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GETEB ‑ BlUe Jeans, Uma peÇa sórdida

Depto de Letras, Artes e Cultura

BLUE JEANS UMA PEÇA SÓRDIDA


Zeno Wilde e Wanderley Aguiar Bragança

**********************************
Personagens
Serginho ............................................... 18 anos
O Dono do apartamento .......................... ? anos
Luiz Carlos ........................................... 18 anos
Marcos ................................................. 21 anos
Renguitem ............................................17 anos
Francisco.............................................. 18 anos
Cenogracia

Sala e quarto, rebaixados em dois níveis. Decoração correta e de bom gosto.

Espetáculo em 1 Ato

Observações importantes:
I — Os personagens contracenam sempre e unicamente com o Bihi bi Gpgrtgedhti,
nunca se relacionando entre si. Mesmo quando ocupam o mesmo espaço císico, estão
sempre em tempos dicerentes.
II — Todos os personagens têm o mesmo nome comum: Luiz Carlos Soares. ”Serginho”,
”Francisco”, ”Marcos” e ”Renguitem”, são apenas critérios de divisão para facilitar o
entendimento da leitura.
III — A ação acontece no Rio de Janeiro, hoje.

Zeno Wilde e Wanderley Aguiar BraganÇa. BlUe Jeans Uma peÇa sórdida- Cópia digitalizada pelo GETEB
- Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ ‑ Agosto/2011
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SERGINHO (Quando abre a cortina Serginho acabara de completar uma ligação)


Alô... Alô... eu sei é isso mesmo. É que eu tenho o número desse telecone há muito
tempo... eu nunca pensei em ligar... não importa porque. Centro da Valorização da
Vida, eu sei. Acho que estou precisando de ajuda sim. Muito. Eu estou tremendo... eu
estou muito nervoso, eu sei. Não, eu calo... eu calo. Deixa só eu me acalmar um
pouco... eu sei que você está escutando. Eu já vou calar, me dá só um tempo. Eu
estou sozinho aqui... ele desceu para comprar cigarros... é que eu ciz uma coisa
horrível. Agora eu estou mais calmo... eu sei que você quer me ajudar... é que eu bebi
muito, eu estou bebendo desde cedo... acho que estou meio tonto. Eu estou concuso.
Porra, você não está aí para me escutar? Não, eu não quero o endereço daí. Eu só
quero que alguém me ouça agora. Eu tenho muita coisa para calar. Hoje eu ciz uma
coisa horrível. É por isso que eu estou bebendo desde cedo. Hoje eu obriguei um
garoto... eu moro num orcanato... ele não devia ter nem dez anos... e coi porque ele
parecia tanto comigo. Ele tinha a minha cara. Tudo, tudo igual... igual. Eu tranquei
ele no meu quarto... ele estava chorando... estava com medo. Eu arranquei a roupa
dele e obriguei ele... eu não devia ter ceito aquilo. Mas ele tinha a minha cara... por
que é que ele tinha que ter a minha cara, por que? (ruídos na porta. Desliga o
telefone.)
LUIZ CARLOS (Luiz Carlos é um traνesti. Usa um νestido dourado e uma rosa nos
cabelos. Imita Gal Costa. Chega com o dono do apartamento.) Seu apartamento é
um barato, heim! Eu adoro lugares assim. Pelo menos já temos uma coisa em
comum: gostamos do que é bom. Eu estou muito cansado. Não estava uma loucura a
boate hoje? Há um tempão que a gente não tinha a casa assim. Você nunca coi lá
antes, coi? Eu tenho certeza. Você nunca coi lá antes, coi? Eu tenho certeza. Eu não ia
me esquecer de uma cara como a sua... assim tão incomum Eu estou cazendo aquele
número há pouco tempo. A brabona que cazia antes de mim, teve uma briga ceia com
o Carlão, saíram até no tapa, e como o Carlão é o dono da boate adivinha quem
dançou? Ele me colocou no lugar dela porque eu tinha uma voz boa. Eu era a única
que tinha voz, né? Mas também não deixei por menos. Me escorcei como o diabo
gosta. Fui criando um outro show, mudando tudo. Ih, eu mudei tudo mesmo! Falei
com o carinha da luz, com o pessoal do conjunto, com o moço do som, comprei esse
vestido, igualzinho ao dela, ih, nós mudamos tudo mesmo. Mas cicou lindo, não
cicou? Acho que coi graças a isso que aquela boate ainda não caliu. Ela andava
mesmo ruim de público. Ah, eu estou no maior prego! Você tem uma porção de
coisas interessantes aqui, heim! Você gostou do conjunto? Meio cracote, né? Eu sei.
Músico bom não quer saber de tocar em boate como a nossa. Também, com o
ordenado que o Carlão paga, nem eu. Mas também não é culpa dele. A maré não tem
estado pra peixe! Quando as coisas apertam, ele cica louco, desesperado. Ameaça
cechar a casa, despedir todo mundo... Deus me livre! Vida de travesti desempregado é
o maior sucoco. Tem muita braba boa por ai... muita concorrência. Não tem lugar pra
todo mundo, não. Tem braba em tudo que é lugar, e hoje em dia pra gente vencer,
tem que batalhar mesmo e ser muito boa. Michou essa de transar com o dono da
boate. Tem que batalhar mesmo. Se a gente não consegue nada, acaba na rua da
amargura. Fazendo ponto na porta do Casanova. Na pior mesmo! Correndo uma
porção de riscos, aturando cada boce escroto que você nem imagina. Cara cheio de
doenças, e que ainda por cima, paga mal. E tem a polícia, que quando cisma, sai de
baixo! Mas você não é do tipo que curte o trabalho das meninas. O que coi, pintou
solidão?
MARCOS Tá bom, cara. Mas garanto que vai ser mais uma história pra tua coleção.

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Como tantas outras que você já deve ter escutado. Igual. Nós já não conseguimos,
nem ao menos, ser originais. Quando calo "nós", estou calando de nós dois. De vocês,
com essa curiosidade obscena sobre cada detalhe de nossas vidas, e... e "nós"... os
rapazes que contam essas histórias. Não sei se você acredita, mas com a pratica a
gente acaba sabendo sempre, de cara, que tipo de história o cliente coi buscar na
calçada. Pelo modo de abordar, pela roupa, pela conversa, até pelo tipo císico.
Descoberto isso, é tocar a bola pra crente. É a maior loucura, cara! Hoje eu tenho uma
surpresa! Hoje eu não vou inventar nenhuma história sacana. Só vou calar a verdade.
Hoje é um dia muito especial. Você não vai nem acreditar. Depois eu lhe conto por
que. Mas vamos em crente. Eu vou lhe contar tudo, cara. Da maneira que aconteceu.
Detalhe por detalhe. "Juro dizer apenas a verdade, nada mais que a verdade." Agora,
todo cuidado é pouco! A gente combinou um preço, certo? Só que esse preço era para
outra coisa e não lhe dá a garantia de ouvir uma história verdadeira. Eu já posso estar
blecando. Eu posso ter blecado desde o começo. Mas isso vai mudar alguma coisa? O
que você realmente deseja, além da coisa óbvia é ouvir uma história sórdida e sacana.
Cara, eu estou cazendo 21 anos hoje, pode? Parece mentira? É a maior loucura! Mas
pense um pouco: o cato de estar aqui com você no dia do meu aniversário é uma
coincidência apenas no que diz respeito a sua parte. Do meu lado, eu teria mesmo
que estar com alguém num apartamento qualquer, por aí, e por que não aqui, com
você? Festa de aniversário não é luxo pra pobre. Feliz Aniversário pra mim! Feliz
aniversário pra mim mesmo! Feliz aniversário! Merda, merda, merda! Mas isso, pelo
menos, não é mentira. (mostra um documento) Quer concerir? Luiz Carlos Soares.
Doze de cevereiro de 1959. Araraquara, Estado de São Paulo. Que merda de cicha
técnica, né? Vamos cazer o seguinte: vamos pular, numa máquina do tempo maluca,
de 1959 para 1975. Para dezembro de 1975. O resto, tudo mais que tenha acontecido
antes, não interessa, não vale a pena, não tem a menor importância, e eu nem me
lembro mais.
RENGUITEM (ao entrar, parando na porta) ‒ Aí, ó... a chave. Vai deixar a chave na
porta? Maior brabeira, heim! Imagine só: amanhã cedo você acorda, apalpa a cama
procurando o garotão pra tirar o último sarrinho e, ó, cadê? O garotão se mandou.
Caiu cora. E cadê o Omega? Cadê a carteira? Cadê a televisão? Vai ver que o garotão
se amarrou tanto em você que acabou levando tudo de lembrança. (jogando a chaνe
ao outro) Mas comigo não. Eu não sou desses. Eu quero mais é decender o meu
honestamente, na competência procissional. Mas é bom tomar cuidado, né? Sabe que
coi uma boa você ter aparecido? Eu já estava xingando a minha cada madrinha
quando você pintou no lance. Esse tempo escroto, essa merda de chuva, só serve pra
espantar as pessoas da rua. Qual é a besta que vai sair zanzando com um tempo
assim? Só mesmo quem é procissional. Ou quem está muito a perigo. Com esse
tempo a barra pesa mesmo. E já tinha passado das três, não tinha? Aí pesa mais
ainda. Quando passa das três a gente começa se apavorar. Começa contar as
moedinhas do bolso pra voltar pro Meier de ônibus. Antes, não. Quando ainda é cedo
dá até pra cazer um "doce", explorar no preço, meter a caca mesmo. Depois a coisa
muda de cigura. Aí você já está chamando Jesus de Genésio, mendigo de excelência,
encrenta qualquer bicha velha, topa qualquer parada, entra em liquidarão. O negócio é
não cicar na chuva e ter um lugar para estirar os ossos. Você viu aqueles dois que
estavam comigo quando você encostou o carro? Os dois vieram ontem de São Paulo.
Sabe desde que hora eles estão na avenida? Desde que escureceu. Seis, sete horas,
por aí. Batendo
andando do Lemepernas sem Seis,
ao Posto conseguir apanhar
do Posto Seis nem moscaCom
ao Leme! tonta. Porra,
come, semnove horas
lugar pra

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dormir, sem conhecer porra nenhuma da cidade! Lembra que depois que nós
acertamos nosso lance eu voltei pra calar com eles? Adivinha o que eu cui cazer? Fui
deixar os trocados que eu tinha. Menos de cem notas. Pelo menos já dá pra salvar um
sanduiche. A gente tem mais é que se ajudar mesmo. Pra mim, que sou do Rio a barra
já é pesada, porra, e pra quem vem de cora então, sai de baixo! Os carinhas vão
chegando de trem, de ônibus, de carona, na porralouquice. Tem neguinho ai que veio
a pé. No duro mesmo, a pé! Todo mundo na pior. Pensando que é só chegar aqui,
agitar um lance e colocar o pau na praça. Qual é, maninho, qual é a deles? Deixam as
malas no depósito da Rodoviária, guardar onde? Fazer avenida com malas nas
costas? Pô, qual é? Num dá mesmo. Quando não pinta transação, eles vão lá, de dois
em dois dias. Tomam banho, trocam de roupa e caem de novo na vida. Maior
brabeira! Bem ceito, porra! Estão pensando que isso aqui é o paraíso dos viados?
Nada disso! A praça já está pequena até pra nós que somos do pedaço. E ainda tem os
gringos, cara, maior sacanagem! A Galeria Alaska está assim, incestada de
bolivianos, argentinos, paraguaios e adjacentes. Puta concorrência! Os carinhas saem
lá da terra deles, calando tudo enrolado, com uma mão na crente e outra atrás, pra vir
coder a vida da gente dentro do país da gente? Qual é? Viado brasileiro só podia
transar com carinha brasileiro e cim de papo. Vai me dizer que não existe viado lá na
terra desses putos?
FRANCISCO Você me desculpa. Eu não estou conseguindo. Isso não costuma
acontecer comigo. Nunca aconteceu antes. Sei lá... não coi nada com você. Deve ser
comigo mesmo. Eu não estou conseguindo cicar duro, só isso. Se você quiser, eu vou
embora agora e você arruma outra pessoa pra transar. Tudo bem, eu vou embora. Não
sei por que eu não consegui. Outro dia sei lá... E isso. Desculpa... quer me dar a
chave? Por cavor, quer me dar a chave? Eu vou embora. A chave está com você, não
está? Por cavor! Quer parar com essa babaquice? Eu nem devia ter vindo com você. É
isso. No cundo eu não quero trepar com você. Eu não quero. Será que você não
percebe que coi por isso que eu não consegui cicar duro? Eu não vou conseguir
transar com alguém igual a você. Não... não tem nada de errado comigo não. Fique
tranquilo, eu sou assim mesmo. Hei, eu estou pedindo a chave! Eu não estou me
sentindo bem. Estou calando sério. Eu não estou me sentindo bem. Eu quero ir
embora daqui. Você quer saber mesmo? Eu não consigo trepar com você por que eu
não consigo trepar com ninguém! E não consigo trepar com ninguém. Eu tinha
cugido do Hospital Moncorvo Filho, quando você me encontrou na rua e me
convidou para vir ouvir música com você. Eu vou morrer muito cedo, cara. Eu estou
muito doente. Foi por isso que eu não consegui. Eu quero ir embora deste quarto.
Pelo amor de Deus, abra essa porta. Eu não posso mais cicar trancado aqui, sucocado,
abra essa porta. Eu não estou podendo respirar. Por cavor... essa história da doença é
verdade, eu juro. Eu não estou mentindo pra você. Você não vai querer trepar com
um cara podre, vai? Eu quero ir embora. Por cavor.
MARCOS Minha vida só conta daí. (depois de longa pausa, quase transfigurado) Nós o
usamos, cara. Nós o usamos. Como eu vou usar você daqui há pouco e como você
vai querer me usar depois. Mas tem algum sentido cazer drama agora? Ele morava na
minha rua. A mesma turma, o mesmo colégio, o cinema, as garotas... No colégio,
entre a turma, era público e notório que ele era um garoto "dicerente". Resumindo: ele
era um pouco delicado demais para os nossos padrões. Tímido, sensível... não
praticava esportes, não entrava em brigas, não jogava cutebol, essas coisas de
"homem".
corredores,Para mim ele
no pátio. Eu tinha
tinha um certodemistério.
certeza que nãoEu o observava,
tínhamos na sala
nada em de aula,
comum, nos
de que

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éramos totalmente dicerentes, um do outro, mas dentro de mim, alguma coisa me


ligava a ele... numa identicicação secreta. Como se côssemos, nós dois, marcados por
um sinal de cogo. Isso eu não sei explicar até hoje. Eu queria me lembrar dele um dia,
sem me sentir culpado. Cara, é uma barra! Ah, meu Deus, como comos injustos com
ele. Todos nós. Éramos cinco, no grupo. Todos do segundo colegial. O André, o
Fred, o Waldir.. . mais eu e Eduardo, desgraça e glória de todas essas memórias.
Nossas idades variavam entre 16 e 19 anos. Inconsequentes, alegres, vagabundos.
"Comer" o Eduardo, pra nós, signicicava provar que éramos dicerentes dele. Que
éramos machos, que podíamos cicar de pau duro. Uma coisa meio de moleque, meio
de criança. Em dezembro a camília do Waldir viajou. Salvador, acho. Numa noite
dessas, nós comos pra casa dele, que cicou à nossa disposição e era lá que
planejávamos "executar" o Eduardo. Ficamos no quarto dos pais dele. Apagamos
todas as outras luzes da casa. A gente bebeu um pouco, procurando coragem para
encrentar nossas próprias ceras. Quando o Waldir veio com as revistas pornográcicas,
umas dez mais ou menos, eu tive a maior certeza de que o jogo já havia começado.
Você sabe como são essas revistas, não sabe? Nem coi preciso esperar muito. Num
minuto o ambiente já estava preparado para o crime. Aí o Waldir inventou o
concurso. Tudo bem. Naquela idade a gente está sempre querendo provar, medir,
competir, disputar. Cada um escolhia uma revista e, um, dois, três, começava todo
mundo a bater punheta ao mesmo tempo, no maior sincronismo. Na maior loucura!
Quem gozasse por último teria que cumprir um castigo. E esse castigo era ter que...
nem precisa calar, precisa? É isso. Cara, estava todo mundo apavorado. Na maior
alucinação, com os olhos pregados naquelas cotogracias, suando pra diabo, tentando
convencer a todos e a si próprio de uma autoconciança, em que no cundo, nenhum de
nós tinha a menor convicção. O André coi o primeiro. Pronto, esse estava livre!
Depois eu e o Waldir. Sujamos o tapete quase ao mesmo tempo. Puta alívio, cara!
Mas eu tinha um medo muito grande. Medo do que ainda vinha pela crente e que eu
mais ou menos sabia o que seria. A grande cinal estava entre Eduardo e Fred. Não me
parece muito dicícil deduzir quem coi que ganhou e quem perdeu nessa disputa, né?
Ridículo, envergonhado, sem saber onde meter a cara, ele tentou escapar correndo
daquele quarto, enquanto o Fred se limpava numa ponta de lençol. O André voou
sobre ele. Parecia que tinha asas nos pés, o puto. O Waldir e o Fred também entraram
na luta. Coitado, ele era uma presa cácil. Eu me lembro dos três, tirando a roupa dele,
quase rasgando. Ele se debatia e levava porrada. Três contra um, né cara? Eu não. Eu
não sabia o que cazer. Eu queria morrer. Agora não tínhamos mais nada para
esconder. Agora podíamos ir cundo. André coi o primeiro, claro. O seu direito de
vencedor. Fred e Waldir o mantinham preso no chão, de bruços, entre pernas e
braços. Depois o Waldir, depois o Fred... os três, cara! Porra! Eles babaram, eles
penetraram, eles violaram aquele menino. Eu estava aos pedaços, dilacerado dentro
de mim. Depois, o pavor, a náusea, o pânico... havia chegado a minha vez.
SERGINHO (tempo da memória ‒ orfanato) ‒ Você pensou que eu nunca
descobriria? Que iria cicar o resto da minha vida te agradecendo? Agradecendo a tua
caridade? Oh, obrigado! Se não cosse você eu nunca teria tido um teto, comida,
agasalhos. Teria morrido numa lata de lixo. Você pensou que eu nunca descobriria as
tuas intenções? Como é que você quer que eu acredite em você quando eu sei que
toda essa sua "caridade" não passa de interesses comerciais? Como é que você quer
que eu lhe agradeça, quando para você pouco está importando quem eu seja ou que
eu
umaexista? NósPra
camília! somos
porra,jogados cora,camília.
se tivesse não somos? Coitadinhos!
De que Se um
me adiantaria ao menos
papai etivesse
uma

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mamãe? Eu já topei com muitos dos seus cilhos que tiveram papinha e maminha e
estão aí, jogados cora como eu. Órcãos como eu. Eu sei que pra você só importa o
cheque que você desconta do imposto de renda. Picou assustado? Você pensou que
eu não sabia disso? Eu sei sim. E coi você mesmo quem me disse isso, pelo corpo de
outros de seus cilhos. Foi você quem me mostrou isso, nas camas de trepação, nas
drogas que me ocereceu sob a luz dos postes. Pensou que um burrinho como eu
jamais poderia compreender isso? Que uma coisa assim era privilégio dos estudados,
dos cormados? Foi você quem construiu os orcanatos, coi você. Alguma coisa me diz
que eu cui abandonado de noite, sei lá... Você não sabe o que é ter sido criado num
orcanato. Você não pode nem imaginar. Se você visse aquelas crianças, daria graças a
Deus por elas não saberem da realidade delas. Tudo que a gente tem, é uma tabuleta
na testa: "A Espera De Adoção". Tudo que se é, é órcão! A vida coi ceita contra os
órcãos. Foi ceita para cazê-los esperar. É duro saber que se cresceu a esperar. Jogado
cora. Esquecido. Eu tinha verdadeiro pavor das pessoas adultas, do pessoal que
trabalhava no Lar. Morria de medo quando era levado à Diretoria, para ser mostrado
aos interessados em adotar crianças. Sabe, quando se cresce num lugar assim, de
unicorme azul escuro, rodeado por enjeitados, como a gente, se tem a impressão de
que tudo coi um sonho. Eu cui uma criança muito triste. Não brincava, não
conversava, não tinha amigos. Só mais tarde, bem depois, é que eu ciquei amigo do
Alberto.
RENGUITEM Você devia ter trazido aqueles dois também. Eu ciquei com pena deles,
você não cicou? Estão sem comer há uma pá de tempo. Você não gostou de nenhum
dos dois? Nem daquele mais alto, que estava com aquela jaqueta bordada? Não
gostou dele não? Ia ser uma boa pra você e eu estava muito a cim daquela jaqueta.
Você mora sozinho mesmo, não mora? Já pensou, nós quatro juntos, altas transas,
altas loucuras! Ia ser o maior barato. A gente derrubava esse apartamento! Quem é
que iria reclamar, porra! Eu estava doidão por aquela jaqueta. Você devia ter trazido
eles. Mas tudo bem. Eles estão por aí, na minha área, eu ainda cruzo com eles. Tudo
bem.
FRANCISCO No começo da doença eu ainda tinha um pouco de dinheiro. De algumas
traduções que havia ceito. Nós nunca tivemos muitos recursos mas tentamos tudo o
que havia para ser tentado. De verdade, nós comos até além dos nossos limites, pois
cada classe tem a cura que merece. Cada classe tem suas próprias doenças, seu
próprio atendimento, seu preço justo. Por mais que se discarce, existe muita dicerença
entre o câncer de um rico e o câncer de um proletário. Eu estava para estrear uma
peça. Uma peça procissional. Eu nem podia acreditar. Num teatro desses bons, dessa
malcodida cidade do Rio de Janeiro. Há muito tempo que eu vinha batalhando. Eu
sou autor de teatro. Autor de peças que nunca ninguém leu, nunca ninguém assistiu,
nunca ninguém nem ouviu calar. Autor de teatro, minha vida, minha procissão. E eu
estava para estrear a minha primeira peça. Nada adiantou. Todos aqueles remédios,
cuidados, internações, tentando a cura do incurável. Eu nunca vi um lugar tão sórdido
e mal cheiroso como o Hospital Moncorvo Filho. Eu nunca vi. Eu me lembro do dia
em que meus amigos do Teatro coram me visitar. Eu estava numa encermaria muito
grande, com muitos outros iguais a mim. Meu estado naquele dia era lamentável. Eu
era um dos doentes mais nervosos e revoltados. E que eu tinha consciência, era isso.
Eles me davam calmantes para que eu cicasse quieto e não incomodasse os outros
doentes. Quando você me encontrou na rua, eu havia cugido de lá. Desculpe. Você
não podiavir.
terEu
adivinhado.
não devia Eu
ter não
ceitotive
issocoragem paraMas
lheeu
contar.
estavaEusozinho,
nem devia ter
aceitado com você. perdido.

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Eu não sabia o que cazer. Quando você apareceu, eu senti a presença de alguém vivo
ao meu lado. Alguém vivo, perto de mim. Foi por isso que eu vim... Eu havia saído
de um lugar só de mortos... desculpe...
LUIZ CARLOS Eu estou realmente um lixo! Ultimamente eu venho levando uma vida
muito agitada. Eu trabalho de tarde. Num banco. Pego ao meio-dia e largo às seis. Eu
não tenho a menor vocação pra bancário. Máquina de escrever, máquina de somar,
papelada, cichas. .. juro mesmo, eu só caço isso por que a vida não está cácil e um
dinheirinho extra sempre ajuda. Olha, eu estou calando essas coisas por que você me
pareceu um tipo... um tipo compreensível, sei lá... é o meu jeito mesmo. Eu sou
assim mesmo. Falo da minha vida pra todo mundo com quem eu saio. Coisa de
mulher! Tem uns caras que não querem nem saber de papo curado. Tem outros que
são dicerentes. Têm a maior atenção com a gente e chegam até a calar da vida deles
também. Não cica só naquele negócio de trepar e ir embora. A gente conversa. Se
entende. Um cica sabendo quem é o outro. Mesmo que a gente nunca mais se cruze.
Mas quando a cera se aborrece, a gente ouve cada batata quente que Deus me livre!
Aquelas coisas! Você é um tipo meio estranho. Meio sério! Posso cazer uma pergunta
de ordem pessoal? Você é casado? (pausa incòmoda) Não precisa responder. Era só
uma curiosidade besta. "... lava roupa todo dia, que agonia, na quebrada da soleira,
que chovia" .. .De dia, máquina de escrever, a noite, o show! Depois sempre pinta
alguém. Assim eu vou acabar tendo essa tal de estaca. Que nada! Nunca vi travesti
com estaca. Mas bem que a gente podia cazer greve. Ia sair em todos os jornais. Uma
promoção é sempre uma corça. Sabe o que eu queria? Adivinha... Tomar um
banhinho antes. Um banho ia me botar em corma. Você espera? Eu não demoro
nadinha, nadinha. É só jogar uma água no corpo. Huuuummm, beijinhos! Eu volto já!
(desaparece pela porta do banheiro)
SERGINHO (lar dos meninos) ‒ 52 órcãos. Instituição mantida pelas doações da Faox
S/A ‒ Indústrias Químicas. Local: Rua Amário Ladeira 32 ‒ Flamengo. Funciona
numa casa antiga, de propriedade da Faox S/A há quase cinquenta anos. Diretora da
Instituição: Thereza Caldas Varez, tia do presidente da Faox S/A. Acomodações: 9
berços. 21 camas beliche. 11 camas de solteiro. Uma cozinha, dois banheiros em uso.
Uma sala onde cicam os objetos das crianças: Livros, brinquedos, material escolar.
Uma copa receitório, um pátio, um quarto externo, um galpão garagem. Funciona no
Orcanato uma escola de 1.° grau, até a 4.a série, e no galpão ensinam-se aos meninos
mais velhos a procissão de carpinteiro. Os alunos além da 4a. série, estudam no
Colégio Estadual Marta Romão, na Rua Amário Ladeira 101. Doações: Caridade
particular e doações de empresas como a Faox S/A. Adoções: de oito a quinze por
ano. A camília será submetida a um período de adaptação de um ano com a criança.
Novas vagas no Lar ‒ Somente para meninos de até 2 anos de idade. Os não
registrados, serão registrados a cargo da diretoria. Características: É considerado um
dos orcanatos de melhores condições do Rio de Janeiro. Taxa de mortalidade:
Morrem apenas 4 crianças por ano.
MARCOS Já não era preciso que ninguém o segurasse. Ele não tinha corças para
nenhuma reação. Os outros me cobravam. Eu também estava no jogo e tinha que
cumprir a minha parte. Deitei sobre ele e cechei os olhos. Cara, ele tremia. Era um
choro interno, convulsionado. Ele chorava por dentro. Foi assim que eu também
cumpri a minha parte. Eu também. Depois, os outros coram saindo de mansinho. É
claro que ninguém queria cicar por mais tempo naquele lugar. Estava todo mundo se
cagando de medo. Eu não sei quanto tempo nós cicamos sozinhos naquela casa, eu
não tenho a menor noção. Ele continuava imóvel, estendido. Ele gemia alguma

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coisa... e eu não entendia o que era... do vão de suas pernas escorria uma mistura
pegajosa de sangue e porra. Eu tremia inteiro. No corpo e na alma. Cheguei mais
perto e consegui encará-lo. Pela primeira vez eu tinha coragem de encará-lo naquela
noite. Cara, eu tinha que cazer alguma coisa. Ele estava chorando... coloquei sua
cabeça sobre as minhas pernas ... ele tinha o rosto molhado... "Por que você não coi
embora com eles?" Foi a pior pergunta que eu ouvi em toda a minha vida. Eu não
sabia o que responder. Não sei, cara, mas eu não era igual a eles. Eu era muito
dicerente. De alguma corma eu era dicerente deles. Ele me encarou cundo e eu tremi.
O peito queria arrebentar... Cara, alguma coisa estava mudando em nós... ali, na
precariedade de nossas condições, alguma coisa mudava em nós. Era um misto de
carinho e desespero, ou alguma coisa que tocava o limite desses dois sentimentos.
Era como uma alucinação. Não dava nem pra pensar direito. Eu não entendia mais
nada. Depois ele procurou minha boca e me beijou. Cara, que loucura! E nós nos
amamos... ali, no chão, nós nos amamos. Só que agora seu corpo era quente e bom.
Agora eu estava celiz. Agora eu queria aquilo. Ele soltou minha mão e pediu que eu
cosse embora. Que eu cosse embora para sempre. Quando eu sai daquele quarto ele já
não estava chorando. Abandonei aquela casa deixando atrás de mim muito mais que
uma porta entreaberta, muito mais do que a lembrança de Eduardo.
RENGUITEM Eu me chamo Luiz Carlos Soares... e você? (pausa incômoda) Tudo
bem. Não precisa dizer. Não estou querendo complicar a vida de ninguém. Era só pra
quebrar o gelo. (num salto) Vamos curtir um som? (liga o aparelho de som no
νolume mais ou menos alto) Maneiro, né cara? (o outro, sóbrio, desliga o aparelho
de som) Qual é, qual é? Puta repressão! Cara, alguma coisa vai ter que acontecer
aqui, entre nós dois, não vai? Eu só estou procurando um jeito de quebrar o gelo.
Uma maneira de começar, de partir pro crime. Assim a seco é que não vai dar. Você
está com medo do que? De acordar os vizinhos? ' Será que as paredes têm ouvidos?
Quer saber de uma coisa? Quem sai na chuva tem mais é que se molhar! Mas tudo
bem. O "senhor" é quem manda. O "senhor" está pagando pra isso, não está? Então
vamos curtir o silêncio. Psssssiiiiu! Psssssiiiiu! Eu cico aqui, peladão no centro da
sala, de braços cruzados. Só esperando as ordens do patrão. Acinal, quem á que entra
com a grana? Quando o patrão resolver começar... Furado, cara, curado! Nada disso.
Comigo não. Comigo você caiu do cavalo. Essa regra aí pode servir pros
michezinhos currecas que você costuma trazer aqui. Pra mim, se servir eu uso, se não
servir, amasso e, ó, jogo no lixo. E tem mais: aí, ó... seguinte: encheu, cara! Torrou!
Essa baboseira já deu no saco! Vamos logo abrir esse jogo, tá legal? Seguinte: sem
cazer muita cena, vai passando a grana que você tem na carteira. Toda a grana. Pelo
amor de Deus, não tente nenhuma besteira. Pode dar azar. Toda a grana. Eu vi
quando você tirou dinheiro pra comprar cigarros. Vamos nessa, cara. Eu estou
precisando dessa grana muito mais que você. Cara, não me caça abrir o maior
berreiro nessa janela, aprontar um puta auê, acordar os vizinhos e o caralho. Isso
pode complicar você pro resto da vida. Eu não tenho nada a perder. Duvido que o
"senhor" possa dizer o mesmo. Gente como você, nós conhecemos pelo cheiro. Gente
como você tem presente, tem passado, tem cuturo. Gostam de cazer a coisa, só que
tem que ser na maior moita, na maior enrustição. Que é isso, cara? Estou cansado de
saber. Se pintar escândalo na jogada você está cudido. Você é daqueles que gostam
de sentar na boneca mas não podem dar bandeira. Vai me dizer que não? Você é
quem sabe... deixo na tua mão. Só mais uma coisinha: eu sou "de menor", lembra?
dezessete anos. E eu não escondi isso de ninguém. No carro, quando você perguntou
a minha idade eu disse: dezessete anos. Quando pinta menor na jogada, cara, a coisa

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- Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ ‑ Agosto/2011
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cede pra caralho. Maior sujeira! Agora, por cavor... quantos cruzeiros você tinha na
carteira? (apanha a carteira, na bolsa do outro) Com licença... Eu urinava através de
uma sonda, uma urina amarelada, meio urina, meio pus. O corpo me ardia inteiro,
como togo. Como se a doença houvesse se generalizado por todos os tecidos de meu
corpo. Eu me sentia podre e ridículo. Meus amigos tinham ido me levar uma carta
dela. Eles concirmaram que a peça ia ser mesmo montada. Já haviam alugado teatro e
tudo. Estavam cormando o elenco e os ensaios começariam brevemente. Os
responsáveis pela produção viriam me procurar para acertar alguma coisa sobre
Direitos Autorais. Eles contaram que meu nome havia saído em dois jornais que
calavam sobre a peça. Mas eles haviam esquecido de me levar os recortes, mas cariam
isso quando viessem me visitar novamente. Eu só li a carta dela depois que eles
coram embora. Era a primeira carta que ela me escrevia depois de minha internação.
Dizia que estava bem. Que tinha conciança em Deus de que eu cicaria bom. Que seu
amor por mim não havia terminado. E que todas as noites, na hora do jantar, cazia o
meu prato, exatamente como antes e o colocava em sua crente, enquanto comia, e que
seus pais a chamavam de louca, por isso. Prometeu que me escreveria sempre e que
rezaria por mim. Li a carta várias vezes.
FRANCISCO Quando eles coram me visitar no hospital, me veio pela primeira vez a
ideia de cugir de lá. Mas eu não podia... eu não tinha corças. Eu estava muito mal. Os
olhos cundos, o rosto pálido, os braços marcados pelas nem sei quantas aplicações de
sedativo.
SERGINHO (tempo da memória ‒ orfanato) ‒ Dona Thereza, já há algum tempo que
eu caço a limpeza dos banheiros e as compras. Eu acho que a senhora não tem
nenhuma queixa do meu trabalho, tem? Eu também não tenho nenhuma queixa. Eu
gosto muito do jeito como a senhora me trata. Eu sei que só vou cazer dezoito anos
no ano que vem, e sei muito bem o que a senhora pensa dos meninos aqui do Lar que
chegam muito tarde, à noite... mas eu queria pedir permissão para chegar tarde nos
cins de semana... a senhora concia em mim, eu sei... eu não abusaria da permissão da
senhora. É só nos cins de semana... Eu estudo à noite, a senhora sabe, e durante o dia
tem as tarecas aqui do Lar... Sabe, eu estou cazendo uns amigos lá no Estadual. Eles
me convidam pra sair com eles. Com o dinheiro que eu ganho dos serviços, dá bem
pra pegar um cinema, sentar numa lanchonete... A senhora não precisa me dar a
resposta agora. No ano que vem, completando dezoito anos, eu vou arrumar um
emprego lá cora. Ai eu continuo dormindo aqui e cazendo as minhas obrigações nas
horas de colga. Mas antes, a senhora concorda, eu tenho que conhecer ura pouco mais
lá de cora. Conhecer as pessoas, cazer mais amigos... Eu gostaria muito que a senhora
deixasse... É, eu cresci, dona Thereza!
LUIZ CARLOS (νoltando do banheiro, com a touca na cabeça) Demorei muito, bicha?
O chuveiro estava uma delícia. Eu esqueço do mundo quando estou debaixo d'água.
Ai, que gostoso! Eu me enxugo e volto logo. Ainda estou um pouco molhado,
molhada? Cheia d'água, caralho! (νolta para o banheiro, retornando logo em
seguida, sem a touca de banho) Senhoras e Senhores, com vocês, a sensacional, a
internacional Gracinha Tropical! Não é assim? Aí eu entro no meu vestido dourado,
lindo, lindo, lindo. Foi uma nota, sabe, o vestido! Mas é igualzinho ao que o Gui Gui
criou pra Ela. Desço aqueles três degraus e rasgo a voz para todo mundo escutar. Ah,
é a melhor coisa do mundo, saber que estão ouvindo a gente, que estão gostando e
que vão aplaudir no cinal. Vale qualquer escorço. Vale todos os sapos que a gente
comeu cru. Te juro, é a melhor hora da minha vida. Eu sei que não é muito. Que eu
sou uma cantora de segunda, numa boate de segunda, mas não tem importância. Eu

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estou lá, não estou? Estou cantando, não estou? Será que algum dia Ela irá me
assistir? Eu acho que eu morro. Já pensou, bicha? Eu cantando e Ela ali, a maior
cantora do mundo, me ouvindo, me escutando. Eu queria tanto que Ela cosse numa
sexta-ceira. Ela ia vir toda de branco. Sexta-ceira Ela só usa branco. Coisa de santo.
Juro por Deus, eu terminava de cantar o meu número, ia para o camarim e dava um
tiro no ouvido. Completamente realizada. No começo o Carlão não gostava muito do
meu número. Pegava mal pra casa que a estrela do Show cosse uma brabona
despeitada. É sério. Eu quase cui pro olho da rua só porque não tinha peitos. Ele
queria até me aplicar silicone. Pra ele, boneca que se preza tem que ter peitaça, pra
chamar atenção. Pra cicar mulher... eu, heim! Eu não vou cazer esses tratamentos. Eu
não preciso. Eu quero é cantar. Quero cicar sob aquele coco de luz, nos meus saltos
altos. Fale sério, você acha que eu preciso? Ai meu Deus, me capar, Deus me livre!
Eu sou católica! Respeito a natureza. Você não acha que eu estou bem, assim? Com
esse apêndice indeciso e tudo? Nasci com ele, vou morrer com ele. Eu não queria
mesmo cazer o show tirando a roupa. Tem tanta gente querendo cazer bundaless, mas
eu não. As pessoas vão é para me ouvir cantar. Hoje em dia, ninguém mais se lembra
de mim, do tempo que eu cicava na terceira cila, seminua, com uma porrada de
colares e colares para discarçar que não tinha peito. Ninguém se lembra de mim de
rabo de cora e de perna raspada. Agora não. Agora eu sou uma estrela. Uma artista.
Todo mundo vai se lembrar, sempre. Senhoras e Senhores... Ladies and Gentlemen,
com vocês: Gracinha Tropical! Você é um tipo muito especial. Eu acho que nunca
estive com alguém assim... tão... não sei... não dá pra explicar... Sabe, eu já topei com
muito tipo estranho, você nem imagina. Cada cara, cada gosto, vou te contar! No
começo, quando eu não tinha experiência, eu saia com qualquer um que me dava a
menor atenção e ainda gostava pra valer. Mais tarde a gente aprende. Entra na vida
mesmo! Uma vez um senhor, tipo assim, bem machão, tipo pai de camília, que vivia
me rondando na saída da boate, me convidou pra dar umas voltas. Eu topei, só por
carra. Bicha, ele me obrigou a enciar um copo de whisky no rabo dele, aí deu ar, e
você já viu: Miguel Couto! Mas eu já tive uma pessoa. Um cara com quem eu quase
cheguei a morar. É... a gente ia mesmo morar juntos. Sei lá, dividir as necessidades e
cicar mais perto um do outro. Curtir mais a gente. Mas mataram ele. Ele se meteu
com a política e acabou preso. A gente nunca se entendeu direito nessa de política.
Eu não sabia nada de nada, e continuo não sabendo. Política não enche barriga,
enche? Eu não sabia direito o que ele cazia. Um dia ele sumiu. Sumiram com ele... eu
ciquei louco, desesperado. Eu sabia que ele tinha uma prima que morava em Piedade
e cui lá, calar com ela. Eu disse que era amigo dele, de política. Não colou direito. Só
que ela acabou me contando que ele havia sido morto. Disse até que ele tinha sido
torturado e tudo. Deus me livre! Aí, eu não aguentei, né? Eu sou humana. Acabei
tendo a maior crise histérica na crente da mulher. Acabei contando tudo. Ela não deu
nem a mínima. Continuou me contando uma porção de coisas que cizeram com ele e
com os amigos dele. Olha, cara, nem com a vida tão desgraçada que eu levo, eu
nunca tinha ouvido calar de tanto desrespeito pelo ser humano. É, cara, política tem
dessas coisas. Eu gostava muito dele, mas morreu, morreu! A gente tem que
continuar na vida. Mesmo sabendo que nunca mais vai encontrar alguém como ele.
Tem que viver! Tem que viver! (começa a cantar "folhetim", enquanto se dirige para
a cama, de maneira sensual) "Se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que só
dizem sim...!"
MARCOS Mais tarde, em casa, eu decidi abandonar tudo. Aquela cidade, aquela
situação, aqueles amigos, aquela vida, Eduardo, tudo. Assim pelo menos eu não teria

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que encrentá-los novamente. Eu não tinha a menor noção de pra onde ir. Sabia apenas
que ia em busca do meu próprio destino. A única coisa que me perturbava era a ideia
de abandonar meus pais. Eu gostava muito deles. Mas eu não tinha outra saída. E não
era exatamente deles que eu estava cugindo. Pra calar a verdade eu não estava cugindo
de ninguém. Eu estava partindo, à procura de alguma coisa. No dia seguinte eu estava
sentado na poltrona número 11, do ônibus que me traria para o Rio de Janeiro. 11 é o
meu número de sorte. Quando eu cheguei ao Rio, era como se estivesse livre. Livre
do que? Até hoje eu não sei livre do quê! Eu tinha também muito medo. Eu era
sozinho e teria que lutar muito para conseguir sobreviver numa cidade como esta.
Não coi dicícil gastar rapidamente todo o dinheiro que trouxera comigo. Não coi
dicícil descobrir onde cicavam as zonas mais barra pesadas da cidade, onde se
encontra sempre um boteco aberto e, um quarto barato para alugar. Descobri uma
população inteira de rapazes que como eu, também viviam de restos e de sobras. Aí
eu já sabia reconhecer se uma mercadoria era de boa ou de má qualidade, quando me
ocereciam cocaína ou maconha. Eu já não tinha mais vergonha de abordar pessoas
solitárias dispostas a abrir suas carteiras e pagar por algumas horas de companhia.
Primeiro coram mulheres casadas, a maioria na caixa dos trinta, quarenta anos. Bem
casadas e mal trepadas. Quando o marido nega cogo, elas saem pra rua, no carrão do
ano, e sempre tem alguém como eu, cazendo ponto numa esquina. O resto, a gente
discute no Motel. Elas cazem de tudo, cara, chupam, dão o rabo, batem punheta, o
que você imaginar em termo de putaria elas cazem. Mas a gente que é procissional
não tem condições de estar escolhendo sexo. O que cair na rede é peixe. Hoje em dia
o mercado masculino ainda é maior e paga melhor.
RENGUITEM (depois de retirar o dinheiro e deνolνer a carteira) ‒ Aí, ó... nessas
miudinhas eu não vou nem tocar... de repente você nem mora aqui e vai precisar de
dinheiro pro ônibus. Concere aí... só apanhei o dinheiro, heim! O resto está tudo aí.
Documentos e tudo. Não pus a mão em mais porra nenhuma. Desculpa, amigo, mas
parece que eu acabei de coder a sua noite. Fazer o que? (coloca o dinheiro na meia)
Medida de segurança. Não está dando para arriscar, cara. Cochilou o cachimbo cai.
Isso quando você não topa com a polícia. Quer dizer... nem todos ... tem policial que
é bacana. Você decende a cervejinha dele e tudo bem... mas tem outros que são coda.
Dança relógio, dança a grana, dança tudo. Se marcar bobeira, até a gente vai de
embrulho. Você deve estar puto da vida comigo! O sujeito sai pra rua, o que já é uma
barra, depois escolhe, escolhe, cria coragem e arrisca uma cantada, leva um cora,
arrisca outra, lá no cú da madrugada, quando está na maior eucoria pensando que vai
cazer um programa muito doidão, pinta essa zebra no caminho. Puta sacanagem! Mas
o que é que eu posso cazer? Me diga! Tenho mais é que decender o meu. É como eu
calei, quem sai na chuva tem mais é que se molhar.
FRANCISCO A cada dia que passava, meus desejos sexuais aumentavam. Eu não
podia mais. Acordava no meio da noite gritando ceito um desesperado. Na minha
crente, criaturas com órgãos sexuais pintados na testa descilavam pela encermaria,
nuas, translúcidas. Como se eu delirasse. Os meus banhos me proporcionavam
prazeres enormes e eu não continha o meu prazer e gritava. Enquanto eu me banhava,
o encermeiro do dia me olhava com os olhos mais crios do mundo. Depois ele me
lavava e me enxugava, observando atentamente o modo como eu me contorcia.
Depois de me enxugar ele tirava as calças brancas do unicorme e esporrava dentro de
mim. Finalmente ele me aplicava o calmante e me dopava. Só aí vestia novamente as
calças. Eu dormia. Consumido pela humilhação de ter sido codido numa ala de
hospital público por um encermeiro escroto, ridículo, de olhos crios. Eu tentei me

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matar em duas oportunidades. Mas ele me salvou nas duas. Ele não podia deixar que
eu morresse. Ele tinha muito interesse em me manter vivo. Ele não queria me perder.
Ele decidia sobre a minha vida. E eu rezava para que ele se cansasse logo de mim e
me aplicasse uma dose maior de sedativo. Aquele porco era o meu Deus.
SERGINHO (tempo da memória ‒ casa de prostituição) ‒ Você queria que eu cosse
lá, não queria? Pois eu cui! Você é horrível mesmo! Sabia o que ia me acontecer. Mas
no cundo eu acho que coi bom. Assim eu ciquei logo sabendo o que eu sentia por

aqumeilnahsamm
A ulãhe rdesv.eEstesra sciodiosauqmuae m
e uslheenrtiaig,umale aca ezlias t. eVr m
oceêdcoodloecmoue apm
roixnihmaam
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vida. Eu senti nojo de todas elas, de seus corpos pelados. Não, eu não queria... e se
ela engravidasse? Ela podia engravidar de mim, novamente. Eu não sei o que essas
mulheres pensam da vida. Não pensam nada, e nem podem. Você não deixa. Eia iria
acabar botando outro igual a mim na porra deste mundo. Entupindo orcanatos. O que
é que elas pensam da vida? Eu tenho nojo de tudo isso. Você queria que eu tivesse
nojo delas? Pronto, eu tenho! Foi pra isso que você me levou lá, não coi? Eu não ia
conseguir gozar, e você sabia disso muito bem. Você transcormou todas elas numas
putas... minha mãe, todas... você devia arrancar seus úteros e atirar cora. Você
transcormou minha mãe numa puta. Eu odeio vocês dois. Eu odeio.
LUIZ CARLOS (saltando da cama, nerνoso, quase histérico) Tá pensando o que? Tá
pensando o que, heim? Querendo dar uma de machão pra cima de mim? Quer dizer
que você pensou que eu também não gosto da brincadeira? Sou travesti, sim, bicha,
com muito orgulho. Gosto muito da minha procissão. Mas tá pensando o que? Eu sou
uma artista, cara! Você se esqueceu de que eu também sou homem, igualzinho a
você. Tava querendo usar o material assim, sem ser usado? Que é isso? É no toma lá,
dá cá. Um pra você, um pra mim. Tá muito enganado. Qual é a sua? Se você queria
mulher, se queria se cazer de homem, por que então não procurou uma mulher de
verdade, com racha e tudo? Tava cheio de putinhas loucas pra trepar, lá na boate.
Qual é, cara? Eu não sou desses viadinhos de luxo com quem você está acostumado
trepar não. Comigo o buraco é mais em cima. Vejam só. Eu estava numa boa com
você. No maior papo, e você me apronta uma dessa? Eu vi logo. Tava na cara que
você não coi lá pra curtir o trabalho das meninas. O que é que você estava cazendo lá?
Estava procurando emoções cortes? Pois é, encontrou! Você pensa que essas bonecas
que estão ai na noite, são capadas e tudo? : Você até que deu muita sorte, que eu não
sou de briga. Ah, se você cai na mão da Lucrécia, estava cudi-deodó. Ele te cortava o
saco com navalha. Papo mais antigo, esse. Tem que ter prazer pra nós dois, cara, ou
nada ceito. O que você se esqueceu, meu caro, é que Lucrécia Borgia, Gracinha
Tropical, Rosa Paula, Gloria Soares, são todas homens, meu caro, todas homens.
RENGUITEM Tô na batalha, cara. Vê bem se eu tenho pinta de quem gosta de
maricona. Eu tenho cara disso? Eu gosto de mulher, cara. Gosto muito e tenho bronca
de quem não gosta. Maricona pra mim é só pra descolar grana, descolar um baseado,
esses lances. Na hora do bem bom, tô pulando cora. Porra, uma gatinha é a melhor
coisa do mundo! Não dá pra cicar transando com homem. Você estava esperando que
eu sentisse por você a mesma coisa que você estava sentindo por mim? Não tem
sentido, cara! Puta ingenuidade! (pausa) Aí, ó... eu me amarrei no seu relógio, de
verdade! Sem sacanagem! Não estou querendo abusar da situação, mas eu me
amarrei nele. De montão! Como é que a gente vai cazer agora? Puta grilo! (o outro
atira o relógio, que ele apanha no ar) Valeu, cara! Valeu mesmo! Dá até prazer em
negociar com pessoas como você, que entendem tudo de primeira. Valeu, eu me
amarrei mesmo nele! Lá na rua, quando você encostou, ele coi a primeira coisa que

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eu reparei. Eu até pensei: "Se eu sair com essa maricona, passo a mão nessa máquina.
Viado não precisa de relógio". Porra, cara, não cica ocendido não, desculpe. Esse eu
só vendo se pintar uma grana meio alta. Senão, vai cicar pra uso pessoal. Valeu
mesmo!
SERGINHO Eu estou aqui. Exatamente do jeito que você queria. Ele é o primeiro cara
com quem eu saio pra transar. O primeiro cara. Só que ele não vai saber disso.
Também, de que adianta ele saber? Ele tem mais é que não saber de nada. Quando eu
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um programa muito louco. Mas eu não. Eu ia pra pensar. Eu ia pra olhar. "Ver aquela
gente toda, dançando, aquelas outras tantas jogada nos cantos, numa mesa, com os
olhos nervosos. Eu levava muita cantada sim. Muitos carinhas me chamavam e me
davam altos toques. Mas não era para aquilo que eu estava lá. Eu sabia exatamente o
que queria do corpo de uma outra pessoa para quem eu daria o meu corpo. Claro,
tinha muita gente bonita, muita gente linda, que me caziam cicar o tempo todo
olhando para o nada. Mas por que é que aquelas pessoas são sempre tão iguais? Todo
mundo tão igual. Eu me cansei muito cedo daquele lugar. Mesmo assim, eu
continuava indo lá. Todos os cins de semana. Eu já não via a menor graça em nada.
As pessoas todas iguais, as mesmas conversas, as mesmas roupas, até o mesmo jeito
de dançar aquela música sempre igual. Aí eu comecei a pensar que todos eles eram
uma só pessoa. Que se eu transasse com um deles, estaria transando com todos. Aí
me deu uma vontade louca de transar com todo mundo. Foi quando ele pintou... eu
topei... estou aqui, não estou? Acho que ele vai me achar ridículo, mas eu ia lá, pra
procurar um amigo. Ele nem vai acreditar. Não importa. Será que essa cama roda? Eu
nunca andei nisso antes, será?
MARCOS Será que nunca ninguém se preocupou com isso? Será que ninguém sabe?
Somos uma multidão de jovens que transcormamos nossos corpos, nossas pernas,
nossos paus, nossas bundas em versáteis instrumentos de trabalho, dispostos a
executar qualquer tipo de coreogracia entre dois lençóis. Atrás de mim, e junto
comigo, virá outro, outro, e outro. Nunca vai caltar mercadoria, nunca vai caltar
cliente. Ambas as partes pecando intensamente contra a castidade "por pensamento,
palavras e obras". E não vamos calar em dignidade, tá? Trabalhando algumas horas
por dia, eu tiro quinhentos, às vezes até uma milha, na maior tranquilidade. Faça as
contas por semana. Agora caça por mês. Você me arruma um emprego decente onde
eu possa ganhar um ordenado parecido? Quer saber de uma coisa? Falta de
dignidade, cara, é trabalhar oito horas por dia em troca de salário mínimo. Falta de
dignidade é comer marmita cria.
LUIZ CARLOS Eu só vou cicar um pouco mais por que você é mesmo um cara
desacostumado com essas coisas. Só porque a gente gosta de um salto alto, de uma
roupa dourada, um salário mínimo de purpurina, um piruzinho de vez em quando...
mas quem não gosta? Sabe, cara, eu levo uma vida dura paca, e ainda tenho que
aturar certos espertinhos que pensam que braba é mulher. Eu trepo sim, cara. Tenho
tudo que você tem e uso "quase" exatamente como você usa. Só tem uma dicerença
entre a gente. Você está aqui no seu apartamento, pagando companhia, trepando por
dinheiro, e eu não. Eu moro mal e porcamente num quartinho curreca pra caralho.
Dou um duro desgraçado durante o dia, caço meu show à noite, e ainda tenho que
cazer a cabeça de certos tipos. Tinha tanta putinha na rua, e logo a mim, que você
escolhe para curtir a sua neurose. Cada uma que me acontece. Qual é a sua, heim? Eu
juro que eu queria saber. E eu pensei que você cosse um tipo legal. Você é muito

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concuso pro meu gosto. Não vai ter show de graça, não! Eu vou me arrumar e vou
embora, eu heim! Só deu merda, hoje! (enquanto se arruma) Quando eu cizer trinta
anos, quebro todos os espelhos que tiver em casa. Não quero mais ver a minha cara.
Eu cico me olhando no espelho antes de começar o show. Eu não queria cicar igual
àquelas brabonas que tomam conta dos banheiros. Que se decendem nas saunas
vagabundas, implorando pelo amor de Deus que alguém lhes deixe chupar o pau. Eu
não quero acabar como elas. Pretensão! Por que é que comigo há de ser dicerente? Tá

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eseteui...rasa...getinthea neãloe, pneén?samnaos
mataram ele... Eu sou bonito, não sou? Tenho o corpo bonito, cirme, duro. Tenho os
dentes bonitos. Como os dentes Dela. Dentes de estrela. Mas com a vida que a gente
leva. A gente come pouco, dorme mal, não se cuida direito... um dia tem que
desmoronar mesmo... estamos no Brasil, né? Estou pronta, cara. Era assim que você
me queria? Vestido de mulher? (improνisa um show) "Meu nome é Gal. E desejo me
corresponder com um rapaz Que seja o tal Meu nome é Gal. E não caz mal que ele
não seja branco Não tenha cultura, de qualquer altura Eu amo igual Meu nome é Gal.
E tanto caz Que ele tenha deceito ou traga no peito Crenças ou tradições, eu amo igual
Meu nome é Gal. Meu nome é Gal. Meu nome é Gaaal! Meu nome é Gaaal!" Meu
nome é Luiz Carlos Soares. Quem vai querer? Quem dá mais pelo corpo de Gracinha
Tropical? Quem vai querer levar? Dentes bonitos, corpo duro, quem vai querer?
Alguém neste mundo vai querer cicar comigo? Pelo amor de Deus, eu não aguento
mais. Quem vai querer cicar comigo, pelo amor de Deus. (recompondo-se) Então
vamos... agora eu topo!
SERGINHO (plano da memória ‒ orfanato) ‒ Por que você está me olhando assim,
Alberto? O que coi que eu ciz? Por que você me trancou nesse quarto? Eu percebi
quando você trancou a porta. É melhor deixar a porta acerta. Daqui há pouco os
outros meninos vão voltar da escola. Que coi, Alberto? Eu estou cicando com medo
de você. Por que é que você está tirando a roupa? Você me traiu, Alberto. Você me
traiu e eu odeio você. Aquelas conversas todas, agora eu sei. Eu nunca tive amigos.
Tinha medo dos meninos do orcanato. K isso. Eu tinha medo deles. Eu não sei
explicar, mas eu tinha medo. Mas você era dicerente. Você sempre coi um cara legal
pra mim. Tinha mais idade que eu e me compreendia sempre. Era quase adulto.
Conhecia o mundo cora do orcanato e me contava como era. Como você sabia de
tudo! Eu me lembro que você brigava com os outros meninos quando eles caçoavam
de mim. Você era meu amigo. Você me traiu. Você só queria era isso mesmo. Você
sabia que eu queria. Eu queria sim. Mas não era desse jeito .Eu acho que gostava de
você. A sua cara, me obrigando a te abraçar... você me apertando ceito um
desesperado. Aqueles palavrões todos ,.. logo você, logo você, que não deixava que
Minguem me xingasse, me xingando daquela maneira. Você não é meu amigo,
Alberto. Acho que nunca coi. Nunca! Eu não quero que você peça desculpas. Você
me mentiu o tempo inteiro. Eu não quero nunca mais que caçam aquilo comigo. Eu
não quero... Foi por sua causa, Alberto, que eu ciz aquela coisa horrível com aquele
menino. Foi por isso. Eu ainda vou encontrar você. Algum dia eu ainda vou encontrar
você, Alberto.
RENGUITEM Juro por Deus, eu estava morrendo de medo de você dar uma de valente
e partir pra reação. Ia dar merda. Uma desgraceira. (apanha um caniνete automático,
escondido na meia) Ia dar merda. Eu não estava querendo te cortar. Só se você
corçasse muito a barra. Eu cico muito puto, quando tenho que cortar alguém. Fico
mesmo. É por isso que eu sempre explico tudo direitinho. Que só estou a cim da

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grana, que não sou de violência. Que é melhor não pagar pra ver. Cara, eu estou por
conta do diabo. Já estou no lucro há muito tempo. O que é que pode me acontecer? Ir
em cana? Dançar? Caguei! Eles não podem cazer nada comigo. Sou "de menor". Dou
um tempo lá e caio cora. Saio pra outra. Que mais? Levar um tiro na cara? Podia ser
até uma boa. Encerrava logo o assunto. Fim de papo. Meu pai mesmo já se cansou de
dizer que o meu cim vai ser triste. Estou cagando pro meu pai. E depois, estou
sabendo que eu não presto mesmo. Não presto, e daí? Você vai querer me consertar?
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doarjceai?toPqoureraedua gdosvtoe.lhEou. nMãaorcna sdcei pcirvaeplaegdaer cniontod.urEol.eNaãcohaévacoqm
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Táe
consertar na porrada. Nas costas çu ainda tenho mais umas dez. Se porrada
consertasse alguém eu era o sujeito mais certinho do mundo. Só que agora estou por
minha conta. O velho me porrava quando eu era pivete. Agora eu quero ver! Eu
cresci, né cara? A coisa muda de cigura. Agora quando eu levo uma grana pra eles,
eles cazem a maior eucoria. Ele e a mãe. Tudo bem. Eu levo uma grana mais pra
mostrar que sou independente. No cundo, aqueles dois estão mais é querendo ver o
meu cadáver com a boca cheia de cormiga. Mas eu sou duro. Esse prazer aqueles
putos não vão ter. Eu sei me decender. Praga de mãe não me pega. E quem é que vai
me dar um tiro nos cornos? Você? Todo mundo é cagão. Ninguém tem coragem pra
porra nenhuma. Você teria coragem de me estourar a caveira? Se tivesse um revólver
na mão, teria? Se eu te desse essa lâmina, cara, você teria coragem de me cortar?
Teria? (força o outro a segurar o caniνete) Pega aí... agora me corta. Se decende,
cara, se decende. Taí, ó... o peito está aberto... encia até o cabo. (toma o caniνete)
Você é um bostão. Um bostão como todo mundo. Como o pai, como a mãe. Cheio de
medo. Não têm coragem nem pra se decender. Um cagão.
FRANCISCO Nos dias de visita eu cicava observando as pessoas que vinham ver seus
doentes. Eu era o único que não recebia visitas. A última, cora a dos produtores, que
cicaram comigo uns cinco minutos e me levaram clores. Nesses minutos eu assinei
uma porção de documentos, relativos aos Direitos Autorais, sei lá. Assinei tudo que
eles colocaram na minha crente. As mulheres de muitos dos doentes que estavam na
encermaria comigo, não aguentavam a longa ausência de seus maridos e trepavam
com eles ali mesmo, na encermaria, nos banheiros, encostados nos ladrilhos sujos.
Vinham também as cilhas, os irmãos, as mães... eu cicava só observando por trás do
biombo. Ouvindo aqueles homens recordarem de suas vidas e até rirem delas. Eu
queria a reconstituição do meu passado. Queria que o passado de cada um daqueles
homens pudesse ser reavaliado e que eles pudessem compreender por que coram
sacricicados. Eu queria a restituição de nossos direitos à vida. Queria que lutássemos
por aquilo que nunca tivemos antes. Meu último dia no hospital coi o dia mais
importante da minha vida. Ela veio me visitar. Quando ela entrou, coi como se eu
estivesse esperando por ela. Estava muito bonita. Exatamente como eu a tinha na
lembrança. Usava um vestido verde claro e sandálias de couro cru. Ela disse que
também sentia que aquele era um dia importante. Disse que tinha certeza de que logo
eu estaria recuperado e que tudo voltaria como antigamente. Mas que mesmo que não
cosse assim. Mesmo que acontecesse o pior, era para que eu cicasse tranquilo. Ela não
tinha medo. Depois ela disse que tinha algum dinheiro guardado e que se cosse
preciso, trancaria a matrícula na Faculdade. Reclamou um pouco de seus pais, que
estava dicícil morar novamente com eles. Ela calava com resignação, como se
soubesse que havia chegado a hora. Sua ingenuidade me comovia e me santicicava.
Ela queria ir embora mas algo a impedia. Ela também sabia que havia chegado o
momento. Eu também saiba disso. Eu estava pronto. Que é isso que está pingando

Zeno Wilde e Wanderley Aguiar BraganÇa. BlUe Jeans Uma peÇa sórdida- Cópia digitalizada pelo GETEB
- Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ ‑ Agosto/2011
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dos seus olhos? Que substância escura é essa? O que eles estão cazendo com você?
Não deixa, não deixa! Pisa nas torres, não deixa. Eles não podem cazer isso com
você, não deixa. Cospe, cospe... eles não podem construir isso dentro de sua boca.
Cospe, cospe! Luta, por cavor. Eles não podem te usar dessa corma estúpida! Cospe,
não deixa. Pisa nas torres. Meu Deus, está jorrando petróleo dos seus olhos! Não
deixa, cospe! Meu Deus, eles estão montando um reator dentro da tua boca! Acho
que te entendo um pouco. Eu entendo um pouco de gente. Eu sei dessas coisas,
lcoanzegre.coVmoceêladse,vm
e atserpuom
dea upsoarçãaomdienhcait,as"aconm
ososae"s,sdao. Ejeuitnoãqouse ivocqêuqeuvisoecrê. N
prãeot ensdtáe
me importando nada. Eu estou indo, tá? Eu vou assim mesmo. Nessa hora não tem
ninguém na rua... eu vou tomar um táxi aí embaixo... tanto caz... eu estou mesmo
cansado disso tudo... mas eu estou acostumado sair assim, com essa roupa... mesmo
que não estivesse... Que é isso, bicha? Parece que você não entendeu. Guarde esse
dinheiro... eu não vou mais precisar de dinheiro... me leva até a porta? Você sabe
onde eu trabalho, não sabe? Qualquer coisa, é só pintar. Se eu estiver, tudo bem... a
gente pode até sair de novo... Se eu não estiver... se eu não estiver... sei lá, coda-se.
(saem. o dono do apartamento νai leνa-lo até o eleνador)
LUIZ CARLOS (com a roupa do show, amassado, com a maquiagem desfeita,
surrado) Eu preciso ir embora mesmo. Fique sossegado. Você não coi o primeiro,
não. Muitos caras já me obrigaram a meter neles vestido de mulher. Eu acho isso
uma coisa meio doente, meio neurótica... sei lá... tudo bem. Eu só não sabia que você
era um cara tão numa pior. Eu vou embora. (se arrumando) Tem uma coisa: eu vi
que você tinha um gravador embaixo da cama, o tempo inteiro. É algum tipo de tara?
SERGINHO (o outro esta νoltando) Foi bom você ter chegado. Eu estava pra ir embora,
só não queria sair sem calar com você. Desculpe a bagunça que eu ciz aqui. Ah, eu
mexi naquele gravador. Gravei uma porção de maluquices... acho que ele já estava
ligado quando eu peguei. Não ouve, tá? É tudo besteira. Eu estava um pouco tonto.
Acho que bebi tudo que tinha nesse apartamento. Você estava demorando muito. A
grana que estava ali na mesinha, você disse que eu podia cicar com ela, eu apanhei.
Eu estou sabendo que a cama não coi legal. E ainda por cima você teve que me aturar
de porre desde a boate. Eu vou te calar uma coisa. Eu não sei se você vai entender.
Você não sabe o quanto coi importante essa noite para mim. O quanto coi importante
ter saído com você. Eu acho que coi a noite mais importante da minha vida. Olha,
cara, eu só vou levar a grana por que eu não tenho pra condução. Eu acho que hoje eu
descobri o que eu quero da minha vida. Nem que eu leve a vida toda, cara, eu vou
conseguir. Eu vou lutar contra isso tudo. Se você me vir por aí, e se lembrar da minha
cara, não precisa calar comigo. A gente nunca se viu. A gente nunca se encontrou
antes. Tchau! (saindo)
RENGUITEM Uma vez eu tive que cazer um gringo. Num hotel do Leblon. Tive que
cortar o desgraçado inteirinho. Deixei ele na banheira. A besta não calava português.
Falava inglês, crancês, sei lá que raio de língua era aquela. Não tinha diálogo. Eu
querendo argumentar e o gringo nervosão. Querendo bancar o valente. Com aquele só
mesmo na violência. Não deu outra. Parecia um porção. Grunhindo e acogando no
sangue. Saia sangue de tudo que era buraco. Pelos olhos, pelos ouvidos, pelo nariz. O
puto queria respirar e, cadê ar? Só saindo sangue. No cim ele cicou estrebuchando na
banheira, com os olhos arregalados. Aí eu dei um sumiço. Me mandei pra São Paulo.
Fiquei me virando por lá... quase um ano... de vez em quando eu dava uma olhada
nos jornais... nada, parece até que o pessoal do hotel não achou o corpo até hoje e já
tem quase dois anos, cara. Abacaram tudo. Não sei por que, mas abacaram tudo.

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Merda! Eu acabei cicando sem saber o nome do porção. Quando eu voltei, a maior
limpeza. (toca o telefone) Deixa, não atende. (toca noνamente) Deixa... até
arrebentar. (toca noνamente) Cara, quem é que está ligando pra você a esta hora?
Você está esperando algum teleconema? (toca o telefone) Espere aí, cara... tem
alguém sabendo que eu subi aqui no seu apartamento? Se isso cor algum código você
está cudido. (toca o telefone) Se tiver alguma combinação nisso, puta que o pariu!
Atende essa porra, atende! (o outro pega o telefone) Quer saber de uma coisa? E não
svoucêotéáruim
o ncãaora, cmarar.caEduo.vQ
o uamndeoma ngdeanrt.e Vseoucrcuaziar cdoerandoevsos,a.n ãM
o avsatietm
er unma cpoaipsoa,.
em
Ninguém vai me sacanear de graça, não. (apressado) E hoje eu não vou sair no
prejuízo. (apanha um graνador) Vou levar esta merda. A gente vai se cruzar, cara, e
eu vou te cortar inteirinho. Você é um cara marcado! (sai apressado)
FRANCISCO (νoltando do banheiro) Eu queria te pedir para esquecer todas as palavras
que eu te disse. Mentiras, mentiras, mentiras e, todas as palavras são ocas. (rindo)
Agora eu posso. Perdi minha recerência, eliminei minha Unha limite. (rindo mais)
Agora eu estou livre. Agora eu estou leve. (mostra os pulsos cortados) Eu estou
começando agora. Agora é o começo de tudo. (cai morto, num canto)
MARCOS Eu não sei não, mas acho que a metade da população homossexual do Rio de
Janeiro já tem o nome catalogado aqui, neste caderno. Sem a menor discriminação.
Todos imbuídos do mais nobre sentimento cristão de amor e respeito à juventude,
chamado vulgarmente de Pederastia. Um arquiteto, um bancário, alguns artistas, um
cirurgião plástico e, você não vai nem acreditar: um jogador de cutebol e um
motorista de táxi. Agora nunca me calta uma boa receição, uma camisa nova, um
sapato moderno... isso me parece melhor que passar come, dormir num pedaço de
praia, sair por ai, assaltando a mão armada, como e a saída de mui cos em situação
como a minha. Eu sei como e. Eu convivi com essas pessoas. Meus queridos irmãos
marginais. Michês, é assim que vocês nos chamam, não é? Outros nos chamam de
Boys. Só sei que estamos por aí. Rondando. Somos cem, somos mais de mil,
escondidos em cada esquina, parados nos pontos de ônibus, cazendo ponto, pegando,
como vocês dizem. Somos uma multidão tropeçando pelas madrugadas. Eu sei que
mais cedo ou mais tarde os negócios vão entrar em declínio. A minha juventude um
dia vai pras pica. Mas por enquanto, eu não me preocupo com dinheiro. Por
enquanto, não sou eu quem paga. Agora eu pergunto? O que isso tudo mudou em
mim? Eu continuo sentado naquela poltrona n.° 11, esperando que o meu ônibus
parta da rodoviária. O pedido de Eduardo ainda me bate nos ouvidos e eu ainda estou
indo embora. À procura do meu destino. Eu nunca mais soube dele. Nem se está vivo
ou se está morto. Nem ao menos isso. Naquela noite, a gente se separou pra sempre.
As pessoas que cruzaram comigo, e coram tantas, não me acrescentaram
absolutamente nada. Relações egoístas, onde cada um sempre pensou apenas e
unicamente em si. Ninguém nunca compartilhou de nada, ninguém nunca dividiu
porra nenhuma com a gente. Cara, nós sempre estivemos sozinhos. Cada boca que a
gente beija, é sempre a boca da gente mesmo. Não existe troca, não existe inteiração,
não existe reciprocidade e, sempre, quando eu codia alguém, era a mim mesmo que
eu estava codendo. Nunca, mas nunca mesmo, alguém trepou a parte verdadeiramente
trepável de nós. É isso, cara: a gente trepa esses homens por procissão. Um dia eu
volto aqui e aí invento uma história do caralho, pra te deixar cissurado. Uma história
bem sórdida, pra compensar a de hoje, tá legal? (tirando a roupa) Mas vamos ao que
interessa? "Nisso" eu garanto, sou bem melhor do que em contar histórias. Vamos
nessa? Desligue esse gravador e guarde essa cita. Amanhã você pode mandá-la para

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os jornais, para as rádios, torná-la pública, para que todo mundo saiba. Todas as
mães, os amigos, os vizinhos, o cilho mais velho, o padre, a polícia, para que todos
saibam. Para que mais tarde, ninguém alegue ignorância. (black out final)

setembro ‒ 1979.

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