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POR QUE O SENHOR ATIROU EM MIM?

Um ator negro entra em cena segurando alguns cartazes que vão se revelando aos poucos:

CARTAZ 01: Por que


CARTAZ 02: o senhor
CARTAZ 03: atirou
CARTAZ 04: em mim?

Ao final entra o áudio: “Passado que não passa” de Jé Oliveira.

Cena 01: Na rua. Que mostra a ingenuidade da vida.

Narração - (Esta narração precisa ser feita por um ator negro) Vamos lá. Vamos lá.
Vamos lá, porque assim, é até difícil de começar. Sabe como é: não teremos ilusão nessa
cena. Não teremos. Sabemos que morrer é normal, mas algumas mortes são mais normais
do que outras. (Pergunta para uma pessoa da platéia) Você já foi em um IML? Os corpos
das pessoas que estão em um IML, em sua devastadora maioria, são pretos e estão
feridos, furados por balas que encontraram o seu caminho que já estava predestinado
desde a sua fabricação. Sabe como é o nome disso? Etnocídio! E o meu corpo está lá. Lá
estou deitado numa sala fria e no meu braço tem uma tatuagem que eu tinha acabado de
fazer. (Mostra o braço com a tatuagem enrolado em um plástico filme, a tatuagem pode ser
um violino).

(Entra Carlos e depois, John que está com um saco preto na mão. São iluminados pela luz
de um poste).

CARLOS - E aí? Trouxe a parada?


JOHN - Claro mano! Te falei que ia arranjar, truta!
CARLOS - E como é o esquema?
JOHN - É suave! E, se liga, é da pura! Qualidade de prima, tá ligado?

(John tira do saco preto uma case, abre-a e os dois se olham surpresos).

CARLOS - (Assustado) Guarda isso aí mano, antes que alguém veja! Tá louco?
JOHN - Calma irmão, calma! Não é nada demais… Quer dar uma experimentada? Jogo
rápido, não vai dar nada! Essa daqui depois que você provar, não vai querer mais parar!
CARLOS - Falando sério?
JOHN - Falando sério!

(Carlos retira de dentro da case, um violino. Começa a tocar. A cena transiciona. O Irmão
de Carlos deita perto de onde ele está e configura uma cama. Carlos continua tocando.
Para de tocar. Seu irmão agoniza. Carlos volta a tocar, seu irmão se acalma novamente).

Cena 02: No apartamento de Carlos. Que mostra a insensibilidade das pessoas.

(Carlos continua tocando para o seu irmão. Os vizinhos, na plateia, começam a comentar,
pedindo para parar com o barulho, que está incomodando o prédio todo, que vão acionar o
síndico para que Carlos seja multado, etc, etc.).

(Entra A MÃE).

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A MÃE - (Estressada) Dá pra parar com essa zoada?

(Carlos para de tocar. Seu irmão agoniza em silêncio).

A MÃE - Você já tá me deixando irritada com essa barulheira que você tá fazendo, Carlos!
Nós já tamo cheio de problema e você tá querendo arrumar mais confusão com esses
vizinho? Nem dinheiro… Nem dinheiro pra pagar a cirurgia do seu irmão a gente tem todo,
imagina ter que pagar multa agora…
CARLOS - Multa? Mas é só uma música.
A MÃE - Vai procurar um emprego que você ganha mais! Vai! Vai! Vai!

Cena 03: Na rua. Centro da cidade. Que mostra que a luta é árdua.

Narração - E se fosse tudo diferente? E se fosse? Não seria mais simples? Não parece ser
mais simples que as coisas simplesmente fossem mais fáceis para todos nós? Mas as
coisas que parecem ser simples, fáceis, nem sempre são.

(Carlos entra e coloca perto dos seus pés uma placa com os dizeres: “Toco música grátis.
Aceito qualquer quantia para ajudar na cirurgia do meu irmão” e um chapéu. Enquanto toca,
algumas pessoas passam e deixam alguns trocados, outras passam e não deixam nada.
Para de tocar, recolhe o dinheiro em seu chapéu. Sai em direção a sua casa).

Cena 04: Na quebrada. Que mostra outros caminhos.

(Carlos em seu caminho de volta para casa, encontra Fininho).

Fininho - E aí irmão! Beleza?


Carlos - Salve Fininho, Beleza!
Fininho - Gostei dessa caixa aí, mano. Guarda a metralhadora de boa?
Carlos - Né caixa não, mano, é uma case. E a metralhadora no caso, é um violino!
Fininho - Cê é loko, mano! Deixa eu dar uma bizoiada?

(Carlos abre a case, retira o violino e mostra para Fininho, mas ele se interessa pelo espaço
da bag).

Fininho - Mano, é grande essa bag, né? Deve caber bastante coisa aí!
Carlos - Como assim?
Fininho - Tá afim de ganhar uma grana fácil?
Carlos - Não mano, não mexo com essas coisas! Na verdade, deixa eu ir lá que tô com
pressa, tenho que cuidar do meu irmão. Falow!

(Carlos sai às pressas).

Cena 05: No apartamento de Carlos. Que mostra a urgência das coisas.

(Entra Carlos chegando em casa. Seu irmão está em cena dormindo).

CARLOS - Mãe, cheguei!

(A Mãe entra).

CARLOS - Mãe, consegui essa grana pra ajudar na cirurgia do Rafa!

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MÃE - O que é isso, Carlos?
CARLOS - Dinheiro mãe! Pra cirurgia do Rafa! Consegui tocando violino na rua.

(Mãe de Carlos gargalha).

MÃE - Você acha que isso aqui dá pra alguma coisa? Precisamos de muito mais, meu filho!
Muito mais! Já te disse pra parar com esse negócio de violino, de música, que isso não dá
dinheiro. Procura um emprego normal, meu filho! Procura um emprego normal! Procura um
emprego normal, por favor! Pelo seu irmão, por favor!
CARLOS - Eu não sei fazer outra coisa, mãe! Eu só sei trabalhar fazendo música mesmo!
É só o que eu sei fazer, mãe. Me perdoa se eu não consigo ajudar. Me perdoa!

(O Irmão de Carlos agoniza. Carlos sai).

Cena 06: Na rua. Centro da cidade. Que mostra as amarguras da vida dos
desgraçados.

NARRAÇÃO - Talvez vocês já saibam o final dessa história e nós estamos mais uma vez
aqui apenas redundando as coisas. Nos desculpem se até agora as cenas se mostraram
previsíveis. Passamos uma vida inteira tentando fugir da sina que já nos é predestinada, eu
juro. Eu juro! Tudo que nós queremos é voar para longe de tudo aquilo que possa se
assemelhar com o previsível. Mas estamos até agora procurando as nossas asas. Onde
elas estão? Onde estão as nossas asas? Sem elas, fica muito difícil voar para longe de tudo
aquilo que é PREVISÍVEL.

(Carlos entra e coloca perto dos seus pés uma placa com os dizeres: “Toco música grátis.
Aceito qualquer quantia para ajudar na cirurgia do meu irmão” e um chapéu. Enquanto toca,
entra o PREFEITO).

PREFEITO - Não é permitido nenhuma forma de arte clandestina aqui neste passeio!

(Carlos para de tocar).

CARLOS - Desculpa, eu não entendi!


PREFEITO - Além de tudo é burro!
CARLOS - Oi?
PREFEITO - Além de tudo é surdo!
CARLOS - Tá me tirando?
PREFEITO - Você sabe com quem você tá falando?
CARLOS - Com um Zé Roela!

(Silêncio. Tensão).

PREFEITO - Garoto, garoto! Meça as suas palavras! Eu não sou qualquer um!
CARLOS - Eu também não.
PREFEITO - Você não sabe que é proibido tocar música no passeio público?
CARLOS - Não. Estou sabendo agora.
PREFEITO - Pois fique sabendo que você está infringindo a Lei, N° 3 mil e cacetada que
proíbe a prática de artistas de ruas nos passeios públicos.
CARLOS - Então eu sou um fora da lei?
PREFEITO - Exatamente. Então, onde eu devo tocar?
NARRAÇÃO - Se a prática dos artistas é proibida, ONDE então eles devem exercer a sua
arte? Na televisão? No cinema? No teatro? É preciso que se lembre que até pouco tempo
atrás a nossa presença nesses espaços era proibida. Simplesmente proibida! Para nós

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sobrou o quê? Se nem na rua podemos exercer a nossa arte, onde então? Onde então?
Onde então?
PREFEITO - Na puta que pariu, mas aqui não!
CARLOS - Tá gritando por quê, irmão?
PREFEITO - Por que eu sou o prefeito legitimamente eleito nesta cidade, e quem manda
nessa merda sou eu!
CARLOS - Você é o prefeito?
PREFEITO - O próprio!
CARLOS - Que loucura! E como eu nunca tinha visto a sua cara? E como eu nunca tinha
visto a sua cara? E como eu nunca tinha visto a sua cara?
PREFEITO - Caro amigo, eu não quero ter que chamar a minha polícia…
CARLOS - Não! Não chama a polícia! Prefeito, você sabe ler?
PREFEITO - Mais ou menos!
CARLOS - Tente ler a minha placa, por favor! (Mostra a placa com os dizeres: “Toco
música grátis. Aceito qualquer quantia para ajudar na cirurgia do meu irmão”. O prefeito lê
com certa dificuldade). É por isso! É por isso que eu tô tocando aqui. É por isso que eu tô
tocando aqui. É por isso que eu tô tocando aqui.
PREFEITO - E o que eu tenho a ver com isso?
CARLOS - Você não é o prefeito!
PREFEITO - Sou! Mas eu não posso fazer nada! Eu não posso fazer nada! Eu não posso
fazer nada!

(O Prefeito sai. Carlos pega o seu celular e faz uma ligação).

CARLOS - Alô! Fininho? Tudo na paz? Aquele negócio lá ainda tá de pé?

(Fininho coloca algo dentro da bag de Carlos. Carlos sai com ela).

Cena 07: Na abordagem policial. Fora do controle do Estado. Que mostra da maneira
mais cruel como a gente é violentado todos os dias.

NARRAÇÃO - Não se assustem, caros espectadores! Não se assustem se algum dia vocês
virem surgir por aí uma figura chamada cangaceiro, Lampião, um forasteiro, não se
assustem! Não se assustem se um dia eu roubar você pra ter que não deixar o que é meu
padecer. Não se assustem se um dia vocês ouvirem falar de milícias, facções, outras
formas de reivindicações. Não se assustem! É isso que acontece. É isso que acontece. É
isso que acontece.

(Do nada, Carlos é abordado por um policial).

POLICIAL - Documento!
CARLOS - (Entrega um documento) Tá aqui. Meu registro geral! Meu nome, só não sei meu
sobrenome, não sei não. Pode olhar. Tá meio apagado. Tá borrado. Meu sobrenome, não
sei não. Só sei que meu nome é Carlos. É assim que minha mãe me chama!
POLICIAL - Foda-se seu sobrenome! O que tem aí dentro dessa bolsa?
CARLOS - Música, senhor! Música! Nada demais.
POLICIAL - Abre a bag! Abre!
CARLOS - Posso abrir, não, senhor!

(O Policial com raiva, toma a bag de sua de sua mão, vai abrir, mas cai no chão e sofre um
ataque epilético. Carlos se desespera e foge do local levando a bag consigo. Depois de um
tempo o pai se levanta e faz um monólogo).

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Cena 08: MONÓLOGO DO POLICIAL

POLICIAL - (Se levantando) Não sei. Às vezes acontece isso comigo. Eu me excedi. Me
excedo assim todos os dias! Levanto cedo e acordo certo da minha missão. Lutar para o
bem da população. Nas minhas mãos, a justiça. Faço um carinho no meu filho quando saio
de casa e depois com a mesma mão (pega uma arma) me preparo para engatilhar. Que a
justiça seja feita! Desde criança eu sempre quis ter super poderes. Ser um super herói.
Salvar a humanidade! Fazer o bem. Acabar com o mal. E eu sigo a cartilha que me foi
passada! Sentido! Bandido bom é bandido morto! Não é difícil de enxergar. Tá na cara quem
é bandido e quem não é. Tá escrito na cartilha da PM. Se ver um bandido, pode matar! Sem
pena! Igual uma barata. No começo eu ficava mal. O espírito do morto me acompanhava e
me perturbava nos meus pesadelos. Hoje em dia eu já me acostumei. Aprendi a conviver
com eles. (Olha para a plateia e aponta para algumas pessoas) Suspeito! Suspeito!
Suspeito! E eu… E eu… E eu me tornei uma pessoa sucateada. Uma pessoa caindo aos
pedaços. Cansaço! Quero mostrar que tá tudo bem, mas por dentro só eu sei que não tá.
Não tá não. Hoje meu filho disse que quer ser Policial igual o papai. Teo é o meu orgulho.
“Pai, você já matou? É normal matar, pai?”. Depende, meu filho! Depende…

Cena 09: No apartamento de Carlos. Que mostra a contradição de tudo.

(Entra Carlos chegando em casa. Seu irmão está em cena dormindo. Carlos abre sua bag e
mostra todo o dinheiro que está dentro dela).

A MÃE - Como você conseguiu todo esse dinheiro, meu filho? Tá se envolvendo com
coisa errada. Tá se envolvendo com coisa errada. Tá se envolvendo com coisa errada.
Eu já sei.
CARLOS - Mãe, acredita em mim. Acredita em mim! Acredita em mim! Nós vivemos em
um país em que as pessoas amam a arte. Amam a música. Amam o teatro! Nós
vivemos nesse país. Eu sei que é uma mentira mãe, mas quem me deu todo esse
dinheiro foram todos os brasileiros que se sensibilizaram com a minha música, mãe!
A MÃE - Eu quero acreditar, meu filho! Eu quero acreditar que nesse país a arte é
valorizada por todas as pessoas. Eu quero acreditar nisso, meu filho. Mas eu não
consigo! Eu não consigo! Eu não consigo! Por mais que eu tente, eu sei que é uma
mentira. Eu sei que é uma mentira! Eu sei que é uma mentira! Mas ainda assim eu te
digo: nós precisamos de mais! Nós precisamos de mais! Para a cirurgia do seu irmão
nós precisamos de mais!

NARRAÇÃO - (Direto para a plateia) Para a cirurgia do irmão do Carlos, nós precisamos de
mais! Segue aqui o PIX. (Mostra o PIX real de algum ator, para a plateia. A placa com os
dizeres: “Toco música grátis. Aceito qualquer quantia para ajudar na cirurgia do meu irmão”
também é exibida para a plateia. Depois de um tempo, Carlos recebe uma ligação. Atende).

CARLOS - Não mano, valeu, agradeço, mas não irei fazer nada disso de novo… Tchau!
(Desliga).

Cena 10: Na abordagem policial. Fora do controle do Estado. Que mostra que é assim
mesmo.

Policial - Cidadão!
Carlos - Bom dia senhor, tudo bem?
Policial - Senhor está no céu! E porque ta com tanta pressa?
Carlos - Eu estou indo pro centro. Vou tocar minha música.

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Policial - Sei bem qual é o esquema que você tá tocando.
Carlos - Eu toco música! Eu toco música! Eu toco música!

PARALELA - (Carlos toca seu violino. Nesse momento seu irmão dança).

Policial - (Abre a bag e vê o violino nas mãos de Carlos). Então você é um artista,
mesmo?
Carlos - Eu sou um artista!
Policial - E você sabe como é que a gente trata os artistas aqui?

(O Policial pega o violino e faz a ação de quebrar. Congela).

Carlos - Branco não morre na favela POR SER BRANCO. O negro sim. Branco não é
seguido em lojas POR SER BRANCO. O negro sim. Branco não é acusado de ser suspeito
de um crime POR SER BRANCO. O negro sim. Como diz o artista Jefferson Medeiros em
referência ao poema de Solano Trindade: “Tem preto morrendo, mas morre de quê? Morre
de fome, morre de fogo, tem preto morrendo pra branco viver”…

Cena 11: Na quebrada. Que mostra a facilidade de certas coisas.

(Carlos e Fininho se encontram).

Fininho - Salve, irmão, foi sucesso o serviço, hein! Viu como não pega nada? Chegou
outras paradas aí. Tá no esquema! Bora pra mais um serviçinho?
Carlos - Tá louco, Jão. Eu quase fui pego… A minha sorte foi que o Gambé teve um
ataque lá, sei lá.
Fininho - Calma irmão, essas coisas são raras de acontecer, você deu azar da polícia te
parar. Mas como dizem, melhor o azar na primeira, do que na segunda… Bora?
Carlos - Não mano, valeu, agradeço, mas não entro mais nessas ideia errada, não!
Fininho - Tem certeza? A grana é boa!
Carlos - Quanto?
Fininho - 50 K.

(A cena termina sem a gente saber se Carlos aceitou ou não).

Cena 12: Na Corporação da Polícia. Que mostra que tudo se resume em números.

SUPERIOR - (Fala para um grupo de Policiais) Eu preciso de maiores resultados! Nós


precisamos de maiores resultados! Precisamos prestar contas para a sociedade civil e
mostrar, por meio de números, que a criminalidade está sendo combatida nesta cidade!
Posso contar com a colaboração de vocês para que a gente possa cumprir essa meta?

POLICIAIS - Sim, Chefe!

Cena 13: Na abordagem policial. Fora do controle do Estado. Que mostra como tudo
termina.

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(Carlos está andando na rua com sua bag quando é abordado pelo policial novamente).

POLICIAL - Abre a bolsa!


CARLOS - Não, senhor! De novo, não!
POLICIAL - Eu mandei abrir a bolsa, porra!
CARLOS - Não, senhor! É o meu ganha pão! É o meu violino!
POLICIAL - Abre a bolsa!
CARLOS - Não vou abrir, não senhor!
POLICIAL - Você pensa que eu não sei que você é traficante? Eu sei muito bem o que é
que você tá carregando aí dentro dessa maleta! Abre a maleta, porra!
CARLOS - E se eu não abrir, vai acontecer o quê comigo?

(O Policial aponta a arma para Carlos. Entra o áudio: “Só Porque é Preto” de Jé Oliveira.
Carlos e Policial repetem a partitura que diz no áudio. Entra um som de tiro no meio do
áudio. Após o tiro, Carlos cai no chão e agoniza. Seu irmão agoniza paralelamente. O áudio
segue até o final. Todos os atores entram em cena e fazem coreografia agonizando
também).

FIM

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