Você está na página 1de 41

Kubrick um crítico da

racionalidade científica

Prof. Dr. Alisson Gutemberg


@cinema.com.teoria
Objetivos:
1. Compreender de que forma a ciência moderna, a partir de noções como universalidade, progresso e
desenvolvimento etc., se tornou um paradigma central do projeto moderno;

2. Discutir o paradigma científico a partir da noção de Complexidade (Morin);

3. Apresentar como a ciência aparece representada no cinema de Kubrick,e, com isso, demonstrar uma
correlação entre os filmes trabalhados e as ideias de Morin
Referências:
1. Conversas com Kubrick (Ciment);

2. Ciência com consciência (Morin);

3. Introdução ao pensamento complexo (Morin);

4. O método 4 (Morin) ;

5. Modernidade e ambivalência (Bauman);


Referências:

6. A constituição da ciência moderna (Artigo. Sandro Luiz);

7. A ciência e sua constituição na modernidade: possibilidades para pensar o presente


(Artigo. Henning e Chassot)
.

.
Recapitulando:

● A modernidade pode ser compreendida em três


níveis: recorte histórico, experiência cultural e
projeto;

● Enquanto recorte histórico, vimos que o século


XIX é o espaço-tempo de consolidação da
experiência moderna; pois, foi o período
histórico que materializou uma série de
mudanças sociais ocorridas em séculos
anteriores: As Cruzadas (nascimento do
comércio); Revolução Francesa (ascensão da
burguesia); Absolutismo (consolidação de um
poder centralizado) etc.;
Recapitulando:

● A modernidade pode ser compreendida em três


níveis: recorte histórico, experiência cultural e
projeto;

● Já a experiência cultural moderna perpassa, por


exemplo, por dois elementos: a consolidação da
metrópole moderna e pela revolução tecnológica
(cinema, rádio, transporte etc.);

● Por fim, enquanto projeto, a experiência moderna


perpassa pela ascensão da ciência como paradigma
dominante do conhecimento e pelo nascimento do
Estado moderno. Consequentemente, há um
processo de racionalização e burocratização do
espaço social
01

moderna
.
Antecessores:

● O enunciado “ciência moderna” levanta a


possibilidade de uma ciência anterior ao
período moderno;

● E há autores que reconhecem na experiência


dos gregos antigos um certo fazer científico;
pois, se entendermos a ciência como um
esforço em compreender do mundo, suas
questões, e, inclusive, a própria realidade, os
gregos antigos faziam ciência;
Antecessores:

● Mas essa ciência se diferencia do paradigma


moderno: fincava-se na lógica da contemplação da
natureza e seus fenômenos;

● Por outro lado, a ciência moderna caracteriza-se


pela intervenção (Ex: Coronavírus);

● Na concepção grega, o mundo e os corpos eram


regidos pelas leis divinas, cabendo ao ser humano a
contemplação das verdades. No mundo moderno,
no entanto, se reconhece leis naturais que regem o
funcionamento do mundo e da natureza. E entender
essas leis é o princípio básico para explicar o mundo
e superar os problemas;
Ciência moderna:

● Dessa forma, no centro do paradigma científico está


tanto a compreensão da “verdade”, do mundo; bem
como a promessa da universalidade. Baseada na
ideia de superação dos problemas através da
intervenção científica. De modo a elevar
expectativa e qualidade de vida das populações, por
exemplo;

● E é nesse ponto, nessa promessa de superação dos


problemas, que ciência e modernidade se
encontram;
O projeto moderno
e a ciência:
● Como bem apontado por Bauman, desde o princípio,
a modernidade esteve ligada a um paradigma
eurocêntrico, e, inevitavelmente, a um ideal
civilizatório;

● E foi justamente isso que permitiu o


desenvolvimento de uma noção linear da História,
onde o desenvolvimento histórico aparece como
uma linha contínua arraigada na ideia de que a
modernidade seria um estágio superior. E, por isso,
inevitavelmente, levaria a níveis de
desenvolvimento nunca antes alcançado. Está na
base dessa concepção toda a expansão global, toda
a busca pela a universalização do modo de vida
capitalista (a modernidade é o espaço-tempo de
consolidação do capitalismo);
O projeto moderno
e a ciência:
● Mas, por que o projeto moderno carrega toda essa
confiança? Toda essa certeza?

● A modernidade, enquanto projeto, como apontam os


frankfurtianos, foi forjada pela promessa da
superação das desigualdades sociais e das
dominações que marcaram as sociedades anteriores.
Essa foi a promessa do projeto moderno. Ao imprimir
uma novas relações de trabalho e produção (fim ao
modelo escravocrata). Igualdade, liberdade e
fraternidade.;

● E a ciência é parte dessa intenção, desse projeto.


Toda essa promessa se amparava, por exemplo, na fé
de que a ciência seria capaz de dominar a natureza, de
proporcionar o desenvolvimento tecnológico, e,
consequentemente, elevar a qualidade de vida;
O projeto moderno
e a ciência:
● Mas o projeto moderno falhou: ainda que, na
atualidade, a gente tenha um aumento na expectativa
de vida, acesso à informação, como em nenhuma
outra era, a modernidade não conseguiu promover a
universalização. E falhou desde a sua origem,
segundo Marx, pois, ao instituir o ideal da propriedade
privada, queira-se ou não, ao estabelecer uma nova
hierarquia valorativa, criou-se formas inovadoras de
dominação e desigualdades;

● E a ciência, consequentemente, também falhou. Ainda


que tenha elevado a qualidade de vida, por exemplo,
ao encontrar a cura para doenças, que, por séculos,
foram mortais, a ciência também se tornou um vetor
de destruições. E é nesse ponto que a obra de
Kubrick se insere (noção de Complexidade de Morin)
02

Complexidade
.
Ciência e pensamento

● Desde a sua consolidação como paradigma


dominante do conhecimento, o saber científico nos
possibilitou um indiscutível progresso intelectual;

● Desde então, aprendemos a medir, pesar, avaliar o


sol, analisar as partículas que constituem o universo,
analisar a nossa estrutura social, conhecer e
compreender os fatos históricos etc.;
Ciência e pensamento

● Por tudo isso, sem dúvida alguma, a ciência é


elucidativa (resolve enigmas, dissipa mistérios etc.)
e enriquecedora (possibilita a expansão do
conhecimento);

● No entanto, essa mesma ciência, que é elucidativa e


enriquecedora, apresenta-nos, cada vez mais,
problemas graves referentes ao conhecimento que
produz. E, aqui, a partir de agora, a gente começa a
pensar a relação entre o trabalho de Morin e a
representação da ciência nos filmes de Kubrick;
Ciência e pensamento

● Essa ciência libertadora, traz, ao mesmo tempo,


possibilidades de subjulgação. Por quanto tempo a
ideia esdrúxula de inferiodade de alguns povos não
se baseou em paradigmas científícos? Quer um
exemplo? Vamo lá!

● Nina Rodrigues. Quem foi Nina Rodrigues? Um


médico legista, professor e escritor brasileiro.
Ciência e pensamento

● Nina Rodrigues viveu de 1862 a 1906. E ele é


considerado o fundador da antropologia criminal
brasileira;

● Nina Rodrigues defendia a ideia de que deveria


existir códigos penais distintos para diferentes
etnias. A sua principal tese era que o
desenvolvimento filogenético da humanidade havia
sido diferente quando se observava os diversos
grupos que compõem a humanidade, e, por isso,
negros e mestiços teriam propensão para o crime;
Ciência e pensamento

● Para defender a sua visão racista, Nina Rodrigues se


amparava na ciência. Por exemplo: após o fim da
Guerra de Canudos, o crânio de Antônio
Conselheiro foi exumado e enviado à Faculdade de
Medicina da Bahia para estudos conduzidos por Nina
Rodrigues. Ele esperava encontrar sinais da
"criminalidade nata“;

● Por fim, não menos importante, Nina Rodrigues dá


nome ao principal Instituto Médico Legal do Estado
da Bahia. O Estado mais negro do Brasil. É ou não é
um absurdo?
Ciência e pensamento

● Essa mesma ciência, que nos oferece níveis de


conhecimento nunca antes alcançados, produziu, ao
longo do tempo, ameaças de aniquilação da
humanidade. A Guerra Fria, nesse caso, é um ótimo
exemplo. Estava lá, no centro da questão, a ameaça
nuclear;

● E essa é a grande questão do pensamento Complexo:


nenhum fenômeno é 100% bom ou 100% ruim. Todos
eles são complexos. Os fenômenos humanos,
segundo Morin, se estruturam, se organizam, de uma
maneira dialógica
Ciência e pensamento

● Dialógica x Dialética: a questão da contradição;

● Como resultamos, temos:

1. Um progresso inédito dos conhecimentos científicos, paralelo ao progresso


múltiplo da ignorância (temos um saber cada vez mais especializado,
fragmentado);

2. Progresso dos aspectos benéficos da ciência, paralelo à ampliação de seus


processos mortíferos;

3. Progresso ampliado dos poderes da ciência, paralelo à impotência dos


cientistas a respeito desses mesmos poderes. Os cientistas possuem um
poder do qual não têm controle
03

no cinema de
Kubrick
.
Filmes:

01 Dr. Fantástico
.

Laranja
.

03 Mecânica

2001: uma odisseia


.

02 no espaço
.

. .
Dr. Fantástico

● Lançado em 1964;

● Sinopse: quando um general das forças armadas dos


EUA, tomado por uma insanidade, acredita ter
descoberto um plano dos comunistas para dominar o
mundo, ele autoriza um ataque à URSS e dá início a um
conflito em meio à Guerra Fria;

● O filme, que tem como pano de fundo a Guerra Fria, foi


lançado logo após três grandes acontecimentos que
impactaram a geopolítica global e aumentaram o clima
de tensão: 1) a construção do muro de Berlim (1961); 2) a
crise dos mísseis e a ameaça iminente de uma guerra
nuclear (1962) ; e, por fim, o assassinato de John Kennedy
(1963)
Dr. Fantástico

● Assim, Kubrick transforma o clima de tensão, real, que


atravessa a sociedade, em uma sátira. Dr. Fantástico é
uma obra repleta de sarcasmo;

● E não é de se estranhar que seja assim, o filme tem como


argumento o surto de um oficial do alto escalão das
forças armadas, que, após um problema com a ereção,
acredita ter descoberto um plano comunista para
dominar o mundo infectando os alimentos, a água etc.
Um filme que nasce de um argumento desse, já nasce
como uma sátira;
Dr. Fantástico

● E esse sarcasmo que marca , por exemplo, os diálogos, o


enredo, as ações dos personagens, estará presente
também na composição visual da obra. Em diversas
passagens, observamos ações que contradizem com as
mensagens expostas em cartazes, por exemplo.
Dr. Fantástico

● Mas, e a ciência? Como ela aparece no filme de Kubrick?


E mais, como se dá o diálogo do filme com as ideias de
Morin?

● Veja, toda a tensão do filme é construída a partir de uma


ameaça de destruição do mundo por meio de uma
bomba. Uma bomba que havia sido criada por um
cientista alemão;

● Na aula anterior nós vimos que o Estado moderno se


estrutura através de instituições. Vimos também que, no
cinema de Kubrick, as instituições modernas são
representadas por meio de personagens. Logo, o
cientista, evidentemente, está representando a ciência;
Dr. Fantástico

● A primeira questão, na cena, é o fato de Kubrick nos


alertar para um ponto: ao longo do tempo, apesar
de todas as coisas boas, o pensamento científico
também esteve atrelado - na verdade, em muitos
casos, legitimou - atrocidades. Como seria o caso
da proposta defendida pelo cientista no filme;

● Mas Kubrick quer enfatizar esse caráter


controverso da ciência, e, para isso, ele coloca um
nazista para representar o cientista. E veja, não há
exemplo melhor na História para mostrar como o
discurso científico, em muitos casos, legitimou uma
série de atrocidades. Kubrick, assim, representa a
ciência de um ponto de vista crítico; tal qual a obra
de Morin.
Dr. Fantástico

● Segundo Morin, a mesma ciência que nos oferece


níveis de conhecimento nunca antes alcançados,
produziu, ao longo do tempo, ameaças de aniquilação
da humanidade. A Guerra Fria, nesse caso, é um ótimo
exemplo. Estava lá, no centro da questão, a ameaça
nuclear. Kubrick demonstra exatamente isso;

● E só mais uma coisa: quando a gente pega obras


clássicas, que partem de uma análise crítica do
discurso científico, há um consenso: a Segunda
Guerra aparece como um ponto de virada. Um
acontecimento que marca a emergência desse olhar
crítico. É assim, em O pós-moderno (Lyotard), em
Modernidade e Ambivalência (Bauman) e também na
obra de Morin
2001: uma odisseia
no espaço
● Lançado em 1968;

● Sinopse: quando uma equipe de astronautas embarca


em uma missão espacial, apesar de ter tudo
milimetricamente organizado, calculado e
programado, as coisas começam a fugir do controle;

● Morin afirma que o progresso ampliado dos poderes da


ciência, cresce em paralelo à impotência dos
cientistas a respeito desses mesmos poderes. Os
cientistas, segundo Morin, possuem um poder do qual
não têm controle. E é exatamente isso que Kubrick
demonstra em 2001;
2001: uma odisseia
no espaço
● Observamos, assim, o papel que o computador
desempenha na trama de 2001. Inicialmente, a sua
função é “administrar” a nave, pois, HALL 9000 foi
programado para isso. No entanto, as coisas fogem do
controle. E o que antes era um projeto para
racionalizar o tempo, melhorar a experiência dos
tripulantes durante a viagem, se torna um conflito;

● Mais uma vez, a ciência, atrelada, aqui, ao


desenvolvimento tecnológico, é representada de um
ponto de vista crítico em um filme de Kubrick;
2001: uma odisseia
no espaço

● A título de comparação, vamos relacionar 2001 com um


outro filme que trata da conquista do espaço. Vamos
relacionar o filme de Kubrick com Viagem à Lua
(Méliès, 1902)
2001: uma odisseia
no espaço

● Diferentemente de 2001, Viagem à Lua parte de um


ponto de vista positivo da ciência. No filme de Méliès,
os tripulantes planejam uma viagem ao espaço,
constroem um foguete, chegam ao destino, e, uma vez
no espaço, eles dominam os selenitas;
2001: uma odisseia
no espaço
● Viagem à Lua é um filme do iniciozinho do século XX,
talvez tenha sido planejado no século XIX. Talvez, mas,
esse detalhe é irrelevante. O importante aqui é
perceber, que, um filme do início século, carrega
notoriamente, os valores do projeto moderno: a fé na
ciência e o tom imperialista. Valores dominantes do
contexto em que foi lançado;

● O filme de Kubrick, por sua vez, é de 1968. Foi lançado


pouco tempo depois da Segunda Guerra, os valores
científicos, por tudo que representou, passavam por
uma onda de contestação. Somado a isso, havia a
iminente ameaça nuclear;
2001: uma odisseia
no espaço
● O que eu quero mostrar com isso? A capacidade do cinema
de captar o espírito do tempo. Kubrick, como alguém que
viveu o século XX, que, segundo Hobsbawm, por exemplo,
foi o século mais violento da história, pensa o projeto
moderno dentro de uma abordagem pessimista. Uma
abordagem própria, coerente, com o seu próprio tempo;

● Por outro lado, Méliès, um homem do século XIX, que viveu


toda a euforia da Revolução Industrial, que viveu o aumento
da expectativa de vida com a consolidação da ciência, adota
um tom otimista para retratar o projeto moderno. Uma
abordagem própria, coerente, com o seu próprio tempo;

● Logo, o cinema de cada um deles revela, justamente, o


estado de espírito do tempo. É por isso que todo filme é uma
fonte histórica
Laranja Mecânica

● Lançado em 1971;

● Sinopse: em um futuro não definido, Alex é o líder de


uma gangue de delinquentes que aterrorizam a
cidade. Quando preso, ele recebe a chance de reduzir
o seu tempo de prisão, para isso, precisará ser cobaia
de um experimento científico;

● Assim como nos outros filmes aqui citados, em


Laranja Mecânica temos o mesmo tom pessimista,
crítico, voltado para a ciência. E, dessa vez, Kubrick
retorna a um ponto delicado no percurso histórico da
ciência: os experimentos com seres humanos;
Laranja Mecânica

● É exatamente por meio do Tratamento Ludovico que


a ciência aparece em Laranja Mecânica;

● Vale lembrar que os experimentos científicos, tendo


humanos como cobaias, foi uma constante, por
exemplo, na Alemanha Nazista;

● Assim, no cinema de Kubrick, a ciência pode ser uma


força destrutiva (Dr. Fantástico), incontrolável (2001) e
com potencial de nos mutilar (Laranja Mecânica)

Você também pode gostar