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INÚTIL PARTO

Adaptação de Thiago Nascimento a partir das obras de Plínio Marcos e Jhonny


Salaberg.

PERSONAGENS:

NARRAÇÃO UMA GUARDA

CORALIDADES TELMA

ROSE ELAINE

BERECO PAULA

PORTUGA DONA GLÓRIA

BAHIA LEONA

LOUCO MULHER BRANCA

TIRICA POLICIAL

FUMAÇA ATOR NEGRO

PROFESSORA AGENTE PENITENCIÁRIO

AMANTE CARCEREIRO

SANTA CARCEREIROS

UM PRESO

PAVILHÃO
01________________________________________________________

1
Diversos corpos de pessoas encarceradas estão empilhados e espremidos uns nos
outros em um pequeno cubículo. Dentre elas, algumas mulheres que seguram
bebês recém-nascidos. Todos dormem.

NARRAÇÃO - Espremidos. Empilhados. Esmagados. Eram vinte e cinco homens.


Repito. Eram vinte e cinco mulheres. Vinte e cinco pessoas empilhadas.
Espremidas. Esmagadas de corpo e alma num cubículo onde mal caberiam oito
pessoas. E em meio a elas, as recém-nascidas deste pavilhão. Que ainda nem
sequer sabem que já pagam pelo crime que todos nós cometemos! São vinte e
cinco homens e mulheres que nasceram para morrer. Para morrer aos poucos. Para
morrer de forma que pareça natural. Para morrer simplesmente.

Um grito coletivo. Os corpos empilhados acordam de um pesadelo. Narram para a


plateia o que viram no pesadelo. Sonharam com o dia de suas mortes. Narram.

PAVILHÃO
02________________________________________________________

ROSE - Eu queria que tivesse sido só um sonho. Mas desde então, tem sido o meu
pior pesadelo. Fui presa. Sentenciada a nove anos e seis meses por associação ao
tráfico de drogas, e eu vim parar nesse corró com um barrigão, prestes a parir.
Maldita seja a sociedade que confina homens e mulheres num lugar onde seria
crime aprisionar até a besta fera. Me deram um número de matrícula e me jogaram
nessa cela. E aqui eu fiquei, sem sol, sem chuva… Esperando… Esperando…
Esperando nem que seja uma visita… Mas não… Visita? Apenas a visita das
pestes…

CORO - (Enquanto narram, se coçam) E aqui, esmagados entre grades de ferro e


paredes úmidas, recebemos a visita das pragas. Primeiro, foram as moscas, que
lamberam nossos excrementos e cuspiram em nossas feridas. Depois veio a sarna.
A sarna e a coceira da sarna. E a muquirana e a coceira da muquirana. E a
sanguessuga e a coceira da sanguessuga. As pestes e as pragas nunca deixam de
nos visitar. Elas sempre vem.

CORO - E é assim que as coisas funcionam para nós, espremidos de corpo e alma
nesse chiqueiro onde não caberiam oito pessoas. Uma vez por semana, nós temos
o direito de receber visitas de parentes, não de pragas, não de pestes, mas de
amantes, e às vezes traficantes que nos dão dinheiro ou cigarro. E com o dinheiro e
com o cigarro subornamos o carcereiro a toda hora e compramos a cachaça e a
maconha… Muita maconha…

Música “Nhacoma”, de Expressão Regueira. Os presos e presas fumam.

CORO - A maconha não pode faltar. A maconha tem que entrar. Regulada.
Controlada. Não muita, para não provocar uma alucinação capaz de romper as
grades de ferro, mas não pode faltar ao ponto de provocar uma ansiedade capaz de
romper as grades de ferro.

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Se destacam Fumaça, Bereco e Portuga. Fumam.

FUMAÇA – Como é, Bereco? Ta do bom esse fumo?

BERECO – Tá do bom…

FUMAÇA – (Para o público) É preciso uma distração para suportar os dias de


espera de um julgamento que nunca chega.

BERECO – Que dia é hoje?

PORTUGA – Terça.

FUMAÇA – Quinta.

PORTUGA – À medida que o tempo passa, ele se torna mais lento.

Ações em câmera lenta. Fumam em câmera lenta.

FUMAÇA – Um tempo lento…

BERECO – Tenso…

FUMAÇA – Massacrante…

BERECO – Que nos deixa tensos e perdidos nas solidões do nosso tédio.

FUMAÇA - A brisa é tão chapada, que faz até com que os portões se abram…

BERECO - É preciso uma distração para suportar os dias de espera de um


julgamento que nunca chega.

PORTUGA - Os portões se abrem… Hoje é dia de visita.

PAVILHÃO
03________________________________________________________

É dia de visita no presídio masculino. Rose, grávida, encontra o seu marido, Bahia.

BAHIA - Tô precisando que você traga uma encomenda pra mim aqui dentro da
cadeia.

ROSE - Como assim encomenda?

BAHIA - Tô precisando pagar umas dívidas.

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ROSE - Que dívidas, Bahia?

BAHIA - Umas pesadas. Tô precisando da sua ajuda.

ROSE - Que tipo de coisa que eu tenho que trazer?

BAHIA - Algo que você tem que trazer muito bem escondido pra não ser
descoberta.

ROSE - O quê?

BAHIA - Maconha.

ROSE - E como é que eu vou fazer isso, Bahia? Eles olham todas as vasilhas,
abrem as comidas. No jumbo não dá. Nos maços de cigarro também não, eles
olham tudo. Nem nos sabonetes, pasta de dente, nem na minha roupa, eles reviram
tudo. Onde?

BAHIA - No seu corpo.

ROSE - Eu tô grávida.

BAHIA - É caso de vida ou morte.

ROSE - Eu não quero fazer isso, não. Eu já vi várias rodarem na revista. Eu tenho
uma filha lá fora. Quem vai cuidar dela? Quem?

Pausa. Entra a PROFESSORA e se destaca.

PROFESSORA - Eu era de acreditar. Eu era de acreditar… Militante política, tava


em todas! Movimento estudantil. Movimento dos professores. Movimento de
periferia, dos trabalhadores de cultura… Companheiros! Casei com um
companheiro. Logo no início ele perdeu o emprego, largou, porque não podia dar
aula pressionado pelo sistema. Eu? Trabalhava. De manhã, de tarde e de noite. Era
uma máquina de dar aula. Meu marido me batia, me xingava, roubava meu dinheiro
pra beber, ameaçava me matar se eu me separasse dele. Uma merda de vida! Eu
era de acreditar na educação. Mas aí, passei a cuspir o conteúdo em cima dos
alunos. Uma merda! Eu era jovem, bonita, e tendo que dormir com um garrafão de
álcool toda noite. E eu… Tava viva. Tinha tesão. Um me cantava. Outro. Outras.
Meu marido ficava cada vez mais violento, mais ciumento, ameaçador! Mas um dia,
sei lá… Dei! Quase três anos sem trepar. Reprimida. Dei! Dei! Dei! O meu amante
me dizia…

Se destaca o AMANTE.

AMANTE - E essa situação? Esse bêbado tem que morrer. É violento com você.
Tiraniza a sua vida. Tem que morrer!

PROFESSORA - Dei! Dei! Dei!

AMANTE - Todo pequeno e grande tirano tem que morrer. Não era isso que você
acreditava?

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PROFESSORA - Era. Era isso que eu acreditava.

AMANTE - O plano é o seguinte: você vai dormir, deixa a porta encostada, eu entro,
te amarro, mato ele, ele se fode e a gente fica numa boa!

PROFESSORA - O cara pra quem meu amante vendeu a televisão foi pego… E o
meu querido amante me entregou!

AMANTE - Foi ela! Ela tramou e me induziu!

PROFESSORA - Eu tramei? Eu tramei?

AMANTE - Foi ela! Ela tramou e me induziu!

PROFESSORA - Resultado. Olha eu aqui…

Santa se destaca, entra com uma bíblia nas mãos, e interage com a Professora.

SANTA – Meu marido! Eu também tô aqui por culpa do meu marido! Mas eu rezo!
Leio a bíblia. O pastor me disse que se eu, no fundo do meu coração, me
arrepender do crime que pratiquei, serei perdoada. Eu me arrependo. Matei meu
marido também. Ele dormia... Eu matei ele. Ele me desprezava. Me batia. Matei.
Mas se eu não matasse, eu é que morreria. Na verdade, acho que eu já tava morta
por dentro. Mas me arrependo. Me arrependo muito. (Para a Professora) Se
arrepende também, Professora! O pastor disse que quem se arrepende não vai pro
inferno. Quem se arrepende não vai pro inferno! Quem se arrepende não vai pro
inferno!

PROFESSORA - Acorda, Santa! Nós já estamos no inferno.

CORO - No inferno os pecadores disputam comida, disputam os colchões, mas


todos tem medo de dormir. Aqui no inferno os pecadores disputam a água suja que
de vez em vez escorre de um cano sujo enferrujado.

UM PRESO - Não vai cagar, não! Essa porra tá entupida. Fedô da porra!

CORO - E em mais um dia de visita das pragas, vieram os cancros, vieram as


doenças venéreas, sífilis, o vírus da AIDS . Aqui nesse inferno! Nossos pêlos caem.
Nossos olhos purgam. Aqui nesse inferno, nesse cubículo onde mal caberiam oito
pessoas, estamos sendo roídos por dentro.

PAVILHÃO
04________________________________________________________

Rose, grávida, está na revista do presídio masculino. A Guarda a acompanha.

ROSE - Eu não sabia conter meu nervosismo. Entrei na portaria, entreguei meus
documentos e a sacola de jumbo. Uma guarda alta, que eu nunca tinha visto por
ali, me chamou pra sala de revista.

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GUARDA - Pode vir comigo.

ROSE - Tirei minhas roupas e fiz o protocolo.

Rose faz sete agachamentos sobre um espelho enquanto narra.

ROSE - UM: Eu não posso ser pega de jeito nenhum! Quem vai cuidar da minha
filha? Agacha. DOIS: Eu não sei por que eu estou fazendo isso, é muito perigoso!
Por que eu aceitei fazer isso? Agacha. TRÊS: Eu devia ter desistido e pegado o
ônibus de volta. Eu não devia ter entrado aqui. Eu não devia ter colocado isso
dentro de mim. Agacha. QUATRO: O que vai ser do meu filho que ainda nem
nasceu? O que vai ser da minha filha que tá lá fora? Agacha. CINCO: Eu não
posso ser presa. Eu preciso voltar pra casa. Eu tenho uma vida pra construir.
Agacha. SEIS: O que minha família vai pensar de mim? O que meus amigos vão
falar de mim? Eu não posso acabar com a minha vida assim. Agacha. SETE: Eu
juro que se eu passar dessa, eu nunca mais vou fazer isso. É a primeira e última
vez.

Rose levanta-se lenta e silenciosamente.

ROSE - Eu fiquei olhando pro chão durante um tempo enquanto a guarda me


olhava desconfiada. Foram segundos que duraram horas.

GUARDA - Tosse!

Rose fica paralisada.

GUARDA - (Aproximando-se de Rose) Agacha e tosse!

Rose agacha sobre o espelho e tosse. Blackout.

PAVILHÃO 05______________________________________________________

CORO - E assim, uma a uma, vamos sendo jogadas aqui dentro.

Rose, grávida, se junta ao coro.

CORO - Cada vez mais espremidos, empilhados, esmagados de corpo e alma,


entre grades de ferro e paredes úmidas e frias, somos visitados pelo desespero
com a força da impaciência dos que esperam com suas desesperanças. Como
sempre, só nos resta esperar… Esperar… Esperar… Pois os nossos carrascos
não tem pressa. Tem calma. Tem paciência. Tem hora de almoço. Fim de
expediente. Repouso remunerado. Previdência social. A justiça não tem pressa.
Tem calma. É possível não ter pressa? É possível ter calma no âmago da tortura?
É possível não desesperar?

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Gritos de dor. O filho de Rose nasce. Cantam a música:

São anjos,
Mas não sabem avoar
São anjos que só querem escapar

Pequenos
Nasceram nesse lugar
Pequenos Condenados a ficar

Tão novos destinados a errar


Tão novos pois não sabem se salvar

Eles nascem
E julgados ja estão
A sentença, eles nunca mudarão
Eles nascem
E julgados ja estão
A historia, eles nunca mudarão

são anjos
e nas grades
vão parar

são anjos
que desistem de sonhar

CORO DE MULHERES - Nós, as presas, somos mulheres. Temos seios,


menstruamos, vazamos leite e sangue. Somos corpos que geram vida dentro de
si. Em dez anos, o crescimento de mulheres presas é de 261%! Mulheres presas
pelo Estado. Mulheres em estado de calamidade pública. Mulheres sem visita,
sem amigos, sem família, abandonadas anos dentro da cadeia. Mulheres que
muitas das vezes são presas por conta dos maridos, as “portadoras”! São pegas
com poucos gramas de maconha na boceta. Mulheres que fazem de tudo por
seus companheiros e não recebem nada em troca. Mulheres presas que dão à luz
no chão gelado das celas. Mulheres presas que parem seus filhos atrás das
grades. Mulheres que têm seus filhos arrancados aos 6 meses e disponibilizados
na fila de adoção pública.

A seguir as mulheres vão se destacando.

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Telma Ferreira dos Santos, fui presa por ser usuária de drogas, tive o meu filho
recém-nascido, Wesley, arrancado na delegacia com a desculpa de que seria
encaminhado pro abrigo. Assinei um termo de agendamento de audiência, mas
era uma autorização de adoção do meu filho para outra família. Enganada! Nunca
mais vi meu menino.

Elaine Lopes Doricio, grávida na adolescência, fui expulsa de casa pela minha
mãe aos seis meses de gestação. Me envolvi com as drogas e fui presa. Meu filho
Kawan foi encaminhado pro abrigo. Dentro da cadeia, tentei notícias durante
meses, sem sucesso. Perdi meu filho.

Paula Aparecida de Oliveira, eu era usuária de drogas e moradora de rua,


comecei o trabalho de parto na avenida Liberdade, em São Paulo, sob efeitos do
crack. Fui encaminhada ao hospital, e tive meu filho Matheus sozinha na sala de
parto sem assistência médica. Fui xingada e humilhada. Tive meu filho tirado dos
meus braços pela assistente social e fui presa e vim parar aqui.

NARRAÇÃO - A mulher quando vai presa, passa por dois julgamentos: o penal e
o moral. 3h15 da madrugada e a fila do presídio masculino chega a dobrar a
esquina. Aqui nesse presídio. O feminino. Faltando apenas 40 minutos para abrir
os portões, a fila, senhoras e senhores, é quase inexistente. Aqui reside o
significado da palavra abandono. O cárcere é também uma violência de gênero.

NARRAÇÃO - A Lei nº 13.769, de 2018, prevista desde 2016 pelo Marco Legal
da Primeira Infância, garante e substitui a prisão preventiva pela domiciliar pra
mulheres gestantes ou mães responsáveis por crianças até 12 anos de idade. A
possibilidade de cuidar dos filhos em casa, de acompanhar o primeiro passo, o
primeiro dentinho, o primeiro sorriso, o primeiro “eu te amo”. LEI IGNORADA
PELO ESTADO: apenas 15% das presas nessa condição recebem o benefício. E
quando conseguem, precisam sempre andar com o alvará de soltura, apresentar
a sua carta de alforria quando necessário.

CORO DE MULHERES - Liberdade às mulheres presas por forças maiores de


marginalidades impostas pelo Estado. Liberdade às mulheres que cometem
crimes causados devido a sua própria condição de vulnerabilidade. Liberdade às
mulheres vítimas do sistema machista e excludente nas filas dos presídios.
Liberdade às mulheres que dão à luz nas celas e precisam entregar seus filhos
aos 6 meses de vida. Liberdade aos bebês que já nascem presos e depois são
tirados do afago da mãe. Liberdade ao futuro, à geração de mudança, à gota de
esperança e existência dessas mulheres. Liberdade! Liberdade! LIberdade!

ROSE - Quando meu filho, Leo, completou seis meses, Dona Glória me chamou
na sala dela.

Rose e Dona Glória entram numa sala.

DONA GLÓRIA - Primeiro senta e depois escuta o que tenho pra te dizer.

Rose se senta apreensiva.

DONA GLÓRIA - O neném melhorou das cólicas noturnas?

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ROSE - Sim.

DONA GLÓRIA - Ai, que bom!

Dona Glória tira da bolsa um macacãozinho e entrega para Rose. Rose recebe
com alegria.

ROSE - Muito obrigado, Dona Glória. Já fico imaginando ele vestido nele.

Dona Glória coloca um papel em cima de uma mesa à frente de Rose.

ROSE - O que é isso?

DONA GLÓRIA - Infelizmente é a formalização do desligamento do seu filho.

ROSE - (Séria) Como assim?

DONA GLÓRIA - Fica tranquila. Não se preocupa que ele vai ficar seguro
morando com a avó.

ROSE - Qual avó?

DONA GLÓRIA - A paterna.

ROSE - Não, Dona Glória. Isso não! Eu não permito! Eu não autorizo!

DONA GLÓRIA - Eu tentei contato com a sua família, mas nada! Ninguém deu
notícias! A única saída foi a avó paterna.

ROSE - Isso não pode tá acontecendo…

DONA GLÓRIA - A guarda dele vai ficar com ela e assim que você cumprir a sua
pena você ganha a guarda definitiva.

ROSE - Já não basta terem tirado a possibilidade de eu ver o crescimento da


minha filha, de ter ela perto de mim… Agora tiram meu filho também!

Rose assina o papel.

PAVILHÃO 06______________________________________________________

ROSE - Pela manhã arrumei todas as coisinhas dele, montei a bolsa de viagem,
dei um banho bem cheiroso e fui pra sala de espera. Dei o último peito demorado
e dolorido. Chorei rios. A avó paterna chegou e eu entreguei meu filho. O portão
se fecha.

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O objeto que representa o bebê Leo se transforma na personagem LEONA.

NARRAÇÃO - O portão se abre e uma mulher assustada é atirada dentro da cela.


O portão fecha-se atrás dela. Escuta-se o ferrolho correr. A menina está muito
nervosa. Os outros presos ficam só espiando os movimentos dela. Depois de
algum tempo, os outros presos se aproximam. Ela se mostra bastante
incomodada. Pausa. Ela olha mais uma vez para os outros presos. Todos estão
com desejo estampado no rosto. A nova presa está muito assustada. Pausa. Ela
olha mais uma vez. Estão todos na paquera. Pausa.

Se destacam Bereco, Portuga, Tirica, Fumaça, Louco e Bahia.

BERECO – Carne nova no pedaço.

PORTUGA – Parece uma menininha.

BAHIA – É delicadinha o garoto.

TIRICA – Agora que eu quero ver quem é macho aqui.

FUMAÇA – Que é? Já está com idéia de jerico pra cima do garoto?

TIRICA – Não está todo mundo na pior? Vamos enrabar o viadinho.

BERECO – Como é teu nome menino?

LEONA – (Nervosa) Leona.

BAHIA – Iiiiiii, essa coca é f…

ATRIZ QUE REPRESENTA LEONA - Não. Pode parar! (Para o público) Vejam!
Os presos acabaram de se dar conta de que a minha personagem é uma mulher
trans. Sim. Eu sou uma mulher trans. Uma mulher trans que está sendo
encarcerada em um presídio masculino e que será obrigada a sofrer todas as
transfobias possíveis neste lugar, mas que nós, nessa peça, seremos cuidadosas
na forma de reproduzir essas violências! Até porque, a imaginação de vocês está
mais do que treinada para saber o que pode ter acontecido com a minha
personagem dentro desse presídio. Se o cárcere já é difícil para um homem cis
hétero, imagine para nós, a comunidade LGBT.

BERECO – Tem grana, pelo menos?

LEONA – Tô lisa.

BERECO – Pra levar uma vida boa aqui dentro precisa de grana.

LEONA – Já falei que tô lisa!

BERECO – Você não tá vendo? Os filhos da puta tão com o maior tesão em você.
(Pausa) Agora, você que sabe. Se tu entrar na minha, já viu, né? Ninguém vai ter

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peito de pôr o bedelho com você. (Pausa) Como é? Quer que eu deixe você aí na
mão das traças ou...

LEONA – Quanto?

BERECO – Cinquenta maço.

LEONA – Me deixa quieta! Quando eu sair daqui te trago dinheiro. Não deixa eles
botarem a mão em mim.

BERECO – Vê se está escrito otário na minha testa! Tu sai daqui e não volta
nunca mais.

LEONA – Tô dando a minha palavra que não vou te largar na mão.

BERECO – Não, boneca. Ou joga a grana na roda, ou vai entrar na vara!

Leona dá um tapa na cara de Bereco. Pausa. Tensão.

LEONA - Eu não tive pra onde correr. Todos me agarraram. E eu desesperada


me debati furiosa. Recebi pancada. Porrada. Mas revidei até quando eu pude. O
pau comeu. E é assim que as coisas funcionam aqui. Eu gritei! Implorei para que
algum carcereiro intervisse. Mas não! Ninguém intervém nas violências sexuais
que os presos praticam entre si. Enquanto uns estupram os outros, não estupram
as grades de ferro. Não estupram as grades de ferro! E nisso consiste a
sabedoria do sistema, permitem a violência entre nós, para manter a passividade
dos presos contra o verdadeiro inimigo.

Cantam a música:

Apanha, nega, chora

Apanha, geme, implora

Implora pelo amor de qualquer fé

Reza por qualquer religião

Choram uma dor que não acaba

Esperneiam, rogam todas as pragas

Choram uma dor que não acaba

Esperneiam, rogam todas as pragas

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LEONA - E assim foi a minha primeira noite na prisão. Nesse lugar, na minha
primeira noite, meus cabelos, que era o que eu mais gostava do meu corpo, foram
cortados, fui violentada, estuprada. Mas para além das marcas físicas, permanece
no meu corpo a memória do primeiro dia em que eu acordei nesse lugar. Abri os
olhos e certifiquei que não era um sonho. Não. Não era um sonho não. Mas como
eu queria que fosse. Como eu queria que fosse só um sonho. Ao olhar para o
meu corpo, as marcas permaneciam. E tudo o que meus olhos viam, era a própria
visão do inferno. A sensação de acordar na prisão pela primeira vez é a pior
memória que um ser humano é capaz de guardar.

PAVILHÃO 07______________________________________________________

NARRAÇÃO - Brasil, o terceiro país do mundo com o maior índice de


encarceramento em massa. Desde a década de 90, o crescimento é de mais de
300% de pessoas presas. Mais de 700 mil pessoas encarceradas. Falta presídio e
transborda gente. Boa parte dessa gente é preta, pobre e periférica. Preta, pobre
e periférica! Gente jogada atrás das grades, sem direito a julgamento prévio ou
apuração de fatos. Gente preta, presa, E às vezes trancada injustamente devido
a questionáveis reconhecimentos.

Uma mulher branca entra e grita em desespero. Um policial, também branco, lhe
faz alguns questionamentos enquanto anota informações em uma prancheta.

MULHER BRANCA - (Gritando) Isso é um absurdo! A gente não tem um minuto


de paz nessa merda de país! Eu quero meu celular de volta!

POLICIAL - Você pode ter um pouco mais de calma e falar mais baixo? Você está
numa delegacia e isso aqui é um lugar de respeito.

MULHER BRANCA - Calma? Você ainda me pede pra ter calma? Você sabe
quanto custou o meu Iphone 15. Você sabe?

POLICIAL - Imagino que deve ter sido o olho da cara pra senhora tá nesse
desespero infernal.

MULHER BRANCA - Foi o olho da cara sim! Sem dúvida 10 vezes o valor do seu
salário de bosta.

POLICIAL - Vai ficar na zombaria? No desacato? Eu sou autoridade aqui,


entendeu?

MULHER BRANCA - Eu não tenho medo de você! Eu quero justiça. Justiça!

POLICIAL - Então, você tenha calma e me conta o que aconteceu direito.

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MULHER BRANCA - Eu tava com minhas amigas (faz referência as amigas, se
dirigindo a algumas mulheres da plateia) e a gente tava no final da festa, na porta
da balada esperando o Uber, não é Meire? Não é Mirtes? (Meire e Mirtes são
mulheres do público. Esperam a reação delas).

POLICIAL - Calma aí, vamos por partes! Qual festa? Qual balada?

MULHER BRANCA - Na noite do peão no Villa Country.

POLICIAL - Pode continuar.

MULHER BRANCA - E daí veio um sujeito estranho, bem do desarrumado,


incomodar a gente. Falei pra ele deixar a gente quieta. E ele não gostou não,
começou a vir pra cima da gente! A gente começou a gritar, a gente começou a
empurrar ele, gritamos por socorro, mas ninguém, ninguém ajudava! Até que
chegou um segurança e ele foi embora. Aí quando eu me dei conta, eu tava sem
meu celular!

POLICIAL - E como você sabe que foi ele que pegou? Será que você não perdeu
antes disso?

MULHER BRANCA - Eu tenho certeza que foi ele que pegou! Eu quero meu
celular de volta! Eu quero justiça! Eu quero que prendam esse delinquente!

POLICIAL - Vamos fazer o retrato narrado. Como ele era?

Enquanto ela narra. O policial desenha um retrato narrado.

MULHER BRANCA - Ele tinha cabelo que fica aqui nessa parte da cabeça, dois
olhos aqui nessa região embaixo da testa, um nariz aqui no meio do rosto, e uma
boca com uma língua e dentes dentro.

POLICIAL - Tinha barba?

MULHER BRANCA - Acho que tinha. Não lembro.

POLICIAL - Ele era assim?

O Policial mostra uma foto do Projeto Tipos, de Fernando Banzi. Outros atores e
atrizes também exibem outras imagens. No Projeto Tipos, Fernando Banzi exibe
imagens de pessoas negras escravizadas e as ressignifica, mas nessa parte da
peça iremos utilizar apenas as originais em preto e branco.

MULHER BRANCA - Era! Era esse aí mesmo! Tá muito parecido! É esse aí


mesmo! Não era meninas? (Pergunta para Meire e Mirtes na plateia. Espera elas
responderem).

POLICIAL - Ótimo! Nós capturamos alguns suspeitos, agora preciso que vocês
façam o reconhecimento pessoal!

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O Policial abre a cortina e atrás dela estão todos os atores da turma.

POLICIAL - Qual desses aí que foi?

MULHER BRANCA - (Confusa) Eita! E agora? Você lembra Meire? Você lembra
Mirtes? Qual deles que foi? (Espera elas responderem).

POLICIAL - Eu não tenho o dia inteiro! Qual desses é o criminoso?

MULHER BRANCA - Foi ele! (Aponta para um ator negro).

O Ator negro é algemado com correntes que remetem ao período de escravidão.


Os demais são liberados.

ATOR NEGRO - Foi ele! Disseram eles! Mas eu tenho nome. Tenho nome sim.
Raoni Barbosa, um jovem negro de Duque de Caxias, que teve que viver 24 dias
atrás das grades, em meio ao medo e ao desespero. Por conta de uma acusação
injusta que recaiu sobre mim, vim parar aqui. Eu e as minhas antigas cicatrizes.
Escutem vocês, homens brancos, a justiça de vocês falha. Falha sim. E em mais
um dia, a cor da minha pele definiu meu destino. A justiça é cega, mas a cor da
minha pele sempre será vista em primeiro lugar. As correntes do passado ainda
me prendem. Vivemos sempre em um navio negreiro. Às vezes caravela, às vezes
camburão. Vivemos sempre em uma prisão, às vezes simbólica, às vezes
concreta.

PAVILHÃO 08______________________________________________________

O Ator negro da cena anterior fica parado, chegam policiais com correntes para
acorrentá-lo, ele interrompe a cena e diz:

ATOR NEGRO - Não. Eu, José Elias, o Ator, me recuso a me colocar de novo
nesse lugar. Não quero mais repetir essa mesma cena. (Para a plateia) Vocês já
entenderam o que aconteceu aqui, não já? Se não entenderam, entendam que as
grades que me prendem hoje, são as mesmas que me prendiam ontem. Ontem.
Ontem quando vocês escravizaram meu povo. Ontem! Homens brancos, (Grita)
levem suas correntes daqui! Levem suas correntes daqui! Levem suas correntes
daqui!

Os Policiais saem com suas correntes. O ator dança. Após a dança o ator se junta
aos demais.

TIRICA - Você aí, mano? (Para alguém da plateia) Você acredita em Justiça? A
gente é tratado que nem bicho aqui dentro. Atrás de cada juiz, numa parede fria,
tem um Jesus Cristo crucificado. Quem é que diz o que é lei e o que não é? Deus

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é que não foi. A lei devia ser pra todos, mas não. A lei só vale pra quem é pobre,
mané. Governar depende apenas da cabeça de quem governa.

Três Juízas se destacam nos tablados a frente do palco.

JUÍZA 01 - Não tem conversa! A maioria é maioria e a minoria é minoria. Eu


quero defender que a maioria dos cidadãos de bem são aterrorizados por uma
minoria de marginais.

JUÍZA 02 - É isso! Não somos nós quem julgamos o bandido. É Deus! A nossa
tarefa é promover o encontro entre eles.

JUÍZA 03 - Quando eu falo em pena de morte é porque eu queria ver… Eu queria


ver se o sujeito não ia pensar duas vezes… Duas vezes antes de fazer coisa
errada.

JUÍZA 01 - (Pra alguém da plateia) Tá com pena? Leva pra casa! Leva pra tua
casa! Leva pra tua casa!

JUÍZA 02 - É o nosso dever, como defensoras da família e dos bons costumes,


acreditarmos que a base do progresso é a ordem.

JUÍZA 03 - Nós, como representantes máximos da Justiça, não devemos nos


influenciar por quem se diz defensor dos direitos humanos!

JUÍZA 01 - Nós somos as juízas, quem manda na nossa consciência somos nós
mesmas.

JUÍZA 02 - O Carandiru não foi um massacre!

JUÍZA 03 - Foi obediência hierárquica!

JUÍZA 01 - Foi legítima defesa!

JUÍZA 02 - Foi estrito cumprimento do dever legal, por isso… Por isso nós…

JUÍZAS JUNTAS - ABSOLVEMOS OS 74 POLICIAIS MILITARES ENVOLVIDOS


NO CASO!

UMA GUARDA - Telma Ferreira dos Santos! Tá liberada.

TELMA sai da cela e se dirige ao escritório da CONTRATANTE.

PAVILHÃO 08 - CENA PARALELA

Numa sala. A CONTRATANTE analisa alguns papéis. TELMA espera aflita.

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CONTRATANTE - Bom, Telma, tô vendo aqui que você trabalhou como
assistente administrativa por três anos, certo?
TELMA - Sim, senhora. Já faz um tempinho…
CONTRATANTE - Isso foi antes de você ser presa, né?
TELMA - Sim. Eu ainda não consegui trabalho depois que eu saí.
CONTRATANTE - E você pode me dizer o que você fez pra ser presa?
TELMA - Bem, eu… tive alguns problemas. Mas isso faz parte do meu passado.
Estou focada no futuro agora.
CONTRATANTE - Telma, não precisa esconder. Eu fiz uma pesquisa mais
aprofundada sobre você. Descobri que você foi presa por roubo, certo?
TELMA - Sim, senhora. Foi há muito tempo. Eu era jovem e cometi erros. Mas
desde então, tenho trabalhado duro pra mudar.
CONTRATANTE - Parou com as drogas?
TELMA - Sim, senhora.
CONTRATANTE - Muito bem. Mas, Telma, aqui na empresa, valorizamos a
integridade. Nossos clientes confiam em nós. Não posso arriscar colocar alguém
com um histórico duvidoso em uma posição sensível. Imagina se algum cliente
descobre sobre o seu passado?
TELMA - (com lágrimas nos olhos) Eu entendo, mas…
CONTRATANTE - (interrompendo) Não é pessoal, Telma. São negócios. Eu não
posso contratá-la.
TELMA - (respira fundo) Eu entendo. Obrigada pela oportunidade, de qualquer
forma.
TELMA sai e se dirige ao público.

TELMA - Quando você sai da prisão, a sociedade não reintegra ninguém. O Juiz
te devolve a liberdade e a sociedade te devolve a solidão. Mas não importa! Você
está livre de novo. Eu tô livre de novo! Mesmo sem emprego. Sem futuro. Eu tô
livre de novo! E não importa se as pestes, as moscas e as sanguessugas e
muquiranas já devoraram todo o seu corpo! Não importa! Não importa se a sarna
das sarnas das muquiranas já comeram toda a dignidade humana! Quem se
importa com a dignidade humana? Quem se importa com a dignidade humana?

TELMA sai.

TIRICA - Não importa a dignidade humana! É assim que eles pensam. Tem preso
doente, com pena vencida, e eles faz o quê? Enquanto sai um, eles colocam mais
três aqui dentro. Eles chamam a gente de facção criminosa, mais facção

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criminosa é essa porra desse sistema! O Estado é culpado! O Estado é culpado!
Mais nós tá ligado que nós vamos mudar esse bagulho aí. Que eles sabem muito
bem que quando a gente se junta, mano, não tem como… A gente vira a porra de
um exército. Correr pelo certo é um caminho sem volta!

TIRICA - Aí, rapaziada, tem detento novo na cadeia!

NARRAÇÃO - E assim, cada dia mais. Mais gente vai chegando. E cada dia mais
vamos sendo esmagados, empilhados, espremidos de corpo e alma nesse
cubículo onde mal caberiam oito pessoas. Sempre vai caber mais um. E assim
todo dia tudo igual. Todo dia igual. Até que um dia, a coceira começou a se tornar
alucinante, sentimos um rombo no peito, começamos a escarrar sangue, nossos
corpos começaram a apresentar feridas e as feridas começaram a se alastrar
cada vez mais. Começamos a ter horror dos nossos próprios corpos. A latrina
começou a feder mais que o normal, os excrementos transbordaram e as moscas
varejeiras procriavam. E a porta de ferro, como se tivesse seu ferrolho enferrujado
para sempre, não se abria. E parecia que, para nunca mais. A porta não se abria,
não se abria, não se abria. E todos sentimos nojo. Nojo. Muito nojo. Nojo do
próprio corpo. Nojo da comida. Nojenta lavagem. Nojo da porta de ferro. Nojo da
palavra. Sobretudo nojo da palavra.

Silêncio. Começa a chover. Som de chuva.

NARRAÇÃO DANIEL - Um banho de chuva. Eu só queria tomar um banho de


chuva. Como dizer que tudo que a gente precisa, é de um banho de chuva? Nós
não sabemos dizer, que tudo que a gente precisa é de um banho de chuva. Um
banho de chuva para os nossos corpos, seria um bálsamo, lavaria as feridas do
corpo e da alma. Mas como dizer? Como explicar? Como falar para um
carcereiro, uma personagem tão inferior na hierarquia do sistema, que é capaz de
burlar todas as regras... Um carcereiro que é capaz de burlar todas as regras! E
tomar banho de chuva não estava na regra. Alguns podiam tomar banho de sol,
mas a regra não falava em banho de chuva. Como dizer para o carcereiro? Como
dizer?

Cantam:

Ai, como eu queria um banho de chuva


Um banho de chuva pra lavar minhas feridas
Um banho de chuva para amenizar a vida

Ai, como eu queria um banho de chuva


Um banho chuva eu não tomo já faz tempo
Um banho de chuva pra lavar meus pensamentos

ROSE - Depois de tudo isso, eu senti que eu devia fazer alguma coisa.

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Cena paralela: BAHIA é encurralado pelos presos Bereco, Tirica, Portuga e
Louco.

BAHIA - Não era pra acontecer aquilo, eles me fuderam, eles me fuderam!

BERECO - Tu ferra meus parceiros e vem com historinha?

ROSE - Tudo que eu queria era mudar o roteiro das cenas, trocar o final da
história.

BERECO - Tu tava a fim de me fuder! Tu e mais quem? Tu e o Caveira?

BAHIA - Não, eu tava sozinho nessa fita aí. A situação foi só eu mesmo.

BERECO - Foda-se! O prazo acabou, mané! Cadê a encomenda?

ROSE - Tudo que eu queria era jogar um sorriso na boca das minhas, dos meus.
Fazer alguma coisa!

BERECO - Bahia, não esperava isso de você, mano. Vai entrar no paredão. Por
mim, sobe. Agora é com vocês.

TIRICA - Sobe. É o que eu acho.

PORTUGA - Todo mundo sabe a pena pra traição. Sobe.

LOUCO - Voto também também pra subir.

BERECO - Tá decidido, pode subir.

BAHIA - (Como ator) Com um pedaço de ferro pontiagudo. Os presos executam


BAHIA. (Dá um último grito de dor e cai).

ROSE - O que fazer? O que fazer? Era preciso fazer alguma coisa.

PAVILHÃO 09______________________________________________________

ROSE está sentada em uma cadeira. O AGENTE PENITENCIÁRIO caminha de um


lado para o outro enquanto interroga ROSE.
AGENTE - Eu não tenho o dia inteiro, você vai desembuchar ou não?

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ROSE - Eu já disse que eu não sei de nada, senhor. Eu estava quase dormindo, foi
tudo muito rápido. Quer dizer, eu vi um burburinho pelos cantos, mas achei que
era... que era... negócios.
AGENTE - Negócios?
ROSE - Sim, negócios. Vocês sabem que a gente troca algumas coisas aqui dentro.
E não é uma, duas nem três mulheres, são todas! Vocês sabem disso e nunca
reclamam. Ainda mais quando...
AGENTE - Você sabe de tanta coisa que acontece aqui dentro, não é Rose? É
incrível que você não tenha visto nada...
ROSE - Perdão, Senhor! [pausa] Eu juro que não vi nada, mas eu queria ter visto.
Tem algumas que estavam me devendo um dinheirão, das encomendas dos jogos
de cela que eu fiz. Safadas! Me deram calote! Eu queria ter visto só pra bater na
grade e impedir o cano das larápias.
AGENTE - Várias detentas fugiram, inclusive algumas da sua cela e você diz que
não viu? Tá difícil de entender.
ROSE - Eu sei, Senhor, eu sei. Mas o que eu podia fazer se as cretinas
aproveitaram o jogo pra dar no pé? Eu não sou guarita, aqui eu sou rata como todo
mundo. Ando na roda gigante infinita o dia inteiro e todos os dias sem ver o mundo
atrás da gaiola. Eu sou como elas. Quer dizer... era. Agora elas estão na rua e eu
aqui dentro.
AGENTE - Mas vamos supor que se você soubesse do plano... Você teria fugido
junto também?
ROSE - Jamais, senhor! Eu não teria coragem de fazer isso. Eu nem saberia sair, ia
ficar nervosa e acabar estragando tudo, imagina ter que atravessar o pavilhão
inteiro com um bebê no colo sem fazer barulho? Não... Eu não conseguiria fazer
isso. Eu fiquei pasma porque algumas ainda estavam com pontos no bucho, não
tinham nem uma semana de parto. Como pode? E se a barriga abre no meio do
furdunço? Eu não teria coragem!
AGENTE - Mas cinquenta mulheres tiveram a coragem que você não tem!
ROSE - Quantas?
AGENTE - Cinquenta!
ROSE - Cinquenta... nossa! É muita gente! E se você contar com os bebês dá
quase cem, né? Algumas já estavam sem a cria, já tinham entregado pra família ou
pro juizado. Fuga de saudade! É... complicado. Mas eu não aprovo, não, veio pra cá
tem que aguentar o B.O. O bebê não tem culpa, né, tem que ir embora depois de
um tempo. Mas as cadelas têm que pagar a dívida. O bom é que agora vai ter mais
espaço. [ri, mas logo fica sem jeito pela piada].
AGENTE - Eu não tô vendo nenhuma graça!
ROSE - Perdão, senhor! Posso ir agora?

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AGENTE - Ainda não! Tá com pressa? Pois eu não tô nem um pouco. Ainda tenho
algumas perguntas... Então você não viu nada, mesmo tudo acontecendo ali
embaixo do seu nariz?
ROSE - Sim, senhor, eu já estava indo dormir. Foi a noite. Acredito que por volta
das nove e meia...
AGENTE - Eu já estou farto dessa ladainha! Levanta! Sai da minha frente. E não
pense você que nossa conversa terminou, porque não terminou não! Ainda tem
muita ponta solta nessa história mal contada…
Rose fala para o público.
ROSE - E foi assim que eu fiquei falando por pelo menos uma hora sem parar,
respondendo às mesmas perguntas um milhão de vezes. O guarda me olhava
estranho. Mesmo que eu tivesse falando a verdade ele não acreditaria, seria capaz
de me sentenciar novamente pelo meu plano ultrassecreto de fuga máxima. (Ri). A
verdade é que eu não sei de onde eu tirei tanta abobrinha. Eu deveria ser atriz. Sim,
atriz! Afinal de contas, eu não menti só hoje, eu minto a minha vida inteira. Eu vivo
uma mentira colada em mim como o papel de uma personagem que me forçaram a
interpretar. Esta aqui. O guarda não imagina que por trás das minhas palavras de
defesa existem pensamentos de vingança. Foi difícil, mas eu consegui! Cinquenta
mulheres estão livres, cinquenta mães estão libertas, tiveram um caminho diferente
do meu. E eu… permaneço. Foi uma noite memorável, de entrar pra história!

NARRAÇÃO - No dia 13 de Abril de 2009, um grupo de presas fugiu pela porta da


frente da Penitenciária Feminina do Butantã. O que chamou a atenção é que
algumas delas estavam com bebês de até seis meses no colo. Mães desesperadas,
que com o auxílio de Rose, escaparam. Fuga de quem não quer perder o seu filho.
Fuga de quem quer encontrar. Fuga de amor. Fuga de saudade!
CORO DE MULHERES - Já em outro presídio. No presídio masculino, em Osasco,
nos anos 70, tal como nos conta Plínio Marcos em seu livro “Inútil Canto e Inútil
Pranto Pelos Anjos Caídos”, outros presos já não tiveram a mesma sorte.

PAVILHÃO 10______________________________________________________

BERECO - O plano é o seguinte!


Mostra um papel e os outros presos se aproximam dele. Falam todos ao mesmo
tempo sobre as ideias do plano.
BERECO - Portuga, presta atenção. Na hora que a porta de ferro se abrir, você
agarra o carcereiro primeiro e depois vamo todo mundo junto pra cima dele! Todo
mundo!

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PORTUGA - Todo mundo!
LEONA - Com fúria!
JOSÉ - Com ódio!
TIRICA - Com muito ódio!
FUMAÇA - Com toda a violência do mundo!
BERECO - E aí é pra espancar com todo o repertório de porrada possível. Soco,
pontapé e ódio!
Silêncio. O carcereiro se aproxima. Sons de chaves.
CARCEREIRO - Assim que eu abri a porta de ferro. Fui pego de assalto. Me
finalizaram na maior covardia. Mas eu não estou sozinho. Atrás de mim sempre
virão as metrancas, as bombas e os cassetetes do nosso sistema.
Os presos ficam reprimidos em um canto.
BERECO - Isso tá certo?
PORTUGA - Não tá certo isso não!
LEONA - Isso tá certo?
JOSÉ - Isso não tá certo!
TIRICA - Tá tudo muito errado!
FUMAÇA - A gente não vai fazer nada?
PORTUGA - (Gritando) Eles vão nos matar! Eu não quero morrer!
LEONA - Para de gritar! Você já tá morto. Quando meteram a gente aqui dentro nos
mataram.
TIRICA - Eles nos socaram aqui dentro por crimes que o sistema nos forçou a
praticar.
JOSÉ - A gente tem que fazer alguma coisa!
Os presos começam a bater e gritar fazendo muito barulho.
CORO - Nós, os presos, resolvemos nos rebelar contra os maus tratos. Não era
uma rebelião! A gente só queria abrir a porta de ferro que nos separava da vida. A
gente só queria abrir a porta de ferro que nos separava da vida, da esperança. Da
fé. Do horizonte. Do sol. Da chuva. Nós ainda não sabíamos, mas fomos colocados
aqui neste cubículo para morrer lentamente, de forma que parecesse natural.
Fomos enfiados aqui dentro porque já não temos mais serventia para o sistema.
LOUCO - (Dando um susto) EEEERRHHh (ri)
PORTUGA - Para de palhaçada mano, ta doidão?

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LOUCO - (Segura uma garrafa de Maria Louca) Aqui só tem maluco, irmão. Mais
tempo que nóis passa nessa ratoeira, mai louco que nós fica. Quem não dança
conforme a música… aqui? Acaba tendo de dançar de outra forma. (Para o público)
Vem cá, cê quer um golinho dessa Maria-Louca? É gasolina com Soda!!! (Ri e
começa a despejar a Maria Louca em colchões). E sem que mais nada fizesse
sentido. Eu, lentamente, empilhei no meio do imundo chiqueiro todos os nojentos
colchões. Joguei a Maria Louca neles e sem que ninguém percebesse eu acendi um
fósforo e taquei fogo em tudo!
BERECO - Você ficou maluco?
PORTUGA - Perdeu o juízo?
LEONA - Esse louco vai matar todo mundo queimado!
CORO - Vigia! Vigia! Pelo amor de Deus! Abram os portões! Tá pegando fogo!
Fogo! Fogo aqui dentro! (Improvisam em sobreposição algo nesse sentido).
CORO - As portas de ferro que nunca mais se abriram, agora, pela nossa vida,
precisavam ser abertas. As labaredas cresciam e lambiam os nossos corpos. Os
nossos gritos e os gemidos de socorro eram em vão. Nenhum vigia quis nos ouvir.
O fogo crescia e a fumaça sufocava. A carne ardia. Assava. O fedor ardia e a
fumaça sufocava e os pulmões cheios de cavernas se rompiam, e a tosse, e a
tosse, e a tosse…
Tossem.
CORO - E o cheiro da carne assada, era o cheiro da carne humana assada.
Silêncio. Depois de um tempo chegam carcereiros com molhos de chaves nas
mãos.
CORO - E quando chegaram os carcereiros com suas algemas, correntes e
metrancas para abrir as grades de ferro…
Os carcereiros se preparam para abrir.
CORO - Não. Não é mais necessário! Não precisam mais abrir. Já estamos mortos
e continuaremos aqui. Só que vocês não sabem… Mas nós voltaremos. Podem nos
aniquilar, podem nos queimar vivos, podem nos matar de todas as maneiras, mas
saibam… Que mesmo que matem a mosca da sua sopa, sempre virão outras em
nosso lugar. E nós somos a mosca que pousou em vossas sopas e podem até
tentar nos dedetizar, mas se você mata uma mosca, sempre vem outra em meu
lugar. E nós vamos voltar e vamos cobrar de vocês todas as violências, que em
nome de vossos tesouros, vossos privilégios, vossos confortos, vossas regalias, nos
fizeram passar. Vamos voltar e vamos exigir que nos devolvam a nossa dignidade
humana a qual vocês terão que nos entregar, custe o que custar!

Blackout.
FIM

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02/02/2024

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