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A Arquitetura das Pequenas Coisas

Thiago Nascimento

(O intérprete recebe o público do lado de fora do teatro. Conversam informalmente


sobre a distribuição dos ingressos, lugar marcado, lugar mais caro, lugar mais
barato. Conversam sobre diferentes tipos de arquiteturas teatrais. Realiza
aquecimentos vocais e corporais. Improvisa sobre o que pode surgir em meio a tudo
isso. Até que ele começa a fazer o exercício do arqueiro. Ao finalizar, percebe que o
público está todo à sua volta).

1. COMEÇO - SAGUÃO DO TEATRO

Não começou ainda não. Não começou ainda. Quando começar vocês vão saber que
começou. Quando começar vocês não vão ter dúvida alguma. Sabe por quê? Porque os
códigos já estão estabelecidos há muito tempo. Vai tocar um primeiro sinal, aí as portas do
teatro vão se abrir. Vai ter uma euforia pra entrar, vai ter barulho, vai ter um zum zum zum
de todo mundo se deslocando procurando o seu lugar. Logo depois, com quase toda a
plateia sentada, vocês ainda vão estar conversando, se arrumando, se acomodando na
poltrona, respondendo mensagens no celular... E aí sim vai tocar o segundo sinal, onde a
plateia vai ficar um pouco mais alerta, alguns já começam a fazer silêncio e olhar para os
detalhes da vara de iluminação cênica e do cenário proposto pelo cenógrafo. Alguns vão
tirar foto do cenário, outros não. E dependendo do teatro, a cortina estará fechada e vocês
não vão ver nada do que está do outro lado, na caixa preta. A plateia sempre sabe que
quando a cortina se abrir, ela deve estar preparada para assistir uma história com começo,
meio e fim. E eu posso garantir que essa prática espetacular que vocês vieram assistir hoje
também vai ter um começo, um meio e um fim. Depois do segundo sinal vocês vão escutar
uma voz com uns informes dizendo pra desligar os aparelhos sonoros junto com outras
proibições. Daí então vai tocar o terceiro e último sinal, sinal de que o espetáculo vai
começar. Aí a luz da plateia se apagará completamente, deixando todo o teatro numa
imensa escuridão. Então, depois de alguns segundos, um foco de luz, em fade in, começará
a iluminar o corpo de um ator que já se posicionou antecipadamente numa marcação de fita
crepe que foi previamente adesivada pelo diretor. Esse foco de luz se intensificará e
conseguiremos ver todo o corpo do ator. Ele vai respirar. Ele vai sentir a luz batendo em seu
rosto, confirmando que ele está na marca certa. Então veremos um corpo neutro parado.
Um corpo neutro? É. Um corpo neutro parado. E então ele começará a dizer um texto:

O TEXTÃO DO ATOR

E aí ele vai dizer um texto. O ator vai dizer um texto de teatro. As palavras vão sair pela sua
boca sob a forma de uma dramaturgia. Amparado pelos tijolos e pela arquitetura deste
teatro, as palavras desse ator irão edificar a mais sólida construção cênica, que será capaz
de durar, permanecer, e por mais que seja demolida sempre deixará vestígios. As palavras
das peças de teatro que sairão pela boca desse ator sempre serão a materialização da sua
própria história. As mesmas histórias! As paredes desse teatro, para este ator, cumprem o
papel de memória, assim como as palavras que ele diz. Que ele diz e fica. Edifica. Esse ator

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domina a arte de edificar. O patrimônio literário que sai pela boca deste ator está tombado e
as suas palavras jamais serão destruídas. Vão passar anos, décadas, séculos, e esse ator
vai repetir as mesmas histórias. Esse ator então, há mais de 2.500 anos de história do
teatro ocidental, escava, escreve, ecoa, insiste nas mesmas histórias!

TOCA O PRIMEIRO SINAL

Eu não disse que ia tocar o primeiro sinal? Tocou!

(As portas do teatro se abrem).

Aí, as portas do teatro se abriram.

(O ator, faz movimento de entrar e sair do teatro percebendo a sua coluna).

Como a coluna de vocês entra nos lugares? Como vocês entram e saem dos lugares?
Como a coluna de vocês entra e sai de um espaço teatral? Eu convido a todes a entrar.
Podem entrar!

2. DENTRO DO TEATRO

E não é que entramos? Entramos no espaço cênico!

(Improvisa sobre a arquitetura do teatro e sobre a disposição das cadeiras. Ajuda o


público a encontrar o seu lugar e improvisa verificando se as pessoas estão mesmo
nos lugares corretos).

TOCA O SEGUNDO SINAL

Aí, tocou o segundo sinal. Vocês sabiam que esses sinais que tocam… Que o primeiro sinal
que toca era pra avisar que O Rei Luís XIV, da França, do século XVII, estava chegando? O
segundo sinal era pra avisar que ele tinha se acomodado, e o terceiro sinal era pra avisar
que ele estava pronto pra assistir o espetáculo! Não é muito louco? Os costumes da realeza
estão entre nós até hoje. Os costumes de vossa majestade se perpetuaram. Se perpetuam.
Só porque a gente se acostumou com eles.

(Improvisa sobre a arquitetura do teatro e sobre a disposição das cadeiras. Ajuda o


público a encontrar o seu lugar e improvisa verificando se as pessoas estão mesmo
nos lugares corretos).

Eu tô achando vocês muito perto de mim. Não deveria ter um efeito distanciamento? Um
Verfremdungseffekt? Não era pra ter uma quarta parede? (Para alguém do público). Você tá
confortável aí? Que bom. Aproveita porque tem teatro que o público assiste 4 horas de
espetáculo de pé à moda Elizabetana. É. No teatro elisabetano a rainha Elizabeth ficava
super confortável na galeria dela e o povão todo de pé na pista. Vocês são uma plateia
privilegiada, hein. A plateia que tem o privilégio de sentar numa cadeira. Quem não gosta de
uma poltrona? Quem não gosta de um camarote? Você gostou do seu point of the view?

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Você acha que vai ter uma boa perspectiva? Quem pagou mais barato no ingresso não tem
esse direito, tá gente? Quem paga mais barato tem que assistir o espetáculo sem conforto e
sem visibilidade.

VOZ OFF EM GRAMELÔ - INFORMES

TOCA O TERCEIRO SINAL

(A luz apaga e depois acende).

Eu sei que vocês estão esperando um entretenimento. Uma história emocionante! Um


divertimento, talvez. Ou talvez vocês esperem um cenário pirotécnico, um palco giratório…
Figurinos grandiosos... Efeitos especiais… Mas não! Hoje precisaremos falar sobre
ausência. Vocês me olham e eu sei que esperam de mim aquilo que vieram buscar. Eu vejo
no olhar de vocês a frustração de encontrarem aqui, apenas um palco nu e um ator tão
desnudado quanto ele. Eu sei que vocês esperam que aqui aconteça uma catarse. Uma
epifania! Vocês vieram pra assistir uma história com começo, meio e fim. Vocês possuem
uma expectativa. Afinal, a plateia também tem a sua própria dramaturgia.

A dramaturgia. Uma história. O que é que tem que ter pra ter história? Dizem aqueles que
sabem que tem que ter a teoria das 3 unidades. O espaço, o tempo e a ação. Dizem que
tem que ter um onde, um quem e um o quê. Dizem que tem que ter conflito. Dizem que tem
que ter alguém que ocupa esse espaço e outro que o observa. Tem que ter?

(O intérprete sai. Silêncio. Nada acontece. Depois de um tempo o intérprete retorna).

Aconteceu alguma coisa aqui? Isso que aconteceu aqui depois que vocês, a plateia, ficaram
no mais constrangedor dos silêncios, foi teatro? Nesse momento em que que vocês ficaram
a sós esperando que algo acontecesse… Teve teatro? Aconteceu alguma coisa ou não
aconteceu nada? Tem poesia no nada?

(Para alguém da plateia) Se essa peça acabasse agora e você chegasse em casa e
dissesse que assistiu a uma peça de teatro e alguém perguntasse qual era a história dessa
peça de teatro, o que você responderia?

(Repete a resposta da plateia no microfone).

É sobre isso!

3. A HISTÓRIA DA COLUNA

Quando a gente tá aprendendo a fazer teatro nas escolas de teatro que a gente estuda, a
gente aprende muitas coisas. Os professores ensinam sobre o espaço cênico, ensinam
como ocupar os espaços vazios, fazer uma roda, fazer massagem, rolar no chão, levantar,
cair, levantar, cair, ensinam o que é plano baixo, médio e alto. Ensinam a equilibrar um
platô. A pizza. A gente aprende a desenhar a planta baixa do espaço da cena. Ensinam a
gente a ler, ensinam o que é um ponto, o que é uma vírgula, ensinam também sobre a

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história e as grandes teorias do teatro, ensinam sobre a estética teatral, ensinam a gente a
assistir um espetáculo, a falar sobre o espetáculo que a gente viu. Ensinam o que é
dramático, o que é épico, lírico, ensinam o que é um light motive, site specific, ensinam a
interpretar um personagem, a dizer um texto, a colocar a voz no espaço, a fazer uma make,
a contar uma história, e o principal, eles ensinam como a gente deve movimentar o nosso
corpo em cena. E eles fazem tudo quanto é tipo de aula pra ensinar pra gente como a gente
deve movimentar o nosso corpo em cena. E uma das aulas que eu mais gostava, era a aula
da coluna. Tem professor que deixa a gente ali horas, só experimentando coluna. E a gente
fica ali horas experimentando a coluna. (Começa a mover a sua coluna). Tem uns que
perguntam que história a nossa coluna conta, tem uns que perguntam quais memórias
guardam a nossa coluna, e eu adoro movimentar a coluna. É a aula que eu mais gostava.
Eu movimento… Movimenta vocês também, se vocês quiserem… Serpenteia, bascula, faz
ondulações, pensa que é o mar… Isso, como se fosse a onda do mar. Boa essa imagem,
né? A nossa coluna é fundamental no processo de edificação do nosso corpo. Ela é tipo
uma viga, uma pilastra flexível. Eu adoro mexer a coluna, porque mexendo a coluna eu
percebo que muita coisa balança. Algo acontece quando eu mexo a coluna. E as coisas vão
vindo. A história vai vindo pela coluna. A história vai saindo pela coluna. A história vai sair
pela coluna. A história vai sair pela coluna. A história vai sair pela coluna.

(Realiza movimentação com a coluna repetindo essa frase diversas vezes: “A história
vai sair pela coluna”).

Olha a história saindo. Olha essa história. Tá interessante essa história? Olha a história!.
Isso é história? Olha a história dele. Isso é dramaturgia? Olha a história que tá saindo.

(Repete o texto acima diversas vezes fazendo a ação de desmunhecar).

Por quê que tudo que você faz é assim meio viado? Por quê que tudo que você faz é assim
meio viado? Por quê que tudo que você faz é assim meio viado?

(Repete o texto acima diversas vezes fazendo a ação de desmunhecar até que isso
vira uma coreografia com uma batida musical acompanhando).

4. O QUE CABE NO TEATRO?

Por quê que tudo que você faz é assim meio viado?

Quando eu tava na escola de teatro aprendendo a fazer teatro, teve uma professora… Uma
professora! Uma professora de teatro que me perguntou: Por quê que tudo que você faz é
assim meio viado? Por quê que tudo que você faz é assim meio viado?

NÃO PODE PROFESSORA? NÃO PODE PROFESSORA? NÃO PODE PROFESSORA?


NÃO PODE PROFESSORA?

Então eu tava numa escola de teatro. Numa escola de teatro! E tudo que eu fazia. Tudo!
Tudo que eu fazia era assim meio viado. Entao, eu estava lendo um texto, caminhando pelo
espaço, representando uma personagem, e tudo que eu fazia nessa escola de teatro não

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servia. O que é que serve? O que é que presta? O que é que cabe no teatro? Isso cabe?
Isso cabe no teatro? Isso cabe? Isso cabe no teatro?

Essa mãozinha cabe no teatro? E a voz? A voz fina não cabe no teatro. A voz aguda não
cabe. Não. Mais grossa! Mais grossa cabe no teatro. Essa cabe. Essa é bonita. E o nariz
pra cima cabe? Cabe no teatro? Não. O nariz é pra frente. E o queixo? Num ângulo de 90
graus em relação ao chão. No chão! No chão é seu lugar! E o meu cabelo cabe no teatro?
Com chapinha ou sem chapinha? Pode mexer no cabelo? Não pode mexer no cabelo no
teatro. E coçar? Pode coçar? Se coçou, tem que deixar coçar. E a roupa? Pode arrumar a
roupa no teatro? E o meu andar? Calcanhar, meio e ponta. Calcanhar, meio e ponta. Se eu
piso com a ponta não serve. Não cabe no teatro. Tem que usar os três pontos de apoio dos
pés. Pés paralelos. Flexionados ou estendidos? Estendido não serve, flexionado. E minha
coxa, roda pra fora ou roda pra dentro? E esse rebolado cabe no teatro? E a minha perna
cruzada cabe no teatro? E como eu sento? Como eu sento no teatro? E os ombros? E o
peito? Aberto ou fechado? Fechado não. Fechado não cabe no teatro. Aberto, mas não pra
cima. Pra baixo. Desce! Desce daí! Desce daí! E o meu olhar? No horizonte? No infinito?
Num ponto fixo? Qual é o olhar do teatro? Olhar pra baixo não cabe? E as minhas mãos? A
eterna pergunta! Onde um ator deve colocar as suas mãos! A eterna pergunta. E a minha
musculatura tensa cabe no teatro? Não, não cabe. Relaxa. Como é que relaxa? Como é
que relaxa esse corpo? Essa musculatura? Relaxa você! Relaxa! Aí a professora vem pedir
pra eu relaxar! Relaxa você! Você consegue relaxar? Como é que esse corpo consegue
relaxar?Não vem pedir pra eu relaxar não. Deixa meu corpo tenso. Meu corpo tenso não
cabe no teatro? Não professora! Não relaxo! Relaxa! Eu tô relaxado! Vê como eu tô
relaxado! Tô relaxado, professora. Ó como eu tô relaxado. Tô relaxado! Ó como eu tô.

(Momento de composição coreográfica e musical: tensões / o meu corpo tem


tensões).

Eu carrego na minha arquiteTONICIDADE a contextura do útero da minha mãe, a minha


primeira casa. Meu corpo imprime as marcas nervosas desse que foi o meu invólucro
primeiro. Minha professora nunca vai saber o que é carregar no corpo o construtivismo de
uma vida fundada nos destroços. Nem de longe ela vai saber o que passei / antes /
passados, dentro do lugar de onde viemos. Nunca! E ainda tem gente que me pede pra
relaxar.

Esse corpo cabe no teatro? Essa cor de pele cabe no teatro? E esse fenótipo, cabe no
teatro? Ou cabe só em alguns tipos de teatro? O que é que cabe? O que é que serve? O
que é que presta? O que é que cabe no teatro?

E então nesse mesmo dia essa mesma professora disse que tudo que eu fazia parecia um
ensaiador de miss. Alexa! O que é um ensaiador de miss? Gente, to tão a vontade que eu
tô achando que eu tô em casa. Eu tenho essa mania quando eu tô em casa. Vocês têm
essa mania também? De ser exatamente aquilo que a gente é quando a gente tá dentro do
lugar que abriga completamente a nossa existência. Imagina um mundo em que você
pudesse ser exatamente aquilo que você é em todos os lugares. Na barriga da mãe. Na
casa da avó. Na escola. No trabalho. E quem sabe até, aqui no teatro! Eu quando eu tô na
minha casa, eu fico a vontade e converso bastante com a minha Alexa! Toda vez que eu
não sei o que significa alguma coisa eu pergunto pra Alexa e ela me responde. Então, como

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eu não tô em casa, vocês vão ser a minha Alexa. Vou chamar vocês de platexa. Quando
fizer a pergunta alguém dessa platexa tem que responder. Combinado? Platexa! O que é
um ensaiador de miss? (Silêncio). Platexa, você tá viva? Platexa! Vou perguntar de novo.
Platexa! O que é um ensaiador de miss?

(Repete a resposta da plateia no microfone).

É sobre isso! Então, eu estava numa escola de teatro e tudo que eu fazia… Tudo! Tudo que
eu fazia se parecia (com o que a plateia respondeu).

E pela primeira vez eu tive dúvidas. Dúvida, se eu podia. Se esse corpo podia aprender a
fazer o teatro que se ensina nas universidades. O teatro que é ensinado e que repete a
mesma ensinagem há séculos. E foi aí que eu me lembrei que numa outra escola de teatro
que eu estudei, eu escutei que (ao microfone) ATOR BOM É AQUELE QUE NÃO PARECE
QUE É VIADO QUANDO TÁ EM CENA!

5. O PAI

(Veste a personagem, colocando os acessórios lentamente. Enquanto veste, vai


sentindo o corpo da personagem).

Seu Ramalho - Marina, passa pra dentro agora! Vem lavar os pratos que isso não é hora
de moça direita tá pendurada em cerca de vizinho, não. Marina! Vem cuidar das panelas
que lugar de moça é na cozinha. Marina! Eu não vou falar de novo! Cuidado com o sereno,
valha-me Deus, olha o sereno, Marina!

Esse sou eu no semestre seguinte dos estudos da minha escola de teatro fazendo o
personagem “Seu Ramalho - O Pai”, dentro de um espetáculo que fazia uma adaptação do
romance “Angústia”, de Graciliano Ramos. No dia que a professora, a MESMA
PROFESSORA foi distribuir as personagens, quem viveu a angústia fui eu. Eu só via a
professora entregando os papéis, e os papéis acabando, e eu ficando sem nada. Carlos,
você vai fazer o Julião Tavares, o Julião é gordo e você também, o papel é seu. Danilo,
você vai fazer o Luís da Silva, que é o protagonista, ele é galã e você também é, o papel é
seu. Michele, você é preta, então você vai fazer a empregada, esse papel só pode ser seu.
Jorge, você também é preto, vai fazer o malandro, o bêbado, esse papel também só pode
ser seu. Augusto, como você é engraçado, você vai fazer o papagaio, esse papel é seu.
Sabrina, você é angelical, doce, meiga, então você vai fazer o par romântico do Luís da
Silva, você vai ser a Marina. E assim se sucederam a distribuição dos papéis, das
personagens. Até que chegou a minha vez. Thiago, olha, pra você sobrou o “Seu Ramalho -
O Pai da Marina”. Eu sei que não tá muito dentro do seu perfil, mas… Vamo encarar esse
desafio?

Eu tenho a impressão de que as personagens que podem verdadeiramente ser


representadas por mim, dentro dessa lógica, quase não foram escritas, pensadas para o
meu fisique del’roll. Vão me chamar pra fazer o príncipe da Dinamarca? E o rei de Tebas? E
o rei da vela?Tenho cara de rei? Tenho cara de príncipe? Eu posso fazer o mouro de
Veneza? Tenho cara de mouro? E o pequeno burguês? Tenho cara de burguês? E o
estrangeiro? Tenho cara de estrangeiro? E o inimigo do povo? É. Eu posso fazer o povo. E

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o Inspetor Geral? Tenho cara de inspetor? E o arquiteto e o imperador da Assíria? Tenho
cara de arquiteto? Tenho cara de imperador?

Esse personagem que eu tô buscando, existe? Já foi escrito? Se não foi escrito, então pra
mim, vai sobrar o quê? E pra você, vai sobrar o quê? Pra você o que é que sobra? E pra
você, o que é que sobra? Talvez essa seja a verdadeira crise do drama. Como é que eu vou
representar uma peça realista, naturalista, se a minha natureza não cabe nesse teatro?
Como?

Eu? Fazer o pai? É… É o que tem, né? É o que sobrou. Eu vou fazer!

(Repete a cena do pai).

Seu Ramalho - Marina, passa pra dentro agora! Vem lavar os pratos que isso não é hora
de moça direita tá pendurada em cerca de vizinho, não. Marina! Vem cuidar das panelas
que lugar de moça é na cozinha. Marina! Eu não vou falar de novo! Cuidado com o sereno,
valha-me Deus, olha o sereno, Marina!

(Enquanto tenta repetir a cena, ri e se desconcentra).

Do que é que vocês tão rindo? Vocês tão rindo do quê? Tá engraçado? Mas não é pra ser
engraçado não! Isso aqui não é uma comédia. Vocês tão rindo de quê? Essa é uma cena
séria. Tá engraçado? Não é pra ser engraçado. Isso aqui não é nada engraçado.

Péssimo! Péssimo! É ridículo! É por isso que vocês estão rindo. Porque é ridículo. É
ridículo! Eu me prestei ao papel de ridículo. Mas então hoje eu resolvi refazer essa cena.
Refazer esse personagem. Esse pai. O Seu Ramalho. Por algum motivo, durante essa
construção cênica, eu estava amarrado às estruturas que são os pilares da engrenagem
teatral. A normatividade. A lógica. A coerência. A forma. A estética. A solidez.

E pra refazer essa cena agora, eu quero tentar quebrar com tudo isso! Mas pra isso, eu vou
precisar que você (para a pessoa da plateia que recebeu o papel de Marina) me ajude
fazendo a Marina. Você pode? Não precisa fazer nada. Apenas quando eu pedir pra você
entrar, você dá um passo e por meio da convenção teatral, vamos entender que você
adentrou o espaço simbólico e ao mesmo tempo concreto que é a casa do Seu Ramalho.

Seu Ramalho - Marina, passa pra dentro agora! Marina, eu preciso te dizer, que eu, seu
pai, sou viado! Por tanto tempo eu me escondi. Me camuflei. Me mascarei. Marina, eu gosto
mesmo é de homem. Por tanto tempo eu representei um personagem que eu não era.
Marina, eu sou viado! O seu pai Marina, que é assim delicado, doce, frágil, sensível… O seu
pai é viado! Você tem um pai viado! E tá tudo bem. Tá tudo bem. Os viados existem. Existe
pai que é viado. Tem muito viado que é pai! E tá tudo bem.

(Abraça e agradece).

Ah! Mas na história não é assim! Na história não é assim! Na história não é assim? E na
vida? Na história não é assim. E na vida, na vida não é assim? Não é assim? Não é a arte
que imita a vida e a vida que imita a arte? Não é Aristóteles que diz que a arte é imitação?

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Imitação do quê se não da vida? E na vida? Como é que as coisas acontecem na vida? E
na vida? E na vida como é que é?

6. A CASA DA INFÂNCIA

(Projeta-se a imagem da casa de infância via Google Street View).

E na vida é assim. Eu vou explicar como é na vida. Não, na verdade, eu vou deixar que a
própria arquitetura das pequenas coisas se explique por si só. Essa é a casa onde eu
passei toda a minha infância. Platexa, que horas são? Aí já se passou (tanto tempo). Agora,
nós devemos estar exatamente no meio de um caminho… Talvez os teóricos dissessem
que agora seria a hora do clímax. Da curva dramática. Da peripécia. Do quiproquó. Do
Ápice. Mas não, não é isso que eu encontro no meio do meu caminho. Eu encontro a minha
casa! E isso que eu encontro me leva de volta para o onde tudo começou!

E aqui estou eu novamente. Na Rua Marli Sarney, número 98, bairro Jussara, em
Imperatriz, no estado do Maranhão. A casa onde eu passei toda a minha infância foi
vendida por 25 mil reais. A casa que eu passei a infância foi vendida por 25 mil reais com
todas as memórias dentro dela. Como é que a gente consegue colocar preço nas coisas?
Como? Como é que a gente consegue colocar preço nas coisas? Como?

(Entra na casa).

Ainda é possível entrar.

Ainda é possível entrar. Vejam! Eu entro na minha casa. Vejam! É assim que eu olho pra
minha casa. Vejam! É assim que eu toco nas coisas da minha casa. As rachaduras das
paredes guardam memórias que ninguém consegue se lembrar do lado de fora da casa.
Apenas quando entra aqui do lado de dentro. As pessoas que aqui frequentaram os
almoços de família aos domingos ainda permanecem aqui. Não é incrível isso? O meu vô
Gustavo. Minha vó Rita e minha vó Maria. Meu vô Crescêncio. Eles ainda estão aqui, nos
poucos metros quadrados da sala da casa. A árvore de Natal também ainda está. A minha
irmã Taty também está e a máquina de tirar foto quebrada que a gente brincava de novela
também está. E tudo que a gente via pelo buraco da câmera virava história. Pá! E tudo que
a gente enxergava pelo buraco da câmera virava história. Pá! E tudo que a gente olhava
pelo buraco da câmera virava história. Pá!

CENA DA TATY

Eu me lembro que tava num carro em movimento e eu via sangue, e tudo girava, e eu só
tinha forças pra desmaiar de novo… Eu me lembro que tava num carro em movimento e eu
via sangue, e tudo girava, e eu só tinha forças pra desmaiar de novo… Eu me lembro que
tava num carro em movimento e eu via sangue, e tudo girava, e eu só tinha forças pra
desmaiar de novo…

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E de desmaio em desmaio eu vim parar aqui, nesse palco, no corpo do meu irmão Thiago
Nascimento. E agora eu, Tatyany Nascimento, preciso contar a minha história.

Quando eu tinha seis anos de idade, eu adorava ir pro recreio na escola. Mas naquele dia
eu não fui, fiquei dentro da sala de aula. Só que depois de cinco minutos eu mudei de ideia
e resolvi sair. Na hora que eu saí da sala tinham dois alunos brigando e um tacou uma
pedra no outro, o outro abaixo e Pá!

Quantas pedradas no olho você já levou? Quantas?

Eu fiquei cega de um olho dentro de uma escola, dentro dessa escola! (Aponta para a
escola em projeção). Eu, uma criança de seis anos, fiquei cega de um olho dentro de uma
escola municipal. E não houve uma indenização, uma criminalização, uma reparação, um
pedido de desculpas público… Nada!

Mas agora eu venho aqui pra tornar essa dor pública, pois durante todos esses anos eu
carreguei essa dor sozinha. Eu, uma criança de 6 anos, fiquei cega de um olho e ninguém
fez nada. E eu tive que carregar essa dor sozinha durante toda a minha vida. Sozinha. Mas
agora eu quero dividir essa dor com vocês. Eu preciso que vocês carreguem um pouco
dessa dor comigo, para que talvez assim, as coisas possam ficar mais leves.

E talvez agora vocês entendam que a violência institucional deixa marcas visíveis como
deixou em mim e invisíveis como deixou no meu irmão.

E ainda tem gente que pede pra gente relaxar! Como é que relaxa?

Muito obrigado por dividirem comigo um pouco dessa dor!

DE VOLTA A CASA DA INFÂNCIA

Era um fim de tarde de Outubro de 1993. Eu tinha 5 anos de idade. E eu me lembro que a
coisa que eu mais gostava de fazer, era ir junto com minha mãe buscar minha irmã na
escola. Que estudava de tarde! E naquela tarde eu me lembro que eu dormi. Até hoje eu
amo dormir de tarde, quem me conhece sabe, principalmente depois do almoço. Mas
quando eu acordei, eu escutei a voz da minha mãe vindo aqui da sala. Então eu pensei: “tá
na hora de ir buscar a Taty na escola!”. Então eu saí correndo e vim até onde tava a minha
mãe e falei: “Mãe, eu quero ir com você buscar a Taty na escola!”. Na hora que eu falei o
nome Taty, a minha mãe começou a chorar mais ainda. E foi aí que eu percebi que ela já
tava chorando. E foi aí que eu percebi que algo de muito ruim tinha acontecido.

(Bate três vezes na parede).

Esse é o som. Ainda é possível ouvir o som da minha cabeça batendo contra o concreto,
quando a minha mãe ao me ver com uma toalha na cabeça, de forma muito violenta,
arrancou, puxou meu cabelo, e tacou por três vezes a minha cabeça contra a parede.
Ainda é possível ouvir o som da minha cabeça batendo contra o concreto.

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(Bate três vezes na parede).

E ainda tem gente que me pede pra RE-LA-XAR… Como é que relaxa? Eu não quero mais
ficar aqui dentro. E essa é a minha rua. Vejam como eu caminho pela minha rua. Que agora
é de asfalto, mas antes, era de terra. Todas as brincadeiras que a gente inventou, ainda
permanecem aqui. Nesse chão. Não é incrível isso? Por incrível que pareça, elas ainda
estão aqui.

7. ZOOM

Essa é a minha rua. Vejam como eu caminho pela minha rua. Vocês tão vendo? Vocês tão
vendo como eu caminho pela minha rua? Vejam! Vejam como eu caminho pela minha rua.
Aqui nessa casa morava a primeira pessoa que eu dei um beijo na boca. Alana. E aqui
nessa casa do lado morava a avó de Alana. A Dona Geni. E um dia eu tava na minha casa,
numa tarde, dormindo como sempre. Eu devia ter uns 8 anos de idade. E alguns meninos
da minha rua bateram na minha porta. Toc. Toc. Toc. Eu apareci com cara de sono e eles
falaram: “Thiago, a Dona Geni tá te chamando”. Eu tava dormindo. Acordei. O quê que ela
quer comigo? “Thiago, a Dona Geni tá te chamando”. Aí eu fui! Quando eu cheguei lá, com
licença, (segura o braço de alguém da plateia) ela pegou no meu braço e fez assim:

(Balança rápido o braço de alguém da plateia).

“Tá vendo como ele desmunheca?!”. Eu só pude ouvir a risada dos outros garotos. Eu tava
dormindo. Tinha acabado de acordar. “Tá vendo como ele desmunheca?!”.

Pode olhar, Dona Geni. É isso que você quer olhar? É isso que eu sou! Desmunheco.
Desmunheco mesmo! Pode olhar. Pode olhar eu desmunhecando. É isso que você quer
ver? É isso que eu sou! Eu desmunheco sua puta! Sua desgraçada! Sua velha arrombada!
Jamais você faça isso com uma criança. Jamais você faça isso de novo com uma criança!
Jamais você faça isso de novo com uma criança!

Para todas as crianças viadas que existiram e para aquelas, que assim como eu, nunca
puderam existir, uma salva de palmas!

(Aplausos).

Deixem as crianças existirem naquilo que poderá ser a sua maior potência! Deixem as
crianças existirem naquilo que pode ser a sua maior potência! Deixem as crianças existirem!

O que é que a Dona Geni, a minha professora da escola de teatro e a minha mãe têm em
comum? O quê? Não, Dona Geni! Não, professora! Não, mãe! Talvez vocês precisem
lembrar que ser um homem não viril, numa sociedade machista, é um ato revolucionário!
“Passa pra dentro, vem cuidar das panelas que lugar de mulher é na cozinha!”. Quantas
vezes vocês não devem ter escutado essa fala de um outro Seu Ramalho, quantas vezes?
E assim a coluna de vocês insiste em contar e repetir essa mesma história! Debochando,
ridicularizando, violentando... Corpos violentados machucando outros corpos violentados.
Até quando?

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O som da risada fica gravado no corpo. E aí a minha reação foi aprender a não
desmunhecar. Mas isso é possível? Ir contra a própria natureza é possível? Porque quando
eu cheguei de novo na escola de teatro, eu desmunhequei! E novamente virei motivo de
piada. E vejam só o que aconteceu com esse corpo! É. Agora é assim que eu caminho pela
minha rua.

(Caminha de forma robótica).

É assim que eu caminho pela minha rua. Olha como eu caminho pela minha rua. Na rua
onde a Dona Geni disse que eu era desmunhequento.

(Caminha de forma máscula).

É assim que eu caminho pela minha cidade. Olha como eu caminho pela minha cidade que
há cada esquina você tem um viado no armário casado com mulher, que vive de fachada e
que pula a cerca da casa pra dar o cu e comer viado no outro quarteirão.

(Caminha de forma colonizada).

É assim que eu caminho pelo meu estado. Maranhão. Olha como eu caminho pelo meu
estado, de onde veio Pablo Vittar minha conterrânea. Pablo Vittar pá! E eu pá. Pablo Vittar
pá! E eu pá. Pablo Vittar pá! E eu pá.

(Caminha de forma insegura).

E agora eu me mudei pra São Paulo.


É assim que eu caminho pelas ruas de São Paulo. Olha como eu caminho pelas ruas de
São Paulo onde você tem que andar olhando pra trás quando você tá de mão dada com
seu boy se não você leva uma lampadada na cabeça. Olha como eu caminho pela avenida
Paulista!

(Caminha de salto alto. Começa a tocar a música “Que tiro foi esse?”. Dança).

É assim que eu caminho pelo meu país. Brasil. Olha como eu caminho pelo meu país.

(Recebe no corpo o som dos tiros presentes na música).

É assim que eu caminho pelo meu continente. América. Do Sul. Olha como eu caminho pelo
meu continente. É! Aqui não existe pecado! Afinal, estamos do lado de baixo do Equador!

(Caminha caindo).

É assim que eu caminho pelo meu planeta. Terra! Olha como eu caminho pelo meu
planeta, onde até hoje ainda existem mais de 70 países que consideram a
homossexualidade um crime inafiançável com sentenças que chegam até a pena de morte.
Isso em 2023.

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RODA VIVA

Resposta 01:
Não…
Nunca. Eu acho que por conta também d’eu ser um ator / de comédia…
Eu acho que… o…
O homem / na comédia ele tem que ter os dois lados.
O masculino e o feminino.
Ele não será um bom comediante jamais.
Eu posso afirmar isso…
Com certeza!
Se você tiver só uma coisa pá pá pá, você não…
Se você tiver só uma coisa pá pá pá, você não…
Se você tiver só uma coisa pá pá pá, você não…

Resposta 02:
Olha, nunca passou pela minha cabeça isso…
Olha, nunca passou pela minha cabeça isso…
Olha, nunca passou pela minha cabeça isso…
Nunca em momento nenhum!
E… O fato de você representar…
Você tá vestido de um personagem. Você não é aquela pessoa.
Você tá vestido de um personagem. Você não é aquela pessoa.
Você tá vestido de um personagem. Você não é aquela pessoa.
Então você já se segura ali.
O personagem te segura.
Te dá um sustento / enorme.
Mas nunca passou pela minha cabeça…
Nem gestualmente…
Nem gestualmente…
Nem gestualmente…

8. FIM

(Perguntar para alguém na plateia se ela quer voltar no endereço da casa onde ela
passou a infância. Improvisar a cena em que ela fala sobre a casa e a sua rua).

Ainda é possível entrar na sua casa?


Como você entra?
Como a sua coluna se movimenta quando você caminha pela sua rua?

(Se direciona até outra pessoa e pergunta se já existe uma rua com o nome dela.
Navegam por essa rua).

Como a coluna das pessoas que moram nessa rua se movimenta? Quais histórias estão
gravadas na coluna das pessoas que caminham por essa rua?

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(Se direciona até outra pessoa).

Eu posso mais. Eu quero mais. Me diz um lugar nada a ver que você nunca foi, mas que te
bate uma curiosidade de saber como é.

(Navega pelo lugar indicado pela pessoa da plateia).

Como a coluna das pessoas que moram em (tal lugar) se movimenta? Quais histórias estão
gravadas na coluna das pessoas que caminham pelas ruas de (tal lugar)? Será que a
história delas tem alguma coisa em comum com a minha história?

Eu disse pra vocês que o final iria chegar. E o final está chegando. Os teóricos diriam que
agora seria o momento perfeito para um desenlace. Mas o que tem no meu final? No final
do espetáculo, o ator também vai se colocar no foco de luz. Vai observar se está na marca.
Vai sentir a luz subindo em resistência e aquecendo seu rosto. Vai respirar. Vai sentir o
silêncio da plateia. E aí ele vai dizer o texto. O ator vai dizer um texto teatral e vai contar
uma história. Qual história? Uma outra história. Esse ator não vai mais repetir e perpetuar
as mesmas histórias que são contadas e recontadas há tantos anos e tantos. Eu, Thiago
Nascimento, um ator brasileiro, estou fazendo o compromisso, diante dessa plateia, o
compromisso de dizer que este corpo pode fazer teatro. E as histórias que esse corpo
nunca pôde contar, poderão ser contadas. (Para a plateia) E a história que o seu corpo
pode contar poderá ser contada. E a história que o seu corpo pode contar poderá ser
contada. E a história que o seu corpo pode contar poderá ser contada. Cismamos em
construir as mesmas personagens e repetir as mesmas estruturas teatrais que ficaram
historicamente registradas nas páginas das grandes histórias do teatro. As grandes histórias
do teatro são quais? Eu quero poder afirmar aqui hoje que esse corpo pode contar a história
que lhe cabe contar. A história que ele é capaz de contar, e que pode ser até um simples
nada. Um silêncio. Um vazio. Ou um gesto apenas. Dizer que esse corpo pode contar a
partir da pele, dos ossos, do sangue, das memórias e do movimento que só ele produz.
Esse corpo pode contar. E esse corpo se recusa a repetir as mesmas histórias. Nós já
conhecemos todas essas histórias repetitivas. E nós não cansamos de repetir essas
histórias e eternizá-las nas pedras da tradição teatral. Nós estamos reproduzindo
eternamente as mesmas histórias e contando todas elas sempre da mesma forma. E o
compromisso que eu faço com esse corpo, é de quebrar essa corrente. E dizer que todos
nós estamos sendo convidados a contar novas histórias. A história que só o meu corpo é
capaz de contar. A história que só o seu corpo é capaz de contar. A história singular que só
as nossas corporeidades são capazes de contar.

E agora o foco de luz que ilumina esse ator está prestes a se apagar. A luz com seu
movimento em fade-out, na mais bela sensibilidade, já começou a cair em resistência e o
público nem sequer percebeu. O público talvez esteja à espera da catarse ou inebriado por
ela. O público talvez perceba que essa história também é dele e ao sair por aquela porta,
perceba na arquitetura das pequenas coisas, as pequenas mensagens que estão gravadas
nas paredes das construções que nos deparamos todos os dias. E talvez esse público
aprenda a olhar, a sentir e a tocar as texturas em alto relevo que ninguém reparou. Que
ninguém quis reparar. E quando nenhum público mais habitar esse edifício teatral, o que
restará? As marcações permanecerão no chão? E nas cadeiras onde o público outrora
sentara, ficará a marca de sua coluna ali? Os espíritos que habitam este teatro estarão

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satisfeitos com o drama que aqui foi representado? E a luz quase desaparecida, delineará a
silhueta do corpo do ator que por um momento achou que a sua presença aqui nesse palco
não era bem-vinda. Mas agora ele sabe que é. Ele é bem-vindo, mesmo sendo bem-viado.
Ele é sim. E todas as outras corpas também são. E que assim seja. Sempre e cada vez
mais. Sejam bem-viados ao teatro!

(Luz cai em resistência. Blackout).

Thiago Nascimento
27/07/23

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