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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

VIVIAN DE AQUINO SILVA BRANDIM

“OBRIGAÇÃO DE DONA CONSTÂNCIA”: a constituição da Umbanda em Codó no


Estado do Maranhão

Teresina (PI), Agosto de 2012


VIVIAN DE AQUINO SILVA BRANDIM

“OBRIGAÇÃO DE DONA CONSTÂNCIA”: a constituição da Umbanda em Codó no


Estado do Maranhão

Dissertação apresentada à Coordenação do Programa


de Pós-Graduação em História, do Centro de
Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal
do Piauí, como exigência para obtenção do título de
Mestre em História.
Orientadora: Profa Dra Áurea da Paz Pinheiro.

Teresina (PI), Agosto de 2012


FICHA CATALOGRÁFICA
Serviço de Processamento Técnico da Universidade Federal do Piauí
Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco

B818o Brandim, Vivian de Aquino Silva.

“Obrigação de Dona Constância [manuscrito]: a


constituição da umbanda em Codó no Estado do Maranhão /
Vivian de Aquino Silva Brandim. – 2012.

191 f.

Cópia de computador (printout).

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Piauí,


Programa de Pós-Graduação em História, 2012.

“Orientadora: Profa. Dra. Áurea da Paz Pinheiro”.

1. História - Maranhão. 2. Religiosidade. 3.


Umbanda. 4. Hibridismo Cultural. 5. Patrimônio Cultural. I.
Título.

CDD 981.21
VIVIAN DE AQUINO SILVA BRANDIM

“OBRIGAÇÃO DE DONA CONSTÂNCIA”: a constituição da Umbanda em Codó no


Estado do Maranhão

Dissertação apresentada à Coordenação do Programa


de Pós-Graduação em História, do Centro de
Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal
do Piauí como exigência para obtenção do título de
Mestre em História.
Orientadora: Profa Dra Áurea da Paz Pinheiro.

Este exemplar corresponde à redação final da dissertação avaliada pela banca examinadora
em 31 de Agosto de 2012

Banca Examinadora

Profa Dra Áurea da Paz Pinheiro.


Orientadora [UFPI]

Profa Dra Marta Rosa Borin


Examinador Externo

Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima


Examinador Interno do Programa [UFPI]

Prof. Dr. Robson Rogério Cruz


Suplente [UFPI]

Teresina (PI), Agosto de 2012.


Não perder a convicção de que você é filho de Codó, que você é filho de
umbandista, que você tenha a concepção de que é filho de Umbanda, e que
filho de Umbanda tem as suas obrigações. [Pedro Filho, neto de Dona
Constância].
A Deus, aos encantados e a Dona Constância. A meu amado Rafael Brandim
que sempre foi sinônimo de companheirismo e que esteve ao meu lado ao
longo deste caminho. Riu, chorou, deslumbrou-se, aprendeu, rezou,
mergulhou no mundo da pesquisa comigo, sem ele teria sido impossível
chegar até aqui. Aos meus pequenos filhos Caio, José e Heitor pelos abraços
calorosos em momentos de angustia, por aquecerem meu coração na hora
certa, me dando forças para continuar.
AGRADECIMENTOS

À minha Orientadora, Doutora Áurea da Paz Pinheiro, pela paciência e dedicação ao


longo dos últimos dois anos, pela orientação firme e profissional.
Aos colegas de Grupo de Pesquisa “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural/CNPq”
pela atenção, leituras, opiniões, discussões acaloradas sobre o trabalho, que muito
contribuíram para a minha constituição como historiadora.
À minha mãe querida Fátima, que mesmo não sabendo o porquê, aprendeu a perceber
quando eu necessitava de espaço para as horas de produção, por entender meus momentos de
introspecção.
À tia Dasdores pelas horas de entrevista e por compreender os inúmeros telefonemas
em meio às minhas dúvidas, pelas orações que me fortaleceram e por ter sido minha guia
neste caminho.
À minha família pelas horas de ausência e pelo mau humor que às vezes pareciam
constantes. Em especial, à minha irmã Izaneide, as primas Conceição de Maria, Lili e Lidiane,
ao primo Pedro Filho, além dos meus amados, Rogério, Alexandre e Laurent.
Aos meus amados Paulo e Noeme Brandim por encontrar em sua casa um refúgio aos
domingos, na companhia sempre maravilhosa e animada de Danda, Sérgio, Cintia,
Wandenberg e Nivaldo.
Aos queridos amigos que são como irmãos, Elimária, Rômulo, Simone, Edmar,
Polianna, Kairo, Juliana, Oton, Sileyane; pelas horas de relaxamento que vocês receitavam
como fundamentais para continuar trabalhando.
À minha amiga e irmã Samara Mendes pelas noites e madrugadas de trabalho ao meu
lado, pelo carinho e por acreditar em mim sempre, mesmo quando eu não acreditava.
Aos colegas de trabalhos Lindalva, Demétrios e Priscila, nos quais descobri amigos
verdadeiros e por todos os momentos que passamos juntos falando ou não de nossos objetos
de investigação.
Aos colegas da Turma do Mestrado de História da UFPI, especialmente Adriana,
Talyta, Márcia, Elisa Maria, Francisco Filho e Thiago pela relação de amizade e pela
cumplicidade.
Ajuda eu coroa, ajuda eu rezar.
Ajuda eu coroa, ajuda eu rezar.
Cruzeiro grande do sul que me dê força em todo lugar.
Cruzeiro grande do sul que me dê força em todo lugar.
Maior que Deus não tem. Maior que Deus não há.
Maior que Deus não tem. Maior que Deus não há.
Cruzeiro grande do sul que me dê força em todo lugar.
(Doutrina – Dona Dasdores)
RESUMO

O objeto deste estudo é um ritual religioso que teve lugar na cidade de Codó, no Maranhão até
o ano de 2008. Fora iniciado por uma senhora de nome Constância Alves de Sousa,
umbandista, como dizia “desde que me entendo por gente”. A referência conceitual é o
hibridismo cultural, característico da religiosidade brasileira e maranhense em particular. Este
trabalho localiza-se no campo de estudos da História Cultural e tem como aporte
metodológico a história oral e a etnográfica; realizamos uma descrição densa do ritual, aliada
a aspectos da trajetória de vida de dona Constância, fabricamos as fontes orais, imagéticas e
consultamos documentos primários de arquivos públicos, a exemplo o Arquivo Público do
Estado do Maranhão. O estudo do ritual realizado por dona Constância nos fez perceber que
existem singularidades nas práticas de Umbanda realizadas no Brasil afora, tendo em vista
que o ritual apresenta características específicas nos espaços onde são realizados. Podemos
identificar aspectos comuns, que constituem as bases desta matriz religiosa genuinamente
brasileira, resultante de um hibridismo que em menor ou maior escala amalgamou as
diferentes crenças que forjaram a diversidade cultural brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: História. Religiosidade. Umbanda. Hibridismo Cultural. Patrimônio


Cultural
ABSTRACT

The object of this study is a religious ritual that took place in a city called Codó, in the state of
Maranhão, until the year of 2008. This ritual was started by a lady known as Constância Alves
de Sousa, umbandist, as she used to say “as long as I can remember”. The conceptual
reference is the cultural hybridism, characteristic from Brazilian and “maranhense”
religiosity, the second one in particular. This research is placed on the field of Cultural
History Study and has as methodological contribution the oral and ethnographic history; a
dense description of the ritual was conducted, combined with the aspects from the life journey
of “Dona Constância” , the oral sources and imagistic were developed and primary documents
from public archives were consulted, as an example the Public Archive of the State of
Maranhão. The study from the ritual performed by “Dona Constância ” made us realize that
there are singularities in the practices of Umbanda in Brazil, considering that the ritual
presents specific features depending on the places where they are held. Common aspects can
be identified, which constitute the foundations of this religious roots genuinely Brazilian,
consequence of a hybridism that in smaller or larger scale amalgamated the different beliefs
that forged the Brazilian cultural diversity.

KEYWORDS: History, Religiosity, Umbanda, Cultural Hybridism, Cultural Patrimony


LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Voduns na Casa das Minas no Maranhão ......................................................................... 27


Quadro 2 Voduns na Casa das Minas no Maranhão ......................................................................... 28
Quadro 3 Voduns na Casa das Minas no Maranhão ......................................................................... 29
Quadro 4 Famílias de Encantados e Caboclos ...................................................................... 40
Quadro 5 Principais festas de Umbanda de Codó – MA....................................................... 49
LISTA DE ILUSTRAÇÕES E FOTOGRAFIAS

Figura 01: Mapa do Estado do Maranhão com destaque para a cidade de Codó .................... 45
Foto 01: Obrigação das águas – hibridismo ............................................................................. 54
Foto 02: Cemitério na estrada onde era realizada a Obrigação das Almas Santas Benditas ... 59
Foto 03: Alvorada – inicio da doutrina .................................................................................... 60
Foto 04: Alvorada .................................................................................................................... 60
Foto 05: Finalização da Alvorada no centro do salão da reza.................................................. 62
Foto 06: Finalização da Alvorada no centro do salão da reza.................................................. 63
Foto 07: Preparação da obrigação da mata no quarto de dona de dona Constância. ............... 64
Foto 08: Momento inicial da obrigação das matas................................................................... 64
Foto 09: Permissão aos caboclos para entrar na mata – O riacho ............................................ 65
Foto 10: Permissão aos caboclos para entrar na mata .............................................................. 66
Foto 11: Entrada na Mata ......................................................................................................... 67
Foto 12: Manifestação do Encantado de Dona Dasdores ........................................................ 68
Foto 13: Manifestação do Encantado de Dona Dasdores ........................................................ 68
Foto 14: Ponto firmado no riacho são marcações para o mundo espiritual ............................. 69
Foto 15: Pontos firmados no meio da mata .............................................................................. 70
Foto 16: Pontos firmados no meio da mata ............................................................................. 71
Foto 17: Obrigação na mata, reverência aos elementos da natureza, a jurema ........................ 72
Foto 18: Obrigação na mata, reverência aos elementos da natureza, a jurema ...................... 73
Foto 19: Caboclos cumprimentam e benzem os participantes da gira ..................................... 73
Foto 20: Reverência ao tambor ................................................................................................ 74
Foto 21: Andor de São Francisco e São José ........................................................................... 77
Foto 22: A procissão percorre ruas da cidade de Codó ............................................................ 78
Foto 23: Visitantes e devotos acompanham a procissão .......................................................... 79
Foto 24: Caminho percorrido pela procissão até o Sítio São José ........................................... 80
Foto 25: Caminho percorrido pela procissão até o Sítio São José ........................................... 80
Foto 26: Caminho percorrido pela procissão até o Sítio São José ........................................... 81
Foto 27: Chegada da Procissão ao sítio ................................................................................... 83
Foto 28: Chegada da Procissão ao sítio - Terço ....................................................................... 83
Foto 29: Altar de Dona Constância .......................................................................................... 85
Foto 30: Pedra do Xenxen – pedra de força para os trabalhos / Rosários ................................ 86
Foto 31: Bola de cristal / Pedra de força de Cristal ................................................................. 87
Foto 32: Pedra de Cera é uma Pedra de Cura........................................................................... 88
Foto 33: Pedra de duplo sentido – Dar e receber ..................................................................... 89
Foto 34: Toalha para benzimento e cura (Branca)/ Tamboretes da Dona Constância............. 90
Foto 35: Toalha de Preto Velho (Vermelha) ............................................................................ 91
Foto 36: Obrigação das águas, início do ritual no quarto de Dona Constância ....................... 92
Foto 37: Os filhos e filhas de santo deixam o quarto e vão para o salão da reza ..................... 92
Foto 38: No Salão da reza tem início a gira e preparação para as águas ................................. 94
Foto 39: Oferendas para o ritual nas águas .............................................................................. 94
Foto 40: A gira – Inicio do transe ............................................................................................ 95
Foto 41: Médiuns deixam o salão da reza ................................................................................ 95
Foto 42: Preparação do riacho ................................................................................................. 96
Foto 43: Preparação do tambor ................................................................................................ 97
Foto 44: Preparação do riacho – colocação dos sacos de areia................................................ 97
Foto 45: Dentro do riacho dona Dasdores e as filhas de santo dão início ao lava pés. ......... 100
Foto 46: Ritual do lava pés..................................................................................................... 101
Foto 47: Ritual do lava pés..................................................................................................... 102
Foto 48: Oferendas sendo colocadas nas águas ..................................................................... 103
Foto 49: Casa ......................................................................................................................... 123
Foto 50: Salão da Reza ........................................................................................................... 124
Foto 51: Saída da procissão no ano de 2008 do centro da cidade de Codó ........................... 129
Foto 52: Reunida com a família no Salão da Reza no Sítio São José .................................... 132
Foto 53: Dona Constância, filhos e netos no Sitio São José .................................................. 133
Foto 54: Viagem a Miguel Alves com a família .................................................................... 133
SUMÁRIO

Considerações Iniciais ............................................................................................................ 16

1. A Umbanda no Maranhão – O Reino dos Encantados................................................... 22


1.1. Encontro com as Práticas Religiosas Afro-Índio-Brasileiras de Dona Constância......... 24
1.1.1. O Tambor de Minas e a herança africana na Religiosidade Maranhense. ..................... 24
1.1.2. Terecô: o Tambor da Mata do Codó ............................................................................... 31
1.1.3. Pajelança: Tambor de Cura ............................................................................................. 34
1.2. Encantados e Caboclos: Misticismo entre os elementos presentes nas religiões Afro-
Brasileiras e Afro-Indio-Brasileiras no Maranhão. .................................................................. 36

2. A Obrigação: vou fazer pelo sinal, para fazer a Obrigação, a Obrigação é de mamãe,
ô Jesus, ô Jesus. ....................................................................................................................... 42
2.1. Codó: terra de magia, de Terecô, de encantado .............................................................. 45
2.2. O Hibridismo Cultural na Obrigação de Dona Constância ............................................. 52
2.3. A Alvorada: Ô dá-me Licença ........................................................................................ 58
2.4. Obrigação da Mata: Dá-nos proteção Caboclo Humaitá................................................. 63
2.5. A Procissão: Devoção a São Francisco e São José ......................................................... 75
2.6. Obrigação das Águas; Oferenda ao povo das águas, valei-me Mãe Sereia, valei-me Mãe
D’Água Rainha ......................................................................................................................... 84

3. Dona Constância: luta e crescimento no mundo dos encantados ................................ 106


3.1. Trajetória de vida: entre a magia e o real, a vida em meio a encantaria ....................... 111
3.1.1. O Dom de falar com os Encantados: A construção de uma família em meio ao mundo
da encanteria ........................................................................................................................... 113
3.1.2. A Promessa: uma festa para os encantados ................................................................... 122
3.2. Histórias de Dona Constância ....................................................................................... 129
3.2.1. Janeth e sua mãe dindinha: história da vovó ................................................................ 130
3.2.2 Pedro Filho: Dona Constância era uma intelectual ....................................................... 131
4. Considerações Finais: Entre Pajês, Caboclos, Santos e Orixás Dona Constância nos
apresenta a Umbanda no Maranhão .................................................................................. 136

5. Apêndice ............................................................................................................................ 140


5.1. Apêndice A ...................................................................................................................... 141
5.2. Apêndice B ...................................................................................................................... 151
5.3. Apêndice C ...................................................................................................................... 161
5.4. Apêndice D ...................................................................................................................... 170
5.5. Apêndice E ...................................................................................................................... 179

6. Pós-Scriptium: Eu e Dona Constância ........................................................................... 183

7. Referências ........................................................................................................................ 187


16

Considerações Iniciais

O objeto deste estudo é a Obrigação de Dona Constância, ritual religioso da Umbanda


ocorrido na cidade de Codó, no Maranhão até 2008 e iniciados por Dona Constância Alves de
Sousa, umbandista, como dizia, desde que me entendi por gente.

A proposta deste estudo é analisar um ritual caracterizado por atitudes, sentimentos,


vivências, experiências e marcado por diálogos e trocas culturais. Sentimentos esses, muitas
vezes permeados por interdições e regulamentos instituídos por grupos políticos, entidades e
instituições religiosas.

A Umbanda tem singularidades em sua pluralidade, seus elementos simbólicos,


ritualísticos, sua mitologia fundadora e suas práticas normatizadoras da vida cotidiana se
configuram como fundamentos da reflexão e interpretação histórica que daremos as
discussões a cerca da Obrigação de Dona Constância.

Motivados pelo dever do ofício de historiador, parafraseando François Dosse (1992),


fomos instigados a compreender a humanidade, e a partir desta, a razão de ser, a origem, os
significados e os simbolismos presentes nas práticas culturais, religiosas e sociais cotidianas
da Umbanda, desde as formas mais elementares às mais complexas e luxuosas.

Essa proposta se insere na discussão da linha de pesquisa história, memória e cidade,


partindo do pressuposto que esta contribui para ampliar as reflexões a cerca das práticas
religiosas no contexto brasileiro o qual é prenhe de hibridismo cultural.

Neste esteio, discutir Religião e religiosidade assim como Hibridismo Cultural torna-se
indispensável.

Religião e religiosidade são herdeiras de uma ancestralidade indígena, negra e branca


europeia, transmitida, (re) significada a cada geração. Assim, o hibridismo cultural (BURKE,
2003) torna-se referência conceitual neste trabalho, por nos possibilitar entender uma das
características marcantes da religiosidade brasileira e maranhense em particular. Burke
(2003) entende que o hibridismo cultural evoca o observador externo que estuda a cultura
como se ela fosse a Natureza e os produtos de indivíduos e grupos como se fossem espécimes
botânicos. Dessa forma, ele se constituiria, portanto, no resultado de encontros múltiplos e
não como o resultado de um único encontro, quer encontros sucessivos adicionem novos
elementos à mistura quer reforcem os antigos elementos (BURKE, 2003, p.29).
17

Acreditamos, portanto, que a Umbanda no Maranhão reflete esse cenário. A Umbanda


no Maranhão bem como no Nordeste e no Brasil de uma maneira geral é um fenômeno
histórico-cultural-religioso ainda é pouco estudada e, muitas vezes, reduzida a estereótipos e
descriminações. Entender a constituição histórica da Umbanda implica compreender a
formação sociocultural do povo brasileiro e suas estratégias de (re) significação de elementos
originários de outras experiências e práticas culturais além dos valores e crenças a partir de
junções e interpretações socioculturais.

Compreendemos que, ao estudarmos as origens e matrizes culturais da Umbanda no Rio


de Janeiro em 1908 1 e sua difusão ao longo do último século pelos diferentes espaços
brasileiros, até sua chegada à cidade de Codó [MA] e a construção social e cultural dessa
cidade como centro irradiador das práticas umbandistas no território maranhense e nordestino,
possibilitaremos desnudar as intrincadas relações socioculturais brasileiras e identificar os
diferentes constructos históricos que se ordenaram e/ou fundiram-se para gerar crenças e
rituais religiosos populares no Brasil.

Dentro de um vasto campo de possibilidades de estudos que a Umbanda nos permite


realizar, selecionamos a história de vida de Dona Constância, suas relações sociais e
religiosas, a sua iniciação nas práticas umbandistas e a constituição dessa religião e
experiência no território maranhense nas últimas décadas do século XX. A nossa pretensão foi
construir historicamente um percurso, uma narrativa possível da religiosidade brasileira,
marcada pelas diferentes matrizes que caracterizam a cultura e identidades brasileiras.

1
No livro “Os orixás na Umbanda e no Candomblé”, Ronaldo Linares e Diamantino Fernandes Trindade (2008)
relatam essa história. Apontam que no final de 1908 o jovem Zélio estava se preparando para ingressar na
carreira militar na Marinha, quando estranhos fenômenos começaram a acontecer. Filho de uma tradicional
família na cidade de Neves, Estado do Rio de Janeiro, os fenômenos foram vistos com estranheza e ao mesmo
tempo temor, o que levou a família a procurar auxilio médico. Depois de examinado e observado por dias pelo
Dr. Epaminondas de Morais, que, além de tio de Zélio, era diretor do Hospício de Vargem Grande, recomendou
que o rapaz fosse levado para ver um padre, pois sua loucura não se enquadrava em nada conhecido. Depois de
inúteis tentativas de exorcizá-lo, a família o levou a Federação Kardecista de Niterói que era presidida por José
de Sousa. Lá se deu o encontro entre José de Sousa e o Caboclo das Sete Encruzilhadas. No dia seguinte na casa
da família Morais se reuniram os membros da Federação Kardecista para comprovar a veracidade das
declarações de Zélio. Além dos membros da Federação, familiares, vizinhos e até curiosos faziam parte de uma
multidão que se reunira na porta da casa da Família. O Caboclo das Sete Encruzilhadas teria se manifestado às
20h00min horas, naquele momento se iniciava um novo culto, em que os espíritos de velhos africanos que
haviam servido como escravos e que, desencarnados, não encontravam campo de atuação nos remanescentes das
seitas negras, já deturpadas e dirigidas em sua totalidade para os trabalhos de feitiçaria; e os índios nativos de
nossa terra, poderiam trabalhar em benefício de seus irmãos encarnados, qualquer que fosse a cor, a raça, o credo
e a condição social. Após essas manifestações, Pai Zélio Fernandino de Moraes registrou em cartório a primeira
tenda Umbandista em 1908, em sua casa, a Tenda de Umbanda Nossa Senhora da Piedade, onde se tocavam
atabaques, instrumentos do Candomblé foram incorporados à religião à medida que ela foi se expandindo e
outras tendas foram nascendo sempre atreladas aos ensinamentos de Pai Zélio. (TRINDADE, 2008)
18

Buscamos identificar os principais elementos caracterizadores da Obrigação de Dona


Constância em Codó, no Maranhão, nas últimas décadas do século XX, considerando a
manutenção, reinvenção e revalorização das crenças e rituais umbandistas pelos descendentes
dos iniciadores desta manifestação religiosa, bem como de seus fiéis seguidores.

Falar de Religião e Religiosidade no Maranhão é enveredar por discussões que apontam


para significados diversos, propiciados e ampliados pelos referencias construídos e
constituídos pela História Cultural. Nesta perspectiva autores como Ginzburg (1988, 2007),
Damatta (1984), Priore (2006; 2004), Pensavento (2006), Brandão (2007), Eliade (2008),
Durkheim, Thomas, Trindade e Linhares (2008), Burke (2003) Le Goff (2003), Pollak (2004),
Halbwachs (2004), Sarlo (2007), Mayer (2009), Gagnebin (2006), Rosendahl (2009), foram
essenciais para compreensão de conceitos como: Tempo histórico, tempo mítico, memória,
sagrado, profano, espaço sagrado e cultura.

Investigar religião e religiosidade no Maranhão é adrentar um universo que aponta para


sentidos e significados diversos. Para Durkheim (2003) a religião é um “sistema de crenças e
de práticas”, um fenômeno coletivo.

Durkheim (2003) acredita que a religião articula rituais e símbolos, que tem o efeito de
criar entre indivíduos afinidades, sentimentos, os quais constituem-se nas bases de
classificações e representações coletivas. Para o autor, os rituais religiosos cumprem um papel
importante ao colocarem uma dada comunidade em movimento para celebrar. Os rituais
aproximam os indivíduos multiplicando os contatos entre eles, torna-os mais íntimos,
mudando, assim, o conteúdo das consciências.

Durkheim (2003) aponta que a religião não comporta necessariamente a crença em um


Deus transcendente, mas é necessário entendê-la como prática coletiva; procura destacar que
não pode haver crenças morais coletivas que não sejam dotadas de um caráter sagrado, mas
que a sua existência é fundamentada pela distinção essencial entre fenômenos sagrados e
profanos.

Durkheim (2003) argumenta ainda que o sagrado corresponde à sociedade, o profano ao


indivíduo; considera que as coisas sagradas, em geral, requerem os mesmos sentimentos de
respeito e veneração que os fatos sociais; o sagrado é intrínseco ao homem; nem as forças
naturais, nem os espíritos, nem as almas são sagradas por si mesmas; só a sociedade é uma
19

realidade sagrada por si mesma; ao mesmo tempo a causa do fenômeno religioso e sua
justificativa marcam a distinção entre sagrado e profano.

A dualidade sagrado-profano, evidenciada por Durkheim (2003), confere à religião uma


faceta intelectual na qual os rituais fazem dela uma força moral, definida nos limites entre o
certo e o errado, este último punido e o primeiro premiado. Como mencionamos
anteriormente, os umbandistas mantêm fortes relações entre o sagrado e o profano, e na busca
de legitimidade enquanto religião, seus rituais ainda são definidos como profanos e ligados ao
mal, o que estimula a formulação de conceitos equivocados, levando a situações como as
relatadas por Dona Dasdores (filha de Dona Constância), que, por mais de uma vez, em suas
entrevistas, nos falou de sua preocupação com a representação que a sociedade elabora das
práticas religiosas realizadas por ela e por sua mãe, Dona Constância. Ela relatou a vergonha,
o constrangimento que sentia ao falar que era umbandista.

Nesse esteio a religiosidade se apresenta como uma condição exclusivamente humana


de busca do sagrado, como um sentimento que transforma grupos e indivíduos. Por ser
sentimento ainda é um campo percorrido por historiadores com muita cautela, mas que a
muito é domínio de antropólogos. É a busca do sagrado, é a prática não institucionalizada,
concebida por vezes como bruxaria, feitiçaria, espiritismo, e, como tal, imersos em profundo
hibridismo, pois permite ir além da prática oficial e ver dentro de um mesmo ritual, como a
“Obrigação de Dona Constância”, uma mistura interessante de diversos elementos culturais.

Para atingir os objetivos traçados neste estudo definimos como metodologia de pesquisa
uma base histórico-antropológica, tendo como fundamentos principais pesquisadores como,
Geertz (1989), Burke (2003) e Ginzburg (2007), que guiaram nossa pretensão em realizar uma
descrição densa do ritual praticado por Dona Constância. Para tanto conjugamos a esta base
etnográfica à História Oral, a análise de fontes imagéticas (Fotografias) e documentos
primários (Códigos de Postura de Codó 1840, as Constituições Federais de 1891 a 1967 e o
Código Penal de 1940). Contudo, trabalhar com as fontes nos exigia um referencial que
possibilitasse lidar com as mesmas de modo claro e atento, para a concretização dos objetivos
do trabalho em desenvolvimento, neste intuito apoiamo-nos em autores como, Malinowski
(1976), Evans-Pritchard (1937), Verena Alberti (2004), Alessandro Portelli (1997) e Ana
Maria Mauad (1993).

Para conhecer em detalhes o ritual de dona Constância recorremos a memória daqueles


que conviveram e vivenciaram tal prática. Este foi o critério básico adotado para a seleção dos
20

sujeitos a serem entrevistados. Ao identificarmos os possíveis colaboradores procedemos o


primeiro contato. A princípio todos queriam falar e contar suas experiências, o quanto a
presença e o convívio com Dona Constância haviam sido positivos, contudo, ao identificarem
a necessidade de gravar os testemunhos, encontramos ai o nosso primeiro grande desafio. A
maioria recusou-se a permitir a gravação, mas colaborariam com a documentação necessária e
até mesmo com informações que desejássemos, o que reduziu os nossos sujeitos de pesquisa a
três (03); Dona Dasdores, Janeth Reis e Pedro Filho. Respectivamente filha e netos de Dona
Constância, sendo que Dona Dasdores é sua sucessora como chefe da casa e responsável pela
manutenção do ritual nos primeiros sete anos após sua morte e pela reinvenção das práticas
umbandistas do grupo antes liderado por sua mãe.

Diante de todas a experiências vivenciadas no decorrer da pesquisa nos deparamos de


maneira com uma Umbanda investigada em seu caráter sagrado, como prática não
institucionalizada, e concebida por vezes como bruxaria, feitiçaria; imersa em um profundo
hibridismo, que nos permite ir além da prática oficial e adentrar o ritual, à experiência
religiosa, perceber a “Obrigação de Dona Constância” marcada por uma tessitura interessante
repleta de diversos elementos culturais.

Dessa forma, esse sentimento e experiência religiosa tornaram-se a base desta pesquisa.
Analisamos o ritual iniciado por Dona Constância e apresentamos no texto a seguir uma
faceta da Umbanda no Maranhão e suas singularidades enquanto prática religiosa. Para atingir
o nosso objetivo a trajetória de vida de Dona Constância foi essencial a esta investigação.
Partimos das bases nas quais a Umbanda se estabeleceu para se transformar em uma
singularidade religiosa no território maranhense.

O trabalho está estruturado da seguinte maneira:

No primeiro capítulo, A Umbanda no Maranhão – O Reino dos Encantados,


descrevemos os principais elementos das religiões afro-indio-brasileiras presentes em
território maranhense e que são fundamentais para compreender as práticas religiosas de Dona
Constância. O Tambor de Mina, O Terecô, a Pajelança, os Encantados e Caboclos.

No segundo capítulo, A Obrigação: vou fazer pelo sinal, para fazer a Obrigação, a
Obrigação é de mamãe, ô Jesus, ô Jesus, nos apoiando na etnografia descrevemos a
Obrigação de Dona Constância, etapas, elementos, santos e oferendas. Os quatro momentos
21

ritualísticos, A alvorada, a obrigação da Mata, a procissão e a obrigação das águas, que


denotam todo o hibridismo característico da Umbanda no Maranhão.

No terceiro capitulo, Dona Constância: luta e crescimento no mundo dos encantados, a


partir das memórias dos descendentes de Dona Constãncia e de seus filhos e filhas de Santo
reconstruímos aspectos de sua trajetória de vida que como relata Dona Dasdores nunca esteve
separada da encanteria, e assim traçar um perfil da constituição histórica da Umbanda no
Maranhão.

O estudo do ritual realizado por Dona Constância nos levou a percepção de que existem
singularidades nas práticas de umbanda realizadas no Brasil, tendo em vista que o mesmo
assimila características específicas dos espaços culturais nos quais estão inseridos. No
entanto, podemos identificar aspectos comuns e que constituem as bases desta que seria uma
religião genuinamente brasileira, resultante de um hibridismo que, em menor ou maior
proporção, amalgama as diferentes culturas.
22

1 A Umbanda no Maranhão – O Reino dos Encantados2

A Umbanda em sua gênese encontra-se em um universo de magia e mitos. Os registros


de sua constituição datam de 1908; estão associados à atmosfera de mistério e incredulidade
por parte dos setores de instituições católicas, já consolidadas em território nacional. Nessas
narrativas, está Zélio Fernandino de Morais, um rapaz de 17 anos que se tornou líder da
primeira tenda de Umbanda no Brasil - a Tenda de Umbanda Nossa Senhora da Piedade, onde
não se tocavam atabaques e outros instrumentos de rituais como do Candomblé, mas que
foram incorporados à religião da Umbanda à medida que foi se expandindo e outras tendas
foram nascendo sempre vinculadas aos ensinamentos de Pai Zélio3.

No Brasil, os ideais religiosos defendidos pela Igreja Católica, associados às práticas


africanas e indígenas são as bases de sua formação religiosa. No contexto da religiosidade
brasileira, a inserção da Umbanda como elemento caracterizador de cultura ainda é pouco
considerada. Compreender a formação da Umbanda enquanto manifestação religiosa implica
diretamente na compreensão da formação sociocultural do povo brasileiro e de suas
estratégias de ressignificação de elementos originários de outras práticas culturais; implica
construir valores e crenças a partir das junções e interpretações de culturas religiosas diversas.

A Umbanda surgiu no início do século XX como uma religião mediúnica, produto do


hibridismo das principais vertentes religiosas existentes no Brasil: religiões afro-brasileiras,
indígenas, católicas, espíritas kardecistas, dentre outras. Diferenciando-se de suas matrizes
originais, singularizou-se e se tornou uma nova religião. A influência kardecista e católica lhe

2
A umbanda no Maranhão possui um Panteão composto por entidades conhecidas como Encantados e caboclos
que serão explicadas posteriormente.
3
No livro Os orixás na Umbanda e no Candomblé, Ronaldo Linares e Diamantino Fernandes Trindade (2008)
relatam a história da constituição da primeira tenda de umbanda do Brasil. Apontam que no final de 1908 o
jovem Zélio estava se preparando para ingressar na carreira militar na Marinha, quando estranhos fenômenos
começaram a acontecer. Filho de uma tradicional família na cidade de Neves, estado do Rio de Janeiro, os
fenômenos foram vistos com estranheza e ao mesmo tempo temor, o que levou a família a procurar auxilio
médico. Depois de examinado e observado por dias pelo Dr. Epaminondas de Morais, que, além de tio de Zélio,
era diretor do Hospício de Vargem Grande, recomendou que o rapaz fosse levado para ver um padre, pois sua
loucura não se enquadrava em nada conhecido. Depois de inúteis tentativas de exorcizá-lo, a família o levou a
Federação Kardecista de Niterói que era presidida por José de Sousa. Lá se deu o encontro entre José de Sousa e
o Caboclo das Sete Encruzilhadas. Após diversas manifestações, Pai Zélio Fernandino de Moraes registrou em
cartório a primeira tenda Umbandista em 1908, em sua casa, a Tenda de Umbanda Nossa Senhora da Piedade.
(TRINDADE, 2008)
23

imputam certo caráter moral, ou seja, seu caráter aético é atenuado pela presença de caracteres
ocidentais.

A religião da Umbanda apresenta particularidades que faz com que se diferencie dos
demais cultos de possessão, dentre eles Espiritismo Kardecista, Candomblé e Religiões
indígenas. Na Umbanda, as “entidades” situam-se a meio caminho entre a concepção dos
deuses africanos do Candomblé e os espíritos dos mortos dos kardecistas.

Na unidade de construção dessas figuras míticas e no entendimento de suas narrativas se


superpõem as diversidades indicadoras de sentimentos, aspirações e atitudes individuais de
uma sociedade. No plano ideológico, essas entidades são codificadas, conceituadas e
hierarquizadas dentro de um universo cósmico como projeção e projeto do universo social, o
que evidenciaremos posteriormente neste capítulo.

Um dos elementos mais importantes e que tem maior influência sobre a construção do
imaginário popular sobre o fenômeno religioso é o transe e a possessão. O transe na Umbanda
não é considerado nem estritamente individual (como no kardecismo) nem propriamente
representação mítica (como no caso do candomblé), mas atualizações de fragmentos de uma
história mais recente por meio de personagens tais como foram conservados na memória
popular brasileira.

As entidades espirituais cultuadas são espíritos de mortos, que constituem categorias


mais genéricas, onde a referência à vida pessoal é substituída por um estereótipo; não é a
evocação desse ou daquele indivíduo em particular, mas a representação de modelos sociais
expressos em seus médiuns que realizam a passagem dessas entidades de seu mundo sagrado
para o mundo profano dos homens. Estas entidades são representações de índios brasileiros,
escravos africanos, crianças, marginais, alcoólatras, prostitutas, malandros, meninos de rua,
estrangeiros perseguidos por suas crenças e tradições ou ainda indivíduos desqualificados
quer pela sua condição social, quer pela conduta moralmente condenável, segundo os valores
enraizados em uma sociedade marcada pela tradição católica europeia.

As manifestações no corpo de seus médiuns são feitas por meio da lembrança


inconsciente de alguns traços que permanecem como características diferenciadoras: altivez e
arrogância dos caboclos; humildade e compaixão dos pretos-velhos; inocência das crianças;
revolta e escárnio dos exus; sensualidade desenfreada das pombas-giras; alegria do povo
cigano, etc.
24

O relativo distanciamento do real, por meio do imaginário, dá margem a uma constante


recriação e explica as variações que se verificam nos terreiros umbandistas mais populares:
enquanto nas outras religiões possa existir uma maior exigência de fidelidade aos modelos
(mítico num caso, e pessoal, no outro), na Umbanda, apesar do transe e das representações
serem também regulados, há uma maior possibilidade de acréscimos e reinterpretações.

Esses aspectos inerentes à Umbanda fazem dela uma religião, mesmo sem os padrões
reguladores das religiões institucionalizadas, que cresce e se ratifica como importante na
conjuntura religiosa brasileira.

1.1. Encontro com as práticas religiosas afro-índio-brasileiras de dona Constância

A partir do registro da tenda de Nossa Senhora da Piedade, um longo caminho seria


trilhado pelos umbandistas, percurso este que possibilitou que essa religião fosse constituída
de características específicas nas mais diversas regiões, produto de um hibridismo típico da
formação cultural brasileira. No Maranhão, não seria diferente, a Umbanda assumiu para si
elementos específicos da religiosidade daquela região, que apresentamos neste capítulo.

O Tambor de Mina, o Terecô ou Tambor de Mata e a Pajelança foram incorporados aos


rituais de Umbanda no Maranhão, o que resultou em manifestação singular e fundamental
para compreensão dos rituais realizados no Sítio São José e durante a obrigação de dona
Constância.

1.1.1 O Tambor de Mina e a herança africana na religiosidade maranhense

Os terreiros africanos existentes em São Luis só começaram a ser estudados na década


de 1930, nos referimos às pesquisas de Edmundo Correia Lopes, interessado principalmente
25

na língua dos rituais, e da Missão de Pesquisa Folclórica do Departamento de Cultura da


prefeitura de São Paulo4.

O Tambor de Mina provavelmente surgiu em São Luis ainda na primeira metade do


século XIX. A tradição da Mina chegou ao Maranhão através dos escravos trazidos de Gana
na África. No Tambor de Mina são cultuados Voduns5 e Orixás, Gentis6 e Caboclos.

A região da Costa da África Ocidental onde se localiza o antigo Reino do Daomé,


era chamada de Costa dos Escravos e também de Costa da Mina. Nessa região, foi
estabelecido pelos portugueses o século XVII o Forte de São Jorge da Mina,
localizado na atual República do Gana. Existe também na região uma etnia
denominada Mina. Os negros procedentes dessa região foram conhecidos no Brasil
como negros mina e a religião dos voduns por eles praticada é conhecida até hoje,
sobretudo no Maranhão e na Amazônia, como Tambor de Mina. (FERRETTI, S.
2006)

A antropóloga Mundicarmo Ferretti afirma que o Tambor de Mina em sua origem, em


essência, é um culto a entidades espirituais africanas. No Maranhão, se estruturou em Casas
ou Nações, que funcionam até hoje em São Luis: a Casa das Minas - Jeje, a Casa de Nagô, e,
na segunda metade do século XX, a Casa de Fanti-Ashanti.

No Tambor das entidades espirituais 7 recebidas pelos filhos-de-santo são


classificadas de várias formas, entre elas por categorias, por famílias, por ‘nação’,
por posição na cabeça do médium em quem incorporam e por posição no terreiro
(FERRETTI, M., 2000, p.73).

4
FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na Guma: o caboclo no Tambor de Mina. São Luis: Edufma, 2000.
5
Para muitos autores como Verger, voduns e orixás são sinônimos [...] Os voduns são difíceis de definir e
caracterizar, constituem uma força, um poder e um mistério. Segundo Maupoil (1953, p. 55-59), os voduns e os
homens se complementam. Por suas orações, sacrifícios, os homens dão força aos voduns, que se alimentam dos
símbolos que lhes são oferecidos. Têm capacidade de possuir seus servidores, no estado de transe ou possessão.
(FERRETTI, S., 2004, p. 199).
6
Nobres encantados (geralmente europeus), às vezes confundidos com orixás, e como estes também associados a
santos católicos (FERRETTI, M., 2000, p.74).
7
Além dos orixás, outras divindades foram trazidas da África pelos escravos. Os inquices dos povos bantos,
praticamente esquecidos e substituídos pelos orixás nagôs nos candomblés bantos, e os voduns originários de
povos euê-fom, da região do antigo Daomé, hoje república do Benim, designados jejes no Brasil. O culto aos
voduns sobreviveu na Bahia e no Maranhão.(PRANDI, 1997, p. 110)
26

A Casa das Minas é a mais antiga e tradicional de São Luis, é o único terreiro 8 de mina
onde não se dança com caboclo (FERRETTI, M. 2000). Foi fundada pela escrava Maria
Jesuíta, e consagrada ao vodum Zomadonu9.

Os Voduns, entidades que se manifestam em terreiros de mina, da Casa das Minas estão
divididos em famílias ou panteões.

Dizem que os africanos não revelaram tudo, que saber é poder e que o conhecimento
se adquire com a convivência. Assim, pouco se fala sobre as divindades. Conhecem-
se seus vários nomes, os cânticos que lhes são dedicados, características e episódios
de suas vidas e atitudes rituais apropriadas a eles. Conhecem-se grupos de famílias a
que pertencem e suas relações de parentesco com os demais voduns (...). Somando-
se todas as entidades, inclusive as Tabossis10, mais de 60 são conhecidas na Casa das
Minas. Esse número é relativamente elevado e a grande maioria é desconhecida em
outras casas de culto afro. (FERRETTI, S., 2004, p. 202).

Os Voduns são organizados em famílias. As famílias de voduns são extensas e cada


uma está estabelecida em uma parte da casa, entenda-se aqui a Casa das Minas, formando clãs
ou famílias, grupos de parentesco unilateral. As três principais famílias são: Família real ou
Davice, Família Dambirá e a Família de Quevioçó. (FERRETTI, S., 2004, p. 207).

A Família Davice, família real de Daomé, representa quase metade das entidades. Os
voduns desta família são nobres, reis e princesas, Zomadonu fundou a casa e pertence à
primeira linhagem. Segundo Ferretti, São Jejes puros e acreditam que nas festas são os que se
manifestam no corpo dos médiuns e também os últimos que deixam a gira.

8
Terreiro é a denominação dada à casa de culto ou local onde são realizadas cerimônias religiosas afro-
brasileiras. Pequeno Dicionário Umbandista. Acessado em 07 de abril de 2010 as 22h35min.
www.cethrio.vilabol.uol.com.br/modelos/dicumbanda.htm.
9
Zomadonu é o dono da casa (Casa das Minas), é considerado na tradição da Mina o vodum protetor da
fundadora e das primeiras mães. Para se organizar qualquer festa, tem que se começar por ele. É chamado de
Babanatõ e tem outros nomes privados que aparecem nos cânticos. Dizem que é um homem normal, escuro, usa
túnica com dorso branco e estampado. Dizem que não sabem a história dele, sabem apenas que é filho de rei,
filho de outro rei e que teve quatro filhos. Sua festa é no dia primeiro do ano, quando se realiza festa de
pagamento dos tocadores. Foi vodum de Maria Jesuíta, de mãe Luiza e outras. As últimas que o carregaram
foram D. Romana e D. Anadaí. A chefe da casa recebe ordens dele, que é o dono da casa (FERRETTI, S. 2004,
p.208).
10
Tabossis são entidades femininas infantis recebidas pelas vodunsis-gonjais, as que haviam se submetidos ao
processo de iniciação completo. A última feitoria de gonjais foi realizada na Casa das minas entre 1914-1915.
Dizem que as Tabossis só vinham para brincadeiras., falavam língua africana diferente dos voduns, quase não
dizendo nada em português. Eram chamadas de sinhazinhas. Cada tabossis só vinha em uma gonjais e , quando
esta morria, ela não vinha mais. A missão delas acabava ali. (FERRETTI. S., 2004, p. 205)
27

QUADRO 01: Voduns na Casa das Minas no Maranhão

VODUNS DE DAVICE NA CASA DAS MINAS


VODUNS REPRESENTA DENTRO DA FAMÍLIA E NA CASA DAS MINAS
HOMENS (Oboró)
Dadarro é o vodum mais velho e chefe da família Davice. É casado com Nochê
VELHOS: Dadarro, Naiadona. Dadarro é protetor dos homens de dinheiro dos corretores.
Arronoviçava, Acoicinakaba Arronoviçava e Acoicinakaba são Irmãos de Dadarro. E cultuados de Caxias a
São Luis.
Doçú teria sido rei de Agajá, na Casa das Minas se diz que ele é moço, boêmio,
ADULTOS: Ducú, Bedigá, poeta, compositor e tocador. Filho de Dadarro, recusou a coroa e a deu a seu
Daco-Donu, Zomadonu. irmão Bedigá, pois não gosta de viver no trono e sim nas ruas. È festejado no
dia de reis. Ele seria equivalente ao orixá Ogum dos nagôs.
Toçá e Teçé são filhos de Zomadonu, ambos são comemorados no dia de Cosme
JOVENS: Doçupé, Daco,
e Damião. Toçá é o mais velho e mais levado, gosta de fazer brincadeira e é o
Toçá, Toçé, Apoji, Apojevó,
mais querido e protegido do pai. È o guia dos voduns da casa e é quem abre o
Jogoroboçu.
culto.
MULHERES (Yabá)
Nochê Nae é a mãe de todos os voduns. Mãe ancestral, mítica, a vodum maior.
Rege a casa, é superior a todos e decide tudo. È a chefe das Tabossis. A
Naé, Naedona, Sepazin, cajazeira, árvore sagrada da casa, é de Naé, e tem obrigação para todos os
Nanin, Decê, Acuevi. voduns. Na Casa das Minas a festa dela é a mais importante. Sepazin é a
princesa real. Na Casa das Minas ela é casada com Doco-Donu e tem um filho,
Doco.
TABOSSIS
Agon, Revive, Dagebe, Trotobe, Afovive
TOTAL: 20 Voduns e cinco Tabossis
Cf.: FERRETTI, S. Voduns na Casa das Minas. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. Culto aos Orixás:
Voduns e Ancestrais nas religiões afro-brasileiras. Rio de janeiro: Pallas, 2004.

Outra família importante é a Dambirá, chefiada por três irmãos Acossi, Azili e Azonce,
na cultura católica são lembrados como São Lázaro, São Roque e São Sebastião
respectivamente. No passado, a Família Dambirá formava o maior cordão da casa. Os filhos
desses voduns possuem muitas restrições alimentares, dentre elas, não devem comer arraia,
caranguejo, jaboti, e nos meses de Agosto a Janeiro não comem alimentos que levam
gergelim. Acossi, por exemplo, não permite que os jejes comam carneiro. Acredita-se que
essa família reúne os voduns da terra e estão ligados às doenças e às curas.
28

QUADRO 02: Voduns na Casa das Minas no Maranhão

VODUNS DE DAMBIRÁ CONHECIDOS NA CASA DAS MINAS


VODUNS REPRESENTA DENTRO DA FAMÍLIA E NA CASA DAS MINAS
HOMENS (Oboró)
Acossi Sakpatá ou Odan é cientista e curador, conhece remédio para todas as
doenças. Acossi tinha uma coroa, mas não podia governar por ser paralítico.
VELHOS: Acossi, Azili, Adora São Lázaro, mas não baixa na Casa das Minas. Antigamente descia nas
Azonce, Lepon, Polibojí, velhas africanas, hoje não há mais quem saiba recebê-lo. Lepon é o filho mais
Borutoí, Bogono velho de Acossi. È brincalhão gosta de festas e ajuda o pai a curar doenças.
Poliboji adora Santo Antônio. Azonce Irmão saudável de Acossi e Azile, ligado
ao panteão de nagó.
ADULTOS: Alogue Diz-se que é aleijado
JOVENS: Boçucó, Roeju, São Toquéns, voduns jovens que cumprem a função de guias, mensageiros,
Aboju ajudantes de outros voduns. São eles que vem na frete
MULHERES (Yabá)
Boça é uma mocinha alegre que sempre está acompanhada do irmão Boçucó.
Eowa, Boça
Eowa é filha de Azonce e também é nagô.
TABOSSIS
Açoabebe, Sandolêbe, Ulôlôbe, Sanlevive
TOTAL: 13 Voduns e quatro Tabossis
Cf.: FERRETTI, S. Voduns na Casa das Minas In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. Culto aos Orixás:
Voduns e Ancestrais nas religiões afro-brasileiras. Rio de janeiro: Pallas, 2004.

A família Quevioçô é uma Família de Voduns Nagô que se manifestam na casa jeje
(FERRETTI, S. 2004, p. 212). Segundo Ferretti, seus membros controlam os elementos da
natureza que envolvem o ar e as águas, como trovões, raios, as ventanias e tempestades. Com
exceção de Averequete e Abê (Toquéns), os outros voduns dessa família, mesmo se
manifestando na Casa das Minas não conversam para não revelar segredos Nagôs ao povo
Jeje. São hospedes de Zomanodu.
29

QUADRO 03: Voduns na Casa das Minas no Maranhão

VODUNS DE QUEVIOÇÓ CONHECIDOS NA CASA DAS MINAS


VODUNS REPRESENTA DENTRO DA FAMÍLIA E NA CASA DAS MINAS
HOMENS (Oboró)
Rei Nagô. Ancestral divinizado dos antigos reinos de Aladá, Porto Novo e
VELHOS: Ajautó de
Abomey, na região da atual República do Benim.Amigo da Casa, ajuda Acossi
Aladanu
que é doente. Protetor dos advogados.
Avrejo é filho de Ajautó e é toquen. Badé é dono do trovão e se encantou na
pedra de raio. È briguento, mas obedece a Sabó. Dizem que quando há
ADULTOS: Badé, Liçá,
relâmpagos, chama-se por ele, que protege contra raios, cuida dos astros e das
Loco,Ajanutoe, Avrejo
águas.Loco representa o vento. Liçá é o voduns dos astros, representa o sol.
Ajanutoe é surdo-mudo e não gosta de crianças.
É um vodum muito popular no Maranhão. Na casa das Minas é um rapazinho
protegido por Abê. Na Casa de Nagó ele vem como velho. Esse vodum inspira
JOVENS: Averequete
inúmeras outras interpretações e alguns autores atribuem a ele tanto a figura
feminina quanto a figura controversa de Legba 11.
MULHERES (Yabá)
Nana é orixá no candomblé, foi incorporada ao panteão Iorubá desde a África,
como seus filhos Omolu e Oxumarê. Dizem que é Davice, mas desce na linha
Quevioçô. Nanã é Nagô e não vem na Casa das Minas, mas é adorada. Naité
representa a lua.Nochê Sobó é a mãe dos voduns de Quevioçó. Equivale a Iansã
nos Nagôs. Na Casa das Minas dizem que elas são diferentes, pois vive com os
Jejes e criou os irmãos Badé e Liçá. Adora Santa Bárbara, que é a chefe dos
Nanã, Naité, Sabó, Abê
terreiros de mina. È guia astral, astro luminoso, o corisco, a faísca elétrica, a
centelha ou o relâmpago que, nas grandes tempestades, vem na frente
precedendo o estrondo do trovão. Em outras regiões Sobó é associada a orixás
masculinos e corresponde a Xangó. Abé é um vodum feminina irmã de Bade.
Habita as águas revoltas do oceano. Sempre que acontece um naufrágio é ela
junto com vodum Sayo que tentam salvar os náufragos.
TABOSSIS
Agamavi, Asadolebe, Whweobe
TOTAL: 11 Voduns e três Tabossis
Cf.: FERRETTI, S. Voduns na Casa das Minas In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. Culto aos Orixás:
Voduns e Ancestrais nas religiões afro-brasileiras. Rio de janeiro: Pallas, 2004.

Outras famílias fazem parte do panteão da Casa das Minas. Na Casa também hospedam,
como já mencionamos anteriormente, Voduns Nagôs (orixás), mas não há culto a encantados
ou caboclos. A Casa das Minas possui até hoje uma organização matriarcal, assim como a
maioria dos terreiros de Tambor de Mina e os cânticos ainda são proferidos em língua Jeje
mantendo a tradição.

11
Legba ou Legbara, figura comum nas religiões afro-brasileiras, conhecido em outras nações pelo nome de
Exu, é a divindade que assume a função de Trinckster ou trapaceiro. Não tem culto organizado na Casa das
Minas, onde é identificado como Satanás, o Mal. Não é aceito como mensageiro, mesmo porque quem realiza
essa funcão são os toquéns. Apesar de não ter culto organizado verifica-se uns poucos gestos rituais a Legba,
como por exemplo, certos cânticos pedindo para que legba se afaste, cantados no início de todo tambor.
(PRANDI, 2005, p.70)
30

A Casa das Minas é organizada como uma gerontocracia matriarcal. Mulheres


idosas detêm o conhecimento e dirigem o grupo. Apenas mulheres entram em transe,
recebendo voduns e participando de danças. Os homens exercem a função de
tocadores de tambor e auxiliam em alguns rituais. No passado, há mais de 70 anos,
fala-se que houve alguns homens africanos que recebiam voduns, mas não
dançavam. (FERRETTI, S., 2004, p.204)

Entretanto, muitos pesquisadores, como Sérgio Ferretti advertem que aos poucos essa
tradição perca-se, pois há muitos anos nenhuma iniciação é realizada na Casa.

Há mais de 80 anos (1913 – 1914) não se faz iniciação de Vodúnsi-gonjaí. Entre as


vodúnsi atuais, embora em número reduzido, há pessoas que começaram a dançar na
Casa desde o início da década de 1930 até 1950. Todas elas têm um nome africano
privado que lhes foi dado por uma tabóssi. Foram iniciadas, portanto como vodúnsi-
he. (FERRETTI, S. 1996, p. 22)

Pesquisadores, como a antropóloga Mundicarmo Ferretti e o antropólogo Sérgio


Ferretti, afirmam em seus trabalhos que os terreiros de mina mais antigos, como a Casa das
Minas, não estimulavam a abertura de novas casas e não reconhecem, nem preparam ninguém
para abrir nenhum outro terreiro, acreditamos que isso seja motivado por que já não se
consegue manter a integralidade da tradição africana.

A Casa de Nagô, assim como a Casa das Minas foram fundadas em meados do século
XIX e, embora a segunda seja mais conhecida, a primeira foi mais difundida, muito embora as
duas estejam em processo avançado de declínio do número de adeptos (FERRETTI, S. 1986).

No culto Nagô e o culto Jeje, mesmo tendo uma origem africana comum, evidenciam
muitas diferenças. Enquanto na Casa das Minas se observa concretamente uma diferença entre
Voduns e orixás, na Casa de Nagô essa diferença é tênue e muitas vezes inexistente
(PRANDI, 2005). Há que se atentar ainda para o fato de que na Casa das Minas, como já foi
mencionado anteriormente, não há culto a encantados ou caboclos.

A Casa de nagô foi fundada por africanos de tradição Iorubá, é consagrada ao orixá
Xangô, e é provável que tenha sido a responsável pela difusão das práticas do Tambor de
Mina, em função do caráter mais fechado do culto Jeje.

Os orixás nagôs, presentes no tambor de mina da Casa de Nagô, são muitas vezes
tratados e chamados de voduns, mas não recebem o mesmo tratamento conferido aos orixás
31

do Candomblé Nagô. Dançam, falam e cantam no terreiro, e às vezes permanecem por longo
tempo. Os orixás mais conhecidos no tambor de mina são Xangó, Iemanjá, Nana, Obaluaé e
Ogum12 (FERRETTI, S.1986).

Muitos dos terreiros fundados e baseados na tradição mineira foram constituídos por
filhos-de-santo que passaram pela Casa de Nagô, possibilitando a difusão das práticas
religiosas evidenciadas no Tambor de Mina e sua incorporação aos rituais de umbanda, como
acontece no terreiro de Dona Constância no Codó, o que lhes conferem singularidade.

1.1.2. Terecô: o Tambor da Mata do Codó.

O Terecô é outra manifestação religiosa do Maranhão de enorme relevância para


entender as singularidades da religiosidade na região. O Terecô é caracterizado, entre outras
coisas, pelo uso do tambor em seus rituais. A origem do termo está ligada à expressão
Teeleko, que significa celebrar, ou louvar pelos tambores. Também é conhecido como
Verequete ou Berequete, denominação com a qual temos mais familiaridade, pois era como os
filhos e filhas-de-santo referiam-se ao ritual que acontecia na casa de Dona Constância.

Menos abundante e, provavelmente, mais recente que o Tambor de Mina, o Terecô teria
se originado nas fazendas de algodão de Codó e de regiões vizinhas, como o povoado de
Santo Antonio dos Pretos. Acredita-se que tenha iniciado antes da abolição, escondido nas
fazendas e que depois tenha se organizado em povoados no interior do Maranhão.
(FERRETTI, M. 2001)

É importante destacar que as origens do Terecô, mesmo nos dias atuais, são objeto de
controvérsias e discussões. Hipóteses foram levantadas a partir de pesquisas realizadas por
antropólogos e estudiosos da temática; Mundicarmo Ferretti destaca duas delas como
importantes e mais conhecidas. Na primeira delas, faz referência a origem banto-angolana,
‘cambinda’, e a apresenta diferenciada da mina (jeje, nagô, ou com outra tradição africana de
mina maranhense), embora pudesse ser comparado a ela e tenha sido cruzado (sincretizado)

12
Ver anexo panteão de orixás nagôs.
32

com ela (FERRETTI, 2001); na outra, é tida como uma mina jeje-nagô ‘desfigurada’, que
teria sido levada para o interior. (OLIVEIRA, J. 1989)

Nesse contexto, é importante salientar a existência de testemunhos de pais e mães de


santo que afirmam terem sido os negros escravos os responsáveis pela introdução dos
primeiros terreiros, entretanto, não há documentação que ratifique essa informação. Contudo,
é correto afirmar que, por volta de 1938, quando aconteceram às investigações em torno do
Tambor de Mina na Missão de Pesquisas Folclóricas13 realizadas na cidade de São Luis, já
existiam terreiros que misturavam o Tambor de Mina a Encantaria Barbara Soeira (babassuê).

Terecô e Tambor de Mina apresentam muitas diferenças, das quais as principais estão
voltadas para organização e composição do ritual. A antropóloga Mundicarmo Ferretti (2001)
aponta algumas dessas características:

1) Toque realizado com um tambor de uma só membrana, que lembra o ‘rum’


(tambor grande) da mina-jeje e o do ‘vodoo’ do Haiti, que é batido com a mão e
afinado a fogo, acompanhado por cabaças cheias de contas e, hoje mais raramente,
de marimba (berimbau), ‘pife’ (flauta de bambu);
2) Maior participação masculina na hierarquia e maior número de homens em
transe, dançando no salão;
3) Realização de poucas festas no ano, com a colaboração de outros grupos (como
noitantes – co-patrocinadores -, ou visitas);
4) Indumentária masculina mais afastada do convencional (uso frequente de
mandrião e cabeça coberta por boina, kepe, chapéu etc);
5) Maior uso litúrgico da língua portuguesa;
6) Maior uso de bebida alcoólica por médiuns incorporados;
7) Maior duração e revezamento de tocadores e puxadores de cantos durante os
rituais (na área rural o toque não para ao amanhecer e pode continuar por vários
dias);
8) Permanência dos encantados ‘em Terra’ por muitas horas após o toque e saída de
médiuns incorporados e ‘fardados’ pelas ruas após o término do ritual (como ocorre
em São Luís, na festa de São Sebastião, quando a Casa das Minas às vezes visita a
de Nagô);
9) Maior envolvimento, pelo menos atualmente e na cidade, com atividades
terapêuticas e maior abertura para a quimbanda ou “linha negra” (fala-se que Légua
Bogi, chefe da ‘linha da mata’ e de uma grande família de caboclos, “tem uma
banda branca e uma preta”);
10) Maior acusação de magia negra (culto no vodoo no Haiti). (FERRETTI, M.
2008, p. 5-6).

13
Em 1938, Mário de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, reuniu um grupo de
pesquisadores, antropólogos e técnicos, que percorreu vários Estados do Norte e Nordeste coletando material
audiovisual, além de artefatos pertencentes a diversas manifestações culturais. Esta iniciativa ficou conhecida
como a Missão de Pesquisas Folclóricas. O objetivo era registrar com riqueza de detalhes as diversas
manifestações da cultura destas regiões por temer sua descaracterização com o crescente urbanismo do país à
época. Em sua passagem por São Luís, a Missão de Pesquisas Folclóricas fez importantes registros de
manifestações culturais como: o Tambor de Crioula, o Tambor de Mina e o Bumba meu boi.
33

Assim como no Tambor de Mina, no Terecô pode ser evidenciada a organização


familiar das entidades espirituais, por exemplo, a família Lega Boji Boá da Trindade14.

No Terecô, como no Tambor de Mina, as entidades espirituais são organizadas em


famílias sendo a maior e mais importante a da controvertida entidade espiritual
Légua Boji Boá da Trindade, apresentado em Codó como ‘príncipe guerreiro’, filho
de Dom Pedro Angassu (conhecido em São Luís como o ‘representante de Xangô na
Mata’) e como ‘preto velho angolano’. Légua Boji é também apresentado em
terreiros da capital maranhense como vodum cambinda (Casa das Minas-Jeje), ou
como um misto de Légba (Exu) e do vodum jeje Poliboji (OLIVEIRA, 1989).

Em muitos terreiros, o Terecô aparece atrelado à Umbanda ou ao Tambor de Mina. Ao


ritual são incorporados outros elementos, como o poder da cura associando conhecimentos
indígenas aos africanos. A feitiçaria, em alguns terreiros, aparece associada aos terecozeiros15
e atrelada à prática da magia negra, o que leva muitos deles a utilizarem outras denominações
para as práticas religiosas adotadas em seus terreiros ou a se afastarem das tradições religiosas
do Codó, assim como posteriormente veremos em relação à Pajelança. Mundicarmo Ferretti
ressalta que:

A identificação do Terecô com ‘magia negra’ (feitiçaria) ou com a ‘linha negra’ da


religião afro-brasileira (linha de Exu, confundido com o demônio) é geralmente
negada pelos terecozeiros de Codó, embora existam ali alguns que declarem realizar
trabalhos tanto para o bem como para o mal. ‘Magia Negra’ e feitiçaria foi e
continua sendo, na religião afro-brasileira, uma categoria de acusação e, em Codó,
se procura manter o Terecô, Légua Bogi e os ‘voduns’ velhos dela afastados
(FERRETTI, M. 2003).

Vários encantados recebidos no Maranhão em terreiros de religião afro-brasileira são


conhecidos em diversas manifestações folclóricas (contos, cantos, danças, representações
teatrais, pinturas, esculturas etc.), e são conhecidos por poder entrar em contato com os seres
humanos. Alguns deles, como a Mãe d´Água e o Rei Sebastião, são muito conhecidos.
Outros, como o Ferrabrás de Alexandria, personagem da antiga obra História do Imperador
Carlos Magno e os doze pares de França, são conhecidos nos folhetos de Cordel (BARROS,

14
Príncipe guerreiro ou preto velho angolano e, em São Luís, como filho adotivo de Dom Pedro Angassu,
oriundo de Trindade, ou como um caboclo “da Mata”. Légua Bogi é também apresentado em terreiros da capital
maranhense como vodum cambinda (na Casa das Minas-Jeje) ou como um misto de Légba (correspondente
daomeano de Exu) e do vodum Poliboji, ideia defendida por Pai Jorge Itaci (OLIVEIRA, 1989, p.37)
15
Embora em 1944/1945 Costa Eduardo (EDUARDO, 1948) tenha encontrado, no povoado de Santo Antônio
dos Pretos (município de Codó), uma total separação entre Terecô (ou Encantaria de Barba Soeira), “magia
curativa” e “magia negra” (feitiçaria), há muito que esses campos se aproximaram, na prática, de alguns
terecozeiros. Hoje, além deles serem também muito procurados como curadores, pelo menos um, o conhecido
Bita do Barão, se apresenta como continuador dos antigos “feiticeiros” de Codó e declara já ter realizado, com
Exu, muitos trabalhos de vingança (FERRETTI, M. 2001, p.91)
34

L. s.d.), nas Cheganças16 e em danças e representações folclóricas que narram batalhas entre
mouros e cristãos. Contudo, nem sempre são conhecidos como encantados fora dos terreiros
de mina e de outras denominações religiosas influenciadas por ela. (FERRETTI, M. 2008)

Definir esses seres mágicos - os encantados - não é a mais simples das tarefas, são
concebidos como espíritos de homens e mulheres que morreram ou então passaram
diretamente deste mundo para um mundo mítico, invisível, sem ter conhecido a experiência
de morrer: diz-se que se encantaram (PRANDI, 2004, p. 07).

Entre os encantados que comandam o Maranhão, podemos destacar Dom Luís, que
comanda a ilha de São Luís e tem sua corte encantada na Baia de São Marco e domina de
Ponta d´Areia até a Ilha do Medo e Rei Sebastião cuja encantaria fica na Praia dos Lençóis e
que domina do Boqueirão ao Itaqui (OLIVEIRA, 1999).

1.1.3. Pajelança: Tambor de Cura

A Pajelança é uma manifestação religiosa de caráter híbrido e que envolve santos


católicos, crenças e práticas caboclas, afro-brasileiras e indígenas, possui tanto características
mágicas quanto religiosas. Nesta pesquisa os termos cura e pajelança foram utilizados na
concepção de Ferretti (2008) como um sistema médico-religioso.

Os termos cura e pajelança são usados aqui para designar um sistema médico-
religioso tão antigo ou mais antigo que o tambor de mina, encontrado na capital e
em outros municípios maranhenses, onde o curador ou pajé17, em transe ou inspirado

16
Cf. Ação de chegar. Dança lasciva do séc. XVIII. Bras. Folguedo popular nas festas do Natal, em que figuram
danças e cenas marítimas entre cristãos e mouros.
17
Para tornar-se pajé ou curador, a pessoa precisa ter um dom, que pode ser ‘de nascença’ ou ‘de agrado’. É
possível reconhecer um dom de nascença quando a criança ‘chora no ventre da mãe’, o que não deve ser
revelado publicamente antes do tempo, sob pena de a pessoa perder seus poderes. O pajé, quer seja de nascença
ou de agrado, tem uma carreira muito semelhante ao que é classicamente descrito em relação aos xamãs em
várias partes do mundo: um período de crise de vida, em que sofre incorporações descontroladas de espíritos e
caruanas, devendo submeter-se a tratamento com um pajé experiente (um ‘mestre’), que irá afastar os espíritos e
os maus caruanas, treinando o noviço para que ele possa controlar as incorporações, a fim de que elas ocorram
somente em ocasiões e lugares determinados. Ao mesmo tempo ensina-lhe os mitos, as técnicas, o conhecimento
dos remédios, as orações, etc., de sua arte. Ao final do período de treinamento, o novo pajé é “encruzado”, numa
cerimônia imponente, em que deve morrer simbolicamente para renascer como xamã. A partir daí estará pronto
para tratar seus próprios doentes e até formar seus próprios discípulos. Mas nunca se cura inteiramente da
35

por entidades espirituais, faz diagnóstico; trata enfermidades; prepara medicamentos


naturais, a partir principalmente da flora e da fauna brasileira; e receita alguns
remédios produzidos pela indústria farmacêutica, de uso não controlado pelo sistema
oficial de saúde (‘fortificantes’, como o Biotônico, purgantes, como a Água Inglesa
e outros). (FERRETTI, M. 2008)

A utilização dos termos Pajé e Pajelança18 remonta ao século XIX, pesquisadores, como
Mundicarmo Ferretti, Sérgio Ferretti e Gustavo Pacheco dão conta de uma documentação
variada composta por jornais e documentos oficiais da época a cerca dessas práticas sendo
realizadas diversas cidades do interior do Maranhão.

No último quartel do século XIX, negros da capital maranhenses se reuniam também


em de uma religião denominada ‘pajé’, com alto nível de sincretismo com o
catolicismo, não confundível com a pajelança indígena e nem com o tambor de
mina, onde a relação entre religião e saúde era mais expressiva. (FERRETTI, M.
2004).

A origem da pajelança é indefinida. Algumas práticas sugerem uma relação ou


aproximação entre a pajelança e o Xamanismo Ameríndio, como:

O transe de possessão com entidades espirituais, inclusive espíritos de animais, tidas


como de origem indígena; a utilização de elementos físicos tidos como de origem
indígena, entre os quais se destacam o maracá e o penacho; a ênfase no aspecto
curativo da prática religiosa; a utilização, na atividade curadora, de técnicas tidas
como de origem indígena, entre as quais se destacam o soprar fumaça,
especialmente de tabaco, e a sucção de substâncias patogênicas com a boca.
(PACHECO, 2004)

A pajelança por muito tempo foi tratada como uma calamidade moral e de saúde
pública. Uma legislação específica foi criada ainda no século XIX com o intuito de
regulamentar essas práticas e proibir a feitiçaria, mesmo as constituições do Estado
Republicano garantindo desde a proclamação da república a liberdade religiosa. Essa

“doença” (chamada de “corrente do fundo”) que o acometeu: ele terá que manter permanentemente certos tabus
alimentares, sexuais e de outros tipos, bem como “chamar” regularmente suas entidades, dedicando-se,
permanentemente, à prática da “caridade”, isto é, à cura das doenças, sem procurar fugir de suas “obrigações”,
sob pena de ser castigado por seus próprios caruanas. (MAUÉS, 1998)
18
O uso de um termo tupi para falar de cerimônias realizadas em quilombos não deve nos surpreender.
Referências a pajés e pajelanças em contexto não-indígena podem ser encontradas desde as primeiras décadas
do século XIX. Há menções explícitas a “pajés” nos códigos de posturas de diversos municípios maranhenses
(M. Ferretti 2001: 35; APEM 1992; Pacheco 2002). A lei nº 400/1856, que aprovava posturas da Câmara de
Guimarães município a que Cururupu pertencia antes de ser desmembrada – dizia, em seu artigo 31: Os que
curão de feitiço (a que o vulgo dá o título de pajés) incorrerão na pena de cinco mil réis, e na falta de meios ou
reincidência, de 10 a 20 dias de prisão. Referências a curadores ou pessoas que curam feitiço são abundantes,
como por exemplo a lei nº 224/1846, que aprovava posturas da vila de Viana: Art. 10 Toda a pessôa, que
arrogar a si o poder imaginario de curar feitiço será multada em trinta mil réis, e o dobro na reincidencia com
quinze dias de prisão. (PACHECO, 2004)
36

regulamentação se deu tanto no texto constitucional (1891, 1934, 1937 e 1946), como também
no Código Penal (1889, 1940) e nos códigos de postura regionais (Codó, São Luis), que serão
discutidos no capítulo três.

1.2. Encantados e Caboclos: Misticismo entre os elementos presentes nas religiões Afro-
Brasileiras e Afro-Indio-Brasileiras no Maranhão.

Encantados e caboclos fazem parte do universo mágico das religiões afro-brasileiras no


Maranhão. Nas florestas de babaçu, ocorreram os primeiros contatos entre os escravos e os
indígenas locais, seus mitos e ritmos foram se misturando, e aos poucos foram incorporando
elementos do catolicismo português para criar um culto aos encantados, seres lendários de
origem europeia, africana e cabocla que renegaram a morte e passaram a habitar um lugar
especial na eternidade, a Encantaria.

Muitas vezes na Casa de Dona Constância era comum fazer referência ao culto religioso
realizado ali como Encantaria e nos apropriaremos desse termo para definir todo o hibridismo
característico dos rituais realizados naquela casa.

Como já mencionamos anteriormente, os encantados são entidades importantes na


religiosidade maranhense, estão presentes no Tambor de Mina, no Terecô e na Pajelança,
estando ausente apenas na Casa das Minas (PRANDI, 2005); são entidades espirituais
africanas e não africanas; São pessoas que tiveram uma vida terrena e desapareceram ou
simplesmente encantaram-se, ou seja, em outros termos acreditam que:

As entidades espirituais que tiveram sua vida interrompida pela morte ou ‘encante’
(desaparecimento misterioso) e que reapareceram na Mina, muitos anos depois,
como invisíveis, na verdade venceram a morte. Continuam vivas, ao contrário dos
espíritos dos mortos (eguns) e às vezes, continuam fazendo na terra (incorporados
em seus ‘cavalos’) muito do que costumavam fazer antes de se separarem de suas
matérias (brincar, brigar, curar, dançar, beber, fumar etc.). (FERRETTI, M. 2000, p.
102 – 103.)

Assim, as entidades espirituais africanas, como os voduns e Tabossis, pertencem à


encantaria africana.
37

Acredita-se que em São Luis que voduns e Tabossis são entidades espirituais de
encantarias africanas que tiveram que ‘sair pelo mundo’ acompanhando seus filhos
quando estes foram escravizados. Há quem afirme que, apesar de afastadas do
continente africano, aquelas entidades continuam indo à África anualmente, na
quaresma, daí porque neste periodo os terreiros não realizam rituais que exijam sua
presença. (FERRETTI, M. 2000, p. 101.)

As entidades espirituais não africanas recebidas em São Luis e no interior em terreiros


fundados por africanos ou por afrodescendentes aparecem, como: nobres europeus associados
a orixás e/ou a santos católicos, caboclas de origem nobre, e entidades provenientes de
camadas populares e indígenas além de seres não inteiramente humanos, como as Mães
d’água19, os Surrupiras20, os botos e outros. A denominação cabocla, por exemplo, tem sido
utilizada para designar uma grande parte dos encantados nos cultos afro-brasileiros que tem
lugar no Maranhão e em outras regiões em que se realizam os rituais do Tambor de Mina.
Contudo, é importante ressaltar, que, o caboclo não é necessariamente o índio. Pode ser uma
entidade mestiça, mas que nem sempre tem o mesmo conceito usado em outros cultos
(SHAPANAN, 2004, P. 319). Todos os caboclos são considerados brasileiros, pois,
"nasceram" no Brasil enquanto entidade espiritual, isto é, começaram a ser recebidos em
transe mediúnico nos terreiros brasileiros (FERRETTI, M. 2000).

Contudo, é muito importante não identificar as entidades não africanas com Eguns
(espíritos de mortos), ou como já mencionamos, com espíritos indígenas exclusivamente.

No Tambor de Mina do Maranhão dificilmente se procura distinguir voduns de


caboclos afirmando-se que uns são forças da natureza e outros são espíritos de
mortos (eguns), como ocorre em outras manifestações religiosas de origem africana,
e como é enfatizado por muitos estudiosos de religião afro-brasileira. Entre os
voduns há entidades que tem nome de seres que viveram na terra como homens e
que foram divinizados após a morte, como Dakodonu, Agajá-Dossu e outros reis do

19
A Mãe d´Água é representada iconograficamente nos terreiros maranhenses de forma semelhante à Iemanjá,
orixá das águas salgadas, que é representada nos terreiros de Umbanda e cultos afro-brasileiros como uma sereia
do mar. No Maranhão acredita-se que a Mãe d´Água (sereia de água doce) exerce um magnetismo sobre as
"crianças inocentes", de até sete anos, principalmente sobre as que não foram batizadas, pois ela é pagã. Desse
modo, no interior ou na área rural, quando uma criança pequena desaparece, suspeita-se logo da Mãe d´Água e,
na cidade, quando uma criança que ainda não foi batizada tem pesadelo ou convulsão, aparece sempre alguém
que, interpretando o problema como "investida" de Mãe d´Água, procura batizá-la, de emergência, com a água
do banho.
20
Os Surrupiras são entidades espirituais da Mina maranhense a cuja ação se atribui o desaparecimento de
muitas pessoas que moram perto do mato (da floresta). O Surrupira, que para alguns é o Curupira da mitologia
tupi, pode também fazer as pessoas perderem a direção nos caminhos e se embrenharem em mata de espinho,
pois os Surrupiras têm grande atração por eles, talvez porque moram nos tucunzeiros, palmeiras cujas folhas são
cheias de espinhos. Fala-se também que, ao contrário da Mãe d´Água, os Surrupiras não gostam de água e,
quando incorporados, se afastam rapidamente se alguém jogar água nos pés do médium. Em alguns terreiros de
São Luís os Surrupiras são recebidos como selvagens, pulando e uivando, mas em outros vêm como caboclos,
civilizados, e até comandando terreiro de Mina.
38

antigo reino do Dahomé, hoje República do Benim. E, segundo histórias contadas


nos terreiros de São Luís, entre gentis (ou fidalgos) e caboclos há entidades que
viveram na terra como homens e desapareceram ou tornaram-se invisíveis, sem
morrer, como o Rei Sebastião 21. (FERRETTI, M. 2000, p. 102).

Essa associação do caboclo aos espíritos indígenas se dá não apenas pela definição da
nomenclatura, mas também porque as entidades indígenas quando incorporam na Mina,
assumem, geralmente, uma identidade cabocla (FERRETTI, M. 2000), os “caboclos de pena”.
Os ‘caboclos de pena’ não costumam, também, revelar ou afirmar sua identidade
indígena nas letras das ‘doutrinas’ (músicas de mina) cantadas nos ‘toques’. As
referências nelas encontradas, a aldeias, remetem tanto as áreas indígenas como a
pequenos núcleos populacionais rurais (onde, por sinal, moram também boiadeiros
que incorporam no Sampa angola – Candomblé de Caboclo, realizado na Casa de
Fanti-Ashanti – que se definem frequentemente, como ‘da Hungria’ e como ‘filhos
ou afilhados dos orixás’). Afirmações de arcos e uso de flechas são também
ambíguas, uma vez que esses elementos não são associados apenas a índios
brasileiros mas também a caçadores africanos como Oxossi. (FERRETTI, M. 2000,
P. 105).

Há ainda outros aspectos importantes a se destacar no culto aos encantados. Ele faz
parte da vida dos filhos e filhas de santo desde o nascimento. Os encantados são vistos como
anjos de guarda. O neto de Dona Constância22, Pedro Filho, em nossas conversas mencionou
que os filhos e filhas da encantaria do Codó recebem um anjo de guarda, um encantado, que o
acompanha por toda a vida, entretanto, negou-se a revelar qual seria o seu protetor. Nos
terreiros eles são protetores dos homens, mas ao contrário dos anjos de guarda podem castigar
rigorosamente seus protegidos.

Dentro deste quadro que evidencia a importância dos encantados, é essencial analisar a
organização destes dentro do panteão da religiosidade maranhense. Podemos demonstrar que,
assim como os voduns, os encantados também estão divididos em famílias. Reginaldo Prandi,

21
O Rei Sebastião no comandou de uma expedição contra o Marrocos em 1578 à frente de um exército de mais
de 15.000 homens, desembarcou no litoral. Na batalha de Alcácer-Quibir, no dia 4 de agosto, os portugueses
foram esmagados pelas forças do sultão Abd al-Malik e o rei desapareceu misteriosamente em combate, gerando
com isso o sebastianismo, baseado na crença de seu retorno. O sebastianismo na Ilha dos Lençóis está presente
na vertente da Encantaria; isto é, o gentil ou fidalgo Dom Sebastião surge como Rei Sebastião, uma entidade de
cultos afro-brasileiros identificada como “encantado” – categoria (retirada da Pajelança amazônica), utilizada
para se referir àqueles que viveram na Terra há muitos anos, “venceram a morte” e continuam “vivos” nas
“encantarias”. A simbologia da Encantaria sebastianista na “Praia do Lençol” tem um peso muito forte nas
representações e visão de mundo dos nativos, que acreditam que o Rei Sebastião é o “dono do lugar”, e por isso
o respeitam. (PEREIRA, Madian de Jesus Frazão. Ecoturismo e Patrimônio Cultural na “Ilha Encantada”.
Acessado em 14 de julho de 2011 as 16h25min em www.antropologia.com.br/arti/colab/abanne2003/a10-
mfpereira.PDF)
22
Entrevista realizada com Pedro Pereira da Luz Filho em 20 de agosto de 2010 em Teresina no Piauí
39

em ‘Nas pegadas dos Voduns’, destaca as famílias de encantados a partir das pesquisas da
antropóloga Mundicarmo Ferretti.

Como os voduns, os caboclos ou encantados estão reunidos em famílias,


algumas delas características de certas casas, como o centenário Terreiro da
Turquia, onde caboclos turcos ou mouros são as entidades mais importantes
do culto. O nome caboclo, usado genericamente para se referir a um
encantado, não significa tratar-se de entidade indígena. Enquanto as danças
para os voduns são realizadas ao som de cânticos (doutrinas) em língua ritual
de origem africana, hoje intraduzível, os encantados dançam ao som de
música cantada em português. (PRANDI, 1997, p.116)

Dentro desta perspectiva, a Encantaria dividiu-se em: Encantaria Gentil (reunindo as


famílias de reis, rainhas, príncipes, princesas e nobres) e a Encantaria Cabocla em que
aparecem as demais famílias. No quadro abaixo assinalamos como essas famílias estão
organizadas.
40

QUADRO 04: Famílias de Encantados e Caboclos

FAMÍLIA ASPECTOS RELEVANTES ENCANTADOS E CABOCLOS


Os Reis e Rainhas: Dom Sebastião, Dom Luís, Dom Manoel, Dom
Recebeu esse nome em alusão à Praia José Floriano, Dom João Rei das Minas, Dom João Soeira, Dom
do Lençol, onde se acredita teria Henrique, Dom Carlos, Rainha Bárbara Soeira;
atracado o navio do Rei Dom Os Príncipes e Princesas: Príncipe Orias, João Príncipe de Oliveira,
Sebastião que desapareceu na Batalha José Príncipe de Oliveira, Príncipe Alterado, Príncipe Gelim, Tói
Família do
de Alcacequibir. Família de reis e Zezinho de Maramadã, Boço Lauro das Mercês, Tóia Jarina,
Lençol
fidalgos, os gentis. As cores da Princesa Flora, Princesa Luzia, Princesa Rosinha, Menina do Caidô,
família são azul e branco para os Moça Fina de Otá, Princesa Oruana, Princesa Clara, Dona Maria
encantados femininos e vermelho Antônia, Princesa Linda do Mar, Princesa Barra do Dia;
para os encantados masculinos. Os Nobres: Duque Marquês de Pombal, Ricardinho Rei do Mar,
Barão de Guaré, Barão de Anapoli.
Liderada pelo Pai Turquia, rei mouro
que teria lutado contra os cristãos.
Chegaram pelo mar e são de origem Mãe Douro, Mariana, Guerreiro de Alexandria, Menino de Léria,
nobre Encantados guerreiros, suas Sereno, Japetequara, Tabajara, Itacolomi, Tapindaré, Jaguarema,
cantigas falam de guerra e batalhas Herundina, Balanço, Ubirajara, Maresia, Mariano, Guapindaia,
Família da no mar. Teriam nascido das ondas do Mensageiro de Roma, João da Cruz, João de Leme, Menino do
Turquia mar. Algumas dessas entidades assim Morro, Juracema, Candeias, Sentinela, Caboclo da Ilha, Flecheiro,
como da Família do Lençol, estão Ubiratã, Caboclinho, Aquilital, Cigano, Rosário, Princesa Floripes,
ligadas às narrativas míticas das Jururema, Caboclo do Tumé, Camarão, Guapindaí-Açu, Júpiter,
Cruzadas e das guerras de Carlos Morro de Areia, Ribamar, Rochedo, Rosarinho.
Magno.

Família de guerreiros, caçadores e


Caboclo Ita, Tombacé, Serraria, Princesa Iracema, Princesa Linda,
pescadores. É liderada por João da
Petioé, Senhora Dantã, Dandarino, Caboclo do Munir, Espadinha,
Mata, Rei da Bandeira. São
Família da Araúna, Pirinã, Esperancinha, Caboclo Maroto, Caçará, Indaê,
encantados nobres e mestiços. As
Bandeira Araçaji, Olho d’Água, Espadinha, Jandaína, Abitaquara, Jondiá,
cores dessa família são: verde,
Longuinho, Vigonomé, Rica Prenda, Princesa Luzia, Princesa Linda,
branco, amarelo e vermelho.
Tucuruçá, Beija-Flor, Jatiçara, Pindorama.
Dom Miguel da Gama, Rainha Anadiê, Baliza da Gama, Boço
Encantados nobres e orgulhosos. Seu
Família da Sanatiel, Boço da Escama Dourada, Boço do Capim Limão, Gabriel
símbolo é uma balança. Suas cores
Gama da Gama, Rafael da Gama, Jadiel, Isadiel, Isaquiel, Dona Idina,
são vermelho e branco
Dona Olga da Gama, Dona Tatiana, Dona Anastácia.
São entidades caboclas menos Zé Raimundo Boji Buá Sucena Trindade, Joana Gunça, Maria de
civilizadas e menos nobres, que Légua, Oscar de Légua, Teresa de Légua, Francisquinho da Cruz
Família de vivem, geralmente, em lugares Vermelha, Zé de Légua, Dorinha Boji Buá, Antônio de Légua,
Codó ou da afastados das grandes cidades e Aderaldo Boji Buá, Expedito de Légua, Lourenço de Légua, Aleixo
Mata de pouco conhecidos e que costumam Boji Buá, Zeferina de Légua, Pequenininho, Manezinho Buá,
Codó vir beirando o mar ou igarapés. Suas Zulmira de Légua, Mearim, Folha Seca, Maria Rosa, Caboclinho,
cores são o mariscado de Nanã, João de Légua, Joaquinzinho de Légua, Pedrinho de Légua, Dona
marrom, verde e vermelho. Maria José, Coli Maneiro, Martinho, Miguelzinho Buá, Ademar.
Caboclos baianos popularizados
através da umbanda, mas o tambor-
de-mina não os reconhece como
originários do Estado da Bahia, mas
de uma baia no sentido de acidente
Xica Baiana, Baiano Grande Constantino Chapéu de Couro, Mané
Família da geográfico ou de um lugar
Baiano, Rita de Cássia, Corisco, Maria do Balaio, Zeferino, Silvino,
Baia desconhecido existente no mundo
Baianinho, Zefa e Zé Moreno.
invisível. Brincalhões e muito
falantes, os baianos são sensuais e
sedutores, às vezes inconvenientes.
Suas cores são verde, amarelo,
vermelho e marrom.
Família de caboclos selvagens, como Vó Surrupira, Índio Velho, Surrupirinha do Gangá, Marzagão,
Família de
índios. Feiticeiros e “quebradores de Trucoeira, Mata Zombana, Tucumã, Tananga, Caboclo Nagoriganga,
Surrupira
demanda” Zimbaruê.
Informações obtidas em PRANDI, Reginaldo. Nas Pegadas dos Voduns in MOURA, Carlos Eugênio
Marcondes de (org). Samavo, o amanhã nunca termina. São Paulo: Empório de Produções, 2005.
41

Nos estudos realizados por Mundicarmo Ferretti e Reginaldo Prandi outras famílias de
caboclos e encantados foram identificadas. Entre elas podemos destacar: Família do Juncal,
de origem austríaca; Família dos Botos; Família dos Marinheiros, que tem como símbolo uma
âncora e um tubarão; Família das Caravelas; Família da Mata da qual fazem parte os caboclos
cultuados na umbanda, como Caboclo Pena Branca, Cabocla Jacira, Cabocla Jussara, Sultão
das Matas, Caboclinho da Mata, Caboclo Zuri e Cabocla Guaraciara.

Esse universo mágico em que se encontram caboclos e encantados constitui o mundo da


Encantaria Maranhense. A atmosfera de magia se traduz em um forte sentimento de ligação
com os elementos da natureza e com a vida em um mundo onde tudo se inicia na busca pela
memória daqueles que passaram pela terra ou não, daqueles que tentam manter tradições
seculares e que fazem parte da vida de cada um de nós desde a chegada dos primeiros
hominídeos a essa região e o encontro destes com negros de origem africana e gentis vindos
da Europa.

Memória que a partir de agora nos guiará na reconstrução, na busca de Dona Constância
e no entendimento do ritual “Obrigação de Dona Constãncia”. Memória que será permeada
por lugares, cheiros e símbolos; pessoas e acontecimentos; por fim tentaremos entrar na mata
de Codó e descobrir o que há de singular na religiosidade praticada naquele lugar, no qual
elementos de grupos, etnias e pensamentos distintos se misturam em constante magia e
paixão.
42

2 A OBRIGAÇÃO23: vou fazer pelo sinal, para fazer a Obrigação, a Obrigação é de mamãe,
ô Jesus, ô Jesus.

Na Umbanda, Obrigação são oferendas rituais feitas aos médiuns ou consulentes pelos
Guias com o objetivo de auxílio ou como parte de um ritual do desenvolvimento mediúnico.

Obrigações são oferendas rituais às divindades que o crente é obrigado a fazer, por
exigência das mesmas, a fim de propiciá-las e receber seu auxílio em questões
espirituais e materiais. Seu não cumprimento pode acarretar pesados sofrimentos
para o faltoso (CACCIATORE, 1988. P. 184)

Dona Constância passou por inúmeras dificuldades em sua vida e a sua obrigação foi
uma demonstração de agradecimento. A Obrigação de Dona Constância reunia vários rituais
consagrados ao povo das matas, das águas, aos Orixás e aos Santos Católicos. Quando
perguntamos a Dona Dasdores o porquê de um ritual tão complexo, ela nos respondeu que a
ausência de qualquer um deles deixaria a Obrigação incompleta, [...] é porque tem que ser
completo. Porque se fizer só a Obrigação das Águas não tá completo (Dona Dasdores, 2010).
Portanto, é preciso dedicar um espaço a cada um dos elementos da natureza.

A Antropologia e o método etnográfico neste estudo foram fundamentais. Bronislaw


Malinowski (1922) nos apresenta e sistematiza os fundamentos do método etnográfico na
obra “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, de 1922. Rompe com a perspectiva
evolucionista e sugere um estudo profundo e contínuo das sociedades.

Os argonautas são uma complexa narrativa, simultaneamente sobre a vida


trobriandesa e sobre o trabalho no campo etnográfico. Ela é arquetípica do conjunto
de etnografias que com sucesso estabeleceu a validade científica da observação
participante. (...) A observação participante serve como uma fórmula para o contínuo
vaivém entre o “interior” e o “exterior” dos acontecimentos: de um lado captando o
sentido de ocorrências e gestos específicos, através da empatia, de outro, da um
passo para trás, para situar esses significados em um contexto mais amplo.
(CLIFFORD, 1998; p.27-33)

A observação participante proposta por Malinowski (1922) proporciona a compreensão


dos fenômenos culturais a partir da inserção do pesquisador no cotidiano dos grupos. Para ele,
é necessário inserir-se integramente ao ambiente, sentir, agir, viver, perceber as nuances,
conhecer o cotidiano do grupo para além dos seus ritos e cerimônias, de forma que a figura do
pesquisador passe despercebida, pois a mesma, junto a todo o seu aparato científico,
23
A palavra Obrigação significa imposição, preceito; dever, encargo; benefício, favor; serviço, tarefa; escrita
pela qual se obriga ao pagamento de uma dívida, ao cumprimento de um contrato, dentre outros (Dicionário
Aurélio, 2001).
43

transforma e altera seu dia a dia, contudo, a convivência permite observar acontecimentos
corriqueiros, e com sensibilidade entender como se forma e se manifesta culturalmente o
grupo.

Se a etnografia produz interpretações culturais através de intensas experiências de


pesquisa, como uma experiência incontrolável se transforma num relato escrito e legítimo?
(CLIFFORD, 1998, p.21). Para isso, Malinowski (1922) destaca que o método etnográfico
deve se constituir por três partes importantes, a observação participante, o domínio teórico a
cerca da antropologia e a metodologia adequada para coletar os dados e as informações
necessárias. Neste esteio, associamos a nossa pesquisa, além do método da observação
participante, que nos permitiu vivenciar o cotidiano do sítio São José e observar a Obrigação
de Dona Constância sob uma perspectiva mais próxima e atenta, quase de intimidade, as
entrevistas, obtidas através da metodologia da história Oral, a qual ocupará posteriormente o
centro de nossas discussões, e as fotografias coletadas ao logo da observação e pesquisa.
Essas nos forneceram elementos importantes para compreendermos essa prática cultural que
ao mesmo tempo em que caracteriza aquele grupo nos fornece elementos importantes para
compreendermos as singularidades e diferenças da umbanda no Maranhão, no Nordeste e no
Brasil.

Ainda buscando as bases teóricas para efetivação do método etnográfico, alem dos
trobriandes de Malinowski (1922), os trabalhos de Evans-Prichard (1971) e de Roger Bastide
(2001) se revelam importantes referenciais para compreensão do universo da religiosidade de
matriz afro-brasileira no qual se inseriu nosso estudo e nos permitem entender os múltiplos
símbolos, sentidos e significados que compõem o cenário mítico, religioso no qual se
materializa a Obrigação.

O que me interessa, e que tentarei fazer aqui, é compreender essas religiões africanas
tentando revivê-las, por conseguinte, para usar uma expressão de um dos meus livros,
“convertendo-me” a elas. (BASTIDE, 1967. p. 05). O passo a passo da pesquisa deve
transformar a compreensão da vida, para Bastide (2001), o candomblé, por exemplo,
representava um sistema harmonioso de participações, um conjunto de elementos de origens
diversas e que formavam uma realidade autônoma e coerente.

Se o espaço dos candomblés nos conduz a uma geografia religiosa, da mesma forma
o estudo do tempo nos leva ao calendário de festas, cada mês, cada dia, e talvez,
cada hora tem suas qualidades específicas, suas virtudes especiais, que os
distinguem, separando os momentos e impedindo-os de se confundirem na
44

impessoalidade, na homogeneidade do calendário astronômico. (BASTIDE, 2001. p.


89)

É necessário, portanto, lançar sobre esses detalhes um olhar mais sensível e ao mesmo
tempo treinado para perceber as nuances necessárias para compreender peculiaridades
fundamentais dentro do grupo e de suas práticas culturais. Nesta perspectiva é importante
ressaltar que a postura de Bastide (2001) contraria discursos construídos em torno da cultura
afro-brasileira e que tinham como base um pensamento preconceituoso e etnocêntrico. A
observação participante e o afastamento premeditado do rigor científico, mas sem perdê-lo de
vista completamente, possibilitou vislumbrar outro universo, e a construção de uma imagem
do negro brasileiro imerso em sua religiosidade e tradições que resistiram à escravidão e a
expropriação de suas origens.

No mesmo enfoque Evans-Pritchard (1971) e seus Azande nos possibilitaram entender


um pouco mais dessa necessidade de viver, no sentido literal, cada passo e espaço da
pesquisa.

Costumava-se dizer, e talvez ainda se diga, que o antropólogo vai para o campo com
ideias preconcebidas sobre a natureza da sociedade primitivas, e que suas
observações são guiadas por suas tendências teóricas – como se isso fosse um vício
e não uma virtude (...) O antropólogo deve seguir o que encontra na sociedade que
escolheu estudar: a organização social, os valores e sentimentos do povo, e assim
por diante. Posso ilustrar esse ponto com meu próprio caso. Eu não tinha interesse
por bruxaria quando fui para o pais Zande, mas os Azande tinham: e assim me
deixei guiar por eles. Não me interessava particularmente por vacas quando fui aos
Nuer, mas os Nuer sim: e assim tive aos poucos, querendo ou não, que me tornar um
especialista em gado. (EVANS-PRITCHARD, 1971. p. 244-245).

Contudo, nos alerta para necessidade de conhecer nosso objeto e de submergir em sua
cultura de modo que em muitos momentos converta-se as práticas cotidianas do grupo
estudado parafraseando Roger Bastide (1967).

A nossa preocupação, porém, sempre foi a de trazer a antropologia para o centro de


nossas pesquisas, sem, contudo fazer deste um trabalho de antropologia, andando nesta região
de fronteiras fizemos o caminho que muitos historiadores já percorreram. Robert Darnton24 e
Carlo Ginzburg25 são referências neste tipo de estudo, historiadores que destacam em suas

24
O Grande Massacre de Gatos e outros Episódios da História Cultural Francesa apresenta uma narrativa
historiográfica em uma região de fronteira, Antropologia e História; trabalho interdisciplinar sobre as classes
populares da França nos séculos XVI e XVII, mentalidades, tradições, medos e anseios. Através dos contos
populares o autor apresenta uma outra versão das relações entre a burguesia e o proletariado e trabalha com
aspectos da mentalidade do povo francês daquele período.
25
Em Os Andarilhos do Bem: Feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII (I benandanti: stregoneri e
culti agrari tra Cinquecento e Seicento) Carlo Ginzburg analisa no período compreendido entre o final do século
XVI e o início do século XVII como as crenças relatadas pelos benandanti foram aos poucos incorporadas à
45

pesquisas a importância do diálogo entre a História e a Antropologia, mas que alertam para as
novidades e perigos em uma região de fronteira, região de diálogos delicados e por vezes
complexos, mas pertinente em alguns objetos de estudos.

Este é o nosso caso, o método etnográfico foi o mais adequado para encontrarmos as
respostas aos questionamentos que se mostravam a cada entrevista realizada e a cada leitura
que enfocava os rituais de umbanda realizados no sítio São José.

Por essa razão, descrever a Obrigação neste capítulo é um exercício de análise não
apenas centrados na descrição do ritual e seus elementos constituintes, mas de um conjunto de
sentimentos, que guiaram dezenas de pessoas, que participaram tantos anos do ritual.
Sentimento esse que faz parte do cotidiano não somente da família de Dona Constância, ou de
seus filhos e filhas de santo, mas que está incorporado dia-a-dia da cidade de Codó (MA).

2.1. CODÓ: terra de magia, de terecô, de encantado.

A cidade de Codó localiza-se na região Leste Maranhense, está há 292 Km da cidade de


São Luís, capital do Estado.

imagem do Sabá demoníaco; ao focalizar um culto fundamentalmente agrário de raízes pagãs, Ginzburg capta as
mudanças sutis operadas pelos mecanismos de repressão até transformá-lo num culto diabólico. Ginzburg
destaca a partir dos relatos inquisitoriais três momentos distintos: o primeiro de relativa indiferença (dos
inquisidores), no qual as tentativas de identificação com o Sabá restaram inglórias; o segundo no qual as virtudes
dos benandanti ganharam notoriedade, chamando a atenção do Santo Ofício, sendo esses inquiridos a falar
perante o tribunal do santo ofício; e o terceiro no qual a identificação com as práticas demoníacas apresentou-se
completa.
46

Figura 01: Mapa do Estado do Maranhão com destaque para a cidade de Codó.
Fonte: http://www.mp.ma.gov.br

O povoamento de Codó teve início em 1780. Em 1833 o lugar foi elevado à categoria de
vila por meio de Resolução Régia, assinada no dia 19 de abril de 1833. Somente em 16 de
abril de 1896 passou a condição de cidade, pela Lei estadual n°13, sancionada pelo então
governador Alfredo de Cunha Martins.

A formação da população e o crescimento da região estão associados à instalação das


fazendas de algodão durante o período colonial (portugueses e espanhóis) e a imigração de
sírios e libaneses, a partir de 1887, entretanto, é importante salientar a influência africana e
nativa brasileira para a formação cultural do território e do universo mágico que analisamos
no decorrer deste estudo.

A influência africana é fundamental para entender as origens do ambiente mítico da


cidade de Codó. Uma sólida e culturalmente preservada população remanescente de grupos
quilombolas da região fez dela uma das cidades de maior contingente negro do Brasil. No
final do século XVIII, escravos de diferentes etnias (banto, cabinda, jeje e nagô, dentre outras)
chegaram ao Maranhão.
47

Na região de Codó, contavam-se sete mil deles em meados do século XIX, todos
trabalhando no plantio do algodão. Foi nas comunidades negras que se originou o "Terecô da
mata codoense", uma festa do sincretismo. Nas florestas de babaçu, ocorreram os primeiros
contatos entre os escravos e os indígenas locais, seus mitos e ritmos foram se hibridizando e
aos poucos foram incorporando elementos do catolicismo português para criar um culto aos
encantados.

Vários encantados recebidos no Maranhão em terreiros de religião afro-brasileira


são conhecidos em diversas manifestações folclóricas (contos, cantos, danças,
representações teatrais, pinturas, esculturas etc.) onde são também considerados
seres dotados de existência real, que podem entrar em contato com os humanos.
Alguns deles, como a Mãe d´Água e o Rei Sebastião, são muito conhecidos. Outros,
como o Ferrabrás de Alexandria, personagem da antiga obra Historia do Imperador
Carlos Magno e os doze pares de França, reproduzida em folhetos de Cordel
(BARROS, L. s.d.), nas Cheganças e em outras danças e representações folclóricas
que narram batalhas entre mouros e cristãos, nem sempre são conhecidos como
encantados fora dos terreiros de mina e de outras denominações religiosas
influenciadas por ela. (FERRETTI, M. 2008)

Essas influências são imprescindíveis para compreensão da religiosidade africana


praticada no Maranhão e das práticas religiosas realizadas na cidade de Codó e na casa de
Dona Constância.

A religiosidade vivenciada no Maranhão criou entidades e lugares sagrados, como


Codó. Segundo a antropóloga Ferretti (2008), esses lugares sagrados não se restringem apenas
a Santos Católicos, como o santuário de São José de Ribamar26 ou “Almas Milagrosas27”, mas
a diversas localidades do Maranhão, onde são conhecidas por seu caráter sagrado.

Várias localidades são conhecidas como morada de encantados - seres


mitológicos que, vez por outra, aparecem a alguém em sonho ou em vigília e
que baixam nos terreiros de mina, terecô, umbanda e nos salões de curadores
e pajés. Esses encantados, recebidos em transe ritual, são também invocados
pela população em momentos de aflição. (FERRETTI, 2008. P. 04)

26
O município de São José de Ribamar ao ser colonizado por missionários era, primitivamente, aldeia dos índios
Grandes ou Gamelas, localizada nas terras dos religiosos da Companhia de Jesus, doadas por datas e sesmarias
pelo governador do Maranhão Francisco Coelho de Carvalho, em 16 de dezembro de 1627. As terras de São José
de Ribamar foram as primeiras que no Maranhão possuíram vice-província da Companhia de Jesus.
(MARQUES: 1870 apud Livro Tombo do Curato/Paróquia/Santuário de São José de Ribamar, p. 35). Chegando
aqui o capitão–general do Estado Francisco Coelho de Carvalho, nomeado por Sua Majestade católica o Rei
Felipe VI, que levava poderes de passar cartas de datas e sesmarias, "concorreram logo algumas pessoas, assim
seculares como religiosos, a pedir as terras que se lhes faziam precisas para o benefício de suas lavouras em
1624". (Livro Tombo do Curato/Paróquia/Santuário de São José de Ribamar, p. 36).
27
“Almas Milagrosas” ou “Almas Benditas” [de pessoas que viveram ali, a quem se recorre em momentos de
aflição] Cf.: FERRETTI, Mundicarmo (2008).
48

A cerca deste universo plural, Reginaldo Prandi (2004) analisa as religiões afro-
brasileiras ou afro-índio-brasileiras e as entidades espirituais que constituem esse panteão
especialmente brasileiro, e nele, Prandi encontra, como já mencionamos, além dos orixás de
origem africana, caboclos, mestres e encantados. Em Codó, encontramos o cenário perfeito
para a consolidação desse panteão.

Nesta concepção podemos considerar Codó a partir da perspectiva traçada por Zeny
Rosendahl (2009) como uma Hierópolis ou cidade-santuário, similar a centros de
peregrinação religiosa como Lourdes, Fátima, Canindé, Meca ou Santa Cruz dos milagres.

Entre as cidades especializadas, as cidades religiosas possuem uma ordem espiritual


predominantes, sendo marcadas pela prática religiosa da peregrinação ou romaria ao
lugar sagrado. Pelo simbolismo religioso que possuem e pelo caráter sagrado
atribuído ao espaço podemos chamar esses locais de Hierópolis ou cidades-
santuários. Assim as cidades-santuários são centros de convergência de peregrinos
que com suas práticas e crenças materializam uma peculiar organização funcional e
social do espaço. Esse arranjo singular e repetitivo pode ser de natureza permanente
ou apresentar uma periodicidade marcada pó tempos de festividades, próprias de
cada centro de peregrinação. (ROSENDAHL, 2009, P.26-27.)

A concepção de cidade santuário apresentada por Rosendahl (2009), nos parece


apropriada para essa discussão, visto que a cidade de Codó ao longo dos anos se transformou,
adequando–se as diversas festas de santo e celebrações, que recebe milhares visitantes
anualmente, dentre pais e mães de santo, filhos e filhas de santos, além de crentes de todos os
lugares do País e de fora dele.
49

QUADRO 05 Principais festas de Umbanda de Codó – MA

PRINCIPAIS FESTAS DE UMBANDA DE CODÓ/MA


FESTA DATA CASA/TERREIRO
Ano Novo 01 de janeiro Sítio São José
Todos/ Sítio São José 31 de
Festa de Iemanjá 02 de fevereiro
outubro
Sexta-Feira da Paixão
Semana Santa Sítio São José
meia-noite
Festa da Senhora Santana 26 de junho Sítio São José / Klaésio
Tenda Espírita de Umbanda
Festejos da Tenda Espírita de
13 a 19 de Agosto Rainha Iemanjá / Bita de
Umbanda Rainha Iemanjá
Barão
Tenda Espírita de Umbanda
Santa Bárbara 04 de dezembro Rainha Iemanjá / Bita de
Barão

Codó transformou-se na cidade da macumba, estereótipos que imprime uma visão


equivocada e desarticulada da realidade. Enquanto patrimônio edificado e simbólico, a cidade
se materializa em ruas estreitas e lugares de fé, que possuem uma identidade construída a
partir de tradições religiosas, culturais e do imaginário que reflete parte do que se pensa e se
diz sobre Codó. Tomando a afirmação de Pesavento (2007) sobre o imaginário podemos
entender a alcunha de cidade da macumba para Codó:

O imaginário é esse motor do homem ao longo de sua existência, esse agente de


atribuição de significados à realidade, é o elemento responsável pelas criações
humanas, resultam elas em obras exequíveis e concretas ou se atenham a esfera do
pensamento. (2007, p. 11-12)

Assim a cidade de Codó pode ser narrada a partir de sua religiosidade, da macumba,
das tradições da mata, terecô, encantados. Histórias narradas em diversos tempos e
abordagens por pesquisadores, pais e mães de santo, curiosos e apaixonados. Pelas ruas
estreitas da Cidade, pelos inúmeros terreiros e casas de encanteria, encontramos as histórias
de um povo que não pretende ser caracterizado como macumbeiro, mas que assiste à missa
pela manhã e vai ao terreiro no fim da tarde.

O imaginário da população local caracteriza-se por uma criação limitada e definida


pelo sistema religioso e social. À medida que são colocados para essa sociedade
novos fenômenos e problemas, criam-se novos deuses ou reinterpretam-se as
divindades tradicionais. O medo do feitiço aparece no discurso dos moradores de
Codó, como ideia nuclear na construção do imaginário local, que atua como um
sistema de valores que modifica comportamentos, interferindo na conduta dos
indivíduos. (BARROS, 2000. p.39)
50

A cidade de Codó é também a terra de magia, mesmo contrariando estudiosos que


acreditam que esse termo só serve para ratificar estereótipos. Mas como falar da religiosidade
em Codó sem nos reportarmos à magia e ao misticismo?

Mas, o que entendemos por Magia? Por que essa severa oposição aos elementos
mágicos quando se pretende analisar aspectos da crença e que se configuram no mundo do
sobrenatural, do mágico? Como a Umbanda do Maranhão pode ser analisada sem considerar o
seu caráter de magia?

A umbanda é uma religião mediúnica, produto do hibridismo cultural característico da


formação do povo brasileiro e que se reflete na cultura religiosa. Suas “entidades” espirituais
cultuadas são espíritos de mortos ou apenas, como referencia Prandi (2004), de indivíduos que
simplesmente encantaram-se.

Na unidade de construção de figuras míticas e no entendimento de suas narrativas se


superpõem as diversidades indicadoras de sentimentos, aspirações e atitudes individuais. No
plano ideológico, essas entidades são codificadas, conceituadas e hierarquizadas em um
universo cósmico como projeção e projeto do universo social. A própria hierarquia desses
espíritos corresponde à estratificação hierárquica da sociedade. Como demonstra a formação
das famílias de entidades na Mina e no Terecô.

A Umbanda em sua gênese se enquadra num universo de magia e mitos. De acordo com
o antropólogo escocês Sir James George Frazer28, a prática de magia parece estranha à lógica
do homem moderno. Ressalta que a magia constitui um sistema simbólico a partir do qual as
pessoas se reportam a seres sobrenaturais esperando obter resultados específicos, e afirma que
mesmo quando praticada por um indivíduo isolado, a magia é coletiva, pois se fundamenta em
crenças coletivamente compartilhadas.

Para Frazer (1982), a magia é um sistema de pensamento que pressupõe a ação regular
da natureza, segundo leis de simpatia que, uma vez conhecidas, permitem a intervenção
humana. Frazer postulou dois tipos de relações simpáticas: as relações de contiguidade
(contato) e as de similaridade. As relações de contiguidade são de tal ordem que as coisas,
uma vez colocadas em contato continuam unidas, isto é, podem agir umas sobre as outras,
mesmo depois de separadas.

28
FRAZER, Sir James George. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982
51

As relações de similaridade têm por regra fundamental o semelhante produzir o


semelhante, isto é, o efeito e sua causa se parecem. Na magia de contágio, o mago age sobre
uma pessoa, sobre algo que lhe pertenceu. As leis de contiguidade e similaridade supõem uma
eficácia da magia sobre o mundo objetivo que estende a ação da causalidade para além dos
limites postulados pelo nosso próprio pensamento. O que nos pareceria uma prática constante
ao analisarmos esses elementos de magia na Umbanda.

Frazer (1982) afirma ainda que a sociedade age através do mago, uma vez que ele não
inventa mitos e ritos, mas sim os reproduz segundo a tradição e o consenso grupal. A magia
não se caracteriza, pois, por uma situação em que o mais esperto abusa da credulidade dos
ignorantes. Ao praticar magia, o indivíduo serve-se de conhecimentos tradicionais de seu
grupo e assim, seja ele um homem isolado ou carismático, seu sucesso nas artes mágicas
depende de sua sujeição às crenças e valores da sociedade a que pertence.

Durkheim (2003) aparece na contramão dessa discussão de Frazer e é convocado para


ficar tomar a frente nas críticas à magia, invocando na categoria das crenças um lugar de
inferioridade a ela. Durkheim (2003) foi um dos primeiros antropólogos clássicos a afirmar o
caráter amoral da magia. Ao comparar, em As formas elementares da vida religiosa 29 , as
interdições religiosas e mágicas, afirmou que a sanção mágica não se funda na ideia de culpa
ou pecado. Independente da validade da interpretação durkheimiana, nesta discussão é
importante ressaltar o fato de que as religiões mágicas operam com um tipo de ética em que
prevalecem os temas persecutórios. Para Durkheim (2003), diferente da religião, a magia é
um fenômeno individual. Durkheim (2003) acredita que a eficácia mágica é de natureza
simbólica, capaz, ainda assim, de transformar o real, porque age, sobretudo, nas consciências,
depende da crença.

Valendo-nos, mais uma vez, de Frazer (1982):

Esse conflito radical de princípios entre magia e a religião é explicação bastante para
a implacável hostilidade com que na História, o sacerdote muitas vezes perseguiu o
mágico. A atitude auto-suficiente do mágico, sua atitude arrogante em relação aos
poderes mais altos e sua despudorada alegação de exercer um domínio como o deles
não podia senão revoltar o sacerdote, para o qual, com seu impressionante sentido da
majestade divina e a sua prostração diante dela, tais alegações e tal atitude deve ter
parecido ímpia usurpação de prerrogativas pertencentes unicamente a Deus. (1982,
p.226)

29
DURKHEIM. Emile. As formas elementares da vida religiosa. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes.2003
52

Keith Thomas, em Religião e o Declínio da Magia30 (1991, p.215), afirma que a Igreja
não negava que a ação do sobrenatural fosse possível, mas enfatizava que pode emanar de
duas fontes possíveis: de Deus ou do Diabo. O que, infelizmente, pode servir de justificativa
para atribuir de maneira equivocada, uma conotação negativa a presença das magias nos
espaços das religiões de matrizes africanas, preferindo muitos pesquisadores a não utilização
do termo. Thomas (1991) afirma ainda que:

Certos efeitos sobrenaturais podem ser previstos com confiança por homens de fé
que seguissem os rituais prescritos por Deus e pela Igreja, como, por exemplo, os
relativos à missa ou ao poder da água benta. Outros poderiam ocorrer
milagrosamente, como as atividades curativas dos santos. Mas todo o resto era
diabólico, e, portanto, abominável. Logo, qualquer mago que procurasse alcançar
um resultado prodigioso por meios que não fossem puramente naturais, nem
dirigidos por Deus, era culpado de aliar-se tácita ou expressamente, com Satã. Tal
era o delito daqueles que de maneira supersticiosa, atribuíssem um poder curativo a
palavra ou rituais não autorizados pela igreja, ou que tentassem mediante um
sistema qualquer de adivinhação, penetrar nos segredos do futuro que apenas a Deus
poderia conhecer. (1991, p.215)

Thomas (1991) ao analisar nesta obra o sistema de crenças na Inglaterra nos séculos
XVI e XVII, mas nos dá fundamento para discutir as questões relacionadas a magia em
muitos outros momentos e lugares. Em nenhum momento o autor deseja reduzir a religião a
um sistema elementar de magia, mas também não a desvincula da religião ou mesmo a
descaracteriza. Instiga-nos a realizar uma discussão que permite repensar a magia dentro das
sociedades contemporâneas, em especial as religiões de matriz africana, ao invés de relegá-las
ao desaparecimento em meio ao ceticismo e aos múltiplos estereótipos, que ainda persistem.
Contudo, não é pretensão deste estudo aprofundar essas questões, mas sim evidenciar a
importância dos elementos da magia e das crenças para entender os rituais que envolvem a
Obrigação de Dona Constância.

2.2. O Hibridismo Cultural na Obrigação de Dona Constãncia

30
THOMAS, Keith. Magia e Religião. In: Religião e o Declínio da Magia: Crenças Populares na Inglaterra, nos
séculos XVI e XVII. Tradução Denise Bottmann e Tomas Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
p. 214 – 234.
53

Como já mencionamos anteriormente, a Obrigação de Dona Constância teve lugar na


cidade de Codó, no Maranhão, cidade que ela escolheu para viver já com o segundo marido e
na qual permaneceu até sua morte em 2001. A data precisa do início das obrigações,
infelizmente, é um dado ao qual, mesmo as pessoas mais intimas de Dona Constância, não
conseguem lembrar, mas acreditam que tenha iniciado no final da década de 1980. O certo é
que foi realizado até o ano de 2008, tendo sido realizada mesmo depois de sua morte31.

A obrigação constitui-se por rituais que denotam todo o caráter hibrido da cultura
brasileira. O Hibridismo cultural característico dessa região é fundamental para
compreendermos tantos elementos distintos e de origem diversa dentro de um mesmo ritual.
Gilberto Freyre (1998, p. 175) já destacava um hibridismo cultural em Casa Grande e Senzala,
o que nos permite perceber um painel multicolorido de costumes e valores que tomaram
forma no período colonial. A religiosidade popular, objeto de nosso interesse neste trabalho,
incorporava aspectos das mais diversas crenças sem, contudo, deixar de lado o fato de que
mencionado o período colonial, em que a Igreja Católica não apenas referenciava as
manifestações de fé, mas era, oficialmente, o fundamento religioso legal do Brasil.

Freyre (1998, p.175) destaca os mais diversos elementos culturais que aos poucos foram
tornados híbridos e responsáveis pela construção de identidades brasileiras. Os índios e suas
crenças marcadas de magia e animalismo sendo ‘domesticados’ pelos padres jesuítas:

É assim que a noção de caiporismo, tão ligado à vida psíquica do brasileiro de hoje,
deriva-se da crença ameríndia no gênio agourento do caipora; este era um
caboclinho nu, andando de uma banda só, e que quando aparecia aos grandes era
sinal certo de desgraça. Sumiu-se o caipora, deixando em seu lugar o caiporismo, do
mesmo modo que desapareceram os pajés, deixando atrás de si primeiro as
‘santidades’ do século XVI, depois várias formas de terapêutica e de animismo,
muitas delas hoje incorporadas, junto com sobrevivências de magia ou de religião
africana, ao baixo espiritismo, que tanta concorrência à medicina e ao exorcismo dos
padres, nas primeiras cidades e por todo o interior do Brasil.

Para Freyre (1998), o catolicismo praticado no Brasil era uma religião doce, doméstica,
de intimidade com os santos. Os padres se vangloriavam de conceder aos negros certas
vantagens, como o direito de manifestar suas tradições nas festas do terreiro, não teria havia
então como evitar a influência da Senzala na Casa Grande.

31
Como já mencionamos a filha de dona Constância, Dasdores, recebeu a orientação de continuar realizando o
ritual por um período de sete anos após sua morte.
54

A religião teria mantido viva a memória e o sentimento da grande família africana.


Freyre (1998) não fala especificamente de candomblé ou qualquer outra religião afro-
brasileira para se referir às religiões ou manifestações afrodescendentes, mas descreve um
hibridismo, um caldeirão, como Roberto Damatta (1984) se refere na contemporaneidade, que
abrange influências recíprocas; utilizam-se constantemente de generalizações e vinculam-se
em muitos momentos à prática religiosa africana, à sexualidade e à feitiçaria,

A frequência da feitiçaria e da magia sexual entre nós é outro traço que passa por ser
de origem exclusivamente africana. Entretanto o primeiro volume de documentos
relativos às atividades do Santo Ofício no Brasil registra vários casos de bruxas
portuguesas [...] suas práticas podem ter recebido influência africana: em essência,
porém, foram expressões do satanismo europeu que ainda hoje se encontra entre nós,
misturado à feitiçaria africana ou indígena. (FREYRE, 1998, p. 379)

Freyre (1998) nos apresenta um painel inicial permeado pelo pensamento do início do
século XX, que nos permite compreender aquelas representações e entender o hibridismo
cultural, elemento essencial na formação das identidades brasileiras.

Burke (2003) nos informa de um hibridismo e de uma circularidade cultural. Ressalta


que assim como uma cultura pode ser transmitida de uma população para outra, de um grupo
para outro, uma crença, por exemplo, pode ser associada, ou mesmo modificada pelas
particularidades locais, sejam elas semelhantes às particularidades originais ou não, e acabar
voltando ao ponto de origem, influenciando a cultura da qual saiu por conta de seus novos
atributos, inseridos pela cultura que a recebeu.

A partir dessa perspectiva, Burke (2003) enfatiza que no Brasil, por exemplo, uma
pessoa leva seu filho ao médico e ao mesmo tempo à rezadeira ou ao centro espírita. Vai à
missa aos domingos e participa das oferendas à Iemanjá no primeiro dia do ano e no dia 02 de
fevereiro.

Na Obrigação de Dona Constância, esse hibridismo mencionado por Burke (2003) é


recorrente, quando visualizamos elementos, símbolos e ritos pertencentes às religiões de
matrizes africanas, nativo-brasileira e cristã de uma maneira geral. Da mina à pajelança, de
São Francisco ao Caboclo João Carrasco, dos banhos de ervas ao terço e o rosário. Elementos
que se hibridizam e conferem significados à Obrigação de Dona Constância, demarcando
singularidades da Umbanda praticada em Codó no Maranhão.
55

Foto 01: Obrigação das águas, todas as oferendas e banhos são colocados no centro do salão da reza para início
da gira que também marca o início do transe.
Foto: Vivian Brandim

A Obrigação de Dona Constãncia acontecia no Sítio São José todo dia 31 de outubro. O
dia 31 de Outubro está imerso em profundo simbolismo. Os Celtas acreditavam que este fosse
um dia especial; em seu calendário, o dia 31 de Outubro era o Samhain. Segundo os druidas
nessa noite a linha invisível que divide os mundos [o mundo dos vivos do mundo dos mortos]
torna-se mais tênue, sendo o momento ideal para a comunicação com os que já partiram. O
Outro Mundo celta é chamado de Abismo e é uma mescla de paraíso e atormentações, lugar
de muitas perguntas, mas onde se podem encontrar respostas para nossas perguntas mais
íntimas, onde fantasia e realidade, consciente e inconsciente se hibridizam. Durante essa
noite, é permitido aos espíritos atravessarem essa linha sem dificuldades. Essa explicação
Celta para o dia 31 de Outubro sempre foi um ponto importante na análise do ritual que
acontecia no Sítio São José. Não podemos afirmar que a obrigação seguisse os rituais celtas,
mas no mínimo é importante associar a data a esse momento de proximidade entre os mundos
que os Celtas chamavam de Samhain.

Lugar imerso nessa atmosfera mística o Sítio São José foi doado pelo senhor Assis,
dono do Cartório local, ao Rei Sebastião, em agradecimento a uma graça alcançada, mas
trataremos da doação e dos acontecimentos que a envolvem posteriormente. Dona Constância
recebeu o Sítio em nome do Rei Sebastião e nele realizou por quase três décadas a Obrigação.
56

Mesmo depois de seu falecimento, como já foi mencionado, em 19 de dezembro de 2001, o


ritual ainda se manteve por um período de sete anos.

A Obrigação é parte de uma promessa feita por Dona Constância aos encantados, e
simboliza sua gratidão e devoção a eles. Muito do que sabemos de Dona Constância nos foi
revelado por Dona Dasdores, sua filha e sucessora, ou pelos documentos pessoais e relatos de
outros familiares e conhecidos. O que por vezes se tornou um trabalho muito complicado,
visto que as pessoas queriam falar, contudo, não nos permitiam gravar. Por essa razão ficamos
apenas com os depoimentos dos netos Pedro Pereira da Luz Filho e Janeth Reis de Sousa e da
Filha Dona Dasdores, e com os dados obtidos a partir da observação do ritual da obrigação e
do cotidiano do sítio.

Para compreendermos tudo o que acontecia nos dias de obrigação pareceu-nos


importante sabermos mais sobre Dona Constância. Ao começarmos nossa investigação em
meio Voduns, Orixás, Encantados e Caboclos uma de nossas maiores curiosidades girava em
torno do encantado recebido por Dona Constância, descobrimos que não era apenas um, mas
vários. Contudo, Dona Dasdores32 nos falou do Chefe de Crôa, que seria o primeiro encantado
recebido por ela, era Seu Miarinseiro, um príncipe do Oriente. Dona Constância recebia ainda
O rei Sebastião, Doutor Firme e o Caboclo João Carrasco, que mandou fazer o Salão da Reza,
Todos com características muito particulares, e que discutiremos posteriormente.

Ao passo em que observávamos, entrevistávamos e investigávamos cada detalhe e cada


elemento que se apresentava seja nos rituais ou no dia a dia daqueles que faziam parte da
Obrigação descobríamos um universo de particularidades, que faziam deste ritual algo
singular e ao mesmo tempo materialização de um hibridismo característico da cultura
brasileira. Em busca dessas particularidades que Geertz (1989) destaca como essenciais para o
entendimento das culturas 33 evidenciamos quatro momentos ritualísticos importantes e em
homenagem ao povo das matas, ao povo do oriente e ao povo das águas. Nas matas aos
caboclos, como o Caboclo Maitá, chefe das matas. Nas águas, a Mãe Sereia e Mãe D’Água
Rainha34. E a procissão aos santos da igreja católica, São Francisco e São José.

32
Entrevista realizada com Dona Maria Dasdores Pereira no dia 25 de julho de 2011 em Codó no Maranhão.
33
GEERTZ, C. A Descrição Densa. In: A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
34
A Mãe d´Água é representada iconograficamente nos terreiros maranhenses de forma semelhante à Iemanjá,
orixá das águas salgadas, que é representada nos terreiros de Umbanda e cultos afro-brasileiros como uma sereia
do mar. No Maranhão acredita-se que a Mãe d´Água (sereia de água doce) exerce um magnetismo sobre as
"crianças inocentes", de até sete anos, principalmente sobre as que não foram batizadas, pois ela é pagã. Desse
modo, no interior ou na área rural, quando uma criança pequena desaparece, suspeita-se logo da Mãe d´Água e,
57

Observamos o ritual pelos sete anos35 que se seguiram a morte de Dona Constância.
Dona Dasdores acompanhou a passagem da mãe e no momento que antecedeu a sua morte ela
passou-lhe todas as instruções e como deveria ser realizada cada obrigação e por quanto
tempo isso deveria acontecer. Nos sete anos que se seguiram a Obrigação obedeceu
metodicamente às orientações de Dona Constância, e nesta narrativa apresentaremos o último
ano da obrigação, realizada por Dona Dasdores, 31 de outubro de 2008. Para isso a descrição
densa de Geertz (1989) nos pareceu à forma adequada para compreendermos todo caráter
híbrido que acreditamos se materializar nos rituais que envolvem a obrigação. Para Geertz
(1989) uma boa descrição já é em si densa e a densidade implica em interpretação. Ele
fundamenta essa necessidade buscando conceituar prática, praticante, estudo e objeto. Porém,
Geertz (1989) afirma ainda que etnografia não é questão de método é estabelecer relações,
selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um
diário (1989. p.15).

Geertz (1989) nos apresenta assim a cultura como algo dinâmico, um sistema
entrelaçado de signos interpretáveis. A cultura não é um poder, algo ao qual possam ser
atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições e os
processos, ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos com densidade e
assim interpretados dentro de uma realidade singular, uma vez que recorrer à história
antropológica é ter a capacidade, parafraseando Geertz (1989), de tentar ler a realidade
sociocultural como se esta fosse um palimpsesto, no qual encontramos interpretações
tendenciosas, inscritos nas práticas do cotidiano e nas leis consuetudinárias.

A Obrigação de Dona Constãncia, como mencionado anteriormente, é constituída por


quatro momentos ritualísticos. A Alvorada, a Obrigação da Mata, a Procissão de São José e
São Francisco e a Obrigação das águas. E a partir deste momento tentaremos compreender
cada um deles dentro do universo da Umbanda e de suas singularidades no Maranhão.

2.3. A Alvorada: Ô dá-me Licença.

na cidade, quando uma criança que ainda não foi batizada tem pesadelo ou convulsão, aparece sempre alguém
que, interpretando o problema como "investida" de Mãe d´Água, procura batizá-la, de emergência, com a água
do banho.
35
A observação do ritual teve início na última obrigação realizada ainda por Dona Constância, e durou pelos
sete anos que se seguiram.
58

A Alvorada é um momento de alegria, de saudar os orixás para um novo dia de festa.


Contudo, a preparação começa bem antes, os filhos e filhas de Santo chegam ao sítio São
José, bem antes do dia 31 de outubro, cerca de uma semana antes. A partir da chegada há uma
preparação do espaço, mas também de cada filho e filha de Santo. O sítio é completamente
limpo e enfeitado, permanecendo durante o período de sete dias que antecede a Obrigação
com todas as portas e janelas abertas, para que as energias possam circular livremente, sem
nenhum entrave. Os visitantes são bem recebidas, e convidados a permanecer no sitio. As
varandas são ocupadas por redes e até mesmo o salão da reza fica cheio.

Os filhos e filhas de santo, assim como Dona Dasdores, neste período, são submetidos
a um jejum, eles se abstém de carne vermelha, pois consideram-na pesada para o espírito, não
comem carne vermelha de jeito nenhum, pra não ficar pesada a matéria (Dona Dasdores,
2011). Não podem também manter relações sexuais nos cinco dias que antecedem a
obrigação, pois o corpo precisa estar puro e as relações de carne (Dona Dasdores, 2011)
corrompem o espírito. Durante o dia 31, Dona Dasdores faz o jejum completo para se preparar
para Obrigação. O jejum é uma tradição que surgiu na antiguidade e consolidou-se na Idade
Média, a carne vermelha tornou-se símbolo da gula e associado ao pecado. Abster-se do
alimento e mesmo daquilo que é representação do desejo do corpo e da alma, é também
abster-se do pecado As religiões de matriz afro-brasileiras possuem os seus interditos
alimentares. A utilização do gado bovino era na África destinado às práticas religiosas,
sacrifícios, multas e dotes. E como descreve Cascudo (2004), existia o “complexo mágico de
Boi”, no qual o gado criado era para cerimônias, e eventualmente, quando consumido, era
com respeitoso recato, como restos da fome dos deuses repletos. O jejum e a abstinência do
alimento estão também relacionados ao sacrifício, e, portanto as ideias de salvação ou de
santificação.

A Alvorada, porém, não era o ritual que dava início a Obrigação antes do falecimento
de Dona Constãncia, existia outro ritual importante e que depois de sua morte deixou de ser
realizado, era a Obrigação das Almas Santas Benditas.

Em inúmeros momentos, entre as idas e vindas de Codó para realização da pesquisa


tentamos investigar Dona Dasdores sobre essa parte da Obrigação, contudo, ela se limitava a
dizer que, infelizmente, esse foi o único pedido feito por Dona Constância em seu leito de
morte e que ela teve que negar.
59

Segundo ela essa é a primeira coisa que se faz, acontece no cemitério e é feita pela
Mãe de Santo (ela não gosta de ser chamada assim, pois acredita que não tem autoridade para
ser mãe dos santos orixás), antes mesmo da Alvorada, para se ter paz enquanto faz a
obrigação, para não ser atrapalhado. São acesas velas, acende a luz para o bom e para o ruim,
para ele não atrapalhar. Dona Dasdores nos sete anos seguintes a morte de Dona Constãncia
não realizou a obrigação das almas benditas, mas ia ao cemitério e acendia as velas e os
oferecia a todas as almas.

Foto 02: Cemitério na estrada que leva ao sítio São José onde era realizada a Obrigação das Almas Santas
Benditas.
Foto: Vivian Brandim

Em seguida volta ao sítio, para, junto aos outros filhos e filhas de Santo iniciar os
trabalhos. Iniciar os trabalhos é assim que Dona Dasdores faz referência a Alvorada nas
diversas entrevistas e conversas que tivemos. Antes das cinco da manhã, filhos e filhas de
Santo despertam e se preparavam para pedir aos encantados licença para iniciar os trabalhos,
licença para chamar pelas entidades e licença para iniciar o trânsito pelos mundos. È um
momento de alegria intensa, onde os orixás são chamados para festejar naquela casa, pois sem
a Alvorada não há festa.

Ô salve as Três Marias ao romper do dia.


Ô salve estrela Dalva. Salve a Virgem Maria.
60

Ô salve a estrela Dalva. Salve a Virgem Maria.


A Virgem Maria já abençoou.
A estrela Dalva seu mundo clareou.
A estrela Dalva seu mundo clareou.

Com essa doutrina36 Dona Dasdores dava início a Alvorada, saldando o dia que estava
começando. A Alvorada inicia às cinco da manhã, pois é hora de obrigação, hora de
obrigação é cinco da manhã, meio dia, cinco da tarde e meia noite, cinco da tarde é hora de
preto velho, é hora de Iemanjá (Dona Dasdores, 2012).

Elas percorrem os pontos firmados37 dentro do sítio e fora dele, esses pontos são como
portas de entrada para as entidades que irão se manifestar durante o ritual.

Foto 03: As fotos mostram a realização da Alvorada, momento em que iniciam a doutrina, pedindo licença para
iniciar os trabalhos e firmam os pontos abrindo as portas para que as entidades possam se manifestar.
Foto: Vivian Brandim

36
Doutrina é a oração em forma de canto que dá início aos rituais da Obrigação.
37
Cantar coletivamente o ponto [doutrina] determinado pela entidade que vai dirigir os trabalhos para conseguir
uma concentração da corrente espiritual
61

Foto 04: As fotos mostram a realização da Alvorada, momento em que iniciam a doutrina, pedindo licença para
iniciar os trabalhos e firmam os pontos abrindo as portas para que as entidades possam se manifestar.
Foto: Vivian Brandim

Elas acendem velas, firmam os pontos e doutrinam pedindo licença a Deus, aos orixás e
encantados e principalmente a virgem Maria, pois é ela, que segundo eles dá a permissão para
que os encantados possam se manifestar a partir de seus aparelhos de seus cavalos38.

A Alvorada evidencia o momento de abertura do espaço, e a transição do espaço e do


tempo profano para o sagrado. Aquela linha tênue que divide os mundos finalmente poderá
permitir o contato entre eles. Para compreender esse processo Marcel Mauss (2005) destaca
como o ritual é capaz de tornar sagrado o que é profano.

Para Mauss (2005) a religião opera a transformação do sagrado em profano. Para ele o
sacrifício é uma intermediação entre o sagrado e o profano, ou seja, o profano é submetido a
um processo de sacralização através do sacrifício. O jejum e toda a preparação da semana são
evidências desse processo.

A alvorada permite que os outros rituais possam ser realizados saldando o dia e a mãe
rainha, e pedindo permissão a Deus, Orixás, Caboclos e Encantados para iniciar o dia de
homenagens e sacrifícios.

38
CAVALO: Pessoa que serve de suporte para os orixás ou entidades. O médium.
62

Finalizam a Alvorada no salão de reza, com um terço. E iniciam a preparação para a


obrigação da Mata, quando os caboclos e encantados mais uma vez irão se manifestar.

Foto 05: Finalização da Alvorada no centro do salão da reza, a estrela Dalva do nascer do dia já abençoou e as
festas podem começar.
Foto: Vivian Brandim
63

Foto 06: Finalização da Alvorada no centro do salão da reza, a estrela Dalva do nascer do dia já abençoou e as
festas podem começar.
Foto: Vivian Brandim

2.4. Obrigação da Mata: Dá-nos proteção Caboclo Humaitá39

Ao povo das matas, aos caboclos, essa Obrigação é feita no interior da mata, e imersa
em uma força que pode ser materializada no soar dos tambores. Inicia ao meio dia, todos os
filhos e filhas de santo se reúnem no interior do antigo quarto de Dona Constância, cada um
carrega consigo uma vela e muita fé, essas velas serão os pontos a serem firmados no meio da
mata. Em fila deixam o quarto e se encaminham sob a liderança de Dona Dasdores para as
margens do riacho que corta o sítio São José.

39
Caboclo Humaitá é o chefe das matas.
64

Foto 07; Preparação da obrigação da mata no quarto de dona de dona Constância. O ritual inicia precisamente ao
meio dia. Foto: Vivian Brandim

Foto 08: Momento inicial da obrigação das matas, filhos e filhas de santos são acompanhados por curiosos e
crentes para entrar na mata do Cuxá. Foto: Vivian Brandim

As margens do riacho o tambor soa alto, todos esperam até que Dona Dasdores entre
nas águas e os terecozeiros entoem mais uma vez o tambor. Assim como na Alvorada é hora
65

de pedir permissão, permissão ao Caboclo Humaitá para poder entrar na mata. Dona Dasdores
entra nas águas levanta as mãos e roga ao céu e a Virgem Maria por proteção. Nas mãos leva
um rosário, as vestes são brancas40 e o rosto está sereno.

Foto 09: O riacho porta de entrada para mata é nele em que é pedido licença para entrar nas matas, o tambor
entoa dando espaço para que os encantados possam se manifestar.
Foto: Vivian Brandim

40
As vestes são brancas, mas nem todos os anos foi assim, em outros momentos, em anos anteriores a cor variou
e essa variação tinha uma relação direta com as entidades a quem as obrigações estavam direcionadas. O verde
dos Caboclos e Encantados, o azul de Iemanjá e o branco do pai Oxalá.
66

Foto 10: O riacho porta de entrada para mata é nele em que é pedido licença para entrar nas matas, o tambor
entoa dando espaço para que os encantados possam se manifestar.
Foto: Vivian Brandim

A doutrina continua acompanhada pelo toar do tambor. O ar é inundado pelo cheiro do


defumador que agora ocupa parte do espaço, ele nos parece mais denso, pesado. Dona
Dasdores se ajoelha nas águas e a doutrina se intensifica, parece que existe uma sintonia entre
o cheiro do defumador, o toar tambor, a doutrina proferida, o que parece embriagar a todos
fazendo com que entrem em transe41. O transe é um dos momentos mais importantes do ritual
de umbanda, pois é a ocasião em que as entidades se manifestam.

41
O transe é um dos elementos mais importantes e que tem maior influencia sobre a construção do imaginário
popular a cerca dos fenômenos religiosos a que estão relacionados. O transe na umbanda não é considerado nem
estritamente individual (como no kardecismo) nem propriamente representação mítica (como no caso do
candomblé), mas atualizações de fragmentos de uma história mais recente por meio de personagens tais como
foram conservados na memória popular brasileira. As manifestações dessas entidades no corpo de seus médiuns
são feitas por meio da lembrança inconsciente de alguns traços que permanecem como suas características
diferenciadoras: altivez e arrogância dos caboclos; humildade e compaixão dos pretos-velhos; inocência das
crianças; revolta e escárnio dos exus; sensualidade desenfreada das pombas-giras; alegria do povo cigano, etc.
67

Foto 11: Permissão aos caboclos para entrar na mata;


Foto: Vivian Brandim

Um transe intenso e que é perceptível na mudança das feições de Dona Dasdores. Ela
agora nos convida a seguir para mata, não é possível naquele momento identificar o encantado
que se apresenta, mas ele agora é o guia daquele grupo tão diverso, composto por curiosos e
praticantes da umbanda, e que será seguido na mata, até o ponto onde deverá se iniciar a
gira42.

42
Gira: Sessão religiosa, com doutrinas e danças para cultuar as entidades espirituais. Gira de Caboclo: Sessão
religiosa, o mesmo que gira; só que voltada única e exclusivamente para a linha de caboclo. (Dicionário de
Umbanda), Está é a gira realizada na obrigação da mata, e onde se fazem presentes caboclos da mata do Codó.
68

Foto 12: Manifestação do Encantado de dona Dasdores.


Foto: Vivian Brandim

Foto 13: Manifestação do Encantado de dona Dasdores.


Foto: Vivian Brandim
69

A mata é quente e fechada, lá existem seis árvores pintadas de branco, mais ou menos
até o meio, são os pontos firmados, ao chegar a esse local Dona Dasdores e os filhos e filhas
de Santo firmam suas velas no chão e se ajoelham mais uma vez em reverência as entidades,
aos caboclos. Em muitos depoimentos Dona Dasdores nos afirmou que as bases de todos os
rituais se encontravam nas forças da natureza. No Sol, na terra, na água, na mata. E como se
retirassem forças daquelas arvores e daquele chão quente.

Foto 14: Ponto firmado no riacho;


Foto: Vivian Brandim
70

Foto 15: Pontos firmados no meio da mata. Marcações para o mundo espiritual
Foto: Vivian Brandim
71

Foto 16: Pontos firmados no meio da mata. Marcações para o mundo espiritual
Foto: Vivian Brandim

A doutrina não para, e o tambor é ainda mais intenso, numa nítida mensagem de que o
caminho está aberto e que as entidades podem se manifestar na gira. A gira começa a receber
caboclos e encantados que vem para o dia de festa, confraternizando com um enorme grupo
de curiosos que observam aquela cena em um misto de empolgação e medo. Os caboclos e
43
encantados que se manifestam na gira cumprimentam e dão passes nos visitantes e
praticantes, que são convidados a firmar seu ponto na mata e a invocar a proteção de Deus em
suas vidas.

Dona Dasdores neste momento parece completamente encantada, ela se ajoelha diante
do tambor em uma reverência aquele instrumento, que acreditamos também materializar as
entidades, que dita o ritmo, ora mais acelerado, ora mais lento daquela gira. O tambor parece

43
Dar passes: Ato da entidade, através do médium incorporado. Tem função de emitir vibrações que anulem as
más influências, para abrir os caminhos.
72

soar cada vez mais alto e mais forte, os caboclos tomam os seus cavalos e como em um balé
cumprimentando e benzendo a todos. Os visitantes e praticantes parecem hipnotizados por
aquele momento. O calor não existe, só existe uma força inexplicável naqueles homens e
mulheres que giram sem parar.

Foto 17: Obrigação na mata, reverência aos elementos da natureza e a jurema.


Foto: Vivian Brandim
73

Foto 18: Obrigação na mata, reverência aos elementos da natureza.


Foto: Vivian Brandim

Foto 19: Obrigação na mata, Caboclos cumprimentam e benzem os participantes da gira.


Foto: Vivian Brandim
74

Foto 20: Obrigação na mata, reverência ao tambor.


Foto: Vivian Brandim

Ajoelhar-se diante do tambor, das águas e das árvores é ao mesmo tempo voltar aos
antigos druidas e mais uma vez buscar uma convivência harmoniosa,

Aldeia de Caboclo só se vê encanteria,


Aldeia de Caboclo só se vê encanteria
Ê chama Caboclo da serrania,
Ê chama Caboclo da serrania

A gira prossegue por quase duas horas, mas é um tempo diferente, que não é somente
cronológico essa parece ter desaparecido completamente, esse é um tempo de encantamento,
um tempo de sentimento, um tempo de fé. Poderíamos neste momento discutir as concepções
de tempo que os historiadores e a historiografia convencionaram ao longo do tempo, seria
possível chamar esse tempo de tempo mítico44, como o tempo do candomblé e das religiões
africanas e afro-brasileiras, contudo, mesmo essas não conseguiriam materializa as sensações

44
O tempo Mítico, de modo geral, apresenta uma estrutura circular. Além disto, trata-se de um tempo reversível
– se não apenas do próprio mito, que realiza o retorno em sua própria narrativa ou repetição cíclica, ao menos
através do rito, que corresponde a um retorno ritual as origens. (...) A passagem de tempo e seu ritmo são bem
distintos do que se dará no tempo linear, medido cronologicamente. (BARROS, José D’Assunção. Os tempos da
história: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX. Alagoas: Revista Crítica de História
Ano I, Nº 2, 2010)
75

daquele momento, no qual o observador mais descuidado e o mais atento se perdem ao


mesmo tempo.

Aos poucos aquele ritmo frenético do tambor começa a desacelerar, e a fumaça do


defumador que antes envolvia a todos, dissipou-se completamente, e com ela acredita-se que
caboclos e encantados deixam seus cavalos e voltam para a mata com o mesmo encantamento
que chegaram.

Ao fechar a gira 45 , Dona Dasdores volta ao quarto onde se encontram o altar e os


objetos ritualísticos, os filhos e filhas de santo também se recolhem e dão continuidade aos
trabalhos, e em meio a banhos, terços, velas e muitas orações são preparadas as oferendas, que
serão feitas na obrigação das águas.

2.5. A Procissão: Devoção a São Francisco e São José.

Procissão, do latim Processione, marchar para frente, ritual religioso em que sacerdotes,
irmandades seguem entoando e recitando preces, seguindo e venerando um santo ou uma
relíquia sagrada (CASCUDO, 1954).

As procissões aconteciam desde a antiguidade, entre os povos do oriente e mesmo entre


os povos do ocidente, sendo este um importante momento de reverência nos mais diversos
cultos. Em Atenas, por exemplo, eram realizadas as Panatéias46, na qual o povo conduzia um
manto ricamente ornado e oferecia em cerimônia a deusa Atena no Patérnon.

Com o advento da cristandade as procissões passam a fazer parte de seus rituais, mesmo
em tempo de perseguição esse costume torna-se frequente entre os cristãos, mas é na Idade
Média que se conhece seu apogeu. Na Idade Média procissões foram instituídas para
substituir os cortejos pagãos, como o das Rogatórias47.

Sob o nome das sagradas procissões se entende as solenidades rogativas que faz o
povo fiel, conduzido pelo clero, indo ordenadamente de um lugar sagrado para outro

45
Encerrar uma sessão ou uma cerimônia em que tenha havido formação de corrente vibratória
46
Festa consagrada a Atena (Minerva) e que além da procissão ao templo reunia atletas que disputavam prêmios
nas categorias de corrida e luta. HACQUARD, Georges. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Trad. Maria
Helena Trindade Lopes. Rio de janeiro: Edições ASA, 1996.
47
Procissões para boa colheita.
76

lugar sagrado, para promover a devoção dos fieis, para comemorar os benefícios de
Deus e dar-lhes graças ou para implorar auxilio. (Código de Direito Canônico, 1290,
1)

As procissões, atualmente, celebram momentos importantes das cerimônias e


festividades religiosas da cristandade. A procissão de São Francisco e São José durante a
Obrigação parece-nos, a um primeiro olhar, algo desconexo, descontextualizado, contudo, ela
se insere de forma profunda em todos os aspectos deste ritual. A Obrigação se configura em
um espaço de agradecimento, sendo a procissão o lugar de homenagens aos seus santos de
devoção e que também acompanharam por toda vida.

Durante toda a semana, dentre os preparativos para a obrigação, o andor que carrega
São Francisco e São José recebe atenção especial dos filhos e filhas de santo, assim como dos
familiares de dona Constancia e visitantes devotos 48 que comparecem todos os anos à
Obrigação.

O andor é ornamentado com flores e tecidos nas cores que simbolizam as entidades
homenageadas. Cada ano a obrigação carregou as cores dessas entidades. O verde do povo
das matas, o branco e azul do povo das águas. O azul do povo do oriente e as vestes de Dona
Constância nos últimos anos eram marcadas pelo marrom, cor adotada pelos franciscanos em
devoção a seu padroeiro São Francisco.

A madeira do andor é a mesma desde o início do ritual, assim como as imagens, e estão
impregnados pelos sentimentos e lembranças de cada pessoa que durante muitos anos
contribuíram para a sua construção. Entre os diversos adereços que compõem o andor, as
flores merecem uma atenção especial, pois elas são colocadas por famílias e indivíduos que
buscam naquele ritual o alívio para suas dores e da solução de seus problemas. Por essa razão
durante a preparação do andor cada lágrima vertida, seja de agradecimento, seja de súplica
produziam uma atmosfera de fé. Fé que conduzia aquelas pessoas durante todo o trajeto
percorrido pela procissão.

48
Anualmente vão a obrigação, ajudam na organização e na preparação dos rituais, tem muita fé nas palavras de
Dona Constãncia e recorrem a ela nos momentos de aflição para que ela interceda junto a Nossa Senhora, aos
Santos, Orixás e Encantados.
77

Foto 21: Andor de São Francisco e São José ele é carregado durante a procissão que sai do centro de Codó.
Foto: Vivian Brandim

Às 17 horas (dezessete horas) o andor é levado para a casa de Dona Constância no


centro da cidade de Codó. Exatamente às 18 horas (dezoito horas), em meio a uma pequena
multidão explodem os primeiros fogos de artifício anunciando a saída da procissão e dando
início aos cânticos que vão acompanhar todo o trajeto.

Neste ritual chama a atenção os cânticos do rito católico, como o exemplo abaixo, o que
nos possibilita apontar o processo de hibridização cultural:

A vós descei divina Luz


A vós descei divina Luz
Em Nossas almas acendei, o amor, amor de Jesus.
Em Nossas almas acendei, o amor, amor de Jesus.

O andor é disputado como um troféu, e todos, velhos, jovens, homens, mulheres,


querem pelo menos por um momento carregar a aquele objeto importante cujos significados
se confundem com as crenças de cada indivíduo.
78

Foto 22: A procissão percorre ruas da cidade de Codó e o andor é carregado por membros da família de Dona
Constância, por visitantes e devotos.
Foto: Vivian Brandim

A procissão percorre a cidade, e mais fogos de artifício são ouvidos no caminho, novos
personagens se juntam ao cortejo, em um grupo diverso, que se torna cada vez mais
numeroso. E mesmo aqueles que não acompanham a procissão permanecem nas portas com
velas acesas iluminando a noite. Uma banda de música acompanha a procissão, com o intuito
de dar a ela um tom solene.
79

Foto 23: Visitantes e devotos acompanham a procissão


Foto: Vivian Brandim

Em frente ao cemitério uma pequena parada em uma reverência aos mortos nesta noite
em que, como já mencionamos, acredita-se que os dois mundos estejam mais próximos. Mais
uma vez ouvem-se os fogos de artifício, que se misturam às vozes e ao som da pequena banda
que acompanha a procissão.

Neste momento já anoiteceu e apenas o luar e as velas iluminam o caminho. O asfalto


não mais existe, a estrada é de chão batido e terra vermelha. Os trilhos do trem passam a
servir como bussola mostrando o caminho a ser seguido. O caminho é íngreme, acidentado,
por vezes o grupo precisa se equilibrar sobre a linha férrea, já que a estrada de chão é cortada
pelo mesmo riacho que passa no sítio São José ponto de chegada da procissão, contudo isso
não silencia o grupo, eles continuam entoando os cânticos e recitando as orações.
80

Foto 24: Caminho percorrido pela procissão até o Sítio São José.
Foto: Vivian Brandim

Foto 25: Caminho percorrido pela procissão até o Sítio São José.
Foto: Vivian Brandim
81

Foto 26: Caminho percorrido pela procissão até o Sítio São José.
Foto: Vivian Brandim

São Francisco e São José são os guias e os exemplos de perseverança e força a serem
seguidos pelos fieis. A oração de São Francisco, como é conhecida pelos católicos, é recitada
durante a procissão.

Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.


Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, Fazei que eu procure mais,
Consolar, que ser consolado;
Compreender, que ser compreendido;
Amar, que ser amado.
Pois, é dando que se recebe,
É perdoando que se é perdoado,
E é morrendo que se vive para a vida eterna.

De modo repentino, o silencio torna-se presente, mesmo que de forma passageira,


poucos segundos depois é quebrado pelos fogos de artifício e por gritos de Viva Nossa
Senhora; Vivi o Cristo Senhor Jesus; Viva São Francisco; Viva São José; Viva Deus. A
procissão volta a andar e começa a se afastar da linha férrea para chegar ao sítio. Mais uma
82

vez a banda dá o ritmo dos cânticos e as velas iluminam o caminho, contudo ainda há um
local de parada antes de finalmente chegar ao sítio São José. A procissão é levada até a
fazenda do Doutor Assis que nessa história tem um papel fundamental, pois ele foi o doador
das terras, ele foi responsável por conceder aquele terreno em agradecimento a uma graça
alcançada, uma promessa49 feita aos encantados, ao Rei Sebastião. Dona Dasdores em todas
as entrevistas nos fala que o sítio pertence ao Rei Sebastião e que o salão foi construído pelo
caboclo João Carrasco, ele trabalhou, recebeu folhado e mandou construir o salão50.

É do Rei Sebastião. Esse sítio aqui não foi comprado. Quem deu esse sítio pro Rei
Sebastião foi o Assis dono do cartório que tem aqui. Foi ele que deu esse sítio pro
Rei Sebastião. Foi um serviço que Deus ajudou e deu certo, porque ele ia perder o
cartório dele. Aí ele veio, ele pediu ajuda e a gente pra Deus. Aí ele disse que o que
Rei Sebastião... Ele perguntou pra Rei Sebastião o que ele queria, ele disse que tinha
vontade de conseguir um pedaço de chão que tivesse água pra fazer as Obrigação de
Iemanjá. Aí quando menos esperou, o Assis deu isso aqui pro Rei Sebastião. O
documento daqui foi passado no dia de uma festa ali no salão. Ele veio, trouxe o
livro, todo mundo assinou, tudo direitinho. O documento é um documento muito
limpo, o documento daqui. Agora, o salão da reza é do João Carrasco 51.

A procissão passa em frente ao sítio São José e segue para a fazenda do doutor Assis,
o andor é levado a um altar no qual encontramos outra imagem de São José. Esse altar fica na
entrada da fazenda, pois acreditam que ele protegerá o sítio, mas ao mesmo tempo recebe
todos os visitantes. Velas são depositadas no altar, é rezado um Pai Nosso, uma Ave Maria e
uma Glória, em seguida a procissão volta a estrada e segue para o sítio São José.

A proximidade do sítio confere forças àquele grupo que andou por cerca de 3 km (três
quilômetros) em meio à escuridão e em um terreno acidentado sem demonstrar cansaço. A
porteira é aberta e a procissão entra no São José, o coro intensifica os cânticos e no salão do
Caboclo João Carrasco aquelas vozes se multiplicam ao rezar o terço.

Dona Dasdores destaca que a intenção da oração é alcançar o céu, cada Ave Maria, cada
Pai Nosso expressam a fé que conduz todo o ritual. Ao final é recitada a ladainha de Nossa
Senhora e com ela os cânticos novamente invadem o espaço sinalizando o final daquele
momento ritual.

49
A promessa é um pacto que obriga os dois lados a alguma ação positiva no sentido de resolver o problema
apresentado. Se eu, assim, peço uma graça e logo em seguida me sacrifico com a oferta de algo precioso para o
santo (ou santa) de minha devoção, a lógica social faz com que ele (ou ela) também se obrigue a resolver meu
problema, atendendo cortesmente a minha súplica. (DAMATTA, 1996)
50
Doações que são ofertadas no altar.
51
Entrevista com Dona Dasdores em 25 de julho de 2011 na cidade de Codó, Maranhão.
83

Fotos 27: Chegada da Procissão ao sítio;


Foto: Vivian Brandim

Foto 28: As pessoas que acompanham a procissão depositam as velas no centro do Salão da Reza.
Foto: Vivian Brandim
84

O silêncio novamente se faz presente e agora ganha uma dinâmica diferente. Dinâmica
essa marcada pelo cheiro do chocolate com bolo que aquece e deixa a noite mais doce,
acompanhado pelos causos e estórias contados pelos que esperam o início de mais um
momento ritual, a obrigação das águas.

2.6. Obrigação das Águas; Oferenda ao povo das águas, valei-me Mãe Sereia, valei-me
Mãe D’Água Rainha.

Os símbolos, enquanto produtos sociais, expressão as ideias, os valores e as atitudes


sociais mais significativos da coletividade (ASSUNÇÃO, 2006). Geertz (1978, 103) afirma
que os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos (Aspectos morais. Valorativos) de
um povo, um visão de mundo (Aspectos cognitivos existenciais). Geertz (1978, p. 129) afirma
ainda que, é no ritual religioso que se encontra a fusão do ethos com a visão de mundo, ou
seja, a junção do mundo vivido e o mundo imaginário, modelando a consciência espiritual do
povo. Assim como nos outros momentos da Obrigação a Obrigação das águas é a
materialização dessa junção, desse cruzamento, é um momento impregnado de simbolismo e
que se inicia no quarto de Dona Constância. Um quarto pequeno, uma porta de madeira antiga
e uma janela que não é aberta há muito tempo, possivelmente por ser um espaço sagrado para
a família, e que materializa memórias importantes sobre Dona Constância. Duas camas
ocupam quase todo o quarto, uma de casal e outra de solteiro, ambas igualmente antigas,
cobertas com lençóis de algodão branco e finos. Ao fundo muitas bagagens, bagagens de
sujeitos que ficam ali apenas de passagem, mas que sentem por aquele lugar o apresso de
quem vive ali diariamente, e para quem aquele quarto está repleto de significados.

Ocupando um lugar especial no quarto está o altar, o altar52 de Dona Constância. O altar
de Dona Constância é composto por duas mesas de tamanho médio de madeira também muito
antiga. As mesas são organizadas de maneiras diferentes, mas ao mesmo tempo são iguais e
representam todo o hibridismo característico das religiões afro-brasileiras no Maranhão.

52
O altar é um espaço sacralizado, a construção do altar é concebida como a criação do mundo (...) um
microcosmo que existe num espaço e num tempo místico qualitativamente diferentes do espaço e do tempo
profanos (Eliade, 2008). Os altares nas religiões afro-brasileiras ocupam um lugar especial na casa dos pais e
mães de santo, às vezes um quarto onde são realizados os “serviços” e onde os clientes são recebidos.
85

Foto 29: Altar de Dona Constância


Foto: Vivian Brandim

Em uma das mesas o Preto Velho ao centro, ladeado por Iemanjá, São Jorge, Padre
Cícero, Cosme e Damião, Sagrado Coração de Jesus, Nossa Senhora Aparecida, São José de
Ribamar, gnomos, duendes, velas e incensos. No outro as imagens de São Francisco e São
José ao centro, ladeados por Santa Bárbara, São Sebastião, Santo Antonio, Nossa Senhora de
Fátima, Nossa Senhora da Piedade, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das
Candeias, São Pedro e Senhora Santana, rosários e um manto vermelho e outro branco ambos
com uma cruz bordada no centro. Ainda no quarto encontramos outros elementos de magia,
símbolos ritualísticos, que são utilizados como, pedras, cristais, a trunqueira 53 de Dona
Constãncia, velas, tigelas de barro entre outras coisas.

53
Sua pedra fundamental, elemento ritualístico que recebeu em sua iniciação e que carregou por toda vida.
86

Foto 30: Pedra do Xenxen – pedra de força para os trabalhos, conservada na água / Rosários;

Foto: Vivian Brandim


87

Foto 31: Bola de cristal de afirmação da mesa / Pedra de força de Cristal para cruzar os aparelhos
Foto: Vivian Brandim
88

Foto 32: Pedra de Cera é uma Pedra de Cura;


Foto: Vivian Brandim
89

Foto 33: Pedra de duplo sentido – Dar e receber


Foto: Vivian Brandim
90

Foto 34: Toalha de exame para benzimento e cura (Branca) / Tamboretes da Dona Constância;
Foto: Vivian Brandim
91

Foto 35: Toalha de Preto Velho (Vermelha)


Foto: Vivian Brandim

Vou fazer pelo sinal, pra fazer a obrigação, a obrigação é de mamãe, ô Jesus, ô Jesus,
é meia noite e com essa doutrina (oração cantada) se inicia a Obrigação das águas, os filhos e
filhas de santo se reúnem para a última etapa da Obrigação de Dona Constância. De joelhos
Dona Dasdores pede permissão a Deus, a Nossa senhora, aos Orixás e Encantados para iniciar
a Obrigação. A doutrina é entoada três vezes acompanhada pelo toar do tambor que dita o
ritmo e ao mesmo tempo conduz as entidades para iniciar o transe.
92

Foto 36: Obrigação das águas, início do ritual no quarto de Dona Constância, assim como todas as outras
obrigações, é o pedido de licença a Deus e aos encantados para fazer a obrigação.
Foto: Vivian Brandim

Foto 37: Obrigação das águas, início do ritual no quarto de Dona Constãncia, assim como todas as outras
obrigações, é o pedido de licença a Deus e aos encantados para fazer a obrigação.
Foto: Vivian Brandim
93

O quarto parece menor, visto o número de pessoas presentes, mas ao mesmo tempo é
imenso, as doutrinas continuam, enquanto do Dona Dasdores se ajoelha junto ao altar
rendendo mais uma vez homenagem a Nossa Senhora, a mãe de todos, aos Santos e
encantados. Logo em seguida é entregue a cada filho e filha de santo uma vela, para a maioria
são velas brancas, mas Dona Dasdores, Klaésio, e outros membros da família terrena de Dona
Constância carregam velas azuis, amarelas e verdes. Além das velas os filhos e filhas de Santo
carregam as oferendas54 que serão feitas ao povo das águas, os banhos que foram preparados
durante a tarde para o lava pés e a imagem de Preto Velho e Iemanjá.

Todos saem do quarto como em procissão ou mesmo em cortejo, todos que passaram
horas de espera agora se levantam, silenciam suas conversas e se voltam para aquele
momento. Acompanhado o cortejo dirigem-se ao Salão de João Carrasco, local em que a gira
vai iniciar e os encantados que foram invocados possam se manifestar em seus aparelhos55.

Todas as oferendas e imagem são colocadas no centro do salão onde existe um ponto
firmado, e em volta do qual a gira se desenvolve.

Neste momento consideram que os encantados já estejam presentes, as fisionomias são


completamente diferentes, e assim como na Obrigação da mata a atmosfera se transforma e
aquele misto de curiosidade, medo e fé se misturam entre todos os presentes, são crentes,
curiosos e devotos. São dezenas de pessoas que agora passam a acompanhar a gira, que
embriaga a todos. As doutrinas convidam todos a baiar, a se encantar. O cortejo passa a se
dirigir para o riacho que corta o sítio, espaço onde a Obrigação continuará. Os encantados (em
seus aparelhos) deixam o salão sem dar as costas para o ponto firmado ao centro e onde a
imagem de Preto Velho ainda permanece, até o final do ritual.

54
São atos magisticos-religiosos (...). As oferendas podem ter várias finalidades, tais como: Oferenda de
agradecimento, oferenda de pedido de ajuda, oferenda de desmagiamento negativo, oferenda de descarrego,
oferenda propiciatória, oferenda purificadora, oferenda de ritual de firmeza das forças da natureza e oferenda de
ritual de assentamento de forças e de poderes espirituais e dignos. (SARACENI, 2009, P. 13)
55
Designa a pessoa que serve de suporte para a “descida” do orixá ou da entidade do médium
94

Foto 38: Os filhos e filhas de santo deixam o quarto e vão para o salão da reza
Foto: Vivian Brandim

Foto: 39 - Todas as oferendas e banhos são dispostos no centro do salão para que a gira possa se iniciar
Foto: Vivian Brandim
95

Foto 40: Inicio do Transe


Foto: Vivian Brandim

Foto 41: Médiuns deixam o salão da reza e seguem para as águas.


Foto: Vivian Brandim

O riacho foi todo enfeitado e iluminado. Os filhos e filhas de Santo possuídos pelos
encantados entram nas águas, as oferendas e a imagem de Iemanjá são colocados em um
96

pequeno altar montado na margem direita do riacho. Aquele local sagrado fora
detalhadamente preparado, desde a limpeza física até a limpeza espiritual. Durante toda a
semana que antecede a realização do ritual diversas pessoas se disponibilizam a trabalhar e
ajudar naquilo que for necessário. Entre os visitantes devotos e vizinhos do sítio histórias se
multiplicam e aquele espaço passa por um processo de sacralização, esse espaço sagrado tem
valor existencial, fundante e central em seu mundo (ELIADE, 1999, p.26). Acredita-se,
inclusive, que quem se banha nas águas daquele riacho durante os sete dias que antecedem a
Obrigação, e mesmo durante as 24 horas de realização, tenha curados todos os seus males do
corpo e da alma.

Foto 42: Preparação do riacho e início do ritual nas águas


Foto: Vivian Brandim
97

Foto 43: Preparação do riacho e início do ritual nas águas (tambor)


Foto: Vivian Brandim

Foto 44: Preparação do riacho e início do ritual nas águas (sacos de areia)
Foto: Vivian Brandim
98

A concepção de Durkheim (2003) a cerca da sacralização de espaços, é fundamental


para entendermos o que acontece no sítio São José. Para ele, o sagrado corresponde à
sociedade, o profano ao indivíduo, as coisas sagradas, em geral, requerem os mesmo
sentimentos de respeito e veneração que os fatos sociais, o sagrado é algo que se opõe ao
homem. Nem as forças naturais, nem os espíritos, nem as almas são sagradas por si mesmas.
Só a sociedade é uma realidade sagrada por si mesma. É ao mesmo tempo causa do fenômeno
religioso e justificativa da distinção entre sagrado e profano.

Elsa Gonçalves Avancini (2009) trata no livro RS Negro, Cartografia sobre a produção
do Conhecimento do sagrado nas tradições africanas e nos cultos afro brasileiros, ela afirma
que, na África o culto aos ancestrais está profundamente vinculado ao sagrado e a tradição,
afirma ainda que:

Na cultura dos povos africanos à chegada dos europeus no continente, o sagrado não
se distinguia da vida profana como nas práticas religiosas da cultura ocidental. Tudo
é sagrado, a vida é sagrada. O céu (Oru) e a terra (Aye), os deuses e homens
dialogam e os ancestrais divinizados orientam a caminhada dos vivos. Por isso
durante as festas rituais esses ancestrais divinizados dançam em meio aos seus, por
meio de um sensitivo (médium) que acolhe (incorporação) e permite que ele se
manifeste e dance em meio aos seus. (AVANCINE, 2009, P. 138)

Durkheim (2003) trata o sagrado assim como o elemento religioso como social não os
concebendo afastados desta concepção ou mesmo desligado, Avancini trata também do
sagrado como elemento social ligado a tradição, e direcionador, nos cultos afro-brasileiros, de
toda prática religiosa assim como dos Ocidentais. Ambos, mesmo também acreditam na
sacralização de espaços e dos elementos ritualísticos dentro das cerimônias religiosas, assim
aquilo que é profano pode ser sacralizado.

Na Obrigação a sacralização desse espaço é feita nos dias que antecedem a obrigação. O
processo de limpeza é uma marca. Associado a isso, Dona Dasdores e os filhos e filhas de
santo passam também por um processo de purificação, que inclui a abstinência sexual e
também de certos alimentos, como a carne vermelha, que segundo dona Dasdores é pesada, e
o espírito precisa estar leve para poder se entregar completamente ao ritual.

Voltando a esse espaço e em meio à Obrigação das águas, os filhos e filhas de santo
entram nas águas do riacho, os visitantes devotos, familiares e amigos se posicionam sobre os
sacos de areia, como vimos nas imagens acima, e que foram colocados no meio do riacho
represando as águas e formado uma ponte onde estes receberam as bênçãos durante a
Obrigação.
99

Dona Dasdores segue para o meio do riacho, local em que mais uma vez as doutrinas
serão recitadas em meio ao toar dos tambores. Mãe-Sereia é chamada para abençoar, e a cada
membro daquele grupo sagrado caberá uma função no ritual. A cerimônia é semelhante ao
lava pés, esse é o momento em que dona Dasdores, incorporada56, com o rosário nas mãos
abençoa cada pessoa que está sobre aquela ponte que simboliza o caminho de encontro ao
mundo espiritual. É impossível no lava-pés 57 não nos transportar para cerimônia realizada
durante a semana santa pelos católicos lembrando o ato de humildade de Jesus Cristo antes da
crucificação. E ainda mais difícil dissociar os rituais de banhos de cheiro e a distribuição dos
passes da pajelança ameríndia, do espiritismo kardecista e das religiões de origem afro-
brasileira como a Mina e o terecô.

Eles permanecem durante mais três horas lavando e benzendo cada uma daquelas
pessoas. A noite fria e a água, assim como o solo quente da mata ao meio dia parece não
causar nenhum desconforto, mesmo assim de alguma forma eles perecem exauridos, talvez
pelo tempo, ou mesmo pelo esforço de se manter em um corpo que não é seu e em um plano
no qual não lhes cabe mais viver.

56
Não nos foi revelado o encantado que dona Dasdores recebia durante o ritual do lava-pés, pois como ela nos
afirmou, algumas questões devem permanecer como segredo.
57
Ora, antes da Festa da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai,
tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. Durante a ceia, tendo já o Diabo posto no
coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que traísse a Jesus, sabendo que o Pai tudo confiara às suas mãos, e
que ele viera de Deus, e voltava para Deus, levantou-se da ceia, tirou o manto e, tomando uma toalha, cingiu-se.
Depois, deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos, e a enxugar-lhos com a toalha com que
estava cingido. Aproximou-se, pois, de Simão Pedro, e este lhe disse: Senhor, lavas-me os pés a mim.
Respondeu-lhe Jesus: O que eu faço, tu não o sabes agora; mas depois o entenderás. Tornou-lhe Pedro: Nunca
me lavarás os pés. Replicou-lhe Jesus: Se eu não te lavar, não tens parte comigo. Disse-lhe Simão Pedro: Senhor,
não somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça. Respondeu-lhe Jesus: Aquele que se banhou não
necessita de lavar senão os pés, pois no mais está todo limpo; e vós estais limpos, mas não todos. Pois ele sabia
quem o estava traindo; por isso disse: Nem todos estais limpos. Ora, depois de lhes ter lavado os pés, tomou o
manto, tornou a reclinar-se à mesa e perguntou-lhes: Entendeis o que vos tenho feito? Vós me chamais Mestre e
Senhor; e dizeis bem, porque eu o sou. Ora, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar
os pés uns aos outros. Porque eu vos dei exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também. Em verdade,
em verdade vos digo: Não é o servo maior do que o seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o
enviou. Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as fizerdes. (Bíblia Sagrada. João 13, 1-17)
100

Foto 45: Dentro do riacho Dona Dasdores e as filhas de santo dão início ao lava pés, enquanto os terecozeiros
continuam a entoar o tambor.
Foto Vivian Brandim
101

Foto 46: Dentro do riacho Dona Dasdores e as filhas de santo dão início ao lava pés, enquanto os terecozeiros
continuam a entoar o tambor.
Foto Vivian Brandim
102

Foto 47: Dentro do riacho dona Dasdores e as filhas de santo dão início ao lava pés, enquanto os terecozeiros
continuam a entoar o tambor.
Foto: Vivian Brandim

Em diversas entrevistas dona Dasdores nos falou com enorme carinho desta cerimônia
feita em homenagem ao povo das águas.
Aí doze da noite, nós vamos pro pessoal das águas, louvar o pessoal das águas, o
pessoal da mina, aí vai ser as curas. E a gente faz o lava pé. Por que o lava pé? O
lava pé, é porque naquele lava pé, aí é as curas que a gente faz no lava pé. Por que a
gente beija o primeiro pé? Pode ser sujo, cagado, mijado. É sinal de humildade. Por
que nós enxugamos o pé de todo mundo? É humildade. Porque tem que ter
humildade. Porque sem a humildade minha filha, você não chega a lugar nenhum.
Nunca pense, você pode ter o dinheiro do mundo todinho, mas se você não tiver
humildade, você não chega a lugar nenhum. Você sempre vai ser uma pessoa
antipática, uma pessoa ruim pra todo mundo. Por quê? Você não tem humildade,
primeiro vem a humildade. (Entrevista Dona Dasdores, 29 de julho de 2010).

A última parte da obrigação das águas fica por conta das oferendas feita à Senhora das
Águas Iemanjá, os sacos que ficam na parte central daquela ponte são retirados formando uma
pequena queda dágua que confere maior rapidez ao fluxo das águas, é nela onde são
depositadas as oferendas.
103

Nós pegamos, botamos anel na água, não importa quem pegue. Botamos pente,
espelho, né, essas coisas, as oferendas. Quando a gente vai fazer no mar, aí nós
fazemos do mesmo jeito, aí nós damos as oferendas, a gente não tem pena de dar.
Joga, a gente joga tudo dentro d’água, quem quiser depois pode pegar. Mas o
importante é que nós fizemos a nossa parte, né. A gente sabe que isso ali eles não
vão pegar pra eles. Lá onde eles vivem, eles têm, eles são muito ricos. Mas aqui pra
gente dá prazer. Eu acho que é uma brincadeira. É uma brincadeira que a gente
gosta. Porque tem muita gente que diz assim: “Ah, mas porque vamos fazer isso? O
quê que eles vêm pegar aí?” A gente sabe que eles não vêm pegar, mas eles estão
presentes com a gente ali, com aquela alegria, nós derramamos champanhe nas
águas, nós derramamos vinho nas águas. Aquilo ali é uma maneira de
agradecimento, que nós agrademos a eles das bênçãos que a gente recebe. Porque
como eles dizem, Deus disse: Tu só pede, não oferece nada em troca? (Dona
Dasdores, 25 de julho de 2011)

Foto 48: Oferendas sendo colocadas nas águas


Foto: Vivian Brandim
104

Foto 49: Oferendas sendo colocadas nas águas


Foto: Vivian Brandim

As oferendas são depositadas e os terços preparados durante a semana são oferecidos


aos que participaram daquele momento ritualístico. Eles serviram aquelas pessoas como
talismãs de proteção e carregam com eles a certeza de que tudo trarão sorte e prosperidade. Os
filhos e filhas de santo mais uma vez voltam ao centro do riacho e com uma doutrina, assim
como começaram, despedem-se de seus encantados.

Alguns encantados depois de um ritual como esse, segundo os entrevistados, levam


anos para voltar, outros fazem parte do cotidiano de cada filho e filha de santo, e estarão com
eles em outros momentos, em outras Obrigações.

Neste momento é impossível não perceber a dinâmica do hibridismo que caracteriza


esse ritual, essa religião. Passamos no decorrer do dia, e mesmo dos meses e da semana que
antecede a Obrigação por rituais cotidianos e religiosos que ao mesmo tempo em que tentava
58
estabelecer uma identidade , essa era marcada pela presença de vários elementos

58
Hall (1987) afirma que a identidade torna-se uma celebração móvel, formada transformada continuamente em
relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. E
definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente.
105

pertencentes aos mais diversos grupos culturais e religiosos. Ferretti nos fala de um
sincretismo religioso, contudo, gostaríamos de ratificar a concepção de que não se trata
apenas da mistura, mas da criação de algo novo a partir de elementos que se hibridizam e
formam algo diferente, e que como elemento identitário, cria uma personalidade nova e
diversa para a umbanda naquela região.
106

3 DONA CONSTÂNCIA: vida e crescimento no mundo dos encantados

Minha relação com minha avó era assim de amizade, era uma cumplicidade muito
grande que eu tinha com a minha avó, era uma ligação assim, e, ainda hoje, eu
tenho, eu não ascendo vela hoje para minha vó como aquela pessoa que se foi, não,
eu acendo a luz dela como espírito de luz, e assim quando eu tô no sufoco, eu peço,
eu clamo, eu chamo por ela, claro que com a permissão de Deus, foi o que a gente
aprendeu até hoje, que com a permissão e se a gente merecer, Deus der a permissão
para ela ajudar naquele momento, entendeu, é um espírito de luz a minha vó, que tá
sempre com a gente, ela partiu, mas ela num abandonou a gente. (Janeth Reis, 2010)

Ao entrevistarmos a neta de Dona Constância, percebemos a recorrência de um


sentimento, representação de uma mulher sábia, brilhante e que sempre guiou sua família e
aqueles que a cercavam. No seu relato percebe-se que lutou contra o preconceito para
sustentar e educar seus filhos. Buscamos, assim, compreender as representações de Dona
Constância, presente nas memórias de pessoas que conviveram com ela, sobretudo, nos rituais
da Obrigação até a sua morte.

Percebemos memórias marcadas de sentimentos, medos e espiritualidade. Não é nossa


intenção construir uma imagem mítica, apologética de Dona Constância, mas compreender a
partir de sua história de vida e da continuidade dos rituais religiosos que praticou o universo
em que a Umbanda se constituiu no Maranhão, religião imersa em profundo misticismo,
existente em religiões afro-índio-brasileiras.

Um estudo desta natureza, que recorre às lembranças mais caras e íntimas de cada uma
das pessoas entrevistadas, é uma tarefa desafiadora e complexa.

A História tem nos revelado um campo fértil para realização de estudos como este. A
pretensão do historiador é construir conhecimento interligado diretamente com as histórias
vividas pelos seres humanos, com o intuito de ajudar-nos a compreender no presente as
relações sociais, as formas culturais, as crenças religiosas, as sociabilidades, as formas de
lazer, as formas de trabalho, etc. (MENDES, 2010, p. 289).

A História Cultural nos fornece as bases metodológicas e teóricas para realização de


uma pesquisa desta natureza. A proposta de trabalho do historiador que opta pela História
Cultural é decodificar a realidade do vivido por meio das suas representações, desejando
chegar às formas pelas quais a humanidade expressou a si mesma e ao mundo. Partindo desta
perspectiva, Sandra Jatahy Pesavento (2006) observando o mundo sob a lente da cultura
107

percebeu que o real é interpretado por homens e mulheres dentro de seu tempo histórico e de
referenciais culturais e sociais próprios.

A História Cultural rompe barreiras sociais e traz à tona em suas obras dramas pessoais
e, a partir deles, concretiza uma história por muito tempo ignorada. Confere ainda espaço para
construir significados às nossas práticas cotidianas, permitindo-nos, assim, compreender
como e por que se constituíram tais práticas num determinado tempo e espaço, como se
mantiveram e/ou se transformaram através dos tempos e lugares.

Dona Constância, sua história de vida e relações com a Umbanda nos levam por este
caminho aberto pela História Cultural e a memória nos aparece como o instrumento mais
adequado neste momento para reconstruir cada momento importante da vida desta mãe de
santo de Codó, no Maranhão.

A memória enquanto fonte para história é fundamental, pois ela nos revela algo além
dos documentos convencionais, e que “não pode dar conta das paixões individuais que se
escondem atrás dos episódios” (BOSI, 2003, p. 15).

Bosi, acerca da memória como fonte para História afirma que:

A memória dos velhos pode ser trabalhada como um mediador entre a nossa geração
e as testemunhas do passado. Ela é o intermediário informal da cultura, visto que
existem mediadores formalizados constituídos pelas instituições (a escola, a igreja, o
partido político, etc.) e que existe a transmissão de valores, de conteúdos, de
atitudes, enfim, os constituintes da cultura. BOSI (2003, p 15)

A Memória produz uma unidade e um sentimento de identificação e pertencimento a


uma sociedade e a um lugar. Sentimentos estes que se manifestam numa série de atributos,
características, valores e articulações, etc. cuja construção acontece no transcurso de um
processo histórico-cultural e que se (trans) forma e consolida nas interações sociais cotidianas
ocorridas nos espaços onde esta população transita. Para tanto, apoiamo-nos em pesquisadores
como Halbwachs, Pierre Nora, Peter Burke entre outros para trilhar o caminho que as
memórias das quais nos apropriamos nesta pesquisa nos levaram na construção desta
narrativa.

As memórias sejam elas, orais ou não, necessitam de cuidado metodológico, assim


como qualquer outra fonte. Nesta perspectiva é imprescindível a percepção de que a memória
é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente
108

evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente, suas deformações


sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível a latências e repentinas
revitalizações (NORA, 1993, p. 09).

Essas memórias, imprecisas e vulneráveis às ações humanas e do próprio tempo nos


permitiram reconstruir aos poucos a vida de Dona Constância e de sua relação com a Religião
e a Religiosidade. Buscaremos nas lembranças daqueles que conviveram com ela
acontecimentos importantes, esquadrinhamos as memórias dos registros fotográficos para
compreender melhor suas relações com a família, a comunidade e a vida religiosa, e
parafraseando Pierre Nora, descobrir a vida e o sentido existente nelas.

Neste momento, em que trilhamos os caminhos da memória para nortear esta narrativa,
é importante ressaltar as inúmeras preocupações existentes no campo historiográfico com os
usos que se faz da memória como fonte, também foram levadas em consideração por essa
pesquisa.

Durval Muniz (2007) nos chama atenção para os cuidados com os conceitos e usos da
memória na pesquisa histórica, evitando considerá-la como discurso essencialmente
verdadeiro em oposição a “História Oficial”.

Isso evitaria, por exemplo, não apenas o uso que se faz dos depoimentos como prova
ou como simples reforço do argumento desenvolvido pelo historiador, mas também
se tomar o depoimento como verdade em si e reproduzi-lo na integra pensando com
isso estar dando voz aos vencidos, sendo um instrumento de receber e transmitir a
memória de alguém. (MUNIZ, 2007, p.200)

A partir da observação de Muniz (2007) é preciso se estabelecer critério para análise


dessas fontes, dentre eles, o direito de posse da memória, ou melhor, a quem pertence. Neste
sentido, não podemos nem tomá-las como eminentemente individuais, nem como fruto
exclusivo do registro coletivo. Muniz (2007) apropria-se das ideias de Maurice Halbwachs
(2004) para fundamentar a sua discussão a cerca dos cuidados com os usos da memória na
pesquisa.

Maurice Halbwachs (2004) ficou conhecido por uma série de pesquisas sociológicas
sobre as classes trabalhadoras entre as duas guerras mundiais, mas ele também é conhecido
por seu conceito de Memória Coletiva. Em seu livro Memória Coletiva ele nos trás as
discussões a cerca da problemática que envolve as memórias individuais e coletivas.
109

Halbwachs (2004) acredita que temos memórias coletivas e individuais, estas se inter-
relacionam, mas não se misturam. A memória individual é interior, pessoal e autobiográfica e
se apoia na segunda, a memória coletiva que é exterior, social e histórica. A memória coletiva
só é acionada quando as memórias individuais constituírem os traços necessários. Uma das
constatações mais interessantes de Halbwachs (2004) para esta pesquisa é a de que a memória
individual é capaz de absorver da memória coletiva coisas que lhe parecem suas lembranças,
mais ou menos como se cada memória individual fosse um ponto de vista sobre a memória
coletiva, e que este ponto de vista muda conforme o lugar que se ocupa, e que mesmo este
lugar muda segundo as relações que mantém com os outros meios.

Haveria então, na base de toda lembrança, o chamado a um estado de consciência


puramente individual que - para distingui-lo das percepções onde entram elementos
do pensamento social - admitiremos que se chame intuição sensível
(HALBWACHS, 2004: p.41).

É importante constatar que, Memória para Halbwachs (2004), é necessariamente uma


construção social. E que quando alguém se lembra de algo, é sempre em relação com a sua
experiência com os outros e os códigos de condutas sociais que regem a sociedade. Por essa
razão as memórias a cerca de Dona Constância são tão importantes para se analisar o contexto
de constituição da Umbanda no Maranhão.

Halbwachs (2004) acredita que a lembrança é uma imagem engajada em outras


imagens, ou que,

A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados


emprestados do presente, e além disso, preparada por outras reconstruções feitas em
épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada
(HALBWACHS, 2004: pp. 75-6).

Neste esteio, a base de apoio da memória individual relaciona-se às percepções


produzidas pela memória coletiva e pela memória histórica (HALBWACHS, 2004: p. 57-59).
A convivência com o grupo social desde a infância seria fundamental para a formação de uma
memória autobiográfica, pessoal, e essa se relacionaria diretamente com a memória coletiva e
a memória histórica. Halbwachs (2004) a cerca destas percepções da memória histórica afirma
que, Os quadros coletivos da memória não se resumem em datas, nomes e fórmulas, que eles
representam correntes de pensamento e de experiência onde reencontramos nosso passado
porque este foi atravessado por isso tudo (HALBWACHS, 2004: p.71).
110

Halbwachs (2004) estabelece laços próximos e quase inquebráveis entre a memória


coletiva e a memória histórica. Para ele a memória coletiva é repleta de detalhes que são
essenciais para o trabalho do historiador.

O que justifica ao historiador estas pesquisas de detalhe, é que o detalhe somado ao


detalhe resultará num conjunto, esse conjunto se somará a outros conjuntos, e que no
quadro total que resultará de todas essas sucessivas somas, nada está subordinado a
nada, qualquer fato é tão interessante quanto o outro, e merece ser enfatizado e
transcrito na mesma medida. Ora, um tal gênero de apreciação resulta de que não se
considera o ponto de vista de nenhum dos grupos reais e vivos que existem, ou
mesmo que existiram, para que, ao contrário, todos os acontecimentos, todos os
lugares e todos os período estão longe de apresentar a mesma importância, uma vez
que não foram por eles afetadas da mesma maneira (HALBWACHS, 2004: pp. 89-
90).

Essa discussão é extremamente pertinente do ponto de vista desta pesquisa, visto que a
memória dos informantes será um referencial para construção da narrativa no que tange a
história de vida de Dona Constância e da constituição da Umbanda no Maranhão.

Foi muito difícil trabalhar com os depoimentos, havia informações distintas, as


memórias em conflito segundo Halbwachs (2004), e que confundiam os rumos da pesquisa.

Quando iniciamos a pesquisa sabíamos que Dona Constância teria nascido na região de
Brejo do Mota nas proximidades da cidade de Caxias no Maranhão, o que acabou não se
confirmando. Dona Constância Nasceu no Piauí, próximo à cidade de José de Freitas no dia
30 de junho de 1930. Ele tem duas identidades, mostrando locais distintos de nascimento, mas
o registro e os depoimentos a cerca dos caminhos trilhados por ela desde que teve o primeiro
contato com a espiritualidade nos dão conta de que ela realmente teria nascido no Piauí.

A partir deste momento passaremos a percorrer este caminho, norteados pelos


documentos pessoais, depoimentos e arquivos fotográficos cedidos pela família e por amigos,
conhecidos e pessoas que acreditavam em Dona Constância como a grande guia deles neste
mundo. Enveredaremos pela vida e religiosidade desta senhora, desde a descoberta de seu
dom até sua morte em 2001.

Cada história contada, cada lembrança nos guiará, serão causos, memórias íntimas e
carregadas de muitos sentimentos, que misturam sensações diversas e que ao mesmo tempo
em que nos levam a entender um pouco desta mulher lutadora, nos mostram elementos que
constituem a religiosidade maranhense e fazem dela singular e ao mesmo tempo
representativa do caráter híbrido da cultura religiosa do Nordeste brasileiro.
111

No percurso metodológico, a história oral foi nossa ferramentas de pesquisa, tendo sido
fundamental para fornecer as bases para construção, ou (re) construção da trajetória de vida de
Dona Constãncia. O que interessa quando trabalhamos com história de vida é a narrativa da
vida de cada um, da maneira como ele a reconstrói e do modo como ele pretende seja sua, a
vida assim narrada (BOSÍ, 1994), nos fornecendo a possibilidade de ver esse sujeito na
perspectiva do contexto e das relações sociais, como deseja Halbwachs (2004) e Durkheim
(2000).

Coletamos, desmembramos, classificamos e registramos as mais diversas informações,


cada entrevista e cada transcrição nos traziam elementos novos. Contudo, dentro deste ato
mecânico, rotineiro da pesquisa aos poucos tomam corpo ideias, vidas e pessoas, e nessa
perspectiva aos poucos se materializa a escrita. Neste esteio, a memória para o historiador
assume a tarefa de transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nome, ser fiel
aos mortos que não puderam ser enterrados. (GAGNEBIN, 2006. p. 47)

O que nos inquietava desde o princípio da escrita desta narrativa era como começar a
falar de Dona Constância e como estabelecer uma relação entre a sua história de vida e a
constituição da religiosidade popular, neste caso, a umbanda, na cidade de Codó.

3.1. Trajetória de vida: Entre a magia e o real, a vida em meio a Encantaria.

Como começar a contar a história de vida de Dona Constância? Quem era dona
Constância? Onde nasceu? Quem eram seus pais? Quantos anos ela tinha quando foi iniciada
na Encanteria? Como a família reagiu as manifestações do seu dom? Como o mundo via o
dom de Dona Constância e como ela via o mundo? São muitas perguntas. E as respostas
encontramos nas muitas histórias contadas por seus filhos, netos e amigos, as quais iremos
percorrer durante esse capítulo.

Trabalhar com memórias é percorrer um caminho de fluidez e sentimentos, portanto de


grande instabilidade, Beatriz Sarlo (2007) afirma que tomar testemunhos orais como verdades
incontestáveis é, por vezes, correr riscos sérios demais para o trabalho acadêmico. A memória
é uma construção ativa e dinâmica, nunca é a repetição exata de algo passado. Trata-se, em
realidade, de uma reconstrução que cada um realiza dependendo da sua história, do momento
112

e do lugar em que se encontra. Cada um constrói a sua memória em ativa interação com os
demais (DUSSEL, FINOCCHIO & GOJMAN, 1997: 119), ou seja, ligada às lembranças das
experiências e aos laços afetivos de pertencimento a um determinado coletivo social.

A narrativa de uma memória se faz a partir do lugar e da posição social daquele que
recorda assim as memórias não se constituem como algo fixo, imutável. Há variações em sua
forma de recordar, pois a memória é dinâmica e interligada a fenômenos conscientes e
inconscientes em que se articulam conforme o momento e as experiências vivenciadas pelo
individuo que recorda. E ao recordar, para narrar seleciona o que vai contar e como vai contar.

A trajetória de vida pode ser descrita como um conjunto de eventos que fundamentam a
vida de uma pessoa. Normalmente é determinada pela frequência dos acontecimentos, pela
duração e localização dessas existências ao longo de uma vida (BORN, 2001. P. 243). Nesta
perspectiva as lembranças das pessoas que conviveram com Dona Constâncias foram
fundamentais para nossa construção.

A metodologia da História Oral foi adotada como nossa estratégia de pesquisa. A


história oral, enquanto metodologia de pesquisa nos abre um mapa com uma série de
caminhos a percorrer que dependem de como a investigação será empreendida. A família, os
amigos e a comunidade foram nossos informantes neste campo de investigação que sucinta,
como já mencionamos, muitas discussões.

A história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança a vida para
dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos não
só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula
professores e alunos a se tornarem companheiros de trabalho. Traz a história para
dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade. Ajuda os menos
privilegiados, e especialmente os idosos, a conquistar dignidade e autoconfiança.
Propicia o contato – e, pois, a compreensão – entre classes sociais e entre gerações.
E para cada um dos historiadores e outros que partilhem das mesmas intenções, ela
pode dar um sentimento de pertencer a determinado lugar e a determinada época.
Em suma, contribui para formar seres humanos mais completos. Paralelamente, a
história oral propõe um desafio aos mitos consagrados da história, ao juízo
autoritário inerente a sua tradição. E oferece os meios para uma transformação
radical no sentido social da história. (THOMPSON, 1992. p.44)

Para esta etapa da pesquisa foram realizadas entrevistas com a família e membros da
comunidade, contudo, como já explicamos em outros momentos do texto, apenas alguns
permitiram que as mesmas fossem gravadas ou concederam a cessão pelos direitos das
entrevistas, o que reduziu o número de entrevistados a três: Dona Dasdores, filha e sucessora
de Dona Constância, Janeth Reis, neta, e Pedro Pereira da Luz Filho, neto e filho de dona
Dasdores. Por essa razão optamos pela utilização das entrevistas temáticas, visto que as
113

mesmas associadas aos documentos pessoais e fontes bibliográficas, mesmo não abrangendo a
totalidade da temática pesquisada, no caso Dona Constância, nos permitiria compreender sua
trajetória de vida em meio as discussões a cerca da constituição da Umbanda no Maranhão.

Na História Oral Temática, a entrevista tem caráter temático e é realizada com um


grupo de pessoas, sobre um assunto específico. Essa entrevista – que tem
característica de depoimento – não abrange necessariamente a totalidade da
existência do informante. Dessa maneira, os depoimentos podem ser mais
numerosos, resultando em maiores quantidades de informações, o que permite uma
comparação entre eles, apontando divergências, convergências e evidências.
(Freitas, 2002, p.22)

Para tanto, cada um de nossos entrevistados nos guiou pelos caminhos percorridos por
Dona Constância, na tentativa de entender um pouco mais da trajetória de vida dessa senhora,
que como tantas na mesma época lutavam contra os preconceitos (entenda-se aqui primeira
metade do século XX), e que além de não aceitarem uma mulher como chefe de família, e
veem em suas práticas religiosas algo que causa muito mais vergonha que orgulho, mas que
não a impediu de vivê-las plenamente.
A antropóloga Yvonne Maggie (2001) em Guerra de orixás demonstrou que as
preocupações de dona Constância e dona Dasdores em relação a aceitação de suas crenças
eram pertinentes.

Assim, os traços de origem africana foram colocados no vértice mais baixo da


evolução, seguidos dos traços indígenas e dos traços católicos assimilados de forma
primitiva. No vértice mais elevado dessa evolução colocavam-se os traços espíritas”.
(MAGGIE, 2001, p.14).

Neste primeiro momento as lembranças de Dona Dasdores nos permitiram reconstruir,


mesmo que de forma sucinta não apenas os primeiros anos de trabalho com a encanteria, mas
todos os desafios e alegrias vivenciados por ela, e o início da Obrigação no sítio São José. Em
seguida, tentaremos reconhecer nas lembranças dos netos as características mais intimas da
personalidade desta senhora que vivenciou de forma marcante o processo de constituição da
umbanda no Maranhão.

3.1.1. O Dom de falar com os Encantados: A construção de uma família em meio ao mundo
da encanteria.

Nasceu Constância Alves Pereira, filha de Benedito Pereira de Sousa e Maria dos Anjos
Alves Pereira. Foi uma criança diferente, não teve infância (DASDORES, 2011) e mesmo
114

mocinha, nunca dançou e nunca foi a festas. Despertou para encanteria ainda muito pequena,
aos 03 (três) de idade teve as primeiras manifestações de seu dom.

Tinha dificuldades em se relacionar com outras crianças, e até mesmo com os adultos.
Dona Dasdores nos revelou que em diversas ocasiões quando as crianças as afastavam dela,
ela judiava (DASDORES, 2011). A professora a chamava de doida, ela tinha dificuldades em
se concentrar, por conseguinte, não aprendeu quase nada, ela só aprendeu assinar o nome
dela, a sabedoria foi dada por Deus (DASDORES, 2011). Não tinha o sono tranquilo, os
sonhos a perturbavam e nunca dormia bem, assim como os irmãos dormiam ao lado dela.

A família tinha resistência em aceitá-la. Sem saber o que fazer, e sem acreditar no dom
manifestado por Dona Constãncia, ela foi enviada pelos pais a casa dos padrinhos no
município de José de Freitas. A família dos padrinhos tinha condições para cuidar da menina.
O padrinho era Juiz e a madrinha, dona Dalila passou a cuidar dela. Contudo, a menina era
trabalhosa, O sono era perturbado, o comportamento agitado. Eles também não souberam
como lidar com ela.

O vaqueiro59 do padrinho sugeriu levá-la para São Luis60, e encontrar uma explicação
para o que acontecia. Provavelmente, o vaqueiro tinha conhecimento de outras manifestações
como a da menina e contatos em São Luis, mas não podemos afirmar com certeza, assim
como também, não há registros do nome do vaqueiro, ou do padrinho de Dona Constãncia,
mas é inquestionável o papel decisivo dos dois na trajetória de vida dela.

Viajaram por dias, utilizando cavalo e trem para chegar a São Luís, capital do Estado do
Maranhão, a casa do mestre Pedro, conhecido do vaqueiro e que seria o primeiro orientador
de Dona Constância. Foram três anos de estudo, era preciso desenvolver a matéria 61 para que
fosse possível conviver com o dom.

59
O termo vaqueiro é em geral atribuído ao profissional especialista no manejo do gado vacum. (...) No Piauí,
por exemplo, por muito tempo, a contar do início da colonização, as fazendas compreendiam ao mesmo tempo
unidade de produção e local de residência dos habitantes. Em geral eram administradas por vaqueiros. Estes
eram pessoas livres, portanto, fora do binômio senhor-escravo, que trabalhavam sob o sistema de parceria, mas
como delegado do dono da terra, do gado, dos escravos (BRANDÃO, 2008). E que se consolidou ao longo do
período colonial, e mesmo no início do século XX ainda se encontrava em uma posição de destaque e gozava da
confiança do fazendeiro e de um papel de destaque no cenário social e cultural do Piauí.
60
Weber diferente da produção sociológica de sua época, ao invés de ver a religião como subproduto das
condições sociais, ele a vê como um elemento que molda a economia e a sociedade, neste esteio vemos a cidade
de São Luis como referência nordestina das práticas religiosas voltadas para o transe e a possessão, por essa
Razão o Vaqueiro do padrinho de Dona Constância decide levá-la a capital maranhense.
61
Prepara-se, estudar os dogmas e os símbolos da Umbanda. Idem 2
115

São Luis, assim como o restante do Maranhão era um espaço imerso em profunda
religiosidade. Religiosidade, que como já foi mencionado nesta pesquisa, é a materialização
de um intenso hibridismo cultural.

O Estado do Maranhão localiza-se no encontro das grandes regiões da Amazônia e


do Nordeste do Brasil. As religiões afro-brasileiras encontram-se aí muito
difundidas e presentes principalmente nos ambientes mais populares. Em São Luís,
capital do Estado, as casas de culto afro são muito numerosas, sendo difícil
quantificá-las. A ilha de São Luís tem cerca de 1.000.000 habitantes e afirma-se que
existem aqui entre cerca de mil e dois terreiros de culto afro das diferentes
tendências. A mesma expansão ocorre em outras regiões do Estado, especialmente
em Cururupú, localizado a de 500 kms da Capital, no Litoral Norte, que desde o
período colonial foi região de entrada de escravos de contrabando. Fala-se que
Cururupú, com população de aproximadamente 40.000 habitantes, teria mais de cem
terreiros. Este fenômeno também ocorre em Codó, situada a 300 kms da capital, com
população em torno de 70.000 habitantes e que dizem possuir mais de 200 terreiros.
Em outros municípios existem casas de culto afro, porém, ao que sabemos, em
menor quantidade. Esta presença é mais intensa nas regiões de maior concentração
da população negra, como além das já citadas, os municípios de Bacabal, Pedreiras,
Caxias, Viana, São Bento, Penalva e muitos outros. Mas hoje em dia as religiões de
origem africana não são praticadas apenas por afrodescendentes, estando difundida
entre descendentes de todos os grupos étnicos e em todas as classes sociais. O
tambor de mina, a cura ou pajelança e a umbanda, constituem os tipos de
manifestações religiosas afro-brasileiras mais difundidas no Maranhão e na
Amazônia. Em algumas regiões do Maranhão elas apareçam com outras
denominações como terecô, vodum, pajé, Santa Bárbara, Barba Soeira, etc.
(FERRETTI, XX)

Não se pode fugir, contudo, de questões importantes sobre o ambiente em que essa
religiosidade se configurava. Em meio à efervescência religiosa deste espaço não garantia a
liberdade de culto como veremos em breve. A existência de uma legislação que regulava esses
cultos até o ano de 198862 será fundamental para compreender alguns episódios importantes
da vida de Dona Constância.

Depois de três anos com mestre Pedro, ela foi levada para Bahia. Na Bahia sua
orientadora foi Dona Paula. O aprendizado foi gradativo. Começou com o estudo das raízes e
ervas, ainda com mestre Pedro, depois orixás, encantados, caboclos, rituais e doutrinas,
infelizmente não é possível acessar documentação escrita ou mesmo testemunhos orais de
quem tenha convivido com Dona Constãncia no período. Nossa principal testemunha é dona
Dasdores que ouviu de dona Constância histórias sobre esse período. Sabemos que são

62
As religiões africanas sofreram perseguições diversas da polícia, do catolicismo e dos meios de comunicação,
sobretudo na primeira metade do século XX, como tem sido mostrado por vários autores, desde os tempos de
Nina Rodrigues. No Maranhão o controle dos cultos pela Polícia só foi extinto em São Luís em 1988.
(FERRETTI, 2010)
116

histórias contadas e recontadas e que em meio a fluidez da memória se configuram como uma
representação para dona Dasdores dos anos de iniciação de Dona Constância. E que de certa
forma refletem sua própria iniciação que se daria também de forma prematura, aos sete anos
de idade.

Depois de anos de estudo volta para José de Freitas, lá ainda muito jovem casa-se pela
primeira vez, com Joaquim Alves de Sousa. Sobre a vida dele pouco se sabe. Era um homem
misterioso, e como Dona Constância, também, fazia parte do mundo da encanteria, segundo
Dona Dasdores (2011) talvez tenha sido um dos principais motivos da união. Foram morar no
povoado de Brejo do Mota, próximo a cidade de Aldeias Altas a aproximadamente 403
quilômetros de São Luis no Maranhão.

O relacionamento foi muito conturbado, não temos muitos detalhes, a família se


reservou o direito de não falar a respeito, ou realmente não tinham informações sobre o que
aconteceu. Dentre as poucas informações sabemos que tiveram cinco filhos, José de Ribamar
Sousa, Astrorlina Pereira de Sousa, Maria Dasdores Pereira, Antonio de Helesboa Pereira de
Sousa, Manuel Messias Pereira de Sousa. A conturbação no relacionamento levou a
separação, o que não resolveu os conflitos que existiam entre eles. Ele vendeu a casa, com a
família morando nela. Obrigados a sair, ela mandou construir uma casa de palha e para lá se
mudou com os seis filhos, sendo que o mais novo, Messias, tinha apenas seis meses. Ela ficou
só, sem casa e com cinco filhos pequenos. Foi um momento de grande sofrimento63. Foi um
período difícil, mas como Dona Dasdores deixa implícito em suas observações, também
necessário. Um sofrimento que fortaleceu e curou muitas feridas.

Neste período ela se viu sozinha e com filhos, uma condição nada favorável para os
conceitos da época64. O filho mais novo foi enviado para a casa dos padrinhos por um ano,
período em que ela tentava estabilizar a vida e poder trazê-lo de volta. Os outros dois meninos
foram para escola e as meninas foram ajudá-la a ganhar dinheiro. Não foi fácil, mas dona

63
Max Weber, em sociologia das Religiões, destaca a importância da ideia de uma glorificação religiosa do
sofrimento. O princípio que constituía as relações comunais entre as profecias de salvação era o sofrimento
comum a todos os crentes. E isso ocorria quer o sofrimento existisse realmente, quer fosse uma ameaça
constante; quer fosse exterior, quer interior. Quanto mais imperativos surgiam da ética de reciprocidade entre
os vizinhos, mais racional se tornava a concepção da salvação, e mais era sublimada numa ética de finalidades
absolutas. (WEBER, 1982. p.162)
64
Dentro do contexto do Brasil do século XX, ainda se mantém um imaginário social que exaltava a virgindade,
o papel de esposa e mãe exemplares. O casamento era apresentado como o ideal da mulher, a concretização dos
seus sonhos de juventude, o alvo de sua existência. Amparados na ideia da “natureza frágil e débil” da mulher,
reforçava-se a tradição de sua vida tutelada pelo homem, seja seu pai, irmão ou marido, que deveria garantir-
lhe a proteção, o sustento e também a honra. (ABRANTES, 2002, p. 62).
117

Dasdores nos deixa sempre muito claro que a fé de sua mãe era algo inabalável, e ela sabia
que de alguma maneira seu povo65 iria ajudá-la.

Trabalharam em Santo Vidigal, na região de Brejo do Mota, Maranhão. A rotina diária


marcou profundamente as lembranças de Dona Dasdores e de Dona Dora, como é conhecida
Astrorlina. Faziam todos os serviços, lavar, passar, limpar, cozinhar. A tristeza pelas
dificuldades da época e o orgulho da força e fé da mãe são sentimentos que se misturam e
atravessam as memórias das duas. Associado a isso ainda existia todo o temor em relação a
suas práticas religiosas.

A casa de Dona Constância era visitada com frequência por pessoas em busca de
tratamento, o que era muito comum no interior do Maranhão, no qual médicos eram muito
escassos, mas não sabiam que ela recebia entidades, apenas Dona Dasdores, pois as
proibições existiam e a possibilidade de perder o lugar em que moravam, ou mesmo ser presa
era sempre um tormento constante.

Além de Dona Dasdores e Astrorlina trabalhavam com ela em Brejo do Mota, dona
Rolinha, dona Maria e seu Bernardino, todos filhos de santo orientados por ela. Elas faziam
as Obrigações em um lugar chamado Boqueirão da Areia, de difícil acesso, porém, seguro.
Eram guiados por Quebra Ferro, cachorro da família, neste lugar existia um espaço que Dona
Dasdores descreveu como uma oca, e foi o lugar que por muito tempo, desde suas primeiras
lembranças até o momento em que ela assumiu a liderança do grupo em que Dona Constância
faziam as Obrigações. As lembranças dela a levam para um lugar confortável, no qual se
sentia segura, e, acreditamos que isso fosse motivado pela própria clandestinidade dos
trabalhos realizados por elas.

E lá parece que tinha, era como se fosse uma porta né, e a gente ia trabalhar lá
dentro, acendia as luzes, e as entidades descia, lá a gente trabalhava com defumador,
as coisas que tinham. E quando terminava aquilo tudinho a gente saía. Mas aquela
areia era tão fria, tão fria, ave Maria, era muito bom. Eu como era criança, por mim
eu passava a noite lá deitadinha. (DASDORES, 2010)

Era um tempo de silencio. Um silêncio motivado pela vergonha e pelo medo, um medo
que não deve ser confundido com covardia, ela era valente, e com coragem enfrentou essas

65
Encantados, Caboclos e orixás.
118

adversidades. Essa preocupação de Dona Constância tinha suas bases na legislação66 vigente
no período (décadas de 1940 a 1960).

A minha mãe era muito valente. Ela nunca baixou a cabeça pra ninguém. Ela era
uma mulher valente, uma mulher guerreira. Ela nunca teve medo de nada na vida
dela. Ela nunca teve medo nem de briga. Porque ela não tinha, porque a gente tá com
faca, revólver na mão e ela entrava no meio. Minha mãe nunca teve medo na vida.
Ela foi uma guerreira pra criar esses filhos sem pai. Era uma guerreira. Ela viajava,
atirava muito bem. (Dasdores, 2011)

As manifestações da cultura afro-brasileira e indígenas e das práticas religiosas ligadas a


elas são rigidamente reguladas neste período. As constituições do Estado republicano
garantiam a liberdade religiosa, mas existiam tanto no texto constitucional (1891, 1934, 1937
e 1946), como também no Código Penal (1889, 1940) e nos códigos de postura regionais
(Codó, São Luis) elementos que justificavam a necessidade discrição de Dona Constância em
relação as suas práticas religiosas.

A constituição de 1891 já assegura que a União e os Estados não podiam promover,


desfazer ou mesmo complicar a execução e a prática de nenhum culto religioso, e ainda:

Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a


inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:
§ 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e
livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as
disposições do direito comum.

A liberdade religiosa era um direito do cidadão, mas existem no texto da lei pontos
importantes a serem observados.
A Constituição de 1934, por exemplo, no artigo 17, assegura que não é permitida a
nenhuma esfera político-administrativa proibir, promover, ou desfazer o exercícios de cultos
religiosos e estabelecia que o Estado não pudesse ter relação de aliança ou dependência com
qualquer culto, ou igreja sem prejuízo para o interesse coletivo.
A Constituição de 1937, também assegura a inviolabilidade do direito de culto.
Contudo, é importante compreendermos, que, mesmo com a liberdade de culto, as religiões de
matriz afro-brasileira ainda eram alvo de perseguições. A liberdade estava garantida desde
que não contrariassem a ordem pública ou os bons costumes.
Constituição de 1937.

66
Acreditamos que ela desconhecia os detalhes dessa legislação, entenda-se aqui constituições, Códigos de
Postura e o Código Penal, mas seus efeitos chegavam ao interior do Maranhão, a repressão e o medo era o que
motivava a clandestinidade.
119

Art 32 - É vedado à União, aos Estados e aos Municípios:


b) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos;
Art 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o
direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
1º) todos são iguais perante a lei;
4º) todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o
seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições
do direito comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes. (Grifo
nosso) (Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 10 de novembro de 1937)

A constituição de 1946 ainda mantém um texto muito parecido, contudo traz como novo
elemento, as Associações Religiosas ganham personalidade jurídica perante á lei civil. Muitas
associações já haviam sido criadas no Brasil67, sem, contudo ter garantida sua legitimidade
jurídica, o que acontecerá a partir da constituição de 1946.

Art 31 - A União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:


II - estabelecer ou subvencionar cultos religiosos, ou embaraçar-lhes o exercício;
III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem
prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo;
CAPITULO II
Dos Direitos e das Garantias individuais
Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança
individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 7º - É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os
bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na
forma da lei civil. (grifo nosso)
§ 8º - Por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado
de nenhum dos seus direitos, salvo se a invocar para se eximir de obrigação, encargo
ou serviço impostos pela lei aos brasileiros em geral, ou recusar os que ela
estabelecer em substituição daqueles deveres, a fim de atender escusa de
consciência. (Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 18 de setembro de 1946)

Contudo, outras leis e códigos traziam em seus textos uma regulamentação severa em
relação às religiões de matriz africana, entenda-se aqui, que esta não são citadas abertamente,
a não ser no Código de 1940 que faz menção ao baixo espiritismo68.

O Código Penal de 1889, nos artigos 157 e 15869, definia a prática da cura por meios
que não sejam convencionais da medicina como crimes, e os responsáveis pelo ato passiveis

67
A criação da primeira federação umbandista se deu na cidade do Rio de Janeiro, por Zélio de Moraes e outros
líderes, em 1939. A função da UEUB (União Espírita de Umbanda do Brasil) era de congregar todos os grupos
religiosos que eram orientados pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas. Esta organização, em 1941, foi a principal
articuladora do I Congresso Espírita de Umbanda, cujo objetivo era de compilar os rituais e unificar a prática
umbandista. (TRINDADE & LINARES, 2008)
68
Religiões de possessão não oficiais, religiões mediúnicas que não estavam ligadas a Federação Espírita
Brasileira criada em 1890.
69
Os crimes previstos no artigo 157 do Código Penal eram punidos com prisão de 01 (um) a 06 (seis) meses,
além de multa que se estabelecia no valor de cem a quinhentos mil reis. O artigo 158 previa prisão de 01 (um) a
120

de punições. Posteriormente o Código Penal de 1940 ratificava as punições. Analisando o


código, há indícios da existência de interesses particulares que motivavam a formulação
destes códigos, porém não enveredaremos por essa discussão.

Os Códigos de Postura e leis regionais deixavam claras as proibições de certos rituais.


Nesse esteio é importante destacar que a análise empreendida pela antropóloga Mundicarmo
Ferretti (2008) da documentação do século XIX é essencial. Dentre os documentos analisados
por Ferretti (2008) está o código de postura da cidade de Codó (1848) e o Código Penal de
1940, dentre outros documentos que vigoraram até a década de 1980. Estes documentos
estabelecem regras de convívio social, incluindo restrições e punições, para os praticantes da
pajelança e da feitiçaria, e a um conjunto de rituais associados as religiões afro-indio-
brasileira. Os mesmos consideram, por exemplo, o curandeirismo um crime contra a saúde
pública.

Lei 241 – de 13 de setembro de 1848


Art. 22: Toda e qualquer pessoa que se propuser a curar feitiços, sendo livre pagará
multa de vinte mil reis, e sofrerá oito dias de prisão, e sendo escravo haverá somente
lugar a multa que será paga pelo senhor do dito escravo
Art. 23:è proibido lanças nos rios, igarapés, poços ou lagos, a herva denominada –
timbó – ou qualquer outra que mate os peixes: os contraventores pagaram multa de
vinte mil reis, e o duplo na reincidência. (Código Postura de Codó de 1948)

Exercer o curandeirismo: I – prescrevendo, ministrando ou aplicando habitualmente


qualquer substancia; II – usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; III –
fazendo diagnóstico.
Pena – detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único – Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica
também sujeito à multa, de um a cinco contos de reis.
Decreto-Lei n° 2848, Artigo 284 – de 7/12/1940, publicado no Diário Oficial de
31/12/1940.

É inequívoco que a legislação ainda manteve e mantém restrições aos trabalhos de cura
70
que acontecem fora dos estabelecimentos oficialmente dedicados a essa prática.
Mundicarmo Ferretti (2008) ainda argumenta que a perseguição aos curadores e pajés foi bem
mais intensa do que aos mineiros.

A análise de paginas policiais de jornais maranhenses das últimas décadas do século


XIX e das primeiras do século XX confirma que no Maranhão os curadores e pajés
eram mais perseguidos pela policia do que os ‘mineiros’ (sacerdotes do tambor de
mina). Fala-se em São Luís que, para fugir aquela repressão, nos anos 30 do século
XX, muitos curadores e pajés abriram terreiros de mina e que, a partir dos anos 60,
muitos deles se filiaram a Federações de Umbanda e de Cultos Afro-brasileiros e

06 (seis) meses para aqueles produziam substancias extraídas de plantas, e que também prescrevessem ou até
mesmo induzisse seus pacientes a ingerir tais medicamentos para a cura de males ou enfermidades.
70
Estabelecimentos como, hospitais e clinicas ligados aos conselhos de medicina.
121

assumiram a identidade de umbandistas ou de “espíritas”, uma vez que aquela


religião foi apresentada no passado como “espiritismo de umbanda”. (FERRETTI,
M. 2008)

É neste período que Dona Dasdores desperta para sua mediunidade. Ela tinha apenas
sete anos, e prematuramente como a mãe teve seu dom evidenciado. No final da década de
1950, ainda não se fala abertamente de dons de mediunidade e encanteria no Maranhão, como
já mencionamos anteriormente. Ela recorda das proibições à realização dos trabalhos, os
fazendeiros quando descobriam que seus funcionários trabalhavam com encanteria, eles
corriam com a gente prá não morar na terra deles71. Dona Constância não gostaria de correr
um risco tão grande, contudo isso não a impediu de manter sua rotina religiosa. E como já
mencionamos, realizava suas Obrigações, mas escondida.

Em meio a tantas preocupações Dona Constância começa a mostra sinais de cansaço,


ela não estava bem, todas as suas perturbações de muitos anos antes, quando da sua iniciação,
pareciam ter voltado. Seu chefe de Crôa72, seu Mearinzeiro73, não descia, estava preso74·.
Mesmo não sendo o único Encantado que ela recebia, pois tinham ainda, Dom Sebastião,
Doutor Firma, João Carrasco, Badê e o Caboclo José, ele era seu chefe de crôa, para quem
deu sua filha Dasdores ao nascer, e o fato de não poder recebê-lo causava-lhe muito
sofrimento.

Com a orientação dos encantados ela voltaria à Bahia (o lugar exato está indefinido nas
entrevistas realizadas com os filhos, netos e mesmo aos amigos que a acompanharam), dona
Dasdores e nenhum dos filhos recorda a cidade, mas é a mesma região para onde foi mandada
ainda criança. Na Bahia ela procurou Dona Paula, mesmo velhinha ainda estava lúcida, e nela
Dona Constãncia encontrou forças e os ensinamentos necessários para se fortalecer e voltar a
realizar suas práticas religiosas.

Porque olha, um médico não se opera, e todos nós precisamos de um


médico. E mentira se disser assim: “Ah, eu não preciso porque eu sou feito,
porque eu sou sabido, porque sou aquilo e isso outro.” Não, não existe isso.
E uma ignorância muito grande dos que dizem uma coisa dessas. Porque
todos nós precisamos, nós precisamos das pessoas. Me segure essa vela, me
dá essa água. Então você esta precisando, não esta? Só em você me pedir

71
Entrevista Dona Dasdores, 25 de julho de 2011.
72
Encantado principal, a primeira entidade a ser recebida por um médium.
73
Seu Mearinzeiro é príncipe, ele é um príncipe. Então ele nunca gostou de, Seu Mearinzeiro não gostava de
Codó, ele não gosta de Codó. Por que olha, do jeito que tem as pessoas, tem os Encantados também né. Nunca
vi na minha vida Seu Mearinzeiro pegar um cálice de vinho pra beber e um cigarro pra fumar. (Entrevista Dona
Dasdores 25 de julho de 2011)
74
Entrevista Dona Dasdores, 25 de julho de 2011
122

essa bacia de rosas, esta bem aí: “O minha filha, me dá essa bacia aqui pra
mim.” Porque você só tem duas mãos. Então você precisa, eu preciso. Essa
daqui, como não tinha quem viesse, o pessoal vai chegar. Aí eu digo:
“Minha filha, tu vai entrar com a bacia pra mim rezar. Eu não posso sair com
tanto rosário, tanta gente atrás de mim, uma bacia. Então estou precisando,
não estou? To precisando. Então é assim. (Dasdores, 2011)

Antes de voltar ao Maranhão dona Paula entrega a Dona Constância o documento que
lhe permite realizar suas práticas religiosas e mesmo estabelecer seu espaço de culto com a
regulamentação de seu Salão. É importante ressaltar que a constituição de 1946, mesmo ainda
mantendo parte do texto das anteriores em relação a ordem pública, passa a permitir que as
organizações religiosas adquiram personalidade jurídica, dando fôlego aos processos de
criação e institucionalização de associações e Federações para regulamentar a existência de
Terreiros, Tendas e Salões.

Dona Constância retorna ao Maranhão, lá volta a trabalhar, a casa estava sempre cheia,
dona Dasdores ressaltou por diversas vezes que sua casa era uma casa de romaria 75 , as
pessoas iam até lá se tratar. Vinham pessoas de todas as partes, em busca de seus remédios e
de seus ensinamentos. Ela fazia muito remédio pras pessoas. (...) Aí com o tempo, a gente
fazia tanto remédio pra tuberculoso. (...) A pessoa se curava. (...) Fazia muito remédio.
Minha mãe foi um exemplo de vida pra muita gente, não só para os filhos76.

Depois do primeiro ano tudo parecia ter encontrado o seu lugar, o sofrimento fora
intenso, mas acredita-se que ela acreditava que precisava passar por isso e que também seria
por um tempo limitado. Casou-se, no ano de (...) pela segunda vez com Francisco Vieira de
Melo, com quem teve mais dois filhos, João Batista Pereira de Melo e Francisca Elisabete
Pereira de Melo. Muda-se para Codó. As filhas Dasdores e Astrovina continuam sendo
orientadas e a elas se juntam outras mulheres, como dona Rita e dona Maria, que fizeram
parte da vida de Dona Constância e que hoje ajudam dona Dasdores no cumprimento das
Obrigações.

Os anos proporcionaram, como já vimos, maior liberdade aos cultos afro-brasileiros.


Com isso dona Constância também se sentiu mais livre para viver sua fé.

3.1.2. A Promessa: uma festa para os encantados

75
Entrevista dona Dasdores, concedida em 25 de julho de 2011.
76
Idem 16
123

As práticas religiosas de Dona Constância se tornam bastante conhecidas. Ela atendia


pessoas vindas de outras regiões, a casa estava sempre cheia, e pareciam que os anos difíceis
haviam ficado para trás. Muitos umbandistas da região, desde os mais simples até os mais
famosos vinham pedir sua ajuda, compartilhar sua sabedoria, Pedro seu neto e filho de dona
Dasdores a considerava uma intelectual.

Todo mundo tem sua intelectualidade dentro das suas variantes. Decerto que a
Constância tinha, só que na variante dela que era a Umbanda. E consequentemente
isso chamava a atenção não somente dos familiares, mas de todos Pais de Santo
dentro da cidade de Codó. Então tá claro, tinha um respeito, um respeito mútuo entre
os Pais de Santo. Então é verdade que muitos iam até ela, pra que ela rezasse nos
Pais de Santo que estavam muito carregado. Inclusive Bita de Barão cansava de ir lá,
ela rezava sem nenhum preconceito. (FILHO, 2010)

Evidenciando assim o crescimento da importância de Dona Constância como mãe de


Santo da região. Dona Constância realizava trabalhos para pessoas que viviam em Codó e que
iam a cidade a procura de sua ajuda. Um desses trabalhos está o que lhe proporcionou a
aquisição do sítio São José. O Senhor Assis, como já mencionamos no capítulo anterior, dono
do cartório da região necessitava de ajuda na resolução de um problema, que em nenhuma
entrevista nos foi revelada a natureza, pediu a interferência de dona constância, tendo sido
atendido ele presenteou o Rei Sebastião com o sítio 77 . Dentre as muitas lembranças dos
familiares e amigos de dona Constância está o desejo que ela sempre manifestou de ter um
espaço com água corrente para fazer suas obrigações, um lugar em que pudesse render
homenagens aos encantados.

No ano de 1988, Dona Constância recebe a escritura do sítio, o documento tem um


valor simbólico, que o torna quase um objeto sagrado assim como tantos outros que
encontramos na vida desta senhora. Dona Dasdores nos fala da importância deste pedaço de
papel, como algo puro, o documento daqui foi passado no dia de uma festa ali no salão. Ele
veio, trouxe o livro, todo mundo assinou, tudo direitinho. O documento é um documento
muito limpo (Entrevista dona Dasdores 25 de julho de 2011). O sítio é parte da propriedade
pertencente ao senhor Assis e fica a mais ou menos quatro quilômetros do centro da cidade de
Codó. Tudo nele foi construído a partir dos trabalhos dos encantados. O salão da reza de São

77
É do Rei Sebastião. Esse sítio aqui não foi comprado. Quem deu esse sítio pro Rei Sebastião foi o Assis dono
do cartório que tem aqui. Foi ele que deu esse sítio pro Rei Sebastião. Foi um serviço que Deus ajudou e deu
certo, porque ele ia perder o cartório dele. Aí ele veio, ele pediu ajuda e a gente pra Deus. Aí ele disse que o que
Rei Sebastião... Ele perguntou pra Rei Sebastião o que ele queria, ele disse que tinha vontade de conseguir um
pedaço de chão que tivesse água pra fazer as Obrigação de Iemanjá. Aí quando menos esperou, o Assis deu isso
aqui pro Rei Sebastião. (Entrevista dona Dasdores 25 de julho de 2011)
124

Francisco (foto 63), por exemplo, foi construído por João Carrasco, e a casa (foto) teve a
ajuda de todos e foi construída aos poucos, pois a primeira era de barro e segundo os
depoimentos tinha um quarto grande onde ficavam os santos e de onde era feita a abertura de
todos os rituais.

Foto 49: Salão da reza


Fonte: Vivian Brandim
125

Foto 50: Casa


Fotos: Vivian Brandim

A grande festa da obrigação começou a ser realizada no final da década de 1980, o ano
preciso é algo que a maioria delas na afirma com certeza, alguns acreditam que seja desde
1985 outros que tenha se iniciado já no final, 1989. Ela era parte da promessa de Dona
Constância, promessa essa que simbolizava toda sua devoção ao mundo da encanteria. Ela
queria agradecer, sua família foi constituída em meio a muitas adversidades e sua fé a
manteve forte, portanto, todo o ritual da Obrigação é pautado neste agradecimento. Cada
Obrigação é voltada para entidades específicas. É um momento de fé, humildade e devoção,
no qual o povo das águas, o povo da mata, o povo do oriente e os santos católicos são
homenageados78.

A festa se torna um evento no calendário religioso da cidade e todos os anos pessoas de


Codó e de outras regiões do Maranhão e até mesmo do Piauí comparecem no dia 31 de
outubro ao sítio São José. Curiosidade e fé movem os visitantes que participam de todos os

78
É a todos. Porque aí nós não vamos fazer uma homenagem só pra Iemanjá. Porque Iemanjá, que é Iemanjá
que nós fazemos, Iemanjá que é a Mãe Sereia e pra Mãe d’água Rainha. Então nós pegamos, um pouco de mata,
mina e água. E ainda tem o pessoal do Oriente, que o Oriente são os Ciganos, que faz parte também, esses são o
do Oriente. Quando nós falamos, quando nós pedimos força pro povo do Oriente, é a grande sabedoria dos
Ciganos. (Entrevista dona Dasdores 25 de julho de 2011)
126

rituais. As festas começam timidamente, mas com o passar dos anos reúnem grupos cada vez
maiores.

As histórias se multiplicam a respeito de curas e dos desejos atendidos, mas dona


Constância não é mais tão forte. Depois que ela adoeceu, é dona Dasdores que assume o
comando do grupo e passa a realizar as obrigações sob a supervisão de dona Constância.

Ela era uma senhora muito forte e mesmo não estando a frente do ritual ainda determina
todos os detalhes. Era rigorosa com os médiuns que faziam parte do grupo, e os mantinha sob
severa observação, cumprindo rigorosamente cada horário e cada indicação dos encantados79.
Os umbandistas acreditam que o era um elemento essencial no ritual da obrigação, então era
necessário aguentar a terra quente da mata dos caboclos ao do meio dia e frio das águas de
Iemanjá a meia noite.

Contudo ela estava cada vez mais fraca, foi internada por diversas vezes no ano de
2001, ano em que faleceu. Mesmo assim no dia 31 de outubro de 2001 acompanhou toda a
Obrigação, desde a Alvorada, às cinco da manhã, até a obrigação das águas a meia noite,
demonstrando que mesmo com uma aparente fragilidade ainda encontrava forças para
acompanhar todo o ritual. Contudo todos os entrevistados no transcurso dessa pesquisa
afirmam que ela sabia que iria morrer e o último ano da Obrigação, e que aquele momento foi
uma despedida e uma preparação para o que viria. Durante todos os dias em que estiveram no
sítio ela parecia imersa em seus pensamentos, distante, mas ao mesmo tempo olhando a tudo e
todos com emoção e saudade.

No dia 19 de dezembro de 2001, quarta-feira, depois de muitos dias de internação ela


fez a viagem (faleceu). Dona Dasdores nos relatou esses últimos momentos da mãe bastante
emocionada, ela estava no hospital e mandou chama-la, elas precisavam conversar.

Foram muitas recomendações, necessárias para preparar sua partida 80 , em primeiro


lugar ela, dona Dasdores, precisava voltar a Codó e preparar o sítio São José para recebê-la.
Ela também desejava vestir sua roupa de Obrigação, e ser enterrada com a indumentária.

79
Ela era muito rígida, muito carrasca com a gente também. Ela não tinha pena, é porque as meninas não estão
aqui, ela não tinha pena de marcar pra sair do Codó descalça, doze horas do dia quando chegava aqui no sítio
não. Porque ela dizia pra gente que a taca que doía era do tempo. (Entrevista dona Dasdores 25 de julho de
2011)
80
Segundo o simbolismo que envolve as obrigações, depois da morte do médium é necessário que seu sucessor
ainda realize o ritual por um prazo de sete anos, período de transito do espírito para que este encontre o seu lugar
no mundo superior.
127

Depois ela deveria esperar a chegada do corpo ainda no Dezessete, Povoado localizado na
entrada da cidade de Codó. É como um ponto de demarcação da entrada da cidade, e lá concluir a
preparação do corpo para facilitar sua viagem. Ela pediu que a filha não deixasse nenhum
outro pai de santo tocar o seu corpo. A filha pessoalmente deveria descolar81, arrebentar seu
rosário de Figa de Guine e colocar seu terço em sua mão para protegê-la dos perigos durante
essa viagem.

A partir desta conversa realizada nos hospital dona Dasdores foi para Codó. Era
necessário preparar a passagem de dona Constância, para isso todo o processo ritual foi
realizado, desde a limpeza da casa até a preparação do corpo e do espírito. Como combinou
com a mãe, ela esperou o corpo que vinha de ambulância da cidade de Caxias no povoado
Dezessete. Quando a ambulância chegou ela entrou e foi sozinha com o corpo até a cidade,
durante o percurso ela realizou o ritual orientado por dona Constância, que simbolizava a
quebra da ligação entre dona Constância e o mundo dos vivos.

O corpo foi velado no sítio São José, no Salão da Reza. Era seu desejo também ser
enterrada no sítio, mas foi enterrada no Cemitério Central da cidade de Codó, para muitos isso
representaria a finalização de um ciclo, mas dona Dasdores ainda passaria 07 (sete) anos
realizando a Obrigação da mãe, para que, assim, ele realmente pudesse partir.

Dentre todos os rituais do que aqui denominamos de Obrigação de dona Constância,


apenas a Obrigação das Santas Almas Benditas não faziam parte da promessa renovada feita
por Dona Dasdores. Foram sete anos82, de 2002 a 2008, faziam parte do ritual além de dona
Dasdores e a filhas de santo que acompanhavam dona Constância desde que dona Constância
chegou a Codó.

A cada dia 31 de outubro após o falecimento de Dona Constância a promessa de dona


Dasdores era renovada. O ritual era realizado seguindo todas as suas orientações. Da Alvorada
a Obrigação das Águas misturavam-se os sentimentos da família, dos amigos e dos visitantes

81
Preparação para garantir uma boa morte, evitar sofrimento.
82
O número sete está impregnado de significados, nas religiões afro-brasileiras ele está relacionado a Bará o
dono das chaves dos portais, encruzilhadas e caminhos. É sete também o número de linhas da umbanda. As
linhas da Umbanda são basicamente vibrações dos orixás, ou seja, as vibrações originais que são sete: Oxalá,
Ogum, Iemanjá, Oxóssi, Xangô, Oriente e Omolu. Não há ordem ou hierarquia entre elas. Todas as linhas são
iguais, porque todos os orixás são iguais. Algumas dessas vibrações básicas se desdobram originando outras
vibrações. Na linha de Iemanjá, por exemplo, enquadramos a vibração de Oxum, na de Oxossi, a de Ossâim, na
de Xangô, a de Iansã, na do Oriente, a de Oxumarê, e na de Omolu, a de Nanã e a falange dos Pretos-velhos e
Pretas-velhas. (ALMEIDA, 2006. P. 30 - 31)
128

devotos que não deixavam de participar todos os anos. A mesma fé, mas com uma emoção
diferente. Tivemos a oportunidade de participar deste período e a ideia de despedida era uma
constante. Apenas no primeiro ano depois de sua partida não houve obrigação com festa,
apenas a das águas, pois esta não podia deixar de ser feita.

As sete linhas da umbanda estavam presentes, suas cores foram referências em cada um
dos anos. No último ano, 2008, essa emoção parecia envolver a todos. As cores utilizadas na
indumentária dos médiuns foi o branco de Oxalá. Em todos os rituais essa foi à cor
dominante, senão a única. Apenas durante a procissão a família e os amigos mais próximos
utilizaram camisas com a fotografia de dona Constância.

Foto 51: Saída da procissão no ano de 2008 do centro da cidade de Codó, da casa que Dona Constância. Foto:
Vivian Brandim

A emoção que é demonstrada por dona Dasdores na imagem foi marcante durante todo
o ritual.
129

Nas inúmeras entrevistas dona Dasdores destaca que sentiu a presença da mãe a todo o
momento e que aquela foi à despedida, o momento de se desligar do mundo e das coisas que
viveu, era preciso partir, estava cumprida sua promessa e agora era o momento de recomeçar
para todos.
Talvez, possamos dizer, de se reinventar ou mesmo de criar uma nova tradição83. E elas,
Dona Dasdores e as irmãs84, tem se reinventado dentro deste mundo que era novo para elas
após 2008, criando suas próprias tradições, agora unidas sob o comando de Dona Dasdores,
fazendo as próprias obrigações, pois a obrigação de mamãe acabou85.

3.2. Histórias sobre Dona Constância

A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade (POLLAK, 1989).


Percorrer as memórias de uma comunidade, de um grupo, de uma família requer sensibilidade
de perceber as mensagens presentes nos detalhes mais sutis que compõem o quadro da
entrevista. É fundamental dedicar atenção especial a elas, pois nelas estão presentes rastros
de um tempo que é histórico, e também sentimental. Jeanne Marie Gagnebin define o
historiador como um Sucateiro.

Sucateiro (o historiador também é um lumpnsammler) não tem por alvo recolher os


grandes feitos. Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como
algo que não tem significação, algo que parece ao ter nem importância nem sentido.
(GAGNEBIN, 2009. P. 54.).

Dessa forma, as lembranças dos familiares e amigos de dona Constância nos


conduziram por um caminho que vai além dela, como personagem individual, mas que nos
permite compreender um pouco mais do quadro histórico social da comunidade na qual dona
Constância estava inserida.

83
A utilização de elementos antigos na elaboração de novas tradições inventadas para fins bastante originais.
Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer sociedade, um amplo repertório destes elementos; e sempre
há uma linguagem elaborada composta de práticas e comunicações simbólicas. Às vezes, as novas tradições
podiam ser prontamente enxertadas nas velhas; outras vezes, podiam ser inventadas com empréstimos
fornecidos pelos depósitos bem supridos do ritual, simbolismo e princípios morais oficiais. (HOBSBAWM,
1984. P. 13)
84
Filhas de santo que acompanharam dona Constância.
85
Dona Dasdores em entrevista concedida dia 25 de julho de 2011.
130

3.2.1. Janeth e sua mãe dindinha: histórias da vovó

Janeth Reis de Sousa Neta tem 37 anos, é filha de José de Ribamar Sousa, o mais velho
dos filhos homens de Dona Constância. Foi à primeira da muitas entrevistas realizadas no
caminho percorrido até aqui, aquela que provavelmente o amadurecimento necessário à
pesquisa ainda não se evidenciava, mesmo assim uma das mais esclarecedoras dos múltiplos
significados desta senhora para a vida de sua família e daqueles que a seguiram por tantos
anos.

Dois cascudos que ela me deu. Essa é a lembrança que eu tenho, é assim que começa
nossa viagem pelas lembranças de Janeth. A avó é um personagem que faz parte de todos os
momentos de sua vida, desde os mais felizes e os mais tristes, e mesmo depois de sua morte
ainda é uma presença constante, principalmente nos momentos de maior angustia, Janeth nos
revela que sempre acende uma luz e pede a ajuda de Dona Constância.

Janeth descreve a avó como uma heroína de romances, boa, caridosa, cheia de vida e fé,
mas também a descreve como alguém severa e que não relutava em utilizar sua bengala para
alcançar os objetivos desejados. Cuidadosa com os netos, sempre tinha um conselho, uma
orientação. Janeth a via como a grande mãe, aquela que cuidava de todos e talvez por essa
razão ainda se ampare nela nos momentos de necessidade.

Em relação as suas práticas religiosas Janeth recorda a casa sempre cheia e o fato da avó
nunca cobrar o atendimento, dá de graça o que de graça recebeste. Detalha que quanto ela os
visitava a casa ficava cheia, as pessoas vinham vê-la, pedir auxilio, ela era a mãe de todos, a
mãe Dindinha.

Eu lembro que em Caxias, quando a minha avó chegava lá na casa dos meus pais,
vinha um monte de gente, comadre, pra conversar com ela, pra se sentir... e assim,
conversava, parecia que descarregava os problemas e que tinha, saía mais leve. A
Mãe Dindinha, ela não tinha só a família, mas muita gente ia conversava com ela.
Naquela época eu não me atentava assim, eu achava que as pessoas iam só pra
conversar, pra fazer uma visita, entendeu? Na minha adolescência, eu achei que
essas pessoas procuravam muito a Mãe Dindinha por isso. Mas eu não. Nossa, Eu
nunca me dei conta associar que era pra rezar, entendeu? Depois de uma época
assim, que eu ficava perguntando muito pra ela. E daí ela falava: Não, é que a vovó
reza nas pessoas. Mas assim, por aí você tira, você faz ideia do quanto ela deixava,
ela era muito discreta, muito observadora. Assim, parece que ela via a tua áurea
quando ela olhava pra você, parece que ela via todos os teus problemas ali
estampado. Então quando ela começava assim, quando a pessoa ia conversar com
ela, ela já sabia, já sabia até o que te dizer. (Janeth Reis, 2010)
131

Dentre as inúmeras histórias contadas por Janeth as de sua infância são as que nos
chamam mais atenção, seja por essa dualidade de sentimentos em relação à avó, severa, mas
heroína,
Eu acho que tinha uns sete, oito anos. A minha vó rezava na gente com uma pedra,
uma pedra preta. Ela passava na gente aquela pedra e ela tinha assim tipo um olho,
uma bolinha transparente, e aquela bolinha ali me marcou muito assim, porque eu
achava um negócio assim muito, ai como que eu te descrevo, era um... A minha avó
dizia assim: Isso aqui é um olho que vigia todo mundo. Então eu morria de medo
porque eu sabia que se eu fizesse coisa errada aquele olho tava me vigiando. Mas
assim, independente aí da história do olho, mais era a pedra preta que a minha avó
passava na gente. (Janeth Reis, 2010)

Seja pela introdução dos filhos e netos ainda muito cedo no mundo da encanteria sem,
contudo afastá-las da igreja católica, pois como afirmava, ela era católica e ir a missa era
fundamental. Janeth nos revela, a Mãe Dindinha é assim, pra ela, católica, católica de ir pra
igreja assistir missa, eu aprendi com a minha avó ir pra igreja. Assistir missa, rezar o terço,
e depois tinham as Obrigações e as rezas.

Viviam em dois mundos, dois espaços estruturalmente diversos, mas culturalmente


interligados, no qual a maioria dos brasileiros se divide, pela manhã vai a missa, reza e
comunga, e a tarde leva o filhos ao terreiro, pede ajuda aos orixás, faz oferendas e promessas.
Materializando o caldeirão cultural referido por Damatta (1986).

3.2.2. Pedro Filho: Dona Constância era uma intelectual

Pedro Pereira da Luz Filho é filho de dona Dasdores, talvez por essa razão, sua
proximidade com esse mundo seja mais nítida em suas entrevistas. A devoção a dona
Constância e o orgulho de tê-la em sua vida assim como Janeth é uma constante.

Beatriz Sarlo (2007) nos instiga a desconfiar das entrevistas, a não tê-las como uma
realidade, mas como uma representação desta. Tentamos partir desta perspectiva para
entender esta senhora. Contudo, mesmo para esta pesquisa é quase impossível não se
sensibilizar diante dos depoimentos de amor e devoção a ela.

Em sua primeira entrevista Pedro Filho a define como uma intelectual.


132

Todo mundo tem sua intelectualidade dentro das suas variantes. Decerto que a
Constância tinha, só que na variante dela que era a Umbanda. E consequentemente
isso chamava a atenção não somente dos familiares, mas de todos Pais de Santo
dentro da cidade de Codó. Então tá claro, tinha um respeito, um respeito mútuo entre
os Pais de Santo. Então é verdade que muitos iam até ela, pra que ela rezasse nos
Pais de Santo que estavam muito carregado. Inclusive Bita de Barão cansava de ir lá,
ela rezava sem nenhum preconceito. Mesmo porque, o malefício feito não era por
ela. (Pedro Pereira da Luz Filho, )

A intelectualidade desta senhora estava ligada, não apenas ao conhecimento de sua fé,
como também à sabedoria da vida, que proporciona ao indivíduo se relacionar com ele e com
o outro. Essa era a percepção da família. Família que segundo Pedro Filho se reunia em torno
desta senhora que viveu em função de sua fé e de seus filhos.

Foto 52: Reunida com a família no Salão da Reza no Sítio São José
Foto: arquivos de família
133

Foto 53: Dona Constância, filhos [da direita para esquerda, Messias (filho), Dona Constância, José de Sousa
(filho), João Batista (filho), Gleydson (neto)]
Foto: arquivos de família

Foto 54: Viagem a Miguel Alves com a família


Foto: arquivos de família
134

Pedro Filho afirma que ela gostava de estar reunida com a família, que era alegre,
brincalhona e de uma conversa sempre frança e direta, mas que não era santa, ela era uma
pessoa normal.

Nossa maior preocupação neste ponto do trabalho é não criar uma imagem equivocada
de dona Constância, ou produzir em torno dela um mito. As lembranças de Pedro Filho nos
estimulam a entender esse universo de devoção em torno desta senhora, contudo acreditamos
que, mesmo existindo uma tendência da família de sacralizá-la, não podemos perder de vista
que está encontra justificativa em sua trajetória de vida.

A memória é seletiva e alguns acontecimentos são marcantes. Esquadrinhando as


memórias, orais ou não, parafraseando Pierre Nora (1993), descobriremos a vida e o sentido
existente nelas. As emoções são fundamentais para determinar o que é memorável ou não.
Pedro Filho, assim como, Janeth tem seus testemunhos carregados destas emoções em relação
à Dona Constância. Como mencionamos anteriormente, ela era uma mulher forte, sincera e
sempre presente na vida da família. Quando mergulhamos ainda mais fundo nas lembranças
de Pedro Filho encontramos uma avó como outra qualquer, que ama com intensidade, mas
que como fazia com seus filhos de santo é rígida e severa quando necessário. Sem hesitar em
usar sua bengala para bater ou palavras igualmente duras.

Como qualquer outra, xingava, batia, esculachava, brigava demais. Pense numa
velha que brigava mestre. Se você não fizesse as coisas do jeito dela, ela brigava
mesmo, não estava nem aí não, tacava o cajado na gente, na cabeça de qualquer um.
(Pedro Pereira da Luz Filho, 2010)
Me batia muito, gritava, era como qualquer outra vó, não tinha mistério não. Eu
conversava muito com a vó, graças a Deus. Apesar dos pesares, porque menino é
menino danado, não tem jeito, aí não tem jeito menino, a gente fazia muita
traquinagem, e ela gostava das coisas dela tudo certinho. Ela ficava P da vida
quando a gente entrava no quarto dos santos dela e fazia besteira. (Entrevista, Pedro
Pereira da Luz Filho, 2010)

A formação religiosa também é um episódio marcado nos testemunhos de Pedro Filho,


ele recorda que ninguém em casa foi forçado a nada, contudo, os rituais faziam parte de suas
vidas. Ele se considera um filho de macumbeiro meio fraco, porém participa de tudo o que é
possível. E entre os ensinamentos que leva para a vida ele destaca:

Não perder a convicção de que você é filho de Codó, que você é filho de
umbandista, não perder a convicção que você, não é que tenha a responsabilidade de
dar sequencia em nada, mas que tenha a concepção de que é filho de Umbanda, que
filho de Umbanda tem as suas obrigações. (Pedro Pereira da Luz Filho, 2010)
135

Por essa razão a participação dele é, não somente participar das Obrigações do dia 31 de
outubro como também em outros dias de festa, assim como dos rituais diários como banhos,
rezas e oferendas. Ele nos conta, assim como Janeth, que eram ensinados a ir a Igreja e a
respeitar os preceitos cristãos.

Vou em Codó adoro receber meu banho, jamais saio de casa sem receber meu
banho, você entendeu? Pessoal diz: É só um banho... É, mas pra mim é como se
fosse uma coisa de descarrego, ou seja, tudo quanto for de olho grande, enfim. Eu
sou um espectador da Umbanda, particularmente, esse foi o ensinamento que ela
deixou, vamos dizer assim, é essa Obrigação da mãe, não minha, de toda vez eu ir lá
em Codó, ela me dá meu Banho, me rezar, eu sempre acender uma vela pro meu
anjo de guarda, meu Encantado né, não vale aqui ressaltar quem é. Mas é esse tipo
de responsabilidade, saber que você foi neto de Umbanda, de Mãe de Santo e é filho
de Mãe de Santo, mas nem por isso você vai tachar uma pessoa por ser diferenciada
dos demais. Apenas alguns ensinamentos que eu carrego são esses, é o respeito, o
respeito não somente a Umbanda, mas todo tipo de religião, umbandista, budista,
católica apostólica romana, praticante, não praticante, enfim, os ensinamentos são a
Recodicidade, ou seja, o Livre Arbítrio. A vó sempre... Foi repassado da vó pra mãe,
da mãe pros filhos, ou seja, a gente teve sempre essa liberdade total. É tão tal que
tem pessoas da nossa família que é crente, mas na hora que o negócio pega mesmo
“fia”, é lá em Codó que todo mundo vai, tá entendendo? (Entrevista, Pedro Pereira
da Luz Filho, 2010)

Sentimentos se misturam em meio aos testemunhos, saudade, fé, amor e um sentimento


religioso os leva a sacralizar essa mulher que não era santa, segundo os entrevistados, era
severa quando necessitava, era doce, quando preciso, e que guiou sua família biológica e uma
imensa família de fieis devotos com sua sabedoria e sua capacidade de amenizar males do
corpo e da alma intercedendo junto aos encantados, e que mesmo depois da morte ainda os
acompanha.

Discute-se incessantemente no meio acadêmico a cerca da validade e da autenticidade


das verdades que constituem os testemunhos orais. Esses testemunhos foram fundamentais
para compreender um pouco da religiosidade maranhense a partir da trajetória de vida de
Dona Constância e compreender como essa família reflete aspectos importantes da
constituição religiosa do povo brasileiro, que mesmo dentro de uma conjuntura social
desfavorável encontra na religiosidade argumentos e força para lutar contra as adversidades e
que se ampara nela para suportá-las.
136

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Entre Pajés, Caboclos, Santos e Orixás Dona Constância


nos Apresenta a Umbanda no Maranhão.

As singularidades e diferenças apresentadas pela umbanda no Brasil ficaram evidentes


em meio as pesquisas. Nunca foi nosso intuito realizar um estudo generalizante sobre a
Umbanda, contudo é inevitável estabelecer relações com a estruturação desta religião nos
mais diversos lugares.

Durante todo o período em que estivemos envolvidos com a pesquisa que resultou nesta
narrativa buscamos um universo da umbanda muito maior do que se apresentava na cidade de
Codó, ou mesmo em São Luis. Percebemos a necessidade de, definindo que a umbanda
adquire características diferentes a partir dos espaços ocupados por ela, era fundamental
conhecer as outras umbandas.

Enveredamos pelo universo umbandista no Maranhão e Piauí, trouxemos Dona


Dasdores a Teresina para que ela nos falasse de suas impressões a cerca de rituais e espaços
ocupados por esses umbandistas, e sua resposta a nossas dúvidas foi: é diferente, desde as
doutrinas e até mesmo o toque do tambor, é diferente. E essa percepção dela nos fez entender
a religiosidade maranhense a partir dessas diferenças.

Foi um longo caminho até a conclusão de nossas pesquisas e a materialização do que foi
idealizado desde o projeto, principalmente porque a Obrigação não existia apenas em um
espaço e tempo determinados espacialmente e cronologicamente. Contudo, necessitamos
neste percurso estabelecer uma estrutura para desenvolvê-lo adequadamente.

A discussão realizada no texto girou em torno de três pontos, traçar um perfil histórico-
cultural da formação da Umbanda no Maranhão, analisar os rituais que eram realizados no
sítio São José durante a Obrigação de Dona Constância para compreender o hibridismo que
afirmamos ser característico da religiosidade brasileira, e, analisar sua trajetória de vida
estabelecendo as devidas relações com a constituição da umbanda e das demais religiões de
matriz afro-índio-brasileiras.

O caminho percorrido até aqui foi difícil, mas ao mesmo tempo gratificante. A História
cultural nos inspirou e a História Oral e a etnografia foram nossas metodologias, pois
137

serviram para compreender as nuances que compõem o discursos que se formam a partir e
para as fontes que foram estudadas durante o percurso.

A História Oral se revelou complexo, não apenas no tocante a realização das entrevistas,
que dependiam de fatores diversos, como também a análise das mesmas para construção e
desconstrução dos testemunhos.

Aprender a escutar e observar, saber como agir diante das pausas, dos silêncios, das
tristezas e das injurias. E sobretudo, estar atenta, a não interromper, respeitar a
pessoa que temos á nossa frente e que esta disposta a compartilhar conosco seu
passado.(Meyer,2009; p.39).

A sensibilidade do historiador discutida por Eugene Meyer (2009) e Jeanne Marie


Gagnebin (2006) foi fundamental para as análises empreendidas. Sabemos que a memória não
é linear e está sujeita as descontinuidades da trama na qual foi gestada, assim como de um
tempo e espaço específicos para sua formação.

Essa metodologia de trabalho obriga a um amadurecimento do historiador no sentido de


não apenas, questionar, decodificar ou tentar decifrar as múltiplas mensagens presentes nos
testemunhos, mas para Meyer (2009) é fundamental colocar a teoria um pouco de lado e
tentar reconhecer anseios e sensações presentes neles. Compreender que o silêncio, por vezes,
nos ensina muito mais do que horas ininterruptas de histórias. Que mesmo naquelas falas que
aparentemente não nos dizem nada podemos encontrar as respostas tão desejadas. E que a
lágrima, o sorriso e o olhar perdido são valiosos para construção de nosso objeto.

A história oral foi um dos métodos utilizados para construção da base etnográfica desta
pesquisa, proporcionando um exercício completamente novo, no qual os depoimentos seriam
associados a uma observação mais próxima de nosso objeto principal que era a obrigação.

A oportunidade de vivenciar cada ritual nos deu uma perspectiva completamente


diversa, e em muitos momentos foi possível nos colocar na condição de nossas testemunhas e
conhecer mais profundamente a experiência, não apenas a partir da observação do ritual, mas
de fazendo parte dele. Malinowisk (1976) definiu isso como observação participante e de
certa forma nos deixa na chamada linha de fronteira entre a história e a antropologia.

Não foi nossa intenção fazer um trabalho de antropologia, mas de fazer uso da
etnografia como um método fundamental para entender o hibridismo característico da
religiosidade brasileira, a partir da tradição regional no Maranhão.
138

Mergulhamos assim neste universo da religiosidade maranhense, Bastide (1971) nos


demonstrou inicialmente toda a complexidade existente, mas também nos apontou o caminho
a ser percorrido, não era possível compreender a Obrigação e tampouco dona Constância sem
enveredar pelas religiões de matriz afro-índio-brasileiras que compõem o que Prandi definiu
como panteão.

Contudo, nossa maior preocupação era a opção feita desde a seleção do mestrado, em
pesquisar uma temática tão próxima de nossa vida pessoal, e como essa escolha poderia
prejudicar nosso distanciamento, e uma análise mais madura.

Propusemo-nos, compreender o ritual e a trajetória de vida de Dona Constância, desde o


princípio, sem deixar que os sentimentos, tão importantes para compreensão dos testemunhos
e da observação do ritual, nos impedissem de uma análise concisa e legítima.

Acreditamos que tenha sido possível empreender tal análise e a partir dela chegamos a
alguns pontos importantes.

Primeiro, a impossibilidade de desvincular a religiosidade maranhense das influencias


de sua formação cultural e social, e que fazem da umbanda naquela região um todo singular e
cujos rituais apresentam características distintas das de outras regiões, mas que ao mesmo
tempo conseguem manter um elo estabelecido pelo culto a orixás, caboclos e encantados.

Conseguimos compreender, a partir dos rituais da Obrigação de Dona Constância o


hibridismo cultural característico desta religiosidade que não apenas mistura elementos das
mais diversas culturas, mas (re) significa cada um deles.

Entendemos, a partir da trajetória de vida de Dona Constância, todo o processo de


constituição histórica da umbanda em Codó, no Maranhão, com destaque para a discussão a
cerca das proibições estabelecidas às religiões afro brasileiras a partir dos textos
constitucionais (1889 a 1967), além dos códigos de postura regionais, e da postura das
associações e federações no Brasil e no Maranhão.

Entretanto, existem ainda muitos pontos que gostaríamos de poder aprofundar. Por
exemplo, por que Dona Constância foi a Bahia para concluir seus estudos? Por que Dona
Dasdores e não Astrorlina, que era a mais velha, para assumir o lugar de Dona Constância?
Existem perguntas que os testemunhos não puderam elucidar e perguntas, sobre o ritual e
sobre Dona Constância que ainda ficaram sem resposta, ou porque o tempo, nosso maior
139

adversário, não permitiu, ou porque as testemunhas não puderam ou não desejaram responder,
mas foi possível atingir nossas metas, e abrir caminho para futuras discussões sobre o assunto.

No Maranhão a Umbanda possui um lugar muito importante no imaginário e na


religiosidade popular, o mesmo indivíduo que assiste a missa na catedral é o mesmo que vai
ao terreiro e pede proteção aos encantados para a família, a saúde e os negócios.

Entender a postura dos habitantes da cidade de Codó diante da umbanda é entender a


assimilação de seu caráter híbrido; é perceber que dentro dos rituais de umbanda vemos
representadas não somente os elementos étnicos formadores do povo brasileiro como bem o
processo de (re) significação de suas práticas religiosas; é compreender as nuances que fazem
dessa, como já foi mencionado, uma religião genuinamente brasileira.
140

APÊNDICE
141

APÊNDICE A

Entrevista com Janeth dos Reis Sousa Neta em 12 de março de 2010

Vivian: Janeth dos Reis Sousa Neta. Segunda pergunta: Qual a primeira lembrança da Dona
Constância que você tem?

Janete: Primeira? Depois da morte ou assim...

V: De vida mesmo.

J: Na infância?

V: É. O que mais te marcou.

J: Dois cascudos que ela me deu. Essa é a lembrança que eu tenho.

V: E religiosa, qual a primeira?

J: E religiosa, por falar nisso, eu sempre me lembro das, como é que chama? Das procissões
que saía lá de Codó pro sítio. Todo ano, dia trinta e um, e que a minha avó me botava pra
cantar. Pegava o microfone e eu tinha que cantar os hinos da Igreja até lá no Sítio.

V: Mas você não lembra quando é que começou? Você não tem lembrança de quando
começou a Obrigação? Porque a procissão fazia parte da Obrigação?

J: É. Fazia parte da Obrigação dela. É que assim, aquele sítio, ele foi doado, um amigo dela
doou aquele pedaço. Era uma das Obrigações dela era ter um espaço, entendeu? Pra aquele
culto. E com água entendeu, com mata. Aí juntou, poxa, foi muito providencial mesmo,
porque juntou tudo, tinha mata fechada, que hoje é chamada a Mata do Chá, tem água no
fundo em abundância, corrente, e o espaço ali é imenso. E eu não lembro, quando foi, quando
a minha avó adquiriu esse sítio eu acho que eu era adolescente, um pouquinho mais que
adolescente, que eu lembro que a casa era uma casa de barro na parede, era um barro bem
escuro, é a lembrança que eu tenho. E na frente era aquele espaço ali, aquele salão na frente, o
salão era bem arrumado. Já a casa era grande, espaçosa...

V: Mas de taipa.

J: Isso. Era isso mesmo.


142

V: Janete, assim, dentro das inúmeras histórias que a dona Constância contava, qual a que
você recorda com mais clareza? Dentro desse aspecto religioso.

J: Vivian, eu acho assim, que a minha avó, ela falava, mas falava muito pouco da vida após a
morte. Mas ela assim, dava conselho, essas coisas, mas da religião mesmo era mais ação,
entendeu? Muito mais ação do fala, essas coisas.

V: Descreve um pouco a sua relação com ela.

J: Ai, era assim de amizade, era uma cumplicidade muito grande que eu tinha com a minha
avó. Era uma ligação assim... E ainda hoje eu tenho. Eu não acendo vela hoje, luz pra minha
avó como aquela pessoa que se foi, não. Eu acendo a luz dela como espírito de luz. E quando
eu tô no sufoco assim, eu clamo, chamo por ela. Claro que com a permissão de Deus, que foi
o que a gente aprendeu até hoje, se com a permissão, se a gente merecer, e se com a
permissão, se Deus der a permissão dela ajudar naquele momento, entendeu? É um espírito de
luz a minha avó, que tá sempre com a gente, ela partiu, mas ela não abandonou a gente. A
minha ligação com a minha avó ainda é muito forte.

V: Isso tudo faz parte dos ensinamentos que vocês receberam?

J: Isso.

V: Como ela inseria a família, nas práticas religiosas da Umbanda, dentro dos rituais que
eram feitos no Sítio São José, dos rituais que faziam parte da vida dela?

J: Vivian, é tudo muito natural, entendeu? Assim, eu lembro que quando eu era criança, muito
criança, a gente aprendeu a conviver com isso naturalmente, não foi nada imposto, nada
contra a vontade, entendeu? E com relação à Obrigação, ao ritual, entendeu? Porque a gente
tem que ver que assim, a Umbanda ela tem várias linhas, várias correntes, entendeu? Então o
dom que Deus te dá você escolhe, tu vê se tu vai, se é o do bem, se é o do mal, se é a Linha
Branca. Eu acho que a minha tia Das Dores vai te explicar, esclarecer mais isso. Mas assim, a
minha avó fazia muito o bem às pessoas. Procurava ajudar, a missão dela aqui na terra era de
ajudar, entendeu? É tanto, que a Obrigação dela, você ver, era rezar, era fazer aquela
procissão da casa dela lá de Codó até o sítio São José com aquela festa, fazia aquela festa, e
tinha lá o tambor. E assim, aquele culto, aquele ritual, pra gente aquilo era... Às vezes eu sinto
falta hoje, principalmente agora que eu moro tão longe. Então, às vezes eu ficava me
143

lembrando assim dos momentos, até por que depois que ela morreu minhas tias tiveram que
cumprir sete anos depois, até passar os sete anos da morte dela.

V: Que foi em 2008?

J: Isso.

V: Descreve a primeira lembrança que você tem em relação à Umbanda.

J: Vivian, eu lembro, eu acho que tinha uns sete, oito anos. A minha vó rezava na gente com
uma pedra, uma pedra preta. Ela passava na gente aquela pedra e ela tinha assim tipo um olho,
uma bolinha transparente, e aquela bolinha ali me marcou muito assim, porque eu achava um
negócio assim muito, ai como que eu te descrevo, era um... A minha avó dizia assim: Isso
aqui é um olho que vigia todo mundo. Então eu morria de medo porque eu sabia que se eu
fizesse coisa errada aquele olho tava me vigiando. Mas assim, independente aí da história do
olho, mais era a pedra preta que a minha avó passava na gente. Isso é da infância ainda. Pra
mim foi o primeiro contato que eu tive, que eu lembro.

V: Como você se insere neste mundo umbandista e de que forma a Tia Constância é
referência pra você? Como você percebe dentro da Umbanda hoje?

J: Eu procurei entender, eu procurei estudar um pouco, entendeu? Ler alguns livros espíritas,
eu converso muito com Tia Das Dores, ela esclarece muita coisa. Porque eu, assim, enquanto
criança, eu não me interessava, enquanto adolescente eu já estava, como é que é aquela
coisa... Você nasce vendo aquela coisa, é comum pra mim, entendeu? E na fase já adulta,
quando eu tava na Universidade, procurei assim me aprofundar, que eu ia fazer a monografia
que eu comecei contigo, mas a minha orientadora, assim, como é que diz? Me frustrou,
porque ela já tava orientando outra pessoa, que era a mesma coisa, o mesmo tema, enfim. E a
orientadora também fez esse tema, enfim, ela não tava muito... E depois assim, eu fui matando
minha curiosidade, fui buscando, mas isso tudo, a maioria da família assim, faz aquela relação
da Igreja Católica com a Umbanda. Tanto é que vovó fazia a procissão, rezava o terço, depois
do terço tinha o tambor. Então isso pra mim parecia, mesmo eu sabendo que tem diferença,
que não é a mesma coisa, mesmo depois de estudar, de...

V. Você fala de sincretismo religioso?

J: Exatamente. E isso também, eles usavam o nome do santo pra mascarar porque antes era
proibido né. E a Mãe Nidinha é assim, pra ela, católica, católica de ir pra igreja assistir missa
144

eu aprendi com a minha avó ir pra igreja. Assistir missa, rezar o terço. Então é assim, essa
Obrigação da Mãe Nidinha assim, a gente via como... Era um dia que a gente rezava mais,
entendeu? E tinha as Obrigações que a minha avó fazia na água, que ela fazia na mata,
entendeu? Que é a Obrigação que a tia vai explicar melhor. Que eu nunca fui, nunca fui pra
mata, minha avó, ela... Eu era muito curiosa e ela não deixava. Depois foi permitido, porque
antes não era, não permitiam. Aí depois que vovó morreu assim, quando a vovó já tava, a Mãe
Nidinha já tava doente, aí as minhas tias começaram a fazer né, e daí aí começou, aí minha
mãe começou a ir, aí depois foi abrindo mais, entendeu?

V: No começo da realização das obrigações não havia de outras pessoas dentro da mata, nem
na água, nas Obrigações?

J: Não. Havia assim, das pessoas que entendiam, entendeu? Agora, eu me chamo de leiga. Eu
digo que sou leiga, né. Mas eu não lembro, não tenho recordação assim: Ah! não, fulano,
beltrano chegou, vai. Não. E assim, eram Obrigações que tinham horários, tem horário, e é de
madrugada, ou vai seis horas da manhã, meio dia. Porque tem um horário, não pode ser
qualquer hora não.

V: É possível pra você recordar os primeiros anos da realização da Obrigação?

J: Foi, foi na adolescência. Eu lembro assim, eu lembro do quarto imenso que tinha nessa
casa, que eu te falei que era de barro, um barro escuro, e tinha o quarto da Mãe Dindinha que
era muito grande, nesse quarto tinha as imagens dos santos, tinha as imagens da Umbanda, né,
Caboclo, tinha Iemanjá, enfim, tinha uma porção. E a Mãe Dindinha, ela era muito conhecida,
não só em Codó, mas muita gente procurava ela, procurava pra conversar, sabe? Eu lembro
que em Caxias, quando a minha avó chegava lá na casa dos meus pais, vinha um monte de
gente, comadre, pra conversar com ela, pra se sentir... e assim, conversava, parecia que
descarregava os problemas e que tinha, saía mais leve. A Mãe Dindinha, ela não tinha só a
família, mas muita gente ia conversava com ela. Naquela época eu não me atentava assim, eu
achava que as pessoas iam só pra conversar, pra fazer uma visita, entendeu? Na minha
adolescência, eu achei que essas pessoas procuravam muito a Mãe Dindinha por isso. Mas eu
não. Nossa, eu nunca me dei conta associar que era pra rezar, entendeu? Depois de uma época
assim, que eu ficava perguntando muito pra ela. E daí ela falava: Não, é que a vovó reza nas
pessoas. Mas assim, por aí você tira, você faz ideia do quanto ela deixava, ela era muito
discreta, muito observadora. Assim, parece que ela via a tua áurea quando ela olhava pra
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você, parece que ela via todos os teus problemas ali estampado. Então quando ela começava
assim, quando a pessoa ia conversar com ela, ela já sabia, já sabia até o que te dizer.

V: O porquê do ritual você consegue lembrar? Por que ela começou a fazer a Obrigação, o
que levou ela a fazer a Obrigação.

J: Não Vivian, eu entendo é que assim, é que foi um dom. Minha avó já nasceu com esse
dom, entendeu? E daí é determinado, entendeu? É determinado. A minha avó, ela só recebia
Espíritos de Luz. Espíritos de Luz, quer dizer que são espíritos assim, bons, que procuram
fazer o bem, entendeu? E era determinado. Agora eu lembrei, quando você perguntou: De que
forma a gente era inserido nessa Obrigação. Assim, a gente recebia, por exemplo, quando a
gente faz uma promessa a um santo, a gente recebe a graça, a gente, nós católicos, a gente não
vai lá e paga, agradece. Então, a forma da gente agradecer era ajudar a Mãe você a fazer uma
festa bonita, uma festa alegre, pra cima, entendeu? E assim, a gente fazia com todo amor,
sabe? Eu preparava, eu acho que tu deve ter, tercinho de lembrança. Cada um da família
procurava uma coisa: Ah, eu vou dar os tercinhos. Outro: Eu vou dar o meu trabalho pra fazer
os tercinhos. Ah, eu vou dar as rosas. Ah, eu vou dar todo o material pra fazer a Obrigação lá
na água, pra rezar lá na água. Ah, eu vou dar as luzes, que são as velas. Ah, eu vou dar comida
pra aquela multidão de gente. Tinha... Às vezes, meu tio contratava ônibus pra levar as
pessoas que dançavam, entendeu? Que dançavam. Então ia até de manhã, e todo mundo
contente, alegre e satisfeito.

V: Como é que você percebe esse sincretismo religioso?

J: Eu não consigo, como historiadora assim, como estudiosa, eu não consigo. Pois nesse
ponto, até minha professora comentava, uma orientadora na época, comentava isso. Eu acabei
contribuindo também pra o trabalho dela. E ela falava isso: Ô Janete, eu não sei como você
consegue. Eu não sei também, eu me pergunto, porque é um mito vivo. Eu esqueço ali no
portão, eu não consigo. Eu não sei se, por já ter desde criança, desde que eu comecei a
compreender as coisas que eu vejo isso. Então eu acho assim impossível. Eu acho que assim,
é uma mistura, acho que tem de tudo, uma mistura de tudo um pouco. Mas se você for
observar, o Maranhão inteiro, o culto, a Umbanda no Maranhão, ela tem um peso, porque eu
já fui a alguns outros lugares com a minha avó, e assim, nossa, o da minha avó era perfeito. E
às vezes eu ficava assim. E eu adorava: Vó eu vou com você. Mãe Dindinha deixa, que eu
vou. E assim, eu ia com a Mãe Dindinha, chegava lá e ainda conseguia criticar, e dizia: Hi vó,
nem tem isso. Ah Mãezinha faltou isso. É uma salada, em outras palavras. Mas assim, o
146

Maranhão inteiro é dessa forma. Quando você chega ali na Bahia, entendeu, na Bahia é pouco
mais diferente, é pouco mais dividido, eu diria. Mas lá, não só o da minha vó, porque que nem
eu tô te falando, eu tive a oportunidade de ir em outros lugares com a Mãe Dindinha e, ou a
coisa era muito, faltando alguns elementos, eu diria que era uma coisa só, era uma linha só. E
daí eu já achava estranho, dizia: Nossa! Vó, só tem um tambor. Ai Mãezinha cadê o... Era
assim. Você precisa ir aqui em Codó e visitar outros lugares. Já o Bita, o Bita já é assim
aquela coisa mais sofisticada e que ele não deixa. Assim, eu que cresci com isso, ali eu
percebo um monte de coisa que eu falo assim: Nossa! Vó, mas porque isso? Minha filha,
trabalha pelo dinheiro, não tá nem aí. Não é aquela coisa...

V: Aquilo que você recebe de graça, você dá de graça.

J: Isso, isso. Não é. É totalmente diferente. É cheio de coisas assim: Ah não, não pode
aparecer tal hora. Ah não, é tambor? Então tambor tem que ficar ali, não pode sair dali. A
imagem tá aqui, é dividido. Se for pra fazer alguma coisa com imagem, é um valor. Se for o
tambor, é outro. Então...

V: Como era feito esse atendimento? Como é que Codó, e de certa forma, outras regiões do
Maranhão, percebiam o ritual que era feito no Sítio São José? Como é que ela era vista dentro
de Codó, fora de Codó, pelas pessoas de uma maneira geral?

J: Vivian, só o nome que a gente chamava, chama? Mãe Dindinha. Então era vista como a
Mãe de todos, entendeu? E a minha vó, ela nunca fazia nada por dinheiro, entendeu? O dom
que Deus deu pra ela, não era pra usar por dinheiro. A minha vó ela atendia, ela ajudava as
pessoas, ela fazia às vezes, alguma coisa assim pras pessoas, mas nunca, eu não lembro, da
minha vó pegar num dinheiro e dizer assim: Isso aqui eu recebi de fulano de tal. Não. Aquele
sítio, ela ajudou um vizinho, o Assis, ela ajudou esse Assis numa questão lá, eu não lembro
bem, eu sei que ela ajudou ele. Como pagamento, que ele sabia que a minha vó procurava
assim, que ela queria muito um sítio, precisava assim de um chão pra ela fazer as Obrigações
dela, e ele deu cinqüenta hectares de terra pra ela. Entendeu? Assim, minha vó tinha boas
amizades. Entendeu? Eu acho que ficava mais era isso, porque as pessoas vinham mesmo.
Vinham, conversavam, era conhecida. Então eu acho que lá em Codó ela era uma pessoa
muito popular, praticamente a cidade inteira conhecia ela, e ela era vista assim como a mãe
mesmo. E minha vó, eu acho que a população quase inteira de Codó é afilhada dela. Não só
de Codó, mas esses dias mesmo, chegou afilhado. Depois da morte da Mãezinha, muito tempo
depois, as pessoas ainda procuravam a gente. Entendeu? Ainda procuravam por ela, e assim, a
147

Obrigação, mesmo depois que a Mãezinha viajou, porque na Umbanda fala assim, no
Espiritismo fala assim: Viajou? As Obrigações, elas... Eu não sei se tu tiveste a oportunidade
de ver, muita gente ainda, mesmo sem a presença, só a presença espiritual dela. Mas ainda há
muita gente. Porque tinha gente que falava assim: Ah, vai enfraquecer. Ah, não vai dar certo.
Mas o terrero era lotado.

V. Você recorda as histórias contadas por seu pai a cerca do início da vida deles após a
separação da sua avó?

J: O tio Messias, ele foi pra escola com sete anos, com sete anos que ele começou a ir pra
escola. Então ele aprendeu a ler, assim já, já bem, bem velho. Sabe? E conseguiu. Meu pai
mantinha ele na universidade. E assim, Tio Messias ralou muito pra ele conseguir. E ele
passou na Federal aqui em Teresina. Depois, eu lembro que o tio Elizeu também. Eu lembro
que meu pai e minha mãe tinham a casa da minha vó mesmo depois de casados. E assim, ele
colocou todos os irmãos dele pra estudar. Só quem não quis não estudou. Mas todos, quem
quis. A tia das Dores e a tia Dora elas tinham que cuidar dos irmãos, mas tio Messias, tia
Lisboa, Beth, João Batista. João Batista não cresceu mais porque não quis, porque meu pai
trabalhava... Ele começou a trabalhar com sete anos, meu pai, pra ajudar minha vó. Papai
vendia, ele fala que vendia bolo pra madrinha dele, morava na casa da madrinha. A minha vó,
meu avô largou, soube que meu avô foi pra segunda guerra. Ele também era espírita. Eu
lembro de uma passagem que meu pai falava assim: Janete, uma vez, que o exército tava
perseguindo o meu pai e ele entrou, e ele conseguiu entrar num, não sei onde assim, num... Eu
sei que ele conseguiu dar uma certa distância da polícia, do exército. Porque naquela época,
quem não voltasse era perseguido, e o meu avô virou uma pedra. A minha mãe contava isso.
Aí eu falava: Ai mãe, que absurdo. Isso não existe mãe. E ela falou assim: Janete, eu tô só
anunciando o que eu... Porque, nossa, a minha disse que quando ele chegava, dos meus
irmãos ele só conheceu a mim, e ele ia muito, freqüentava muito a casa do meu pai, os outros
irmãos não queriam saber do meu avô, e o meu pai era o único que... Eles não queriam porque
a minha vó sofreu muito, lutou bastante, deixou os filhos na casa de cada padrinho. Entendeu?
Quem tinha sorte, o meu pai não teve sorte, meu pai vendia bolo na rua, chegava em casa ia
fazer os bolos, quando terminava de fazer os bolos pra vender ele tinha que pegar uma água,
que a madrinha dele morava acima um pouco do rio e tinha escadaria, então ele tinha que
descer aquelas escadas e subir. Eu fui na casa pra ver mesmo, e meu pai disse que dormia
muito pouco. Aí depois disso ele cresceu um pouco. Aí com catorze anos, foi trabalhar, foi,
ajudava minha vó, todo dinheiro que ele pegava, ele levava pra minha vó. Aí chegou servir,
148

foi pra o exército. E então assim, ele foi mesmo pra... no exército, ele procurava assim,
construir estrada. Entendeu? Ralava bastante, que era pra receber, ganhar um pouco mais de
dinheiro que era pra mandar minha vó com os irmãos. Então foi assim, bem difícil a vida
deles. E o tio Elisboa, ele começou a... Eu lembro, eu acho que eu já tinha uns oito anos,
quando o tio Elisboa começou a trabalhar na Alumar. Teve uma época que ele ficou
desempregado. Eu acho que ele só terminou o segundo, nem o segundo grau ele tinha
terminado. Ele casou, meu pai sustentava ele, a mulher e os filhos, porque o meu tio ficou
desempregado e não tinha ninguém pra sustentá-los. Aí ele foi pra, conseguiu um trabalho lá
na Alumar. E Vivian, lá ele ralou, ralou e viu que tinha que estudar pra puder vencer.
Concluiu o segundo grau, depois do segundo grau conseguiu crescer mais um pouco dentro da
empresa, e ele entrou no CEUMA e formou em Contábeis, depois que ele formou em
Contábeis, aí ele conseguiu subir mais um pouco. Aí ele fez Direito e se aposentou na
Alumar. Hoje é um dos filhos da Mãezinha que ganha mais dinheiro, muito dinheiro. Ele tem
né? Ele diz. É uma pessoa que venceu muito, se destacou, depois de ter casado, ter tido filho.

V: E o que mais você lembra-se do teu avô?

J: Do meu avô, eu lembro dessas passagens. A minha tia que tem história pra contar, que ela é
bem cômica. Eu lembro que ele disse assim, eu lembro não, meu pai me contou, disse que eu
era bebê, e o meu avô tava lá comigo, e o exército chegou. Isso a minha mãe disse, acho que
foi dessa vez que ele pulou e desapareceu. E aí a minha mãe olhou e parece que viu uma
pedra do lado de fora da janela, e que assim, o exército rodou muito, muito, muito atrás dele.

V: Quando é que ele faleceu?

J: Não lembro quando ele morreu. Não se sabe ao certo, mas o exército matou ele. Conseguiu
pegá-lo. O meu pai disse que foi numa emboscada, mais ou menos isso. Sabe? Foi mais ou
menos uma emboscada que eles fizeram pra o meu vô.

V: Ele desertou?

J: Foi. Ele não queria mais voltar. Ele foi pra Segunda Guerra, então quando ele voltou, já
tinha bastante tempo que ele tava, então ele não queria mais. Entendeu? Acho que... Vai pra
guerra, Segunda Guerra foi extermínio né? Acho que mexeu muito com ele. Ele não queria
mais saber.

V: Obrigada.
149

A OBRIGAÇÃO

V: Quais são as lembranças que você tem do último ano da Obrigação de Dona Constância
com a presença dela?

J: Olha só, a minha vó já sabia que ia ser último ano dela. Ela já sabia. A minha tia também já
sabia. Nossa! Eu acho que, difícil pra elas saberem que aquele momento ali seria único e não
poder falar pra ninguém. Mas eu lembro que a Mãe Dindinha tava muito debilitada, tava
muito fraca e... Eu peguei uma hora, eu acho que ela passou mais ou menos umas duas horas
só observando. Sentou numa cadeirinha ali e ficou só observando. Ali eu acho que esse
momento aí foi o que mais me chamou a atenção. Porque eu fico às vezes me perguntando: O
que será que tá se passando na cabeça da Mãe Dindinha? Eu queria tá dentro do cérebro dela
pra ver o quê que tava. E depois da morte eu lembrei desse momento. Eu acho que ela tava se
despedindo assim espiritualmente, ali como matéria, não sei. Mas no último ano com a
presença dela não sei porque, mas parece que existia uma coisa ali naquele momento que a
gente, acho que tava todo mundo muito sensível. Não sei dizer se... Não sei, sei que tava
muita gente chorando no final, no início, durante. Era muito choro. E eu lembro que a Mãe
Dindinha falava assim: Não chora, não chore. Eu lembro que na morte da Mãe Dindinha a
minha tia chorava muito. E ela sonhou, a minha vó veio e falou pra ela: Pára de chorar, você
não tá deixando eu seguir meu caminho. Aí depois que a minha tia falou isso, eu acho que...
Eu chorava ainda a morte da Mãe Dindinha, mas depois disso, boa parte da família começou a
se conter mais, a não chorar mais a morte dela. Porque ela seguiu. Ela veio e pediu isso. Eu
acho que ela vai te contar se você for falar.

V: Depois da morte da tia Constância a Obrigação foi mantida. Por quê?

J: Vivian, eu acho que só a minha tia pode te explicar isso. Porque é determinado. Entendeu?
Tem um monte de coisas que eu sei por quê... Sei não, eu percebi. Entendeu? E depois eu
fiquei instigando a minha tia pra que ela falasse. Entendeu? A minha vó, na hora dela, ela
sabia que já tava chegando a hora, ela pediu que chamasse a minha tia pra ficar... Ela queria
conversar com a minha tia. Aí a minha tia foi no hospital com ela e minha vó, ela queria
contar um segredo. Ela contou. Aí imediatamente a minha tia viajou. Minha tia foi pra Codó.
Pra mim Vivian, ela foi preparar alguma coisa. Entendeu? Eu não sei que segredo a minha vó
contou pra ela, eu sei que a minha tia foi às pressas pra Codó. E logo depois a minha vó veio a
falecer. Ela faleceu num domingo, eu lembro que foi num domingo. Ela... Eu não sei se ela
chamou o Olavo pegar alguma coisa pra ela. Daí, minha tia, ela não esperou a ambulância
150

chegar em Codó. Ela foi pra o Dezessete. Aí ela entrou dentro da ambulância e pediu pra
ninguém entrar lá dentro, pra ninguém, ninguém entrar. Aí demorou um pouco, aí a minha tia
entrou e foi até Codó, só ela e a mãe Dindinha.

V: Ela já tinha falecido?

J: Já, já tava morta. Mas a minha tia falou que precisava, tinha necessidade. Então eu acho
que tudo... Pra pessoa que é espírita Vivian, não é só o modo de vida, não é só as obrigações,
não é só o dom. Entendeu? Tudo, eu acho que é a vida, a passagem por essa vida é uma
preparação pra vida após a morte. Entendeu? O que eu observei nesse tempo da morte da Mãe
Dindinha, tudo isso, eu comecei assim... A minha vó, eu comparava a minha vó como se fosse
assim um frei, a Madre Teresa. Sabe? Que veio nesse mundo com aquela missão de ajudar as
pessoas. E assim, chegou, mas também tinha uma preparação. Olha só, quando tinha uma
Obrigação a minha vó ia pro sítio, antes dela se mudar pra lá em definitivo, mas ela ficava...
Vivian eu não lembro a quantidade de tempo, mas ela ficava um determinado tempo antes da
Obrigação, preparando as coisas pra aquele dia, o ambiente. A mãe Dindinha sentia as coisas
com o tempo, com o ar. Sabe? Parecia que chegava nela ali e ela sentia aquilo lá. Ela dizia pra
mim assim: Eu fiz uma experiência. Ela falava assim: Eu fiz uma experiência assim, assim. Aí
ela contava assim, mais era comigo. Entendeu? Ou então simplesmente ela não falava nada
pra você, chegava e: Vivian, faça isso, isso e isso. Eu estou lhe avisando. Você tem prova
disso, porque ela chegou pra você e falou.
151

APÊNDICE B

Entrevista com Pedro Pereira da Luz Filho em 20 de agosto de 2010

Vivian: Pedro, qual a primeira lembrança que você tem de Dona Constância?

Pedro: Quando ela tava com... Primeira lembrança... Me lembro como se fosse hoje, lá em
Codó, lá sentado na cama, se não me engano, meia noite para um hora da manhã, eu tinha por
volta de cinco ou seis anos, eu não me lembro direito, e ela tava com Encantado conversando
com a vovó, ô com a mamãe, aí eu olhava assim pra ela e triscava na mamãe. “Mamãe quem
é?” Hum, te aquieta menino, que é o compade. E ela tinha a mãozinha assim, aí eu dizia:
“Mamãe a vovó tá aleijada?” Menino te aquieta. “Ah, mas eu quero saber.” Aí ficava com a
mãozinha só em pé assim. Eu digo oxe! Aí eu fiquei encabulado. Aí ele dirigiu a palavra a
mim, falou. Aí eu fiquei encucado desde desse tempo. Desde esse tempo esse Encantado ficou
como sendo o meu anjo da guarda.

Vivian: Como é que era a sua relação com ela, Pedro?

Pedro: Com quem? Com a vó?

Vivian: Sim.

Pedro: A melhor possível. Me batia muito, gritava, era como qualquer outra vó, não tinha
mistério não. Eu conversava muito com a vó, graças a Deus. Apesar dos pesares, porque
menino é menino danado, não tem jeito, aí não tem jeito menino, a gente fazia muita
traquinagem, e ela gostava das coisas dela tudo certinho. Ela ficava P da vida quando a gente
entrava no quarto dos santos dela e fazia besteira. Como eu te falei, o cara entra num local
sem saber do que se trata e tenta ridicularizar o que você fez, aí ela ficava P da vida. Aí não
admitia, ela sempre gostava das coisas dela bem certinha. Se você acreditava, tudo bem, se
você não acreditava tudo bem também, desde que respeitasse. E até os que não respeitavam
também, ela não tinha nenhum tipo de discriminação, desde que não demonstrasse, lógico,
mas o trabalho da vó, toda vida dela foi baseado. Eu não vou dizer que foi Madre Teresa de
Calcutá não. A gente não tá aqui para santificar ninguém. Porque a morte tem esse poder, da
santificação. Tu já percebeu, né. A vó era uma pessoa normal como qualquer outra, xingava,
batia, esculachava, brigava demais. Pense numa velha que brigava mestre. Se você não fizesse
as coisas do jeito dela, ela brigava mesmo, não estava nem aí não, tacava o cajado na gente,
na cabeça de qualquer um. Mas o que eu mais gostava na vó, o que era mais interessante na
152

vó era o seguinte, já perto dela viajar ela, ela, pegava o palitó do tio Messias e disse que
queria dez reais, aí o tio Messias mandava pegar o palitó tudo bem, aí quando o tio Messias
botava a mão no bolso, “Mamãe a senhora pegou foi cem reais.” Aí ela disse: “Menino, sabe
que eu nem vi.” Mas tu jura que era para comprar coisa para ela, era para dá pra os pretos
dela, dava tudinho. Porque ela dizia que o filho dela tinha dinheiro, aí agora ela disse que tava
pagando. Aí o tio Messias ficava P da vida. Mas toda vez era assim. É tão tal que o tio
Messias não deixou mais ela pegar no palitó dele, aí ele que pegava, mas era conversa boa,
não tinha... Numa boa.

Vivian: Como é que ela influenciou sua vida religiosa?

Pedro: Rapaz, lá em casa, graças a Deus, ninguém forçou ninguém a nada. É tão tal que lá em
casa quando a gente nasceu, especificamente eu e meus irmãos, o pessoal dizia que quando a
gente crescesse agente ia bater na mamãe. Porque a mamãe foi o tipo de pessoa o seguinte,
que deu para a gente desde o início o livre arbítrio. Lógico, eu não sabia dessa palavra, Livre
Arbítrio, só sabia que, a maioria das coisas a gente fazia com o consentimento dela, ela dava
essa permissão para gente quebrar a cara, que para justamente ela jogar na cara, dizer assim:
“Olha, tá vendo, as coisas não é do jeito que tu pensa.” É tão tal que eu lá em casa foi o que
mais viajei na face da terra. Mas quebrei a cara, mas foi bom. E a respeito de religião,
especificamente lá em casa, graças a Deus, a gente nunca teve esse tipo de, a gente vai na
Igreja Católica, a gente faz tudo sem problema nenhum, não discrimina ninguém, pastor,
nada. Mesmo porque, como eu te falei anteriormente, só existe um Deus, a nomenclatura que
muda, mas é tudo a mesma coisa. Então não tem um por que. Você sente, busca Deus em um
em um tipo de uma religião, mas você pode buscar em outro, não tem problema nenhum,
desde que não ofenda, não é, ambas as partes, ou seja, faça sua parte e deixa que, quem irá
julgar não somos nós não, quando a gente viajar a gente vai saber, enquanto isso tem que
seguir o que a gente pensa que tá certo. Não é verdade?

Vivian: Como é que você foi iniciado na Umbanda? Ou você nunca foi iniciado?

Pedro: Rapaz, Vivian, iniciado na Umbanda eu não sei te dizer bem o que seria, entendeu. Eu
só sei o seguinte, que pertence a mim desde quando eu nasci. Iniciado na Umbanda eu te digo
que acho que não, mas tem a Junia que foi iniciada na Umbanda, talvez a Rita, não sei te dizer
direito não. Sei de certo que eu apenas sigo, vamos dizer assim, o que o que mãe diz, eu faço
isso, eu faço aquilo, eu acredito assim. Eu acredito que se você fizer tudo certo como eu te
falei anteriormente independente do tipo de crença raça, cor, credo, fazendo com fé e
153

acreditando em Deus tá certo, mas na umbanda em si, eu baio, eu entro eu entro no lavorier,
baio, tudo tranqüilo sem problema nenhum. Agora a iniciação na Umbanda, acho que tu tá
querendo saber é justamente pra receber o Encantado, essas coisas, não nunca recebi não. Eu
particularmente sou filho de Umbanda, somente isso, por enquanto.

Vivian: Qual lembrança você guarda da tia Constância que é a mais importante?

Pedro: O mais importante dela é justamente isso esse afeto, o chamamento, pra uma boa
prosa, ela adorava conversar A vó, o relacionamento com minha vó foi muito intenso porque
quando agente nasceu quando agente saiu de Caxias, salve me engano não acho que foi,
agente saiu do interior do interior agente foi para casa da vó, ai da casa da vó agente foi para
Caxias, foi isso mesmo? Acho que eu estou trocando, acho que foi ao contrário. De certo que
foi que eu morei na casa da vó, ou seja, tomei uma influência muito grande, tanto eu como
meus irmãos. E a vó é do tipo de pessoa o seguinte, ela falava o que era pra falar, batia
quando era pra bater e batia muito, tá entendendo? Um fato interessante, ela adorava Fórmula
1, isso aí eu não me esqueço nunca. Ela me acordou de madrugada pra mim assistir a corrida
com ela, esse fato eu não me esqueço, pois esse fato basicamente foi que ficou marcado não é,
a minha volta de Macapá e, não, antes de Macapá, que é o caso, foi essa que ela me acordou
de madrugada, de madrugada que eu digo uma e meia para duas horas da manhã, que ela me
acordou para mim assistir a corrida, e eu era pequeno né, quer dizer, pequeno não, novo não é,
porque eu não cresci, e esse fato que eu acho que é interessante.

Vivian: O que você aprendeu com Dona Constância?.

Pedro: Os ensinamentos é basicamente o que eu já relatei outrora não é, veja bem, é os


ensinamentos, o que seria esses ensinamentos? É justamente não perder a convicção de que
você e filho de Codó, que você é filho de umbandista, não perder a convicção que você não é
que tenha a responsabilidade de dar seqüência em nada, mas que você tenha a concepção de
que é filho de Umbanda, que filho de Umbanda tem as suas obrigações. Como eu te falei, de
certo que eu não tive iniciação umbandista ainda, mesmo porque pra se ter a iniciação
umbandista tem que ter um sensitivo bem sensível, vamos dizer assim, pra receber
Encantado, enfim. A partir de então é que a pessoa pode, vamos dizer assim, iniciar na
Umbanda, a partir desse momento você vai ter as suas obrigações a cumprir. Eu
particularmente só sou um mero espectador. Vou em Codó adoro receber meu banho, jamais
saio de casa sem receber meu banho, você entendeu? Pessoal diz: É só um banho... É, mas pra
mim é como se fosse uma coisa de descarrego, ou seja, tudo quanto for de olho grande, enfim.
154

Eu sou um espectador da Umbanda, particularmente, esse foi o ensinamento que ela deixou,
vamos dizer assim, é essa obrigação da mãe, não minha, de toda vez eu ir lá em Codó, ela me
dá meu Banho, me rezar, eu sempre acender uma vela pro meu anjo de guarda, meu
Encantado né, não vale aqui ressaltar quem é. Mas é esse tipo de responsabilidade, saber que
você foi neto de Umbanda, de Mãe de Santo e é filho de Mãe de Santo, mas nem por isso
você vai tachar uma pessoa por ser diferenciada dos demais. Apenas alguns ensinamentos que
eu carrego são esses, é o respeito, o respeito não somente a Umbanda, mas todo tipo de
religião, umbandista, budista, católica apostólica romana, praticante, não praticante, enfim, os
ensinamentos são a Recodicidade, ou seja, o Livre Arbítrio. A vó sempre... Foi repassado da
vó pra mãe, da mãe pros filhos, ou seja, a gente teve sempre essa liberdade total. É tão tal que
tem pessoas da nossa família que é crente, mas na hora que o negócio pega mesmo “fia”, é lá
em Codó que todo mundo vai, tá entendendo? Tem uns que se desvirtuaram recentemente,
que agora é crente, mas tudo bem, sem problema nenhum. Se desvirtuaram porque outrora era
das Dorzinha pra cá, das Dorzinha pra lá, porque na hora das dificuldades é das Dorzinha, aí
depois esquece, dizem que é a imagem do Demônio, dizem que só mexe com coisa ruim. Eu
digo: “Ô meu Deus do céu.” Aí vem aquela velha história...

Vivian: Você se refere a Dona Constância como uma intelectual, por quê?

Pedro: Na Umbanda.

Vivian: É, na Umbanda. Me explica um pouquinho isso.

Pedro: Todo mundo tem sua intelectualidade dentro das suas variantes. Decerto que a
Constância tinha, só que na variante dela que era a Umbanda. E consequentemente isso
chamava a atenção não somente dos familiares, mas de todos Pais de Santo dentro da cidade
de Codó. Então tá claro, tinha um respeito, um respeito mútuo entre os Pais de Santo. Então é
verdade que muitos iam até ela, pra que ela rezasse nos Pais de Santo que estavam muito
carregado. Inclusive Bita de Barão cansava de ir lá, ela rezava sem nenhum preconceito.
Mesmo porque, o malefício feito não era por ela. A gente sabe que Bita de Barão trabalhava
com outro tipo de linha e consequentemente as pessoas confundem. Dizem: Ah, mas a Dona
Constância trabalha com coisa ruim, não sei quê, blá blá blá. Rapaz, eu nasci na Umbanda,
desde pequeno conheço, se ela fazia, eu não via. Decerto que, vamos dizer as benfeitorias da
Umbanda que ela fazia era apenas pra tentar concertar vários trabalhos mal feitos de muitos
Pais de Santo que se diziam Pais de Santo. Porque tu sabe, que um trabalho mal feito recai
155

justamente naquele que fez. O trabalho errôneo né. E o quê que ela fazia? Justamente isso,
consertar, eu vou dizer, a “merda”. Tá gravando?

Vivian: Fique à vontade.

Pedro: Mas ela fazia justamente esse tipo de serviço, de tentar consertar, benzer o povo. E
muita gente chegava no sítio e pedia que ela rezasse, né. E ela rezava, e automaticamente a
gente se descobria qual tipo de pessoa que tava em casa, se era uma pessoa corpo aberto, se
era fechado, se era uma pessoa sensitiva ou não. Tudo isso ela falava. E esse tipo de coisa não
se aprende em academia, não se aprende em faculdade, não se aprende em canto algum, isso
se aprende em experiência de vida, e isso ela tinha muito. Ou seja, dentro da Umbanda, minha
avó tinha doutrinas das quais muitos Pais de Santo nunca tinham ouvido falar, só pra você ter
uma ideia, entendeu?

Vivian: Tipo?

Pedro: Ah, é como eu te falei, eu sou um filho de macumbeiro meio fraco. Eu nunca me
toquei pra esse tipo de coisa. Infelizmente eu sou assim meio desnaturado. Só tem meu Anjo
da Guarda que minha mãe me deu desde pequeno.

Vivian: Como assim?

Pedro: Porque é o seguinte, cada pessoa que vive na Encanteria tem o seu Anjo da Guarda. E
o que seria o Anjo da Guarda na Encanteria? Justamente é um Encantado né que você pega
ele, ou seja, para que ele te livre do malefício, para que ele te livre da perseguição, do olho
grande, enfim, tudo a mesma coisa que existe no catolicismo que agente se apega a um santo,
é a mesma coisinha, não tem mistério nenhum, todos buscam justamente a mesma coisa.
Entendeu? De orientar, fazer com que você não passe por situações complicadas, enfim.
Lógico que você tem que acender uma vela para ele como todo católico faz para cada santo
dele, a única diferença da umbanda para o catolicismo são as nomenclaturas são tudo as
mesmas coisas, no intuito é um só, o Deus é um só, entendeu. Só que o povo discrimina muito
justamente por não saber, por não conhecer. O maior erro do ser humano é esse antes de
julgar, falar e falar erroneamente, sem ter conhecimento de causa. Você tem que saber o que
tá falando. Principalmente na área Encanteria, quando você fala de mais na área da Encanteria
você fala besteira e quando você fala besteira, não te preocupa que nenhuma pessoa vai
chegar e dizer: “Ó tu falou isso errado.” Não, fica mangando de ti. Por quê? Porque
momentaneamente você quer se passar por intelectual na área e muitas vezes se passa por uma
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pessoa totalmente desconhecida do fato. Mas voltando, agora tinha dias, a vó era uma pessoa
que falava manso, pra tudo tinha resposta, pra tudo ela tinha, vamos dizer assim, um bordão.
Me lembro demais. Assim quando eu cheguei de Macapá, que foi a última viagem que eu fiz,
eu encontrei, peguei uma, uma Drim do papai, que não era nem Biz era Drim, quando eu
cheguei perto do sítio, ela estava fazendo a sua caminhadinha com um pedacinho de pau na
mão, aí disse: “Ô meu filho, tu já chegou?” Cheguei vó. Aí eu coloquei ela na garupa da moto
e levei até lá em casa. Aí agente conversou bem uma hora, muito tempo, conversando só
sobre a vida. A vovó era do tipo de pessoa o seguinte, tu começava a conversar com ela, ela
conversava contigo numa boa. Odiava quem falava tão, tão, vamos dizer assim, culto demais
para ela. Ela ficava P da vida. Ela mandava logo ir a porra, ela não tava nem aí não, ela disse
que quem quisesse falar comigo era na linguagem cabocla. Mas era difícil falar na linguagem
cabocla também. Sabe por quê? Porque ela às vezes falava as coisas que a gente não entendia:
“Ô xente, como diacho que eu vou saber disso dona Constância?” Você não é o intelectual?
Era essa a resposta que ela dava. Se você é o intelectual, meia palavra pra um entendedor já
serve. A vó não tinha negócio não, rapaz. A vó, ela chegava, não tinha tempo ruim. Ah, ela
fazia tudo e não cobrava nada. Acho que já foi relatado nos fatos anteriores. Ela é como eu te
falei Vivian, a intelectualidade da vovó era uma coisa assim, não vou dizer fenomenal, mas
atípico.

Pedro: A pessoa fala: “Me diz uma coisa, tu sabe cantar alguma coisa?” Eu não sei cantar
nada, não sei cantar nada. Ali é só bordão que a mamãe me fala, ta entendendo, “Ah, e quem
foi que ensinou pra tua mãe? Foi a vovó. “E quem foi que ensinou para tua vó?”Ah, eu não
sei. “Ah, e tu não sabe nada?”Sei não, só sei que ela canta muito, sabe muita doutrina, sabe
muitos cânticos da Umbanda. Eu particularmente não sei nada, eu sou um imprestável, muito
fraco, porque eu só conheço isso, eu sou limitado a isso. Entendeu? Eu estava até falando para
mamãe, eu tenho que ler mais Alan Kardec, eu tenho que me aprofundar mais.

Vivian: Mais o Alan Kardec por quê?

Pedro: O Alan Kardec tem um ion muito forte com a Umbanda. Tenho que ler para você
entender algum tipo de coisa, porque não adianta você esta só atrofiado na Umbanda , que
você não parta para leitura, você tem que ler alguma coisa, pois é, você tem que ler alguma
coisa para ter uma fundamentação, para tentar buscar uma resposta para tudo que acontece. E
de fato, a gente não tem nunca, mas a gente tenta ler pelo menos para dar uma justificativa
para outros a respeito de fatos que acontecem, e tal. Por exemplo, tu gosta muito de falar de
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sonhos não é? Com certeza tu ler alguma coisa de bíblicos a respeito de sonhos, tu buscou
pessoas que são entendedoras dessa área, enfim Aí tu tem uma sensitividade a respeito de
sonhos, e por ai vai. Não é verdade? Eu não sei nada, eu não sei de nada, eu só... Agora tem
um fato interessante, só teve um fato que ficou intrigado comigo até hoje. Foi a ultima vez
que eu fui para Codó, que o pai ainda estava vivo. A gente trocou o óleo da moto, ai quando
eu fui embora, ai eu vi ele deitado, nunca eu falei isso pra ninguém, eu vi ele deitado na cama,
ele tava deitado normal, só que eu vi ele assim. Só isso. Ai também, como eu te falei, filho de
santo fraco que nem eu. Quando foi no outro dia meu irmão ligou para mim que ele estava
morto. Mas tudo bem, mas aqui e acolá acontecem umas coisas interessantes, lá em casa
acontecem umas coisas interessantes. A mãe me disse pra eu não me espantar, não se
espantar, eu não me espanto. Tento buscar a resposta. Como agente não tem, eu digo pra mãe:
“Mãe, aconteceu isso. Que trem é esse ai?” Ela faz é sorrir. Eu digo: “Mãe, a senhora faz é
sorrir?” Ai diz: “Olha o negocio esta feio para o teu lado.” Ai eu digo: “Vixe Maria! Pois ta
ruim mesmo.” Imaginando coisa. Ai eu sempre digo pra ela, ai eu digo: “Mãe, aqui o negocio
aqui ta brabo.” “Ta não, a gente pensa que esta.” Mas de certo que, é complicado. Eu
particularmente, não busco entender muita coisa não. Me dá um nó aqui. Porque se você for
pensar com a razão, você nunca vai chegar no resultado final não, não tem como. E com a
emoção também não. Se você for mexer nessa zona ai, é complicado. Porque é assim. Mas é
como eu te falei, eu não sou uma pessoa muito certa pra você esta entrevistando, mas tem
certos tipos de coisas que acontece que as vezes a gente tem que dar um relato não é acredito
que pra tudo tem um porque.

A OBRIGAÇÃO

Vivian: Pedro, vamos falar um pouquinho da Obrigação?

Pedro: É como eu te falei, Obrigação eu falo, mas eu sou totalmente desobrigado. Na


Obrigação eu sempre vou, pro lava pé, eu vou pro riacho, dou entrada nos tambores, quebrada
no lavoriere, eu participo até ai então, por ai assim.

Vivian: Assim, o que mais me chamou atenção e o que chama a atenção das pessoas, e que a
gente apresenta a dona Constancia é a Obrigação, esse ecletismo que tu falaste ai. Essa, esse
livre arbítrio de que falas ai, ele esta muito presente na Obrigação da Dona Constância.

Pedro: É porque o seguinte, Obrigação o que seria Obrigação?

Vivian: É isso que eu ia te perguntar.


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Pedro: O que seria obrigação, nada mais do que todo ano, ela pactuar, ela ter um pacto já,
com os Encantados dela, na qual terá que fazer durante quase toda a sua vida ou toda a sua
vida aquele tipo de situação, ou seja, de oferecer oferendas, dar oferendas a Iemanjá.
Aqueles fatos que você já conhece, que você já viu e já vivenciou. Lavar pé, rezar todo
mundo não é, é como se diria aqui na sociedade, dar consulta sem cobrar e ainda receitar.
Receita sim, só que além de receitar ainda diz qual é o teu mal: “teu malefício é esse.” Lógico
que ela não vai dizer que tipo de estimulo, você tem que buscar a resposta. Porque na
Encanteria, é massa por causa disso, porque ele nunca te diz, é sim ou é não, ele sempre te dar
duas vertentes, ou três dependendo da situação, ai você terá a incumbência de saber qual seria
a vertente que você queira tomar. Jamais vai dizer você tem que ir por aqui ou por aqui.
Primeiro vai dizer você tem que ir por aqui, não, vai para outro. Jamais, isso ai é besteira. Eu
particularmente na Obrigação mesmo, o que eu achava bonito, todo mundo de branco,
descalço, quando chegava do batuque da rua, batuque do terreiro, dava o reverencial, dava o
lavoriere, ai começava a rodar no salão, depois vinha a corrente de choque, ai depois da
corrente de choque começava a baiar, ai pronto, era só isso que eu achava massa. Ai eu
começava a baiar, ai eu ficava baiando por brincadeira mesmo. E tão tal que a mãe ficava
assim: “Menino, tu deixa de molecagem.” Que eu sempre fui meio.....

Vivian: O que é corrente de choque Pedro?

Pedro: Corrente de choque é quando todo mundo esta aqui em círculos, de joelhos, todo
mundo de branco, descalço, é quando todo mundo recebe o choque dos seus Encantados, ou
seja, um transe. Quando você esta em transe, quando você esta. Porque é o seguinte, para você
ver seu Encantado, você tem que esta em transe espiritual, apartir do momento que você esta
em transe você recebe o choque, o choque é justamente o, vamos dizer assim, o Encantado,
baixa no cavalo, que as pessoas são chamadas de cavalo. Ai baixa pronto, ai é tudo de uma
vez. E depois daquilo dali, tem as pessoas que não recebem Encantados justamente para
auxiliar aquelas que recebem. Porque muitas das vezes, elas se tacam no chão, caem, e as
pessoas só ficam segurando. Não dizendo que quando recebem eles vão cair para se machucar
não , não necessariamente, não chega a se machucar, mas umas pessoas dizem: “Mas fulano
de tal ali diz que recebe nada não.” Perfeitamente, mas ta la pra que para que? Pra vivenciar,
pra ajudar, para fazer parte. Porque é o seguinte, vamos dizer, no grupo da Encanteria, você
vai encontrar varias pessoas que não recebem o Encantado, mas tem o prazer de ficar baiando,
tem o prazer de colocar sua roupa branca e ficar baiando. Ai entra a parte do folclore da
cidade, que a pessoa também não entende. Muitos gostam de baiar por gostar, porque é uma
159

terapia, você vai, você canta, você dança, você sua, você perde calorias, e aquilo dali é
empolgante e você vai fazendo aquilo dali e vai pegando o gosto. E como gostar de festa de
forró.

Vivian: É a mesma coisa?

Pedro: É a mesma coisa. Só que ele acha bonito o tipo de doutrina que é cantado, que são as
musicas que é para puxar o povo. E a mesma coisinha. Quando um cantor pega um microfone,
qual é a musica que você mais gosta de ouvir numa banda? Pois é essa aqui que você vai
cantar na entrada do lavorier, ai o pessoal vai que vai doido, ai quando você ver o Pai de
Santo cantar e abrir o berreiro é porque essa ai é que é a melhor. Aquilo dali é empolgante
cara, e as pessoas gostam, e é assim que é feita a Umbanda, de pessoas praticantes, de pessoas
que recebem Encantados, de pessoas que não recebem também, mas gostam de ver, gostam de
estar lá, e gostam de brincar, porque a Umbanda é uma brincadeira.

Vivian: Pedro Filho, a Obrigação da Dona Constancia, ela era dividida em vários rituais,
tinha a alvorada, tinha a obrigação da mata, tinha a procisão tinha a obrigação das águas.

Pedro: Mas a Obrigação era a reunião de todos. A Obrigação da vó é a união de todos os


fatos que você já vivenciou, sem tirar, sem botar.

Vivian: Mas tu sabe por que tinha todas essas etapas? Porque pra mim, que já presenciei,
parecia assim, coisas distintas, que no final, como você fala, se juntava. E como forma de
agradecimento.

Pedro: De fechar um ciclo.

Vivian: E de fechar um ciclo.

Pedro: Você fazia aquela parte, que seria a parte, vamos dizer assim, da mini romaria que saia
da casa dela com o santo, carregando o santo. Ali é uma forma de agradecimento pelo que o
Encantado fez, que o santo fez. Ia para as matas agradecer pro Encantado isso, ia para o lava
pé para agradecer, ou seja, pra todos ela fazia esse tipo de agradecimento. Como eu te falei, eu
particularmente não sou muito conhecedor do fato, eu só sou um mero espectador, eu sou um
tipo de filho de Mãe de Santo muito fraco, que eu não tenho muita participação não, só sei
que era uma Obrigação da vó desde quando eu me entendo por gente, haja vista que a
Obrigação dela se não foi a vida toda, foi até a eternidade. E passou pra mãe, só que a mamãe,
160

no leito de morte de vó, ela mamãe, se comprometeu de fazer uma Obrigação até determinado
ponto, que foi justamente, salve me engano, foi até o ano retrasado.

Vivian: 2008.

Pedro: 2008? Foi 2008. E a partir de então a mamãe. Porque requer, Vivian, no caso ai, mais
aprofundado a respeito dessa Obrigação, só ela pra te dizer, eu não sei não. Que envolve outro
tipo de coisa, que eu já ouvi por alto, mas eu não sei explicar direito, ai fica chato eu falar
sem, sem conhecer a causa. Mas, de certo que envolve umas coisas de certos fatores, que essa
Obrigação é muito mais pesada do que agente imagina.

Vivian: Tinha umas coisas que a Tia das Dores disse que não faria não é?

Pedro: Perfeitamente.

Vivian: Quando a tia faleceu.

Pedro: Perfeito.

Vivian: A Obrigação que a gente conheceu, é uma Obrigação que já foi reinventada, de certa
forma, já passou por um processo de reinvenção. Mas a Tia das Dores continua fazendo uma
Obrigação no dia trinta e um, não é?

Pedro: Do dia trinta e um ela sempre vai fazer. A Obrigação que eu falo, e justamente a que a
vó fazia, que é a The Best, a completa, esse negocio todo. Porque é uma Obrigação mais
complexa, não entro muito nessa área porque eu não conheço, mas é bem mais complexo, e
não vou dizer dolorosa, mas cansativa. Entendeu?

Vivian: Nas entrevistas que já fiz a obrigação da mata é lembrada pela força, por quê?

Pedro: Porque a obrigação da mata vem da natureza, é bem mais forte, é bem mais carregada,
então você tem que fazer reverencia realmente, não tem como você fugir deste tipo de coisa.
E como eu te falo, eu sempre fiz o seguinte, eu não sou conhecedor de causa a respeito disso,
somente sou um expectador. Tão tal que se tu me perguntar muita coisa, eu não vou te
responder não. Eu só te respondo aquilo que eu vejo, que me falam. Ai, retornando aquele
velho fato de que...
161

APÊNDICE C

Entrevista com Maria Dasdores Pereira em 29 de julho de 2010

Vivian: Nome completo.

Das Dores: Maria Dasdores Pereira.

V: Data de nascimento.

DD: 14 de outubro de 1949.

V: Nível de Escolaridade.

DD: Eu não terminei o segundo.

V: Segundo Grau incompleto. A cidade em que nasceu foi Codó?

DD: Não sei.

V: Não sabe?

DD: Foi no interior.

V: No interior do Maranhão?

DD: No interior do Maranhão. O nome era Brejo do Mota.

V: Que tipo de relacionamento a senhora mantinha com a Dona Constância?

DD: Olha, se eu te contar minha história, ela é um pouco... Vai tomar muito teu tempo.

V: Não tem problema.

DD: Tem não? Olha eu, sete anos. Quer saber a minha história toda? Todinha?

V: É.

DD: Pois eu vou te contar a minha história como foi. Eu com a minha mãe, naquele tempo em
que a gente morava no interior, os donos de terras quando sabiam que as pessoas trabalhavam
com encanteria eles corriam com a gente pra não morar nas terras deles. Então a minha mãe,
ela era espírita, mas ninguém podia saber. Ninguém podia saber. Eu era uma criança, com sete
anos de idade, eu dormia numa rede encostada à minha mãe, e mijava muito na rede e minha
mãe trocava o pano. Quando foi uma noite, eu dormi, e dei uma mijada né? Aí minha mãe
162

trocou o pano. Aí chegou uma senhora pra mim, assim do seu corpo, e pegou na minha
mãozinha e disse assim: Minha filha, eu vou cantar uma cantiga pra ti até sete vezes, e tu vai
aprender. Tu quer que eu cante a cantiga? Aí ela disse assim: “Por que caminhos tão longos.
Porque terrero é tão bonito. Ô Mariquinha curadeira, me empresta dele.” Aí eu acordei. Ela
cantou, me levou num campo muito bonito. Aí eu acordei. Quando eu acordei chamei a minha
mãe: Mamãe, mamãe, mamãe. Aí eu disse: Uma senhora me ensinou. Eu tinha sete anos de
idade. E ela me ensinou uma cantiga. E eu cantei. Minha mãe chorou, chorou, chorou. Aí me
deu um pedacinho de vela. E eu fiquei, pela minha idade né? Aí eu fiquei perguntando a ela o
quê que eu fazia. Ela disse que era pra eu acender. Aí eu perguntei: Onde? Onde você quiser.
Aí eu acendi no chão uma vela de cera de abelha. Aí eu acendi. Foi a primeira vela que eu
acendi. Aí eu fui crescendo com a minha mãe, mas nós faz as obrigação à noite, no mato, pra
ninguém ver. Porque senão o dono da terra mandava a gente embora. E nós não tinha pra onde
ir né?

V: A senhora lembra que ano foi esse?

DD: Lembro não. Eu sou de 49, eu tinha sete anos. Dá pra pessoa né? Tava com sete anos,
que minha mãe me disse. Eu tava com sete anos. Aí eu comecei, desse dia em diante aí eu não
fui mais criança, eu já fui uma pessoa adulta. Agora só que eu fui crescendo, aí eu fiquei uma
mocinha muito bonita. Todo tempo, se eu disser a vocês que eu não tenho vergonha, eu tô
mentindo. Porque eu acho feio, pra mim eu acho. Ave Maria! Aí eu chorava muito né? Mas
minha mãe procurou a me distrair, a conversar comigo, a dizer que aquilo não era bicho de
sete cabeças, aquele negócio todo. E quando a gente ia fazer as obrigação sempre era no mato,
escondida. Era escondida. Nós não fazia pra ninguém ver. Aí depois, eu mesmo, eu acho que
a minha entidade né? Mandou eu fazer uma mesinha, e nós colocamos em casa. E a casa da
minha mãe, eu disse a ela né? Ela tinha saído, quando ela chegou, aí a mamãe disse que eu
disse assim: Mãe, nós nunca mais vamos passar necessidade. Aí ela disse: Porque minha
filha? Aí eu disse: Por que a gente vai trabalhar. Sete anos. Aí arranjei umas florzinhas do
campo, coloquei lá, essas coisas. O que aconteceu é que a casa da minha mãe virou uma casa
de romaria, como se fosse uma casa de romaria. Muita gente vinha procurar minha mãe, só
que nós nunca cobramos nada. Por que na Umbanda diz: “Dá de graça o que de graça tu
recebeste” Então, o quê que nós recebemos de graça? O dom que Deus nos deu. Então nós
não podemos cobrar. Não. As pessoas que usam a sua consciência e deixa a jóia na mesa, pra
comprar vela, as coisas, porque todo mundo sabe que ninguém vive de ar. Mas quando você
chegar numa casa é o ensinamento que eu recebi da minha mãe, quando você chegar numa
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casa de uma pessoa entendida, nós não chamamos “macumbeiro” porque isso é uma palavra
errada. Entendido. Por que o pessoal entende entendido em várias coisas não é? Mas nós
atingimos isso, entendido. Entendido porque ele tem o conhecimento né, na encanteria, que
ele disser pra você: Eu faço o seu serviço por tanto. Vá embora e leve seu dinheiro, ele é
charlatão, ele vai roubar sua consciência. Quando você chegar nua casa e uma pessoa disser
pra você que sabe tudo, vá embora. Porque só Deus sabe tudo. Ninguém que pisa nessa terra
de pecado aqui sabe tudo. É mentiroso. E as pessoas que fazem parte da umbanda, pra seguir.
Por que a Umbanda, ela é dividida em sete linhas, sete correntes e sete falanges. Então, as
estradas estão aí, você vai procurar a que você quer seguir. Nós usamos a nossa mesa branca.
Porque a nossa mesa branca? Por que nós não vivemos pra fazer mal a ninguém. Nós
rezamos, pedimos a Deus Pai Oxalá, Mãe Iemanjá né, que nos proteja, que dê força das
nossas entidades pra trabalhar, fazer o bem. A outra coisa, porque tem isso, dê com uma mão
que a outra não veja. Se tu faz a caridade, tu fez e esqueceu. Porque tu fica lembrando?
Porque tu fica cobrando? Deus não quer. A Encanteria não quer. Não. E cada um usa sua
consciência. Como ele vai resolver a vida dele financeira, quem vai determinar é Deus e a
Encanteria. Tem muitas pessoas, que quando ele segue essa vida, essa seita, ele não tem nada
minha filha. Ele não tem uma boa casa, ele não tem dinheiro. Tem não. Nunca pense que
roupa é saber. Nunca pense isso aonde você chegar. Ó, quando você chegar numa casa, por
mais pobrezinha que ela seja, respeite ainda mais. Por que a humildade na Umbanda é a coisa
mais importante pra nós, é a humildade. Nós não aceitamos as pessoas que querem ser
demais, que acham que o dinheiro é tudo. Tudo eles põem o dinheiro na frente: Não, mas eu
posso isso porque eu tenho dinheiro. Nós não aceitamos isso não. O dinheiro resolve muitas
coisas, mas Deus resolve tudo. Então é assim. E a Umbanda é isso aí.

V: Você colocou, algumas perguntas que estavam aqui, acho que você até falou. Por que eu ia
perguntar como é que tinha sido foi a tua iniciação na Umbanda né.

DD: Mas eu sabia que tu ia perguntar.

V: Então eu queria saber quais são as lembranças mais preciosas que você guarda da Dona
Constância.

DD: Nossos trabalhos. Nós trabalhávamos muito pra ajudar as pessoas, pra criar meus irmãos.
Nós trabalhamos muito. E as coisas que mais assim, eu guardo, foi quando ela começou a
passar a responsabilidade dela pra mim. Entregar as meninas que fazem parte. Gente mais
velha do que eu, muito mais velha do que eu. Eu assumi. Na minha infância, tinha um
164

boqueirão, que nós chamava Boqueirão da Areia, lá tinha, eu nunca pude esquecer isso, lá
tinha assim uma oca, era assim uma barreira que eu não me lembro bem, e dentro era como
que fosse uma casa lá. Então, a gente ia pro mato doze horas da noite. O que nós levava: os
poder de Deus, que ia com nós, da Encanteria, e um cachorro por nome Quebra Ferro. E lá
parece que tinha, era como se fosse uma porta né, e a gente ia trabalhar lá dentro, acendia as
luzes, e as entidades descia, lá a gente trabalhava com defumador, as coisas que tinham. E
quando terminava aquilo tudinho a gente saía. Mas aquela areia era tão fria, tão fria, ave
Maria, era muito bom. Eu como era criança, por mim eu passava a noite lá deitadinha. Essa
daí eu nunca pude esquecer. E a outra foi por que quando minha morreu eu já tava com dez
anos na liderança, assumindo todas as obrigação, assumindo o pessoal que faz parte da casa
né, gente muito mais velha do que eu. Aí eu me sentia muito pequena. Porque eu sou
baixinha, pequenininha né. E aí pra ficar, eu olhava assim pras meninas, mas graças a Deus
elas sempre procuraram, assim, até que eu é quem ralho com elas, porque elas são assim, toda
vida muito obediente comigo, assim, elas me tem aquele respeito. Um respeito até que eu digo
assim: Gente vocês são mais velhas do que eu, não precisa isso tudo. Aí quando elas vão
chamar mãe, aí eu não aceito. Mãe não. Porque tem uma mãe do céu e a sua mãe que lhe pôs
no mundo. Eu assim, não posso dizer que sei mais do que ninguém, ninguém sabe tudo. A
pessoa que lhe disser que sabe tudo ele tá mentindo. Então, você todo tempo, você é professor
e é aluno. Você como professora, você não é assim? Não tem que estudar? Pois é o mesmo
jeito na Umbanda. Outra coisa, nós não... O nosso conhecimento não é de livro. O nosso
conhecimento é dado por Deus, pela Encanteria. Se você pedir: Ah, faça aqui um trabalho pra
mim de um livro. Não, porque o livro, assim... Qualquer pessoa escreve um livro, ou que ele
tenha conhecimento naquela área ou não. Ele sai perguntando e escreve o livro. Mas ele tem o
conhecimento? Ele não tem. E é por isso é que nós não usamos livro. O nosso trabalho é feito,
as nossas orações são feitas, às vezes a gente vai pra mesa, a gente não sabe o que vai
acontecer, não. Se eu te disser que no dia de uma obrigação, eu tenho alguma coisa na minha
cabeça, que eu vou fazer, não. Às vezes eu fico perguntando às meninas: Minhas irmãs, o que
é que nós vamos fazer? Aí Dona Rita, que é a mais velha, diz: Mas sempre é assim minha
filha, você não sabe o que vai fazer. Depois é que elas vão me dizer. Mas eu não sei, eu não
sei te dizer o que é que eu vou fazer. Se eu vou rezar numa pessoa, eu não sei como é que eu
vou rezar ele. Eu não sei. Quando eu visto a minha roupa branca, e pego o meu rosário e boto
na mão, afirmo meu pensamento em Deus. Porque a coisa mais importante do mundo é a fé
em Deus. Não tenha fé em bruxaria. Bruxaria não resolve nada. Tenha fé em Deus. Só Deus
salva. Deus dá a vida e Deus tira a vida. Só ele tem esse poder, mas nós aqui da terra não. E
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outra coisa, tem seitas que dizem que recebem o Espírito Santo. Eu não aceito. Você sabe por
quê? Porque você, pense bem, o Espírito Santo, Santo Deus, ele vai descer numa matéria
podre pecadora, cheia de pecado? Não minha filha. Os teatro são demais também. Porque que
a Umbanda hoje vive lá em baixo? É por causa dos charlatões, das mentiras. Eu não culpo,
não condeno ninguém que diz assim: Isso é uma sem-vergonhice, isso não existe não. Sabe
por quê? Eles tão vendo os teatro, as mentiras. Ninguém é doido não. Todo mundo chega e vê.
Isso não tá correto. Outra coisa, não trabalhamos com negócio de matança: Eu vou matar um
bode, eu vou matar uma galinha preta. Isso é coisa do Demo. Eu não gosto nem de falar
nessas coisas. Isso é coisa do Demo. Não, não aceito isso de jeito nenhum. Então, a minha
maneira, o meu ensinamento foi assim. Agora, outra coisa, ninguém trabalha igual. Cada
pessoa recebeu seu ensinamento. Nós não podemos condenar ninguém e nem jogar pedra em
ninguém. Nós nunca podemos chegar numa casa e dizer: Isso aqui tá errado. Não. Está errado
a minha maneira, mas a maneira dele está certa, na maneira dele ele recebe a força dele e eu
recebo na minha maneira. Não quero dizer que sou melhor do que ninguém. Não. Eu sou uma
pecadora, matéria podre. Ninguém é melhor do que ninguém. A entidade que desce no
presidente da República, ele desce no pior esmole. Porque o Deus é só um. Não existe o Deus
do pobre, e nem do rico, e nem do negro e nem do branco. Só é um Deus. Porque como na
doutrina se fala né, a gente diz: (cantando) “Meu povo me ajuda, ajuda eu rezar. Lá no céu só
tem um Deus, só ele pode nos salvar. Lá no céu só tem um Deus, só ele pode nos salvar.”
Então, lá no céu só existe um Deus, nem dois, nem três. E outra coisa, antes de você apontar
alguém, se aponte primeiro. Todo mundo tem seus erros e seus defeitos. Nunca chegue em
uma casa e sente na primeira cadeira, porque você não sabe pra quem o dono da casa guardou
aquela primeira cadeira. E a coisa mais importante é a humildade. Nunca queira chegar e dizer
quem você é. Não. Se existe alguma pessoa que tem conhecimento ali naquela casa, não
precisa você se identificar, ele vai a você, ele fala a você. Porque tem gente que tem prazer.
Outro dia, um pai de santo, eu cheguei, eu fui o brinquedo dele, e eu cheguei né, e ele não
estava, tava deitado e mandou me chamar, aí eu fui. Quando eu cheguei lá ele disse: Minha
mana, eu não vou dançar minha festa. Mas por quê? Porque eu não tô me sentindo bem. Eu
disse: Levante, vamos rezar. Rezamos, ele fez a festa dele, graças a Deus. No outro dia eu fui,
levei o banho dele, ele tomou o banho, aí banhou. Passou uns dois meses, ele veio aqui. E
chegou aqui conversando comigo e dizia: Tu não tá me achando diferente? Eu não. Não, não
tava nem lembrando. Disse: Eu aumentei três quilos, dancei minha festa muito bem. Vim lhe
agradecer. Eu disse: Agradeça a Deus. A Deus você tem que agradecer, e a mim você diz
muito obrigado. E a você também, muito obrigado.
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V: A maioria das perguntas que eu tinha feito aqui como perguntas iniciais, elas já estão na
sua fala tia. Agora eu queria, assim, eu conheço a Obrigação da Dona Constância né. Sou
apaixonada por ela. E faz parte do meu trabalho entender a Obrigação. Então eu resolvi assim,
nós não vamos conversar tudo hoje. Então hoje nós vamos falar da Obrigação da Mata. A
primeira mesmo é: Como é que a senhora define a Obrigação da Mata? O quê que é a
Obrigação da Mata?

DD: Olha, a Obrigação da Mata nós fazemos pra Caboclo. É pra Caboclo que a gente faz a
Obrigação. A Obrigação das Águas nós fazemos pro povo das águas, Iemanjá, Mãe Sereia,
Pai Ogum, porque tem muita gente né. E a da Mata nós fazemos pros Caboclos da Mata,
porque lá é que desce os caboclos, que é quando a gente vai iniciar a gente: (cantando) “Ô
tenha dó de mim meu Deus. Meu Deus tenha dó de mim. Tu tira as ramas dos caminhos pros
Caboclos passar.” Que é pros Caboclos incorporar nos aparelho que estão lá, os aparelhos são
as pessoas né. Nós pedimos licença, porque primeiro a gente tem que pedir licença que é pros
caboclos descer. Aí nós damos oferendas a eles. Aquilo dali, aquelas oferendas, a gente sabe
que eles não vem comer aquelas oferendas, mas como é o ritual da gente né, aí nós levamos,
levamos cuxá, nós levamos frutas pra colocar nas matas, lá nós manda bater os tambor, o
batazeiro vai pra bater, o maracazeiro vai pra sacudir a cabaça, que é pra realmente naquela
alegria descer os Caboclos né, e os aparelhos estão ali vão receber eles e pra eles dançarem.
Viu? Porque tem trabalho que você faz nas águas e tem trabalho que você faz nas matas. As
matas nós precisamos dos Caboclos, índios, esse pessoal aí.

V: Qual é o significado da Obrigação da Mata?

DD: Olha, tem muitas coisas que a gente não pode falar, viu? Tem coisas aqui que eu não,
infelizmente, a gente não pode falar.

V: Mas o que der pra falar.

DD: Bom. O significado da Obrigação da Mata realmente é o festejo deles. Porque nós não
podemos dá a alegria deles nas águas né. O povo das águas é um, e mata é outro. E por isso é
que a gente vai pra mata. É isso.

V: Quais são os principais elementos religiosos que estão presentes ali? Porque eu vejo a vela,
o fogo. É uma coisa que me marca muito, são as mãos de vocês na terra.
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DD: É. Porque nós recebemos a força da terra. Nós recebemos a força dos astros, nós
recebemos a força do sol, da lua, das estrelas, das águas. E na mata nós queremos também a
força da terra. Porque se nós não colocar o pé no chão, é o nosso sinal de humildade. Porque
nós beijamos o chão? É humildade. É humildade. E nós tem que pôr a mão na terra, por que
caboclo, minha filha, é pé no chão e mão na terra. É o caboclo. Caboclo já tá dizendo, é
caboclo. Índio tá dizendo, é índio. Nós não botamos índio pra comer galinha crua. Não. Esse
outro pessoal aí bota. Nós não botamos, porque não faz parte da nossa mesa esse tipo de
coisa. Mas tem gente que põe. Nós gostamos de palha de Tucum, é essas coisas, né. Nós
gostamos por quê? Porque isso faz parte pra caboclo. E a mão no chão ali é pra nós receber,
ali nós estamos recebendo a força da areia, terra, da mata.

V: Porque a Obrigação da Mata dentro da Obrigação da Dona Constância?

DD: Por que foi, ela antes de viajar, ela pediu pra fazer até os sete anos. Por que os sete anos?
Por causa de uma família muito grande que ela tinha, que ela tem né, porque ela foi, mas a
família dela ficou. Como ela passou a responsabilidade dela pra mim, e ela pediu antes de
morrer que eu fizesse a Obrigação até sete anos, a Obrigação dela. Então até sete anos foi feita
a Obrigação dela, à maneira dela e à maneira dela só eu sei fazer, porque ela não passou a
outra pessoa pra fazer. Então eu tive que fazer até os sete anos. Até porque eu acho que ela
tava em débito. Eu disse a ela: Você tá em débito. Só teve uma Obrigação, que eu pedi a ela
antes dela viajar, e que doeu, foi a Obrigação das Almas né. Porque eu disse: Minha mãe, eu
quero lhe fazer um pedido. Ela disse: E qual é? Na hora que ela tava me passando tudo antes
de viajar. Eu disse: Eu quero que a senhora não fique triste, mas eu quero lhe pedir uma coisa
do fundo do meu coração, eu vou assumir todas as suas responsabilidades, mas eu não quero
fazer a Obrigação das Almas. E ela disse: Ô minha filha, das Almas Santas Benditas? E eu
disse: Sim, das Almas Santas Benditas. Aí, mas fiquei assim, acendo as luzes, pras almas lá e
tudo, lá vou no cemitério, e acendo tudo direitinho. Mas não fiquei fazendo a Obrigação no
cemitério, mas eu pedi a ela. Outra coisa também, e foi muito duro pra mim, triste, muito
triste, muito doído, mas eu fiz sem sentir depois porque eu voltei ao normal, foi quando a
minha mãe me pediu que eu não deixasse ninguém pegar na matéria dela, eu tinha que
“descolar” ela, eu mesma. Aí eu pedi, eu disse a ela: Mãe, e será que eu vou ter força pra fazer
isso? Ela disse: Vai. Eu estou ao seu lado. E eu fiz, descolei a minha mãe, botaram no caixão,
o meu irmão chegou, porque ele sabia: Não deixe ninguém pegar. Aí vestiram ela. Messias
chegou e disse pra mim: Minha irmã, tá aqui a matéria. Eu disse: Meu irmão me dá aí quinze
minutos. Deixa eu entrar ali no quarto. Aí fui na mesa dos santos, peguei os rosários e vim.
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Mandei abrir o caixão e descolei a minha mãe, e rebentei os cruizos, rebentei os pratos,
rebentei tudo. Deus me deu força, e eu sei que foi ela que me ajudou. Porque é muito doído
você mesmo fazer a separação da tua mãe, da terra pro outro lado. Foi muito duro pra mim,
mas eu fiz porque ela me ajudou. E aí foi assim. Tudo isso eu fiz porque ela pediu. Agora
depois dos sete anos, a Obrigação não é diferente. A gente já não faz mais, dentro da
Obrigação dela, porque nós temos que libertar. Com sete anos nós temos que libertar pra ela
seguir o caminho dela. Porque enquanto a gente está fazendo, ela tá vendo, porque ela fica
presa àquela Obrigação, né. Passou os sete anos, pronto, vamos dá a liberdade dela. Já demos
a liberdade dela.

V: Por que o dia 31 de outubro?

DD: Trinta e um de outubro, que o pessoal diz que é o dia das bruxas, né.

V: É eu fiz um estudo a respeito disso.

DD: Eu sei que você ia perguntar isso. Presta atenção, como tudo que tu vai perguntar eu já
tenho a resposta pra te dizer. É o dia das bruxas, eu vou já lhe dizer por quê. Porque trinta e
um de outubro é uma data do aniversário da Entidade da minha mãe. Então no dia que é
batizado naquela Entidade, que é o Encantado que chama, na matéria, que esse batismo se
confirma, fica o dia da festa de aniversário. Minha mãe, reza no São Francisco, ela não rezou
dia quatro de outubro, que todo mundo sabe que é dia quatro, e sempre a gente falava: Mãe,
dia trinta e um de outubro é o dia das bruxas. Ela dizia: Das bruxas lá, porque na minha casa,
não. E a gente levou como uma brincadeira e ficou trinta e um de outubro por isso. Porque
todas as pessoas, eles festejam o aniversário da sua primeira Entidade, que é o primeiro
Encantado que incorpora na matéria, né. Aí faz a festa dele. E é uma coisa determinada não
pela gente, é por eles, não é a gente que diz. O horário, o horário da minha mãe, como se sabe,
era um horário muito rígido, porque minha mãe era muito antiga, era muito rígida. Eu hoje
não faço com as meninas o que ela fazia. Ora, você ir pra uma mata doze horas do dia, né.
Mas a Obrigação é como ela dizia: A Obrigação é uma obrigação. Então é uma obrigação,
você tem que pisar na terra quente, você tem que pisar no fogo se necessário. Então é uma
obrigação, ali é que a pessoa, é os teste de prova pra saber se realmente as pessoas tem
Entidade. Viu? Porque a pessoa que não tem não pisa na terra quente, fia. Queima o pé.
Porque uma terra daquela queima, né. Pois é. Porque doze horas da noite? Nas águas? A gente
faz as Obrigação doze horas da noite. Doze horas da noite é a hora em que até o mato, por
cinco minutos ele pára. É a hora que todo mundo vai se concentrar pra ir pra mesa. Por quê?
169

Preste atenção, doze, quando der doze horas da noite saia no tempo pra você ver, nem que
seja cinco minutos minha filha, mas tudo pára. Aí é a hora da pessoa, doze horas todo mundo
fica: Ó as doze horas, ó as doze horas. Que é pra se concentrar. Aí doze horas vamos todo
mundo pra mesa pra rezar. Aí a gente começa a obrigação doze horas da noite. É por isso.

V: Mas assim, tem o alvorecer, a alvorada né. Tem a Obrigação da Mata, tem a Obrigação das
Águas. Um dos motivos de grande curiosidade é porque os três rituais da Obrigação de Dona
Constância?

DD: É porque tem que ser completo. Porque se fizer só a Obrigação das Águas não tá
completo. Porque primeiro a gente tem que louvar, né, é Nossa Senhora, primeiro a gente vai
né, e diz: (cantando) “Ô salve as três Marias ao romper do dia. Ô salve estrela Dalva. Salve a
Virgem Maria. Ô salve a estrela Dalva. Salve a Virgem Maria.” Ali nós tamo salvando, né. Aí
depois nós pega e diz: (cantando) “A Virgem Maria já abençoou. A estrela Dalva seu mundo
clareou. A estrela Dalva seu mundo clareou.” Sabe por quê? Porque a estrela já, o dia já tá
amanhecendo, né. Aí nós já louvamos Maria. Maria é a mãe de Jesus. Pra nós ela é muito,
muito, muito, muito, muito importante. Nossa Senhora da Conceição, a Mãe Iemanjá ave
Maria, né. Então é isso. Então nós temos que pedir permissão em primeiro lugar. Nós não
podemos entrar: Não, porque eu sei, eu vou fazer. Não senhora, você tem que pedir licença.
Tudo você tem que pedir permissão pra Deus, pra Virgem Maria. Por quê? Pra ela não deixar
nada de ruim acontecer, nem a você, nem às pessoas que te acompanham e nem aos
Aparelhos que estão ali pra receber. Porque nós não comemos a carne vermelha na
Obrigação? Nós não comemos carne vermelha de jeito nenhum, pra não ficar pesada a
matéria, viu. Aí doze horas do dia, porque nós vamos louvar os Caboclos, né. Aí doze da
noite, nós vamos pro pessoal das águas, louvar o pessoal das águas, o pessoal da mina, aí vai
ser as curas. E a gente faz o lava pé. Por que o lava pé? O lava pé, é porque naquele lava pé, aí
é as curas que a gente faz no lava pé. Por que a gente beija o primeiro pé? Pode ser sujo,
cagado, mijado. É sinal de humildade. Por que nós enxugamos o pé de todo mundo? É
humildade. Porque tem que ter humildade. Porque sem a humildade minha filha, você não
chega a lugar nenhum. Nunca pense, você pode ter o dinheiro do mundo todinho, mas se você
não tiver humildade, você não chega a lugar nenhum. Você sempre vai ser uma pessoa
antipática, uma pessoa ruim pra todo mundo. Por quê? Você não tem humildade, primeiro
vem a humildade.
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APÊNDICE D

Entrevista tia Maria Dasdores Pereira em 25 de julho de 2011

VIVIAN: Entrevista Dona das Dores 25 de julho de 2011. É uma pergunta que eu vou repetir,
mas onde é que nasceu a Dona Constância? Quando?

DONA DASDORES: Ela nasceu no Piauí.

V: Onde?

TDD: O local é no interior do Piauí, eu não sei te dizer o nome né, eu sei que ela nasceu trinta
de julho de trinta, é trinta que ela nasceu né. E o ano que ela nasceu também ela disse que
nasceu em trinta.

V: O nome dos pais dela?

TDD: Benedito Pereira de Sousa, a mãe dela Maria dos Anjos Alves Pereira

V: Tinha parentesco lá com o pessoal do papai não é.

TDD: Era, mas a parte do teu pai já é do meu lado do meu pai

V: É

TDD: Não é da minha mãe.

V: Depois eu quero saber de umas histórias aí, mas aí vai ser fechado. Alguma lembrança
dela da vida de solteira? E que ela tenha lhe contado?

TDD: Ah, a vida da minha mãe de solteira, ela não teve. A minha mãe nunca dançou, a minha
mãe nunca foi em festa quando ela era mocinha, porque a vida dela foi essa, a da Encanteria.

V: É verdade que começou com três anos?

TDD: É verdade. E eu fui com sete.

V: É. Essa história você me contou.

TDD: Ela com três anos, ela já não era uma criança normal. Então ela não teve infância.
Quando ela ia brincar, as brincadeiras dela eram umas brincadeiras diferentes das outras
crianças. Aí as outras crianças não queriam brincar com ela. Ela foi uma criança assim
encostada pelos outros, ela pelejava, e às vezes quando ela ia brincar, por as crianças não
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gostar dela, ela judiava. Ela derrubou uma vez a professora dela dentro da água. Ela disse para
professora dela que era raso lá a água, ela me contava muito isso, e a professora dela
escorregou. Porque disse que lá no Piauí tem aquelas Lages né nos banhos, foi em José de
Freitas e ela disse que o nome da professora dela era munda, eu acho que deveria ser
Raimunda né. Aí ela foi e disse: Não, aqui é rasinho, rasinho. Porque a professora também
chamava ela de doida né, porque ela não era como as outras crianças. Assim, ela não aprendeu
quase nada, ela não pôde estudar de jeito nenhum, ela só aprendeu assinar o nome dela, a
sabedoria dela foi dada por Deus e ela não teve, ela nunca foi uma festa para dançar. Ela foi
em muitas festas depois dela já mãe, sabe. Aí ela pegou, casou com meu pai, era espírita o
meu pai também, era, fazia parte não é. Eu acho que esse foi o motivo dela ter casado com
ele.

V: Quando é que eles casaram?

TDD: Aí eu não sei Vivian.

V: Qual é o nome dele?

TDD: Joaquim Alves de Sousa e o nome dela Constância Alves de Sousa. Aí ela fez o
segundo casamento, aí mudou para Constância Pereira de Melo. Já porque ela pegou o nome
do primeiro marido dela. Porque ela foi casada duas vezes, ela teve dez filhos, mas só se criou
sete né, morreu três.

V: A Rita me falou em uma das conversas que agente teve que os filhos homens foram
estudar e as filhas mulheres foram trabalhar.

TDD: Fomos trabalhar para ajudar os homens a se formar.

V: Mas todas vocês trabalham com Encanteria?

TDD: Todas duas. Foi a, como é? Foi a riqueza, a riqueza que ficou, a herança que ficou.

V: Das músicas que a, os cânticos que a Dona Constância cantava.

TDD: Ah, são vários.

V: Mas qual que?

TDD: Qual que, que mas ela gostava ou que mas mexia com ela.
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V: Exatamente.

TDD: O que mas mexia com ela?

V: É.

TDD: Ah, sim. Quando ela estava deitadinha, depois dela já doente, aí eu cantava essa que ela
gostava muito de ouvir. Para ela dormir, eu ninava ela doutrinando. Ela dizia: Canta para mim
dormir. Mas era cântico de tricoro que o pessoal chama. Aí às vezes ela tava assim, ruinzinha
em cima da cama, aí eu dizia assim: (Cantando) “Eu tava dormindo, o tambor me acordou. Eu
tava sentada e o tambor me abalou.” Aí ela dizia: Ô mulher, não mexe comigo. Outras vezes,
são várias, a doutrina que mais ela gostava quando ela tava, ela dizia: (Cantando) “ Aê caidê,
aê caidê. ...” Agora, as aberturas da mesa dela, ah mas custa muito, se gravar custa muito.

V: Não tem nada.

TDD: Aí tem várias doutrinas, tem a doutrina do Sebastião, e Rei Sebastião ele gosta muito
de quando ele chega na mesa pra fazer a abertura dele né, aí tem vários médiuns, que até eu
reclamava isso não é, que eu acho até assim uma chicotadinha né. Aí ele às vezes dizia: “Não
minha filha, é porque o pessoal aqui são sabidos né.” Aí ele doutrina assim: “ Com quem tiver
... Ô venham fora, venham ver. Então na hora que ele diz assim “Se aqui tiver bom médium.”
É porque os médiuns tão presentes. Aí sempre eu (cochichando)

V: Tia, você pode dizer pra mim quem era o Encantado que a Tia Constância recebia?

TDD: Posso.

V: Pode?

TDD: Posso. Não tem segredo. O Chefe de Coroa dela, que você quer saber, porque o Chefe
de Coroa é o primeiro, é que a pessoa recebe, que foi o primeiro quando ela nasceu, que o
nome dele é Mearinzeiro. Tem a doutrina dele. Você quer?

V: Quero.

TDD: Eu até que não acho a doutrina do Seu Mearinzeiro bonita. Seu Mearinzeiro era o chefe
da minha mãe. O segundo, é Rei Sebastião, o terceiro é Doutor Firme, aí vem João Carrasco,
aí vem os outros, vem Badê, aí vem muita gente, vem Caboclo José, Caboclo José gosta muita
de Terecô pra dançar né. Agora, Seu Mearinzeiro, ele passava às vezes de ano sem descer
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porque Seu Mearinzeiro é príncipe, ele é um príncipe. Então ele nunca gostou de, Seu
Mearinzeiro não gostava de Codó, ele não gosta de Codó. Por que olha, do jeito que tem as
pessoas, tem os Encantados também né. Nunca vi na minha vida Seu Mearinzeiro pegar um
cálice de vinho pra beber e um cigarro pra fumar. Porque ele batia muito de ? E o Encantado,
ele é assim, é de acordo, aquilo que a matéria põe na mente. Porque quem trabalha é a
mente.Tudo que tu botar nessa mente, quando o Encantado chega ele encontra. Ah Encantado
fulano em cima de Seu Fulano bebe e fuma. Mas é porque a matéria quer. Porque se a matéria
não quiser. Porque Deus me livre de eu ter um Orixá pra mim não dominar ele, ele me
dominar. Então eu não sirvo. Não, eu sou contra. Ah porque ele fez isso, fez isso. Ah porque
eu sou Encantado fulano. Não senhora. É de acordo a matéria. Se a matéria é saliente, ele
chega e fica saliente. Porque tudo que tu botou na tua mente, viu. Outra coisa, Encantado,
nunca ouvi dizer que Encantado entra em briga, que Encantado briga. Não, não existe isso, na
outra vida não tem isso, minha gente. Todos são iguais. O rei que passa em cima do
governador, ele passa no esmolé, no que o esmolé tiver. Porque o Encantado, nem todo
mundo recebe. Porque existe as Vidências, as Radiações e a Incorporação. A Radiação,
quando o Encantado só te radeia, tu vai e vem, oras tu vê, oras tu não vê. Viu? Agora, quando
é a Incorporação, aí ele tomou conta do teu corpo, teu anjo de guarda afasta, ele fica na frente
do teu anjo de guarda. Assim, era o ensinamento que a gente recebia. Quando o Encantado
vai, aí é que teu anjo de guarda vem. Porque se teu anjo de guarda não tiver ali pra receber a
matéria, tu não volta mais. Existem histórias de gente que recebeu e na hora que o Encantado
foi embora, ele apagou. Aí: Morreu, morreu, morreu. Morreu de quê? Aí ninguém explica.
Por quê? Se existiu a falha, porque a matéria tem que se preparar também. E tem que ter
muita fé em Deus, quando você vai pra uma mesa receber seu Orixá, sua Entidade, né, porque
cada lugar fala uma coisa assim diferente, nomes diferentes, porque certo mesmo é Entidade,
mas o pessoal aqui é Orixá, é Encantado, esse negócio. A primeira coisa que você tem que
fazer, você tem que rezar, tem que afirmar o seu pensamento em Deus, pra que Deus dê
licença pra tu receber tua Entidade, e quando ela sair, tu receber teu anjo de guarda. Porque se
tu não receber teu anjo de guarda, tu não volta nunca mais. É um perigo, viu? Pois é. Então,
Seu Mearinzeiro, ele não gostava de Codó. A doutrina dele eu não acho bonita. E sempre eu
digo: “Ó, a doutrina de João Carrasco, a doutrina de Mearinzeiro eu não acho bonita.” Acho
bonita assim: (imitado som de batuques com a boca). Até que ele dizia assim: “Ah, mas a
senhora não pode dizer isso, que a gente gosta tanto da senhora.” Porque a minha mãe me deu
na barriga pra Seu Mearinzeiro. Quando ela tava me gerando, né, aí ela pegou e me deu. Eu
não tive quem me pegasse. A minha mãe, eu nasci quinta feira Santa, a minha mãe disse que
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me pegou sozinha, porque não tinha ninguém pra me pegar. Bom, então vamos, porque é
muita coisa, senão a gente nem come hoje. Aí ele canta assim: “Mearim, Mearim, Mearim
meu povo. Mearim, Mearim, Mearim meu povo. Terra que ganha dinheiro quer perder a
Mearim. Ô Mearinzeiro. Eu sou Mearinzeiro. Não me chame em Codó? Ô Mearinzeiro, Eu
sou Mearinzeiro...?” É a doutrina dele. A doutrina do Dr. Firme, de Dr. Firme, porque
primeiro, Mearinzeiro é o primeiro, né. É porque é assim, aí vem a escadinha não é. Aí fica
Rei Sebastião em segundo lugar, Dr. Firme é o terceiro. Dr. Firme, ele canta assim: “Eu sou
Firme, eu sou firme. Eu moro em Mato grosso, eu só falo a verdade. Eu ando atrás de quem
me ajuda. Santa Maria, meu Jesus é quem me vale.” A do Dr. Firme não é bonita? É sim, ah é.
Aí, deixa eu ver. De quem é mais que tu quer?

V: Eu quero saber um pouco mais dela, né. Como é que ela se relacionava com as pessoas?
Porque o Pedro Filho disse que ela é assim, é um misto de uma pessoa firme, decidida,
valente.

TDD: Valente. A minha mãe era muito valente. Ela nunca baixou a cabeça pra ninguém. Ela
era uma mulher valente, uma mulher guerreira. Ela nunca teve medo de nada na vida dela. Ela
nunca teve medo nem de briga. Porque ela não tinha, porque a gente tá com faca, revólver na
mão e ela entrava no meio. Minha mãe nunca teve medo na vida. Ela foi uma guerreira pra
criar esses filhos sem pai. Era uma guerreira. Ela viajava, atirava muito bem.

V: Ela separou cedo, né?

TDD: Foi cedo, ela separou cedo. Aí ela enfrentou a vida. Foi uma guerra pra ela. Nós
ficamos... O meu pai vendeu até a casa com a gente dentro, e ela entregou. Porque ela disse
que, se o dono da terra comprou é porque ele tinha mais necessidade. E ela mandou fazer uma
casa pra gente de palha em pé. O Messias ficou com seis meses. Aí os padrinhos foram visitar
ela aí disse: “Não cumade, a gente vai levar esse aqui até...” Aí ela disse: “Mas eu não dou os
meus filhos pra ninguém, só pra Deus.” Mas também foi só um ano de sofrimento. A casa da
minha mãe era uma casa como se fosse assim uma casa de romaria, era cheia de gente, gente
era, se tratando. Agora, ninguém, só quem sabia que minha mãe recebia Entidade era eu.
Pessoa nenhuma notava. Toda vez que chegava uma pessoa que ela ia atender, que ela atendia
né, aí eu ia comprar uma vela e tudo, mas ela nunca, porque ela também tinha vergonha. Ela
era do meu jeito. Porque é feio mesmo. Quem disser que isso é bonito tá mentindo. É feio.
Então era assim. Ela fazia muito remédio pras pessoas. Nós? Nós não sabia nem o que era
médico. Adoecia, a minha mãe fazia era remédio. Aí com o tempo, a gente fazia tanto
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remédio pra tuberculoso. Aí, eu sei como é que faz, é com mel de Tiúba. Hoje é que as
pessoas... Mel de Tiúba ela fazia, dez gemas de ovo de galinha caipira, seguindo ? A pessoa
se curava. Aí ela botava na tampa da ? só uma pitadinha. Fazia muito remédio. Minha mãe foi
um exemplo de vida pra muita gente, não só para os filhos. Todas as pessoas que passaram
pelas mãos dela, ficaram prontas pra enfrentar o mundo. Porque ela não media distância.
Agora, ela era muito rígida, muito carrasca com a gente também. Ela não tinha pena, é porque
as meninas não estão aqui, ela não tinha pena de marcar pra sair do Codó descalça, doze horas
do dia quando chegava aqui no sítio não. Porque ela dizia pra gente que a taca que doía era do
tempo. Não era de briga e nem de rei, é a do tempo. Porque a pisa do tempo é a que mais dói,
porque você não sabe o que tá acontecendo, nem sabe por que tá apanhando. Ela nunca
poupou, nunca fez diferença das filhas pras outras que participavam, pra ela todo mundo era
igual. E ela nunca deu moleza pra ninguém. No dia que se ia fazer Obrigação nas matas, que a
gente ia, ela não mandava fazer vareda pra ninguém entrar não. Não. Você tinha que entrar
descalço, você tinha que você fazer sua estrada, é maliça, tucum. Porque ela disse que vamos
pra prova. Ela dizia. Porque hoje, todo mundo diz assim: “Eu sou Pai de Santo.” Aí, tu já
fizeste a prova? Não. Porque sem prova todo mundo é Pai de Santo. Porque tem que ter a
prova pra saber se você já dá conta do recado. Porque se você não se garante, como é que
você vai pegar um mundo de gente e botar atrás de você sustentar se você mesmo não se
sustenta? Então essas eram as provas que se faziam. Ela foi uma mulher valente. Nunca teve
medo a nada. Nunca, nunca. Nunca ouvi minha mãe dizer: “Amanhã não tenho isso.” Nunca
teve espírito de pobre. Não. Viche! Ela tinha raiva quando as pessoas começavam a reclamar
da vida. Porque ela sempre passava pra gente que todo mundo passava aqui neste plano o que
já estava determinado por Deus. Então você tinha que aceitar era de coração. A minha mãe
não tinha reclamação. E nunca, pobre? Sempre ela dizia que pobre é o Diabo, mas todos nós
somos ricos, e Deus nunca deu nada de ruim pra seus filhos.

V: E a gente não veio para o mundo para ser infeliz? Veio pra ser feliz.

TDD: Feliz. Agora, é como ela dizia, que muitas vezes as pessoas contribuem pra sua vida
ficar ruim. Mas a minha mãe não. Ela nunca. Às vezes eu dizia assim: “Mas mamãe, a
senhora tem um espírito.” Ela dizia: “De rico. Porque eu sou muito rica. Sou rica sim” E eu
dizia assim: “Pois me dá um dinheiro.” “De saber, de fé em Deus. E é isso que eu quero que
vocês se sintam. Porque o dinheiro, assim, sem o dinheiro, porque o dinheiro, tu sabe, o
dinheiro é a base daqui dessa vida. Mas muitas vezes o dinheiro não traz muita felicidade.
Então o dinheiro tem que ser controlado também. Porque tem gente que não pode pegar em
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muito dinheiro. Porquê? Porque ele se perde. Aí às vezes é uma alma tão boa, aí se perde. Por
causa do dinheiro. Porque o dinheiro faz muita coisa. Ah se eu tivesse dinheiro.

V: E o sítio aqui tia? De quem é o sítio?

TDD: É do Rei Sebastião. Esse sítio aqui não foi comprado. Quem deu esse sítio pro Rei
Sebastião foi o Assis dono do cartório que tem aqui. Foi ele que deu esse sítio pro Rei
Sebastião. Foi um serviço que Deus ajudou e deu certo, porque ele ia perder o cartório dele.
Aí ele veio, ele pediu ajuda e a gente pra Deus. Aí ele disse que o que Rei Sebastião... Ele
perguntou pra Rei Sebastião o que ele queria, ele disse que tinha vontade de conseguir um
pedaço de chão que tivesse água pra fazer as Obrigação de Iemanjá. Aí quando menos
esperou, o Assis deu isso aqui pro Rei Sebastião. O documento daqui foi passado no dia de
uma festa ali no salão. Ele veio, trouxe o livro, todo mundo assinou, tudo direitinho. O
documento é um documento muito limpo, o documento daqui. Agora, o salão da reza é do
João Carrasco. Por que do João Carrasco? Porque foi feito com o dinheiro que ele ganhou.
Porque o João Carrasco gosta de Terecô, né. João Carrasco, Caboclo José, Mestre Raimundo.
Eles gostam muito desse negócio, né. Seu Mearinzeiro não gosta de dança, Rei Sebastião
também não, né. Como tem esses outros que gostam, aí a Obrigação de Iemanjá a gente faz e
depois eles queriam Terecô pra eles. Aí o João Carrasco ganhou o dinheiro, foiado como eles
chamam, né, eles não chamam dinheiro, é corrimundo, foiado. Deram foiado pra ele e ele
mandou fazer o salão da reza. E depois que mamãe viajou, nós encontramos uma bolsa, o
Messias tem essa bolsa, uma pasta cheia de dinheiro novinho, novinho que não vale mais, do
João Carrasco. Ele escondeu tanto que ficou por isso mesmo. Porque ninguém sabia, só quem
sabia era a Dona e ela não dizia pra gente. A mamãe às vezes dizia: “Dona, tu não tem
dinheiro do João Carrasco aí não?” Dizia: “Tem não.” Aí depois que mamãe viajou, olha a
pasta, o dinheiro novinho vivo. Tá lá com o Messias.

V: Então é por isso que tem a Obrigação das águas, a Obrigação da mata.

TDD: É. Porque a mata é o Caboclo. Porque nós temos Caboclo... Porque a mata, ela pertence
ao Caboclo Maitá, ele é quem manda lá, né, na mata. Porque ele foi confirmado lá. Mas não é
que seja só do Maitá, né. Ele é assim, como seja o chefe, o rei da mata. Porque nós temos o rei
da mata, da índia, aí vem o Caboclo da Pindaré, né. E vem vários Caboclos. Vem o Caboclo
Tupinambá. Aí nós temos que dá alegria. Por quê? Porque o Encantado, você sabe né, ele não
come arroz, nem carne, nem feijão. O que ele quer é as luzes dele e alegria. Porque a dança,
eu penso assim, a dança pra mim é como o Bumba-meu-boi, Tambor de Crioula, viu. É uma
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coisa que não atinge a ninguém. Agora, o preconceito existe. Mas o quê que nós vamos fazer,
né? Mas aquilo ali é só uma alegria, aqueles tambores, pra bater, pra eles ficarem alegres,
agente também fica alegre. E aí tem a mata, aí nós fazemos a Obrigação no salão e fazemos a
Obrigação nas matas, e fazemos a Obrigação nas águas que é da Iemanjá.

V: É um grande dia de homenagem que ela faz a todos.

TDD: É a todos. Porque aí nós não vamos fazer uma homenagem só pra Iemanjá. Porque
Iemanjá, que é Iemanjá que nós fazemos, Iemanjá que é a Mãe Sereia e pra Mãe d’água
Rainha. Então nós pegamos, um pouco de mata, mina e água. E ainda tem o pessoal do
Oriente, que o Oriente são os Ciganos, que faz parte também, esses são o do Oriente. Quando
nós falamos, quando nós pedimos força pro povo do Oriente, é a grande sabedoria dos
Ciganos. Zaire né. Aí nós pedimos também. É por isso que aí nós pegamos, botamos anel na
água, não importa quem pegue. Botamos pente, espelho, né, essas coisas, as oferendas.
Quando a gente vai fazer no mar, aí nós fazemos do mesmo jeito, aí nós damos as oferendas, a
gente não tem pena de dar. Joga, a gente joga tudo dentro d’água, quem quiser depois pode
pegar. Mas o importante é que nós fizemos a nossa parte, né. A gente sabe que isso ali eles
não vão pegar pra eles. Lá onde eles vivem, eles têm, eles são muito ricos. Mas aqui pra gente
dá prazer. Eu acho que é uma brincadeira. É uma brincadeira que a gente gosta. Porque tem
muita gente que diz assim: “Ah, mas porque vamos fazer isso? O quê que eles vêm pegar aí?”
A gente sabe que eles não vêm pegar, mas eles estão presentes com a gente ali, com aquela
alegria, nós derramamos champanhe nas águas, nós derramamos vinho nas águas. Aquilo ali é
uma maneira de agradecimento, que nós agrademos a eles das bênçãos que a gente recebe.
Porque como eles dizem, Deus disse: “Tu só pede, não oferece nada em troca?” Então, o que
nós oferece são as luzes, as nossas orações que a gente reza pra eles, e essas brincadeiras que
a gente faz. Brincadeiras. Agora, o preconceito nunca termina, né. O pessoal sempre bate, nos
condena, mas só uma coisa eu tenho a dizer: Eu sou cristã, eu sou gente. Porque o pessoal
acha que a gente não é gente, mas nós somos gente, nós somos cristãos, nós somos batizados
e nós temos muita fé em Deus. É isso que eu tenho pra dizer. É sempre o que eu digo: Eu sou
gente. Ninguém queira me condenar e nem condenar meus irmãos, porque nós somos gente.
Filho da Constância, por incrível que pareça, não vai ficar só entre mim e ele não, vai
aparecer mais gente. O quê que eu posso fazer? Nada, se tá determinado. Vão ser todos muito
bem recebidos. Não importa que seja doutor, que seja doutora, não importa que tenha um
mundo em dinheiro. Não, de jeito nenhum. Só quero que aceitem de coração. Não precisa
viver rodando. Eu não danço terecô. Mas vai ter que fazer as suas Obrigações. O dinheiro,
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deixará no cofre, e vá fazer sua Obrigação. Porque tudo que nós temos, tudo que meus irmãos
conseguiram na vida e nós conseguimos, foi com a ajuda de Deus e da Encanteria. Então a
gente seria muito ingrato se jogasse de lado. Na fazenda eu pergunto pro meu irmão: “Meu
irmão, é pra rezar o terço à nossa maneira?” Aí ele disse: “É.” “Teus empregados não vão
ficar te olhando com outros olhos?” Ele disse: “O que ficar eu mando embora.” Então é feito à
nossa maneira. Porque na hora de começar o terço tem o Bendito, né. Que é uma coisa, é só
falando em Deus. Aí eu começo o terço direitinho, termino, depois todo mundo se abraça. E
pronto. Depois faço a oração depois de tudo pedindo a proteção divina pra todos. Porque se a
gente pensar direitinho de onde nós viemos, pra onde hoje a gente se encontra, foi uma
bênção de Deus e da Encanteria, porque a Encanteria trabalhou, Deus ajudou, e a Encanteria
trabalhou pra tu restar o pão de cada dia. Ninguém nunca roubou, ninguém nunca fez coisas
feias. Nunca nos faltou o pão de cada dia, nunca na nossa mesa faltou comida pra gente e pra
dá pra quem chegasse. Podia chegar dez pessoas, tinha comida pra todo mundo, nunca faltou.
E na casa das pessoas que faz parte de Umbanda, não falta comida. Falta não. Filho de
Umbanda, ele balança, mas não cai, de jeito nenhum. Por isso é que eu te digo: “Tu pode
balançar minha filha, mas tu nunca vai cair. A ? é muito bonita, ela é muito boa. Então
balança, mas se afirma, e vambora.
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APENDICE E
Entrevista com Maria Dasdores Pereira em 20 de março de 2012

Vivian: Como foi o primeiro contato de dona Constância com a encantaria e como a família
reagiu a isso?

DONA DASDORES: A família não aceitava de jeito nenhum. Aí ela começou vestindo a
roupa errada, aí os pais dela, a mãe dela, é... Eram muito assim, eles não acreditavam, e não
ficaram com ela em casa, botaram ela em José de Freitas, na casa dos padrinhos dela. O
padrinho dela era juiz e a madrinha dela, o nome dela era Daguia. Aí ela recebeu ela, mas
como ela deu muito trabalho, o vaqueiro do padrinho dela, levou ela primeiro para São Luis,
porque ninguém queria ficar com ela. Aí ela foi crescendo, e os irmãos dela não dormiam
perto dela, porque diziam que ela não era normal. Viu? Aí todo mundo tinha medo dela, se
benziam quando viam ela. Aí, ela ia dormir de um jeito e quando ela acordava, ela estava toda
diferente. Aí, esse vaqueiro levou ela, primeiro para São Luis. Naquele tempo, eles saíram,
viajaram de cavalo e de trem, até chegar na casa desse mestre Pedro. Lá na casa do mestre
Pedro ela passou três anos, de escola. Porque primeiro ela foi trabalhar com raízes. Lá não era
só ela de aluna. Porque a Umbanda, ela, você precisa começar do A, é não é só dizer assim:
“Eu faço parte de Umbanda.” Não. Você tem que aprender. Viu? Porque a Encanteria, todo
Encantado, nossos bons irmãos de luz, aonde eles chegam eles sabem, mas a matéria tem que
se desenvolver também. Porque aí você só vaí trabalhar se você receber? Não, você tem que
pegar e aprender, começar do A, você tem que aprender. Minha mãe começou das raízes. Aí
você pega... Primeiro, e o professor, o mestre ele é um professor, não é porque eu sou contra
falar Paí de Santo, não, o orientador. Por que o orientador? Porque ele entende mais do que
você, e ninguém sabe tudo. A pessoa que disser que sabe tudo, ele ta mentindo. Nao, sempre
tem uma coisa no dia-a-dia pra você aprender. Nunca queira chegar numa casa e sentar na
primeira cadeira, porque você não sabe para quem o dono separou aquela cadeira para sentar,
sempre procure ser humilde, nunca queira empinar nariz e dizer assim: “Eu sei maís do que
seu fulano.” Nunca queira também chegar na casa alheia e criticar e dizer: “Seu fulano fez a
abertura dele, ele fez errado.” Não é assim não. Sabe por quê? Porque pode esta errada para
você, mas pode esta certa para ele. A maneira da minha abertura que eu recebo a minha força.
Por isso é que eu não critico ninguém. Pra mim se faz parte somos irmãos, se não somos de
sangue, mas somos de seita. Porque a Umbanda, ela é dividida em sete correntes, sete linhas e
sete falanges. As estradas estão aí, você é quem escolhe o que quer caminhar. Não pense você
que na Umbanda tem só coisas ruins, não, tem muita coisa boa pra você aprender, pra você
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rezar. Porque se você faz parte de uma mesa branca, você tem que rezar mais do que comer
comida. A gente não nem sente nem fome quando esta de obrigação. Parece que os astros, a
força dos astros, a força de Deus alimenta a gente e a gente não sente fraqueza. Mas... E a
minha mãe foi assim, o ensinamento dela. Aí ela veio de São Luis, quando ela chegou de São
Luis, aí foi quando levaram para Bahia. Depois dela já mãe de todos os filhos, aconteceu um
caso com ela. Ela teve que voltar a Bahia de novo. Ela se separou do meu pai e o meu pai
também, aí foram medir forças, os dois, para saber é, quem que sabia mais, aquela coisa. Aí o
chefe da minha mãe foi preso, o nome dele era Mearinzeiro. Viu? Aí ele foi preso, aí ele
ficou... Preso assim, aí ele não descia, de jeito nenhum. Aí começou o sofrimento novamente.
Aí um dia eu cheguei pra ela e disse: “Mãe a senhora vai ter que viajar novamente.” Aí ela foi
pra Bahia. Por sorte ela encontrou a dona Paula, ainda era viva, já velhinha, mas era viva. Aí
lá a dona Paula, com ajuda... Porque olha, um médico não se opera, e todos nós precisamos de
um médico. E mentira se disser assim: “Ah, eu não preciso porque eu sou feito, porque eu sou
sabido, porque sou aquilo e isso outro.” Não, não existe isso. E uma ignorância muito grande
dos que dizem uma coisa dessas. Porque todos nós precisamos, nós precisamos das pessoas.
Me segure essa vela, me dá essa água. Então você esta precisando, não esta? Só em você me
pedir essa bacia de rosas, esta bem aí: “O minha filha, me dá essa bacia aqui pra mim.”
Porque você só tem duas mãos. Então você precisa, eu preciso. Essa daqui, como não tinha
quem viesse, o pessoal vai chegar. Aí eu digo: “Minha filha, tu vai entrar com a bacia pra
mim rezar. Eu não posso sair com tanto rosário, tanta gente atrás de mim, uma bacia. Então
estou precisando, não estou? To precisando. Então é assim. E a vida da minha mãe foi uma
vida sempre com muita humildade, nunca quis se aparecer. Agora, também não somos de
baixar a cabeça, respeitamos o espaço de cada um, que é pra nos respeitar o nosso espaço
também. Agora na hora que a pessoa quiser empurrar, agora aí não, mas jamais a gente
empurra. A gente diz assim: Se uma pessoa chega e pede: “O, me reza.” Ninguém se recusa a
rezar. Outra coisa, nunca na vida eu vi a minha mãe cobrar. Não porque a Umbanda diz assim,
na biblia da Umbanda diz assim: “Da de graça, o que de graça tu recebeste.” O que nós
recebemos de graça. Aí as pessoas podem perguntar: “E o que tu recebeu de graça?” Eu recebi
de graça o poder que Deus me deu. Então esse poder que Deus me deu pra eu rezar, de eu
fazer o meu banho pras pessoas, de eu fazer minhas Obrigações, eu fui orientada por Deus e
pelos nossos bons irmãos. Então eu não comprei, foi Deus quem nos deu. Aí diz: “Dá com
uma mão que a outra não veja.” Então a gente não cobra. Nós pedimos uma joia pra mesa.
Sabe Por quê? Porque a gente tem que comprar as luzes, a gente tem que comprar o
defumador. Mas se eu disser pra ti que as pessoas não me ajudam, aí eu estou mentindo. Me
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ajudam sim. E eu recebo de coração, mas nunca eu disse: “E tanto.” Não. Isso aí é uma coisa
que sempre eu bato com os outros de frente. Porque eu acho um absurdo. Então se você vem a
mim, eu te rezo, te dou meu banho, fico fazendo minhas orações, tu te sentiu bem, a tua
consciência... Muitos tem muitos não. E é por isso que os charlatões estão aí, e as vezes eu
acho até bem feito. Porque tem tipo de gente de todo jeito. Muitos reconhecem, muitos: “Ah,
eu não vou dá nada não, eu já estou bem.” E ninguém vive de ar, mas nós não podemos cobrar
esse preço.

Vivian: Explique um pouco a expressão Dá de graça aquilo que de graça recebeste?

DONA DASDORES: Isso aqui eles tem que comprar, porque hoje ninguém dá nada não.
Então é a jóia que se pede. Assim, agora eu nem a jóia eu peço. Quem tiver consciência bota,
quem não tiver não bota. Outro dia eu estava conversando, e os meninos disseram assim: “Das
Dores tu é muito dura. A senhora era pra ser muito rica.” Ai eu digo: “Mas eu sou rica, eu
sou, eu sou muito rica, eu sou rica de fé em Deus.” Outra coisa, eu sempre digo as pessoas pra
não ter fé em mim, ter em Deus, porque tudo na vida é determinado por Deus, é se Deus der a
licença. E a minha mãe, esse foi o ensinamento. Eu nunca, eu nunca vi a minha mãe cobrar
nada a ninguém. Você viu alguma vez? Não. Então eu nunca vi. Cobrar? Acho um absurdo:
“Esse serviço é cinco mil, é dez mil.” Por quê? Esse foi meu ensinamento. Então eu nasci nua
e estou vestida, e graças a Deus, com a ajuda de Deus e de nossos bons irmãos de luz. Porque
existem os de luz, existem os das trevas, existem os sofredores, que são os que mais aperreiam
o ser humano, são os sofredores, porque os sofredores não têm o que fazer, eles vivem de
atacar tal vida, tal morte. Se uma pessoa ruim morre e ele não quer fazer penitência na outra
vida, ele vai ficar do mesmo jeito, perseguindo os outros. E o lugar que eles gostam mais é
banheiro. Por que banheiro? Porque é frio. Ai nos ensinamos as pessoas a lavar o seu banheiro
com anil, bota anil, o desinfetante lava tudo, porque é o lugar que eles gostam. Bar, eles
gostam também, pra ter aquelas confusão, é pra eles atacarem as pessoas. E é assim. Eu , a
minha mãe pra mim, foi uma mulher guerreira, um exemplo de vida pra todos nós, não só pra
mim como pra todos, e aonde a minha mãe passou, ela não deixou, só deixou alegria. E é isso.

Dona Dasdores doutrinando

DONA DASDORES: (Cantando) Ajuda eu coroa, ajuda eu rezar. Ajuda eu coroa, ajuda eu
rezar. Cruzeiro grande do sul que me dê força em todo lugar. Cruzeiro grande do sul que me
dê força em todo lugar. Maior que Deus não tem. Maior que Deus não há. Maior que Deus
não tem. Maior que Deus não há. Cruzeiro grande do sul que me dê força em todo lugar.
182

DONA DASDORES s: (Cantando) Ô, tenha dó de mim meu Deus. Meu Deus tenha dó de
mim. Ô bota a rama no caminho pro feiticeiro não passar. Ô bota a rama no caminho pro
feiticeiro não passar. Ô, tenha dó de mim meu Deus. Meu Deus tenha dó de mim. Ô, tenha dó
de mim meu Deus. Meu Deus tenha dó de mim. Ô tira rama do caminho pros caboclos passar.
Ô tira a rama do caminho pros caboclos passar.

DONA DASDORES: (Cantando) Aldeia de caboclo só se ver Encanteria. Ê chama caboclo a


serania. Ê chama os caboclo a serania. Aldeia de caboclo só se ver Encanteria. Aldeia de
caboclo só se ver Encanteria. Ê chama caboclo a serania. Ê chama os caboclo a serania.

DONA DASDORES: (Cantando) Jurema tua força cura. Jurema tua flecha mata, mas quem é
filho da Jurema nunca se perde nas matas, mas quem é filho da Jurema nunca se perde nas
matas. Ô Jurema.

DONA DASDORES: (Cantando) Na casa de Preto Velho come é muncuzá. Pisa no trio, pisa
no mangue e deixa a macumba te levar. Deixa a macumba levar. Leva macumba.
183

6. PÓS-SCRIPTIUM

Eu e Dona Constância

Por que dedicar um estudo a Dona Constância e sua Obrigação? Quais as motivações
que envolvem uma pesquisa desta natureza? Muitos são os questionamentos que nos
acompanham desde o primeiro encontro com Dona Constância, com sua história de vida e
com os rituais religiosos que iniciou em sua casa, em Codó, no Estado do Maranhão.

O primeiro encontro com Dona Constância, minha tia-avó, foi também o último, pois
faleceu em dezembro de 2001. Recordo-me de todos os detalhes daquele encontro: a chegada
ao sítio São José, o ritual da Obrigação86 e o momento da despedida.

Muitos foram os momentos marcantes daquele dia trinta e um de outubro de 2001,


provavelmente o que me recordo com mais emoção foi quando aquela senhora me olhou e
disse: era para você está aqui neste momento. Fico imaginando se Dona Constância já sabia o
que eu iria fazer ou simplesmente foi uma frase espontânea dentre muitas outras ditas por Ela
naquele dia.

Chegamos ao Sítio São José por volta das duas horas da tarde, Dona Constância nos
recebeu muito feliz, voltou-se para meu pai e disse que sabia que ele estaria ali, que estava
muito feliz por reunir a família. Fomos até a cozinha, nos reunimos em torno de uma mesa
enorme, que ainda hoje habita as minhas lembranças sempre que retorno aquele momento.
Posso ver meus pais e tios sentados à mesa, Dona Constância servindo o almoço com tamanha
alegria. Da mesa aproximavam-se rostos conhecidos e outros que nunca tinha visto, mas havia
em Dona Constância uma vontade enorme de receber todos.

Almoçamos e fomos conhecer o Sítio, antes, porém, tivemos que saber onde iríamos
dormir e guardar nossa bagagem. O que me causou enorme espanto foi saber que ficaríamos
na varanda, praticamente ao relento, o que, confesso, causou-me certa estranheza, mas como
ninguém se manifestou, eu não o faria. Naquela época, eu tinha apenas um filho e resolvi que

86
OBRIGAÇÕES - Festas em homenagem aos Guias ou Orixás. São também as determinações feitas aos
médiuns ou consulentes pelos Guias com o objetivo de auxílio ou como parte de um ritual do desenvolvimento
mediúnico.
184

ficaria junto dele em tempo integral, pois a quantidade de pessoas que chegava e saia da casa-
sítio me preocupava.

Depois de instalados fomos conhecer o Sítio. Chegamos ao riacho e muitas pessoas


trabalhavam para prepará-lo para a Obrigação. Fiquei um pouco distante dos preparativos,
para mim havia um misto de medo do desconhecido e de ansiedade em conhecer um ritual
que reunia tantas pessoas em torno daquela Senhora, franzina, de cabelos brancos e de fala
tranquila, que constantemente sussurrava.

Fiquei observando a movimentação de longe. Naquele momento, não imaginava que


um dia estudaria a Obrigação como uma pesquisa científica, mas já me sentia atraída pela
possibilidade de um estudo e investigação mais profundos.

Fomos informados do que aconteceria naquele dia. A Obrigação era marcada por
inúmeros momentos ritualísticos importantes. O primeiro que acompanhamos foi a Obrigação
da Mata. Não sei o motivo, mas, naquele momento, esse rito não me causou a mesma
sensação que iria provocar anos depois. Ouvia o tambor, a reza e a musicalidade da gira, mas
talvez por ainda desconhecer muitos dos elementos do ritual não o observei da mesma
maneira que faço hoje, agora como observadora atenta, que busca compreender seus
símbolos, sentidos, significados.

A Obrigação começou ao meio dia e se estendeu por mais de uma hora, em seguida
nos reunimos para o almoço. Depois, Dona Constância atendeu a nossa família
individualmente. Estávamos os meus pais, irmãos, sobrinhos, cunhados, tios, primos, quase
toda a família paterna. Muitos pareciam já ter uma familiaridade com o que estava por
acontecer e ansiosos por aquela conversa, eu também estava ansiosa, pois começava a minha
vida de casada e penava - caso alguém pudesse me contar o que iria acontecer, seria de grande
valia. Eu, como muitas outras pessoas, tenho uma enorme curiosidade sobre o que acontecerá
no futuro; muitas daquelas pessoas, ali presentes, pareciam acreditar que Dona Constância
saberia nos revelar o porvir, havia uma enorme expectativa. A Senhora atendeu a mim, ao
meu marido e meu pequeno filho, na época com pouco mais de um ano. É inexplicável o que
aconteceu naquele momento. Ela falou para minha alma, falou de minhas dores mais íntimas.
Não sei se estava tudo escrito em meus olhos, mas senti como se ela tocasse meu coração e
me informasse que tudo ficaria bem. Ao meu marido revelou que trabalharia muito no ano
seguinte e que minha vida mudaria enormemente, e, mais uma vez, que eu deveria mesmo
estar ali naquele momento. Rezou com seus rosários e amuletos, nos benzeu com seus óleos e
185

nos deixou com o cheiro de Codó, Dona Constância era da cidade de Codó, no Maranhão,
cidade tem cheiro, que nos remete à magia, que envolve aquele lugar. Aquele foi um
momento singular em minha vida, impossível não emocionar-se com essas lembranças.

Após atender a todos, era preciso que nos preparássemos. Teria início a Procissão, um
ritual católico. Naquela época, não entendia comportar em um ritual de Umbanda. Uma
procissão em louvor à São Francisco e à São José. Um momento belo, muitas pessoas
acompanhavam a Procissão rezando e chorando. O percurso do centro de Codó ao Sítio São
José, o cenário apenas iluminado por velas, lua e estrelas. Cantavam-se melodias católicas,
para minha concepção religiosa, naquela época, estranhos em um ritual que considerava não
católico, imerso na religião - Umbanda, com um ritual na mata, que havia presenciado há
pouco no Sítio. A fé era um traço marcante, comum àquele momento de devoção.

Ao chegar ao Sítio, fomos reunidos em um salão para rezar o terço e recebermos a


benção de Dona Constância, que parecia em transe e dizia a todos o que eles queriam ouvir,
ou o que precisavam ouvir. Encantava a todos, comigo não foi diferente, estava embevecida
como todos os outros, e, como os presentes se aproximavam dela pedindo sua benção eu segui
aqueles gestos. Ouvi de Dona Constância que minha avó estava sempre ao meu lado e que eu
não me preocupasse com nada.

Após o terço, foi servido um chocolate com bolo, ação comum em muitas procissões
que minha vida de menina católica costumava presenciar. Em seguida, as Filhas de Santo e
Dona Constância se recolheram para preparar mais um momento do ritual - a Obrigação das
Águas, a parte do ritual oferecida ao povo das águas e a Iemanjá. Coloquei meu filho para
dormir, sempre junto de seu pai, pois havia uma quantidade significativa de pessoas que eu
não conhecia. Preparei-me para o ritual. A meia noite, os cânticos ganharam força na noite
que tomava conta do Sítio São José.

Eram mulheres vestidas de branco e aquela senhora franzina vestida de marrom, todas
seguiam para o salão iluminado por velas - iniciava-se a Obrigação das Águas. Do salão
todos seguiram para o riacho, todas aquelas mulheres entraram na água e as demais pessoas
esperavam para participar da Obrigação, se posicionaram sobre sacos de areia que estavam no
meio do riacho represando as águas. Perguntei para Dona Constância onde eu deveria ficar,
Ela respondeu que ficasse onde quisesse, onde me sentisse bem. Não sei o porquê, mas entrei
nas águas, foi à única vez que vi o ritual das águas de dentro do riacho, talvez por essa razão
tenha sido tão especial.
186

A água estava quente e me deixou muito confortável, mesmo sendo uma noite fria, não
senti frio. Observei o ritual com muita atenção. Naquela noite, presenciei um ritual que me
fascina até hoje, a Umbanda. Presenciei incorporações de encantados, cantos, homenagens aos
orixás, vi pessoas realizarem gestos de humildade - a cerimônia do lava pés, que era seguido
de orações, benções e muita emoção. Por mais de duas horas vivi momentos inesquecíveis,
que seriam fundamentais para direcionar minhas pesquisas e minha vida.

Terminada a obrigação das águas, ficamos conversando por algum tempo, até
adormecer, eu ainda estava agitada com todas as emoções daquela noite por isso demorei a
dormir. No dia seguinte, levantamos cedo e nos preparamos para voltar para casa. Aquela foi
à última vez que vi Dona Constância, que estava na varanda se despedindo com imensa
felicidade, pois finalmente tinha conseguido nos levar até o Sítio para participar da Obrigação.

No mês de dezembro daquele mesmo ano Dona Constância faleceu, mas deixou seu
legado, sua tradição, suas crenças e seu amor pela família, pelos Filhos e Filhas de Santo que
deixava em Codó. Em mim, deixou lembranças, seu afeto e a vontade de contar a sua história
de vida, que busco realizar em uma fronteira tênue que separa emoção e o ofício de
historiadora.

O encontro com Dona Constância fez emergir curiosidades e dúvidas. A princípio, a


pesquisa restringia-se em contribuir com outros estudos sobre a Umbanda, posteriormente
transformei essa curiosidade em objeto de pesquisa e projeto de mestrado. Neste momento,
falar da minha primeira experiência com a Obrigação de Dona Constância, de sua vida é
intencionalmente uma maneira de apresentar um leque de temas e abordagens dentro da
diversidade inerente à História Cultural.
187

7. Referências e Fontes

Fontes: Entrevistas

LUZ, Maria Dasdores Pereira da. Entrevista concedida a Vivian de Aquino Silva Brandim.
Codó (MA), julho de 2010.

LUZ, Maria Dasdores Pereira da. Entrevista concedida a Vivian de Aquino Silva Brandim.
Codó (MA), julho de 2011.
LUZ, Maria Dasdores Pereira da. Entrevista concedida a Vivian de Aquino Silva Brandim.
Codó (MA), março de 2012.
LUZ FILHO, Pedro Pereira da. Entrevista concedida a Vivian de Aquino Silva Brandim.
Teresina (PI), agosto de 2010.
SOUSA NETA, Janeth dos Reis. Entrevista concedida a Vivian de Aquino Silva Brandim.
Teresina (PI), março de 2010.

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Constituição de 1824. Art. 5

Constituição de 1891. Art 11 § 12 / Art.72 § 3

Constituição de 1934. Art. 17

Constituição de 1937. Art .32

Constituição de 1946. Art. 141 § 7


188

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