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Prefácio

E ra mais uma noite como todas as


outras se não fosse a tempestade
recheada de raios que

desabava sobre a cidade. Já lera os


três únicos romances disponíveis.
Como de costume, a insônia

era a minha única companheira


naquelas primeiras horas do dia.
Meu cigarro paraguaio acabara.

Você pode até imaginar, mas nunca


chegará perto de saber como este
lugar é tedioso. Só por Deus!
O cheiro de terra molhada me trazia
recordações, tanto que via toda a
minha vida passar diante

dos meus olhos; isso deveria


acontecer na hora da morte.

De repente me lembrei do corvo


que me perseguia há anos. Como
me esqueceria de seu olhar

demoníaco que me arrepiava, e que,


agora, apenas me deixava curioso.
Ele parecia um papagaio,

pois sempre respondia a mesma


coisa, “Nevermore”.
Logo me recordei do livro de
Scarlett e, do nada, tive a ideia de
colocar a minha história no papel

como se fosse um livro. Foi assim


que surgiu isto que você está lendo.

Quero deixar claro que eu não sou


escritor, portanto, isto aqui não
passa de uma desajeitada

tentativa de fazer literatura e,


principalmente, de fazer o tempo
passar. Não tenho vergonha de nada

do que fiz, por isso entrarei nos


detalhes mais íntimos do meu
passado. Espero que você me
perdoe

caso este monte de baboseiras


apresente falhas de coerência e
coesão; repito, não sou escritor de

verdade. Se eu reforçar
excessivamente algo, ocultar
alguma coisa, ou ainda der pouco
destaque em

certos assuntos, peço-lhe mil


desculpas, pois a minha memória
não é mais a mesma.

Caso isto se transforme em livro —


se você está lendo é porque se
transformou —, acredito que

não deverá vender mais do que dez


ou vinte exemplares.
Consequentemente, você está com
uma

raridade em mãos, pode se


vangloriar por isso e se considerar
um sortudo ou um amaldiçoado.

Esta é a primeira vez que tento


escrever algo de concreto. Quero
destacar que eu odiava redações

nos tempos de colégio, vivia


fazendo letras enormes e contando
as linhas para terminar logo.

Conseguia notas nas aulas de


português graças às colas dos
colegas. Chega a ser incoerência eu

tentar fazer literatura, mas que se


foda! Isto aqui não é e nunca será
um livro de verdade!

E chega de blábláblá, vamos ao que


interessa...

Beto Rockfeller

Niterói, Rio de
Janeiro

20 de agosto de 2011

01

O público pulava alucinadamente,


éramos a última banda — aliás, a
mais desconhecida do

circuito amador do rock da terra da


garoa — que se apresentava no
festival. Diria que noventa por

cento das pessoas estavam


extremamente embriagadas ou
drogadas, por isso, elas não tinham
boas
condições sequer de distinguir um
The Doors de uma Fafá de Belém.
Apesar disso, metade do

público fora embora quando nós


subimos no palco. Conseguimos o
honroso fechamento do festival

graças à influência do pai de


Gringo, que era funcionário do
consulado da Inglaterra em São
Paulo e

mexera os pauzinhos. Éramos a


Escória Humana — uma banda de
rock mais voltada ao punk —, e
estávamos cantando no
tradicionalíssimo porão da casa
noturna Madame Satã, o point do

underground paulistano. Nesse


templo, já passaram Cazuza, RPM,
Ira! e tantos outros. O ambiente

era escuro, esfumaçado, e


estupidamente quente. Acho que era
noite de quinta-feira ou madrugada
de

sexta, mas que importância teria?


Éramos quatro jovens retardados
tentando fazer rock and roll.
— E pra fechar! Vamos de cover de
Legião Urbana! Geração Coca-
cola, cria do maior letrista

brasileiro da atualidade, Renato


Russo! — anunciei.

Tomei mais um gole de cerveja e


comecei:

— Quando nascemos fomos


programados a receber o que vocês
nos empurraram com os enlatados

dos USA, de nove às seis...

Terminamos a canção. Logo eu


apresentei a banda:
— Somos a banda Escória
Humana! Na guitarra, ele que veio
da terra dos Beatles, Gringo! No

baixo, ele, o John Lennon


brasileiro, Santiago dos Santos! Na
bateria, ele, o lactobacilo doidão,

Yakult! No vocal, eu, o demente


Rockfeller! A apresentação chega
ao fim, mas estamos convidando a

todos vocês para nos reunirmos


agora mesmo, lá fora, para irmos ao
MASP. Iremos protestar contra

o governo Sarney. Contamos com


todos! Como disse Abraham
Lincoln “Pecar pelo silêncio,
quando

se deveria protestar, transforma


homens em covardes”.

Desmontamos tudo e colocamos no


Corcel mostarda 73 de Yakult.
Entrei na boate novamente,

para comprar mais uma cerveja


com as moedinhas que eu
encontrara no chão. Meus olhos
brilharam

ao ver as encantadoras letras de


neon vermelho que escreviam o
nome da boate. Alguém fazia um

striptease num canto. Quase fiquei


surdo com o berro da mulher-
repolho — uma gorda enjaulada
que

passava a noite toda comendo


repolho, bebendo vodca e uísque, e
gritando. Playboyzinhos e

pseudointelectuais da USP estavam


doidos de ácido. O Madame Satã
era uma salada cultural; ponto

de encontro de punks, góticos,


artistas, gays, estudantes,
intelectuais, transformistas, poetas,
entre

outros. Local de expressões


artísticas, e onde todos se
transformavam em personagens que
se

soltavam ao extremo. Lugar em que


rolava de tudo, absolutamente tudo!

Saí da boate e logo me lembrei de


uma declaração de Gringo que dizia
se lamentar por não ter

visto as performances de Claudia


Wonder na banheira com groselha,
ela — uma travesti — se despia

toda e saía molhando as pessoas.


Esse inglesinho, ah, tinha as minhas
dúvidas.

A revolta me dominou ao notar que


somente sete pessoas aceitaram o
convite para o protesto.

Olhei para a multidão que bebia e


ria entre os carros, a encarei e
disparei:

— Que porra é essa! Os políticos


metem a mão no nosso dinheiro, os
norte-americanos nos

obrigam a engolir a cultura deles,


os policiais nos batem, a inflação
aumenta, e o que fazemos? Nada!

Pois está tudo muito bom, tudo


muito bem. A maioria de vocês
prefere assistir a uma telenovela ou

vinte e dois homens correndo atrás


de uma bola, prefere encher o cu de
álcool, prefere transar sem

camisinha pra pegar AIDS, do que


lutar pelos nossos direitos. Vão à
merda! Mas, eu ainda acredito
no Brasil; ainda creio que nós
acordaremos e colocaremos
centenas, ou quem sabe milhões, de

pessoas nas ruas protestando em


prol de um país melhor, de um
mundo mais digno para as futuras

gerações. Eu acredito! Eu sonho!

Indignado, eu logo entrei no Corcel


e Yakult dirigiu até a Avenida
Paulista, os sete — mal-

encarados, por sinal — nos


seguiram em dois carros.
Rapidamente chegamos, saímos, e
fomos ao

Vão Livre do MASP. Fumamos um


baseado enquanto esticávamos as
faixas. Como era bela a cidade

durante a noite... Os prédios


iluminados, a avenida
movimentada, e as culturas se
cruzando.

Logo invadimos a avenida, com


cartazes e muito barulho. Era
madrugada. De repente, eu vi os

mal-encarados quebrando os
orelhões, arrancando placas,
derramando lixo, enfim, praticando

vandalismo! Não resisti e parti para


cima do primeiro que vi.

— Você tem merda na cabeça?!


Destruindo o patrimônio público!
Sabe quem vai pagar por isso?

Somos nós mesmos, seu idiota!

— Vai se foder! — retrucou me


ignorando.

Enfureci de vez e pulei em cima


dele. Rolamos no chão, trocando
socos e pontapés. Ouvi a sirene,
eram os PMs! Levantei e tentei
correr, mas já era tarde.

Os policiais nos cercaram, eu e o


vândalo. Ao fundo, pude ver Yakult
correndo. Essa era a nossa

lei: viatura chegando, pernas para


quem as tem.

— Posso saber o que está


acontecendo aqui? — perguntou o
policial.

— Esses anarquistas vieram


estragar o nosso protesto! Aí eu
parti pra cima dele, seu policial. Se
eu fosse vocês, olharia a mochila
dele — respondeu
surpreendentemente o vândalo.

Como assim? Eu era o anarquista


da história, e ele o herói? Que
absurdo! Cínico do caralho! Essa

mochila a que ele se referia,


abandonada ao meu lado, eu nunca
tinha visto antes, nunca! Tentei
contar

a minha versão, mas fui


interrompido.

— O que é isto? Responda-me


agora, o que é isto?! — gritou o
policial me mostrando um

coquetel Molotov retirado da


mochila abandonada.

— Acho que é Molotov...

— Acha?! Você está preso! —


disse ele me jogando de peito no
chão e me algemando por trás.

Logo me arremessaram no
chiqueirinho e me trancaram. Ainda
pude ver o verdadeiro vândalo

sentado na calçada, fumando e me


acenando com um tchauzinho. E a
viatura foi embora...

02

T entei argumentar, mas eles me


ameaçaram se eu continuasse
falando. Desse jeito, me calei e

fiquei apenas curtindo o visual.


Pessoas, árvores, placas, casas,
postes... Tudo foi ficando para trás,

e isso me deixava reflexivo...


Pensativo... A minha vida inteira
repassava diante dos meus olhos...

Filho de Antônio Araújo — que era


formado em direito, mas trabalhava
como feirante nas ruas da

25 de Março — e Genilda Oliveira


— mais conhecida como Geni, uma
mineira de Três Corações,

ex-faxineira e que trabalhava como


dona de casa —, nasci com três
quilos e cem gramas na

maternidade paulistana São Luiz,


em meados de 1970. Vivi toda a
minha vida no antigo casarão

herdado pelo meu pai, localizado


na Alameda Nothmann.

Fui registrado no cartório como


Beto Rockfeller Araújo. O nome foi
escolha da minha querida

mãezinha, uma pequena homenagem


ao maior sucesso das telinhas na
época, a novela Beto

Rockfeller da extinta TV Tupi.

A mesmice foi a protagonista da


minha infância. Na pré-
adolescência, também não houve
nada de

que eu pudesse me vangloriar ou


me envergonhar. No colégio,
estudei pouco, tive várias
suspensões,

fiz algumas amizades, e peguei


várias garotas.

Sempre me disseram que o amor


era um sentimento magnífico.
Descobri, na prática, que esse

negócio não passava de melodrama


de meninos mela-cuecas e de
meninas que sonhavam com

príncipe encantado; em relação aos


adultos, esses eram pessoas
mimadas e carentes que não

possuíam amor próprio. Já namorei


algumas garotas, mas sempre me
mantive racional porque eu não

era um mela-cueca! Minha última,


Penélope, me trocou pelo vocalista
dos Psicóticos do ABC, uma

banda punk que começara a fazer


certo sucesso na Grande São Paulo.
Cheguei a sair algumas vezes

com Raquel Mattos, baixista da


banda Baseados na Realidade, mas
tudo acabou quando a vi fazendo

um striptease — e que striptease —


numa roda de contraditórios
skinheads em pleno Madame Satã.

Eu odiava skinheads!

Meu último emprego com carteira


registrada fora na Padaria Rosário,
onde eu entrava no meio da

madrugada para assar pães — e,


por muitas vezes, para dar uns
pegas na filha do dono. Fui
mandado

embora porque o patrão, que


morava no andar de cima, me pegou
no flagra com sua filha rolando em

cima da mesa com farinha voando


para todo lado.

Meus melhores amigos eram os


companheiros de banda.

Yakult — oficialmente Odair José


— fora meu melhor amigo no
colégio. Nós matávamos muitas

aulas para ir a casa dele, onde


passávamos as tardes ouvindo Sex
Pistols e Rolling Stones, regadas a

muito Yakult com vodca — por isso


o apelido. Ele era uma mistura de
hippie com punk. Possuía

longos cabelos castanhos, era


magricelo, amarelado, parecia um
afegão desnutrido, usava calças

rasgadas, era todo místico,


acreditava em discos voadores e
curtia filosofia. Era fã de Raul
Seixas,

Led Zeppelin e Pink Floyd. Tinha


um Corcel mostarda e uma moto
RD 350; trabalhava de motoboy.

Ele tinha dois sonhos: conhecer


Machu Picchu e ser abduzido.

Santiago dos Santos, o John Lennon


— eles eram bem parecidos
fisicamente — brasileiro, era um

sujeito que não bebia, comia com


farinha. Vê-lo lúcido era tão raro
quanto ver o cometa Halley. Era

conhecido por pegar as garotas


mais impossíveis. Fazia bicos numa
funerária; lavando, vestindo, e

maquiando defuntos. Obviamente


era fã de The Beatles! Viera do
interior, Limeira! Era primo de

Yakult, aliás, eles moravam juntos


num puxadinho nos fundos da casa
dos pais do lactobacilo doidão.
Ah, Santiago era fissurado na
cantora Madonna.

Gringo, cujo nome era Donald


Miller, era filho de ingleses. Tinha
paixão por literatura, era fã de

Machado de Assis. Na música,


adorava The Who e Sex Pistols.
Era um autêntico playboy, mas
gente

boa! Não trabalhava, só queria


curtir a vida e tocar rock and roll.
Pegava mulheres, mas possuía um

estilo meio gay. Tinha cabelos


loiros e compridos, pele pálida, e
fisicamente parecia um típico inglês

londrino e, de fato, era. Sua última


namorada o trocara por uma mulher,
o que aumentou os rumores

em relação a sua orientação sexual.

Eu e Yakult começamos aprendendo


a tocar bateria. Ele se destacou, já
eu... Aí surgiu Santiago

com um baixo nas costas vindo de


Limeira para dividir o quarto com o
primo. Já éramos três, e eu

comecei a me destacar no vocal,


sendo que instrumento não era a
minha praia. Faltava um guitarrista,

faltava! Nós nos conhecemos em


um show de Os Paralamas do
Sucesso, quando ele nos apresentou

algumas belas garotas da classe


média paulistana. Uma delas queria
sair com Santiago, o pegador!

No fim das contas ficamos amigos,


ainda mais depois que ele nos disse
que estava aprendendo a

tocar guitarra. Assim se formou a


banda, cujo nome foi criado por
esse inglesinho esquisito.

Meu sonho? Gravar um LP, tocar


nas rádios, fazer grandes shows
pelo país afora, vender milhares

de cópias, aparecer na mídia,


enfim, fazer sucesso.

A viatura parou, enfim chegamos à


delegacia. Dois policiais abriram o
chiqueirinho e me

arrastaram para um quarto escuro,


onde me empurraram e mandaram
ver... Foram inúmeras cacetadas

nas costas, até que caí esfacelado;


aí vieram os pontapés de todo lado.
Já eram uns cinco policiais

me açoitando. A dor era


insuportável, mas o pior eram as
humilhações verbais. Minha visão

escurecia cada vez mais, a última


coisa que senti foi um pontapé nas
partes baixas e naquele instante

eu apaguei...

03

V agarosamente reabri os olhos e


voltei à consciência. Logo me
levaram à sala do delegado.
Sentei-me, ainda algemado, e o
encarei.

— Beto Rockfeller Araújo — disse


o delegado, passando o meu RG
entre os dedos. Nesse

momento eu percebi que a minha


carteira não estava no bolso. —
Você já fez trabalho comunitário

por desacato à autoridade. E agora


você é pego em flagrante com
coquetel Molotov. Sua situação não

está fácil... Dano ao patrimônio


público, formação de quadrilha e
ainda porte de material explosivo.

Pena que você foi o único a ser


pego. Mas, se você colaborar, me
passando os nomes dos outros que

fugiram, sua pena será reduzida.

— Sou inocente, parece clichê, mas


sou! Eu fui...

— Achei que você fosse mais


criativo — interrompeu. — Vai,
comece a falar logo, senão mando

você novamente para o quartinho


vip! Aliás, o que aconteceu? Está
todo ferido. Já sei, foi briga de
rua, entendeu?! Briga de rua! E vai,
comece a falar!

— Só falo na presença do meu


advogado!

— Espertinho, hein. Vai, ligue!

Um policial tirou as algemas.


Liguei para meu pai, que,
acostumado, disse que já estava a

caminho. Logo me levaram à cela,


onde permaneci sozinho. Deitei-me
num canto. Meu corpo latejava

de tantas dores. Um fio de sangue


escorria timidamente pela minha
face. Sentia-me quebrado em mil

pedaços.

Não demorou muito para me


levarem novamente à sala do
delegado. Sentei-me. Meu pai
olhava

para as paredes, em absoluto


silêncio. E nada de o delegado
aparecer. De súbito, ele chegou,
abriu a

porta, arregalou os olhos e


murmurou “Tonhão!”

— Noronha! Quanto tempo... Que


bom rever você — disse meu pai,
surpreso.

— Pena que não foi por um bom


motivo. Ele foi pego com coquetel
Molotov e brigando na

Paulista. Mas como é seu filho,


deve ser apenas uma fase, uns bons
conselhos devem resolver —

disse ele, que se virou para um


policial. — Cabo Pereira, solte o
rapaz e o leve à sala ao lado.

O cabo tirou as algemas e me


conduziu pelo corredor. Pela
vidraça eu pude ver meu pai

gesticulando com o delegado. Na


sala, todos me tratavam como um
lorde inglês. Eu tomei café, comi

uma rosquinha, e uma agente fez


curativos nas minhas feridas.

Quando engoli a terceira rosquinha,


meu pai chegou entregando a minha
carteira e disse que eu

estava livre. Logo o acompanhei até


o carro, com uma rosquinha
escondida no bolso. Entramos no

fusca e ele partiu, em silêncio.


Entediado, eu liguei o rádio e
comecei a cantarolar “Lucy in The
Sky

With Diamonds. Lucy in The Sky


With Diamonds. Lucy in The Sky
With Diamonds”.

Meu pai desligou o rádio, me


encarou com os olhos semicerrados
e disse:

— Você escapou dessa por pouco.


O delegado soltou você em nome
da amizade que eu e ele

tínhamos na faculdade, eu o
ajudava, passando cola nas provas.
Olha só, ele me contou que na

próxima, inevitavelmente, você


ficará preso, entendeu? Preso! E,
como você não tem jeito mesmo, a

única coisa a se fazer é deixar a


cidade! Já conversei com seus tios.
Você vai passar um tempo com

eles em Piracicaba. Melhor você


longe do que preso!

As palavras do meu pai caíram


como uma bomba no meu colo.
Como assim, deixar a cidade? Ir
morar com meus tios no interior? E
os meus sonhos? A minha banda?
Meus amigos?

— Não tem escolhas. Você já está


marcado pela polícia. Ou passa um
tempo fora de São Paulo, ou

será preso! É melhor tocar no


interior do que tocar no presídio!

Fiquei em silêncio, refletindo...

Minha mão direita se rebelou e deu


um tapa no meu próprio rosto.
Lazarenta! Possuo a síndrome

da mão alheia desde que saí de um


coma de dois meses, consequência
da minha queda de uma

amoreira quando eu tinha apenas


oito anos, tive traumatismo
craniano. Pelo menos, a minha
versão

dessa síndrome era leve, o que quer


dizer que a minha mão se rebelava
em média uma ou duas vezes

por ano.

Voltei em mim, dei uma dentada na


rosquinha que eu guardava no bolso
e tentei argumentar
dizendo toda a verdade em relação
ao que acontecera no protesto, mas
nada adiantou. E o fusquinha

azul seguiu em frente...

04

A noite dava o ar de sua graça. O


gelado vento entrava pelas frestas
da janela e o ônibus pulava

como um touro em um rodeio.


Desci no meu ponto e andei
algumas quadras. Logo cheguei ao
salão

comercial adaptado para o estúdio


da banda. Salão que era alugado
pelo pai de Gringo.

Do lado de fora já se ouvia “How


many roads must a man walk
down. Before you can call him a

man? ”, a voz era do esquisito


inglesinho. Entrei, e lá estavam
eles. Gringo sentado, com a calça

rasgada bem ao estilo punk,


tocando guitarra e cantando. Yakult
arriscando algumas coisas na
bateria,

bebendo vodca com Yakult, e


xavecando uma bela loira que
usava uma blusinha da banda
Ramones.

Santiago dos Santos bebia cerveja


no meio de duas jovens, uma ruiva
e outra loira. Num canto da

sala estava a Bruninha — amiga de


Yakult — fumando uma erva. Ela
era gostosa, mas não tinha nada

no cérebro, absoltamente nada!

Cumprimentei a todos, forçando um


sorriso. No fundo, eu sabia que
aquele seria o último ensaio
da banda, pois eu iria embora,
infelizmente iria, e estava ali para
anunciar isso!

Peguei uma cerveja gelada e me


sentei no sofá. Bruninha veio puxar
assunto. Dividimos o

baseado, que logo se foi. Ela mexeu


na bolsa e a virou no chão —
derrubando tudo —, juntou os

restos de erva, e fez mais um


cigarrinho. Eu a ajudei a recolocar
as coisas na bolsa. Logo voltamos a

fumar.
— Sou uma moça séria! Não é
porque estou conversando e
fumando com você, que eu quero
fazer

sexo!

— Sim, claro!

Ela me encarou, jogou o olhar para


cima de mim, deslizou os dedos no
meu queixo, colou os

lábios no meu ouvido, e sussurrou:

— É brincadeirinha...

Suas pernas voaram e pousaram no


meu colo. Não tinha como negar a
minha excitação ao ver suas

belas coxas envoltas em meias-


calça negras. E o decote, hummm...
O curtíssimo vestido tinha um

decote que deixava metade dos


avantajados seios expostos.
Enquanto o pessoal se divertia —
no que

seria um ensaio, mas que jamais se


limitava a isso —, meus dedos
roçavam as coxas dela. Sentia sua

pulsação se alterar gradativamente


e eu ia à loucura, a uma insana
loucura de enorme desejo. De

repente, ela deu um pulo para fora


do sofá e entrou no banheiro, me
convidando com o olhar. Não

resisti, fui atrás.

Após uma gostosa brincadeirinha,


com direito a anal e tudo, saímos
do banheiro. Ela se deitou no

sofá. Eu peguei uma cerveja e me


juntei ao Gringo. Santiago passava
a mão-boba por dentro dos

shorts das garotas. Logo peguei o


microfone e comecei a cantar Um
Olhar no Horizonte, composição

própria, criada por mim:

— Um olhar no horizonte, e a
esperança se esconde. O sangue
jorra no Vietnã, e os burgueses se

divertem nas ruas de Amsterdã...

Santiago, bêbado, derramava


cerveja nos peitos das garotas e os
lambia, para o delírio delas.

Yakult ensinava a loira a tocar


bateria, ela já estava sentada no
colo dele. E, eu e Gringo,
ensaiávamos de verdade.

Após tocarmos mais algumas


músicas, eu chamei os três num
canto e contei tudo.

— Como assim?! Ir embora pra


Piracicaba? — questionou
Santiago.

— Eu também vou com você Rock!


É nóis! — exclamou Gringo.

— Não tenho muitas escolhas,


infelizmente — disse eu.

— Vamos embora pra São Thomé


das Letras, quem topa? —
perguntou Yakult.

— O que tem lá? — indagou


Santiago.

— Lá tem hippies, óvnis,


cachoeiras, grutas, cogumelos,
rock, e muita, mas muita maconha, e
da

boa!

Eu devia deixar São Paulo, mas não


necessariamente tinha que me
mudar para Piracicaba. São

Thomé das Letras parecia uma boa


ideia e, quem sabe, eu teria a
companhia de alguns dos meus

amigos.

— Eu estou dentro. Até porque não


tenho nada a perder — disse
Gringo.

— Os defuntos irão sentir


saudades, mas estou dentro também
— confirmou Santiago.

— E eu, lógico que aceito. Mas,


você, Yakult, vai largar o emprego?
— perguntei.

— Sim, amanhã de manhã! Então,


vamos comemorar!
Antes de resolver a parte
burocrática, bebemos e fumamos
mais um pouco. A loira, com a

blusinha da banda Ramones, subiu


na mesa e começou a fazer um
striptease ao ritmo de I Wanna Be

Sedated. Santiago ergueu a garrafa


para brindar, e disse:

— Vamos festejar os novos tempos!


A nova era! A nova cidade... Pra
onde mesmo que nós

iremos?

05
A placa indicava que já estávamos
em Cambuí, terras mineiras. Yakult
continuava dirigindo o

Corcel, com uma garrafa de vodca


entre as pernas. Gringo estava no
banco da frente. Atrás, se

apertando, estávamos eu, Santiago e


Madonna; sim, Madonna, não a
verdadeira, mas a boneca

inflável pela qual Santiago era


apaixonado.

Enquanto nós disputávamos


espaços com as bagagens,
bebíamos cerveja e vodca, e
ouvíamos uma

fita cassete do Creedence.

Meu pai hesitou, mas acabou


cedendo, e me apoiou a ir para
Minas Gerais. Ainda me restavam

alguns trocados economizados na


época em que eu trabalhava na
Padaria Rosário. Pelo menos fome

eu não passaria tão cedo. Santiago


tinha um pé-de-meia — graças aos
defuntos —, por isso estava

tranquilo; sentiu um pouco por se


afastar das ficantes, mas se
entusiasmou em conhecer as
mineiras,

famosas mineiras, conhecidas por


serem prendadas e fogosas. Yakult
pediu a conta do emprego,

vendeu a moto e mergulhou de


cabeça no nosso projeto — com o
qual ele sonhava ocultamente há

anos.

Sem dúvidas, o mais prejudicado


fora Gringo. Seus pais não
gostaram da ideia, mas o deixaram
ir, com uma condição — a de cortar
toda a ajuda financeira. Assim, o
pobre inglesinho, revoltado e

orgulhoso como sempre, se manteve


firme e arrumou as malas.
Transformou-se, da noite para o
dia,

em mais um plebeu.

No fundo, nós todos não tínhamos


muito a perder, fora Gringo. Lógico
que iríamos sentir saudades

dos amigos, das garotas, e dos


familiares, mas o desejo de
aventura falava mais alto, bem mais
alto.

Estávamos na estrada rumo a São


Thomé das Letras, a cidade das
estrelas...

Repentinamente o carro pulou e eu


bati a cabeça. Que dor! Eu ainda
sentia as pancadas que os

malditos policiais me deram. Filhos


da puta! Quando encarei Yakult,
descobri o motivo. Ele estava

dichavando a santa erva. Logo o


cigarrinho começou a passar de
mão em mão, exceto nas de

Madonna, lógico! Senti-me indo a


Woodstock. Ah, já dava risada
sozinho. Minha mão se esticava

para dar uns amassos na Madonna,


escondido de Santiago, lógico, pois
ele era ciumento.

Uma placa não deixava dúvidas de


que estávamos em Pouso Alegre. O
baseado nos deu uma fome

do caralho! Vimos um bar na


estrada e paramos. Tínhamos grana,
mas precisávamos economizar e
assim fizemos. Yakult fez um
acordo com o dono do bar,
tocaríamos por uma hora em troca
de um

prato — com costelinha de porco,


mandioca frita, e tutu de feijão à
mineira — e uma cerveja para

cada um. Arrumamos os


instrumentos e mandamos ver...
Acho que havia cerca de trintas
pessoas, que

rapidamente se tornaram duzentas,


para o delírio do dono do bar. Não
porque éramos tão bons assim
e nem porque os mineiros gostavam
tanto de rock. Era porque nós
éramos quatro retardados que

usavam roupas rasgadas e


tocávamos para um público que
talvez nunca tivesse ido num show
de

rock, ou de qualquer outro gênero


musical. E continuamos tocando...

Após a épica apresentação, nós nos


sentamos e enchemos a pança.
Todos vieram nos

cumprimentar pessoalmente, eu me
senti um pop star. O dono nos
convidou a fazer novas

apresentações quando quiséssemos


e nos cedeu mais uma rodada de
costelinha de porco e cerveja.

Enquanto comíamos, Santiago


conversava com duas mineiras num
canto, Gringo não tirava os olhos

de uma peça de salame, Yakult


perguntava sobre fatos ufológicos
na região, e eu enfiava alguns pães

de queijo no bolso da jaqueta.

No bar, ouvimos mais algumas


lendas sobre São Thomé das Letras.
Como aquela de que a cidade

tinha antigamente uma passagem


subterrânea para a mística
Atlântida, a de que a cidade já fora

visitada pelos fenícios, a de que a


cidade fora escolhida — por uma
avançadíssima civilização

intraterrestre — para dar início à


sexta sub-raça humana e, ainda, a
de que a cidade era um dos sete

pontos energéticos do planeta


Terra, lenda esta já dita por Yakult.
Logo pegamos a estrada novamente.
Notei que Santiago, que sumira por
um tempo, tinha uma

chupada no pescoço, mas fingi que


nada vi. Ainda ouvimos outras fitas
cassetes, desde a banda

brasileira The Wasted até a inglesa


The Who. Discutimos sobre as
características físicas das

mulheres boas de cama e chegamos


à conclusão de que as melhores
eram as de canela fina. Abrimos

uma garrafa de uísque, sim, uísque


do bom, que Santiago encontrara
numa encruzilhada, ao lado de

uma galinha com farofa, em São


Paulo.

Quando matamos a garrafa, notamos


que tínhamos chegado. Já era noite.
As ruas eram de pedras,

não colocadas, mas esculpidas para


dar passagem aos automóveis; a
cidade fora erguida no pico de

uma montanha de pedra, incrustada


na Serra da Mantiqueira. Vi várias
casas de pedras, das famosas
e caseiras pedras-de-são-tomé,
tradicionalmente usadas em bordas
de piscinas. Paramos perto de

algo que parecia a rodoviária.


Imediatamente um bando de vinte
pessoas cercou o carro. Um
assalto?

Que nada! Elas vieram nos oferecer


hospedagem, sabiam que éramos de
fora. Anotamos todos os

telefones e endereços de algumas


boas ofertas, mas decidimos dormir
dentro do Corcel, assim
economizaríamos alguns trocados.
Ao amanhecer, nós procuraríamos
um canto para alugar, pois

fomos sem nada certo.

Percorremos algumas quadras e


paramos. A noite não era fria, era
congelante, típica das regiões

serranas. Gringo deitou o banco e


dormiu. Eu pulei para o banco do
motorista. Santiago ficou atrás

dormindo com a Madonna. Yakult


não quis dormir e se sentou em
cima do carro para ficar olhando o
céu, para quem sabe avistar algum
óvni. Virei-me de canto e fechei os
olhos. Assustei-me ao notar

uma mão caindo sobre a minha


coxa, era a do maldito inglesinho
que roncava. Eu o empurrei com

força, e o fiz se desmoronar ao lado


da porta — o maldito nem acordou,
ou fingiu. Lá em cima,

alguém ciciava, era Yakult cantando


“Eu sou a mosca que pousou em sua
sopa. Eu sou a mosca que

pintou pra lhe abusar”. Era uma


canção do místico Raul Seixas.
Comi um pão de queijo e dormi...

06

T omei o último gole de caipirinha.


Estiquei-me no sofá. Seis meses...
Seis meses... Seis meses

se passaram... Seis meses em São


Thomé das Letras...

Estava cansado. O relógio apontava


dez horas da noite, era sexta, sexta-
feira! Eu ainda tinha que

trabalhar. Há meses eu era padeiro


na Padaria Chico Taquara. Não
ganhava muito, mas dava para

sobreviver. Santiago trabalhava em


Três Corações, em uma funerária
— acho que não existia

nenhuma em São Thomé, que tinha,


aproximadamente, três mil
habitantes. Yakult trabalhava em
uma

pedreira, aliás, diria que sete em


cada dez moradores trabalhavam
nisso, que, por sinal, parecia ser a

principal fonte de renda da cidade.


Gringo também tentou a pedreira,
mas aguentou apenas um dia;

agora ele trabalhava vendendo


artesanato, consequentemente era,
por ironia do destino, o mais duro

da turma.

Em relação a casa, eu e Gringo


tínhamos quartos individuais, já
Yakult dividia o seu com

Santiago. A sala era misturada com


a cozinha e o estúdio da banda.

Levantei-me e caminhei até a


janela. Espiei. As estrelas se
mantinham imponentes. Uma
fantasmagórica onda de nuvens
desfilava no céu de cores densas e
surreais. A lua cheia parecia, de

fato, um enorme queijo minas. O


congelante frio serrano cortava meu
rosto. Como o sul de Minas era

encantador...

Quanto à banda, havíamos feito


algumas apresentações em bares da
região, nada animador, e nada

desanimador também.

— Maluco, que frio está lá fora! —


exclamou Yakult chegando com as
roupas imundas do

trabalho. — Encontrei um fumo dos


bons.

— Achei que estava em falta.

— E as amizades, onde ficam? Vou


tomar banho — disse ele tirando
um pacote do bolso e

jogando-o para mim. — Vai


preparando!

Dichavei o tijolinho, fiz o cigarro e


comecei a tragar a erva. Não
demorou muito para Yakult
voltar. Dividimos o segundo
baseado. De repente, Gringo
chegou todo perfumadinho.

— Como foi o encontro com a


garota? — perguntei passando-lhe a
erva.

— Ah. Foi bom. Nós bebemos num


barzinho na praça. Passeamos na
Gruta São Tomé. Depois

fomos até a casa dela, que não tinha


ninguém.

— E...

— E ela me convidou pra entrar,


para tomar uma xícara de café, mas
eu não curto café, prefiro chá

com leite. Ela insistiu. Eu disse que


não queria e fui embora, e ela ficou
chateada. Só por causa de

um café, vê se pode?

— É... Você não curte café mesmo...


— debochou Yakult que, acredito,
pensou o mesmo que eu.

Que o café era mera desculpa para


eles...

— Não — disse Gringo,


inocentemente. — Vou ler um livro.
— Passou o baseado pra mim e foi

embora pro quarto.

Dei a última tragada e me levantei.


Estava na hora de trabalhar.

— Vou indo — disse eu.

— Bom trabalho. Daqui a pouco eu


também vou sair, irei ao Cruzeiro
fazer vigília com uma turma

que veio de Tatuí. Quem sabe nesta


noite os óvnis aparecem.

— Boa sorte.
Peguei a mochila e saí. Mesmo
usando casaco, eu sentia frio. Não
era à toa que São Thomé era a

quarta cidade mais alta do país. Lá


se estava, fisicamente, mais perto
de Deus.

Eu já perdera dois tênis de tanto


andar sobre as pedras. Pedras,
pedras, pedras. Aquilo sim era a

cidade das pedras. Tinha até igreja


feita de pedras. Outra bizarrice
naquele lugar era um estranho

magnetismo que provavelmente foi


o responsável pelos danos ao meu
relógio e à bússola de Yakult.

Mas, não podíamos reclamar da


boa e barata comida mineira, e
também das mineiras, lógico!

O vento sibilava dançando sobre o


céu, uma mística dança que parecia
coisa de outro mundo. Era

por isso, e outras coisas mais, que a


cidade atraía místicos e hippies
vindos de todo lado. As ruas

estavam vazias. Cruzei outra quadra


e um cheiro invadiu as minhas
narinas, era a erva, que por ali

era tão consumida quanto água


potável. Uma agradável música
dispersava no ar, acho que era do

Pink Floyd. O rock parecia ser a


trilha sonora da cidade,
principalmente o psicodélico. Outra
coisa

comum por aquelas bandas, eram os


turistas aventureiros, que iam em
busca de esportes radicais,

trilhas, cachoeiras. Mas, o que mais


chamou a minha atenção, naquela
cidade, foi a receptividade —

ali se pendurava conta,


cumprimentava pessoas
desconhecidas, almoçava na casa
de quem você

acabou de conhecer, pegava carona


até com o prefeito.

Pisei na praça. Olhei para o céu.


Uma estrela cadente rasgou o manto
azul. Fechei os olhos e fiz

um pedido, como manda a tradição.


Pedi apenas que eu pudesse ser
feliz, apenas... Quando reabri,
avistei uma garota entrando na
igreja. Fui atrás, não sei o porquê,
mas fui. Empurrei a porta. Entrei

no templo, e vi apenas uma vela


acesa no altar. Um estranho silêncio
lavou meu corpo. A vela apagou

de repente, lá fora o ventou uivou, e


eu pude ouvir sutis passadas e uma
zombeteira risada. Ao longe

surgia uma canção do The Beatles,


Hey Jude...

07

A s nuvens faziam desenhos


estranhos no céu, cujo tom azul
tinha um toque celestial. Vi um

mamute fumando, dois cães


transando e uma rodela de salame.
Não! Era rodela de provolone. A

fumaça acariciava meu rosto,


fazendo-me rir, rir
descontroladamente. Ao longe, eu
via apenas serras,

que terminavam onde as estranhas


nuvens surgiam para fazer
bizarrices. O azul foi se
transformando
em laranja, era o crepúsculo. Eu e
Yakult continuávamos sentados em
cima da Gruta São Tomé, sobre

as rochas. Justamente a gruta onde o


escravo teria visto São Tomé que
lhe entregara uma carta e,

onde, mais tarde, teriam encontrado


a imagem desse santo, dando o
nome à cidade.

— Está sentindo a energia? Eu me


sinto entorpecido de tanta energia
cósmica, isto aqui é muito

louco!
— A energia não, mas que este
lugar é muito louco, ah, isso eu
sinto — disse eu.

Lá em baixo, na praça, um hippie


cantava canções de Zé Ramalho no
violão.

— Gosto desta gruta. Este lugar é


místico, até os alienígenas já
visitaram e deixaram uma

mensagem aos humanos.

— Pois é... — resmunguei, pois eu


não entendi nada. Minha mente
estava tão aberta que meus
ouvidos se fechavam
gradativamente. Só ouvira algo
sobre mensagem, acho que ele se
referia às

pinturas rupestres da gruta, que


foram supostamente feitos pelos
fenícios, índios, sumérios,

extraterrestres, ou até seres


intraterrestres.

— Olha lá, Rock! Um óvni fazendo


ziguezague no céu!

Olhei e vi apenas um vaga-lume


chapado voando na tentativa de
escapar da alucinógena fumaça.

Uma fome monstro tomou conta de


mim, puxei um punhado de grama e
comi, logo dei um pouco ao

Yakult, que a devorou.

— Rock, tem mais batata frita aí?

Chegando ao lar, eu avistei


Santiago dormindo com Madonna.
Esse cara era muito estranho, pois

ele pegava mais mulheres do que


eu, Yakult, e Gringo juntos. E,
mesmo assim, era fissurado numa
boneca inflável. Acho que todas as
pessoas têm um lado insano,
algumas o mostram, outras o

ocultam.

Entrei correndo no banheiro.


Enquanto defecava, eu ouvi um galo
cantando e, imediatamente,

lembrei-me da lenda do Cantagalo.


Diziam que, por ali, existia uma
enorme cobra com bico e crista,

que cantava como galo e atacava


pessoas, eu hein. Só faltava ver um
gnomo jogando truco com um
duende, porque eu não duvidada de
mais nada. Não era à toa que São
Thomé das Letras era

comparada com Machu Picchu, a


cidade perdida dos incas.

De súbito a porta se abriu, era


Yakult!

— Oou! Eu estou cagando!

— Se quiser que alguém limpe a


sua bunda, peça pro Gringo, eu não!
— disse ele, ajeitando o

cabelo na frente do espelho. — O


pessoal já está chegando.
Pessoal? Que pessoal? Ah sim, a
festinha! Putz, eu tinha me
esquecido. Yakult logo saiu e o

maldito deixou a porta aberta. Filho


da puta! Quando eu me levantaria,
uma garota de vestido preto

entrou! Fiquei constrangido, mas


resmunguei:

— Oou! Eu estou cagando!

— Eu sei, não sou cega! Não vai


querer que eu limpe a sua bunda,
vai? — perguntou ela, que

continuou retocando a maquiagem.


Não sabia que as mineiras eram tão
descoladas assim. O tempo

foi passando... Passando...


Passando... — Pronto! Tchauzinho,
e limpe tudo direitinho —
continuou,

ao ajeitar a calcinha e sair; pelo


menos ela encostou a porta.

Levantei-me do vaso. Limpei-me e


saí, graças a Deus! O som já estava
rolando. Chegando à sala,

avistei umas vinte pessoas, a


maioria mulheres, lógico! Incrível
como o tempo voou enquanto eu

defecava. Era a primeira vez que


nós quatro reuníamos as nossas
amizades, e algumas amizades das

amizades, num mesmo local, ao


mesmo tempo, em nossa nova casa.
Havia muitos desconhecidos,

muitos. Santiago já dava uns beijos


na garota que me viu cagando.
Yakult conversava com um famoso

habitante da cidade, Tatá, ufólogo


reconhecido nacionalmente.

Dois rapazes conversavam sobre


alucinógenos. Aproximei-me
disfarçadamente e descobri que um

cogumelo daria uma brisa de quatro


horas, se ingerido in natura. Que
maneiro! A única coisa estranha

era a demora de Gringo chegar.

Tomei uma, duas, várias cervejas,


enquanto ouvia o verdadeiro John
Lennon cantando na vitrola.

Permaneci sentado, apenas


observando as minhas futuras
caças. O povo ia chegando, o LP
rodando, e
a cerveja amenizando
gradativamente a timidez de todos.
Perto da geladeira, eu vi Yakult
dançando

com uma garota bem sensual; se não


me engano, ela era amiga dele e se
chamava Lolita.

Encantei-me por uma loira de olhos


esfumaçados. Apanhei duas
cervejas e fui me aproximando...

Era hora de atacar!

Toquei no ombro da loira. Ela se


virou. Eu sorri e ofereci uma
cerveja, ela a pegou.

Repentinamente alguém abriu a


porta. Era Gringo acompanhado de
uma garota. A garota... Que

sensuais olhos negros... Rosto


delicado... Pele branca... Cabelos
negros que possuíam uma

vivacidade sobrenatural... Ah, os


lábios, que belos lábios rubros... E
aquela pintinha perto da boca,

hum... A franja caía sobre a testa,


fazendo meu coração bater
acelerado... Ela jogou o olhar em
mim,

automaticamente a cerveja
escorregou da minha mão e se
espatifou no chão. Ao longe, bem
longe, eu

ouvia a loira perguntar: “Está tudo


bem? Moço? Está tudo bem?”
Minha garganta deu um nó, nenhuma

palavra conseguia sair da boca.


Enquanto Gringo desfilava com a
garota, eu ouvia “Hey, Jude, don’t

make it bad. Take a sad song and


make it better... ” Minhas pernas
amoleciam. Meu mundo girava,

girava, e girava. E a loira insistia


em perguntar “Moço, você está
bem?” Hmmm... Hmmm... Hmmm...

Que bela garota de lábios rubros,


que bela... Tudo girava, e eu a via,
e tudo girava... Meu coração

batia desesperado, pois era ela, a


mesma garota que eu vira entrar na
igreja naquela misteriosa noite,

e ouvia justamente a mesma música


do The Beatles. “Hey, Jude, don’t
make it bad... ” E tudo girava,
eu rodava, e tudo girava... Eles se
aproximaram. Encarei Gringo, que
disse: “Rock, essa é a Anita, a

minha nova namorada.” Tudo


começou a girar ainda mais, e eu
ouvia “Hey, Jude... ” Quando a

encarei, ela sorriu, e tudo parou de


girar, pois tudo escureceu... A
última coisa que eu ouvi foi: “Na,

na na na na na, na na na, Hey


Jude... ”

08

A cordei e descobri que estava


morto! Encontrava-me no céu. Um
anjo me observava. Um anjo

de feições femininas e olhos


negros, belos olhos negros que me
hipnotizavam. Uma sensação de
sono

e cansaço impregnava em mim. Eu


não conseguia desviar a atenção
daqueles sensuais olhos negros.

Meu Deus! De repente uma voz me


sobressaltou:

— Você está bem? Viu o que dá


beber demais e ainda queimar um
baseado. Misturar dá nisso. Seu

amador! — disse ela debochando e


me fazendo despertar. Não, eu não
tinha morrido! Estava deitado

na cama e a bela garota dos lábios


rubros cuidava de mim, que
maravilha! Sentia-me bem, apesar
do

ocorrido.

— Que horas são? Como está a


festa?

— Agora são sete horas da manhã.


A festa continuou apesar do seu
vexame. Os meninos cuidaram

dos convidados enquanto eu


cuidava de você. Agora eles estão
dormindo. Está se sentindo bem?

— Estou ótimo. Você não dormiu?

— Apenas cochilei um pouco. Se


você está bem eu vou indo embora.

— Aiii... Minha cabeça está


doendo! Acho que eu bati quando
caí! — dissimulei, e ela veio

correndo me dar um analgésico. Eu


quase desmaiei novamente com a
irresistível fragrância de
gardênia almiscarada que ela
exalava. E os lábios rubros... Eu me
segurava para não agarrá-la.

Estava cagando e andando para o


Gringo. — Você cochilou no sofá?

— Não. Na sua cama mesmo, ao


seu lado — respondeu como se
fosse a coisa mais normal do

mundo.

Ainda trocamos algumas palavras,


nada de mais. E ela teve que ir
embora. Um sentimento

estranho me invadiu. O coração


apertou. Já sentia saudades, mesmo
não a vendo há apenas alguns

segundos. Será que eu me enganei e


o amor realmente existe? Sei lá! Só
sabia que queria revê-la o

mais rápido possível. O mais


rápido possível. Virei-me de lado e
vomitei até as tripas...

Minhas pernas doíam ao subir o


Cruzeiro. A festinha na Pirâmide já
começara.

Estava cismado. A garota que eu


vira entrar na igreja naquela
misteriosa noite era de fato Anita?

Ou uma pessoa semelhante? A


solução era perguntar a ela, à
garota dos lábios rubros, talvez um
dia

eu pergunte. Mas pensando bem,


era melhor ficar na dúvida. O
importante, naquele momento, era

descobrir o que eu sentia por ela.


Em relação à música Hey Jude,
acredito que seja coincidência,

pois ela existe.

Ao me aproximar da cruz de
madeira, avistei um hippie sentado
e cantando:

— Pai, eu quero ser hippie. Vou


cair no mundo. Só preciso de um
jipe. Vou deixar o cabelo

crescer. Pai, eu quero ser hippie.


Vou correr pelado. Talvez eu pegue
gripe...

Passei perto e joguei uma moeda no


chapéu dele — que parecia do
Sassá Mutema. Tinha algumas

fitas cassetes ao lado, cuja capa —


feita de folha de caderno —
estampava em letras dignas de um

analfabeto: “Alexandre Apolca, o


cantor paz e amor, bicho!”

Voltei a caminhar rumo à Pirâmide


— que era uma casa de pedra com
telhado em forma de

pirâmide, que proporcionava a


melhor visão do pôr-do-sol do
mundo, além de ser o principal
point

para festividades na cidade. A


multidão já estava em cima da
Pirâmide, trepei nela e arrumei um
canto para mim. O som já rolava, a
bebida rodava, e o sol ainda
hesitava em ir embora. Santiago

conversava com três garotas, eu não


entendia o que elas achavam nele,
não mesmo. Do outro lado, eu

avistei Gringo com Anita, que


sorriu e fez um tchauzinho, quando
me viu. Correspondi sorrindo como

um bobo. De repente levei um


cutucão nas costas, olhei e vi Yakult
com Lolita — que eu só conhecia

de vista. Cumprimentei-os e troquei


algumas rápidas palavras. Em
algum canto, que eu não conseguia

localizar, alguém cantava os


clássicos do rock com violão e
muito gogó. Atrás de mim, um
jovem

resmungava que um gnomo tinha


roubado sua erva e seu isqueiro,
mas o que prendia a minha atenção

era a garota dos lábios rubros. Eu


me mordia de ciúmes do maldito
inglesinho, quem diria. Como eu

queria estar a abraçá-la, a beijá-la,


a cortejá-la, ah... Com tantas
mulheres e homens no mundo por

que o Gringo foi namorar


justamente Anita? Apesar de que,
se não fosse isso, talvez eu nunca a

conhecesse.

Pulei para dentro da Pirâmide.


Fiquei vagando à toa, pois queria
ficar um tempo sem vê-la.

Subitamente alguém passou


correndo e chorando do lado de
fora. Fui atrás. Aproximei-me de
uma
enorme pedra, onde a pessoa se
escondia. Dava para ouvir os
prantos. Quando saltei para frente,
vi

quem era... Yakult!

— O que aconteceu? — perguntei


preocupado. Ele chorava
desesperadamente, parecia coisa

muito séria.

— Ele morreu! Acabei de saber.


Ele morreu! O Raul Seixas morreu!

Não falei nada, apenas me abaixei e


o abracei. Sentei-me nas rochas.
Yakult colocou a cabeça no

meu ombro. Ficamos em absoluto


silêncio. Ainda assim, eu conseguia
contemplar o maravilhoso

encanto do pôr-do-sol mineiro. Isso


me abrandou, senti falta de alguém
como Anita ao meu lado, mas

me contentei com Yakult, que ainda


soluçava. O tom laranja dominou o
céu. As nuvens ocultavam o

sol, que mostrava sua vivacidade


através de inúmeros raios
luminosos que deixavam a
paisagem

ainda mais bela do que sempre


fora. Pássaros cruzavam o mar de
cores vivas. Eu e Yakult

continuávamos abraçados, ele


mantinha a cabeça no meu ombro.
Ouvi um ruído ao lado. Quando me

virei, vi Anita nos encarando


incredulamente, mas ela logo se foi.
Não! Anita achou que eu tinha algo

com Yakult? Puta que pariu!

09
T irei a última fornada de pães,
peguei minhas coisas e saí. O
sábado só estava começando.

Após caminhar pelas ruas de


pedras, abri a porta de casa e
avistei Yakult conversando com
Lolita no

sofá. Peguei uma cerveja e me


juntei a eles.

— Você trabalha onde? —


perguntou ela.

— Na Padaria Chico Taquara.

— Ah, você conhece a lenda do


Chico Taquara? — perguntou, e eu
respondi que sabia um pouco.

— Chico foi um grande curandeiro


desta cidade. Ele falava com os
animais, conseguia estar em dois

lugares ao mesmo tempo, morava


em uma gruta. Dizem que ele era um
enviado de uma civilização

intraterrestre que retornou ao centro


da Terra após cumprir sua missão.
Tanto que ninguém conseguiu

encontrar os restos mortais dele.

Eu até prestava um pouco de


atenção na história, mas estava
focado mesmo era nela. Lolita

possuía um belo e lascivo rosto,


charmosos cabelos castanhos e um
corpo extremamente sensual, mas

bota extremamente nisso. Usava


meias soquetes e roupa de tenista.
Parecia que a protagonista do

livro de Vladimir Nabokov tinha


ganhado vida e estava diante de
mim, em carne, osso, e muita

sedução. De repente Yakult me


despertou dos devaneios:
— Gringo achou um cachorro na
rua e o trouxe pra cá. É um vira-
lata. Está amarrado lá fora. O

nome dele é Quincas Borba!

Comentei que achei uma boa ideia.


Levantei-me e peguei mais três
cervejas, uma para cada um.

— Cerveja faz bem para o cérebro,


não é como refrigerante. Para
completar, só falta uma salada

de jiló — destacou Lolita. Meu


olhar cruzou com o de Yakult, e
uma interrogação pairou no ar.
— Refrigerante faz mal para o
cérebro? Você gosta de jiló? —
perguntei.

— Ah, refrigerantes têm excesso de


açúcar, e isso acaba com a
memória. Jiló é uma delícia.

Questionei-a em relação ao açúcar.


Ficamos quase trinta minutos
discutindo, até que eu cansei e, a

contragosto, disse que ela estava


com a razão.

— Eu sempre tenho razão. Está


para nascer quem irá provar que as
minhas teorias são incoerentes

— disse Lolita, que me venceu pelo


cansaço. Ó menina teimosa!

— Você trabalha? Estuda? —


indaguei.

— Apenas trabalho no Bordel Casa


das Primas, onde eu também moro,
em São Lourenço. Quando

tenho folga, fico na casa das minhas


amigas, aqui em São Thomé —
explicou, me fazendo afogar com

cerveja. Como assim? Trabalhava


em um bordel?
— O que você faz lá? É dançarina?
— perguntei olhando para Yakult,
que permanecia indiferente.

— Não! Eu faço programa. Se


interessar... — disse ela me
passando um cartão. Puta que pariu!

Lolita era uma puta profissional! E


Yakult a estava pegando de graça!
Caramba! E, ele não falara

nada, só para não dividir com os


amigos.

Ainda conversamos mais um pouco.


Quando Lolita se levantou para ir
embora, Quincas Borba

pulou em cima dela. Nossa! Ele a


agarrou pela cintura e tentava
comê-la. Ó cão tarado! Eu e Yakult

separamos os dois a duras penas.


Ela achou engraçado, se recompôs
e foi embora. Quincas Borba

uivava sem parar...

O sol estava fortíssimo. Eu e


Santiago caminhávamos rumo à
Cachoeira Eubiose. Nós
dividíamos

uma garrafa de vodka. O maldito


Yakult fora levar Lolita embora e
nos deixou sem carona. Gringo se

afastou um pouco de nós por causa


da nova namorada. Por falar nisso,
eu não queria pensar nela,

não!

Santiago dançava sozinho na


estrada e eu o acompanhava. De
repente um Del Rey parou na

estrada. Quando encarei, vi que


eram duas loiras.

— Oi rapazes! Estamos indo para


Eubiose. Vocês querem corona? —
perguntou a motorista. As

duas não tiravam os olhos de


Santiago.

— Claro! — respondemos.

A passageira foi para o banco de


trás, onde Santiago entrou. Eu
sentei na frente e fiquei jogando

conversa fora com a bela motorista,


enquanto Santiago pegava a outra
no banco traseiro. Maldita a

hora que quis olhar no retrovisor,


pois acabei descobrindo um dos
motivos do sucesso do John
Lennon brasileiro, o tamanho da
ferramenta! Era por isso que a
motorista não parava de olhar para

trás.

Não demorou muito para chegarmos


ao ponto em que tínhamos que
prosseguir a pé. Compramos

algumas cervejas no bar à beira da


estrada, onde havia um show cover
de Janis Joplin. Entramos na

trilha. Santiago caminhava agarrado


com as duas loiras. Eu andava
atrás, bebendo e curtindo o
visual. Já sentia cheiro de erva e
ouvia as águas se baterem contra as
rochas. Estava perto. De

repente um portal se abriu. Hippies


vendiam artesanatos. Jovens,
crianças e adultos nadavam nas

águas rasas e cristalinas. Ao fundo,


uma pequena cachoeira jorrava
água numa beleza exótica.

Parecia uma piscina aberta no meio


da mata. Era coisa de outro mundo.
Somente naquele lugar, eu

entendi o que Yakult queria dizer


com energia cósmica. Uma onda
mística tomava conta de mim, era

como se eu entrasse em um mundo


paralelo onde talvez existissem
gnomos e fadas. Um mundo onde a

natureza era exuberante, onde ela


mostrava a face de Deus, e onde
Ele se comunicava por vibrações

que nos faziam flutuar numa


alucinada viagem astral. Isso tudo
era muito louco. Era melhor do que

LSD!

Quando voltei em mim, vi um


hippie que não era hippie, era
Gringo! Ele vendia artesanato ao
lado

de Anita. Escondi-me deles, pois


não queria ser visto. Santiago
nadava com as suas loiras.

Repentinamente ela, a garota dos


lábios rubros, entrou na mata.
Disfarçadamente eu fui atrás.

Já estava longe da cachoeira


quando eu a chamei. Ela sorriu e
me cumprimentou com dois beijos

no rosto.
— Que bom rever você. Parou de
misturar bebida com erva?

— Parei — respondi. — Você acha


que eu desmaio sempre, né? Não
poderia existir pior momento

para nós nos conhecermos.

— Relaxa. Não existe momento


certo. O momento certo somos nós
que fazemos.

Sentamo-nos nas pedras e o papo


foi se desenvolvendo. Nós
estávamos afastados da trilha e da

cachoeira, ninguém nos acharia


fácil. Ela disse que estava andando
à toa. Eu disse o mesmo, pois não

confessaria que a tinha seguido. Era


difícil me controlar e não agarrá-la.
Meu coração batia

acelerado. O suor me lavava o


rosto. A adrenalina me possuía
cada vez mais. E os lábios, ah...
Que

lábios... Tinha vontade de


experimentá-los, de devorá-los e de
sugá-los... E a pintinha perto da
boca,
hummm... Ela falava e falava, mas
eu estava tão encantado que não
conseguia ouvir nada, até que

algo me fez voltar em mim:

— Rock, você tem algo com


Yakult? Olha... Eu não tenho
preconceitos, é só curiosidade...

A pergunta me assombrou, apesar


de esperá-la. Expliquei tudo,
detalhe por detalhe, e ela

entendeu. De súbito uma joaninha


caiu em seus cabelos. Aproximei-
me, me ajoelhei encarando-a e
tirei o inseto, mas meus dedos
deslizaram sobre seus cabelos
negros colocando uma mecha por

detrás da orelha. Ela me examinou


minuciosamente com o olhar
enquanto seus lábios trepidavam.

Ahhh o beijo... Era questão de


segundos. De repente senti meu
corpo se mexendo, e... Pisquei, mas

era real, minha mão estava


apalpando seus seios! Maldita
síndrome! Repuxei a mão, abaixei a

cabeça e fechei os olhos, pois


esperava levar uma sucessão de
tapas. Maldita mão alheia, tinha que

aparecer justamente nessa hora e


estragar tudo! Poderia perdê-la por
causa da minha amaldiçoada

mão! Filha da puta!

— Eu nunca traí. Sou uma mulher


fiel, absolutamente fiel — disse
Anita calmamente. Levei um

fora, mas ao menos ela não me


bateu ou saiu gritando que estava
sendo atacada por um tarado.

— Eu entendo... — ciciei ainda de


cabeça baixa. O que estava
acontecendo? Eu, Rockfeller, me

rebaixando por uma mulher?! Havia


algo estranho, eu mal me
reconhecia.

— Mas... — disse se ajoelhando na


minha frente. — Sempre tem uma
primeira vez...

Abri meus olhos e a vi sorrindo.


Sorrindo como uma criança.
Sorrindo como uma deusa. Sorrindo

da mesma forma que eu a vira pela


primeira vez. Sim, ela estava diante
de mim, pronta para ser

beijada. Gringo que se foda! Ah, os


lábios... Aproximei-me e a beijei!
Beijei os tão sonhados lábios

rubros. E que beijo... Simplesmente


o melhor da minha vida. O melhor!
A fragrância de gardênia

almiscarada me deixava em êxtase.


Sentia uma imensa alegria. Acho
que era amor ou paixão. De

qualquer forma, ambos eram


novidades para mim, e isso me
deixava desnorteado e cada vez
mais

envolvido por ela, a garota dos


lábios rubros. Empurrei-a
sutilmente, fazendo-a deitar sobre o
chão.

Despimo-nos com intensa avidez e


sensualidade. Ela gemia — e como
gemia —, me arranhava todo

e pedia para eu dizer mais e mais


sacanagens. Já ouvia a canção Hey
Jude, talvez fosse coisa da

minha cabeça, talvez não, sei lá, o


importante era que eu estava
traçando a mulher dos meus sonhos,
a

única mulher que conseguiu


despertar meus silenciosos
sentimentos. Subitamente senti algo
na minha

bunda. Era um maldito besouro, que


joguei longe. Ela se empolgou e
começou a fazer sexo oral em

mim. Que língua, meu Deus! E ela


engoliu tudo, sem fazer cara de
nojo; ao contrário, fez cara de

safada. Muito danadinha era Anita.


10

A cendi outro cigarro. Estava


sentado na mística Pedra da Bruxa.
Já era noite, congelante noite.

O vento transformava a fumaça em


redemoinho e isso me deixava
reflexivo...

Anita ainda namorava Gringo, mas


saía comigo às escondidas, isso há
mais de seis meses. Nós

ficávamos em qualquer canto,


inclusive na casa dela com aval da
própria mãe — uma riponga mente
aberta e gente boa. Anita fazia
coisas incríveis na cama. Nunca
conhecera uma garota assim, tão

fogosa e proativa. E pensar que


tudo começara por um ataque da
mão alheia! Enfim ela fez algo útil.

Sinceramente, eu não sabia o que


sentia por Anita, não mesmo.
Poderia ser amor, paixão, ou

apenas entusiasmo. Sempre fui mal


nesse negócio de rotular
sentimentos, até porque isso não
tinha
importância, o relevante não era
dizer o que sentia, mas sentir. Só
tinha certeza de que gostava de

estar ao seu lado, que queria vê-la


cada vez mais, tanto que aceitei ser
o outro, que não era tão ruim

assim porque não era o meu chifre


que crescia.

Gringo vivia nas nuvens devido ao


namoro com Anita, tanto que nunca
desconfiou de nada. Eu me

sentia mal por trair meu amigo, não


queria que fosse assim, mas
aconteceu. Não me arrependo, pois

faria tudo de novo, absolutamente


tudo. A nossa amizade se mantinha
como sempre fora, não sabia

até quando.

Abri a geladeira e peguei uma


cerveja, meu café da manhã.
Santiago, bêbado e sem calça,
dormia

abraçado com Quincas Borba no


sofá. Sentei-me em uma cadeira e
comecei a fumar. Gringo acordou,

tomou o rotineiro chá com leite e


foi se encontrar com Anita. Filho da
puta! Tinha vontade de

espancá-lo por estar saindo com


ela. Meu sangue fervia ao imaginar
os dois juntos. Por inúmeras

vezes, eu tive vontade de lhe


revelar tudo para acabar com seu
relacionamento, mas faltou
coragem.

O lance bom de ser o outro era que


não precisava ser fiel. Por isso, eu
saía com algumas garotas

esporadicamente, mas não gostava


tanto, era mais para pressionar
Anita a largar Gringo e ficar

somente comigo e, também, para


não me sentir um idiota ao ser
exclusivo de alguém que não me
dava

exclusividade. Acabei saindo até


com Lolita por várias vezes, lógico
que pagando os honorários,

pois de graça era somente com


Yakult. Ela honrava o nome de
profissional do sexo e, também, o

nome da personagem de Vladimir


Nabokov, pois era uma verdadeira
ninfeta de dezessete anos, e que

ninfeta...

Levantei-me, coloquei um LP do
The Doors na vitrola e peguei mais
duas cervejas. Santiago

acordou e murmurou:

— Volette, pare de cantar e me


beija! — e, na sequência, ele
beijou, não ela, mas Quincas
Borba,

que saiu correndo para o quintal,


totalmente enojado.
Repentinamente alguém bateu na
porta. Abri e dei de cara com o
vizinho.

— Isto aqui estava no meu


galinheiro, acho que pertence a um
de vocês — disse ele me

entregando uma calça, que


identifiquei logo: era de Santiago.

— Obrigado pela gentileza.

— Vê se na próxima vez não


assuste as galinhas — disse em tom
sarcástico ao ir embora.

Joguei a calça em cima de Santiago,


que acabou caindo do sofá. Como a
roupa dele foi parar no

galinheiro do vizinho? E essa


Volette?

Lolita acordou e veio me fazer


companhia. Ela namorava Yakult,
que não demonstrava ciúmes.

Como ele era o meu melhor amigo,


eu sempre lhe pedia permissão para
sair com Lolita. Nunca o

trairia como fazia com Gringo,


jamais! Até porque Yakult me
emprestava o carro e me dava
cobertura nas escapadas com Anita,
pois era o único que sabia sobre
meu caso com a garota dos

lábios rubros.

— Cadê a minha Lolita, luz de


minha vida, labareda em minha
carne... — declamava Yakult

chegando e a abraçando. Eu já
ouvira aquela frase em algum
lugar...

Percebi que estava sobrando.


Convenci Yakult a me emprestar o
carro. Peguei outra cerveja.
Entrei no Corcel, coloquei um
cassete do The Beatles, e saí
dirigindo à toa. Sem rumo, sem
destino,

sem problemas e sem ser eu


mesmo.

Baixei o vidro. O vento arranhava


meu rosto. E eu cantava “Let it be,
let it be. Let it be, let it be.

There will be an answer: Let it


be... ”

Sentia saudades de Anita. Queria-a


somente para mim, somente para
mim. Mas ela insistia em

dizer que estava em dúvida, pois


gostava de nós dois. Isso doía
muito, nem mesmo meus
corriqueiros

casos amenizavam essa dor. Eu era


um homem que pegava a namorada
do amigo, que dava uns pegas

em uma prostituta de dezessete


anos, que não levava chifre e sim
colocava, enfim, um fodão! No

fundo eu era apenas um adolescente


com muitos medos, que lutava
constantemente para conquistar o

amor de uma garota, e que tinha


receio do futuro. Já era meio-dia.
Pisei fundo e fui à casa de Anita,

pois queria vê-la, mesmo se Gringo


estivesse por lá. Rapidamente
cheguei, bati palma, e a mãe dela

abriu a porta.

— Minha filha foi dar um giro com


Gringo e ainda não chegou. Mas,
bicho, entre aí! — disse ela.

Entrei e a riponga me ofereceu um


baseado, aceitei imediatamente.
Enquanto fumávamos,

começamos a conversar sobre tudo.


Ela me contou que não sabia quem
era o pai de Anita, pois na

época saía com vários homens ao


mesmo tempo, era a início da era
hippie. A riponga parecia ter

apenas trinta anos, apesar de


provavelmente ter muito mais.
Mesmo assim, eu a pegava fácil.

De repente eu senti a presença de


Anita. Ela chegou e sorriu ao me
ver. Logo fomos ao quarto. E
conversamos... Conversamos...
Conversamos...

Anita era descolada, gostava de


liberdade, vivia a vida plenamente
e sonhava em conhecer o

mundo. Era fanática pelas obras de


Edgar Allan Poe, tanto que fizera
uma tatuagem de corvo nas

costas.

Não aguentamos e começamos a


nos despir. Na hora H, a riponga,
sem bater, invadiu o quarto.

Assustado, eu escondi minhas


intimidades com um travesseiro.

— Vocês não podem se esquecer da


camisinha. E, bicho, relaxa! Já vi
mais homens pelados do

que você possa imaginar — disse


ela dando o preservativo para
Anita, que agia normalmente; eu me

senti um careta.

Subitamente, Anita puxou meu


travesseiro, fiquei nu, e a riponga
me observou descaradamente.

Excitei-me ao imaginar transando


com mãe e filha ao mesmo tempo.
— Filha, você tem bom gosto —
destacou a riponga, que logo se foi.

— Rock, você tem que ser menos


sério — murmurou Anita, nua em
cima da cama. Não respondi,

apenas me atirei em cima, pegando-


a por trás. Enquanto a traçava, me
enfeiticei com a tatuagem de

corvo, pois o bicho me observava


minuciosamente, seu olho brilhava
com uma vivacidade incomum.

Mudamos de posição e continuamos


transando... Transando...
Transando... E o sono foi
chegando...

Acordei ouvindo “Hey, Jude, don’t


make it bad... ”, música que se
tornara a trilha sonora dos

meus casos com a garota dos lábios


rubros. Estava sozinho na cama.
Vesti a calça e fui seguindo a

canção. Quando cheguei à sala,


avistei Anita tocando piano. Ela
estava nua, de costas para mim.
Que

corpo! Que curvas! Minha pele


queimava em brasa. De repente me
arrepiei todo, pois eu vi o corvo

tatuado piscar para mim...

11

E stávamos todos deitados no chão,


lado a lado. Yakult, Lolita, Gringo,
Anita, Santiago, mãe de

Anita, eu, e Damaris, uma hippie


que pedira carona na estrada. O céu
estava limpo. O calor infernal.

E a Cachoeira de Antares, que tinha


mais de trinta metros, permanecia
encantadora e imponente. Não
havia mais ninguém por perto. O
som da queda d’água me deixava
em transe, ainda mais depois de

fumar alguns baseados. Yakult


deixou o rádio do Corcel ligado,
ouvíamos Raul Seixas, The Beatles,

e até Bob Dylan.

A riponga, mãe de Anita, começou


a distribuir o ácido. Yakult
compartilhava chá de cogumelo,

produzido por ele mesmo na noite


anterior, graças às simpáticas
vaquinhas. Cada um escolheu o que
queria. Peguei o ácido.

Yakult, Lolita, Santiago e a riponga


pularam nus dentro d’água. Gringo
beijava Anita. Deitei-me

ao lado de Damaris e esperei a


brisa chegar. O céu ficou pesado.
Eu me afundava no chão enquanto

sentia a Terra girar. As nuvens


apostavam corrida entre si. Meu
corpo escorregava ao mesmo tempo

em que eu permanecia imóvel. Já


sentia o cheiro da música Lucy in
The Sky With Diamonds, e isso
me dava fome. Queria comer as
flores azuis que nasciam no sol.
Olhei para Damaris que ria

descontroladamente. Seus olhos


viraram caleidoscópios
multicoloridos, que me
hipnotizavam.

Pisquei e me vi em um mundo de
céus de marmelada, flores de
celofane, e muitos, mas muitos

cogumelos com mais de dois metros


de altura. Repentinamente começou
a chover bosta, saí correndo,
logo comecei a transpirar palavras
que caíam sobre o chão formando
páginas de jornal, sujas de

merda, claro.

Abriguei-me debaixo de um
cogumelo fluorescente. Ao longe,
eu avistei Yakult nadando com

Lolita em uma enorme privada. De


súbito, alguém pulou em cima de
mim, me derrubando no jornal,

era Damaris com olhos de


caleidoscópios. Pisquei. Quando
reabri meus olhos, que ficavam na
palma

das mãos, surgiu um clarão. Ouvia


as bactérias andando, respirava o
aroma da lua, e via luzes saindo

de mim. Comecei a flutuar. Sentia


uma paz intensa e mística. Meus
sentidos se aguçavam, uma

extraordinária alegria brotava em


mim, minha mente se abria e se
dispersava no universo. Estava em

outro mundo, onde Deus e eu nos


fundíamos, éramos a mesma coisa
ao mesmo tempo em que não
éramos nada. Abaixo de nós ficava
o planeta Terra, acima estava Anita
no céu com diamantes...

De repente, ela caiu em cima de


mim, transformando-me em matéria
novamente. Beijei-a. Seus

lábios tinham sabor de anéis de


Saturno. Acho que eu cagara na
calça. Olhei do lado e vi a riponga

montada em um boi, cujo rosto era


de Gringo, os chifres lhe caíram
bem. As estrelas começaram a

despencar, e eu dava uns amassos


em Anita. Logo Damaris se juntou a
nós, me senti o Santiago. O

céu ficou preto com bolinhas


laranja. Uma raiz se enrolou no meu
pé e me puxou até o rio, me

afastando das garotas. Escapei-me


dela e mergulhei nas águas que
cheiravam canções de Led

Zeppelin. Olhei para trás e vi fadas


com cabeças de tubarões me
perseguindo. Pulei dentro de um

buraco em forma de espiral. Caí em


um quarto onde as paredes
derretiam, o teto voava, e o piso

evaporava. Ouvia a cor verde


falando comigo, logo a vi, e ela me
abraçou, me sufocando. Passei

pelo espiral outra vez e saí nadando


na areia, que tinha gosto de cerveja.
Tudo possuía cores

vibrantes e maravilhosas, e isso me


deixava feliz. Um anjo apareceu na
minha frente, era John Lennon

de asas, que dizia: “Don’t let me


down, don’t let me down...”

Abri uma budweiser, cerveja


importada, presente de Lolita.
Sentei-me no sofá. Estava sozinho
em

casa. De súbito, alguém abriu a


porta, era Yakult, que perguntou:

— Ficou sabendo que Anita passou


mal e foi parar no hospital?

— Não! O que aconteceu? Como


ela está?

— Não sei. O Gringo foi vê-la.

Larguei a cerveja e fiquei agitado,


andando em círculos.
Repentinamente Gringo abriu a
porta,

totalmente angustiado e perdido em


si.

— Meu pai me ligou. Ele está com


problemas e irá voltar para a
Inglaterra, e eu vou junto. Só vim

para arrumar as malas — disse


Gringo partindo para o quarto.

Como assim? Gringo voltando para


a Inglaterra?! Sorri
automaticamente, pois teria Anita
somente

para mim! Somente para mim!


Somente minha! Uhull!

Fiquei ainda mais agitado. Gringo


indo embora, Anita passando mal,
não sabia se sorria ou

chorava. Ele levou as malas para


um táxi que já o esperava na rua.
Despedimo-nos com muito pesar

e promessas de manter contato. A


ficha não caía de jeito nenhum,
Gringo indo embora?! Meu coração

apertava, pois já tinha saudades do


inglesinho.

Antes de Gringo entrar no táxi,


perguntei-lhe sobre Anita, e ele me
respondeu que ela estava mal,

mas não entrou em detalhes. Logo o


inglesinho foi embora, talvez para
sempre.

Desesperado, peguei o Corcel


emprestado de Yakult e parti para o
hospital que atendia a cidade,

localizado em Três Corações.


Pisava fundo no acelerador, não via
nada além de Anita precisando de

mim. Já era noite, a estrada


esburacada tinha as suas ameaças,
mas não estava nem vendo.

Cheguei ao hospital. Não vi a


riponga. Logo pedi para ver Anita
e, como não estava em horário de

visita, eu tive que implorar para vê-


la. Insisti até conseguir.

A enfermeira me conduziu ao
quarto. Quando entrei, vi Anita
pálida e triste na cama, mas ela

sorriu a me ver. Aproximei-me e


perguntei:

— Você está bem?


Anita me abraçou forte e começou a
chorar. Não entendi nada. De
repente ela se soltou de mim,

pegou a minha mão, e disse


chorando:

— Estou com câncer!

12

S entei-me em uma pedra e comecei


a fumar. Sentia saudades de Gringo,
apesar dos pesares. Sem

ele, a nossa banda acabara, pois


Yakult e Santiago não levavam nada
a sério. Como meu sonho era
fazer carreira com música, estava
na hora de arrumar outra banda e
trilhar novos caminhos, mas eu

não tinha cabeça para isso, não


mesmo.

Lá embaixo, Anita se divertia na


cachoeira, pois ela fez questão de
visitar o Vale das Borboletas,

apesar da restrição médica.


Terminei o cigarro e fiquei a
observá-la. A franja desalinhada,
os lábios

rubros reluzentes, e a charmosa


pintinha perto da boca, a deixavam
ainda mais irresistível.

Eu não conseguia entender o que


houve com Gringo. Anita me disse
que contou a verdade para

ele, que, abalado, logo terminou


tudo e anunciou a volta para a
Inglaterra com os pais. Ou esse

problema familiar era muitíssimo


sério, ou o inglesinho era um
grande filho da puta! Pois somente
um

lazarento iria largar a namorada ao


saber que ela estava correndo risco
de morte. A dor da rejeição

era nítida na voz de Anita, isso doía


até em mim.

Ela brincava entre as duas quedas


d’água, que ficavam lado a lado. A
paisagem era única, digna

de cartão-postal. Desci me
segurando nas samambaias, pulei
alguns galhos, escorreguei numa
rocha e

caí dentro do lago.

Aproximei-me e dei um chute


dentro d’água, molhando Anita, que
saiu correndo atrás de mim para

se vingar. Brincávamos como duas


crianças. Como era bom viver... De
repente Anita pulou nas

minhas costas e me derrubou sobre


uma pedra. Ela se deitou sobre
mim, e eu não resisti. Despimo-

nos e transamos. Não havia mais


ninguém no local. Essa foi, sem
dúvidas, a melhor transa da minha

vida, e pelo que notei foi a dela


também.
Vestimo-nos e saímos caminhando
pelo vale, sobre as pedras que
salpicavam as águas rasas e

transparentes. Pulamos gigantescos


galhos. Nas margens, havia
encantadoras árvores que se

inclinavam em nossa direção, nos


reverenciando. Aquilo era mágico,
era incrível, simplesmente

inesquecível. Sentia Anita cada vez


mais envolvida emocionalmente
comigo, acho que enfim a

conquistara. Mas eu cismara com o


corvo tatuado, pois ele me espiava
constantemente. Mas isso

poderia ser coisa da minha cabeça


— que não era tão sadia assim.

Repentinamente surgiu um bando de


borboletas brancas, que nos
cercaram. Senti algo estranho,

parecia um sinal divino, mas não


sabia o significado. Quando toquei
Anita, senti sua pele se

queimando em febre. Desesperei-


me. Voltamos ao Corcel e partimos
para o hospital. Ela fez careta,
mas não questionou. Não
deveríamos sair em lugares
públicos, pois ela estava com
imunidade baixa,

o que poderia lhe trazer grandes


problemas.

Chegando ao hospital, ela foi


atendida imediatamente. Levei um
sermão do médico por tê-la

deixado sair, bem que eu merecia.


Ele me disse que não era nada de
mais, mas ela ficaria internada

até a próxima sessão de


quimioterapia. Com muita
dificuldade eu recebi autorização
para vê-la.

Abri a porta e a vi dormindo.


Aproximei-me. Ela parecia frágil,
como se pudesse partir a

qualquer momento. Toquei em seus


cabelos e senti alguns tufos caindo.
Meu peito se contraiu e uma

dolorosa lágrima escorreu pelo


rosto. Não aguentei e chorei, chorei
porque a ficha caíra, pois agora

sentia que poderia perdê-la. Sim,


poderia perdê-la. Se pudesse eu
trocaria de lugar com ela, mas não

iria perdê-la, não! Agora eu


entendia os meus sentimentos, eu
amava Anita, não era paixão ou

entusiasmo, era amor...

13

Y akult e eu conversávamos
enquanto o sol ia embora. Nós
tínhamos acabado de sair da Gruta
do

Carimbado, conhecida por


supostamente se ligar com Machu
Picchu, e também por ninguém ter

chegado ao seu fim. Quinze


quilômetros foi a maior distância
que o homem percorrera nessa
gruta, eu

e Yakult conseguimos apenas três; o


sedentarismo já estava pesando.

— Um dia eu ainda vou conhecer a


cidade perdida dos incas.

— Vamos juntos — disse eu.

— Pode crer.

Dividimos um baseado e partimos.


Demos uma parada na famosa
Ladeira do Amendoim, que,

inexplicavelmente, fazia veículos


desligados subirem alguns metros
de uma ladeira. Era coisa de

outro mundo, somente vendo para


acreditar. Logo voltamos para casa.

Tomei banho, li uma carta dos meus


pais, e peguei o Corcel emprestado
outra vez. Quando estava

saindo com o carro, vi Quincas


Borba solto na rua, e o pior,
pulando em cima da vizinha
gostosa. Saí

correndo e puxei o maldito cão que


grudara na cintura da moça. Yakult
veio me ajudar e levou

Quincas para casa.

— Desculpe pelo cão.

— Tudo bem. Pelo menos ele não


me mordeu — disse ela,
desalinhada.

De repente a moça abaixou os olhos


e ficou perplexa. Acompanhei-a
com o olhar e me surpreendi!
Minha maldita mão estava
desabotoando minha calça!

— Seu tarado! Não é à toa que seu


cachorro faz essas coisas! —
grunhiu furiosa, e logo veio o

tapa, que me fez ver estrelas.

Tentei explicar, mas ela não me


deixava falar e continuava me
xingando. A maldita mão não dava

trégua. Quando dei outra olhada,


ela já estava puxando minha cueca.
Surpreendi-me quando a moça

me empurrou para cima de um carro


estacionado e começou a me beijar
e a me alisar. Ela queria dar

pra mim! Esquivei-me e tentei sair


correndo, mas tropecei na minha
própria calça e desabei na

calçada, numa patética cena.

— Rock, você é gay? — perguntou


ela, confusa.

— Não, é que... — ciciei me


levantando e vestindo a calça. —
Santiago é apaixonado por você, e

eu não traio meus amigos — menti,


pois eu não sairia com mais
ninguém sem ser a minha garota dos

lábios rubros.

— Mas...

— Estou com chato! Desculpa-me,


mas a coceira falou mais alto —
dissimulei entrando no Corcel

e partindo. Infelizmente ninguém


entendia essa minha síndrome.
Quando olhei no retrovisor, a moça

estava batendo na porta de casa,


sem dúvidas procurando pelo John
Lennon brasileiro.
Parei o carro. Bati palma na casa
de Anita e a riponga me atendeu.
Conversamos um pouco e eu

logo fui ver Anita no quarto.


Quando abri a porta, a vi sentada na
cama lendo O Gato Preto de Edgar

Allan Poe.

Sentei-me na cama e a beijei.

— Como você está? — perguntei.

— Entediada... Sinto-me como se


estivesse cumprindo pena
domiciliar. É um saco!
— Calma. Isso é temporário —
disse sem muita convicção, porque,
na verdade, eu não sabia

escolher as palavras certas para


cada momento. Ela me encarou com
desconfiança.

— Realmente é temporário. Já, já,


eu vou morrer e tudo isso vai
acabar... — resmungou pensativa.

— Não diga essas coisas, as


palavras têm força. Você vai ficar
boa, tenha fé! — disse ao vê-la

melancólica.
— Estou com leucemia aguda. E
caso eu precise de transplante, terei
poucas chances, pois não

conheço meu pai. Enfim, não devo


viver muito... — declarou ao
abaixar a cabeça. — Rock, eu

agradeço por tudo o que você tem


feito por mim, mas está na hora de
seguir seu rumo. Não perca seu

tempo comigo, você é saudável e


tem uma vida toda pela frente, vai
viver sua vida! Fique tranquilo,

vou ficar bem, tenho a minha mãe


pra cuidar de mim.

Anita queria chorar, mas se


segurava. Rapidamente eu a abracei
e caí em lágrimas, logo ela se

soltou também.

— Nunca diga isso. Estou aqui


porque eu amo você, somente por
isso!

— Não precisa ficar comigo por


pena. Eu vou ficar bem — insistiu.

Soltei-me de Anita, encarei-a, e


repeti tudo olhando dentro de seus
olhos. Senti que, enfim, ela
acreditou em mim. De repente a
riponga chegou com a cabeleireira,
era o momento que eu mais

temia.

Anita enxugou as lágrimas e se


levantou determinada. Ela sentou na
cadeira, de costas para mim, e

pediu para começar. A cabeleireira


arrumou as coisas, cortou o cabelo
de Anita, e começou a raspar

a cabeça. Não aguentei, fui fraco,


pois comecei a chorar
silenciosamente. Cada mecha de
cabelo

caindo era como se a vida dela


estivesse indo embora, e a minha
também. Era somente cabelo, mas

não conseguia assimilar isso.

A cabeleireira terminou. Anita


hesitou, mas se virou para mim.
Ela, que continuava linda como

sempre fora, se esforçava para


segurar as lágrimas. Virei-me para
a cabeleireira e disse:

— Agora é a minha vez! — Anita


sorriu e apenas por isso já valeu a
pena perder meus cabelos.

Troquei de lugar com ela, e a


cabeleireira mandou ver... Logo a
riponga surpreendeu ao dizer que

iria aderir à moda dos carecas.

Anita me puxou até a sala —


enquanto a riponga perdia os
cabelos — e me encarou.

— Olhe, aquilo que eu lhe disse


ainda está de pé. Pode ir embora e
viver a sua vida. Eu não sou

mais a mesma de antes, estou mais


feia e não sei até quando irei viver.
Na boa, Rock, eu agradeço

por tudo, mas vá! Será melhor para


você — disse ela.

— Só irei quando você falar na


minha cara que não me quer mais.

— Como eu pude ser tão burra e


não ter enxergado a pessoa que
você é?! Se conhecesse você

melhor antes, eu nunca teria me


envolvido com Gringo, nunca!
Jamais tive alguém que realmente

gostasse de mim...
14

— P or que os bancos de hospitais


são tão duros? —perguntei-me
enquanto cochilava. A noite

seria longa. Anita permanecia


internada devido aos exames de
rotina, e também porque pegara
gripe.

De repente a riponga, que usava um


engraçado chapéu-panamá, me
cutucou e disse:

— Bicho. Acabei de falar com os


médicos. Infelizmente a
quimioterapia não está dando
resultado.

Anita terá que fazer transplante...

Não! Eu não acreditava. Estava


confiante de que a quimioterapia a
curaria. Agora, transplante?

Como encontrar um doador?


Levantei-me e fui até a rua, sentei-
me na calçada, olhei para o céu e

perguntei pra Deus: Por que isso?


Por quê? Por quê?! De repente,
alguém me tocou, me virei e vi

uma menina de uns oito anos, que


sorriu e perguntou:

— Moço, por que você está


chorando?

— Não é nada não! Só um cisco.

— Quando choro, a minha mãe


sempre fala que um dia eu vou
reencontrar meu pai no céu. Por

isso não chore, todos nós vamos


nos reencontrar lá em cima com
Jesus...

Abri meu armário e peguei a


blusinha que Anita esquecera
comigo. Deitei-me na cama e
abracei a

peça de roupa que continha o aroma


dela, da garota dos lábios rubros.
Eu me enfeitiçava com a suave

fragrância de gardênia almiscarada.


Ah, que saudades...

Anita passara meses fazendo


quimioterapia, mas, infelizmente, os
resultados não foram os

esperados. Todos os seus parentes


fizeram exames para doar a medula,
mas ninguém fora compatível.

A riponga e eu organizamos um
mutirão na cidade para encontrar
possíveis doadores, conseguimos

vários voluntários, o resultado dos


exames ainda estava por sair.

Nunca imaginara que eu pudesse


gostar tanto de alguém como
gostava de Anita. Consegui

inclusive uma promoção, de amante


para namorado oficial, até alianças
nós usávamos. Pulei da cama

e peguei o Corcel emprestado, logo


parti para o hospital, pois faltava
pouco para o horário de
visitas.

Eu não queria acreditar nas


previsões médicas que diziam que
Anita não viveria muito tempo se

não fizesse o transplante. E o pior,


as chances de encontrar um doador
compatível — fora da família

— eram de uma em cem mil


pessoas. Mas eu tinha fé que algum
dos exames, inclusive o meu, daria

compatibilidade.

Estacionei o carro e entrei no


hospital. Apresentei-me na
recepção e fui ao quarto de Anita.

Quando entrei, eu a vi sorrindo com


toda a sua formosura.

— Como está a minha beterraba?


— perguntei zombando com a
tonalidade roxa que ela escolhera

para a peruca, que possuía o mesmo


penteado dos seus antigos cabelos.

— Apesar das dores no corpo e


cansaço, estou bem — respondeu
com um olhar que dizia mais do

que meras palavras. Ela me amava,


sim, ela me amava.
Beijei-a. Logo me sentei na cama e
ficamos namorando enquanto
conversávamos. Fiquei feliz por

vê-la esperançosa e cheia de vida.

— Fique boa logo. Quero vê-la


tocando piano pra mim — disse eu.

— Sou uma péssima pianista. Achei


que você tinha bom gosto.

— Se eu não tivesse bom gosto, não


estava com você, dãrrr... — rebati
brincando. — Ainda

quero ver você tocando And I Love


Her!
— Só se for bebendo vinho e
fumando baseado. Que saudades
das minhas loucuras... Você fala em

bom gosto, mas bem que você saía


com Lolita...

— Ah, vai ter ciúmes agora? Eu


saía com ela pra forçar você a
largar o inglesinho e ficar somente

comigo.

— Tudo bem, nós dois erramos


muito. O importante agora é que
estamos juntos — disse ela

segurando a minha mão. — Mas eu


ainda acho que você é gay! —
caçoou dando risadas.

— Vou mostrar quem é o gay


quando você voltar pra casa!

Infelizmente, a enfermeira entrou


dizendo que o horário de visitas
acabara. Despedi-me de Anita,

que me pediu:

— Rock. Você pode passar na


biblioteca pra ver se acha o livro O
Mistério de Marie Rogêt de

Poe, ou alguma coisa de Stephen


King?
— Claro! — disse, saindo do
quarto.

Voltei à recepção, pois o resultado


dos exames iria sair. O desemprego
já me preocupava porque

eu mais faltava do que ia à padaria.


De repente ouvi a canção Hey Jude,
que vinha de um walkman

da recepcionista. Isso me deixou


ainda mais nostálgico, pois me
recordei da época em que
conhecera

Anita. Queria passar o resto da


minha vida com ela, queria casar,
porém eu precisava dizer isso na

hora certa, não agora.

De súbito, a riponga chegou e me


disse que todos os exames foram
incompatíveis, até o meu.

Merda! Eu já recrutara todas as


pessoas que conhecia, até os
amigos dos amigos. Agora não
saberia

a quem, e como, recorrer.


Repentinamente, o médico se
aproximou e disse:
— Tenho uma boa notícia! Hoje eu
estava pesquisando os nossos
arquivos e encontrei um doador

compatível com Anita, mas ele fez


o exame há mais de dois anos.
Precisamos encontrar esse homem

pra ver se ele aceita ser o doador.


Não existe número de telefone na
ficha, mas temos o endereço.

Sinto muito dizer, mas essa pode


ser a única chance de ela
sobreviver.

— Deixa comigo! — sibilei


pegando o papel com o endereço e
saindo em disparada à rua. Entrei

no Corcel e sentei o pé. Demorei,


mas cheguei a Alfenas.

Perguntando aqui e ali, eu encontrei


o endereço. Saí do carro e bati
palma. Um homem alto,

magro, com olhos azuis e aparência


antissocial me atendeu.
Apresentamo-nos, e era realmente
ele, o

tal de Humberto César, o futuro


doador! Expliquei toda a situação e
fui convidado a entrar.

Sentei-me no sofá. Aceitei uma


xícara de nescafé. E voltei ao
assunto:

— Então Humberto! Como lhe


disse, ela está com leucemia aguda,
e não foi encontrado nenhum

doador na família. Por isso, o


senhor se tornou a única chance de
ela sobreviver.

— Meu pai serviu o exército norte-


americano, ele odiava os malditos
cubanos e toda aquela
ladainha de comunismo. Aprendi
com ele a ser capitalista... —
pausou para tomar um gole de

nescafé, eu não estava entendendo


nada. — O dinheiro compra tudo.
Se quiser sexo, tem prostituta.

Se quiser ficar bonito, tem cirurgia


plástica. Se quiser ficar famoso, é
só comprar horário na TV.

Tudo tem seu preço. Não vou ficar


aqui perdendo o seu tempo, e nem o
meu. Dois milhões de

cruzeiros na minha mão! Se


conseguir, eu doarei a medula pra
menina.

— Como?! — perguntei assustado.

— É, meu filho! Não sou santo.


Não faço filantropia e tenho as
minhas contas pra pagar. Como lhe

disse, a medula é minha e faço com


ela o que eu quiser. Isso é crime, se
quiser pode me denunciar,

mas isto não vai salvar a vida de


sua namorada. Ao contrário, irá
apenas... Você sabe... E não adianta

chorar, implorar, nada! Esse é o


preço, não tiro nem um cruzeiro!

— Mas eu não tenho esse dinheiro.

— É a vida de sua namorada que


está em jogo. Ou você acha que ela
não vale tudo isso? Nesta

vida, tudo tem jeito, menos pra


morte... Menos pra morte... Dois
milhões de cruzeiros!

Olhei para dentro da xícara e fiquei


em transe ao ver as bolhas se
movendo... No fundo do nescafé

eu via Anita entre a vida e a morte.


E minha mente resmungava: Dois
milhões de cruzeiros... Dois

milhões de cruzeiros... Dois


milhões de cruzeiros...

15

A pesar das inúmeras tentativas, a


riponga e eu não encontramos outro
doador compatível.

Naquele dia eu tive vontade de


socar o maldito Humberto, mas me
segurei porque ele era a única

salvação para Anita. Tentei


convencê-lo a não cobrar nada, mas
foi em vão. Olhando dentro de seus
olhos eu pude ter certeza de que ele
seria capaz de deixá-la morrer se
eu lhe devesse apenas um

cruzeiro. Filho da puta!

Contei tudo para a riponga, que


pensou em vender a casa, mas ela
não tinha documentação. Muitos

queriam ajudar... Yakult colocou o


Corcel à venda. Meus pais tinham
alguma coisa na poupança. Meu

patrão me adiantaria dois salários.


Etc. Mesmo sendo o mais otimista
possível em relação à
arrecadação financeira, ainda
faltaria muito. Todos prometeram
sigilo absoluto, pois Anita não

poderia desconfiar de nada.

Pensei em vender meu rim, ser


cobaia em pesquisa, traficar droga,
mas eu tinha pressa e por isso

logo descartei essas ideias. Fui


atrás de alguns agiotas, mas eles se
recusaram a me emprestar

dinheiro. O desespero já tomara


conta de mim, tanto que aceitei a
irracional ideia de Yakult de
garimpar a região em busca de ouro
e pedras preciosas. A
probabilidade de encontrar algo era

mínima, mas eu tinha que acreditar.


Era a vida de Anita que estava em
jogo.

O relógio apontava meia-noite. Eu


e Yakult entramos no Corcel e
partimos para mais uma tentativa

de garimpagem. Tinha que ser na


madrugada, para escapar da
fiscalização. Não demoramos muito

para chegarmos a Shangri-lá.


Escondemos o carro, amarramos
lanternas na cabeça, vestimos botas
e

pegamos as bateias.

Entramos na corredeira e ficamos


peneirando as pedras. Assim
passamos horas, horas, e horas...

Só paramos para comer sanduíches


de pão com mortadela e fumar uma
ervinha. Encontrava-se de

tudo na água, desde moeda até


dente, mas nada de ouro ou pedras
preciosas. De repente ficamos
perplexos, pois vimos dois óvnis
fazendo ziguezague e brincando no
céu! Yakult gritava e pulava na

tentativa de chamar atenção, eu


fiquei apenas observando e
assimilando que eles existiam. Mas
os

óvnis logo se foram! Nós fumamos


outro baseado enquanto
conversávamos sobre o que vimos.
Logo

voltamos ao trabalho.

Aos poucos o sol surgiu, já era dia,


hora de ir embora. Mais uma noite
em vão. E pensar que tudo

aquilo poderia ser evitado se o


maldito Gringo estivesse no Brasil,
pois sua família era montada na

grana. Tentei localizá-lo de todas as


formas possíveis, mas além de ter
sumido do mapa, ele apagara

todas as suas pegadas.

Voltei para casa e fui surpreendido!


A riponga me esperava sentada no
sofá, provavelmente o

Santiago a deixara entrar. Ela, que


ainda usava o chapéu-panamá,
olhou dentro dos meus olhos e

disse:

— Anita passou mal ontem, teve


hemorragia e foi transferida pra
UTI!

Ajoelhei-me, chorei e rezei. Não


tinha mais o que fazer. Não poderia
perder Anita, não! Se ela

partisse, eu iria junto, juro que iria.

Todos poderiam desistir de Anita,


menos eu! Peguei o carro
emprestado e parti sem rumo. O
pensamento fluía sem direção
alguma. A mente não queria aceitar
que tudo aquilo era real e não um

pesadelo. Uma carreta vinha de


outro lado da pista, pensei por
alguns instantes em me jogar na
frente

e acabar com tudo, mas não! Eu não


poderia desistir de Anita! Só
restava uma alternativa, apenas

uma...

Segui rumo a Três Corações.


Chegando à cidade, eu entrei nas
quebradas e fui até a boca que

conhecia muito bem. Um neguinho,


com camisa do Corinthians, se
aproximou do carro e perguntou:

— E aí mano?! Vai querer o que,


hoje? Só temos chá, a farinha chega
amanhã!

— Quero uma arma, apenas uma


arma...

16

A cendi um cigarro... Dois... Três...


Vários... Estava agitado. Sentei-me
na cama e olhei para
Penélope. Não tinha outra solução...

Meu sangue fervia ao me lembrar


de Humberto César, tinha vontade
de matá-lo. Viver sem um dos

rins ou sem parte do fígado seria


complicado devido à menor
expectativa de vida, por isso eu não

era totalmente contra a venda


desses órgãos em vida. Mas doar
medula não causaria danos à saúde

do doador e, por isso, vender


medula era desumano, pois estaria
cobrando para salvar uma vida.
Pensei em tudo o que se poderia
imaginar para convencer Humberto
a doar a medula de graça, e

também para arrecadar o dinheiro.


Mas só tinha uma saída, apenas
uma. Sempre fui fiel à minha ética

e agora eu teria que feri-la, ou


Anita morreria.

Passei dias assistindo a filmes de


bangue-bangue, treinando tiros em
latas no quintal, fazendo

planos de fuga, enfim, planejando


tudo nos mínimos detalhes.
Enquanto isso, Anita permanecia
em

estado crítico na UTI. Alguém tinha


que se sacrificar por ela, e ninguém
melhor do que eu!

Peguei a Penélope — nome que eu


dera para a estranha pistola com
detalhes cor-de-rosa —, e a

enfiei dentro da calça. Apanhei


minha mochila, saí de casa e peguei
um ônibus para Três Corações.

Não quis pegar o Corcel


emprestado para não complicar a
vida de Yakult.

Chegando à cidade, sentei na praça


e fiquei observando tudo em minha
volta. Precisava

urgentemente de dois milhões de


cruzeiros!

Fechei os olhos e fiquei alguns


minutos sem pensar em nada. Rezei,
apesar de não ser tão

religioso. E repeti mentalmente que


tudo daria certo e que ninguém
sairia ferido. Respirei fundo e me

levantei. Aproximei-me do banco


que eu assaltaria, e parei. Jamais
roubaria uma residência,

mercado, ou algo do tipo. Apesar


de estar prestes a me tornar um
bandido, ainda tinha a minha ética.

Por isso eu escolhera um banco,


pois ladrão que roubava ladrão
tinha...

Arrepiei-me, o coração disparou,


minhas veias dilataram, senti frio e
calor ao mesmo tempo. Eu

confesso, senti medo. Resolvi


enganar a mim mesmo, repetindo
que eu era um ator encenando em

Hollywood, mas não adiantou.


Tentei me convencer de que estava
num jogo de videogame, mas isso

também não ajudou. Se tudo desse


errado e eu morresse, morreria feliz
porque era uma morte digna,

uma morte com a qual eu sempre


sonhei. Morrer por uma causa,
morrer por alguém...

Eu precisava assaltar o banco, era


o único jeito de salvar Anita. Dei
um passo e rezei novamente.
Dei outro e pensei nela jogada em
uma cama de hospital. Tinha que
salvá-la, nem que custasse a

minha vida. E foi justamente isso


que moveu meus passos rumo ao
desconhecido, rumo ao banco.

Entrei. Não havia portas giratórias.


Eu suava, e como suava. Doze
clientes esperavam na fila, três

atendentes atendiam — lógico! —,


o único vigilante olhava as moças
que passavam na rua, e uma

bela loira desfilava como se


estivesse numa passarela.

Caminhei até o vigilante, que estava


distraído, e enfiei a Penélope em
suas costas.

— Não reaja! É um assalto!


Entregue as armas — sussurrei em
seu ouvido. Ele, aterrorizado,

colocou os revólveres no chão,


logo os peguei. Nunca imaginara
que o vigilante fosse tão cagão.

Tirei a munição e a guardei no


bolso. Devolvi os revólveres
descarregados para ele. Isso tudo
em

questão de segundos, tão rápido que


ninguém notara. De repente, eu
levantei a arma e anunciei:

— Todo mundo no chão, é um


assalto! — a gritaria foi geral. —
Se comportem pra ninguém sair

ferido! — disse ao atirar para cima,


sempre quis fazer isto.

Apontei a Penélope para a loira,


que provavelmente era a gerente, e
a mandei encher a minha

mochila com mais de dois milhões.


Ela tremia, mas obedeceu e
esvaziou os caixas. Eu sabia que ali

não tinha a quantia suficiente, logo


a ameacei de novo, com o dedo no
gatilho. Ela foi ao cofre e

encheu a mochila, comigo atrás


encostando a pistola em suas
costas. Peguei a grana e saí
correndo,

cruzei cinco quadras, e apontei a


Penélope para um motorista.
Roubei o carro e saí dirigindo. Ao

longe eu já ouvia as sirenes, meu


coração disparou. Larguei o carro e
peguei um táxi rumo à

Varginha. Nunca senti tanto medo e


tanta adrenalina em toda a minha
vida, e também tanta alegria,

pois estava salvando a vida de


Anita.

Chegando a Varginha, eu paguei o


taxista e saí andando. Cruzei duas
quadras e vi um fusquinha à

venda, logo o comprei à vista.


Sentei o pé no fusca e peguei a
estrada novamente, rumo a Alfenas.
Mexi na mochila, logo troquei de
roupa, coloquei óculos e vesti uma
peruca loira. Abaixei o vidro

do carro e senti o ar me acariciar,


era o ar da liberdade, do alívio, da
esperança.

A duras penas, eu cheguei a


Alfenas, no local desejado.
Estacionei o fusca. Contei a grana,
tinha

mais do que o necessário, coloquei


dois milhões na mochila e o
restante no bolso. Saí e bati palma.
Humberto logo me atendeu.

— Meu jovem. O carnaval já


chegou?

— Precisamos conversar, mas lá


dentro! — disse eu.

Humberto me convidou e eu entrei.


Sentamos no sofá. Tomei uma
xícara de nescafé. Tudo em

absoluto silêncio. Ele me encarava


com desconfiança, logo abriu a
boca:

— Se você veio aqui pra tentar me


convencer a diminuir o valor, vai...
Eu o interrompi ao jogar os dois
milhões de cruzeiros no meio da
sala. Ele arregalou os olhos e

sorriu diabolicamente.

— Muito bem, viu como tudo tem


jeito nesta vida. Amanhã eu
passarei no hospital — disse ao se

sentar no chão e começar a contar


os cruzeiros.

— Nada disso, você vai hoje, aliás,


agora, para o hospital! Irá fazer
todos os exames!

— Mas... — resmungou, mas parou


ao ver o brilho da arma enfiada na
minha calça. — O.K.

Esperei Humberto contar o dinheiro


e logo partimos para o hospital no
carro dele. O fusca eu

abandonei, não valia grande coisa


mesmo. Enfim relaxei. Anita seria
salva. Eu corria pouco risco de

ser pego, já que voltava para a


região onde cometi o crime
enquanto os policiais achavam que
eu

estava indo o mais longe possível.


Vi isso em um filme de bangue-
bangue.

17

A nita saíra da UTI e estava


recuperada da hemorragia. Eu
comia unha, batia o pé no chão,

estalava o pescoço. A ansiedade me


dominava, pois o transplante estava
acontecendo. Felizmente os

exames de Humberto foram


positivos. Eu esperava, de verdade,
nunca mais vê-lo na vida.

O fato de eu não ter usado máscara


no assalto, me complicou. Por
causa desse erro, vivia com

medo de ser reconhecido,


principalmente no hospital.

Contei para todos que eu


convencera Humberto a doar a
medula, sem cobrar nada. Assim
ninguém

desconfiou de que eu pudesse ter


roubado o banco. E assunto
acabado! Coloquei o dinheiro, que

restara do assalto, na caixinha do


hospital. Em relação à Penélope, eu
a enterrara no quintal.

Anita só soube da existência do


doador compatível depois que saiu
da UTI. Aliás, ela nunca

desconfiou da proposta de
Humberto, tanto que o considerava
um santo pelo nobre gesto de doar a

medula.

Peguei um livro de Anita, escrito


por Poe, e comecei a ler para
passar o tempo. De repente o

médico chegou e disse:


— O transplante foi um sucesso!

Saí do banho e me vesti. Passei


pela sala e vi uma cena estranha:
Santiago assistia a um filme

pornô ao lado de Quincas Borba,


que não tirava os olhos da TV, ó
cão tarado! Peguei o Corcel

emprestado, aliás, ultimamente eu o


usava mais do que o próprio dono.
Logo parti para o hospital.

Anita não podia receber visitas


devido à baixa imunidade, mas eu
consegui um jeito de vê-la
através do vidro. Caminhei pelo
corredor ao lado da enfermeira, que
logo se foi. Aproximei-me do

vidro e vi Anita dormindo. Que


sensuais lábios rubros... Que
pintinha charmosa... Que beleza

perpétua... Encostei-me na parede e


fiquei a admirá-la. De repente ela
se virou e deixou as costas

nuas. Tive a sensação de que a


tatuagem de corvo se mexia, mas
era apenas sensação. O silêncio se

tornou enlouquecedor. Senti um mau


presságio. O corredor se esvaziou.
Alguém grasnou! Virei-me

para Anita e vi! Vi penas saírem de


suas costas, e uma coisa negra caiu
no chão... A tatuagem tinha

sumido! Repentinamente, um corvo


surgiu voando pelo quarto e pousou
na cabeceira da cama. Quis

chamar a enfermeira, mas ela


desaparecera. Minha cabeça girava
enquanto ouvia uma melancólica

canção gótica. Imagens fúnebres


invadiam a minha mente como
flashes. E o corvo me encarava com

seus olhos vermelhos e diabólicos.


Ele me amaldiçoava, filho da puta!
Não sabia se estava morrendo

ou enlouquecendo. E o maldito
corvo me encarava... E Anita se
virava na cama... E eu me sentia
cada

vez mais fraco, pois a ave sugava


as minhas energias. Tomei coragem
e perguntei:

— Quem é você?

— Nevermore! — grasnou me
observando com deboche.

Encaramo-nos. Eu dava um passo


para trás, e ele dava um pulo para
frente. Eu balançava a minha

cabeça, e ele repetia o meu gesto.


Oh! Seria a morte, que fora me
buscar?

Senti fraqueza, tontura, sede, calor.


Subitamente alguém tocou meu
ombro! Comecei a chorar, pois

era a morte...

— Por favor... — sussurrei ao me


virar. Logo arregalei os olhos de
tanto sobressalto, pois era a

enfermeira!

— Você está bem? — perguntou.


Automaticamente eu olhei para o
quarto e vi Anita dormindo

tranquilamente enquanto o corvo


tinha sumido...

18

P assaram-se semanas. Enfim Anita


teria alta, pois a recuperação estava
sendo ótima. Bati

levemente na porta e entrei. Ela


transbordava saúde e vivacidade,
era a velha Anita de antes.

— Como está? — perguntei.

— Ótima! Nem acredito que vou


voltar pra casa! Estou pronta pra
começar uma nova vida.

— Espero que eu esteja incluso


nessa sua nova vida.

— Você é o protagonista, seu bobo.


Se não fosse a sua ajuda e a de
Humberto, eu não estaria mais

aqui.
Fiquei em silêncio enquanto a
encarava. Nós nos amávamos com a
mesma intensidade. Sentei-me

na cama e, sem dizer nada, nos


beijamos como dois pré-
adolescentes. Lágrimas rolaram,
não de

amor, mas de alívio por tudo o que


passamos. Agora sim, estávamos
prontos para começar uma nova

vida, uma vida a dois.

Tomei o banho mais feliz da minha


vida. Vesti a melhor roupa. Peguei
as alianças. Acabei com o

vidro de perfume. Faltava pouco


para pedir Anita em casamento.

Coloquei um LP de Elvis Presley na


vitrola e fiquei dançando sozinho.
O grande dia chegara.

Anita e a riponga me esperavam


para o jantar.

Quando peguei a chave do Corcel,


ouvi barulho de carro parando na
frente de casa. Achei

estranho. Aproximei-me da janela.


Meu sangue congelou! Policiais se
preparavam para invadir a

casa. Saí correndo


desesperadamente, como se a minha
vida dependesse disso, e de fato
dependia.

Tudo se movia lentamente. Minhas


pernas corriam por conta própria
enquanto eu ouvia a porta sendo

massacrada. Pulei a janela como


um verdadeiro ginasta. Atrás,
alguém ameaçava atirar caso eu

insistisse em fugir. Passei por


debaixo do varal. Quincas latiu. Um
tiro passou entre as minhas

pernas. Saltei sobre o muro, mas


minhas mãos não alcançaram o
topo... Fechei os olhos enquanto

caía de costas no chão. Logo me


espatifei. Fim da linha!

Levei um chute nas costelas. Abri


meus olhos. Seis policiais me
cercavam e me apontavam armas.

— Vire-se de costas, já! —


ordenou um deles. Obedeci. Fui
algemado! Desta vez não era como

nas outras, agora eu mofaria na


cadeia. Alguém me colocou de pé à
força. Um policial carrancudo me

encarou e perguntou:

— Você é o Beto Rockfeller


Araújo, certo?

— Sim.

— Não ouvi, repita! — ordenou.

— Sou eu, sim, senhor.

— Você está preso por roubo à mão


armada! Cadê o dinheiro?

— Eu não sei de nada, senhor —


automaticamente levei uma
cacetada no peito, que me deixou

com falta de ar.

Arrastaram-me até a viatura e me


jogaram no chiqueirinho. Não havia
mais ninguém em casa. Dois

policiais voltaram dizendo que não


encontraram nada. Trancaram-me.
De repente o giroflex e a

sirene foram ligados, e as duas


viaturas saíram em disparada.

O sangue esfriou e a realidade me


atingiu com um soco no estômago.
Minha mente se esforçava

para registrar o máximo de imagens


possíveis, porque elas poderiam
ser as minhas últimas

lembranças deste mundo. Era o fim


dos meus sonhos. Nunca lançaria
um LP e jamais ficaria famoso.

Seria eternamente um merda! Um


presidiário que, no máximo, se
tornaria um ex-presidiário, e nada

mais, nada mais...

A viatura dobrou a esquina.


Algumas pessoas se escondiam por
medo de que eu fugisse e as

matasse. Outras me ofendiam e me


zombavam. Beatas rezavam como
se eu fosse o diabo em pessoa.

Sentia-me humilhado, como um


animal enjaulado que servia de
diversão para o público, como um

nada! Dizem que, neste mundo, não


cai nem uma folha se não for a
vontade de Deus. E eu me

perguntava por que Ele fez isso


comigo...

Pensei em Anita me esperando toda


ansiosa e animada. Eu a perdi, a
perdi, a perdi... Pra sempre...

Para o destino... Meu peito se


rasgava de tanta dor. Ela me amava,
de fato, ela me amava, e isso doía

bem lá no fundo, uma dor


insuportável que eu jamais
imaginara que pudesse existir.

Estiquei a mão, peguei a caixinha e,


mesmo algemado, abri. Fixei o
olhar nas alianças de noivado,

no brilho metálico. Vi meu rosto


envelhecendo gradativamente,
enquanto Anita se casava com um

homem rico e boa-pinta. E eu


continuava envelhecendo numa cela
escura, enquanto ela ficava grávida

e era feliz. Era isso, pior que


roubar um banco, era roubar o bem
mais precioso desta vida, a

juventude de uma pessoa...

19

J ogaram-me na cela, que estava


vazia. Sentei-me na cama e fiquei
em silêncio. A ficha não caía
de jeito nenhum. O tempo foi
passando e eu fui perdendo a noção
dele. Tudo parecia um pesadelo,

mas não conseguia acordar. Meus


olhos estalavam como se eu tivesse
usado farinha, e das boas. Não

conseguia pensar em nada, pois


minha mente estava anestesiada.

Os acontecimentos tiveram uma


sequência como num roteiro
cinematográfico:

— Beto Rockfeller. Por que você


roubou o banco? — perguntou o
delegado.

— Porque quis! Preciso ligar para


os meus pais, eu tenho esse direito.

O telefone só chamava. Tuuu...


Tuuu... Tuuu... Mas, de repente, meu
pai atendeu:

— Quem é?

— Pai, sou eu, Rock! Estou preso


na cadeia, em Três Corações.

— O que você aprontou desta vez?


Estava fumando aquelas ervas
fedidas?
— Não! É melhor você vir aqui.

— Estou a caminho.

— A sua situação não está fácil.


Encontraram um documento seu no
local do crime, e alguns

funcionários reconheceram você —


disse o meu advogado.

Meu pai entrou na sala de visitação.


Nunca o vi tão raivoso. Ele se
sentou e me encarou.

— Seja sincero! Isso tem alguma


coisa a ver com o doador que
estava vendendo a medula?
Eu não revelaria a verdade, pois
conhecia o meu pai, ele jogaria
toda a merda no ventilador.

Tinha medo da reação de Anita ao


saber que eu fui preso por,
indiretamente, salvá-la. Era injusto

jogar centenas de toneladas na


consciência de uma pessoa que
acabara de escapar da morte.

— Não, pai! Eu realmente o


convenci a doar de graça. Roubei o
banco porque queria comprar um

carro, só isso — encenei tão


convincentemente que até eu quase
acreditei em mim. Meu pai tremia
de

raiva e logo meteu a mão no meu


rosto. Isso doeu tanto no corpo
quanto na alma.

— O erro foi meu! Deveria ter


dado uns corretivos em você, na
infância. Quer ter algo? Trabalhe!

O que eu fiz pra merecer um filho


vagabundo, e agora bandido?!
Sempre passei a mão na sua
cabeça,
mas agora chega! O que você
precisar em relação a advogado,
vestuário, alimentos, essas coisas,

pode contar comigo, porque é a


minha obrigação como pai. Mas, a
partir de hoje, nem eu e nem a sua

mãe iremos visitá-lo! Não


estaremos nem no julgamento! Você
precisa ficar sozinho pra refletir,
pra

pôr juízo nessa sua cabeça. E nem


perca seu tempo nos escrevendo ou
telefonando — disse olhando
para a mesa, logo se virou e foi
embora.

— Paiiiiii... Não vá!!!

— Seu vagabundo! Como eu pude


me enganar?! Vou entregar o
dinheiro que lhe pertence, relativo

ao tempo de serviço, para os seus


pais. E nunca mais pise na minha
padaria! — desabafou o meu ex-

patrão.

— Vai pra merda seu corno!

— Não sei por que você fez isso, e


nem quero saber. Somos amigos. E
você pode contar comigo

pra tudo, pra tudo mesmo — disse


Santiago me dando um forte abraço.

— Acho que eu o conheço mais do


que você mesmo, tá ligado? Você
pode enganar a todos, menos

a mim! Humberto não aceitou doar


a medula de graça, né? E você
roubou o banco pra pagar ele e,

consequentemente, salvar a vida de


Anita, certo? — questionou Yakult.

— É... Tudo bem. É isso mesmo!


Mas você tem que me prometer que
não irá dizer isso pra

ninguém, ninguém mesmo! Alguém


poderá usar isso no julgamento, e
assim Anita saberia de tudo. Ela

não pode saber de nada, entendeu?


De nada! Não posso estragar a vida
dela.

— Não concordo, mas prometo que


isso morrerá comigo.

— Aconteça o que acontecer, nunca


revele isso pra ninguém! Beleza?

— Beleza!
— Bicho, você vacilou... Por que
roubou o banco? — perguntou a
riponga.

— Queria comprar um carro —


respondi tranquilamente, pois ela
era tão avoada que não iria

ligar os pontos como Yakult fizera.

— Vacilou, bicho! Vacilou! Vou


chamar Anita.

Estremeci. Chegara o grande


momento! Meu Deus! Virei-me de
costas para a entrada, não queria

vê-la, mas queria, sei lá... De


repente, eu senti o aroma de
gardênia almiscarada e logo ouvi a
sua

voz:

— Rock, como você está? —


perguntou hesitante. Virei-me e a vi
usando um charmoso vestido

preto. Ela, que ainda usava


máscara, estava com uma perna
engessada e andava com ajuda de

muletas.

— O que aconteceu com a perna?


— Uma queda simples, nada grave.
E você? Como está?

Respirei fundo e a encarei.


Precisava de coragem, muita
coragem. Mas me desarmei ao vê-
la tão

bela na minha frente. Queria beijá-


la. Queria contar toda a verdade,
assim ela me amaria pela

eternidade. Mas não, eu não


poderia ser egoísta.

— Você não veio aqui pra fazer


essa pergunta. Sim Anita, eu sou
culpado, roubei o banco!

— Mas, por quê? Estava indo tudo


bem — sussurrou com os olhos
umedecidos.

— Anita! Por que você acha que eu


vim pra Minas? Pra viver uma
aventura? Não! Para fugir! Já

cometi vários assaltos. Lógico que


eu não saía gastando por aí, pois
daria na cara. Depositava tudo

numa conta na Suíça. Eu iria fugir


do país — menti, pois eu não
roubaria o bem mais precioso desta
vida, a juventude de uma pessoa, a
juventude de Anita.

— Pelo amor de Deus, Rock! Fale


a verdade! — pediu aos prantos.
Meu coração se partiu ao vê-

la naquele estado. Pensei em voltar


atrás e dizer a verdade, mas eu não
podia.

— Essa é a mais pura verdade —


disse desviando o olhar. Ela se
aproximou, ainda chorando,

tirou a máscara, e colou seus lábios


aos meus. Que beijo! Aproveitei-o
excessivamente, pois era o

último, o último... Pensei, outra


vez, em voltar atrás. Meu corpo a
queria, meu coração também, mas

a razão não deixava. Quis chorar,


mas me segurei. E, num lampejo de
juízo, eu a segurei pelos braços

e a afastei de mim.

— Não importa o que você foi, o


que é, e o que será. Eu o amo
mesmo assim. Você é o homem da

minha vida, o homem que eu


escolhi pra ser o pai dos meus
filhos. Vou esperá-lo o tempo que
for

preciso — declarou olhando dentro


dos meus olhos. Isso era a coisa
mais linda, e mais dolorosa, que

eu já ouvira na vida. Inesquecíveis


palavras. Queria ser egoísta...

Independente de falar ou não a


verdade, eu ficaria preso por anos,
fato! Anita não podia frequentar

aquele ambiente, ali não era lugar


para uma mulher, e muito menos
para quem tinha uma saúde frágil,
pois até o ar era insalubre. E, sem
dúvidas, ela sofreria menos com o
fim do que com a espera. E

quanto menos sofrimento, melhor


seria a sua recuperação. Anita
poderia ter poucos anos de vida —

havia risco de rejeição, infecção, e


até de a leucemia voltar —, por
isso ela não poderia desperdiçá-

los me esperando, tinha que vivê-


los plenamente. Então por que
contar a verdade? Ela já sofreria

muito se me esperasse, imagine se


soubesse que eu estava preso por
salvá-la. Nós éramos vítimas,

Humberto o vilão. E o fardo tinha


que ser meu.

— Não precisa me esperar — disse


eu, tomando coragem.

— O quê?! — perguntou espantada.

— Desculpa, mas eu nunca a amei.


Queria apenas tomar você de
Gringo, apenas isso. Rivalidade!

Acho que fui muito longe nessa


história. Vá, e viva a sua vida.
— Pare de brincadeira —
balbuciou buscando meus lábios.
Eu a afastei e fui mais firme:

— Anita, eu não amo você! Não


amo! Quer que eu desenhe? Procure
outro pra ser seu marido, pra

ser o pai dos seus filhos, porque eu


não vou ser!

— Por que você está fazendo isso


comigo? — questionou dando leves
socos no meu peito, e me

abraçando em seguida. — Eu o
amo. Pelo amor de Deus, não me
abandone! Eu preciso de você! Eu

preciso!

Separei-a de mim novamente e


chamei o guarda.

— Você é uma grande mulher, irá


encontrar alguém a sua altura. Você
está livre, vai viver a sua

vida.

— Rock, você está fazendo isso só


pra eu não o esperar. Confessa!
Confessa! — gritou de forma

histérica.
— Eu tenho outra, a minha vizinha,
ela sim é boa de cama — menti
encarando-a; infelizmente eu

precisei apelar.

— Rock! Eu esqueço tudo, até a


traição, mas não me abandone! —
gritou quando a riponga e o

guarda a arrastaram para fora.


Virei-me para ela, que estava no
corredor, e disse:

— E nunca mais venha aqui. Se


vier, perderá seu tempo, pois não
irei recebê-la.
Outro guarda me grudou pelo
colarinho e me conduziu pelo
corredor enquanto Anita gritava que

me amava. Logo eu fui jogado para


dentro da cela, e o silêncio se
proliferou.

Deitei-me no chão aos prantos.


Talvez eu nunca mais pudesse vê-la
na vida. Tinha perdido tudo,

desde a liberdade até Anita. Mas


não me arrependia, pois a salvei.
Sempre quis fazer algo para me

orgulhar por não ter vivido em vão.


Mesmo que o mundo não soubesse,
eu consegui! Mas, pensando

bem, me restara uma coisa a perder,


a vida... Olhei para o lençol e para
a grade da janela, e a minha

mente ficou matutando...

20

P assaram-se semanas ou talvez


meses. Meus pais cumpriram a
promessa, pois nunca mais foram

me visitar, nem atenderam meus


telefonemas e muito menos
responderam as minhas cartas. Ao
mesmo

tempo, todo fim de semana, eles me


traziam — por meio de Yakult —
apetitosos alimentos, roupas

limpas e produtos de higiene


pessoal. Yakult também me trouxera
o dinheiro do meu tempo de

serviço na Padaria Chico Taquara.

Ele — que era o único que


continuava me visitando — me dera
uma foto de Anita. Aliás, ela

tentou me visitar por duas vezes,


mas não a recebi. No fundo eu
desejava que Anita não acreditasse

que eu não a amava, que eu era um


marginal, que eu tinha outra e que
eu não queria que ela me

esperasse, tolos desejos, meras


esperanças. Doía imaginar que a
garota dos lábios rubros tivesse

uma lembrança tão ruim de mim.

Ainda tinha medo de que alguém


abrisse a boca em relação à antiga
proposta de Humberto, pois

eu contara essa história para todos


os mais chegados, exceto Anita. Se
soubesse da proposta, ela

fatalmente deduziria toda a verdade


e meus planos iriam por água
abaixo. Era melhor que ela

pensasse que Humberto era o santo


que a salvara, e eu o marginal que a
enganara.

Meu advogado me contou que o


julgamento estava próximo.

...pena de dez anos e dois meses de


reclusão!

...como seu advogado, eu acho


melhor não recorrer.
Jogaram-me no chiqueirinho...

Entrei na Penitenciária de Perdões,


estado de Minas Gerais...

Obrigaram-me a vestir o uniforme


amarelo-gema...

Entrei no pavilhão...

Empurram-me para dentro da cela...

Havia dois beliches, alguns varais


e um armário no canto. As paredes
eram abarrotadas de

infiltrações e bolores. Não aguentei


o cheiro de poeira misturada com
mofo, espirrei.

— Saúde — disse alguém saindo


de trás do armário, era um negão
gigantesco que tinha braços tão

fortes que poderiam me esmagar


com um simples aperto de mão. —
Pode ficar com essa —

continuou ao me apontar a cama


inferior do lado direito.

Coloquei meus pertences na


cabeceira e me sentei. O negão se
aproximou e parou diante de mim.

— Fique tranquilo, neste pavilhão


ficam os trabalhadores e os que têm
penas leves. Aqui na cela,

somos quatro, contando com você.


Outros pavilhões chegam a ter até
vinte por cela. Eu fico ali

embaixo, a Luma fica na cama de


cima, aliás, ela já está dormindo.
Tempo não faltará pra você

conhecê-la.

— É mulher? — perguntei confuso.

— Sonhe... A Luma é uma gazela


que não sabe se vira travesti ou
não. Pedro Paulo é o nome
oficial, mas nunca a chame assim,
senão, já viu... Em cima de você,
fica Alexandre, que está na

enfermaria. Ah, eu sou o Mãozinha


— contou me estendendo a mão.

— Rockfeller, mas pode me chamar


de Rock — disse ao retribuir a
saudação.

— Aqui em Perdões, temos quatro


pavilhões, que juntos formam um X
— explicou desenhando em

um papel. — No centro fica o


campo de futebol. Cada pavilhão
tem o seu próprio pátio interno,
como

se fosse um estádio. Ah, isso você


pode conferir ao olhar pela janela,
esta cela tem vista pro nosso

pátio. Você entrou pelo pavilhão 1,


onde fica a administração,
enfermaria, essas coisas.

Provavelmente passou pelo campo


para chegar aqui, que é o último
pavilhão, o 4! Ah, não contei, lá

em baixo, no porão, estão os


jurados de morte. Olhando para a
entrada, a sua direita, está o
Pavilhão

2, onde ficam os mais perigosos, os


tuberculosos e as solitárias! À
esquerda fica o Pavilhão 3, lugar

dos estupradores, travestis e


doentes mentais. E seja bem-vindo
ao seu novo lar. Está com fome?

— Um pouco — na verdade, estava


quase comendo o colchão.

— Devo ter algo do jumbo de


domingo — revelou, indo mexer no
armário. Logo ele voltou me
trazendo um pedaço de bolo de
milho. Devorei.

De repente ouvi um ruído que vinha


da cama da tal de Luma.

— Ai... Que bofe lindo... Que


pedaço de mau caminho...

21

M ãozinha — que foi um dos


maiores ladrões de carros-fortes do
estado, mas só foi preso

quando matou a esposa e o amante


— tornou-se um grande amigo. Ele
pegara 60 anos de prisão e
cumpriu apenas dois. Pedro Paulo,
ou melhor, Luma, vivia me dando
indiretas, mas não posso

reclamar porque poderia ser bem


pior. Ele, ou ela, pegara 30 anos
por tráfico e homicídio.

Alexandre — que eu conhecia de


algum lugar, mas não me lembrava
de onde — aguardava o novo

julgamento por supostamente


participar de um roubo milionário.
Ah, ele fazia questão de ser

chamado pelo nome e sobrenome,


Alexandre Apolca. Em relação à
minha história, ninguém

acreditava como eu pude fazer tanta


merda com apenas vinte anos.

Era domingo, dia de visitas. Eu e


Yakult fumávamos um baseado no
corredor do Pavilhão 4,

enquanto Mãozinha dava uns pegas


em uma morena dentro da cela.

— Rock, como você consegue erva


aqui dentro?

— Aqui se acha de tudo, só precisa


de dinheiro e bons contatos —
respondi. Zola era o traficante

do Pavilhão, enquanto Meleca era o


cara que vendia de tudo e mais um
pouco. A grana da padaria

estava sendo útil; infelizmente eu


tive que dar metade aos policiais,
era o preço para obter vista

grossa.

— E por que ninguém está vindo


visitá-lo?

— Ah, é aquela mesma história.


Anita até veio uma vez aqui na
penitenciária, mas eu não a recebi.
Isso já faz tempo... Teve notícias
dela?

— Só sei que anda bem de saúde.

— E Santiago? Gringo?

— Santiago está pensando em


voltar pra São Paulo. E Gringo,
nunca mais eu ouvi falar. Ah, tenho

uma coisa pra contar.

— Diga — disse ao acender outro


baseado.

— Vendi o Corcel, estou pensando


em passar um tempo em Machu
Picchu. Mas não quero deixá-

lo sozinho.

— Não se preocupe comigo. Vou


ficar bem. Já fiz várias amizades
aqui dentro. Não desista do seu

sonho por causa de mim. Se


desistir, aí eu me sentirei culpado.

— Mas ninguém vem visitá-lo!

— Já disse, fique de boa. Tenho


uma boa grana guardada, vou ficar
bem.

— Está certo. Então eu irei, talvez


nesta semana, mas não sei quando
volto. Escreverei pra você

todo mês, não sei se chegará, mas


vou tentar. Em relação às coisas
que seus pais lhe mandam, eu

conversei com eles, talvez passem


a vir pelo correio.

— Sussa... Se não chegar, não irei


ficar com a bunda suja, pode ter
certeza. Aproveita a viagem, é

o seu sonho, fique lá o máximo que


puder e não se esqueça dos amigos.

— Talvez cumprindo uns três anos,


você já seja solto. Passa rápido, é
só não fazer merda. Tem um

presentinho aí no jumbo — disse


ele, logo vasculhei e achei, era uma
Playboy da Cláudia Raia, bem

que eu estava precisando. — E tem


mais, mas chegará outro dia,
surpresa...

Conversamos mais um pouco e nos


despedimos, mais um amigo se
fora, e nem sabia se um dia eu

o veria novamente.

Era madrugada. Todos dormiam


mesmo com Apolca roncando como
porco. Sentei-me na cama e

fiquei lendo Quatro Estações de


Stephen King, livro adquirido via
Meleca. Li trinta páginas e parei.

Pensei em Anita. Neste momento


poderia estar acontecendo a nossa
lua-de-mel. Tive que afastá-la de

mim, porque ela precisava viver a


vida enquanto eu estava preso. Mas
depois, esperava encontrá-la

livre, leve e solta. Eu acreditava


em sua promessa: “Vou esperá-lo o
tempo que for preciso”.

De repente o vento começou a uivar


e a quebrar o agonizante silêncio.
Mais de repente ainda, eu

ouvi uma música: “Hey, Jude, don’t


make it bad... ” Pulei da cama.
Encasquetei que o som vinha do

pátio, puxei o armário e subi nele.


O vento cortava meu rosto. Havia
um grande nevoeiro, mas, aos

poucos, ele foi se desfazendo. No


meio do pátio, no chão de cimento,
surgiu Anita, com toda a sua
formosura, tocando habilmente o
piano. Que belos lábios rubros, que
charmosa pintinha perto da

boca, que beleza sobrenatural


possuíam seus novos cabelos que
cresceram rapidamente e voltaram
a

ser como antes. Que elegante


vestido preto. Subitamente ela
atirou o sensual olhar em mim e
piscou

como uma legítima femme fatale.


Meu coração quase parou. Deus do
céu! Logo senti a fragrância de
gardênia almiscarada penetrar na
minha alma, me causando explosões
de êxtase como se eu tivesse

usado LSD. Ah, que maravilha!


Agora ela tocava Let It Be...

Pisquei várias vezes, mas ele


realmente estava lá, o maldito
corvo! Ele permanecia no ombro de

Anita, que continuava tocando.


Parecia que um dependia do outro
para viver, ou que eles eram a

mesma coisa mesmo não sendo. O


corvo me fitava com curiosidade
enquanto ela me seduzia com

olhares. Essa maldita ave não ia


com a minha cara, não ia! De
súbito, tudo sumiu e o silêncio

misteriosamente voltou, assim


como o nevoeiro. Permaneci
vasculhando o pátio com o olhar,
quando,

de repente, no meio da cerração,


um vulto se deslocava em minha
direção. Era o corvo, que vinha

com um olhar determinado e bico


afiado para me cegar. Ginguei o
corpo, escorreguei e caí do

armário. Mãozinha levantou


assustado e me encarou.

— Rock! O que foi? Não vai dizer


que está fumando crack? Aqui não
tem mais ninguém, é tudo

coisa da sua mente!

— De boa, só estava olhando as


estrelas...

Era mais um dia de visitas. Estava


sozinho. Mãozinha veio e se sentou
ao meu lado.
— Ei! Eu sei que você gosta da sua
ex-namoradinha, mas ela está lá
fora curtindo a vida, e você?

Se ficar aí só na mão, vai ficar


louco, ninguém vive sem mulher.
Ou você não curte?

— Ôche! Está me estranhando?!

— Então. Olha! Falei com a minha


maninha, aquela ali, e ela aceitou
conhecê-lo intimamente, se é

que me entende... — dei uma


espiada, aquela não iria nem com
duas garrafas de Velho Barreiro.
— Obrigado, mas estou de boa.

— Pense bem, se mudar de ideia é


só avisar.

De repente Lolita apareceu, eu


ainda não sabia qual era a sua
intenção, pois ela nunca me
visitara.

Talvez fosse algum recado de


Yakult.

Ela se aproximou. Cumprimentamo-


nos com dois beijinhos.

— Rock, queria conversar em um


lugar mais isolado, que tal a cela?
— Tem certeza?

Ela respondeu que sim com a


cabeça. Caminhamos pelo pavilhão.
Abri a cela. Entramos. Então

estiquei o lençol para ninguém ficar


bisbilhotando a nossa conversa.

— Separei-me de Yakult, mas fiz-


lhe uma promessa. Promessa que eu
terei muito, mas muito

prazer em cumpri-la. E vim


justamente pra isso — declarou ao
se virar de costas para mim. Ela

começou a se alisar, virou-se e


abriu o Trench Coat vermelho, puta
que pariu! Lolita veio para cima e

eu não pude resistir.

Estranhamente o meu advogado


veio me visitar. Entrei na sala e me
sentei.

— Não sei nem por onde começar...


A casa dos seus pais pegou fogo...
Com eles dentro... Seus

pais morreram carbonizados...


Sinto muito...

— O quê?! — gritei.
— Isso mesmo... Infelizmente, seus
tios me avisaram somente hoje e o
enterro já aconteceu na

quarta passada, um dia após a


tragédia.

22

O tempo é a estrada que nos trouxe


para vida e que, um dia, nos levará
para a morte. O tempo é

o papel no qual deixamos nossas


marcas e, se forem bem marcadas,
nunca se apagarão. O tempo é a

união de tudo o que nossa mente


produz, pensar é estar ligado ao
tempo, é estar vivo. O tempo,

ninguém nunca viu, mas todos


sentem. O tempo é apenas um
buraco negro que engole tudo o que

existe, e o que não existe também.

Seja qual for a melhor definição de


tempo, só lhe digo que ele passou, e
muito. Estava preso há

mais de quinze anos, isso mesmo,


quinze anos! Sentia o peso da
idade, pois já passara da crise dos

trinta e era quase um quarentão.


Quem diria... Um quarentão...

Lolita me visitou por mais um ano,


mas foi embora para o Rio de
Janeiro, pois lá ela receberia em

dólar. Em relação à Yakult, nenhum


sinal de vida. Anita nunca mais
tentou me visitar.

Entristecia-me o fato de que meus


pais partiram zangados comigo,
mas eu acreditava que — lá do

céu ou de outro lugar desconhecido


— eles me perdoaram, pois agora
souberam da verdade. Acho
que tinham até orgulho de mim.
Doía me lembrar de que eu não
pude me despedir deles, doía
muito,

muito mesmo.

Infelizmente meus pais tinham


várias dívidas, muito mais do que
eu poderia imaginar, e minha

herança se resumiu a uma quantia


quase insignificante e que mal dava
para me sustentar por seis

meses.

Sem dinheiro, sem amigos, sem


família, sem mulher e sem nenhuma
perspectiva de futuro, eu

precisei tomar uma atitude e assumi


o controle do tráfico do pavilhão 4
após Zola ganhar a liberdade.

Precisava fazer um pé-de-meia


para, quando deixasse a prisão,
pudesse recomeçar uma nova vida
ao

lado de Anita. Até porque ninguém


dava emprego para bandido. Anita
era projeto para o futuro.

Naquele momento era somente eu e


Deus. Na prisão, você tinha duas
escolhas, ou se matava ou

virava homem de verdade. Escolhi


a última opção. Tornei-me um
traficante de respeito, tanto que me

convidaram até para entrar numa


organização criminosa chamada de
Primeiro Comando da Capital.

Agora eu ganhava bem, fazia o pé-


de-meia, pagava a propina, comia
do bom e do melhor, e ainda

contratava prostitutas para trocarem


o meu óleo. Aliás, as putas eram as
pessoas mais leais,

confiáveis e companheiras que eu


já conheci neste mundo. Lógico que
algumas estragavam a classe,

mas isso acontecia em todas as


profissões.

Luma ganhara a liberdade.


Mãozinha continuava preso, assim
como Apolca que pegara vinte
anos.

Havia trinta meses que o peruano


Pablo Ramos, um traficante, dividia
a cela conosco.
Eu me recordara de Apolca, ele era
o hippie que cantava no Cruzeiro
em São Thomé das Letras.

Como poderia me esquecer “Pai, eu


quero ser hippie. Vou cair no
mundo. Só preciso de um jipe.

Pai...” Lógico que nos tornamos


grandes amigos. Soube que ele
abandonara a vida agitada em São

Paulo para virar hippie e cair no


mundo, mas, desiludido, cometeu
um milionário roubo e distribuiu a

grana aos pobres. Sim, Apolca deu


uma de Robin Hood. Tornou-se
idolatrado pelos necessitados e

menosprezado pelo sistema.

Quando comecei a traficar, rebelei-


me e não quis pagar a propina.
Resultado: fui dedurado pelos

guardas, peguei mais oito anos de


cana e perdi a progressão de
regime. Aprendi a lição, da pior

forma possível, mas aprendi. Outro


episódio a se destacar foi quando a
minha maldita mão alheia

saltou sobre o pescoço de Jack


Machadinho. Os guardas nos
separaram e eu passei dois dias na

solitária. Após um diálogo franco,


Jack entendeu o meu lado; para a
minha surpresa ele conhecia essa

síndrome porque sua mãe era uma


vítima dela. Ao fim, nós passamos
horas contando piadas, rindo e

queimando uma ervinha.

Nunca vira tantos guardas armados


em uma final da Copa Perdões, o
tradicional torneio de futebol

disputado entre os detentos. Cada


pavilhão possuía um torneio
interno, os vencedores se juntavam

com o atual campeão para disputar


o título. Al Gema, o meu time,
faturou os últimos dez torneios

internos e cinco das últimas sete


Copas. Era a final, e enfrentávamos
o Sanguilândia, time novo

formado no pavilhão 2. Estava zero


a zero. Do banco de reservas, eu
acompanhava tudo. Uma

multidão de detentos cercava o


campo, estava tudo misturado:
psicopatas, estupradores, travestis,

líderes de facções. Era a primeira


vez que liberaram todos os
pavilhões para acompanhar a final

lógico que alguns preferiram ficar


nas celas —, mas isso não me
cheirava bem, parecia cilada, iria

dar merda.

Faltavam dez minutos, Mãozinha


acabara de acertar a trave. Enfim eu
entrei em campo. No

primeiro lance já me derrubaram, o


tempo foi passando, faltavam dois
minutos. Recebi a bola na

direita, driblei o zagueiro, passei


por outro acertando uma
cotovelada, fiquei cara a cara com
o

goleiro e enfiei o pé, gol! Gol do


título! Al Gema hexacampeão da
Copa Perdões! Dois jogadores do

Sanguilândia me cercaram.

— E aí mano?! Cadê a lealdade?


Como cê acerta uma cotovelada?
Tá me tirando?! — disse um
deles vindo para cima de mim, mas
Mãozinha chegou e apaziguou os
ânimos, porém, do outro lado,

já começara a confusão. O campo


virou um pandemônio. Fiquei no
meu canto observando tudo. Tinha

neguinho sendo esfaqueado,


estrangulado, estuprado. Os portões
de saída foram fechados e os

guardas apenas observavam. Era


isso, eles foram comprados para
facilitarem o acerto de contas. Era

porrada pra todo lado. A matança


estava liberada, quem morresse
viraria apenas um número de

estatística, quem matasse não seria


dedurado. Vasculhei o pátio,
encontrei uma faca e a peguei,

precisava me defender, até porque


muitos estavam de olho no comando
do tráfico no pavilhão 4.

Era sangue voando, gritaria,


ameaças, soco vindo de toda parte
e muito blábláblá. No meio do

tumulto, eu vi! Puta merda! Eu vi!


Era o momento mais feliz desde que
fui preso. Humberto César

estava ali, de uniforme amarelo-


gema, encolhido perto da parede.
Seus cabelos ficaram mais

grisalhos, a pele envelheceu, mas


sem dúvida era ele, jamais me
esqueceria daqueles olhos azuis e

antipáticos. Aproximei-me com


sangue no olho e sorriso sarcástico
na boca.

— Ei, Humberto! Este mundo é


muito engraçado, agora estamos no
mesmo barco — disse
passando o dedo na faca. Ele
esbugalhou os olhos, parecia
aterrorizado. — Lembra-se de mim,
não

lembra?

— Claro, Rock. Como vão as


coisas? — perguntou balbuciando.
Humberto tremia de medo, como

era bom vê-lo daquele jeito. Deus


existe!

— Como vão as coisas? Muito


bem... Depois que eu roubei o
banco para pagá-lo, simplesmente
porque você queria dinheiro para
salvar a vida da minha namorada,
fui condenado e estou aqui há

mais de quinze anos! Muito bom, eu


tenho que agradecê-lo por estar
nesta maravilha... Por que está

aqui?!

— Estelionato... Perdão! Sei que


errei. Achei que você tivesse
dinheiro, nunca imaginei que

precisasse roubar. Arrependo-me


muito, você não imagina o quanto.

Aproximei-me mais um pouco,


ainda alisando a faca que estava
bem afiada. Era a minha chance, a

minha vingança, poderia acabar


com ele sem sofrer nenhuma
punição.

— Perdão? Você acaba com a


minha vida e agora vem pedir
perdão?! Então vamos fazer o

seguinte, eu mato você, e quando


nos encontrarmos no inferno, eu lhe
peço perdão, tudo bem? — A

fúria me dominou, agora entendia a


expressão sangue no olho, era a
minha chance. Acabaria com

uma vida, mas era uma vida


desprezível, era como matar um
verme, e eu não acreditava que
Deus me

puniria por acabar com um verme.


Hesitei por um momento, mas tomei
coragem e fui para cima.

— Pelo amor de Deus, não faça


isso! — implorou chorando como
uma criança. Continuei firme,

mas quando decidi avançar de vez,


Jack Machadinho surgiu do nada e
acertou uma machadada no

pescoço de Humberto, que faleceu


imediatamente. O sangue jorrou
para todo lado, até em mim.

Passei a língua nos meus lábios e


senti o gosto do maldito sangue, era
o gosto da justiça...

23

O saldo do conflito que ocorrera


anos atrás não passou de onze
mortes, ninguém foi punido, mas

perdemos o futebol por um ano. O


tédio dominava a prisão, a rotina
nos matava aos poucos. Futebol,

leitura, damas, palavras cruzadas,


eram algumas das nossas armas
para driblar o tempo e fintar a

morte que respirava no nosso


cangote. Falando em literatura,
virei fã de Edmond Dantès.

Lá fora o temporal não dava trégua.


Do lado de dentro, todos dormiam,
menos eu. Sentia muita

falta de Anita, não tinha como


negar. Outra coisa que não tinha
como negar eram as minhas
alucinações que eu não sabia dizer
se eram reais ou fantasiosas. Dizem
que o espírito deixa o corpo

enquanto dormimos, talvez fosse


isso, o espírito de Anita — que
nunca envelhecia — vinha me

visitar enquanto seu corpo dormia.


Mas não tinha certeza de nada, nem
que eu estava vivo. Aliás, a

única certeza desta vida é que não


temos certeza de nada, alguém já
dissera isso, mas não lembrava

quem. O corvo poderia ser a


personificação do príncipe das
trevas ou da própria morte, ou
ainda

pura insanidade minha. Mas, o


certo, era que eu gostava de vê-la,
mesmo se viesse com o maldito

corvo. Ela me visitava, em média,


três vezes por ano. Estava acordado
esperando justamente isso,

uma visita.

Aos poucos comecei a sentir a


fragrância de rosas que se
transformou em gardênia. Olhei de
lado

e ela estava lá... Anita... Ah, a


franja caía sobre a testa... Ela
parecia triste e, de repente, uma
lágrima

deslizou sobre seu rosto. Meu


coração se apertou tão forte que
parecia estourar, e ela chorava, a

minha Anita chorava. Levantei-me,


mas o corvo apareceu e ficou entre
nós. Tentei me aproximar, mas

fui atacado pela ave dos infernos,


que não me deixava chegar perto da
garota dos lábios rubros.

— O que houve? — perguntei


enquanto o corvo bicava o meu
sapato, mas Anita permanecia em

silêncio e me observava com muita


dor, dor que até eu sentia. — Fale,
por favor, o que houve?

— A vida nem sempre é como


planejamos. Nem sempre!
Sentimentos de nada adiantam se
não

forem vividos plenamente. Este é o


nosso caso...
— Ai! — gemi ao levar uma bicada
no traseiro. — O que você quer
dizer com isso?

Anita continuou em silêncio. Sem


pensar duas vezes, chutei o corvo e
fui para cima dela. Peguei-a

pela cintura e a joguei contra a


parede. Prensei-a com o meu corpo.
Eu pude sentir a sua pulsação, o

seu calor, a sua pele, o seu


irresistível corpo. Passei meus
dedos entre seus sedosos cabelos
negros,
empurrando uma mecha para trás de
sua orelha. Encarei seus sensuais
olhos que transmitiam ternura,

dor e muita, mas muita nostalgia.


Sua respiração se alterou. Senti o
aroma de seu hálito frio e

refrescante. Logo a beijei, beijei


aqueles lábios estupidamente
rubros, beijei com extremo ímpeto.

Mas, de repente, ela sumiu dos


meus braços e eu dei de cara com a
parede. Deitei-me no chão aos

prantos. Mas, ao longe, eu a avistei


desfilando sensualmente enquanto
se despia. Arregalei os olhos

quando as alças do vestido caíram,


e ainda mais quando vi seus seios
nus. Felizmente o corvo

sumira. O striptease continuou e


logo seu vestido voou pelos ares.
Ah... De repente Anita começou a

caminhar, apenas de calcinha, na


minha direção. Assustei-me quando
a vi pular em mim, entrelaçando

as pernas na minha cintura e me


agarrando pelo pescoço. Levei-a
até a cama, me despi enquanto a via

se contorcendo de desejo. Logo me


deitei ao seu lado. Ela se virou de
bruços. Agarrei-a por trás,

mas algo incomodava o meu peito e


logo me levantei. Vi a tatuagem de
corvo deixar a pele de Anita e

ganhar vida novamente.

Ele voou até a janela e ficou me


observando. Seus olhos oscilavam
entre o vermelho e o preto,

cores infernais. Sua plumagem era


de um negro diabólico,
sobrenatural. Subitamente ele
grasnou, me

assustando. Ao longe eu ouvia


Anita se declarando “Não importa
o que você foi, o que é, e o que

será. Eu o amo mesmo assim” “Vou


esperá-lo o tempo que for
preciso...” “Vou esperá-lo o tempo
que

for preciso...” “Vou esperá-lo o


tempo que for preciso...”

— Chega de mistério! Quem é


você? O diabo? — perguntei
irritado, mas ele não me respondeu,

apenas grasnou suavemente como


um assobio, como se quisesse rir
do meu desespero, e nada mais,

nada mais. — Diga-me pelo menos


uma coisa, eu irei rever Anita?

— Nevermore...

24

O grande dia, enfim, chegara, após


18 anos e 2 meses. Cumpri minha
pena integralmente por

dois motivos: a incompetência do


meu advogado e o meu mau
comportamento, caso parecido com
o

de Apolca que ainda não fora solto.

De repente o guarda me chamou.


Dei um forte abraço em Apolca e
outro em Mãozinha. O peruano

fora extraditado no dia anterior.

— Se precisar de algo, procure-o e


diga que é meu amigo — disse
Mãozinha me passando um

papel com endereço. — Ele é


bicheiro, tem muitas influências.
— Mas, não quero mais me meter
em coisa errada.

— Eu sei, mas ele poderá lhe


emprestar dinheiro e até arrumar
algum emprego. Se encontrá-lo,

diga que eu mandei um abraço.

Agradeci e dei um tapinha nas


costas de Mãozinha. O guarda me
apressou. A vida é assim, feita de

inúmeros encontros e despedidas.


Quando somos jovens isso assusta,
mas, com o tempo, nos

acostumamos, o desapego é mais


uma sádica lei da vida. Peguei
minha mochila e deixei a cela. Eu

desejava profundamente nunca mais


entrar em uma. Troquei de roupa e
apanhei meus outros

pertences, entre eles estava a minha


aliança de namoro com Anita, já as
alianças de noivado foram

confiscadas pelos malditos


policiais. Antes de pôr os pés para
fora do presídio ainda tive que dar

metade do meu dinheiro aos


guardas, era a propina final.
Fiquei intensamente feliz quando
passei pelo gigantesco portão. Senti
um friozinho na barriga. Que

saudades da minha banda, do rock


and roll e do meu sonho de gravar
um LP — agora a mania era

CD, o mundo realmente não era


mais o mesmo. De repente começou
a chover, saí dançando, pois era

o melhor dia da minha vida.


Subitamente peguei um ônibus que
ia ao centro de Perdões. Eu não
tinha
para onde ir, mas o entusiasmo de
uma nova vida e de um novo Beto
Rockfeller falava mais alto, bem

mais alto. Era como se nascesse


pela segunda vez.

Anita e o corvo não apareciam há


anos, eu sentia falta, mas era bom,
porque poderia ser um sinal

— caso isso realmente não


passasse de delírios, o que eu ainda
duvidava — de que a minha
sanidade

mental estava voltando. Não via a


hora de reencontrar Anita, sabia
que sua aparência não era mais a

mesma, pois estava com quase


quarenta anos, assim como eu. A
idade só não chega para quem
morre.

Mas quando se ama de verdade,


não há idade e nem barreiras, pois
os sentimentos falam mais alto do

que a aparência física. Queria


recomeçar, queria recomeçar com
ela, com a garota dos lábios rubros.

A possibilidade de Anita estar


casada me deixava inquieto. Tinha
dúvidas se ela acreditaria em

minhas palavras, se acreditaria que


eu nunca tivera nada com a minha
vizinha, se acreditaria que

roubei o banco para comprar a


medula que a salvara, se acreditaria
que eu dissera aquelas coisas

apenas para afastá-la de mim, e


principalmente, se acreditaria que
eu nunca deixei de amá-la, nunca.

...se acreditaria. Esse se era o X da


questão. Maldito se...
O ônibus parou. Desci. Almocei.
Comprei algumas roupas e
acessórios. Troquei-me no banheiro

da rodoviária e comprei uma


passagem para São Paulo, pois
antes de rever Anita eu queria me

despedir dos meus pais.

Então eu notara o quanto o mundo


tinha mudado. As mulheres
mostravam mais coisas do que

antes, crianças já se fantasiavam de


adultos, jovens ouviam músicas
horríveis e obscenas que se
chamavam funk ou algo parecido.
Que saudades da época em que o
som do momento era Legião

Urbana, RPM, Cazuza. Desci na


estação de metrô Santa Cecília.

Caminhei algumas quadras e vi um


restaurante chinês construído sobre
o terreno — que fora

leiloado para pagar dívidas — que


um dia foi a minha casa. Pensei em
procurar meus tios, mas eles

não iam muito com a minha cara,


por isso deixei pra lá.
Fui até a casa dos pais de Yakult
para ter notícias de meu amigo, mas
eles se mudaram para o

interior, merda!

Logo segui até o cemitério e com a


ajuda do coveiro eu encontrei o
túmulo dos meus pais, que

foram enterrados juntos. Estava


tudo abandonado, mas prontamente
fiz uma limpeza, acendi velas e

coloquei flores. Ajoelhei-me e


rezei pela alma deles. A dor da
perda de um ente querido é uma
ferida

que nunca cicatriza, com o tempo se


forma uma casquinha, você a
esquece até o dia em que a bate,

aí...

25

E u ouvia música enquanto o ônibus


seguia rumo a São Thomé das
Letras. Não tinha mais nada

para fazer em São Paulo, pois a


minha vida estava na Machu Picchu
brasileira.
Cheguei e fui direto para minha
antiga casa, mas além de não
encontrar nenhum conhecido,

ninguém tinha notícias dos meus


amigos. Logo segui meu rumo.
Agora era a vez de Anita. Enquanto

caminhava, eu ouvia uma mesma


música tocando em vários lugares e
descobri que se tratava do

cantor Ventania que fora morar na


cidade.

E se Anita se mudou? E pior, se ela


se casou? Ai meu Deus, a
ansiedade me comia por dentro. Iria

revê-la depois de muito, mas muito


tempo... Iria rever a minha Anita, a
minha Anita...

Aproximei-me da casa dela,


respirei fundo e bati palma. E se
ela não me reconhecer? Pior, se não

se lembrar de mim? Meu coração


quase saiu pela boca quando vi
alguém abrir a porta da sala, puta

merda! Mas, logo a desilusão me


deu um soco nas partes baixas, não
era Anita, e sim a riponga que
envelhecera muito, muito mesmo, já
não era mais pegável. Ainda assim,
a ansiedade fez minha

pulsação disparar, pois eu teria


notícias de Anita, ou quem sabe
poderia vê-la assistindo a um filme

na sala.

— Bicho! É você? Rock? —


perguntou assustada e respondi que
sim com a cabeça. — Nossa!

Nada mal, hein! O tempo foi


generoso contigo, ainda dá um
caldinho... Vamos, entra. — Entrei,
sentei

no sofá, o mesmo de antigamente,


mas nenhum sinal de Anita.

— Então, como vão as coisas? E


Anita?

— Acompanha-me? — questionou
ao acender um baseado, lógico que
não recusei. — Bom...

Primeiro me fale sobre você. Está


livre? Casou?

— Estou sim, saí na segunda.


Casar? Como eu iria me casar na
prisão? Meus pais morreram.
Quero começar uma nova vida.

— Sinto muito pelos seus pais.


Nunca entendi por que você
enxotou a minha filha quando ela
foi

visitá-lo. Eu via e ainda vejo um


brilho no seu olhar quando falamos
de Anita. Nem ela entendeu,

tanto que ficou confusa, mas


resolveu tocar a vida depois de
tentar visitá-lo por algumas vezes
sem

ser recebida. Acho que foram três


ou quatro tentativas.

— Eu a amo, muito! Fiz aquilo


porque não queria que ela me
esperasse. Veja! Estou com quase

quarenta, praticamente a mesma


idade de Anita. Você pode imaginar
quanto tempo ela perderia se me

esperasse? Uma juventude inteira!


São quase vinte anos! E eu poderia
nem sair vivo da prisão. Mas,

pelo amor de Deus, fale logo como


ela está.

— Pelo jeito você não teve


nenhuma notícia da minha filha...

— Não! A última foi que ela estava


bem de saúde, Yakult me disse. Vai
dizer que a leucemia

voltou? Anita está no hospital?! É


isso?!

— Calma, ela não está lá. A


leucemia nunca voltou.

— Então se casou. É isso?

— Sim, ela se casou... — contou.


As palavras entraram em mim como
se fossem lanças, puta que
pariu, Anita se casou! Eu a perdi! O
que fiz?! Não, apesar de tudo, não
me arrependia, faria tudo de

novo, absolutamente tudo. Meu


coração se apertou, meu peito
pegava fogo, puta merda, Anita se

casou!

— Faz tempo?

— Depois que seus amigos foram


embora, o Santiago e o Cult, não,
Yakult! Então, depois disso,

Gringo voltou da Inglaterra e


procurou a minha filha. Aí eles
voltaram. O casamento aconteceu
dois

meses depois. — Anita poderia se


casar com qualquer um, mas com
Gringo não! Senti como se

levasse uma punhalada nas costas.


Ele a abandonou no momento mais
difícil, na descoberta da

leucemia e, depois que ela se


recuperou graças a mim, o maldito
voltou?! Corno, filho da puta!

Gringo ganhou... Mas, na época em


que Anita saía comigo e com ele,
ela dizia que estava dividida.

Era isso, talvez eu pudesse


reconquistá-la e dar o troco no
maldito inglesinho.

— Onde eles estão morando?

— Eles tiveram uma filha, Scarlett,


que encasquetou que vai ser
escritora. Ela foi tentar a vida,

sozinha, no Rio de Janeiro. Tem


dezesseis anos — pausou e deu
mais uma tragada. — Há seis anos,

numa madrugada, eles voltavam de


carro de São Paulo, quando
aconteceu o acidente... Scarlett não

sofreu nenhum arranhão, mas


Gringo e Anita morreram.

26

C aminhei pelas vielas até


encontrar o túmulo de Anita. O céu
estava cinza. Uma melancólica

garoa caía sobre a cidade. E Anita


continuava dormindo, dormindo
eternamente...

Ajoelhei-me e chorei. Sentia-me


como se uma parte de mim tivesse
morrido. Nunca mais veria
aquela franja caída sobre a testa,
nunca mais beijaria aqueles lábios
rubros, nunca mais sentiria

aquela fragrância de gardênia


almiscarada que se tornava incrível
na sua pele, nunca mais a veria

tocando piano, nunca mais


encararia aqueles sensuais olhos
negros, nunca mais ouviria Hey
Jude na

sua presença, nunca mais... Duas


palavrinhas que causavam uma dor
incalculável: nunca mais... O
corvo estava certo ao dizer
“Nevermore”. Maldita ave que
vinha apenas trazer desgraça e nada
mais.

Não me arrependia, mas me sentia


péssimo por ter enganado Anita,
não queria fazê-la sofrer. Mas,

ao menos, agora, em algum lugar,


ela sabia de toda a verdade. Sabia
o quanto eu a amei, o quanto eu

me sacrifiquei por ela e, acima de


tudo, sabia que tudo o que eu fiz foi
pensando nela, somente nela.
Gringo estava enterrado em
Londres. Nós tínhamos as nossas
diferenças, mas éramos amigos.

Nunca lhe desejaria mal, jamais.


Doía me lembrar de que nunca mais
poderia vê-lo, nunca mais

voltaríamos a tocar juntos, nunca


mais ouviríamos Sex Pistols na
altura máxima em seu quarto, nunca

mais...

Às vezes Deus era sarcástico. Anita


se salvou de um grave câncer e foi
morrer justamente em um
acidente. Desejava profundamente
que a minha hora chegasse logo,
pois queria reencontrá-la o mais

rápido possível.

Eu olhava para o túmulo que tinha


uma foto de Anita ainda jovem.
Mesmo assim, a ficha não caía,

não mesmo. Queria que tudo não


passasse de um terrível pesadelo,
mas, infelizmente, a vida era o

próprio pesadelo.

Nunca mais iria vê-la... Anita havia


acabado... Ela se tornara apenas um
corpo que ia se

deteriorando aos poucos. Um corpo


sem vida, um corpo imóvel,
simplesmente um corpo. E estava

diante de mim, diante de mim,


diante de mim estava o corpo de
Anita enterrado, sendo devorado
por

vermes... Como eu poderia


continuar vivendo, como?

Por quê? Pouco tempo antes Anita


estava viva e toda radiante, agora
ela não existia mais? Como?
Como alguém poderia deixar de
existir assim, num piscar de olhos?
E tudo o que vivemos, onde

ficava? Quem se importava? Quem


se importava com a minha dor?
Ninguém...

Anita não existia mais... O túmulo


era apenas uma lembrança de que
um dia ela existiu. Apenas

uma lembrança que sumiria com o


tempo... Tempo... Tempo... Não
existia algo mais cruel do que o

tempo, que devorava tudo,


absolutamente tudo...

Eu acreditava na vida após a morte.


Por quê? Porque era a única forma
de manter as esperanças

de que Anita não acabara


definitivamente. A única esperança
de que, um dia, irei revê-la. Eu

acreditava, eu precisava acreditar,


eu tinha que acreditar. E se eu
acreditava, existia.

O vento começou a sibilar enquanto


a garoa dava uma trégua. E, em
meio ao sibilar do vento, eu
ouvia Anita repetindo a sua
promessa:

— Vou esperá-lo o tempo que for


preciso... O tempo que for
preciso...

O ônibus fez uma curva e eu quase


bati a cabeça na janela. Seguia
rumo ao Rio de Janeiro, de

mala e cuia. Sentia-me em dívida


com Anita, por tudo o que a fiz
sofrer e por todos os nossos

momentos que nunca aconteceram.


Minha consciência pesava tanto que
eu mal conseguia dormir.

Sentia-me em falta com Gringo por


tê-lo traído. Eu não tinha família,
amigos, nada! Tornei-me um

solitário que precisava se apegar


em algo para seguir adiante na vida.
Sentia-me um estrangeiro no

meu próprio país; uma pessoa sem


passado, sem presente e sem futuro;
alguém que apenas vagava no

mundo como se fosse um cão vira-


lata sem dono. Por todos esses
motivos, tomei uma decisão, a de ir
para o Rio de Janeiro pra ajudar
Scarlett. A riponga me dera o
endereço. E ainda tinha outro
motivo,

o bicheiro amigo de Mãozinha


residia nessa cidade.

Scarlett se tornou meu único


sentido de viver. Em suas veias
corria o sangue da garota dos
lábios

rubros. Ajudá-la seria uma forma


de contribuir para que esse
pedacinho de Anita se tornasse
alguém
tão especial como fora a sua mãe.
Scarlett poderia ser a minha filha
com Anita se não fosse

Humberto. Mas agora ela seria de


fato a minha filha, não de sangue,
mas de coração.

27

P egando um ônibus aqui, um metrô


ali e andando acolá, eu cheguei ao
endereço, que ficava no

bairro Botafogo. Parei na rua e


fiquei estudando o local: era um
sobrado, embaixo funcionava um
hortifrúti, em cima parecia uma
pensão.

Entrei no hortifrúti para pedir


informações. Mas, quando me
aproximei da moça que ficava no

caixa, não tive dúvidas, era


Scarlett. O sensual olhar era
idêntico ao de Anita. Ela possuía
longos

cabelos loiros puxados para o


cobre, pele muito clara, lábios
rosados, rosto muitíssimo delicado,

olhos levemente azuis, corpo esguio


e, acima de tudo, possuía uma
típica feição inglesa, uma

princesa, uma garota bem bonita


que, com certeza, não puxara nada
de Gringo.

— Scarlett? — perguntei.

— Sim, sou eu. Quem é o senhor?


Eu o conheço?

— Não, não me conhece. Sou


amigo dos seus pais. De Anita e de
Gringo.

— Qual é o seu nome?


— Rockfeller, mais conhecido
como Rock.

— É um prazer conhecê-lo — disse


ela se levantando e me dando um
beijo no rosto. — Já ouvi

falar do senhor... Como achou meu


endereço? E... Posso ajudá-lo em
alguma coisa?

— Sua avó me deu o endereço.


Queria conversar, apenas
conversar. Fiquei muito tempo
afastado

de tudo, queria apenas saber um


pouco mais sobre você.

Ela me pediu para esperá-la, foi


conversar com um senhor e logo
veio em minha direção.

— Agora podemos ir. Faltavam


apenas alguns minutos pra eu ir
embora. Aonde vamos? —

perguntou Scarlett, animada.

— O que você prefere?

— Tem uma choperia na esquina.


Com este calor, não seria uma má
ideia.
Logo partimos. Sentamo-nos.
Pedimos uma cerveja. Era estranho,
eu estava diante da filha de

Anita e de Gringo. Estava diante de


uma pessoa que consideraria uma
filha se ela permitisse. Estava

diante de alguém que poderia me


dar um sentido na vida. Ao mesmo
tempo, estava diante de uma

jovem desconhecida que deveria


me considerar um tiozão esquisito e
sem noção.

— Por que você me olha desse


jeito? — perguntou ela.

— Ah, desculpa. É que você se


parece com a sua mãe. Mas, enfim,
por que você veio pra cá

sozinha?

— Você é curioso, hein? — disse


em tom de brincadeira. — Queria
ser independente, não

aguentava mais morar naquele


lugar. E outra, aqui é uma cidade de
oportunidades.

— Como eram seus pais? Qual é a


imagem que você tem deles?
— Meus pais faziam de tudo por
mim, de tudo mesmo. Cheguei até a
conhecer boa parte da

Europa, foi maravilhoso. Sinto


muito a falta deles, mas se Deus
quis assim, paciência... Ah, eles

sempre falavam de você, falavam


bem. Eu só não gosto dos meus
avós de Londres, eles nunca

gostaram de mim, tanto que jamais


me ajudaram sequer com um real,
você acredita? A última vez que

os vi foi no enterro do meu pai, eles


pagaram todo o custo da viagem,
mas depois nunca mais me

procuraram. Aí passei a viver com


minha avó doidona em São Thomé
das Letras.

— E como você sobrevive?

— Trabalho meio período, ganho


pouco, mas ao menos eu moro de
graça na pensão que é do

mesmo dono do hortifrúti. Estudo à


noite. Mas chega de falar de mim,
agora falaremos sobre você.

Eu sei que meu pai formou uma


banda com sua participação, se
chamava Escória Humana, ou algo

assim. Sei também que você teve


um caso com a minha mãe, o que
deixava o meu pai muito, mas

muito ciumento. — Puta merda, ela


sabia muito mais de mim do que eu
esperava.

— Caramba! Agora me diga qual é


o número do meu RG?

— Sei muito mais coisas sobre


você, muito mais do que possa
imaginar... — contou rindo, aliás,
rir era o que Scarlett mais fazia. —
Mas, o que você faz por aqui? Faz
tempo que mora no Rio? Por

que, exatamente, me procurou? Não


foi apenas para jogar conversa fora,
não é? Abra o jogo, estou

sendo sincera, e espero que você


também seja — questionou me
pressionando contra a parede.
Tomei

mais um gole enquanto escolhia as


palavras certas.

— Acabei de chegar ao Rio. Eu


perdi tudo na vida, é uma longa
história que um dia eu lhe

contarei, se quiser. Decidi


recomeçar a minha vida aqui, pois
quero fugir das lembranças do
passado.

Seus pais foram muito importantes


para mim, muito mesmo, tanto que
eu gostaria de poder ajudá-la

em tudo o que precisar.

Scarlett agiu normalmente, tomou


mais dois goles, e se pronunciou.

— Fique sossegado. Estou bem,


não precisa se preocupar comigo.
Mas podemos ser amigos. Você

já tem um lugar pra ficar?

— Ainda não.

— A pensão onde moro tem um


quartinho. É bem simples, mas é
barato. Se quiser eu converso

com meu patrão.

28

E u resolvi ficar com o quarto.


Scarlett subia a escada ao meu
lado, logo entramos na pensão.
Havia várias portas ao longo do
corredor. Existiam dois banheiros
comunitários, um feminino, outro

masculino. O casarão era tão antigo


que parecia um cenário
cinematográfico digno de Stephen
King.

Em seguida, Scarlett abriu a porta


de seu quarto, que ficava de frente
ao meu.

— Fique à vontade. Se precisar de


algo é só chamar. Agora eu tenho
que me arrumar pra ir à aula,
estou atrasada. Amanhã
conversaremos mais — disse
Scarlett, que logo entrou em seu
aposento.

Abri a porta. Havia uma cama e um


armário, mas já era o bastante para
quem passara anos em

uma prisão. Meus pertences cabiam


em apenas uma mochila.

Deitei-me e fiquei refletindo... Já


que eu não podia ter Anita como
esposa, decidi não me

relacionar com nenhuma outra


mulher. Anita deveria ter sido feliz
no seu casamento, isso me deixava

mais aliviado. Outra coisa que me


deixava aliviado era o fato de que
os pais de Gringo deveriam

estar quase com os dois pés na


cova, portanto, mais dia ou menos
dia, Scarlett herdaria uma fortuna

incalculável.

O dia amanhecera após mais uma


noite mal dormida. Já passava de
meio-dia. Alguém batia na

porta, logo a abri. Era Scarlett que


me convidou para ir ao seu quarto.
Entrei meio acanhado. Estava

tudo limpo e organizado, no canto


esquerdo havia um armário
abarrotado de livros e uma

escrivaninha.

— Sente aí — disse ela me


indicando a cama, logo eu me
sentei. — Dormiu bem? —
perguntou

mexendo em uma coisa bem


suspeita.

— Dormi mal. Ultimamente eu


tenho sofrido de insônia. O que está
fazendo? Você não deve usar

isso! Nem dezoito anos você tem...

— Vai dar uma de careta? Já vou


fazer dezessete. E outra, sou
emancipada — argumentou ao

acender o baseado. — Se não


quiser, não precisa fumar comigo.

— Se está com quase dezessete,


tudo bem... Passa aí, que eu também
quero. — Scarlett sentou ao

meu lado e passamos a dividir o


cigarrinho. — Pelo jeito você gosta
de livros...

— Sim, gosto. Meu sonho é ser


escritora. Estou escrevendo meu
primeiro livro, um dia eu deixo

você ler.

— É romance?

— Exato! É um romance
psicológico. Minha mãe gostava de
Poe, meu pai gostava de Machado
de

Assis, e eu fui gostar de Marcel


Proust e Patrick Süskind.
De repente arregalei meus olhos.
Diante de mim estava uma foto de
Scarlett ainda criança ao lado

de Anita com seus trinta e poucos


anos, e o incrível, era fisicamente a
mesma Anita de antes, a

mesma!

— Você gostava muito da minha


mãe, né?

— Gostava...

— Eu era criança, mas uma criança


observadora. Meus pais se
amavam, mas a minha mãe vivia
deprimida, acho que ela sentia a
sua falta. Meu pai tinha muito
ciúme, mas se controlava. Seu
nome

era tão falado em casa que eu achei


que você fosse meu tio.

— Eles foram muito importantes


para mim.

— E mesmo assim você fez


aquilo... — sussurrou. — Desculpe!
Esqueça o que eu falei. Não

devia tocar nisso.

— Está falando da prisão, né? Você


sabe de tudo mesmo, hein menina...
Bom, vou lhe contar toda

a história. Eu e sua mãe...

Enquanto revelava a verdade, o


baseado acabava. O semblante de
Scarlett mudava rapidamente,

nunca vi tantas caras em tão pouco


tempo. Logo terminei.

— Puta! Que! Pariu! Então você


nunca foi um ladrão de verdade?!
Só roubou o banco para

comprar a medula que salvou a


vida da minha mãe?! Espera aí, me
deixa entender, então se não fosse

você, ela estaria morta naquela


época e eu nem existiria... —
balbuciou com os olhos
umedecidos. —

Por que não falou a verdade? Você


não tinha culpa!

— Não tinha como escapar. De


qualquer forma eu seria condenado.

— E, além de ficar preso por anos


por salvar a vida da minha mãe,
você inventou uma grande

mentira para que ela não o


esperasse?! Para que ela ficasse
livre e vivesse a vida com outro?!
Cara,

você não existe! Como pode alguém


amar tanto uma pessoa...

— Fiz o que tinha que ser feito.

— Infelizmente a minha mãe não


está aqui para agradecê-lo, mas
saiba que, lá no céu, ela deve

estar orgulhosa de você. Nunca


conseguirei retribuir tudo o que
você fez por mim e por ela. Nunca!

Se hoje eu existo é por sua culpa,


sua culpa... Viu... Obrigada...
Obrigada por ter permitido que eu

existisse... — disse Scarlett


chorando e me abraçando.
Realmente, naquele momento, eu
ganhara uma

filha. Não pensava em mais nada


além de abraçá-la e sentir o seu
carinho. Era como se Anita me

abraçasse e me agradecesse por


tudo o que fiz. Era como se o
mundo reconhecesse o meu ato
depois
de anos e anos. Ali nascia uma
grande amizade, uma amizade de
pai e filha, entre mim e Scarlett.

29

O tempo foi passando... Arrumei


um emprego de padeiro sem
precisar da ajuda do bicheiro.

Cada dia mais eu e Scarlett nos


tornávamos cúmplices. A garota
realmente era das minhas, vivia

pulando na cama como uma


alucinada quando ouvia rock and
roll. Queimávamos muitos
baseados

curtindo a sua banda predileta, The


Doors. Na medida do possível, eu a
ajudava a estudar e a fazer

trabalhos escolares, enquanto ela


tentava me ensinar a mexer num tal
de Facebook.

Estava passeando em Copacabana.


O sol era de rachar. Turistas iam e
vinham. Meninas andavam

de bicicleta. Garotos brincavam de


skate. Mulheres se bronzeavam.
Homens praticavam esportes na
areia. Os mais espertinhos enchiam
a cara nos quiosques. Eu bebia uma
caipirinha enquanto

caminhava pelo calçadão dos


famosos desenhos de ondas. De
repente, eu vi um homem de meia-

idade, barbudo, cabeludo, parecia


um hippie, e logo tive certeza, era
Yakult!

— Yakult?

— Rock?! Caralho! Você não


mudou nada! Como vão as coisas?!
— perguntou me abraçando. —
Eu lhe enviava carta todo mês, mas
nunca chegava resposta.

— Não recebi nenhuma! Deve ter


extraviado. Isso acontece. Mas me
conte as novidades.

— Passei muito tempo no Peru, fiz


minha graduação e mestrado em
filosofia lá. Voltei ao Brasil há

pouco tempo. Dei um pulo em São


Paulo e já vim pra cá para lecionar.
Casei com uma atriz peruana,

mas ainda não tive filhos.

— E Santiago? Lolita?
— Santiago mora em São Paulo,
virou gerente de banco, mas
continua mulherengo. Lolita foi

trabalhar na Bélgica e deve ter


ficado por lá. Lembra-se de
Quincas Borba? Santiago o levou
para

São Paulo, já nasceram vários


Borbinhas. Sobre Gringo, nunca
mais tive notícias. E você?

— Então... Depois que saí da


prisão, eu fui pra São Thomé das
Letras e descobri que...
Saí da estação da Sé e vi Anita me
encarando. Corri até abraçá-la e
beijá-la. Que alívio, tudo não

passara de um pesadelo, apenas um


pesadelo. Enquanto trocávamos
afagos, ela sussurrou em meu

ouvido:

— Cuide de Scarlett pra mim. Por


favor, prometa que cuidará dela.

Prometi que sim e Anita


desapareceu num passe de mágica.
Fiquei olhando em volta, pessoas e

carros iam e voltavam, o som da


metrópole pulsava em minha mente,
o calor me lavava o rosto. De

repente, ela voltou e, sem mais nem


menos, pulou sobre mim, me
derrubando e grudando em minha

garganta. Suas mãos me


estrangulavam. Tentava afastá-la,
mas não conseguia. Anita queria
meu fim,

talvez quisesse me levar com ela,


apenas isso. Subitamente o chão
cedeu e nós caímos...

Acordei no meu quarto, mas alguém


ainda me estrangulava, estava quase
perdendo a consciência.

Logo a ficha caiu, não era Anita que


tentava me matar, e sim a mão
alheia, a minha própria mão.

Lutei, rolando pelo chão, e


consegui dominá-la. Arrastei-me
até a janela e me debrucei. A
respiração

foi voltando aos poucos. Era a


primeira vez que a mão alheia
tentava me exterminar. De repente,

risadas começaram a ecoar por


todo lado.

Virei-me e lá estava o corvo, na


cabeceira da cama, me encarando
sombriamente... O relógio, que

insistia em seu tic-tac, apontava


duas horas da manhã. Uma gelada
onda de ar entrou pela janela e o

corvo desapareceu. Olhei para a


bela cidade iluminada. Nuvens
fantasmagóricas desfilavam no céu

de cores nostálgicas. As estrelas


brilhavam de uma maneira
incomum. A noite ia me
hipnotizando. Ao

longe eu avistava uma igreja, em


seu topo havia uma cruz iluminada
pela lua cheia. Olhei com mais

cuidado e vi o corvo empoleirado


na cruz, ele balançava a cabeça
num gesto de magia, de feitiço, de

maldição.

Dei um grito abafado quando a


lixeira se virou no chão, mas era
apenas um rato. Tranquei a janela

e voltei para a cama. Arrepiei-me


ao ver a cortina balançando, pois a
janela inexplicavelmente

estava aberta... Sombras que


vinham da rua se projetavam na
parede. Imediatamente me cobri até
a

cabeça e tentei dormir, mas meu


corpo insistia em ficar em estado
de alerta. O terror crescia dentro

de mim e meus pelos se ouriçavam.

O sono estava chegando. De


repente o cobertor caiu e uma onda
de pavor me atingiu. Logo meu

corpo se paralisou, desde os dedos


dos pés até a ponta da língua.
Alguém me observava como se eu

fosse a presa. Queria pedir socorro,


mas não conseguia. E alguém me
observava... E uma ventania se

infiltrava no quarto... E o relógio


insistia com seu tic-tac, tic-tac, tic-
tac... Alguma coisa penetrava

em minha alma e se alimentava do


meu medo. Mantinha-me
literalmente paralisado. Tentei
rezar e

dialogar telepaticamente, mas não


adiantou.

Logo tudo cessou, exceto a


paralisia do corpo. Mas uma dor
inimaginável me atingiu. Era como
se

alguém me comesse vivo. Senti um


líquido quente me molhando. De
repente eu recuperei os

movimentos e vi o corvo
estraçalhando o meu peito. Pisquei
duas vezes e notei que tudo não
passara

de alucinações.
Respirei fundo, aliviado. Mas,
subitamente, a cama se levantou e
começou a girar em si mesma no

sentido anti-horário. A janela se


abria e se fechava. As portas do
armário se batiam. Objetos

voavam. E, no canto da parede, o


corvo me observava com seus
olhos demoníacos...

De súbito alguém me chamou e tudo


acabou. Levantei-me, abri a porta e
Scarlett invadiu o meu

quarto.
— Rock?! O que está acontecendo?
Está tudo bem?

— Sim. Está! Foi apenas um


pesadelo... — menti.

30

S carlett nadava nas exuberantes


águas da praia de Ipanema,
enquanto eu bebia no quiosque. A

praia estava lotada, normal para um


dia quente. Viver não era tão ruim
assim... Scarlett surgia e

desaparecia no meio das águas


azuladas, parecia uma sereia, ou
melhor, a garota de Ipanema.

Subitamente, uma elegante mulher,


que tomava água de coco, sentou-se
ao meu lado e começou a

puxar assunto. Pensando bem, eu


até poderia repensar a decisão de
não me relacionar com mais

ninguém. A conversa foi se


desenvolvendo. Estávamos
empolgados quando, de repente,
alguém se

aproximou.

— Vamos indo, amor — sussurrou


Scarlett, me abraçando. Eu não
entendi nada.

— Não sabia que você era


comprometido. Bom... Estou
atrasada, foi bom conhecê-lo.
Tchau! —

disse a elegante mulher. Tentei


argumentar, mas Scarlett confirmou
que nós éramos namorados, e a

mulher saiu em disparada. Matei o


copo de cerveja e olhei para
Scarlett que me encarava com um

sorriso sapeca.
— Você, menina... Acabou com a
minha diversão. — Enchi o copo.
— Mas vai ter troco. —

Agarrei-a pelos braços e despejei


cerveja gelada em suas costas, ela
gemeu e riu ao mesmo tempo.

— Você apanhará quando voltarmos


pra casa — zombou ao se soltar.
Ela deu outro mergulho e

logo nós fomos embora. No fundo


eu não liguei, pois a mulher não
fazia tanto o meu tipo. Mas

Scarlett teve uma crise de ciúmes,


não do tipo entre homem e mulher,
mas do tipo entre amigos.

O ônibus seguia seu rumo. Scarlett,


sentada ao meu lado, me fitava, mas
tanto que chegava a me

deixar sem graça. Logo tomei


coragem e perguntei:

— Por que você está me


encarando? Meu dente está sujo?

— Não! É que estou reparando que


você não é de se jogar fora. É até
bonitinho... — revelou

sorrindo timidamente. Fiquei sem


reação. Era uma cantada? Não
poderia ser. Scarlett era uma filha

para mim, e eu era um pai para ela.

— É...

— Não precisa ficar assim. Não foi


uma cantada. Foi apenas uma
observação. Ah, amanhã vai ter

um festival de rock na Gávea,


vamos?

Não era apenas de bossa nova e


samba que o Rio de Janeiro vivia.
Eu e Scarlett curtíamos o bom
e velho rock and roll no festival da
Gávea. Era um copo atrás do outro.
Pulávamos como dois

retardados. Logo ela subiu nos


meus ombros e invadimos a
multidão alucinada. Scarlett
cantava

euforicamente “Rape me, rape me


my friend. Rape me, rape me
again”. O tempo foi passando, a

garganta secando, os copos se


esvaziando, e o tempo foi
passando...
Logo chegamos à pensão. Scarlett,
embriagada, andava se apoiando
em mim. Entramos no seu

quarto. Quando dei por mim, já


estávamos fumando um baseado e
ouvindo The Doors.

— Rock, eu... — pausou devido ao


ataque de riso. Se sóbria já ria
pelos cotovelos, chapada

então... — Concentrando-me,
concentrando-me... Agora sim!
Então, Rock, você amou a minha
mãe,
certo? Mas, e agora? O que
pretende? Vai virar padre? Acho
que já está velhinho pra isso... — E

logo voltou a rir.

— Não quero ser padre. Estou


apenas dando um tempo. Mas, olha
quem fala! Você, na flor da

idade, nunca sai com ninguém, ou


você é daquelas que fazem às
escondidas?

— Eu não faço às escondidas!


Estou sozinha porque não achei um
cara legal. Não sou de sair com
qualquer um. E outra, não gosto de
moleques, prefiro homens mais
velhos...

— Bom, já está tarde, é melhor


dormirmos — disse, dando fim a
nossa conversa e me levantando.

Mas, quando a encarei, ela estava


deitada e fazia gestos para que eu
me deitasse ao seu lado. Que

isso?! Que brincadeira era essa? —


Cada um na sua cama!

— Ah Rock... Você leva tudo a


sério, a vida é um parque de
diversões, vamos sorrir! Que graça

tem sermos amigos se não podemos


fazer piadas um com outro? Vai
Rock, sorri! Era brincadeira!

Além de sorrir, eu fui para cima de


Scarlett e a enchi de cócegas.
Conversamos mais um pouco e

ela caiu no sono. Cobri-a, desliguei


o som, e saí andando. Mas, quando
fui abrir a porta, descobri

que a mesma estava trancada.

Procurei a chave em todos os


lugares, mas não achei. Tentei
acordá-la, mas não consegui. Puxei
o

cobertor e senti uma forte


palpitação ao vê-la dormindo; que
belas curvas, que corpo! De repente
dei

um tapa no meu rosto, eu não podia


desejá-la, jamais, era até pecado.
Expulsei os pensamentos

libidinosos e enfiei a mão nos


bolsos de sua calça, mas não
encontrei a maldita chave. Logo eu
a
cobri novamente.

Era meia-noite e eu estava trancado


no quarto. Olhei para a cama e
vislumbrei um espaço ao lado

de Scarlett, me lembrei de seu


suposto convite e fiquei
matutando... Estapeei-me outra vez.
Arranquei

a camisa e me deitei sobre ela no


chão.

Enquanto tentava adormecer, meu


corpo doía e eu desejava a cama.
Que mal haveria? Era apenas
dormir juntos, dormir! Foda-se!
Levantei-me, vesti a camisa, me
deitei na cama e me virei de costas

para ela. Ficou apertado, mas eu


logo caí no sono...

Acordei com algo sobre meu peito,


era a mão de Scarlett, logo a tirei
de mim. Virei-me e a vi

acordando.

— Foi bom pra você? — perguntou


sorrindo. Eu logo pulei da cama.

— Pare com isso! Só dormi aí


porque a porta estava trancada e eu
não encontrei a chave. Tentei

dormir no chão, mas as minhas


costas não são mais as mesmas.
Não deveria ter feito isso, mas o

cansaço falou mais alto. Desculpa!

— Relaxa, não foi nada mal dormir


coladinha com você...

— Cadê a chave? Eu preciso


trabalhar.

— Ah, a chave... — sussurrou se


levantando. Ela colocou a mão lá.
Exatamente nesse lugar que
você imaginou. E tirou a chave.
Filha da mãe!

31

A minha relação com Scarlett se


manteve da mesma forma, apesar
daquele episódio em que

dormimos na mesma cama. Às


vezes eu pensava na vida.
Queremos mudar o mundo, mas
dificilmente

conseguimos. No fim das contas,


acredito que o importante na vida é
mudar o mundo de apenas uma
pessoa, da pessoa que se ama.

A noite já chegara. Eu continuava


refletindo enquanto me mantinha
sentado no calçadão de

Copacabana. O vento ciciava e me


despertava para a realidade. Como
dissera Renato Russo, não

tenho mais o tempo que passou, mas


tenho muito tempo... A praia estava
vazia. Estrelas brilhavam

como diamantes, enquanto as ondas


vinham e iam. Eu precisava me
desligar do passado para poder
viver o presente em paz. De repente
alguém se sentou perto de mim. Era
Scarlett.

— Você é muito previsível, sabia


que estava aqui. Mas se eu estiver
atrapalhando, vou embora, na

boa.

— Tranquilo, pode ficar.

— Até sei no que está pensando.


Na minha mãe. Acertei?

— Mais ou menos. Estou pensando


em tudo um pouco.
— Eu acho que você deve tocar a
vida pra frente. Precisa arriscar
mais, curtir mais, beijar mais.

Enfim, viver mais. O que passou,


passou. Lembranças existem para
serem lembradas e não vividas...

— Acho que você tem razão...

— Vou confessar uma coisa. Às


vezes eu sinto inveja da minha mãe.
Não exatamente dela, mas do

sentimento que você tinha por ela.


Eu nunca tive alguém que me
amasse assim...
— Realmente você estava certa,
Marcel Proust é muito bom — disse
devolvendo o livro para

Scarlett. — Não vejo a hora de ler


o seu.

— Calma, só mais um pouco.


Quando estiver quase no fim, eu o
deixo ler. Ah, comprei um vestido

novo, vou vesti-lo e quero a sua


opinião.

Scarlett logo foi se trocar no


banheiro comunitário, enquanto eu
permanecia sentado na sua cama.
De repente, ela voltou e, com um
sensual vestido roxo, começou a
dar voltinhas na minha frente.

— Caiu bem em você...

— Gostei dele. O tecido é leve —


contou, sentando-se ao meu lado.
— Sinta você mesmo —

disse ao pegar a minha mão e


colocá-la sobre sua coxa. Puta
merda! Scarlett a guiava, e a fez
subir

das coxas até o abdômen, para


enfim apertá-la contra seu seio.
Meu Deus! Arrepie-me

completamente.

Dei uma olhada para ela e a vi


sorrindo inocentemente, como uma
criança.

— O que achou do tecido? —


perguntou soltando a minha mão.
Respondi que era leve e macio, e,

em seguida, me despedi. Levantei-


me, mas ela me pediu para esperar.
— Quero lhe mostrar outras

peças.
Assenti e me sentei. Scarlett deu a
volta na cama e foi mexer no
armário que ficava atrás de mim,

enquanto eu espiava o céu através


da janela. Subitamente ela me pediu
para não olhar para trás.

Obedeci, mas questionei, e Scarlett


logo respondeu “Porque o banheiro
fica longe e resolvi me trocar

aqui mesmo. Estou como vim ao


mundo”. Caralho! Fiquei vermelho,
meu corpo pegava fogo. Puta

Merda! Nua do meu lado? Isso não


era coisa de filha, não mesmo! De
repente, ela surgiu na minha

frente com um longo vestido negro,


esse era decente.

— Ficou excelente, melhor do que


o outro.

— E a roupa de baixo? —
perguntou Scarlett arrancando o
vestido. Puta merda! Ela estava
apenas

de calcinha de amarrar e sutiã na


minha frente, e o pior, eram de
renda. Desviei o olhar, mas por
pouco tempo, pois a tentação era
irresistível. Podia-se ver até alguns
pelos pubianos. Rapidamente

peguei o travesseiro e o coloquei


no colo. Nunca desejara tanto uma
mulher como a desejava. Ela

esperava uma resposta. Eu,


gaguejando, disse que estava ótimo.

Com a graça de Deus, Scarlett saiu


do meu campo de visão e foi se
trocar pelas minhas costas.

— Rock, me ajuda, por favor, eu


não consigo desamarrar — pediu
ela surgindo na minha frente.

Scarlett segurava as fitas soltas do


lado esquerdo da calcinha,
enquanto as fitas do outro lado

permaneciam amarradas. Nossa


Senhora! O que estava
acontecendo? Não era possível que
uma

garota fizesse essas coisas com um


amigo, e muito menos com o pai!
Meu coração batia a mil por

hora. Não tive escolhas. Peguei as


fitas e desamarrei. Mas, além de
não segurá-las, ela largou tudo e

sua calcinha caiu... Puta merda!

Fechei os olhos enquanto Scarlett


permanecia em silêncio. Quando os
reabri estava tudo do

mesmo jeito, seu sexo exposto a


alguns centímetros do meu rosto.
Tomei coragem e a encarei. Ela

sorria com malícia. Grudei em suas


nádegas e a puxei para mim. Lambi
seu sexo. Ela gemia.

Coloquei um, dois, três dedos lá


dentro. Logo a agarrei pela cintura
e a joguei na cama. Despi-me e a

peguei de jeito, apertando suas


coxas, beijando seus lábios e
penetrando em sua carne... Ainda a

peguei por trás, era a sua primeira


vez nisso, não perdoei e a fiz se
arrepender de ter me provocado.

Para finalizar, nada melhor do que


um excitante sexo oral. Ah, Scarlett,
engoliu tudo e ainda pediu

mais...

32
S carlett me seduziu naquela
oportunidade. A partir disso, nós
passamos a transar quase todos os

dias. Sentia-me mal, sei lá, era


como se traísse Anita duas vezes,
pô, era a filha dela. O meu amor

paterno, aos poucos, se transformou


em paixão. Era algo bem próximo
do que foi com Anita, mas,

agora, com um impulso carnal mais


aflorado. Scarlett confessara que se
sentia atraída por mim desde

a primeira vez que me viu, que se


apaixonou com o tempo e, ainda,
que me seduziu por causa da

minha falta de atitude. A garota era


um furacão na cama. O nosso
relacionamento se solidificou tanto

que nos tornamos namorados.


Éramos quase casados, já que
morávamos de frente um ao outro.
Cada

dia nós dormíamos em um quarto.

Yakult e eu colocávamos os
assuntos em dia na Livraria da
Travessa, isso acontecia quase
quinzenalmente. Ele estava se
dando muito bem como professor e
sua mulher já fazia até algumas

peças de teatro. Yakult ficara


boquiaberto quando soube que eu
tinha um caso com a filha de Anita
e

Gringo.

Acordei. Era madrugada. Senti o


corpo de Scarlett perto de mim.
Puxei-a pela cintura, entrelacei

nossas pernas e beijei sua nuca. Ela


possuía uma fragrância adocicada,
algo parecido com algodão-

doce, e isso me estimulava ainda


mais. Scarlett acordou e nos
beijamos. Logo chupei seu pescoço.

Eu adorava marcar sua pele clara,


deixando-a rosada. Em seguida,
transamos...

Scarlett, nua, se levantou e abriu a


janela. Logo ela acendeu a luz,
preparou um cigarrinho e voltou

para a cama.

— Deveria denunciá-lo por


pedofilia, tenho apenas dezesseis
anos — disse dando a primeira

tragada.

— Ah, sim. Eu seduzi a inocente


garotinha... Deveria processá-la
por abuso sexual, isso sim. —

Scarlett ria sem parar, como de


costume. Logo peguei o baseado.
— O que você acha que sua mãe

pensaria sobre isso?

— A única coisa que ela deve


querer é a nossa felicidade, não é
mesmo? Por que ela não iria
querer o melhor para você, e o
melhor para mim? E é claro que o
melhor para mim é você, e o

melhor pra você sou eu.

Ela estava certa...

Scarlett fora à aula. Levantei-me e


fui ao banheiro, pois queria mijar.
Enquanto colocava a coisa

para fora e mirava o vaso, vi uma


sombra passar pela parede. Mijei,
saí, mas não vi ninguém. Estava

tudo no mais absoluto silêncio.


Olhei no espelho e... Deus do céu!
Anita estava lá vestida de noiva,

com o corvo empoleirado em seu


ombro! Havia muito tempo que eu
não a via, muito mesmo. Olhei

para trás, mas não tinha nada. Olhei


para frente e lá estavam eles dentro
do espelho...

— Rock. Estou ansiosa para o


nosso casamento. Mas... Lembre-se
de sua promessa, de que

cuidaria de Scarlett pra mim? Era


para cuidar e não... — Anita
pausou, jogou o buquê, e começou a
chorar.

— Por que você está fazendo isso?


— questionei a mim mesmo. —
Você não existe! A verdadeira

Anita está morta! Você não passa de


uma alucinação, é tudo coisa da
minha cabeça! Você não existe!

Não existe! Porra!

— Eu nunca signifiquei nada pra


você... — sussurrou rasgando o
vestido. — Mas abusar da minha

filha, que ainda é uma criança, é


demais... Vocês nunca serão felizes,
esse relacionamento será

amaldiçoado! E você pagará caro


por tudo isso, muito caro...

— Mas, Anita, nós gostamos um do


outro... — As minhas dúvidas já
tinham voltado, era o espírito

dela ou pura esquizofrenia?

— Nunca se esqueça da minha


promessa. Vou esperá-lo o tempo
que for preciso... E você será

somente meu! Para sempre...

Desesperei-me e comecei a gritar e


a bater em mim mesmo, repetindo
que tudo era coisa da minha

cabeça, da minha maldita cabeça.

— Vocês não existem! Deixem-me


em paz! — eu gritava enquanto
encarava o espelho. Anita

chorava e corvo dizia:

— Nevermore... Nevermore...
Nevermore...

E o maldito corvo veio para cima


de mim e deu de encontro com o
espelho, que se espatifou.
Fragmentos voaram para todos os
lados e alguns me cortaram.
Comecei a sangrar. Sentei-me no
chão,

gemendo de dor. Felizmente eles


foram embora, mas eu ouvia um
ruído de pés se arrastando. De

repente, vi Anita caminhando, em


silêncio, como um fantasma. Do
nada, ela, que me ignorava,

atravessou a parede e se foi. Meu


sangue continuava derramando e, ao
longe, eu ouvia o corvo
grasnar.

33

E ra tarde de domingo. Scarlett,


Yakult, Norma Uribe e eu
almoçávamos juntos pela primeira

vez. A mulher de Yakult era


simpática, espirituosa e elegante.
Scarlett adorou conhecer outro
grande

amigo de seu pai. Contávamos


muitas histórias de Gringo,
Santiago e Anita.

Norma e Scarlett conversavam com


entusiasmo, coisas de mulheres.
Como a minha Scarlett era

linda... Seu sensual olhar lembrava


muito o de Anita, muito mesmo. E
os lábios rosados, ah... Os

olhos levemente azuis eram tão...


Tudo isso com apenas dezessete
anos... Ela jurava que me amava e

pouco se importava com o meu


antigo caso com sua mãe. Eu a
amava tanto...

Estava ansioso para que Scarlett


voltasse da aula. Queria amá-la,
queria vê-la, queria apenas tê-la

ao meu lado. Pela janela eu espiava


a rua. De repente a vi acompanhada
por dois rapazes. Eles riam,

pareciam íntimos, estavam alegres.


Riam de mim? Marcavam algum
encontro? Ali não rolava apenas

amizade, não mesmo! Pior era que


eles tinham boa aparência, e eram
jovens... Eu estava roubando a

juventude de Scarlett? Logo um dos


rapazes se aproximou dela, era um
beijo? Filho da puta! Ufa...
Foi apenas um beijo no rosto. Em
seguida ela entrou.

Scarlett abriu a porta, caminhou e


me abraçou.

— Você tem certeza de que gosta de


mim? Às vezes acho que estou
empacando a sua vida. Sei lá...

— Ah, já sei. Você estava me


espiando — deduziu me
empurrando sobre a cama. — Pare
de ser

bobo, já lhe disse que não gosto de


moleques. E outra, sinto que você
realmente me ama, e é isso que

eu quero, que você me ame como


amou a minha mãe. Se existo é por
sua culpa. E agora, se encontrei

a felicidade também é por sua


culpa... — completou ao se deitar
sobre mim.

Beijamo-nos e...

Acordei e vi Scarlett sentada à


beira da cama.

— Aconteceu alguma coisa? —


perguntei, levantando e me sentando
a seu lado.
— Aconteceu sim. Agora tenho
certeza. Não posso esconder isso
de você — contou preocupada.

— Rock, eu estou grávida!

Fiquei sem reação por alguns


segundos. Ela me encarava com
muita apreensão. Um filho?! Puta

merda! Era um dos meus sonhos!


Um filho! Puta merda... Um filho...

Apertei sua mão, passei alguns


dedos em seus cabelos e olhei para
dentro de seus olhos. A

adrenalina pulsava violentamente


em minhas veias. Um filho?! Anita
avó?! Logo a beijei. Foi um

beijo de carinho, de paixão e de


agradecimento por ela carregar meu
filho, isto mesmo, meu filho!

— Muito obrigado. Você está


realizando um sonho meu —
sussurrei ao pé de seu ouvido. Ela
se

surpreendeu e me abraçou forte.

— Eu achava que você não iria


gostar da ideia.

— Nunca lhe contei, mas era um


sonho antigo.

— Obrigada por permitir que o meu


filho também exista. — Começamos
a rir e nos deitamos na

cama. Logo coloquei meu ouvido


em sua barriga e, apesar de ser
muito recente, eu senti a

movimentação do meu filho, senti


de verdade!

Mudava de canal, mas não achava


nada de interessante na TV. De
repente Scarlett chegou do

banho e se aproximou de mim.


Inesperadamente ela desmaiou. Fui
ágil e não a deixei se espatifar no

chão. Tentei despertá-la, mas não


consegui. Fiquei desesperado. Logo
a carreguei e saí pelas ruas

para encontrar um táxi. Graças a


Deus não demorei a encontrar um e
partimos para o hospital.

Scarlett perderia o filho? Essa


ideia me causava calafrios. Já
comera todas as unhas e nada de o

médico me dar notícias. O odor de


álcool, o vai e vem de pessoas, a
recepcionista batendo a caneta

no balcão, tudo isso me deixava


ainda mais nervoso e irritado. De
repente um médico se aproximou.

— Você é o pai de Scarlett Andrade


Miller?

— Não! Sou o marido dela.

— Perdoe-me — disse o médico,


envergonhado. — Bom... Ela está
bem. Mas estamos esperando

os resultados dos exames.

Logo ele foi embora. Pelo menos


fiquei mais tranquilo. Os minutos se
passaram e o médico voltou

dizendo que Scarlett queria falar


comigo.

Entrei no quarto. Ela estava com os


olhos vermelhos, parecia ter
chorado. Aproximei-me e peguei

em sua gelada mão.

— Vocês precisam conversar e


tomar a decisão certa — comentou
o médico, que logo me deixou

a sós com Scarlett. Como assim


“tomar a decisão certa”? Fiquei
nervoso, senti um mau presságio,

aliás, péssimo presságio. Lembrei-


me do dia em que descobri que
Anita estava com câncer.

— Rock. Sinto muito... — disse


chorando e me abraçando. Eu tinha
perdido o meu filho!

Precisava ser forte, pelo menos na


frente dela, mas não consegui...

— Tudo bem. Ainda podemos ter


outros filhos.

— Não é isso — contou. Senti


alívio e um desespero ainda maior,
tudo ao mesmo tempo, o que

seria? — Infelizmente estou doente.


Tenho duas escolhas. Ou começo o
tratamento e perco o nosso

filho, ou não me trato e eu e o nosso


filho correremos o risco de morrer
durante a gravidez ou até no

parto.

— O quê?!

— Isso mesmo. Estou num estágio


avançado e preciso fazer
quimioterapia. Rock, eu estou com
leucemia.

34

S carlett já sofrera com a morte dos


pais, por que tinha que sofrer com
uma doença tão grave?

Era injusto. Cadê Deus? Às vezes,


acho que Ele não se importa...

A minha Scarlett, contrariando os


médicos, decidira tocar a gravidez
para frente e deixou a

quimioterapia de lado. No fundo,


era isso que eu queria, mas a deixei
decidir sozinha. Muitas vezes,
eu chorava no banheiro, pois
poderia perder Scarlett e o meu
menino a qualquer momento. Ela,
que

felizmente, terminou o ensino


médio, ficava cada vez mais fraca e
necessitava de muitos, mas muitos

cuidados, tanto que deixou o


emprego. Também mudamos para
uma pensão mais espaçosa e
tranquila

no mesmo bairro. Então passamos a


morar juntos oficialmente. Minha
vida se resumia a trabalhar e
cuidar do que eu tinha de mais
precioso, a minha família.

Era difícil acreditar que Scarlett


estava com a mesma doença de sua
mãe. Pensava e pensava, mas

não conseguia chegar a nenhuma


conclusão. E eu não podia fazer
nada, simplesmente nada! Ela

poderia me deixar. Por que há


mortes? Por que existem dolorosas
despedidas? Por que tudo é

passageiro? Por que tudo é assim e


ponto final?
Tantos momentos... Tantas
lembranças... Tudo poderia estar
chegando ao fim, inclusive eu.

Surpreendi-me com a força de


vontade de Scarlett. Ela estava
totalmente determinada em salvar a

vida de nosso filho. Isso me


emocionava, e muito. Eles tinham
que sobreviver ao parto. Depois,

Scarlett se trataria. Eu acreditava


que tudo acabaria bem, eu tinha que
acreditar.

Os meses foram passando... A


barriga crescendo... Yakult, Norma
e a riponga nos dando apoio...

Scarlett ficando mais fraca e


doente... Médicos dizendo para se
preparar para o pior... A barriga

crescendo... Scarlett
sobrevivendo... Minhas esperanças
aumentando... E o tempo
passando...

Scarlett gemia e ofegava


demasiadamente enquanto os
enfermeiros a levavam na maca
para o
quarto. Havia chegado a hora, o
grande momento de toda a minha
vida.

Infelizmente não me deixaram


acompanhar o parto devido à
delicada situação. Era quase meia-

noite. Do lado de fora, caía um


temporal daqueles, raios cortavam
o céu enquanto a água era

despejada como se o mar estivesse


caindo em nossas cabeças. Yakult e
sua esposa tinham ido passar

alguns meses no Peru e, por isso,


não puderam me apoiar naquele
momento. A riponga estava num

canto bebendo um café atrás do


outro, parecia estar em um mundo à
parte, um mundo unicamente seu.

Aproximei-me da janela. De
repente, eu vi um clarão perto de
um jequitibá, parecia um vulto, era

um vulto, era o vulto de Anita!


Senti algo estranho, como se tivesse
certeza absoluta de que realmente

era ela, a garota dos lábios rubros.


Não pensei duas vezes e saí no
meio do temporal.

Corri até a praça. Raios clareavam


a noite. A chuva não dava trégua.
Logo a vi ajoelhada e de

costas para mim. Aproximei-me. E,


do nada, ela se virou e eu vi uma
criança em seu colo, uma linda

criança. Anita chorava e não dizia


nada, absolutamente nada, e nem
precisava. De repente um raio

explodiu e eles sumiram. Ajoelhei-


me na lama e fiquei rezando. Deus
tinha que me ouvir, Ele tinha
que existir! Aos poucos fui caindo
em um sono fortíssimo, daqueles
que era impossível resistir...

— Filho, levante! Senão vai se


atrasar pra aula — disse a minha
mãe batendo na porta. Despertei-

me ainda assustado, tivera um


terrível pesadelo, nele eu já era
adulto. Arrumei a mochila e desci

para tomar o café da manhã.

Meu pai beijou a minha testa e foi


trabalhar na 25 de março. Eu
odiava quando ele fazia isso, mas
naquele momento gostei. Comi duas
broas que a minha mãezinha fizera,
eram deliciosas, parecia que

há muito tempo não as comia.


Abracei minha mãe e quis chorar
sem nenhum motivo, mas me
segurei,

e fui à escola.

Logo peguei na mão da professora


Clara, que era muito bonita.
Entramos na sala de aula e eu me

sentei. Aprendi um pouco mais


sobre raiz quadrada. Logo veio a
aula de educação física, mas não

quis jogar futebol neste dia. Fiquei


perto da minha professora. De
repente a bola passou do meu lado,

saí correndo para pegá-la, mas


tropecei no caminho e tudo
escureceu...

Abri os olhos. Não foi um


pesadelo, realmente eu era adulto.
A chuva caía, raios rasgavam o céu,

e a minha família corria risco de


morte. Não sei o porquê, mas caí
em prantos. Senti nostalgia,
saudades, e medo, mas muito medo.
Repentinamente ouvi um ruído no
jequitibá. Ergui a cabeça e vi o

corvo empoleirado no galho; ele


balançava a cabeça e cantava um
cântico estranho, um cântico

fúnebre que me hipnotizava aos


poucos...

35

E nxuguei-me no banheiro e segui


para a recepção, mas nada de
notícias do parto. Já estava

surtando. A riponga continuava


tomando um café atrás do outro. A
água não parava de cair. De

repente o médico veio até a mim e,


consternado, contou:

— Fizemos o possível, mas seu


filho não resistiu. Scarlett está bem,
mas ficará internada por mais

alguns dias.

O quê?! Meu menino, o pequeno


Augusto, não sobreviveu?!
Subitamente, comecei a sentir uma

terrível dor que ia dos braços até o


maxilar. O médico chamou os
enfermeiros. Minha vista escureceu

e...

Despertei. A luz quase me cegou.


Pelo odor eu não tive dúvidas,
estava em um hospital. Logo um

médico se aproximou de mim.

— Como está se sentindo? Está


bem?

— Sim, estou. O que aconteceu?

— Você sofreu um enfarte. Mas,


agora está tudo bem.
— Há quantos dias eu estou aqui?

— Três.

— E o enterro do meu filho? E


Scarlett? — perguntei preocupado.

— O enterro já aconteceu. A avó de


Scarlett optou por sepultar a
criança no mesmo cemitério

onde a família está enterrada, em


Minas Gerais. Ah, ela me pediu
para avisá-lo que já foi embora, e

que se você precisar de algo é só


procurá-la. De resto, está tudo bem.
— E Scarlett?

— Está tudo bem. Tudo conforme o


esperado. Agora você tem que
descansar. — Ele chamou a

enfermeira e deixou o quarto. Logo


fui medicado. Meu filho morreu.
Como Deus permitiu isso? Era

uma criança, apenas uma criança,


que eu nem pude conhecer. Só
queria ter um filho, alguém para me

acordar com um sorriso no rosto,


alguém para ensinar a dar os
primeiros passos, alguém,
simplesmente alguém, alguém que
pudesse me amar e me chamar de
pai.

Era difícil aceitar que Augusto teve


uma vida tão curta. Filhos jamais
poderiam morrer antes dos

pais, jamais! Scarlett e eu


poderíamos ter vários filhos, mas
nenhum substituiria Augusto, pois
cada

um teria o seu próprio espaço. Meu


menino estava morto, queria ter ido
em seu lugar.
Passaram-se alguns dias. Os
médicos insistiam em dizer sempre
a mesma coisa quando eu

perguntava de Scarlett: “Está tudo


bem, tudo conforme o esperado”.
Isso me deixava inquieto e

preocupado, mas era coisa da


minha cabeça, se estava tudo bem
era porque de fato estava tudo bem,

por que eles mentiriam para mim?

Demorou um pouco, mas enfim eu


tive alta. Logo o médico me chamou
em uma sala e me disse:
— Sua recuperação foi excelente,
mas você precisa se cuidar. Vou
encaminhá-lo para um

nutricionista, sua alimentação


precisa ser balanceada. Outra
coisa, você deve praticar
exercícios

físicos. E, qualquer indisposição,


volte o mais rápido possível.
Entendeu?

— E Scarlett como está?

— Ela resistiu bem ao parto e já


começou o tratamento. Infelizmente,
você não poderá vê-la neste

momento, talvez na quarta, mas até


lá não adianta ficar aqui. Volte pra
casa e faça uma boa limpeza,

pois quando Scarlett voltar, ela


precisará de muitos cuidados
devido à baixa imunidade. Fique

tranquilo. Qualquer anormalidade


que venha a acontecer, nós
ligaremos imediatamente para você.

Voltei para casa. Yakult fazia falta


em horas como aquela, mas,
infelizmente, ele viajara para o
Peru e não voltaria tão cedo. Estava
ansioso para reencontrar Scarlett.
Ultimamente andava pensando

em um casamento de papel passado,


talvez até na igreja, para oficializar
a nossa união que

acontecera há tempos.

Liguei o notebook de Scarlett e,


sem querer, achei seu livro. Fiquei
me indagando se abriria ou

não o arquivo. De repente, ouvi


meu pai me mandando abrir.
Arrepiei-me dos pés à cabeça.
Olhei em

minha volta, mas não havia


ninguém.

— Pai? É você? — perguntei, e a


voz confirmou. Ainda tentei
dialogar, mas ele fora embora.

Logo abri o arquivo e comecei a lê-


lo. O romance era narrado em
primeira pessoa por uma

personagem feminina, que estava


dividida entre dois amores, um
homem de meia-idade e outro

jovem. Aquilo não me cheirava


nada bem...

36

D ebrucei-me sobre o berço e


fiquei imaginando como seria o
meu filho, que sorriso ele teria, a

quem puxaria, e se já estaria


grande. Era difícil aceitar, acreditar
e também esquecer. Um sonho que

se transformou em um pesadelo que


nunca acabava. Sentia-me como se
uma parte de mim estivesse

morta. De repente alguém bateu na


porta, era o vizinho, que logo levou
tudo o que seria de Augusto.

Eu não conseguiria viver com


aquelas lembranças tão perto.

Abri a janela e fiquei olhando a


paisagem. O dia estava nublado,
viria chuva novamente. Ah,

minha Scarlett, que saudades... Eu a


amava tanto, mas tanto que mataria
e morreria por ela. Alguém

bateu na porta outra vez, deveria


ser o vizinho que esquecera algo,
logo pedi para entrar e me virei.

— Esqueceu alguma... — pausei e


fiquei boquiaberto.

— Sim, Rock. Esqueci. Eu me


esqueci de dizer que não vivo sem
você — declarou Scarlett que

correu e me abraçou. Ela estava


bem! Graças a Deus! Empurrei-a
sobre a cama, nos deitamos e nos

beijamos. Enfim uma coisa boa em


minha vida, enfim!

O entusiasmo inicial passou e a


realidade deu um tapa na minha
cara. Logo eu perguntei:

— O médico me disse que você só


poderia receber visitas amanhã.
Como você melhorou tão

rápido? Como anda a


quimioterapia? Está se sentindo
bem? Você já soube o que
aconteceu com

Augusto?

— Calma! Quantas perguntas...


Sim, infelizmente soube o que
aconteceu com o nosso filho. Em

relação à quimioterapia, eu nunca


fiz e nem vou fazer.

— Como assim? Você está fazendo


um tratamento alternativo?

— Depois do parto, eu fiz uma


série de exames. Os médicos não
acreditaram nos resultados, tanto

que me deixaram isolada por mais


alguns dias, repetiram os exames
por várias vezes, mas os

resultados foram sempre os


mesmos. Rock, eu não tenho mais
nada, absolutamente nada! Se
existem

milagres, diria que aconteceu isso


comigo, um milagre! Os médicos
não acreditaram, mas os exames

não deixaram dúvidas, eu fui


curada do câncer!

O tempo passou. Scarlett esbanjava


saúde e até queria voltar a
trabalhar. Meu patrão entendeu o

motivo das minhas inúmeras faltas


e, além de não me demitir, ainda
pagou os dias que não trabalhei

— até porque, modéstia à parte, eu


era um ótimo padeiro. Depois de
tudo o que aconteceu, eu e

Scarlett ficamos mais caseiros,


saíamos de vez em quando, apenas
de vez em quando. A riponga e

Yakult não me ligaram depois da


trágica noite do parto, mas nem
tinham como, já que jogara o
celular

na privada após meu pai me dizer


que o objeto estava sendo rastreado
por bandidos. Então achei

melhor não arriscar.

Repentinamente voltei em mim.


Scarlett se levantou, piscou e saiu
correndo, eu fui atrás. Entramos
no mar, logo estávamos molhando
um ao outro. Peguei-a pela cintura e
a enchi de beijos. Voltamos

para a areia e ficamos construindo


um castelo, o nosso castelo.
Algumas pessoas nos olhavam

assustadas e cochichavam entre si,


pura dor de cotovelo, talvez porque
elas não eram felizes com

suas vidas chatas e sustentadas por


aparências. Estava cagando e
andando para o resto do mundo, até

porque o meu mundo só tinha dois


lugares, o meu e o de Scarlett.

Ali perto, no quiosque, eu vi o


nosso vizinho Durval — pelo
menos achava que esse era seu
nome

— bebendo com os amigos, os


colegas de faculdade de música.
Sempre o encontrava pelos

corredores da pensão e também


pela cidade, mas apenas nos
cumprimentávamos formalmente.
Meu

pai me avisou para tomar cuidado


com ele, mas era apenas
preocupação de pai, sempre
exagerada.

Terminamos o castelo. Logo


ficamos juntinhos para acompanhar
o pôr-do-sol, e que magnífico

pôr-do-sol, simplesmente
maravilhoso, ainda mais com ela ao
meu lado. Trocamos juras de amor
e

prometemos que nunca nos


separaríamos, nunca...

Acordei cedo, escovei os dentes e


saí. Estava na hora de trabalhar. A
manhã era fria, bem fria.

Parei na padaria para tomar um


café e me esquentar. De repente vi
Scarlett caminhando pela calçada.

Era estranho, pois ela não era de


sair e, quando saía, me avisava.
Meu pai ciciou no meu ouvido que

Scarlett poderia estar me traindo.


Achei um absurdo, tanto que o
xinguei, mas logo me calei, pois os

clientes se espantaram e me
encararam. Ela me amava, eu não
tinha dúvidas, mas meu pai insistia
em

falar de traição e me enfadava,


decidi segui-la para ele me deixar
em paz.

Engoli o café e saí na cola dela.


Escondia-me atrás de postes,
caçambas de lixo, e de pessoas.

Scarlett estava bem vestida e não


andava, desfilava. E se ela
realmente estivesse me traindo? Eu

mataria o sem-vergonha. Mas me


sentia mal de pensar tais absurdos
da minha mulher.

De repente, eu pisei numa bosta de


cachorro, puta merda, era o dia...
Mais de repente ainda,

Scarlett entrou em um café e se


sentou numa mesa com dois
rapazes. Era traição? Ela não faria
isso!

Faria?! Queria que o chão se


abrisse e me engolisse, mas não
queria vê-la nos braços de outro.

Escondi-me detrás de uma banca de


jornal abandonada e fiquei
observando. Eles conversavam

intimamente e riam. Como ela


ficava linda rindo. Ambos os
rapazes eram jovens, enquanto eu...
O

livro de Scarlett seria baseado em


sua vida? Ela estaria dividida entre
dois amores? Mas, afinal qual

dos dois seria o outro? Não...


Seriam os dois? Scarlett me trairia
com dois ao mesmo tempo?

Comecei a passar mal, senti falta de


ar, meu corpo tremia, a pulsação
disparava.

Logo reconheci um deles, era meu


vizinho Durval! Os dois, ou os três,
dormiam juntos enquanto

eu trabalhava? Em qual cama


dormiam, na minha ou na dele?
Mas, por que se encontravam na rua
e

não dentro da pensão? Poderiam


estar querendo variar um pouco.
Sempre encontrava Durval pela

cidade, estaria me seguindo? Mas


pra quê? Meu pai me dizia para
tomar cuidado, era isso, Durval

poderia estar planejando me matar


para ficar com Scarlett somente
para ele, ou para eles. Mas os

três apenas conversavam e riam. E


nada de rolar um beijo ou outra
prova definitiva de traição. De

repente, eles entraram em um Ford


Ka preto e sumiram. Foram para um
motel?

Mesmo agitado e nervoso, eu fui


trabalhar, mas minha mente ficava
desenhando imagens dos três
fazendo coisas erradas. Cheguei a
queimar duas fornadas. Meu corpo
tremia por inteiro. Logo chegou

a hora de ir embora. Saí correndo...


Abri a porta do quarto e vi Scarlett
assistindo à Sessão da Tarde.

— Olá! Como foi o seu dia? Ficou


assistindo à TV o dia todo?

— Fiquei sim, Rock. Estou até com


tédio. Não aguento mais ficar em
casa sem fazer nada, preciso

trabalhar.

37
P assaram-se semanas, mas eu
ainda não tivera provas de que
Scarlett me traía. Aquilo me tirava

o sono. Acatando um conselho do


meu pai, passei a andar com um
canivete no bolso para eventuais

emergências, até porque Durval


poderia estar querendo me
assassinar. Nunca mais fiquei de
costas

para ele, nunca mais.

Sentia-me tão bem com a presença


do meu pai. Não o via, mas ao
menos eu podia ouvi-lo. Virei-

me na cama e senti o corpo nu de


Scarlett, que corpo, meu Deus! Ah,
o aroma de algodão-doce me

deixava louco, louco de desejo. E


pensar que um dia a considerei
como uma filha. Agarrei-a por trás.

Ela logo se virou e disse:

— Ah, Rock. Desculpa, mas não


estou a fim. Estou cansada e com
dor de cabeça.

Scarlett não me rejeitava antes, mas


agora tinha virado rotina, talvez
fosse uma fase, talvez não, só

sei que fiquei na mão outra vez...

O rádio cantarolava “Riders on the


storm. Riders on the storm. ” Eu e
Scarlett jantávamos uma

lasanha à bolonhesa com cerveja.


Seus lábios rosados eram tão...
Seus olhos azuis possuíam o dom

de me enfeitiçar e mudar o meu


estado de espírito, isso era aguçado
ainda mais quando ela jogava

seu sensual olhar sobre mim, da


mesma forma que Anita fazia. Ah,
minha inglesinha...

Dei outra garfada na lasanha


enquanto eu nadava nas tranquilas
águas azuis do mar dos seus olhos.

Era tão refrescante, tão surreal,


simplesmente arrebatador. De
repente voltei em mim devido ao
seu

outro ataque de risos.

— Rock, em que mundo você está?


Parece que fumou um baseado
daqueles.

— Estou apenas admirando a sua


beleza. Eu não conseguiria viver
sem você.

— E quem disse que você se


livrará de mim? — disse se
debruçando e me beijando. Talvez
tudo

não passasse de coincidências,


tantas que até meu pai confundira.
Talvez a mulher que vi no café

poderia ser apenas parecida com


Scarlett. Pô, ela me amava, eu via
isso em seus olhos! — Ficarei no

seu pé para sempre...


Levantamo-nos. Apaguei a luz e
deixei apenas a iluminação da rua
clarear o quarto. Beijei-a

novamente. Vagarosamente eu fui


abrindo os botões de sua camisa,
um raio de luz revelava sua pele

em chamas, naveguei meus lábios


em seu abdômen e pausadamente
subi até o pescoço. Mordi sua

orelha e ouvi um sensual gemido.


Ela tirou a minha camiseta e passou
a língua em meu peito.

Carreguei-a pelos braços e a levei


para cama. Tirei sua roupa e...

Como Scarlett era boa de cama...


Tomei um banho gelado e saí, pois
dissera que iria fazer hora

extra. Atravessei a rua e me sentei


no ponto de ônibus, e ali fiquei. A
cidade estava deserta. Ventava

muito. Já eram dez da noite. De


repente, um neguinho passou me
encarando, me certifiquei de que o

canivete estava no bolso, mas ele


logo foi embora. Desconfiava de
todos, pois qualquer um poderia
me matar a pedido de Durval;
apesar de improvável, eu ainda
suspeitava da traição. Scarlett
poderia

estar sendo forçada a se deitar com


ele, seria chantagem? Agora
descobriria toda a verdade porque

não existia hora extra, eu apenas


dava um tempo para pegá-la no
flagra.

Ultimamente meus vizinhos me


olhavam com medo e compaixão.
Talvez fosse medo de que eu
pudesse descobrir a verdade e
descontar neles, ou compaixão pela
morte do meu filho. Se Scarlett

realmente me traísse, com certeza


eles já saberiam e eu era um forte
candidato ao prêmio de corno do

ano.

Já passara tempo suficiente. Entrei


na pensão, subi a escada. Meu pai
me aconselhava a acelerar e

a não fazer ruídos. Sorrateiramente


eu abri porta e... Scarlett estava
nua, assustada e enrolada no
lençol. O vento balançava a cortina,
pois a janela estava escancarada.
Lembrava-me de que, antes de

sair, ela tinha se vestido e a janela


fora trancada. Algo crescia em
minha cabeça.

— Ué?! Não foi trabalhar? —


perguntou ainda assustada.

— Cheguei lá e eles me avisaram


que não precisava mais. Só perdi
tempo. Por que a janela está

aberta? Não está tão quente assim.


E por que está nua? — questionei
me aproximando da janela,

realmente era possível que alguém


a pulasse. Sentia um perfume
estranho, algo meio amadeirado.

— Ah, é que a pele também precisa


respirar. Coisas de mulheres. E
outra, estava doidinha para

que você voltasse, queria um


segundo tempo... — respondeu
vindo para cima de mim e me
enchendo

de beijos e afagos. Eu não


conseguia resistir aos seus
encantos. Quando me vi, já estava
atrás dela na

cama...

Aquela foi de perder o fôlego, ela


se superou, nem imaginara que
aquilo pudesse acontecer.

Sentei-me à beira da cama e fumei


um cigarro. De repente olhei no
chão e vi uma cueca perto da

mesa, não saberia dizer se era


minha, pois cuecas são quase
sempre iguais, mas fiquei
encafifado.
Olhei para o relógio que apontava
meia-noite, já era o aniversário da
minha Scarlett, que agora

tinha finalmente dezoito anos. Abri


o armário, peguei um embrulho e o
levei até ela, que espiava com

curiosidade.

Scarlett abriu e ficou encantada


com o livro de Alexandre Dumas.

— Obrigada, eu queria muito este


livro.

— Parabéns! Enfim dezoito anos —


destaquei me sentando ao seu lado.
— Parabéns pra você também!

— Por quê?

— Agora você não é mais pedófilo.


— Logo nos abraçamos. De repente
me arrepiei, pois vi o

corvo, em cima do armário, me


encarando. Eu via ódio e desprezo
em seu olhar...

38

A chuva caía enquanto eu


permanecia empoleirado em uma
árvore sobre a calçada. Estava
espiando Scarlett através do vidro
da janela do nosso quarto. Já era
noite. Minha roupa estava

ensopada, meus pés escorregavam e


eu ainda tinha medo de que um raio
me atingisse. Lá dentro, a luz

continuava acesa, mas não havia


nada de suspeito. Não me
conformava de ainda não ter
conseguido

sequer uma prova concreta de que


ela me traísse.

Scarlett se tornava cada vez mais


moderninha debaixo dos lençóis,
pois apimentava a nossa

relação com vendas, algemas,


óleos, entre outros apetrechos. Ela
dizia que aprendera em livros,

mas...

De repente, vi dois homens


caminhando com guarda-chuvas.
Eles discutiam. Ao se aproximarem

mais, descobri que se tratava do


professor Ribamar — que queria
contar uma verdade a alguém — e

de Durval — que rebatia com


ameaças, agressivas ameaças. Logo
eles entraram na pensão.

Desci da árvore, dei um tempo e


logo subi as escadas. Cheguei ao
corredor e comecei a andar

devagar. Passei ao lado do quarto


de Durval, mas não ouvi nada. Dei
alguns passos e parei na frente

da porta de casa, porém hesitei.


Talvez fosse melhor não saber e
fingir que tudo estava bem. A dor
de

perder Scarlett poderia ser pior do


que a de ser traído. Meu pai me
xingou de corno e menininha

medrosa, enraiveci, virei a chave


e... Ela estava deitada assistindo à
telenovela. Talvez eles tivessem

me visto em cima da árvore.

— Nossa! Você está todo molhado!


Vai ficar doente desse jeito! —
disse ela, que logo pegou uma

toalha e me entregou. — Troque de


roupa antes que pegue um resfriado.

Enxuguei-me e me troquei. Scarlett


me deu uma xícara de chocolate
quente. Puta merda, não foi

dessa vez. De repente, ela passou


as costas de sua mão no meu rosto,
cravou seus olhos dentro dos

meus e me beijou de um jeito


estranho, um jeito extremamente
carregado de sentimentos, parecia
um

beijo de despedida. Retribuí o


carinho e logo passei a mão por
baixo de sua blusa que tinha a

estampa de Jim Morrison.

— Rock. Quero que você saiba


que, aconteça o que acontecer, eu
sempre irei amá-lo. Sempre!

Para sempre, entendeu, para sempre


— confessou com os olhos
umedecidos.

— Mas, o que pode acontecer? —


perguntei, dando um abraço
apertado.

— Não sei, estou com um mau


pressentimento.

Acordei cedo e saí para trabalhar.


Subitamente parei em frente a uma
loja e fiquei me olhando no
vidro. Eu não era mais nenhum
garotão, mas ainda estava com tudo
em cima. De repente notei que

havia um tumulto na esquina, me


aproximei, tinha um corpo baleado
e estendido sobre a calçada. Eu

conhecia aquele corpo, logo a ficha


caiu, era o meu vizinho Ribamar, o
mesmo que discutira com

Durval — que, provavelmente


assassinou o pobre coitado. Bem
que o meu pai me pediu para tomar

cuidado com aquele estudantezinho


de música. Não demoraria muito
para chegar a minha vez.

Precisaria de muito mais do que um


canivete para me defender.

Segui em frente. Avistei Durval


vindo em minha direção, na mesma
calçada. Talvez fosse agora.

Rezei mentalmente. Só teria alguma


chance se eu me antecipasse e
enfiasse o canivete em seu peito.

Quem Scarlett amava mais? Quem


ela desejaria que se salvasse? Ela
sentiria a minha falta? Iria ao
meu enterro? A ansiedade me
possuía. Aproximávamo-nos cada
vez mais, ele comia um sanduíche

como era frio e calculista — e


cantava sorrindo, assassino! De
repente, chegamos a um metro de

distância. Quando pensei em erguer


a mão e enfiar o canivete em seu
peito, recebi um falso sorriso

como cumprimento. Titubeei, até


porque, ao que parecia, Durval não
iria me matar naquele momento.
Ele passou por mim, logo senti seu
perfume amadeirado, era o mesmo
que sentia, às vezes, no meu

quarto. Pensei em atacá-lo pelas


costas, mas eu, ao contrário dele,
não era covarde. Deixei passar e

continuei no meu caminho.

Cheguei, mas a padaria estava


fechada. Tinha um aviso pendurado
na porta que dizia que o

estabelecimento ficaria fechado três


dias por luto. Não era possível,
todos resolveram morrer no
mesmo dia. Logo o vizinho
borracheiro me chamou e disse:

— Seu patrão tentou ligar pra você,


mas não conseguiu. Ele me pediu
para avisá-lo de que a

padaria só vai abrir na segunda. O


filho dele morreu em um acidente
de carro.

Agradeci e comecei a voltar para


casa, uma folga não era nada mau.
Virei a esquina e... Dei de

cara com Alexandre Apolca. Sim,


ele, meu ex-companheiro de cela
em Perdões. Cumprimentamo-nos

e fomos a um bar para pôr o assunto


em dia. Fiquei sabendo que
Mãozinha conseguira a liberdade,
se

casou com uma gaúcha de Pelotas e


foi morar no Sul. Ainda soube que
Jack Machadinho fora

transferido para um manicômio


penitenciário. Dos outros, nenhuma
notícia. Ah, Apolca me contou

que estava apenas de passagem


pelo Rio de Janeiro, pois morava
em Trindade. Ele não queria mais

saber de coisas erradas, residia em


uma cabana e vivia de pesca, mas
alimentava o sonho de se

tornar um escritor de verdade, até


já escrevera alguns romances, mas
foram bem fraquinhos, tanto que

não fizeram o menor sucesso.

Ainda ficamos um bom tempo


conversando, mas ele tinha seus
compromissos e logo nos

despedimos. Antes, porém,


trocamos nossos endereços.
O dia estava realmente
surpreendente. O que mais poderia
acontecer até chegar à pensão?
Dobrei

outra esquina e o meu pai me pediu


para ficar alerta. Não havia
ninguém na rua. As árvores se

sacudiam. O vento sibilava e


causava arrepios em mim. A cada
passo que eu dava, sentia-me como

se estivesse entrando cada vez mais


para dentro de outro mundo, algo
fora da realidade. O tempo
fechou e uma onda de nuvens pretas
tomou conta do céu. Meu corpo
flutuava. As nuvens se

abaixavam cada vez mais, até que


me envolveram. Mas não eram
nuvens, era um bando de corvos,

sim, milhares de corvos, que


dominaram o céu. O grasnado era
ensurdecedor. Abaixei a cabeça,

fechei os olhos e saí correndo.

Corri, mas corri tanto que nem


sabia para onde estava indo. De
repente parei e abri meus olhos.
Tudo tinha acabado e eu estava
diante da porta da pensão.

39

R espirei fundo e comecei a subir


as escadas. Lembrei-me de que
estávamos em dezembro,

Yakult já estaria voltando do Peru


e, por tudo o que acontecera,
deveria me visitar a qualquer

momento.

Entrei no corredor. Estava feliz


pelos dias que ganhara de folga,
poderia fazer alguns programas
legais com Scarlett. Ela parecia
animada já que Roadhouse Blues,
sua música predileta, estava

tocando. Aproximei-me e,
estranhamente, a canção não vinha
do nosso quarto. Abri a porta, mas
não

havia ninguém. Onde estava


Scarlett? O som vinha do quarto de
Durval! Cheguei perto da porta dele

e ouvi alguns gemidos familiares.


Peguei na maçaneta, respirei fundo,
rezei para que estivesse aberta,
fiz o movimento de abrir e...

A porta se abriu e o meu pai me


desejou boa sorte. Empurrei-a
vagarosamente enquanto ouvia

“Let it roll, baby, roll. Let it roll,


all night long. ” Coloquei um pé
para dentro, logo o outro. Ergui a

cabeça e...

Vi Durval em cima de Scarlett, ele


a beijava e metia no clássico papai-
mamãe. Meu sangue

ferveu, o coração se descontrolou,


fiquei cego, cego de ódio! Eles
pagariam caro, mas muito caro por

me fazerem de idiota. Joguei o


canivete no lixo e peguei a faca que
vi sobre a geladeira. Ele

continuava bombando na minha


mulher na maior empolgação, por
isso ambos não me notavam. Ela

gemia como uma atriz pornô, isso


me enfurecia cada vez mais,
vagabunda! Puta! Vadia!

— Que porra é essa?! — gritei.


Ele, assustado, deu um pulo da
cama. Scarlett, envergonhada, se
enrolou no lençol e se encolheu
com medo.

— O que você está fazendo aqui?!


Este é o meu quarto! E essa faca aí
na sua mão, o que está

pensando em fazer? — questionou


com os olhos arregalados.

— Filho da puta! Vou ensiná-lo a


nunca mais mexer com a mulher dos
outros.

— Mexer com quem? Você deve


estar equivocado. — Durval negava
mesmo com a minha mulher
nua sobre sua cama. Na verdade,
era deboche, só podia ser.

Scarlett chorava com a cabeça entre


as pernas. Como ela pôde fazer isso
comigo? Não a

reconhecia mais, aquela não era a


mulher pela qual me apaixonei.
Tive a sensação de que nunca a

conheci de verdade, de que tudo o


que vivemos não passara de
mentiras e ilusões. Pensei em falar

algumas verdades, mas decidi,


primeiramente, resolver meu
problema com Durval.

— Vamos conversar, mas primeiro


largue essa faca. Vai ficar tudo
bem, confie em mim — disse

ele.

— Bem é o caralho! Vai ficar tudo


bem porque não é a sua mulher que
deu para outro!

Parei com a conversa fiada e fui


para cima de Durval. Ele agarrou
meu punho e o apertou até a

faca cair. Logo trocamos socos e,


num piscar de olhos, estávamos
rolando pelo chão. Acertei uma

joelhada em suas partes baixas.


Aproveitei o embalo e bati sua
cabeça, por três vezes, na quina da

cama. Scarlett, chocada, apenas


observava. Distrai-me e levei uma
rasteira. Caí e recebi uma série

de pontapés nas costelas. De


repente ele parou e se inclinou para
abrir uma gaveta. Meu pai me disse

que tinha uma arma lá dentro.


Quando comecei a me levantar, do
nada, surgiu Scarlett com a faca na
mão e... E a enfiou nas costas de
Durval que logo desabou. Mas, ela,
que parecia possuída, pulou

sobre ele e continuou a esfaqueá-lo.

O sangue espirrava para todos os


lados, inclusive já tingira até o
tapete bege. Pedi pra parar, mas

Scarlett estava determinada em


retalhar o corpo já sem vida. Seu
olhar era diabólico, o que fazia me

lembrar do corvo. A poça de


sangue aumentava cada vez mais e
isso me fascinava, me revitalizava.
Desviei o foco e o encarei, seus
olhos esbugalhados me
amaldiçoavam. Levantei-me ainda
grogue.

Ela, ensanguentada, veio até a mim


e me beijou. Apesar de tudo, eu
ainda a amava.

— Durval iria matá-lo, não tive


escolhas, era a sua vida ou a dele.
Rock, eu o amo mais que tudo.

Só me deitava com ele porque era


chantageada. Você acredita em
mim? Por favor, diz que acredita!
— Logo Scarlett me abraçou e
começou a chorar como nunca a
vira antes.

— Eu acredito... — disse, mas, na


verdade, nem sabia o que estava
falando, era tudo muito

confuso para mim.

De repente, ela começou a arrastar


o corpo, mas logo parou, pois
alguém entrara no quarto. Virei-

me e vi Yakult, que estava


aterrorizado.

— O que aconteceu?! — perguntou


ele boquiaberto.

— Esse vagabundo estava com


Scarlett na cama, eu os peguei no
flagra! Aí brigamos. Quando ele

foi pegar a arma para atirar em


mim, ela se antecipou e o matou.
Foi legítima defesa!

— Confie em mim, eu nunca


mentiria pra você. A riponga me
contou tudo. Na noite do parto não

foi apenas seu filho que morreu.


Scarlett também. Rock, ela está
morta!
— O que está acontecendo?! Você
não fala coisa com coisa! Scarlett
está ali ao lado do armário.

Só não repare porque ela está nua.

— Não vejo nada! São alucinações,


é tudo coisa da sua cabeça, ela está
morta! Mas isso tem

tratamento, eu irei ajudá-lo,


acharemos os melhores psiquiatras
deste país, e você ficará bom

novamente. Acredite em mim.

Ela o encarava, parecia tão


indignada quanto eu, e me disse que
era Yakult quem precisava de um

psiquiatra. Fiquei confuso. De


repente ele jogou um livro em
Scarlett. Fiquei abismado, pois o
objeto

a atravessou no meio. Logo ela se


transformou em um redemoinho e se
desfez na minha frente.

Minha cabeça girava enquanto eu


analisava o quarto. Havia sangue
até no teto, o corpo de Durval

estava quase esquartejado, Yakult


me encarava ainda horrorizado,
nenhum sinal de Scarlett, e na

minha mão estava... Sim! Na minha


mão estava a faca suja de sangue.
Imediatamente eu a joguei pela

janela.

Lembrei-me das palavras de Anita:


“Vocês nunca serão felizes, esse
relacionamento será

amaldiçoado! E você pagará caro


por tudo isso, muito caro...” Dito e
feito!

Scarlett estava morta?! Ajoelhei-me


na poça de sangue e chorei... Sentia
uma dor inimaginável.

Logo os policiais invadiram o


quarto e me algemaram. Yakult
ficou sem reação. Enquanto eu
descia,

os vizinhos me olhavam com medo


e revolta.

Quando pisei na rua, uma multidão


me cercou. Alguns queriam me
linchar, outros apenas me

chamavam de assassino, mas os


policiais me protegeram. Logo
entrei no chiqueirinho e a viatura
foi

embora...

Posfácio

P assaram-se dias e, enfim, terminei


esta tentativa de fazer literatura.
Espero que tenham gostado,

mas se não gostaram, tudo bem, até


porque eu também não gostei. Você,
leitor, não imagina como foi

doloroso remexer com o passado.


Existem coisas que jamais devem
ser recordadas, entendeu?
Jamais! Anote aí, conselho de um
quarentão.

A noite está fria aqui no


manicômio. É, meu amigo, vim
parar em um manicômio
penitenciário!

Daqui só saio carregado rumo ao


IML, o que espero que aconteça
logo.

Não realizei o sonho de ser um


grande cantor, mas, injustamente,
fiquei famoso como marginal e

esquizofrênico. Deus levou os dois


grandes, e únicos, amores da minha
vida. Perdi meus pais na

época em que estávamos brigados.


Até o meu filho, que eu nem pude
conhecer, deixou este mundo.

Não tenho dúvidas de que tive, e


ainda tenho, alucinações, por isso
eu não me considero

esquizofrênico. Poderiam me
chamar de consciente louco, ou
talvez de louco consciente, mas
jamais

de esquizofrênico. Mas, enfim, em


meio a tantos delírios, algo é real!
Sim, pasmem, o corvo existe!

Ele é o causador dos meus delírios.


Agora, quem é, e por que faz isso,
não sei lhe responder, talvez

nem Poe.

Ah, um aviso para quem encontrar


este manuscrito. Isto tem que ser
entregue ao meu amigo que

está tentando ser escritor,


Alexandre Apolca, para ele tentar
publicar e, quem sabe, vender uns
dez
exemplares ou mais. O endereço
está anexado na última página.

Às vezes, eu passo horas olhando


para o nada e me lembro daqueles
lábios rubros. Quando me

vejo, já estou cantando “Hey, Jude,


don’t make it bad. Take a sad song
and make it better... ” Outras

vezes, me perco no azul do céu e


fico em transe, pois me recordo dos
sensuais olhos de Scarlett.

Frequentemente me lembro da
promessa de Anita: “Vou esperá-lo
o tempo que for preciso”. Será

que isso é possível? Existe algo


após a morte? Infelizmente não sei.
Quando somos jovens achamos

que, ao envelhecer, teremos todas


as respostas do mundo. Tolo
engano. Quanto mais velhos
ficamos,

mais dúvidas surgem, mas, ao


menos, estamos mais perto das
respostas. E é somente isso que eu

quero, as respostas da vida, que


virão assim que o meu corpo
começar a se decompor. Mas até lá,

preciso e tenho que acreditar em


algo. Por isso, creio que todas as
pessoas que fizeram parte da

minha vida estão me esperando, não


sei como e nem onde, mas estão.

O corvo é um filho da puta, mas é


um filho da puta esperto, pois um
dia todas as perguntas serão

respondidas com apenas uma


simples palavra: Nevermore...

Beto Rockfeller
Niterói, Rio de

Janeiro

30 de agosto de 2011

Posfácio do posfácio

E stava deitado na rede contando


estrelas, quando, de repente, um
sujeito estranho parou ao meu

lado. Encarei-o. Era um policial


que trazia notícias do meu amigo
Rock. Abri um vinho, enchi nossos

copos e ele logo começou a falar...


Era onze horas da noite, véspera de
natal, quando dois guardas saíram
para fazer a ronda. De

repente, eles se aproximaram da


cela de Beto Rockfeller e o
encontraram morto, com as mãos

próximas ao pescoço. Suspeitaram


de suicídio, já que não havia mais
ninguém dentro da cela. Mas,

ao averiguarem a ficha de Rock,


constataram o óbvio: ele fora
estrangulado por sua própria mão,
em
um bizarro caso da síndrome da
mão alheia.

No entanto, o extraordinário não


parava por aí. Os dois guardas, que
encontraram o corpo, diziam

que viram um corvo empoleirado


sobre um manuscrito em cima da
cama. Viraram vítimas de

gozações, mas, apesar disso, eles


não voltaram atrás e repetiam a
mesma história para quem quisesse

ouvir.

O policial ainda me contou outros


casos estranhos, mas antes me
entregou o manuscrito — o livro

que está em suas mãos. Mais tarde,


ao ler alguns trechos, notei algo
realmente surpreendente: havia

pegadas nas páginas, pegadas que o


meu vizinho biólogo identificou
como sendo de corvos...

Alexandre Apolca

Paraty, Rio de

Janeiro

30 de dezembro de
2011

Nota do Autor

E ntrei no mundo literário meio


verde, com a publicação de Legna,
que foi mais um rascunho do

que um livro de verdade. Depois


disso escrevi mais dois romances
que foram parar na cesta de lixo.

Foi então que tirei férias e conheci


São Thomé das Letras, foi lá que
decidi escrever esta história que

começou com uma simples ideia e,


aos poucos, se transformou neste
livro.

Durante a escrita, que foi mais uma


diversão do que um trabalho,
resolvi realizar um sonho antigo:

tornar-me personagem do meu


próprio livro, assim surgiu o
“Alexandre Apolca, o cantor paz e
amor,

bicho!”

Resumi o texto ao extremo e,


depois de seis meses, Rockfeller
estava concluído. Meus dois

primeiros leitores foram Elane


Medeiros e Márcia Rios, que foram
sensacionais e me ajudaram a

decidir pela publicação do livro.


Agradeço a Fernanda França pelas
valiosas dicas que contribuíram

para a melhora do original.

Parte do sucesso deste projeto se


deve ao César Oliveira que foi o
responsável pela arrebatadora

capa, e que capa... Desejo


agradecer também às blogueiras
que foram muito mais do que
blogueiras,
foram amigas, meus agradecimentos
a Laisy Rebelo e Carol Durães.

Ah, não posso me esquecer, jamais,


do meu professor de filosofia,
Nilton César Arthur, por ter me

ensinado a ver o mundo com outros


olhos. Como disse Albert Einstein:
“A mente que se abre a uma

nova ideia jamais voltará ao seu


tamanho original”.

E, acima de tudo, agradeço a você


Leitor, por ter passado algumas
horas comigo. Espero que
tenha se divertido. Ah, muito
cuidado com o Corvo, pois ele está
à solta... Se tiver alguma crítica,

conselho, dica, ou simplesmente


desejar trocar algumas palavras
comigo, estou a sua disposição nas

redes sociais.

Alexandre Apolca, o autor

Tatuí, São Paulo

30 de agosto de 2014

Biografia
A LEXANDRE APOLCA nasceu
em 1985 na cidade de Porangaba.
Atualmente mora em Tatuí,

mas passou parte de sua vida em


Campinas, todas no interior de São
Paulo. Formou-se em Química

Industrial pela Universidade


Metodista de Piracicaba
(UNIMEP). Trabalhou em grandes
companhias

como o Grupo Cosan/Raízen,


Santista Têxtil e a Coca-Cola
Brasil. Além de químico, já foi
corretor
de imóveis e feirante. Este é o seu
segundo romance publicado. Como
leitor é fã assumido do grande

mestre Stephen King, além de


gostar muito de Jorge Amado,
Patrick Süskind e Alexandre
Dumas.

Copyright © 2014 by Alexandre


Apolca

Texto revisado segundo o novo


Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa.

Capa: César Oliveira


Revisão: Roque Weschenfelder,
Fernanda França
Document Outline
Prefácio
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39
Posfácio
Posfácio do posfácio
Nota do Autor
Biografia

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