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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA.

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – DCH CAMPUS V.


PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E
LOCAL

ÍTALO NELLI BORGES.

O ESPAÇO DO DESENCANTO: REPRESENTAÇÕES DA


POLÍTICA BRASILEIRA EM TERRA EM TRANSE.

Santo Antônio de Jesus.


Novembro - 2016
ÍTALO NELLI BORGES

O ESPAÇO DO DESENCANTO: REPRESENTAÇÕES DA


POLÍTICA BRASILEIRA EM TERRA EM TRANSE.

Dissertação apresentada ao Programa de pós


Graduação em História Regional e Local do
Departamento de Ciências Humanas – Campus
V, Santo Antônio de Jesus, da Universidade do
Estado da Bahia, como requisito final para a
obtenção de grau de Mestre em História, sob
orientação da Profª Drª Priscila Gomes Correa.

Santo Antônio de Jesus.


Novembro – 2016.
FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592

Borges, Ítalo Nelli

O espaço do desencanto: representações da política brasileira em Terra em


transe / Ítalo Nelli Borges . – Santo Antônio de Jesus, 2016.

144f.

Orientadora: Priscila Gomes Correa.

Dissertação (Mestrado) Universidade do Estado da Bahia. Departamento


de Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História Regional e
Local. Campus V.

Contém referências.

1. Rocha, Glauber, 1939-1981 - Visão política e social. 2. Cinema. 3. Roteiros


cinematográficos - História e crítica. 4. Terra em Transe (Filme). I. Correa, Priscila
Gomes. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.

CDD: 791.43025
ÍTALO NELLI BORGES

O ESPAÇO DO DESENCANTO: REPRESENTAÇÕES DA


POLÍTICA BRASILEIRA EM TERRA EM TRANSE.

Dissertação apresentada ao Programa de pós


Graduação em História Regional e Local do
Departamento de Ciências Humanas – Campus
V, Santo Antônio de Jesus, da Universidade do
Estado da Bahia, como requisito final para a
obtenção de grau de Mestre em História, sob
orientação da Profª Drª Priscila Gomes Correa.

BANCA EXAMINADORA.

Profª Drª Priscila Gomes Correa (Orientadora)


Universidade do Estado da Bahia. (UNEB).

Profº Drº Raimundo Nonato Pereira Moreira.


Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

Profª Drª Karen Christine Rechia.


Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Santo Antônio de Jesus.


Novembro – 2016.
Ora direis ouvir estrelas.
Certo perdestes o senso, e eu vos direis no entanto:
Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer ‘não’, eu canto.
(Antônio Belchior)
AGRADECIMENTOS.

Sempre leio com muito interesse os agradecimentos dos trabalhos que tenho acesso. É
prazeroso conhecer os diversos contextos da escrita de um texto acadêmico. Imagino os
percalços, alegrias, angústias e satisfações de quem escreve ao longo de seu processo de
pesquisa, talvez faça isso na tentativa de achar um pouco de emoção no outro e relaciona-la
com a emoção que há em mim porque ver o sentimento de gratidão do outro é, em alguma
medida, sentir-me grato aos meus. É por isso que dou grande importância a este momento e já
perdi as contas de quantas vezes ao longo destes dois anos de curso me deparei imaginando
como escreve-lo. Me dou ao luxo de agradecer chamando as pessoas pelo primeiro nome, este
momento é íntimo e não carece de formalidades, ademais já uso muitos sobrenomes no
decorrer do texto.
Este trabalho é dedicado às memórias dos meus avôs; Beto e Paulo. Beto, filho de
imigrante italiano anarquista, fã de Mario Puzo. Se foi há tempos, mas tinha sangue de luta
nas veias, lutou por melhorias pra sua classe na época de bancário. Poucas são as lembranças
que tenho dele como a vaga imagem sua falando “iai rapaziada!” quando encontrava os netos.
Lamento muito por não ter tido a oportunidade de conhece-lo mais a fundo, o que tenho são
memórias, mas permanecerão vivas. Paulo se foi há pouco tempo, ainda no curso dessa
dissertação. Tinha orgulho de todos os netos, sem exceção, transbordava seu carinho gigante
por nós nos mínimos detalhes, num olhar, num sorriso, na sua leveza de ser e viver, eu jamais
esquecerei seus olhos. Amo vocês! Quem sabe, vai que o universo reserve um plano pra nos
encontrarmos em algum momento onde o tempo não exista, né! Torço por isto.
Minhas avós, Dilma e Lúcia, mulheres de coragem que sabem encarar a vida de frente,
que viveram um tempo onde ser mulher era muito mais difícil que hoje, são meus maiores
exemplos de amor, cuidado e perseverança. Meus pais, Lorena e Afonso, que, antes de todos,
confiaram e acreditaram em mim, continuam me apoiando e me orientando nos caminhos que
tomo na vida e, muitas vezes, negaram seu próprio conforto para que pudessem dá-lo aos
filhos. Se um dia for pai, ficarei agradecido se for metade pro meu filho do que vocês são pra
mim. Meu irmão, Rafael, que é um ótimo interlocutor, tive a sorte de ter um irmão que
também é amigo, e dos bons! Estaremos sempre juntos, mesmo longe! E saiba que sua
obstinação é um potente combustível para que eu possa alcançar meus próprios objetivos. À
meus tios, tias, primos e primas, meus sinceros agradecimentos.
À Amanda, porque é amizade, porque é amor e porque, principalmente, os dedos estão
entrelaçados e as explosões continuam no céu, sempre! Te amo!
Devo muito à Priscila, que deixou claro ser minha orientadora no primeiro dia de aula
do mestrado ao responder uma pergunta minha. De lá pra cá, compartilhamos muito tempo
em orientações, tirocínio docente e inúmeras conversas agradáveis pelo campus da UNEB.
Sou grato a sua paciência de orientar este trabalho o direcionando para caminhos mais
profícuos da pesquisa histórica e pela nossa relação profissional também ser permeada pela
amizade. Sua humildade e sensibilidade são inspiradoras para o professor que sou. Como
somos parceiros nas performances históricas, sei que esta amizade irá continuar além do
mestrado.
Tive a sorte de ter na banca examinadora alguém que, assim como eu, tem paixão pelo
cinema. Karen sempre mostrou uma disposição enorme em contribuir para este texto. Com
Karen também tive diálogos memoráveis no nosso clube do filme, da Nouvelle Vague ao
cinema argentino contemporâneo passando por Herzog, Bertolucci... Uma alegria genuína pra
quem é cinéfilo. Confesso até que estas conversas me deram uma motivação importante para
interpretar minha própria fonte de trabalho. Obrigado pela atenção, sei que vais reconhecer
tuas marcas neste texto, espero não decepciona-la.
Sou grato também a Raimundo Nonato, que acreditou neste trabalho quando ele ainda
era um projeto de pesquisa e pôde contribuir para o seu desenvolvimento integrando a banca
examinadora. Além do mais, seu brio intelectual e político, sua percepção historiográfica
aguçada e suas sugestões para a construção deste texto me tornaram um pesquisador mais
atento, tanto para a minha própria pesquisa, quanto à realidade que me cerca.
Na UNEB-SAJ também tive o privilégio de conhecer pessoas que guardarei com todo
carinho em minha memória. Colegas que foram facilmente promovidos a amigos; Álvaro meu
petralha favorito, ético, bom filho e, acredite cara, seu filho terá sorte em tê-lo como pai.
Méééchele que é brááába, chorona, da luta, mãããe, fala na cara (e eu adóóro), me deve vinhos,
mas em breve beberemos juntos, as palavras sobre ela são longas significando intensidade
porque ela é tão intensa quanto, é o tino perfeito pra uma historiadora! Giovanna que
consegue ser guerreira e doce, mas não aquela doçura clichê que gostam de atribuir às
mulheres. A dela é diferente, uma coisa de estado de espírito, só a conhecendo pra entender.
André que, assim como eu, tem apego as artes e isto, pra mim, é condição fundamental pra ter
a sensibilidade que a vida nos exige. Rosana que também é do cinema, que chega mansinha,
humilde, mas se a gente der dois dedo de ousadia mostra um potencial incrível, eu
sinceramente espero que a vida seja ótima pra você!
Tenho que agradecer especialmente a Gabriel e Aryzinho, Gabriel abriu as portas da
sua casa quando mal me conhecia, não só em SAJ, mas também em Ilhéus numa viagem
fantástica! Vei, obrigado por tudo; por compartilhar suas casas comigo, pelas experiências em
Floripa, Ilhéus, Santo Antônio e em Feira, pelos duelos disputadííííssimos do FIFA, por estar
disposto a sempre me ajudar, não só a mim como a qualquer um que você possa, pela sua
leveza e tranquilidade que atingem positivamente todos a sua volta, nunca tire esse sorriso da
cara. E Aryzinho, meu mentor intelectual, competente, estudioso, palmeirense (ops), aqui é
Coriiiinthiaaa, mano! Tivemos ótimos momentos em BH, na UFMG e naquele jogááááço que
vimos no Mineirão. Em Aracaju na UFS, dando corridinhas pela orla e, claro, secando o
Parmeraa. Ary sempre me motivou, mostrou e continua mostrando que é possível pensar alto
no mundo acadêmico. Confiou em mim para uma cacetada de atividades e me deu
oportunidades de crescer intelectual e profissionalmente. E como se não bastasse, o danado
ainda é cantor e forrozeiro! Quando fui fazer esse mestrado em SAJ, sabia que faria bons
amigos, mas vocês me surpreenderam mostrando que também ganhei dois irmãos. Obrigado,
cabras!
E a Jack, meu gatoon, aí já é amor antigo, desde a sala do vestibular para História em
2008 e em 2016 terminamos juntos o mestrado. É uma longa trajetória de amizade,
solidariedade, conversas, cervejas, percursos e risos. Ele não faz História, ele a vive, e esta é a
qualidade mais rara para um historiador. Continuaremos juntos e sempre humildemente
aprenderei com você.
Aos da UEFS que me acompanham desde a graduação e não perdemos o contato; Jairo
jockey do Rio Jacuípe, Tadeu sertanejo universitário, nosso Rei Anderson, o egrégio Romeu,
Joelma Tigresa, Raffael Einai manjador dos cotidianos urbanos, Lina, Ane manjadora das
literaturas, Bia, Rafael Dantas campeão do SEMIC e barman, Fabrício Queixinho de Ouro,
Tamy, o Rasta, Valter Zaqueu e Patrícia Matos rokera empoderada. Estaremos sempre juntos!
Agradecimentos pra essa gente especial que me faz ver alma na vida cotidiana;
Ludimilla porque ela é toda poesia, e das boas, daquelas que desviam, marginais, das que
movem e co-movem. Ananda porque “honey, you’re familiar like my mirror years ago.” São
8 anos de amizade e eu não consigo deixar de te admirar por um momento que seja, por suas
escolhas, pelos desafios que encara e pela sua inteligência pulsante e despida de vaidades. Me
contrate pra pilotar seu jatinho em breve! Alana pelas infindáveis e fantásticas conversas de
buzú onde ela me obrigava a citar referências bibliográficas sobre o que estava falando, por
ser uma onça braba que eu adoro mesmo quando diz que historiador é tudo chato, sei que
dizes isto pelo desejo reprimido de ser historiadora! Aos amigos do Corujão com vinho bem
adegado; Morééllo, Neto Puliça thug life, Camuca mito/monstro e Binho Frota que
recentemente descobriu que coração é um músculo. A Diego, professor e amigo, que muito
me ensinou pela sua solidariedade e companheirismo, o que fizeste por mim jamais será
esquecido e tento, humildemente, pôr em prática o que eu aprendi observando você. Agradeço
também a Bruninha desembargadouuuuuuuura, Millena serpente que rasga a camisa do zôtu e
Pró Rose.
Aos professores da UEFS e UNEB, tanto da graduação quanto do mestrado que foram
importantes pra minha formação profissional e humana; Rinaldo, Onildo, Ivone, Elciene,
Coelho, Valter, Carlos, Suzana, Cristina Luna, Nancy e Sara. Às Colegas Jacque, Kátia,
Danni e Lucila. À CAPES e ao PGHIS da UNEB por darem o suporte necessário para a
realização deste trabalho.
Todos vocês, de alguma forma, possuem marcas em mim e neste texto, que também
sou eu, só que por outra linguagem. Obrigado!
RESUMO.

Essa dissertação consiste em, através de análise fílmica entrelaçada com o contexto
histórico dos anos 1960 no Brasil, identificar e problematizar as representações da política
brasileira inseridas no filme Terra em Transe, realizado por Glauber Rocha, em 1967. Neste
sentido, é fundamental entender o contexto de produção da referida obra, na medida que a
década de 1960 foi bastante efervescente na cultura brasileira, vários movimentos artísticos
surgiram com o intuito de transformação social. O Cinema Novo, movimento cinematográfico
cujo Terra em Transe pertence, é um exemplo dessa afirmação reforçando a ideia de que a
abordagem do contexto histórico do período em que o filme se insere contribui sobremaneira
para compreensão de suas representações políticas. Ao que tange as representações contidas
na obra, nos concentramos em examinar, utilizando a análise de elementos compositores da
linguagem cinematográfica como principal instrumental metodológico, como Glauber Rocha,
por intermédio de seu filme, constrói um discurso sobre o populismo na política brasileira
vigente entre 1930 e 1964 e sobre o processo de implantação da Ditadura Civil-Militar em
1964.

Palavras Chaves: Cinema, História, Representações políticas, Terra em Transe


ABSTRACT

his dissertation is to, through film analysis intertwined with the historical context of
the 1960s in Brazil, identify and question the representations of Brazilian politics inserted in
Earth Entranced film, directed by Glauber Rocha in 1967. In this sense, it is essential to
understand the production context of that work to the extent that the 1960s was quite ebullient
in Brazilian culture, several artistic movements have emerged with the aim of social
transformation. The New Cinema, film movement whose Earth Entranced belongs, is an
example of this statement reinforcing the idea that the approach of the historical context of the
period in which the film falls greatly contributes to understanding of their political
representation. To respect the representations contained in the work, we focus on examining,
using the analysis of composers elements of film language as methodological instrument
principal, as Glauber Rocha, through his film constructs a discourse on populism in current
Brazilian politics from 1930 and 1964 and the implementation process of the Civil-Military
Dictatorship in 1964.

Key Words: Film, History, political representations, Terra em Transe


SUMÁRIO

Prólogo: Das possibilidades de relacionar cinema e história.............................................01

Primeiro Ato: Glauber Rocha e os Complexos Enredos por um Cinema


Revolucionário........................................................................................................................10
1.1 Considerações sobre Glauber Rocha......................................................................12
1.2 Alegorias, misticismos, violência e consciência....................................................14
1.3 O nascimento da revolução....................................................................................19
1.4 As essências conflitantes do cinemanovismo.........................................................24
1.5 A organização cinemanovista.................................................................................30
1.6 Eztetyka e recepção da revolução...........................................................................33
1.7 A geração revolucionária........................................................................................40

Segundo Ato: Construção e Desconstrução do Populismo em Terra em Transe..............55


2.1 Intersecções entre história e cinema.......................................................................56
2.2 A imagem-tempo deleuziana como potência interpretativa para Terra em
Transe.......................................................................................................................................60
2.3 A construção do mito político.................................................................................67
2.4 O mito pressionado e revelado................................................................................75
2.5 A síncope do populismo..........................................................................................87

Terceiro Ato: As Tramas de um Golpe de Estado: tensões, perfil da direita e conflito


político.....................................................................................................................................99
3.1 Tensões no poder e perfil do golpista....................................................................100
3.2 O golpe articulado e aprimorado...........................................................................116
3.3 O confronto final...................................................................................................122
3.4 O golpe consumado...............................................................................................127

Epílogo: A recepção do transe na censura e na intelectualidade......................................135


Fontes.....................................................................................................................................142
Referências Bibliográficas....................................................................................................144
1

Prólogo.
Das possibilidades de relacionar cinema e história.

O tempo certamente é algo chave para historiadores e cineastas. Na história é categoria


fundamental pra que ela possa ser minimamente delimitada para ser analisada, a
experimentação humana no e do tempo é a origem da história. Nas narrativas fílmicas é
elemento norteador e desafia o cineasta na medida que precisa ser administrado; para
compreender isto basta imaginar na tarefa de condensar o tempo da narrativa no tempo da
duração do filme. O interesse aqui é unir estas perspectivas de tempo ou, em outras palavras,
unir a história e o cinema. O filme Terra em Transe (1967) feito por Glauber Rocha qualifica-
se como caminho para chegar a isso sendo possível, partindo dele, analisar e refletir sobre
dimensões históricas da sociedade brasileira no período em que foi realizado. O tempo
histórico e o tempo cinematográfico, neste trabalho, se retroalimentam com o intuito de
potencializar duas forças que, incialmente, podem parecer distintas, mas que com alguns
critérios podem interagir fortemente; a história e o cinema.
História e tempo leva imediatamente a pensar em distâncias, sejam elas temporais ou
físicas e é disto que parte o atrevimento de misturar história com regras físicas que regem as
distâncias cosmológicas no universo. Olhar para o céu noturno e ver a luz que emana das
estrelas me faz pensar em história. A Exceção do sol, Alfa Centauro é a estrela mais próxima
da Terra, e está a aproximadamente 4 anos-luz de nós, isto quer dizer que, se entrarmos num
veículo espacial neste momento, demoraríamos 4 anos viajando na velocidade da luz, 300.000
Km/s, para chegarmos lá. Isto também quer dizer que a luz de Alfa Centauro leva em torno de
4 anos percorrendo o espaço para chegar à Terra. Por isso, incrivelmente, o brilho que vemos
da estrela não é o de agora, mas sim de 4 anos atrás, é um brilho do passado. O céu estrelado
é uma espécie de máquina do tempo natural que agrega temporalidades magnificamente
versáteis na medida que há estrelas a milhões de anos-luz daqui e a mais próxima de fato, o
sol, a apenas 8 minutos-luz da Terra. Olhar para o céu é, literalmente, olhar para o passado.
Perguntar-se o que isto tem a ver com a história é algo instantâneo e pode ser
respondido com outra pergunta; o que faz o historiador senão olhar para o passado? Porém,
infelizmente, não fomos tão agraciados como os astrônomos que têm o privilégio de
possuírem sua própria máquina do tempo apenas olhando para cima vendo pontos brilhantes.
Nós temos, além de nossa imaginação que é presente em qualquer atividade intelectiva, outro
tipo de máquina do tempo, os registros do passado ou, num jargão mais acadêmico, as fontes.
2

Olhar para o objeto deste trabalho que são as representações históricas criadas por Terra em
Transe, especificamente as que se refere ao processo que desencadeou no golpe de Estado em
1964 e o populismo na política brasileira é, metaforicamente, a mesma coisa que olhar para o
brilho emanado por Alfa Centauro. Explico; tanto um como o outro aconteceram no passado,
mas de alguma forma nos alcançam no presente e causa algum efeito em nós. A História, por
definição, questiona e estuda o passado, mas este passado jamais se desvincula do presente.
Se as estrelas brilham no presente para alcançar a Terra no futuro, a história acontece no
passado para nos alcançar no presente.
Para construir uma pesquisa histórica sobre aspectos da política brasileira
contemporânea citados acima qualquer historiador poderia utilizar de diversos registros do
passado feitos nesse período que hoje são considerados fontes históricas; imprensa,
documentação civil, estatal ou militar, relatos orais, etc. Neste texto, como se sabe, o filme
Terra em Transe é o suscitante de várias questões referentes à história. Neste filme, assim
como em outras fontes, há implícita ou explicitamente um discurso sobre seu tempo, o
objetivo de extrair da fonte as informações necessárias para, concomitante a análise adequada,
se produza conhecimento histórico é intrínseco a qualquer trabalho historiográfico, o que
muda é a maneira de se fazer isso. O cinema e o filme demandam outras abordagens
metodológicas, que são diferentes de uma análise de fontes escritas, que, por sua vez,
demandam outras abordagens se comparadas com fontes orais e assim sucessivamente.
Entretanto, todos sabemos, escrever é uma atividade solitária. Escrever um trabalho
em História é desafiador considerando que o leitor sempre saberá o final dela. O leitor, ao ler
sobre o golpe de 1964 no Brasil, sabe desde o início que houve um golpe e isto acontece
igualmente com o leitor que lerá sobre a Revolução Francesa ou sobre o declínio do Império
Romano. Ninguém ler um trabalho em História como se lesse um romance ou assistisse um
filme, ávido para saber o final. No limite, o que importa numa obra historiográfica, são as
análises feitas pelos historiadores e a capacidade proporcionar reflexões históricas no leitor.
Em outras palavras, se o início e o fim da coisa já está dada, mais vale o seu processo, o meio
do caminho e, de todo jeito, a pessoa mais competente para fazer este trabalho é o historiador.
Sobre a política brasileira entre 1930 e 1964 existem vários meios do caminho ou análises a
serem feitas sobre ela. O filme Terra em Transe certamente situa-se num desses caminhos e, a
partir dele, é possível perceber sentidos históricos referentes ao Brasil daquele período.
As inquietações que percorrem Robert Darnton ao escrever a introdução de O Beijo de
Lamourette me parecem pertinentes. O autor reflete sobre sua própria prática questionando o
alcance que a obra de um historiador tem na sociedade tocando no ponto de que, basicamente,
3

escrevemos para outros historiadores lerem, o que pode tornar a produção deveras acadêmica,
específica e potencialmente inacessível a outros públicos.1 Sendo assim, como vencer estes
aspectos? Não sei se é possível ou quisto vencer isto, no entanto é necessário tentar escrever
de maneira mais agradável ao leitor, seja ele quem for e isto, de maneira nenhuma, implica na
diminuição do rigor analítico e metodológico do texto. Foi buscando este horizonte que este
texto foi construído.
O alvo deste trabalho é compreender como Glauber rocha, através do seu filme Terra
em Transe, constrói um discurso sobre a política brasileira que atingiu o Brasil entre 1930 a
1964 mais especificamente em relação ao populismo e sobre o golpe de 64. Entender este
como, ou seja, as maneiras estéticas e narrativas de construção destes discursos é importante
na medida que o filme, assim, produz uma interpretação sobre seu próprio tempo. O que está
na tela vem de um mundo fora dela e sai para este mesmo mundo, que é histórico, de maneira
ressignificada com intenção de objetivos políticos. Terra em Transe, assim como qualquer
outro filme, é algo que podemos tomar como mediador entre realidades e percepções sobre a
mesma na medida que Glauber certamente realiza este filme como algo reativo aos processos
políticos acontecidos no Brasil nos anos anteriores.
É neste sentido que podemos chegar em noções teóricas e conceituais que norteiam
todo este trabalho, se tratam das sistematizações inseridas ao longo do texto que alguns
autores trazem acerca do cinema, da História e da interação entre os dois. Assim, há no texto
contribuições tanto teóricas quanto metodológicas que vão de Gilles Deleuze2 e Jacques
Aumont3 no que se refere ao cinema no que concerne a compreensão de sua linguagem e
como entender como funcionam alguns regimes de imagens que podem ser um interessante
combustível para a análise fílmica. Roger Chartier 4 para perspectivas de compreensão de
apropriações de uma dada realidade e representações históricas que direcionam caminhos de
estudos em História ligados a cultura. E, quando se trata de como propriamente o cinema se
torna fonte ou objeto da História, Miriam Rossini5 e Marcos Napolitano contribuem na
medida que indicam tecnicamente alguns procedimentos necessários para lidar com este tipo
de fonte. Não se trata aqui dele eleger esse ou aquele autor ou proposta que contemple todo o

1
DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo. Companhia das Letras.
2010. p. 14
2
DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. São Paulo. Brasiliense. 1990.
3
AUMONT, Jacques e outros autores. A Estética do Filme. Campinas. Papirus. 1995.
4
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Difel. Lisboa. 1990
5
ROSSINI, Miriam. O cinema e a história: ênfases e linguagens. In. PESAVENTO, Sandra Jatahy, SANTOS,
Nádia Maria Weber, ROSSINI, Miriam de Souza. (orgs.) Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos
em história cultural. Porto Alegre. Asterisco. 2008.
4

trabalho, mas sim promover sua comunicação à medida que as necessidades que este texto
demanda surjam.
Estas abordagens alinham-se com este trabalho na medida que, com Terra em Transe,
percebemos como Glauber Rocha se apropria de uma realidade política para construir sua
própria percepção sobre a mesma e ela (a percepção) se materializa no filme ao mesmo tempo
que também gera, partindo da obra, sentidos históricos. Nesta perspectiva, Glauber ler uma
realidade e transforma esta leitura em algo crítico na forma de um produto audiovisual. Desse
modo, é preciso compreender o jogo dialético das apropriações e representações de uma
realidade inseridas no filme, o que faz com que este trabalho inevitavelmente precise alcançar
a interdisciplinaridade em seus aspectos teóricos dialogando com a teoria do cinema.
É no exercício de apropriação que são considerados as especificidades do leitor, sua
historicidade, o momento e lugar onde vive, capacidade crítica, subjetividade, etc. E na leitura
que Glauber constrói sobre a política brasileira emanam representações pautadas neste mundo
que, de diversas formas, trarão – como já se sabe – mediante análise cuidadosa, reflexões
históricas. A força que move este trabalho concentra-se nisto; em identificar e examinar as
maneiras que estas representações sobre a política brasileira são construídas explorando até
onde for possível a potência que a arte pode oferecer para criar sentidos. A arte, então, é um
enérgico fio condutor de conhecimento histórico.
Os estudos historiográficos que se propõem a relacionar de alguma forma o cinema
com a História atualmente já são bastante numerosos, possuem metodologias e percepções
teóricas próprias se tornando um campo robusto na historiografia. Robert Rosenstone afirma
que para o historiador acadêmico a experiência de se aproximar do cinema gera, ao mesmo
tempo, entusiasmo e desconcerto. Entusiasmo, segundo o autor, vem, entre outras coisas, pela
atração que o meio audiovisual possui e pela ideia de imaginar os potenciais receptores e a
investigação de uma obra.6 O desconcerto fica por conta do historiador nunca estar satisfeito
com o que vê na tela, sempre buscando analisá-la, problematizá-la, ainda que fique satisfeito
com ela enquanto um genérico espectador.7 O interessante é que o desconcerto, com muito
estudo, pesquisa e dedicação, vai sendo diminuído aos poucos embora acredite que jamais
seja superado. O entusiasmo, pelo contrário, a medida que conhecemos e estudamos, aumenta.
Estes dois sentimentos, então, com uma pesquisa histórica, se tornam inversamente

6
ROSENSTONE, Robert. História em imagens, história em palavras: reflexões sobre as possibilidades de
plasmar a história em imagens. O Olho da história: Revista de História Contemporânea, Salvador, n.5, p. 105-
116, set. 1998. p. 105
7
Idem.
5

proporcionais considerando o aumento do entusiasmo e o decréscimo do desconcerto, ou


melhor, a transformação do desconcerto em conhecimento.
Rosenstone envereda por uns caminhos polêmicos e arrojados no texto supracitado
afirmando que é possível a realização do que ele chama de história visual, ou seja, um
trabalho de pesquisa Histórica que seja feito apenas com imagens. 8 Obviamente não é o caso
deste trabalho, esta hipótese é deveras arriscada na medida que a ciência, pelo menos a
brasileira, não se encontra metodologicamente preparada para uma abordagem neste nível. No
entanto, é válido considerar a linguagem audiovisual como produtora de conhecimento
histórico em âmbito experimental e como importante recurso pedagógico no ensino de
História. Todavia, apesar destas propostas arrojadas, Rosenstone faz importante afirmações
em relação a pensar a História através de filmes quando aponta que vivemos num mundo
dominado pelas imagens.9 Aqui a concordância com o autor é alta, ele se refere
especificamente à imagem fílmica, mas outros tipos de imagens nos cercam diariamente,
internet é um ótimo exemplo disto. De todo modo, é muito válido que historiadores se
preocupem e se atentem para elas, qualquer imagem que surge diante de nós na TV, no
cinema, numa galeria de arte, num museu, na imprensa impressa ou digital carregam em si um
sentido histórico e, talvez, até um discurso histórico. Este trabalho se move essencialmente
por isto pensando na esfera cinematográfica.
Pela boniteza que os roteiros de cinema e as peças de teatro trazem em sua estrutura
escrita, tomei a liberdade de chamar os capítulos de atos. Cinema e teatro são arte, pesquisa
histórica ainda não, no entanto esta pesquisa tem a arte como sua principal fonte, nada mais
justo que estimular no leitor o desejo de interação entre arte e ciência através de sutis
nomenclaturas que no limite nada modificam no sentido do texto, mas podem modificar o
sentido de sua recepção. A seguir, completando este prólogo, abordarei os três atos que
compõem este trabalho especificando em cada um suas abordagens temáticas, teóricas e
metodológicas, de fontes e conteúdo.
Ainda que o centro de análise deste trabalho seja Terra em Transe, é preciso
extrapolar o filme e isso que o primeiro ato faz, procura compreender o contexto em que a
obra fora produzida e os efeitos imediatos que causou na sociedade naquele momento. O
filme está cercado de contextos; industrial, artístico, político, religioso, etc. Não é interessante
que um trabalho sobre cinema na História não trate pelo menos panoramicamente deles. A

8
Ibidem, p. 112,
9
Ibidem, p. 106.
6

ideia é encarar as relações cinema/História como Alexandre Valim o faz, atentando-se para o
cinema de maneira integrada no que tange recepção, emissão e mediação de filmes. 10
Inclusive, o mesmo autor nos diz o seguinte:
Considero que um filme, produzido em Hollywood ou não, sempre transmite um
conteúdo ideológico, mesmo que não intencionalmente. Esse fenômeno ocorre por
causa do processo de produção, pois há elaboração, acumulação, formação e
produção de ideologia, e, se esse conteúdo ideológico reproduz a ideologia
dominante, é porque ela exerce todo o seu peso sobre aqueles que realizam e
consomem os filmes. Os filmes mostram imagens de vidas, atitudes e de valores de
grupos sociais, criados a partir de aspectos reconhecíveis, porém muito
selecionados, desses grupos. Dessa forma, o público tende a interpretar como
verdadeira as descrições de lugares, atitudes e modos de vida de que não tem um
conhecimento prévio.11

Neste sentido, entender o Cinema Novo, movimento cinematográfico cujo Terra em


Transe faz parte, se torna válido para esta pesquisa. Os filmes cinemanovistas trazem à tona
um conteúdo ideológico não dominante no Brasil da década de 60, era um cinema que ia na
contramão da ordem dominante capitalista. Não quero dizer que os filmes chegavam a ser
militantes de esquerda no sentido partidário da coisa, mas certamente eles valorizavam uma
percepção, as vezes de crítica social, as vezes pretensamente revolucionária, da sociedade que
estavam atreladas a esquerda. Muitos dos cineastas cinemanovistas, aliás, se declaravam de
esquerda.
É com esta abordagem que o primeiro ato procura compreender as complexas
dinâmicas que o Cinema Novo constrói para tentar concretizar um cinema revolucionário no
Brasil. Neste ato surgem temas que cercam o movimento principalmente no eixo cultural,
desde a perspectiva de política cultural do PCB, que era a maior organização de esquerda da
época, passando por iniciativas culturais de vanguarda como os CPC’s da UNE e a Tropicália.
Há também as abordagens estéticas cinemanovistas e como estas se configuravam como
discursos políticos naquele momento, um pouco sobre a recepção de alguns filmes do Cinema
Novo por críticos que escreviam em jornais. Por último, com intuito de perceber uma geração
de cineastas engajada estética e politicamente, abordamos a relação interativa entre Glauber
Rocha e alguns de seus companheiros cineastas. Neste momento, há o uso de alguns textos
que o próprio Glauber escrevera sobre os amigos que estão presentes na sua coletânea de
artigos chamada Revolução do Cinema Novo. Esta obra é a principal fonte para este ato que
também conta com algumas críticas referentes a filmes cinemanovistas publicadas em alguns
jornais.

10
VALIM, Alexandre. História e Cinema. In. CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. (orgs.) Novos
Domínios da História. Rio de Janeiro Janeiro. Elsevier. 2012. p. 283.
11
Ibidem, p. 288
7

O segundo ato já se caracteriza pelo mergulho em Terra em Transe, será o momento


de enxergar no filme os sentidos históricos e os relaciona-los com a realidade brasileira entre
1930 a 1964. Este ato se preocupa com as maneiras que o filme constrói um discurso sobre o
populismo na política brasileira. As percepções que tangem representação, imagem e
linguagem cinematográfica que vimos um pouco acima começam a ficar mais explícitas no
texto a partir deste segundo ato, é a etapa do trabalho de pôr o filme como fonte histórica no
patamar da análise da linguagem cinematográfica. Num texto que defende a ênfase na
linguagem para os trabalhos de cinema e História, Miriam Rossini afirma:
O desconhecimento, muitas vezes, de como lidar com as múltiplas possibilidades
dessa imagem audiovisual, às vezes ambígua, às vezes fugidia, restringe o acesso do
historiador ao arquivo fílmico, pois ele, geralmente, não tem formação técnica
específica que habilite a compreender e a analisar todos aqueles momentos. Para não
cair no lugar-comum de repetir a narrativa, sem avançar nas possibilidades de sua
significação, o historiador precisaria, antes de trabalhar com o filme, familiarizar-se
com os elementos da linguagem cinematográfica. Ou seja, precisaria adquirir um
conhecimento específico que tornasse seu trabalho com esse material proveitoso e
que lhe permitisse ir além das opiniões pessoais, essas sim apenas de cunho
subjetivo.12

Desse modo, é possível perceber muito tranquilamente que é preciso transcender a


descrição mera e simples da narrativa fílmica e adentrar com mais intensidade no campo da
linguagem. A narrativa pode ser melhor compreendida e utilizada, na verdade, com uma boa
compreensão da linguagem, estas duas dimensões da composição fílmica não se separam.
Neste sentido, com a ajuda do teórico do cinema Jacques Aumont, serão utilizados alguns
elementos da linguagem cinematográfica para compreender o filme e relaciona-lo com um
olhar histórico. Quadro, enquadramento, tipos de planos, movimentos de câmera, montagem,
som, cenografia e figurino são elementos que, a depender do que a fonte demandar,
comportarão sentidos analíticos que evocam a composição de sentidos na história. O segundo
ato não tem a pretensão de desvendar a teoria do cinema uma vez que ela é muito ampla e
extrapola os limites deste texto, porém há uma preocupação constante em utilizar a linguagem
cinematográfica da forma como Rossini propõe.
Para além da análise da linguagem como instrumental metodológico para a fonte, as
percepções do filósofo francês Gilles Deleuze também contribuem para que possamos
imprimir uma maior potência analítica na narrativa de Terra em Transe. Não é recomendável
afirmar que Deleuze aborda especificamente a linguagem do cinema, na verdade ele dá uma
contribuição mais psicológica e filosófica do filme, porém sem perder de vista a linguagem.
Numa possível definição, o que Deleuze estabelece sobre o cinema é uma perspectiva

12
ROSSINI, Miriam. Op cit. p. 124.
8

espiritual para ele enquanto arte. Suas análises sobre o cinema moderno (pós Segunda
Guerra) constituem um regime de imagens até então inéditos no cinema mundial que ele
nomeia de Imagem-tempo. Terra em Transe possui alguns regimes deste tipo de imagem que,
por meio de um trabalho adequado, traz uma potência interpretativa maior para sua narrativa
e, por consequência, maior aguçamento na percepção tangente às questões históricas que este
trabalho lança ao filme.
O segundo ato conta com a análise minuciosa de três sequências cênicas que tratam
este tema. A fonte majoritária utilizada é Terra em Transe e, eventualmente, alguns textos de
Glauber compositores da Revolução do Cinema Novo que servem como perspectiva externa
ao filme mas que interagem com ele dando uma maior amplitude para a análise.
O terceiro e último ato segue as mesmas orientações teóricas e metodológicas do ato
anterior. Muda-se o foco da análise histórica, que é direcionada ao golpe de Estado em 1964.
São analisadas seis sequências que mostrarão o perfil político da direita brasileira capitã do
golpe, as tensões políticas provenientes da conjuntura conturbada e efervescente naquele
período e, por fim, a consumação do golpe e o fracasso das esquerdas em tentar conte-lo. A
principal fonte continua a ser o filme e os textos de Glauber ainda constam aqui como fonte
para aspectos externos ao filme, assim como no ato anterior.
Há ainda, por fim, um epílogo que mostra as condições receptivas específicas de Terra
em Transe, este momento acontece no fim do texto para que o leitor saiba como todo
conteúdo fílmico apresentado fora recebido por diversos públicos, principalmente intelectuais
e órgãos censores do Estado Brasileiro. No epílogo as fontes variam vindo de um debate no
Museu da Imagem e do Som (MIS) no Rio de Janeiro à época do lançamento da obra
refletindo diferentes opiniões sobre filme por parte de sujeitos ligados ao cinema e a cultura
brasileira de esquerda. A recepção da censura fica por conta de documentos emitidos pelo
Serviço de Censura e Diversões Públicas (SCDP) que era responsável pela censura prévia de
produtos artísticos no Brasil naquele momento. Há ainda uma comunicação entre Glauber e
seu amigo cubano Alfredo Guevara feita por cartas que também trazem uma dimensão externa
de apreciação de Terra em Transe.
Estas são as formas que este trabalho busca identificar e compreender a historicidade
do filme Terra em Transe decodificando e analisando os discursos históricos contidos em no
mesmo, sobretudo no que toca dimensões da política brasileira. Marc Ferro diz que
“certamente, em 1970, o bispo e o homem da lei, o médico e o militar, o general e o senador
vão ao cinema; o historiador também, porém vai como todo mundo, somente como
espectador”. O historiador pode até ser um espectador comum de cinema, porém no momento
9

em que decide usar obras cinematográficas como fonte ou objeto para sua pesquisa, ele usará
a metodologia própria do ofício para construir o conhecimento histórico a partir do cinema,
isso trará a superação de ser um espectador comum e o tornará em um analista especialista no
tema. Só deixamos de ser um mero espectador de cinema quando nos aprofundamos nele e
este aprofundamento pode acontecer de diversas maneiras, as escolhidas para este trabalho já
foram devidamente apresentadas, resta agora o leitor, que espero que ainda esteja embebido
relações entre Cosmologia e História, seja atingido pela leitura deste texto.
10

Primeiro Ato:
Glauber Rocha e os Complexos Enredos por um Cinema
Revolucionário.

O artista nunca trabalha em condições ideais, pelo


contrário, o artista existe porque o mundo não é
perfeito, assim como o homem não procuraria por
harmonia, apenas viveria nela.
(Andrei Tarkovisky)

A câmera rodopia incansavelmente, a música que ouvimos é frenética e


desorientadora, o ambiente representado é caótico, imagens são sobrepostas através da
montagem nos levando a um terraço onde as pessoas que ali estão nos passam uma sensação
de apreensão e instabilidade por temor de algo terrível que em breve poderá acontecer. Um
poeta/político desespera-se com a grande possibilidade do golpe acontecer e tenta uma última
cartada para evita-lo propondo para as forças políticas contrárias ao golpe o conflito armado
pela democracia. Essa última tentativa falha, as lideranças políticas não querem se arriscar,
não querem o sangue das massas em suas mãos. Desencantado, frustrado e inquieto com os
desdobramentos daquilo tudo, ou seja, a não aceitação de sua proposta final por parte das
lideranças, o poeta/político está, de arma em punho, a um passo da morte. Em seus últimos
momentos, prestes a morrer física e simbolicamente, ele se propõe a contar com muita
nostalgia, poesia e emoção os seus últimos tempos de vida, o tempo em que se envolveu com
a política e que, desgraçadamente para ele, desaguava naquele desfecho. Esses elementos nos
ajudam a mostrar que um país está prestes a sofrer um golpe de Estado encabeçado por
quadros políticos ultra conservadores e declaradamente contrários aos interesses populares.
O lugar a que me refiro chama-se Eldorado, país fictício situado na América Latina do
filme Terra em Transe de Glauber Rocha. Paulo Martins (Jardel Filho) interpreta um
jornalista com afinidades poéticas e políticas e que se dispõe a apoiar diferentes forças
políticas durante a narrativa da obra. O parágrafo acima é uma breve descrição dos primeiros
minutos do filme, porém, em sua cronologia, já estamos no fim de Terra em Transe, toda
narrativa que o espectador experimentará será a lembrança que Paulo tem de sua própria
trajetória. Assim, a agonia de Paulo é que vai reger os sentidos dessa narrativa fílmica.
Ao assistir ao filme, percebemos que Paulo vai frequentemente se desencantando com
a política de Eldorado, em parte por suas próprias atitudes, em parte por conta das figuras que
ele escolhe apoiar. Três sentimentos são nítidos no personagem, além do desencanto, a
11

frustração e a inquietação o acompanham de perto. O desenrolar dos acontecimentos


intensificam cada vez mais esses sentimentos, a política é a maior de suas aflições. Não seria
incorreto afirmar que Glauber Rocha, o autor da obra, também compartilhe dos sentimentos
de seu personagem, porém com relação à política brasileira. Em 1967, quando o filme foi
lançado, a ditadura civil-militar no Brasil estava apenas começando, muitos artistas, Glauber
entre eles, via o cenário político mudar drasticamente e a esperança de um futuro idealizado
outrora se esvair rapidamente. No filme, o desencanto e frustração produz uma inquietação
em Paulo que, por sua vez, decide agir pelo conflito armado. Transpondo essa lógica para
Glauber, podemos entender que o golpe de 1964 e suas primeiras repercussões foram um
baque para uma nova geração de cineastas que movimentavam o cenário cinematográfico
brasileiro na década de 1960. Daí a afirmação de Ismail Xavier 13 que Terra em Transe foi
uma resposta ao golpe de Estado recente no Brasil e que nos fornece visões críticas de
diferentes setores políticos brasileiros naquela conjuntura. Em suma, Terra em Transe foi
fruto da insatisfação, frustração e aflição de seu autor com a política brasileira, sentimentos
semelhantes aos que seu protagonista Paulo têm pela política em Eldorado.
Nítido está que conhecer Glauber Rocha e o que lhe cerca e o constrói enquanto artista
e intelectual, como sua obra e a magnitude dela, seus diálogos com os artistas durante sua
trajetória de cineasta, suas propostas para o cinema brasileiro e suas percepções políticas é
uma parte essencial para este trabalho. As sensações e os sentimentos de Glauber o ajudam a
construir Paulo Martins e Terra em Transe. No filme, os sentimentos e as ações dos
personagens criam as representações políticas que pretendemos analisar e problematizar
historicamente mais adiante. Assim, temos a convicção de que o que acontece fora do filme
na vida do autor interfere diretamente no mesmo e vice-versa. Nessa perspectiva, as formas
como as representações políticas são construídas na obra nos dizem bastante da realidade
brasileira e dos pensamentos de Glauber Rocha naquele período fazendo com que a conexão
entre a obra e o autor seja indispensável para ter Terra em Transe enquanto objeto ou fonte de
pesquisa histórica.
A tônica deste momento e de todo trabalho consiste em analisar e problematizar as
maneiras como Glauber Rocha propõe um cinema que preza pela conscientização e
transformação social. Inicialmente a abordagem consistirá em suas perspectivas e relações ao
que tange o Cinema Novo e nas etapas seguintes sobre representações políticas em Terra em
Transe que versam sobre a política brasileira entre 1930 e 1964. O diálogo entre essas duas

13
XAVIER, Ismail. Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo. Paz e Terra. 2001.
12

dimensões é evidente, pois o referido filme insere-se num amplo contexto histórico e
cinematográfico brasileiro que trabalharemos aqui. O cinema que visa como objetivo máximo
a transformação social feito por este cineasta é notado dentro e fora da tela sendo permeado
por um movimento cinematográfico que prega uma revolução através das práticas de uma
específica geração de cineastas e pessoas envolvidas com a arte em geral. Desse modo, um
momento que trate das relações, propostas e percepções de Glauber para o cinema brasileiro
pressupõe o entendimento de Terra em Transe como um discurso valioso para a História.
Esse objetivo consiste em mergulhar num universo complexo em que se insere a intricada
figura de Glauber Rocha, o Cinema Novo enquanto movimento cinematográfico
transformador e na interação de cineastas que compuseram esta geração. No limite, existe
uma coerência entre perspectivas da obra e de seu autor.

Considerações sobre Glauber Rocha.

Primeiramente devemos levar em consideração que existe uma imensa quantidade de


livros publicados sobre Glauber Rocha, desde os autores acadêmicos entre várias áreas do
conhecimento à biografias escritas por pessoas próximas ao cineasta. 14 Essa ampla
bibliografia proporciona ótimo repertório para quem se prontifica a pesquisar algo que tenha a
ver com o cineasta. Não é nossa intenção esmiuçar mais uma vez a trajetória dessa importante
figura do meio artístico brasileiro, pois os objetivos deste capítulo consistem em abordagens
que envolvem o cineasta e que possam fazer importantes intersecções com as representações
políticas em Terra em Transe.
Glauber Rocha nasceu em 1939 numa cidade do interior da Bahia chamada Vitória da
Conquista. Ainda na infância sentia-se seduzido pelo cinema e em uma de suas biografias,
Nelson Motta15 nos conta que Glauber gostava muito dos domingos, pois ia ao Cine
Conquista e poderia ver os westerns de Allan Ladd, John Wayne, etc. O autor nos conta
também uma história de que numa tarde onde estavam em casa apenas ele e a empregada
doméstica da família Adelina, Glauber pega um revólver do pai e grita pra moça Come on,
boy! numa clara referência aos filmes que via. Adelina se assusta tanto ao ponto de Glauber

14
Para uma maior amplitude sobre a biografia de Glauber Rocha, ver VASCONCELLOS, G. Glauber Pátria
Rocha Livre. São Paulo, Editora Senac. 2001. GERBER, Raquel. Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1977. RIBEIRO FILHO, A. Glauber Rocha Revisitado. Salvador. Expogeo. 1994.
15
MOTTA, Nelson. A primavera do Dragão: A Juventude de Glauber Rocha. Rio de Janeiro. Ed Objetiva.
2011. P.24-25
13

confessar que era uma brincadeira e que a arma estava sem munição. Esses acontecimentos
servem para demonstrar que o cinema atingira Glauber desde criança
Aos 15 anos já morava na capital Salvador e foi quando começou a ter um contato
mais direto com o cinema escrevendo críticas e participando de um programa de rádio onde
falava sobre cinema. A essa altura, faltava pouco para conhecer o cineasta Nelson Pereira dos
Santos e cada vez mais estar envolvido com produções fílmicas. Esse foi o início de sua
trajetória como cineasta, em 1959 produz seu primeiro filme, um curta metragem chamado
Pátio, primeira de várias outras obras, algumas vencedoras de prêmios e importantes em
perspectivas de projetos estéticos e políticos a exemplo, entre outras, de Deus e o Diabo na
Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e A Idade da Terra (1980).
Antes de completar 20 anos de carreira, Glauber já era considerado um dos cineastas
mais importantes do Brasil. Depois de fazer O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro
(1969), sai do país e percorre, filmando e produzindo, América Latina, Europa e África. Ao
longo de sua vida, foi recorrentemente uma figura polêmica, criou boas amizades e amargas
inimizades, viajou pelo mundo levando seu jeito de fazer cinema, foi escritor, fez programa de
TV. Venerado e criticado pela crítica de cinema e foi um dos líderes do Cinema Novo,
movimento cinematográfico brasileiro atuante entre as décadas de 1960 e 1970. Morre em
1981 vítima de complicações respiratórias, mas deixa um legado ímpar, polissêmico e
grandioso. Sylvie Pierre, amiga de Glauber e crítica da Cahiers du Cinéma16 escreve uma
interessante biografia sobre o amigo e define em tópicos três momentos importantes na vida
profissional do cineasta:
1. Até 1970, o reconhecimento internacional de seus filmes
2. Nos últimos anos da vida de Glauber no Brasil (1976/1980), sua presença
maciça, muito particular, nos meios de comunicação brasileiros
3. Depois de sua morte, isto é, a partir de 1981, as novas dimensões,
mitológicas, que seu nome assumiu no Olimpo cultural nacional.17

Com essas informações não fica difícil perceber o quão a vida de Glauber Rocha fora
agitada, um turbilhão de ideias, sentimentos e significados. Temos a preocupação de adjetivar
a vida do cineasta sempre no plural, a reinvenção de si mesmo e de sua obra sempre foi algo
presente em sua trajetória e isso, para Glauber, acarretou uma série de percepções para quem
se dispõe ao analisa-lo. Para além, a impressão que temos que ele sempre se propôs a refletir

16
Importante revista francesa sobre cinema cujo intelectual Andre Bazin foi um de seus fundadores. A revista
defendia a chamada Política de autores, ideia muito afim com as propostas de Glauber Rocha para o cinema
nacional.
17
PIERRE, Sylvie. Glauber Rocha: textos e entrevistas com Glauber Rocha. Tradução Eleonora Bottmann.
Campinas. Papirus. 1996 (Coleção Campo Imagético) p. 19
14

sobre si mesmo, se problematizando. Sobre esse aspecto multidimensional de sua vida, Pierre
faz uma afirmação importantíssima.
[...]Existe o Glauber Rocha criança do sertão no homem adulto que dá entrevistas
brilhantes aos representantes da intelligentsia francesa; existe o Glauber Rocha em
exílio, ruptura, no cineasta brasileiro de 1967, consagrado e de renome
internacional, que se tornou estrela do mundo cultural, mas que quase toda crítica do
seu país ataca; existe o Glauber Rocha cabeça do movimento histórico do Cinema
Novo (ainda não existente) no adolescente de 16 anos que luta, em 1955, pela
liberação de Rio 40 graus de Nelson Pereira dos Santos; existe ainda alguma coisa
do Glauber Rocha neófito underground imaturo em A Idade da Terra de 1980,
enquanto já existe um pragmático produtor com cabeça fria e responsável no jovem
baiano de 21 anos que, em 1960, pega com mãos e fórceps a produção artesanal, mal
começada, de Barravento, para assumir sua direção, levando-o à consagração em um
festival europeu; enfim, existe talvez um Glauber Rocha já tocado pela morte em
Veneza, em 1980, quando do fracasso literalmente estrondoso de A Idade da Terra,
ou no rio, em 1977, na ocasião da trágica morte de sua irmã, ou ainda no chile, em
1971, sob repetidas e suicidas overdoses de cocaína; igualmente, existe um novo
nascimento de Glauber Rocha na primavera de 1981, em Portugal, seis meses antes
de sua morte, e outro nascimento ainda, em 22 de agosto de 1981, data de sua morte
clínica.18

Com isso, podemos imaginar que não existe apenas uma maneira de interpretar
Glauber Rocha, seja essa interpretação referente à suas obras ou em espectro mais amplo de
sua vida, assim como o próprio não enxergava a realidade apenas de uma maneira. Seus
pensamentos e propostas estéticas, artísticas, políticas e culturais interagem entre si formando
uma simbiose dialética de concepções sobre esses temas. Pensar Glauber Rocha é acostumar-
se com a multiplicidade de sentidos que a vida nos proporciona.

Alegorias, misticismo, violência e consciência.

Ainda que se expressasse de muitas formas, para Glauber, o cinema era a sua forma
mais importante e contundente de se manifestar. Não quis ser um intelectual tradicional,
acadêmico, suas mensagens seriam transmitidas através da arte, um intelectual que faz do
cinema sua linguagem, e essa era chocante, complexa, violenta, pretensamente revolucionária
e, quase sempre, desesperadora. Ismail Xavier nos apresenta uma interessante visão do
cinema glauberiano:
De Barravento a A Idade da Terra, o cinema de Glauber tem um movimento
expansivo, articulando os temas da religião e da política, da luta de classes e do
anticolonialismo: do sertão do Brasil como um todo, e deste à América Latina e o
Terceiro Mundo. Cada filme reitera seu foco nas questões coletivas, sempre
pensadas em grande escala, através de um teatro de ação e da consciência dos
homens onde as personagens se colocam como condensações da experiência de
grupo, classes, nações.19

18
Ibidem. p. 35-37
19
XAVIER, Ismail. Op. cit. P. 117-118.
15

Para o autor, o recorrente tom metafórico e alegórico nos filmes revela um desejo de
História através de metáforas totalizante que abrangem os aspectos sociais e históricos citados
acima. Há que se relativizar que nem todas as metáforas são totalizantes no mesmo grau.
Como o próprio autor afirma, o cinema glauberiano, ao longo das obras, se expande do sertão
ao terceiro mundo em perspectivas gerais. O cangaceiro Corisco em Deus e o Diabo e suas
atitudes são frutos da reação à exploração social, porém a experiência do cangaço como
resposta a um sistema de exploração é um fenômeno restrito a uma parte do sertão do
nordestino. Nesse sentido, a reação violenta à exploração pode ser percebida como algo
totalizante enquanto desejo de Glauber Rocha, mas, no caso de Deus e o Diabo a alegoria em
si é espacialmente restrita.
Pensando na lógica que Xavier chama de movimento expansivo do cinema de
Glauber, é possível perceber este aspecto em Terra em Transe em comparação ao filme citado
anteriormente através da identificação de um populismo político na figura do personagem
Vieira. No Brasil o populismo na política se desenvolveu nos mais diversos ambientes e
regiões e isso se aproxima do que vemos em Vieira no filme, ora como um promissor líder de
uma região agrária interiorana, ora já ocupando espaços mais urbanos na capital do país.
Assim, ao longo do filme, Vieira vai ganhando cada vez mais poder e projeção política em
toda Eldorado tornando-se, inclusive, um líder das massas. O que percebemos é que Vieira se
torna uma alegoria ampla territorialmente transitando entre ambientes agrários e urbanos.
Robert Stam afirma que o referido personagem consegue condensar figuras de políticos
diferentes, mas que caminharam sob as práticas populistas como Getúlio Vargas, João Goulart
e Miguel Arraes. 20 Essas comparações não têm a intenção de afirmar que um filme é mais
totalizante ou mais histórico que o outro, mas sim que há uma certa expansão alegórica de
abrangência espacial e territorial na cinematografia glauberiana.
O desejo de história que Glauber Rocha propõe consiste em justamente representar
essas perspectivas sociais totalizantes de maneira a que seja possível a partir delas a incitação
de um despertar de inquietação e ação contra as contradições e as explorações existentes na
sociedade. Os seus filmes emitem representações propondo discursos que emanam reflexões e
interpretações históricas, sejam elas sobre a conjuntura brasileira vivida na década de 60 ou
sobre processos mais antigos, como a colonização europeia e a cristianização da América
Latina. Essa afirmação pode ser exemplificada em Deus e o Diabo no que se refere a

20
STAM, Robert. Terra em Transe. Revista Discurso. São Paulo. Vol. 7, p. 169-181. 1976.
16

exploração do trabalho no campo e o messianismo nordestino respectivamente com a


exploração que o vaqueiro Manoel sofre pela tirania do Coronel Morais e, logo depois de
matar seu patrão, sua fuga para integrar o grupo do místico Santo Sebastião que é uma clara
alusão de Antônio Conselheiro. O Santo, com toda sua eloquência e misticismo, promete a
Manoel um bom futuro.
Em Terra em Transe, essa análise pode ser feita se nos concentrarmos na figura de
Diaz, político de discurso reacionário que pretende dar um golpe de Estado Eldorado. O êxito
de seu plano político é representado com sua coroação numa cerimônia barroca. Ora, o que
parece é que Díaz, em pleno século XX, é um rei dos períodos coloniais numa Eldorado
bastante afim com o Brasil. Dito isso, o que podemos enxergar é que nessa filmografia sempre
há uma intenção de falar sobre a história, mesmo que o enredo não se desenrole
necessariamente no período. Uma alegoria ou simbologia serve como uma espécie de meio de
transporte no tempo para que se possa perceber construções de discursos históricos referentes
ao passado.
Outros aspectos também essenciais numa compreensão dos filmes de Glauber Rocha,
sobretudo os da década de 60, é a ideia do misticismo e da religiosidade, da violência e da
conscientização social. Todos eles interagem entre si dialeticamente. Nas obras, a injustiça
social sempre está explícita, a realidade é construída contraditoriamente e iminentemente a ser
contestada e subvertida por algum personagem. Nas narrativas fílmicas, esses aspectos unidos
e em plena manifestação são propositores de transformações, mudanças históricas estruturais
na sociedade. Nos parágrafos seguintes veremos como estas dimensões interagem
principalmente em Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade Contra o Santo
Guerreiro na medida que, de diferentes maneiras, culminam numa prática que leva a uma
consciência revolucionária dos personagens
Em Deus e o Diabo temos a concretização dessa percepção na medida em que Manoel
frustra-se com a vontade de melhorar de vida quando algumas Vacas do Coronel Morais que
se encarregava de transportar morrem durante o percurso no sertão nordestino. O desafio é
fazer com o que o Coronel compreenda a situação e honre os compromissos com o vaqueiro,
de dar a sua parte do gado para que assim Manoel possa vendê-lo e poder comprar um pedaço
de terra, que seria a tentativa de sair de uma vida miserável. Ocorre exatamente o oposto,
Coronel Morais utiliza da sua posição de poder para ditar a lei e afirmar que as vacas mortas
eram do vaqueiro e o assunto estaria encerrado. Manuel tenta argumentar em vão, ele ficará
sem nada. Nesse ponto está nítida a divisão social desigual e a exploração do oprimido que
por vias diplomáticas nada poderia fazer, entretanto, num impulso de ódio, a violência
17

manifesta-se em Manoel que mata o Coronel e foge para se juntar ao grupo de Sebastião, o
Santo místico. Pela causa dele, que agora também é sua, Manoel está disposto a cometer
sacrifícios e ter atitudes violentas caso necessárias para que as promessas feitas por Sebastião
sejam concretizadas.
O grupo do Santo provoca desconfortos na igreja e na elite local que optam por
contratar o matador de cangaceiro Antônio das Mortes. Antônio consegue exterminar com o
grupo de Sebastião, deixando apenas Manoel e Rosa, sua mulher, vivos. Os dois se lançam
sertão adentro até encontrar o cangaceiro Corisco (que viria a ser morto por Antônio das
Mortes), na busca de vingança pela morte de seu ídolo místico Lampião exercendo violência
contra os opressores. Manoel adere ao cangaço e se vê arrodeado pela violência novamente,
dessa vez permeada pela vingança, mas agora as motivações da violência não são mais as
promessas feitas com um grande teor de misticismo de outrora, mas sim causas que atingem
conflitos sociais concretos de exploração e desigualdade levando em consideração que
Corisco culpa explicitamente o governo pelas mazelas sociais e pela morte de seu ídolo.
Vejamos então que existem várias camadas de alegorias, misticismos, violências e
consciências no cinema de Glauber Rocha da década de 1960. Usando a narrativa fílmica
descrita acima como parâmetro, é plausível perceber que, nesse caso, o misticismo religioso
proveniente de Sebastião é elemento disparador de uma consciência que busca transformações
na sociedade. Manoel ganha consciência de si, de que faz parte e que é vítima de um sistema
exploratório através de discursos místicos proferidos por homens santos, seja Sebastião ou
Corisco. A partir do momento em que é atingido por essa dimensão, adquire consciência, que
agora é racionalizada, ao contrário da violência inicial quando mata o Coronel Morais que é
totalmente impulsiva, e vai à luta contra o que o oprime. Assim, Glauber Rocha compõe uma
intermediação entre a inquietação inicial com uma situação de desigualdade social e a
clarividência racional que faz com que se lute conscientemente por uma transformação
profunda na estrutura da sociedade.
Em Terra em Transe essa dialética transcorre da seguinte maneira; ao saber que foi
traído por um parceiro e que este serve a Díaz, que agora tem todas as ferramentas de aplicar
seu golpe, Paulo entra em desespero e propõe uma opção sangrenta para solucionar o
problema, a saber: o conflito armado. A implantação de um golpe representa a implosão de
todos os objetivos de Paulo, tal como a tirania do Coronel Morais implodira os de Manoel no
início de Deus e o Diabo. Assim como Manuel, Paulo recorre a violência, pois assim ela pode
vingar o povo que, a partir desse novo olhar de Paulo, passa a ganhar contornos místicos, uma
vez que para o poeta, este povo precisa da morte, a morte como fé, não como temor e isto
18

remete necessariamente ao engajamento popular ao confronto físico contra as forças golpistas.


Paulo está convicto de que assim o povo terá nova consciência e ela só virá quando o mesmo
pegar em armas e sacrificar o seu próprio sangue.
Antônio das Mortes volta em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro
(1969). Ele tem uma nova missão; acabar com o bando de um novo cangaceiro discípulo de
Corisco e Lampião chamado Coirana. Desde o Deus e o Diabo, Antônio das Mortes, que é
uma espécie de caçador de recompensa dos Westerns clássicos, é a representação da força
violenta dos opressores que controlam e mantém um sistema social injusto. Mais uma vez
contratado por quem detém o poder político e econômico da região, o matador de cangaceiro
vai atrás de seus objetivos. Ao deferir um grave ferimento em Coirana e se preparar para o
golpe de misericórdia, o matador é freado pela Santa, uma personagem que magicamente
induz Antônio a perceber quem são seus verdadeiros inimigos. Esse é o gatilho para sanar as
dúvidas existenciais que Antônio já tinha há tempos. Com nova consciência, acontece uma
reviravolta e o matador agora está dos lados dos cangaceiros e da Santa preparado para um
conflito final contra as heranças feudais e patriarcais.
Evidentemente que nossa intenção não é enviesar nem aplicar uma fórmula para
interpretação dos filmes de Glauber Rocha. Essas obras possuem inúmeras formas de se
analisar, por vezes até opostas. Aqui a ideia foi perceber como alguns aspectos se articulam
em filmes próximos a Terra em Transe, mas que podem ser encontrados em outras obras
também. A alegoria, o místico, a violência e a consciência são elementos que compõem os
filmes de maneiras diferentes. Em Deus e o Diabo, a condição miserável e injusta do
protagonista o faz recorrer a violência e consequentemente ao misticismo que produz mais
violência e uma consciência que significa a realidade de outra maneira, Passado esse
momento, a violência continua presente e materializada em Corisco, a experiência do cangaço
gera uma nova consciência em Manoel, diferente da de outrora que era baseada numa
metafísica messiânica, essa segunda consciência do vaqueiro acerca da exploração do homem
pelo homem é diferente da anterior e é nesse jogo dialético que se desenha a narrativa e a
estética do filme.
Em Terra em Transe esses elementos estão presentes, mas dispostos de outra maneira.
Diferentemente de Deus e o Diabo, o misticismo que gera uma resposta violenta, basta
lembrar que o povo precisa da morte como fé para que, assim, tenha as condições necessárias
para fazer a revolução que, por sua vez, na percepção de Paulo, só pode ser armada e
sangrenta, portanto fisicamente violenta. No frigir dos ovos, todas essas racionalizações nos
permitem compreender uma espécie de consciência que Glauber construiu nas obras. Essa
19

abordagem alimenta as perspectivas de cinema revolucionário que o cineasta sempre


endossou.
Mas este cineasta não está sozinho nessa perspectiva de conscientização, existe um
movimento artístico que propõe essas ideias de diferentes formas. A agitação cultural nas
décadas de 50 e 60 de sujeitos afins com um pensamento de esquerda traz uma série de
demandas para arte em geral. O Cinema Novo é um dos inseridos neste contexto, sobretudo
na construção de uma cultura nacional popular. Isto faz com que os discursos
cinematográficos presentes nas obras do cineasta não sejam aleatórios, são frutos de processos
que envolvem essa agitação cultural no país, é o que veremos a seguir.

O nascimento da revolução.

O cinema certamente ultrapassa o filme. É com esse pensamento que nos vemos frente
a necessidade de abordar as percepções de Glauber que eram também reflexos de um
movimento artístico cultural efervescente no Brasil. Desse modo, entender a proposta de
cinema que Glauber Rocha propõe é estar atento para vários aspectos que formam e que estão
em debate na sociedade brasileira, sobretudo entre meados da década de 1950 até o início dos
anos 80, período no qual o cineasta foi profissionalmente atuante. Assim, este cinema está
atrelado obviamente ao cenário cinematográfico brasileiro, aos debates e ações culturais com
a perspectiva de transformação social pela arte. Assim, nesta seção, nossa intenção é revelar a
amplitude, através de organizações partidárias e movimentos culturais, que a arte e a cultura
ganham durante a década de 60 no Brasil. O que faz com que utilizemos autores importantes
neste assunto como Marcelo Ridenti e Renato Ortiz ao passo que, em nível de fontes, a obra
Revolução do Cinema Novo escrita por Glauber Rocha nos dará um ótimo arsenal para a
compreensão das perspectivas concepcionais do Cinema Novo.
Os artistas que compuseram este segmento na cultura brasileira estão, ainda que nem
todos envolvidos diretamente com partidos, ligados com a esquerda. O Partido Comunista
Brasileiro (PCB) respondia naquele momento como a maior organização de esquerda no
Brasil e, com uma agitação cultural acontecendo, sentiu impactos dessas movimentações.
Através da leitura de Marcelo Ridenti nos deparamos com o pensamento de que o PCB teve
certa dificuldade em abrir-se para iniciativas culturais enquanto gatilhos de libertação popular.
O autor relata uma conversa com Nelson Pereira dos Santos, cineasta filiado ao partido, em
que se torna possível enxergar uma evidente indisposição do PCB em apoiar a cultura na
perspectiva que abordamos.
20

A história trata-se de quando Nelson estava se preparando para filmar Rio, 40 graus
em 1955 e, de acordo com Ridenti, a direção do partido tentou impedí-lo de produzir o filme
por meio de seu comitê cultural21. A seguir o autor cita um depoimento do cineasta afirmando
que ao revelar que queria realizar um filme um dirigente do partido lhe disse: “você está tendo
uma ilusão pequeno-burguesa, porque cinema, no Brasil, só depois da revolução” 22. Ainda
assim, Nelson desobedeceu as ordens e decidiu fazer o filme, sofreu consequências, fora
rebaixado hierarquicamente nas funções partidárias. Para Nelson: “Então, entre fazer uma
carreira promissora, funcionário do Partido, e fazer cinema, uma aventura enorme, eu estava
evidentemente possuído de uma ilusão pequeno-burguesa”23. Rio, 40 graus foi feito,
representa os contrastes sociais no Rio de Janeiro e passou a ser considerado um filme marco
no cinema brasileiro, precursor do Cinema Novo, seja na linguagem cinematográfica ou nos
temas abordados.
Essa postura do PCB, segundo Ridenti, se caracterizava por uma condição stalinista do
partido predominante na década de 50. Após a desestalinização, ocorre o que ele chama de
“virada cultural do PCB nos anos 60”, que é justamente uma abertura do Partido a iniciativas
culturais transformistas e com a preocupação de abordar temas da cultura popular e identidade
nacional. Uma vez que já não havia mais direcionamentos claros do PCB para as políticas
culturais, elas passaram a ser gerenciadas por artistas e intelectuais do Partido.24 A partir do
momento que a maior organização de esquerda daquele período se abre para a cultura
revolucionária, a situação melhora para os artistas com essas intenções ainda que muitos
deles não façam parte formalmente do Partido.
É nesse contexto que em 1962 também surgem os CPCs (Centros Populares de
Cultura) cujo um dos criadores foi o cinemanovista Leon Hirsziman. O CPC tinha como a
pauta a produção de uma arte popular e revolucionária. Renato Ortiz dá ênfase a dois pontos
de atuação do grupo:
1) A efervescência política, que em última instância permitiu o
desenvolvimento do CPC como ação revolucionário-reformista definida
dentro de quadro artísticos e culturais.
2) A ideologia nacionalista que transpassa a sociedade brasileira como um
todo e consolidava um bloco nacional que congregava diferentes grupos e
classes sociais. A proposta de organização chamada “cultura popular” se
insere, portanto, dentro de limites precisos de um determinado processo
histórico. 25

21
RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro. São Paulo. Record. 2000. p. 68
22
Ibdem, p. 69
23
Idem.
24
Ibdem. p. 72
25
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. São Paulo. Ed. Brasiliense. 1994
21

Como é possível perceber, os debates sobre a cultura nacional-popular ganham espaço


seja em âmbito do PCB ou do CPC. Ortiz também afirma que o CPC tinha como pauta a luta
anti-imperialista com o sentido de emancipação social e política do Brasil. Na visão dos
cepecistas, para que houvesse de fato uma cultura nacional-popular seria preciso libertar o
país das amarras do capital e da cultura internacional. 26 Aqui vemos então uma convergência
entre as pautas essenciais do Cinema Novo. O nacional-popular e o anti-imperialismo
apareciam em três grupos diferentes que respondiam pela construção cultural a partir de uma
ideologia esquerdista. O cinemanovismo alcançou proeminência nesse período pré-1964.
Assim, os primeiros anos da década de 60 se passaram em ebulição cultural, não só pelo
cinema, mas outras linguagens artísticas despontavam como o teatro e a música. Desse modo,
o que se tinha era um sistema complexo que propunha um movimento cultural engajado
politicamente com a perspectiva de transformação social. A perspectiva ideológica de
nascimento do Cinema Novo aponta para as questões do nacionalismo e, dessa forma, ele faz
parte de todo um debate que une política e cultura de maneira fundamental.
É neste sentido que, uma vez exposto o contexto histórico desse momento, se torna
importante trazer os pensamentos de Glauber como uma interlocução com esta conjuntura
aqui exposta, saber como uma figura importante no meio artístico, cultural e político via este
cenário naquele momento. Para que isto seja possível, recorremos a obra Revolução do
Cinema Novo, que consiste numa coletânea publicada pela primeira vez em 1980 reunindo
artigos escritos por Glauber entre 1958 e 1980. Todos os textos estão, de diversas
perspectivas, ligados ao cinema brasileiro. Em 1961 ele escreve O Processo do Cinema27 e já
mostra sua percepção do cinema enquanto uma arte industrial que para sua realização depende
de um aparato industrial e de financiamento de produção, o filme “é fruto de uma produção e
que uma produção é investimento de capital”28. A defesa do cineasta é pela não interferência
da produção nos aspectos artísticos do processo cinematográfico, que o artista tenha maior
liberdade criação em suas obras. Para Glauber, o cineasta é obrigado a ceder as regras de
mercado impostas pelos produtores.
Essa postura já aponta para um cinema anti-industrial e anti-imperialista, duas das
principais características da obra glauberiana e também do Cinema Novo. Mas como fazer um
cinema sem a interferência da indústria em parâmetros artísticos por trás ou, em outras
palavras, um cinema de autor? A tecnologia ajudou bastante nesse ponto, as câmeras

26
Ibidem, p. 75
27
ROCHA, Glauber. Revolucao do cinema novo. São Paulo, SP: Cosac Naify, 2004. P 43
28
Ibidem.
22

menores, de manuseio a mão, já estavam disponíveis aos cineastas, gravadores captavam o


áudio. No limite, o exercício de produzir um material audiovisual estava muito mais acessível,
a câmera na mão poderia filmar imagens um tanto tremidas, a qualidade do áudio ainda não
era a mesma do cinema industrial, mas tornava o processo de produção cinematográfica mais
livre.
Entretanto, o apoio financeiro era indispensável para a realização dos filmes, ainda que
existisse maior acessibilidade aos equipamentos, a produção fílmica era cara. No entanto, com
os equipamentos disponíveis, o financiamento não precisava ser necessariamente industrial
com os equipamentos de filmagens pertencentes aos estúdios. Terra em Transe, filme de
produção relativamente cara, foi financiado metade por um amigo de Glauber e a outra
metade pelo Banco do Estado do Maranhão, estado cujo governador, José Sarney, era
próximo a Glauber na época. Vejamos então que não havia a necessidade de um produtor
corporativo interessado no filme enquanto mercadoria e visando sua rentabilidade. A
iniciativa cinemanovista traz, de maneira maciça, a flexibilidade de produção e financiamento
para o cinema brasileiro.
Vimos que o Brasil, principalmente a partir da segunda metade da década de 50,
efervescia culturalmente através de movimentos artístico de vanguarda surgidos a partir das
demandas criadas pelo processo desenvolvimentista modernizador. Vimos também que a
acessibilidade de produção cinematográfica ficou mais acessível com adventos tecnológicos,
temos então, somando a um engajamento artístico geracional, as principais condições para o
nascimento do Cinema Novo. O movimento cinematográfico em questão atuou
principalmente durante a década de 60, porém reverberou consideravelmente também no fim
dos anos 50 e nos primeiros anos da década de 70. O Cinema Novo colocou o Brasil no mapa
do cinema mundial, sobretudo na Europa, através do engajamento político/cinematográfico de
seus jovens cineastas em ebulição para filmar e causar barulho na cena cultural brasileira e
estrangeira.
A inquietação, sentimento que atribuí a Glauber com relação ao enredo e
desenvolvimento dos personagens em Terra em Transe, também está presente na concepção
do Cinema Novo. Claro está, é outro tipo de inquietação, dessa vez com a própria situação
que o cinema brasileiro se encontrava naquele momento (década de 50). O desejo de mudança
e a vontade de produzir uma arte diferente borbulhavam para uma geração que buscava uma
nova forma de representar as realidades através do audiovisual. Falo de Carlos Diegues, Leon
Hirsziman, David Neves, Paulo Saraceni, Glauber Rocha, etc, alguns mal tinham saído da
casa dos 20 anos. Glauber nos conta que lá por 1958 essa rapaziada se encontrava pra discutir
23

cinema e o cinema brasileiro 29. Nesse momento, segundo o que ele relata, tudo ainda estava
muito nebuloso na cabeça dos cineastas no que tangia a uma organização cinematográfica
encorpada, o que estava certo era o incômodo com o que estava acontecendo com o cinema
brasileiro. Alguns anos se passaram, os jovens ganharam um pouco mais de experiência e aos
poucos o que era inquietação passou a ser um projeto de cinema viável para aplicação. Entre
1958 e 1961 vários filmes foram feitos tendo uma abordagem cinemanovista embora ainda
não existisse um movimento organizado de fato chamado Cinema Novo. Entretanto, toda essa
movimentação deu força para o que viria nos próximos anos. Em 1962, ao passo que a
agitação cultural ganhava fôlego no país, pouco antes do Cinema Novo realmente ganha
corpo com Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do Sol
e Os Fuziz (1964) de Ruy Guerra, Glauber escreve:
Nossa geração tem consciência: sabe que deseja. Queremos fazer filmes anti-
industriais: queremos fazer filmes de autor, quando um cineasta passa a ser um
artista comprometido com os grandes problemas de seu tempo; queremos filmes de
combate na hora do combate e filmes para construir no Brasil um patrimônio
cultural.30

A câmera na mão tornaria tudo isso possível, como falamos, não se precisava mais de
uma grande produção para fazer um filme, o trabalho em conjunto dos cineastas também
auxilia na produção. Para Pierre 31 esse trabalho conjunto foi muito importante para que o
movimento se sustentasse. O montador de Barravento (1961) é Nelson Pereira dos Santos,
Paulo Gil Soares é o figurinista de Deus e o Diabo, a autora afirma que Glauber escreve muito
sobre os filmes dos colegas, os roteiros sempre são lidos a vários olhos. Em suma, todo
mundo fazia um pouco de tudo e, assim, podemos pensar que os conflitos e discussões entre
os envolvidos eram inerentes à atividade artística. Em contrapartida, o companheirismo e o
trabalho conjunto certamente melhoraria o produto final, na tela.
Os jovens cineastas ávidos para se expressarem e denunciar as injustiças sociais
estavam prontos para o faze-lo, uma arte engajada e transformadora era o objetivo inicial dos
cinemanovistas. Maria do Socorro Carvalho afirma que foi nesse clima de otimismo que
nascia o Cinema Novo e acrescenta que alguns cineastas do movimento tinham trajetórias
semelhantes ao serem críticos e colunistas de jornais, atividades essas que propuseram debates

29
Idem, p. 50.
30
Ibidem, p. 52.
31
PIERRE, Sylvie. op. cit. p.55
24

sobre a realidade social e cinematográfica brasileira. Ainda que não tivessem estrutura
industrial, queriam fazer filmes estimulantes, afirma a autora.32
A reunião de vários aspectos aqui explorados concretizam o surgimento do Cinema
Novo no Brasil. A revolução nasce na medida que as premissas artísticas de concepção do
movimento são revolucionárias, seja esta uma revolução estética quebrando paradigmas da
produção cinematográfica feita aqui até então ou uma revolução ao que tange como os
conteúdos presentes no filmes são apropriados de modo a trazerem a dimensão da consciência
revolucionária como elemento cabal da experiência fílmica. De todo modo, fragmentar em
revoluções é didatismo, o início da década de 60 marca o nascimento de um novo
direcionamento cinematográfico brasileiro indissociável das redes históricas vividas no Brasil
daqueles anos.

As Essências Conflitantes do Cinemanovismo.

Na história nada acontece isoladamente, o Cinema Novo é fruto de diferentes


processos históricos ocorridos no Brasil e no mundo ao longo do século XX. A consolidação
do capitalismo no Brasil pela implantação de uma ordem burguesa industrial, o processo de
industrialização e modernização e o projeto desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek estão
diretamente envolvidos com a formação do movimento cinematográfico em questão. Aspectos
internacionais também devem ser considerados, tal como as tensões propostas pela Guerra
Fria e os movimentos cinematográficos fora do Brasil, principalmente os acontecidos na
Itália, França e Estados Unidos.
Este tópico se preocupa em iluminar questões contextuais que contemplam as
essências de conflitos no cinemanovismo. Para isto, autores como Moniz Bandeira e
Francisco Weffort nos informarão sobre o processo de modernização e de consolidação do
capitalismo industrial no Brasil, sobretudo depois da década de 1930. Ao que tange a
organização da indústria cinematográfica, a obra de Caroline Lima traz um bom arcabouço
uma vez que visa identificar a atuação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, corporação
cujo os cinemanovistas rechaçam e, neste sentido, torna-se um dos gatilhos de conflitos que o
Cinema Novo propõe. As fontes (textos de Glauber) nos apontarão como se articulava as vias
de conflitos à medida que as relacionamos com as sistematizações criadas por Michel de
Certeau acerca do espaço no cotidiano social.

32
CARVALHO, Maria do Socorro. Brasil em Tempo de Cinema Novo. In. MASCARELLO, Fernando.
História do Cinema Mundial. São Paulo. Editora Papirus. 2006. p. 289-290.
25

Temas como a modernização e industrialização brasileira já foram largamente


abordados na intelectualidade, aqui optamos por utilizar alguns autores que escreveram sobre
esses fenômenos durante a década de 60, paralelamente ao surgimento do cinemanovismo e
da produção de Terra em Transe. As seis primeiras décadas do século XX marcaram o
desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Weffort e Bandeira, cada um à sua maneira,
ratificam essa afirmação. No Brasil, o desenvolvimento do capitalismo ou Revolução
Burguesa, como gostam de chamar alguns autores, foram marcados por um intenso processo
de industrialização, as indústrias eram sinônimos de modernização e superação de um sistema
econômico arcaico. Esse processo ganha força simultaneamente ao enfraquecimento das
oligarquias que até 1930 tinha posição bastante confortável na política brasileira. Esse
enfraquecimento possibilita a ascensão da Aliança Liberal que, segundo Weffort, foi um
movimento de homens de classe média que se opunham às oligarquias ao mesmo tempo que,
por estarem atrelados a setores da burguesia industrial, defendem a expansão da
industrialização no Brasil. 33 As oligarquias não foram extintas, ainda persistiam na política,
mas a partir da Revolução de 1930, o Estado brasileiro e os setores dominantes da sociedade
se preocupavam com a consolidação e manutenção de uma ordem burguesa liberal e industrial
no país.
Ao que tange o processo de industrialização, Moniz Bandeira, em seu Livro O
Caminho da Revolução Brasileira34, mostra diversas tabelas que revelam a expansão
industrial brasileira sobre as atividades agrícolas. Em um espaço de 11 anos, entre 1947 e
1958, a distribuição percentual de renda na indústria sobe quase 10% enquanto na agricultura
há um decréscimo de 4% 35. Analisando outras tabelas, é possível ver que as movimentações
bancárias e o produto interno bruto são muito maiores em setores industriais. No caso do PIB,
a indústria brasileira cresce quase o dobro do que a agricultura entre 1948 e 1960. 36
O processo de industrialização no Brasil, consequente também da política de Estado
varguista e do desenvolvimentismo de JK, acarreta uma série de mudanças no comportamento
social brasileiro. Um deles é uma forte migração do campo para cidade, a industrialização é
tipicamente urbana e com a retração na agricultura, grande parte da população vai morar nos
centros urbanos brasileiros. Weffort37 afirma que essa mobilização, inclusive, é fundamental
para que o populismo na política brasileira exista e o pleno funcionamento desse fenômeno

33
WEFFORT, Francisco. O Populismo na Política Brasileira. 5ª edição. Paz e Terra. 2003. p71
34
BANDEIRA, Moniz. O Caminho da Revolução Brasileira. Rio de Janeiro. Melso. 1962.
35
Ibidem, p. 95
36
Ibidem, p. 97.
37
WEFFORT, Francisco. op. cit.
26

político é, sem dúvidas, atrativo tanto para burguesia quanto para o conjunto político
comandante da política no Brasil daquele momento.
Temos aqui, então, um sistema histórico que modifica toda a sociedade brasileira, os
aspectos políticos e econômicos propõem novas condições para a vida cultural
(principalmente em grandes capitais), essa vida cultural e artística, por sua vez, também
reorganiza os setores políticos e a economia, essa interação dialética, no limite, é o que forma,
através de diversas perspectivas, a sociedade. O cinema brasileiro evidentemente não escapa
dessa lógica e também interfere nela fazendo parte da história.
Na década anterior ao surgimento do Cinema Novo a palavra modernização era
sinônimo do progresso social brasileiro. Seja com Vargas e sua política mais atenta ao
nacionalismo ou JK com uma perspectiva alinhada ao capital internacional, a sociedade
brasileira transformava-se na medida em que o país se urbanizava com a industrialização. Em
sua dissertação de mestrado sobre diferentes recepções de Terra em Transe, Laikui Lins fala
mais sobre este aspecto:
O contexto sócio – político e cultural que dá passagem ao desenvolvimento do
Cinema Novo é o cenário dos anos de 1950. Nesse momento, o Brasil parece
vivenciar uma frenética corrida em busca da superação do estado de
subdesenvolvimento em que se encontra o país em pleno século XX, herança
deixada pelo colonialismo europeu. Desenvolvimento, progresso e modernização
tornam-se, então, as palavras de ordem nos mais diversos contextos da sociedade
brasileira.38

O discurso da modernização torna-se mais intenso quando JK assume a presidência em


1955. O estabelecimento do Plano de Metas e o famoso slogan 50 anos em 5 são fortes
indícios dessa intensificação. A conjuntura política internacional criava um momento bastante
propício para a política desenvolvimentista de Kubistchek. Depois da segunda guerra, os
Estados Unidos se consolidavam enquanto potência mundial e, com a Guerra Fria, precisavam
cada vez mais de aliados num mundo dicotômico entre socialismo e capitalismo. Dessa forma,
o modelo industrial norte-americano serviu de inspiração para o Brasil. Caroline Lima, ao
abordar o contexto de implantação da indústria cinematográfica Vera Cruz na década de 50,
toca nesse ponto fazendo uma importante afirmação de que a influência estadunidense propõe
debates acerca da identidade nacional uma vez que era preciso abandonar o

38
LINS, Laikui Cardoso. A Recepção de Terra em Transe: ontem e hoje. Dissertação (Mestrado em
Literatura). Programa de Pós Graduação em Literatura e Diversidade Cultural. Universidade Estadual de Feira de
Santana. 2009. p. 53
27

subdesenvolvimento de modo que, pelo menos no comando político do país, a solução pra
esse problema seria a industrialização e a abertura ao capital multinacional39.
As mudanças ocorridas no Brasil durante esse período acarretam uma série de outras
mudanças que permeiam o comportamento e cotidiano da sociedade. Com mais indústrias, as
zonas urbanas se desenvolvem gerando mais produção, maior poder de consumo. A indústria
precisa de mão-de-obra e assim o proletariado cresce em número ao passo que a burguesia
ganha proeminência nos circuitos sociais por deter os meios de produção. Com a sociedade
processualmente se modificando, a vida passa a ser diferente, um Brasil mais moderno
também exige uma cultura moderna, no aspecto cinematográfico a demanda seria pela
implantação de uma indústria cinematográfica no Brasil, nesse sentido, segue a mesma lógica
do discurso de modernização da economia e da política, ou seja, o modelo norte-americano é
a referência norteadora para o cinema brasileiro se consolidar enquanto moderno.
O cinema de Glauber Rocha e o Cinema Novo são cinemas que empreendem conflitos,
que combatem alguma coisa e que visam, pelo menos inicialmente, transformar a sociedade.
Um desses conflitos era com o cinema industrial brasileiro daquele momento basicamente
feito por dois estúdios; a Atlântida no Rio de Janeiro com comédias de sucesso com o
público, orçamentos modestos e sem a perspectiva de um cinema politicamente engajado e a
Vera Cruz em São Paulo, um grande estúdio que foi responsável pelas primeiras produções de
orçamentos altos, as temáticas fílmicas eram mais diversificadas. Os dois estúdios produziam
os filmes de acordo a narrativa hollywoodiana, a Vera Cruz, por ter mais recursos financeiros,
até mais que a Atlântida. De acordo com Lima40, a referida empresa representou a eficácia do
projeto de desenvolvimento industrial brasileiro que tinha como objetivo criar um cinema de
grande porte no país. Sem dúvida a Vera Cruz trouxe avanço ao cinema nacional,
principalmente em aspectos técnicos. Segundo a autora, os equipamentos usados nos filmes
eram importados e de primeira qualidade, a mão de obra especializada vinda da Europa para
operar tudo isso, apesar da ótima estrutura de produção, os filmes pecavam no que dizia
respeito ao Brasil:
Houve, pela primeira vez, no país, filmes nacionais com grandes saltos técnicos e de
ótima qualidade, mas isso não evitou críticas referentes às temáticas de suas
produções, que nada diziam sobre o Brasil. Referente ao quesito qualidade, a
companhia conquistou um espaço importante, entretanto, estava distante das
temáticas sociais.41

39
SANTOS, Caroline Lima. O Cangaceiro, o Cineasta e o Imaginário: a produção de representações do
cangaço no cinema brasileiro (1950-1964). Dissertação (Mestrado). Santo Antônio de Jesus. Universidade do
Estado da Bahia. Programa de Pós Graduação em História Regional e Local. 2010. p48.
40
Ibidem p59
41
Ibidem, p. 60-61
28

A dimensão conflituosa desses cinemas industriais brasileiros com o Cinema Novo se


dá simultaneamente em dois diferentes aspectos. Com a Atlântida a birra cinemanovista era
em relação as chanchadas, com tons popularescos e, segundo os cinemanovistas, acríticos,
não possibilitarem uma consciência da realidade exploratória e despertar uma politização no
público. Ao que tange a Vera Cruz, a indisposição estava ligada ao estúdio adotar a gramática
hollywoodiana como referência e pela disseminação do American Way of Life, que, para os
integrantes do movimento, representava uma cultura colonizadora e imperialista que fazia o
cinema e o povo brasileiro dependente dos Estados Unidos. Para além, o Cinema Novo
precisa conquistar seu espaço, com propostas opostas, precisavam se afirmar enquanto arte
engajada e, na visão dos mais eufóricos, superior ao que já tinha sido produzido até então.
Outra dimensão conflituosa era com a própria organização social do Brasil naquele
período. A juventude do Cinema Novo era declaradamente de esquerda e com grande adesão
ao marxismo, alguns inclusive afiliados ao PCB como vimos anteriormente. Uma vez que um
sistema capitalista produtivo se consolidava no Brasil, os cineastas se viam na obrigação de
denunciar todas as contradições que vinham no pacote da modernização. Dessa forma, os
cineastas do movimento não estavam apenas contra uma cultura cinematográfica vigente, mas
também contra um sistema social que renegavam.
Assim, o Cinema Novo surge do conflito contra outros cinemas e contra um sistema
social capitalista que, de acordo com os cinemanovistas, é propositor de contradições. Essa
visão é reforçada em Revolução do Cinema Novo onde consta um texto de Glauber chamado
Hollywood Tropykal escrito em 1965. Nele o autor fala sobre Itacoatiara, uma cidade situado
no interior do Amazonas. Itacoatiara, onde grande parte da população é analfabeta, possui
uma sala de cinema onde, segundo Glauber Rocha, cópias velhas e reduzidas pela metade são
exibidas e descreve a sensação de um típico nativo daquele lugar (caboclo) ao se deparar com
filmes americanos.
A legenda faz parte do mistério. Os homens são grandes, valentes, as mulheres
belas, há beijos na boca. Na rua, assustado, se pergunta, ouve a resposta:
Americano! Povo maior, que viaja em cima da terra e abaixo do mar, certamente é
mais feliz que ele, povo menor, que atravessa o rio a remo está aberto ao veneno das
cobras.42

O cinema em Itacoatiara é a representação do imperialismo cinematográfico


hollywoodiano que constrói o imaginário glorificante da sua cultura ao brasileiro, que tem, na
lógica da distribuição de filmes no Brasil daquele momento, sua própria cultura silenciada e

42
ROCHA, Glauber. op. cit. p.68
29

inferiorizada por uma expressão artística tão forte como o cinema. Na cidade amazonense, os
brasileiros continuam vivendo e praticando sua cultura cotidianamente, continuam
atravessando o rio a remo e convivendo com a diversidade ecológica, mas isso no cinema, que
é símbolo de modernidade e desenvolvimento, não é representado. O representado é o outro, o
mitificado herói americano. Isto faz com que uma cultura do outro lado do continente
idealizada imageticamente através do cinema sobreponha a cultura do local que é vivida pelas
pessoas que lá habitam. A vontade de cinema de Glauber era acusar e aniquilar essa
sobreposição cultural que acontecia no país todo, Itacoatiara é só um exemplo.
Ainda em Itacoatiara, Glauber nos conta que conheceu um rapaz louro que tinha 18
anos e foi estudar Geologia em Belém. O rapaz conhecia muito bem o Cinema Novo e suas
abordagens cinematográficas, mas não havia assistido nenhum filme pois tudo que sabia era
proveniente de leituras de jornais do sul que chegavam atrasados lá. O jovem protesta porque
lá só chegam filmes estrangeiros e raramente nacionais.43
As reflexões sobre as dimensões de conflito inerentes a Glauber Rocha e ao Cinema
Novo nos remetem à leitura de Michel de Certeau e suas percepções sobre espaços para
entender o pensamento que Glauber Rocha tem para o cinema nacional. Certeau realiza um
estudo onde se propõe a estudar práticas humanas que constroem, consolidam ou modificam
uma realidade estabelecida pelo cotidiano. Para fazer isso, ele nos apresenta o conceito de
lugar e espaço. O lugar, para o autor, são coordenadas, um ambiente estável onde as coisas
tendem a se manterem estáveis, em nível de exemplo, uma sala de jantar apenas com móveis
configurados numa razão discursiva coerente se caracteriza como lugar.
O espaço se apresenta quando as práticas humanas interferem no lugar. Ele é formado
quando essas práticas interagem com a configuração estável do lugar, daí a afirmação do autor
de que o espaço é o lugar praticado. Certeau utiliza uma analogia interessante para fixar
melhor essas noções quando diz que “o espaço está para o lugar assim como a palavra quando
é falada.”44 A palavra, quando escrita ou falada, pode produzir diversas significações a
depender do contexto, circunstâncias, motivações ou temporalidades em que é usada.
Tomando como parâmetro o exemplo do parágrafo anterior, o espaço são as diversas
possibilidades de pessoas interagirem numa sala de jantar que, sem pessoas ali, é apenas um
lugar.

43
Ibidem p69
44
CERTEAU. Michel de. A Invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves.
Rio de Janeiro. Vozes, 2013. p. 184
30

Glauber filma e percorre diversos ambientes, nacionais e internacionais. Essas


travessias são experiências importantes para sua posição perante o cinema nacional. Para o
cineasta em questão, o cinema brasileiro só conseguirá ser pleno se romper discursos que se
tornam hegemônicos dentro de nossa sociedade. Se espaço e lugar são aspectos formadores do
cotidiano e da vida, o que Glauber propõe é a construção de um novo modelo para o cinema
brasileiro que ocorrerá somente com a crítica e desconstrução da organização cinematográfica
brasileira vigente naquele momento e sustentada por relações de espaços bem definidas que
contemplam as regiões brasileiras entre si e do Brasil como um todo com propostas
internacionais de cinema, sobretudo com os Estados Unidos. Se a proposta de Glauber é
mudar o cinema brasileiro, inevitavelmente os conflitos entre espaços serão necessários para
que as mudanças sejam efetuadas.
Neste sentido, pensando nas percepções que Certeau tem para o espaço, o cinema
idealizado por Glauber só se torna real na medida que estas interações entre espaços
socioculturais e geográficos sejam feitas com a intenção de desconstrução de um predomínio
cultural que, a seu ver, míngua, através de uma ordem cinematográfica que privilegia o
estrangeiro, a identidade cultural brasileira. É nesta relação de forças que o cinema e o
discurso de Glauber Rocha atua sob a guarda do Cinema Novo. Se, metaforicamente, a ordem
é a sala de jantar organizada que direciona o mercado do cinema brasileiro, o Cinema Novo
tende exatamente a bagunçar a sala, mudar a disposição de seus objetos, mudar o percurso
para alcançar a mesa e, certamente, mudar o gosto dos alimentos. Isto faz com que o aspecto
de regionalidade seja algo fundamental nos propósitos do Cinema Novo
Até aqui o que atinge o texto são perspectivas que, de variadas formas, abordam o
Cinema Novo em suas características concepcionais e essenciais. Antes de adentrarmos de
fato na estrutura organizativa do movimento foi preciso trabalhar o contexto histórico de seu
surgimento, bem como os posicionamentos políticos que adotam relacionados a sociedade e
cultura brasileira. O que se desenhará a seguir é a compreensão de como o Cinema Novo
funcionava estruturalmente de modo que possamos compreender suas organizações internas e
como elas dão sentido ao que se produzia em cada uma de suas fases.

A organização cinemanovista.

Entre estudiosos e até mesmo os próprios cineastas do movimento, existe o consenso


de que o Cinema Novo começou na década de 1960. Contudo, em 1955, Nelson Pereira dos
Santos lançou Rio, 40 graus, um filme que seria uma espécie de piloto para o Cinema Novo,
31

seja no tema e da forma como ele é abordado na obra ou em suas características formais. A
obra narra um dia na vida de alguns meninos negros que vendem comida em pontos turísticos
famosos do Rio de Janeiro mostrando os contrastes sociais da então capital nacional dando
uma perspectiva diferente sobre a sociedade para o espectador.
A boa dose de crítica social presente na obra causou, de acordo com Sidney Leite 45,
desconfortos no comando político brasileiro ao ponto do Serviço de Censura tentar impedir
sua exibição. O Autor pondera que a vontade que a censura tinha de vetar a obra era tão
grande que chegaram a utilizar justificativas risíveis para tal alegando a inverosimilhança do
filme uma vez que no Rio de Janeiro, mesmo no verão, não atingiria os 40 graus de
temperatura ou de que o filme foi feito por comunistas com a finalidade de depreciar a capital
federal46. As tentativas de proibição do filme foram em vão e Rio, 40 graus certamente pode
ser considerado como um dos filmes nacionais mais importantes da década de 1950.
O modo de realização do filme também seria reproduzido anos mais tarde pelos
cinemanovistas. A estética neorrealista surgida na Itália no pós-guerra serviu de forte
influência para Nelson Pereira dos Santos, portanto, no filme em questão, temos cenas feitas
ao ar livre, com atores não profissionais filmados com a câmera na mão que denunciavam
algum tipo de injustiça ou contradição social e com o custo de produção bem abaixo dos
filmes de estúdios que seguiam uma dada lógica industrial. Por isso, o referido filme se
encaixa na Política de Autores, ideia defendida pelos cineastas franceses que integravam a
Nouvelle Vague e a Cahiers du Cinema. O cinema de autor é o tipo de filme que, apesar de
obviamente ter uma equipe de produção, concentra toda sua força criativa no diretor. Glauber
Rocha, em entrevista a Michel Ciment da revista francesa Positif em 1967, comenta sobre a
importância do filme para o Cinema Novo:
[...] ele [Nelson Pereira dos Santos] é a consciência do nosso grupo. Foi ele quem
fez o primeiro filme independente do ponto de vista da produção. Rio, 40 graus, e aí
encontramos as primeiras posições políticas frente a situação colonial do Brasil. Ele
tornou-se um líder, uma espécie de inspirador e, ainda hoje, mediador entre os
contrários. Sempre que surge uma crise no meio do cinema novo ele exerce um
papel humano muito eficaz.47

Em 1955 Nelson Pereira dos Santos talvez inconscientemente mostra a uma geração –
que ele também fará parte – que é possível fazer um cinema diferente no Brasil, sem temer os
produtores industriais, fazendo uma crítica encorpada à ordem capitalista fortalecida com o

45
LEITE, Sidney Ferreira. Cinema Brasileiro: das origens a retomada. São Paulo. Fundação Perseu Abramo.
2005.
46
Idem.
47
ROCHA, Glauber. Positif (entrevista a Michel Ciment) In. Revolução do Cinema Novo. p 111
32

recente processo de industrialização. Rio, 40 graus faz isso, causa polêmicas e usando
percepções cinematográficas e referências estéticas que nada tem a ver com o modelo
hollywoodiano de cinema. Não seria exagero afirmar que o filme é, em germe, o Cinema
Novo.
Os intelectuais costumam dividir o movimento em algumas fases e, como já podemos
esperar, não existe um consenso nesse aspecto, sobretudo ao que tange até quando o Cinema
Novo teria durado. Sidney Leite48 divide o movimento em três fases; A primeira entre 1962 e
1964 onde os ambientes das películas foram predominantemente rurais e as produções
evidenciavam a atmosfera da população rural e seu sofrimento com a opressão política e
social exercida pelo Estado. São exemplos dessa fase os filmes Vidas Secas e Deus e o Diabo
na Terra do Sol.
A segunda fase ocorre entre 1965 e 1966 e é marcada pela mudança da ambientação
dos filmes, que agora seria no geral urbana. O motivo desta mudança foi a também mudança
que o Brasil vinha sofrendo em todos seus setores, o regime militar. Dessa forma, a
predominância rural tornou-se urbana, A Grande Cidade de Carlos Diegues foi um importante
filme deste momento.
Sobre a Última fase do Cinema Novo, Sidney Leite afirma:

A terceira e derradeira fase do movimento aconteceu entre 1967 e 1969, e teve como
característica principal a profunda autocrítica, não apenas na atuação dos intelectuais
e da esquerda na história recente do país, mas do próprio Cinema Novo. Os
diretores, nesse período, enfatizaram suas próprias contradições e denunciaram o
fracasso das utopias transformadoras presentes na primeira fase do Cinema Novo. 49

Leite aponta as transformações que aconteceram no Cinema Novo durante sua


vigência ao passo que restringe sua atuação até 1969. Essa restrição nos aponta uma dúvida;
durante a década de 1970 vários cineastas cinemanovistas ainda continuam em ação e
levantando a bandeira do Cinema Novo, como então poderia ter durado até 1969? Sylvie
Pierre pondera sobre esse aspecto inclusive se abstendo de opinar sobre até quando poderia ter
durado o Cinema Novo50.
Em seu livro, Pierre reproduz uma entrevista com Glauber feita por João Lopes em
abril de 1981, em Portugal. A primeira pergunta trata-se da interrogação se o Cinema Novo
terminou ou não. Glauber responde da seguinte maneira:
A discussão sobre o “Cinema Novo” é um dos temas mais intensos da cultura
brasileira. Desde que o “Cinema Novo” nasceu, em 1960, diversos adversários do

48
LEITE, Sidney, op. cit. p. 98-101
49
Ibidem, p. 101
50
PIERRE, Sylvie. op cit. p. 78
33

movimento proclamaram sua morte. Trata-se, portanto, de uma pergunta, por assim
dizer, clássica, já dei várias respostas, e vou dar mais uma.
O movimento do “Cinema Novo” desenvolveu-se durante um período difícil da vida
política brasileira, pois foi justamente de 1964 a 1974 que vivemos um período de
ditadura feroz no Brasil, durante o qual todas as atividades sociais e culturais foram
reprimidas. A partir de 1974 e até agora, houve um processo de democratização,
lento e gradual, que permitiu, numa segunda fase, - durante o governo Figueiredo - a
supressão da censura e o restabelecimento (espero que haja continuidade, mas
também pode ser de curta duração) das liberdades no país.51

Apesar de considerar a experiência cinemanovista durante a década de 70, mais


adiante na entrevista Glauber afirma que o Cinema Novo “foi um movimento dos anos 60”52.
Existem também interpretações que enxergam o Cinema Novo até 1980, como o caso de Luiz
Nazario e sua afirmação de que por volta desse ano é quando os cinemanovistas começam a
perder espaço no cenário cinematográfico uma vez que, com a globalização e a abertura
democrática, as produções hollywoodianas cada vez ganhavam mais espaço em solo
nacional53.
Dividir o Cinema Novo em fases ou achar um ponto pacífico para o seu período de
duração são aspectos meramente didáticos para a obtenção de uma melhor compreensão de
todo o movimento. Cada pessoa que viveu, estudou ou apreciou o Cinema Novo possui uma
experiência individual com a corrente que é refletida em seus discursos. As décadas de 1960 e
1970 são muito diferentes no ponto de vista histórico, enquanto na conjuntura de 1960
tínhamos uma efervescência sociocultural principalmente por causa do processo de
industrialização e as transformações que isso causou. Para além, um golpe de Estado acontece
implantando uma ditadura no país modificando evidentemente o sistema político e dando
mais pano pra manga para um cinema pretensamente revolucionário. Todos esses aspectos
foram essenciais para o surgimento e consolidação do Cinema Novo, a década de 60,
sobretudo até antes do AI-5, foi o período de maior atuação dessa corrente cinematográfica. A
década de 70 já desenvolve um cenário bastante diferente. A repressão e a censura ganhavam
força depois de 1968, outras iniciativas cinematográficas aconteciam paralelamente ao
Cinema Novo, como o Cinema Marginal e o próprio cinemanovismo se questionava em suas
formas de atuação. Todas essas questões fizeram com que o Cinema Novo ainda existisse
durante a década de 70, porém com menos vigor enquanto movimento político-
cinematográfico que teve na década anterior.

Eztetyka e recepção da revolução.

51
Ibidem, p.198
52
Ibidem, p. 199
53
NAZARIO, Luiz. O Cinema Errante. São Paulo. Perspectiva. 2013. p. 196
34

A presente seção tem o objetivo de sistematizar a estética cinematográfica


cinemanovista tendo como principal parâmetro a chamada estética da fome. A principal
referência que usaremos para tal consiste em textos escritos pelo cineasta, principalmente
aqueles que tratam de aspectos estéticos para o Cinema Novo. Posteriormente faremos uma
breve análise da recepção cinemanovista no Brasil e de seus direcionamentos articulando-os
com novas formas de expressão cultural através da arte como a Tropicália.
Em 1965, Glauber escreve talvez o texto mais famoso e interpretado da sua vida, o
título é Eztetyka da Fome54 apresentado num evento de cinema em Gênova e, em visões
glauberianas, sintetiza o Cinema Novo. Ainda que este tenha durado mais alguns anos e
passado por algumas mudanças, o texto de Glauber continua sendo forte parâmetro para
qualquer análise do cinemanovismo brasileiro.
A proposta da estética da fome é de choque para o espectador, seja brasileiro ou
estrangeiro. Nesse sentido, a dimensão de conflitos entre espaços sociais, culturais, políticos e
geográficos é evocada. Primeiramente ele diferencia a cultura latina como cultura do mundo
subdesenvolvido e a europeia enquanto uma cultura civilizada. Para Glauber, o colonialismo
latino ainda era uma realidade, porém exercido de outra maneira, mais sutil, de forma mais
simbólica, uma dependência política e econômica que proposita uma visão artística e
cultural55.
A produção cinematográfica brasileira com características industriais até então é um
reflexo desse colonialismo. Nesse ponto Glauber desqualifica a situação artística e mais
especificamente cinematográfica brasileira adjetivando-a de estéril. Um caminho perigoso e
certamente injusto a se seguir. É possível extrair um sentido crítico ou criticar qualquer obra
artística, o cinema industrial brasileiro nunca se propôs revolucionário ou vanguardista, mas
decerto também nunca foi estéril, vazio, fechado no que se refere a, através dele,
problematizar algum aspecto da sociedade brasileira.
A estética da fome é a materialização de todo esse conflito na película, é a
contraposição ao que Glauber chama de cinema digestivo, que são exatamente os filmes
industriais brasileiros. Para Glauber, esses são “filmes de gente rica, em casas bonitas,
andando em automóveis de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, de
objetivos puramente industriais.”56. O cinema da fome se opõe a essas representações, é um

54
Revolução do Cinema Novo. op. cit. p. 63
55
Idem.
56
ibidem p.65
35

cinema que mostra o miserabilismo do terceiro mundo, que pretende viabilizar uma
consciência histórica em seu público. Um cinema que não está preocupado com a beleza de
sua cenografia, fotografia ou figurinos. O autor afirma que esse tipo de cinema provoca
vergonha nos brasileiros acostumados com outra gramática e, para os estrangeiros, se torna
uma espécie de surrealismo tropical.
A fome, pensando nessa perspectiva, torna-se um termo polissêmico, pois além de ser
um termo que condensa os problemas sociais brasileiros, ele também serve de metáfora para
as condições técnicas de produção das obras, nem a imagem nem o áudio são de primeira
qualidade, a estrutura técnica também é esfomeada e para o Cinema Novo, numa perspicácia
considerável, os problemas técnicos também servem de metáforas para discursos políticos.
A estética da fome não se interessa muito por procedimentos formais, seu interesse é
concentrado na ação e representação política e social. Deus e o Diabo na Terra do sol, Vidas
Secas e Cinco Vezes Favela (1962) são filmes que seguem estruturas diferentes entre si e
ainda são integrantes da estética em questão. Assim, a estética da fome sistematizada por
Glauber se encaixa numa estético-política. A fome, como aponta Socorro, é uma capacidade
dos cinemanovistas de pensar o Brasil57. De acordo com Glauber Rocha, um cinema novo
estará em germe em qualquer filme que ouse a desafiar uma ordem opressora numa dada
sociedade. Essa ideia, inclusive, dá ao jeito de fazer o Cinema Novo uma dimensão
internacional e totalizante, como se outros movimentos cinematográficos vanguardistas em
outros países a exemplo do Neorrealismo italiano ou o Construtivismo russo fosse, em seus
países de origem, Cinemas Novo.
Em 1967, num texto chamado A Revolução é uma Eztetyka58, Rocha sistematiza ainda
mais estética da fome. Claramente inspirado em Brecht, ele aponta duas formas de atuação de
um cinema revolucionário no que chama de épica e didática. A épica é a que mais se
aproxima da arte, “a épica será uma prática poética!”59, algo que incite um desejo de
transformação histórica, a épica é o que emociona através das sensações. Por outro lado, a
didática é racional, científica, tem a função de informar e conscientizar as massas. Assim, o
que teremos é uma interação entre épica e didática desaguando num produto que pretende
uma revolução através do cinema.
A estética da fome e as perspectivas de épica e didática são fundamentos que
estruturam o discurso cinematográfico de Glauber Rocha. Esses elementos revelam o quanto

57
CARVALHO, Maria do Socorro. loc, cit.
58
ROCHA, Glauber. Op cit.
59
Idem.
36

de conflito ele incita ao propor e realizar esse tipo de arte. Durante os primeiros anos da
década de 60 Glauber está ao mesmo tempo frustrado com a atitude política do cinema
brasileiro vigente e após 1964 vem também a frustração de um golpe que implanta uma
ditadura conservadora no país. De outro ponto de vista, vê-se empolgado com a possibilidade
de realizar o cinema potencialmente revolucionário e ganhando projeção internacional. Entre
isso tudo, a inquietação de Glauber é também presente, seja antes ou depois do início do
Cinema Novo.
Os filmes de Glauber Rocha e o Cinema Novo como um todo foram bem elaborados
em aspectos estruturais narrativos, com propostas concretas e de uma grande coesão estética
dotada de originalidade e coragem. Porém, para que os objetivos cinemanovistas fossem
alcançados, seria preciso de uma grande adesão popular à suas perspectivas da realidade.
Nesse caso, nos tencionamos a questionar como essa relação aconteceu ou se de fato ela
aconteceu, como podemos analisar nuances receptivos para o Cinema Novo?
Essas são questões complexas e que exigem respostas detalhadas. Lins tem a
preocupação de trabalhar essas perspectivas e nos aponta alguns aspectos receptivos do
Cinema Novo. De antemão, informo ao leitor que o diálogo entre o grande público e as obras
cinemanovistas foi escassa. Os cineastas conseguiram agitar a cena cultural brasileira e
estrangeira, conseguiram burburinho com a crítica, conseguiram prêmios importantes e
representatividade considerável ao redor do mundo, mas nunca conseguiram ser sucesso de
bilheteria no Brasil. Se um povo consciente era pressuposto de revolução, a mesma estaria em
sérios apuros dada a não adesão popular de espectadores para as obras cinemanovistas.
Algumas justificativas explicam esse cenário complicado para os cineastas engajados.
Lins, apoiada em outros intelectuais, alega que o problema dos recursos técnicos não agradava
o público.60 Uma produção muitas vezes improvisada, com aspectos estruturais
problemáticos, como o som, por exemplo, afastava um público que, por sua vez, estava mais
acostumado a outro tipo de produção e gramática. O estranhamento ao ver os filmes
herméticos, metafóricos e alegóricos do Cinema Novo certamente repeliam espectadores
leigos em cinema, que estavam lá apenas por diversão.
Outro ponto que não facilitava a comunicação era a lógica de distribuição dos filmes.
Os exibidores estavam mais interessadas em manter em cartaz obras norte-americanas ou as
nacionais que o público já estava mais acostumado a assistir. Exibir um filme cinemanovista
era sempre um risco aos bolsos dos exibidores. Lembremos que naquele período ainda não

60
LINS, Laikui. op cit p. 75
37

existia o home vídeo e a única forma de ver um filme era indo ao cinema. Em um texto já
citado anteriormente de nome Hollywood Tropykal61, Glauber Rocha relata uma viagem a
uma cidade amazonense onde simplesmente os filmes do Cinema Novo não chegam.
Inusitadamente lá ele encontra um jovem que conhece muito o Cinema Novo, mas apenas
porque lia jornais ou outros escritos de maior circulação nacional, o jovem nunca tinha visto
nenhum filme pertencente ao movimento. Para Glauber a população de Itacoatiara estava
restrita ao cinema imperialista.
Nesse ponto é válido o questionamento sobre até qual ponto a postura de
enfrentamento forte do Cinema Novo com os outros cinemas brasileiros foi benéfica para a
disseminação do próprio movimento. Um espectador de filmes da Vera Cruz ou da Atlântida
que ouvisse as declarações de Glauber Rocha sobre os filmes que assistia poderia sentir-se
ofendido e subestimado e, dessa forma, nem se sentiria a vontade pra assistir um filme
cinemanovista ou, se fosse, poderia ir contrariado, com uma expectativa ruim para a obra que
estava prestes a ver. O Cinema Novo suprime representações artísticas e cinematográficas
nacionais que se contrapunham aos seus objetivos revolucionários. O que, de acordo com
Glauber Rocha e outros cinemanovistas, não eram afins com os seus projetos, era
automaticamente descredenciado e tratado apenas como cultura colonizada. Isso certamente
foram pontos polêmicos que distanciaram uma popularização maior do Cinema Novo.
Alguns autores afirmam que o Cinema Novo assumiu uma autocrítica em um
momento de maior maturidade dos cineastas. Lins utiliza um texto de 1966 do cineasta
cinemanovista Gustavo Dahl onde o mesmo afirma sobre a frustração dos cineastas ao
perceberem que a tão sonhada revolução não estava acontecendo, nem mesmo os filmes
alcançavam o público.62 Ele afirma que inicialmente achava-se que era apenas exibir aquela
realidade contraditória, desigual, injusta e propositora de mudanças representada nas obras
para o público e a coisa estaria no caminho certo. Entretanto, Dahl reconhece que isso era
insuficiente e que o povo não se reconhecia nessa miséria, não queria se enxergar daquela
maneira que era representado. Dessa forma, a consciência de que algo deveria ser feito para
modificar a situação do Cinema Novo se tornou flagrante para os cineastas, sobretudo após
1967.
A partir desse cenário o Cinema Novo se repensa, se modifica e começa a se
fragmentar e novos planos de diálogos com o público são montados. Essas mudanças podem
ser vistas nos próprios filmes, em Terra em Transe, vários elementos do miserabilismo foram

61
ROCHA, Glauber. op cit. p.69
62
DAHL, Gustavo. O Cinema Novo e o Seu Público. apud LINS. op. cit. p78
38

amenizados, a pobreza representada no filme é menos física e mais simbólica. A produção do


filme ficou mais sofisticada e isso também se deve a fama que Glauber Rocha atingiu
anteriormente. Macunaíma(1969), Garota de Ipanema (1967), inclusive esse primeiro é tido
como a maior bilheteria de todo Cinema Novo, são exemplos das mudanças que ocorreram na
linguagem cinemanovista. Entretanto, não se pode dizer que a estética da fome foi deixada
totalmente de lado, se assim o fosse, o Cinema Novo perderia toda sua característica de
proposta de transformação da sociedade, no entanto ela foi remodelada em alguns filmes. Os
elementos da fome ainda estão presente, só que dessa vez de maneira mais digestiva, em
âmbito técnico com mais recursos e em ambiente narrativo de maneira esteticamente menos
feia e incisiva.
Essas transformações que ocorrem no cinema acontecem também em outras
linguagens artísticas, não podemos isolar arte e cultura numa ilha sem diálogos, as linguagens
sempre interagem entre si criando, recriando e ressignificando abordagens. O Cinema Novo, o
Teatro de Arena e Oficina, a MPB e a literatura estão produzindo discursos, cada um à sua
maneira, e estão inseridas no mesmo contexto histórico. Isto nos remete a distâncias e
aproximações entre as artes no Brasil da década de 60, nosso foco compete à complexidade
que Glauber Rocha e a geração cinemanovista lidam com isso tudo. Por outro lado, a atenção
à arte como algo mais amplo que o nicho cinematográfico é necessária para atender os nossos
objetivos.
O projeto nacional-popular que vários artistas tinham no início dos anos 60 foi se
remodelando principalmente depois do golpe de 64. Como aponta Ridenti, alguns artistas que
revelaram adesão a proposta de cultura nacional e popular desertaram “aderindo às posições
que preconizavam a indústria cultural, para subvertê-la por dentro”63. José Celso no Teatro
Oficina, Gilberto Gil na música e Glauber Rocha e outros cineastas cinemanovistas seriam
exemplos desta travessia.
Os impulsionadores dessas mudanças foram as transformações históricas ocorridas na
década de 60. Ainda na leitura de Ridenti é possível perceber que uma espécie de um amplo
sonho revolucionário cuja cultura transformadora – além de outras dimensões do mundo
social como a política e movimentos sociais – também integrava foi perdendo força a partir de
1964. De acordo com o autor, para uma parte da população este sonho já se acabara com o
golpe de 64, para outros, isso acontece com o estabelecimento do AI-5 e a intensificação da
censura e repressão e, finalmente, para os mais otimistas, a eliminação dos grupos

63
RIDENTI, Marcelo. O Fantasma da Revolução Brasileira. 2ª Edição revista e ampliada. São Paulo. Editora
UNESP. 2010. p.76
39

guerrilheiros de esquerda foi o que pôs fim na esperança de alguma forte mudança na
sociedade brasileira.64
Esse contexto que começa a surgir a partir da segunda metade dos anos 60 foi um
grande propulsor da Tropicália. Se durante os cinco ou seis primeiros anos da década a
identidade, no âmbito da cultura, do nacional e popular estava intrinsecamente atrelada ao
campo e as relações de exploração que o cercava. Em 1967 já começa a haver uma mudança
deste cenário pra algo que representasse um conflito mais urbano ou um contraste entre
campo e cidade no que toca as discussões de modernidade. É neste sentido que cabe a
afirmação que Terra em Transe está inserido na atmosfera do tropicalismo brasileiro uma vez
que no filme tais questões estão inseridas explicitamente. Aqui vemos que a influência
cultural entre os artistas acontecia de maneira dinâmica, se Glauber Rocha fora influenciado
por uma trama cultural histórica que direcionava um discurso para o nacional-popular, ele, ao
lado de outros como Gilberto Gil, também influencia um novo caminho que as ações e
representações culturais podem adentrar, nesse caso o tropicalismo. O próprio Caetano Veloso
reconhece em seu livro Verdade Tropical que Terra em Transe exerceu uma forte influência
sobre sua percepção artística e sociocultural de mundo.
Ainda no que toca a recepção cinemanovista e o diálogo dos cineastas com alguns
críticos ajudou na difusão do movimento. Como vimos nas páginas anteriores, o jovem de
Itacoatiara conhece o Cinema Novo porque lê jornais tendo assim um mínimo contato com a
eztetyka. A pesquisa que realizei tendo como um dos objetivos analisar a recepção dos críticos
de cinema do Jornal do Brasil com relação ao Cinema Novo conclui que, principalmente
analisando textos dos críticos que compunham o time do jornal, entre eles figuras importantes
na crítica cinematográfica brasileira como Ely Azeredo e José Carlos Avellar, foi que, em
última análise, os críticos reconheciam as inovações estéticas do Cinema Novo, achavam
sadia a ideia de reinvenção do cinema brasileiro. Porém, como é comum a qualquer trabalho
de crítica, nem sempre concordavam com as formas com que se implantava as mudanças. 65
De todo modo, através de críticas positivas ou negativas, no Jornal do Brasil, que era um dos
principais Jornais que circulava no país naquele momento, haviam textos relativos a muitas
obras cinemanovistas o que consistia, dada a amplitude de circulação nacional do jornal, um
ótimo canal de difusão do Cinema Novo.

64
Ibidem, p. 78.
65
BORGES, Ítalo Nelli. A História Através das Telas: um estudo sobre as aparições do Cinema Novo no
Jornal do Brasil e das críticas à política brasileira em Terra em Transe. Feira de Santana. Monografia de
Trabalho de Conclusão de Curso (Lic. Em História). Universidade Estadual de Feira de Santana. 2013.
40

Ultrapassando o Jornal do Brasil, as interações entre críticos ou intelectuais do cinema


e os cineastas cinemanovistas era intensa. A maioria deles se conheciam e se comunicavam
frequentemente por frequentarem os mesmos espaços culturais. Glauber Rocha afirma que,
nos momentos iniciais do movimento, Jean-Claude Bernadet e Gustavo Dahl (que era
cinemanovista) sustentam textos no Estado de São Paulo. David Neves, que também era
cinemanovista, se envolve com a imprensa e que Ely Azeredo é o primeiro a classificar aquela
enxurrada de filmes independentes que surgiam de cinema novo.66
O que podemos perceber é que a rede que fez o Cinema Novo se desenvolver foi
composta também pela imprensa e que muito dos cineastas conseguiam acesso a ela. O papel
da crítica foi fundamental para que o movimento se tornasse, pelo menos no papel, mais
amplo no sentido de alcançar pessoas. Se por questões de distribuição os filmes ficavam
restritos, pelo menos as análises deles chegavam aos quatro cantos do país devido a essa
dinâmica nem sempre tão harmoniosa entre os integrantes do Cinema Novo e a imprensa
brasileira de amplo alcance.
De modo panorâmico, se tratando da recepção e relevância cinemanovista, podemos
entender que a dificuldade de adaptação a uma nova gramática cinematográfica estruturada
por uma estética impactante e até constrangedora, a contraposição estrita a um modelo de
cinema de alcance popular e os circuitos de distribuição e exibição tornaram a comunicação
Cinema Novo e o grande público fraca. Contudo, historicamente o Cinema Novo tem uma
relevância considerável para a cultura e a arte brasileira. Ainda que problemático em alguns
pontos, a coragem dos cineastas, os filmes originais e desafiadores, o esforço intelectual e
físico para produzir, divulgar e defender as obras devem ser considerados por qualquer pessoa
que se disponha a pensar cultura na contemporaneidade brasileira, sobretudo entre 1950 a
1970. Os filmes representam um forte imaginário social da época em que foram lançados, seja
do intelectual de esquerda, de visão política e social daquela situação histórica ou de ação
perante uma realidade contraditória e desigual.

A geração revolucionária

A leitura de estudiosos que se debruçaram sobre o Cinema Novo, de relatos de


cineastas, críticos e pessoas envolvidas com a produção fílmica dessa corrente nos permite o
entendimento do quão cooperativo fora o movimento. Já foi dito aqui anteriormente algo

66
ROCHA. Op cit. p.51
41

referente a esse aspecto quando os cineastas se ajudavam nas produções, um montava o filme
do outro, ajudavam no figurino, em conseguir financiamentos, elenco, etc. Apesar de Glauber
Rocha ser o cineasta cinemanovista mais proeminente, a coletividade foi o que deu
essencialidade ao projeto. Sem uma geração em sintonia intelectual, certamente o Cinema
Novo não alcançaria o patamar que tem hoje na história do cinema brasileiro.
Desse modo, nesta seção, procuraremos entender as interações entre cineastas e
pessoas envolvidas com o Cinema Novo, principalmente os que fizeram parte de sua criação.
As percepções de Sirinelli sobre questões geracionais como instrumento de análise histórica
serão importantes na medida que as articularemos com vários textos e uma entrevista de
Glauber Rocha direcionada a falar de seus companheiros cinemanovistas. Uma vez que as
formas que os envolvidos no Cinema Novo se relacionavam seja a melhor maneira de
sistematizar o movimento, é inevitável que tenhamos estas intersecções entre Glauber e eles a
medida que, ao passo que o movimento vai se modificando em questões políticas e estéticas,
modificam-se também as relações entre os sujeitos integrantes dele.
Nesse sentido, as ideias que Jean François Sirinelli têm para o conceito de geração nos
são conveniente. O autor entende que a geração é uma engrenagem do tempo, que proposita
sentidos históricos na sociedade que se insere. 67 Precisamos atentar também que as gerações
são múltiplas ao longo do tempo e também coexistem simultaneamente. Assim como houve a
geração cinemanovista, houve também outros artistas na música, literatura e teatro engajados
numa cultura através de uma arte crítica e transformista. O cinema brasileiro possuiu diversas
gerações, nossa preocupação é a abordagem da geração cinemanovista e como ela está
relacionada com noções de identidade produzindo pensamentos e práticas que ecoam na
sociedade ganhando, inclusive, projeção histórica.
Mesmo sem sistematizar na ideia de geração, Ismail Xavier entende Glauber também
nessa perspectiva:
Sabemos que Glauber Rocha, como outros artistas naquela década (1960) trazia
consigo o imperativo da participação no processo político – social, assumindo
inteiramente o caráter ideológico do seu trabalho em sentido forte, do pensamento
interessado e vinculado à luta de classes. Afirmava então o desejo de conscientizar o
povo, a intenção de revelar os mecanismos de exploração do trabalho inerentes a
estrutura do país e a vontade de contribuir para a construção de uma cultura nacional
– popular; linhas de força que se manifestavam no cinema, na música e no teatro.
Era a forma específica encontrada por artistas brasileiros para expressar seu
compromisso histórico e seu alinhamento com as forças empenhadas na
transformação da sociedade.68

67
SIRINELLI, Jean François. A Geração In. FERREIRA, M, M e Amado , J (orgs.). Usos e Abusos da
História Oral. Rio de Janeiro. FGV. 2000 p. 134.
68
XAVIER, Ismail. Sertão-Mar: Glauber Rocha e a Estética da Fome. São Paulo. Cosac Naify, 2007. p. 15
42

Tomando as ideias de Sirinelli e Xavier como parâmetro, pretendemos abordar a


geração de pessoas envolvidas na criação, recepção e produção do Cinema Novo enquanto
objeto de análise. Nosso ponto referencial, assim como foi durante todo o capítulo, será
Glauber Rocha, pois foi o membro do movimento que mais publicou materiais referentes ao
Cinema Novo. Muitos integrantes escreviam em jornais, faziam crítica cinematográfica e
divulgavam seus trabalhos, mas Glauber tem essa peculiaridade em relação a eles.
Quando afirmo peculiaridade, refiro-me ao livro Revolução do Cinema Novo, que
reúne uma série de textos e entrevistas de Glauber ao longo de mais de 20 anos. O livro foi
publicado em 1981 e Pierre afirma que entre 1976 e 1980 Glauber passou muito tempo
trabalhando nesse projeto. Os textos revelam as muitas facetas que o cineasta teve durante sua
trajetória. Para a autora, a obra ainda é uma espécie de autobiografia coletiva69. Essa
referência é justamente pelo motivo de Glauber escrever sobre os companheiros de
movimento cinematográfico. É nessa perspectiva que poderemos entender de que maneira a
geração do Cinema Novo se articulou e ganhou força no cenário do cinema mundial, como
seu projeto político-cinematográfico foi implantado por seus integrantes. Para além, nos cabe
problematizar também esse tipo de fonte entrando nos nuances motivacionais que levaram
Glauber, já em 1980 (período que escreve sobre os colegas) a fazê-lo. Se o Cinema Novo foi
um organismo histórico-cinematográfico, nos convém questionar o porquê dele precisar
dessa, para usar as palavras de Pierre, autobiografia coletiva e em que pé isso dialoga com os
enredos de um cinema revolucionário que Glauber sempre almejou fazer.
No livro existem textos sobre muitas pessoas; críticos, atores, produtores e cineastas.
Optamos por focar nos que eram mais próximos a Glauber Rocha e que também fizeram parte
da gênese do Cinema Novo. A maioria é escrito em 1980 já na reta final de preparo da obra,
porém esses textos começam a partir de 1976. O primeiro texto é sobre o intelectual e crítico
de cinema Paulo Emílio Salles Gomes. De início Glauber reconhece o papel da crítica
cinematográfica – da qual Paulo Emílio era o Papa – como agente fundamental para sua
formação cinéfila. A gratidão a Paulo Emílio fica evidente quando Glauber afirma que foi
através dele que percebeu as relações do cinema com revolução 70. Assim, fica muito nítida a
percepção de que Paulo Emílio foi um alicerce cinematográfico pra Glauber Rocha uma vez
que em seus filmes, principalmente os longas, está explícita nas narrativas uma ação
revolucionária norteadora.

69
PIERRA, Sylvie. op, cit p. 80
70
ROCHA, Glauber. op. cit. p. 319
43

Em 1977, após a morte de Paulo Emílio, Glauber escreve um texto onde o homenageia
elegendo como um dos homens mais cultos do Brasil e responsável por uma ideologia
revolucionária71. Para Glauber, Paulo Emílio revela o principal inimigo do Cinema Novo, que
é exatamente a cultura imperialista norte-americana que consumia o mercado brasileiro. O
intelectual falecido era a representação contra esse modelo que Glauber alegoriza na figura de
Jack Valenti, presidente da Associação Cinematográfica dos Estados Unidos. A última Frase
do texto é “Jack Valenti não passeará sobre o cadáver de Paulo Emílio”72. Desse modo,
podemos entender a influência de Paulo Emílio não só na percepção revolucionária do cinema
glauberiano, mas também em suas dimensões de conflitos espaciais e de combate ao
imperialismo. Assim, Paulo Emílio Salles Gomes certamente foi essencial para o projeto que
Glauber Rocha e o Cinema Novo tinham para o cinema brasileiro.
Dentre vários nomes conhecidos ligados ao cinema brasileiro, Glauber aborda um que
é, em certa medida, marginalizado dos estudos mais conhecidos sobre Cinema Novo, seu
nome é Olney São Paulo e, assim como Glauber, é baiano. Olney nasceu em Riachão do
Jacuípe em 1936 e seu diálogo com o Cinema Novo começa com Nelson Pereira dos Santos
nas filmagens de Mandacaru Vermelho em 1961. Olney produziu quatro longas e seis curta
metragens. O que gerou mais repercussão foi Manhã Cinzenta (1969), filme que articula
numa montagem sem linearidade e fragmentada manifestações e repressão policial imprimida
pelo Estado ditatorial de maneira estonteante.
No texto, Glauber afirma que Manhã Cinzenta é um filmexplosão sofisticado,
revolucionário que provocou tortura e prisão73. Em 1969 quando o filme foi lançado, o AI-5 já
era vigente, o que significava menor tolerância da censura, a obra foi censurada, porém o que
gerou a prisão de Olney foi um sequestro de um avião cubano pelo MR-874 onde uma cópia
do filme foi exibida. Dessa forma Olney fora acusado de contribuir com o sequestro sendo
preso e liberado alguns dias depois fisicamente debilitado a ponto de ter pneumonia.
Glauber, diferentemente de como faz com outros colegas, não conta como conheceu
Olney nem fala sobre sua relação com ele. Talvez não fossem próximos o suficiente para esse
tipo de contato, no entanto, pela forma como fala de seus filmes, sobretudo Manhã Cinzenta,
considera o cineasta elemento importante na experiência cinemanovista brasileira.

71
Ibidem p. 359
72
Idem p. 362
73
Ibidem. p. 394
74
O Movimento Revolucionário 8 de Outubro foi uma organização de esquerda atuante na luta armada contra a
ditadura civil-militar brasileira. Ver ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas Revolucionárias e Luta Armada. In
FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. (orgs.) O Brasil Republicano. Livro 4. o tempo da
ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século xx. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2003.
44

Gustavo Dahl foi um cineasta mais próximo e o que nos chama atenção é que mesmo
antes de conhecê-lo pessoalmente, Glauber já sabia quem ele era através da leitura dos seus
“artigos sofisticados no Suplemente Literário de O Estado de São Paulo”75. Isso acontece
antes da década de 60 e reforça a ideia de que a atividade intelectual de muitos
cinemanovistas ultrapassava a própria atividade fílmica. Antes de serem cineastas, eram
críticos, cinéfilos que conheciam bastante, apesar da pouca idade, a linguagem
cinematográfica e os principais movimentos ao redor do mundo. Também tinham uma
posição sociopolítica alinhada à esquerda e não navegavam em mares acadêmicos. Cineastas
que refletiam e produziam materiais para além dos filmes.
No texto, Glauber demonstra respeito profissional e intelectual por Gustavo inclusive
dizendo que ele foi responsável pela estruturação da Embrafilme quando foi presidente da
instituição entre 1974 e 1978. Reconhece também suas contribuições para o Cinema Novo em
questões de linguagem e influência cinematográfica. Dahl “exigiu que o cinema novo fosse a
síntese de Hollywood, da MOSFILM, do Expressionismo, do neorrealismo, e da nouvelle
vague”76. Essa afirmação é reunião das influências cinemanovistas. É sabido que as
experiências de cinema na França e Itália pós segunda guerra são decisivas para a realização
do Cinema Novo, no entanto, a estética da fome não normatiza a estrutura da linguagem
cinemanovista, ela permite múltiplas influências contanto que o filme denuncie o que os
cineastas entendiam como contradições, desigualdade, dependência cultural e o colonialismo
inserido na sociedade brasileira seja pelo próprio cinema ou por sistemas socioculturais mais
amplos.
A seguir, temos um texto sobre David Neves e Glauber também classifica como
importantes os textos que David escreveu sobre cultura e Cinema Novo. Para Glauber, David
surpreendeu intelectuais no I Congresso do Terceiro mundo com sua tese Poética e Cinema
Novo77, que ao lado de outros textos de Paulo Emílio, Carlos Diegues, Gustavo Dahl e o seu
próprio Estética da Fome, completa as bases do Cinema Novo. A produção escrita de David o
coloca, de acordo com Glauber, numa proeminência cinemanovista.
Outro ponto considerável é o fato de Glauber alegar que David, um fã da Nouvelle
Vague, ter uma paixão por todos os cinemanovistas e que a recíproca era verdadeira. A
amizade é um sentimento e uma relação que marca e que é vital para o andamento do Cinema

75
Ibidem. p. 403.
76
Ibidem. p. 404.
77
Ibidem. p. 406.
45

Novo, Glauber até entoa a máxima varguista Só o Amor Constrói para a Eternidade para
definir a união dos amigos cinemanovistas, sobretudo com relação a David 78.
Em 1959 Glauber estava numa retrospectiva do Cinema Expressionista alemão
organizada pela Cinemateca Brasileira e realizada na Bienal de São Paulo. Foi nessa ocasião
que conheceu Leon Hirsziman, Louro, magro, ágil, histérico, lúcido, visionário, o jovem
Eisenstein”79. Leon foi um importante interlocutor de Glauber no que tange a teoria do cinema
e filosofia. Amigos, Glauber relata que saiam, com outros da patota, aos sábados durante a
noite percorrendo festas, bares e teatros divulgando a novas abordagens audiovisuais. Glauber
admirava o jeito que Leon lidava com alguns aspectos da linguagem cinematográfica:
Leon usa a cenografia como personagem ativo. Muitos cineastas a usam como
artifício indecorosativo que esconde o vazio ideológico. Leon extrai os elementos
que podem traduzir o personagem além dos adjetivos desfarçantes. O processo limpa
o ator na sua roupa, maquiagem, gestos, olhar, voz sensibilidade. A iluminação
destaca subjectos redimensiona objetos. A câmera observa ou se move no mesmo
ritmo, sem precipitação nem inquietação, raras vezes, quando morre Zulmira
Rodrigues ou Madalena Ramos [personagens de filmes de Leon] num rompespaço
em câmera na mão e o som nunca sai do Real mesmo em Garota de Ipanema, filme
sobre uma canção de Márcia Rodrigues ao som de Tom Jobim80.

Nenhum cinemanovista é uma ilha que não dialoga com outras ilhas. Todos aprendem
com todos, estão minuciosamente atentos aos trabalhos de cada um, mais que isso, se ajudam
nas produções, o cinema é de autor, mas o filme é uma construção coletiva e cooperada.
Assim, ainda que cada um reserve um estilo e identidade particular na maneira de filmar,
acabam se influenciando pelo trabalho do outro. Além da influência, é preciso sensibilidade
para reconhecer aspectos positivos na maneira de filmar do outro. O trecho citado é um
exemplo disso, Glauber reconhece aspectos do cinema de Leon como positivos para as obras
do companheiro, como a câmera sem inquietação e precipitação, a imagem e som como estrita
impressão de realidade. Ora, esses elementos não são tão comuns na filmografia glauberiana,
mas aqui existe um reconhecimento da eficácia disso no cinema do outro, o que,
evidentemente, é um sinal de sensatez artística e, certamente, de elogio ao cinemanovistmo.
A relação entre Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos é especial. O primeiro
contato de Glauber com produção de cinema foi através de Nelson quando estava filmando
Rio, Zona Norte (1957). Glauber relata que se aproximou de onde acontecia a filmagem e se
apresentou pra Nelson que, percebendo que o jovem rapaz baiano queria ajudar, o incumbiu
de ajudar o eletricista com alguns cabos. Comparado com os cineastas citados até aqui,
Nelson é um pouco mais velho e que já possuía interessantes experiências com o cinema. Em
78
Idem
79
Ibidem. p. 411.
80
Ibidem. p.415.
46

certa medida, ele foi uma inspiração para Glauber e outros cinemanovistas principalmente por
causa de Rio, 40 graus, como falamos anteriormente.
Isso fica mais evidente na medida em que Nelson, de certa forma, viveu experiências
comumente vividas no Cinema Novo antes de ele começar. Rio, 40 graus foi censurado, gerou
uma repercussão na imprensa e no metiê cinematográfico. Glauber afirma que tanto a
imprensa de esquerda quanto os clubes de cinema e os intelectuais reagiram contra a decisão
da censura81. Além da censura, as inovações estéticas a serviço de uma crítica social direta
fizeram de Nelson um ponto de referência a ser seguido, principalmente se havia a vontade de
pôr em prática um cinema revolucionário.
Sobre Ruy Guerra, Glauber Rocha afirma que ele é genioso, brigou com o ator Jece
Valadão na montagem de Os Cafajestes (1962). Jece tinha algumas restrições sobre longos
travellings e da montagem paralela. “Ruy chamou Jece pra porrada, poderia aparecer um
revolver, Nelson [Pereira dos Santos] entrou pra pacificar”82. Ao contrário dos outros
cineastas, com Ruy, Glauber não demonstra tanta simpatia ou amizade:
Ruy tem fama de temperamental. Intransigente com produtores, técnicos e atores,
com a lenda que leva um dia pra fazer um plano e não permite o menor erro em
qualquer setor de trabalho. Nas discussões não perdoa as fraquezas e burrices,
preferindo perder o amigo a perder a razão. Desperta paixão em homens, que o
seguem fanaticamente e agridem seus competidores, e mulheres não conseguem
decifrá-lo83.

O que é mais interessante é que, apesar dessa abordagem pouco amistosa do cineasta, Glauber
reconhece em Ruy uma meia fraternidade, uma vez que compartilham de contrastes e
semelhanças. Sabemos que Glauber Rocha sempre foi temperamental, polêmico e
encrenqueiro. Talvez ele se reconhecesse em Ruy Guerra, já que o mesmo, pelo menos aos
olhos de Glauber, tinha comportamento similar.
Apesar disso, elogia sobremaneira o cinema de Ruy, principalmente Os Fuzis, filme
que dialoga com Deus e o Diabo em ambientação e abordagem. Ruy Guerra, para Glauber,
realiza um cinema político revolucionário que propõe novos horizontes para aspectos de
linguagem fílmica.
Se Ruy Guerra era um meio irmão tempestuoso, Carlos Diegues era um irmão integral
e afetuoso. Glauber demonstra carinho por Cacá, afirma que falam a mesma linguagem
nacional, popular e revolucionária. Leram os mesmos autores, gostavam dos mesmos filmes,
das mesmas mulheres e amigos84. Na obra de Sylvie Pierre existe um texto que Diegues

81
Ibidem. p. 421.
82
Ibidem. p. 427.
83
Idem
84
Ibidem. p. 434.
47

escreve sobre Glauber Rocha e percebemos semelhanças afetuosas entre os dois


demonstrando uma relevante sintonia 85. Carlos Diegues afirma nesse texto que a coisa mais
bela que já falaram a seu respeito foi justamente quando Glauber afirma que o escolheu como
irmão quando escreveu sobre ele em Revolução do Cinema Novo.
Outro aspecto interessante é que Diegues leva adiante que Glauber era a mais
importante representação do Cinema Novo ao afirmar que o cenário se agitava no Rio de
Janeiro quando Glauber chegava da Bahia. Desse modo existia até uma piada sobre isso: “O
Cinema Novo, era quando Glauber chegava ao Rio. Pois Glauber tinha a capacidade de nos
ajudar, nos entusiasmar, nos estimular”. 86 Diegues também nos aponta sobre o aspecto da
cooperação da geração cinemanovista, afirma que Glauber o ajudou a fazer o seu A Grande
Cidade (1965) e que certa vez Paulo Cesar Saraceni ficou irritado quando Glauber pegou um
roteiro seu e o reescreveu completamente. Ainda assim, Diegues garante que não era
desrespeito com Saraceni e que, inclusive, Glauber o adorava.
Em 1960 Saraceni viaja para a Europa junto com Gustavo Dahl e manda cartas pra
Glauber Rocha falando do Neorrealismo, Nouvelle Vague e várias outras coisas que
competem ao cinema. Essas comunicações refletem o quanto Saraceni foi importante para as
decisões estéticas que Glauber tomará e para a própria formação da estética cinemanovista.
Glauber e Saraceni são muito próximos, muito ligados, Glauber afirma que aprendeu de tudo
com os amigos, mas foi Saraceni que o conduziu ao fogo do Cinema e do Amor.
No texto Glauber fala muito bem de O Desafio (1965), filme que já ensaia uma boa
crítica ao golpe de Estado em 1964 se tratando da queda de Jango e da subida de Castelo
Branco87. A caracterização do filme como polivalente e que demonstra uma riqueza e maior
complexidade de personagens inseridos num contexto também complexo. Além da censura “a
crítica reacionária o atacou, o público esfriou e poucos o defenderam”88. O Desafio é um
símbolo que marca uma transição de um Cinema Novo ambientado no campo para um cinema
que usa a cidade como pano de fundo
Aqui falamos de nove sujeitos ligados ao Cinema Novo sem contar Glauber Rocha, o
movimento conta com muitos outros envolvidos, mas a partir desses que foram utilizados
torna-se bastante crível em pelo menos dois aspectos; primeiramente a noção de geração
enquanto objeto da história, O Cinema Novo e seus integrantes causam impactos
socioculturais muito significativos enquanto atuavam. Partindo disto, é sugestivo que a

85
PIERRE, Sylvie. op. cit. p. 217.
86
Idem.
87
Ibidem. p. 437.
88
Idem.
48

melhor forma de entender o movimento seja através da ideia de geração e suas significações
históricas que por fases ou anos de produção. Segundo que o companheirismo, a cooperação e
a interação entre os integrantes são pontos fulcrais para estabelecer um movimento
cinematográfico como aquele. Além de afinidades cinematográficas, também foi preciso de
compatibilidade de pensamento político, se assim não fosse, jamais o Cinema Novo poderia
se pretender revolucionário fazendo um resgate histórico brasileiro e direcionando novos
rumos para o Brasil.
Qual então a pretensão de Glauber Rocha ao organizar e publicar Revolução do
Cinema Novo e, sobretudo, ao inserir na obra diversos textos sobre os companheiros de
movimento? Para começar a responder a essa pergunta é necessário utilizar um comentário
que Pierre faz sobre Glauber. A autora diz que tudo começou em 27 de março de 1977 quando
sua irmã Anecy Rocha faleceu num pitoresco acidente quando pisou no poço de um elevador
vazio. Glauber sofreu extremamente com o acontecido e, num misto de delírio com dor,
acusou Walter Lima Junior de ter atirado sua irmã no poço. Walter era cineasta e cunhado de
Glauber, naquele período, segundo Pierre, passava por problemas conjugais com Anecy. As
acusações de Glauber contra Walter Lima não foram provadas e a situação toda fez com que
Glauber ficasse inimigo de seu ex-cunhado. Pierre afirma que, a partir daí, Glauber rompeu
com todos os seus amigos do Cinema Novo que se recusaram a acompanha-lo nessa ideia89.
Pouco tempo após essa situação, em 1978, a autora alega que Glauber também se
desentendeu com amigos cinemanovistas não participando deliberadamente do primeiro
Simpósio de Cinema Brasileiro organizado pela Cooperativa Brasileira de Cineastas da qual
fazia parte Nelson Pereira dos Santos. Pierre afirma que a partir da morte da irmã, Glauber
Rocha se isola, mesmo que por algum tempo, de vários de seus amigos90.
Outros processos que estão entrelaçados com esse contexto de afastamento e
dubiedade do cineasta e ampliam das dimensões pessoais para as sociopolíticas são suas
declarações sobre o regime militar brasileiro a partir de 1974. Glauber escreve uma carta para
uma revista afirmando que o “General Geisel tem tudo na mão na mão para fazer do Brasil
um país forte, justo e livre. Aliás, estou seguro de que os militares são os legítimos
representantes do povo.” A carta foi escrita da Itália e causou muita movimentação no Brasil,
como alguém com a trajetória de Glauber Rocha poderia emitir uma opinião assim?
Nazario pontua sistematicamente alguns momentos em que esse tipo de discurso
reapareceu nas falas do artista em algumas cartas que envia a amigos:

89
PIERRE, Sylvie, op. cit. p. 77
90
Idem.
49

[...] [Glauber] Declarou em 1974: “Para surpresa geral, li, entendi e acho o General
Golbery um gênio – o mais alto da raça ao lado do professor Darcy [...] entre a
burguesia nacional-internacional [sic] e os militarismo nacionalista, eu fico, sem
outra possibilidade de papo, com o segundo”. Desde então, passou a chamar a
esquerda de “carcomida”, aderindo ao Partido Democrático Social (PDS), braço
civil do regime militar. Declarou em 1977: “As pessoas que combatem o regime
militar não merecem meu respeito”. E também: “Não acredito em nenhum líder
civilista. Os discursos de Geisel são os melhores textos políticos que o Brasil tem
atualmente”. Em 1978, reiterou seu apoio ao regime: “Aqui só tem uma coisa séria
em nossa política, o Exército, Castelo Branco deveria ter criado apenas um partido:
Partido Único do Exército para a Revolução Brasileira”. E em 1980 reafirmou: “sou
favorável à política do governo, pois ele é dirigido por militares e eles não são
demagogos. A palavra para eles tem peso real.”91.

Para o autor, essa adesão ao governo brasileiro revela um oportunismo de Glauber em


bajular os militares para conseguir dinheiro para a realização de seus filmes. Nazario afirma
que o desejo de fazer cinema de Glauber foi mais forte que sua integridade ideológica. Pois
assim, conseguiu recursos da Embrafilme para poder realizar A Idade da Terra.
Por outro lado, Carlos Diegues, em seu texto sobre Glauber para o livro de Pierre,
revela que não ficou surpreso com as declarações sobre Geisel, pois, para ele, Glauber tinha
uma sensibilidade ímpar para, em certa medida, prever algumas situações e que foi
exatamente isso que ocorrera. Diegues afirma que Glauber tinha estudado a biografia do
General e tinha visto em Geisel a possibilidade de mudança, uma abertura democrática que,
de fato, aconteceu. Assim, Glauber, na opinião do amigo, jamais teria aderido ao regime, mas
sim reconhecido uma perspectiva de mudança do mesmo e que esta poderia ser feita sem uma
grande ruptura. Diegues ainda aponta que a maneira que Glauber usou para revelar essa
percepção foi, como quase sempre, provocante. 92 Desse modo, enxergamos que o cineasta
muitas vezes era performático em seus discursos para que assim pudesse criar um personagem
de si mesmo. “Glauber tinha a noção exata do espetáculo. Não apenas sabia o que tinha a
dizer, mas de que forma devia dizê-lo: se se expressasse de maneira tímida, hábil ou ambígua,
não seria compreendido”.93
Ainda que haja toda a performance do cineasta, não há malabarismo discursivo que
possa justificar alguma coerência nas falas de Glauber sobre o governo militar brasileiro.
Como vimos, suas opiniões são muito diferentes do que apenas uma perspectiva de mudança
no Brasil. Admitir que os militares são nacionalistas sensatos é algo muito diferente que ser
favorável à democratização no Brasil. De qualquer modo, é muito difícil estabelecer uma
verdade sobre essa fase de Glauber, sabemos que estava num momento muito instável da

91
NAZARIO, Luiz. op. cit. p. 168.
92
PIERRE, op. cit. p. 220.
93
Idem.
50

vida, em conflito com muitos amigos no Brasil, suas posições políticas podem muito bem ser
reflexos dessa instabilidade. O que nos interessa saber é o contexto de sua vida no momento
em que decide escrever sobre os colegas cinemanovistas.
Apesar da indisposição com muitos de seus amigos e das suas percepções sobre a
ditadura civil-militar, os textos feitos especificamente para os sujeitos ligados ao cinema que
integram Revolução do Cinema Novo não revelam esses nuances, nem nos nove
companheiros que abordamos e nem nos restantes. Nem mesmo o sobre Ruy Guerra, apesar
de ser nesse que ele não demonstra tanta simpatia pelo homenageado. Todavia, na mesma
obra existe uma entrevista dele ao jornal Ganga Bruta em 1978 94 fazendo uma dura crítica a
Ruy Guerra. Glauber afirma na entrevista que Guerra nunca foi o Cinema Novo, que Os
Cafajestes é um filme de direita e burguês, que o filme só figurava no Cinema Novo porque
contava com o ator Jece Valadão vindo de Rio, 40 graus. Afirma também que o cineasta é um
amador e demagogo. Todas essas afirmações estão muito distantes do texto que ele escreve
sobre o mesmo Ruy Guerra em 1980, onde eles seriam meio irmãos e onde também elogia
explicitamente o cinema do referido cineasta.
Essa é só mais uma das muitas contradições de Glauber Rocha. 1978, aponta Pierre,
foi um ano de afastamento de antigos companheiros, é de se imaginar que essa entrevista seja
uma materialização deste afastamento, porém, ainda que o haja, são muito discrepantes as
opiniões que fala sobre Ruy em 1978 e em 1980.
O que podemos perceber é que em 1980 o cenário era outro, os textos sobre os
companheiros revelam um Glauber nostálgico, que muitas vezes conta as circunstâncias em
que conheceu os sujeitos objetos do seu discurso. Raros são os momentos que ele se dispõe a
falar dos amigos no momento em que escrevia. A maioria dos textos é focado na atuação de
seus colegas durante a década de 60, principalmente nos primeiros anos da década, momento
de maior ebulição interativa e criativa entre amigos do Cinema Novo. Poucas são as menções
que atingem a década de 70, muito por conta de que Glauber passou muitos anos fora do
Brasil nesta década de modo que fatalmente o contato com os companheiros tornou-se menos
frequente. Se há uma bibliografia que aponta que ele se distanciou e até brigou com os amigos
no final dessa década, os textos que escreve para os amigos não mostra essa dimensão, talvez
fosse uma tentativa de reaproximação.
Sua preocupação parece ser construir através daquela obra e principalmente do trecho
em que fala dos integrantes ligados ao cinemanovismo com a perspectiva de manter o Cinema

94
ROCHA, Glauber. Op cit. Revolução do Cinema Novo: Entrevista ao Jornal Ganga Bruta. p. 377.
51

Novo vivo preservando sua característica orgânica e essencial de cooperação de sua geração
uma vez que no período em que ele escreve os textos o movimento já havia perdido muito
fôlego, alguns estudiosos afirmam que nessa época ele sequer existia mais. Assim, Revolução
do Cinema Novo é a perspectiva glauberiana de construção de uma memória cinemanovista
enquanto movimento cinematográfico que, através de um grupo grande pessoas, estava
engajado numa revolução estética, cinematográfica e social contando com rupturas em
diversos setores da sociedade.
O tema da memória é uma seara imensa que atinge a vida, permeia a experiência que
temos e construímos com o mundo. Por isso, não teria como ser diferente, a memória também
se constitui numa zona de conhecimento fortíssima que gera impacto em diversos campos.
Sem memória o tempo não se prolonga e sem este prolongamento a história se liquefaz na
medida que só existiria o agora. Soam bem as palavras de Jacques Le Goff quando diz que “a
memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou
coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de
hoje, na febre e na angústia.”95
Utilizando a perspectiva de que, ao ter o trabalho de organizar textos escritos ao longo
de mais de duas décadas e principalmente de ter escrito sobre colegas envolvidos com o
Cinema Novo, Glauber se propõe a produzir uma memória cinemanovista, estamos
adentrando neste universo especial da memória e de como ela interage com a história. Neste
caso, ajudando a criar um pensamento sobre um movimento cinematográfico de claras
intenções políticas.
Com a perspectiva e a disposição de se aprofundar nesta dimensão, é válido trazer
algumas análises sobre as maneiras de como a memória se relaciona com a história
objetivando uma melhor compreensão das finalidades de Glauber ao organizar Revolução do
Cinema Novo. A primeira noção a se ter é que a memória é o produto da relação entre
lembrança e esquecimento. É impossível que se resgate tudo pela memória, ela fatalmente e
deliberadamente será fruto de um processo mental que transforma o passado em algo tangível
no presente. A memória, como diz David Lowenthal, é residual e jamais dará conta
plenamente do passado.96 É neste sentido que podemos afirmar que ela é seletiva
considerando que sempre há um recorte do que é teoricamente possível de lembrar em relação
ao que de fato é exposto através da memória. Em outras palavras, o passado ocorrido é pleno,

95
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas. São Paulo. Editora da UNICAMP. 1990. p. 476.
96
LOWENTHAL, David. Como Conhecemos o Passado. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós
Graduados de História. São Paulo. 1998. p. 74
52

a memória produto deste passado sempre vem incompleta, ressignificada, selecionada, a


memória é uma das formas de materializar, no presente, o passado.97
Partindo destas sistematizações, é perceptível a seletividade que Glauber impõe na
escrita referente a seus companheiros de cinemanovismo. Aí está a explicação do motivo de
ele escrever essencialmente sobre os anos 60 principalmente nas circunstâncias em que
conheceu cada um, pelo menos em relação aos que tinha maior proximidade. Como vimos, há
Cinema Novo na década de 70, mas, pelo menos pra Glauber – inclusive por nem estar no
Brasil neste período – aquele movimento cooperativo de cineastas, produtores, montadores,
atores, etc, já se tornava rarefeito em sua prática artística. Uma vez que a proposta dos textos
era preservar essa característica conceptiva cinemanovista, a tentativa de Glauber ao relatar
experiências e escrever sobre seus colegas fica restrita aos anos 60, principalmente aos
primeiros anos do movimento.
Para fortalecer este momento de escrita, Glauber evoca fortemente a memória pra falar
de seus colegas e, a partir do que diz Lowenthal, há pelo menos dois tipos de memórias neste
exercício; a episódica considerando que Glauber faz um texto pra cada sujeito e muitas vezes
trazendo a lembrança de circunstâncias pontuais que ocorreram em suas convivências a
exemplo de como conheceu o colega ou de outros acontecimentos. O outro tipo que, aliás dá
mais potência ao relato de memória, é a afetiva na medida que é possível perceber
sentimentos que Glauber tem por seus amigos a exemplo dos textos referentes a Paulo Emilio
Salles Gomes, Paulo Saraceni e Cacá Diegues, ou antipatia e rivalidade como no caso de Ruy
Guerra.
Além destes textos direcionados especificamente para cada um dos companheiros e
conhecidos de Glauber envolvidos com o Cinema Novo, existem na obra outros; Cinema
Novo, Por uma Estética da Fome, Hollywood Tropykal, A Revolução é uma Eztetyka são
exemplos e todos eles foram aqui citados. No entanto, com estes entramos em outros aspectos
da construção de uma memória cinemanovista através do pensamento glauberiano pro cinema
brasileiro. Diferentemente dos referentes aos colegas, estes são escritos no calor dos
acontecimentos ao longo dos anos para as mais diferentes ocasiões. O que nos chama atenção
é a atitude de Glauber de os organizar para compor a Revolução do Cinema Novo e partindo
desse ponto que poderemos ver uma relação de uma memória coletiva cinemanovista com a
experiência individual de um cineasta pertencente ao movimento.

97
Ibidem, p. 100, 101.
53

Se perguntarmos a qualquer pessoa que conheça minimamente a história do cinema


brasileiro, ela certamente terá algo a falar sobre o Cinema Novo e provavelmente será
essencialmente sobre um cinema surgido na década de 60 feito por cineastas inspirados em
experiências cinematográficas vanguardistas da Europa pós segunda guerra. Este e outros
aspectos, como a característica do Cinema Novo pretender-se revolucionário ou os temas do
sertão e da cidade são produtos da memória coletiva que se construiu socialmente ao redor do
Cinema Novo, construção esta que Glauber e outros tantos sujeitos ajudaram a produzir
fragmentadamente no cotidiano. Se perguntarmos a uma pessoa que viveu a década de 60 no
Brasil, ela poderá relatar sua experiência individual com o Cinema Novo, se lembra dos
filmes, da agitação provocada por eles e por seus autores, do que lembra e por que lembra, ou
se não se lembra de nada, no limite, a memória individual será evocada. De todo jeito, há
sempre uma relação entre a memória individual e coletiva sobre determinado objeto, e aqui,
podemos ver isto com o Cinema Novo através dos textos de Glauber Rocha.
É neste ponto que a História adentra com mais força nos âmbitos da memória. Le Goff
afirma que classes, grupos ou indivíduos têm grande preocupação em dominar a memória
acerca de um determinado aspecto social, que os silêncios e esquecimentos da história
revelam o caráter manipulador de memória coletiva por parte de quem tem poder pra isso.98
Assim, a memória é alvo de disputa, dominar as relações entre lembrança e esquecimento em
espectros coletivos é algo desejado. Neste sentido, cabe a História problematizar a memória, a
indagação dos motivos de algo ser lembrado e algo ser esquecido, os fatores que levam a
ênfase em certo aspecto de um relato ou construção de memória e os elementos motivadores
de tal abordagem do passado. A memória, como se sabe, é fluída, impulsiva, emotiva, a
História é, por definição, mais analítica, reflexiva, científica na medida que possui
metodologias que se propõem a criar um discurso crítico sobre a memória.
O fato de no início da década de 80, pouco antes de morrer, Glauber agrupar os artigos
e compor uma obra que já no título indique para o caráter revolucionário do Cinema Novo é
sintomático das intenções que Glauber tinha com a obra. É nesta perspectiva de
problematização de crítica que podemos perceber, através dos funcionamentos da memória, os
motivos de Glauber enfatizar o aspecto revolucionário cinemanovista. A cooperação e a
amizade entre os realizadores e o foco na década de 60. O discurso que ele constrói sobre o
Cinema Novo vai na contramão da decadência que o movimento sofreu na década de 70. Não
que as pessoas fossem esquecer dos anos dourados do cinemanovismo brasileiro, mas seu

98
LE GOFF. Op cit. p.426
54

livro é um artifício que vai incansavelmente incitar o leitor a compreender o movimento a


partir do que Glauber queria que ele fosse; vanguardista esteticamente, socialmente
revolucionário e colaboracionista. O próprio ato de organizar os textos implica nas
subjetividades em que a memória funciona, por mais que muitos deles tenham sido escritos
muitos antes da publicação da obra em questão e não sejam em si relatos de memória, a
organização em si acontece no presente e, evidentemente, leva em consideração todos os
mecanismos de seleção, emoção, ênfase, intenção e esquecimento que formam a memória.
Esta abordagem sobre a memória como sentido para interpretar e analisar a intenções
de Glauber Rocha com Revolução do Cinema Novo não serviu apenas para instrumentalizar
este momento do trabalho. Os caminhos que percorrem a memória voltarão no próximo ato
considerando que o enredo e a narrativa de Terra em Transe abre uma série de pontos de vista
para isto de modo a criarmos mais uma interação entre as perspectivas políticas do Cinema
Novo enquanto totalidade e de um de seus filmes mais conhecidos e representativos.
O período que o Cinema Novo brasileiro atuante foi complexo na história do Brasil.
Os anos 60 guardam muitas peculiaridades nas artes e na cultura em geral, assim como em
aspectos políticos e econômicos, No âmago desse turbilhão histórico permeado por questões
políticas, culturais, os jovens cineastas remodelaram o jeito de fazer cinema no Brasil, tanto
tecnicamente quanto politicamente.
O cinema, assim como outras linguagens artísticas, compôs uma cultura engajada que
tinha como pretensão a conscientização popular para combater as desigualdades sociais. Nas
buscas por um cinema revolucionário, a interação entre sujeitos ligados a ele foi um essencial
aspecto para que esse cinema tenha existido, seja em questões de condições de produção
fílmica, na memória coletiva gerada na sociedade e a produzida individualmente por Glauber
Rocha como vimos acima, ou na criação de uma estética específica a serviço de um objetivo
social. Ainda que a revolução no espectro amplo da sociedade não tenha ocorrido, o Cinema
Novo e as visões glauberianas de mundo foram expressões e ações de relevantes impactos
dentro do momento histórico em que atuou.
55

Segundo Ato:
Construção e Desconstrução do Populismo em Terra em Transe.

Fotografia é verdade. Cinema é verdade vinte e


quatro vezes por segundo.
(Jean Luc Godard)

Michel de Certeau, num célebre estudo já citado neste texto, elabora uma interessante
analogia para desenvolver seu pensamento sobre as práticas sociais construtoras do cotidiano
nas cidades. A analogia trata-se da vista que as Torres do World Trade Center propiciavam.
Do alto da torre, Nova York era contemplada de maneira panorâmica, de cima. A proposta de
Certeau é que, para pensar o cotidiano das cidades, temos que cair da torre, apenas a
observação estrutural panorâmica não dá conta do conhecimento das práticas sociais urbanas,
é preciso também enxergar a coisa de maneira horizontal. Manhattan e o Central Park estão
visíveis lá de cima, é possível diferenciá-los, ver suas características, mas só poderemos
perceber seus cotidianos se descermos, um mergulho em direção a compreensão de como as
práticas se constroem em suas minúcias. Ora, toda cidade, ainda que não tenha arranha-céus,
haverá de ter, metaforicamente, seu World Trade Center, em todo lugar é possível ter o olhar
panorâmico, organizador de estruturas e o olhar nivelado à prática onde as estruturas podem
inclusive serem lidas de outras maneiras.
O que tivemos até aqui no andamento deste trabalho foi uma visão de cima,
panorâmica e contextual do objeto. Vimos aspectos políticos, culturais, conjunturais e
artísticos do momento em que Terra em Transe fora lançado, vimos como se organizava o
cinemanovismo no Brasil, qual era seu projeto político e cinematográfico. Vimos também
como Glauber Rocha interagiu com todas essas dimensões e com alguns de seus
companheiros de movimento, em suma, uma vista do World Trade Center. Esta visão é
indispensável e muito importante para qualquer trabalho em História que tenha pretensão de
ter um filme enquanto fonte de pesquisa, porém chegamos ao momento de queda, é
necessário que ela aconteça para que se possa haver uma junção de olhares. Um já tivemos;
contextual, panorâmico e social, o outro é o que estar por vir, inserir-se nas entranhas do
filme, ver como ele constrói discursos e, em certa medida, interpreta processos históricos
ocorridos no Brasil. O que interessa é sempre manter diálogos de olhares, sejam externos ou
internos ao filme.
Este mergulho no filme não é uma tarefa que se mantenha em zona de conforto. Se a
compreensão e análise da linguagem cinematográfica é instrumento metodológico de trabalho
56

do filme como fonte histórica, certamente virá a necessidade de uma abordagem


interdisciplinar com a teoria do cinema, seja em aspectos formais ou em aspectos filosóficos.
Esta abordagem nos dará importantes percepções para utilizar a imagem cinematográfica da
maneira mais potente possível e usar tal potência para a interpretação histórica.
Portanto, este ato se concentrará em incialmente compreender como se dá a
abordagem metodológica entre História e cinema, sobretudo tendo o filme como fonte e ao
mesmo tempo objeto de pesquisa, as eventuais potências interpretativas sob a luz deleuziana
sobre cinema e, por fim, a análise pormenorizada de três sequências em Terra em Transe onde
é possível perceber a construção de um discurso sobre o populismo na política brasileira
através do audiovisual.

Intersecções entre história e cinema.

As interações e interferências que o cinema causa na história são evidentes, basta


sairmos às ruas ou mesmo acessar a internet que, mais cedo ou mais tarde, veremos algo
relativo ao cinema. O cinema, já faz um bom tempo, se tornou também indústria, e das mais
poderosas, movimentando uma grande quantidade de capital ao redor do mundo, criando
celebridades, reforçando o consumo não só de filmes mas também de produtos fora da sala de
exibição. Existe também o cinema a margem da indústria (como é o caso do Cinema Novo), a
soma de todos estes aspectos fazem com que essa modalidade artística integre uma cultura
global não apenas de consumo, mas de apreciação artística. Como aponta José D’assunção
Barros99, qualquer filme emana, de alguma maneira, imaginários, padrões culturais,
percepções do mundo social.
É possível trabalhar História e cinema de diversas maneiras; estudos que se norteiam
através da recepção de determinada obra fílmica, de algum cineasta ou corrente
cinematográfica previamente determinada. Há também possibilidade de estudar o espaço
físico do cinema para exibição de filmes e suas redes de sociabilidades criando novas
percepções e práticas socioculturais para o local que se instala. A possibilidade de pesquisa
histórica que este texto desenvolve é de analisar o filme enquanto produtor de representações
sobre certos processos históricos. Claro está que existem outras maneiras de encarar o cinema
enquanto objeto e fonte de pesquisa em História, mas independente de como isto seja

99
BARROS, José D’assunção. Cinema e História: entre expressões e representações. In. NÓVOA, Jorge.
BARROS, José D’assunção. (orgs.) Cinema-História. Teoria e Representações sociais no cinema. Rio de Janeiro.
Apicuri. 2012
57

alcançado, é importante, para o historiador, encontrar formas de compreender como o cinema


consegue construir uma posição referente a sociedade que está inserido ou até em outras,
como é o caso de obras que apresentam narrativas passadas em tempos anteriores ao de sua
produção.
Como foi dito, o gatilho para a percepção de processos históricos neste texto é o
próprio filme e, uma vez percebidos, problematizados dialogando-os ou confrontando-os com
bibliografias. Desse modo, o que compete ao historiador? Se a análise fílmica é a principal
reveladora destas percepções, o caminho metodológico mais adequado a seguir será a imersão
na obra fílmica. Extrair dele, de maneira mais densa possível, os sentidos que podem ser
captados para uma construção do conhecimento em História. Marcos Napolitano chama
atenção para trabalhos que pretendem seguir este caminho quando afirma que devemos estar
atentos ao que ele denomina de “códigos internos de funcionamento”, o que seria na prática, a
linguagem cinematográfica:
A necessidade de articular a linguagem técnico – estética das fontes audiovisuais
e musicais (ou seja, seus códigos internos de funcionamento) e as representações
da realidade histórica ou social nelas contidas (ou seja, seu “conteúdo”
narrativo propriamente dito). Se essa é uma tendência cada vez mais forte entre os
historiadores, que vêm questionando a transparência dos documentos, mesmo os
documentos escritos, tradicionalmente considerados “objetivos” e diretos. Para o
caso dos documentos de natureza audiovisual ou musical, tal abordagem deve ser
mais cuidadosa ainda, pois os códigos de funcionamento de sua linguagem não são
tão acessíveis ao leigo quanto parece, exigindo uma formação técnica. Mesmo que o
historiador não mantenha sua identidade e não queira se converter em
comunicólogo, musicólogo ou crítico de cinema, ele não pode desconsiderar a
especificidade técnica de linguagem, os suportes tecnológicos e os gêneros
narrativos que se insinuam nos documentos audiovisuais, sob pena de enviesar a
análise.100

A referida afirmação fortalece o pensamento de que é necessário uma amplitude


interdisciplinar para este trato metodológico, uma vez que, como aponta o autor, o
conhecimento teórico e sistematizado do audiovisual não é tão acessível, temos a
oportunidade de dialogar com outras áreas do conhecimento criando uma interessante
simbiose em articulação de percepções da realidade. Barros entende que é preciso ultrapassar
o que chama de nível superficial de análise fílmica, que consiste basicamente no exame de
roteiro e diálogos, e expandir o estudo para outros elementos numa abordagem
multidisciplinar e pluridiscursiva, dessa forma, segundo o autor, o trabalho terá êxito em
abordar o cinema como significação cultural e política. 101 Assim, como enfatiza Miriam
Rossini, as maneiras que o cineasta escolhe para retratar algum tema, seja pelo ângulo de

100
NAPOLITANO. Marcos A História Depois do Papel. In. PINSKY, Carla Bassanezi. (org.) Fontes
Históricas. São Paulo. Ed. Contexto. 2005.
101
BARROS, José D’assunção. Op. Cit, p. 80
58

câmera, personagens, situações narrativas, bem como outros elementos da linguagem do


cinema são imprescindíveis para identificar a visão do realizador sobre o assunto e, por isso,
importante meio procedimental metodológico com a História. 102
Esta é a premissa que nos leva a outros lugares do conhecimento, lugares que nos
possibilita a compreensão do filme de uma maneira estrutural, entendendo como sua
linguagem (sistemas de comunicação) se forma e como seus elementos se organizam para que
o filme possa comunicar algo, passar uma mensagem. Jacques Aumont, professor
universitário e teórico do cinema, autor que será usado recorrentemente, já nos informa que a
teoria do cinema é um campo vasto e que atinge muitas disciplinas, pois trabalha com lógica,
psicologia, teoria das artes, ciências humanas, etc. Neste sentido, a teoria do cinema torna-se
uma dimensão plural que pode ser abordada das mais variadas perspectivas. 103 A que será
usada a partir deste momento fundamenta-se na estética tendo o filme como uma
representação visual e sonora, que por sua vez, se dá por uma construção da qual integram
elementos que compõe a imagem audiovisual criando sentidos na imagem.
Partindo disto, a abordagem feita com Terra em Transe acontece na medida que
analisaremos o filme com esta abordagem metodológica aqui explicitada, procuraremos
identificar e compreender como, no filme, se constroem discursos sobre a política brasileira,
sobretudo algumas práticas que compuseram nossa política entre 1930 e 1964, populismo e
articulações entre políticos e setores de classes dominantes que desaguaram no golpe de
Estado em 1964.
Embora seja possível perceber estas construções no filme enquanto todo, algumas
sequencias específicas serão privilegiadas com uma análise criteriosa e sistemática onde
destrincharemos os aspectos audiovisuais da linguagem cinematográfica para então assimila-
los como propositores de sentidos históricos. Entretanto, é preciso contextualizar o leitor em
que pé estamos na obra até chegar o momento de analisar tais sequencias, desse modo não
teremos a impressão de que a análise simplesmente cairá de paraquedas no texto.
No primeiros parágrafos deste texto oferecemos a descrição de um dos momentos
iniciais do filme onde o protagonista jornalista/poeta Paulo Martins se desencanta totalmente
com a política em Eldorado. Ao se encontrar sozinho numa empreitada que preza pela
revolução armada contra um golpe de Estado, desespera-se, rompe com Vieira, político que

102
ROSSINI, Miriam. Op cit. p. 135
103
AUMONT, Jacques e outros autores. A Estética do Filme. Campinas. Papirus. 1995.
59

apoiara, e foge ao lado de sua companheira Sara. Durante a fuga, Paulo fura um bloqueio
policial na estrada, perseguido pela polícia, é atingido por um tiro. O poeta sabe que morrerá e
passa seus últimos momentos em agonia lembrando e relatando tudo que aconteceu para
chegar até sua morte. A partir deste momento é que há um recuo no tempo narrativo e o
enredo do filme vai se desenvolvendo.
Tudo isso ocorre nos primeiros minutos do filme, o que faz com que a maior parte da
narrativa de Terra em Transe seja um imenso flashback. Esta abordagem a torna não linear e
tudo que se apresenta nestes primeiros minutos (o que foi descrito até agora) é, na verdade, o
final da obra. Em outras, palavras, Terra em Transe é um filme que começa pelo final. Todo o
progresso narrativo levará ao seu final para a mesma situação da agonia de Paulo prestes a
morrer, só que neste ponto, após assistir ao filme quase inteiro, o espectador saberá de todos
os processos que o levaram até ali. É destes processos que trataremos de forma resumida a
seguir a fim de estabelecer uma boa contextualização do filme e das sequencias escolhidas
para análises mais densas. Esta abordagem de começar pelo final é bastante difundida nas
narrativas artísticas, seja cinema, literatura, TV, etc, e é interessante pelo motivo de ser um
artifício que deixa o leitor instigado, atento, mais interessado no que aconteceu para que
aquela situação culminasse no fim já conhecido. Por ser flashback, ainda fornece um olhar de
memória do protagonista ao espectador,
É a partir das memórias de Paulo antes de morrer que o espectador imergirá no enredo
propriamente dito do filme. O curso dos últimos anos da vida de Paulo será revelado para
então voltarmos ao ponto do início da obra. A narrativa se trata das relações do protagonista
com basicamente duas forças políticas antagônicas; Dom Porfirio Díaz, político de vertente
ultraconservadora e Felipe Vieira, de características populistas. Tudo começa quando Díaz se
elege senador e os seus projetos conservadores fazem com que Paulo, até então um aliado
político seu, o abandone e siga para a província de Alecrim onde conhece Vieira e sua aliada
Sara, por quem se apaixona. Vieira, ao lado de Sara e Paulo, decide concorrer para
governador com grandes comícios e promessas que atenderiam ao povo mais necessitado.
Eleito, Vieira não é capaz de cumprir suas promessas de campanha, o que leva Paulo a se
decepcionar momentaneamente com a política e torna-se um errante entregue a descrença no
mundo político e ao entorpecimento das festas e das drogas patrocinadas pelo empresário e
amigo Julio Fuentes na capital Eldorado.
Neste meio tempo, com Paulo auto exilado da política, Díaz ganha força na corrida
presidencial e, assim, Sara decide procurar Paulo alertando-o dos perigos de Díaz no poder
como presidente. Pressionado, Paulo volta a apoiar Vieira, mas o poeta já não demonstra o
60

mesmo entusiasmo de outrora, já não acredita na política proposta por Vieira, tudo vai se
liquefazendo para ele até o momento que não suporta mais o jogo e, com o intuito de salvar o
país dos planos de Díaz, radicaliza e propõe uma revolução armada a Vieira. Vieira não se
mostra disposto a seguir este direcionamento e, dessa forma, Paulo abandona de vez as forças
políticas. Os momentos seguintes são o da invasão do bloqueio policial cometido por Paulo e
em seguida sua morte, o momento onde começa o filme.
Depois de resumir os acontecimentos do filme em poucas palavras, os momentos que
concentraremos neste ponto se referem a identificação e problematização das percepções
sobre o populismo como fenômeno político brasileiro contidos no filme. No limite, Terra em
Transe é fruto das apropriações que Glauber Rocha faz das realidades políticas brasileiras
sobretudo entre as décadas de 40 e 60 e, desse modo, constrói de maneira audiovisual um
discurso sobre isto no momento em que lança o filme. As sequencias a serem analisadas com
todo o critério metodológico comum às fontes audiovisuais estão atreladas aos blocos
narrativos que trazem Vieira como evidência, seus comícios e as pressões populares e
institucionais que sofre ao longo da narrativa.

A imagem-tempo deleuziana como potência interpretativa para Terra em Transe.

Antes de começar as análises destas sequências específicas, é preciso um pouco mais


de aprofundamento estético no filme para que, inclusive, sejam atendidos os critérios que
Napolitano define como elementares para um trabalho historiográfico que tenha a fonte
audiovisual como material válido de análise. É necessário, como diz o autor num já citado
trecho, aguçar o olhar para as imagens cinematográficas. Existem várias abordagens técnicas
e estéticas que podem ser utilizadas para o cinema, a escolha vai depender muito do material
utilizado para análise. No caso deste trabalho, uma opção viável são as contribuições
conceituais sobre o cinema moderno (pós Segunda Guerra Mundial) feitas pelo filósofo
francês Gilles Deleuze.
Deleuze, ao longo de toda obra chamada A Imagem Tempo104, sistematiza novas
abordagens na feitura de imagens cinematográficas modernas. Existe uma nova forma de
atuação e percepção por parte da recepção destas imagens. O cinema clássico atua
basicamente por imagens que autor afirma que são circundadas por esquemas sensórios-

104
DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. São Paulo. Brasiliense. 1990.
61

motores de compreensão de modo que haja um encandeamento entre os planos 105, uma
maneira racional de ligação e um prolongamento lógico entre eles. Se, por exemplo, temos um
plano que mostra alguém sendo perseguido, o outro poderia ser do perseguidor, ou
poderíamos ter uma lembrança do perseguido que revelasse ou reforçasse os motivos da
perseguição. De qualquer maneira, vai haver um vínculo lógico que liga as imagens entre si,
uma imagem só faz sentido ou passa a fazer mais sentido em seu prolongamento de maneira
que haja uma relação muito explícita entre o antes e o depois. Estas imagens, classificadas
pelo autor como imagem-movimento, desenvolvem o esquema sensório-motor na medida em
que “as personagens reagem a situações, ou então agem de modo a desvendar a situação. É
uma narração verídica, no sentido em que aspira o verdadeiro, até mesmo na ficção”. 106
O cinema moderno inaugura um novo sistema de imagens que rompe, pelo menos
momentaneamente na duração do filme, com as situações sensório-motoras da imagem-
movimento. Esta nova imagem não se constrói através do esquema de outrora e se constitui
por situações que Deleuze essencialmente denomina de puramente óticas e sonoras. Desse
modo, uma vez que o vínculo sensório-motor é quebrado, não há ligação racional de
continuidade neste tipo de imagem tornando-as essencialmente contemplativas e assim temos
a imagem-tempo. Considerando que não há, como no modelo anterior, uma representação
indireta do tempo através da composição da imagem e dos planos, mas sim uma apresentação
direta dele, pois agora o tempo não é mais manipulado pelo esquema sensório-motor, é
contemplado na situação puramente ótica e sonora que não se prolonga racionalmente. Esta é
a constituição da imagem-tempo. Deleuze faz uma ótima analogia quando diz que a imagem-
tempo é uma espécie de lembrança que sabemos ter, mas que não conseguimos alcançar.
Lembramos que vimos alguém ontem, mas, embora saibamos seu nome, não conseguimos
lembra-lo. Neste sentido, qualquer imagem-tempo é inquietadora e instigante porque não
conseguimos lhes dar uma sucessão lógica. 107 Em síntese, o regime da imagem-tempo é
caracterizado por excelência quando existe uma indiscernibilidade entre o que é real e o que é
imaginação.
É de se levar em consideração de que a grande maioria dos filmes contem a imagem-
movimento e não é diferente com Terra em Transe, porém, neste filme existe também
algumas dimensões da imagem-tempo que, ao sistematiza-las, nos darão uma maior potência
interpretativa para o filme. Ao perfurar um bloqueio policial no início do filme, Paulo é

105
O plano é a junção de fotogramas que dá movimento à imagem por um tempo que vai ser determinado pela
montagem do filme. Existem várias modalidades de plano, para mais detalhes e exemplos, ver Aumont, 1994.
106
Ibidem, p. 157
107
Ibidem, p. 71
62

baleado dentro de um carro e, repentinamente, há um corte para um plano fixo onde ele está
armado num espaço vazio, é quando começa a refletir sobre onde estava há alguns anos atrás
e então voltamos a Eldorado na época em que apoiava Porfírio Diaz, e assim começa o
flashback. Este corte para o plano de Paulo no deserto vazio se configura justamente como
uma ruptura do esquema sensório-motor para uma situação puramente ótica e sonora. Não
sabemos ao certo qual o grau de imaginação e de realidade nesta situação, é um tempo onírico
ou imaginativo, mas que interage radicalmente com o que seria supostamente real na
narrativa, ou seja, um acaba sofrendo efeitos do outro. Além da imagem, existe a voz off de
Paulo dizendo que está prestes a morrer. Este momento do filme representa uma espécie de
morte simbólica da poesia unida com a política e da consciência que clamava pela luta
armada, pois ela seria o último recurso para impedir uma ditadura
A situação descrita acima tem um grau de imaginação na medida em que Paulo, antes
do corte abrupto, estava num carro ferido, assim, não faz o menor sentido lógico que venha
em seguida a estar no espaço desértico, o grau de realidade é justamente seu ferimento no
automóvel. Entretanto, para que a imagem-tempo seja construída nesse momento do filme, o
que vem perder materialidade nesta morte do protagonista, seja ela simbólica ou física, é uma
forma de pensar a política e ela é real no personagem. É uma realidade se esvaindo, perdendo
força, porém em um ambiente surreal e real simultâneos já que é deduzível que Paulo
continua ferido no carro ao mesmo tempo que está no deserto agonizando. E mais, é a partir
deste espaço desértico ou desta situação que toda a narrativa de Terra em Transe se
desenrolará, como mencionado, em regime de um grande flashback no filme é encarado num
primeiro olhar como algo real. Neste sentido, o que é simbólico dispara o que é fisicamente
real na maior parte da narrativa.
Desta forma, em qual perspectiva o real e a imaginação é medida neste momento? No
limite não há uma divisão explícita destas duas dimensões, o real e o imaginativo se
entrelaçam na formação de um novo sentido, que será a trajetória de Paulo narrada por ele
mesmo de um ambiente simbólico de pré-morte. A imagem-tempo em Terra em Transe é
importante porque, como em outros filmes, inquieta o espectador, o tira de uma zona de
conforto compreensiva do sensório-motor e, assim, o leva para uma relação diferente com o
protagonista. A imagem-tempo, aqui, se dá como uma espécie de suspensão entre as imagens-
movimento. A seguir temos a transição de um esquema guiado pelo sensório-motor à situação
puramente ótica e sonora.
63

Figura 1:A imagem-movimento prestes a se tornar imagem puramente ótica e sonora

Figura 2: a imagem puramente ótica e sonora. Paulo no deserto.

O imenso flashback que percorre quase toda a narrativa de Terra em Transe nos leva
para a captação de imediatas relações entre passado e presente. Se o passado é resgatado pela
memória, ele surge, para o espectador, como projeção virtual imagética em função de uma
imagem atual que evidentemente não é fruto da memória do protagonista (Paulo agonizando
no deserto). Este é o primeiro passo para perceber este longo trecho da narrativa feita através
do relato de memória de Paulo como outro regime da imagem-tempo que Deleuze denomina
imagem-cristal.
Se na situação puramente ótica e sonora seu principal elemento constitutivo é a
indiscernibilidade entre real e imaginário, na imagem-cristal a indiscernibilidade fica entre o
atual e o virtual levando em conta que o virtual se encarrega por uma imagem do passado
quando é lembrada no presente, o que pode vir ou virá a ser, é o que acontece com Paulo no
início do filme. É nesta perspectiva que o cristal se torna mais uma modalidade da imagem-
64

tempo, ele, por si, não anula a situação puramente ótica e sonora, pelo contrário, as duas
podem perfeitamente se entrelaçar embora em Terra em Transe estejam separadas.
Poderá nos percorrer então a dúvida se qualquer virtualidade pode ser compreendida
enquanto cristal, nas palavras de Deleuze, um cristal do tempo. Certamente que não, o
passado em si, cuja sua interação com o presente não os torne indiscerníveis não pode se
configurar como cristal. Novamente a indiscernibilidade que, por sua vez, é inquietante, é a
melhor chave para compreender esta ideia. Buscando o cristal do tempo, inclusive fora do
cinema, veremos que um ótimo exemplo de sua confecção é o ato de memória. Lembrar é
automaticamente criar uma imagem do passado. Esta imagem é virtual e reflete diretamente
na atual criando uma junção de ambas, esta junção nos deixa em flutuação, estamos em dois
lugares ao mesmo tempo, ora na imagem-virtual da lembrança, ora na imagem-atual do
presente. O cristal é justamente não conseguirmos diferenciar as duas coisas de uma maneira
racional.
O cristal, com efeito, não para de trocar imagens distintas que o constituem, a
imagem atual do presente que passa e a imagem virtual do passado que se conserva:
distintas e no entanto indiscerníveis, e indiscerníveis justamente por serem distintas,
já que não se sabe qual é uma e qual a outra. É a troca desigual, ou o ponto de
indiscernibilidade, a imagem mútua.108

Paulo cria todas as imagens virtuais de sua trajetória na política quando está na
situação limite pré-morte, mas as cria no presente da narrativa. Onde Paulo, ou nós,
espectadores, de fato estamos? No atual presente ou em suas lembranças? No limite, não é
possível responder, isto é o cristal. O principal elemento que favorece essa indiscernibilidade
é a narração em voz off do protagonista, o flashback nos passa a sensação de que sua trama
pertence ao presente, mas a voz off de um Paulo onisciente vem do futuro, do espaço desértico
onde morre simbolicamente. Estamos no deserto ou acompanhando os desenrolares políticos
de Eldorado quando eles de fato aconteceram? Está é a questão sem resposta, a desvinculação
de passado e presente é impossível e este é um grande propositor de potência de sensações e
inquietações no filme. A confecção do cristal no filme é feita sobretudo nos momentos da
narração em off do protagonista.
Mesmo que alguns dos trechos analisados neste trabalho não pertençam ao regime da
imagem-tempo, elas propõem um sentido e uma compreensão narrativa importante para
apreensão do filme e, consequentemente, para análises de momentos mais relacionados a
construções audiovisuais de imaginários políticos interpretativos da história política do Brasil.
Esta abordagem estética permite uma nova apreensão de aspectos psicológicos do

108
Ibidem, p. 102
65

protagonista do filme que, por ser um drama, fará com que tais aspectos sejam muitos
significativos na narrativa. Compreender as imagens cristais e puramente óticas e sonoras
como tais nos transporta pra lugares privilegiados de análise de Terra em Transe. Todas as
sequencias que analisaremos como construtoras de discursos políticos e representações
históricas estão, de alguma forma, atrelados a alguma dimensão da imagem-tempo aqui
trabalhada. A abordagem deleuziana para o cinema moderno é importante porque através dela
é possível a compreensão de aspectos simbólicos que servem para construção da densidade do
enredo, do protagonista e das visões históricas presentes na obra.
Os aspectos que envolvem a lembrança e o esquecimento na imagem-tempo interagem
fortemente com as discussões sobre memória feitas no ato anterior de maneira que agora uma
aproximação entre o que podemos conhecer sobre as ações da memória e o regime de
imagem-tempo possa dar ainda mais uma injeção de combustível na interpretação de Terra
em Transe.
Deleuze, analisando dimensões do presente e passado em narrativas cinematográficas,
chega a uma perspicaz conclusão de que o presente não é nada mais que o formato mínimo do
passado, ou seja, o presente é a máxima contração de toda experiência no passado feita no
instante atual. 109 Já sabemos que o filme objeto deste estudo desenrola todo seu enredo através
de um relato que é produto da memória de Paulo agonizando num deserto simbólico que
constitui no filme uma imagem puramente ótica e sonora. Este momento é o que o autor
chama de ponta do presente que vai, ao longo da narrativa, desvendar o lençol do passado.
Já vimos também anteriormente que a memória é fluída e antes de se tornar explícita
passa por uma série de filtros de seletividades emocionais, morais, políticas, psicológicas, etc.
Assim, Glauber constrói Terra em Transe a partir das memórias de Paulo com base na
experiência política dos anos anteriores de seu protagonista e, porque não, de suas próprias. O
filme, por ser assim, é um relato de memória ou a memória materializada do personagem
sobretudo nos momentos de voz off. Neste sentido, Paulo é o balizador narrativo da obra,
mesmo nos momentos em que ele não está fisicamente presente, ecoa no espectador sua
presença imaginária a partir do que foi proposto logo no início da narrativa
É partindo disso que se faz a necessidade de ter critérios para analisar o filme do ponto
de vista de proposição de discurso sobre a História do Brasil. Contar memórias é diferente de
contar histórias, o que Paulo praticamente faz o filme inteiro é contar memórias que,
sabemos, passou por todos os filtros de experiências. Desse modo, mesmo que o tenhamos

109
Ibidem, p. 121.
66

como principal referência narrativa, nosso norteio de problematização histórica pro filme
como fonte é temático; incialmente sobre o populismo ainda neste ato e no ato seguinte sobre
o golpe de 64. Não podemos tomar como verdade irretocável a visão de Paulo, se assim o
fosse, seria a mesma coisa que dizer que memória e história são a mesma coisa, o que,
evidentemente, não pode ser possível.
Sobre os debates e as diferenciações entre memória e História recorro novamente a
Lowenthal quando ele afirma que a história é uma espécie de verificação empírica da
memória.110 A análise fílmica que se preocupa em produzir conhecimento histórico se
concentrando numa obra cujo fio narrativo são memórias de seu protagonista nos
possibilitarão ver, na prática, diferenciações entre memória e História. Para ser ainda mais
explícito, se nos focássemos apenas na descrição fílmica dos diálogos e da linguagem,
estaríamos projetando somente a dimensão da memória no específico caso de Terra em
Transe visto que tudo ali é produto da relação entre lembrança e esquecimento de Paulo.
Porém ao usar a descrição narrativa e de linguagem para trazer análises históricas e
dialogando com bibliografias específicas sobre os temas políticos a serem abordados, veremos
uma interação produtiva entre História e memória. Dessa maneira, o que teremos é uma visão
diferenciada ambivalente tanto do filme em si quanto dos próprios processos políticos da
História do Brasil entre 1930 a 1964.
Dito isto, partiremos a seguir para análises de três sequencias específicas de Terra em
Transe que emitem um forte discurso sobre o populismo na política brasileira. Algumas
questões são flagrantes para nortear esta etapa do trabalho, a saber; de onde vem
historicamente a prática política condensada na figura de Vieira? Como podemos ver através
do filme e o relacionando a realidade política brasileira da época a dinâmica entre Estado e
população? De quais formas Glauber se preocupa em criticar o populismo brasileiro? Quais as
similaridades entre Vieira e figuras políticas de destaque na história do Brasil? Todos estes
questionamentos são amplos e serão respondidos à medida que a análise e interpretação da
fonte são feitas. O que se pode perceber de antemão é que Glauber Rocha, ao dedicar estas
três sequencias para construir um discurso sobre o populismo, faz respectivamente a criação
de um mito político e líder carismático com o povo, em seguida testa o “mito” colocando-o
em uma situação de pressão popular e, na última sequência, produz a desconstrução total do
populismo que, ao ser obliterado, cede espaço para as forças golpistas do bloco narrativo

110
LOWENTHAL, David. Op cit, p. 66
67

antagônico no filme. Todas estas situações são comuns aos processos políticos brasileiros
entre 1930 e 1964.

A Construção do mito político

Cada uma das três sequencias analisadas contará com alguns procedimentos
metodológicos para que, assim, a partir do filme, possamos chegar a política brasileira. Os
referidos procedimentos consistem primeiramente uma descrição cênica, sobretudo de
diálogos e das situações ocorridas diante da câmera. Em seguida uma abordagem de como a
situação descrita é construída, quais sentidos analíticos são possíveis de serem extraídos a
partir das maneiras de composição audiovisual da cena; movimentos de câmera,
enquadramentos, cenografia, figurino, etc. Por fim, o último passo consiste em examinar os
porquês das cenas serem construídas da maneira que são, quais são as relações delas com a
História.
Neste momento torna-se bem perceptível as ideias que Chartier para estruturar a
História Cultural. O autor nos apresenta conceituações que direcionam metodologicamente os
estudos históricos pautados na cultura construindo uma interação dialética entre apropriações,
representações e práticas culturais. Ou seja, nenhuma destas três dimensões do mundo cultural
atuam de maneira isolada, sempre estão em movimento e criando uma dinâmica harmônica ou
conflituosa entre si.
Uma vez que as representações tornam presente algo que, em alguma medida, estar
ausente interferindo na experiência e apreensão de mundo de um sujeito ou de grupos sociais,
elas, como afirma Chartier, extrapolam dimensões estritamente psicológicas e constituem-se
como divisões do mundo social. 111 A história cultural, então, é uma proposta científica de
compreensão deste jogo dialético e simbólico que essencialmente nasce na cultura, mas que se
expande para todo mundo social considerando que as dimensões da sociedade (política, arte,
religião, economia, etc) não são vividas de maneira independente. Há, de fato, uma
interdependência entre todas elas.
O que mais pode nos interessar aqui é o que o autor chama de apropriação, inclusive o
próprio reconhece isto como objeto central da História Cultural. 112 A apropriação implica
diretamente numa interpretação de uma realidade, o ato de apropriar-se de algo; um livro, um
discurso, um filme, um fenômeno político, etc, dá a quem se apropria a condição de criar uma

111
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Difel. Lisboa. p. 19.
112
Ibidem, p. 26
68

(nova) percepção sobre o objeto apropriado. 113 É assim que podemos entender teoricamente
como Glauber constrói seu discurso permeado de representações em Terra em Transe. Ele
viveu o populismo, certamente tinha sua interpretação sobre este fenômeno político e o filme
pode ser caracterizado como uma espécie de síntese do populismo político sob a ótica
glauberiana, reflexo de sua apropriação de uma determinada realidade política que deságua
numa atividade audiovisual cercada de percepções e reflexões históricas.
Adianto ao leitor que Terra em Transe é um filme que prioriza majoritariamente o
poder político. A maioria dos personagens detém, de alguma forma, um forte poder de decisão
e articulação. Não são raras a cenas em lugares onde estas figuras discutem situações em
lugares que representam o poder; cenários palacianos e sofisticados ou topos de prédios,
sempre do alto. O aspecto do poder no filme ultrapassa os próprios personagens que, ora
garbosos e requintados, ora populares e carismáticos, ora articuladores e financeiramente
poderosos estão sempre na iminência de tomar decisões importantes para um país. Xavier
ratifica este pensamento na medida em que descreve os movimentos de câmera na primeira
cena do filme, uma tomada aérea do litoral para o terraço onde Paulo pressiona Vieira pela
luta armada e o mesmo recua.114
A primeira sequência a ser analisada tem como elemento central um destes
personagens; Felipe Vieira. Sua apresentação na trama acontece quando Paulo abandona Diaz
depois que se torna senador. Paulo está na redação do Aurora Livre, jornal onde trabalha
quando Sara entra em sua sala e lhe mostra fotografias que revelam a pobreza do lugar:

Sara: Veja; crianças sem escolas, hospitais repletos, precisamos fazer uma
campanha.
Paulo: Olha que barbaridade!
Sara: Os donativos não são suficientes, é preciso que se faça alguma coisa.
Paulo: Precisamos de um líder político, isso sim. [Grifo nosso.]

Em seguida o espectador é transportado da redação do Aurora Livre para a elegante


casa de Vieira onde Paulo, Vieira e Sara estão conversando em um clima totalmente
descontraído e regado a vinho e sorrisos na varanda da casa. Em um certo momento, acontece
a seguinte situação:
Vieira: Sara também veio da capital, dar nova vida a Alecrim, é uma professora
eficiente!
Paulo: E quem ganhou com isso foi você!
Sara [se referindo a Paulo]: Gostei muito do seu último livro.
Paulo: Coisas da Juventude! Eu acho que a política... Eu gostaria mesmo era de
fazer política!

113
Ibidem, p. 25
XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São
114

Paulo. Cosac Naify. 2013


69

A cena, que até então não possuía trilha sonora, a partir desta afirmação de Paulo,
começa a tocar uma música alegre e a imagem se concentra em Sara sorrindo e bebendo. A
trilha continua, mas seu volume fica um pouco mais baixo para que o diálogo continue.
Vieira: É uma carreira árdua! Eu vim de baixo, com as mãos, Sara tem conhecido
minha luta. Quando comecei como simples vereador, eu tive que enfrentar o mau-
caratismo, a corrupção e sempre com as causas mais nobres, e por isso, as mais
difíceis.
Paulo: Falando sério, Vieira! Eu creio que você é um excelente candidato, eu ponho
a minha humilde pena a sua disposição
Sara: Ele é formidável! Ao vieira [e gestualmente propõe um brinde].
Vieira: o país precisa de poetas, dos bons poetas, revolucionários, como aqueles
românticos do passado.
Paulo: Vozes que levantaram multidões.
Sara: A praça é do povo como o céu é do condor
Paulo: Faremos majestosos comícios nas praças de Alecrim! Magníficos!

Durante a conversa na varanda, Vieira é sempre o foco dos planos e da narrativa.


Quando decidem que Vieira deve ser candidato e Paulo, no último plano da cena, afirma que
farão majestosos comícios em Alecrim, a câmera se concentra em Vieira em primeiro plano 115
através de um travelling116 reforçando ainda mais que o político é a atração principal deste
momento, é um potencial líder sendo apresentado ao espectador. Seus companheiros Paulo e
Sara entram na imagem posteriormente pois eles não podem ocupar a função que ocupam sem
a existência prévia de Vieira.

Figura 3: Vieira alegre sendo ênfase na imagem Figura 4: Sara e Paulo entram no quadro.

Como se percebe, o espectador a esta altura já sabe quem vai ser o novo candidato ao
governo da província de Alecrim, resta então que o povo de Alecrim saiba, as cenas seguintes
serão a materialização dos grandiosos comícios que Paulo se referiu no diálogo citado.

115
O primeiro plano acontece quando o personagem ou algum objeto se torna dominante na imagem. Vieira em
primeiro plano significa dizer que José Lewgoy é, durante aquele momento, situa-se a frente dos demais objetos
ou pessoas presentes na imagem.
116
O travelling é o movimento de câmera que a faz se mover no espaço através de algum manuseio específico
como um carrinho ou o próprio corpo do operador de câmera. Em outras palavras, como aponta Aumont, o
travelling é o movimento do pé da câmera ao passo que seu eixo permanece apontado para a mesma direção.
70

Logo no primeiro plano dos comícios já aparece na imagem um letreiro afirmando


“Para Governador, vote em Felipe Vieira”, fica bem claro ao espectador que a campanha é pra
valer e a qual pleito Vieira concorrerá. A cena vai se desenvolvendo ao som de uma fanfarra
festiva, gritos que entoam o nome do candidato e Vieira sorridente fumando seu charuto
cumprimentando pessoas e afirmando que fará tudo pelo povo. Os planos da festa são curtos e
o líder está sempre próximo ao povo, abraçando-o, fazendo gestos acolhedores e afirmando
que eleições livres levarão ao poder os legítimos representantes populares.

Figura 5: O enquadramento enfatizando o povo ao redor de Vieira. Figura 6: O tom festivo dos comícios.

Os planos curtos que enquadram Vieira próximo ao povo, os seus gestos e suas
palavras são a forma que Glauber Rocha encontrou para construir em Vieira uma espécie de
mito político, um líder carismático apoiado pelas massas. Estas são características das figuras
políticas que se enquadram no populismo enquanto fenômeno político brasileiro. Este
fenômeno busca uma prática política numa relação entre Estado e população mais amplificada
o que, de acordo com Francisco Weffort, era necessário que ocorresse “a personalização do
poder, a imagem (meio real, meio mística) da soberania do Estado sobre o conjunto da
sociedade e a necessidade de participação das massas populares urbanas” 117. Esta é uma ótima
definição para Vieira (meio real e meio mística), Alecrim parece ser um lugar abandonado,
cheio de problemas sociais e, como quem salvará a província, surge Vieira que até aqui é
querido pelo povo. É preciso fazer nascer um líder dotado de carisma e apoio e, para isso, o
líder precisa estar fisicamente próximo a seus eleitores e, pelo menos neste instante, afirmar
que irá agir afim de solucionar os problemas sociais, mesmo que isto seja dito de forma
evasiva, como é o caso de Vieira.
Logo após estes planos iniciais surge um mais longo que nos apresenta um diálogo
entre Vieira e um sujeito com postura subserviente chamado Felício e, de perto, os dois
conversam:

117
WEFFORT, Francisco, op cit. p. 78
71

Felício: Seu governador...


Vieira: Fala, meu filho!
Felício: Em nome desse pessoal, eu queria pedir ao senhor uma atenção... Água,
aqui pra nossas terra melhorar, agora, se o senhor quiser, também, o senhor podia...
Pode... Mas...
Vieira: Pode ficar tranquilo, meu filho, eu vou acabar com esses abusos. Vai
tomando nota, Marinho. Ele ta tomando nota de tudo, viu? Vai tomando nota. Não é,
eminência [e olha para o padre que o acompanha].
Felicio: Queria falar mais uma coisa.
Vieira: Pode falar, fala, meu filho, fala!

O plano do diálogo é cortado bruscamente para outras cenas do comício festivo, por
enquanto, não sabemos o que Felício queria dizer. O diálogo é filmado em apenas um único
plano, Vieira e Felício estão praticamente um de frente para o outro, bem próximos. Porém,
ao analisar a forma com que as falas são ditas, a conclusão que podemos chegar é que a
aproximação aqui se restringe a ser apenas física. Isto é perceptível a partir da postura
cabisbaixa de Felício, a timidez com que expressa suas palavras. Durante vários momentos ele
permanece olhando pra baixo demonstrando claramente sua inferioridade perante um líder
político. Por outro lado, Vieira sempre se mantém altivo e impaciente para ouvir Felício, tanto
que o interrompe em alguns momentos e o próprio corte do plano revela esta impaciência.
Além da linguagem dos diálogos, a própria imagem já põe Vieira em um patamar superior a
Felício. O enquadramento118 usado por Glauber para filmar o diálogo, apesar de pôr os dois
próximos, deixa Vieira em posição dominante fazendo com que seu interlocutor o encare de
baixo pra cima.

Figuras 7 e 8: a altivez de Vieira e a submissão de Felício.

Outro propositor de sentido neste trecho relatado é o figurino uma vez que Vieira se
destaca dos demais através de sua roupa elegante, as outras pessoas integrantes do povo
possuem roupas modestas, a de Felício, inclusive, está rasgada. O importante de se perceber

118
A maneira como a imagem se organiza e se posiciona em relação a câmera formando uma imagem. O
enquadramento pressupõe uma escolha do cineasta para o que e como a imagem será exposta, o movimento,
tanto da câmera, quanto do ela vê, pode e vai interferir no enquadramento, no limite os movimentos irão propor
novos enquadramentos.
72

aqui é que, mesmo quando se intitula representante do povo, mesmo que seja respeitado ou
temido pelo próprio povo que o apoia, o líder político, aqui nas entrelinhas da cena, não faz
parte e é dominante em relação ao povo.
Um novo momento durante os comícios que exacerba a dominância de Vieira é
quando a câmera o enquadra de baixo pra cima numa sacada com os braços abertos acenando.
O tipo de enquadramento e o andamento das cenas do comício propõem em Vieira a
representação de um Estado clarividente e paternalista, aliado dos mais necessitados.

Figura 9: o enquadramento de baixo pra cima (contra-plongee) demonstrando o poder de Vieira.

Vieira está no alto e agora não tão próximo dos populares, entretanto, como este é o
último plano da sequência dos comícios e estes tem a intenção de incutí-lo como um grande
líder junto ao povo, podemos entender que esta imagem é a materialização de que deu tudo
certo. Aqui mais uma vez o enquadramento o coloca em posição de superioridade e, assim,
Glauber sistematicamente faz com o político se torne uma espécie de Godfather119 do local,
uma liderança respeitada e aceita pela população.
Poder-se-ia questionar os motivos de Glauber ter a necessidade de fabricar em Vieira a
figura de um grande líder político capaz de conquistar o povo em seu espectro mais amplo ou,
em outras palavras, as massas. A resposta surge na medida em que entendemos que os blocos
narrativos da obra que evidenciam Vieira são para emitir um discurso sobre o populismo
brasileiro. Uma figura com a característica agregadora e popular do personagem de José
Lewgoy é um dos principais aspectos desta modalidade de fazer política. Vários estudiosos do

119
A tradução pode ser compreendida como ‘padrinho’. No cinema norte-americano o filme Chamado The
Godfather (O Poderoso Chefão) mostra a trajetória da fictícia família Corleone na Máfia. O godfather do filme é
uma figura poderosa e respeitada assim, num ambiente de comparação ilustrativa, como os líderes populistas
brasileiros.
73

tema afirmam que tais características de um líder político identificadas e analisadas até aqui
compõem a política de massas, principal modus operandis do populismo.
Francisco Weffort explica os porquês da necessidade das massas participarem jogo
político de maneira mais enfática. Em sua obra chamada O Populismo na Política Brasileira o
autor aborda vários aspectos com a intenção de compreender as razões históricas e as formas
que o populismo se manifestou em âmbito político brasileiro entre 1930 e 1960. O autor
sinaliza que durante este período o Brasil passou por um considerável processo de
industrialização que acarretou migrações para os principais centros urbanos do país. Ou seja,
houve também, concomitantemente a industrialização, a urbanização de grandes centros.
Estes processos causaram as condições históricas para o surgimento do populismo, entre elas
a crise das oligarquias, que até então eram mandatárias da política nacional, mas estavam em
situação política desconfortável com as classes médias crescentes pela industrialização. O
inconformismo das classes médias não pertencentes a economia e política dominante gerou
um movimento que culminou na Revolução de 1930, esse foi o momento onde ficou possível
perceber a decadência do sistema oligárquico de governo.120 Essa junção, composta
majoritariamente pelas classes médias e até mesmo por alguns oligarcas foi chamada de
Aliança Liberal e conseguiu englobar sujeitos de vários setores da sociedade construindo um
discurso de oposição ao regime oligárquico.
A vitória da Aliança Liberal é personificada com Getúlio Vargas assumido a
presidência e, a partir de então, a política de massas foi ganhando força uma vez que a AL
representava setores afins e beneficiados com a industrialização. A industrialização e
consequentemente a proletarização de trabalhadores urbanos que, segundo Weffort, não
possuíam representatividade própria, deram nova roupagem a sociedade brasileira e
colocaram em protagonismo novos grupos sociais que, até então, tinham menos impacto
político quando as oligarquias gozavam do poder. Estas mudanças geraram demandas por
parte das classes médias e dos trabalhadores que, numa complexa interação com a política,
fizeram com que se modificasse a postura dos líderes políticos produzindo o surgimento da
política de massas.
Weffort certamente é um dos principais teóricos do populismo brasileiro, seu estudo
sobre esta prática política feito ainda na década de 60 é o maior contribuinte do que Jorge
Ferreira intitula como primeira geração dos estudos sobre populismo no Brasil. 121 Este autor

120
WEFFORT. Op. Cit. p. 73
FERREIRA, Jorge. O Nome e a Coisa: o populismo na política brasileira. In. FERREIRA, Jorge. (org.) O
121

populismo e sua história: debate e critica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001
74

demonstra que Weffort utilizou a premissa da modernização da sociedade e economia


brasileira como condição fundamental de existência do populismo. O que podemos
compreender é que, mesmo com o passar das décadas e novos estudos sobre o tema surgindo,
Weffort não deixou de ser citado ainda que fosse pra ser confrontado. A intenção de usá-lo
neste momento do texto se justifica pelo fato deste autor analisar o populismo de maneira
panorâmica, sem focalizar para lugares específicos de sua atuação, tal como acontece no filme
considerando o regime alegórico totalizante criado por Glauber Rocha na figura de Vieira.
No entanto, é importante frisar que são cabíveis críticas em relação ao pensamento de
Weffort. Sobre este aspecto, Ferreira alerta para algumas ambiguidades cometidas pelo autor,
embora ele afirme corretamente que o populismo não foi mera manipulação de massas feita
verticalmente pelo Estado, em outro momento da mesma obra, Weffort afirma que a partir de
1930 o povo na política brasileira seria manipulado soberanamente por Vargas durante 15
anos,122 o que faz com que ele contradiga seus próprios argumentos. Como veremos logo a
seguir, o objetivo principal do seu trabalho é encarar o populismo como um fenômeno
político que permite uma complexa interação entre e Estado e população e que esta não se
caracteriza apenas pelo jogo de manipulação, mas também permite que as massas populares
tenham chances de pressionar o líder político e, por consequência, a própria estrutura que
institui o poder. A questão é que Weffort não sistematiza muito bem uma cronologia do
populismo brasileiro. Certamente a frase que diz que o populismo não se configura como
simples manipulação se refere principalmente a partir de 1945, o Vargas que supostamente
manipula o povo brasileiro na política é o ditador da década de 1930. Assim, a análise de
Weffort, mesmo que não haja uma sintetização dessa forma, permite duas leituras de
populismo e o que se desenvolve a partir dos anos 40 é menos manipulador e mais suscetível a
pressão popular que o anterior na medida que as décadas de 1930 e 1940 no Brasil são muito
distintas.
De todo jeito, ele é o primeiro autor que dá ao populismo um teor mais complexo de
atuação na política brasileira e principalmente que se emancipa da ideia da mera manipulação,
alguns textos da obra foram escritos ainda antes do golpe de 64. Embora o populismo seja um
vespeiro histórico e historiográfico, para nossos o objetivos agora Weffort é suficiente na
medida que sua percepção nos fornece uma compreensão do populismo que Glauber constrói
e desconstrói no seu filme e, ao fim e ao cabo, ele é um autor que jamais deixara de ser citado
quando falamos de populismo na política brasileira.

122
Ibidem, p. 79
75

Passada esta breve contextualização bibliográfica, pode-se perceber que é neste


cenário, com a proletarização das massas somado a sua falta de representatividade de maneira
ampla e encorpada, que se dá a necessidade de uma figura política que transite bem entre as
classes sociais, alguém que saiba lidar habilmente com as massas, mas que represente mais
fortemente os interesses de grupos dominantes. Vargas é o político que inaugura esta prática
no Brasil e se encaixa muito bem nestes critérios, não é aleatória a afirmação de Otavio Ianni
que a política de massas foi “a vida e a morte do modelo getuliano de desenvolvimento
econômico”.123
Dessa forma, com a proposta de encaixar Vieira no espectro populista da política
brasileira, Glauber encarrega a ele estratégias comuns a políticos populistas, a sua
proximidade física com o povo, o olho no olho, ouvir seus reclames, fazer promessas, etc. A
política é sempre feita (também) com o povo. Neste sentido, fica visível que Vargas é o
principal modelo para a existência de Vieira, e se o nosso presidente real era um exímio
articulador e popular, o nosso candidato fictício também é. Ianni afirma que outros políticos
como Jânio Quadros, João Goulart, Leonel Brizola, Miguel Arraes, entre outros, estão
também no universo da política de massas e com o seu principal modelo, o getulismo, para o
autor, estes políticos, cada um com suas especificidades, integram o que chama democracia
populista.124 No limite, para que haja de fato a existência de uma política populista, é preciso
que haja estas importantes figuras políticas mediadoras de conflitos entre massas
proletarizadas e setores médios mais privilegiados pelo modo de produção capitalista.
Não só Vargas serviu como referência para a concepção de Vieira, outros notáveis
políticos populistas como Miguel Arraes e João Goulart são flagrantes na representação
alegórica que Glauber constrói sobre o populismo. Contudo, só teremos estas novas
perspectivas a partir das análise das sequências seguintes onde o bloco narrativo de Vieira é
desenvolvido. Uma vez que o mito, o líder carismático afável e atento ao povo está
perceptível, é chegado o momento de sabermos como ele reagirá a pressões do próprio povo
que o acolhera, quais direcionamentos analíticos históricos e quais diálogos bibliográficos
poderemos tomar a partir disto.

O “mito” pressionado e revelado.

123
IANNI, Octavio. O Colapso do Populismo no Brasil. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1967. p. 53
124
Idem p. 87
76

Após o último plano do comício, o que se apresenta é Sara e Paulo em primeiro plano
abraçados e com semblantes preocupadíssimos e impotentes. A impressão que temos é que,
através do abraço, um tenta consolar o outro, os ruídos altos e festivos dos comícios aos
poucos vão se esvaindo em fade out125 até restar apenas o silêncio total. Certamente a ressaca
se manifesta. Em seguida, vem um plano mais aberto da mesma varanda onde outrora Paulo,
Vieira e Sara arquitetavam a campanha de Vieira. A voz off de Paulo rompe o silêncio e diz:
E vencemos, as coisas que vi naquela campanha, uma tragédia muito maior que as
nossas próprias forças na calma da mesma varanda onde tínhamos planejado em
festa a luta, eu, agora, ao teu lado, pensava nos problemas que surgiriam, e me
perguntava: ‘como responderia o governador eleito às promessas do candidato?’
Sobretudo eu perguntava a mim a aos outros: ‘como reagiríamos nós?’ [grifo
nosso.]

A voz off de Paulo, além da materialização de seus sentimentos, é a concretização do


cristal do tempo através, como foi dito anteriormente, da imagem-cristal. O cristal nos revela
uma espécie de onipresença do Paulo desencantado prestes a morrer ao longo de toda
narrativa. Xavier comenta que essa voz específica de Paulo é “obsessiva na evocação da
queda, na observação do tempo com progressiva destruição e desencanto”126. A compreensão
dos sentidos de inserção da voz off é importante na medida em que refere nexos relevantes na
narrativa do filme, este foi o primeiro momento em que o cristal se forma em Terra em
Transe e todas as outras vezes que ele surgir evidenciará um Paulo melancólico, que se
arrepende de muitas atitudes que fizera e frustrado por seu sonho revolucionário de última
hora ter sido esmagado por forças políticas que ele apoiara.
A cena aqui descrita, que mostra os sentimentos de Sara e Paulo pós comícios tem em
sua construção significados importantes. Primeiramente o próprio efeito de fade out do som já
demonstra uma suposta alegria e euforia por melhorias sociais através da liderança de Vieira
sendo destruídas. O plano da varanda agora é muito diferente, se antes, no planejamento da
campanha e na esperança política era de contentamento e comemorativo com sorrisos, bebidas
e música, agora nada mais restava que o silêncio e a inquietação. A varanda agora é fria e
distante, distância não só simbólica, mas física em termos audiovisuais uma vez que Glauber
escolhe utilizar um plano mais aberto onde os personagens se posicionam distante da câmera.
Após alguns segundos neste plano, a montagem corta para um plano fechado nos braços dos
dois personagens numa mesa fazendo anotações e mantendo os mesmos semblantes do plano
anterior onde estavam abraçados. A câmera se movimenta lentamente mostrando o rosto de

125
Fade out é um efeito que altera o volume do áudio ou da imagem regressivamente até ser eliminado,
normalmente ocorre com músicas. O fade in é o oposto, ou seja, a alteração progressiva do volume da imagem
ou do som.
126
XAVIER, Ismail. Op cit p. 104
77

Paulo e Sara. É oportuno atentar que Vieira não aparece nestes momentos, o mito já fora
construído, a inquietação (ainda) não o atinge e ele não participa dos momentos de angústias,
o que dá a entender é que Vieira deveria estar gozando de sua vitória eleitoral sem seus
apoiadores políticos, pelo menos aqueles mais à esquerda.

Figura 10: a varanda distante silenciosa pós campanha. Figura 11: os semblantes preocupados de Sara e
Paulo.

O plano seguinte é bastante interessante e significativo para os objetivos de Glauber


Rocha na construção de um discurso sobre a política através do filme. Logo após o término da
fala de Paulo em voz off citada acima, mostra-se uma imagem do que deveria ser um palanque
de um comício de Vieira, o movimento de câmera em panorâmica à esquerda vai se voltando
para a multidão abaixo. O que chama a atenção é primeiramente o silêncio, o áudio é
totalmente suprimido neste momento, não há, como antes, ruídos, músicas ou falatórios,
apenas o silêncio e a câmera se movimentando. Outro fator intrigante é a ausência de Vieira
no palanque, que está vazio. Onde está o grande líder? O povo, de repente, ficou sem seu
representante? Este momento é um prelúdio de uma forte crítica ao modelo populista de fazer
política que sucederá este plano, na realidade a crítica já estava sendo feita desde o abraço
entre Paulo e Sara, Glauber só será mais enfático posteriormente. Nota-se aqui um padrão;
cenas chaves como a que virá a seguir e a dos comícios de Vieira são antecedidas por
prelúdios que, mais sutilmente, antecipam os acontecimentos seguintes, seja na varanda alegre
antes dos comícios, seja na mesma varanda triste, silenciosa e no comício mudo e sem líder
antes das cobranças das promessas feitas por Vieira.
78

Figuras 12 e 13: o comício sem líder.

O próximo trecho do filme a ser analisado é crucial no que tange a crítica do modelo
populista de cultura política, é uma cena que possibilita uma série de contrastes com o que foi
apresentado e analisado até aqui com relação a construção de um grande líder político
clarividente e benevolente aos anseios populares.
A cena se inicia imediatamente após o plano do comício mudo mostrado acima, se
pouco antes Paulo se perguntava como o governador já eleito iria reagir as promessas que o
candidato fez em campanha, agora o espectador saberá a resposta. Há um encontro marcado
entre o agora Governador Vieira e um grupo de pessoas do qual Felício é o principal
representante. Paulo, a imprensa e a polícia também estão presentes neste momento. Ao som
de um jazz tenso e em um terreno inclinado Felício, de maneira cabisbaixa e tímida como
anteriormente na sequência do comício, tem a palavra:
Felício: É que nossas famílias chegou nessas terra já tem mais de vinte ano e agente
cultivou as terra, plantou nela, e as mulher da gente pariu nessas terra. Agora, a
gente não pode deixar as terra só porque apareceu uns dono vindo não sei da onde,
trazendo um papel do cartório e dizendo que as terra é dele. É isso que eu queria
dizer, seu doutor... A gente confia no senhor, mas... mas, se a justiça decidir que a
gente deve deixar as terra, a gente... a gente morre, mas não deixa não.

Neste momento Paulo interrompe a fala de Felício e o acuando, crescendo pra cima dele,
acontece o seguinte diálogo:
Paulo: Se acalme, Felício. Respeite o Governador.
Felício: Doutor Paulo, Doutor Paulo... A gente tem que gritar!
Paulo: Gritar com o que?
Felício: Com o que sobrar da gente, com os ossos, com tudo!
Paulo: Cala a boca, você e sua gente não sabe de nada.
Felício: Doutor Paulo, o senhor era meu amigo, o senhor me prometia.
Paulo: Eu nunca lhe prometi nada!
Felício: Eu não sou mentiroso!
Paulo: Um miserável, um fraco, um falador, um covarde!
Felício: Doutor Paulo, não diz isso. Não diz isso, não diz isso, não diz isso, Doutor
Paulo! Não diz isso, não diz isso, Doutor Paulo! Doutor Paulo, não diz isso, Doutor
Paulo!
Paulo: [derrubando Felício ao chão] Está vendo como você não vale nada?
Felício: Doutor Paulo, o senhor era meu amigo!
79

A conversa termina e as pessoas que acompanhavam Felício apenas observaram a situação


cercadas pela polícia de Vieira.
O diálogo em si já é suficiente para perceber que as promessas de Vieira viraram
fumaça e que todas aquelas demonstrações de carinho e simpatia eram meramente
instrumentos de auto consagração social e política. Aqui, mesmo calado, Vieira revela para o
que veio de fato. Mas, como temos feito, é importante que se extrapole o diálogo uma vez que
a própria linguagem audiovisual sempre tem mais algo a dizer ou reforça o que já foi
apresentado. O que acontece na imagem antecedendo e durante as falas são tão propositores
de sentidos quanto a própria fala.
A trilha apresentada desde o início da cena é sombria já sinalizando para o que vai
acontecer. O primeiro plano que mostra Vieira na cena enquadra José Lewgoy de costas
saindo de um carro. É a primeira vez que Vieira é mostrado de costas, o político que outrora
abraçava e sorria o povo, agora dá as costas ao som de uma música tensa. O primeiro plano
que mostra Vieira frontalmente inicia com ele quase de corpo inteiro e segue num zoom in127
até que seu rosto revelando um semblante extremamente sério preencha praticamente toda a
imagem. Mais um contraste com a sequência dos comícios, Vieira passa esta cena inteira
sério, com cara fechada, sem esboçar nenhuma fala, apenas fuma seu charuto e faz pequenos
gestos com a cabeça.

Figura 14 Vieira, pela primeira vez, de costas. Figura 15 a feição hostil de Vieira, muito diferente dos
momentos de campanha.

A narrativa segue na medida que Vieira permite que Felício se aproxime dele e ao
mesmo tempo envia os policiais para conter as pessoas que o acompanham. Numa análise
criteriosa desta cena, Maria Magalhães e Robert Stam afirmam que este momento “significa
claramente as relações de força do populismo, de um lado ele (Vieira) ostenta um liberalismo

127
A aproximação da imagem em relação ao objeto filmado por recurso técnico da câmera sem travelling ou
qualquer outro movimento de câmera. O zoom out é o afastamento nesta mesma perspectiva.
80

paternalista – deixando Felício passar e se exprimir – de outro utiliza a repressão – para conter
a multidão que acompanha Felício”.128 A partir daí começam as falas
O lugar escolhido para gravação desta cena é acidentado, algo semelhante a uma
estrada de terra cercada de mato. Glauber escolheu gravar numa ladeira e usou a topografia do
ambiente para expressar um sentido histórico e político muito forte fazendo isso através do
enquadramento que expressa uma interessante geografia do poder. Felício, ainda que fique
próximo a Vieira, está abaixo, Vieira e Paulo se mantém acima, mais alto e denotando
superioridade em relação a Felício. O povo contido pela polícia observa tudo no ponto mais
baixo da ladeira. Existem dois planos onde isto fica evidente; um parte de um enquadramento
do momento em que Vieira ordena a polícia a cercar o povo, a câmera se posiciona no pé da
ladeira, como se fosse a visão do povo que acompanha Felício, o enquadramento atinge
Felício de costa caminhando em direção a Vieira e Paulo, que os aguardam em um ponto mais
alto. A impressão que temos é da polícia engolindo Felício até chegar a seu objetivo ordenado
pelo Governador.

Figura 16: Felício sendo engolido pela polícia.

O segundo plano acontece um pouco depois no momento em que Paulo intervém na


fala de Felício onde há um corte para um plano aberto geral que mostra horizontalmente a
ladeira onde a cena é gravada. Na imagem vemos Paulo, assim como a polícia, também
engolindo Felício e o fazendo descer ladeira abaixo até que o derruba ao chão. Felício fica
caído longe de Vieira, que assiste tudo serenamente, toda a distância percorrida por Felício

128
MAGALHÃES, Maria, STAM, Robert. Dois encontros de um líder com o povo: uma desconstrução do
populismo. In. GERBER, Raquel. Glauber Rocha. São Paulo. Paz e Terra. 1977 p. 150
81

para cair longe do Governador é consequência da opressão imprimida na fala e nos


movimentos de Paulo.

Figura 17: plano geral significando relações de dominação na imagem.

O alto e o baixo como significação de relações de poder na política, a opressão e a


violência que vem de cima através de sujeitos e instituições que podem, a depender da
circunstância, exercer controle na sociedade. É isso que Vieira e Paulo fazem e se aproveitam
do privilégio de ter o poder político para fazê-lo. Some-se nesta cena as falas, a trilha sonora,
as expressões dos personagens, os enquadramentos o utilizados, a disposição espacial dos
personagens no ambiente filmado fazendo com que se construa neste trecho uma geografia
cênica que problematiza tudo que havia sendo abordado antes sobre Vieira e seu modo de
fazer política.
Vieira é revelado no primeiro teste que enfrenta por suas promessas através de uma
pressão sofrida pelos que o apoiaram, agora interessa saber os motivos que levam Glauber a
fazer isto. Por que, numa proposta de criticar o populismo, seria preciso destronar uma força
política carismática que ele mesmo construíra anteriormente?
Uma resposta plausível para este questionamento se encontra no texto de Weffort já
citado aqui. A versão original do texto é de 1967 e chegou a ser publicada na revista Temps
Modernes dirigida por Jean Paul Sartre. A principal ideia do autor para caracterizar o
populismo como fenômeno político que disponibiliza as massas populares para a tutela de um
líder político, ao mesmo tempo em que essas mesmas massas pressionam as lideranças
fazendo com que o fenômeno seja uma dinâmica complexa entre Estado e população. O líder
de governo atribuído como um forte representante do povo que, aliás, é a principal fórmula de
seu jeito de fazer política, inevitavelmente coloca-se sob pressão e é cobrado, em alguma
82

medida, pelo próprio povo uma vez que este era apenas parte do compromisso político, e não
sua totalidade.
Para Weffort, a noção clássica de populismo, aquela que caracteriza-o como
simplesmente manipulação de massas é um ponto de vista elitista e liberal sem considerar
elementos importantes da realidade sociopolítica e, segundo ele, uma percepção de “alguns
liberais de classe média, perplexos diante dos rumos assumidos pelo processo político de
1945”129. Curiosamente ele também afirma que pessoas da esquerda também compartilham
desta opinião. Entretanto, o que nos interessa agora é a compreensão de que o populismo não
se caracteriza pela manipulação absoluta das massas. Vejamos a síntese do autor:
Em realidade, o populismo é algo mais complicado que a mera manipulação, e sua
complexidade política não faz mais que ressaltar a complexidade das condições
históricas em que se forma. Ele foi um modo determinado e concreto de
manipulação das classes populares, mas foi também um modo de expressão de
suas insatisfações. Representou, ao mesmo tempo, uma forma de estruturação do
poder para grupos dominantes e a principal forma de expressão política da
emergência popular no processo de desenvolvimento industrial e urbano. Foi um dos
mecanismos pelo qual os grupos dominantes exerceram seus domínio, mas foi
também uma das maneiras pelo qual esse domínio encontrava-se potencialmente
ameaçado. Esse estilo de governo e de comportamento político é essencialmente
ambíguo e, por certo, deve muito a ambiguidade pessoal desses políticos
divididos entre o amor ao povo e o amor ao poder. Contudo, o populismo tem
raízes sociais mais profundas, e a recuperação de sua unidade como fenômeno social
e político é um problema proposto a quem estude a formação histórica do país nos
últimos decênios.130

São esses os mecanismos que geram pressão popular num líder de governo, tal como
aconteceu com Vieira. Uma vez que o povo seja agente essencial para fazer política e que as
promessas e a atenção inicial sejam flagrantes, este mesmo povo depois terá meios mais
encorpados de cobrar melhorias aos líderes já que a distância física entre estas duas forças
fora, pelo menos momentaneamente, rompida. Isto mostra que Glauber, como seria de se
esperar até pelo que vimos no ato anterior, rejeita a tese liberal de elite sobre o populismo
como simples manipulação e expressa isto à moda do cinemanovismo. Se o povo é importante
para construir em Vieira a liderança, o mito, é o este mesmo povo que logo em seguida o
desconstrói e opera tal desconstrução usando as armas que o próprio líder lhe dera outrora; a
da participação no processo político.
Como vimos, o aspecto da disponibilidade política das massas e da pressão popular
são elementos de forte convergência entre Glauber e Weffort. Entretanto, há o que
problematizar no sentido que também existe divergência entre eles ao que tange a
interpretação e representação do populismo. A divergência mais visível é a relação do

129
WEFFORT. Op cit, p. 70
130
Ibidem, p, 71. Grifos nosso.
83

populismo com campo e cidade, Weffort acredita que o processo de industrialização mais
intenso a partir de 30 proporciona urbanização da sociedade brasileira que, de tipicamente
agrária, sob as rédeas das oligarquias, passa a ser progressivamente urbana através do que ele
chama de step by step migration, ou seja, migrações que ocorriam crescentemente iniciando
em cidades de médio porte e depois concentrando-se em metrópoles. O autor nos diz que o
populismo é um fenômeno tipicamente urbano no Brasil, já que com a formação dos centros
urbanos industrializados, teve totais condições de se manifestar.
A percepção de Glauber é um tanto diferente em relação a isso, grande parte de sua
interpretação do populismo através do filme acontece num ambiente que é, pelo menos,
híbrido no que se refere a campo e cidade. Alecrim certamente é interior de Eldorado, mas
através de imagens da cidade revela-se um tanto urbana e um tanto rural. Além disso, o
gatilho que ajuda a desconstruir Vieira é uma pauta relacionada a questão de terra, algo que se
aproxima a reforma agrária que, evidentemente, não tem nada a ver com ambientes
industrializados e urbanizados sob a pecha da modernização. Assim, Glauber põe o populismo
tanto na cidade quanto no campo. Claro que é a urbanização que dá realmente condições de
existência da política populista em território nacional, sobretudo no sudeste, mas ele também
existe em âmbito rural e, ao contrário do que Weffort deixa transparecer, foi uma experiência
relevante principalmente por causa de Miguel Arraes em Pernambuco.
Enquanto Weffort ignora sistematizar o populismo no campo, Octavio Ianni prefere ir
por outro caminho de em sua obra O Colapso do Populismo no Brasil dedica um capítulo para
analisar o que chama de política de massas no campo. Ora, empregar a expressão política de
massas a atribuí-la também ao campo já nos sinaliza que o populismo não é restrito as zonas
urbanas e, além disso, se o autor dedica um capítulo inteiro de uma obra que tem objetivo de
abordar o populismo a isto também é sintoma de que o populismo no campo não só existiu,
como também foi importante em âmbito geral para a política brasileira.
O que pode-se perceber, a partir da leitura de Ianni, é que houve também no campo um
processo de avanço tecnológico na agricultura à medida que o país se industrializava e
urbanizava gerando demandas agrícolas mais amplas. Dessa forma, fazendas se inseriram na
lógica do agronegócio e empreendedorismo fazendo com que, em alguma medida,
acontecesse uma proletarização dos trabalhadores no campo. Para o autor, esta proletarização
se concretiza de modo que os trabalhadores do campo se politizam de maneira diferente uma
vez que as relações de trabalho no campo se tornam capitalistas. Neste sentido, segundo Ianni,
84

os valores comunitários e patrimoniais até então predominantes não são mais suficientes para
darem conta da dimensão do trabalho no campo.131
Chegamos então ao ponto que mais nos interessa na obra de Ianni para este momento
do texto; ele afirma que “essas transformações econômicas e sociais de profundidade foram
acompanhadas pelo aparecimento de vários tipos de liderança política no mundo agrário.”132
Em outras palavras, essas mudanças que ocorreram nas relações de trabalho permitem o
surgimento da política de massas no campo e faz com que o populismo se expanda também
para lá e, segundo Ianni, deixa a burguesia agrária alarmada. 133
Talvez a principal liderança política surgida sob a luz da política de massas no campo
tenha sido Miguel Arraes, político pernambucano que alcança protagonismo político
justamente nesta conjuntura. Arraes segue o típico modelo populista varguista, só que atuando
no campo. Aqui podemos então traçar um forte paralelo entre Arraes e Vieira, sobretudo na
segunda sequência. Se Glauber cria uma alegoria ampla do populismo brasileiro na figura de
Vieira, ela é permeada por um modelo getulista que é uma espécie de guia de comportamento
e tal modelo também projeta principalmente Arraes nesta segunda sequência e Jango na
sequência posterior do filme onde há explicitamente um discurso audiovisual referente ao
populismo e que analisaremos oportunamente. Lembremos também que, apesar de no filme
não haver nada que remeta a tecnologia no campo ou agronegócio de alto calibre, a demanda
que chega até Vieira é relacionado a algo tipicamente rural; a propriedade de terra. Assim,
Glauber coloca o populismo num misto entre arcaico e moderno, urbano e rural. O Vieira que
se dispõe a pelo menos escutar Felício é o Vieira mais próximo de Miguel Arraes e das
políticas de massas no campo.
Seguindo o filme, logo após a cena que Paulo derruba Felício há um corte pra sua casa
onde está visivelmente bêbado e possivelmente arrependido ao lado de Sara e reclama da falta
de atitude de Felício chamando-o de servil afirmando que o camponês poderia ter metido a
enxada na cabeça dele, mas preferiu ficar passivo a tudo que acontecia. Logo depois ficamos
sabendo da morte de Felício na cena de seu enterro onde as pessoas recitam com grande
velocidade, angústia e sofrimento a oração da Ave Maria. A mulher de Felício conta como
tudo aconteceu, Felício fora assassinado a tiros ao voltar pra sua casa na roça. A imprensa, a
mesma que estava durante o encontro de Felício com Paulo e Vieira, acompanha a situação

131
IANNI. Op cit. P. 73
132
Ibdem p. 75
133
Ibidem, p79
85

quando um integrante seu proclama energicamente que Vieira é culpado, o mandante do


assassinato, que não cumpriu as promessas e traiu o povo de Alecrim.
O plano seguinte já mostra Vieira apreensivo conversando com o que parece ser um
chefe de polícia do Governo. O chefe diz que há muita agitação nas ruas e recomenda que
Vieira mande prender o Coronel Moreira, suspeito de ter assassinado Felício. Vieira não
concorda com a prisão por ainda não possuir provas e o chefe o alerta que a consequência de
não prender o Coronel será ruim na área federal. Vieira pergunta por Paulo, quer ouvir a
opinião de seu conselheiro diante desta problemática situação que se apresenta.
A seguir acontece um diálogo decisivo entre Paulo e Vieira, não é por acaso que ele
acontece num terraço, no ponto mais alto de onde parece ser a residência oficial do
Governador de Alecrim. No alto as figuras com poder debatem, Paulo por seu poder de
persuasão e Vieira por efetivamente ter o poder político sobre a província. Paulo agora
demonstra está revoltado com toda situação que envolveu Felício, seu tom de voz com Vieira
se mostra agressivo durante toda a cena, ele inicia o diálogo de maneira efusiva:
Paulo: Romper de vez! Deixar o vagão correr solto
Vieira: Antes eu preciso demitir os auxiliares que você sugeriu, profissionais da
desordem!
Paulo: Um homem morreu, assassinado! A família, todos pedem justiça.
Vieira: Política se faz com habilidade, eu sou um governador!
Paulo: Eleito.
Vieira: Moreira e os outros fazendeiros financiaram grande parte da minha
campanha.
Paulo: E eu? E Sara? E os estudantes? Conseguimos o apoio das massas, pra quê?
Vieira: Eles sabiam dos compromissos.
Paulo: Mas eu tenho compromissos... Comigo! Eu não posso admitir uma tamanha
mentira. Eu não sou polícia do seu governo para continuar resolvendo pela força
conflitos que você tem a obrigação de enfrentar! [grifo nosso].

Neste momento a câmera foca Vieira calado e a voz do cantor e compositor Sérgio
Ricardo aparece cantando um verso que faz referência ao poema O Povo ao Poder de Castro
Alves: “A praça é do povo como o céu é do condor, já dizia o poeta, dos escravos, lutador”. A
seguir o diálogo entre Paulo e Vieira recomeça:
Vieira: Se arrumarmos as coisas, eu consigo receber mais verbas para as escolas...
Paulo: Verbas? Verbas que seus amigos vão roubar, verbas! A caridade apenas adia,
agrava mais a miséria. É muito fácil o raciocínio frio quando a gente está por cima.
Um líder precisa de força moral. Prenda o Moreira!
Vieira: Talvez você tenha razão, mas desta forma é impossível
Paulo: Qual é a sua forma? Vamos, diga, qual é a sua forma?
Vieira: Esperar pra ajudar.
Paulo: E agora, o que vai fazer?
Vieira: Repressão policial.
Paulo: Então eu me demito. Um dia, quando for impossível impedir que os famintos
nos devorem... Então veremos que a falta de coragem, a falta de decisão. O que que
você é, Vieira? Diga, um líder?
86

Após esta conversa Paulo decide enfim abandonar Vieira e Sara, volta a Eldorado e
desacredita momentaneamente da política se entregando a promiscuidade e a boemia na
capital. Durante a última conversa com Vieira, Paulo se mostra o tempo todo agressivo na
tentativa de encurralar o governador, que acabou resistindo a suas investidas. Porém, quase
sempre, Vieira se mostrou cabisbaixo e impotente, principalmente depois que entra a voz de
Sérgio Ricardo cantando. Pela primeira vez na cronologia da narrativa Vieira teve a chance de
radicalizar, mas assim como acontecerá adiante, não foi capaz de lidar com a situação com a
coragem revolucionária que Paulo demonstra. Coragem neste momento, porém antes foi
capaz de reprimir Felício representando os interesses de Vieira. Pensando Paulo como uma
alegoria da intelectualidade brasileira, Glauber constrói um discurso de crítica a ela,
mostrando sua ambiguidades, fraquezas e contradições. Lembremos que o filme foi lançado
em 1967, pouco depois do golpe de Estado e momento de desencanto artístico e intelectual
brasileiro. As esquerdas; posturas políticas e ideológicas de onde o Cinema Novo era
procedente, se encontravam em clima de derrota devido a vitória das forças ditatoriais de
1964. Paulo é uma forma de Glauber Rocha representar sua insatisfação com este aspecto da
sociedade brasileira e de fazer uma autocrítica reconhecendo os erros e se inserindo como
derrotado neste processo.
Ao não reagir contra o Coronel Moreira e partir pra resistência, Vieira nega às suas
bases eleitorais o direito à justiça, pois se preocupa mais profundamente com os
compromissos, que nada mais são que articulações que fez com a classe dominante de
Alecrim. Neste ponto Glauber já começa a estabelecer uma síntese sobre o populismo; um
sistema político onde se precisa de um líder popular e carismático que seja um bom
conciliador de classes, que faça um bom meio-campo entre os poderosos e as bases e,
evidentemente, atendendo com prioridade aos que bancam seu governo. É o populismo
político da mesma forma como aconteceu com Vargas, a serviço de consolidar uma lógica
liberal do capitalismo na sociedade atendendo, no caso de Vargas, a setores poderosos da
burguesia industrial e inserindo no imaginário da população a dignificação do trabalho. O que
Vieira se propõe a fazer não é tão diferente disto, não temos de fato uma confirmação no
filme, mas, de acordo com este diálogo com Paulo, é o que ele nos sinaliza.
Ainda é possível perceber neste diálogo, se analisando-o em função do toda narrativa
da obra, que se trará de um prelúdio da queda fatal do populismo no filme. Ainda que Vieira
passe, neste momento, por maus bocados em Alecrim, a situação ainda piorará em proporção
geográfica muito mais ampla atingindo toda Eldorado. É neste ponto que partiremos para a
terceira e última sequência de análise sobre o populismo em Terra em Transe, o momento
87

onde Vieira mais se aproxima de Jango e do desencanto final com a política populista
cedendo espaço para forças golpistas se tornarem protagonistas no universo diegético da obra.

A síncope do populismo.

Depois que abandona Vieira, Paulo se entrega aos prazeres puramente carnais para
entorpecer seu espírito desacreditado da política, volta a viver com Silvia, frequenta orgias e
se imerge no álcool. Enquanto isso, Díaz ganha ainda mais força política e se articula com a
multinacional Explint para arquitetar seus planos de poder. Paulo continua alheio a tudo até
que Sara vai até ele acompanhada de dois aliados para o convencer a apoiar Vieira. Ao que
parece, mesmo com os problemas em Alecrim, Vieira conseguiu se estabelecer e continua
agora numa corrida presidencial por Eldorado. Paulo resiste um pouco, mas acaba topando a
ideia. A narrativa se desenvolve focando os conflitos entre Paulo e Díaz e enfatizando o
projeto do político conservador, trechos que abordaremos no próximo ato quando o objetivo
for analisar como se monta uma peça golpista supressora de democracia através de Díaz e
suas relações. Após uma cena icônica entre Paulo e Díaz, surge a terceira sequência sobre o
populismo, a que vai desmontá-lo enquanto estratégia política para vencer o golpismo em
Eldorado ou, de toda forma, no Brasil dos anos 60.
A sequência se inicia com um plano fechado em Paulo de cabeça baixa e pigarreando,
ao se levantar berra o mais forte e alto possível “Um candidato popular!”, o próximo plano já
é bem mais a aberto mostrando Vieira no alto de uma sacada rodeado de pessoas dançando ao
som de um samba frenético. As inscrições “Encontro de um líder com o povo” aparecem na
imagem. O que ocorrerá agora é uma amplificação dos comícios de Vieira feitos outrora em
Alecrim, no entanto, ao invés de materializarem a liderança de um político, o comício servirá
para decretar seu próprio destronamento de líder.
88

Figura 18: mais um grande comício de Vieira, dessa vez pela presidência.

A festa continua no chão do terraço com a música ensurdecedora e as pessoas


dançando e sorrindo. Vieira está acompanhado de dois aliados, um senador cujo nome não
sabemos e um Padre que, por imposição da censura, é nomeado nos créditos por Gil. O os
dois pronunciam palavras de apoio a Vieira:
Senador: Aceite meu apoio, Vieira. O nosso presidente quer ser Napoleão e Díaz um
novo Cesar! Somente você tem condições para ser um novo Lincoln!
Padre: Pedro negou Cristo três vezes! Mas foi Pedro que fundou a Igreja de Deus. E
Judas, o traidor, enforcou-se nu, nu!
Senador: Senhores, abramos trilhas nas florestas, fundemos mil cidades, onde antes
eram países, países selvagens! E pontes sobre os rios, estradas rasgando o deserto,
máquinas arrancando o minério da terra!
Padre: Se não fossem os padres, o que seriam das Américas? O que seria dos
Astecas, Incas e Maias? O que seria dos Tupis, dos Tamoios, dos Aimorés e dos
Xavantes? O que seria da fé?

Ora, tanto Abraham Lincoln quanto Napoleão ou o processo de cristianização do


ocidente representam, cada um em sua circunstância histórica, a manutenção, expansão ou
implantação de ordens dominantes. Seja no processo de hegemonização de um projeto de
nação nos Estados Unidos, da sociedade capitalista burguesa na Europa ou do cristianismo na
América Latina. Se essas práticas e discursos estão aliadas ao suposto candidato popular líder
do povo e preocupado com os menos desfavorecidos e que, através dele, o povo chegará ao
poder, percebemos que o poder do povo vem acompanhado de representações que nunca
buscaram sua emancipação, pois todas as idealidades que Vieira pode assumir construíram, de
acordo com os discursos de seus companheiros, hegemonicamente sociedades desiguais ao
longo da história. Neste momento Glauber extrapola o populismo enquanto temática a ser
explorada pela narrativa do filme através de um discurso de raízes histórias mais profundas.
Subentende-se que o projeto de poder de Vieira se relaciona com estas raízes dominadoras, já
89

é o primeiro sinal verbal de que o populismo não pode ser suficiente para satisfazer os anseios
populares, já que as tais raízes históricas também não o fizeram.
Os sinais visuais desta insuficiência do populismo também estão presentes para além
da fala durante estre trecho aqui descrito. Se nos comícios da primeira sequência, a que
constrói o mito, Vieira sempre está em evidência, sempre se mantem altivo e alegre perante o
povo e sempre tem a palavra. Aqui, nesta sequência, a que desconstrói o mito, ele é engolido
pelo povo, durante a sequência não diz uma palavra, a altivez e alegria de tempos passados
cedem lugar a uma desorientação e um semblante de preocupação. Muitas vezes é difícil
encontrar Vieira no quadro sobretudo porque ele se posiciona ao fundo do campo, em outros
momentos sequer José Lewgoy participa do plano. É o líder sumindo, desnorteado e mudo, a
festa populista sendo obliterada pelo próprio povo entorpecido, é a imagem produzindo no
espectador a consciência de que esta forma de fazer política não pode estar correta,
consciência que chegará a Paulo logo em seguida na mesma cena.

Figuras 19, 20 e 21: Vieira não é mais o centro das atenções em seus comícios.

Adiante muda-se para um plano durante a festa onde Paulo e Sara aparecem atrás de
algumas pessoas, a câmera se aproxima deles em travelling pra frente até o ponto dos dois
preencherem quase todo o campo da imagem. Neste momento uma orquestra de Villa-Lobos
sobrepõe o samba frenético que, aos poucos em fade out, some. As pessoas continuam
dançando ao redor de Paulo e Sara, sinal de que só eles escutam a nova música que invade a
cena. A câmera na mão começa a rodear os dois, que também giram entre si, e a voz off de
Paulo fala:
90

Qual o Sentido da coerência? Dizem que é prudente observar a História sem sofrer
até que um dia, pela consciência, a massa tome o poder? Ando pelas ruas e vejo um
povo magro, apático, abatido. Este povo não pode acreditar em nenhum partido. Este
povo alquebrado, cujo sangue sem vigor. Este povo precisa da morte mais do que
se possa supor. O sangue que estimula no irmão a dor, o sentimento do nada
que gera o amor. A morte como fé, não como temor! [grifo nosso]

Mais uma vez o cristal retorna a narrativa de Terra em Transe e, dessa vez, não apenas
pela voz off, mas a própria trilha sonora, que no filme é feita sob responsabilidade de Glauber
e Sérgio Ricardo, ajuda a alimentar o sentido que o cristal emana, para Stam e Magalhaes, a
música de Villa-Lobos é utilizada para operar rupturas.134 Pois bem, o momento descrito
acima é exatamente quando Paulo se direciona por um viés mais revolucionário, a música
orquestrada que suprime o samba festivo é o que antecede as palavras vindas do deserto onde
Paulo morre simbolicamente no início do filme. Uma nova consciência vai se formando no
poeta, suas palavras remetem a percepção de que é impossível uma mudança histórica radical
sem combate ou sofrimento. O povo está magro e apático porque alimenta um partido, ou em
outras palavras, Vieira. Este povo precisa também de uma morte simbólica para um
renascimento e, este sim, revolucionário, vigoroso e plenamente consciente de seus poderes
sem precisar de quaisquer tutelas. Esta é a ruptura política que a trilha sonora e a fala de Paulo
traz.

Figuras 22 e 23: A câmera na mão girando e a consciência revolucionária surgindo em Paulo.

Se Paulo ainda depositava alguma esperança em Vieira, mesmo depois do que o


ocorreu em Alecrim, agora toda esta esperança está liquidada. Ainda, durante o cristal, é
possível ver Vieira de relance, Glauber não dá tanta importância pra ele neste momento. O
populismo está próximo de seu colapso e, além das falas, a imagem e o som revelam isto na
medida em que no momento que Paulo adquire esta nova consciência. Quando a música de
Villa-Lobos entra em cena, a câmera rodopia, os personagens rodopiam, metaforicamente a
estabilidade está se perdendo. Nas outras sequências que analisamos, mesmo quando o

134
MAGALHAES e STAM. Op cit. P 152
91

populismo é pressionado e posto em cheque, a câmera (ainda que a maioria dos planos sejam
feitos com câmera na mão) e os personagens se mantém estáveis revelando que Vieira e seu
projeto político populista ainda conseguiam controlar a situação, o que já não acontece neste
momento quando o cristal se apresenta novamente. Assim, temos a junção da fala e
performance dos personagens em cena, a forma como a trilha sonora é usada, movimentos de
câmera e interpretação de narrativa da obra para chegar a tal conclusão de desconstrução do
populismo.
Após as palavras dita pela voz off de Paulo, o samba volta, entretanto agora ele divide
espaço com a sinfonia de Villa-Lobos, ou seja, a consciência de que aquele modelo político
cairá está vívida e presente no posterior diálogo entre Paulo e Sara. Sara tenta convencer
Paulo de que este povo que aí está não é culpado pelo processo, Paulo se mantém irredutível.
Sara então, numa última tentativa, dá a voz a Jerônimo e, com muita intensidade, o incita a
falar. Toda música e ruído provenientes da cena são cortados, o silêncio é absoluto e todos
voltam sua atenção para ouvir as palavras de Jerônimo.

Senador: Não tenha medo, meu filho! Fale! Você é o povo!


Jerônimo: Eu sou um homem pobre, um operário. Sou presidente do meu sindicato.
Estou na luta das classes e acho que ta tudo errado e eu não sei mesmo o que fazer, o
país ta numa grande crise e o melhor é aguardar a ordem do presidente...

Neste momento Paulo se aproxima de Jerônimo e tapa sua boca por trás, a câmera faz
um travelling rápido em direção aos dois demonstrando ênfase no que Paulo falará: “Estão
vendo o que é povo? Um imbecil! Um analfabeto! Um despolitizado! Já pensaram um
Jerônimo no Poder?”

Figura 24: Paulo cala Jerônimo (o sindicato)

Depois que Paulo termina sua fala, Jerônimo não se manifesta mais e a música volta.
92

Entretanto, com planos fechados no meio da multidão, a câmera foca um rapaz agachado
caminhando em direção onde está Paulo, Sara e Jerônimo. Ao chegar, o rapaz tira mão de
Paulo da boca de Jerônimo e, por si só, pede a palavra, depois de algumas tentativas a música
diminui e todos voltam atenção pra ele, que diz: “Eu vou falar agora, eu vou falar! Com a
licença dos doutores, seu Jerônimo faz a política da gente mas seu Jerônimo não é o povo. O
povo sou eu que tenho sete filhos e não tenho onde morar!”
No momento em que o rapaz acaba seu discurso, é automaticamente tachado de
extremista pela multidão, um aliado de Vieira o enforca e põe uma arma enfiada dentro de sua
boca. O plano seguinte ainda é do mesmo ambiente, o rapaz está estirado no chão e morto,
não há mais música, nem orquestrada nem samba, também não há mais multidão, apenas
alguns transeuntes que ali circulam despretensiosamente. Paulo, Vieira (que se manteve
calado e quase invisível durante todo esses momentos trabalhados até aqui), Sara e os demais
aliados estão em silêncio com semblantes abatidos. O povo que ousou a afrontar o poder
político, que se atreveu a criticar suas representações formais fora assassinado.
O que nos interessa agora é compreender em qual sentido esta abordagem
cinematográfica contribui pra falar sobre o populismo no Brasil e, sobretudo neste momento,
elaborar uma crítica destruidora desta prática. Para fazer isto é necessária a percepção de
alguns elementos na imagem não tão perceptíveis porque a atenção do espectador está
concentrada nos diálogos, porém alguns detalhes são importantes combustíveis para esta
reflexão.
Primeiramente nos concentremos em Jerônimo, o representante do povo via sindicato
não aparece pela primeira vez no filme na cena onde tem a palavra e interrompido por Paulo,
Jerônimo é uma das figuras que apoia Vieira no momento de seus comícios em Alecrim. É de
se admitir que a posição de Jerônimo na política de Vieira é similar a de Paulo, de apoiador e
direto beneficiário de sua eleição, a diferença é que Paulo em dado momento se recusa a isto e
Jerônimo não. Apesar do roteiro jamais evidenciar Jerônimo senão no momento da terceira
sequência, é esta a principal sugestão que ele nos traz. Os outros elementos não tão
perceptíveis têm relação com o rapaz que fala em nome do povo e é assassinado logo depois.
Ele se veste com a mesma roupa que Felício vestia em suas aparições e está acompanhado da
mesma mulher que acompanhara Felício inclusive também usando o mesmo figurino. Dessa
forma, existem dois povos representados durante a sequência, o cujo presidente do sindicato é
representante e o cujo é representado pela memória de Felício. Talvez este, mais combativo e
crítico, se aproxime do que Paulo idealizou do deserto na cena em questão através do cristal
do tempo quando surge pela primeira vez a música de Villa-Lobos.
93

Dito isto, cabe então problematizar algumas questões: por que, para criticar o
populismo, Glauber por tabela também critica sindicatos e elabora mais de uma visão do
povo? E mais, em quais pontos é possível perceber pontos fulcrais do getulismo e do
janguismo em toda esta situação? Terra em Transe jamais deixa de ser uma obra sobre figuras
de notáveis poderes políticos, mas em alguns momentos ela se depara com a necessidade de
abordar e problematizar os objetos de alcance destas figuras, a terceira sequência sobre o
populismo se trata, em grande medida, sobre isto.
A presença de Jerônimo e a forma como ele se comporta evoca diretamente uma
crítica ao sindicalismo em governos populistas ou, mais especificamente, uma crítica forte aos
representantes dirigentes de sindicatos neste período. Isto remete principalmente a forma com
que interagiram Estado e sindicatos a partir de certo momento do período getulista, a saber,
durante os primeiros anos da década de 1940, estágio onde, como aponta Skidmore, o
trabalhismo ficou mais evidente em Vargas potencializando sua política de massas. 135
Na obra A Invenção do Trabalhismo, Angela de Castro Gomes se propõe a analisar as
relações entre os sindicatos e o Estado Varguista e nos apresenta a percepção de que grande
parte das classes trabalhadoras aderiram a uma espécie de pacto com o Estado que consistia
na obediência política em troca de ganhos materiais e regulamentação do trabalho trazendo
benefícios aos trabalhadores. Para a autora, isto não consiste em mera submissão de classe,
mas sim numa “troca orientada por uma lógica que combinava os ganhos materiais com os
ganhos simbólicos da reciprocidade, sendo que era esta a segunda dimensão que funcionava
com instrumento integrador de todo o pacto”.136 Entretanto, para que o trabalhador gozasse
dos benefícios, teria que, além de ter carteira assinada, ser sindicalizado. Isto fez com que
grande parte dos sindicatos se tornassem aliados do governo, uma estratégia extremamente
perspicaz de Vargas para pôr o trabalhador na lógica do capitalismo.
Para que o trabalhismo se sustentasse, além do pacto trabalhista, havia ainda a serviço
do governo varguista um poderoso serviço de imprensa e propaganda que, sistematicamente,
o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio Marcondes filho falava pelo rádio no programa
A Voz do trabalhador. Entre 1942 e 1945, mais de duzentas palestras foram realizadas pelo
ministro. O impacto do programa foi muito forte. Gomes afirma que era a primeira vez que
uma figura política se direcionava especificamente para a classe trabalhadora. 137 Levemos
também em consideração o amplo alcance do rádio enquanto meio de comunicação, o

135
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. São Paulo. Paz e Terra. 1982. p. 63
136
GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro. FGV Editora. 2005 p. 180
137
Ibidem p. 212.
94

programa chegava a diversas localidades remotas no país e, ao contrário da mídia impressa,


não exige que o receptor seja alfabetizado.
Utilizando a autora como referência, podemos perceber que nas falas de Marcondes,
Vargas sempre foi tratado como a figura que propiciou melhores condições de trabalho,
muitas vezes essas melhores condições pautam-se num discurso de direitos trabalhistas e
busca pela cidadania. Dessa maneira, a ideia passada ao ouvinte era de dignificação do
trabalho que regulamentado de maneira justa por um estado clarividente, atento a legislação e
em consonância com representações sindicais para construir uma política capaz de fazer a
sociedade efetivamente progredir.
Outro ponto importante relacionado a política trabalhista varguista consiste no estado
de vigilância que Vargas inseria no trabalhador, que deveria ficar atento ao seu ambiente de
trabalho para quaisquer sinais de desordem ou desobediência e trabalhar pela manutenção da
ordem. Neste sentido, somando todos os elementos expostos aqui, Vargas conseguia manter
seu sistema de atuação política ao que tange o trabalho com a parceria com grande partes dos
sindicatos, imprensa e propaganda enfatizando fortemente a importância do trabalho formal e
sindicalizado e com a vigilância que trabalhadores exerciam sobre os próprios trabalhadores.
Estes aspectos alinhados garantem a consolidação do capitalismo industrial no Brasil com o
Estado patrocinando este sistema e, por tabela, tutelando grande parte das massas
proletarizadas em decorrência da urbanização industrial que dá condições de existências
básicas pra este tipo de capitalismo. Esta estratégia era, no limite, a grande guia da política de
massas.
Tendo isto em mente e voltando ao filme, é de se imaginar agora os motivos de
Glauber engendrar tamanha crítica ao sindicalismo. Evidentemente, como aponta Marcelo
Matos, existiram sindicatos que fugiam do escopo estatal138, mas a proposta de Glauber é
construir discursos através de alegorias e estas, por si, são totalizantes e generalizadoras, Díaz
é uma alegoria do conservadorismo golpista, Vieira do populismo, Sara da militância de
esquerda, Paulo da burguesia intelectual e Jerônimo, como se pôde ver, dos sindicatos. A
interpretação glauberiana deixa transparecer que estes sindicatos alinhados ao Estado são, em
grande medida, também responsáveis pelo fracasso do povo enquanto consciência
revolucionária por se atrelarem ao populismo via trabalhismo. Por isso que Jerônimo só é
revelado nesta última sequência do populismo, pois é o momento de decadência total deste
modelo político e, não é por acaso, que jerônimo só se revela depois que Paulo só vislumbra

138
MATOS, Marcelo Badaró. Greves, sindicatos e repressão policial no Rio de Janeiro (1954-1964). In Rev.
Bras. Hist. 2004, vol. 24, no.47. p. 241-270.
95

salvação pela via revolucionária. Jerônimo, ou os sindicatos, para Glauber, são agentes
contrarrevolucionários no momento onde mais se precisa da revolução. Se o modelo populista
cai por terra, a parte Vargas da Alegoria Vieira é atacada com todo vigor possível.
Se o modelo político getulista ou, em outras palavras, o populismo é minado no
decorrer desta terceira sequência, é quando a parte Jango da alegoria se torna mais evidente.
João Goulart foi o último presidente populista brasileiro, sua queda abriu caminho para a
ditadura a partir de 1964. Mas não só Jango, ele certamente foi a liderança mais emblemática
da decadência populista. De acordo com Ianni, após Kubitschek na presidência o populismo
foi marcado por crises devido a forças sociais que o pressionavam tal como as elites,
burguesia que inclusive apoiara o modelo outrora e os movimentos nacionalistas e reformistas
que encabeçavam as reformas de base, o autor afirma que o suicídio de Vargas é a
materialização desta pressão.139 De um jeito ou de outro, cedo ou tarde, as grandes figuras
populistas caíram, inicialmente Vargas, depois Jânio Quadros renunciando à presidência e o
seu sucessor sendo deposto por um golpe de Estado, Arraes foi cassado pelo Governo Militar
em 1964. Se todas as grandes figuras se desintegraram politicamente e desintegraram o
populismo, Vieira também cairia, era seu destino histórico.
É possível, então, traçar em Vieira algumas semelhanças com Jango, Glauber o
escolheu como principal referência para que seu personagem cumprisse tal destino. Nos
primeiros anos da década de 1960 o Brasil passava por preocupantes cenários econômicos.
Ianni nos diz que em 1963 existe uma crise econômica em curso numa espiral inflacionária
que começa a afetar o sistema capitalista acarretando greves contra confiscos salariais
produzindo mais força nas organizações sindicais140 (que neste período não são tão pelegas
como no varguismo). É neste contexto que há uma insatisfação generalizada com a condução
política do país fazendo com que diferentes setores da sociedade pressionem Jango. O rapaz
representante do povo que fala no lugar Jerônimo no filme pode ser um revelador desta
insatisfação que atinge desde setores burgueses dominantes à camadas mais pobres da
sociedade, a fala do rapaz, antes de qualquer coisa, é a marca que a política populista sofre no
início dos anos 60.
A participação política das massas através de movimentos de reinvindicação culminam
progressivamente. Segundo Daniel Aarão Reis Filho, nas reformas de base que tendiam em
todos os seus campos de alcance conquistas reais para as classes populares sejam elas urbana,
eleitoral, tributária, referente a economia internacional ou agrária que, por sua vez, era a mais

139
IANNI. Op cit. P. 177 e 178
140
Ibidem p. 179
96

requisitada. 141 No filme, aliás, a pressão popular mais incisiva feita a Vieira tem a ver com
questão de posse de terras (segunda sequência com a situação de Felício).
Todos estes movimentos levam Jango, que fez sua base eleitoral e política através de
sindicatos e setores populares, ter como plano de governo a implantação das reformas de base.
Um governo afinado com as pautas populares era, naquela circunstância, a melhor forma de
se sustentar na presidência, pois assim conciliaria suas bases e possivelmente colocaria a
política de massas em outro patamar. Mas, na medida que avançamos na leitura de Reis Filho,
o que ocorreu foi, por decorrência de diversos fatores, uma sociedade polarizada pró Jango
em defesa da legalidade de seu mandato, a favor das reformas de base e contra ele com um
discurso moral, anticomunista apoiado e reforçado pelas elites dominantes, tal como grandes
veículos de imprensa, setores médio que viam no populista a personificação da perda de seus
privilégios de classe e a própria classe política oposicionista a Jango durante a conjuntura
entre 1962 a 1964, sobretudo em 64, quando as tensões políticas na sociedade chegam ao
nível mais extremo.142 No filme, as classes médias opositoras ao populismo não são
representadas por multidões, mas sim por alguns agentes como Julio Fuentes, alegoria
totalizante da imprensa de grande porte e da burguesia nacional.
A resposta de Jango a esta polarização exacerbada em 1964 é através de uma ostensiva
feita de comícios empolgados para, de acordo com Reis Filho, pressionar o congresso a
aceitar suas reformas.143 O famoso comício de 13 de março em São Paulo reunindo centenas
de milhares de pessoas é um exemplo disto. Jango mostrava que poderia vencer a resistência
ao seu governo. Porém, uma resposta contundente foi dada a 19 de março com a Marcha da
Família com Deus pela Liberdade também feita em São Paulo concentrando em torno de 500
mil pessoas pedindo o afastamento de João Goulart para livrar a pátria da ameaça comunista.
No fremir destas tensões, poucos dias depois, a 01 abril de 1964, Jango é deposto por um
golpe de Estado articulados por militares e o setores políticos conservadores. É o marco de
um golpe fatal ao populismo na política brasileira que, da forma que foi construído até então,
só encontrou-se com a decadência a partir disto para, em contrapartida, um plano político,
social e econômico conservador de direita pudesse ser dominante no Brasil.
Em Terra em Transe a faceta janguista momentos antes de sua queda é ressignificada
em Vieira pouco antes de sua dissolução enquanto líder político. No fim da terceira sequência
sobre o populismo, existe um diálogo entre Paulo e Vieira onde o político revela ao

141
REIS FILHO, Daniel Aarão. O Colapso do Colapso do Populismo no Brasil. In. In. FERREIRA, Jorge.
(org.) O populismo e sua história: debate e critica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. P. 330
142
Ibidem p. 335
143
Ibidem p.340
97

companheiro que vai resistir, unir as massas e romper de uma vez com as forças
conservadoras de oposição. Tal como Jango quis fazer antes do golpe acontecer. No plano
seguinte Vieira sorridente é carregado pelo povo, é o comício janguista antes da queda final, o
último suspiro de uma derrota iminente. A trilha sonora faz um papel importante neste trecho,
após terminar o diálogo com Paulo, começam simultaneamente uma música africana
recheadas de batuques que já tinha sido apresentada no início do filme e uma trilha de violino
que denota melancolia. Não há mais só o samba festivo nem tampouco a sinfonia de Villa-
Lobos que traz a consciência revolucionária, há agora a esperança do popular pelo batuque
que vem da África junto com a melancolia pessimista do lento arranjo do violino. Vieira já
tinha sentido o baque nos momentos anteriores da sequência, tanto que é um mero
coadjuvante durante as cenas, este momento onde é carregado pelo povo é o único que ele é
protagonista em relação as massas durante a sequência inteira.

Figuras 25 e 26: Vieira/jango em seu "último suspiro"

A sequência da desconstrução do populismo termina, o último plano foi este analisado


acima do último suspiro de esperança de Vieira/Jango. Logo após existe uma sequência que
trata sobre as articulações golpistas de Díaz que iremos analisar rigorosamente no próximo
ato, porém para resumir agora, trata-se de Díaz se aliando com as classes médias, imprensa e
burguesia nacional personificadas alegoricamente em Julio Fuentes e confessando que, em
último caso, dará um golpe para conquistar o poder. Se no plano anterior tínhamos a ofensiva
de Vieira/Jango com seus comícios e empolgações, agora temos o contra-ataque da versão
glauberiana da Marcha da Família com Deus pela Liberdade através de Díaz. Isto acontece no
fim do filme e logo depois, assim como aconteceu no Brasil, Eldorado sofrerá um golpe de
Estado e as forças do populismos serão obliteradas irreversivelmente.
O populismo, no íntimo da palavra, segundo Aarão, surge nos anos 50 como arma
linguística da elite para criticar movimentos sociais e lideranças políticas. Entretanto, grupos
intelectuais mais sofisticados começaram a usar a palavra como referência conceitual para
98

compreensão da crescente participação das massas na política nacional bem como da


importância de algumas lideranças carismáticas em seus estilos de fazer política. 144 Apesar de
não usar a palavra populismo no roteiro, apenas popular, é óbvio que Glauber, assim como
Weffort e Ianni, faz – entre convergências e divergências com os autores – uma análise
sofisticada do fenômeno no mesmo momento que os eminentes intelectuais.
Indubitavelmente esta abordagem corajosa e ousada sobre o populismo foi geradora de
polêmicas no momento em que a obra foi lançada, era de se esperar que ele atacasse a direita
conservadora e fascista, como o fez, porém, atacar políticas que se aproximam dos anseios
populares e tirar a consciência do povo alvo destas políticas gerou polêmicas na recepção de
sujeitos ligados a esquerda como Fernando Gabeira e Jacob Gorender. No entanto, a liberdade
artística de Glauber falou mais alto que alinhamentos políticos e o próprio Cinema Novo, que
outrora mistificava o povo, agora, com Terra em Transe, o problematizava. Alguns autores
defendem a tese de que no fim da década de 60 o Cinema Novo passa por uma processo de
reinvenção e autocrítica, o filme que estamos trabalhando é um reflexo disto.
O discurso sobre o populismo que Glauber Rocha constrói através de Terra em Transe
se passa invariavelmente pelo líder político em vias de consagração social, pressão política
sofrida e, por fim, a desconstrução total sua e de seu modelo. A abordagem é perspicaz na
medida que se vale de elementos exclusivos da linguagem cinematográfica para emitir um
discurso histórico, forma de fazer, aliás, bem coerente com a proposta de cinema enquanto
feitura intelectual que Glauber e o Cinema Novo tanto defenderam como vimos no ato
anterior. Terra em Transe é uma manifestação destes aspectos. O populismo no filme como
interpretação histórica da política brasileira é materializada no alcance que tem com relação a
própria realidade da nossa política por meio de representar relações de aproximação de Vieira
com Vargas, Arraes e Jango, os mecanismos de participação e pressão política das massas,
bem como elas estão, ainda assim, sujeitas ao poder dominante, a crítica encorpada a parte do
sindicalismo e as diferentes concepções de povo.
O filme é a interpretação e a expressão de um importante cineasta sobre o que ocorreu
no Brasil até 64, sobre os processos que desaguaram no golpe, a síncope do populismo
certamente alimentou a ditadura que se desenvolveu depois. Glauber Rocha, em 1967, três
anos depois do colapso total do populismo, estabelece uma visão apurada sobre este
fenômeno político e a constrói artisticamente de modo que, atualmente, a arte e a história
estejam em sintonia

144
Ibidem p 347
99

TERCEIRO ATO.
As Tramas de um Golpe de Estado: tensões, perfil da direita e conflito político.

Cinema não é pra entreter, é pra fazer sonhar.


(Win Wenders)

Terra em Transe é um filme que desenvolve uma trama política incialmente separada
em blocos narrativos diferentes até, para então próximo do desfecho, haver uma colisão final
(e fatal) entre eles. Paulo Martins é o principal combustível, e Julio Fuentes em menor grau,
que vão pôr tais blocos em rota de colisão. Me refiro, evidentemente, aos núcleos narrativos
de Porfírio Díaz e Felipe Vieira, principais figuras políticas e que, partindo de variados meios,
pleiteiam cargos de poder na ilha de Eldorado. No ato anterior demos total atenção a Vieira e
como, através de análise, o populismo na política brasileira é apresentado e problematizado
por Glauber Rocha construindo assim um forte discurso histórico sobre seu tempo. É chegado
então o momento de trabalhar com o outro lado da narrativa política do filme, com tudo que
cerca Díaz e suas articulações golpistas supressoras da democracia.
Apesar de, por necessidade metodológica e objetividade acadêmica, haver um ato
dedicado principalmente a Vieira e outro principalmente a Díaz, eles não estão estritamente
separados no contexto dos objetivos deste trabalho. Nenhum dos dois personagens estão
encaixotados sem possibilidades de interação. Os dois disputam, cada um a seu modo, o poder
num mesmo lugar e, em algumas situações, estão cercados de personagens em comum. Por
isso muitas vezes o leitor se verá voltando no tempo durante a leitura do texto, Vieira, em
alguns momentos, estará direta ou indiretamente presente mesmo que a análise privilegie o
arco narrativo de Díaz. Analisaremos, com o mesmo cuidado do ato anterior, as sequências
que dizem respeito a nossa representação da vez, três delas situam-se entre a terceira
sequência trabalhado no ato anterior, a que chamei de síncope do populismo. A três
sequências posteriores serão as sucessoras da última do ato anterior de modo a chegarmos ao
desfecho do filme (que é também seu início, mas de maneira amplificada) para que possamos
concluir os objetivos direcionados pra este momento.
Dessa forma, o leitor terá uma experiência próxima do espectador do filme. Se
começamos com a cena lá do início da obra como ponto de partida pra este trabalho,
terminaremos nesta mesma cena, porém, como no filme, agora (re)vista de maneira mais
sapiente e amplificada nos deixando menos ingênuos em relação aos objetivos de seu
realizador.
100

Durante a análise de todos os momentos fílmicos pra esta etapa do texto surgirão
várias problematizações históricas ao que compete o golpe de Estado ocorrido no Brasil em
1964, a saber; os esforços civis pra dar saúde, mobilidade e poder de ação ao golpe no que
concerne a participação ou interação entre burguesia e Estado. Serão também examinadas de
onde vem, no Brasil, o pensamento e prática política de Díaz e em quais personagens reais da
política brasileira ele é baseado. De todo modo, o processo histórico de condução e execução
do golpe de Estado no Brasil é nossa tônica neste momento, inclusive tendo consciência e
levando em consideração que o populismo e seu colapso também estar presente nesta trama
fazendo com que o elo com o ato anterior jamais seja quebrado.
Antes de começar a abordagens com as sequências, é necessário que se fale de alguns
jogos de sentido que Glauber Rocha cria em Terra em Transe, me refiro à escolha de alguns
nomes de lugares e personagens. Isto acontece explicitamente com o nome da ilha fictícia
situada na América Latina. Eldorado, como aponta Xavier, é um país alegórico ao Brasil. 145
Eldorado também é uma lenda do século XVI que consiste que este lugar seria uma cidade
perdida repleta de ouro na Amazônia onde hoje é a região da Colômbia. A cidade-sonho teria
um homem de ouro descendente direto do sol que a governaria, pois ele seria o divino
escolhido para tal atribuição. Porfírio Diaz, o que dá a entender na mitologia que Glauber
constrói para Terra em Transe, seria este homem. No entanto, o nome Porfírio Diaz é também
uma referência direta ao militar e político mexicano homônimo que governou ou México
através de uma ditadura entre o século XIX e XX que só veio ser liquidada após a Revolução
Mexicana.
Assim, Glauber se apropria de mitologias e eventos históricos para criar sua própria
narrativa acerca de um retrato político do Brasil. Esta ressignificação de acontecimentos para
propor representações se aproxima bastante do que Chartier entende como apropriação do
mundo cultural para constituir uma luta de representações.146 Para Díaz, o homem de ouro de
sua Eldorado, Glauber se apropria do mito pra dar sentido à outra realidade, um sentido, desse
modo, irônico, visto que o predestinado mandatário da ilha fictícia glauberiana reúne todos os
atributos de um tirano pra governar um lugar que remete mitologicamente a riquezas e
maravilhas. Na verdade, este sistema de apropriações e representações acontece durante todo
o filme, visto que se trata de alegorias amplas e complexas, estas aparentemente simples
nomeações de lugar e personagem demonstram que até em detalhes o discurso de Glauber é
pensado para elaborar um sentido crítico e também histórico.

145
XAVIER, Ismail Cinema brasileiro moderno. São Paulo. Paz e Terra. 2001.
146
CHARTIER, Roger. Op cit. p. 20
101

Tensões de poder e o perfil do golpista.

A primeira sequência a ser analisada diz respeito a tensão político-empresarial criada


na narrativa fílmica e acontece momentos depois de Paulo deixar Vieira pela primeira vez
após a morte de Felício. Descrente, neste ponto, em qualquer saída política para seu país, ele
volta pra Eldorado ao mesmo tempo que a narrativa fílmica nos apresenta mais uma vez o
cristal do tempo. Dessa vez, a voz off do Paulo do futuro revela que voltara a Eldorado
amargo, sem sonhos para acreditar e se entregava apenas à carne, pois ali era o único lugar
onde se encontrara.
É neste momento que Paulo se entrega as orgias promovidas pelo rico e poderoso
empresário Julio Fuentes que o tem como amigo. Esta é a forma de apresentar a burguesia que
Glauber Rocha escolhe para mostrá-la ao espectador, uma vez que Julio Fuentes é uma
alegoria do empresariado nacional. No entanto, as orgias que Fuentes encabeça e Paulo é
agente central não são construídas por Glauber de maneira sensual ou mesmo erótica, mas sim
de forma degradante e inebriante. As festas de Fuentes é o escape da consciência de Paulo de
uma desilusão política com o que Vieira representa e mesmo amorosa no que tange a Sara.
Alterar profundamente os sentidos é a única forma de Paulo conseguir vencer sua própria
covardia de não, pelo menos por enquanto, agir politicamente. Imerso neste ambiente, ele
volta aos braços de Sylvia, sua companheira desde os tempos de Díaz que jamais fala no
filme.
A sequência que nos desdobraremos começa de fato quando Sara acompanhada de
dois parceiros políticos vão à casa de Paulo em Eldorado para convencê-lo a apoiar Vieira ou,
pelo menos, desmoralizar a figura de Díaz. O espectador, pela boca de Sara, ouve falar pela
primeira vez da Explint, um grupo internacional forte política e financeiramente que apoia
Díaz em suas empreitadas de poder. A proposta de Sara é que Paulo convença Fuentes e use
seu arsenal midiático para atingir Díaz negativamente. Paulo reluta em participar do plano,
mas em prol de sua ética política, decide atender os desejos de Sara que se diz estar ali
representando Vieira.
O diálogo e a estratégia de Paulo pra convencer Fuentes são longos de modo a serem
construídos em duas cenas. A primeira acontece logo depois do encontro com Sara, e Paulo,
ao lado de Álvaro (que depois saberemos estar infiltrado nas articulações de Díaz), se
encontram com Fuentes num terraço nebuloso. Mais uma vez temos Glauber utilizando o
espaço como metáfora de poder político e econômico. Não há nenhuma razão lógica de um
102

encontro com Fuentes num ambiente como aquele senão pra demonstrar que quem estar no
topo tem o poder de decidir direcionamentos importantes para o país. A neblina ajuda a
caracterizar o clima de conspiração sendo travado lá em cima pelos poderosos. Afinal, estão
tramando uma batalha política cercada de interesses de poder. Fuentes pensa em prosperar
mais ainda como grande capitalista, Paulo e Álvaro pensam em conquistar apoio e elevar o
capital político e o projeto populista de Vieira. Glauber Rocha realiza tomadas que
apresentam, além de habituais planos de diálogos, um plano aéreo do terraço alimentando
ainda mais a percepção de que os que ali habitam são poderosos.

Figuras 27 e 28: os planos que remetem enquadramentos conotando poder e o nevoeiro como aura de
conspiração.

A parte mais importante no diálogo acontece no momento seguinte das imagens


acima, os três personagens estão no escritório de Fuentes quando o mesmo, por telefone, é
informado de um revés seu cometido por parceiros da Explint e Díaz. As más notícias se
referem a cortes em contratos de publicidade entre Fuentes e o governo de Eldorado, esta é a
situação perfeita para Álvaro e Paulo conseguirem reverter o apoio de Fuentes para Vieira e
fazê-lo atacar Díaz:
[...]
Álvaro [olhando pra câmera]: o império Fuentes, a maior organização econômica de
Eldorado. O império Fuentes pretende defender nossas riquezas e da exploração da
Explint. Mas o império Fuentes se esqueceu de uma coisa: fazer política pra se
defender da concorrência da Explint.
Paulo: e o que foi que você fez até hoje em matéria de política?
Fuentes: apoiei Fernandez! [Fernandez é o então presidente de Eldorado.]
Paulo: E quem mantem Fernandez na presidência?
Fuentes: A constituição.
Paulo A Explint!
Álvaro: A Explint!
Paulo: Escuta uma coisa, Julio, você não lê seu próprio jornal? Anunciei os perigos,
mas os ricos nunca pensam que um dia podem acordar pobres.
Fuentes [olhando pra câmera, semblante preocupado]: Fiz tantos favores a
Fernandez.
Paulo: ele prefere os mais fortes, os filhos da cidade luz, os homens civilizados. E
foram eles realmente que o colocaram na presidência. Para que ele proteja a
exploração das nossas riquezas que você pensa em defender. Todos são muitos
simpáticos desde que ninguém os ameace. Julio Fuentes cresceu, cresceu tanto, que
103

agora a Explint não o suporta. E, por isso, se a Explint apertar um botão, Julio
Fuentes morre.
Fuentes: não, não, eu não posso morrer! Eu sou mais rico que toda Eldorado
junto. Sou o dono das minas de ouro, de prata, de urânio. Dono das plantações
de fruta, das jazidas de petróleo. Das metalúrgicas, das televisões. Eu não
posso, eu não posso morrer!
[...] [grifo nosso.]

Logo após o diálogo, numa das costumeiras orgias da burguesia de Eldorado, Fuentes
autoriza Paulo a fazer o que bem entender com os aparatos comunicacionais a seu dispor.
Paulo então atacará a Díaz, pois assim, pra Fuentes, atacará também a Explint.
No diálogo acima citado ocorre pela primeira vez no filme um recurso narrativo
chamado quebra da quarta parede, que consiste quando o personagem se dirige ao público
para cometer alguma ação. Tal prática vem do teatro quando o ator se dirige diretamente à
plateia e, no cinema, desafiar a câmera, por exemplo, a encarando, é a quebra da quarta parede
na medida que há mais ênfase na relação com o receptor da obra. Este recurso é usado neste
filme pra dar destaque na fala do personagem, é um diálogo longo e então, para chamar
atenção do espectador, Glauber utiliza este recurso. Neste diálogo também fica evidenciado a
amplitude alegórica de Julio Fuentes, numa visão inicial, o espectador o tinha apenas como
um empresário do setor da imprensa, possivelmente dono do jornal onde Paulo trabalhava,
mas a partir daqui é revelada sua representatividade alegórica de toda atividade burguesa
nacional. Em suma, Fuentes condensa a burguesia nacional.
Atentando ao conteúdo do diálogo, fica explícito que se trata do convencimento de
Fuentes a passar pro lado de Vieira, caso contrário, de acordo com os discursos de Paulo e
Álvaro, o grande empresário correria um sério risco de perder seu império para Díaz e a
Explint, que o esmagaria em âmbitos produtivos, políticos e econômicos. Deste conteúdo
narrativo que surge uma questão; por que Glauber insere o capital multinacional aliado a
forças políticas como parceiros na articulação de um golpe de Estado? Qual é o papel da
burguesia nacional neste jogo? A resposta é também a principal intepretação do golpe de 64
que Glauber propõe através de Terra em Transe, que ele (o golpe) foi o produto de uma
associação civil cujo mentores são parcelas poderosas da sociedade.
Para entender a base real desta interpretação desaguada no filme e destrinchá-la é
preciso que recorrer a uma bibliografia importante sobre o processo histórico que leva ao
golpe em 64 no Brasil. René Dreifuss escreve seu famoso livro, produto de sua tese de
doutorado em Glasgow, que se chama 1964 a conquista do Estado; ação política, poder e
golpe de classe. A obra é resultado de uma intensa pesquisa com um amplo acervo
documental que o autor se debruça para descortinar as articulações civis empresariais que
104

tiveram, como principal efeito e objetivo, o golpe de Estado. O título não é ingênuo e já
mostra desde já a posição de Dreifuss referente a seu objeto de estudo. Para o autor, aliás esta
é a sua principal tese, o golpe foi de classe onde a chamada elite orgânica, ou grande parte do
capital nacional associado com o multinacional promoveu diversas ações que atingiram
classes civis, militares e políticas com a intenção de desestabilizar a política populista
reformista ao mesmo tempo que disseminava a propaganda anticomunista e produzia ou
reforçava uma hegemonia favorável às suas percepções de mundo proveniente das elites. Em
outras palavras, um grande projeto político e ideológico burguês alcançava o sistema nervoso
central da sociedade brasileira com objetivos políticos e econômicos bem explícitos.
O primeiro passo para entender estas articulações é perceber a participação e o
impacto que o capital multinacional tinha no Brasil daquele período. Desde o governo Dutra
os interesses multinacionais ganharam espaço no Brasil através de sua política econômica e,
como era de se esperar, se posicionaram contra a política nacional estatista de Vargas.
Dreifuss apresenta uma série de tabelas que mostram a supremacia do capital estrangeiro no
país nos empreendimentos mais ricos. 147 Dentre eles, os empreendimentos norte-americanos
eram maioria entre os países estrangeiros com empresas aqui e agiam com maior poder em
setores industriais.148 No Brasil, de acordo com o autor, 45% do capital transnacional é norte-
americano e também revela como os setores industriais são ocupados pelas empresas
estrangeiras, desde os setores automobilísticos, passando por vestuários, farmacêuticos,
vidros, pneus, papel e celulose.149 Em suma, com toda esta força que o capital internacional
exerce na economia brasileira, o autor conclui que o capital nacional de pretensões ambiciosas
só consegue existir em associação com o internacional. É neste ponto que, no filme, Fuentes,
como representante do espectro mais forte da burguesia nacional, tenta uma parceria com o
lado internacional do capitalismo em Eldorado. Uma inicial frustração nestes planos, como
vemos no diálogo, é o ponto de partida para Paulo e Álvaro o fazerem mudar de opinião e
apoiar Vieira.
Este contexto econômico somado ao contexto político populista brasileiro criaram as
condições históricas que propiciaram uma ação da classe dominante integrante destes
circuitos de capitais a promoverem sua campanha ideológica e criadora de consensos que, na
visão de Dreifuss, foram cruciais para a ruptura democrática em 64. Ainda voltaremos a estas
articulações com mais força à medida que a fonte demandar, no entanto, com a inserção da

147
DREIFUSS, René. 1964: a conquista do estado: ação política, poder e golpe de classe. Petropolis, Vozes,
1983. p. 50, 52, 53, 54, 55, 56.
148
Ibidem p. 53.
149
Ibidem p. 58
105

Explint no filme, foi preciso entender de onde ela vem, o que representa e porque ela pertence
ao enredo da obra. Uma vez que percebemos a magnitude do interesses econômicos
estrangeiros, compreendemos o porquê da Explint estar presente e o peso histórico intrínseco
a ela.
Seguindo o curso do diálogo entre Fuentes, Paulo e Álvaro, fica evidente que os
representantes de Vieira têm como objetivo colocar Fuentes contra Díaz e a Explint para que
Vieira consiga ao menos entrar no jogo político de Eldorado. Dessa forma, Glauber constrói
um duelo de burguesias, a nacional contra a internacional. Porém, a historiografia não
reconhece uma polarização tão acentuada desta forma. Dreifuss, inclusive, afirma que os
grupos de ação pró direita encabeçados pela elite orgânica que articularam o golpe
reconheciam a heterogeneidade da classe dominante na medida que era preciso uma espécie
de unificação em torno de um objetivo comum que era lutar contra o comunismo e o bloco
populista da política brasileira 150. Portanto é de se esperar que a classe burguesa brasileira não
fosse homogênea ou totalmente entreguista, mas esta abordagem polarizada nacional versus
internacional parece ser mais um recurso dramático utilizado por Glauber para dar mais força
a trama política e enfatizar o combate ideológico no filme.
Isto é verdadeiro considerando que com o apoio de Fuentes, Paulo terá mais recursos
para expor e desmascarar Díaz acirrando ainda mais as tensões entre os blocos narrativos da
obra. Neste sentido, a tensão político-empresarial criada na obra injeta combustível pra traçar
o perfil da direita que capitaneia o golpe em Eldorado e, não há motivos para pensar
diferente, foi inspirada na própria direita brasileira que coordenou o golpe civil-militar;
Lembremos que Terra em Transe, apesar de suas alegorias e narrativa serem claramente
inspiradas no Brasil como elemento disparador de discursos sobre nossa história, não pode ser
considerado ou entendido como uma reprodução ipsis litteris do Brasil pré golpe de 64. A
própria dimensão alegórica, artística e cinematográfica elimina esta visão. O filme como
recurso para problematizar a história e emitir uma mensagem sobre seu tempo é efeito de
visões de quem o realiza e tais visões jamais são totalmente independente dos processos as
quais dizem respeito, sobretudo pelo fato de elas estarem inseridas e, em suma, compuserem
uma obra artística.
Com o apoio da burguesia para poder partir pra ofensiva contra Díaz e a Explint, Paulo
produz uma reportagem na TV Eldorado, que é de propriedade de Fuentes de título Biografia
de um Aventureiro. A reportagem, explícita na própria imagem através de um letreiro, é de

150
Ibidem p. 165, 166
106

Paulo e soa como uma espécie de mini documentário sobre a trajetória política de ascensão de
Díaz. Aqui começa a próxima sequência que analisaremos.
A reportagem começa com Diaz em primeiro plano desfilando num carro aberto,
altivo, com uma das mãos entoa uma bandeira negra e com a outra, próxima ao peito, segura
uma cruz com Jesus crucificado. A trilha sonora é orquestrada e glorificante até que começa a
narração da reportagem feita por Paulo, neste momento a voz de Paulo é off, está fora do
campo da imagem, mas aqui não se encaixa na modalidade de cristal do tempo pelo fato de
não evocar memória e tampouco pertencer ao Paulo que agoniza no deserto puramente ótico e
sonoro da imagem-tempo. Isto faz com que Glauber Rocha se aproprie de diferentes formas
de um mesmo recurso da linguagem do cinema, a voz off de Paulo só ganha sentido analisada
em cada contexto narrativo e não numa interpretação que a defina previamente para toda a
obra.

Figura 29: primeira imagem do documentário feito por Paulo para atacar Díaz.

Após alguns segundos, Díaz está sorridente andando num jardim quando começa
finalmente a narração de Paulo: “E atenção senhoras e senhores! Vejam como se fez um
político, vejam como um homem sem nunca ter contato com o povo, pôde se fazer grande e
honrado nesta terra de Eldorado!”. Em seguida se sucedem alguns planos de Díaz enquanto a
música ganha força, ele continua caminhando pelo jardim, porém sem os artefatos descritos
no plano no carro, agora ele tem nas mãos uma arma. A arma tem um trato diferenciado no
primeiro plano em que ela surge, Glauber começa o plano focalizando-a nas mãos de Díaz até
que, em movimento panorâmico, o personagem é revelado até que fiquem unidos rosto de
Díaz e a arma. Com este foco na arma, Glauber a faz dela uma simbologia dupla; a óbvia que
é a violência com que Díaz está umbilicalmente ligado por seu viés de ruptura democrática e a
segunda simbologia é com relação a Explint já que logo em seguida o espectador saberá que a
empresa comanda a indústria bélica deste universo alegórico glauberiano criado em Terra em
107

Transe. O fato da arma está presente na cena e tendo este significado denota, mais uma vez,
ainda que seja num detalhe, o atrelamento entre capital internacional com políticos de direita,
e esta parceria é o que forja um processo golpista.

Figuras 30 e 31: o movimento de câmera enfatizando Díaz e a arma.

Em seguida Díaz está sorridente sentado em um banco quando uma voz off de um
narrador da reportagem (dessa vez não é Paulo) começa a descrever rapidamente os principais
pontos de sua trajetória na política:
Eis as principais manchetes da vida de Porfírio Díaz:
1920; aparece como líder extremista promovendo greves estudantis. Eleito
deputado.
1933; trai o movimento estudantil e apoia a ditadura de Villa Flores. Nomeado
Secretário de Finanças.
1937; trai Villa Flores e apoia a ditadura de Pancho Morales. Nomeado Secretário de
Cultura.
1938; trai Pancho Morales e apoia a ditadura de El Redentor. Nomeado Secretário
do Exterior.
1939; sugere ao Governo comprar material bélico em mãos da Explint. Lucra um
milhão de dólares.
1941 – 1946; Eldorado vai à guerra, perde treze mil homens. A Explint financia
sua eleição para o senado.
1948 -1957; o senado depõe El Redentor. Díaz lidera a eleição de Fernandez. Força
Fernandez a fazer concessões à Explint. [grifos nosso.]

Quando o narrador fala sobre o que aconteceu entre 1941 e 1946 na vida de Diaz,
muda-se o plano onde ele novamente está em pé num jardim, dessa vez com o semblante mais
sério até que no final, quando o narrador afirma que ele deu à Explint forte poder no governo
de Fernandez, Díaz ri sorrateiramente, como se tivesse orgulhoso de suas empreitadas
políticas.
Em um novo plano, Díaz se encontra na sacada de seu palácio ainda sorridente
quando, em tom resolutório, a narração em off volta pra Paulo afirmando o seguinte:
Eis, senhoras e senhores, o principais traços deste homem, deste homem que hoje,
sem nunca ter visto o povo, articula a queda de Fernandez e usa, para isso, de todas
as armas que o possam levar ao poder. E, para isso, ele lutará usando de todas as
facções e ideias políticas, afirmando, hoje, as mentiras de ontem, negando, amanhã,
as verdades de hoje. Eis quem é a imagem da virtude da democracia. Eis quem é o
pai da pátria!
108

É deste jeito que a reportagem termina. O sorriso do personagem novamente aparece


como uma força enfática nos sentidos que as palavras narradas causam. Díaz se mantem
sorridente durante toda a narração, entretanto, ao fim, nas últimas duas frases da citação
acima, ele sorri ainda mais gerando uma gargalhada vigorosa que, no mínimo, se torna um
deboche. Como as duas últimas frases são as sintetizadoras da real figura de Díaz. “Eis quem
é a imagem da virtude da democracia. Eis quem é o pai da pátria!”. Glauber imprime com o
sorriso a ênfase nesta personalidade.

Figuras 32 e 33: o riso debochado de Díaz que interage com a voz off de Paulo.

A sequência termina com outro plano de Diaz na mesma sacada, porém com o
semblante abatido e claramente chateado, a música que até então era apoteótica cede espaço
ao ruído causado por tiro de armas. Este plano demonstra a reação de Díaz ao ver o conteúdo
do seu ex aliado, este momento é um prelúdio do embate físico e simbólico que Díaz terá com
Paulo na próxima sequência.
A esse ponto do filme Glauber já descortina em grande parte a personalidade e as
práticas políticas de Díaz. É, efetivamente, a primeira inserção mais robusta do personagem,
até então ele pouco tinha aparecido na obra e, quando apareceu, foi com esta riqueza de
detalhes mostradas acima. As questões que emergem destas situações narrativas são em que
ponto e de que maneira podemos ver neste personagem como sendo influência de políticos
reais no Brasil na conjuntura do golpe e como ele condensa alguns elementos do discurso
moral também propositor do golpe.
Primeiro há de se levar em consideração que não há nenhuma referência a militares na
política no filme. As abordagens deles são em diligência no início da obra quando atiram em
Paulo após ele furar um bloqueio policial, mas fora isto e uma conversa que Vieira tem com
um coronel, não há mais referências a forças militares ou suas ações políticas. Não é muito
claro o real objetivo desta escolha de Glauber, mas podemos conjecturar de modo que ele
assim fez o filme por várias questões, entre elas, o poder da censura. A presença de militares
109

diretamente ligadas a Díaz poderia explicitar muito o conteúdo subversivo do filme causando
entraves em sua liberação e, assim, um espaço diegético alegórico permite a ele sempre
atribuir os acontecimentos do enredo a esta criação. Mesmo assim, como veremos logo mais,
o filme foi censurado pelo Estado.
Entretanto, se não pelos militares, existem outras figuras que são a base criativa para
que Díaz exista, a principal e a que vamos analisar aqui é a de Carlos Lacerda. Se tínhamos
Vargas e o populismo com um projeto político-social, pode-se afirmar sem nenhum receio
que Lacerda era a resposta lógica antagônica a Vargas e seus herdeiros, como Goulart. Em
livro publicado recentemente, Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira escrevem sobre o
governo de João Goulart e o processo que levou ao golpe em 64 numa abordagem acessível
ao público não especializado. Em decorrência deste estilo editorial, há uma série de boxes ao
longo de toda obra contendo informações sobre algumas figuras marcantes neste processo
histórico. Ao escrever sobre as direitas, há um box dedicado a Carlos Lacerda contendo
informações sobre sua vida e participação política sobretudo no período estudado pelos
autores.
Os autores afirmam que Carlos Frederico Werneck de Lacerda (seu nome completo)
foi inspirado em Karl Marx e Friedrich Engels, seu pai, Maurício de Lacerda foi um socialista
ligado a luta dos trabalhadores durante a primeira república. 151 Em sua juventude, Lacerda
integrava a esquerda brasileira, fez parte do PCB e da ANL (Aliança Nacional Libertadora).
Foi expulso do partido tornando-se um ferrenho opositor do getulismo. Os autores alegam que
após a redemocratização de 1945, Lacerda ocupou lugar de maior representação da extrema
direita que fora habitat natural de Plínio Salgado. 152 Desse modo Lacerda foi cada vez mais
ganhando proeminência no espectro político brasileiro. Sempre se posicionou contra Getúlio
e, segundo Ferreira e Gomes, tinha posições antidemocráticas que sempre coadunavam com
conspirações de golpes. O estilo de Lacerda sempre foi agressivo, insultante e que se
assegurava em calúnias para atacar os oponentes, foi um dos líderes civis do golpe de 64 e
acabou sendo cassado tempos depois pelo próprio movimento que apoiara. 153
As semelhanças entre Lacerda e Díaz são muitas e explícitas. Díaz, assim como sua
face real da política brasileira, também fez parte da esquerda em sua juventude. No início do
filme, em um diálogo com Paulo onde o poeta decide abandoná-lo para em seguida conhecer
Sara e apoiar Vieira, Díaz fala com Paulo, “somos radicais e extremistas quando jovem...” no

151
FERREIRA, Jorge, GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2014. p. 66
152
Idem.
153
Idem.
110

intuito de fazer com que seu então aliado mude de ideia, a palavra extremista, como já
pudemos ver no ato anterior, carrega em si, no filme, um sentido de adjetivação de sujeitos
com ideias de esquerda que se aproximam ou mesmo são de perspectivas revolucionárias.
Outro indício que nos leva a perceber que Díaz, em algum momento da vida, já pertenceu as
forças que condena é o fato de ele conhecer Paulo. O poeta, desde o início, mesmo com
algumas ambiguidades, apresenta propostas que coadunam com o universo das esquerdas,
inclusive aderindo a uma luta armada em prol da revolução no fim da narrativa do filme.
Porém, isto são indícios de que Díaz era, tal como Lacerda, um membro da esquerda em
tempos passados, a evidência que garante esta interpretação está na Biografia de um
Aventureiro. Voltemos a citação aqui feita no momento em que um narrador expõe sua
trajetória política, logo no início o narrador diz que ele surgiu como líder extremista
promovendo greves estudantis e com esta projeção conseguiu se eleger deputado.
Outro aspecto de ligação direta entre Díaz e Lacerda é a própria prática política dos
dois, um em seu espaço artístico-narrativo da direita em Eldorado, o outro na direita da
política brasileira, de apoio a golpes contra blocos populistas, tanto o nacionalista de Getúlio
quanto o reformista de Goulart. Vieira, como sabemos, condensa os dois. A posição de
Lacerda/Díaz é contra a prática e a favor de um golpe que, a qualquer custo, derrube seus
oponentes políticos. Um toque a mais de semelhança entre os dois é a eloquência em seus
discursos em que se mantém altivos e agressivos contra seus adversários.
Isto tanto é verdade que Marcos Napolitano em seu estudo sobre a História do Regime
Militar brasileiro ao falar das oposições que Jango sofria cita uma entrevista de Lacerda ao
jornal norte-americano Los Angeles times onde o mesmo “acusava Jango de ser um caudilho
golpista, cujo governo estava infiltrado por ‘comunistas’, e que estava preste a ser deposto por
um golpe militar”.154 Napolitano ainda diz que, na entrevista, Lacerda sugere que os EUA
fizessem uma intervenção na política brasileira afim de ajudar a derrotar os comunistas que
estavam a iminência de tomar o Brasil e, assim, com a intervenção norte-americana
combatente disto, a democracia brasileira seria estabilizada. 155 Com estas análises,
conseguimos identificar qual foi a figura capital na política brasileira para que Glauber Rocha
criasse Díaz e traçasse um perfil da direita, o que faz com que Terra em Transe seja um filme
que, apesar de manter algumas relações com a América Latina, ele, de fato, constrói um
discurso que se refere a política no Brasil pré 1964.

154
NAPOLITANO, Marcos. 1964 História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo. Contexto. 2014
155
idem
111

A figura de Díaz materializa alegoricamente a direita no Brasil, tal como a de Vieira


liga-se ao populismo. Se Lacerda foi uma referência forte pra Glauber compor sua alegoria,
ele também não foi a única peça pra se fazer isto. O que quero dizer é que Glauber Rocha vai
mais a fundo no processo histórico que conduziu ao golpe para, digamos, rechear sua alegoria.
Além de Lacerda, a Explint, que é representada por Diaz, é a parcela do capital multinacional
engajado no golpe que Dreifuss tanto analisa em sua obra já citada aqui. No entanto, ainda
que Díaz se junte a Lacerda e a Explint, existe um regime de signos atrelados a ele que
evidenciam simbologias que evocam outras dimensões da direita no Brasil daquele período.
Me refiro ao plano citado anteriormente de Díaz num carro de capota aberta segurando uma
Cruz e uma bandeira negra.

Figura 34: Díaz portando signos que representam, no contexto do golpe de 1964, o conservadorismo da classe
média brasileira.

Esta organização de signos atrelados a Díaz tem explicitamente o objetivo de inserir a


representação de setores da sociedade civil à sua alegoria, principalmente com relação a
Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Quando o clima político tornou-se mais
acirrado, pouco tempo antes de 1º de abril de 1964, houveram manifestações de massa tanto a
favor quanto contra Jango. No ato anterior falamos do comício de Jango pouco tempo antes
de ser deposto que este comício teve sua resposta a Marcha da Família com Deus pela
Liberdade poucos dias depois. Os membros da Marcha identificaram seus objetivos políticos
os aglutinando a uma pauta moral e religiosa, Reis Filho afirma ser a Marcha uma mistura de
valores privados com um programa político.156 Segundo este autor, com estas movimentações,

156
REIS FILHO. Op. Cit. P.340
112

as forças conservadoras ganharam energia, entre outros aspectos, na defesa da ordem, de


valores tradicionais, da família, da religião.157
Napolitano diz que a Marcha, que foi organizada pela União Cívica Feminina e contou
com a adesão de mais de 100 entidades civis propagando um discurso exaltado contra a
esquerda e, evidentemente, contra o comunismo que, para aquelas pessoas, contemplava
crucialmente Jango.158 Em resumo, as forças contrárias a jango e contra as esquerdas sempre
tiveram como essência discursiva um conteúdo religioso proposto pelos setores mais
conservadores da Igreja Católica e seus adeptos.
Um box na obra de Gomes e Ferreira é dedicado a Marcha que cita frases nas faixas
usadas na manifestação e que, no dia seguinte, o Jornal do Brasil publicou. Entre outras
frases, estão “deputados patriotas, o povo está com vocês”, “Getúlio prendeu os comunistas,
Jango premia traidores comunistas, “O Kremlin não compensa”, “abaixo o entreguismo
vermelho”, “verde e amarelo, sem foice e sem martelo, abaixo os pelegos comunistas”. Estas
frases, além de explicitarem o conteúdo linguístico da Marcha, fortalece e evidencia mais
ainda o anticomunismo como irmão gêmeo da rejeição a Jango por parte da classe média
brasileira. Assim, a direita tinha todas as armas e uma base social incontestável para dar seu
golpe que, de fato, fora dado apenas alguns dias depois.
Os regimes simbólicos em Díaz se referem a estes direcionamentos que parte da
sociedade e da política brasileira tomavam naquele momento; o conservadorismo ou mesmo o
reacionarismo em um alinhamento conveniente com instituições sociais e religiosas. A cruz
em sua mão tem exatamente a função de torná-lo também um dos representantes desta prática
político-social. A bandeira negra brandida orgulhosamente é mais uma ironia de Glauber
Rocha sinalizando que a direita trazia consigo os tempos sombrios vindos com a ditadura e o
sistemático e gradual (pelo menos até fins dos anos 1970) cerceamento e anulação da
democracia e da liberdade de pensamento.
Porém, como aponta Robert Darnton analisando sua própria obra, os símbolos, num
dado contexto, podem ser múltiplos e interpretado de diferentes maneiras por diferentes
pessoas.159 Neste sentido, a relação entre significante e significado nem sempre precisa ser
estática e é desta forma que devemos encarar o sentido que a religião imprime na política em
Terra em Transe. Digo isso porque Vieira, o bloco político antagônico de Díaz, conta também
com elementos que ligam sua prática política a religião. A fé e a religião, tanto no filme como

157
Ibidem p. 341
158
NAPOLITANO, op cit. P. 53
159
DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette. Mídia cultura e revolução. São Paulo, Companhia das
Letras. 2010. P. 339
113

em nossas realidades, são apropriadas das mais diversas maneiras para os mais diferentes
objetivos. Se estas duas dimensões do mundo social e espiritual foram importantes para
deflagração de um golpe de Estado, elas também foram cruciais na resistência dele na medida
que os setores progressistas da Igreja Católica criaram a Teologia da Libertação que, no
Brasil, agiu em oposição à ditadura. Não que a Teologia da Libertação tenha sido braço do
janguismo ou do populismo e nem quero dizer que Glauber faz alguma menção a ela pois
seria impossível visto que em 1967 ela sequer existia, mas, quando surgiu no Brasil, estava
em posição contrária do conservadorismo de direita que implantou a ditadura. Esta
complexidade simbólica reforça a sofisticação com que Glauber Rocha construiu seus
personagens em Terra em Transe.
A última sequência a ser analisada nesta seção acontece logo após a Biografia de um
Aventureiro e já mostra um confronto entre Díaz e Paulo. É importante informar que Paulo
faz a reportagem criticando Díaz um tanto a contragosto, não queria atacar alguém que,
embora estivesse posicionado política e ideologicamente contra, fora seu amigo no passado. O
encontro/confronto entre os dois ocorre no ambiente palaciano onde vive Díaz e o diálogo
entre os dois começa com o ultraconservador, visivelmente abatido, inconsolável afirmando
que os dois eram amigos e que Paulo jamais poderia ter partido pra um embate como fizera na
elaboração daquela reportagem. Em dado momento, acontece a seguinte situação:
Díaz: quem, senão eu, para salvar Eldorado? Você age em nome de quem? De quê?
Que ideais absurdos são esses os seus que gera tanto ódio contra mim? O que é que
você quer? Dinheiro? Eu lhe dou todo dinheiro que você quiser. Poder? Venha
comigo e terá todo poder. Ah, se eu quisesse... [empunhando uma arma] Ah, se eu
quisesse agora. A política é uma arma para os eleitos. Para os deuses!
Os extremistas criaram a mística do povo, mas o povo não vale nada. O povo é
cego e vingativo! Se derem olhos ao povo, o que fará o povo? [apontando a
arma para a cabeça de Paulo] Onde está sua consciência?
Paulo: [berrando o mais alto que pode] Nem que você me desse todo outro do
mundo! [grifo nosso.]

As falas cessam por um momento para que a trilha sonora, assim como na terceira
sequência sobre o populismo, ganhe visibilidade. A trilha aqui também é sobreposta
misturando ruídos de tiros de armas de fogo, rajada de metralhadoras com uma música
orquestrada exaltada. Se os tiros revelam a violência e a música a veia elitista de Díaz, neste
momento a violência é mais forte. Paulo fica desviando dos apontes que Díaz faz com a arma
em sua direção criando uma performance cênica um tanto teatral. Os dois estão no palco
revelando-se um ao outro.
114

Figura 35 e 36: o confronto entre Díaz e Paulo.

O diálogo volta:
Díaz: estamos podres pelo crime que cometemos...
Paulo: que você cometeu.
Díaz: Lavei minhas mãos no sangue, mas no entanto fui humano.
Paulo: o sangue dos estudantes, dos camponeses, dos operários!
Díaz: o sangue dos vermes! Lavamos nossa alma. Purificamos o mundo!
Paulo: as nossas riquezas, as nossas carnes, as vidas, tudo. Vocês venderam tudo! As
nossas esperanças, o nosso coração, o nosso amor, tudo! Vocês venderam tudo!
Díaz: a última chance; diga sim!
Paulo: uma epidemia, Díaz, uma epidemia! Eu destruo!
Díaz: com suas frágeis mãos?

Os dois começam a se estapear e então, de verbal o conflito se torna físico, a trilha


sonora continua sendo uma mistura de ópera com barulhos de tiros e dessa vez foram mixadas
de maneira equânime em seus volumes. A luta entre os dois marca a ruptura total de Paulo
com Díaz. O desejo de um ver a morte do outro, o que devemos ficar atentos é que o último
plano da sequência é o final da briga entre os dois acontecendo numa escada. Partindo para as
relações simbólicas, a escada é algo que pode levar alguém a um lugar superior ou inferior de
onde estava. Entendendo-a como metáfora que materializa o caminho para chegada ao poder
ou sua queda, os dois ficam ao meio, Paulo é o vencedor do conflito físico e sai do quadro,
mas Díaz continua vivo, se levanta e, do meio da escada, afirma que Paulo ficará sozinho.
Afirmação que se cumpriu, basta lembrarmos como termina o filme.
A situação ter ocorrido no meio da escada mostra que os dois ainda não tinham
alcançado seus objetivos, estavam no caminho pra isso, apenas um poderia alcançar e Díaz,
como sabemos, foi o vencedor final de toda essa batalha apresentada por símbolos e metáforas
que ajudam a construir conflitos ideológicos e políticos reais em personagens que alegorizam
setores da sociedade brasileira. Antes do golpe, nem Jango e nem Lacerda, nem o populismo
reformista e nem a direita conservadora e haviam conseguido concretizar seus planos, eles
estavam no meio da escada, só havia um prognóstico; um cairia e o outro ascenderia.
115

Figura 37 e 38: o duelo na escada que representa a ascensão ao poder ou a queda ao fracasso.

É preciso reconhecer a qualidade de atuação de Jardel Filho e Paulo Autran, durante


toda sequencia os dois demonstram sua competência enquanto intérpretes. Díaz, que sempre
estivera altivo, sorridente e imponente, apareceu pela primeira vez abatido. Paulo que, ora
feliz, ora desiludido ou descrente em algo, sofreu uma injeção de fúria dada por Jardel Filho.
Além da interpretação, existe um elemento compositor da linguagem cinematográfica que
gera um sentido muito interessante para a intepretação da figura de Díaz a partir
principalmente desta sequência, me refiro à profundidade de campo na imagem
cinematográfica usada por Glauber Rocha neste momento como geradora de sentidos.
Se quadro e enquadramento, como já vimos, são formas de apreensão da imagem, o
que está nela pode ser caracterizado como campo. Em outras palavras, é o que estar presente e
visível no quadro. É do campo que temos uma percepção tridimensional da imagem, pois ele
pode ser caracterizado em profundidade, largura e altura. Desta forma, existe grande
variedade em modalidades de campo que o cineasta pode usar para criar nexos. A perspectiva
é uma técnica bastante usada na imagem para imprimir profundidade ao campo que, por sua
vez, podem gerar os mais diversos efeitos psicológicos no espectador. Aqui Glauber Rocha
usa este artifício por dois motivos; a solidão e a imponência que o espaço imputa a Díaz. A
perspectiva alongada dá uma sensação de vazio no espaço palaciano onde mora o Senador,
não só nesta sequência, mas sempre que este lugar aparece na narrativa ele se apresenta vazio.
O ambiente também é sofisticado e luxuoso, ele só pode abrigar a elite. Assim, com a
profundidade campo, Glauber faz da residência de Díaz uma metáfora dele mesmo.
Outro ponto interessante é que estas significações coadunam perfeitamente com
Cidadão Kane de Orson Welles, feito em 1943. O filme é praticamente todo filmado com
lentes grande objetiva-angular que tem um campo focal amplo e alonga a perspectiva da
imagem. A obra conta a trajetória do personagem fictício Charles Foster Kane, que se tornou
um magnata das comunicações nos Estados Unidos detendo consideráveis poderes financeiros
116

e políticos. Assim como Díaz, Kane também tem uma mansão vazia e luxuosa que também se
configuram como uma metáforas de seus donos
A aproximação entre os dois filmes é flagrante na medida em que o próprio Glauber
afirma isto em uma entrevista para o crítico Lino Miccichè quando o mesmo pergunta a
Glauber se houve influência do filme de Welles pra fazer Terra em Transe. Glauber afirma
que foi uma referência pretendida e programada e que tomou o filme como ponto de
referência ainda que haja questões de intenções gerais diferentes da parte dos autores com
suas respectivas obras160. Não só a questão da profundidade de campo, mas a própria narrativa
em flashback carrega uma semelhança entre os dois filmes, pelo menos em aspectos formais.
No limite, esta última sequência que analisamos serve para ratificar de maneiras
estéticas e narrativas variadas todos os aspectos que vimos até aqui; a aversão ao povo que
Díaz finalmente deixa transparecer explicitamente, o antipopulismo independentemente de
suas variáveis e consegue atrelar o perfil da direita a estas perspectivas através de tensões
políticas entre as próprias classes dominantes e o perfil antidemocrático, golpista, tirânico e
violento da direita brasileira materializada em Díaz.

O golpe articulado e aprimorado.

A última sequência trabalhada na seção anterior aconteceu logo antes da sequência do


Encontro do líder com o povo que analisamos no fim do segundo ato, a que iremos abordar
agora é subsequente imediata desta última do populismo de modo que teremos cada vez mais
uma espécie de arredondamento de Terra em Transe mesmo que isto seja feito, assim como o
roteiro do filme, de maneira não linear. Agora, depois das três sequências anteriores, nos
concentraremos em apenas uma, mas que levanta uma discussão histórica muito forte e ampla,
pois se trata de aparar as arestas remanescentes para que a direita possa então se tornar
potente o suficiente para implantar seus objetivos através de um golpe de Estado.
A sequência acontece sob a perspectiva de Álvaro que acompanha Fuentes num
encontro com Díaz e Sylvia. Díaz repreende Fuentes por ter se aliado a Paulo e a Vieira
deixando-os usarem sua máquina de imprensa para ir contra ele. Em um certo momento, o
diálogo se apresenta assim:
Fuentes: Paulo me garantiu que a concorrência deles era fatal [se referindo a
Explint]
Díaz: Paulo, mas Paulo tem alguma coerência política?
Fuentes: Afinal, Vieira é um democrata!

160
ROCHA, op cit. P 240
117

Díaz: democrata? Ele pertenceu ao partido extremista na juventude!


Fuentes: você também!
Díaz: mas eu encontrei Deus!
Fuentes: eu sei, eu sei, mas as cartas estão ai. Estamos em campos opostos!
Díaz: opostos? Bravo! Bravo! Mas não lhe fica bem essa linguagem de orgulho por
que você não tem o mínimo do orgulho e da coragem de Paulo. Silêncio, Julio,
silêncio.

Este diálogo do ponto de vista da linguagem tem uma diferença dos demais já citados
neste textos; ele acontece em voz off dos dois personagens (Fuentes e Díaz). Isto ocorre
porque, como alertei acima, a sequência é posta sob a perspectiva de Álvaro e, quando temos
o som do diálogo, a imagem acompanha Álvaro num travelling progressivo encarando-o de
costas na redação do jornal afim de encontrar Paulo. Ou seja, o diálogo se refere a outro
tempo narrativo que a imagem apresenta. No fim do diálogo citado, ainda com Álvaro a
caminhar na redação, a voz off de Paulo no deserto entra: “Álvaro depois veio a mim contar a
traição. Álvaro veio tão morto como eu. Álvaro trazia o nojo de tudo no sangue”
Aqui temos a confirmação de que realmente houve uma traição e Fuentes decidiu
apoiar o projeto golpista de Díaz. O que ocorre nesse momento descrito, na verdade, é um
flashforward161 quando Álvaro está andando na redação ao encontro de Paulo. O diálogo off
citado acima é algo que aconteceu no passado daquele momento apresentado na imagem. O
áudio remete a um tempo narrativo e a imagem a outro que é posterior ao áudio. Quando
Álvaro encontra Paulo na redação, o flashforward termina e voltamos para a reunião entre
Díaz e Fuentes. Agora, sem voz off, o diálogo prossegue:
Díaz: sabe qual o resultado do pacto de Paulo, Vieira, extremistas? Uma vez Vieira
no poder, eles engolirão você! Eles não respeitam pactos
Fuentes: eu sou um homem de esquerda.
Díaz: de quê? [risos e olhando pra câmera] olha, imbecil, escute. A luta de classes
existe. Qual é a sua classes? Vamos, diga!
Fuentes: se desenvolvermos a indústria, se dermos empregos, talvez...
Díaz: como feras famintas eles desejarão sempre mais. Até o seu próprio sangue.
Eles querem o poder. O povo no poder, isso nunca! Entende? Nunca! Pela liberdade
morreremos. Por Deus, pelo poder! Como posso chegar ao poder sem a ajuda de
Paulo, de Julio, dos melhores homens? Paulo já me traiu há muito tempo. Julio
resiste em me apoiar.
Fuentes: como? Como vou explicar aos meus sócios?
Díaz: você não tem que explicar nada. Vamos dar um golpe. Virar a mesa.
Fazer história.
Fuentes: mas eles têm as garantias.
Díaz: as garantias tenho eu.
Fuentes: quais?
Díaz: se houver eleições, Vieira ganha. Se não houver, ganho eu derrubando
Fernandez
Fuentes: somente com suas ideias?
Díaz: com a simpatia da Explint e usando a sua máquina de propaganda. A Explint
paga. Matéria paga. [grifo nosso]

161
O flashfoward se caracteriza como oposto do flashback, ou seja, ao invés do passado, apresenta-se uma
imagem do futuro do tempo presente da narrativa.
118

A seguir volta o mesmo plano enquadrando Álvaro de costas caminhando na redação e


a voz off de Paulo soando mais uma vez falando da traição. Agora sim o espectador está
plenamente ciente da traição de Díaz e que o próximo passo é a ruptura democrática via golpe
com o apoio de Fuentes. Glauber utiliza a montagem de uma forma interessante aqui, ela, por
si, é uma forma de enfatizar o viés golpista de Díaz e a traição de Fuentes. A primeira vez que
Álvaro caminha na redação e Paulo em off menciona a traição, o espectador só pode fazer
uma dedução simples de que o plano de Paulo e Vieira junto a Fuentes foi pro brejo. A
repetição dela depois já dá ao espectador as chaves completas de interpretação da situação
narrativa daquele momento do filme. Mais uma vez, Glauber usa os elementos que compõem
a linguagem cinematográfica de maneira inteligente ao se recusar a usar a mesma de maneira
genérica para enfatizar algo pro espectador. A repetição do plano é eficaz na questão da
ênfase e, consequentemente por ser algo que quebra um sentido mais tradicional de narrativa
fílmica, chama mais ainda a atenção de quem assiste a obra.
A sequência se encerra com um diálogo melancólico e escatológico entre Álvaro e
Paulo. A depressão de Álvaro é tamanha que o leva ao suicídio no último plano deste
momento. Contudo, há algumas provocações que Glauber constrói através do diálogo entre
Díaz e Fuentes. A crítica à burguesia nacional não se dá apenas pelo óbvio conteúdo da
conversa, mas também em outras dimensões, a primeira é o modo irônico e zombeteiro que
Díaz se refere a Fuentes no momento da quebra da quarta parede quando o empresário alega
ser de esquerda. Díaz, então, serve de clarividência pra ele: “Existe luta de classes, qual é a
sua classe? Vamos, diga!”, Fuentes assim percebe que se colocar contra Díaz é ir de encontro
à própria função histórica de sua classe. Este momento também Díaz olha para a câmera numa
clara provocação ao espectador o incitando não necessariamente a se posicionar similarmente
à direita, mas o alertando que existe um conflito de classes e que é necessário escolher a sua,
adotar um posicionamento diante da luta de classes. Curiosamente Díaz convida para a
politização, nem mesmo ele se interessa pela despolitização das massas, o seu interesse assim
como o da direita brasileira, claro está, é em politizar as massas de acordo com seus projetos,
o que nestas circunstâncias pode ser lido como cooptação.
A outra crítica a burguesia nacional é que Glauber simplesmente a descredencia como
força pensante na política, vejamos que Fuentes foi influenciado por Paulo e depois por Díaz
de modo que os dois usaram o mesmo tipo de argumentação para convencê-lo a comprar suas
respectivas ideias; o do medo. Paulo convence Fuentes a ir contra Díaz incutindo nele o medo
da concorrência que a Explint exerceria em seus domínios caso o projeto de Díaz se tornasse
119

real. Díaz faz a mesma coisa, só inverte as peças, a estratégia é amedrontar Fuentes afirmando
que gente como Paulo e Vieira não respeitam pactos que o engolirá se assumirem o poder,
resta apenas ele se aliar com a Explint para que possam se salvar do governo onde o povo
estará no poder. Fuentes se rende a retórica de Díaz e o apoia num projeto golpista e
conservador contando com a ajuda do capital internacional. Assim a burguesia nacional em
Terra em Transe é tratada como um fantoche das forças políticas, ela jamais é sujeito ativo
em algo, mas sim instrumentalizada pelas lideranças políticas para que as mesmas tenham
recursos pra implantarem suas políticas.
O que o diálogo nos mostra, entre outras coisas, é a real intenção de Díaz, agora
exposta verbalmente sem nenhuma firula discursiva que encubra seus aspecto golpista, e o
golpe então está totalmente articulado em Eldorado. Díaz reúne todas as condições para pôr
em êxito seus planos, condições estas de alinhamento político e ideológico entre a burguesia
nacional e internacional cobertos por uma retórica de moralidade mística anti povo. Nos cabe
então a pergunta em como estas abordagens narrativas são inspiradas e consistem numa
ressiginificação do processo histórico de 1964 no Brasil, em que pé o filme consegue
construir um discurso sobre seu tempo e inserir-se na sociedade que pertence.
Para isso precisamos agora retomar a obra de Dreifuss com mais força, na seção
anterior ela fora importante para a compreensão de que havia fortemente a presença do capital
multinacional interessado em mudanças nos rumos políticos brasileiros, agora resta juntar o
capital internacional com o nacional numa ampla organização política, civil e militar que
culminou no golpe de 1964. Para Dreifuss, o golpe de classe é de classe dominante econômica
e politicamente construído em ações sistematizadas nas mais variadas dimensões da sociedade
brasileira. Neste sentido, a dramaticidade narrativa que Glauber incialmente constrói em seu
filme pondo burguesia nacional versus internacional é diluída, agora estão todos no mesmo
barco e as alegorias estão sincronizadas. Não é razoável pensar que houvera na nossa História
uma sincronia tão harmoniosa entre as classes dominantes num projeto de ruptura
democrática, porém, se entendermos estas organizações como produtoras de hegemonia, é
possível afirmar que as burguesias estavam unidas (com a devida proporção desta afirmação)
num objetivo comum. No filme, se tratando de alegorias, Fuentes se aproximar
definitivamente a Díaz e a Explint é a forma de Glauber Rocha afirmar isto.
A principal percepção que Glauber traz sobre o golpe usando Terra em Transe é que
ele foi arquitetado com participação civil, inclusive por não ter militares no filme, então os
agentes a coordenaram toda a operação golpista são forças implacáveis da política e da
economia. No Brasil, afirma Dreifuss, o interesses multinacionais e associados se tornam
120

força socioeconômica dominante com a política de JK criando uma espécie de intelligentsia


empresarial. 162 Estas novas forças, por razões evidentes, divergem na essência com a prática
populista cuja Jango é seu principal representante no início dos 60.
Era preciso então, sob o ponto de vista desta elite, uma resistência a esta dimensão
política com fortes raízes históricas e sociais desde o Estado Novo. Desse modo, de acordo
com o autor, ao assumir protagonismo nos principais setores da economia, o bloco
multinacional organizou grupos de pressão envolvendo escritórios técnicos, quadros
burocrático e empresariais para que tivessem poder viável a nível de governo. 163 Esta
proeminência do bloco multinacional em níveis políticos e econômicos foi o contexto de
surgimento de vários organismos de classe para que, de fato, se formasse uma energia
poderosa contra o populismo vindo de meios civis e classistas.
Uma ou talvez a principal consequência desta trama anteriormente definida foi o
surgimento com complexos IPES/IBAD. Tanto o Instituto de Pesquisa e Estudos sociais como
o Instituto Brasileiro de Ação Democrática tinham a intenção fundamental de atuar contra o
governo janguista e as suas bases sociais. Dreifuss nos diz como isto foi pensado com atuação
do complexo:
A História do complexo IPES/IBAD relata o modo pelo qual a elite orgânica da
burguesia multinacional evoluiu de um limitado grupo de pressão para uma
organização de classe capaz de uma ação política sofisticada, bem como o modo
pela qual ela envolveu da fase de projetar uma reforma para o estágio de articular
um golpe de Estado.164

Então, para Dreifuss, a ofensiva da elite contra o populismo não se caracterizaria


apenas como uma forma de pressioná-lo em direção aos seus interesses, mas sim como uma
real e elaborada ação que visava romper com a democracia no Brasil. Esta percepção é alvo
de controvérsia na historiografia, Carlos Fico, ao estudar sobre a participação do Estado
Norte-americano no golpe, estabelece um contraponto a Dreifuss declarando que que a
campanha a favor do golpe veio em meados de 63 quando a política nacional ficara mais
acirrada e polarizada, antes disso havia sim uma campanha de desestabilização do governo
janguista que não se caracterizaria como uma premeditação de golpe. Para Fico, admitir esta
tese significa atribuir aos envolvidos no que ele chama de processo de desestabilização um
objetivo inicial que não pode ser comprovado por evidências empíricas para tal e que a tese
que ele refuta ganhou força em âmbito acadêmico por conta de predomínio marxista na

162
DREIFUSS, op cit. P.71
163
Ibidem p 104
164
Ibidem p. 161-162
121

academia que visava estabelecer causas estruturais socioeconômicas para os o processo de


64.165
Extrapola o alcance deste texto estabelecer uma perspectiva acabada sobre esta
polêmica. Entretanto, para o que Fico afirma não haver base empírica comprovatória, Dreifuss
apropria-se de uma ampla documentação e estabelece tal base a partir de suas visões de
mundo. De todo jeito, visões e compreensões de mundo de autores e como elas aparecem em
suas obras é uma longa conversa que, como já dito, não faz parte de nosso objetivo. O que nos
interessa é que, para Glauber Rocha, a tese que Dreifuss levanta anos depois de Terra em
Transe é a mais razoável para explicar o golpe. Díaz, a Explint e Fuentes não atacam Vieira
apenas para enfraquece-lo numa possível disputa democrática. A intenção é, e as palavras de
Díaz são bem explícitas, de dar um golpe para não deixar Vieira vencer e, por conseguinte,
tornarem reais seus projetos de poder.
Contudo, independente da polêmica interpretativa do papel civil burguês no golpe ou
na desestabilização do populismo, o trabalho que Dreifuss faz em compreender e mostrar a
atuação do complexo IPES/IBAD é louvável. Aqui nos é interessante perceber este complexo
como uma poderosa forma de atuação vinda de grupos dominantes em prol de um discurso
que vai desaguar num golpe. As maneiras de atuação do complexo eram muito variadas, iam
de simpósios, passando pela atuação em todas as formas de imprensa até em propagandas e
produções audiovisuais cinematográficas que, se sintetizarmos, trarão sempre a ideia de uma
economia liberal, ataque ao janguismo e ao comunismo. 166
Os filmes produzidos pelo IPES para atingir o grande público contava com a
colaboração de diversos meios de exibição, haviam arranjos feitos com empresas de
distribuição inclusive que pertenciam ao próprio Instituto que fazia circular o filme em sala de
cinema nos quatro cantos do país. Haviam também exibições na TV e em ambientes
corporativos sobretudo industriais como os SESIS fazendo com que a produção
cinematográfica ipesciana não tivesse grandes problemas de alcançar um grande número de
pessoas.167 Jean Mazon, segundo Dreifuss, o maior produtor de documentários comerciais no
Brasil, fez alguns filmes para o IPES, o autor aponta vários filmes que foram realizados por
Mazon.168 Um produtor importante a serviço do IPES evidencia que o Instituto preocupava-se
com o cinema e o considerava importante canal de difusão ideológico.

165
FICO, Carlos. O Grande Irmão: da operação brother sam aos anos de chumbo, o governo dos Estados
Unidos e a Ditadura Militar brasileira. Rio de Janeiro. Civilização brasileira. 2008. P.75-76.
166
DREIFUSS, op cit. P. 232
167
Ibidem p. 250
168
Ibidem p.251
122

Neste sentido, o IPES tinha uma produção cinematográfica, muitas vezes de curta
metragem, numerosa, que atingia o público não só pelos cinemas mas também por outros
meios de difusão importantes e que investia em autores de peso para dar mais corpo às obras.
O contraste é evidente com o Cinema Novo, que como vimos no primeiro ato, tinha precárias
condições de distribuição e exibição principalmente em seus primeiros anos. O que fica
evidente é que o conflito cinematográfico cinemanovista não se concentra apenas, em âmbito
nacional, com as produções da Vera Cruz ou Atlântica, mas podem rivalizar-se também com
estes do IPES. O cinema da classe dominante, ou digestivo, como diria Glauber Rocha, tem
muito apoio enquanto o cinema do combate, social e esteticamente renovador, como o
Cinema Novo, é envolvido num sistema capenga de exibição e distribuição o tornando um
cinema que quase sempre é popular em seus conteúdos temáticos, mas quanto a ser popular
em apreciação ficou apenas como um objetivo a ser alcançado.
A atuação do Instituto na imprensa também foi muito forte, atingindo mídia impressa,
de TV e de rádio, o IPES conseguia utilizar o máxima de potência doutrinária. Dreifuss
aponta que eles conseguiram realizar um sincronizado assalto à opinião pública por meio de
relacionamento com a imprensa como o Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, O Globo e TV
Globo, TV Record, etc169. De uma forma ou de outra, praticamente toda a imprensa de amplo
alcance no Brasil serviu de meio de emissão de discurso feito pelo Instituto.
A nossa intenção não é simplesmente encaixotar toda a campanha de opinião pública
que coadunava com a direita em complexos tecno-empresariais mentalizados e financiados
por capital multinacional e o nacional em larga escala como se tal campanha, em seu sentido
mais amplo possível, estivesse hierarquicamente subordinada a apenas este projeto de poder
da elite dominante. Porém, é inegável o nível de sofisticação e sistematização que estas
associações chegaram para atingir principalmente a classe média. Aliás, como disse Ianni
numa obra já citada neste texto e publicada no mesmo ano do filme, a classe média sempre se
mostrou dócil a soluções autoritárias. 170 E, em Terra em Transe, é esta complexidade
institucional que envolve forças dos mais diversos setores da classe dominante que coordena
um golpe de Estado solapa uma perspectiva mais popular e reformista de governo. O filme
concentra toda esta dimensão utilizando o recurso das alegorias, Díaz, Fuentes e a Explint
sintonizados num mesmo objetivo golpista é a resposta ou versão glauberiana de dizer em
1967 ‘sofremos um golpe de Estado e este golpe quem deu foi a elite pra fazer valer um
projeto de exploração capitalista ainda mais vigoroso’, como se eles fossem sua forma de

169
Ibidem p. 233
170
IANNI, op cit. P. 115
123

representar o complexo IPES/IBAD e os seus objetivos para a sociedade brasileira. A este


ponto, seja na História do Brasil ou na de Eldorado, um golpe está articulado, suas pontas
soltas foram aparadas, agora só falta, nos dois espaços, pôr em prática seus últimos desfechos.

O conflito final.

Finalmente chegamos nos últimos momentos de análise fílmica deste trabalho que
abordará justamente as duas últimas sequências de Terra em Transe. Elas acontecem
imediatamente depois do suicídio de Álvaro ao saber que Díaz conseguiu converter Fuentes à
sua causa. A primeira sequência se constitui num conflito político, simbólico, ideológico e
estético entre Díaz e Vieira. A segunda se trata do retorno ao início do filme e desfecho da
narrativa com Díaz sendo coroado vencedor da batalha política que se depara o espectador.
Há o retorno da imagem-tempo puramente ótica e sonora e, terminada a memória de Paulo e o
flashback, a destruição do cristal do tempo. Além destas construções, é possível captar,
principalmente na primeira sequência desta etapa, duas diferentes concepções de povo.
Depois do suicídio de Álvaro começa a sequência do conflito final entre Díaz e Vieira,
ela é curta e se dá numa marcha dos dois personagens caminhando em direções opostas e
discursando. A montagem fragmenta os discursos de cada um proporcionando ainda mais a
percepção de confronto entre os dois. Díaz, sozinho, de posse da cruz e de uma bandeira negra
e Vieira, caminhando ao lado do povo, entram em ação:
Díaz: a democracia é o exercício da vontade do povo. Nós fomos eleitos pelo povo,
logo, somos delegados da sua vontade!
Vieira: é um tempo de decisões. Os reacionários comerão a poeira da História!
Díaz: executemos, pois, o nosso dever histórico, pressionando o presidente no
sentido de exterminar Vieira e seus agentes ramificados por todos os cantos de
Eldorado.
Vieira: defenderei as nossas riquezas contra o invasor estrangeiro!
Díaz: Meu desígnio é Deus! A minha bandeira é o trabalho! O meu destino é a
felicidade! O meu princípio é a pureza de caráter!
Vieira: de braços firmes, de mãos limpas, a consciência tranquila, construiremos
uma grande nação!
Díaz: a Pátria é intocável! A família é a sagrada! A minha esperança é um sol que
brilha mais.
Vieira: apenas uma força moverá a História e esta força ninguém poderá deter!
Díaz: este sol iluminará nossos passos. Em cada noite há uma aurora. As manhãs
não tardam!
Vieira: esta força, esta força é o povo! É o povo, é o povo! É o povo!
Díaz: As manhãs radiosas, vivas, eternas, perenes, imutáveis, infinitas!

A sequência termina com a inserção de uma música que evoca vitória e um plano de Díaz,
sorridente, desfilando em um carro aberto, aquela mesma imagem usada em sequências
anteriores, só que agora com outro sentido.
124

A dimensão do conflito em suas várias facetas mencionadas acima se apresentam na


cena de várias formas. A que mais privilegia a linguagem cinematográfica como propositora
de significados e discursos, neste momento, é a montagem, se ela não fosse fragmentada
entrecortando as falas dos personagens, certamente a sensação de combate entre os dois
núcleos de atuação política da obra não seria tão potente. Neste momento há uma influência
da montagem russa eisensteiniana em Terra em Transe.
Aumont traz uma leitura dessa modalidade de montagem baseando-se no ponto de
vista do cineasta russo Serguei Eisenstein que a enxerga como uma junção de fragmentos que
não precisa necessariamente se acomodar apenas num viés narrativo. Neste sentido teríamos
uma montagem que proporciona um conflito na imagem articulando o filme como
representação ao discurso social de modo que o conflito pode ser ampliado para além do filme
como forma de significação social171. Esta abordagem exige que a montagem ultrapasse sua
função de dar lógica a uma narrativa, mas que ela, em si, possa ser instrumento discursivo
para o audiovisual. O próprio cineasta deixa esta percepção evidente quando faz afirma que
A meu ver, a montagem não é uma ideia composta de fragmentos colocados em
sequência, mas uma ideia que nasce do choque entre dois fragmentos independentes.
(...) Como exemplos de conflitos, poderíamos mencionar:
1. Conflito gráfico
2. O conflito das superfícies.
3. O conflito dos volumes.
4. O conflito espacial
5. O conflito das iluminações.
6. O conflito dos ritmos
7. O conflito entre o material e o enquadramento (deformação espacial pelo
ponto de vista da câmera)
8. O conflito entre o material e sua espacialidade (deformação ótica pela
objetiva)
9. O conflito entre o processo e sua temporalidade (camêra lenta, filmagem
acelerada)
10. Um conjunto entre o complexo ótico e um domínio bem diferente.172

Na sequência analisada é possível pelo menos admitir o conflito de superfícies e de volumes.


O ambiente espacial onde os personagens estão é semelhante, um lugar aberto e natural,
porém a dimensão de superfícies revelam algumas perspectivas como a questão do alto e do
baixo denotando poder. No momento que Díaz afirma “A Pátria é intocável! A família é
sagrada! A minha esperança é um sol que brilha mais!” o enquadramento muda e o plano é
feito de maneira que encare Díaz de cima pra baixo e o mesmo está no alto de uma montanha

171
Ibidem, p. 84
172
EINSENSTEIN, Serguei. Au-delá des étoiles. Apud AUMONT, Jacques e outros autores. A Estética do
Filme. Campinas. Papirus. 1995.
125

ao passo que, em seguida, quando Vieira diz “Esta força, esta força é o povo!” o personagem
de Lewgoy vai ao chão enquanto o enquadramento o encara de cima pra baixo.

Figura 39 e 40: os tipos de enquadramento, contra-plongee para Díaz e Plongee para Vieira, demonstrando o
sentido de vitória e derrota na imagem.

Esta assimetria de posicionamento e enquadramento ocorrendo de maneira entrelaçada


na montagem é a ênfase que Glauber quis dar que ali seria o ápice do conflito entre os dois
blocos políticos. Enquanto um ascende e está no alto, como um ser que domina o ambiente, o
outro cai sendo sucumbindo a um misticismo que ele mesmo criara, o misticismo do povo. É
a antecipação do resultado final da obra. O conflito de volume também é evidente não só em
alguns momentos, como os de superfície, mas ao longo da sequência inteira pela ocupação
dos planos. De um lado, Díaz vai sozinho, mas não solitário, conta com o combustível
simbólico da Cruz e da bandeira negra que já nos referimos anteriormente enquanto Vieira
carrega fisicamente de fato o povo a seu lado.

Figura 41 e 42: o não-povo e o povo em Terra em Transe.

As representações estéticas, políticas, ideológicas e simbólicas apresentadas nestas


sequência trazem também uma problematização do que é o povo. Há aqui dois regimes
vigentes; um é o não povo, a sua completa ausência quando Díaz é o foco da narrativa, não só
neste momento, mas em toda obra o povo em carne e osso não aparece ainda que o político se
refira a ele de alguma forma. No caso de Vieira, evidentemente há o povo em carne e osso,
126

porém bestializado, festivo, poucas são as inserções de consciência política, o povo aqui é
uma massa de seguidores que festeja um líder supostamente salvador.
No filme, estes momentos de elevado acirramento político e ideológico que causam na
imagem, como vimos, várias camadas de conflitos, antecede um golpe que será consumado na
sequência seguinte. Tratando a obra como uma alegoria do Brasil pré 64 vemos que a situação
não era tão diferente. Todos os autores citados neste texto que abordam o golpe civil-militar,
sem exceção, apesar de suas divergências em vários aspectos, afirmam que o Brasil pouco
antes do golpe passava por um momento de ebulição política e acirramento de
posicionamentos, isto já foi posto aqui em vários momentos através das manifestações contra
ou a favor do governo Jango. Assim, há uma sintonia de acontecimentos no filme que
coadunam com a situação histórica brasileira naqueles últimos dias que antecederam o golpe.
O conflito final entre Vieira e Díaz antes do golpe em Eldorado é, em alguma medida,
o conflito ou a polarização entre apoiadores de Jango e os críticos dele que não desejavam que
o país se tornasse comunista. Partindo disto, a interpretação que Glauber Rocha faz de povo é
bem interessante; ele simplesmente não reconhece o povo que apoiou o que veio a ser um
golpe como tal e isto explica o fato de Díaz sempre estar sozinho. Para Glauber, bastam os
símbolos ou as alegorias para que este povo seja representado, bastou a burguesia nacional e
internacional nas figuras de Fuentes e Explint e os setores mais conservadores da Igreja
Católica personificados na Cruz que Díaz empunha para dar conta deste povo que se
posicionara historicamente a favor de forças conservadoras e golpistas no Brasil. No bloco de
Vieira o povo, ainda que subordinado a uma lógica paternalista e populista, está lá e não
precisa de arquétipos em seu lugar.
O peso histórico de uma abordagem desta é alto, Terra em Transe é sim um ataque de
amplo alcance no espectro político e social brasileiro, atinge conservadores, reformistas,
religiosos, ricos e pobres, mas atinge mais fortemente ainda a direita a tratando com arquiteta
de um golpe de Estado. Mas não só a políticos, a metralhadora crítica de Glauber atinge parte
considerável da sociedade civil, principalmente a classe média, que embarcou nesta
empreitada rumo à direita. Esta base social que apoiou o golpe, na versão glauberiana de
1964, não precisa estar lá, ela é tão subordinada ao capital e as instituições tradicionais da
política e da religião de modo que ela não existe enquanto sujeito, é apenas instrumentalizada
para fazer com que vinguem os objetivos de toda esta trama de poder que as cerca. Desta
forma, essa ausência cria um forte sentido interpretativo na obra e na forma como Glauber
enxerga a classe média brasileira daquele período.
127

O golpe consumado

O leitor deve se lembrar do primeiro parágrafo do primeiro ato deste texto, estávamos
no início do filme em um momento efusivo envolvendo os personagens que ainda não
conhecíamos e um deles propõe uma revolução armada enquanto o outro opta por não seguir
este caminho. Na cronologia narrativa este momento, apesar de aparecer logo no início do
filme, é o desfecho da obra inteira e acontece logo após o que chamei aqui de conflito final
entre Díaz e Vieira. Como a sequência que analisamos anteriormente mostrou explicitamente
que Díaz saíra vencedor da sua última batalha, o que teremos agora será o seu coroamento
como chefe político de Eldorado ao mesmo tempo que o caos e a resignação se apoderam de
Vieira e a angústia de Paulo, angústia esta que o levará a sua morte bivalente, física quando é
baleado numa rodovia e simbólica quando agoniza no deserto. Daí que surgirão as memórias
que comporão o enredo do filme. A sequência que vamos trabalhar agora é a que se localiza
no fim do filme e sua estrutura é a mesma da que se localiza no início, a diferença é que esta
que vem no final é mais ampliada, existem alguns detalhes a mais e, por ser mais completa, é
mais coerente que nos dediquemos a ela agora.
O ciclo da memória de Paulo está terminando, no início a sequência repete com maior
velocidade os diálogos que são expostos no princípio do filme de modo a fazer uma espécie
de resumo. É o que já sabemos; Paulo propõe resistência armada, Vieira não topa e decide não
oferecer resistência ao golpe de Díaz. Desolado, Paulo vai embora de carro com Sara até furar
um bloqueio policial e ser baleado. É a partir deste momento que nos concentraremos em
analisar a forma com que Glauber constrói um golpe de Estado utilizando de forma potente a
linguagem do cinema.
Nesta nova representação da sequência, diferentemente do que acontece no início do
filme, a montagem reage ao barulho dos tiros que ferem Paulo intercalando o plano que
mostra Paulo e Sara no carro com momentos de Díaz sendo literalmente coroado em seu
palácio. Quando é atingido pelo primeiro tiro, a voz off de Paulo entra em cena:
Não é mais possível esta festa de medalhas, este feliz aparato de glórias. Esta
esperança dourada nos planaltos. Não é mais possível esta festa de bandeiras com
guerra e Cristo na mesma posição! Assim não é possível a importância da fé, a
ingenuidade da fé. Não é mais possível...
128

Figuras 43 e 44: à medida que Paulo recebe o primeiro tiro, a montagem revela imagens de Díaz sendo
coroado.

Neste momento surge Fuentes em primeiro plano sorrindo ao lado de Díaz, a


burguesia fora vitoriosa com a efetivação do golpe, parece, inclusive, mais feliz que o próprio
líder golpista. A presença de Fuentes nesta cerimônia pitoresca não deixa nenhuma dúvida da
crítica passada por Glauber no que se refere a participação das elites civis na aplicação do
golpe. A voz off do poeta continua:
Somos infinita, eternamente filho das trevas, da inquisição e da conversão! E somos
infinita e eternamente filhos do medo, da sangria do corpo do nosso irmão. E não
assumimos nossa violência, não assumimos as nossas ideias, como o ódio dos
bárbaros adormecido que somos. Não assumimos o nosso passado, todo raquítico
passado, de preguiças e de preces. Uma paisagem, um som sobre almas indolentes.
Essas indolentes raças de servidão a Deus e aos senhores. Uma passiva fraqueza
típica dos indolentes. Ah, não é possível acreditar que tudo isso seja verdade! Até
quando suportaremos? Até quando além da fé e da esperança suportaremos? Até
quando, além da paciência e do amor, suportaremos? Até quando além da
inconsciência e do medo suportaremos? Além da nossa infância e da nossa
adolescência, suportaremos...

A voz off de Paulo nunca esteve mais aflita e mais perturbada que nestes instantes, é o
momento mais forte do cristal do tempo, pois o fim está cada vez mais assustador com a
morte se aproximando. Paulo, em sua veia mais poética de toda obra, acaba delirando e o
resultado disso é a inserção de alguns planos dele ao longo desta citação feita acima armado
no palácio onde acontece a cerimônia de Díaz. São os últimos suspiros revolucionário que
antecede a morte, Paulo está sendo destruído, mas avança se arrastando a duras penas
portando uma metralhadora para então matar Díaz. De fato, ele alcança seu inimigo, ouvimos
barulhos de tiro misturados a música de Villa-Lobos, a montagem começa alternar muito
rapidamente imagens da cerimônia quando Paulo tira a coroa de Díaz e a deixa cair. Nos seus
últimos momentos de vida física na estrada onde foi baleado, Sara pergunta “o que prova a
sua morte?”, Paulo responde “o triunfo da justiça e da beleza!”
129

Figuras 45, 46, 47 e 48: momentos antes do cristal do tempo ser quebrado; o desejo de Paulo de destronar
Díaz.

A montagem nesta sequência, assim como na anterior, se inspira em parâmetros


eisensteinianos, entretanto agora, além do inerente conflito proposto pela narrativa a esta
altura do filme, há também um conflito rítmico na montagem. Em alguns momentos o plano
dura menos de 1 segundo, em outros dura bem mais que isso, o desejo revolucionário de
Paulo de destronar Díaz cuja é tão curto quanto a própria montagem cênica deste desejo. Em
contrapartida, o êxito do golpe é feito em planos mais longos e com menos movimentos na
imagem. Este conflito proporcionado pela montagem metaforiza, em dimensões de duração, o
sonho revolucionário versus tirania de um golpe. Esta assimetria rítmica é um artifício que,
juntamente com os outros elementos da sequência, ajuda a causar tensão e o clima
escatológico do final de Terra em Transe.
Estamos perto do fim, faltam apenas três planos para terminar o filme. O plano
subsequente depois do que vimos anteriormente é o de Díaz sendo definitivamente coroado.
Em primeiro plano o tirano diz “aprenderão! Aprenderão! Dominarei esta terra! Botarei estas
histéricas tradições em ordem! Pela força, pelo amor da força! Pela harmonia universal dos
infernos chegaremos a uma civilização!”. De um primeiro plano a imagem vai pra um
primeiríssimo plano em zoom in ao passo que a expressão de Díaz se acentua praticamente
numa representação patológica. É a doença do poder que se manifesta em máxima potência
em quem acaba de ser coroado como chefe supremo de um lugar.
130

Figura 49: Díaz literalmente sendo coroado. Figura 50: zoom in em Díaz personalizando seu poder.

O penúltimo plano do filme acontece com Paulo e Sara na estrada, a indagação sobre o
valor da morte de Paulo volta, a resposta de seu interlocutor é a mesma; “o triunfo da beleza e
da justiça!” Os dois se abraçam e logo após se separam, a câmera faz um travelling pra trás e
Paulo a acompanha de posse de uma arma, começam a ecoar barulho de tiros e Sara, um
pouco atrás, vai ao seu encontro. Em um certo momento ela o alcança e os dois ficam parados
enquanto o travelling regressivo continua, estamos nos afastando dos personagens. Paulo
ferido mortalmente vai ao chão e um instante depois Sara segue seu caminho na estrada em
direção a câmera. O revolucionário caiu, não pôde ser capaz de cumprir seu dever histórico e
se entregou à morte, a militante de esquerda continua a andar, a que, diante de um colapso de
um sistema político que envolve o povo proclama, como vimos no ato anterior, que “a culpa
não é do povo”. Sara, longe da câmera está longe de seu horizonte, mas vai continuar a
caminhar numa busca por seus objetivos que talvez nunca se conclua, afinal a câmera
continua a se mover fugindo dela.

Figura 51, 52, 53 e 54: a câmera e, logo após, Sara se afastando de Paulo; o poeta se aproxima da morte.
131

O último plano é quase todo ele fixo e longo, dura quase dois minutos a trata-se
apenas de Paulo no espaço vazio, desértico, não há mais memória e nem mesmo o que
lembrar, o cristal do tempo fora totalmente destruído, o que resta é uma outra modalidade da
imagem tempo; a imagem puramente ótica e sonora que, como diz Deleuze, não tem seu
prolongamento lógico sensório-motor, é a total indiscernibilidade entre o real e o imaginário,
é um tipo de imagem essencialmente inquietante. Nem corte há mais, há apenas Paulo,
segurando sua arma que representa a revolução sabendo que ela não poderá ser posta em
prática, pelo menos não naquele universo diegético de Eldorado, mas talvez Glauber Rocha
esteja, em 1967, apontando para este caminho em seu país. A trilha mistura Villa-Lobos com
os tiros que já acontecem há um bom tempo. O poeta já sabemos que irá morrer, é uma
questão de tempo e tudo leva a crer nisso, porém ele literalmente não morre no filme, o último
instante deste plano mostra Paulo ainda vivo, logo após surgem os crédito. É possível que,
talvez, Glauber quisesse passar a mensagem de que por mais que a carne pereça, o desejo e o
sonho revolucionário jamais morreria ainda que estivessem sendo seriamente postos a prova.

Figuras 55 e 56: a volta da imagem puramente ótica e sonora. o Poeta vai morrer, mas seu corpo e consciência
ainda vivem antes de aparecerem os créditos.

O que podemos ver, então, do golpe consumado nesta sequência final da obra? Parece
óbvio pela maneira de articular símbolos e representações que Glauber faz, mas é preciso de
um pouco de sistematização para perceber mais alguns detalhes que nos ajudam a ter esta
compreensão. Ismail Xavier também analisa esta mesma sequência com a intenção de
examinar aspectos ligados a montagem e som e faz uma importante afirmação se referindo a
composição cênica e figurinos da coroação de Díaz:
[..] a cerimônia mistura figurinos arcaicos e modernos. Díaz usa um terno do século
XX e um manto real do século XVII, segura o cetro do poder; atrás dele, uma figura
fantasiada de conquistador ibérico da era das descobertas expressa em sua lealdade
segurando a coroa acima da sua cabeça.173

173
XAVIER, Ismail. op cit. p. 65
132

O figurino de Díaz e de outros sujeitos que se fazem presente na cerimônia consiste


numa expansão das representações históricas já contidas pela própria narrativa fílmica. Não se
trata, para Glauber, de criticar robustamente um golpe de Estado de extrema direita no Brasil,
é possível atacar outros sistemas de poderes dominantes que nos atingiu, e mais, construir
uma simbiose representativa que coloca processos históricos em uma espécie de
simultaneidade de representações artísticas, isto tanto é feito neste momento da narrativa,
quanto na última sequência sobre o populismo explorada no ato anterior quando evocam
Napoleão e Lincoln para ligá-los a Vieira.
É claro que esta não é um espelhamento ipsis litteris da posse do General Castello
Branco, mas a arte, em suas potências e liberdades expressivas, permite hipérboles e, como
nesse caso, até o anacronismo. O que torna tudo fascinante é que, ainda que com hipérboles e
anacronismos, as representações são totalmente compreensivas e compatíveis com o objetivo
do autor da obra. O golpe que Díaz dá em Eldorado e, por tabela, o golpe acontecido no
Brasil, são extensões de dominações históricas sangrentas. A expansão histórica não se dá
somente no Brasil, Glauber ainda acha um jeito de emanar um discurso também sobre a
América Latina assim como fez ao evocar o lugar lendário Eldorado e ditador mexicano
Porfírio Díaz pra sua obra.
A cenografia palaciana quando se trata de Díaz também emite um forte sentido, não só
agora, mas em todos os momentos em que ela aparece. A consumação do golpe é o ápice
deste aspecto, as cenas gravadas no Teatro Municipal do Rio de Janeiro trazem um ambiente
sofisticado, pomposo e, na lógica do roteiro, elitista. Talvez, por se tratar de um teatro,
Glauber ainda faz uma espécie de homenagem teatralizando grande parte das cenas que foram
lá filmadas, acontece nesta última sequência assim como quando Paulo vai ao encontro de
Díaz após a exibição da Biografia de um Aventureiro. De todo jeito, o golpe foi consumado e
a junção da fala de Díaz, de como a sequência é construída, dos movimentos de câmera,
figurinos e cenografia nos dizem muito claramente que os tempos mais sombrios chegaram.
No filme as consequências do golpe ficam apenas nas promessas. O filme termina
exatamente quando ele é consumado e as forças que tentavam combatê-lo são insuficientes
para tal. É deduzível, numa análise panorâmica da obra, que a caça as esquerdas e o projeto
reformistas seriam obliterados com ajuda, inclusive, de repressão violenta. Em 1967 a
ditadura estava ainda em seu início, o terceiro de 21 anos, muita coisa havia acontecido, mas
os piores momentos ainda estavam por vir com os efeitos do AI-5 proclamado em dezembro
de 68. Hoje a filmografia sobre a ditadura é bem vasta, mas Terra em Transe foi um dos
primeiros filmes a tratar deste tema, mais especificamente o segundo, o primeiro, de fato, foi
133

O Desafio, feito em 1965 por Paulo Cesar Saraceni também integrante do Cinema Novo.
Entretanto, o de Glauber fora muito mais incisivo e ousado ao abordar este tema que até hoje
é polêmico, mais representativo também visto que o filme chegou a vencer Cannes em 1967.
Marcos Napolitano nos conta que a década de 60 é de efervescência cultural e artística
no Brasil, principalmente ao que se refere a arte em aspectos vanguardista. Como vimos no
primeiro ato, tínhamos, além do Cinema Novo, o CPC, o Teatro de Arena, o avanço do
nacional popular, a literatura modernista mais evidenciada, o PCB que era a maior
organização de esquerda da época mais afinado com inciativas culturais. Havia nos artistas e
nos produtores culturais de fato um forte objetivo de aproximação da classe artística de
vanguarda com as classes populares com o intuito de politiza-la, não que soasse com uma
espécie de doutrinação, mas inserir uma nova linguagem que possibilitasse uma nova
compreensão de mundo e, no limite, uma nova consciência. Na política, antes do golpe, por
mais ambíguo que fosse o projeto populista, havia uma crescente movimentação reformista
que prometia atenuar as desigualdades no Brasil. De uma certa forma, até 1963,
aparentemente estava ocorrendo uma interessante sintonia no Brasil entre arte e política
potencialmente muito frutífera.
O golpe em 1964, segundo Napolitano, foi um corte nisso tudo, ele afirma que as
ligações entre a militância artística e cultural com as classes populares foram enfraquecidas,
as perseguições começaram nas universidades.174 O próprio Cinema Novo, como admite
muitos estudiosos, teve seu máximo momento entre 1962 e 1964, após 1966 o movimento vai
perdendo aos poucos sua essência revolucionária e esta perda certamente foi gerada pelo
desencanto que veio no pacote do golpe. O próprio Terra em Transe é um filme de
desencanto político, que deságua uma carga pesada em seu espectador, o mau vence e não há,
como em Deus e o Diabo, a corrida redentora que promete o sertão virar mar. Há sim um
tirano em plena ascensão e um revolucionário quase morto, a chama da revolução ou de
qualquer mudança ainda vive, mas está quase se apagando. Glauber Rocha afirma em
entrevista que fez o filme com nojo justamente porque era nojento para ele o momento
político que seu país passava.
A ditadura, como bem aponta Ortiz, não pretendia e nem de fato praticou uma
repressão à cultura em sua totalidade, a questão nunca foi combater a cultura de maneira
ampla. Porém, se tal cultura não agradava as percepções ideológicas do Estado, era de se
combater através de uma ação controladora e autoritária por parte do Estado.175

174
NAPOLITANO, Marcos. Op cit. p. 26
175
ORTIZ, Renato. Op cit. p. 119
134

Indubitavelmente o Cinema Novo ia na contramão da hegemonia implantada pela ditadura,


nas décadas seguintes não existem movimentos de vanguarda na magnitude que houveram na
década de 1960. No cinema é interessante destacar o Cinema Marginal que tem sua expressão
vanguardista, mas sem a tonalidade revolucionária ou pretensamente revolucionária que tinha
o Cinema Novo. Terra em Transe é uma obra que reconhece a própria impotência do Cinema
Novo em transformar a realidade e não há nenhum motivo para duvidar que golpe de Estado
civil-militar de 1964 foi um dos principais contribuintes para isto.
135

EPÍLOGO.
A recepção do Transe na censura e na intelectualidade.

É importante também, para este trabalho atingir de forma mais ampla e eficiente seus
objetivos, compreender o que aconteceu fora da tela ao que tange Terra em Transe. Todos os
discursos construídos ao longo do filme são poderosos e interpretam a história do Brasil
daquele momento de uma maneira arrojada e criativa. Neste sentido, alguns detalhes da
produção do filme, de como a censura brasileira, muito ativa naquele momento, e algumas
cartas trocadas entre Glauber e amigos ajudam a construir este cenário que ultrapassa o que
está na tela e que causam reverberações válidas que demonstram a relevância do filme em
âmbito político e intelectual no Brasil da década de 60.
Existe uma versão do filme em DVD duplo realizada pelo Grupo Novo Cinema e TV e
Paloma Cinematográfica com o apoio da Petrobras, Museu Tempo Glauber e da Prefeitura do
Rio de Janeiro. Um dos discos contém o filme em edição remasterizada e o outro disco possui
um interessante conteúdo de extras com o trailer de Terra em Transe, galeria de fotos, o
curta-metragem Maranhão 66 de Glauber feito em 1966 e um documentário chamado Depois
do Transe dirigido por Joel Pizzini e Paloma Rocha (filha de Glauber). O documentário conta
com informações sobre o Terra em Transe com entrevistas com atores, produtores, atores e
demais pessoas envolvidas, de várias formas, no filme. O disco de extras contém mais de 120
minutos de conteúdo certamente importante pra quem tem curiosidade sobre qualquer aspecto
da obra.
Os extras são divididos em várias seções correspondendo a produção, roteiro, som,
montagem, atuações, etc. Ao que tange o roteiro, a versão final foi a consequência de vários
outros rascunhos que Glauber se empenhava em escrever, o projeto original tinha o nome de
América Nuestra e, segundo os depoentes, era bastante diferente do que veio a ser filmado.
Em todas as versões, há sempre o cuidado com a palavra, como encaixá-la corretamente no
texto, a obsessão e o perfeccionismo de Glauber com a forma fez com que ele chegasse a
versão final, seus amigos dizem que ele ficava dias lendo, relendo, contando palavras,
reavaliando todo o trabalho para poder chegar sempre num resultado mais satisfatório. Como
diz Walter Benjamin; "O trabalho numa prosa de boa qualidade tem três níveis: um musical, o
da sua composição, um arquitetônico, o da sua construção, e por fim um têxtil, o da sua
136

tecelagem"176. A impressão que fica é que Glauber esteve, durante o processo de escrita do
roteiro do filme, sempre preocupado com estes os três níveis da escrita.
O crítico e professor de cinema José Carlos Avellar conta que todas as versões do
roteiro que leu contém uma angústia e um nervosismo na maneira de narrar. Terra em Transe,
desde seus momentos iniciais, sempre foi tenso propiciando grandes relações de forças
inquietantes por natureza. O ator Hugo Carvana relata que teve dificuldade em se adaptar ao
estilo de Glauber dirigir os atores, pois vinha da abordagem racional do Teatro de Arena e, de
repente, estava sendo conduzido aos berros pelo cineasta. Glauber queria imprimir no elenco a
angústia, o nervosismo, a tensão e a desrazão que o filme exigia. A obra é uma espécie de
explosão em todos os níveis, desde sua concepção, passando pelos momentos de sua estrita
feitura até a pós produção e a recepção. No filme, a racionalidade nunca é plena, sempre vai,
em alguma medida, dividir espaço com o transe político e existencial.
Ao que compete a produção, a obra foi feita em algumas semanas com um orçamento
considerado alto pra época, sobretudo para as condições cinemanovistas. Lembremos que em
1967 Glauber já tinha feito dois longas e ganhou fama e visibilidade com Deus e o Diabo. O
produtor Zelito Viana declara que o financiamento do filme foi feito meio a meio através de
empréstimos, uma metade ficou por conta de um amigo de Glauber e a outra pelo Banco do
Estado do Maranhão, governado por José Sarney naquele momento. Em 1966 Glauber realiza
um curta sobre a posse de Sarney sob uma perspectiva de crítica. Assim, compreendemos que
apesar da proeminência alcançada pelo sucesso de Deus e o Diabo e a repercussão do Cinema
Novo, Glauber não tinha de fato dinheiro pra executar seu novo projeto, possivelmente a
visibilidade conquistada serviu para que ele pudesse ter melhores condições de conseguir
financiamentos.
No primeiro semestre de 1967 o filme estava pronto pra ser lançado, o último
obstáculo a ser enfrentado era a censura prévia do Estado que naquele período avaliava
sistematicamente qualquer produto cultural antes que ele estivesse disponível ao público,
filmes, músicas, peças de teatro tinham que passar pelos censores para que pudessem ser
apreciados. Carlos Fico nos informa melhor sobre os funcionamentos da censura neste
momento:
Não houve uma censura durante o regime militar, mas duas. A censura da imprensa
distinguia-se muito da censura das diversões públicas. A primeira era
“revolucionária”, ou seja, não regulamentada por normas ostensivas, Objetivava
sobretudo, os temas políticos stricto sensu. Era praticada de maneira acobertada,
através de bilhetinhos ou telefonemas que as redações dos jornais recebiam, A
segunda era antiga e legalizada, existindo desde 1945 e sendo familiar aos

176
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Infância Berlinense: 1910. São Paulo. Autêntica. 2012
137

produtores de cinema, de teatro, aos músicos e a outros artistas. Era praticada por
funcionários especialistas (censores) e por eles defendida com orgulho. Amparava-
se em longa e ainda viva tradição em defesa da moral e dos bons costumes, cara a
diversos setores da sociedade brasileira.177

A segunda espécie de censura a que o autor se refere era o chamado Serviço de


Censura de Diversões Pública (SCDP) o funcionamento deste serviço com relação a
realização da censura cinematográfica era feita por pessoas ligadas ao órgão censor que
assistiam ao filme numa sala de projeção, quando entendiam que alguma cena ou diálogo
eram impróprios eles prontamente marcavam e a excluíam, uma vez que a quantidade de
cortes fosse alta e impedisse a compreensão do filme, o mesmo era recomendado à interdição
total.
O filme, que estava repleto de crítica em largo espectro às instituições, modelos e
figuras políticas do país, acabou sendo censurado em abril de 1967. Baseado nos pareceres, o
chefe do SCDP Romero Lago, interdita completamente a obra através da seguinte declaração:

Considerando o voto da maioria absoluta dos censores federais que examinaram o


filme nacional “Terra em Transe”.
Considerando o modo irreverente que é retratada a relação da Igreja com o Estado.
Considerando conter o mesmo mensagem ideológica contrária aos padrões de
valores culturais coletivamente aceitos no país.
Considerando ser a tônica do filme a prática da violência como fórmula da solução
dos problemas sociais
Considerando a sequência de libertinagem e práticas lésbicas inseridas no filme.
Considerando que o mesmo infringe várias alíneas do Art. [ilegível] do Decreto nº
20.493, de 24 de janeiro de 1946.
RESOLVE
Proibir a exibição de todo território nacional, do filme de Glauber Rocha, “TERRA
EM TRANSE”178

Assim, um filme que posteriormente viria a ser considerado um dos mais importantes
do cinema brasileiro, estava oficialmente proibido de ser exibido no país. Glauber já
imaginava que o conteúdo de sua obra poderia gerar problemas com a censura, Zelito Viana,
em entrevista nos extras do DVD duplo, comenta que o cineasta chegou a deixar o negativo
da obra escondido na casa dele e de outros amigos pelo temor de tê-lo apreendido.
Diante da situação de interdição total da obra, houve um movimento que pressionou o
Estado a liberar o filme, cineastas, intelectuais, críticos, etc fizeram parte dele. O diplomata e
amigo de Glauber, Arnaldo Carrilho, afirma que ainda houve uma campanha feita por

177
FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. In Revista Brasileira de História.
São Paulo, v. 24, nº 47, p.29-60 – 2004
178
Todos os documentos referente a censura do filme em questão encontram-se disponíveis em
http://www.memoriacinebr.com.br
138

cineastas estrangeiros pra que o filme fosse liberado pra concorrer no Festival de Cannes. A
pressão surtiu efeito e o filme acabou sendo liberado com a condição de nomearem um padre
presente em algumas cenas, assim, a representação seria do religioso enquanto um indivíduo e
não coletiva da Igreja Católica. O filme venceu Cannes, o prêmio FIPRESCI (Federação
Internacional de Imprensa Cinematográfica) e outros fazendo com que o cinema brasileiro
alcançasse novos patamares no cenário cinematográfico mundial. Venceu também eventos
nacionais como o Festival de Cinema de Juiz de Fora e o Prêmio do Governo do Estado de
São Paulo
A recepção da censura estatal brasileira não foi das melhores para Terra em Transe, o
filme gerou polêmica mesmo antes de ser lançado, não poderia ser diferente após seu
lançamento. Um momento que sintetiza exemplarmente as múltiplas interpretações e opiniões
sobre filme foi o cine-debate ocorrido no MIS (Museu da Imagem e Som) no Rio de Janeiro.
Participaram do debate figuras importantes no cenário intelectual e cinematográfico brasileiro
como Hélio Pellegrino, Fernando Gabeira, Alberto Savá, Sergio Augusto, Mauricio Gomes
Leite, Ronald Monteiro e Luiz Carlos Barreto, Joaquim Pedro de Andrade todos diante de um
boa plateia de espectadores.
Os extras do DVD contém alguns trechos em áudio do debate, a partir deles
percebemos um viés crítico negativo do filme por parte de Fernando Gabeira, na época
militante de esquerda. Gabeira naquele momento discorda frontalmente da proposta do
protagonista Paulo Martins para a revolução que, dada aquela situação de crise política e
iminência de golpe de Estado, só se realizaria através de uma luta armada. Para Gabeira esta
conclusão é errônea, existem outras vias de combate a hegemonia burguesa. Curiosamente,
pouco tempo depois do debate e de tais afirmações, Gabeira passa a integrar o Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) que compõe a esquerda armada no Brasil contra a
ditadura.
Mauricio Gomes Leite destaca a oscilação do protagonista e como ele transita em
diversos mundos que ele mesmo ajudou a construir. O filme, na percepção de Leite, é
provocante, tira o espectador da zona de conforto ao mostrar um ambiente político e social
que, apesar de acontecer num país fictício, tem uma proximidade sintomática com o Brasil.
No limite, Terra em Transe é um filme indigesto, que transmite a inquietude da trama e de
seus personagens ao espectador, seja ele pertencente ou simpático a qualquer ideologia
política.
O cineasta Joaquim Pedro de Andrade realça a dimensão poética que permeia toda a
narrativa do filme que, de acordo com seu entendimento, é uma poesia gritada pelas massas.
139

A poesia em Terra em Transe tem como característica impulsionar a densidade da trama. Para
Hélio Pellegrino, Paulo representa muito bem os impasses políticos do país e a poesia sempre
atinge intensamente o espectador.
Fora do debate do MIS, o historiador pecebista Jacob Gorender em sua famosa obra
sobre a esquerda brasileira dos anos 60 chamada Combate nas Trevas escreve negativamente
sobre Terra em Transe:
A aversão emocional ao populismo atingiu o terreno das artes e aí deslizou para
aversão à própria massa popular, na filmografia de Glauber Rocha Terra em Transe,
de 1967, satiriza o líder populista e as massas imbecis que se deixam enganar. Nada
a esperar das massas idiotizadas, mas do intelectual que sai atirando de
metralhadora.179

Terra em Transe foi criticado e elogiado por muitos, pessoas dos mais variados
posicionamentos políticos. A direita, obviamente, não digeriu bem o filme, grande parte da
esquerda também não o viu com bons olhos, as percepções de Gabeira e Gorender aqui
demonstradas são sintomáticas disto. A verdade é que Glauber Rocha não poupou ou blindou
quaisquer grupos, sujeitos ou pensamentos políticos, o filme certamente é uma obra ousada,
não só em aspectos estéticos, praquele momento, antes disso, sobressai uma crítica
multidimensional referente a diversos grupos políticos.
Numa entrevista concedida a Frederico de Cardenas e Rene Caprilles em 1969,
Glauber fala um pouco mais do impacto negativo que o filme teve em setores importantes da
esquerda brasileira;
Fiz Terra em Transe com a aspiração de que fosse uma bomba. Lançada com toda
intenção. Atacando os preconceitos de uma esquerda acadêmica, conservadora, a
que reagiu contra o filme de uma forma neurótica e isto foi positivo. No Brasil o
filme foi lançado em meio a uma grande polêmica, foi proibido pela censura sob
acusação de ser um filme altamente subversivo e imoral, atacando-o do ponto de
vista político, moral, sexual etc. Apesar disso o filme foi convidado a Cannes e,
devido a um protesto internacional e brasileiro através da imprensa, o Ministro da
Justiça reabriu o processo e liberou o filme sem cortes. Mas quando se exibiu, a
maior parte da esquerda “oficial” atacou-o acusando-o de fascista. Foi uma polêmica
social, cultural e política enorme; hoje, Terra em Transe, há dois anos de lançado,
continua permanente e atual: a imprensa continua ocupando-se dele, discutindo-o, e
público, tanto o que foi ver o filme e não entendeu como o que viu e reagiu contra,
tomou consciência dele.180

O bloco narrativo que mais incomodou estes setores da esquerda foi o bloco ligado ao
personagem Vieira, político popular, carismático e supostamente preocupado com as
necessidades do povo. Vieira era o modelo ideal de político que o PCB pensava para o Brasil,

179
GORENDER, Jacob. Combates nas Trevas. In RAMOS, Alcides. TERRA EM TRANSE: (1967, Glauber
Rocha): estética da recepção e novas perspectivas de interpretação. In Revista de História e Estudos
Culturais. Uberlândia. Vol. III. Abril/maio/junho. 2006.
180
ROCHA, op cit, p. 171.
140

muito útil para combater a direita aliada ao imperialismo norte-americano que no filme é
representada pelo personagem Díaz. Isto se explica porque o PCB do início dos anos 60,
como é possível perceber através de Nelson Werneck Sodré181, estava momentaneamente
aliado com a burguesia nacional para eliminar os principais as aspectos contrarrevolucionários
naquele momento, o imperialismo e o latifúndio. O Partido acreditava que o crescimento da
burguesia nacional ao passo que estes outros dois aspectos caiam fortaleceria o Brasil na
perspectiva de produção e, assim, estaria a um passo da revolução socialista.
Ainda se tratando da recepção desta esquerda com relação ao filme, a coisa fica ainda
mais complicada quando existe uma simbiose entre o povo e Vieira. O povo então estaria
completamente submetido aos propósitos do político e, mesmo sabendo de sua impotência,
permaneceria incapaz de reagir para transformar a situação a seu favor. Desse modo Glauber
Rocha destrona duas dimensões importantíssimas para o projeto político do maior grupo de
esquerda do Brasil naquele período; o político populista e nacionalista e o povo.
Tomando como medida as afirmações de Glauber sobre a recepção de Terra em
Transe, nota-se que ele ficou muito satisfeito com o reboliço que o filme causou,
provavelmente já imaginava as intensas críticas vindas de todos os lados. Se o mesmo diz que
fez como se fosse uma bomba, evidentemente ela explodiu na mão de muitas pessoas, pessoas
que pensavam a política brasileira de maneira oposta, inclusive. A obra inquietou por onde
passou, seja pela incompreensão por ser hermética, pela compreensão, pela discordância ou
concordância com o seu conteúdo.
Alfredo Guevara foi diretor do Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos
(ICAIC) e amigo de Glauber durante muitos anos, em 2002 ele publica um livro chamado Um
Sueño Compartido que reúne suas cartas trocadas com Glauber durante o período em que se
comunicavam. No segundo semestre de 1967, mais precisamente em agosto, Glauber estava
percorrendo a Europa e exibindo seu filme em festivais. De Roma escreve a Alfredo sobre um
novo projeto que tem em mente chamado America Nuestra, mesmo nome do roteiro original
de Terra em Transe. Na carta, Glauber tem a pretensão de filmar no Peru, Brasil, Uruguai e
Argentina dizendo que se trata de um filme que contará
[...] um poco más que Tierra em trance, porque debo filmar em Perú, después em
Brasil, em Argentina y em Uruguay. Utilizaré actores y em otras partes
documentales. Perdóname la presentación, pelo trato de hacer uma estrutura épica al
estilo de Octubre, com mucha fuerza poética y emoción revolucionaria. Creio uma
cinta politica debe ser también um estímulo cultural y artístico. Y para nosotros,
latinomaericanos, que somos colonizados cultural y economicamente, nuestro cine

181
SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil. Belo horizonte. Oficina de
Livros. 1967.
141

debe ser revolucionário desde el punto de vista político y poético, o sea, tenemos
que presentar ideas nuevas com um linguaje nuevo.182

Glauber também escreve a Alfredo com intuito de pedir ajuda financeira ao ICAIC
para bancar seu novo projeto, o amigo responde que o instituto fará o possível mas, por razões
que desconhecemos, o projeto não vingou. Como se sabe, em 1969 Glauber realiza O Dragão
da Maldade Contra o Santo Guerreiro e depois sai do Brasil para filmar em outros lugares.
No entanto, podemos perceber que esse novo América Nuestra poderia ser uma espécie de
continuação de Terra em Transe. Falar de política na América Latina com nuances poéticos
ainda estava na mente de Glauber possivelmente empolgado com os desdobramentos de seu
último filme. Isso nos ajuda a compreender como Terra em transe o impactou, os diálogos
que vimos até aqui servem para dar uma noção de como um filme extrapola a própria
imagem, aliás, ele precisa extrapolar para que tenha algum efeito onde atua. Até na análise
estrita da imagem cinematográfica não fica na imagem por si, existe uma série de relações que
são intrínsecas a ela e conhecer o que é externo, ou seja, o contexto social e de produção da
obra e sua recepção certamente contribuem para uma percepção mais aguçada da obra e do
mundo que a cerca e, fatalmente, interfere nela.
Com tudo que foi apresentado ao longo deste trabalho, fica explícita as redes históricas
que arrodeiam Terra em Transe e como o filme estabelece um forte discurso sobre o seu
tempo tanto por seu conteúdo, quanto pelo que suscita por sua recepção. O filme é a
materialização do estado de espírito do Cinema Novo pós golpe de 1964 quando o clima
melancólico do desencanto político e de autocrítica cerca Glauber e outros cineastas do
movimento. Com isso, Glauber libera em seu terceiro longa-metragem toda energia que
reflete sua perplexidade diante do cenário político que se desenhou após o golpe desaguando
num produto audiovisual recheado de sentidos e interpretações históricas. Analisar as que se
referem à realidade política brasileira entre 1930 e 1964 nos permitiu, ao longo do texto,
identificar as maneiras que um filme é testemunha do momento histórico em que está situado
e, inclusive, como agente histórico na medida que se comunica com o espectador e, no caso
de Terra em Transe, com o evidente objetivo de inquietá-lo, fazê-lo refletir sobre os sistemas
sociais que o cercam cotidianamente e de como, partindo filme, é possível suscitar questões
sobre o populismo político no Brasil e o processo de implantação da ditadura em 1964

182
GUEVARA. Alfredo. Um Sueño Compartido. Espanha. Ibérica. 2002. P. 60-61
142

Fontes.

Audiovisual

Terra em Transe, Glauber Rocha. Tempo Glauber. Edição especial em DVD duplo. 108 min.
(DVD)

Segunto ato:

Figura 1 – 06:48 min.


Figura 2 – 08:35 min.
Sequência 1 – de 18:00 a 25:57

Figura 3 – 22:21 min.


Figura 4 – 22:33 min.
Figura 5 – 22:39 min.
Figura 6 – 23:10 min.
Figura 7 e 8 – em torno de 23:40 min.
Figura 9 - 25:53 min
Sequência 2: de 25:58 a 36:57.

Figura 10 – 26:23 min.


Figura 11 - 27:06 min.
Figura 12 – 27:15 min.
Figura 13 – 27:22 min.
Figura 14 – 25:59 min.
Figura 15– 28:19 min.
Figura 16 – 28:23 min.
Figura 17 – 30:27 min.
Sequência 3: de 74:59 a 89:02.

Figura 18 – 75:19 min.


Figura 19 – 75:52 min.
Figura 20 e 21 - em torno de 77:25 min.
Figura 22 - 78:00 min.
Figura 23 - 78: 57 min.
Figura 24 – 81:27 min.
143

Figura 25: 88:41 min.


Figura 26 – 88:54.

Terceiro Ato:

Sequência 1: de 50:46 a 62:25

Figura 27 – 56:08 min.


Figura 28 – 56:33 min
Figura 29 – 64:59 min
Sequência 2: de 64:44 a 69:08.

Figuras 30 e 31 - em torno de 65:40 min


Figuras 32 e 33 – em torno de 68:15 min.
Figura 34 – 54:45 min.
Sequência 3: de 69:09 a 74:58.

Figuras 35 e 36: em torno de 72 min.


Figura 37 – 74:00 min;
Figura 38 – 74:37 min
Sequência 4: de 89:03 a 93:16

Figura 39 – 98:34 min.


Figura 40 – 99:10 min.
Figura 41 – 98:13 min.
Figura 42 – 99:37
Sequência 5: de 97:31 a 100:04

Figuras 43 e 44 – a partir de 101:10 min


Figuras 45, 46, 47 e 48 - a partir de 102:50 min.
Figuras 49 e 50 – a partir de 103:02 min.
Sequência 6: de 100:05 a 106:36

Figuras 51, 52, 53 e 54 – a partir de 103:40 min.


Figuras 55 e 56 – plano fixo a partir de 104:22 durando até 106:36min
144

DVD Extra – Terra em Transe. Documentário Depois do Transe. Realizado por Joel Pizzini e
Paloma Rocha.

Documentais.

Documentos oriundos do SCDP relativos ao processo de censura de Terra em Transe. Todos


os documentos encontram-se disponíveis em www.memoriacinebr.com.br

Decisão de interdição da obra pelo chefe do SCDP, Romero Lago. 19 de abril de 1967

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artigos estão presentes todos na mesma edição)

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