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E aqui está a questão: há outra coisa que você não sabe que está
destruindo a família dela. Ela vai precisar de ajuda.
Então, se eu morrer, significa que não posso estar lá por Ella. Não
posso ajudá-los com isso. Mas você pode. Então, estou implorando, como
meu melhor amigo, cuide da minha irmã, da minha família.
Ryan
CAPÍTULO UM
BECKETT
Carta nº 1
Prezado Chaos,
Ella
***
2 Helicóptero militar.
— Você me ouviu. Minha irmãzinha, Ella.
Meu cérebro revirou sua lista de contatos mental. Ella.
Loira, sorriso assassino, olhos suaves e gentis que eram mais azuis do
que qualquer outro céu que já vi. Ele ficou andando por aí com a foto dela
na última década.
— Gentry, vamos lá. Você precisa de uma foto?
— Eu sei quem é Ella. Por que diabos tem uma carta dela na minha
cama?
— Só achei que você podia precisar de um amigo por
correspondência. — Seu olhar caiu em suas botas sujas.
— Um amigo por correspondência? Como se eu fosse um projeto
da quinta série da escola da sua irmã?
Havoc deslizou para mais perto, seu corpo descansando contra a
minha perna. Ela ficava em sintonia com todos os meus movimentos, até
mesmo as menores mudanças no meu humor. Isso é o que nos tornava
uma equipe imbatível.
— Não, não... — Ele balançou a cabeça. — Estava só tentando
ajudar. Ela perguntou se tinha alguém que precisava de
correspondência, e como você não tem família...
Zombando, abri a porta e deixei sua bunda do lado de fora. Talvez
um pouco daquela areia enchesse sua boca aberta. Eu odiava
a palavra que começa com F. As pessoas reclamavam delas o tempo todo,
constantemente, na verdade. Mas no minuto em que percebiam que você
não tinha uma, era como se fosse uma aberração que precisava ser
consertada, um problema que precisava ser resolvido, ou pior - pena.
Eu estava tão além da pena de alguém que era quase engraçado.
— Tudo bem, pessoal. — O capitão Donahue chamou nossa equipe
de dez membros - menos um – ao redor da mesa de conferência. —
Lamento dizer que não estamos indo para casa. Temos uma nova missão.
Todos aqueles caras gemendo - sem dúvida sentindo falta de suas
esposas, seus filhos - apenas reafirmaram minha ideia sobre o assunto
do vínculo.
***
***
Ella,
Chaos
***
Li a carta pela terceira vez desde que chegou esta manhã, meus
dedos correndo sobre a letra irregular, escrita inteira com letras em
maiúsculas. Quando Ryan disse que havia alguém em sua unidade que
ele esperava que eu assumisse como amigo por correspondência, pensei
que ele tinha perdido a cabeça.
Os caras com quem ele servia eram geralmente tão abertos quanto
um cofre de armas trancado. Nosso pai tinha sido do mesmo
jeito. Honestamente, quando as semanas se passaram sem uma
resposta, imaginei que o cara tinha esnobado a minha oferta. Parte de
mim estava aliviada – eu já tinha tantos problemas. Mas havia algo a ser
dito sobre as possibilidades de um pedaço de papel em branco. Ser capaz
de esvaziar meus pensamentos para alguém que eu nunca encontraria
era estranhamente libertador.
Pela carta dele, me perguntei se ele sentia o mesmo.
Como alguém poderia chegar aos vinte e oito sem ter... alguém,
alguém sob qualquer forma? Ry disse que o cara era reservado e tinha
um coração tão acessível quanto uma parede de tijolos, mas Chaos
parecia... solitário.
— Mamãe, estou entediada. — Maisie disse do meu lado,
balançando seus pés debaixo da cadeira.
— Bem, você sabe o quê? — Perguntei em uma voz cantada,
colocando a carta dentro da minha bolsa.
— Só as pessoas chatas ficam entediadas? — Ela respondeu,
piscando para mim com os maiores olhos azuis do mundo. Ela inclinou
a cabeça e torceu o nariz, fazendo rugas no topo. — Talvez não fossem
tão chatas se tivessem coisas para fazer.
Balancei a cabeça, mas sorri e ofereci meu iPad.
— Tenha cuidado com isso, está bem? — Não podíamos nos dar ao
luxo de substituí-lo, não com três dos chalés de hóspedes recebendo
novos telhados esta semana. Eu já havia vendido vinte e cinco acres nos
fundos da propriedade para financiar os consertos que precisavam ser
feitos há muito tempo e hipotecara a propriedade ao máximo para
financiar a expansão.
Maisie assentiu com a cabeça, seu rabo de cavalo loiro balançando
quando ela abriu o iPad para encontrar seus aplicativos favoritos. Era
um mistério como uma criança de cinco anos usava isso melhor do que
eu. Colt também era um especialista, mas não tão habilidoso quanto
Maisie. Principalmente porque ele estava muito ocupado escalando o que
não devia.
Meu olhar disparou para o relógio. Quatro da tarde. O médico já
estava meia hora atrasado para a consulta que ele havia me pedido. Eu
sabia que Ada não se importava de cuidar de Colt, mas eu odiava ter que
pedir a ela. Ela estava na casa dos sessenta anos e, apesar de ainda ser
ativa, Colt não era nada fácil de acompanhar. Ela o chamava de
“relâmpago em uma garrafa”, e ela não estava muito longe.
Maisie distraidamente esfregou o quadril onde ela reclamava. A
queixa passou de uma pontada, uma dor, a dor sempre presente que
nunca a deixou.
Pouco antes de eu perder a paciência e me dirigir à recepcionista,
o médico bateu antes de entrar.
— Ei, Ella. Como está se sentindo, Margaret? — perguntou o doutor
Franklin com um sorriso gentil e uma prancheta.
— Maisie, — ela o corrigiu com olhos sérios.
— Claro, — ele concordou com um aceno de cabeça, atirando-me
um leve sorriso. Sem dúvida, eu ainda tinha cinco anos, considerando
que o doutor Franklin também foi meu pediatra. Seu cabelo estava mais
grisalho e havia uns vinte quilos a mais nele, mas ainda era o mesmo de
quando minha avó me trazia a este consultório. Nada mudou muito na
nossa pequena cidade de Telluride. Claro, a temporada de esqui chegou,
os turistas inundaram nossas ruas com seus Land Rovers, mas a maré
sempre recuava, deixando para trás os habitantes locais para retomar a
vida como sempre.
— Como está a dor hoje? — Ele perguntou, abaixando-se na altura
dela.
Ela deu de ombros e se concentrou no iPad.
Tirei-o das mãos pequenas e arqueei uma sobrancelha para ela em
desaprovação.
Ela suspirou, o som era mais antigo que o de uma criança de cinco
anos, mas voltou-se para o doutor Franklin. — Sempre dói. E não doía
sempre.
Ele olhou para mim para esclarecimentos.
— Faz pelo menos seis semanas.
Ele assentiu, então franziu a testa enquanto se levantava, virando
os papéis na prancheta.
— O quê? — Frustração retorceu em meu estômago, mas mordi
minha língua. Não faria nenhum bem a Maisie perder a paciência.
— Os resultados da cintilografia óssea são bons. — Ele se inclinou
contra a mesa de exame e esfregou a mão na nuca.
Meus ombros caíram. Era o terceiro teste que faziam em Maisie e
ainda nada.
— Bom é bom, certo? — Perguntou ela.
Forcei um sorriso para o bem dela e entreguei o iPad de volta. —
Querida, por que você não joga um pouquinho enquanto converso com o
doutor Franklin no corredor?
Ela assentiu, ansiosamente voltando para qualquer jogo que
estivesse no meio.
Encontrei o doutor Franklin no corredor, deixando a porta
entreaberta apenas para que eu pudesse ficar de ouvidos em Maisie.
— Ella, não sei o que dizer. — Ele cruzou os braços sobre o peito.
— Tiramos raio-X, cintilografia, e se eu pensasse que ela ainda ficasse
quieta tempo suficiente para uma ressonância magnética, poderíamos
tentar isso. Mas, com toda honestidade, não estamos encontrando nada
de errado fisicamente com ela.
O olhar simpático que ele me deu irritou meu último nervo.
— Ela não está inventando. Qualquer dor que sente é muito real e
algo está causando isso.
— Não estou dizendo que a dor não é real. Já a vi com tanta
frequência para saber que algo está acontecendo. Alguma coisa mudou
em casa? Qualquer novo fator de estresse? Sei que pode não ser fácil para
você administrar aquele lugar sozinha com duas crianças pequenas,
especialmente na sua idade.
Meu queixo subiu uns bons centímetros, do jeito que eu sempre
fazia quando alguém usava meus filhos e minha idade na mesma frase.
— O cérebro é muito poderoso...
— Você está sugerindo que isso é psicossomático? — Retruquei. —
Porque agora ela está tendo problemas para andar. Nada mudou em
nossa casa. É a mesma coisa desde que os levei para casa deste mesmo
hospital, e ela não está sob nenhum estresse no jardim de infância,
garanto. Isso não está na cabeça dela; está no quadril dela.
— Ella, não há nada, — ele disse suavemente. — Procuramos por
fraturas, rupturas nos ligamentos, tudo. Pode ser um caso muito ruim
de dores de crescimento.
— Isso não são dores de crescimento! Você está deixando escapar
algo. Pesquisei na internet...
— Esse foi o seu primeiro erro. — Ele suspirou. — Pesquisar na
internet vai convencê-la de que um resfriado é meningite e uma dor nas
pernas é um coágulo gigante pronto para deslocar e matar você.
Meus olhos se arregalaram.
— Não é um coágulo, Ella. Nós fizemos um ultrassom. Não
há nada ali. Não podemos resolver um problema que não vemos.
Maisie não estava inventando. Não estava na cabeça dela. Não era
um sintoma de ter nascido com uma mãe jovem ou de não ter um pai
presente. Ela estava com dor e eu não podia ajudá-la.
Eu estava completa e totalmente impotente.
— Então acho que vou levá-la para casa.
***
Caro Chaos,
Ella
***
Ella,
Chaos
***
***
***
***
Ada foi no meu carro, Colt amarrado em sua cadeirinha atrás dela
enquanto nós seguíamos através das curvas e mais curvas da rodovia em
direção a Denver. Eu nunca tinha estado na parte de trás de uma
ambulância, nem mesmo quando entrei em trabalho de parto dos
gêmeos. Agora minha primeira viagem em uma durou cinco horas.
Eles nos levaram imediatamente ao leito pediátrico de câncer no
Hospital Infantil. Não existia nenhuma quantidade de murais de
desenhos alegres nas paredes que pudessem aliviar meu humor.
Colt andou ao meu lado, a mão dele na minha, enquanto
empurravam Maisie pelo largo corredor. Pequenas cabeças espiavam
pelas portas ou corriam, algumas carecas, outras não. Havia crianças
vestidas como super-heróis e princesas, e um charmoso Charlie
Chaplin. Uma mãe com uma xícara de café me deu um sorriso hesitante
e compreensivo quando passamos por onde ela estava sentada.
Era Halloween. Como eu tinha esquecido? As crianças adoravam o
Halloween e não disseram uma única palavra. Sem fantasias, sem
gostosuras ou travessuras, apenas exames e hospitais, e uma mãe que
não conseguia se lembrar de que dia era.
Eu não queria estar aqui. Eu não queria que isso estivesse
acontecendo.
Mas estava.
A enfermeira que registrou Maisie em seu quarto certificou-se de
que tínhamos tudo o que precisávamos, incluindo uma cama dobrável
que ela disse que Colt e eu podíamos ficar à vontade para dormir.
— Vocês têm fantasias? — Ela perguntou, muito animada para o
meu gosto e gentil demais para não gostar.
— Eu... eu esqueci que era Halloween. — Essa era a minha
voz? Tão baixa e ferida? — Desculpe, pessoal, — eu disse aos gêmeos
enquanto eles olhavam para mim com uma mistura de excitação e
desapontamento. — Esqueci suas fantasias em casa.
Apenas outra maneira de decepcioná-los.
— Eu as comprei, não se preocupe, — disse Ada, colocando uma
mochila no sofá. — Não tinha certeza de quanto tempo ficaríamos longe,
então peguei o que consegui pensar. Colt, você é nosso soldado, certo? —
Ela entregou a Colt o traje embrulhado em plástico que comprei há
algumas semanas.
— Sim! Igual o tio Ryan.
— E Maisie, nosso anjinho. Quer colocar isso agora ou esperar? —
perguntou Ada.
— Eles podem se vestir. Na verdade, fazemos um pouco de doces
ou travessuras por volta das cinco, então eles podem se preparar, — disse
a enfermeira. Eu não conseguia lembrar o nome dela. Eu mal me
lembrava do meu nome.
Balancei a cabeça em agradecimento quando as crianças abriram
suas roupas. Uma coisa tão comum em circunstâncias extraordinárias.
Ada envolveu seu braço em volta dos meus ombros, me puxando
com força.
— Isso parece mais travessura do que gostosura, — falei baixinho,
para que as crianças não me ouvissem. Eles riam e se vestiam, trocando
peças para que Maisie usasse o capacete de Ryan e Colt tivesse uma
auréola de prata brilhante.
— Estamos em dias difíceis, — concordou Ada. — Mas você criou
uma dupla de guerreiros ali . Maisie não vai desistir e Colt com certeza
não vai deixá-la desistir.
— Obrigada pelas fantasias. Não posso acreditar que me
esqueci. E tudo isso com Solitude e os preparativos para a temporada...
— Pode parar aí mesmo, senhorita. Eu tenho criado você desde
que você chegou a Solitude. Sempre fomos você e Ryan, e Ruth, Larry e
eu. Ruth era forte, mas sabia que precisaria de todos nós juntos para
ajudar vocês depois que perderam seus pais. Não se preocupe com nada
em casa. Larry está cuidando de tudo. E quanto às fantasias, você tem
coisas mais importantes nessa sua linda cabeça. Apenas deixe-me sentir
útil e lembre-se dos pequenos.
***
3 Tomografia computadorizada
— Eu sinto muito, mas o caso da sua filha é muito agressivo e
avançado. Na maioria dos casos de neuroblastoma, os sintomas
aparecem muito mais cedo do que isso. Mas a condição de Maisie tem
progredido sem nenhum sinal externo. É provável que esteja avançando
há anos sem ser detectado.
Anos. Um monstro estava crescendo dentro da minha filha há
anos.
— O que você está tentando me dizer?
A doutora Hughes deu a volta na mesa para pegar minha mão onde
eu estava balançando para frente e para trás como se os gêmeos ainda
fossem bebês em meus braços precisando de alívio.
— Maisie tem estágio neuroblastoma quatro. São mais de 90% de
sua medula óssea.
Eu mantive meus olhos fixos nos dela castanhos escuros, sabendo
que assim que perdesse esse contato, eu estaria me afogando novamente.
As paredes já pareciam estar se fechando, os outros médicos
desaparecendo da minha visão periférica.
— 90%? — Minha voz era quase um sussurro.
— Temo que sim.
Eu engoli e me concentrei em levar o ar para dentro e para fora dos
meus pulmões, tentando encontrar coragem para fazer a pergunta
óbvia. A que eu não pude forçar além dos meus lábios, porque no minuto
em que saísse e ela respondesse, tudo mudaria.
— Ella? — Perguntou a doutora Hughes.
— Qual é a sua perspectiva? Seu prognóstico? O que nós fazemos?
— Nós atacamos imediatamente e sem piedade. Começamos com
quimioterapia e seguimos em frente. Nós lutamos. Ela luta. E quando ela
estiver cansada demais para lutar, então você faz o que pode para lutar
por ela, porque esta é uma guerra total.
— Quais são as chances dela?
— Ella, eu não tenho certeza se você quer...
— Quais são as chances dela? — Eu gritei com o resto das minhas
energias.
A doutora Hughes fez uma pausa, depois apertou minha mão.
— Ela tem 10% de chance de sobreviver.
Aquele rugido voltou aos meus ouvidos, mas eu o afastei,
concentrando-me em cada palavra que a doutora Hughes disse. Eu
precisava de toda a informação.
— Ela tem 10% de chance de sobreviver a isso? — Eu repeti,
precisando que ela me dissesse que eu tinha ouvido errado.
— Não. Ela tem 10% de chance de sobreviver este ano.
Meus joelhos cederam quando minhas costas atingiram a
parede. Eu deslizei, papel amassando atrás de mim enquanto meu peso
derrubava o que quer que estivesse lá. Eu caí no chão, incapaz de fazer
qualquer coisa além de respirar. Vozes falaram, e ouvi, mas não entendi
o que elas diziam.
Na minha cabeça, repetiam uma coisa várias vezes. — 10% de
chance.
Minha filha tinha 10% de chance de viver esse ano.
O que significava que ela tinha 90% de chance de morrer, aquelas
asas de anjos que ela se recusava a tirar tornando-se muito reais.
Concentre-se nos dez. Dez era melhor que nove.
Dez era... tudo.
***
Se você está lendo isso, blá, blá. Você conhece o protocolo da última
carta. Você conseguiu. Eu não. Não fique com esse sentimento de culpa,
porque te conheço, e se houvesse alguma chance de ter me salvado, você
teria feito isso. Se houvesse alguma maneira de mudar o desfecho, você
teria feito isso. Então, seja qual for o buraco profundo e sombrio de culpa
em que você esteja se afundando, pare.
Preciso de uma coisa de você: leve sua bunda para Telluride. Sei
que a data da sua baixa é a mesma da minha. Aproveite isso.
Ella está sozinha. Sozinha não do jeito como ela tem vivido, mas
sozinha mesmo, de verdade. Nossa avó, nossos pais e agora eu. É pedir
demais para ela suportar. Não é justo.
Mas aqui está a questão: Maisie está doente. Ela tem apenas seis
anos, Beck, e minha sobrinha pode morrer.
Então, se eu morrer, significa que não posso ir para casa em janeiro
como planejamos. Não posso estar lá para ela. Não posso ajudar Ella com
isso, jogar futebol com meu sobrinho ou segurar minha sobrinha. Mas você
pode. Então, estou te implorando, como meu melhor amigo, cuide da minha
irmã, da minha família. Faça o que puder para salvar minha pequena
Maisie.
Não é justo pedir. Sei disso. É contra a sua natureza cuidar, não
cumprir uma missão e seguir em frente, mas eu preciso disso. Maisie e Colt
precisam disso. Ella precisa disso - precisa de você, embora ela lute com
unhas e dentes contra você antes de admitir. Ajude-a mesmo quando ela
jurar que está bem.
Não a faça ficar sozinha.
Vou guardar um lugar para você aqui do outro lado, irmão, mas não
se apresse. Aproveite cada segundo que puder. Você é o único irmão que
eu desejaria ter e meu melhor amigo. E para o caso de ninguém lhe ter dito
- você é digno. De amor. De família. De um lar.
Portanto, enquanto você procura essas coisas, confira se Telluride é
o lugar que procura. Pelo menos por um tempo.
Ryan
***
4Normal Rockwell foi um pintor americano reconhecido em seu país por retratar
minúcias da vida cotidiana da família americana, especialmente registros de eventos
de cidade pequena e seus estereótipos.
Esfreguei o topo de sua cabeça, prometendo-lhe silenciosamente
que ela teria uma vida pacífica a partir de agora. Que tão rapidamente
quanto nós dois recebemos a licença final, ela merecia um pouco de paz.
Eu? Eu vivia em um inferno de minha própria criação. Um que eu
mais do que merecia. Parei para abastecer o tanque antes de sair da
cidade, seguindo meu GPS para o endereço de Solitude.
Solitude. Que apropriado. Solidão.
Eu estava sozinho. Ella estava sozinha.
E continuaríamos assim, porque nunca estaríamos juntos. Fui
responsável por isso quando parei de escrever no dia em que Ryan
morreu.
Mas eu poderia fazer isso. Por Ryan. Por Ella. Mas não por mim.
Achar que fosse por mim implicava que havia algum tipo de redenção da
qual eu era digno.
Mas não. O que eu fiz estava além de qualquer redenção.
Forcei minha mandíbula e apertei o volante quando me aproximei
da estrada particular. Fiz uma curva, meu olhar capturando a caixa de
correio pendurada em um ângulo qualquer no poste. Quantas vezes ela
foi até ali procurando minhas cartas? Quantas vezes ela encontrou uma
e sorriu? Vinte e quatro.
Quantas vezes ela fez a caminhada sem uma? Querendo saber o
que aconteceu comigo? Talvez tenha pensado que morri na operação com
Ryan. Talvez fosse melhor assim.
Eu não tinha certeza se queria saber.
Dirigi pela estrada asfaltada, sob os álamos que ladeavam o
caminho. Ryan diria que havia algo sobre ser propício chegar na
primavera, durante o período do renascimento, mas isso era um monte
de merda.
Não havia renascimento para mim. Sem recomeços. Eu não estava
aqui para ver a vida começar. Estava aqui para ajudar Ella se fosse o fim
para Maisie. Se Ella pelo menos me deixar chegar perto.
O frio na minha barriga era muito familiar, me reduzindo àquele
garoto magro e quieto que fui há vinte anos, aparecendo na casa de outra
família, esperando que não encontrassem um motivo para torná-lo o
problema de outra pessoa. Esperando que, dessa vez, ele não guardasse
suas coisas em outro saco de lixo quando quebrasse acidentalmente um
prato ou alguma regra que nem sabia que existia, rotulado como
“problemático” e levado para outra casa mais rígida.
Pelo menos dessa vez eu já sabia quais regras havia quebrado e
estava mais do que consciente de que meu tempo aqui era limitado.
Parei na entrada circular em frente à sede, igual às fotos que vi na
internet. Parecia um chalé de madeira, só que enorme. O estilo era
modernizado, rústico, se é que isso pudesse existir, e de alguma forma
me lembrava de uma época em que homens colhiam árvores inteiras para
construir casas no território selvagem para suas mulheres.
Quando eles construíam coisas em vez de destruí-las.
Meus pés atingiram o chão e parei, esperando Havoc pular antes
de fechar a porta.
Dei um sinal e ela veio direto para o meu lado. Subimos a pequena
escada que levava a uma varanda ampla, repleta de cadeiras de balanço
e um banco suspenso. As jardineiras que cobriam a grade da varanda
estavam vazias, limpas e prontas para o plantio.
Era isso. Eu estava prestes a conhecer Ella.
O que diabos eu ia dizer? Ei, me desculpe, parei de escrever para
você, mas vamos ser sinceros, eu quebro tudo que toco e não queria que
você fosse a próxima? Me desculpe, Ryan morreu? Me desculpe, não fui
eu? Seu irmão me mandou cuidar de você, então se você puder apenas
fingir que não me odeia, seria ótimo? Me desculpe, eu desapareci? Me
desculpe, não consegui ler nenhuma das suas cartas que chegaram depois
que ele morreu? Me desculpe por tantas coisas que nem consigo listar
todas?
Se eu dissesse alguma coisa, se ela soubesse quem eu realmente
era - porque parei de escrever - nunca me deixaria ajudá-la. Me daria um
pé na bunda e me mandaria embora. Ela já havia admitido em suas
cartas que não dava uma segunda chance a pessoas que machucavam
sua família, e eu não a culpo. Era uma ironia torturante que, para
cumprir o desejo de Ryan de ajudar Ella, eu tivesse que fazer a única
coisa que ela odiava – mentir... pelo menos por omissão.
Basta adicionar isso à crescente lista dos meus pecados.
— Está pensando em entrar? Ou só vai ficar de pé aí?
Eu me virei para ver um homem mais velho de sessenta anos vindo
em minha direção. Aquelas eram umas sobrancelhas loucas. Esfregou a
mão na calça jeans e pegou a minha.
Cumprimentamo-nos com um aperto firme. Este devia ser Larry.
— Você é o nosso novo hóspede?
Eu assenti. — Beckett Gentry.
— Larry Fischer. Sou o jardineiro de Solitude. — Ele se curvou
diante de Havoc, mas não a tocou. — E essa quem poderia ser?
— Esta é Havoc. Ela é uma cadela militar aposentada.
— Você é o adestrador dela? — Ele não a acariciou e imediatamente
gostei dele. Era raro que as pessoas respeitassem o espaço pessoal dela...
ou o meu.
— Eu era. Agora acho que ela é minha.
Seu olhar estreitou um pouco como se estivesse procurando algo
em meu rosto. Após um silêncio prolongado, que parecia uma inspeção,
ele assentiu. — Certo. Vamos instalar vocês dois.
Um sino tocou levemente quando entramos no vestíbulo intocado.
O interior era tão aconchegante quanto o exterior, as paredes pintadas
em tons suaves que pareciam projetadas profissionalmente para dar uma
aparência moderna de fazenda.
Sim, eu tinha visto muitos programas de decoração e jardinagem
no último mês. Estúpidas salas de espera.
— Oh! Você deve ser o Sr. Gentry! — Uma voz alegre chamou de
trás do longo balcão da recepção. A menina parecia ter vinte e poucos
anos, com um grande sorriso, olhos castanhos e cabelo do mesmo tom.
Casca grossa, mas bonitinha. Hailey.
— Como você saberia disso? — Peguei minha carteira, tomando
cuidado para não retirar a carta no bolso de trás.
Ela piscou para mim rapidamente antes de abaixar os olhos.
Merda. Eu teria que trabalhar para suavizar meu tom agora que eu
era civil - bem, quase civil. Tanto faz.
— Você é o nosso único check-in de hoje. — Ela clicou no
computador.
Eu faria o check-out caso Ella percebesse quem eu era. Então teria
que encontrar outra maneira de ajudar sem que ela apresentasse
acusações de assédio. Embora eu tenha certeza de que Ryan estaria se
divertindo com isso, ele não acharia graça se eu não conseguisse ajudá-
la.
— Alguma preferência pelo seu chalé? Temos algumas opções
disponíveis agora que a temporada está encerrada.
— O que você tiver estará bem.
— Tem certeza? Sua reserva é para... uau! Sete meses? É isso
mesmo? — Ela clicou rapidamente, como se tivesse encontrado um erro.
— É isso mesmo. — Nunca fiquei em um lugar por sete meses na
minha vida. Mas sete meses me levavam ao aniversário do diagnóstico de
Maisie, então parecia prudente reservar um chalé. Não era como se eu
estivesse comprando uma casa aqui ou algo assim.
Ela olhou para mim como se eu lhe devesse uma explicação.
Bem, isso foi estranho.
— Então, se eu pudesse ter um mapa? — Sugeri.
— Claro. Me desculpe. É que nunca tivemos um hóspede por tanto
tempo. Isso me pegou desprevenida.
— Sem problemas.
— Não seria mais barato arranjar um apartamento? — ela
perguntou baixinho. — Não que eu esteja sugerindo que você não pode
pagar. Merda, Ella vai me matar se eu continuar ofendendo os hóspedes.
— Ela murmurou a última parte.
Coloquei meu cartão de débito no balcão, na esperança de agilizar
o processo.
— Debite todo o valor. Vou pagar despesas eventuais quando for
embora. E sim, provavelmente seria mais barato — Isso era o máximo de
explicação que ela conseguiria.
Depois de uma transação de valor absurdo, guardei minha carteira
e agradeci ao meu eu mais jovem por poupar dinheiro como um garoto
pobre determinado a nunca mais passar fome. Eu não era mais pobre ou
criança, mas nunca me perguntaria de onde minha próxima refeição
viria.
— Isso é... um cachorro? — uma mulher mais velha perguntou, seu
tom suave, mas incrédulo.
— Sim, senhora. — A mulher parecia ter a mesma idade de Larry
e, pelo olhar dela, tinha que ser Ada. Tive a estranha sensação de entrar
em um reality show ao qual só eu assistia. Eu sabia quem era cada uma
dessas pessoas pelas cartas de Ella, mas para elas eu era um completo
estranho.
— Bem, não permitimos cães aqui. — Seu olhar se fixou em Havoc
como se ela pudesse imediatamente ter pulgas e infestar o lugar.
Merda. Se Havoc for embora, eu também iria.
— Ela vai aonde eu vou. — Minha resposta padrão saiu da minha
boca antes de me censurar.
Ada me deu um olhar que tenho certeza de que deve ter feito Ella
fugir quando era mais jovem. Cerrei os dentes e tentei novamente.
— Não estava ciente dessa política quando fiz a reserva. Me
desculpe.
— Ele pagou até novembro! — Hailey disse de trás da mesa.
— Novembro? — A boca de Ada se abriu.
— Não se preocupe, amor. — Larry foi até a esposa e passou o
braço pela cintura dela. — Ela é uma cadela militar. Não vai estragar o
tapete nem nada.
— Aposentada, — corrigi enquanto Havoc ficava perfeitamente
imóvel, lendo a atmosfera.
— Por que ela se aposentou? Ela é agressiva? Temos crianças
pequenas aqui e não podemos ter ninguém mordido. — Ada espremeu as
mãos - na verdade as torceu. Era fácil vê-la em conflito. Paguei por sete
meses, a maioria fora de época. Eu era renda garantida.
— Ela se aposentou porque eu me aposentei, e ela não quis
obedecer a ninguém mais. — Fui seu adestrador por seis anos e não
conseguia imaginar minha vida sem ela, por isso deu certo. — Ela só vai
morder com meu comando ou em minha defesa. Ela nunca fez xixi no
tapete ou atacou uma criança. Isso eu posso prometer.
Ela não era a assassina de crianças na sala. Eu era.
— Ela vai ficar bem, Ada. — Larry sussurrou algo em seu ouvido
que a fez olhar um pouco mais perto, enrugando a pele fina da testa.
Então tiveram um diálogo sem palavras, cheio de sobrancelhas
levantadas e acenos de cabeça.
— Certo, tudo bem. Mas você está por sua conta para alimentá-la.
Hailey, coloque-o no chalé Aspen. Naquele, de qualquer maneira, está
prevista a troca de tapete novo no próximo ano. Bem-vindo à Solitude,
senhor...
— Gentry — forneci com um leve aceno de cabeça, lembrando de
forçar um sorriso rápido que eu esperava não parecer uma careta. —
Beckett Gentry.
— Bem, Sr. Gentry. O café da manhã é servido entre as sete e as
nove horas. O jantar pode ser arranjado, mas você está sozinho para
almoçar e para...
— Havoc.
— Havoc — disse ela, seu rosto suavizando quando Havoc inclinou
a cabeça com a menção de seu nome. — Bem, tudo bem então. Larry, por
que você não mostra a ele o chalé?
Larry assobiou quando saímos. — Essa foi por pouco.
— Parece que sim, — concordei, abrindo a porta da caminhonete.
Havoc saltou para dentro em um único movimento suave.
— Uau. Ela tem um bom salto.
— Você deveria vê-la escalar uma parede. É incrível.
— Um labrador, hein? Achei que todos aqueles cães eram pastores
e outras coisas. Um labrador parece muito mole para esse tipo de
trabalho.
— Oh, acredite em mim, sua mordida é muito mais afiada do que
seu latido.
Poucos minutos depois, guiei minha caminhonete pela estrada
estreita e pavimentada que atravessava a maior parte da propriedade. O
chalé Aspen ficava no lado oeste, perto da beira de um pequeno lago.
Havoc estaria no céu. Tendo estudado a área, eu sabia que havia hectares
entre os chalés, a propriedade projetada para dar aos visitantes o nome
do local - solidão.
Havoc e eu subimos os degraus da varanda da frente e virei a chave
na fechadura. Não há cartões eletrônicos aqui. Combina com os chalés,
as montanhas, o isolamento. Larry acenou para mim do jipe dele quando
a porta se abriu, e então ele se afastou, deixando-nos a explorar nosso
lar temporário.
— Isso não é um chalé, — eu disse à minha garota quando entrei
em um pequeno vestíbulo repleto de piso de madeira e uma daquelas
coisas de bancada onde os sapatos eram guardados em cestas. À
esquerda, havia um hall interno que, sem dúvida, era o centro da
temporada de esqui e, à direita, um lavabo.
As paredes eram pintadas nos mesmos tons suaves do hall de
entrada, o chão escuro e acolhedor, os tapetes limpos e modernos. A
cozinha surgiu à direita enquanto eu caminhava mais para dentro, uma
combinação acolhedora de armários claros, granito escuro, utensílios de
aço inoxidável.
— Pelo menos nós podemos cozinhar, — disse a Havoc enquanto
olhava para a área de jantar com oito lugares.
Então, olhei além da cozinha para a sala e meu queixo caiu. A sala
de estar era projetada para o segundo andar em uma clássica moldura
triangular que envolvia todo o chalé. As janelas do chão ao teto traziam
a luz da tarde, que filtrava através das árvores e refletia no lago. As
montanhas se erguiam acima, a neve marcando a linha das árvores nos
picos.
Se alguma vez tivesse imaginado um lugar em que pudesse
construir uma casa, talvez fosse aqui.
Eu nunca tinha visto uma visão mais bonita.
— Toc, toc! — uma voz doce e feminina chamou pela porta da
frente. — Posso entrar?
— Claro, — respondi, caminhando para o centro do chalé onde o
corredor levava direto para a porta.
— Me desculpe, — ela disse, fechando a porta e aparecendo. Meu
coração quase parou. Ella.
Esquece tudo o que eu disse - ela era a visão mais linda que eu já
vi.
Seu rosto estava mais fino que as fotos que eu tinha, os círculos
sob seus olhos um pouco mais escuros, mas ela era requintada. Seu
cabelo estavam presos em sua cabeça em algum tipo de nó, e ela usava
uma blusa Henley azul - o exato azul brilhante de seus olhos – debaixo
de um colete azul mais escuro. Seu jeans moldava perfeitamente seu
corpo, mas era fácil ver que ela havia perdido peso desde... tudo. Ela não
estava cuidando de si mesma.
Seu sorriso não alcançava seus olhos e percebi que ela ainda estava
falando comigo.
— Oi, eu sou Ella MacKenzie, dona de Solitude. Ouvi de Hailey que
colocaram você nesse chalé e tivemos um problema com o fogão que ela
havia esquecido, então eu queria oferecer outro chalé se você não quiser
o incômodo de uma equipe de reparos aqui amanhã.
Um momento estranho passou antes que eu percebesse que
precisava responder. — Não, está bem. Vou ficar fora amanhã a maior
parte do dia, pelo menos. Eles não irão me incomodar. Ou eu mesmo
posso olhar.
— Nem sonharia com você fazendo isso. — Ela me dispensou,
olhando ao redor do chalé em uma inspeção rápida. — Está tudo em
ordem com seu chalé?
— Tudo. É lindo.
Ela assentiu enquanto olhava para o lago, sem perceber que meus
olhos estavam nela. — Este é o meu favorito.
Havoc se remexeu ao meu lado, chamando a atenção de Ella.
— E o que você acha do chalé? — ela perguntou.
Havoc inclinou a cabeça e estudou Ella. As primeiras impressões
eram tudo para ela, e se não gostasse de Ella logo de cara, havia pouca
esperança de se recuperar.
— Posso? — Ella perguntou, olhando para mim.
Eu balancei a cabeça estupidamente, como se eu fosse um garoto
do ensino médio trancado em um quarto com uma garota por quem tinha
uma queda. Como diabos eu mentiria para ela? Esconder quem eu era?
Como eu tinha chegado tão longe sem um plano?
Ela esfregou Havoc atrás das orelhas e imediatamente a
conquistou.
— Você não se importa que ela esteja aqui? Houve uma falha de
comunicação quando fiz a reserva. — Minha voz estava rouca, minha
garganta doía com tudo o que eu queria, precisava, dizer a ela.
Ela me manteve vivo.
Ela me deu gravidade quando tudo ficou fora de controle.
Ela abriu a janela para me mostrar que outra vida era possível. Eu
tinha destruído o mundo dela e a abandonado, e ela não tinha nem ideia.
Eu era apenas um estranho para ela.
— De modo nenhum. Ouvi dizer que ela é um cão de serviço? —
Uma última massagem e Ella se levantou, chegando quase à minha
clavícula. Eu sempre fui grande, mas algo sobre o quanto ela se parecia
frágil me fez sentir enorme, como se eu pudesse colocar meu corpo na
frente da tempestade em sua direção e protegê-la... mesmo que a
tempestade fosse de minha própria criação.
— Ela é uma cadela militar aposentada.
— Oh. — Um olhar sombrio cruzou seu rosto antes que ela
trouxesse aquele sorriso falso de volta ao lugar. — Bem, assim que meu
filho descobrir que você tem um cachorro, poderá receber uma visita. Ele
está atrás de mim para conseguir um, mas agora... bem, não está nos
meus planos e nem tenho tempo para treinar um filhote.
Colt. Um choque de antecipação correu através de mim com a ideia
de finalmente poder conhecê-lo.
— Eles podem dar trabalho, — eu disse, passando a mão pelo
pescoço de Havoc.
— Você era... você é o adestrador dela? — Ella perguntou,
estudando meu rosto.
Deus, eu poderia olhar naqueles olhos para sempre. Como a Maisie
estava? Em que sessão ela estava agora? O tumor estava diminuindo?
Estava quase operável?
— Eu era e sou. Servimos juntos e agora estamos juntos - de
licença final, na verdade. Não é oficial por mais oito semanas. Nós dois
estamos trabalhando em toda a questão da domesticação e prometo que
nenhum de nós fará xixi no tapete.
O sorriso que brilhou em seu rosto foi breve, mas verdadeiro.
Eu queria de volta. Queria vê-lo todos os dias. Todo minuto.
— Vou considerar isso. Então, acho que ela é treinada em
explosivos? Você era especialista em desarmamento?
Eis o momento que definiria todo o meu propósito aqui. Seu sorriso
desapareceria e eu, sem dúvida, receberia um tapa bem merecido no meu
rosto.
— Ela é treinada em explosivos e em farejar pessoas. Ela é apenas
agressiva sob comando e realmente ama qualquer um que jogue seu
brinquedo favorito.
— Explosivos e pessoas? Isso é raro, certo? — Sua testa franziu,
como se estivesse tentando se lembrar de algo.
— Para a maioria dos cães, sim. Mas Havoc era um cão de
operações especiais, o melhor dos melhores.
As feições de Ella ficaram arrasadas e ela recuou um passo,
esbarrando no pilar de madeira maciça que separava a área de jantar. —
Operações especiais.
— Sim. — Balancei a cabeça lentamente, deixando-a juntar as
peças.
— E você acabou de dar baixa? Você é muito jovem para dar baixa,
sabendo como todos vocês são viciados em adrenalina. Você acabou de...
sair? — Ela cruzou os braços sob os seios, os dedos esfregando o bíceps
em um sinal de nervosismo.
— Meu melhor amigo morreu. — Minha voz mal era um sussurro,
mas ela ouviu a verdade.
Seus olhos voaram impossivelmente arregalados, o azul ainda mais
assustador contra o súbito brilho de lágrimas que vi se reunir ali antes
que ela as afastasse. Ela olhou para o chão e, em um milésimo de
segundo, sua coluna endireitou-se e ela ergueu paredes com um metro e
meio de altura.
Ela não estava apenas se protegendo. Ela estava se fechando. — E
é por isso que você está aqui.
Balancei a cabeça novamente, como se eu tivesse me transformado
em um boneco desde que ela entrou.
— Diga. Preciso que você diga as palavras.
Meu nome de guerra é Chaos. Sinto tanto sua falta e de suas cartas.
Eu desejo suas palavras mais que oxigênio. Sinto muito por Ryan. Eu não
mereço estar aqui. Ele merece.
As opções passaram pela minha cabeça. Em vez disso, preferi a
verdade mais segura que eu poderia dar a ela sem rasgá-la em pedaços
ou explodir a missão mais importante da minha vida.
— Ryan me enviou.
— Como assim?
— Mac... Ryan. Ele me enviou para cuidar de você. — Do jeito que
saiu, eu quase podia acreditar que estava aqui como o anjo da guarda,
aquele que entraria e a salvaria da merda sobre a qual eu não tinha
controle. Não podia curar o câncer de sua menininha. Eu não poderia
trazer o irmão dela de volta. Sobre isso, eu era na verdade o demônio.
Ela balançou a cabeça e se virou, indo direto para a porta da frente.
— Ella.
— Não. — Ela me afastou - a segunda vez desde que a conheci - e
segurou a maçaneta da porta.
— Ella!
A mão dela parou na maçaneta, a outra apoiando-se no batente da
porta.
— Eu sei que é demais. Sei que sou a última coisa que você
esperava. — Em todos os sentidos. — Se você não acredita em mim, tenho
a carta que ele me deixou. — Enfiei a mão no bolso de trás, puxando o
envelope que dobrara e desdobrara muitas vezes que os vincos estavam
marcados.
Ela se virou devagar, encostando-se na porta. Seus olhos eram
cautelosos, sua postura tensa. Ela não era um cervo nos faróis. Ela era
um leão da montanha ferido, encurralado, com linhas elegantes e olhos
conhecedores, pronto para lutar comigo até a morte se eu chegasse muito
perto.
— Aqui. — Aproximei-me e ofereci a carta a ela.
Ela nem olhou para isso.
— Eu não quero isso. Não quero nenhuma parte disso, nem de
você. Não preciso andar lembrando-me de que ele se foi. Não sou fraca e
não preciso de uma babá.
— Sinto muito que ele não esteja aqui. — Minha garganta se
apertou, muito perto das emoções que eu mantinha em um forte
bloqueio.
— Eu também. — Ela abriu a porta e saiu e eu corri atrás dela
como o idiota que era.
— Não estou indo a lugar nenhum. Você precisa de qualquer coisa,
você tem isso. Você precisa de ajuda? Você também tem.
Ela soltou uma risada de escárnio enquanto descia os degraus.
— Não quero ou preciso de você aqui, Sr... — Ela abriu a porta do
seu SUV e puxou um papel. — Sr. Gentry.
— Beckett, — respondi, desesperado para ouvi-la dizer isso. Meu
nome verdadeiro.
— Tudo bem, Sr. Gentry. Aproveite suas férias e depois volte para
casa, porque como eu disse, não preciso de uma babá ou de caridade de
ninguém. Eu cuido de mim desde que Ryan fugiu e se juntou ao exército
depois que nossos pais morreram.
Eu queria agarrá-la, segurá-la contra o meu peito e bloquear
qualquer coisa que quisesse causar qualquer dano. Minhas mãos doíam
para se arrastarem pela linha de suas costas, para tirar qualquer
sofrimento causei. Eu sabia que isso seria difícil, mas vê-la assim não era
algo que eu pudesse ter me preparado.
— Não importa se você me quer ou não, porque não estou aqui por
sua vontade. Estou aqui por Mac. Foi tudo o que ele pediu para mim,
então, a menos que você me expulse de sua propriedade, vou manter a
promessa que fiz.
Os olhos dela se estreitaram. — Certo. Qualquer coisa que eu
precisar?
— Qualquer coisa.
— Quando Ryan morreu...
Não. Qualquer coisa. Menos isso.
—... ele estava em uma operação, certo?
Ela podia ver o sangue escorrer do meu rosto? Porque eu com
certeza senti isso. Eu ouvi os rotores. Vi o sangue. Alcancei a mão dele
quando ela caiu fracamente na maca.
— Sim. É confidencial.
A mão dela agarrou o batente da porta aberta.
— Sim, é o que dizem. Eu preciso... — ela suspirou, olhando para
todos os lugares, menos para mim, por um segundo antes de endireitar
os ombros e encontrar meus olhos. — Eu preciso saber o que aconteceu
com Chaos. Ele estava lá? Quando Ryan morreu? Vocês estavam na
mesma unidade, certo? — Sua garganta se moveu enquanto ela engolia,
e seus olhos assumiram um apelo desesperado.
Droga. Ela merecia saber tudo. Que eu não era o homem que eu
queria ser, o que ela precisava. Que eu era o pedaço de merda que
conseguiu voltar com o coração batendo enquanto o irmão dela chegava
em casa envolto em uma bandeira. Eu precisava que ela soubesse que
escolhi parar de responder às cartas dela porque sabia que a única coisa
que poderia trazer nesta vida seria mais dor.
Eu precisava que ela soubesse que foi apenas a carta de Ryan que
me trouxe aqui, e a consciência de que era o mínimo que eu poderia fazer
pelo meu melhor amigo. Que eu nunca quis machucá-la, nunca tive a
intenção de esmagar sua vida como a bola de demolição que eu era - não
quando ela vivia sob um vidro quebrável.
— Bem? Ele estava lá?
Mas o que eu precisava não era importante.
Nunca fui capaz de dar uma segunda chance quando se trata de
magoar as pessoas que amo. Carta número seis.
Se eu dissesse a ela essas coisas, ela me daria um fora e eu falharia
com Mac pela segunda vez. Eu poderia dizer que a escolha era dela, mas,
na verdade, seria minha. Eu era o cara que as pessoas procuravam uma
desculpa para se livrar, e a verdade era um motivo embrulhado em papel
de presente para me chutar para o meio-fio. Havia dois caminhos
distintos à minha frente: o primeiro, em que eu diria a ela quem eu era e
o que havia acontecido e ela rapidamente caía fora da minha vida, e o
segundo... em que faria tudo que podia para ajudá-la, sem importar o
que o custo.
Caminho número dois, que seja.
— Ele estava lá, — respondi honestamente.
Seu lábio inferior tremia e ela o mordeu, como algum sinal de
fraqueza que precisava ser anulado. — E? O que aconteceu?
— Isso é confidencial. — Eu era um bastardo, mas um bastado
honesto.
— Confidencial. Vocês são todos iguais, sabia? Leais em tudo um
para o outro e absolutamente nada para mais ninguém. Apenas me diga
se ele está morto. Eu mereço saber.
— Saber o que aconteceu com Mac... com Chaos... nada disso faria
bem a você. Isso machucaria muito mais do que já está machucando.
Acredite em mim.
Ela zombou, balançando a cabeça enquanto esfregava a ponte do
nariz. Quando olhou para cima, o sorriso falso estava no lugar, e aqueles
olhos azuis ficaram glaciais.
— Bem-vindo à Telluride, Sr. Gentry. Espero que aproveite a sua
estadia.
Ela subiu no SUV e bateu a porta, acelerando o veículo em marcha
à ré para sair da estrada.
Fiquei observando até que ela desapareceu na floresta espessa de
árvores.
Havoc roçou minha perna. Olhei para ela e ela olhou de volta para
mim, sem dúvida sabendo que eu era um imbecil pelo que deixei
acontecer.
— Sim, isso não foi tão bem. — Olhei para o céu sem nuvens do
Colorado. — Nós a magoamos, Mac. Então, se você tiver alguma dica de
como conquistar sua irmã, sou todo ouvidos.
Abri a porta traseira de minha caminhonete e comecei a
descarregar minhas coisas.
Pode ser temporário, mas ficarei aqui pelo tempo que Ella me
deixasse ficar. Porque em algum lugar entre a carta número um e a carta
número vinte e quatro, eu me apaixonei por ela. Apaixonei-me por suas
palavras, por sua força, por sua perspicácia e bondade, por sua graça em
circunstâncias impossíveis, pelo seu amor aos filhos e sua determinação
de viver por conta própria. Eu poderia listar mil razões que a mulher
possuía seja qual for o coração que eu tivesse.
Mas nenhuma delas era importante porque, embora ela fosse a
mulher que eu amava, eu era apenas um estranho. Um indesejável nisso.
O que era mais do que eu merecia.
CAPÍTULO SEIS
ELLA
Carta nº 17
Ella,
Chaos
***
***
Chaos,
Ella
***
Pisei na doca que chegava ao pequeno lago logo atrás do meu chalé
testando meu peso. Sim, isso precisaria ser reconstruído. Não é à toa que
mantiveram o portão trancado.
O sol se estendia logo acima, cortando a manhã fresca. Eu estava
no Colorado por quase duas semanas e aprendi que a chave para o clima
aqui eram as camadas, porque pode estar nevando pela manhã, mas
chegava a quase vinte graus no jantar. A Mãe Natureza tinha algumas
mudanças sérias de humor por aqui.
Um nevoeiro leve laminava o lago, permanecendo nas margens da
pequena ilha que ficava a cerca de cem metros de distância no centro do
lago. Sabia que uma hora eu teria que usar o pequeno barco a remos que
estava amarrado no final do cais e remar.
Mac estava enterrado lá.
Quase me matou quando não me deixaram voltar e enterrá-lo e, no
entanto, houve um alívio esmagador por não ter que enfrentar Ella, ver
sua expressão quando percebesse o que fiz - porque eu estava vivo e seu
irmão não.
Havoc saltou e sacudiu a água da pelagem e deixou cair o Kong aos
meus pés, pronto para decolar na água pela vigésima vez. Ela ficou
inquieta o dia todo nessas duas últimas semanas, e eu também.
Curvei-me, esfregando-a atrás das orelhas em seu lugar favorito.
— Certo, mocinha. O que você diz de nos secarmos e procurarmos um
emprego? Porque vou enlouquecer se ficarmos aqui por muito mais tempo
como um par de pesos mortos. E, sinceramente, espero que você comece
a falar de volta a qualquer momento, caso seja necessário algum contato
humano.
— Está tudo bem se você fala com seu cachorro, — uma vozinha
veio atrás de mim. — Isso não faz de você louco ou nada. — Seu tom
sugeria o contrário.
Olhei por cima do ombro e vi um garoto parado do outro lado do
portão, vestindo jeans e uma camiseta do Broncos. Seu cabelo estava
cortado no couro cabeludo, ou melhor, tinha sido, e estava voltando a
crescer com um leve brilho de penugem loira. Suas sobrancelhas cheias
estavam juntas sobre os olhos azuis como cristal, enquanto ele me dava
uma olhada completa.
Os olhos de Ella.
Este era Colt. Eu sabia disso na minha alma.
Fiz um esforço para suavizar meu tom, ciente de que não sabia
nada sobre conversar com crianças. Presumi que não o assustar era um
bom começo. — Eu sempre falo com Havoc.
Ela balançou o rabo como se em resposta.
— Ela é uma cachorra. — Suas palavras estavam em desacordo
com o desejo em sua voz e a maneira como seus olhos se fixaram em
Havoc como se ela fosse a melhor coisa que ele já viu.
Levantei-me para encará-lo e ele endireitou sua coluna e me
encarou. O menino não se assustou facilmente, o que significava que eu
tinha um pouco de chance.
— Não é quando você fala com eles que precisa se preocupar se
está louco, — eu disse a ele. — É quando eles começam a responder.
Seus lábios franziram por um segundo e ele deu um passo à frente,
espiando por cima do meio portão para olhar Havoc. — Então você é
louco?
— Você é?
— Não. Mas você pegou um de nossos chalés por seis meses.
Ninguém faz isso. Só as pessoas loucas. — Sua expressão oscilava entre
me julgar e admirar Havoc.
Ele implorou a Ella por um cachorro e ela quase cedeu - então veio
o diagnóstico de Maisie. Mas eu não deveria saber disso. Não era para
saber que ele queria jogar futebol americano, mas Ella estava muito
preocupada com concussões e o empurrou para o outro futebol. Eu não
deveria saber que ele teria aulas de snowboard este ano, ou que cortou
todo esse cabelo em seu aniversário porque sua irmã havia perdido o
dela.
Eu não deveria saber, mas sabia. E foi um inferno não poder dizer
isso a ele.
— Na verdade, aluguei por sete meses. E você parece um pouco
pequeno para julgar as pessoas. — Cruzei meus braços.
Ele imitou minha pose sem hesitar. — Isso te faz ainda mais louco.
E não deixo pessoas loucas ao redor da minha mãe ou da minha irmã.
— Aah, você é o homem da casa.
— Eu não sou homem. Tenho seis anos, mas logo terei sete.
— Entendi. — Segurei um sorriso, ciente de que ele faria sete só
daqui a oito meses. Mas o tempo era relativo nessa idade. — Bem, eu não
sou louco. Pelo menos ela não acha que sou louco. — Acenei a cabeça em
direção a Havoc.
— Como você sabe? Porque você disse que se ela fala com você, isso
significa que você é louco. — Ele deu um passo à frente, descansando as
mãos no topo do portão que alcançava os ombros. Eu precisava lixar para
que ele não tivesse lascas.
Cara, ele tinha olhos apaixonados por Havoc.
— Você quer vê-la?
Ele se assustou, seu olhar voando para o meu ao mesmo tempo em
que recuou. — Eu não deveria falar com estranhos, especialmente
hóspedes.
— O que respeito totalmente. No entanto, isso não impediu você de
vir aqui. — Olhei para trás, vendo o quadriciclo azul do tamanho de uma
criança que estava estacionado ao acaso atrás do meu chalé. Pelo menos
havia um capacete apoiado no assento.
Eu tinha um pressentimento que não o salvaria de Ella.
— Ninguém nunca ficou tanto tempo e nunca com um cachorro.
Só se trabalharem aqui ou que sejam da família. Eu só... — Ele deu um
suspiro melodramático e sua cabeça caiu.
— Você queria ver Havoc.
Ele assentiu sem olhar para cima.
— Você sabe o que ela é? — Andei devagar, como se ele fosse um
animal selvagem que eu assustaria se me movesse rápido demais.
Quando cheguei ao portão, destranquei o fecho de metal, abrindo-o.
— Ada diz que é uma cachorra de trabalho. Mas não como um cão
para necessidades especiais. Há uma menina na minha classe que tem
um desses. Ele é legal, mas não podemos tocá-lo. — Seus olhos se
ergueram lentamente, seu conflito tão aberto e expresso naqueles olhos
que meu coração se apertou no meu peito.
— Se você recuar um pouco, eu a levarei até você.
Ele engoliu em seco e olhou de Havoc para mim e depois acenou
com a cabeça como se tivesse feito sua escolha. Então ele caminhou para
trás, nos dando espaço suficiente para sair da doca e aterrissar em terra
firme.
— Ela é uma cadela de trabalho. Ela é um soldado.
Ele levantou uma sobrancelha para mim e depois olhou cético para
Havoc. — Eu pensei que eles tinham orelhas pontudas.
Meu sorriso escorregou livre. — Alguns têm. Mas ela é um labrador.
É treinada para farejar pessoas e... outras coisas. Além disso, ela arrasa
quando você joga alguma coisa para ela ir buscar.
Ele deu um passo à frente, puro desejo em seus olhos, mas olhou
para mim antes de chegar muito perto. — Posso acariciá-la?
— Obrigado por perguntar. E sim, você pode. — Dei um pequeno
aceno a Havoc e ela avançou, a língua pendendo para fora.
Ele se ajoelhou como se ela fosse algo sagrado e começou a
acariciar seu pescoço. — Oi, garota. Você gosta do lago? É o meu favorito.
Que tipo de nome é Havoc?
E boom. Eu estava condenado. O garoto poderia ter me pedido para
entregar a lua a ele e eu teria encontrado uma maneira de fazer isso. Ele
era tão parecido com Ella na expressão e com Ryan na maneira como se
sustentava. Essa confiança iria servi-lo bem quando se tornasse um
homem.
— Agora olhe quem é louco conversando com cães. — Eu estalei
minha língua.
Ele olhou para mim por detrás de Havoc. — Ela não está falando
de volta.
— Claro que está. — Abaixei-me ao lado dele. — Vê como o rabo
dela balança? É um sinal claro de que ela gosta do que você está fazendo.
E a maneira como a cabeça dela está inclinada para onde você está
esfregando? Ela está lhe dizendo que é onde ela quer que você esfregue.
Os cães falam o tempo todo, você só precisa saber a língua deles.
Ele sorriu, e meu coração baqueou outra vez. Era como puro sol,
um tiro de alegria inalterada que eu não tinha desde... eu não conseguia
nem lembrar desde quando.
— Você fala a língua dela?
— Claro que sim. Eu sou o que eles chamam de adestrador, mas
na verdade ela é minha.
— Você a controla? — Ele não se incomodou em olhar para mim,
claramente se divertindo muito verificando Havoc.
— Bem, eu costumava. Mas nós dois estamos nos aposentando.
— Então você é um soldado?
— Sim. Bem, eu costumava ser. — Passei a mão pelas costas de
Havoc por hábito.
— E o que você é agora?
Uma pergunta tão inocente com uma resposta incrivelmente
pesada. Eu fui um soldado por dez anos. Tinha sido minha fuga de um
inferno de orfanato. Eu tinha sido o melhor soldado possível porque o
fracasso não era uma opção, não se isso significasse voltar à vida de onde
vim. Prometi a mim mesmo que nunca daria a eles um motivo para me
expulsar e, por dez anos, comi e dormi no Exército, a unidade. Eu ganhei
meu lugar.
— Eu não sei mesmo, — respondi com sinceridade.
— Você tem que descobrir isso. — O garoto me lançou um olhar
sério. — Os adultos deveriam saber esse tipo de coisa.
Uma risada retumbou no meu peito. — Sim, vou começar a
trabalhar nisso.
— Meu tio era um soldado.
Meu estômago bateu no chão. Qual era a fala aqui? Quanto você
deveria contar a uma criança que não era sua? O que Ella gostaria que
ele soubesse?
Felizmente, não tive que pensar muito, porque o SUV dela veio
rasgando a estrada de terra ao lado do meu chalé. Ela pisou no freio e
uma nuvem de terra soprou ao redor dos pneus. Meu coração deu um
pulo de antecipação. Quantos anos eu tinha, porra? Quinze?
— Porcaria. Ela me encontrou.
— Ei, — eu disse suavemente.
Ele encontrou meu olhar, seu nariz e boca todos franzidos.
— Não diga palavrão.
— Porcaria não é palavrão, — ele murmurou.
— Mas é quase. Sempre há uma palavra melhor para usar e tenho
a sensação de que sua mãe faz questão que você seja bem educado para
encontrar uma. Deixe-a orgulhosa.
Sua expressão se endireitou e ele assentiu solenemente.
— Além disso, pelo olhar no rosto dela, você já está com problemas,
— sussurrei.
— Colton Ryan MacKenzie! — Ella gritou enquanto se aproximava
de nós. — O que nesta terra de Deus você pensa que está fazendo aqui
fora?
Levantei-me e Havoc imediatamente voltou para o meu lado.
— Verdade, — Colt concordou, parado do outro lado de Havoc. —
Nome do meio significa que estou de castigo, — ele terminou em um
sussurro.
Ella veio pelo resto do caminho até a doca, a fúria emanando dela
em ondas. Mas além dessa fúria havia um medo glacial. Senti isso com
tanta certeza como se ela tivesse trazido uma tempestade de neve com
ela. Seu cabelo loiro estava frouxamente entrelaçado em uma trança
lateral que caía por cima do colete e daqueles jeans...
Voltei meu olhar para o dela, que no momento estava perfurando
Colt.
— Bem? O que você tem para dizer em sua defesa? Pegando seu
quadriciclo? Sem contar para ninguém? Sentado aqui com um estranho?
Você me matou de susto! — Deus, ela era linda com raiva, era a única
emoção que eu já tinha visto nela desde que cheguei aqui. Toda vez que
eu esbarrava nela, ela simplesmente levantava uma sobrancelha para
mim e dizia “Sr. Gentry”. Pelo menos desta vez a raiva dela estava
direcionada para outro lugar.
— Checaram minhas credenciais de segurança e tudo, — falei a
ela. Ela me lançou um olhar que fechou minha boca e quase me fez feliz
por nunca ter tido uma mãe de verdade. Aquele olhar era coisa de filmes
de terror.
Os olhos de Colt ficaram impossivelmente arregalados e ele franziu
a boca para o lado.
— Colt, — Ella advertiu, cruzando os braços.
— Ele tem um cachorro, — disse Colt.
— E isso lhe dá o direito de não apenas invadir o espaço de um
hóspede, mas também colocar-se em perigo? Quando mandei
expressamente não incomodar o Sr. Gentry?
Ai. Acho que isso explicava por que demorei duas semanas para
conhecer Colt.
— Ele não se importou. Ele me disse que ela é uma cachorra de
trabalho e que costumava ser um soldado. Igual a ele. Você sabe, como o
tio Ryan.
O rosto de Ella caiu, um véu de tristeza nublando seus olhos.
Naquele momento, vi o cansaço que ela havia escrito para mim. Às vezes
parece que o mundo está desmoronando, e sou a única no centro, meus
braços estendidos tentando apoiá-lo. E estou tão cansada, Chaos. Não
posso deixar de me perguntar quanto tempo posso aguentar antes de
sermos esmagados pelo peso. Carta número dezessete. Vi a mulher que
escrevera as cartas, que me capturara com nada mais que suas palavras.
Meus dedos flexionaram com a necessidade de puxá-la para mim,
envolver meus braços em volta dela e dizer a ela que eu abraçaria o
mundo pelo tempo que ela precisasse. Essa era toda a razão pela qual eu
estava aqui, para fazer o que pudesse para aliviá-la.
Mas eu não poderia dizer isso, porque, embora ela tenha deixado
Chaos fazer isso por ela, até aceitado o amor dele, ela não deixaria
Beckett. E se ela soubesse por que eu mantive esse segredo... bem, ela
provavelmente me enterraria ao lado de Ryan. Deus sabia que eu já
desejei esse destino centenas de vezes.
— E tenho certeza de que ele já contou que trabalhou com o tio
Ryan? — Ella perguntou, seu olhar voando para o meu brevemente com
desaprovação.
Ah, foi por isso que ela me colocou na lista de não-visitas.
A boca de Colt se abriu, e ele olhou para mim como se eu tivesse
algum tipo de capa de super-herói. — Você trabalhou? Você conheceu
meu tio?
— Eu conheci. Ele foi a coisa mais próxima que eu tive de um
irmão. — Falei isso antes que eu pudesse me censurar. — E não, não
contei a ele porque não sabia se você gostaria que ele soubesse, — disse
a Ella.
Os olhos dela se fecharam por um segundo e ela suspirou, tão
semelhante ao movimento anterior de Colt, mas não tão dramática.
— Me desculpe por assumir isso, — ela disse suavemente. — E pela
invasão dele no seu espaço. Isso não vai acontecer novamente. — Essa
última parte foi direcionada diretamente para Colt.
Ele chutou lentamente a terra embaixo de seus pés.
— Ele não me incomodou. De fato, foi uma honra conhecê-lo, Colt.
Se estiver tudo bem para sua mãe, você sempre pode visitar Havoc. Ela
realmente gosta de buscar os objetos que você joga e não tenho certeza
se você notou, mas estou ficando meio velho jogando para ela o tempo
todo.
Ele revirou os olhos. — Você não é velho. — Ele inclinou a cabeça
para o lado. — Mas até você saber o que você é, também não tenho certeza
de que você é um adulto.
— Colt! — Ella cuspiu.
Eu ri, e ela olhou para mim como se eu tivesse duas cabeças.
— Está tudo bem, — assegurei a ela. — Eu falei a ele, desde que
estou me aposentando, não sou realmente um soldado e não tenho
certeza do que isso me faz no momento, além de um turista permanente.
— Ainda estou surpresa que você esteja dando baixa. Na minha
experiência, caras de operações especiais servem até que os mandem
embora ou expulsem.
— Bem, estou de licença final, então em quarenta e cinco dias será
oficial.
Sua guarda caiu por um momento, seus ombros amolecendo. Ela
olhou como se fosse a primeira vez que ela realmente me visse, e lá estava
outra vez, o espessamento do ar entre nós, a conexão que
compartilhamos desde nossas primeiras cartas.
Mas eu sabia o que era e ela não.
— Você está saindo porque... — A cabeça dela inclinou, muito
parecida com a de Colt.
— Você sabe porque.
Ela se aproximou de mim inconscientemente, seus olhos
examinando os meus, procurando por algo que eu estava desesperado
para entregar, mas não podia. — Você falou que saiu porque seu melhor
amigo morreu. Você saiu por Ryan — ela concluiu.
— Por você. — No momento em que estava fora da minha boca, eu
queria sugá-lo de volta, apagar os últimos cinco segundos e fazer
diferente. — Por causa do que ele pediu, — tentei esclarecer, mas o
estrago estava feito.
Ela recuou, os ombros tensos. Aquelas paredes voltaram a subir
quilômetros de distância nos poucos metros que nos separavam.
— Acho que já o incomodamos o suficiente hoje. Colt, agradeça ao
Sr. Gentry por não ser um sequestrador psicopata e vamos embora.
— Obrigado por não ser um sequestrador psicopata, — ele repetiu.
— Quando quiser, amigo. Como eu disse, se estiver tudo bem com
sua mãe, você pode voltar e ver Havoc. Ela gosta de você. — E
provavelmente seria bom tirá-lo de casa de vez em quando.
Esperança iluminou seu rosto como uma manhã de Natal. — Por
favor, mãe? Por favor?
— Sério? Você já está de castigo do seu quadriciclo por essa proeza
e ainda quer ter privilégios para passar um tempo com um estranho?
Seu olhar passou tristemente para o quadriciclo, depois de volta
para Ella. — Mas ele não é um estranho de verdade. Se o tio Ryan era
seu irmão, ele é meio da família.
E meu coração baqueou pela terceira vez.
Família era uma palavra que eu não usava e nem precisava.
Família significa compromisso, pessoas de quem você depende - que
podem depender de você. Família era um conceito totalmente estranho,
mesmo com a irmandade dentro de nossa unidade.
— Falaremos sobre isso mais tarde, Colt. — Ella disse, esfregando
a pele macia entre os olhos.
— Mais tarde você vai embora!
Bem, se isso não era uma mudança abrupta de humor.
— Não vou embora até depois de amanhã. Agora, entre no carro,
Colt. Vamos...
— Está bem! — Ele deu outro tapinha em Havoc e depois foi em
direção à caminhonete.
— Ele parece ter mais de seis anos.
— Sim. Até este ano, os gêmeos ficaram apenas ao redor de adultos.
Algumas crianças aqui e ali dos hóspedes, mas ambos têm apenas seis,
mas parecem mais velhos. Provavelmente não deveria tê-los protegido
tanto, mas... — Ela encolheu os ombros.
Sou ridiculamente superprotetora com eles, mas reconheço isso.
Carta número um.
— Eles definitivamente fazem valer o salário da professora. Sinto
muito que você tenha visto isso. — Ela olhou para a ilha. — Faz alguns
meses... perdendo Ryan e tudo com Maisie...
— Como está o tratamento dela? — Perguntei, pisando em águas
às quais eu não tinha direito.
Sua cabeça estalou em minha direção. — Você sabe.
— Ryan. — Mac e eu conversamos muito sobre isso, então não era
exatamente uma mentira.
Ela balançou a cabeça exasperada e começou a voltar para a
caminhonete.
— Ella, — eu a chamei, alcançando-a rapidamente. Depois de
quase duas semanas correndo dez quilômetros pela manhã, finalmente
estava acostumado à altitude. Não que não tivéssemos enfrentados
elevações semelhantes no Afeganistão, mas eu estive no nível do mar por
dois meses antes de chegar aqui.
— Quer saber? — ela atirou de volta, girando para me encarar.
— Uau! — Segurei seus ombros para não bater nela, e
abruptamente soltei minhas mãos. Era a segunda vez que a toquei desde
que estive aqui e o contato era demais, mas não o suficiente.
— Eu odeio que você saiba coisas sobre mim. Odeio que você
provavelmente soubesse que Colt era meu filho, que você sabia sobre o
diagnóstico de Maisie. Você é um estranho que tem acesso a detalhes
íntimos da minha vida por causa do meu irmão, e isso não é justo.
— Não posso mudar isso. Nem tenho certeza se o faria porque é por
isso que estou aqui.
— A razão pela qual você está aqui está enterrada naquela ilha!
De muitas maneiras.
— Nós podemos dar voltas e voltas. Mas eu não vou embora. Então
farei esta proposta para você. Você pode me fazer qualquer pergunta que
quiser — levantei meu dedo quando ela abriu a boca, sabendo que
novamente perguntaria sobre a morte de Mac — que eu tiver permissão
para responder e vou lhe contar tudo o que puder sobre mim. Você está
certa. Não é justo que eu saiba tanto. É incrivelmente assustador saber
sobre seus filhos, sua vida... você. Mas Mac te amava e falava de você o
tempo todo. Você, eles, este lugar era o lar para onde ele queria tanto
voltar, e quando ele falava sobre você, era como se ele tivesse um pequeno
momento de alívio do inferno em que estávamos vivendo. Portanto,
lamento muito que sua privacidade tenha sido violada. Você não tem
ideia de como sinto muito, mas não posso voltar no tempo e pedir para
ele não compartilhar demais. Se eu tivesse esse botão do tempo mágico,
usaria para algo muito melhor, como salvar a vida dele. Porque ele deveria
estar aqui. Não eu. Mas sou eu quem ele mandou e vou ficar. — Apertei
minha mandíbula. O que tinha nessa mulher que acabava com qualquer
filtro que eu tivesse? Seja lendo suas cartas ou olhando em seus olhos,
ela tinha um poder sobre mim que era pior do que uma garrafa de tequila
que soltava a minha língua. Ela me fez querer contar tudo a ela, e isso
era perigoso para nós dois.
— Se Ryan queria tanto estar aqui, ele poderia ter saído quando
estava se realistando. Mas ele não saiu. Porque caras como Ryan - como
você - não ficam em casa, não criam raízes, não ficam, ponto final. Posso
aceitar que sou sua... missão, ou o que for, por enquanto, mas não aja
como se você não fosse temporário.
Lutei contra todos os instintos do meu corpo que gritavam para
afirmar o contrário, mas eu sabia que ela não acreditaria em mim e nem
eu tinha certeza. Era apenas uma questão de tempo até que ela
percebesse quem eu realmente era e o que tinha feito. E meus
sentimentos por ela não amorteceriam essa precipitação. Nem um abrigo
nuclear conseguiria.
— Sinto muito, — ela disse em voz baixa depois de alguns
momentos de silêncio entre nós. — Não consigo imaginar o que você
passou, se você era realmente tão próximo de Ryan. E você deve ter
desenraizado sua vida inteira para vir aqui.
— Eu pensei que não tinha raízes, — provoquei.
Um pequeno sorriso apareceu em seu rosto, mas foi triste. — Como
eu disse, me desculpe. Mas imagine se eu aparecesse em... onde quer que
você estivesse, e soubesse tudo sobre você e você não soubesse uma
única coisa sobre mim. Perturbador, né?
Um sentimento dolorido e irritante passou por mim, porque ela
sabia tudo sobre mim. De certa forma. Eu deixei de fora os detalhes
físicos da minha vida enquanto basicamente trazia minha alma para fora
do meu corpo e a colocava no papel para ela. Ela pode não saber o que
eu era, mas sabia quem eu era, mais do que qualquer outra pessoa no
planeta. Eu a deixei entrar e depois me fechei, e senti falta dela com uma
ferocidade que era aterrorizante.
— Sim, posso entender como isso seria um dez na escala de
estranheza.
— Obrigada. E realmente, são onze. — Ela voltou pelo caminho até
seu Tahoe, onde Colt estava com a caçamba aberta e esperava com seu
quadriciclo.
Aparentemente, essa não era a primeira vez que ele tinha ficado de
castigo, se ele estava tão ciente da rotina.
— Eu guardo isso, Colt, — eu disse a ele. Então, levantei-me na
parte de trás do SUV, agradecido por haver um revestimento de borracha.
Quando me virei, Ella estava olhando para mim, sua boca levemente
aberta. Bem, olhando para meus braços. Fiz uma anotação mental para
conseguir uma academia. Eu gostei desse olhar.
— Algo mais? — Perguntei, fechando a caçamba.
Ela balançou a cabeça rapidamente. — Não. Nada. Obrigada por...
você sabe...
— Não ser um sequestrador psicopata?
— Algo parecido. — Um rubor surgiu em suas bochechas.
— Eu estava falando sério sobre checar os meus antecedentes. Se
você se sentir mais confortável...
— Não, claro que não. Não tenho o hábito de checar antecedentes
e não vou começar agora.
— Você deveria, — murmurei. — Se eu fosse um sequestrador
psicopata, Colt estaria morto. Na verdade, esses bosques são bastante
isolados para esconder um serial killer e nunca se sabe.
Ela revirou os olhos para mim e subiu no banco do motorista.
— Ei, Sr. Gentry? — Colt chamou do banco de trás.
Ella abaixou a janela e eu me inclinei para vê-lo amarrado em uma
cadeira alta e fina que estava ao lado de uma vazia.
— E aí?
— Eu decidi que, já que você é irmão do tio Ryan, isso faz de você
uma família. — Ele disse isso com a seriedade de um adulto.
— Você decidiu? — Minha voz suavizou. O garoto não sabia o que
estava oferecendo, ou o quanto isso significava para mim, porque ele
sempre teve uma família. Era simplesmente um dado. — Bem, valeu.
Encontrei os olhos de Ella no espelho retrovisor e ela soltou um
pequeno suspiro de derrota.
— E você não é louco, — acrescentou. — Então, acho que você pode
ficar.
Abri um sorriso tão grande que minhas bochechas doíam. Esse
garoto era incrível. — Obrigado por sua aprovação, Colt.
— De nada, — ele disse com um encolher de ombros.
Dei um passo para trás e Ella fechou a porta e depois se inclinou
pela janela aberta. — Não se esqueça que têm refeições na sede. Ada disse
que não tem visto você por lá e fica curiosa.
— Anotado. Não queria levar Havoc com Maisie lá. — Eu não era
especialista em crianças com câncer, mas sabia o suficiente que ela não
precisava que eu levasse pelos extras.
— Oh, isso é... realmente atencioso da sua parte. Mas está tudo
bem. Depois que ela ficou neutropênica pela primeira vez... isso é
quando...
— Seus glóbulos brancos caem ao nível em que fica suscetível a
todas as infecções conhecidas pelo homem? — Terminei.
— Sim. Como você sabia disso?
— Eu li sobre neuroblastoma. Muito.
— Por Ryan?
Por você.
— Sim, algo assim.
Ela desviou o olhar do meu, como se sentisse nossa conexão
também. Mas onde eu abracei a intensidade, ela aparentemente não. —
Certo. Bem, depois disso, mudei as crianças da ala residencial para um
chalé onde poderíamos ficar...
— Embrulhados como uma bolha, — Colt gritou do banco de trás.
— Praticamente, — Ella admitiu com um encolher de ombros. —
Na verdade, somos seus vizinhos. Se você andar cerca de duzentos
metros por esse caminho, nos encontrará.
— Então, acho que vou te ver por aí.
— Então, acho que você vai.
Eles seguiram pelo amplo caminho ao lado do meu chalé. Deve ter
havido um pequeno barco aqui ou algo para ter um caminho como esse
aberto.
Havoc se recostou em seu quadril e inclinou a cabeça para mim.
— Acho que foi melhor, né? — Perguntei. Seu rabo balançou de
acordo. — Sim. Agora vamos encontrar um emprego antes que Colt
cancele nosso cartão de adulto.
Três horas depois, eu era oficialmente o mais novo membro em
tempo parcial do Grupo Telluride de Resgate na Montanha. Risca isso.
Havoc era. Ela era todo o talento, de qualquer maneira.
CAPÍTULO OITO
ELLA
Carta nº 9
Ella,
***
Não é justo pedir. Sei disso. É contra a sua natureza cuidar, não
cumprir uma missão e seguir em frente, mas eu preciso disso. Maisie e Colt
precisam disso. Ella precisa disso - precisa de você, embora ela lute com
unhas e dentes contra você antes de admitir. Ajude-a mesmo quando ela
jurar que está bem.
Não a faça passar sozinha.
Ali estava. A verdade. Ryan enviou Beckett, pediu-lhe para ajudar,
ou melhor, o obrigou tão bem que Beckett deixou uma carreira que amava
e se mudou para um lugar estranho, onde a pessoa por quem se mudara
o ignorava descaradamente a todo momento possível.
O último pedido de Ryan foi por mim.
Meus olhos se fecharam, e contei enquanto respirava fundo, até
que a necessidade de chorar histericamente, de jogar as coisas no lote
que o destino decidiu que eu merecia, passou.
Então olhei para Beckett, me dando conta de que ele se afastou
alguns metros para se encostar na parede, como se sentisse minha
necessidade de espaço. Mas seus olhos estavam fixos nos meus, o
conjunto de sua boca tão estoico quanto eu imaginaria um cara de
operações especiais ficar... como Ryan ficava.
— Obrigada. — Devolvi a carta para ele no envelope.
— Sinto muito por estar aqui e ele não.
— Por que você não se acha digno de amor? De família? Todo
mundo é digno de família. — Mesmo quando eu estava no fundo do poço,
sempre soube disso. Se não eram meus pais, eram vovó, ou Ryan, ou
Larry e Ada. Agora meus filhos também. O que aconteceu com esse cara
que ele não tinha uma?
Ele se desencostou da parede, passando por mim em direção à
cozinha, deixando a carta no balcão mais próximo. — Sabe, ele queria
estar aqui. Ele estava saindo na data da baixa, já havia dito ao
comandante que não estava se realistando. Tinha toda a intenção de
estar aqui para você desde o momento em que soube da Maisie. —
Beckett abriu a geladeira, pegando duas garrafas de água e ignorou
descaradamente o que perguntei.
Dei a volta pela ilha da cozinha para segui-lo.
— Sim, bem, ele disse isso antes, logo após o nascimento dos
gêmeos. Chegou em casa de licença e com os dois dormindo no peito, me
prometeu que não estava saindo. Que tinha voltado para casa onde era
necessário. O engraçado é que ele nem durou o mês de folga antes de o
telefone tocar, fazer as malas e partir. Parei de acreditar nele depois disso.
Não confio muito em promessas bonitas, mesmo de homens que dizem
que me amam. Agora, quanto a você, você deixou um trabalho que
obviamente amava e se mudou simplesmente para atender ao pedido de
Ryan. Isso é lealdade. Essa é a própria definição de família e não consigo
entender por que você acha que não merece quando a possui.
Ele desenroscou a primeira tampa e tomou um gole profundo,
depois colocou a garrafa no balcão e me entregou a outra. Peguei por
hábito, não porque estava com sede.
— Você está indo para Denver para a cirurgia de Maisie pela
manhã?
— Você sempre se esquiva de perguntas?
Um sorriso brilhou em seu rosto e desapareceu tão rápido quanto
parecia. — Não estou aqui por mim. Estou aqui por você.
Toda vez que ele dizia isso, eu sentia um pedacinho da argamassa
em minhas paredes emocionais estalar. Não suficiente para derrubá-las
ou até enfraquecê-las. Mas estava lá da mesma forma, apenas esperando
para expandir e crescer. Ninguém nunca ficou por aqui, muito menos fez
o que Beckett tinha feito.
Não que isso fosse permanente.
— Você não deveria estar. Você tem uma vida. Não importa o que
Ryan tenha dito nessa carta, não sou sua responsabilidade. Não importa
o quão próximos vocês eram, você é um estranho. Agradeço cada oferta
que você fez e pelo que passou para cumprir o desejo de Ryan, mas isso
é demais. — Minhas palavras foram duras, mas mantive minha voz
suave. Eu não queria machucá-lo.
— Eu não vou embora. — Ele imitou meu tom.
Engraçado como a conversa foi a mesma da primeira vez que nos
conhecemos, mas a conotação era muito diferente e isso fez toda a
diferença. Eu não estava tentando afastar Beckett tanto quanto tentava
libertá-lo.
— Você vai. — Assim como Ryan. Assim como Jeff e papai.
Depender de Beckett seria a coisa mais tola que eu poderia fazer.
Sua mandíbula flexionou e ele desviou o olhar por um momento.
Quando seu olhar voltou, seus olhos estavam um pouco mais duros. —
Acho que você vai ter que esperar e ver.
A tensão alongava o comprimento da cozinha entre nós, palpável o
suficiente para cortar... ou talvez para nos amarrar juntos – o soldado e
a mulher que ele era obrigado pela honra a vigiar.
— É melhor eu ir embora. — Deixei minha garrafa fechada no
balcão e passei por Beckett, pelo corredor e até a porta.
— Sei que essa cirurgia vai ser difícil. Para ela, para você. Por favor,
me prometa que ligará se precisar de alguma coisa.
Olhei por cima do ombro para vê-lo parado no corredor cerca de
um metro e meio atrás de mim. Havia determinação em seu rosto, mas
aquela tristeza estava de volta em seus olhos. Eu não devia nada a esse
homem e sabia muito menos sobre ele, além do fato de Ryan ter confiado
nele.
Abri a porta e entrei no ar fresco, desejando que pudesse limpar
meu cérebro confuso e sobrecarregado. Mas o pensamento bateu em mim
sem piedade, até eu deixar entrar - Beckett não poderia cumprir sua
promessa a Ryan se eu não deixasse. Eu podia ser muitas coisas, mas
cruel não era uma delas.
— Eu prometo.
Não era mentira, porque eu não tinha intenção de precisar de nada
de Beckett. Fechando a porta atrás de mim, deixei seu chalé e voltei para
o meu. Agora que sabia a verdade, podia parar de deixar o cara invadir
meus pensamentos e voltar ao que precisava focar.
Maise.
CAPÍTULO NOVE
BECKETT
Carta nº11
Chaos,
Ella
***
Chaos,
Estou tão feliz que você escreveu de volta! Primeiro, feliz aniversário,
mesmo sabendo que está atrasado. Olhando as datas em seus envelopes,
demora uns quatro ou cinco dias para eu receber as cartas, o que é super
rápido. Lembro-me de quando costumava demorar seis semanas.
Segundo, que tal isso? Vamos sempre escrever com caneta. Nunca
apagar, só ser honesto e dizer o que vem à mente. Não é como se
tivéssemos muita coisa em jogo ou precisássemos manter as aparências.
Tudo bem que você não seja bom com pessoas. Na minha
experiência, há poucas pessoas que valem nosso esforço. Tento dar tudo o
que tenho às pessoas mais próximas a mim e manter esse círculo pequeno.
Prefiro ser ótima para poucas pessoas do que medíocre para muitas.
Então, deixe-me fazer uma pergunta que não será censurada – aliás,
é sinistro pensar que as pessoas leem nossas cartas, mas eu entendo.
Qual foi a escolha mais assustadora que você já fez? Por que você
escolheu isso? Algum arrependimento?
A maioria das pessoas pensaria que eu diria que é ter filhos gêmeos
ou criá-los, mas nunca tive tanta certeza de nada na minha vida quanto
de meus filhos. Nem Jeff, meu ex-marido. Eu estava iludida demais para
ter medo quando ele me pediu em casamento e não posso me arrepender
de tudo o que aconteceu por causa dos meus filhos. Além disso, o
arrependimento não nos leva a lugar nenhum, né? Não faz sentido ficar
remoendo as coisas que aconteceram quando precisamos seguir em frente.
Minha escolha mais assustadora foi feita no ano passado. Eu
hipotequei Solitude, que não é apenas uma pousada, mas uma
propriedade de duzentos acres. Minha avó a mantinha sem quaisquer
encargos e eu queria mais do que qualquer coisa manter esse legado, só
que ficamos quebrados em todos os níveis. Como não consegui vender mais
terras, fiz a terrível escolha de hipotecar a propriedade e transformar tudo
em melhorias, na esperança de nos lançar como uma espécie de retiro de
luxo. Cruzei meus dedos para que funcionasse. Entre o capital que peguei
para melhorias nos chalés e propriedades e os empréstimos para
construção dos novos chalés a serem iniciados no verão, sou essa louca
mistura de esperança e medo. Não vou mentir, é meio divertido. Quem não
arrisca, não petisca, certo?
Indo para minha próxima escolha assustadora... ser voluntária na
comissão da associação de pais e mestres.
Ella
***
***
***
***
— Então você cresceu em lares adotivos? — Ella me perguntou
quando demos nossa 64ª volta do chão.
Maisie estava em cirurgia há seis horas e recebemos uma
atualização da equipe cirúrgica cerca de quinze minutos atrás, que tudo
estava indo bem e eles estavam se esforçando ao máximo para salvar seu
rim.
— Eu cresci.
— Quantos?
— Sinceramente, não me lembro. Eu me mudei muito.
Provavelmente porque era uma criança horrível. Briguei com todos que
tentaram ajudar, forcei todas as regras e me esforcei para ser expulso de
onde me colocavam, esperando que de alguma forma fizesse minha mãe
voltar.
Eu não esperava que ela entendesse. A maioria das pessoas que
cresceram em casas normais com uma família quase normal não
conseguia.
— Ah, a lógica doce e ilógica de uma criança, — disse Ella.
Claro que ela entendeu. Foi isso que me atraiu a ela logo de cara.
Sua simples aceitação de mim através de nossas cartas. Mas pelo que eu
tinha visto, ela era assim - aceitando.
— Praticamente.
— Qual foi o melhor lar? — ela perguntou, novamente me
surpreendendo. A maioria das pessoas queria saber o pior, como se
minha vida fosse comida de fofoca para alimentar a necessidade obscena
de tragédia de outras pessoas.
— Uh, meu último. Eu fiquei com Stella por quase dois anos, desde
meu aniversário de quinze anos. Ela era a única pessoa com quem eu
sempre quis ficar. — Memórias me atingiram, algumas dolorosas, outras
doces, mas todas encobertas com o tipo de filtro que só o tempo podia
dar.
— Por que você não ficou? — Chegamos ao final de outro corredor
e demos meia-volta.
— Ela morreu. — Ella parou e tive que me virar. — O quê?
— Sinto muito, — disse ela, apertando a mão no meu bíceps. — Por
finalmente encontrar alguém apenas para perdê-lo...
Meu instinto era esfregar as mãos no rosto, balançá-lo e continuar
andando, mas eu não moveria um músculo com a mão dela em mim, não
importa o quão inocente o toque fosse. — Sim. Realmente não há palavras
para isto.
— Como se alguém pegasse sua vida e a sacudisse como um globo
de neve, — Ella sugeriu. — Parece levar uma eternidade para as peças
assentarem e elas nunca estão no mesmo lugar.
— Exatamente.
Ela capturou o sentimento com a precisão de alguém que sabia.
Como foi que eu nunca encontrei alguém que entendesse como era minha
vida e ainda assim essa mulher definiu isso sem piscar um olho?
— Vamos lá, ainda não percorremos o caminho do linóleo, — disse
ela, e começou nossa 65ª volta.
Eu acompanhei.
***
Ella,
Chaos
***
Chaos,
Ella
***
Sinto muito por você ter perdido a peça de Colt, e não, não é menos
importante. Entendi e não sei o que eu poderia dizer – ou escrever - que lhe
daria a tranquilidade que você merece. Você está sendo rasgada em duas
direções diferentes, e isso deve parecer impossível.
Mas posso dizer que está fazendo um ótimo trabalho. Sim, você
perdeu a peça, mas Maisie precisava de você. Haverá momentos em que
Colt crescerá, que ele precisará de você, e você sentirá falta de algo para
Maisie. Acho que isso é parte de ter dois filhos. Você faz o melhor que pode
pelos dois e espera que tudo seja igual no final. A culpa significa que você
é uma ótima mãe, mas às vezes precisa se libertar. Este é um desses
momentos.
O que você está passando é um pesadelo. Você precisa se dar um
pouco de espaço para tropeçar, porque tem razão - não é uma dessas
famílias com dois pais. Então isso significa que você precisa se cuidar
muito bem, porque você é a única que eles têm.
Faça-me um favor e apenas espere. Seu irmão vai para casa assim
que puder. Você não ficará sozinha por muito tempo, prometo. Ele
mencionou que Colt queria uma casa na árvore e, enquanto eu estiver
visitando, eu o ajudarei. Talvez não seja muito, mas isso lhe dará um lugar
só dele e lhe dará a tranquilidade de que ele tem algo especial.
Eu gostaria de ter um conselho melhor, mas sei que você não precisa
dele, apenas um ouvido, e você tem o meu sempre que quiser.
Chaos
***
***
***
Chaos,
Ella
***
***
***
— É um cachorro e tanto que você tem aí. — Gutierrez me disse
cerca de uma hora depois, quando nossa trilheira foi resgatada e
estávamos voltando pela trilha.
— Ela é única, — concordei.
Ele então me deixou andar o resto do caminho em silêncio, pelo
qual eu estava agradecido. Levei meses para deixar Ryan se aproximar e
anos para me tornar seu melhor amigo. Ella era a única pessoa com quem
tive uma conexão instantânea e sorri quando percebi que Maisie e Colt
também estavam nessa lista agora.
Chegamos à base da trilha e abri a porta da caminhonete para
Havoc entrar. Ela se sentou no banco do passageiro, feliz e um pouco
cansada.
— Você se saiu bem hoje, — Gutierrez disse, tirando sua própria
mochila, carregando-a no carro estacionado ao lado do meu.
— Valeu. Foi bom ser útil.
— Sim, eu sei disso. — Ele tirou o boné e esfregou a cabeça. —
Olha, sobre as coisas que falei sobre Ella...
— Não. Está bem. — Apertei com mais força a porta.
— Cidade pequena, — ele disse com um leve encolher de ombros.
Era mesmo. Talvez não a vila com as estâncias de esqui, mas a
parte antiga. Especialmente quando os turistas não estavam por perto e
eram só os habitantes. Eram todos ligados aqui, e posso não entender,
mas eu poderia fazer o possível para respeitá-los.
— Ryan não morreu há seis meses. — A cabeça de Gutierrez
levantou-se.
— Ele morreu há cinco meses e sete dias, mais ou menos algumas
horas. Algumas longas horas. Eu sei, porque ele era meu melhor amigo.
Servi com ele por quase uma década.
— Oh, cara, eu sinto muito. — Toda a sua postura caiu.
— Tudo bem. Nunca se desculpe por cuidar de Ella. Eu te disse
apenas para que você soubesse que não há nada que eu não faria para
mantê-la segura, para cuidar dela e das crianças. Nada. Eles são a razão
de eu estar aqui.
Ele engoliu em seco e finalmente olhou para mim, respirando
fundo. — Certo. Obrigado por me dizer. Se precisar de alguma coisa, ou
se ela precisar, me avise ou chame minha esposa, Tess. Ella nunca vai
pedir.
— Sim, ela é muito teimosa assim.
Um fantasma de um sorriso cruzou seu rosto. — Algo me diz que
você também é.
— Culpado.
Voltei para casa com um corpo cansado, um cachorro contente e
uma mente que não parava de andar em círculos. Falei a sério o que
disse: não havia nada que eu não faria para manter Ella e as crianças
seguras.
Ou havia?
Eu pisei no freio quando passei pelo chalé de Ella.
Seu plano de saúde não cobriria os custos do tratamento que
poderia salvar a vida de Maisie.
Mas li todos os fragmentos de informações na internet sobre o
hospital e meu plano poderia.
Engatei a caminhonete em marcha à ré e depois virei em direção
de Ella. Eu estava fora da caminhonete antes que o motor desligasse,
dando dois passos de cada vez e batendo na porta antes de meu cérebro
entrar em ação com todos os motivos que ela diria não, sabendo que eu
teria que convencê-la a dizer sim.
— Beckett? — Ella perguntou enquanto abria a porta da frente. Ela
estava de jeans e uma camiseta de manga comprida, o cabelo em uma
trança lateral grossa que me fez querer agarrá-la enquanto eu a beijava.
— Tudo certo?
— Sim. Desculpe pela visita. Você tem um segundo?
— Claro, entre.
— Não onde as crianças podem ouvir, — falei baixinho, colocando
meus polegares nos bolsos.
As sobrancelhas dela se ergueram de surpresa, mas ela saiu para
a varanda, fechando a porta atrás dela. — Certo, o que aconteceu?
— Seu plano não vai pagar pela terapia com MIBG, pelo hospital
de que ela precisa ou pelo transplante de células-tronco.
— Certo. — Ela cruzou os braços sob os seios e olhou para mim,
aqueles olhos azuis curiosos, mas confiantes.
— Ela precisa, certo? Ou vai morrer?
— Beckett, o que é isso?
— Ela vai morrer sem ele? — Repeti, minhas palavras um pouco
mais bruscas do que já usei com Ella.
— Sim, — ela sussurrou.
Eu balancei a cabeça para mim mesmo, me virando e andando pela
varanda enquanto Ella me seguia.
— Beckett! — ela estalou.
Eu me virei e respirei fundo para acalmar meus nervos. — Seu
plano não vai pagar por isso...
— Certo, nós já discutimos isso.
— Mas o meu vai.
— Certo? — Ela piscou para mim, sua testa franzindo.
— Ella, case comigo.
CAPÍTULO QUINZE
ELLA
Carta nº 15
Ella,
Perdemos alguém hoje.
Você pode achar que eu estaria acostumado com isso depois de todo
esse tempo, até insensível. Alguns anos atrás eu estava. Não tenho ideia
do que mudou recentemente, mas agora parece que toda perda é
exponencialmente mais difícil que a anterior.
Ou quem sabe sejam iguais, mas eu estou diferente. Mais irritado.
É difícil descrever, mas agora estou mais consciente da minha
desconexão, da minha incapacidade de criar laços emocionais além de
alguns amigos íntimos. Essa pequena lista inclui você.
Como posso estar tão conectado a alguém que nunca vi, mas não
com a maioria dos caras ao meu redor? Você é mais segura no papel porque
não está na minha frente? Talvez seja uma ameaça menor?
Eu gostaria de saber.
Eu queria ter as palavras para a esposa desse cara, seus filhos.
Queria poder levar isso para eles, tomar o lugar dele. Por que o mundo
pega as pessoas que são amadas, rasgando buracos no tecido da alma de
outras pessoas, enquanto eu posso andar de skate incólume? Onde está a
justiça em um sistema tão aleatório e, se não há justiça, por que estamos
aqui?
Sinto o mesmo desejo inquieto de retomar o controle, de cumprir a
missão e seguir em frente. Assinale a opção, largue tudo e saiba que
fizemos a diferença.
Só não tenho mais certeza de que diferença é essa.
Diga-me algo real. Diga-me como é viver no mesmo lugar a vida
inteira. É sufocante ter raízes tão profundas? Ou faz você balançar em vez
de quebrar quando os ventos vêm? Estou no vento há tanto tempo que
honestamente não consigo imaginar.
Obrigado por me deixar desabafar com você. Prometo que não serei
tão deprimente na próxima vez.
Chaos
***
***
***
Chaos,
Sinto muito por você ter perdido alguém. Não consigo imaginar como
isso deve ser difícil e ainda continuar com o que você está fazendo. Toda
vez que eu perdia alguém, meus pais ou minha avó, isso sempre me
desligava, como se meu corpo não pudesse processar a enormidade dos
meus sentimentos. Isso mostra o tipo de homem que você é que pode
continuar sendo, e quero dizer isso da melhor maneira possível.
Você diz que é ruim com as pessoas, que não se conecta, mas não é
quem eu vejo quando abro essas cartas. Ou melhor, quem eu ouço. Alguém
que não consegue se conectar não seria tão aberto. Caramba, pra começar,
nem teria respondido. Mas você respondeu, e sou grata.
Talvez você simplesmente escolha com quem se conectar, e tudo
bem. Acho que ninguém acorda e decide ser a borboleta social como meu
irmão. Provavelmente é por isso que vocês dois são bons amigos. Vocês se
equilibram.
Sabe com quem mais eu aposto que você se conectaria? Crianças.
Talvez não as crianças de todo mundo, mas definitivamente as suas. Você
já pensou em filhos? É uma pergunta aleatória, mas estou curiosa.
Provavelmente porque tive os meus tão jovem e não consigo imaginar não
os ter, meio que imagino todo mundo que encontro com filhos.
Menos Hailey. Ela é uma das minhas melhores amigas, e tenho
certeza de que um dia ela será uma ótima mãe... depois que ela for bem-
sucedida por um tempo. Sucesso sendo a palavra-chave aqui. Aposto que
você a amará quando chegar aqui. Ela é linda, divertida e não imagina
todo mundo que conhece com crianças.
De qualquer forma, aposto que você seria um ótimo pai. Pensativo e
resistente, mas também esgueirando-se em maratonas de Guerra nas
Estrelas nos fins de semana preguiçosos. Eu poderia absolutamente
imaginar... se eu pudesse imaginar você. Sim, ainda estou desejando uma
foto.
Espero ter conseguido distraí-lo por alguns minutos. Espero que
saiba o quanto sinto muito por sua perda.
Ella
***
Chaos,
Ser mãe é uma merda. Desculpe, sei que não nos conhecemos o
suficiente para dizer algo assim, mas é verdade. Pelo menos hoje é.
Passei a maior parte da minha tarde na sala do diretor. Não só isso,
mas era o mesmo diretor de quando eu era criança. Eu juro, sentei-me
naquela cadeira de couro estridente em frente à sua mesa e eu voltei a ter
sete anos.
Só que agora eu sou adulta, e meus filhos são os que me colocam
numa fria.
Colt e Maisie estão na mesma turma do jardim de infância. Eu sei, li
um monte de besteira sobre colocar gêmeos na mesma classe, e como isso
não os deixa cultivar sua própria identidade, mas esses chamados
especialistas nunca tiveram que olhar para os meus selvagens de olhos
azuis e ouvi-los recusarem-se a ser separados. E por recusa, quero dizer
que tentamos. Na primeira semana de aula, tive que pegá-los todos os dias
às nove da manhã porque eles ficavam saindo para ir para a sala de aula
do outro. Finalmente, cedemos. Sabe a frase "escolha suas batalhas"? Era
mais como "admita a guerra, você está perdendo." Mas tudo bem.
Enfim, há um garotinho com uma queda enorme por Maisie. Fofo, né?
Nem tanto. Hoje no recreio, ele decidiu que toda a turma jogaria "pega-pega
com beijo", que acho que em vez de pegar alguém com sua mão, você planta
um beijo sobre ele. Legal, né? Maisie não queria jogar, então o garoto
começou a correr atrás dela de qualquer maneira, e acabou tropeçando
nela e beijando-a apesar de suas objeções. Naturalmente, ela o empurrou
e o derrubou. Meu irmão ficaria orgulhoso; ela deu esse soco do jeito que
ele ensinou.
Colt ouviu a comoção e foi correndo. Quando Maisie contou a ele o
que aconteceu, ele se manteve calmo, mas o outro menino a chamou de um
nome não agradável que rima com gruta (de acordo com Colt), e bem... Colt
ficou furioso.
O outro garoto tem um olho roxo e um bocado de areia de playground.
Contei que fui para a escola com a mãe dele? Vida de cidade pequena
super desajeitada.
Colt ficou uma semana de detenção, que Maisie está exigindo que
ela fique com ele. Eles têm cinco anos. CINCO ANOS, Chaos. E ainda é o
jardim de infância. Como diabos vou sobreviver à adolescência?
Ugh. Isso é tudo por hoje. Ser mãe é uma merda.
Ella
***
Ella,
Seus filhos são incríveis. Sério. Acho que rir provavelmente não é a
reação certa para essa história, mas vamos lá. Aquele garoto levou um
chute no traseiro não apenas por um, mas pelos dois filhos. Você está
criando dois fodões. Desculpe, mas essa é realmente a melhor palavra
para descrevê-los depois dessa história.
Quanto aos meus filhos? Não sei se isso está nos planos para mim.
Não porque não gosto de crianças. Sinceramente, gosto. Eles são
brutalmente honestos, que é uma característica geralmente perdida na
idade adulta. Mas, eu não saberia nada sobre ser pai, já que não tive um.
Talvez seja uma coisa boa, já que também não tenho um mau exemplo de
pai, mas, na verdade, os únicos exemplos de pais que tenho na minha vida
vieram da televisão.
Eu ficaria com muito medo de estragar uma criança.
Mas se saberia o que estaria fazendo? Sim, as crianças seriam
ótimas. Nunca fui o cara que sonhava em jogar futebol, mas
definitivamente podia imaginar algo assim. Sinceramente, não penso
nisso, nem em nada no futuro. Quando você quer algo, ou sonha, você tem
algo a perder. Não sou fã de ser colocado em posição de perder qualquer
coisa. Para não dizer que não sou um pouco imprudente, mas apenas
comigo mesmo e com as coisas que posso controlar.
Querer algo lhe causa problemas. Desejar deixa você descontente,
quando preciso agradecer o que tenho. Aprendi essa lição muito jovem.
Gosto de pensar que isso me torna uma pessoa melhor - estar contente com
o que tenho -, mas ouço seu irmão falar sobre você e sua família, e às vezes
me pergunto se talvez essa falta de desejo seja mesmo uma pequena forma
de covardia. Dessa forma, você é muito mais corajosa do que eu. Você tem
a capacidade de amar além de si mesma, de arriscar seu coração a cada
dia através de seus filhos.
Eu respeito isso tanto quanto invejo.
Além disso, diga a Maisie na próxima vez que um cara a perseguir,
ela precisará acertar as bolas. Os pequenos valentões crescem e se tornam
grandes valentões.
Chaos
***
***
Chaos,
David Robins me convidou para sair hoje. Quem é David Robins, você
provavelmente está perguntando? Ele é realmente o melhor por aqui. Vinte
e oito, bombeiro, bonito, todo o material de romance. Qualquer garota em
sã consciência teria aceitado.
Claro, eu disse não. Já lhe falei uma vez, não tenho tempo para
homens e nada mudou nas últimas seis semanas em que escrevemos um
para o outro. Finalmente, tenho Solitude pronta para conquistar o mundo,
e simplesmente não posso me permitir a distração.
Mas então, às vezes, quando estou deitada na cama à noite, me
pergunto se é só isso. Claro que não namorei enquanto estava grávida.
Claro que o divórcio veio, mas eu tinha assuntos mais importantes em
mente. Quando Colt e Maisie nasceram, o primeiro ano foi um borrão entre
a alimentação e a dentição e dois bebês em dois horários. Claro, eles são
fofos agora, mas não eram tão fofos às duas da manhã, juro. Então eram
crianças, e eu ainda estava correndo sem rumo e descontroladamente
igual a uma mãe solteira com gêmeos. Agora eles estão no jardim de
infância, e sinto que finalmente minha vida está estabilizada.
Mas ainda disse não quando David me perguntou.
O que diabos estou esperando? Não é como se eu precisasse de um
raio. Eu não sou mais uma garota romântica boba. Sei que há mais em um
ótimo relacionamento do que química.
Mas também não quero acabar como a louca dos gatos da rua.
Honestamente nunca fui uma pessoa felina, então isso provavelmente
seria um problema em algum momento.
E você? É difícil namorar quando você sai com tanta frequência? Isso
é algo em que você pensa? Feliz solteiro? Deve ser difícil tentar começar
alguma coisa quando geralmente está no meio do mundo, né?
Ella
***
***
As pessoas podiam ser tão felizes assim? Parecia quase natural ter
isso como meu novo normal. Acordei, fui trabalhar, jantei com Ella e as
crianças e roubei beijos quando não estavam olhando.
Não estava mentindo quando disse que poderia beijá-la para
sempre. Ela era mil beijos diferentes em uma mulher, os macios e ternos,
os profundos e apaixonados, os duros e desesperados. Nunca sabia quem
estava em meus braços, e ainda assim eram todas Ella.
Tudo era Ella.
Dei um salto de fé e reservei meu chalé indefinidamente. Ella
protestou contra o custo, mas entreguei a Hailey meu cartão de crédito
com um sorriso. Indefinidamente não era para sempre, e eu já tinha
encontrado o lugar perfeito para começar algo mais permanente.
Acontece que recebi umas dicas de investimento de um amigo e a
localização era perfeita.
— O que você acha de uma tirolesa? — Colt perguntou da parte de
trás do chalé de Ella, olhando para a casa na árvore que passamos os
últimos dez dias construindo.
— Acho que é algo que você precisa perguntar à sua mãe, porque
não estou entrando nessa briga. — Baguncei as mechas curtas e
onduladas de seu cabelo. Ele parou de cortar no mês em que Maisie
conseguiu pular a quimio, e estava crescendo rapidamente.
Fazia um mês desde que eu adotara as crianças e onze dias desde
que Ella levou Maisie a Denver para seu primeiro tratamento com MIBG.
— Eu usaria um capacete! — ele argumentou.
Seja firme, lembrei a mim mesmo. Éramos apenas eu e Colt nos
últimos onze dias, com alguma ajuda de Ada e Hailey, é claro, e fiquei
surpreso que ele ainda não estivesse cantando de galo. Provavelmente
porque passou mais da metade daqueles dias na escola.
— Oh, não acho que isso seria uma discussão. Pare de testar sua
sorte, criança.
Ele suspirou. — Bem. Mas e uma rampa de terra para o meu
quadriciclo?
Hum. Agora essa ideia tinha algum mérito. — Hmmm.
Ele viu minha fraqueza e atacou, revelando aquele sorriso. — Quer
saber de uma coisa?
— O quê? — Perguntei com a mão no ombro dele.
— Acho que estava certo. Sabe, na volta do futebol.
Tentei pensar de qual jogo ele estava se referindo dentre as dezenas
que teve até agora. — Sobre o quê?
— É assim que deve ser ter um pai.
Oh, merda, eu ia chorar.
— Bem, talvez nem todo pai. Sei que o pai do Bobby não conseguiu
construir isso. E o pai da Laura também é muito legal. Ele pilota aviões.
Talvez todos os pais sejam legais de maneiras diferentes, sabe? Como
alguns pais nem são, você sabe... pais.
— Sim, — disse suavemente, porque não conseguia pensar em
outra palavra. Meu cérebro estava mole, junto com meu coração.
— Pensei muito nisso. — Ele me deu um sério aceno de cabeça.
— Estou percebendo. Eu amo você, homenzinho.
— Sim, eu também te amo. E queria mesmo uma rampa de terra.
Eu ri quando Ella entrou na garagem.
— Mamãe chegou! — Colt correu morro acima, Havoc toda feliz
atrás dele, atrás deles. Engraçado, fiquei em missões por um ano, às
vezes mais, e ainda assim os últimos onze dias pareciam mais longos do
que isso.
O tempo passava mais devagar quando você sentia saudade da
pessoa que ama.
Cheguei à garagem a tempo de ver Ella sair do carro e abraçar Colt.
Então ela esfregou as orelhas de Havoc e arrulhou algo para ela antes de
se levantar e empurrar os óculos de sol para o topo da cabeça.
— Ei, você. — Ela sorriu e meu peito ameaçou explodir. Eu a amava
mais agora do que um mês atrás, ou mesmo quatro meses atrás. Eu não
sabia como meu coração iria aguentar toda essa emoção se continuasse
crescendo a esse ritmo.
Peguei-a e beijei-a, sentindo a onda de lar como sempre sentia
quando nossos lábios se tocavam. — Senti saudades.
Ela segurou meu rosto áspero da barba e me beijou novamente. —
Senti saudades.
— Sim, a gente entendeu. Vocês ficaram com saudades um do
outro. — Colt riu, já correndo para a porta de trás aberta. — Você brilha?
Tem superpoderes?
— Acho que não, — Maisie respondeu, com a voz mais baixa que
o normal.
— Como você sabe? Você checou? Será que tem sensor aranha?
Pus Ella no chão e fui em direção à porta aberta, onde Maisie estava
balançando os pés para fora. Ela desceu do carro e foi instantaneamente
envolvida por Colt, que agora estava cinco centímetros mais alto que ela.
— Senti sua falta!
— Eu também, — ela disse suavemente, colocando a cabeça no
ombro dele. Olhei para Ella, que me deu um sorriso triste e com lábios
tensos.
— Tenho muito para lhe mostrar! — Ele puxou a mão dela, e ela
assentiu, começando a caminhar atrás dele até a casa da árvore, sem
dúvida.
— Ela está cansada, — falei para Ella, pegando sua mão enquanto
seguíamos as crianças.
— Exausta. Ela fez uma transfusão enquanto estávamos lá, mas
ainda está sem apetite, e o número de suas hemácias ainda está baixo e
ela só está... Aquilo é uma casa na árvore? — Ella parou, olhando para a
casa da árvore que havíamos construído entre dois pinheiros.
— Gostou?
Ela riu. — Você construiu uma casa na árvore para ele. Ele sempre
quis uma. — Aquela risada se transformou em um pequeno suspiro
enquanto seu rosto se contorceu de tristeza por um momento. Então,
apertou minha mão e forçou um sorriso. — Obrigada. Ryan... ele e... bem,
você a construiu e é incrível.
Ryan e Chaos. Eu sabia exatamente o que ela estava pensando.
Estou bem aqui. Nunca te abandonei. Mas destruí você.
Eu não disse nada disso, simplesmente beijei seu pulso. — Quer
ver?
— Sim!
Eu a conduzi para a escada, onde Colt e Maisie estavam. — Certo,
Colt, por que você não pega sua mãe?
— Está bem!
— Tem certeza de que essa coisa pode aguentar o nosso peso? —
Ella perguntou enquanto observava Colt subir. O garoto subiu a escada
com uma rapidez medonha. Ele seria um alpinista e tanto quando
crescesse.
— Na semana passada, aguentou metade da equipe de busca e
resgate, — falei a ela. — A não ser que subamos lá com dez de você,
estamos bem.
— Usou artilharia pesada, hein? — ela brincou.
Colt gritou, e olhei para cima para vê-lo cair do topo da escada.
Merda!
Dei um passo à frente, os braços estendidos e prontos quando Ella
ofegou.
Pouco antes de me alcançar, ele se segurou, suas mãozinhas
agarrando o centro grosso do degrau de madeira.
— Colt! — Ella gritou.
Ele apoiou o pé no degrau acima das minhas mãos e olhou para
nós com um sorriso enorme. — Isso foi legal.
Chupei um pouco de ar e soprei lentamente, desejando que meu
coração saísse do estômago. Aquele garoto seria a minha morte.
— Isso não foi legal! — Ella gritou, sua voz estridente e à beira do
pânico.
— Estou bem. Viu? — Soltou a escada rapidamente e a agarrou de
novo antes de cair.
— Pare com isso! Passei semanas no hospital com sua irmã e não
estou preparada para voltar!
— Tá bom, tá bom, — ele murmurou e subiu de volta, chegando ao
topo da escada e desaparecendo pela escotilha.
— Você está bem? — Perguntei a Ella.
Ela deu dois passos e enterrou o rosto no meu peito com um
suspiro enorme.
— Ele está bem. Foi apenas um escorregão. — Meus braços se
fecharam ao redor dela e eu beijei o topo da cabeça dela. — Acidentes
acontecem.
— Não tenho energia suficiente para acidentes. A gente não pode
só colocar os dois em uma bolha?
— Vou trabalhar para construir uma dessas. — Olhei para Maisie,
que estava estudando os apoios da casa na árvore. — O que você acha?
— É incrível! — Ela sorriu.
— Hoje, você é minha favorita.
— Eu ouvi isso! — Colt gritou, diretamente acima de nós. — Envie-
a para cima ou ande na prancha!
— Ninguém está andando em uma prancha, — Ella me avisou
quando soltou meus braços e subiu a escada.
— Não há prancha, — prometi a ela.
— Acho que você falou ao contrário, — Maisie gritou para Colt. —
Nós ainda estamos aqui embaixo.
— Tanto faz! Suba!
— Cuidado com isso, — eu disse a Maisie, tirando um balanço de
onde estava guardado na árvore. Estendi com uma mão e a sentei nele
com a outra. — Agora segure nas laterais.
Seus olhos brilharam quando uma rede subiu ao seu redor e ela
segurou na borda, passando os dedos pelos laços brancos. — Sério?
— Ella, prepare-se para pegá-la! — Eu gritei. Olhei pela escotilha
secundária e vi Ella assentir, confusa, mas pronta. Depois fui para a
roldana e comecei a levantar Maisie.
— Ahhh! Isso é tão legal! — ela gritou.
Ela atravessou a escotilha e Ella a tirou do balanço. Então peguei
a escada e fui encontrar minha pequena família na varanda. Estávamos
a uns cinco metros de altura e escolhemos um local onde as crianças
pudessem ver o lago. As crianças, que estavam checando as coisas legais
que Colt havia pedido na casa na árvore, como uma mesa e cadeiras, uma
cozinha de brincar e um tubo gigante de papelão que pintamos de
vermelho porque ele queria chamar a casa de árvore de “Estrela da
Morte”.
— Isso é incrível, — Ella disse, passando os braços em volta da
minha cintura. — Ryan teria adorado.
— Sim, mas ele queria um trampolim gigante para Colt pular daqui
de cima.
Os olhos dela se arregalaram.
— Bem, Colt pediu uma tirolesa.
— Daqui de cima?
— Ei, ele é seu filho, — eu disse com um encolher de ombros e a
abracei mais perto de mim.
— Eu gosto disso, — ela sussurrou. — Voltar para casa, sabendo
que Colt não estava sozinho.
— Eu também. — Eu beijei sua testa. — É tudo muito normal e sei
que parece loucura, mas estou realmente amando normal. Passar um
tempo com você e as crianças, ficar com você sozinho sempre que posso,
é realmente...
— Perfeito, — ela sugeriu.
— Perfeito, — concordei, olhando por cima do ombro para me
certificar de que as crianças estavam ocupadas antes de eu a beijar.
Nossos lábios se encontraram, e então Ella aprofundou. Fiquei
mais do que feliz em atender. Nossas línguas se tocaram brevemente e
depois nos separamos, ouvindo as crianças chegando.
— Não é tão legal? É como se a gente estivesse sozinho aqui em
cima! — Colt disse.
— Quase sozinho, — respondeu Ella, atirando-me um sorriso
conhecedor.
— Quase, mas não exatamente. — Concordei sobre as cabeças das
crianças enquanto olhavam para o lago.
— Eu amei, — Maisie me disse com um sorriso.
— Então tudo valeu a pena.
Eles correram para o outro lado da casa, e Ella se apoiou nas
minhas costas, passando os braços em volta de mim.
— Posso te encontrar sozinha mais tarde? — ela perguntou, suas
mãos deslizando debaixo da minha camiseta para esfregar as linhas dos
meus abdominais.
— Sim, quantas vezes você puder lidar. — Deus, eu a queria.
Precisava colocá-la debaixo de mim, sobre mim, ao meu redor. Precisava
me sentir conectado a ela da maneira que apenas o sexo fazia, os
momentos em que não havia preocupações, câncer, sem passos de
crianças, apenas nós e o amor que tínhamos um pelo outro.
Antes que ela pudesse responder, meu celular tocou. Estiquei a
mão entre nós ao meu bolso de trás e o puxei para responder. — Gentry.
— Ei, sei que você não está de plantão neste fim de semana, mas
temos alguns trilheiros perdidos, — a voz de Mark veio através da linha.
Suspirei. Tudo o que eu queria era jantar com as crianças, enfiar
suas caras sorridentes na cama e ficar muito sozinho com a mãe delas.
— Quão perdidos?
— Eles perderam o check-in há quatro horas.
— Vá, — Ella insistiu, beijando meu braço onde a pele encontrava
a camiseta. — Sei que precisam de você. Vá.
— Eu estarei aí em vinte minutos. — Desliguei o celular e puxei
Ella para meus braços. — Me desculpe. Esta é a última coisa que quero
fazer agora.
— Oh, Acredite em mim, você é a única coisa que quero fazer agora.
Ela disse com um beijo no meu queixo antes de me soltar. — Vem ficar
comigo esta noite depois que terminar?
Eu assenti. Limitamos as festas do pijama, mas eu não ia discutir.
Não essa noite. — Volto o mais rápido possível. Prometo. — Eu disse a
ela antes de beijar as crianças na testa enquanto corriam novamente. —
Você consegue descer Maisie?
— Consigo. Vá. — Ella ordenou.
Deixei meus olhos percorrerem seu corpo e suspirei em um drama.
— Turistas.
Ela descaradamente riu. — Ei, isso é vida normal. Não era você que
estava defendendo o normal?
— Se normal significar que chego em casa para você hoje à noite,
estou bem com isso.
E eu estava. Eu, o cara que nunca quis raízes, era todo sobre
colocá-los aqui no fundo. Isto era o que eu queria. Essa vida. Ella. Colt.
Maisie.
Normal. Todos os dias, normalmente comum.
Eu só precisava que Maisie sobrevivesse, porque não havia normal
sem ela nisto tudo.
SEIS MESES DEPOIS
CAPÍTULO VINTE
ELLA
Carta nº 5
Ella,
Ah, a questão do namoro. Sinceramente, não namoro. Por quê?
Porque minha vida não é justa para mulher alguma. Nós zarpamos num
piscar de olhos. E não tipo, “Ei, semana que vem vou embora.” “Desculpe,
não estarei em casa para jantar... durante os próximos dois meses”. Parece
um jeito ruim de começar um relacionamento quando nunca sei quando
vamos voltar para casa. Pensa nesta viagem, por exemplo. Nós pensamos
que levaria alguns meses. Definitivamente, não é a jornada de várias
paradas que tem sido. Eu não consigo imaginar deixar uma garota em casa
para esperar por isso.
Então, sem parecer... um idiota, prefiro não ter relacionamentos de
longo prazo. De certa forma, também não tenho certeza se sou capaz.
Quando você cresce sem saber nada sobre um bom relacionamento que
funciona, é muito difícil se ver em um.
Quanto a Robins, se você quiser ir, vá. Não se esconda atrás de sua
vida ou de seus filhos. Se você está com medo de chegar lá e se arriscar,
diga isso. Se aposse disso. O que você passou tornaria qualquer pessoa
normal um pouco tímida, sem dúvida. Ninguém vai pensar menos de você.
Só não se esconda atrás de desculpas. Você ficará mais forte quando
identificar o que a coloca no limite. E honestamente, eu vi fotos suas. Você
não vai acabar como a louca dos gatos, prometo.
Sou feliz solteiro? Acho que felicidade é um termo relativo, não
importa qual seja o assunto. Parei de tentar ser feliz quando tinha uns
cinco anos. Agora fico com contente. É mais fácil de alcançar e não me
deixa com a sensação de que algo está faltando. Uma hora vou sair das
forças armadas, quem sabe daqui a dez anos ou mais. Por enquanto, esta
é a vida que amo e estou contente. Objetivo atingido.
Conte-me um pouco sobre o Telluride. Se eu for à cidade como turista,
o que com certeza preciso ver? Fazer? Comer?
Chaos
***
***
Chaos,
Ella
***
Chaos,
Ryan está morto. Mas tenho certeza de que você já sabe disso.
Sinceramente, sinto que estou apenas escrevendo para parecer real.
Ryan está morto.
Ryan está morto.
Ryan...
Nada parece certo. Seu corpo ainda está em Dover, sendo preparado
para o enterro, e já me disseram que eu não posso vê-lo. Dessa forma,
espero que seja uma piada cruel, que ele não esteja em um caixão. Que
não tenho que descobrir onde enterrar meu irmão.
Minha mãe. Meu pai. Minha avó. Ryan. Todos se foram, e ainda
estou aqui. Maisie é a próxima? É isso que a vida realmente é? Uma
tragédia após a outra? Ou é simplesmente assim que minha vida está
indo?
Colt e Maisie estão arrasados. Colt se recusou a falar ontem depois
que contei, e Maisie não parou de chorar. Eu, por outro lado, não comecei
a chorar. Ainda não. Estou com medo de que, quando começar, nunca mais
pararei. Serei essa fonte de água salgada que vaza miséria.
Ryan era meu melhor amigo. Meu porto seguro em uma tempestade.
E agora sinto que estou neste oceano sem fim no meio de um furacão, e as
ondas estão apenas esperando para me naufragar e me levar para baixo.
Sei que isso parece loucura, mas a única pessoa que quero agora é
você. Você é a única pessoa com quem fui completamente honesta nos
últimos meses. Você é a única pessoa que pode entender a dor debilitante
e esmagadora da alma que nem consigo entender. Porque sei, por mais que
você jure que não sabe o que é família, Ryan era seu irmão. Ele era sua
família.
Só espero que você venha ao funeral, porque sei que ele iria querer
você aqui. Eu sei que quero. E se você não puder vir, espero que não esteja
mudando seus planos. Por favor, venha para Telluride. Mesmo que seja só
para tomar uma xícara de café comigo. Por favor venha.
Ella
***
Ella,
Esses biscoitos são a melhor coisa do mundo. Não estou mentindo.
Primeiro, não deixe que comissão da associação de pais e mestres
assuste você. Embora eu admita, eu estive em guerras. Muitas. E essas
mulheres ainda me intimidam, e nem tenho filhos, então vou simplesmente
lhe fazer a saudação dos Jogos Vorazes e desejar o melhor para você.
Sim, assistimos a muitos filmes por aqui.
Você perguntou sobre a escolha mais assustadora que já fiz. Não
tenho certeza se realmente tive medo de uma escolha que fiz. Estar com
medo significa que você tem algo a perder, e nunca tive isso. Sem me
aprofundar muito nos meus antecedentes, direi simplesmente que não
tenho família fora desta unidade. Também não tenho ninguém esperando
que eu volte para casa desta viagem. Até ingressar no exército foi uma
decisão fácil, já que tinha dezoito anos e estava prestes a ser expulso do
sistema.
Fico com medo em nome dos outros caras. Eu odeio vê-los se
machucar, ou pior. Fico com medo toda vez que seu irmão faz uma besteira
imprudente, mas essa não é a minha escolha.
Mas vou te dizer a maior escolha. Comprei um terreno, sem nem ver,
só porque me foi recomendado. O proprietário estava em dificuldades e eu
me joguei. Também não tenho ideia do que fazer com isso. Meu investidor
- sim, eu tenho um desses para não morrer sem dinheiro - me disse para
segurá-lo e vendê-lo aos empreiteiros quando eu quiser me aposentar. Seu
irmão disse para construir uma casa e sossegar.
Agora isso me assusta. A ideia de sossegar em algum lugar, e não
recomeçar a cada poucos anos, é um pouco assustadora. Existe uma paz
em ser um nômade. Recomeço quando me mudo. Uma lousa limpa apenas
esperando eu estragar tudo. Ei, te avisei, sou péssimo com as pessoas.
Sossegar significa que tenho que trabalhar para não afastar todos ao meu
redor, porque estou preso a eles. Isso, ou viro um eremita da montanha e
deixo crescer uma barba muito longa, o que pode ser realmente a escolha
mais fácil.
Acho que vou avisá-la quando descobrir qual decisão tomar.
Sua propriedade parece ótima e tenho a fé máxima que você fez a
escolha certa hipotecando-a por melhorias. Como você disse, quem não
arrisca, não petisca.
O que diabos você coloca nesses biscoitos? Porque são seriamente
viciantes. Posso me arrepender deles depois de percorrer alguns
quilômetros extras, mas valem a pena.
Obrigado novamente,
Chaos
***
Chaos,
Faz dois dias desde que enterramos Ryan. Você não veio e não
respondeu minha carta. Quando perguntei aos rapazes da sua unidade se
você estava bem, pelo menos presumi pelos cortes de cabelo deles eram da
sua unidade, me disseram que não tinham ideia de quem eu estava
falando.
Então, sim, eles eram da sua unidade.
Se você não está me respondendo e não foi ao funeral de Ryan, resta
uma opção que não consigo perguntar. Porque não sei se aguento.
Você se tornou algo que eu nunca esperava, esse apoio silencioso
que nunca julga. Não sabia o quanto passei a depender de você até você
não estar aqui. E estou aterrorizada. Você me disse uma vez que só fica
assustado se tiver algo a perder. E acho que talvez tenhamos algo a perder.
Há muita dor agora. Tanto que sinto que, no segundo quando acordo,
tenho dez anos no pequeno prontuário hospitalar. Risque isso, tenho nove
anos. Não posso ter dez, certo? Não quando eu tenho Colt e Maisie. Mas
dói muito.
Ryan. Eu vi abaixá-lo no chão em nossa pequena ilha e ainda não
consigo juntar todas as peças para formar uma imagem real. Tudo parece
nebuloso, como um pesadelo do qual não consigo acordar. Mas à noite
sonho que Ryan está em casa e você aparece na minha porta - uma figura
borrada da qual nunca consigo me lembrar de manhã. Sonhos se tornaram
a realidade que quero e acordo com o pesadelo.
Então, estou implorando, Chaos. Não esteja morto. Por favor, esteja
vivo. Por favor, não me diga que você estava lá com Ryan, que encontrou o
mesmo destino.
Por favor, diga-me que você não foi enterrado em algum lugar em um
funeral sobre o qual nunca fui informada. Que não me foi tirada a única
chance que eu teria que ficar a poucos metros de você.
Por favor, apareça em algumas semanas e me diga que você está
bem, que foi muito doloroso responder às minhas cartas. Diga-me que você
está abalado com a morte de Ryan. Apenas por favor apareça.
Por favor, não esteja morto.
Ella
***
Ella,
Então o Colt quer uma casa na árvore, não é? Aposto que eu e seu
irmão podemos lidar com isso.
Não se preocupe, sua cabeça vai automaticamente para Maisie. Eu
me preocuparia se não o fizesse. O que você está passando consome
praticamente tudo. Inferno, eu penso muito em vocês e nunca coloquei os
olhos em vocês.
Mas vamos lá, vamos lhe dar um pouco de distração. Prometi há
alguns meses que contaria a história por trás do meu nome de guerra.
Então aqui vai. Chaos. Todo esse estado de disfunção, onde tudo se desfaz
sem rima ou razão, certo? Isso é praticamente eu. Exatamente. Enquanto
crescia, me metia em problemas sempre que podia, ou às vezes eles me
encontrava. Chamavam-me de Chaos, porque quando eu aparecia, a
destruição inevitavelmente me seguiu. Geralmente lugares, mas às vezes
pessoas. Muitas pessoas. Se alguém se apega, não posso deixá-lo se
aproximar e me autodestruo até que se afastem. Tenho idade suficiente
para ver os padrões, mas não estou muito preocupado para realmente
alterá-los.
Então, eu e seu irmão vamos a um bar logo depois da triagem e ele
começa a dar em cima de uma mulher. Não vejo o rosto dela, apenas um
corpo em um vestido que mostra praticamente tudo. Ele supõe que ela é
uma prostituta - não me pergunte por que, porque não tenho ideia - e então
no fim das contas ela é na verdade a esposas de um dos nossos
instrutores.
Sim, o mundo desabou. O cara ficou louco, o bar foi jogado para cima
porque eu interferi, e quando o nariz estava quebrado e as garrafas
pararam de voar, eu me viro e me dou conta de que ela era alguém com
quem cresci. Então ela apenas olha para mim e diz: — Como sempre,
fazendo e acontecendo, Chaos. Você chega e tudo vai para o inferno. —
Seu irmão e o instrutor ouviram e pegou.
Então, sim, essa é a minha definição. Eu chego e tudo vai para o
inferno. Ainda tem certeza de que quer que eu vá te visitar? Brincadeirinha,
você sabe que eu estarei aí.
Espero que esteja recebendo presentes embrulhados para as
crianças, árvores cortadas e tudo mais. Estou amando as luzinhas a pilha
que Colt enviou e a pequena árvore-de-rosa de Maisie.
Te vejo depois,
Chaos
***
***
— Não havia nada que você pudesse ter feito, — Doutor Franklin
disse do outro lado da mesa, ladeado por outros médicos.
Olhei pela janela e vi a mínima sugestão do nascer do sol.
Não queria que fosse um novo dia. Queria que fosse no mesmo dia
em que lhe dei um beijo de despedida, o abracei antes que ele subisse no
ônibus. Não queria saber como era o sol se não estivesse brilhando nele.
— Colton teve lesões internas graves, incluindo uma vértebra, baço
rompido e uma aorta rompida, combinada com a laceração da artéria
femoral. E essas são apenas as coisas que vimos no ultrassom. Por favor,
acredite em mim quando digo que não havia nada que você pudesse ter
sido feito, Sr. Gentry. De qualquer forma, seu raciocínio rápido na perna
dele deu a você os minutos que teve.
— É por isso que não sentia dor, — Beckett disse, sua mão cobrindo
a minha.
— Ele perdeu toda a sensibilidade. Não sentia dor.
Lágrimas escorreram pelo meu rosto, mas não me preocupei em
enxugá-las. Para que se elas acabaram de sendo substituídas?
— Se eu tivesse chegado lá mais rápido? — A voz de Beckett
estrangulou a última palavra.
O Doutor Franklin balançou a cabeça. — Mesmo que ele tivesse
caído aqui fora do nosso pronto-socorro, não há nada que poderíamos ter
feito. Nem mesmo em Montrose. Lesões tão graves? O tempo que você
teve foi um milagre. Sinto muito por sua perda.
Minha perda.
Colt não estava perdido. Eu sabia exatamente onde ele estava.
Ele não pertencia ao necrotério. Pertencia em casa, dormindo,
quente e em segurança em sua cama.
— Precisamos ir para casa, — falei a Beckett. — Temos que contar
a Maisie. — Uma nova onda de lágrimas caiu. Como eu deveria contar à
minha garotinha que a outra metade do seu coração se foi? Como ela
deveria e continuar com meia pessoa?
— Certo. Vamos para casa.
O Doutor Franklin disse algo para Beckett e ele assentiu. Então,
de alguma forma, coloquei um pé na frente do outro e fomos para a porta
da frente.
Fiz uma pausa antes das portas. Os gêmeos nasceram aqui. Eu me
levantei da cadeira de rodas neste mesmo lugar e os carreguei até suas
cadeirinhas de carro, ignorando os protestos das enfermeiras, andando
porque eu tinha que saber que eu poderia fazer isso sozinha.
— Ella?
— Não posso simplesmente deixá-lo aqui. — Meu peito apertou, e
lutei por um segundo antes que eu pudesse respirar. Meu próprio corpo
não queria viver em um mundo sem Colt.
Os braços de Beckett me cercaram. — Eles estão com ele. Ele está
seguro. Nós cuidaremos dele amanhã. Por enquanto, vamos levá-la para
casa.
— Acho que não consigo me mover, — sussurrei. Eu não conseguia
mexer os pés, deixar Colt para trás enquanto ia para casa.
— Você quer ajuda? — ele perguntou.
Balancei a cabeça, e Beckett se inclinou e me pegou, uma mão
atrás dos meus joelhos e a outra apoiando minhas costas. Passei meus
braços em volta do pescoço dele e coloquei minha cabeça em seu ombro
como ele me carregou de manhã.
Beckett nos levou para casa em meu carro. Pelo menos acho que
foi o que ele fez. O tempo perdeu todo significado e relevância. Eu estava
à deriva no oceano, apenas esperando a próxima onda me puxar para
baixo.
Pisquei e nós estávamos lá dentro, Ada se preocupando com
alguma coisa. Beckett me sentou no sofá e colocou um cobertor sobre as
pernas. Ada disse alguma coisa, e assenti, sem me importar com o que
era. Uma xícara de café apareceu em minhas mãos. O sol nasceu
desafiando minha dor. Indiferente ao meu mundo que acabou na noite
passada, ele estava determinado a avançar.
— Mãe? — Maisie entrou no quarto, segurando seu ursinho de
pelúcia azul. Ela estava vestida de pijama púrpura, com o cabelo
despenteado e pequenas linhas de travesseiro amassando o rosto.
Tão parecido com o rosto de Colt. Será que algum dia eu olharia
para ela e não o veria?
— Ei, — resmunguei.
Beckett apareceu ao seu lado.
— Ele está morto, — ela disse como se fosse fato, com o rosto mais
solene do que nunca em qualquer fase do tratamento.
Meus olhos voaram para Beckett, mas ele balançou a cabeça.
— Eu soube ontem à noite. Parou de doer. Eu sabia que ele se foi.
— O rosto dela se contorceu e Beckett a puxou contra o lado dele. — Ele
se despediu enquanto eu estava dormindo. Disse que está tudo bem e
para olhar no bolso dele. — Beckett a sentou ao meu lado no sofá e eu
levantei meu braço para poder segurá-la.
— Sinto muito, Maisie. — Beijei sua testa e ela dobrou ainda mais.
— Não está bem. Ele não deveria morrer. Eu deveria. Por que ele
morreu? Não é justo. Nós tínhamos um acordo. Nós sempre estaríamos
juntos. — Ela começou a chorar, o que trouxe de volta as minhas
lágrimas. Seu corpo minúsculo tremia contra o meu enquanto suas
lágrimas escorriam pela minha camisa.
Esforcei-me para encontrar as palavras certas, para não deixar
minha filha sozinha em sua dor porque não conseguia sair da minha.
— Não é justo, — eu disse a ela enquanto a esfregava nas costas,
seu ursinho azul preso entre nós. — E você não deveria morrer. Nenhum
de vocês deveria. Foi simplesmente o que aconteceu.
Como não poderia haver uma explicação melhor do que isso? Qual
foi o raciocínio de um acidente que você não viu? Onde estava a justiça
nisso?
Beckett ficou do outro lado, e nós a cercamos com o máximo de nós
que tínhamos para dar. Ela precisava de tudo. Posso ter perdido meu
filho, mas ela perdeu a outra metade.
Depois de cerca de uma hora, ela adormeceu, virando-se para
Beckett. Ele a segurava contra o peito, as mãos correndo sobre o cabelo
dela, e eu não pude deixar de imaginar se foi assim que ele segurou Colt
quando ele morreu. Então desliguei o pensamento e o enfiei atrás de uma
porta que eu abriria quando estivesse pronta para a resposta.
Ada entrou, segurando uma sacola do hospital de Telluride. —
Você queria isso? Ela disse para olhar no bolso.
Enfiei a mão na sacola e tirei a blusa de Colt. Não havia sangue,
nem lágrimas, nada para indicar o trauma que ele sofrera. Achei o
primeiro bolso que estava vazio. O próximo estaria, também, se a lógica
governasse. Afinal, só porque eram gêmeos não significava...
Meus dedos se depararam com algo fino e enrugado. Puxei para
fora e minha respiração me abandonou.
Era uma folha vermelha.
***
Se você está lendo isso, significa que não posso vê-la em janeiro,
como planejamos. Me desculpe, mesmo. Eu costumava dizer que não podia
ter medo enquanto estivesse aqui, porque não tinha nada a perder. Mas
no minuto em que li sua primeira carta, tudo mudou.
Eu mudei.
Se nunca te contei, deixe-me dizer agora. Suas palavras me
salvaram. Você entrou na escuridão e me puxou para fora com sua
bondade e sua força. Você fez o impossível e tocou minha alma.
Você é uma mãe fenomenal. Nunca duvide disso. Você é o suficiente.
Essas crianças têm muita sorte de ter você do lado deles. Não importa o
que aconteça com o diagnóstico de Maisie ou com a teimosia de Colt, você
é a maior bênção que essas crianças jamais poderiam pedir.
Faz algo por mim? Entre em contato com meu gerente financeiro. O
número dele está no final. Mudei meu seguro de vida para Colt e Maisie.
Use-o para enviá-los para a faculdade ou dê o começo necessário para
encontrar sua paixão. Não consigo pensar em um uso melhor para isso.
Quer ouvir algo louco? Estou apaixonado por você. É isso mesmo. Em
algum lugar entre a carta número um e a vinte e tanto, percebi que estava
apaixonado por você. Eu, o cara que não consegue se conectar com outros
humanos, me apaixonei pela mulher com quem nunca fiquei na mesma
sala.
Então, se eu morrer, quero que se lembre disso. Ella, você é tão
incrível que fez eu me apaixonar por você apenas com suas palavras.
Não guarde suas palavras para si mesma. Não importa o que ache,
encontre alguém que queira ouvi-las tanto quanto eu. Então ame.
E me faça um favor - ame o suficiente por nós dois.
Com todo o meu amor,
Beckett Gentry
Nome de guerra, Chaos
***
COLTON MACKENZIE-GENTRY
FIM.