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Sumário

Prefácio de Sérgio Porto 5


Perfil de Tia Zulmira 7
Chateações Sutis 13
História do Passarinho 15
A Moça que Foi a Paris 18
À Beira-Mar 20
Somos Bons de Banho 22
A Arma do Crime 24
O Milagre 26
Mulher Para o Cotidiano 28
Nós, em Garrafa 30
A Arte de Presentear 32
Um Homem e Seu Complexo 34
O Seguro do Velho 36
O Cachorrinho de Dois Corações 38
Seguros de Amor 40
Doações Corporais 42
Os Brindes 44
O Velho Processo 46
A Vaca 48
O Dedo 50
A Menina que Suava em Cores 52
Do Inquirir os Querelantes 54
O Dia da Sinceridade 56
A Volta do Dia da Sinceridade 58
O Dia do Papai 60
Lição de Nudismo 62
O Homem da Pasta Preta 64
Vamos Acabar com Esta Folga 66
Razões de Ordem Técnica 67
O Padre e o Busto 69
A Batalha do Leblon 71
O Noivo Organizado 74
O Pelado na Arte Plástica 76
"Queremos Ver Sangue" 78
Nos Alcantilados da Vida 80
Mentalidade de Carburador 82
Menininha Viciada 84
Caso do Marido Doido 86
O Homem que Virou Ele 89
O Passamento de "Bette Davis" 91
É Triste... Muito Triste 93
Um Contista Sexy 95
Notícia de Jornal 97
História do Rio de Janeiro 99
O Homem, o Bonde e a Mulher 101
"Nossa Sociedade" 103
O Caso do Tatu 105
O Poliglota 107
A Papagaia 109
Mulher de Borracha 110
Mulheres Medicinais 112
Discos de Chocolate 114
Inferno Nacional 116
Colchão de Vaca 118
Ferro em Ferros 120
A Datilografa 121
Levantadores de Copo 123
O Índio 125
De Como Caçar o Ratinho 127
Faquirismo e Provocação 129
Da Galanteria 131
Dos Sertões ao Matagal 133
Caju Amigo do Homem 137
Conto Policial 140
"Ao Morrer Sorrindo" 143
NOTA À 6.a EDIÇÃO

Quando entrei pro Banco do Brasil faz muito tempo, me botaram


batendo à máquina ordens de pagamento. Quem conferia minha torpe
datilografia era um sujeito grandão e gozador chamado Sérgio Porto. Anos
depois ele virou Stanislaw Ponte Preta e eu acabei virando ilustrador de
todos os livros dele. O que é a vida! (parafraseando o nome de um bar em
Marataízes).
Infelizmente não tive tempo de curtir meu amigo; praticamente só nos
encontrávamos quando estava na hora de lançar um novo livro, e aí ele me
chamava para fazer a capa e as vinhetas. "Só levanto os olhos da Un-
derwoood (ou seria Olivetti?) semiportátil para pingar colírio", lamentava-
se.
Quando Ênio Silveira me chamou para fazer a capa e as ilustrações
desta nova edição de "Tia Zulmira", tive medo que as crônicas, que eram
publicadas na sua coluna diária, tivessem envelhecido. Mas não. Como os
sambas de Noel Rosa, ganharam, se enriqueceram com o tempo. Ninguém
soube como eles, Noel e Stanislaw, captar o espírito popular carioca. Bom
Stanislaw! Não viveu para ver sua profecia, feita em tom de molecagem, se
transformar em realidade, no festival de besteira que assola o país. Numa
homenagem ao nosso amigo, resolvi ilustrar crônica por crônica de "Tia
Zulmira".

Jaguar
PREFÁCIO DE SÉRGIO PORTO

Quando os diretores da Editora do Autor me entregaram os


originais de "Tia Zulmira e Eu" para prefaciar, justificaram a
incumbência dizendo que ninguém melhor do que eu conhece a
obra e o autor. De fato, Stanislaw Ponte Preta foi criado junto
comigo e, praticamente, é meu irmão de criação. Moramos na
mesma casa, tivemos a mesma infância e muitas vezes comemos
no mesmo prato. Hoje, TIO entanto, embora vivendo ambos do
jornalismo, já não somos tão ligados: raramente nos vemos,
poucos são os nossos gostos comuns e acredito que seria uma
temeridade da minha parte se continuasse companheiro
fraterno do irrequieto autor deste livro, nas suas andanças e
intemperanças por este mundo de Deus.
A EDITORA DO AUTOR foi a primeira a publicar os livros de Stanislaw Ponte Preta (N.
do E.)
Stanislaw surgiu na imprensa por uma contingência da
própria imprensa. Foi numa época em que os cronistas
mundanos dominavam as páginas dos jornais, com suas colunas
cheias de neologismos e auto-suficiência. Antes disso —
segundo suas próprias palavras — só assinara promissórias.
Convidado, porém, para ser mais um cronista mundano, num
jornal que não se perdoava o fato de não ter, no seu corpo de
redatores, um inventor de palavras e expressões como “piu-
piu", "champanhota", "fúria louca", "bola branca", "flor azul”e
outras baboseiras, Stanislaw aceitou a incumbência, com a
condição de não se ater aos vazios personagens do "café-
society", estendendo sua coluna até outros setores, inclusive o
do "divertissement", que ele mais tarde classificaria como
"teatro rebolado".
Lembro-me perfeitamente dos preparativos de estréia do
então desconhecido Stanislaw. Achava que, acima de tudo,
devia ser petulante, para competir com os cronistas mundanos,
que — no seu entender — por mais importante que fosse a
notícia a publicar, falavam sempre de si mesmos antes de dar a
notícia. Coisas como "este colunista está seguramente
informado" ou "confirmando mais um furo deste colunista” etc.
etc.
Stanislaw nesse setor foi incomparável; ninguém conseguiu
(e acredito que ninguém conseguirá) ultrapassá-lo em auto-
importância. E as expressões que criou acabaram ganhando
mundo, como o já citado "teatro rebolado", o "picadinho-
relations" e outras mais, sem contar o "bossa nova", que já
merece dicionário.
Este "Tia Zulmira e Eu", que andei folheando, porque não
suporto uma leitura mais detida dos escritos do autor, talvez
porque me sinta comprometido com suas irreverências — afinal
fomos criados juntos — é um apanhado, com certo critério de
seleção, das coisas que andou dizendo, das idéias que andou
espalhando em vários jornais e revistas do Rio. Sua Tia
Zulmira, senhora respeitável que conheço e admiro, entra nele
"en passant". O autor, com sua irreverência, não se peja de
comprometer a parenta em tão levianos escritos.
Foi esta, aliás, a razão do afastamento que hoje mantenho
de Stanislaw. O leitor há de — por força — compreender Q
quanto é comprometedora, para um jornalista modesto e que
tem esperanças de ser levado a sério, a companhia constante de
amigo tão atrabiliário. E já aqui me apresso a terminar este
prefácio, temendo que — ao lê-lo — o autor acrescente mais
uma página no fim do livro, para chamar o prefaciador de
cocoroca.

SÉRGIO PORTO
PERFIL DE TIA ZULMIRA

QUEM se dá ao trabalho de ler o que escreve Stanislaw


Ponte Preta — e quem me lê é apenas o lado alfabetizado da
humanidade — por certo conhece Tia Zulmira, sábia senhora
que o cronista cita abundantemente em seus escritos. E a preo-
cupação dos leitores é saber se essa Tia Zulmira existe mesmo.
Pouco se sabe a respeito dessa ex-condessa prussiana, ex-
vedete do "Follies Bergère" (coleguinha de Colette), cozinheira
da Coluna Prestes, mulher que deslumbrou a Europa com sua
beleza, encantou os sábios com a sua ciência e desde menina
mostrou-se personalidade de impressionante independência,
tendo fugido de casa aos sete anos para aprender as primeiras
letras, pois na época as mocinhas — embora menos insipientes
do que hoje — só começavam a estudar aos 10 anos. Tia
Zulmira não resistiu ao nervosismo da espera e, como a
genialidade borbulhasse em seu cérebro, deu no pé.
Quando a revista "SR." recomendou uma entrevista
exclusiva com titia, conhecida em certas rodas como a "ermitã
da Boca do Mato", cobriu as propostas de "Paris Match", de
"Life" e da "Revista do Rádio".
Esta é a entrevista.

SENTADA em sua velha cadeira de balanço — presente do


primeiro marido — Tia Zulmira tricotava casaquinhos para os
órfãos de uma instituição nudista mantida por D. Luz Del
Fuego. E foi assim que a encontramos (isto é, encontramos ti-
tia),. na tarde em que a visitamos, no seu velho casarão da Boca
do Mato.
Antiga correspondente do "Times" (1) na Jamaica, a
simpática macróbia é dessas pessoas fáceis de entrevistar
porque, pertencendo ao métier, facilita o nosso trabalho,
respondendo com clareza e desdobrando por conta própria as
perguntas, para dar mais colorido à entrevista
(1) Não confundir "Times" — jornal inglês — no plural, com "Time" —
revista americana — das menos singulares.
— Sou natural do Rio mesmo — explicou — e isto eu digo
sem a intenção malévola de ofender os naturais da província. Fui
eu, aliás, que fiz aquele verso no samba de Noel Rosa, verso
que diz: Modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila.
E é. Tia Zulmira mostra o seu registro de nascimento, feito
na paróquia de Vila Isabel. Documento importante e valioso,
pois uma das testemunhas é a própria Princesa Isabel
(antigamente a "Redentora" e hoje nota de 50 cruzeiros). Ela
explica que sua mãe foi muito amiga da Princesa, tendo mesmo
aconselhado à dita que assinasse a Lei Áurea (dizem que o
interesse dos moradores da Vila em libertar os escravos era
puramente musical. Queriam fundar a primeira escola de
samba).
— Por que se mudou de Vila Isabel para a Boca do Mato?
— indagamos.
— Por dois motivos. O primeiro de ordem econômica, uma
vez que esta casa é a única coisa que me sobrou da herança de
papai e que Alcebíades (2) não perdeu no jogo. O outro é de
ordem estética. Saí de Vila Isabel por causa daquele busto de
Noel Rosa que colocaram na Praça. É de lascar!
(2) Oitavo marido de Tia Zulmira.

— O que é que tem o busto?


— O que é que tem? É um busto horrível. E se não fosse
uma falta de respeito ao capital colonizador, eu diria que é um
busto mais disforme do que o de Jayne Mansfield.
Tentamos mudar de assunto, procurando novas facetas para a
entrevista, e é ainda a entrevistada quem vai em frente,
mostrando um impressionante ecletismo. Fala de sua infância,
depois conta casos da Europa, quando daqui saiu em 89, após
impressionante espinafração no Marechal Deodoro (3), que
proclamara a República sem ao menos consultá-la.
(3) Hoje bairro que explode.

Não que Tia Zulmira fosse uma ferrenha monarquista. Pelo


contrário: sempre implicou um pouco com a Imperatriz (achava
o Imperador um bom papo) e teria colaborado para o movimento
de 89, não fossem os militares da época, quase tão militares
como os de hoje.
— Hoje estou afastada da política, meu amigo, embora,
devido mais a razões sentimentais, eu pertença ao PLC. (4)
(4) Partido Lambretista Conservador.

Fizemos um rápido retrospecto dos apontamentos até ali


fornecidos. A veneranda senhora sorri, diz que assim não vamos
conseguir contar sua vida em ordem cronológica e vai
explicando outra vez, com muita paciência: Nasci no dia 29 de
fevereiro (5) de 1872. Aprendi as primeiras letras numa escola
pública de São Cristóvão, na época São Christovam e com
muitas vagas para quem quisesse aprender...
(5) Tia Zulmira é bissexta.

O resto nós fomos anotando:


Mostrou desde logo um acentuado pendor para as artes,
encantando os mestres com as anotações inteligentes que fazia à
margem da cartilha. Completou seus estudos num convento
carmelita, onde aprendeu de graça, numa interessante troca de
ensinamentos com as freiras locais: enquanto estas lhe
ministravam lições de matérias constantes do curso ginasial, Tia
Zulmira lhes ministrava lições de liturgia. Mocinha, partiu para
a Europa, para aproveitar uma bolsa de estudos, ganha num
concurso de pernas; então foi morar em Paris, dividindo o seu
tempo entre o "Follies Bergère" e a "Sorbonne". Nesta
Universidade, concedeu em ser mestra de Literatura Francesa,
proporcionando a glória a um dos seus mais diletos discípulos, o
qual ela chamava carinhosamente de Andrezinho.
Tia Zulmira suspende por momentos o relato de sua vida
para lembrar a figura de Andrezinho, que vocês conhecem
melhor pelo nome completo: André Gide.
Tia Zulmira prossegue explicando que, aos vinte e poucos
anos, casou-se pela primeira vez, unindo-se pelos laços
matrimoniais a François Aumert — o Cruel. O casamento
terminou tragicamente, tendo Aumert morrido vítima de uma
explosão, quando auxiliava a esposa numa demonstração de
radioatividade aplicada, que a mesma fazia para Mme. Curie.
A hoje encanecida senhora lamentou profundamente a
inépcia do marido para lidar com tubos de ensaio e, desgostosa,
mudou-se para Londres, aproveitando a deixa para disputar a
primeira travessia a nado do Canal da Mancha. Houve quem
desaprovasse essa decisão, dizendo que não ficava bem a uma
jovem de boa família se meter com o Canal da Mancha. A
resposta de Tia Zulmira é até hoje lembrada.
— O Canal da Mancha não pode manchar minha reputação.
Na minha terra, sim, tem um canal que mancha muito mais. (6)
(6) Mangue.

E ela acabou atravessando a Mancha mesmo, chegando em


terceiro,, devido à forte cãibra que a atacou nos últimos 2 mil
metros. Fez um jacaré na arrebentação da última onda e chegou
a Londres pára morar numa pensão em Lambeth, onde viveu
quase pobre, apenas com os sustentos de uma canção que fez em
homenagem ao bairro. (7)
(7) The Lambeth Walk. (Existe uma versão de Haroldo Barbosa.)

Na pensão, onde morava nossa entrevistada, vivia no quarto


ao lado o então obscuro cientista Darwin, o com ela manteve um
rápido flerte. Proust (8), cronista mundano francês que esteve em
Londres na época, chegou a anunciar um casamento provável
entre Tia Zulmira e Darwin, mas os dois acabaram brigando por
causa de um macaco.
(8) Certa vez um cronista mundano, para valorizar suas próprias besteiras,
disse que Proust, antes de ser Proust, foi cronista mundano. Tia Zulmira gozou a
coisa, dizendo que Lincoln também foi lenhador e, depois dele, nenhum
outro lenhador conseguiu se eleger Presidente da República.

— Em 1913, onde estava eu? — pergunta Tia Zulmira a si


mesma, olhando os longes com olhar vago.
Lembra-se que houve qualquer coisa importante em 1913 e,
de repente, se recorda. Em 13, atendendo a um convite de
Paderewski, passou uma temporada em Varsóvia, dando
concertos de piano a quatro mãos com o futuroso músico, que
deve a ela os ensinamentos de teoria musical.
Quando o primeiro conflito mundial estourou, ela estava em
Berlim e teria ficado retida na capital alemã,, não fosse a
dedicação de um coleguinha (9), que lhe arranjou um passaporte
falso para atravessar a fronteira suíça. Durante a I Grande
Guerra, a irrequieta senhora serviu aos aliados no Serviço de
Contra-Espionagem, tornando-se a grande rival de Mata-Hari,
mulher que não suportava Zulmira e — muito da fofoqueira —
tentou indispor a distinta com diversos governos europeus.
Zulmira foi obrigada a casar-se com um diplomata neozelandês
de nome Marah Andolas — para deixar o Velho Mundo.
(9) Einstein.

É interessante assinalar que este casamento, motivado por


interesse, acabou por se transformar em uma união feliz. O casal
viveu dias esplendorosos em São Petersburgo, infelizmente
interrompidos por questões políticas. A revolução russa de 17
acabou por envolver o bom Andolas. O marido de Tia Zulmira
foi fuzilado pelos comunistas de Lenine, somente porque
conservava o hábito fidalgo de usar monóculo, sendo
confundido com a burguesia reacionária quê a revolução
combatia. Morto Andolas,, Tia Zulmira deixou a Rússia
completamente viúva, após uma cena histórica com Stalin e
Trotsky, quando, dirigindo-se aos dois, exclamou patética:
— Vocês dois são tão calhordas que vão acabar inimigos.
Dito isto, Zulmira virou as costas e partiu, levando consigo
apenas a roupa do corpo e o monóculo do falecido. Chegou ao
Brasil pobre, mas digna, e a primeira coisa que fez foi empenhar
o monóculo na Caixa Econômica, sendo o objeto, mais tarde,
arrematado em leilão pelo pai do hoje Embaixador Décio de
Moura, que o ofertou ao filho, no dia em que este passou no
concurso para o Itamarati.
Zulmira estaria na miséria se uma herança não viesse ter às
suas mãos. O falecimento de seu bondoso pai — Aristarco Ponte
Preta (o Audaz) —, ocorrido em 1920, proporcionou-lhe a posse
do casarão da Boca do Mato, onde vive até hoje. Ali estabeleceu
ela o seu habitat, disposta a não mais voltar ao Velho Mundo,
plano que fracassaria dez anos depois.
Tendo arrebentado um cano da Capela Sistina, houve
infiltração de água numa das paredes e — em nome da Arte —
Zulmira embarcou novamente para a Europa, a fim de retocar a
pintura da dita. Como é do conhecimento geral, ali não é per-
mitida a entrada de mulheres, mas a sábia senhora, disfarçada
em monge e com um pincel por debaixo da batina, conseguiu
penetrar no templo e refazer a obra de Miguel Ângelo,
aproveitando o ensejo para aperfeiçoar o mestre. Este episódio,
tão importante para a História das Artes, não chegou a ser
mencionado por Van Loon, no seu substancioso volume, porque,
inclusive, só está sendo revelado agora, nesta entrevista.
Nessa sua segunda passagem pela Europa, Tia Zulmira ainda
era uma coroa bem razoável e conheceu um sobrinho do Tzar
Nicolau, nobre que a revolução russa obrigou a emigrar para
Paris e que, para viver, tocava balalaika num botequim de má
fama. Os dois se apaixonaram e foram viver no Caribe, onde
casaram pelo facilitário. O sobrinho do Tzar, porém, não era
dado ao trabalho e Tia Zulmira foi obrigada a deixá-lo, não sem
antes explicar que não nascera para botar gato no foguete de
ninguém.
Voltou para o Rio, fez algumas reformas no casarão da Boca
do Mato e vive ali tranqüilamente, com seus quase 90 anos,
prenhe de experiência e transbordante de saber. Vive
modestamente, com o lucro dos pastéis que ela mesma faz e
manda por um de seus afilhados vender na estação do Méier. No
seu exílio voluntário, está tranqüila, recebendo suas visitinhas,
ora cientistas nucleares da Rússia, ora Ibrahim Sued, que ela
considera um dos maiores escritores da época. (10)
(10) Aqui não ficamos bem certos se Tia Zulmira estava querendo gozar
Ibrahim, ou se estava querendo gozar a época.

A velha dama pára um instante de tecer o seu crochê,


oferece-nos um "Fidel Castro" (11) com gelo. É uma excelente
senhora esta, que tem a cabeça branca e o olhar vivo e
penetrante das pessoas geniais.
(11) Cuba Libre sem Coca-Cola.
CHATEAÇÕES SUTIS

NO dia em que forem publicadas as "Zulmirianas", isto é, as


obras completas de Tia Zulmira, assim como tudo o que já se
escreveu sobre ela, é mister levar em consideração as opiniões
emitidas pela sábia senhora, durante a hora seguinte ao seu
breakfast lá no casarão da Boca do Mato, ocasião em que — a
nosso ver — a sábia macróbia está mais brilhante.
Ainda ontem, após receber a comunicação de que haveria
"mãe-benta" ao café, atração à qual nunca nos furtamos,
estivemos presentes ao breakfast, comparecendo também o
insuportável Mirinho, cujo chegava naquele momento (eram
oito da matina) de uma festinha íntima na casa de Mariazinha
Umas & Outras, hostess contumaz do Primo, que costuma
organizar semanalmente concorridas reuniões de "Maconha
Dançante".
Após a frugal refeição, a experiente senhora citou algumas
coisas que a estão incomodando, ultimamente. Depois fez ver
que existem certas coisas que chateiam a gente de maneira tão
sutil que, raramente, a gente dá pelo motivo da chateação. Não
são coisas como dor de dente, Oscar Bloch ou calo inflamado,
que estas são coisas às quais a gente se dá à chateação,
consciente de sua incômoda existência.
São coisas sutis. E a ermitã da Boca do Mato passou a citar:
"Cheiro de farmácia", "mulher gorda em garupa de lambreta",
"mãe batendo em filho pequeno e que ainda não tem
compreensão bastante para saber por que está apanhando",
"damas de profusas rotundidades posteriores vestidas de calças
compridas" etc. etc.
— Tais coisas chateiam a gente, mas a gente só percebe que
elas estão chateando, muito depois de já estar chateada —
explicou a velha.
E, como pedíssemos a Tia Zulmira para continuar citando,
ela recusou o cálice de "Correinha" que Mirinho oferecia,
pensou um pouquinho e lascou mais estas, algumas das quais ela
ouviu de outras pessoas entendidas no assunto:
"Sujeito vestido de árabe no mesmo elevador em que a gente
viaja", "declaração de autoridade carioca dizendo que o serviço
de águas vai ficar normalizado", "velha de batom", "tango",
“rádio do vizinho", "caminhão-pipa parado em frente à casa de
ministro", "televisão ligada na sala", "políticos dos dois lados",,
"conversa de estrangeiros, quando a gente não manja a língua
deles" etc. etc.
E, antes de se levantar da mesa, Tia Zulmira pensou um
pouquinho e concluiu:
— Outra coisa que me chateia muito é triciclo na contramão.
HISTÓRIA DO PASSARINHO

O QUE vocês passarão a ler é um lindo conto escrito por Tia


Zulmira, nossa veneranda parenta e conselheira. Trata-se de obra
para a literatura infantil, à qual a sábia e experiente senhora vem
se dedicando agora, após o convite para participar de um
concurso de histórias infantis promovido por um programa de
televisão. Cremos que não é necessário acrescentar que a boa
senhora tirou o primeiro lugar. Mas, passemos ao conto:
"Era uma vez uma mocinha muito bonita, que morava num
lugar chamado Copacabana. Era uma mocinha muito prendada e
com muito jeito para as coisas. Estudiosa e obediente,
freqüentava sempre o programa de César de Alencar, ia ao
“Bob’s” e adorava 'cuba-libre'. Lia muito e gostava, principal-
mente, da 'Revista do Rádio' e da 'Luta Democrática'.
Todos elogiavam a beleza da mocinha. Ela tinha cara bonita,
olhos bonitos, pele bonita, corpo bonito, pernas bonitas, figura
bonita. Era toda bonita. Apesar disso, não era feliz, a mocinha.
Ela sonhava com uma coisa, desde pequena — queria entrar
para o teatro. Sua mãe sempre dizia que não valia a pena, que
ela podia ser feliz de outra maneira, mas não adiantava. O sonho
da mocinha bonita era entrar para o teatro. Só pensava nisso e
colecionava fotografias de Virgínia Lane, Sofia Loren, Nélia
Paula e Marilyn Monroe.
Um dia, a mocinha estava muito triste, porque não conseguia
ver realizado o seu ideal, quando um passarinho chegou perto
dela e perguntou:
— Por que é que você está triste, mocinha? Você é tão
bonita. Não devia ser triste.
— Eu estou triste porque quero entrar para o teatro e não
consigo — respondeu a mocinha.
O passarinho riu muito e disse que,, se fosse só por isso, não
precisava ficar triste. Ele havia de dar um jeito. E de fato, no dia
seguinte, passou voando pela janela do quarto da mocinha e
deixou cair um bilhetinho que trazia no bico. Era um bilhetinho
que dizia: 'Fila 4, Poltrona 16.'
A mocinha foi e num instante conheceu o empresário do
teatro que, ao vê-la, se entusiasmou com sua beleza. Foi logo
contratada e, já nos primeiros ensaios, todos elogiavam seu
desembaraço. Ela ensaiou muito mas não contou nada pra mãe
dela. Somente na noite de estréia é que, antes de sair, chegou
perto da mãe e contou tudo. A mãe ficou triste ao ver a filha
partir para o estrelato, mas ela estava tão feliz que não a quis
contrariar.
E foi bom porque a sua filha fez sucesso. Foi muito
ovacionada; todo mundo aplaudiu. Ela voltou para casa
contentíssima e, quando ia metendo a chave no portão, ouviu
uma voz dizer:
— Meus parabéns. Você é um sucesso.
Aí ela olhou pro lado espantada e viu o passarinho que a
ajudara, pousado numa grade. Ela notou que o passarinho
dissera aquilo em tom amargo e quis saber:
— Passarinho, você agora é que está triste. Por quê?
Foi aí que o passarinho explicou que não era passarinho não.
Era um príncipe encantado, que uma fada má transformara em
passarinho.
— Oh, coitadinho! — exclamou a mocinha que acabara de
estrear com tanto sucesso. — O que é que eu posso fazer por
você?
O passarinho então contou o resto do encantamento. A fada
má fizera aquilo com ele só de maldade. Para ele voltar a ser
príncipe outra vez, era preciso que uma mocinha bonita e feliz o
levasse para sua casa e o colocasse debaixo do travesseiro» No
dia seguinte o encanto findava.
— Mas eu sou uma mocinha feliz. E foi você mesmo,
passarinho, que disse que eu era bonita. Você e todo mundo.
E dizendo isso, apanhou o passarinho e entrou em casa com
ele. Ajeitou-o bem, debaixo do travesseiro e, cansada que estava
das emoções do dia, adormeceu.
No outro dia de manhã aconteceu tal e qual o passarinho
dissera. Quando a mocinha acordou havia um lindo rapaz
deitado a seu lado. Era o príncipe.
Esta, pelo menos, foi a história que a mocinha contou pra
mãe dela, quando a velha a encontrou de manhã, dormindo com
um fuzileiro naval. Que, aliás, só não casou com a mocinha,
porque já tinha um compromisso em Botafogo."
A MOÇA QUE FOI A PARIS

ERA uma vez uma mocinha. Não era dessas mocinhas de


óculos não. Nem dessas que têm espinhas e as espinhas custam
mais a sair do rosto e por isso elas vão sendo sempre as
primeiras no colégio. Sim, porque — estranha coincidência —
mocinha que tira primeiro na turma é sempre espinhenta.
Mas, voltando à mocinha desta história. Ela não tinha
espinhas e nem usava óculos, também não precisava desses
porta-seios que têm espuma de borracha para impressionar o
eleitorado. Ela era muito bem feitinha de corpo. Tão bem
feitinha que, um dia, sem que a família dela soubesse nem nada,
saiu premiada pra rainha de já nem me lembro mais o que, com
voto comprado.
Ela explicou depois que quem comprou os votos dela foi um
"amiguinho".
A mocinha usava saia balonê, sabia dançar rock e falava um
pouco de inglês (aprendido com oficiais de um porta-aviões que
esteve aqui), mas o forte dela era ser society. Ia nesses lugares
bacanos, com deputados e gente bem, por causa de que ela era
um bocado querida dessa gente.
Por isso, foi uma surpresa para a família dela quando ela
resolveu deixar essas futilidades pra lá e se dedicar à arte. Quem
é de artimanha nunca se dá bem com arte — a gente costuma
ouvir dizer. Mas com a mocinha, esta de que estamos falando,
parecia ser diferente.
Ela chegou em casa e comunicou:
— Vou a Paris, aprender violino.
A família botou as mãos na cabeça (isto é, o pai botou a mão
na cabeça, a mãe botou a mão na cabeça, o irmão mais velho —
que já manjava as coisas — botou a mão na cabeça e diversas
tias botaram a mão nas respectivas cabeças). Mas não adiantou
nada, por causa de que ela manteve a coisa.
Quando quiseram saber onde ela ia arranjar dinheiro para a
viagem e o curso de violino, ela explicou que ninguém precisava
se preocupar; o tal "amiguinho" — que adorava violino — ia
financiar tudo.
Então ela foi a Paris. Por estranha coincidência o amiguinho
foi também, dias depois, e ela voltou feliz da vida. Não
aprendeu a tocar bulhufas
mas, em compensação, o filhinho que ela trouxe de lá,
chama-se Violino. Numa homenagem.
À BEIRA-MAR

POR que será que tem gente que vive se metendo com o que
os outros estão fazendo? Pode haver coisa mais ingênua do que
um menininho brincando com areia, na beira da praia? Não
pode, né? Pois estávamos nós deitados a doirar a pele para
endoidar mulher, sob o sol de Copacabana, em decúbito ventral
(não o sol, mas nós) a ler "Maravilhas da Biologia", do
coleguinha cientista Benedict Knox Ston, quando um camarada
se meteu com uma criança,, que brincava com a areia.
Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho
já estava com um balde desses de matéria plástica cheio de
areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que é
que o menininho ia fazer com aquela areia.
O menininho fungou, o que é muito natural, pois todo
menininho que vai na praia funga, e explicou pro cara que ia
jogar a areia num casal que estava numa barraca lá adiante. E
apontou para a barraca.
Nós olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao
menininho. Lá, na barraca distante, a gente só conseguia ver
dois pares de pernas ao sol. O resto estava escondido pela
sombra, por trás da barraca. Eram dois pares, dizíamos, um de
pernas femininas, o que se notava pela graça da linha, e outro
masculino, o que se notava pela abundante vegetação capilar, se
nos permitem o termo.
— Eu vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles
estão se abraçando e se beijando-se muito — explicou o
menininho, dando outra fungada.
O intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral.
— Não faça isso, meu filho — disse ele (e depois viemos a
saber que o menino era seu vizinho de apartamento). Passou a
mão pela cabeça do garotinho e prosseguiu: — Deixe o casal em
paz. Você ainda é pequeno e não entende dessas coisas, mas é
muito feio ir jogar areia em cima dos outros.
O menininho olhou pro cara muito espantado e ainda
insistiu:
— Deixa eu jogar neles.
O camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi
mais incisivo:
— Não senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai
jogar areia não.
O menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse:
— Tá certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor.
— Por minha causa? — estranhou o chato. — Mas que casal
é aquele?
— O homem eu não sei — respondeu o menininho. — Mas
a mulher é a sua.
SOMOS BONS DE BANHO

SE fosse reportagem dessas revistas que ficam por aí


batalhando pela exaltação do medíocre, ainda não levaríamos a
sério. Mas trata-se de mensário norte-americano, dos mais
metidos a besta. Nele é que está a reportagem sobre os costumes
da higiene entre os povos, reportagem que chega a sur-
preendentes (lá pra eles, americanos) conclusões. Segundo o que
juntaram as estatísticas, entre os povos ditos civilizados, apenas
os sul-americanos — e assim mesmo não é em todos os países
desta América — possuem um balanço de mais de 50 por cento
da população que se dá ao hábito do banho diário.
Vejam vocês que bonitinho: o Brasil figura na coisa. A
gente, isto é, metade da gente se dá ao luxo do banho diário,
num país onde as cidades principais sofrem de permanente falta
dágua. Não é lindo?
Você aí, toma banho todo dia? Sentiu bem! A senhora lá,
também se dá ao ensaboado de 24 em 24? Perfeito, madame.
Aliás, basta olhar para ver que a senhora tá limpinha.
Mas há os que se fazem de "estrangeiros", isto é, falcatruam
o banho diário, prejudicando a estatística a favor do Brasil. O
mensário não diz se a gente também é campeão mundial de
banho, mas faz referências muito elogiosas ao povo brasileiro.
Logo se não tivesse essa turma aí que faz que esqueceu de tomar
banho, ou certas pessoas preguiçosas, que tomam o chamado de
assento, que — diga-se a bem da verdade — não é banho dos
mais pródigos em remover impurezas; se não existisse essa
turma — repetimos — e mais outros que escondem sob o olor
forte das essências a verdade odorífica do suor, o Brasil bem que
poderia guardar mais este honroso título universal: Campeão
Mundial de Banho.
E isto, é preciso que se frise mais uma vez, é estatística séria,
feita pelos norte-americanos, que, depois de chiclete e dólares,
têm adoração pelas estatísticas. Agora, uma outra coisa é preciso
fazer sentir: não nos iludamos a respeito de tão decantada
higiene. Afinal, higiene é como mulher... quanto mais, melhor.
E tem muita gente pela aí que não faz jus ao título.
Nosso querido Primo Altamirando, por exemplo, arranjou
uma namorada que só vai ao banheiro para outros afazeres.
Banho com ela é em suaves prestações mensais. Mas o nefando
parente é sutil. Noutro dia chegou lá na casa dela com um
embrulhinho e disse: — "Trouxe um presente para você usar no
pescoço. Adivinhe o que é." E quando a coitada, na voz de ser
para usar no pescoço, disse que devia ser um colar, Mirinho deu
uma gargalhada e falou: "Errou, sua boba. É um sabonete."
A ARMA DO CRIME

FOI em São Paulo. Aqui o jornal diz que Isaura Specca Pinto
registrou a queixa na Polícia, depois de ter recebido socorro
médico. Fora atacada pelo seu amásio (em notícia de fato
policial o distinto é sempre amásio e nunca amante. É um truque
lá dos coleguinhas). O amásio é o vigia de obra Herculano de
Sousa Martins.
Para que vocês não fiquem imaginando que a gente inventa
essas coisas, vão aqui outros dados importantes. O casal vivia
(vai no passado porque a reconciliação vai ser difícil) na Rua
"L", número 4-B, em Vila Medeiros, jurisdição da 19.a De-
legacia.
Agora o caso. Foi assim: Herculano tinha lá suas razões para
ofender Isaura com palavras de baixo calão (xingamento de
nome de mãe, provavelmente) e Isaura achava que não ficava
bem o amásio estar espinafrando assim seus antepassados. Vai
daí — palavrão vai, palavrão vem — pegou a arma que estava
escondida debaixo da cama e agrediu Herculano. Este, mais
robusto pouquinha coisa, desarmou-a e passou a usar a arma
contra ela, e com tal apetite que Isaura foi parar no Hospital e
Herculano deu no pé.
Mas, nas suas declarações em Distrito, onde foi aberto
inquérito já relatado e enviado ao Fórum, Isaura foi mais
explícita. Aqui está como saiu no jornal:
"Isaura acusa o seu amásio Herculano de tê-la agredido a
golpes de urinol, no interior de sua residência. Esclareceu que
quem empunhava o vaso noturno (bonito nome para uma valsa:
vaso noturno), a princípio, era ela. Mas Herculano, mais forte,
desarmou-a (diria melhor se dissesse 'desurinolizou-a') e passou
a desferir seguidos golpes, ferindo-a bastante."
Vejam vocês que coisa prosaica. E ainda há quem diga que
amantes vivem melhor que cônjuges. A senhora aí, madame, já
imaginou se isto acontece com a senhora? Já imaginou depois,
no Fórum, o interrogatório, com o Juiz empunhando a arma do
crime? Que coisa prosaica, não é, dona?
Como disse? Com a senhora não haveria perigo? Por quê?
Debaixo da cama não"tem vaso no-
turno? Ah tem? Já compreendemos, madame. Em cima da
cama é que não costuma ter ninguém.
Antes assim, dona. Melhor sozinha com o vaso noturno do
que mal acompanhada.
O MILAGRE

NAQUELA pequena cidade as romarias começaram quando


correu o boato do milagre. É sempre assim. Começa com um
simples boato, mas logo o povo — sofredor, coitadinho, e
pronto a acreditar em algo capaz de minorar sua perene
chateação — passa a torcer para que o boato se transforme numa
realidade, para poder fazer do milagre a sua esperança.
Dizia-se que ali vivera um vigário muito piedoso, homem
bom, tranqüilo, amigo da gente simples, que fora em vida um
misto de sacerdote, conselheiro, médico, financiador dos
necessitados e até advogado dos pobres, nas suas eternas
questões com os poderosos. Fora, enfim, um sacerdote na
expressão do termo: fizera de sua vida um apostolado.
Um dia o vigário morreu. Ficou a saudade morando com a
gente do lugar. E era em sinal de reconhecimento que
conservavam o quarto onde ele vivera, tal e qual o deixara. Era
um quartinho modesto, atrás da venda. Um catre (porque em
histórias assim a cama do personagem chama-se catre), uma
cadeira, um armário tosco, alguns livros. O quarto do vigário
ficou sendo uma espécie de monumento à sua memória, já .que a
Prefeitura local não tinha verba para erguer sua estátua.
E foi quando um dia... ou melhor, uma noite, deu-se o
milagre. No quarto dos fundos da venda, no quarto que fora do
padre, na mesma hora em que o padre costumava acender uma
vela para ler seu breviário, apareceu uma vela acesa.
— Milagre!!! — quiseram todos.
E milagre ficou sendo, porque uma senhora que tinha o filho
doente, logo se ajoelhou do lado de fora do quarto, junto à
janela, e pediu pela criança. Ao chegar em casa, depois do
pedido — conta-se — a senhora encontrou o filho brincando,
fagueiro.
— Milagre!!! — repetiram todos. E o grito de "Milagre!!!"
reboou por sobre montes e rios, vales e florestas, indo soar no
ouvido de outras gentes, de outros povoados. E logo começaram
as romarias.
Vinha gente de longe pedir! Chegava povo de tudo quanto é
canto e ficava ali plantado, junto à janela, aguardando a luz da
vela. Outros padres, coronéis, até deputados, para oficializar o
milagre. E quando eram mais ou menos seis da tarde, hora em
que o bondoso sacerdote costumava acender sua vela... a vela se
acendia e começavam as orações. Ricos e pobres, doentes e
saudáveis, homens e mulheres, civis e militares caíam de
joelhos, pedindo.
Com o passar do tempo a coisa arrefeceu. Muitos foram os
casos de doenças curadas, de heranças conseguidas, de triunfos
os mais diversos. Mas, como tudo passa, depois de alguns anos
passaram também as romarias. Foi diminuindo a fama do mi-
lagre e ficou, apertas, mais folclore na lembrança do povo.
O lugarejo não mudou nada. Continua igualzinho como era,
e ainda existe, atrás da venda, o quarto que fora do padre.
Passamos outro dia por lá. Entramos na venda e pedimos ao
português, seu dono, que vive há muitos anos atrás do balcão, a
roubar no peso, que nos servisse uma cerveja. O português,
então, berrou para um pretinho, que arrumava latas de goiabada
numa prateleira:
— Ó Milagre, sirva uma cerveja ao freguês! Achamos o
nome engraçado. Qual o padrinho
que pusera o nome de Milagre naquele afilhado? E o
português explicou que não, que o nome do pretinho era
Sebastião. Milagre era apelido.
— E por quê? — perguntamos.
— Porque era ele quem acendia a vela, no quarto do
padre.
MULHER PARA O COTIDIANO

QUEM pede conselho sobre mulher está — positivamente —


pedindo um conselho inútil. Isto não foi descoberta nossa,
embora tivéssemos chegado à mesma conclusão na segunda
namorada (sempre fomos muito precoce). A esta conclusão, em
não sendo a pessoa completamente desligada da tomada, é fácil
de se chegar, como é fácil descobrir com o tempo que existem
mulheres que amam sem o menor sentimento de fidelidade,
mulheres que são fiéis sem amar e, para complicar julgamentos,
nenhuma mulher é igual com dois homens diferentes, nem ne-
nhum homem ama igual duas mulheres.
Assim, não sabemos por que tem gente que pede conselho
sobre mulher. Mas o f ato é que tem gente que pede. Um distinto
escreve para a coluna "Da Correspondência", mantida pelo
brilhante colunista Stanislaw Ponte Preta, e não somente
brilhante como também cheio de outras virtudes, pessoa que, por
coincidência, é a mesma que ora escreve estas mal traçadas; um
distinto escreve — repetimos — para pedir inteiro anonimato
(embora coloque nome e endereço na carta, a título de
confiança) e pedir também uma opinião sobre a mulher que ama,
que é infiel e que — diz ele —, apesar disso, tem por ele muito
amor.
Noutro dia, um outro contou a mesma história e na mesma
base do "o que devo de fazer". Explicamos a ele que mulher que
ama só trai por se sentir diminuída, por incerteza ou por não
confiar em si mesma diante do seu amor. Logo, a traidora é mui-
to mais coitada do que o traído. Claro, existe muita sutileza
envolvendo a questão e é preciso que o cavalheiro não seja burro
para poder morar no assunto.
Difícil dar conselho. Difícil e inútil. Em todo caso, como o
leitor pediu, não custa nada ajudar, contando esta historinha:
Ontem, quando descemos à garagem do prédio para tomar o
carro, mal entramos no mesmo, notamos que o desgraçado não
pegava. Por mais que apertássemos o arranque, este virava,
virava e o carro neca. O porteiro — um português com velei-
dades de mecânico — ajudou no que pôde. Levantamos o capo,
puxamos fios, limpamos velas... e nada. Afinal, depois de quase
duas horas de luta, o carro — sem maiores explicações —
pegou. Nem por isto ficamos menos aborrecido, pois o enguiço
nos fez perder diversos compromissos. Foi então que, para nos
consolar, o português cocou a cabeça e sentenciou: "É, doutor.
Carro é pra quem tem dois." Pois está aí, amigo. Use esta
filosofia com mulher. Quando uma enguiçar, você vai na outra.
NÓS EM GARRAFA

VÍNHAMOS ladeira abaixo, comendo umas goiabinhas,


quando surgiu na nossa frente um cavalheiro bem-posto, a sorrir,
de braços abertos. Como somos bom fisionomista e reparamos
logo que o distinto não era pessoa da nossa intimidade, julgamos
tratar-se de um batedor de carteira.
Felizmente não era. Era um industrial. Deu o cartãozinho e
passou a explicar por que cercara este valoroso escriba. Primeiro
explicou que a indústria dele era embriagante e, antes que
tivéssemos qualquer atitude de espanto, esclareceu que fabricava
bebidas alcoólicas.
De surpresa em surpresa disse que precisava de nós:
— Para beber? — perguntamos, já armando uma desculpa
em defesa do fígado.
Felizmente não era. O bem-posto cavalheiro, falante como
um animador de auditório, afirmou que se quiséssemos beber só
era um prazer oferecer a bebida, mas que vinha com outra
intenção. Sua firma vai lançar lia praça um conhaque nacional (e
ante a nossa cara de enjôo botou vírgula na frase e jurou que não
é cachaça vagabunda fingindo de conhaque não. É conhaque no
duro).
Mas... a firma vai lançar um conhaque e o departamento de
promoções... vejam vocês, até pra vender essas coisas eles têm
departamento de promoções ... o tal departamento lembrou que
seria ótimo colocar o nome de Stanislaw Ponte Preta na
beberagem.
Ora que coisa! Tanto rodeio para no fim vir propor que
fôssemos padrinho de conhaque nacional. Claro que não.
— Mas nós pagamos — insistiu o industrial.
— Pagamos não. Pagariam. E não fariam mais do que a
obrigação — dissemos nós, já a nos imaginar nas prateleiras dos
botecos desta Buracap, devidamente engarrafado.
Agora vejam se fica bonito. Uma personalidade marcante
como a nossa virar motivo de discussão em casa. A mulher
dizendo para o marido, que chegou meio sobre o alcantilado
para o jantar: "Chegou atrasado, não é, cachorrão? E ainda
chega com bafo de Stanislaw Ponte Preta."
Se isto é proposta que se faça ao guia espiritual de milhares
de leitores universais! Como é que íamos ser respeitados depois
de concordar com a proposta? Estamos aqui a imaginar um pai a
dizer para a filha: "Você é a vergonha da família, está viciada
em Stanislaw Ponte Preta."
Não, de jeito nenhum. Que horror teríamos ao saber que um
pilantra qualquer poderia chegar no balcão de um frege e berrar
para o taberneiro, em noite de frio: "Me dá um Stanislaw aí pra
me esquentar."
A ARTE DE PRESENTEAR

DISTINTA dama que se assina Helena Brazil, e que aos


depois acrescenta "conselheira de compras", escreve à flor dos
Ponte Pretas para explicar que desconta pra Instituto através de
uma profissão bossa nova. Dona Helena é, conforme está escrito
depois do nome, "conselheira de compras". Diz ela, em sua
carta:
"Poucos são os homens de negócios que realmente sabem
escolher artigos femininos para presentes (ela generaliza na base
do 'homens de negócios' , porque fica chato botar a expressão
'coronel de madame'). A verdade é que somente três entre cada
dez executivos têm o bom-gosto necessário para determinar
cores e modelos que farão as presenteadas felizes com as
lembranças recebidas."
De fato, nós somos um executivo legal, mas tem uns
coronéis pela aí que são de amargar para dar presente a mulher.
Noutro dia, membra de nossa frota estava se queixando porque
um dos seus mais constantes galanteadores já enviou para sua
residência quatro jacas de manga e fosse ela comer a
"lembrancinha", estaria até agora de cama.
Mas sigamos com a explicação de Dona Helena Brazil —
conselheira de compras. Diz ela: "Para aqueles que não têm
tempo, nem geito de enfronhar-se na moda (aqui abrimos um
parêntesis para explicar a vocês que o jeito de Dona Helena é
com "G", embora os jeitosos,, de um modo geral, tenham jeito
com "J") há um método infalível de acertar sempre na escolha.
Quer saber? Muito simples : selecione uma boa casa de modas e
peça o nosso conselho desinteressado."
Quer dizer, vocês moraram na jogada, não? Aqueles que não
têm o "geito" para presentear mulher receberão conselhos
desinteressados de Dona Helena Brazil, que é cobra no assunto.
Coronéis curibocas, que esbanjam dinheiro sem impressionar
aquelas que desejam impressionar, poderão, mesmo, recorrer à
missivista. Um camarada desses broncos, que olham mulher e
pensam que a coisa vai simplesmente laçando a boa com um
colar de pérolas, muitas vezes se estrepa.
Seu Lucindo, nordestino que no Nordeste é Coronel de
araque, da política, e aqui no Rio é coronel mesmo, de
mulher, certa vez ouviu uma dama dizer que adorava sabonete
francês. Entrou numa perfumaria e mandou embrulhar vinte cai-
xotes de sabonete francês para presente. A moça está se
ensaboando até hoje, sem tempo para sair com seu Lucindo.
Consultando Dona Helena Brazil, estas mancadas estão por
fora. Os sem-"geito" não enviarão aparelhos de barba para suas
amadas, não vão ferir a suscetibilidade das moças com jacas de
manga, nem fazer como fez um senador do PSD, que mandou
um cavalo puro-sangue para uma show-girl que mora em
apartamento de quarto e sala.
Consultem, portanto, Dona Helena. Nós é que não
precisamos, Dona Helena. A carta que a senhora enviou,
queremos crer, é para os outros. Sim, porque quando queremos
presentear mulher nós nos enrolamos em papel celofane e
mandamos os Correios despachar-nos com frete a pagar para a
casa da felizarda.
UM HOMEM E SEU COMPLEXO

ERA um homem. Era um desses homens que não resistem; à


pergunta: "Você é um homem ou um rato?" Dizemos que era
dos que não resistem porque, sem dúvida, quando inquirido, não
saberia o que responder. E isto é mais doloroso porque sua
dúvida não era a de que não pudesse ser um homem, e sim* a de
que talvez não chegasse a ser um rato.
Sim, companheiros, o homem era um poço de complexos,
figurinha capaz de dar dor de cabeça em aspirina, tipo que se
considerava tão inferior que tinha vergonha de assinar o próprio
nome. E para isto também tinha uma explicação viável: cha-
mava-se Eugênio e era incapaz — na sua infinita modéstia — de
considerar o próprio "Eu", quanto mais ser simplesmente um
"Gênio".
Vai daí, Eugênio ficou sendo Z. Não era Zé, com "Z" e "E",
mais um acento (ou assento? Botamos os dois, Osvaldo, para
que você escolha o certo). Eugênio assinava só a letra "Z" na
certeza de que esta é que lhe servia, por ser a última do alfabeto.
Tantos eram os complexos de "Z" que,, lá um dia, alguém
lhe deu dinheiro para consultar um psicanalista. Morem no
detalhe de alguém lhe dar dinheiro. Tudo porque "Z" não andava
com cruzeiros no bolso, convencido de que, se assim o fizesse,
desvalorizaria ainda mais a nossa moeda.
Mas — como ficou dito — pagaram a consulta e "Z" foi ao
psicanalista. O médico mandou que ele deitasse naquele diva
regulamentar e o paciente deu a primeira prova de seu estado de
espírito ao responder que se consultaria de pé, pois não se sentia
com direito de ficar deitado, enquanto o outro trabalhava.
O psicanalista achou aquilo muito estranho, percebeu que
estava diante de um caso de complexo de inferioridade incurável
e deu umas pílulas. Mas deu sem nenhuma esperança porque
"Z" era tão sincero em seus complexos que chegou a confessar
que só se sentia bem numa lata de lixo, ocasião em que pagou a
consulta e se atirou pela lixeira do edifício, com um sorriso de
superioridade.
Mas mesmo o lixo tem seu valor,, embora a Limpeza Pública
não saiba. "Z" foi piorando de tal forma que acabou achando que
nem como lixo prestava. E — um dia — deu-se o trágico e
amargo fim: seu complexo chegou ao máximo. Ia sair de casa e,
para colocar a gravata, foi até o espelho.
Qual não foi a sua surpresa? Chegou diante do espelho...
olhou... e não viu mais ninguém.
O SEGURO DO VELHO

VOCÊS que nos lêem sabem que em sociedade tudo se sabe.


Não adianta o Medeiros Neto usar batina de padre, o Ibrahim
Sued usar caneta-tinteiro, o Augusto Schmidt escrever livro de
poesia, o Tenório sorrir com cara de bonzinho, nada disso
adianta, porque em sociedade tudo se sabe.
Por exemplo, aqui está a notícia do que ocorreu em São
Paulo com o cidadão de origem italiana Cario Magliani cujo,
coitado, pensou que pudesse falcatruar impunemente e imaginou
um golpe dos mais legais. Cario Magliani tinha um tio que
também era Cario Magliani, mas que estava pela bola 7. Homem
já velho, o Cario tio vinha sofrendo de diversos males, inclusive
cardíacos.
Que fez Cario Magliani sobrinho, que era forte como um
touro? Pois fez um seguro de vida de alguns milhões, colocando
como beneficiário — em caso de morte — o tio em pandarecos.
Isto — pensarão vocês — não tem nada demais. Mas pensarão
vocês que são apressados. Cario Magliani pensou de outro jeito.
Mancomunado — segundo se suspeita — com um
empregado da companhia de seguros, aproveitou o fato de seu
nome e o nome do tio serem iguais, para rasurar o contrato de
seguro, invertendo a coisa. Isto é, ele, que é forte e saudável,
passou a ser beneficiário do tio, que estava com o pé na cova, só
aguardando um empurrão amigo.
Foi um golpe fácil. Bastou mudar as datas de nascimento
porque, no mais, ambos os Carlos eram naturais de São Paulo,
eram residentes no mesmo local, tinham a mesma profissão,
enfim, estava tudo facilitado. Mas (aí é que está o chato), em
sociedade tudo se sabe. Agentes da companhia de seguros
descobriram a marmelada e estão processando o rapaz, coisa que
chegou ao conhecimento do tio. E este, coitado, que era cardíaco
e castigado pelo tempo, não resistindo ao vexame do sobrinho
que criava, faleceu em dia da semana passada, em sua resi-
dência.
Aparentemente, esta história não tem nada demais.
Vigaristas há em toda parte, tentando os mais complicados
golpes. Ledo engano, companheiro, ledo
engano. Aqui a notícia diz que o velho morreu abalado com
o seguro que o sobrinho fez.
Eis portanto que, pela primeira vez na História, em vez do
seguro morrer de velho, foi o velho que morreu do seguro.
O CACHORRINHO DE DOIS CORAÇÕES

>

QUEM informa é o Departamento de Clínica Operatória e


Cirurgia Experimental: operaram cinco cachorrinhos do tipo
street dog e todos eles, numa experiência coroada de êxito,
passaram a viver com dois corações. A operação feita pelos
soviéticos, com tanta celeuma, acaba de ser feita aqui no Rio
também e quatro cachorrinhos — um deles morreu — vivem
perfeitamente com oito corações.
Perfeitamente? — há de estar Deus perguntando.
Perfeitamente, não. Um dos cachorrinhos com dois corações
fugiu do canil e trota solto pelas ruas do Rio, pulsando seus dois
corações e isto não é bom para ele. Tivemos uma doce amada de
dois corações e era de ver a angústia em que vivia, por não saber
conservar aquilo que é a coisa mais linda numa mulher: o
sentimento da fidelidade.
Aos cachorrinhos foi dado merecidamente o título de maior
amigo do Homem, justamente por causa da sua impressionante
fidelidade ao dono. Muito antes de se inventar a "alta-
fidelidade", já a marca registrada da maior fábrica de discos e
vitrolas do mundo tinha por símbolo um cachorrinho fiel, que se
mantinha firme ao lado do fonógrafo, ouvindo a voz do dono
com o deslumbramento de todos os cachorrinhos. A fidelidade
do cão é muito anterior à alta-fidelidade das vitrolas.
O mundo inteiro sabe disso. Tanto que o disco, aqui, é "A
Voz do Dono", na Inglaterra é "His Master's Voice", na França é
"La Voix de Son Maitre", na Itália é "La Você dei Patrono".
Todo mundo sabe que o cão é a fidelidade em pessoa e dá tão
comovedoramente seu coração que enternece a todos, com sua
dedicação.
Mas... e o pobre cachorrinho que fugiu do Departamento
"de Cirurgia Experimental? Como vai poder viver fiel, como
poderá viver cão como todos os cães, se carrega no peito dois
corações? Não, o cachorrinho não é como as amadas infiéis, que
muitos perdoam por serem como são. Pobre cachorrinho de dois
corações, se encontrar um dono e a ele se prender, por ser este
o seu fanal de cão... Pobre cachorrinho, porque terá um cora-
ção de sobra e há de dedicá-lo a alguém.
E, se assim for, que entregue seus dois corações
a um só homem, a um só dono, para provar ao mundo que os
cães, mesmo com um coração sobrando, são muito mais dados à
fidelidade do que as vitrolas, do que as mulheres, do que nós
todos.
Ó pobre cachorrinho de dois corações, que você não fique
indeciso entre dois postes.



SEGUROS DE AMOR

DIZ que em Londres surgiu um camarada que está


revolucionando os processos usados pelos seguradores para
defender os interesses dos segurados. Trata-se de um inglês
(porque os ingleses, ainda que possa parecer incrível, são muito
encontradiços em Londres) chamado Arthur Harrison.
Namorados e noivos londrinos, temerosos de perderem o
amor das suas amadas, estão apelando para apólices de seguro
contra romances desfeitos. Se as levianas moçoilas, que se
dizem suas, se apaixonarem por um pilantra qualquer no
Continente, ao sair da ilha para passear pelo resto da Europa, o
desprezado tem, como consolo, uma indenização de mil libras
que, trocadas em miúdos, dão mais ou menos umas 450
abóboras maduras.
Diz que Mister Harrison tem feito bom negócio e até tabelou
o seguro de amor, pagando um preço mais alto pelas noivas e
namoradas que vão sozinhas à Itália, à França e demais países
latinos porque, conforme vocês sabem, nós — latinos — não é
por estarmos nas nossas presenças não... mas nós latinos somos
fogo.
Oi ingleses fazem tal seguro, não sabemos se com o
conhecimento da noiva ou namorada e, se assim for, é um caso
mais lamentável ainda. Nossas amadas têm todo o direito de nos
trair, mais por vingança, é claro, ao saberem que nós estamos
transacionando com o seu sentimento de fidelidade. Mas os
londrinos são londrinos, entendem? Ou não entendem, o que é
melhor para vocês.
Quanto vale o amor de sua amada, você aí, companheiro?
Vale os 450 contos que paga o Mister Harrison? Como? O amor
de sua amada não tem preço? Muito bem respondido, irmão. Vá
sentar. Levou um 10 em amorologia. É isto mesmo, não há
apólice que pague o amor de nossa amada, nem vai ser um
monte de dinheiro que secará nossas lágrimas, ao ver partir com
outro a nossa "segurada".
Diz muito mal dos noivos e namorados londrinos o êxito de
Mister Harrison. Nós aqui — e acreditamos que vocês também,
não é rapaziada? — se fizéssemos um seguro desses, mesmo por
brincadeira, haveríamos de receber o dinheiro desconsolados.
Nós somos assim. Quando Mister Harrison nos trouxesse o
dinheiro, compraríamos um lindo presente e mandaríamos para
ela com gosto amargo de "nunca mais" na boca.
Mas, cada um tem sua maneira de pensar. Perguntamos a
Primo Altamirando:
— Se você recebesse o seguro pela infidelidade de sua
amada, comprava um presente para ela?
— Não — respondeu o abominável parente — comprava era
uma lambreta para mim.
DOAÇÕES CORPORAIS

— EM minha opinião, cada pessoa devia ter dois corações!


— e com tal declaração, desceu no aeroporto de Londres o
Professor Wladimir Demikhov, cirurgião soviético que se
prepara para enxertar em uma paciente de 20 anos de idade a
perna de uma mulher morta.
O Professor é bárbaro, nesse negócio de enxertar na base do
toma lá, dá cá. Foi ele que fez o primeiro cachorrinho com dois
corações, foi ele que inventou o primeiro cachorrinho com duas
cabeças e é ele quem admite, para um futuro próximo, pessoas
com dois corações, para que sejam melhor distribuídos a função
e o cansativo trabalho do chamado propulsor.
Está claro que o Professor Wladimir não pensa em fazer
monstros e quer colocar órgãos duplos para casos especiais. Sua
ciência evolui para um lado verdadeiramente consagrador, qual
seja a de uma pessoa mutilada herdar de uma pessoa recém
falecida o pedaço que lhe falta, seja perna, braço, olho ou nariz.
Isto, no entanto, não impediu que o abominável Primo
Altamirando tenha escrito ao distinto sábio soviético, pedindo
que lhe arranje uma mulher com quatro coxas.
Mas, voltemos ao Professor. Além de achar que cada pessoa
deve ter dois corações, Wladimir Demikhov assegura que tal
coisa não é impossível:
— Sei que isto se afiguraria improvável, mas as viagens à
Lua também pareciam improváveis, não faz muito tempo —
afirmou ele.
E diz que a humanidade ganhará muito, no dia em que uma
pessoa que tenha orelhas muito bem formadinhas puder deixar,
para um amigo de orelhas feias, seu par de pavilhões
auriculares. E que beleza não será alguém de perna sadia, ao
morrer, deixar de herança para um amigo aleijado a perna que
lhe falta. E os olhos dos que vêem para os cegos de nascença,
um braço para quem só tem um, cabelo para os carecas, mãos
para os manetas, dedos para os dedetas e assim sucessivamente,
cada um legando aquilo que já não lhe poderia ter valia para o
amigo tão necessitado.
Que o sonho do sábio russo se transforme logo em realidade,
porque se for o caso de sermos convocados por Deus antes de
Ibrahim Sued, queremos deixar nossa cabeça para ele usar no
tempo de vida que lhe sobrar, para uma completa reabilitação.
.
OS BRINDES

PRIMEIRO foi aquela loja de vender discos lá de Porto


Alegre que, na ânsia de passar adiante os LPs encalhados,
anunciou o oferecimento de um quilo de feijão para o
comprador de cada disco LP candidato eterno à prateleira.
Assim, o povo, que andava doido atrás da semente de faseolácea
(é feijão numa apresentação mais puxada para o científico...
queiram perdoar), não se incomodou de levar pra casa discos de
Pedro Raimundo, Mário Mascarenhas, Dilu Melo etc. etc,
contanto que lhe entregassem, em mão, o seu saquinho de feijão.
Agora é um contínuo de repartição que, desesperançado do
abono e na certeza de que é difícil arranjar outro emprego nos
dias que correm, fez da carestia um bico e está ganhando seu
dinheirinho. O distinto levanta de madrugada, vai pra fila da
carne e aguarda a sua vez. Como é dos primeiros na fila,
consegue um quilo razoavelmente medido, quilo de carne este
que leva para a repartição e rifa, na base de 10 pratas o
bilhetinho de 001 a 100. No fim da tarde, com os colegas todos
torcendo em volta, faz o sorteio. O premiado leva um quilo de
carne pra casa por 10 cruzeiros — preço ao alcance de todas as
bolsas — enquanto o contínuo-açougueiro-banqueiro fica com
uma abóbora de mil, pelo expediente.
Bem diz Tia Zulmira — prenhe de saber e transbordante de
experiência — "quem se vira, se inspira". É um fato. A loja de
discos aproveitou a falta de feijão para se livrar de discos
encalhados, o contínuo aproveita a "carnestia" (como tão bem
apelidou Primo Altamirando a falta de carne), para ganhar um
pouco mais do que o salário ralo.
E a coisa vai pegando, como Deus é servido. Clubes da ZN
estão organizando "biriba" aos sábados, para os sócios. Os
prêmios lá estão, para quem quiser ver. Ao vencedor, três quilos
de filé mignon, ao segundo colocado, três quilos de feijão ao ter-
ceiro, um quilo de feijão e outro de alcatra.
A ZS, por enquanto, vai se mantendo a fingir uma dignidade
guaia, organizando no Country Club e demais clubes grã-finos
seus concursos de "buraco", "biriba" ou "bridge", ofertando aos
vencedores inúteis medalhas de ouro, prata ou bronze, que não
servem para alimentar mais do que a vaidade.
Mas isto é por enquanto. Chegará o momento em que o
alimento do estômago falará mais alto do que o alimento da
vaidade, e a grã-finada larga pra lá essa besteira de medalha e
adere aos prêmios já em uso na Zona Norte da cidade
(residência da saudade — como quer o grande poeta urbano
Orestes Barbosa). E nós veremos no Country um pai industrial
torcendo para entrar um coringa no jogo da filha, para que ela
faça canastra e ganhe um florido buquê de couve-flor.
Sim, irmãos, humânitas precisa comer, como diria o
coleguinha Brás Cubas: ao vencedor, as batatas.
O VELHO PROCESSO

DIZ que na Itália está uma fofoca danada. Depois de tantos


anos, volta a Igreja a ser contra a ciência, achando que o
progresso desta é uma ofensa ao Altíssimo. É uma briga velha,
que fez muito sábio da antigüidade virar churrasco na mão do
padre. Agora é por causa do cientista italiano que conseguiu
fecundar um óvulo humano em tubo de ensaios.
A "Pretapress", num de seus despachos desta semana, já
noticiou o fato. O órgão do Vaticano "Osservatore delia
Domenica" espinafrou o cientista Dianeli Petrucci, que foi quem
conseguiu isolar o óvulo e fazer nele uma inseminação
artificial, acusando o distinto de trair as Leis que o Criador
colocou na natureza em geral e no homem em particular, E com
grande sucesso — acrescentamos nós, que nada temos com a
briga e estamos aqui somente para relatar. Se entramos na coisa
foi sem querer, como Pilatos no "Credo" ou Al Neto na im-
prensa.
Dianeli Petrucci, logo que foram publicadas as espinafrações
ao seu trabalho de laboratório, onde, inclusive, dizia-se que o
embrião humano pode ter alma desde o momento de sua
concepção, concedeu entrevista aos jornalistas que foram ouvir
sua opinião a respeito das restrições, todos doidos para uma
fofoca. O cientista decepcionou os repórteres, ao explicar que
não tomaria conhecimento de nada e continuaria o seu trabalho.
Agora, você aí, sente o drama, vá! Já tinham inventado a tal
de inseminação artificial, que era um desperdício bárbaro, e eis
que neste momento um sábio trabalha com afinco para firmar a
geração de chocadeira, digna substituição da atual geração
Mustafá, que tem pai e mãe mas ninguém diz. Parecem todos de
chocadeira também.
O que nos consolou nisto tudo foi a opinião do abominável
Primo Altamirando. O nefando parente é um chato, mas tem um
certo equilíbrio nas suas observações. Quando lhe mostramos o
noticiário sobre o que está se passando na Itália, ele leu com ar
desinteressado e depois perguntou:
— Que é que tem isso?
— Que é que tem? — repetimos. — Ora, Mirinho. A
humanidade é preguiçosa. Se esse italiano descobre um método
de fabricar crianças em laboratório, vai ser chato.
Altamirando deu uma gargalhada e nos acalmou com esta
oportuna observação: — Não seja trouxa, rapaz. Por mais eficaz
que seja o método novo de fazer criança, a turma jamais
abandonará o processo antigo.
A VACA

NÃO foi muito longe não, foi na Avenida das Bandeiras —


que é ali beirando a variante. Personagem : Uma vaca! A dita
personagem vinha caminhando pela beira da Avenida das
Bandeiras, com aquela dignidade que só as vacas têm, quando
— súbito — resolveu atravessar para o outro lado. E vocês
sabem como vaca é. Cismou e atravessou mesmo.
Vinha um caminhão disparado e não teve tempo de frear. Aí
foi aquele acidente horrível. O caminhão pegou a vaca pelo
meio e encaçapou-a legal, matando ali mesmo. O noticiário não
explica se a coitada ficou em decúbito dorsal ou decúbito
ventral, mas que morreu, lá isso morreu.
O caminhão deu no pé e nem prestou atenção; caminhão
mata gente e não pára, vai travar por causa de vaca! Aconteceu,
porém, o que ninguém esperava. Um — com desculpa da má
palavra — pedestre que a tudo assistira, em vez de ficar na
moita e resolver o seu problema sozinho, saiu gritando pela aí:
— Tem uma vaca morta na estrada! Tem uma vaca morta na
estrada!
No grito, a turma ouviu e só pensou em chã-de-dentro,
alcatra, mocotó, filé. Alguns, mais requintados, na voz de vaca
morta, passaram a entrever dobradinhas à moda do Porto, iscas
de fígado à lisboeta, rabada com polenta, filé à Osvaldo Aranha
(ou mesmo filé ao outro... Chateaubriand). Enfim, foi aquela
ignorância.
O povo muniu-se de facas, machadinhas, canivetes e até
tesouras de unhas para retalhar a falecida, na ânsia de melhorar o
ragu. Os mais fortes conseguiram o lado bom da vaca, onde
mora o mignon. Os mais fracos, ainda que intimidados, pegaram
o miolo (miolo de vaca é como o de cronista menor, não tem
muito proveito), outros franzinos levaram os rins, e assim por
diante.
Dizem técnicos em talho que do boi só não se aproveita o
suspiro, porque até a sua vergonha serve para adubar canteiros.
Pois com a vaca atropelada foi pior.
Depois que acabou o pega, os que não tiveram vez chegaram
de mansinho e repartiram os ossos, porque uma sopa razoável,
hoje em dia", está custando mais caro do que prato feito
reforçado em botequim de operário.
Dizem que o Sindicato dos Urubus vai protestar junto ao Dr.
J. Karne e impetrar mandado de segurança.
O DEDO

FOI em São Paulo num ônibus. Havia um dedo; aliás, como


é natural em coletivos, havia diversos dedos. Em coletivos,
comumente, acontece mão-boba, quanto mais dedo.
Não. Não era um dedo-bobo, nem pode ser comparado com
os demais dedos que viajavam no Santa Clara—Paissandu, da
Empresa Vila Paulista Ltda., porque estes estavam em seus
respectivos lugares, nas mãos de seus donos, enquanto que o
dedo citado estava sozinho, no chão do ônibus, apontando sabe
lá Deus para onde.
Dirão vocês: então era um dedo-bobo. Mas nós, mais
ponderados pouquinha coisa, explicamos que não era bobo. Era
um dedo de responsabilidade, pois portava aliança.
Deu-se que o Senhor Leonel, motorista do veículo, já achara
chato quando um passageiro, que talvez fosse Primo
Altamirando (Mirinho foi a São Paulo visitar um traficante de
cocaína, seu amigo), ao descer do ônibus dissera: "ó meu...
deixaram um dedo aqui pra você." Achara chato porque a piada
não tinha graça nenhuma.
Mas, pouco depois, um outro passageiro ia saindo, olhou
para baixo e viu o dedo. Estava no mesmo lugar que o
passageiro anterior indicara, apontando com outro dedo, lá dele.
O passageiro, mais minucioso em suas pesquisas, em vez de
avisar ao motorista, abaixou-se e pegou o dedo.
Era um dedo casado com Dona Paula Yukiawone vai fazer
onze anos na próxima segunda-feira. Como, minha senhora?
Como é que chegaram a esta conclusão? Porque o dedo tinha
aliança, madame. Tinha aliança e, na aliança, estava escrito
"Paula Yukiawone— 25-1-1949". Logo, é elementar, my dear
Watson!
Agora, o que se faz com um dedo transviado (e aqui não vai
nenhuma insinuação de que o marido de Dona Paula seja
lambretista), ninguém sabe. Carregaram-no para a Delegacia de
Homicídios, porque do dedo pra lá não se conhece o dono. A
Polícia está na expectativa de que o dono direito do dedo ou
Dona Paula, que casou com o dedo e o resto que normalmente
acompanha um dedo, venha reclamá-lo.
E, enquanto espera, não sabe o que fazer ou como agir. E é
profundamente incômodo para a Polícia ficar olhando aquele
dedo que não aponta para lugar nenhum. Mas o jeito é esperar,
porque não é provável que seguindo para o lugar que o dedo
aponta a Polícia encontre o dono.
A MENINA QUE SUAVA EM CORES

TÍNHAMOS escrito um bem documentado artigo sobre a


menina Vera Lúcia, a tal mineirinha que sua colorido. 0 trabalho
era muito bem documentado e de grande importância para o
estudo do fenômeno que ora preocupa a imprensa carioca e
deixa um pouco off side a ciência de um modo geral. Isto
porque, sendo um artigo de Stanislaw, já era obra de valor, valor
este que aumentava, ao levar-se em conta que somos um dos que
mais fizeram mulher suar pela aí.
É lógico que suor colorido para nós também é bossa nova,
ainda que não sejamos supersticiosos a ponto de achar que Vera
Lúcia é milagrosa. Isto não. Que nos recordemos assim, a
grosso modo. só Primo Altamirando é que, certa vez, começou a
suar colorido. Aliás, não era bem colorido. Ele começou a suar
numa cor só: o preto — mas Tia Zulmira, com um pouco de
água e um pedaço de sabão, acabou com o milagre.
Nosso artigo sobre o suor colorido de Vera Lúcia chamava a
atenção dos leitores para a inveja que vinha causando em alguns
coleguinhas jornalistas, como o Timbaúba — por exemplo — do
"Diário Carioca", que escreveu uma porção de bobagens sobre o
que chamou de "literatura química", dizendo que Vera Lúcia
suava por causa da reação de certos ácidos etc. etc. E isto é pura
inveja do coleguinha porque não existe ninguém mais ácido do
que o Dr. José Maria Alkmim e, que saibamos, nunca o ex-
Ministro da Fazenda suou em cores.
Dizíamos também que Vera Lúcia poderia ajudar na
recuperação do cruzeiro, valorizando a moeda no exterior, ao ser
exportada com seu suor em tecnicolor, para Hollywood, onde
faria um Metro-musical daqueles bem chatos, com Debbie
Reynolds, um irmão do Mário Lanza e a orquestra do Ray
Coniff.
Mas nosso artigo não foi publicado, e mesmo assim surgiram
logo notícias pessimistas, atribuindo aos pais de Vera Lúcia uma
chantagem. Veio um médico para as manchetes dizendo que eles
é que davam determinada droga pra moça beber e suar azul de
manhã, verde ao entardecer e roxo de noite, com variações
coloridas nas horas suplementares, insinuando que os pais de
Vera Lúcia são cafiolas de suor.
Se assim é, já não está mais aqui quem falou. Mesmo sendo
um cidadão useiro e vezeiro em fazer mulher suar, Stanislaw se
abstém de opinar. Felizmente nosso artigo não foi publicado,
pois ia suscitar polêmicas. Se o suor de Vera Lúcia é pré-
fabricado, já não existe mais a mística em torno de sua
transpiração.
E é pena, porque esta seria a segunda Vera Lúcia a fazer
milagre, num curto espaço de tempo. A outra é a Vera Lúcia da
Rádio Nacional, que conseguiu se eleger "Melhor Cantora de
1959", no suado concurso da "Revista do Rádio".
DO INQUIRIR OS QUERELANTES

NÃO, isso também já é enveredar pelo perigoso terreno da


galhofa — se é que vocês me permitem usar esta expressão de
Tia Zulmira. Esse negócio de se arranjar uma comissão de
inquérito para apurar o que estão fazendo as comissões de
inquérito é muito chato. Desculpem, mas vamos mais uma vez
usar a sábia parenta. A velha e experiente Tia Zulmira, quando
soube que se cogitou, de brincadeirinha, é claro, de uma
comissão de inquérito para as comissões de inquérito da Câmara
sentenciou:
— Há um dado momento em que se deve confiar, pra não
piorar!
Ora, a velha é fogo e sabe o que diz. Ensinou bailado a
Nijinsky, relatividade a Einstein, psicanálise a Freud,
automobilismo a Juan Fangio, foi técnica de basquete dos
"Globe Trotters", deu aula de tourada a Dominguín, explicou a
Charlie Chaplin como se faz cinema e, na rebarba, ainda
temperou a vacina para o Dr. Jonas Salk. Logo, não está aí para
blablablá. Se ela diz que, num dado momento, mexer a panela é
pior que deixar no fogo lento, é porque esta é a melhor maneira
de se proceder.
Vivida como é, a excelente macróbia esteve a conversar
conosco sobre esse círculo vicioso que, às vezes, causa a
desconfiança excessiva. Lembrou então o que aconteceu com os
pais de Primo Altamirando, menino que cedo foi viver com a tia,
porque o casal foi à garra.
Deu-se — contou-nos ela — que Mirinho quando garoto já
prometia que um dia seria isto que é hoje, razão pela qual seus
pais resolveram arranjar uma babá de toda confiança para vigiar
o agora abominável parente. Contrataram uma babá inglesa (até
hoje ninguém sabe explicar por que certos casais acham que
babá, pra ser de confiança, tem que ser inglesa)... mas —
dizíamos — contrataram uma babá inglesa e estavam muito
satisfeitos, até o dia em que acharam que era preciso ver se a
babá era mesmo de confiança. Então — porque era um antigo
conhecido da família — chamaram o velho Crisanto (já
falecido) para vigiar a babá.
Crisanto ia se desincumbindo satisfatoriamente do mister e
nada teria acontecido se Altamiro, pai de Altamirando, não
tivesse a idéia de conversar com a mulher a respeito da missão
de Crisanto.
Quem lhes podia garantir que o distinto estava mesmo
vigiando a babá que vigiava Mirinho?
É... ninguém podia, pois ninguém vigiava o homem. E foi
por isso que — usando da velha teoria de quem quer vai, quem
não quer manda — Altamiro, pai de Altamirando, passou a sair
para vigiar Crisanto, que vigiava a babá, que vigiava o menino.
Tudo ia muito bem, até o dia em que a mãe da criança
resolveu espiar pra ver se o marido estava mesmo controlando o
velho Crisanto. E qual não foi sua surpresa, ao descobrir
Crisanto ninando Mirinho e Altamiro ninando a babá!
É... Tia Zulmira tem razão: num dado momento, deve-se
confiar, para não piorar!
O DIA DA SINCERIDADE

QUEM não tem o que fazer deu agora para inventar "dia".
Um vereador — cujo nome esquecemos — propôs a
oficialização do "Dia do Acidentado", explicando que, nesse dia,
todos iriam aos hospitais visitar os doentes passíveis de visitas e
perturbar os doentes que não podem receber visitas. A idéia, que
ao vereador deve ter parecido luminosa, não foi sequer levada a
sério pelos seus coleguinhas edis. Felizmente.
Já nossa amiguinha Graciette Santana quer o "Dia da
Progenitora", como se já não bastasse o "Dia da Genitora", onde
as progenitoras já estão incluídas porque a condição primordial
para a mulher ser progenitora é ser genitora anteriormente, deta-
lhe que — queremos crer — escapou à Dona Graciette.
Lamentável.
Outro que lançou "dia": Antônio Maria. Prenhe de boas
intenções, o Arcebispo do Sacha's quer o "Dia da
Reconciliação", conforme ele mesmo expôs em bem traçadas
linhas. Será o dia em que cavalheiros mais ou menos em crise de
amizade com outros tantos cavalheiros farão as pazes em lugar
público; dia em que ferrenhos desafetos se abraçarão para
legalizar o fim da briga etc. etc. E como é bom demais para
abençoar os outros, o próprio inventor do "Dia da
Reconciliação" irá para o interior na data dos reencontros, para
não ter que fazer as pazes com ninguém. Ele não confia nos
inimigos, infelizmente.
Já a flor dos Ponte Pretas, que também se sentia meio jogado
fora, resolveu criar um diazinho, para ficar atualizado e não ser
passado para trás. Por isso mesmo imaginou o "Dia da
Sinceridade", dia que — temos certeza — contaria com a adesão
incondicional de todos, mesmo com a adesão do vereador, da
Irmã Graciette da Emissora "Jesus Está Chamando" e do
Antônio Maria.
No "Dia da Sinceridade" aconteceriam coisas
surpreendentes. Você ligava a televisão e veria uma garota-
propaganda com um sabonete na mão, dizendo que o dito não
faz espuma, tem um perfume muito do rebarbativo e o preço é
extorsivo. Depois outros anúncios sinceros, seguidos de
entrevistas sinceras, ocasião em que os arnaldos nogueiras do
vídeo anunciariam assim seus convidados: está aqui ao nosso
lado um dos maiores ficeleiros do PSD, que vai explicar a
negociata que fez ontem no Ministério da Fazenda.
Os jornais também seriam sinceros, principalmente os da
imprensa sadia, cujos teriam um dia de reabilitação, pelo menos.
Jogadores de futebol fariam declarações importantes, explicando
que detestam o clube a que pertencem, que farão tudo pela
vitória porque o bicho é melhor quando vencem, mas que o
adversário tem um time melhor e, por isso mesmo, vão tacar o
pé no inimigo para intimidá-lo. E acrescentarão: a chave é essa,
o técnico que se dane, pois quem vence jogo é jogador e não
técnico.
Revistas especializadas diriam o que acham de Emilinha,
contariam como fazem reportagem com Cauby; cronistas
mundanos falariam de suas listas de "dez mais" com completa
isenção de ânimo; candidatos a eleições colocariam na rua faixas
com dizeres que espelhassem seus sentimentos cívicos e nos
petits comitês, os que vivem nos riversides da vida, trocariam
idéias entre si e sobre si, sem qualquer futuro ressentimento.
Nesse tão saudável "Dia da Sinceridade", por nós imaginado,
Stanislaw passaria despercebido e, para culminar a
comemoração, haveria discurso do Presidente na "Voz do
Brasil".
Credo!
A VOLTA DO DIA DA SINCERIDADE

VOCÊS queiram perdoar, sim? Queiram perdoar, mas vamos


continuar imaginando coisas sobre o "Dia da Sinceridade", cujo
bolamos em momento dos mais inspirados, escudados que
estávamos na certeza de que dias como o "Dia das
Progenitoras", "Dia da Reconciliação", "Dia do Papai" e outros
de some-nos não tinham a menor importância do ponto de vista
cívico, e, sim, do ponto de vista comercial. Com aquela
disposição de que sempre nos munimos, quando se trata de
auxiliar o próximo a ter idéias mais felizes, bolamos o "Dia da
Sinceridade", que não tem o mínimo cunho comercial e —
muito pelo contrário — ajuda os leitores que aderirem a burilar
o caráter, elemento da personalidade de cada um que — segundo
Tia Zulmira — está para a consciência do indivíduo assim como
a gomalina está para a cabeleira do Al Neto.
O "Dia da Sinceridade" lavará a alma de muita gente, mesmo
essa gente inibida que passa o dia mentindo para conservar os
honorários, tais como garotas-propaganda, locutores de rádio,
ministros de Estado, vendedores ambulantes e cronistas munda-
nos. Isto para somente citarmos classes mais ou menos definidas
dentro do panorama da insinceridade nacional e — por que não?
— internacional.
No "Dia da Sinceridade", talvez para evitar futuros
aborrecimentos, não seria conveniente visitar parentes, mas seria
de boa monta entrar na Câmara dos Deputados e conversar um
pouco com o deputado em quem votamos. Seria de bom alvitre
também ligar o rádio para a Rádio Mundial e ouvir as pregações
do Irmão Alziro Zarur.
Somos de opinião que um dia assim viria descomplexar (ou
será extracomplexar? Verifique aí, Osvaldo) diversas classes
trabalhadoras, como, por exemplo, a classe dos que vendem
calçados. Isto é um exemplo, conforme vocês podem notar,
trazido assim a esmo, só para melhor esclarecer a massa ignara.
Os vendedores de sapatos que, conforme tão bem assinalou o
poeta Vinícius de Moraes, parecem Madalenas arrependidas
pedindo perdão pelos sapatos, já que se ajoelham na frente do
freguês para experimentá-los (não os fregueses, mas os sapatos),
vivem na insinceridade. No entanto, vitoriosa a idéia do "Dia da
Sinceridade", mesmo em sua postura costumeira, e talvez por
causa dela, diriam para a dama elegante que insiste em comprar
o sapato de couro de camelo:
— Madame, não vai nessa. Esse camelo nasceu cavalo. O
modelo é uma fábrica de calos e o sapato entorta mais que boca
de cantor de tango.
A senhora compradora não se espantaria, pois era o dia
supracitado, e agradeceria com um sorriso, não sem antes botar
na mão do vendedor uma nota de duzentas pratas, aconselhando:
— Vá a um dentista, nego. Daqui de cima é que se tem uma
idéia panorâmica de suas cáries.
O vendedor faria uma reverência, já de pé, e antes que a
freguesa fosse embora, perguntaria risonho:
— A senhora não quer examinar a nossa coleção de
ferraduras?
Grande dia, companheiros, o "Dia da Sinceridade".
DIA DO PAPAI

A JOVEM senhora, realmente muito bonita, estava na boca


de uns e outros. A Candinha já morara em seu assunto. Madame,
de fato, tinha sido educada no ambiente sadio do Vogue, fora
mais ou menos modelo de casa de modas e tinha até feito sua
experiência no chamado teatro rebolado.
Depois conheceu o otário, aliás, o marido, e casara. Tivera
um filhinho mais ou menos louro, embora o acima citado fosse
mais ou menos moreno. Na época, Primo Altamirando — muito
do mau caráter — chegou a comentar:
— Tava lá Mane Sinhô. (1)
(1) Tava lá Mane Sinhô. — Trecho da canção "Uma Casa de Caboclo",
que vem logo depois daquele pedaço em que o cantor diz que numa casa de
caboclo um é pouco, dois é bom, três é demais. O terceiro, no verso, era
Mane Sinhô.
O menino cresceu até ficar de bom tamanho, a distinta até
que andava mais pra calma do que pra assanhada, e o murmúrio
foi diminuindo até parar. O marido não tomava conhecimento,
mesmo porque, conforme diz o ditado: "os maridos e os Diários
Associados são os últimos a saber".
Veio, então, o "Dia do Papai". Chamaram o garoto, deram
um embrulho a ele (quem'deu foi a vovó, coitada, sempre tão
amiga de datas), e explicaram :
— Isto é um presente, porque hoje é o "Dia do Papai". Você
pega esse presente e guarda. Logo mais você entrega ao seu pai.
O garoto, que adorava ouvir conversa, fez que sim com a
cabeça e disse que tava legal, que depois entregava o presente ao
Papai. A avó ainda deu um beijinho nele antes de sair, crente
que tudo ia acontecer como ela previa.
Depois veio o fim da tarde, a mãe do garoto — a que tinha
sido até candidata a Rainha de um baile aí — chegou do
dentista, o marido dela chegou logo em seguida e aí caiu a noite.
O menininho então lembrou-se da recomendação da avó.
Tinha que pegar o embrulho do presente e entregar ao Papai. Foi
lá dentro, apanhou o embrulho no armário, botou debaixo do
braço e saiu pra rua. Entrou na casa ao lado, tocou a campainha
e, quando o vizinho apareceu, entregou-lhe o embrulho.
LIÇÃO DE NUDISMO

NASCEU o primeiro menino nudista!


Deu-se que uma dama de pouca roupa, habitante da Ilha do
Sol, ilha onde reina a popular Luz Del Fuego, conheceu, no
mesmo local, um cavalheiro, chamado Ladário Brito, que se
veste na Sem-Cal. A jovem, cujo nome é Cleide, se apaixonou-
se (vê aí onde fica melhor colocado o oblíquo, Osvaldo) pelo
Ladário e, já vai pra mais de um ano, a dupla casou.
Agora — noticiam os jornais — vem de nascer o primeiro
menino nudista. Sim, porque, mesmo depois de casados, Ladário
e Cleide continuaram firmes como sócios do Clube Naturalista
do Brasil, com sede na acima citada Ilha do Sol.
A mãe do primeiro menino nudista é quem dá entrevista à
imprensa saudável, explicando que a criança, se tivesse nascido
menina, ia se chamar Lua mas felizmente — nasceu menino e
será batizado com o nome de Sol, coitadinho. De qualquer ma-
neira, Sol é melhor do que Lua, pois tem luz própria, ainda que
não seja Del Fuego.
Dona Cleide Brito está contentíssima com o nascer do Sol e
já declarou que o seu júbilo é enorme. Tão grande que até parece
que o Sol nasceu pra todos. Ela foi muito fotografada logo após
o Nascente e os jornais abriram espaço para dar um lugar ao Sol,
razão pela qual também apareceram nas reportagens diversas
fotos do menino.
Nós — embora achando que nudismo é como brincadeira,
isto é, tem hora — não podemos deixar de cumprimentar o casal
e muito principalmente a jovem mãe que deu.à luz o Sol.
Apenas gostaríamos de corrigir um equívoco de Dona Cleide, no
que tange à sua declaração de que seu filho é o primeiro menino
nudista nascido nesta cidade.
Para não cometer um erro, andamos mesmo a consultar
entendidos no assunto, acabando por recorrer à Tia Zulmira,
como sempre fazemos em caso de dúvida. Pedimos à sábia
ermitã da Boca do Mato para nos informar se não é precipitação
de Dona Cleide reclamar para seu filho o título de primeiro
menino nudista. A experiente parenta nem pestanejou para
responder que, de fato, há aí um erro que a sócia do Clube
Naturalista cometeu, com relação a prioridades nudistas do
garoto. E acrescentou, não sem antes meter um pouco de
malícia:
— Salvo um ou outro cocoroca que já nasceu de touca, todo
menino, quando nasce, é nudista.
O HOMEM DA PASTA PRETA

SOBRAÇANDO uma enorme pasta preta o homem chegou-


se para perto da nossa mesa e esperou que levantássemos a
cabeça. Fingimos não dar pela sua presença, mas a situação foi
ficando meio velhaca e fomos obrigados a perguntar se desejava
alguma coisa. Ora se.
Bastou dar a deixa para ele explicar que era um emissário do
saber, da cultura, da ilustração. Representante dos mais famosos
editores, o homem de indisfarçável sotaque espanhol pôs-se a
oferecer livros e mais livros, tudo a preços de ocasião, com
descontos formidáveis, com facilidades de pagamento.
— O senhor precisa aproveitar el momento que es oportuno.
Las livrarias fazem um desconto especial ahora.
Para ganhar tempo, perguntamos por que as livrarias estão
fazendo desconto especial agora. Ele, muito naturalmente,
explicou:
— Junho!
Não sabemos por que Balzac é mais barato em junho e
jamais saberemos, pois o homem não é de dar tempo para
pensar. Ali estava, sobre a mesa, toda a "Comédia Humana",
mais barata à vista, com um pequeno acréscimo para as tais
suaves prestações mensais.
Ficou absolutamente bestificado quando soube que Balzac
não interessava. E o Anatole France de bolso, também não? Mas
isso era desconcertante! Um cavalheiro com a nossa cultura,
com a nossa posição social... E perguntou:
— O amigo, naturalmente, tiene su posición dentro do café-
society?
— Jogamos na defesa.
Ele achou a resposta de um fino humor. Grande espírito. E
aproveitou para sapecar Eça de Queiroz, inteiramente revisto
pelo filho do próprio. Inclusive — garantiu — com notas muito
oportunas. Explicamos que já tínhamos o Eça lá em casa. O Eça,
o Ramalho, o Camilo, o Fialho, o Antero Em matéria de
literatura portuguesa, lá em casa vamos bem.
Subiu a Península Ibérica e abriu um folheto que
demonstrava e provava que nunca, em nenhum país do mundo,
se fez,— numa só edição — um apanhado tão completo da obra
de Cervantes. Já impacientes, declaramos:
— Cervantes dá azia!
Não sabemos se azia em espanhol é diferente. O fato é que
não entendeu. Fechou o folheto e abriu outro. Este elucidava os
interessados numa coleção enciclopédica. Eram vinte volumes
que condensavam curiosidades matemáticas, as chamadas
maravilhas da natureza e outros alicerces do saber. O homem
que lesse com atenção a obra toda poderia fazer um figurão,
respondendo perguntas nos programas de televisão.
Um a um, fomos recusando poetas e prosadores, biógrafos e
historiadores, gramáticos, metafísicos, astrônomos e astrólogos.
Da fina-flor da literatura, passou a meros catálogos. O senhor
tem disco? É amante da pesca?
— Quem nos dera ter amante!
Nem sequer sorriu. Gosta de fotografias? Quer aprender a
desenhar? Deseja ser mecânico de rádio em 20 lições? A arte da
decoração. O nosso corpo. O mar que nos cerca. A vida no
subsolo. No mundo das bactérias. A culinária de todo o mundo.
Nesta última oferta apelamos para o ofendido.
Imediatamente pediu desculpas. Realmente, um homem do
nosso trato não iria cozinhar nunca. Por fim, esgotado o estoque,
sentindo que não venderia coisa nenhuma, apelou pra
ignorância. Olhou para os lados, certificou-se de que estávamos
a sós e segredou :
— Tengo aqui umas coisas mui lindas. Para leitura íntima.
E mostrou um livro com mulher nua na capa. Nem assim...
VAMOS ACABAR COM ESTA FOLGA

O NEGÓCIO aconteceu num café. Tinha uma porção de


sujeitos, sentados nesse café, tomando umas e outras. Havia
brasileiros, portugueses, franceses, argelinos, alemães, o diabo.
De repente, um alemão forte pra cachorro levantou e gritou
que não via homem pra ele ali dentro. Houve a surpresa inicial,
motivada pela provocação e logo um turco, tão forte como o
alemão, levantou-se de lá e perguntou:
— Isso é comigo?
— Pode ser com você também — respondeu o alemão.
Aí então o turco avançou para o alemão e levou uma
traulitada tão segura que caiu no chão. Vai daí o alemão repetiu
que não havia homem ali dentro pra ele. Queimou-se então um
português que era maior ainda do que o turco. Queimou-se e não
conversou. Partiu para cima do alemão e não teve outra sorte.
Levou um murro debaixo dos queixos e caiu sem sentidos.
O alemão limpou as mãos, deu mais um gole no chope e fez
ver aos presentes que o que dizia era certo. Não havia homem
para ele ali naquele café. Levantou-se então um inglês troncudo
pra cachorro e também entrou bem. E depois do inglês foi a vez
de um francês, depois um norueguês etc. etc. Até que, lá do
canto do café, levantou-se um brasileiro magrinho, cheio de
picardia para perguntar, como os outros:
— Isso é comigo?
O alemão voltou a dizer que podia ser. Então o brasileiro deu
um sorriso cheio de bossa e veio vindo gingando assim pro lado
do alemão. Parou perto, balançou o corpo e... PIMBA! O alemão
deu-lhe uma porrada na- cabeça com tanta força que quase
desmonta o brasileiro.
Como, minha senhora? Qual é o fim da história? Pois a
história termina aí, madame. Termina aí que é prós brasileiros
perderem essa mania de pisar macio e pensar que são mais
malandros do que os outros.
RAZÕES DE ORDEM TÉCNICA

A Moça viajou no ônibus em que viajava este que ora


batuca, intimorato e altivo, as teclas macias de sua Remington
semiportátil, todas recentemente azeitadas para novas
campanhas. Não somos de viajar nesses incômodos coletivos.
Stanislaw é uma vítima contumaz de táxi e não teria se rebaixa-
do a freguês da Copanorte se não estivesse de caixa baixa.
Estávamos mais por baixo do que calcinha de nylon.
Mas — dizíamos — a moça entrou e era o que se poderia
desejar em matéria de mulher de qualidade superior. Tanto era,
que houve como que um minuto de silêncio respeitoso, no
coletivo. Aliás, minuto de silêncio respeitoso, não. Seria mais
justo dizer, minuto de silêncio para que todos os coleguinhas de
viagem pensassem em besteira.
Depois — pouco a pouco — todos nos acostumaríamos à sua
presença. Naquele momento, ela ainda fazia mais sucesso que
Vicente Celestino em Barra do Piraí. Todos queriam lhe ceder o
lugar. Um velhote, mais ou menos sem dignidade, levantou-se
do banco e quis ser cavalheiro. Ela recusou com a altivez das
que têm noivo.
O velhote desistiu e sentou. Havia um bonitão no ônibus.
Como, minha senhora? Se o bonitão éramos nós? Não, senhora,
era outro. A senhora desculpe. Havia dois bonitões: nós e o
outro. Foi o outro que se levantou e disse, com voz de locutor da
Rádio Nacional (programação matinal):
— Queira sentar, senhorinha.
O senhorinha soou falso como borderô de companhia de
revistas musicais. Mas todos esperamos o êxito do bacano. Não
foi bem sucedido, porém. Ela sorriu agradecida e respondeu:
— Não se incomode.
Era difícil a gente não se incomodar com aquele monumento
ali na nossa frente, balançando no corredor do ônibus. Depois,
foi saindo gente e os que estavam em pé iam sentando. Mas,
antes, ofereciam a vez à bonitona. Ela sorria, agradecia e
continuava em pé.
Chegou o momento, porém, em que o número de lugares era
maior que o número de passageiros. Mesmo assim, ela ficou
firme, viajando de pé.
Foi aí que, com aquela timidez que é o nosso maior sucesso
com mulher, pigarreamos legal e perguntamos à distinta:
— Você não quer sentar? E ela respondeu:
— Não. E nós:
— Por quê? E ela:
— Furúnculo.
O PADRE E O BUSTO

O NOME do padre é William. É William Graham. Este


padre vem de iniciar uma campanha na Inglaterra pela
moralização dos costumes, depois de verificar, em Hyde Park,
os beijos que trocavam casais de jovens londrinos. O reverendo
Billy Graham, como é mais conhecido, depois de andar
espiando, lança a campanha e presta declarações à imprensa,
colocando, como base para a reação, esta frase que os jornais
ingleses publicaram e a imprensa mundial repetiu: "Os jovens de
hoje sabem, na ponta da língua, quem tem busto mais farto — se
Gina Lollobrigida ou Jayne Mansfield — mas desconhecem, por
outro lado, qualquer dos mandamentos da Lei de Deus."
Isto bastou para que jornais do Rio ouvissem outros tantos
padres, na esperança de colher mais protestos contra a
desmoralização dos costumes. E não demorou muito para que o
pastor Valdemar Gomes Figueiredo, da Paróquia de São João,
viesse pelas folhas informativas, ratificando a opinião de seu
colega Billy Graham, ao declarar:
— Se ele ficou chocado ao ver os beijos dos fleumáticos
ingleses, imagine só o que não lhe aconteceria se visse um baile
do High-Life, do Bola Preta ou,, então, uma segunda-feira de
carnaval no Teatro João Caetano.
Como, minha senhora? Se o pastor foi ao João Caetano?
Provavelmente não, madame. Deve estar falando de ouvir dizer,
porque tem muita gente que não foi e sabe que o baile é naquela
base. Mas nada disso importa, minha senhora. O que importa é
explicar ao pastor que tudo é uma questão de propaganda. Já
uma vez —-que foi num tempo recente — o escultor Zé Pedrosa
esclareceu, numa conferência:
— Os gregos não eram tão gregos assim!
E, de fato, não eram. O que fez os gregos mais gregos, para a
nossa picardia, foi a propaganda. O pastor da paróquia de São
João comete o mesmo engano, ao chamar os ingleses de
fleumáticos porque — e quem verificou tal fenômeno foi Tia
Zulmira, quando de recente estada em Londres — há muito
tempo que os ingleses já não são mais tão britânicos como quer
a publicidade.
Se a juventude de hoje desconhece (e acreditamos que haja
um pouco de exagero nesta afirmativa) qualquer mandamento da
Lei de Deus, é porque a propaganda da Igreja arrefeceu um
pouco, neste século. Quem não anuncia se esconde — costumam
dizer os que vivem da publicidade. E talvez tenham razão. A
publicidade impressionante que se faz dos bustos de Gina e
Jayne só pode levar ao conhecimento de todos a abundância de
bustos das distintas. Mas isto não quer dizer que todos estejam
mais interessados na sua medida do que nos mandamentos da
Lei de Deus.
Isto, pelo menos, foi o que nos explicou a veneranda Tia
Zulmira. Ela leu as declarações do padre, fez todas essas
ponderações e terminou enviando para Londres o seguinte
telegrama:
"Padre Billy Graham — Hyde Park Parish Church —
possível mocidade conhecer melhor busto Gina Lollobrigida
Jayne Mansfield (ponto) Lembrai-vos (vírgula) entretanto
(vírgula) mandamentos Lei de Deus não têm decote (ponto)"
A BATALHA DO LEBLON

FOI à noitinha, aí por volta das 20 horas, que a notícia correu


pelas esquinas do Leblon, ganhou amplitude, espalhou-se pelo
bairro e foi explodir como uma bomba na Delegacia de Polícia.
Os bichos do circo armado perto da pracinha tinham picado a
mula. Foi aí que começou a ignorância. O delegado não estava,
é claro. O comissário também, é lógico, e a coisa sobrou na mão
do prontidão.
— Chamem a Polícia — berrou o infeliz.
— Mas a Polícia somos nós — advertiu um outro guarda.
Refeito da distração, o prontidão começou a procurar seus
superiores para saber "como agir. A muito custo conseguiu
telefonar para um primo da noiva do comissário e localizar o
distinto.
— Peçam uma patrulha do Exército — recomendou o
Comissário.
Pediu-se. Mas havia outras corporações disponíveis. E
apelou-se para o Corpo de Bombeiros, para a Polícia Militar,
Radiopatrulha e — ninguém até agora sabe explicar por que —
um carro-socorro da Light.
— Talvez seja para evitar curto-circuito no leão — disse
um mulato magrela, com cara de gozador.
O elefante, segundo informações de um soldado
desconhecido, seguira rumo à praia. Elefante, ao que se
presume, não nada. Ou será que nada? O povo dava palpites e,
como sempre, do povo saiu um mais bem informado pouquinha
coisa, para dizer que na África nada sim, mas não era o caso
deste, cujo se chamava Bômbolo, e que nascera num outro circo
e nunca vira água a não ser em balde.
Já então havia uma multidão apreciando as manobras. A
praça era uma das trincheiras, o Jardim de Alá era a retaguarda
das tropas. Pela rua principal não passaria nenhum bicho que
mata gente, salvo lotações, mas estes têm licença pra matar.
Um homem de porte marcial, com muito mais estrelas do
que os outros, reclamava contra a demora do tanque. Sim, ele
requisitara um tanque-de-guerra e isto começou a parecer
ridículo a uns tantos e emocionante para outros. A preta gorda,
que mal acabara de servir o jantar dos patrões,, palpitou:
— Só onça tem umas quatro.
Mas o garoto que estava perto desmentiu, dizendo que estava
farto de ir àquele circo e nunca vira onça nenhuma. Foi quando
chegou o tanque. Não sabemos se vocês já repararam que
tanque-de-guerra no asfalto fica mais deslocado do que —
digamos — mulher nua dentro de um elevador do Ministério da
Fazenda. O povo começou a desconfiar, vendo o tanque
manobrando, que a coisa ia ser mais cômica do que trágica.
— O tigre foi pra Praia do Pinto — disse um crioulo.
— Pra Praia do Pinto vai nóis que semo teso — retrucou seu
companheiro, que usava camisa de meia e touca.
Nessa altura apareceu correndo, lá do outro lado da praça,
um soldado. Vinha acelerado e parou na frente do homem que
tinha mais estrelas do que os outros. Fez uma continência legal e
avisou que não havia elefante na praia. Imediatamente recebeu
ordens de ir pelas casas avisando para que todo o mundo
trancasse as portas por causa dos leões.
— Manda espiar primeiro se o leão já não entrou, senão é
fogo na jacutinga, trancar porta com leão dentro — gozou o
mulato.
O soldado explicou que não era preciso, porque não tinha
leão. Nem leão, nem tigre, nem onça. Apenas um "popótis".
— Hipopótamo — corrigiu o que tinha mais estrelas do que
os outros.
Então — já conhecido o inimigo — começeu o cerco ao
"popótis". Dos que estavam nas proximidades, poucos sabiam o
que era um hipopótamo. Uns diziam que era maior do que
elefante, outros diziam que era menor, mas muito mais feroz. E
nessa troca de impressões ficaram até que surgiu um outro
soldado que, vindo correndo em diagonal pela praça, bateu
continência e disse pro de mais estrelas:
— O "popótis" se rendeu-se.
— Hipopótamo — voltou a corrigir o chefe, deixando
passar a abundância de pronomes.
Soube-se que, realmente, o hipopótamo fora localizado
dentro de um jardim, numa residência grã--fina, comendo
girassóis. E logo depois apareceu na esquina o dono do circo,
puxando um bicho que não era muito maior que um cachorro
dinamarquês e que o acompanhava de passo pachorrento.
Decepção geral, inclusive dos soldados, preparados para mais
uma batalha que, como tantas outras, não houve.
— Ainda por cima o bicho come flor — disse a preta gorda.
— Come flor sim, uai! — explicou o de touca — Então tu
não sabia que "popótis" é veterinário?
O NOIVO ORGANIZADO

ACONTECEU em São Paulo. Um camarada chamado João


Augusto de Melo, ao encontrar na rua sua ex-noiva Leonor
Conceição de Paula, abotoou a distinta e perguntou onde é que
estavam os Cr$ 2192,00 que lhe devia. A ex-noiva, ainda que
inibida pela truculenta cobrança, respondeu que não devia coisa
nenhuma, muito menos 2 192 cruzeiros, que lembra preço de
paletó da "Ducal".
— Não devo coisa nenhuma — reclamou Conceição.
E João, que não estava disposto a discutir, tacou-lhe a mão
nas bochechas, bolacheando-a fartamente, até a intervenção de
outros paulistas que passavam por perto e que, mesmo não
podendo parar, resolveram entrar para desapartar. Aí veio um
guarda (lá em São Paulo tem guarda) e levou o casal de ex-
noivos para a delegacia. E então a dívida foi esclarecida. O
rapaz informou ao comissário que fora noivo de Conceição
durante três anos. Durante o noivado tivera o cuidado de tomar
nota de todos os gastos que fizera com ela ou por causa dela. No
dia em que desmancharam o noivado, dividiu o total por dois e
se sentiu com direito a ser reembolsado na metade das despesas.
E para provar que era um sujeito organizado, mostrou à
autoridade a cópia da carta que enviara a Conceição, carta esta,
que transcrevemos aqui, em seus trechos principais. Diz assim:
"Primeira vez que saímos juntos — 1 café 1,50. Cinema
Alhambra — 25,00. Cinema Dom Pedro (duas vezes) — 30,00
Condução, nas vezes que fui ver você e gastei por sua causa —
30,00. Uma vez que jantamos juntos logo que você chegou do
interior — 300,00. Duas vezes Cinema Ópera — 50,00. Duas
vezes que paguei Cinzano no bar — 20,00. Uma vez Cine
Anchieta — 25,00. Uma vez Cinema Oásis — 30,00. Uma vez
que fomos juntos à "Boite Asteca" — 700,00. Gastos com
você no Bar Áurea — 280,00. Metade da despesa de táxi (Baile
da Moóca) — 50,00. Um presente para sua mãe — 16,00.
Dinheiro que lhe dei, quando você foi ao Paraná — 100,00.
Três pratos
— 30,00. Dias dos Namorados (uma blusa) — 315,00.
Uma xícara que dei para você — 10,00. "Despesas" que fiz com
você (não especificadas) —
400,00. Total que você me devo — 2192,00. (ass): .— João
Augusto de Melo, ex-noivo."
Esta é a relação que está na cópia da carta que João cansou
de enviar a Conceição, sem que a dita se mancasse. E João (ex-
noivo, como ele mesmo se catalogou), deve ter ficado indignado
com o pouco caso de Conceição para saldar a dívida. Sim, por-
que João é um "pão-duro" desgraçado. Em três anos de namoro,
pagou Cinzano uma vez, deu de presente uma blusa, uma xícara
e três pratos. Isto sem contar o presente de 16 mangos que deu
pra mãe lá dela. Que diabo de presente teria sido esse, tão preço
de queima total para entrega das chaves?
João não diz. Não diz porque é um ex-noivo discreto,
predicado que deixa antever naquela marotíssima "Despesa"
(entre aspas) não especificada. Conceição não quis explicar ao
comissário, qual era a "despesa" não especificada. Mas está na
cara, né João? Foi quarto de hotel suspeito e você, mais "pão-
duro" do que discreto, castigou na relação. E está com toda
razão. Pois se vocês foram juntos, por que é que ela não vai
pagar também, é ou não é? Cobra mesmo João. Cobra mesmo,
ex-noivo organizado.
.
O PELADO NA ARTE PLÁSTICA

O PAPA João XXIII decidiu que serão (se já não foram)


vestidos os anjos de mármore da basílica vaticana. Os jornais
europeus — que vivem a citar Stanislaw — fazem muitos
comentários a respeito e alguns deles estranham a medida,
dando outros detalhes sobre como serão "vestidos" os anjos.
Dizem que Sua Santidade ordenou que fossem "vestidos" com
reboco.
Tia Zulmira — na sua infinita sapiência — garante-nos que
não é a primeira vez que um Papa manda vestir os nus. Em 1555
(o Brasil, portanto, era um garoto) Paulo IV mandou pintar
roupinhas no "Último Julgamento", de Miguel Ângelo, trabalho
que foi feito pelo alfaiate-pintor Ricciarelli. Em 1595, o Cardeal
Farnèse mandou "disfarçar" a estátua da Justiça (uma Justiça
nua como a verdade, é lógico) que existia (e ainda existe) no
mausoléu do Papa Paulo III. E Tia Zulmira garante que Pio IX,
mais recentemente, se contentou em adornar com folhas de
zinco os mármores "imodestos" do Vaticano.
Conta ainda a prendada senhora que, depois que puseram
folhinhas de parreira de zinco nos anjos do Palácio, em dias de
vento, as folhinhas balançavam e os anjos faziam uma
barulheira danada.
Eis, portanto, que o Papa João XXIII, na sua infinita
bondade, não foi inédito, mas um seguidor. E isto quem diz não
é aqui o bestalhão, mas a célebre Tia Zulmira.
Aliás, Stanislaw lembra que não é de hoje que existe essa
controvérsia a respeito de nus. A censura no mundo inteiro
sempre implicou com os nus. No teatro rebolado, por exemplo, o
nu é permitido desde que a mulher fique estática no palco.
Mexeu, multou! Agora, não nos perguntem por quê.
Na verdade, mulher despida não é arte... é artimanha. Pelo
menos num palco do teatro rebolado. Na moldura de uma cama
— como costuma dizer o poeta, não é arte... é artifício. E na
moldura de um quadro, mulher nua, ou mesmo homem (que nos
perdoem a citação de mau-gosto), ou ainda anjo, só deixa de ser
arte quando prevarica o artista.
A Igreja, no entanto, reconhecendo a arte e o artista, por
mais artista que seja o distinto, não
acredita em respeito ao belo. A humanidade é cheia de
truques e está sempre de olho. Quem vê anjo e pensa maldades
está muito mais pro lado da Colônia Juliano Moreira do que pro
lado do Vaticano. O Papa, no entanto, não quis saber disso. E
mandou castigar reboco em tudo que foi anjo da Basílica de São
Pedro. Fez bem, uai!
Stanislaw sempre se lembra de um grã-fino novo-rico que
comprou uma porção de quadros de mulher nua, porque ouviu
dizer que "o nu" era chique. Comprou e espalhou pelas paredes
de sua imensa sala de visitas.
Mas — certa vez — quando estávamos só nós dois ali,
tomando um penúltimo, confessou:
— Eu só comprei esses quadros porque minha mulher me
chateou e todos esses calhordas que vêm aos nossos coquetéis
vivem elogiando. Mas, para lhe dizer a verdade, desde que eles
estão pendurados na parede, eu me sinto um pouco vivendo em
pensão alegre.
Era um dos poucos granfas que era sincero. Tão sincero que
jamais se referiu aos quadros para chamá-los de "nus". Sempre
que se referia a eles, chamava-os de pelados.
“QUEREMOS VER SANGUE"

SIM, companheiros, o direito da gente se divertir é sagrado e


devia, inclusive, figurar na Constituição. É verdade que, mesmo
com garantias constitucionais, a diversão de cada um não estaria
assegurada. A Constituição prevê, mas nem sempre garante.
Veja-se por exemplo, o Título V, capítulo primeiro, artigo 145,
parágrafo único da chamada Carta Magna. Foi Tia Zulmira que
nos chamou a atenção para ele. E lá está:
"O trabalho é obrigação social e a todos é assegurado o
direito de um trabalho que possibilite existência digna."
Leram bem? Pois Tia Zulmira também leu e chegou à
conclusão de que existem centenas de pessoas
anticonstitucionais pela aí. Segundo a veneranda senhora, basta
abrir a porta de uma boite às 4 da matina que a gente vê um
montão de grã--fino badalando lá dentro; assim como basta
olhar a praia num dia de sol que a gente percebe centenas de
pessoas que, deitadas na areia de barriga pra cima, não pensam
em levantar e ir até o palácio, reclamar do Executivo o direito de
trabalhar que o tal artigo 145 da Constituição lhes garante.
A veneranda senhora estava um pouco revoltada com essa
gente, mas explicamos a ela que são todos amigos do Governo e
que ficam sem trabalhar para não prejudicar o Executivo e
obrigá-lo a ser constitucional em tudo.
Mas voltemos ao divertimento, que é coisa mais amena.
Dizíamos que, mais do que um direito, o divertimento é uma
necessidade e é essa premência em esquecer os indefectíveis
aborrecimentos de todos os dias que cria os mais estranhos
processos de distração.
Stanislaw é homem de muito saber, mas confessa que não
sabe se o divertimento varia em relação à mentalidade do
indivíduo. Se assim é, dois velhinhos que conhecemos destroem
todas as teses a esse respeito. Cidadãos pacatíssimos, desses que
não se revoltam nem assistindo o programa de televisão do Jaci
Campos, eles se divertem com... crimes.
Diariamente compram nas bancas quantos jornais
sensacionalistas estejam à venda e vão para casa ler e comentar.
É de vê-los, companheiros, sentadinhos nas poltronas da sala, a
falar sobre crimes.
Cada manchete é um prato novo: "Atirou-se para a morte a
jovem infelicitada" — e o que leu exclama: "Bacana!"
— Olha este aqui — mostra o outro, sem conter a excitação
— e lê alto: — "Lavou com sangue a honra da amásia"... Ôba!
E lá vão, de desgraça em desgraça, saboreando o noticiário:
"Achado macabro na Barra da Tijuca"; "Ingeriu lisol em forte
dose"; "Esfaqueou o vizinho por causa da cachorra"; "O tarado
de Parada de Lucas outra vez em evidência"; "A meretriz
anavalhou o marítimo"; "Furtou o cego e espancou o paralítico";
"A vedeta cortou outra vez os pulsos".
Tudo isso para eles é muito divertido. Sabem de todos os
crimes e desgraças, torcem pela captura ou evasão deste ou
daquele criminoso e têm idéias próprias sobre as ocorrências
policiais, criticando entre si a ação das delegacias. E estão de tal
forma acostumados à leitura da "Luta Democrática" que, noutro
dia, quando a netinha de um deles perguntou o que vinha a ser
formicida, o avô respondeu:
— Formicida é um preparado ótimo para matar domésticas.
NOS ALCANTILADOS DA VIDA

NESTA cidade onde o Chefe do Serviço de Engarrafamento


de Trânsito faz o possível para que todos conservem a direita, é
muito perigoso dirigir alcoolizado. Dirá aí a senhora que ainda
há pouco recebeu telefonema da costureira e mandou dizer que
tinha ido almoçar com titia, que dirigir alcoolizado em qualquer
cidade é perigoso.
De fato, a distinta tem razão. Mas, acontece que aqui, dirigir
— de qualquer maneira, com a cara cheia ou não — é perigoso;
logo, dirigir alcoolizado é mais perigoso do que nos outros
lugares. Nós temos chofer particular e não precisamos nos preo-
cupar com isso, mas — como somos guia espiritual de vocês —
não custa dar alguns conselhos.
Gomo, minha senhora? quem é o nosso chofer particular? É
um sujeito malcriado que só vendo. Chama-se Motorista de
Praça. Mas... dizíamos, dirigir com pressão de cachaça ou
similares é muito rebarbativo, razão pela qual temos que render
homenagem àqueles que, em saindo do botequim meio sobre o
baratinado, deixam seus respectivos carros onde estiverem e
tomam um táxi que, se dirigido por bêbedo, é problema da
Inspetoria e o passageiro morre sem qualquer responsabilidade.
Já vimos muito playboy sair do "Sacha's" caneado e meter
uma segunda no MG, crente que está impressionando a turba. Já
vimos também muito sujeito dito sério entrar pelo cano graças à
mesma mania. Por isso ficamos muito impressionados ontem,
quando o nosso coleguinha entornador de uísque Adolfo
Gusmão nos contou a história do grã-fino, seu amigo, que foi à
boite com o filho e, à saída, entrou no carro com o rapaz e
perguntou:
— Você não acha que nós estamos muito triscados para
dirigir?
O filho achou que não, que, se fossem devagar, não havia
perigo. O pai concordou logo, os dois entraram no carro e
saíram em frente. Não tinham corrido um quilômetro, quando o
pai disse pro filho:
— Meu filho, se você continuar correndo assim eu salto.
O filho, então, fez ver ao pai que seria uma temeridade
saltar.
— Por quê? — perguntou o gã-fino.
— Porque quem está dirigindo é o senhor — respondeu o
playboy.
MENTALIDADE DE CARBURADOR

ESTAVA a pracinha posta em sossego, com as criancinhas


brincando na grama, raros casais em colóquios, aproveitando o
bucólico (lembra nome de remédio antigo. .. duas gotas de
bucólico para sua asma) recanto. Havia um sorveteiro de um
lado e um pipoqueiro do outro, ambos vendendo regularmente
as respectivas mercadorias. No bar, que ficava em frente à praça,
um garçom servia cafés esporádicos. Era, pois, um anoitecer
tranqüilo, calmo, acalentador.
Foi nessa altura dos acontecimentos que apareceu o
lambretista de blusão de couro e óculos de aviador. Parou a
lambreta em frente ao bar, mas não parou o motor. Pelo
contrário. Acelerou violentamente, fazendo bastante barulho
para impressionar as domésticas. Depois desligou a máquina,
saltou meio sobre o gaúcho empinado e deu dois passos para
melhor admirar sua incômoda propriedade.
O sorriso que espalhou em volta, para os que ficaram
parados, com raiva, era um sorriso de superioridade muito do
Marlon Brando. Começou a andar novamente em direção ao bar,
enquanto ia tirando as luvas de couro que — só Deus sabe por
que — os lambretistas usam.
No bar deu um assovio para chamar o garçom. Era um
autêntico carburator boy, a olhar para todos com ar de desprezo
e profunda superioridade. Bebeu de um trago o conhaque
vagabundo (como os cawboys fora de moda) e voltou solene
para a calçada, onde um monte regular de garotas e debilóides
espiava a lambreta. Abriu caminho entre eles com os cotovelos e
tornou a montar.
Podia ligar a máquina e sair, mas não era ele homem capaz
de resistir à tentação de botar mais um pouquinho de banca.
Sentado na lambreta, fingiu que consertava um parafuso. Depois
calçou outra vez as luvas lentamente, como um cirurgião à beira
de uma operação importante. E aí ligou outra vez o motor e
acelerou ao máximo. Toda a pracinha sentiu estremecer o solo.
Mais uma olhada para a direita, outra para a esquerda» e saiu
como uma bólide, jogando fumaça na cara da gente.
Na esquina vinha um lotação. O lambretista tentou
manobrar, mas o lotação foi mais ligeiro, atirando-o longe. E ao
vê-lo no meio da rua, com escoriações generalizadas, todos
respiraram com alívio. É que, hoje em dia, o castigo anda de
lotação.
MENININHA VICIADA

FOI noutro dia, num convescote patrocinado por conhecido


doador de sangue desta praça (existem duas espécies de
doadores de sangue: os que têm conta no Banco do mesmo
nome e os que dão coquetel. Exemplo: Jorginho Guinle é doador
de sangue tipo B). Enfim, foi na residência de um tipo B. Nossa
televisão, graças a Deus, enguiçara mas — sabem como são os
ossos do ofício — tínhamos que assistir a um programa muito
do calhorda, só porque uma membra da nossa frota telefonara
dizendo que trabalhava nele. Nós não tínhamos nada com isso,
pois não cobramos taxa sobre os cachês das nossas protegidas.
Mas é que era estréia e a moça fez a flor dos Ponte Pretas
prometer que assistiria. Palavra empenhada, palavra cumprida
— costuma ser o nosso lema, quando não aparece uma outra
enxutinha no caminho da razão, é lógico.
Onde estávamos ? Ah... sim! Então a televisão enguiçou e
não apareceu nenhuma outra mulher. O jeito era cumprir a
palavra e assistir ao programa. Por isso, telefonamos para um
amigo que reside no mesmo prédio que nós e perguntamos se
podíamos subir (ele é dois mais acima) para usar da sua
televisão:
— Prazer imenso, amigo! — berrou ele do outro lado do fio,
numa prova cabal de que estava triscado pelo álcool.
Então subimos. Ele nos recebeu de copinho na mão e
explicou que a visita não seria apenas para ver televisão.
Imagine que ia dar um coquetel dentro de minutos. As moçoilas
em flor estavam prestes a chegar e ficariam encantadas de
encontrar ali aquela surpresa: o maior expert em mulheres, em
carne e osso (mais carne que osso).
Fizemos ver que estávamos com a barba por fazer, que a
camisa estava respingada de pasta de dente, que o intento era só
ver o programa e voltar ao tugúrio. Mas qual. Ele argumentou
que Humphrey Bogart também era displicente e nunca dormiu
sozinho.
E tanto insistiu que, depois de ver o vexame da nossa
protegida, ficamos para os salgadinhos.
— Que tipo de damas teremos aqui? — indagou Stan. —
Senhoras condescendentes, figurinhas ainda não inauguradas ou
manicuras?
— Figurinhas ainda não inauguradas — respondeu o
anfitrião.
E de fato. Pouco depois começavam a chegar moçoilas assim
— como diremos — "entreaberto botão, entrefechada rosa"
(obrigado, Joaquim Maria). Chegavam coloridas de carmim,
sorriam para fotógrafos imaginários e sentavam com aquele cui-
dado das que querem deixar aparecer a anágua.
Foi então que percebemos o quanto estão intoxicadas de
entrevistas essas mocinhas de hoje. Pois imaginem vocês que —
só para puxar conversa — perguntamos a uma delas:
— O que é que você faz, meu bem? E ela, ajeitando-se na
cadeira:
— Estudo culinária, adoro "Nuit de Noêl", a minha cor
predileta é o verde. Leio muito, minha leitura preferida é a
Sagan, vou à praia e acho Teresa Sousa Campos a mulher mais
elegante que eu já vi.
E antes mesmo que pudéssemos pronunciar uma sílaba,
perguntou:
— Quando é que vai sair?
CASO DO MARIDO DOIDO

QUANDO a mulher entrou em casa, vinda de um


cabeleireiro que não tivera tempo de atendê-la, foi para
surpreender o marido em flagrante... com a empregada. Era uma
empregada nova (no emprego e na idade), admitida dias antes
para o serviço de copeirar e nunca — está claro — de cooperar.
Assim, surpreendida em afazeres que não eram os seus, a
empregada soltou um grito. Foi ela a primeira pessoa ali naquela
sala a dar com a recém chegada (e, pior que recém chegada...
patroa) parada na porta de entrada. O grito era um misto de
espanto e terror e tão alto saiu, que o marido deu um pulo e caiu
em pé, no meio do tapete, com uma perna só. A outra perna
ficou no ar, suspensa, como que a aguardar os acontecimentos.
A cena durou uns cinco segundos, se tanto. Depois a copeira
correu lá para dentro e os dois — marido e mulher —
continuaram parados: ele ainda numa perna só, de olhos
vidrados, sem mover um músculo. Aparentemente não
respirava, sequer.
A primeira palavra que a mulher disse foi "francamente". A
segunda foi "cretino". O "francamente" era num tom entre
enojado e raivoso. E mais não disse porque o marido mexia-se,
afinal. Trocou a perna que estava no ar pela que estava no chão e
saiu pulando num pé só. Deu uma volta completa na sala e se
dirigiu para a porta do corredor, rumo ao elevador.
A mulher ainda esperou que ele voltasse, mas quando
percebeu a demora precipitou-se pelas escadas abaixo, já
prevendo o que aconteceria. Ao chegar ao portão, ele já estava lá
do outro lado da rua nuzinho, como Deus o fizera, sempre a
pular como um saci.
Enlouqueceu, de certo. Tido e havido, há mais de dez anos,
como um marido exemplar, ao ser surpreendido em flagrante
com a empregada, o choque fora demasiado grande para ele... e
enlouquecera. Claro que enlouquecera. Lá ia ele a pular, em
direção à praça. Agora gritava a plenos pulmões:
— Cauby! Cauby! Cauby!
Só doido mesmo. Ele detestava Cauby.
Em seguida mudou de grito. Passou a berrar:
— Flamengo, Flamengo, Flamengo.
A mulher sabia que ele era Vasco e pensou consigo mesma
que felizmente não havia ninguém na rua, com exceção de um
gari que até há pouco varria os buracos da calçada e agora
encostara a vassoura no muro e pusera as mãos nas cadeiras para
melhor apreciar aquele estranho rubro-negro.
A mulher tentara em vão trazê-lo de volta para casa. Ele se
desprendia de suas mãos e cada vez pulava mais alto. Somente o
estribilho é que mudara. Agora gritava:
— É o maior! É o maior! É o maior!
A mulher não sabia quem era o "maior", se Cauby ou o
Flamengo. Detalhe — de resto — sem importância, diante da
idéia de que dentro em breve chegariam outras pessoas, atraídas
pelos gritos. Tinha que levá-lo de volta urgentemente. Apelou
para o gari mas este não estava muito propenso a se meter com
doido.
— Que é que o senhor está fazendo aí parado? — perguntou
a mulher para o gari.
Nem o gari sabia o que estava fazendo na rua. Mesmo assim
— por hábito — respondeu que sua função era de lixeiro. E a
mulher, que trazia viva na mente a cena da sala, comentou:
— Este homem não deixa de ser lixo também. Graças a esta
observação, o gari recolheu-o.
Agora vinha mais calmo. Já caminhava direito e o acesso de
loucura parecia ter passado, quando, no elevador, seguro pela
mulher à direita e pelo gari à esquerda, começou a recitar
Shakespeare em francês. Embora nu, segurava uma túnica
imaginária e se dizia Marco Antônio:
— Cétait le plus noble Romain d'eux tous. Sa vie fut noble,
et les divers éléments étaient si bien mélés en lui que Ia nature
pouvait se lever, et dire à 1'univers entier: "Celui-lá était un
homme!"
Finalmente a mulher, o gari e Marco Antônio chegaram ao
seu destino. A primeira deu uma gorjeta ao segundo e carregou
o Imperador para o quarto, Imperador que já não era Marco
Antônio pois, contrariando a História Universal, fora substituído
por César, a murmurar em tom de lamento:
— Et tu Brutus! Et tu Brutus!
E a dizer estas três palavras ficou,, até a chegada dos
parentes. Todos, um por um, tentaram conversar com ele sem
nada conseguir. Depois foi chamado um psiquiatra, o único que
se fez ouvir e que, ao sair do quarto, aconselhou um mês de
repouso num sanatório para doentes nervosos.
O marido foi, calado e triste. Um mês e pouco depois estava
de volta, com a recomendação expressa dos médicos para que,
de modo nenhum, comentassem com ele o caso da empregada.
E, neste instante, deitado na cama, o marido, aparentemente
distraído, pensa nos acontecimentos dos últimos tempos. Não há
dúvida de que representara bem o seu papel de louco. Até os
médicos foram na conversa. Mas, pouco a pouco, sua atenção é
desviada para os movimentos da nova copeira que —
inocentemente — espana os móveis. Já ia chamá-la suavemente
pelo nome quando se lembrou que a mulher saíra para ir ao
cabeleireiro e bem podia voltar antes da hora, caso não fosse
atendida. Mesmo assim chamou a copeira e esta, quando já
vinha vindo, recebeu ordem para trazer um café.
Quando ela saiu do quarto, respirou fundo e pensou:
— Será que eu fiquei maluco mesmo?
O HOMEM QUE VIROU ELE

TEMOS um amigo cigarra... Até aí tudo normal, como


dizem os anormais. Mas é que esse amigo cigarra, no seu
próprio entender, prevaricou. E prevaricou no violento.
Imaginem vocês que, bastou que a "outra" (vejam vocês que
monstro de cigarra, chama a esposa de "a outra")... bastou que "a
outra" subisse para Petrópolis para ele alugar quarto num hotel
muito bonzinho que tem portaria compreensiva.
Vocês estão seguindo o nosso raciocínio? Pois vamos em
frente: de posse da chave do novo lar sumiu da residência oficial
e foi à vida, se organizando em outras curriolas, muito sobre o
animado, esquecido que mulher esposa é mulher bem infor-
mada, não somente pelo muito que investiga (com honrosas
exceções), como também pelo muito de informativas que são as
pessoas amigas, cujas gostam é de ver fogo na giranda do
doutor.
Ainda estão nos acompanhando? Muito bem. Sigamos: a
mulher soube, talvez antes que ele, do caso com a mariposa do
luxo e do prazer — como diria o poeta... Sabem como é, marido
é como boi solto, que se lambe todo. Com quarto em hotel con-
descendente, com a mulher em Petrópolis, choveu moçoila...
Uma noite no "Hi-Fi", outra no "Drink", uma ida à Barra da
Tijuca no carro de outro cigarra, para a clássica intoxicação com
camarão, e lá se foi ele a simpatizar mais com esta do que com
aquela até que... pimba — ficou de cacho.
Como, minha senhora? O que vem a ser "ficar de cacho"? É
ficar sob o signo da amigação. A senhora desculpe, mas a forma
grosseira de expressão foi para esclarecer melhor.
Um homem de cacho com mulher em Petrópolis não vai em
casa nem para trocar de roupa. Dá uma única passada no lar,
apanha um bolo de camisas, outro tanto de meias, pega o terno
claro para quando não chover e o azul-marinho para quando
chover e esquece de mudar a água do canário.
Tudo num táxi, parte feroz para o hotel mais camarada
pouquinha coisa. Vanja vai, vanja vem, esquece até de subir
para Petrópolis no fim-de-semana. Isto é imperdoável mesmo no
pior dos cigarras e, no entanto, aconteceu com esse nosso amigo.
Resultado: passou o Carnaval, veio a época do colégio das
crianças e "a outra" se despencou serra abaixo, sabendo de tudo,
inclusive com uma capa da revista "Mundo Ilustrado", onde ele
aparece de braços abertos para a objetiva, fantasiado de baiana
rica.
Agora ele se despediu da mariposa do luxo e do prazer
(jurou-nos que era um encanto de moça e não aceitou nem as
duas notas de mil que ofereceu para calçar a saudade), pagou o
hotel de porteirinho cego e retornou ao lar.
— Você não imagina o vexame. Lá ninguém fala comigo.
O canário morreu de sede, ou de fome... sei lá. O cachorro,
aquele desgraçado, que eu curei de bronquite, está me
esnobando. Quando eu passo ele não levanta nem o focinho.
Limita-se a abrir um olho... um olho de reprovação que me dá
calafrios. Minha filha está muda.
— E sua mulher? — indagamos.
— Essa me chama de ele.
— Chama de quê?
— De ele. Se o almoço está na mesa, ela diz pra empregada:
"avise a ele". Se o telefone toca, é a própria empregada que
atende e diz pra minha mulher: "é para ele". Virei "ele" em
minha própria casa.
Coitado do nosso amigo. Badalou muito. Agora agüente.
Nisto de conseqüências, estamos com Tia Zulmira, quando
disse: "Passarinho que come pedra, sabe o que advém".
'
O PASSAMENTO DE "BETTE DAVIS”

GILBERTO Milfont e Lúcio Alves são cantores, o que


ninguém ignora, nem mesmo os que nasceram para conjugar o
verbo ignorar. Mas quando param de cantar só pensam em
cavalo de corrida. Vai daí, não somente apostam nos cavalinhos
da Gávea, como nos cavalinhos de Cidade Jardim, dada a
condição de contratados da TV Record, de São Paulo, onde vão
semanalmente.
Pois noutro dia Gilberto Milfont estava no aeroporto, pronto
a embarcar para São Paulo, quando o microfone anunciou o seu
nome. Foi Gilberto saber o que era e era telefone. Gilberto
atendeu:
— Alô, Gilberto? É Lúcio Alves. Assim que você chegar
em São Paulo, vá lá na Record, peça dez contos ao Blota Júnior
em meu nome e jogue na égua Bette Davis, no quinto páreo.
Mas só jogue se pagar 25 pratas, senão não interessa.
— Mas Lúcio... — tentou explicar Milfont, embora Lúcio
já tivesse desligado.
Desligou também e embarcou. Chegando em São Paulo,
Gilberto seguiu direto para a Record, a fim de procurar o
diretor-artístico Blota Júnior, que aliás não é tão artístico assim
como pensa o próprio. Chegou, explicou, e Blota, que é desses
que depois do almoço palita os dentes com um lado só do palito,
pra economizar o outro lado pra depois da jantar, fez cara de
choro e disse que só tinha 5 contos. Estava quase na hora de
correr o 5.° páreo e então o Gilberto Milfont aceitou os cinco e
se sacudiu pro Jóquei.
Chegou bem na hora da última apregoação. Bette Davis era a
favorita e estava cotada a 23. Lúcio dissera que menos de 25 não
valia a pena. E então Gilberto guardou o dinheiro e foi ver o
páreo correr. O diabo é que, assim que chegou junto da cerca,
reparou no placar e viu que a cotação subira pra 26 e não dava
mais tempo de jogar.
— O Lúcio me come vivo se essa tal de Bette Davis ganha o
páreo — pensou Milfont. Ele deve estar no Rio torcendo mais
que nariz de grã-fino, quando fala com pobre.
O jeito era torcer contra. O páreo saiu e Bette Davis pulou 10
corpos na frente dos outros e saiu disparada. Giberto, encostado
na cerca, rezava pra Bette Davis mancar e quanto mais ele
rezava mais Bette Davis corria. Na entrada da curva ela vinha
com 15 corpos e Gilberto torcia tanto que a camisa estava
ensopada de suor.
— Pára, desgraçada — dizia ele, entre dentes.
E Bette Davis pareceu ouvir. Na reta final começou a correr
menos. Oito corpos, sete, cinco, dois e todo o lote passou por
Bette Davis com Gilberto todo torcido. E a égua veio parando,
veio parando e parou bem na frente de Gilberto. O jóquei saltou
para examinar Bette Davis mas não teve tempo. Ela deu uma
tremedeira rápida e caiu na pista. Estava morta.
Gilberto Milfont saiu dali e telefonou pro Rio. Lúcio atendeu
do lado de cá e perguntou:
— Como é? Deu Bette Davis? E Gilberto, na maior
dignidade:
— Por sua causa eu acabo de matar uma das maiores atrizes
do cinema americano.
É TRISTE... MUITO TRISTE

SIM, companheiros, é muito triste um pai educar uma filha


para corte, costura e o chamado trivial que vai do pregar botão
ao fazer feijão, e depois, quando a filha fica pronta vira Elegante
Bangu. É triste mesmo!
Mas não se deve negar aos homens o direito do vexame. É.
triste um pai criar um filho dentro das linhas que obedecem aos
princípios da sagrada burguesia, pagando-lhe o colégio,
alimentando-o para que um dia possa trabalhar e descontar para
o IPASE e depois, quando o filho fica pronto, mete uma
cabeleira loura e sai fotografia dele nos jornais, "travestido" em
Rainha Morna.
Não é menos verdade, no entanto, que triste, muito triste é
mãe devota fazer sacrifício para vestir e calçar filha órfã de pai,
dando duro em emprego modesto, gastando com economia o
montepio do falecido e depois, quando a filha fica mais ou
menos o número que a gente usa, sai por aí arranjando voto para
ser Rainha sabe-se lá de que trono.
Inegável, contudo, é que a tristeza paira sobre o semblante
do pai que não saiu de casa "naquele dia" por amor ao garoto, a
quem orgulhosamente deu de tudo e depois, quando o filho se
sentiu capaz de certas coisas, ver esse filho desfilando na passa-
rela no João Caetano, no baile aquele.
E por que faltar com a verdade, fingindo ignorar o quanto é
triste para mãe extremada ver a filha ir encorpando, encorpando
e fugindo ao seu controle, até o momento em que — lá uma
noite — volta para casa dizendo que ele é casado e não há mais
nada a fazer?
Como é triste também uma família do Norte, que sofre com
o agreste da região e a proliferação exagerada de filhos, criar as
crianças com o sacrifício da fome e, um dia, o mais velho dos
filhos embarcar para a capital só para ser cronista mundano. É
triste sim, muito triste.
Aliás, triste, sem dúvida, é moça que se diz bem, que detesta
certas intimidades com as chamadas mariposas da noite,
freqüentar o "Sacha” o ano inteiro e depois, quando chega
fevereiro, meter um maio legal no corpo e ir pro baile carnava-
lesco dizendo que está fantasiada.
Sim, companheiros, tudo isso é muito triste pra nós, porque
os citados não desconfiam nunca. Para eles as bestas são as do
apocalipse, se é que já ouviram alguma vez falar em apocalipse.
Não, companheiros, eles não desconfiam nunca. Tanto não
desconfiam que — noutro dia — ouvimos uma moça dizer para
um rapaz que a convidara para ir comer galeto na sua lambreta:
— Que é que você está pensando? Eu não sou uma qualquer.
Eu sou bailarina do "Bolero" ouviu?
UM CONTISTA SEXY

A SEDE de revistas que, de uns tempos para cá, vinha


entortando a mentalidade de mocinhas suscetíveis de minhoca
na cabeça deve estar saciada. Tem revistinha pra cachorro nas
bancas. E cada uma com nome mais bonito: "Querida",
"Sedução", "Intimidade", "Capricho", "Sétimo Céu", "Destino",
e por aí a fora. As tais fotonovelas, em que estão sendo usados
galãs frustrados do cinema nacional (não menos frustrado, olé),
são bárbaras. A mocinha é pobre, o rapaz namora uma granfa.
No fim a granfa entra bem e na última fotografia a mocinha
pobre está pendurada no beijo do galã frustrado.
Tem um monte de mocinhas que não perde uma dessas
revistas editadas pelos maiores sexy relations da imprensa
autóctone. Lê a fotonovela (lê, não. Espia, porque é história em
quadrinho com fotografias) de cima a baixo e fica tinindo. Os
contos também são ótimos, mas têm uma ilustração só. Ou é
uma cara de mulher desesperada, ou é um beijo diabólico, que
encima o título do conto. O título também é legal: "Eu amava o
meu primo", "Minha vida era Geraldo", "Casei-me com um
hipócrita", "Fuga para o encanto" e outros que tais.
Como, minha senhora? Quem são os autores? Varia muito,
madame. Geralmente são nomes de "escritoras" americanas:
Nancy Gilbert, Dothy Longfellow, May Taylor. Mas é tudo de
araque. Os autores são "nós mesmo" — como diz o Al Neto. Isto
é, rapaziada daqui mesmo, que escreve a coisa como se tivesse
acontecido em Las Vegas, Califórnia ou Londres, mas tudo foi
imaginado e datilografado à noite, num modesto apartamento do
Méier. E o conto, vendido à razão de uma abóbora, quando
muito, sempre ajuda a faturar a quinzena.
Stanislaw tem um amigo que é especialista em contos de
amor para as revistas dos sexy relations. Ele faz o mesmo conto
sempre, mas tem o cuidado de mudar os nomes dos personagens
e dos lugares onde acontecem os beijos ou as bolachas, assim
como o título, naturalmente. Depois assina Lillian Clark, ou
Jane Underwood, ou mesmo Joan L. Macmillan e vai vender na
redação. Sempre dá pro feijão.
Agora, bom mesmo é escolher título para fotonovela ou para
os contos de amor. Ele telefona e pergunta :
— Stan, que tal "Aconteceu nas Bermudas"?
— Fraco — respondemos.
E depois queremos saber quais foram as modificações
introduzidas no conto. Ele explica que é tudo naquela base e
então propomos:
— Que tal "Beijo de fogo em noite de frio"? Aí, ou o
"escritor" exulta do lado de lá, ou responde enfático:
— Esse nome eu já usei ontem.
E assim vamos vendo as possibilidades, até que chega o
título ideal. Mas o que foi ótimo mesmo foi quando — na
semana passada — um sexy relations mandou perguntar se
Stanislaw não queria escrever alguns contos no referido estilo,
com o pseudônimo de Brigitte Sagan. E antes que recusássemos,
prometeu dez abobrinhas por cada imbecilidade.
Aceitamos. Somos — atualmente — o entorta-dor de
mentalidade feminina mais bem pago da imprensa sexy.

NOTÍCIA DE JORNAL

QUEM descobriu, perdida no noticiário policial de um


matutino, a intensa poesia contida no bilhete do suicida? Creio
que foi Manuel Bandeira. Sim, se a memória não falha (e, meu
Deus, ela está começando a falhar), foi o poeta Bandeira. Ele é
que tem o dom da poesia mais forte. Claro, todos nós somos
poetas em potencial, amando a poesia no vôo de um pássaro, na
comovente curva de um joelho feminino, no pôr do sol, na
chuva que cai no mar. Mas nós somos os pequenos poetas, os
que sentimos a poesia, sua mensagem de encantamento, sem
capacidade bastante para transmitir ao amigo, à amada, ao
companheiro aquilo que nos encantou.
Então Deus fez o poeta maior, aquele que tem o dom de
transmitir por meio de palavras toda e qualquer poesia, seja ela
plástica, audível, rítmica; sentimento ou dor.
"A poesia é espontânea" — disse um dia Pedro Cavalinho, o
tímido esteta, enquanto descíamos de madrugada uma rua
molhada de orvalho e um galo branco cantou num muro
próximo. Um muro que o limo pintara de verde.
E é mesmo. Tão espontânea, que estava no bilhete do
suicida. Um minuto- antes de botar formicida no copo de cerveja
e beber, ele rabiscou, com sua letra incerta, num pedaço de
papel: "Morri do mal de amor. Avisem minha mãe. Ela mora na
Ladeira da Alegria, sem número."
Manuel Bandeira, poeta maior, nem precisou transformar
num poema as palavras do morto. Leu a notícia em meio às
notas policiais do matutino e notou logo o que podem as
palavras. O homem humilde, que fora a vida inteira um
espectador da poesia das coisas, no último instante, sem a menor
intenção, se fez poeta também. E deixou sobre a mesa suja de
um botequim, entre um copo de formicida e uma garrafa de
cerveja, a sua derradeira mensagem — a sua primeira mensagem
poética.
Num matutino de ontem, num desses matutinos que se
empenham na publicidade do crime, havia a seguinte notícia:
"João José Gualberto, vulgo "Sorriso", foi preso na madrugada
de ontem, no Beco da Felicidade, por ter assaltado a Casa
Garson, de onde roubara um lote de discos."
Pobre redator, o autor da nota. Perdido no meio de
telegramas, barulho de máquinas, campainha de telefones, nem
sequer notou a poesia que passou pela sua desarrumada mesa de
trabalho, e que estava contida no simples noticiário de polícia.
Bem me disse Pedro Cavalinho, o tímido esteta, naquela
madrugada: "A maior inimiga da poesia é a vulgaridade."
Distraído na rotina de um trabalho ingrato, esse repórter de
polícia soube que um homem que atende pelo vulgo de "Sorriso"
roubara discos numa loja e fora preso naquele beco sujo que fica
entre a Presidente Vargas e a Praça da República e que se chama
da Felicidade. Fosse o repórter menos vulgar e teria escrito:
"O Sorriso roubou a música e acabou preso no Beco da
Felicidade."
HISTÓRIA DO RIO DE JANEIRO

A COISA começou no século XVI, pouco depois que Pedro


Álvares Cabral, rapaz que estava fugindo da calmaria, encontrou
a confusão, isto é, encontrou o Brasil. Até aí não havia Rio de
Janeiro.
Depois, em 1512 — segundo o testemunho ocular de Brício
de Abreu —, rapazes lusitanos que estavam esquiando fora da
barra descobriram uma baía muito bonita e, distraídos que
estavam, não perceberam que era baía. Pensaram que era um rio
e, como fosse janeiro, apelidaram a baía de Rio de Janeiro. Eis,
portanto, que o Rio já começou errado.
Passaram-se os anos, os portugueses não deram muita bola
pra descoberta, e vieram uns franceses intrusos e se alojaram na
baía. Foi então que os portugueses abriram os olhos e, ao mesmo
tempo, abriram fogo contra o invasor, chefiados por um des-
temido cavalheiro que atendia pelo nome de Estácio de Sá (onde
mais tarde se fundaria a primeira escola de samba, mas isso foi
depois). Estácio era sobrinho de Mem de Sá, ex-governador-
geral, e primo de Salvador de Sá, que mais tarde viria a governar
a cidade. É interessante notar que, muito tempo depois, quem
descer pela Rua Mem de Sá vai dar na Rua Salvador de Sá que,
por sua vez, passa pelo Largo do Estácio, também de Sá.
Quando os comandados de Estácio de Sá iniciaram a batalha
contra os franceses, a coisa foi dura e só se resolveu numa
derradeira batalha travada na Praia de Uruçumirim. Para vencer
tiveram que suar a camisa e é por isso que, mais tarde, a Praia de
Uruçumirim ficou sendo a Praia do Flamengo, o célebre
Flamengo, que, por tradição, sua a camisa até hoje. Isso
aconteceu aí pelo ano de 1567 e estava fundada a cidade do Rio
de Janeiro, a mesma que viria a ser, em 1763, capital do vice-
reinado, e depois capital da República dos Estados Unidos do
Brasil.
A cidade foi construída sobre alagadiços e a brava gente, que
a construiu, secou tão bem os alagadiços que até hoje está
faltando água. Quando, em 1763, foi considerada capital do
vice-reinado, a cidade tinha somente 30 mil habitantes natos e
mais. naturalmente, o Brício de Abreu, que não nasceu
aqui, mas em Paris, de onde veio ainda pequenino no vapor
"Provence".
Daí por diante o Rio de Janeiro foi crescendo, foi crescendo,
foi crescendo e... pimba!... estourou. E, como tudo que estoura,
abriu buraco pra todo lado.
Tal é, em resumo, a História do Rio de Janeiro, que foi
descoberto por portugueses navegadores e que portugueses do
comércio atacadista da Rua Acre querem levar para Portugal.
Daí o velho ditado de Tia Zulmira: "Cabral descobriu o Brasil e
Manoel quer carregar."
Não é, como o leitor mais arguto pouquinha coisa pôde
perceber, uma História tão brilhante assim, como pretedem as
letras dos sambas apoteóticos.
O HOMEM, O BONDE E A MULHER

CADA um dá o golpe que quer. Uns ainda se escudam no


manjadíssimo serão no escritório; outros preferem telefonar
dizendo que chegou um amigo do interior; há os que só arranjam
uma desculpa na hora de chegar. Desta ou daquela maneira,
maridos retardatários têm seus respectivos estilos, de acordo
com as respectivas esposas.
As esposas, por sua vez, acreditam ou não; fingem acreditar
ou não, e — por conta própria — têm suas maneiras de verificar
se o que o marido contou ao chegar era verdade. Nunca é, mas...
não custa nada admitir a hipótese, pois hipótese existe é para ser
admitida.
Stanislaw tem um amigo que mora numa praça, cuja tem
muitas árvores onde dormem muitos pardais. Para chegar em
casa tem que passar pela praça e, quando chega depois que os
passarinhos acordaram, a mulher controla a hora em que ele
entrou pelo sujo que os passarinhos fizeram na roupa dele. Por
isso o nosso amigo tem horror a passarinho.
Não sabemos se vocês leram a notícia de um bonde que
perdeu a direção e entrou numa casa, na madrugada de 22
passada. Nessa mesma noite, cavalheiro de nossas relações —
cujo nome é impossível escrever aqui, pois não somos cronista
mundano que nasceu para incrementar o desquite — saiu pela aí,
desgarrado de casa, local para onde telefonou por volta de 7 da
noitinha, avisando que ia à convenção do PSD (ele na hora
esqueceu que votara no Jânio).
Calçado o regresso, pelo menos no seu entender, tomou
umas e outras e telefonou mais uma vez, agora para uma
desajustada em disponibilidade amorosa, que, quando se
encontra em estado de "jogada fora", sai com ele. Meteram um
buteco legal, espalharam muita brasa e, quando os leiteiros já ti-
nham recolhido as carrocinhas, ele chegou em casa. Eram 4 e lá
vai perdigoto.
Tirou a roupa e deitou, como bom pessedista, fingindo que
vinha da convenção, embora o bafo. A mulher, no dia seguinte,
não lhe dirigiu a palavra e ele, para confraternizar, puxou
conversa de todo jeito, acabando por pegar o jornal e começar a
ler.
Ao passar os olhos na coluna de polícia, deu com o
cabeçalho:
"De madrugada — bonde entra em casa." Virou-se para a
mulher, para tentar mais uma vez a pacificação, e disse:
— Ouve só, querida, que notícia curiosa. — E leu: — "De
madrugada — bonde entra em casa."
A mulher olhou-o com desprezo e comentou apenas:
— Aposto como entrou mais cedo do que você.
"NOSSA SOCIEDADE"

FAZ muitos anos que nos deram de presente "Nossa


Sociedade", trabalho caprichado e caprichoso de senhoras que se
dedicaram a organizar uma espécie de catálogo, muito bem
apresentado, com a relação das pessoas "bem" do nosso Brasil
amado, predominando nessa relação gente "bem" do Rio e gente
"bem" de São Paulo. Faz muito tempo, mesmo, que nos deram
de presente o "Nossa Sociedade". Foi há bem uns dez anos,
tanto que é a primeira edição.
Tudo se resume em dar a ficha da pessoa "bem", catalogada
entre "solteiros", "casados" e "solteiras", daqui ou dali. Por
exemplo: no setor das "solteiras" podemos encontrar:
Mariazinha Pereira — filha de João Pereira e de Dona Maria
Pereira __Residência: Rua Mata Cavalo, 35 — Casa de Ve-
raneio: Avenida das Acácias, 25 (Petrópolis) — Telefones:
Residência: 34-2020. Veraneio: 0012. Tudo muito legalzinho.
Se Dona Mariazinha Pereira trabalhasse, tinha o telefone e nome
do patrão. E se Mariazinha Pereira fosse casada, estaria na lista
dos "casados", junto com o nome do marido, mas constando
também seu antigo nome de solteira. Há ainda uma lista
diplomática extra.
Agora vimos numa vitrina de livraria society (dessas livrarias
metidas a francesa, que vendo muito bagulho com capa
encadernada, mas onde a gente — de vez em quando — acha
uma preciosidade que as outras livrarias não têm), vimos, repeti-
mos, a mais recente edição do livro "Nossa Sociedade". É uma
edição alguns anos (quase dez) mais nova do que a que nos
mandaram, mas está tão desatualizada quanto aquela.
Comparando as duas edições é que pudemos notar o trabalho
impressionante que devem ter as senhoras que organizam o
livro, para poder atualizar a gente "bem". Vocês podem pensar
que estamos exagerando, mas não estamos não. Muito camarada
que era "casado" na primeira edição passou a "solteiro" na
segunda, para ser novamente "casado" na terceira ou na quarta
edição.
Nosso society não cultiva com escala razoável a tradição da
residência e, por isto, um fulano podre de chique, que morava
num palacete da Rua
São Clemente (l.a edição), habita um apartamento da
Avenida Atlântica (3.a edição). 0 elegante de 1950, que tinha
moradia em Petrópolis com piscina e tudo, é um teso em 1954,
já não tendo, portanto, a casa de veraneio, vendida antes de sair
a segunda edição, para pagar suas firulas excessivas.
E na lista dos "casados", onde as casadas aparecem com o
nome de solteira ao lado do respectivo marido, é que reside a
grande dificuldade de atualização do livro. Gente "bem" muda
muito e Mme. Fulano de Tal já não é mais, porque voltou pra
lista das "solteiras", ou então está na lista dos "casados" ... mas
com outro.
É muito difícil manter atualizado o livro "Nossa Sociedade”.
Aconselhamos aos interessados a, anualmente, jogar fora a
edição antiga e comprar a nova. E mesmo a nova, quando
consultada, que o seja com cautela.
O CASO DO TATU

ERA um tatu. Nada mais que um tatu, bichinho que rivaliza


com a Prefeitura na arte de esburacar. Um tatu — segundo a
ciência — é nome comum a diversas espécies de mamíferos da
família dos Dasipodídeos — mas este de que falamos, embora
dasipodídeo, não tinha família. Fora adotado pelo cavalheiro de
calça cinzenta e unhas idem, cara de debilóide e camisa de meia,
com as tradicionais cores do Flamengo. Aliás, diga-se a bem da
verdade, não podíamos saber se ele era torcedor dos rubro-
negros. O fato de envergar a camisa do Flamengo não quer dizer
que o camarada seja rubro-negro, conforme cansou de provar o
beque Tomires, em furadas comprometedoras para o clube da
Gávea, quando era titular do time.
Mas — dizíamos — era um tatu. O dono do tatu usava-o
para chamar a atenção sobre si mesmo. Assim como Luz Del
Fuego usa cobra, Barreto Pinto usa cueca e Salvador Dali usa
bigode, o camarada usava o tatu para se fazer notado.
Aos poucos foi chegando gente. Primeiro um garoto com
uniforme de estafeta. Parou e perguntou que bicho era. Era tatu..
Depois uma mulata gorda, que vinha em companhia de uma
branquinha (mais de inanição que de raça). As duas pararam
também e ficaram olhando o tatu. Só o tatu é que não dava bola
pra ninguém. Talvez não fosse um tatu-bola.
O grupo, pouco depois, já era bem seleto. Havia mais dois
estafetas, um sujeito com pinta de contínuo de escritório,
diversas senhoras de variadas camadas sociais, dois ou três
senhores de pasta, outros tantos sem pasta, uma mulatinha que
fazia quase tanto sucesso quanto o tatu (dadas as suas harmo-
niosas linhas) e mais gente de somenos.
O tatu fuçava a calçada um pouco humilhado, talvez por
perceber que calçada não é coisa que tatu possa esburacar. A
Prefeitura tem exclusividade. Ia e vinha num raio de dois metros
e tanto, restringido pela cordinha que o camarada de camisa do
Flamengo prendera no seu rabo.
— Que bicho é este? — perguntou a mulata que fazia
sucesso.
Cinco ou seis que estavam de olho nela responderam
pressurosos:
— Tatu.
Ela fez um "ahhh" de espanto e coqueteria que lhe ficou
muito bem. Um moleque tentou cotucar o tatu com a ponta de
uma vara. O dono estrilou. Não seria um estrilo convicto se não
recebesse a adesão da mulata gorda que se fazia acompanhar da
branquinha esquelética.
— Falta de religião. Cotucar o tatu. Alguns aprovaram.
Outros resolveram ficar contra o dono. Por que um tatu na
esquina da Avenida Rio Branco com Visconde de Inhaúma? O
bichinho podia morrer. Quem sabe não comia há horas? As
hipóteses cresciam, enquanto crescia o movimento pró-tatu.
Quando maior era o grupo, mais numeroso o contingente de
curiosos, o dono do tatu puxou-o pela cordinha, agarrou-o e o
colocou dentro de uma gaiola. O tatu não se chateou; ao
contrário da mulata gorda, líder tatuísta no local.
Sem dar atenção a ela o dono do tatu armou uma mesinha
precária na calçada, colocou sobre ela estranhos vidrinhos e
diversos pedacinhos de uma coisa indefinida e que depois ficou
esclarecido que eram calos. Pigarreou e meteu lá:
— Senhoras e senhores, nenhum de nós está livre de possuir
um calo. É por isso que eu lhes apresento este maravilhoso
preparado que é o maior inimigo das calosidades, mesmo as
mais renitentes.
O grupo foi se desfazendo, o dono do tatu ficou falando
sozinho. O senhor de pasta que saiu caminhando à nossa frente
ia meio capengando. Devia ter calo e, no entanto, perdera a
excelente oportunidade de comprar o "maravilhoso preparado
que é o maior inimigo das calosidades".
O POLIGLOTA

VOCÊS desculpem, mas nós num güenta! Nós num güenta e


é preciso desabafar, inscrevendo mais uma vez aqui aquela frase
que a posteridade já reclama com folgada antecedência: "Ah,
Ibrahim, Ibrahim... se não fosse você, o que seria de mim?"
Vocês leram o que escreveu o rapaz? Não leram? Aí é que
está. Ficam perdendo tempo a ler Gide, Rilke e outros
debilóides, depois perdem as maiores jóias literárias do famoso
escritor líbano-carioca. Imaginem vocês que Ibrahim — agora
em viagem pela Europa, para desmentir definitivamente a
máxima "quem viaja aprende" — vem de publicar uma notinha
das mais importantes.
Diz o mestre de Jeff Thomas, o inspirador de Pouchard, que
andou conversando com o Duque de Windsor. Para castigar um
pouco de modéstia no seu escrito, o famoso "dramaturco"
explicou que não conversou em português, o que, aliás, deve ser
verdade, pois o Duque fala um pouquinho de português, mas
Ibrahim não.
A conversa foi num misto de espanhol, inglês e francês.
Quem conta é o próprio Ibrahim: usando um pouco do meu
modesto espanhol, do meu inglês e do meu francês, consegui
explicar ao Duque de Windsor o que é Brasília. Vejam vocês
que pretensão! Explicar a um inglês o que é ponto facultativo já
é um negócio considerado impossível pelos brasileiros que
dominam perfeitamente o idioma de Henry Wadsworth
Longfellow, quanto mais explicar em mau inglês, mau francês e
mau espanhol o que vem a ser Brasília.
Brasília, como explicar Brasília a um inglês? Mesmo um
inglês que saiba o português direitinho? É tarefa mais árdua do
que marcar o Garrincha com um calo no dedão (no dedão do
marcador e não do Garrincha, of course). Como é que o Ibrahim,
incapaz de entender-se com qualquer plebeu, em qualquer
língua, pôde explicar ao nobre e sofisticado Duque de Windsor o
que é Brasília?
Dizem nossos olheiros especializados que estiveram
apreciando a conversa dos dois, que ambos pareciam índios de
fita em série, cada um soltando sons guturais para o outro, numa
troca estranha de sons ininteligíveis, onde só se compreendia a
pala-
vra Brasília. Houve um momento em que Ibrahim afirmou:
— Brasília es Ia ville brésilienne who está the capital of
Brazil.
O Duque de Windsor arregalou os olhos e não agüentou.
Virou-se para a Duquesa que estava ao seu lado e afirmou:
— I’ll be a circus monkey if this cocoroca is not the famous
Ibrahim Sued.
A PAPAGAIA
ERA uma vez uma papagaia... ou antes, era uma vez uma
senhora que vivia sozinha, era muito católica e não tinha bicho
nenhum em casa. Como era uma senhora solteirona, ficava até
um pouco puxado para o tarado o fato dela não se dedicar a um
bicho. É aqui que entra a papagaia.
Um dia a senhora solteirona sem nenhum bicho em casa foi
visitar uma família conhecida. Chegou lá, viu uma papagaia
num poleiro, cantarolando. "Que bonito papagaio" — ela disse.
"Não é papagaio. É papagaia" — disseram para a senhora. E,
como tivesse se interessado muito, a família ofereceu a papagaia
a ela.
Tá na cara que a senhora solteirona sem nenhum bicho em
casa adorou o oferecimento e carregou a papagaia para casa.
Mas aí é que foi chato. A papagaia era levadíssima. Mal chegou
à sua nova casa, começou a dizer palavrões homéricos, a citar
trechos completos da última peça do Nelson Rodrigues, a recitar
o diálogo de "La Dolce Vita" e a dizer coisas horríveis sobre
seus desejos incontidos.
A senhora ficou horrorizada e já ia mandar a papagaia
embora quando chegou um vizinho para visitar. Soube do drama
e disse: "Não há de ser nada. Eu tenho lá em casa dois papagaios
comportadíssimos. Tão comportados que passam o dia rezando.
Eu boto a papagaia perto dos dois e pode ser que ela se manque
e fique igual a eles." A senhora agradeceu muito e a papagaia
foi.
O vizinho colocou a papagaia num poleiro entre os dois
papagaios. Assim que ela se viu na parede, começou a engrossar
outra vez. Foi aí que um dos papagaios abriu um olho e ficou
observando. Quando ficou convencido de que a papagaia era
mesmo da pá virada, catucou o outro que continuava rezando e
disse:
— Pare de rezar, companheiro, que, ou muito me engano, ou
nossas preces acabam de ser atendidas.
MULHER DE BORRACHA

QUEM nos informa a novidade é a Agência Ansa — nossa


subsidiária no interior — em telegrama vindo de Nova Iorque.
Diz que o "Collector's Ex-changing Bulletin", revista que circula
muito entre os que têm mania de fazer coleções, seja coleção de
caixa de fósforos, moedas antigas ou retrato de mulher... de
mulher... como diremos?... de mulher à vontade, vem de
publicar um anúncio (a sério) que fez muito sucesso e está
surtindo efeito surpreendente. Sim, porque, assim como o
"Collector's Ex-changing Bulletin" publicou a coisa a sério, os
leitores também leram o anúncio com muita seriedade e muitos
deles tomaram providências para adquirir o artigo anunciado.
Como, minha senhora? Que é que está no anúncio? Pois não,
era justamente o que íamos contar agora. A senhora endireita aí
esse decote, que isto já não é mais decote, é deboche, e preste
atenção. O anúncio diz assim:
"Para homens solitários, tímidos e incapazes de escolher uma
companheira ou de abordar na rua uma jovem qualquer, esta é
uma grande novidade. Queiram enviar 2,50 dólares pelo
reembolso postal que, dentro de poucos dias, receberão em sua
casa uma mulher de borracha, de dimensões normais, macia e
perfeitamente inquebrável."
Como, madame? A senhora não gostou do anúncio? Nós
também não, porque não somos da equipe dos tímidos e —
modéstia à parte — se for preciso meter o ronco pra cima de
"uma jovem qualquer" (conforme está no anúncio), a senhora
pode ficar certa que a distinta será devidamente roncada. Mas
houve quem se interessasse, pois a notícia explica que houve.
Tem muita gente que prefere uma mulher inquebrável a — por
exemplo — uma mulher inquebrantável.
Depois, madame, observe a malícia do anunciante. Diz que é
de borracha macia. Convenhamos que mulher macia é mais do
gosto da maioria do que mulher encaroçada. E — sendo de
borracha — talvez possa ser esquentada em banho-maria. Ou
talvez fique cálida empregando-se o tradicional método usado
para o chamado saco quente. Estas considerações devem ter sido
tomadas em conta pelos que responderam prontamente ao
anúncio, fazendo centenas de encomendas.
De todas as vantagens propaladas, aliás, nós só não fazemos
fé naquela que diz que a mulher é "de dimensões normais". A
senhora sabe como é? Isto de tamanho varia muito. Que o digam
as casas de modas que fabricam vestidos de meia confecção. E
há o gosto pessoal também.
É, madame, a mulher de borracha para os tímidos é um bom
negócio para o comprador e um grande negócio para o
fabricante. E a senhora pode ficar certa de uma coisa: esta
humanidade anda tão torta, que é bem capaz de um camarada
com mulher de borracha em casa se apaixonar pela mulher de
borracha do vizinho.
MULHERES MEDICINAIS

TURCO, vocês sabem como é, turco é chato pra mulher.


Foram os turcos que inventaram ou, pelo menos, que
conservaram aquilo que Primo Altamirando chama de proporção
racional, isto é, muitas mulheres para um homem só. E foi
justamente o Ex-presidente da Assembléia Nacional Turca —
Refik Koraltan — que entrou numa fria danada, por causa de
mulher.
Koraltan, que conta atualmente 71 anos, foi acusado de ter
mandado vir da Alemanha para a Turquia uma jovem de 25
anos, correndo as despesas da viagem como se fosse
equipamento médico. Isto deu um bode danado, porque a
oposição política caiu em cima dele, dizendo que mulher nunca
foi equipamento médico. Ele, coitado, com a mulher em casa,
explicou que houve um mal-entendido. Importara, realmente,
equipamento médico para sua esposa, que estava doente e
aproveitara para mandar vir uma enfermeira. Daí a confusão.
Mas os inimigos de Koraltan não foram nessa, pois a mulher
dele já morreu e a enfermeira continua lá, o que nos parece
bastante razoável. Primeiro porque não se joga uma alemãzinha
de 25 anos fora; segundo, porque, se a mulher dele queimou
todo o pavio, é até bom que fique lá o que sobrou dos
medicamentos, para que o viúvo se recupere.
Depois, esse negócio de acusarem o "importador" sob a
alegação de que mulher não é equipamento médico é besteira.
Mulher sempre fez parte da terapêutica em muitos casos
medicinais. Tem doenças até que, se o médico não receitar
mulher, o camarada penetra pela tubulação todinho. De mais a
mais é remédio ao alcance de todas as bolsas, de fácil aplicação,
pois não se vende em embalagens de luxo (claro que estamos
nos referindo ao produto popular e não ao outro, que é produto
de perfumaria e não de farmácia). É de uso racional, é prático,
não dependendo sua aplicação de gotas ou pastilhas, pois o
remédio é de aplicação local, com uma única observação na
bula: agite antes de usar.
Por tudo isso, estamos do lado de Koraltan. E não venham
com a conversa de que estamos sofismando não, porque o
negócio é igual também para os homens. Homem é
medicamento de grande eficácia em muitos casos. Quantas e
quantas vezes já vimos o facultativo receitar homem, de acordo
com a bula, para doenças de senhoras.
DISCOS DE CHOCOLATE

TODO Natal eles inventam as maiores miserinhas, pra Papai


Noel dar pra gente. É justo, a turma tem que badalar muito para
conquistar a preferência pública. Mas desta vez houve
prevaricação, imaginem só o que os holandeses inventaram:
discos de chocolate.
Diz que é bárbaro e a aceitação é tão grande que, não demora
muito, o mundo inteiro estará conhecendo a novidade. Trata-se
de um chocolate duro como cabeça de cronista menor, em cuja
massa podem ser gravados sons com a mesma facilidade e com
o mesmo sucesso obtido na vinilite dos discos modernos.
Agora, tá na cara, o chocolate não é durável. Aliás, isto até é
bom, porque tem muita gente que vê chocolate e fica que nem
aqui o cronista de vocês, quando vê mulher. Assim, depois de
dez ou doze audições do disco de chocolate, o mesmo pode ser
comido pelos gulosos, pois não toca mais. E isto resolve o
problema daqueles que ficariam, entre o doce e a melodia, sem
vontade de acabar com o disco e doidos para mastigar o coitado.
Nada disso, porém, importa. O que nos parece de maior
importância é o fato da notícia prever para breve W aceitação,
nos outros mercados, dos discos fabricados na Holanda. No
Brasil, por exemplo.
Você' aí;., sente o drama. Discos comíveis de Anísio Silva.
Que coisa perigosa. Deus queira que não haja influência do
intérprete no chocolate, coisa já de si muito indigesta de tão
quente que é. Um disco de Anísio Silva, comido sem receita
médica, pode deixar o comilão cheio de pipoca.
E não somente de Anísio. Se, realmente, o chocolate sofrer
influência do cantor gravado no disco, recomendamos já aos
gordos absterem-se de comer discos de Leny Eversong, que
devem engordar mais que talharim com cerveja preta. Ou comer,
outrossim, as gravações de Francisco Carlos, Emilinha Borba e
demais cantores do gênero, todos indigestos pela própria
natureza.
Imaginem só se o chocolate ficar impregnado (além de
gravado) com o jeito dos cantores. Já estamos até sentindo o
drama. O camarada no telefone dizendo pra namorada:
— Não, meu bem, vamos cancelar nosso encontro de hoje.
— Mas por quê?
— Sei lá. Comi um disco de Cauby... estou me sentindo tão
esquisito!
INFERNO NACIONAL

A HISTORINHA abaixo transcrita surgiu no folclore de


Belo Horizonte e foi contada lá, numa versão política. Não é o
nosso caso. Vai contada aqui no seu mais puro estilo folclórico,
sem maiores rodeios.
Diz que era uma vez um camarada que abotoou o paletó. Em
vida o falecido foi muito dado à falcatrua, chegou a ser
candidato a vereador pelo PTB, foi diretor de instituto de
previdência, foi amigo do Tenório, enfim... ao morrer nem
conversou: foi direto para o Inferno. Em lá chegando, pediu au-
diência a Satanás e perguntou:
— Qual é o lance aqui?
Satanás explicou que o Inferno estava dividido em diversos
departamentos, cada um administrado por um país, mas o
falecido não precisava ficar no departamento administrado pelo
seu país de origem. Podia ficar no departamento do país que es-
colhesse. Ele agradeceu muito e disse a Satanás que ia" dar uma
voltinha para escolher o seu departamento.
Está claro que saiu do gabinete do Diabo e foi logo para o
Departamento dos Estados Unidos, achando que lá devia ser
mais organizado o inferninho que lhe caberia para toda a
eternidade. Entrou no departamento dos Estados Unidos e
perguntou como era o regime ali.
— Quinhentas chibatadas pela manhã, depois passar duas
horas num forno de 200 graus. Na parte da tarde: ficar numa
geladeira de cem graus abaixo de zero até as 3 horas, e voltar ao
forno de 200 graus.
O falecido ficou besta e tratou de cair fora, em busca de um
departamento menos rigoroso. Esteve no da Rússia, no do Japão,
no da França, mas era tudo a mesma coisa. Foi aí que lhe
informaram que tudo era igual: a divisão em departamento era
apenas para facilitar o serviço no Inferno, mas em todo lugar o
regime era o mesmo: quinhentas chibatadas pela manhã, forno
de 200 graus durante o dia e geladeira de 100 graus abaixo de
zero, pela tarde.
O falecido já caminhava desconsolado por uma rua infernal,
quando viu um departamento escrito na porta: Brasil. E notou
que a fila à entrada era maior do que a dos outros
departamentos. Pensou com suas chaminhas: "Aqui tem peixe
por debaixo do angu." Entrou na fila e começou a chatear o ca-
marada da frente, perguntando por que a fila era maior e os
enfileirados menos tristes. O camarada da frente fingia que não
ouvia, mas ele tanto insistiu que o outro, com medo de
chamarem a atenção, disse baixinho:
— Fica na moita, e não espalha não. O forno daqui está
quebrado e a geladeira anda meio enguiçada. Não dá mais de 35
graus por dia.
— E as quinhentas chibatadas? — perguntou o falecido.
— Ah... o sujeito encarregado desse serviço vem aqui de
manhã, assina o ponto e cai fora.
COLCHÃO DE VACA

VOCÊ aí, sabia que vaca tem um sentimento cheio de


sutilidades? Agora, sente o drama, vá. Vaca também gosta de
boa vida, de ser bem tratada, merecer o seu elogiozinho, como
qualquer pessoa vaidosa ou precisada do chamado calor
humano. Claro que, no caso da vaca, melhor seria dizer calor
bovino. Mas não se aplica a expressão. Nada se aplica porque
vaca gosta de calor bovino (aliás ela deve gostar mais de calor
taurino do que de calor bovino) mas é muito exigente também
em relação ao calor humano.
Quem disse isso não foi Freud, no seu substancioso manual.
Quem disse foram os discípulos atuais do Segismundo... Como,
minha senhora? Se o primeiro nome de Freud era Segismundo?
E era, não somente o seu primeiro nome como também o seu
primeiro complexo. — Mas — prosseguindo — psicanalistas
modernos descobriram que vaca é um bicho muito sutil e muito
vaidoso, sendo que este segundo sentimento qualquer um manja:
basta reparar no rebolado pretensioso de todas as vacas, quando
caminham.
Quanto à sutileza das vacas, foram estudos mais apurados
que levaram os psicanalistas à certeza de que vaca bem tratada é
mais gentil. A gente tem que puxar saco de vaca, para ela dar
mais leite. Antigamente pensava-se que, para vaca dar leite,
bastava puxar suas tetas (lá dela), mas agora já se sabe que
também é preciso puxar saco.
Diz o criador holandês Van Diesen, num livro sobre
pecuária: "Aquele que criar suas vacas em desconforto terá
prejuízo. A vaca melhora sempre sua produção de leite, quando
cuidada com mais carinho e deferência."
E foi para aumentar a deferência para com as vacas que os
pecuaristas europeus passaram a usar colchão de espuma de
borracha nos estábulos. As vacas que dormem em colchão de
espuma ficam muito mais pródigas do que as outras, às quais se
dá um mísero catre de palhas secas para repousar.
Os vendedores de colchões de espuma de borracha para
vacas afirmam que os animais gostam e se acostumam de tal
forma à nova Comodidade que,
depois de certo tempo, passam a zelar pela limpeza dos seus
leitos.
Enfim, o que eles querem dizer é que vaca tratada com boa
educação também fica bem educada e, depois de um certo
tempo, já não faz mais pipi na cama.
FERRO EM FERROS
SIM, companheiros: ferro em Ferros! Aqui essa a notícia,
retirada do jornal tal qual foi publicada: "As moças da cidade de
Ferros (MG), situada no coração de uma das zonas mais ricas de
minério de Minas Gerais, iniciaram uma greve: a greve do flerte,
que consiste em não aceitar como namorados, no período de
férias, os rapazes que as trocam, durante o ano letivo, pelas
estudantes que vêm de fora. A greve das moças de Ferros
(cidade atualmente com 20 mil habitantes) consiste em não
aceitar convites para festas, cinemas ou passeios no jardim (fora
o mais importante, naturalmente; e, naturalmente, o parêntesis é
por nossa conta), em represália ao fato de os rapazes da
localidade trocarem-nas sistematicamente, de abril a novembro,
pela moças que se matriculam na Escola Normal da cidade."
Taí no que dá os ferristas (ou será ferrenhos, ou mesmo
ferreiros, Osvaldo? Verifica aí) gostarem de novidades. Podiam
maneirar com as mocinhas locais. Mas não: chegam as
normalistas, mocinhas de fora e — portanto — mais propensas à
confraternização, e eles aderem, deixando as beldades locais no
frigorífico, até as férias.
Agora as ferristas, sem a concorrência das condescendentes
rivais, endureceram o jogo, feridas que estão no seu amor-
próprio pelo desprezo que dura todo o ano letivo. Resultado: os
rapazes de Ferros vão ficar numa abstinência bárbara de mulher:
de janeiro a março. Três meses sem mulher, companheiros. Será
que eles agüentam? Se fosse conosco estávamos mais jururu que
um galo de terreiro olhando o cercado das frangas.
Mas foi bem-feito. Quem mandou ferirem o amor-próprio
das moças de Ferros? Vocês desculpem, sim? Mas era
inevitável. Está na cara que Primo Altamirando, quando leu a
notícia no jornal, trocadilhou inexorável: "Quem em Ferros fere,
em Ferros será ferido."
A DACTILÓGRAFA

AMIGO nosso, que sofre de sinceridade alcoólica, depois do


terceiro contou aqui pra este pobre escravo do padrão ouro, que
batuca esta intimorata Remington semiportátil enquanto o sol lá
fora assovia coió pra gente, o que aconteceu no seu escritório,
esta semana. E contou sem o menor remorso.
Deu-se que sua secretária, senhora respeitabilíssima, que era
sua auxiliar direta há muitos anos, cometeu a temeridade de
casar e largar o emprego, no momento em que a maioria das
mulheres está largando o marido pra arranjar emprego. Mas a
secretária quis, disse que ia e não houve jeito.
Ou melhor, o jeito foi botar um anúncio no jornal, na base do
"precisa-se de secretária". Diz o amigo que essa coisa de existir
muita gente procurando emprego é bafo de boca, porque
somente depois do quinto dia é que apareceram duas candidatas.
Apareceram quase ao mesmo tempo, explicaram por que
vinham e ficaram sentadinhas na sala de espera, aguardando a
vez. Diz ainda o amigo que, lá de dentro, sem ser visto, ele
examinou bem as duas, principalmente a segunda.
A primeira, segundo sua descrição, era dessas magras e de
óculos, que sofrem de utilidade, sabem fazer tudo, têm pele ruim
e cara de quem nunca tirou menos de 10 no colégio. Pela pinta,
segundo sua própria expressão, era uma mulher invicta.
A segunda... Bem, a segunda tinha aquela cor de pele que a
gente mandaria pintar no carro, se assim pudesse ser feito. Tinha
olhar 45, corpo que é a forma universal e aquele ar inocente das
que nunca foram inocentes.
A primeira era estenógrafa, arquivista, falava inglês, francês
e espanhol. Era dactilógrafa, taquígrafa e tinha cursos de um
modo geral. Mas ele não quis saber nada disso. Quando ela
entrou na sala limitou-se a dizer que a vaga — infelizmente —
já estava preenchida.
Então, depois que a bruxa foi embora, mandou entrar a
certinha que, num bambolear ameno e compassado, entrou,
sentou numa cadeira próxima e deixou um joelho de fora, ao
cruzar as pernas. Ele pigarreou e explicou que a vaga era dela. A
moça agradeceu muito e foi obrigada a confessar que aquele era
o seu primeiro emprego, que não tinha experiência nenhuma. E,
ante a decisão dele, murmurou aveludadamente que só batia a
máquina de escrever com dois dedos. Mesmo assim ficou no
emprego.
Quando terminou de contar, perguntamos o que dissera,
quando a boa confessou que só batia a máquina com dois dedos.
— Eu perguntei pra ela assim: Pra que tanto dedo, minha
filha? E fomos tomar um lanche.
LEVANTADORES DE COPO

ERAM quatro e estavam ali já ia pra algum tempo,


entornando seu uisquinho. Não cometeríamos a leviandade de
dizer que era um uísque honesto porque por uísque e mulher
quem bota a mão no fogo está arriscado a ser apelidado de
maneta. E sabem como é, bebida batizada sobe mais que carne,
na COFAP. Os quatro, por conseguinte, estavam meio triscados.
A conversa não era novidade. Aquela conversa mesmo, de
bêbedo, de língua grossa. Um cantarolava um samba, o outro
soltava um palavrão dizendo que o samba era ruim. Vinha uma
discussão inconseqüente, os outros dois separavam, e voltavam
a encher os copos.
Aí a discussão ficava mais acalorada, até que entrasse uma
mulher no bar. Logo as quatro vozes, dos quatro bêbedos,
arrefeciam. Não há nada melhor para diminuir tom de voz, em
conversa de bêbedo, do que entrada de mulher no bar. Mas, mal
a distinta se incorporava aos móveis e utensílios do ambiente,
tornavam à conversa em voz alta.
Foi ficando mais tarde, eles foram ficando mais bêbedos.
Então veio o enfermeiro (desculpem, mas garçom de bar "de
bêbedo é muito mais enfermeiro do que garçom). Trouxe a nota,
explicou direitinho por que era quanto era etc. etc, e, depois de
conservar nos lábios aquele sorriso estático de todos os que
ouvem espinafração de bêbedo e levam a coisa por conta das
alcalinas, agradeceu a gorjeta, abriu a porta e deixou aquele
cambaleante quarteto ganhar a rua.
Os quatro, ali no sereno, respiraram fundo, para limpar os
pulmões da fumaça do bar e foram seguindo calçada abaixo,
rumo a suas residências. Eram casados os quatro entornados que
ali iam. Mas a bebida era muita para que qualquer um deles se
preocupasse com a possibilidade de futuras espinafrações
daquela que um dia — em plena clareza de seus atos —
inscreveram como esposa naquele livrão negro que tem em todo
cartório que se preze.
Afinal chegaram. Pararam em frente a uma casa e um deles,
depois de errar várias vezes, conseguiu apertar o botão da
campainha. Uma senhora sonolenta abriu a porta e foi logo
entrando de sola.
— Bonito papel! Quase três da madrugada e os senhores
completamente bêbedos, não é?
Foi aí que um dos bêbedos pediu:
— Sem bronca, minha senhora. Veja logo qual de nós
quatro é o seu marido que os outros três querem ir para casa.
O ÍNDIO

CONTOU como é que foi. Disse que — de repente —


resolveu se fantasiar, coisa que não fazia há anos. Podia optar
por duas fantasias: a de árabe ou a de índio, que são as mais
fáceis de se fazer a domicílio. Árabe — sabem como é — a
gente faz até com toalha escrito "Bom Dia". Amarra uma de
rosto*na cabeça e enrola outra de banho no corpo. Por baixo:
cueca. Nos pés: sandália. Não fica um árabe rico, mas já dá pro
consumo.
Índio ainda é mais fácil. Faz-se com uma toalha só, bem
colorida. Enrola-se a dita na cintura, com short por baixo. Na
cabeça coloca-se o que antes foi o espanador.
Contou que foi de índio porque em casa tinha dois
espanadores. Não ficou um índio legal, desses que o John
Wayne mata aos potes, em cinemascope. Mas também não
chegava a ser desses índios mondrongos que tiravam retrato com
o Dr. Juscelino.
Se tivesse saído de árabe não teria apanhado a vizinha,
distinta que vinha cercando desde setembro, quando ela se
mudara para o 201. E continuou contando. índio de óculos
também já era debochar demais da realidade. Assim, ao sair pela
aí, deixou os óculos na mesinha de cabeceira. Andou pela Ave-
nida, viu as tais sociedades carnavalescas e depois entrou num
bar para lavar a caveira.
Quando voltou para casa estava ziguezagueando. Bebera de
com força e entrou no edifício balançando. E — coitado — sem
óculos, não enxergava direito. Subiu no elevador, saltou no
segundo e foi se encostando pelas paredes do corredor. Tava um
índio desses que quer apito.
— Que é que tem tudo isso a ver com a vizinha? Sem óculos
— tornou a explicar — em vez de
entrar no 202 (seu apartamento), viu a porta do 201 aberta e
foi entrando de índio e tudo.
— Era o apartamento da vizinha?
— Era.
— E ela?
— No começo não quis. Mas acabou entrando pra minha
tribo.
DE COMO CAÇAR O RATINHO

OS JORNAIS da oposição continuam implicando com o que


chamam de "ciclo zoológico" do Palácio Guanabara, depois que
lá se instalou o governo de Carlos Frederico Werneck De. Aqui
estamos a ler um matutino que reprova a existência de alguns
passarinhos nas gaiolas penduradas nas varandas do palácio,
porque os ditos passarinhos fazem "fi-fiu" para as funcionárias
que transitam pelo local. Não achamos que isto seja feio. O
papai aqui não é passarinho nem nada, mas já fez muito "fi-fiu"
para funcionárias. Em alguns casos — inclusive — houve
adesão.
Mas as folhas da oposição não perdoam. O "Diário Carioca"
informa que o "ciclo zoológico" aumentou com o aparecimento
de um ratinho cujo — cada vez que corre pelo assoalho do
Guanabara — obriga a um monte de funcionárias a subir nas
cadeiras e levantarem a saia. — "Ratinho legal" — diria Primo
Altamirando, nosso abominável parente.
Já Tia Zulmira, senhora de uma retidão de caráter
impressionante, quando soube que há funcionária se dando ao
feio vício do strip-tease amador, só por causa do ratinho, ficou
indignada e telefonou para o Palácio Guanabara, chamando o
administrador. Assim que este atendeu, ela perguntou se já
descobriram o buraco do ratinho. O administrador entendeu mal.
Tia Zulmira explicou que era o buraco onde o ratinho mora.
Diante da resposta afirmativa, a sábia senhora ensinou um
meio infalível de apanhar o ratinho, para que termine de uma
vez por todas esse negócio de funcionárias em cima dos móveis
fazendo strip-tease de graça.
— Vocês comprem uma lata grande de caviar — explicou a
sábia ermitã da Boca do Mato. — Mas comprem caviar do bom:
Romanoff, de preferência. Todo dia de manhã um funcionário
do palácio pega uma torradinha, bota um pouco de caviar em
cima, e enfia no buraquinho onde o ratinho mora.
— Durante quanto tempo? — perguntou o administrador do
Guanabara.
— Durante 29 dias — informou Tia Zuzu. — Todos os dias,
à mesma hora, coloquem uma torradinha com caviar em cima,
no buraco onde mora o ratinho. Quando chegar o trigésimo dia,
o encarregado desse serviço deve apanhar um martelo e ficar ao
lado do buraquinho. Depois enfia no buraquinho a torradinha
sem o caviar. Quando o ratinho puser a cabeça pra fora e
perguntar: "Mas que negócio é esse? Só a torradinha? Cadê o
caviar?" o funcionário dá-lhe uma traulitada na cabeça e está
consumada a "Operação Ratinho".
FAQUIRISMO E PROVOCAÇÃO

OS mais assíduos (leitores, naturalmente) devem estar


lembrados do que escrevemos no dia em que Silki — o Pele da
Fome — entrou novamente numa urna de vidro para tentar
recuperar para o Brasil o recorde da dita, ora nas mãos, ou
melhor, no estômago do francês Burmah. Escrevemos na
ocasião que o grande inimigo desse Didi da inanição seriam as
provocações do público, um público que pagava para chatear o
faquir.
Já da última vez que Silki bateu o recorde, a coisa tinha
acontecido. Inimigos da fome pagavam entrada para ver o
faquir, chegavam junto à urna de vidro munidos de pastéis,
empadinhas e outras guloseimas, e ficavam comendo na frente
dele, para ver o bicho que clava. O faquir resolveu temporaria-
mente o problema fechando os olhos, para não ver. Surgiu,
porém, um torturador requintado que comia a empadinha e
cuspia o caroço em cima da urna, com toda a força. Ora, sendo a
urna de vidro, o caroço ao bater fazia tiliiiiiimmmm... obrigando
o coitado a abrir os olhos de susto.
Agora a provocação foi maior. Silki pretendia ficar
mastigando vento 108 dias — temporada que lhe traria o recorde
de volta — mas abandonou a urna com 36 dias, vítima de um
ataque de nervos e a conselho de seu médico assistente, que o
retirou à força ajudado pelo delegado de Costumes e Diversões.
Silki não queria sair, mas seus nervos estavam em tal estado,
que foi obrigado a ceder e se internar numa Casa de Saúde, onde
ainda se encontra.
O secretário do faquir falou à imprensa e contou, revoltado:
— Muitas pessoas, ao visitá-lo, exibiam pratos variados e
apetitosos, como galinha assada, empadas, doces etc. E o pior é
que, pela madrugada, lá chegavam mulheres trajando roupas es-
candalosas, algumas até exibindo certas partes do corpo. Silki
não agüentou.
Vejam vocês que baianada! O secretário não explicou pra
imprensa quais as partes do corpo que as elegantes exibiam, mas
isto não importa. Mulher — quando é boa — qualquer parte
serve, conforme costuma dizer nosso nefando primo Mirinho —
o crápula. Também não explicou qual das abstinências provocou
o estado de nervos de Silki.
A gente, porém, tira as conclusões. Da outra vez ele bateu o
recorde mesmo com a provocação de exibições gastronômicas.
Desta vez é que começou a novidade de mulher ir provocá-lo.
Portanto, dos seus jejuns, ele deve ter sucumbido ao segundo.
DA GALANTERIA

DIZEM pela aí que a História se repete. Como os cômicos de


teatro rebolado, a História se repete. No setor da galanteria, por
exemplo, a História não desmente essa teoria. O que foi
involução num tempo passa a evolução noutro tempo, para
voltar a ser involução numa época adiante. Há muitos anos atrás
— o marechal Lott não era nem escoteiro — o homem tratava a
mulher com uma deferência de puxa-saco.
Era até chato. Antes, no entanto, isto é, na Pré-História,
segundo nos contou o Brício de Abreu, mulher só saía da
caverna (naquele tempo não havia Lei do Inquilinato ainda, pois
ninguém tinha casa: era tudo caverneiro) pra passear com o ma-
rido numa condução: cabelo. Sim, o marido agarrava a distinta
pelos cabelos e saía puxando pelos caminhos.
Tempos mais amenos cultivaram a galanteria. Teve até um
cara que, ao ver a lama se interpondo no caminho de uma dama,
tirou a capa brocada que levava aos ombros e atirou no chão,
para que ela passasse por cima sem sujar os pés. Isto foi o má-
ximo em charme que a História recolheu. Só não citamos o
galante personagem pelo nome porque hoje estamos de memória
fraca e empenhamos a Enciclopédia Britânica.
Mas — dizíamos — a História se repete e o que foi
galanteria ontem é descortesia hoje. Atualmente homem não está
dando muita bola pra mulher, no setor da educação não. Talvez
porque as mulheres de hoje são mais badalativas e concorrem
com eles em tudo, o fato é que o negócio ficou "mano a mano" e
mulher tem que disputar na raça com o homem tudo aquilo que
desejar.
Quem não se conforma com isso é Tia Zulmira, senhora que
foi broto de outros tempos e que não se adapta ao rebolado atual.
Tanto que só fizemos este longo intróito para contar o episódio
vivido pela sábia macróbia da Boca do Mato, dentro de um
ônibus.
A velha foi obrigada a deixar momentaneamente o seu retiro
para fazer umas comprinhas no Centro. Para tanto tomou um
ônibus e, velha como está, viu-se na contingência de viajar em
pé, porque nenhum dos marmanjos refestelados nos bancos se
dignou ceder o lugar. Vendo que nenhum tinha educação, Tia
Zuzu apelou para o patriotismo deles. Tirou uma bandeirinha do
Brasil do bolso e começou a cantar: — "Ouviram do Ipiranga as
margens plácidas..."
Pois nem assim! Ninguém se levantou.
DOS SERTÕES AO MATAGAL

SOMENTE porque tem uma bicicleta o camarada não é


necessariamente um ciclista. Do mesmo modo o camarada pode
ter uma cuíca e não ser sambista, um telefone e não ser
telefonista, uma batuta e não ser maestro, uma mulher e não ser
casado. Já com este nosso personagem de hoje, a coisa foi di-
ferente: tirou uma máquina de escrever na rifa e resolveu ser
escritor.
Como, minha senhora? Se a rifa foi da paróquia de São Judas
Tadeu, dirigida pelo Padre Góis, aquele que diz que o referido
santo é tão rubro-negro que costuma suar a camisa número 12
quando o Flamengo está jogando? Não senhora. A rifa foi
promoção de um amigo que precisava operar a avó. E fique
quieta, madame, porque nós vamos contar a história toda.
Deu-se que ele ficou com um bilhete da rifa: o número 312,
centena do burro. Quando a coisa correu, saiu premiado e
ganhou a máquina de escrever. Não era lá muito nova; pelo
contrário, faltava a letra "Q" mas, felizmente, tinha a letra "K" e
quem escrevesse podia apelar, escrevendo mais ou menos assim:
"Kue linda tarde, kerida — disse Kuincas ao entrar no
kuioskue."
Mas isto são detalhes. O importante é kue, digo, que a
máquina saiu premiada para ele e, num rasgo de impensado
romantismo, resolveu ser escritor. Até então vivia dos seus
proventos de aviador mas, entusiasmado pela presença daquela
Underwood enferrujada, largou tudo pela nova profissão: —
"Nunca mais serei aviador!" — berrou na solidão do quarto.
O que, madame? Se ele largou a Aeronáutica? Não, dona.
Ele era aviador de receita, numa farmácia do bairro. E pare de
chatear, senão não conto a história.
Sim, seria um escritor! Mas de quê? Escritor propriamente
dito, o único que consegue viver disso no Brasil (por causa das
traduções pro estrangeiro) é o Jorge Amado. Outros escritores,
por mais escritores que fossem, enriqueciam os editores. E se
fosse escritor de contos policiais? Ah... boa idéia.
Mas no Brasil é difícil, por causa da concorrência dos
americanos do norte. Em cada três escritores americanos, oito
escrevem contos policiais. O único escritor brasileiro no gênero
é o Luís Coelho, mas este ganha dinheiro aos potes, no Foro de
São Paulo. É um grande advogado e por isso é que se dá às
veleidades de Conan Doyle do Anhangabaú. Talvez um escritor
mais simples: de crônicas mundanas. Sim, cronista mundano.
Olhou-se no espelho e ficou encabulado. Tal como todos os
cronistas mundanos, não tinha cara de cronista mundano.
A decisão veio de repente. Lembrou-se que, na véspera,
durante o bate-papo no café, alguém tinha dito que o último
filme de Zé Trindade — "O Empacotador de Fumaça" — tinha
dado 10 milhões de renda na cadeia do Luís Severiano.
O que, dona? Se o Luís Severiano está em cana? Ainda não,
minha senhora. Por que haveria de estar? O filme tinha dado dez
milhões na cadeia, mas cadeia de cinemas do referido cidadão.
Ora, se um filme cocoroca como aquele (ele assistira ao filme no
Cine Rian, com uma mão na perna da namorada e outra na sua
cocando pulga) tinha dado aquele dinheirão todo, imaginem um
filme bem planejado, com um escrito inteligente, como aquele
de "O Cangaceiro", que o Lima Barreto fez?
É. Ia ser escritor de cinema. Faria um argumento com
diálogos sérios, usando como tema algo bem brasileiro. Não
usaria cangaceiro porque, de uns tempos para cá, cangaceiro é a
mesma coisa que cowboy só que o chapéu é de couro e a aba é
pra cima.
Durante uns três meses não fez outra coisa senão escrever e
rasgar o que estava escrito. Não desanimou por causa disso. Pelo
contrário: quanto mais escrevia, mais sentia que seria capaz de
escrever um argumento que seria a redenção do cinema
nacional. E, de tanto tentar, acabou encontrando a idéia genial:
faria uma adaptação perfeita de "Os Sertões", de Euclides da
Cunha. Era a grande epopéia brasileira, na qual poderiam ser
incluídos grandes números do nosso folclore, poderiam ser apro-
veitados os mais sérios intérpretes e ainda sobraria margem para
diálogos soberbos. Isto sem contar as possibilidades imensas da
história como linguagem cinematográfica e os recursos
fotográficos que se poderiam usufruir das cenas imaginadas.
Duraram quase dois anos as suas vigílias, batucando a velha
máquina, na adaptação da grande obra literária de Euclides da
Cunha em obra supinamente cinematográfica. Suas economias,
do tempo em que ainda era aviador (de receitas), já tinham ido
pra cucuia. Devia quase 50 contos nos tamboretes da praça,
pequenos bancos que se dão ao feio vício da agiotagem. Mas
não desistiu. Depois de tanta luta, viu um dia o trabalho pronto.
Estava tinindo.
O primeiro produtor que procurou foi o Eurides Ramos, que
recusou a proposta. Bem-feito, quem mandou cair nas mãos de
Eurides? Foi pro já citado Severiano, mas este também recusou
porque estava com 16 fitas do Oscarito prontas para serem lan-
çadas. Procurou aquela turma de São Paulo, que quis
transformar os morros de São Bernardo do Campo em Beverly
Hills, e penetrou pela tubulação. Nada.
Foi aí que soube de um italiano recém-chegado. Como todo
italiano recém-chegado que não é nobre, este era cineasta. Já
tinha interessado um outro italiano (este há muito chegado e
nobre, além de industrial) a financiar um filme.
O nosso abnegado amigo botou a papelada debaixo do braço
e foi discutir o assunto com o "cineasta". Foi uma luta dura, na
qual capitulou e acabou entrando pelos Canudos, que nem
Euclides da Cunha. O "cineasta" já tinha contratado o Alberto
Ruschel para fazer o mocinho e o Milton Ribeiro para
representar o bandido.
— Aqui onde você botou um número folclórico, fica melhor
a gente incluir uma marchinha que a Emilinha Borba vai cantar
e vai ser um estouro — propôs o cineasta. E não adiantava dizer
que não. A Emilinha, realmente, defenderia melhor o capital do
industrial que, por sinal, achou o argumento ótimo, mas ficou
meio chateado porque o mocinho não tinha um amigo. Mandou
modificar este detalhe e contratou o Grande Otelo.
Enfim, foram introduzidas pequenas modificações no
entrecho. Coisa de somenos, que não dava para atrapalhar
muito. As lutas dos sertanejos foram devidamente adaptadas
para uma briga na boite, cena que só aparecia no fim da fita,
para dar mais sustança ao grande final. E o título, para que o tal
Euclides da Cunha não viesse depois reclamar direitos autorais,
também foi mudado. Em vez de "Os Sertões", passou a ser
"Mulheres no Matagal". Vai estrear breve.
Como, minha senhora? O que foi que aconteceu com o
grande escritor? Ora, dona. Teve que topar tudo para pagar o
que devia. Não, senhora... não está mais escrevendo. Voltou a
ser aviador. Está funcionando na Farmácia Santa Teresinha,
aberta dia e noite.
CAJU AMIGO DO HOMEM

O CAJU, fruta brasileira que aqui já encontrou o Almirante


Pedro Álvares Cabral — hoje estátua nos jardins do Russel e
anteriormente descobridor do Brasil —, foi batizado (não
Cabral, mas o caju) pelos índios tupis. Acreditavam os silvícolas
que o referido fruto nascesse de cabeça pra baixo, impressão
esta causada pelo caroço (castanha) que o caju ostenta na sua
parte de baixo. Mas isso é besteira porque, pensando bem, não
somente o caju, mas todo mundo nasce de cabeça pra baixo. De
como o caju se transformou em amigo do homem,
principalmente do homem que bebe e, particularmente, do
homem casado, é coisa que Stanislaw, grande sociólogo
frugívoro (salvo seja), explica nas linhas subseqüentes.
Sabemos que certos entreguistas vão dizer que este estudo
sobre a brasilidade do caju é bobagem, mas o que se há de
fazer? Como dizia Hoffmann, "a inveja é a sombra da glória".
Mas voltemos ao saboroso fruto, cuja nódoa é de amargar e,
quando pega na roupa da gente, só sai na safra seguinte, segundo
nos revelou o compositor Luís Antônio, que é militar e
Flamengo, sendo — portanto — duplamente supersticioso. De
qualquer maneira, a nódoa deixada pelo caju mancha tanto a
roupa da gente quanto — por exemplo — aquele baile do João
Caetano mancha a reputação de rapaz solteiro.
Saboroso, carnudo e pródigo em caldo, o caju — em matéria
de serventia — só perde para o boi, animal doméstico de grande
utilidade e do qual o homem só não aproveita o suspiro, porque
o resto — do chifre ao estrume — já está tudo industrializado.
Da castanha do caju se aproveita o caroço para nos fazer beber
mais, colocando-o picadinho e terrivelmente salgado, em
pratinhos sutis sobre a mesa do bar. Também da castanha se
aproveita a tradicional e laxativa cozinha baiana. Vatapá
(principalmente) e outros pratos de menor prestígio levam a sua
castanhazinha moída, para alegria daqueles que se perdem pela
boca, sem dar vez aos intestinos. Ainda desse caroço —
responsável pela mancada dos silvícolas acima citada — se faz
um magnífico pirão, usado em pratos de bacano, como a galinha
à normanda e o pato à Califórnia, embora nem na Normandia
nem na Califórnia haja caju, o que prova a versatilidade de sua
castanha. A própria polpa da fruta ora em estudo é útil, pois
famílias menos favorecidas do litoral nordestino comem-na
ensopada, sempre que lhes falta a mandioca, a batata ou a
cenoura, tubérculos mais apropriados para um PFR (Prato Feito
Reforçado). O caju pode ser ainda servido em calda, frito,
cozido ou liquefeito, sendo que, no último caso, já não é mais
caju: é cajuada, mas nem por isto perde a personalidade.
Costuma-se dizer que o cachorro é o melhor amigo do
homem, mas a afirmativa é um pouco precipitada. Ninguém bota
caju no quintal para tomar conta da casa, mas há muitas coisas
que cachorro não tem e que sobram no caju. Afinal de contas, o
cachorro não tem castanha, não é saboroso e, na hora do
refresco, ninguém espreme um cachorro para fazer uma
suculenta cachorrada. E tem mais: dizem que quando o dono é
bêbedo o cachorro é sem--vergonha, adesão que não recomenda
o cão. Já o caju, ao contrário, é o melhor amigo do homem... do
homem que bebe e — acima de tudo — do homem casado.
Há tempos, certo cavalheiro desta praça, cansado de ser
espinafrado em casa pela distinta cônjuge, quando chegava com
bafo de onça por ter tomado umas e outras nessas tendinhas pela
aí, tratou de se dedicar à busca daquilo que tirasse definitiva-
mente o cheiro de bebida da boca de um castigador de alcalinas.
Começou — é claro — pelos inventos americanos, como pílulas
de clorofila, chiclete, drops e outras bobagens de grande
aceitação no mercado e de nenhuma eficiência como tira-bafo.
Já na iminência de desistir, esse abnegado da ciência, certa
noite, antes de ir para casa caneado, passou na casa de um
conhecido para entregar uma encomenda. E este, na base da
gentileza, ofereceu uma cajuada. Como estivesse com sede, o
coleguinha de Pasteur aceitou ò refresco e, em seguida, foi pro
holocausto, digo, foi pra casa. E qual não foi a sua surpresa
quando, ao chegar e beijar a megera, digo, a esposa,, ouviu da
boca desta o elogio: "Sim senhor, assim é que eu gosto. Você
hoje não está cheirando a bebida"
O pesquisador, tal como o já referido Almirante Cabral ao
descobrir a gente, descobriu a fórmula do. engana esposa por
acaso. Submeteu o caldo de caju aos mais severos testes — que
nem os americanos fazem com foguete, em Canaveral — e deu
sempre certo, ao contrário dos foguetes. Chegou a bochechar
com "Olho D'água", que é cachaça de persistente aroma,
mastigando um caju em seguida e indo para casa, onde, num
rasgo de confiança no progresso da ciência, soprava o nariz da
mulher, sem que esta sequer percebesse bulhufas. Homem reco-
nhecido, inventou a expressão hoje universal: caju amigo.
Podíamos ainda enumerar indefinidamente outras vantagens
do caju, mas vamos parar por aqui, pois ele é uma riqueza do
Brasil e — depois que os contrabandistas do café foram pilhados
— é bem possível que os vivaldinos, sempre dispostos a dar
beliscão em fumaça, se voltem para o caju e passem a
contrabandeá-lo.
CONTO POLICIAL

TIA Zulmira agora deu pra isso: virou uma espécie de


Agatha Christie da Boca do Mato e resolveu escrever contos
policiais. Tá na cara que a sábia parenta tem, sobre sua
coleguinha citada, a vantagem de não ser inglesa metida a nobre,
que é gente mais mascarada do que — por exemplo — dono de
armazém de secos e molhados, quando o Vasco é campeão. De
mais a mais, a cultura da experiente macróbia é tal que compará-
la a uma simples Agatha Christie é até falta de respeito. Deus
nos livre de ela vir a saber que seu sobrinho fez a comparação.
Ficaria tão magoada que poucas possibilidades teríamos de
freqüentar o suculento breakfast de sua aprazível mansão, pelo
menos no correr deste resto de 1961, tempo bastante para
arrefecer seu amuo.
Mas deixemos de conjeturar possibilidades e firmemos o
assunto no terreno fértil dos acontecimentos. A velha resolveu
escrever contos policiais e, ainda ontem, durante a farta
distribuição de "mãe--benta" que ela fez ao café, roubamos um
desses contos que por sua vez, confessa ela, foi roubado de uma
idéia do coleguinha panamenho Roque Laurenza.
Tal como em filme de Hitchcock, em geral chatíssimos,
ninguém pode entrar na sala de projeção depois do conto
começado. É que Tia Zulmira é de uma sutileza bárbara e o
conto — para ser entendido — precisa de duas coisas: que o
leitor seja atento e, de preferência, que não seja débil mental.

"Eram mais ou menos 2 horas da madrugada, quando a porta


se abriu e uma lufada de vento entrou pela sala, espalhando os
papéis que estavam sobre a mesa. Atrás do vento entrou um
homem horrível, com cara de macaco, orelhas grandes e cabe-
ludas. Seu olhar era de faminto e sua expressão era a de um
louco. Imenso, deu dois passos em direção ao .dono da casa e,
estendendo a mão enorme, disse com voz rouca: — Eu quero
comer.
O escritor, que estava escrevendo em sua pequena máquina
portátil, levantou-se apavorado e caiu no chão, fulminado por
um ataque cardíaco. Aquele que entrara tão abruptamente, ficou
indeciso no meio da sala, sem saber se pisava no tapete
imaculadamente limpo com seus sapatos cambaios e sujos de
barro, se. socorria o outro ou se dava o fora. Acabou optando
pela última hipótese: atravessou a sala, apanhou um prato cheio
de sanduíches, que estava ao lado da máquina de escrever, e saiu
correndo, sem ter o cuidado de fechar a porta.
No dia seguinte, pela manhã, a empregada encontrou o
cadáver do escritor e chamou a Polícia. Pouco tinha ã declarar.
Ao comissário Jeff Thomas (famoso na localidade por jamais ter
descoberto nenhum criminoso), explicou que chegara pela
manhã, para o serviço, e encontrara o patrão morto. Trabalhava
para ele havia mais de um ano e pouco sabia a seu respeito. Era
escritor de contos de terror, que uma empresa americana editava
com êxito. Sofria do coração e era um homem excêntrico.
Morava sozinho naquela casa afastada da cidade e só recebia, de
raro em raro, a visita do editor ou do médico, que o examinava
regularmente. Não parecia ter inimigos, mas estava sempre com
ar soturno, como a imaginar os personagens de seus contos mis-
teriosos.
Jeff Thomas botou o cachimbo apagado no bolso (nunca
fumava; usava cachimbo porque ouvira dizer que todo policial
inglês usa cachimbo), agradeceu à empregada os
esclarecimentos prestados, que, por sinal, não esclareciam nada,
e pegou o laudo médico que o legista acabara de assinar. Lá
estava: morte natural (colapso cardíaco). Jeff sentiu que o caso
estava encerrado. Embora estivesse certo de que alguém entrara
naquela sala antes da empregada. O tapete sujo de lama (fora
limpo na véspera, segundo a empregada), a porta escancarada,
mesmo com o frio que fizera na noite anterior, o
desaparecimento de um prato cheio de sanduíches, que a
empregada garantiu que colocara ao lado da máquina do escritor
— tudo isso lhe dava a certeza de que, naquele caso, havia um
mistério qualquer.
Jeff gostava de ser detetive, mas não gostava de se chatear.
O homem morrera do coração, não havia suspeitos, logo o
melhor era mandar o corpo para o necrotério e avisar a família.
Deu esta ordem aos seus auxiliares e — apenas por desencargo
de consciência — apanhou o papel que estava na máquina de
escrever, para juntar ao relatório que seria obrigado a fazer.
Eram as últimas palavras escritas pelo escritor falecido. Jeff leu
e não deu qualquer importância. Era, por certo, o início de mais
uma história de terror e começava assim:
"Eram mais ou menos 2 horas da madrugada, quando a porta
se abriu e uma lufada de vento entrou pela sala, espalhando os
papéis que estavam sobre a mesa. Atrás do vento entrou um
homem horrível, com cara de macaco, orelhas grandes e
cabeludas. Seu olhar era de faminto e sua expressão era a de um
louco. Imenso, deu dois passos em direção ao dono da casa e,
estendendo a mão enorme, disse com voz rouca: — Eu quero
comer."
"AO MORRER SORRINDO”

"MORREU, acabou-se" — ledo engano. Morreu, começa o


problema, porque já não há mais lugar onde enterrar o falecido.
"Vocês desculpem tratar de um assunto tão funesto, mas é que,
de uns tempos para cá, não o sentimos, tão macabro assim,
graças a um amigo que é agente funerário. Foi ele quem,
acostumado ao trato das cerimônias fúnebres, acabou nos
convencendo de que, tirante a família do morto, ninguém tem
nada a perder quando um cidadão abotoa o paletó pela última
vez. Pelo contrário, ser agente funerário é um alto negócio.
Tudo começou na praia, em Santos. Estávamos na
companhia desse amigo, esquentando ao sol, quando apareceu
um cadáver boiando sobre as ondas. O pessoal foi todo pra beira
do mar espiar e ele, de repente, disse como quem fala para si
mesmo: "Tomara que a corrente não leve para São Vicente."
Estranhamos aquele desejo e ele então explicou que existiam
duas agências funerárias em Santos: a dele e a de um rival.
Como a clientela não visse com bons olhos a concorrência entre
os dois, nem fosse hábito familiar abrir concorrência para
enterrar ninguém, tinham resolvido dividir a cidade em dois
campos:
— Quem morre do lado de lá é dele, quem morre do lado de
cá é meu — esclareceu.
Aquele freguês, que boiava nas ondas, se viesse a dar à praia
ali, era dele. Mas se a corrente o levasse para São Vicente,
perdia o negócio, pois a jurisdição era do rival. Daí o seu desejo
de que as ondas trouxessem logo para a areia aquele que boiava
lá fora da arrebentação.
Olhava para o cadáver sem placidez nem ganância, como um
quitandeiro olha as verduras, um pianista, o piano ou um
joalheiro, as jóias. Era o seu negócio que boiava ali perto.
Esse agente funerário de Santos, nosso amigo, homem jovial
e excelente companheiro em qualquer circunstância, alguns anos
depois chegava ao ápice da carreira, quando o Governo do
Estado nomeou-o para dirigir o SFC (Serviço Fúnebre da
Capital), autarquia que se responsabiliza pelos enterros em São
Paulo. Estava aqui o distinto caçando na selva paulista,
amoitado num bar, esperando a caça passar, quando o' antigo
agente funerário nos encontrou.
Explicou sua condição de diretor autárquico, explicou que lá
em São Paulo não é como no Rio, onde os serviços funerários
pertencem, sem concorrência, à Santa Casa, explicou mais uma
porção de coisas e, depois, convidou a gente para fazer uma
visita ao SFC. Como a caça não passasse, aceitamos o convite e
visitamos fartamente o dito serviço.
Ele se mostrou excelente cicerone, levando a visita às
diversas salas, demonstrando por que o caixão de peroba é
melhor do que o caixão de pinho e mostrando os melhoramentos
introduzidos, tais como caixão de terceira forradinho de
capitonê, travesseiro com recheio de capim cheiroso, para
caixões de primeira etc. etc. Isto sem contar com os truques que
sua experiência lhe ensinara. Por exemplo: quando morre um
político eminente, o número de puxa-sacos que quer ajudar a
levar õ caixão é enorme e, neste caso, em vez das clássicas alças
douradas — três à esquerda, três à direita, como manda o
figurino — o caixão deve ter um varal de cada lado, pra caber
mais mão de puxa, na hora do embarque.
— Quando assumi a direção deste serviço, isto aqui era uma
lástima. Os castiçais estavam caindo aos pedaços. Veja os
castiçais novos, que adquiri. Uma beleza, não são? — E, com
sinceridade na voz: — Agora já pode um Matarazzo, um
Almeida Prado, um Lara Resende morrer sem susto, que
estamos aptos a servi-los.
Faz muito tempo que não vemos o nosso amigo, hoje
próspero. Certa vez nos contou que começara o negócio graças a
um vizinho que era coxo, desencarnara e fora vítima da
precipitação de outro agente funerário. Quando esse agente foi
medir o freguês para encomendar o caixão, já o encontrou na
sala, em cima da mesa, coberto por um lençol. Sem a devida
experiência, o agente não perguntou pra família se o falecido era
coxo. Resultado: mediu do alto da testa à ponta do pé, pela
perna mais curta e, quando o caixão chegou, não satisfazia às
medidas do freguês.
Foram comprar outro caixão para enterrar o vizinho, e ele,
que tinha uma tia velha já mais pra lá do que pra cá, mediu a
parenta disfarçadamente verificando que ela cabia dentro do
caixão recusado. Adquiriu a peça por preço de ocasião e
guardou na garagem. Um mês depois a tia embarcava nele.
Desse episódio ficou-lhe o gosto pelo negócio. Mas como
dizíamos, já vai pra algum tempo que não o vemos. A última
vez foi aqui no Rio, durante o velório de conhecido artista. Ele
compareceu como visita. Nada tinha a ver com o serviço de
bordo, mas nem por isso deixou de criticar certas deficiências.
Ao sair contou que — mais por carinho do que por necessidade
— ainda mantinha a agência funerária de Santos, que tinha um
nome dos mais convidativos: "Nossa Casa".
— Falar nisso, você poderia fazer um jingle de propaganda
para mim? — perguntou.
E, ao perceber nosso espanto, explicou que estava fazendo
uma grande remarcação no estoque e precisava anunciar a
liquidação. E tanto chateou que fizemos o jingle. Não sabemos
se tocou no rádio, mas ainda nos lembramos bem: a música era
aquela da cançãozinha de Teresinha de Jesus, de uma queda foi
ao chão etc. etc. A letra era assim:
Funerária "Nossa Casa" Tem caixão de alça dourada
Adquira um hoje mesmo Por um preço camarada.
Se vocês estão pensando que existe exagero de nossa parte,
ao descrever o trato jovial que nosso amigo tem, para com as
coisas fúnebres, estão muito enganados. Ele não é o único,
inclusive. Em Recife, recentemente, a Prefeitura negou a um
agente funerário o nome de "Ao Morrer Sorrindo", para sua casa
de vender pijama de madeira. E aqui mesmo no Rio, há pouco
tempo, um cavalheiro botava o seguinte anúncio, em "O Globo":
"Sepultura Perpétua — Cedo direitos de uma, na parte plana do
Cemitério São João Batista, por Cr$ 1 600 000,00, ou troco por
apartamento de sala, 2 quartos, na Zona Sul. Favor ligar para 22-
0387 ou procurar informações na Avenida Rio Branco 173 —
sala 1306."
Isto prova que, em algum lugar do Rio, há um camarada que
prefere viver melhor a ter conforto depois da morte. É,
companheiros, o Rio cresceu tanto que morrer agora é um
problema. O camarada do anúncio está pouco se incomodando
com o que possa lhe acontecer depois de pisar no prego e es-
vaziar de todo. Quer seu apartamentinho de dois quartos na
Zona Sul, que não é a residência ideal, mas sempre é melhor do
que morar em pensão, para poder descansar no meio dos
bacanos, depois de devidamente empacotado.
O Rio cresceu — repetimos — e cresceu pra todo lado e pra
cima também. Principalmente pra cima. Este detalhe é que deve
ter dado a idéia ao arquiteto Wladimir Alves de Sousa, para
resolver o problema dos cemitérios cariocas. O Governador, que
ultimamente tem perseguido os demasiadamente vivos, está
preocupado com os demasiadamente mortos; tão mortos que não
têm onde cair idem. E aqui parece que encontra a solução.
Leiam a notícia, tal e qual saiu no jornal:
"A construção de edifícios de 15 andares, com todos os
requisitos de higiene, para instalação de sepulturas e ossários,
foi proposta ao Governador pelo arquiteto Wladimir Alves de
Sousa. O arquiteto acha que seu plano de cemitérios verticais,
apresentado junto com gráficos, croquis e mapas, será a solução
para o problema de espaço nos cemitérios do Estado."
Você aí, que é carioca, sente o drama, vá! Talvez seja você o
defunto que vai inaugurar a coisa. Será a primeira vez na
História que uma pessoa, depois de morta, é enterrada para
cima.

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