um dos guerreiros apareceu para confirmar se estávamos


bem e Iran o disse que estava tudo certo e que logo voltaríamos. O
homem se foi e novamente ficamos a sós.
Com ele eu me sentia segura, meu sentimento aumentava e
eu só conseguia pensar em uma coisa: eu o amava.

Amava com todas as minhas forças, com todo o meu corpo


e com meu coração.

— Eu te amo — sussurrei sem pensar muito e com o rosto


encostado em seu peito. Percebi que sua respiração parou:

— O quê?

Encarei-o.

— Eu amo você. Sei que está tudo muito rápido, mas tenho
certeza que te amo. Sinto que te amo — Vi seus olhos fitarem meu
rosto com desespero e antes que ele dissesse algo ou não dissesse
nada, pedi: — Me beija, me tome aqui, agora, porque amanhã não
sei o que acontecerá. Sinto que tudo vai mudar e só quero que me
beije, me faça sua mais uma vez.

Fiquei nas pontas dos pés e aproximei minha boca da dele,


deixando que concluísse o resto.

— Me faça sua mais uma vez.

Não precisei pedir mais e Iran devorou a minha boca com a


sua, sugando minha língua e me puxando para junto do seu corpo.
Não demorou até que suas mãos começassem a deslizar por mim,
em cada parte, e no desespero de pensar que se meu sonho fosse
uma premonição, talvez eu pudesse nunca mais senti-lo de novo,
pedi novamente, quase implorando:

— Por favor, me toma para você, entre em meu corpo, já


que em meu coração você já está.

Com um movimento rápido Iran me virou costas e prensou-


me contra a árvore, abaixou a calça de pano mole que eu vestia,
depois abriu o botão da sua e tirou seu membro rijo para fora.
Pegou-me com uma de suas mãos de cada lado do meu
quadril, ergueu-me alguns centímetros com facilidade, para que
conseguisse me penetrar e assim tomou-me como pedi.

Sentindo-o dentro, arfei em contentamento e equilibrando-


me na ponta dos pés encostei meu colo de encontro a árvore, sendo
pressionada pelo homem grande e forte atrás de mim.

Carinhosamente Iran começou a se mexer para dentro e


para fora do meu corpo, deixando-me em chamas, pegando fogo e
exalando o calor em forma de gemidos e suspiros.

Puxou-me para perto com sua mão em meu colo e sua boca
perto do meu ouvido, disse:

— Você não me deixou responder, mas agora que estou


aqui, sentindo seu corpo, seu calor e ouvindo seus gemidos, me
declaro. Eu também te amo, minha Vida.

Fechei meus olhos ao receber aquelas palavras que


surgiam como um afago. Ele me amava e eu o amava... O amava
incondicionalmente e o queria para sempre perto de mim, me
preenchendo com o seu corpo, com a sua presença e com o seu
sentimento.

Enquanto eu experimentava o vai e vem dos nossos corpos,


me prendia ainda mais a ele e tentava pensar que tudo ficaria bem
para que nunca mais precisássemos nos afastar.

Uma de suas mãos escorregou por entre minhas pernas e


alisou lentamente meu ponto mais sensível, do jeito como ele já
sabia que eu gostava, fazendo-me gemer e me entregar ainda mais
ao momento.

Empinei-me em sua direção, para que arremetesse com


força seu membro em mim e quando voltei a aproximar meu corpo
do seu peito, pedi:
— Mais forte.

Queria senti-lo, que me marcasse, que deixasse meu corpo


sentindo o seu e que fizesse amor comigo como se fosse a última
vez.

Notando o que eu queria pegou forte meu quadril com sua


mão, enquanto a outra subiu até meu seio e por baixo da bata o
acariciou, se deleitando com meus gemidos.

Com tanto estimulo não demorou até que ambos nos


libertássemos e chegássemos ao ápice do prazer, aproveitando os
tremores dos nossos corpos extasiados e a delícia de nos
acabarmos um no outro, entre juras e pensamentos de que tudo
acabaria bem.

Quando a sensação de êxtase se acalmou, Iran usou o


lenço que eu levava no pescoço para se limpar e me limpar, ajudou-
me a erguer a minha calça e virou-me de frente.

Novamente prensou-me contra a árvore ficando com seu


rosto muito perto do meu e então disse, com a voz tão séria e triste,
como eu nunca tinha ouvido:

— Se algo acontecer, se alguma coisa nos separar... —


Engoliu em seco. — Quero que se lembre que o meu amor por você
é maior que qualquer verdade, que você é minha vida e quando
souber de tudo... não deixe nada ser maior que meu amor por você.
— Encostou a testa na minha. — Nunca imaginei que me
apaixonaria por você, nunca planejei esse sentimento que me
consome desde a primeira vez que meus olhos cruzaram com os
seus, mas agora que o sinto, não quero mais viver sem ele e tenho
tanto medo que isso aconteça.

Rompi a distância e o beijei, Iran não parecia feliz, mas sim


culpado, triste e eu não entendia porque sua voz carregava tantos
conflitos.
Quando nossos lábios se separaram ele continuou a falar:

— Temos que enfrentar uma batalha de cada vez e quando


tudo isso acabar vou te contar o que me aflige e espero que me
entenda.

— Me conta Iran, eu posso lidar com tudo de uma vez.

Passou a mão delicadamente em meu rosto.

— Por enquanto, só lide com meu amor. Mi velo te, luxmihá.


— Juntei as sobrancelhas claramente pedindo que traduzisse, ele
sorriu e disse com sua voz grossa bem perto do meu ouvido: — Eu
te amo, minha luz... muito, mais que tudo, mais que as estrelas do
céu, mais que todas as flores de Flós, mais que o mundo e mais do
que tudo que pode nos separar. Eu te amo, minha Vida.

Iran puxou-me para um beijo sem deixar que eu também


dissesse que o amava e aquele foi o dia mais feliz da minha vida.

Iran me amava e podíamos enfrentar tudo e todos,


podíamos enfrentar a maldição e ficaríamos bem ao final de tudo.
Eu tinha certeza que ficaríamos.
Capítulo vinte e seis
Antes do dia amanhecer saímos da caverna e decidimos
cavalgar rápido em direção a Flós.

Iran me olhava diferente desde que me declarei, parecia


mais leve como se acreditasse que tudo ia dar certo, já eu, sentia
medo do que estava por vir e do que ele tinha para me contar
quando chegássemos em casa.

Sabia que devia ser algo importante, mas torcia para que
não fosse tanto, a ponto de nos separar e terminar com o
relacionamento que estávamos construindo pouco a pouco.

Após um tempo cavalgando rápido, decidimos seguir em um


trote lento para não forçar tanto os animais e eu e Iran assumíamos
a dianteira, lado a lado, como os líderes que éramos.

Se a ida foi em silêncio, a volta foi ainda mais, já que desde


o meu sonho, todos temiam pelos seus que ficaram em Flós.

— Estamos nos aproximando da fronteira de Flós, logo


passaremos pela caverna que leva para o seu antigo mundo — Iran
me informou e eu assenti.

Notei que ficou sério e falei:

— Não tem nada lá que me interesse, minha vida está aqui.

— Quero que minha Vida também continue aqui. — Sorriu e


percebi que fazia trocadilho com meu nome.
Continuamos cavalgando e não demorou até passarmos
pelos totens de madeira desenhados com flores de lótus, que
indicavam a fronteira de Flós. Com isso, alguns metros à frente, Iran
disse:

— Ali. — Apontou. — Atrás daquelas três árvores está a


caverna que leva para o seu mundo. — Exibia um rosto sério.

— Já disse que meu mundo é aqui, é você, é Flós —


apressei-me em corrigi-lo e após olhei em direção a passagem.

Notei que era muito parecida com a entrada do outro lado,


diria até que idêntica se não fosse pela falta do bosque na frente.
Voltei-me para Iran que se declarou com olhar apaixonado:

— E o meu mundo é onde você estiver.

Semicerrei os olhos e o analisei.

— Anda tão romântico, meu Rei. Já sinto saudade do meu


Bravo.

— Posso ser seu lobo quando quiser. Sabe que eu iria


adorar te morder.

Olhei em volta para conferir se não éramos ouvidos e


quando tive certeza que não, falei baixo:

— Quando quiser me morder estou disponível, Lobo. —


Pisquei um olho para ele e ri adorando aquela versão feliz e falante
de Iran.

Ele ia dizer algo, mas uma explosão e uma fumaça preta ao


longe chamou nossa atenção, tirando o sorriso do meu rosto.

— Flós! — gritei, bati a perna na barriga do meu cavalo e


parti em disparada em direção ao castelo sem esperar por nada.

Mica... eu preciso salvar minha amiga.


Em pouco tempo fui acompanhada por todos, que
galopavam a toda velocidade ao meu lado, exibindo expressões
preocupadas e cheias de medo.

Não demorou até que nos aproximássemos do povoado que


antecedia o castelo e ele era a personificação do caos: pessoas
gritavam em desespero, casas pegavam fogo e soldados lutavam
contra animais com aparências monstruosas, tinham homens
vestidos de cinza munidos de espadas e exibindo expressões
maquiavélicas em seus rostos. O próprio mal.

— Cineres! — um guerreiro da comitiva gritou, seu rosto foi


tomado por ira e ele saltou de cima do cavalo como que pairando no
ar e uma luz forte imediatamente tomou seu corpo, fazendo com
que caísse no chão já transformado em um tigre.

Olhei em volta e vi os guerreiros da comitiva se


transformando em diversos animais, enquanto luzes incandescentes
emanavam de seus corpos. Testemunhei homens virando tigre,
lobo, águia e touro. Seus gritos na metamorfose preencheram meus
ouvidos e fiquei atordoada em meio ao que via.

Olhei a minha volta em busca de Iran, mas em todo aquele


terror não o encontrei, no entanto, após varrer com o olhar toda a
luta a minha volta, o localizei a alguns metros, em cima do cavalo e
lutando com sua espada.

Seu olhar cruzou rapidamente com o meu e após certificar-


se que eu ainda me encontrava inteira, galopou para o próximo
homem de Cinere, enfiou sua espada nele e vi o sangue esguichar
alto.

Meu coração encontrava-se acelerado no peito e eu não


sabia o que fazer. Não queria matar ninguém, não queria aquela
guerra e nenhum mal, entretanto, se eu não matasse, o meu povo
que morreria.
— Vida, procure um lugar seguro — Iran gritou, aparecendo
repentinamente ao meu lado, ainda montado em seu cavalo e como
sempre querendo me proteger.

Não o respondi e sentindo-me perdida rodei com o cavalo,


segurando-o pelas rédeas para que não empinasse e olhando de
um lado para o outro sem saber para onde ir.

— Vida! — gritou novamente, muito alto, para se sobressair


sobre o barulho de espadas em atrito e bombas que explodiam a
nossa volta.

Olhei-o mais uma vez até que meu olhar foi capturado pelo
terror a minha volta e em seguida pela visão do castelo ao fundo, de
onde vi fumaça subindo em direção ao céu.

Lembrei-me do sonho e de Mica.

— Não! — gritei desesperada, bati as pernas na barriga do


animal e galopei em direção ao castelo a toda velocidade.

Sabia que Iran me acompanharia e não demorou até que


passássemos pelo portão principal do castelo e eu revivesse a
mesma cena do meu sonho.

Avistei uma águia coberta com luz amarela, que lutava


contra um lobo de olhos vermelhos, o medo de matar deu lugar a
raiva que borbulhou em meu peito, misturada a dor por ver a amiga
que eu amava tanto, em uma situação de perigo.

Pensar no que aconteceria a seguir, como aconteceu em


meu sonho, fazia com que eu me enfurecesse e os sentimentos se
agitassem dentro de mim a ponto de eu desejar ser forte e poderosa
para conseguir acabar com quem quer que ferisse as pessoas que
eu amava.

Fechei meus olhos e senti que algo começava a surgir no


meu interior, meu corpo formigava e queimava de dentro para fora,
como se me consumisse.

Voltei a abrir meus olhos e os senti queimar, abaixei meu


rosto e observei minhas mãos, de onde vi uma luz dourada
evaporando de minha pele.

— Vida, você está bem? — Ouvi a voz do Iran vinda de


algum lugar que eu não sabia identificar, mas apenas foquei no que
acontecia com meu corpo.

Ao fundo o caos continuava, pessoas morriam ou lutavam


por suas vidas e por nosso reino, enquanto os Cineres tentavam
roubar o que era nosso.

Olhei em direção a Mica e a vi ser atingida pelo lobo e


caindo de encontro ao chão.

— Malditos! — praguejei. ​

Fechei meus olhos novamente.

— Quero. Ser. Uma. Guerreira — falei pausadamente e


coloquei nas palavras toda a raiva que sentia daquela guerra e da
maldição. — Quero lutaaarrr! — gritei.

De repente a luz dourada se intensificou a minha volta e


senti como se meus ossos quebrassem ao mesmo tempo que uma
dor latente me atingia.

Gemi e escutei o que parecia ser Iran dizendo “não” para o


que estava prestes a acontecer comigo.

Gritei e me abaixei tentando aguentar a dor.

Encolhi-me e sentia-me confusa, pois ao mesmo tempo que


desejava que a dor terminasse, ansiava que ela viesse com mais
força e concluísse o que quer que fosse que começou a acontecer
comigo.
Ao abrir meus olhos enxerguei Iran retirando a espada de
dentro do peito de um Cinere e correndo em minha direção, porém,
foi parado quando um lobo de olho vermelho o atingiu, o
abocanhando pelo ombro e o girando de encontro ao chão.

— Iran... — tentei chamar.

Olhei para o lado onde antes eu tinha visto a águia lutando e


Mica já se encontrava na forma humana e ensanguentada no chão.

— Mica... — sussurrei e meus olhos se encheram de


lágrimas.

Coloquei a mão no peito para tentar conter a dor que me


atingiu como uma lança, me atravessando e rasgando-me ao meio.
Respirei de maneira acelerada.

Ergui a cabeça mesmo em meio a dor, na intenção de achar


Iran, mas uma luz azul muito brilhante quase me cegou. Tentei olhar
mesmo assim e notei que ela saía do corpo do meu marido, que em
seguida se levantou em um pulo e caiu de pé como Bravo.

Seus olhos muito azuis e seu pelo preto brilhante de que eu


sentia saudade tomaram minha visão, mas novamente uma dor me
tomou, dessa vez nas minhas costelas, me fez gritar e me manteve
caída.

Nesse momento um movimento na minha visão periférica,


me fez notar um Cinere se aproximando com seu olhar de ira,
coberto de sangue e vontade de matar, mas quando ia me golpear,
mesmo com dor levantei-me em um pulo e o golpeei no pescoço
com a adaga que eu carregava na bainha.

Assim que o homem caiu morto no chão, olhei na direção


em que Bravo estava, ele tinha dois lobos e uma iena a sua volta,
todos preparados para atacá-lo.
— Não! — gritei. — Nãooo... — gritei ainda mais rápido e
nesse momento Iran me olhou e a iena se aproveitou da distração
para pular no pescoço do... meu Bravo.

Juntando toda a raiva e o medo de perdê-lo, corri em


direção ao meu amor para salvá-lo e explodi em uma luz dourada de
dor e coragem, saltei, subi alguns metros e quando pousei meus
pés no chão, não eram pés e sim enormes patas cobertas de pelos
brancos. Eu havia me transformado em uma enorme loba branca e
de olhos cor de mel.

Corri em disparada em direção a iena e com um pulo e uma


abocanhada, rasguei seu pescoço. Sentia-me leve, forte e
poderosa.

Bravo se levantou, pegou um lobo do mal e eu o outro,


fazendo com que os animais chorassem de dor e caíssem mortos.

Vi admiração e orgulho nos olhos do meu lobo e em um


momento fugaz, passei meu focinho de leve no seu e fechei os
olhos em contentamento por nosso carinho lupino.[2]

Voltamos a realidade e após uma troca de olhares,


seguimos juntos lutando. Segui para o meu próximo alvo, o lobo que
tinha atacado minha amiga.

Eu o havia marcado, corri em sua direção e o pegando de


surpresa saltei sobre ele, o abocanhei pelo pescoço e rolamos no
chão. Em resposta tentou se defender me pegando com suas
presas, mas eu mesmo recém-transformada, sabia exatamente o
que fazer para que ele não conseguisse.

Cheia do instinto animal balancei a cabeça de um lado para


o outro e aprofundei ainda mais a pegada dos meus dentes em seu
pescoço, fazendo jorrar sangue para depois com um choro de dor, o
lobo cair morto.
Olhei em volta para analisar a situação e tudo estava um
caos: Flós lutava em menor número e tínhamos perdido muitos de
nós, além de sermos mais fracos por conta da maldição.

A conclusão que cheguei era que tudo estava acabado e


íamos perder a batalha para Cinere e para o maldito rei mago.

Varri o lugar com meu olhar e a tristeza tomou conta de


mim, junto com o desespero de ver meu povo e meu reino no estado
em que se encontrava.

Contudo, mesmo sem perspectiva de vitória, tive uma ideia


para amenizar as perdas, quando vi perto do muro do castelo, a vala
do pequeno riacho que estava quase seco naquele momento e só
se enxia no pôr do sol.

Imediatamente lembrei-me de um filme de guerra que assisti


e aquele lugar poderia servir como uma espécie de trincheira e
assim nos daria uma chance.

Com um uivo alto chamei atenção dos meus e Iran me


acompanhou uivando também. Por pensamento contei para ele o
que eu tinha em mente e me apoiando começou a passar a
mensagem para os nossos que ainda resistiam bravamente.

O pátio do castelo ainda não tinha tantos Cineres, havíamos


matado muitos e a maioria ainda se encontrava do lado de fora do
muro e isso nos daria uma vantagem.

Como rastro de pólvora a ideia se espalhou entre os


viventes de Flós e todos que estavam do lado de dentro do muro se
esconderam no leito do riacho seco e com suas espadas matavam
os Cineres de surpresa. Já os que estavam do lado de fora, vendo a
movimentação, começaram a fazer o mesmo.

Os Cineres que estavam do lado de dentro do muro,


depressa conseguimos eliminar e logo vimos que poucos
conseguiam passar pela trincheira e adentrar no pátio.
Entretanto, nem todos de Flós conseguiram se proteger nas
trincheiras e do lado de fora o caos ainda estava instaurado, muitos
dos nossos encontravam-se à mercê dos Cineres e eu não podia
deixá-los morrer.

Enquanto eu pensava, Iran lutava incansavelmente contra


os que ainda entravam. Sentia-me desesperada e quando o pânico
tomou conta de mim, ouvi uma trombeta alta e ao longe enxerguei
rinocerontes e macacos invadirem Flós.

Olhei para Iran e ouvi sua voz em meu pensamento:

— Animalis.
Aliviada vi os guerreiros de Animalis tomarem conta da
situação e com suas forças começaram a aniquilar os Cineres.

— Vamos conseguir. — Pensei.


— Vamos conseguir. — Ouvi a voz de Iran em minha
mente.
Enfim consegui correr até a minha amiga que ainda
encontrava-se caída no chão gélido e exibia-se pálida como a
morte. Tinha um fio de sangue saindo de seus cabelos loiros e
imaginei que tinha batido com a cabeça. Sua respiração era quase
como um sopro fraco e com tristeza comecei a chorar.

— Mica...
Minha fraqueza diante ao medo de perder minha melhor
amiga fez com que minha forma humana tomasse meu corpo e com
meus braços a puxei para perto.
— Mica... não vai embora, irmã. Eu preciso de você. Ainda
temos que fazer nosso passeio.
Uma bomba explodiu muito perto de nós e a protegi,
trazendo Mica para ainda mais perto.
— Precisamos tirá-la daqui e levá-la para um local seguro.
— Ouvi a voz de Iran em minha mente e assenti.
Levantei-me, peguei Mica pelo braço e colocando toda a
minha força, a ergui sobre meus ombros e depois a pousei sobre
Bravo.
— Transforme-se, você fica mais forte de lobo. —
Novamente o ouvi.
Balancei minha cabeça em positivo e não sabia como
voltar.
— Só deseje — Meu amor me orientou.
A nossa volta tudo era ruína e barulho de bichos, espadas
e bombas, mas mesmo assim mantive-me calma, fechei meus olhos
desejando novamente ser forte e dessa vez sem dor, em um pulo
caí no chão como loba.
Depressa assenti garantindo que sentia-me bem e Iran
correu com Mica sobre seu corpo em direção ao castelo, sendo
acompanhado de perto por mim.
Assim que entramos no salão principal, vi que o interior
encontrava-se revirado. Andávamos a passos lentos e de olho em
tudo para que não fizéssemos barulho ou fôssemos pegos de
surpresa por algum Cinere escondido.
Varri o lugar em busca de um local seguro para pousarmos
minha amiga, até que pudéssemos cuidar dela e encontrei um canto
afastado e escondido por uma pilastra que havia caído.
Chamei a atenção de Iran, passamos entre a bagunça dos
escombros e deitamos Mica no chão. Olhei-a e meu coração estava
despedaçado por vê-la daquele jeito.
— Tenho certeza que Mica ficará bem, mas agora
precisamos achar Chain. Ele deve estar aqui em algum lugar.
Talvez, acabando com ele, acabaremos com tudo. — Ouvi a voz de
Iran.
Só de pensar em encontrar novamente o mago de Cinere,
meu coração bateu acelerado de medo. Já o tinha visto de perto
quando voltei ao passado e seus olhos vermelhos eram
aterrorizantes.
— Vida... — Ouvi um gemido chamando meu nome e
quando olhei na direção da voz, avistei Záia caída.
Corri até ela e passei meu focinho em seu rosto. Sua perna
tinha uma enorme ferida aberta, provavelmente uma mordida ou
talvez uma lança.
— Eu sabia que você ficaria ainda mais linda de loba. —
Encarei-a e ela gemeu de dor. — Eles estão no subsolo, Chain
pegou Valery e o levou para sala de guerra. Aquele monstro nos
avisou sobre a guerra para que fossem atrás de ajuda e deixassem
o reino fraco. Ele quer algo do nosso reino, além do reino.
— Mas o quê? — perguntei.
— Vida, tente se lembrar de tudo que viu em Cinere
quando esteve lá... lembrem-se. Ele teme algo.
Repassei mentalmente a minha volta no tempo e não
lembrei nada que pudesse ajudar. Talvez fosse o nervoso da
situação ou a pressão de resolver tudo, mas eu mal me lembrava se
realmente estive em Cinere.
Por notar o desespero evidente em meu olhar de lobo, Záia
me tranquilizou:
— Fique calma, só vai. Salve Valery e o reino. Você é
capaz. — Passei meu focinho nela. — Vou ficar bem. Aquele
belzebu cego não vai conseguir acabar comigo. — Gemeu de dor.
Antes de ir, como um instinto de lobo, lambi a ferida que
Záia levava na perna e para minha surpresa, como mágica a ferida
da bruxa brilhou e começou a se fechar rapidamente, enquanto ela
cerrava os dentes de dor.
Quando a ferida estava completamente fechada, com os
olhos espantados Záia me encarou e falou com admiração:
— Você tem o dom da cura. É uma terapehá.
Sem tentar entender, imediatamente o que me veio em
mente foi curar Mica e com um salto cheguei onde a havíamos
deixado antes. Sem esperar nem um segundo lambi sua cabeça,
mas para o meu desespero nada aconteceu. Lambi de novo e nada.
Olhei para Záia como que pedindo explicação e com o
olhar triste, disse:
— Para alguns casos pode demorar... ou pode ser tarde.
Mas você não pode curar a todos agora, ficará fraca e precisa das
suas forças para derrotar Chain. — Tentou se levantar e
milagrosamente conseguiu. — E eu vou lutar com vocês.
Com mais uma olhada na direção de Mica, tive que deixá-
la e decidi que tentaria salvar Flós o mais rápido possível, para
depois voltar e tentar salvar minha amiga.
Pulei de volta para junto de Bravo e Záia e empurrei com a
cabeça um móvel que estava por perto, para esconder Mica. Depois
em pensamento falei para os dois:
— Vamos salvar nossa casa, nosso povo e nosso reino.
Flós não cairá.
Capítulo vinte e sete
Com a leveza de um lobo prestes a atacar sua presa,
descemos lentamente cada degrau da escada, que levava para o
subsolo do castelo e paramos em frente à sala de guerra.

— Gato sem raça. — A voz rouca e maldosa de Chain


tomou nossos ouvidos vinda lá de dentro e em seguida um rosnado
alto de felino, carregado de dor rompeu o silêncio.

Nos esgueiramos até à porta que estava entreaberta e


conseguimos enxergar um pouco do que acontecia lá dentro: um
leopardo encontrava-se preso a uma das paredes, por uma espécie
de magia e logo conseguimos vê-lo se transformar em Valery.

Dei um passo à frente na intenção de ajudá-lo, mas Záia


esticou a mão, colocou em meu peito e segurou-me nos pelos, me
parando para começar a dizer baixo palavras que eu não entendia,
mas que pareciam uma espécie de feitiço.

Záia conseguiu fazer Valery se livrar da magia que Chain o


prendia e o guardião caiu de encontro ao chão, fraco e machucado.

Coitado de Valery.

— Bruxa maldita! Achei que tivesse deixado você para


sangrar até a morte.

— Não tão fácil, Belzebu — Záia gritou do lado de fora, mas


de imediato passou a frente, fez sinal para que Bravo e eu
ficássemos onde estávamos e entrou na sala.
Nervosos e sem um plano, continuamos parados, mas
apesar de não ter nada em mente para deter o poderoso mago,
tínhamos um intuito: matá-lo.

Como se conseguisse entrar em minha mente, pensei ter


ouvido Záia avisar para que eu prestasse atenção e tentasse
descobrir o que Chain queria do reino.

— Olha se não é ela, a rata da floresta de Flós. A aprendiz


de feiticeira.
O mago gargalhou.
— Você tem senso de humor.
— Eu tenho tudo.
— Bom, pare de firulas e diga logo o que quer para acabar
com a carnificina, seu nojento — Záia foi direta e não demonstrava
medo.
— Você sabe que seu poder perto do meu, é uma
cosquinha, né?
— Não me subestime, posso te matar e antes, ainda roubar
seus poderes.
Ouvi sua risada em desdém.
— Bom, quero a garantia de que este reino não tem arma
contra mim e isso só acontecerá se Flós não existir. Este monte de
nada, hoje terminará o dia como uma extensão de Cinere.
— Ô povo de Flós não tem arma. Não precisa nos atacar
por isso.
— Contra os Cineres sim e.... — interrompeu a frase e
ficou em silêncio como se notasse algo, depois perguntou: —
Quando o casal de cães vai entrar e parar de ouvir atrás da porta?
— Imediatamente uma espécie de laço invisível foi passado por
volta do nosso corpo e Chain puxou a mim e Bravo porta adentro.
Quando nos viu, apertou o laço ainda mais em torno do
nosso corpo, o que nos fez uivar de dor e a fraqueza nos
transformou de novo em humanos.
Com o feitiço nos ergueu no ar, prendeu novamente a
Valery, depois Iran e eu contra a estante de livros, sem precisar
levantar da cadeira em que estava acomodado.
— Solte-os, posso te ajudar com o que precisa, mas solte
os três — pediu Záia.
Mesmo sentindo-me sufocada, como se o meu corpo a
qualquer momento fosse ser partido em dois, vi a silhueta da flor de
lótus desenhada na parede e imediatamente meus pensamentos
voltaram para o dia do feitiço no tempo e presenciei homens
destruindo flores de lótus completamente cobertos, como se elas
fossem tóxicas.

Depois minha mente voltou para uma conversa que tive com
Mica e ela contou-me sobre como Flós produzia flores em
abundância, por isso era o reino das flores, sendo a flor de lótus a
mais presente em todos os lagos dos povoados do nosso reino.

Eles querem algo do nosso reino...


Arma contra os Cineres...
Ele teme algo...
Juntei as frases que ouvi com a cena que vi em Cinere e
entendi: o reino de Cinere é sensível a flor de lótus.
Olhei para o vazo com flores que havia colocado na mesa
de reuniões há dois dias e tive uma ideia para comprovar a minha
teoria, mas eu precisava arrumar um jeito de me livrar daquela
amarrava.
Para a minha surpresa, um movimento na porta chamou
minha atenção e com alegria e vontade de chorar por vê-la bem,
respirei fundo ao testemunhar Mica de pé e viva.
Seu olhar cruzou com o meu e balancei levemente a
cabeça em negativo, indicando que não entrasse.
Mesmo no desespero lembrei-me que eu possuía o dom da
cura e talvez tivesse outros que eu não conhecia, então, testei para
ver se conseguia falar por telepatia na minha forma humana.
Fechei os olhos, mas apenas um clarão se formou neles e
não consegui chegar até Mica, entretanto, lembrei-me que quando
entrei na caverna antes de chegar em Flós, Bravo falou comigo
como lobo.
Juntando toda pouca força que me restava dei um grito,
abri meus braços para me livrar do laço invisível que me prendia e
transformei-me em loba, soltando-me da amarra e caindo com as
quatro patas pesadas no chão.
Como sabia que logo Chain me pegaria de novo,
rapidamente enviei uma mensagem por telepatia para Mica.
— Ataque-o com a flor de lótus que está sobre a mesa.
No segundo seguinte uivei de dor quando o poderoso
mago novamente me prendeu contra a estante de maneira tão
brusca, que machucou minhas costas e muitos livros caíram no
chão.
— Fica quieta, cadela! — gritou, levantou-se e andou em
minha direção. Mesmo cego parecia saber onde estavam os móveis
e desviava de todos. — Ou vou ter que te matar.
Para tentar prender sua atenção, provoquei-o em meio a
dor:
— Você... pode... até tentar me matar, mas não conseguirá.
— Ah, é? E por que não? — Girou a mão no ar e eu gritei
ao sentir como se minhas costelas quebrassem, mas mesmo com a
respiração ofegante, respondi:
— Porque... Flós... Vive.
Nesse momento Mica pegou o jarro cheio de flores de lótus
de cima da mesa e esfregou-as no rosto de Chain. Sua pele em
contato com a flor começou a derreter como se queimasse e uma
fumaça preta evaporou dela.
Enfraquecido não conseguiu manter a magia que nos
prendia e caímos de encontro ao chão.
Sentia-me fraca e dolorida, assim como Valery que havia
apanhando muito antes de chegarmos, já Iran que era
extremamente forte, depressa se transformou em lobo, enquanto
Záia proferia palavras de magia contra o mago.
— Malditos! Malditos! — ele gritou em desespero e tentou
se livrar das flores e da magia de Záia. — Bruxa maldita!
— Eu te avisei que te mataríamos — Záia disse cheia de
altivez.
Iran salivava, rosnava e sua forma de lobo faminto por
vingança dava medo. Andava um passo de cada vez pronto para
atacar o maldito mago.
No entanto, Záia lembrou-se da promessa que fez e pronta
para humilhá-lo um pouco mais, parou Bravo antes que ele
aprofundasse seus dentes em Chain.
Abriu os braços e dizendo palavras que eu não entendia,
seus olhos ficaram lilás e uma luz forte saiu de dentro de Chain,
indo para seu corpo e a deixando ainda mais poderosa.
— Sua rata da floresta, você está roubando minha magia.
— Ash cassi mi magic... Ash cassi mi magic... Ash cassi mi
magic — repetiu Záia, três vezes e deu espaço para Iran passar.
— Sua maldição acabou, Belzebu cego.
— Ainda falta uma ramificação, sem mim... — Sem deixar
que mais uma palavra saísse da boca de Chain, Bravo mordeu sua
garganta e degolou o mago, separando-o em dois.
No mesmo instante seu corpo queimou e virou cinzas no
ar.
Juntando minhas forças para ficar em pé, corri em direção
a minha amiga e a abracei forte.
— Você nos salvou, Mica. Nos salvou. — Separei-me dela
e analisei sua cabeça que não tinha mais o corte, depois o seu
corpo para me certificar de que estava bem.
— Foi você quem me salvou, Vida. — Deu-me um abraço
apertado.
Separamos e com os olhos marejados, a vi tímida dar a
volta em mim e ir até Valery que ainda estava machucado no chão.
— Como está? Eu vi quando ele te pegou, mas não
consegui te ajudar. — Mica juntou sua testa a de Valery e lágrimas
escorreram por seu rosto. — Você lutou tão bravamente. Foi tão
corajoso.
— Eu estou bem.
— Eu queria tanto tê-lo ajudado.
— E eu, Mica, há tempos quero fazer isso. — A puxou para
um beijo sem se importar com a nossa presença e quando se
separaram, Valery disse: — Mica, não quero perder tempo e preciso
saber, aceita se casar comigo?
Os olhos da minha amiga se encheram ainda mais de
lágrimas e com um sorriso feliz em seu rosto, ela perguntou:
— Casar?
— Sim. Aceita?
— Aceito... Sim. Sim. Simmm!
Ele a beijou de novo, mas Iran os interrompeu quando
perguntou já com sua forma humana.
— O que Chain queria na sala de guerra, Valery?
— Queria que eu o mostrasse os escritos, insistia em saber
o motivo da flor de lótus ser tóxica para eles, mas eu nunca ouvi
dizer nada sobre isso.
— Eu ouvi — Záia interrompeu: — Dizem as histórias
passadas de geração em geração entre os bruxos e magos, que
quando maldição fosse usada contra um reino, uma arma seria
criada. Chain devia saber disso, mas a ira do rei pela rejeição foi
maior que o medo de uma arma contra seu povo. Provavelmente
Chain quando virou rei, teve medo de Flós descobrir sobre as flores.
Aí foi atrás de uma arma maior, alguém para trair Flós.
— Trair? — perguntei.
— Vida, precisamos subir para ver como está o reino e se
com a morte de Chain a guerra acabou. Após isso, tenho algo muito
importante para... — Engoliu em seco. — Contar para você. Para
todos vocês. — Olhou para os outros e seu rosto transbordava
tristeza. — Mas creio que agora o principal é sabermos como está o
povo.
— Tem razão.
Olhei para Záia que avaliava Iran com atenção, mas não
disse nada sobre o assunto que ele tinha para nos contar e eu,
apesar de sentir-me com medo e curiosa, apenas concordei e a
seguir subimos para o pátio do castelo para contabilizar os mortos e
testemunhar o estrago que a maldade de Chain fez com nosso
reino.
Capítulo vinte e oito

Assim que saímos para o pátio, tudo que se via era dor.
Não era mais a dor e o medo da morte, mas a dor da perda. Não
havia mais barulho de espadas e bombas, mas tinha muito choro e
tristeza, além de muitos mortos.
Olhei ao longe e vi Kay abraçado ao seu pai, que jazia sem
vida no chão. Senhor Mancler havia partido.
Meus olhos se encheram de lágrimas e com força pedi
para me transformar em loba e lamber todos que precisassem de
cura, mas não consegui e chorei ainda mais.
— Por que eu não consigo me transformar? Eu preciso
ajudá-los — gritei.
— Não é assim que funciona, Vida. E provavelmente você
morreria enfraquecida tentando ajudar a todos — Záia me confortou.
— Eu não me importo. Preciso ajudar. — Fechei meus
olhos e tentei mais uma vez a transformação mais nada aconteceu.
— Vida... — Iran me puxou para um abraço e deixei-me ser
abraçada.
— Eu queria tanto ajudar.
— Nós sabemos.
Separei-me de Iran quando guerreiros de Animalis se
aproximaram. Eram muitos e dessa vez ao invés da forma animal,
também exibiam a forma humana como nós. Eram todos homens e
tinham cabelos compridos presos em tranças, corpo pintados e os
peitos nus, suas roupas eram apenas calças e botas.
— Sentimos muito por sua perda e em nome do nosso
reino oferecemos nossos sinceros sentimentos — disse um deles
abaixando levemente o corpo.
Enxuguei as lágrimas, aprumei meu corpo e vi Iran
responder tão triste quanto eu:
— Agradecemos imensamente por terem lutado ao nosso
lado. Meus sinceros agradecimentos ao rei Calei. Diga-o que sem
vocês não teríamos conseguido e aqui ele tem nossa eterna
gratidão e apoio.
— O recado será dado.
— Muito agradecida — foi o que consegui dizer e em
seguida ofereci: — Se quiserem passar a noite em Flós, creio que
não conseguiremos alojá-los com conforto, mas poderemos
acomodá-los para uma noite de descanso.
— Agradecemos a oferta, Rainha, mas preferimos partir e
pousar no nosso reino.
Após poucas palavras mais nos despedimos e vimos os
guerreiros de Animalis partir.
Observando tudo, dentro de mim eu buscava um jeito de
ajudar, ainda tentava me transformar, mas nada acontecia comigo,
então deixando a magia de lado, resolvi auxiliar como humana.
Chamei as mulheres que estavam por ali e pedi que
buscassem ervas, ataduras e o que pudesse ser útil para
montarmos um atendimento inicial do lado de fora do castelo.
Já do lado de dentro, as mulheres mais velhas que
estavam escondidas na cozinha apareceram e pedi que limpassem
o salão principal e acomodassem as vítimas mais graves.
Os guerreiros, que apesar de cansados ainda se
encontravam inteiros, começaram a limpeza do entorno, para que
pudéssemos fazer a triagem inicial.
Iran como um bom rei, delegava missões aos seus e
organizava o que era o mais primordial no momento.
Depois de a parte inicial resolvida, andei até onde Kay
ainda chorava a perda e ao me aproximar senti ainda mais a sua
dor.
Senhor Mancler tinha o rosto sereno e até parecia dormir.
Ainda que sua idade avançada não permitisse, foi corajoso e lutou
bravamente por nosso reino.
Eu era imensamente grata pelo modo como me tratou
desde nosso primeiro contado.
Vi Kay dizer palavras de despedida ao pai e meus olhos se
encheram de lágrimas quando deu um beijo em sua testa e disse:
— Obrigado, pai. Da terra para terra. Seu fim chegou e sua
batalha terminou. — Depois o ajeitou no chão com as mãos sobre o
corpo e deu espaço para que os homens que recolhiam os mortos
recolhessem seu pai e o levassem para onde todos seriam
preparados para um funeral coletivo.
Kay ficou de pé, enxugou o rosto de maneira grosseira e
me disse:
— No que posso ajudar, Rainha?
Meus olhos cheios de lágrimas entregavam o quanto eu
sentia por ver aquela cena.
— Seu pai foi um bom homem e pelo pouco tempo que
convivemos ele cativou a mim como um grande amigo. — Kay
assentiu. — Sente-se bem para ajudar?
— Sim, Majestade.
— Agradeceríamos se pudesse juntar-se aos demais
guerreiros.
— Obrigado. Com licença, Rainha. — Com um meneio de
cabeça e após mais uma olhada no pai que era levado por alguns
viventes, Kay se afastou.
Voltei para onde Iran organizava o início da reconstrução
de Flós junto com Valery, Mica e Záia.
Enquanto andava até eles, analisei o modo como a bruxa
observava meu lobo e estranhei, porém, quando encontrava-me a
alguns passos de me aproximar de todos, ouvi palmas e uma voz
feminina dizer:
— Que bonito! — Olhei na direção da voz e Ravina sorria
com deboche. — Muito bonito. Vocês venceram o Chain, mas será
que acabaram mesmo com o maior inimigo de Flós. — Juntei as
sobrancelhas sem entender sobre o que falava.
— Vida, podemos conversar? — Iran tentou me tirar de
perto dela.
— Não, não, não, conversem aqui mesmo, ou melhor, eu
converso com a Vida.
Ravina se aproximou de mim e pegou-me pela mão como
se fôssemos amigas, enquanto tinha a atenção de todos a nossa
volta.
— Sai daqui, Ravina. — Iran soltou a mão dela da minha.
— Eu vou contar tudo, sou homem o suficiente para assumir meus
atos e pagar por eles, mas esse não é o momento — esbravejou
com o rosto coberto de desespero.
— Eu acho esse momento perfeito. — Deu de ombros.
— Ravina... — Iran rosnou o nome dela com os dentes
cerrados, mas a mulher não se preocupou com a ameaça, olhou
para mim e perguntou:
— Ele te contou que é o culpado por tudo isso? — Rodou o
dedo no ar mostrando a destruição de Flós.
Juntei as sobrancelhas em desentendimento.
— O quê? — perguntei.
— Sim, conta para ela Iran.
Iran virou-se para mim com os olhos cheios de culpa e aí
percebi que o que Ravina dizia podia ser real, então apressei-me
em perguntar, porque queria ouvir dele:
— Do que ela está falando?
— Se você não contar, eu conto.
— Conta, Iran! — pedi.
— Vida... — Virou-se para Valery. — Valery... — Iran
respirava de maneira acelerada e parecia ter dificuldade para falar.
— Ravina tem razão, eu sou culpado por tudo isso.
— O quê? Como assim?
— Fui eu... Eu que fiz um acordo com Chain. — Ele engoliu
em seco e eu sabia que dizia a verdade, mas não queria acreditar
no que ouvia e nem que sempre foi ele.
— Meus pais... — começou a contar com repulsa, sendo
fitado pelas pessoas que conviveu durante a busca por paz e
durante a guerra. — Eles eram os guerreiros que te criaram no outro
mundo... eu tinha só quatro anos quando eles aceitaram o desafio
de ir com você. Lembro-me da minha mãe chorando ao se despedir
de mim, do meu pai dizendo que eu seria um guerreiro quando
crescesse e como ele daria a minha vida para defender Flós.
Lembro-me perfeitamente de tudo, principalmente da dor de vê-los
indo para longe de mim, segurando você nos braços e me deixando
apenas palavras, fome e cinzas.
Meu corpo todo tremia por não acreditar que ele pudesse
estar envolvido em uma traição e por sentir toda a tristeza de um
menino de quatro anos que perdeu os pais.
Eu não queria acreditar que ele tivesse feito um acordo
com o inimigo, não o meu Iran, meu Bravo. A apreensão para o que
contaria a seguir era enorme.
— Cresci sentindo a raiva do bebê no colo da minha mãe,
cresci movido pela esperança de que meus pais voltassem, pelo
ódio de ter sido trocado por outra criança para que todo o reino
ficasse em segurança e cresci pensando que não me importaria em
passar fome se fosse para tê-los perto de mim. Eu tinha apenas
quatro anos...
— Iran... — Meus olhos estavam cheios de lágrimas ao
sentir sua dor.
— Pedia todos os dias aos ancestrais que os trouxessem
de volta. Ano após anos alimentei a sensação de abandono, mas a
raiva foi diminuindo, principalmente quando cheguei à juventude e
me tornei o guerreiro que meu pai disse que eu seria. — Seu rosto
era tomado de tristeza. — Até que em uma cavalgada pelos
arredores de Flós, dei o azar de encontrar Chain na fronteira dos
dois reinos. Ele me chamou e disse que eu poderia ter meus pais de
volta. — Riu sem vontade. — Mesmo já sendo mais velho, a criança
de quatro anos dentro de mim, se iluminou com a ideia de tê-los por
perto, mas a condição era matar a protegida para que meus pais
não precisassem mais protegê-la. De imediato neguei, mas não sei
o que o desgraçado do mago fez que quando dei por mim, estava
apertando sua mão e aceitando o maldito acordo.
Meu coração batia acelerado ao ouvir cada palavra que
Iran contava.
— Quando enfim pude ir para o outro mundo. Muito já
havia se passado e até pensei que aquele momento ruim havia sido
um pesadelo. Convivi com meus pais a distância e foi a melhor parte
da minha vida. — Seu rosto se suavizou ao falar dos pais. — Depois
de suas mortes conheci você... — Iran ergueu o olhar que até
então estava no chão e me encarou ao dizer: — E imediatamente
me apaixonei. Quis ser seu protetor e não seu assassino, pensei
que se meus pais estavam mortos Chain não podia fazer nada
contra mim, nem trazê-los de volta, no entanto, a sensação de ser
um traidor me atormentava dia e noite. — Olhou para Ravina.
Eu não acreditava no que estava ouvindo e comecei a
andar de um lado para o outro, nervosa e me sentindo tonta. Não
pode ser!
— Vida, eu quis te contar todos os dias e me sentia horrível
por não ter coragem. — Transmitia muita vergonha. — Mesmo
correndo riscos, tentei negociar com ele no dia que você e Mica
viram Trigo tomado por cinzas. Eu estava lá tentando evitar que eles
te capturassem, mas naquele dia Chain disse que ou eu te matava
ou seria o fim de Flós. Neguei e assim só me restava ter esperança
de que acabando com a maldição tudo teria fim, eu poderia contar
sobre a minha traição e você me perdoaria.
— Podia ter nos contado, acharíamos uma saída.
— Tentei por diversas vezes, sentia-me um lixo,
principalmente quando vocês descobriram sobre o acordo... Eu
queria contar, mas me doía imaginar você me olhando como me
olha nesse momento. — Respirou fundo. — Inclusive na noite antes
da viagem até Animalis. Fui a Cinere tentar uma última negociação
e Chain me prometeu que não atacaria Flós. Aquele verme
mentiroso. Eu não estava com Ravina, Vida, estava tentando manter
tudo bem.
Encarei-o.
— E onde ela entra em tudo isso? — Apontei para Ravina
que tinha os braços cruzados na frente do peito e sorriu convencida.
— É sua cúmplice?
— Ela me chantageou... — Iran olhou-a com raiva. —
Queria se casar comigo, era apaixonada e vivia no meu encalço. No
dia seguinte ao meu acordo com Cinere eu me arrependi, não
entendia nem como tinha apertado a mão do Mago e fui desistir de
tudo, só que ela me seguiu e testemunhou a minha conversa com
Chain. Em troca do seu silêncio pediu que eu a alimentasse e me
casasse com ela, então aceitei. Mas aí, fui para o mundo gelado, me
apaixonei e depois voltei com você, nos casamos e não consegui
mais cumprir minha promessa. Desde então Ravina me chantageia
ainda mais.
Ravina não parecia arrependida, pelo contrário, parecia
feliz por entregá-lo publicamente e provavelmente pensava na sua
mente maldosa, que após contar sobre o acordo, Iran não ficaria
comigo e sim com ela.
Eu não sabia o que dizer, olhei em volta para encarar aos
outros e todos pareciam tão chocados com tudo quanto eu.
— Vida... — Iran disse meu nome sem concluir e eu não o
encarei. — Olha para mim — pediu e me doeu.
Fechei os olhos e soltei o ar. Sentia-me perdida, em dúvida
sobre amá-lo e querer matá-lo, mas decidi que não resolveria nada
naquele momento.
Mesmo me doendo deixá-lo sem um parecer, virei as
costas para tudo o que ouvi e foquei no reino.
Quando ia sair para ajudar meu povo, antes que eu desse
um passo para longe, Iran pegou-me pelo braço virando-me para ele
e se ajoelhou a minha frente.
— Eu me rendo a você e estou aqui para fazer o que quiser
comigo. Eu errei por amor aos meus pais, tentei consertar por amor
a você, mas não sei lidar com a culpa. Só peço que me perdoe. Vou
sair de Flós e vocês nunca mais irão me ver, mas me perdoa, Vida?
Nesse momento um clarão rompeu o céu como um raio
muito potente, atingiu o chão e se espalhou sobre Flós. Iran ficou de
pé e me puxou para os seus braços, me protegendo do que quer
que fosse aquilo que acontecia.
Quando o clarão se dispersou, pedra sobre pedra caída
pelo reino voltou em velocidade para o seu lugar de origem. O muro
quebrado se reconstruiu e flores e árvores foram replantadas,
refazendo a Flós de antes do ataque.
Os corpos dos Cineres mortos na batalha espalhados pelo
chão, um a um se tornou cinzas, subiram para o alto e depois
dispersaram no ar com o vento.
Parecia que o tempo estava voltando e o que foi destruído
era reconstruído como mágica.
Quando tudo voltou para o lugar e o clarão teve fim,
retornando para o céu de onde tinha surgido, separei-me de Iran e
ouvi Záia dizer:
— A maldição acabou, a última ramificação teve fim. —
Apontou para o Iran. — Sua redenção era a que faltava. Você se
libertou da escravidão em que vinha sendo cativo e pediu perdão
pelo que fez. Estamos livres.
Quem ainda estava por perto comemorou mesmo em meio
a tanta dor. Era como se a morte daqueles que íamos enterrar não
tivesse sido em vão.
Encarei o homem sério de pé perto de mim e eu sentia-me
tão culpada por tudo que ele teve que passar, que não conseguia
culpá-lo por nada do que fez.
Iran era tão vítima quanto qualquer um, foi só um menino
sentindo a falta dos pais, seu coração era bom demais para ser
culpado.
A minha volta, Mica com os olhos cheios de lágrimas,
Valery com o semblante atento e Záia com sua costumeira
aparência de quem sabia de tudo, me encaravam como se
esperassem uma resposta.
— Vamos enterrar os nossos, depois decidimos o resto. —
Os encarei com tristeza. — Está tudo bem.
— Vida... Eu te amo — Iran disse, quebrando meu coração,
mas naquele momento eu não conseguia retribuir seu amor.
Uma lágrima escorreu por meu rosto e eu apressei-me em
enxugá-la, depois virei-me em direção ao castelo e fui seguida por
Mica.
Não conseguia lidar com o Iran, eu precisava organizar
tudo no reino antes de pensar em como ficaríamos após tantas
revelações.
Mica e eu passamos por Ravina que me encarava com um
misto de inveja e ódio. Tirei meus olhos dos seus e continuei
andando, no entanto, a subestimei muito e quando dei as costas
para ela, fui atingida na cabeça por algo que pensei ser um pedaço
de madeira e desmaiei, mas antes de perder totalmente os sentidos,
vi Záia atingir Ravina com um feitiço e a matar sem piedade dizendo
em seguida:
— Flós não merece mais ter o mal entre o seu povo. Já
vivemos por muito tempo à mercê dele.
Vinte e nove

Acordei com a cabeça doendo e deitada em minha cama.


Ao meu lado, em uma cadeira e todo desajeitado, Iran dormia
desconfortavelmente.
Sentei-me, olhei em volta e notei que já era quase noite,
então relembrei tudo que vivi antes de ir parar ali.
Ao encarar o homem dormindo calmamente a minha frente,
uma lágrima rolou por meu rosto, ao imaginá-lo como uma criança
de apenas quatro anos sofrendo pela falta dos pais. Deve ter sido
solitário e dolorido como ele havia dito.
Iran tinha me contado sua história, mas omitiu que seus
pais haviam morrido não quando ele tinha quatro anos, mas o
deixaram para cuidar de outra criança quando ele tinha essa idade.
Seus pais, eram nossos pais.
Parei de pensar, tentei me levantar e quando vi que a dor
latente não me faria cair, fiquei de pé e com o barulho da cama
acordei Iran.
— Vida, como está se sentindo? — Imediatamente se
levantou.
— Bem, apenas com um pouco de dor. Quanto tempo eu
dormi?
— Mais de um dia inteiro.
— E o funeral?
— Já foi feito. Os... corpos não aguentariam esperar. Sinto
muito.
Olhei para o lado com tristeza.
— Queria ter estado lá.
— Eu sei, mas não sabíamos se estava dormindo ou ainda
desmaiada pelo ataque da... Ravina. — A culpa que sempre vi tão
presente em seu olhar, voltou, com a diferença que agora eu sabia o
motivo.
— Quero ir até onde os corpos foram enterrados. Quero
prestar a minha homenagem.
— Você precisa descansar, porque foi atingida com muita
força.
Assenti e voltei para cama, porque ainda não me sentia
bem para andar pelo castelo.
Lembrei-me de quando cheguei ali há alguns dias, que
pareciam meses por tantas coisas que aconteceram e a sensação
era a mesma: sentia-me perdida. Com a diferença que naquele
momento eu amava o homem que encontrava-se no mesmo quarto
que eu.
— Beba. — Entregou-me uma xícara de chá. — Ainda
deve estar morno. É chá de casca de salgueiro, que é bom para
passar a dor. — Assenti, aceitei o chá e ele se afastou.
Sentada em minha cama, observei Iran andar pelo quarto e
ir para sacada. Fiquei pensando em Mica, Valery e Záia, que mesmo
depois de tudo que Iran confessou, o deixaram ficar comigo no
quarto.
Será que o perdoaram?
Ele não tem tanta culpa assim...
Mas ele fez um acordo com o inimigo!
Mesmo sem o acordo Chain teria atacado a Flós. Iran
apenas foi um alvo triste.
Muitos prós e contras passavam por minha cabeça e o
amor que eu sentia por Iran provavelmente influenciava meus
pensamentos.
O admirei mesmo de longe e seu rosto estava coberto de
tristeza. Talvez nunca se perdoasse, mesmo que graças a sua
rendição e seu coração bom a maldição tivesse acabado.
Chain não contava com a bondade de Iran e achou que o
corromperia facilmente apenas por ter um passado triste, mas não
contava que sua nobreza era maior que sua tristeza.
— Iran, precisamos conversar — quebrei o silêncio.
Ele me olhou da sacada, andou devagar até a cama e
sentou-se novamente na cadeira que estava antes.
— Vida, antes de mais nada, preciso te dizer que decidi
que vou embora.
O encarei e meu coração se encheu de tristeza.
— Embora? E vai para onde?
Deu de ombros e não me olhava.
— Vou para qualquer lugar.
— Isso não é justo — falei. — Este é o seu reino.
— Reino que eu traí.
— Reino que você defendeu arriscando a própria vida.
— Vida... eu não consigo mais.
— O quê?
Continuou olhando para o chão.
— Seguir olhando para você... sem me sentir... — Respirou
fundo deixando a frase no ar e meu coração se apertou.
Ele ainda sentia raiva de mim?
— Eu entendo... mas não precisa me olhar. — Apressei-me
em dizer. — Não precisa. E você não vai embora. Já perdeu demais
em sua vida por causa do reino. — Engoli em seco segurando as
lágrimas por pensar que Iran me odiava tanto por ter roubado seus
pais que nem conseguia me olhar.
— Não é...
— Iran, você consegue convocar o reino para um
pronunciamento daqui uma hora?
Assentiu parecendo sem entender e me analisando com
atenção.
— Então faça isso, por favor.
— Você está com dor. É melhor descansar antes.
— Não, preciso falar com o povo.

Da sacada notei que tudo foi ajeitado do lado de fora para


que eu falasse com Flós. Tochas foram acesas, pois a noite já
tomava o céu e as pessoas já se acomodavam.
Coloquei um vestido preto e longo para expressar as
minhas condolências e prendi meu cabelo cacheado em uma trança
lateral.
Pensei e repensei o que eu ia falar para o povo, no fim
decidi que ia deixar o meu coração falar, mas de uma coisa eu tinha
certeza, faria com que Flós perdoasse Iran.
Ouvi batidas na porta e quando pedi para quem quer que
fosse entrasse, vi que era a Mica.
— Rainha.
— Mica, ainda não aprendeu que sou só Vida?
Ela sorriu, andou até mim e me abraçou.
— Nem acredito que estamos as duas aqui. Foi por tão
pouco...
— Sim. — A abracei de volta e falei quando nos
separamos: — Vaso ruim não quebra. Não é o que dizem?
— Ei, eu sou um vazo muito bom. Um dos melhores. E
você é um vaso raro. — Sorri.
— Você sabe como me animar.
Sorrimos.
— Vida, o que vai dizer ao povo?
— Vou tentar confortá-los por suas perdas e lembrá-los
quem é Iran. A notícia sobre a traição deve ter corrido e não acho
justo que ele seja visto assim.
— Nós não o culpamos por tudo o que aconteceu, mas ele
não para de se culpar.
Olhei para Mica com tristeza e agradecimento.
— Obrigada por não o culpar. Penso que eu tenho mais
culpa que ele. Se eu não tivesse nascido, os pais dele...
— Não fala besteira, Rainha! Se você não tivesse nascido
ainda estaríamos sob a maldição. E graças a você e as escolhas de
Iran, estamos livres. Lembra que a Záia disse que são nossas
escolhas que definem tudo? — Assenti. — Então foram as escolhas
dele que no fim nos tornou livre.
— Você tem razão.
— Sim. Sempre tenho.
Terminei de me arrumar e descemos para o pátio do
castelo onde sempre aconteciam os eventos.
Naquela noite o mais absoluto silêncio era ouvido do lado
de fora e Iran me esperava no início da escada para que saíssemos
juntos para aquele comunicado. Como o rei e a rainha de Flós.
Despedi-me de Mica que foi ocupar seu lugar na frente,
próximo de Valery e enganchei meu braço ao de Iran.
Imediatamente ao sentir seu corpo tão próximo do meu, um
arrepio passou por mim, mas logo lembrei-me que ele devia sentir
algo totalmente oposto pela mulher que roubou seus pais e eu
precisava o deixar em paz.
— Podemos seguir? — Ouvi sua voz grossa preencher
meus ouvidos.
— Sim.
Começamos andar, saímos do castelo e andamos no
corredor que se formou entre as pessoas que se posicionaram de
ambos os lados.
Notei que olhavam-nos com seriedade e tristeza, muitos
tinham os olhos inchados de chorar e outros mesmo com
machucados decidiram estar presente, talvez curiosos pelo que a
rainha ia falar sobre o rei traidor.
Continuamos andando, Iran com a cabeça baixa até que
chegamos ao local do pronunciamento. O mesmo onde eu havia me
casado, quebrado as tradições ao pintar o Iran e naquele momento,
onde eu provavelmente me despediria.
Os dois tronos estavam colocados lado a lado, Iran sentou-
se no seu e eu fiquei de pé para falar.
— Viventes de Flós. — Passei meu olhar pelos rostos que
me encaravam com atenção. — Chamei todos aqui, porque eu
precisava mostrar meus profundos sentimentos. Nosso reino chora
por todos que perdemos e que bravamente lutaram para nos
defender e para que nesse momento estivéssemos vivos e
celebrando a vitória sobre o inimigo. — Notei os rostos começarem
a mudar de muito tristes para esperançosos. — Nós os
celebraremos todos os dias, vivendo e honrando tudo que fizeram
por nós.
Um homem no meio das pessoas ergueu o braço para o
alto e com a mão fechada em punho, gritou:
— Flós! Flós! Flós. — Meus olhos se encheram de
lágrimas.
Mais um se levantou e fez o mesmo, depois uma mulher,
Mica, Valery e as mulheres da cozinha, ao final todos gritavam em
coro:
— Flós! Flós! Flós!
Respirei fundo e quando ficaram em silêncio, comecei a
falar a parte que seria mais dolorida de dizer:
— Todo o processo para vencer uma batalha é dolorido e
intenso e eu tive ao meu lado pessoas de confiança que me
apoiaram e enfrentaram cada etapa arriscando suas vidas para o
benefício do reino. Uma dessas pessoas é o rei. — Ouvi a comoção
do povo, olhei para o Iran e ele juntou as sobrancelhas sem
entender o que eu estava fazendo. — Nosso rei desde muito
pequeno, foi privado de coisas importantes da sua vida, por causa
do reino. Ficou longe dos pais, foi usado pelo inimigo e mesmo
aceitando um acordo que colocou todo o reino em perigo, se
arrependeu, mas foi chantageado e foram suas escolhas que no fim
nos salvou, junto com a sua rendição. Foi corajoso, forte e altruísta,
um rei perfeito e que não deve sentir-se culpado de nem um erro.
Todos nós já erramos e ainda vamos errar mais. Não somos como
as flores de Flós que são perfeitas.
— Sim! — Valery gritou.
— Sim! — outro gritou.
— Sim! Sim! Sim! — o povo gritou.
— Para finalizar, quero dizer que o meu mundo sempre
será Flós e tudo que eu precisar abdicar para ver o sorriso do meu
povo e das pessoas que amo, farei. Obrigada, Flós, por todos os
sorrisos, carinhos e momentos de riso que passei aqui.
Vi que o povo não entendeu muito bem o final da minha
fala com a voz embargada e três batidas de tambores soaram para
indicar que eu havia acabado e as pessoas dispersaram, quando
sentei-me no trono ao lado do Iran.
— Você tem o dom da palavra, conseguiu convencer o
reino que sou inocente.
— Você é inocente, só fez escolhas erradas, mas se
arrependeu. Todos temos direito a uma segunda chance e ao
perdão.
— Eu não me perdoo.
— Eu sei. Eu também não me perdoo.
Vi-o juntar as sobrancelhas sem entender o que quis dizer,
mas eu também tinha culpa por ele ter ficado sem os pais, foi por
minha causa que ficou sem eles e já que ele não conseguia me
olhar sem lembrar-se de tudo, Iran merecia muito mais ficar em Flós
que eu.
— Vou para o meu quarto. — Encarei-o. — Pode dormir no
quarto ao lado?
Assentiu triste e quando dei dois passos para longe ele
falou:
— Vida, e você, me perdoou? — Engoliu em seco
enquanto encarei seus lindos olhos azuis.
— Quem tem que te pedir perdão sou eu, Iran, mas não
exigirei isso de você, sei o quanto deve ser difícil olhar para pessoa
que te tirou seus pais. Espero que você um dia consiga sem se
lembrar disso.
Sem mais olhá-lo andei em direção a entrada do castelo
para dar continuidade ao que tinha em mente.
Capítulo trinta

Eu não queria deixar Flós, mas era necessário. Pela paz de


Iran e por minha paz.
Eu já havia tirado seus pais e não faria com que fosse
embora do seu reino também.
Não nascemos um para o outro e isso era claro, talvez, ele
ainda pudesse construir a sua vida longe de todo o passado triste
que a minha presença o arremetia.
Assim que cheguei ao quarto, fiz uma bolsa com as roupas
que eu tanto amava e não tinha nada parecido no outro mundo.
Coloquei também uma das flores de lótus que usei no meu cinto de
casamento e guardei para secar junto com o vestido de noiva. Era o
que eu iria levar.
Fui fechar a porta do armário, mas vi a camisa que Iran
usou no dia seguinte ao que fizemos amor e meus olhos se
encheram de lágrimas. Decidi levá-la para me fazer companhia.
Chorei lembrando de tudo, porque o mais importante que
eu levaria dali eram as lembranças intensas de poucos dias, onde
realmente vivi e me senti viva como nunca fui.
Sentada na cama, enquanto esperava as horas passarem,
pensei em me despedir de Mica, mas eu sabia que se fizesse isso
ela não me deixaria ir e eu não precisava de mais drama do que a
situação já carregava.
Quando o silêncio era absoluto, peguei a minha bolsa
pequena, coloquei-a transversal ao corpo e decidi partir.
Abri a porta do quarto e por causa da guerra e dos feridos,
não tinham guerreiros em frente, a ameaça havia sido findada.
Pé com pé passei pela porta do quarto onde Iran dormia e
tive vontade de entrar e abraçá-lo pela última vez, mas não fiz e
segui em silêncio pelo castelo.
Por já ser tarde da noite consegui me esgueirar e sair sem
que ninguém me visse. Como sempre o cavalo do Iran encontrava-
se no pátio e torci para que eu conseguisse montá-lo para ir até o
portal sem que empinasse comigo em suas costas.
Aproximei-me do animal, passei a mão de leve em sua
cabeça e sussurrei:
— Oi, lembra de mim? — coloquei a minha mão para que
ele cheirasse e alisei sua crina. — Você vai me ajudar a voltar para
casa? — De imediato ao dizer “casa” a sensação de que a minha
era li me invadiu e tive vontade de chorar, mas balancei a cabeça e
foquei no que eu tinha que fazer.
Peguei sua rédea e o puxei devagar até o portão do
castelo, para só depois montá-lo e cavalgar ao local onde Iran havia
me mostrado a caverna que era passagem para o outro mundo.
Assim que cheguei em frente à passagem, desmontei do
animal e dei um tapa no traseiro do cavalo para que ele voltasse,
depois com uma última olhada na direção do castelo me despedi de
tudo que vivi ali.
Fechei meus olhos e desejei que fosse mais fácil, mas
imediatamente me corrigi, já que se tudo não fosse exatamente
como foi, não teria a importância que teve cada minuto em Flós.
— Aonde pensa que vai, Rainha? — Ouvi a voz de Záia
dizer logo atrás de mim.
— Ai que susto, sua bruxa!
— Não pense que me ofende, muito pelo contrário. Amo
ser bruxa. — Tive que sorrir, mas logo meu sorriso sumiu quando
contei:
— Vou para casa.
— Achei que sua casa fosse Flós.
— É a casa do Iran antes de ser minha e não quero tirar
isso dele. Além de tudo que já tirei.
Záia bufou.
— E vai tirar o filho dele?
Franzi a testa sem entender.
— Filho?
— Vai me dizer que não notou nada de diferente em seu
corpo?
Pensei.
— Não, está tudo igual e... Não!
— Está tão novinho, é claro que você não notaria. — Riu.
— Não!
— Sim. E para de dizer repetidas vezes não, que ele já
sente tudo.
— Ele?
— Sim.
— Um bebê?
— Sim.
— Eu estou grávida?
— Gravidíssima. E a não ser que você tenha tido outro
parceiro, Iran é o pai.
— Pai?
— Para de fazer tantas perguntas. Sim, pai e pela cara de
satisfeita com que você passou a olhar para ele depois da lua de
mel, provavelmente vocês aproveitaram bastante.
Coloquei a mão na minha barriga.
— Tão rápido?
— Só é preciso uma única vez.
— Mas eu não sinto nada.
Riu.
— Eu sei. Vejo uma luz ainda mais brilhante em você e por
isso sei que não está mais sozinha.
— E agora?
— Agora, como já te disse, a vida é feita de escolhas.
Sentia-me nervosa e Záia estava me confundindo, mas eu
sabia o que tinha que fazer.
— Não posso obrigá-lo a... me olhar, como ele mesmo
disse.
— Você tem certeza que foi com esse sentido que você
está pensando?
Repensei.
— Sim. Záia, se fosse você, conseguiria conviver com
alguém que te tirou seus pais?
— Descrevendo dessa forma, não. Porém, o amor tem
seus poréns.
— Não nesse caso. Quero que ele olhe para mim e lembre-
se apenas do nosso amor e isso nunca vai acontecer.
Záia me analisou e decidiu desistir:
— Se é isso que você deseja... mas lembre-se do que falei
sobre regermos nossas vidas com nossas escolhas. O que você
escolhe?
— No momento, deixá-lo em paz.
Bufou como se eu tivesse dito a fala errada.
— Então... — Deu espaço para que eu passasse. — Bom
retorno. — Apontou para caverna.
Puxei-a para um abraço e falei:
— Obrigada por tudo. Você sempre soube o que era
melhor para mim.
Sorriu ao nos separarmos e eu parti para casa sem olhar
para trás. Cada vez que eu pensava em outro lugar como casa que
não fosse Flós, me sentia desconfortável e se eu olhasse mais uma
vez para o castelo, talvez desistiria.
Passei por entre as três árvores que protegiam a entrada
da caverna e entrei. O medo tomou conta de mim no mesmo
instante. Era fria, escura e me lembrava o dia que Bravo e eu fomos
atacados por lobos.
Bravo...
Eu não o teria mais comigo quando atravessasse de volta.
Seria apenas eu e nosso bebê. Coloquei a mão na barriga. Eu nem
sabia como cuidaria de um bebê.
Um morcego passou muito perto de mim, me assustou e
continuei andando caverna adentro. Quando eu já não enxergava
nada do outro lado, a não ser um enorme breu, fiz como Iran havia
me ensinado, pensei em algo que me lembrava o outro mundo:
solidão.
Em um passe de mágica eu estava na caverna do outro
lado, com sua frente protegida por três árvores e exatamente como
eu me lembrava, mas sem Bravo ao meu lado.
Cada passo que dei no meio da escuridão fazendo o
caminho de volta para cabana foi no automático e um sofrimento,
além de a cada segundo ou situação fizesse com que eu lembrasse
do amor que deixei em Flós.
Capítulo trinta e um

Assim que empurrei a porta da cabana, ela rangeu como


antes. Poucos dias haviam se passado, mas pareciam anos.
Entrei e o cheiro característico invadiu meu nariz, fez com
que me lembrasse dos meus pais, mas principalmente de Bravo que
tinha vivido comigo recentemente e por um bom tempo foi apenas
ele e eu.
Fechei a porta e acendi a luz.
Acender a luz... algo que antes era tão simples, mas que
naquele momento parecia estranho por não ter energia em Flós.
Liguei a televisão, tomei banho e coloquei uma camisola
velha. Achei algumas bananas que eu havia colhido um cacho antes
de ir para meu lindo mundo paralelo e por sorte ainda estava
amarela. Comi mesmo sem muita vontade.
Olhei em volta da pequena construção e tudo era tão sem
graça, nada se comparava ao céu cheio de nuances de Flós.
A televisão fazia barulho e nem isso acabava com o
silêncio e a solidão.
Cheguei à conclusão que depois que uma pessoa
experimenta a felicidade ao lado de alguém especial, até a solidão
parece mais solitária do que era.
Peguei uma manta no guarda-roupa, da bolsa tirei a
camisa do Iran e deitei na cama sentindo seu cheiro abraçada a ela,
depois chorei até adormecer.
Não sabia dizer que horas eram quando finalmente
adormeci, mas no dia seguinte acordei com a claridade entrando
pela janela da cabana e quando me virei, grandes olhos azuis me
encaravam em meio a um rosto tão sério e bravo.
Tomei um pequeno susto, puxei a manta para me cobrir ao
ver Iran sentado na cadeira próxima a minha cama e me sentei
encostada à cabeceira.
— O que faz aqui?
— Vim buscar a minha família. — Parecia mais sério do
que sempre foi.
— Iran...
— Chain, Cinere, a maldição e outras pessoas... — Sua
voz era carregada de raiva. — Por causa deles perdi minha família
uma vez e não vou perder de novo.
— Sua família? — perguntei para ter certeza sobre o que
falava.
— Sim. Minha mulher e meu filho.
Fiquei em silêncio.
Záia linguaruda!
— Záia não pode ter certeza. Pode ser que seja apenas eu.
— Para mim, não é apenas você, Vida. Você é o meu
mundo.
Meus olhos encheram-se de lágrimas em sem olhá-lo, falei
baixo:
— Você disse que não conseguia me olhar.
— E não conseguia.
Encarei-o e ele continuou:
— Porque eu estava com vergonha. Porque me sinto um
nada perto de alguém tão especial. Não conseguia te olhar porque
fiz algo muito errado e não porque o problema era você.
Lágrimas escorreram por meu rosto e meu peito subiu e
desceu com a respiração entrecortada. Olhei para as minhas mãos
que estavam apoiadas no meu colo e enrolavam a costura da manta
em um gesto nervoso.
O silêncio tomou conta de nós dois, até que Iran disse:
— Se você não voltar, eu não volto. Se quiser, me torno
seu lobo de estimação e durmo na porta da cabana, mas eu não
consigo imaginar uma vida sem você.
Mantive-me em silêncio e ele continuou falando:
— Você já me expulsou no passado, mandou-me embora e
eu fiquei. Posso passar por isso de novo e quantas vezes forem
necessárias se for para ficar perto de você, minha luz. Você foi a luz
que eu precisava para encontrar a paz e depois do momento em
que coloquei meus olhos nos seus, te matar nunca mais foi opção,
sempre foi vida. Minha Vida.
Encarei-o, ele rompeu a distância e sentou-se na cama
comigo, depois pegou a minha mão e pediu:
— Volta comigo ou podemos ficar aqui, mas não se afasta
de mim. Eu te amo, Vida. Amo vocês. — Tocou minha barriga.
Lembrei-me de Záia dizendo que eram nossas escolhas
que definiam nossa história e a minha escolha era ser feliz com o
meu rei.
— Tem certeza que é isso que você quer?
— Mais do que respirar.
Encarei-o, respirei fundo e fechei meus olhos em
contentamento ao ouvir aquelas palavras, em seguida ao abri-los,
avancei sobre Iran e o beijei.
Suas mãos me puxaram para perto e seus braços me
acolheram. Aquele era o melhor lugar do mundo. Com ele e em
seus braços era onde eu queria morar.
Sem separar nossas bocas Iran me empurrou levemente
de encontro a cama e pousou seu corpo sobre o meu, depois
desceu beijando meu colo, por cima da camisola beijou meu seio,
até que parou sobre a minha barriga e disse com a voz mansa:
— Você me fez o homem mais feliz do mundo. — Seus
olhos lacrimejaram e subiu até minha boca para beijar-me
novamente. — Eu seria ainda mais se voltasse comigo para o nosso
reino? Lá é sua casa.
Encarei-o e cheia de amor, falei encarando fixamente seus
olhos:
— Minha casa é onde você estiver. Eu te amo, Iran.
Lançou-me seu lindo sorriso.
— Eu te amo mais, minha Rainha.
Colocou a mão por baixo da minha camisola e sem tirar os
olhos dos meus, alcançou meu seio e o tirou para fora para chupá-
lo, lentamente passou a língua pelo bico e me arrancou um suspiro.
Levantou-me e tirou a peça de roupa por minha cabeça me
deixando exposta. Beijou meu pescoço e sussurrou em meu ouvido
que eu era linda, fazendo meus pelos se arrepiarem.
Com leveza e aproveitando cada parte do meu corpo, ele
me degustou, olhando-me vez ou outra para dizer que eu era tudo o
que mais desejava.
Ao seu lado sentia-me única, especial e amada.
Desejando-o com voracidade, eu o pedi dentro de mim e
com agilidade tirou sua roupa e me penetrou lentamente, cheio de
amor e me encarando como que para apreciar cada expressão de
deleito que eu fizesse.
Iran mexia-se com carinho, com estocadas ritmadas,
beijava meu rosto, chupava-me e me mostrava com seu corpo o
quanto ele me queria de volta, o quanto eu era importante para ele e
fazia com que meu pensamento fosse apenas sobre desejar aquilo
para sempre.
Abri-me para ele, pedi mais e deixei-me ser levada pelo
incêndio de emoções e sensações que tomava meu corpo sempre
que Iran me preenchia. Libertei-me em tremores e deliciei-me com
suas estocadas firmes para dentro de mim quando ele também
sentiu o êxtase que nossos corpos produziam juntos.
Era o nosso amor, na mais intensa explosão que nossos
corpos se amando produziam.
Depois de banhos tomados e recuperados, saímos da
cabana e ficamos parados, abraçados na porta da frente e olhando
o grande nada a nossa volta. Era estranho estar ali, simplesmente
não tinha nada que me fizesse ficar.
— Aqui não é o nosso lugar. Nossa casa é Flós.
Iran me deu um beijo.
— Já te disse e reafirmo que meu lugar é com você
independentemente de onde estiver.
Senti a brisa gelada que tocou meu rosto e até o vento de
Flós era mais acolhedor.
— Vou soltar os animais, fechar a casa e pegar o que era
dos seus pais. Voltaremos para o reino.
Iran deu um beijo na minha cabeça.
— Dos nossos pais.
Do nada após Iran mencioná-los como nossos, uma
lembrança invadiu minha mente e contei:
— Uma vez, vi sua mãe chorar abraçada a um pedaço de
papel, quando o peguei vi que era um desenho feito por criança,
cheio de rabisco. Provavelmente feito por você. Na época, pensei
que ambos tiveram um filho antes de mim, mas não perguntei nada.
Iran suspirou, mas manteve-se em silêncio.
— Sabe, ela cuidou muito bem de mim, mas com certeza
sentia sua falta e te amava incondicionalmente. Eles tinham muito
medo de tudo aqui e talvez achassem que como guerreiro você
estivesse mais seguro em Flós.
— Sim. Eu sei. Cuidaram de mim mesmo de longe.
— Sou grata por todo cuidado que ambos destinaram a
mim.
— Sou orgulhoso por terem aceito algo tão perigoso por
nosso reino.
Ficamos em silêncio até que o quebrei:
— Eu não conseguiria viver aqui sem você.
— Percebi, quando te vi abraçada com a minha camisa —
Sorri. — Quando entrei na cabana e vi que estava dormindo
abraçada com ela, pensei que talvez eu pudesse ter uma chance de
te ter de volta.
O puxei para mais perto.
— E então, vamos voltar?
— Sim, o povo ficará feliz com sua rainha por perto.
— E seu rei.
— E o príncipe.
— Pode ser princesa.
— Os ancestrais não seriam tão impiedosos comigo,
aguentar a rainha cheia de personalidade já está de bom tamanho
para me fazer pagar por minhas escolhas erradas. Imagine uma
princesa com o gênio da mãe.
Dei-o um tapa de leve e me virei para ficar de frente.
— Quero que nasça lindo como o pai. Para que todas as
mulheres suspirem ao vê-lo passar. — Passei a mão por sua cicatriz
clarinha que carregava no rosto.
— As mulheres não suspiram por mim.
— Eu suspiro e Mica me contou que você era o guerreiro
mais cobiçado de Flós.
Fiz uma careta.
— Mas meu coração já era seu mesmo antes de te
conhecer.
Semicerrei os olhos para ele.
— Galante meu marido.
— Amo ouvir que sou seu marido.
— Meu rei.
— Isso me deixa com vontade de repetir o que acabamos
de fazer.
— Meu homem.
— Vida... — Fechou os olhos.
— Meu amor.
Com um gesto rápido e fazendo-me soltar um grito, Iran me
pegou no colo e voltamos para cama.
Capítulo trinta e dois

Antes de voltarmos, Iran visitou o túmulo que fiz para os


nossos pais e com lágrimas nos olhos disse que os amava.
Perguntei se não teríamos que levá-los para Flós, mas Iran disse
que ali só estava o corpo, que suas almas já encontravam-se com
os ancestrais e cuidando de nós.
Seguimos para casa e assim que atravessamos as três
árvores e adentramos na escuridão da caverna, lembrei-me que eu
teria que pensar em algo que me levasse para Flós e imediatamente
pensei em felicidade.
Do outro lado Záia nos esperava ansiosa e quando me viu
aplaudiu e lançou-me um enorme sorriso.
— Eu sabia que o amor venceria.
— Sua linguaruda! — brinquei.
— Antes de ir você agradeceu por eu sempre fazer o que
era melhor para você, sendo assim, decidi que o que era melhor
para você era ficar em Flós. Então corri e contei para Iran sobre sua
fuga e o bebê. — Deu de ombros.
— Qual será o sexo? — Iran perguntou-a, curioso.
— Não sei — mentiu, fazendo a sua cara costumeira de
quem dizia não saber, mas no final sabia de tudo.
— Nunca gostei de você, Bruxa.
Záia soltou uma sonora gargalhada.
— Pois eu gostava de você, seu rabugento. Sabia do seu
coração.
— E por que me olhava como se fosse arrancar a minha
cabeça?
— Lembrem-se, escolhas... — Sorriu insinuante. — Sei até
certo ponto, mas talvez sua escolha pudesse fazer com que o meu
futuro não fosse estar aqui testemunhando o retorno da rainha e...
do bebê. Aí eu teria arrancado sua cabeça.
— Sabiam que a primeira vez que vi vocês se estranhando,
cogitei que tivessem vivido algo antes de mim?
Ambos fizeram caretas.
— Os antepassados me guardaram dessa maldição. —
Iran disse divertido.
— Guardaram a mim — Záia rebateu e eu ri dos dois que
diziam não se gostarem, mas eu sabia que no fundo eram como
irmãos implicando um com o outro.
A bruxa colocou a mão na minha barriga, seu sorriso se
alargou e seus olhos se iluminaram, como se estivesse
testemunhando uma visão feliz do futuro, depois disse:
— Bem-vindos de volta.
Mais uma vez puxei Záia para um abraço e agradeci:
— Obrigada.
— Não há de que. Sempre a serviço do reino. Inclusive,
agora que sou uma bruxa muito poderosa, posso fazer magias
inimagináveis. Me digam, o que faço com a passagem para o outro
mundo?
Iran me olhou e deixou que eu decidisse:
— Feche-a. Não há nada lá que nos interesse e com uma
bruxa poderosa como você, ninguém de Flós nunca mais precisará
se exilar ou ficar à mercê de nenhuma maldição.
Os olhos bicolores de Záia ficaram lilás e com palavras que
eu não conhecia, ela uniu as três árvores ainda mais e fechou a
passagem para o mundo gelado.
— Sou mesmo muito poderosa — disse convencida e eu
sorri.
Voltamos os três para o castelo onde Valery nos esperava
com um olhar curioso. Encontrava-se acompanhado de guardas e
guerreiros e provavelmente não sabia sobre minha fuga a durante
noite e nossa ida rápida para o outro mundo.
— Rei. Rainha. — Valery se inclinou levemente ao nos
cumprimentar. — Záia.
— Pare com isso Valery — chamei sua atenção, sorrindo.
— O que aconteceu? — Iran perguntou preocupado.
— Fomos até Cinere. Um ancião de lá nos garantiu que
realmente eram sete as ramificações. A morte dos envolvidos
iniciais, rei de Cinere, rainha Evoen e Chain completavam as sete,
junto com o nascimento de Vida, a idade de retorno, o casamento e
uma redenção.
Záia sorriu feliz e Valery continuou a contar:
— Parece que com a morte de Chain, as pessoas aliadas e
que tinham a maldade como a dele, viraram cinzas
instantaneamente. E a névoa do mal que ocupava o ar daquele
reino também se foi. Talvez por todos os anos que Cinere existiu,
eles precisavam de uma guerra para aniquilar o mal. O pobre povo
não é como os líderes ruins que teve, foi uma sucessão de pessoas
maldosas nos reinados que aumentou as cinzas.
— Mas por que parece preocupado? O fim do mal não é
bom?
— Sim, no entanto, crianças ficaram sem os pais, há
também muitos idosos, mulheres e até mesmo homens que sentem-
se perdidos sem alguém que os governem. Eles querem um rei e
não tem nenhuma sucessão da família do rei ou de Chain. E mesmo
que tivesse, eles não querem esse tipo de líder.
Pensei um pouco e tive uma ideia:
— Valery, segundo o que ouvi, você cuidou muito bem de
Flós enquanto o trono ficou aos seus cuidados, tenho certeza que
daria um excelente rei de Cinere — sugeri.
Vi seus olhos se arregalarem como se não houvesse
cogitado essa hipótese, Záia ao meu lado balançou a cabeça em
positivo como se eu tivesse acertado na sugestão.
— Bom, acho que se Valery aceitar, Cinere já tem um novo
rei — Iran disse feliz.
— Argh! — Záia fez uma careta. — Mas precisamos de
outro nome para esse reino.
— Tenho certeza que a rainha Mica achará um novo nome
que combine. —Olhei para Valery que sorriu sem jeito e parecia
pensar no que dizer.
— E então, Valery? — insisti.
— Acho que aceito, apesar de não saber se sou uma boa
escolha.
Záia deu dois tapas de leve em seu ombro.
— Você é.

Naquele mesmo dia, à noite, reunimos mais uma vez o


povo no pátio e fizemos alguns anúncios felizes:
O reino teria um casamento muito em breve. Mica e Valery
celebrariam com o povo o enlace de suas vidas.
Flós teria mais um reino aliado e que Cinere passaria a se
chamar reino de Lumine. Não mais o reino das cinzas, mas o reino
das luzes. Sugestão muito acertada de Mica, que junto com Valery,
após o casamento, seriam rei e rainha do reino de Lumine.
Por último, anunciamos que Flós em breve teria um novo
habitante e que eu estava esperando um príncipe ou uma princesa.
O reino explodiu em alegria e mesmo que alguns ainda
seguiam se recuperando da guerra ou carregando seus lutos, as
notícias foram como um bálsamo para sarar as feridas e as dores
que carregavam.
A festa de comemoração durou muitos dias e, como
mágica, logo tudo estava em seu lugar, todos curados e com a
esperança de um futuro de paz em seus corações.
Epílogo

Faziam três anos que eu era a rainha de Flós e minha filha


Ivy corria feliz pelos jardins do castelo, enquanto o meu pequeno
Isaac de apenas nove meses dormia na cesta ao meu lado, onde
encontrava-me sentada no gramado.
Naquele dia tínhamos acabado de receber a visita da
rainha Mica de Lumine e seu príncipe, o pequeno Vinci que tinha a
mesma idade de Ivy. A Tradição de Flós era que os nomes dos
filhos começassem com a primeira letra do nome dos pais e essa
tradição, tanto eu quanto Mica fizemos questões de seguir.
Desde que Mica e Valery se casaram combinei com a
minha amiga que pelo menos uma vez por mês íamos nos ver,
então ela ia até Flós e na vez seguinte eu ia para Lumine.
Embora nossos reinos fossem vizinhos, os castelos
ficavam a quase meio dia de viagem, contudo, ainda sim estávamos
conseguindo manter nosso combinado.
O casamento de Mica e Valery foi lindo e cheio de
significado, ambos decidiram seguir as tradições de Flós no novo
reino.
Assim como eu, Mica engravidou rapidamente e foi uma
festa tanto em Flós, quanto em Lumine. O antigo povo Cinere a
amava de todo coração, ainda mais quando souberam que ela foi
uma das principais responsáveis por matar o maldito mago.
Meu casamento com Iran seguia feliz. Às vezes, tínhamos
discussões como todo casal, mas resolvíamos logo e o amor
sempre falava mais alto que qualquer discussão.
Nunca mais tocamos no assunto sobre a traição e nos
referíamos aos guerreiros que me criaram como nossos pais, com
muito carinho e respeito.
Iran era respeitado e amado pelo povo, realmente o seu
deslize foi esquecido, na verdade, suas boas ações e ótima
liderança foi o que fez com que o povo confiasse nele e esquecesse
o passado. Além de que, Záia conseguiu mostrar para o povo, por
meio de magia, o exato momento em que Iran foi interceptado por
Chain e parecendo enfeitiçado para que aceitasse o que o mago
propusesse, apertou a mão do homem selando o acordo.
Depois de tudo, a cada dia Iran pareceu mais convicto da
sua inocência e até se perdoou. O que foi o mais difícil em todo o
processo.
Záia foi consagrada a bruxa mais poderosa de Flós e
conselheira da rainha. Passou a morar no castelo e vez ou outra a
via com chamego com alguns dos guardas ou guerreiros, mas eu
sentia que era de Kay que ela mais gostava, o nosso novo guardião
do trono.
— Sente-se cansada, Rainha? — Iran apareceu logo atrás
de mim e apertou meus ombros.
— De maneira nenhuma, inclusive, preciso te lembrar que
hoje começa o cio da minha versão lobo.
Iran se abaixou e mordeu minha orelha.
— Deve ser por isso que me sinto ainda mais atraído por
você, que ontem.
— Temos quatorze dias para aproveitar a forma de lobo e
acasalarmos como loucos nas planícies e matas afastadas de Flós.
— Me propondo dessa forma, o meu lado animal selvagem
fica ansioso para noite se por.
Olhei para o céu.
— Faltam poucas horas.
Encarei-o e os olhos de Iran pareciam em chamas.
— Você me deixa louco, Rainha.
— E você me excita, Lobo.
Abaixou-se e deu-me um beijo que terminou em mordida.
— Lembre-se que algum tempo depois do seu último cio de
loba, tivemos o Isaac.
— Não me importo de encher o castelo de crianças, temos
muitos quartos vazios. Montaremos nossa alcateia.
Iran fechou os olhos como se minha resposta o tivesse
deixado ainda mais excitado.
— Então, minha mulher, desvendaremos os cantos mais
remotos de Flós, enquanto acasalamos loucamente.
— Esperando ansiosa por isso.
Naquela noite, deixei as crianças dormindo com as babás e
Iran e eu saímos com nossas formas de lobos, nos amando vezes
como animais e vezes como humanos.
O cio realmente me deixava muito faminta por meu marido,
ainda mais do que eu era normalmente.
Em uma das pausas que demos entre nos amar no meio
do mato e em cavernas, deitamos em um campo aberto onde nua e
olhando para o céu, repensei em quanto eu era feliz, amada,
desejada e realizada e esperava que fosse assim para sempre.
— Iran.
— Sim.
— Promete que isso nunca vai ter fim.
— Prometo.
— Por nossos filhos?
— Sim, prometo por os que temos e pelos os que ainda
vamos ter.
— Eu te amo, Lobo.
— Eu te amo mais, Loba.
Sorri pensando que o meu casamento foi arranjado, mas
foi o melhor arranjo que eu poderia ter feito na vida.

Fim...

Conheça o reino de Animalis e


leia também:

Primeiro capítulo abaixo:


Capítulo um
Sangue jorrou para todos os lados, quando minha espada
cortou o pescoço do traidor que confabulava contra mim.
Eu tinha ido à sua caçada, colocando o leão que me guiava
para buscá-lo por entre as árvores da floresta do reino. Dispensei os
guerreiros, porque aquela era uma batalha que eu quem precisava
lutar, como prova ao meu povo que ninguém podia se opor a Leon
Nkosi.

Corremos pelo mato rasteiro e eu vivenciava a adrenalina da


caçada. A minha respiração seguia controlada, ao contrário da dele,
eu sentia seu medo e com a minha audição apurada, eu conseguia
ouvir as batidas do coração da minha presa.

Ao me aproximar, com um pulo em suas costas o retive com


turbulência, caindo com meu corpo pesado sobre o dele e não o
dando chance de fugir.

— Piedade, Rei Leon — pediu com desespero, deixando


seu medo se sobressair sobre a sua traição.

— Khaynin! — xinguei-o de traidor com os dentes serrados


e apertei seu pescoço. — Não vou te matar aqui. Preciso deixar
uma lição.

Capturei o traidor e, amarrado sobre meu cavalo, o levei


para o castelo, passando por entre as casas dos vilarejos ao redor
da muralha e recebendo olhares curiosos, admirados e
amedrontados.

Eu podia notar que alguns dos súditos se sentiam seguros


com a cena, era como se percebessem que seu rei conseguia lidar
com traidores e o reino não findaria em desgraça se eu caísse,
ficando assim nas mãos de um governante ruim.

Aquele que tentou roubar meu lugar era um primo vindo de


uma província distante de Animalis, tinha sangue da família real e
pensou que me matar lhe renderia o trono.

Chegamos ao castelo e do lado de fora, no pátio principal,


eu segurava o cabelo do desleal, que tinha as mãos amarradas para
trás e respirava tão rapidamente que eu conseguia ver seu medo
excessivo.

Foi inflado por seu pai e o velho, parado na minha frente


junto com as demais pessoas que testemunhavam o final trágico do
traidor, implorava para que eu tivesse clemência do seu filho.

Eu não podia.

Precisava ser implacável com os traidores ou no futuro seria


eu quem estaria de joelhos e com a cabeça como prêmio.

Soltei seu cabelo e sem muito pensar, com um movimento


rápido degolei-o na frente de vários representantes dos vilarejos,
dos anciões e do pai, que chorava arrependido.

Pouparia a vida do velho chorão, ao menos naquele


momento. Uma cabeça era suficiente para mim. Ia mantê-lo vivo,
mesmo que não tivesse pensado em piedade quando tramou minha
morte, porém, sua paga seria a dor de sofrer pelo filho.

Olhei para os rostos que me observavam.

— Aintah banid. — Pedi que prestassem atenção, usando a


antiga língua animalenes que nos foi deixada pelos antepassados.
— Eu sou o rei de Animalis por sucessão, por força e por mérito.
Ninguém pode ousar me derrubar. Minha linhagem, da família Nkosi,
vai prevalecer. A família Nkosi não cairá. Não sairá do poder.

Limpei minha espada na veste do desgraçado caído aos


meus pés e dispensei todos que me olhavam com um misto de
medo e admiração. Depois, como se não fosse nada, me virei de
costas e pedi que limpassem a bagunça.

Passei pelas grandes portas de madeira e andei pelo


espaçoso salão de piso liso e verde brilhoso, ideal para dança, com
o desenho da silhueta de um leão bem no centro. A minha volta,
paredes de madeira e pilastras de troncos enormes, que já foram
árvores, sustentavam meu castelo e eu era grato à natureza que me
proporcionava aquela arquitetura belíssima.

Segui até meu trono, feito em madeira e ouro, imponente


como um rei merecia. Exibia-se pousado em um espaço com altura
elevada e com alguns degraus para acessá-lo.

Sentei-me e pousei os braços nos apoios. Eu amava a vista


que tinha de cima. Ser rei fazia parte de mim e ninguém me tiraria
aquela satisfação.

Talvez fosse esse o medo que eu carregava de ter um


herdeiro: o de tomar o meu lugar. Observei o trono vazio ao meu
lado, onde a futura rainha se sentaria e apertei a mandíbula em
desagrado.

A tal prometida do rei...

A que ocuparia o acento, com quem eu teria que dividir o


reinado de Animalis, o poder e acabaria com a minha pouca
paciência.

Senti a raiva de ser obrigado a fazer algo que não desejava


me invadir, como sempre quando eu pensava no casamento.

Só queria aproveitar a vida com todas as mulheres e não


com apenas uma. O matrimônio me exigiria fidelidade, que eu não
sabia se estava pronto para oferecer à minha companheira.

Ser rei tinha seus prós, mas também era cheio de


responsabilidades que eu odiava ser obrigado a cumprir.

Eu entendia que precisava honrar o sobrenome Nkosi. Dar


continuidade a linhagem com um herdeiro saudável e mostrar que
eu era capaz de procriar e manter meu reinado para a posteridade,
com a sucessão.
Os Nkosi nunca caíram sob os ataques inimigos e era a
força física que dizia quem comandava o reino.

Animalis era protegido por mim na linha de frente, mas


também por uma leva de guerreiros fortes, que mantinham a ordem.
A guarda de Animalis.

Cada um deles era regido por uma força animal, porque os


primeiros rei e rainha de que se tem registro nos escritos, há
milhares de anos, começaram nossa história de forma mágica com
aquele poder. Seus animas protetores eram um rinoceronte e ela um
macaco e na entrada do reino exibimos totens enormes dos
animais.

Tínhamos uma ligação com a natureza que poucos povos


tinham e ainda que fôssemos cercados por reinos rivais e aliados, e
muitos deles pudessem também se transformar em animais, foi do
nosso que a herança da transformação surgiu. Éramos os primeiros,
com isso, os que tinham mais força animal.

Preservávamos nossos ancestrais e respeitávamos as


tradições à risca. Inclusive, o maior mandamento do reino era
respeitar as tradições. Por isso, eu não fugia das que me eram
compelidas.

Reis e rainhas de espécies distintas podiam se relacionar na


forma humana, mas existia uma lenda que os anciões contavam,
que o casal real que carregasse o mesmo animal os regendo, teriam
uma conexão nunca vista e com o bem em alta, despertaria um mal
ainda maior adormecido pelo tempo.

Eu pensava ser apenas uma lenda, nunca tinha acontecido.


Em milhares de anos e muitos casais de reis e rainhas, nenhum
tinham a mesma espécie que os regia.

Ainda que existissem muitas lendas, nunca foram levadas


em consideração, eram apenas lendas que nos distraiam ao serem
contadas pelos mais velhos.
Além de força, beleza e inteligência, várias outras
qualidades, eram exigidas do governante do reino. Força regia a
maior parte dos requisitos, porque se eu não a tivesse, não poderia
defender meu povo.

E era isso que eu provava ao decapitar um homem que


ousou ameaçar meu trono. Eu era o mais forte, ninguém me
derrubaria.

Zaki, meu fiel conselheiro, filho do homem que foi


conselheiro do meu pai, caminhava com sua postura alterosa em
minha direção. Seu semblante entregava que algo o incomodava.

— O que foi, Zaki?

— Majestade. — Fez uma reverência que eu sempre o


alertei ser desnecessária, por sermos quase como irmãos, mas ele
insistia em algumas formalidades.

O conselheiro era uma espécie de sombra do rei, além de


me auxiliar em decisões, também se mantinha ao meu lado nas
batalhas, para preservar a minha vida, quando eu também daria a
minha por ele.

Zaki era tão forte quanto eu e sempre se via disposto a se


colocar na frente de uma espada por mim.

Ainda que eu não pudesse confiar em quase ninguém, em


Zaki eu confiava.

— Pela sua cara, sei que vou me irritar, então não comece a
tagarelar — tentei dispensá-lo ao mesmo tempo que ainda limpava
a minha espada suja de sangue em um pano que uma das criadas
me entregou sem que eu pedisse.

O objeto foi herança do meu pai e eu carregava um enorme


apego. Ninguém a tocava. A enorme esmeralda que a decorava era
o diferencial.
Os dizeres que eram lema de Animalis foram gravados no
ferro:

Força, vida e garra.

Zaki parou a minha frente, com as mãos nas costas, peito


erguido e olhar reprovador, eu sabia que ele ia começar a falar,
como se não tivesse ouvido o que eu havia acabado de dizer, claro
que tagarelou:

— Nos últimos tempos, mais homens tentaram tomar o


reino, inflamados pela falta de um herdeiro. Isso o deixa fraco, até
os anciãos estão preocupados com a falta de um...

— Herdeiro. Eu sei de tudo isso.

— Então creio que esteja na hora de pôr em prática. — Eu


via a afronta em seu olhar. — Já passa da hora de você buscar sua
prometida, Leon. — Éramos amigos, por termos crescido juntos, por
isso me chamava pelo nome e, às vezes, se esquecia de que eu
podia arrancar a sua cabeça com a minha espada.

Bufei.

— Hoje não posso, temos uma festa. — Pensar em dividir a


minha paz com alguém todos os dias era algo que me assustava.
Sempre fui livre e amava a minha liberdade. Fazia parte de quem eu
era e meu instinto animal se negava a viver enjaulado, porque uma
prisão era como eu via o casamento que tentavam me arranjar. —
Mas pode ir você.

— Levarei um dos guerreiros comigo.

— Faça isso. Ou posso fazer um filho em qualquer uma das


mulheres que enchem os coxins da sala de recreação. Consigo
fazer herdeiros em várias em uma noite. — Sorri convencido. —
Depois escolhemos o melhor, pegamos a criança e dispensamos a
mãe. Por que preciso me casar?
Zaki riu, mas foi um riso de julgamento.

— Como pode ser perverso assim? Pergunto-me se


conhece o que é o amor ou ao menos as tradições dos nossos
antepassados.

Fiz uma careta e ri em divertimento.

— Claro que as conheço, só não concordo com algumas


delas.

— E não pode mudá-las.

— Amor... — testei a palavra. — Um rei como eu, que tem


todas que deseja, não precisa dessa baboseira de amor. A única
coisa que preciso é de uma criança chorona para deixarem de me
irritar.

Zaki balançou a cabeça em negativa.

— Seu pai foi um rei sábio.

— Está sugerindo que eu não sou?

Ao fundo vi os empregados do castelo saindo com baldes


para limpar a sujeira e recolher o corpo sem vida do traidor. Pensei
que eu poderia perder tudo que amava se no próximo ataque
conseguissem me tirar do poder.

— Não, só que pelo o que parece ele sabia que seu


presente do aniversário de cinco anos seria necessário no futuro.

— Uma esposa, quando eu queria um cavalo?

— Sim. Por segurança foi exilada, assim como outros reinos


fizeram com suas preciosidades. Não era um cavalo, mas sua
prometida é mais valiosa que um puro sangue.
— Em um cavalo eu poderia montar. Espero que na esposa
também.

— Isso não é algo que possa dizer a ela, Rei. Terá que
respeitá-la.

— Peço licença antes. — Sorri malicioso.

— Leon — repreendeu-me e o fuzilei-o com o olhar.

— Já imagino a criatura horrenda e enfadonha que deva ser.


— Levantei-me do trono, desci as escadas e andei até um móvel
onde uma criada enchia o jarro com a bebida de uva, mel e álcool,
que me deixava bem-disposto.

— Estamos falando de uma mulher e não de um ser místico.


Tinha uma mãe muito bela, seu pai um guerreiro corajoso estimado,
creio que ela não deva ser horrenda.

Fingi não o ouvir, me servi de uma dose generosa e a virei


em um gole, sentindo o adocicado excessivo junto com o álcool que
desceu queimando a minha garganta.

Novamente enchi o copo de metal, bebi e a seguir senti o


aroma de assados que pairava pelo ar. Eram preparados para a
festa daquela noite.

— Aziza seu nome. — Revirei os olhos, porque Zaki não


desistia. — Nasceu com uma marca como a sua e por isso foi
escolhida como a prometida do príncipe, agora rei.

— Pare. Vamos falar disso depois.

Ao ouvir Zaki citar a minha marca, levei a mão ao peito,


onde uma mancha marrom no formato de uma pata com garras se
exibia.

— Prometida... — degustei a palavra que ele havia usado


tanto nos últimos tempos, enquanto voltava a me sentar no meu
lugar favorito.

— Para gerar o herdeiro.

Bufei e revirei os olhos de novo.

— Eu sei que preciso de um herdeiro, já disse que não tem


que ficar me lembrando repetidas vezes. — Irritado, voltei a me
levantar do trono e andei de um lado para o outro, tentando
controlar minha raiva e não arrancar a cabeça do meu conselheiro.

Eu era o rei, não tinha que ser incomodado.

— Não só você, mas o reino. — Soprei o ar para me


controlar, porque o leão em mim queria rosnar e espantar aquele
irritante de perto.

— Eu falei que não precisa me lembrar, só quero saber


quantas dançarinas.

— O quê?

— Quantas dançarinas terei para desfrutar hoje?

Zaki me fitou com seriedade.

— Mesmo com a ameaça contra seu trono você vai seguir


com a festa?

— Não sente o cheiro dos assados?

— Mas terão dançarinas, podem ser usadas contra você e


isso pode ser perigoso.

— Se eu não fizer, demonstrarei fraqueza. Sou o rei e estou


pouco me importando se alguém quer tirar meu trono, porque tenho
convicção de que quem quer que tente, não conseguirá. Sou o mais
forte, mais inteligente e Leon Nkozi o invencível rei de Animalis.
Zaki assentiu.

— Sim, é tudo isso, mas a falta de um herdeiro pode ser sua


queda. Lidar com um traidor é fácil, mas quando vierem mais e os
anciões os apoiarem, ficará difícil para você. Você sabe a
importância que damos as tradições e aos antepassados.

Apertei o maxilar e com os olhos tomados pela raiva, lancei


o copo que eu segurava contra pilastra, fazendo um estrondo ecoar
pelo grande salão.

— Inferno! Digam que tragam de volta a tal prometida que


meu pai exilou. Vou enfim me casar com ela e dar o bendito herdeiro
que todos querem. Mas enquanto não me casar, sou livre para
desfrutar das regalias de rei. Esbaldar-me em muitas mulheres é
uma delas.

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Agradecimentos
Agradeço primeiramente a Deus por me dar a vida e com ela o dom de escrever. Agradeço
ao meu marido, que me apoia e me incentiva em todas as loucuras que me meto e com
seu amor está sempre me impulsionando e embarcando em todas aventuras que a vida
nos oferece.

Agradeço à minha filha que me inspira e me ajuda da melhor maneira que pode, com seu
amor e sendo meu anjinho com seus doze aninhos de vida.

Agradeço à minha família e amigos que estão sempre me apoiando, incentivando e nunca
me deixam desistir, a todas as amigas virtuais e leitoras (MINHAS MARIAS) que me
incentivam todos os dias, mesmo à distância, sempre comigo pelas redes sociais, com
palavras e carinhos gratuitos.

Agradeço minhas betas lindas Michele, Nanda e Pam que com paciência são o termômetro
quando estou escrevendo e me dizem se estou indo pelo caminho certo. A todas as
parceiras que indicam, divulgam, compartilham e fazem aquele marketing lindo.

E enfim, não menos importante, agradeço a todos os leitores que se apaixonaram pela
história de Daniel e Pérola. Que se emocionaram, riram, me amaram ou odiaram a cada
capítulo.

Agradeço aos primeiros a ler e também a você que pode estar lendo esse agradecimento
no dia do lançamento ou anos após ele ter sido lançado.

A todos os citados, meu maior e mais sincero: muito obrigada!


Sobre a Autora
De Biritiba Mirim-SP, Julia é casada, tem uma filha e é escritora em tempo integral. Sempre
foi encantada pelo mundo literário e quando criança os gibs da turma da Mônica a
fascinavam. Cresceu, e se tornou uma romântica incurável que se perdia de amores pelas
histórias de época e romances em geral. No entanto, foi em agosto de 2015 que decidiu
unir o amor pela leitura com o pela escrita e criou o seu primeiro romance . A partir daí
Julia não parou mais e escreveu diversos livros, sendo dois deles infantis.

Apaixonada por seus leitores, ela não pensa em parar e por isso se joga diariamente no
mundo das histórias que os personagens lhe contam, dando vida a cada um deles e
acreditando que seus leitores os mantêm vivos todas as vezes que os leem.

Outras Obras: https://amzn.to/3OpBRCS


Obrigada por ler até aqui, espero
que tenha gostado e conto com a
sua avaliação.
Beijos.
Julia Fernandes

[1] metamorfose do homem em lobo


[2] Referente a lobo.

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