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144f.
Contém referências.
CDD: 791.43025
ÍTALO NELLI BORGES
BANCA EXAMINADORA.
Sempre leio com muito interesse os agradecimentos dos trabalhos que tenho acesso. É
prazeroso conhecer os diversos contextos da escrita de um texto acadêmico. Imagino os
percalços, alegrias, angústias e satisfações de quem escreve ao longo de seu processo de
pesquisa, talvez faça isso na tentativa de achar um pouco de emoção no outro e relaciona-la
com a emoção que há em mim porque ver o sentimento de gratidão do outro é, em alguma
medida, sentir-me grato aos meus. É por isso que dou grande importância a este momento e já
perdi as contas de quantas vezes ao longo destes dois anos de curso me deparei imaginando
como escreve-lo. Me dou ao luxo de agradecer chamando as pessoas pelo primeiro nome, este
momento é íntimo e não carece de formalidades, ademais já uso muitos sobrenomes no
decorrer do texto.
Este trabalho é dedicado às memórias dos meus avôs; Beto e Paulo. Beto, filho de
imigrante italiano anarquista, fã de Mario Puzo. Se foi há tempos, mas tinha sangue de luta
nas veias, lutou por melhorias pra sua classe na época de bancário. Poucas são as lembranças
que tenho dele como a vaga imagem sua falando “iai rapaziada!” quando encontrava os netos.
Lamento muito por não ter tido a oportunidade de conhece-lo mais a fundo, o que tenho são
memórias, mas permanecerão vivas. Paulo se foi há pouco tempo, ainda no curso dessa
dissertação. Tinha orgulho de todos os netos, sem exceção, transbordava seu carinho gigante
por nós nos mínimos detalhes, num olhar, num sorriso, na sua leveza de ser e viver, eu jamais
esquecerei seus olhos. Amo vocês! Quem sabe, vai que o universo reserve um plano pra nos
encontrarmos em algum momento onde o tempo não exista, né! Torço por isto.
Minhas avós, Dilma e Lúcia, mulheres de coragem que sabem encarar a vida de frente,
que viveram um tempo onde ser mulher era muito mais difícil que hoje, são meus maiores
exemplos de amor, cuidado e perseverança. Meus pais, Lorena e Afonso, que, antes de todos,
confiaram e acreditaram em mim, continuam me apoiando e me orientando nos caminhos que
tomo na vida e, muitas vezes, negaram seu próprio conforto para que pudessem dá-lo aos
filhos. Se um dia for pai, ficarei agradecido se for metade pro meu filho do que vocês são pra
mim. Meu irmão, Rafael, que é um ótimo interlocutor, tive a sorte de ter um irmão que
também é amigo, e dos bons! Estaremos sempre juntos, mesmo longe! E saiba que sua
obstinação é um potente combustível para que eu possa alcançar meus próprios objetivos. À
meus tios, tias, primos e primas, meus sinceros agradecimentos.
À Amanda, porque é amizade, porque é amor e porque, principalmente, os dedos estão
entrelaçados e as explosões continuam no céu, sempre! Te amo!
Devo muito à Priscila, que deixou claro ser minha orientadora no primeiro dia de aula
do mestrado ao responder uma pergunta minha. De lá pra cá, compartilhamos muito tempo
em orientações, tirocínio docente e inúmeras conversas agradáveis pelo campus da UNEB.
Sou grato a sua paciência de orientar este trabalho o direcionando para caminhos mais
profícuos da pesquisa histórica e pela nossa relação profissional também ser permeada pela
amizade. Sua humildade e sensibilidade são inspiradoras para o professor que sou. Como
somos parceiros nas performances históricas, sei que esta amizade irá continuar além do
mestrado.
Tive a sorte de ter na banca examinadora alguém que, assim como eu, tem paixão pelo
cinema. Karen sempre mostrou uma disposição enorme em contribuir para este texto. Com
Karen também tive diálogos memoráveis no nosso clube do filme, da Nouvelle Vague ao
cinema argentino contemporâneo passando por Herzog, Bertolucci... Uma alegria genuína pra
quem é cinéfilo. Confesso até que estas conversas me deram uma motivação importante para
interpretar minha própria fonte de trabalho. Obrigado pela atenção, sei que vais reconhecer
tuas marcas neste texto, espero não decepciona-la.
Sou grato também a Raimundo Nonato, que acreditou neste trabalho quando ele ainda
era um projeto de pesquisa e pôde contribuir para o seu desenvolvimento integrando a banca
examinadora. Além do mais, seu brio intelectual e político, sua percepção historiográfica
aguçada e suas sugestões para a construção deste texto me tornaram um pesquisador mais
atento, tanto para a minha própria pesquisa, quanto à realidade que me cerca.
Na UNEB-SAJ também tive o privilégio de conhecer pessoas que guardarei com todo
carinho em minha memória. Colegas que foram facilmente promovidos a amigos; Álvaro meu
petralha favorito, ético, bom filho e, acredite cara, seu filho terá sorte em tê-lo como pai.
Méééchele que é brááába, chorona, da luta, mãããe, fala na cara (e eu adóóro), me deve vinhos,
mas em breve beberemos juntos, as palavras sobre ela são longas significando intensidade
porque ela é tão intensa quanto, é o tino perfeito pra uma historiadora! Giovanna que
consegue ser guerreira e doce, mas não aquela doçura clichê que gostam de atribuir às
mulheres. A dela é diferente, uma coisa de estado de espírito, só a conhecendo pra entender.
André que, assim como eu, tem apego as artes e isto, pra mim, é condição fundamental pra ter
a sensibilidade que a vida nos exige. Rosana que também é do cinema, que chega mansinha,
humilde, mas se a gente der dois dedo de ousadia mostra um potencial incrível, eu
sinceramente espero que a vida seja ótima pra você!
Tenho que agradecer especialmente a Gabriel e Aryzinho, Gabriel abriu as portas da
sua casa quando mal me conhecia, não só em SAJ, mas também em Ilhéus numa viagem
fantástica! Vei, obrigado por tudo; por compartilhar suas casas comigo, pelas experiências em
Floripa, Ilhéus, Santo Antônio e em Feira, pelos duelos disputadííííssimos do FIFA, por estar
disposto a sempre me ajudar, não só a mim como a qualquer um que você possa, pela sua
leveza e tranquilidade que atingem positivamente todos a sua volta, nunca tire esse sorriso da
cara. E Aryzinho, meu mentor intelectual, competente, estudioso, palmeirense (ops), aqui é
Coriiiinthiaaa, mano! Tivemos ótimos momentos em BH, na UFMG e naquele jogááááço que
vimos no Mineirão. Em Aracaju na UFS, dando corridinhas pela orla e, claro, secando o
Parmeraa. Ary sempre me motivou, mostrou e continua mostrando que é possível pensar alto
no mundo acadêmico. Confiou em mim para uma cacetada de atividades e me deu
oportunidades de crescer intelectual e profissionalmente. E como se não bastasse, o danado
ainda é cantor e forrozeiro! Quando fui fazer esse mestrado em SAJ, sabia que faria bons
amigos, mas vocês me surpreenderam mostrando que também ganhei dois irmãos. Obrigado,
cabras!
E a Jack, meu gatoon, aí já é amor antigo, desde a sala do vestibular para História em
2008 e em 2016 terminamos juntos o mestrado. É uma longa trajetória de amizade,
solidariedade, conversas, cervejas, percursos e risos. Ele não faz História, ele a vive, e esta é a
qualidade mais rara para um historiador. Continuaremos juntos e sempre humildemente
aprenderei com você.
Aos da UEFS que me acompanham desde a graduação e não perdemos o contato; Jairo
jockey do Rio Jacuípe, Tadeu sertanejo universitário, nosso Rei Anderson, o egrégio Romeu,
Joelma Tigresa, Raffael Einai manjador dos cotidianos urbanos, Lina, Ane manjadora das
literaturas, Bia, Rafael Dantas campeão do SEMIC e barman, Fabrício Queixinho de Ouro,
Tamy, o Rasta, Valter Zaqueu e Patrícia Matos rokera empoderada. Estaremos sempre juntos!
Agradecimentos pra essa gente especial que me faz ver alma na vida cotidiana;
Ludimilla porque ela é toda poesia, e das boas, daquelas que desviam, marginais, das que
movem e co-movem. Ananda porque “honey, you’re familiar like my mirror years ago.” São
8 anos de amizade e eu não consigo deixar de te admirar por um momento que seja, por suas
escolhas, pelos desafios que encara e pela sua inteligência pulsante e despida de vaidades. Me
contrate pra pilotar seu jatinho em breve! Alana pelas infindáveis e fantásticas conversas de
buzú onde ela me obrigava a citar referências bibliográficas sobre o que estava falando, por
ser uma onça braba que eu adoro mesmo quando diz que historiador é tudo chato, sei que
dizes isto pelo desejo reprimido de ser historiadora! Aos amigos do Corujão com vinho bem
adegado; Morééllo, Neto Puliça thug life, Camuca mito/monstro e Binho Frota que
recentemente descobriu que coração é um músculo. A Diego, professor e amigo, que muito
me ensinou pela sua solidariedade e companheirismo, o que fizeste por mim jamais será
esquecido e tento, humildemente, pôr em prática o que eu aprendi observando você. Agradeço
também a Bruninha desembargadouuuuuuuura, Millena serpente que rasga a camisa do zôtu e
Pró Rose.
Aos professores da UEFS e UNEB, tanto da graduação quanto do mestrado que foram
importantes pra minha formação profissional e humana; Rinaldo, Onildo, Ivone, Elciene,
Coelho, Valter, Carlos, Suzana, Cristina Luna, Nancy e Sara. Às Colegas Jacque, Kátia,
Danni e Lucila. À CAPES e ao PGHIS da UNEB por darem o suporte necessário para a
realização deste trabalho.
Todos vocês, de alguma forma, possuem marcas em mim e neste texto, que também
sou eu, só que por outra linguagem. Obrigado!
RESUMO.
Essa dissertação consiste em, através de análise fílmica entrelaçada com o contexto
histórico dos anos 1960 no Brasil, identificar e problematizar as representações da política
brasileira inseridas no filme Terra em Transe, realizado por Glauber Rocha, em 1967. Neste
sentido, é fundamental entender o contexto de produção da referida obra, na medida que a
década de 1960 foi bastante efervescente na cultura brasileira, vários movimentos artísticos
surgiram com o intuito de transformação social. O Cinema Novo, movimento cinematográfico
cujo Terra em Transe pertence, é um exemplo dessa afirmação reforçando a ideia de que a
abordagem do contexto histórico do período em que o filme se insere contribui sobremaneira
para compreensão de suas representações políticas. Ao que tange as representações contidas
na obra, nos concentramos em examinar, utilizando a análise de elementos compositores da
linguagem cinematográfica como principal instrumental metodológico, como Glauber Rocha,
por intermédio de seu filme, constrói um discurso sobre o populismo na política brasileira
vigente entre 1930 e 1964 e sobre o processo de implantação da Ditadura Civil-Militar em
1964.
his dissertation is to, through film analysis intertwined with the historical context of
the 1960s in Brazil, identify and question the representations of Brazilian politics inserted in
Earth Entranced film, directed by Glauber Rocha in 1967. In this sense, it is essential to
understand the production context of that work to the extent that the 1960s was quite ebullient
in Brazilian culture, several artistic movements have emerged with the aim of social
transformation. The New Cinema, film movement whose Earth Entranced belongs, is an
example of this statement reinforcing the idea that the approach of the historical context of the
period in which the film falls greatly contributes to understanding of their political
representation. To respect the representations contained in the work, we focus on examining,
using the analysis of composers elements of film language as methodological instrument
principal, as Glauber Rocha, through his film constructs a discourse on populism in current
Brazilian politics from 1930 and 1964 and the implementation process of the Civil-Military
Dictatorship in 1964.
Prólogo.
Das possibilidades de relacionar cinema e história.
Olhar para o objeto deste trabalho que são as representações históricas criadas por Terra em
Transe, especificamente as que se refere ao processo que desencadeou no golpe de Estado em
1964 e o populismo na política brasileira é, metaforicamente, a mesma coisa que olhar para o
brilho emanado por Alfa Centauro. Explico; tanto um como o outro aconteceram no passado,
mas de alguma forma nos alcançam no presente e causa algum efeito em nós. A História, por
definição, questiona e estuda o passado, mas este passado jamais se desvincula do presente.
Se as estrelas brilham no presente para alcançar a Terra no futuro, a história acontece no
passado para nos alcançar no presente.
Para construir uma pesquisa histórica sobre aspectos da política brasileira
contemporânea citados acima qualquer historiador poderia utilizar de diversos registros do
passado feitos nesse período que hoje são considerados fontes históricas; imprensa,
documentação civil, estatal ou militar, relatos orais, etc. Neste texto, como se sabe, o filme
Terra em Transe é o suscitante de várias questões referentes à história. Neste filme, assim
como em outras fontes, há implícita ou explicitamente um discurso sobre seu tempo, o
objetivo de extrair da fonte as informações necessárias para, concomitante a análise adequada,
se produza conhecimento histórico é intrínseco a qualquer trabalho historiográfico, o que
muda é a maneira de se fazer isso. O cinema e o filme demandam outras abordagens
metodológicas, que são diferentes de uma análise de fontes escritas, que, por sua vez,
demandam outras abordagens se comparadas com fontes orais e assim sucessivamente.
Entretanto, todos sabemos, escrever é uma atividade solitária. Escrever um trabalho
em História é desafiador considerando que o leitor sempre saberá o final dela. O leitor, ao ler
sobre o golpe de 1964 no Brasil, sabe desde o início que houve um golpe e isto acontece
igualmente com o leitor que lerá sobre a Revolução Francesa ou sobre o declínio do Império
Romano. Ninguém ler um trabalho em História como se lesse um romance ou assistisse um
filme, ávido para saber o final. No limite, o que importa numa obra historiográfica, são as
análises feitas pelos historiadores e a capacidade proporcionar reflexões históricas no leitor.
Em outras palavras, se o início e o fim da coisa já está dada, mais vale o seu processo, o meio
do caminho e, de todo jeito, a pessoa mais competente para fazer este trabalho é o historiador.
Sobre a política brasileira entre 1930 e 1964 existem vários meios do caminho ou análises a
serem feitas sobre ela. O filme Terra em Transe certamente situa-se num desses caminhos e, a
partir dele, é possível perceber sentidos históricos referentes ao Brasil daquele período.
As inquietações que percorrem Robert Darnton ao escrever a introdução de O Beijo de
Lamourette me parecem pertinentes. O autor reflete sobre sua própria prática questionando o
alcance que a obra de um historiador tem na sociedade tocando no ponto de que, basicamente,
3
escrevemos para outros historiadores lerem, o que pode tornar a produção deveras acadêmica,
específica e potencialmente inacessível a outros públicos.1 Sendo assim, como vencer estes
aspectos? Não sei se é possível ou quisto vencer isto, no entanto é necessário tentar escrever
de maneira mais agradável ao leitor, seja ele quem for e isto, de maneira nenhuma, implica na
diminuição do rigor analítico e metodológico do texto. Foi buscando este horizonte que este
texto foi construído.
O alvo deste trabalho é compreender como Glauber rocha, através do seu filme Terra
em Transe, constrói um discurso sobre a política brasileira que atingiu o Brasil entre 1930 a
1964 mais especificamente em relação ao populismo e sobre o golpe de 64. Entender este
como, ou seja, as maneiras estéticas e narrativas de construção destes discursos é importante
na medida que o filme, assim, produz uma interpretação sobre seu próprio tempo. O que está
na tela vem de um mundo fora dela e sai para este mesmo mundo, que é histórico, de maneira
ressignificada com intenção de objetivos políticos. Terra em Transe, assim como qualquer
outro filme, é algo que podemos tomar como mediador entre realidades e percepções sobre a
mesma na medida que Glauber certamente realiza este filme como algo reativo aos processos
políticos acontecidos no Brasil nos anos anteriores.
É neste sentido que podemos chegar em noções teóricas e conceituais que norteiam
todo este trabalho, se tratam das sistematizações inseridas ao longo do texto que alguns
autores trazem acerca do cinema, da História e da interação entre os dois. Assim, há no texto
contribuições tanto teóricas quanto metodológicas que vão de Gilles Deleuze2 e Jacques
Aumont3 no que se refere ao cinema no que concerne a compreensão de sua linguagem e
como entender como funcionam alguns regimes de imagens que podem ser um interessante
combustível para a análise fílmica. Roger Chartier 4 para perspectivas de compreensão de
apropriações de uma dada realidade e representações históricas que direcionam caminhos de
estudos em História ligados a cultura. E, quando se trata de como propriamente o cinema se
torna fonte ou objeto da História, Miriam Rossini5 e Marcos Napolitano contribuem na
medida que indicam tecnicamente alguns procedimentos necessários para lidar com este tipo
de fonte. Não se trata aqui dele eleger esse ou aquele autor ou proposta que contemple todo o
1
DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo. Companhia das Letras.
2010. p. 14
2
DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. São Paulo. Brasiliense. 1990.
3
AUMONT, Jacques e outros autores. A Estética do Filme. Campinas. Papirus. 1995.
4
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Difel. Lisboa. 1990
5
ROSSINI, Miriam. O cinema e a história: ênfases e linguagens. In. PESAVENTO, Sandra Jatahy, SANTOS,
Nádia Maria Weber, ROSSINI, Miriam de Souza. (orgs.) Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos
em história cultural. Porto Alegre. Asterisco. 2008.
4
trabalho, mas sim promover sua comunicação à medida que as necessidades que este texto
demanda surjam.
Estas abordagens alinham-se com este trabalho na medida que, com Terra em Transe,
percebemos como Glauber Rocha se apropria de uma realidade política para construir sua
própria percepção sobre a mesma e ela (a percepção) se materializa no filme ao mesmo tempo
que também gera, partindo da obra, sentidos históricos. Nesta perspectiva, Glauber ler uma
realidade e transforma esta leitura em algo crítico na forma de um produto audiovisual. Desse
modo, é preciso compreender o jogo dialético das apropriações e representações de uma
realidade inseridas no filme, o que faz com que este trabalho inevitavelmente precise alcançar
a interdisciplinaridade em seus aspectos teóricos dialogando com a teoria do cinema.
É no exercício de apropriação que são considerados as especificidades do leitor, sua
historicidade, o momento e lugar onde vive, capacidade crítica, subjetividade, etc. E na leitura
que Glauber constrói sobre a política brasileira emanam representações pautadas neste mundo
que, de diversas formas, trarão – como já se sabe – mediante análise cuidadosa, reflexões
históricas. A força que move este trabalho concentra-se nisto; em identificar e examinar as
maneiras que estas representações sobre a política brasileira são construídas explorando até
onde for possível a potência que a arte pode oferecer para criar sentidos. A arte, então, é um
enérgico fio condutor de conhecimento histórico.
Os estudos historiográficos que se propõem a relacionar de alguma forma o cinema
com a História atualmente já são bastante numerosos, possuem metodologias e percepções
teóricas próprias se tornando um campo robusto na historiografia. Robert Rosenstone afirma
que para o historiador acadêmico a experiência de se aproximar do cinema gera, ao mesmo
tempo, entusiasmo e desconcerto. Entusiasmo, segundo o autor, vem, entre outras coisas, pela
atração que o meio audiovisual possui e pela ideia de imaginar os potenciais receptores e a
investigação de uma obra.6 O desconcerto fica por conta do historiador nunca estar satisfeito
com o que vê na tela, sempre buscando analisá-la, problematizá-la, ainda que fique satisfeito
com ela enquanto um genérico espectador.7 O interessante é que o desconcerto, com muito
estudo, pesquisa e dedicação, vai sendo diminuído aos poucos embora acredite que jamais
seja superado. O entusiasmo, pelo contrário, a medida que conhecemos e estudamos, aumenta.
Estes dois sentimentos, então, com uma pesquisa histórica, se tornam inversamente
6
ROSENSTONE, Robert. História em imagens, história em palavras: reflexões sobre as possibilidades de
plasmar a história em imagens. O Olho da história: Revista de História Contemporânea, Salvador, n.5, p. 105-
116, set. 1998. p. 105
7
Idem.
5
8
Ibidem, p. 112,
9
Ibidem, p. 106.
6
ideia é encarar as relações cinema/História como Alexandre Valim o faz, atentando-se para o
cinema de maneira integrada no que tange recepção, emissão e mediação de filmes. 10
Inclusive, o mesmo autor nos diz o seguinte:
Considero que um filme, produzido em Hollywood ou não, sempre transmite um
conteúdo ideológico, mesmo que não intencionalmente. Esse fenômeno ocorre por
causa do processo de produção, pois há elaboração, acumulação, formação e
produção de ideologia, e, se esse conteúdo ideológico reproduz a ideologia
dominante, é porque ela exerce todo o seu peso sobre aqueles que realizam e
consomem os filmes. Os filmes mostram imagens de vidas, atitudes e de valores de
grupos sociais, criados a partir de aspectos reconhecíveis, porém muito
selecionados, desses grupos. Dessa forma, o público tende a interpretar como
verdadeira as descrições de lugares, atitudes e modos de vida de que não tem um
conhecimento prévio.11
10
VALIM, Alexandre. História e Cinema. In. CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. (orgs.) Novos
Domínios da História. Rio de Janeiro Janeiro. Elsevier. 2012. p. 283.
11
Ibidem, p. 288
7
12
ROSSINI, Miriam. Op cit. p. 124.
8
espiritual para ele enquanto arte. Suas análises sobre o cinema moderno (pós Segunda
Guerra) constituem um regime de imagens até então inéditos no cinema mundial que ele
nomeia de Imagem-tempo. Terra em Transe possui alguns regimes deste tipo de imagem que,
por meio de um trabalho adequado, traz uma potência interpretativa maior para sua narrativa
e, por consequência, maior aguçamento na percepção tangente às questões históricas que este
trabalho lança ao filme.
O segundo ato conta com a análise minuciosa de três sequências cênicas que tratam
este tema. A fonte majoritária utilizada é Terra em Transe e, eventualmente, alguns textos de
Glauber compositores da Revolução do Cinema Novo que servem como perspectiva externa
ao filme mas que interagem com ele dando uma maior amplitude para a análise.
O terceiro e último ato segue as mesmas orientações teóricas e metodológicas do ato
anterior. Muda-se o foco da análise histórica, que é direcionada ao golpe de Estado em 1964.
São analisadas seis sequências que mostrarão o perfil político da direita brasileira capitã do
golpe, as tensões políticas provenientes da conjuntura conturbada e efervescente naquele
período e, por fim, a consumação do golpe e o fracasso das esquerdas em tentar conte-lo. A
principal fonte continua a ser o filme e os textos de Glauber ainda constam aqui como fonte
para aspectos externos ao filme, assim como no ato anterior.
Há ainda, por fim, um epílogo que mostra as condições receptivas específicas de Terra
em Transe, este momento acontece no fim do texto para que o leitor saiba como todo
conteúdo fílmico apresentado fora recebido por diversos públicos, principalmente intelectuais
e órgãos censores do Estado Brasileiro. No epílogo as fontes variam vindo de um debate no
Museu da Imagem e do Som (MIS) no Rio de Janeiro à época do lançamento da obra
refletindo diferentes opiniões sobre filme por parte de sujeitos ligados ao cinema e a cultura
brasileira de esquerda. A recepção da censura fica por conta de documentos emitidos pelo
Serviço de Censura e Diversões Públicas (SCDP) que era responsável pela censura prévia de
produtos artísticos no Brasil naquele momento. Há ainda uma comunicação entre Glauber e
seu amigo cubano Alfredo Guevara feita por cartas que também trazem uma dimensão externa
de apreciação de Terra em Transe.
Estas são as formas que este trabalho busca identificar e compreender a historicidade
do filme Terra em Transe decodificando e analisando os discursos históricos contidos em no
mesmo, sobretudo no que toca dimensões da política brasileira. Marc Ferro diz que
“certamente, em 1970, o bispo e o homem da lei, o médico e o militar, o general e o senador
vão ao cinema; o historiador também, porém vai como todo mundo, somente como
espectador”. O historiador pode até ser um espectador comum de cinema, porém no momento
9
em que decide usar obras cinematográficas como fonte ou objeto para sua pesquisa, ele usará
a metodologia própria do ofício para construir o conhecimento histórico a partir do cinema,
isso trará a superação de ser um espectador comum e o tornará em um analista especialista no
tema. Só deixamos de ser um mero espectador de cinema quando nos aprofundamos nele e
este aprofundamento pode acontecer de diversas maneiras, as escolhidas para este trabalho já
foram devidamente apresentadas, resta agora o leitor, que espero que ainda esteja embebido
relações entre Cosmologia e História, seja atingido pela leitura deste texto.
10
Primeiro Ato:
Glauber Rocha e os Complexos Enredos por um Cinema
Revolucionário.
13
XAVIER, Ismail. Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo. Paz e Terra. 2001.
12
dimensões é evidente, pois o referido filme insere-se num amplo contexto histórico e
cinematográfico brasileiro que trabalharemos aqui. O cinema que visa como objetivo máximo
a transformação social feito por este cineasta é notado dentro e fora da tela sendo permeado
por um movimento cinematográfico que prega uma revolução através das práticas de uma
específica geração de cineastas e pessoas envolvidas com a arte em geral. Desse modo, um
momento que trate das relações, propostas e percepções de Glauber para o cinema brasileiro
pressupõe o entendimento de Terra em Transe como um discurso valioso para a História.
Esse objetivo consiste em mergulhar num universo complexo em que se insere a intricada
figura de Glauber Rocha, o Cinema Novo enquanto movimento cinematográfico
transformador e na interação de cineastas que compuseram esta geração. No limite, existe
uma coerência entre perspectivas da obra e de seu autor.
14
Para uma maior amplitude sobre a biografia de Glauber Rocha, ver VASCONCELLOS, G. Glauber Pátria
Rocha Livre. São Paulo, Editora Senac. 2001. GERBER, Raquel. Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1977. RIBEIRO FILHO, A. Glauber Rocha Revisitado. Salvador. Expogeo. 1994.
15
MOTTA, Nelson. A primavera do Dragão: A Juventude de Glauber Rocha. Rio de Janeiro. Ed Objetiva.
2011. P.24-25
13
confessar que era uma brincadeira e que a arma estava sem munição. Esses acontecimentos
servem para demonstrar que o cinema atingira Glauber desde criança
Aos 15 anos já morava na capital Salvador e foi quando começou a ter um contato
mais direto com o cinema escrevendo críticas e participando de um programa de rádio onde
falava sobre cinema. A essa altura, faltava pouco para conhecer o cineasta Nelson Pereira dos
Santos e cada vez mais estar envolvido com produções fílmicas. Esse foi o início de sua
trajetória como cineasta, em 1959 produz seu primeiro filme, um curta metragem chamado
Pátio, primeira de várias outras obras, algumas vencedoras de prêmios e importantes em
perspectivas de projetos estéticos e políticos a exemplo, entre outras, de Deus e o Diabo na
Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e A Idade da Terra (1980).
Antes de completar 20 anos de carreira, Glauber já era considerado um dos cineastas
mais importantes do Brasil. Depois de fazer O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro
(1969), sai do país e percorre, filmando e produzindo, América Latina, Europa e África. Ao
longo de sua vida, foi recorrentemente uma figura polêmica, criou boas amizades e amargas
inimizades, viajou pelo mundo levando seu jeito de fazer cinema, foi escritor, fez programa de
TV. Venerado e criticado pela crítica de cinema e foi um dos líderes do Cinema Novo,
movimento cinematográfico brasileiro atuante entre as décadas de 1960 e 1970. Morre em
1981 vítima de complicações respiratórias, mas deixa um legado ímpar, polissêmico e
grandioso. Sylvie Pierre, amiga de Glauber e crítica da Cahiers du Cinéma16 escreve uma
interessante biografia sobre o amigo e define em tópicos três momentos importantes na vida
profissional do cineasta:
1. Até 1970, o reconhecimento internacional de seus filmes
2. Nos últimos anos da vida de Glauber no Brasil (1976/1980), sua presença
maciça, muito particular, nos meios de comunicação brasileiros
3. Depois de sua morte, isto é, a partir de 1981, as novas dimensões,
mitológicas, que seu nome assumiu no Olimpo cultural nacional.17
Com essas informações não fica difícil perceber o quão a vida de Glauber Rocha fora
agitada, um turbilhão de ideias, sentimentos e significados. Temos a preocupação de adjetivar
a vida do cineasta sempre no plural, a reinvenção de si mesmo e de sua obra sempre foi algo
presente em sua trajetória e isso, para Glauber, acarretou uma série de percepções para quem
se dispõe ao analisa-lo. Para além, a impressão que temos que ele sempre se propôs a refletir
16
Importante revista francesa sobre cinema cujo intelectual Andre Bazin foi um de seus fundadores. A revista
defendia a chamada Política de autores, ideia muito afim com as propostas de Glauber Rocha para o cinema
nacional.
17
PIERRE, Sylvie. Glauber Rocha: textos e entrevistas com Glauber Rocha. Tradução Eleonora Bottmann.
Campinas. Papirus. 1996 (Coleção Campo Imagético) p. 19
14
sobre si mesmo, se problematizando. Sobre esse aspecto multidimensional de sua vida, Pierre
faz uma afirmação importantíssima.
[...]Existe o Glauber Rocha criança do sertão no homem adulto que dá entrevistas
brilhantes aos representantes da intelligentsia francesa; existe o Glauber Rocha em
exílio, ruptura, no cineasta brasileiro de 1967, consagrado e de renome
internacional, que se tornou estrela do mundo cultural, mas que quase toda crítica do
seu país ataca; existe o Glauber Rocha cabeça do movimento histórico do Cinema
Novo (ainda não existente) no adolescente de 16 anos que luta, em 1955, pela
liberação de Rio 40 graus de Nelson Pereira dos Santos; existe ainda alguma coisa
do Glauber Rocha neófito underground imaturo em A Idade da Terra de 1980,
enquanto já existe um pragmático produtor com cabeça fria e responsável no jovem
baiano de 21 anos que, em 1960, pega com mãos e fórceps a produção artesanal, mal
começada, de Barravento, para assumir sua direção, levando-o à consagração em um
festival europeu; enfim, existe talvez um Glauber Rocha já tocado pela morte em
Veneza, em 1980, quando do fracasso literalmente estrondoso de A Idade da Terra,
ou no rio, em 1977, na ocasião da trágica morte de sua irmã, ou ainda no chile, em
1971, sob repetidas e suicidas overdoses de cocaína; igualmente, existe um novo
nascimento de Glauber Rocha na primavera de 1981, em Portugal, seis meses antes
de sua morte, e outro nascimento ainda, em 22 de agosto de 1981, data de sua morte
clínica.18
Com isso, podemos imaginar que não existe apenas uma maneira de interpretar
Glauber Rocha, seja essa interpretação referente à suas obras ou em espectro mais amplo de
sua vida, assim como o próprio não enxergava a realidade apenas de uma maneira. Seus
pensamentos e propostas estéticas, artísticas, políticas e culturais interagem entre si formando
uma simbiose dialética de concepções sobre esses temas. Pensar Glauber Rocha é acostumar-
se com a multiplicidade de sentidos que a vida nos proporciona.
Ainda que se expressasse de muitas formas, para Glauber, o cinema era a sua forma
mais importante e contundente de se manifestar. Não quis ser um intelectual tradicional,
acadêmico, suas mensagens seriam transmitidas através da arte, um intelectual que faz do
cinema sua linguagem, e essa era chocante, complexa, violenta, pretensamente revolucionária
e, quase sempre, desesperadora. Ismail Xavier nos apresenta uma interessante visão do
cinema glauberiano:
De Barravento a A Idade da Terra, o cinema de Glauber tem um movimento
expansivo, articulando os temas da religião e da política, da luta de classes e do
anticolonialismo: do sertão do Brasil como um todo, e deste à América Latina e o
Terceiro Mundo. Cada filme reitera seu foco nas questões coletivas, sempre
pensadas em grande escala, através de um teatro de ação e da consciência dos
homens onde as personagens se colocam como condensações da experiência de
grupo, classes, nações.19
18
Ibidem. p. 35-37
19
XAVIER, Ismail. Op. cit. P. 117-118.
15
Para o autor, o recorrente tom metafórico e alegórico nos filmes revela um desejo de
História através de metáforas totalizante que abrangem os aspectos sociais e históricos citados
acima. Há que se relativizar que nem todas as metáforas são totalizantes no mesmo grau.
Como o próprio autor afirma, o cinema glauberiano, ao longo das obras, se expande do sertão
ao terceiro mundo em perspectivas gerais. O cangaceiro Corisco em Deus e o Diabo e suas
atitudes são frutos da reação à exploração social, porém a experiência do cangaço como
resposta a um sistema de exploração é um fenômeno restrito a uma parte do sertão do
nordestino. Nesse sentido, a reação violenta à exploração pode ser percebida como algo
totalizante enquanto desejo de Glauber Rocha, mas, no caso de Deus e o Diabo a alegoria em
si é espacialmente restrita.
Pensando na lógica que Xavier chama de movimento expansivo do cinema de
Glauber, é possível perceber este aspecto em Terra em Transe em comparação ao filme citado
anteriormente através da identificação de um populismo político na figura do personagem
Vieira. No Brasil o populismo na política se desenvolveu nos mais diversos ambientes e
regiões e isso se aproxima do que vemos em Vieira no filme, ora como um promissor líder de
uma região agrária interiorana, ora já ocupando espaços mais urbanos na capital do país.
Assim, ao longo do filme, Vieira vai ganhando cada vez mais poder e projeção política em
toda Eldorado tornando-se, inclusive, um líder das massas. O que percebemos é que Vieira se
torna uma alegoria ampla territorialmente transitando entre ambientes agrários e urbanos.
Robert Stam afirma que o referido personagem consegue condensar figuras de políticos
diferentes, mas que caminharam sob as práticas populistas como Getúlio Vargas, João Goulart
e Miguel Arraes. 20 Essas comparações não têm a intenção de afirmar que um filme é mais
totalizante ou mais histórico que o outro, mas sim que há uma certa expansão alegórica de
abrangência espacial e territorial na cinematografia glauberiana.
O desejo de história que Glauber Rocha propõe consiste em justamente representar
essas perspectivas sociais totalizantes de maneira a que seja possível a partir delas a incitação
de um despertar de inquietação e ação contra as contradições e as explorações existentes na
sociedade. Os seus filmes emitem representações propondo discursos que emanam reflexões e
interpretações históricas, sejam elas sobre a conjuntura brasileira vivida na década de 60 ou
sobre processos mais antigos, como a colonização europeia e a cristianização da América
Latina. Essa afirmação pode ser exemplificada em Deus e o Diabo no que se refere a
20
STAM, Robert. Terra em Transe. Revista Discurso. São Paulo. Vol. 7, p. 169-181. 1976.
16
manifesta-se em Manoel que mata o Coronel e foge para se juntar ao grupo de Sebastião, o
Santo místico. Pela causa dele, que agora também é sua, Manoel está disposto a cometer
sacrifícios e ter atitudes violentas caso necessárias para que as promessas feitas por Sebastião
sejam concretizadas.
O grupo do Santo provoca desconfortos na igreja e na elite local que optam por
contratar o matador de cangaceiro Antônio das Mortes. Antônio consegue exterminar com o
grupo de Sebastião, deixando apenas Manoel e Rosa, sua mulher, vivos. Os dois se lançam
sertão adentro até encontrar o cangaceiro Corisco (que viria a ser morto por Antônio das
Mortes), na busca de vingança pela morte de seu ídolo místico Lampião exercendo violência
contra os opressores. Manoel adere ao cangaço e se vê arrodeado pela violência novamente,
dessa vez permeada pela vingança, mas agora as motivações da violência não são mais as
promessas feitas com um grande teor de misticismo de outrora, mas sim causas que atingem
conflitos sociais concretos de exploração e desigualdade levando em consideração que
Corisco culpa explicitamente o governo pelas mazelas sociais e pela morte de seu ídolo.
Vejamos então que existem várias camadas de alegorias, misticismos, violências e
consciências no cinema de Glauber Rocha da década de 1960. Usando a narrativa fílmica
descrita acima como parâmetro, é plausível perceber que, nesse caso, o misticismo religioso
proveniente de Sebastião é elemento disparador de uma consciência que busca transformações
na sociedade. Manoel ganha consciência de si, de que faz parte e que é vítima de um sistema
exploratório através de discursos místicos proferidos por homens santos, seja Sebastião ou
Corisco. A partir do momento em que é atingido por essa dimensão, adquire consciência, que
agora é racionalizada, ao contrário da violência inicial quando mata o Coronel Morais que é
totalmente impulsiva, e vai à luta contra o que o oprime. Assim, Glauber Rocha compõe uma
intermediação entre a inquietação inicial com uma situação de desigualdade social e a
clarividência racional que faz com que se lute conscientemente por uma transformação
profunda na estrutura da sociedade.
Em Terra em Transe essa dialética transcorre da seguinte maneira; ao saber que foi
traído por um parceiro e que este serve a Díaz, que agora tem todas as ferramentas de aplicar
seu golpe, Paulo entra em desespero e propõe uma opção sangrenta para solucionar o
problema, a saber: o conflito armado. A implantação de um golpe representa a implosão de
todos os objetivos de Paulo, tal como a tirania do Coronel Morais implodira os de Manoel no
início de Deus e o Diabo. Assim como Manuel, Paulo recorre a violência, pois assim ela pode
vingar o povo que, a partir desse novo olhar de Paulo, passa a ganhar contornos místicos, uma
vez que para o poeta, este povo precisa da morte, a morte como fé, não como temor e isto
18
O nascimento da revolução.
O cinema certamente ultrapassa o filme. É com esse pensamento que nos vemos frente
a necessidade de abordar as percepções de Glauber que eram também reflexos de um
movimento artístico cultural efervescente no Brasil. Desse modo, entender a proposta de
cinema que Glauber Rocha propõe é estar atento para vários aspectos que formam e que estão
em debate na sociedade brasileira, sobretudo entre meados da década de 1950 até o início dos
anos 80, período no qual o cineasta foi profissionalmente atuante. Assim, este cinema está
atrelado obviamente ao cenário cinematográfico brasileiro, aos debates e ações culturais com
a perspectiva de transformação social pela arte. Assim, nesta seção, nossa intenção é revelar a
amplitude, através de organizações partidárias e movimentos culturais, que a arte e a cultura
ganham durante a década de 60 no Brasil. O que faz com que utilizemos autores importantes
neste assunto como Marcelo Ridenti e Renato Ortiz ao passo que, em nível de fontes, a obra
Revolução do Cinema Novo escrita por Glauber Rocha nos dará um ótimo arsenal para a
compreensão das perspectivas concepcionais do Cinema Novo.
Os artistas que compuseram este segmento na cultura brasileira estão, ainda que nem
todos envolvidos diretamente com partidos, ligados com a esquerda. O Partido Comunista
Brasileiro (PCB) respondia naquele momento como a maior organização de esquerda no
Brasil e, com uma agitação cultural acontecendo, sentiu impactos dessas movimentações.
Através da leitura de Marcelo Ridenti nos deparamos com o pensamento de que o PCB teve
certa dificuldade em abrir-se para iniciativas culturais enquanto gatilhos de libertação popular.
O autor relata uma conversa com Nelson Pereira dos Santos, cineasta filiado ao partido, em
que se torna possível enxergar uma evidente indisposição do PCB em apoiar a cultura na
perspectiva que abordamos.
20
A história trata-se de quando Nelson estava se preparando para filmar Rio, 40 graus
em 1955 e, de acordo com Ridenti, a direção do partido tentou impedí-lo de produzir o filme
por meio de seu comitê cultural21. A seguir o autor cita um depoimento do cineasta afirmando
que ao revelar que queria realizar um filme um dirigente do partido lhe disse: “você está tendo
uma ilusão pequeno-burguesa, porque cinema, no Brasil, só depois da revolução” 22. Ainda
assim, Nelson desobedeceu as ordens e decidiu fazer o filme, sofreu consequências, fora
rebaixado hierarquicamente nas funções partidárias. Para Nelson: “Então, entre fazer uma
carreira promissora, funcionário do Partido, e fazer cinema, uma aventura enorme, eu estava
evidentemente possuído de uma ilusão pequeno-burguesa”23. Rio, 40 graus foi feito,
representa os contrastes sociais no Rio de Janeiro e passou a ser considerado um filme marco
no cinema brasileiro, precursor do Cinema Novo, seja na linguagem cinematográfica ou nos
temas abordados.
Essa postura do PCB, segundo Ridenti, se caracterizava por uma condição stalinista do
partido predominante na década de 50. Após a desestalinização, ocorre o que ele chama de
“virada cultural do PCB nos anos 60”, que é justamente uma abertura do Partido a iniciativas
culturais transformistas e com a preocupação de abordar temas da cultura popular e identidade
nacional. Uma vez que já não havia mais direcionamentos claros do PCB para as políticas
culturais, elas passaram a ser gerenciadas por artistas e intelectuais do Partido.24 A partir do
momento que a maior organização de esquerda daquele período se abre para a cultura
revolucionária, a situação melhora para os artistas com essas intenções ainda que muitos
deles não façam parte formalmente do Partido.
É nesse contexto que em 1962 também surgem os CPCs (Centros Populares de
Cultura) cujo um dos criadores foi o cinemanovista Leon Hirsziman. O CPC tinha como a
pauta a produção de uma arte popular e revolucionária. Renato Ortiz dá ênfase a dois pontos
de atuação do grupo:
1) A efervescência política, que em última instância permitiu o
desenvolvimento do CPC como ação revolucionário-reformista definida
dentro de quadro artísticos e culturais.
2) A ideologia nacionalista que transpassa a sociedade brasileira como um
todo e consolidava um bloco nacional que congregava diferentes grupos e
classes sociais. A proposta de organização chamada “cultura popular” se
insere, portanto, dentro de limites precisos de um determinado processo
histórico. 25
21
RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro. São Paulo. Record. 2000. p. 68
22
Ibdem, p. 69
23
Idem.
24
Ibdem. p. 72
25
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. São Paulo. Ed. Brasiliense. 1994
21
26
Ibidem, p. 75
27
ROCHA, Glauber. Revolucao do cinema novo. São Paulo, SP: Cosac Naify, 2004. P 43
28
Ibidem.
22
cinema e o cinema brasileiro 29. Nesse momento, segundo o que ele relata, tudo ainda estava
muito nebuloso na cabeça dos cineastas no que tangia a uma organização cinematográfica
encorpada, o que estava certo era o incômodo com o que estava acontecendo com o cinema
brasileiro. Alguns anos se passaram, os jovens ganharam um pouco mais de experiência e aos
poucos o que era inquietação passou a ser um projeto de cinema viável para aplicação. Entre
1958 e 1961 vários filmes foram feitos tendo uma abordagem cinemanovista embora ainda
não existisse um movimento organizado de fato chamado Cinema Novo. Entretanto, toda essa
movimentação deu força para o que viria nos próximos anos. Em 1962, ao passo que a
agitação cultural ganhava fôlego no país, pouco antes do Cinema Novo realmente ganha
corpo com Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do Sol
e Os Fuziz (1964) de Ruy Guerra, Glauber escreve:
Nossa geração tem consciência: sabe que deseja. Queremos fazer filmes anti-
industriais: queremos fazer filmes de autor, quando um cineasta passa a ser um
artista comprometido com os grandes problemas de seu tempo; queremos filmes de
combate na hora do combate e filmes para construir no Brasil um patrimônio
cultural.30
A câmera na mão tornaria tudo isso possível, como falamos, não se precisava mais de
uma grande produção para fazer um filme, o trabalho em conjunto dos cineastas também
auxilia na produção. Para Pierre 31 esse trabalho conjunto foi muito importante para que o
movimento se sustentasse. O montador de Barravento (1961) é Nelson Pereira dos Santos,
Paulo Gil Soares é o figurinista de Deus e o Diabo, a autora afirma que Glauber escreve muito
sobre os filmes dos colegas, os roteiros sempre são lidos a vários olhos. Em suma, todo
mundo fazia um pouco de tudo e, assim, podemos pensar que os conflitos e discussões entre
os envolvidos eram inerentes à atividade artística. Em contrapartida, o companheirismo e o
trabalho conjunto certamente melhoraria o produto final, na tela.
Os jovens cineastas ávidos para se expressarem e denunciar as injustiças sociais
estavam prontos para o faze-lo, uma arte engajada e transformadora era o objetivo inicial dos
cinemanovistas. Maria do Socorro Carvalho afirma que foi nesse clima de otimismo que
nascia o Cinema Novo e acrescenta que alguns cineastas do movimento tinham trajetórias
semelhantes ao serem críticos e colunistas de jornais, atividades essas que propuseram debates
29
Idem, p. 50.
30
Ibidem, p. 52.
31
PIERRE, Sylvie. op. cit. p.55
24
sobre a realidade social e cinematográfica brasileira. Ainda que não tivessem estrutura
industrial, queriam fazer filmes estimulantes, afirma a autora.32
A reunião de vários aspectos aqui explorados concretizam o surgimento do Cinema
Novo no Brasil. A revolução nasce na medida que as premissas artísticas de concepção do
movimento são revolucionárias, seja esta uma revolução estética quebrando paradigmas da
produção cinematográfica feita aqui até então ou uma revolução ao que tange como os
conteúdos presentes no filmes são apropriados de modo a trazerem a dimensão da consciência
revolucionária como elemento cabal da experiência fílmica. De todo modo, fragmentar em
revoluções é didatismo, o início da década de 60 marca o nascimento de um novo
direcionamento cinematográfico brasileiro indissociável das redes históricas vividas no Brasil
daqueles anos.
32
CARVALHO, Maria do Socorro. Brasil em Tempo de Cinema Novo. In. MASCARELLO, Fernando.
História do Cinema Mundial. São Paulo. Editora Papirus. 2006. p. 289-290.
25
33
WEFFORT, Francisco. O Populismo na Política Brasileira. 5ª edição. Paz e Terra. 2003. p71
34
BANDEIRA, Moniz. O Caminho da Revolução Brasileira. Rio de Janeiro. Melso. 1962.
35
Ibidem, p. 95
36
Ibidem, p. 97.
37
WEFFORT, Francisco. op. cit.
26
político é, sem dúvidas, atrativo tanto para burguesia quanto para o conjunto político
comandante da política no Brasil daquele momento.
Temos aqui, então, um sistema histórico que modifica toda a sociedade brasileira, os
aspectos políticos e econômicos propõem novas condições para a vida cultural
(principalmente em grandes capitais), essa vida cultural e artística, por sua vez, também
reorganiza os setores políticos e a economia, essa interação dialética, no limite, é o que forma,
através de diversas perspectivas, a sociedade. O cinema brasileiro evidentemente não escapa
dessa lógica e também interfere nela fazendo parte da história.
Na década anterior ao surgimento do Cinema Novo a palavra modernização era
sinônimo do progresso social brasileiro. Seja com Vargas e sua política mais atenta ao
nacionalismo ou JK com uma perspectiva alinhada ao capital internacional, a sociedade
brasileira transformava-se na medida em que o país se urbanizava com a industrialização. Em
sua dissertação de mestrado sobre diferentes recepções de Terra em Transe, Laikui Lins fala
mais sobre este aspecto:
O contexto sócio – político e cultural que dá passagem ao desenvolvimento do
Cinema Novo é o cenário dos anos de 1950. Nesse momento, o Brasil parece
vivenciar uma frenética corrida em busca da superação do estado de
subdesenvolvimento em que se encontra o país em pleno século XX, herança
deixada pelo colonialismo europeu. Desenvolvimento, progresso e modernização
tornam-se, então, as palavras de ordem nos mais diversos contextos da sociedade
brasileira.38
38
LINS, Laikui Cardoso. A Recepção de Terra em Transe: ontem e hoje. Dissertação (Mestrado em
Literatura). Programa de Pós Graduação em Literatura e Diversidade Cultural. Universidade Estadual de Feira de
Santana. 2009. p. 53
27
subdesenvolvimento de modo que, pelo menos no comando político do país, a solução pra
esse problema seria a industrialização e a abertura ao capital multinacional39.
As mudanças ocorridas no Brasil durante esse período acarretam uma série de outras
mudanças que permeiam o comportamento e cotidiano da sociedade. Com mais indústrias, as
zonas urbanas se desenvolvem gerando mais produção, maior poder de consumo. A indústria
precisa de mão-de-obra e assim o proletariado cresce em número ao passo que a burguesia
ganha proeminência nos circuitos sociais por deter os meios de produção. Com a sociedade
processualmente se modificando, a vida passa a ser diferente, um Brasil mais moderno
também exige uma cultura moderna, no aspecto cinematográfico a demanda seria pela
implantação de uma indústria cinematográfica no Brasil, nesse sentido, segue a mesma lógica
do discurso de modernização da economia e da política, ou seja, o modelo norte-americano é
a referência norteadora para o cinema brasileiro se consolidar enquanto moderno.
O cinema de Glauber Rocha e o Cinema Novo são cinemas que empreendem conflitos,
que combatem alguma coisa e que visam, pelo menos inicialmente, transformar a sociedade.
Um desses conflitos era com o cinema industrial brasileiro daquele momento basicamente
feito por dois estúdios; a Atlântida no Rio de Janeiro com comédias de sucesso com o
público, orçamentos modestos e sem a perspectiva de um cinema politicamente engajado e a
Vera Cruz em São Paulo, um grande estúdio que foi responsável pelas primeiras produções de
orçamentos altos, as temáticas fílmicas eram mais diversificadas. Os dois estúdios produziam
os filmes de acordo a narrativa hollywoodiana, a Vera Cruz, por ter mais recursos financeiros,
até mais que a Atlântida. De acordo com Lima40, a referida empresa representou a eficácia do
projeto de desenvolvimento industrial brasileiro que tinha como objetivo criar um cinema de
grande porte no país. Sem dúvida a Vera Cruz trouxe avanço ao cinema nacional,
principalmente em aspectos técnicos. Segundo a autora, os equipamentos usados nos filmes
eram importados e de primeira qualidade, a mão de obra especializada vinda da Europa para
operar tudo isso, apesar da ótima estrutura de produção, os filmes pecavam no que dizia
respeito ao Brasil:
Houve, pela primeira vez, no país, filmes nacionais com grandes saltos técnicos e de
ótima qualidade, mas isso não evitou críticas referentes às temáticas de suas
produções, que nada diziam sobre o Brasil. Referente ao quesito qualidade, a
companhia conquistou um espaço importante, entretanto, estava distante das
temáticas sociais.41
39
SANTOS, Caroline Lima. O Cangaceiro, o Cineasta e o Imaginário: a produção de representações do
cangaço no cinema brasileiro (1950-1964). Dissertação (Mestrado). Santo Antônio de Jesus. Universidade do
Estado da Bahia. Programa de Pós Graduação em História Regional e Local. 2010. p48.
40
Ibidem p59
41
Ibidem, p. 60-61
28
42
ROCHA, Glauber. op. cit. p.68
29
inferiorizada por uma expressão artística tão forte como o cinema. Na cidade amazonense, os
brasileiros continuam vivendo e praticando sua cultura cotidianamente, continuam
atravessando o rio a remo e convivendo com a diversidade ecológica, mas isso no cinema, que
é símbolo de modernidade e desenvolvimento, não é representado. O representado é o outro, o
mitificado herói americano. Isto faz com que uma cultura do outro lado do continente
idealizada imageticamente através do cinema sobreponha a cultura do local que é vivida pelas
pessoas que lá habitam. A vontade de cinema de Glauber era acusar e aniquilar essa
sobreposição cultural que acontecia no país todo, Itacoatiara é só um exemplo.
Ainda em Itacoatiara, Glauber nos conta que conheceu um rapaz louro que tinha 18
anos e foi estudar Geologia em Belém. O rapaz conhecia muito bem o Cinema Novo e suas
abordagens cinematográficas, mas não havia assistido nenhum filme pois tudo que sabia era
proveniente de leituras de jornais do sul que chegavam atrasados lá. O jovem protesta porque
lá só chegam filmes estrangeiros e raramente nacionais.43
As reflexões sobre as dimensões de conflito inerentes a Glauber Rocha e ao Cinema
Novo nos remetem à leitura de Michel de Certeau e suas percepções sobre espaços para
entender o pensamento que Glauber Rocha tem para o cinema nacional. Certeau realiza um
estudo onde se propõe a estudar práticas humanas que constroem, consolidam ou modificam
uma realidade estabelecida pelo cotidiano. Para fazer isso, ele nos apresenta o conceito de
lugar e espaço. O lugar, para o autor, são coordenadas, um ambiente estável onde as coisas
tendem a se manterem estáveis, em nível de exemplo, uma sala de jantar apenas com móveis
configurados numa razão discursiva coerente se caracteriza como lugar.
O espaço se apresenta quando as práticas humanas interferem no lugar. Ele é formado
quando essas práticas interagem com a configuração estável do lugar, daí a afirmação do autor
de que o espaço é o lugar praticado. Certeau utiliza uma analogia interessante para fixar
melhor essas noções quando diz que “o espaço está para o lugar assim como a palavra quando
é falada.”44 A palavra, quando escrita ou falada, pode produzir diversas significações a
depender do contexto, circunstâncias, motivações ou temporalidades em que é usada.
Tomando como parâmetro o exemplo do parágrafo anterior, o espaço são as diversas
possibilidades de pessoas interagirem numa sala de jantar que, sem pessoas ali, é apenas um
lugar.
43
Ibidem p69
44
CERTEAU. Michel de. A Invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves.
Rio de Janeiro. Vozes, 2013. p. 184
30
A organização cinemanovista.
seja no tema e da forma como ele é abordado na obra ou em suas características formais. A
obra narra um dia na vida de alguns meninos negros que vendem comida em pontos turísticos
famosos do Rio de Janeiro mostrando os contrastes sociais da então capital nacional dando
uma perspectiva diferente sobre a sociedade para o espectador.
A boa dose de crítica social presente na obra causou, de acordo com Sidney Leite 45,
desconfortos no comando político brasileiro ao ponto do Serviço de Censura tentar impedir
sua exibição. O Autor pondera que a vontade que a censura tinha de vetar a obra era tão
grande que chegaram a utilizar justificativas risíveis para tal alegando a inverosimilhança do
filme uma vez que no Rio de Janeiro, mesmo no verão, não atingiria os 40 graus de
temperatura ou de que o filme foi feito por comunistas com a finalidade de depreciar a capital
federal46. As tentativas de proibição do filme foram em vão e Rio, 40 graus certamente pode
ser considerado como um dos filmes nacionais mais importantes da década de 1950.
O modo de realização do filme também seria reproduzido anos mais tarde pelos
cinemanovistas. A estética neorrealista surgida na Itália no pós-guerra serviu de forte
influência para Nelson Pereira dos Santos, portanto, no filme em questão, temos cenas feitas
ao ar livre, com atores não profissionais filmados com a câmera na mão que denunciavam
algum tipo de injustiça ou contradição social e com o custo de produção bem abaixo dos
filmes de estúdios que seguiam uma dada lógica industrial. Por isso, o referido filme se
encaixa na Política de Autores, ideia defendida pelos cineastas franceses que integravam a
Nouvelle Vague e a Cahiers du Cinema. O cinema de autor é o tipo de filme que, apesar de
obviamente ter uma equipe de produção, concentra toda sua força criativa no diretor. Glauber
Rocha, em entrevista a Michel Ciment da revista francesa Positif em 1967, comenta sobre a
importância do filme para o Cinema Novo:
[...] ele [Nelson Pereira dos Santos] é a consciência do nosso grupo. Foi ele quem
fez o primeiro filme independente do ponto de vista da produção. Rio, 40 graus, e aí
encontramos as primeiras posições políticas frente a situação colonial do Brasil. Ele
tornou-se um líder, uma espécie de inspirador e, ainda hoje, mediador entre os
contrários. Sempre que surge uma crise no meio do cinema novo ele exerce um
papel humano muito eficaz.47
Em 1955 Nelson Pereira dos Santos talvez inconscientemente mostra a uma geração –
que ele também fará parte – que é possível fazer um cinema diferente no Brasil, sem temer os
produtores industriais, fazendo uma crítica encorpada à ordem capitalista fortalecida com o
45
LEITE, Sidney Ferreira. Cinema Brasileiro: das origens a retomada. São Paulo. Fundação Perseu Abramo.
2005.
46
Idem.
47
ROCHA, Glauber. Positif (entrevista a Michel Ciment) In. Revolução do Cinema Novo. p 111
32
recente processo de industrialização. Rio, 40 graus faz isso, causa polêmicas e usando
percepções cinematográficas e referências estéticas que nada tem a ver com o modelo
hollywoodiano de cinema. Não seria exagero afirmar que o filme é, em germe, o Cinema
Novo.
Os intelectuais costumam dividir o movimento em algumas fases e, como já podemos
esperar, não existe um consenso nesse aspecto, sobretudo ao que tange até quando o Cinema
Novo teria durado. Sidney Leite48 divide o movimento em três fases; A primeira entre 1962 e
1964 onde os ambientes das películas foram predominantemente rurais e as produções
evidenciavam a atmosfera da população rural e seu sofrimento com a opressão política e
social exercida pelo Estado. São exemplos dessa fase os filmes Vidas Secas e Deus e o Diabo
na Terra do Sol.
A segunda fase ocorre entre 1965 e 1966 e é marcada pela mudança da ambientação
dos filmes, que agora seria no geral urbana. O motivo desta mudança foi a também mudança
que o Brasil vinha sofrendo em todos seus setores, o regime militar. Dessa forma, a
predominância rural tornou-se urbana, A Grande Cidade de Carlos Diegues foi um importante
filme deste momento.
Sobre a Última fase do Cinema Novo, Sidney Leite afirma:
A terceira e derradeira fase do movimento aconteceu entre 1967 e 1969, e teve como
característica principal a profunda autocrítica, não apenas na atuação dos intelectuais
e da esquerda na história recente do país, mas do próprio Cinema Novo. Os
diretores, nesse período, enfatizaram suas próprias contradições e denunciaram o
fracasso das utopias transformadoras presentes na primeira fase do Cinema Novo. 49
48
LEITE, Sidney, op. cit. p. 98-101
49
Ibidem, p. 101
50
PIERRE, Sylvie. op cit. p. 78
33
movimento proclamaram sua morte. Trata-se, portanto, de uma pergunta, por assim
dizer, clássica, já dei várias respostas, e vou dar mais uma.
O movimento do “Cinema Novo” desenvolveu-se durante um período difícil da vida
política brasileira, pois foi justamente de 1964 a 1974 que vivemos um período de
ditadura feroz no Brasil, durante o qual todas as atividades sociais e culturais foram
reprimidas. A partir de 1974 e até agora, houve um processo de democratização,
lento e gradual, que permitiu, numa segunda fase, - durante o governo Figueiredo - a
supressão da censura e o restabelecimento (espero que haja continuidade, mas
também pode ser de curta duração) das liberdades no país.51
51
Ibidem, p.198
52
Ibidem, p. 199
53
NAZARIO, Luiz. O Cinema Errante. São Paulo. Perspectiva. 2013. p. 196
34
54
Revolução do Cinema Novo. op. cit. p. 63
55
Idem.
56
ibidem p.65
35
cinema que mostra o miserabilismo do terceiro mundo, que pretende viabilizar uma
consciência histórica em seu público. Um cinema que não está preocupado com a beleza de
sua cenografia, fotografia ou figurinos. O autor afirma que esse tipo de cinema provoca
vergonha nos brasileiros acostumados com outra gramática e, para os estrangeiros, se torna
uma espécie de surrealismo tropical.
A fome, pensando nessa perspectiva, torna-se um termo polissêmico, pois além de ser
um termo que condensa os problemas sociais brasileiros, ele também serve de metáfora para
as condições técnicas de produção das obras, nem a imagem nem o áudio são de primeira
qualidade, a estrutura técnica também é esfomeada e para o Cinema Novo, numa perspicácia
considerável, os problemas técnicos também servem de metáforas para discursos políticos.
A estética da fome não se interessa muito por procedimentos formais, seu interesse é
concentrado na ação e representação política e social. Deus e o Diabo na Terra do sol, Vidas
Secas e Cinco Vezes Favela (1962) são filmes que seguem estruturas diferentes entre si e
ainda são integrantes da estética em questão. Assim, a estética da fome sistematizada por
Glauber se encaixa numa estético-política. A fome, como aponta Socorro, é uma capacidade
dos cinemanovistas de pensar o Brasil57. De acordo com Glauber Rocha, um cinema novo
estará em germe em qualquer filme que ouse a desafiar uma ordem opressora numa dada
sociedade. Essa ideia, inclusive, dá ao jeito de fazer o Cinema Novo uma dimensão
internacional e totalizante, como se outros movimentos cinematográficos vanguardistas em
outros países a exemplo do Neorrealismo italiano ou o Construtivismo russo fosse, em seus
países de origem, Cinemas Novo.
Em 1967, num texto chamado A Revolução é uma Eztetyka58, Rocha sistematiza ainda
mais estética da fome. Claramente inspirado em Brecht, ele aponta duas formas de atuação de
um cinema revolucionário no que chama de épica e didática. A épica é a que mais se
aproxima da arte, “a épica será uma prática poética!”59, algo que incite um desejo de
transformação histórica, a épica é o que emociona através das sensações. Por outro lado, a
didática é racional, científica, tem a função de informar e conscientizar as massas. Assim, o
que teremos é uma interação entre épica e didática desaguando num produto que pretende
uma revolução através do cinema.
A estética da fome e as perspectivas de épica e didática são fundamentos que
estruturam o discurso cinematográfico de Glauber Rocha. Esses elementos revelam o quanto
57
CARVALHO, Maria do Socorro. loc, cit.
58
ROCHA, Glauber. Op cit.
59
Idem.
36
de conflito ele incita ao propor e realizar esse tipo de arte. Durante os primeiros anos da
década de 60 Glauber está ao mesmo tempo frustrado com a atitude política do cinema
brasileiro vigente e após 1964 vem também a frustração de um golpe que implanta uma
ditadura conservadora no país. De outro ponto de vista, vê-se empolgado com a possibilidade
de realizar o cinema potencialmente revolucionário e ganhando projeção internacional. Entre
isso tudo, a inquietação de Glauber é também presente, seja antes ou depois do início do
Cinema Novo.
Os filmes de Glauber Rocha e o Cinema Novo como um todo foram bem elaborados
em aspectos estruturais narrativos, com propostas concretas e de uma grande coesão estética
dotada de originalidade e coragem. Porém, para que os objetivos cinemanovistas fossem
alcançados, seria preciso de uma grande adesão popular à suas perspectivas da realidade.
Nesse caso, nos tencionamos a questionar como essa relação aconteceu ou se de fato ela
aconteceu, como podemos analisar nuances receptivos para o Cinema Novo?
Essas são questões complexas e que exigem respostas detalhadas. Lins tem a
preocupação de trabalhar essas perspectivas e nos aponta alguns aspectos receptivos do
Cinema Novo. De antemão, informo ao leitor que o diálogo entre o grande público e as obras
cinemanovistas foi escassa. Os cineastas conseguiram agitar a cena cultural brasileira e
estrangeira, conseguiram burburinho com a crítica, conseguiram prêmios importantes e
representatividade considerável ao redor do mundo, mas nunca conseguiram ser sucesso de
bilheteria no Brasil. Se um povo consciente era pressuposto de revolução, a mesma estaria em
sérios apuros dada a não adesão popular de espectadores para as obras cinemanovistas.
Algumas justificativas explicam esse cenário complicado para os cineastas engajados.
Lins, apoiada em outros intelectuais, alega que o problema dos recursos técnicos não agradava
o público.60 Uma produção muitas vezes improvisada, com aspectos estruturais
problemáticos, como o som, por exemplo, afastava um público que, por sua vez, estava mais
acostumado a outro tipo de produção e gramática. O estranhamento ao ver os filmes
herméticos, metafóricos e alegóricos do Cinema Novo certamente repeliam espectadores
leigos em cinema, que estavam lá apenas por diversão.
Outro ponto que não facilitava a comunicação era a lógica de distribuição dos filmes.
Os exibidores estavam mais interessadas em manter em cartaz obras norte-americanas ou as
nacionais que o público já estava mais acostumado a assistir. Exibir um filme cinemanovista
era sempre um risco aos bolsos dos exibidores. Lembremos que naquele período ainda não
60
LINS, Laikui. op cit p. 75
37
existia o home vídeo e a única forma de ver um filme era indo ao cinema. Em um texto já
citado anteriormente de nome Hollywood Tropykal61, Glauber Rocha relata uma viagem a
uma cidade amazonense onde simplesmente os filmes do Cinema Novo não chegam.
Inusitadamente lá ele encontra um jovem que conhece muito o Cinema Novo, mas apenas
porque lia jornais ou outros escritos de maior circulação nacional, o jovem nunca tinha visto
nenhum filme pertencente ao movimento. Para Glauber a população de Itacoatiara estava
restrita ao cinema imperialista.
Nesse ponto é válido o questionamento sobre até qual ponto a postura de
enfrentamento forte do Cinema Novo com os outros cinemas brasileiros foi benéfica para a
disseminação do próprio movimento. Um espectador de filmes da Vera Cruz ou da Atlântida
que ouvisse as declarações de Glauber Rocha sobre os filmes que assistia poderia sentir-se
ofendido e subestimado e, dessa forma, nem se sentiria a vontade pra assistir um filme
cinemanovista ou, se fosse, poderia ir contrariado, com uma expectativa ruim para a obra que
estava prestes a ver. O Cinema Novo suprime representações artísticas e cinematográficas
nacionais que se contrapunham aos seus objetivos revolucionários. O que, de acordo com
Glauber Rocha e outros cinemanovistas, não eram afins com os seus projetos, era
automaticamente descredenciado e tratado apenas como cultura colonizada. Isso certamente
foram pontos polêmicos que distanciaram uma popularização maior do Cinema Novo.
Alguns autores afirmam que o Cinema Novo assumiu uma autocrítica em um
momento de maior maturidade dos cineastas. Lins utiliza um texto de 1966 do cineasta
cinemanovista Gustavo Dahl onde o mesmo afirma sobre a frustração dos cineastas ao
perceberem que a tão sonhada revolução não estava acontecendo, nem mesmo os filmes
alcançavam o público.62 Ele afirma que inicialmente achava-se que era apenas exibir aquela
realidade contraditória, desigual, injusta e propositora de mudanças representada nas obras
para o público e a coisa estaria no caminho certo. Entretanto, Dahl reconhece que isso era
insuficiente e que o povo não se reconhecia nessa miséria, não queria se enxergar daquela
maneira que era representado. Dessa forma, a consciência de que algo deveria ser feito para
modificar a situação do Cinema Novo se tornou flagrante para os cineastas, sobretudo após
1967.
A partir desse cenário o Cinema Novo se repensa, se modifica e começa a se
fragmentar e novos planos de diálogos com o público são montados. Essas mudanças podem
ser vistas nos próprios filmes, em Terra em Transe, vários elementos do miserabilismo foram
61
ROCHA, Glauber. op cit. p.69
62
DAHL, Gustavo. O Cinema Novo e o Seu Público. apud LINS. op. cit. p78
38
63
RIDENTI, Marcelo. O Fantasma da Revolução Brasileira. 2ª Edição revista e ampliada. São Paulo. Editora
UNESP. 2010. p.76
39
guerrilheiros de esquerda foi o que pôs fim na esperança de alguma forte mudança na
sociedade brasileira.64
Esse contexto que começa a surgir a partir da segunda metade dos anos 60 foi um
grande propulsor da Tropicália. Se durante os cinco ou seis primeiros anos da década a
identidade, no âmbito da cultura, do nacional e popular estava intrinsecamente atrelada ao
campo e as relações de exploração que o cercava. Em 1967 já começa a haver uma mudança
deste cenário pra algo que representasse um conflito mais urbano ou um contraste entre
campo e cidade no que toca as discussões de modernidade. É neste sentido que cabe a
afirmação que Terra em Transe está inserido na atmosfera do tropicalismo brasileiro uma vez
que no filme tais questões estão inseridas explicitamente. Aqui vemos que a influência
cultural entre os artistas acontecia de maneira dinâmica, se Glauber Rocha fora influenciado
por uma trama cultural histórica que direcionava um discurso para o nacional-popular, ele, ao
lado de outros como Gilberto Gil, também influencia um novo caminho que as ações e
representações culturais podem adentrar, nesse caso o tropicalismo. O próprio Caetano Veloso
reconhece em seu livro Verdade Tropical que Terra em Transe exerceu uma forte influência
sobre sua percepção artística e sociocultural de mundo.
Ainda no que toca a recepção cinemanovista e o diálogo dos cineastas com alguns
críticos ajudou na difusão do movimento. Como vimos nas páginas anteriores, o jovem de
Itacoatiara conhece o Cinema Novo porque lê jornais tendo assim um mínimo contato com a
eztetyka. A pesquisa que realizei tendo como um dos objetivos analisar a recepção dos críticos
de cinema do Jornal do Brasil com relação ao Cinema Novo conclui que, principalmente
analisando textos dos críticos que compunham o time do jornal, entre eles figuras importantes
na crítica cinematográfica brasileira como Ely Azeredo e José Carlos Avellar, foi que, em
última análise, os críticos reconheciam as inovações estéticas do Cinema Novo, achavam
sadia a ideia de reinvenção do cinema brasileiro. Porém, como é comum a qualquer trabalho
de crítica, nem sempre concordavam com as formas com que se implantava as mudanças. 65
De todo modo, através de críticas positivas ou negativas, no Jornal do Brasil, que era um dos
principais Jornais que circulava no país naquele momento, haviam textos relativos a muitas
obras cinemanovistas o que consistia, dada a amplitude de circulação nacional do jornal, um
ótimo canal de difusão do Cinema Novo.
64
Ibidem, p. 78.
65
BORGES, Ítalo Nelli. A História Através das Telas: um estudo sobre as aparições do Cinema Novo no
Jornal do Brasil e das críticas à política brasileira em Terra em Transe. Feira de Santana. Monografia de
Trabalho de Conclusão de Curso (Lic. Em História). Universidade Estadual de Feira de Santana. 2013.
40
A geração revolucionária
66
ROCHA. Op cit. p.51
41
referente a esse aspecto quando os cineastas se ajudavam nas produções, um montava o filme
do outro, ajudavam no figurino, em conseguir financiamentos, elenco, etc. Apesar de Glauber
Rocha ser o cineasta cinemanovista mais proeminente, a coletividade foi o que deu
essencialidade ao projeto. Sem uma geração em sintonia intelectual, certamente o Cinema
Novo não alcançaria o patamar que tem hoje na história do cinema brasileiro.
Desse modo, nesta seção, procuraremos entender as interações entre cineastas e
pessoas envolvidas com o Cinema Novo, principalmente os que fizeram parte de sua criação.
As percepções de Sirinelli sobre questões geracionais como instrumento de análise histórica
serão importantes na medida que as articularemos com vários textos e uma entrevista de
Glauber Rocha direcionada a falar de seus companheiros cinemanovistas. Uma vez que as
formas que os envolvidos no Cinema Novo se relacionavam seja a melhor maneira de
sistematizar o movimento, é inevitável que tenhamos estas intersecções entre Glauber e eles a
medida que, ao passo que o movimento vai se modificando em questões políticas e estéticas,
modificam-se também as relações entre os sujeitos integrantes dele.
Nesse sentido, as ideias que Jean François Sirinelli têm para o conceito de geração nos
são conveniente. O autor entende que a geração é uma engrenagem do tempo, que proposita
sentidos históricos na sociedade que se insere. 67 Precisamos atentar também que as gerações
são múltiplas ao longo do tempo e também coexistem simultaneamente. Assim como houve a
geração cinemanovista, houve também outros artistas na música, literatura e teatro engajados
numa cultura através de uma arte crítica e transformista. O cinema brasileiro possuiu diversas
gerações, nossa preocupação é a abordagem da geração cinemanovista e como ela está
relacionada com noções de identidade produzindo pensamentos e práticas que ecoam na
sociedade ganhando, inclusive, projeção histórica.
Mesmo sem sistematizar na ideia de geração, Ismail Xavier entende Glauber também
nessa perspectiva:
Sabemos que Glauber Rocha, como outros artistas naquela década (1960) trazia
consigo o imperativo da participação no processo político – social, assumindo
inteiramente o caráter ideológico do seu trabalho em sentido forte, do pensamento
interessado e vinculado à luta de classes. Afirmava então o desejo de conscientizar o
povo, a intenção de revelar os mecanismos de exploração do trabalho inerentes a
estrutura do país e a vontade de contribuir para a construção de uma cultura nacional
– popular; linhas de força que se manifestavam no cinema, na música e no teatro.
Era a forma específica encontrada por artistas brasileiros para expressar seu
compromisso histórico e seu alinhamento com as forças empenhadas na
transformação da sociedade.68
67
SIRINELLI, Jean François. A Geração In. FERREIRA, M, M e Amado , J (orgs.). Usos e Abusos da
História Oral. Rio de Janeiro. FGV. 2000 p. 134.
68
XAVIER, Ismail. Sertão-Mar: Glauber Rocha e a Estética da Fome. São Paulo. Cosac Naify, 2007. p. 15
42
69
PIERRA, Sylvie. op, cit p. 80
70
ROCHA, Glauber. op. cit. p. 319
43
Em 1977, após a morte de Paulo Emílio, Glauber escreve um texto onde o homenageia
elegendo como um dos homens mais cultos do Brasil e responsável por uma ideologia
revolucionária71. Para Glauber, Paulo Emílio revela o principal inimigo do Cinema Novo, que
é exatamente a cultura imperialista norte-americana que consumia o mercado brasileiro. O
intelectual falecido era a representação contra esse modelo que Glauber alegoriza na figura de
Jack Valenti, presidente da Associação Cinematográfica dos Estados Unidos. A última Frase
do texto é “Jack Valenti não passeará sobre o cadáver de Paulo Emílio”72. Desse modo,
podemos entender a influência de Paulo Emílio não só na percepção revolucionária do cinema
glauberiano, mas também em suas dimensões de conflitos espaciais e de combate ao
imperialismo. Assim, Paulo Emílio Salles Gomes certamente foi essencial para o projeto que
Glauber Rocha e o Cinema Novo tinham para o cinema brasileiro.
Dentre vários nomes conhecidos ligados ao cinema brasileiro, Glauber aborda um que
é, em certa medida, marginalizado dos estudos mais conhecidos sobre Cinema Novo, seu
nome é Olney São Paulo e, assim como Glauber, é baiano. Olney nasceu em Riachão do
Jacuípe em 1936 e seu diálogo com o Cinema Novo começa com Nelson Pereira dos Santos
nas filmagens de Mandacaru Vermelho em 1961. Olney produziu quatro longas e seis curta
metragens. O que gerou mais repercussão foi Manhã Cinzenta (1969), filme que articula
numa montagem sem linearidade e fragmentada manifestações e repressão policial imprimida
pelo Estado ditatorial de maneira estonteante.
No texto, Glauber afirma que Manhã Cinzenta é um filmexplosão sofisticado,
revolucionário que provocou tortura e prisão73. Em 1969 quando o filme foi lançado, o AI-5 já
era vigente, o que significava menor tolerância da censura, a obra foi censurada, porém o que
gerou a prisão de Olney foi um sequestro de um avião cubano pelo MR-874 onde uma cópia
do filme foi exibida. Dessa forma Olney fora acusado de contribuir com o sequestro sendo
preso e liberado alguns dias depois fisicamente debilitado a ponto de ter pneumonia.
Glauber, diferentemente de como faz com outros colegas, não conta como conheceu
Olney nem fala sobre sua relação com ele. Talvez não fossem próximos o suficiente para esse
tipo de contato, no entanto, pela forma como fala de seus filmes, sobretudo Manhã Cinzenta,
considera o cineasta elemento importante na experiência cinemanovista brasileira.
71
Ibidem p. 359
72
Idem p. 362
73
Ibidem. p. 394
74
O Movimento Revolucionário 8 de Outubro foi uma organização de esquerda atuante na luta armada contra a
ditadura civil-militar brasileira. Ver ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas Revolucionárias e Luta Armada. In
FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. (orgs.) O Brasil Republicano. Livro 4. o tempo da
ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século xx. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2003.
44
Gustavo Dahl foi um cineasta mais próximo e o que nos chama atenção é que mesmo
antes de conhecê-lo pessoalmente, Glauber já sabia quem ele era através da leitura dos seus
“artigos sofisticados no Suplemente Literário de O Estado de São Paulo”75. Isso acontece
antes da década de 60 e reforça a ideia de que a atividade intelectual de muitos
cinemanovistas ultrapassava a própria atividade fílmica. Antes de serem cineastas, eram
críticos, cinéfilos que conheciam bastante, apesar da pouca idade, a linguagem
cinematográfica e os principais movimentos ao redor do mundo. Também tinham uma
posição sociopolítica alinhada à esquerda e não navegavam em mares acadêmicos. Cineastas
que refletiam e produziam materiais para além dos filmes.
No texto, Glauber demonstra respeito profissional e intelectual por Gustavo inclusive
dizendo que ele foi responsável pela estruturação da Embrafilme quando foi presidente da
instituição entre 1974 e 1978. Reconhece também suas contribuições para o Cinema Novo em
questões de linguagem e influência cinematográfica. Dahl “exigiu que o cinema novo fosse a
síntese de Hollywood, da MOSFILM, do Expressionismo, do neorrealismo, e da nouvelle
vague”76. Essa afirmação é reunião das influências cinemanovistas. É sabido que as
experiências de cinema na França e Itália pós segunda guerra são decisivas para a realização
do Cinema Novo, no entanto, a estética da fome não normatiza a estrutura da linguagem
cinemanovista, ela permite múltiplas influências contanto que o filme denuncie o que os
cineastas entendiam como contradições, desigualdade, dependência cultural e o colonialismo
inserido na sociedade brasileira seja pelo próprio cinema ou por sistemas socioculturais mais
amplos.
A seguir, temos um texto sobre David Neves e Glauber também classifica como
importantes os textos que David escreveu sobre cultura e Cinema Novo. Para Glauber, David
surpreendeu intelectuais no I Congresso do Terceiro mundo com sua tese Poética e Cinema
Novo77, que ao lado de outros textos de Paulo Emílio, Carlos Diegues, Gustavo Dahl e o seu
próprio Estética da Fome, completa as bases do Cinema Novo. A produção escrita de David o
coloca, de acordo com Glauber, numa proeminência cinemanovista.
Outro ponto considerável é o fato de Glauber alegar que David, um fã da Nouvelle
Vague, ter uma paixão por todos os cinemanovistas e que a recíproca era verdadeira. A
amizade é um sentimento e uma relação que marca e que é vital para o andamento do Cinema
75
Ibidem. p. 403.
76
Ibidem. p. 404.
77
Ibidem. p. 406.
45
Novo, Glauber até entoa a máxima varguista Só o Amor Constrói para a Eternidade para
definir a união dos amigos cinemanovistas, sobretudo com relação a David 78.
Em 1959 Glauber estava numa retrospectiva do Cinema Expressionista alemão
organizada pela Cinemateca Brasileira e realizada na Bienal de São Paulo. Foi nessa ocasião
que conheceu Leon Hirsziman, Louro, magro, ágil, histérico, lúcido, visionário, o jovem
Eisenstein”79. Leon foi um importante interlocutor de Glauber no que tange a teoria do cinema
e filosofia. Amigos, Glauber relata que saiam, com outros da patota, aos sábados durante a
noite percorrendo festas, bares e teatros divulgando a novas abordagens audiovisuais. Glauber
admirava o jeito que Leon lidava com alguns aspectos da linguagem cinematográfica:
Leon usa a cenografia como personagem ativo. Muitos cineastas a usam como
artifício indecorosativo que esconde o vazio ideológico. Leon extrai os elementos
que podem traduzir o personagem além dos adjetivos desfarçantes. O processo limpa
o ator na sua roupa, maquiagem, gestos, olhar, voz sensibilidade. A iluminação
destaca subjectos redimensiona objetos. A câmera observa ou se move no mesmo
ritmo, sem precipitação nem inquietação, raras vezes, quando morre Zulmira
Rodrigues ou Madalena Ramos [personagens de filmes de Leon] num rompespaço
em câmera na mão e o som nunca sai do Real mesmo em Garota de Ipanema, filme
sobre uma canção de Márcia Rodrigues ao som de Tom Jobim80.
Nenhum cinemanovista é uma ilha que não dialoga com outras ilhas. Todos aprendem
com todos, estão minuciosamente atentos aos trabalhos de cada um, mais que isso, se ajudam
nas produções, o cinema é de autor, mas o filme é uma construção coletiva e cooperada.
Assim, ainda que cada um reserve um estilo e identidade particular na maneira de filmar,
acabam se influenciando pelo trabalho do outro. Além da influência, é preciso sensibilidade
para reconhecer aspectos positivos na maneira de filmar do outro. O trecho citado é um
exemplo disso, Glauber reconhece aspectos do cinema de Leon como positivos para as obras
do companheiro, como a câmera sem inquietação e precipitação, a imagem e som como estrita
impressão de realidade. Ora, esses elementos não são tão comuns na filmografia glauberiana,
mas aqui existe um reconhecimento da eficácia disso no cinema do outro, o que,
evidentemente, é um sinal de sensatez artística e, certamente, de elogio ao cinemanovistmo.
A relação entre Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos é especial. O primeiro
contato de Glauber com produção de cinema foi através de Nelson quando estava filmando
Rio, Zona Norte (1957). Glauber relata que se aproximou de onde acontecia a filmagem e se
apresentou pra Nelson que, percebendo que o jovem rapaz baiano queria ajudar, o incumbiu
de ajudar o eletricista com alguns cabos. Comparado com os cineastas citados até aqui,
Nelson é um pouco mais velho e que já possuía interessantes experiências com o cinema. Em
78
Idem
79
Ibidem. p. 411.
80
Ibidem. p.415.
46
certa medida, ele foi uma inspiração para Glauber e outros cinemanovistas principalmente por
causa de Rio, 40 graus, como falamos anteriormente.
Isso fica mais evidente na medida em que Nelson, de certa forma, viveu experiências
comumente vividas no Cinema Novo antes de ele começar. Rio, 40 graus foi censurado, gerou
uma repercussão na imprensa e no metiê cinematográfico. Glauber afirma que tanto a
imprensa de esquerda quanto os clubes de cinema e os intelectuais reagiram contra a decisão
da censura81. Além da censura, as inovações estéticas a serviço de uma crítica social direta
fizeram de Nelson um ponto de referência a ser seguido, principalmente se havia a vontade de
pôr em prática um cinema revolucionário.
Sobre Ruy Guerra, Glauber Rocha afirma que ele é genioso, brigou com o ator Jece
Valadão na montagem de Os Cafajestes (1962). Jece tinha algumas restrições sobre longos
travellings e da montagem paralela. “Ruy chamou Jece pra porrada, poderia aparecer um
revolver, Nelson [Pereira dos Santos] entrou pra pacificar”82. Ao contrário dos outros
cineastas, com Ruy, Glauber não demonstra tanta simpatia ou amizade:
Ruy tem fama de temperamental. Intransigente com produtores, técnicos e atores,
com a lenda que leva um dia pra fazer um plano e não permite o menor erro em
qualquer setor de trabalho. Nas discussões não perdoa as fraquezas e burrices,
preferindo perder o amigo a perder a razão. Desperta paixão em homens, que o
seguem fanaticamente e agridem seus competidores, e mulheres não conseguem
decifrá-lo83.
O que é mais interessante é que, apesar dessa abordagem pouco amistosa do cineasta, Glauber
reconhece em Ruy uma meia fraternidade, uma vez que compartilham de contrastes e
semelhanças. Sabemos que Glauber Rocha sempre foi temperamental, polêmico e
encrenqueiro. Talvez ele se reconhecesse em Ruy Guerra, já que o mesmo, pelo menos aos
olhos de Glauber, tinha comportamento similar.
Apesar disso, elogia sobremaneira o cinema de Ruy, principalmente Os Fuzis, filme
que dialoga com Deus e o Diabo em ambientação e abordagem. Ruy Guerra, para Glauber,
realiza um cinema político revolucionário que propõe novos horizontes para aspectos de
linguagem fílmica.
Se Ruy Guerra era um meio irmão tempestuoso, Carlos Diegues era um irmão integral
e afetuoso. Glauber demonstra carinho por Cacá, afirma que falam a mesma linguagem
nacional, popular e revolucionária. Leram os mesmos autores, gostavam dos mesmos filmes,
das mesmas mulheres e amigos84. Na obra de Sylvie Pierre existe um texto que Diegues
81
Ibidem. p. 421.
82
Ibidem. p. 427.
83
Idem
84
Ibidem. p. 434.
47
85
PIERRE, Sylvie. op. cit. p. 217.
86
Idem.
87
Ibidem. p. 437.
88
Idem.
48
melhor forma de entender o movimento seja através da ideia de geração e suas significações
históricas que por fases ou anos de produção. Segundo que o companheirismo, a cooperação e
a interação entre os integrantes são pontos fulcrais para estabelecer um movimento
cinematográfico como aquele. Além de afinidades cinematográficas, também foi preciso de
compatibilidade de pensamento político, se assim não fosse, jamais o Cinema Novo poderia
se pretender revolucionário fazendo um resgate histórico brasileiro e direcionando novos
rumos para o Brasil.
Qual então a pretensão de Glauber Rocha ao organizar e publicar Revolução do
Cinema Novo e, sobretudo, ao inserir na obra diversos textos sobre os companheiros de
movimento? Para começar a responder a essa pergunta é necessário utilizar um comentário
que Pierre faz sobre Glauber. A autora diz que tudo começou em 27 de março de 1977 quando
sua irmã Anecy Rocha faleceu num pitoresco acidente quando pisou no poço de um elevador
vazio. Glauber sofreu extremamente com o acontecido e, num misto de delírio com dor,
acusou Walter Lima Junior de ter atirado sua irmã no poço. Walter era cineasta e cunhado de
Glauber, naquele período, segundo Pierre, passava por problemas conjugais com Anecy. As
acusações de Glauber contra Walter Lima não foram provadas e a situação toda fez com que
Glauber ficasse inimigo de seu ex-cunhado. Pierre afirma que, a partir daí, Glauber rompeu
com todos os seus amigos do Cinema Novo que se recusaram a acompanha-lo nessa ideia89.
Pouco tempo após essa situação, em 1978, a autora alega que Glauber também se
desentendeu com amigos cinemanovistas não participando deliberadamente do primeiro
Simpósio de Cinema Brasileiro organizado pela Cooperativa Brasileira de Cineastas da qual
fazia parte Nelson Pereira dos Santos. Pierre afirma que a partir da morte da irmã, Glauber
Rocha se isola, mesmo que por algum tempo, de vários de seus amigos90.
Outros processos que estão entrelaçados com esse contexto de afastamento e
dubiedade do cineasta e ampliam das dimensões pessoais para as sociopolíticas são suas
declarações sobre o regime militar brasileiro a partir de 1974. Glauber escreve uma carta para
uma revista afirmando que o “General Geisel tem tudo na mão na mão para fazer do Brasil
um país forte, justo e livre. Aliás, estou seguro de que os militares são os legítimos
representantes do povo.” A carta foi escrita da Itália e causou muita movimentação no Brasil,
como alguém com a trajetória de Glauber Rocha poderia emitir uma opinião assim?
Nazario pontua sistematicamente alguns momentos em que esse tipo de discurso
reapareceu nas falas do artista em algumas cartas que envia a amigos:
89
PIERRE, Sylvie, op. cit. p. 77
90
Idem.
49
[...] [Glauber] Declarou em 1974: “Para surpresa geral, li, entendi e acho o General
Golbery um gênio – o mais alto da raça ao lado do professor Darcy [...] entre a
burguesia nacional-internacional [sic] e os militarismo nacionalista, eu fico, sem
outra possibilidade de papo, com o segundo”. Desde então, passou a chamar a
esquerda de “carcomida”, aderindo ao Partido Democrático Social (PDS), braço
civil do regime militar. Declarou em 1977: “As pessoas que combatem o regime
militar não merecem meu respeito”. E também: “Não acredito em nenhum líder
civilista. Os discursos de Geisel são os melhores textos políticos que o Brasil tem
atualmente”. Em 1978, reiterou seu apoio ao regime: “Aqui só tem uma coisa séria
em nossa política, o Exército, Castelo Branco deveria ter criado apenas um partido:
Partido Único do Exército para a Revolução Brasileira”. E em 1980 reafirmou: “sou
favorável à política do governo, pois ele é dirigido por militares e eles não são
demagogos. A palavra para eles tem peso real.”91.
91
NAZARIO, Luiz. op. cit. p. 168.
92
PIERRE, op. cit. p. 220.
93
Idem.
50
vida, em conflito com muitos amigos no Brasil, suas posições políticas podem muito bem ser
reflexos dessa instabilidade. O que nos interessa saber é o contexto de sua vida no momento
em que decide escrever sobre os colegas cinemanovistas.
Apesar da indisposição com muitos de seus amigos e das suas percepções sobre a
ditadura civil-militar, os textos feitos especificamente para os sujeitos ligados ao cinema que
integram Revolução do Cinema Novo não revelam esses nuances, nem nos nove
companheiros que abordamos e nem nos restantes. Nem mesmo o sobre Ruy Guerra, apesar
de ser nesse que ele não demonstra tanta simpatia pelo homenageado. Todavia, na mesma
obra existe uma entrevista dele ao jornal Ganga Bruta em 1978 94 fazendo uma dura crítica a
Ruy Guerra. Glauber afirma na entrevista que Guerra nunca foi o Cinema Novo, que Os
Cafajestes é um filme de direita e burguês, que o filme só figurava no Cinema Novo porque
contava com o ator Jece Valadão vindo de Rio, 40 graus. Afirma também que o cineasta é um
amador e demagogo. Todas essas afirmações estão muito distantes do texto que ele escreve
sobre o mesmo Ruy Guerra em 1980, onde eles seriam meio irmãos e onde também elogia
explicitamente o cinema do referido cineasta.
Essa é só mais uma das muitas contradições de Glauber Rocha. 1978, aponta Pierre,
foi um ano de afastamento de antigos companheiros, é de se imaginar que essa entrevista seja
uma materialização deste afastamento, porém, ainda que o haja, são muito discrepantes as
opiniões que fala sobre Ruy em 1978 e em 1980.
O que podemos perceber é que em 1980 o cenário era outro, os textos sobre os
companheiros revelam um Glauber nostálgico, que muitas vezes conta as circunstâncias em
que conheceu os sujeitos objetos do seu discurso. Raros são os momentos que ele se dispõe a
falar dos amigos no momento em que escrevia. A maioria dos textos é focado na atuação de
seus colegas durante a década de 60, principalmente nos primeiros anos da década, momento
de maior ebulição interativa e criativa entre amigos do Cinema Novo. Poucas são as menções
que atingem a década de 70, muito por conta de que Glauber passou muitos anos fora do
Brasil nesta década de modo que fatalmente o contato com os companheiros tornou-se menos
frequente. Se há uma bibliografia que aponta que ele se distanciou e até brigou com os amigos
no final dessa década, os textos que escreve para os amigos não mostra essa dimensão, talvez
fosse uma tentativa de reaproximação.
Sua preocupação parece ser construir através daquela obra e principalmente do trecho
em que fala dos integrantes ligados ao cinemanovismo com a perspectiva de manter o Cinema
94
ROCHA, Glauber. Op cit. Revolução do Cinema Novo: Entrevista ao Jornal Ganga Bruta. p. 377.
51
Novo vivo preservando sua característica orgânica e essencial de cooperação de sua geração
uma vez que no período em que ele escreve os textos o movimento já havia perdido muito
fôlego, alguns estudiosos afirmam que nessa época ele sequer existia mais. Assim, Revolução
do Cinema Novo é a perspectiva glauberiana de construção de uma memória cinemanovista
enquanto movimento cinematográfico que, através de um grupo grande pessoas, estava
engajado numa revolução estética, cinematográfica e social contando com rupturas em
diversos setores da sociedade.
O tema da memória é uma seara imensa que atinge a vida, permeia a experiência que
temos e construímos com o mundo. Por isso, não teria como ser diferente, a memória também
se constitui numa zona de conhecimento fortíssima que gera impacto em diversos campos.
Sem memória o tempo não se prolonga e sem este prolongamento a história se liquefaz na
medida que só existiria o agora. Soam bem as palavras de Jacques Le Goff quando diz que “a
memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou
coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de
hoje, na febre e na angústia.”95
Utilizando a perspectiva de que, ao ter o trabalho de organizar textos escritos ao longo
de mais de duas décadas e principalmente de ter escrito sobre colegas envolvidos com o
Cinema Novo, Glauber se propõe a produzir uma memória cinemanovista, estamos
adentrando neste universo especial da memória e de como ela interage com a história. Neste
caso, ajudando a criar um pensamento sobre um movimento cinematográfico de claras
intenções políticas.
Com a perspectiva e a disposição de se aprofundar nesta dimensão, é válido trazer
algumas análises sobre as maneiras de como a memória se relaciona com a história
objetivando uma melhor compreensão das finalidades de Glauber ao organizar Revolução do
Cinema Novo. A primeira noção a se ter é que a memória é o produto da relação entre
lembrança e esquecimento. É impossível que se resgate tudo pela memória, ela fatalmente e
deliberadamente será fruto de um processo mental que transforma o passado em algo tangível
no presente. A memória, como diz David Lowenthal, é residual e jamais dará conta
plenamente do passado.96 É neste sentido que podemos afirmar que ela é seletiva
considerando que sempre há um recorte do que é teoricamente possível de lembrar em relação
ao que de fato é exposto através da memória. Em outras palavras, o passado ocorrido é pleno,
95
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas. São Paulo. Editora da UNICAMP. 1990. p. 476.
96
LOWENTHAL, David. Como Conhecemos o Passado. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós
Graduados de História. São Paulo. 1998. p. 74
52
97
Ibidem, p. 100, 101.
53
98
LE GOFF. Op cit. p.426
54
Segundo Ato:
Construção e Desconstrução do Populismo em Terra em Transe.
Michel de Certeau, num célebre estudo já citado neste texto, elabora uma interessante
analogia para desenvolver seu pensamento sobre as práticas sociais construtoras do cotidiano
nas cidades. A analogia trata-se da vista que as Torres do World Trade Center propiciavam.
Do alto da torre, Nova York era contemplada de maneira panorâmica, de cima. A proposta de
Certeau é que, para pensar o cotidiano das cidades, temos que cair da torre, apenas a
observação estrutural panorâmica não dá conta do conhecimento das práticas sociais urbanas,
é preciso também enxergar a coisa de maneira horizontal. Manhattan e o Central Park estão
visíveis lá de cima, é possível diferenciá-los, ver suas características, mas só poderemos
perceber seus cotidianos se descermos, um mergulho em direção a compreensão de como as
práticas se constroem em suas minúcias. Ora, toda cidade, ainda que não tenha arranha-céus,
haverá de ter, metaforicamente, seu World Trade Center, em todo lugar é possível ter o olhar
panorâmico, organizador de estruturas e o olhar nivelado à prática onde as estruturas podem
inclusive serem lidas de outras maneiras.
O que tivemos até aqui no andamento deste trabalho foi uma visão de cima,
panorâmica e contextual do objeto. Vimos aspectos políticos, culturais, conjunturais e
artísticos do momento em que Terra em Transe fora lançado, vimos como se organizava o
cinemanovismo no Brasil, qual era seu projeto político e cinematográfico. Vimos também
como Glauber Rocha interagiu com todas essas dimensões e com alguns de seus
companheiros de movimento, em suma, uma vista do World Trade Center. Esta visão é
indispensável e muito importante para qualquer trabalho em História que tenha pretensão de
ter um filme enquanto fonte de pesquisa, porém chegamos ao momento de queda, é
necessário que ela aconteça para que se possa haver uma junção de olhares. Um já tivemos;
contextual, panorâmico e social, o outro é o que estar por vir, inserir-se nas entranhas do
filme, ver como ele constrói discursos e, em certa medida, interpreta processos históricos
ocorridos no Brasil. O que interessa é sempre manter diálogos de olhares, sejam externos ou
internos ao filme.
Este mergulho no filme não é uma tarefa que se mantenha em zona de conforto. Se a
compreensão e análise da linguagem cinematográfica é instrumento metodológico de trabalho
56
99
BARROS, José D’assunção. Cinema e História: entre expressões e representações. In. NÓVOA, Jorge.
BARROS, José D’assunção. (orgs.) Cinema-História. Teoria e Representações sociais no cinema. Rio de Janeiro.
Apicuri. 2012
57
100
NAPOLITANO. Marcos A História Depois do Papel. In. PINSKY, Carla Bassanezi. (org.) Fontes
Históricas. São Paulo. Ed. Contexto. 2005.
101
BARROS, José D’assunção. Op. Cit, p. 80
58
102
ROSSINI, Miriam. Op cit. p. 135
103
AUMONT, Jacques e outros autores. A Estética do Filme. Campinas. Papirus. 1995.
59
apoiara, e foge ao lado de sua companheira Sara. Durante a fuga, Paulo fura um bloqueio
policial na estrada, perseguido pela polícia, é atingido por um tiro. O poeta sabe que morrerá e
passa seus últimos momentos em agonia lembrando e relatando tudo que aconteceu para
chegar até sua morte. A partir deste momento é que há um recuo no tempo narrativo e o
enredo do filme vai se desenvolvendo.
Tudo isso ocorre nos primeiros minutos do filme, o que faz com que a maior parte da
narrativa de Terra em Transe seja um imenso flashback. Esta abordagem a torna não linear e
tudo que se apresenta nestes primeiros minutos (o que foi descrito até agora) é, na verdade, o
final da obra. Em outras, palavras, Terra em Transe é um filme que começa pelo final. Todo o
progresso narrativo levará ao seu final para a mesma situação da agonia de Paulo prestes a
morrer, só que neste ponto, após assistir ao filme quase inteiro, o espectador saberá de todos
os processos que o levaram até ali. É destes processos que trataremos de forma resumida a
seguir a fim de estabelecer uma boa contextualização do filme e das sequencias escolhidas
para análises mais densas. Esta abordagem de começar pelo final é bastante difundida nas
narrativas artísticas, seja cinema, literatura, TV, etc, e é interessante pelo motivo de ser um
artifício que deixa o leitor instigado, atento, mais interessado no que aconteceu para que
aquela situação culminasse no fim já conhecido. Por ser flashback, ainda fornece um olhar de
memória do protagonista ao espectador,
É a partir das memórias de Paulo antes de morrer que o espectador imergirá no enredo
propriamente dito do filme. O curso dos últimos anos da vida de Paulo será revelado para
então voltarmos ao ponto do início da obra. A narrativa se trata das relações do protagonista
com basicamente duas forças políticas antagônicas; Dom Porfirio Díaz, político de vertente
ultraconservadora e Felipe Vieira, de características populistas. Tudo começa quando Díaz se
elege senador e os seus projetos conservadores fazem com que Paulo, até então um aliado
político seu, o abandone e siga para a província de Alecrim onde conhece Vieira e sua aliada
Sara, por quem se apaixona. Vieira, ao lado de Sara e Paulo, decide concorrer para
governador com grandes comícios e promessas que atenderiam ao povo mais necessitado.
Eleito, Vieira não é capaz de cumprir suas promessas de campanha, o que leva Paulo a se
decepcionar momentaneamente com a política e torna-se um errante entregue a descrença no
mundo político e ao entorpecimento das festas e das drogas patrocinadas pelo empresário e
amigo Julio Fuentes na capital Eldorado.
Neste meio tempo, com Paulo auto exilado da política, Díaz ganha força na corrida
presidencial e, assim, Sara decide procurar Paulo alertando-o dos perigos de Díaz no poder
como presidente. Pressionado, Paulo volta a apoiar Vieira, mas o poeta já não demonstra o
60
mesmo entusiasmo de outrora, já não acredita na política proposta por Vieira, tudo vai se
liquefazendo para ele até o momento que não suporta mais o jogo e, com o intuito de salvar o
país dos planos de Díaz, radicaliza e propõe uma revolução armada a Vieira. Vieira não se
mostra disposto a seguir este direcionamento e, dessa forma, Paulo abandona de vez as forças
políticas. Os momentos seguintes são o da invasão do bloqueio policial cometido por Paulo e
em seguida sua morte, o momento onde começa o filme.
Depois de resumir os acontecimentos do filme em poucas palavras, os momentos que
concentraremos neste ponto se referem a identificação e problematização das percepções
sobre o populismo como fenômeno político brasileiro contidos no filme. No limite, Terra em
Transe é fruto das apropriações que Glauber Rocha faz das realidades políticas brasileiras
sobretudo entre as décadas de 40 e 60 e, desse modo, constrói de maneira audiovisual um
discurso sobre isto no momento em que lança o filme. As sequencias a serem analisadas com
todo o critério metodológico comum às fontes audiovisuais estão atreladas aos blocos
narrativos que trazem Vieira como evidência, seus comícios e as pressões populares e
institucionais que sofre ao longo da narrativa.
104
DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. São Paulo. Brasiliense. 1990.
61
motores de compreensão de modo que haja um encandeamento entre os planos 105, uma
maneira racional de ligação e um prolongamento lógico entre eles. Se, por exemplo, temos um
plano que mostra alguém sendo perseguido, o outro poderia ser do perseguidor, ou
poderíamos ter uma lembrança do perseguido que revelasse ou reforçasse os motivos da
perseguição. De qualquer maneira, vai haver um vínculo lógico que liga as imagens entre si,
uma imagem só faz sentido ou passa a fazer mais sentido em seu prolongamento de maneira
que haja uma relação muito explícita entre o antes e o depois. Estas imagens, classificadas
pelo autor como imagem-movimento, desenvolvem o esquema sensório-motor na medida em
que “as personagens reagem a situações, ou então agem de modo a desvendar a situação. É
uma narração verídica, no sentido em que aspira o verdadeiro, até mesmo na ficção”. 106
O cinema moderno inaugura um novo sistema de imagens que rompe, pelo menos
momentaneamente na duração do filme, com as situações sensório-motoras da imagem-
movimento. Esta nova imagem não se constrói através do esquema de outrora e se constitui
por situações que Deleuze essencialmente denomina de puramente óticas e sonoras. Desse
modo, uma vez que o vínculo sensório-motor é quebrado, não há ligação racional de
continuidade neste tipo de imagem tornando-as essencialmente contemplativas e assim temos
a imagem-tempo. Considerando que não há, como no modelo anterior, uma representação
indireta do tempo através da composição da imagem e dos planos, mas sim uma apresentação
direta dele, pois agora o tempo não é mais manipulado pelo esquema sensório-motor, é
contemplado na situação puramente ótica e sonora que não se prolonga racionalmente. Esta é
a constituição da imagem-tempo. Deleuze faz uma ótima analogia quando diz que a imagem-
tempo é uma espécie de lembrança que sabemos ter, mas que não conseguimos alcançar.
Lembramos que vimos alguém ontem, mas, embora saibamos seu nome, não conseguimos
lembra-lo. Neste sentido, qualquer imagem-tempo é inquietadora e instigante porque não
conseguimos lhes dar uma sucessão lógica. 107 Em síntese, o regime da imagem-tempo é
caracterizado por excelência quando existe uma indiscernibilidade entre o que é real e o que é
imaginação.
É de se levar em consideração de que a grande maioria dos filmes contem a imagem-
movimento e não é diferente com Terra em Transe, porém, neste filme existe também
algumas dimensões da imagem-tempo que, ao sistematiza-las, nos darão uma maior potência
interpretativa para o filme. Ao perfurar um bloqueio policial no início do filme, Paulo é
105
O plano é a junção de fotogramas que dá movimento à imagem por um tempo que vai ser determinado pela
montagem do filme. Existem várias modalidades de plano, para mais detalhes e exemplos, ver Aumont, 1994.
106
Ibidem, p. 157
107
Ibidem, p. 71
62
baleado dentro de um carro e, repentinamente, há um corte para um plano fixo onde ele está
armado num espaço vazio, é quando começa a refletir sobre onde estava há alguns anos atrás
e então voltamos a Eldorado na época em que apoiava Porfírio Diaz, e assim começa o
flashback. Este corte para o plano de Paulo no deserto vazio se configura justamente como
uma ruptura do esquema sensório-motor para uma situação puramente ótica e sonora. Não
sabemos ao certo qual o grau de imaginação e de realidade nesta situação, é um tempo onírico
ou imaginativo, mas que interage radicalmente com o que seria supostamente real na
narrativa, ou seja, um acaba sofrendo efeitos do outro. Além da imagem, existe a voz off de
Paulo dizendo que está prestes a morrer. Este momento do filme representa uma espécie de
morte simbólica da poesia unida com a política e da consciência que clamava pela luta
armada, pois ela seria o último recurso para impedir uma ditadura
A situação descrita acima tem um grau de imaginação na medida em que Paulo, antes
do corte abrupto, estava num carro ferido, assim, não faz o menor sentido lógico que venha
em seguida a estar no espaço desértico, o grau de realidade é justamente seu ferimento no
automóvel. Entretanto, para que a imagem-tempo seja construída nesse momento do filme, o
que vem perder materialidade nesta morte do protagonista, seja ela simbólica ou física, é uma
forma de pensar a política e ela é real no personagem. É uma realidade se esvaindo, perdendo
força, porém em um ambiente surreal e real simultâneos já que é deduzível que Paulo
continua ferido no carro ao mesmo tempo que está no deserto agonizando. E mais, é a partir
deste espaço desértico ou desta situação que toda a narrativa de Terra em Transe se
desenrolará, como mencionado, em regime de um grande flashback no filme é encarado num
primeiro olhar como algo real. Neste sentido, o que é simbólico dispara o que é fisicamente
real na maior parte da narrativa.
Desta forma, em qual perspectiva o real e a imaginação é medida neste momento? No
limite não há uma divisão explícita destas duas dimensões, o real e o imaginativo se
entrelaçam na formação de um novo sentido, que será a trajetória de Paulo narrada por ele
mesmo de um ambiente simbólico de pré-morte. A imagem-tempo em Terra em Transe é
importante porque, como em outros filmes, inquieta o espectador, o tira de uma zona de
conforto compreensiva do sensório-motor e, assim, o leva para uma relação diferente com o
protagonista. A imagem-tempo, aqui, se dá como uma espécie de suspensão entre as imagens-
movimento. A seguir temos a transição de um esquema guiado pelo sensório-motor à situação
puramente ótica e sonora.
63
O imenso flashback que percorre quase toda a narrativa de Terra em Transe nos leva
para a captação de imediatas relações entre passado e presente. Se o passado é resgatado pela
memória, ele surge, para o espectador, como projeção virtual imagética em função de uma
imagem atual que evidentemente não é fruto da memória do protagonista (Paulo agonizando
no deserto). Este é o primeiro passo para perceber este longo trecho da narrativa feita através
do relato de memória de Paulo como outro regime da imagem-tempo que Deleuze denomina
imagem-cristal.
Se na situação puramente ótica e sonora seu principal elemento constitutivo é a
indiscernibilidade entre real e imaginário, na imagem-cristal a indiscernibilidade fica entre o
atual e o virtual levando em conta que o virtual se encarrega por uma imagem do passado
quando é lembrada no presente, o que pode vir ou virá a ser, é o que acontece com Paulo no
início do filme. É nesta perspectiva que o cristal se torna mais uma modalidade da imagem-
64
tempo, ele, por si, não anula a situação puramente ótica e sonora, pelo contrário, as duas
podem perfeitamente se entrelaçar embora em Terra em Transe estejam separadas.
Poderá nos percorrer então a dúvida se qualquer virtualidade pode ser compreendida
enquanto cristal, nas palavras de Deleuze, um cristal do tempo. Certamente que não, o
passado em si, cuja sua interação com o presente não os torne indiscerníveis não pode se
configurar como cristal. Novamente a indiscernibilidade que, por sua vez, é inquietante, é a
melhor chave para compreender esta ideia. Buscando o cristal do tempo, inclusive fora do
cinema, veremos que um ótimo exemplo de sua confecção é o ato de memória. Lembrar é
automaticamente criar uma imagem do passado. Esta imagem é virtual e reflete diretamente
na atual criando uma junção de ambas, esta junção nos deixa em flutuação, estamos em dois
lugares ao mesmo tempo, ora na imagem-virtual da lembrança, ora na imagem-atual do
presente. O cristal é justamente não conseguirmos diferenciar as duas coisas de uma maneira
racional.
O cristal, com efeito, não para de trocar imagens distintas que o constituem, a
imagem atual do presente que passa e a imagem virtual do passado que se conserva:
distintas e no entanto indiscerníveis, e indiscerníveis justamente por serem distintas,
já que não se sabe qual é uma e qual a outra. É a troca desigual, ou o ponto de
indiscernibilidade, a imagem mútua.108
Paulo cria todas as imagens virtuais de sua trajetória na política quando está na
situação limite pré-morte, mas as cria no presente da narrativa. Onde Paulo, ou nós,
espectadores, de fato estamos? No atual presente ou em suas lembranças? No limite, não é
possível responder, isto é o cristal. O principal elemento que favorece essa indiscernibilidade
é a narração em voz off do protagonista, o flashback nos passa a sensação de que sua trama
pertence ao presente, mas a voz off de um Paulo onisciente vem do futuro, do espaço desértico
onde morre simbolicamente. Estamos no deserto ou acompanhando os desenrolares políticos
de Eldorado quando eles de fato aconteceram? Está é a questão sem resposta, a desvinculação
de passado e presente é impossível e este é um grande propositor de potência de sensações e
inquietações no filme. A confecção do cristal no filme é feita sobretudo nos momentos da
narração em off do protagonista.
Mesmo que alguns dos trechos analisados neste trabalho não pertençam ao regime da
imagem-tempo, elas propõem um sentido e uma compreensão narrativa importante para
apreensão do filme e, consequentemente, para análises de momentos mais relacionados a
construções audiovisuais de imaginários políticos interpretativos da história política do Brasil.
Esta abordagem estética permite uma nova apreensão de aspectos psicológicos do
108
Ibidem, p. 102
65
protagonista do filme que, por ser um drama, fará com que tais aspectos sejam muitos
significativos na narrativa. Compreender as imagens cristais e puramente óticas e sonoras
como tais nos transporta pra lugares privilegiados de análise de Terra em Transe. Todas as
sequencias que analisaremos como construtoras de discursos políticos e representações
históricas estão, de alguma forma, atrelados a alguma dimensão da imagem-tempo aqui
trabalhada. A abordagem deleuziana para o cinema moderno é importante porque através dela
é possível a compreensão de aspectos simbólicos que servem para construção da densidade do
enredo, do protagonista e das visões históricas presentes na obra.
Os aspectos que envolvem a lembrança e o esquecimento na imagem-tempo interagem
fortemente com as discussões sobre memória feitas no ato anterior de maneira que agora uma
aproximação entre o que podemos conhecer sobre as ações da memória e o regime de
imagem-tempo possa dar ainda mais uma injeção de combustível na interpretação de Terra
em Transe.
Deleuze, analisando dimensões do presente e passado em narrativas cinematográficas,
chega a uma perspicaz conclusão de que o presente não é nada mais que o formato mínimo do
passado, ou seja, o presente é a máxima contração de toda experiência no passado feita no
instante atual. 109 Já sabemos que o filme objeto deste estudo desenrola todo seu enredo através
de um relato que é produto da memória de Paulo agonizando num deserto simbólico que
constitui no filme uma imagem puramente ótica e sonora. Este momento é o que o autor
chama de ponta do presente que vai, ao longo da narrativa, desvendar o lençol do passado.
Já vimos também anteriormente que a memória é fluída e antes de se tornar explícita
passa por uma série de filtros de seletividades emocionais, morais, políticas, psicológicas, etc.
Assim, Glauber constrói Terra em Transe a partir das memórias de Paulo com base na
experiência política dos anos anteriores de seu protagonista e, porque não, de suas próprias. O
filme, por ser assim, é um relato de memória ou a memória materializada do personagem
sobretudo nos momentos de voz off. Neste sentido, Paulo é o balizador narrativo da obra,
mesmo nos momentos em que ele não está fisicamente presente, ecoa no espectador sua
presença imaginária a partir do que foi proposto logo no início da narrativa
É partindo disso que se faz a necessidade de ter critérios para analisar o filme do ponto
de vista de proposição de discurso sobre a História do Brasil. Contar memórias é diferente de
contar histórias, o que Paulo praticamente faz o filme inteiro é contar memórias que,
sabemos, passou por todos os filtros de experiências. Desse modo, mesmo que o tenhamos
109
Ibidem, p. 121.
66
como principal referência narrativa, nosso norteio de problematização histórica pro filme
como fonte é temático; incialmente sobre o populismo ainda neste ato e no ato seguinte sobre
o golpe de 64. Não podemos tomar como verdade irretocável a visão de Paulo, se assim o
fosse, seria a mesma coisa que dizer que memória e história são a mesma coisa, o que,
evidentemente, não pode ser possível.
Sobre os debates e as diferenciações entre memória e História recorro novamente a
Lowenthal quando ele afirma que a história é uma espécie de verificação empírica da
memória.110 A análise fílmica que se preocupa em produzir conhecimento histórico se
concentrando numa obra cujo fio narrativo são memórias de seu protagonista nos
possibilitarão ver, na prática, diferenciações entre memória e História. Para ser ainda mais
explícito, se nos focássemos apenas na descrição fílmica dos diálogos e da linguagem,
estaríamos projetando somente a dimensão da memória no específico caso de Terra em
Transe visto que tudo ali é produto da relação entre lembrança e esquecimento de Paulo.
Porém ao usar a descrição narrativa e de linguagem para trazer análises históricas e
dialogando com bibliografias específicas sobre os temas políticos a serem abordados, veremos
uma interação produtiva entre História e memória. Dessa maneira, o que teremos é uma visão
diferenciada ambivalente tanto do filme em si quanto dos próprios processos políticos da
História do Brasil entre 1930 a 1964.
Dito isto, partiremos a seguir para análises de três sequencias específicas de Terra em
Transe que emitem um forte discurso sobre o populismo na política brasileira. Algumas
questões são flagrantes para nortear esta etapa do trabalho, a saber; de onde vem
historicamente a prática política condensada na figura de Vieira? Como podemos ver através
do filme e o relacionando a realidade política brasileira da época a dinâmica entre Estado e
população? De quais formas Glauber se preocupa em criticar o populismo brasileiro? Quais as
similaridades entre Vieira e figuras políticas de destaque na história do Brasil? Todos estes
questionamentos são amplos e serão respondidos à medida que a análise e interpretação da
fonte são feitas. O que se pode perceber de antemão é que Glauber Rocha, ao dedicar estas
três sequencias para construir um discurso sobre o populismo, faz respectivamente a criação
de um mito político e líder carismático com o povo, em seguida testa o “mito” colocando-o
em uma situação de pressão popular e, na última sequência, produz a desconstrução total do
populismo que, ao ser obliterado, cede espaço para as forças golpistas do bloco narrativo
110
LOWENTHAL, David. Op cit, p. 66
67
antagônico no filme. Todas estas situações são comuns aos processos políticos brasileiros
entre 1930 e 1964.
Cada uma das três sequencias analisadas contará com alguns procedimentos
metodológicos para que, assim, a partir do filme, possamos chegar a política brasileira. Os
referidos procedimentos consistem primeiramente uma descrição cênica, sobretudo de
diálogos e das situações ocorridas diante da câmera. Em seguida uma abordagem de como a
situação descrita é construída, quais sentidos analíticos são possíveis de serem extraídos a
partir das maneiras de composição audiovisual da cena; movimentos de câmera,
enquadramentos, cenografia, figurino, etc. Por fim, o último passo consiste em examinar os
porquês das cenas serem construídas da maneira que são, quais são as relações delas com a
História.
Neste momento torna-se bem perceptível as ideias que Chartier para estruturar a
História Cultural. O autor nos apresenta conceituações que direcionam metodologicamente os
estudos históricos pautados na cultura construindo uma interação dialética entre apropriações,
representações e práticas culturais. Ou seja, nenhuma destas três dimensões do mundo cultural
atuam de maneira isolada, sempre estão em movimento e criando uma dinâmica harmônica ou
conflituosa entre si.
Uma vez que as representações tornam presente algo que, em alguma medida, estar
ausente interferindo na experiência e apreensão de mundo de um sujeito ou de grupos sociais,
elas, como afirma Chartier, extrapolam dimensões estritamente psicológicas e constituem-se
como divisões do mundo social. 111 A história cultural, então, é uma proposta científica de
compreensão deste jogo dialético e simbólico que essencialmente nasce na cultura, mas que se
expande para todo mundo social considerando que as dimensões da sociedade (política, arte,
religião, economia, etc) não são vividas de maneira independente. Há, de fato, uma
interdependência entre todas elas.
O que mais pode nos interessar aqui é o que o autor chama de apropriação, inclusive o
próprio reconhece isto como objeto central da História Cultural. 112 A apropriação implica
diretamente numa interpretação de uma realidade, o ato de apropriar-se de algo; um livro, um
discurso, um filme, um fenômeno político, etc, dá a quem se apropria a condição de criar uma
111
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Difel. Lisboa. p. 19.
112
Ibidem, p. 26
68
(nova) percepção sobre o objeto apropriado. 113 É assim que podemos entender teoricamente
como Glauber constrói seu discurso permeado de representações em Terra em Transe. Ele
viveu o populismo, certamente tinha sua interpretação sobre este fenômeno político e o filme
pode ser caracterizado como uma espécie de síntese do populismo político sob a ótica
glauberiana, reflexo de sua apropriação de uma determinada realidade política que deságua
numa atividade audiovisual cercada de percepções e reflexões históricas.
Adianto ao leitor que Terra em Transe é um filme que prioriza majoritariamente o
poder político. A maioria dos personagens detém, de alguma forma, um forte poder de decisão
e articulação. Não são raras a cenas em lugares onde estas figuras discutem situações em
lugares que representam o poder; cenários palacianos e sofisticados ou topos de prédios,
sempre do alto. O aspecto do poder no filme ultrapassa os próprios personagens que, ora
garbosos e requintados, ora populares e carismáticos, ora articuladores e financeiramente
poderosos estão sempre na iminência de tomar decisões importantes para um país. Xavier
ratifica este pensamento na medida em que descreve os movimentos de câmera na primeira
cena do filme, uma tomada aérea do litoral para o terraço onde Paulo pressiona Vieira pela
luta armada e o mesmo recua.114
A primeira sequência a ser analisada tem como elemento central um destes
personagens; Felipe Vieira. Sua apresentação na trama acontece quando Paulo abandona Diaz
depois que se torna senador. Paulo está na redação do Aurora Livre, jornal onde trabalha
quando Sara entra em sua sala e lhe mostra fotografias que revelam a pobreza do lugar:
Sara: Veja; crianças sem escolas, hospitais repletos, precisamos fazer uma
campanha.
Paulo: Olha que barbaridade!
Sara: Os donativos não são suficientes, é preciso que se faça alguma coisa.
Paulo: Precisamos de um líder político, isso sim. [Grifo nosso.]
113
Ibidem, p. 25
XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São
114
A cena, que até então não possuía trilha sonora, a partir desta afirmação de Paulo,
começa a tocar uma música alegre e a imagem se concentra em Sara sorrindo e bebendo. A
trilha continua, mas seu volume fica um pouco mais baixo para que o diálogo continue.
Vieira: É uma carreira árdua! Eu vim de baixo, com as mãos, Sara tem conhecido
minha luta. Quando comecei como simples vereador, eu tive que enfrentar o mau-
caratismo, a corrupção e sempre com as causas mais nobres, e por isso, as mais
difíceis.
Paulo: Falando sério, Vieira! Eu creio que você é um excelente candidato, eu ponho
a minha humilde pena a sua disposição
Sara: Ele é formidável! Ao vieira [e gestualmente propõe um brinde].
Vieira: o país precisa de poetas, dos bons poetas, revolucionários, como aqueles
românticos do passado.
Paulo: Vozes que levantaram multidões.
Sara: A praça é do povo como o céu é do condor
Paulo: Faremos majestosos comícios nas praças de Alecrim! Magníficos!
Figura 3: Vieira alegre sendo ênfase na imagem Figura 4: Sara e Paulo entram no quadro.
Como se percebe, o espectador a esta altura já sabe quem vai ser o novo candidato ao
governo da província de Alecrim, resta então que o povo de Alecrim saiba, as cenas seguintes
serão a materialização dos grandiosos comícios que Paulo se referiu no diálogo citado.
115
O primeiro plano acontece quando o personagem ou algum objeto se torna dominante na imagem. Vieira em
primeiro plano significa dizer que José Lewgoy é, durante aquele momento, situa-se a frente dos demais objetos
ou pessoas presentes na imagem.
116
O travelling é o movimento de câmera que a faz se mover no espaço através de algum manuseio específico
como um carrinho ou o próprio corpo do operador de câmera. Em outras palavras, como aponta Aumont, o
travelling é o movimento do pé da câmera ao passo que seu eixo permanece apontado para a mesma direção.
70
Figura 5: O enquadramento enfatizando o povo ao redor de Vieira. Figura 6: O tom festivo dos comícios.
Os planos curtos que enquadram Vieira próximo ao povo, os seus gestos e suas
palavras são a forma que Glauber Rocha encontrou para construir em Vieira uma espécie de
mito político, um líder carismático apoiado pelas massas. Estas são características das figuras
políticas que se enquadram no populismo enquanto fenômeno político brasileiro. Este
fenômeno busca uma prática política numa relação entre Estado e população mais amplificada
o que, de acordo com Francisco Weffort, era necessário que ocorresse “a personalização do
poder, a imagem (meio real, meio mística) da soberania do Estado sobre o conjunto da
sociedade e a necessidade de participação das massas populares urbanas” 117. Esta é uma ótima
definição para Vieira (meio real e meio mística), Alecrim parece ser um lugar abandonado,
cheio de problemas sociais e, como quem salvará a província, surge Vieira que até aqui é
querido pelo povo. É preciso fazer nascer um líder dotado de carisma e apoio e, para isso, o
líder precisa estar fisicamente próximo a seus eleitores e, pelo menos neste instante, afirmar
que irá agir afim de solucionar os problemas sociais, mesmo que isto seja dito de forma
evasiva, como é o caso de Vieira.
Logo após estes planos iniciais surge um mais longo que nos apresenta um diálogo
entre Vieira e um sujeito com postura subserviente chamado Felício e, de perto, os dois
conversam:
117
WEFFORT, Francisco, op cit. p. 78
71
O plano do diálogo é cortado bruscamente para outras cenas do comício festivo, por
enquanto, não sabemos o que Felício queria dizer. O diálogo é filmado em apenas um único
plano, Vieira e Felício estão praticamente um de frente para o outro, bem próximos. Porém,
ao analisar a forma com que as falas são ditas, a conclusão que podemos chegar é que a
aproximação aqui se restringe a ser apenas física. Isto é perceptível a partir da postura
cabisbaixa de Felício, a timidez com que expressa suas palavras. Durante vários momentos ele
permanece olhando pra baixo demonstrando claramente sua inferioridade perante um líder
político. Por outro lado, Vieira sempre se mantém altivo e impaciente para ouvir Felício, tanto
que o interrompe em alguns momentos e o próprio corte do plano revela esta impaciência.
Além da linguagem dos diálogos, a própria imagem já põe Vieira em um patamar superior a
Felício. O enquadramento118 usado por Glauber para filmar o diálogo, apesar de pôr os dois
próximos, deixa Vieira em posição dominante fazendo com que seu interlocutor o encare de
baixo pra cima.
Outro propositor de sentido neste trecho relatado é o figurino uma vez que Vieira se
destaca dos demais através de sua roupa elegante, as outras pessoas integrantes do povo
possuem roupas modestas, a de Felício, inclusive, está rasgada. O importante de se perceber
118
A maneira como a imagem se organiza e se posiciona em relação a câmera formando uma imagem. O
enquadramento pressupõe uma escolha do cineasta para o que e como a imagem será exposta, o movimento,
tanto da câmera, quanto do ela vê, pode e vai interferir no enquadramento, no limite os movimentos irão propor
novos enquadramentos.
72
aqui é que, mesmo quando se intitula representante do povo, mesmo que seja respeitado ou
temido pelo próprio povo que o apoia, o líder político, aqui nas entrelinhas da cena, não faz
parte e é dominante em relação ao povo.
Um novo momento durante os comícios que exacerba a dominância de Vieira é
quando a câmera o enquadra de baixo pra cima numa sacada com os braços abertos acenando.
O tipo de enquadramento e o andamento das cenas do comício propõem em Vieira a
representação de um Estado clarividente e paternalista, aliado dos mais necessitados.
Vieira está no alto e agora não tão próximo dos populares, entretanto, como este é o
último plano da sequência dos comícios e estes tem a intenção de incutí-lo como um grande
líder junto ao povo, podemos entender que esta imagem é a materialização de que deu tudo
certo. Aqui mais uma vez o enquadramento o coloca em posição de superioridade e, assim,
Glauber sistematicamente faz com o político se torne uma espécie de Godfather119 do local,
uma liderança respeitada e aceita pela população.
Poder-se-ia questionar os motivos de Glauber ter a necessidade de fabricar em Vieira a
figura de um grande líder político capaz de conquistar o povo em seu espectro mais amplo ou,
em outras palavras, as massas. A resposta surge na medida em que entendemos que os blocos
narrativos da obra que evidenciam Vieira são para emitir um discurso sobre o populismo
brasileiro. Uma figura com a característica agregadora e popular do personagem de José
Lewgoy é um dos principais aspectos desta modalidade de fazer política. Vários estudiosos do
119
A tradução pode ser compreendida como ‘padrinho’. No cinema norte-americano o filme Chamado The
Godfather (O Poderoso Chefão) mostra a trajetória da fictícia família Corleone na Máfia. O godfather do filme é
uma figura poderosa e respeitada assim, num ambiente de comparação ilustrativa, como os líderes populistas
brasileiros.
73
tema afirmam que tais características de um líder político identificadas e analisadas até aqui
compõem a política de massas, principal modus operandis do populismo.
Francisco Weffort explica os porquês da necessidade das massas participarem jogo
político de maneira mais enfática. Em sua obra chamada O Populismo na Política Brasileira o
autor aborda vários aspectos com a intenção de compreender as razões históricas e as formas
que o populismo se manifestou em âmbito político brasileiro entre 1930 e 1960. O autor
sinaliza que durante este período o Brasil passou por um considerável processo de
industrialização que acarretou migrações para os principais centros urbanos do país. Ou seja,
houve também, concomitantemente a industrialização, a urbanização de grandes centros.
Estes processos causaram as condições históricas para o surgimento do populismo, entre elas
a crise das oligarquias, que até então eram mandatárias da política nacional, mas estavam em
situação política desconfortável com as classes médias crescentes pela industrialização. O
inconformismo das classes médias não pertencentes a economia e política dominante gerou
um movimento que culminou na Revolução de 1930, esse foi o momento onde ficou possível
perceber a decadência do sistema oligárquico de governo.120 Essa junção, composta
majoritariamente pelas classes médias e até mesmo por alguns oligarcas foi chamada de
Aliança Liberal e conseguiu englobar sujeitos de vários setores da sociedade construindo um
discurso de oposição ao regime oligárquico.
A vitória da Aliança Liberal é personificada com Getúlio Vargas assumido a
presidência e, a partir de então, a política de massas foi ganhando força uma vez que a AL
representava setores afins e beneficiados com a industrialização. A industrialização e
consequentemente a proletarização de trabalhadores urbanos que, segundo Weffort, não
possuíam representatividade própria, deram nova roupagem a sociedade brasileira e
colocaram em protagonismo novos grupos sociais que, até então, tinham menos impacto
político quando as oligarquias gozavam do poder. Estas mudanças geraram demandas por
parte das classes médias e dos trabalhadores que, numa complexa interação com a política,
fizeram com que se modificasse a postura dos líderes políticos produzindo o surgimento da
política de massas.
Weffort certamente é um dos principais teóricos do populismo brasileiro, seu estudo
sobre esta prática política feito ainda na década de 60 é o maior contribuinte do que Jorge
Ferreira intitula como primeira geração dos estudos sobre populismo no Brasil. 121 Este autor
120
WEFFORT. Op. Cit. p. 73
FERREIRA, Jorge. O Nome e a Coisa: o populismo na política brasileira. In. FERREIRA, Jorge. (org.) O
121
populismo e sua história: debate e critica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001
74
122
Ibidem, p. 79
75
123
IANNI, Octavio. O Colapso do Populismo no Brasil. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1967. p. 53
124
Idem p. 87
76
Após o último plano do comício, o que se apresenta é Sara e Paulo em primeiro plano
abraçados e com semblantes preocupadíssimos e impotentes. A impressão que temos é que,
através do abraço, um tenta consolar o outro, os ruídos altos e festivos dos comícios aos
poucos vão se esvaindo em fade out125 até restar apenas o silêncio total. Certamente a ressaca
se manifesta. Em seguida, vem um plano mais aberto da mesma varanda onde outrora Paulo,
Vieira e Sara arquitetavam a campanha de Vieira. A voz off de Paulo rompe o silêncio e diz:
E vencemos, as coisas que vi naquela campanha, uma tragédia muito maior que as
nossas próprias forças na calma da mesma varanda onde tínhamos planejado em
festa a luta, eu, agora, ao teu lado, pensava nos problemas que surgiriam, e me
perguntava: ‘como responderia o governador eleito às promessas do candidato?’
Sobretudo eu perguntava a mim a aos outros: ‘como reagiríamos nós?’ [grifo
nosso.]
125
Fade out é um efeito que altera o volume do áudio ou da imagem regressivamente até ser eliminado,
normalmente ocorre com músicas. O fade in é o oposto, ou seja, a alteração progressiva do volume da imagem
ou do som.
126
XAVIER, Ismail. Op cit p. 104
77
Paulo e Sara. É oportuno atentar que Vieira não aparece nestes momentos, o mito já fora
construído, a inquietação (ainda) não o atinge e ele não participa dos momentos de angústias,
o que dá a entender é que Vieira deveria estar gozando de sua vitória eleitoral sem seus
apoiadores políticos, pelo menos aqueles mais à esquerda.
Figura 10: a varanda distante silenciosa pós campanha. Figura 11: os semblantes preocupados de Sara e
Paulo.
O próximo trecho do filme a ser analisado é crucial no que tange a crítica do modelo
populista de cultura política, é uma cena que possibilita uma série de contrastes com o que foi
apresentado e analisado até aqui com relação a construção de um grande líder político
clarividente e benevolente aos anseios populares.
A cena se inicia imediatamente após o plano do comício mudo mostrado acima, se
pouco antes Paulo se perguntava como o governador já eleito iria reagir as promessas que o
candidato fez em campanha, agora o espectador saberá a resposta. Há um encontro marcado
entre o agora Governador Vieira e um grupo de pessoas do qual Felício é o principal
representante. Paulo, a imprensa e a polícia também estão presentes neste momento. Ao som
de um jazz tenso e em um terreno inclinado Felício, de maneira cabisbaixa e tímida como
anteriormente na sequência do comício, tem a palavra:
Felício: É que nossas famílias chegou nessas terra já tem mais de vinte ano e agente
cultivou as terra, plantou nela, e as mulher da gente pariu nessas terra. Agora, a
gente não pode deixar as terra só porque apareceu uns dono vindo não sei da onde,
trazendo um papel do cartório e dizendo que as terra é dele. É isso que eu queria
dizer, seu doutor... A gente confia no senhor, mas... mas, se a justiça decidir que a
gente deve deixar as terra, a gente... a gente morre, mas não deixa não.
Neste momento Paulo interrompe a fala de Felício e o acuando, crescendo pra cima dele,
acontece o seguinte diálogo:
Paulo: Se acalme, Felício. Respeite o Governador.
Felício: Doutor Paulo, Doutor Paulo... A gente tem que gritar!
Paulo: Gritar com o que?
Felício: Com o que sobrar da gente, com os ossos, com tudo!
Paulo: Cala a boca, você e sua gente não sabe de nada.
Felício: Doutor Paulo, o senhor era meu amigo, o senhor me prometia.
Paulo: Eu nunca lhe prometi nada!
Felício: Eu não sou mentiroso!
Paulo: Um miserável, um fraco, um falador, um covarde!
Felício: Doutor Paulo, não diz isso. Não diz isso, não diz isso, não diz isso, Doutor
Paulo! Não diz isso, não diz isso, Doutor Paulo! Doutor Paulo, não diz isso, Doutor
Paulo!
Paulo: [derrubando Felício ao chão] Está vendo como você não vale nada?
Felício: Doutor Paulo, o senhor era meu amigo!
79
Figura 14 Vieira, pela primeira vez, de costas. Figura 15 a feição hostil de Vieira, muito diferente dos
momentos de campanha.
A narrativa segue na medida que Vieira permite que Felício se aproxime dele e ao
mesmo tempo envia os policiais para conter as pessoas que o acompanham. Numa análise
criteriosa desta cena, Maria Magalhães e Robert Stam afirmam que este momento “significa
claramente as relações de força do populismo, de um lado ele (Vieira) ostenta um liberalismo
127
A aproximação da imagem em relação ao objeto filmado por recurso técnico da câmera sem travelling ou
qualquer outro movimento de câmera. O zoom out é o afastamento nesta mesma perspectiva.
80
paternalista – deixando Felício passar e se exprimir – de outro utiliza a repressão – para conter
a multidão que acompanha Felício”.128 A partir daí começam as falas
O lugar escolhido para gravação desta cena é acidentado, algo semelhante a uma
estrada de terra cercada de mato. Glauber escolheu gravar numa ladeira e usou a topografia do
ambiente para expressar um sentido histórico e político muito forte fazendo isso através do
enquadramento que expressa uma interessante geografia do poder. Felício, ainda que fique
próximo a Vieira, está abaixo, Vieira e Paulo se mantém acima, mais alto e denotando
superioridade em relação a Felício. O povo contido pela polícia observa tudo no ponto mais
baixo da ladeira. Existem dois planos onde isto fica evidente; um parte de um enquadramento
do momento em que Vieira ordena a polícia a cercar o povo, a câmera se posiciona no pé da
ladeira, como se fosse a visão do povo que acompanha Felício, o enquadramento atinge
Felício de costa caminhando em direção a Vieira e Paulo, que os aguardam em um ponto mais
alto. A impressão que temos é da polícia engolindo Felício até chegar a seu objetivo ordenado
pelo Governador.
128
MAGALHÃES, Maria, STAM, Robert. Dois encontros de um líder com o povo: uma desconstrução do
populismo. In. GERBER, Raquel. Glauber Rocha. São Paulo. Paz e Terra. 1977 p. 150
81
medida, pelo próprio povo uma vez que este era apenas parte do compromisso político, e não
sua totalidade.
Para Weffort, a noção clássica de populismo, aquela que caracteriza-o como
simplesmente manipulação de massas é um ponto de vista elitista e liberal sem considerar
elementos importantes da realidade sociopolítica e, segundo ele, uma percepção de “alguns
liberais de classe média, perplexos diante dos rumos assumidos pelo processo político de
1945”129. Curiosamente ele também afirma que pessoas da esquerda também compartilham
desta opinião. Entretanto, o que nos interessa agora é a compreensão de que o populismo não
se caracteriza pela manipulação absoluta das massas. Vejamos a síntese do autor:
Em realidade, o populismo é algo mais complicado que a mera manipulação, e sua
complexidade política não faz mais que ressaltar a complexidade das condições
históricas em que se forma. Ele foi um modo determinado e concreto de
manipulação das classes populares, mas foi também um modo de expressão de
suas insatisfações. Representou, ao mesmo tempo, uma forma de estruturação do
poder para grupos dominantes e a principal forma de expressão política da
emergência popular no processo de desenvolvimento industrial e urbano. Foi um dos
mecanismos pelo qual os grupos dominantes exerceram seus domínio, mas foi
também uma das maneiras pelo qual esse domínio encontrava-se potencialmente
ameaçado. Esse estilo de governo e de comportamento político é essencialmente
ambíguo e, por certo, deve muito a ambiguidade pessoal desses políticos
divididos entre o amor ao povo e o amor ao poder. Contudo, o populismo tem
raízes sociais mais profundas, e a recuperação de sua unidade como fenômeno social
e político é um problema proposto a quem estude a formação histórica do país nos
últimos decênios.130
São esses os mecanismos que geram pressão popular num líder de governo, tal como
aconteceu com Vieira. Uma vez que o povo seja agente essencial para fazer política e que as
promessas e a atenção inicial sejam flagrantes, este mesmo povo depois terá meios mais
encorpados de cobrar melhorias aos líderes já que a distância física entre estas duas forças
fora, pelo menos momentaneamente, rompida. Isto mostra que Glauber, como seria de se
esperar até pelo que vimos no ato anterior, rejeita a tese liberal de elite sobre o populismo
como simples manipulação e expressa isto à moda do cinemanovismo. Se o povo é importante
para construir em Vieira a liderança, o mito, é o este mesmo povo que logo em seguida o
desconstrói e opera tal desconstrução usando as armas que o próprio líder lhe dera outrora; a
da participação no processo político.
Como vimos, o aspecto da disponibilidade política das massas e da pressão popular
são elementos de forte convergência entre Glauber e Weffort. Entretanto, há o que
problematizar no sentido que também existe divergência entre eles ao que tange a
interpretação e representação do populismo. A divergência mais visível é a relação do
129
WEFFORT. Op cit, p. 70
130
Ibidem, p, 71. Grifos nosso.
83
populismo com campo e cidade, Weffort acredita que o processo de industrialização mais
intenso a partir de 30 proporciona urbanização da sociedade brasileira que, de tipicamente
agrária, sob as rédeas das oligarquias, passa a ser progressivamente urbana através do que ele
chama de step by step migration, ou seja, migrações que ocorriam crescentemente iniciando
em cidades de médio porte e depois concentrando-se em metrópoles. O autor nos diz que o
populismo é um fenômeno tipicamente urbano no Brasil, já que com a formação dos centros
urbanos industrializados, teve totais condições de se manifestar.
A percepção de Glauber é um tanto diferente em relação a isso, grande parte de sua
interpretação do populismo através do filme acontece num ambiente que é, pelo menos,
híbrido no que se refere a campo e cidade. Alecrim certamente é interior de Eldorado, mas
através de imagens da cidade revela-se um tanto urbana e um tanto rural. Além disso, o
gatilho que ajuda a desconstruir Vieira é uma pauta relacionada a questão de terra, algo que se
aproxima a reforma agrária que, evidentemente, não tem nada a ver com ambientes
industrializados e urbanizados sob a pecha da modernização. Assim, Glauber põe o populismo
tanto na cidade quanto no campo. Claro que é a urbanização que dá realmente condições de
existência da política populista em território nacional, sobretudo no sudeste, mas ele também
existe em âmbito rural e, ao contrário do que Weffort deixa transparecer, foi uma experiência
relevante principalmente por causa de Miguel Arraes em Pernambuco.
Enquanto Weffort ignora sistematizar o populismo no campo, Octavio Ianni prefere ir
por outro caminho de em sua obra O Colapso do Populismo no Brasil dedica um capítulo para
analisar o que chama de política de massas no campo. Ora, empregar a expressão política de
massas a atribuí-la também ao campo já nos sinaliza que o populismo não é restrito as zonas
urbanas e, além disso, se o autor dedica um capítulo inteiro de uma obra que tem objetivo de
abordar o populismo a isto também é sintoma de que o populismo no campo não só existiu,
como também foi importante em âmbito geral para a política brasileira.
O que pode-se perceber, a partir da leitura de Ianni, é que houve também no campo um
processo de avanço tecnológico na agricultura à medida que o país se industrializava e
urbanizava gerando demandas agrícolas mais amplas. Dessa forma, fazendas se inseriram na
lógica do agronegócio e empreendedorismo fazendo com que, em alguma medida,
acontecesse uma proletarização dos trabalhadores no campo. Para o autor, esta proletarização
se concretiza de modo que os trabalhadores do campo se politizam de maneira diferente uma
vez que as relações de trabalho no campo se tornam capitalistas. Neste sentido, segundo Ianni,
84
os valores comunitários e patrimoniais até então predominantes não são mais suficientes para
darem conta da dimensão do trabalho no campo.131
Chegamos então ao ponto que mais nos interessa na obra de Ianni para este momento
do texto; ele afirma que “essas transformações econômicas e sociais de profundidade foram
acompanhadas pelo aparecimento de vários tipos de liderança política no mundo agrário.”132
Em outras palavras, essas mudanças que ocorreram nas relações de trabalho permitem o
surgimento da política de massas no campo e faz com que o populismo se expanda também
para lá e, segundo Ianni, deixa a burguesia agrária alarmada. 133
Talvez a principal liderança política surgida sob a luz da política de massas no campo
tenha sido Miguel Arraes, político pernambucano que alcança protagonismo político
justamente nesta conjuntura. Arraes segue o típico modelo populista varguista, só que atuando
no campo. Aqui podemos então traçar um forte paralelo entre Arraes e Vieira, sobretudo na
segunda sequência. Se Glauber cria uma alegoria ampla do populismo brasileiro na figura de
Vieira, ela é permeada por um modelo getulista que é uma espécie de guia de comportamento
e tal modelo também projeta principalmente Arraes nesta segunda sequência e Jango na
sequência posterior do filme onde há explicitamente um discurso audiovisual referente ao
populismo e que analisaremos oportunamente. Lembremos também que, apesar de no filme
não haver nada que remeta a tecnologia no campo ou agronegócio de alto calibre, a demanda
que chega até Vieira é relacionado a algo tipicamente rural; a propriedade de terra. Assim,
Glauber coloca o populismo num misto entre arcaico e moderno, urbano e rural. O Vieira que
se dispõe a pelo menos escutar Felício é o Vieira mais próximo de Miguel Arraes e das
políticas de massas no campo.
Seguindo o filme, logo após a cena que Paulo derruba Felício há um corte pra sua casa
onde está visivelmente bêbado e possivelmente arrependido ao lado de Sara e reclama da falta
de atitude de Felício chamando-o de servil afirmando que o camponês poderia ter metido a
enxada na cabeça dele, mas preferiu ficar passivo a tudo que acontecia. Logo depois ficamos
sabendo da morte de Felício na cena de seu enterro onde as pessoas recitam com grande
velocidade, angústia e sofrimento a oração da Ave Maria. A mulher de Felício conta como
tudo aconteceu, Felício fora assassinado a tiros ao voltar pra sua casa na roça. A imprensa, a
mesma que estava durante o encontro de Felício com Paulo e Vieira, acompanha a situação
131
IANNI. Op cit. P. 73
132
Ibdem p. 75
133
Ibidem, p79
85
Neste momento a câmera foca Vieira calado e a voz do cantor e compositor Sérgio
Ricardo aparece cantando um verso que faz referência ao poema O Povo ao Poder de Castro
Alves: “A praça é do povo como o céu é do condor, já dizia o poeta, dos escravos, lutador”. A
seguir o diálogo entre Paulo e Vieira recomeça:
Vieira: Se arrumarmos as coisas, eu consigo receber mais verbas para as escolas...
Paulo: Verbas? Verbas que seus amigos vão roubar, verbas! A caridade apenas adia,
agrava mais a miséria. É muito fácil o raciocínio frio quando a gente está por cima.
Um líder precisa de força moral. Prenda o Moreira!
Vieira: Talvez você tenha razão, mas desta forma é impossível
Paulo: Qual é a sua forma? Vamos, diga, qual é a sua forma?
Vieira: Esperar pra ajudar.
Paulo: E agora, o que vai fazer?
Vieira: Repressão policial.
Paulo: Então eu me demito. Um dia, quando for impossível impedir que os famintos
nos devorem... Então veremos que a falta de coragem, a falta de decisão. O que que
você é, Vieira? Diga, um líder?
86
Após esta conversa Paulo decide enfim abandonar Vieira e Sara, volta a Eldorado e
desacredita momentaneamente da política se entregando a promiscuidade e a boemia na
capital. Durante a última conversa com Vieira, Paulo se mostra o tempo todo agressivo na
tentativa de encurralar o governador, que acabou resistindo a suas investidas. Porém, quase
sempre, Vieira se mostrou cabisbaixo e impotente, principalmente depois que entra a voz de
Sérgio Ricardo cantando. Pela primeira vez na cronologia da narrativa Vieira teve a chance de
radicalizar, mas assim como acontecerá adiante, não foi capaz de lidar com a situação com a
coragem revolucionária que Paulo demonstra. Coragem neste momento, porém antes foi
capaz de reprimir Felício representando os interesses de Vieira. Pensando Paulo como uma
alegoria da intelectualidade brasileira, Glauber constrói um discurso de crítica a ela,
mostrando sua ambiguidades, fraquezas e contradições. Lembremos que o filme foi lançado
em 1967, pouco depois do golpe de Estado e momento de desencanto artístico e intelectual
brasileiro. As esquerdas; posturas políticas e ideológicas de onde o Cinema Novo era
procedente, se encontravam em clima de derrota devido a vitória das forças ditatoriais de
1964. Paulo é uma forma de Glauber Rocha representar sua insatisfação com este aspecto da
sociedade brasileira e de fazer uma autocrítica reconhecendo os erros e se inserindo como
derrotado neste processo.
Ao não reagir contra o Coronel Moreira e partir pra resistência, Vieira nega às suas
bases eleitorais o direito à justiça, pois se preocupa mais profundamente com os
compromissos, que nada mais são que articulações que fez com a classe dominante de
Alecrim. Neste ponto Glauber já começa a estabelecer uma síntese sobre o populismo; um
sistema político onde se precisa de um líder popular e carismático que seja um bom
conciliador de classes, que faça um bom meio-campo entre os poderosos e as bases e,
evidentemente, atendendo com prioridade aos que bancam seu governo. É o populismo
político da mesma forma como aconteceu com Vargas, a serviço de consolidar uma lógica
liberal do capitalismo na sociedade atendendo, no caso de Vargas, a setores poderosos da
burguesia industrial e inserindo no imaginário da população a dignificação do trabalho. O que
Vieira se propõe a fazer não é tão diferente disto, não temos de fato uma confirmação no
filme, mas, de acordo com este diálogo com Paulo, é o que ele nos sinaliza.
Ainda é possível perceber neste diálogo, se analisando-o em função do toda narrativa
da obra, que se trará de um prelúdio da queda fatal do populismo no filme. Ainda que Vieira
passe, neste momento, por maus bocados em Alecrim, a situação ainda piorará em proporção
geográfica muito mais ampla atingindo toda Eldorado. É neste ponto que partiremos para a
terceira e última sequência de análise sobre o populismo em Terra em Transe, o momento
87
onde Vieira mais se aproxima de Jango e do desencanto final com a política populista
cedendo espaço para forças golpistas se tornarem protagonistas no universo diegético da obra.
A síncope do populismo.
Depois que abandona Vieira, Paulo se entrega aos prazeres puramente carnais para
entorpecer seu espírito desacreditado da política, volta a viver com Silvia, frequenta orgias e
se imerge no álcool. Enquanto isso, Díaz ganha ainda mais força política e se articula com a
multinacional Explint para arquitetar seus planos de poder. Paulo continua alheio a tudo até
que Sara vai até ele acompanhada de dois aliados para o convencer a apoiar Vieira. Ao que
parece, mesmo com os problemas em Alecrim, Vieira conseguiu se estabelecer e continua
agora numa corrida presidencial por Eldorado. Paulo resiste um pouco, mas acaba topando a
ideia. A narrativa se desenvolve focando os conflitos entre Paulo e Díaz e enfatizando o
projeto do político conservador, trechos que abordaremos no próximo ato quando o objetivo
for analisar como se monta uma peça golpista supressora de democracia através de Díaz e
suas relações. Após uma cena icônica entre Paulo e Díaz, surge a terceira sequência sobre o
populismo, a que vai desmontá-lo enquanto estratégia política para vencer o golpismo em
Eldorado ou, de toda forma, no Brasil dos anos 60.
A sequência se inicia com um plano fechado em Paulo de cabeça baixa e pigarreando,
ao se levantar berra o mais forte e alto possível “Um candidato popular!”, o próximo plano já
é bem mais a aberto mostrando Vieira no alto de uma sacada rodeado de pessoas dançando ao
som de um samba frenético. As inscrições “Encontro de um líder com o povo” aparecem na
imagem. O que ocorrerá agora é uma amplificação dos comícios de Vieira feitos outrora em
Alecrim, no entanto, ao invés de materializarem a liderança de um político, o comício servirá
para decretar seu próprio destronamento de líder.
88
Figura 18: mais um grande comício de Vieira, dessa vez pela presidência.
é o primeiro sinal verbal de que o populismo não pode ser suficiente para satisfazer os anseios
populares, já que as tais raízes históricas também não o fizeram.
Os sinais visuais desta insuficiência do populismo também estão presentes para além
da fala durante estre trecho aqui descrito. Se nos comícios da primeira sequência, a que
constrói o mito, Vieira sempre está em evidência, sempre se mantem altivo e alegre perante o
povo e sempre tem a palavra. Aqui, nesta sequência, a que desconstrói o mito, ele é engolido
pelo povo, durante a sequência não diz uma palavra, a altivez e alegria de tempos passados
cedem lugar a uma desorientação e um semblante de preocupação. Muitas vezes é difícil
encontrar Vieira no quadro sobretudo porque ele se posiciona ao fundo do campo, em outros
momentos sequer José Lewgoy participa do plano. É o líder sumindo, desnorteado e mudo, a
festa populista sendo obliterada pelo próprio povo entorpecido, é a imagem produzindo no
espectador a consciência de que esta forma de fazer política não pode estar correta,
consciência que chegará a Paulo logo em seguida na mesma cena.
Figuras 19, 20 e 21: Vieira não é mais o centro das atenções em seus comícios.
Adiante muda-se para um plano durante a festa onde Paulo e Sara aparecem atrás de
algumas pessoas, a câmera se aproxima deles em travelling pra frente até o ponto dos dois
preencherem quase todo o campo da imagem. Neste momento uma orquestra de Villa-Lobos
sobrepõe o samba frenético que, aos poucos em fade out, some. As pessoas continuam
dançando ao redor de Paulo e Sara, sinal de que só eles escutam a nova música que invade a
cena. A câmera na mão começa a rodear os dois, que também giram entre si, e a voz off de
Paulo fala:
90
Qual o Sentido da coerência? Dizem que é prudente observar a História sem sofrer
até que um dia, pela consciência, a massa tome o poder? Ando pelas ruas e vejo um
povo magro, apático, abatido. Este povo não pode acreditar em nenhum partido. Este
povo alquebrado, cujo sangue sem vigor. Este povo precisa da morte mais do que
se possa supor. O sangue que estimula no irmão a dor, o sentimento do nada
que gera o amor. A morte como fé, não como temor! [grifo nosso]
Mais uma vez o cristal retorna a narrativa de Terra em Transe e, dessa vez, não apenas
pela voz off, mas a própria trilha sonora, que no filme é feita sob responsabilidade de Glauber
e Sérgio Ricardo, ajuda a alimentar o sentido que o cristal emana, para Stam e Magalhaes, a
música de Villa-Lobos é utilizada para operar rupturas.134 Pois bem, o momento descrito
acima é exatamente quando Paulo se direciona por um viés mais revolucionário, a música
orquestrada que suprime o samba festivo é o que antecede as palavras vindas do deserto onde
Paulo morre simbolicamente no início do filme. Uma nova consciência vai se formando no
poeta, suas palavras remetem a percepção de que é impossível uma mudança histórica radical
sem combate ou sofrimento. O povo está magro e apático porque alimenta um partido, ou em
outras palavras, Vieira. Este povo precisa também de uma morte simbólica para um
renascimento e, este sim, revolucionário, vigoroso e plenamente consciente de seus poderes
sem precisar de quaisquer tutelas. Esta é a ruptura política que a trilha sonora e a fala de Paulo
traz.
134
MAGALHAES e STAM. Op cit. P 152
91
populismo é pressionado e posto em cheque, a câmera (ainda que a maioria dos planos sejam
feitos com câmera na mão) e os personagens se mantém estáveis revelando que Vieira e seu
projeto político populista ainda conseguiam controlar a situação, o que já não acontece neste
momento quando o cristal se apresenta novamente. Assim, temos a junção da fala e
performance dos personagens em cena, a forma como a trilha sonora é usada, movimentos de
câmera e interpretação de narrativa da obra para chegar a tal conclusão de desconstrução do
populismo.
Após as palavras dita pela voz off de Paulo, o samba volta, entretanto agora ele divide
espaço com a sinfonia de Villa-Lobos, ou seja, a consciência de que aquele modelo político
cairá está vívida e presente no posterior diálogo entre Paulo e Sara. Sara tenta convencer
Paulo de que este povo que aí está não é culpado pelo processo, Paulo se mantém irredutível.
Sara então, numa última tentativa, dá a voz a Jerônimo e, com muita intensidade, o incita a
falar. Toda música e ruído provenientes da cena são cortados, o silêncio é absoluto e todos
voltam sua atenção para ouvir as palavras de Jerônimo.
Neste momento Paulo se aproxima de Jerônimo e tapa sua boca por trás, a câmera faz
um travelling rápido em direção aos dois demonstrando ênfase no que Paulo falará: “Estão
vendo o que é povo? Um imbecil! Um analfabeto! Um despolitizado! Já pensaram um
Jerônimo no Poder?”
Depois que Paulo termina sua fala, Jerônimo não se manifesta mais e a música volta.
92
Entretanto, com planos fechados no meio da multidão, a câmera foca um rapaz agachado
caminhando em direção onde está Paulo, Sara e Jerônimo. Ao chegar, o rapaz tira mão de
Paulo da boca de Jerônimo e, por si só, pede a palavra, depois de algumas tentativas a música
diminui e todos voltam atenção pra ele, que diz: “Eu vou falar agora, eu vou falar! Com a
licença dos doutores, seu Jerônimo faz a política da gente mas seu Jerônimo não é o povo. O
povo sou eu que tenho sete filhos e não tenho onde morar!”
No momento em que o rapaz acaba seu discurso, é automaticamente tachado de
extremista pela multidão, um aliado de Vieira o enforca e põe uma arma enfiada dentro de sua
boca. O plano seguinte ainda é do mesmo ambiente, o rapaz está estirado no chão e morto,
não há mais música, nem orquestrada nem samba, também não há mais multidão, apenas
alguns transeuntes que ali circulam despretensiosamente. Paulo, Vieira (que se manteve
calado e quase invisível durante todo esses momentos trabalhados até aqui), Sara e os demais
aliados estão em silêncio com semblantes abatidos. O povo que ousou a afrontar o poder
político, que se atreveu a criticar suas representações formais fora assassinado.
O que nos interessa agora é compreender em qual sentido esta abordagem
cinematográfica contribui pra falar sobre o populismo no Brasil e, sobretudo neste momento,
elaborar uma crítica destruidora desta prática. Para fazer isto é necessária a percepção de
alguns elementos na imagem não tão perceptíveis porque a atenção do espectador está
concentrada nos diálogos, porém alguns detalhes são importantes combustíveis para esta
reflexão.
Primeiramente nos concentremos em Jerônimo, o representante do povo via sindicato
não aparece pela primeira vez no filme na cena onde tem a palavra e interrompido por Paulo,
Jerônimo é uma das figuras que apoia Vieira no momento de seus comícios em Alecrim. É de
se admitir que a posição de Jerônimo na política de Vieira é similar a de Paulo, de apoiador e
direto beneficiário de sua eleição, a diferença é que Paulo em dado momento se recusa a isto e
Jerônimo não. Apesar do roteiro jamais evidenciar Jerônimo senão no momento da terceira
sequência, é esta a principal sugestão que ele nos traz. Os outros elementos não tão
perceptíveis têm relação com o rapaz que fala em nome do povo e é assassinado logo depois.
Ele se veste com a mesma roupa que Felício vestia em suas aparições e está acompanhado da
mesma mulher que acompanhara Felício inclusive também usando o mesmo figurino. Dessa
forma, existem dois povos representados durante a sequência, o cujo presidente do sindicato é
representante e o cujo é representado pela memória de Felício. Talvez este, mais combativo e
crítico, se aproxime do que Paulo idealizou do deserto na cena em questão através do cristal
do tempo quando surge pela primeira vez a música de Villa-Lobos.
93
Dito isto, cabe então problematizar algumas questões: por que, para criticar o
populismo, Glauber por tabela também critica sindicatos e elabora mais de uma visão do
povo? E mais, em quais pontos é possível perceber pontos fulcrais do getulismo e do
janguismo em toda esta situação? Terra em Transe jamais deixa de ser uma obra sobre figuras
de notáveis poderes políticos, mas em alguns momentos ela se depara com a necessidade de
abordar e problematizar os objetos de alcance destas figuras, a terceira sequência sobre o
populismo se trata, em grande medida, sobre isto.
A presença de Jerônimo e a forma como ele se comporta evoca diretamente uma
crítica ao sindicalismo em governos populistas ou, mais especificamente, uma crítica forte aos
representantes dirigentes de sindicatos neste período. Isto remete principalmente a forma com
que interagiram Estado e sindicatos a partir de certo momento do período getulista, a saber,
durante os primeiros anos da década de 1940, estágio onde, como aponta Skidmore, o
trabalhismo ficou mais evidente em Vargas potencializando sua política de massas. 135
Na obra A Invenção do Trabalhismo, Angela de Castro Gomes se propõe a analisar as
relações entre os sindicatos e o Estado Varguista e nos apresenta a percepção de que grande
parte das classes trabalhadoras aderiram a uma espécie de pacto com o Estado que consistia
na obediência política em troca de ganhos materiais e regulamentação do trabalho trazendo
benefícios aos trabalhadores. Para a autora, isto não consiste em mera submissão de classe,
mas sim numa “troca orientada por uma lógica que combinava os ganhos materiais com os
ganhos simbólicos da reciprocidade, sendo que era esta a segunda dimensão que funcionava
com instrumento integrador de todo o pacto”.136 Entretanto, para que o trabalhador gozasse
dos benefícios, teria que, além de ter carteira assinada, ser sindicalizado. Isto fez com que
grande parte dos sindicatos se tornassem aliados do governo, uma estratégia extremamente
perspicaz de Vargas para pôr o trabalhador na lógica do capitalismo.
Para que o trabalhismo se sustentasse, além do pacto trabalhista, havia ainda a serviço
do governo varguista um poderoso serviço de imprensa e propaganda que, sistematicamente,
o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio Marcondes filho falava pelo rádio no programa
A Voz do trabalhador. Entre 1942 e 1945, mais de duzentas palestras foram realizadas pelo
ministro. O impacto do programa foi muito forte. Gomes afirma que era a primeira vez que
uma figura política se direcionava especificamente para a classe trabalhadora. 137 Levemos
também em consideração o amplo alcance do rádio enquanto meio de comunicação, o
135
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. São Paulo. Paz e Terra. 1982. p. 63
136
GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro. FGV Editora. 2005 p. 180
137
Ibidem p. 212.
94
138
MATOS, Marcelo Badaró. Greves, sindicatos e repressão policial no Rio de Janeiro (1954-1964). In Rev.
Bras. Hist. 2004, vol. 24, no.47. p. 241-270.
95
salvação pela via revolucionária. Jerônimo, ou os sindicatos, para Glauber, são agentes
contrarrevolucionários no momento onde mais se precisa da revolução. Se o modelo populista
cai por terra, a parte Vargas da Alegoria Vieira é atacada com todo vigor possível.
Se o modelo político getulista ou, em outras palavras, o populismo é minado no
decorrer desta terceira sequência, é quando a parte Jango da alegoria se torna mais evidente.
João Goulart foi o último presidente populista brasileiro, sua queda abriu caminho para a
ditadura a partir de 1964. Mas não só Jango, ele certamente foi a liderança mais emblemática
da decadência populista. De acordo com Ianni, após Kubitschek na presidência o populismo
foi marcado por crises devido a forças sociais que o pressionavam tal como as elites,
burguesia que inclusive apoiara o modelo outrora e os movimentos nacionalistas e reformistas
que encabeçavam as reformas de base, o autor afirma que o suicídio de Vargas é a
materialização desta pressão.139 De um jeito ou de outro, cedo ou tarde, as grandes figuras
populistas caíram, inicialmente Vargas, depois Jânio Quadros renunciando à presidência e o
seu sucessor sendo deposto por um golpe de Estado, Arraes foi cassado pelo Governo Militar
em 1964. Se todas as grandes figuras se desintegraram politicamente e desintegraram o
populismo, Vieira também cairia, era seu destino histórico.
É possível, então, traçar em Vieira algumas semelhanças com Jango, Glauber o
escolheu como principal referência para que seu personagem cumprisse tal destino. Nos
primeiros anos da década de 1960 o Brasil passava por preocupantes cenários econômicos.
Ianni nos diz que em 1963 existe uma crise econômica em curso numa espiral inflacionária
que começa a afetar o sistema capitalista acarretando greves contra confiscos salariais
produzindo mais força nas organizações sindicais140 (que neste período não são tão pelegas
como no varguismo). É neste contexto que há uma insatisfação generalizada com a condução
política do país fazendo com que diferentes setores da sociedade pressionem Jango. O rapaz
representante do povo que fala no lugar Jerônimo no filme pode ser um revelador desta
insatisfação que atinge desde setores burgueses dominantes à camadas mais pobres da
sociedade, a fala do rapaz, antes de qualquer coisa, é a marca que a política populista sofre no
início dos anos 60.
A participação política das massas através de movimentos de reinvindicação culminam
progressivamente. Segundo Daniel Aarão Reis Filho, nas reformas de base que tendiam em
todos os seus campos de alcance conquistas reais para as classes populares sejam elas urbana,
eleitoral, tributária, referente a economia internacional ou agrária que, por sua vez, era a mais
139
IANNI. Op cit. P. 177 e 178
140
Ibidem p. 179
96
requisitada. 141 No filme, aliás, a pressão popular mais incisiva feita a Vieira tem a ver com
questão de posse de terras (segunda sequência com a situação de Felício).
Todos estes movimentos levam Jango, que fez sua base eleitoral e política através de
sindicatos e setores populares, ter como plano de governo a implantação das reformas de base.
Um governo afinado com as pautas populares era, naquela circunstância, a melhor forma de
se sustentar na presidência, pois assim conciliaria suas bases e possivelmente colocaria a
política de massas em outro patamar. Mas, na medida que avançamos na leitura de Reis Filho,
o que ocorreu foi, por decorrência de diversos fatores, uma sociedade polarizada pró Jango
em defesa da legalidade de seu mandato, a favor das reformas de base e contra ele com um
discurso moral, anticomunista apoiado e reforçado pelas elites dominantes, tal como grandes
veículos de imprensa, setores médio que viam no populista a personificação da perda de seus
privilégios de classe e a própria classe política oposicionista a Jango durante a conjuntura
entre 1962 a 1964, sobretudo em 64, quando as tensões políticas na sociedade chegam ao
nível mais extremo.142 No filme, as classes médias opositoras ao populismo não são
representadas por multidões, mas sim por alguns agentes como Julio Fuentes, alegoria
totalizante da imprensa de grande porte e da burguesia nacional.
A resposta de Jango a esta polarização exacerbada em 1964 é através de uma ostensiva
feita de comícios empolgados para, de acordo com Reis Filho, pressionar o congresso a
aceitar suas reformas.143 O famoso comício de 13 de março em São Paulo reunindo centenas
de milhares de pessoas é um exemplo disto. Jango mostrava que poderia vencer a resistência
ao seu governo. Porém, uma resposta contundente foi dada a 19 de março com a Marcha da
Família com Deus pela Liberdade também feita em São Paulo concentrando em torno de 500
mil pessoas pedindo o afastamento de João Goulart para livrar a pátria da ameaça comunista.
No fremir destas tensões, poucos dias depois, a 01 abril de 1964, Jango é deposto por um
golpe de Estado articulados por militares e o setores políticos conservadores. É o marco de
um golpe fatal ao populismo na política brasileira que, da forma que foi construído até então,
só encontrou-se com a decadência a partir disto para, em contrapartida, um plano político,
social e econômico conservador de direita pudesse ser dominante no Brasil.
Em Terra em Transe a faceta janguista momentos antes de sua queda é ressignificada
em Vieira pouco antes de sua dissolução enquanto líder político. No fim da terceira sequência
sobre o populismo, existe um diálogo entre Paulo e Vieira onde o político revela ao
141
REIS FILHO, Daniel Aarão. O Colapso do Colapso do Populismo no Brasil. In. In. FERREIRA, Jorge.
(org.) O populismo e sua história: debate e critica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. P. 330
142
Ibidem p. 335
143
Ibidem p.340
97
companheiro que vai resistir, unir as massas e romper de uma vez com as forças
conservadoras de oposição. Tal como Jango quis fazer antes do golpe acontecer. No plano
seguinte Vieira sorridente é carregado pelo povo, é o comício janguista antes da queda final, o
último suspiro de uma derrota iminente. A trilha sonora faz um papel importante neste trecho,
após terminar o diálogo com Paulo, começam simultaneamente uma música africana
recheadas de batuques que já tinha sido apresentada no início do filme e uma trilha de violino
que denota melancolia. Não há mais só o samba festivo nem tampouco a sinfonia de Villa-
Lobos que traz a consciência revolucionária, há agora a esperança do popular pelo batuque
que vem da África junto com a melancolia pessimista do lento arranjo do violino. Vieira já
tinha sentido o baque nos momentos anteriores da sequência, tanto que é um mero
coadjuvante durante as cenas, este momento onde é carregado pelo povo é o único que ele é
protagonista em relação as massas durante a sequência inteira.
144
Ibidem p 347
99
TERCEIRO ATO.
As Tramas de um Golpe de Estado: tensões, perfil da direita e conflito político.
Terra em Transe é um filme que desenvolve uma trama política incialmente separada
em blocos narrativos diferentes até, para então próximo do desfecho, haver uma colisão final
(e fatal) entre eles. Paulo Martins é o principal combustível, e Julio Fuentes em menor grau,
que vão pôr tais blocos em rota de colisão. Me refiro, evidentemente, aos núcleos narrativos
de Porfírio Díaz e Felipe Vieira, principais figuras políticas e que, partindo de variados meios,
pleiteiam cargos de poder na ilha de Eldorado. No ato anterior demos total atenção a Vieira e
como, através de análise, o populismo na política brasileira é apresentado e problematizado
por Glauber Rocha construindo assim um forte discurso histórico sobre seu tempo. É chegado
então o momento de trabalhar com o outro lado da narrativa política do filme, com tudo que
cerca Díaz e suas articulações golpistas supressoras da democracia.
Apesar de, por necessidade metodológica e objetividade acadêmica, haver um ato
dedicado principalmente a Vieira e outro principalmente a Díaz, eles não estão estritamente
separados no contexto dos objetivos deste trabalho. Nenhum dos dois personagens estão
encaixotados sem possibilidades de interação. Os dois disputam, cada um a seu modo, o poder
num mesmo lugar e, em algumas situações, estão cercados de personagens em comum. Por
isso muitas vezes o leitor se verá voltando no tempo durante a leitura do texto, Vieira, em
alguns momentos, estará direta ou indiretamente presente mesmo que a análise privilegie o
arco narrativo de Díaz. Analisaremos, com o mesmo cuidado do ato anterior, as sequências
que dizem respeito a nossa representação da vez, três delas situam-se entre a terceira
sequência trabalhado no ato anterior, a que chamei de síncope do populismo. A três
sequências posteriores serão as sucessoras da última do ato anterior de modo a chegarmos ao
desfecho do filme (que é também seu início, mas de maneira amplificada) para que possamos
concluir os objetivos direcionados pra este momento.
Dessa forma, o leitor terá uma experiência próxima do espectador do filme. Se
começamos com a cena lá do início da obra como ponto de partida pra este trabalho,
terminaremos nesta mesma cena, porém, como no filme, agora (re)vista de maneira mais
sapiente e amplificada nos deixando menos ingênuos em relação aos objetivos de seu
realizador.
100
Durante a análise de todos os momentos fílmicos pra esta etapa do texto surgirão
várias problematizações históricas ao que compete o golpe de Estado ocorrido no Brasil em
1964, a saber; os esforços civis pra dar saúde, mobilidade e poder de ação ao golpe no que
concerne a participação ou interação entre burguesia e Estado. Serão também examinadas de
onde vem, no Brasil, o pensamento e prática política de Díaz e em quais personagens reais da
política brasileira ele é baseado. De todo modo, o processo histórico de condução e execução
do golpe de Estado no Brasil é nossa tônica neste momento, inclusive tendo consciência e
levando em consideração que o populismo e seu colapso também estar presente nesta trama
fazendo com que o elo com o ato anterior jamais seja quebrado.
Antes de começar a abordagens com as sequências, é necessário que se fale de alguns
jogos de sentido que Glauber Rocha cria em Terra em Transe, me refiro à escolha de alguns
nomes de lugares e personagens. Isto acontece explicitamente com o nome da ilha fictícia
situada na América Latina. Eldorado, como aponta Xavier, é um país alegórico ao Brasil. 145
Eldorado também é uma lenda do século XVI que consiste que este lugar seria uma cidade
perdida repleta de ouro na Amazônia onde hoje é a região da Colômbia. A cidade-sonho teria
um homem de ouro descendente direto do sol que a governaria, pois ele seria o divino
escolhido para tal atribuição. Porfírio Diaz, o que dá a entender na mitologia que Glauber
constrói para Terra em Transe, seria este homem. No entanto, o nome Porfírio Diaz é também
uma referência direta ao militar e político mexicano homônimo que governou ou México
através de uma ditadura entre o século XIX e XX que só veio ser liquidada após a Revolução
Mexicana.
Assim, Glauber se apropria de mitologias e eventos históricos para criar sua própria
narrativa acerca de um retrato político do Brasil. Esta ressignificação de acontecimentos para
propor representações se aproxima bastante do que Chartier entende como apropriação do
mundo cultural para constituir uma luta de representações.146 Para Díaz, o homem de ouro de
sua Eldorado, Glauber se apropria do mito pra dar sentido à outra realidade, um sentido, desse
modo, irônico, visto que o predestinado mandatário da ilha fictícia glauberiana reúne todos os
atributos de um tirano pra governar um lugar que remete mitologicamente a riquezas e
maravilhas. Na verdade, este sistema de apropriações e representações acontece durante todo
o filme, visto que se trata de alegorias amplas e complexas, estas aparentemente simples
nomeações de lugar e personagem demonstram que até em detalhes o discurso de Glauber é
pensado para elaborar um sentido crítico e também histórico.
145
XAVIER, Ismail Cinema brasileiro moderno. São Paulo. Paz e Terra. 2001.
146
CHARTIER, Roger. Op cit. p. 20
101
encontro com Fuentes num ambiente como aquele senão pra demonstrar que quem estar no
topo tem o poder de decidir direcionamentos importantes para o país. A neblina ajuda a
caracterizar o clima de conspiração sendo travado lá em cima pelos poderosos. Afinal, estão
tramando uma batalha política cercada de interesses de poder. Fuentes pensa em prosperar
mais ainda como grande capitalista, Paulo e Álvaro pensam em conquistar apoio e elevar o
capital político e o projeto populista de Vieira. Glauber Rocha realiza tomadas que
apresentam, além de habituais planos de diálogos, um plano aéreo do terraço alimentando
ainda mais a percepção de que os que ali habitam são poderosos.
Figuras 27 e 28: os planos que remetem enquadramentos conotando poder e o nevoeiro como aura de
conspiração.
agora a Explint não o suporta. E, por isso, se a Explint apertar um botão, Julio
Fuentes morre.
Fuentes: não, não, eu não posso morrer! Eu sou mais rico que toda Eldorado
junto. Sou o dono das minas de ouro, de prata, de urânio. Dono das plantações
de fruta, das jazidas de petróleo. Das metalúrgicas, das televisões. Eu não
posso, eu não posso morrer!
[...] [grifo nosso.]
Logo após o diálogo, numa das costumeiras orgias da burguesia de Eldorado, Fuentes
autoriza Paulo a fazer o que bem entender com os aparatos comunicacionais a seu dispor.
Paulo então atacará a Díaz, pois assim, pra Fuentes, atacará também a Explint.
No diálogo acima citado ocorre pela primeira vez no filme um recurso narrativo
chamado quebra da quarta parede, que consiste quando o personagem se dirige ao público
para cometer alguma ação. Tal prática vem do teatro quando o ator se dirige diretamente à
plateia e, no cinema, desafiar a câmera, por exemplo, a encarando, é a quebra da quarta parede
na medida que há mais ênfase na relação com o receptor da obra. Este recurso é usado neste
filme pra dar destaque na fala do personagem, é um diálogo longo e então, para chamar
atenção do espectador, Glauber utiliza este recurso. Neste diálogo também fica evidenciado a
amplitude alegórica de Julio Fuentes, numa visão inicial, o espectador o tinha apenas como
um empresário do setor da imprensa, possivelmente dono do jornal onde Paulo trabalhava,
mas a partir daqui é revelada sua representatividade alegórica de toda atividade burguesa
nacional. Em suma, Fuentes condensa a burguesia nacional.
Atentando ao conteúdo do diálogo, fica explícito que se trata do convencimento de
Fuentes a passar pro lado de Vieira, caso contrário, de acordo com os discursos de Paulo e
Álvaro, o grande empresário correria um sério risco de perder seu império para Díaz e a
Explint, que o esmagaria em âmbitos produtivos, políticos e econômicos. Deste conteúdo
narrativo que surge uma questão; por que Glauber insere o capital multinacional aliado a
forças políticas como parceiros na articulação de um golpe de Estado? Qual é o papel da
burguesia nacional neste jogo? A resposta é também a principal intepretação do golpe de 64
que Glauber propõe através de Terra em Transe, que ele (o golpe) foi o produto de uma
associação civil cujo mentores são parcelas poderosas da sociedade.
Para entender a base real desta interpretação desaguada no filme e destrinchá-la é
preciso que recorrer a uma bibliografia importante sobre o processo histórico que leva ao
golpe em 64 no Brasil. René Dreifuss escreve seu famoso livro, produto de sua tese de
doutorado em Glasgow, que se chama 1964 a conquista do Estado; ação política, poder e
golpe de classe. A obra é resultado de uma intensa pesquisa com um amplo acervo
documental que o autor se debruça para descortinar as articulações civis empresariais que
104
tiveram, como principal efeito e objetivo, o golpe de Estado. O título não é ingênuo e já
mostra desde já a posição de Dreifuss referente a seu objeto de estudo. Para o autor, aliás esta
é a sua principal tese, o golpe foi de classe onde a chamada elite orgânica, ou grande parte do
capital nacional associado com o multinacional promoveu diversas ações que atingiram
classes civis, militares e políticas com a intenção de desestabilizar a política populista
reformista ao mesmo tempo que disseminava a propaganda anticomunista e produzia ou
reforçava uma hegemonia favorável às suas percepções de mundo proveniente das elites. Em
outras palavras, um grande projeto político e ideológico burguês alcançava o sistema nervoso
central da sociedade brasileira com objetivos políticos e econômicos bem explícitos.
O primeiro passo para entender estas articulações é perceber a participação e o
impacto que o capital multinacional tinha no Brasil daquele período. Desde o governo Dutra
os interesses multinacionais ganharam espaço no Brasil através de sua política econômica e,
como era de se esperar, se posicionaram contra a política nacional estatista de Vargas.
Dreifuss apresenta uma série de tabelas que mostram a supremacia do capital estrangeiro no
país nos empreendimentos mais ricos. 147 Dentre eles, os empreendimentos norte-americanos
eram maioria entre os países estrangeiros com empresas aqui e agiam com maior poder em
setores industriais.148 No Brasil, de acordo com o autor, 45% do capital transnacional é norte-
americano e também revela como os setores industriais são ocupados pelas empresas
estrangeiras, desde os setores automobilísticos, passando por vestuários, farmacêuticos,
vidros, pneus, papel e celulose.149 Em suma, com toda esta força que o capital internacional
exerce na economia brasileira, o autor conclui que o capital nacional de pretensões ambiciosas
só consegue existir em associação com o internacional. É neste ponto que, no filme, Fuentes,
como representante do espectro mais forte da burguesia nacional, tenta uma parceria com o
lado internacional do capitalismo em Eldorado. Uma inicial frustração nestes planos, como
vemos no diálogo, é o ponto de partida para Paulo e Álvaro o fazerem mudar de opinião e
apoiar Vieira.
Este contexto econômico somado ao contexto político populista brasileiro criaram as
condições históricas que propiciaram uma ação da classe dominante integrante destes
circuitos de capitais a promoverem sua campanha ideológica e criadora de consensos que, na
visão de Dreifuss, foram cruciais para a ruptura democrática em 64. Ainda voltaremos a estas
articulações com mais força à medida que a fonte demandar, no entanto, com a inserção da
147
DREIFUSS, René. 1964: a conquista do estado: ação política, poder e golpe de classe. Petropolis, Vozes,
1983. p. 50, 52, 53, 54, 55, 56.
148
Ibidem p. 53.
149
Ibidem p. 58
105
Explint no filme, foi preciso entender de onde ela vem, o que representa e porque ela pertence
ao enredo da obra. Uma vez que percebemos a magnitude do interesses econômicos
estrangeiros, compreendemos o porquê da Explint estar presente e o peso histórico intrínseco
a ela.
Seguindo o curso do diálogo entre Fuentes, Paulo e Álvaro, fica evidente que os
representantes de Vieira têm como objetivo colocar Fuentes contra Díaz e a Explint para que
Vieira consiga ao menos entrar no jogo político de Eldorado. Dessa forma, Glauber constrói
um duelo de burguesias, a nacional contra a internacional. Porém, a historiografia não
reconhece uma polarização tão acentuada desta forma. Dreifuss, inclusive, afirma que os
grupos de ação pró direita encabeçados pela elite orgânica que articularam o golpe
reconheciam a heterogeneidade da classe dominante na medida que era preciso uma espécie
de unificação em torno de um objetivo comum que era lutar contra o comunismo e o bloco
populista da política brasileira 150. Portanto é de se esperar que a classe burguesa brasileira não
fosse homogênea ou totalmente entreguista, mas esta abordagem polarizada nacional versus
internacional parece ser mais um recurso dramático utilizado por Glauber para dar mais força
a trama política e enfatizar o combate ideológico no filme.
Isto é verdadeiro considerando que com o apoio de Fuentes, Paulo terá mais recursos
para expor e desmascarar Díaz acirrando ainda mais as tensões entre os blocos narrativos da
obra. Neste sentido, a tensão político-empresarial criada na obra injeta combustível pra traçar
o perfil da direita que capitaneia o golpe em Eldorado e, não há motivos para pensar
diferente, foi inspirada na própria direita brasileira que coordenou o golpe civil-militar;
Lembremos que Terra em Transe, apesar de suas alegorias e narrativa serem claramente
inspiradas no Brasil como elemento disparador de discursos sobre nossa história, não pode ser
considerado ou entendido como uma reprodução ipsis litteris do Brasil pré golpe de 64. A
própria dimensão alegórica, artística e cinematográfica elimina esta visão. O filme como
recurso para problematizar a história e emitir uma mensagem sobre seu tempo é efeito de
visões de quem o realiza e tais visões jamais são totalmente independente dos processos as
quais dizem respeito, sobretudo pelo fato de elas estarem inseridas e, em suma, compuserem
uma obra artística.
Com o apoio da burguesia para poder partir pra ofensiva contra Díaz e a Explint, Paulo
produz uma reportagem na TV Eldorado, que é de propriedade de Fuentes de título Biografia
de um Aventureiro. A reportagem, explícita na própria imagem através de um letreiro, é de
150
Ibidem p. 165, 166
106
Paulo e soa como uma espécie de mini documentário sobre a trajetória política de ascensão de
Díaz. Aqui começa a próxima sequência que analisaremos.
A reportagem começa com Diaz em primeiro plano desfilando num carro aberto,
altivo, com uma das mãos entoa uma bandeira negra e com a outra, próxima ao peito, segura
uma cruz com Jesus crucificado. A trilha sonora é orquestrada e glorificante até que começa a
narração da reportagem feita por Paulo, neste momento a voz de Paulo é off, está fora do
campo da imagem, mas aqui não se encaixa na modalidade de cristal do tempo pelo fato de
não evocar memória e tampouco pertencer ao Paulo que agoniza no deserto puramente ótico e
sonoro da imagem-tempo. Isto faz com que Glauber Rocha se aproprie de diferentes formas
de um mesmo recurso da linguagem do cinema, a voz off de Paulo só ganha sentido analisada
em cada contexto narrativo e não numa interpretação que a defina previamente para toda a
obra.
Figura 29: primeira imagem do documentário feito por Paulo para atacar Díaz.
Após alguns segundos, Díaz está sorridente andando num jardim quando começa
finalmente a narração de Paulo: “E atenção senhoras e senhores! Vejam como se fez um
político, vejam como um homem sem nunca ter contato com o povo, pôde se fazer grande e
honrado nesta terra de Eldorado!”. Em seguida se sucedem alguns planos de Díaz enquanto a
música ganha força, ele continua caminhando pelo jardim, porém sem os artefatos descritos
no plano no carro, agora ele tem nas mãos uma arma. A arma tem um trato diferenciado no
primeiro plano em que ela surge, Glauber começa o plano focalizando-a nas mãos de Díaz até
que, em movimento panorâmico, o personagem é revelado até que fiquem unidos rosto de
Díaz e a arma. Com este foco na arma, Glauber a faz dela uma simbologia dupla; a óbvia que
é a violência com que Díaz está umbilicalmente ligado por seu viés de ruptura democrática e a
segunda simbologia é com relação a Explint já que logo em seguida o espectador saberá que a
empresa comanda a indústria bélica deste universo alegórico glauberiano criado em Terra em
107
Transe. O fato da arma está presente na cena e tendo este significado denota, mais uma vez,
ainda que seja num detalhe, o atrelamento entre capital internacional com políticos de direita,
e esta parceria é o que forja um processo golpista.
Em seguida Díaz está sorridente sentado em um banco quando uma voz off de um
narrador da reportagem (dessa vez não é Paulo) começa a descrever rapidamente os principais
pontos de sua trajetória na política:
Eis as principais manchetes da vida de Porfírio Díaz:
1920; aparece como líder extremista promovendo greves estudantis. Eleito
deputado.
1933; trai o movimento estudantil e apoia a ditadura de Villa Flores. Nomeado
Secretário de Finanças.
1937; trai Villa Flores e apoia a ditadura de Pancho Morales. Nomeado Secretário de
Cultura.
1938; trai Pancho Morales e apoia a ditadura de El Redentor. Nomeado Secretário
do Exterior.
1939; sugere ao Governo comprar material bélico em mãos da Explint. Lucra um
milhão de dólares.
1941 – 1946; Eldorado vai à guerra, perde treze mil homens. A Explint financia
sua eleição para o senado.
1948 -1957; o senado depõe El Redentor. Díaz lidera a eleição de Fernandez. Força
Fernandez a fazer concessões à Explint. [grifos nosso.]
Quando o narrador fala sobre o que aconteceu entre 1941 e 1946 na vida de Diaz,
muda-se o plano onde ele novamente está em pé num jardim, dessa vez com o semblante mais
sério até que no final, quando o narrador afirma que ele deu à Explint forte poder no governo
de Fernandez, Díaz ri sorrateiramente, como se tivesse orgulhoso de suas empreitadas
políticas.
Em um novo plano, Díaz se encontra na sacada de seu palácio ainda sorridente
quando, em tom resolutório, a narração em off volta pra Paulo afirmando o seguinte:
Eis, senhoras e senhores, o principais traços deste homem, deste homem que hoje,
sem nunca ter visto o povo, articula a queda de Fernandez e usa, para isso, de todas
as armas que o possam levar ao poder. E, para isso, ele lutará usando de todas as
facções e ideias políticas, afirmando, hoje, as mentiras de ontem, negando, amanhã,
as verdades de hoje. Eis quem é a imagem da virtude da democracia. Eis quem é o
pai da pátria!
108
Figuras 32 e 33: o riso debochado de Díaz que interage com a voz off de Paulo.
A sequência termina com outro plano de Diaz na mesma sacada, porém com o
semblante abatido e claramente chateado, a música que até então era apoteótica cede espaço
ao ruído causado por tiro de armas. Este plano demonstra a reação de Díaz ao ver o conteúdo
do seu ex aliado, este momento é um prelúdio do embate físico e simbólico que Díaz terá com
Paulo na próxima sequência.
A esse ponto do filme Glauber já descortina em grande parte a personalidade e as
práticas políticas de Díaz. É, efetivamente, a primeira inserção mais robusta do personagem,
até então ele pouco tinha aparecido na obra e, quando apareceu, foi com esta riqueza de
detalhes mostradas acima. As questões que emergem destas situações narrativas são em que
ponto e de que maneira podemos ver neste personagem como sendo influência de políticos
reais no Brasil na conjuntura do golpe e como ele condensa alguns elementos do discurso
moral também propositor do golpe.
Primeiro há de se levar em consideração que não há nenhuma referência a militares na
política no filme. As abordagens deles são em diligência no início da obra quando atiram em
Paulo após ele furar um bloqueio policial, mas fora isto e uma conversa que Vieira tem com
um coronel, não há mais referências a forças militares ou suas ações políticas. Não é muito
claro o real objetivo desta escolha de Glauber, mas podemos conjecturar de modo que ele
assim fez o filme por várias questões, entre elas, o poder da censura. A presença de militares
109
diretamente ligadas a Díaz poderia explicitar muito o conteúdo subversivo do filme causando
entraves em sua liberação e, assim, um espaço diegético alegórico permite a ele sempre
atribuir os acontecimentos do enredo a esta criação. Mesmo assim, como veremos logo mais,
o filme foi censurado pelo Estado.
Entretanto, se não pelos militares, existem outras figuras que são a base criativa para
que Díaz exista, a principal e a que vamos analisar aqui é a de Carlos Lacerda. Se tínhamos
Vargas e o populismo com um projeto político-social, pode-se afirmar sem nenhum receio
que Lacerda era a resposta lógica antagônica a Vargas e seus herdeiros, como Goulart. Em
livro publicado recentemente, Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira escrevem sobre o
governo de João Goulart e o processo que levou ao golpe em 64 numa abordagem acessível
ao público não especializado. Em decorrência deste estilo editorial, há uma série de boxes ao
longo de toda obra contendo informações sobre algumas figuras marcantes neste processo
histórico. Ao escrever sobre as direitas, há um box dedicado a Carlos Lacerda contendo
informações sobre sua vida e participação política sobretudo no período estudado pelos
autores.
Os autores afirmam que Carlos Frederico Werneck de Lacerda (seu nome completo)
foi inspirado em Karl Marx e Friedrich Engels, seu pai, Maurício de Lacerda foi um socialista
ligado a luta dos trabalhadores durante a primeira república. 151 Em sua juventude, Lacerda
integrava a esquerda brasileira, fez parte do PCB e da ANL (Aliança Nacional Libertadora).
Foi expulso do partido tornando-se um ferrenho opositor do getulismo. Os autores alegam que
após a redemocratização de 1945, Lacerda ocupou lugar de maior representação da extrema
direita que fora habitat natural de Plínio Salgado. 152 Desse modo Lacerda foi cada vez mais
ganhando proeminência no espectro político brasileiro. Sempre se posicionou contra Getúlio
e, segundo Ferreira e Gomes, tinha posições antidemocráticas que sempre coadunavam com
conspirações de golpes. O estilo de Lacerda sempre foi agressivo, insultante e que se
assegurava em calúnias para atacar os oponentes, foi um dos líderes civis do golpe de 64 e
acabou sendo cassado tempos depois pelo próprio movimento que apoiara. 153
As semelhanças entre Lacerda e Díaz são muitas e explícitas. Díaz, assim como sua
face real da política brasileira, também fez parte da esquerda em sua juventude. No início do
filme, em um diálogo com Paulo onde o poeta decide abandoná-lo para em seguida conhecer
Sara e apoiar Vieira, Díaz fala com Paulo, “somos radicais e extremistas quando jovem...” no
151
FERREIRA, Jorge, GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2014. p. 66
152
Idem.
153
Idem.
110
intuito de fazer com que seu então aliado mude de ideia, a palavra extremista, como já
pudemos ver no ato anterior, carrega em si, no filme, um sentido de adjetivação de sujeitos
com ideias de esquerda que se aproximam ou mesmo são de perspectivas revolucionárias.
Outro indício que nos leva a perceber que Díaz, em algum momento da vida, já pertenceu as
forças que condena é o fato de ele conhecer Paulo. O poeta, desde o início, mesmo com
algumas ambiguidades, apresenta propostas que coadunam com o universo das esquerdas,
inclusive aderindo a uma luta armada em prol da revolução no fim da narrativa do filme.
Porém, isto são indícios de que Díaz era, tal como Lacerda, um membro da esquerda em
tempos passados, a evidência que garante esta interpretação está na Biografia de um
Aventureiro. Voltemos a citação aqui feita no momento em que um narrador expõe sua
trajetória política, logo no início o narrador diz que ele surgiu como líder extremista
promovendo greves estudantis e com esta projeção conseguiu se eleger deputado.
Outro aspecto de ligação direta entre Díaz e Lacerda é a própria prática política dos
dois, um em seu espaço artístico-narrativo da direita em Eldorado, o outro na direita da
política brasileira, de apoio a golpes contra blocos populistas, tanto o nacionalista de Getúlio
quanto o reformista de Goulart. Vieira, como sabemos, condensa os dois. A posição de
Lacerda/Díaz é contra a prática e a favor de um golpe que, a qualquer custo, derrube seus
oponentes políticos. Um toque a mais de semelhança entre os dois é a eloquência em seus
discursos em que se mantém altivos e agressivos contra seus adversários.
Isto tanto é verdade que Marcos Napolitano em seu estudo sobre a História do Regime
Militar brasileiro ao falar das oposições que Jango sofria cita uma entrevista de Lacerda ao
jornal norte-americano Los Angeles times onde o mesmo “acusava Jango de ser um caudilho
golpista, cujo governo estava infiltrado por ‘comunistas’, e que estava preste a ser deposto por
um golpe militar”.154 Napolitano ainda diz que, na entrevista, Lacerda sugere que os EUA
fizessem uma intervenção na política brasileira afim de ajudar a derrotar os comunistas que
estavam a iminência de tomar o Brasil e, assim, com a intervenção norte-americana
combatente disto, a democracia brasileira seria estabilizada. 155 Com estas análises,
conseguimos identificar qual foi a figura capital na política brasileira para que Glauber Rocha
criasse Díaz e traçasse um perfil da direita, o que faz com que Terra em Transe seja um filme
que, apesar de manter algumas relações com a América Latina, ele, de fato, constrói um
discurso que se refere a política no Brasil pré 1964.
154
NAPOLITANO, Marcos. 1964 História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo. Contexto. 2014
155
idem
111
Figura 34: Díaz portando signos que representam, no contexto do golpe de 1964, o conservadorismo da classe
média brasileira.
156
REIS FILHO. Op. Cit. P.340
112
157
Ibidem p. 341
158
NAPOLITANO, op cit. P. 53
159
DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette. Mídia cultura e revolução. São Paulo, Companhia das
Letras. 2010. P. 339
113
em nossas realidades, são apropriadas das mais diversas maneiras para os mais diferentes
objetivos. Se estas duas dimensões do mundo social e espiritual foram importantes para
deflagração de um golpe de Estado, elas também foram cruciais na resistência dele na medida
que os setores progressistas da Igreja Católica criaram a Teologia da Libertação que, no
Brasil, agiu em oposição à ditadura. Não que a Teologia da Libertação tenha sido braço do
janguismo ou do populismo e nem quero dizer que Glauber faz alguma menção a ela pois
seria impossível visto que em 1967 ela sequer existia, mas, quando surgiu no Brasil, estava
em posição contrária do conservadorismo de direita que implantou a ditadura. Esta
complexidade simbólica reforça a sofisticação com que Glauber Rocha construiu seus
personagens em Terra em Transe.
A última sequência a ser analisada nesta seção acontece logo após a Biografia de um
Aventureiro e já mostra um confronto entre Díaz e Paulo. É importante informar que Paulo
faz a reportagem criticando Díaz um tanto a contragosto, não queria atacar alguém que,
embora estivesse posicionado política e ideologicamente contra, fora seu amigo no passado. O
encontro/confronto entre os dois ocorre no ambiente palaciano onde vive Díaz e o diálogo
entre os dois começa com o ultraconservador, visivelmente abatido, inconsolável afirmando
que os dois eram amigos e que Paulo jamais poderia ter partido pra um embate como fizera na
elaboração daquela reportagem. Em dado momento, acontece a seguinte situação:
Díaz: quem, senão eu, para salvar Eldorado? Você age em nome de quem? De quê?
Que ideais absurdos são esses os seus que gera tanto ódio contra mim? O que é que
você quer? Dinheiro? Eu lhe dou todo dinheiro que você quiser. Poder? Venha
comigo e terá todo poder. Ah, se eu quisesse... [empunhando uma arma] Ah, se eu
quisesse agora. A política é uma arma para os eleitos. Para os deuses!
Os extremistas criaram a mística do povo, mas o povo não vale nada. O povo é
cego e vingativo! Se derem olhos ao povo, o que fará o povo? [apontando a
arma para a cabeça de Paulo] Onde está sua consciência?
Paulo: [berrando o mais alto que pode] Nem que você me desse todo outro do
mundo! [grifo nosso.]
As falas cessam por um momento para que a trilha sonora, assim como na terceira
sequência sobre o populismo, ganhe visibilidade. A trilha aqui também é sobreposta
misturando ruídos de tiros de armas de fogo, rajada de metralhadoras com uma música
orquestrada exaltada. Se os tiros revelam a violência e a música a veia elitista de Díaz, neste
momento a violência é mais forte. Paulo fica desviando dos apontes que Díaz faz com a arma
em sua direção criando uma performance cênica um tanto teatral. Os dois estão no palco
revelando-se um ao outro.
114
O diálogo volta:
Díaz: estamos podres pelo crime que cometemos...
Paulo: que você cometeu.
Díaz: Lavei minhas mãos no sangue, mas no entanto fui humano.
Paulo: o sangue dos estudantes, dos camponeses, dos operários!
Díaz: o sangue dos vermes! Lavamos nossa alma. Purificamos o mundo!
Paulo: as nossas riquezas, as nossas carnes, as vidas, tudo. Vocês venderam tudo! As
nossas esperanças, o nosso coração, o nosso amor, tudo! Vocês venderam tudo!
Díaz: a última chance; diga sim!
Paulo: uma epidemia, Díaz, uma epidemia! Eu destruo!
Díaz: com suas frágeis mãos?
Figura 37 e 38: o duelo na escada que representa a ascensão ao poder ou a queda ao fracasso.
e políticos. Assim como Díaz, Kane também tem uma mansão vazia e luxuosa que também se
configuram como uma metáforas de seus donos
A aproximação entre os dois filmes é flagrante na medida em que o próprio Glauber
afirma isto em uma entrevista para o crítico Lino Miccichè quando o mesmo pergunta a
Glauber se houve influência do filme de Welles pra fazer Terra em Transe. Glauber afirma
que foi uma referência pretendida e programada e que tomou o filme como ponto de
referência ainda que haja questões de intenções gerais diferentes da parte dos autores com
suas respectivas obras160. Não só a questão da profundidade de campo, mas a própria narrativa
em flashback carrega uma semelhança entre os dois filmes, pelo menos em aspectos formais.
No limite, esta última sequência que analisamos serve para ratificar de maneiras
estéticas e narrativas variadas todos os aspectos que vimos até aqui; a aversão ao povo que
Díaz finalmente deixa transparecer explicitamente, o antipopulismo independentemente de
suas variáveis e consegue atrelar o perfil da direita a estas perspectivas através de tensões
políticas entre as próprias classes dominantes e o perfil antidemocrático, golpista, tirânico e
violento da direita brasileira materializada em Díaz.
160
ROCHA, op cit. P 240
117
Este diálogo do ponto de vista da linguagem tem uma diferença dos demais já citados
neste textos; ele acontece em voz off dos dois personagens (Fuentes e Díaz). Isto ocorre
porque, como alertei acima, a sequência é posta sob a perspectiva de Álvaro e, quando temos
o som do diálogo, a imagem acompanha Álvaro num travelling progressivo encarando-o de
costas na redação do jornal afim de encontrar Paulo. Ou seja, o diálogo se refere a outro
tempo narrativo que a imagem apresenta. No fim do diálogo citado, ainda com Álvaro a
caminhar na redação, a voz off de Paulo no deserto entra: “Álvaro depois veio a mim contar a
traição. Álvaro veio tão morto como eu. Álvaro trazia o nojo de tudo no sangue”
Aqui temos a confirmação de que realmente houve uma traição e Fuentes decidiu
apoiar o projeto golpista de Díaz. O que ocorre nesse momento descrito, na verdade, é um
flashforward161 quando Álvaro está andando na redação ao encontro de Paulo. O diálogo off
citado acima é algo que aconteceu no passado daquele momento apresentado na imagem. O
áudio remete a um tempo narrativo e a imagem a outro que é posterior ao áudio. Quando
Álvaro encontra Paulo na redação, o flashforward termina e voltamos para a reunião entre
Díaz e Fuentes. Agora, sem voz off, o diálogo prossegue:
Díaz: sabe qual o resultado do pacto de Paulo, Vieira, extremistas? Uma vez Vieira
no poder, eles engolirão você! Eles não respeitam pactos
Fuentes: eu sou um homem de esquerda.
Díaz: de quê? [risos e olhando pra câmera] olha, imbecil, escute. A luta de classes
existe. Qual é a sua classes? Vamos, diga!
Fuentes: se desenvolvermos a indústria, se dermos empregos, talvez...
Díaz: como feras famintas eles desejarão sempre mais. Até o seu próprio sangue.
Eles querem o poder. O povo no poder, isso nunca! Entende? Nunca! Pela liberdade
morreremos. Por Deus, pelo poder! Como posso chegar ao poder sem a ajuda de
Paulo, de Julio, dos melhores homens? Paulo já me traiu há muito tempo. Julio
resiste em me apoiar.
Fuentes: como? Como vou explicar aos meus sócios?
Díaz: você não tem que explicar nada. Vamos dar um golpe. Virar a mesa.
Fazer história.
Fuentes: mas eles têm as garantias.
Díaz: as garantias tenho eu.
Fuentes: quais?
Díaz: se houver eleições, Vieira ganha. Se não houver, ganho eu derrubando
Fernandez
Fuentes: somente com suas ideias?
Díaz: com a simpatia da Explint e usando a sua máquina de propaganda. A Explint
paga. Matéria paga. [grifo nosso]
161
O flashfoward se caracteriza como oposto do flashback, ou seja, ao invés do passado, apresenta-se uma
imagem do futuro do tempo presente da narrativa.
118
real. Díaz faz a mesma coisa, só inverte as peças, a estratégia é amedrontar Fuentes afirmando
que gente como Paulo e Vieira não respeitam pactos que o engolirá se assumirem o poder,
resta apenas ele se aliar com a Explint para que possam se salvar do governo onde o povo
estará no poder. Fuentes se rende a retórica de Díaz e o apoia num projeto golpista e
conservador contando com a ajuda do capital internacional. Assim a burguesia nacional em
Terra em Transe é tratada como um fantoche das forças políticas, ela jamais é sujeito ativo
em algo, mas sim instrumentalizada pelas lideranças políticas para que as mesmas tenham
recursos pra implantarem suas políticas.
O que o diálogo nos mostra, entre outras coisas, é a real intenção de Díaz, agora
exposta verbalmente sem nenhuma firula discursiva que encubra seus aspecto golpista, e o
golpe então está totalmente articulado em Eldorado. Díaz reúne todas as condições para pôr
em êxito seus planos, condições estas de alinhamento político e ideológico entre a burguesia
nacional e internacional cobertos por uma retórica de moralidade mística anti povo. Nos cabe
então a pergunta em como estas abordagens narrativas são inspiradas e consistem numa
ressiginificação do processo histórico de 1964 no Brasil, em que pé o filme consegue
construir um discurso sobre seu tempo e inserir-se na sociedade que pertence.
Para isso precisamos agora retomar a obra de Dreifuss com mais força, na seção
anterior ela fora importante para a compreensão de que havia fortemente a presença do capital
multinacional interessado em mudanças nos rumos políticos brasileiros, agora resta juntar o
capital internacional com o nacional numa ampla organização política, civil e militar que
culminou no golpe de 1964. Para Dreifuss, o golpe de classe é de classe dominante econômica
e politicamente construído em ações sistematizadas nas mais variadas dimensões da sociedade
brasileira. Neste sentido, a dramaticidade narrativa que Glauber incialmente constrói em seu
filme pondo burguesia nacional versus internacional é diluída, agora estão todos no mesmo
barco e as alegorias estão sincronizadas. Não é razoável pensar que houvera na nossa História
uma sincronia tão harmoniosa entre as classes dominantes num projeto de ruptura
democrática, porém, se entendermos estas organizações como produtoras de hegemonia, é
possível afirmar que as burguesias estavam unidas (com a devida proporção desta afirmação)
num objetivo comum. No filme, se tratando de alegorias, Fuentes se aproximar
definitivamente a Díaz e a Explint é a forma de Glauber Rocha afirmar isto.
A principal percepção que Glauber traz sobre o golpe usando Terra em Transe é que
ele foi arquitetado com participação civil, inclusive por não ter militares no filme, então os
agentes a coordenaram toda a operação golpista são forças implacáveis da política e da
economia. No Brasil, afirma Dreifuss, o interesses multinacionais e associados se tornam
120
162
DREIFUSS, op cit. P.71
163
Ibidem p 104
164
Ibidem p. 161-162
121
165
FICO, Carlos. O Grande Irmão: da operação brother sam aos anos de chumbo, o governo dos Estados
Unidos e a Ditadura Militar brasileira. Rio de Janeiro. Civilização brasileira. 2008. P.75-76.
166
DREIFUSS, op cit. P. 232
167
Ibidem p. 250
168
Ibidem p.251
122
Neste sentido, o IPES tinha uma produção cinematográfica, muitas vezes de curta
metragem, numerosa, que atingia o público não só pelos cinemas mas também por outros
meios de difusão importantes e que investia em autores de peso para dar mais corpo às obras.
O contraste é evidente com o Cinema Novo, que como vimos no primeiro ato, tinha precárias
condições de distribuição e exibição principalmente em seus primeiros anos. O que fica
evidente é que o conflito cinematográfico cinemanovista não se concentra apenas, em âmbito
nacional, com as produções da Vera Cruz ou Atlântica, mas podem rivalizar-se também com
estes do IPES. O cinema da classe dominante, ou digestivo, como diria Glauber Rocha, tem
muito apoio enquanto o cinema do combate, social e esteticamente renovador, como o
Cinema Novo, é envolvido num sistema capenga de exibição e distribuição o tornando um
cinema que quase sempre é popular em seus conteúdos temáticos, mas quanto a ser popular
em apreciação ficou apenas como um objetivo a ser alcançado.
A atuação do Instituto na imprensa também foi muito forte, atingindo mídia impressa,
de TV e de rádio, o IPES conseguia utilizar o máxima de potência doutrinária. Dreifuss
aponta que eles conseguiram realizar um sincronizado assalto à opinião pública por meio de
relacionamento com a imprensa como o Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, O Globo e TV
Globo, TV Record, etc169. De uma forma ou de outra, praticamente toda a imprensa de amplo
alcance no Brasil serviu de meio de emissão de discurso feito pelo Instituto.
A nossa intenção não é simplesmente encaixotar toda a campanha de opinião pública
que coadunava com a direita em complexos tecno-empresariais mentalizados e financiados
por capital multinacional e o nacional em larga escala como se tal campanha, em seu sentido
mais amplo possível, estivesse hierarquicamente subordinada a apenas este projeto de poder
da elite dominante. Porém, é inegável o nível de sofisticação e sistematização que estas
associações chegaram para atingir principalmente a classe média. Aliás, como disse Ianni
numa obra já citada neste texto e publicada no mesmo ano do filme, a classe média sempre se
mostrou dócil a soluções autoritárias. 170 E, em Terra em Transe, é esta complexidade
institucional que envolve forças dos mais diversos setores da classe dominante que coordena
um golpe de Estado solapa uma perspectiva mais popular e reformista de governo. O filme
concentra toda esta dimensão utilizando o recurso das alegorias, Díaz, Fuentes e a Explint
sintonizados num mesmo objetivo golpista é a resposta ou versão glauberiana de dizer em
1967 ‘sofremos um golpe de Estado e este golpe quem deu foi a elite pra fazer valer um
projeto de exploração capitalista ainda mais vigoroso’, como se eles fossem sua forma de
169
Ibidem p. 233
170
IANNI, op cit. P. 115
123
O conflito final.
Finalmente chegamos nos últimos momentos de análise fílmica deste trabalho que
abordará justamente as duas últimas sequências de Terra em Transe. Elas acontecem
imediatamente depois do suicídio de Álvaro ao saber que Díaz conseguiu converter Fuentes à
sua causa. A primeira sequência se constitui num conflito político, simbólico, ideológico e
estético entre Díaz e Vieira. A segunda se trata do retorno ao início do filme e desfecho da
narrativa com Díaz sendo coroado vencedor da batalha política que se depara o espectador.
Há o retorno da imagem-tempo puramente ótica e sonora e, terminada a memória de Paulo e o
flashback, a destruição do cristal do tempo. Além destas construções, é possível captar,
principalmente na primeira sequência desta etapa, duas diferentes concepções de povo.
Depois do suicídio de Álvaro começa a sequência do conflito final entre Díaz e Vieira,
ela é curta e se dá numa marcha dos dois personagens caminhando em direções opostas e
discursando. A montagem fragmenta os discursos de cada um proporcionando ainda mais a
percepção de confronto entre os dois. Díaz, sozinho, de posse da cruz e de uma bandeira negra
e Vieira, caminhando ao lado do povo, entram em ação:
Díaz: a democracia é o exercício da vontade do povo. Nós fomos eleitos pelo povo,
logo, somos delegados da sua vontade!
Vieira: é um tempo de decisões. Os reacionários comerão a poeira da História!
Díaz: executemos, pois, o nosso dever histórico, pressionando o presidente no
sentido de exterminar Vieira e seus agentes ramificados por todos os cantos de
Eldorado.
Vieira: defenderei as nossas riquezas contra o invasor estrangeiro!
Díaz: Meu desígnio é Deus! A minha bandeira é o trabalho! O meu destino é a
felicidade! O meu princípio é a pureza de caráter!
Vieira: de braços firmes, de mãos limpas, a consciência tranquila, construiremos
uma grande nação!
Díaz: a Pátria é intocável! A família é a sagrada! A minha esperança é um sol que
brilha mais.
Vieira: apenas uma força moverá a História e esta força ninguém poderá deter!
Díaz: este sol iluminará nossos passos. Em cada noite há uma aurora. As manhãs
não tardam!
Vieira: esta força, esta força é o povo! É o povo, é o povo! É o povo!
Díaz: As manhãs radiosas, vivas, eternas, perenes, imutáveis, infinitas!
A sequência termina com a inserção de uma música que evoca vitória e um plano de Díaz,
sorridente, desfilando em um carro aberto, aquela mesma imagem usada em sequências
anteriores, só que agora com outro sentido.
124
171
Ibidem, p. 84
172
EINSENSTEIN, Serguei. Au-delá des étoiles. Apud AUMONT, Jacques e outros autores. A Estética do
Filme. Campinas. Papirus. 1995.
125
ao passo que, em seguida, quando Vieira diz “Esta força, esta força é o povo!” o personagem
de Lewgoy vai ao chão enquanto o enquadramento o encara de cima pra baixo.
Figura 39 e 40: os tipos de enquadramento, contra-plongee para Díaz e Plongee para Vieira, demonstrando o
sentido de vitória e derrota na imagem.
porém bestializado, festivo, poucas são as inserções de consciência política, o povo aqui é
uma massa de seguidores que festeja um líder supostamente salvador.
No filme, estes momentos de elevado acirramento político e ideológico que causam na
imagem, como vimos, várias camadas de conflitos, antecede um golpe que será consumado na
sequência seguinte. Tratando a obra como uma alegoria do Brasil pré 64 vemos que a situação
não era tão diferente. Todos os autores citados neste texto que abordam o golpe civil-militar,
sem exceção, apesar de suas divergências em vários aspectos, afirmam que o Brasil pouco
antes do golpe passava por um momento de ebulição política e acirramento de
posicionamentos, isto já foi posto aqui em vários momentos através das manifestações contra
ou a favor do governo Jango. Assim, há uma sintonia de acontecimentos no filme que
coadunam com a situação histórica brasileira naqueles últimos dias que antecederam o golpe.
O conflito final entre Vieira e Díaz antes do golpe em Eldorado é, em alguma medida,
o conflito ou a polarização entre apoiadores de Jango e os críticos dele que não desejavam que
o país se tornasse comunista. Partindo disto, a interpretação que Glauber Rocha faz de povo é
bem interessante; ele simplesmente não reconhece o povo que apoiou o que veio a ser um
golpe como tal e isto explica o fato de Díaz sempre estar sozinho. Para Glauber, bastam os
símbolos ou as alegorias para que este povo seja representado, bastou a burguesia nacional e
internacional nas figuras de Fuentes e Explint e os setores mais conservadores da Igreja
Católica personificados na Cruz que Díaz empunha para dar conta deste povo que se
posicionara historicamente a favor de forças conservadoras e golpistas no Brasil. No bloco de
Vieira o povo, ainda que subordinado a uma lógica paternalista e populista, está lá e não
precisa de arquétipos em seu lugar.
O peso histórico de uma abordagem desta é alto, Terra em Transe é sim um ataque de
amplo alcance no espectro político e social brasileiro, atinge conservadores, reformistas,
religiosos, ricos e pobres, mas atinge mais fortemente ainda a direita a tratando com arquiteta
de um golpe de Estado. Mas não só a políticos, a metralhadora crítica de Glauber atinge parte
considerável da sociedade civil, principalmente a classe média, que embarcou nesta
empreitada rumo à direita. Esta base social que apoiou o golpe, na versão glauberiana de
1964, não precisa estar lá, ela é tão subordinada ao capital e as instituições tradicionais da
política e da religião de modo que ela não existe enquanto sujeito, é apenas instrumentalizada
para fazer com que vinguem os objetivos de toda esta trama de poder que as cerca. Desta
forma, essa ausência cria um forte sentido interpretativo na obra e na forma como Glauber
enxerga a classe média brasileira daquele período.
127
O golpe consumado
O leitor deve se lembrar do primeiro parágrafo do primeiro ato deste texto, estávamos
no início do filme em um momento efusivo envolvendo os personagens que ainda não
conhecíamos e um deles propõe uma revolução armada enquanto o outro opta por não seguir
este caminho. Na cronologia narrativa este momento, apesar de aparecer logo no início do
filme, é o desfecho da obra inteira e acontece logo após o que chamei aqui de conflito final
entre Díaz e Vieira. Como a sequência que analisamos anteriormente mostrou explicitamente
que Díaz saíra vencedor da sua última batalha, o que teremos agora será o seu coroamento
como chefe político de Eldorado ao mesmo tempo que o caos e a resignação se apoderam de
Vieira e a angústia de Paulo, angústia esta que o levará a sua morte bivalente, física quando é
baleado numa rodovia e simbólica quando agoniza no deserto. Daí que surgirão as memórias
que comporão o enredo do filme. A sequência que vamos trabalhar agora é a que se localiza
no fim do filme e sua estrutura é a mesma da que se localiza no início, a diferença é que esta
que vem no final é mais ampliada, existem alguns detalhes a mais e, por ser mais completa, é
mais coerente que nos dediquemos a ela agora.
O ciclo da memória de Paulo está terminando, no início a sequência repete com maior
velocidade os diálogos que são expostos no princípio do filme de modo a fazer uma espécie
de resumo. É o que já sabemos; Paulo propõe resistência armada, Vieira não topa e decide não
oferecer resistência ao golpe de Díaz. Desolado, Paulo vai embora de carro com Sara até furar
um bloqueio policial e ser baleado. É a partir deste momento que nos concentraremos em
analisar a forma com que Glauber constrói um golpe de Estado utilizando de forma potente a
linguagem do cinema.
Nesta nova representação da sequência, diferentemente do que acontece no início do
filme, a montagem reage ao barulho dos tiros que ferem Paulo intercalando o plano que
mostra Paulo e Sara no carro com momentos de Díaz sendo literalmente coroado em seu
palácio. Quando é atingido pelo primeiro tiro, a voz off de Paulo entra em cena:
Não é mais possível esta festa de medalhas, este feliz aparato de glórias. Esta
esperança dourada nos planaltos. Não é mais possível esta festa de bandeiras com
guerra e Cristo na mesma posição! Assim não é possível a importância da fé, a
ingenuidade da fé. Não é mais possível...
128
Figuras 43 e 44: à medida que Paulo recebe o primeiro tiro, a montagem revela imagens de Díaz sendo
coroado.
A voz off de Paulo nunca esteve mais aflita e mais perturbada que nestes instantes, é o
momento mais forte do cristal do tempo, pois o fim está cada vez mais assustador com a
morte se aproximando. Paulo, em sua veia mais poética de toda obra, acaba delirando e o
resultado disso é a inserção de alguns planos dele ao longo desta citação feita acima armado
no palácio onde acontece a cerimônia de Díaz. São os últimos suspiros revolucionário que
antecede a morte, Paulo está sendo destruído, mas avança se arrastando a duras penas
portando uma metralhadora para então matar Díaz. De fato, ele alcança seu inimigo, ouvimos
barulhos de tiro misturados a música de Villa-Lobos, a montagem começa alternar muito
rapidamente imagens da cerimônia quando Paulo tira a coroa de Díaz e a deixa cair. Nos seus
últimos momentos de vida física na estrada onde foi baleado, Sara pergunta “o que prova a
sua morte?”, Paulo responde “o triunfo da justiça e da beleza!”
129
Figuras 45, 46, 47 e 48: momentos antes do cristal do tempo ser quebrado; o desejo de Paulo de destronar
Díaz.
Figura 49: Díaz literalmente sendo coroado. Figura 50: zoom in em Díaz personalizando seu poder.
O penúltimo plano do filme acontece com Paulo e Sara na estrada, a indagação sobre o
valor da morte de Paulo volta, a resposta de seu interlocutor é a mesma; “o triunfo da beleza e
da justiça!” Os dois se abraçam e logo após se separam, a câmera faz um travelling pra trás e
Paulo a acompanha de posse de uma arma, começam a ecoar barulho de tiros e Sara, um
pouco atrás, vai ao seu encontro. Em um certo momento ela o alcança e os dois ficam parados
enquanto o travelling regressivo continua, estamos nos afastando dos personagens. Paulo
ferido mortalmente vai ao chão e um instante depois Sara segue seu caminho na estrada em
direção a câmera. O revolucionário caiu, não pôde ser capaz de cumprir seu dever histórico e
se entregou à morte, a militante de esquerda continua a andar, a que, diante de um colapso de
um sistema político que envolve o povo proclama, como vimos no ato anterior, que “a culpa
não é do povo”. Sara, longe da câmera está longe de seu horizonte, mas vai continuar a
caminhar numa busca por seus objetivos que talvez nunca se conclua, afinal a câmera
continua a se mover fugindo dela.
Figura 51, 52, 53 e 54: a câmera e, logo após, Sara se afastando de Paulo; o poeta se aproxima da morte.
131
O último plano é quase todo ele fixo e longo, dura quase dois minutos a trata-se
apenas de Paulo no espaço vazio, desértico, não há mais memória e nem mesmo o que
lembrar, o cristal do tempo fora totalmente destruído, o que resta é uma outra modalidade da
imagem tempo; a imagem puramente ótica e sonora que, como diz Deleuze, não tem seu
prolongamento lógico sensório-motor, é a total indiscernibilidade entre o real e o imaginário,
é um tipo de imagem essencialmente inquietante. Nem corte há mais, há apenas Paulo,
segurando sua arma que representa a revolução sabendo que ela não poderá ser posta em
prática, pelo menos não naquele universo diegético de Eldorado, mas talvez Glauber Rocha
esteja, em 1967, apontando para este caminho em seu país. A trilha mistura Villa-Lobos com
os tiros que já acontecem há um bom tempo. O poeta já sabemos que irá morrer, é uma
questão de tempo e tudo leva a crer nisso, porém ele literalmente não morre no filme, o último
instante deste plano mostra Paulo ainda vivo, logo após surgem os crédito. É possível que,
talvez, Glauber quisesse passar a mensagem de que por mais que a carne pereça, o desejo e o
sonho revolucionário jamais morreria ainda que estivessem sendo seriamente postos a prova.
Figuras 55 e 56: a volta da imagem puramente ótica e sonora. o Poeta vai morrer, mas seu corpo e consciência
ainda vivem antes de aparecerem os créditos.
O que podemos ver, então, do golpe consumado nesta sequência final da obra? Parece
óbvio pela maneira de articular símbolos e representações que Glauber faz, mas é preciso de
um pouco de sistematização para perceber mais alguns detalhes que nos ajudam a ter esta
compreensão. Ismail Xavier também analisa esta mesma sequência com a intenção de
examinar aspectos ligados a montagem e som e faz uma importante afirmação se referindo a
composição cênica e figurinos da coroação de Díaz:
[..] a cerimônia mistura figurinos arcaicos e modernos. Díaz usa um terno do século
XX e um manto real do século XVII, segura o cetro do poder; atrás dele, uma figura
fantasiada de conquistador ibérico da era das descobertas expressa em sua lealdade
segurando a coroa acima da sua cabeça.173
173
XAVIER, Ismail. op cit. p. 65
132
O Desafio, feito em 1965 por Paulo Cesar Saraceni também integrante do Cinema Novo.
Entretanto, o de Glauber fora muito mais incisivo e ousado ao abordar este tema que até hoje
é polêmico, mais representativo também visto que o filme chegou a vencer Cannes em 1967.
Marcos Napolitano nos conta que a década de 60 é de efervescência cultural e artística
no Brasil, principalmente ao que se refere a arte em aspectos vanguardista. Como vimos no
primeiro ato, tínhamos, além do Cinema Novo, o CPC, o Teatro de Arena, o avanço do
nacional popular, a literatura modernista mais evidenciada, o PCB que era a maior
organização de esquerda da época mais afinado com inciativas culturais. Havia nos artistas e
nos produtores culturais de fato um forte objetivo de aproximação da classe artística de
vanguarda com as classes populares com o intuito de politiza-la, não que soasse com uma
espécie de doutrinação, mas inserir uma nova linguagem que possibilitasse uma nova
compreensão de mundo e, no limite, uma nova consciência. Na política, antes do golpe, por
mais ambíguo que fosse o projeto populista, havia uma crescente movimentação reformista
que prometia atenuar as desigualdades no Brasil. De uma certa forma, até 1963,
aparentemente estava ocorrendo uma interessante sintonia no Brasil entre arte e política
potencialmente muito frutífera.
O golpe em 1964, segundo Napolitano, foi um corte nisso tudo, ele afirma que as
ligações entre a militância artística e cultural com as classes populares foram enfraquecidas,
as perseguições começaram nas universidades.174 O próprio Cinema Novo, como admite
muitos estudiosos, teve seu máximo momento entre 1962 e 1964, após 1966 o movimento vai
perdendo aos poucos sua essência revolucionária e esta perda certamente foi gerada pelo
desencanto que veio no pacote do golpe. O próprio Terra em Transe é um filme de
desencanto político, que deságua uma carga pesada em seu espectador, o mau vence e não há,
como em Deus e o Diabo, a corrida redentora que promete o sertão virar mar. Há sim um
tirano em plena ascensão e um revolucionário quase morto, a chama da revolução ou de
qualquer mudança ainda vive, mas está quase se apagando. Glauber Rocha afirma em
entrevista que fez o filme com nojo justamente porque era nojento para ele o momento
político que seu país passava.
A ditadura, como bem aponta Ortiz, não pretendia e nem de fato praticou uma
repressão à cultura em sua totalidade, a questão nunca foi combater a cultura de maneira
ampla. Porém, se tal cultura não agradava as percepções ideológicas do Estado, era de se
combater através de uma ação controladora e autoritária por parte do Estado.175
174
NAPOLITANO, Marcos. Op cit. p. 26
175
ORTIZ, Renato. Op cit. p. 119
134
EPÍLOGO.
A recepção do Transe na censura e na intelectualidade.
É importante também, para este trabalho atingir de forma mais ampla e eficiente seus
objetivos, compreender o que aconteceu fora da tela ao que tange Terra em Transe. Todos os
discursos construídos ao longo do filme são poderosos e interpretam a história do Brasil
daquele momento de uma maneira arrojada e criativa. Neste sentido, alguns detalhes da
produção do filme, de como a censura brasileira, muito ativa naquele momento, e algumas
cartas trocadas entre Glauber e amigos ajudam a construir este cenário que ultrapassa o que
está na tela e que causam reverberações válidas que demonstram a relevância do filme em
âmbito político e intelectual no Brasil da década de 60.
Existe uma versão do filme em DVD duplo realizada pelo Grupo Novo Cinema e TV e
Paloma Cinematográfica com o apoio da Petrobras, Museu Tempo Glauber e da Prefeitura do
Rio de Janeiro. Um dos discos contém o filme em edição remasterizada e o outro disco possui
um interessante conteúdo de extras com o trailer de Terra em Transe, galeria de fotos, o
curta-metragem Maranhão 66 de Glauber feito em 1966 e um documentário chamado Depois
do Transe dirigido por Joel Pizzini e Paloma Rocha (filha de Glauber). O documentário conta
com informações sobre o Terra em Transe com entrevistas com atores, produtores, atores e
demais pessoas envolvidas, de várias formas, no filme. O disco de extras contém mais de 120
minutos de conteúdo certamente importante pra quem tem curiosidade sobre qualquer aspecto
da obra.
Os extras são divididos em várias seções correspondendo a produção, roteiro, som,
montagem, atuações, etc. Ao que tange o roteiro, a versão final foi a consequência de vários
outros rascunhos que Glauber se empenhava em escrever, o projeto original tinha o nome de
América Nuestra e, segundo os depoentes, era bastante diferente do que veio a ser filmado.
Em todas as versões, há sempre o cuidado com a palavra, como encaixá-la corretamente no
texto, a obsessão e o perfeccionismo de Glauber com a forma fez com que ele chegasse a
versão final, seus amigos dizem que ele ficava dias lendo, relendo, contando palavras,
reavaliando todo o trabalho para poder chegar sempre num resultado mais satisfatório. Como
diz Walter Benjamin; "O trabalho numa prosa de boa qualidade tem três níveis: um musical, o
da sua composição, um arquitetônico, o da sua construção, e por fim um têxtil, o da sua
136
tecelagem"176. A impressão que fica é que Glauber esteve, durante o processo de escrita do
roteiro do filme, sempre preocupado com estes os três níveis da escrita.
O crítico e professor de cinema José Carlos Avellar conta que todas as versões do
roteiro que leu contém uma angústia e um nervosismo na maneira de narrar. Terra em Transe,
desde seus momentos iniciais, sempre foi tenso propiciando grandes relações de forças
inquietantes por natureza. O ator Hugo Carvana relata que teve dificuldade em se adaptar ao
estilo de Glauber dirigir os atores, pois vinha da abordagem racional do Teatro de Arena e, de
repente, estava sendo conduzido aos berros pelo cineasta. Glauber queria imprimir no elenco a
angústia, o nervosismo, a tensão e a desrazão que o filme exigia. A obra é uma espécie de
explosão em todos os níveis, desde sua concepção, passando pelos momentos de sua estrita
feitura até a pós produção e a recepção. No filme, a racionalidade nunca é plena, sempre vai,
em alguma medida, dividir espaço com o transe político e existencial.
Ao que compete a produção, a obra foi feita em algumas semanas com um orçamento
considerado alto pra época, sobretudo para as condições cinemanovistas. Lembremos que em
1967 Glauber já tinha feito dois longas e ganhou fama e visibilidade com Deus e o Diabo. O
produtor Zelito Viana declara que o financiamento do filme foi feito meio a meio através de
empréstimos, uma metade ficou por conta de um amigo de Glauber e a outra pelo Banco do
Estado do Maranhão, governado por José Sarney naquele momento. Em 1966 Glauber realiza
um curta sobre a posse de Sarney sob uma perspectiva de crítica. Assim, compreendemos que
apesar da proeminência alcançada pelo sucesso de Deus e o Diabo e a repercussão do Cinema
Novo, Glauber não tinha de fato dinheiro pra executar seu novo projeto, possivelmente a
visibilidade conquistada serviu para que ele pudesse ter melhores condições de conseguir
financiamentos.
No primeiro semestre de 1967 o filme estava pronto pra ser lançado, o último
obstáculo a ser enfrentado era a censura prévia do Estado que naquele período avaliava
sistematicamente qualquer produto cultural antes que ele estivesse disponível ao público,
filmes, músicas, peças de teatro tinham que passar pelos censores para que pudessem ser
apreciados. Carlos Fico nos informa melhor sobre os funcionamentos da censura neste
momento:
Não houve uma censura durante o regime militar, mas duas. A censura da imprensa
distinguia-se muito da censura das diversões públicas. A primeira era
“revolucionária”, ou seja, não regulamentada por normas ostensivas, Objetivava
sobretudo, os temas políticos stricto sensu. Era praticada de maneira acobertada,
através de bilhetinhos ou telefonemas que as redações dos jornais recebiam, A
segunda era antiga e legalizada, existindo desde 1945 e sendo familiar aos
176
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Infância Berlinense: 1910. São Paulo. Autêntica. 2012
137
produtores de cinema, de teatro, aos músicos e a outros artistas. Era praticada por
funcionários especialistas (censores) e por eles defendida com orgulho. Amparava-
se em longa e ainda viva tradição em defesa da moral e dos bons costumes, cara a
diversos setores da sociedade brasileira.177
Assim, um filme que posteriormente viria a ser considerado um dos mais importantes
do cinema brasileiro, estava oficialmente proibido de ser exibido no país. Glauber já
imaginava que o conteúdo de sua obra poderia gerar problemas com a censura, Zelito Viana,
em entrevista nos extras do DVD duplo, comenta que o cineasta chegou a deixar o negativo
da obra escondido na casa dele e de outros amigos pelo temor de tê-lo apreendido.
Diante da situação de interdição total da obra, houve um movimento que pressionou o
Estado a liberar o filme, cineastas, intelectuais, críticos, etc fizeram parte dele. O diplomata e
amigo de Glauber, Arnaldo Carrilho, afirma que ainda houve uma campanha feita por
177
FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. In Revista Brasileira de História.
São Paulo, v. 24, nº 47, p.29-60 – 2004
178
Todos os documentos referente a censura do filme em questão encontram-se disponíveis em
http://www.memoriacinebr.com.br
138
cineastas estrangeiros pra que o filme fosse liberado pra concorrer no Festival de Cannes. A
pressão surtiu efeito e o filme acabou sendo liberado com a condição de nomearem um padre
presente em algumas cenas, assim, a representação seria do religioso enquanto um indivíduo e
não coletiva da Igreja Católica. O filme venceu Cannes, o prêmio FIPRESCI (Federação
Internacional de Imprensa Cinematográfica) e outros fazendo com que o cinema brasileiro
alcançasse novos patamares no cenário cinematográfico mundial. Venceu também eventos
nacionais como o Festival de Cinema de Juiz de Fora e o Prêmio do Governo do Estado de
São Paulo
A recepção da censura estatal brasileira não foi das melhores para Terra em Transe, o
filme gerou polêmica mesmo antes de ser lançado, não poderia ser diferente após seu
lançamento. Um momento que sintetiza exemplarmente as múltiplas interpretações e opiniões
sobre filme foi o cine-debate ocorrido no MIS (Museu da Imagem e Som) no Rio de Janeiro.
Participaram do debate figuras importantes no cenário intelectual e cinematográfico brasileiro
como Hélio Pellegrino, Fernando Gabeira, Alberto Savá, Sergio Augusto, Mauricio Gomes
Leite, Ronald Monteiro e Luiz Carlos Barreto, Joaquim Pedro de Andrade todos diante de um
boa plateia de espectadores.
Os extras do DVD contém alguns trechos em áudio do debate, a partir deles
percebemos um viés crítico negativo do filme por parte de Fernando Gabeira, na época
militante de esquerda. Gabeira naquele momento discorda frontalmente da proposta do
protagonista Paulo Martins para a revolução que, dada aquela situação de crise política e
iminência de golpe de Estado, só se realizaria através de uma luta armada. Para Gabeira esta
conclusão é errônea, existem outras vias de combate a hegemonia burguesa. Curiosamente,
pouco tempo depois do debate e de tais afirmações, Gabeira passa a integrar o Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) que compõe a esquerda armada no Brasil contra a
ditadura.
Mauricio Gomes Leite destaca a oscilação do protagonista e como ele transita em
diversos mundos que ele mesmo ajudou a construir. O filme, na percepção de Leite, é
provocante, tira o espectador da zona de conforto ao mostrar um ambiente político e social
que, apesar de acontecer num país fictício, tem uma proximidade sintomática com o Brasil.
No limite, Terra em Transe é um filme indigesto, que transmite a inquietude da trama e de
seus personagens ao espectador, seja ele pertencente ou simpático a qualquer ideologia
política.
O cineasta Joaquim Pedro de Andrade realça a dimensão poética que permeia toda a
narrativa do filme que, de acordo com seu entendimento, é uma poesia gritada pelas massas.
139
A poesia em Terra em Transe tem como característica impulsionar a densidade da trama. Para
Hélio Pellegrino, Paulo representa muito bem os impasses políticos do país e a poesia sempre
atinge intensamente o espectador.
Fora do debate do MIS, o historiador pecebista Jacob Gorender em sua famosa obra
sobre a esquerda brasileira dos anos 60 chamada Combate nas Trevas escreve negativamente
sobre Terra em Transe:
A aversão emocional ao populismo atingiu o terreno das artes e aí deslizou para
aversão à própria massa popular, na filmografia de Glauber Rocha Terra em Transe,
de 1967, satiriza o líder populista e as massas imbecis que se deixam enganar. Nada
a esperar das massas idiotizadas, mas do intelectual que sai atirando de
metralhadora.179
Terra em Transe foi criticado e elogiado por muitos, pessoas dos mais variados
posicionamentos políticos. A direita, obviamente, não digeriu bem o filme, grande parte da
esquerda também não o viu com bons olhos, as percepções de Gabeira e Gorender aqui
demonstradas são sintomáticas disto. A verdade é que Glauber Rocha não poupou ou blindou
quaisquer grupos, sujeitos ou pensamentos políticos, o filme certamente é uma obra ousada,
não só em aspectos estéticos, praquele momento, antes disso, sobressai uma crítica
multidimensional referente a diversos grupos políticos.
Numa entrevista concedida a Frederico de Cardenas e Rene Caprilles em 1969,
Glauber fala um pouco mais do impacto negativo que o filme teve em setores importantes da
esquerda brasileira;
Fiz Terra em Transe com a aspiração de que fosse uma bomba. Lançada com toda
intenção. Atacando os preconceitos de uma esquerda acadêmica, conservadora, a
que reagiu contra o filme de uma forma neurótica e isto foi positivo. No Brasil o
filme foi lançado em meio a uma grande polêmica, foi proibido pela censura sob
acusação de ser um filme altamente subversivo e imoral, atacando-o do ponto de
vista político, moral, sexual etc. Apesar disso o filme foi convidado a Cannes e,
devido a um protesto internacional e brasileiro através da imprensa, o Ministro da
Justiça reabriu o processo e liberou o filme sem cortes. Mas quando se exibiu, a
maior parte da esquerda “oficial” atacou-o acusando-o de fascista. Foi uma polêmica
social, cultural e política enorme; hoje, Terra em Transe, há dois anos de lançado,
continua permanente e atual: a imprensa continua ocupando-se dele, discutindo-o, e
público, tanto o que foi ver o filme e não entendeu como o que viu e reagiu contra,
tomou consciência dele.180
O bloco narrativo que mais incomodou estes setores da esquerda foi o bloco ligado ao
personagem Vieira, político popular, carismático e supostamente preocupado com as
necessidades do povo. Vieira era o modelo ideal de político que o PCB pensava para o Brasil,
179
GORENDER, Jacob. Combates nas Trevas. In RAMOS, Alcides. TERRA EM TRANSE: (1967, Glauber
Rocha): estética da recepção e novas perspectivas de interpretação. In Revista de História e Estudos
Culturais. Uberlândia. Vol. III. Abril/maio/junho. 2006.
180
ROCHA, op cit, p. 171.
140
muito útil para combater a direita aliada ao imperialismo norte-americano que no filme é
representada pelo personagem Díaz. Isto se explica porque o PCB do início dos anos 60,
como é possível perceber através de Nelson Werneck Sodré181, estava momentaneamente
aliado com a burguesia nacional para eliminar os principais as aspectos contrarrevolucionários
naquele momento, o imperialismo e o latifúndio. O Partido acreditava que o crescimento da
burguesia nacional ao passo que estes outros dois aspectos caiam fortaleceria o Brasil na
perspectiva de produção e, assim, estaria a um passo da revolução socialista.
Ainda se tratando da recepção desta esquerda com relação ao filme, a coisa fica ainda
mais complicada quando existe uma simbiose entre o povo e Vieira. O povo então estaria
completamente submetido aos propósitos do político e, mesmo sabendo de sua impotência,
permaneceria incapaz de reagir para transformar a situação a seu favor. Desse modo Glauber
Rocha destrona duas dimensões importantíssimas para o projeto político do maior grupo de
esquerda do Brasil naquele período; o político populista e nacionalista e o povo.
Tomando como medida as afirmações de Glauber sobre a recepção de Terra em
Transe, nota-se que ele ficou muito satisfeito com o reboliço que o filme causou,
provavelmente já imaginava as intensas críticas vindas de todos os lados. Se o mesmo diz que
fez como se fosse uma bomba, evidentemente ela explodiu na mão de muitas pessoas, pessoas
que pensavam a política brasileira de maneira oposta, inclusive. A obra inquietou por onde
passou, seja pela incompreensão por ser hermética, pela compreensão, pela discordância ou
concordância com o seu conteúdo.
Alfredo Guevara foi diretor do Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos
(ICAIC) e amigo de Glauber durante muitos anos, em 2002 ele publica um livro chamado Um
Sueño Compartido que reúne suas cartas trocadas com Glauber durante o período em que se
comunicavam. No segundo semestre de 1967, mais precisamente em agosto, Glauber estava
percorrendo a Europa e exibindo seu filme em festivais. De Roma escreve a Alfredo sobre um
novo projeto que tem em mente chamado America Nuestra, mesmo nome do roteiro original
de Terra em Transe. Na carta, Glauber tem a pretensão de filmar no Peru, Brasil, Uruguai e
Argentina dizendo que se trata de um filme que contará
[...] um poco más que Tierra em trance, porque debo filmar em Perú, después em
Brasil, em Argentina y em Uruguay. Utilizaré actores y em otras partes
documentales. Perdóname la presentación, pelo trato de hacer uma estrutura épica al
estilo de Octubre, com mucha fuerza poética y emoción revolucionaria. Creio uma
cinta politica debe ser también um estímulo cultural y artístico. Y para nosotros,
latinomaericanos, que somos colonizados cultural y economicamente, nuestro cine
181
SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil. Belo horizonte. Oficina de
Livros. 1967.
141
debe ser revolucionário desde el punto de vista político y poético, o sea, tenemos
que presentar ideas nuevas com um linguaje nuevo.182
Glauber também escreve a Alfredo com intuito de pedir ajuda financeira ao ICAIC
para bancar seu novo projeto, o amigo responde que o instituto fará o possível mas, por razões
que desconhecemos, o projeto não vingou. Como se sabe, em 1969 Glauber realiza O Dragão
da Maldade Contra o Santo Guerreiro e depois sai do Brasil para filmar em outros lugares.
No entanto, podemos perceber que esse novo América Nuestra poderia ser uma espécie de
continuação de Terra em Transe. Falar de política na América Latina com nuances poéticos
ainda estava na mente de Glauber possivelmente empolgado com os desdobramentos de seu
último filme. Isso nos ajuda a compreender como Terra em transe o impactou, os diálogos
que vimos até aqui servem para dar uma noção de como um filme extrapola a própria
imagem, aliás, ele precisa extrapolar para que tenha algum efeito onde atua. Até na análise
estrita da imagem cinematográfica não fica na imagem por si, existe uma série de relações que
são intrínsecas a ela e conhecer o que é externo, ou seja, o contexto social e de produção da
obra e sua recepção certamente contribuem para uma percepção mais aguçada da obra e do
mundo que a cerca e, fatalmente, interfere nela.
Com tudo que foi apresentado ao longo deste trabalho, fica explícita as redes históricas
que arrodeiam Terra em Transe e como o filme estabelece um forte discurso sobre o seu
tempo tanto por seu conteúdo, quanto pelo que suscita por sua recepção. O filme é a
materialização do estado de espírito do Cinema Novo pós golpe de 1964 quando o clima
melancólico do desencanto político e de autocrítica cerca Glauber e outros cineastas do
movimento. Com isso, Glauber libera em seu terceiro longa-metragem toda energia que
reflete sua perplexidade diante do cenário político que se desenhou após o golpe desaguando
num produto audiovisual recheado de sentidos e interpretações históricas. Analisar as que se
referem à realidade política brasileira entre 1930 e 1964 nos permitiu, ao longo do texto,
identificar as maneiras que um filme é testemunha do momento histórico em que está situado
e, inclusive, como agente histórico na medida que se comunica com o espectador e, no caso
de Terra em Transe, com o evidente objetivo de inquietá-lo, fazê-lo refletir sobre os sistemas
sociais que o cercam cotidianamente e de como, partindo filme, é possível suscitar questões
sobre o populismo político no Brasil e o processo de implantação da ditadura em 1964
182
GUEVARA. Alfredo. Um Sueño Compartido. Espanha. Ibérica. 2002. P. 60-61
142
Fontes.
Audiovisual
Terra em Transe, Glauber Rocha. Tempo Glauber. Edição especial em DVD duplo. 108 min.
(DVD)
Segunto ato:
Terceiro Ato:
DVD Extra – Terra em Transe. Documentário Depois do Transe. Realizado por Joel Pizzini e
Paloma Rocha.
Documentais.
Decisão de interdição da obra pelo chefe do SCDP, Romero Lago. 19 de abril de 1967
Bibliográficas.
Artigos que compuseram a obra Revolução do Cinema Novo, escrita por Glauber Rocha. (Os
artigos estão presentes todos na mesma edição)
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do Cinema. 1961. p. 43.
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