Você está na página 1de 95

jv araújo

A bruta cordialidade dos dias

[contos]
Copyright © 2021 by JV Araújo

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Projeto gráfico e diagramação


Ronyere Ferreira

Capa
Alexandre Mesquita

Imagem da capa
JV Araújo

Revisão
Maria do Socorro Rios Magalhães

JV Araújo.
A bruta cordialidade dos dias / JV Araújo. – 1a ed. – Teresina:
Cancioneiro, 2021.
96 p.

isbn (físico): 978-65-89065-38-8


isbn (digital): 978-65-89065-39-5

1. Ficção brasileira. I. Título


CDD: 869.3
[2021]
Os direitos comerciais dessa edição são reservados à
editora cancioneiro
cnpj 38.275.847/0001-51
Teresina - Piauí
www.editoracancioneiro.com.br
contato@editoracancioneiro.com.br
instagram.com/editora_cancioneiro
Para Milly
Nenhum “nós” deveria ser aceito como algo fora de dúvida,
quando se trata de olhar a dor dos outros.

Susan Sontag
Sumário

Prefácio................................................................................ 11
Eva P. Bueno

a bruta cordialidade dos dias


Fogo-fátuo e lantejoula...................................................... 13
A bruta cordialidade dos dias........................................... 17
Quimera............................................................................... 25
Memento mori.................................................................... 29
Overkill................................................................................. 45
Perfuração, dilaceração...................................................... 51
Coisas estranhas................................................................. 55
Sem vagas no Inferno......................................................... 59
Matéria bruta....................................................................... 67
prefácio

A bruta cordialidade dos dias, primeira obra de fic-


ção de Jorge Victor Araújo, é um livro ímpar, porque ao mes-
mo tempo que é um livro de contos eminentemente brasileiro,
e como tal, reflete a nossa experiência às vezes barroca, às ve-
zes surrealista, vivida num ambiente de incertezas, permeadas
pela sempre possível violência, ele também traz ecos literários
que nos remetem à tradição literária ocidental de muitos sécu-
los. Mas o mais importante é que, dentro de todos os contos,
mesmo quando chegam à beira do macabro, se vislumbra um
pequeno raio de esperança.
É neste raio de esperança que devemos nos fixar. Apesar
do momento de trevas em que vivemos, temos que acreditar
que vai amanhecer, que novas flores florirão, que crianças
vão brincar nos parques sem medo, que adultos vão conse-
guir conversar sem ameaças, que as pessoas vão se amar sem
medo. Este raio de esperança que Jorge Victor nos traz com
este livro é o mesmo que escritores de todos os tempos culti-
varam, porque enquanto pudermos continuar contando, con-
tinuar trazendo para a página a experiência do outro mesmo
que seja dolorosa, porque enquanto ainda houver escritores
que captam e transmitem estas experiências da forma elegante
como a que vemos na escrita de Jorge Victor Araújo, ainda
não perdemos completamente a nossa humanidade. E pode-
mos ter certeza que a literatura brasileira vai bem, sim senhor.

Eva Paulino Bueno


Professora Emérita na St. Mary’s University
San Antonio, Texas

12
Fogo-fátuo e lantejoula

Lembro sim. Na primeira vez que ouvi falar do bloco dos


mortinhos, eu ri. E podia lá existir bloco de Carnaval formado
por crianças mortas? Era uma contradição danada. Bloco ou
cortejo fúnebre? Ezequiel, amigo meu, falou que pras bandas
dos States existem as duas coisas ao mesmo tempo − cortejo
de morto com festa de Carnaval. “Coisa de gringo. Aqui não
tem. Aqui o povo é religioso”, rebati. Lembro bem.
Você deve estar se perguntando como um bloco de mor-
tos desfila por aí sem ser notado. Veja, naquele tempo, a vida
era de fato bem diferente. Naquela rua, quem tinha um carro
na garagem era considerada gente rica. Não precisava ser car-
rão não, como Alfa Romeo ou Diplomata. Bastava um Che-
vette para virar magnata. Telefone? No raio de quilômetros,
só três casas tinham o tal aparelho. Era bairro de gente bem
pobre, mas no Carnaval todo mundo dava um jeitinho de sair
dali. A maioria ia para alguma praia dividir casa de três cô-
modos com vinte pessoas. Um banheiro só. Já pensou? Mas
todo mundo que podia saía para pôr os pés na areia quente.
Sepetiba ficava lotada. De modo que no meu bairro você po-
dia caminhar por horas e só esbarrar com um cachorro ali, um
gato acolá. Outra época. Época do Atari que não tive.
Voltando aos mortinhos. Devo dizer que nem todas as
crianças do bloco estavam mortas. Na verdade, a maioria es-
tava vivíssima. É que, no meio da molecada arteira, algumas
crianças falecidas se disfarçavam, usando as fantasias mais co-
muns: carrasco e bate-bola. No entanto, tinha de tudo no su-
búrbio. Pierrô, morcegão, palhaço, colombina, zumbi, diabo,
arlequim, gorila, e até robô. Mas o que realmente perturbava
a cabeça da gente era a turma do improviso. Vestia-se o uni-
forme do colégio, tapava-se o rosto com um lençol encardido
com dois furos para enxergar a cara de assombro dos tran-
seuntes displicentes das esquinas semidesertas. Levavam um
chicote de courinho. Por vezes, desenhava-se uma boca mal
traçada naquele lençol. Por sorte − ou azar − os vi mais de
uma vez.
Naquele ano, o reinado de Momo foi bem atípico. Du-
rante quatro dias, o céu desritimou. Já a quarta-feira, que era
para ser de cinzas, foi bem azul. O domingo de Carnaval ama-
nheceu com uma chuva ralinha. Quase que um frio tomou as
ruas repletas de amendoeiras. Na solidão de minha casa, em
companhia de minha mãe, que só fazia dormir o dia todo, eu
pensava sem parar: “bem-feito pra quem foi pra praia”. Liguei
a TV no “Domingo no Parque”, e passei o resto da manhã nele.
Vi um moleque trocar uma bicicleta novinha por uma chupe-
ta velha. Eu ri.
Desci para a rua logo depois de mastigar os restos de um
frango meio azedo. Minha mãe continuava a dormir. Ela acha-
va que não, mas eu sabia o porquê daquele sono danado.
Como não tinha com quem brincar, resolvi entrar no
terreno baldio para ver se achava alguma coisa. Portanto, foi
no meio do matagal molhado que ouvi, vindo lá do começo
da rua, os barulhos das latas sendo batidas e da bola se arre-
bentando com força no chão. Subiam apitos de rasgar orelha.
Eram os bate-bolas e a turma toda do bloco. Antes mesmo de

14
pensar em sair dali correndo para casa, senti uma mão tocan-
do meu ombro esquerdo. Gelei. Minhas pernas ficaram mo-
les. Ouvi primeiro a risadinha. Depois me virei. Não gritei,
porque o grito morreu calado no meu peito. O rosto branco
de tela de arame, o buraco redondo para a chupeta e o cabelo
cor de fogo. Tudo ali. Era um bate-bola do meu tamanho. O
resto da roupa de cetim era preta e branca. Era elegante. Tinha
capa preta. Fez questão de estendê-la com o braço direito. Ele
segurou firme a minha mão com a sua mão enluvada e me
encaminhou para fora do mato. “Vamos ver o bloco passar.
Ninguém mexe contigo. Pode deixar”. Assim, de mãos dadas,
ficamos na calçada em frente ao terreno. Eu não tinha pés,
batatas das pernas, joelhos e nem coxas para correr. Apesar da
garganta, não tinha a quem gritar.
Lá embaixo vinha subindo o bloco numa animação só. As
capas de cetim giravam mostrando os desenhos feitos de pur-
purina. Havia figuras de todos os tipos naquelas capas. Turma
da Mônica, Pica-pau, Matracatrica e Fofoquinha, Tom e Jerry,
Dráculas. Já dava para sentir o perfume doce demais que en-
charcava as roupas. Carrascos e arlequins regiam a bateria que
de tão desencontrada mais parecia uma saraivada de balas do
que o batuque de gente bamba.
Ventava. Pouco acima dos mascarados, confetes e serpen-
tinas ziriguidumdeavam.
Ah, se eu estivesse com os colegas e com pedaços de pau
na mão! “Bate-bola, bate o pé, que tem medo de mulher, se
for homem vem aqui, se for bicha fica aí”. De mãos dadas, fi-
quei foi mudinho da Silva. Só em contemplação. Vinham es-
queletos, gorilas, palhaços. Fiquei com receio de tomar uma
coça quando chegassem perto de mim. Já tinha ouvido muitas
histórias de blocos de bate-bola que faziam covardias. Amar-
ravam em poste, davam surra, mijavam. Em Madureira, um

15
menino morreu. Levou surra de bate-bolas de um outro bair-
ro. Uma pedra quase o rasgou em dois, disseram.
O abre-alas passou. Era um diabão de perna de pau. Gira-
va e girava. Vermelhão. Alto que era, não sei como ele conse-
guia executar aquelas piruetas. Quase riscava o meio-fio com
os seus chifres. Vieram os muitos bate-bolas. Nesse momento,
minha companhia falou: “Aquele ali. O de azul e branco. É
meu irmão”. O tal irmão apitou forte e largou uma nuvem de
confetes e lantejoulas. Estava olhando as cores caindo, e qua-
se não me apercebi que três figuras vestidas com uniformes
colegiais e com capas de travesseiro tapando a cara, pararam
na nossa frente fazendo poses engraçadas. Eram pequenos.
Assim que os vi, soube. Os movimentos... Tinham os braços
muito enrugados. Mas não era de velhice não. Era carne solta
e esbranquiçada como a desgastada bola de bexiga de couro
do bate-bola. Os dedos das mãos eram meio que colados uns
nos outros. Através dos buracos das máscaras improvisadas,
mal se viam os seus olhos. Saiam dali uns tristes brilhos de pu-
pilas sempre muito úmidas. Era um bruto descompasso com
aqueles gestos alegres. Já iam saltitando para acompanhar o
resto da turma, quando apontei para os três de mãos dadas.
Soltando a minha, disse: “A gasolina arregaçou com eles. Faz
tempo isso aí. Foi o pai. O pai deles.”
Virou-se e foi dançar no final do alegre cortejo. De re-
pente, antes de dobrar a esquina da rua de cima, o bate-bola
de cabelo de fogo e fantasia enxadrezada me deu tchau. Eu ri.
Lembro isso tudo do nada.
No ano seguinte, vesti minha fantasia.
Fui.

16
A bruta cordialidade dos dias

Eu bato, todo mundo bate. Bate!


Brincadeira infantil de carniça

Quando sua mãe entrou na sala com um copo de Qui-


ck de morango, Marco assistia ao implacável doutor Gori en-
frentar com gestos enfáticos o primeiro herói ecológico da TV.
Mal cabia no sofá, que já estava com a marca de seu corpo
carimbada no couro marrom. Dona Edineuza, com leve abano
de cabeça, reparava no tamanho do filho. Estava a contemplar
aquele corpo que era forte e grande como o de um pequeno
bezerro, quando o seu marido, que já estava de saída para o
trabalho, estancou em frente à TV, e ralhou com ela. Falou que
era por conta de mimos como aquele que o garoto não passava
de um abobado. Disse, não pela primeira vez, que naquela ida-
de ele já estava em lombo de cavalo, tocando boi no pasto jun-
to ao pai, e que, quando dava onze horas da manhã, em pon-
to, sua irmã caçula os encontrava na roça com as brilhantes
marmitas do almoço devidamente ajeitadas em panos de prato
impecáveis. O homenzarrão saiu batendo a porta pintada em
tinta óleo azul e, reclamando alguma coisa sobre a moleza da
vida na cidade grande, se afastou com passadas sérias.
Marco, rindo, apenas repetiu a palavra “abobado”. A mãe
foi até a TV e amassou o bombril nas pontas da antena, fazen-
do com que a chiadeira diminuísse um pouco, para que as vo-
zes dos heróis japoneses sobressaíssem. Doutor Gori disse que
poluiria Tokio até sufocar todos os humanos. Marco levan-
tou-se e repetiu os gestos dos personagens, imitando poses de
Karatê. Dona Edineuza recolheu o lango-lango jogado num
canto, colocou-o em cima da mesinha de centro, e retornou
para a cozinha, já sentindo o cheirinho do feijão que avançava
corredor afora.
Lá de dentro, Dona Edineuza ouviu quando a televisão
foi desligada e, logo depois, o rangido do portão de ferro. Não
era dia de escola. Marco ganhou a rua. Vazia, àquela hora da
manhã, era uma passadeira de folhas. Havia chovido forte na
noite anterior. O cheiro de terra molhada tornava o dia ainda
mais fresco, propício para se chutar bola, ou correr desembes-
tado de um lado para o outro, como ele gostava. No entanto,
Marco escolheu fuçar perto do charco de um terreno baldio
para ver se achava alguma rã. Semanas antes, a professora de
biologia deu aula sobre a vida dos anfíbios. Nome científico:
Amphibia. Classificação superior: Batrachomorpha. Ordem:
Anura. Copiou tudo do quadro-negro com a sua letra de ter-
ceira série, estando, no entanto, na sétima. No charco não
havia nada vivo. Ao contrário do que ocorria em um tronco
tombado perto do portão de uma vizinha. Ali, encontrou ou-
tro bicho. Um passarinho. Topou com um filhote de Thrau-
pis Sayaca. Na boca dos passarinheiros: sanhaço. Sem ninho.
Não se aguentando de tanta felicidade, o garoto correu para
casa com a novidade confortavelmente acondicionada entre
as mãos rechonchudas. A mãe, que estava experimentando o
sal e o alho do caldinho do feijão recém-refogado, tomou um
baita de um susto com o alvoroço do moleque.
Os dois providenciaram uma papinha feita de milho mo-

18
ído e água; improvisaram um ninho dentro de uma caixa de
sapatos; colocaram água dentro de uma chapinha de refrige-
rante. Marco batizou-o de Garibaldo. A mãe suspirava ao ver
a cena de Marco acarinhando o filhote; além de lembrar a sua
infância na roça, percebeu que o filho era capaz de alguma
empatia com os animais, coisa que o psicólogo aconselhara a
ficar de olho.
De tardinha, do portão de sua casa, Marco anunciou para
os meninos da rua seu novo companheiro. “Então, o florzinha
achou um beija-flor?”, gritou um guri dentuço e remelento.
A molecada caiu na gargalhada. Começou o coro: “Florzinha,
Florzinha, Flor…” Apesar de ser muito mais forte do que os
cinco moleques juntos, Marco entrou enxugando as lágrimas.
Engoliu o soluço que sacudiu o seu corpanzil. Seu pai havia
lhe dito, várias vezes, que se entrasse chorando feito mariqui-
nha iria lhe cobrir de porrada para aprender a ser homem.
Marco não havia esquecido dessa promessa, que lhe foi dada
junto com uma dica de ouro: “se te baterem, pega o primeiro
pedaço de pau que vê pela frente e quebra na cabeça do sa-
fado, mas não me venha pra casa feito um maricas, ouviu?”
Como não tinha apanhado na rua, pensou que também não
apanharia em casa. Errou. Seu pai, que tinha ouvido a gritaria
dos garotos, o esperava na sala já com o cinto na mão. De nada
adiantaram os apelos da mãe. Marco sentiu a primeira cintada
direto na cara. O menino caiu mais pelo susto do que pela dor,
que não foi pouca. Estalou na perna direita, perna esquerda,
braços, ombro, duas vezes na barriga... A pele é extensa. En-
quanto tentava suportar as lambadas que vinham sem contro-
le algum, o garoto se lembrou do que o pai lhe falara de seus
tempos na roça, em que chicoteava bois para doutriná-los. “Se
você não é homem, é gado. Gado. Ouviu?” Com o braço pe-
sado de cansaço, seu pai interrompeu a lição. Foi o tempo da

19
mãe o acudir. Marco estava trêmulo. Gritava. Caído na poça
de seu mijo. O pai pôs o cinto na mesa de centro, junto à Bí-
blia que vivia aberta em Salmos. “Agora ele aprende”. A casa
se calou.
Horas depois, procurando esquecer as pulsantes queima-
duras provocadas pelo couro, Marco foi alimentar Garibaldo
no quintal dos fundos. Um pedacinho de madeira foi escul-
pido em forma de colher. Na pontinha, colocou um pouco da
papinha e deu para o bico arreganhado, que piava sem parar.
Com a ponta do dedo indicador, Marco fazia carinho na ca-
beça do bicho que chegava a fechar os olhinhos de conforto e
satisfação. De repente, percebeu que se fez uma sombra sobre
a caixa de papelão. Eram os brilhantes coturnos do pai que
pararam rente à caixa. Ficou com receio de olhar para cima.
Olhou mesmo assim. Viu os olhos verdes ainda riscados. “Que
porra é essa?” “Garibaldo, achei ele” “Se livra dessa merda até
amanhã. Quando eu voltar não quero mais ver isso aqui. Sou
eu quem paga as contas dessa casa”.
Na escola, os professores não perguntaram nada sobre as
suas marcas. A maior, claro, era a do rosto. Outros garotos
e garotas sempre apareciam assim. Por que ele deveria ter o
privilégio de ser notado? Era a educação doméstica. Sobre esse
assunto, um professor de Educação Moral e Cívica sempre re-
petia o seu bordão na reunião de pais. “Se não vai no méto-
do Piaget, vai no método Pinochet”. Muitas mães e pais nem
sabiam quem eram esses dois, mas davam altas risadas para
evitar que o diretor da escola caísse no ridículo.
O garoto aprendeu as lições de matemática e português,
ainda sentindo as dores do dia anterior.
Na volta da escola, Marco reparou que um enorme cami-
nhão-baú estacionara perto de uma vila vizinha de sua casa.
Viu gêmeos magrelos tentando ajudar a erguer uma mesa.

20
Sorriu e acenou. Recebeu apenas olhares apáticos. Entrou em
casa com uma missão: sair e arranjar um novo lar para o Ga-
ribaldo. Quando se aproximou da caixa seu coração deu um
salto: “Cadê o Gari…” “Atrás do fogão, é que ali é mais quenti-
nho”. A mãe recebeu um beijo. Algo raro. Abriu-se em dentes
enquanto mexia o angu na panela.
Marco teve uma ideia: continuaria tratando todos os dias
do Garibaldo, colocando-o dentro do buraco de alguma árvo-
re próxima de sua casa. O bichinho comeu sua última colhera-
da de milho moído, antes do garoto sair para a rua com a caixa
segura nas mãos. Deixou-a em cima de um degrau da calçada,
num canto, para não haver risco algum de ser pisoteada, e foi
caçar a nova morada de seu amigo. Não demorou muito para
encontrar uma toca perfeita, ao seu alcance, em uma amendo-
eira bem frondosa. Era só colocar um paninho ali dentro para
que Garibaldo ficasse protegido e aquecido. Quando retornou
para pegar o filhote de sanhaço, viu que Eduardo e Marcinho,
dois dos moleques que mais lhe batiam e zoavam na rua, esta-
vam olhando para dentro da caixa. Sua espinha gelou ao per-
ceber que Marcinho, rindo bastante, segurava um pedaço de
pau arrancado de um carrinho de bilha.
O beiço de Marco começou a tremer e um “não” ficou
grudado em sua goela, no mesmo instante em que Marcinho
descia o porrete no passarinho. Uma, duas, três, quatro paula-
das bem certeiras. Esmigalhado. Garibaldo já era. Virou uma
pasta cinza e vermelha. Não houve tempo de nenhum piozi-
nho deixar a caixa. “Ih, o beija-flor morreu! Corre Florzinha,
que agora é tua vez”. Marcinho sacudiu o pedaço de pau, sujo
de sanhaço, para o lado do garoto já todo choroso.
Marco começou a correr. Mas foi para cima dos mole-
ques. Gritando, bateu com a cabeça bem no meio da barriga
do Marcinho, que não teve tempo de usar seu pedaço de pau.

21
O franzino voou batendo as costas contra um muro. Vendo
seu amigo no chão, Eduardo disparou para chamar os outros
garotos que disputavam uma pelada em um campinho perto
dali.
Risadas e aplausos de adultos e de crianças animaram a
peleja. Os novos moradores da rua assistiam de camarote a
luta entre Marcinho e Marco. Marquinho/Marcinho; Marci-
nho/Marco; Marcio/Marquinho; Marco/Marcinho. Se reveza-
ram pouco. Sem conseguir se levantar do chão, Marcinho viu
que seu irmão mais velho vinha correndo em seu socorro. En-
tão, o assassino de passarinhos riu de alívio, seu irmão tinha
o dobro do tamanho do Marco. “O trem vai passar”. Quando
olhou para trás e viu Sérgio, homem já feito, correndo em sua
direção, Marco apenas estancou o corpo pra aguentar as pan-
cadas que sabia que viriam. Do outro lado, os vizinhos foram
ao delírio vendo que a coisa ficaria bem mais séria para o lado
do Marco. “Porrada, porrada, porrada, sangue, sangue…”
Olhou em redor, mas não conseguiu achar o pau que es-
tava antes com o Marcinho. Não tinha pedras por perto. Nem
pedaço de ferro. Não havia para onde correr. Merda nenhuma.
Mas havia uma coisa. Havia sim.
Nesse instante, Marco percebeu que um troço velho, que
não aguentou a mudança, foi deixado ali, mas debaixo de jor-
nais, de modo que somente a parte mais fina estava à mostra.
Quando o segurou, notou que era algo pesado, roliço. No mo-
mento em que o valentão parava bem à sua frente, era aquilo
ali que o garoto Marco tinha de mais próximo. Não fez pouco-
-caso, usou o pé de mesa. As folhas de jornal voaram. A ma-
deira zuniu. E com toda a sua força acertou bem no pescoço
do irmão do Marcinho. Joelhos foram ao chão. Do outro lado,
a risaiada também morreu. Por alguns suspiros, um silêncio
respeitoso foi imposto. Marco puxou, então, a clava que gru-

22
dou no pescoço do outro. Teve dificuldade, pois havia tremen-
dos pregos enferrujados enterrados na garganta do valentão.
Usou o pé direito para se apoiar no corpo do oponente. Quan-
do os tarugos de aço finalmente deixaram a carne do jovem,
o Golias veio ao solo de vez. Gorgolando, o sangue largou o
corpo de Sérgio em corredeiras. Marco não se comoveu. Não
parou. Não ainda.
Antes de ser localizado em um balanço da pracinha e, por
pedido do pai, trancafiado numa solitária do manicômio de
Barbacena, Marco avançou para cima do Marcinho. O fran-
zino continuava deitado. As costas lhe ardiam. Chorando em
posição fetal, o garoto olhava o irmão caído naquela poça es-
carlate. Marcinho clamou por sua mãe, dona Luiza, que na
altura estava debruçada sobre uma velha máquina de costura
Singer. Marco fez pose.
Aquele silêncio foi interrompido apenas pelas pancadas
e gritos:
“Não é homem. É gado! Gado! Gado! Gado!”

Uma, duas, três, quatro pauladas.


Certeiras.

23
Quimera

Por vezes, vou a lugares que são a montagem de ou-


tros dois. Na última noite, sobrevoei uma grande área de mata.
Havia muitos animais lá embaixo. Vi elefantes, rinocerontes,
leões, cavalos e cachorros, dentre outros bichos domésticos e
selvagens. De repente, apareceram os tubarões, as baleias, as
raias. Percebi que a mata estava sob uma água cristalina. Lá no
fundo alguns animais caminhavam tranquilamente. Outros
nadavam. As coisas ficaram calmas, durante um tempo. No
entanto, do nada, os animais terrestres começaram a se afogar,
e eu tentei tirá-los de lá. Nesse momento, as bocarras me de-
voraram. Comeram primeiro a minha cabeça.
Cavalgo solta, assim, depois que Regina, nossa emprega-
da, conta o que acontece lá fora.
No último domingo, ela me falou sobre o que todo mun-
do no bairro estava comentando: da gravidez de uma garota
de dezessete anos. Diziam que o filho é de um padre que anos
atrás veio lá de terras distantes. Regina disse que havia gente
que fazia verdadeira vigília na porta da pobrezinha para sa-
ber de qualquer detalhe para comentar nas quermesses ou na
merenda das tardes. Ao que parece, os fiéis da igreja culpa-
vam a garota de ter seduzido o padre, um homem que já havia
chegado na casa dos quarenta. As pessoas do bairro o tinham
como homem santo. Quanto à garota, diziam que era uma va-
diazinha que propositalmente se vestia de maneira indecente.
As beatas diziam que a culpa era de uma fiel que ficava na
porta da igreja filtrando quem podia e quem não podia entrar,
segundo as regras do bem-vestir. Por ser parente da garota, a
tal fiel a deixou entrar no templo sagrado, usando calças muito
justas e uma blusa decotada e quase transparente. Resultado:
barriga.
Regina me perguntou o que achava do caso. Respondi
que não tinha experiência suficiente para opinar sobre o ocor-
rido. Desconfio que ela sabe que eu menti, e que, pela raiva
de minha voz, sabe muito bem o que eu acho sobre tudo isso.
Mesmo estando separadas por uma grossa porta de carvalho,
sem nunca nos termos visto, conseguimos uma certa cumpli-
cidade, depois de tanto tempo. Tanto tempo recebendo coi-
sas por baixo da porta, que consigo perceber quando ela está
mentindo, por conta de sua respiração que fica mais agitada.
Creio que ela também tenha tal capacidade de percepção em
relação a minha pessoa.
Já conheci o tal padre. Quando minha mãe agonizava na
cama, ele veio até a nossa casa para lhe dar a extrema-unção.
Era muito íntimo de minha mãe, ouvi Regina dizer. Na oca-
sião, ele desceu as escadas do porão e parou frente a esta por-
ta. Eu o ouvi rezando. Sua voz era exageradamente doce. Na
ocasião, fiquei enojada. Mas fiquei quieta. Quando falei com
Regina sobre o que eu tinha sentido, ela disse que ele era as-
sim mesmo – um sujeito muito amável que tinha uma voz que
parecia abraçar as pessoas. Voz de anjo. Bem, não quero mais
pensar nesse cidadão. A única coisa que eu quero no momen-
to é pensar no dia em que meu pai me tirará daqui para eu dar
minha primeira olhada no mundo. Estou cheia de planos. Vi
nos livros coisas incríveis que existem lá fora. Quero experi-

26
mentar o tal sorvete. Li que era gelado, doce, cremoso, com
gosto de frutas. Já pedi ao meu pai para trazer um para mim,
mas ele diz que derreteria no caminho. Já implorei para ele.
Mas ele disse que eu iria pessoalmente a sorveteria e pode-
ria pedir o que eu bem entendesse. Será no meu aniversário
de quinze anos. Mal posso esperar chegar o próximo ano. Ele
prometeu isso no dia em que entrou no meu quarto com um
enorme facão. Tinha acabado de limpar o quintal, disse. Sen-
tou-se e ficou mudo durante um bom tempo. Respiração ofe-
gante. Olhos tristes, os do meu pai. Sempre marejados.
Eu cresci sabendo que era diferente das outras pessoas.
Mas o que há de errado comigo? Minha doença é tão conta-
giosa assim? Por isso a tristeza dele?
Ele diz que com quinze anos vou mudar. Ficarei mais for-
te.
Hoje acordei pensando que meu quarto poderia ser um
pouco menos desconfortável. Eu gostaria de cortinas como as
que vi em uma revista. Na verdade, uma janela já seria um
grande ganho.
Li em algum lugar que um espelho é uma janela.
Essa semana, pedirei para a Regina um espelho. Eu mere-
ço. Nunca tive nenhum. Um bobo impedimento paterno.
Quero olhar uma coisa que tem crescido bem aqui nas
minhas costas.
Pelos?

27
Memento mori

Prezada Senhora Miriam Botelho, me chamo Rafael


Andrade, e leio a sua coluna de horror todas as manhãs de
domingo. Faço isso durante o meu café. Sou um fã. Talvez o
maior. Serei direto. Quero contribuir com uma história para
o seu jornal. No entanto, já vou logo me desculpando pelas
possíveis falhas, pois não sou escritor, embora treine bastante
para vir a ser um dia. O caso que vou narrar para a senhora
ocorreu cinco anos atrás, com um amigo de minha família, o
jovem Rui Peixoto. Ele era um contador formado. Trabalhava
havia poucos anos em uma empresa multinacional instalada
na Tijuca. Nunca foi um sujeito de pendores etílicos. Tampou-
co fumava. O Rui só tinha um único vício em sua monótona
vida de suburbano: colecionar fotografias antigas. E foi isso
que o arrastou para uma desgraça mais que horrenda. Esse ví-
cio levou-o para uma vida abjeta, senhora Miriam. Mas estou
me adiantando muito. Acho melhor narrar o desenrolar de
toda a coisa em pormenores. Essa é a primeira vez que tenho
coragem de contar a alguém, com detalhes, o que nos acon-
teceu.
O Rui, como disse, era amigo de minha família. Meu ami-
go de infância. Não tinha pai e nem irmãos vivos. Minha mãe
tinha muito dó do menino que vivia quase o dia todo na rua
com enormes perebas nas pernas, com o nariz sempre a escor-
rer uma meleca esverdeada e escura. O bairro em que cresci
era cheio de crianças. Brincávamos muito na rua. Passávamos
horas de perna de pau, piques de todos os tipos e, claro, de
bola de gude e de futebol. Depois todos nós íamos nos refres-
car com um banho de mangueira no quintal da minha casa.
Na parte da tarde, quando não tínhamos escola, ficávamos até
a noitinha brincando de bafo ou de jogo de preguinho. Aquele
feito de madeira e pregos, que imita futebol, sabe. Minha mãe
preparava uma merenda para a criançada que ia sem pestane-
jar para a nossa cozinha. Eram bons tempos aqueles, senhora
Miriam. Mas o Rui, coitado, não tinha uma vida igual à nossa.
Ele era taciturno demais. Pudera.
O pai e os dois irmãos mais novos do meu amigo morre-
ram em um acidente. Na época, eles moravam em um casebre
de uma grande vila de casas. Era o casebre mais pobre de to-
dos. Ficava ao final da vila. O pai do Rui não tinha dinheiro
para consertar o telhado do quarto, que vivia gotejando quan-
do chovia. Então, o senhorio que alugava aquelas casas, que
mais pareciam barracos, deu para o pai do Rui grandes placas
de vidro que eram da fachada reforçada de uma antiga loja
de sapatos do centro da cidade. Pois bem, eles colocaram as
placas no teto do único quarto. O senhorio, claro, disse que
seria coisa provisória. Naquele dia, toda a garotada da rua foi
lá ver o resultado. Achávamos aqueles meninos muito sortu-
dos. Eram os únicos que poderiam dormir vendo estrelas de
verdade. O observatório caseiro existiu por duas semanas.
Na manhã do acidente, véspera de Natal, o Rui e a mãe
estavam fora de casa. Os dois saíram bem cedo para enfrentar
a fila de distribuição de leite. Pois bem, a senhora se lembra
daquela estranha chuva de gelo muitos anos atrás? Pois en-

30
tão, um granizo enorme atingiu em cheio o teto de vidro. A
rua toda correu para lá depois do estrondo. Lembro bem de
minha mãe segurando o Rui que esperneava e gritava queren-
do entrar na casa que tinha sangue escorrendo por debaixo
da porta. A mãe dele ficou muda com as garrafas de leite nas
mãos, vendo os homens arrombar a porta do casebre. Sabe,
dona Miriam, já rezei muito para Deus tirar a cena da mi-
nha cabeça. O pai havia corrido com as crianças ensanguen-
tadas nos braços, mas não teve forças para sair da casa. Seu
pescoço estava esgarçado por um grande pedaço de vidro. Os
corpos dos três formaram uma barreira na porta. Os homens
que foram ajudar colocaram os cadáveres na parte da frente
do casebre, esperando a chegada do rabecão. Jogaram água
para lavar os corpos para depois tapá-los com lençóis. Aí foi
possível ver que o irmão mais novo, Mateus, de apenas cin-
co anos, só tinha um corte pequeno na perna. Disseram que
um estilhaço pegou certeiro em uma veia. Ele parecia normal.
Mateus parecia que estava ali dormindo ao lado do pai e do
outro irmão que estavam, estes sim, talhados por completo, e
recebiam os flashs da impressa. Escrevendo agora sobre isso,
e pensando em tudo o que ocorreu depois, acredito que o Rui
também nunca tirou aquilo da memória. Como ele poderia?
Acho que é isso que deve de fato ser chamado de fantasma.
Essas cenas que nos acompanham para todo o sempre são os
nossos fantasmas, não?
Durante muito tempo, não tivemos notícias desse amigo
de infância e de juventude, pois ele foi estudar em Itaperuna
em um curso técnico. Naquela cidade também fez faculdade,
sempre ajudado por tios distantes da parte materna. Quando
voltamos a nos encontrar já estávamos casados e morando em
ruas próximas, no bairro do Méier. Passamos a frequentar o
mesmo botequim aos finais de semana. Ele nunca, jamais, co-

31
mentou sobre o que ocorrera com seus familiares em nossa
infância. Eu também não instigava a memória daquilo tudo.
Para que eu faria uma coisa dessas, não é mesmo? Até porque,
o Rui estava muito diferente do que eu me lembrava. Não era
nem um pouco o rapaz tristonho que conheci. Muito ao con-
trário, o Rui se tornara um cara boa praça que fazia gozação de
tudo e de todos. Flamenguista ferrenho, era o mais falastrão
do botequim. Ele jogava sinuca como ninguém, sempre apos-
tando um litro de guaraná contra os maços de John Player que
a rapaziada apreciava.
Num sábado chuvoso, pela manhã, com uma pasta azul
marinho debaixo do braço, vi que meu amigo estava de pé,
tomando pingado no botequim. Fui ao seu encontro.
“Andrade, meu chapa, topas dar uma volta no Centro da
cidade? Não quero recusa, hein.”
“Com essa chuva? Tá maluco? Além disso, hoje tem a fes-
ta de quinze anos da minha sobrinha. Vou sair daqui, não”.
“Não vamos demorar nadinha, e para onde vou te levar
não chove. Quero companhia, cara. Confia em mim. Vamos
nessa, cara. Te pago um cafezinho lá no Capital, vai”.
Não resisti aos apelos do camarada.
Tomamos o ônibus 544, sem eu saber para onde meu
amigo me arrastava. Cheguei a pensar que iríamos parar em
algum puteiro pros lados da Praça Mauá. No entanto, no meio
do trajeto, quando um vendedor de balas em formato de bo-
nequinho entrou na condução, meu amigo tirou a pasta debai-
xo do braço e a colocou no meu colo sem dizer uma palavra
sequer. Entenda, eu nunca imaginei que o Rui tivesse interesse
em questões estéticas, para além da beleza de ver bolas enca-
çapadas numa mesa de bilhar, daí a minha surpresa ao mani-
pular aquele álbum. Eram fotografias antigas. Mas não antigas
do tempo de nossa infância. Não, senhora. Essas eram antigas

32
mesmo. Eram do começo do século. Fotografias em preto e
branco e em tom sépia. Aquele tom meio amarelado. A maio-
ria das fotos mostrava uma família em situações do cotidiano.
Tinha uma com um senhor de longos bigodes fumando um
charuto bem ao lado de uma mulher muito bonita que segu-
rava um bebê. Havia outra com dois irmãos gêmeos vestidos
iguaizinhos e sentados em suas cadeirinhas com pratinhos de
comida à frente deles. Havia uma foto com cinco irmãos en-
fileirados formando uma escada, sendo que a menina menor
estava com os olhinhos fechados. Numa outra, um rapazinho
de colete estava estranhamente montado em um pônei. En-
fim, eram dezenas de fotografias desse tipo, coladas naquelas
páginas bolorentas. Em um primeiro momento, apenas achei
que meu amigo estava interessado nos hábitos cotidianos do
passado distante, como uma espécie de historiador da família.
Me enganei, não era a vida que o interessava.
“Você não percebeu, né?”
“Perceber o que?”
“Que elas estão mortas”. Disse apontando para a pasta.
“Quem?”
“As crianças das fotografias, ora essa. Deixa eu te mos-
trar”. Para meu alívio, tomou o álbum das minhas mãos. “Veja
só, Andrade, esse bebê nos braços dessa mulher. Olhe com
atenção. Viu? Notou o nublado nos olhos dele? E esses gê-
meos, veja como as perninhas deles estão amarradas nos pés
das cadeiras. É para não caírem. Percebe? Esse moleque aqui
do pônei deve ter dado um trabalhão danado. Veja só, até os
olhos dele estão pintados para dar um ar mais realista. Essa
menina enfileirada está com a cabeça pendendo para o lado
e está com o corpinho todo cinza, já os outros irmãos, como
dá para perceber, estão vivos. As crianças que você viu estão
mortinhas da Silva, Andrade. Que cara é essa? Não se espante

33
tanto assim, meu amigo. Era algo muito comum no final do
século dezenove e no começo deste. Fotografia era coisa carís-
sima, e as famílias faziam questão de ter um registro. Pelo me-
nos uma lembrança, uma recordação. Mas às vezes não dava
tempo de reunir toda a família em vida. Sacou, Andrade?”
“Como você tem certeza de que estão de fato mortas?”
“Pelos vários indícios de que te falei e, principalmente,
porque os mortos são as pessoas que estão mais nítidas nestas
fotos”. Rui respondeu sério, olhando para o lado de fora da
janela embaçada do ônibus.
“Então, os vivos são os que estão meio que borrados? Por
quê?” O ônibus fez uma curva acentuada já chegando ao Cen-
tro da Cidade.
“Você não entende nada de fotografias, não é mesmo?
Antigamente, o tempo de exposição de uma máquina foto-
gráfica era bem maior do que o de hoje em dia. Sacou? Quem
não se mexia, não ficava mal na foto”. Soltou uma gargalhada
logo em seguida.
Não sei se foi pelo efeito do cheiro de diesel misturado
com o sacolejar do ônibus, ou se foram aqueles rostos cinza
das crianças que não saiam da minha cabeça, mas, assim que
descemos, eu vomitei direto no meio-fio do ponto final. Em
forma de um forte jato, todo o café da manhã saiu de mim.
Meu estômago foi parar nas costas. Fiquei zonzo. Pernas bam-
bas. Senti apenas que Rui me puxava pelo braço, para um bar
de esquina. Ele pediu água, jogou no meu rosto e depois me
deu uma pitada de sal para pôr debaixo da língua. Minutos
depois, andamos para debaixo do viaduto da Praça XV. Era o
destino que Rui tinha em mente.
No caminho, meu amigo contou sobre sua estranha ob-
sessão. Disse que ganhou o álbum de presente de uma velha
senhora que fazia faxina na pensão de seu tempo de estudos.

34
Ela lhe contou que era coisa que estava na família, e que como
não tinha filhos, tampouco herdeiros diretos, resolveu passar
as fotos para alguém jovem que continuasse com a linda co-
leção. Sim, ela chamou aquilo ali de linda coleção. Ele disse
que no começo recusou o esquisito regalo. Entretanto, con-
forme foi observando aquelas fotografias, ficou cada dia mais
fascinado, ao ponto de inventar histórias para cada retratado.
Tinha dado até nomes para as personagens do registro. Para
a alegria da velha, numa triste tarde de inverno, meu amigo
aceitou o álbum dos sucumbidos. Depois de contar isso, se-
guimos quietos o restante do caminho.
Afinal, Rui tinha razão. As barracas de tranqueiras fica-
vam protegidas da chuva. Só de vez em quando, um carro pas-
sava no viaduto, e jogava água para baixo, respingando pra
todos os lados. Nada que incomodasse muito. A senhora já
foi a esta feira? Tem de tudo lá. Passamos por barracas que
ofereciam capacetes da Segunda Guerra Mundial, cabeças
empalhadas de bichos, vestidos de noiva, bonecas sem cabe-
ça, bonecas com cabeça, bonecas com olhos de vidro, sapatos
gastos, cristais de todos os tipos, velocípedes da década de cin-
quenta, bolas de gude, revistas em quadrinhos, cartões postais
do começo do século, malas de couro de jacaré, adagas enfer-
rujadas, espadas, luminárias, candelabros quebrados, quadros
estranhos tirados de gravuras com arquiteturas assombrosas,
um canivete com iniciais, máscaras de bate-bola, máquinas
fotográficas, pipas, uma cadeira de rodas com uma máqui-
na de escrever em cima de seu assento. Me distrai, olhando
tudo daquele museu ao céu aberto. Mas notei que Rui estava
do outro lado das barracas conversando com uma velha cor-
cunda que segurava a sua mão esquerda. Ele parecia bastante
transtornado, tentando puxar a mão a todo o custo. A velha
era determinada. Quando me aproximei, ele já conseguira se

35
desvencilhar. “Velha maluca. Não tem o que fazer. Disse que
prevê o futuro em troca de algumas moedas”. Ao voltar meu
olhar para o lado, demorei a encontrá-la em meio à profusão
de bugigangas. Mas lá estava ela, escondidinha entre as má-
quinas de fotografar e os espelhos. Ela devolveu o meu olhar,
balançando a cabeça de maneira lenta, enrugando mais ainda
a boca murcha, envolvida por um pequeno bigode. Olhos de
uma claridade assustadora, ela tinha. Não me demorei, voltei
para a companhia de meu amigo, agora em frente a uma bar-
raca de revistas antigas e postais. Começava a negociação.
Eu não quis olhar a macabra transação, de modo que fi-
quei quase o tempo todo de costas para eles e de frente para
a Estação das Barcas. Mas ouvi tudo. Ouvi quando o homem
magro e alto falou que tinha uma coisa especial para o Rui.
Ele disse que era uma série de fotos muito diferentes, pois não
eram tão antigas. Eram da década de cinquenta. O vendedor
sussurrou que veio das mãos de um oficial do exército, ho-
mem muito religioso e de respeito, mas, segundo ele, um su-
jeito um tanto estranho. Olhei de esguelha para trás e vi quan-
do o vendedor passou o envelope verde oliva para as mãos
do Rui. Notei que meu amigo tremia. Não vi o conteúdo das
fotos, só ouvi os detalhes que o homem fazia questão de exi-
bir em voz alta. Preferia não ter ouvido. O caso era repulsivo.
Pouparei a senhora dos detalhes. Mas, no geral, ele disse que
aquelas eram especiais. As crianças foram mortas envenena-
das no interior do estado do Rio, e depois colocadas naquelas
poses para os registros finais, como se fazia antigamente. Os
dois confabularam sobre quem teria sido o autor de tal espe-
táculo de horror. Depois, passaram a discutir sobre uma foto,
que, segundo entendi, mostrava uma garotinha sentada em
um velocípede vermelho. A questão que a ambos intrigava
era que o corpo não combinava nem um pouco com o ros-

36
tinho da menina. Ouvi quando Rui pediu ao vendedor para
notar que havia uma linha fina ao redor do pescoço dela. Os
dois falaram ao mesmo tempo: corpo de boneca. Eu já estava
prestes a me virar para puxar meu amigo daquela barraca dos
infernos, quando ele falou para o vendedor que aquelas eram
incríveis, mas que não serviam para a coleção dele. Explicou
que essas fotos foram coloridas à mão, e que isso estragaria o
conjunto de sua coleção. Veja só: não era a forma como foram
adquiridas as poses infantis que o fez recuar, mas tão somente
uma questão de estética. Concluí que Rui precisava urgente de
ajuda. No retorno ao Méier, insisti para que meu amigo fosse
visitar um psicólogo. Coisa que ele aceitou, não sem alguma
relutância. Disse que esse papo de psicólogo era coisa de vea-
do. Só revi o Rui, anos depois. Em Minas Gerais. Num mani-
cômio. Mas estou me adiantando novamente.
Na semana em que visitei àquela feira, minhas madruga-
das foram um inferno só. Fui visitado por perturbações. Na
primeira noite, um pesadelo assassinou o meu sono que sem-
pre foi tranquilo. A cabeça de meu filhinho de três anos estava
no corpo do irmão dele que tinha sete, e vice-versa. Os dois
estavam assim andando pela casa, me convidando a brincar. O
menor estava no velocípede. Por vezes, quando eu piscava, as
cabeças voltavam para os respectivos corpos, nesse momento
eu olhava para um grande espelho na parede do corredor e via
a velha corcunda me encarando com aquela boca afundada
no rosto. Na segunda noite, fui o vendedor da feira e tentei
vender o maldito álbum azul marinho que pertencia ao meu
amigo. A capa estava toda manchada de sangue. Dentro, tinha
fotos minhas, dos tempos de infância, dos irmãos do Rui, do
próprio Rui, e de meus filhos. Tive sonhos com uma mulher
pendurada em uma árvore, uma garota morta em uma cadeira
de rodas com uma arma em seu colo, e com uma mulher que,

37
em desespero, arranhava o próprio rosto até ficar uma coisa
descarnada, sem forma humana. Entenda dona Miriam, não
sou um homem de me impressionar facilmente, mas aqueles
pesadelos me levaram direto para o consultório de um psi-
quiatra. De dia, no trabalho, eu era um bagaço. Quando a noi-
te se aproximava, eu ficava, do nada, chorando igual a uma
criança. Não tive coragem de compartilhar isso com a minha
esposa. O que eu diria para ela? No entanto, o psiquiatra me
ajudou muito, me fez ver o quanto aquilo era somente efeito
do que ocorreu naquele sábado de chuva. Passou-me alguns
comprimidos que, se não fizeram os pesadelos desaparecerem
de vez, me ajudaram a não pensar tanto neles durante o dia.
Com o passar do tempo, fui ficando cada dia mais leve. Voltei
a frequentar o botequim, mas sem esbarrar com o meu ami-
go. Dois meses depois de ir ao psiquiatra, eu havia melhorado
muito. Entretanto, foi aí que a desgraça toda aconteceu.
Desculpe-me, esqueci de dizer que o Rui morava em uma
casa bem espaçosa que havia alugado para caber toda a família
de sua esposa. Enfim, o homem morava com esposa, sogra,
cunhadas, filhas e sobrinhos. Eram seis crianças ao todo; três
meninos e três meninas. Duas meninas eram suas filhas. A
criança mais nova tinha dois anos. A mais velha tinha oito.
Pois bem, a sogra do Rui arrumou uma excursão de ônibus
para Aparecida. A velha levou somente suas filhas. O Rui fi-
cou tomando conta das crianças no final de semana todo. Nos
jornais, a senhora deve ter visto a foto das crianças enquanto
vivas. Mas os jornais, ainda bem, não tiveram acesso ao horror
de dentro daquela casa. Eu tive. Por quê? Porque eu tinha que
ver com os meus próprios olhos o que o Rui tinha feito.
Encontrei o Rui no quintal da casa, olhando para o nada.
Estava sujo, algemado, sentado no chão de terra, com três
policiais cercando-o. No quintal tinha bastante gente da vizi-

38
nhança num falatório só. Entrei na casa por um descuido do
policial que estava perto da porta.
Dona Miriam, por respeito àquelas pobres alminhas, não
narrarei os detalhes da monstruosidade que testemunhei. Vi
coisas que faz pensar se Édipo não fez bem, ao furar os pró-
prios olhos.
Me encontraram desmaiado na frente do que sobrou das
crianças. Depois de me explicar, as autoridades me liberaram.
Perguntei sobre uma fotografia pregada na televisão. Ninguém
tinha visto. Até aqui, creio que a senhora deva ter lido uma
coisa ou outra sobre o “Mestre das bonecas” como, de forma
perversa, os jornais passaram a chamar o Rui. Mas daqui por
diante, acho que ninguém ouviu o que vou contar. Como dis-
se, ele foi dado como louco. Rui tornou-se um insano de alta
periculosidade, esquecido numa cela de manicômio. Só tive
coragem de visitá-lo porque, anos depois do massacre, tive um
sonho muito realista com a sua mãe me pedindo isso. Parti
para Barbacena na semana seguinte.
A senhora já visitou um manicômio em sua vida, senhora
Miriam? Não aconselho. Afaste-se deles, se puder. Esse lugar
não foi feito para curar ninguém. É uma fábrica de insanidade,
isso sim. Pelos pátios, andam todos cagados e mijados. Em an-
drajos, sussurram nomes e locais de algum passado distante.
Muitas vezes, gritam. Sim, o que os loucos mais fazem é gri-
tar. Por vezes, gritam de dor física. Mas suspeito que os piores
gritos saem da boca daqueles que tem um suspiro de lucidez.
É quando de fato sentem o peso das fezes em suas calças. A
solidez do nauseabundo. É quando olham nos olhos dos fun-
cionários que mais parecem seus carrascos. É quando olham
ao redor, notando que muito em breve mergulharão de novo
na insanidade profunda. É, enfim, quando percebem que es-
tão em uma prisão dentro de uma prisão dentro de uma pri-

39
são… não é um grito que pareça humano que soltam, quando
essa lucidez relampeja. O que quero dizer é que não é preciso
morrer para visitar o inferno, basta ir a esse local na cidade de
Barbacena.
O Rui estava onde todos, inclusive eu, acreditavam que
ele deveria estar.
Foi difícil entrar lá. Acharam que eu era um jornalista
disfarçado, tentando fazer alguma denúncia. Não fosse uma
carta de referência de um político mineiro, parente meu, eu
ainda estaria estancado no portão da frente. Cheguei lá um
pouco depois do almoço. No pátio havia muitos corpos dei-
tados ao relento. Evitei olhá-los diretamente, mas o cheiro do
ambiente denotava o mau trato. Perto de mim, uma mulher
com cabelos pretos cobrindo a face, e com braços colados ao
longo do tronco magérrimo, caminhava em círculos sem ges-
ticular. Não pude escutar tudo o que falava, mas uma excla-
mação saiu de sua boca como se vomitasse todo o almoço aos
meus pés: “Bota ela ali no velocípede, João. Bota ela ali e deixa
quietinha!”.
Quietos, os funcionários me encaminharam para uma
sala ampla. Um local de espera, que tinha apenas duas cadei-
ras largadas no meio dela. Notei que o lugar, com forte cheiro
de mofo, não possuía janela. Havia muitos rabiscos nas pare-
des pintadas à tinta óleo de cor azul escuro. A maioria deles
feito por arranhões. Claro que fui olhar de perto o que estava
escrito, enquanto aguardava trazerem o meu amigo. Sorte mi-
nha, ter levado escondida a minha máquina fotográfica. Ha-
via muitos nomes próprios. Alguns dentro de corações. Havia
passagens bíblicas do Antigo Testamento. Havia muita coisa
sem sentido algum, como as palavras ANRAGDE EOPNALL
escritas em letra tremida com uma estranha tinta. De repente,
notei que estavam demorando muito para retornar. Verifiquei

40
que a porta de ferro estava trancada. Um relâmpago de pensa-
mento perpassou todo o meu corpo, fazendo minhas pernas
bambearem: e se eu fosse trancafiado aqui? Não tinha contado
para a minha esposa aonde eu iria. Menti, dizendo que estaria
numa viagem de trabalho para Macaé. Duvido que meu pa-
rente político se interessaria por meu destino. Acreditei que
era apenas escolha minha vir até aqui. E se não fosse? Se tudo
não passasse de uma estratégia articulada para que eu viesse
de maneira espontânea para o meu destino de enclausurado?
“Claro, um amigo íntimo do Mestre das bonecas só poderia
ser um lunático”. Com o coração aos pulos, estava pronto para
esmurrar a porta, quando ouvi o barulho dos trincos do lado
de fora.
O homem que vi sendo carregado pelos braços dos maldi-
tos enfermeiros não era o meu amigo. Ali estava um esqueleto
coberto por carne murcha exalando fedentina. Um corpo que
sustentava, quase na vertical, um encardido vestido longo que
lhe cobria as pernas até a altura dos tornozelos. Olhos meio
embaçados. Enormes cravos, prestes a arrebentar, cobriam
parte do nariz. Seus pés estavam sujos. Faltavam-lhe os dentes
da frente. Faltava um pedaço da orelha direita. Sim, lamentei.
Era o Rui. Nem um banho, os calhordas lhe tinham dado para
parecer apresentável para a visita que vinha de longe.
O que a senhora ler de negativo sobre manicômios, mul-
tiplique por dez, na conta do que realmente são. O Rui parecia
um cadáver tirado de dentro de um caixão só para, de forma
desajeitada, se sentar ali naquela sala. Rindo, os funcionários
nos deixaram a sós. No momento seguinte de minha agonia
inicial, lembrei-me das crianças, e não tive compaixão por
aquele moribundo sentado à minha frente que um dia chama-
ra de meu amigo. É isso. Percebi no instante: eu estava ali para
me despedir de vez daquela história toda. Como não é de meu

41
costume, me enganei.
Por vezes, é como se estivéssemos presos numa teia de
aranha. Balançar só traz o trágico destino de forma mais rá-
pida ao nosso encontro. Naquele lugar eu deveria ter ficado
quietinho. Dissimulado. Entretanto, o que foi que eu fiz? Dei
um tremendo de uma tapa de mão cheia na cara do Rui. Se-
nhora Miriam, pense, nunca levantei a mão para um filho
meu. Não sou um homem dado a violências, de modo que o
estalo me assaltou. No entanto, o que veio depois me apavorou
a alma. Com o rosto contorcido para um lado pelo efeito da
tapa, Rui começou a rir e a chorar ao mesmo tempo. Catarros
saiam da boca e do nariz. Por um instante, seus olhos casta-
nhos desanuviaram. Ele pareceu me reconhecer pela primei-
ra vez naquela tarde. A alma do Rui, enfim, retornou ao seu
ferrado corpo. “Não fui eu. Juro por tudo o que é mais sagra-
do nesse mundo, Andrade. Não fiz nada, não” - voz chorosa
- “Acordei naquela manhã de merda e encontrei elas daquela
maneira, cara. Dormi na sexta-feira depois de me despedir
da minha mulher, só acordei no domingo. Minhas meninas!
Eu nem comprei a porra das fotos daquele homem. Você sabe
disso, Andrade! Olha, como eu poderia fazer isso com as mi-
nhas meninas? Por que faria isso? Andrade, você tem que me
ajudar, meu amigo. Aqui é...” Uma forte convulsão o derrubou
no chão. Gritei os enfermeiros, que logo vieram e levaram o
corpo do Rui ainda trêmulo para dentro do prédio principal.
Quando saí para o pátio, começou a chover. Apressei o
passo, e com um enorme alívio me vi fora daqueles muros cin-
zas.
De vez em quando, ainda sonho com bonecas e com
crianças de membros e de troncos trocados. De velocípedes ou
montadas em pôneis, elas me chamam para brincar. Confesso
que até gosto de alguns destes sonhos. Só alguns. Mas, quando

42
tiro fotos dos meus filhos, tremo ao rasgar os envelopes que
chegam com as revelações. Fico tenso até olhar o resultado.
Se olharmos bem, todas as fotos têm lá suas microscópicas
estranhezas. Só fãs mesmo para entender.
Não é preciso dizer que nunca mais revi meu antigo ami-
go. Esqueci.
Agradeço muito a sua atenção, senhora Miriam. Rogo aos
céus para que em uma bela manhã de domingo eu possa ler
minha história em sua coluna.
Atenciosamente, de seu fã número um,

Rafael Andrade

PS: Adicionei fotos das paredes do manicômio. Creio que


será a primeira vez que serão publicadas em um jornal. Acon-
selho o uso de uma lupa.

43
Overkill

Pela cor do céu deduzi que era algo entre as matinas


e as laudes. Nada mau para uma segunda-feira de feriado. Lá
de dentro do quarto, saiam suspiros de sono misturados com
alguns resmungos. Qual era mesmo o nome? Fernanda? Fá-
tima? Tentando me lembrar, apertei o resto de um baseado
largando meus cotovelos no parapeito da janela de madeira
aberta para a Quinta da Boa Vista. Sentindo na cara o ven-
to frio, com cheiro de matagal, aguardei a TV do vizinho ser
ligada. Ele nunca falhava. Acendi o bagulho, quando ouvi,
ainda que baixinho, o som do clipe do Men at Work abrir a
programação matutina. Overkill. Era o sinal para usar o meu
isqueiro. Meu pequeno ritual. Nem sempre estava com o ba-
seado entre os dedos, na maioria das vezes era junto com uma
caneca grande de café que eu ouvia o desfile de músicas dos
clipes da TV alheia: Duel, Oingo Boingo, Depeche Mode, The
Bolshoi, The Cult, Morrissey, e, fechando a sequência, The Mis-
sion com Butlerfly on A Wheel. Eram sempre as mesmas músi-
cas, até começar o Telecurso, então eu sabia que era a hora de
tomar um banho frio, me arrumar, e beber mais um gole de
café enquanto colocava o coldre e pegava a carteira, as chaves
e o distintivo. Logo, começava todo o ritual de verificação: cin-
co vezes para as luzes da casa e seis para o gás e para a porta
da frente. Nessa manhã, eu deveria primeiro tirar as garrafas
vazias de cima da mesa e acordar a minha companhia, seja lá
qual for o nome dela.
Plantões nos feriados, com exceção do carnaval, eram um
grande marasmo para os sujeitos que trabalhavam nas ruas.
Para mim, um mero burocrata, era mais do mesmo: verificar
laudos, separar relatórios, arrumar papeladas de todo o tipo,
usar o fax, telefonar, datilografar, digitar, e dar umas escapu-
lidas para tomar um cafezinho no botequim da esquina. Eis
minha rotina em santos e não santos dias.
Algumas merdas acontecem até em dias como esse, dia
do padroeiro da cidade.
No caminho decidi que aproveitaria a manhã chuvosa
para limpar a minha sala de trabalho que estava tão bagunça-
da quanto a do meu apartamento. Arranjei no almoxarifado
uma caixa de papelão para separar os livros que iriam para o
sebo do Edifício Central. Apenas voltariam para onde os com-
prei. Comprava, lia e depois trocava na base do três por um.
Achava justo. Todos no trabalho sabiam que eu era um rato
de sebo.
Como havia terminado meus primeiros afazeres, avisei
ao auxiliar de serviços que eu daria uma saída. Ele apenas deu
uma risadinha, provavelmente deduzindo que eu tomaria café
enquanto lia. Deixei o pequeno escritório acompanhado de
uma edição surrada de Vidas Secas.
O Paredes de Coura nunca cerrava as portas. O dono, imi-
grante graças à ditadura salazarista, fazia questão de salientar
isso. Ali era possível comer qualquer coisa mesmo às três da
manhã. Depois de cumprimentar todos com um simples ace-
no de cabeça, puxei uma cadeira e fiquei de frente para a porta
de entrada. Eu nunca, jamais, me sentava de costas para a rua.

46
Já tinha esse hábito, antes mesmo de entrar para a Federal.
Ainda não tenho inimigos. Mas quem quer dar bobeira para
a sorte?
O café me foi servido à moda antiga, com o bulezinho fu-
megante acompanhado de um pires azul e branco fazendo as
vezes de suporte. Pedi um pão na chapa para completar aquela
confortável manhã. Folheie o livro e admirei as ilustrações,
enquanto tomava meu desjejum de fato. Me sentia um peque-
no burguês. Um sujeito que podia se dar ao luxo de ler um
romance em pleno expediente era alguém que não sujava as
mãos na labuta. Mas a culpa católica sempre me atazanava,
em algum momento da manhã. Sacudindo a cabeça, mandei-a
pastar.
Baleia. Debaixo daquele redemunho de sol, como não a
ver como símbolo do castigo da seca daqueles tempos idos?
Estava, assim, meio que divagando sobre o destino da perso-
nagem canina de Graciliano, quando André, o magro e espi-
nhento auxiliar de serviços, entrou e estacou. Palavras saíram
esbaforidas: “igreja – amigo – rápido - morto”. Morto. Sem
pagar a conta, só pensei: quem, diabos, morreu no mosteiro?
Meu amigo e ex-professor?
Eu não trabalhava tão distante assim do mosteiro, de
modo que cheguei muito rápido ao meu destino.
Hesitei frente à ladeira que dava para a igreja. Tentei
encontrar coragem para enfrentá-la, não por falta de fôlego,
apesar da corrida que dei. É que pensamentos me rondaram,
durante todo o trajeto. Eu não conseguia me lembrar porque
deixei a vida de religioso.
A ladeira íngreme e curvilínea que tantas vezes desci ale-
gremente em disparado, agora se mostrava verdadeira prova
de Sísifo.
Rolei a pedra que me pesava as sinapses e cheguei ao topo

47
para ver um amontoado de gente rodeando um tronco de ipê.
As pessoas foram abrindo passagem conforme eu me aproxi-
mava da árvore. Consegui distinguir alguns ex-colegas entre
os monges e alguns curiosos. Grudado ao tronco, perfurado
por três flechas, estava o corpo de um monge com a boca e
os olhos escancarados. Sua papada estava coberta pelo san-
gue que escorria nos cantos da bocarra. Uma flecha perfurava
a garganta, uma estava cravada no volumoso abdome, outra
atingiu a perna esquerda. No entanto, o que sustentava o cor-
po era uma corda que o atava a árvore. Um horroroso cheiro
de fezes empesteava o ambiente. A morte nem sempre é ino-
dora. Não era amigo meu. Eu não conhecia aquele religioso.
“É Dom Agostinho”. Reconheci a voz cavernosa atrás de
mim, e me virei para cumprimentar Dom Francisco, o abade.
Após um abraço fraternal, perguntei sobre o morto. “Ele veio
de São Paulo. Era bibliotecário lá, e veio ajudar na organização
da nossa biblioteca. Tinha dois meses aqui, e agora isso…”
Enquanto os urubulinos eram dispersados pela rapaziada
da homicídios, aproveitei e me apresentei como policial, para
ver mais de perto o corpo cravejado. Notei que no cadáver
havia restos de linho branco no canto da boca, provavelmente
indício de que fora amordaçado em algum momento. Vi que
as flechas não eram as do tipo comumente usadas em esporte.
Eram feitas de madeira, de modo que suas pontas não atraves-
saram todo o corpo. Eu teria que aguardar o laudo para tirar
alguma conclusão daquilo, mas a princípio, pela quase ausên-
cia de sangue saindo das perfurações, diria que fora morto de
uma outra forma e depois flechado. Rodeei o tronco, e na dire-
ção oposta de onde estava o corpo do religioso, notei que um
pouco acima da linha da vista tinha um papel pregado. Ergui
o braço, tirei o alfinete que o prendia, e o coloquei no bolso.
Nesse momento, dom Francisco fez sinal para que o acompa-

48
nhasse até a sacristia. Antes, porém, fiz questão de entrar na
igreja que, do lado de fora é despojada de adornos, simples
forma geométrica em pedra, mas que tem em seu interior um
forro dourado de sol.
Alguns santos estavam estranhos. Não os reconheci. Ves-
tiam outras cores. E no altar, o pendão nacional fazia-se mas-
sivo. Antes que eu o interpelasse sobre tal modificação, o aba-
de se limitou a dizer que eram novas determinações dos supe-
riores, e me guiou até a sacristia, onde nos sentamos em um
banco de madeira que estava frio para o clima que fazia lá fora.
Ficamos calados, não sem certo constrangimento. Olhando
para um ponto a sua frente, ele parecia meditar. “Santo Agos-
tinho dizia que sabia o que era o tempo, mas, que se acaso lhe
perguntassem ele já não sabia o que era. Parece que escapole.
Sabe, precisamos te mostrar uma coisa”. Foi o que se limitou a
dizer, olhando para mim com um sorriso congelado.
Por que o plural?
Dois outros monges se juntaram a nós. Eram altos, muito
magros e usavam o capuz abaixado. Sem falar nada, me imo-
bilizaram com uma força espantosa, e me revistaram. Meu
amigo, com olhos um tanto esbugalhados, apenas disse: “Isso
aqui não é favela. Armas na casa, só para os fiéis vip’s”. Com
agilidade, um dos brutamontes tomou a minha. Fui empurra-
do para o claustro. Tomei outro susto ao ver que o lugar que
um dia foi florido, estava totalmente seco e tomado por uma
espessa neblina. Mal consegui ver os encapuzados no centro
do claustro. Em torno do poço havia também algumas mulhe-
res e alguns homens bem-vestidos. Elegantes nos movimen-
tos. Estes estavam com taças de espumante na mão. Riam.
Àquela hora da manhã?
Ouvi de algum lugar. “Estamos dando aos nossos fiéis o
que eles aspiram. Desejos que muitos até sentem vergonha no

49
confessório. São mudanças imensas diante dos últimos sécu-
los. A competição anda muito acirrada. Então, por que não
agradar aos que sempre nos bancaram?”
Abrindo caminho por entre as gentes, fui levado para o
meio do claustro.
Me obrigaram a olhar o fundo do poço. Seco. Ali, vi o
ontem esmagando o hoje com uma força brutal. Vazava ontem
para todo o canto. Entendi a condenação. Caí.
Acordei hoje de manhã ainda contemplando o ontem.
Hoje? Amanhã? Importa mesmo? Já não sei.
Pela cor do céu, deduzo que seja algo entre as matinas e
as laudes.

50
Perfuração, dilaceração...

Vai ser um resto de manhã de bosta. Mas o que espe-


rar do que se segue a uma madrugada cagada?
Na nova Constituição tem que ser proibido um homem
falar para o outro na véspera de um plantão: “Não te amo
mais. Estou com outra pessoa. Sairei de casa. Tchau”. Isso não
é confissão. É condenação telegrafada, caralho!
Já esgotei a minha cota de cigarros dessa manhã. Na cota
do café resta unzinho. Um mísero café. Dia de merda.
Damião, desgraçado. Ainda teve a empáfia de querer le-
var os meus livros, meus discos. Vai levar nada. Escroto! Filho
da puta!
Entro no quarto que eu mais desgostava naquele mês.
TV ligada com o som baixo. “Carlton, um raro prazer”.
Cheiro de café. O paciente lúcido toma o desjejum. No pei-
to exibe duas plaquinhas de identificação militar. Rambo ou
Chuck Norris? Nos cumprimentamos. Tenho que me conter.
Pego o prontuário não só por hábito, pois sei bem o que está
deitado ali: perfuração, dilaceração, esmagamento e amnésia
dissociativa.
Arrasto a cadeira de aço e me sento ao seu lado. Por que
as cadeiras de hospitais são sempre tão pesadas?
“Como está se sentindo, André?”
“Bem melhor, doutor. Mas ainda sinto muita dor na mão
esquerda, sabe. Lateja”.
“Normal. Depois vamos ter que te transferir para o INTO.
Múltiplas fraturas é assim mesmo, tem que ter muita paciên-
cia. Uma coisa de cada vez. Você ainda inspira cuidados, por
causa da perfuração de certos órgãos”.
“Olhei ontem no espelho, doutor. Tô que nem o Franke-
nstein, né?” Riso seguido de choro convulsivo. Espero o choro
terminar e ele limpar o que escorria do nariz.
“Você também perdeu três dedos da mão direita”. Falo
secamente.
“Não sinto dor nela não, doutor. Tem certeza que perdi
os dedos?” Mais choro.
“Tenho sim, e não é só. Perdeu alguns dedos dos pés
também. A batata da perna direita…”
“Doutor, não lembro de nada. Quer dizer, lembro do
churrasco com os parceiros lá em casa. Foi na final do campe-
onato. Raspei bonito no tatame. O churrasco era comemora-
ção, doutor”.
“E teve briga nesse tal churrasco?” Eu sei a resposta. Não
a dele, aquela outra, a certa.
“Não sei não, doutor. Acho que teve. Me apagaram, né?”
“Você luta e é forte pra caramba. Será que fariam isso com
você? Seus próprios amigos?”
“Não sei não, doutor. Acho que não. Sou que nem touro.
Não dou mole pra veadinho babaca nenhum. Já enfiei a por-
rada em vários veadinho de uma vez só, doutor. Até traveco já
porrei. Sou famosão na praça Saens Peña”. Mais riso.
“Aposto que sim.” Confiro a mensagem do pager. Nada
urgente.
“Foi acidente de moto né, doutor?”
“Você pilota embriagado?”

52
“Umas três cervejinhas só, doutor. Minha cbzona ver-
melha é show. Esmerilho com ela na pista. A mulherada se
amarra. As boazuda fica tudo doida. Todo mundo olha”. Uma
risada.
“Não foi motocicleta, André. Vamos fazer o seguinte: não
force as suas lembranças agora. Vamos focar primeiro na re-
cuperação física, ok?”.
Me quero fora dali o quanto antes. “Carlton...”
“Já tô liberado pra visita doutor? Tô com muita saudade
do meu guri. Carlinhos. Olha aqui a foto dele. Tô doido pra
dar um carinho nele”. Olho para o porta-retratos na cabeceira.
Moleque de cinco anos rindo no colo do pai. Sorriso bonito
igual ao do André. Então, lembro de uma outra foto. Me ar-
repio.
“Você ainda corre risco de infecção, então precisamos
controlar a entrada. Nada de visitas por enquanto. Sinto mui-
to mesmo, André.” Mentira despudorada. Não sentia muito,
porra nenhuma.
“Ok, Doutor. Vou fingir que tô tirando onda de férias
num resort”.
“Isso. Relaxe e descanse”. Coloco o prontuário no lugar.

Saio do quarto numa fissura danada para tomar o meu


cafezinho e acender a porra de um cigarro. Foda-se a cota do
dia. Foda-se. Foda-se. Eu mereço aquele raro prazer.
No corredor esbarro com um colega, e pergunto:
“Vai entrar aí?”
“Vou sim. Alguma recomendação?”
“Ele ainda não se lembra da merda toda, é melhor não
comentar nada que desperte a memória de modo brusco. A
situação pode se agravar com a notícia do menino”.
“Não se lembra de nadinha? Esqueceu mesmo que era

53
dono de uma rinha de cães? O que ele pensa que fez aquele
estrago todo?”
“Desconfia de outra espécie animal. Está insistindo na
história do tal churrasco.”

Não esperei. A chama do isqueiro veio ali mesmo.

54
Coisas estranhas

Meu avô me contou que o valão sempre existiu ali


no terreno da fábrica. Deve ser mais antigo do que o nosso
conjunto habitacional. Nos meus devaneios escolares, gosto
de imaginar que ele existe desde a Era Paleozoica, e que, se
acaso o escavassem bem no fundo, encontrariam os restos de
animais nunca vistos por olhos humanos. Sei que as outras
crianças, com quem pouco brinco, morrem de medo dele.
Mas para mim, sua água de um escuro profundo e borbulhen-
ta é fascinante. Levo cerca de cinco minutos para chegar até
lá, cortando caminho pela frente da velha fábrica de tecidos. É
deserto, pedregoso, mas é o melhor jeito para quem quer che-
gar ao valão numa cadeira de rodas. Só preciso tomar cuidado
com os seguranças da fábrica, em sua maioria policiais mili-
tares em dia de bico. O outro caminho seria por uma calçada
labirinticamente inviável.
Desde que três meninos desapareceram brincando na-
quelas redondezas, coisa de dois meses atrás, minha mãe me
proibiu de voltar lá. Ficar trancado brincando com Genius,
resta um, xadrez, pega varetas já me entedia o suficiente. Ela
deveria compreender. Gosto mesmo é de observar os tipos de
animais e de plantas que tem ao redor do valão. Tomo nota de
tudo em meu caderno. Há plantas bem diferentes no meio da-
quele matagal. Tentei falar disso para o professor de biologia,
mas ele não me deu a menor bola. Um sujeito bacana, embo-
ra um tanto impaciente. Notei, também, nos últimos tempos,
muitos bichos mortos ao redor. Vi uma ratazana enorme, vá-
rios pássaros e até um cachorro de bom porte. Pareciam enve-
nenados. O fedor de carniça não é nada legal.
Meu avô também não me quer zanzando por lá. O moti-
vo dele é diferente. Diz que o lugar é assombrado por muitas
almas de militantes políticos. Gente do sindicato. Por diversas
vezes, pedi para que ele me explicasse essa história de fan-
tasmas. O velho desconversa, continuando com o seu ar de
mistério. Mantém assim o tabu sobre o assunto. Eu sei o que
ele quer dizer. Não sou nenhum ingênuo, mesmo tomando
caladinho a minha colherada semanal de Moral e Cívica e de
OSPB. Mas eu queria ouvi-lo falar. Acho que tem muita coisa
naquele peito de grilo dele.
Meu avô está errado. Existe sim, uma coisa naquele valão.
Só que não é fantasma não. A garotada daqui apenas diz “a
coisa do valão”. Não parece nada de extraordinário dito desta
maneira, pois todos se acostumaram com a “coisa do valão”.
Gostaria muito de ver o que é. A única testemunha ocular co-
nhecida é Zé Chumbinho. Certo dia, disse para o meu avô que
viu uma coisa cinza saindo das águas. “Era como se fosse uma
bolha muito grande, seu Chico. Era muito lisa. Deslizou cá
pra fora”. Não deu para entender como uma bolha pode sair
por aí. Interroguei-o. Mesma resposta. “Era uma bolha cinza,
chapa”.
Uma coisa é certa, não foi a tal bolha que pegou os três ga-
rotos. Dizem que eles deviam lá na boca de fumo, e que o Mão
Branca flagrou um roubo para pagar a tal dívida. As mães vi-
vem pra lá e pra cá, indo de delegacia em delegacia, de hospital
em hospital. Nada de corpos. A molecada daqui anda ressa-

56
biada com essa história. Falam de tudo, mas ninguém conta
nadinha para a polícia. Quando demonstrei receio de sair de
casa, meu pai me disse para ficar tranquilo. “Só acontece coisa
ruim com quem deve. Deus protege quem não é marginal”. Eu
sei. Vou sair.
Estou aqui para tirar a prova dos nove. Bolei esse plano a
semana toda, comprei um morteiro, preparei a polaroid, pe-
guei o peixe cru da geladeira, esperei todos ficarem ligados no
jogo da TV. Copa do Mundo nem minha mãe perde um lance.
Sigo pelo caminho de sempre. Chove fininho.
Jogo o peixe o mais próximo que posso da beira do va-
lão. Agora, quando a coisa sair dali, é só soltar o morteiro em
cima. Um dos ponteiros do meu Champion amarelo dá voltas
completas. Nada. A chuva engrossa. Acendo o morteiro por
puro tédio. Miro para cima. O espocar não é tão alto quanto
pensei. Tenho fome. Penso no lanche que deve estar me espe-
rando. Canjica quentinha. De olhos fechados, sinto o cheiro
da canela e o gosto do cravo. Me viro para ir embora.
Ouço um barulho esquisito vindo do valão.
Não olho para trás. Sinto o tranco nas rodas. Com os
braços estancados, noto que tudo pode ser bem pior em mo-
mento de merda. Minha cadeira atola no lamaçal. O barulho
aumenta lá atrás. Sinto como se tivesse algo rastejando. Algo
molhado. Nojento. Pesado. Grito uma vez. Duas vezes. A coi-
sa continua o seu avanço. Consigo percebê-la amassando o
matagal. Penso em apontar minha polaroid para trás. Desisto.
Não são pés ou patas que fazem esse barulho. Não pode ser.
Começo a chorar. Meu braço dói de tanto que tento sair desse
atoleiro. Penso nos três meninos. Acho que tudo está perdido.
A catinga do lugar é agora insuportável. A coisa continua ali
atrás. Eu sei.
Mas quem vejo chegando do outro lado do matagal?

57
Um segurança.
“Ah, meu Deus. Muito obrigado!”

A cara dele não é de amizade. Vem com a sua mandíbu-


la nervosa. Tem as pálpebras arreganhadas e sem tempo para
piscar. Já tem o três oitão na mão. Na certa vai matar a coisa
no valão. Ah, vai. Vai sim. Eu sei.

58
Sem vagas no Inferno

Petrópolis, 13 de setembro de 1985.

Vossa Eminência, conforme solicitado em vossa última


correspondência, reporto-me novamente ao caso Inhaúma -
Vat. EX. 05. Desta vez, narrarei a V. Em.ª. os pormenores de
acordo com o que me foi solicitado. Espero que, após a minha
humilde narrativa, Vossa Eminência tenha dados suficientes
para a reunião com o núncio papal. Sei que o caso é de extre-
ma delicadeza, e confesso o meu receio de que o horror do que
ocorreu nos últimos dias saia de nossos círculos, ganhando
alguma notoriedade. Peço desculpas, se por acaso, em certas
passagens, o meu relato soar informal em demasia, mas assim
me foi aconselhado realizar, para uma melhor rememoração
do evento.
No dia anterior, 1° de agosto, recebi um telefonema do
padre Fernandes por volta das 14 horas. Solicitou-me ajuda
em um caso que surgiu no subúrbio, rua Augusto dos Anjos,
número 346. Seria a minha primeira vez como ajudante oficial
em algo dessa natureza. Marcamos de nos encontrar no dia
seguinte, na pracinha de Inhaúma, em frente à Igreja de São
Thiago. Naquela noite, fechei os olhos por poucos minutos.
Como fui em meu carro, cheguei um pouco antes da
hora marcada. O dia estava chuvoso e bem frio, o que deixa-
va a praça praticamente vazia. Na ponta da praça, no sentido
contrário à igreja, havia uma barraquinha de lanches aberta.
Aproveitei e pedi um pingado na tentativa de espantar um
resfriado que eu achava que iria me atacar. A bebida estava
muito amarga, mas deu para o gasto. Depois me dirigi para a
igreja que já estava aberta àquela hora da manhã. No caminho
notei algo. Não havia nenhum movimento. Absolutamente
nada. Nenhum carro, nenhum cachorro, nenhum transeunte,
nenhum vento a balançar os galhos das amendoeiras. O am-
biente estava mais silencioso do que muitos de nossos claus-
tros. Subi os degraus do templo, e lá de cima olhei em redor
para tentar avistar o padre Fernandes. Não demorou. Um táxi
parou em frente à igreja. Padre Fernandes veio paramentado
a caráter, como naquele filme. Confesso que ri, quando o vi
daquele jeito. Portava um enorme guarda-chuva que o tornava
ainda mais caricatural. Eu não o conhecia pessoalmente. Não
sabia que era um sujeito tão grandalhão. Ele apenas se apre-
sentou de forma seca, falando que deveríamos aguardar outro
integrante de nossa excursão, um tal dr. Hoffman. Ficamos,
assim, os dois olhando a praça deserta, até que padre Fernan-
des explicou a minha posição de observador e testemunha em
toda a operação. Disse que eu deveria apenas ficar quieto e
anotar tudo o que visse de estranho. Apenas isso.
O doutor, um homem alto, também chegou de taxi, e se
apresentou pedindo escusas pelo atraso. Padre Fernandes dis-
se que a casa ficava numa esquina ali perto, Augusto dos Anjos
com a Macário. Fomos a pé mesmo.
Imaginei que bizarro cortejo parecíamos fazer. Três ho-
menzarrões. Os três trajados de preto. Um de sobretudo. As
ruas continuavam estranhas, mas já havia algum sinal de vida
aqui e acolá, além de um fortíssimo perfume doce de flores. A

60
região é cheia de floriculturas. É o entorno do cemitério.
Caminhamos por cerca de cinco minutos. A casa em
questão fica entre dois terrenos baldios; e de frente a ela, do
outro lado da rua, há apenas uma capela funerária, que no
momento abrigava o velório de uma criança. Um féretro che-
gava nos braços de um jovem negro. “Não há nada mais pesa-
do no mundo do que um caixãozinho”, lembrei do que dizia o
meu pai. Tive a sensação de vislumbrar um Atlante.
Já éramos esperados do lado de fora da residência. Fomos
recepcionados por um senhor chamado Aluísio, que se apre-
sentou como o avô da garota. Ele nos convidou a entrar.
Adentramos uma sala simples. Poucos móveis. Mas com
paredes cobertas de imagens de todas as espécies. Muitos qua-
dros de santos disputavam espaço com fotos antigas de fami-
liares, já bem amareladas. Não vi nenhuma cruz ou crucifixo.
Tampouco observei a existência de uma Bíblia. Pareceu-me
a casa de um devoto popular. Havia muitas imagens que não
consegui identificar a quais santos pertenciam. O lugar estava
abafado demais. Depois que fomos servidos de um cafezinho
muito melhor do que o pingado que eu tomara, a entrevista
se iniciou.
O senhor Aluísio disse que sua neta nunca foi religiosa,
como ele mesmo e a sua falecida esposa fora. Como a moça
perdeu os pais muito cedo, ela ficou com certa mágoa de Deus.
O velho relatou que, nos últimos meses, Débora começou a
agir estranhamente, sobretudo, após ir àquele grande festival
de rock com umas amigas. Enquanto o velho narrava indícios
de possessão, como o modo de falar com uma outra voz, a
agressividade constante, as palavras em línguas cheias de er-
res, fui percebendo que as coisas me ficavam estranhamente
embaçadas. Até a luz amarelada da lâmpada perdeu a sua in-
tensidade. Quando comentei a respeito, o sr. Aluísio explicou,

61
com um giro do dedo indicador, que eram os efeitos dos gases
que escapavam das fábricas ao redor e que já se acostumara
com tal fenômeno.
Meus dois companheiros começaram a interrogar o velho
sobre o passado da jovem. Data de nascimento, data da morte
dos pais, lugar em que estudou, se fora batizada, onde, se ha-
via se acidentado, se fazia esportes, se via muita TV, o que lia,
se usava remédios, se lia gibis, se ouvia muito rock, se usava
drogas, se bebia, se era virgem, se usava roupas muito curtas
e chamativas, se nascera com alguma marca, como a coifa, se
frequentava macumba, se via filmes impróprios, se acendia
incenso, se plantava a própria menstruação, se era marxista,
se era filiada a algum partido político, se tinha relações sexu-
ais com mulheres. Tomaram nota de tudo. Todas as repostas
apontavam para uma garota normal. Faria vinte anos em ou-
tubro, gostava de rock, não lia muito, via muita TV, não fazia
esportes, não tinha histórico com drogas ou com bebidas. Pelo
menos era o que o avô dizia saber.
Distraído com as imagens nas paredes, nem percebi quan-
do o doutor e o padre iniciaram um debate sobre a natureza da
possessão em mulheres. Padre Fernandes afirmou que toda a
literatura religiosa, incluindo o Malleus, é claro, indicava que
o sexo feminino era o mais suscetível às possessões por conta
da herança maldita que carregava da serpente do Paraíso, de
Eva e de Lilith. Dr. Hoffmam concordava em parte. Dizia que
a literatura médica apontava para a histeria como causa das
possíveis possessões, visões e alucinações, citou Joana d’Arc.
Aproveitei que eles estavam em conversa quase que particular,
e perguntei ao avô onde era o banheiro, no que ele me indicou
um corredor muito estreito, porém, bem longo.
Quando saí do recinto tomei grande susto. A jovem Dé-
bora aguardava do lado de fora. Parecia ter acabado de acor-

62
dar naquele exato momento. Tinha o cabelo despenteado
e olheiras. Trajava apenas uma camiseta até os joelhos, com
uma estampa escrita “Amar é”. Cheirava a sono. A moça sorriu
um bom dia acanhado. Meus pensamentos daquele instante,
já os descarreguei no confessionário.
Quando retomei o meu lugar naquela entrevista, o dou-
tor explicava por que entendia o diabo como sendo apenas
uma bela invenção humana. Disse que no Antigo Testamento
o diabo não passava de um mero coadjuvante – nisso o padre
Fernandes concordava – O doutor afirmou que, até o século
IX, o diabo não era representado na iconografia cristã. O pa-
dre Fernandes interveio dizendo que, se não havia representa-
ção, isso não significava, de maneira alguma, que o dito cujo
não existisse. O avô da menina parecia divertir-se com o ani-
mado embate dos sábios. Dr. Hoffmam, com riso sardônico,
deu exemplo de vários ex-endemoniados que acabaram sob
seus cuidados em Barbacena. Aproveitei para perguntar por
que ele havia mencionado o nascimento com coifa em suas
perguntas. Respondeu de que era por conta de um famoso
caso clínico de Freud, no ano de 1914: o homem dos lobos.
No entanto, o contexto era outro.
Em seguida, o avô falou do detalhe da carta que enviou
para o seu amigo abade - a terceira missiva – aquela que fez
com que viéssemos ao seu encontro. Débora predisse, por
conta de uma visão, que um cadáver seria encontrado na pra-
ça de Inhaúma com certas características, incluindo a do ara-
me que ia do ânus ao cólon. Semanas depois, de fato ocorreu
esse horror. Suspeita-se que o Mão Branca pegou o integrante
de uma quadrilha de pivetes. Usaram um cano fino para intro-
duzir o arame farpado no rapaz. Tiraram o cano, e o deixaram
agonizando. A garota deu detalhes de muitos outros casos em
um espaço curto de tempo. E, claro, houve os fenômenos típi-

63
cos de uma possuída. Quando começou a falar a respeito da
telecinese, o velho foi interrompido por gritos terríveis vindos
do outro lado da rua. Senhor Aluísio, fazendo com a cabeça
um sinal de lamentar, explicou que era um grito de mãe. Já ou-
vira muitos assim. Explicou que estavam acontecendo muitos
enterros naquela semana. Havia operações policiais na área.
O velho disse que ninguém gritava um grito chorado como as
mães, grito de um parto partido.
Percebi que a minha visão ficara mais turva. Os gases das
fábricas, lembrei. Foi nesse momento que Débora entrou na
sala. Acho que por pura afronta juvenil, vestia uma calça jeans
muito justa e a camisa de uma banda de rock (Black Sabbath).
Estávamos ali apenas para entrevistá-la, mas tive uma vontade
quase que incontrolável de me ajoelhar e rezar. O cheiro das
flores ficou mais intenso. Um perfume importado, talvez. Ela
se apresentou a todos. Notei sua mão gelada, mas não de uma
forma desconfortável.
Quase todas as perguntas feitas para o seu avô foram-lhe
repetidas. Débora ria de umas, irritava-se com outras, e nega-
va-se a responder outras tantas. Na última resposta, todos na
sala, se entreolhando, perceberam que a voz da garota muda-
ra. Ainda era uma voz feminina. Bem, na verdade era uma voz
sem gênero algum. Padre Fernandes adiantou-se, e pergun-
tou quem era que estava ali presente. Ele apenas recebeu uma
risadinha como reposta. Dr. Hoffmam chamou-a pelo nome
umas três vezes, perguntando como se sentia. Ela respondeu
que estava celestial. Sim, ela usou essa expressão. Padre Fer-
nandes disse que aquilo era blasfêmia infernal, e começou a
recitar. “Non Draco Sit Mihi Dux…” Recebeu uma ordem para
se sentar novamente, o que o fez cair no sofá. Não foi Débora
quem ordenou. Ela parecia não tocar o chão. Já o avô não es-
tranhava nada, apenas sorria de modo abobado. Num relance,

64
vi que a chave não estava mais na porta. Ratoeira. Depois foi
tudo tão rápido e letárgico. Era como se os movimentos das
pessoas ao redor se acelerassem, para em seguida frear brus-
camente. Tive vontade de vomitar. Verdade foi que vomitei.
Fiquei com a cabeça arriada por um momento, quando a
levantei, vi que o padre e o doutor estavam de mãos dadas com
Débora. Ela falou: “Sentirão na pele”. No ato, o doutor soltou
um grito pavoroso. Um grito como se sentisse uma navalha
rasgando os seus rins. Ele falou com voz de mulher: “Não que-
ro. Você me drogou? Tira isso daqui, seu filho da puta.” Já o
padre Fernandes era uma criancinha: “mas isso não é errado
padre? Se não é errado por que não posso contar pra minha
mamãe?” Foram vários gritos, gestos convulsivos e dezenas de
vozes diferentes. Intermináveis confissões naquele estranho
confessionário.
Ao fim, os dois pareciam ter passado por uma lobotomia
com faca elétrica de pão. Uma faca cega. Apenas babavam,
rastejando de quatro pelo chão de tacos, e tinham um líquido
escuro escorrendo dos ouvidos.
A entidade impávida. Eu queria um nome. Precisava de
um nome. Veio o sopro do oceano tempestuoso: “Poderia te
dar o número de estrelas. Que tal este? Amitiel”. Débora foi
ao chão.
Saí de lá, logo após as ambulâncias deixarem o local.

O padre e o doutor estão em um hospital psiquiátrico.


Continuam falando com vozes distintas das suas, como se
revivessem centenas de vezes o que cometeram. Segundo o
último laudo médico, houve uma lesão circunscrita no córtex
cerebral dos dois. É coisa permanente. Não foi possível iden-
tificar a causa.
Débora e o avô aguardam a minha próxima visita.

65
Para analisarem o fenômeno, convidei diversos padres,
monges, frades, e um bispo. Convidei até um pastor evangéli-
co. Entretanto, após relatar o ocorrido, todos se negaram em
me fazer companhia. Se desculparam. Depois, com calma,
tentarei convidar uma das freiras de Santa Teresa. Talvez a
Madre Superiora.

Aproveito e agradeço a Vossa Eminência o cargo que


me foi confiado de Investigador de Fenômenos Paranormais
da Cúria do Rio de Janeiro. Sei que não sou merecedor de
tal mercê, mas cumprirei o meu dever com muita fé e razão.
Soube que diversos fenômenos ocorrem em outras paróquias.
Nesse momento, inúmeros jovens apresentam premonições e
outros sinais de possessão.
Coloco-me inteiramente ao Vosso dispor,

Frei Dante Almada


cópia da cúria

66
Matéria bruta

na prisão-cidade todos nasciam culpados. quando algum


julgamento apontava a existência de um inocente, ele era pos-
to em liberdade sem delongas. do lado de fora dos muros só
havia natureza. não eram poucos os que se rebelavam contra
tal destino. no entanto, um condenado de nome manoel não
ligou para a sina. deitou-se na relva e foi feliz sentindo o calor
no rosto. ao perceberem isso, os dirigentes da prisão-cidade o
executaram até a alma.
em uma noite incerta, todos os animais de estimação mor-
reram. pereceram de doença não identificada desde os que
eram criados como crianças abastadas e ganhavam suculento
mignon, até os que vagavam pelas ruas. as lojas de pet deram
lugar a salões de beleza, escolas e consultórios. desesperados
para demonstrar alguma afeição, tentaram domesticar alguns
animais. um homem perdeu um braço para um guloso jaca-
ré. uma mulher foi desmembrada por um gorila. uma criança
serviu de merenda para um tigre. desistiram e continuaram
carentes, até que se viu a primeira criança sendo levada em
uma linda coleira.

68
o emprego do futuro era deus, deu na tv. era suado, mas
podia ser compensador, se pensar no quanto de amor pode
ser ganho. com o número de desesperados aumentando a cada
ano por conta dos governos desgovernados, não havia um só
deus desempregado. até os mais antigos, os gregos, não es-
quentavam banco. estes não tinham o apelo dos da nova era e
nem do deus que era gritado em diversas igrejas nas periferias.
mas os gregos tinham lá o seu charme. o mercado nos céus
estava aquecido. as casas lá de baixo, não.

69
as pessoas do país deixaram de dar queixa por desapareci-
mento de qualquer parente. era comum sair de casa e simples-
mente não ser mais visto. até mesmo era o esperado. antônia
saía todos os dias com o fixo pensamento de sumir dos olhos
dos seus, porém sempre se via de volta esfregando os pés no
grosso capacho que possuíam. sua família era a única da rua
que não tinha um membro desaparecido. por coincidência,
morava na inusitada casa em que ainda se podiam ouvir pes-
soas falando entre si.

70
assim como o padrasto do crucificado, seu nome era josé.
vigiava obras de arte em um museu. num dia ordinário perce-
beu que as paredes estavam nuas. foi o primeiro a intuir: todas
as obras haviam desaparecido. a arte do mundo havia esvaeci-
do dos museus, desde a menor escultura até o maior dos qua-
dros. nem mesmo instalações habitavam mais os corredores.
não demorou até pessoas boquiabertas admirarem por horas
as paredes brancas. críticos produziram muitas laudas sobre
“o não estar e o não lugar”. houve debate.
em outro dia, obras de arte reapareceram nos lugares mais
inusitados do planeta. euforia. havia um renoir em cima de
um carro de uma rua do subúrbio de jacarta, um mondrian
debaixo de uma ponte em angola, um durer encostado em um
hidrante em belém e até, por ironia sobrenatural, um turner
em uma ilhota na baía da guanabara. convencionaram deixar
assim e tocaram os dias bem menos ordinários.

71
era como se ela inexistisse, mesmo na obrigação que ti-
nha de respirar e pisar. não era apenas um dia ruim, era mais
um dia entre muitos iguais, por isso nem mesmo pior era. no
outro, afinal não fazia muita diferença, tomou um ônibus que
atravessava a longa e alta ponte e, por descuido do motorista,
conseguiu sair em meio ao engarrafamento. andou por entre
a indiferença afogada nos carros. foi para a murada, e com os
olhos cerrados se sentou nela. uma gaivota gritou por cima
de sua cabeça; janaína então abriu suas janelas da alma e viu
enormes baleias subindo como balões de gás. seu coração vol-
tou a bater.

72
não teve bomba, mas seu dia foi de trabalho duro. começou
a fazer sua corrida logo que os primeiros raios de sol bateram
na terra úmida, e foi para o “escritório” mais cedo do que o
costume. apesar das muitas criatividades para extrair infor-
mações de bocas inchadas, não conseguiu uma única sequer,
e depois escreveu inúmeros relatórios aborrecidos. porrada,
sem tiro e bomba. comeu uma salada insossa no almoço e mar-
cou uma consulta no cardiologista. na hora do café da tarde,
ouviu gritos de mulher e choros que considerou monótonos
vindos da sala contígua à sua. deu de ombros. tiro, porrada,
nada de bomba. lembrou-se da moça. jaz. “CPF cancelado”, riu
de sua criatividade. continuou datilografando. chegou em casa
e, como não havia ninguém ainda, colocou uma música na
vitrola. jazz. ouviu a linda voz feminina, enquanto despiu-se
da farda. à noite, depois do jantar, pôs sua filha para dormir e
lhe contou uma história. ele era bom em contar histórias. tão
bom, que sua menina jamais duvidaria delas, mesmo depois
de crescida, quando então se vestia de verde-amarelo para ir à
praia num domingo de besta.

73
olhava com desdém a todos os que não se enquadravam
em sua expectativa de seriedade. agia assim com os colegas do
trabalho. considerava-se muito circunspecto. encarava com
extrema gravidade toda a sua ação laboral, pois não via ironia
em nada, não via graça em nada, não via beleza em nada. era
seco, assisado e manteve assim a sua notoriedade. destacou-se
entre os seus. no entanto, como é costume nessa vida, morreu.
no velório, notaram que o morto tinha um indisfarçável sor-
riso. tiraram selfies.

74
vendo como o sangue ficara impregnado no paninho bor-
dado que levara, limpou a lâmina com calma. fez isso apenas
para manter o costume. a faca estava limpa e o corpo do ho-
mem careca estendido em uma poça de sangue no meio da
sala. a perfuração foi precisa, cirúrgica, como lhe foi ensinado
na faculdade. era seu centésimo primeiro serviço, desde que
conheceu Raul, há quinze anos. ela resolveu se aposentar des-
de que ele morreu em um acidente de automóvel. entretanto,
uma coisa lhe entristecia muito: nunca iriam descobrir quem
era a autora daqueles trabalhos tão bem-feitos. aliás, perfei-
tos. ninguém jamais sonharia em desconfiar dela. resolveu de
forma abrupta que desta vez modificaria seu modus operandi.
deixaria uma assinatura. uma bem grande. ficou sentada con-
fortavelmente naquele cômodo, com a arma segura na mão
que nunca tremeu um milímetro sequer nesses seus noventa e
três anos de vida. horas depois, quando bateram na porta, um
sorriso lindo estampou seu rosto tranquilo e seus olhos azuis
ficaram mais bonitos do que o normal.

75
lucas foi o melhor ator do mundo. atuou em vários pa-
péis. era jogador de futebol, amante, assassino, operário, pai,
intelectual, lutador, empresário, contraventor, motorista, ma-
rido, cozinheiro, professor, drogado, deprimido, morto. nunca
pisou num palco.

76
um foi empurrado escada abaixo e quebrou a espinha; ou-
tro foi encontrado afogado em um pequeno lago próximo a
um acampamento; uma foi espancada em cima de uma linha
de trem; um, magro demais, foi jogado da sacada de um pré-
dio de classe alta; uma gordinha foi enforcada em um grotão.
assim foi acontecendo. para algumas crianças, tratava-se ape-
nas de um jogo.

77
preguiçoso, o sol não se levantou, e por anos quem rei-
nou foi a medalha do santo guerreiro. quando a estrela retor-
nou para o seu lugar, estranharam. quando amanhecia, entra-
vam para as suas casas, cuidando de todas as frestas. ninguém
mais tolerava a intensidade.

78
foi dado a ele saber o saber supremo. josé cresceu saben-
do o destino dos que morrem. por isso, não chorou quando
joana, sua mãe, sucumbiu com a gripe. não derramou lágrima
por seu pai pedro, que bebeu até o corpo rebentar. não lamen-
tou o irmão joaquim, que simplesmente fechou os olhos em
uma cama de palha e nunca mais os abriu. josé também se foi.
com ele, a verdade capotou e foi soterrada.

79
sua obsessão era criar a música mais sublime dos vários
universos que dizia conhecer. inventou instrumentos. estudou
matemática. meditou. amou. odiou. inventou novos instru-
mentos. observou os astros. conheceu todos os músicos vi-
vos. conheceu os mortos. ao fim, desistiu. ninguém entenderia
porra nenhuma.

80
era moralista por esporte. gostava muito de dar “conse-
lhos” e os empurrava em conhecidos e em gente de fila. era a
retidão em forma de palavras. a vida o havia mudado, pensava
então em mudar a todos. belo dia, encontrou oposição firme.
o teimoso o contrariou e o humilhou na frente dos seus. gus-
tavo, então, comprou uma marreta e alugou um galpão em
bairro ermo.

81
“frango ou porco?” “tanto faz”. “azul ou vermelho?” “não
importa”. “gordo ou magro?” “qualquer um”. “cinema ou te-
atro?” “gosto dos dois”. ana nunca soube fazer isso que é tão
comum em algumas gentes. apenas algumas, claro. ali de onde
estava, ouviu de novo as palavras saltarem da boca do homem
alto. era uma ordem e antes de soar o sino da igrejinha esco-
lheu sem tremer qual de seus filhos viveria.

82
lucas acordou com bruta vontade de cometer uma cruel-
dade. não podia ser coisa simples do tempo de criança, como
colocar chicletes no assento do ônibus. tampouco queria fazer
algo com algum amigo. os amigos, com folga, cabiam numa
mão. depois de almoçar uma excelente salada, foi ao computa-
dor. pesquisou bastante. se esforçou. acusou um desconheci-
do de algo abjeto. viralizou, virilizou, virou verdade. do outro
lado da vila uma forca foi preparada.

83
era considerada a amabilidade encarnada na terra. en-
chia os outros com mensagens positivas de dia, de noite e de
madrugada. viam-se flores a emoldurando. seu sorriso era
bálsamo. elsa tinha um hobby: transformar todos ao seu redor
em pessoas realmente boas. dizia ser desígnio. para tal, usava
bisturi açucarado. os que sabiam observar viam que sua som-
bra tremia muito.

84
marcos andou o dia todo com uma ideia genial na cabeça.
desde a manhã essa luz o acompanhou. com ela seria capaz de
mudar a sua vida ordinária, sabia disso. confiava. seria capaz
de mudar o mundão todo. foi ao curso, foi ao mercado, foi à
loja de discos, foi ao alfaiate, foi ao puteiro, foi pra casa e fe-
chou a porta bem devagar. lá fora caía uma chuva muito fina.
a ideia não aguentou, ganhou o ralo.

85
naquela manhã, joão acordou como pluma assoprada. to-
mou calado o café ao lado da mulher, como sempre. entrou no
elevador e se sentiu nu. quando chegou na rua percebeu que
estava realmente sem roupas. naquela hora da manhã, a rua
estava lotada de gente fazendo o que as gentes fazem de me-
lhor: fingiam estar ocupadíssimas. joão correu de novo para o
seu apartamento, e quando entrou no quarto, viu seu corpo na
cama ao lado de outro. dali não mais saiu.

86
vivia preocupado com a morte. resultado mais do que ób-
vio: nunca viveu de sola. morrer não fez a menor diferença
quando em um dia de sol se engasgou com um caroço de mi-
lho. o menor da espiga. morreu como viveu, como besta. a
morte agora é que se preocupava com ele.

87
quase foi o cadáver mais bonito da cidade. sua vaidade ul-
trapassava todos os caprichos que se pode imaginar. conquis-
tou corações. mas só zacarias, o ourives, sabia por que leandra
juntara dinheiro a vida toda. tinha noventa e três anos e um
único propósito: fazer com que a sua caveira fosse a mais bo-
nita do planeta. certo dia, foi pega chorando em um banco
da igreja. em suas trêmulas mãos havia uma folha amassada
de revista. horas depois, quando encontraram o seu corpo, foi
comentário geral que a folha trazia a reportagem sobre um
tal Damien Hirst. ao beber a morta, só o padre ria: vanitas
vanitatum...

88
fernanda era capaz de se comunicar através da matemá-
tica; já nasceu com tal habilidade. com dois anos era versada
em logaritmos e, aos cinco, preferia passar horas com um in-
tegral composto a brinquedos caros. aos doze foi internada
em um hospício. no mundo em que vivia poucos conheciam
números.

89
ângela era racista, mas odiava ser chamada assim. zé era
homofóbico, e babava de ódio ao ver amor ao redor, no entan-
to, se considerava sujeito muito normal. rafael era amigo dos
dois, e acreditava que o afeto podia mudá-los. todavia, com
o passar dos anos, por distração, foi desistindo. quando bem
velho, um filme sobre tempos idos o fez perceber que o ódio
gosta mesmo é da desistência dos sensatos. naquela tarde, pela
primeira vez na vida, lembrando do avô, chorou por si.

90
no começo, maria não acreditava que estava ouvindo aque-
las palavras vindas de seu jardim. pensou que podia ser efei-
to de algum medicamento ou mesmo de alguma enzima na
comida. de forma incisiva, resolveu não elucubrar muito e
aceitar que ouvia conselhos de um cacto. e o que dizia aquela
planta ordinária, pouco simpática, e que tinha Opuntia no pri-
meiro nome? falava sobre a roupa de maria, sobre sua maquia-
gem, sobre o clima, sobre sua vida sexual. enfim, o ser verde
gostava de opinar por entre seus espinhos. a coisa só ficou de
fato séria, quando samambaias também resolveram dar pita-
co. é que todos sabem o quanto essa planta é pouco sensata.

91
fez a coisa mais difícil do mundo. inventou uma cor. en-
tretanto, não se apercebeu. era cega de nascença.

92
“doa-se berço novo. motivo: bala perdida”

93
esta obra foi composta em minion e impressa em
ofsete sobre papel pólen para a editora cancioneiro
em agosto de 2021.

Você também pode gostar