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CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CONFISSÃO
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
REMISSÃO
CAPÍTULO TRINTA
CAPÍTULO TRINTA E UM
DESTINO
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
CAPÍTULO QUARENTA
ASCENSÃO
CAPÍTULO QUARENTA E UM
CAPÍTULO CINQUENTA
CAPÍTULO CINQUENTA E UM
CAPÍTULO FINAL
EPÍLOGO
Ato I
Fuga
O samurai nasce para morrer. A morte, não é uma maldição a
evitar, senão o fim natural de toda vida.
Bushido
Eu nasci para ser o herdeiro do meu clã.
Bonita demais para ser uma puta qualquer, Shin… Talvez ela…
Terada não era pobre, muito longe disso. Tinha juntado uma
pequena fortuna com tudo que ganhou dos homens para os quais trabalhou,
mesmo antes de se tornar um bakuto. Era inteligente e estava se esforçando
para passar despercebido.
Aquiesci sem questionar, mas de repente ele parou. O olho fixo nos
meus.
— Lia…
— Será protegida como merece… — prometi e era sincero. Sabia
bem o quanto custava a alguém como nós cuidar daqueles que amávamos.
Houve um tempo em que Terada sensei era como um pai para mim.
Quando toda a merda entre a organização e o cartel se deu, Isao mal
conseguia me olhar nos olhos. Queria o filho de volta mais por orgulho do
que por vontade, então minha raiva foi crescendo e só aprendi a lidar com
ela debaixo da proteção e direcionamento do sensei.
Não havia sinal de infecção, o que era ótimo, mas ainda assim eu
precisava me cuidar. Se acontecesse outra emboscada e eu não pudesse
correr, acabaria com a cabeça dentro de uma caixa, a caminho do Japão.
Não que eu sentisse pena, Isao merecia tudo que havia sofrido, pela
dor que causara aos outros, mas talvez, só talvez, ele ainda tivesse chance
de se redimir.
Isao nunca fora homem para ela. Covarde demais para proteger a
mulher que amava.
— É claro…
Levantei assim que percebi que ele estava melhor, dando alguns
passos para longe. Sempre que ficava perto demais, sentia como se meu
corpo fosse carregado por sua órbita, como um planeta, girando em torno
dele sem controle.
— Um pouco… — confessou.
Sua pele era quente. Tanto que, mesmo de blusa de frio, eu podia
sentir o calor dele contra mim.
Conforme respirava, meus dedos se moviam, sobre a cauda do
peixe, em seu lado esquerdo.
Ele aquiesceu.
Levantei-me do chão e subi as escadas o mais rápido que consegui.
Eu podia não confiar nele, mas meus princípios e a maldita vocação me
impediam de negligenciar alguém que precisava de socorro.
Ele esboçou aquele sorriso meio sacana, meio fofo que me fazia
odiar o quanto ficava bonito.
— Tudo bem…
Tentei ignorar.
— Parece bom…
Reflexo ok!
Macio… Quente…
Engoli em seco mais uma vez.
É, Lia, acho que o Érico tem razão! Você precisa de um namorado!
Aliás… — Levantei o dedo em riste, para mim mesma. Namorado não, uma
foda! Uma bela foda! Daquelas de deixar a perna tremendo e sem fôlego!
Não era o que pretendia fazer, mas sabia que assim conseguiria
despistá-lo e não o deixar preocupado. Depois mandaria uma mensagem
para a Ellen e lhe pediria que confirmasse, tudo certo, sem maiores
problemas.
Segui meio sem rumo pelas ruas do Centro, até o lugar em que
tudo havia acontecido, dezoito anos atrás.
Ela tinha razão, minha passagem pela sua vida era curta. Em
poucas semanas nada haveria além de algumas lembranças que o tempo se
encarregaria de apagar.
— Matsuya, sou eu… — falei assim que ouvi a voz dele do outro
lado.
— Mas que porra, mestiço! Você sumiu por três dias! Achei que
estivesse apodrecendo em algum beco por aí! Encontrou o Musashi pelo
menos?
— Por que não me contou que o tal Musashi era o sensei? —
perguntei por pura curiosidade, não fazia diferença.
O desgraçado riu.
— Achei que seria uma boa surpresa!
— Então você está com ele? Por que demorou tanto a me avisar?
Não me diga que…
Soltei o ar dos pulmões de uma vez. Não era do tipo que confia
cegamente, mas precisava de Willian Matsuya, se quisesse mesmo ganhar
essa guerra, então ele tinha razão, eu teria que aprender.
— Sei… — afirmei.
— Deixe-o fazer o que quiser… Assim meu avô saberá que não
estamos juntos nessa… Se ele estiver quieto demais, irá levantar
desconfianças…
— Faz sentido…
A linha ficou muda por alguns instantes, enquanto eu pensava na
pergunta que faria a seguir.
Sustentei seu olhar. Entendia bem o que ele queria dizer, meu avô
fora o responsável por sua mutilação e quase morte. Foi naquele dia que
entendi que na verdade meu avô e Seiji Matsuya não eram realmente
inimigos, apenas fingiam, para que pudessem reforçar o ódio e a rivalidade
dos soldados.
Outro tapa, forte e estalado, mas dessa vez uma linha fina e
vermelha escorreu do canto da sua boca.
Seus olhos se abriram ainda sem muito foco e, assim que percebeu
o que fazia, as mãos afrouxaram o aperto e seus olhos encararam os meus.
— Eu não… — balbuciou.
Abri a boca para dizer que o erro fora meu por me aproximar tanto
e sem aviso, mas desisti.
Virei as costas o mais rápido que pude, tinha certeza de que meu
rosto parecia afogueado e acabaria por me denunciar.
Estava quase na porta, quando sua voz grave e profunda arrepiou
minha pele tão intensamente que não pude reprimir o pequeno tremor que
tomou conta de mim.
Eu podia sentir sua respiração aquecendo a pele do meu pescoço,
então não me virei.
Susto…
— De certa maneira…
— Nada! O Rubão pegou folga hoje… O pai dele não anda bem,
vai passar uns dias lá no sítio com a família…
— Certo ele…
— Nem fale… O pai dele é um cozinheiro de mão cheia… Última
vez que fui lá, comi um tropeiro de lamber os beiços…
Nem parece que se virou pela rua, Lia… E era muito menor e mais
vulnerável que agora!
Para o meu azar, nem o bar na entrada da vila nem o Nihon Privê
tinham movimento do lado de fora, o que deixava o beco ainda mais
assustador.
Ele era tão alto que eu precisei elevar o olhar para encarar seu
rosto. Enchi os pulmões e ergui uma sobrancelha debochada, tinha que me
proteger de algum jeito.
Ser um yakuza era tudo que eu conhecia, fui treinado desde que
meus braços finos e magros aprenderam a sustentar o peso de uma arma.
Não fazia ideia de quantos havia derrubado pelo caminho, tinha parado de
contar muito tempo atrás e não sentia remorso algum.
Deve ter saído para estudar ou algo assim… Talvez você tenha
entendido errado… Ela carregava uma mochila…
— Aqui…
Jogo? Cena? Para quem vive em cima de um bordel, até que ela
finge bem…
— Isso…
— É claro! — concordei.
Eu estava sem fome, mas não queria cortar o barato dele, então
aceitei.
Voltamos para a base depois de almoçar e o dia estava tão calmo,
que os meninos decidiram jogar um pouco de baralho, para ver se o tempo
passava mais rápido. Puxei uma das cadeiras e me sentei também. Se
ficasse deitada no sofá por mais tempo, não conseguiria controlar os
pensamentos que insistiam em ganhar espaço em minha cabeça.
“Parece…”
A voz grave dele ressoava dentro de mim sem parar. Aquela nota
de arrepio intenso e calor que ele me fazia sentir era assustadora e
inebriante. A sensação do músculo se firmando ao meu toque, a respiração
pesando.
Não! Você não vai fugir da sua própria casa só porque um mestiço
filho da puta resolveu abancar lá, não é? Ele que saia! — Dei de ombros.
— Ih… Guerra mental é uma merda! — Meu companheiro de
ambulância sentou-se no degrau ao meu lado. — A gente dificilmente
ganha…
— Certeza?
— Promete? — Sorriu.
Meneei a cabeça em concordância e, antes de ir para o vestiário,
passei pelo escritório para preencher o pedido de férias. Naquele horário já
estávamos sem supervisor, mas com certeza no dia seguinte eu receberia
uma resposta.
Silêncio total.
O homem girou, arrastando-me pelo piso de encaixe do beco.
Procurava pelo dono da voz e, assim como eu, não o via.
— Não!
Ato II
Confissão
Se você escolhe um caminho inexplorado, precisa estar disposto a
entender os segredos que aparecerão ao longo da viagem.
Bushido
Capítulo Doze
Shin
Ainda tentava controlar a respiração.
Parei assim que cheguei perto o suficiente, não queria que ela se
assustasse ainda mais, não depois de tudo que tinha vivido.
Esperei que ela soltasse, mas não aconteceu. Meus braços estavam
lá, parados em volta dela, os dedos movendo-se sem tocá-la, enquanto uma
guerra mental se travava dentro da minha cabeça.
Abraçar?
— Vamos!
Aquiesceu.
Corremos para fora do beco, até onde a mochila dela havia caído.
Lia parou e se abaixou, abrindo o zíper e retirando uma blusa de dentro.
— Pode pedir uma suíte luxo, por favor? — falou com o motorista,
entregando a ele nossos documentos.
Poucos segundos depois, estacionamos em frente à entrada de uma
garagem.
Baixei o rosto para a sutura do tiro, sentia uma dor leve no local,
mas, depois de tanto esforço, não era estranho que estivesse sensível.
— Eu preciso falar com o meu pai… — a voz da garota cortou o
silêncio. — Ele vai ficar preo…
Fixei os olhos nela sem nem perceber ao certo. Não podia descartar
a possibilidade de que a garota tivesse algum tipo de envolvimento na
emboscada.
— Fico no aguardo.
Samuel agarrou meu telefone tão rápido que, com o susto, caí para
trás, batendo as costas na mesa de um jeito nada confortável. Ainda tentava
conter a dor e a decepção por ter falhado, quando ele se levantou, ajeitando
os cabelos com as mãos.
— Vista-se!
Não soava como um pedido, então não questionei. No fim das
contas, o mestiço tinha razão e eu não tinha muitas opções além de confiar
nele.
Enfiei a mão em uma das sacolas e tirei uma calça jeans e uma
blusa de frio. Havia também um par de sapatos novos e lingerie.
Respirei fundo.
— Ficou maluco se acha que eu vou até meu trabalho com você…
O motor rugiu e eu esperei que ele passasse por mim, mas, em vez
de seguir em frente, ele desacelerou.
— Entre no carro…
O tom era comedido na voz segura e cheia de poder. Não era uma
ordem, nem um pedido, mas por alguma razão eu me sentia compelida a
aceitar.
Levei a mão à maçaneta, mas, antes que a tocasse, ele se curvou e a
porta se abriu.
Passei o cinto de segurança no instante em que ele arrancou com o
carro. O silêncio perdurou pelo tempo que se seguiu, até que atingimos as
proximidades do beco.
A mão trêmula buscava pela minha até que algo foi deixado em
minha palma. No instante seguinte Musashi desmaiou.
Abri a mão por instinto, para ver o que ele havia deixado ali, e
quase não acreditei. Passado e futuro se misturando em meus pensamentos.
“Nunca tire o colar, está ouvindo, Lia? Nunca! Ele é sua garantia
de vida…”
— Um amigo.
— Bandido?
— Um professor de judô…
Mais silêncio.
— Vou enviar uma localização. Assim que chegar lá, diga o meu
nome… — instruiu. — Encontro você lá em alguns minutos.
Desliguei o telefone e o mantive no colo, para seguir as instruções
do aplicativo de localização. Não demorou muito e chegamos ao que
parecia um posto de atendimento médico.
Havia uma boate em São Paulo, cujo controle estava nas mãos dos
kyodais havia muito tempo. Os veteranos de organização tinham carta-
branca para cuidar dos seus próprios negócios, desde que mantivessem os
irmãos acima de tudo, e talvez lá eu encontrasse a ponta do fio desse
emaranhado todo.
Acessei a página do lugar para conferir a programação das
próximas noites, mas, antes que o fizesse, vi a porta se abrindo e o policial
passando por ela com Liandra ao seu lado.
— É claro… — concordou.
— Bem… Preciso ir… Tenho assuntos importantes a resolver…
— Meu pai…
— Musashi?
— Não… Pablo… Pablo Chaska.
Samuel parou.
— Peça algo para comer… Vou sair e não devo voltar até que
amanheça… — Apagou o cigarro no cinzeiro de vidro e virou o que restava
do líquido âmbar direto na boca. — Seja esperta e não arranje problemas…
— Pegou o paletó e saiu.
Assim que a porta se fechou, eu me sentei na cama. Esfregando a
testa em movimentos circulares e apertando os olhos. Desgraçado, filho de
uma puta! — xinguei. Não acredito que ele não disse nada!
“Boa Noite! Sou a Lia, filha do homem que deu entrada baleado
ontem. Queria ter notícias do meu pai.”
Não demorou muito para que a resposta chegasse.
“Oi, Lia! Ele continua estável. Se tudo correr bem, até amanhã
vamos diminuir a sedação e ver como ele acorda.”
Soltei um suspiro de alívio.
Aquiesci.
— Ainda não sei… Tudo que consegui descobrir foi que um dos
homens que tentaram atacar a garota no beco tinha uma rosa igual à do
Minoru tatuada na cabeça…
— É claro… — concordei.
Quando voltei para dentro, vi a garota parada no meio da grande
sala, os olhos escuros fixos em mim.
— O que quer que eu lhe diga? O nome do demônio que matou sua
família? Acha mesmo que conseguirá incriminá-lo? — inquiri. — Quanto
menos você souber, melhor… — Estendi a mão, encarando o ideograma
tatuado ali. — Sei bem do que estou falando.
— Acha que eu não tenho direito de saber quem matou meus pais?
— elevou a voz, aproximando-se provocativa. — Se fosse com você, não
iria querer saber quem é o assassino?
Respirei fundo, lidar com ele era um mal necessário, ao menos até
a garantia de que Musashi e eu estávamos seguros. Eu ainda não sabia se
Samuel tinha trazido o problema até nós, ou sido uma feliz coincidência,
mas, por ora, mantê-lo por perto era o mais inteligente.
Calma, Lia… Não será diferente de quando você fingia ser uma
das garotas da Jane. — Soprei o ar para fora. Isso se for verdade! Aquele
filho da puta pode, muito bem, estar brincando com você!
Recuperei um pouco da calma e voltei para o quarto em que
Musashi descansava. O sedativo havia sido retirado desde a saída do posto e
eu sabia que faltava pouco para que ele começasse a acordar.
— Lia, eu…
— Shhhh, calma, Sr. Musashi… Está tudo bem… Samuel cuidou
de tudo… — Sorri de canto, mas não pude sustentar o gesto por muito
tempo.
Franzi o cenho.
— Não, querida… Não pense que roubei de você, não foi nada
disso… Seu pai…
Musashi aquiesceu.
— Seu pai… — Pausou para respirar. — Eu temia que essa hora
chegasse, mas preciso esclarecer as coisas, Lia… Eu… — Interrompeu a
frase e fez uma careta de dor.
— Calma, pai… Não se esforce demais… — pedi. — Teremos
tempo para explicações… Você acabou de acordar, ainda está fraco…
— Melhor, querida…
— Sou uma erva ruim… — Meu pai sorriu. — Não há geada que
me mate…
— Lia…
— Juntos? — insistiu.
Não era uma verdade absoluta, mas eu precisava que fosse. Não
tinha como ignorar que havia uma ligação entre mim e aquele maldito
mundo fora da lei. Se eu queria descobrir até que ponto, Samuel era minha
chave.
Capítulo Dezoito
Shin
Parei em frente às portas duplas da suíte e fiquei observando a
cidade. Sobre a cama, a caixa do vestido que eu havia comprado, ao lado da
sacola com as sandálias.
Não demorou muito para que uma batida suave na porta se fizesse
ouvir no silêncio.
— Entre… — pedi.
Aquiesceu.
— Abra a caixa… — instruí.
— Inclusive…, mas não acho que será possível usar com esse
vestido…
— Seja discreta… Submissa… Não fale nada que não seja trivial e
sem importância… Trate-me com respeito e lembre-se de duas coisas…
Primeira… — Levantei um dedo. — Qualquer um naquele lugar pode
machucá-la e eu não poderei impedir, simplesmente porque não deveria me
importar, e segundo… — Levantei o outro dedo. — Estamos ali por um
nome… Minoru… Se ouvir qualquer coisa relacionada a ele, preste atenção
e guarde na memória…
Meneou a cabeça em concordância.
Cravei os olhos nos seus, queria deixar claro que não ia cair em
nenhum tipo de artimanha que ela tentasse armar. Não ia baixar a guarda
por causa de uma boceta, ainda que fosse uma na qual eu gostaria muito de
me fartar.
Willian riu.
Levei a mão até sua cintura e puxei-a para perto, colada em meu
corpo, antes de continuar pela curva da bunda e parar ali.
Aproximei o rosto, esperando que ela fugisse do que podia ser uma
tentativa de beijo, e só desviei quando nossos lábios praticamente
resvalaram.
— Isso! — sussurrei em seu ouvido. — É assim que deve ser! —
Pisquei, antes de me afastar.
O olhar safado e confiante que me lançou foi o suficiente para me
fazer desejar puxá-la novamente e não desviar no último segundo.
Eu não era inocente, nem podia negar que aquela adrenalina toda
correndo em minhas veias era muito excitante. Corria perigo? Muito mais
do que deveria, mas também sentia como se realmente estivesse resgatando
algo que eu nem sabia que tinha perdido.
O homem que encarava meus seios riu e falou algo em japonês que
teria passado como uma brincadeira machista e arrogante, não fosse pela
veia pulsando na têmpora do mestiço.
Fiz o que ele havia pedido e comecei a andar pelo lugar. Não fazia
ideia do que estava procurando e nem de quem deveria me aproximar ou
afastar. O certo era que estivesse morrendo de medo, qualquer um estaria,
mas, sempre que olhava para o lugar onde Samuel estava, nossos olhares se
cruzavam. Ele era como um grande felino à espreita, mesmo de longe, fazia
com que eu me sentisse segura.
Não que meu avô fosse gentil e protetor comigo, muito pelo
contrário, ele sempre soube que seria mais fácil dominar a mim do que a
Ishiro e teve razão, até pouco tempo atrás.
Dei a volta pela porta da cozinha e peguei o filho da puta antes que
ele conseguisse encontrar Liandra.
Ishiro riu.
Ishiro riu.
Franzi o cenho por um segundo, não entendia bem o que ele queria
dizer, mas tentei concentrar meus esforços em encontrar o momento
perfeito para escapar da emboscada.
Ao menos errei e Liandra está em segurança… Se for esperta, verá
que eu sumi e irá embora bem rápido.
Os olhos de Ishiro baixaram do meu rosto para o pescoço, onde eu
sabia que ele podia ver relances da corrente.
Eu estava zonzo, mas sempre fui bom de briga, treinava mais que
qualquer um e não tinha medo de arriscar. Ágil e forte, não demorou para
que o grandão que me mantinha preso caísse no chão.
Respirei fundo e pisquei lento, rezando para que ela entendesse que
era minha deixa. Para a minha surpresa, Liandra entendeu e esticou o braço.
No susto, enfiou a faca na cintura de Ishiro e baixou o corpo, deixando o
espaço livre.
O tiro certeiro fez o homem que a mantinha presa cair, produzindo
um barulho alto. Ishiro caiu de joelhos, as mãos apoiadas no chão, e eu me
aproximei, mirando em sua cabeça.
Pisei mais fundo, seguindo a estrada até que uma placa apareceu e
eu soltei um suspiro de alívio. Fazenda Esmeralda.
Girei o volante para a esquerda, agradecendo a pequena ajuda dos
céus. A família da Manuela tinha um sítio por ali e eu podia jurar que
estaria vazio naquela noite, já que era meio da semana e todos tinham sua
vida em São Paulo.
— Vem, Samuel!
Tentei segurar sua mão, mas antes que conseguisse ele me agarrou
pelo queixo, a mão boa escorregando até meu pescoço, mantendo minha
cabeça elevada.
Prensou-me contra o carro com o corpo encaixando-se em mim, os
olhos escuros, de algo que eu não conseguia definir, fixos nos meus.
— Shin…
Separei meus lábios assim que senti o toque dos dele, queria beijá-
lo mais do que queria ar, mas não foi o que ganhei.
Sua língua invadiu o espaço com tanta vontade que tudo que
consegui foi me entregar ainda mais, cedendo tudo que ele queria e
aproveitando o que me fazia sentir.
Shin puxou mais forte meu cabelo, cheio de posse, como quem
comanda o arreio de um cavalo.
— Como? — insistiu.
— É segura?
Eu sabia que encontraria roupas limpas para nós dois e, por mais
errado que fosse, era uma daquelas situações em que se tem que fazer o que
for necessário e arcar com as consequências depois.
Queria desviar e não parecer tão boba, mas não consegui. Shin
abriu a porta de vidro e estendeu a mão.
— Vem…
Ato III
Remissão
Uma alma sem respeito é uma morada em ruínas. Deve ser
demolida para construir uma nova.
Bushido
Capítulo Vinte e Dois
Shin
Puxei-a para dentro assim que sua mão me tocou, prensando-a
contra a parede de azulejos e moendo sua boca com a minha.
Eu podia jurar que estava dolorida pelo quanto seu canal apertava
meu pau. Era pequena e delicada ali também, o que só me deixava mais
faminto para tomá-la com a intensidade de que eu gostava.
Eu cresci ouvindo sobre o quanto meu avô era justo e honesto. Por
muito tempo, realmente acreditei que ele era um grande oyabun e que meu
pai era apenas invejoso demais para aceitar que nunca seria tão bom, mas,
naquela fatídica viagem ao Peru, ouvi pela primeira vez, depois de tanto
tempo, o nome Minoru.
Encarei a garota pelo canto dos olhos, sem que ela percebesse.
Estava calada, nenhuma palavra por todo o trajeto. Mãos cruzadas sobre o
peito, como se quisesse se proteger; do frio ou de mim.
Seus olhos mal passaram pelos meus, e ela seguiu direto pelo
corredor, perdendo-se na porta do quarto.
— Sei que ficou impressionada com o meu pau, mas vai ter que se
resolver sozinha… Não estou muito disposto a foder agora… — provoquei.
Sabia que isso a deixaria irada e quando ficava irada ela era reativa,
o que tornava o sexo mais divertido e o pós-foda mais fácil.
Venci o espaço entre nós mais rápido do que deveria, mas, antes de
fazer besteira, parei. Não ia ser eu a perder a calma.
Eu queria acertar a cara dele com um tapa bem dado, daquele tipo
que estala deixando uma marca bem vermelha e inchada, mas não era
idiota; sabia que, se o fizesse, cairia no jogo dele.
O mestiço riu.
Sentei-me na cama.
Um dia, quando cheguei do colégio e vi meu pai mexendo no colar,
havia um pedacinho de papel em sua mão, onde ele anotava algo, que eu
não fui capaz de ler. Só quando guardou de volta no lugar, percebi que na
verdade não era papel, e sim a fotografia.
— Não seja boba, existe uma moldura, a foto é fixa… Por que quer
arrancar?
O mestiço riu.
— Viu só? Eu disse que você era boa em fantasiar… — Riu mais
uma vez, mas seu rosto ficou sério e letal rápido demais. — Não se
empolgue, chiisai… Não estamos trocando confidências aqui…
Eu não fazia ideia de como ele tinha descoberto tão rápido, mas
tentar negar só iria me fazer perder tempo, então fiquei calada.
Abracei-o apertado.
Capítulo Vinte e Quatro
Shin
Você está limpa… Não é como nós… — as palavras ecoavam em
minha cabeça enquanto me afastava da porta do quarto.
Virei-me devagar.
— Eu não contei nada… Ele deve ter ouvido algo ou supôs certo…
Eu só não neguei que vamos ao Peru…
Aquiesci.
Passei por ela direto para o quarto, precisava arrumar minha mala e
não queria chegar atrasado no aeroporto.
— Estou pronta.
— Ótimo.
Era meio sádico e muito excitante pensar que, pelo resto da vida
dela, eu estaria em muitas primeiras lembranças.
Mais um silêncio.
— Jure… Pelo código… Não quero que morra, Shin… Não desse
jeito, correndo e fugindo… Eu…
Sorri.
— Sei que está ansioso para pegar o tal Minoru, mas a vida não
pode se resumir a tensão e sexo para aliviar a tensão!
Ergui uma sobrancelha sarcástica para ela.
— Pode, sim.
Não pude reprimir o riso, quando ela tentou levar a garrafa à boca
e constatou que estava vazia. Tentou chamar o garçom, abanando o rosto, os
olhos começando a lacrimejar.
Você devia ouvir o seu pai e não confiar tão rápido nas pessoas,
chiisai… Eu sou do tipo que morde, não do tipo legal…
— Ele mesmo…
— Então ele…
— Não! Mas conheço alguém que conheceu e ela está ansiosa para
vê-la, Liandra…
Parecia sério, mas no fim das contas os dois riram e eu fiquei sem
entender.
Paramos junto ao jardim na entrada e descemos.
Não demorou muito para que uma bela mulher de cabelos longos e
claros viesse até o nosso encontro.
— Às vezes você se esquece que era para mim que vinha correndo
quando esfolava os joelhos no quintal!
Sorri em agradecimento.
— É claro!
Deixei o quarto e segui pelo corredor até que a vi. Liandra estava
lá, sentada na mureta de frente para Guillermo, cuja mão carregava uma
colher cheia de doce. O filho da puta ria e tentava enfiar a colherada na
boca da garota, que ria também.
Fazia muitos anos desde a última vez que eu estivera naquela casa,
mal podia crer em como o tempo não havia mudado nada. Se fixasse os
olhos no fim do corredor, quase podia ver Vigo saindo do escritório com
suas calças de linho cru e camisa branca. Atrás dele, minha mãe com seu
vestido florido e longos cabelos soltos.
Nicolas empurrou a porta com a mão, revelando o escritório
intocado, não fosse pelo computador moderno sobre a mesa.
Acendi e dei um longo trago. Tinha sido pouco mais de dois anos o
tempo que passamos morando no Peru, mas algumas das lembranças eram
vívidas, como se tivessem sido vinte anos.
Respirei fundo, deixando o ar sair de uma vez.
— Nem a mim… Meu avô foi capaz de passar por cima do próprio
filho, por que não do Minoru? A questão é, como vamos encontrar a porra
de um caderno numa aldeia de índios!
— Nem o Chaska… Sei que pensa que ele seguiu as ordens do seu
pai, mas não é verdade… Chaska desertou, assim que seu pai tirou você
daquela casa… Aquele tiro, Shin… Foi de misericórdia… — A mão suave
repousou sobre a minha. — A ordem do seu avô era para que Malena fosse
arrastada pelas ruas de Cusco, ainda viva e sangrando até a praça… Como
ele fez com os outros traidores… Eu sei disso porque foi aqui que o Chaska
se escondeu…
Soquei mais uma vez. Doía mais dentro do peito do que a mão,
embora as marcas de sangue começassem a ficar visíveis no tecido do saco
de grãos.
Não, chiisai… Não vai sarar… Parece que a cada dia a ferida abre
um pouco mais…
Capítulo Vinte e Nove
Liandra
Minha mão estava lá, parada no ar, esperando por algo que nem eu
mesma entendia o quê.
Meu instinto falou mais alto, mas dessa vez fui mais rápida e
consegui agarrar sua mão.
Desisti.
Depois dei as costas e segui pelo caminho que havia me levado até
o depósito, mas, antes de continuar para fora, parei.
— E antes que se preocupe… Já tenho meus próprios métodos
anticoncepcionais…
Não era do tipo masoquista, mas tinha que confessar que sexo
nunca fora tão libertador como era com ele, como se não existisse pudor,
nenhum desejo reprimido, nada. Ele me tocava e eu esquecia a Lia que
devia ser, apenas sentia.
Tinha acabado de me secar, quando meu telefone acendeu com
uma mensagem de Érico.
Acabei rindo. Tudo havia acontecido tão rápido que pareciam anos
longe.
“Aguente firme, soldado! Logo estarei aí para lhe dar uma coça de
pôquer!” — brinquei.
Verônica riu.
Ele passou por nós sem olhar para trás e eu tentei disfarçar o
melhor que podia, mas, ao que parecia, não era tão boa quanto pensava.
Verônica sorriu com entendimento, os olhos deixando clara aquela
mensagem de “é, eu sei… Já passei por isso!”
Capítulo Trinta
Shin
Livrei-me das roupas sujas e da atadura, vendo o sangue verter do
ponto que estourara com a força dos golpes.
Não sabia costurar, mas não devia ser tão difícil assim. Eu já fizera
coisas mais complicadas na vida do que costurar dois pedaços de pele!
Mantive os olhos nos dela por uma fração de segundos, mas não
discuti. A dor falou mais alto que meu orgulho, então obedeci.
Como alguém pode ser tão delicado e tão forte ao mesmo tempo…
— Pronto! — anunciou afastando a mão e virando-se para guardar
as coisas dentro da caixa novamente.
Continuei olhando para ela. Havia uma parte daquela garota que
me fazia querer ir além e ser alguém diferente, mas eu não podia permitir
que essa parte tomasse o controle ou acabaríamos fodidos os dois.
Estava na ponta dos pés, tentando alcançar meu pescoço para vestir
a camiseta.
— Isso!
Acabei rindo.
Segui sozinho pelo jardim dos fundos, mas parei alguns passos
antes de me aproximar.
Não era o mesmo riso arrogante e contido que sempre dava, era
aberto, daquele jeito que faz os olhos se fecharem um pouco, então senti
meu coração se acelerar.
Fiquei parada ali, na frente de Shin sem saber como agir. Fora pega
de surpresa.
Sua mão segurou e girou meu pulso tão rápido que senti tontura.
Meu corpo prensado contra o dele e sua boca raspando minha orelha.
Não sei em que momento ele saiu, mas, quando Guadalupe encheu
minha taça de vinho pela última vez, Shin já não estava entre os presentes.
Pensei em dizer que não, que ela havia entendido errado e eu não
estava nem aí para o mestiço filho da puta que me levara até aquele lugar,
mas seria mentir muito mais para mim do que para ela. Depois de tanto
vinho, minha honra de mulher fodona e autossuficiente já nem queria mais
aparecer.
Passei pelo quarto, pelo estábulo, e desci contornando o jardim,
sem nenhum sinal dele.
Parei próximo a ele, mas não disse nada. Ficamos nos encarando
por um tempo, como se fosse mais fácil não falar.
— O que…
Pelo caminho que fizemos, mais três homens caídos. Dois yakuzas
e um latino que eu tinha visto na festa mais cedo.
— Baka dekai… — Sugoi xingou, conferindo que nenhum dos três
tinha pulso. — Vou descer e ver se acho algum dos nossos vivo… — avisou
e eu concordei.
— Shin!
A garota correu até mim como naquele dia no beco. Apertou os
braços em torno do meu peito e descansou a cabeça ali. Fechei a mão em
punho, como se quisesse impedir o que realmente desejava fazer, mas,
diferente daquele dia no beco, eu me deixei levar. Escorreguei a mão em
suas costas, trazendo-a para mim, segurando seu rosto junto a minha pele.
Evitei contato visual com Shin, tinha certeza de que iria me olhar
com aquele ar de reprovação e me fazer sentir ainda pior.
— Se veio até aqui para dizer que eu fui inconsequente e que você
já tinha me avisado, pode poupar o discurso… — Abaixei-me perto da
mesa de cabeceira e peguei o aparelho. — Já estou me sentindo mal o
suficiente.
O homem alto e forte em minha frente não disse nada, apenas
estendeu a mão, esperando pelo celular.
Entreguei, tinha certeza de que ia jogar pela janela ou ao menos
pisar em cima, mas não foi isso que aconteceu. Shin apenas o desligou e
entregou de volta em minhas mãos.
— Só isso? — perguntei.
— Seu idiota! Acha que estou punindo você porque não o beijei?
— elevei minha voz também, estava perdendo o controle. — Tem ideia do
quanto… Quanto… — Engoli a declaração que não queria fazer.
— Quanto o quê? — provocou, aproximando-se novamente. — O
quanto você me quer? Diz!
Segurei seu rosto entre minhas mãos. Sugando seu lábio e sentindo
o gosto ferroso da intensidade do nosso beijo.
O peruano riu.
— Quando vai admitir que tem um dos pés bem enterrado aqui
nesta terra vermelha, hermanito? Você pode ter nascido com esses olhos
puxados e essa cara de filho da puta arrogante que herdou do seu pai, mas
seu coração é de La Santa Muerte… como o nosso!
— Não está muito consciente, mas nada que um pouco de água dos
Andes não refresque! — Nacho brincou, dando um tapa na cara do filho da
puta de pescoço tatuado.
Nicolas abriu a traseira da caminhonete e puxou o homem pelos
pés, enquanto eu o pegava pelos ombros. Pelo tanto que havia apanhado,
tínhamos que ser cuidadosos, ou acabaríamos matando o filho da puta antes
que ele tivesse a chance de confessar algo.
— Isso…
Bati à porta e esperei que ele abrisse. Tudo estava silencioso, então
empurrei devagar para encontrar o quarto vazio.
— Aí vamos ter mais tempo para nos divertir antes de voltar para
casa… O dia amanhã será bem cheio…
A arma fria contra minhas costas, fazendo com que toda aquela
adrenalina e sensação de perigo aumentasse, junto com o prazer. Eu estava
viciada naquele yakuza desgraçado, no que ele representava e no que me
fazia sentir.
— Aprendo rápido…
Algumas horas fora o tempo que Vigo deixara minha mãe sozinha
com duas crianças e um bebê recém-nascido… Algumas horas que
destruíram mais vidas do que pudemos contar.
Abri a porta do quarto e parei, observando a garota na cama.
Quando foi que você ficou tão burro? — xinguei a mim mesmo. Caiu no
mesmo erro que viu derrubar tantos…
Apertei os olhos.
Porra de ansiedade que não me deixa desligar…
— Ahhhhhh…
Pelo tempo que durou, não havia yakuza, cartel, nem a porra do
fantasma do Minoru, não havia nada além da calmaria que Liandra era para
mim.
Ela se curvou e me beijou, enquanto eu ainda estava dentro dela.
Os lábios macios, o riso fácil.
Algumas horas… Se alguém tirasse a garota de mim, ia certamente
conhecer o inferno, porque eu me transformaria no demônio só para tê-la de
volta.
Capítulo Trinta e Sete
Liandra
Fiquei parada ali, aconchegada em seu peito.
Não estava com sono, mas a paz que ele me trazia acabou me
fazendo adormecer. Acordei em sobressalto, quando seu corpo começou a
se mexer.
— No te vás… No te…
Tentei me levantar, mas ele agarrou meu pulso por instinto com
tanta força que doeu.
— Preciso de um banho…
Fiquei parada ali, com a boca aberta e a mão estendida, sem ter
tempo para chamá-lo, já que ele passou pela porta correndo como um
foguete.
Eu entendia bem daquele artifício, tinha usado muitas vezes
quando não queria falar sobre algo que estava escrito em minha testa.
Pensei em deixá-lo ter seu tempo e voltar para o quarto com aquela
mesma cara de arrogante que não precisava de ninguém, mas tudo que
conseguia pensar era no quanto ele estava sozinho.
O único… — Suspirei.
Ele passou pela porta e, logo que vestiu a calça de elástico, sentou-
se no beiral, o cigarro aceso no canto da boca, displicente e charmoso como
só ele conseguia ser.
— Sonhei com a minha mãe… — começou depois de algum tempo
em silêncio.
Não sei em que momento ele saiu, porque quando acordei estava
sozinha. O lençol amassado e vazio ao meu lado deixava um gosto amargo
em minha boca. Aquela sensação apertada no peito.
Lavei o rosto e me vesti, seguindo para a cozinha. Verônica estava
lá, parada diante da janela com a caneca de café nas mãos. Olhava o
horizonte, com o mesmo peso no olhar que eu.
— São só algumas horas… — falou assim que eu me aproximei.
Ainda não queria ser mãe, mas talvez, só talvez, a vida não
precisasse ser tão solitária.
Fiquei sem jeito. Podia contar nos dedos das mãos as vezes que
tinha segurado uma criança no colo, mas aceitei.
Olhei para Verônica imediatamente, já que não sabia que ela estava
grávida.
Não… Dois dias de atraso são normais para você, Lia… Ainda mais
com essa bomba hormonal que você tomou! É estresse! Essa vida maluca
em que você entrou…
Minha mãe era aquele tipo de mulher que acredita em tudo, desde
simpatias até presságios. Meu pai e ela haviam se conhecido em um bar, na
Liberdade. Ela era recém-chegada do Nordeste, ele fugitivo do Peru, se
olharam, ele ofereceu uma bebida e ela disse que aquela seria sua pior
decisão. Nove meses depois, eu nasci.
Meu avô no Peru não era de estranhar. Eu já imaginava que ele não
ia ficar quieto e esperar que eu conseguisse a prova de que precisava para
derrubá-lo. Aquela cobra peçonhenta estava sempre um passo a minha
frente.
Não era a primeira vez que víamos uma cena como aquela e
sabíamos bem quem tinha sido o mandante. Meu avô gostava do fogo.
Dizia que um demônio reconhece outro e que era por isso que ele enviava
seus inimigos direto para o Inferno.
Logo depois a porta foi aberta e Lia, arrastada para fora do carro.
Um homem a jogou por cima do ombro e correu até a porta do avião.
Descarreguei o pente de uma vez só, sem parar para pensar, tudo
que queria era um pouco de alívio para o meu desespero.
Quando apertei o gatilho e nada aconteceu, caí de joelhos. O peito
subindo e descendo rápido, o coração tão acelerado que pensei que ia
morrer. Alisei os cabelos para trás, o ardor no braço machucado era
lancinante.
Fechava os olhos e tudo que conseguia pensar era nele, meu yakuza
jurado de morte. Eu soube, no instante em que me deixei levar por ele, que
minha vida não seria diferente do que tinha sido a da minha mãe, mas, se
pudesse voltar no tempo, não teria feito nada diferente.
Senti meu corpo ser carregado para fora do carro e jogado em cima
de um banco instável, mas só me dei conta de que estávamos no céu depois
de alguns minutos.
Podia jurar que tinha ouvido tiros, mas não fazia ideia se eram reais
ou fruto dos delírios da intoxicação que havia invadido os meus sentidos.
O tapa estalou tão forte em meu rosto e ouvido que senti o zunido
por alguns segundos. A bochecha ardendo como o inferno.
— Cala a boca, sua puta! — xingou em inglês, queria ter certeza de
que eu entenderia.
Eu queria chorar de ódio, mas me recusava a dar ao desgraçado
que havia me batido o prazer de me ver frágil. Levantei o rosto e respirei
fundo, lutando para manter o controle. Os dentes travados segurando a raiva
que eu não podia deixar sair.
Encarei a janela, não fazia ideia de onde estava, mas podia apostar
que não era mais Cusco, já que o mar esverdeado estava lá embaixo.
Tentei me manter consciente. Queria ao menos saber para onde
estava indo, mas a dor de cabeça e a sensação de tontura ainda seguiam
fortes, assim como a lentidão de movimentos.
Fui puxada para fora do avião e escoltada pelo que parecia uma
pista de pouso fechada. Ao longe, pilhas e pilhas de contêineres coloridos
se amontoavam. O apito de um navio terminou de confirmar o que eu já
suspeitava. Estávamos no porto, de Lima, provavelmente.
Enquanto caminhava até perto de um dos hangares, corri os olhos
pelo homem que tinha os dedos apertados em torno do meu braço. Alto e
forte, parecia bem mais jovem do que eu, provavelmente nem atingiria a
maioridade. Mostrava ser pouco mais que um adolescente.
Cabeça raspada na lateral, com um tigre de garras de fora tatuado.
Os olhos, de aparência oriental, estavam cobertos por óculos escuros do tipo
aviador. Nenhum sorriso, nem mesmo a sombra de um.
Cuspi com força na cara dele, aproveitando que minha boca ainda
tinha gosto de vômito. Fiquei tão satisfeita que, quando o chute me fez cair
de joelhos, nem a dor tirou o sorriso de mim.
A fumaça escura ainda saía do motor, então dei a volta para conferir
o que já sabia, Sugoi, meu companheiro e homem de confiança, havia sido
abatido pelo desgraçado a quem um dia chamei de oyabun.
Não podia deixar que eles chegassem até Nacho desprotegido, tinha
que acertar o motorista sem danificar o carro.
— Desamarre-o… — ordenou.
O homem que havia me escoltado pensou por alguns instantes, mas
não foi capaz de desobedecer.
Quando me livrei das cordas, esfreguei os pulsos doloridos e depois
corri o polegar sobre o sangue no canto dos lábios, limpando na calça jeans.
O tapa estalou tão forte que Pepe caiu de joelhos. Encarei-o com a
sombra do sorriso mais sarcástico que eu poderia dar. Não sabia quem era o
mestiço com a voz de comando, mas tinha que confessar que ele era rápido.
Levei um susto tão grande que só não caí porque já estava sentado.
Em meu colo, o caderno perdido de Akira Minoru.
Ato Final
Ascensão
Às vezes encontramos nosso destino no caminho que buscamos
para evitá-lo.
Yamamoto Tsunetomo
Capítulo Quarenta e Um
Liandra
Acordei com uma sensação estranha.
Minha boca ainda estava seca, mas não tinha mais o gosto ácido do
vômito. Abri os olhos para me ver deitada em uma poltrona confortável de
couro claro. Daquele tipo que se usa em avião. As janelas redondas
confirmaram minha suspeita.
Por trás das cortinas, o céu era negro e sem nuvens, uma completa
e dramática escuridão.
Dei mais alguns passos, até a cortina que separava o espaço em que
eu estava do restante da aeronave.
— Kai era filho de uma prostituta… Uma que Akira fazia questão
de manter longe dos olhos da organização… Eu mesmo só soube da
existência do menino quando ele estava para completar vinte anos…
— Seu avô e eu éramos amigos, Shin… Até que o poder subiu aos
seus olhos e o cegou… — confirmou o que eu havia lembrado. — Eu jurei
vingança sobre o corpo sem vida do meu oyabun… Jurei que não deixaria
esta terra sem que a justiça fosse feita…
— Você tinha quantos anos quando ela morreu? Sete? Oito? Não
era tão pequeno assim, garoto… — o homem continuou. — Deve ter visto
seu avô falar algo a respeito… Ele soube quem sua mãe era pouco depois
que você nasceu…
Puxei pela memória o mais fundo que pude. Minha mãe não falava
do passado, nem do Chaska ela havia falado, mas então uma lembrança me
veio à memória. No dia em que a encontrei caída na sala das espadas!
— Podemos procurar sua avó depois… Ela ainda está viva e mora
em um pequeno vilarejo, perto de San Pedro… — Respirou fundo. — Não
tenho tempo para brincadeiras, garoto… Acha mesmo que eu perderia meu
tempo protegendo um Nakai?
Meus olhos foram para a maçaneta, mas eu não era tão ingênua,
sabia que ali, dentro do espaço dele, não teria a mesma sorte que tive em
São Paulo.
Achei melhor nem perguntar, não fazia mesmo diferença quem era.
Dei alguns passos em torno do lugar. Não tinha ideia de quem era a
tal menina, mas ela gostava de games e de tecnologia. Na parede, alguns
posteres de bandas de K-pop e um de Star Wars.
Não havia uma fotografia sequer, nada que me mostrasse quem
havia morado ali, então segui até o closet. Roupas pequenas, de uma garota
quase colegial. Saias plissadas até os joelhos, vestidos elegantes, pretos, em
sua maioria, contrastavam com as camisetas geek e as calças largas de
moletom.
Quem será que morou aqui? Não era uma prisioneira… Ao menos
não do jeito tradicional…
O banheiro seguia tão limpo e organizado quanto o closet. Itens de
higiene pela metade, alguns já nem estavam mais no prazo de uso. Era
como se o tempo ali não tivesse passado.
Faltavam alguns dias para o fim das minhas férias… Érico não
teria mais uma parceira… Ellen iria aprender a fazer compras sozinha e
meu pai… — Suspirei. Meu pai não teria mais ninguém… Ia se culpar, se
amargar um pouco mais e no fim das contas, nem teria com quem desabafar
de verdade.
Minha mãe era uma garota simples do interior, foi para São Paulo
tentar a sorte, mas acabou se apaixonando pelo homem errado. Porque era
exatamente isso que meu pai era, o homem errado! Assim como Shin… Eu
não era burra, nem inocente, sabia bem onde estava me metendo, como
talvez minha mãe também soubesse, mas quem consegue parar a desgraça
da paixão?
Pensei em dizer que não, mas estava mesmo com frio e cansada.
Meu estômago também parecia disposto a aceitar a comida quente sobre a
cama, então livrei-me das roupas e entrei debaixo da água quente.
Não podia negar que o jato forte em meus ombros era relaxante e
agradável. Deixei que a água caísse por alguns minutos, depois usei um
pouco de sabonete líquido. Lavei o rosto e bochechei um pouco de água.
Enrolei-me na toalha que fora deixada sobre a bancada da pia.
Eu ainda não sabia quem era Yasu, mas talvez ela fosse minha
única possibilidade de salvação.
Capítulo Quarenta e Quatro
Shin
Abaixei por instinto e Sosuki fez o mesmo, abrindo a gaveta da
mesa de madeira e jogando uma pistola para mim.
— Sei que não devo… Irmãos não cobram pela ajuda, fazem
porque sabem que é o que tem que ser feito!
Encarei os olhos castanhos do companheiro que, apesar de ocupar
o lugar oposto ao meu no mundo, sempre estivera ao meu lado. Ele tinha
razão, eu jamais o deixaria sozinho, não podia esperar que ele fizesse o
mesmo.
“Meu avô pegou a Lia, estou indo para o Japão com os homens do
Minoru. Mando notícias.”
Encontrei-o ao telefone.
— Não podemos contar com o conselho… — soltou assim que me
viu. — Meu homem de confiança… Seu avô… — Socou o braço da
poltrona, indicando o que havia acontecido.
Sosuki riu.
— Bem que me disseram que você era convencido, garoto…
Acabei rindo. Sabia o que ela queria dizer, ter enjoos matinais era
um dos sintomas mais comuns de gravidez, porque a alta hormonal causava
esse efeito. Então, se eu estava enjoada, teoricamente minhas taxas
hormonais estavam subindo rápido.
— Aqui… — Destampou um potinho com conserva de gengibre.
— Bom para barriga…
Meu pensamento foi direto para Shin e para o que eu teria que ver
acontecer com ele sem poder evitar. Tinha ouvido movimentações pela casa
a noite toda, sabia que o demônio tatuado estava se armando.
Voltei o rosto para ela e franzi o cenho. Não sabia se estava falando
do bebê ou de Shin. Menino, menina, a limitação da língua era uma merda,
por mais que quiséssemos nos comunicar.
Ela fugiu! Fugiu desse desgraçado, por que você não conseguiria?
Com a ajuda certa, vai conseguir! Lembra, Lia… Lembra de tudo que você
já passou… É só mais uma coisa!
Voltei para dentro e me sentei na cama, puxando a bandeja de
comida de volta para o meu colo.
No fim das contas, o doutor tem razão! Precisa comer! Saco vazio
não para em pé e não foge da Yakuza!
Capítulo Quarenta e Seis
Shin
Seguimos do aeroporto direto para o apartamento que Willian
ainda mantinha nos arredores de Tóquio. Não podíamos ir para o meu, nem
a um hotel, se quiséssemos manter em segredo a emboscada que
prepararíamos.
Amigo do Hiro…
Fazia tempo que eu não ouvia aquele nome, mas ainda sentia falta
do amigo que perdera em minha fuga. Hiroshi Takamatsu chegara à casa do
meu avô depois de ter sido pego libertando duas garotas de um prostíbulo
em Kamagasaki.
Meu avô queria matá-lo, mas meu pai resolveu dar a ele uma
chance de provar sua lealdade. No fundo, o que meu pai desejava era
cultivar nossa rivalidade e me fazer cair no conceito do meu avô, mas não
conseguiu. Hiro e eu entendemos o recado e aceitamos nossa posição
contrária, embora em segredo fôssemos nos tornando grandes amigos
aliados.
Pouquíssimos irmãos de organização sabiam da nossa real ligação,
então, se o homem ao telefone tinha citado Hiro, eu precisava ouvir o que
tinha a me dizer.
Abri a porta para encontrar um rosto que nunca tinha visto na vida.
Aquiesci.
Ela criou a mim e a Yuki como se fôssemos seus filhos, mas o dela,
não havia chegado sequer a ver.
Andei pelo quarto, indo e vindo tantas vezes que minhas pernas
estavam cansadas e doloridas. A noite caíra quando eu decidi tomar banho e
trocar minhas roupas por algo mais quente. Para a minha sorte, a dona do
quarto e eu tínhamos quase o mesmo tamanho, a maioria das roupas de
algodão dela serviam em mim.
— Satoshi me disse que você não está sendo uma boa garota,
Liandra… — meu nome dito devagar, de um jeito nojento. — E isso não
me deixa nem um pouco satisfeito… Diga, algo está faltando a você? O que
mais quer? Roupas de luxo? Joias?
Abri a boca para dizer que nada me faltava, quando ele me agarrou
pelo pescoço, os dedos apertando minha glote até me fazer engasgar.
— Espero não ter que explicar a você qual é o seu lugar aqui, sua
vagabunda! — Apertou um pouco mais e eu comecei a tossir. — Vou
esperar ansioso o momento do seu parto… — Aproximou a boca da minha
orelha, roçando em minha pele. — E fazer questão de tornar sua morte bem
dolorosa!
— Vamos ver como está sua pressão agora pela noite, senhorita…
— ia falando, mas digitava algo no celular, em vez de me examinar.
Pensei por alguns segundos. Nem fodendo! Eu não fiz nada e quase
fui enforcada por aquele filho da puta de uma figa; se cortar o braço do
protegido dele, o desgraçado me estripa!
***
Acordei sozinha e no escuro. A roupa que eu usava estava molhada
em algumas partes. Havia apenas uma janela alta e fina, de onde uma fresta
de luz entrava. Tentei me levantar, as mãos apoiadas no chão úmido e frio.
Meu rosto doía como o inferno. Pisquei, sentindo o nariz duro e então levei
a mão até o local.
Por que ele me trouxe até aqui? Por que queria fingir que eu o
havia atacado? Qual o sentido?
Minha cabeça doía pelo golpe e por tentar entender o plano sádico
do médico.
Não esqueça que ele é um yakuza, Lia! Um yakuza, e não o médico
do posto de saúde!
Inspirei pelo nariz e soltei pela boca, uma, duas vezes, segurando
as lágrimas o mais forte que pude.
Calma, Lia… Calma… Deve haver alguma razão… Desespero só
vai te deixar pior!
Capítulo Quarenta e Oito
Shin
Assim que cheguei à frente do prédio, vi a ponta do cigarro acesa
no meio da escuridão do beco ao lado. Pela postura, tinha certeza do que
era.
Nicolas riu.
— De um jeito, ou de outro.
Meus olhos passaram pelo espelho, onde nosso reflexo mostrava
uma situação inusitada. Dois yakuzas rivais e o chefe de um cartel
dividindo um espaço tão pequeno. Era mesmo curioso o poder que o ódio
em comum poderia ter.
Grávida? Não! Ela não pode estar grávida… Ela disse… Disse… E
você acreditou, seu imbecil! Cometeu a porra do pior erro de todos…
Confiou…
Enchi os pulmões de ar.
Porra, chiisai, e agora? O que vou fazer com um bebê? Onde vou
enfiar um bebê na desgraça de vida que levo? Como vou fazer isso dar
certo?
Não sabia o que pensar, nem como reagir. Jamais achei que algo
como aquilo aconteceria.
Estava tão perdido em pensamentos que só percebi que não estava
sozinho quando Nicolas falou.
Voltei o rosto para ele pronto para xingar, quando Nicolas riu e eu
acabei rindo também.
O único lugar menos frio que eu tinha para me deitar era um velho
colchão do tipo futon, fedido e grudento, então passava a maior parte do
tempo sentada na caixa de bebidas.
Acho que a gente fica meio boba quando está grávida mesmo!
Hormônios? Provavelmente!
Ri, mas meu riso não tinha força. Havia tristeza demais pairando
densa naquele ar.
Acabei cochilando de exaustão e acordei assustada, com luzes
estranhas indo e vindo pelo espaço escuro da minha cela.
Levantei o mais rápido que pude e empilhei novamente uma caixa
em cima da outra, para poder subir e ver o que acontecia do lado de fora.
Levei um susto quando vi que eram carros estacionando em frente a janela.
E foi então que algo bateu contra a porta, fazendo meu coração
acelerar e o sangue gelar nas veias.
Capítulo Cinquenta
Shin
Nicolas derrubou o primeiro homem, que colidiu com força contra
a porta de metal. A munição subsônica da 9mm foi escolhida exatamente
para que nada além dos corpos ao chão fosse ouvido.
Ela riu e aquele riso conseguiu encher meu corpo todo de algo
quente e confortável.
— Agora! — balbuciei.
Apertei o cabo da katana com tanta força que os nós dos meus
dedos ficaram brancos. Queria picá-lo como um pedaço de carne, ver seu
sangue manchar meu rosto e cuspir o veneno que ele fazia brotar dentro de
mim, mas me controlei. Não lhe daria o prazer de me ver fora de mim.
— Oh, Lia… Minha Lia… — Segurou meu rosto entre suas mãos,
uma lágrima solitária descendo por sua face.
Musashi não era do tipo emotivo. Como bom yakuza, fora
ensinado desde cedo a esconder qualquer resquício de humanidade que
pudesse ter, mas naquele momento pude ver um pouco do homem que ele
tentava esconder.
— Pai, você não tem jeito! — Segurei sua mão e o levei até a
poltrona, sentando-me ao seu lado, o rosto apoiado em seu ombro.
Musashi, Terada, fosse quem fosse, seria sempre o meu pai.
Levantei uma sobrancelha, mas tinha que concordar que ele era
espirituoso. Um amigo fiel também, apesar de estar do outro lado daquela
briga.
Deixei que sua língua tomasse posse, que explorasse minha boca,
que ganhasse todos os meus sentidos. Aproveitei, suspirei, engoli os
gemidos e chorei. Minhas lágrimas descendo e salgando o gosto do nosso
mais importante beijo, o primeiro de uma vida inteira que teríamos o direito
de viver juntos.
Shin não retrucou, apenas riu de canto e alisou os cabelos para trás.
— Sabe que eu gosto disso? — confessou e eu voltei os olhos para
os dele sem entender. — Uma enfermeira particular… — explicou. — É
muito providencial…
Abriu os braços para mim e Liandra sorriu, dando espaço para que
ele se achegasse mais.
Aquiesci.
— Trouxe uma caixa de lenços… — a voz de Willian interrompeu.
— Achei que seria providencial, depois de tanto drama…
— Vai se foder, Matsuya! — xinguei, mas não estava realmente
bravo.
Segui com ela até um dos quartos da grande casa dos Matsuyas.
Não era um pedido, meus olhos fixos nos dela, sua boca curvada
em um meio sorriso atrevido.
— Chiisai… — repetiu. — Quando vai me dizer o que significa?
— provocou.
Lia jogou a cabeça para trás, fazendo com que minha boca
resvalasse em seu pescoço.
— Nunca se aproxime…
Sua mão desceu por entre o nosso corpo, separando meu joelho
para que ele pudesse se encaixar onde queria.
Deixei que se aconchegasse ali o tanto que quis. Pelo menos por
mais algum tempo, não havia pressa, nem negócios, tínhamos tirado um
momento para ser apenas nós dois.
Tóquio, São Paulo, Lima… Para quem não tinha pisado fora do
próprio país, era uma agenda bem apertada… É, Lia, você precisa mesmo
entender que a vida mudou!
Livrei-me da camisola e entrei com ele no chuveiro, lavando os
cabelos e o corpo.
Quando saí do quarto, havia uma bela mesa posta e meu yakuza
parado ao lado dela.
A gaúcha riu.
— Prometo, amiga! Prometo prometido! — brincou.
Abracei-a forte.
— Ei, sua boba! Para com isso! O Japão nem é tão longe assim! —
Aconchegou-me em seu peito. — Quem disse que não vou te visitar?
— Jura? — pedi.
Comecei a rir.
— Entre! — permiti.
Meus olhos baixaram para onde uma, das muitas rosas que eu tinha
tatuado pela minha mãe, cobria parte do meu peito.
Esperei até que ela saísse pelos grandes portões de ferro preto e
entrei em seguida em meu carro, com meu wakagashira ao meu lado.
A NK Corp. ocupava três andares no topo do edifício mais
moderno e imponente de toda Tóquio. O sedã parou em minha vaga
privativa e Sosuki abriu a porta para mim. Subi pelo elevador particular,
direto para a minha sala.
Assim que a porta se abriu, eu a vi. Usava um vestido preto de
tecido esvoaçante que deixava bem visível a gestação. Os seios, antes
delicados, agora pareciam mais fartos e deliciosamente sexys com o decote
discreto. Cabelos presos em um coque com fios soltos e aquele sorriso
desafiador que sempre tentava sustentar o meu.
Ela deu mais alguns passos, a mão espalmada em meu peito subindo
devagar e aquecendo minha pele. Enlaçou meu pescoço, levando minha
orelha até sua boca.
Ri alto.
Yuki voltou os olhos para ele com aquele sorriso zombeteiro que
apenas as kitsunes têm.
Erik, que conhecia muito bem a garota ligeira que tinha debaixo do
seu teto, não perdeu tempo ao perguntar.
— Só espero que minha pontaria não tenha sido tão boa dessa vez!
— constatou abraçando a mulher que ele amava com a mão livre e beijando
o topo da sua cabeça. — Família grande, chiisai… Eu sempre quis ter! —
Deu de ombros e conduziu a garota até um dos bancos.
Fim
Márcia Lima é paulista do Vale do Paraíba e graduada em
Arquitetura e Urbanismo.
Em 2014 resolveu compartilhar capítulos do seu primeiro livro na
web, obtendo grande sucesso e atraindo muitos leitores, levando assim ao
surgimento de seu primeiro livro, Tão Perto.