Você está na página 1de 290

DADOS DE ODINRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e


seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer
conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da
obra, com o fim exclusivo de compra futura.

É expressamente proibida e totalmente repudíavel a


venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente
conteúdo.

Sobre nós:

O eLivros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de


dominio publico e propriedade intelectual de forma
totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e
a educação devem ser acessíveis e livres a toda e
qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em
nosso site: eLivros.

Como posso contribuir?

Você pode ajudar contribuindo de várias maneiras,


enviando livros para gente postar Envie um livro ;)

Ou ainda podendo ajudar financeiramente a pagar custo


de servidores e obras que compramos para postar, faça
uma doação aqui :)

"Quando o mundo estiver unido na busca do


conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir
a um novo nível."

eLivros .love

Converted by convertEPub
Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Mapa
Prefácio

Dolores Claiborne
Livro de recortes

Sobre o autor
Créditos
Para a minha mãe,
Ruth Pillsbury King
O que uma mulher quer?
Sigmund Freud

R-E-S-P-E-C-T, find out what it means to me.


Aretha Franklin
prefácio

Na região noroeste do Maine, na área conhecida como Lakes District, a


cidadezinha de Sharbot se curva como uma lua crescente em volta de um
belo corpo d’água chamado lago Dark Score. O Dark Score é um dos lagos
mais profundos da Nova Inglaterra, com mais de noventa metros em
algumas partes. Dizem que certos moradores da região já alegaram que o
lago não tem fundo… mas normalmente só depois de algumas cervejas
(em Sharbot, seis cervejas são consideradas “algumas”).
Se fosse para desenhar uma linha reta pelo mapa do estado do noroeste
para o sudeste a partir do pontinho cartográfico que representa Sharbot e
continuando pelo ponto maior que marca a cidade de Bangor, acabaríamos
no menor ponto de todos: um grão verde pequenininho no Atlântico, a uns
25 quilômetros de Bar Harbor. Esse grãozinho verde é a ilha Little Tall,
com uma população de 204 pessoas de acordo com o censo de 1990, uma
queda em relação ao recorde de 527 no censo de 1960.
Essas duas comunidades minúsculas, com uma distância exata de 225
quilômetros uma da outra, ladeiam os aspectos marítimo e costeiro do
maior estado da Nova Inglaterra como um par de suporte de livros
qualquer. Não têm nada em comum; seria bem difícil, na verdade,
encontrar um cidadão em alguma das duas que tivesse algum
conhecimento da outra.
Mas, no verão de 1963, o último antes de os Estados Unidos (e o mundo
todo) serem mudados para sempre por uma bala assassina, Sharbot e Little
Tall foram ligadas por um fenômeno celestial impressionante: o último
eclipse total visível no norte da Nova Inglaterra até o ano de 2016.
Tanto Sharbot, no extremo oeste do Maine, quanto a ilha Little Tall, na
região mais a leste do estado, ficaram no caminho da totalidade do eclipse.
E, embora mais de metade das cidades na trilha do fenômeno tenha tido a
visão bloqueada por nuvens baixas naquele dia parado e úmido, tanto
Sharbot quanto Little Tall tiveram condições de visibilidade perfeitas. Para
os residentes de Sharbot, o eclipse começou às 16h29, horário local; para
os residentes de Little Tall, às 16h34. O período de totalidade que
percorreu o estado durou quase três minutos exatos. Em Sharbot, a
escuridão total foi de 17h39 até 17h41; e em Little Tall, de 17h42 até quase
17h43, um período de 59 segundos, na verdade.
Quando essa escuridão estranha se espalhou pelo estado, as estrelas
apareceram e preencheram o céu diurno; os pássaros foram para os ninhos;
morcegos voaram sem destino certo acima de chaminés; e vacas se
deitaram nos campos onde estavam pastando e foram dormir. O sol se
tornou um anel ardente no céu e, quando o mundo dentro daquela faixa de
escuridão nada natural ficou suspenso e silencioso e os grilos começaram a
cantar, duas pessoas que jamais se encontrariam sentiram uma à outra, e se
viraram uma para a outra como as flores se voltam para o calor do sol.
Uma delas era uma garota chamada Jessie Mahout; ela estava em
Sharbot, no oeste do estado. A outra era uma mãe de três filhos chamada
Dolores St. George; ela estava na ilha Little Tall, no leste do estado.
As duas ouviram corujas piarem durante o dia. As duas ficaram em vales
profundos de terror, geografias de pesadelo das quais acreditaram que
nunca falariam. As duas acharam que a escuridão fora totalmente
adequada, e agradeceram a Deus por aquilo.
Jessie Mahout se casaria com um homem chamado Gerald Burlingame,
e a história dela é contada em Jogo perigoso. Dolores St. George voltaria a
assumir o nome de solteira, Dolores Claiborne, e conta a própria história
nas páginas a seguir. As duas histórias são de mulheres atravessadas pelo
eclipse e como elas emergem da escuridão.
O que você perguntou, Andy Bissette?
Se eu “entendo esses direitos que você acabou de explicar pra mim”?
Pelo amor de Deus! Por que será que alguns homens são tão perdidos?
Não, você fica quieto aí… fecha essa matraca e me escuta um pouco.
Tenho a sensação de que vai me ouvir boa parte da noite, então é melhor já
ir se acostumando. Porque eu entendo o que você acabou de ler! Tenho cara
de ter perdido os miolos desde que te vi no mercado? Foi na segunda à
tarde, caso tenha esquecido. Eu falei que a sua esposa ia arrancar o seu
couro por comprar pão dormido. Como se diz por aí, é economia burra, e
aposto que eu estava certa, né?
Entendo os meus direitos direitinho, Andy; a minha mãe não criou
nenhuma idiota. Também entendo as minhas responsabilidades, que Deus
me ajude.
Qualquer coisa que eu diga pode ser usada contra mim no tribunal, é?
Uau, as surpresas não têm fim! E pode arrancar esse sorrisinho da cara,
Frank Proulx. Você pode até ser um policial importante na cidade agora,
mas não faz muito tempo desde que eu te vi correndo por aí de fralda
cagada com o mesmo sorriso idiota. Vou dar um conselhinho: quando se
meter com uma bruxa velha como eu, é melhor dar uma segurada. Consigo
te entender melhor do que uma propaganda de calcinha num catálogo
qualquer.
Maravilha, já nos divertimos; melhor irmos direto ao ponto. Vou contar
a vocês três um monte de coisas, e vou começar agora; um monte dessas
coisas provavelmente poderia ser usada contra mim em um tribunal se, a
esta altura, alguém quisesse. A piada é que o pessoal da ilha já sabe da
maior parte, e eu já estou cagando faz tempo, como o velho Neely
Robichaud dizia quando enchia a cara. O que acontecia o tempo todo,
como qualquer um que o conhecia poderia atestar.
Mas eu me importo com uma coisa, e é por isso que vim aqui por conta
própria. Eu não matei aquela filha da puta da Vera Donovan, e
independentemente do que você acha agora, pretendo fazer com que
acredite em mim. Não a empurrei daquela merda de escada. Tudo bem se
quiser me trancafiar pelo outro, mas não tenho nem uma gota do sangue
daquela filha da puta nas mãos. E acho que você vai acreditar em mim
quando eu terminar, Andy. Você sempre foi um bom garoto, ou pelo menos
o melhor que um garoto pode ser — estou falando que você é justo, virou
um homem decente. Mas não deixe subir à cabeça; você cresceu igual a
todos os outros homens, com uma mulher que lava as suas roupas, limpa o
seu nariz e te coloca no caminho certo quando você toma a direção errada.
Mais um detalhe antes de começarmos: eu te conheço, Andy, e Frank,
claro, mas quem é essa mulher aí com o gravador?
Meu Jesus, Andy, eu sei que ela é a estenógrafa! Não acabei de falar que a
minha mãe não criou nenhuma idiota? Posso até estar na beirada dos
sessenta e seis anos em novembro, mas a cabeça ainda funciona. Sei que
uma mulher com um gravador e um bloco é uma estenógrafa. Assisto a
todos os programas de tribunal, até aquele L.A. Law em que ninguém
consegue ficar de roupa por mais de quinze minutos.
Qual o seu nome, meu bem?
Aham… e de onde você é?
Ah, para, Andy! O que mais você tem pra fazer hoje? Por acaso estava
planejando ir até o litoral ver se tem gente pegando marisco sem
permissão? Acho que seria mais agitação do que o seu coração aguenta, né?
Rá!
Isso. Assim é melhor. Você é Nancy Bannister de Kennebunk, e eu sou
Dolores Claiborne, bem daqui, da ilha Little Tall. Já disse que vou fazer um
festival de tanto falar até terminarmos aqui, e você vai ver que eu não
estava mentindo nadinha. Se precisar que eu fale mais alto ou mais
devagar, é só dizer. Não precisa ficar com vergonha de mim. Quero que
anote cada palavrinha, começando com isto: vinte e nove anos atrás,
quando o chefe de polícia Bissette aqui estava no primeiro ano e ainda
comia meleca, eu matei o meu marido, Joe St. George.
Estou sentindo uma corrente de ar aqui, Andy. Talvez pare se você
fechar essa matraca de merda. Não sei por que a cara de surpresa. Você
sabe que eu matei Joe. Todo mundo em Little Tall sabe, e provavelmente
metade das pessoas do outro lado do mar em Jonesport também. É só que
ninguém conseguiu provar. E eu não estaria aqui agora, admitindo na
frente de Frank Proulx e Nancy Bannister de Kennebunk, se não fosse
aquela idiota filha da puta da Vera e aquelas cretinices de sempre dela.
Bom, ela nunca mais vai fazer nenhuma, né? Tem isso de consolo, pelo
menos.
Chega esse gravador um pouco mais pra perto de mim, Nancy, meu bem.
Se é pra fazer, vamos fazer direito, pode ter certeza. Esses japoneses não
fazem umas coisinhas danadas? Fazem demais… mas acho que nós duas
sabemos que o que vai na fita dentro desse aparelhinho pode me deixar na
prisão pelo resto da minha vida. Só que eu não tenho escolha. Juro por
Deus que sempre soube que Vera Donovan seria o meu fim, soube desde a
primeira vez que a vi. E olha o que ela fez, olha só o que a velha filha da
puta fez comigo. Dessa vez, ela peidou na farofa. Mas é o que os ricos
fazem; se não podem te matar no chute, matam com beijos carinhosos.
O quê?
Ah, Deus! Eu vou chegar lá, Andy, me dá um pouco de paz! Só estou
tentando decidir se devo contar de trás pra frente ou de frente pra trás.
Será que não dá pra eu tomar alguma coisinha?
Ah, não me venha com café! Pega o jarro todo e enfia no seu fiofó. Se
você é canguinha demais pra me dar um gole daquela birita que você
guarda na gaveta, então me traz um copo de água. Eu não…
Como assim “como eu sei disso”? Ué, Andy Bissette, assim qualquer
pessoa pode achar que você nasceu de uma caixinha de biscoitos ontem.
Acha que eu ter matado o meu marido é a única coisa que essa gente aqui
da ilha tem pra falar? Ora, isso é notícia antiga. Já você… você ainda tem
umas novidades pra contar.
Obrigada, Frank. Você sempre foi um bom garoto também, apesar de ter
sido difícil até olhar pra você na igreja antes da sua mãe te curar daquele
hábito de ficar cutucando o nariz. Deus, às vezes você enfiava o dedo tão
fundo que não sei como não saía o cérebro junto. E por que está ficando
vermelho? Não tem uma criança no mundo que não limpa o salão de vez
em quando. Pelo menos você sabia que não era pra ficar com a mão enfiada
na calça mexendo nas bolas, ao menos na igreja, e tem um monte de
garotos que nunca…
Tudo bem, Andy, já entendi. Eu vou contar. Credo, você nunca aprendeu a
ter paciência, né?
Olha só: vamos fazer um acordo. Em vez de contar de trás pra frente ou
de frente pra trás, vou começar na metade e seguir nas duas direções. Se
você não gostar, Andy Bissette, pode anotar na sua lista de reclamações e
enviar para o capelão.
Eu e Joe tivemos três filhos, e quando ele morreu, no verão de 1963,
Selena tinha quinze, Joe Junior tinha treze e o pequeno Pete tinha só nove.
Bom, Joe não me deixou nem um penico…
Acho que você vai ter que consertar algumas partes, né, Nancy? Eu sou
só uma velha mal-humorada e boca-suja, mas é isso que acontece quando a
gente tem uma vida difícil.
Onde eu estava? Não me perdi, né?
Ah, sim. Obrigada, meu bem.
O que Joe deixou pra mim foi aquela casinha modesta perto de East
Head e dois hectares e meio de terra, a maior parte de arbustos de amora e
o tipo de mato que cresce depois de uma operação de desmatamento. O
que mais? Vamos ver. Três veículos que não funcionavam, duas picapes e
um transportador de celulose, quinze metros cúbicos de madeira e uma
dívida no mercado, uma na loja de materiais de construção, uma no posto
de gasolina e uma na funerária… e quer saber qual é a cereja da porra do
bolo? Não fazia nem uma semana que ele estava enterrado quando aquele
pé de cana do Harry Doucette apareceu com uma porcaria de cobrança
dizendo que Joe devia vinte dólares de uma aposta de beisebol!
Ele me deixou isso tudo, mas vocês acham que deixou algum dinheiro de
seguro? Nananinanão! Se bem que talvez isso tenha sido uma bênção
disfarçada, no fim das contas. Acho que vou chegar nessa parte antes de
terminar, mas o que estou tentando dizer é que Joe St. George não era
homem de verdade; era uma porra de pedra que eu carregava pendurada no
pescoço. Pior, até, porque uma pedra não fica bêbada e volta pra casa
fedendo a cerveja e querendo meter em você à uma da manhã. Nada disso
foi o motivo pra eu ter matado aquele filho de uma quenga, mas acho que é
um bom lugar pra começar.
Uma ilha não é um bom lugar pra matar ninguém, isso eu posso provar.
Parece que sempre tem gente por perto, se coçando pra meter o nariz nas
suas coisas quando você menos pode ser dar ao luxo. Foi por isso que fiz na
hora que fiz, e vou chegar nessa parte também. Por enquanto, basta dizer
que fiz uns três anos depois que o marido de Vera Donovan morreu em um
acidente de carro perto de Baltimore, que era onde os dois moravam
quando não estavam passando o verão em Little Tall. Naquela época, a
maioria dos parafusos da Vera ainda estava no lugar.
Com Joe fora da jogada e nenhuma fonte de renda, fiquei encrencada,
veja bem… Acho que ninguém no mundo fica tão desesperado quanto uma
mulher sozinha com filhos que dependem dela. Eu tinha decidido que era
melhor atravessar o mar e ver se conseguia um emprego em Jonesport, de
caixa em algum supermercado ou de garçonete em um restaurante, quando
aquela piranha de repente decidiu que ia morar na ilha o ano todo. Quase
todo mundo achou que ela estava doida, mas não fiquei tão surpresa;
naquela época, ela já estava passando muito tempo aqui.
O sujeito que trabalhava pra ela na época, não lembro o nome dele, mas
você sabe de quem estou falando, Andy, aquele cara burro que sempre
usava a calça apertada pra mostrar que tinha bolas maiores do que potes de
geleia, ele me ligou e disse que A Dona (era assim que a chamava, A Dona;
nossa, como ele era burro) queria saber se eu aceitava trabalhar pra ela em
tempo integral como empregada. Bom, eu tinha feito trabalhos de verão
pra família desde 1950, e acho que era bem natural que ela me ligasse antes
de falar com outra pessoa, mas na época pareceu a resposta para todas as
minhas orações. Eu aceitei na hora e trabalhei pra ela até ontem à tarde,
quando a mulher caiu da escada e bateu a cabeça oca dela.
O marido dela trabalhava com o que mesmo, Andy? Aviões, não era?
Ah. É, acho que eu ouvi falar disso, mas você sabe como as pessoas da
ilha são. A minha única certeza é a de que ele tinha uma vida confortável,
bem confortável, e ela ficou com tudo quando o homem morreu. Menos o
que o governo levou, óbvio, e duvido que tenha chegado perto do que
deveria. Michael Donovan era inteligente. E malandro. E apesar de todo
mundo se levar pelo jeito dela nos últimos dez anos, Vera era tão malandra
quanto ele… e teve os seus dias de malandragem até morrer. Será que ela
sabia em que tipo de encrenca ia me enfiar se fizesse qualquer coisa além
de morrer na cama de um belo e tranquilo ataque cardíaco? Passei o dia
quase todo em East Head, sentada naquela escada bamba e pensando
nisso… nisso e em umas outras cem coisas. Primeiro, achei que não, já que
uma tigela de aveia tem mais cérebro do que Vera Donovan no fim, mas aí
eu lembrei como ela era com o aspirador e pensei que talvez… é, talvez…
Mas isso não importa mais. A única coisa que importa é que eu pulei da
frigideira para o fogo, e adoraria sair fora antes de queimar mais a bunda.
Se é que ainda é possível.
Eu comecei como empregada de Vera Donovan e acabei como algo que
chamam de “cuidadora”. Não demorei muito pra entender a diferença.
Como empregada da Vera, eu tinha que aguentar merda oito horas por dia,
cinco dias por semana. Como cuidadora, tinha que aguentar vinte e quatro
horas por dia.
Ela teve o primeiro derrame no verão de 1968, enquanto assistia à
Convenção Nacional Democrática em Chicago na televisão. Esse foi
pequeno, e ela botava a culpa em Hubert Humphrey.
“Chegou ao ponto em que eu tinha olhado pra aquele babaca feliz vezes
demais, e aí um vaso sanguíneo estourou”, disse ela. “Eu devia saber que ia
acontecer, e poderia muito bem ter sido Nixon.”
Ela teve outro maior em 1975, e nessa época não havia político nenhum
pra ela culpar. O dr. Freneau a aconselhou a parar de fumar e beber, mas
teria sido melhor poupar as palavras: nenhuma bonitona arrogante como
Vera Não Gostou Enfia No Cu Donovan ia dar atenção a um médico de
interior como Chip Freneau.
“Eu vou enterrar ele e tomar um uísque com soda sentada na lápide”,
dizia ela.
Por um tempo, parecia que ia ser isso mesmo: ele a repreendia, e Vera
continuava velejando como se fosse o Queen Mary. Aí, em 1981, ela teve o
primeiro derrame grande, e o bonitão morreu em um acidente de carro no
continente no ano seguinte. Foi nessa época que fui morar com ela, em
outubro de 1982.
Eu precisava? Sei lá. Acho que não. Tinha o meu Seguro Sociável, como
a velha Hattie McLeod chamava. Não era muito, mas as crianças já tinham
partido — o pequeno Pete da face da Terra, coitadinho — e eu tinha
conseguido guardar uma graninha. Morar na ilha sempre foi barato, e
apesar de não ser mais como antes, ainda é muito melhor do que morar no
continente. Então, acho que eu não precisava ir morar com a Vera, não.
Mas àquela altura a gente já estava acostumada uma com a outra. É
difícil explicar pra um homem. Eu esperaria que a Nancy aqui com os
blocos, as canetas e o gravador entendesse, mas acho que ela não pode
falar. A gente estava acostumada uma com a outra do mesmo jeito que eu
acho que dois morcegos velhos se acostumam a ficar pendurados de cabeça
pra baixo ao lado um do outro na mesma caverna, apesar de estarem longe
de ser melhores amigos. E não foi uma grande mudança. Pendurar as
minhas roupas de domingo no armário ao lado dos meus vestidos de ficar
em casa foi a maior mudança, porque no outono de 1982 eu já ficava lá o
dia todo e na maioria das noites. Eu ganhava um pouco melhor, mas não
tanto a ponto de ter dado entrada no meu primeiro Cadillac, se é que você
me entende. Rá!
Acho que eu fui mais porque não havia mais ninguém. Ela tinha um
gerente em Nova York, um homem chamado Greenbush, mas Greenbush
não ia pra Little Tall pra ela poder gritar da janela do quarto pra ele não
deixar de usar seis pregadores na hora de pendurar o lençol, e não quatro, e
ele também não ia se mudar para o quarto de hóspedes e trocar a fralda
dela e limpar a merda daquela bunda gorda enquanto ela o acusava de
roubar as moedas da porcaria do porquinho de porcelana e dizia que o
colocaria na cadeia por isso. Greenbush mandava os cheques; eu limpava a
merda e a ouvia delirar sobre os lençóis, as bolinhas de poeira e a porcaria
do porquinho de porcelana.
E daí? Não quero nenhuma medalha por tudo isso, nem mesmo um
Purple Heart. Já limpei muita merda na vida, ouvi mais merda ainda (fui
casada com Joe St. George por dezesseis anos, lembra?), e nunca fiquei
doente por isso. Acho que, no fim das contas, continuei com Vera porque
ela não tinha mais ninguém; era eu ou o asilo. Os filhos nunca iam vê-la, e
eu ficava com pena. Não pensem que era o que eu esperava, porque não
era; eu não entendia por que não podiam deixar de lado o ranço dos velhos
tempos, fosse qual fosse, pra ir de vez em quando passar um dia ou talvez
um fim de semana com ela. Vera era uma filha da puta desgraçada, sem
dúvida, mas era a mãe deles. E estava velha. Claro que hoje eu vejo as coisas
com muito mais clareza do que na época, mas…
O quê?
Sim, é verdade. Juro pela minha mãe mortinha, como os meus netos
gostam de dizer. Pode ligar para o tal Greenbush se não acredita em mim.
Imagino que, quando a notícia se espalhar, e vai se espalhar, sempre se
espalha, vão escrever um daqueles artigos melosos no Daily News de Bangor
dizendo como tudo é maravilhoso. Bom, eu tenho novidades: não é
maravilhoso. É um pesadelo. Seja lá o que aconteça aqui, vão dizer que fiz
lavagem cerebral na Vera pra ela fazer o que fez e que depois a matei. Eu
sei, Andy, e você também sabe. Não tem poder no Céu nem na Terra que
possa impedir as pessoas de pensarem o pior quando querem pensar o pior.
Bom, nadinha disso é verdade. Eu não a forcei a fazer nada, e ela não fez
o que fez porque me amava, afinal nem gostava de mim. Acho que talvez
tenha feito por achar que me devia algo. Do jeito peculiar dela, poderia ter
pensado que me devia muita coisa, e não teria sido a cara dela falar alguma
coisa. Pode até ser que o que fez foi o seu jeito de me agradecer… não por
trocar as fraldas cagadas, mas por estar lá nas noites que os fios se soltavam
dos cantos e as bolinhas de poeira saíam de debaixo da cama.
Você não entendeu essa parte, eu sei, mas vai entender. Antes de abrir
aquela porta e sair desta sala, prometo que você vai entender tudo.
Ela tinha três jeitos de ser uma filha da puta. Conheço mulheres que
tinham mais, mas três é bom pra uma velha senil que ficava presa em uma
cadeira de rodas ou na cama durante a maior parte do tempo. Três é muito
bom pra uma mulher assim.
O primeiro jeito era quando ela era uma filha da puta porque não
conseguia se segurar. Lembra o que falei sobre os pregadores de roupas,
que eu tinha que usar seis pra pendurar lençóis e nunca só quatro? Bom,
isso é só um exemplo.
Havia certos jeitos como as coisas tinham que ser feitas se você
trabalhasse pra sra. Vera Não Gostou Enfia No Cu Donovan, e era bom que
você não esquecesse nenhum. Ela explicava como as coisas seriam logo de
cara, e eu sou a prova de que eram assim mesmo. Se esquecesse uma vez,
você ouvia até os seus tímpanos estourarem. Se esquecesse duas, ela
descontava do pagamento. Se esquecesse três, já era: você ia para o olho da
rua, e ela não ouviria nenhuma desculpa. Essa era a regra da Vera, e por
mim tudo bem. Eu achava rigorosa, mas justa. Se você ouvisse duas vezes
em que prateleira ela queria que o bolo fosse colocado quando saísse do
forno, e que não era nunca pra colocar no parapeito da cozinha pra esfriar,
como os irlandeses faziam, e você ainda assim não conseguisse lembrar,
havia uma boa chance de você nunca conseguir lembrar.
A regra era: três erros e rua. Não havia exceções, e eu trabalhei com
muitas pessoas diferentes naquela casa ao longo dos anos por causa disso.
Ouvi mais de uma vez que, no passado, trabalhar para os Donovans era
como entrar em uma daquelas portas giratórias. Você poderia dar uma
volta, ou duas — algumas pessoas chegavam a dar dez ou doze —, mas
sempre acabava jogado na calçada no final. Então, quando fui trabalhar pra
Vera, isso em 1949, fui como se estivesse prestes a entrar na caverna de um
dragão. Mas ela não era tão ruim quanto as pessoas gostavam de dizer. Se
você ficasse de ouvidos abertos, dava para se manter lá. Eu fiquei, e o
bonitão ficou também. Mas era preciso pisar em ovos o tempo todo, porque
ela era alerta, porque sempre sabia mais do que estava acontecendo com o
pessoal da ilha do que qualquer um dos turistas de veraneio… e porque
sabia ser cruel. Mesmo naquela época, antes de todos os problemas, ela
sabia ser cruel. Era tipo um hobby pra ela.
“O que está fazendo aqui?”, ela perguntou pra mim no primeiro dia.
“Não deveria estar cuidando daquele seu bebezinho e fazendo um jantar
caprichado pra tampa da sua panela?”
“A sra. Cullum fica feliz de cuidar da Selena quatro horas por dia”, falei.
“Eu só posso trabalhar meio período, senhora.”
“Eu só preciso de meio período, como acredito que o meu anúncio nessa
merda barata que alega ser um jornal dizia”, respondeu ela na lata… apenas
para me mostrar a ponta daquela língua ferina, mas não exatamente me
cortando como faria tantas vezes depois.
Pelo que lembro, Vera estava tricotando naquele dia. Aquela mulher
tricotava como um raio: um par de meias em um dia não era problema pra
ela, mesmo que começasse às dez da manhã. Mas dizia que tinha que estar
com humor pra isso.
“Sim’sora”, falei. “Dizia.”
“O meu nome não é ‘Sim’sora’”, retrucou ela, botando o tricô de lado. “É
Vera Donovan. Se eu te contratar, você vai me chamar de sra. Donovan,
pelo menos até nos conhecermos bem o bastante pra mudar, e eu vou te
chamar de Dolores. Está claro?”
“Sim, sra. Donovan.”
“Tudo bem, estamos começando bem. Agora, responda à pergunta. O
que está fazendo aqui se tem a sua casa pra cuidar, Dolores?”
“Quero ganhar um dinheirinho para o Natal”, expliquei. Eu já tinha
decidido no caminho que diria isso se ela perguntasse. “E, se eu for
satisfatória até lá, e se gostar de trabalhar pra senhora, claro, talvez eu fique
um pouco mais.”
“Se você gostar de trabalhar pra mim”, repetiu ela, e revirou os olhos
como se fosse a coisa mais idiota que já tinha ouvido. Como que alguém
poderia não gostar de trabalhar pra maravilhosa Vera Donovan? Então ela
repetiu: “Dinheirinho para o Natal”. Ela fez uma pausa, sem tirar os olhos
de mim, e disse de novo, ainda mais sarcástica: “Dinheirinho de Nataaaal!”.
Como se desconfiasse que eu estivesse lá porque mal tinha limpado os
grãos de arroz do cabelo e já estava tendo problemas no casamento, ela só
queria me ver corar e baixar os olhos pra ter certeza. Então não corei e não
baixei os olhos, apesar de só ter vinte e dois anos e ser quase aquilo.
Também não teria admitido pra ninguém que já estava tendo problemas;
não teria falado nem sob tortura. Dinheiro para o Natal estava bom pra
Vera, por mais sarcástico que fosse o seu modo de falar, e a única coisa que
eu admitiria pra mim mesma era que o dinheiro estava meio apertado
naquele verão. Só anos depois conseguiria admitir o verdadeiro motivo pra
eu ter ido enfrentar o dragão na toca naquele dia: precisava encontrar um
jeito de recuperar uma parte do dinheiro que Joe estava bebendo durante a
semana e perdendo nos jogos de pôquer de sexta à noite na Taverna do
Fudgy, no continente. Na época, eu ainda acreditava que o amor de um
homem por uma mulher e de uma mulher por um homem era mais forte
do que o amor pela bebida e pela confusão, que o amor acabaria vindo à
superfície, como a nata em uma garrafa de leite. Aprendi a verdade nos dez
anos seguintes. O mundo é uma sala de aula lamentável às vezes, não?
“Bom”, disse Vera, “vamos nos experimentar, Dolores St. George… se
bem que, mesmo que você dê certo, imagino que vai estar grávida de novo
em um ou dois anos, e depois eu não vou ver mais a sua cara.”
O fato era que eu já estava com dois meses de gravidez, mas também não
teria revelado isso nem sob tortura. Queria os dez dólares por semana que
o emprego pagava, e recebi, e pode acreditar quando digo que mereci cada
centavinho. Trabalhei como louca naquele verão, e quando chegou o Labor
Day, Vera me perguntou se eu queria continuar depois que eles voltassem
pra Baltimore, afinal uma casa grande daquelas precisa de alguém que
cuide dela o ano todo, sabe como é, então eu disse que tudo bem.
Fiquei no trabalho até um mês antes de Joe Junior nascer, e voltei antes
mesmo de ele ter largado a teta. No verão, eu o deixei com Arlene Cullum;
Vera não aceitava um bebê chorando em casa, não. Mas quando ela e o
marido iam embora, eu levava ele e Selena comigo. Selena podia ficar
sozinha quase sempre; mesmo com dois anos, quase três, ela era confiável
na maior parte do tempo. Joe Junior eu levava comigo nas atividades do dia.
Ele deu os primeiros passos na suíte principal, mas pode acreditar que Vera
nunca ficou sabendo.
Ela me ligou uma semana depois do parto (quase não mandei o anúncio
de nascimento, mas decidi que, se ela achasse que eu estava querendo
ganhar presente, o problema era dela), me deu parabéns por dar à luz um
filho e disse o que acho que realmente ligou pra dizer: estava segurando a
vaga pra mim. Acho que queria me lisonjear, e conseguiu. Era o maior
elogio que uma mulher como Vera pode fazer, e significou bem mais pra
mim do que o cheque de 25 dólares de bônus que recebi pelo correio em
dezembro daquele ano.
Ela era dura, mas justa, e naquela casa era sempre a chefe. O marido só
ficava lá um de cada dez dias mesmo, até no verão, quando os dois
supostamente moravam lá direto, mas quando ele estava, ainda dava pra
sentir quem mandava. Talvez ele tivesse duzentos ou trezentos executivos
que baixavam a calça cada vez que ele os mandava cagar, mas Vera era a
chefe na ilha Little Tall, e quando mandava que o marido tirasse os sapatos
e parasse de espalhar terra no tapete limpo, ele obedecia.
E como eu falei, ela tinha um jeito próprio de fazer as coisas. E se tinha!
Não sei de onde tirava as ideias, mas sei que Vera era prisioneira delas. Se as
coisas não eram feitas de certo jeito, ela tinha uma dor de cabeça ou dor de
barriga. Passava uma parte tão grande do dia verificando tudo que eu
pensei um monte de vezes que ela teria mais paz de espírito se tivesse
desistido e cuidado pessoalmente da casa.
Todas as banheiras tinham que ser esfregadas com Spic and Span, isso
era uma coisa. Nada de Lestoil, nem Top Job, nem Mr. Clean. Só Spic and
Span. Se ela visse você esfregando uma banheira com qualquer outro
produto era um Deus nos acuda.
Quando o assunto era passar roupa, você tinha que usar um spray
especial de goma nas golas das camisas e blusas, e havia um pedaço de gaze
que você tinha que colocar em cima da gola antes de borrifar. Pra mim, a
porcaria da gaze não tinha serventia nenhuma, e eu devo ter passado pelo
menos dez mil camisas e blusas naquela casa, mas, se ela entrasse na
lavanderia e visse que você estava passando camisas sem aquele pedacinho
de rede na gola, ou pelo menos pendurada na ponta da tábua de passar, era
um Deus nos acuda.
Se você não se lembrasse de ligar o exaustor na cozinha quando estava
fritando alguma coisa era um Deus nos acuda.
As latas de lixo na garagem, isso era outra coisa. Eram seis. Sonny Quist
ia uma vez por semana pegar o lixo orgânico, e a governanta ou uma das
empregadas, quem estivesse mais disponível, tinha que levar as latas de
volta pra garagem no mesmo minuto, no mesmo segundo que ele ia embora.
E não era pra arrastar até o canto e largar lá; elas tinham que ser
enfileiradas duas a duas na parede leste da garagem, com as tampas de
cabeça pra baixo. Se você se esquecesse de fazer assim era um Deus nos
acuda.
Também havia os capachos. Eram três: um na porta de entrada, um na
porta para o pátio e um na porta dos fundos, que tinha uma daquelas placas
arrogantes de entrada de serviço até o ano passado, quando me cansei de
bater os olhos nela e tirei. Uma vez por semana, eu precisava tirar os
capachos e colocar em uma pedra grande no fundo do quintal, ah, eu diria
a uns quarenta metros da piscina, e bater neles com uma vassoura pra tirar
a poeira. Tinha que fazer a poeira voar mesmo. E se você atrasasse, Vera
acabava pegando. Ela não olhava todas as vezes que você batia nos
capachos, mas olhava muitas vezes, sim. Parava no pátio com um binóculo
do marido. E a questão era que quando você levava os capachos de volta pra
casa, tinha que garantir que bem-vindo estava virado para o lado certo. O
lado certo era o que a pessoa chegando na porta, qualquer uma delas,
pudesse ler. Se você colocasse um capacho ao contrário era um Deus nos
acuda.
Devia haver mais de quarenta regrinhas dessas. Antigamente, quando
comecei como diarista, muita gente falava mal da Vera Donovan no
mercado. Os Donovans ganhavam bem, durante toda a década de 1950
tiveram muitos funcionários, e normalmente quem mais reclamava era
alguma garotinha que havia sido contratada pra trabalho de meio período e
foi demitida por esquecer uma das regras três vezes seguidas. Ficava
dizendo pra quem quisesse ouvir que Vera Donovan era uma morcega velha
cruel e de língua ferina, além de uma louca de pedra. Bom, talvez ela fosse
louca ou talvez não fosse, mas vou dizer uma coisa: se você lembrasse, ela
não pegava no seu pé. E o que penso é o seguinte: qualquer um que lembre
quem está dormindo com quem em todas aquelas novelas que passam de
tarde pode muito bem se lembrar de usar Spic and Span nas banheiras e
deixar os capachos virados para o lado certo.
Mas os lençóis. Ah, essa era uma coisa que você nunca ia querer errar.
Tinham que ser pendurados com perfeição nos varais, com as bordas
alinhadas, sabe? E tinha que ser com seis pregadores em cada um. Nunca
quatro, sempre seis. E se você arrastasse um na lama não precisaria nem
esperar errar três vezes. Os varais ficavam na lateral da casa, bem debaixo
da janela do quarto dela. Vera ia até a janela ano após ano e gritava:
“Seis pregadores, Dolores! Presta atenção aqui! Seis, não quatro! Estou
contando, e os meus olhos não envelheceram nada!”
Ela…
O quê, meu bem?
Ai, que saco, Andy. Deixa a mulher em paz. É uma boa pergunta, e uma
que nenhum homem pensaria em perguntar.
Eu vou te dizer, Nancy Bannister de Kennebunk, Maine: sim, ela tinha
secadora, uma das boas, grandona, mas nós éramos proibidas de colocar os
lençóis lá, a não ser que houvesse cinco dias de chuva na previsão.
“O único lençol que vale a pena ter na cama de uma pessoa decente é o
que secou a céu aberto”, ela dizia, “porque fica com um cheiro doce. Pega
um pouco do vento que o balança e guarda, e esse cheiro joga a gente no
mundo dos sonhos bons.”
Vera era cheia de frescura, mas não com o cheiro de ar fresco nos
lençóis; sobre isso eu achava que ela estava certíssima. Qualquer um sente
a diferença entre um lençol que secou na máquina e um sacudido por um
bom vento do sul. Mas havia muitas manhãs de inverno em que fazia
menos doze graus, e o vento vinha do leste forte e úmido, direto do
Atlântico. Em manhãs assim, eu abriria mão do cheiro doce sem um pio.
Pendurar lençóis no frio absoluto é uma espécie de tortura. Só sabe como é
quem já fez, e, quando se fez, você nunca esquece.
Você leva a cesta até o varal e o vapor sobe de cima, e o primeiro lençol
está quente, e talvez você pense — isso se nunca tiver feito aquilo antes —
Ah, até que não é tão ruim. Mas quando tiver pendurado o primeiro lençol e
ajeitado as bordas e colocado os seis pregadores, o tecido já parou de soltar
vapor. Ainda vai estar molhado, mas frio também. Os dedos ficam
molhados, frios. Mas você vai para o próximo, depois para o próximo,
depois para o próximo, e os seus dedos ficam vermelhos, lentos, e os
ombros doem, e a boca fica dormente de segurar os pregadores pra que as
suas mãos fiquem livres e ágeis o tempo todo, mas a maior parte da
infelicidade está ali, nos dedos. Se ficassem dormentes, tudo bem. A gente
até torce pra isso. Mas eles só ficam vermelhos, e se houver lençóis
suficientes, a pele adquire um tom roxo pálido, como as bordas de alguns
lírios. Quando você termina, as suas mãos viraram garras. Mas o pior é que
você sabe o que vai acontecer quando entrar com aquela cesta vazia e o
calor atingir as suas mãos. Elas começam a formigar, depois começam a
latejar nas juntas… só que é um sentimento tão profundo que está mais pra
chorar do que latejar; eu queria poder descrever pra que você soubesse,
Andy, mas não consigo. Nancy Bannister ali parece saber, pelo menos um
pouco, mas tem uma grande diferença entre pendurar as roupas no
continente no inverno e pendurar aqui na ilha. Quando os seus dedos
começam a se aquecer de novo, parece que tem um enxame de insetos
neles. Você os esfrega todinhos com algum creme pras mãos e espera que a
coceira passe, mas sabe que não importa quanto creme de loja ou
simplesmente sebo de carneiro esfregue; quando chegar o fim de fevereiro,
a pele vai estar tão rachada que vai se abrir e sangrar se você a fechar com
força. E às vezes, mesmo depois de você ter se aquecido de novo e talvez
até depois de ir pra cama, as suas mãos vão te acordar no meio da noite,
com a lembrança daquela dor. Você acha que estou brincando? Pode rir se
quiser, mas eu que não vou rir, nem um pouco. Quase dá pra ouvir as mãos,
como criancinhas que não conseguem encontrar a mãe. Vem lá de dentro,
e você fica deitada ouvindo, sabendo o tempo todo que vai lá pra fora de
novo mesmo assim, não pode fazer nada sobre isso, e é a parte do trabalho
de uma mulher do qual nenhum homem sabe ou quer saber.
E enquanto você passava por aquilo, as mãos dormentes, os dedos roxos,
os ombros doendo, com catarro escorrendo do nariz e congelando acima do
lábio superior, era bem comum que ela ficasse parada de pé ou sentada na
janela do quarto, olhando. A testa estaria franzida e os lábios repuxados e as
mãos apertando uma à outra. Toda tensa, como se fosse uma operação
hospitalar complicada em vez de só pendurar lençóis pra secar no vento de
inverno. Daria pra ver que ela estava tentando se segurar, ficar de boca
calada dessa vez, mas depois de um tempo não conseguiria mais, então
abriria a janela, se inclinaria pra fora de forma que o vento frio do leste
soprasse o cabelo dela pra trás e berraria:
“Seis pregadores! Se lembra de usar seis pregadores! Não deixa o vento
soprar os meus lençóis bons para o canto do quintal! Presta atenção! É melhor
que preste, porque eu estou olhando e estou contando!”
Quando março chegava, eu estava sonhando em pegar a machadinha que
eu e o bonitão usávamos pra cortar lenha para o fogão da cozinha (até ele
morrer, quer dizer; depois disso, o trabalho era todo meu, olha só que sorte
a minha) e cravá-la entre os olhos daquela filha da puta bocuda. Às vezes
até conseguia me ver fazendo isso de tanto que ela me irritava, mas acho
que eu sempre soube que havia uma parte dela que odiava gritar daquele
jeito tanto quanto eu odiava ouvir.
Este era o primeiro jeito de Vera de ser filha da puta: quando não
conseguia se segurar. Era pior pra ela do que pra mim, principalmente
depois de ela ter os derrames graves. Havia bem menos roupa lavada pra
pendurar, mas ela continuava tão louca com isso quanto antes de a maioria
dos aposentos da casa ficarem fechados e quase todas as camas de hóspedes
ficarem vazias e os lençóis em sacos de plástico ficarem guardados no
armário.
O que dificultou pra ela foi que, por volta de 1985, os dias de
surpreender as pessoas acabaram: Vera dependia de mim até pra se
deslocar. Se eu não estivesse lá pra levantá-la e colocá-la na cadeira de
rodas, ela ficava na cama. Ela tinha engordado muito, sabe; foi de uns
sessenta quilos mais ou menos, no começo dos anos 1960, pra mais de
oitenta e cinco, e a maior parte do peso que ganhou foi aquela gordura
amarelada que se vê nas pessoas velhas. Pendia dos braços e das pernas
como massa de pão em um palito. Algumas pessoas ficam magras como
carne seca no ocaso da vida, mas não Vera Donovan. O dr. Freneau disse
que era porque os rins dela não estavam trabalhando direito. Acho que era
mesmo, mas em muitos dias pensei que ela ganhou aquele peso só pra me
dar trabalho.
E o peso não era tudo; ela estava ficando cega também. Foram os
derrames. A visão que ainda tinha ia e vinha. Alguns dias Vera enxergava
um pouco com o olho esquerdo e muito bem com o direito, mas na maioria
dos dias ela dizia que era como olhar através de uma cortina cinza espessa.
Acho que dá pra entender por que isso a deixou doida, afinal ela era do tipo
que ficava de olho em tudo. Algumas vezes, ela chorou por causa disso, e
pode acreditar que era bem difícil fazer uma mulher durona daquele jeito
chorar… e mesmo depois que os anos a tinham dobrado, ela ainda era
durona.
O quê, Frank?
Senil?
Não tenho certeza, e essa é a verdade. Acho que não. E se ela estava, não
era do mesmo jeito que os velhos ficam senis. Não estou dizendo isso só
porque, se ela estivesse mesmo, o juiz encarregado do testamento é capaz
de usar o documento pra assoar o nariz. Aliás, por mim, ele pode até limpar
a bunda com aquele testamento; eu só quero sair dessa confusão em que
Vera me colocou. Mas tenho que dizer que ela provavelmente não estava
com a cabeça completamente vazia, nem mesmo no final. Alguns cômodos
estavam livres, mas não todos.
O motivo principal pra eu dizer isso é que tinha dias em que ela estava
quase tão afiada quanto antes. Em geral eram os mesmos dias em que ela
enxergava um pouco, ajudava no esforço de se sentar na cama e até andava
os dois passos até a cadeira de rodas, em vez de ter que ser levantada como
um saco de grãos. Eu a colocava na cadeira de rodas pra poder trocar a
cama, e ela queria estar nela pra poder ir até a janela, a que tinha vista pra
lateral da casa e para o porto. Vera me contou uma vez que ficaria louca de
verdade se tivesse que ficar deitada dia e noite, sem nada além do teto e as
paredes pra olhar, e eu acreditei.
Ela tinha os dias confusos, sim. Dias em que não sabia quem eu era e
quase nem sabia quem ela era. Nesses ela parecia um barco que tinha se
soltado das amarras, só que o mar em que ela estava à deriva era o tempo:
Vera podia muito bem pensar que era 1947 de manhã e 1974 de tarde. Mas
tinha dias bons também. Estes foram reduzindo em quantidade com o
passar do tempo e à medida que ela continuou tendo os pequenos derrames
— o que o pessoal de antigamente chama de “choques” —, mas os dias
bons existiam. Existiam e eram os meus dias ruins, porque, se eu deixasse,
ela voltava a ser cem por cento a velha filha da puta de antes.
Ela era cruel. Esse era o segundo jeito de Vera ser filha da puta. Aquela
mulher sabia ser cruel como cocô de gato quando queria. Mesmo presa a
uma cama na maior parte do tempo, usando fralda e calça plástica, ela era
insuportável. As sujeiras que fazia nos dias de limpeza são um bom
exemplo do que quero dizer. Ela não fazia toda semana, mas, por Deus, vou
te dizer que fazia às quintas com frequência demais pra ser mera
coincidência.
Quinta-feira era o dia de faxina na casa dos Donovans. É uma casa
enorme — e você só tem ideia disso depois que anda lá dentro —, mas a
maior parte está fechada. Os dias em que poderia haver umas seis garotas
com o cabelo preso em lenços, polindo aqui, lavando janelas ali e tirando
teias de aranha dos cantos do teto em algum outro lugar já acabaram há
mais de vinte anos. Eu andei por aqueles aposentos sombrios algumas
vezes, observando os móveis cobertos por lençóis, e pensei em como o
lugar era nos anos 1950, quando davam festas no verão. Sempre havia
lanternas japonesas de cores diferentes no gramado, disso eu me lembro
muito bem! Ao andar por lá, sinto sempre um arrepio esquisito. No fim das
contas, as cores fortes sempre desbotam da vida, já reparou? No fim, é tudo
cinzento, como um vestido que foi lavado vezes demais.
Nos últimos quatro anos, a parte aberta da casa é composta pela cozinha,
a sala de estar, a sala de jantar, a varanda fechada com vista pra piscina e o
pátio, e quatro quartos no andar superior: o dela, o meu e dois de hóspedes.
Os quartos de hóspedes não eram muito aquecidos no inverno, mas
ficavam arrumados para o caso de os filhos dela aparecerem pra passar uns
dias.
Mesmo nesses últimos anos, eu tinha duas garotas da cidade que me
ajudavam nos dias de faxina. A rotatividade de funcionárias sempre foi alta
lá, mas desde 1990, mais ou menos, são sempre Shawna Wyndham e Susy,
a irmã do Frank. Eu não daria conta sem elas, mas ainda tem muitas tarefas
que eu mesma faço, e, quando as garotas vão pra casa às quatro da tarde de
quinta, eu estou mortinha. Ainda tem muita coisa depois disso: o resto da
roupa pra passar, a lista de compras de sexta pra fazer, e o jantar da Sua
Alteza pra preparar, claro. Quem pode, pode; quem não pode, se sacode,
como dizem.
Só que antes de qualquer uma dessas coisas sempre havia alguma merda
dela pra resolver.
Na maior parte do tempo, Vera era regular nos chamados da natureza.
Eu enfiava a comadre debaixo dela de três em três horas, e ela soltava um
jatinho. E na maioria dos dias haveria algo sólido junto com o xixi depois
do meio-dia.
Menos às quintas.
Não todas as quintas, mas nas quintas em que ela estava bem, eu podia
ter quase certeza de que haveria confusão… e com uma dor nas costas que
me deixaria acordada até a meia-noite. Nem um analgésico aliviava no
final. Fui saudável como um touro durante a maior parte da vida e continuo
saudável como um touro, mas sessenta e cinco anos são sessenta e cinco
anos. Não dá pra se recuperar como antes.
Às quintas, em vez de encher meia comadre com xixi às seis da manhã,
vinha só um respingo. A mesma coisa às nove. E ao meio-dia, em vez de um
pouco de xixi e um cocô, era capaz de não haver nada. Nessa hora, eu sabia
que o dia talvez seria daqueles. As únicas vezes em que tinha certeza era
quando eu não tinha nenhum prêmio sólido na quarta também.
Estou vendo que você está segurando a risada, Andy, mas tudo bem.
Pode soltar, se precisar. Não era motivo de riso na época, mas agora
acabou, e o que você está pensando não passa da verdade. A filha da mãe
tinha uma poupança de merda, e parecia que em algumas semanas ela não
fazia retiradas pra juntar o lucro… só que quem recebia todas as retiradas
era eu. Eu recebia, quisesse ou não.
Eu passava a maior parte das tardes de quinta subindo as escadas
correndo, tentando chegar a tempo, e às vezes até conseguia. Mas fosse
qual fosse o estado dos olhos dela, não havia nada de errado com os ouvidos,
e Vera sabia que eu nunca deixava nenhuma das garotas da cidade aspirar o
tapete Aubusson na sala. Quando ouvia o aspirador ser ligado, ela acionava
a fábrica velha de churros e aquela Poupança de Merda começava a
distribuir os dividendos.
Aí eu pensei em um jeito de pegá-la. Gritava pra uma das garotas que
estava indo aspirar a sala. Gritava mesmo que as duas estivessem no
cômodo ao lado. Ligava o aspirador, mas, em vez de usá-lo, ia até o pé da
escada e ficava parada lá com um pé no primeiro degrau e a mão no
começo do corrimão, como um corredor agachado à espera do tiro de
largada.
Uma ou duas vezes, subi cedo demais. Não foi bom. Como um corredor
desqualificado por queimar a largada. Era preciso chegar lá em cima
quando o motor já estava indo rápido demais pra desligar, mas antes de ela
ter engatado a marcha e largado um carregamento em uma daquelas
calcinhas pra incontinência que usava. Eu fiquei boa nisso. Você também
ficaria se soubesse que, caso errasse o momento, acabaria tendo que erguer
uma velha de oitenta e cinco quilos. Era como tentar lidar com uma
granada de mão carregada de merda em vez de explosivos.
Eu chegava lá e Vera estava deitada naquela cama de hospital, com o
rosto vermelho, a boca toda retorcida, os cotovelos enfiados no colchão e as
mãos fechadas. Fazia “Unnh! Unnnnnhhhh! unnnnnnhhhhhhh!”. Vou te
dizer uma coisa: ela só precisava de uns pedaços de mata-moscas
pendurados no teto e um catálogo da Sears no colo pra parecer que estava
em casa.
Ai, Nancy, para de morder as bochechas por dentro. Melhor soltar e
aguentar a vergonha do que segurar e aguentar a dor, como dizem. Além do
mais, existe um lado engraçado; merda sempre tem. Pode perguntar a
qualquer criança. Eu até consigo achar um pouco engraçado agora que
acabou, e isso é uma coisa e tanto, né? Por mais encrencada que eu esteja,
o meu tempo de aguentar as Quintas de Merda da Vera Donovan acabou.
Se ela ficava com raiva ao me ouvir chegando? Com tanta raiva quanto
um urso pego com uma pata enfiada no mel.
“O que você está fazendo aqui em cima?”, perguntava ela, com aquele
jeito besta de falar que usava sempre que alguém a pegava fazendo besteira,
como se ainda frequentasse Vassar, Holy Oaks ou fosse qual fosse das Sete
Irmãs pra qual os pais a mandavam. “É dia de faxina, Dolores! Vá cuidar do
seu trabalho! Eu não te chamei e não preciso de você!”
Ela não me assustava mais.
“Eu acho que você precisa de mim, sim. O cheiro vindo da sua bunda não
é de Chanel Número Cinco, é?”, eu retrucava.
Às vezes, ela até tentava bater nas minhas mãos quando eu puxava o
lençol e o cobertor. Ficava me olhando de cara feia como se quisesse me
transformar em pedra se eu não fosse embora, e projetava o lábio inferior
em um biquinho como uma criança que não quer ir pra escola. Mas eu
nunca deixava nada disso me impedir. Não Dolores, filha de Patricia
Claiborne. Eu abaixava o lençol em uns três segundos, e nunca levava mais
do que cinco pra puxar a calça e abrir a fita adesiva da fralda que ela usava,
quer Vera batesse na minha mão ou não. Na maioria das vezes ela parava
depois de tentar duas vezes, porque tinha sido pega no flagra e nós duas
sabíamos. O equipamento dela estava tão velho que, quando ela começava,
as coisas tinham que seguir o rumo. Eu enfiava a comadre embaixo dela
com a maior facilidade do mundo, e quando descia a escada pra realmente
aspirar a sala, ela muitas vezes ficava lá me xingando como um estivador.
Nessas horas, não parecia nem um pouco uma garota de Vassar, isso eu
posso afirmar! Porque ela sabia que daquela vez havia perdido o jogo,
entende, e não havia nada que a Vera odiasse mais do que isso. Mesmo
senil, ela odiava muito perder.
As coisas foram assim por um bom tempo, e comecei a pensar que eu
tinha vencido a guerra em vez de algumas batalhas. Eu deveria saber que
não era bem assim.
Chegou um dia de faxina, tipo um ano e meio atrás, quando eu estava
com tudo pronto pra sair correndo pela escada e pegá-la no flagra de novo.
Eu até tinha passado a gostar, de certa forma; compensava várias vezes no
passado em que ela tinha me passado a perna. E achei que Vera estava
planejando um tornado de merda daquela vez, se conseguisse. Todos os
sinais estavam lá, e alguns outros. Primeiro, ela não estava tendo só um dia
bom, estava tendo uma semana boa; na segunda-feira, tinha até me pedido
pra colocar a tábua sobre os braços da cadeira pra poder jogar paciência,
como antigamente. E, no que dizia respeito ao intestino, estava passando
por uma fase de baixa produção; não tinha feito nenhum donativo à
comadre desde o fim de semana. Achei que naquela quinta ela estivesse
planejando me dar um presente de Natal pra acompanhar a renda da
poupança.
Naquele dia, depois que tirei a comadre de debaixo dela ao meio-dia e vi
que estava seca como o deserto, perguntei:
“Você não acha que poderia fazer alguma coisa se tentasse mais, Vera?”
“Ah, Dolores”, respondeu ela, me olhando com os olhos azuis
esbranquiçados com a inocência de um cordeirinho de Maria, “eu me
esforcei ao máximo. Tentei tanto que doeu. Acho que estou constipada.”
Concordei na hora.
“Acho que está, e se não der jeito logo, querida, vou ter que te dar uma
caixa inteira de laxante pra soltar tudo de uma vez.”
“Ah, acho que tudo vai se resolver com o tempo”, disse ela, e abriu um
daqueles sorrisos. Vera não tinha mais nenhum dente e não podia usar a
dentadura de baixo se não estivesse sentada na cadeira, pois existia a
possibilidade de ela acabar tossindo, a coisa entrar pela garganta e ela se
engasgar. Quando sorria, o seu rosto parecia um pedaço de tronco de
árvore velho com um buraco. “Você me conhece, Dolores. Eu acredito em
deixar a natureza seguir o seu rumo.”
“Eu te conheço muito bem”, meio que murmurei, ao me virar.
“O que você disse, querida?”, perguntou ela, num tom tão doce que
parecia que açúcar nem derreteria na sua boca.
“Eu falei que não posso ficar parada aqui esperando que você faça o
número dois. Tenho trabalho pra fazer. É dia de faxina, sabe?”
“Ah, é?”, disse ela, como se não soubesse que dia era desde o segundo em
que acordou naquela manhã. “Então vai, Dolores. Se eu sentir necessidade
de usar a comadre, eu te chamo.”
Aposto que vai, eu pensei, só que uns cinco minutos depois de
acontecer. Mas não falei; só desci a escada.
Peguei o aspirador no armário da cozinha, levei pra sala e o liguei na
tomada. Mas não o liguei de cara; passei alguns minutos tirando o pó com
o espanador. Tinha chegado ao ponto de poder depender dos meus
instintos, e estava esperando que algo dentro de mim dissesse que era a
hora.
Quando a coisa se manifestou, gritei pra Susy e Shawna que ia aspirar a
sala. Gritei tão alto que acho que metade das pessoas do vilarejo ouviu,
além da Rainha Mãe no andar de cima. Liguei o Kirby e fui para o pé da
escada. Naquele dia, não esperei muito; foram só trinta ou quarenta
segundos. Achei que ela devia estar por um fio. Então subi, dois degraus de
cada vez, e o que você acha?
Nada!
Nadinha.
Só que…
Só que ela estava me olhando de um jeito, sabe? Com uma calma e
doçura danada.
“Esqueceu alguma coisa, Dolores?”
“Aham. Eu me esqueci de largar este emprego cinco anos atrás. Vamos
parar com isso, Vera.”
“Parar com o quê, querida?”, perguntou ela, meio que balançando os
cílios, como se não tivesse a menor ideia do que eu estava falando.
“Vamos parar por aqui, é isso que eu quero dizer. Só me diz de uma vez:
você precisa da comadre ou não?”
“Não preciso”, respondeu ela, com a voz mais honesta possível. “Eu já
falei!”
Ela só sorriu pra mim. Não disse nada, mas não precisou. O rosto dela
falou tudo que precisava ser dito. Eu te peguei, Dolores. Te peguei de jeito.
Mas eu não tinha terminado. Eu sabia que Vera estava segurando uma
bomba e sabia que seria um inferno se conseguisse começar antes de eu
colocar a comadre embaixo dela. Então desci a escada e fiquei ao lado do
aspirador, esperei cinco minutos e subi correndo de novo. Só que dessa vez
ela não sorriu pra mim quando entrei. Dessa vez, estava deitada de lado,
dormindo profundamente… ou foi o que pensei. De verdade. Ela me
enganou direitinho, e você sabe o que dizem: errar é humano, repetir o
erro é burrice.
Quando desci pela segunda vez, realmente aspirei a sala. Quando
terminei a tarefa, guardei o Kirby e fui dar uma olhada nela. Vera estava
sentada na cama, bem acordada, com a coberta afastada, a calça plástica
empurrada até os joelhos gordos e flácidos e a fralda aberta. Se tinha feito
sujeira? Meu bom Deus! A cama estava cheia de merda, ela estava coberta
de merda, tinha merda no tapete, na cadeira de rodas, nas paredes. Tinha
merda até na cortina. Parecia que ela tinha segurado um punhado e
arremessado, do jeito que crianças arremessam lama umas nas outras
quando estão nadando em um laguinho.
Fiquei puta da vida! Tão puta a ponto de cuspir!
“Vera, sua FILHA DA PUTA imunda!”, gritei.
Eu não a matei, Andy, mas, se fosse matar, teria sido naquele dia, quando
vi aquela imundície e senti o cheiro do quarto. Tive vontade de matá-la,
sim; não adianta mentir sobre isso. E ela só ficou me olhando com aquela
expressão tonta que fazia quando a mente estava pregando peças nela…
mas eu vi o diabo dançando naqueles olhos e soube muito bem quem
pregou peça em quem daquela vez. Errar é humano, repetir o erro é
burrice.
“Quem é? Brenda, é você, meu bem? As vacas saíram de novo?”, ela
perguntou.
“Você sabe que não tem vaca nenhuma a cinco quilômetros daqui desde
1955!”, berrei.
Atravessei o quarto a passos largos, o que foi um erro, porque pisei em
um cocô e quase caí de costas. Se tivesse caído, eu talvez a tivesse matado
mesmo; não conseguiria me segurar. Naquela hora, estava preparada pra
semear vento e colher tempestade.
“Não seeeei”, disse ela, tentando parecer a velha coitada e lamentável que
realmente era em muitos dias. “Não seeeei! Eu não consigo ver, e o meu
estômago está tão embrulhado. Acho que vou vomitar. É você, Dolores?”
“Pode ter certeza de que sou eu, sua sapa velha!”, falei, ainda berrando a
plenos pulmões. “Eu sou capaz de te matar!”
Imagino que àquelas alturas Susy Proulx e Shawna Wyndham estivessem
paradas no pé da escada, ouvindo tudo, e imagino que você já tenha falado
com as duas e elas tenham me jogado na fogueira. Não precisa responder,
Andy; o seu rosto é um livro aberto.
Vera percebeu que não estava me enganando nem um pouco, ao menos
não mais, então desistiu de tentar me fazer acreditar que tinha entrado em
uma fase ruim e ficou furiosa em legítima defesa. Acho que talvez eu a
tenha assustado um pouco. Pensando melhor, assustei a mim mesma… mas,
Andy, se você tivesse visto aquele quarto! Parecia a hora do jantar no
inferno.
“E acho que vai mesmo!”, ela gritou pra mim. “Um dia você vai mesmo,
sua bruxa velha, feia e mal-educada! Você vai me matar como matou o seu
marido!”
“Não, senhora. Não exatamente. Quando for a hora de cuidar de você,
não vou me dar ao trabalho de fazer parecer que foi acidente. Eu vou te
empurrar pela janela e vai ter uma bruxa fedorenta a menos no mundo.”
Eu a segurei pela cintura e a levantei como se eu fosse a Supermulher.
Senti na coluna naquela noite, isso eu posso te dizer, e na manhã seguinte
mal consegui andar de tanta dor. Procurei aquele quiropraxista em
Machias, e ele fez algo que me fez me sentir um pouco melhor, mas nunca
mais fui a mesma depois daquele dia. Só que na hora não senti nada. Eu a
puxei daquela cama como se fosse uma garotinha furiosa e ela fosse a
boneca de pano na qual eu ia descontar minha raiva. Vera começou a
tremer, e só de saber que ela ficou com medo consegui me controlar de
novo, mas eu estaria mentindo se dissesse que não fiquei feliz de ela estar
com medo.
“Aaaaiiiii!”, gritou ela. “Aaaaiii, não! Não me leva pra janela! Não me joga,
não se atreva! Me coloca no chão! Você está me machucando, Dolores! AIII, ME
COLOCA NO CHÃÃÃÕ!”
“Ah, fecha essa matraca”, falei, e a coloquei na cadeira de rodas com
tanta força a ponto de fazer os dentes baterem… se ela tivesse dentes pra
baterem, óbvio. “Olha a sujeira que você fez. E nem vem com essa de que
não consegue ver, porque eu sei que consegue. Olha só!”
“Desculpa, Dolores”, disse ela. Vera começou a balbuciar, mas vi aquela
luzinha cruel dançando nos olhos dela. Vi como se vê peixes em água
límpida quando se fica de joelhos em um barco e se olha pela lateral.
“Desculpa, eu não queria fazer sujeira, só estava tentando ajudar.”
Era isso que ela sempre dizia quando cagava na cama e esmagava um
pouco a merda… se bem que aquele dia foi o primeiro em que ela tentou
fazer pintura a dedo com a merda também. Eu só estava tentando ajudar,
Dolores… pelo amor de Deus.
“Fica sentada aí e cala a boca. Se você realmente não quiser uma viagem
rápida por aquela janela e mais rápida ainda para o jardim de pedras, é
melhor pensar antes de falar.”
E aquelas garotas lá no pé da escada, não tenho a menor dúvida, ouvindo
cada palavra que eu estava dizendo. Mas naquela hora eu estava com raiva
demais pra pensar nisso.
Ela teve bom senso de calar a boca como eu mandei, mas pareceu
satisfeita, e por que não? Tinha feito o que queria. Daquela vez, venceu a
batalha e deixou claro como água que a guerra não tinha acabado, aliás não
estava nem perto de acabar. Fui trabalhar, limpar e ajeitar as coisas. Levou
quase duas horas, e quando acabei a minha coluna estava cantando a “Ave
Maria”.
Contei sobre os lençóis, sobre como isso era, e vi pela cara de vocês que
deu pra entender uma parte. É mais difícil entender as sujeiras dela. Eu
não tenho nojo de merda. Eu limpei merda a vida toda e ver merda nunca
me deu nojo. Não tem cheiro de jardim florido, claro, e é preciso tomar
cuidado porque tem doenças como meleca, baba e sangue, mas dá pra
lavar, sabe? Qualquer um que já teve um bebê sabe que dá pra lavar. Então
não foi isso que tornou a situação tão ruim.
Acho que foi o fato de ela ter sido muito cruel. Muito sorrateira. Ela
esperou e, quando teve oportunidade, fez a pior sujeira que pôde, e fez o
mais rápido que pôde, porque sabia que eu não daria muito tempo a ela.
Vera fez aquela coisa horrível de propósito, entende onde eu quero chegar?
Até onde o cérebro confuso permitiu, ela planejou, e isso pesou no meu
coração e fechou a minha cara enquanto eu limpava tudo. Enquanto tirava
a roupa de cama; enquanto levava o protetor de colchão sujo de merda e os
lençóis sujos de merda e as fronhas sujas de merda para o buraco da roupa
suja; enquanto esfregava o chão, as paredes e as vidraças; enquanto tirava a
cortina e colocava uma limpa; enquanto fazia a cama dela de novo;
enquanto trincava os dentes e tentava manter a coluna no lugar ao limpá-la
e trocar sua camisola; enquanto a tirava da cadeira e colocava na cama de
novo (e Vera sem ajudar em nada, apenas um peso morto nos meus braços,
embora eu soubesse muito bem que era um daqueles dias em que ela
poderia ter ajudado se quisesse); enquanto eu lavava o chão; enquanto eu
lavava a maldita cadeira de rodas, e tinha que realmente esfregar porque,
àquelas alturas, a porcaria estava seca… Enquanto eu fazia isso tudo, meu
coração estava pesado, e o meu semblante, fechado. Ela sabia.
Sabia e ficou feliz.
Quando voltei pra casa naquela noite, tomei um analgésico pra dor nas
costas, deitei e me encolhi em posição fetal apesar de isso machucar a
minha coluna também, então chorei, chorei e chorei. Não conseguia parar.
Nunca, pelo menos desde aquilo com Joe no passado, eu tinha me sentido
tão desanimada e desesperada. Tão velha.
Esse era o segundo jeito de ela ser uma filha da puta: sendo cruel.
O que você disse, Frank? Se ela fez de novo?
Você está brincando? Ela fez de novo na semana seguinte, e na outra.
Não foi tão ruim quanto na primeira aventura, em parte porque ela não
conseguiu economizar aquela merda toda, mas principalmente porque eu
estava preparada. Só que eu fui pra cama chorando de novo depois da
segunda vez que aconteceu, e quando fiquei deitada lá sentindo aquela
infelicidade na lombar, decidi pedir demissão. Não sabia o que aconteceria
com ela nem quem cuidaria dela, mas na hora eu não dava a mínima. Por
mim, ela podia morrer de fome deitada na cama toda cagada.
Eu ainda chorava quando peguei no sono, porque a ideia de pedir
demissão, de ela me vencer, me fez me sentir pior do que nunca. Mas,
quando acordei, eu estava me sentindo bem. Acho que é verdade que a
nossa mente não dorme mesmo que a gente ache que durma; a mente
continua pensando, e às vezes faz um trabalho ainda melhor quando a
pessoa no comando não está lá pra atrapalhar com a falação habitual que
acontece na cabeça: tarefas a fazer, o que almoçar, o que ver na televisão,
coisas assim. Deve ser verdade, porque o motivo pra eu me sentir tão bem
foi que acordei sabendo como ela estava me enganando. O único motivo
pra eu não ter percebido antes era por ter a tendência de subestimá-la…
Sim, até eu, e eu sabia como ela podia ser traiçoeira de tempos em tempos.
Quando entendi o truque, soube o que fazer.
Doeu perceber que eu teria que confiar em uma das garotas de quinta
pra aspirar o Aubusson… e a ideia de Shawna Wyndham fazendo isso me
deu o que o meu avô chamava de “ataques de tremor”. Você sabe como ela é
estabanada, Andy… todos os Wyndhams são estabanados, mas ela ganha o
troféu. Parece que tem uns caroços no corpo feitos especialmente pra
derrubar as coisas quando passa. Não é culpa dela, está no sangue, mas não
consegui suportar pensar em Shawna andando pela sala com todos os
bibelôs de vidro e Tiffany da Vera pedindo pra serem derrubados.
Mesmo assim, eu tinha que fazer alguma coisa: errar é humano, repetir o
erro é burrice. Por sorte, havia Susie pra ajudar. Ela não era nenhuma
bailarina, mas foi quem aspirou o Aubusson no ano seguinte, e nunca
quebrou nada. Ela é uma boa menina, Frank, e não consigo nem começar a
expressar como fiquei feliz de receber aquele anúncio de casamento dela,
mesmo o sujeito sendo de longe. Como os dois estão? O que você soube?
Ah, que ótimo. Ótimo. Fico feliz por ela. Por acaso não tem um bebê no
forninho, né? Ultimamente parece que as pessoas esperam até quase a hora
de ir para o asilo pra…
Sim, Andy, eu vou! Eu só queria que você lembrasse que é da minha vida
que estamos falando aqui, a porcaria da minha vida! Então por que você não
se senta nessa sua cadeira velha, levanta os pés e relaxa? Se continuar
assim, vai acabar tendo uma hérnia.
Enfim, Frank, manda um beijo pra Susie e diz que ela salvou a vida de
Dolores Claiborne no verão de 1991. Pode contar a história das merdas de
quinta e como eu fiz parar. Nunca contei pras duas exatamente o que
estava acontecendo; elas só sabiam que eu estava em um embate com Sua
Alteza Real. Vejo agora que eu tinha vergonha da situação. Acho que não
gosto de ser vencida tanto quanto Vera não gostava.
Era o som do aspirador, entende? Foi isso que eu percebi quando acordei
naquela manhã. Falei que não havia nada de errado com os ouvidos dela, e
era o som do aspirador que dizia se eu estava realmente aspirando a sala ou
parada no pé da escada, à espera. Quando um aspirador está parado, ele faz
um som só, entende? Só ZOOOOOO, assim. Mas quando se está aspirando
um tapete, ele faz dois sons, que sobem e descem em ondas. Whoop quando
você o empurra. E zoop quando você puxa pra perto pra empurrar de novo.
WHOOP-zoop, WHOOP-zoop, WHOOP-zoop.
Parem de coçar a cabeça, vocês dois, e olhem o sorriso da Nancy. Pra
saber qual de vocês já passou um tempo usando um aspirador, é só olhar a
cara de vocês. Se realmente achar que isso é importante, Andy,
experimenta. Você vai ouvir na hora, se bem que acho que a Maria cairia
mortinha se chegasse e encontrasse você aspirando o tapete da sala.
Naquela manhã, cheguei à conclusão de que ela havia parado de prestar
atenção em quando o aspirador era ligado, porque percebeu que isso já não
era suficiente. Estava prestando atenção se o som se deslocava como
acontece quando o aspirador está em funcionamento. Ela só faria o
truquezinho sujo quando ouvisse a onda de WHOOP-zoop.
Eu estava doida pra experimentar a minha ideia nova, mas não pude
fazer isso de cara, porque ela entrou em uma das fases ruins nessa época, e
por um tempo fez as necessidades na comadre ou um pouco de xixi na
fralda se precisasse. Comecei a ficar com medo de estar chegando a hora
em que Vera não sairia mais daquele estado. Sei que soa estranho, porque
era bem mais fácil cuidar dela quando ela ficava com o pensamento
confuso, mas quando se tem uma ideia boa assim, dá vontade de fazer um
teste. E, quer saber, eu sentia alguma coisa por aquela filha da puta além de
vontade de dar na cara dela. Depois de conhecê-la por mais de quarenta
anos, seria esquisito se não sentisse. Ela tricotou uma colcha pra mim uma
vez, sabia? Isso foi bem antes de ela ficar mal, mas ainda está na minha
cama, e me aquece nas noites de fevereiro em que o vento fica cruel.
Aí, um mês ou um mês e meio depois que eu acordei com a minha ideia,
ela começou a voltar. Via Jeopardy! na televisãozinha do quarto e
repreendia os participantes se não soubessem quem foi o presidente
durante a Guerra Hispano-Americana ou quem fez Melanie em E o vento
levou. Começou a falação de que os filhos poderiam ir visitá-la antes do
Labor Day. E, claro, me perturbou pra ser colocada na cadeira pra poder me
ver pendurar os lençóis e ter certeza de que eu estava usando seis
pregadores em vez de quatro.
Aí chegou uma quinta em que tirei a comadre de debaixo dela ao meio-
dia seca como o deserto e vazia como as promessas de um vendedor de
carros. Não sei explicar como fiquei satisfeita ao ver aquela comadre vazia.
Vamos lá, sua raposa velha e matreira, pensei. Agora a gente vai ver só.
Desci e chamei Susy Proulx pra sala.
“Eu quero que você aspire aqui hoje, Susy”, falei.
“Tudo bem, dona Claiborne”, disse ela.
Era como as duas me chamavam, Andy… como a maioria das pessoas na
ilha me chama, na verdade. Eu nunca fiz questão disso na igreja e em
nenhum outro lugar, mas é assim. Pelo jeito acham que fui casada com um
sujeito chamado Claiborne em algum momento do meu passado
tumultuado… ou talvez eu só queira acreditar que a maioria não se lembra
do Joe, embora eu ache que muitos lembram, sim. Não importa muito, de
qualquer forma, no fim das contas; acho que tenho o direito de acreditar
no que eu quiser acreditar. A casada com o filho da mãe era eu, afinal.
“Eu não me importo, mas por que você está cochichando?”, continuou
ela.
“Deixa isso pra lá, só fala baixo. E não quebra nada aqui, Susan Emma
Proulx. Nem sonhe.”
Bom, ela ficou tão vermelha quanto a lateral de um carro de bombeiros;
foi até meio engraçado.
“Como você sabe que o meu segundo nome é Emma?”
“Não é da sua conta. Passei a vida em Little Tall e sei bastante coisa
sobre bastante gente. Só toma cuidado com os cotovelos perto dos móveis e
dos vasos de vidro colorido da Dona Deus, principalmente quando tiver
que dar alguns passos pra trás, e aí você não vai ter com que se preocupar.”
“Vou tomar muito cuidado”, disse ela.
Liguei o Kirby pra ela e fui para o saguão, coloquei as mãos em volta da
boca e gritei:
“Susy! Shawna! Vou aspirar a sala agora!”
Susy estava bem ali, claro, e vou te dizer que a cara toda da garota era um
ponto de interrogação. Meio que balancei a mão pra ela, dizendo que era
pra ela cuidar da própria vida e não me dar atenção. E ela fez isso mesmo.
Fui nas pontas dos pés até a base da escada e fiquei no lugar de sempre.
Sei que é bobagem, mas não ficava empolgada assim desde que o meu pai
me levou pra caçar pela primeira vez, quando eu tinha doze anos. Foi o
mesmo tipo de sensação, o coração disparado e meio espalhado no peito e
pescoço. A mulher tinha dezenas de antiguidades valiosas além de todo
aquele vidro caro na sala, mas nunca parei pra pensar na Susy Proulx lá,
girando entre tudo como um dervixe. Você acredita?
Eu me obriguei a ficar ali pelo tempo que pude, cerca de um minuto e
meio, acho. Aí saí correndo. E quando entrei no quarto lá estava ela, com o
rosto vermelho, os olhos apertados e as mãos fechadas, fazendo “Unhh!
Unhhhhh! unnnnhhhh!”. Mas ela abriu os olhos depressa assim que ouviu
a porta do quarto ser aberta. Ah, eu queria ter uma câmera. Foi impagável.
“Dolores, sai daqui agora!”, disse ela, mais parecendo um guincho.
“Estou tentando cochilar e não vou conseguir com você entrando aqui
como um touro de pau duro a cada vinte minutos!”
“Bem”, falei, “eu vou, mas primeiro acho que vou botar a cumbuquinha
de bunda embaixo de você. Pelo cheiro, eu diria que bastou um sustinho
para o seu problema de prisão de ventre ficar resolvido.”
Ela bateu nas minhas mãos e me xingou; ela sabia xingar quando queria,
e queria sempre que alguém a contrariava. Mas não dei atenção. Coloquei a
comadre embaixo dela com agilidade e rapidez e, como dizem, tudo saiu
direitinho. Quando acabou, olhei pra ela, e ela olhou pra mim, e nenhuma
de nós precisou dizer nada. Nós nos conhecíamos havia tempos, entende?
A minha cara dizia: Pronto, sua piranha nojenta. Eu te peguei de novo.
Gostou?
A cara dela retrucava: Não muito, Dolores, mas tudo bem; porque você ter
me pegado não quer dizer que vai continuar me pegando.
Mas eu continuei, pelo menos daquela vez. Houve mais algumas
sujeiras, mas nunca como aquela vez sobre a qual eu contei, quando havia
merda até na cortina. Aquele foi o último suspiro. Depois disso, as vezes
em que a mente dela estava lúcida foram ficando cada vez menos
frequentes e, quando vinham, eram curtas. Foi bom pras minhas costas
doloridas, mas também me deixou triste. Vera era um saco, mas era um
saco ao qual eu tinha me acostumado, se é que você me entende.
Posso pedir outro copo de água, Frank?
Obrigada. Falar dá sede. E se você decidir tirar aquela garrafa de Jim
Bean da sua escrivaninha pra pegar um ar fresco, Andy, eu nunca vou
contar pra ninguém.
Não? Bom, é o de se esperar de gente como você.
Agora… onde eu estava?
Ah, já sei. Como ela era. Bom, o terceiro jeito de ela ser uma filha da
puta era o pior. Vera era uma filha da puta porque era uma velha triste que
não tinha nada pra fazer além de morrer em um quarto de segundo andar
em uma ilha longe dos lugares e das pessoas que havia conhecido pela
maior parte da vida. Isso era bem ruim, mas ela estava perdendo a sanidade
ao mesmo tempo… e havia uma parte que sabia que o resto dela era como
uma margem de rio em erosão, pronta pra desmoronar no fluxo de água.
Ela era solitária, sabe, e isso eu não entendia. Nunca entendi por que
Vera jogou fora a vida toda pra vir pra ilha. Pelo menos até ontem. Mas ela
tinha medo também, e isso eu entendia muito bem. Mesmo assim, a
mulher tinha um tipo de força horrível e assustadora, como uma rainha
moribunda que não larga a coroa nem no fim; é como se Deus em pessoa
tivesse que soltar um dedo de cada vez.
Havia os dias bons e os ruins, já contei isso. O que chamo de “ataques”
sempre aconteciam entre os dois, quando ela estava passando de alguns
dias bem pra uma ou duas semanas confusa, ou de uma semana ou duas
confusa pra uma época boa de novo. Quando ela estava mudando, era como
se estivesse em lugar nenhum… e parte dela sabia disso. Era nesse
momento que ocorriam as alucinações.
Se é que eram alucinações. Não tenho mais tanta certeza sobre isso.
Talvez eu conte essa parte, talvez não. Vou ter que ver como me sinto
quando a hora chegar.
Acho que nem todas eram nas tardes de domingo ou no meio da noite;
acho que é só que eu me lembro dessas melhor porque a casa ficava muito
silenciosa, então eu morria de medo quando Vera começava a gritar. Era
como uma pessoa jogar um balde de água gelada em você em um dia
quente de verão; não houve nenhuma vez que eu não tenha achado que o
meu coração pararia quando os gritos começavam, e nunca houve uma vez
que eu não tenha achado que entraria no quarto dela e a encontraria
morrendo. Mas as coisas de que ela tinha medo nunca faziam sentido. Eu
sabia que ela tinha medo, e fazia uma boa ideia de quais eram esses medos,
mas nunca o motivo deles.
“Os fios!”, ela estava gritando às vezes quando eu entrava. Ficava toda
encolhida na cama, com as mãos unidas entre os peitos e a boca velha
repuxada e tremendo; ela ficava pálida como um fantasma, e as lágrimas
saíam rolando pelas rugas embaixo dos olhos. “Os fios, Dolores, para os
fios!”
E ela sempre apontava para o mesmo lugar… o rodapé do canto mais
distante.
Não havia nada lá, óbvio, mas havia pra ela. Vera via fios saindo da
parede e rastejando pelo chão na direção da cama… pelo menos é o que eu
acho que via. O que eu fazia era correr lá pra baixo pra pegar um facão na
cozinha e voltar pro quarto. Eu me ajoelhava no canto, ou mais perto da
cama se ela agia como se os fios tivessem se deslocado, e fingia cortar tudo.
Fazia isso, movendo a lâmina suavemente no chão pra não riscar o piso, até
ela parar de chorar.
Depois eu me aproximava e limpava as lágrimas do rosto dela com o
avental ou um daqueles lenços de papel que ela sempre deixava embaixo do
travesseiro, então a beijava uma ou duas vezes e dizia:
“Pronto, querida, já foram. Eu cortei todos os fios danados. Pode ver.”
Ela olhava (se bem que, nas ocasiões em que eu estou contando, ela não
conseguia ver nada) e, na maioria das vezes, chorava mais, depois me
abraçava e dizia:
“Obrigada, Dolores. Eu achei que dessa vez eles iam me pegar mesmo.”
Ou às vezes ela me chamava de Brenda quando me agradecia. Brenda era
a empregada que os Donovans tiveram na casa de Baltimore. Outras vezes,
ela me chamava de Clarice, que era irmã dela e morreu em 1958.
Em alguns dias, eu subia para o quarto e ela estava meio fora da cama,
gritando que havia uma cobra no travesseiro. Outras vezes, estava com os
cobertores por cima da cabeça, gritando que as janelas estavam ampliando
o sol e que ia se queimar. Às vezes, jurava que já sentia o cabelo fritando.
Não importava se estivesse chovendo ou com uma neblina mais densa do
que a cabeça de um bêbado lá fora; Vera tinha certeza de que o sol a fritaria
viva, então eu fechava as janelas e a abraçava até ela parar de chorar. Às
vezes, eu a abraçava por mais tempo, porque mesmo depois de ela ficar
quieta eu a sentia tremer como um cachorrinho maltratado por crianças
malvadas. Vera me pedia pra ver se tinha alguma bolha na pele dela. Eu
dizia que não, e depois de um tempo ela às vezes adormecia. Em outras
vezes, não; caía em um estupor, murmurando com pessoas que não
estavam lá. Às vezes, falava em francês, e não estou falando daquele francês
“parlê vu” da ilha. Ela e o marido amavam Paris e iam pra lá em todas as
oportunidades, às vezes com os filhos e às vezes sozinhos. Às vezes, ela
falava sobre isso quando estava animada: os cafés, as casas noturnas, as
galerias e os barcos no Sena. E eu amava ouvir. Ela tinha jeito com as
palavras, a Vera, e quando descrevia algo, quase dava pra ver.
Mas a pior coisa, da qual ela sentia mais medo, eram as bolinhas de
poeira. Você sabe do que estou falando: aquelas bolinhas que se formam
debaixo da cama e atrás da porta e nos cantos. Parecem vagem de serralha.
Eu sabia que era isso mesmo quando ela não sabia explicar, e na maioria
das vezes eu conseguia acalmá-la, mas o motivo de Vera morrer de medo de
uns cocôs de fantasma, porque era isso que ela achava que eram, isso eu
não sei, embora uma vez tenha tido uma noção. Não ria, mas me ocorreu
em sonho.
Por sorte, a questão das bolinhas de poeira não surgia com tanta
frequência quanto o sol queimando a pele dela ou os fios no canto, mas
quando era isso, eu sabia que teria que aguentar uma bomba. Sabia que
eram as bolinhas de poeira mesmo se fosse no meio da noite e eu estivesse
no meu quarto, dormindo pesado de porta fechada, quando Vera começava
a gritar. Quando ela ficava nervosa por causa dos outros motivos…
O quê, querida?
Ah, não estava?
Não, você não precisa chegar o seu gravadorzinho fofo mais pra perto. Se
quiser que eu fale mais alto, eu falo. Em geral, sou a bruxa mais escandalosa
que você vai encontrar. Joe dizia que queria encher os ouvidos de algodão
sempre que eu estava em casa. Mas o jeito como ela ficava por causa das
bolinhas de poeira me dava arrepios, e se a minha voz baixou é uma prova
de que ainda me dá. Mesmo com Vera morta, ainda sinto arrepios. Às
vezes, eu dava bronca nela por isso.
“Por que você acorda por causa dessa idiotice, Vera?”, eu perguntava.
Mas não era idiotice. Não pra Vera, pelo menos. Pensei mais de uma vez
que sabia como ela acabaria batendo as botas: literalmente morreria de
medo daquelas bolinhas de poeira. O que, pensando agora, não está muito
longe da verdade.
O que eu tinha começado a contar foi que quando ela ficava nervosa por
causa das outras coisas, como a cobra na fronha, o sol e os fios, ela gritava.
Mas quando eram as bolinhas de poeira, ela berrava. Na maioria das vezes,
não eram nem palavras. Apenas berros longos e altos que transformavam o
coração da gente em cubos de gelo.
Eu corria até lá e a encontrava arrancando o cabelo ou arranhando o
rosto com as unhas, parecendo uma bruxa. Os olhos ficavam tão grandes
que quase pareciam ovos cozidos, e sempre estavam olhando pra um canto
ou outro.
Às vezes, ela conseguia dizer:
“Bolinhas de poeira, Dolores! Ah, meu Deus, bolinhas de poeira!”
Em outras vezes, ela só chorava e tinha ânsia de vômito. Colocava as
mãos sobre os olhos por um ou dois segundos, e aí as tirava. Era como se
não conseguisse suportar olhar, mas também não conseguisse suportar não
olhar. Depois voltava a arranhar o rosto com as unhas. Eu as deixava o mais
curtas possível, mas muitas vezes ela conseguia arrancar sangue mesmo
assim. Nessas ocasiões, eu me perguntava como o coração dela suportava
aquele pavor, considerando que ela já estava velha e gorda.
Uma vez, Vera caiu da cama e ficou deitada, com uma perna virada
embaixo do corpo. Aquilo me deu um susto danado. Entrei correndo e a
peguei no chão, batendo com os punhos nas tábuas como uma criança
tendo um ataque de birra e gritando como se quisesse acordar o bairro
todo. Essa foi a única vez em todos os anos que trabalhei pra ela que liguei
para o dr. Freneau no meio da noite. Ele veio de Jonesport na lancha do
Collin Violette. Eu liguei porque achei que Vera tivesse quebrado a perna,
ela devia ter quebrado, pelo jeito como a perna estava curvada debaixo do
corpo, e eu tinha quase certeza de que ela morreria de choque. Mas não
estava. Não sei como não estava, mas o dr. Freneau disse que foi só um
estiramento. No dia seguinte, ela entrou em um período bom de novo e
não se lembrou de nada. Perguntei sobre as bolinhas de poeira algumas
vezes, quando ela estava com o mundo mais ou menos em foco, e Vera me
olhou como se eu fosse louca. Não tinha a menor ideia do que eu estava
falando.
Depois que aconteceu algumas vezes, eu aprendi o que fazer. Assim que
a ouvia gritar daquele jeito, pulava da cama e saía pela porta. O meu quarto
ficava a duas portas do dela, o armário de roupa de cama entre nós. Eu
deixava uma vassoura no corredor com uma pá pendurada no cabo desde a
primeira vez das bolinhas de poeira. Entrava correndo no quarto dela,
balançando a vassoura como se tentasse chamar um trem dos correios, e
gritava, porque era a única forma de ela me ouvir.
“Eu vou pegar, Vera!”, eu gritava. “Eu vou pegar! Segura o telefone!”
E eu varria o canto pra onde ela estava olhando, depois varria o outro por
garantia. Às vezes, Vera se acalmava depois disso, mas era mais comum que
começasse a gritar que estavam embaixo da cama. Então eu ficava de
quatro e fazia como se estivesse varrendo lá embaixo também. Uma vez, a
velha burra, assustada e lamentável quase caiu da cama em cima de mim ao
tentar se curvar pra olhar. Acho que teria me esmagado como uma mosca.
Que comédia teria sido!
Depois de ter varrido todos os lugares que a assustavam, eu mostrava a
pá vazia e dizia:
“Pronto, querida, está vendo? Eu peguei todas essas porcarias.”
Ela olhava primeiro pra pá e depois pra mim. Não parava de tremer, com
os olhos tão afogados nas próprias lágrimas, que dançavam como pedras
quando se olha pra elas dentro de um riacho, então sussurrava:
“Ah, Dolores, elas são tão cinzentas! Tão horríveis! Leva embora. Por
favor, leva embora!”
Eu deixava a vassoura e a pá vazia perto da minha porta, prontas para o
próximo episódio, e voltava a tentar de tudo pra acalmá-la. Pra me acalmar
também. E se você acha que eu não precisava me acalmar um pouco, tenta
você acordar sozinho naquele museu enorme no meio da noite, com o
vento gritando lá fora e uma velha maluca gritando lá dentro. O meu
coração parecia uma locomotiva, e eu mal conseguia respirar… mas não
podia deixar que Vera percebesse o meu estado, senão ela começaria a
duvidar de mim, e aí aonde nós iríamos parar?
Depois desses eventos, o que eu fazia na maioria das vezes era pentear o
cabelo dela. Era o que parecia acalmá-la mais rápido. Vera gemia e chorava
no começo, mas às vezes estendia os braços e me abraçava, com o rosto
encostado na minha barriga. Lembro como as bochechas e a testa dela
sempre ficavam quentes depois que tinha um ataque de bolinhas de poeira,
e que às vezes ela chegava até a deixar a minha camisola molhada de
lágrimas. Coitada! Nenhum de nós aqui sabe como é ser velha assim, como
é ter demônios no seu encalço que você não sabe explicar nem pra si
mesmo.
Às vezes, nem meia hora com a escova de cabelo funcionava. Ela ficava
olhando para o canto além de mim, e de vez em quando inspirava e
choramingava. Ou balançava a mão pra escuridão da cama e depois a
puxava de volta, como se esperasse que alguma coisa lá embaixo tentasse
morder. Uma ou duas vezes, até eu pensei que vi alguma coisa se mexendo
lá embaixo, e tive que botar a mão na boca pra me segurar e não gritar. Era
só a sombra da mão dela se mexendo, óbvio, eu sei disso, mas é um exemplo
do estado em que ela me deixava, né? Sim, até eu, que costumo ser tão
cabeça-dura quanto barulhenta.
Quando nada adiantava, eu me deitava na cama com ela. Os braços dela
me envolviam e me agarravam, e Vera deitava a cabeça no que restou dos
meus seios, e eu envolvia os meus braços nela e a abraçava até ela pegar no
sono. Depois, saía da cama, bem devagar pra não a acordar, e voltava para o
meu quarto. Houve algumas vezes em que nem isso eu fiz. Nessas vezes,
que eram sempre quando ela me acordava no meio da noite com a gritaria,
eu dormia com ela.
Foi em uma dessas noites que sonhei com as bolinhas de poeira. Só que
no sonho eu não era eu. Eu era ela, presa naquela cama de hospital, tão
gorda que não conseguia nem me virar sem ajuda, com a perereca ardendo
por causa de uma infecção urinária que não passava porque ela sempre
ficava úmida lá embaixo e não tinha resistência a mais nada. Era como um
capacho dando boas-vindas pra qualquer germe ou bactéria que aparecesse,
pode-se dizer, e sempre ficava virado na direção certa.
Olhei para o canto e vi uma coisa que parecia uma cabeça feita de
poeira. Os olhos estavam virados pra cima e a boca, cheia de dentes longos
e tortos de poeira, estava aberta. Começou a vir na direção da cama, mas
devagar, e quando rolou para o lado do rosto de novo, os olhos estavam me
observando, e percebi que era Michael Donovan, o marido da Vera. Mas na
segunda vez que o rosto apareceu, era o meu marido. Era Joe St. George,
com um sorriso cruel no rosto e muitos dentes compridos de poeira
batendo. Na terceira vez, não era ninguém que eu conhecesse, mas estava
vivo, estava com fome, e pretendia rolar até onde eu estava pra me comer.
Acordei com um pulo tão grande que quase caí da cama. Era bem cedo,
com o sol nascendo e deixando uma listra no chão. Vera ainda dormia. Ela
havia babado no meu braço todo, mas de primeira nem tive força pra
limpar. Só fiquei deitada, tremendo e toda coberta de suor, tentando me
convencer de que eu estava mesmo acordada e de que estava tudo bem,
como se faz, sabe, depois de um pesadelo bem ruim. Por um segundo eu
ainda vi aquela cabeça de poeira com os olhos grandes e vazios e os dentes
compridos de poeira no chão ao lado da cama. Pra você ver como o sonho
foi ruim. Depois, sumiu; o chão e os cantos do quarto estavam limpos e
vazios como sempre. Mas, desde aquele dia, me pergunto se talvez Vera
não tivesse me enviado aquele sonho, se eu não vi um pouco do que ela via
nas vezes em que gritava. Talvez eu tenha captado um pouco do medo dela
e me apropriado dele. Você acha que essas coisas acontecem na vida real ou
só nos jornais baratos que vendem no mercado? Sei lá… mas sei que o
sonho me deixou morrendo de medo.
Bom, não importa. Basta dizer que gritar como louca nas tardes de
domingo e no meio da noite era o terceiro jeito dela ser uma filha da puta.
Mas era muito triste mesmo assim. Toda a sacanagem dela era triste no fim
das contas, embora não me impedisse de às vezes querer girar a cabeça dela
como um carretel em um fuso, e acho que qualquer um menos a Santa
Joana D’Arc teria sentido o mesmo. Acho que quando Susy e Shawna me
ouviram gritando naquele dia que eu quis matá-la… ou quando as pessoas
me ouviam… ou nos ouviam gritando crueldades uma com a outra… bom,
elas devem ter pensado que eu puxaria a saia e sapatearia no túmulo de
Vera quando ela finalmente morresse. E acho que você deve ter tido
notícias de algumas dessas pessoas ontem e hoje, certo, Andy? Não precisa
responder; todas as respostas de que preciso estão estampadas na sua cara.
Parece um outdoor. Além do mais, eu sei que as pessoas amam falar.
Falaram sobre mim e a Vera, e houve uma falação danada sobre mim e Joe
também, algumas antes de ele morrer e mais ainda depois. Aqui no fim do
mundo, a coisa mais interessante que uma pessoa pode fazer é morrer de
repente, já reparou?
Então chegamos ao Joe.
Ando com medo dessa parte, e acho que não adianta mentir. Já contei
que o matei, então isso já está dito, mas a parte difícil ainda está por vir:
como… e por quê… e quando teve que ser.
Pensei muito no Joe hoje, Andy. Mais nele do que na Vera, pra falar a
verdade. Fiquei tentando lembrar como foi que acabei me casando com ele,
e de cara não consegui. Depois de um tempo me deu um pânico, como a
Vera quando achava que tinha uma cobra dentro da fronha. Aí percebi qual
era o problema: eu estava procurando a parte do amor, como uma daquelas
garotinhas tolas que a Vera contratava em junho e despedia antes da
metade do verão porque não conseguiam seguir as regras. Eu estava
procurando a parte do amor, e havia tão pouco disso mesmo em 1945,
quando eu tinha dezoito anos e ele dezenove, e tudo era novo.
Sabe a única coisa que me ocorreu quando eu estava na escada hoje,
congelando até a alma e tentando lembrar a parte do amor? Que ele tinha
uma testa bonita. Eu me sentava perto dele na sala de estudos quando a
gente estava no ensino médio — durante a Segunda Guerra Mundial, isso
— e me lembro da testa dele, como era lisinha, sem uma única espinha.
Havia algumas nas bochechas e no queixo, e Joe tinha tendência a ter
cravos nas laterais do nariz, mas a testa era lisa como creme. Eu me lembro
de querer tocar nela… de sonhar com isso, pra falar a verdade; de desejar
provar se era tão lisa quanto parecia. E quando ele me convidou para o
baile do segundo e do terceiro anos, eu aceitei e tive minha chance de tocar
na testa dele. Era tão lisa quanto parecia, com o cabelo pra trás em ondas
lindas. Eu fiz carinho no cabelo dele e na testa lisa no escuro enquanto a
banda dentro do salão do The Amosse Inn tocava “Moonlight Cocaia”…
Depois de algumas horas sentada naqueles degraus bambos tremendo, isso
me ocorreu, pelo menos, então você pode ver que havia alguma coisinha lá,
afinal. Claro que eu acabei tocando em bem mais do que só a testa em
poucas semanas, e foi aí que eu cometi um erro.
Agora vamos deixar uma coisa bem clara: não estou dizendo que acabei
passando os melhores dias da minha vida com aquele bêbado velho só
porque gostava da aparência da testa dele durante o sétimo período na sala
de estudos, quando a luz batia inclinada nela. Porra, não. Mas o que estou
tentando dizer é que essa é a parte amorosa de que consegui me lembrar
hoje, e que isso me faz me sentir mal. Sentada na escada hoje perto do East
Head, ao pensar nesses velhos tempos… foi uma trabalheira danada. Foi a
primeira vez que percebi que talvez tenha me vendido barato, e talvez
tenha feito isso porque achei que barato era o melhor que gente como eu
poderia esperar. Eu sei que foi a primeira vez que ousei pensar que merecia
ser amada mais do que Joe St. George poderia amar alguém (exceto ele
mesmo, talvez). Você pode achar que uma velha insensível como eu não
acredita no amor, mas a verdade é que é a única coisa em que eu realmente
acredito.
Mas não teve muito a ver com o motivo de eu ter me casado com ele,
isso preciso admitir logo. Eu estava de seis semanas de uma menininha na
barriga quando aceitei o pedido e disse que ficaria com ele até que a morte
nos separasse. E essa foi a parte mais inteligente de tudo… é triste, mas é
verdade. O resto foram os motivos burros de sempre, e uma coisa que eu
aprendi na vida é que motivos idiotas levam a casamentos idiotas.
Eu estava cansada de brigar com a minha mãe.
Eu estava cansada de levar bronca do meu pai.
Todas as minhas amigas estavam se casando, conquistando a própria
casa, e eu queria ser adulta como elas. Estava farta de ser uma garotinha
boba.
Joe disse que me queria, e eu acreditei.
Ele disse que me amava, e eu acreditei também… e depois que ele falou
e me perguntou se eu sentia o mesmo, pareceu que a resposta educada era
dizer que sim.
Eu estava com medo do que aconteceria comigo se eu não me casasse: se
eu teria pra onde ir, o que teria que fazer ou quem cuidaria do meu bebê
enquanto eu estivesse trabalhando.
Sei que tudo isso vai parecer bobagem se você um dia escrever, Nancy,
mas o mais bobo é que eu conheço umas dez mulheres, garotas com quem
estudei um dia, que se casaram pelos mesmos motivos, e a maioria ainda
está casada, e muitas delas estão só aguentando na esperança de viver mais
do que o homem pra poder enterrá-lo e sacudir os peidos de cerveja dele do
lençol pra sempre.
Em 1952, mais ou menos, eu já tinha me esquecido da testa, e em 1956
também não tinha muita utilidade para o resto dele, e acho que comecei a
odiá-lo quando Kennedy assumiu depois do Ike, mas só pensei em matá-lo
depois. Achei que ficaria com Joe porque meus filhos precisavam de um
pai, mesmo que não houvesse nenhum outro motivo. Não é uma piada?
Mas é a verdade, juro que é. E juro outra coisa também: se Deus me desse
uma segunda chance, eu o mataria de novo, mesmo que eu ardesse no fogo
dos infernos pra sempre… o que deve acontecer mesmo.
Acho que todo mundo que não é recém-chegado em Little Tall sabe que
eu o matei, e a maioria deve achar que sabe o motivo: acham que é por
causa do jeito que ele colocava as mãos em mim. Mas não foram as mãos
dele em mim que o levaram à morte, e a verdade é que, apesar do que as
pessoas da ilha achavam na época, ele não relou a mão em mim durante os
últimos três anos do nosso casamento. Eu o curei dessa tolice no final de
1960 ou começo de 1961.
Até lá, ele me batia muito, sim. Não posso negar. E eu aguentava,
também não posso negar isso. A primeira vez foi na segunda noite após o
casamento. Tínhamos ido passar o fim de semana em Boston, a nossa lua
de mel, e ficamos no Parker House. Éramos dois ratinhos do interior,
sabe?, com medo de nos perdermos. Joe disse que não ia gastar de jeito
nenhum os 25 dólares que os meus pais tinham nos dado de presente em
um trajeto de táxi só porque ele não conseguia chegar no hotel. Nossa,
como aquele homem era burro! Óbvio que eu era também… mas uma
coisa que Joe tinha e eu não (e fico feliz por isso) era aquela natureza
eternamente desconfiada. Ele achava que toda a raça humana queria fazê-
lo de idiota ou ferrar com a vida dele, e eu pensei muitas vezes que, quando
Joe ficava bêbado, era por ser o único jeito de ele conseguir dormir sem
permanecer com um olho aberto.
Bom, mas isso não tem nada a ver com nada. O que eu queria contar é
que fomos para o restaurante na noite de sábado, jantamos bem e voltamos
para o quarto. Lembro que Joe já estava andando torto no corredor. Ele
tinha tomado quatro ou cinco cervejas no jantar, depois das nove ou dez
que tinha tomado ao longo da tarde. Quando entramos no quarto, ele ficou
parado me olhando por tanto tempo que perguntei se ele estava vendo
alguma coisa em mim.
“Não”, disse ele, “mas eu vi um homem lá no restaurante olhando
embaixo do seu vestido, Dolores. Os olhos dele estavam quase saltados. E
você sabia que ele estava olhando, né?”
Quase falei que Gary Cooper poderia estar sentado no canto com Rita
Hayworth que eu nem teria percebido, mas pensei pra quê? Não adiantava
discutir com Joe quando ele bebia; eu não tinha entrado naquele
casamento cega, e não vou tentar fingir que entrei.
“Se tinha um homem olhando embaixo do meu vestido, por que você
não foi lá mandar ele fechar os olhos, Joe?”, perguntei.
Era piada, talvez eu estivesse tentando desviar do assunto, não lembro,
mas ele não achou que era piada. Disso eu me lembro. Joe não era um
homem de piadas; na verdade, eu tenho que confessar que ele quase não
tinha senso de humor. Isso é algo que eu não sabia quando me casei com
ele. Na época, achava que senso de humor era que nem nariz ou um par de
orelhas: que alguns funcionavam melhor do que outros, mas todo mundo
tinha.
Ele me segurou, me jogou em cima do joelho e me bateu com o sapato.
“Pelo resto da sua vida, ninguém além de mim vai saber qual é a cor da
sua calcinha, Dolores”, ele disse. “Está me ouvindo? Ninguém além de
mim.”
Até achei que era uma brincadeirinha de amor, ele fingindo estar com
ciúmes pra me elogiar… isso pra você ver como eu era boba. Foi ciúme,
sim, mas não teve nada a ver com amor. Foi mais como um cachorro que
bota a pata sobre o osso e rosna se você chegar perto demais. Eu não sabia
disso na época, então aguentei. E aguentei depois porque achei que um
homem bater na esposa de tempos em tempos fazia parte do casamento;
não uma parte boa — só que limpar privada também não é uma parte boa,
e a maioria das mulheres sempre fez uma boa cota disso depois que o
vestido de noiva e o véu são guardados no sótão. Não é, Nancy?
O meu próprio pai colocava as mãos na minha mãe de tempos em
tempos, e eu acho que foi daí que tirei a ideia de que era assim mesmo: só
uma coisa que eu precisava aguentar. Eu amava muito o meu pai, e os dois
se amavam muito, mas ele era um homem agressivo quando algo o
incomodava.
Eu me lembro de uma vez, eu devia ter uns nove anos, quando o meu pai
chegou depois de cortar feno no campo de George Richards, lá no West
End, e a minha mãe não estava com o jantar dele pronto. Não lembro mais
por que não estava pronto, mas me lembro direitinho do que aconteceu
quando ele entrou. O meu pai estava só de macacão (tinha tirado as botas e
as meias na entrada porque estavam sujas), e o rosto e os ombros estavam
bem vermelhos, queimados. O cabelo suado grudava nas têmporas e havia
um pedaço de feno na testa, bem no meio das linhas que a atravessavam.
Ele parecia estar com calor, cansado e pronto pra ficar furioso.
Entrou na cozinha e não tinha nada na mesa além de uma jarra de água
com flores dentro. Ele se virou pra minha mãe e disse:
“Cadê o meu jantar, sua idiota?”
Ela abriu a boca, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele enfiou
a mão na cara dela e a empurrou pro canto. Eu estava parada na entrada da
cozinha e vi tudo. Ele veio andando na minha direção com a cabeça baixa e
o cabelo meio que caindo nos olhos. Sempre que vejo um homem andando
pra casa daquele jeito, cansado do dia de trabalho e com a marmita na mão,
penso no meu pai. Fiquei com medo. Quis sair da frente porque achei que
ele viria pra cima de mim também, só que as minhas pernas estavam
pesadas demais pra eu me mexer. Mas ele não fez isso. O meu pai me
ergueu com as mãos grandes e quentes e me tirou do caminho pra sair
pelos fundos. Ele se sentou no bloco de cortar lenha com as mãos no colo e
a cabeça baixa, como se estivesse observando-as. Assustou as galinhas de
primeira, mas elas voltaram depois de um tempo e começaram a bicar em
volta dos sapatos dele. Achei que o meu pai as chutaria, faria as penas
voarem, mas também não fez isso.
Depois de um tempo, olhei pra minha mãe. Ela ainda estava sentada no
canto. Tinha colocado um pano de prato no rosto e chorava embaixo. Os
braços estavam cruzados sobre os seios. É disto que mais me lembro, apesar
de não saber por quê: os braços dela cruzados sobre os seios daquele jeito.
Eu me aproximei e a abracei, e, quando ela sentiu os meus braços, me
abraçou também. Em seguida, tirou o pano do rosto e o usou pra secar os
olhos. Falou pra eu ir lá atrás perguntar para o meu pai se ele queria um
copo de limonada gelada ou uma garrafa de cerveja.
“Fala pra ele que só tem duas garrafas”, disse ela. “Se ele quiser mais, vai
ter que ir até o mercado, então é melhor nem começar.”
Fui lá fora e falei com ele, que disse que não queria cerveja, mas um
copo de limonada seria perfeito. Fui correndo buscar. A minha mãe estava
preparando o jantar. O rosto dela ainda estava meio inchado de chorar, mas
ela cantarolava uma melodia, e naquela noite os dois balançaram as molas
da cama como faziam na maioria das noites. Ninguém fez nada nem deu
mais um pio sobre o assunto. Na época, esse tipo de coisa era chamada de
“corretivo doméstico”, e era parte do trabalho de um homem, e se eu pensei
nisso depois, foi só que a minha mãe devia ter merecido, senão o meu pai
nunca teria feito o que fez.
Houve algumas outras vezes em que o vi dar um corretivo nela, mas essa
é a que lembro melhor. Nunca o vi dar um soco nela, como Joe fazia
comigo às vezes, mas uma vez ele bateu nas pernas dela com um pedaço de
vela de lona molhada, e isso deve ter doído de um jeito absurdo. Só sei que
deixou marcas vermelhas que ficaram até o fim da tarde.
Ninguém mais chama isso de “corretivo doméstico”. O termo saiu de
moda, até onde eu sei, e já vai tarde, mas cresci com a ideia de que quando
mulheres e crianças saem da linha, é função do homem levá-las de volta.
Mas não estou dizendo que, só porque eu cresci com a ideia, achava certo.
Não vou me deixar me safar tão fácil. Eu sabia que um homem colocar as
mãos em uma mulher não tinha muito a ver com correção… mas deixei
Joe fazer isso comigo por muito tempo mesmo assim. Acho que eu estava
cansada demais de cuidar da casa, fazer faxina para os turistas de verão,
cuidar da família e tentar resolver os problemas de Joe com os vizinhos pra
pensar nisso.
Ser casada com Joe… ah, merda! Como é qualquer casamento? Acho que
todos são diferentes, mas não tem um que seja o que parece pra quem olha
de fora, isso eu posso dizer. O que as pessoas veem da vida de um casal e o
que realmente acontece entre os dois costuma ser no máximo parecido. Às
vezes é horrível, e às vezes é engraçado, mas normalmente é como todas as
outras partes da vida: os dois ao mesmo tempo.
O que as pessoas acham é que Joe era um alcoólatra que batia em mim e
provavelmente nos filhos também quando estava bêbado. Acham que a
coisa chegou ao limite e que eu carimbei o passaporte dele por isso. É
verdade que Joe bebia e que às vezes ia a reuniões do aa em Jonesport, mas
não era mais alcoólatra do que eu. Ficava bêbado em intervalos de quatro a
cinco meses, em geral com gentinha como Rick Thibodeau ou Stevie
Brooks, homens que eram de fato alcoólatras. Mas aí ficava sem encher a
cara, exceto por um golinho ou outro quando chegava de noite. Não mais
do que isso, porque, quando tinha uma garrafa, gostava de fazer durar. Dos
verdadeiros alcoólatras que conheci na vida, nenhum estava interessado
em fazer nenhuma garrafa de nada durar: nem Jim Bean, nem Old Duke,
nem mesmo anticongelante coado em tecido de algodão. Um verdadeiro
bêbado só está interessado em duas coisas: acabar com o que tem em mãos
e procurar mais.
Não, ele não era alcoólatra, mas não se importava que as pessoas
achassem que era. Era bom pra conseguir trabalho, principalmente no
verão. Acho que o jeito como as pessoas pensam sobre os Alcoólicos
Anônimos mudou ao longo dos anos, sei que agora falam bem mais sobre o
assunto, mas algo que não mudou é o jeito como tentam ajudar alguém que
alega que começou a se esforçar pra mudar. Joe passou um ano inteiro sem
beber, ou pelo menos sem falar sobre isso quando bebia, e fizeram uma
festa pra ele em Jonesport. Deram um bolo e uma medalha, até. Então,
quando ia procurar um serviço no verão, a primeira coisa que ele dizia era
que era um alcoólatra em recuperação.
“Se você não quiser me contratar por isso, eu não vou ter
ressentimento”, dizia, “mas eu tenho que contar. Estou indo a reuniões do
aa há mais de um ano, e eles dizem que a gente não pode ficar sóbrio se
não puder ser honesto.”
Aí ele tirava o medalhão dourado de um ano e mostrava pra pessoa, o
tempo todo parecendo apenas se penitenciar por um mês inteiro composto
de domingos. Acho que um ou dois até choraram quando Joe contou que
estava dando um passo de cada vez e indo devagar no processo de deixar
tudo pra trás e permitir que Deus agisse cada vez que a vontade de beber
batia… o que acontecia a cada quinze minutos, de acordo com ele. As
pessoas aceitavam na hora e, várias vezes, por cinquenta centavos ou um
dólar a mais do que pretendiam pagar. Era de se pensar que o truque não
funcionaria mais depois do Labor Day, mas deu muito certo até aqui na
ilha, onde todo mundo o via todos os dias e devia saber a verdade.
A verdade é que na maioria das vezes em que me bateu, Joe estava
sóbrio. Quando enchia a cara, não me dava a menor bola. Aí, em 1960 ou
1961, ele chegou uma noite depois de ajudar Charlie Dispenzieri a tirar o
barco da água, e quando se inclinou pra pegar uma coca-cola na geladeira,
percebi que a calça dele estava rasgada na bunda. Dei risada. Não consegui
me segurar. Ele não disse nada, mas quando fui até o fogão olhar o repolho,
porque eu estava fazendo um jantar cozido naquela noite, lembro como se
fosse ontem, ele pegou um pedaço de pau e bateu na minha lombar. Doeu
pra cacete. Só quem já levou um soco nos rins sabe do que estou falando.
Eles parecem pequenos, quentes e pesados, como se fossem se soltar do que
os segura no lugar e afundar, como chumbo jogado num balde.
Manquei até a mesa e me sentei em uma cadeira. Teria caído se a cadeira
estivesse mais distante. Fiquei ali, esperando pra ver se a dor passaria. Não
chorei exatamente, porque não queria assustar as crianças, mas as lágrimas
escorreram pelo meu rosto mesmo assim. Não consegui segurá-las. Foram
lágrimas de dor, do tipo que não dá pra conter por ninguém nem por nada.
“Nunca ria de mim, sua filha da puta”, disse Joe, e então jogou a lenha
que usou pra me bater de volta na caixa de madeira e se sentou pra ler o
American. “Você já devia saber disso há mais de dez anos.”
Levei vinte minutos pra conseguir sair daquela cadeira. Tive que chamar
Selena pra abaixar o fogo dos legumes e da carne, apesar de o fogão estar a
quatro passos de distância.
“Por que você não faz isso, mamãe?”, perguntou ela. “Eu estava vendo
desenho com o Joey.”
“Eu estou descansando”, respondi.
“Isso mesmo”, disse o Joe, por trás do jornal. “Ela falou demais e a boca
ficou frouxa.”
Então ele riu. Foi isso; bastou aquela risada. Foi naquela hora que decidi
que ele nunca mais bateria em mim, a não ser que quisesse pagar caro por
isso.
Jantamos como sempre, e depois vimos televisão como sempre, eu e as
crianças maiores no sofá e o pequeno Pete no colo do pai na poltrona. Pete
cochilou lá mesmo, como fazia com frequência, por volta das sete e meia, e
Joe o levou pra cama. Mandei Joe Junior ir dormir uma hora depois, e
Selena foi às nove. Normalmente, eu ia pra cama às dez e Joe ficava
acordado até por volta de meia-noite, cochilando, vendo um pouco de
televisão, lendo as partes do jornal que tinha perdido da primeira vez e
tirando meleca. Isso pra você ver, Frank, que você não é tão ruim; algumas
pessoas nunca perdem o hábito, nem quando adultas.
Naquela noite, não fui pra cama como nos outros dias. Fiquei sentada na
sala com Joe. As minhas costas estavam um pouco melhores. Boas o
suficiente pra eu fazer o que tinha que fazer, pelo menos. Talvez eu
estivesse nervosa, mas, se estava, não lembro. Estava esperando que ele
cochilasse, e ele finalmente cochilou.
Eu me levantei, fui até a cozinha e peguei a jarrinha de leite na mesa.
Não fui até lá especificamente pra pegar isso; estava lá porque era a noite
de Joe Junior tirar a mesa, e ele tinha se esquecido de guardar na geladeira.
Joe Junior sempre esquecia alguma coisa: de guardar a jarrinha de leite, de
botar a tampa da manteigueira, de dobrar o pacote de pão pra que a
primeira fatia não ficasse dura. Agora, quando eu o vejo na televisão,
fazendo um discurso ou dando uma entrevista, é nisso que acabo
pensando… e me pergunto o que os Democratas pensariam se soubessem
que o Líder Majoritário do Senado pelo Estado do Maine não conseguia
nem esvaziar a mesa toda quando tinha onze anos. Mas sinto orgulho dele,
e nunca, nem por um segundo, duvide disso. Sinto orgulho mesmo ele
sendo um maldito democrata.
Enfim, ele conseguiu esquecer a coisa certa naquela noite; era pequena,
mas era pesada, e a sensação foi perfeita na minha mão. Fui até a caixa de
madeira e peguei a machadinha de cabo curto que deixávamos na
prateleira de cima. Aí, voltei pra sala, onde Joe cochilava. Eu estava com a
jarrinha na mão direita e bati com ela na lateral da cara dele. Acho que se
quebrou em uns mil pedaços.
Ele se sentou rapidinho quando fiz isso, Andy. E você devia ter ouvido o
barulho que ele fez. Alto? Deus do céu! Estava mais para um touro com o
pinto preso no portão. Os olhos se arregalaram, e ele levou a mão à orelha,
que já sangrava. Havia pontinhos de leite secando na bochecha e naqueles
pelos ralos na lateral do rosto que ele chamava de costeleta.
“Adivinha, Joe. Não estou mais cansada”, falei.
Ouvi Selena pular da cama, mas não ousei me virar. Correria sério risco
se fizesse isso; quando queria, ele sabia ser rápido. Eu segurava a
machadinha com a mão esquerda, na lateral do corpo, com o avental quase
cobrindo. E quando Joe começou a se levantar da cadeira, mostrei a
machadinha a ele.
“Se não quiser isso na sua cabeça, Joe, é melhor você se sentar de novo”,
falei.
Por um segundo, achei que ele ia se levantar de qualquer jeito. Se tivesse
se levantado, teria sido o fim dele ali mesmo, porque eu não estava de
brincadeira. Ele percebeu, e parou com a bunda a uns dez centímetros do
assento.
“Mamãe?”, chamou Selena da porta do quarto.
“Volta pra cama, meu bem”, falei, sem tirar os olhos de Joe nem por um
segundo. “Seu pai e eu estamos tendo uma pequena discussão aqui.”
“Está tudo bem?”
“Está. Não está, Joe?”, falei.
“Aham. Tudo ótimo”, concordou ele.
Eu a ouvi dar alguns passos pra trás, mas não ouvi a porta do quarto se
fechar por um tempo — dez, talvez quinze segundos —, e soube que ela
estava ali parada nos olhando. Joe não se mexeu, com um braço apoiado na
poltrona e a bunda levantada do assento. Aí, ouvimos a porta ser fechada, e
isso pareceu fazer Joe perceber como ele devia parecer um pateta, meio na
poltrona, meio levantado, com a outra mão sobre a orelha e pontinhos de
leite escorrendo pela lateral do rosto.
Ele se sentou de vez e afastou a mão. Ela e a orelha estavam cheias de
sangue, mas a mão não estava inchando, e a orelha, sim.
“Ah, filha da puta, você vai pagar caro”, disse.
“Vou? Então é melhor você se lembrar do seguinte, Joe St. George: o que
você fizer comigo vai receber em dobro.”
Ele estava sorrindo pra mim como se não conseguisse acreditar no que
estava ouvindo.
“Ora, então acho que vou ter que te matar, né?”
Entreguei a machadinha quase antes de as palavras terem saído pela
boca dele. Não tinha pensado em fazer isso, mas assim que o vi a
segurando, soube que era a única coisa que eu poderia ter feito.
“Vai”, falei. “Mas faz de uma vez, pra eu não ter que sofrer.”
Ele olhou de mim pra machadinha e então pra mim de novo. A
expressão de surpresa no rosto dele teria sido cômica se a situação não
fosse tão séria.
“Aí, depois que acabar, é melhor esquentar o jantar e comer mais um
pouco”, falei. “Come até estourar, porque você vai ser preso e que eu saiba
não servem nada de bom preparado em casa na prisão. Você vai pra Belfast
primeiro, acho. Aposto que tem um daqueles macacões laranja do seu
tamanho.”
“Cala a boca, vadia”, ele disse.
Mas eu não calei.
“Depois disso, é provável que você vá pra Shawshank, e eu sei que lá não
tem comida quente na mesa. Não deixam você sair pra jogar pôquer na
sexta à noite com seus amigos. Só peço que você seja rápido e não deixe as
crianças verem a sujeira quando acabar.”
Nessa hora, fechei os olhos. Tinha quase certeza de que ele não faria,
mas ter quase certeza não adianta de nada quando é a sua vida em jogo. Foi
algo que descobri naquela noite. Fiquei parada, de olhos fechados, na total
escuridão e me perguntando como seria sentir aquela machadinha partir o
meu nariz, os meus lábios e os meus dentes. Eu me lembro de pensar que
era provável que sentisse o gosto das farpas de madeira na lâmina antes de
morrer, e me lembro de ter ficado feliz de ter afiado a machadinha dois ou
três dias antes. Se ele ia me matar, eu não queria que fosse com uma
machadinha cega.
Tive a impressão de ficar ali parada por uns dez anos. Mas aí ele falou,
meio mal-humorado e puto da vida:
“Você vai se aprontar pra cama ou vai ficar aí parada como Helen Keller
tendo um sonho erótico?”
Quando abri os olhos, ele tinha colocado a machadinha embaixo da
poltrona. Dava pra ver a ponta do cabo saindo por baixo da saia. O jornal
estava caído nos pés dele, em formato de tenda. Ele se curvou, pegou-o e o
sacudiu, tentando agir como se nada tivesse acontecido, mas havia sangue
escorrendo da orelha pela bochecha e as mãos dele estavam tremendo a
ponto de o jornal farfalhar. Joe tinha deixado marcas de digital em
vermelho na primeira e na última página, e decidi queimar aquela porcaria
antes de ele ir pra cama, pra que as crianças não vissem e ficassem se
perguntando o que havia acontecido.
“Vou vestir a camisola daqui a pouco, mas vamos ter uma conversinha
sobre isso primeiro, Joe.”
Ele olhou pra cima e disse, com a boca apertadinha:
“Não me venha com abusos, Dolores. Seria um erro muito, muito grande.
Você não vai querer me provocar.”
“Eu não estou provocando”, falei. “Seus dias de me bater acabaram, é só
isso que eu quero dizer. Se fizer de novo, um de nós vai para o hospital. Ou
para o necrotério.”
Ele me olhou por muito tempo, Andy, e eu o encarei de volta. A
machadinha não estava na mão dele, e sim embaixo da poltrona, mas isso
não importava; eu sabia que, se baixasse os olhos antes dele, os socos no
pescoço e as porradas nas costas não terminariam nunca. Mas ele
finalmente olhou para o jornal de novo e murmurou:
“Vá ser útil, mulher. Traz uma toalha pra minha cabeça, já que você não
consegue fazer mais nada. Estou enchendo a camisa de sangue.”
Essa foi a última vez que ele me bateu. Lá no fundo, Joe era um covarde,
entende? Apesar de eu nunca ter dito a palavra em voz alta pra ele, nem
naquela ocasião, nem nunca. Fazer isso é a atitude mais perigosa que
alguém pode ter, eu acho, porque um covarde tem mais medo de ser
descoberto do que de qualquer outra coisa, até de morrer.
Óbvio que eu sabia que Joe tinha um ponto fraco; nunca teria ousado
bater na cabeça dele com aquela jarra se não tivesse achado que tinha uma
boa chance de sair na vantagem. Além do mais, percebi algo quando me
sentei naquela cadeira para esperar que os meus rins parassem de doer
depois que ele bateu em mim: se não o enfrentasse naquele momento, eu
provavelmente nunca o enfrentaria. Por isso fiz o que fiz.
E, quer saber, bater em Joe com a jarrinha foi a parte fácil. Pra fazer isso,
tive que me libertar da lembrança do meu pai empurrando a minha mãe e
batendo na parte de trás das pernas dela com aquele pedaço de lona
molhada. Superar essas lembranças foi difícil, porque eu amava muito os
dois, mas no final eu consegui… acho que porque precisei. E estou grata
por ter precisado, no mínimo porque Selena nunca vai ter que se lembrar
da mãe sentada no canto chorando com um pano de prato na cara. A
minha mãe aguentava quando o marido batia nela, mas eu que não vou
ficar julgando os dois. Talvez ela tivesse que aguentar e talvez ele tivesse
que bater pra não ser diminuído pelos homens com quem tinha que
conviver e trabalhar todos os dias. Eram outros tempos, a maioria das
pessoas não percebe o quanto, mas isso não significava que eu tinha que
aguentar só porque havia sido pateta a ponto de me casar com Joe. Não tem
nada de corretivo em um homem bater em uma mulher com os punhos ou
um pedaço de lenha, e no fim das contas decidi que não ia aguentar aquilo
de gente como Joe St. George, nem de nenhum outro homem.
Houve ocasiões em que ele ergueu a mão pra mim, mas aí pensava
melhor. Às vezes, quando a mão estava levantada, querendo bater, mas sem
ousar bater, eu via nos olhos dele que Joe estava se lembrando da jarra… e
talvez da machadinha também. Aí ele fingia que havia erguido a mão
porque precisava se coçar ou secar a testa. Essa foi uma lição que ele
aprendeu de primeira. Talvez a única.
Outra coisa resultou da noite em que ele me bateu com o pedaço de
lenha e eu bati de volta com a jarra. Não gosto de tocar no assunto, sou
uma dessas pessoas antiquadas que acredita que o que acontece entre
quatro paredes deve ficar entre quatro paredes, mas acho que tenho que
falar, porque acho que é parte do motivo de as coisas terem tomado o rumo
que tomaram.
Apesar de estarmos casados e continuarmos morando sob o mesmo teto
por mais dois anos — talvez quase três, não consigo lembrar direito —, ele
só tentou se aproveitar dos privilégios dele comigo poucas vezes depois
disso. Ele…
O quê, Andy?
Claro que estou falando da impotência! De que mais seria, do direito de
Joe de usar as minhas calcinhas se tivesse vontade? Eu nunca recusei; ele
que não conseguia mais fazer. Ele não era o que se chamaria de “homem
que quer todas as noites”, nem no começo, e eu também não era de querer;
era sempre pá-pum, obrigado, boa noite. Ainda assim, ele ficou interessado
a ponto de subir em mim uma ou duas vezes por semana… até eu bater
nele com a jarrinha.
Em parte, deve ter sido a bebida. Ele estava bebendo bem mais naqueles
últimos anos. Mas acho que não foi só isso. Eu me lembro de, uma noite,
ele rolar de cima de mim depois de uns vinte minutos bufando inutilmente
com aquela coisinha pendurada, mole como um macarrão. Não sei quanto
tempo depois da noite da jarra isso aconteceu, mas sei que foi depois
porque me lembro de sentir os rins latejando e pensar que logo eu me
levantaria pra tomar uma aspirina e ver se parava de sentir dor.
“Olha aí”, disse ele, quase chorando. “Espero que esteja satisfeita,
Dolores. Você está?”
Fiquei quieta. Às vezes, qualquer coisa que uma mulher diga pra um
homem vai ser a coisa errada.
“Está? Está satisfeita, Dolores?”, ele repetiu.
Continuei quieta, deitada encarando o teto e ouvindo o vento lá fora.
Estava vindo do leste naquela noite, e dava pra ouvir o mar. É um som que
sempre amei. Me acalma.
Ele se virou e senti o bafo de cerveja na minha cara, rançoso e azedo.
“Apagar a luz ajudava, mas não ajuda mais. Dá pra ver sua cara feia
mesmo no escuro.” Joe esticou a mão, pegou meu peito e sacudiu. “E isto
aqui. Mole e achatado como uma panqueca. A sua boceta é pior ainda. Meu
Deus, você não tem nem trinta e cinco anos, e comer você é como comer
uma poça de lama.”
Pensei em dizer se eu fosse uma poça de lama ainda dava pra enfiar mesmo
mole, Joe, e como isso te daria alguma paz?, mas fiquei de bico calado.
Patricia Claiborne não criou nenhuma trouxa, como eu falei.
Passamos mais um tempo em silêncio. Eu tinha praticamente decidido
que Joe havia dito coisas cruéis o suficiente pra conseguir pegar no sono e
estava pensando em ir buscar a aspirina, quando ele falou de novo… e,
dessa vez, eu tenho quase certeza de que estava mesmo chorando.
“Eu queria nunca ter visto a sua cara”, disse ele, e depois: “Por que você
não usou aquela maldita machadinha pra cortar fora, Dolores? Teria dado
no mesmo.”
Isso pra você ver que eu não era a única que achava que a porrada com a
jarra de leite — e ouvir que a dinâmica em casa ia mudar — pode ter tido a
ver com o problema dele. Mas continuei em silêncio, só esperando pra ver
se ele ia dormir ou tentar pôr as mãos em mim de novo. Ele estava deitado
ali, pelado, e eu sabia qual era o primeiro lugar que eu ia atacar se ele
tentasse. Pouco depois, ouvi ele roncar. Não sei se foi a última vez que ele
tentou ser homem comigo, mas, se não foi, foi uma das últimas.
Nenhum dos amigos dele ficou sabendo de nada, claro. Ele que não ia
contar que a esposa tinha dado nele com uma jarra e que a fuinha não
levantava mais a cabeça, né? Não o Joe! Então, quando os outros enchiam a
boca pra falar de como estavam botando as esposas na linha, ele enchia a
boca junto, dizendo que tinha me dado uma surra por ter sido abusada com
as palavras, ou talvez por ter comprado um vestido em Jonesport sem
perguntar se tinha problema pegar dinheiro no pote de biscoitos.
Como eu sei? Ué, porque tem horas em que consigo prestar atenção no
que estou ouvindo, em vez de abrir a boca. Sei que é difícil de acreditar
depois de me ouvir aqui hoje, mas é verdade.
Eu me lembro de uma vez em que estava trabalhando em meio período
para os Marshall — lembra do John Marshall, Andy, que sempre ficava
falando de construir uma ponte até o continente? — e a campainha de lá
tocou. Eu estava sozinha na casa, então corri pra atender e escorreguei em
um tapete. Caí com tudo na quina da lareira. Ficou um hematoma enorme
no meu braço, acima do cotovelo.
Três dias depois, quando o hematoma estava passando de marrom-
escuro para aquele verde-amarelado, encontrei Yvette Anderson no
vilarejo. Ela estava saindo do mercado, e eu estava entrando. Ela olhou para
o hematoma no meu braço e, quando falou comigo, a voz dela transbordava
pena. Só uma mulher que viu algo que a deixa mais feliz do que um porco
chafurdando pode transbordar daquele jeito.
“Os homens são horríveis, Dolores”, ela disse.
“Bom, às vezes eles são, e às vezes não são”, respondi.
Eu não tinha a menor ideia do que ela estava falando; estava mais
preocupada em comprar as costeletas de porco em promoção naquele dia
antes que acabassem.
Ela bateu no meu braço de levinho, o que não tinha hematoma, e disse:
“Você tem que ser forte. Tudo vai dar certo. Já passei por isso e sei bem.
Vou rezar por você, Dolores.”
Ela falou essa última parte como se tivesse acabado de me dizer que ia
me dar um milhão de dólares e saiu andando pela rua. Entrei no mercado,
ainda intrigada. Teria achado que ela tinha perdido um parafuso, mas
qualquer um que já passou um tempo com Yvette sabe que ela não tem
muitos a perder.
Eu estava na metade das compras quando me dei conta. Fiquei olhando
Skippy Porter pesar as minhas costeletas, com a cesta do mercado
pendurada no braço e a cabeça jogada pra trás, soltando uma risada que
vinha do fundo da barriga, como se faz quando se sabe que não dá pra fazer
mais nada além de gargalhar. Skippy olhou pra mim e disse:
“Está tudo bem, dona St. George?”
“Estou ótima. Só pensei em uma coisa engraçada”, respondi, e voltei a
rir.
“É, estou vendo”, disse Skippy, e voltou a olhar a balança.
Que Deus abençoe os Porter, Andy; enquanto eles ficarem, vai ter pelo
menos uma família na ilha que sabe cuidar da própria vida. Enquanto isso,
continuei rindo. Algumas outras pessoas me olharam como se eu tivesse
ficado maluca, mas não me importei. Às vezes, a vida é tão engraçada que a
gente tem que rir.
A Yvette é casada com Tommy Anderson, claro, e Tommy era um dos
amigos de cerveja e pôquer de Joe no final dos anos 1950 e começo dos
1960. Um grupo tinha ido à nossa casa um ou dois dias depois que
machuquei o braço, pra tentar fazer a compra mais recente de Joe, uma
picape Ford, funcionar. Era o meu dia de folga, então levei uma jarra de chá
gelado pra eles, na esperança de deixá-los longe da espuma da cerveja pelo
menos até o pôr do sol.
Tommy deve ter visto o hematoma quando eu estava servindo o chá.
Talvez tenha perguntado ao Joe o que tinha acontecido depois que entrei,
ou talvez só tenha comentado. Enfim, Joe St. George não era sujeito de
perder uma oportunidade, pelo menos não uma assim. Na volta pra casa do
mercado, enquanto pensava no assunto, a única coisa que fiquei curiosa
para saber era o que Joe havia dito para Tommy e os outros que eu tinha
feito: se tinha me esquecido de deixar os chinelos dele debaixo do fogão pra
estarem quentinhos quando ele os calçasse, talvez, ou se tinha deixado o
feijão ficar mole demais na noite de sábado. Seja lá o que for, Tommy foi
pra casa e contou pra Yvette que Joe St. George tinha precisado dar um
corretivo na esposa. E tudo que eu fiz foi bater na quina da lareira dos
Marshall quando corri pra ver quem estava à porta!
É disso que estou falando quando digo que tem dois lados em um
casamento: o de fora e o de dentro. As pessoas da ilha viam a mim e Joe
como viam a maioria dos casais da nossa idade: nem felizes demais, nem
tristes demais, em geral apenas levando a vida como dois cavalos puxando
uma carroça… podem não notar um ao outro como antes, e podem não se
dar tão bem quanto antes quando se notam, mas estão presos lado a lado
seguindo pela estrada mesmo assim, sem morder um ao outro, nem
enrolar, nem fazer nenhuma das outras coisas que fazem o chicote cantar.
Mas as pessoas não são cavalos e um casamento não é muito como puxar
uma carroça, apesar de eu saber que às vezes parece isso pra quem olha de
fora. O pessoal da ilha não sabia da jarrinha de leite, nem que Joe chorou
no escuro e disse que desejava nunca ter visto minha cara feia. E isso não
foi o pior. O pior só começou por volta de um ano depois que deixamos de
ter alguma relação na cama. É engraçado, né, que as pessoas podem olhar
uma coisa e tirar uma conclusão completamente diferente sobre o motivo
de ter acontecido. Mas é natural, desde que você lembre que a parte de
dentro e a de fora de um casamento em geral não são muito parecidas. O
que vou contar agora estava na parte de dentro do nosso, e até hoje sempre
achei que ficaria lá.
Ao olhar pra trás, acho que o problema deve ter surgido de verdade em
1962. Selena tinha começado o ensino médio no continente. Estava muito
bonita, e lembro que, no verão, quando o nono ano acabou, ela se dava
melhor com o pai do que nos dois anos anteriores. Eu estava com medo dos
anos de adolescência dela, porque previa muitas brigas entre os dois à
medida que ela crescesse e começasse a questionar as ideias dele e o que
Joe via, cada vez mais, como direitos dele sobre a filha.
Mas houve um pequeno período de paz, tranquilidade e sentimentos
bons entre os dois, quando ela ia vê-lo trabalhar nas latas-velhas dele atrás
da casa ou se sentava ao lado do pai no sofá enquanto a gente via televisão à
noite (o pequeno Pete não gostou muito desse arranjo, pode ter certeza) e
fazia perguntas sobre o dia dele durante os comerciais. Joe respondia de um
jeito calmo e pensativo com o qual eu não estava acostumada… mas meio
que lembrava. Eu lembrava do ensino médio, de quando a gente estava
começando a se conhecer e ele estava decidindo que, sim, queria me
cortejar.
Ao mesmo tempo, ela se afastou de mim. Ah, ainda fazia as tarefas que
eu mandava, e às vezes falava sobre o dia na escola… mas só se eu me
esforçasse e arrancasse as informações. Tinha uma frieza que não estava lá
antes, e foi só depois que comecei a juntar as peças e perceber como tudo
apontava pra noite em que ela saiu do quarto e nos viu, o pai com a mão
sobre a orelha e sangue escorrendo entre os dedos, e a mãe parada na
frente dele com uma machadinha.
Joe nunca foi o tipo de homem que deixava certas oportunidades
passarem, eu já falei, e isso foi mais do mesmo. Ele tinha contado a Tommy
Anderson um tipo de história; a que contou à filha era de uma perspectiva
diferente, mas saída do mesmo livro. Acho que, no começo, não havia nada
na cabeça dele além de ressentimento; ele sabia o quanto eu amava Selena,
e deve ter pensado que contar pra ela como eu era cruel e mal-humorada,
talvez até perigosa, seria uma bela vingança. Tentou virá-la contra mim e,
apesar de nunca ter se saído bem nisso, conseguiu ficar mais próximo dela
do que quando ela era pequenininha. E por que não? Selena sempre teve
um coração grande, e eu nunca tinha visto um homem com tanto talento
para o coitadismo como Joe.
Ele entrou na vida dela e, depois disso, deve ter reparado como a filha
estava ficando bonita e decidido que queria mais dela do que só que ouvisse
o que ele falava ou entregasse uma ferramenta quando ele estava embaixo
do motor de uma lata-velha qualquer. Enquanto tudo isso estava
acontecendo e eu percebia as mudanças, ficava por perto, trabalhando em
quatro empregos diferentes e tentando manter as contas em dia pra
guardar um pouco toda semana pra faculdade das crianças. Não percebi
nada até quase ser tarde demais.
Ela era uma garota cheia de vida e faladora, a minha Selena, e sempre
queria agradar. Quando você pedia pra ela pegar alguma coisa, ela não ia
andando; ia correndo. Quando ficou mais velha, cuidava do jantar
enquanto eu estava fora trabalhando, e nunca precisei pedir. No começo,
ela queimou a comida algumas vezes e Joe chamou a atenção ou debochou
dela — Selena chegou a ir chorando para o quarto mais de uma vez —, mas
ele parou de fazer isso nessa época da qual estou falando. Nessa ocasião, na
primavera e no verão de 1962, ele agia como se todas as tortas da filha
fossem pura ambrosia, mesmo que a massa parecesse cimento, e babava
pelo bolo de carne dela como se fosse culinária francesa. Selena ficava feliz
com os elogios, claro, qualquer um teria ficado, mas não ficava inflada
demais. Ela não era esse tipo de garota. Mas vou te dizer uma coisa:
quando Selena finalmente saiu de casa, ela era uma cozinheira melhor no
seu pior dia do que eu no meu melhor.
Quando o assunto era ajudar em casa, uma mãe não poderia ter filha
melhor… principalmente uma mãe que passava a maior parte do tempo
limpando a sujeira dos outros. Selena nunca se esquecia de cuidar pra que
Joe Junior e Pete estivessem com o almoço pronto na hora de saírem pra
escola de manhã, e encapava os livros deles todo começo de ano. Pelo
menos Joe Junior poderia ter feito isso sozinho, mas ela nunca deixava.
Selena foi uma das primeiras da turma no nono ano, mas nunca perdeu
o interesse no que acontecia em casa, como alguns adolescentes fazem
nessa idade. A maioria das crianças entre doze e catorze anos decide que
qualquer um com mais de trinta é um velho chato, e acaba saindo pela
porta uns dois minutos depois que os velhos chegam. Mas não a Selena. Ela
pegava o café e ajudava com a louça ou qualquer outra coisa, depois se
sentava na cadeira perto do fogão e ouvia os adultos conversarem. Fosse eu
com uma ou duas amigas, ou Joe com três ou quatro, ela ouvia. Teria ficado
até quando Joe e os amigos jogavam pôquer, se eu deixasse. Mas eu não
deixava porque eles falavam muita baixaria. Aquela criança consumia
conversas como um ratinho roendo um pedaço de queijo, e o que não
conseguia absorver ela guardava.
Mas aí ela mudou. Não sei quando começou, mas percebi pela primeira
vez não muito depois de ela iniciar o primeiro ano do ensino médio. Perto
do fim de setembro, se não me engano.
A primeira diferença que notei era que ela não estava voltando pra casa
na balsa mais cedo como fazia no fim da maioria dos dias de aula do ano
anterior, apesar de isso ter funcionado direitinho, porque ela conseguia
terminar o dever de casa no quarto antes de os meninos aparecerem e
depois limpar a casa ou começar o jantar. Em vez de pegar a balsa das duas,
começou a pegar a que sai do continente às quinze para as cinco.
Quando perguntei sobre isso, ela disse que tinha decidido que gostava de
fazer o dever de casa na sala de estudos depois da aula, só isso, e me olhou
de lado de um jeito engraçado que indicava que ela não queria mais tocar
no assunto. Achei que vi vergonha naquele olhar, e talvez uma mentira
também. Essas coisas me preocuparam, mas decidi não insistir a não ser
que tivesse certeza de que havia algo errado. Falar com a minha filha era
difícil, entende? Eu tinha sentido a distância que havia surgido entre nós e
tinha uma boa ideia da origem de tudo: Joe meio levantado da poltrona,
sangrando, e eu parada na frente dele com a machadinha. Pela primeira
vez, percebi que ele devia estar falando com ela sobre isso e sobre outras
coisas. Dando a versão dele da história, por assim dizer.
Pensei que, se eu pressionasse Selena demais sobre o motivo de ela estar
ficando até tarde na escola, o nosso problema poderia piorar. Todos os
jeitos que eu pensava de fazer mais perguntas acabavam parecendo um o
que você anda fazendo, Selena?, e se eu tinha essa impressão, uma mulher de
trinta e cinco anos, como uma garota de quase quinze interpretaria? É tão
difícil falar com adolescentes dessa idade; é preciso ter toda cautela do
mundo, como se faz com um pote de explosivos na mão.
Bom, tem uma coisa chamada Noite dos Pais logo depois do começo das
aulas, e dessa vez me esforcei pra ir. Não fui tão suave com a coordenadora
da Selena como havia feito com a minha filha; fui até ela e perguntei se
sabia de algum motivo específico pra Selena estar ficando na escola pra
pegar a balsa mais tarde naquele ano. A professora disse que não sabia, mas
achava que era pra Selena poder fazer o dever. Bom, eu pensei, mas não
disse: ela estava fazendo o dever direitinho na escrivaninha do quarto no
ano passado, então o que mudou? Talvez eu tivesse falado se achasse que a
professora teria respostas, mas ficou óbvio que ela não tinha. Ora, ela
provavelmente sumia da escola assim que o último sinal tocava.
Nenhum dos outros professores ajudou. Eu os ouvi elogiarem Selena, o
que não foi nada difícil pra mim, depois voltei pra casa, me sentindo
estagnada, no mesmo lugar de quando saí da ilha.
Peguei um lugar na janela da balsa e observei um garoto e uma garota
não muito mais velhos do que Selena parados do lado de fora, perto da
amurada, de mãos dadas vendo a lua nascer sobre o mar. Ele se virou para
ela e disse algo que a fez rir. Você é um bobão se perder uma chance dessas,
menino, eu pensei, mas ele não perdeu. O garoto se inclinou na direção
dela, segurou a outra mão e a beijou com dedicação. Nossa, como você é
boba, eu disse pra mim mesma enquanto olhava. Ou isso ou que estava
velha demais pra lembrar como era ter quinze anos, com todos os nervos
do corpo à flor da pele o dia todo e na maior parte da noite. Selena havia
conhecido um garoto, era isso. Havia conhecido um garoto e eles deviam
estar estudando juntos naquela sala depois da aula. Estudando um ao outro
mais do que os livros, provavelmente. Fiquei aliviada, posso garantir.
Fiquei pensando nisso nos dias seguintes. Se tem uma certeza em lavar
lençóis e passar camisas e aspirar tapetes é que há muito tempo pra pensar.
E quanto mais eu pensava, menos aliviada eu ficava. Por um lado, ela não
tinha falado de nenhum garoto, mas por outro Selena não era de ficar
calada sobre o que estava acontecendo na vida dela. Não estava mais tão
aberta e simpática comigo como antes, não, mas também não havia um
muro de silêncio entre nós. Além do mais, sempre achei que, se Selena se
apaixonasse, ela provavelmente faria um anúncio no jornal.
O detalhe importante, o detalhe assustador, era a forma como os olhos
dela me observavam. Eu sempre reparei que quando uma garota está louca
por algum garoto, os olhos dela brilham tanto que parece que acenderam
uma lanterna por trás deles. Quando procurei isso nos de Selena, não
estava lá… mas essa não foi a parte ruim. A luz de antes também tinha
sumido. Essa era a parte ruim. Olhar nos olhos da minha filha foi como
olhar pelas janelas de uma casa da qual as pessoas saíram sem lembrar de
fechar as persianas.
Ver isso foi o que finalmente abriu os meus olhos, e comecei a reparar
em vários sinais que devia ter visto antes… teria visto antes, eu acho, se
não estivesse trabalhando tanto e tão convencida de que Selena estava com
raiva de mim por ter machucado o pai daquela vez.
O primeiro sinal que percebi foi que não era mais só comigo. Ela
também havia se afastado de Joe. Parado de sair pra falar com o pai quando
ele estava mexendo em um dos carros velhos ou no motor da lancha de
alguém, e parado de se sentar ao lado dele no sofá à noite pra ver televisão.
Se ficasse na sala, ela se sentava na cadeira de balanço perto do fogão, com
um trabalho de tricô no colo. Mas na maioria das noites nem ficava. Ia para
o quarto e fechava a porta. Joe não parecia se importar, não parecia nem
notar. Ele só voltava pra poltrona, segurando o Pete no colo até dar a hora
do pequeno ir pra cama.
Outro sinal foi o cabelo: ela não o lavava mais todos os dias como antes.
Às vezes, ficava tão ensebado que daria pra fritar um ovo nele, e isso não
era típico de Selena. A pele dela sempre tinha sido tão bonita, devia ser a
pele de pêssego que ela herdara do lado de Joe da árvore genealógica, mas
naquele outubro espinhas surgiram na cara dela como dentes-de-leão na
praça da cidade depois do Memorial Day. A cor dela estava pálida demais e
o apetite estava fraco.
Ela continuava indo ver as duas melhores amigas, Tanya Caron e Laurie
Langill, de vez em quando, mas não tanto quanto no fundamental. Isso me
fez perceber que nenhuma das duas tinha ido à nossa casa desde o começo
das aulas… e talvez nem durante o último mês de férias. Isso me assustou,
Andy, e me fez observar a minha garota com mais atenção. O que vi me
assustou ainda mais.
O jeito como ela tinha mudado as roupas, por exemplo. Não só um
suéter por outro, ou uma saia por um vestido. Selena tinha mudado todo o
estilo de se vestir, e todas as mudanças foram ruins. Não dava mais pra ver o
corpo dela, por exemplo. Em vez de usar saias ou vestidos pra ir à escola,
ela usava macacões largos, todos grandes demais pra ela. Faziam com que
parecesse gorda, o que ela não era.
Em casa, usava suéteres grandes que iam até os joelhos, e eu nunca a vi
sem a calça jeans e as botinas. Ela enrolava um lenço feio que parecia um
pedaço de pano em volta da cabeça sempre que saía, uma coisa tão grande
que caía até a sobrancelha e fazia os olhos parecerem dois animais
espiando de dentro de uma caverna. Selena parecia um garoto, e eu achava
que tinha deixado essa fase pra trás quando completara doze anos. Uma
noite, quando me esqueci de bater na porta antes de entrar no quarto dela,
Selena quase quebrou as pernas pra pegar o roupão na porta do armário. E
estava usando uma camisola, não estava pelada nem nada.
Mas o pior era que ela não estava mais falando muito. Não só comigo;
considerando a situação, eu poderia ter entendido isso. Mas tinha parado
de falar com todo mundo. A minha filha se sentava à mesa de jantar com a
cabeça baixa e a franja comprida que tinha deixado crescer caindo nos
olhos, e quando eu tentava puxar conversa, perguntar como tinha sido o
dia dela na escola e coisas assim, eu só recebia como resposta um “foi bom”
e “pois é”, em vez da enxurrada de informações que ela soltava antes. Joe
Junior também tentou e deu de cara com o mesmo muro de pedra. Uma ou
duas vezes, ele me olhou, meio intrigado. Só dei de ombros. E assim que a
refeição acabava e a louça estava lavada, ela saía da cozinha ou subia para o
quarto.
E, Deus me ajude, a primeira coisa que pensei depois que concluí que o
problema não era um garoto foi em maconha… e não me olha assim, Andy,
como se eu não soubesse do que estou falando. A gente chamava de
“bagulho” e dizia que “ia dar um tapa” em vez de chamar de baseado, mas
era a mesma coisa e tinha muita gente da ilha disposta a revender se o
preço da lagosta caísse… ou mesmo que não caísse. Muita maconha vinha
das ilhas costeiras na época, como agora, e uma parte ficava. Não havia
cocaína, o que era uma bênção, mas quem quisesse fumar erva sempre
conseguia encontrar. Marky Benoit tinha sido preso pela Guarda Costeira
naquele verão: tinham encontrado quatro fardos na carga do Maggie’s
Delight. Deve ter sido isso que acendeu a ideia na minha cabeça, mas,
mesmo agora, depois de tantos anos, eu me pergunto como consegui
complicar tanto algo que era tão simples. O verdadeiro problema estava ali,
sentado à minha frente à mesa todas as noites, normalmente precisando de
um banho e de uma navalha pra barbear, e ali estava eu, olhando pra ele,
Joe St. George, o maior pau pra toda obra e mestre de ninguém da ilha
Little Tall, me perguntando se minha garotinha ia pros fundos da escola à
tarde pra fumar maconha. Logo eu, que gosto de dizer que a mãe não criou
uma boba. Afe!
Comecei a pensar em entrar no quarto dela e revirar o armário e as
gavetas da escrivaninha, mas fiquei com nojo de mim mesma. Posso ser
muitas coisas, Andy, mas espero nunca ser xereta. Ainda assim, só de ter a
ideia percebi que tinha passado tempo demais rondando o problema,
torcendo para que se resolvesse sozinho ou que Selena me procurasse por
vontade própria.
Chegou um dia — não muito antes do Halloween, eu lembro, porque o
pequeno Pete tinha colocado uma bruxa de papel na janela de entrada —
em que eu tinha que ir à casa dos Strayhorn depois do almoço. Eu e Lisa
McCandless íamos virar os tapetes persas chiques do andar de baixo; é
preciso fazer isso a cada seis meses pra não desbotarem, ou pra desbotarem
igual, ou algo assim. Vesti o casaco, abotoei e estava saindo pela porta
quando pensei: O que você está fazendo com esse casaco pesado de outono,
sua pateta? Está quase vinte graus lá fora, um tempo típico de veranico. E
uma outra voz surgiu e disse: Não vai estar vinte graus lá longe, vai estar
mais pra uns dez. E úmido. E foi assim que percebi que não ia pra casa dos
Strayhorn naquela tarde. Ia pegar a balsa pra Jonesport e conversar com a
minha filha. Liguei pra Lisa, falei que teríamos que virar os tapetes outro
dia e fui pegar a balsa. Cheguei a tempo de pegar a das duas e quinze. Se eu
a tivesse perdido, talvez a tivesse perdido, e quem sabe como as coisas
poderiam ter sido diferentes?
Fui a primeira a sair da balsa; ainda estavam prendendo a última corda
no último poste quando pulei na doca, depois fui direto para a escola. No
caminho, pensei que não a encontraria na sala de estudos, apesar do que
ela e a professora haviam dito, que a minha filha estaria atrás da escola com
o resto dos vagabundos… todos rindo, apertando as bundas uns dos outros
e talvez passando uma garrafa de vinho barato em um saco de papel. Se
você nunca esteve em uma situação assim, não sabe como é e eu não tenho
como descrever. Só sei que eu estava descobrindo que não tem como se
preparar pra um coração partido. Você tem que seguir em frente e torcer
pra que não aconteça.
Mas quando abri a porta da sala de estudos e espiei, ela estava lá, sentada
a uma mesa perto da janela com a cabeça inclinada sobre o livro de álgebra.
Não me notou de primeira, então fiquei parada, observando a minha filha.
Ela não estava com as más companhias, como eu temia, mas o meu coração
se partiu um pouco mesmo assim, Andy, porque pelo jeito ela não tinha
companhia nenhuma, e isso podia ser ainda pior. Talvez a professora não
visse nada de errado em uma garota estudar sozinha depois da aula naquela
sala enorme; talvez até achasse admirável. Mas eu não vi nada de admirável
naquilo, nem de saudável. Não havia nem sequer os alunos da detenção por
perto, porque deixam esses maus elementos na biblioteca em Jonesport-
Beals High.
Ela deveria estar com as amigas, ouvindo discos ou babando por algum
garoto, mas estava sentada ali, sob um raio poeirento de sol da tarde, em
um lugar com cheiro de giz, cera de chão e daquela serragem vermelha
horrível que colocam depois que os alunos vão pra casa, com a cabeça tão
perto do livro que era de se imaginar que todos os segredos da vida e da
morte estavam lá.
“Oi, Selena”, falei.
Ela se encolheu como um coelho e derrubou metade dos livros da mesa
ao se virar pra ver quem deu oi. Os olhos estavam tão arregalados que
pareciam ocupar toda a metade de cima do rosto dela, e o que consegui ver
das bochechas e testa estava pálido como nata em uma xícara branca.
Exceto pelos lugares onde havia espinhas, claro. Estas se destacavam em
vermelho, como marcas de queimadura.
Aí ela percebeu que era eu. O terror sumiu, mas não deu lugar a um
sorriso. Foi como se uma persiana descesse sobre o rosto da minha filha…
ou como se ela estivesse dentro de um castelo e tivesse puxado a ponte
levadiça. Sim, isso mesmo. Entende o que estou tentando dizer?
“Mamãe! O que você está fazendo aqui?”
Pensei em dizer vim levar você pra casa e ter uma conversinha, querida,
mas algo me disse que teria sido errado naquela sala — naquela sala vazia
onde dava pra sentir o cheiro do que estava errado com ela com a mesma
pungência que o cheiro de giz e de serragem vermelha. Eu sentia o cheiro e
pretendia descobrir o que era. Pela cara dela, eu já havia esperado tempo
demais. Não achava mais que eram drogas, mas, fosse o que fosse, estava
com fome. Estava comendo a minha filha viva.
Falei que tinha decidido abandonar o trabalho da tarde e ir olhar umas
vitrines, mas não tinha encontrado nada de que gostasse.
“Aí, achei que talvez você e eu pudéssemos voltar na balsa juntas. Você
se importa, Selena?”, perguntei.
Ela finalmente sorriu. Eu teria pagado mil dólares por aquele sorriso,
pode ter certeza… um sorriso que era só pra mim.
“Ah, não, mamãe. Vai ser bom ter companhia.”
Descemos a colina até a estação da balsa juntas, e quando perguntei
sobre algumas aulas, ela me contou mais do que tinha contado em
semanas. Depois daquele primeiro olhar que lançou pra mim, como um
coelho encurralado olhando para um gato, pareceu mais a antiga Selena do
que em meses, e comecei a ter esperanças.
Bom, a Nancy aqui pode não saber como a balsa das quinze para as cinco
pra Little Tall e pras outras ilhas é, mas acho que você e Frank sabem,
Andy. A maior parte das pessoas que trabalham e não moram no
continente volta pra casa na das cinco e meia, e o que chega na das quinze
para as cinco são pacotes, cartas, mercadorias de lojas e produtos para o
mercado. Então, apesar de ser uma linda tarde de outono, não tão fria e
úmida quanto achei que seria, estávamos com o convés de popa
praticamente só pra gente.
Ficamos lá por um tempo, observando a espuma e as ondas indo na
direção do continente. O sol já estava no oeste e deixava uma trilha na
água, que a espuma quebrava e fazia com que parecesse pedaços de ouro.
Quando eu era pequena, o meu pai me dizia que era ouro, e que às vezes as
sereias subiam pra pegar. Disse que elas usavam os pedaços de sol do fim da
tarde como telhas dos castelos mágicos no fundo do mar. Quando eu via
aquele tipo de reflexo quebrado na água, sempre procurava sereias, e até
estar quase da idade de Selena, nunca duvidei que elas existiam, porque o
meu pai havia me dito que existiam.
Naquele dia a água estava de um tom escuro de azul que só se vê nos dias
calmos de outubro, e o som do motor foi tranquilizador. Selena desamarrou
o lenço que usava na cabeça, levantou os braços e riu.
“Não é lindo, mãe?”, perguntou ela.
“É”, falei. “É, sim. E você também era linda, Selena. Por que não é
mais?”
Ela me olhou, e foi como se tivesse duas caras. A de cima estava
intrigada e meio que ainda rindo… mas por baixo havia uma expressão
cuidadosa de desconfiança. O que eu vi na cara de baixo era tudo que Joe
havia dito pra ela naquela primavera e naquele verão, antes de ela começar
a se afastar dele também. Não tenho amigos, era isso que a cara de baixo
dizia. Nem você, nem ele. E quanto mais nos olhávamos, mais aquela cara
se destacava.
Selena parou de rir e se virou pra olhar a água. Isso fez eu me sentir mal,
Andy, mas eu não podia deixar que me atrapalhasse, assim como não pude
deixar Vera ser uma filha da puta comigo depois, por mais triste que tudo
fosse no fundo. O fato é que às vezes nós temos que ser cruéis pra sermos
gentis, como um médico que dá uma vacina em uma criança, apesar de
saber que a criança vai chorar e não vai entender. Olhei pra dentro de mim
e soube que podia ser cruel se precisasse. Fiquei assustada ao perceber isso
na hora, e ainda fico um pouco. É assustador saber que você consegue ser
tão dura quanto a situação exigir sem nenhuma hesitação, sem olhar pra
trás depois nem questionar o que fez.
“Não entendi, mãe”, disse ela, mas me examinava com um olhar
cauteloso.
“Você mudou. A sua aparência, o jeito como se veste, como age. Tudo
isso me diz que você está metida em algum tipo de problema.”
“Não tem nada de errado”, respondeu ela, mas enquanto falava, se
afastava de mim.
Segurei as mãos dela antes que Selena estivesse longe demais.
“Tem, sim, e nenhuma de nós vai sair desta balsa até você me contar o
que é.”
“Nada!”, gritou ela. Selena tentou soltar as mãos, mas não larguei. “Não
tem nada de errado, agora me solta. Me solta!”
“Ainda não”, retruquei. “O problema que for não vai mudar o meu amor
por você, Selena, mas não posso nem começar a te ajudar a sair dele se
você não me contar o que é.”
Ela parou de resistir e apenas me olhou. E eu vi uma terceira cara
embaixo das outras duas: uma cara astuta e infeliz da qual não gostei
muito. Exceto pela pele, Selena puxou o meu lado da família, mas naquela
hora estava parecida com Joe.
“Me conta uma coisa primeiro”, começou ela.
“Conto se puder”, respondi.
“Por que você bateu nele? Por que bateu nele daquela vez?”
Abri a boca pra perguntar “Que vez?”, mais pra ter alguns segundos pra
pensar, mas soube de uma coisa na hora, Andy. Não me pergunte como;
pode ter sido um palpite, o que chamam de intuição feminina, ou talvez eu
tenha conseguido ler a mente da minha filha, mas eu soube. Soube que, se
eu hesitasse mesmo que por um segundo, eu a perderia. Talvez só naquele
dia, mas provavelmente pra sempre. Foi uma coisa que eu soube, então não
hesitei nem por um segundo.
“Porque ele me bateu nas costas com um pedaço de madeira no começo
daquela noite. Praticamente esmagou os meus rins. Acho que decidi que
não ia mais permitir aquilo. Nunca mais.”
Selena piscou do jeito que se faz quando alguém move a mão
rapidamente na direção do seu rosto, e a boca se abriu em um grande O
surpreso.
“Não foi isso que ele te contou, né?”
Ela fez que não.
“O que ele disse? Que foi por causa da bebida?”
“Isso, e dos jogos de pôquer”, disse ela com uma voz quase baixa demais
pra ouvir. “Ele disse que você não queria que ele nem ninguém se
divertisse. Que era por isso que você não permitia que ele jogasse pôquer e
porque você não me deixou ir dormir na casa da Tanya ano passado. Disse
que você quer que todo mundo trabalhe oito dias por semana como você. E
quando ele se defendeu, você bateu nele com a jarra e disse que cortaria a
cabeça se ele tentasse fazer alguma coisa. Que faria isso quando ele
estivesse dormindo.”
Eu teria rido, Andy, se não fosse tão horrível.
“Você acreditou?”
“Não sei”, disse ela. “Pensar naquela machadinha me deu tanto medo
que eu não sabia em que acreditar.”
Isso entrou no meu coração como uma lâmina de faca, mas não
demonstrei.
“Selena, o que ele disse é mentira.”
“Só me deixa em paz!”, retrucou ela, se afastando de mim. Aquela
expressão de coelhinho encurralado surgiu no rosto dela de novo, e percebi
que Selena não estava escondendo alguma coisa só por estar com vergonha
ou preocupada. Estava morrendo de medo. “Eu vou resolver sozinha! Não
quero a sua ajuda, só me deixa em paz!”
“Você não pode resolver sozinha, Selena”, falei. Estava usando o tom
baixo e tranquilizador que se usaria com um cavalo ou com uma ovelha
presa no arame farpado. “Se fosse possível, você já teria feito. Agora, me
escuta: sinto muito que você teve que me ver com aquela machadinha na
mão; sinto muito por tudo que viu e ouviu naquela noite. Se eu soubesse
que ia te deixar com tanto medo e infeliz, eu não teria ido pra cima dele,
por mais que ele tivesse me provocado.”
“Você não pode só parar?”, perguntou ela, e finalmente tirou as mãos das
minhas e botou por cima dos ouvidos. “Não quero ouvir mais. Não vou
ouvir mais.”
“Não posso parar porque isso acabou, não dá mais”, falei. “Mas isto não.
Então me deixa ajudar, meu bem. Por favor.”
Tentei passar um braço em volta dela e me puxar pra perto.
“Não! Não bate em mim! Nem toca em mim, sua filha da puta!”, gritou ela,
e se empurrou pra trás.
Selena esbarrou na grade e eu tive certeza de que ela ia virar pra trás e
cair na água. O meu coração parou, mas graças a Deus as minhas mãos não.
Estendi as mãos, peguei-a pela frente do casaco e a puxei pra mim.
Escorreguei no molhado e quase caí. Mas recuperei o equilíbrio e, quando
ergui o rosto, ela se soltou e bateu na minha cara.
Não dei bola, só a abracei de novo, pertinho de mim. Se você desiste de
uma filha da idade de Selena em uma hora dessas, acho que muito do que
você tinha com ela se vai de vez. Além do mais, o tapa não doeu nadinha.
Eu só estava com medo de perdê-la, e não só do meu coração. Por aquele
segundo eu tive certeza de que ela viraria por cima da grade com a cabeça
pra baixo e os pés pra cima. Tive tanta certeza que consegui até visualizar.
É chocante que o meu cabelo não tenha ficado grisalho nessa hora.
Ela começou a chorar e pedir desculpas, dizendo que não pretendia me
bater, que nunca quis fazer aquilo, e eu falei que sabia.
“Para de falar um pouco”, pedi, e o que ela disse em resposta quase me
deixou paralisada.
“Você devia ter me deixado cair, mamãe. Você devia ter deixado.”
Eu a afastei um pouco, mas sem soltá-la. Nessa hora, estávamos as duas
chorando.
“Nada me permitiria fazer uma coisa assim, querida.”
Selena balançava a cabeça.
“Eu não aguento mais, mamãe… Não aguento. Eu me sinto tão suja e
confusa, e não consigo ser feliz, por mais que tente.”
“O que é?”, perguntei, começando a ficar com medo de novo. “O que é,
Selena?”
“Se eu contar, você provavelmente vai me empurrar por cima da grade.”
“Você sabe que não. E vou te contar outra coisa, meu amorzinho. Você
não vai pisar em terra firme enquanto não se abrir comigo. Se ficar indo
pra lá e pra cá nesta balsa for o necessário, é o que a gente vai fazer… se
bem que acho que vamos as duas congelar antes do fim de novembro, se
não morrermos de intoxicação alimentar pelo que servem naquela
lanchonete de merda.”
Achei que isso a faria rir, mas não fez. Ela curvou a cabeça pra olhar o
convés e disse uma coisa com voz fraca, muito baixa. Com o som do vento e
dos motores, eu não consegui ouvir o que foi.
“O que você disse, meu bem?”
Selena repetiu, e ouvi na segunda vez, apesar de ela não ter falado muito
mais alto. Na mesma hora entendi tudo, e a partir daquele momento os
dias de Joe St. George estavam contados.
“Eu nunca quis fazer nada. Ele me obrigou.” Foi isso que ela disse.
Por um minuto eu só pude ficar parada, e quando finalmente estendi as
mãos pra minha filha, ela se encolheu. O rosto estava branco como papel.
A balsa, a velha Island Princess, deu um salto. O mundo já estava torto
embaixo de mim, e acho que eu teria caído sentada na bunda magrela se
Selena não tivesse me segurado pela cintura. No segundo seguinte, eu a
estava abraçando de novo, e ela chorava junto ao meu pescoço.
“Vem”, falei. “Vem sentar comigo. A gente já sacudiu demais neste barco,
né?”
Fomos para o banco na passagem lateral com os braços uma em volta da
outra, andando com os pés arrastados como duas inválidas. Não sei se
Selena se sentia inválida, mas eu sim. Estava com os olhos lacrimejando
um pouquinho, mas ela chorava tanto que parecia que as tripas iam se
soltar se não parasse logo. Mas foi bom ouvi-la chorar assim. Só quando a
ouvi chorando e vi as lágrimas rolando pelas bochechas dela que percebi o
quanto dos sentimentos dela haviam sumido também, junto à luz nos olhos
e às formas debaixo das roupas. Eu teria gostado de ouvi-la rir muito mais
do que ouvir chorar, mas estava disposta a aceitar o que viesse.
Nós nos sentamos no banco e eu a deixei chorar mais um pouco.
Quando finalmente começou a passar, dei a ela um lenço que guardava na
bolsa. Selena nem usou no começo. Só olhou pra mim, com as bochechas
molhadas e vãos marrons fundos embaixo dos olhos, e disse:
“Você não me odeia, mamãe? Não mesmo?”
“Não”, respondi. “Nem agora, nem nunca. Juro por Deus. Mas quero
entender direito. Quero que você me conte tudo, em detalhes. Estou vendo
no seu rosto que você acha que não consegue, mas eu sei que consegue. E
lembre-se disto: você nunca vai precisar contar de novo, nem para o seu
próprio marido, se não quiser. Vai ser como tirar uma farpa. Juro por Deus
sobre isso também. Entendeu?”
“Sim, mamãe, mas ele disse que, se eu te contasse… às vezes você fica
com tanta raiva, ele disse… como na noite em que bateu nele com a
jarrinha… ele disse que se eu sentisse vontade de contar, era pra eu me
lembrar da machadinha… e…”
“Não, não é assim. Você precisa começar do começo e seguir direto. Mas
eu quero ter certeza de que entendi uma coisa direito desde já. O seu pai
anda se metendo com você, né?”
Selena só deixou a cabeça pender e não disse nada. Era a única resposta
de que eu precisava, mas acho que ela precisava se ouvir falar em voz alta.
Coloquei o dedo embaixo do queixo dela e ergui a sua cabeça até
estarmos nos olhando nos olhos.
“Né?”
“É”, ela respondeu, e caiu no choro de novo.
Mas, dessa vez, não durou tanto nem foi tão intenso. Deixei que ela
chorasse um pouco mesmo assim, porque demorei um tempo pra entender
como eu deveria continuar. Não podia perguntar O que ele fez com você?
porque achei que haveria uma boa chance de ela não saber direito. Por um
tempo, a única coisa em que consegui pensar foi Ele trepou com você?, mas
achei que ela poderia não ter certeza mesmo que eu falasse dessa forma,
crua. E soava tão horrível na minha cabeça.
Finalmente, eu falei:
“Ele enfiou o pênis em você, Selena? Ele enfiou na sua xoxota?”
Ela fez que não.
“Eu não deixei.” Ela engoliu um soluço. “Ainda não, pelo menos.”
Nós duas conseguimos relaxar um pouco depois disso, ao menos uma
com a outra. O que senti por dentro foi pura fúria. Era como se eu tivesse
um olho interno, um que eu não conhecia antes daquele dia, e com ele só
conseguia ver o rosto longo de cavalo de Joe, com os lábios sempre
rachados, a dentadura sempre meio amarelada e as bochechas sempre
ressecadas e vermelhas no alto. Eu via o rosto dele por perto todas as vezes
depois daquilo, aquele olho ficava aberto até quando os outros dois se
fechavam e eu estava dormindo, e comecei a perceber que não se fecharia
enquanto ele não estivesse morto. Era como estar apaixonada, só que do
avesso.
Enquanto isso, Selena foi contando a história, do começo ao fim. Ouvi e
não a interrompi nenhuma vez, e claro que começou com a noite em que
bati no Joe com a jarrinha e Selena chegou à porta a tempo de vê-lo com a
mão em cima da orelha ensanguentada e eu segurando a machadinha como
se realmente pretendesse cortar a cabeça dele fora. Eu só queria fazer com
que ele parasse, Andy, e arrisquei a minha vida pra isso, mas ela não viu
essa parte. Tudo que viu foi o lado dele da história. Dizem que a estrada
para o inferno é feita de boas intenções, e eu sei que é verdade. Sei por
experiência amarga. O que não sei é por que… por que tentar fazer o bem
tantas vezes leva a coisas ruins. Isso é pra cabeças mais inteligentes do que
a minha, acho.
Não vou contar a história toda aqui, não por respeito a Selena, mas
porque é longa demais e dói muito, mesmo agora. Mas vou contar a
primeira coisa que ela disse. Nunca vou esquecer, porque fiquei
impressionada de novo com a diferença que há entre como as coisas
parecem e como elas realmente são… entre o exterior e o interior.
“Ele parecia tão triste”, disse ela. “Tinha sangue escorrendo entre os
dedos dele e lágrimas nos olhos e ele parecia tão triste. Eu te odiei mais por
aquela expressão dele do que pelo sangue e pelas lágrimas, mamãe, e decidi
compensar. Antes de ir pra cama, eu me ajoelhei e rezei. ‘Deus’, eu falei, ‘se
você não deixar que ela o machuque mais, vou compensar o papai. Juro que
vou. Por Jesus, amém.’”
Você tem alguma ideia do que senti ao ouvir isso da minha filha um ano
ou mais depois de eu achar que aquilo estava no passado? Tem, Andy?
Frank? E você, Nancy Bannister de Kennebunk? Não, estou vendo que não.
Rezo pra Deus que nunca tenham.
Ela começou a ser gentil com Joe: levar lanches especiais quando ele
estava no barracão dos fundos, trabalhando no veículo de neve ou no motor
de lancha de alguém, passou a se sentar ao lado do pai enquanto estávamos
vendo televisão à noite e no degrau da varanda enquanto ele entalhava
madeira, ouvir enquanto ele falava as baboseiras de política de Joe St.
George, que Kennedy estava deixando os judeus e católicos mandarem em
tudo, que eram os comunistas que estavam tentando colocar os crioulos
nas escolas e refeitórios do sul, que em pouco tempo o país estaria
arruinado. Ela ouvia, sorria pras piadas, passava pomada nas mãos dele
quando rachavam, e Joe não era surdo a ponto de não ouvir a oportunidade
batendo. Ele parou de falar mal de política pra Selena e passou a falar mal
de mim, que eu ficava louca quando me irritava, e tudo que havia de errado
no nosso casamento. De acordo com ele, era tudo eu.
Foi no final da primavera de 1962 que ele começou a tocar nela de um
jeito mais do que paternal. Mas no começo foi só isso mesmo: carinhos na
perna quando os dois estavam sentados no sofá juntos e eu estava fora da
sala, tapinhas no traseiro quando ela levava cerveja pra ele no barracão. Foi
assim que começou e continuou daí. No meio de julho, a coitada da Selena
tinha tanto medo dele quanto tinha de mim. Quando finalmente enfiei na
cabeça que ia para o continente arrancar respostas dela, Joe tinha feito
praticamente tudo que um homem pode fazer com uma mulher além de
foder… e a intimidou pra que ela fizesse várias coisas com ele também.
Acho que ele teria tirado a virgindade dela antes do Labor Day se não
fosse o fato de Joe Junior e Pete estarem sem aulas e por perto por boa
parte do tempo. Pete só estava lá, no caminho, mas acho que Joe Junior
tinha uma boa ideia do que estava acontecendo e decidiu atrapalhar de
propósito. Que Deus o abençoe se foi isso, é só o que posso dizer. Não fui
de ajuda nenhuma trabalhando doze e às vezes catorze horas por dia como
fazia na época. E, durante todo o tempo em que eu estava fora, Joe estava
rondando, tocando nela, pedindo beijos, pedindo que ela o tocasse nos
“lugares especiais” (era assim que chamava) e dizendo que não conseguia
se segurar, ele tinha que pedir; Selena era legal com ele, e eu não era, e um
homem tinha certas necessidades, e não passava disso. Mas ela não podia
contar. Se contasse, ele dizia, eu talvez matasse os dois. Joe ficava
lembrando a ela da jarrinha e da machadinha. Ficava dizendo que eu era
uma filha da puta fria e temperamental e que ele não podia se segurar
porque um homem tinha certas necessidades. Ele enfiou tudo isso na
cabeça dela, Andy, até ela ficar meio maluca. Ele…
O quê, Frank?
Sim, ele trabalhava, mas o tipo de trabalho dele não interferia muito
quando o assunto era ir atrás da filha. Falei que Joe era um faz-tudo, e era
exatamente isso. Ele fazia tarefas pra várias das pessoas que só visitavam a
ilha no verão e cuidava de duas casas (espero que as pessoas que o
contrataram pra fazer isso mantivessem um bom inventário dos bens).
Havia quatro ou cinco pescadores que o chamavam pra tripulação quando
estavam com muito trabalho; Joe jogava a rede como um dos melhores
quando não estava de ressaca. E, claro, ele tinha os motores como trabalho
a mais. Em outras palavras, trabalhava como muitos dos homens da ilha
trabalham, embora não tanto quanto a maioria: um pouco aqui e um pouco
ali. Um homem assim pode fazer as próprias horas, e naquele verão e
começo de outono, Joe organizou os horários pra poder estar em casa o
máximo possível quando eu estava fora. Pra estar perto de Selena.
Será que você entende o que preciso que entenda? Percebe que ele
estava se esforçando pra entrar tanto na cabeça dela quanto na calcinha?
Acho que o que exerceu mais poder sobre Selena foi me ver com aquela
maldita machadinha na mão, então era o que Joe mais usava. Quando viu
que não podia mais usar aquilo pra conseguir pena, usou pra assustar a
filha. Disse várias vezes que eu a expulsaria de casa se descobrisse o que os
dois estavam fazendo.
O que os dois estavam fazendo! Meu Deus!
Selena disse que não queria, e Joe disse que era uma pena, mas era tarde
demais pra parar. Falou que ela o tinha provocado até ele estar meio louco,
e disse que esse tipo de provocação era o motivo de a maioria dos estupros
acontecerem, e que mulheres boas (querendo dizer filhas da puta
temperamentais que portavam machadinhas como eu, acho) sabiam disso.
Joe ficou dizendo que ele ficaria calado enquanto ela ficasse também…
“Mas”, ele disse pra ela, “você tem que entender, meu amor, que se
alguma coisa escapar, tudo vai ser contado.”
Ela não sabia o que Joe queria dizer com tudo, e não entendia como levar
um copo de chá gelado de tarde e contar sobre o cachorrinho novo da
Laurie Langill tinha dado a ele a ideia de que podia enfiar a mão entre as
pernas dela e apertá-la lá quando quisesse, mas ela estava convencida de
que devia ter feito alguma coisa pra fazer com que o pai agisse de um jeito
tão ruim, e isso a deixou com vergonha. Isso foi o pior, eu acho: não o
medo, mas a vergonha.
Ela disse que um dia decidiu contar a história toda pra sra. Sheets, a
coordenadora da escola. Até marcou uma conversa, mas perdeu a coragem
do lado de fora da sala, quando a sessão de outra garota passou da hora. Isso
tinha sido menos de um mês antes, logo que as aulas voltaram.
“Comecei a pensar em como soaria”, disse ela quando estávamos
sentadas no banco na passagem lateral da balsa. Estávamos na metade do
caminho e já dava pra ver o East Head, todo iluminado com o sol da tarde.
Selena tinha parado de chorar. Dava fungadas úmidas de vez em quando,
mas estava, no geral, sob controle, e eu estava morrendo de orgulho da
minha filha. Mas ela nunca soltou a minha mão. Ela a segurou com uma
força danada o tempo todo em que falou. Fiquei com hematomas no dia
seguinte. “Pensei em como seria me sentar lá e dizer ‘Sra. Sheets, o meu
pai está tentando fazer aquilo comigo’. E ela é tão burra e tão velha que
provavelmente diria ‘Aquilo o quê, Selena? De que você está falando?’. Só
que ela diria falano, como faz quando se empolga. E aí eu teria que contar
que o meu próprio pai queria me comer, e ela não acreditaria, porque as
pessoas não fazem isso lá de onde ela vem.”
“Eu acho que acontece no mundo todo”, falei. “É triste, mas é verdade. E
eu acho que uma orientadora de escola também saberia, a não ser que fosse
uma idiota lunática. A sra. Sheets é uma idiota lunática, Selena?”
“Não”, disse Selena, “eu acho que não, mamãe, mas…”
“Querida, você achou que foi a primeira garota com quem isso
aconteceu?”, perguntei.
Selena disse uma coisa de novo que não consegui ouvir porque ela falou
baixo demais. Tive que pedir pra repetir.
“Eu não sabia se era ou não”, disse ela, e me abraçou. Eu a abracei de
volta. “Aí, quando estava lá esperando, percebi que não ia conseguir falar.
Talvez, se eu tivesse entrado direto, eu teria botado pra fora, mas não
depois de ter tempo de ficar sentada revirando na cabeça, me perguntando
se o papai estava certo e você me acharia uma menina ruim…”
“Eu nunca pensaria isso”, falei, e dei outro abraço nela.
Ela abriu um sorriso que aqueceu o meu coração.
“Agora eu sei”, disse ela, “mas na hora não tive certeza. E enquanto eu
estava sentada lá, vendo pelo vidro a sra. Sheets terminando de falar com a
garota que foi antes de mim, pensei em um bom motivo pra não entrar.”
“Ah, é? E qual foi?”, perguntei.
“Bom, não era assunto de escola.”
Achei engraçado e comecei a rir. Em pouco tempo, Selena estava rindo
comigo, e as risadas foram ficando mais altas, até estarmos sentadas
naquele banco de mãos dadas e rindo como duas mobelhas na época do
acasalamento. Gargalhávamos tão alto que o homem que vende balas e
cigarros no andar de baixo colocou a cabeça na janela por um segundo pra
ver se estávamos bem.
Houve duas outras coisas que ela disse no caminho de volta, uma com a
boca e uma com os olhos. A que disse em voz alta foi que estava pensando
em arrumar as coisas e fugir; que isso pareceu pelo menos um jeito de
escapar. Mas fugir não resolve o problema quando se está sofrendo muito;
no fim das contas, você leva a sua cabeça e o seu coração junto aonde quer
que vá, e o que eu vi nos olhos da minha filha foi que o pensamento de
suicídio havia mais do que passado pela cabeça dela.
Eu pensava nisso, em ver a ideia de suicídio nos olhos da minha filha, e
aí via o rosto de Joe ainda mais claramente por aquele olho dentro de mim.
Via como ele devia parecer enquanto a incomodava, tentando enfiar a mão
debaixo da saia até ela só usar calça jeans pra se defender, sem conseguir o
que queria (ou tudo que queria) por sorte, a dela boa e a dele má, e não por
falta de tentativa. Pensei no que poderia ter acontecido se Joe Junior não
tivesse parado de brincar com Willy Branhall pra voltar pra casa mais cedo
algumas vezes, ou se eu não tivesse finalmente aberto os olhos pra prestar
atenção nela. Mais do que tudo, pensei em como ele a manipulou. Joe a
conduziu como um homem de coração ruim com um chicote ou uma vara
verde conduziria um cavalo, sem nunca parar, nem por amor nem por
pena, até o animal cair morto aos seus pés… e ele provavelmente parado
ao lado com a vara na mão, se perguntando por que aquilo tinha
acontecido. Foi pra isso que querer tocar na testa dele, querer ver se era tão
lisa quanto parecia, me levou; foi nisso que tudo resultou. Os meus olhos
estavam completamente abertos, e percebi que estava vivendo com um
homem sem amor e impiedoso que acreditava que qualquer coisa que ele
pudesse alcançar com o braço e pegar com a mão era dele, até a própria
filha.
Eu tinha chegado a esse ponto do pensamento quando a ideia de o matar
surgiu pela primeira vez. Essa não foi nem a hora em que decidi agir, meu
Deus, não, mas eu estaria mentindo se dissesse que o pensamento foi só
uma fantasia. Foi bem mais do que isso.
Selena deve ter visto alguma coisa nos meus olhos, porque colocou a
mão no meu braço e disse:
“Vai ter alguma confusão, mamãe? Por favor, diz que não. Ele vai saber
que eu contei e vai ficar com raiva!”
Eu queria acalmar seu coração dizendo o que ela queria ouvir, mas não
consegui. Teria, sim, uma confusão, só que o tamanho e a gravidade da
confusão dependeria de Joe. Ele havia recuado na noite em que bati nele
com a jarrinha, mas isso não queria dizer que faria de novo.
“Eu não sei o que vai acontecer”, falei, “mas vou te dizer duas coisas,
Selena: nada disso é culpa sua, e os dias dele de botar as mãos em você e te
incomodar acabaram. Entendeu?”
Os olhos dela se encheram de lágrimas de novo, e uma delas transbordou
e escorreu pela bochecha.
“Eu só não quero confusão”, disse ela e parou um minuto, mexendo a
boca. Depois falou: “Ah, eu odeio isso! Por que você bateu nele? Por que ele
veio se meter comigo? Por que as coisas não puderam ficar como eram?”.
Eu segurei a mão dela.
“As coisas nunca ficam, querida. Às vezes elas dão errado e precisam ser
consertadas. Você sabe disso, né?”
Selena assentiu. Eu vi dor no rosto dela, mas não dúvida.
“Sei. Acho que sei.”
Estávamos chegando à doca nessa hora, e não havia mais tempo pra
conversar. Achei bom; não queria ela me olhando com aqueles olhos cheios
de lágrimas, querendo o que acho que todo filho quer, que tudo ficasse
bem, mas sem dor e sem ninguém sofrer. Querendo que eu fizesse
promessas que não podia fazer, porque eram promessas que eu não sabia se
poderia cumprir. Eu não sabia se aquele olho interno me permitiria
cumprir. Descemos da balsa sem dizer mais nada, e por mim estava ótimo
assim.
Naquela noite, depois que Joe voltou da casa dos Carstair, onde estava
construindo uma varanda nos fundos, mandei as três crianças para o
mercado. Vi Selena lançar olhares rápidos pra mim no caminho, o rosto
branco como um copo de leite. Cada vez que ela virava a cabeça, Andy, eu
via aquela machadinha dupla nos olhos da minha filha. Mas via outra coisa
também, e acho que essa outra coisa era alívio. Pelo menos, as coisas vão
parar de ser daquele jeito, ela devia estar pensando; mesmo com medo,
acho que parte dela devia estar pensando isso.
Joe estava sentado perto do fogão lendo o American, como fazia todas as
noites. Parei ao lado da caixa de lenha, encarando-o, e aquele olho interno
pareceu se abrir mais do que nunca. Olha só ele, pensei, sentado ali como
Sua Majestade Pomposa da Puta que Pariu. Como se não tivesse que vestir
a calça uma perna de cada vez, como todo mundo. Como se passar a mão
na filha fosse a atitude mais natural do mundo todo e qualquer homem
pudesse dormir tranquilo depois de fazer isso. Tentei pensar em como
tínhamos ido do baile do segundo e do terceiro anos no Samoset pra onde
estávamos naquele momento, ele sentado junto ao fogão lendo o jornal
com a calça jeans velha remendada e a camiseta térmica de baixo, e eu
parada junto da caixa de lenha com assassinato no coração, e não consegui
saber. Era como estar em uma floresta mágica onde você olha pra trás e vê
que o caminho desapareceu.
Enquanto isso, aquele olho interno viu mais e mais. Viu as cicatrizes
cruzadas na orelha de quando eu bati nele com a jarra; viu as veias
pequeninas em zigue-zague no nariz; viu o jeito como o lábio inferior se
projetava de forma que ele quase parecia estar emburrado; viu a caspa nas
sobrancelhas e o jeito como ele puxava os pelos que cresciam pra fora do
nariz ou dava um puxão na virilha da calça de vez em quando.
Tudo o que aquele olho via era ruim, e me ocorreu que me casar com Joe
havia sido bem mais do que o maior erro da minha vida; era o único erro
que importava de verdade, porque não era apenas eu que acabaria pagando
por ele. Era com Selena que Joe estava ocupado agora, mas havia dois
garotos logo atrás dela, e se ele não parasse na tentativa de estuprar a irmã
mais velha, o que ele poderia fazer com os dois?
Virei a cabeça e aquele olho viu a machadinha na prateleira acima da
caixa de lenha, como sempre. Estendi a mão e fechei os dedos no cabo,
pensando, eu não vou só botá-la na sua mão desta vez, Joe. Aí pensei em
Selena se virando pra me olhar quando os três saíram de casa, e decidi que,
fosse lá o que acontecesse, a maldita machadinha não seria parte disso.
Então eu me curvei e peguei um pedaço de pau na caixa de lenha.
Machadinha ou lenha, quase não importava. A vida de Joe chegou a um
fiapo de acabar ali, naquela hora. Quanto mais olhava pra ele sentado com
a camisa suja, puxando os pelos que saíam pra fora do nariz e lendo os
quadrinhos, mais eu pensava no que havia feito com Selena; quanto mais
eu pensava nisso, mais furiosa eu ficava; e quanto mais furiosa eu ficava,
mais perto chegava de andar até lá e abrir o crânio dele com aquele pedaço
de madeira. Conseguia até ver o lugar onde acertaria a primeira porrada. O
cabelo dele havia começado a rarear muito, principalmente atrás, e a luz do
abajur ao lado da cadeira deixava um brilho lá. Dava pra ver as sardas na
pele acima dos poucos fios de cabelo que tinham sobrado. Bem ali, eu
pensei, naquele lugar. O sangue vai jorrar e sujar toda a cúpula do abajur,
mas eu não ligo, porque é feia e velha mesmo. Quanto mais eu pensava,
mais queria ver o sangue esguichando na cúpula, como eu sabia que
aconteceria. E aí, pensei que as gotas voariam na lâmpada também e fariam
um chiado quente. Pensei em tudo isso e, quanto mais eu pensava, mais os
meus dedos apertavam o pedaço de madeira, com mais firmeza. Foi
loucura, ah, foi, mas eu não conseguia dar as costas pra ele, e eu sabia que
aquele olho interno continuaria olhando mesmo que eu desse.
Falei pra mim mesma pra pensar no que Selena sentiria se eu fizesse,
todos os piores medos dela virariam verdade, mas isso também não
funcionou. Por mais que eu a amasse e por mais que quisesse que ela
gostasse de mim, não adiantou. Aquele olho era forte demais para o amor.
Nem imaginar o que aconteceria aos três se ele estivesse morto e eu
estivesse em South Windham por tê-lo matado fez aquele olho interno
fechar. Ficou escancarado, e ficava vendo mais e mais coisas feias na cara
de Joe. O jeito como arrancava os flocos brancos de pele da bochecha
quando se barbeava. Uma mancha de mostarda do jantar secando no
queixo. A dentadura grandalhona de cavalo, que ele comprou pelo correio e
não encaixou direito. E cada vez que via uma coisa nova com aquele olho,
eu apertava a lenha um pouco mais forte.
No último minuto, pensei em outra coisa. Se você fizer isso aqui e agora,
não vai estar fazendo por Selena, pensei. Também não estaria fazendo
pelos meninos. Estaria fazendo porque toda a baixaria aconteceu debaixo
do seu nariz por três meses ou mais e você foi burra demais pra notar. Se
vai matá-lo e ser presa e só ver os seus filhos nas tardes de sábado, é bom
que entenda o motivo: não é porque ele foi pra cima de Selena, mas porque
te enganou, isto é algo que você tem em comum com a Vera: o que você
mais odeia no mundo é ser enganada.
Por fim, foi isso que me segurou. O olho interno não se fechou, mas se
reduziu e perdeu muito poder. Tentei abrir a mão e deixar o pedaço de
lenha cair, mas eu estava apertando com força demais e não conseguia
soltar. Tive que usar a outra mão pra puxar os dois primeiros dedos e largá-
la na caixa de lenha, os outros três dedos ficaram curvados, como se ainda
estivessem segurando algo. Precisei flexionar a mão três ou quatro vezes
pra senti-la voltar ao normal.
Depois que fiz isso, andei até Joe e bati no ombro dele.
“Quero falar com você”, disse.
“Então fala”, respondeu ele por trás do jornal. “Eu não estou te
segurando.”
“Quero que você me olhe quando eu falar. Abaixa essa porcaria.”
Ele largou o jornal no colo e me olhou.
“Essa boca não para, hein?”
“Eu cuido da minha boca”, falei, “e você cuida das suas mãos. Se não
cuidar, elas vão meter você em mais problema do que você aguentaria
mesmo que o ano todo fosse feito de domingos.”
Joe ergueu as sobrancelhas e perguntou o que aquilo queria dizer.
“Quer dizer que eu quero que você deixe a Selena em paz”, respondi.
Foi como se eu tivesse metido o joelho nas joias da família dele. A cara
dele foi o melhor daquela história toda, Andy, a cara de quando ele
percebeu que havia sido descoberto. A pele dele ficou pálida, a boca se
abriu e o corpo todo meio que tremeu naquela cadeira de balanço
vagabunda e velha dele, do jeito como o corpo se sacode às vezes quando a
gente está pegando no sono e tem um pensamento ruim.
Ele tentou fingir que havia sentido uma contração muscular nas costas,
mas não enganou nenhum de nós dois. Pareceu meio envergonhado, mas
isso não o fez ganhar nenhum desconto comigo. Até um cachorro tem bom
senso de parecer envergonhado se você o pegar roubando ovos de um
galinheiro.
“Não sei do que você está falando”, disse ele.
“Então por que fez cara de que o diabo enfiou a mão na sua calça e
apertou as suas bolas?”, perguntei.
O trovão começou a surgir na testa dele de novo.
“Se aquele peste do Joe Junior andou contando mentiras sobre mim…”,
começou ele.
“Joe Junior não andou dizendo nem sim, nem não, nem talvez sobre
você, e pode parar de fingir, Joe. Selena me contou. Ela me contou tudo:
que tentou ser legal depois da noite em que eu bati em você com a jarrinha
de leite, como você retribuiu e o que disse que aconteceria se ela contasse.”
“Ela é uma mentirosa!”, retrucou ele, jogando o jornal no chão como se
isso provasse. “Uma mentirosa e provocadora! Vou pegar o cinto, e quando
ela der a cara de novo… se ousar aparecer por aqui de novo…”
Joe começou a se levantar. Estendi uma das mãos e o empurrei de volta.
É bem fácil empurrar uma pessoa que está tentando se levantar de uma
cadeira de balanço; fiquei um pouco surpresa com a facilidade. Claro que
eu quase havia esmagado a cabeça dele com o pedaço de lenha menos de
três minutos antes, e isso talvez tenha tido algo a ver.
Joe semicerrou os olhos até se tornarem frestas finas e disse que era
melhor eu não me meter com ele.
“Você já fez isso antes, mas isso não quer dizer que você pode me peitar
toda vez que quiser”, ameaçou.
Eu estava pensando exatamente a mesma coisa, e não muito tempo
antes, mas não era a hora de dizer isso pra ele.
“Pode guardar os seus discursos para os seus amigos. O que você vai
querer fazer agora não é falar, é ouvir… e prestar atenção no que eu tenho
pra dizer, porque cada palavra é séria. Se você se meter com Selena de
novo, eu vou te enfiar na Prisão Estadual por molestar uma menor ou por
estupro de vulnerável, a acusação que te mantiver lá por mais tempo.”
Isso o deixou estupefato. Ele abriu a boca de novo e só ficou parado por
um minuto, me olhando.
“Você não”, começou ele, mas parou. Porque ele viu que sim, eu faria
isso. Então mudou de tática, projetou o lábio inferior ainda mais do que
antes. “Você fica do lado dela, né? Nem perguntou o meu lado, Dolores.”
“Você tem um? Quando um homem com quase quarenta anos pede pra
filha de catorze tirar a calcinha pra ele ver quanto pelo cresceu na xoxota
dela, dá pra dizer que esse homem tem lado?”
“Ela vai fazer quinze mês que vem”, retrucou ele, como se isso mudasse
tudo. Ele era uma peça mesmo.
“Você está se ouvindo?”, perguntei. “Ouviu o que saiu da sua própria
boca?”
Joe me olhou mais um pouco, depois se curvou e pegou o jornal no chão.
“Me deixa em paz, Dolores”, disse ele com a melhor voz mal-humorada
de coitadinho. “Quero terminar esse artigo.”
Senti vontade de arrancar a porcaria do jornal das mãos dele e jogar na
cara, mas com certeza haveria uma briga de sangue se eu fizesse, e eu não
queria que as crianças, principalmente Selena, chegassem e dessem de cara
com uma coisa assim. Então só estendi a mão e abaixei a parte de cima com
o polegar.
“Primeiro você vai prometer que vai deixar Selena em paz, pra que a
gente possa deixar essa história de merda pra trás. Promete que não vai
tocar nela assim nunca mais, pelo resto da vida.”
“Dolores, você não…”, começou ele.
“Promete, Joe, senão eu vou tornar a sua vida um inferno.”
“Você acha que isso me assusta?”, gritou ele. “Você já tornou a minha
vida um inferno nos últimos quinze anos, sua piranha. A sua cara feia não é
páreo pra esse seu temperamento infernal! Se você não gosta de como eu
sou, a culpa é sua!”
“Você não sabe o que é um inferno, mas, se não prometer deixá-la em
paz, vou me encarregar pessoalmente de que você descubra.”
“Tudo bem! Tudo bem, eu prometo! Pronto! Feito! Está satisfeita?”
“Estou”, falei, apesar de não estar.
Joe nunca mais conseguiria me deixar satisfeita. Não teria importado
nem se tivesse multiplicado pães e peixes. Eu pretendia tirar as crianças
daquela casa ou vê-lo morto antes da virada do ano. Pra mim, não faria
muita diferença qual dos dois acontecesse, mas não queria que ele soubesse
que havia algo a caminho até não dar mais tempo de ele tomar uma
atitude.
“Ótimo. Então está tudo acertado, né, Dolores?” Mas Joe me olhava com
um brilho esquisito nos olhos do qual não gostei muito. “Você se acha bem
inteligente, né?”
“Sei lá”, falei. “Eu achava que tinha uma boa cota de inteligência, mas
olha com quem eu acabei me casando.”
“Ah, para com isso”, respondeu ele, ainda me olhando daquele jeito
esquisito, meio espertinho. “Você se acha tão fodona que deve achar que
caga ouro. Mas não sabe de tudo.”
“O que quer dizer com isso?”
“Descobre você.” Ele sacudiu o jornal como um cara rico que quer ver se
a bolsa de valores não o prejudicou muito naquele dia. “Não deve ser difícil
pra uma espertalhona.”
Não gostei, mas deixei pra lá. Em parte porque não queria bater mais no
vespeiro do que precisava, mas não foi só isso. Eu achava mesmo que era
inteligente, mais inteligente do que ele, pelo menos, e isso era o resto.
Achava que, se Joe tentasse se vingar de mim, eu notaria o que ele estava
tramando uns cinco minutos depois que começasse. Foi orgulho, em outras
palavras, orgulho puro e simples, e a ideia de que ele já tinha começado
nunca passou pela minha cabeça.
Quando as crianças voltaram do mercado, mandei os meninos pra
dentro de casa e andei para os fundos com Selena. Tem um emaranhado
grande de arbustos de amoras lá, praticamente desfolhados naquela época
do ano. Uma brisa havia começado, provocando um barulho. Era um som
solitário. E meio sinistro. Tem uma pedra branca grande saindo do chão ali,
e nos sentamos nela. Uma meia-lua tinha surgido acima do East Head, e
quando ela segurou as minhas mãos, os dedos dela estavam tão frios quanto
a lua parecia.
“Não tenho coragem de entrar, mamãe”, disse ela, com a voz falhando.
“Vou pra casa da Tanya, tudo bem? Por favor, diz que eu posso.”
“Você não precisa ter medo de nada, querida. Está tudo resolvido.”
“Eu não acredito”, sussurrou ela, embora o seu rosto dissesse que ela
queria. Que queria, mais que tudo, acreditar naquilo.
“É verdade”, falei. “Ele prometeu deixar você em paz. Joe nem sempre
cumpre as promessas, mas vai cumprir essa agora que sabe que estou de
olho e que sabe que você não vai ficar calada. Além do mais, está morrendo
de medo.”
“Morrendo de med… Por quê?”
“Porque falei que o veria em Shawshank se ele fizesse mais alguma coisa
com você.”
Ela ofegou e as mãos apertaram as minhas de novo.
“Mamãe, você não disse isso!”
“Disse, sim, e falei sério. É melhor você saber disso, Selena. Mas eu não
me preocuparia muito; Joe provavelmente não vai chegar a três metros de
você nos próximos quatro anos… e até lá você vai estar na faculdade. Se
tem uma coisa nessa Terra redonda que ele respeita é a própria pele.”
Ela soltou as minhas mãos devagar, mas com segurança. Vi a esperança
surgir no rosto dela, além de outra coisa. Era como se a juventude estivesse
voltando, e só então, sentada sob o luar perto da amoreira com a minha
filha, foi que percebi como ela havia passado a parecer velha naquele
outono.
“Ele não vai me dar uma surra nem nada?”, perguntou ela.
“Não”, respondi. “Está resolvido.”
Selena acreditou em tudo, descansou a cabeça no meu ombro e começou
a chorar. Foram lágrimas de alívio, puro e simples. O fato de ela ter que
chorar assim me fez odiar Joe ainda mais.
Acho que, nas noites seguintes, havia uma garota na minha casa
dormindo melhor do que nos três meses anteriores ou mais… mas eu
ficava acordada. Ouvia Joe roncar ao meu lado. Olhava pra ele com aquele
olho interno e sentia vontade de me virar e arrancar a garganta dele no
dente. Mas não estava mais louca, como fiquei quando quase dei nele com
aquele pedaço de lenha. Pensar nas crianças e no que aconteceria com elas
se eu fosse presa por assassinato não havia tido nenhum poder sobre o olho
interno naquela hora, mas depois, quando prometi a Selena que ela estava
segura e tive a chance de esfriar um pouco, teve. Ainda assim, eu sabia que
o que Selena provavelmente queria, que a vida continuasse como se as
coisas que o pai fez nunca tivessem acontecido, não era possível. Mesmo
que ele cumprisse a promessa e nunca mais tocasse nela, não era
possível… e, apesar do que eu tinha dito a ela, não tinha certeza se ele
cumpriria a promessa. Mais cedo ou mais tarde, homens como Joe
costumam persuadir a si mesmos de que podem se safar da próxima vez; de
que, se tomarem um pouco mais de cuidado, podem ter o que quiserem.
Deitada no escuro e finalmente calma de novo, a resposta pareceu bem
simples: eu tinha que pegar as crianças e me mudar para o continente, e
tinha que ser logo. Estava bem calma na hora, mas sabia que não ficaria
assim; aquele olho interno não me deixaria. Na próxima vez que eu ficasse
com raiva, ele veria melhor ainda, e Joe ficaria ainda mais feio, e talvez não
houvesse pensamento nenhum na face da Terra que pudesse me impedir de
agir. Era um jeito novo de sentir raiva, pelo menos pra mim, e eu fui sábia
de perceber o mal que podia fazer se me permitisse. Precisava sair de Little
Tall com os meus filhos antes que a loucura levasse a melhor. E quando
tomei a primeira atitude pra isso, descobri o que significava aquela
expressão estranha e meio sabichona nos olhos dele. E como descobri!
Esperei um tempo pra que as coisas se acalmassem e peguei a balsa das
onze da manhã para o continente numa sexta-feira. As crianças estavam na
escola e Joe no mar com Mike Stargill e o irmão dele, Gordon, brincando
com as armadilhas de lagosta. Ele só voltaria perto do pôr do sol.
Eu estava com os documentos das poupanças das crianças comigo.
Estávamos guardando dinheiro pra faculdade deles desde que nasceram…
eu, pelo menos; Joe estava cagando se os filhos fariam faculdade ou não.
Sempre que o assunto surgia, e era sempre eu que trazia à tona, ele ficava
sentado naquela cadeira de balanço de merda com o rosto escondido atrás
do Ellsworth American e mostrava a cara só pra dizer:
“Em nome de Cristo, por que você quer tanto mandar essas crianças pra
faculdade, Dolores? Eu não fiz e estou ótimo.”
Bom, tem coisas sobre as quais não dá pra discutir, né? Se Joe achava
que ler o jornal, tirar meleca e limpar o dedo depois embaixo do braço da
cadeira de balanço era estar ótimo, não havia espaço nenhum pra
discussão; era uma conversa totalmente inútil desde a primeira palavra.
Mas tudo bem. Enquanto eu pudesse obrigá-lo a contribuir com uma parte
se arrumasse algo de bom, como quando entrou na equipe de manutenção
rodoviária do condado, eu não ligava se ele achava que todas as faculdades
do país eram controladas por comunistas. No inverno em que ele trabalhou
na manutenção de estradas no continente, fiz com que ele colocasse
quinhentos dólares nas contas deles, e Joe choramingou como um
filhotinho. Disse que eu estava tirando o lucro dele. Mas eu sabia a verdade,
Andy. Se aquele filho de uma égua não ganhou dois mil, talvez dois e
quinhentos naquele inverno, eu beijo um porco com um sorriso na cara.
“Por que você sempre pega tanto no meu pé, Dolores?”, perguntava ele.
“Se você fosse homem pra fazer a coisa certa pelos seus filhos, eu não
precisaria pegar no seu pé”, eu dizia, e a conversa seguia assim, blá-blá-blá.
De tempos em tempos, eu ficava de saco cheio, Andy, mas quase sempre
tirava dele o que achava que as crianças mereciam. Não podia ficar tão de
saco cheio a ponto de parar, porque os três não tinham mais ninguém pra
garantir o futuro deles quando chegasse a hora.
Não havia muito nas três contas pelos padrões de hoje em dia: uns dois
mil na de Selena, uns oitocentos na de Joe Junior e quatrocentos ou
quinhentos na de Pete. Mas estamos falando de 1962, e naquela época era
uma grana bem razoável. Mais do que suficiente pra fugir, com certeza.
Pensei em sacar a conta do Pete em dinheiro e levar cheques ao portador
das outras duas. Havia decidido ir embora de vez e mudar pra Portland,
arrumar um lugar pra morar e um emprego decente. Não estávamos
acostumados a morar na cidade, mas as pessoas conseguem se adaptar a
quase qualquer coisa se precisarem. Além do mais, Portland não era uma
cidade tão grande assim na época, não como é agora.
Quando eu me firmasse, poderia começar a repor o dinheiro que tinha
precisado pegar, e eu achava que conseguiria. Mesmo que não conseguisse,
os três eram crianças inteligentes, e eu sabia que existiam bolsas. Se não
conseguissem bolsas, concluí que não era orgulhosa demais para pedir um
empréstimo. O principal era levá-los pra longe. Naquela hora, isso pareceu
muito mais importante do que a faculdade. Uma coisa de cada vez, como
dizia o adesivo no trator Farmall velho de Joe.
Estou falando de Selena há quase quarenta e cinco minutos, mas não foi
só ela que sofreu por causa de Joe. Ela levou o pior, mas sobrou muita coisa
para Joe Junior também. Ele tinha doze anos em 1962, era a idade de um
garoto começar a brilhar, mas só de olhar pra ele dava pra saber que não
era o caso. Ele quase nunca sorria nem ria, o que não era de se admirar. Ele
mal entrava no aposento e o pai ia pra cima como uma fuinha em cima das
galinhas, mandando que enfiasse a camisa pra dentro da calça, penteasse o
cabelo, endireitasse a postura, crescesse, parasse de agir como uma
mulherzinha com o nariz sempre enfiado num livro, pra ser homem.
Quando Joe Junior não entrou no time principal da liga infantil no verão
antes de eu descobrir qual era o problema com Selena, era de se pensar, se
ouvisse o pai dele falar, que Joe Junior tinha sido expulso da equipe de
corrida da Olimpíada por tomar anabolizantes. Somando isso com o que
ele viu o pai fazer com a irmã, a situação era complicada. Às vezes, eu
notava Joe Junior olhando para o pai e havia ódio de verdade no rosto do
garoto: ódio puro e simples. Durante a semana ou duas antes de eu ir para
o continente com os documentos das contas no bolso, eu percebi que,
quando se tratava do pai, Joe Junior tinha um olho interno próprio.
Além disso, havia o pequeno Pete. Quando tinha quatro anos, ele andava
atrás de Joe, com a cintura da calça puxada igual a como o pai usava, e
puxava a ponta do nariz e das orelhas como Joe fazia. Pete não tinha pelos
lá pra puxar, óbvio, então só fingia. No primeiro dia no primeiro ano,
voltou pra casa choramingando, com terra na bunda da calça e um
arranhão na bochecha. Eu me sentei ao lado dele no degrau da varanda,
passei o braço pelos seus ombros e perguntei o que tinha acontecido. Ele
disse que aquele maldito judeuzinho Dicky O’Hara o havia empurrado. Eu
disse que ele não devia falar daquele jeito e perguntei se ele sabia o que era
“judeuzinho”. Eu estava curiosa pra saber o que sairia da boca dele, pra falar
a verdade.
“Óbvio que sei”, disse ele. “Um judeuzinho é um idiota como o Dicky
O’Hara.”
Falei que não, que ele estava errado, e Joe Junior me perguntou o que
significava. Disse pra ele deixar pra lá, que não era um jeito legal de falar e
eu não queria que ele falasse mais aquilo. Ele ficou me olhando de cara feia
com o lábio de baixo em um beicinho. Estava igualzinho ao pai. Selena
tinha medo do pai, Joe Junior o odiava, mas, de certa forma, era o pequeno
Pete quem mais me assustava, porque Pete queria crescer e ficar igualzinho
ao pai.
Então peguei os documentos no fundo da gavetinha da minha caixa de
joias (eu guardava lá porque era a única coisa que eu tinha que dava pra
trancar; andava com a chave pendurada no pescoço, numa correntinha) e
entrei no Coastal Northern Bank de Jonesport por volta de meio-dia e
meia. Quando a fila andou e chegou a minha vez, entreguei os documentos
pra funcionária, disse que queria fechar as três contas e expliquei como eu
queria o dinheiro.
“Só um momento, sra. St. George”, pediu ela, e foi até o fundo da área
dos caixas pra ver as contas.
Isso foi muito antes dos computadores, e tinham que mexer em muita
papelada.
Ela pegou os documentos, viu que eram três, depois abriu as pastas e
olhou. Uma linha surgiu no meio da testa dela, e a funcionária disse
alguma coisa pra uma das outras mulheres. As duas olharam por um
tempo, comigo parada ali do outro lado do balcão, observando-as e dizendo
a mim mesma que não havia nenhum motivo no mundo pra eu ficar
nervosa, mas me sentindo bem nervosa mesmo assim.
Aí, em vez de voltar, a funcionária foi até um daqueles cubículos que eles
chamavam de sala. Tinha paredes de vidro, então eu a vi falando com um
homenzinho careca de terno cinza e gravata preta. Quando voltou para o
balcão, ela não estava mais com os arquivos. Havia deixado na mesa do
careca.
“Acho que é melhor você falar sobre a poupança dos seus filhos com o sr.
Pease, sra. St. George”, disse ela, e me devolveu os documentos. Fez com a
lateral da mão, como se os papéis pudessem ter germes e ela fosse se
infectar se tocasse demais ou por muito tempo.
“Por quê? Qual é o problema?”, perguntei.
Nesse momento, eu já tinha desistido da ideia de que não havia motivo
pra nervosismo. Sentia o coração pular num ritmo acelerado e a boca seca.
“Eu não saberia dizer, mas tenho certeza de que, se houve algum mal-
entendido, o sr. Pease vai poder resolver”, explicou ela, mas não me
encarou e eu percebi que ela não achava aquilo de verdade.
Fui pra sala dele como se estivesse com dez quilos de cimento em cada
pé. Já tinha uma boa ideia do que devia ter acontecido, mas não entendia
como teria acontecido. Caramba, eu estava com os documentos, não estava?
Joe não havia tirado da minha caixa de joias e colocado de volta, porque a
fechadura teria sido arrebentada, e não foi. Mesmo que ele tivesse
conseguido arrombar de algum jeito (o que é uma piada; aquele homem
não conseguia levar uma garfada de feijão à boca sem deixar metade cair no
colo), os documentos mostrariam as retiradas ou teriam o carimbo de
conta encerrada com a tinta vermelha que o banco usa… e nenhum
papel tinha isso.
Mesmo assim, eu sabia que o sr. Pease ia me dizer que o meu marido
havia feito alguma escrotice, e quando entrei na sala, foi exatamente isso
que ele me contou. Pease explicou que as contas de Joe Junior e Pete
haviam sido fechadas dois meses antes e a de Selena menos de duas
semanas antes. Joe escolhera aquele momento porque sabia que eu nunca
botava dinheiro na conta depois do Labor Day enquanto não achasse que
tinha o suficiente para as contas de Natal guardado na sopeira que fica na
prateleira do alto da cozinha.
Pease me mostrou as folhas verdes de papel pautado que os contadores
usam. Joe tinha tirado a última soma gorda, de quinhentos dólares da conta
da Selena, no dia seguinte a quando falei que sabia o que ele estava fazendo
com ela e ele ficou sentado na cadeira e disse que eu não sabia de tudo. Ele
realmente estava certo sobre isso.
Repassei os números umas seis vezes, e quando olhei pra frente, o sr.
Pease estava esfregando as mãos com cara de preocupado. Eu via gotículas
de suor na cabeça careca. Ele sabia tão bem quanto eu o que tinha
acontecido.
“Como você pode ver, sra. St. George, as contas foram fechadas pelo seu
marido e…”
“Como isso é possível?”, perguntei. Joguei os documentos das três contas
na mesa dele. Fizeram um ruído seco, e ele meio que piscou e se afastou
um pouco. “Como pode ser, se os documentos das contas de poupança
estão aqui comigo?”
“Bem”, começou ele, lambendo os lábios e piscando como um lagarto
pegando sol em uma pedra quente, “sabe como é, sra. St. George, essas são
— eram — o que chamamos de ‘poupanças de menores’. Isso quer dizer que
a criança em cujo nome a conta está pode — podia — tirar dinheiro com
você ou com o seu marido pra assinar junto. Também significa que
qualquer um de vocês dois pode, como pais, tirar dinheiro das três contas
na hora que quiserem e como quiserem. Como você teria feito hoje se o
dinheiro ainda, hã-ham, estivesse nas contas.”
“Mas aqui não mostra nenhuma retirada!”, retruquei, e eu devia estar
gritando, porque as pessoas no banco nos olhavam. Eu as via pelas paredes
de vidro. Não que me importasse. “Como ele tirou o dinheiro sem a merda
dos documentos?”
Pease esfregava as mãos cada vez mais rápido. Faziam um som áspero, e
se ele estivesse com um graveto seco entre as duas, acho que teria colocado
fogo nas embalagens de chiclete no cinzeiro.
“Sra. St. George, se eu puder pedir que mantenha a voz baixa…”
“Eu me preocupo com a minha voz”, falei, mais alto ainda. “Você se
preocupa com o jeito como este banco de merda trabalha, amigão! Pelo
jeito, você tem muito com que se preocupar.”
Ele pegou uma folha de papel e olhou.
“De acordo com isto, o seu marido declarou que os documentos tinham
sido perdidos”, disse ele, por fim. “Ele pediu para que emitíssemos novos. É
bem comum…”
“Que se dane o comum!”, gritei. “Vocês nunca me ligaram! Ninguém do
banco me ligou! Essas contas ficavam sob a responsabilidade dos dois, foi
assim que me explicaram quando eu abri a de Selena e de Joe Junior em
1951, e ainda era assim quando abrimos a de Peter em 1954. Você vai me
dizer que as regras mudaram depois?”
“Sra. St. George…”, começou ele, mas foi como tentar assobiar com a
boca cheia de farofa; eu pretendia deixar minha opinião bem clara.
“Ele contou uma história pra boi dormir e vocês acreditaram. Pediu
documentos novos, e vocês deram. Meu Deus do céu! Quem você acha que
botou o dinheiro no banco? Se acha que foi Joe St. George, você é muito
mais burro do que parece!”
Nessa hora, todo mundo no banco tinha parado de fingir que estava
cuidando da própria vida. Todo mundo ficou parado no lugar, nos
encarando. A maioria deve ter achado um bom show, a julgar pela
expressão no rosto das pessoas, mas me pergunto se teriam gostado tanto
se fosse o dinheiro da faculdade dos filhos deles que havia saído voando
como um pássaro. O sr. Pease ficou mais vermelho que a parede do celeiro
do meu pai. Até mesmo a careca suada.
“Por favor, sra. St. George”, pediu ele. Àquela altura, o homem estava
com cara de choro. “Garanto que o que fizemos não só foi perfeitamente
legal, mas uma prática bancária padrão.”
Nessa hora, baixei a voz. Senti a revolta transbordar em mim. Joe havia
me enganado, e feio, e dessa vez eu não precisava esperar que acontecesse
duas vezes pra dizer bem-feito.
“Talvez seja legal, talvez não”, falei. “Eu teria que arrastar você pra um
tribunal pra descobrir, né? Mas eu não tenho tempo nem dinheiro pra isso.
Além do mais, não é a questão do que é legal ou não que foi um soco na
cara pra mim… Foi vocês nunca pensarem que outra pessoa poderia querer
saber o que aconteceu com o dinheiro. As ‘práticas bancárias padrão’ não
permitem que vocês façam uma ligação, cacete? O número está aí nos
formulários, e não mudou.”
“Sra. St. George, eu sinto muito, mas…”
“Se tivesse sido o contrário, se eu tivesse aparecido com uma história de
que os documentos tinham se perdido e pedido novos, se eu tivesse
começado a sacar o que levou onze ou doze anos pra poupar… vocês não
teriam ligado para o Joe? Se o dinheiro ainda estivesse aqui pra eu sacar
hoje, como eu pretendia, você não teria ligado pra ele assim que eu saísse
pela porta, pra avisar — só como cortesia, veja bem! — o que a esposa dele
tinha feito?”
Porque eu estava esperando exatamente isso, Andy, e foi por esse motivo
que escolhi um dia em que Joe tinha saído de barco com o Stargills. Eu
esperava voltar à ilha, pegar as crianças e sumir bem antes de ele chegar
com uma caixa de cerveja em uma das mãos e a marmita vazia na outra.
Pease me olhou e abriu a boca. Fechou-a em seguida e não disse nada.
Nem precisou. A resposta estava na cara dele. Óbvio que ele, ou alguma
outra pessoa do banco, teria ligado para Joe, e ficaria tentando até
conseguir falar com ele. Por quê? Porque Joe era o homem da casa, por isso.
E o motivo pra ninguém se incomodar de me avisar era porque eu não
passava da esposa. O que eu sabia sobre dinheiro, além de como ganhar um
pouco de quatro, esfregando pisos e rodapés e privadas? Se o homem da
casa decidisse tirar todo o dinheiro da faculdade dos filhos, ele devia ter um
bom motivo, e, mesmo que não tivesse, não importava, porque ele era o
homem da casa e ele mandava. A esposa era só uma mulherzinha, e ela só
mandava na limpeza dos rodapés e das privadas e no jantar de domingo.
“Se há um problema, sra. St. George”, disse Pease, “eu sinto muito,
mas…”
“Se você disser que sente muito mais uma vez, vou dar um chute tão
forte na sua bunda que você vai ficar corcunda”, falei, mas não havia perigo
real de eu fazer nada. Naquela hora, não tinha forças nem pra chutar uma
lata de cerveja até o outro lado da rua. “Só me diz uma coisa e eu largo do
seu pé. O dinheiro foi gasto?”
“Eu não teria como saber!”, respondeu ele com aquela vozinha metida e
chocada.
Seria de imaginar que eu tinha dito que eu mostraria a minha se ele
mostrasse o dele.
“Este é o banco onde o Joe teve conta a vida toda”, falei. “Ele poderia ter
seguido pela estrada pra Machias ou Columbia Falls e guardado em um
daqueles bancos, mas não fez isso. É burro demais e preguiçoso demais e
tem as manias dele. Não, ou enfiou em uns potes e enterrou em algum
lugar, ou botou numa conta aqui. É isso que eu quero saber: se meu marido
abriu uma conta nova aqui nos meses anteriores.”
Só que a sensação era de que eu precisava saber, Andy. Descobrir que ele
havia me enganado me deixou enjoada, e isso era ruim, mas não saber se
ele tinha feito uma merda monumental… isso estava me matando.
“Se ele… isso é informação confidencial”, retrucou Pease, e aí já parecia
que eu tinha dito que tocaria no dele se ele tocasse na minha.
“É. Achei que era. Estou pedindo que você viole a regra. Sei só de olhar
que você não é um homem que faz isso com frequência; estou vendo que é
contra os seus princípios. Mas o dinheiro era dos meus filhos, sr. Pease, e
Joe mentiu pra botar a mão nele. Você sabe disso; a prova está aí, no seu
mata-borrão. É uma mentira que não teria funcionado se este banco, o seu
banco, fizesse a cortesia de uma ligação.”
Ele limpou a garganta e começou a falar.
“Nós não temos a obrigação…”
“Eu sei que não”, falei. Eu estava com vontade de agarrá-lo e sacudi-lo,
mas vi que não adiantaria, não com um homem como ele. Além do mais, a
minha mãe sempre disse que se pega mais mosca com mel do que com
vinagre, e eu sabia que era verdade. “Eu sei disso, mas pense no sofrimento
que você teria me poupado com essa ligação. E, se quiser compensar um
pouco… e sei que não precisa, mas, se quiser, me diga se Joe abriu uma
conta aqui ou se eu vou ter que começar a cavar no quintal de casa. Por
favor. Eu não vou contar. Juro pelo nome de Deus que não vou contar.”
Pease ficou me olhando, batendo com os dedos nas folhas verdes. As
unhas estavam limpas de um jeito que parecia que ele tinha ido a uma
manicure profissional, embora eu ache que isso não era muito provável…
afinal, estamos falando de Jonesport em 1962. Devia ter sido a esposa dele.
Aquelas unhas bonitinhas faziam um som baixo e abafado nos papéis cada
vez que batiam, e eu pensei, ele não vai fazer nada por mim, não esse tipo
de homem. Por que se importaria com pessoas da ilha e os problemas
delas? Ele está protegido e só se importa com o próprio nariz.
Então, quando ele falou, senti vergonha do que estava pensando sobre os
homens em geral e sobre ele em particular.
“Não posso olhar uma coisa assim com você sentada aqui, sra. St.
George. Por que não vai até o The Chatty Buoy e pede um doce e uma boa
xícara de café? Está com cara de quem precisa de algo assim. Encontro
você lá em quinze minutos. Não, melhor combinar daqui a meia hora.”
“Obrigada. Muito obrigada”, falei.
Ele suspirou e começou a recolher os papéis.
“Eu devo estar ficando louco”, comentou ele, e riu de nervoso.
“Não. Você está ajudando uma mulher que não tem mais pra onde se
voltar, só isso.”
“Damas em apuros sempre foram uma fraqueza minha. Me dá meia
hora. Talvez um pouco mais.”
“Mas você vai?”
“Vou”, disse ele. “Vou.”
E foi mesmo, mas levou quase quarenta e cinco minutos, e não meia
hora, e quando ele finalmente chegou ao Buoy, eu já tinha aceitado que
Pease me deixaria na mão. Quando ele entrou, achei que tinha más
notícias. Achei que consegui ler no rosto dele.
Ele ficou parado na porta alguns segundos, dando uma boa olhada pra
ter certeza de que não havia ninguém no restaurante que pudesse causar
problema pra ele se fôssemos vistos juntos depois da confusão que fiz no
banco. Em seguida, se aproximou do compartimento onde eu estava, no
canto, se sentou à minha frente e disse:
“Ainda está no banco. A maior parte, pelo menos. Um pouco menos de
três mil dólares.”
“Graças a Deus!”, falei.
“Bom, essa é a parte boa. A parte ruim é que a conta nova é só no no­­me
dele.”
“Claro que é”, falei. “Ele não me deu documento nenhum pra assinar.
Isso teria me dado dica do joguinho do Joe, né?”
“Muitas mulheres não teriam ideia”, concluiu ele, então limpou a
garganta, deu um puxão na gravata e olhou rapidamente pra ver quem
havia entrado quando o sino da porta tilintou. “Muitas mulheres assinam
qualquer coisa que o marido bota na frente delas.”
“Bom, eu não sou como muitas mulheres.”
“Eu reparei”, comentou ele, meio seco. “Bom, eu fiz o que você pediu,
agora preciso voltar para o banco. Queria ter tempo de tomar um café com
você.”
“Sabe, eu não acredito nisso.”
“Eu também não”, concordou ele, mas ofereceu a mão, como se eu fosse
outro homem, e eu entendi isso como elogio.
Fiquei lá até ele ir embora, e quando a garota voltou e perguntou se eu
queria outro café, falei que não, obrigada, que estava com azia por causa do
primeiro. E estava mesmo, mas não foi o café que provocou.
Sempre dá pra encontrar alguma coisa pra ficar agradecida, por piores
que as coisas estejam, e enquanto voltava pra balsa, fiquei agradecida por
pelo menos não ter feito a mala; assim, eu não precisava desfazer tudo.
Também fiquei feliz por não ter contado pra Selena. Eu ia falar, mas acabei
ficando com medo de o segredo ser pesado demais, ela contar a uma das
amigas e a notícia acabar chegando ao Joe. Até passou pela minha cabeça
que ela poderia teimar e dizer que não queria ir. Não achei provável, não
com o jeito como ela se afastava do pai cada vez que ele chegava perto dela,
mas, quando estamos lidando com uma menina adolescente, tudo é
possível. Tudo mesmo.
Eu estava agradecida por algumas coisas, mas não tinha ideias. Não
podia tirar dinheiro da poupança que eu tinha com Joe; devia haver uns
quarenta e seis dólares lá, e a nossa conta-corrente era uma piada ainda
maior; se não estivéssemos no vermelho, estávamos perto. Mas eu não ia
pegar as crianças e partir sem nada; não mesmo. Se fizesse isso, Joe gastaria
o dinheiro só de sacanagem. Eu sabia disso tão bem quanto sabia o meu
próprio nome. De acordo com o sr. Pease, Joe já havia conseguido gastar
uns trezentos dólares… e, dos quase três mil que restaram, eu havia
depositado pelo menos dois mil e quinhentos, que ganhei esfregando chão,
lavando janelas e pendurando os lençóis daquela filha da puta da Vera
Donovan, com seis pregadores, não só quatro, durante todos os verões. Na
época, não estava tão ruim quanto ficava no inverno, mas não era fácil, não
mesmo.
Eu e as crianças iríamos embora, isso eu tinha decidido, mas eu não ia
sem dinheiro. Queria que os meus filhos tivessem a grana que era deles. Ao
voltar pra ilha, parada no convés do Princess com o vento fresco do mar
batendo no rosto e jogando o meu cabelo pra trás, eu sabia que teria que
tirar aquele dinheiro de Joe. A única coisa que não sabia era como.
A vida seguiu em frente. Olhando superficialmente, parecia que nada
havia mudado. Na ilha, as coisas nunca parecem mudar muito… isso se
você olhar superficialmente, claro. Mas tem muito mais em uma vida do
que os olhos conseguem ver, e, pelo menos pra mim, o que se ocultava sob
a superfície parecia completamente diferente naquele outono. O jeito
como eu encarava as coisas tinha mudado, e acho que isso era o mais
importante. Não estou falando só daquele terceiro olho agora; quando a
bruxa de papel de Pete havia sido retirada e os perus e peregrinos estavam
expostos, eu vi tudo que precisava com os meus dois olhos naturais.
O jeito ávido e babão com que Joe olhava pra Selena às vezes quando ela
estava de roupão, por exemplo, ou como ele encarava a bunda dela se ela se
curvasse pra pegar um pano de prato embaixo da pia. A forma como ela
passava longe e atravessava a sala pra ir para o quarto quando o pai estava
na cadeira; como ela tomava cuidado pra mão não tocar na dele quando
estava passando uma travessa de comida na mesa do jantar. O meu coração
doía de vergonha e pena, mas eu também sentia tanta raiva que passava a
maioria dos dias enjoada. Ele era pai dela, cacete, o sangue dele corria nas
veias dela, Selena tinha o cabelo preto irlandês dele e os dedinhos com
juntas duplas, e mesmo assim os olhos dele ficavam enormes se a alça do
sutiã dela caísse pelo braço.
Eu também tinha percebido como Joe Junior passava longe do pai e não
respondia o que Joe perguntava, não se conseguisse escapar, e quando não
conseguia soltava um murmúrio. Lembro o dia em que Joe Junior me
mostrou o trabalho sobre o presidente Roosevelt quando recebeu corrigido
da professora. Ela tinha dado A+ e escrito na frente que era o único A+
que tinha dado em um trabalho de história em vinte anos dando aula, e que
achava que era tão bom que poderia ser publicado em um jornal. Perguntei
a Joe Junior se ele gostaria de enviar para o Ellsworth American ou talvez
para o Bar Harbor Times. Eu disse que pagaria o selo. Ele só fez que não e
riu. Não gostei muito daquela risada; foi dura e cínica, como a do pai.
“E aguentar ele no meu pé pelos próximos seis meses?”, perguntou Joe
Junior. “Não, obrigado. Você não ouviu o papai chamando o cara de
Franklin D. Merdavelt?”
Eu o vejo agora, Andy, com apenas doze anos, mas já com quase um
metro e oitenta de altura, parado na varanda dos fundos com as mãos
enfiadas nos bolsos, olhando pra mim de cima enquanto eu observava o
trabalho com o A+. Não havia boa vontade naquele sorriso, nenhum
humor, nenhuma felicidade. Era o sorriso do pai dele, embora eu nunca
fosse contar isso pra aquele garoto.
“De todos os presidentes, o que o papai mais odeia é o Roosevelt”, disse
ele. “Foi por isso que eu o escolhi para o trabalho. Agora, devolve, por favor.
Vou queimar no fogão a lenha.”
“Não vai, não, filho, e se você quiser ver como é ser jogado da varanda no
quintal pela própria mãe, tenta só tirar de mim.”
Joe Junior deu de ombros. Fez isso igualzinho ao Joe, mas o sorriso dele
ficou mais largo, e foi mais doce do que qualquer um que o pai dele já
tenha dado na vida.
“Tudo bem”, disse ele. “Só não deixa o papai ver, tá?”
Falei que não deixaria, e Joe Junior foi jogar basquete com o amigo
Randy Gigeure. Eu o observei se afastar enquanto segurava o trabalho do
meu filho e pensava no que havia acabado de acontecer entre nós. O que
mais pensei foi que ele tinha recebido o único A+ que a professora deu em
vinte anos e que conseguiu isso por escolher o presidente que o pai mais
odiava como tema do trabalho.
Também havia Pete, sempre andando rebolando com a bunda e o lábio
inferior com beicinho, chamando as pessoas de “judeuzinhos” e tendo que
ficar até mais tarde umas três vezes por semana por ter se metido em
confusão. Uma vez, tive que ir buscá-lo porque ele tinha brigado e batido
em outro garoto na lateral da cabeça com tanta força que saiu sangue pela
orelha. O que o pai dele disse sobre aquela noite foi:
“Acho que ele vai saber que não é pra se meter mais com você, né,
Petey?”
Vi como os olhos do garoto se iluminaram quando Joe disse isso, e vi o
carinho com que Joe o levou pra cama uma hora depois. Naquele outono,
parecia que eu conseguia ver tudo, menos a coisa que eu mais queria… um
jeito de me livrar dele.
Sabe quem acabou me dando a resposta? Vera. Isso mesmo, a própria
Vera Donovan. Ela foi a única que soube o que fiz, pelo menos até agora. E
foi quem me deu a ideia.
Ao longo dos anos 1950, os Donovans… bom, Vera e os filhos, pelo
menos, eles eram os veranistas supremos: chegavam no fim de semana do
Memorial Day, não saíam da ilha por todo o verão, e voltavam pra
Baltimore no fim de semana do Labor Day. Não sei se daria pra acertar o
relógio com base neles, mas sei que dava pra acertar o calendário. Eu levava
uma equipe de limpeza pra lá na quarta depois que a família ia embora, e
limpava a casa todinha, tirava a roupa de cama, cobria os móveis, recolhia
os brinquedos e guardava os quebra-cabeças no porão. Acho que, por volta
de 1960, quando o marido morreu, devia ter mais de trezentos quebra-
cabeças lá embaixo, empilhados entre pedaços de papelão e mofando. Dava
pra fazer uma limpeza completa daquelas porque eu sabia que a chance era
grande de só botarem o pé naquela casa de novo no fim de semana do
Memorial Day do ano seguinte.
Houve algumas exceções, claro; no ano em que Pete nasceu, eles fizeram
o Dia de Ação de Graças na ilha (o lugar era todo adaptado para o inverno,
o que achamos engraçado, mas é claro que os veranistas eram engraçados),
e alguns anos depois passaram o Natal. Lembro que as crianças Donovan
levaram Selena e Joe Junior pra andar de trenó com eles na tarde de Natal,
e que Selena voltou depois de três horas em Sunrise Hill com as bochechas
vermelhas como maçãs e os olhos cintilando como diamantes. Ela devia ter
no máximo oito ou nove anos, mas tenho certeza de que ficou gamadinha
no Donald Donovan mesmo assim.
Eles passaram o Dia de Ação de Graças na ilha uma vez e o Natal em
outra, mas foi só. Eram veranistas… ou pelo menos Michael Donovan e os
filhos eram. Vera era de fora, mas no final acabou sendo uma mulher da
ilha tanto quanto eu. Talvez mais.
Em 1961, as coisas começaram como em todos os anos, apesar de o
marido dela ter morrido naquele acidente de carro no ano anterior: Vera e
os filhos chegaram no Memorial Day, e ela começou a tricotar e montar
quebra-cabeças, colecionar conchas, fumar cigarros e planejar a hora do
coquetel especial de Vera Donovan, que começava às cinco e terminava por
volta de nove e meia. Mas não foi o mesmo, até eu percebi, e eu era só a
empregada temporária. Os filhos estavam recolhidos e calados, ainda em
luto pelo pai, acho, e não muito depois do Quatro de Julho, os três tiveram
uma discussão horrível quando estavam comendo no The Harborside.
Lembro que Jimmy DeWitt, o garçom de lá na época, disse que achava que
tinha alguma coisa a ver com o carro.
Fosse o que fosse, os filhos foram embora no dia seguinte. O bonitão os
levou para o continente naquela lancha grande que eles tinham, e imagino
que alguma outra pessoa que trabalhava pra família foi buscá-los. Nunca
mais vi nenhum dos dois. Vera ficou. Dava pra perceber que ela não estava
feliz, mas ficou. Foi um verão ruim pra estar perto dela. Deve ter
dispensado umas seis garotas temporárias antes do Labor Day, e quando vi
o Princess partir da doca com ela, pensei, aposto que não vamos ver a cara
dela no verão que vem, nem tão cedo. Vera vai ajeitar as coisas com os
filhos, vai ter que resolver, porque é só o que ela tem agora, e se eles
estiverem de saco cheio de Little Tall, ela vai ceder e vai pra outro lugar.
Afinal, eles estão crescendo agora, e ela vai ter que reconhecer isso.
Isso só mostra como eu conhecia pouco Vera Donovan na época. No que
dizia respeito a ela, não era preciso reconhecer porra nenhuma que ela não
quisesse. Vera apareceu de balsa na tarde do Memorial Day de 1962,
sozinha, e ficou até o Labor Day. Foi sem companhia e não foi simpática
comigo nem com mais ninguém, bebeu mais do que nunca e parecia a avó
da morte na maioria dos dias, mas foi, ficou, montou os quebra-cabeças e
foi pra praia, sozinha dessa vez, pegar as conchas como sempre fazia. Uma
vez, ela me disse que achava que Donald e Helga passariam agosto em
Pinewood (que era como eles sempre chamavam a casa; você deve saber
disso, Andy, mas Nancy não), mas nunca apareceram.
Foi em 1962 que ela começou a vir regularmente depois do Labor Day.
Ligou em meados de outubro e me pediu pra abrir a casa, e eu abri. Ela
ficou três dias; o bonitão foi junto e ficou no apartamento acima da
garagem. Depois, ela foi embora. Antes de sair, ela me ligou e me mandou
chamar Dougie Tappert pra verificar a fornalha e deixar os móveis sem
lençóis.
“Você vai me ver bem mais agora que as questões do meu marido estão
resolvidas”, disse ela. “Talvez mais do que você gostaria, Dolores. E espero
que veja os meus filhos também.”
Mas algo na voz de Vera me faz pensar que ela sabia que parte daquilo
era um sonho, mesmo na época.
A próxima vez que apareceu foi no fim de novembro, uma semana
depois do dia de Ação de Graças, e ligou logo mandando que eu aspirasse e
fizesse as camas. Os filhos não foram, claro, isso foi durante uma semana
de aulas, mas ela disse que talvez decidissem no último minuto passar o
fim de semana com a mãe em vez de ficar no colégio interno. Ela devia
saber, mas Vera era uma escoteira de coração: acreditava em estar
preparada, sempre.
Consegui ir logo de imediato, pois era uma época fraca na ilha pras
pessoas da minha área de serviço. Fui pra lá numa chuva fria com a cabeça
baixa e a mente trabalhando, como sempre acontecia nos dias depois que
descobri onde tinha ido parar o dinheiro das crianças. A ida ao banco tinha
sido quase um mês antes e, desde então, aquilo estava me corroendo assim
como ácido de bateria faz um buraco na roupa ou na pele se espirrar em
você.
Eu não conseguia fazer uma refeição decente, não conseguia dormir
mais de três horas seguidas sem que um pesadelo me acordasse, mal
conseguia me lembrar de trocar a roupa íntima. A minha mente nunca se
afastava do que Joe tinha feito com Selena, nem do dinheiro que ele havia
tirado do banco e como eu faria pra recuperar. Eu entendia que tinha que
parar de pensar nessas coisas por um tempo pra encontrar uma resposta; se
eu conseguisse, talvez uma solução aparecesse sozinha. Mas eu não
conseguia. Mesmo quando a minha mente ia pra outro lugar por um
tempo, a menor coisa a jogava de volta no mesmo buraco. Eu estava presa
em uma marcha e aquilo estava me enlouquecendo, e acho que esse foi o
verdadeiro motivo de eu acabar falando com Vera sobre o que tinha
acontecido.
Eu não pretendia falar com Vera; ela vivia azeda como uma leoa com um
espinho na pata desde que tinha dado as caras em maio depois que o
marido morreu, e eu não tinha a menor intenção de soltar o verbo com
uma mulher que agia como se o mundo tivesse virado de costas pra cagar
em cima dela. Mas, quando cheguei naquele dia, o humor dela finalmente
estava melhor.
Ela estava na cozinha, prendendo um artigo que havia recortado da
primeira página do Globe de Boston no quadro de cortiça que ficava ao lado
da porta da despensa. Ela disse:
“Olha isso, Dolores. Se tivermos sorte e o tempo cooperar, vamos ver
uma coisa bem incrível no verão.”
Ainda me lembro da manchete daquele artigo palavra por palavra,
mesmo depois de tantos anos, porque, quando li, senti como se uma chave
tivesse virado dentro de mim. eclipse total vai escurecer o céu do
norte da nova inglaterra no verão, dizia. Havia um mapinha que
mostrava que parte do Maine estaria no caminho do eclipse, e Vera tinha
feito um pontinho de caneta vermelha no local onde ficava Little Tall.
“Só vai ter outro no final do século que vem”, disse ela. “Os nossos
bisnetos talvez vejam, Dolores, mas nós já vamos estar mortas… então é
melhor apreciarmos esse!”
“É capaz de chover pra caramba no dia”, respondi, sem nem pensar
direito, e com o humor ruim que tomou conta da Vera quase o tempo todo
desde que o marido morreu, achei que ela seria grossa comigo. Mas ela só
riu e subiu a escada, cantarolando. Eu me lembro de pensar que o clima na
cabeça dela tinha mesmo mudado. Ela não só estava cantarolando, como
não havia nem sinal de ressaca.
Cerca de duas horas depois, eu estava no quarto dela, trocando os
lençóis da cama onde ela passaria tanto tempo deitada incapacitada nos
anos posteriores. Ela estava sentada na cadeira perto da janela, tricotando
um quadrado de colcha e ainda cantarolando. A fornalha estava ligada, mas
o calor ainda não havia se espalhado pela casa; aquelas casas grandes levam
um século pra ficarem quentes, mesmo quando preparadas para o inverno,
e Vera estava com o xale rosa sobre os ombros. O vento soprava forte do
oeste, e a chuva que batia na janela ao lado dela parecia areia sendo jogada
no vidro. Quando olhei pra lá, vi o brilho de luz vindo da garagem que
significava que o bonitão estava no apartamento, aconchegado e protegido.
Eu estava prendendo os cantos do lençol de baixo (Vera Donovan não
aceitava lençol de elástico, pode apostar o seu último centavo nisso; lençol
de elástico teria sido fácil demais), sem pensar em Joe e nos meus filhos
pra variar, e o meu lábio inferior começou a tremer. Para com isso, falei pra
mim mesma. Para agora. Mas o lábio não parou. Acho que o de cima
também começou a tremer. De repente, os meus olhos se encheram de
lágrimas e as minhas pernas ficaram fracas, então eu me sentei na cama e
chorei.
Não. Não.
Se é pra falar a verdade, que seja inteira. O fato é que eu não só chorei;
eu botei o avental na cara e gritei. Estava cansada e confusa, e a minha
cabeça estava no limite. Não tinha dormido quase nada em semanas e não
conseguia achar um jeito de seguir em frente. O meu único pensamento
era Pelo jeito você se enganou, Dolores. Pelo jeito estava pensando no Joe e nas
crianças, sim. E óbvio que eu estava. Havia chegado a um ponto em que eu
não conseguia pensar em mais nada, e era exatamente por isso que eu
estava chorando.
Não sei por quanto tempo chorei assim, mas sei que, quando finalmente
parei, tinha catarro na minha cara toda, meu nariz estava entupido e eu
estava tão sem fôlego que parecia que tinha acabado de correr uma
maratona. Fiquei com medo de tirar o avental da cara, porque eu achava
que, quando fizesse isso, Vera diria: “Que show, Dolores. Pode pegar o seu
último envelope de pagamento na sexta. Kenopensky vai entregar pra você”
— pronto, esse era o nome do bonitão, Andy, eu finalmente lembrei. Teria
sido a cara dela. Só que qualquer coisa era a cara dela. Não dava pra prever o
que Vera faria nem naquela época, antes de o cérebro dela virar quase todo
mingau.
Quando tirei o avental da cara, ela estava sentada junto à janela com o
tricô no colo, me encarando como se eu fosse um tipo de inseto novo e
interessante. Eu me lembro das sombras rastejantes que a chuva descendo
pela vidraça fazia nas bochechas e na testa dela.
“Dolores, me diz que você não foi descuidada a ponto de permitir que
aquela criatura maligna com a qual você mora tenha te dado barriga de
novo”, disse ela.
Por um segundo, eu não tive a menor ideia do que ela estava dizendo.
Quando Vera falou “dar barriga”, a minha mente foi direto pra noite em que
Joe me bateu com o pedaço de madeira e eu bati nele com a jarrinha.
Quando entendi, comecei a rir. Em poucos segundos, eu estava
gargalhando com tanta intensidade quanto tinha chorado antes, e sem
conseguir me controlar, assim como não tinha conseguido controlar antes.
Sabia que era mais de horror — a ideia de estar grávida de novo de Joe era a
pior coisa em que eu conseguia pensar, e o fato de que não estávamos mais
fazendo aquela coisa que faz os bebês não mudou nada. Mas saber o que
estava me fazendo rir não ajudou a parar.
Vera me olhou um ou dois segundos mais, pegou o tricô no colo e voltou
a trabalhar, com a maior calma do mundo. Até voltou a cantarolar. Era
como se ter a empregada sentada na cama desarrumada, berrando como
um bezerro ao luar, fosse a coisa mais natural do mundo pra ela. Se era, os
Donovans deviam ter empregados peculiares em Baltimore.
Depois de um tempo, as risadas voltaram a se transformar em choro, do
jeito como a chuva vira neve por um tempinho no inverno quando o vento
vira para o lado certo. Aí a emoção finalmente morreu e eu fiquei sentada
na cama, me sentindo cansada e com vergonha… mas também limpa, de
certa forma.
“Desculpe, sra. Donovan. De verdade”, falei.
“Vera”, corrigiu ela.
“Como?”
“Vera”, repetiu ela. “Eu insisto pra que todas as mulheres que têm
ataques histéricos na minha cama me chamem pelo meu nome de batismo
daí em diante.”
“Eu não sei o que me deu”, falei.
“Ah”, respondeu ela na mesma hora, “eu acho que sabe. Vai se limpar,
Dolores. Parece que você enfiou a cara em uma tigela de purê de espinafre.
Pode usar o meu banheiro.”
Fui lavar o rosto e fiquei muito tempo lá. A verdade era que eu estava
com um pouco de medo de sair. Tinha parado de achar que ia ser demitida
quando ela me mandou a chamar de Vera e não sra. Donovan, não é assim
que se trata alguém que você pretende despedir em cinco minutos — mas
eu não sabia o que ela ia fazer. Podia ser cruel; se você não entendeu pelo
menos isso de tudo que eu já contei, estou só perdendo tempo. Ela sabia
cutucar muito bem quando e onde queria, e, quando fazia, costumava ser
com força.
“Você se afogou aí dentro, Dolores?”, gritou ela, e eu sabia que não dava
mais pra adiar.
Fechei a torneira, sequei o rosto e voltei para o quarto. Comecei a pedir
desculpas de novo assim que entrei, mas ela descartou os pedidos. Ainda
me olhava como se eu fosse um tipo de inseto que ela nunca havia visto.
“Sabe de uma coisa? Você me deixou me cagando de medo, mulher”,
disse ela. “Durante todos esses anos, nunca soube se você era capaz de
chorar. Até achei que você era de pedra.”
Murmurei qualquer coisa sobre não estar descansando ultimamente.
“Estou vendo”, respondeu ela. “Você está com olheiras do tamanho de
malas Louis Vuitton e as suas mãos estão com um tremor curioso.”
“Estou com olheiras o quê?”
“Deixa pra lá. Me conta o que aconteceu. Um pãozinho no forno era o
único motivo de uma explosão dessas em que consegui pensar, e devo
confessar que ainda é a única coisa em que consigo. Então, me conta,
Dolores.”
“Não posso”, falei, e Deus que me perdoe, mas senti a coisa toda pronta
pra despencar em cima de mim de novo, como o tranco que o velho Ford
Model-A do meu pai dava quando não se segurava direito; se eu não
tomasse cuidado, logo estaria na cama dela de novo com o avental na cara.
“Você pode e vai”, disse Vera. “Não pode passar o dia chorando assim.
Vai acabar me dando dor de cabeça e eu vou ter que tomar aspirina. E eu
odeio tomar aspirina. Faz mal para o meu estômago.”
Eu me sentei na beira da cama e olhei pra Vera. Abri a boca sem a menor
ideia do que ia dizer. O que saiu foi o seguinte:
“O meu marido está tentando comer a própria filha, e quando fui pegar
o dinheiro da faculdade deles no banco pra poder fugir com ela e os
meninos, descobri que ele tinha limpado as poupanças. Não, eu não sou
feita de pedra. Não sou nem um pouco feita de pedra.”
Comecei a chorar de novo, e chorei por um tempo, mas não tanto
quanto antes e sem sentir necessidade de esconder a cara no avental.
Quando terminei de fungar, ela disse pra eu contar a história toda desde o
começo e sem deixar nadinha de fora.
E eu contei. Nunca pensei que conseguiria contar a história pra qualquer
pessoa, muito menos pra Vera Donovan, com o dinheiro e a casa em
Baltimore e o bonitão de estimação, que ela não mantinha por perto só pra
cuidar do carro, mas contei, e senti o peso no coração ficar mais leve a cada
palavra. Contei tudo, como ela falou pra eu fazer.
“Eu estou encurralada”, concluí. “Não consigo decidir o que fazer com o
filho da puta. Acho que posso ir pra algum lugar se fizer as malas das
crianças e seguir para o continente, eu nunca tive medo de trabalho, mas
esse não é o ponto.”
“Qual é o ponto, então?”, perguntou ela.
O quadradinho da colcha em que estava trabalhando estava quase
pronto. Os dedos dela eram os mais rápidos que eu já vi.
“Ele fez tudo, menos estuprar a própria filha. Ele a deixou com tanto
medo que talvez Selena nunca supere, e se recompensou com quase três
mil dólares pelo mau comportamento. Não vou deixar que ele se safe. É
esse o ponto.”
“É?”, perguntou ela com aquela voz moderada, e as agulhas continuaram
no clique-clique-clique, e a chuva continuou caindo pelas vidraças, e as
sombras tremeram pela bochecha e pela testa dela como veias pretas.
Olhar pra Vera daquele jeito me fez pensar em uma história que a minha
avó contava sobre as três irmãs nas estrelas que tricotavam nossas vidas…
uma tricotando, uma segurando e uma cortando cada fio quando dava
vontade. Acho que o nome dessa última era Átropos. Mesmo se não for,
esse nome sempre me deu arrepios.
“É”, confirmei, “mas não consigo pensar em um jeito de dar a Joe o que
ele merece.”
Clique-clique-clique. Tinha uma xícara de chá ao lado dela, e Vera fez
uma pausa longa pra tomar um gole. Chegaria uma época em que ela
tentaria tomar o chá pela orelha direita e acabaria de cabelo encharcado,
mas, naquele dia de outono de 1962, ainda estava afiada como a navalha do
meu pai. Quando me olhou, os olhos dela pareceram abrir um buraco até o
outro lado.
“O que é o pior, Dolores?”, perguntou ela, por fim, botando a xícara de
lado e pegando o tricô de novo. “O que você diria que é o pior? Não pra
Selena nem os meninos, mas pra você?”
Nem precisei parar e pensar.
“Aquele filho de uma quenga está rindo de mim”, respondi. “Isso é o pior
pra mim. Vejo na cara dele às vezes. Nunca falei, mas ele sabe que eu fui ao
banco, sabe muito bem, e sabe que eu descobri.”
“Isso pode ser só a sua imaginação.”
“Não faz a menor diferença se for. É o que eu sinto.”
“Sim. É o que você sente que importa. Eu concordo. Continua, Dolores.”
Como assim? Era isso que eu ia dizer. Acabou. Mas acho que não tinha
acabado, porque uma outra coisa saiu, como um palhaço de mola de uma
caixa surpresa.
“Ele não estaria rindo de mim se soubesse como cheguei perto de parar o
relógio dele pra sempre algumas vezes”, falei.
Vera só me encarou, com aquelas sombras finas e escuras perseguindo
umas às outras pelo rosto dela e passando pelos olhos, de forma que não
consegui interpretá-los, e pensei nas mulheres que tricotam nas estrelas de
novo. Principalmente na que segura a tesoura.
“Estou com medo”, falei. “Não do Joe, de mim. Se não tirar as crianças
de perto dele logo, algo de ruim vai acontecer. Sei que vai. Tem uma coisa
dentro de mim que está piorando.”
“É um olho?”, perguntou ela calmamente, e um arrepio danado subiu
pelo meu corpo nessa hora! Era como se Vera tivesse encontrado uma
janela pra dentro da minha cabeça e usado pra espiar os meus
pensamentos. “Uma coisa tipo um olho?”
“Como você sabe?”, sussurrei, e enquanto estava ali sentada, meus
braços ficaram arrepiados e eu comecei a tremer.
“Eu sei”, disse ela, e começou a tricotar uma fileira nova. “Sei sobre isso,
Dolores.”
“Bom… eu vou acabar com ele se não tomar cuidado. É disso que tenho
medo. Se acontecer, posso esquecer o dinheiro. Posso esquecer tudo.”
“Besteira”, disse ela, e as agulhas continuaram clique-clique-clique no
seu colo. “Maridos morrem todos os dias, Dolores. Deve ter um morrendo
agorinha mesmo, enquanto estamos aqui conversando. Morrem e deixam o
dinheiro deles pras esposas.” Vera terminou a carreira e me olhou, mas
ainda não consegui ver o que havia nos olhos dela por causa das sombras
que a chuva provocava. Percorriam o rosto dela como cobras. “Eu deveria
saber, certo? Afinal, olha o que aconteceu com o meu.”
Não consegui dizer nada. Senti que a língua ficou grudada no céu da
boca como um inseto em papel mata-moscas.
“Um acidente”, disse ela com voz clara, parecida com a de uma
professora, “às vezes é o melhor amigo de uma mulher infeliz.”
“O que você quer dizer?”, perguntei.
Foi só um sussurro, mas fiquei meio surpresa de descobrir que consegui
falar mesmo isso.
“Ué, o que você quiser”, respondeu ela, e então abriu um sorrisinho; não
um sorriso largo, um apertadinho. Para falar a verdade, Andy, aquele
sorrisinho fez o meu sangue gelar. “Você só precisa lembrar que o que é seu
é dele e o que é dele é seu. Se Joe sofresse um acidente, por exemplo, o
dinheiro que ele está guardando nas contas bancárias seria seu. É a lei
nesse nosso grande país.”
Os olhos dela se fixaram nos meus, e só por um segundo as sombras
sumiram e consegui observá-los claramente. O que vi me fez afastar o olhar
depressa. Por fora, Vera era fria como um bebê sentado em um bloco de
gelo, mas por dentro a temperatura era bem mais quente; tão quente
quanto o meio de um incêndio na floresta, eu diria. Quente demais pra
gente como eu olhar por muito tempo, isso com certeza.
“A lei é uma coisa ótima, Dolores”, disse ela. “E quando um homem ruim
sofre um acidente grave, isso pode às vezes ser uma coisa ótima também.”
“Você está dizendo…”, comecei.
Consegui falar um pouco mais alto do que um sussurro, mas não muito.
“Eu não estou dizendo nada”, disse ela. Na época, quando Vera decidia
que tinha encerrado um assunto, ela o fechava como um livro. Ela enfiou o
tricô no cesto e se levantou. “Mas vou dizer uma coisa: essa cama nunca vai
ficar arrumada com você sentada nela. Vou descer pra esquentar a água do
chá. Talvez, quando você terminar aqui, queira descer e experimentar uma
fatia da torta de maçã que eu trouxe do continente. Se tiver sorte pode ser
até que eu acrescente uma bola de sorvete de creme.”
“Tudo bem”, falei.
A minha mente girava, e minha única certeza era a de que a torta da
padaria de Jonesport parecia certa. Eu estava com fome pela primeira vez
em mais de quatro semanas; desabafar havia servido pelo menos pra isso.
Vera chegou à porta e se virou pra me olhar.
“Não sinto pena de você, Dolores”, disse ela. “Você não me contou que
estava grávida quando se casou com ele, nem precisava; até uma tonta em
matemática como eu sabe somar e subtrair. Estava de três meses?”
“Seis semanas”, falei. A minha voz havia voltado a ser um sussurro.
“Selena nasceu um pouco prematura.”
Ela assentiu.
“E o que uma garotinha convencional da ilha faz quando descobre que
tem pãozinho assando? O óbvio, claro… mas os que se casam de olhos
fechados muitas vezes se arrependem quando os abrem, como você parece
ter descoberto. Pena que a sua santa mãe não te ensinou isso, e que os
brutos também têm sentimentos, e que você deve usar a cabeça pra salvar o
resto. Mas vou te dizer uma coisa, Dolores: chorar com o avental na cara
não vai salvar a virgindade da sua filha se aquele bode velho fedorento
realmente pretende ir até o fim, nem o dinheiro dos seus filhos se ele
realmente quiser gastar. Mas às vezes os homens, principalmente os que
bebem, sofrem acidentes. Caem de escadas, escorregam em banheiras e às
vezes o freio falha e eles batem a bmw em um carvalho quando estão
voltando com pressa do apartamento da amante em Arlington Heights.
Com isso, Vera saiu e fechou a porta ao passar. Enquanto fazia a cama,
pensei no que ela havia dito… que quando um homem ruim sofre um
acidente ruim, às vezes isso pode ser uma coisa ótima. Comecei a ver o que
estava na minha cara o tempo todo, o que eu teria visto antes se a minha
mente não estivesse correndo de um lado para o outro em um pânico
descontrolado, como um pardal preso em um sótão.
Depois que comemos a torta e eu a levei pra cima, pra soneca da tarde, a
possibilidade estava clara na minha cabeça. Queria me livrar de Joe e
queria o dinheiro dos meus filhos de volta, mas, mais do que tudo, queria
fazê-lo pagar por tudo que ele havia nos feito passar… principalmente a
Selena. Se o filho da puta sofresse um acidente, o tipo certo de acidente,
tudo isso aconteceria. O dinheiro que eu não podia pegar com ele vivo viria
pra mim quando Joe morresse. Ele podia ter tirado o dinheiro escondido,
mas não tinha se dado ao trabalho de fazer um testamento pra me tirar da
jogada. Não era uma questão de cérebro; o jeito como ele pegou o dinheiro
mostrava que sabia ser mais astucioso do que eu achava. Mas era como a
mente dele funcionava. Tenho certeza de que, lá no fundo, Joe St. George
acreditava que não ia morrer nunca.
E, como esposa dele, tudo viria direto pra mim.
Quando saí de Pinewood naquela tarde, a chuva tinha parado, e andei
pra casa bem devagar. Não estava nem na metade do caminho quando
comecei a pensar no poço velho atrás do barracão onde ficava a lenha.
Estava com a casa só pra mim quando voltei. Os garotos estavam
brincando e Selena tinha deixado um bilhete dizendo que tinha ido pra
casa da sra. Devereaux ajudar com a roupa pra lavar… ela lavava todos os
lençóis do The Harborside Hotel naquela época. Eu não tinha a menor
ideia de pra onde Joe tinha ido e não ligava. O importante era que a picape
dele não estava na garagem, e com aquele silenciador quase caindo como
estava, eu teria um ótimo aviso se ele voltasse.
Fiquei um minuto olhando o bilhete de Selena. É engraçado, são as
pequenas coisas que levam uma pessoa a finalmente tomar uma decisão,
que a levam da possibilidade à probabilidade, e da probabilidade à certeza,
por assim dizer. Mesmo agora, não tenho certeza se realmente pretendia
matar Joe quando cheguei da casa de Vera Donovan naquele dia. Pretendia
olhar o poço, sim, mas isso poderia ter sido mais um jogo, como as crianças
brincam de faz de conta. Se Selena não tivesse deixado aquele bilhete,
talvez eu nunca tivesse feito o que fiz… e aconteça o que acontecer depois
disso tudo, Andy, Selena não pode saber de nada nunca.
O bilhete dizia algo assim: “Mãe, fui pra casa da sra. Devereaux com
Cindy Babcock pra ajudar a lavar as coisas do hotel. Eles receberam bem
mais gente no fim de semana de feriado do que o esperado, e você sabe
como a artrite da sra. Devereaux piorou. A coitada parecia estar surtando
quando ligou. Volto pra ajudar com o jantar. Beijos, te amo. Sel”.
Sabia que Selena voltaria com uns cinco ou sete dólares, mas feliz da
vida pelo que tinha conseguido. Ela ficaria feliz de voltar se a sra.
Devereaux ou Cindy ligassem de novo, e se oferecessem uma proposta de
camareira em meio expediente no hotel no verão, provavelmente me
convenceria a deixar que aceitasse. Porque dinheiro é dinheiro, e naquela
época, na ilha, a troca ainda era comum e dinheiro vivo era algo difícil de
conseguir. A sra. Devereaux ligaria de novo, e ficaria feliz da vida de
escrever uma carta de referência para o hotel indicando Selena se ela
pedisse, porque Selena era uma boa funcionária, sem medo de meter a mão
na massa e fazer trabalho duro.
Em outras palavras, a minha filha era como eu quando tinha a idade
dela, e olha só no que eu tinha me transformado: só mais uma bruxa da
limpeza mancando sempre e com um comprimido de analgésico no
armário de remédios por causa de dor nas costas. Selena não via nada de
errado com aquilo, mas tinha acabado de fazer quinze anos, e aos quinze
uma garota não sabe o que está vendo nem quando está na cara dela. Li
aquele bilhete um monte de vezes e pensei: Ah, não, ela não vai acabar
como eu, velha e quase destruída aos trinta e cinco. Não vai, nem que eu
tenha que morrer pra impedir. Mas sabe de uma coisa, Andy? Não achei
que as coisas teriam que ir tão longe. Achei que talvez Joe fosse o único que
teria que morrer na nossa casa.
Coloquei o bilhete dela de volta na mesa, fechei a capa de chuva e calcei
as galochas. Fui para os fundos e parei ao lado da pedra branca grande onde
eu e Selena nos sentamos na noite em que eu falei que ela não precisava
mais ter medo de Joe, que ele tinha prometido que a deixaria em paz. A
chuva tinha parado, mas eu ainda ouvia a água pingar na área de arbustos
de amora atrás de casa e via as gotas penduradas nos galhos expostos.
Pareciam os brincos de diamante de Vera Donovan, só que não tão grandes.
Aquelas plantas ocupavam uns dois mil metros quadrados, e quando abri
caminho por ali, fiquei feliz de estar com a capa e as botas altas. O molhado
era o de menos; os espinhos que eram assassinos. No final dos anos 1940,
aquela área era de flores e grama, com o poço do lado do barracão, mas uns
seis anos depois que Joe e eu nos casamos e nos mudamos para o local, que
o tio Freddy deixou pra ele quando morreu, o poço estava seco. Joe chamou
Peter Doyon pra fazer um novo, no lado oeste da casa. Nunca tivemos
problema de água depois disso.
Quando paramos de usar o poço velho, a área atrás do barracão virou
aquele emaranhado de arbustos de amoreira que vai até o peito, e os
espinhos puxaram e arranharam a minha capa enquanto eu andava, à
procura da tampa de tábua do poço. Depois de ter cortado a mão em três ou
quatro lugares, puxei as mangas sobre elas.
No final, só encontrei o desgraçado quase caindo dentro dele. Pisei em
uma coisa meio solta e ao mesmo tempo esponjosa, houve um estalo
debaixo do meu pé e eu recuei assim que a tábua onde eu havia pisado
cedeu. Se eu tivesse dado azar, teria caído pra frente, e a coisa toda teria
desmoronado. Tim-tim, seria o fim.
Fiquei de joelhos, mantendo uma das mãos na frente do rosto pra que os
espinhos não arranhassem as minhas bochechas nem arrancassem um dos
meus olhos, e dei uma boa olhada de perto.
A abertura tinha mais ou menos um metro e vinte de largura e um metro
e meio de comprimento; as tábuas eram todas brancas e estavam tortas e
podres. Empurrei uma com a mão, e foi como empurrar um palito de
alcaçuz. A tábua onde eu tinha apoiado o pé estava toda curvada, e vi farpas
novas saindo dela. Teria caído dentro, com certeza, e naquela época eu
pesava cinquenta e cinco quilos. Joe pesava pelo menos dez quilos a mais.
Eu estava com um lenço no bolso. Amarrei-o em cima de um arbusto no
lado mais perto do barracão, pra conseguir encontrar de novo depressa.
Voltei pra casa. Naquela noite, dormi como um anjo, e não tive pesadelos
pela primeira vez desde que Selena havia me contado o que o Príncipe
Encantado do pai dela andava fazendo com a filha.
Isso foi no fim de novembro, e eu não pretendia fazer mais nada por um
tempo. Duvido que eu precise explicar o motivo, mas vou dizer mesmo
assim: se alguma coisa acontecesse com Joe tão pouco tempo depois da
nossa conversa na balsa, Selena poderia desconfiar de mim. Eu não queria
que isso acontecesse, porque havia uma parte dela que ainda o amava e
provavelmente sempre amaria, e porque eu tinha medo do que ela sentiria
mesmo se só desconfiasse daquilo. Do que ela sentiria por mim, claro, acho
que isso nem precisa ser dito, mas eu estava com mais medo ainda do que
Selena sentiria sobre si mesma. Quanto a como isso se desenrolou… bom,
agora não importa. Vou chegar lá, eu acho.
Então deixei o tempo passar, mesmo que essa sempre fosse a parte mais
difícil pra mim depois de tomar qualquer decisão. Mesmo assim, os dias
viraram semanas, como de costume. De vez em quando eu questionava
Selena sobre Joe. “Seu pai está se comportando direito?”, era o que eu
perguntava, e nós duas entendíamos o que eu queria saber de fato. Ela
sempre dizia sim, o que era um alívio, porque se Joe começasse de novo, eu
teria que me livrar dele de imediato, e que se danassem os riscos. Ou as
consequências.
Quando o Natal passou e o ano de 1963 chegou, tive outras
preocupações. Uma era o dinheiro: todos os dias, acordava pensando que
aquele poderia ser o dia em que Joe começaria a gastar. Por que eu não me
preocuparia com isso? Ele tinha gastado os primeiros trezentos de cara, e
eu não podia impedi-lo de torrar o resto enquanto eu esperava o tempo dar
tempo ao tempo, como gostam de dizer nas reuniões dele do aa. Perdi a
conta de quantas vezes procurei a porcaria do documento que tiveram que
dar quando ele abriu a conta dele com aquela grana, mas nunca encontrei.
Então, a única coisa que eu podia fazer era vê-lo voltar pra casa com uma
serra elétrica nova ou um relógio caro no pulso e torcer pra que não tivesse
perdido uma parte, ou talvez tudo, em um daqueles jogos de pôquer com
apostas altas que alegava frequentar todos os fins de semana em Ellsworth
e Bangor. Nunca me senti tão impotente na vida.
E tinha a questão de quando e como eu faria… e se, no final, teria
coragem de fazer, na verdade. A ideia de usar o poço velho como armadilha
era boa, por si só; o problema é que não chegava a ser boa o suficiente. Se
Joe morresse de uma vez, como acontece na televisão, tudo ficaria bem.
Mas mesmo trinta anos atrás eu já tinha vivido o bastante pra saber que as
coisas raramente são como na televisão.
E se ele caísse e começasse a gritar, por exemplo? A ilha não era na
época como é agora, mas nós tínhamos três vizinhos naquele trecho da East
Lane: os Caron, os Langill e os Jolander. Talvez eles não ouvissem gritos
vindo da área de amoreiras atrás da nossa casa, mas talvez ouvissem…
principalmente se o vento estivesse forte e soprando na direção certa. E
não era só isso. Como fica entre o vilarejo e o Head, a East Lane às vezes
ficava bem movimentada. Havia caminhões e carros passando pela nossa
casa o tempo todo, não tantos naquela época, mas o suficiente pra
preocupar uma mulher que estava pensando no que eu estava pensando.
Eu já tinha praticamente decidido que não poderia usar o poço pra
resolver a questão, que era tudo arriscado demais, quando a resposta veio.
Mais uma vez, foi Vera que me deu, apesar de que acho que ela não sabia.
Ela estava fascinada pelo eclipse, entende? Passou boa parte da estação
na ilha, e quando o inverno estava no fim, havia um novo recorte sobre isso
preso no quadro de avisos da cozinha toda semana. Quando a primavera
veio, com os ventos fortes e as frentes frias, ela ficou mais tempo lá, e os
recortes apareciam a cada dois dias. Havia artigos dos jornais locais, dos
jornais de longe como o Globe e o New York Times, e de revistas como a
Scientific American.
Ela ficou animada porque tinha certeza de que o eclipse finalmente
atrairia Donald e Helga de volta a Pinewood, me disse isso várias vezes,
mas também estava empolgada por si só. Em meados de maio, quando o
tempo finalmente começou a esquentar, tinha se mudado de vez; ela nem
falava de Baltimore. Aquela porcaria de eclipse era o único assunto
possível. Vera tinha quatro câmeras, e eu não estou falando de básicas
como uma Brownie Starflash. No armário de entrada, três já estavam
montadas em tripés. Também tinha uns oito ou nove óculos de sol
especiais, caixas abertas que ela chamava de “visores de eclipse”,
periscópios com espelhos escuros dentro e sei lá mais o quê.
Perto do fim de maio, cheguei lá e vi que o artigo no quadro de avisos era
do nosso jornalzinho, The Weekly Tide. harborside será “central do
eclipse” para os residentes e veranistas, dizia a manchete. A foto
mostrava Jimmy Gagnon e Harley Fox cuidando da carpintaria do terraço
do hotel, que era tão achatado e amplo na época como é agora. E sabe o que
mais? Senti uma coisa dentro de mim de novo, como senti quando vi
aquele primeiro artigo sobre o eclipse preso no mesmíssimo lugar.
O artigo dizia que os donos do The Harborside planejavam transformar o
telhado em um observatório a céu aberto no dia do eclipse… só que pra
mim parecia a mesma coisa de sempre com fachada de nova. Disseram que
o telhado estava passando por “reformas especiais” pra ocasião (se parar
pra pensar, a ideia de Jimmy Gagnon e Harley Fox reformando qualquer
coisa é bem engraçada), e que esperavam vender trezentos e cinquenta
“ingressos pro eclipse”. Os veranistas poderiam escolher primeiro, depois
os residentes permanentes. O preço até que era bem razoável, dois dólares
por manta, mas claro que planejavam servir comida e montar um bar,
afinal, é nesses lugares em que os hotéis arrancam dinheiro das pessoas.
Principalmente nos bares.
Eu ainda estava lendo o artigo quando Vera entrou. Não a ouvi, e quando
ela falou dei um pulo de meio metro.
“E aí, Dolores? O que vai ser? O terraço do The Harborside ou o Island
Princess?”, disse ela.
“O que tem o Island Princess?”, perguntei.
“Eu o aluguei pra tarde do eclipse.”
“Não acredito!”, falei, mas soube na mesma hora que era verdade; Vera
não falava nada por falar, nem era de se gabar. Ainda assim, a ideia de
alugar uma balsa grande como o Princess tirou o meu fôlego.
“É verdade”, disse ela. “Está custando um rim, Dolores, principalmente
por causa da balsa que vai ter que substituir a Princess e fazer as viagens
dela nesse dia, mas aluguei mesmo. E se você vier no meu passeio, vai de
graça e com as bebidas por conta da casa.” E aí, me espiando por baixo de
pálpebras semicerradas, ela disse: “A última parte deve atrair o seu marido,
você não acha?”.
“Meu Deus, por que você alugou a balsa, Vera?” O nome dela ainda
soava estranho pra mim cada vez que saía da minha boca, mas ela já havia
deixado bem claro que não estava brincando; não queria que eu voltasse a
chamá-la de sra. Donovan mesmo que eu quisesse, e às vezes eu queria.
“Quer dizer, eu sei que você está animada com o eclipse e tal, mas poderia
ter conseguido um barco quase do mesmo tamanho em Vinalhaven, e
provavelmente com um gasto bem menor.”
Vera deu de ombros e balançou o cabelo comprido ao mesmo tempo; era
a cara dela de não gostou enfia no cu.
“Eu a aluguei porque eu amo aquela banheira velha”, disse ela. “A ilha
Little Tall é o meu lugar favorito no mundo todo, Dolores. Você sabia
disso?”
Na verdade, sabia, sim, então assenti.
“Claro que sabe. E foi o Princess que quase sempre me trouxe aqui, a
princesa esquisita, gorda e torta. Me disseram que acomoda quatrocentas
pessoas com conforto e segurança, cinquenta a mais do que o terraço do
hotel, e eu vou levar qualquer um que queira ir comigo e os meus filhos.”
Ela sorriu, e esse sorriso foi bonito; foi o sorriso de uma garota que está
feliz de estar viva. “E sabe de outra coisa, Dolores?”
“Não. Estou perplexa.”
“Você não vai precisar se rebaixar a ninguém se…” Vera parou e me
olhou do jeito mais engraçado do mundo. “Dolores? Você está bem?”
Mas não consegui responder. A ideia mais horrível e mais maravilhosa
do mundo havia surgido na minha cabeça. Visualizei aquele terraço amplo
do The Harborside cheio de pessoas sentadas com os pescoços inclinados
pra trás, e o Princess no meio da água entre o continente e a ilha, os
conveses também lotados de gente olhando pra cima, e acima de tudo um
círculo preto enorme cercado de fogo em um céu cheio de estrelas diurnas.
Era uma ideia assustadora, pra dar calafrios até num morto, mas não foi
isso o soco no meu estômago. Foi pensar no resto da ilha que fez aquilo.
“Dolores?”, perguntou ela, e encostou a mão no meu ombro. “Você está
com cãibra? Vai desmaiar? Vem se sentar aqui à mesa. Vou pegar um copo
de água.”
Eu não estava com cãibra, mas de repente achei que ia desmaiar, então
fui pra onde Vera queria e me sentei… só que os meus joelhos estavam tão
fracos que quase caí na cadeira. Eu a vi pegando água e pensei em uma
coisa que ela havia dito em novembro, que até uma tonta em matemática
como ela era capaz de fazer adição e subtração. Bom, até uma pessoa como
eu conseguia somar os 350 do terraço do hotel com 400 no Island Princess e
chegar a 750. Isso não era todo mundo que estaria na ilha em meados de
julho, mas era uma boa parte das pessoas, por Jesus. Eu achava que o resto
estaria na rua olhando para o céu ou vendo o eclipse da praia e das docas da
cidade.
Vera levou água pra mim, e eu bebi tudo de uma vez. Ela se sentou na
minha frente com expressão preocupada.
“Você está bem, Dolores?”, perguntou ela. “Precisa se deitar?”
“Não”, falei. “Só me senti esquisita por uns segundos.”
E tinha me sentido mesmo. Acho que descobrir de repente em que dia
você planeja matar o seu marido é o tipo de coisa capaz de fazer qualquer
um se sentir esquisito.
Umas três horas depois, com a roupa toda lavada, as compras feitas e
guardadas, os tapetes aspirados e uma caçarola pequena na geladeira para o
jantar solitário dela (Vera podia compartilhar a cama com o bonitão de
tempos em tempos, mas nunca a vi compartilhar a mesa de jantar), eu me
preparei pra ir embora. Vera estava sentada à mesa da cozinha, fazendo as
palavras cruzadas do jornal.
“Pense sobre ir com a gente no barco no dia vinte de julho, Dolores”,
disse ela. “Vai ser bem mais agradável lá no mar do que naquele terraço
quente, pode acreditar.”
“Obrigada, Vera”, falei, “mas, se eu tiver o dia de folga, duvido que vá pra
qualquer um dos dois lugares. Acho que vou ficar em casa.”
“Você ficaria ofendida se eu dissesse que isso me parece chato?”,
perguntou ela, erguendo os olhos pra mim.
Quando você já se preocupou em ofender a mim ou qualquer outra pessoa,
sua filha da puta arrogante?, pensei, mas óbvio que não falei. Além do mais,
ela pareceu preocupada mesmo quando achou que eu poderia desmaiar,
embora isso possa ter sido por medo de eu cair de cara e sangrar no chão da
cozinha, que eu tinha encerado na véspera.
“Não”, falei. “Eu sou assim, Vera. Chata como um prato.”
Ela me olhou de um jeito engraçado.
“É mesmo? Às vezes eu acho que sim… e às vezes fico em dúvida.”
Eu me despedi e fui pra casa, revirando a ideia sem parar, à procura de
brechas. Não encontrei nenhuma, só alguns talvez, e talvez faz parte da
vida, não é? Sempre há chance para o azar, mas, se as pessoas se
preocupassem demais com isso, nada seria feito. Além do mais, pensei, se
der errado, eu posso cancelar. Posso fazer isso quase até o finzinho.
Maio foi embora, o Memorial Day chegou e passou, e as férias escolares
começaram. Eu me preparei pra impedir Selena se ela viesse me encher
sobre trabalhar no The Harborside, mas, antes mesmo de termos a nossa
primeira discussão sobre isso, algo maravilhoso aconteceu. O reverendo
Huff, que era o pastor metodista na época, foi falar comigo e com Joe. Disse
que o Acampamento da Igreja Metodista em Winthrop estava com vagas
pra duas monitoras que tivessem qualificações avançadas em natação. Bom,
tanto Selena quanto Tanya Caron nadavam como peixes, Huffy sabia, e pra
resumir um pouco pelo menos, eu e Melissa Caron levamos as nossas filhas
para a balsa uma semana depois do fim das aulas, elas acenando da
embarcação, nós duas acenando da doca, e todas as quatro chorando como
umas bobas. Selena usava um terninho rosa lindo para a viagem, e aquela
foi a primeira vez que tive uma imagem clara da mulher que ela viria a ser.
Quase partiu o meu coração, ainda parte. Alguém tem um lenço de papel?
Obrigada, Nancy. Muito obrigada. Onde eu estava?
Ah, sim.
A questão da Selena estava resolvida; mas ainda sobravam os meninos.
Fiz Joe ligar pra irmã dele em New Gloucester e perguntar se o marido dela
se importaria de ficar com os dois nas últimas três semanas de julho e a
primeira de agosto, pois nós tínhamos ficado com os dois diabinhos deles
por um mês no verão mais de uma vez quando eram menores. Achei que
Joe daria pra trás com a ideia de mandar Pete, mas não falou nada. Acho
que pensou em como a casa ficaria tranquila com os três longe e gostou da
ideia.
Alicia Forbert, esse era o nome de casada da irmã dele, disse que
ficariam felizes em receber os meninos. Eu acho que Jack Forbert ficou um
pouco menos feliz do que ela, mas Alicia abanava o rabo daquele cachorro,
então não havia problema… pelo menos, não lá.
O problema era que nem Joe Junior nem Pete queria ir. Eu não os
culpava; os garotos Forbert eram adolescentes e não teriam saco pra dois
pirralhos. Só que eu não ia deixar que isso me impedisse; não podia deixar.
No fim das contas, bati o pé e os obriguei. Dos dois, Joe Junior acabou
dando mais trabalho. Por fim, tive que puxá-lo de lado e falar:
“Pensa nisso como férias do seu pai.”
Isso o convenceu depois que todos os argumentos acabaram, mas,
quando paro pra pensar, acho que foi bem triste.
Quando os garotos estavam com a viagem resolvida, não havia mais nada
a fazer além de esperar que eles fossem, e acho que, no final, os dois
ficaram felizes de ir. Joe andava bebendo muito desde o Quatro de Julho, e
acho que nem Pete achava agradável ficar perto do pai.
Joe beber não era surpresa pra mim; eu estava ajudando com isso. Na
primeira vez que ele abriu o armário embaixo da pia e viu uma garrafa de
uísque novinha lá, achou estranho. Eu me lembro de ele me perguntar se
eu havia batido a cabeça. Mas, depois, não fez mais perguntas. Por que
faria? Desde o Quatro de Julho até o dia que morreu, Joe St. George passava
um pouco do tempo completamente bêbado e a maior parte do tempo meio
bêbado, e um homem nessa condição não demora pra ver a sorte como um
dos seus direitos constitucionais… principalmente um homem como Joe.
Por mim, não havia problema nisso, mas o tempo depois do Quatro de
Julho — a semana antes de os meninos viajarem e a semana seguinte, mais
ou menos — não foi exatamente agradável mesmo assim. Eu ia pra casa da
Vera às sete com ele deitado ao meu lado como um pedaço de queijo azedo,
roncando com o cabelo todo em pé. Eu voltava às duas ou três e ele estava
sentado na varanda (tinha levado aquela cadeira de balanço velha horrorosa
pra lá) com o American em uma das mãos e a segunda ou terceira bebida do
dia na outra. Nunca tinha companhia pra ajudar com o uísque; o meu Joe
não tinha o que se chamaria de coração generoso.
Houve um artigo sobre o eclipse na primeira página do American quase
todos os dias daquele mês de julho, mas acho que, mesmo lendo tanto
jornal, Joe tinha só uma ideia vaga de que algo fora do comum aconteceria
no fim do mês. Não ligava nadinha pra essas coisas, sabe? As preocupações
de Joe eram os comunistas e os lutadores pela liberdade (só que os chamava
de “pretos do Greyhound”) e aquele maldito católico amante de judeus na
Casa Branca. Se soubesse o que aconteceria a Kennedy quatro meses
depois, acho que quase teria conseguido morrer feliz. Ele era horrível
assim.
Mas eu me sentava ao lado dele do mesmo jeito e o ouvia reclamar de
qualquer coisa que o irritasse no jornal daquele dia. Queria que ele se
acostumasse comigo por perto quando eu voltasse pra casa, mas se eu
dissesse que o trabalho foi fácil, estaria mentindo. Não teria me importado
tanto com a bebedeira se ele tivesse uma disposição mais alegre quando
enchia a cara. Alguns homens ficam mais alegres, eu sei, mas Joe não era
assim. Beber despertava a mulher que havia nele, e pra mulher dentro de
Joe era como se sempre faltassem dois dias pra ela menstruar.
Mas conforme o grande dia se aproximava, sair da casa da Vera passou a
ser um alívio, apesar de ter apenas um marido fedorento e bêbado me
esperando em casa. Ela tinha passado o mês de junho todo agitada, falando
sobre isso e aquilo, verificando e confirmando o equipamento para o
eclipse, ligando pras pessoas. Deve ter ligado pra empresa que forneceria
comida ao passeio de balsa pelo menos duas vezes por dia na última
semana de junho, e eles eram só um item na lista diária dela.
Eu tinha seis garotas trabalhando comigo em junho e oito depois do
Quatro de Julho; foi o máximo de funcionários que Vera já teve, antes ou
depois de o marido morrer. A casa foi esfregada de cima a baixo, até brilhar,
e todas as camas foram feitas. Até acrescentamos camas temporárias no
solário e na varanda do segundo andar. Vera estava esperando pelo menos
doze hóspedes pra dormir no fim de semana do eclipse, talvez até vinte.
Não havia horas suficientes no dia pra aquela mulher, e ela ficava correndo
de um lado pro outro como uma barata tonta, mas estava feliz.
Por volta da época em que mandei os garotos pra casa da tia Alicia e do
tio Jack, por volta do dia 10 ou 11 de julho, e ainda uma semana antes do
eclipse, o bom humor dela despencou.
Despencou? Ah, não. Não foi bem isso. Estourou, como um balão
espetado por um alfinete. Um dia, ela estava voando como um jato; no dia
seguinte, estava com a maior tromba e os olhos tinham assumido aquela
expressão cruel e assombrada que eu via muito desde que Vera começara a
passar tanto tempo na ilha sozinha. Ela despediu duas garotas naquele dia,
uma por subir em um pufe pra lavar as janelas da sala e a outra por
gargalhar na cozinha com um homem do serviço de bufê. Essa segunda foi
bem ruim, porque a garota começou a chorar. Ela disse pra Vera que
conhecia o jovem da escola, não o via desde aquela época e queria colocar
os velhos tempos em dia. Pediu desculpas e suplicou pra não ser despedida.
Disse que a mãe dela ficaria com mais raiva do que um touro de tourada se
isso acontecesse.
Não adiantou nada.
“Olha o lado bom, meu bem”, disse Vera com aquela voz de filha da puta.
“A sua mãe pode ficar com raiva, mas você vai ter bastante tempo pra
conversar sobre o quanto se divertiu na Jonesport High.”
A garota, Sandra Mulcahey, saiu da casa com a cabeça baixa, chorando
como se o coração dela fosse se partir. Vera ficou no saguão, meio inclinada
pra conseguir olhá-la pela janela ao lado da porta. O meu pé coçou de tanta
vontade de chutar a bunda dela quando a vi parada daquele jeito… mas
fiquei meio triste também. Não era difícil saber o que ocasionara a
mudança de humor, e em pouco tempo eu tive certeza. No final, os filhos
não iam ver o eclipse com ela, com balsa alugada ou não. Talvez só
tivessem feito outros planos, como os filhos fazem sem nem pensar nos
sentimentos dos pais, mas o meu palpite era que o que tinha dado errado
entre ela e eles continuava errado.
O humor da Vera melhorou quando os primeiros dos outros hóspedes
começaram a chegar nos dias 16 e 17, mas eu continuava feliz de ir embora
a cada dia, e na quinta, dia 18, ela despediu outra garota. Dessa vez foi
Karen Jolander. O grande crime foi deixar cair um prato que já estava
rachado. Karen não estava chorando quando saiu da casa, mas dava pra ver
que ficou se segurando até passar a primeira colina pra soltar tudo.
Bom, eu fiz uma coisa idiota, mas você precisa lembrar que eu estava
bem tensa na época. Consegui esperar até Karen estar longe, pelo menos,
mas aí, fui procurar Vera. Eu a encontrei no quintal. Ela havia puxado o
chapéu de sol com tanta força que a aba tocava nas orelhas, e ela cortava de
um jeito com aquela tesoura de jardinagem que dava pra pensar que ela era
Madame Dufarge cortando cabeças em vez de Vera Donovan cortando
rosas pra sala de estar e de jantar.
Eu me aproximei e falei:
“Que horrível o que você fez, despedir a garota daquele jeito.”
Ela se levantou e me lançou o olhar mais arrogante de senhora da casa.
“Você acha? Que bom ouvir a sua opinião, Dolores. Eu desejo tanto,
sabe; cada vez que vou pra cama à noite, eu me deito lá no escuro
repassando o dia e fazendo a mesma pergunta enquanto cada evento passa
perante os meus olhos: O que Dolores St. George teria feito?”
Isso me deixou com mais raiva do que nunca.
“Vou te dizer uma coisa que Dolores Claiborne não faz”, falei, “e essa
coisa é descontar em outras pessoas quando ela está irritada ou
decepcionada. Acho que não sou tão filha da puta pra isso.”
O queixo dela caiu como se alguém tivesse tirado os parafusos que
mantinham a mandíbula fechada. Tenho quase certeza de que foi a
primeira vez que eu a surpreendi de verdade, e saí dali correndo, antes que
Vera pudesse ver como eu estava com medo. Quando cheguei à cozinha, as
minhas pernas tremiam tanto que eu precisei me sentar e pensei: você é
maluca, Dolores, de cutucar ela daquele jeito. Eu me levantei pra espiar
pela janela acima da pia, mas ela estava de costas pra mim, usando a
tesoura de novo com toda vontade. As rosas caíam na cesta como soldados
mortos com cabeças ensanguentadas.
Quando eu estava me arrumando pra ir pra casa naquela tarde, ela
chegou por trás e me mandou esperar um minuto, pois queria falar comigo.
Senti o coração despencar até os sapatos. Não tive dúvida nenhuma de que
a minha hora tinha chegado: ela diria que os meus serviços não seriam
mais necessários, me daria um último olhar de não gostou enfia no cu, e eu
seguiria pela rua, dessa vez pra sempre. Era de se imaginar que eu estaria
aliviada de me livrar daquela mulher, e acho que de certas formas teria sido
um alívio mesmo, mas senti uma dor no coração mesmo assim. Eu tinha
trinta e seis anos, trabalhava desde os dezesseis e nunca havia sido
despedida de um emprego. Mesmo assim, tem certos tipos de babaquice
que uma pessoa precisa contestar, e eu estava tentando com todas as forças
me preparar pra fazer isso quando eu me virei pra olhar pra ela.
Mas, quando vi o rosto de Vera, eu soube que ela não ia me despedir.
Toda a maquiagem que ela tinha passado de manhã havia sido tirada, e o
jeito como as pálpebras estavam inchadas me fez achar que ela tinha
cochilado ou chorado no quarto. Ela estava com um saco de papel de
compras nos braços e meio que empurrou pra mim.
“Toma”, disse ela.
“O que é isso?”, perguntei.
“Dois visualizadores de eclipse e duas caixas refletoras. Achei que você e
o Joe poderiam gostar. Eu por acaso tinha…” Ela parou e tossiu na mão
fechada antes de me encarar. Uma coisa que eu admirava em Vera, Andy:
não importava o que estava dizendo nem o quanto era difícil pra ela,
sempre olhava pra você ao falar. “Eu por acaso tinha dois de cada
sobrando.”
“Ah, é? Lamento saber disso.”
Ela descartou a frase como quem espanta uma mosca e me perguntou se
eu tinha mudado de ideia sobre sair na balsa com ela e os amigos.
“Não”, respondi. “Acho que vou ficar na varanda vendo de lá com o Joe.
Ou, se ele vier com liberdades, vou para o East Head.”
“Falando em liberdades”, disse ela, ainda me encarando, “quero pedir
desculpas por hoje de manhã… e perguntar se você poderia ligar pra Mabel
Jolander e dizer que eu mudei de ideia.”
Ela precisou de muita coragem pra dizer aquilo, Andy. Você não a
conhecia como eu, então acho que vai ter que acreditar na minha palavra,
mas ela precisou de muita coragem. Quando o assunto era pedir desculpas,
Vera Donovan era abstêmia.
“Claro”, falei, com um tom mais gentil. Quase toquei na mão dela, mas
acabei me segurando. “Só que é Karen, não Mabel. Mabel trabalhou aqui
uns seis ou sete anos atrás. Ela está em New Hampshire agora, diz a mãe
dela, trabalhando na companhia telefônica e indo muito bem.”
“Karen, então. Pede pra ela voltar. Só diz que eu mudei de ideia, Dolores,
nem mais uma palavra. Entendeu?
“Entendi. E obrigada pelas coisas do eclipse. Vão ser úteis, com certeza.”
“De nada”, disse ela. Eu abri a porta pra sair, e ela continuou: “Dolores?”.
Olhei pra trás e ela assentiu de um jeito engraçado, como se soubesse de
coisas que não tinha nada que saber.
“Às vezes, a gente precisa ser muito filha da puta pra sobreviver”, disse
ela. “Às vezes, ser uma filha da puta é a única coisa que uma mulher tem
pra se agarrar.”
Aí ela fechou a porta na minha cara… mas delicadamente. Não a bateu.
Muito bem; agora chegou o dia do eclipse, e se vou contar o que
aconteceu, tudo que aconteceu, não vou fazer de bico seco. Pelo meu
relógio, estou falando há quase duas horas sem parar, ou seja, o bastante
pra deixar uma pessoa desnorteada, e ainda tenho muito pra percorrer.
Então, vou te dizer uma coisa, Andy: ou você compartilha um dedo do Jim
Bean que tem na sua gaveta, ou encerramos por hoje. O que você diz?
Isso, obrigada. Nossa, mas isso foi certeiro! Não; guarda. Com um só já
dá pra apertar o acelerador; dois podem acabar entupindo os canos.
Tudo bem, lá vamos nós de novo.
Na noite do dia 19, fui pra cama tão preocupada que estava quase
enjoada, porque o rádio dizia que havia uma boa chance de chover. Estava
tão ocupada planejando o que ia fazer e tomando coragem que a
possibilidade de chuva nem sequer havia passado pela minha cabeça. Vou
ficar rolando na cama a noite toda, pensei quando me deitei, e aí pensei
não vai, não, Dolores, e vou te dizer por quê: você não pode fazer nada em
relação ao tempo, e não importa mesmo. Sabe que pretende fazer mesmo
que chova canivete o dia todo. Foi longe demais pra voltar atrás agora. Eu
sabia disso, então fechei os olhos e apaguei como uma lâmpada.
O sábado, dia 20 de julho de 1963, começou quente, abafado e nublado.
O rádio disse que havia uma boa chance de não chover, exceto por algumas
pancadas de chuva à noite, mas as nuvens iam ficar no céu boa parte do dia,
e qualquer chance de as comunidades costeiras verem o eclipse era de
cinquenta por cento.
Mesmo assim, era como se um peso enorme tivesse sido tirado dos meus
ombros, e quando fui pra casa da Vera pra ajudar a servir o brunch que ela
havia planejado, a minha mente estava calma e as minhas preocupações
tinham ficado pra trás. Não importava se estivesse nublado, entende? Não
importaria nem se ficasse chovendo e parando. Desde que não fosse um
temporal, o pessoal do hotel estaria no telhado e o pessoal da Vera, no mar,
todos na esperança de haver uma brecha nas nuvens pra que vissem o que
não aconteceria de novo na vida deles… pelo menos, não no Maine. A
esperança é uma força poderosa na natureza humana, sabe? Ninguém sabe
disso melhor do que eu.
Pelo que lembro, Vera acabou recebendo dezoito convidados naquela
noite de sexta-feira, mas houve mais ainda no brunch de sábado de manhã,
uns trinta ou quarenta, eu diria. O resto das pessoas que sairiam com ela de
barco (e a maioria era gente da ilha, e não de longe) começaria a se reunir
na doca da cidade por volta da uma, e o velho Princess estava marcado pra
sair por volta das duas. Quando o eclipse começasse, umas quatro e meia,
os primeiros dois ou três barris de cerveja provavelmente estariam vazios.
Eu esperava encontrar Vera nervosa e prestes a pular da própria pele,
mas às vezes acho que ela tinha começado a encarar a possibilidade de me
surpreender como uma carreira. Estava usando um troço vermelho e
branco esvoaçante que pra mim parecia mais uma capa do que um vestido,
acho que chamam de túnica, e tinha prendido o cabelo em um rabo de
cavalo simples que ficava longe dos penteados de cinquenta pratas que ela
costumava usar na época.
Ficou andando em volta da mesa comprida do bufê que foi montada no
quintal perto do roseiral, conversando e rindo com todos os amigos, a
maioria de Baltimore, a julgar pela aparência e pelo som. Mas, naquele dia,
estava diferente do que tinha estado durante a semana antes do eclipse.
Lembra que eu falei que ela ficava voando como um jato? No dia do eclipse,
estava mais pra borboleta voando entre as plantas, e a risada dela não
estava tão estridente nem tão alta.
Vera me viu levando uma travessa de ovos mexidos e correu pra me dar
instruções, estava andando como nos dias anteriores — como se preferisse
estar correndo —, e o sorriso ficou no rosto dela. Pensei: Ela está feliz, só
isso. Vera aceitou que os filhos não vêm e decidiu que pode ser feliz mesmo
assim. E era isso… a não ser que você a conhecesse, e eu sabia como era
raro Vera Donovan ficar feliz. Vou te contar uma coisa, Andy: eu convivi
com aquela mulher por mais quase trinta anos, mas acho que nunca mais a
vi feliz de verdade de novo. Contente, sim, e resignada, mas feliz? Radiante
e feliz, como uma borboleta voando por um campo de flores em uma tarde
quente de verão? Não.
“Dolores!”, chamou ela. “Dolores Claiborne!”
Só me dei conta bem depois de que ela tinha me chamado pelo meu
nome de solteira, apesar de Joe ainda estar vivo e bem naquela manhã, e de
ela nunca ter feito aquilo antes. Quando eu percebi, tremi toda, do jeito
como acontece quando um ganso passa pelo local onde vai ser sua cova um
dia.
“Bom dia, Vera. Sinto muito que o dia esteja tão cinzento”, falei.
Ela olhou para o céu, que estava com nuvens baixas e úmidas de verão, e
sorriu.
“O sol vai sair até as três da tarde.”
“Pelo jeito como você está falando, parece até que mandou uma ordem
pra ele.”
Eu só estava brincando, claro, mas ela assentiu com seriedade e disse:
“Sim, foi isso mesmo que eu fiz. Agora corre até a cozinha, Dolores, e vê
por que aquele banqueteiro idiota não trouxe um bule de café fresco ainda.”
Fui fazer o que ela pediu, mas antes de dar quatro passos na direção da
cozinha, ela me chamou como tinha feito dois dias antes, quando me disse
que às vezes uma mulher tem que ser muito filha da puta pra sobreviver.
Eu me virei achando que ela ia me dizer a mesma coisa de novo. Mas não
disse. Estava ali, com o lindo vestido vermelho e branco, as mãos nos
quadris e aquele rabo de cavalo caído no ombro, parecendo não ter mais de
vinte e um anos naquela luz branca da manhã.
“Sol por volta das três, Dolores! Você vai ver só se não estou certa!”,
exclamou ela.
O bufê acabou às onze, e eu e as meninas estávamos com a cozinha só
pra nós ao meio-dia, o banqueteiro e o pessoal dele já no Island Princess pra
começar a preparar o Segundo Ato. A própria Vera saiu bem tarde, por
volta de meio-dia e quinze, levando os últimos três ou quatro do grupo pra
doca no velho Ford Ranch Wagon que tinha na ilha. Fiquei lavando louça
até uma hora mais ou menos e falei pra Gail Lavesque, que era mais ou
menos minha ajudante imediata naquele dia, que estava com um pouco de
dor de cabeça e enjoada, e que ia pra casa já que o pior da bagunça estava
resolvido. Na saída, Karen Jolander me abraçou e me agradeceu. Estava
chorando de novo. Juro por Deus, aquela garota nunca parou de vazar pelos
olhos em todos os anos que eu a conheci.
“Eu não sei quem anda conversando com você, Karen, mas você não tem
nada que me agradecer. Eu não fiz nadinha”, falei.
“Ninguém me disse nada, mas eu sei que foi você, dona St. George. Mais
ninguém ousa falar com o dragão velho”, disse ela.
Dei um beijo na bochecha dela e falei que ela não teria nada com que se
preocupar desde que não deixasse mais nenhum prato cair. E fui pra casa.
Eu me lembro de tudo que aconteceu, Andy, tudo, mas a partir do
momento em que saí do terreno da Vera e entrei na Center Drive, é como
me lembrar de coisas que aconteceram no sonho mais brilhante e mais
aparentemente real que você já teve na vida. Ficava pensando eu vou pra
casa matar o meu marido, eu vou pra casa matar o meu marido, como se
pudesse enfiar na cabeça como quando se martela um prego em madeira
grossa como teca ou mogno, se ao menos eu continuasse por tempo
suficiente. Mas, ao olhar pra trás, acho que estava na minha cabeça o tempo
todo. Era o meu coração que não conseguia entender.
Apesar de ser só por volta da uma e quinze quando cheguei ao vilarejo, e
o começo do eclipse fosse apenas mais de três horas mais tarde, as ruas
estavam tão vazias que foi sinistro. Aquilo me fez pensar naquela
cidadezinha na parte sul do estado, onde dizem que não mora ninguém. Aí
olhei para o terraço do The Harborside e foi mais sinistro ainda. Já devia ter
umas cem pessoas ou mais lá em cima, andando e observando o céu como
fazendeiros na época do plantio. Olhei pra doca e vi o Princess lá, a prancha
posicionada e o convés cheio de gente em vez de carros. Estavam andando
com drinques nas mãos, como em um coquetel a céu aberto. A doca em si
estava cheia de gente, e devia haver uns quinhentos barquinhos, mais do
que eu já tinha visto lá de uma vez só, pelo menos, já no mar, ancorados à
espera. Parecia que todo mundo que você visse, fosse no telhado do hotel
ou na doca da cidade ou no Princess, usava óculos escuros e segurava um
visor de eclipse de vidro escuro ou uma caixa refletora. Nunca houve um
dia assim na ilha, nem antes nem depois, e mesmo que eu não tivesse em
mente o que eu tinha, acho que teria parecido um sonho pra mim.
A loja de bebidas estava aberta, com ou sem eclipse. Imagino que esse
buraco funcione como sempre mesmo na manhã do apocalipse. Parei,
comprei uma garrafa de Johnny Walker Red e andei pela East Lane até em
casa. Dei a garrafa para Joe assim que cheguei. Não enrolei nem fiz nada, só
coloquei no colo dele. Entrei e peguei a sacola que Vera havia me dado,
com os visores de eclipse e as caixas refletoras dentro. Quando voltei pra
varanda, ele segurava a garrafa erguida pra ver a cor.
“Você vai beber ou só admirar?”, perguntei.
Ele me olhou com uma certa desconfiança e disse:
“Que diabos é isso, Dolores?”
“É um presente pra comemorar o eclipse. Se não quiser, é só jogar pelo
ralo.”
Fiz que ia pegar a garrafa, e ele a puxou de volta rapidinho.
“Você anda me dando um montão de presentes ultimamente. A gente
não pode bancar isso, com ou sem eclipse.”
Mas isso não o impediu de pegar o canivete e cortar o lacre; não pareceu
nem fazer com que ele fosse mais devagar.
“Bom, pra falar a verdade, não é só o eclipse”, falei. “É que eu ando me
sentindo tão bem e aliviada que quis compartilhar um pouco da minha
felicidade. E como reparei que boa parte do que faz você feliz sai de uma
garrafa…”
Eu o vi tirar a tampa e servir uma dose. A mão dele tremia um pouco, e
não achei ruim. Quanto pior Joe estivesse, mais chances eu teria.
“O que aconteceu pra você se sentir bem? Alguém inventou uma pílula
pra curar feiura?”, perguntou ele.
“Que coisa cruel pra se dizer pra alguém que acabou de comprar uma
garrafa de uísque bom pra você”, falei. “Talvez eu devesse mesmo pegar de
volta.”
Estendi a mão pra garrafa de novo, e ele a puxou de volta outra vez.
“Nem sonha”, retrucou ele.
“Então seja legal. O que aconteceu com toda a gratidão que você deveria
estar aprendendo no seu aa?”
Ele nem ligou para o comentário, só continuou me olhando como um
vendedor tentando decidir se o cliente havia entregado pra ele uma nota de
dez falsa.
“O que te fez se sentir tão bem?”, perguntou ele de novo. “São os
moleques, né? Eles estarem fora de casa.”
“Não, eu já estou com saudade”, falei, e era verdade.
“É a sua cara”, disse ele, e bebeu o uísque. “Então o que é?”
“Te conto depois”, falei e fiz menção de me levantar.
Ele segurou o meu braço e disse:
“Conta agora, Dolores. Você sabe que eu não gosto quando você é
abusada.”
Olhei pra ele e falei:
“É melhor você tirar a mão de mim, senão essa garrafa de birita cara vai
acabar quebrada na sua cabeça. Não quero brigar com você, Joe,
principalmente hoje. Comprei salame, queijo suíço e biscoito de água e
sal.”
“Biscoito de água e sal! Meu Deus do céu, mulher!”, exclamou ele.
“Deixa pra lá. Vou preparar uma travessa de hors d’oeuvres tão boa
quanto as que os convidados da Vera vão comer na balsa.”
“Comida chique assim me dá caganeira. Deixa os horrores deles pra lá.
Faz um sanduíche pra mim.”
“Tudo bem. Vou fazer”, concordei.
Ele estava olhando para o mar nesse momento, provavelmente porque
eu mencionei a balsa, com o lábio inferior projetado daquele jeito feio que
ele fazia. Havia mais barcos lá do que nunca, e me parecia que o céu estava
um pouco mais aberto.
“Olha só pra eles!”, disse Joe com aquele jeito de desprezo típico, o que o
filho mais novo estava tentando tanto copiar. “Não vai acontecer nada que
seja muito diferente de uma nuvem passando na frente do sol, e está todo
mundo quase que cagando na calça. Espero que chova! Espero que caia
uma chuva danada e afogue aquela piranha metida pra quem você trabalha
junto com todo o resto!”
“Esse é o meu Joe”, falei. “Sempre alegre, sempre caridoso.”
Ele me olhou, ainda segurando aquela garrafa de uísque junto ao peito
como um urso com uma colmeia.
“O que, em nome de Deus, você está resmungando mulher?”
“Nada”, falei. “Vou lá dentro preparar a comida, um sanduíche pra você e
uns hors d’oeuvres pra mim. Aí, vamos nos sentar e beber um pouco e ver o
eclipse. Vera mandou um visor e uma caixa de refletir aí pra cada um de
nós. Quando acabar, vou te contar o que me deixou tão feliz. É surpresa.”
“Eu não gosto de surpresa porra nenhuma.”
“Eu sei que não. Mas vai adorar essa, Joe. Você nunca imaginaria, nem
em mil anos.”
Fui pra cozinha, pra ele poder começar pra valer a garrafa que eu tinha
comprado na loja de bebidas. Queria que Joe apreciasse, queria mesmo.
Afinal, era o último álcool que ele beberia. E nem precisaria do aa pra ficar
longe. Não no lugar pra onde ele ia.
Aquela foi a tarde mais longa da minha vida, e a mais estranha. Ali
estava ele, sentado na cadeira de balanço na varanda, segurando o jornal
em uma das mãos e a bebida na outra, reclamando comigo pela janela
aberta da cozinha sobre alguma coisa que os Democratas estavam tentando
fazer em Augusta. Tinha esquecido sobre tentar descobrir o que estava me
fazendo feliz, e sobre o eclipse. Eu estava na cozinha fazendo um sanduíche
pra ele, cantarolando uma música e pensando: Capricha, Dolores. Coloca
aquela cebola roxa que ele adora e mostarda pra deixar meio picante. Capricha,
porque é a última coisa que ele vai comer.
De onde eu estava, dava pra olhar na direção do barracão e ver a pedra
branca e o começo dos arbustos. O lenço que eu tinha amarrado em cima
de um dos arbustos ainda estava lá; eu também via isso. Ficava indo pra lá e
pra cá na brisa. Cada vez que balançava, eu pensava naquela tampa
esponjosa logo embaixo.
Lembro como os pássaros cantaram naquela tarde e que eu ouvi algumas
pessoas no mar gritando umas pras outras, as vozes baixas e distantes.
Pareciam vozes no rádio. Até lembro o que estava cantarolando: “Amazing
Grace! How sweet the sound”. Continuei cantarolando enquanto preparava
os meus biscoitinhos com queijo (estava com a mesma vontade de comê-
los quanto uma galinha quer uma bandeira, mas não queria Joe se
perguntando por que eu também não estava comendo).
Devia ser umas duas e quinze quando voltei pra varanda com a bandeja
de comida equilibrada em uma das mãos como uma garçonete e a sacola
que Vera tinha me dado na outra. O céu ainda estava nublado, mas dava pra
ver que o dia estava mesmo mais claro.
A comida foi boa, no fim das contas. Joe não era dado a elogios, mas vi
pela forma como deixou o jornal de lado e olhou para o sanduíche
enquanto comia que estava gostando. Pensei em uma coisa que eu tinha
lido em um livro ou visto em um filme: “O condenado fez uma lauta
refeição”. Quando enfiei isso na cabeça, não consegui me livrar da porcaria
do pensamento.
Mas isso não me impediu de traçar o meu lanchinho; quando comecei,
continuei até todos os biscoitinhos com queijo terem acabado, e tomei uma
garrafa inteira de Pepsi. Uma ou duas vezes, me peguei pensando se a
maioria dos carrascos tem bom apetite no dia de fazer o trabalho. É
engraçado o que passa na cabeça de uma pessoa quando está tomando
coragem pra fazer alguma coisa, não é?
O sol apareceu no meio das nuvens na hora que estávamos terminando.
Pensei no que Vera havia me dito naquela manhã, olhei para o relógio e
sorri. Eram três horas, em ponto. No mesmo instante, Dave Pelletier, o cara
que entregava a correspondência na ilha naquela época, voltou dirigindo
pra cidade com o pé fundo no acelerador e deixando uma nuvem de poeira
ao passar. Só voltei a ver carros na East Lane bem depois de escurecer.
Eu me inclinei pra apoiar os pratos e a garrafa vazia de refrigerante na
bandeja, e antes que me levantasse, Joe fez algo que não fazia havia anos:
botou uma das mãos na minha nuca e me deu um beijo. Já tive melhores; o
bafo dele era de puro álcool, cebola e salame, e ele não tinha se barbeado,
mas era um beijo mesmo assim, e não houve nada de cruel, nem meia-
boca, nem suave. Foi só um beijo gentil, e eu não conseguia lembrar a
última vez que ele havia me dado um. Fechei os olhos e permiti. Eu me
lembro disto: de fechar os olhos e sentir os lábios dele nos meus e o sol na
minha testa. Um tão caloroso e gostoso quanto o outro.
“Até que isso não foi ruim, Dolores”, disse ele.
Era um elogio e tanto vindo de Joe.
Por um segundo, meio que hesitei. Não vou chegar aqui e dizer que não.
Foi um segundo em que não foi Joe botando as mãos em Selena que eu vi,
mas a testa dele na sala de estudos em 1945, como eu via isso e queria que
ele me beijasse da mesma forma que ele estava me beijando naquela hora;
como eu pensei: Se ele me beijasse, eu levaria a mão a tocar a pele da testa
dele… pra ver se é lisa como parece.
Levantei a mão e toquei na testa dele nessa hora, como havia sonhado
em fazer tantos anos antes, quando eu não passava de uma garota
inexperiente, e, assim que fiz, aquele olho interno se abriu mais arregalado
do que nunca. O que vi foi que ele continuaria se eu o deixasse vivo, não
apenas pra ter o que queria com Selena, ou gastando o dinheiro que tinha
roubado das poupanças dos filhos, mas afetando-os: diminuindo Joe Junior
pelas notas boas e pelo amor por história; dando tapinhas nas costas de
Pete sempre que ele chamava alguém de judeuzinho ou dizia que um dos
colegas de turma era um crioulo preguiçoso; trabalhando neles, sem parar.
Continuaria até os meus filhos ou quebrarem, ou estragarem, e no final
morreria e nos deixaria sem nada além de contas e um buraco onde o
enterrar.
Bom, eu tinha um buraco pra ele, um com quarenta palmos em vez de
sete, com paredes de pedra natural em vez de terra. Pode apostar que eu
tinha um buraco pra ele, e um beijo depois de três anos, ou talvez até cinco,
não ia mudar nada. Nem tocar na testa dele, que tinha sido bem mais a
causa de todo o meu problema do que a bingolinha dele… mas toquei nela
de novo, mesmo assim; passei um dedo e me lembrei de quando ele me
beijou no pátio do The Samoset Inn enquanto a banda lá dentro tocava
“Moonlight Cocktail” e que eu tinha sentido o cheiro da colônia do pai dele
nas bochechas quando ele fez isso.
E aí, endureci o coração.
“Que bom”, falei e peguei a bandeja de novo. “Por que não dá um jeito de
entender como a gente pode usar esses visores e essas caixas enquanto eu
lavo a louça?”
“Estou pouco me fodendo para o que aquela piranha rica te deu”, disse
ele, “e estou pouco me fodendo pra essa merda de eclipse. Já vi escuridão.
Acontece toda noite.”
“Tudo bem. Faz o que quiser.”
Quando cheguei à porta, ele disse:
“Quem sabe a gente pode fazer umas coisinhas depois. O que você
acharia disso, Dee?”
“Pode ser”, falei, o tempo todo pensando que ia ter muitas coisinhas
mesmo.
Antes de escurecer pela segunda vez naquele dia, Joe St. George teria
feito mais coisinhas do que já tinha sonhado.
Fiquei com o olho bom nele enquanto lavava a pouca louça na frente da
pia. Ele não tinha feito nada na cama além de dormir, roncar e peidar em
anos, e acho que sabia tão bem quanto eu que a bebida tinha tanto a ver
com isso quanto a minha cara feia… até mais. Fiquei com medo de que a
ideia de afogar o ganso mais tarde fosse fazer com que ele botasse a tampa
da garrafa de Johnny Walker de volta, mas não dei esse azar. Para Joe, foder
(perdoe a linguagem, Nancy) era só uma fantasia, como me beijar havia
sido. A garrafa era bem mais real pra ele. A garrafa estava bem ali, ao seu
alcance. Ele havia tirado um dos visores de eclipse da sacola e o segurava
pela alça, virando pra lá e pra cá, semicerrando os olhos para o sol através
dele. Joe me lembrou uma coisa que vi na televisão uma vez: um
chimpanzé tentando sintonizar um rádio. Aí, ele colocou de lado e se
serviu de mais bebida.
Quando voltei pra varanda com a cesta de costura, percebi que ele já
estava ficando com aquela cara de coruja, com um vermelho em volta dos
olhos, que aparecia quando ele estava passando de moderadamente
embriagado pra radicalmente bêbado. Joe me olhou com intensidade
mesmo assim, sem dúvida se perguntando se eu ia pegar no pé dele.
“Não se incomode comigo”, falei, doce como uma fatia de torta. “Só vou
ficar aqui sentada costurando um pouco pra esperar o eclipse. Que bom
que o sol saiu, né?”
“Meu Deus, Dolores, você deve achar que é o meu aniversário”, disse ele,
e a voz havia começado a ficar rouca e arrastada.
“Bom… algo assim, talvez”, falei, e comecei a costurar um rasgo em uma
calça jeans de Pete.
A hora e meia seguinte passou mais devagar do que qualquer outro
período desde que eu era garotinha e a minha tia Cloris prometeu me levar
pra ver o meu primeiro filme em Ellsworth. Terminei a calça de Pete,
costurei remendos em duas de Joe Junior (mesmo naquela época, esse
garoto não usava jeans; acho que uma parte dele já havia decidido que ele
ia ser político quando crescesse) e remendei duas saias de Selena. A última
coisa que fiz foi costurar um zíper novo em uma das duas ou três calças
boas de Joe. Eram velhas, mas não estavam totalmente surradas. Eu me
lembro de pensar que ele seria enterrado com aquilo.
Quando eu estava começando a achar que não ia acontecer nunca,
reparei que a luz nas minhas mãos parecia um pouco mais fraca.
“Dolores. Acho que é isso que você e aqueles outros idiotas estão
esperando”, disse Joe.
“É”, falei. “Parece.”
A luz no pátio havia passado daquele amarelo forte da tarde que tem em
julho pra uma espécie de rosado pálido, e a sombra da casa na entrada de
carros tinha assumido um aspecto fino engraçado que eu nunca tinha visto
e nunca mais vi.
Peguei uma das caixas refletoras na sacola, segurei do jeito que Vera
tinha me mostrado umas cem vezes na semana anterior e, quando fiz isso,
tive um pensamento doido: aquela garotinha está fazendo isso também,
pensei. Aquela sentada no colo do pai. Ela está fazendo a mesma coisa.
Não sabia o que esse pensamento queria dizer, Andy, e não sei direito
agora, mas estou contando mesmo assim… porque decidi que ia contar
tudo e porque pensei nela de novo depois. Só que, no segundo seguinte, eu
não estava só pensando nela; estava vendo, do jeito que se vê pessoas nos
sonhos, ou do jeito que eu acho que os profetas do Velho Testamento
deviam ter enxergado nas visões: uma garotinha de uns dez anos, com a
caixa refletora nas mãos. Usava um vestido curto com listras vermelhas e
amarelas, daqueles com alças em vez de mangas, sabe? E batom da cor de
bala. O cabelo era louro e estava preso atrás, como se ela quisesse parecer
mais velha do que era. Vi outra coisa também, uma que me fez pensar em
Joe: a mão do pai dela estava na perna dela, bem alto. Mais alto do que
deveria estar, talvez. E aí, sumiu.
“Dolores? Você está bem?”, perguntou Joe.
“Como assim? Claro que estou”, respondi.
“Você fez uma cara engraçada por um minuto.”
“É o eclipse”, falei, e acho mesmo que foi isso, Andy, mas também acho
que aquela garotinha que eu vi naquela hora e de novo depois era uma
garotinha real, e que ela estava sentada com o pai em algum lugar no
caminho do eclipse na mesma hora que eu estava sentada na varanda com
Joe.
Olhei pra caixa e vi um solzinho branco, tão intenso que foi como olhar
pra uma moeda de cinquenta centavos em chamas, com uma curva escura
em um lado. Olhei por um tempo e depois para Joe. Ele estava segurando
um dos visores e olhando por ele.
“Caramba. Está desaparecendo mesmo”, disse ele.
Os grilos começaram a cricrilar na grama nessa hora; acho que tinham
decidido que o pôr do sol seria mais cedo naquele dia e que era hora de
botar a boca no mundo. Olhei para o mar, pra todos os barcos, e vi que a
água onde flutuavam estava de um azul mais escuro; havia algo de sinistro
e maravilhoso ao mesmo tempo. O meu cérebro ficava tentando acreditar
que todos aqueles barcos debaixo daquele céu de verão escuro e estranho
eram só uma alucinação.
Dei uma olhada no relógio e vi que faltavam dez pras cinco. Isso
significava que por uma hora, mais ou menos, todo mundo na ilha só
estaria pensando nisso e vendo isso. A East Lane estava completamente
vazia, os nossos vizinhos estavam no Island Princess ou no telhado do hotel,
e, se eu de fato pretendia acabar com ele, a hora era aquela. As minhas
entranhas pareciam enroladas como uma mola, e eu não conseguia tirar da
cabeça aquela imagem que havia visto, a garotinha sentada no colo do pai,
mas não podia deixar nada disso me impedir ou mesmo me distrair, nem
por um minuto que fosse. Sabia que, se não agisse naquela hora, não agiria
nunca.
Deixei a caixa refletora ao lado da costura e falei:
“Joe.”
“O quê?”, perguntou ele.
Ele tinha falado mal do eclipse antes, mas depois que começou, parecia
que não conseguia tirar os olhos do céu. A cabeça estava inclinada pra trás
e o visor de eclipse pelo qual estava olhando lançava uma daquelas sombras
engraçadas e meio desbotadas na cara dele.
“Está na hora da surpresa”, falei.
“Que surpresa?”, perguntou Joe.
Quando ele baixou o visor de eclipse, que era só uma camada dupla de
vidro polarizado especial em uma moldura, pra me olhar, vi que não era
fascinação pelo eclipse, afinal, ou não só isso. Estava quase totalmente
embriagado e tão grogue que fiquei com um pouco de medo. Se ele não
entendesse o que eu estava dizendo, o meu plano iria por água abaixo antes
mesmo de começar. E o que eu faria? Não sei. A única coisa que eu sabia
me deu um medo danado: eu não ia dar pra trás. Por mais que desse errado
ou o que quer que acontecesse depois, eu não voltaria atrás.
Ele estendeu a mão, me segurou pelo ombro e me sacudiu.
“Em nome de Deus, mulher, do que você está falando?”, disse ele.
“Sabe o dinheiro nas poupanças das crianças?”, perguntei.
Ele semicerrou os olhos um pouco, e percebi que ele não estava nem de
longe tão bêbado quanto pensei. Também entendi outra coisa: aquele beijo
não tinha mudado nada. Qualquer um pode dar um beijo, afinal; foi com
um beijo que Judas Iscariotes mostrou aos romanos quem era Jesus.
“O que tem?”, perguntou ele.
“Você pegou.”
“Porra nenhuma!”
“Ah, pegou. Depois que descobri que você estava se metendo com a
Selena, eu fui ao banco. Pretendia tirar o dinheiro, pegar as crianças e ir
pra longe de você.”
O queixo dele caiu, e por alguns segundos Joe só me olhou, boquiaberto.
Em seguida, começou a rir; encostou na cadeira e soltou as risadas
enquanto o dia ia ficando mais escuro.
“Bom, você foi trouxa, né?”, disse ele, e então se serviu de mais uísque e
olhou para o céu pelo visor de novo. Dessa vez, eu nem conseguia ver
direito a sombra no rosto dele. “Já foi metade, Dolores! Já foi metade, talvez
até um pouco mais!”
Olhei pra minha caixa refletora e vi que ele estava certo; só metade
daquela moeda de cinquenta centavos restava, e havia mais sumindo a cada
momento.
“É”, falei. “Já foi metade mesmo. Quanto ao dinheiro, Joe…”
“Esquece isso”, disse ele. “Não deixe a sua cabecinha pontuda se
preocupar com isso. O dinheiro está ótimo.”
“Ah, eu não estou preocupada”, falei. “Nem um pouco. Mas o jeito como
você me enganou… isso mexeu com a minha cabeça.”
Ele assentiu, um tanto solene e pensativo, como se pra mostrar que
entendia e até se solidarizava, mas não conseguiu sustentar a expressão.
Em pouco tempo, caiu na gargalhada de novo, como um garotinho sendo
repreendido por um professor do qual não tem medo nenhum. Riu tanto
que borrifou uma nuvenzinha de baba no ar na frente da boca.
“Desculpa, Dolores”, disse ele, quando conseguiu falar de novo. “Eu não
queria rir, mas eu preguei uma peça e tanto em você, né?”
“Ah, sim”, concordei.
Era a pura verdade, afinal.
“Te enganei direitinho”, disse ele, rindo e balançando a cabeça como se
faz quando alguém conta uma grande piada.
“É, mas você sabe o que falam por aí.”
“Não sei”, disse ele. Ele largou o visor de eclipse no colo e se virou pra
olhar pra mim. Tinha rido tanto que tinha lágrimas naqueles olhinhos
vermelhos de porco. “É você que tem um dito pra cada ocasião, Dolores. O
que dizem sobre maridos que finalmente dão uma lição nas esposas
intrometidas?”
“‘Quem ri por último ri melhor’. Você riu da minha cara na história da
Selena e riu de novo por causa do dinheiro, mas agora acho que é a minha
vez.”
“Talvez seja, talvez não, mas, se você está preocupada de eu ter gastado o
dinheiro, pode parar, porque…”
Eu o interrompi aí.
“Eu não estou preocupada. Já falei. Não estou nem um pouco
preocupada.”
Ele me olhou intensamente nessa hora, Andy, o sorriso murchando um
pouco.
“Você está com aquela cara de esperta de novo. A que eu não gosto
muito”, disse ele.
“Caguei”, retruquei.
Ele me olhou por muito tempo, tentando entender o que se passava na
minha cabeça, mas acho que era tão misterioso pra ele quanto em qualquer
outra ocasião. Ele projetou o lábio de novo e suspirou com tanta
intensidade que soprou a mecha de cabelo que tinha caído na testa.
“A maioria das mulheres não entende nada de dinheiro, Dolores, e você
não é exceção. Eu depositei tudo em uma única conta, foi só isso… pra
render mais. Não falei porque não queria ter que ficar ouvindo as suas
baboseiras ignorantes. Bom, tive que ouvir de qualquer jeito, como sempre,
mas tem um limite, né?”
Ele ergueu o visor de eclipse de novo pra mostrar que o assunto estava
encerrado.
“Uma conta no seu nome”, completei.
“E daí?”, perguntou ele. Àquela altura, parecia que a gente estava no fim
do crepúsculo, e as árvores tinham começado a sumir no horizonte. Eu
ouvia um bacurau cantando atrás da casa, e um noitibó em algum outro
lugar. Pelo jeito a temperatura tinha começado a cair. Me deu uma
sensação estranha… de estar vivendo em um sonho que de alguma forma
virou realidade. “Por que não deveria ser no meu nome? Eu sou o pai deles,
né?”
“Bom, o seu sangue está neles. Se isso torna você o pai, então acho que
você é.”
Eu o observei tentando entender se valia a pena responder e reclamar
daquilo e então decidir que não.
“Você não quer mais falar sobre isso, Dolores. Estou avisando”, disse ele.
“Bom, talvez só mais um pouco”, falei, sorrindo. “Você esqueceu a
surpresa, né?”
Ele me olhou, desconfiado de novo.
“De que porra você está falando, Dolores?”
“Bom, eu fui falar com o homem responsável pelo departamento de
poupança no Coastal Northern, em Jonesport. Um homem simpático
chamado sr. Pease. Expliquei o que aconteceu, e ele ficou bem chateado.
Principalmente quando mostrei que os documentos originais não tinham
sumido, como você falou pra ele.”
Foi nessa hora que Joe perdeu o pouco interesse que tinha no eclipse.
Ficou naquela cadeira de balanço velha de merda, me encarando com os
olhos arregalados. Havia um trovão na testa dele e os lábios estavam
apertados em uma linha fina como uma cicatriz. Ele havia soltado o visor
no colo e as mãos se abriam e fechavam bem devagar.
“Acontece que você não podia ter feito aquilo”, falei pra ele. “O sr. Pease
verificou se o dinheiro ainda estava no banco. Quando viu que estava, nós
dois demos um grande suspiro de alívio. Ele me perguntou se eu queria
chamar a polícia e contar o que tinha acontecido. Pela cara dele, percebi
que ele estava esperando que eu dissesse não. Perguntei se ele podia passar
o dinheiro pra mim. Ele consultou um livro e disse que podia. E falei
‘Vamos fazer isso, então’. E ele fez. É por isso que eu não estou mais
preocupada com o dinheiro das crianças, Joe. Eu estou com a grana, e não
você. Não é uma surpresa e tanto?”
“Mentira!”, gritou Joe pra mim, e se levantou tão rápido que a cadeira
quase tombou. O visor de eclipse caiu do colo dele e se espatifou no chão
da varanda. Queria ter uma foto da cara dele nessa hora; foi uma facada nas
costas mesmo, e enfiada até o cabo. A expressão na cara do filho de uma
quenga imunda quase fez valer tudo pelo que eu tinha passado desde o dia
na balsa com Selena. “Eles não podem fazer isso!”, gritou ele. “Você não
pode tocar em um centavo daquela grana, não pode nem olhar a porra do
documento…”
“Ah, não? Então como é que eu sei que você já gastou trezentos dólares?
Fico agradecida de não ter sido mais, mas fico fula da vida sempre que
penso nisso. Você não passa de um ladrão, Joe St. George. Um ladrão tão
baixo que roubaria até dos próprios filhos!”
O rosto dele ficou branco como o de um cadáver na penumbra. Só os
olhos estavam com vida, e ardiam de ódio. As mãos estavam na frente do
corpo, se abrindo e se fechando. Olhei pra baixo por um segundo e vi o sol,
já menos da metade, só um crescente gordo, refletido nos pedaços
quebrados de vidro escuro caídos aos pés dele. E olhei pra ele de novo. Não
seria bom eu afastar os olhos de Joe por muito tempo, não com ele naquele
humor.
“Com o que você gastou os trezentos, Joe? Prostitutas? Pôquer? Um
pouco com cada? Eu sei que não foi outra lata-velha porque não tem
nenhuma nova lá nos fundos.”
Ele não disse nada, só ficou parado com as mãos se abrindo e fechando, e
atrás dele vi que os primeiros vagalumes espalhavam a luz pelo quintal. Os
barcos no mar já tinham virado fantasmas, e pensei em Vera. Pensei que, se
ela não estivesse ainda no sétimo céu, estaria quase lá. Não que eu tivesse
que pensar em Vera; o meu foco estava em Joe. Queria botá-lo em
movimento, e achava que mais um cutucão serviria.
“No fim das contas, eu nem ligo com o que você gastou”, falei. “Estou
com o resto e está bom pra mim. Você pode ir se foder… se conseguir fazer
essa vara mole ficar de pé, claro.”
Joe tropeçou pela varanda, esmagando os pedaços de visor de eclipse
com os sapatos, e me segurou pelos dois braços. Eu poderia ter fugido, mas
não quis. Não naquela hora.
“Olha essa boca abusada”, sussurrou ele, soprando hálito de uísque na
minha cara. “Se você não cuidar dela, vou acabar tendo que cuidar.”
“O sr. Pease queria que eu depositasse o dinheiro de volta no banco, mas
eu não quis. Pensei que, se você conseguiu tirar da conta das crianças,
poderia dar um jeito de tirar da minha também. Aí ele quis me dar um
cheque, mas eu tive medo de que, se você descobrisse o que eu estava
fazendo antes que eu quisesse que você descobrisse, você pudesse impedir o
pagamento. Então falei para o sr. Pease me dar em dinheiro vivo. Ele não
gostou, mas, no final, me deu, e agora está comigo, cada centavo, e eu
guardei em um lugar seguro.”
Nessa hora, Joe me pegou pela garganta. Eu tinha quase certeza de que
ele faria isso, e estava com medo, mas queria também. Faria com que ele
acreditasse bem mais na última coisa que eu tinha a dizer quando eu
finalmente a dissesse. Mas isso nem era o mais importante. Ele me pegar
pelo pescoço assim faria com que parecesse mais legítima defesa, de
alguma forma. Isso era o mais importante. E era legítima defesa,
independentemente do que a lei achasse; eu sei porque eu estava lá e a lei
não estava. No fim das contas, eu estava me defendendo e defendendo os
meus filhos.
Ele cortou o fluxo de ar e me sacudiu, gritando. Não me lembro de tudo;
acho que ele deve ter batido com a minha cabeça em um dos suportes da
varanda uma ou duas vezes. Falou que eu era uma filha da puta escrota, que
me mataria se eu não devolvesse o dinheiro, que aquele dinheiro era dele,
umas besteiras assim. Comecei a ficar com medo de ele realmente me
matar antes de eu poder dizer o que ele queria ouvir. O quintal estava bem
mais escuro e parecia cheio daquelas luzinhas piscantes, como se os cem ou
duzentos vagalumes que eu tinha visto antes tivessem recebido a
companhia de uns dez mil mais. E a voz dele soou tão distante que eu achei
que tudo tinha dado errado, que eu tinha caído no poço no lugar dele.
Joe finalmente me soltou. Tentei ficar de pé, mas as minhas pernas não
me sustentaram. Tentei cair de volta na cadeira, mas ele tinha puxado pra
longe, e a minha bunda só raspou na borda. Caí no chão da varanda ao lado
dos cacos de vidro que eram tudo que havia restado do visor de eclipse
dele. Havia um pedaço grande, com um crescente de sol brilhando nele
como uma pedra preciosa. Mexi a mão pra pegá-lo, mas parei. Não ia cortá-
lo, nem que ele me desse oportunidade. Não podia cortá-lo. Um corte
assim, de vidro, poderia não parecer certo depois. Isso pra você ver como
eu estava pensando… sem muita dúvida de que era ou não primeiro grau,
né, Andy? Em vez do vidro, peguei a minha caixa refletora, que era feita de
madeira pesada. Eu poderia dizer que estava pensando que bater nele com
aquilo serviria se precisasse, mas não seria verdade. Naquela hora, eu não
estava pensando muito.
Mas eu estava tossindo, tanto que fiquei impressionada de não estar
saindo sangue com cuspe. Sentia a garganta pegando fogo.
Ele me puxou pra ficar de pé com tanta força que uma das alças do meu
vestido anágua arrebentou, depois pegou a minha nuca na dobra do braço e
me puxou até estarmos tão perto a ponto de beijar… não que ele fosse
voltar a me beijar.
“Eu falei o que aconteceria se você não parasse de ser abusada comigo”,
disse ele. Os olhos estavam úmidos e estranhos, como se Joe tivesse
chorado, mas o que me assustou neles foi a forma como ele parecia estar
olhando através de mim, como se eu não estivesse mais ali. “Falei um
milhão de vezes. Você acredita agora, Dolores?”
“Acredito”, falei. Ele tinha machucado tanto a minha garganta que
parecia que eu estava falando com a boca cheia de lama. “Acredito, juro.”
“Diz de novo!”, gritou ele. Ainda estava com o meu pescoço preso pelo
braço e nesse momento o apertou tanto que pinçou um dos nervos lá.
Gritei. Não pude controlar; doeu demais. Isso o fez sorrir. “Diz com
sinceridade!”
“Eu acredito! Eu falei com sinceridade!”
Eu tinha planejado fingir medo, mas Joe me poupou desse trabalho; no
fim das contas, não precisei fingir nada naquele dia.
“Que bom”, disse ele. “Fico feliz de ouvir. Agora me diz onde está o
dinheiro, e é melhor que cada centavo esteja lá.”
“Está lá perto do barracão”, falei.
Não pareceu mais que eu estava falando com a boca cheia de lama; eu já
estava parecendo o Groucho Marx em You Bet Your Life. Que meio que
encaixava na situação, se é que você me entende. Aí falei que havia
guardado o dinheiro em um pote e escondido o pote no meio dos arbustos
de amoreira.
“Coisa de mulher!”, disse ele com desdém e me deu um empurrão na
direção da escada da varanda. “Bom, vamos lá. Vamos buscar.”
Desci os degraus e percorri a lateral da casa com Joe logo atrás. Já estava
quase tão escuro quanto fica de noite, e quando chegamos ao barracão, vi
uma coisa tão estranha que me fez esquecer tudo por alguns segundos.
Parei e apontei para o céu acima da área de arbustos.
“Olha, Joe! Estrelas!”, falei.
E tinha mesmo: vi o Grande Carro com a mesma clareza de uma noite de
inverno. Fiquei com o corpo todo arrepiado, mas não foi nada para Joe. Ele
me deu um empurrão tão forte que quase caí.
“Estrelas? Você vai ver muitas se não parar de enrolar, mulher. Eu
garanto.”
Comecei a andar de novo. As nossas sombras tinham desaparecido
completamente, e a pedra branca grande onde eu e Selena tínhamos nos
sentado naquele fim de tarde no ano anterior se destacava quase como um
holofote, como reparei que acontece quando a lua fica cheia. A luz não
estava como o luar, Andy. Não consigo descrever como estava, como era
sinistra e estranha, mas vai ter que servir. Sei que as distâncias entre as
coisas tinham ficado difíceis de avaliar, como acontece no luar, e que não
dava pra identificar um único arbusto de amora. Eles todos viraram uma
grande mancha com aqueles vagalumes dançando pra lá e pra cá na frente
deles.
Vera tinha me dito várias vezes que era perigoso olhar direto para o
eclipse, porque podia queimar a retina ou até cegar. Ainda assim, não
consegui resistir a virar a cabeça e dar uma olhada rápida por cima do
ombro, da mesma forma que a esposa de Ló não conseguiu resistir a olhar
uma última vez pra cidade de Sodoma. O que eu vi ficou na minha
memória. Semanas, às vezes meses inteiros se passam sem que eu pense
em Joe, mas é raro ter um dia em que eu não pense no que vi naquela tarde
quando olhei pra trás, para o céu. A esposa de Ló virou uma estátua de sal
porque não conseguiu manter os olhos à frente e o foco, e às vezes pensei
que era incrível eu não ter pagado o mesmo preço.
O eclipse ainda não era total, mas estava chegando perto. O céu em si
estava de um azul real profundo, e o que vi pairando nele acima do mar
parecia uma pupila preta grande com um véu fino de fogo espalhado em
quase toda a circunferência. Do outro lado havia um fio de sol ainda
crescente, como gotículas de ouro derretido em uma fornalha. Eu sabia que
não tinha nada que olhar pra aquilo, mas, quando olhei, parecia que não
dava pra desviar. Parecia… bom, você pode rir, mas vou dizer mesmo
assim. Parecia que aquele olho interno havia se libertado de mim de algum
jeito, que tinha flutuado para o céu e olhava pra baixo pra ver como eu ia
me sair. Mas era tão maior do que eu tinha imaginado! Tão mais preto!
Eu provavelmente teria olhado até ficar cega, só que Joe me deu outro
empurrão e me jogou na parede do barracão. Isso meio que me despertou, e
voltei a andar. Havia um ponto azul grande, do tipo que se vê depois que
alguém tira uma foto com flash, pairando na minha frente, e eu pensei: Se
você tiver queimado as retinas e tiver que olhar pra isso o resto da vida, vai ser
bem-feito, Dolores. Bem parecido com a marca que Caim teve que carregar.
Nós passamos pela pedra branca, Joe logo atrás de mim, segurando a
gola do meu vestido anágua. Senti o tecido escorregar de um lado, onde a
alça havia arrebentado. Com a escuridão e aquele ponto azul-escuro
pairando no meio das coisas, tudo pareceu torto e deslocado. O fim do
barracão não passava de uma forma escura, como se alguém tivesse pegado
uma tesoura grande e cortado um buraco em forma de telhado no céu.
Ele me empurrou na direção dos arbustos, e quando o primeiro espinho
perfurou o meu tornozelo, eu me lembrei de que daquela vez havia me
esquecido de colocar a calça jeans. Isso me fez pensar no que mais eu podia
ter esquecido, mas óbvio que era tarde pra consertar qualquer erro; eu via
aquele pedacinho de pano balançando no finzinho da luz e só tive tempo
de pensar nas tábuas embaixo. Eu me soltei da mão de Joe e corri pelos
arbustos, como quem está com o diabo nos calcanhares.
“Ah, não, sua puta!”, gritou ele, e ouvi os arbustos se quebrarem à medida
que ele corria atrás de mim.
Senti a mão dele tentar pegar a gola do vestido de novo e quase
conseguir. Eu me soltei e continuei correndo. Era difícil, porque o vestido
anágua escorregava e ficava prendendo nos arbustos. No final, cortaram
uma tira comprida dele e arrancaram carne das minhas pernas também.
Fiquei sangrando dos joelhos aos tornozelos, mas só reparei quando voltei
pra casa, e isso foi bem depois.
“Volta aqui!”, berrou ele, e dessa vez senti a mão dele no meu braço.
Eu o puxei e ele tentou agarrar o vestido, que estava voando atrás de
mim como uma cauda de vestido de noiva. Se o tecido tivesse aguentado,
talvez Joe tivesse me puxado como um peixão fisgado, mas o vestido estava
velho e puído de ter sido lavado umas duzentas ou trezentas vezes. Senti a
tira que ele havia segurado rasgar e o ouvi soltar um palavrão, alto e sem
fôlego. Ouvi os arbustos quebrando, estalando e chicoteando, mas não via
quase nada; quando entramos no meio dos arbustos, ficou mais escuro do
que no cu de uma marmota, e no final aquele lenço amarrado não ajudou
em nada. Vi a borda do poço, um brilho branco suave na escuridão na
minha frente, e pulei com toda força. Passei por pouco, e como estava de
costas pra ele, não o vi pisar em cima. Houve um grande som de
crraaaaack, e ele gritou…
Não, não foi assim.
Ele não gritou, e acho que você sabe disso tão bem quanto eu. Ele berrou
como um coelho com o pé preso em uma armadilha. Eu me virei e vi um
buracão grande no meio da tampa do poço. A cabeça de Joe estava pra fora
e ele se segurava em uma daquelas tábuas quebradas com toda força. As
mãos dele sangravam, e havia um fio de sangue descendo do canto da boca
até o queixo. Os olhos estavam do tamanho de maçanetas.
“Meu Deus, Dolores. É o poço velho. Me ajuda a sair, rápido, antes que
eu caia”, disse ele.
Fiquei parada, olhando, e depois de alguns segundos os olhos dele
mudaram. Percebi que Joe tinha compreendido o que aconteceu. Nunca
senti tanto medo quanto naquela hora, parada ali do outro lado da tampa
do poço encarando o meu marido com aquele sol preto no céu a oeste de
nós. Eu tinha esquecido a calça jeans, e ele não tinha caído direto como
deveria. Pra mim, parecia que tudo havia começado a dar errado.
“Ah. Ah, sua filha da puta.”
Então ele começou a se agarrar e se remexer pra sair.
Disse a mim mesma que eu precisava fugir, mas as minhas pernas não se
moveram. Pra onde eu iria se ele saísse? Uma coisa que descobri no dia do
eclipse: se você mora numa ilha e tenta matar alguém, é melhor fazer
direito. Se não fizer, não tem pra onde correr nem onde se esconder.
Eu ouvia as unhas dele arranharem as farpas daquela tábua velha
enquanto ele se esforçava pra sair aos poucos. Aquele som é tipo o que eu vi
quando olhei para o eclipse: algo que sempre esteve bem mais perto de
mim do que eu queria que estivesse. Às vezes eu até escuto nos meus
sonhos, só que nos sonhos Joe consegue sair e vai atrás de mim de novo, e
não foi isso que aconteceu. O que aconteceu foi que a tábua em que ele se
apoiou pra subir de repente se partiu com o peso e ele caiu. Aconteceu tão
rápido que quase foi como se Joe nunca tivesse estado lá; de repente, não
havia nada além de um quadrado cinza de madeira mole com um buraco
preto irregular no meio e vagalumes voando pra lá e pra cá por cima.
Ele gritou de novo ao cair. Ecoou pelas laterais do poço. Outra coisa em
que eu não tinha pensado: ele gritar quando caísse. Houve um baque, e ele
parou. Simplesmente parou. Do jeito que um abajur para de emitir luz se
alguém tirar da tomada.
Eu me ajoelhei, abracei o meu tronco e esperei pra ver se haveria mais.
Um tempo passou, não sei quanto, mas o que restava de luz no dia sumiu.
O eclipse total havia chegado e estava escuro como a noite. Ainda não havia
som vindo do poço, mas tinha uma brisa suave vindo de lá na minha
direção, e percebi que eu conseguia sentir o cheiro… sabe aquele cheiro de
água que às vezes vem de poços rasos? É um cheiro acobreado, úmido e não
muito bom. Senti esse cheiro e me fez tremer.
Percebi que o meu vestido estava caído quase até o sapato esquerdo.
Estava todo rasgado e em farrapos. Enfiei a mão pela gola do lado direito e
arrebentei a outra alça. Então puxei a peça toda. Estava embolando o tecido
ao meu lado e tentando pensar no melhor jeito de contornar o buraco do
poço quando de repente pensei naquela garotinha de novo, sobre a qual
falei antes, e aí a vi com a clareza do dia. Ela também estava de joelhos,
olhando debaixo da cama, e eu pensei: Ela está tão infeliz, e está sentindo
aquele mesmo cheiro. O que parece de moedas e ostras. Só que não vinha do
poço; tem alguma coisa a ver com o pai dela.
E aí, de repente, foi como se ela olhasse direto pra mim, Andy… acho
que ela me viu. E quando se voltou pra mim, entendi por que estava tão
infeliz. O pai tinha feito alguma coisa com aquela garotinha, e ela estava
tentando encobrir. Além disso, tinha percebido que, do nada, alguém
estava olhando pra ela, que uma mulher Deus sabe a quantos quilômetros
de distância, mas no caminho do eclipse, uma mulher que tinha acabado de
matar o marido, estava olhando pra ela.
Ela falou comigo, mas eu não ouvi com os ouvidos; veio das profundezas
no meio da minha cabeça.
“Quem é você?”, perguntou ela.
Não sei se eu teria respondido ou não, mas, antes que tivesse
oportunidade, um grito longo e oscilante soou no poço:
“Do-loooooooores…”
Senti o sangue congelar dentro de mim e sei que o meu coração parou
por um segundo, porque, quando começou a bater de novo, precisou
compensar com três ou quatro batimentos ao mesmo tempo. Eu segurava o
vestido anágua, mas senti os dedos relaxarem quando ouvi aquele grito, e
caiu da minha mão e ficou preso em um dos arbustos espinhentos.
“É só sua imaginação trabalhando em hora extra, Dolores”, falei pra mim
mesma. “Aquela garotinha olhando embaixo da cama pra pegar as roupas e
Joe gritando assim… você imaginou tudo. Uma foi uma alucinação que
surgiu de sentir cheiro de ar parado do poço, e a outra foi só a sua
consciência culpada. Joe está caído no fundo daquele poço com a cabeça
quebrada. Está morto e nunca mais vai incomodar você e as crianças.”
Não acreditei no começo, mas mais tempo passou e não havia mais som,
exceto uma coruja piando em algum lugar em um campo. Eu me lembro de
pensar que parecia que estava perguntando por que estava tendo que
começar o trabalho tão cedo. Uma brisa suave percorreu os arbustos e os
sacudiu. Olhei pras estrelas no céu diurno e depois para o poço de novo.
Era quase como flutuar no escuro, e o buraco no meio pelo qual Joe havia
caído parecia um olho. O dia 20 de julho de 1963 foi o dia em que vi olhos
em toda parte.
Aí a voz dele veio do poço de novo.
“Me ajuda, Do-looooooores…”
Gemi e cobri o rosto com as mãos. Não adiantava dizer a mim mesma
que aquilo era a minha imaginação, a consciência culpada ou qualquer
outra coisa diferente do que era: Joe. Pra mim, soava como se ele estivesse
chorando.
“Me ajuuuuuuda, por favooooooor… POR FAVOOOOOOOR…”, gemeu ele.
Andei aos trancos em volta do poço e voltei correndo pelo caminho que
tínhamos aberto em meio aos arbustos. Não estava em pânico, ainda não, e
vou explicar por que sei disso: parei pra pegar a caixa refletora que estava
na minha mão quando fomos pra área dos arbustos. Não conseguia me
lembrar de ter deixado cair quando corri, mas, quando a vi pendurada em
um daqueles galhos, peguei. E foi bom mesmo, considerando como as
coisas se desenrolaram com aquele maldito do dr. McAuliffe… mas isso
ainda é longe de onde estou agora. Eu parei pra pegar, essa é a questão, e
pra mim isso diz que eu ainda estava sã. Mas sentia o pânico tentando
chegar por baixo, assim como um gato tenta enfiar a pata debaixo da tampa
de uma caixa se estiver com fome e sentir cheiro de comida dentro.
Pensei em Selena, e isso me ajudou a manter o pânico longe. Consegui
imaginá-la na praia do lago Winthrop com Tanya e uns quarenta ou
cinquenta pequenos campistas, cada um com a própria caixa refletora que
haviam feito na Cabine de Artesanato, e as garotas mostrando exatamente
como usá-la pra ver o eclipse. Não foi tão clara quanto a visão que eu tive
perto do poço, a da garotinha olhando embaixo da cama atrás do short e da
camiseta, mas foi clara a ponto de eu ouvir Selena falando com os
pequenos com aquela voz lenta e gentil, acalmando os que estavam com
medo. Pensei nisso e que eu precisava estar lá pra ela e os irmãos quando os
três voltassem… e que, se eu cedesse ao pânico, provavelmente não estaria.
Tinha ido longe demais e feito demais, e não havia ninguém com quem eu
pudesse contar além de mim mesma.
Fui até o barracão e peguei a lanterna grande de Joe na mesa de trabalho.
Liguei-a, mas não funcionou; ele tinha deixado as pilhas acabarem, o que
era a cara dele. Mas deixou a gaveta de baixo da mesa cheia de pilhas novas,
porque ficávamos sem energia com frequência no inverno. Peguei seis e
tentei encaixar na lanterna. As minhas mãos tremiam tanto na primeira
vez que deixei as pilhas grandes caírem no chão e precisei tatear pra
procurar. Na segunda, consegui, mas devo ter colocado uma ou duas na
posição errada na pressa, porque a luz não acendeu. Pensei em deixar pra
lá. Até porque o sol voltaria em breve. Só que estaria escuro no fundo do
poço mesmo depois que voltasse, e, além do mais, havia uma voz no fundo
da minha mente dizendo que eu podia enrolar o quanto quisesse; que
talvez, se demorasse bastante, descobriria que ele finalmente tinha batido
as botas quando eu voltasse lá.
Finalmente fiz a lanterna funcionar. Emitiu uma luz intensa ótima, e
pelo menos consegui voltar até o poço sem arranhar as pernas mais do que
já estavam arranhadas. Não tenho a menor ideia de quanto tempo havia se
passado, mas ainda estava meio escuro e ainda havia estrelas no céu, então
acho que nem eram seis horas e o sol continuava quase todo coberto.
Antes de chegar na metade do caminho, percebi que ele não estava
morto; dava pra ouvi-lo gemendo e chamando o meu nome, suplicando pra
eu ajudá-lo a sair. Não sei se os Jolander, os Langill ou os Caron teriam
ouvido se estivessem em casa. Decidi que era melhor não tentar adivinhar;
já tinha muitos problemas sem isso. Precisava decidir o que fazer com Joe,
isso era o mais importante, mas eu não conseguia ir muito longe. Cada vez
que tentava pensar em uma resposta, uma voz dentro de mim começava a
gritar. “Não é justo”, gritava a voz, “não era esse o acordo, ele deveria estar
morto, caramba, morto!”
“Me ajuuuda, Do-loooooores!”, soou a voz dele.
Estava com um som seco e ecoado, como se Joe estivesse gritando de
dentro da caverna. Acendi a luz e tentei olhar pra baixo, mas não consegui.
O buraco na abertura ficava muito no meio, e a lanterna só me mostrava o
topo do abismo: grandes pedras de granito com musgo por cima. O musgo
estava preto e parecia venenoso à luz da lanterna.
Joe viu a luz.
“Dolores? Pelo amor de Deus, me ajuda! Eu estou todo quebrado!”,
gritou ele.
Agora era ele que parecia estar falando com a garganta cheia de lama. Eu
não responderia. Achava que, se tivesse que falar com ele, ficaria maluca de
vez. Então deixei a lanterna de lado, estendi a mão até onde deu e consegui
segurar uma das tábuas que ele tinha quebrado. Puxei e a madeira quebrou
com a facilidade de um dente podre.
“Dolores!”, gritou ele quando ouviu o barulho. “Ah, Deus! Ah, obrigado
Deus!”
Não respondi, só quebrei outra tábua, depois outra, depois outra. Já dava
pra ver que o dia tinha começado a clarear de novo, e pássaros cantavam
como fazem no verão quando o sol nasce. Mas o céu ainda estava bem mais
escuro do que deveria àquela hora. As estrelas haviam sumido de novo, mas
os vagalumes ainda circulavam. Enquanto isso, continuei quebrando as
tábuas em direção ao lado do poço onde eu estava ajoelhada.
“Dolores!”, a voz dele subiu pelo poço até mim. “Pode ficar com o
dinheiro! Todo! E eu nunca mais vou tocar na Selena, juro perante Deus
Todo-Poderoso e os anjos que não vou! Por favor, meu bem, só me ajuda a
sair deste buraco!”
Puxei a última tábua, e tive que puxá-la do meio das amoreiras pra soltar,
e a joguei atrás de mim. Em seguida, apontei a lanterna para o fundo do
poço.
A primeira coisa que o facho de luz encontrou foi o rosto dele virado pra
cima, e gritei. Parecia um círculo branco com dois buracos pretos grandes
nele. Por um ou dois segundos achei que Joe tinha colocado pedras nos
olhos por algum motivo. Mas aí pisquei e eram só os olhos dele, afinal, me
encarando. Pensei em como deviam estar enxergando, só a forma escura da
cabeça de uma mulher atrás de um círculo intenso de luz.
Ele estava de joelhos e havia sangue por todo o queixo e pescoço e na
frente da camisa. Quando ele abriu a boca e gritou o meu nome, saiu mais
sangue ainda. Ele tinha quebrado a maioria das costelas quando caiu e
deviam estar perfurando os pulmões dos dois lados como espinhos de
porco-espinho.
Eu não sabia o que fazer. Fiquei agachada, sentindo o calor voltar ao dia,
no pescoço, braços e pernas eu sentia bem, e com a luz virada pra ele. Joe
levantou os braços e meio que os balançou, como se estivesse se afogando,
e não consegui suportar. Apaguei a luz e recuei. Fiquei sentada na beira do
poço, toda encolhida, segurando os joelhos ensanguentados e tremendo.
“Por favor!”, gritou ele. “Por favor! Por favooor!” E finalmente: “Por
favooooooooor, Do-looooores!”.
Ah, foi horrível, mais horrível do que qualquer pessoa possa imaginar, e
continuou assim por muito tempo. Continuou até eu achar que me deixaria
louca. O eclipse acabou e os pássaros pararam de circular (ou talvez fosse
eu que não conseguisse mais vê-los) e no mar ouvi os barcos buzinarem
uns para os outros como fazem às vezes, aquelas musiquinhas engraçadas, e
mesmo assim Joe não parou. Às vezes, suplicava e me chamava de meu
amor; dizia todas as coisas que ia fazer se eu o tirasse de lá, que iria mudar,
que iria construir uma casa nova pra nós e comprar o Buick que ele achava
que eu sempre havia desejado. Em seguida, me xingava e dizia que iria me
amarrar na parede e enfiar um ferro quente na minha xereca só pra me ver
me contorcer, até ele finalmente me matar.
Uma hora, perguntou se eu jogaria aquela garrafa de uísque lá embaixo.
Dá pra acreditar nisso? Queria a merda da garrafa e me amaldiçoou e me
chamou de boceta velha suja e usada quando viu que eu não ia dar.
Finalmente, começou a escurecer de novo, escurecer de verdade agora,
então deviam ser pelo menos oito e meia, talvez até nove horas. Eu tinha
começado a prestar atenção em carros que passavam na East Lane de novo,
mas até então não havia nada. Isso era bom, mas eu sabia que não podia
esperar que a sorte durasse pra sempre.
Um momento depois, levantei a cabeça em um trancão e me dei conta
de que tinha cochilado. Não podia ter sido por muito tempo porque ainda
havia claridade no céu, mas os vagalumes tinham voltado, fazendo as coisas
de sempre, e a coruja piava de novo. Pareceu um pouco mais confortável da
segunda vez.
Mudei um pouco de lugar e precisei trincar os dentes por causa do
formigamento que começou assim que me mexi. Fiquei tanto tempo
ajoelhada que estava dormente dos joelhos pra baixo. Mas não ouvia nada
do poço, e comecei a ter esperanças de que ele finalmente estivesse morto,
de que tivesse partido enquanto eu cochilava. Mas aí, ouvi ruídos de
movimento, grunhidos e choro. Isso foi o pior, ouvi-lo chorando, porque se
mover provocava dor demais.
Eu me apoiei na mão esquerda e apontei a lanterna para o poço de novo.
Foi difícil demais me obrigar a fazer isso depois que ficou quase
completamente escuro. Ele tinha conseguido ficar de pé, não sei como, e eu
vi a lanterna se refletindo de volta pra mim em três ou quatro pontos de
água ao redor das botas que ele usava. Isso me fez pensar em como eu tinha
visto o eclipse naqueles pedaços de vidro escuro quebrado depois que ele se
cansou de me enforcar e eu caí na varanda.
Ao olhar lá pra baixo, finalmente entendi o que havia acontecido, como
ele conseguiu cair nove ou dez metros e apenas se machucar pra valer, sem
morrer na hora. O poço não estava mais seco. Não tinha voltado a encher,
se tivesse acho que ele teria se afogado como um rato em um barril, mas o
fundo estava molhado e cheio de lama. Isso amorteceu um pouco a queda,
e provavelmente o fato de ele estar bêbado não atrapalhou.
Joe estava com a cabeça baixa, balançando de um lado para o outro com
as mãos apoiadas nas paredes de pedra pra não cair de novo. Olhou pra
cima, me viu e sorriu. Aquele sorriso provocou um arrepio em mim
todinha, Andy, porque foi o sorriso de um homem morto… um homem
morto com sangue na cara e na camisa toda, um homem morto com o que
pareciam ser pedras enfiadas nos olhos.
E aí, ele começou a escalar a parede.
Eu estava olhando fixo, mas não conseguia acreditar. Ele enfiou os dedos
entre duas das pedras grandes projetadas na lateral e se ergueu até
conseguir enfiar um dos pés entre outras duas. Descansou um minuto
assim, e eu vi uma das mãos dele tatear acima da cabeça de novo. Parecia
um inseto branco gordo. Encontrou outra pedra em que se segurar, se
apoiou bem e botou a outra mão junto. Subiu mais. Quando parou pra
descansar na vez seguinte, virou o rosto ensanguentado para o raio da
lanterna, e vi pedacinhos de musgo da pedra em que ele se segurava caírem
nas bochechas e nos ombros dele.
Joe ainda sorria.
Posso tomar outra coisa, Andy? Não, não o uísque, chega disso hoje. Só
água vai dar daqui em diante.
Obrigada. Muito obrigada.
Ele estava com a mão estendida à procura do próximo apoio quando os
pés escorregaram e ele caiu. Houve um som úmido de lama quando ele
caiu sentado. Joe gritou e levou a mão ao peito como fazem na televisão
quando estão tendo ataques cardíacos, e aí a cabeça dele caiu pra frente
sobre o peito.
Eu não suportava mais. Cambaleei em meio às amoreiras e voltei
correndo pra casa. Entrei no banheiro e vomitei as tripas. Depois fui para o
quarto e me deitei. O meu corpo inteiro tremia, e eu ficava pensando: E se
ele ainda não estiver morto? E se ficar vivo a noite toda, e se ficar vivo por
dias, bebendo a água que estava vazando entre as pedras e pela lama? E se
ele ficar gritando e pedindo ajuda até que um dos Caron, Langill ou
Jolander escute e chame Garrett Thibodeau? E se alguém vier aqui em casa
amanhã, um dos amigos de bebedeira dele, ou alguém querendo que ele
trabalhe no barco ou conserte um motor, e ouvir gritos vindo das
amoreiras? E aí, Dolores?
Houve outra voz que respondeu a todas essas perguntas. Acho que
pertencia ao olho interno, mas pra mim soou mais como Vera Donovan do
que como Dolores Claiborne; soou intensa e seca e com tom de não gostou
enfia no cu.
“Óbvio que ele está morto”, disse aquela voz. “E, mesmo que não esteja,
vai morrer em breve. Vai morrer de choque e frio e dos pulmões
perfurados. Deve haver gente que não acreditaria que um homem poderia
morrer de frio em uma noite de julho, mas seriam pessoas que nunca
passaram algumas horas nove metros abaixo da superfície, sentadas sobre
um leito de pedra úmido. Sei que nada disso é agradável de se pensar,
Dolores, mas pelo menos significa que você pode parar de se preocupar.
Dorme um pouco e, quando você voltar lá, vai ver.”
Eu não sabia se o que a voz estava falando fazia sentido ou não, mas
parecia fazer, então tentei dormir. Só que não consegui. Cada vez que
começava a pegar no sono, achava que ouvia Joe cambalear pela lateral do
barracão em direção à porta dos fundos, e cada vez que a casa estalava, eu
pulava de susto.
Chegou uma hora que não aguentei. Tirei o vestido, coloquei uma calça
jeans e um suéter (como trancar a porta do celeiro depois que o cavalo já
foi roubado, acho que você diria) e peguei a lanterna no chão do banheiro,
ao lado do armário, onde a larguei quando me ajoelhei pra vomitar. Em
seguida, voltei pra lá.
Estava mais escuro do que nunca. Não sei se havia lua naquela noite,
mas não teria importado, porque as nuvens tinham voltado. Quanto mais
perto eu chegava do emaranhado de arbustos atrás do barracão, mais
pesados os meus pés ficavam. Quando consegui ver o poço de novo com a
luz da lanterna, achei que não conseguia mais levantá-los.
Mas os levantei, eu me obriguei a andar até lá. Prestei atenção por quase
cinco minutos e não houve som nenhum além dos grilos, do vento
sacudindo os arbustos de amora e de uma coruja piando em algum lugar…
provavelmente a mesma que eu tinha ouvido antes. Ah, e mais distante ao
leste eu ouvia as ondas batendo no litoral, só que esse é um som com o qual
você se acostuma tanto na ilha que acaba não escutando mais. Fiquei
parada com a lanterna de Joe na mão, a luz apontada para o poço, sentindo
um suor oleoso e grudento surgir em todo o corpo, o que fez os cortes e
arranhões dos espinhos de amoreira arderem, e falei a mim mesma que era
pra eu me ajoelhar e olhar no poço. Afinal, não era isso que eu tinha ido
fazer lá?
Era, mas quando cheguei lá, não consegui. Só fiquei tremendo e fazendo
um som alto de gemido na garganta. O meu coração não estava batendo de
verdade, pulava no peito como as asas de um beija-flor.
Mas aí uma mão branca toda suja de terra, sangue e musgo saiu daquele
poço e agarrou o meu tornozelo.
Larguei a lanterna. O objeto caiu nos arbustos no limite do poço, o que
foi a minha sorte; se tivesse caído dentro do poço, eu estaria numa merda
danada. Mas, naquele momento, não estava pensando na lanterna nem na
minha sorte, porque a merda em que eu estava metida já era bem funda, e a
única coisa em que eu estava pensando era a mão no meu tornozelo, a mão
que estava me puxando para o buraco. Isso e uma frase da Bíblia, que ecoou
na minha cabeça como um sino de ferro: Cavei um buraco para os meus
inimigos e fui eu que nele acabei caindo.
Gritei e tentei me soltar, mas Joe me segurava com tanta força que
parecia que a mão dele havia sido mergulhada em cimento. Os meus olhos
tinham se ajustado um pouco à escuridão, então deu pra vê-lo mesmo com
a lanterna virada pra direção errada. Ele quase conseguiu sair do poço, no
fim das contas. Só Deus sabe quantas vezes deve ter caído de volta, mas
quase chegou ao topo. Acho que teria conseguido sair se eu não tivesse
voltado na hora que voltei.
A cabeça dele não estava a mais de sessenta centímetros do que restava
da cobertura. Ele ainda sorria. A mandíbula inferior estava um pouco
projetada pra frente… Ainda consigo ver isso com a mesma nitidez com
que vejo você aqui na minha frente, Andy. Parecia os dentes de um cavalo
quando sorri pra você. Alguns estavam pretos por causa do sangue.
“Do-loooo-res”, disse ele, ofegante, e continuou me puxando. Gritei, caí
de costas e fui arrastada na direção daquele buraco maldito. Ouvia os
espinhos de amoreira arranharem a minha calça jeans quando passei pelo
lado e por cima deles. “Do-loooo-res, sua filha da puta”, repetiu ele, mas aí
parecia mais que ele estava cantando pra mim. Eu me lembro de pensar:
Daqui a pouco ele vai começar “Moonlight Cocktail”.
Agarrei os arbustos e fiquei com as mãos cheias de espinhos e sangue.
Chutei a cabeça dele com o pé que Joe não estava segurando, mas estava
um pouco baixa demais pra acertar; rocei o cabelo com o calcanhar do
tênis duas vezes, mas só isso.
“Vem, Do-loooo-res”, disse ele, como se quisesse me levar pra tomar
sorvete ou dançar na noite de country e western no Fudgy’s.
A minha bunda chegou a uma das tábuas que ainda havia na lateral do
poço, e eu soube que, se não fizesse alguma coisa logo, a gente ia cair lá
dentro juntos, e lá nós ficaríamos, provavelmente um nos braços do outro.
E quando fôssemos encontrados, haveria gente, pessoas limitadas como
Yvette Anderson, em geral, que diria que aquilo só mostrava o quanto nos
amávamos.
Isso fez a diferença. Encontrei um pouco de força e dei um puxão final
pra trás. Joe quase conseguiu se segurar, mas a mão escorregou. O meu
tênis deve ter batido na cara dele. Ele gritou, a mão encostou na ponta do
meu pé umas duas vezes e sumiu de vez. Esperei ouvir o baque no fundo,
mas isso não aconteceu. O filho da puta nunca desistiu; se vivesse da
mesma forma como morreu, acho que nunca teríamos tido problemas, ele
e eu.
Fiquei de joelhos e o vi oscilar pra trás no buraco… mas conseguiu se
segurar. Ele me olhou, tirou uma mecha ensanguentada de cabelo dos
olhos e sorriu. A mão saiu do poço de novo e tateou o chão.
“Do-LOOO-res”, disse ele, meio que em um grunhido. “Do-LOOO-res, Do-
LOOO-res, Do-LOOOO-resss!”
Então começou a sair.
“Dá na cabeça dele, sua pateta”, disse Vera Donovan nessa hora.
Não na minha cabeça, como a voz da garotinha que eu havia visto. Você
entende o que eu estou dizendo? Ouvi a voz como você está me ouvindo
agora, e se o gravador da Nancy Bannister estivesse lá, daria pra repetir
aquela voz sem parar. Tenho certeza disso como tenho certeza do meu
próprio nome.
Peguei uma das pedras que havia no chão na borda do poço. Ele poderia
ter segurado o meu pulso, mas agarrei a pedra antes de Joe encontrar apoio.
Era uma pedra grande, cheia de musgo seco grudado. Eu a ergui acima da
cabeça. Ele a olhou. A cabeça dele já estava fora do buraco, e parecia que os
olhos estavam em caules. Bati com a pedra com toda a força. Ouvi a
mandíbula inferior quebrar. Foi o som de quando se larga um prato de
porcelana em uma lareira de tijolos. Nessa hora, Joe sumiu, caiu pelo poço,
e a pedra foi junto.
Nesse momento, eu desmaiei. Não me lembro de desmaiar, só de me
deitar e olhar para o céu. Não havia nada pra ver por causa das nuvens, e eu
fechei os olhos… só que, quando os abri, o céu estava cheio de estrelas de
novo. Demorei um tempo pra perceber o que havia acontecido, que eu
tinha desmaiado e as nuvens foram embora enquanto eu estava apagada.
A lanterna ainda estava nos arbustos ao lado do poço e a luz continuava
forte. Eu a peguei e apontei pra dentro do poço. Joe estava caído lá no
fundo, com a cabeça inclinada sobre o ombro, as mãos no colo e as pernas
abertas. A pedra que eu tinha usado estava entre as duas.
Segurei a luz apontada pra ele por cinco minutos, esperando pra ver se
ele se mexeria, mas não se mexeu. Eu me levantei e voltei pra casa. Precisei
parar duas vezes quando enxerguei tudo embaçado, mas consegui chegar.
Fui até o banheiro, tirando a roupa no caminho e deixando cada peça onde
caiu. Entrei no chuveiro e fiquei parada debaixo da água mais quente que
aguentei por uns dez minutos, sem me ensaboar, sem lavar o cabelo, sem
fazer nada além de ficar parada com o rosto virado pra cima pra que a água
lavasse tudo. Acho que poderia ter dormido ali, no chuveiro, só que a água
começou a esfriar. Lavei o cabelo rápido, antes que ficasse gelada, e saí. Os
braços e as pernas estavam todos arranhados, e a garganta ainda doía
demais, mas não achei que fosse morrer de nada disso. Nunca passou pela
minha cabeça o que alguém poderia achar de tantos arranhões, sem
mencionar os hematomas na minha garganta, depois que Joe fosse
encontrado no poço. Não nessa hora, pelo menos.
Coloquei a camisola, caí na cama e peguei no sono rapidinho, de luz
acesa. Menos de uma hora depois, acordei gritando com a mão de Joe no
meu tornozelo. Tive um momento de alívio quando percebi que era sonho,
mas aí pensei: E se ele estiver subindo a parede do poço de novo? Sabia que
não estava, eu tinha acabado de vez com ele quando bati com a pedra e ele
caiu pela segunda vez, mas uma parte de mim tinha certeza de que ele
estava subindo, e de que estaria fora em um ou dois minutos. Quando
saísse, viria atrás de mim.
Tentei continuar deitada e esperar, mas não consegui; a imagem dele
escalando a parede do poço ficou cada vez mais clara, e o meu coração
batia com tanta força que parecia que iria explodir. Finalmente, calcei os
tênis, peguei a lanterna de novo e fui lá correndo de camisola. Dessa vez,
engatinhei até a borda do poço; não consegui andar, de jeito nenhum.
Estava com medo demais da mão branca de Joe emergir da escuridão e me
agarrar.
Finalmente apontei a luz pra baixo. Ele estava deitado lá, do mesmo jeito
que antes, com as mãos no colo e a cabeça virada para o lado. A pedra ainda
estava no mesmo lugar, entre as pernas abertas. Olhei por muito tempo, e
dessa vez, quando voltei pra casa, já tinha começado a entender que ele
estava mesmo morto.
Subi na cama, apaguei a luz e logo peguei no sono. A última coisa que
me lembro de pensar foi agora vou ficar bem, mas não fiquei. Acordei duas
horas depois com a certeza de que estava ouvindo alguém na cozinha. Com
a certeza de que era Joe na cozinha. Tentei pular da cama, mas os meus pés
se enrolaram no cobertor e caí no chão. Eu me levantei e comecei a tatear à
procura do interruptor, com a certeza de que sentiria as mãos dele no meu
pescoço antes de conseguir achar.
Isso não aconteceu, claro. Acendi a luz e olhei a casa toda. Estava vazia.
Calcei os tênis, peguei a lanterna e corri para o poço.
Joe ainda estava caído no fundo com as mãos no colo e a cabeça no
ombro. Tive que olhar por muito tempo pra me convencer de que estava no
mesmo ombro. E uma vez achei que vi o pé se mexer, se bem que era mais
provável que fosse uma sombra se mexendo. Havia muitas, porque a mão
segurando a lanterna não estava nada firme, tenho que dizer.
Enquanto estava agachada, provavelmente com a mesma cara da mulher
do rótulo de White Rock, uma vontade louca tomou conta de mim: quis me
deixar cair pra frente de joelhos até despencar no poço. Seria encontrada
com ele. Não era o jeito ideal de morrer, quer dizer, mas pelo menos eu não
seria encontrada com os braços de Joe em volta de mim… e não teria que
continuar acordando com a certeza de que ele estava lá comigo ou com a
sensação de que precisava correr lá pra fora com a lanterna pra verificar se
ele ainda estava morto.
A voz da Vera falou de novo, só que dessa vez foi na minha cabeça. Tenho
certeza disso assim como tenho certeza de que ela havia falado bem no
meu ouvido da primeira vez.
“O único lugar onde você vai cair é na sua cama”, disse a voz. “Dorme
um pouco e, quando acordar, o eclipse vai mesmo ter acabado. Você vai
ficar surpresa com o quanto as coisas vão parecer melhores quando o sol
estiver no céu.”
Achei que era um bom conselho, e decidi segui-lo. Mas tranquei as duas
portas da casa e, antes de subir na cama, fiz algo que nunca havia feito
antes e nunca mais fiz: apoiei uma cadeira embaixo da maçaneta. Tenho
vergonha de admitir isso, as minhas bochechas estão quentes, então acho
que estou corando, mas deve ter ajudado, porque peguei no sono assim que
a minha cabeça tocou no travesseiro. Quando abri os olhos, a luz do dia
entrava pela janela. Vera tinha me dito pra tirar o dia de folga; disse que
Gail Lavesque e algumas outras garotas podiam se organizar pra arrumar a
casa depois do festão que ela estava planejando na noite do dia 20. E eu
fiquei feliz.
Eu me levantei, tomei outro banho e me vesti. Levei meia hora pra fazer
isso tudo porque estava toda dolorida. O principal eram as minhas costas; é
o meu ponto fraco desde a noite em que Joe bateu nos meus rins com
aquele pedaço de lenha, e tenho certeza de que estirei o músculo de novo
quando arranquei do barro a pedra com que bati nele, e depois quando a
levantei acima da cabeça. Fosse o que fosse, estava doendo pra cacete.
Quando consegui me vestir, eu me sentei à mesa da cozinha sob a luz do
sol, tomei uma xícara de café preto e pensei em tudo que tinha que fazer.
Não era muito, apesar de nada ter acontecido do jeito que eu tinha
desejado, mas eu precisava fazer do jeito certo; se esquecesse algum
detalhe ou deixasse algo de lado, seria presa. Joe St. George não era muito
amado em Little Tall, e não tinha muitas pessoas que teriam me culpado
pelo que fiz, mas ninguém te dá uma medalha nem faz um desfile
comemorativo quando você mata um homem, por mais que ele seja um
inútil de merda.
Servi outra xícara de café preto e fui pra varanda dos fundos beber… e
dar uma olhada nos arredores. Ambas as caixas refletoras e um dos visores
estavam dentro do saco de mercado que Vera tinha me dado. Os pedaços do
outro visor estavam caídos no mesmo lugar desde que Joe pulou do nada e
o visor escorregou do colo dele e se quebrou no chão da varanda. Pensei
por um bom tempo sobre aqueles pedaços de vidro. Acabei entrando,
pegando a vassoura e a pá e varrendo tudo. Decidi que, sendo como eu sou
e com tanta gente na ilha sabendo como eu sou, seria mais suspeito deixar
tudo lá.
Tinha começado com a ideia de dizer que não vi Joe naquela tarde.
Pensei em dizer às pessoas que, quando voltei da casa de Vera, ele já tinha
saído sem deixar nem um bilhete informando onde estava, e que eu virei
aquela garrafa de uísque caro no chão porque fiquei com raiva. Se fizessem
exames que mostrassem que ele estava bêbado quando caiu no poço, não
me atrapalharia em nada; Joe poderia ter conseguido bebida em muitos
lugares, inclusive debaixo da pia da nossa cozinha.
Uma olhada no espelho me convenceu de que isso não funcionaria. Se
Joe não estivesse em casa pra deixar o meu pescoço com aqueles
hematomas, iam querer saber quem havia causado os hematomas, e o que
eu ia dizer? Papai Noel? Por sorte, eu tinha antecipado esse problema:
havia falado pra Vera que, se Joe começasse a agir de forma agressiva, eu o
deixaria sozinho enchendo a cara e veria o eclipse de East Head. Eu não
tinha nenhum plano em mente quando falei isso, mas abençoei cada
palavra depois.
O East Head não serviria; havia gente lá que saberia que eu não fui
junto. Mas Russian Meadow fica a caminho do East Head, tem uma boa
vista para o oeste e ninguém tinha ido pra lá. Eu tinha observado isso da
minha cadeira na varanda, e confirmado enquanto lavava a louça. A única
pergunta…
O quê, Frank?
Não, eu não estava preocupada com o fato de a picape dele estar em
casa. Ele tinha sido parado por dirigir alcoolizado umas três ou quatro
vezes seguidas em 1959, entende? E perdeu a habilitação por um mês.
Edgar Sherrick, que era o chefe de polícia na época, tinha ido dizer que ele
podia beber até cair, mas, se fosse pego de novo bêbado no volante, o
arrastaria para o tribunal e tentaria fazer com que a habilitação dele fosse
suspensa por um ano. Edgar e a esposa tinham perdido uma filhinha por
causa de um motorista bêbado em 1948 ou 1949, e embora fosse um cara
tranquilo com tudo, não queria ver um bêbado dirigindo nem pintado de
ouro. Joe sabia e parou de dirigir quando havia tomado mais de duas doses
logo depois que ele e Edgar tiveram a conversinha na nossa varanda. Não,
quando voltei de Russian Meadow e vi que Joe não estava em casa, achei
que um dos amigos devia ter passado lá e o levado pra algum lugar pra
comemorar o dia do eclipse. Era essa a história que eu pretendia contar.
Enfim, o que eu tinha começado a dizer que era a única pergunta real
que eu precisava responder era o que fazer com a garrafa de uísque. As
pessoas sabiam que eu andava comprando as bebidas dele ultimamente,
mas isso não era um problema; eu sabia que achavam que eu fazia isso pra
ele parar de me bater. Mas onde aquela garrafa teria ido parar se a história
que eu estava inventando tivesse sido real? Podia não importar, mas podia
importar bastante. Quando se comete um assassinato, nunca se sabe o que
pode voltar pra te assombrar depois. Esse é o melhor motivo pra não se
matar uma pessoa. Eu me coloquei no lugar de Joe, e não era tão difícil
quanto você poderia pensar, e soube na hora que Joe não teria ido a lugar
nenhum com ninguém se houvesse um único gole de uísque naquela
garrafa. Precisava ir pra dentro do poço com ele, e foi pra lá que foi… mas
sem a tampa, claro. Isso larguei no lixo, junto à pilha de vidro quebrado.
Fui até o poço com que restava de uísque balançando na garrafa e
pensando: Ele tomou a birita toda e tudo bem, eu não esperaria menos do que
isso, mas aí confundiu o meu pescoço com uma alavanca de bomba e isso não foi
bom, então fui com a minha caixa refletora pra Russian Meadow sozinha,
xingando o impulso que me fez parar e comprar aquela garrafa de Johnnie
Walker. Quando voltei, Joe havia sumido. Eu não sabia pra onde nem com
quem, também não me importei. Só limpei a sujeira e torci pra ele estar com o
humor melhor quando voltasse. Sei que pareceu bem dócil e que passaria
como algo crível.
Acho que o que menos gostei da maldita garrafa foi que me livrar dela
significava voltar lá e olhar pra Joe de novo. Ainda assim, o que eu gostava
ou não gostava não fez muita diferença naquela hora.
Estava preocupada com o estado dos arbustos, e alguns já estavam
voltando para o lugar. Achei que estariam normais quando eu relatasse Joe
como desaparecido.
Torcia pra que o poço não fosse tão assustador à plena luz do dia, mas
era, sim. O buraco no meio da abertura estava ainda mais sinistro. Não
parecia tanto um olho com algumas das tábuas puxadas, mas nem isso
ajudou. Estava mais pra uma órbita vazia em que uma coisa havia
finalmente apodrecido tanto que tinha caído fora. E senti aquele cheiro
úmido e acobreado. Isso me fez pensar na garotinha que eu tinha
vislumbrado na mente, e me perguntei como ela estava na manhã seguinte.
Queria dar meia-volta e ir pra casa, mas segui até o poço sem arrastar
um pé sequer. Queria passar por aquilo o mais rápido possível… e não
olhar pra trás. O que eu precisava fazer dali em diante, Andy, era pensar
nos meus filhos e olhar pra frente a qualquer custo.
Eu me agachei e olhei. Joe ainda estava lá, com as mãos no colo e a
cabeça apoiada no ombro. Havia insetos na cara dele, e essa foi a prova
final de que ele estava morto mesmo. Estendi a garrafa com um lenço
enrolado no gargalo, e não foi questão de digitais, só não queria tocar
naquilo, então larguei. Caiu na lama ao lado dele, mas não quebrou. Só que
os insetos correram; desceram pelo pescoço e entraram pela gola da
camisa. Nunca me esqueci disso.
Eu estava me levantando pra ir embora. A visão daqueles insetos indo se
esconder me deixou com vontade de vomitar de novo, sabe? Mas aí os
meus olhos se fixaram nas tábuas que eu tinha arrancado pra poder dar
uma olhada nele da primeira vez. Não era boa ideia deixá-las ali;
levantariam todos os tipos de pergunta se ficassem.
Pensei nisso por um tempo e, quando percebi que a manhã estava
passando e alguém poderia aparecer lá em casa a qualquer momento pra
falar do eclipse ou dos grandes feitos de Vera, mandei tudo para o inferno e
joguei os pedaços de tábua podre no poço. Aí voltei pra casa. Fui voltando
pra casa, devo dizer, porque havia pedaços do meu vestido e do vestido
anágua pendurados em muitos espinhos, e recolhi o máximo que consegui.
Mais tarde, voltei e peguei três ou quatro que havia deixado passar da
primeira vez. Havia pedaços da camisa de flanela de Joe também, mas isso
eu deixei. Que Garrett Thibodeau interprete isso como quiser, pensei. Que
qualquer pessoa interprete como quiser. Vai parecer que ele ficou bêbado e caiu
no poço de qualquer jeito, e com a reputação que Joe tem por aqui, o que quer
que decidam provavelmente vai ser a meu favor.
Mas aqueles pedacinhos de tecido não foram pra lixeira com os cacos de
vidro e a tampa da garrafa de uísque; eu os joguei no mar mais tarde. Havia
atravessado o quintal e estava me encaminhando pra subir os degraus da
varanda de novo quando um pensamento me ocorreu. Joe tinha agarrado
um pedaço do meu vestido anágua que estava caindo na parte de trás. E se
ele ainda estivesse com aquele pedaço? E se estivesse na mão encolhida no
colo dele no fundo do poço?
Isso me fez gelar… literalmente. Parei no quintal debaixo do sol quente
de julho, com um arrepio nas costas e um gelo nos ossos, como um poema
que li no ensino médio dizia. Mas aí Vera falou dentro da minha cabeça de
novo. Como você não pode fazer nada sobre isso, Dolores, aconselho deixar pra
lá, disse ela. Pareceu um bom conselho, então fui até os degraus e voltei pra
dentro de casa.
Passei boa parte da manhã andando em volta da casa e na varanda, à
procura de… bem, sei lá. Não sei o que eu estava procurando exatamente.
Talvez estivesse esperando que aquele olho interno visse outra coisa que
precisasse ser feita ou resolvida, assim como havia acontecido com a
pequena pilha de tábuas. Se tinha, não vi nada.
Por volta das onze horas, dei o passo seguinte, que foi ligar pra Gail
Lavesque em Pinewood. Perguntei o que ela havia achado do eclipse e tal, e
depois como estavam as coisas na Sua Excelência.
“Bom”, disse ela, “eu não posso reclamar, já que não vi ninguém além
daquele sujeito mais velho careca com bigode de escova de dentes. Sabe de
quem estou falando?”
Eu confirmei.
“Ele desceu por volta de nove e meia, foi para o jardim, andou devagar e
meio que segurando a cabeça, mas pelo menos se levantou, o que é mais do
que se pode dizer do resto. Quando Karen Jolander perguntou se ele queria
um copo de suco de laranja fresco, ele correu até a ponta da varanda e
vomitou nas petúnias. Você devia ter ouvido, Dolores: Bleeeeargh!”
Ri até quase chorar, e nenhuma risada soou melhor pra mim.
“A festa deve ter sido boa quando voltaram da balsa”, disse Gail. “Se eu
ganhasse dez centavos pra cada guimba de cigarro que recolhi hoje de
manhã, só dez centavinhos, vai vendo, eu poderia comprar um Chevrolet
novinho. Mas vou deixar a casa brilhando pra hora que a dona Donovan
trouxer a ressaca dela aqui pra baixo, pode apostar.”
“Eu sei que vai, e, se precisar de ajuda, sabe pra quem ligar, né?”, falei.
Gail riu.
“Não precisa. Você trabalhou como uma mula semana passada, e a dona
Donovan sabe disso tão bem quanto eu. Ela só quer ver você amanhã de
manhã, e eu também.”
“Tudo bem”, falei, e então fiz uma pequena pausa. Acho que ela estava
esperando que eu desse tchau, então, quando continuei, ela prestou
especial atenção… que era exatamente o que eu queria. “Você não viu o
Joe por aí, né?”
“Joe? O seu Joe?”, perguntou ela.
“É.”
“Não, eu nunca vi o Joe por aqui. Por que a pergunta?”
“Ele não voltou pra casa ontem.”
“Ah, Dolores!”, disse ela, parecendo horrorizada e interessada ao mesmo
tempo. “Bebeu?”
“Óbvio. Não que eu esteja preocupada. Não é a primeira vez que ele fica
fora a noite toda uivando pra lua. Ele vai aparecer. Vaso ruim não quebra.”
Desliguei com a sensação de que tinha feito um bom trabalho plantando
a primeira semente.
Preparei um queijo quente para o almoço, mas não consegui comer. O
cheiro de queijo e pão torrado deixou o meu estômago quente e suado.
Tomei duas aspirinas e me deitei. Não achei que dormiria, mas dormi.
Quando acordei, eram quase quatro horas e o momento de plantar mais
sementes. Liguei para os amigos de Joe, os poucos que tinham telefone, e
perguntei a cada um se o tinham visto. Ele não tinha voltado pra casa de
noite, falei, e ainda não estava em casa, e eu estava começando a ficar
preocupada. Todos me disseram que não, claro, e todos quiseram saber os
detalhes sórdidos, mas o único que disse alguma coisa foi Tommy
Anderson… provavelmente porque eu sabia que Joe havia se gabado para
Tommy antes sobre manter a mulher na linha, e o pobre e simplório
Tommy havia engolido. Mesmo assim, tomei o cuidado de não exagerar; só
falei que eu e Joe tínhamos brigado e Joe devia ter saído com raiva. Fiz mais
algumas ligações naquela noite, inclusive algumas pras pessoas pra quem
eu já havia ligado, e fiquei feliz de ver que as histórias já estavam
começando a se espalhar.
Não dormi muito bem naquela noite; tive sonhos terríveis. Um foi com
Joe. Ele estava de pé no fundo do poço, olhando pra mim com a cara branca
e os círculos escuros acima do nariz que fazia parecer que ele tinha enfiado
um pedaço de carvão nos olhos. Falou que estava solitário e ficava pedindo
pra eu pular no poço pra fazer companhia pra ele.
O outro foi pior, porque foi com Selena. Ela tinha uns quatro anos e
estava usando o vestido rosa que a avó Trisha havia comprado pra ela logo
antes de morrer. Selena se aproximou de mim no quintal, e vi que ela
estava com a minha tesoura de costura. Estendi a mão pra ela me entregar,
mas ela só balançou a cabeça.
“É culpa minha e eu que tenho que pagar”, disse ela.
Selena levantou a tesoura na direção do rosto e cortou o nariz, snip. Caiu
na terra entre os sapatinhos pretos de couro, e eu acordei gritando. Eram só
quatro horas, mas eu não era tão burra a ponto de não perceber que não ia
mais dormir naquela noite.
Às sete, liguei pra Vera de novo. Dessa vez, Kenopensky atendeu. Falei
que sabia que Vera estava me esperando naquela manhã, mas eu não podia
ir, pelo menos enquanto não descobrisse onde o meu marido estava. Falei
que ele estava desaparecido havia duas noites, e uma noite fora bêbado
sempre havia sido o limite dele.
Perto do fim da conversa, Vera pegou a extensão e me perguntou o que
estava acontecendo.
“Acho que eu perdi o meu marido”, falei.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, e eu teria dado um dedo pra
saber o que estava pensando. Em seguida, quando falou, disse que, se
estivesse no meu lugar, perder Joe não a teria incomodado em nada.
“Bem”, falei, “nós temos três filhos, e eu me acostumei com Joe. Vou
mais tarde se ele aparecer.”
“Tudo bem”, disse ela, e acrescentou: “Você ainda está aí, Ted?”.
“Estou, Vera”, respondeu ele.
“Bom, vai fazer alguma coisa masculina. Vai empurrar ou bater em
alguma coisa. Não me interessa o quê.”
“Sim, Vera”, respondeu ele, e houve um clique na linha quando Ted
desligou.
Vera ficou em silêncio por mais alguns segundos mesmo assim. Então
disse:
“Talvez ele tenha sofrido um acidente, Dolores.”
“É”, falei, “não me surpreenderia em nada. Ele anda bebendo muito nas
últimas semanas, e quando tentei conversar sobre o dinheiro das crianças
no dia do eclipse, ele quase me enforcou.”
“Ah, é?”, disse ela. Mais alguns segundos se passaram, e ela disse: “Boa
sorte, Dolores”.
“Obrigada. Eu posso precisar.”
“Se eu puder fazer alguma coisa, me avisa.”
“É muita gentileza sua.”
“De jeito nenhum. Eu só detestaria perder você. É difícil achar ajudantes
atualmente que não varram a sujeira pra debaixo do tapete.”
Sem mencionar ajudantes que se lembrem de botar os capachos virados
na direção certa, pensei, mas não falei. Só agradeci e desliguei. Esperei
mais meia hora e liguei pra Garrett Thibodeau. Não havia nada tão chique e
moderno como um chefe de polícia em Little Tall naquela época; Garrett
era o policial da cidade. Havia assumido o posto quando Edgar Sherrick
teve o avc em 1960.
Falei que Joe não tinha ido pra casa por duas noites e eu estava ficando
preocupada. Garrett falou com uma voz arrastada, acho que não havia nem
tomado mais do que uma xícara de café depois que acordou, mas disse que
faria contato com a Polícia Estadual no continente e verificaria com
algumas pessoas na ilha. Eu sabia que seriam as mesmas pessoas pra quem
eu já havia ligado, duas vezes em alguns casos, mas não falei. Garrett
terminou dizendo que tinha certeza de que eu veria Joe até o almoço. Isso
mesmo, seu velho murcho, pensei, desligando, espera sentado. Acho que o
sujeito até tinha neurônios suficientes pra cantar “Yankee Doodle”
enquanto cagava, mas duvido que conseguisse lembrar a letra toda.
Levou uma semana inteira até o encontrarem, e eu já estava ficando
meio louca. Selena voltava na quarta. Liguei pra ela no fim da tarde de
terça-feira pra dizer que o pai dela tinha sumido e que a situação estava
começando a ficar séria. Perguntei se queria voltar pra casa, e ela disse que
sim. Melissa Caron, a mãe da Tanya, foi buscá-la. Deixei os meninos onde
estavam; lidar com Selena já era o bastante pra começar. Ela me pegou na
hortinha na quinta, dois dias antes de encontrarem Joe, e disse:
“Mãe, me conta uma coisa.”
“Claro, querida.”
Acho que falei com calma, mas tinha uma boa ideia do que estava vindo.
Ah, tinha demais.
“Você fez alguma coisa com ele?”, perguntou ela.
De repente, o meu sonho voltou: Selena com quatro anos com o vestido
rosa lindo, erguendo a minha tesoura de costura pra cortar o próprio nariz.
Então eu pensei, rezei: Deus, me ajude a mentir pra minha filha. Por favor,
Deus. Nunca vou pedir mais nada se Você me ajudar a mentir pra minha filha
de forma que ela acredite em mim e não duvide nunca.
“Não”, respondi. Estava com as luvas de jardinagem, mas tirei pra poder
botar as mãos nos ombros dela. Eu a encarei profundamente. “Não, Selena.
Ele estava bêbado e horrível, e me enforcou com tanta força que deixou
estas marcas no meu pescoço, mas eu não fiz nada com ele. Só saí de casa, e
fiz isso porque tive medo de ficar. Você entende isso, né? Entende e não me
culpa? Você sabe como é sentir medo dele. Não sabe?”
Ela assentiu, mas os olhos não desgrudaram dos meus. Estavam de um
azul mais escuro do que nunca, da cor do mar logo depois de uma linha de
instabilidade. No meu olho mental, vi as lâminas da tesoura reluzirem e o
botãozinho que era o nariz dela cair na terra. E vou te dizer o que acho:
acho que Deus ouviu parte da minha oração naquele dia. É como Ele
costuma atendê-las, eu já reparei. Nenhuma mentira que contei sobre Joe
era melhor do que a que contei pra Selena naquela tarde quente de julho
em meio aos feijões e aos pepinos… mas ela acreditou? Acreditou sem
dúvida nenhuma? Por mais que eu queira achar que a resposta é sim, não
consigo. Foi a dúvida que deixou os olhos dela tão escuros, naquele
momento e depois pra sempre.
“O meu único erro foi comprar a garrafa de bebida pra ele, tentar
suborná-lo pra que fosse legal, sendo que eu deveria saber como o seu pai
é”, concluí.
Selena olhou pra mim por mais um minuto, se curvou e pegou a sacola
de pepinos que eu havia colhido.
“Tudo bem. Vou levar isto pra dentro pra você”, disse ela.
E isso foi tudo. Nunca mais tocamos no assunto, nem antes de Joe ser
encontrado, nem depois. Selena deve ter ouvido muita gente falar de mim,
tanto na ilha quanto na escola, mas nós nunca voltamos nisso. Mas foi
nessa época que a frieza começou, naquela tarde no quintal. E quando a
primeira rachadura no muro que as famílias erguem entre elas e o restante
do mundo surgiu entre nós. Desde essa época, só foi alargando. Ela liga e
escreve com a regularidade de um reloginho, é boa nisso, mas
permanecemos distantes mesmo assim. Afastadas. O que fiz foi
principalmente por Selena, não pelos meninos nem pelo dinheiro que o pai
dela tentou roubar. Foi mais por Selena que eu o levei à morte, e o preço de
protegê-la de Joe foi a parte mais profunda do amor dela por mim. Uma vez
ouvi o meu próprio pai dizer que Deus deu chilique no dia em que fez o
mundo, e ao longo dos anos passei a entender o que ele quis dizer. E sabe o
pior? Às vezes é engraçado. Às vezes, é tão engraçado que não dá pra não
rir mesmo enquanto tudo ao redor está desmoronando.
Enquanto isso, Garrett Thibodeau e os seus amigos de barbearia
trabalharam sem parar e não encontraram Joe. Chegou ao ponto em que
achei que eu mesma teria que “tropeçar” nele, por menos que gostasse da
ideia. Se não fosse pelo dinheiro, ficaria feliz em deixá-lo lá até a última
trombeta do apocalipse. Mas o dinheiro estava em Jonesport, em uma
conta com o nome dele, e eu não queria esperar sete anos para Joe ser
declarado legalmente morto e eu poder recuperar a grana. Selena ia
começar a faculdade em pouco mais de dois anos e ia querer uma parte do
dinheiro.
A ideia de que Joe poderia ter levado a garrafa para o bosque atrás da
casa, pisado em uma armadilha ou caído voltando pra casa, bêbado no
escuro, finalmente começou a se espalhar. Garrett alegou que foi ideia dele,
mas tenho uma dificuldade enorme de acreditar, considerando que estudei
com o homem. Não importa. Ele colocou uma lista de voluntariado na
porta da prefeitura na tarde de quinta-feira e, na manhã de sábado, uma
semana depois do eclipse, reuniu um grupo de busca de quarenta ou
cinquenta homens.
Todos formaram uma fila no lado do bosque Highgate, onde fica o East
End, e vieram revirando tudo na direção da casa, primeiro pelo bosque e
depois por Russian Meadow. Eu os observei atravessar a campina em uma
linha comprida por volta de uma hora, rindo e brincando, mas as
brincadeiras pararam e os xingamentos começaram quando entraram na
nossa propriedade e na área dos arbustos de amora.
Fiquei parada na porta, vendo-os se aproximar, com o coração na
garganta. Eu me lembro de pensar que pelo menos Selena não estava em
casa, tinha ido ver Laurie Langill, e isso era uma bênção. Em seguida,
comecei a pensar que todos aqueles arbustos espinhentos fariam com que
mandassem a busca às favas antes de chegarem perto do velho poço. Mas
eles seguiram em frente. De repente, ouvi Sonny Benoit gritar:
“Ei, Garrett! Aqui! Vem aqui!”
E soube que, para o bem ou para o mal, Joe havia sido encontrado.
Fizeram uma autópsia, claro. No mesmo dia que o encontraram, e acho
que ainda devia estar acontecendo quando Jack e Alicia trouxeram os
meninos de volta no finzinho da tarde. Pete estava chorando, mas parecia
confuso. Acho que não tinha entendido o que havia acontecido ao pai. Mas
Joe Junior entendeu, e quando me puxou de lado, achei que ia fazer a
mesma pergunta que Selena, então me preparei pra contar a mesma
mentira. Mas fez uma pergunta completamente diferente.
“Mãe, se eu ficasse feliz por ele estar morto, Deus me mandaria para o
inferno?”
“Joey, as pessoas não podem controlar os sentimentos, e acho que Deus
sabe disso”, respondi.
Ele começou a chorar e disse algo que partiu meu coração.
“Eu tentei amar o papai.” Foi isso que Joe Junior disse. “Sempre tentei,
mas ele não deixava.”
Eu o tomei nos braços e o abracei o mais forte que consegui. Acho que
foi o mais perto que cheguei de chorar nessa história toda… mas é óbvio
que você precisa lembrar que eu não estava dormindo bem e ainda não
fazia a menor ideia de que rumo aquilo iria tomar.
Haveria um inquérito na terça, e Lucien Mercier, que era dono do único
necrotério de Little Tall na época, me disse que eu finalmente poderia
enterrar Joe em The Oaks na quarta-feira. Mas, na segunda, no dia anterior
ao inquérito, Garrett me ligou e perguntou se eu podia ir até o escritório
dele por uns minutos. Era a ligação que eu estava esperando e temendo,
mas não havia nada que eu pudesse fazer além de ir, então pedi a Selena
pra dar o almoço dos meninos e fui. Garrett não estava sozinho. O dr. John
McAuliffe também estava presente. Eu meio que esperava isso também,
mas o meu coração ficou pesado mesmo assim.
McAuliffe era o médico do condado na época. Morreu três anos depois,
quando um limpador de neve bateu no fusca dele. Foi Henry Briarton
quem assumiu o trabalho quando McAuliffe morreu. Se Briarton fosse o
médico do condado em 1963, eu teria ficado bem mais tranquila sobre a
nossa conversinha naquele dia. Briarton é mais inteligente do que o
coitado do Garrett Thibodeau era, mas só um pouquinho. Mas John
McAuliffe… ele tinha uma mente como a lâmpada que brilha no farol de
Battiscan.
Ele era um escocês genuíno que apareceu nestas partes depois da
Segunda Guerra Mundial, com sotaque e tudo. Acho que devia ser cidadão
estadunidense, porque era médico e tinha um cargo no condado, mas não
falava como o pessoal daqui. Não que importasse pra mim; eu sabia que
teria que enfrentá-lo, fosse ele estadunidense, escocês ou chinês pagão.
Ele tinha cabelo branco como a neve, apesar de com certeza não passar
dos quarenta e cinco anos, e olhos azuis tão intensos e penetrantes que
pareciam brocas. Quando olhava pra você, era como se estivesse olhando
dentro da sua cabeça e colocando os pensamentos que via lá em ordem
alfabética. Assim que entrei e o vi sentado ao lado da mesa de Garrett e
ouvi a porta do resto da prefeitura se fechar, soube que o que acontecesse
no dia seguinte no continente não importava nadinha. A verdadeira
investigação ia se dar bem ali, naquela sala do policial daquela cidadezinha,
com um calendário da Weber Oil pendurado na parede e uma foto da mãe
do Garrett na outra.
“Desculpe por incomodá-la durante o seu luto, Dolores”, disse Garrett.
Ele estava esfregando as mãos, meio nervoso, o que me lembrou o sr. Pease
do banco. Só que Garrett devia ter mais calos nas mãos, porque o barulho
que as palmas faziam com o movimento era de uma lixa em uma tábua
seca. “Mas o dr. McAuliffe aqui tem algumas perguntas que quer fazer a
você.”
Pela cara intrigada do Garrett para o doutor, percebi que ele não sabia
que perguntas poderiam ser, e isso me assustou mais ainda. Não gostei da
ideia daquele escocês tranquilo pensando que a situação era tão séria que
preferiu ficar na dele e não dar ao coitado do Garrett Thibodeau uma
chance de atrapalhar.
“Meux pêsames, sra. St. George”, disse McAuliffe, com aquele sotaque
escocês carregado. Era um homem pequeno, mas compacto e bem
distribuído. Tinha um bigodinho bem-cuidado, tão branco quanto o cabelo
da cabeça, usava um terno de lã de três peças e não tinha cara do pessoal
daqui, tanto quanto não falava como o pessoal daqui. Aqueles olhos azuis
perfuravam a minha testa, e percebi que ele não estava nem um pouco
solidário a mim, mesmo ao me dar os pêsames. Provavelmente não era
solidário a ninguém… nem mesmo a si próprio. “Sinto muitcho muitcho
pela sua dor e infelicidade.”
Claro, e se eu acreditar nisso, você vai dizer de novo, pensei. A última
vez que sentiu muito, doutor, foi na última vez que precisou usar o
banheiro pago e o barbante da sua moedinha da sorte arrebentou. Mas,
nesse momento, decidi que não demonstraria como estava com medo.
Talvez ele tivesse me descoberto, talvez não. Você precisa lembrar que, até
onde eu sabia, ele iria me dizer que, quando deitaram Joe na mesa no porão
do County Hospital e abriram as mãos dele, um pedacinho de náilon
branco caiu de uma delas; um pedaço de roupa íntima feminina. Era
possível, sim, mas eu que não daria a ele a satisfação de me remexer sob as
suas vistas. E ele estava acostumado a pessoas se remexendo quando ele
olhava; tinha passado a ver isso como algo natural, e gostava.
“Muito obrigada”, falei.
“Quer se sentar, dona?”, perguntou ele, como se estivesse no próprio
escritório, e não no do coitado e confuso Garrett.
Eu me sentei, e ele perguntou se eu lhe daria permissão de fumar. Falei
que por mim o sinal estava verde. Ele riu como se eu tivesse feito uma
piada… mas os olhos não riram. Ele pegou um cachimbo preto grande no
bolso do casaco, um de roseira-brava, e o encheu de tabaco. Os olhos não se
afastaram de mim nem por um segundo. Mesmo depois que ele estava com
o cachimbo entre os dentes e havia fumaça exalando, ele não tirou os olhos
de mim. Aquilo me deu arrepios, aqueles olhos me espiando pela fumaça
daquele jeito, e me fizeram pensar no farol de Battiscan de novo: dizem
que brilha por quase três quilômetros mesmo em uma noite com a neblina
tão densa que dá pra abrir caminho com as mãos.
Comecei a me remexer sob aquele olhar dele, apesar de todas as minhas
boas intenções, e aí pensei em Vera Donovan dizendo “Besteira. Maridos
morrem todos os dias, Dolores”. Passou pela minha cabeça que McAuliffe
poderia olhar pra Vera até os olhos caírem da cara e não conseguiria nem
que ela cruzasse as pernas para o outro lado. Pensar nisso me acalmou um
pouco, e eu voltei a me aquietar; apenas cruzei as mãos sobre a bolsa e
esperei.
Finalmente, quando ele viu que eu não ia cair da cadeira e confessar ter
matado o meu marido, e acho que McAuliffe teria gostado que eu
derramasse uma chuva de lágrimas nessa parte, ele tirou o cachimbo da
boca e disse:
“Você falou para o policial que foi o seu marido que fez esses hematomas
no seu pescoço, sra. St. George.”
“Aham”, falei.
“Que você e ele se sentaram na varanda pra ver o eclipse e houve uma
briga.”
“Aham.”
“E sobre o que foi a briga, se eu posso perguntar?”
“Dinheiro principalmente, mas também bebida.”
“Mas você mesma comprou a bebida que ele tomou naquele dia, sra. St.
George! Não é verdade?”
“É.”
Senti que queria falar mais, me explicar, mas não falei, apesar de poder.
Era o que McAuliffe queria, entende? Que eu saísse falando. Que me
explicasse tanto até ir parar numa cela qualquer.
Ele finalmente desistiu de esperar. Remexeu os dedos como se estivesse
irritado e fixou aqueles olhos de farol em mim de novo.
“Depois do incidente do enforcamento, você deixou o seu marido; foi
pra Russian Meadow, no caminho para o East Head, pra ver o eclipse
sozinha.”
“É.”
Ele se inclinou pra frente de repente, as mãozinhas nos joelhinhos, e
disse:
“Sra. St. George, você sabe a direção do vento naquele dia?”
Parecia aquele dia em novembro de 1962, quando eu quase encontrei o
poço velho caindo nele. Foi como se eu ouvisse o mesmo som estalado e eu
pensei: Toma cuidado, Dolores Claiborne; toma muito cuidado. Tem poços pra
todos os lados hoje, e esse homem sabe onde fica cada um deles.
“Não”, falei. “Não sei. E quando não sei de onde o vento está vindo,
normalmente significa que o dia está calmo.”
“Na verdade, tinha só uma brisa…”, Garrett começou a dizer, mas
McAuliffe levantou a mão e o cortou como uma lâmina de faca.
“Estava vindo do oeste”, informou ele. “Um vento oeste, uma brisa do
oeste, se você preferir, de onze a catorze quilômetros por hora, com sopros
de até vinte e quatro. Me parece estranho, sra. St. George, que o vento não
tenha levado os gritos do seu marido quando você estava em Russian
Meadow, a menos de oitocentos metros.”
Não falei nada por pelo menos três segundos. Havia decidido que
contaria até três em pensamento antes de responder a qualquer pergunta.
Fazer isso podia me impedir de agir com precipitação e pagar ao cair em
um dos poços que ele havia cavado pra mim. Mas McAuliffe deve ter
pensado que tinha me confundido desde o começo, porque se inclinou pra
frente na cadeira, e vou declarar e jurar que, por um ou dois segundos, os
olhos foram de um azul quente para um branco quente.
“Não me surpreende”, falei. “Primeiro porque onze quilômetros por hora
não passam de um soprinho de ar em um dia abafado. Além disso havia uns
mil barcos no mar, todos buzinando uns para os outros. E como você sabe
se ele gritou? Você não ouviu grito nenhum.”
Ele se encostou com expressão decepcionada.
“É uma dedução razoável de se fazer”, disse ele. “Sabemos que a queda
em si não o matou, e as provas da perícia sugerem fortemente que ele teve
ao menos um período prolongado de consciência. Sra. St. George, se você
caísse em um poço sem uso e ficasse com uma canela quebrada, um
tornozelo quebrado, quatro costelas quebradas e um pulso torcido, você não
gritaria pedindo ajuda e socorro?”
Esperei os três segundos contando carneirinhos e respondi:
“Não fui eu que caí no poço, dr. McAuliffe. Foi Joe, e ele tinha bebido.”
“Tinha. Você comprou uma garrafa de uísque, apesar de todo mundo
com quem falei dizer que você odiava quando o seu marido bebia, apesar
de Joe ficar desagradável e briguento quando bebia; você comprou uma
garrafa de uísque, e ele não bebeu pouco, porque estava bêbado. Estava
muitcho bêbado. A boca estava cheia de sangue e a camisa, suja de sangue
até o cinto. Quando se junta o fato desse sangue e a informação das costelas
quebradas e as lesões concomitantes que ele havia sofrido nos pulmões,
sabe o que isso indica?”
Um carneirinho… dois carneirinhos… três carneirinhos.
“Não”, falei.
“Várias costelas fraturadas tinham perfurado os pulmões. Essas lesões
sempre resultam em sangramento, mas raramente em um sangramento tão
extensivo. Um sangramento desse tipo deve ter sido causado, deduzo, pelo
falecido ter gritado repetidamente pedindo salvaminto.” Foi assim que ele
falou, Andy. Salvaminto.
Não foi uma pergunta, mas eu contei até três mesmo assim.
“Você acha que ele estava lá embaixo pedindo ajuda. É isso, né?”
“Não, senhora”, retrucou ele. “Eu num só acho; eu tenho uma surteza
moral.”
Dessa vez, eu não esperei nada.
“Dr. McAuliffe, você acha que eu empurrei o meu marido dentro
daquele poço?”
Isso o abalou um pouco. Aqueles olhos de farol não só piscaram, mas por
alguns segundos perderam o brilho. Ele mexeu um pouco no cachimbo,
enfiou na boca e tragou, o tempo todo tentando decidir como deveria lidar
com isso.
Antes que pudesse, Garrett falou. O rosto dele havia ficado vermelho
como um rabanete.
“Dolores”, disse ele, “sei que ninguém acha… quer dizer, que ninguém
nem considerou a ideia de que…”
“É”, interrompeu McAuliffe. Eu havia atrapalhado o fluxo de
pensamento dele por alguns segundos, mas percebi que ele tinha voltado
pra direção principal sem dificuldade nenhuma. “Eu considerei. Você
precisa entender, sra. St. George, que parte do meu trabalho…”
“Ah, não precisa disso de ‘sra. St. George’”, interrompi, “se você vai me
acusar de primeiro empurrar o meu marido no poço e depois ficar olhando
enquanto ele pedia ajuda, pode me chamar de Dolores de uma vez.”
Eu não estava exatamente tentando cutucá-lo nessa hora, Andy, mas foi o
que eu fiz, a segunda vez em poucos minutos. Duvido que ele tivesse sido
tratado assim depois da faculdade de medicina.
“Ninguém está te acusando de nada, sra. St. George”, disse ele, todo
rígido, e o que vi nos olhos dele foi pelo menos ainda não.
“Que bom”, falei. “Porque a ideia de eu empurrar Joe no poço é idiota,
sabe? Ele era pelo menos vinte e cinco quilos mais pesado do que eu, talvez
um tanto mais. Tinha engordado consideravelmente nos últimos anos.
Além disso, Joe não tinha medo de usar os punhos se ficasse irritado ou
alguém o atrapalhasse. Estou dizendo isso como esposa dele há dezesseis
anos, e você vai encontrar bastante gente que vai dizer o mesmo.”
Óbvio que Joe não batia em mim havia muito tempo, mas nunca tentei
mudar a impressão geral na ilha de que ele fazia isso com frequência, e
nessa hora, com os olhos de McAuliffe tentando penetrar na minha testa,
fiquei bem feliz por isso.
“Ninguém está dizendo que você empurrou o seu marido no poço”, disse
o escocês. Ele estava recuando rápido agora. Dava pra ver pelo rosto dele
que sabia disso, mas não tinha ideia de como havia acontecido. Seu rosto
dizia que era eu que deveria estar recuando. “Mas Joe devia estar berrando,
sabe. Deve ter gritado por um bom tempo, horas, talvez, e bem alto.”
Um carneirinho… dois carneirinhos… três.
“Acho que estou entendendo”, falei. “Talvez você ache que ele caiu no
poço por acidente e eu ouvi os gritos e fingi que não ouvi. É aí que você
quer chegar?”
Eu vi pelo rosto dele que era exatamente ali que ele queria chegar.
Também vi que ele estava com raiva de as coisas não estarem saindo como
ele esperava, como havia sido sempre que fazia essas pequenas entrevistas.
Uma bolinha vermelha intensa havia aparecido em cada uma das
bochechas dele. É mais fácil lidar com um homem como McAuliffe quando
ele está com raiva, porque homens como McAuliffe estão acostumados a
manter a compostura enquanto as outras pessoas perdem a própria.
“Sra. St. George, vai ser muitcho difícil chegar a algo de valor aqui se
continuar respondendo às minhas perguntas com outras perguntas.”
“Ora, você não fez uma pergunta, dr. McAuliffe”, falei, arregalando os
olhos com inocência. “Você me disse que Joe devia estar gritando, na
verdade você disse ‘berrando’, então eu só perguntei se…”
“Tudo bem, tudo bem”, disse ele, e botou o cachimbo no cinzeiro de
metal do Garrett com tanta força que fez barulho. Agora, os olhos dele
ardiam, e uma listra vermelha na testa acompanhava as bolinhas de cor nas
bochechas. “Você o ouviu berrando pedindo ajuda, sra. St. George?”
Um carneirinho… dois carneirinhos…
“John, acho que não tem a menor necessidade de importunar a mulher”,
interrompeu Garrett, parecendo mais incomodado do que nunca, e isso
destruiu a concentração daquele escocês almofadinha de novo.
Quase ri em voz alta. Teria sido ruim pra mim se eu tivesse cedido, não
duvido, mas foi quase mesmo assim.
McAuliffe se virou e disse para Garrett:
“Você concordou em me deixar cuidar disso.”
O coitado do Garrett chegou pra trás na cadeira tão rápido que quase
virou, e tenho certeza de que ficou com dor no pescoço.
“Tudo bem, tudo bem, não precisa se irritar assim”, murmurou ele.
McAuliffe se virou pra mim, pronto pra repetir a pergunta, mas nem
deixei. Já havia tido tempo pra contar até quase dez.
“Não”, falei. “Não ouvi nada além de as pessoas no mar buzinando nos
barcos e gritando como loucas quando viram que o eclipse tinha
começado.”
Ele esperou que eu me alongasse na resposta, o velho truque de ficar em
silêncio e deixar as pessoas se afobarem, mas o silêncio se prolongou entre
nós. Mantive as mãos cruzadas sobre a bolsa e deixei rolar. Ele me olhou, e
eu olhei pra ele.
Você vai falar comigo, mulher, disseram os olhos dele. Vai me contar tudo
que eu quero saber… duas vezes se eu quiser.
E os meus olhos responderam: Não vou, camarada. Você pode ficar aí me
perfurando com esses olhos azul-bebê de diamantes até o inferno virar rinque de
patinação, mas não vai arrancar mais nenhuma palavra de mim, a não ser que
abra a boca e peça.
Continuamos em silêncio por quase um minuto inteiro, em um duelo de
olhares, poderíamos dizer, e perto do fim eu me senti enfraquecer,
querendo dizer alguma coisa pra ele, mesmo que fosse “Sua mãe não te
ensinou que é falta de educação encarar?”. Mas aí, Garrett falou… ou o
estômago dele falou. Fez um som looooongo.
McAuliffe olhou pra ele com uma expressão de absoluta repulsa, e
Garrett pegou o canivete e começou a limpar debaixo das unhas. McAuliffe
puxou um caderno do bolso interno do casaco de lã (lã! Em julho!), olhou
alguma coisa e o guardou.
“Joe tentou sair”, disse ele, por fim, com a casualidade de um homem
que diz tenho um compromisso no almoço.
Foi como se tivessem enfiado um garfo na minha lombar, no mesmo
lugar onde Joe havia batido em mim com o pedaço de madeira daquela vez.
Mas tentei não demonstrar.
“Ah, é?”, falei.
“É”, disse McAuliffe. “A parede do poço é cheia de pedras grandes (só
que ele disse ‘peidras’, Andy), e nós encontramos marcas de mão de sangue
em várias. Parece que ele se levantou e começou a subir devagar, aos
poucos. Deve ter sido um esforço hercúleo, feito apesar de uma dor mais
excruciante do que eu consigo imaginar.”
“Sinto muito que ele tenha sofrido”, falei. A minha voz continuava
calma, pelo menos eu acho que estava, mas senti o suor começando a
surgir nos meus sovacos, e me lembro de ficar com medo de surgir na
minha testa ou nas têmporas, onde ele poderia ver. “Coitado do Joe.”
“De facto”, concordou McAuliffe, os olhos de farol mirando e desviando.
“Coitado… do… Joe. Acho que ele poderia ter saído sozinho. Talvez tivesse
morrido logo depois de sair, mas, sim; acho que ele poderia ter saído. Mas
algo impediu.”
“O que foi?”
“Ele sofreu fratura de crânio”, disse McAuliffe. Os olhos continuavam
brilhando, mas a voz estava suave como a de um gato ronronando.
“Encontramos uma pedra grande entre as pernas dele. Estava coberta com
o sangue do seu marido, sra. St. George. E, nesse sangue, achamos uma
pequena quantidade de fragmentos de porcelana. Sabe o que eu deduzo a
partir disso?”
Um… dois… três.
“Pelo jeito, a pedra deve ter quebrado os dentes falsos além da cabeça”,
falei. “Que pena. Joe gostava deles, e eu não sei como Lucien Mercier vai
deixar que ele fique apresentável para o caixão aberto sem aqueles dentes.”
Os lábios de McAuliffe se repuxaram, e dei uma boa olhada nos dentes
dele. Nada de dentadura ali. Acho que ele queria que parecesse um sorriso,
mas não pareceu. Nem um pouco.
“É”, disse ele, mostrando as duas fileiras de dentinhos até as gengivas.
“Sim, esta é a minha conclusão também: os estilhaços de porcelana são da
arcada inferior. Agora, sra. St. George… você tem alguma ideia de como
aquela pedra pode ter atingido o seu marido quando ele estava à beira de
escapar do poço?”
Um… dois… três.
“Não. Você tem?”, perguntei.
“Tenho”, respondeu ele. “Desconfio que alguém tenha arrancado a pedra
da terra e batido com crueldade e malícia no rosto virado e suplicante de
Joe.”
Ninguém disse nada depois disso. Eu queria, Deus sabe que queria;
queria falar o mais rápido possível: Não fui eu. Pode ser que alguém tenha
feito isso, mas não fui eu. Mas não podia, porque eu estava de volta nos
arbustos de amora e, dessa vez, havia porcarias de poços pra todos os lados.
Em vez de falar, eu o encarei, mas senti o suor ameaçando brotar em
mim de novo, e senti as mãos unidas querendo apertar uma a outra. As
unhas ficariam brancas se eu fizesse isso… e ele notaria. McAuliffe era um
homem feito pra reparar nesses detalhes; seria outra rachadura pra qual
apontar a versão dele do farol de Battiscan. Tentei pensar em Vera e como
ela teria olhado pra ele, como se McAuliffe fosse uma bosta de cachorro
pisada em um dos sapatos dela, mas com os olhos dele fixados em mim
como estavam naquele momento, isso não ajudou em nada. Antes, havia
sido quase como se ela estivesse ali na sala comigo, mas não estava mais
assim. Agora, não havia ninguém lá além de mim e aquele doutorzinho
escocês engomadinho, que devia se imaginar como os detetives amadores
nas histórias de revista (e cujo testemunho já tinha enviado mais de dez
pessoas por toda a costa pra prisão, eu descobri depois), e senti que estava
chegando mais e mais perto de abrir a boca e falar alguma besteira. E o pior
de tudo, Andy, é que eu não fazia a menor ideia do que seria quando
finalmente saísse. Ouvia o relógio na mesa de Garrett tiquetaquear. Era um
som alto e seco.
E eu ia dizer algo quando a pessoa de quem eu havia me esquecido,
Garrett Thibodeau, falou de repente. A voz dele estava preocupada e
rápida, e percebi que ele também não aguentava mais aquele silêncio. Devia
achar que ia continuar até alguém ter que gritar só pra aliviar a tensão.
“Ora, John”, disse ele, “achei que a gente tinha combinado que, se Joe
tivesse puxado aquela pedra do jeito certo, poderia ter se soltado sozinha
e…”
“Porra, será que você não pode calar essa boca?”, gritou McAuliffe em uma
voz alta e frustrada, e eu relaxei.
Tinha acabado. Eu sabia, e acredito que o escocês sabia também. Era
como se nós dois estivéssemos em um aposento escuro juntos, ele fazendo
cócegas no meu rosto com o que poderia ser uma navalha… e aí o
estabanado do policial Thibodeau deu uma topada, caiu na direção da
janela e a persiana subiu com um estardalhaço, deixando a luz do dia
entrar, e eu vi que o que ele estava usando pra tocar em mim era só uma
pena, afinal.
Garrett resmungou algo sobre não haver necessidade de McAuliffe falar
com ele daquele jeito, mas o doutor não prestou atenção. Ele se virou pra
mim e disse:
“E então, sra. St. George?”, perguntou, de um jeito duro, como se eu
estivesse encurralada, mas àquelas alturas nós dois sabíamos que a situação
não era bem essa.
Ele só podia torcer pra eu cometer um erro… mas eu tinha três filhos
em quem pensar, e ter filhos torna uma pessoa cuidadosa.
“Eu já contei o que eu sei”, respondi. “Joe ficou bêbado quando
estávamos esperando o eclipse. Fiz um sanduíche pra ele, achando que
podia ajudar deixá-lo um pouco mais sóbrio, mas não ajudou. Ele começou
a gritar, me enforcou e me bateu um pouco, e eu fui pra Russian Meadow.
Quando voltei, ele tinha sumido. Achei que tinha saído com um dos
amigos, mas ele estava no poço o tempo todo. Acho que devia estar
tentando pegar um atalho pra estrada. Talvez até estivesse me procurando
pra pedir desculpas. Isso é algo que eu nunca vou saber… e talvez seja
melhor assim.” Lancei um olhar severo pra ele. “Talvez você devesse
experimentar um pouco desse remédio também, dr. McAuliffe.”
“Não se preocupe em me dar conselhos, senhora”, disse McAuliffe, e
aquelas bolas de cor nas bochechas dele estavam mais fortes do que nunca.
“Você está feliz de ele estar morto? Me diz isso!”
“O que isso tem a ver com o que aconteceu com ele? Meu Deus, qual é o
seu problema?”
McAuliffe não respondeu, apenas pegou o cachimbo com a mão que
estava tremendo um pouquinho e foi acendê-lo. Não fez nenhuma outra
pergunta; a última que recebi naquele dia foi feita por Garrett Thibodeau.
McAuliffe não a fez porque não interessava, pelo menos pra ele. Mas era
importante para Garrett, e mais ainda pra mim, porque nada acabaria
quando eu saísse da prefeitura naquele dia; na verdade, eu sair seria só o
começo. Essa última pergunta e o jeito como eu responderia importavam
muito, porque em geral as coisas que não significariam nada em um
tribunal são as mais comentadas nas cercas de quintal enquanto as
mulheres penduram a roupa lavada ou nos barcos de pesca de lagosta
enquanto os homens estão com as costas na cabine almoçando. Essas coisas
podem não mandar ninguém pra prisão, mas podem enforcar a pessoa aos
olhos da cidade.
“Por que em nome de Deus você comprou uma garrafa de bebida pra
ele?”, Garrett praticamente baliu. “O que deu em você, Dolores?”
“Achei que ele me deixaria em paz se tivesse alguma coisa pra beber”,
falei. “Achei que a gente ia poder ficar sentado em paz vendo o eclipse, e
ele me deixaria em paz.”
Não chorei, não de verdade, mas senti uma lágrima escorrer pela
bochecha. Às vezes, acho que foi esse o motivo de eu conseguir continuar
morando em Little Tall por mais trinta anos, aquela única lágrima. Se não
fosse isso, as pessoas talvez tivessem me expulsado daqui com os cochichos,
acusações e dedos apontados pra mim pelas costas… é, no fim das contas
podia ter acontecido. Sou durona, mas não sei se é possível alguém ser
durão a ponto de aguentar trinta anos de fofoca e bilhetinhos anônimos
dizendo coisas como “Assassina”. Recebi alguns, e tenho uma boa ideia de
quem mandou, apesar de não importar mais a esta altura. Mas pararam
quando as aulas voltaram no outono. Então acho que podemos dizer que
devo todo o resto da minha vida, inclusive esta parte aqui, àquela única
lágrima… e a Garrett espalhar que, no final, não tive um coração tão de
pedra assim a ponto de não chorar por Joe. Não houve nada de calculado
naquilo, então não vai achando que teve. Eu estava pensando em como
lamentava que Joe houvesse sofrido do jeito que o escocês engomadinho
havia dito. Apesar de tudo que ele havia feito e como eu havia passado a
odiá-lo desde que descobri o que estava tentando fazer com Selena, nunca
pretendi que ele sofresse. Achava que a queda iria matá-lo na hora, Andy,
juro em nome de Deus que eu achava que a queda seria suficiente pra
matá-lo de uma vez.
O coitado do Garrett Thibodeau ficou vermelho como uma placa de
pare. Pegou uma bola de lenços de papel na caixa sobre a mesa e meio que
empurrou na minha direção sem olhar; acho que pensou que aquela
primeira lágrima seria o começo de uma choradeira. Também pediu
desculpas por me fazer passar por um “interrogatório tão estressante”.
Aposto que essas eram as palavras mais complexas que ele conhecia.
Ao ouvir isso, McAuliffe soltou um Hunf!, disse algo sobre estar no
inquérito pra ouvir quando tomassem o meu depoimento e saiu… furioso,
na verdade, depois bateu a porta com tanta força que sacudiu o vidro.
Garrett esperou que ele se afastasse pra me levar até a porta, segurando
meu braço, mas ainda sem me olhar (foi meio cômico, até) e sem parar de
murmurar. Não sei bem sobre o que ele estava murmurando, mas acho que
era o jeito de Garrett de pedir desculpas. Aquele homem tinha um coração
bom e não conseguia suportar ver gente infeliz, isso eu tenho que dizer a
favor dele… e vou dizer outra coisa a favor de Little Tall: em que outro
lugar um homem desses podia ser não só policial por quase vinte anos, mas
ganhar um jantar em sua homenagem com ovação de pé e tudo quando
finalmente se aposentou? Vou dizer o que acho: um lugar onde um homem
de coração bom pode ter sucesso como agente da lei não é um lugar ruim
pra se passar a vida. Nem um pouco. Mesmo assim, nunca fiquei tão feliz
de ouvir uma porta se fechar do que quando a de Garrett se fechou naquele
dia.
Isso tudo foi um saco, e o inquérito no dia seguinte não foi nada em
comparação. McAuliffe me fez muitas das mesmas perguntas, e foram
perguntas difíceis, mas não tinham mais poder sobre mim, e nós dois
sabíamos. A minha única lágrima foi ótima, mas as perguntas de McAuliffe,
além do fato de todo mundo poder ver que ele estava puto como um urso
comigo, ajudaram muito a dar início às fofocas que correram pela ilha
desde então. Ah, bom; teriam falado de qualquer jeito, né?
O veredito foi morte por infortúnio. McAuliffe não gostou, e no final leu
as descobertas dele com uma voz dura e seca, sem erguer os olhos nem
uma vez, mas o que disse foi oficial: Joe caiu no poço quando estava
bêbado, provavelmente pediu ajuda por um tempo, mas sem resposta, e
tentou escalar o poço sozinho. Conseguiu percorrer a maior parte do
caminho até o topo, mas apoiou o peso na pedra errada. A pedra se soltou,
acertou a cabeça dele e fraturou o crânio, sem mencionar a dentadura, e o
derrubou de volta para o fundo do poço, onde ele morreu.
Talvez a minha maior sorte, e isso eu só percebi depois, foi que não
conseguiram encontrar motivo pra jogar nas minhas costas. Claro que as
pessoas da cidade (e o dr. McAuliffe também, não tenho dúvida) achavam
que, se eu tivesse matado Joe, teria sido pra me livrar das surras que ele me
dava, mas isso por si só não tinha peso suficiente. Só Selena e o sr. Pease
sabiam quais seriam os meus verdadeiros motivos, e ninguém, nem mesmo
o espertinho do dr. McAuliffe, pensou em interrogar o sr. Pease. E o sr.
Pease também não se apresentou por conta própria. Se tivesse, a nossa
conversinha no The Chatty Buoy teria sido divulgada, e ele provavelmente
ficaria encrencado com o banco. Eu havia convencido o sujeito a violar
regras, afinal.
Quanto à Selena… bom, acho que Selena me julgou em um tribunal
próprio. De vez em quando eu notava os olhos dela em mim, escuros e
tempestuosos, e na minha mente eu a ouvia perguntando: Você fez alguma
coisa com ele? Fez, mãe? É culpa minha? Sou eu que tenho que pagar?.
Acho que ela pagou, essa é a pior parte. A garotinha da ilha que nunca
havia saído do estado do Maine até ir a um encontro de natação em Boston
quando tinha dezoito anos se tornou uma profissional inteligente e de
sucesso em Nova York. Saiu um artigo sobre ela no New York Times dois
anos atrás, sabia? Ela escreve pra um monte de revistas e ainda encontra
tempo pra escrever pra mim uma vez por semana… mas parecem cartas
por obrigação, assim como os telefonemas duas vezes por mês parecem
telefonemas por obrigação. Acho que as ligações e os bilhetinhos são o jeito
como ela paga ao coração pra ficar quieto por ela nunca voltar pra cá, por
ter cortado os laços comigo. Sim, acho que ela pagou, sim; acho que a
pessoa com menos culpa de todas pagou mais, e ainda está pagando.
Ela tem quarenta e quatro anos, nunca se casou, está magra demais (vejo
nas fotos que ela manda às vezes) e acho que ela bebe; já percebi pela voz
dela mais de uma vez quando me liga. Acho que esse pode ser um dos
motivos pra ela não vir mais em casa; não quer que eu a veja bebendo como
o pai bebia. Ou talvez porque tem medo do que poderia dizer se bebesse
demais comigo por perto. Do que poderia perguntar.
Mas não importa; são águas passadas. Eu me safei, e é isso que importa.
Se tivesse seguro ou se Pease não tivesse ficado de boca calada, não sei se
teria. Das duas possibilidades, um seguro de vida polpudo talvez fosse pior.
A última coisa nessa Terra redonda de Deus de que eu precisava era de um
investigador espertinho de seguro se unindo àquele doutor escocês
sabichão que já estava puto da vida com a ideia de ser vencido por uma
mulher burra moradora de uma ilha. Não, se fossem dois, acho que teriam
me pegado.
Então, o que aconteceu? Ora, o que imagino que sempre aconteça em
casos assim, quando um assassinato foi cometido e o culpado não foi
descoberto. A vida seguiu, só isso. Ninguém apareceu com informações de
último minuto, como nos filmes, não tentei matar mais ninguém e Deus
não mandou um raio pra me matar. Talvez Ele tenha achado que jogar um
raio em mim por causa de gente como Joe St. George seria desperdício de
eletricidade.
A vida continuou. Voltei pra Pinewood e pra Vera. Quando voltou pra
escola no outono, Selena retomou as velhas amizades e às vezes eu a ouvia
rindo ao telefone. Quando finalmente caiu a ficha, o pequeno Pete sofreu
muito… e Joe Junior também. Joey sofreu mais do que eu esperava, na
verdade. Perdeu peso e teve alguns pesadelos, mas no verão seguinte
parecia bem de novo. A única coisa que realmente mudou durante o resto
de 1963 foi que chamei Seth Reed pra cimentar a abertura do velho poço.
Seis meses depois que ele morreu, o inventário de Joe foi fechado no
Juízo do Inventário do Condado. Eu nem estava presente. Uma semana
depois, recebi um papel me informando que era tudo meu: eu podia
vender, trocar ou jogar no mar azul. Quando terminei de verificar tudo que
ele tinha, achei que a última opção era a melhor. Mas descobri algo meio
surpreendente: se o seu marido morre subitamente, pode ser útil que todos
os amigos dele sejam uns idiotas, como os de Joe eram. Vendi o rádio de
ondas curtas velho em que ele estava mexendo havia uns dez anos pra
Norris Pinette por vinte e cinco dólares, e três picapes velhas que estavam
no quintal pra Tommy Anderson. Aquele trouxa ficou feliz da vida de ficar
com os carros, e eu usei o dinheiro pra comprar um Chevy 1959 que
chiava, mas funcionava direito. Também transferi o dinheiro que estava na
conta de Joe pra mim e reabri as poupanças das crianças pra faculdade.
Ah, e mais uma coisa: em janeiro de 1964, voltei a usar o meu nome de
solteira. Não gritei aos quatro ventos nem nada, mas eu que não ia ficar
arrastando o St. George atrás de mim pelo resto da vida, como uma lata
amarrada no rabo de um cachorro. Acho que daria pra dizer que cortei o
barbante que prendia a lata… mas não me livrei dele tão fácil quanto do
nome, isso eu posso dizer.
Não que eu esperasse; eu tenho sessenta e cinco anos e sei por pelo
menos cinquenta que um ser humano passa a maior parte da vida fazendo
escolhas e pagando boletos no vencimento. Algumas dessas escolhas são
horríveis, mas isso não dá a uma pessoa o direito de dar as costas pra essa
obrigação, principalmente quando outros dependem dela pra fazer por eles
o que eles mesmos não podem fazer. Em um caso assim, você só precisa
fazer a melhor escolha que puder e pagar o preço. Pra mim, o preço foram
as muitas noites em que acordei suando frio por causa dos pesadelos e as
outras tantas em que não consegui dormir; isso, e o som que a pedra fez
quando bati na cara dele, quebrando o crânio e a dentadura, aquele som de
um prato de porcelana em uma lareira de tijolos. Eu o ouvi por trinta anos.
Às vezes isso me acorda, às vezes é o que me impede de dormir e às vezes
me surpreende em plena luz do dia. Posso estar varrendo a varanda em
casa, polindo a prata na casa de Vera, ou me sentando pra almoçar com a
televisão ligada na Oprah, de repente eu o ouço. Aquele som. Ou o baque
de quando ele bateu no fundo. Ou a voz dele, saindo do poço: “Do-looo-
resss…”.
Acho que esses sons que às vezes escuto não são tão diferentes do que
Vera via quando gritava sobre os fios nos cantos ou as bolas de poeira
embaixo da cama. Havia ocasiões, principalmente depois que ela começou
a piorar, em que eu me deitava com ela na cama, abraçava-a e pensava no
som que a pedra havia feito, então fechava os olhos e via um prato de
porcelana se espatifando todinho numa lareira de tijolos. Quando eu via
isso, eu a abraçava como se ela fosse a minha irmã, ou como se fosse eu
mesma. Ficávamos deitadas, cada uma com o seu medo, até finalmente
cochilarmos, eu com ela pra afastar as bolas de poeira e ela comigo pra
afastar o som do prato de porcelana. E às vezes, antes de dormir, eu
pensava: É assim. É assim que se paga por ser uma filha da puta. E não adianta
dizer que se você não tivesse sido uma filha da puta você não teria tido que
pagar, porque às vezes o mundo faz de você uma filha da puta. Quando tudo
está horrível e escuro lá fora, e só tem você dentro pra primeiro acender uma luz
e depois cuidar dela, você tem que ser uma filha da puta. Mas, ah, o preço. O
preço é terrível.
Andy, será que posso tomar mais um dedinho daquela sua garrafa? Não
vou contar pra ninguém.
Obrigada. E obrigada a você, Nancy Bannister, por aguentar uma velha
matraca como eu. Como estão os seus dedos?
É? Que bom. Não perde a coragem agora; comecei errado, eu sei, mas
acho que finalmente cheguei à parte sobre a qual vocês querem ouvir. Isso
é bom, porque está tarde e eu estou cansada. Trabalhei a vida todinha, mas
não consigo me lembrar de estar tão cansada quanto agora.
Eu estava pendurando a roupa lavada ontem de manhã… sinto como se
tivesse sido seis anos atrás, mas foi só ontem. Vera estava tendo um dos
dias bons. Por isso tudo foi tão inesperado, e em parte por que fiquei muito
nervosa. Quando tinha os dias bons, ela às vezes se tornava uma filha da
puta, mas aquela foi a primeira e última vez que ficou maluca.
Eu estava lá embaixo no pátio lateral, e ela estava lá em cima na cadeira
de rodas, supervisionando a operação como gostava de fazer. De vez em
quando gritava:
“Seis pregadores, Dolores! Seis pregadores em cada um dos lençóis! Não
vai tentar se safar só com quatro porque eu estou olhando!”
“É, eu sei, e aposto que você queria que estivesse fazendo vinte graus a
menos e com um vento de vinte soprando”, falei.
“O quê?”, gritou ela pra mim. “O que você disse, Dolores Claiborne?”
“Falei que alguém deve estar espalhando estrume no jardim, porque
estou sentindo mais cheiro de merda aqui do que o habitual.”
“Você está dando uma de espertinha, Dolores?”, gritou ela, com a voz
falhada e instável.
Falou como em qualquer dia em que houvesse alguns raios de sol a mais
do que o habitual entrando no sótão da cabeça dela. Eu sabia que ela
poderia ser sacana mais tarde, mas não me importei muito; àquela altura,
ficava feliz só de Vera falar coisas com sentido quando estava daquele jeito.
Pra falar a verdade, era como nos velhos tempos. Ela andava mais confusa
do que prova de matemática em grego nos últimos três ou quatro meses, e
foi bom tê-la de volta… ou tanto da antiga Vera quanto daria pra ter, se é
que você me entende.
“Não, Vera. Se eu fosse esperta, teria parado de trabalhar pra você muito
tempo atrás”, gritei de volta.
Esperava que ela gritasse alguma outra coisa pra mim nessa hora, mas
ela não falou nada. Continuei pendurando os lençóis, as fraldas, os
paninhos e todo o resto. Mas aí, quando faltava metade da cesta, eu parei.
Tive uma sensação ruim. Não sei dizer por quê, nem quando começou. De
repente, estava lá. E só por um momento um pensamento muito estranho
me ocorreu: Aquela garota está com problemas… aquela que eu vi no dia do
eclipse, a que me viu. É adulta agora, quase da idade da Selena, mas está com
um problemão.
Eu me virei e olhei pra cima, quase esperando ver a versão adulta
daquela garota com o vestido listrado colorido e o batom rosa, mas não vi
ninguém, e aquilo estava errado. Estava errado porque Vera deveria estar lá,
quase se pendurando pra fora pra ter certeza de que eu estava usando a
quantidade certa de pregadores. Mas ela tinha sumido, e eu não entendi
como isso era possível, porque eu mesma havia a colocado na cadeira e
acionado o freio quando estava junto à janela, como ela gostava.
Mas aí ouvi o grito dela.
“Do-loooo-ressss!”
Senti um arrepio me subir pela espinha quando ouvi isso, Andy! Era
como se Joe tivesse voltado. Por um momento, fiquei paralisada. O grito
veio de novo, e na segunda vez reconheci que era ela.
“Do-loooo-ressss! São as bolinhas de poeira! Elas estão por todo lado! Ah,
Deus do céu! Ah, Deus do céu! Do-loooo-ress, socorro! Me ajuda!”
Eu me virei pra correr pra casa, tropecei na porcaria da cesta de roupas
lavadas e caí em cima dos lençóis que havia acabado de pendurar. Consegui
me emaranhar não sei como e tive que me esforçar pra sair. Por um
minuto, pareceu que haviam crescido mãos nos lençóis, e que os tecidos
estavam tentando me estrangular ou me segurar. Vera não parou de gritar
nem por um segundo, e pensei no sonho que havia tido aquela vez, o sonho
da cabeça de poeira com aqueles montes de dentes afiados. Só que o que vi
na minha mente foi a cara de Joe naquela cabeça, e os olhos estavam
escuros e vazios, como se alguém tivesse enfiado dois pedaços de carvão em
uma nuvem de poeira e eles tivessem ficado lá flutuando.
“Dolores, ah, vem rápido! Por favor, vem rápido! As bolinhas de poeira! AS
BOLINHAS DE POEIRA ESTÃO POR TODA PARTE!”
Depois disso, ela só berrou. Foi horrível. Nem nos seus sonhos mais
loucos você imaginaria que uma filha da puta velha e gorda como Vera
Donovan podia gritar tão alto. Foi como se um incêndio, uma inundação e
o fim do mundo tivessem começado todos de uma vez.
Lutei pra me livrar dos lençóis e, quando me levantei, senti uma das
alças do vestido anágua arrebentar, como no dia do eclipse, quando Joe
quase me matou antes de eu conseguir me livrar dele. E sabe aquela
sensação que a gente tem quando parece que já esteve em um lugar e sabe
tudo que as pessoas vão dizer antes que digam? Essa sensação veio tão forte
que parecia que havia fantasmas em volta de mim, me fazendo cócegas
com dedos que eu não conseguia ver.
E sabe de outra coisa? Pareciam fantasmas de poeira.
Corri pra porta da cozinha e subi a escada dos fundos tão rápido quanto
minhas pernas permitiram, e o tempo todo ela só berrava sem parar. O
meu vestido anágua começou a escorregar, e quando cheguei ao patamar
dos fundos olhei pra trás com a certeza de que veria Joe tropeçando atrás
de mim pra agarrar a barra.
Aí olhei na outra direção e vi Vera. Ela estava três quartos do caminho do
corredor na direção da escadaria da frente, andando aos trancos e
barrancos de costas pra mim e berrando no caminho. Havia uma mancha
marrom grande na parte de trás da camisola, onde ela havia se cagado…
não por maldade nem sacanagem nessa última vez, mas de puro medo.
A cadeira de rodas estava entalada de lado na porta do quarto. Ela devia
ter soltado o freio quando viu o que a havia assustado tanto. Em todas as
outras vezes, quando tinha um ataque de horror, a única coisa que Vera
conseguia fazer era ficar sentada ou deitada onde estava e gritar por ajuda,
e havia muita gente que diria que ela não podia se mover por vontade
própria, mas ela andou ontem; juro que andou. Soltou o freio, virou a
cadeira e empurrou-a pelo quarto, depois conseguiu sair quando ficou
presa na porta e foi andando pelo corredor.
Fiquei paralisada por um ou dois segundos ao vê-la se movimentar e me
perguntando o que Vera tinha visto que era tão terrível a ponto de levá-la a
fazer o que estava fazendo, a andar depois que os seus dias de caminhada
deviam ter acabado… o que era aquilo que ela só conseguia chamar de
bolinha de poeira.
Mas entendi pra onde ela estava indo. Direto pra escada.
“Vera! Vera, pode parar com essa besteira! Você vai cair! Para!”, gritei pra
ela.
Saí correndo o mais rápido que consegui. Aquela sensação de que tudo
estava acontecendo pela segunda vez surgiu em mim de novo, só que dessa
vez pareceu que eu era Joe, que era eu que estava tentando segurar algo.
Não sei se ela não me ouviu ou se ouviu e pensou com aquele cérebro
velho e danificado que eu estava na frente, e não atrás. A única coisa de que
tenho certeza é que continuou gritando. “Dolores, me ajuda, Dolores. As
bolinhas de poeira”, e andou um pouco mais rápido.
Estava quase no fim do corredor. Passei correndo pela porta do quarto e
arranhei o tornozelo com força em um dos apoios de pé da cadeira de
rodas; aqui, dá pra ver o hematoma. Corri com toda a velocidade, gritando
“Para, Vera! Para!”, até a minha garganta doer.
Ela atravessou o patamar e lançou um pé no espaço. Eu não poderia tê-la
salvado nessa hora, não importa o que eu fizesse; a única coisa que eu
poderia ter feito era me jogar com ela, mas em uma situação assim a gente
não tem tempo de pensar nem de avaliar a consequência. Pulei na direção
dela assim que aquele pé desceu no ar e o corpo dela começou a se inclinar
pra frente. Tive um último vislumbre do rosto de Vera. Acho que ela não
sabia que ia cair; não havia nada ali além de pânico e olhos esbugalhados.
Eu já tinha visto aquela cara, se bem que nunca tão distorcida. E posso
dizer que não tinha nada a ver com medo de cair. Vera estava pensando no
que estava atrás dela, não no que estava à frente.
Estendi a mão no ar. Mas não peguei nada além de uma leve dobra da
camisola dela entre o meu segundo e terceiro dedos da mão esquerda. O
tecido escorregou, como um sussurro.
“Do-loooo…”, gritou ela, e em seguida houve um baque sólido e pesado.
O meu sangue gela só de lembrar daquele som; foi como o que Joe fez
quando bateu no fundo do poço. Eu a vi dar uma cambalhota e ouvi algo
quebrar. O som foi limpo e seco, como um pedaço de graveto quando a
gente quebra no joelho. Vi o sangue jorrar pela lateral da cabeça dela, e isso
foi tudo que quis ver. Eu me virei tão rápido que os meus pés se
emaranharam um no outro e caí de joelhos. Olhei pelo corredor na direção
do quarto, e o que eu vi me fez gritar. Era Joe. Por alguns segundos, eu o vi
com a mesma clareza que vejo você agora, Andy. Vi o rosto sujo e
sorridente me espiando por baixo da cadeira de rodas, pelos raios do aro
que havia entalado na porta.
De repente sumiu, e eu ouvi os gemidos e o choro de Vera.
Não conseguia acreditar que ela tinha sobrevivido à queda; ainda não
consigo. Joe também não morreu de cara, óbvio, mas ele era um homem no
auge da vida, e ela era uma velha fraca que havia sofrido uma dezena de
pequenos derrames e pelo menos três grandes. Além do mais, não tinha
lama nem musgo pra amortecer a queda dela, como teve no caso dele.
Eu não queria me aproximar, não queria ver onde ela estava quebrada e
sangrando, mas não tinha o que discutir; eu era a única presente, e isso
significava que a escolhida era eu. Quando me levantei (precisei me apoiar
no alto do corrimão de tão bambos que os meus joelhos estavam), pisei na
barra do meu próprio vestido anágua. A outra alça arrebentou. E levantei
um pouco o vestido, pra poder tirá-lo… e isso também foi como antes. Eu
me lembro de olhar pra baixo, pras pernas, pra ver se estavam arranhadas e
sangrando por causa dos espinhos das amoreiras, mas óbvio que não tinha
nada assim.
Eu me sentia febril. Se você já ficou doente e a sua temperatura subiu
muito, sabe do que estou falando. Você não se sente fora do mundo
exatamente, mas também não se sente dentro. É como se tudo tivesse
virado vidro e não houvesse nada em que fosse possível se apoiar com
firmeza, tudo fica escorregadio. Foi assim que me senti quando parei no
patamar, segurando o corrimão com força e olhando pra onde Vera havia
caído.
Ela estava deitada um pouco depois da metade da escada, com as duas
pernas tão torcidas embaixo do corpo que nem dava pra vê-las direito. O
sangue escorria por um lado daquele rosto maltratado. Quando desci aos
trancos e barrancos até onde Vera estava, ainda agarrada ao corrimão, um
dos olhos dela rolou pra cima pra me olhar. Era a expressão de um animal
preso em uma armadilha.
“Dolores, aquele filho da puta está atrás de mim todos esses anos”,
sussurrou ela.
“Shh. Não tenta falar”, aconselhei.
“Está, sim”, disse ela, como se eu a tivesse contrariado. “Ah, que filho da
mãe. Que filho da mãe maldito.”
“Vou lá embaixo. Preciso chamar o médico.”
“Não”, respondeu ela, e então segurou o meu pulso com uma das mãos.
“Nada de médico, nada de hospital. As bolinhas de poeira… até lá. Em
todos os lugares.”
“Você vai ficar bem, Vera”, afirmei, soltando a mão. “Desde que fique
paradinha e não se mexa, vai ficar bem.”
“Dolores Claiborne diz que eu vou ficar bem!”, exclamou ela, e era aquela
voz seca e feroz que usava antes de ter os derrames e ficar com a cabeça
confusa. “Que alívio ter uma opinião profissional!”
Ouvir aquela voz depois de tantos anos foi como levar um tapa na cara.
Senti um choque tão grande que fui arrancada do pânico e olhei de verdade
no rosto dela pela primeira vez, da forma que se olha pra uma pessoa que
sabe exatamente o que está dizendo e pronuncia cada palavra com
convicção.
“Estou praticamente morta. E você sabe disso tão bem quanto eu. Acho
que quebrei a coluna”, disse ela.
“Você não sabe, Vera”, falei, mas não estava tão ansiosa pra ir pegar o
telefone como antes.
Acho que sabia o que estava por vir, e, se ela me pedisse o que eu achava
que iria pedir, eu não via como poderia recusar. Eu tinha uma dívida com
ela desde aquele dia chuvoso de outono em 1962, quando me sentei na
cama dela e caí no choro com o avental na cara, e os Claiborne sempre
pagam as suas dívidas.
Quando Vera falou comigo de novo, foi com a clareza e a lucidez de
trinta anos antes, quando Joe estava vivo e os meus filhos ainda moravam
comigo.
“Sei que só tem uma decisão que vale a pena”, disse ela. “E essa decisão é
se vou morrer no meu tempo ou no tempo do hospital. O tempo do
hospital seria demorado demais. O meu tempo é agora, Dolores. Estou
cansada de ver a cara do meu marido nos cantos quando estou fraca e
confusa. Estou cansada de ver tirarem aquele Corvette do rio ao luar, com a
água escorrendo pela janela aberta do lado do passageiro…”
“Vera, eu não sei do que você está falando”, falei.
Ela levantou a mão e acenou pra mim daquele jeito impaciente de antes
por um ou dois segundos; depois, a mão voltou para o lugar na escada ao
lado do corpo.
“Estou de saco cheio de mijar pelas pernas e esquecer quem veio me ver
meia hora depois que a pessoa foi embora. Quero que isso acabe. Você vai
me ajudar?”
Eu me ajoelhei ao lado dela. Peguei a mão que havia caído na escada e
segurei junto aos seios. Pensei no som que a pedra tinha feito quando bateu
na cara de Joe, aquele som de um prato de porcelana se quebrando em
pedacinhos em uma lareira de tijolos. Eu me perguntei se conseguiria ouvir
aquilo de novo sem perder a cabeça. E sabia que seria o mesmo som,
porque quando ela gritou o meu nome foi igual, quando ela caiu na escada
foi igual, e quando ela se quebrou em pedacinhos, como sempre havia tido
medo de que as empregadas quebrassem os cristais delicados que ela tinha
na sala, foi igual, e o meu vestido anágua estava no patamar do alto da
escada em uma bolinha de náilon branco com as duas alças arrebentadas, e
isso também foi igual a antes. Se eu acabasse com ela, o som seria igual a
quando fiz com Joe, eu sabia. Aham. Tinha certeza disso assim como sei
que a East Lane termina naquela escada velha e bamba pela lateral do East
Head.
Segurei a mão dela e pensei em como o mundo é: às vezes os homens
maus sofrem acidentes e as mulheres boas viram filhas da puta. Olhei para
o jeito horrível e indefeso com que os olhos dela se reviraram pra olhar o
meu rosto, e percebi como o sangue do corte no couro cabeludo descia
pelas rugas fundas na bochecha, assim como a chuva de primavera corre
nos sulcos colina abaixo.
“Se é isso que você quer, Vera, eu vou te ajudar”, falei.
Ela começou a chorar. Foi a única vez em que não estava confusa e
perdida que eu a vi fazer isso.
“Isso”, disse ela. “Sim, é o que eu quero. Que Deus te abençoe, Dolores.”
“Não se mexa”, falei, e então levantei a mão velha e enrugada dela até os
lábios e a beijei.
“Rápido, Dolores. Se você quer mesmo me ajudar, vai rápido”, disse ela.
Antes que a gente perca a coragem, era o que os olhos dela diziam.
Beijei a mão dela de novo, coloquei-a sobre a barriga e me levantei. Não
tive dificuldade dessa vez; a força tinha voltado às minhas pernas. Desci o
resto da escada e fui até a cozinha. Tinha preparado tudo pra cozinhar
antes de ir pendurar a roupa; naquele dia, havia decidido que era um bom
dia pra fazer pão. Vera tinha um rolo de macarrão, um objeto grande e
pesado, feito de mármore cinza com veios pretos. Estava na bancada, ao
lado da lata amarela de farinha. Eu o peguei ainda com a sensação de estar
em um sonho ou com febre alta e andei pela sala na direção do saguão de
entrada. Quando passei pelo cômodo com todos aqueles objetos velhos e
lindos, pensei em todas as vezes que tinha feito o truque com o aspirador
de pó e que Vera havia se vingado de mim por um tempo. No final, ela
sempre entendia tudo e se vingava… Não é por isso que eu estou aqui?
Saí da sala e fui para o saguão, depois subi a escada na direção dela,
segurando o rolo de macarrão por um dos cabos de madeira. Quando
chegasse ao lugar onde Vera estava com a cabeça apontada pra baixo e as
pernas retorcidas embaixo do corpo, eu não pretendia fazer pausa
nenhuma. Sabia que, se hesitasse, não conseguiria fazer o que precisava
fazer. Não haveria mais conversa nenhuma. Quando eu chegasse, pretendia
me apoiar em um joelho e bater na cabeça dela com aquele rolo de
mármore com o máximo de força que eu pudesse, o mais rápido que
pudesse. Talvez parecesse algo que aconteceu quando ela caiu, ou talvez
não, mas eu pretendia fazer de qualquer jeito.
Quando me ajoelhei ao lado dela, vi que não havia necessidade. Vera
tinha feito tudo sozinha, afinal, como fazia quase tudo na vida. Enquanto
eu estava na cozinha pegando o rolo de macarrão, ou talvez voltando pela
sala, Vera simplesmente fechou os olhos e morreu.
Eu me sentei ao lado dela, coloquei o rolo de macarrão na escada, peguei
a mão dela e a segurei no colo. Há ocasiões na vida de uma pessoa em que
parecem não haver minutos reais, e por isso não dá pra contar. Só sei que
eu fiquei com ela um tempo. Não sei se falei algo ou não. Acho que falei,
acho que agradeci a ela por ir, por me deixar ir, por não me obrigar a passar
por tudo aquilo de novo. Mas talvez eu só tenha pensado nisso tudo. Eu me
lembro de colocar a mão dela na minha bochecha, virá-la e beijar a palma.
De olhar pra pele e pensar em como era rosada e limpa. As linhas haviam
quase sumido, e parecia a mão de um bebê. Eu sabia que precisava me
levantar e ligar pra alguém e contar o que tinha acontecido, mas estava
exausta, exausta demais. Parecia mais fácil ficar sentada lá, segurando a
mão de Vera.
Mas aí a campainha tocou. Se não tivesse tocado, eu teria ficado sentada
lá por mais tempo, acho. Mas você sabe como é quando alguém toca a
campainha: dá aquela sensação de que você tem que atender a qualquer
custo. Eu me levantei e desci a escada um degrau de cada vez, como uma
mulher dez anos mais velha do que sou. E a verdade é que eu me sentia dez
anos mais velha, agarrada ao corrimão o tempo todo. Eu me lembro de
pensar que o mundo ainda parecia ser feito de vidro e que eu precisava
tomar um cuidado danado pra não escorregar e me cortar na hora de soltar
o corrimão e atravessar o saguão até a porta.
Era Sammy Marchant, com o chapéu de carteiro virado pra trás na
cabeça daquele jeito bobo de sempre. Ele deve achar que usar o boné assim
dá um ar de astro do rock. Ele estava com as cartas em uma das mãos e na
outra um daqueles envelopes acolchoados que chegam por carta registrada
quase toda semana de Nova York, notícias do que estava acontecendo com
as finanças dela, claro. Era um sujeito chamado Greenbush que cuidava do
dinheiro dela, eu já falei isso?
Falei? Está certo, obrigada. Já teve tanta coisa que eu nem consigo
lembrar direito o que já falei e o que não falei.
Às vezes, naqueles envelopes registrados, chegavam uns documentos pra
assinar, e, na maioria das vezes, Vera conseguia fazer isso se eu ajudasse a
firmar o braço. Mas houve algumas vezes, quando ela estava mal, em que
assinei o nome dela eu mesma. Não havia nada demais, e nunca ninguém
perguntou nada sobre as que eu assinei. Nos últimos três ou quatro anos, a
assinatura dela não passava de um rabisco mesmo. Então essa é outra
informação que você pode usar pra me prender se quiser muito:
falsificação.
Sammy começou a me oferecer o envelope acolchoado assim que a porta
se abriu, querendo que eu assinasse, como eu sempre fazia com as
registradas. Mas, quando deu uma boa olhada em mim, os olhos dele se
arregalaram e ele deu um passo pra trás no degrau. Foi, na verdade, mais
um pulo do que um passo, e considerando que se tratava de Sammy
Marchant, essa parece ser exatamente a palavra certa.
“Dolores! Você está bem? Tem sangue em você!”, disse ele.
“Não é meu”, falei, e a minha voz estava tão calma quanto teria estado se
ele tivesse me perguntado o que eu estava vendo na televisão. “É da Vera.
Ela caiu da escada. Ela morreu.”
“Meu Deus do céu”, disse ele, e entrou correndo na casa com a bolsa
balançando e batendo no quadril.
Nunca passou pela minha cabeça tentar impedir, e você precisa se
perguntar o seguinte: de que teria ajudado se eu tivesse tentado?
Eu o segui devagar. Aquela sensação de vidro estava passando, mas
parecia que as solas dos meus sapatos haviam se tornado de chumbo.
Quando cheguei ao pé da escada, Sammy estava na metade, ajoelhado ao
lado da Vera. Antes, havia tirado do ombro a bolsa de correspondência, que
havia caído quase pela escada toda, espalhando as cartas e as contas do
Bangor Hydro e os catálogos da L.L.Bean pra todo lado.
Subi até lá com os pés se arrastando de um degrau para o outro. Nunca
havia me sentido tão cansada. Nem depois de matar Joe eu me senti tão
cansada quanto ontem de manhã.
“Ela está morta mesmo”, disse ele, olhando em volta.
“Está, sim. Eu falei que estava”, respondi.
“Achei que ela não conseguia andar. Você sempre me disse que ela não
conseguia andar, Dolores.”
“Bom, acho que eu me enganei.”
Eu me senti idiota de falar algo assim com ela deitada ali como estava,
mas o que mais havia a dizer? De certa forma, foi mais fácil falar com John
McAuliffe do que com aquele burro do Sammy Marchant, porque eu havia
feito praticamente tudo o que McAuliffe suspeitava. O problema de ser
inocente é que você fica meio que presa na verdade.
“O que é isso?”, perguntou ele, e apontou para o rolo de macarrão.
Eu o tinha deixado na escada quando a campainha tocou.
“O que você acha que é? Uma gaiola de passarinho?”, perguntei pra ele.
“Parece um rolo de macarrão.”
“É isso mesmo”, falei. Parecia que eu ouvia a minha própria voz vinda de
longe, como se eu estivesse em um lugar e o resto de mim, em outro. “Você
vai acabar surpreendendo todo mundo e demonstrando que tem
capacidade pra ir pra faculdade, Sammy.”
“É, mas o que um rolo de macarrão está fazendo na escada?”, perguntou
ele.
Na mesma hora, percebi o jeito como ele me olhava. Sammy não passa
dos vinte e cinco anos, mas o pai dele estava no grupo de busca que
encontrou Joe, e eu percebi que Duke Marchant devia ter criado Sammy e
todo o resto dos filhos não muito inteligentes com a ideia de que Dolores
Claiborne St. George havia matado o marido. Lembra que falei que quando
você é inocente, fica mais ou menos preso na verdade? Bom, quando vi o
jeito como Sammy me olhava, decidi que aquela podia ser uma hora em
que menos seria bem mais seguro do que mais.
“Eu estava na cozinha me preparando pra fazer pão quando ela caiu”,
falei.
Outra coisa sobre ser inocente é que qualquer mentira que você decida
contar é uma mentira não planejada; gente inocente não passa horas
trabalhando nas histórias como trabalhei na minha, sobre ter ido até
Russian Meadow ver o eclipse e nunca mais ter visto o meu marido até
olhar pra ele na funerária Mercier. Assim que aquela mentira sobre fazer
pão saiu da minha boca, entendi que era capaz de se voltar contra mim,
mas se você tivesse visto a expressão nos olhos dele, Andy, escura e de
desconfiança e medo, tudo ao mesmo tempo, talvez tivesse mentido
também.
Ele se levantou, começou a se virar e parou onde estava pra olhar pra
cima. Segui o olhar dele. O que Sammy viu foi o meu vestido anágua, todo
amassado em uma bola no patamar.
“Parece que ela tirou a anágua antes de cair”, disse ele, olhando pra mim
de novo. “Ou pulou. Ou o que quer que tenha feito. Você acha que foi isso,
Dolores?”
“Não. É minha”, falei.
“Se você estava fazendo pão na cozinha”, disse ele, falando bem devagar,
como uma criança que não é muito inteligente tentando resolver um
problema de matemática no quadro, “então, o que a sua roupa de baixo está
fazendo no patamar?”
Não consegui pensar em nada pra dizer. Sammy deu um passo pra trás
na escada, depois outro, ele se movia tão lentamente quanto falava,
segurando o corrimão, sem nunca tirar os olhos de mim, e na hora entendi
o que ele estava fazendo: abrindo espaço entre nós. Porque estava com
medo de eu ter a ideia de empurrá-lo como ele achava que eu havia
empurrado Vera. Foi aí que soube que estaria aqui em pouquíssimo tempo
contando esta história. Os olhos dele poderiam muito bem estar falando
em voz alta, dizendo: Você se safou uma vez, Dolores Claiborne, e
considerando o tipo de homem que o meu pai diz que Joe St. George era, talvez
tudo bem. Mas o que esta mulher fez pra você além de te alimentar, te dar um
teto e pagar um salário decente?. E, acima de tudo, o que os olhos dele
diziam era que uma mulher que empurra uma vez e se safa pode muito
bem empurrar de novo. Que, nas circunstâncias corretas, ela vai empurrar
de novo. E se o empurrão não for suficiente pra fazer o que ela decidiu
fazer, essa mulher não vai precisar pensar muito pra decidir terminar o
trabalho de outra forma. Com um rolo de macarrão de mármore, por
exemplo.
“Isso não é da sua conta, Sammy Marchant”, falei. “É melhor você cuidar
da sua vida. Tenho que ligar pra ambulância da ilha. Só não deixa de pegar
as cartas antes de ir embora. Senão, vai ter um monte de empresa de cartão
de crédito no seu pé.”
“A sra. Donovan não precisa de ambulância”, retrucou ele, descendo
mais dois degraus sem tirar os olhos de mim nem por um segundo, “e eu
não vou a lugar nenhum, ainda. Acho que em vez da ambulância, é melhor
você fazer a sua primeira ligação para Andy Bissette.”
Como você bem sabe, foi isso que fiz. Sammy Marchant me observou.
Depois que desliguei o telefone, ele pegou as cartas que havia deixado cair,
dando uma olhada rápida com aquele rolo na mão, e depois ficou parado no
pé da escada como um cão de guarda que encurralou um ladrão. Ele ficou
em silêncio, então também fiquei. Passou pela minha cabeça que eu
poderia atravessar a sala de jantar e a cozinha até a escada dos fundos pra
pegar o meu vestido anágua. Mas de que isso teria adiantado? Ele havia
visto, não é? E o rolo de macarrão ainda estava na escada, não estava?
Não demorou pra você chegar com o Frank, Andy, e um pouco depois fui
pra nossa delegacia novinha e fiz uma declaração. Isso foi ontem à tarde,
então acho que não precisamos repassar tudo, né? Você sabe que não falei
nada sobre a anágua. E quando você me perguntou sobre o rolo de
macarrão, eu falei que não tinha certeza de como havia ido parar lá. Foi a
única coisa que consegui pensar em dizer, pelo menos até alguém aparecer
e tirar a plaquinha de quebrado do meu cérebro.
Depois que assinei o depoimento, entrei no carro e dirigi pra casa. Foi
tudo tão rápido e tranquilo, a parte do depoimento, que eu quase me
persuadi de que não tinha nada com que me preocupar. Afinal, eu não tinha
matado a Vera, ela realmente caiu. Fiquei dizendo isso a mim mesma, e
quando entrei no terreno de casa já havia me convencido de que tudo
ficaria bem.
Essa sensação só durou o tempo que levei pra sair do carro e andar até a
porta dos fundos. Havia um bilhete preso lá. Só uma folha de caderno.
Tinha uma mancha de graxa, como se tivesse sido arrancada de um
caderno que um homem estivesse carregando no bolso. você não vai se
safar de novo, dizia o bilhete. Só isso. Bom, foi o suficiente, você não
diria?
Entrei em casa e abri as janelas da cozinha pra deixar o cheiro de ar
parado sair. Odeio esse cheiro, e a casa parece estar sempre impregnada
com aquele fedor agora, quer eu areje o ambiente ou não. Não é só porque
passo a maior parte do tempo morando na casa de Vera agora, ou passava,
pelo menos, se bem que, claro, é uma parte do problema. É mais porque a
casa está morta… tão morta quanto Joe e o pequeno Pete.
As casas têm uma vida, que tiram das pessoas que vivem nelas; eu
realmente acredito nisso. A nossa casinha de um andar sobreviveu à morte
de Joe e à ida dos dois filhos mais velhos pra faculdade, Selena pra Vassar
com bolsa integral (a parte dela daquele dinheiro da faculdade com o qual
eu estava tão preocupada foi pra comprar roupas e livros) e Joe Junior um
pouco acima na estrada, pra Universidade do Maine em Orono. Até
sobreviveu à notícia de que Pete havia sido morto em uma explosão de
quartel em Saigon. Aconteceu logo depois que ele chegou lá e menos de
dois meses antes de a coisa toda acabar. Vi os últimos helicópteros
decolarem do teto da embaixada na televisão na sala de Vera e só consegui
chorar. Fiz isso sem medo do que ela poderia dizer porque ela tinha ido pra
Boston fazer compras.
Foi depois do enterro de Pete que a vida sumiu da casa; depois que a
última pessoa tinha ido embora e nós três, eu, Selena e Joe Junior, ficamos
sozinhos. Joe Junior falava sobre política. Havia acabado de conseguir o
trabalho de administrador municipal em Machias, o que não era nada mau
pra um garoto com a tinta ainda molhada no diploma da faculdade, e
pensava em concorrer para o legislativo estadual dali a um ou dois anos.
Selena falava um pouco sobre os cursos que ensinava na Albany Junior
College. Isso foi antes de ela se mudar pra Nova York e começar a escrever
em tempo integral. Depois, ela ficou calada. Nós duas estávamos
guardando os pratos, e de repente senti algo. Eu me virei rapidamente e a vi
olhando pra mim com aqueles olhos escuros. Poderia dizer que li a mente
dela… os pais podem ler a mente dos filhos às vezes, sabe? Mas o fato é
que não precisei. Eu sabia em que ela estava pensando, sabia que nunca
havia saído totalmente da cabeça dela. Vi as mesmas perguntas de doze
anos antes nos olhos dela, quando ela me procurou no jardim, no meio dos
feijões e dos pepinos: Você fez alguma coisa com ele? É culpa minha? Por
quanto tempo eu tenho que pagar?.
Eu me aproximei, Andy, e a abracei. Ela retribuiu o abraço, mas o corpo
permaneceu rígido junto ao meu, rígido como um atiçador de ferro. Foi
nessa hora que senti a vida sumir da casa. Foi como o último suspiro de um
homem moribundo. Acho que Selena também sentiu. Joe Junior, não. Ele
coloca a foto da casa na primeira página de alguns dos folhetos de
campanha dele. Notei que isso dá a ele um ar de pessoa comum que os
eleitores gostam. Mas ele não sentiu quando a casa morreu, porque nunca
a havia amado. Por que amaria, afinal? Pra Joe Junior, aquela casa era só o
lugar pra onde ele ia depois da aula, o lugar em que o pai o maltratava e o
chamava de veadinho que lia livros. Cumberland Hall, o alojamento onde
ele morou na universidade, foi mais um lar pra Joe Junior do que a casa em
East Lane.
Mas era um lar pra mim, e era um lar pra Selena. Acho que a minha boa
menina continuou morando lá bem depois de ter sacudido a poeira da ilha
Little Tall dos pés. Acho que morou lá nas lembranças… no coração… nos
sonhos. Nos pesadelos.
Aquele cheiro úmido, não dá pra se livrar disso quando se espalha.
Fiquei sentada ao lado de uma das janelas abertas pra inspirar a brisa
fresca do mar por um tempo, mas comecei a me sentir estranha e decidi
que era melhor trancar as portas. A da frente foi fácil, mas o trinco da dos
fundos estava tão emperrado que só consegui fazê-lo se mexer quando
apliquei a força de três pessoas no movimento. Finalmente virou. E,
quando aconteceu, entendi por que havia sido tão difícil. Era só ferrugem.
Às vezes passo cinco ou seis dias seguidos na casa da Vera, mas eu não
conseguia me lembrar de quando havia sido a última vez que eu me dera ao
trabalho de trancar a minha casa.
Esse pensamento pareceu tirar toda a coragem de mim. Fui para o
quarto, me deitei e coloquei o travesseiro em cima da cabeça, como fazia
quando era garotinha e mandada pra cama cedo por me comportar mal.
Chorei, chorei e chorei. Nunca teria acreditado que havia tantas lágrimas
em mim. Chorei por Vera, por Selena e por Pete; acho que até chorei por
Joe. Mas, principalmente, chorei por mim. Chorei até o meu nariz ficar
entupido e eu sentir pontadas na barriga. Acabei pegando no sono.
Quando acordei, estava escuro e o telefone estava tocando. Eu me
levantei e tateei até a sala pra atender. Assim que falei alô, alguém, uma
mulher, disse:
“Você não pode matá-la. Espero que saiba disso. Se a lei não te pegar, a
gente pega. Você não é tão inteligente quanto acha que é. Não somos
obrigados a conviver com assassinos aqui, Dolores Claiborne. Não
enquanto ainda houver cristãos decentes na ilha pra impedir.”
A minha cabeça estava tão confusa que primeiro achei que era um
sonho. Quando entendi que estava mesmo acordada, a mulher já havia
desligado. Fui em direção à cozinha com intenção de esquentar água e
fazer um café, ou talvez pegar uma cerveja na geladeira, mas o telefone
tocou mais uma vez. Era uma mulher de novo, mas não a mesma. Um
monte de coisas horríveis começou a sair da boca dela, e eu desliguei
rapidamente. Senti vontade de chorar de novo, mas não iria chorar de jeito
nenhum. Decidi soltar o plugue do telefone da parede. Fui pra cozinha e
peguei uma cerveja, mas o gosto não foi muito bom, e acabei derramando
quase tudo na pia. Acho que o que realmente queria era um pouco de
uísque, mas não tenho uma gota de destilado em casa desde que Joe
morreu.
Peguei um copo de água e percebi que não conseguia suportar o cheiro.
Era um odor de moedas que haviam sido carregadas o dia inteiro na mão
suada de uma criança. Aquilo me fez lembrar aquela noite no meio dos
arbustos de amora, quando o mesmo cheiro chegou a mim em um sopro de
brisa. Isso me fez pensar na garota de batom rosa e vestido listrado. Pensei
em como havia passado pela minha cabeça que a mulher que ela era agora
estava com problemas. Eu me perguntei como ela estava e onde, mas
nenhuma vez me perguntei se ela estava, se é que você me entende. Eu
sabia que ela estava. Está. Nunca duvidei.
Mas isso não importa; a minha mente está divagando de novo e a minha
boca está indo logo atrás, como o cabritinho da Mary. O que eu tinha
começado a contar era que a água da minha torneira não me caiu melhor
do que a cerveja especial do sr. Budweiser. Nem uns cubos de gelo
conseguiram tirar aquele cheiro acobreado. Acabei assistindo a um
programa idiota de comédia e bebendo um dos Hawaiian Punches que
guardo no fundo da geladeira para os gêmeos de Joe Junior. Esquentei um
jantar congelado, mas não tive apetite quando ficou pronto e acabei
jogando tudo no lixo. Decidi tomar outro Hawaiian Punch. Levei-o pra sala
e fiquei sentada na frente da televisão. Uma comédia havia acabado e outra
começado, mas não pareceu fazer a menor diferença. Acho que era porque
eu não estava prestando muita atenção.
Não tentei pensar no que faria; tem certas coisas que é melhor não
pensar à noite, porque é a hora em que a cabeça tem mais tendência a
sabotar você. Em nove a cada dez vezes, o que você decide depois que o sol
se põe vai ter que ser refeito de manhã. Por isso mesmo fiquei sentada sem
fazer nada, e um tempo depois que o noticiário local terminou e o
programa Tonight começou, dormi de novo.
Tive um sonho. Foi comigo e com Vera, só que Vera estava do jeito que
era quando eu a conheci, quando Joe ainda estava vivo e todos os nossos
filhos, os dela e os meus, ainda estavam em casa e por perto na maior parte
do tempo. No meu sonho, estávamos lavando a louça: ela lavando, e eu
secando. Só que não estávamos na cozinha; estávamos em frente ao fogão à
lenha na sala da minha casa. E isso foi engraçado, porque Vera nunca foi à
minha casa. Nenhuma vez na vida dela todinha.
Mas estava lá no sonho. Estava com os pratos em uma bacia de plástico
em cima do fogão; não a minha louça velha, mas a louça boa de porcelana
Spode dela. Lavava um prato e depois entregava pra mim, e todos
escorregavam das minhas mãos e se quebravam nos tijolos em que o fogão
fica apoiado. Vera dizia:
“Você precisa tomar mais cuidado, Dolores; quando acidentes
acontecem e você não toma cuidado, a confusão sempre é enorme.”
Eu prometia tomar cuidado e tentava, mas o prato seguinte escorregava
dos meus dedos, e depois outro, e depois outro, e depois outro.
“Isso não está bom”, Vera acabou dizendo. “Olha só a sujeira que você
está fazendo!”
Olhei pra baixo, mas em vez de pedaços de pratos quebrados, os tijolos
estavam cobertos de pedacinhos da dentadura de Joe e de pedra quebrada.
“Não me entrega mais nenhum, Vera”, falei, começando a chorar. “Acho
que não sirvo pra lavar pratos. Talvez esteja muito velha, sei lá, mas não
quero quebrar tudo, sei disso.”
Mas ela continuou a me entregar os pratos mesmo assim, e eu continuei
deixando-os cair, e o som que faziam quando caíam nos tijolos ficou cada
vez mais alto e mais intenso até soar mais como um estrondo do que aquele
barulho estridente que a porcelana faz quando bate em algo duro e se
espatifa. Na hora eu soube que era um sonho e que aqueles estrondos não
eram parte dele. Acordei tão de repente que quase caí da cadeira. Houve
outro daqueles estrondos, e dessa vez eu soube o que era: um tiro.
Eu me levantei e fui até a janela. Duas picapes passaram na rua. Havia
gente nas caçambas, uma na caçamba da primeira e duas, acho, na caçamba
da segunda. Parecia que todos estavam armados, e a cada dois segundos um
deles disparava para o alto. Havia um brilho intenso na ponta do cano,
depois outro estrondo alto. Pelo jeito com que os homens (eu acho que
eram homens, apesar de não poder ter certeza) oscilavam, e pelo jeito
como as picapes estavam meio que em zigue-zague, eu diria que todo
mundo estava caindo de bêbado. Até que reconheci uma das picapes.
O quê?
Não, eu não vou te contar; já estou encrencada o suficiente. Não planejo
arrastar mais ninguém comigo por causa de uns tiros bêbados na
madrugada. Acho que talvez eu não tenha reconhecido a picape, afinal.
Abri a janela quando vi que não estavam deixando buracos em nada além
de em umas nuvens baixas. Achei que usariam o ponto largo no pé da nossa
colina pra fazer a volta, e foi isso mesmo. Uma delas quase entalou, e como
isso teria sido engraçado.
Eles voltaram, berrando e gritando como loucos. Levei as mãos em
concha ao redor da boca e gritei:
“Saiam daqui! Tem gente querendo dormir!”
Gritei o mais alto que consegui. Uma das picapes fez uma curva um
pouco mais ampla e quase caiu na vala, então acho que dei mesmo um
susto neles. O sujeito que estava de pé na caçamba dessa picape (foi o que
achei que havia reconhecido até alguns segundos atrás) caiu de bunda.
Tenho que admitir que tenho pulmões poderosos, sei gritar com tudo
quando quero.
“Cai fora da ilha Little Tall, sua filha da puta assassina!”, gritou um deles, e
disparou mais alguns tiros no ar.
Mas acho que esse só era o jeito deles de me mostrar como eram
corajosos, porque não fizeram mais nada. Eu os ouvi em disparada em
direção à cidade, e eu apostaria um biscoito que estavam indo para aquele
bar maldito que abriu dois anos atrás, com os silenciosos do escapamento
berrando e os canos de descarga soltando fogo, como faziam quando
forçavam o motor. Você sabe como os homens são quando dirigem picapes
bêbados.
Bom, isso fez o meu humor melhorar um pouco. Não estava mais com
medo nem com a menor vontade de chorar. Estava era bem puta da vida,
mas não com tanta raiva a ponto de não conseguir pensar, ou entender por
que as pessoas estavam fazendo o que estavam fazendo. Quando a raiva
tentou me levar além, eu a fiz parar ao pensar em Sammy Marchant, em
como os olhos dele haviam ficado quando ele se ajoelhou na escada e olhou
primeiro para o rolo de macarrão e depois pra mim: ficaram tão escuros
quanto o mar logo depois da linha de estabilidade, como os da Selena
naquele dia no jardim.
Eu já sabia que ia ter que voltar aqui, Andy, mas foi só depois que
aqueles homens foram embora que parei de me enganar ao pensar que
ainda poderia escolher o que iria contar e o que iria esconder. Percebi que
teria que deixar tudo claro. Voltei pra cama e dormi em paz até nove e
quinze da manhã. Foi o mais tarde que dormi desde antes de estar casada.
Acho que estava descansando pra poder falar a noite inteira.
Quando me levantei, pretendia resolver a questão assim que possível;
um remédio amargo é melhor tomado de uma vez. Mas algo me fez parar
antes que eu saísse de casa, senão eu teria acabado contando tudo isso pra
você mais cedo.
Tomei um banho e, antes de me vestir, coloquei o plugue do telefone de
volta na parede. Não era mais de noite, e eu não estava mais no meio de um
sonho. Pensei que, se alguém quisesse me ligar pra me xingar, eu devolveria
algum dos xingamentos, começando com “covarde” e “fofoqueira nojenta”.
E realmente, eu mal tinha acabado de colocar as meias quando tocou
mesmo. Eu atendi, pronta pra dar pra pessoa do outro lado da linha uma
dose do veneno dela, quando uma voz de mulher disse:
“Alô. Posso falar com Dolores Claiborne?”
Assim que ouvi soube que era uma ligação de longa distância, e não só
por causa do eco que a gente tem aqui quando a ligação é de longe. Soube
porque ninguém na ilha me chama direto pelo nome. Aqui, nós somos
senhorita, senhora ou dona, mas chamar alguém direto pelo nome ainda
era coisa do continente, que a gente só via na estante de revistas da
farmácia.
“Sou eu”, falei.
“Aqui é Alan Greenbush”, disse ela.
“Que engraçado”, falei, debochada, “a sua voz não parece de um Alan
Greenbush.”
“Aqui é do escritório dele”, disse ela, como se eu fosse a pessoa mais burra
do universo. “Você pode aguardar na linha pra falar com o sr. Greenbush?”
Ela me pegou tão de surpresa que o nome não quis dizer nada pra mim
de primeira; eu sabia que já havia ouvido antes, mas não sabia onde.
“Qual é o assunto?”, perguntei.
Houve uma pausa, como se ela não estivesse autorizada a dar esse tipo
de informação, mas aí ela disse:
“Acredito que esteja relacionado à sra. Vera Donovan. Você pode
aguardar, dona Claiborne?”
Aí a ficha caiu: Greenbush, que enviava a correspondência em envelopes
acolchoados.
“Aham”, falei.
“Perdão?”
“Eu vou esperar.”
“Obrigada.”
Houve um clique, e eu fiquei esperando por um tempo, só de roupa de
baixo. Não demorou, mas pareceu demorar. Logo antes de ele falar, me
passou pela cabeça que devia ser por causa das vezes em que assinei o
nome da Vera; eles haviam me pegado. Pareceu bem provável; você não
reparou que, quando uma coisa dá errado, tudo parece dar errado junto?
Ele atendeu.
“Sra. Claiborne?”, disse ele.
“Sim, aqui é Dolores Claiborne”, confirmei.
“O agente da lei da ilha Little Tall me ligou ontem à tarde e me informou
que Vera Donovan faleceu. Estava meio tarde quando recebi a ligação e por
isso decidi esperar até hoje de manhã pra ligar pra você.”
Pensei em dizer pra ele que havia gente na ilha que não tinha problema
com a hora em que me ligava, mas claro que não falei.
Ele pigarreou e falou:
“Recebi uma carta da sra. Donovan cinco anos atrás me instruindo
especificamente a dar à senhora certas informações sobre os bens dela
vinte e quatro horas depois do falecimento dela.” Ele pigarreou de novo e
disse: “Apesar de eu ter falado com ela no telefone com frequência depois,
essa foi a última carta de verdade que recebi”.
Ele tinha uma voz seca e agitada. O tipo de voz que, quando conta
alguma coisa, não dá pra não ouvir.
“Do que você está falando, homem? Para de enrolação e fala!”, disse.
“Fico feliz em informá-la que, fora uma pequena doação para o Lar de
Jovens Andarilhos da Nova Inglaterra, você é a única beneficiária do
testamento da sra. Donovan.”
A minha língua grudou no céu da boca, e a única coisa em que eu
conseguia pensar era em como Vera havia entendido sobre o truque do
aspirador de pó depois de um tempo.
“Você vai receber um telegrama de confirmação hoje mesmo”, continuou
ele, “mas estou muito feliz de ter falado com você antes da chegada do
documento. A sra. Donovan era muito enfática em relação aos próprios
desejos nessa questão.”
“Aham, ela sabia mesmo ser enfática”, falei.
“Tenho certeza de que você está sofrendo com o falecimento da sra.
Donovan; todos nós estamos. Mas quero que saiba que você vai ser uma
mulher muito rica, e se eu puder fazer algo pra ajudá-la nas novas
circunstâncias, ficaria feliz de orientá-la, assim como fiz com a sra.
Donovan. Claro que vou ligar pra dar atualizações do processo do
testamento pelo inventário, mas imagino que não vá haver nenhum
problema e nenhum atraso. Na verdade…”
“Opa, calma aí, camarada”, falei, e saiu como um grunhido rouco. Tipo
um sapo em um lago seco. “De quanto dinheiro você está falando?”
Claro que eu sabia que ela era rica, Andy; o fato de que nos últimos anos
Vera só usava camisolas de flanela e vivia de uma dieta regular de sopa
Campbell e papinha de bebê Gerber não mudava isso. Eu via a casa, os
carros, e às vezes olhava um pouquinho mais os papéis que chegavam
naqueles envelopes acolchoados além da linha da assinatura. Alguns eram
formulários de transferência de ações, e eu sei que quando se está
vendendo duas mil ações da Upjohn e comprando quatro mil da
Mississippi Valley Light and Power, a pessoa não está a caminho da
pobreza.
Eu não estava perguntando pra poder começar a pedir cartões de
créditos e encomendar itens do catálogo da Sears; não vai ficar com essa
ideia. Eu tinha um motivo melhor. Sabia que o número de pessoas que
achavam que eu a havia matado provavelmente aumentaria pra cada dólar
que ela deixasse pra mim, e eu queria saber o quanto eu iria sofrer com
isso. Achei que podiam ser uns sessenta ou setenta mil dólares… Se bem
que ele havia dito que ela tinha deixado um dinheiro pra um orfanato e eu
pensei que isso diminuiria um pouco a quantia.
Também tinha uma outra coisa me incomodando, do mesmo jeito que
uma muriçoca de junho faz quando pousa na sua nuca. Havia algo de
errado na proposta toda. Mas não consegui identificar o que, tanto quanto
não consegui identificar quem era Greenbush quando a secretária disse o
nome dele.
Ele disse algo que não entendi. Pareceu blá-blá-blá cerca de trinta milhões
de dólares.
“O que o senhor disse?”, perguntei.
“Que depois do inventário, dos impostos e de algumas outras pequenas
deduções, o total deve estar em cerca de trinta milhões de dólares.”
A minha mão no telefone havia começado a ficar daquele jeito de
quando acordo e percebo que dormi a maior parte da noite em cima dela…
dormente no meio e formigando em volta. Os meus pés também
formigavam, e de repente o mundo pareceu feito de vidro de novo.
“Perdão”, falei. Ouvi a minha boca pronunciar perfeitamente bem e de
forma clara, mas eu não parecia estar conectada a nenhuma das palavras
que estavam saindo. Os meus lábios só estavam batendo, como uma janela
ao vento forte. “A ligação aqui não está muito boa. Achei que você tivesse
dito algo com a palavra milhão no meio.”
Aí eu ri, só pra mostrar como eu sabia que isso era bobagem, mas uma
parte de mim devia ter pensado que não era bobagem, porque foi a risada
mais falsa que já ouvi sair de mim: Ia-ia-ia, foi o que pareceu.
“Eu falei milhão”, disse ele. “Na verdade, eu falei trinta milhões.”
Quer saber? Acho que ele teria rido se não fosse por causa da morte de
Vera Donovan que eu estava ganhando aquele dinheiro. Acho que ele
estava empolgado: que por baixo daquela voz seca e formal, estava
empolgado pra caramba. Acho que se sentia como John Beresford Tipton, o
sujeito rico que dava um milhão de dólares do nada naquele programa de
televisão antigo. Ele queria trabalhar pra mim, claro que isso era uma parte
da questão; eu tive a sensação de que dinheiro é como um trenzinho
elétrico pra sujeitos como ele, e ele não queria ver uma quantia tão grande
quanto a da Vera sendo tirada das suas mãos. Mas acho que a maior parte
da diversão pra ele era me ouvir gaguejar como eu estava fazendo.
“Eu não entendi”, falei, e agora a minha voz soava tão fraca que eu mal
conseguia me ouvir.
“Acho que entendo o que você está sentindo”, disse ele. “É uma quantia
muito grande, e é claro que vai demorar um tempo pra você se acostumar.”
“Quanto é de verdade?”, perguntei, e dessa vez ele riu mesmo.
Se eu pudesse ir até ele, Andy, acho que teria dado um chute naquele
traseiro.
Ele me falou de novo, trinta milhões de dólares, e pensei que, se a minha
mão ficasse mais dormente, eu iria acabar deixando o telefone cair. Então
comecei a entrar em pânico. Parecia que havia alguém dentro da minha
cabeça sacudindo um cabo de aço. Eu pensava trinta milhões de dólares, mas
eram só palavras. Quando tentava entender o que significavam, a única
imagem que eu conseguia formar na cabeça era tipo aquelas dos
quadrinhos do Tio Patinhas que Joe Junior lia para Pete quando Pete tinha
quatro ou cinco anos. Eu via um cofre enorme cheio de moedas e notas, só
que em vez do Tio Patinhas nadando naquela grana toda com as nadadeiras
nos pés e os óculos redondos na ponta do bico, eu via a mim mesma fazendo
isso usando os meus chinelos de pano. Aí essa imagem sumia, e eu pensava
nos olhos de Sammy Marchant quando se moveram do rolo de macarrão
pra mim e depois de volta até o rolo de macarrão. Ficaram iguais aos da
Selena naquele dia no jardim, escuros e cheios de perguntas. Aí pensei na
mulher que havia ligado e dito que ainda havia cristãos decentes na ilha
que não precisavam conviver com assassinos. Eu me perguntei o que aquela
mulher e as amigas pensariam quando descobrissem que a morte de Vera
havia deixado trinta milhões de dólares pra mim… e esse pensamento
chegou perto de me deixar em pânico.
“Você não pode fazer isso!”, falei, meio enlouquecida. “Está me ouvindo?
Você não pode me obrigar a aceitar!”
Aí foi a vez dele de dizer que não estava conseguindo ouvir direito; que a
ligação devia estar ruim devido à distância. E eu não fiquei nem um pouco
surpresa. Quando um homem como Greenbush escuta alguém dizer que
não quer trinta milhões de dólares, acha mesmo que deve ter algum
problema no equipamento. Abri a boca pra dizer de novo que ele teria que
ficar com o dinheiro, que podia dar cada centavo para o Lar de Pequenos
Andarilhos da Nova Inglaterra, quando de repente entendi o que havia de
errado em tudo aquilo. Não foi uma coisa que eu só percebi de repente; foi
algo que caiu como um carregamento de tijolos em cima da minha cabeça.
“Donald e Helga!”, falei.
Devo ter soado como um participante de game show da televisão quando
tem a resposta certa no último segundo da rodada de bônus.
“Como é?”, perguntou ele, meio cauteloso.
“Os filhos! O filho e a filha dela! O dinheiro pertence a eles, não a mim!
Eles são da família! Eu não passo de uma empregada de confiança!”
Houve uma pausa tão comprida que eu tive certeza de que a ligação
devia ter caído e não lamentei nem um pouco. Achava que iria desmaiar,
pra falar a verdade. Estava quase desligando quando ele falou com uma voz
seca e engraçada:
“Você não sabe.”
“Não sei o quê?”, gritei pra ele. “Eu sei que ela tem um filho chamado
Donald e uma filha chamada Helga! Sei que os dois se achavam bons
demais pra virem fazer uma visita aqui, apesar de Vera sempre deixar um
espaço pra eles, mas acho que não vão ser bons demais pra dividir uma
grana do tamanho da que você está falando agora que ela morreu!”
“Você não sabe”, disse ele de novo. E aí, como se estivesse fazendo
perguntas a si mesmo e não pra mim, ele disse: “É possível que você não
saiba, depois de todo o tempo que trabalhou pra ela? É possível?
Kenopensky não teria contado?”. E antes que eu dissesse algo, ele começou
a responder às próprias perguntas. “Claro que é possível. Foi só uma
notinha numa página interna do jornal local no dia seguinte, ela escondeu
tudo. Trinta anos atrás dava pra fazer isso se você estivesse disposto a pagar
pelo privilégio. Acho que não teve nem obituário.” Ele parou e disse, como
um homem faz quando acabou de descobrir algo novo, enorme, sobre
alguém que conheceu a vida toda: “Vera falava deles como se estivessem
vivos, certo? Todos esses anos!”.
“Do que você está falando?”, gritei. Parecia que havia um elevador
descendo no meu estômago, e naquele momento todos os tipos de coisas,
pequenas coisas, começaram a se encaixar na minha mente. Eu não queria,
mas foi acontecendo mesmo assim. “Claro que ela falava deles como se
estivessem vivos! Eles estão vivos! Ele tem uma imobiliária no Arizona, a
Golden West Associates! E ela desenha vestidos em São Francisco…
Gaylord Fashions!”
Só que ela sempre lia uns romances históricos enormes com mulheres
de vestidos decotados beijando homens sem camisa, e a editora desses
livros era a Golden West; era o que estava escrito numa faixa metalizada no
alto da capa de cada um. E na hora me ocorreu que ela havia nascido em
uma cidadezinha chamada Gaylord, no Missouri. Quis pensar que era outra
coisa, Galen, ou talvez Galesburg, mas sabia que não era. Ainda assim, a
filha dela podia ter colocado o nome na empresa de vestidos em
homenagem à cidade onde a mãe havia nascido… ou foi o que eu disse a
mim mesma.
“Sra. Claiborne”, começou Greenbush, em uma voz baixa e meio ansiosa.
“O marido da sra. Donovan morreu em um acidente infeliz quando Donald
tinha quinze anos e Helga tinha treze…”
“Eu sei disso!”, falei, como se eu quisesse que ele acreditasse que, se eu
sabia disso, devia saber de tudo.
“… e em consequência houve muitos estranhamentos entre a sra.
Donovan e os filhos.”
Eu também sabia disso. Eu me lembrava das pessoas comentando sobre
como as crianças estavam quietas quando foram lá no Memorial Day de
1961, passar o verão na ilha, como sempre, e que várias pessoas
mencionaram que ninguém via mais os três juntos, o que era bem estranho,
considerando a morte súbita do sr. Donovan no ano anterior.
Normalmente, uma coisa assim une as pessoas… se bem que eu acho que o
pessoal da cidade pode ser um pouco diferente em relação a esse tipo de
assunto. E aí, eu me lembrei de outra coisa, uma coisa que Jimmy DeWitt
me contou no outono daquele ano.
“Eles tiveram uma discussão horrível em um restaurante logo depois do
Quatro de Julho de 1961”, falei. “O garoto e a garota foram embora no dia
seguinte. Lembro que o bonitão, estou falando do Kenopensky, levou os
dois até o continente naquela lancha enorme que eles tinham na época.”
“Isso”, disse Greenbush. “Acontece que eu soube por Ted Kenopensky
qual foi o assunto da discussão. Donald havia tirado a carteira de
habilitação naquela primavera, e a sra. Donovan havia comprado um carro
para o filho de aniversário. A garota, Helga, disse que queria um carro
também. Vera, a sra. Donovan, aparentemente tentou explicar pra garota
que a ideia era bobagem, um carro seria inútil se ela não tivesse uma
carteira de habilitação, e que ela só poderia tirar uma aos quinze anos.
Helga argumentou que aquilo podia ser verdade em Maryland, mas que
não era assim no Maine, que dava pra tirar habilitação lá aos catorze
anos… a idade que ela tinha. Isso podia ser verdade, sra. Claiborne, ou foi
só fantasia adolescente?”
“Era verdade na época”, falei, “mas acho que é preciso ter pelo menos
quinze anos agora. Sr. Greenbush, o carro que Vera deu para o filho de
aniversário… era um Corvette?”
“Era. Era, sim. Como você sabe disso, sra. Claiborne?”
“Devo ter visto uma foto em algum momento”, falei, mas quase nem ouvi
a minha própria voz.
A voz que ouvi foi da Vera. Estou cansada de ver tirarem aquele Corvette do
rio ao luar, disse ela quando estava morrendo na escada. Cansada de ver a
água escorrendo pela janela aberta do lado do passageiro.
“Estou surpreso de Vera ter uma fotografia”, disse Greenbush. “Donald e
Helga Donovan morreram naquele carro, sabe? Foi em outubro de 1961,
quase um ano certinho depois que o pai deles morreu. Parece que a garota
estava dirigindo.”
Ele continuou falando, mas eu nem ouvi direito, Andy; estava ocupada
demais preenchendo as lacunas sozinha, e fazia isso tão rápido que acho
que devia saber que os filhos dela estavam mortos… em algum lugar lá no
fundo, eu devia ter sabido o tempo todo. Greenbush disse que os dois
haviam bebido e estavam dirigindo aquele Corvette a mais de cento e
sessenta quilômetros por hora quando a garota errou uma curva e caiu no
riacho; ele disse que os dois deviam ter morrido bem antes de aquele carro
caro ter chegado ao fundo.
Ele disse que foi um acidente, mas talvez eu soubesse um pouco mais
sobre acidentes do que ele.
Talvez Vera soubesse também, e talvez sempre tenha sabido que a
discussão que tiveram naquele verão não teve porra nenhuma a ver com o
fato de Helga tirar ou não uma habilitação do estado do Maine; esse foi só o
problema mais fácil pra abordar. Quando McAuliffe me perguntou sobre o
que Joe e eu discutimos antes de ele me enforcar, respondi que havia sido
por dinheiro principalmente, mas também por bebida. O tema principal
das discussões, em geral, é bem diferente do verdadeiro motivo das
discussões, eu já reparei, e pode ser que o que eles realmente estavam
discutindo naquele verão era o que havia acontecido com Michael
Donovan no ano anterior.
Ela e o bonitão mataram o sujeito, Andy. Só faltou Vera me contar. E ela
nunca foi descoberta, mas às vezes tem gente dentro das famílias que têm
peças do quebra-cabeça que a lei não vê nunca. Gente como Selena, por
exemplo… e talvez gente como Donald e Helga Donovan também. Eu me
pergunto como os dois olhavam pra ela naquele verão, antes de terem
aquela discussão no The Harborside Restaurant e irem embora de Little
Tall pela última vez. Tentei lembrar como estavam os olhos deles quando
olhavam pra mãe, se estavam iguais aos de Selena quando olhava pra mim,
mas não consigo. Talvez só precise de tempo, mas não é algo que esteja
ansiosa pra lembrar, se é que você me entende.
O que eu sei é que dezesseis anos era jovem pra um diabinho como Don
Donovan ter uma carteira de habilitação, jovem demais, e quando você
junta isso àquele carro esportivo, ora, é a receita pra um desastre. Vera era
inteligente o suficiente pra saber disso e devia estar morrendo de medo; ela
podia odiar o homem, mas amava o filho como a própria vida. Sei que
amava. Mas deu o carro pra ele mesmo assim. Mesmo durona como era,
colocou aquele foguete no bolso dele, e no da Helga também, no fim das
contas, quando ele ainda estava no segundo ano do ensino médio e devia
ter acabado de começar a se barbear. Acho que era culpa, Andy. E talvez eu
queira pensar que era só isso porque não gosto de pensar que havia medo
no meio, que talvez duas crianças ricas como eles pudessem chantagear a
mãe pelas coisas que queriam por causa da morte do pai. Eu não acho isso
de verdade… mas é possível, sabe? É possível. Em um mundo em que um
homem pode passar meses tentando levar a própria filha pra cama, eu
acredito que tudo é possível.
“Eles estão mortos. É isso que você está me dizendo”, falei.
“É”, disse ele.
“Eles estão mortos há mais de trinta anos.”
“Estão.”
“E tudo o que ela me contou sobre eles era mentira.”
Ele pigarreou de novo… Se a nossa conversa de hoje for exemplo, aquele
homem é dono dos maiores pigarros do mundo. Quando ele voltou a falar,
pareceu quase humano.
“O que ela contou sobre eles, sra. Claiborne?”
E quando pensei nisso, Andy, percebi que Vera havia me contado muita
coisa, a começar pelo verão de 1962, quando ela chegou parecendo dez
anos mais velha e dez quilos mais magra do que no ano anterior. Eu me
lembro de ela me contar que Donald e Helga talvez passassem o mês de
agosto na casa e que era pra eu ver se tínhamos aveia suficiente, que era a
única coisa que os dois comiam no café da manhã. Eu me lembro de ela
voltar em outubro; foi no outono em que Kennedy e Khrushchov estavam
decidindo se iam explodir o mundo ou não. E ela me disse que eu os veria
muito mais no futuro. “Espero que você também veja as crianças”, dissera
ela, mas havia algo naquela voz, Andy… e naqueles olhos…
Foi mais nos olhos dela que pensei quando fiquei ali parada com o
telefone na mão. Ela me contou um monte de coisas com a boca ao longo
dos anos, onde os dois haviam estudado, o que estavam fazendo, com quem
estavam saindo (de acordo com Vera, Donald se casou e teve dois filhos, e
Helga se casou e se divorciou), mas percebi que desde o verão de 1962, os
olhos dela me contavam uma só história sem parar: eles estavam mortos.
Sim… mas talvez não completamente mortos. Não enquanto houvesse uma
empregada magrela e simplória em uma ilha na costa do Maine que ainda
acreditasse que os dois estavam vivos.
De lá, a minha mente pulou para o verão de 1963, o verão em que matei
Joe, o verão do eclipse. Ela estava fascinada pelo eclipse, mas não só porque
era um evento único na vida. Não, senhor. Estava apaixonada porque
achava que era o evento que traria Donald e Helga de volta pra Pinewood.
Ela me disse isso várias vezes. E aquela coisa nos olhos dela, a coisa que
sabia que os dois estavam mortos, sumiu por um tempo na primavera e no
começo do verão daquele ano.
Sabe o que acho? Acho que entre março ou abril de 1963 e o meio de
julho, Vera Donovan estava louca; acho que naqueles poucos meses ela
realmente acreditou que os filhos estavam vivos. Apagou da memória a
visão daquele Corvette saindo do rio; acreditava que os dois haviam voltado
à vida pela mera força de vontade. Fez com que voltassem à vida por
acreditar? Não, não foi isso. Ela os eclipsou de volta à vida.
Vera ficou louca, e eu acredito que queria permanecer louca; talvez pra
poder tê-los de volta, talvez pra se punir, talvez os dois. Mas, no final, havia
sanidade demais naquela cabeça, e ela não conseguiu. Na última semana,
ou dez dias antes do eclipse, tudo começou a ruir. Eu me lembro daquela
época, quando todo mundo que trabalhava pra ela estava se preparando
para aquela merda de passeio no eclipse e pra festa que aconteceria depois,
lembro como se fosse ontem. Ela tinha ficado de bom humor por todo mês
de junho e começo de julho, mas na época em que mandei os meus filhos
pra fora da ilha, tudo virou um inferno. Foi nesse período que Vera
começou a agir como a Rainha de Copas em Alice no País das Maravilhas,
gritando com as pessoas caso olhassem pra ela meio estranho e despedindo
os funcionários a torto e a direito. Acho que isso foi quando a última
tentativa dela de trazê-los de volta com a força da vontade desmoronou. Ela
soube que os dois estavam mortos pra sempre, mas prosseguiu com a festa
que havia planejado mesmo assim. Dá pra imaginar a coragem necessária
pra isso? A coragem pura vinda das entranhas?
Também me lembro de algo que ela disse; isso foi depois que eu a
enfrentei sobre despedir a garota Jolander. Quando Vera me procurou, tive
certeza de que ela iria me demitir. Mas ela me deu um saco cheio de
equipamento pra ver o eclipse e fez algo que significou, pelo menos pra
Vera Donovan, um pedido de desculpas. Disse que às vezes uma mulher
tinha que ser muito filha da puta.
“Às vezes, ser uma filha da puta é a única coisa que uma mulher tem pra
se agarrar”, disse ela.
Aham, pensei. Quando não tem mais nada, tem isso. Sempre tem isso.
“Sra. Claiborne?”, disse uma voz no meu ouvido, e foi nessa hora que eu
lembrei que ele ainda estava na linha; eu havia me perdido completamente.
“Sra. Claiborne, ainda está aí?”
“Ainda estou aqui”, respondi.
Ele havia me perguntado o que Vera tinha me contado sobre os filhos, e
isso bastou pra me fazer pensar naquela época triste de antigamente… mas
eu não tinha como contar tudo aquilo pra ele, não pra um homem de Nova
York, que não sabia nada sobre como a gente vive aqui em Little Tall. Como
ela vivia em Little Tall. Em outras palavras, ele sabia muita coisa sobre
Upjohn e Mississippi Valley Light and Power, mas nada sobre os fios nos
cantos.
Nem sobre as bolinhas de poeira.
Ele começou a falar:
“Eu perguntei o que ela contou…”
“Ela me dizia pra deixar a cama deles pronta e ter sempre aveia Quaker
na despensa. Que queria estar preparada porque os dois podiam decidir
voltar a qualquer momento.”
Isso era bem próximo da verdade, Andy. Próximo o suficiente pra
Greenbush, pelo menos.
“Nossa, que incrível!”, disse ele, e foi como ouvir um médico experiente
dizer: Nossa, mas é um tumor cerebral!.
Depois, conversamos mais um pouco, mas não tenho muita ideia do quê.
Acho que falei de novo que não queria, não queria nem um centavo, e sei
pela forma como ele falou comigo, todo gentil, agradável e meio que me
bajulando, que quando ele falou com você, Andy, você não repassou nada
do que Sammy Marchant deve ter contado pra você e pra qualquer um de
Little Tall que quisesse ouvir. Acho que você pensou que não era da sua
conta, pelo menos ainda não.
Eu me lembro de ter dito pra ele dar tudo para os Pequenos Andarilhos, e
de ele dizer que não podia fazer isso. Falou que eu podia quando o
testamento tivesse passado pelo inventário (se bem que o maior idiota do
mundo poderia ter dito que ele não achava que eu faria uma coisa dessas
quando finalmente tivesse entendido o que havia acontecido), mas que ele
mesmo não podia fazer nadinha sobre o assunto.
No final, prometi que ligaria pra ele quando estivesse “com os
pensamentos um pouco mais claros”, nas palavras dele, e depois
desligamos. Fiquei parada ali durante muito tempo; devem ter sido uns
quinze minutos ou mais. Eu estava… nervosa. Parecia que aquele dinheiro
estava todo em cima de mim, grudado na minha pele como os insetos que
grudavam no papel de pegar moscas que o meu pai pendurava na nossa
casinha durante o verão quando eu era pequena. Tive medo de grudar cada
vez mais quando eu começasse a me mover, de me envolver e me enrolar
até eu não ter a menor chance de tirá-lo de mim.
Quando comecei a me mexer, já havia esquecido sobre vir até a delegacia
falar com você, Andy. Pra falar a verdade, quase me esqueci de me vestir.
No final, coloquei uma calça jeans velha e um suéter, apesar de o vestido
que eu pretendia usar estar esticadinho na cama (e ainda está, a não ser
que alguém tenha arrombado a minha casa e descontado no vestido o que
teria gostado de fazer com a pessoa que costuma vesti-lo). Acrescentei as
galochas, e achei que estava bom.
Contornei a pedra branca entre o barracão e os arbustos de amora,
parando um pouquinho pra olhar e ouvir o vento sacudir os galhos cheios
de espinhos. Mal dava pra ver o branco da cobertura de concreto. Olhar
para aquilo me deixou trêmula, como uma pessoa fica quando está pegando
um resfriado forte ou uma gripe. Peguei o atalho por Russian Meadow e
andei até onde a rua termina em East Head. Fiquei parada lá por um
tempo, deixando o vento do mar esvoaçar o meu cabelo e me limpar, como
sempre faz, depois desci a escada.
Ah, não faz essa cara de preocupação, Frank. A corda no alto e a placa de
alerta ainda estão lá; é só que eu não estava muito preocupada com aquela
escada bamba depois de tudo que eu havia tido que enfrentar.
Desci tudo, de um lado para o outro, até chegar às pedras lá embaixo. A
velha doca da cidade, que o pessoal de antigamente chamava de Doca
Simmons, estava lá, você sabe, mas não sobrou nada além de alguns postes
e dois anéis de ferro grandes presos no granito, enferrujados e escamosos.
Parecem como imagino que as órbitas oculares no crânio de um dragão
seriam se essa criatura existisse. Pesquei naquela doca muitas vezes quando
era criança, Andy, e acho que pensava que sempre estaria lá, mas, no fim
das contas, o mar leva tudo.
Eu me sentei no último degrau, com as galochas balançando, e fiquei
durante as sete horas seguintes. Vi a maré descer e subir quase tudo de
novo, até não querer mais saber daquele lugar.
Primeiro, tentei pensar no dinheiro, mas não consegui. Talvez as pessoas
que já tiveram uma quantia assim a vida toda consigam, mas eu não
consegui. Cada vez que tentava, só via Sammy Marchant olhando do rolo
de macarrão… pra mim. Era isto que o dinheiro significava pra mim, Andy,
e o que ainda significa: Sammy Marchant me olhando com o olhar sombrio
e dizendo: “Achei que ela não conseguia andar. Você sempre me disse que
ela não conseguia andar, Dolores”.
Depois, pensei em Donald e Helga.
“Se me engana uma vez, a errada é você”, falei pra ninguém, ainda
sentada ali, os pés tão perto das ondas que às vezes encostavam na espuma.
“Se me engana de novo, a trouxa sou eu.”
Só que Vera nunca me enganou de verdade… os olhos dela nunca me
enganaram.
Eu me lembro de perceber, acho que deve ter sido no final dos anos
1960, que eu nunca os tinha visto, nem uma vez, desde que o bonitão os
levou para o continente naquele dia de julho de 1961. E isso me perturbou
tanto que rompi uma regra antiga minha de não falar sobre os dois a menos
que Vera tocasse no assunto primeiro.
“Como estão as crianças, Vera?”, perguntei. As palavras pularam da
minha boca antes que pensasse duas vezes… com Deus como testemunha,
foi exatamente assim. “Como estão de verdade?”
Lembro que ela estava sentada na sala na ocasião, tricotando na cadeira
próxima aos janelões, e quando fiz a pergunta ela parou pra me olhar. O sol
estava forte naquele dia, batia no rosto dela em um feixe intenso e
luminoso, e houve algo de tão assustador na aparência dela que, por um ou
dois segundos, cheguei perto de gritar. Só quando o ímpeto passou que eu
percebi que foram os olhos dela. Eram olhos fundos, círculos pretos
naquele feixe de sol em que todo o resto brilhava. Pareciam os olhos dele
quando me olhou do fundo do poço… como pedrinhas pretas ou pedaços
de carvão enfiados em massa branca. Por aquele segundo ou dois, pareceu
que eu tinha visto um fantasma. Mas ela moveu a cabeça um pouco e
voltou a ser Vera de novo, sentada ali com cara de que tinha bebido demais
na noite anterior. Não teria sido a primeira vez.
“Eu não sei de verdade, Dolores. Nós estamos afastados.”
Isso foi tudo que Vera disse, e foi tudo que precisava dizer. Todas as
histórias que havia me contado sobre a vida dos filhos, que agora sei que
foram inventadas, não disseram tanto quanto aquelas três palavras: Nós
estamos afastados. Muito do tempo que passei hoje na doca Simmons foi
pensando nessa palavra horrível. Afastados. Tremo só de pensar.
Fiquei sentada ali remexendo nesses ossos velhos uma última vez,
coloquei-os de lado e me levantei de onde havia passado a maior parte do
dia. Decidi que não ligava muito para o que você ou qualquer outra pessoa
acreditasse. Acabou, entende? Pra Joe, pra Vera, pra Michael Donovan, pra
Donald e Helga… e pra Dolores Claiborne também. De um jeito ou de
outro, todas as pontes entre aquela época e agora foram queimadas. O
tempo também é como um corpo de água, assim como o que fica entre as
ilhas e o continente, mas a única balsa que pode atravessá-lo é a memória,
e ela é como um navio fantasma: se você quiser que desapareça, depois de
um tempo, vai desaparecer.
Mas deixando isso tudo de lado, ainda é engraçado como tudo acabou,
não é? Lembro o que passou pela minha cabeça quando me levantei e voltei
pra escada bamba — o mesmo que havia passado quando Joe tirou o braço
do poço e quase me puxou pra dentro com ele: Cavei um buraco para os
meus inimigos e fui eu que nele acabei caindo. Pensei que, quando me segurei
naquele corrimão velho cheio de farpas e comecei a subir todos os degraus
de volta (sempre supondo que me aguentariam uma segunda vez, claro)
que isso finalmente havia acontecido, e que eu sempre soube que
aconteceria. Só demorei um tempo a mais pra cair no meu do que Joe pra
cair no dele.
Vera também tinha um poço onde cair… e se tenho algo pelo que
agradecer é por não ter precisado sonhar que os meus filhos estavam de
volta à vida como ela. Se bem que, às vezes, quando falo com Selena ao
telefone e a ouço arrastar as palavras, eu me pergunto se existe fuga pra nós
das dores e do sofrimento da vida. Não consegui enganá-la, Andy. Azar o
meu.
Ainda assim, vou aguentar ao máximo e trincar os dentes pra parecer um
sorriso, como sempre fiz. Tento sempre lembrar que dois dos meus três
filhos continuam vivos, que são mais bem-sucedidos do que qualquer um
em Little Tall teria esperado quando eles eram bebês, e muito mais bem-
sucedidos do que poderiam ter sido se o pai imprestável deles não tivesse
sofrido um acidente na tarde de 20 de julho de 1963. A vida não é uma
proposição de “uma coisa ou outra”, entende? E se eu me esquecer de
agradecer pelo fato de que a minha menina e um dos meus meninos
viveram enquanto o menino e a menina da Vera morreram, vou ter que
justificar o pecado da ingratidão quando eu chegar perante o trono do
Todo-Poderoso. Não quero fazer isso. Já tenho o suficiente na minha
consciência e provavelmente na alma também. Mas me escutem, vocês
três, e escutem isto se não ouvirem mais nada: tudo que fiz, fiz por amor…
o amor que uma mãe tem pelos filhos. É o amor mais forte que existe no
mundo, e o mais mortal. Não tem filha da puta maior na face da Terra do
que uma mãe que teme pelos próprios filhos.
Quando cheguei ao topo da escada e parei no patamar logo depois
daquela corda de proteção, olhando para o mar, pensei no meu sonho; o
sonho em que Vera ficava me dando pratos e eu deixava todos caírem.
Pensei no som que a pedra fez quando bateu na cara dele, e que os dois
sons eram iguais.
Mas, mais do que tudo, pensei em mim e em Vera, duas filhas da puta
moradoras de um pedacinho de rocha perto da costa do Maine, convivendo
durante a maior parte do tempo nos últimos anos. Pensei em como as duas
filhas da puta dormiam juntas quando a mais velha estava com medo e
como passaram os anos naquela casa grande, duas filhas da puta que
acabaram passando a maior parte da vida sendo filhas da puta uma com a
outra. Pensei em como Vera me enganava, e eu a enganava de volta, e
ambas ficávamos felizes quando vencíamos uma rodada. Pensei em como
ela ficava quando as bolinhas de poeira iam pra cima dela, como gritava e
tremia como um animal encurralado por uma criatura maior que pretende
deixá-la em pedacinhos. Lembro que eu subia na cama, a abraçava e a
sentia tremendo como um vidro delicado em que alguém bateu com o cabo
de uma faca. Eu sentia as lágrimas dela no meu pescoço, fazia carinho
naquele cabelo fino e ressecado e dizia: “Shhh, querida… shhh. Essas
bolinhas de poeira danadas já foram embora. Você está segura. Comigo”.
Mas, se eu descobri uma coisa, Andy, é que elas nunca vão embora de
vez, não de verdade. Você acha que está livre, que limpou tudo e não tem
mais bolinhas de poeira em lugar nenhum, mas aí elas voltam, parecem
rostos, sempre parecem rostos, e os rostos sempre são os das pessoas que
você não queria ver nunca mais, nem acordada, nem em sonho.
Pensei também em Vera caída na escada dizendo que estava cansada e
que queria que acabasse. E, naquele patamar bambo, com as galochas
molhadas, eu soube muito bem por que tinha escolhido estar naquela
escada que está tão podre que nem as crianças mais pestinhas brincam ali
depois da aula, nem nos dias em que matam aula. Eu também estava
cansada. Vivi minha vida da melhor forma que pude pelos meus padrões.
Nunca fugi de trabalho, nem dei desculpa pra escapar do que precisava
fazer, mesmo quando era algo terrível. Vera estava certa quando disse que
às vezes uma mulher precisa ser muito filha da puta pra sobreviver, mas ser
uma filha da puta dá trabalho, isso eu posso dizer pra quem quiser ouvir, e
eu estava muito cansada. Queria que tudo acabasse, e me passou pela
cabeça que não era tarde demais pra descer aquela escada de novo, e que eu
não tinha que parar lá embaixo dessa vez… não se não quisesse.
Mas aí, eu a ouvi de novo. Vera. Eu a ouvi como ouvi naquela noite ao
lado do poço, não só na minha cabeça, mas no meu ouvido. Foi bem mais
sinistro dessa vez, garanto; em 1963, ela pelo menos estava viva.
“Em que você pode estar pensando, Dolores?”, perguntou Vera com
aquela voz arrogante de não gostou enfia no cu dela. “Eu paguei um preço
maior do que você; paguei um preço maior do que qualquer pessoa vai
saber, mas mesmo assim vivi com a barganha que havia feito. Fiz mais do
que isso. Quando as bolinhas de poeira e os sonhos do que poderia ter
acontecido foram as únicas coisas que restaram, peguei os sonhos e os
transformei em meus. As bolinhas de poeira? Bom, podem ter me pegado
no final, mas eu vivi com elas por muitos anos antes disso. Agora, você tem
as suas pra enfrentar, mas se perdeu a coragem que tinha no dia em que me
disse que despedir a garota Jolander era uma coisa horrível de fazer, vai lá.
Vai lá e pula. Porque, sem a sua coragem, Dolores Claiborne, você não
passa de mais uma velha burra.”
Recuei e olhei em volta, mas só havia o East Head, escuro e molhado,
com aquele borrifo que vem pelo ar nos dias de vento. Não havia uma alma
viva por perto. Fiquei ali mais um pouco, olhando o jeito como as nuvens
percorriam o céu; gosto de olhar as nuvens porque estão tão no alto, e são
livres e silenciosas enquanto seguem caminho lá em cima. Depois, eu me
virei e voltei pra casa. Tive que parar e descansar duas ou três vezes, porque
tanto tempo sentada no ar úmido no pé da escada maltratou as minhas
costas. Mas consegui. Quando cheguei em casa, tomei três aspirinas, entrei
no carro e vim direto pra cá.
E é isso.
Nancy, estou vendo que você empilhou umas dez dessas fitas e que seu
gravadorzinho danado deve estar cansado. Também estou, mas vim aqui
pra falar, e falei… cada palavra do que aconteceu, e cada palavra é verdade.
Faz o que tiver que fazer comigo, Andy; fiz a minha parte e estou em paz
comigo mesma. É só isso que importa, acho; isso e saber exatamente quem
você é. Eu sei quem eu sou: Dolores Claiborne, a dois meses de fazer
sessenta e seis anos, democrata registrada, residente da ilha Little Tall por
toda a vida.
Nancy, acho que quero dizer mais duas coisas antes de você apertar o
botão de parar desse seu aparelhinho. No fim, são as filhas da puta do
mundo que permanecem… e, quanto às bolinhas de poeira: vão se foder!
livro de recortes

Do Ellsworth American, 6 de novembro de 1992 (p. 1):

MORADORA DA ILHA INOCENTADA


Dolores Claiborne, da ilha Little Tall, acompanhante antiga da sra. Vera
Donovan, também de Little Tall, foi absolvida de toda a culpa na morte da
sra. Donovan em um inquérito especial do legista feito em Machias ontem.
O objetivo do inquérito era determinar se a sra. Donovan havia sofrido
“morte irregular”, ou seja, morte resultante de negligência ou ato criminoso.
As especulações relacionadas ao papel da sra. Claiborne na morte da
empregadora foram alimentadas pelo fato de que a sra. Donovan, que
estava supostamente senil na ocasião da morte, deixou para a
acompanhante e empregada todos os seus bens. Algumas fontes estimam
o valor dos bens em mais de dez milhões de dólares.
Do Boston Globe, 20 de novembro de 1992 (p. 1):

BENFEITOR ANÔNIMO DOA 30 MILHÕES PARA


ORFANATO
UM DIA DE AÇÃO DE GRAÇAS FELIZ EM SOMERVILLE
Os diretores perplexos do Lar de Pequenos Andarilhos da Nova Inglaterra
anunciaram em uma coletiva de imprensa convocada às pressas no final
desta tarde que o Natal está chegando um pouco mais cedo para o orfanato
de 150 anos este ano, graças a uma doação de trinta milhões de dólares
feita por um doador anônimo.
“Nós recebemos a informação dessa doação incrível por meio de Alan
Greenbush, um advogado renomado de Nova York e contador público
certificado”, disse um visivelmente abalado Brandon Jaegger, líder do
comitê de diretores do Lar. “Parece estar tudo regularizado, mas a pessoa
por trás dessa contribuição… ou, talvez eu deva dizer, o anjo da guarda por
trás disso está comprometido com o anonimato. Nem precisamos dizer que
todos nós envolvidos com o Lar estamos felizes da vida.”
Se a doação de vários milhões de dólares for real, a sorte dos Pequenos
Andarilhos seria a maior contribuição de caridade única para a instituição
de Massachusetts desde 1938, quando…
Do The Weekly Tide, 14 de dezembro de 1992 (p. 16):

NOTAS DE LITTLE TALL


DE “NETTIE ABELHUDA”
A sra. Lottie McCandles ganhou o prêmio de Natal no Festão de Sexta
em Jonesport semana passada; o prêmio totalizou 240 dólares e dá para
comprar muitos presentes de Natal! Nettie Abelhuda está morreeeendo de
inveja! Falando sério, parabéns, Lottie!
O irmão de John Caron, Philo, veio de Derry para ajudar John a calafetar
o barco dele, o Deepstar, enquanto estava em doca seca. Não há nada
como o “amor fraternal” nessa estação abençoada, não é, rapazes?
Jolene Aubuchon, que mora com a neta, Patricia, terminou um quebra-
cabeça de 2 mil peças do monte Santa Helena na quinta passada. Jolene diz
que vai comemorar o nonagésimo aniversário ano que vem fazendo um de
5 mil peças da Capela Sistina. Viva, Jolene! Nettie Abelhuda e todos do
Tide gostamos do seu estilo!
Dolores Claiborne vai fazer compras para mais uma pessoa esta
semana! Ela sabia que o seu filho Joe, o “sr. Democrata”, iria para casa com
a família depois dos trabalhos em Augusta para um “Natal na ilha”, mas
agora ela disse que a filha, a famosa jornalista de revistas Selena St.
George, vai fazer a sua primeira visita em mais de vinte anos! Dolores diz
que se sente “muito abençoada”. Quando a Abelhuda perguntou se eles
falariam sobre a mais recente coluna de opinião de Selena no Atlantic
Monthly, Dolores apenas sorriu e disse: “Vamos ter muita coisa para
conversar, tenho certeza”.
Do Departamento de Recuperações Precoces, Abelhuda soube que
Vincent Bragg, que quebrou o braço jogando futebol americano em
outubro…

Outubro de 1989 — Fevereiro de 1992


sobre o autor

stephen king nasceu em Portland, no Maine, em 1947. Em 1974, publicou


Carrie, seu primeiro livro, que logo se tornou best-seller e clássico
contemporâneo. Desde então, King escreveu mais de setenta livros, alguns
dos quais ficaram mundialmente famosos e deram origem a adaptações de
sucesso, como O iluminado, Sob a redoma, It, a Coisa, À espera de um milagre,
A torre negra, entre outros.
Em 2003, recebeu a medalha de Eminente Contribuição às Letras
Americanas da National Book Foundation e, em 2007, foi nomeado Grão-
Mestre dos Escritores de Mistério dos Estados Unidos. Atualmente, mora
em Bangor, no Maine, com a esposa, a escritora Tabitha King.
Copyright © 1993 by Stephen King

Publicado mediante acordo com o autor através da The Lotts Agency, Ltd.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no
Brasil em 2009.

Título original
Dolores Claiborne

Capa
Alceu Chiesorin Nunes

Imagem de capa
Adobe Stock

Design de conteúdo extra e ilustrações


Rogério Borges

Preparação
Angélica Andrade

Revisão
Natália Mori
Juliana Cury | Algo Novo Editorial

Versão digital
Rafael Alt

isbn 978-85-5651-218-5

Todos os direitos desta edição reservados à


editora schwarcz s.a.
Praça Floriano, 19, sala 3001 — Cinelândia
20031-050 — Rio de Janeiro — RJ
Telefone: (21) 3993-7510
www.companhiadasletras.com.br
www.blogdacompanhia.com.br
facebook.com/editorasuma
instagram.com/editorasuma
twitter.com/editorasuma

Você também pode gostar