O trabalho começou em 1975, quando montei a FARSA COM
CANGACEIRO, TRUCO E PADRE, de Chico Assis, para o extinto Teatro de Cordel de São Paulo. Até ali vinha realizando várias experiências fundamentais em filosofias teatrais (acho que se pode chamar assim) importadas. Apenas para lembrar: aqui e ali, no mundo, surgem periodicamente diretores e/ou grupos que empreendem experimentações no Teatro. No Brasil, fiel ao seu destino de colônia cultural, os resultados dessas experimentações chegam em forma de “ondas”, cada uma delas sendo o definitivo caminho do Teatro Moderno ( ! ) Nunca tendo saído do Brasil para ver esses trabalhos “in loco” eu tentava, ou queria tentar, ou precisava tentar adaptar essas “modas” a uma realidade local. Mas me ficou sempre, feito uma minhoca, a necessidade de procurar a forma brasileira de fazer Teatro.
AS CARACTERÍSTICAS
Então, em 1975, tomei contato com o ator popular brasileiro (acho
que dá pra chamar assim). Como se sabe o Teatro de Cordel de São Paulo funcionava num “pavilhão” (apenas para lembrar: espécie de circo de zinco) e o próprio espaço, diferente das atapetadas salas a que estávamos acostumados, me levou a pensar em fontes diferentes daquelas a que eu estava acostumado recorrer para a montagem de um espetáculo. Assim, entrei em contato com o Circo-Teatro (apenas para lembrar: pavilhões de lona ou zinco que percorrem a periferia das grandes cidades ou as cidades do interior, pertencentes a Companhias formadas por artistas populares - isto é: com formação empírica - e cujo repertório é feito de shows de variedades, comédias ou dramas que, são representados mais ou menos da mesma forma há mais de cem anos). * Evidentemente a linguagem teatral do Circo-Teatro não surgiu no Brasil e sim veio com as Companhias principalmente portuguesas que no século passado dominaram o panorama teatral do país. Quando, já para o fim da primeira metade deste século, aportaram aqui ( TBC por exemplo) as novíssimas formas de teatro principalmente europeu (o teatro-de-diretor, os métodos stanislavskianos de interpretação, o teatro engajado, e muito mais), as Companhias aqui existentes, calcadas no Teatro feito por aquelas Companhias principalmente portuguesas, foram perdendo terreno até se extinguirem definitivamente, ou ... este tipo de Teatro foi parar no Circo-Teatro. Porque com o Circo aconteceu uma coisa assim: As grandes famílias que formavam os primeiros Circos brasileiros foram aos poucos se desmembrando, ou porque alguns de seus integrantes se separavam para montar Circos menores, outras vezes porque seus membros mais jovens, separavam-se temporariamente do Circo para estudarem, formavam-se e desenvolviam outras carreiras, não retomando mais a nem sempre muito agradável vida nômade de artista. Assim os Circos foram ficando desfalcados de números que compusessem os espetáculos, que tinham que ser diferentes a cada noite. Então, para suprir a 1 falta de números para os espetáculos, os artistas circenses passaram a montar “dramas” e “altas-comédias”. Outras vezes os artistas de Teatro passaram a trabalhar no Circo. Enfim, não é difícil imaginar essa integração do Circo com o Teatro: os artistas tanto de um, como de outros eram artistas-do-espetáculo e levavam uma vida nômade, pois aquelas Companhias teatrais (calcadas nas principalmente portuguesas) eram tão ambulantes quanto o Circo e muitas vezes os artistas do Circo iam trabalhar no Teatro, nas Companhias de Variedades... enfim, muitos eram os pontos em comum nas duas modalidades. E surgiu o Circo-Teatro. Que acabou sendo o conservador daquela antiga linguagem teatral (encenações pré-diretor, visual pré-realista, interpretação pré-stanislaviski e etc.), uma vez que ficou imune às influências que foi sofrendo o Teatro dito erudito. O conservador sim, mas não o mumificador. Explicando: aquela antiga linguagem teatral não permaneceu cristalizada no Circo-Teatro. Pelo contrário. Como qualquer arte popular de origem ou de adoção, o Teatro no Circo foi se amoldando ao gosto popular, foi se aclimatando, foi sofrendo uma transformação regida pelo popular e não pelo erudito, transformação ditada, vamos dizer, pelas exigências do mercado. Sim, porque o espetáculo do Circo-Teatro tem uma finalidade imediata: ele não é feito para ser avaliado pelos entendidos ou pelos críticos em colunas especializadas, nem para ser comentado nas mesas dos bares da moda, nem para ir figurar nos anais da história do espetáculo. Não: Ele é feito para agradar o público, para que este volte no dia seguinte e compre seu ingresso na bilheteria para possibilitar ao artista a compra de comida no dia seguinte... e assim por diante. Para estar sempre ao gosto do seu público o Circo-Teatro, no decorrer da moda, incorporou os hula-hula de Dorothy Lamour, os sapateados de Doris Day, o programa de auditório, as chacretes, novelas, a discoteca... E essa onda do momento é ali colocada na mesma panela com ingredientes tradicionais, resultando uma linguagem antes de tudo popular e, por paradoxal que pareça, brasileira. Para retomar o fio da meada: em 1975 tomei contato com esse universo do Circo-Teatro e de lá para cá eu e um grupo de atores e de artistas plásticos temos nos dedicado ao estudo (ou compreensão?) dessa linguagem à primeira vista caótica mas na verdade tão rica e colorida que é de deixar qualquer Brecht ou Grotowski ou Stanislaviski ou Artaud pálidos.
A PESQUISA
Antes de continuar é preciso deixar claro que nós, os pesquisadores,
nunca quisemos fazer Circo-Teatro. Aqueles dramas, aquelas comédias, aquelas chanchadas, aquelas variedades só tem sentido lá, debaixo da lona, nos palcos altos e de madeira carcomida, vistos dos puleiros ou das cadeiras duras sobre a serragem... Como de resto toda a arte popular, esse Teatro só tem sentido naquele clima, que é absolutamente intransportável. Por outro lado é impossível desconsiderar essa coisa chamada formação: a arte que aquele povo faz tem toda uma característica impossível de ser assumida por nós, uma vez que eles são formados assim: O que eles fazem não é arte mas o seu ganha-pão; a forma 2 como eles fazem aprenderam fazendo, e orientados por outros mais velhos que já faziam assim e que por sua vez foram orientados por outros mais velhos e assim por diante. Quer dizer: eles não têm nenhuma postura crítica perante a sua arte (e - ironia! - eles sabem do “outro” Teatro, que eles chamam de “teatro mesmo” e que - acredito que também por tradição - respeitam muito, mas só vêem muito raramente). Enquanto que nós somos formados assim:... bem, deixa pra lá. O que importa é que nós procuramos despir a nossa fantasia de pesquisadores e fomos lá cheios de perguntas que não fizemos a ninguém diretamente: ficamos vendo, conversando e tentando nós mesmos respondê-las. Que Teatro o povo brasileiro vê? Quais são os elementos tradicionais? Por que processo umas “ondas” se transformam em elementos tradicionais? Por que outras não? Que ingredientes contêm os dramas, como O CÉU UNIU DOIS CORAÇÕES (foi o drama em que a tradição mais se manteve), que há aproximadamente cem anos são levados com sucesso (ainda hoje o drama citado resiste a duas ou três apresentações em cada praça)? O que emociona o público? O que faz rir? Que postura mental tem o artista para fazer seu público rir? Ou se emocionar? De que elementos é feita a “técnica” do artista? Onde ele sofreu, no seu trabalho, influência da TV, por exemplo? Como ele cria um tipo? Como ele se maqueia (maquia?)? Como se veste? Como são seus cenários? Que elementos de cena eles foram abandonando por considerarem inúteis? Por serem caros? Etc. Etc. Etc. É claro que, a partir desse contato quente com o Circo, tivemos que sair lendo muita coisa: vidas de artistas famosos do passado, histórias do Teatro, da Literatura, da Pintura, do Circo, e tal... Agora, nessa área nós só conseguimos confirmar o que já nos tinham dito: há pouquíssima coisa registrada. Você tem que pegar um pedacinho daqui, um pedacinho dali e adivinhar o que fica entre os dois pedacinhos. Mas adivinhando um pouco, vendo um pouco, conversando um pouco, pouco a pouco nós fomos respondendo a algumas perguntas, respostas estas que nós transformamos na base pela qual o nosso trabalho prático passou a ser construído. Respostas essas, portanto, que se transformaram em conceitos (arhghh!) sobre os quais eu não vou entrar em detalhe porque seria muito extenso. Mas acho que valeria a pena falar alguma coisa resumida sobre o trabalho. Assim: A pesquisa ficou dividida em dois blocos... O primeiro bloco foi desenvolvido junto com dois artistas plásticos e diz respeito, portanto, à parte visual. Os elementos de cena, a luz, a roupa, a maquilagem, a geografia do palco... o telão. Este último é o grande dominador da cenografia no Circo-Teatro, a partir do Teatro antigo. Essa cortina de pano pintado (alguns Circos conservam a técnica e o material de muito antigamente) é que cria os ambientes, os climas, os espaços, a perspectiva, a ilusão... Partimos então para as possibilidades de uso dessa cortina de pano pintado, para a experimentação de outros materiais na sua confecção. E, como se trata de um pintura, especial mas ainda assim uma pintura, a cor tem enorme importância... e foi surgindo a programação também da cor, daquilo que nós passamos a chamar de “tom-geral”, a cor como uma linguagem viva e dinâmica, também contando, apoiando a idéia a ser expressa. E, aprendendo com o próprio Circo a não ter preconceitos, fomos analisar o musical americano sim, por que não? E lá aprendemos muita coisa! E fomos analisar o uso do pano no cenário. E as formas 3 e as linhas impressas na cortina de pano pintado também têm sua linguagem dinâmica: apagam ou ressaltam ou aumentam ou diminuem ou... a figura humana colocada à sua frente, ou a ação dessa figura. E assim por diante. O segundo bloco foi desenvolvido junto com um grupo de atores e diz respeito portanto à interpretação. Estamos diante do Teatro Romântico (como, de resto, o gosto - e a arte - popular está impregnado dos valores do Romantismo). Nada de Stanislaviski, nada de quarta parede. O ator se entrega sim, ele se envolve sim, mas em nenhum momento ele se esquece que está num palco, nem por um segundo ele ignora o público. Pelo contrário: na maior parte das vezes ele “contracena” com o público, estabelecendo o que nós chamamos de “triângulo”. Assim: dois atores em cena; Um deve fazer uma pergunta para o OUTRO; UM faz a pergunta para o público e não diretamente para o OUTRO (nada de relação olho-no-olho, portanto); e o OUTRO responde também através do público. Parece uma coisa simples, mas essa forma de contracenar sempre “através” do público põe este último sempre no centro da representação. Outra forma de estabelecer o “triângulo” : as ações e reações de um ator (personagem) estão sempre abertas para o público ( não há psicologismos e por isso não há jogos escondidos). Se um ator, por exemplo, reage ao que um outro ator está dizendo ele “diz” (mesmo sem palavras) a sua reação diretamente para o público. Dessa forma pode-se também, por exemplo, valorizar muito cada nuança da intenção de um ator que fala, através da reação que ele causa no seu interlocutor. Mas vamos falar mais sobre o processo do Triângulo que é, observamos, a base de qualquer tipo de apresentação popular. O público é o vértice de maior peso no triângulo. É o CÚMPLICE na representação. É o CENTRO dela. É para ele que se CONTA a história, portanto ele é o dono dessa história. Muitas vezes ele conhece dados dela que ou um ou os outros dois vértices do triângulo (os atores) desconhecem. Ele conhece o caráter e a intenção de cada personagem, uma vez que cada ator, ao entrar em cena, deve ter como meta REVELAR o seu personagem, a intenção dele e, é claro, a sua ação dentro da ação (história). A partir dessa CUMPLICIDADE com o público, dessa CENTRALIZAÇÃO nele, dessa DOAÇÃO a ele da ação (história, representação) é que se estabelece a base do jogo teatral. Os gregos já sabiam disso. E as velhas peças românticas abriam margem para esse jogo através do A PARTE, que, em última análise, é a forma tosca a partir da qual, elaborando, nós chegamos ao processo do TRIÂNGULO. E infinitas são as possibilidades desse jogo. Uma delas é a CIÊNCIA: por exemplo, o MOÇO declara seu amor para a MOÇA. Mas o público já está ciente de que o MOÇO está mentindo (por revelação anterior ou no momento mesmo da ação). Dessa forma, a posição de cada um dos personagens, a sua ação e reação ficam ampliadas, teatralizadas. Outra é a SURPRESA: por exemplo, a um dado momento se descobre que o MOÇO está mentindo para descobrir algo que a MOÇA esconde (de que o público pode ter ciência ou não). Dessa forma os personagens mudam de repente, teatralmente, de posição perante ao público. Está claro que, acima, na tentativa de dar as bases simplifiquei e acabei quase que descrevendo a trama de um ingênuo drama circense (falei do amor, mocinho, mocinha, bom e mau). Mas é que são BASES mesmo. 4 Trabalhando sobre elas, elaborando, organizando, combinando, procura-se chegar a uma forma de interpretar. Até as mais elaboradas tramas, cheias de nuanças psicológicas. Trata-se de espicaçar o jogo teatral. Trata-se de assumir a teatralidade do Teatro. Trata-se de derrubar a quarta parede com picaretas, talvez, que modernamente têm sido repudiadas pelos donos-da-bola do Teatro. Trata-se, e sabemos disso, de assumir os cânones que tem sido apontados como os do mau Teatro. E por que não? Alguma coisa esse “mau Teatro” deve ter, já que continua envolvendo uma classe de público depois de mais de um século. E o que teria acontecido com esse Teatro se um Realismo não tivesse vindo partir o seu fio de evolução? E as atuais “ondas” de reação a esse Realismo de onde vieram? A que tradições se filiam? Serão realmente reações? ou novos ângulos do mesmo Realismo? Devolveram a teatralidade ao Teatro? Os outros dois vértices do triângulo estão no palco. São os atores. Certa vez fomos assistir a uma família chinesa num Circo. Eram equilibristas. A família era formada pelo pai, a mãe e nove filhos nas idades mais variadas. O espetáculo era lindíssimo. O pai e os nove filhos eram realmente muito bons artistas. E a mãe? Bem, a mãe não sabia fazer nada. Ela ajudava os artistas na troca e arrumação dos aparelhos e se colocava num ponto estratégico no decorrer dos números. E, no entanto, ela era a figura central do espetáculo. A platéia, ao mesmo tempo em que via os artistas, não conseguia se desligar dela. Por que? Sem dizer uma palavra, apenas sublinhando com expressões, ela “dimensionava” os números à medida em que eles iam se realizando: expectativa enquanto os artistas se preparavam; apreensão quando o número se aproximava do seu ponto mais difícil; desapontamento quando o número falhava (propositalmente, é claro) perto de se realizar; alívio quando o “difícil” do número passava; entusiasmo quando o artista pedia aplauso... Evidentemente a mãe estava colocada ali para valorizar a performance do artista, conferindo ao seu feito uma dificuldade que, de resto, muitas vezes ele não tinha. Colocada no palco como um espectador do número (identidade com o público) ela, numa relação direta com o espectador agia como se espelhasse a reação deste, quando na verdade estava mais é definindo essa reação. Ela fazia o que nós passamos a chamar de PONTE. Aqui seria interessante observar que não se deve confundir a PONTE com o ESCADA (apenas para lembrar: “escada” é o interlocutor de um palhaço, um cômico ou um personagem, que é colocado em cena apenas como pretexto para que o palhaço faça suas palhaçadas, o cômico diga suas piadas ou o personagem se manifeste), embora todo bom escada deva estabelecer a PONTE. * Muitas vezes a PONTE pode ser estabelecida pelo elemento central da cena (o palhaço, o cômico ou o personagem). Tentando elucidar: se um personagem diz um absurdo, o outro personagem reage a esse absurdo na PONTE, o que dimensiona o absurdo dito. Se o personagem que diz o absurdo tem consciência dele, ele próprio pode comentar isso (não necessariamente com palavras) na PONTE, antes ou depois ou ao mesmo tempo em que fala. E se não tem certeza do que esta dizendo, também na PONTE pode revelar essa dúvida. Enfim, o painel é riquíssimo no que diz respeito à PONTE e a sua dosagem ou lugar vai servir a um diferente “efeito” pretendido. 5 E eis-me aqui novamente tocando num ponto delicadíssimo no dito Teatro Moderno e simplesmente abominado pelos filhos de Stanislaviski: o EFEITO. Efeito cheira a forma. E nesse ponto seria bom que a gente chegasse logo a um acordo: NÓS CULTIVAMOS A FORMA. Os antigos atores conheciam e aprimoravam uma série de EFEITOS. Eles sabiam a forma de dizer melhor uma piada, o valor exato de uma pausa, a maneira de se colocar em cena dependendo do clima a ser criado ou do caráter a ser revelado. Não é por acaso que o Circo-Teatro ainda conserva uma fuga central no cenário. Não se trata dessas atuais convenções pobres, tais como: “a fuga da esquerda leva ao quarto, a do centro à cozinha, a da direita leva à rua...” Não. Trata-se de uma consciência exata do valor (efeito) da entrada ou saída de um ator de cena. Cada personagem que entra em cena, se o ator souber entrar, só pode levar a peteca pra cima. Cada personagem que sai, se o ator souber sair, deixará a peteca em cima. Se um personagem tem caráter positivo, se ele “chega”, entrará pela fuga do meio: como num passe de mágica a figura aparecerá no meio da cena. Da mesma forma, se um personagem tem caráter dissimulado, se sua ação é sorrateira, ele entra ou sai pelas laterais. Parece um processo ingênuo, mas o EFEITO é matemático. Sabe-se que os “ vilões dos velhos dramas não só entravam em cena pelas laterais como cobrindo parte do rosto (do nariz pra baixo) com uma capa negra. Trata-se, talvez, da forma tosca desse jogo teatral a que nós denominamos EFEITO. Trata-se também da forma tosca desse dado de representação que para nós se transformou em meta a ser atingida pelo ator, à qual eu já me referi e que nós chamamos de REVELAÇÃO. Os velhos dramas românticos, no seu maniqueísmo desvairado, continham sempre determinados “tipos” de personagem. Os atores, dependendo do seu tipo físico somado à sua personalidade, se especializavam em cada um desses “tipos”. A forma de representar esses personagens se tornou tradicional e os atores, especializados, passaram a receber o nome do tipo que representavam. Assim, toda Companhia tinha a sua “ingênua”, o seu “galã”, a sua “dama-galã”, o seu “vilão”, a sua “sobrete”, o seu “cômico” e etc. (Sem dúvida os ancestrais desses “tipos” estão na commedia dell’arte italiana: o Arlequim, a Colombina, o Pantaleão, etc) Rompida a primeira casca do “tipo”, observamos que havia mais no ator que o representava. Assim, uma “ingênua” não era somente um tipo físico e uma personalidade, mas um estado-de- espírito da atriz. Entrando embuída desse estado-de-espírito a atriz REVELAVA, já no seu primeiro passo em cena, o seu personagem. Sem equívocos, sem fumaças, sem meios tons: sim o EXATO. Perseguindo o processo da REVELAÇÃO nós fomos nos exercitando num trabalho de interpretação que busca o limpo, o direto, o contundente. Nisso muito nos ajudou uma passada pelo Teatro japonês, principalmente o nô, onde um pequeno gesto de ombro tem enorme dimensão e é prenhe de clareza e significado exatamente porque é “dado” no meio de total imobilidade. Forma? Estereótipo? Estereótipo sim. E se ao seu estudo nos jogamos, se fizemos dele uma das bases a partir da qual estamos elaborando, inventando, é porque percebemos que não existe o mau estereótipo. Existe, sim, o mau ator. Assim: Um 6 certo número de “dramas” fazem parte do repertório dos grandes Circo-Teatros e por isso nós assistimos a alguns deles representados por três ou quatro elencos diferentes. Determinados “achados” (“gag”, “caco” de alguns atores) já caíram na tradição e, constando já como indicações nos textos, são repetidos por todos os elencos. A FORMA (estereótipos) de representar determinados personagens também já é tradicional. Pois bem: Em determinados Circo-Teatros o tal “achado” ou a tal “forma de representar” tem um tempo teatral exato e funcionam perfeitamente; em determinados outros são uma verdadeira tristeza. Por que será? Acho que é porque não há estereótipo puro, há ator burro. Ah - vão dizer, dando uma olhada nas bases acima expostas -, algumas coisas cheiram a Brecht. E cheiram mesmo. Acho que é porque Brecht estabeleceu as bases de seu método indo pesquisar as formas populares de representação. Talvez aí esteja o ponto de contato: no popular. Ë claro que popular brasileiro é diferente de popular alemão... mas deve haver pontos de contato. Deve, digo, porque não conheço o popular alemão. Estou tentando conhecer o brasileiro. Mas o que nós estamos perseguindo é um Teatro teatral. É um Teatro que conta histórias, um Teatro envolvente, gostoso, um Teatro do “como será que eles fizeram?” Um Teatro do bonito. Enfim, pra largar mão de querer ser original, o tão cantado Teatro da magia teatral (?) É de mentira mas é como se fosse de verdade. É de papelão mas é pedra. É irreal mas a gente acredita. A gente acredita. Há uma imagem que a gente costuma repetir para tentar explicar e que é um jogo de perspectivas: Coloca-se um telão num palco. No telão está pintada uma estrada ( em perspectiva), que começa no palco e acaba no horizonte lá longe, criando um espaço ilusório, dando uma sensação de profundidade. Na frente desse telão põe-se um ator. Ilumina-se esse ator. A sua sombra será projetada num telão, revelando a cortina de pano pintado que é o telão, revelando o espaço verdadeiro. O resultado é o seguinte: A gente vê a sombra em duas dimensões( a verdade) revelando o espaço verdadeiro, projetada sobre o telão da estrada em três dimensões ( a mentira ) revelando o espaço ilusório. Essas duas imagens se justapõem, se casam. E a gente acredita nas duas. É isso.
A PRÁTICA
Vamos agora tentar uma exposição bem didática. Assim: Ao fazer
Teatro deve-se ter presente dois grandes enfoques: 1o. COMO fazer 2o. PARA QUEM fazer A minha experiência no Teatro de Cordel de São Paulo junto com os artistas dos dois blocos, abriu para nós os caminhos do primeiro enfoque: o enfoque do COMO. A esta altura, depois de alguns anos de trabalho com o material, eu já não tenho nenhuma dúvida de que não é preciso ir ver como o Peter Brook, o Grotowiski, o Bob Wilson ou os seguidores de Brecht ou do Stanislaviski trabalham para se encontrar inspiração para um bom teatro. Existe também a questão da ÓTICA. Nós temos visto nos palcos brasileiros cópias de espetáculos estrangeiros - a tal ponto que eu e um amigo, num dia destes, 7 estávamos discutindo sobre um detalhe de cena de um espetáculo produzido em São Paulo e de repente nos lembramos que eu tinha visto o espetáculo aqui e ele em Londres: era idêntico. Mas, eu dizia, não se trata de uma questão de CÓPIA, mas também de uma questão de ÓTICA. Muitos espetáculos que tem como características de experimentação e que vão buscar até no índio do Xingu a sua vestimenta, no entanto tem uma ÓTICA importada. A forma de abordar, de dispor a vestimenta aqui encontrada se subordina à risca a uma estética ditada por experimentadores de fora. Não que eu ache que isso seja mau não: Nada de preconceitos verde-amarelos. Mas é que eu sempre desconfiei que aqui mesmo, ali na periferia, há uma riqueza incrível de material para pesquisar, não enquanto vestimenta apenas, mas enquanto ÓTICA mesmo. E não só na periferia, no Teatro feito sobre lona, mas também no folclore, nas danças dramáticas, no Teatro popular aportado no Brasil bem antes das Companhias principalmente portuguesas (os “Pássaros” de Belém do Pára, os Mamulengos do Norte e Nordeste, por exemplo) e por isso já bem mais aclimatados, amalgamados ou quando se trata de folclore então a pesquisa se torna muito mais difícil porque um grupo de pessoas como nós, sem muitos recursos financeiros, não pode se locomover pelo país para VER e tem que se contentar com os slides de alguns folcloristas de boa vontade e alguns discos e livros com exaustivas descrições “frias” . Bem, mas apesar disso basta ir lá (principalmente no Circo-Teatro porque está mais à mão) com um mínimo de sensibilidade e o interesse focado não no bizarro mas no essencial, que gradativamente a tal ÓTICA vai mudando e gradativamente a gente vai mergulhando num mundo riquíssimo de estímulos. Agora, para ser muito prático é preciso levar em consideração uma coisa: para que qualquer trabalho de pesquisa tenha continuidade é preciso que ele seja percebido pelo status cultural, o qual tem acesso aos meios de comunicação, os quais poderão difundi-lo, o que fará com que o trabalho seja visto e comentado, o que lhe dará (ao trabalho) a sua merecida estatura (grande ou pequena, não importa). E, por estranho que possa parecer num país como o Brasil, é esse mesmo status cultural que detém o arbítrio de distribuição das verbas oficiais, as quais possibilitam a continuidade de muitos trabalhos (“grandes” ou “pequenos”, não importa) nos palcos brasileiros. E... Vamos tentar analisar essas cabeças? Para a grande maioria delas Teatro Popular BRASILEIRO é sinônimo de coisa-sem-interesse-cultural, coisa-mal-feita, coisa-pouco-artística, coisa-indígna-de-constar-nos-anais, coisa-merecedora-de-prêmio-especial (espécie de prêmio de consolação para pessoas esforçadas, coitadas). A grande maioria delas mitifica por exemplo um Teatro que tem como embasamento a manifestação popular ALEMÃ (é uma questão de geografia, como se vê). (Felizmente o status cultural alemão não é feito pelas mesmas cabeças e reconhece a grandeza da sua arte popular e a apoia e a divulga felizmente, caso contrário o tal status brasileiro não teria o que santificar). A grande maioria delas sofre de um ranço classicista que só lhes permite ver as coisas segundo os cânones que tem na algibeira e que foram ditados ou pelo tempo ou pela geografia (é a mesma questão de ÓTICA atrás referida) . Algumas poucas delas - pouco mais iluminadas mas não tanto que dê pra perceber o que vai além do superficial - se dignaram a ir ver o nosso trabalho, classificando-o como “baseado no espírito circense”. Algumas menos ainda delas conseguem perceber o “bom 8 rendimento interpretativo”, sem jamais conseguir perceber o processo, a pesquisa, o embasamento, o essencial do trabalho. Estávamos com um espetáculo de Gil Vicente em cartaz e pleiteamos, como qualquer Companhia com peça em cartaz, uma verba oficial. Acontece que a pessoa que arbitrava a distribuição dessa verba, obviamente representante do tal status cultural, já tinha sido “aconselhada” por uma senhora, dessas dignas guardiãs da Cultura (observe-se o C em caixa-alta), que tinha ido ver um espetáculo nosso de Martins Pena e tinha pasmado por não ver os atores com atitudes molierescas (“já que se trata do Molière brasileiro!”), por não ver uma encenação à imagem e semelhança da Commèdie Française. Essa senhora tinha visto, isto sim, o resultado de um detalhado estudo das várias etapas do Teatro brasileiro até Martins Pena, estudo este que nós havíamos transformado num prólogo escrito por mim e apresentado em forma de esquetes e números musicais. E não gostou. Esta senhora tinha visto, isto sim, um Martins Pena encarado segundo uma estética teatral brasileira, encontrada por nós ainda viva no Teatro feito sob lona. E não gostou. Essa senhora tinha assistido a uma aula de Teatro Brasileiro dada a quinhentos jovens (seus alunos) que riram o tempo todo e compreenderam e participaram e aprenderam ( conversamos com eles depois do espetáculo como sempre fazíamos com as nossas platéias estudantis) - a quinhentos jovens que não durmiram. Mas ela não gostou. Ela achou um ultraje ao brasileiro Martins Pena a nossa forma brasileira de encará-lo. Ela achou um ultraje ao popular Martins Pena a nossa forma popular de encará-lo. Ela achou que os nossos atores eram péssimos porque usavam a forma “menor” de representar de frente para o público. E muito mais. Bem, mas o que importa é que aquela pessoa que arbitrava as verbas oficiais e que fora “aconselhada” pela tal senhora culta, inquirida por nós sobre a quantia irrisória que estava nos dando, sem nunca ter visto o nosso trabalho e sem ter portanto outro argumento respondeu: “Ora, é porque Gil Vicente não tem importância”. Sem dúvida uma questão de ÓTICA.
PARA QUEM?
Mas, eu dizia, saímos da experiência no Teatro de Cordel de São
Paulo com algumas bases estabelecidas e um processo de experimentação em desenvolvimento. Era preciso continuar. E essa oportunidade veio em 1976 com um convite do Serviço Social do Comércio: Juntar um grupo de artistas, montar uma peça e inventar um palco desmontável para realizar essa peça em praça pública. Era um desafio! Era mais estranho ainda para a nossa formação do que fazer Teatro num pavilhão-circo: era fazer Teatro “para quem, passando, parasse um pouco para ver”. Era um Teatro realmente popular. Quanto ao local: podíamos levar o palco para as praças do centro da cidade, para as dos bairros, para as dos subúrbios, para as das cidades do interior. E quanto ao público: Nem o poder aquisitivo nem o nível intelectual iriam selecionar a platéia, uma vez que o espetáculo se daria em praça pública. Pública. Então tinha que ser um Teatro realmente popular também quanto ao espetáculo. Sim, porque o PARA QUEM define o COMO. 9 E saímos novamente a campo... E só aí que fomos tomar contato com a já acadêmica controvérsia sobre o que seja o Teatro Popular. Há pessoas que acham que se vai fazer Teatro para o povo, então tem-se a obrigação de fazer um Teatro doutrinário, catequético, político, politizante e sei eu mais o quê. Há pessoas que fazem Teatro popular politizante e cobram cento e vinte cruzeiros o ingresso. Paradoxo? Não sei responder a essa pergunta. Só sei que fomos conversar com pessoas que fazem ou fizeram Teatro popular. E o dirigente de um grupo me relatou o seguinte: Eles montaram uma peça que punha no palco os problemas mais graves dos operários. No fim do espetáculo eles perguntavam para os operários sobre a veracidade do que eles tinham visto e a resposta era sempre esta: “Ah, essa é a pura verdade sim: comigo não acontece, Deus me livre, mas com o meu vizinho está acontecendo todo dia.” Conversando com um integrante de um extinto e reconhecidíssimo grupo de Teatro Popular ouvi o seguinte: “Nós éramos acusados de fazer teatro popular politizante para burguesia que podia pagar o preço do ingresso. Montamos então um espetáculo que era feito na carroceria de um caminhão numa elevação do terreno e nos pusemos a preparar o espetáculo, os camponeses nos olhando de soslaio, desconfiados. Começou o espetáculo: um ator subiu no palco e começou a falar sobre sua vida de camponês. Os camponeses pararam de trabalhar e se debruçaram no cabo da enxada, ouvindo. O camponês-ator continuou a falar sobre sua miséria de camponês, sobre seu dia de camponês, sobre suas mãos calejadas de camponês. Os camponeses-de-verdade fizeram um muxoxo e voltaram a lavrar a terra com suas enxadas, dizendo: quer contar pra nós como é a nossa vida? E conversando com um velho ator de Circo-Teatro, ele me disse “Praça pública?! Chi... vocês não sabem o que é!... No ano passado eu fui fazer o Cristo da Paixão de Cristo numa praça aí dum bairro e sabe que o público me fez? Me jogou tomate. Imagina, jogar tomate no Cristo!!!” E no prefácio a FOGO MORTO de José Lins do Rego encontrei uma opinião de Otto Maria Carpeaux sobre o que seja literatura popular. No texto, mude-se a palavra literatura pela palavra teatro e se terá, creio eu, um belo enfoque do que seja Teatro Popular: “Há um mal entendido em torno do conceito de literatura popular. Os romances que tratam dos pobres, dos míseros, dos humildes, do povo, são literatura dos ricos, dos cultos, dos literatos. O próprio povo não gosta da literatura popular; prefere a outra, que lhe parece literatura culta e que lhe conta histórias de banqueiros ladrões e datilógrafas princesas; prefere Carlos Magno e os heróis do cinema. A verdadeira literatura popular é grande literatura; é diferente, é popular apenas pelo estilo diferente, estilo de tempos passados, arcaico...” O trabalho no SESC, somando o tempo de preparação ao de apresentações, durou aproximadamente um ano. Montamos um espetáculo a partir do texto de Antonio José da Silva, o Judeu, A VIDA DO GRANDE DON QUIXOTE DE LA MANCHA E DO GORDO SANCHO PANÇA. Apresentamos esse trabalho setenta e duas vezes, em praças públicas e galpões cobertos, desde a praça da República, no centro de São Paulo, até Bertioga, um vilarejo do litoral. 10 Tivemos uma média de duas mil pessoas para cada espetáculo. Uma vez fizemos na areia da praia, em Santos. Tivemos um público calculado em cinco mil pessoas. Foi um tempo de intimidade diária com a nossa pesquisa. Ampliamos os nossos contatos com o folclore (ainda que na maioria das vezes com o folclore-de-slaide). Voltamos ao Circo-Teatro. Reformulamos algumas bases. Desenvolvemos outras. Ampliamos as possibilidades do telão-cenário. Fizemos um estudo detalhado da FORMA na interpretação. O próprio espaço da praça é definitivo de um estilo de interpretação. A céu aberto não há detalhe intimista que resista. Nem detalhe de qualquer espécie. Então o desenho limpo, o risco forte continuaram sendo nossas metas não só na elaboração dos personagens como de todo o clima cênico. E também da história a ser contada. A originalidade é uma invenção da cultura elitizada. O povo gosta de “rever” os seus heróis em ação. Heróis quer dizer: personagens de quem ele já ouviu falar, de preferência em situações já conhecidas - prova disso são os esquetes circenses que, do ponto de vista da situação apresentada, podem ser divididos em quatro ou cinco grupos e que são encenados através dos tempos sempre com a mesma eficácia cômica. E o processo de TRIÂNGULO, na praça, se estabelece de uma forma natural, uma vez que a reação do público é imediata e clara, vaiando sempre o vilão, torcendo sempre pelo personagem com que ele mais simpatiza e que coincide sempre com o mais esfarrapado, o mais faminto, o mais terra-a-terra e o mais esperto sempre. Já com o herói o povo não se mete. Ao herói ele assiste apenas. Com tão maior respeito quanto maior for a Paixão com a qual esse herói ande às voltas. E a FANTASIA. Ninguém pretenda merecer a atenção do público da praça oferecendo a ele o corriqueiro. Levar o dia-a-dia para o palco, só se for para rir dele, exagerando o seu absurdo, complicando as peripécias necessárias para vivê-lo, valorizando a esperteza indispensável para encará-lo. Iluminando-lhe, portanto, o lado fantástico. O movimento, o luxo, a cor, a beleza, o irreal, a FANTASIA, isso sim faz o povo parar para ver. Então “descobriremos” o boneco como linguagem teatral popular. Fizemos um laboratório-de-bonecos onde nós os criávamos, os confeccionávamos e nos exercitávamos no seu uso. E esse exercício, ainda que por acaso, nos remeteu ao nosso processo de interpretação, acrescentando-o. Porque essa história da magia do boneco é velha como a nossa própria arte titiriteira e, descobrimos, verdadeira. Ao manejar um boneco, na tentativa de insuflar-lhe vida, o ator estabelece com ele não sei que tipo de ligação “mágica”, só sei que tão íntima que a um dado momento não sabe se o boneco responde à sua vontade ou se tem vontade própria. E há alguma coisa que é semelhante a ao mesmo tempo interpretar e ver interpretado um personagem. E um boneco é uma coisa sem frescura: sua ligação com a platéia é clara e instantânea. Ele materializa com perfeição a tal PONTE entre manejador-ator e a platéia. E mais, muito mais nos ensinou esse professor (sem querer fazer figura) que é o boneco. Por exemplo, nos levou a um estudo detalhado da criação de tipos (não é preciso explicar a analogia) desde o traje, o aplique, o enchimento, a postura, a voz... até a emoção. A emoção sim, porque o Circo-Teatro nos mostrou, como já foi referido, que é preciso cuidar do que vai por dentro da FORMA (tipo). Outro exemplo diz respeito 11 à contribuição do ator para a elaboração do espetáculo: como é o boneco que “enfrenta” a platéia, está até um certo ponto eliminado o fantasma da crítica ou auto-crítica, o que obviamente define para o ator uma postura bem mais criativa. E assim muitas idéias e soluções para o espetáculo foram levadas pelos atores através dos bonecos. E etc. O contato com o público da praça foi riquíssimo para o trabalho. Só ele daria todo um estudo sobre o comportamento do público brasileiro, que evidentemente não caberia aqui. Mas talvez seja interessante relatar alguns fatos. Teatro na praça é uma verdadeira festa. Que começa já na armação do palco. Os “donos” da praça: os velhinhos dos bancos ao solo, os vendedores de amendoim, o moço da banca de jornal, o engraxate, o pipoqueiro... primeiro se aproximam curiosos, cautelosos; depois começam a perguntar. E não demora nada já estão carregando tábua, amarrando lona, esticando telão. E tem a moça daquela casa ali que oferece, pois não, o banheiro pras moças e corre com o metiolate “para aquele moço que se martelou, coitado, e quase que esmaga a cabeça do dedo”. E todos assistem a quanta apresentação houver. E já na segunda “ajudam” o elenco a cantar músicas e a platéia a conhecer alguns fatos da peça antes deles acontecerem. Atrás do nosso palco havia uma barraca de lona colorida que servia de camarim e coxia ao mesmo tempo. Mas, sempre que possível, nós fazíamos a maquilagem do lado de fora da barraca. E nos impressionava a atenção e o respeito com que um grande número de pessoas se aproximavam e ficavam assistindo aos atores pintarem a cara. Havia uma determinação do elenco de não reprimir as manifestações dos espectadores - pelo menos não reprimi-las “até o ponto que desce (desse?)” - e sim, pelo contrário, tentar incorporá-las na representação. Pois em nenhuma das setenta e duas apresentações que fizemos essas manifestações chegaram “até o ponto que desse”, isto é, nós nunca precisamos parar o espetáculo para pedir respeito pelo nosso trabalho porque, quando surgia algum espectador menos interessado, ele só conseguia importunar até o ponto em que não prejudicava o andamento da peça: nesse ponto os próprios outros espectadores se encarregavam de calá-lo. Aliás, quanto a esse manejo da platéia eu ainda não tenho dados organizáveis a fim de avaliar a sua importância no processo de evolução do ator. O que eu sei dizer é que esses atores, voltando para salas fechadas, demonstraram uma desenvoltura cênica que eu raramente tinha visto em outros atores, nem neles mesmos, antes. No fundo do palco havia a caixa dos telões, que era fechada por uma cortina. Cada vez que essa cortina abria o público se defrontava com uma nova paisagem, um novo colorido, um novo espaço. E no chão do palco havia cinco alçapões, pelos quais surgiam e apareciam personagens, bolas-de-gás, enormes bonecos, etc. O conjunto funcionava como uma caixa-mágica, exacerbando muito a imaginação da platéia. A tal ponto que, certa vez, durante o espetáculo, um menino de uns dez anos não se conteve e levantando a lona que circundava o palco e deparando com um ator desafiou-o: “Hum, quero ver você fazer sair daí, agora, uma... uma girafa.” O público da praça é o mais fiel público de Teatro que há. Muitas vezes tivemos que fazer o espetáculo sob garoa, arriscando a integridade dos 12 nossos figurinos, bonecos e outros materiais de cena porque, às vezes abrindo guarda-chuvas, o público não arredava o pé. Certa vez estávamos na Praça da República, representando sob garoa para um público de aproximadamente duas mil pessoas. Quando íamos dar início ao último quadro da peça - que era feita em quadros mais ou menos independentes -, a chuva apertou e o povo começou a debandar a procura de abrigo. Apenas para dar algum arremate à função anunciamos pelo alto-falante que parávamos o espetáculo ali e que voltaríamos caso a chuva parasse. Coisa que não nos parecia provável. Por isso fomos trocar de roupa e começar a acomodar todo o material da peça. A um dado momento um ator, olhando pelo vão da cortina, gritou: “Gente, corre aqui!” A pancada de chuva tinha amainado e o povo, guarda-chuvas abertos, tinha voltado todo a espera de que cumpríssemos o que tínhamos prometido. Corremos a nos vestir e voltamos para o palco e, sob chuva fina, terminamos o espetáculo daquela noite. E quando desarmávamos o palco, quando as grandes caixas de madeira subiam para o caminhão, procurávamos não olhar para os “donos” da praça. Não conseguíamos enfrentar a melancolia daqueles olhos. Tristeza que deixa a festa que acabou. E mais uma vez a inteligência brasileira se manteve calada, fria, indiferente. Pouquíssimos críticos compareceram à praça, que era quando o espetáculo atingia a sua verdadeira estatura. Apenas dois ou três. Talvez os mais jovens (e eu não estou falando de idade). E uma vez eu estava num restaurante da moda quando um colega-ator veio me dizer: “Você viu aquilo? Eu passei ali na Praça da República e vi assim de longe uma representação.” E eu expliquei: “Éramos nós”. E ele: “Credo! Fazendo teatro na praça?! Vocês ficaram loucos?” Então vão me perguntar: E quem tem dois mil espectadores em média para cada representação precisa da opinião dos críticos? E eu respondo: Precisa. Não é muito difícil perceber que o Teatro feito em praça, gratuitamente, tem que ser financiado por alguma entidade oficial ou semi-oficial. E entidades como o SESC são dirigidas por várias cabeças, algumas das quais absolutamente vulneráveis à opinião, ao comentário, às publicações do status cultural... Em março de 1977 o SESC retirou o financiamento ao nosso trabalho. Não porque ele fosse culturalmente sem importância ou menos sério, tenho certeza. E se a tenho é porque sei da opinião de alguns homens nos quais confio. Num deles a própria inteligência confia ainda hoje, como confiava há alguns anos atrás, antes que ele se retirasse do jornalismo (por que motivo será?). Trata-se do Dr. Décio de Almeida Prado. Mas foi um ano em que nós pudemos trabalhar diariamente com o nosso material: o Teatro Brasileiro... o Teatro. E pudemos pensar, criar, progredir e experimentar. E da experiência nós saímos um pouco mais sábios e um pouco mais maduros: Nós achamos que Teatro é a hora de encher os olhos. É a hora de aprender sim, mas pelo amor de Deus não um ensinamento de cima para baixo, sectário, de uma verdade previamente selecionada, porque então a gente vai na escola. É a hora de aprender através do bonito, da emoção... do artístico - deixa eu dizer assim? É a hora de penetrar na vida dos outros, daqueles personagens incríveis, incomuns, enormes dos quais a gente já ouve falar faz tempo. É a hora de olhar para a intimidade dos reis. É a hora de ficar frente a frente com os 13 eternos grandes medos do homem e que provocam nele o arrepio de atração do abismo: o incesto, o matricídio, o canibalismo, a traição, a paixão cega, a morte... e outros. É a hora de se ver no espelhado sim, mas não num espelho comum, que esse a gente tem no guarda-roupa, mas num daqueles espelhos que fazem a gente rir se vendo de uma forma inesperada. É a hora de rir.