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Os Reis de Miami
TAY DUQUE
Orgulho e Ambição
Força e Razão
Alma e Desejo
Honra e Liberdade
“Eu já falei. Está cansado de ouvir. Sabe que é isso que eu tenho que
fazer”, disse Isaac Mazza pela milésima vez naquela tarde, e mesmo assim,
Phillip Stanton tinha coragem de tentar fazer alguém como ele mudar de
ideia. “Não se vence sem sujar as mãos, Stanton. Você deveria saber melhor
do que eu.” O homem insatisfeito, perpassa a mão no rosto, na tentativa de
conter o aborrecimento. Mas ele sempre soube, é inútil lutar contra os
ímpetos daquele homem.
“Acontece que se descobrirem não é apenas o seu pescoço que vai
estar a prêmio. É o de todos nós. A sujeira nas mãos vai custar muito mais
do que simplesmente vencer.” Isaac ri, desafiador como sempre.
Ele farejava a quilômetros quando alguém estava morrendo de
medo. O odor é inebriante, quase sufocante, e Isaac detestava a degradação
que ele causava nas pessoas. As tornavam fracas e deprimentes. É
inacreditável como são covardes, não têm um pingo de ambição nem
mesmo para salvar a própria vida, ele pensava. Eles pensam em primeiro
lugar na índole e no caráter. O que servirá a índole e o caráter se não possuir
tudo o que se deseja? Essa é uma pergunta que Isaac se fazia sempre que
estava prestes a dar mais um passo para a sua próxima vitória. É isso que
ele quer, nada além de poder.
Isaac se aproxima de Phillip Stanton, que falta tremer diante do
olhar ameaçador do homem esgotado de ser apenas um mero homem
comum. Os olhos azuis glaciais são frios demais. Bem mais frios do que
dizem. Ele sabe manipular, sabe coagir apenas olhando daquela forma.
“Então acho melhor você dar um jeito, ou a sua cabeça não só vai
ficar a prêmio como vai ser decapitada de uma vez se eu não conseguir o
que eu quero, Stanton.” O homem não consegue mais abrir a boca. Isaac é
convincente, convincente até demais.
Apesar de tudo, Stanton sabia que o caminho que ele decidiu seguir,
mesmo sendo “um bom caminho”, na visão delicada da sociedade, é o que
levará a ruína. O que será da sua família se decidir se afastar de Isaac pelo
seu próprio bem? A vida não depende apenas de decisões fáceis e ele sabia
disso melhor do que ninguém. É necessário arriscar tudo, lutar até o fim e
obter o que merece. Ele aprendeu muito com Isaac, com sua capacidade de
ser um homem de visão, capaz do impossível para conseguir status. É isso
que quer, é o que sempre mereceu. Não será apenas Isaac que vai alcançar
seus objetivos, ele também irá. E se for para se meter com Isaac, que seria
para conseguir vantagens e não o oposto.
Desde o início, Phillip sabia no que estava entrando. Quando
alguém como Isaac Mazza cismava com uma pessoa, haviam duas opções:
ou ele faria de tudo para que o indivíduo fosse bem-sucedido, ou o
destruiria para sempre. Veja o que ele fez com Stanford, primo da sua
mulher. Não deu nenhuma chance para o homem se recuperar. Ele não dava
chances, era tudo ou nada.
“Tudo bem, mas com uma condição.” Isaac sorri de lado,
principalmente por causa da sagacidade de Stanton. Ele era um homem
sagaz, devia admitir.
“Eu já não lhe dei condições demais?”
“Eu quero mais”, é enfático. Se ele vai entrar nessa, que seja
obtendo algum tipo de garantia. Isaac precisa saber que Stanton não é quem
ele pensa. Uma forma de assegurar a si mesmo e sua família.
“Então, diga. Se eu puder ajudar...”, o tom de sua voz era falsamente
calmo, pois por dentro, Isaac desejava eliminar Stanton.
“Vai ter que ajudar, Isaac. Ou eu não faço nada.” O atrevimento de
Stanton estava começando a irritá-lo. Mexer com pessoas que parecem
idiotas, mas que no fim se mostram o oposto, é um preço a se pagar, mas ele
estava ciente e saberia como reverter a situação no momento certo.
Isaac espera que o homem comece. Apesar da respiração elevada,
do medo transpirando nos poros, Isaac estava curioso em saber o que ele
tinha a dizer.
“Eu quero imunidade.” Isaac ergueu as sobrancelhas. “Não quero
nada envolvido no meu nome. Quero que isso seja escondido e muito bem
escondido. Sabe fazer isso, já que roubou o próprio amigo para abrir o seu
banco. Vou conseguir sua candidatura, limpando o seu nome, então quero
que faça o mesmo quando a coisa ficar feia, porque ela vai ficar. Se não
encontrarem nada, eles vão direto a mim. Então eu não sei até quanto tempo
eu vou poder aliviar o seu lado se as coisas não derem certo para mim.”
“Está me ameaçando?” Aborrecido, Isaac não estava gostando nada
de ser levado a essa condição. Principalmente por um bocó como Stanton.
“Não. Estou apenas tentando me proteger, assim como tem feito.”
Idiota prepotente! Era o que Isaac pensava ao encarar Stanton de
igual para igual. Mas Isaac estava em uma posição que ele não gostava,
uma posição que ele mesmo se colocou por necessidade. Vencer é melhor
do que os percalços, sendo assim, ele poderia se submeter, mesmo que não
por muito tempo. Basta Stanton conseguir o que ele queria e então tudo se
resolve. Ele se tornaria o novo político da cidade e então se livraria de vez
do infeliz.
“Como quiser”, Isaac disse, a contragosto.
“Ótimo.” O ar inóspito de Stanton enfureceu Isaac ainda mais. Mas
ele sabia que os dias desse paspalho estavam chegando ao fim.
“Eu vou pra casa”, Isaac murmurou. “Preciso me abster dos
compromissos por hoje. Mas amanhã eu volto, Phillip, e quero a minha
candidatura em cima da minha mesa, ou as consequências serão muito
graves. Serão mais graves do que antes.” Isaac saiu pela porta, não
interessado em sua contrapartida.
O homem mal conseguia se mexer. Uma, por ter tido coragem para
enfrentar Isaac; outra, por não saber se estava mesmo no controle, ou
apenas adiando o seu declínio. Fosse o que fosse, não havia saída. Ele tinha
que conseguir o que Isaac ordenara, não havia outra opção. Acontece que
ele não sabia como burlar a lei para conseguir uma cadeira na política para
Mazza. A ficha dele estava extensa demais. Stanford sabia muito, deu com
a língua nos dentes depois que Isaac acabou com a vida dele. Phillip
poderia fazer o mesmo. Denunciá-lo por justa causa, assim se livraria do
homem que se tornou o mais poderoso de Miami, justamente por saber
como usar as pessoas. Phillip não devia lealdade ao Mazza, ele só precisava
fazer a coisa certa. Mas ele não podia, sua família dependia desse acordo. O
Mazza pode ser um carrasco quando precisa obter o que deseja, mas sabe
cumprir promessas, e ele precisava dessa garantia em especial. O jeito era
tampar o buraco, jogar para debaixo do tapete os crimes daquele homem, ou
ele mesmo acabaria na merda.
Gregory Mazza
Deixei o sono da Lily por conta da babá. Não faço isso com
frequência, mas quando acontece, me sinto péssimo. Estou sem cabeça para
nivelar ao espírito da minha filha, e quando estou assim, acho melhor não
insistir. Se pelo menos Evelyn estivesse aqui seria mais fácil. Acontece que
não consigo pensar em outra coisa a não ser na volta da Rachel, nas coisas
que ela me disse e na conversa que tive com Stephen. Foi surpreendente ele
estar tão disposto a me ouvir, mais surpreendente ainda foi o que senti
depois disso. De início, fiquei contente por estarmos nesse nível de
proximidade, mas por outro lado, eu não sei o que isso pode nos custar.
Bebo um gole de uísque e me sento em frente ao computador, no
meu escritório. Pesquiso mais uma vez por Phillip Stanton. Um homem
aparentemente pacato, pai de família, que dedicou sua vida inteira ao
trabalho e à política. Não faço ideia do motivo de ele ter se envolvido com
o meu pai. O que aconteceu para que ele sujasse suas mãos e se envolvesse
nos planos sujos dele. Eu já presenciei homens de bem se corromperem por
dinheiro, já senti na pele o que somos capazes de fazer por poder. Eu não
faço ideia do tipo de homem que estou prestes a lidar, e isso definitivamente
não veio em boa hora.
Ouço um estrondo na porta e passos vindos em minha direção.
“Ah, você está aí.” É Evelyn chegando de um dia duro no trabalho.
Por incrível que pareça, não parece cansada, nem abatida. Acho que
o trabalho funciona para ela como um dia funcionou para mim: um
calmamente, uma sensação de pertencimento. Discretamente, fecho a tampa
do notebook sem que ela perceba, não quero que ela saiba o que estou
pesquisando.
“Vi as luzes acessas e já ia apagar. Você está bem?” Ela se aproxima
e deposita um beijo no topo na minha cabeça, eu a abraço pela cintura.
“Sim, apenas refletindo.”
“Não deveria estar em outro lugar? A Karen não parou de falar do
quanto o último encontro de vocês foi sensacional e que você a convidou
para saírem hoje de novo.” Sinto um incômodo invadir o meu estômago.
Evelyn retira minhas pernas que estavam descansando na cadeira da
frente, se senta, colocando minhas pernas em seu colo, confortavelmente,
mas tudo que quero é que ela vá embora. Não quero conversar sobre esse
tipo de assunto, tenho problemas maiores para resolver.
“Ela estava tão animada. Tentei dar pitaco no que ela deveria usar,
mas você conhece a Karen, acha que tudo é demais. Não quer usar
maquiagem forte demais, não quer pretender o cabelo de modo que deixa
seu rosto expressivo, aparente.”
“Evelyn, eu...” tento falar, mas ela não deixa.
“Bem, é óbvio que eu escolhi algo ousado e que ela não está
acostumada, mas é bom de vez em quando sair do comum, não acha?”
Minha sobrinha desata a falar e eu mal consigo respirar. “Ainda mais se
tratando de um homem como você que precisa ser marcado.” Bobagem.
Minhas exigências não são mais como antes.
“Evelyn...”
“Acontece que a Karen é tímida. Você tem que melhorar isso nela,
titio. É mais para insegurança do que timidez, mas...
“Evelyn, eu não vou!”, brado, retirando as pernas de cima do seu
colo, fazendo com que ela pare de falar. Primeiro o choque pela informação,
depois a decepção no rosto da minha sobrinha me revela o quanto minha
decisão é errada. Ela sempre é.
“Como assim não vai?” Não tenho coragem de dizer. Não tenho
coragem para nada. “Tio, ela está esperando. Você não imagina o quanto ela
está feliz pelo que aconteceu com vocês na noite passada. O beijo, a transa,
tudo.” De repente fico constrangido. Não sei porque. “Ela te ama! Vai
mesmo partir o coração da Karen a essa altura?” Eu estou confuso. Eu não
sei o que decidir. Pela primeira vez na vida, eu não sei lidar com isso.
“Eu não posso.” É só o que eu digo. “A Karen precisa de mais do
que isso.” A verdade é que eu não sei do que ela precisa.
“Ainda bem que você sabe. Ela realmente precisa. E se sabe disso,
por que é que não faz algo a respeito?”
“Eu não posso, Evelyn!” Me ergo da poltrona. Tento virar de costas,
mas eu quero sair daqui. “A Rachel está de volta, agora essa história com o
meu pai, a Lily querendo se aproximar da mãe. Acha mesmo que eu tenho
cabeça para namorar?” Ela relaxa os ombros, como se minhas desculpas
fossem bobagens.
“Não, você não tem. É por isso que a Karen é perfeita para esse
momento, e é por isso que deveria ir.” Olho para ela. “Qual é, a Karen te
conhece desde sei lá, há décadas? Ela sabe tudo sobre você, todos os seus
segredos escondidos e revelados. Ela esteve ao seu lado por todos esses
anos, o que te faz pensar que ela não vai estar agora?” Fecho os olhos com
força, pois é justamente por isso que não posso envolvê-la.
“E você acha justo?” Evelyn me olha como se eu tivesse finalmente
a deixado sem palavras. “Depois de tudo que aconteceu, acha justo envolvê-
la? Desculpa sobrinha, mas eu não exporia a Karen desse jeito. Eu não
deixaria que ela chegasse perto da Rachel.” Evelyn meneia a cabeça,
finalmente entendendo o ponto que quero chegar.
“Acha que ela faria alguma coisa contra a Karen?” Balanço a
cabeça, irritado.
“Esse não é o ponto. Eu não sei qual é propósito da Rachel com essa
volta. Ela me alertou sobre Phillip Stanton, mas eu não sei se é só isso.
Ainda preciso investigar, saber o que ela quer. É por isso que até lá eu não
posso expor a Karen.”
“Isso vai partir o coração dela, tio.” O meu também está partido. Só
que há muitos anos.
“Eu não posso arriscar. É melhor machucá-la agora, do que mais
para frente.” Evelyn nega com a cabeça, não concordando.
“Eu não vou me meter na sua vida, tio. Eu sei o quanto isso está te
afetando. Sei o quanto isso tem te machucado, mas lembra-se que você não
está sozinho. Não pense que vai dar conta de resolver seus problemas
sozinho e que afastar as pessoas vai ajudar, porque não vai. Só liga pra ela.
Seja sincero e pronto. Deixe que ela tenha o poder de escolha. Não escolha
por ela.” Eu não sei se quero ser sincero com a Karen, não sei se realmente
quero afastá-la, mas eu também sei que não posso mantê-la por perto.
Evelyn deposita mais um beijo no meu rosto e vai embora, me
deixando sozinho e cheio de dúvidas pairando.
Eu não posso mais ser um canalha. Não com ela, então digito os
números dela no meu celular e espero que atenda. Não, é melhor eu ir até
lá. Preciso olhar nos olhos da Karen e ser sincero com ela, como a Evelyn
sugeriu. Só não sei se quero que ela tenha o poder de escolha, já que tomei
a minha decisão.
Pego o meu casaco e parto para a casa dela. Karen atende mais
rápido do que eu pensei. Meu Deus, como ela está linda! Os cabelos
acobreados caindo em cascata por seu ombro. O rosto jovem e maquiado.
Os olhos verdes-esmeralda são como duas lagoas. Fico surpreso com o
modo como meu coração dispara. Há muito tempo nenhuma mulher se
arruma tanto para mim desse jeito. A última foi Tess, e posso dizer que
Karen conseguiu quase o mesmo efeito que ela conseguia. O gosto do seu
beijo ainda está na minha boca, a sensação do toque da sua pele macia. O
cheiro que ela tem. Eu queria parar de pensar no quanto Karen faz bem para
mim, não só porque ela melhora a minha vida, os meus dias, mas porque
sinto que ela é uma espécie de cura. Alguém que eu devo fazer feliz e não
machucar. Talvez seja por isso que preciso poupá-la.
“Nossa, pensei que viria mais tarde, eu ainda... eu nem.” Seguro em
sua mão, interrompendo seu discurso. Eu não quero que ela pense que
minha vinda é uma boa notícia quando não é.
“Você está tão linda”, murmuro. Karen tem o péssimo hábito de
ficar tímida, sorriso de lado, tentando se esconder. Confesso que sua
timidez sempre foi motivo de irritação para mim. Eu achava fraca, porém
há muito tempo isso tem mudado, agora tudo que vejo é uma mulher capaz
de mexer com o meu consciente só por causa do seu jeitinho de ser. Uma
mulher que morre de medo de ser magoada. Coisa que eu estou prestes a
fazer.
Coloco a ponta dos dedos embaixo do seu queixo e ergo a sua
cabeça. É assim que ela deveria agir. De cabeça erguida sempre. Se sentir
confiante, capaz de encarar qualquer coisa, até mesmo homens como eu.
Esfrego a ponta dos dedos em seus lábios, sentindo a macieza,
contemplando o quanto é incrível observá-la se deleitar com o meu toque. A
expectativa envolvendo-a, me arrebata.
“Obrigada, Gregory”, murmura, quase sem fôlego e eu também
estou.
Meu nome nos seus lábios soa satisfatório. Desde quando exigi que
parasse de me chamar de Sr. Mazza. Até porque depois daquele beijo que
demos naquele restaurante, o sexo que fizemos naquele hotel, o tratamento
não é mais apropriado. Para mim, é como me abalar. Encolho a mão
tentando me colocar na realidade.
Umedeço os lábios e tento respirar. Preciso criar coragem para
dispensá-la. Preciso manter a cabeça fria mais do que nunca.
“Desculpa.” Acaricio o dorso da sua mão. “Eu não vim mais cedo.”
Ela está na expectativa, parte o meu coração ter que lhe dizer algo negativo.
Me afasto. “Eu só...” Olho ao redor. O filho de Karen, o Erik não está por
aqui. Ela deve ter deixado com a irmã, assim como fez ontem à noite
quando saímos e está tudo preparado para que eu lhe diga uma negativa.
“Eu só...” Não posso torturá-la mais, eu preciso dizer, já que é o certo. Se é
tão certo assim, por que é que estou me sentindo tão péssimo? “Não
podemos sair, Karen.” O sorriso no seu rosto se desfaz.
Ela tenta se recuperar da imagem completamente entregue que
acabou de fazer. É torturante vê-la recolher os cacos do seu coração e fingir
que entende, que aceita e que não está decepcionada.
“Tudo bem. Deixamos para outro dia, então.” Meu coração está
acelerado. Isso é bem mais difícil do que imaginei.
“Não”, sussurro. Minha voz mal sai. “Nem outro dia e... nem
nunca.” É como se eu disparasse um tiro a queima roupa. Dá para notar o
quanto um nó em sua garganta se formou. A expressão de abalada cada vez
mais acentuada. “Eu sinto muito.”
“Não.” Ela abaixa a cabeça, respirando com dificuldade. “Não
sinta.” Ela balança a cabeça freneticamente. Karen está tão machucada que
sinto que quer fugir, depois do fora que acabei de dar. “Eu sei que
não...podemos. Sei que eu...”
Ela não completa, mas sei que no fundo está se menosprezando, se
culpando, ao invés de culpar a mim. Meus olhos se enchem de lágrimas,
pois tudo que queria agora era estar com ela, mas para o seu próprio bem,
preciso de Karen longe de mim.
“Eu sinto muito”, mais uma vez minha voz soa arrastada.
“Não sinta, Grego... Sr. Mazza.” Se corrige imediatamente, não
dando mais chances ao que possa nos aproximar de agora em diante. “Por
favor, não peça desculpas quando sua intenção não é essa. Só vai doer ainda
mais.” Me sinto sufocado quando ela mesma empoe essa barreira entre nós,
me tratando como seu patrão. Então uma lágrima escorre dos seus lindos
olhos e é como se meu mundo inteiro ruísse. Meu objetivo era não magoar a
Karen, mas estou fazendo isso de qualquer forma. “Eu entendo que nós dois
nunca poderia...”
“Karen, por favor, eu...”
“Tudo bem! Isso foi um erro desde o início, não é culpa sua. Agora
pode ir, Sr. Mazza.” Ela aponta a saída e antes de dar meia volta, cogito
mudar de ideia. Só que é tarde demais. Eu estraguei tudo e não há como
consertar.
Viro as costas, e quando Karen bate a porta atrás de mim é como se
eu morresse. Viro em direção a porta fechada, me aproximo o suficiente
para ouvir um gemido de choro vindo de dentro da sua casa. Não sinto mais
o meu corpo, apenas meu coração faltando sair pela boca. Parto antes que
eu cometa uma besteira mais uma vez.
Em vez de voltar para casa, vou para o endereço que Rachel colocou
no meu celular, onde ela disse que eu a encontraria se quisesse conversar. É
o que preciso fazer. Preciso ficar de olho nessa mulher, saber o que ela está
aprontando.
Bato na porta, na espelunca onde está hospedada. Segundos depois,
a porta se abre, e Rachel aparece sorrateiramente, encostando a cabeça no
umbral da porta, me encarando com aquele olhar de vitória que aparece
quando as coisas acontecem como ela quer.
“Então você veio.” Rachel e sua capacidade de me irritar.
“Não se orgulhe.” Passo por ela, entrando no apartamento. O lugar
até que é arrumado, aconchegante. Propício para Rachel. “Eu não vim por
você.”
“Eu sei que não, não se preocupe.” Ela fecha a porta de uma vez,
depois caminha em minha direção.
Está usando uma calça jeans cintura alta, e um colant florido de
alça, saltos agulha. As tatuagens a mostra, tem uma nova em cima do
ombro. Algo escrito, mas não consigo ler daqui. Está bem melhor do que no
dia que chegou. Está mais disposta, porém imprevisível.
“Eu sei que veio por causa do seu pai.”
“Se sabe, então desembucha.” Cruzo os braços, esperando que ela
comece.
“Uau. Então vai ser assim? Não vai nem pedir uma bebida? Você
não tem agido mais como o mesmo, não é?” Eu a encaro com desdenho, ela
sorri cínica. “Sente-se, Garanhão. Relaxa. Tome uma xícara de café ou
vodca, você quem sabe.” A Rachel fingida que eu conheço continua aqui.
Sua forma de tentar criar alguma coisa entre nós. Ou apenas está tentando
me manipular como da outra vez, mas eu não caio nessa.
“Não pretendo demorar, Rachel”, continuo sério. Deixando claro
que minha vinda até aqui é estritamente formal. Nada de vínculos, ou
histórias do passando. Mesmo que tenhamos uma filha juntos, eu sempre
considerei Lily como somente minha. “Eu quero saber o que sabe sobre
Phillip Stanton, ou o meu pai.” Ela ergue a sobrancelha, depois caminha até
a geladeira pegando uma garrafa de vodca.
“Se quer mesmo entrar nesse assunto, vou precisar disso aqui. Se
não quiser, eu quero.” Ela enche o copo até a metade e depois bebe tudo.
Espero que ela termine de beber. Está tensa, de uma forma que ainda
não vi. Aparentemente está inteira, mas eu sei que por dentro está quebrada.
Eu não faço ideia do que ela passou esses anos todos, e talvez a minha raiva
não quisesse nem saber, mas agora é como me despertar.
“Onde esteve esses anos todos?”, falo numa boa. Sem acusações
como antes. Sem imprensá-la na parede como sempre faço. Se não tem sido
fácil para mim, talvez não esteja sendo fácil para ela.
Rachel termina de engolir o líquido e depois olha para mim. Um
certo receio está estampado no seu rosto. Os olhos azuis intensos estão
sombrios.
“Nem queira saber, Garanhão.” É só o que ela diz, depois se
aproxima de mim, sentando no sofá ao lado. “Mas eu sei que não veio por
mim, já deixou isso bem claro. Então vamos direto ao ponto.” Confesso que
me sinto mal por estar sendo tão rude, quando, com certeza, não deve ter
sido fácil. Mas não me retrato. Quero que Rachel sinta que só me fez mal.
“Nunca se perguntou com que tipo de gente seu pai se metia para conseguir
o que queria?” Claro que sim. Eu nunca vi Isaac com bons olhos. Só que o
jeito que ela diz, é como se meu pai fizesse além do esperado. Uma pessoa
capaz de mais. “Phillip Wiliam Stanton. Ele trabalhou com o meu pai sabia?
Um dos melhores. Stanton era tão bom que seu pai resolveu ‘ajudá-lo’ a
sair do crime para trabalhar com ele. Ele era ótimo em direito internacional,
direito político e tudo mais. Sabia como fazer homens como Isaac se dar
bem.” Reflito sobre o que ela diz, tudo ficando mais claro para mim.
“Isaac fez isso não pelo bem dele, mas para tirar vantagens”,
completo.
“Está entendendo agora? Ele fez Stanton acreditar que estava
conseguindo subir na vida, que Isaac era um tipo de bom samaritano, mas
ele só estava tentando abrir o próprio caminho.” Essa sempre foi uma das
táticas do meu pai e que infelizmente eu acabei aprendendo.
“Com alguém de confiança lá dentro, Isaac conseguiria se
candidatar, já que sua primeira tentativa não deu certo.” Rachel coloca a
garrafa em cima do balcão tranquilamente.
“Exatamente.”
“Como sabe de tudo isso, Rachel? Não pode ser só porque Stanton
trabalhou para o seu pai. Por um acaso você ainda tem câmeras por toda
parte?” Ela dá uma gargalhada.
“Não, eu já parei com isso. Apenas fui adquirindo informações. O
lugar que eu estava tem muito disso, Garanhão. Você fica bem informado.
Miami é um lugar propício para isso. Os donos dessa cidade se encontram e
se conhecem. É só obter as informações certas e andar com as pessoas
certas.” Fico até com medo de saber em que ela está metida. Mas eu posso
ter uma ideia.
“Parece que os maiores criminosos de Miami são os mais poderosos.
Meu pai, Stanton e Amzalag.” Ela solta mais uma gargalhada.
“Essas pessoas não são nada diante do que essa cidade tem,
acredite.” Não tenho dúvidas.
“E Jacob Crow? Ele parece ser o único que entrou nessa história de
gaiato.” Rachel fica séria. Apreensiva com o nome.
“Parece que sim.” É só o que ela diz, bastante perturbada.
“Eu alertei Stephen sobre sua volta, fique sabendo. Não quero outro
episódio como aquele se repetindo, ou vou ter que tomar algumas medidas
mais sérias.” Ela me olha de lado, como se eu fosse outra pessoa.
Caminha até mim devagar. Os saltos batendo no assoalho, seu corpo
ereto como se fosse dona da situação. Como se tivesse o poder em suas
mãos.
“Olha só, estou gostando de ver. Defendendo o Stephen. Isso me
perece mais um aviso a si mesmo do que a mim. Ainda não me perdoou por
eu tentar convencê-lo a matá-lo, não é?”
“Existe muita coisa que eu não consigo te perdoar, Rachel, mas eu
não quero falar sobre isso.” Ela não diz nada, apenas me olha como se
estivesse fascinada. “Stephen e eu estamos...” Não encontro a palavra certa,
não sei se há alguma definição correta pelo que houve mais cedo, mas só de
mencionar isso, me sinto bem melhor. “Estamos seguindo. E eu não vou
desperdiçar isso por causa da sua vingancinha.”
“Olha só... Stephen Crow e Gregory Mazza? Quem diria! Eu jamais
imaginei. Você sabe como me surpreender.” Eu sempre vi essa frase como
sinônimo de sucesso, por um bom tempo, era como se fosse uma piada
quando eu queria humilhá-lo, mas agora é como se fosse um restart. Um
peso na consciência que sempre me atormentou, se foi.
“Parece que os anos nos fizeram maduros. Mas esse não é o ponto.
Eu sei que ainda existem perguntas sem respostas sobre Jacob Crow, tenho
quase certeza de que foi o que o interessou. Acho que ele sente na pele o
que eu estou passando. Ou talvez apenas queremos preencher uma lacuna,
mas eu dei a ele uma chance e se eu conheço Stephen como conheço, sei
que ele vai aproveitar.”
“Eu sei o que é isso.” O olhar distante dela me causa um ardor.
“Sempre queremos saber sobre nossas origens, não é?” Que bom que ela
sabe como é. Algo que ela também está tirando de alguém.
Os olhinhos tristes de Lily sempre que falava que queria conhecer a
mãe. Sua necessidade de ter a sua companhia. Eu nunca fui suficiente para
Lily, e eu sabia que não seria.
“Lily também quer.” É como se eu disparasse contra ela. Como se
isso a afetasse. Rachel também tem suas particularidades, eu adoraria saber
o que ela está escondendo. “Se não veio por Lily, o que pretende fazer,
Rachel?” Ela desvia o olhar.
“Sabe que não posso ser mãe dela, Gregory.” Eu a encaro. Para mim
ela poderia ser qualquer coisa, inclusive a mãe da Lily. Mas Rachel sempre
quer mais. Ela nunca se contentou com o que tem.
“Por que não?” Ela não responde, apenas me encara como se tivesse
um peso sobre seus ombros. “Então por que foi até ela? Pra me chantagear?
Tentou usar a sua própria filha contra mim?”
“Você não entende. Nunca entenderia.” Eu odeio isso. Essa mania
que ela tem de achar que sabe mais do que eu. Que tem mais controle sobre
a vida em relação a Lily do que eu.
“Então me explica, caramba!” Me ergo do sofá, de saco cheio dessa
conversa. “Se abra. Me faça entender. Mesmo sem te conhecer, ela te ama.
Não sei por qual motivo, mas eu nunca consegui colocá-la contra você.
Talvez eu estivesse criando um mundo perfeito pra ela, mas a questão é que
Lily é uma menina doce e merece ser feliz. Eu não quero que ela sofra,
muito menos por sua causa. Então, por favor. Não se meta na nossa vida.”
Então eu saio, sob o olhar tremente de Rachel me encarando.
3
Stephen Crow
Gregory Mazza
Stephen Crow
“Sr. Crow, sua esposa, Tess Eisen, está na recepção esperando para
entrar.”
Carie, a nova secretária, me comunica, através do telefone do
escritório. Essa é a quarta secretária nova em menos de dois meses, as
outras eram ineficientes e até mesmo faziam corpo mole para realizar
alguns dos trabalhos simples. Estou com um projeto gigantesco e não posso
tolerar falhas, preciso manter a qualidade do produto e para isso preciso de
pessoas realmente compromissadas, até mesmo na recepção da minha
empresa, já que vou vender um produto valioso.
Porém, Carie, diferente das outras, apesar da eficiência, ainda
comete algumas garfes como estas. Esperando uma autorização minha para
que minha própria esposa entre no meu escritório. Característica na sua
eficiência desmedida? Torço para que sim.
“Pelo amor de Deus, Carie, mande-a entrar. Não observou as
recomendações? Minha esposa entra direto, não precisa ser anunciada.”
“Desculpe, Sr. Crow. O senhor recomendou que todos,
absolutamente todos, não passasse pela recepção sem que o senhor soubesse
de quem se trata. Por causa do que aconteceu à Srta. Dousseou. Sei que a
Sra. Crow não é o caso. Bom, eu não a reconheci e não queria arriscar.”
Não a reconheceu. Isso parece até meio ilógico na realidade em que
vivemos. Tess tem se consolidado cada vez mais na sua carreira. Se tornou
até mesmo referência da moda, mas isso no mundo fashion. Apesar de
também ser conhecida em toda a mídia, principalmente por causa dos seus
casamentos, o que acho um absurdo, principalmente a imagem negativa,
muita gente não dá importância.
“Eu realmente não me atentei a esta questão.” Bufo, um pouco
irritado. Na verdade, nem sei porque estou tão irritado. Talvez porque isso
tem irritado Tess mais do que devia. E vê-la chateada, me deixa chateado.
“Tudo bem, agora mande-a entrar.”
“Sim, sim.” Então ouço ao fundo: “Pode entrar Sra. Eisen. Sr. Crow
está aguardando.” Confesso que rio por causa dessa situação. O sobrenome
que Tess adotou também não ajuda muito, embora eu apoiá-la mil vezes que
seja quem ela quiser ser. O nome de solteira a faz feliz, então para mim é o
que vale.
Minutos depois, Tess entra pela porta. Tão deslumbrante quanto na
última vez que eu a vi, o que foi hoje de manhã, antes de saímos de casa
para o trabalho. Já são quase onze da noite e ela está igualmente perfeita.
Cabelos curtos ondulados, cores vivas e douradas. Maquiagem impecável,
um vestido preto com um decote de tirar o fôlego, fendas nas coxas,
mostrando suas pernas torneadas. Sexy e poderosa, como sempre. As duas
gestações só fizeram bem a ela.
“Não seja rude com ela. Deu pra perceber que ela não fazia ideia de
quem eu era.” Me levanto da cadeira e rodeio a mesa para cumprimentá-la.
Me aproximo da minha linda esposa e a seguro pela cintura, a trazendo para
o meu corpo.
Tess parece resiliente, mas meu dever é protegê-la.
“Esse é o preço que se paga por cometer tamanha gafe.” Deposito
um beijo nos lábios vermelhos da minha mulher, querendo bem mais do que
só um beijo.
“Uau! Sr. Crow anda exigente nesses últimos dias, não?”
“Só quando é com você.” Beijo ainda mais sua boca, dessa vez com
mais afinco. Sentindo seu gosto, explorando-a e amando-a como eu gosto.
Na noite passado ela me ignorou completamente por causa da conversa que
tivemos, quando ela se mostra um pouco aberta, eu tenho que aproveitar.
“Não é esse o problema, e sim outras questões, você sabe, não é?”
Olho para ela. Posso fazer uma ideia, mas prefiro que ela diga. “Marquei
uma reunião com alguns executivos e muito deles nem sabiam que eu
estreei na fashion week em 2017. Na verdade, eles mencionaram Gregory
Mazza.” Meu coração dispara, pois eu sei exatamente o que isso significa.
O divórcio conturbado, o casamento repentino. Isso ainda tem nos
assombrado, mas é ingênuo da nossa parte achar que isso sumiria. Só não
estamos sendo maduros o suficiente para lidar com isso.
“É por isso que preciso te proteger. Viu só?” Tento levar a conversa
para um lado mais cômico e consigo. Tess sorri agradecida. Ela sabe lidar
com isso melhor do que eu. Isso não me surpreende.
Retomo o beijo, dessa vez deixando claro que ela é importante para
mim. Do quanto eu a amo a cada dia que passa, a quero nos meus braços
pelo resto da minha vida. A encosto na minha mesa, deslizando minha mão
na sua perna, fazendo o caminho da abertura até o interior da sua coxa e
subindo cada vez mais.
“Desse jeito vai acabar me levando pra cama mais cedo”, murmura,
após eu colocar dois dedos dentro da sua calcinha.
“Antes disso. Sou capaz de pegar você bem aqui.” Dou uma olhada
na mesa do meu escritório. Esfregando um dedo nela, me certificando do
quanto Tess está molhada. “Com a sede que eu estou do seu corpo...” E ela
do meu.
“Nossa, que guloso. Mas eu digo que se isso acontecer, não vamos
terminar tão cedo e temos que buscar as crianças na casa da Savannah.”
Agora que minha mãe está na cidade passando um período em
Miami, eu fiquei mais tranquilo para trabalhar, sabendo que meus filhos
estão seguros. Mas justamente por isso, não me importo de ficar até mais
tarde, e fazer amor com a minha mulher em um lugar inusitado. Não seria a
primeira vez.
“Não seja por isso. Mando uma mensagem para Savannah e digo
que surgiu um imprevisto.” Tess gargalha, escondendo o rosto no meu
peito.
“Você não presta, Stephen Crow.” Os olhos verdes dela me encaram,
e eu me encho de amor. “Mas em falar em mensagem...” Ela limpa a
garganta, se recompondo, e eu percebo que não é um bom sinal. “Eu vi que
enviou uma mensagem para o Greg hoje mais cedo.” Tess às vezes tem o
péssimo hábito de cortar um momento agradável para entrar em assuntos
difíceis. Isso acontece quando ela está extremamente preocupada. Eu até
entendo, mas qual é?
Dou um passo para trás.
“Tess... Já conversamos sobre isso. Você mal falou comigo ontem à
noite e agora que estamos bem, você quer voltar a esse assunto?”
“Não voltaria se tivesse sido sincero comigo. Por que não me disse
nada?” Ela está brava, eu não gosto quando fica assim por causa de uma
decisão minha. Por causa de uma decisão que também é difícil para mim.
Ainda mais quando ela sabe que abri mão de muita coisa por causa disso.
Encosto na mesa, cruzo os tornozelos e olho para ela.
“Eu disse, falei que estava disposto a ir a fundo nessa história. O que
viria depois disso era inevitável.” Ela bufa. “E você olhou no meu celular.”
Ela fica vermelha, mas não abalada.
“Foi você que vinculou as nossas contas de e-mails. Disse que assim
ficaria mais fácil para termos controle sobre a operadora. Recebi uma
notificação e vi as mensagens trocadas com Gregory Mazza. Eu não estava
bisbilhotando você.” Nossa, ainda bem que eu não tenho uma amante, ela
não passaria despercebida por Tess.
Relaxo os ombros e dou uma respirada. Olho para a minha esposa
com um pesar no coração.
“Eu sei que não.”
“Stephen”, ela suplica. “Deixa essa história pra lá.”
“Já disse que eu não posso. Eu preciso saber, Tess.” Agora é ela
quem suspira, completamente tensa. Eu queria poder tirar esse peso das
suas costas. Entrar na nossa banheira com água quente e lhe fazer uma
massagem, mas devido à nossa atual situação, sei que nem isso será
suficiente.
“Eu só quero que isso tudo fique longe de nós. Eu tenho medo,
Stephen.” A lágrima nos seus olhos parte o meu coração.
“Eu sei, meu amor.” Me aproximo dela mais uma vez e a abraço.
“Eu sei que isso tudo tem sido difícil pra você.” Beijo o topo da sua cabeça,
acarinhando o couro cabeludo. Tess me aperta tão forte que sou capaz de
sentir seu sofrimento, sua preocupação e todos os traumas que vieram
depois de tudo que vivemos. “Mas essa é a minha chance de saber o que
aconteceu. Uma parte eu sei, mas a outra não. Eu quero saber em que tipo
de sujeira o meu pai esteve envolvido. Não posso perder a oportunidade.”
Ela ergue o olhar para mim. Tão frágil. Tão meiga. Eu a amo com toda a
minha alma.
“Eu devo ser uma pessoa horrível, não é?” pergunta, envergonhada,
se soltando do meu corpo e indo para o outro lado da sala.
“É claro que não. Você nunca foi uma pessoa horrível, nem quando
é teimosa.” Brinco, mas ela não acha graça.
“Sou sim. Você está sofrendo, desde que soube a verdade sobre o
seu pai e eu só pensando em como não me sentir tão apavorada no processo.
Querendo que tudo fique como sempre esteve. Foram seis anos, Stephen.
Seis anos de paz, onde pudemos desfrutar da nossa vida sem problemas, o
nascimento dos nossos filhos. E então Dervishi reapareceu trazendo um
antigo pesadelo e agora isso. Não apenas os segredos do seu pai, é a Rachel
também. Ela quer matar você.”
“Não mais. Gregory me garantiu isso. Me parece que ele teve uma
conversa com ela e esse não é mais o objetivo.” Ela cruza os braços, me
desafiando.
“Desde quando você confia nas garantias do Gregory?”
“Eu não confio, mas sei que ele precisa de mim tanto quanto eu
preciso dele.” Tess não parece satisfeita.
“Minha nossa...”, murmura, como se estivesse agindo não mais
como eu mesmo. Ou é exatamente o contrário, estou sendo tão conveniente
como sempre estive. “Viu? Entendeu agora a minha preocupação?”
“Tess...”
“Só me prometa, Stephen. Me prometa que vai se cuidar.” Eu
assinto, resignado. Levando em conta do que ela está abrindo mão.
Me aproximo dela, e a abraço pela cintura, depositando um beijo na
sua testa.
“Vou cuidar de mim, de você e dos nossos filhos. Você não precisa
se preocupar.”
Alguém bate na porta logo em seguida, e Carie, a secretária, surge
no umbral. Tess e eu olhamos um para o outro, surpresos pela invasão.
“Desculpa, Sr. Crow, mas o senhor disse que se a Srta. Bianchi
chegasse, era para avisar imediatamente.”
Bianchi, Christine Bianchi, uma das parceiras no projeto do resort
em Paris, ela é a arquiteta do projeto e tem desempenhado um papel
fundamental, depois que tive problemas com os dois últimos arquitetos, que
atrasaram os trabalhos e ainda me deixaram com prejuízo. Bianchi abraçou
a causa e consertou os estragos. Recuperamos boa parte dos custos e ainda
estamos adiantados. É de pessoas assim que preciso. Por outro lado, me fez
abrir o olho ainda mais com alguns tipos de profissionais.
“Ah, sim claro. Pode mandar entrar.” O olhar que Tess me lança é de
insatisfação. Uma, pela ousadia da secretária em ter entrado sem avisar, em
um momento em que estávamos conversando, já que com a arquiteta foi
diferente. Mas também por eu próprio ter interrompido o assunto, sem
demonstrar qualquer resistência. Eu só não quero continuar no assunto
Gregory Mazza, e achei o momento perfeito para isso. “Conversamos em
casa”, cantarolo, para que ela entenda que não quero mais conversar sobre
isso. Ela revira os olhos, na atitude mais infantil, porém adorável.
A porta se abre novamente, revelando Christine Bianchi em seguida.
“Olá, Stephen!” O cumprimento de Bianchi é um tanto teatral e
animado até demais. Eu já meio que me acostumei com essa atitude
exageradamente empolgada, mas Tess não. “Meu Deus, que bom está aqui!
Dessa vez, cheguei no horário combinado!” Sua simpatia costumeira invade
o espaço. Eu nunca vi alguém ir para o trabalho com tanta felicidade, a não
ser a Tess, claro. Mas, infelizmente, minha esposa não trabalha comigo.
“Ora, que isso, você sempre foi pontual, uma das suas melhores
características. O que é se atrasar um ou dois minutos? O importante é que
está aqui.” Ergo a minha mão para apertar a dela em um cumprimento.
Bianchi não só aperta a minha mão, como deposita um beijo
estalado na minha bochecha. O olhar que Tess me lança é como se tivesse
cometido alguns dos pecados mais graves. Depois olha para Srta. Bianchi
dos pés à cabeça. Fiz um auê todo por causa do anúncio e trato uma
desconhecida quase igual eu a trato. Eu nunca vi Tess se incomodar tanto
com outra mulher como se incomoda agora. Parece intimidada, insegura.
Isso me surpreende.
Bianchi olha para a minha esposa, mas não existe nenhum vestígio
de intimidação, muito pelo contrário. Ela conhece seu lugar e da Tess
também, porém, sem diminuir seu próprio valor. É muito raro ver isso
acontecer, no mundo em que vivo. Tess não está acostumada com isso.
Normalmente é ela quem brilha mais, dar de cara com uma mulher que não
se rebaixa diante dela, meio que a deixa desconfortável.
“Tess Eisen!” A entonação é enfática, é um a surpresa boa. Uma
oportunidade de conhecer a mulher que tem abalado as mídias sociais, tanto
pelos motivos certos quanto pelos errados. “Muito prazer em conhecê-la.”
Bianchi estende a mão para a minha mulher, mas Tess não parece ter a
mesma opinião que a arquiteta. Se mantendo na posição de antes, ela não
move um dedo para cumprimentá-la. Nossa...
“Sra. Crow pra você.” A resposta é tão cortante que sinto o impacto
daqui, ainda mais sabendo o quanto Tess se orgulha do seu sobrenome. Isso
é um recado dado, alguém invadiu o seu espaço e o território acaba de ser
disputado. Esse é algum tipo de sinal de que estou encrencado? O motivo é
que não ficou claro.
“Sim, sim, claro. Sra. Crow, perdão!” Bianchi percebe
imediatamente o que está rolando, sorri de lado, mas não diz nada.
O clima fica pesado de repente. Pior que eu também fico. Tess
nunca se mostrou tão territorialista com quem quer que seja. Sinto meu
coração acelerar.
*
Estaciono o carro em frente à escola de Lily. Muitas crianças indo
de encontro aos seus pais. Abraços e beijos, às vezes algumas delas levando
bronca por terem se comportado mal na escola. Lily nunca frequentou
escolas específicas, ou especiais. Sua psicóloga recomendou que ela
frequentasse a escola de pessoas ditas normais, assim ela teria um
desenvolvimento social adequado. Ela acompanha bem a turma, e é até
melhor do que muitos deles. Eu nunca tive problema com Lily.
Espero por ela por alguns minutos. Nada de Lily aparecer, o que
normalmente não acontece. Assim que estaciono o carro, sou capaz de ver
seus lindos cabelos castanhos esvoaçando de encontro ao carro. Hoje é
diferente, hoje eu preciso descer do carro para encontrá-la. À medida que
caminho, fica cada vez mais difícil localizar Lily. Começo a me preocupar.
Penso nas ameaças presentes, Phillip Stanton e... Rachel, é claro. Meu
coração se contrai. Eu devia ter vindo mais cedo, porém acabei me
atrasando por causa da conversa que tive com Stephen. Atrasei dez minutos,
mas parece que foi o suficiente. Ao longe, no jardim da escola, embaixo de
um carvalho, lá está Lily, sentada, e ao lado dela, Rachel.
Minha aproximação não é abrupta, muito pelo contrário. Não quero
assustar Lily com o meu desespero como fiz da última vez, embora me
irritar demais essa ousadia de Rachel. Elas conversam. Rachel parece a mãe
que um dia desejei que ela fosse. Perpassa as mãos em seus cabelos, segura
sua pequena mão. O sorriso de ambas é radiante, inflamável, mas contrito.
Lily parece feliz, uma realização dos sonhos. Por um instante vislumbro um
momento especial entre mãe e filha.
“Papi!”, Lily exclama, assim que me vê. Sorrio de lado, sem
esboçar felicidade, mas não demonstro irritação.
Lily vem até mim e abraça as minhas pernas. Encaro Rachel.
“Olá, Gregory.” Não há ironia no seu tom de voz, muito menos um
indício de que sua presença só serve para me provocar. Isso me deixa
contente.
“O que faz aqui?” É uma pergunta recorrente, também não há
acusação no meu tom de voz. Existe uma trégua que jamais achei possível.
“Queria saber por mim mesma se Lily está bem. Sabia que ela tirou
A em uma atividade feita com a turma? Ela estava me explicando o que ela
tem aprendido, e eu fiquei muito orgulhosa de você, Lily. Melhor do que eu,
eu sempre fui péssima na escola.” Ela faz uma careta, desdenhando de si
mesma. “Mas... nota dez nas provas da vida.”
Sem querer, um sorriso aparece no canto dos meus lábios. É Lily
provando o que eu sempre disse a ela. A filha com síndrome de down, é tão
capaz quanto qualquer outra criança da sua idade. Sou o típico pai
orgulhoso.
“Lily é incrível. Não é, filha?” Ela assente e me abraça forte, eu a
pego no colo, e a protejo nos meus braços. Rachel nos observa, como se
tivesse inveja do nosso carinho.
Me estende a mochila de Lily e eu a pego.
“A mamãe pode jantar com a gente hoje à noite?”, Lily pede, como
se já fosse algo combinado entre elas. Olho rápido para ela, a recriminando
por não me dar a chance de recusar. Mas já era o seu plano, levando em
conta que não quero aborrecer Lily.
“Pode”, digo, fazendo Lily vibrar no meu colo, surpreendendo
Rachel. “Eu estava mesmo querendo falar com você.” O olhar dela se
acende, fica brilhante e intenso. Não tem aquele perigo específico, mas há
uma intenção por trás. “Agora vamos, Lily. Precisamos almoçar. Ainda
tenho uma reunião logo mais.”
“Tchau, mamãe.” Rachel acaricia o seu cabelo.
“Tchau, querida.”
E então levo a minha filha, sentindo o meu coração se contrair mais
uma vez.
Eu a coloco sentada no banco, faço a volta no carro e me sento no
meu banco. Encaro o retrovisor, observando a imagem vitoriosa de Rachel.
“Sobre o que vocês conversaram?”, pergunto a Lily, assim que dou
partida no carro. Tento ser o mais compreensivo possível. Uma conversa
normal entre pai e filha.
“Ela queria saber do que eu gosti.”
“Gosto, filha.”
“Isso, gosto. Eu disse que gosto de ler Harry Potter, que você e Evil
leem pra mim. Também disse que gosto de ir à praia com o papi e tomar
sorvete com a Evil.” Uma conversa normal, saudável. “Eu disse que gosto
de paçuc.” Ela inclina no vão entre o banco do motorista e o banco do
carona e liga o som.
“Paçoca”, eu a corrijo mais uma vez.
“É, paçoca.” Lily ri envergonhada escondendo o rosto no meu
ombro. O sorriso dela é lindo. Beijo o topo da sua cabeça, enquanto Dance
Monkey toca no som.
“Você contou a ela sobre sua viagem ao Brasil?” Ela assente.
“Si—sim. Também falei sobre o aquário na China.” Sorrio de lado,
orgulhoso. Rachel teve uma ideia de como Lily foi criada, e como ela é
educada e inteligente. Talvez assim Rachel saiba o quanto perdeu não
estando ao nosso lado.
“Que bom, filha. E ela gostou?”
“Aham.”
“E... Ela falou sobre... ela?” Uma pergunta especulativa, como quem
não quer nada.
“Não. Ela só disse que não pôde ficar comigo porque estava muito e
muito longe, cuidando da saúde. Papi, ela estava doente?” É uma forma de
se justificar. De certa forma Rachel estava mesmo mal de saúde. O
psicológico dela sempre foi horroroso.
“Talvez, filha.”
“Espero que ela esteja melhor agora. Eu gostei de conversar com
ela. Papi, a mamãe é tão linda!” Isso é verdade.
Não respondo. Meu coração continua contraído, a diferença agora é
por Lily. Não sei que tipo de expectativas minha filha está criando com a
volta da mãe. Não sei que tipo de expectativas eu estou criando com a volta
da Rachel.
7
Passado
Gregory Mazza
Stephen Crow
Passado
Era a segunda vez que Isaac Mazza iria àquele lugar em menos de
uma semana. Há essa altura, Jacob Crow, seu motorista de confiança, já
começava a desconfiar da integridade do patrão, apesar de achá-lo um tanto
corajoso. Isaac não tinha medo de lutar pelo que queria, mesmo que essa
luta o levasse ao extremo. Pelo menos, não era covarde como ele.
Jacob, em casa, observando tudo se acabar; mantimentos, as contas
se acumulando, sua esposa preocupada por causa de tantas dívidas. E ele
ali, sem ter a mínima coragem de pedir nem sequer um aumento ao patrão
podre de rico. Que espécie de homem ele era, um rato? Alguém que se
esconde na própria desgraça sem ter forças para reagir? E se ele fosse como
Isaac, destemido? Talvez ele pudesse sim tirar sua família da lama. Talvez
ele poderia encontrar saída para as milhares de contas que só tem se
acumulado desde que chegou a Miami.
Jacob finalmente parou de pensar, ele decidiria que pensar demais só
estava o fazendo perder tempo. Agora era a hora de agir. Agir e se tornar
um homem de verdade. Agir e parar de se lamentar pela vida que escolheu
viver.
Naquele dia, às duas e cinco da manhã, Jacob Crow retornou ao
lugar que sempre levava o patrão. Se houve alguém nesse mundo que
poderia ajudá-lo só podia ser Lino Berenson, o homem que tem feito de
tudo para que Isaac Mazza conseguisse a posição que sempre quis.
“Ora, ora, ora. Então aqui está você mais uma vez.”
Berenson podia ser um homem perigoso, mas Jacob tinha algo para
usar, caso as coisas não saíssem como ele precisava. Uma forma burra para
lidar com esse homem, mas Jacob já tinha feito de tudo, sem sucesso. Esse
é o momento de tentar o que nunca tentou.
“Tirem-no daqui”, Berenson ordenou aos seus capangas, que
seguraram Jacob, um em cada braço.
“Não, por favor, me ouçam.” Berenson hesitou. Os homens
afrouxaram o aperto, ao mínimo olhar do chefe. “Eu tenho vindo aqui todo
esse tempo, acompanhando o Sr. Mazza. Sei tudo o que fazem aqui. Acham
que eu seria capaz de entregá-los?” Berenson ergueu a cabeça, encarou
Jacob com uma pitada de curiosidade e injúria. O simples motorista era
ousado. Burro, mas ousado.
“Foi Isaac que te enviou?” Jacob abaixou a cabeça envergonhado.
Aquilo mais parecia uma traição. Sabia que se Isaac soubesse, a relação dos
dois não seria mais a mesma. Isaac confiou nele, e agora está usando essa
confiança para tirar proveito. Que espécie de pessoa ele está se tornando?
“Claro que não. Se ele souber, tenho certeza de que serei demitido.
Eu sei demais.” A convicção de Jacob agradou Lino. Se ele estava
preocupado com uma simples demissão, ele nem imaginava o que lhe
esperava se ele vacilasse com ele, com a própria vida, se ele ousar a abrir o
bico sobre o funcionamento daquele lugar.
Lino sorriu, sinalizou para que os homens o deixasse, e envolveu
seus braços no ombro do motorista. Homens como Jacob Crow era o que
Lino estava procurando: homem que tinha tudo a perder.
“O que quer de mim, senhor...” Lino puxava Jacob até seu
escritório.
“Crow, Jacob Crow.”
“Jacob Crow.” O homem disse esse nome como se saboreasse um
doce. “Interessante.”
Lino indicou a cadeira para que Jacob se sentasse. Meio perdido e
apreensivo, Jacob o fez, sem deixar de perceber aquele lugar. A mulher
grávida que esta machucada, não estava aqui, ele percebeu. Mas se
perguntou o que esse homem teria feito com ela. Jacob esperava que ela
estivesse bem.
Ainda assim, aquele lugar era como se ele tivesse entrado em uma
arapuca. Mas ele vivia assim há muito tempo, uma arapuca que lhe
trouxesse algum tipo de benefício seria lucrativo.
“O que quer de mim, Jacob?” Essa pergunta era estranhamente
confortante. Era como se finalmente Jacob tivesse encontrado a solução
para os seus problemas, só pelo fato de ter tido coragem. Lino agora era
como uma espécie de bom samaritano, que acabava de se disponibilizar
para lhe ajudar.
“Preciso de dinheiro”, Jacob foi direto ao ponto, sem rodeios. Não
queria mais saber de hesitações, perdeu tempo demais com isso. Lino o
olhou de cima, mais uma vez, impressionado. “Irei pagar, não se preocupe.
Sei que o senhor não faz acordos por benevolência. Sei que sempre existiu
um preço.” Lino continuava a encarar.
“E como pretende me pagar? Com o seu salário medíocre de
motorista?” Todos que estavam na sala começaram a rir, inclusive
Berenson. “Vá embora, meu rapaz. Não se meta nisso.” Lino estava lhe
dando uma chance, mas não era assim que Jacob via.
“Faço qualquer coisa.” Jacob explodiu em meio às risadas, fazendo
todos olharem para ele. Impressionados com sua coragem, ou ingenuidade,
nesse caso. “Eu faço tudo que você quiser.” Agora sim Lino estava
interessado de verdade. Via potencial no rapaz. Ele tinha tudo que ele
precisava, inclusive, necessidade. Pessoas com necessidade são capazes de
qualquer coisa.
Ele serviria para os seus planos futuros. Jovem, começando a vida.
Sem experiência, claro, mas homens como ele aprendem rápido e são
dedicados. Não é como os outros que estavam há tanto tempo ao seu lado e
que causavam mais problemas do que soluções, e Lino já estava cansado
deles. Talvez alguém novo mudaria os ares daquele lugar. Mudaria para
algo melhor e lucrativo. Lino via em Jacob uma bagatela em dólares, muito
mais do que provavelmente ele pedirá.
Um homem adentrou a pequena sala. Um homem alto, olhos bem
azuis. Um rosto realmente familiar para Jacob.
“De quanto você precisa?” Phillip Stanton perguntou e Jacob sorriu
ao acabar de ser aceito.
O que ele não imaginava é que tanto Lino Berenson quanto Phillip
Stanton gostaram tanto dele, que jamais o permitiriam ir embora.
12
Gregory Mazza
*
O dia me pareceu como um borrão. Nem me dei conta de que
permiti que Rachel passasse um dia inteirinho com Lily. Acho que estava
sob efeito de algum alucinante, mas quando finalmente minha filha chegou
em casa, saltitante e feliz, contando tudo que fez com a mãe o dia todo,
incluindo sorvetes e brincadeiras no parque, minha preocupação se esvaiu.
Sinceramente, eu jamais imaginei ver Rachel nesse papel, a visão é
indiscutivelmente impressionante, mas fiquei feliz por minha filha. Ela
parece estar animada, não pretendo tirar isso dela. E Rachel não é nem
maluca de magoar Lily. Eu a caçaria no inferno.
No horário marcado, eu já estava esperando por Karen no
restaurante em que combinamos. Uma ótima estratégia da parte dela. Não
saímos, mas acabamos saindo do mesmo jeito no dia seguinte.
Ela ainda não chegou, mas sei que virá. Karen é honesta consigo
mesma, apesar de estar puta comigo. É nisso que me agarro para pedir mais
uma taça de uísque, enquanto espero por ela.
Toca uma música tranquila no bar, algo que me deixa melancólico e
ansioso ao mesmo tempo. Não me presto a isso por mulher há muito tempo.
Tess foi a última, hoje em dia percebo que todos os esforços que fiz para
ficarmos juntos foi uma grande perda de tempo. Talvez eu esteja aqui
fazendo o mesmo, mas quero arriscar, quero ir até o final.
Através do vidro transparente, eu a vejo chegar, após entregar as
chaves da sua Mercedes ao manobrista. Dou um leve sorriso ao me deparar
com a cena; uma, orgulhoso por Karen estar prosperando, crescendo
gradualmente em sua carreira e conquistando suas coisas; outra, por ela ter
vindo, por estar fazendo meu coração acelerar desse jeito, do jeito que eu
jamais imaginei acelerar, não depois de muito tempo.
Karen usa um vestido preto de seda pura, de alças quadradas e saia
rodada. Um Pee Toe da mesma cor. Seus cabelos acobreados caindo em
ondas na frente do seu lindo busto. Ela está elegantemente linda e muito
charmosa. Acabamos pensando juntos, já que uso uma camisa social creme
embaixo de um colete cinza, calças sociais da mesma cor do colete,
enquanto o paletó está sobre o encosto da cadeira. Olho para o relógio de
pulso, e Karen está apenas dez minutos atrasada. Uma estratégia sem
sombra de dúvidas. Dou um sorriso de lado, degustando mais um gole da
bebida, ao observá-la vindo até mim.
“Estou aqui.” Ela abre os braços em resignação, e sinto seu perfume
afrodisíaco, isso me desconcerta. “O que quer comigo?” Áspera e instigante
ao mesmo tempo. Não consigo parar de admirar.
“Sente-se, por favor”, peço, respeitando a sua mágoa. Ela resiste
mais um pouco.
“Não posso demorar, Sr. Mazza, deixei meu filho sozinho em casa.
O senhor disse que seria rápido, por isso vim. Mas se não for direto ao
assunto, eu terei que ir, e....” Seguro em seu braço, assim que faz menção de
ir embora.
Ela me olha. Desço minha mão até a sua, apertando suavemente
uma na outra. Trago sua mão próximo do meu rosto, sentindo sua pele
macia. Depois, aspiro o cheiro das suas mãos com todo o fervor que
necessito. Os olhos de Karen fecham, assim como fizeram quando beijei
seu corpo inteiro, momentos antes de fazermos amor.
“Por favor, não vá. Fique.” Ela tira minha mão da sua, tentando a
todo custo não sentir o que está sentindo. Mas eu sei, é impossível evitar,
levando em conta que estou sentindo o mesmo.
“Não era pra eu estar aqui. Eu não deveria ter vindo, Sr. Mazza.”
Seus lábios tremem, posso ouvir sua respiração assim que ela olha para todo
o meu corpo. Deixei a camisa social aberta até a metade do peito. Ela está
lutando para não me olhar. É angustiante só de ver, ainda mais porque ela
não precisa de nada disso. “Eu preciso ir.” Seguro mais uma vez sua mão,
firme para que ela não saia.
“Se fosse verdade como diz, não teria marcado especificamente
nesse restaurante, muito menos estaria vestida desse jeito só para dizer que
não quer falar comigo...” É uma merda conhecer a tática feminina, em
situações como essas. Mas, por outro lado, gosto de saber que ela ainda
gosta de mim. Ela fica sem argumentos, me provando que tenho razão. Ela
está aqui por que quer, não porque pedi.
Ela retira minha mão da sua com força, se sentindo ofendida pelo
que eu disse. Reluta mais um pouco, mas finalmente cede, sentando ao meu
lado em seguida. Me sinto vitorioso.
“Estou escutando.” O desprezo que dedicou a mim é tão falso
quanto as minhas inúmeras tentativas de fingir que não sentia nada por ela.
Sorrio de lado, e sem desviar os olhos, bebo mais um gole de uísque,
levando o assunto a sério desta vez.
“Sinto sua falta”, digo tranquilamente, observando seus olhos
castanhos extremamente esverdeados me encarando com surpresa. “Está
escutando? Então escute isso.” Ela me olha sem reação, continuo com
tranquilidade. “Minha vida não tem sido mais a mesma sem você. Eu não
suporto mais o seu desprezo e a sua distância. Precisamos fazer algo a
respeito, senão eu vou explodir. É isso que quer? Que seu chefe se
exploda?” Karen está desconfortável diante do meu deboche real.
Mal olha para mim, se remexe na cadeira, como se o que eu disse a
afeta pessoalmente, e afeta. Eu a peguei de surpresa, eu me peguei de
surpresa, mas quer saber, eu quero que tudo isso se foda. Eu quero
recomeçar e a Karen é perfeita pra isso.
Ela pega o copo ao lado e enche com o uísque que estou tomando,
bebendo um gole generoso. Minha nossa! Isso que eu digo que é
inquietação!
“Eu deixei a nova secretária bem treinada para te servir
devidamente. Ela até me disse que o senhor não tem sentido falta de nada.
Do que mais o senhor precisa?” Ela está fingindo que não sabe do que estou
falando, entrando no meu jogo. Suas ações tem servido unicamente para se
proteger, e ela está certa, mas nesse momento, quando preciso do seu
coração aberto é irritante.
“Que bom. Não fez mais que sua obrigação. Deixou o cargo, mas
colocou uma no seu lugar. Você é ótima nisso, Karen, parabéns.” Deixo o
copo em cima do balcão e me viro mais um pouco para ela. “Mas não é
sobre os serviços de uma nova secretária que estou me queixando, apesar de
que as coisas não têm sido mais a mesma também na empresa, depois da
sua promoção. Eu estou falando da falta que você faz na minha vida.” Não
tenho mais medo de confessar. É como aliviar o meu peito. É como se eu
tirasse um peso das minhas gostas. “Pode resolver isso também, já que sabe
muito bem como resolver tudo? Embora eu acho que uma substituição há
essa altura é meio impossível.” Ela está chocada com a minha forma de
abordagem. Bebe mais um generoso gole de uísque e deixa o copo vazio no
balcão, ao lado do meu, tomando coragem para me enfrentar.
“Você só pode estar brincando com a minha cara. Eu pareço uma
maldita palhaça? Não ouviu nada do que eu disse sobre o meu passado?”
Olho no fundo dos olhos dela, e percebo que se fosse o caso isso a
destruiria, mas não é o que pretendo. Eu realmente sinto sua falta, e preciso
que ela saiba.
“Então você está usando o que aconteceu com você no passado pra
me afastar? Desculpe, mas não funcionou.” Ela está em choque. Ótimo,
assim ela percebe que não vou afrouxar para ela também. “Karen, eu gosto
de você”, falo como um sussurro, deixando a provocação de lado e ficando
sério. Os olhos de Karen estão lacrimejantes, como se essa confissão fosse
tudo de que ela gostaria de ouvir, porém doloroso ao mesmo tempo.
“Não é o suficiente.” Ela também sussurra, expressando toda a dor
que sente no peito. Eu posso sentir.
Eu amei a Tess profundamente por muitos anos. Não lembro de ter
oscilado nos meus sentimentos por ela nem uma única vez. Eu não tinha
dúvidas, jamais deixei com que ela tivesse, nem quem estava ao nosso
redor. Tess era amada e ninguém ousava a discordar disso. Talvez esse seja
o medo de Karen. Eu devo ter me mostrado oscilante, a deixado cheia de
dúvidas. Merda!
“O que quer que eu faça, então? Fala, eu faço.” Uma lágrima escorre
dos seus olhos, mas Karen trata logo de secar. “Me fale o que eu devo fazer
para que seja suficiente e então eu faço.” Estou quase implorando, mas
nessa altura eu não me importo mais.
“Sr. Mazza, por favor.”
“Fala, Karen. Você quer uma noite romântica? Quer jantares, quer
que eu traga flores? Fala o que posso fazer para que não tenha dúvidas do
que eu sinto. Eu faço qualquer coisa.” Ela aperta os olhos, como se o que
digo fosse uma mera bobagem e está muito distante do que ela realmente
pensa, porque não é disso que ela está falando.
“Quero que diga a si mesmo o que sente. É isso que quero que
faça.” Eu a encaro consternado. “Que diga até que acredite que é um
sentimento real e não uma carência passageira. Ou até que perceba que o
que está fazendo é simplesmente por que se sente sozinho e perdido, e que é
por isso que precisa desesperadamente de algum tipo de consolo. No caso
eu, uma mulher que sempre esteve ali para você, que sempre esteve do seu
lado. Afinal, eu sempre fui louca por você, não é? É mais fácil assim, mais
cômodo. Não existe complicações ou dificuldades. É só bater a necessidade
e eu estarei lá para fazer tudo funcionar.” Estou surpreso, apavorado e
surpreso. Então é assim que ela pensa sobre mim? Sobre o que ela foi para
mim nesses anos todos? “E aí quando tiver a resposta, volte aqui e me diga
o que realmente sente por mim. Certifique-se de que é isso mesmo, ou só
precisa que eu torne sua vida mais fácil, como eu faço na empresa.” Eu
desabo, porque ela acaba de dizer uma verdade.
Será mesmo que Karen está certa? É uma carência que estou
sentindo? Uma maneira estranha de tentar me encaixar mais uma vez?
Minha vida tem mudado drasticamente com muita frequência. Talvez essa
mudança abrupta me deixou sem chão. Talvez o que quero de Karen seja
apenas uma afirmação de quem eu realmente sou, já que perdi isso há muito
tempo.
Eu não digo nada, fico em silêncio a olhando, pensando. O que me
entrega impiedosamente. As lágrimas escorrem depressa de seus olhos,
Karen não as enxuga, enfrentando o que considera ser minha resposta.
Apesar de que não estou dizendo nada que seja, nem para ela e nem para
mim.
“Adeus, Sr. Mazza.” Ela se levanta e vai embora. Eu não a impeço
desta vez, porque me sinto derrotado. Miseravelmente derrotado.
Engulo de uma vez o resto do líquido do meu copo, fugando com
uma vontade quase corrosiva de gritar.
13
Stephen Crow
Stephen Crow
Quando Savannah disse que tinha algo para me mostrar e que iria
me surpreender, confesso que não levei muito a sério. Afinal, passei por
tanta coisa, que quase nada é capaz de me surpreender. Porém, essa
novidade em especial, não só me surpreendeu, como também me deixou
bastante apreensivo. Roger Davis, o irmão desaparecido de Savannah, bem
aqui diante de mim, reunido à minha família, na sala da minha casa,
enquanto os meus filhos estão na escola.
Pelo olhar de ambos, sei que não é uma visita de reencontro
familiar.
“Você se lembra dele, meu filho”, Savannah diz em um tom bem
mais tranquilo do que a situação pudesse parecer. Mas eu sei que a
realidade é um pouco mais complexa. “Esse é seu tio Roger Davis.”
Não precisou que ela dissesse seu nome para que eu soubesse de
quem se trata. Ele quase não mudou nada, apenas ficou mais velho,
obviamente. Um corpo mais atlético e uma expressão mais incógnita, eu
diria. A dureza em suas feições me faz ter um vislumbre de uma dualidade
perturbadora entre ele e minha própria mãe. Enquanto Savannah é amorosa
e delicada, Roger parece com o meu próprio espelho. Claro, nos meus dias
mais sombrios, o que não acontece já há um tempo.
Eu tinha quatro anos quando ele sumiu de nossas vidas, mas eu
lembro de uma vez ou outra ele aparecer para pedir refúgio a Savannah,
conforme os anos foram passando. O irmão mais novo da minha mãe
sempre causou mais problemas do que soluções. Suas visitas sempre foi
motivo de apreensão, principalmente para ela. Soube que seu rancor por
Savannah ter se casado com o meu pai e se afastado da família, foi motivo
do seu distanciamento, mas eu desconfiava que havia algo a mais nesse
passado.
Bem, apesar de se meter com dívidas, e se juntar a pessoas barra-
pesada, Roger se tornou dentista em Dallas, abriu um consultório e soube
que ganha muito bem. Era uma referência. Contudo, o passado continuava
insistindo na separação entre dois irmãos. Savannah nunca quis falar sobre
ele, e eu nunca insisti para me esclarecer alguns pontos. Mas, agora,
olhando para esse ponto, o vendo diante de nós depois desses anos todos, é
como se o passado viesse para acertar algumas contas.
“Olá, Stephen. Como vai?” Seu sorriso é amigável e pacífico. Me
sinto um moleque de novo, quando ele olhava no fundo dos meus olhos,
bagunçava os meus cabelos e demostrava o quanto eu era querido. Porém,
não me deixa nada confortável. Roger não é alguém que eu posso confiar,
não depois de tudo.
Coloco as chaves do carro e a pasta executiva em cima da bancada,
logo na entrada, e caminho próximo a eles.
“Se eu soubesse que essa seria a surpresa, eu teria me preparado
melhor.” Rio sem vontade, sentindo as mãos de Tess me confortando, assim
que me coloco ao seu lado.
“Eu disse que ele reagiria assim”, Tess diz. Como sempre, conhece
bem o meu temperamento. “Meu amor”, murmura ela, amorosa. “Sei que
pode parecer estranho agora, mas eu juro que vale a pena.” Olho para os
olhos verdes sensuais da minha esposa. Os cílios destacados, deixando seu
olhar tentador. Eu sei que ela apenas está tentando apaziguar alguma coisa.
Não forçando uma situação, ela só está sempre tentando pensar
positivamente, afim de me tranquilizar.
O olhar de Savannah temeroso pelo que eu estou sentindo, me
coloca mais uma vez como o centro do conflito. É necessário a minha
aprovação para que tudo isso não viro o caos completo. Esse tipo de
responsabilidade é enervante. Contudo, ninguém é capaz de traduzir as
minhas emoções nesse momento.
“Filho, seu tio, ele...” Savannah começa, mas Roger se coloca na
frente, tomando a palavra:
“Eu não vim aqui para causar nenhum tipo de desavença. Sei que
não nos vemos há anos, mas quando se trata de família, os percalços da vida
podem ser deixados de lado, não é mesmo?” Sem tirar os olhos dos seus,
um azul intenso, característica dos Davis, parte da família da minha mãe,
movo o lábio levemente para o lado em um sorriso petulante.
Os percalços da vida? Ele foi embora quando mais precisamos dele.
Enquanto minha mãe se tornava viúva, cuidando de uma criança pequena
sozinha, ele estava por aí, vivendo a sua vida. Enquanto ele se tornava um
médico de referência, minha mãe sofria humilhações na casa de Isaac
Mazza, depois aceitando um acordo de casamento com um homem doente,
afim de tentar salvar as nossas vidas do que aquela família nos causou.
Gregory Mazza para ser mais específico. Roger Davis nunca se importou
conosco, o que ele está querendo agora?
“Então essa é famosa Tess Eisen?” Roger desvia o olhar dos meus, e
se volta para Tess, afim de criar alguma leveza à atmosfera. Não o julgo, é
ela que sempre levou embora as minhas tempestades.
Ela usa um vestido rosé floral, que combina perfeitamente com o
seu tom de pele. Os cabelos sedosos, soltos e ondulados lhe dar um visual
praiano elegante. Um contraste perfeito entre mim e Davis, que estamos
devidamente trajados com o nosso traje de enfrentar o mundo a cada dia
que passa.
Ele se aproxima da minha mulher sorrateiramente. Segura em sua
mão com uma delicadeza perturbadora.
“Uau, é lindíssima. Você é ainda mais linda pessoalmente. Meu
sobrinho sempre fazendo as melhores escolhas.” Solto um riso irônico.
“Ora, muito obrigada, mas a escolha aqui foi minha. O que seria de
Stephen sem mim?” Com o seu poder de mulher dona de si, Tess consegue
fazer todos rirem.
“Claro, claro, você tem toda razão.” Roger ri amarelo, e Tess retira
sua mão o mais breve possível da posse de Davis. Já eu, procuro uma
explicação mais concreta de Savannah, a buscando com o olhar.
“Só digo a verdade, quando me refiro a Stephen. Soube que se
tornou um dos empresários mais bem-sucedido de Manhattan e da Flórida,
estou orgulhoso de você, meu sobrinho” O encaro, não com frieza, mas com
uma certa altivez. Nada melhor do que provar quem você se tornou para
quem nunca deu a mínima para você.
Não que Davis me desprezou exatamente, mas ele negligenciou a
minha mãe. Sendo, assim, o gostinho de sucesso é válido.
“Ainda bem por isso”, digo, o sarcasmo escapando dos meus lábios.
“Só sendo conhecido para despertar o interesse de um parente tão distante.”
O sorriso patético do seu rosto some, mas Savannah me repreende, após
uma olhada cúmplice com Tess. Ela insiste em reprovar as minhas ações,
mesmo que ela sejam autênticas, e isso me aborrece.
“Stephen...” Savannah intervém, antes que seja tarde. “Sei que está
surpreso com a visita repentina de Roger, desculpe por não ter avisado
antes, mas seu tio veio especificamente pra falar com você.” Semicerro os
olhos, não entendendo qual é o ponto. “Tem algo a lhe dizer, e tem a ver
com o seu pai.” Pisco os olhos ao levar o susto. Como se a presença dele já
não me deixasse perturbado por si só, sempre tem algo a mais.
Me sento no sofá, assim que retiro com respeito as mãos de Tess
entrelaçadas nas minhas. Cruzo o tornozelo na outra perna e espero que ele
comece. Se esse homem realmente tem algo a me dizer, pretendo me sentir
o mais confortável possível, nem que seja por alguns instantes.
“Estou ouvindo.” Ergo minha sobrancelha. “Pode começar.”
O olhar de Tess dardeja entre Savannah e Roger. É claramente um
pedido de desculpas gritante. Mas é assim que eu sempre fui: desconfiado,
em alerta a tudo. Tess é quem faz esse papel da boa vizinhança, não eu.
Quando me disseram o quanto sou rancoroso e vingativo, achei que
esses sentimentos fossem justos, se considerar o que já passei, mas agora,
olhando para o irmão de Savannah, depois de tudo que ele fez com a irmã
no passado e que nada tem a ver diretamente comigo, me deixa alarmado do
quanto sou mesmo o que todos dizem, e que isso não melhorou com os
anos. Mas, o que me custa conceber, é que ele provavelmente tem algo sério
a dizer, ele não viria à toa, minha mãe não o traria até aqui à toa. E pelo que
conversamos em sua casa, sua visita tem tudo a ver. Esse talvez seja o meu
medo e preciso me preparar para seja lá o que estiver por vir, com as armas
que eu tenho.
“É verdade, Stephen. Infelizmente, eu tenho algo a dizer. E tem a
ver com o seu pai.” Roger repete o que foi dito, sem nenhuma novidade, o
que suponho que seja algum tipo de preparação antes de me golpear.
Davis se senta no sofá disponível a frente. Savannah ao seu lado,
Tess ao meu, cruzando as pernas torneadas de fora, e entrelaçando os seus
dedos mais uma vez nos meus trêmulos. E incrivelmente funciona. Tess
sempre soube me acalmar, essa é uma das habilidades poderosas que ela
tem.
“Fica calmo. Vai valer a pena”, sussurra ela pacientemente.
Savannah deve ter lhe preparado sobre essa conversa, quando veio mais
cedo fazer o que eu havia pedido sobre a saúde dela. Ela já deve estar ciente
do assunto.
“Eu fiquei por alguns meses na casa da Savannah na época em que
você nem era nascido”, continua ele, sério e concentrado. “Convivi com o
seu pai durante aquele período e presenciei quanto ele se aliou a Lino
Berenson, por causa das dívidas de jogo que ele adquiriu.”
Agora faz sentido. Ele está aqui por todas as tramas do passado que
Jacob se envolveu. Esteve presente naqueles momentos. Como eu não
pensei nisso? É claro que ele estava lá. Questionei algumas situações com
Savannah e ela tratou de buscar por uma solução. Foi uma bela atitude ter
se prontificado pra acabar com as minhas dúvidas, mesmo sabendo que eu
não reagiria bem. Acontece que assuntos sobre o meu pai é algo que quero
obter, independente de quem venha as informações.
Roger dá uma longa pausa, procurando uma forma mais fácil de
dizer isso. Mas não há, eu sei que não há.
“Continue”, o encorajo, mostrando que estou totalmente com a
mente aberta em relação à esse assunto, independente do que isso me traga.
Desde que soube sobre o verdadeiro motivo da morte do meu pai, eu
venho procurando por respostas, afim de buscar punição para todos os
envolvidos. O mandante já estava morto, o executor preso, mas a máfia de
Lino não se limita apenas a Cruise e a ele, levando em conta o
envolvimento de Olivia Mansy, Corand Howell e Miguel Amzalag. Trouxe
Gregory Mazza para a minha vida por causa dos assuntos do meu pai, acho
que já fiz vista grossa em relação a coisas demais.
“Bem...”, tio Roger diz, meio receoso, mas disposto a falar. “Nem
sempre é fácil, Stephen. Você sabe. Eu vi um homem íntegro como Jacob
Crow com uma arma nas mãos. Eu tinha dezoito anos, mas já entendia que
o que ele estava prestes a fazer era uma loucura.” Ele dá uma pausa,
esperando por uma reação minha que não vem, tudo que quero é ouvir.
Quando ele não percebe nenhum sinal de oposição, continua: “Os meninos
de Allapattah fazem de tudo para sobreviver, é comum ver crianças
entrando para o crime. É normal querer fazer qualquer coisa para garantir
um dinheiro no final do mês, mas não aquele homem. Ele fez de tudo para
tirar a minha irmã das mãos do meu pai. Ele fez de tudo para se tornar um
homem digno dela. Eu mesmo o admirei por tudo que ele fez, e aí as coisas
mudam.” Não sei porque, mas não acredito em nada do que ele está
dizendo. Me parece mais uma tentativa de se safar do que uma atitude
nobre.
“Pera aí, eu não estou entendendo...” me mexe no assento, apoiando
os cotovelos nos joelhos, para ficar mais próximo de Davis. “Admirava o
meu pai? Desculpa, mas não foi essa história que me contaram.” Olho para
minha mãe que me parece mais apreensiva do que assustada. “Você foi
expulso da nossa casa por se meter com coisas erradas. Savannah não
poderia mais te sustentar, além do trabalho que você dava a eles. Não é isso,
mãe?”
“Isso foi depois de...” Roger interrompe Savannah que estava
prestes a se explicar.
“Pode deixar, Anna. Deixe com que eu conte a ele, sim? Assim vai
ser melhor.” Roger respira e retoma a história. “Quando descobri que Jacob
tinha uma arma em casa eu resolvi segui-lo.”
A história começa a ficar interessante, porque isso é algo que eu
também faria se estivesse lá. Volto a encostar no encosto, seguro a mão da
minha esposa e Tess descansa o braço no meu ombro, também disposta a
escutar.
“Ele estava estranho, sorrateiro, estava saindo no meio da noite
como um bandido prestes a aprontar. Eu não poderia deixar aquilo como
estava. Eu poderia ter acordado Savannah e deixado com que ela o
impedisse, mas Jacob me ameaçou. Disse que se eu não saísse do seu
caminho, ele faria com que Savannah me tirasse da casa. Bom, foi o que
aconteceu depois, mas... Segui Jacob até uma viela no meio do bairro. Uma
casa abandonada no meio do nada, quase caindo aos pedaços, muito
diferente do que era por dentro. Era... uma espécie de paraíso perdido no
meio de um lixão, se é que isso pode ser possível.” Franzo o cenho.
Eu nunca ouvi nada parecido. Os estabelecimentos de Berenson
sempre foi referência de luxo e sofisticação. Era grandiosíssimo e bem
vistoso. Um lugar para ninguém botar defeito. Porém, levando em conta de
que os cassinos bem rentáveis e com uma aparência inofensiva escondia a
verdadeira podridão que rolava, até que pode fazer um certo sentido.
“Está querendo dizer que Lino Berenson usava um disfarce?”,
pergunta Tess, curiosa e surpresa. “Então aquela pose toda que sempre
impulsionou seus cassinos já teve que ser camuflado? O que aconteceu à
polícia de Miami hoje em dia que ainda permite esse tipo de coisa?”
“Paraíso...” Sorrio com sarcasmo. Um paraíso que destruiu a vida de
muita gente, inclusive a do meu pai. E o que falar de Rachel Carter que teve
sua alma dizimada graças a perversidade do próprio pai?
“Sim, um paraíso podre e obscuro, mas que estava rendendo
milhões. Era muito recente, mas aquele lugar se tornou poderoso em pouco
tempo. Muito luxo, uísques caros, decoração de alta qualidade. Não
demorou muito para eu perceber que funcionava como uma boate. Primeiro,
achei que Jacob estava traindo a minha irmã, era óbvio considerando todas
aquelas dançarinas seminuas. Mas era bem pior: ele estava tramando
atravessar a fronteira para servir de mula para o tráfico de Berenson.”
Um negócio que cresceu rápido demais. Uma ajuda significativa de
Olivia Mansy, já que ela tinha muito dinheiro na época e repetiu o processo
anos mais tarde com o roubo do desvio de dinheiro que Gregory sonegou
com a ajuda de Amzalag. Mas, e naquela época? Isaac Mazza tem alguma
coisa a ver com isso? Não tenho dúvidas.
Fico em silêncio, mas o olhar de Tess para mim, indica que ela está
pensando no mesmo que eu. Eu adoraria saber o que se passava na cabeça
do meu pai para se submeter a isso. Entendo que era por causa das dívidas,
mas será o que ele estava pensando? Estava com medo? Será que pensou
em desistir em algum momento?
“E você tentou impedi-lo?”
Uma pergunta desonesta, levando em consideração que Roger
acabava de se tornar um adulto e não tinha poder nenhum sobre alguém que
estava com tanta determinação. E eu, será que eu conseguiria? Se fosse eu
no lugar de Roger, sobre as condições de filho, eu teria algum poder de
persuasão sobre o meu pai? Essa pergunta eu jamais poderei responder, mas
dói pensar na possibilidade que talvez eu também não teria conseguido
nada.
“Eu tentei, Stephen”, Roger parece desanimado. “Tentei tanto que
ele a apontou arma para mim.” Resfolego, sentindo o mesmo desânimo.
Sei que Savannah disse muitas vezes sobre ter perdoado meu pai, e
o quanto ela se esforçou para que a imagem que eu tinha continuasse
intacta, mas é difícil fazer isso, quando estou diante dessa conversa. Meu
pai teve muitos motivos para fazer a coisa errada, mas tinha muito mais
para não fazer. Havia uma família recém construída ali. Isaac, pelo que eu
soube, o ajudava sempre que podia. Só de pensar em Tess e nos meus
filhos, cogitar a possibilidade de colocá-los em risco, me deixa
profundamente apavorado. Não acredito que meu pai tenha perdido esse
senso.
“Stephen, você sabe o quanto o seu pai era temperamental. Eu já
disse isso. Ele era parecido com você. Quando alguém tentava fazê-lo
mudar de ideia, as coisas não ficam legais.”, Savannah diz, afim de
minimizar a facada que Roger acabou de usar contra mim. Uma tentativa de
justificar o injustificável, mas Savannah é assim. Seu senso de apaziguar,
vai além do que está diante de seus olhos. Ian diria que minha mãe é
cautelosa, eu digo que é ingênua.
Me levanto furioso.
“Não acredito que está colocando essa questão em cima de mim.”
“Stephen, calma”, Tess tenta mais uma vez me acalmar, mas não
está sendo fácil. “Savannah só está tentando te mostrar que a situação de
Jacob não era tão simples como pensamos. Se tratava de dívidas pesadas, e
ele tinha uma família pra sustentar. Haviam outras pessoas da pesada o
ameaçando. É normal ele ter tido uma...” Rio incrédulo, olhando para a
minha esposa, não a reconhecendo.
“Normal? Eu não acredito que você disse isso. E se fosse eu nessa
situação? Se fosse eu me envolvendo no tráfico, arriscando a vida dos
meninos, a sua e até mesmo a minha, em prol de algo que eu conseguiria
trabalhando. Você aceitaria numa boa?” Tess suspira vencida, lidar comigo
é uma tarefa difícil, mas ela sabe que tenho razão.
“É diferente, é...” Ela tenta argumentar, mas sem sucesso.
Agora sim Savannah fica inquieta, um pouco envergonhada. Mas a
culpa não é dela se tudo que meu pai fazia era longe dos seus olhos.
“A questão é que eu ameacei contar para Savannah tudo que ele
estava fazendo.” Roger brada, dissolvendo a tensão do momento. “Disse
que eu não ia permitir que minha irmã continuasse com ele se estava
disposto a colocá-la em risco. Só que em vez de eu ter feito o que tinha que
fazer, apenas ameacei. O resultado é que Jacob tratou de me colocar contra
Savannah, fazendo com que ela me expulsasse. Típico, não é?”
Meu pai devia está mesmo desesperado. Mas também era um fraco.
Um homem fraco desesperado é capaz de tudo para proteger a família. Me
deparei com esse vacilo uma vez quando ordenei a morte de Christopher
Dervishi. Talvez o sangue não nega, mas eu tive fibra para conter os meus
impulsos.
“Você sabia o que meu pai fez? Sabe disso tudo que Roger está
contando?”, pergunto a Savannah.
“Claro que não”, diz com tranquilidade, sem qualquer peso diante
da minha revolta. “Se soubesse eu teria falado. Não foi esse o nosso
combinado? Descobri agora, quando Roger decidiu contar.” Olho para ele.
Então foi com ele que ela descobriu informações sobre Phillip e
Isaac, não foi com Ian, já que ele se mostrou desinformado.
“Depois de tanto tempo?”
“Achei que esse seria o momento certo, apenas isso. Você já é um
homem adulto, julguei que agora sim saberia lidar com as questões. Tenho
visto também muitas notícias nos jornais sobre essa máfia de Berenson e a
forma como ele morreu. Um castigo, eu diria. Eu não poderia continuar no
meu mundinho sabendo tudo que eu sei.” Analiso suas feições.
Roger sabe de muito mais do que está dizendo. Ele não apareceu
somente para dizer como foi que sumiu e os motivos. Ele sabe de muito. E
o que ele sabe, com certeza irá esclarecer de vez os rumos que as coisas
tomaram, que envolvia os homens mais poderosos de Miami.
“O que eu vou dizer e mostrar vai esclarecer muita coisa sobre o
que anda preocupando o Mazza, então sugiro que analise as gravações e o
chame até aqui, caso for de seu interesse compartilhar.” Acaricio o meu
próprio maxilar e penso a respeito.
17
Gregory Mazza
Não consigo dormir. Minha cabeça está a mil. Talvez seja porque
Lily não está em casa. Apesar de ela ter me ligado agora a pouco, para dizer
que estava indo dormir, é como se algo ainda faltasse em mim. Entretanto,
Lily já passou tantas noites fora, e eu nunca perdi o sono. Talvez seja
porque está com Rachel, apesar de acreditar que jamais lhe faria mal. Deve
ser também o fato de que Stanton tenha tomado o que é meu. Eu falhei,
falhei mais uma vez comigo mesmo e com a minha família. Me sinto tão
mal, no entanto não tenho forças para lutar. Ou talvez, eu seja incapaz de
lutar. Não sei por onde começar. Essa também é uma forma de falhar. Acho
que o brilho no olhar de Karen é o que me salva. A sensação que senti hoje
foi indescritível. Não é um sentimento imaturo de um adolescente, mas um
sentimento maduro. Consigo enxergar todas as implicações que isso pode
causar, mas também enxergo maneiras para fazer infinitamente melhor do
que jamais fiz. Ela me inspira a isso, a ser melhor.
O celular toca em cima da mesa, não tenho energia para atender.
Não há mais quem me ligue há essa hora. Se eu for atender é só para ouvir
mais problemas, Karen já me confortou muito por uma noite, não quero
estragar isso com más notícias.
O toque estridente insiste, me mobilizando a dar pelo menos uma
espiadinha. Desistem, mas logo voltam a insistir. Solto um suspiro irritado e
finalmente verifico quem é.
Stephen.
O visor é bem claro em dizer. Eu quase não acredito. Dou numa
olhada no relógio e são quase meia noite. Me apresso em atender, ele deve
ter alguma novidade útil.
“Stephen?” É mais uma surpresa que pergunta.
“Olá, Gregory. Preciso que venha até a minha casa. Acho que tenho
algo que você gostaria de saber.” O tom urgente e inquestionável, me faz
levantar da cama em um salto, sem protestar.
Será que dessa vez encontro as soluções para os meus problemas?
18
Gregory Mazza
Passado
Stephen Crow
Gregory Mazza
Deve ter sido essa sensação que Stephen sentiu quando conseguiu
recuperar a RoadCopper das mãos de Howell, Watter e Olivia Mansy, a mãe
da sua esposa falecida, porque a sensação é realmente prazerosa. Entrar
aqui e poder brigar pelo meu território, é gratificante. Há alguns anos, era
Stephen que brigava comigo pelo que era dele. Tê-lo ao meu lado, é como
uma ironia do destino. Nossa! Quando é que eu imaginaria?
Assim que escancaro a porta do escritório do banco, vejo Phillip
Stanton sentado na poltrona do meu pai, à vontade, como se estivesse em
sua própria casa. Ele é tão patético e egocêntrico que me dá pena. O que
leva um homem como ele ter ficado ao lado de Lino Berenson? As
motivações das pessoas continuarão sendo uma incógnita para mim, mas
talvez eu sou capaz de presumir.
Nada abalado, Phillip se levanta da poltrona, retirando as mãos que
estavam apoiadas na nuca. Ele me encara como se eu fosse um mero
empregado, enquanto ele, o patrão.
“Não sabe bater, Mazza! Ainda pensa que este é o seu banco?”
Phillip é como uma piada para mim. Olho em seus olhos e me dá vontade
de rir.
Caminho alguns passos próximo a ele. Encarando bem essa cara
nojenta que ele tem.
“Você quis dizer meu banco, certo, Stanton? Porque é isso que ele é:
meu.” Stanton ri de lado, sua expressão desafiadora é muito corajosa, devo
admitir, ainda mais para um homem que tem vários crimes nas costas. Tão
ameaçador como um animal selvagem em busca de uma caça.
“Vejo que aprendeu muito com o seu pai. É tão prepotente quanto
ele, não é?” Stanton caminha pelo espaço, reflexivo. “Isaac tinha fama de
coração gelado, justamente pela forma fria com que tratava o seus negócios,
mas eu posso dizer com toda a certeza, que ele pode ser o oposto disso
quando precisa. Principalmente quando nossos interesses são colocados a
prova. Não é essa a essência do ser humano?” Ele me encara sério agora,
como se tivesse o destino na palma das suas mãos. “Todos nós temos um
ponto fraco, Gregory. Qual é o seu?” Ameaças, intimidações. É como agem
os chacais de Miami. Um rato mais sujo do que o outro. Aonde foi parar a
dignidade dos nossos cidadãos? Francamente.
“Não sei.” Uma voz preenche o espaço, logo após a porta ser aberta.
“Me diz você, Stanton”, Stephen brada, o tom da voz imperioso, fazendo
com que Stanton amoleça só um pouquinho.
O que era uma postura segura e destemida, se torna em alerta, como
se detectasse perigo.
“Mas o que é isso? Quem vocês pensam que são pra entrar no meu
escritório sem a minha permissão?”
Me aproximo ainda mais dele. A respiração descontrolada é visível.
“Seu escritório?”, murmuro, cortante, implacável. “O escritório é
meu, Stanton. Eu não acabei de dizer isso a você? Mas como eu sou
bonzinho, vou te dar alguns minutos pra recolher as suas malditas coisas e
dar o fora daqui.” Stanton olha de mim para Stephen. Olhos arregalados,
como se o passado e o presente se unissem em um só. Stephen como Jacob
e eu como Isaac. Ele sabe que a coisa para não está nada normal. Ainda
assim, não se dobra.
“Lamento, mas isso não vai acontecer. Eu tenho uma procuração em
meu nome assinada pelo próprio Isaac.”
“Uma procuração falsa”, Stephen diz. Ele retira um papel de dentro
do bolso do paletó e mostra a cópia do documento original que meu pai
escreveu dizendo tudo. Ele estava lá, entre as muitas provas contra Stanton
que achamos. Phillip fez meu pai assinar aquele documento, mas
imediatamente criou uma contraproposta.
Phillip pega o papel e verifica cada linha. O assombro cada vez mais
aumentando.
“É como você age, não é? Procurações falsas, chantagens... Foi o
que você fez com o meu pai, Jacob Crow.” A pupila de Stanton dilata, estou
tão perto que sou capaz de checar. A menção de Jacob Crow é como um tiro
de misericórdia à presença de Stephen. Essa é uma confirmação cabal de
que seus crimes foram descobertos.
Ele sorri, mas é só para aliviar a própria tensão.
“Seu pai era um porco maldito que era capaz de fazer tudo por causa
de alguns trocados. Ele mereceu a morte. Mereceu por ser um ser
insignificante.”
Nessa hora Stephen quase perde a cabeça. Ele tenta avançar em
Phillip, os olhos cheios de lágrimas de ódio, dor e revolta. Para ele não deve
ser nada fácil estar diante de um dos responsáveis pela morte do pai que
tanto amava. Mas eu impeço que avance, segurando em seu braço. Não
podemos desperdiçar essa oportunidade perdendo a razão agora. Balanço a
cabeça.
“Não vale a pena”, sussurro. Stephen para o passo, mas eu sei o
quanto está louco pra quebrar a cara desse desgraçado. Bem, ele não é o
único.
“E você se aproveitou disso”, ranjo os dentes, indo a frente de
Stephen. “Sabe, Stanton, nem um dos que cometeram algum crime ou
foram responsáveis por grandes escândalos tiveram um final feliz. Não
soube sobre o seu sócio? E Cruise Badon? Todos eles pagaram pela morte
de Jacob.”
Recuperando o fôlego, Stephen se dirige a Phillip:
“Eu sempre tive como objetivo fazer com que todos os culpados
pela morte do meu pai fossem punidos. Foi uma tarefa árdua, confesso. Não
consegui nem cinco porcento. Melhor dizendo, o assassino foi preso, o
mandante morto e agora estou diante do que o entregou. Não é incrível?”
“Do que é que você está falando, maldito!”
“Estamos falando da trama que você causou para conseguir pegar
dinheiro do meu pai. Deu uma de X9 pra cima do Crow para conseguir o
tão famigerado Bank Mazza, não foi? Mesmo aqueles milhões de dólares
sendo transferidos para sua conta mês a mês, você queria mais. Que
ganancioso filho da puta, Phillip Stanton!” O choque no rosto do
desgraçado é um aperitivo. Ele não fazia ideia de que as provas ainda
estavam circulando por aí.
“Isso não é possível”, ele murmura, cabeça baixa, olhos arregalados,
se borrando. “Ela disse que...” Não precisa ser gênio para saber de quem ele
está falando.
“Minha mãe?”, digo. “É, ela tentou me usar para pegar as suas
provas, mas você deve saber que o que Isaac Mazza tinha a oferecer para
Nicole era muito mais do que seu negócio criminoso. Da mesma forma que
Nicole jamais poderia fingir uma gravidez para conseguir pegar o
milionário, ela também precisava de algo concreto, um negócio limpo como
o Bank Mazza. Sinto muito, meu caro, mas você confiou na mulher errada.
O meu nascimento pode ter ajudado quando se tratava de chantagear Isaac,
mas atrapalhou quando você precisou lidar com a ganância dela.” Os lábios
de Stanton frange. Ele está quase entrando em um colapso.
“Isaac merece pagar por tudo que ele fez comigo.”
“Acontece que meu papai está morto, Stanton.”
“Não foi Isaac quem te denunciou, Phillip. Foi o Berenson.”
Stephen dá mais outro tiro de misericórdia.
É tão bom assistir a tudo isso. Estar diante do fracasso desse
homem, é infinitamente prazeroso, quase como um orgasmo. É um
divertidíssimo entretenimento.
“O quê?”
“Não disse? Você confiou na pessoa errada. Você só confiou em
pessoas erradas. Berenson é um deles. Ele traiu você quando percebeu que
não fazia mais parte dos seus planos. Deveria ter fingido melhor, Stanton.”
O queixo dele está trêmulo. Uma mistura de raiva com aflição.
“E agora, Phillip, você vai pagar. Você ferrou com o meu pai, com o
pai de Gregory, agora somos nós que vamos te ferrar. Não dizem que até as
dívidas são herdadas pelos filhos? Estamos aqui para cobrar.” A risada de
Phillip não condiz com a expressão de medo que ele possui, mas é claro que
irá interpretar o papel até o último momento.
“Vocês estão malucos.” Ele tenta sair, mas eu e Stephen nos
colocamos em sua frente.
“Aonde você pensa que vai?” Ele tenta passar de novo. Vários
policiais adentram o escritório impedindo sua fuga, definitivamente.
“Phillip Stanton, você está preso por fraude, falsificação ideológica,
formação de quadrilha e assassinato.” Os policiais o algema. Posso sentir a
raiva de Phillip em cada poro.
Stephen e eu nos entreolhamos, o sorriso no rosto por ter finalmente
pego o homem que queríamos.
“Ah, eu adoro fazer isso!” Vibra Stephen, cheio de orgulho. Para ele
é como um Deja vu.
*
Assim que saímos do prédio, os jornalistas invadem as escadarias,
posicionando seus microfones, tanto na frente de Stephen quanto na minha.
Escuto efusivos: “Sr. Mazza”, “Sr. Crow”, ecoando por toda parte. Em meio
a tanta balburdia fica difícil saber se estão procurando a notícia, ou se
querem saber o motivo de dois inimigos conhecidos pelo público estarem
juntos, em meio a prisão em flagrante de Phillip Stanton.
Um jornalista nos aborda, enfim.
“Sr. Mazza, nos conte com mais detalhes sobre o que tem
acontecido ao Bank Mazza nas últimas horas? A permanência de Phillip
Stanton é realmente inelegível?” Olho para Stephen, ele faz um sinal leve
de cabeça, para que eu siga em frente com as respostas. Assinto.
“Sim, totalmente. Eu e meu amigo Stephen aqui...” pouso minha
mão em seu ombro, dando batidinhas. “...descobrimos provas irrefutáveis
sobre o caso. Phillip Stanton é um mafioso, assim como Lino Berenson e
tantos outros que tem enfestado a nossa cidade. E terá o que merece.”
“Então você e Stephen Crow, trabalharam juntos nesse caso?” Olho
para ele mais uma vez. É inacreditável tudo isso, mas é o que parece.
“Sim, estivemos”, Stephen responde, deixando claro o que
decidimos fazer desde que descobrimos que tínhamos um inimigo em
comum. “O banco é da família Mazza, contudo, Gregory é o herdeiro. Nada
mais justo do que recuperar o que lhe é de direito.”
Não sei porque, mas acabo de ter uma sensação incomum. É como
voltar no tempo, quando Stephen e eu éramos amigos, e eu me lamentava
pelo banco ter ido para as mãos de Jenson e não para as minhas. Só que
agora é diferente, eu o possuo e Stephen está dizendo as palavras que talvez
ficaram guardadas para quando este dia chegasse. É uma sensação boa,
diga-se de passagem.
“Sim, claro. O tão disputado Bank Mazza. Depois de anos e ainda
continua sendo alvo de polêmicas. Inacreditável. E agora quais são os
próximos passos? Assumir definitivamente a cadeira do Bank Mazza?”
Nego com a cabeça. Sentindo-me relaxado por dentro.
“Procurar alguém que faça isso”, digo, calmamente. É necessário
olhar para mim algumas vezes para ter certeza do que acabei de falar.
“Pretendo vender o Bank Mazza muito em breve. Quem sabe o tão
polêmico banco pare de causar tanta comoção?” Rio. Minha frase é tão
extraordinária que Stephen está em choque.
O mais extraordinário disso é enxergar a minha própria loucura
através de seus olhos. Estou abrindo mão da minha maior obsessão diante
do homem que foi arruinado justamente por causa dela. Não haveria um
momento melhor para isso. Minha redenção completa diante de Stephen.
“Vender? Mas o Bank Mazza não é patrimônio da sua família?”, o
repórter pergunta.
“O patrimônio da minha família são as pessoas que vivem nela.
Minha filha, minha sobrinha e claro, meu falecido pai. Esse prédio.” Olho
para esse lugar com desdém. Os melhores anos da minha vida destruídos
por causa dele. O meu pai destruído por causa dele. E pra quê? “É apenas
um amontoado de concreto. Não serve para nada. Realmente não vale a
pena, obrigado”, finalizo e saio, com o coração em paz pela primeira vez
em anos.
Stephen Crow
Gregory Mazza
*
Tudo que construí até aqui, surpreendentemente hoje, me traz
satisfação. Percebi que tudo que eu queria, o poder, a notoriedade que
conquistei, não passava de um grito desesperado por atenção. Eu
desconfiava que fosse, muitas vezes até me questionei, mas mesmo assim, o
sentimento de perca ainda me causava um certo choque por dentro. Mas
agora, depois de ter renunciado, principalmente dentro de mim o Bank
Mazza, aquela sensação de desespero trouxe um alívio ao ser removido.
Sou capaz de me enxergar como um todo, e não pela metade, e saber
verdadeiramente o que eu quero. Acho que venci. Não é o que as pessoas
dizem? A vida é um processo, meus altos e baixos me ensinaram, me
machucaram, mas também me tornaram mais forte, não em termos de
dinheiro, mas emocionalmente. Acredito que abrir mão me tornou mais
forte.
Agora, olhando para o meu escritório, percebo que as amarras que
antes me prendiam, finalmente foram desatadas. Caminho lentamente até a
poltrona. O espaço amplo e luxuoso se torna agora uma parte de mim, não
mais o todo. O uísque disposto no bar, antes na metade agora está cheio. Os
porta-retratos com a foto de Tess me traz um estranho sentimento de
renúncia. Assim como o Bank Mazza, acho que acabo deixando a minha
obsessão para trás.
Pego o objeto em mãos e olho para o momento feliz que não volta
mais, impresso nessa fotografia. O momento que ela era Tess Mazza, e que
agora é Tess Eisen, Crow, no papel. Esse sorriso feliz que ela trás, não
pertence mais a mim. Pertence a Stephen, e nunca vai voltar a ser meu. E eu
aceito. Finalmente aceito o destino que me dei. Ainda que não seja do jeito
que eu queria, é o mais próximo da libertação que eu tenho hoje.
Retiro a foto de dentro do porta-retrato, e coloco em cima da mesa
de vidro. Pego o outro, e tiro a segunda foto. Não faz mais sentido essas
coisas estarem aqui. Olho mais uma vez, o papel agora em mãos. Respiro
fundo e rasgo em pedacinhos, uma depois a outra. Rasgo não por ódio,
despeito ou dúvidas. A Tess precisa ir, e o primeiro passo para que ela vá, é
removê-la em definitivamente do meu coração, da minha alma. É assim que
eu sigo em frente, é assim que eu vivo a minha vida.
As portas do meu escritório na Mazza Undertaking se abrem e
Karen entra. Deixo os rasgo de lado e a encaro, meu coração acelerando de
emoção em vê-la. A cor verde-musgo dos seus olhos estão marejados, mas
admirados. Ela sabe o que houve com o Bank Mazza, sabe o que eu fiz, já
que nada do que eu faço passa despercebido. Mas o melhor disso tudo é que
Karen entende o significado das minhas atitudes, ela sabe o que aconteceu
aqui dentro. Não é um olhar de orgulho como o de Stephen e de Jenson, é
de alívio. Ela sabe que foi um peso que estava nas minhas costas que foi
removido. Meu coração dispara com tanta profundidade e ternura que é
como me revelar. A pessoa certa para mim esteve o tempo todo ao meu lado
e eu não percebi.
Karen dar alguns passos mais próximo e eu saio de traz da mesa, me
aproximando dela, para nos encontrar o mais rápido possível. Meu coração
acelerado cada vez mais, respiração tensa, estou quase explodindo. Seus
olhos desviam para a mesa, e ela ver as fotos da Tess picotadas ao lado dos
porta-retratos vazios. Uma lágrima escorre de seus olhos, pois nessa atitude,
está a resposta das duvidas que ela tinha sobre o que sinto por ela.
“Greg...”, meu apelido sussurrado em seus lábios é como uma
chama que acede o meu corpo inteiro. Entro em combustão em instantâneo,
não suportando mais ficar nem um minuto sequer longe dela, do seu corpo,
dos seus lábios.
Caminho rapidamente até Karen, segurando em sua nuca com afago,
tomo seus lábios em um beijo apaixonado, profundo, tenro e desesperado.
Ela arfa em meus braços. Suas mãos me domam, apertando os meus
músculos, reivindicando o seu direito de me amar. É louco, insano e muito,
muito bom.
Segurando suas pernas nuas, por causa da saia lápis que usa, ergo
Karen em meus braços. Suas pernas enlaça a minha cintura e o beijo torna-
se mais potente. Os gemidos que ela solta me inspiram a tocá-la com
sofreguidão. Sento Karen no tampo da mesa, e com as mãos livres, ela
desabotoa a minha camisa, beijando com fúria o meu peito nu. Ela olha para
mim, quando estou prestes a retirar a sua blusa social verde, mas ela me
interrompe, indo até o botão do outro lado da mesa e apertando, até que os
vidros transparentes do escritório fiquem opacos. Agora somos apenas eu e
ela, e nosso desejo em nos tornar um do outro.
Abro os botões da sua blusa, revelando a lingerie branca de seda que
ela usa. Os peitos de Karen são empinados, firmes, suculentos. Os chupo
um a um, assim que arranco seu sutiã. Com a cabeça pendida para trás, eu
lambo o seu pescoço, perpassando a mão por todo o seu corpo. Ela leva as
mãos até o cinto da minha calça e o abre, enfiando a mão quente macia por
toda a extensão do meu pau duro. Agora sou eu que gemo, gemo como
nunca, enlouquecido. Tiro sua calcinha, assim que retiro a saia.
Ambos já nus, eu a penetro como se deve. Delicado, porém firme,
apaixonado, porém cheio de desejo. Tomo os lábios de Karen novamente,
nos conectando com paixão. Eu sou seu e eu acabo de sentir o que eu não
senti da primeira vez que estivemos juntos: ela também é minha. A minha
parceira, minha confidente, a mulher mais leal que eu poderia contar em
todos esses anos; a mulher que esteve comigo, que conheceu o melhor e o
pior de mim e que se manteve ao meu lado, sendo alguém digna, no meio
da minha indignidade. Antes eu não merecia a Karen, agora sinto que se
não sou merecedor, quero me tornar um, quero lutar por ela, cuidar dela, da
mesma forma que ela cuidou de mim. Não por gratidão, mas por amor. Pois
o amor que sinto por Karen é pacífico, me traz conforto e paz. É disso que
eu preciso nessa nova fase da minha vida.
Arremeto mais rápido, mais rápido, mais rápido e mais rápido.
Karen... Gemo mas alto, eu gemo mais alto e assim gozamos. Sinto cada
parte de mim se conectar, cada estilhaço de mim encontrando a sua base.
Olho para ela, vermelha, ofegante. O sorriso nos lábios. Acaricio
seu rosto, depositando beijos em cada parte da sua pele.
“Eu te amo...”, sussurro, bem rente à sua orelha, beijando a
cartilagem em cima do piercing que eu nem vi que estava aí, mas que ficou
sexy. “Entendeu? É você que eu amo. Não há ninguém, não há dúvidas
alguma. Eu não estou carente, eu estou apaixonado.” Ela arfa
profundamente.
“Eu também te amo, Sr. Mazza.” Meu sobrenome, que tanto ouvi
em seus lábios por todos esses anos, não nos coloca como Chefe e
funcionária, mas como um acontecimento que nos trouxe a isso, um
amando o outro.
Sorrio pra valer, me sentindo feliz pra caralho! Karen também sorri,
pendendo o pescoço sexy para trás, me fazendo ter desejo de beijá-lo, é o
que eu faço e farei todos os dias que eu quiser.
25
Gregory Mazza
Quando abro a porta, a pequena Lily corre até os meus braços toda
eufórica. Daquele jeito que só ela sabe fazer.
“Paaaaaapiiiii!”
Eu a pego nos meus braços, a beijando sem parar, matando a
saudade que eu estava da minha filha.
“Que saudade, filha! Se divertiu?”
“Aham, aham. Mamãe e eu visitamos todos os lugares. Fomos até o
castelo de Hogwarts. E tem uma coisa, papai: ela não reclamou que estava
cansada igual você.” Gargalho.
“Talvez eu esteja ficando velho.” Já Rachel, tem toda a energia do
mundo. Já faz um tempo que não faço treino de boxe, ela deve ter
continuado com o Krav Magá. A vida que ela estava levando exigia isso.
“Um velho e ranzinza. Quem diria!” Caçoa Rachel, segurando a
mala de Lily nas mãos, ao entrar no apartamento.
“Haha, muito engraçado!” Ela ri.
Rachel realmente cumpriu com o prometido, trouxe Lily para casa e
ainda voltou com ela. Não a deixou em uma esquina qualquer, com um
bilhete pendurado, para que eu pudesse pegá-la. Um feito histórico.
Coloco Lily no chão e a encaro, admirado, eu confesso. Lily está de
banho tomado, cabelos penteados e tem o cheiro do perfume dela. Consigo
ver até um pouco de maquiagem rosa-claro nos lábios e nos olhos. Elas
devem ter passado um momento incrível entre mãe e filha.
Lily pega a sua mochila das minhas mãos, me chama com um gesto,
para que eu possa me inclinar de modo que eu fique bem perto dos seus
olhos.
“Diga, pentelhinha.” Com a mão, ela cobre a lateral da boca, se
aproximando da minha orelha, e então sussurra:
“Eu te amo, papiii”, declara. “Você é o meu amor, não posso viver
sem você.” Ela sai correndo, sem esperar a minha resposta e sobe as
escadas.
Ao olhar para Rachel, ela está sorrindo com ternura, eu por outro
lado, estou emocionado. Nem a presença da mãe fez com que o amor que
Lily sempre sentiu por mim se acabasse.
“Obrigado por trazê-la de volta”, digo a Rachel.
Sei que não é um favor, portanto nem era para eu agradecer. Se
Rachel tivesse ao menos cogitado a possibilidade de fugir com a minha
filha, eu tomaria as minhas providências, mas o meu agradecimento é por
outro motivo. Talvez o fato de ela ter dado uma chance para se aproximar
dela, para fazer as coisas certas e agir com dignidade, no final das contas.
Rachel sabe compreender isso.
“Foi legal”, murmura, se jogando no sofá. “Lily é mesmo fã de
Harry Potter, me fez até usar uma veste de bruxinha. Não vou dizer que não
me identifiquei.” Ela solta uma risada. “Comemos doces do universo do
livro e nadamos na piscina do clube. À noite eu achei que nem fosse dormir.
Pulamos na cama do hotel e bagunçamos tudo, e depois, eu estava mesmo
animada para o próximo passeio que ela mesma programou. Eu queria
mesmo ver o castelo de Hogwarts, Gregory. Veja só.” Rachel está surpresa
com ela mesma. Suspira ali deitada, com as mãos na barriga. “Era
realmente como está lá, sem tirar e sem por.” Ela reflete, contemplativa. “A
Lily se divertiu, mas acho que me diverti muito mais.” Quando me dou
conta, estou sorrindo, orgulhoso. “Não me olhe assim, eu disse que ia
tentar.”
“Assim como?” Depois de tudo que ela me disse, como Rachel
espera que eu reagisse? “Feliz por você ter agido de uma forma correta?
Orgulhoso por ter se dado uma chance de ter se aproximado desse jeito da
sua própria filha? Desculpa, mas não tem como reagir de outra forma.” Ela
se ergue minimamente e me olha sem desfazer sua feição tranquila. Os
olhos azuis intensos tem um brilho diferente.
“Ela é incrível, Gregory”, murmura, emocionada por causa da filha,
e isso acaba me emocionando também, porque é algo que tenho presenciado
durante esses seis anos. “Uma menina doce, esperta... ENGRAÇADA!” Ela
dá uma risada se lembrando. “Eu ri tanto que minha barriga doeu, eu te
juro.” Rio, pois eu sei do que ela está falado. Os olhos de Rachel se enchem
de água, coloca a mão nos cabelos os jogando para trás, afim de conter a
emoção. “Eu não quero mais ficar longe dela”, sussurra, em um fio de voz.
Uma convicção que eu nunca tinha vista em seu olhar antes. “Você entende
o que eu quero dizer?” Assinto, também deixando a emoção tomar conta de
mim.
“Claro. É o que Lily tem feito comigo por todos esse anos.” Me
aproximo de Rachel, sentando ao seu lado. Ela coloca as pernas em cima do
meu colo. “Quando peguei Lily em meus braços pela primeira vez eu sabia
que ela precisava de mim, que eu precisava ser para ela como um amparo.
Eu tinha como objetivo cuidar dela, alimentá-la e amá-la. Mas ao decorrer
dos anos, eu percebi que quem precisava dela era eu. Eu esperei por Lily a
vida toda. E eu agradeço muito você por isso. Pela nossa filha.” Rachel abre
um sorriso feliz, um olhar doce, ao me ouvir dizer nossa.
“É tão estranho, não é?” Uma lágrima rola dos seus olhos. “Uma
criança tão pequena ser capaz de devolver a cor do mundo para a sua vida?
Porque foi isso que ela fez comigo. Eu estava em pleno escuro. Em um
fundo tão sombrio que não achei que teria mais volta, mas aí de repente...
Eu não sei o que vai acontecer, Gregory. Não sei se serei uma boa mãe para
ela, mas eu quero tentar. Ela me faz querer tentar. Pela primeira vez, é isso
que eu quero fazer e espero que concorde com isso. Muito obrigada por ter
escolhido falar para ela sobre mim.”
Eu não estava nessa viagem para saber o que aconteceu entre elas,
mas sei que Rachel respeitou os limites de Lily como criança e respeitou a
si mesma como, se não uma mãe, como pelo menos uma adulta que estava
disposta a zelar por ela, a proteger seja o que fosse. Sei que ela fez seu
papel direitinho, porque isso está estampado em seus olhos. E ela gostou do
seu próprio desempenho. Rachel pôde conhecer a si mesma e acabou
experimentando algo que nunca havia experimentado. Aposto que seu
passado, tudo que ela sofreu, desapareceu enquanto estava com Lily. Eu sei
porque é isso que acontece comigo todos os dias. O passado vai morrendo
aos poucos ao lado dela. Eu sempre quero ser alguém melhor só para ela.
Eu não poderia tirar essa dádiva que Rachel descobriu e admitiu a si
mesma, e nem quero.
“É claro que eu concordo.” Levo minhas mãos até a sua bochecha,
enxugando suas lágrimas e acaricio. Não existe mais razão para choros.
Finalmente Rachel e eu chegamos a um denominador comum. Estamos
unidos pela Lily e tudo que quero é uma trégua. “Seremos os pais da Lily,
Rachel, e é isso que importa agora.” Ela faz uma careta por conta da
nomenclatura, acha que está cedo demais para isso, mas logo sorri também.
“Mas mudando de assunto”, Rachel diz, sentando-se direito no sofá.
“...eu vi o que fez com o banco. Olha só, você cresceu mesmo! Nem
precisou da minha ajuda para liquidar Stanton.” Meneio a cabeça. As coisas
finalmente ficando claras para mim.
“Você não voltou por causa do Stanton, não é?” Ela assente.
“Foi. Ou você acha que eu deixaria aquele desagrado ferrar com
você? Mas confesso que lá no fundo eu sabia que você se viraria sozinho
sem mim, então acabei me distraindo com a Lily. Eu precisava acertar a
minha vida no meio disso tudo.” Concordo com a cabeça. “Você e Stephen
realmente completam um a outro.” Cuspo uma risada.
“Antes eu queria tudo o que tinha, agora eu desejo toda a felicidade
do mundo para ele. Talvez esses dias têm me feito enxergar que a dor que
ele sentia pela morte do pai era exatamente o que eu sentia pela presença do
meu, você consegue entender?”
“Claro. A vida de vocês estava entrelaçada desde o começo. Seus
pais eram amigos e agora vocês trabalharam para resolver o que eles
começaram lá atrás. Isso que eu digo que é o destino!” Dou de ombros.
“Jacob deixou uma carta para Stephen”, comento, tirando a Rachel
um pouco da sua zona de conforto, mais uma vez. Reflito por um instante.
“Estava nas coisas de Isaac. Meu pai guardou por todos esses anos. Não
fiquei lá para saber o que estava escrito, mas quando voltei, Stephen estava
em prantos. Acho que pude contribuir para alguma coisa importante na vida
dele também, e foi legal, eu confesso.” Rachel força um sorriso.
“Jacob e suas cartas má intencionadas...”, murmura. “Cuidado pra
seu amiguinho não se decepcionar.” Fico sério.
“Acha que foi manipulação?” Rachel nega com a cabeça.
“Claro que não. Jacob amava aquele garoto. Mais do que minha
compreensão de amor pudesse alcançar. Talvez eu tenha aprendido um
pouco com ele.”
Levando em conta o que ela está tentando fazer por Lily, pode ser
que tenha alguma influência de Jacob sim. O amor que ele a fez sentir,
mesmo que breve. E eu sou grato por isso.
“Eu não tenho dúvidas.” Sorrimos juntos.
“Também estou feliz por você, Gregory. Por ter conseguido o que
queria e se livrado do que precisava. Espero poder alcançar isso em breve.”
Seguro sua mão e a aperto.
“E vai. Você provou que consegue, e eu estou aqui pra ajudar você.
Nós estamos, Lily e eu.” Ela sorri.
Karen estava descendo as escadas assim que olhei naquela direção.
Está de banho tomado, vestida com as mesmas roupas que estava ontem,
quando chegou aqui em casa comigo.
“Ora, ora!”, cantarola Rachel. Ela passa de melancolia a deboche na
mesma velocidade. “Não é que a secretária conseguiu fisgar o chefe? Quem
diria! Confesso que até mesmo eu duvidei da sua capacidade, Karen.”
Rachel solta uma gargalhada.
Karen fica sem jeito diante da piadinha. Me levanto e vou até ela,
abraçando Karen de lado, procurando cuidar dela.
“Ela só veio trazer a Lily”, sussurro, tentando desfazer um possível
mal-entendido. Karen sorri, balançando a cabeça.
“Não se preocupe com isso.” Dou um beijo em seus lábios.
“Ai, meu Deus ela está com ciúmes!” Rachel gargalha, se
levantando do sofá e olhando bem para Karen. “Não se preocupe, Osmond.
Entre mim e Gregory não vai haver mais nada. A única coisa que temos é
uma filha. Ele não quer e muito menos eu. Eca!” Não sei se me ofendo, ou
fico feliz por ela garantir que está tudo acabado entre nós. “Gregory é fértil
demais para uma segunda vez. Uma filha já é o suficiente.” Ela espanta
algo, como se tivesse pavor da ideia.
“Rachel, menos, tá?”, murmuro.
“Bem, vou deixar os pombinhos em paz.” Ela dá uma boa olhando
para nós. “E não é que formam um belo casal? Parabéns, Osmond. Eu
sempre soube que de boba você não tinha nada.” Karen sorri
amigavelmente.
“Obrigada, Rachel. Te desejo toda a felicidade do mundo.” Rachel
assente, dando uma boa olhada para nós dois. Vejo conformidade, mas
também tristeza, e então vai embora.
Suspiro, sentindo uma brisa leve tomar conta de mim. Dou mais um
beijo em Karen, e finalmente sinto que está tudo conforme precisamos.
*
“O Greg mudou tanto!”, Tess diz, arrumando a cama para deitarmos.
Eu havia passado um tempo com os meus filhos, logo após todos
terem ido embora. Acho que eu queria ficar mais um tempinho sentindo
eles, sentindo realizado por ser pai. Os coloquei para dormir e depois fui me
recolher com a minha esposa.
“Eu nunca imaginei que ele seria capaz de colocar o banco à venda.
É incrível como as coisas tem cooperado para que ele finalmente fizesse a
escolha certa, e ele tem feito, sem titubear. Quem poderia imaginar que
aquela carta existia?” Tess está admirada, mas ela nunca escondeu que
sempre torceu para o Gregory, acho que estou me acostumando com isso.
Concordo, se desfazer do banco foi um passo abrupto e radical
demais. Existem outras formas de lidar com a situação. No início eu
duvidei, talvez eu não faria o que ele fez, mas reconheço que essa decisão já
estava com ele há muito tempo, bem antes dos últimos acontecimentos e eu
respeito.
“Nunca pensei que falaria isso, mas...” sorrio nervosamente. “Acho
que meu amigo de infância acabou retornando, no final das contas. Só que
de uma forma mais plena, ele não está mais representando um papel, como
ele fazia só para tentar sobreviver a tudo aquilo. Não há máscaras ou
obscuros. O Gregory está mais resignado. Acho que essa é a primeira vez
que eu o vejo do jeito que ele realmente é.
“Savannah me questionou o real motivo que me fez entrar nessa
com Gregory. Segundo ela, não era só por causa do meu pai, e ela estava
certa. Talvez eu quisesse ver isso de perto, tentar entender o que aconteceu
com ele, para justificar tudo que fez. Eu encontrei a resposta. Que bom que
vivi pra ver isso, para compreender, não apenas pelo meu lugar de
injustiçado, mas pelo lugar dele como vítima.” Tess sorri, daquele jeito
amável que ela tem.
“A reaproximação de vocês causou uma aumento considerável na
bolsa de valores, sabia?” Sim, eu havia visto os números e achei exagero,
mas lá estava eu sorrindo em frente a tela do celular. “Isso é bom.
Finalmente pararam de vincular a minha imagem de forma negativa ao que
passou.” Circundo a cintura de Tess com os meus braços, a aconchego no
meu peito.
“Se eu soubesse que nosso trabalho em equipe traria tantos
benefícios, eu teria feito muito antes.” Tess sorri. “Que bom que as coisas
vão melhorar pra você. Não é justo que nossas escolhas tenha interferido no
seu trabalho.”
“Que nada! Você sabe como esse pessoal é. Eles gostam de exaltar
quando os convém e humilhar pelo mesmo motivo. Só cabe a mim saber
lidar com isso. Acho que até estou aprendendo. Semana que vem vou voltar
ao trabalho, tenho ideias novas para a nova coleção, e o melhor é que já
estou montando alguns equipamentos para levar Celeste com todo o
conforto e segurança possível, principalmente agora que ela tanto precisa de
mim. Riley vai ser uma das modelos e mal posso esperar para trabalhar
novamente. Acho que estamos conseguindo.” Beijo os lábios da minha
mulher, sentindo orgulho dela.
“Você sempre arrumando um jeito de fazer tudo da melhor forma,
não é? Eu te admiro demais, sabia?” Ela beija os meus lábios suavemente.
Seus olhos verdes ainda são capazes de mexer comigo. Ela inteira é
capaz de mexer comigo, não há dúvidas.
“Eu te amo, Stephen. Sabe disso, não sabe? Sou completamente
apaixonada por você.” Semicerro os olhos para ela.
“Não era você que queria que eu me mantivesse afastada de tudo
isso? Onde está seu medo afinal?” Ela dá um tapinha no ar.
“Que bom que você nunca me escutou. Assim foi capaz de fazer a
escolha certa sem que eu estragasse tudo.” Seguro uma mão em seu queixo,
fazendo com que ela olhe para mim.
“Você nunca estragou nada, Tess. Nunca repita isso. Você sempre foi
o meu alicerce. A força que me impulsiona a fazer o que eu faço. Se não
fosse por você ter repetido tantas vezes para que eu desse uma chance de
enxergar as mudanças do Gregory eu não teria feito. Talvez eu não saberia o
que estava acontecendo. Sei que pareceu ser útil para mim, mas eu gostei de
ter feito isso com ele, por mais que fosse tão doloroso. A verdade é que
Gregory encontrou a própria felicidade e isso é um alívio.” Tess assente,
compartilhando do mesmo sentimento que eu.
“Que bom que tudo se resolveu. Que bom que estamos bem.”
Sorrio, tomando os lábios da minha esposa. A enchendo de carinho e
ternura.
Tess e os meus filhos são a parte fundamental da minha vida. É por
isso que faço o que faço, e por eles, eu sempre farei tudo que for necessário.
Epílogo
Stephen Crow
Gregory Mazza