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Copyright © 2022 Márcia Lima

Capa: Márcia Lima


Revisão: Deborah A. Ratton
Diagramação Digital: Márcia Lima

Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,


personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte desta
obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o
consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n. 9.610/98 e
punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Para o meu irmão e todos aqueles que dedicam sua vida a cuidar dos
outros, ser amparo, quando todo o mundo se vai. A enfermagem merece o
céu.
SUMÁRIO
FUGA

CAPÍTULO UM

CAPÍTULO DOIS

CAPÍTULO TRÊS

CAPÍTULO QUATRO

CAPÍTULO CINCO

CAPÍTULO SEIS

CAPÍTULO SETE

CAPÍTULO OITO

CAPÍTULO NOVE

CAPÍTULO DEZ

CAPÍTULO ONZE

CONFISSÃO

CAPÍTULO DOZE

CAPÍTULO TREZE

CAPÍTULO QUATORZE

CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS

CAPÍTULO DEZESSETE

CAPÍTULO DEZOITO

CAPÍTULO DEZENOVE

CAPÍTULO VINTE

CAPÍTULO VINTE E UM

REMISSÃO

CAPÍTULO VINTE E DOIS

CAPÍTULO VINTE E TRÊS

CAPÍTULO VINTE E QUATRO

CAPÍTULO VINTE E CINCO

CAPÍTULO VINTE E SEIS

CAPÍTULO VINTE E SETE

CAPÍTULO VINTE E OITO

CAPÍTULO VINTE E NOVE

CAPÍTULO TRINTA

CAPÍTULO TRINTA E UM

DESTINO
CAPÍTULO TRINTA E DOIS

CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

CAPÍTULO TRINTA E CINCO

CAPÍTULO TRINTA E SEIS

CAPÍTULO TRINTA E SETE

CAPÍTULO TRINTA E OITO

CAPÍTULO TRINTA E NOVE

CAPÍTULO QUARENTA

ASCENSÃO

CAPÍTULO QUARENTA E UM

CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS

CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO

CAPÍTULO QUARENTA E CINCO

CAPÍTULO QUARENTA E SEIS

CAPÍTULO QUARENTA E SETE

CAPÍTULO QUARENTA E OITO


CAPÍTULO QUARENTA E NOVE

CAPÍTULO CINQUENTA

CAPÍTULO CINQUENTA E UM

CAPÍTULO CINQUENTA E DOIS

CAPÍTULO FINAL

DOIS MESES DEPOIS

EPÍLOGO
Ato I
Fuga
O samurai nasce para morrer. A morte, não é uma maldição a
evitar, senão o fim natural de toda vida.
Bushido
Eu nasci para ser o herdeiro do meu clã.

Um príncipe, governador do destino de milhares, moldado na


coragem de um guerreiro e no caráter de um imperador.

Talvez você pense que me conhece, mas está longe de entender a


verdade por detrás do mundo tranquilo que o cerca.
Há uma guerra silenciosa acontecendo bem debaixo do nariz da
sociedade, nas ruas escuras dos subúrbios de Kamagasaki, e também nas
avenidas iluminadas e protegidas da cidade de São Paulo. Uma guerra por
poder… Um poder que você nem imagina, mas que comanda boa parte de
tudo aquilo que você consome e que entra na sua casa.

De onde eu venho, demônios tatuados se escondem em ternos


caros e relógios de grife, ostentando vidas milionárias, acima de qualquer
suspeita. Cidadãos de bem, cuja honra e moral ilibada precedem qualquer
uma das suas atitudes.
Talvez você pense que não há razões para se preocupar, já que sua
vida ocidental, protegida pela lei e pela moral está longe do mundo ao qual
eu pertenço, mas vou lhe contar um segredo, eles estão em toda parte! Ora
escondidos nas sombras, ora brilhando nos holofotes e flashes dos
melhores lugares e não há maneira de pará-los, a menos que você seja um
deles e aí que essa história começa.

Eu sou como eles. Trago nas costas e nos braços os desenhos


característicos de uma classe de homens que é tão temida quanto venerada.
Carrego no corpo as marcas das batalhas que já ganhei em nome de uma
organização à qual prometi devotar minha vida e cumpri, até o dia em que
eles desonraram a memória de alguém que eu amava e então eu esperei.
Frio e calculista, planejei o momento em que tivesse força
suficiente para levantar minha espada e cumprir a vingança que jurei ao
lado do corpo ensanguentado da minha mãe.
Como bom samurai, se eu lhe devo algo, considere feito; agora se
você me deve algo, companheiro… É bom que pretenda cumprir, porque
cobro minhas dívidas na ponta da espada e perdão não é uma palavra que
exista em meu dicionário. Meu nome é Shin Nakai e eu sou o traidor da
Yakuza.
Capítulo Um
Liandra
O comandante do corpo de bombeiros meneou a cabeça assim que
passou por mim e eu repeti seu cumprimento.
Naquele fim de tarde, não houve correria nem sirene ligada, já que
não havíamos sido rápidos o suficiente para que tivéssemos tempo de salvar
qualquer uma das cinco vidas que foram perdidas no meio dos destroços de
um acidente.
Ocupei meu lugar no banco do passageiro do furgão, os olhos
mirando as luzes da polícia, enquanto meu companheiro manobrava e
voltava para o trânsito caótico da marginal do Rio Pinheiros.
Pelos primeiros metros, Érico ficou em silêncio e eu também.
Éramos treinados para salvar vidas e, mesmo depois de tantos anos, eu
ainda tinha dificuldade em perder uma.
Essa coisa toda de: “chegou a hora dele” ou “foi melhor assim”
não funcionava para mim. Eu me sentia impotente e era como se tivesse
cometido algum descuido.
Se fechasse os olhos, ainda podia sentir o corpinho morno do bebê
que havia sido arremessado para fora do para-brisa, então eu os mantive
abertos, perdidos na cidade.
— Um trago? — meu colega ofereceu. — Vamos, Lia… A
Manuela foi promovida… O pessoal vai todo…
Para alguém como eu, era assim. Vida e morte se entrelaçando a
qualquer momento. As pessoas também morrem no Natal, na passagem de
ano, no dia do meu aniversário. O tempo não para e a vida não pode parar
também, então a gente tira o uniforme e veste o sorriso que nem sempre
vem de dentro, mas continua vivendo.
— Vamos! — insistiu batendo com a mão em punho no meu
ombro. — O doutorzinho vai estar lá… — Sorriu de canto. — Aliás… —
Fez uma pausa e foi minha vez de esboçar um sorriso. — Você bem que
podia dar um molezinho para ele, hum? Com a merda do meu salário e três
filhos para sustentar, nunca mais vou conseguir comprar um chocolate bom
daqueles! — brincou.
— Quando o pagamento cair, eu te compro um pacote, Érico! Sai
mais barato que arrumar enrosco com gente como ele…
Falei por falar, sem pensar muito no que tinha saído da minha
boca.
— E por que você acha que ele é diferente de você, Lia?
Puta que pariu… — Revirei os olhos mentalmente.
Não estava a fim de conversas profundas.
— Porque o mundo é mundo, Érico! — falei com um sorriso
debochado no rosto e bati no painel. — Vamos logo tomar essa porra de
trago, antes que eu desista!
Funcionou. O enfermeiro me conhecia bem o suficiente para saber
quando eu estava disposta a divagar e quando só queria ficar na minha.
Continuamos pelas ruas de São Paulo até nossa base, a poucos
quarteirões de distância da minha casa.
Assim que o furgão foi estacionado, eu abri a porta e desci. Estava
suja de sangue e graxa, precisava de um banho e uma bebida, então desviei
o caminho pelo corredor lateral e entrei direto no vestiário, tateando a
parede em busca do interruptor de luz.
Já começava a anoitecer, então o lugar estava vazio.
Tirei o macacão e enfiei no cesto de descarte de roupas usadas, abri
meu armário em busca das minhas roupas e da bolsinha de higiene pessoal.
Depois de me livrar das peças íntimas e colocá-las dentro da
mochila, entrei debaixo da água morna do chuveiro. Os pensamentos ainda
passavam por mim aos milhões. Fora um plantão bem complicado. Garoa
fina, a névoa costumeira do inverno paulistano e um povo que estava
sempre com pressa resultaram em dois atropelamentos e o erro ao frear de
um caminhão de bebidas.
— Lia? — a voz da Dra. Manuela, uma das médicas que
trabalhavam conosco, ganhou minha atenção.
— Tem um absorvente? Jurei que tinha colocado na bolsa! Droga!
Como diz minha mãe, só não esqueço a cabeça porque está grudada no
corpo! — Sorriu e eu fiz o mesmo.
Desliguei o chuveiro e me enrolei na toalha, abrindo a bolsa e
arremessando um pacote de absorvente para ela.
— Ain… Alguém já disse que você é a melhor hoje?
Era para ter sido uma brincadeira boba, sem pretensão, mas me fez
pensar nas vidas que eu não tinha conseguido salvar, então meu sorriso
murchou e um suspiro tomou conta de mim.
Manuela percebeu no mesmo instante.
— Idiota! — Bateu na própria testa. — Desculpa, amiga… Eu sei
como é uma merda isso tudo, mas…
— Tudo bem, Manu… — Forcei o sorriso. — Faz parte da vida,
não é? Meu pai sempre diz isso…
Agora o sorriso no rosto da médica era mais suave e compassivo.
Aquele de quem sabia bem do que eu estava falando.
— A vida é um sopro…
Aquiesci. Concordava com ela.
— Agora vamos parar de divagar, porque pelo que eu soube… —
Levantei o dedo em riste, já terminando de fechar o jeans. — Parece que
alguém vai nos deixar!
Manuela me abraçou apertado. Estava recém-casada e pronta para
começar a tentar o primeiro bebê, aquela vida não era mais para ela.
Quando se afastou, os olhos castanho-claros estavam marejados.
— Ei, sua boba… Isso é uma coisa boa! — reclamei e ela riu. —
Só prometa que passa por aqui quando tiver um tempinho lá em cima… —
Apontei para o grande hospital anexo.
— É claro que passo, Lia! Para ser bem sincera, minha vida é isto
aqui… — Girou o dedo em torno do vestiário. — Achei que nunca iria
gostar… Você sabe! Mas agora nem sei como vou viver presa dentro de um
consultório!
— Dizem que a sirene da ambulância vicia… — brinquei.
— Eu acho que é verdade! — concordou.
— Anda, vamos comemorar antes que o Érico me complique com
o Gael! — Ergui uma sobrancelha, jogando a alça da mochila para cima do
ombro.
— Aliás… Você bem que poderia… — minha amiga começou,
mas eu interrompi.
— Nada de aliás! — Mostrei a palma e ela riu mais, balançando a
cabeça em negativa. — E não, eu não poderia!
Gael era um cara legal. Atraente, divertido, meio metido, mas nada
que eu não pudesse resolver com uma ou duas verdades bem ditas, só que
eu não estava disponível. Gostava de ser solteira, não tinha vocação para a
maternidade e nem tempo para incluir qualquer relação a mais em minha
vida conturbada e de horários indefinidos.
Além disso, tinha meu pai. Ele fazia o tipo fortão que não precisa
de ajuda, mas a verdade é que os anos vinham cobrando sua conta e ele já
não era nenhum moleque.
Manuela e eu atravessamos a rua e caminhamos até o barzinho que
ficava alguns metros à frente da base. Era lá que nos reuníamos sempre que
tínhamos algo para comemorar ou quando a pressão era grande demais e o
ar tinha que sair para que não explodíssemos.
— Desce uma daquela, Jair! — pedi batendo a palma na madeira
surrada.
— Com limão?
— No capricho! — Pisquei para o senhor do outro lado do balcão.
Cachaça era mais rápida e ninguém reclamava se eu tomasse só
uma, diferente da cerveja, que iria me prender naquele lugar até mais tarde
do que eu pretendia.
— À Dra. Manuela, que vai, finalmente, ter uma vida! — ergui
meu copinho, acompanhada dos outros.
Para minha sorte, a tática funcionou e eu consegui me despedir em
pouco menos de uma hora.
A noite tinha acabado de cair, quando peguei o rumo de casa.
Tinha dispensado a carona de Gael, já que não pretendia dar esperanças
falsas para um cara legal, e caminhar sempre me ajudava a colocar o
pensamento em ordem, antes de chegar em casa.
Eu nascera na capital. E dada a vida que tive, não era de me
assustar com pouca coisa, conhecia meu lugar e a gente que vivia ali, mas
por alguma razão, nas últimas semanas, sentia meu coração bater rápido,
meio ansioso e os olhos insistiam em procurar formas nas sombras que
sempre passaram despercebidas.
Deixa de ser paranoica, Lia… Você está mesmo precisando de uns
dias de folga!
Respirei fundo e continuei, até que ouvi o primeiro disparo.
Conhecia o som, não era novidade para alguém que morava na Liberdade.
Deveria ter fugido, mas quando o homem ajoelhou no chão, cambaleando
para a frente no escuro do beco, eu me lembrei das pessoas que havia
perdido e pensei que talvez pudesse salvar ao menos um.
Esperei até que o atirador corresse e então apressei o passo até
onde o corpo havia caído. A luz do poste da rua o iluminava da cintura para
baixo, mostrando roupas sociais.
— Senhor! — Bati em seu rosto assim que ele gemeu. — Está me
ouvindo? — perguntei.
Ele era grande e pesado, então eu me abaixei ao seu lado para
tentar ver onde havia sido baleado. Foi nesse momento que seus olhos se
abriram e eu senti como se me tragassem para dentro deles. Intensos e
vivazes, fazendo-me engolir em seco.
— Vou chamar a polícia!
Tentei pegar o celular no bolso, mas, assim que o levantei, uma
mão grande cobriu a minha.
— Sem polícia… — avisou em um tom tão poderoso que me
paralisou.
Foi então que eu vi os desenhos coloridos em seu braço e o
ideograma nas costas da sua mão. Caí para trás com o susto. Minha bunda
batendo contra a calçada do beco, a boca aberta, sem conseguir fechar.
Eu conhecia bem aquele desenho… E, mesmo depois de tanto
tempo, ainda tinha pesadelos com ele.
Capítulo Dois
Shin
A mão pequena tremia dentro da minha e, ainda que minha
consciência oscilasse, eu não podia tombar.
Se permitisse que a garota se afastasse, iria morrer ali, ou pior,
seria levado para algum hospital, e em poucas horas os homens que estavam
me caçando teriam seu prêmio sem esforço algum.
Apertei os dedos em torno da sua mão. Os olhos fixos nos dela,
mantendo-a cativa para que não gritasse. O medo paralisa e eu sabia bem
disso.
— Sem polícia… — repeti a frase que havia dito antes.
Conhecia um pouco de português, o suficiente para me fazer
entender.
Ela sustentou meu olhar, lutando para esconder o medo que eu
despertava nela.
— Vou dizer o que vai acontecer agora, senhorita… — soltei
misturando português e espanhol, sabia que ela entenderia. — Você vai
me…
— Não. — Girou o punho com força, livrando-se do meu toque e
dando passos atrás, em direção à parte iluminada da rua.
Era esperta e teria funcionado, se o homem em questão não fosse
eu. Quando se preparou para correr, suprimi a dor na barriga e forcei meu
corpo para cima. Puxei-a pelo cabelo lançando contra o muro e então a
prendi. Uma das mãos sustentando-a pelo pescoço, apertando o suficiente
para que ela ainda conseguisse respirar.
Não gostava de ser covarde, menos ainda quando se tratava de um
oponente menor e mais fraco, mas aquela era uma situação emergencial e
não havia tempo para honra.
Levei a mão livre até o bolso do paletó. O tecido fino da camisa
estava empapado em meu próprio sangue, o tempo era curto.
Retirei o pequeno bilhete com o endereço e usei o feixe de luz que
vinha de um letreiro para mostrar a ela o que havia escrito.
— Leve-me até este lugar…
Os olhos escuros como a noite se focaram ali.
— Não sei onde fica…
Ela queria me fazer crer que não conhecia o endereço, mas havia
uma fagulha em seus olhos que não a deixava mentir.
— Então vai dar um jeito de descobrir… — reforcei, apertando um
pouco mais, fazendo-a se engasgar.
Depois de alguns segundos, soltei a mão que a prendia, de uma
vez. Ela caiu de joelhos, tossindo forte e esfregando o pescoço.
Eu me sentia zonzo e respirar ficava cada vez mais difícil. Tinha
tentado encontrar a porra do endereço sozinho, mas aquela cidade era como
um labirinto e agora, machucado, acabaria tombando antes de achar o que
procurava.
— Vamos! — avisei apoiando a mão na cintura, deixando o metal
prateado do cabo da pistola brilhar à luz do poste.
Ela me encarou mais uma vez. Havia ainda um pouco de medo,
mas o tom desafiador se sobrepunha a qualquer coisa.
Dei um passo em sua direção. Curto e controlado.
Quanto mais perto eu chegava, mais sua respiração acelerava.
Era uma reação comum a alguém como eu, mas, vindo dela,
despertava em mim uma sensação diferente. Como se aquele fosse um jogo
que eu queria muito ganhar.
— Vamos… — repeti. — Sei que estamos perto…
Ela deu um passo e eu me mantive ao seu lado. Poucos centímetros
atrás.
Seguimos até o final da rua. A dor lancinante do tiro fazia com que
eu tivesse que me manter concentrado para não sucumbir.
— Lia! — um homem que fechava as portas de ferro de uma
lanchonete cumprimentou a garota com um aceno de cabeça.
Preparei-me para sacar a arma caso ela tentasse pedir socorro, mas
não foi o que aconteceu. Um menear de cabeça em resposta e seguimos em
frente.
Passamos por uma grade velha e gasta pela ferrugem e
caminhamos mais alguns passos. De repente, a música foi ficando mais alta
e eu pude avistar algumas pessoas dançando e conversando em frente a uma
pequena entrada pouco maior que uma porta.
Parecia com as boates baratas no centro de Kamagasaki, para onde
os bakutos levavam as garotas que não serviam mais para Tóquio.
Um homem caminhou em nossa direção e parou quando se
aproximou da garota, dizendo algo que eu não compreendi totalmente. Ela
soltou o que parecia ser um palavrão e, por alguma razão, precisei controlar
o impulso de dar um passo à frente e ensinar uma pequena lição ao
desgraçado, mas me contive.
Mal conseguia me manter em pé, se arrumasse uma confusão,
acabaria colocando minha vida e a da garota em risco, o que me impediria
de encontrar meu destino.
Conforme íamos caminhando, a quantidade de pessoas ao nosso
redor aumentava.
— Lia! — Uma garota de peruca cor-de-rosa acenou. Estava
sentada no colo de um homem que lhe beijava o pescoço, escorregando a
mão entre suas pernas.
Minha acompanhante meneou a cabeça mais uma vez, sem esboçar
palavra alguma.
Corri os olhos pelo lugar por uma fração de segundos e depois
voltei à garota em minha frente.
Prostituta? Não parecia, mas também não era da minha conta.
— Ain… Você não sabe o que aconteceu! — Outra garota, com
peruca e roupas exageradas, correu até onde estávamos. — Sabe aquele
cara, o que disse que era…
A vertigem que me veio foi tão forte que apoiei o braço em torno
dos ombros da tal Lia para não cair.
Não pensei muito, apenas reagi.
— Oh… Desculpe… Não percebi que estava acompanhada… — A
intrusa sorriu e se afastou.
Minha acompanhante não se moveu. Nem sequer tentou se afastar
ou me afastar, então eu recuperei o pouco de controle que tinha sobre o meu
corpo e seguimos até uma porta pequena e estreita, na lateral do inferninho
pelo qual havíamos acabado de passar.
Lia enfiou a chave na porta e girou, abrindo e revelando um
depósito.
— Você fica aqui e eu vou chamar o Musashi…
Encarei a escada estreita e precária e não discordei. Talvez fosse
uma emboscada, nada a impedia de chamar a polícia assim que saísse do
meu campo de visão, mas, dado o estado em que eu me encontrava,
provavelmente não conseguiria subir, de qualquer maneira.
Enquanto ela vencia os degraus, sentei-me em uma caixa de
bebidas. As pernas começavam a falhar, o suor escorria em minhas
têmporas, apesar do clima ameno lá fora. De repente tudo começou a
escurecer.
Guapito…
Uma voz suave e doce chamava lá no fundo da minha consciência
e eu me deixei ir. Conhecia bem aquele som e sentia tanta falta dele que
não queria resistir.
Ela apareceu em minha frente. O vestido azul-claro esvoaçando
com o vento do altiplano, seu corpo parecia flutuar.
Alguns passos mais para perto. Parecia tão pequena e delicada, ao
contrário do que eu me lembrava, era bem menor do que eu.
Estávamos na varanda da nossa casa em Cusco. Era uma tarde
bonita de sol, com raios alaranjados tingindo o céu azul.
— Como você está lindo, filho… — Sorriu.
— Eu tinha tanta coisa para falar que nem sabia por onde
começar. Era a primeira vez que a via daquele jeito. Sem sangue nem
pesadelos, apenas ela, como eu queria ter guardado em minha memória.
Levei a mão até seu rosto, queria acariciá-la, embora algo dentro
de mim ainda se mantivesse consciente e soubesse que tudo aquilo não
passava de delírio de dor ou, pior, prenúncio de morte.
— Mamá… Eu estou…
— Shhhhh… — Os dedos delicados aproximaram-se dos meus
lábios, sem tocá-los. — Não… Ainda não… — Sorriu uma vez mais e eu
tentei segurar sua mão, mas não consegui alcançá-la.
De repente, tudo escureceu e eu a vi caída no chão mais uma vez.
O vestido ensopado em vermelho vivo, a poça ao redor da sua cabeça
aumentando e aumentando. O choro do bebê, os tiros, o grito de Nicolas, o
desespero.
— Não! — eu tentava gritar, mas som algum deixava minha boca.
Um homem encapuzado me segurou. Tentei chutar, queria correr,
mas ele me conteve.
Eu sentia meu corpo doer. O tremor e os espasmos. Era como se
estivesse em duas realidades.
— Não! — A saliva parecia grossa em minha boca, tapando minha
garganta e impedindo-me de respirar.
Meu corpo, agora pequeno e infantil, foi empurrado através da
sala.
— Shin! — a voz de um Nicolas ainda criança gritava, desviando
dos corpos para me alcançar. — Hermanito!
O homem que me mantinha preso empurrou o menino com força.
Ele caiu para trás, mas não se deu por vencido, nem eu.
Empurrei e chutei até que me livrei e corri. Tentei alcançar meu
irmão, até que senti o golpe na cabeça. Caí para a frente, zonzo.
— Nico! — chamei. — Nico…
E então comecei a tremer.
— Ele está convulsionando! — uma voz que eu não conhecia
gritou, parecia vinda do além.
— Vira de lado, pai, vira de lado! — alguém respondeu.
Perdi o controle por um segundo. Nada de dor, nada de sofrimento,
somente a escuridão. Achei que tivesse morrido e, se tivesse, não iria
reclamar. Estava cansado de tudo aquilo, mas então o perfume suave e
floral invadiu meus sentidos, trazendo-me de volta a um estado de
semiconsciência.
O toque era gentil, quase delicado. Quente e confortável. O roçar
imperceptível, nada intencional de um corpo no meu.
— É o melhor que posso fazer aqui, pai… Você sabe que isso não
está certo… — a voz vinha de perto, provavelmente da pessoa que me
tocava.
Eu me lembrava da voz, queria abrir os olhos, mas não conseguia.
Era como se meu corpo não respondesse.
— Ele vai ficar bem, Lia? — a voz masculina que eu ouvi antes
agora parecia mais real.
— Ficaria melhor em um hospital… — havia um tom ácido ali que
não era condizente com a maneira delicada com que me tocava.
Lia… A prostituta do beco… Cheirava como um anjo e tinha mãos
de fada…
— Não… Nada de hospitais… — o homem interrompeu. — Se ele
veio até aqui, Liandra… É porque precisa desaparecer…
— Posso dar um jeito nisso… — O anjo demônio riu e o homem
acompanhou.
— Não seja malvada com o seu paciente! — a voz masculina se
afastou. — Nunca se sabe o que o destino reserva, minha filha…
— Para gente como ele? — parecia mais um protesto do que uma
pergunta. — O Inferno, eu espero!
Capítulo Três
Liandra
Terminei de ajustar o soro com a medicação e conferi o curativo. Já
não sangrava tanto e, como a febre havia cedido, talvez realmente não
tivesse atingido nenhum órgão.
Louco! — Balancei a cabeça em negativa pensando no meu pai.
Manter um homem baleado no depósito de um puteiro… Só mesmo ele para
me enfiar numa merda dessas…
Encarei o peito definido subindo e descendo suavemente, movendo
as tatuagens que existiam ali. Um pouco abaixo, marcas de tiro deixavam
claro que não se tratava de um homem comum.
Desci os olhos pelos braços tatuados. Desenhos orientais que eu
conhecia bem. Nuvens, água, flores de cerejeira. Padrões escuros e claros,
até que cheguei em sua mão. Era macia e bem-cuidada, a mão de um
príncipe, não fosse pela marca do demônio em seu dorso.
O documento em sua carteira dizia Samuel Hitachi, mas eu sabia
muito bem que aquele não era o nome dele. Lembrava-me daquele desenho,
mas não o suficiente para saber quem era o homem deitado naquele
colchão. Meu pai, obviamente, não tinha me contado, embora, pelo jeito
como olhou o desenho, soubesse bem mais do que eu.
Peguei a toalha para limpar o suor em sua testa, agora que a febre
havia baixado, e não pude deixar de admitir o quanto sua figura era bonita e
imponente. O corpo de um demônio e o rosto de um príncipe. Parecia tão
jovem e sereno, não devia ter mais idade do que eu. Vinte e poucos, trinta
anos, no máximo.— Hum… — gemeu, a mão tateando até encontrar meu
braço.
Não me afastei. Sentia uma pontada de curiosidade quase
excitante, um sentimento que não tinha nada a ver com alguém que chutava
as emoções para longe, como eu.
O toque era tão gentil que me fez levar a mão ao pescoço
instintivamente, onde ele havia me enforcado.
Tão suave e tão violento… Desgraçado! — xinguei. — Não fosse
pelo meu pai, eu daria o troco com o scalp! Levantei e me ajeitei na
poltrona, pernas esticadas em cima do banquinho, bem perto da pistola que
havíamos tirado dele quando desmaiou.
— Uma gracinha e já era, playboy! — avisei, ainda que ele não
pudesse ouvir. — Eu posso não ser bandida, mas aprendo bem rápido e não
tenho medo de arriscar.
Baixei o olhar. Não queria encará-lo demais ou acabaria
acreditando naquela máscara de mocinho de drama oriental que ele
ostentava. Bandido, Lia… Lembra disso… — Deslizei a palma pelo
pescoço dolorido mais uma vez. Gente como ele não poupa ninguém…
Fechei os olhos por um ínfimo tempo, mas foi o suficiente para que
tudo retornasse a minha frente, como se eu fosse lançada no passado.
— Corre! — meu pai gritou. — Agora, Teresa! Minha mãe agarrou
minha mão e obedeceu, enquanto tiros ecoavam atrás de nós.
Era uma noite tão fria que senti meu corpo todo se arrepiar. A
chuva caía fina, quase como uma grossa névoa escondendo os becos e
tornando tudo mais assustador.
Minhas pernas doíam do esforço que eu fazia para acompanhar os
passos da minha mãe, até que tropecei, meus joelhos batendo contra os
paralelepípedos gastos.
— Ai! — reclamei, tentando apoiar as palmas para me levantar.
Minha mãe se abaixou e me puxou para cima, correndo comigo em
seu colo, mas já não tínhamos mais a distância como trunfo.
Os homens que nos perseguiam estavam cada vez mais perto.
— Entregue a garota! É só entregar a garota! — um deles gritou,
minha mãe não respondeu.
— Socorro! — Bateu no vidro de um carro que vinha pela rua, mas
o motorista acelerou e se foi.
— Socorro! — gritou mais alto. — Socorro! Ela gritava e eu
chorava. Não sabia o que fazer, então levantei a cabeça e encarei nosso
perseguidor. O rosto dele fez meu sangue gelar nas veias. Os olhos
pareciam com os do demônio japonês que meu pai tinha tatuado nas costas.
O sorriso ameaçador e debochado me fez engolir em seco. De repente, ele
sacou a pistola. Gritei, mas não tivemos tempo. Minha mãe caiu de joelhos
e eu acabei arremessada um pouco à frente.
Ela levantou o pescoço e estendeu a mão em minha direção. O
sangue escorria do machucado em sua testa e do canto da boca. Quando
tentou falar, afogou-se, tossindo mais sangue. Eu estava atônita, imóvel,
sentia tanto medo que não conseguia nem pensar.
— Foge, Lia, foge! — pediu, mas eu ainda não conseguia reagir.
— Agora! — o pedido se transformou em ordem.
Tremi, assustada, mas, quando tentei me levantar, uma mão grande
segurou meu braço.
Meus olhos pararam no desenho em sua pele. Um ideograma que
nunca mais pude esquecer. O demônio japonês falava em uma língua que
eu não conhecia. Não sabia o que dizia, mas a maneira como ria, de boca
aberta, passando a língua pelo canto dos lábios me encheu de tanto nojo
que encontrei forças no meio do medo.
Aproveitei a terra do canteiro e enchi a mão, jogando em seu rosto
e soltando-me do seu aperto. Corri, corri e corri, perdendo-me pelo
caminho. Não sabia mais onde estava, mas não importava. Entrei na
primeira porta aberta que encontrei e me escondi nos fundos de uma
lanchonete. Passei uma noite e um dia ali, escondida no meio das caixas,
chorando baixinho.
Balancei a cabeça e pisquei algumas vezes, esfregando as palmas
no rosto.
— Porra de mestiço dos infernos! Preciso ficar longe de você, isso
sim!
Levantei-me com pressa, tinha que sair daquele cubículo, não
conseguia ser eu mesma ali. O perfume dele estava em toda parte, aquele
cheiro que me levava para lugares que eu não queria visitar. Era ruim e
desconfortável, mas eu me sentia cada vez mais compelida a estar perto
dele.
Fechei a porta atrás de mim. A chuva caía com força, então não
havia mais movimento em frente ao Nihon Privê, o que era ótimo, já que eu
não estava para muita conversa.
Entrei na boate e me escorei no balcão.
— Leila? — chamei a garota que estava de costas. — Uma
cerveja! — pedi.
Com toda a merda do nosso novo hóspede, eu ainda não havia
comido nada e, se tomasse algo mais forte, acabaria vomitando.
— Põe na conta! — avisei, balançando minha long neck e
deixando o salão.
Ajeitei uma das caixas empilhadas do lado de fora do depósito e
me sentei, jogando a cabeça para trás.
É só até ele melhorar, Lia… Depois o Musashi vai mandá-lo para
algum lugar bem longe de tudo e você nunca mais vai vê-lo… Só alguns
dias…
Virei a garrafa em minha boca, sentindo o líquido gelado descer.
Meu pai havia saído pouco depois que estabilizamos o mestiço. Eu havia
pedido a ele que conseguisse ao menos um raio-x, para sabermos se estava
tudo bem, depois da extração da bala, então supunha que ele tinha ido atrás
do Fernando, o veterinário da clínica vinte e quatro horas no final da rua.
Yakuzas foragidos não procuram hospitais. Aliás, yakuzas foragidos não
podem, sequer, existir, quanto mais procurar ajuda.
Eu sabia bem como as coisas funcionavam. Tinha visto acontecer
com meu pai, que, mesmo depois de anos tentando levar uma vida honesta,
não fora poupado e era por isso que eu odiava tanto aquelas pessoas.
— Minha avó dizia que de pensar morreu um burro… — a voz
conhecida me fez rir. — Aliás, se eu tivesse chegado aqui com um bofe
daqueles, amiga, estaria lá dentro quentinha, e não aqui fora na chuva…
Ellen puxou outra caixa e sentou-se ao meu lado. Tinha tirado a peruca e
vestido um moletom por cima da roupa, mas as pernas, ainda descobertas,
estavam tremendo.
As pessoas não tinham ideia do que as garotas que trabalhavam em
lugares como aquele passavam. Virei mais um gole de cerveja. Não podia
contar a ela muita coisa sobre o homem deitado no chão do depósito.
Vivíamos de meias verdades, meu pai e eu, mas não era difícil, já que todos
ali, naquele beco, tinham histórias que não queriam compartilhar.
Ellen era gaúcha. Uma bela loira de quase um metro e oitenta e
lindos olhos verdes, mas não tinha sido muito bem aceita pela família
quando decidiu deixar de ser o Lucas e se tornar a Ellen. Era tudo que eu
sabia dela.
Não era diferente comigo e com o meu pai. Para todos os efeitos,
ele dava aulas de judô e fazia pequenos trabalhos aqui e ali, para ocupar o
tempo livre. Morávamos em cima da pequena academia, bem ao lado do
puteiro da Jane, que ela insistia em chamar de “boate para homens”. As
pessoas lançavam um olhar torto daqui outro dali, quando viam uma garota
negra chamando um japonês caolho e todo tatuado de pai, mas a gente não
se importava. Tínhamos aprendido com a vida que família são as pessoas
com quem podemos contar quando a merda fede e não temos para onde
correr.
— Não vai mesmo contar? — Ellen insistiu, depois de tomar a
garrafa da minha mão e dar um gole. Franzi o cenho sem entender.
— O quê? — tinha me perdido em pensamentos.
— De onde saiu o boy magia… — Sorriu de canto.
Balancei a cabeça em negativa, rindo.
— Aluno do meu pai… — menti. — Vai ficar por uns dias, mas
logo segue viagem…
— Avisa a ele que se precisar de uma cama… — Levantou e deu
um trago longo no cigarro. — Empresto a minha… Comigo nela, é claro!
— brincou.
Ri enquanto ela se afastava, mas não consegui sustentar por muito
tempo. Era estranho ouvir alguém falar dele como se fosse uma pessoa
normal.
Entrei de novo no depósito, fechando a porta atrás de mim. O
homem ainda dormia, rosto sereno, como se tivesse direito ao sono dos
justos.
— Demônio tatuado filho da puta… Acha que vai conseguir me
enganar? — provoquei, mas era mais para mim mesma do que para ele. —
Conheço bem o seu tipo, desgraçado!
No mesmo instante a porta se abriu e meu pai passou por ela,
alisando os cabelos para tirar o excesso de água da chuva.
— Uh… Parece que o inverno chegou! — Sorriu, tirando a blusa
de frio molhada. — Vou subir e esquentar algo para o jantar… Tenho
certeza de que você ainda não comeu nada.
Demônio tatuado… Eu só estava viva por causa de um.
Capítulo Quatro
Shin
Acordei como se minha alma tivesse voltado para o corpo.
Um sobressalto rápido e intenso, que me fez erguer o tronco e
depois apertar os olhos para suprimir a dor.
Respirei fundo e analisei a situação. Não havia ninguém por perto
e eu não estava mais com as minhas roupas. Elas haviam sido substituídas
por uma calça de moletom cinza-claro e uma camiseta branca. Tateei por
baixo da roupa. Meu ferimento estava limpo e fora coberto por um curativo.
Levantei-me devagar, para evitar que tivesse vertigem.
Minha carteira estava sobre uma das caixas de bebida, ao lado do
paletó e da calça que eu usava quando cheguei, mas nem sinal da pistola.
Se ela quisesse me entregar para a polícia, tinha feito enquanto eu
estava desacordado.
“Você fica aqui, e eu vou chamar o Musashi…” — era o que tinha
dito, antes de eu apagar.
O lugar onde eu estava era apenas um depósito, sem conexão com
os fundos ou qualquer saída que não fossem a porta e a pequena janela na
entrada, então olhei para a escada.
Subi três degraus e esperei ouvir algum som ou sinal de que
alguém estivesse no andar de cima, mas o silêncio permaneceu, continuei.
O pequeno apartamento era simples e parecia ter parado no Japão
pós-guerra.
Havia um tapete com a estampa do Monte Fuji pendurado na sala,
logo acima do sofá, bem de frente para o único item moderno ali, uma
imensa televisão de LCD que deveria ter pelo menos umas cinquenta
polegadas.
Ao lado, um oratório budista e oposto a ele, uma cristaleira com
algumas katanas e partes de um traje samurai, além de um quadro grande e
emoldurado de dourado com uma fotografia de Miyamoto Musashi.
Cocei a barba por fazer sem entender muito bem onde estava.
Sobre o oratório, havia um porta-retrato antigo, onde vários
homens apareciam lado a lado. Eu sabia o que era aquele tipo de foto, tinha
saído em algumas delas, eram registros da organização.
Peguei o objeto e analisei os rostos um por um até parar na criança
entre eles. Eu o conhecia bem, era Willian Matsuya, e logo acima dele,
Haruo Terada, um antigo professor de artes marciais, muito requisitado
pelos líderes.
Por que diabos há uma foto do sensei aqui se ele morreu há mais
de vinte anos?
Afilei o olhar. Sobrancelhas cerradas, enquanto a cabeça tentava
processar a possibilidade menos improvável.
Se Wil… Então…
Cocei a barba com as mãos.
É claro! — constatei. Quem seria melhor para fazer sumir os
irmãos do que um deles? Terada é mestre em muitas coisas. Um excelente
soldado, quase imperceptível. Musashi… — Ri do meu próprio
pensamento. Como não pensei nisso?
Meu antigo sensei sempre citava as conquistas de Musashi. Um
admirador incondicional do antigo samurai.
Continuei minha varredura pelo local. Willian tinha meu voto de
confiança, mas eu preferia dormir com a espada debaixo do travesseiro. Ao
longo da minha vida, tinha visto muitos homens sucumbirem por confiarem
demais e Sensei Terada era um bakuto, eu não podia esquecer.
O relógio no alto da parede da cozinha marcava seis da manhã e lá
fora o beco estava completamente vazio. O dia era nublado e cinzento, com
aquele céu pesado que parece querer nos sufocar.
Meus olhos correram pelos objetos corriqueiros, em busca da
minha pistola. Eu não era estúpido o suficiente para ficar desarmado
naquele lugar, ainda mais sem saber quais eram as intenções do ex-yakuza.
Abri algumas portas e vasculhei armários até que encontrei, no
fundo da gaveta de utensílios, bem escondido entre as conchas e pegadores,
o cano da pistola.
Peguei-a assim que ouvi uma porta se abrir e então me escondi no
canto, entre a geladeira e o armário, de onde quem entrasse não pudesse me
ver, mas eu sim.
Os passos lá embaixo eram apressados, som de coisas sendo
remexidas e depois alguém começou a subir os degraus.
A prostituta que havia me levado até lá entrou nervosa em meu
campo de visão. Procurava algo. Por mim, provavelmente, e quando não me
encontrou seguiu a passos largos até onde a arma estava escondida.
Esperei pacientemente até que ela estivesse no lugar exato e então
dei um passo, revelando-me. A pistola prateada em minha palma estendida.
Aproveitei-me do susto que causei e agarrei seu braço, girando-a
de costas e imobilizando. Meu corpo colado ao seu, minha boca na altura da
sua orelha.
— Quem é você? E por que me trouxe até Haruo Terada?
Pelo reflexo do espelho engordurado, eu podia nos ver.
Os olhos escuros e assustados dela, a tentativa falha de me vencer
pela força.
Quanto mais se movia, mais o perfume invadia meus sentidos,
causando um turbilhão de sensações. Apertei-a forte, vendo a pele morena
nas mãos se avermelhar pelo sangue parado.
— Quem é você? — repeti pausado, os lábios roçando sua pele
mais do que deveriam. — E por que me trouxe até Haruo Terada?
— Kouhai… Solte minha filha! — uma voz grave e empostada
falou em japonês.
Encarei o olhar do homem por um segundo, pelo reflexo do
espelho.
Filha? Como filha?
A garota se aproveitou da minha distração e me empurrou para
longe, correndo até Terada.
Não havia muito que eu pudesse fazer, então baixei a cabeça em
reverência, dados os ferimentos não conseguiria me curvar.
— Terada sensei… — cumprimentei.
— Terada? Quem diabos é Terada? — a garota perguntou.
Eu podia não ser bom em formar frases em português ainda, mas
entendia quase todas, já que estudar línguas era um dos meus passatempos
prediletos.
— Perguntas interessantes, respostas nem tanto… — o sensei
disfarçou.
O homem que fora meu mestre dava passos pela sala até que se
sentou em uma das poltronas.
— Liandra… Prepare o café… — pediu. — E você… — dirigiu-se
a mim. — Venha até aqui… — Bateu na poltrona ao seu lado.
Obedeci. Estava curioso e tinha minha pistola, era um momento
para colocar as verdades sobre a mesa.
— Sente-se melhor? — perguntou.
— O suficiente para estar em pé…
— Vamos começar pela parte importante… — Terminou de
acender o cigarro e me ofereceu o maço. — Por que o saiko-komon está em
minha casa?
Terada havia mudado a conversa para a nossa língua e usado o
termo yakuza que definia meu cargo de conselheiro, então eu supus que
quisesse manter a garota de fora, o que era ótimo, já que ela não parecia
satisfeita com a minha presença ali.
— Imagino que tenha recebido as últimas notícias de casa… —
comecei.
— Seu avô ainda não o declarou um traidor… — contrapôs.
— Em vez disso, mandou me caçar…
Terada soltou a fumaça por entre os dentes amarelados. Quando
ria, a cicatriz no lugar do seu olho repuxava, dando a ele um ar de guerreiro
medieval.
— Kazuo sempre gostou de lavar a própria roupa…
Não respondi, sabia bem que era verdade e o mestre caolho ao meu
lado tinha constatado isso também.
— Willian me disse para procurá-lo… Que você me ajudaria a
sumir, até que…
Fiz uma pausa sem encará-lo. Era difícil para alguém como eu
confessar o inconfessável.
— Vai mesmo se levantar contra seu oyabun, garoto? Sabe que isso
pode custar a cabeça da Nakai-Gumi.
Questionou e não era infundado. Quando um associado se levanta
contra o chefe da organização, começa uma guerra e, todas as vezes que
isso ocorreu com a yakuza, o poder mudou de mãos.
Cortar a cabeça do meu avô significava colocar minha posição
vantajosa em xeque, mas mantê-lo vivo era como ir decepando pequenos
pedaços de tudo que eu conhecia como vida. O risco era inevitável.
— A Nakai-Gumi já não tem uma cabeça, desde que meu avô e
meu pai se perderam do caminho… O que quero é proteger os meus e o
nome da família…
Não era mentira, o poder naquele molde não me interessava. Eu
podia não ser um bom samaritano, estava muito longe disso, mas meus
negócios eram limpos de sangue inocente e eu fazia questão de que
continuassem assim. Um tekiya não suja as mãos para ganhar dinheiro.
Terada pensou por alguns instantes, coçando a cabeça raspada e
depois dando mais um trago no cigarro.
— Qualquer um que queira esmagar a cabeça daquela cobra velha
é bem-vindo aqui! — Levantou-se dando de ombros e atirando a ponta do
cigarro pela janela. — Mas saiba que, se levantar a mão para minha filha de
novo, seu moleque desgraçado… — O dedo em riste estava a centímetros
do meu rosto. — Eu acabo com você!
Baixei a cabeça, ainda que pudesse vencê-lo facilmente, mesmo
machucado. Sensei Terada havia me ensinado boa parte do que eu sabia de
artes marciais e tinha vindo dele também a minha admiração e respeito
pelas katanas. Eu não queria desafiá-lo nem desonrar sua casa.
— Hai… — concordei.
— E agora que eu já servi a mesa como a boa gueixa que nunca
fui… — A garota colocou uma garrafa térmica sobre o tampo de madeira
forrado com a toalha de Natal. — Qual dos dois vai dizer quem diabos é
esse Terada?
— É uma longa história, minha filha…
Fiquei em silêncio, não era da minha conta, embora eu também
estivesse curioso para saber um pouco mais sobre ela.
Filha?
Encarei-a por alguns segundos. Era baixa e delicada, com longos
cabelos em tons de castanho, caindo em ondas até bem abaixo dos ombros.
Rosto pequeno e redondo, com grandes olhos, também castanhos,
marcantes. O nariz aquilino e a pele morena deixavam claro que não tinha
nada de oriental ali.
Não há nenhuma possibilidade de que a latina em minha frente
seja filha do sensei…
— O quê? — perguntou na defensiva, pegando-me de surpresa. —
Você também não parece tão japonês assim!
Capítulo Cinco
Liandra
Desafiei porque a maneira como ele me encarava era incômoda,
intensa demais. Também porque, quanto antes ele entendesse que eu não ia
me curvar, melhor.
Gente como ele está acostumada a dominar pelo medo, e eu não
sou mais a garotinha assustada de antes.
Corri os olhos pelo homem em minha frente. Tinha a postura de
um imperador, mesmo usando as calças velhas do meu pai.
Cabelos lisos e escuros ajeitados com as mãos. Pele lisa e clara,
contrastando com a barba escura por fazer. Lábios cheios e bem
desenhados, maxilar marcado e nariz perfeito, mas eram os olhos que me
intrigavam.
O verde amarelado neles chamava a atenção, dado o formato
afilado dos olhos orientais, mas não era só isso. Havia ali uma escuridão tão
intensa e profunda, que era como se me tragassem para dentro deles, a cada
vez que eu o encarava, e isso era avassalador.
Desviei os olhos, embora ainda sentisse os dele em mim.
Limpei a garganta e cocei a nuca, disfarçando a sensação estranha
que ele me causava.
O homem a quem eu chamava de pai puxou uma das cadeiras e
sentou-se, girando a tampa da garrafa e derramando o líquido escuro e
quente em um dos copos de molho de tomate que usávamos.
— Desculpe a simplicidade, garoto, os anos por aqui me deixaram
informal… — Empurrou um copo limpo em direção ao homem cujo nome
verdadeiro ainda era uma incógnita para mim.
Ao que parece, não para o meu pai!
— Você fala português? — continuou como se estivéssemos
apenas recebendo um visitante para o café.
— Estou aprendendo… — explicou. — Mas entendo o
suficiente…
— Lia fala um pouco de espanhol, então isso não será um
problema… Sente-se aqui, querida… — Bateu no encosto da cadeira vazia.
— Acho que chegou a hora de você saber um pouco do meu passado.
Obedeci em silêncio, queria respostas.
— Você deve imaginar que meu nome não é Miyamoto Musashi,
não é mesmo? — perguntou.
Aquiesci. Desconfiava disso desde que descobri quem era o
famoso samurai.
— Muito tempo atrás, um jovem professor de judô caiu nas graças
de um poderoso empresário… De boca em boca, sua fama aumentou e ele
passou a ser o mais requisitado em todo o Japão…
Ia contando a história como se não fosse mais que uma lenda
antiga, o olhar perdido na janela, embora tivesse a atenção de todos ali.
— Só que ele cometeu um erro… — Suspirou. — Ousou desafiar o
sistema… — O olhar voltou a mim, sério e cheio de dureza. — E você sabe
bem o que acontece com quem desafia o sistema, não é?
Engoli em seco, as lembranças voltando todas a mim.
Eu não me lembrava muito do passado, dizem que o instinto de
sobrevivência bloqueia o que nos faz sofrer, mas eu me lembrava bem do
desespero do meu pai nas noites que antecederam o assassinato. Lembro-me
de como ele tentou fugir, do quanto buscou ajuda, de tudo que foi capaz de
fazer em nome da paz que não tinha mais direito a ter.
Ninguém nasce yakuza, mas, uma vez dentro, morre-se yakuza…
— Haruo Terada sou eu… — confessou, trazendo-me de volta ao
presente. — Ou melhor, era… — Suspirou, soltando o ar dos pulmões
devagar. — O homem conhecido como Terada sensei morreu muitos anos
atrás… Sei que é esperta, Liandra… E que nada disso é novidade para
você…
Encarei o desenho de Papai Noel na toalha da mesa, traçando a
ponta do dedo pela barba branca.
Eu soube, pouco tempo depois de ter sido resgatada, que meu
protetor também fora um dos demônios tatuados que eu tanto odiava. Tinha
descoberto no primeiro dia em que o vi sem a jaqueta de couro que usava.
Também soube a verdade por detrás de cada aluno misterioso que
passou algum tempo em nossa velha academia. Eu não me importava.
Depois de tudo que Musashi havia feito por mim, seu verdadeiro
nome ou identidade eram irrelevantes, até aquele homem aparecer
procurando por ele.
— E ele, quem é? — Apontei para o homem sentado à nossa mesa.
— Porque, obviamente, não é Samuel Hitachi… — Ergui uma sobrancelha.
O filho da puta reprimiu um sorriso de lado, passando a língua pelo
lábio inferior. Uma provocação velada que fez meu sangue ferver nas veias.
Eu nunca havia contado a Musashi, ou Terada, seja lá quem ele
fosse, sobre minha lembrança do ideograma tatuado na mão do assassino
dos meus pais e talvez esse fosse o meu melhor trunfo.
Eles não tinham por que esconder nada de mim, se eu não tinha
conhecimento algum da situação.
— Seu verdadeiro nome não é importante, Liandra… — meu pai
cortou taxativo. — Basta que você saiba que Samuel é um homem
importante e precisa ser protegido… — falou sério e pausado. —
Acredite… Você também quer que ele realize a missão que pretende…
Seu olhar para mim deixava claro que nossa conversa havia
terminado ali. Musashi não era um homem de muitas palavras, ainda
mantinha aquele jeitão de sensei japonês que a gente vê nos filmes de artes
marciais.
Depois de virar o que restava no copo, bateu na mesa e se levantou.
— O Fernando liberou o lugar para nós por meia hora… — avisou
ao tal Samuel, que de Samuel não tinha nada. — E você vem com a gente!
— Apontou o dedo em riste para mim. — Vamos usar o aparelho de
ultrassom da clínica.
Levantou e caminhou a passos largos até o quarto, voltando pouco
tempo depois.
— Aqui… — Jogou uma blusa de moletom e um boné para o
nosso visitante. — Vista isso e tire o relógio… — ordenou. — Ninguém
aqui na vila anda com um relógio desses!
Samuel obedeceu, deixando o objeto caro sobre a mesa e
colocando o moletom. Depois alisou os cabelos para trás e encaixou o boné.
Filho da puta desgraçado… Custava ser feio e estranho como os
outros?
Descemos as escadas e seguimos pela rua, os dois na frente e eu,
alguns passos atrás. Samuel se esforçava para andar normalmente, apesar da
dor que eu sabia que ele estava sentindo. Mãos no bolso canguru, talvez
apertando o curativo sem que ninguém percebesse.
Para a nossa sorte, a rua, assim como o beco, estavam bem
tranquilos naquela manhã de sábado nublado, então Musashi não teve que
explicar nada a ninguém.
Paramos em frente à entrada da clínica e meu pai girou a chave na
maçaneta, abrindo o local.
Fernando trocava pequenos favores pela proteção que meu pai
oferecia, mas fazia questão de nunca estar presente. Eu o entendia, também
tinha medo de acabar perdendo minha licença.
Entramos no consultório e eu não pude deixar de encarar a pequena
maca onde, certamente, Samuel não caberia.
— Vai ter que se deitar no chão, companheiro… — avisei com
sarcasmo.
O mestiço não ofereceu resistência, nem pareceu se importar, mas
deitou-se com cuidado, provavelmente, por causa da dor no ferimento.
Ajoelhei-me ao seu lado e abri a maleta da máquina, ligando-a.
Peguei a bisnaga de gel e, assim que chacoalhei, percebi que estava
praticamente vazia.
— Eu pego mais no armário… — meu pai se dispôs.
Demorei um segundo para perceber que estava sozinha com o
desconhecido, mas, assim que notei, meu coração acelerou.
— A blusa… — Apontei. — Preciso que levante…
As mãos grandes seguraram em cada lado e ele a ergueu, expondo
o abdômen definido. O curativo mostrava uma pequena mancha de sangue
vivo, mas, a julgar pela quantidade, eu diria que tinha sido pelo esforço de
levantar e sentar, não por um sangramento, de fato.
— É gelado! — avisei.
— Como? — perguntou.
— Gelado… — repeti, diante do olhar dele. — Muy frío… Cold…
Sei lá! — Balancei a mão sem paciência e ele esboçou o mesmo meio
sorriso que tinha feito à mesa.
— Eu entendo sua língua… Só não tinha escutado mesmo… —
explicou.
Engoli em seco, sentindo o rosto corar.
— Aqui… — Musashi me entregou uma bisnaga nova de gel.
Apertei sobre a pele do homem deitado no chão e segurei a
ponteira. Assim que a pressionei levemente em sua pele, ele reprimiu o
gemido.
— É normal que esteja sensível… — expliquei, embora as outras
marcas em seu corpo deixassem claro que ele entendia bem todo aquele
processo.
— Então? — meu pai perguntou preocupado.
— Não há nenhum dano preocupante… A bala só atingiu o tecido
mesmo…
— Ótimo! — Deu alguns tapinhas em meu ombro, sacando o
telefone do bolso e deixando-nos sozinhos mais uma vez.
Eu fechei a maleta e me levantei rápido, só depois percebi que
Samuel ainda tentava fazer o mesmo.
Estendi a mão sem pensar muito e, quando ele a segurou, uma
onda de calor invadiu meu corpo, pinicando minha pele.
Por um segundo, sua mão continuou na minha, ainda que já
estivesse de pé.
— Obrigado… — pronunciou antes de fazer uma pequena
reverência. — Imagino que o curativo tenha sido feito por você também…
Perdi-me na imensidão verde mais uma vez. Aquela mistura de
pavor e curiosidade tão intensa que ele despertava em mim pinicando minha
pele.
Balancei a cabeça como se precisasse sair do transe.
— Não agradeça… — falei já me afastando, precisava manter o
máximo de espaço que pudesse entre nós. — Fiz pelo meu pai…
Deixei a sala de consulta com Samuel logo atrás de mim. Meu pai
esperava por nós na recepção.
— Aqui! — Jogou uma chave de carro em minhas mãos. — A Jane
emprestou a caminhonete… Você vai até o shopping e compra algumas
roupas e coisas que ele vai precisar…
— Eu? — perguntei sem acreditar.
Era meu dia de folga e a última coisa que eu precisava era ter que
encarar a porra de um shopping para agradar bandido.
— Não tenho nada que sirva para ele… — Apontou para os pulsos
descobertos pela blusa pequena demais em nosso visitante. — E Samuel
ainda está fraco, não deve ser visto… — explicou. — Compre também
medicamentos e um celular pré-pago… — Bateu no bolso em busca de
dinheiro.
Antes que encontrasse, o mestiço pegou a carteira no bolso da
calça e abriu, retirando um cartão de dentro dela.
— A senha é cinquenta e dois e vinte e cinco… — avisou. — Não
se preocupe com o valor… — Estendeu para mim.
Ergui a sobrancelha desconfiada. Não estava feliz em usar dinheiro
sujo, ainda que as compras não fossem para mim, mas também não queria
gastar meu dinheiro suado com a porra de um yakuza descamisado.
O cartão continuava ali, entre os dedos longos e elegantes do
mestiço, e foi quando ele girou de lado que percebi a falta de uma falange.
Engoli em seco novamente.
Eram nuances cruéis de uma organização que vencia pelo
desespero e subjugava pelo medo.
— Vamos! — Meu pai deu um tapinha nas costas do homem. — E
você não demore… — pediu.
Aceitei o cartão e fiquei encarando os dois seguirem pela rua, em
direção à vila novamente.
Samuel Hitachi… Por que eu tenho a sensação de que você vai
fazer um estrago imenso por aqui?
Capítulo Seis
Shin
Aquela garota me intrigava.

Para uma prostituta, até que ela entendia bem de enfermagem e


tinha uma boa postura, nada exageradamente sensual ou apelativa.

Bonita demais para ser uma puta qualquer, Shin… Talvez ela…

— Venha, vou mostrar o seu quarto, enquanto estiver por aqui…


— Terada sensei interrompeu meus pensamentos.

Passamos pelo depósito e seguimos em frente, até uma entrada


diferente, com portas duplas de madeira antiga. Sobre elas, havia uma placa
com a inscrição Academia Musashi e alguns ideogramas japoneses que não
significavam muita coisa.

O mestre abriu o lugar, revelando um salão empoeirado e velho,


com tatames de espuma forrados com plástico preto. Nas paredes, quadros
japoneses dos mais variados, além de uma bandeira do Japão e outra do
Brasil entrelaçadas. Era de péssimo gosto, mas eu entendia a razão.

— Quanto menos atenção eu chamar… — soltou de repente, como


se lesse meus pensamentos.

Terada não era pobre, muito longe disso. Tinha juntado uma
pequena fortuna com tudo que ganhou dos homens para os quais trabalhou,
mesmo antes de se tornar um bakuto. Era inteligente e estava se esforçando
para passar despercebido.

— Aqui… — chamou e eu dei mais alguns passos em sua direção.


— Você pode usar o quarto… — ofereceu. — Sei que não é dos melhores,
mas…
— Está perfeito para o que eu preciso… — cortei.

Eu gostava da vida boa que tinha e de tudo que o dinheiro sempre


me proporcionara, mas era, antes de tudo, um soldado. Estava naquele lugar
para desempenhar minha função e qualquer coisa que tivesse que viver até
lá não era mais do que dano colateral.

Eu podia suportar algumas semanas em um futon velho, se isso me


devolvesse a honra de andar pelo mundo de cabeça erguida.
— Há lençóis limpos dentro do armário… — Apontou. —
Cobertores e travesseiros também… Se quiser uma cama…

— Fico bem no chão…

— Ainda não tive tempo para consertar o banheiro, então aqui


embaixo só serve mesmo para um banho frio… Use o de cima se precisar…
— Deu mais alguns passos e abriu uma porta estreita. — Aqui! Se subir por
aqui, sairá no corredor da minha casa…

Aquiesci sem questionar, mas de repente ele parou. O olho fixo nos
meus.

— Sei que não é mais o garoto chorão que ajudei a transformar em


conselheiro, mas espero que…

— Não estou aqui como saiko…


Baixei o corpo o quanto conseguia. Tinha aprendido a não me
curvar, mas sabia o quanto ele estava se colocando em risco por mim, não
queria medir forças, aceitava o comando de bom grado porque confiava
nele como general.

— Lia…
— Será protegida como merece… — prometi e era sincero. Sabia
bem o quanto custava a alguém como nós cuidar daqueles que amávamos.

— Ela é muito importante para mim… — confessou.

Concordei com a cabeça, não sabia o que havia levado um yakuza


a adotar uma criança, mas podia ver em seu olhar o quanto a afeição que
tinha pela garota era verdadeira.
Seu rosto suavizou e a mão repousou em meu ombro.

— Vejo que acertei com você, pequeno guerreiro…

Esbocei um sorriso e soltei o ar dos pulmões, aquele era um


apelido que me trazia boas lembranças.

Houve um tempo em que Terada sensei era como um pai para mim.
Quando toda a merda entre a organização e o cartel se deu, Isao mal
conseguia me olhar nos olhos. Queria o filho de volta mais por orgulho do
que por vontade, então minha raiva foi crescendo e só aprendi a lidar com
ela debaixo da proteção e direcionamento do sensei.

— Fique à vontade para conhecer o espaço… — Passou por mim


em direção à saída. — Vou resolver alguns assuntos e volto mais tarde…
Assim você pode descansar um pouco. Lia deve demorar…

Agradeci com um menear de cabeça e o vi passar pela porta.


— Vou trancar por fora… É melhor que os vizinhos não o vejam…
Ao menos até que sua ferida se feche…

Depois que ele saiu, caminhei pelo espaço do salão, analisando o


que podia. Tinha que estar preparado para uma fuga ou emboscada, não
poderia dormir tranquilo até que a Nakai-Gumi estivesse livre da desgraça
que tinha sido a era Kazuo.
Fazia tempo que eu vinha notando atitudes suspeitas e controversas
por parte dele e sabia que era por isso que o sucessor do meu pai ainda não
fora escolhido. Meu avô queria um wakagashira que ele pudesse controlar,
afinal de contas aquele era o cargo maior da organização, logo abaixo do
mandachuva. Kazuo Nakai não dava ponto sem nó, ele tinha se livrado do
meu pai e precisava de um novo soldado fiel, que não tivesse medo de sujar
as mãos por ele, e eu já dera sinais de que nunca seria esse homem.
Minha honra nunca tivera um preço.

Parei em frente à janela e analisei a rua também. O beco tinha duas


entradas, um pouco mais largo no centro, onde havia alguns comércios, e
mais afunilado nas extremidades. Não era muito diferente dos becos de
Tóquio, dos quais eu havia fugido alguns dias atrás.

Depois que meu avô acordou, preparei-me para ser anunciado


oficialmente como traidor, mas não fora bem assim que aconteceu. O
desgraçado havia colocado minha cabeça e meu cargo a prêmio. Qualquer
um que levasse minha pele até ele seria aclamado o próximo saiko-komon e
havia muita gente interessada nisso correndo solta por aí.

Se tiver a ousadia de me trair, eu vou transformar o mundo em seu


inferno particular… — a frase que ele havia dito ao meu pai muitos anos
atrás ecoava em meus pensamentos, agora servia para mim.

Isao nunca fora forte o suficiente para desafiá-lo cara a cara,


preferiu os caminhos obscuros da traição e acabou recebendo o castigo justo
por sua desonra, mas eu era diferente. Se tivesse que morrer pelas mãos do
oyabun, seria em pé e de frente.

Após analisar o espaço, segui para o banheiro com uma toalha


limpa nas mãos. Precisava de um banho, o cheiro de sangue velho ainda
estava em minha pele e eu queria tirar o curativo para ver o ferimento com
meus próprios olhos; trocaria de roupa depois, quando a garota voltasse das
compras.
De repente, o pensamento de Liandra toda enfezada comprando
cuecas para mim me fez reprimir o riso.

Certamente ela não voltaria nada feliz para casa!


Entrei no pequeno banheiro e livrei-me da blusa com cuidado.
Ainda sentia dor ao mover o tronco, a maldita bala devia ter machucado
algum músculo.

Em seguida tirei a camiseta e me sentei sobre a tampa do vaso para


soltar o curativo e analisar o ferimento.

Limpei o sangue ainda úmido com a parte seca da gaze e corri os


dedos pelos três pequenos pontos de sutura ali. O fio era cirúrgico e os
pontos eram bem divididos e apertados do jeito certo, o que significava que
a garota sabia mesmo onde estava se metendo. O corte provavelmente tinha
sido feito para a retirada do projétil, já que era bem maior que o furo
original.

Não havia sinal de infecção, o que era ótimo, mas ainda assim eu
precisava me cuidar. Se acontecesse outra emboscada e eu não pudesse
correr, acabaria com a cabeça dentro de uma caixa, a caminho do Japão.

Livrei-me das calças pequenas demais e da minha cueca. Liguei o


chuveiro e entrei debaixo do feixe de água fria, lavando meu cabelo
primeiro e depois o rosto.

Havia tantos pensamentos girando em volta de mim que fechei os


olhos por um segundo, as mãos apoiadas contra o azulejo. Tinha cultivado o
ódio pelo meu pai durante a vida toda para só descobrir que ele fora massa
de manobra depois da sua morte.

Não que eu sentisse pena, Isao merecia tudo que havia sofrido, pela
dor que causara aos outros, mas talvez, só talvez, ele ainda tivesse chance
de se redimir.

O tempo é nosso maior inimigo, Shin… Ele nunca volta atrás…


As palavras de Vigo ganharam espaço mais uma vez. Partes do que
havia acontecido naquele dia iam e vinham como um filme, desde a morte
de Matsuya, na Europa.

Eu estava feliz em saber que Nicolas e Yuki tiveram a chance de


recomeçar e não me importava de dar minha vida em troca da paz que os
dois mereciam. Eu também era um dano colateral, efeito de uma decisão
errada da minha mãe, de uma paixão que ela nunca deveria ter sentido.

Isao nunca fora homem para ela. Covarde demais para proteger a
mulher que amava.

Era exatamente por isso que eu me recusara a vida toda a me


envolver com alguém. Nunca tinha me apaixonado, nem queria, porque
sabia que, no dia em que isso acontecesse, não haveria demônio algum no
Céu ou no Inferno capaz de me fazer parar.

Fechei o chuveiro e sequei o corpo, enrolando a toalha em volta da


cintura. Em pé, de frente para o espelho sujo e embaçado, encarei meu
rosto. Às vezes parecia bem mais velho do que meus quase trinta anos, em
outras, ainda via vislumbres do garoto que acreditava que a vida poderia ser
diferente.

Baixei o olhar, tinha orgulho de quem era, mas muita coisa


precisava mudar. Não podia mais fingir que nada daquilo me afetava.
Quando tentei levantar o rosto, senti uma tontura tão forte que
precisei segurar na beirada da pia para não cair. De repente, minha visão
escureceu e a última coisa que me lembro de ter visto foi o rosto dela.

Olhos escuros preocupados e os lábios separados.

— Samuel! — ela gritou.


Capítulo Sete
Liandra
Devia ter deixado as sacolas e corrido dali o mais rápido que
pudesse, mas acabei pega pela maldita curiosidade que sentia sempre que
ele estava por perto.

Parei no meio do quartinho assim que o vi, ele usava somente a


toalha em volta da cintura, os cabelos molhados e bagunçados. Engoli em
seco.

Eu já tinha comprovado o quanto o homem sem nome era grande e


imponente, mas ali, de costas para a porta, exibindo as tatuagens que eu já
imaginava que ele tinha, seu magnetismo era tão grande que travei no chão.
Olhos fixos nos tons de vermelho e laranja da carpa dragão em sua pele.
As mãos grandes e fortes apertavam a beirada da pia de um jeito
tão intenso que eu senti uma onda de calor se dissipar por todo o meu
corpo, perdida mais uma vez na imensidão verde-amarelada daqueles olhos
afilados.

Estava tão envolvida pela presença dele, que demorei um segundo


para perceber o que iria acontecer e por pouco o estrago não foi maior.

— Samuel! — gritei, soltando as sacolas no chão e vencendo o


pequeno espaço que havia entre nós.

Apoiei-o por debaixo dos braços, guiando o corpo até o vaso


sanitário. Sentei-o com cuidado na tampa, esfregando sua mão.

Lentamente, a cor foi voltando aos seus lábios e o arroxeado das


unhas, diminuindo.

O homem respirava entrecortado. Os olhos semicerrados e o cabelo


liso caído em sua testa o deixavam com um ar de menino perdido que quase
me fazia esquecer quem ele realmente era.

— Uma queda de pressão… Provavelmente — expliquei quando


ele levantou o rosto para o meu. — Você perdeu muito san…

— Já estou consciente… — soltou devagar.

A voz grave era baixa e tranquila, mas, ainda assim, exalava um


poder natural.

— É claro…

Levantei assim que percebi que ele estava melhor, dando alguns
passos para longe. Sempre que ficava perto demais, sentia como se meu
corpo fosse carregado por sua órbita, como um planeta, girando em torno
dele sem controle.

Corri a mão pelos cabelos soltos.


— Você não comeu nada desde… — Estreitei os olhos
constatando. — Quanto tempo faz que não come?

— Um pouco… — confessou.

Ergui uma sobrancelha, a enfermeira dentro de mim tomando


conta.
— Remédios fortes, perda de sangue, nenhum alimento… Ia
desmaiar mesmo, grandão…

Cruzei os braços em frente ao corpo, precisava recuperar minha


postura de durona e reprimir o instinto de chegar mais perto.
— Consegue se levantar? — perguntei e ele aquiesceu. — Ótimo!
Deite-se lá no quarto um pouco e eu pego algo para você comer lá em cima.
Vamos evitar a escada, porque… Wow… — Segurei-o quando precisou
apoiar nos azulejos novamente. — Vem, eu te ajudo…

Abracei-o pela cintura, para que ele pudesse apoiar o braço em


torno dos meus ombros.

Sua pele era quente. Tanto que, mesmo de blusa de frio, eu podia
sentir o calor dele contra mim.
Conforme respirava, meus dedos se moviam, sobre a cauda do
peixe, em seu lado esquerdo.

Estendi o futon e o ajudei a se sentar. Costas apoiadas no


travesseiro contra a parede, pernas longas esticadas.
— Aqui! — Estendi uma das sacolas de roupa para ele. — Vou
subir para pegar a comida… Você se veste…

Ele aquiesceu.
Levantei-me do chão e subi as escadas o mais rápido que consegui.
Eu podia não confiar nele, mas meus princípios e a maldita vocação me
impediam de negligenciar alguém que precisava de socorro.

Um copo de água e um prato de comida, Lia, não se nega a


ninguém… — pensei enquanto vasculhava os armários em busca de algo
para ele comer.
Meu pai e eu não éramos exemplo de alta gastronomia, então tudo
que consegui foi uma banana passada, um pacote de pão de forma mofado e
macarrão instantâneo.

— É, vai ter que ser! — constatei encarando o pacote amarelo em


minha mão.
Peguei uma panela e liguei o fogo alto, para que a água fervesse
logo.

Enquanto cozinhava o macarrão, separei o que iria precisar para


fazer um novo curativo no visitante e coloquei dentro da maleta de
primeiros socorros que tínhamos para esse tipo de emergência.

Quando ficou pronto, despejei o macarrão dentro de uma tigela e


abri a gaveta de talheres, em busca dos hashis, mas não encontrei, então
peguei um garfo mesmo.

Na geladeira, peguei uma garrafinha de Coca-Cola e ajeitei tudo


nos braços, descendo a escada estreita com cuidado.

Quando passei pela porta, Samuel estava vestido. Calça de elástico


e camiseta, a cabeça apoiada nos joelhos.
— Sente-se mal? — perguntei ajeitando-me no chão, próximo a
ele.

— Um pouco enjoado… — confessou.

— Seu estômago… Está vazio há muito tempo… — Peguei a


tigela de macarrão e entreguei a ele. — Não tinha hashi… — avisei.

Ele esboçou aquele sorriso meio sacana, meio fofo que me fazia
odiar o quanto ficava bonito.
— Tudo bem…

Deu a primeira garfada e engoliu rápido demais.

— Devagar grandão… Ou vai acabar vomitando… — avisei. —


Aqui… — Estendi a garrafa de refrigerante. — Ajuda a descer…
Ele apoiou a tigela entre o corpo e os joelhos e girou a tampa
vermelha, fazendo o gás sair. Deu alguns goles e depois deixou ao lado do
futon.
— Agradeço a gentileza… Imagino que… — soltou devagar, em
um português com sotaque espanhol.

— Já disse, estou fazendo pelo Musashi… — defendi-me. — Não


sei quem você é, mas ele parece se importar, então… — Dei de ombros.

O mestiço continuou me encarando por alguns segundos, depois


levou outra garfada de macarrão até a boca e mastigou, engolindo mais
devagar.

Quando terminou de comer, eu abri a sacola com os remédios que


havia comprado e separei os comprimidos necessários.

— Antibiótico e anti-inflamatório… — expliquei, mostrando as


bolinhas brancas em minha mão. — Você vai tomar de oito em oito horas,
para evitar que esse furo aí se torne um problema, ok?

Ele concordou, mas ainda me encarava com um ar curioso e


estranho que me deixava desconfortável.

Tentei ignorar.

— Agora vamos ver como está a sua pressão e refazer o curativo…

Peguei o aparelho dentro da maleta e sinalizei para que ele


estendesse o braço.
— Um pouco baixa… — constatei. — Nada preocupante…

Peguei mais um travesseiro, ajeitando para que ele se deitasse com


a cabeça elevada, já que tinha acabado de comer.
— Agora vamos ver como está isso aqui…
Antes que eu pedisse, Samuel subiu a camiseta, expondo a barriga
plana e musculosa.

Devia ter me concentrado no ferimento, mas o caminho de pelos


escuros e finos, descendo pelo umbigo e perdendo-se no elástico da calça, e
as veias que marcavam a pele bem ali, no baixo-ventre, estavam me
deixando dispersa.

Limpei a garganta, batendo a mão fechada contra os lábios.

— Parece bom…

— Como? — perguntou, fazendo-me corar feito uma idiota.

— O ferimento… — expliquei e me senti ainda pior.


Óbvio que é sobre o ferimento, Lia, sua tonta!

— Não tem ponto de infecção… Logo irá fechar… — continuei


explicando já que os olhos dele ainda estavam em mim. — Vamos limpar
e… Oh… Bati a mão no vidro de antisséptico, mas ele o agarrou antes que
caísse.

Reflexo ok!

Limpei, passei uma camada fina de pomada, cobrindo com a gaze e


a fita novamente.

— Vamos deixar fechado até a noite… — expliquei. — Se não


tiver secreção, tiramos… — ia falando e juntando os medicamentos na
caixa novamente. — Ferimento de bala às vezes demora para fechar porque
é pro… — Parei, encarando seus olhos. — É claro que você já sabe disso…

Levantei-me do chão e ajeitei a blusa.


— Descanse um pouco… — instruí.

O silêncio dele me fazia falar descontroladamente.

— Vai ajudar na recuperação… E… Bem… Quando o Musashi


chegar, ele ajuda você a validar o chip do telefone e essas coisas…

O homem aquiesceu. Parecia se divertir com minha falta de jeito


em sua presença.

Peguei o cartão dentro do bolso da minha blusa.

— Usei dois mil… — contei.

Antes de entregar o cartão, meu dedo correu sobre o nome em


letras douradas.
Samuel Hitachi… Ele não tem cara de Samuel!

— Um nome… solamente… — misturou as duas línguas, o rosto


tranquilo para mim. — Pode me chamar por outro, se preferir…

Engoli em seco. Tanta coisa passando em minha cabeça naquela


fração de segundos. Pisquei, tomando o controle novamente.
— Não preciso! — Entreguei o cartão em sua mão. — Você logo
vai embora…

Virei as costas e subi as escadas, só parei quando fechei a porta do


meu quarto.

Sentei-me na cama e apoiei as mãos no colchão. O edredom de


cetim era macio.

Macio… Quente…
Engoli em seco mais uma vez.
É, Lia, acho que o Érico tem razão! Você precisa de um namorado!
Aliás… — Levantei o dedo em riste, para mim mesma. Namorado não, uma
foda! Uma bela foda! Daquelas de deixar a perna tremendo e sem fôlego!

Então pode esquecer o Gael! — Ri do meu próprio comentário,


mas a verdade é que o doutor não tinha cara de quem sabia fazer bem o
serviço.

De repente, a sensação do corpo de Samuel se apertando contra o


meu na bancada da cozinha voltou, fazendo minha pele se arrepiar inteira.
Balancei a cabeça em negativa, afastando qualquer pensamento
sem propósito que insistisse em continuar ali.

Encarei o dia começando a abrir pela janela e decidi que, quanto


menos eu ficasse em casa, mais fácil seria de controlar o dano, então peguei
minha bolsa e um casaco mais grosso e escrevi um bilhete para o meu pai.
“Vou na Ellen, não me espere para o almoço.”

Não era o que pretendia fazer, mas sabia que assim conseguiria
despistá-lo e não o deixar preocupado. Depois mandaria uma mensagem
para a Ellen e lhe pediria que confirmasse, tudo certo, sem maiores
problemas.

Segui meio sem rumo pelas ruas do Centro, até o lugar em que
tudo havia acontecido, dezoito anos atrás.

Assim que parei no cruzamento, a cena se refez em minha frente.


O escuro da noite, as luzes piscando, o som do tiro.
— Um deles, Lia… Ele é um deles… Não se deixe enganar pela
figura envolvente que ele mostra e lembre-se… A especialidade do
demônio é seduzir…
Capítulo Oito
Shin
A garota já havia deixado bem claro o quanto minha presença a
incomodava.

Eu ainda não entendia a razão de alguém que fora criado por um


homem da organização odiar tanto os que eram iguais a ele, mas também
não fazia diferença.

Ela tinha razão, minha passagem pela sua vida era curta. Em
poucas semanas nada haveria além de algumas lembranças que o tempo se
encarregaria de apagar.

Fechei os olhos, correndo a mão pelo curativo que ela acabara de


colocar. Ainda podia sentir o toque suave dos dedos dela, frios, pequenos e
certeiros. Tinha sido bem treinada.

Musashi, certamente… Não! — Alisei os cabelos para trás, não


tinha tempo para perder com bobagens. Precisava me concentrar.
Vasculhei as sacolas em busca do telefone e, assim que achei, abri
a embalagem e liguei o aparelho. Sabia como fazer uma ligação IP, então
busquei por uma rede de wi-fi.

Assim que consegui conexão, liguei para o número de segurança


de Willian. Ainda não havia contado a Nicolas sobre minha fuga, queria
manter segredo para evitar que ele estivesse na mira também.

Quanto menos ligação entre mim e ele meu avô encontrasse,


melhor para nós dois.

— Matsuya, sou eu… — falei assim que ouvi a voz dele do outro
lado.
— Mas que porra, mestiço! Você sumiu por três dias! Achei que
estivesse apodrecendo em algum beco por aí! Encontrou o Musashi pelo
menos?
— Por que não me contou que o tal Musashi era o sensei? —
perguntei por pura curiosidade, não fazia diferença.

O desgraçado riu.
— Achei que seria uma boa surpresa!

— Filho da puta… — xinguei. — Levei um susto quando o vi!

— Então você está com ele? Por que demorou tanto a me avisar?
Não me diga que…

— Dois tiros… Um passou de raspão, outro quase furou minhas


tripas…
— Kutabaro… — xingou em japonês.

— Mas sabe o que é estranho, companheiro? — soltei baixo, com


aquele tom de aviso nas entrelinhas. — Só eu, você e a equipe de bordo do
seu avião sabíamos do meu destino… Como o desgraçado do meu avô
descobriu tão rápido?
O silêncio perdurou na linha por alguns instantes.
— Não faço ideia…, mas de uma coisa eu tenho certeza, Nakai…
Este é um daqueles momentos em que você precisa confiar…

— Não sou muito bom nisso… — confessei.


— Então terá que aprender… — revidou.

Soltei o ar dos pulmões de uma vez. Não era do tipo que confia
cegamente, mas precisava de Willian Matsuya, se quisesse mesmo ganhar
essa guerra, então ele tinha razão, eu teria que aprender.

— Preciso que me atualize da situação… — cortei o silêncio,


deixando as desconfianças para depois. — Conseguiu acessar minhas
contas?

— Sim, não se preocupe… Seu dinheiro está protegido e em nome


da Sra. Veighe, conforme você pediu.
Soltei um suspiro de alívio. Queria garantir que, se algo
acontecesse comigo, Yuki ficaria bem e sem depender de ninguém. Eu até
gostava do Veighe, mas conhecia bem os homens do nosso mundo e jamais
a deixaria desamparada.

— Vou enviar as notícias para o endereço de e-mail do Samuel,


ok? — Willian interrompeu meus pensamentos. — Você consegue acessar?
— Acho que sim… Acabei de pegar o telefone…

— Se precisar de ajuda com algo, sabe que…

— Sei… — afirmei.

Não queria que aquela sensação de desconfiança seguisse entre nós


por muito tempo. Eu precisava entender o que havia acontecido antes de
colocar a lealdade dele em xeque.
— Yuki… — Will continuou.

— Não conte nada a ela… Aquela kitsune vai dar um jeito de


descobrir onde estou e aí não terei mais tranquilidade e clareza… Quero
Yuki fora…

— E o peruano? — questionou. — Soube que anda interessado nos


assuntos do Nihon…
Pensei por um segundo.

— Deixe-o fazer o que quiser… Assim meu avô saberá que não
estamos juntos nessa… Se ele estiver quieto demais, irá levantar
desconfianças…

— Faz sentido…
A linha ficou muda por alguns instantes, enquanto eu pensava na
pergunta que faria a seguir.

— Vai mesmo se levantar em apoio a mim, Willian? Sabe que se


eu perder…
— Você não vai! — interrompeu. — Conheço sua fama e sei o
quanto é obstinado, mestiço… Sangue latino da pior qualidade… Ruim
feito um cão do inferno, como dizia meu pai!

Ri e ele fez o mesmo.

— Eu já me levantei, Shin… Quando o tirei do Japão… Não há


volta, companheiro, estamos juntos nessa! — Fez uma pausa. — Então
garanta que não vai virar uma peneira ou estamos fodidos os dois…

Soltei uma lufada de ar, os pensamentos pesando em meus ombros.


— Vamos destruir a ameaça e anunciar um novo tempo… Lembra-
se?

Cenas antigas repassando em minha mente como um filme


ultrapassado.

— Shhhh… — Tapei a boca de um Willian ainda criança com


minha mão infantil. — Se meu pai souber que estou aqui com você, vai me
deixar de castigo…
— É só não contar… — O garoto baixinho e magricelo deu de
ombros. Era cheio de empáfia desde sempre.

— Anda… Mostra o que conseguiu! — pedi.

Willian abriu a mochila e tirou duas shurikens de dentro dela,


oferecendo-me uma.
— Agora somos samurais! — anunciou como se lesse um letreiro
luminoso.

— E vamos proteger o mundo dos homens maus!


No fim das contas, nos tornamos parte do que queríamos destruir…

— Mestiço? — chamou quando eu fiquei em silêncio por tempo


demais. — Tente não morrer!

Eu ainda me sentia um pouco zonzo e sem muita força para me


levantar, mas tinha que confessar que, depois da comida, realmente estava
melhor.

Deixei o telefone ao lado do corpo e fechei os olhos, apoiando as


costas na parede.

Precisava reunir forças para atacar, mas sabia bem o quanto a


fortaleza em torno de Kazuo Nakai era protegida, eu mesmo a tinha
montado.
Não sei por quanto tempo permaneci ali, focado no plano que tinha
que criar, mas, quando ouvi passos na escada, abri os olhos e me concentrei.

— Sou eu… — a voz de Terada me acalmou. — Fiz arroz e


preparei um cozido… — Parou em frente à porta e coçou a cabeça raspada.
— Não sou um exímio cozinheiro, mas…
Os olhos correram direto para a tigela suja ao lado da cama.
— Sua filha… — expliquei no impulso, mas parei no meio da
frase.

Terada sensei sorriu.


— É uma boa garota… Se faz de forte às vezes, mas tem o coração
benevolente…

Concordei com um aceno de cabeça.

— Vamos! Ou a comida acaba esfriando…

Apoiei as mãos no chão e ergui o corpo para cima, firmando-me


em pé.

— Tome… — Pegou uma blusa de frio depois de vasculhar as


sacolas. — Vista algo mais quente… A noite está esfriando e você perdeu
muito sangue, garoto.

Obedeci, embora não sentisse frio, e subi as escadas. Terada


indicou uma das cadeiras e eu me sentei.

Comemos boa parte do prato em silêncio e, só quando já


estávamos quase no fim, ele resolveu se manifestar.

— Tem ideia do que vai fazer? — perguntou.

Apoiei os dois hashis na beirada da tigela de sopa.

— Reunir os meus homens e os recursos necessários… — limitei-


me a dizer.

— Se tiver algo que eu possa fazer…


— Manter minha segurança enquanto me recupero já é uma ajuda
inestimável, sensei… Não vou envolvê-lo em uma luta que não é sua…

Foi a vez de Terada descansar os hashis. Braços cruzados sobre a


mesa e olhar fixo em mim.

— Eu espero por esse dia há muito tempo, Shin-kun… Não estou


neste buraco por escolha… Quero minha vida de volta…

Sustentei seu olhar. Entendia bem o que ele queria dizer, meu avô
fora o responsável por sua mutilação e quase morte. Foi naquele dia que
entendi que na verdade meu avô e Seiji Matsuya não eram realmente
inimigos, apenas fingiam, para que pudessem reforçar o ódio e a rivalidade
dos soldados.

— Você fará parte… — soltei depois de alguns segundos de


silêncio. — No momento certo…

Terada meneou a cabeça e continuamos a refeição.

No fim da tarde, a garoa engrossou e se tornou chuva, grossa e


pesada, embaçando as janelas empoeiradas da antiga academia.
A garota não havia voltado para casa e eu me perguntava que
diabos uma mulher sozinha estava fazendo na rua com uma tempestade
como aquela caindo.

Já havia escurecido quando me sentei no quartinho novamente,


para analisar as notícias e documentos que Willian mandara em meu e-mail.
Não havia nada sobre mim, além de um documento de renúncia
meu para a diretoria da N.K. Corp. Obviamente não havia sido escrito por
mim, mas não fazia diferença, já que tinha a anuência do presidente.
Era a maneira velada que meu avô encontrara para dizer que eu
estava fora. Ele não era bobo e sabia que eu tinha meus próprios recursos,
mas, obviamente, não chegavam perto da fortuna Nakai.

Ainda lia notícias do Japão, quando o cansaço e o efeito dos


remédios cobraram seu preço e acabei adormecendo.

De repente, eu não estava mais na velha academia, estava na casa


do meu avô.

Ouvi o primeiro gemido e me levantei da cama, mas, ao sair para


o corredor, a casa havia voltado à época em que eu morei lá com minha
mãe.

Um som estalado e depois outro gemido contido.

Parei ao lado da porta semiaberta e então a vi.

Minha mãe estava ajoelhada no chão. Os longos cabelos escuros


dançavam ao redor dela, a cada tapa que a mão grande e espalmada
acertava em seu rosto.
— Por favor, não faça isso… — pedia. — Juro que não quis
desafiá-lo… Eu só…

Outro tapa, forte e estalado, mas dessa vez uma linha fina e
vermelha escorreu do canto da sua boca.

Eu queria empurrar a porta e correr até ela. Minha mão fechada


em punho coçava para acertar em cheio a cara do desgraçado que a
machucava, mas eu não conseguia me mover. Sentia como se estivesse
paralisado e, quanto mais o medo tomava conta, mais eu me sentia
diminuir.
Era como se o passado e o presente se confundissem, eu não sabia
ao certo quem era.

— Mamá — gritei, as lágrimas descendo pelo meu rosto. —


Mamá!

Reuni toda a coragem que tinha, mas, quando tentei correr,


alguém me agarrou pelo colarinho, tapando minha boca.

— Shhhhhhh… Ou ele vai machucá-la mais…

A voz do meu pai era baixa e cheia de uma cólera intensa. Eu me


debatia e chutava, encarando o rosto machucado da minha mãe, mas em
uma fração de segundos não era mais ela, e sim a filha do sensei.

— Não! — gritei mais forte. — Não!

Soltei-me do aperto do meu pai e agarrei algo, girando o corpo e


imobilizando o agressor.
Capítulo Nove
Liandra
Não tive tempo de reação.

Em um minuto tinha descido para checar a febre do visitante, e em


outro, seu corpo grande estava sobre o meu. Suas mãos apertando meus
pulsos, mantendo-os presos acima da minha cabeça. Sua respiração
ofegante confundindo-se com a minha.

— Samuel! — chamei. — Samuel!

Ele parecia em transe. O maxilar contrito, os olhos semiabertos.


Seu suor escorria pela testa, descendo pelo rosto e perdendo-se na barba por
fazer.

— Sou eu, a Lia…

Seus olhos se abriram ainda sem muito foco e, assim que percebeu
o que fazia, as mãos afrouxaram o aperto e seus olhos encararam os meus.

Mais um instante e ele se virou de lado, içando o corpo para se


sentar e alisando os cabelos para trás.

— Eu não… — balbuciou.

Ainda respirava forte, entrecortado.

Abri a boca para dizer que o erro fora meu por me aproximar tanto
e sem aviso, mas desisti.

— Só queria saber se era febre… — limitei-me a dizer. — Você


estava se debatendo e suando muito… — Esfreguei os pulsos doloridos,
antes de ficar de joelhos e me levantar. — Bem, não era febre então…

Virei as costas o mais rápido que pude, tinha certeza de que meu
rosto parecia afogueado e acabaria por me denunciar.
Estava quase na porta, quando sua voz grave e profunda arrepiou
minha pele tão intensamente que não pude reprimir o pequeno tremor que
tomou conta de mim.
Eu podia sentir sua respiração aquecendo a pele do meu pescoço,
então não me virei.

— Eu não pretendia assustá-la…


Girei o corpo devagar, as costas apoiadas contra o batente da porta,
onde a mão dele repousava, logo acima de mim.

Susto…

Era o que eu deveria ter sentido naquele instante, com o


desconhecido tão perto de mim, seu corpo quase roçando o meu, mas não
foi o que houve.

Separei os lábios, mas nenhuma palavra parecia caber ali, eu tinha


sido capturada em sua órbita, perdido o controle sobre mim mais uma vez.
O estranho também não se afastou e, por um segundo, tudo que
fizemos foi olhar, direto, um para dentro do outro.

— Lia! — a voz do meu pai e os passos na escada o fizeram recuar


e então eu fugi, limpando a garganta e tentando parecer menos afetada do
que me sentia.
— Não é febre… — falei tão rápido que nem tive tempo de pensar
e depois me arrependi.

— Tem certeza? — meu pai perguntou correndo os olhos entre


mim e o visitante, como se tentasse ler as entrelinhas. — Eu encontrei o
termô…
— Sete anos de experiência! — Sorri escondendo o nervoso, mas
tentei disfarçar coçando o olho. — Acredite, sei quando alguém está com
febre! — Dei de ombros. — Agora se me dão licença… Preciso
descansar… Dia cheio amanhã!

Passei por Musashi o mais rápido que consegui. Sentia-me


sufocada no espaço pequeno do quartinho e era horrível em mentir. Meu pai
sempre dizia que eu seria um péssimo samurai. A sinceridade era meu
ponto fraco.

Assim que cheguei em casa, abri a geladeira e peguei uma


garrafinha de cerveja, virando metade de uma vez.

Dorme, Lia… Dorme antes que acabe fazendo besteira!

Tive uma péssima noite de sono. Aquela sensação estranha de que


havia alguém me observando e sonhos desconexos com os meus pais, tiro,
morte, sangue se repetiu por todo o tempo em que tentei permanecer na
cama. Acabei acordando mais cansada do que estava quando me deitei.
Levantei antes da hora e vesti um jeans escuro e uma camiseta,
depois a jaqueta de couro e as botas. Ainda chovia e a última coisa que eu
precisava era chegar à base com os pés encharcados e frios.

Peguei minha mochila e segui até a cozinha, mas acabei travada no


corredor.
Samuel — ou quem diabos ele fosse — estava parado junto à
janela, observando o dia ainda meio escuro, enquanto dava goles em um
copo de café.

Usava a mesma calça larga de elástico e apenas a camiseta branca,


o que deixava os braços tatuados à mostra, cabelo ajeitado de maneira
displicente e aquele ar de bad boy de novela asiática que faz as marias
hashis enlouquecerem. Enfiou a mão por baixo da camiseta, esfregando a
pele, ainda sem me olhar.

— Estava seco… Então eu tirei… — falou virando-se em minha


direção.

— Uhum… Acho que tudo bem… — Não o encarei. — Mas, se


perceber alguma secreção, pode colocar novamente…
Ajeitei a alça e continuei meu caminho até a escada. Precisava
manter em mente que, quanto mais longe dele, melhor e mais segura eu
estaria.

Érico havia passado para me pegar, então, assim que deixei os


portões velhos da vila, encontrei o carrinho vermelho parado.
— Parece que viu fantasma… — comentou enquanto eu afivelava
meu cinto.

— De certa maneira…

O enfermeiro levantou a sobrancelha, mas eu logo emendei outro


assunto.

— Essa porra de chuva que não passa… Já estou me sentindo meio


verde e não duvido nada que me nasça uma folha no sovaco!
Meu amigo riu e balançou a cabeça em negativa.

— Só você para animar um domingo chuvoso…

— Se o Rubens escuta isso, vai ficar com ciúmes… — brinquei.


Rubens era nosso colega já havia algum tempo. Tinha feito o curso
técnico de enfermagem junto com Érico e dividido alguns plantões por aí.
Os dois tinham uma excelente afinidade, mas odiavam trabalhar na mesma
ambulância.

— Nada! O Rubão pegou folga hoje… O pai dele não anda bem,
vai passar uns dias lá no sítio com a família…

— Certo ele…
— Nem fale… O pai dele é um cozinheiro de mão cheia… Última
vez que fui lá, comi um tropeiro de lamber os beiços…

— Adoro tropeiro… — confessei.


— E você, Lia… Quando vai me chamar para conhecer a sua casa?

— Aaaaaah, não tem nada de interessante lá e acredite… Cozinha


não é um dos dotes do meu pai… E menos ainda meu!

Érico riu e o assunto morreu.

Eu nunca havia levado amigo algum do trabalho até minha casa,


simplesmente porque nunca sabia o que ele poderia encontrar e seria difícil
explicar.

A vida que eu levava era dúbia e estranha demais para que


qualquer pessoa normal entendesse.
Cheguei à base e fui direto para o vestiário, trocar minhas roupas
pelo uniforme. Quando entrei no refeitório, havia uma cara nova por lá.

— Lia, esse é o Felipe, ele vai ficar no lugar da Dra. Manu… —


Rita, a outra enfermeira, apresentou.

Meneei a cabeça em cumprimento e peguei um dos pães, deixando


ao lado da xícara de café quente.
O plantão de domingo fora tranquilo, sem grandes intercorrências,
então Érico e eu colocamos o carteado em dia.

Ganhei dois pacotes de salgadinho e três de balas de goma.

— Vai morrer solteira! — Meu amigo praguejou guardando o


baralho no armário. — Sabe o que dizem da sorte no jogo, não é?

— Solteira e feliz! — Enfiei minhas guloseimas dentro da mochila


e a joguei nas costas.

— Boa noite, meninos, vou indo nessa! — anunciei. — Assim


aproveito que a chuva melhorou.

— Não quer esperar um pouquinho? Assim que o Juninho chegar,


eu também vou e te deixo em casa — Érico ofereceu.

— Ah, não, fica tranquilo… Gosto de caminhar.

Enfiei as mãos nos bolsos do casaco e apertei o passo. Ainda sentia


aquele medo estranho e ruim, do dia em que havia encontrado Samuel
baleado no beco escuro.

Nem parece que se virou pela rua, Lia… E era muito menor e mais
vulnerável que agora!

Bati no bolso lateral, sentindo o frasquinho de spray de pimenta


que carregava ali. Não era muita coisa, mas ajudava a me sentir segura.

Um cachorro latiu junto a grade e levei um susto tão grande que


quase fui atropelada por uma bicicleta.

— Olha por onde anda! — o garoto pedalando xingou.

Meu coração estava acelerado e a boca começou a ficar seca. Eu


odiava sentir medo, porque ele trazia de volta muitas lembranças que eu
queria esquecer.

Para o meu azar, nem o bar na entrada da vila nem o Nihon Privê
tinham movimento do lado de fora, o que deixava o beco ainda mais
assustador.

Apressei-me um pouco mais, quando um homem com as mãos nos


bolsos cortou a calçada, em minha direção. Quando avistei a porta do
depósito, virei o rosto para procurar a chave no bolso da mochila e então
senti meu corpo se chocar contra algo duro.

— Oh! — reclamei quando os dedos fortes sustentaram meus


ombros.

— Algum problema? — nosso hóspede perguntou.

Engoli em seco a sensação ruim que ainda sentia. A mão grande


dele queimando minha pele e revirando aqueles sentimentos que sua
presença me causava.

Ele era tão alto que eu precisei elevar o olhar para encarar seu
rosto. Enchi os pulmões e ergui uma sobrancelha debochada, tinha que me
proteger de algum jeito.

— Sim! Pressa! — menti, tentando me desvencilhar e entrar. — E


fome!

Ele me soltou e inclinou um pouco o corpo, vasculhando a pequena


praça com o olhar.
Tirou um cigarro do maço e acendeu, escorando as costas na
parede de caixas e usando a sombra de uma árvore para se proteger da luz
do poste.
Eu entrei, mas continuei observando-o pelo vidro sujo da pequena
janela. Ali, no meio das sombras e naquela pose em que estava, era
impossível esquecer quem ele era e o quanto podia ser letal.

Será que o perigo está mesmo do lado de fora, Lia?


Capítulo Dez
Shin
Fiquei parado ali, encarando o homem do outro lado da rua, sem
que ele me visse.

Fiz questão de manter o cigarro aceso. Queria que o visitante


tivesse certeza de que ela não estava sozinha, que tinha alguém por perto
para protegê-la caso precisasse.

Quando meu cigarro terminou, atirei a ponta e alisei os cabelos


para trás. Ainda precisava planejar os próximos passos. Nunca, em toda a
minha vida, havia pensado que seria necessário mudar de rumo.

Ser um yakuza era tudo que eu conhecia, fui treinado desde que
meus braços finos e magros aprenderam a sustentar o peso de uma arma.
Não fazia ideia de quantos havia derrubado pelo caminho, tinha parado de
contar muito tempo atrás e não sentia remorso algum.

Também já não me lembrava de quantas vezes havia oferecido o


peito em nome da organização. Morrer pelo que eu acreditava era a forma
mais honrosa de deixar este mundo. Ao menos até descobrir que seguia o
mestre errado.

Como aquele demônio descobriu onde eu estava?

Os pensamentos me consumiam tão intensamente que só percebi os


passos na escada quando já estavam perto demais.

— Está muito frio, garoto… — a voz tranquila do sensei se fez


ouvir, ainda dentro do depósito. — Entre…

Preferi manter segredo sobre o homem que seguira a garota para


casa. Podia ser apenas um idiota mal-intencionado e eu descobriria mais
fácil se ninguém interferisse.
— Vou tomar um banho e descansar… — avisei.

— Coma algo primeiro… Depois do desmaio… Você precisa se


cuidar…

A garota estava sentada à mesa, cabeça baixa, quase enfiada dentro


do prato de sopa. Era engraçado provocá-la e brincar de intimidá-la com o
meu tamanho, mas eu não tinha tempo para perder com algo tão infantil.
Além disso, não era nada educado da minha parte incomodá-la em sua
própria casa e depois de um longo dia fora, fazendo sabe-se lá o quê.
— Estou sem fome… — Curvei o corpo em reverência e tomei o
rumo da escada estreita que levava ao meu quarto.

Assim que entrei no banheiro, tirei a roupa e liguei o chuveiro. A


água fria ajudou a manter meu foco, apesar do cansaço, então quando voltei
para o quarto tinha uma ideia diferente na cabeça.
Será que o homem que me atacou sabia mesmo quem eu era?

Não tinha tatuagens, nem mencionou meu nome ou meu cargo em


momento algum…

Infiltrado? Contratado para executar um serviço? Ou apenas um


assaltante comum? Talvez eu tenha vacilado… Estava em terreno
desconhecido…

Um erro que quase custou minha vida…


Joguei a cabeça para trás. Não era bom em admitir o fracasso, eu
nunca errava.

Acabei cochilando depois de tanto pensar e acordei no meio da


madrugada. O clima havia esfriado muito, então vesti a blusa de moletom
por cima da camiseta e me levantei.
Parei perto da janela empoeirada e encarei o beco vazio mais uma
vez. Tudo parecia calmo lá fora, mas achei melhor confirmar. Peguei o
maço de cigarro e o isqueiro, pouco antes de subir as escadas.

A televisão estava ligada e a garota, deitada no sofá, de costas para


mim.

— Vou descer e checar as coisas lá embaixo… — expliquei, mas


quando ela ressonou percebi que dormia profundamente.
Deveria ter cumprido minha tarefa, mas acabei traído pela
curiosidade. Era a primeira vez que podia me aproximar sem que ela
fugisse.

Dei alguns passos em sua direção e parei perto o suficiente para


que pudesse observá-la.
Rosto delicado, suave, como se sonhasse com algo bom. A pele
morena contrastava com a blusa rosa-claro, os cabelos ondulados
espalhados pela almofada. Parecia uma boneca, e não uma prostituta.

Deve ter saído para estudar ou algo assim… Talvez você tenha
entendido errado… Ela carregava uma mochila…

— Hum… — gemeu e ressonou, lábios entreabertos, fazendo-me


engolir em seco.

Afastei-me no instante seguinte e, aproveitando que minha


presença não fora notada, desci.
Cocei os olhos e esfreguei a linha da barba, acendendo o cigarro
logo depois. Passos curtos em volta da pequena praça, só para garantir que
não havia ninguém escondido nas sombras. Assim que o cigarro terminou,
voltei para dentro.
Estava muito frio e com aquela garoa fina típica das madrugadas
de inverno, então subi os degraus espalhando as gotículas do cabelo com as
mãos.

— Pode fumar na academia, se quiser… — a voz da garota me fez


parar onde estava.

Concordei com a cabeça, seguindo meu caminho.


— Sente-se! — pediu, já puxando a cadeira. — Deixe-me ver
como estão os pontos…

Fiz o que pedia, tirando a blusa de frio e erguendo a camiseta em


seguida.
Ela encaixou-se entre minhas pernas, a mão apoiada em minha
coxa para abaixar e olhar mais de perto.

Soltei uma lufada de ar. Estava próximo demais. O perfume se


espalhando ao redor de mim. Quando tocou minha barriga, senti meu corpo
responder.

— Parece bom… — soltou, completamente alheia ao que passava


em minha cabeça.

— Parece… — concordei, mas o pensamento não estava no


ferimento.
Baixei um pouco a cabeça e no mesmo instante ela se virou, o
rosto passando a centímetros do meu, o cabelo chicoteando meu pescoço.

Estendi a mão para ajudá-la a se equilibrar, mas ela já estava longe.

— Vou só pegar o antisséptico… — explicou sem me olhar.


Fiquei sentado na mesma posição. Pernas separadas e os braços
cruzados atrás da cabeça.

— Aqui…

Deu alguns passos e estendeu o vidro de medicamento, como se


quisesse manter a distância entre nós, mas, quando fui pegar o remédio,
resvalei meus dedos nos dela.
O rosto corou no mesmo instante e ela soltou o objeto de uma vez.

Jogo? Cena? Para quem vive em cima de um bordel, até que ela
finge bem…

Passei o antisséptico sobre o corte e vesti a blusa novamente.

Acabei dormindo assim que me deitei. Meu corpo ainda estava se


recuperando e os remédios me davam mais sono que de costume. Ao menos
naquela noite, não sonhei.

Quando o dia começou a clarear, eu despertei e lavei o rosto.


Queria estar por perto quando a garota saísse de casa, para ter certeza de
que ninguém a estaria esperando do lado de fora.

Enfiei a pistola na parte de trás da calça e a cobri com a blusa de


moletom, subindo as escadas devagar, até chegar à sala.

Ouvi quando fechou a porta lá embaixo, então me apressei para ir


atrás, tomando cuidado para que ela não me visse.

Lia seguiu o caminho até a saída do beco. Parecia preocupada, os


olhos correndo de um lado para o outro. Ao menos era cuidadosa.

Continuou caminhando pela ladeira, e eu a seguindo de longe.


Alguns quarteirões à frente, ela parou em um cruzamento, esperando por
algo. Olhava o relógio e a rua sem parar.
De repente, uma ambulância parou e as portas se abriram.

Um homem alto e de cabelos levemente grisalhos desceu e a


cumprimentou com um aperto de mãos caloroso, depois deu tapinha em
suas costas e ela entrou dentro do furgão.

Quando passou por mim, consegui ler o que estava escrito na


lateral do veículo. SAMU 192.

Cocei a barba já começando a nascer, e o sorriso tomou conta do


meu rosto.

Enfermeira? Médica? Faz bem mais sentido do que prostituta!

Voltei para casa o mais rápido que pude e tentei entrar


despercebido, mas não podia esquecer com quem estava dividindo o teto.

— Algo suspeito? — Terada perguntou antes que eu pudesse vê-lo


na cozinha. — Vi que ficou de vigília…

Pensei por um segundo, era melhor ser sincero.

— Havia um homem no beco ontem… — expliquei. — Não sei se


seguiu sua filha ou se foi apenas coincidência, mas achei que era melhor
garantir…
Terada aquiesceu.

— Baixo, pele clara e cabelos raspados nas laterais? — perguntou


como se quisesse confirmar.

— Isso…

— Esteve aqui na semana passada… — Encheu dois copos com


café. — Perguntou sobre as aulas, depois ficou se esgueirando pelo lugar.
Não é um de nós… Pelo menos não que eu tenha percebido.

— O homem que atirou em mim também não… — Dei um gole na


bebida quente. — Ou estamos mal informados, ou lidando com algo
diferente…

— Ou os dois… — pontuou, soltando uma lufada de ar.


Terada não ganharia nada entregando-me ao meu avô, muito pelo
contrário. Lutar ao meu lado garante a ele a ínfima possibilidade de poder
sair das sombras e voltar a ser o grande homem que foi um dia, mas e
Willian?

Eu não queria desconfiar, mas não podia simplesmente enfiar os


fatos no bolso e seguir com a venda nos olhos.

Ele estava se preparando para assumir o posto supremo de oyabun,


o chefe de tudo que se referia à Matsuya-Kai, talvez se parecesse mais com
o pai do que eu queria enxergar; afinal de contas, Seiji ganhou a cadeira
depois de matar o próprio pai.

— Vou dar uma volta por aí e ver o que consigo descobrir… — a


voz do sensei trouxe-me de volta dos pensamentos. — Talvez não volte
hoje… — continuou. — Então se você puder…

— É claro! — concordei.

— Aqui… — Entregou uma chave em minha mão. — É da porta


da academia… Assim você não precisa subir aqui quando quiser vigiar…
Lia…

Fez uma pausa proposital, para deixar claro o duplo sentido da


frase.

— Não gosta muito de visitantes…


Curvei o corpo em concordância.

— Tomei a liberdade de habilitar seu telefone com um número


normal… Assim você pode usá-lo na rua também…

Elevei o olhar, mas não discordei. Não podia culpá-lo por me


vigiar, já que era eu quem tinha chegado a sua casa machucado e com uma
história difícil de explicar.
Capítulo Onze
Liandra
Érico havia se comprometido em vir me buscar, já que tínhamos
uma apresentação em uma escola.

Eu era péssima para interagir com pessoas e ainda pior quando


essas pessoas tinham menos de um metro e vinte e perguntas infinitas sobre
os mais diversos assuntos, mas meu companheiro, para a minha sorte,
parecia ter nascido com o dom de entreter.

Prendi o cabelo em um coque, logo depois de vestir o macacão, e


conferi mais uma vez os materiais que usaríamos na pequena apresentação
que faríamos para os alunos do primeiro ano de uma escola pública na Zona
Leste.
Assim que o motorista parou, abrimos as portas e descemos.

— Você fala… — avisei. — Prometo que serei uma ótima


assistente! — Ergui uma sobrancelha debochada para o enfermeiro.
— Eles não mordem, Lia… Juro que não mordem…

— Ha-ha! Muito engraçado… — provoquei. — E sim, eles


mordem! Ao menos às vezes…

Eu não gostava de escolas nem de crianças, porque elas me


lembravam a parte mais difícil da minha vida. Aquela que eu havia
enterrado bem fundo, quando Musashi me resgatou.

Apoiei meu corpo contra a mesa da professora e não pude controlar


os pensamentos. Andava mais emotiva que de costume. Por alguma razão, a
presença do maldito yakuza mexia mais comigo do que eu gostaria e
admitia.
Quando nos sentamos no banco do furgão, agradeci mentalmente
por ter um parceiro tão bom.
— Que tal uma costela na brasa lá naquele restaurante perto de
casa? — sugeriu. — Estamos com tempo…

Eu estava sem fome, mas não queria cortar o barato dele, então
aceitei.
Voltamos para a base depois de almoçar e o dia estava tão calmo,
que os meninos decidiram jogar um pouco de baralho, para ver se o tempo
passava mais rápido. Puxei uma das cadeiras e me sentei também. Se
ficasse deitada no sofá por mais tempo, não conseguiria controlar os
pensamentos que insistiam em ganhar espaço em minha cabeça.

— Truco! — Rubens sugeriu. — Preciso treinar, já que meu


cunhado metido a empresário vai almoçar em casa no fim de semana e
merece uma surra.
Érico começou a misturar as cartas e depois ia colocando uma para
cada um.

“Parece…”

A voz grave dele ressoava dentro de mim sem parar. Aquela nota
de arrepio intenso e calor que ele me fazia sentir era assustadora e
inebriante. A sensação do músculo se firmando ao meu toque, a respiração
pesando.

Tão perto que eu podia sentir o calor da sua pele na minha.


Engoli em seco, piscando algumas vezes, queria manter o foco,
mas meus pensamentos insistiam em vagar.
A mão grande em volta do meu pescoço, agarrando meus pulsos, o
corpo musculoso, o hálito em meu rosto, as gotículas de chuva escorrendo
pelo pescoço.

Bati na mesa e me levantei.

— Ei! — os meninos reclamaram. — Você não terminou ainda!


Saí pela porta do vestiário sem olhar para trás e parei direto no
refeitório, pegando um copo e abrindo a garrafa de café.

Eu não era do tipo emocionada. Tivera uma paixonite aqui, outra


ali, quando adolescente, mas jamais permiti que alguém tomasse o controle.
Eu gostava de comandar, de cuidar de mim mesma. Tinha aprendido a ser
autossuficiente na raça.
Quase quatro meses me esgueirando pelos becos, vivendo de
esmola e pequenos furtos, tinham me tornado a porra de garota insensível
que eu me orgulhava de ser!

Dei um gole na bebida quente e soltei o ar dos pulmões.

Talvez uns dias de folga…

Não! Você não vai fugir da sua própria casa só porque um mestiço
filho da puta resolveu abancar lá, não é? Ele que saia! — Dei de ombros.
— Ih… Guerra mental é uma merda! — Meu companheiro de
ambulância sentou-se no degrau ao meu lado. — A gente dificilmente
ganha…

Acabei rindo. Era bom trabalhar com ele.

— Algo que você queira compartilhar?


Estava oferecendo ajuda, embora soubesse que eu não iria aceitar.
— Nada importante…

Érico meneou a cabeça em concordância e virou o copo de café na


boca.

— Pelo jeito, vai chover… — comentou mudando o assunto. —


Olha como está escurecendo.
— Uhum… — concordei, mas meu pensamento ainda se perdia
entre o passado e o presente.

Eu tinha tentado fotografar a tatuagem na mão de Samuel, queria


pesquisar aquele maldito desenho, mas ele era esperto demais. Ele sempre
acordava antes que eu me aproximasse o suficiente.
— Não acha? — a voz de Érico me trouxe de volta os
pensamentos.

Estreitei os olhos, tentando pegar o assunto sem ter que confessar


que não estava ouvindo.

— Ihhhh, consigo ver a fumacinha daqui! — meu amigo brincou.


— Anda, pega as suas coisas e vai embora de uma vez. Vai cair um chuvão
já, já, e hoje estou sem carro, nem consigo levar você…

Encarei o relógio em meu pulso. Faltava pouco para as seis.


— Anda, vai lá! — insistiu. — Daqui a pouco o Juninho chega…
Ele sempre vem antes, você sabe…

— Certeza?

— Só se prometer que vai finalmente pedir suas férias…


Voltei o olhar para ele.
— Todo mundo precisa de descanso, Lia, você também… Tire um
tempo, coloque as ideias em ordem… Tenho percebido que você não anda
bem…
Deixei os olhos encontrarem o chão. Não podia negar que não
estava em minha melhor forma.

— Promete? — Sorriu.
Meneei a cabeça em concordância e, antes de ir para o vestiário,
passei pelo escritório para preencher o pedido de férias. Naquele horário já
estávamos sem supervisor, mas com certeza no dia seguinte eu receberia
uma resposta.

Deixei sobre a mesa e segui para o vestiário, trocando o macacão


pelas minhas roupas e guardando as coisas na mochila.

Não tinha chegado nem ao fim do primeiro quarteirão e a chuva


começou a cair forte, então precisei abrir a sombrinha e apressar o passo.
Tentei chamar um motorista por aplicativo, mas, quando vi o tempo que ia
demorar para chegar, resolvi que a pé seria mais rápido.

Conforme fui me aproximando de casa, a chuva apertou um pouco


mais. Os comércios baixando as portas, as pessoas correndo para se
abrigarem e a rua ficando a cada segundo mais deserta.

Quando cheguei ao meu quarteirão, aquela sensação de estar sendo


seguida ficou mais forte. Eu tentava controlar o que fazia, mas meus olhos
procuravam o tempo todo por algum perigo que eu não queria encontrar.

Peguei a latinha de gás e segurei firme na mão, por dentro dos


bolsos canguru da minha blusa. Atravessei a rua o mais rápido que
consegui, ganhando uma buzinada de um carro, e segui pela calçada da
lanchonete. Estava quase no beco quando senti alguém se aproximar.
— Ei, gracinha… Vamos só conversar…
Senti agarrarem minha mochila e soltei os braços correndo o mais
rápido que conseguia. Não havia nada de valor lá dentro mesmo, que
roubassem, eu não ia me arriscar.

Tinha dado alguns passos quando vi outro homem, no sentido


contrário, se aproximando devagar. A mão debaixo da blusa fez meu
coração gelar. Corri os olhos pelo beco vazio. Não era dia de expediente na
boate e os comércios estavam todos fechados. Também não era perto o
suficiente para que eu pudesse gritar para o meu pai, não com aquela chuva
caindo.
Numa fração de segundos, tracei minhas opções, mas, antes que
conseguisse executar qualquer uma delas, um vulto pulou de cima do muro
baixo que fazia divisa com a academia e agarrou o homem que vinha em
minha direção, lançando-o com tanta força contra a porta de ferro de uma
loja que o homem caiu no chão e não se levantou mais.

O primeiro impulso que tive foi o de correr, mas não consegui.


Meu braço foi agarrado e torcido para trás, imobilizado pelo homem que
vinha no meu encalço.

— Solte a garota… — aquela mesma voz, que estremecia meu


corpo e me prendia em sua órbita, ressoou pausada e letal como sempre.

Engoli em seco, travada no chão. Meus olhos procuravam pelo


rosto, mas só encontravam as sombras.

A chuva continuava a cair forte, nublando o pouco de visão que as


luzes dos postes traziam para a noite escura. Eu não podia vê-lo, mas ouvia
a movimentação em torno de onde estávamos.
O homem que me segurava enfiou a mão na cintura e puxou uma
pistola, engatilhando e pressionando contra a minha têmpora.

— Aparece desgraçado! — chamou. — Ou eu estouro os miolos


desta puta!

Silêncio total.
O homem girou, arrastando-me pelo piso de encaixe do beco.
Procurava pelo dono da voz e, assim como eu, não o via.

— Anda, seu filho de uma puta! Mostra a cara! — xingou, sem


obter resposta.

Eu sentia meu coração bater tão acelerado, que girar em torno da


praça começava a me deixar zonza. Aquela antecipação ruim, o desespero
misturado ao medo.

— O que foi? Perdeu a coragem? Desistiu? — continuou


provocando.
E foi então que eu senti o tranco, meu corpo arremessado de lado e
as costas do agressor que me mantinha presa chocando-se contra o poste.

— Corra! — ouvi próximo a mim e obedeci, engatinhando pelo


piso molhado até conseguir me levantar.

Um raio cortou o céu, clareando a luta entre os dois, meu salvador


e meu agressor. Eu mal podia ver onde começava um e terminava o outro,
engalfinhados no meio de socos e chutes até que o disparo ecoou no meio
da tempestade.

Samuel caiu sentado na calçada ao lado do homem que ainda


carregava a pistola.
Outro trovão clareando a camiseta ensanguentada dele, e tudo que
eu consegui foi gritar.

— Não!
Ato II
Confissão
Se você escolhe um caminho inexplorado, precisa estar disposto a
entender os segredos que aparecerão ao longo da viagem.
Bushido
Capítulo Doze
Shin
Ainda tentava controlar a respiração.

As mãos sujas de sangue e os olhos fixos no homem, vendo-o


cambalear devagar. Ele ainda tentou sustentar a pistola, mas, junto com o
som do próximo trovão, a arma caiu no chão e ele, de joelhos.

Levantei-me com esforço, cuspindo o sabor ferroso que tomava


conta da minha boca no mesmo instante em que o rosto do desgraçado
encontrou as pedras do calçamento.

A garota ainda estava parada lá, próximo à porta do depósito, como


se seus pés fossem feitos de concreto. Os olhos escuros estalados para toda
a cena que acabara de ver.

Peguei a arma e enfiei no cós da calça, depois dei alguns passos,


seguindo em sua direção. Podia sentir o sangue descer dos meus lábios,
então limpei a boca com o pulso, o supercílio também doía ao piscar, o que
indicava que eu tinha levado alguns golpes também.

Parei assim que cheguei perto o suficiente, não queria que ela se
assustasse ainda mais, não depois de tudo que tinha vivido.

Achei que ela fugiria, mas fui pego de surpresa. No instante


seguinte, braços pequenos se prenderam em torno de mim. O rosto
afundado em meu peito, a respiração quente contra minha pele.

— Eu estou bem… — expliquei. — O tiro não foi em mim…

Esperei que ela soltasse, mas não aconteceu. Meus braços estavam
lá, parados em volta dela, os dedos movendo-se sem tocá-la, enquanto uma
guerra mental se travava dentro da minha cabeça.
Abraçar?

Não, não é necessário… Ela só está nervosa… Reação ao


choque…

Segurei-a pelos ombros, afastando seu corpo do meu.

— Vamos!

— Para onde? — perguntou sem entender.

— Qualquer lugar longe daqui… — expliquei. — Se alguém ouviu


o disparo, a polícia logo estará aqui e, como imagina, eu não sou Samuel
Hitachi…

Aquiesceu.
Corremos para fora do beco, até onde a mochila dela havia caído.
Lia parou e se abaixou, abrindo o zíper e retirando uma blusa de dentro.

— Vista e esconda as mãos nos bolsos… — instruiu e eu


concordei.

Com uma toalha, limpou meu rosto e tapou o corte em meu


supercílio com um curativo pronto.
Continuamos o caminho para fora do beco, até a avenida em frente.

— Ali tem um ponto de táxi! — Apontou para um toldo azul,


detrás de algumas árvores.

Conforme nos aproximávamos, senti seus dedos se entrelaçarem


nos meus.

— Boa noite, senhor… — cumprimentou o motorista com um


sorriso. — Meu namorado e eu perdemos nosso ônibus de excursão por
causa da chuva… Será que poderia nos levar até um motel?
O homem correu os olhos entre nós dois e eu reprimi o impulso de
erguer a blusa e mostrar que fazer a corrida não era uma opção, mas esperei.

— Aqui! — Lia tirou algumas notas de dentro do bolso pequeno da


mochila. — Vamos pagar um compensativo pela sujeira em seu carro…

Os olhos eram doces e gentis, mostravam uma delicadeza que não


era dela.
Uma excelente atriz…

— Somos do interior e estamos um pouco apreensivos em ficar


andando por aí… — insistiu. — Por favor… O próximo ônibus para nossa
cidade só sai amanhã pela manhã…
O homem pensou por mais alguns segundos, depois levantou o
boné e coçou a cabeça. Certamente ponderava sobre que decisão tomar. Eu
mantive os olhos baixos, porque era péssimo em atuar, estava mais
acostumado tomar o que queria.

A garota continuou encarando o taxista, até que ele não resistiu,


destravando as portas do carro.

Ocupamos nosso lugar no banco traseiro e seguimos pela cidade,


até que o homem parou próximo à entrada de um motel.

— Pode pedir uma suíte luxo, por favor? — falou com o motorista,
entregando a ele nossos documentos.
Poucos segundos depois, estacionamos em frente à entrada de uma
garagem.

— Muito obrigada! — Minha acompanhante sorriu. — O senhor


nem sabe o tanto que nos ajudou!
Segui ao lado dela para dentro, fechando a porta e girando a chave
atrás de nós.

A garota parou no meio do quarto e deixou a mochila sobre a


pequena mesa de dois lugares. Ainda parecia tentar assimilar o que
acontecera e tremia tanto que eu podia ouvir o barulho dos dentes batendo.

Terminei de me livrar da blusa molhada e a conduzi até o banheiro,


ligando o chuveiro para que a água esquentasse.
— Tire as roupas molhadas e se aqueça… — minha voz
empostada, soando mais como uma ordem do que um pedido.

Fechei a porta de vidro jateado e livrei-me da calça e da cueca,


secando meu corpo e enrolando uma das toalhas em volta da cintura.
Aproveitei para ligar o ar-condicionado e estabilizar a temperatura no
quarto, já que não tínhamos roupas secas para vestir.
Ainda sentia a adrenalina correr por minhas veias, quando me
sentei na beirada da cama. Retirei o curativo da testa, já saturado de sangue,
e pressionei a ponta da toalha ali, tentando segurar o sangramento, sem
muito sucesso.

— Deixa, que eu faço isso… — Ela se aproximou, jogando a


mochila ao meu lado.
Abriu e pegou uma bolsinha azul. De dentro dela, retirou um
pacote fechado de gaze e um flaconete do que provavelmente era soro
fisiológico.

Ela tentou curvar o corpo por cima do meu, então eu separei as


pernas, permitindo que se acomodasse melhor.
Pela fresta da toalha, enrolada em seu corpo, eu podia ver o relance
das pernas torneadas, o perfume de sabonete da pele. Engoli em seco,
mirando o olhar para o teto. Estava tenso, ansioso, cheio de adrenalina; se
vacilasse, podia ser tarde para voltar.
— Não foi tão fundo… — falou, espalhando o hálito quente em
meu rosto. — Só mais um minutinho… — Moveu-se, a coxa resvalando na
minha.

Fechei os olhos. Minhas mãos ali, a centímetros dos quadris dela.


Perdi a conta de quantas vezes subi os dedos por dentro daquela maldita
toalha puxando-a para o meu colo, os bicos dos seios eriçados, acariciando
meu peito, as coxas posicionadas uma de cada lado do meu corpo, enquanto
me encaixava para penetrá-la. Em pensamento…

— Baka dekai… — xinguei, levantando-me tão depressa que


quase a derrubei.

Era isso, ou deixar que ela visse o quanto começava a mexer


comigo. A toalha não era eficiente em esconder o que eu sentia.
— Eu cuido disso! — proferi já de costas, passando pela porta do
banheiro.

Entrei debaixo do chuveiro, mãos apoiadas contra os azulejos,


usando todo o controle que eu tinha para não voltar para o quarto.
Sentimentos viscerais tomando conta de mim.

Matar e foder… Tomar o controle, comandar… Eu podia ser


comedido, mas apenas na superfície, lá no fundo, revolvido no meio da
sujeira da vida que eu levava, ainda vivia um louco na coleira, pronto para
se soltar.
Tudo que conseguia pensar era nela apoiada naquela parede, a
bunda perfeita empinada para mim.

Soltei uma das mãos, levando até meu pau.

Os olhos fechando, deixando a cena se formar em minha frente.


Tinha que dar um jeito naquilo ou acabaria fazendo coisa pior. Movi os
dedos em torno da minha carne, como se posicionasse a cabeça rosada na
entrada da boceta dela.

Reprimi o gemido, indo e vindo. Sentindo meu corpo pulsar.


Estava de costas para a porta, então, se ela visse algo, seria porque tinha
procurado por isso e aí já não seria problema meu. Sendo bem sincero,
queria mesmo que ela entrasse, por acaso ou por vontade. Que visse…

Quando senti o primeiro espasmo, apoiei a testa na parede,


deixando que o jato se perdesse no piso.

Levei alguns segundos para me recompor, mas, quando consegui,


nem frio sentia mais. Estava centrado novamente, comedido, pronto para
ser o estrategista que eu devia ser.

Sequei o corpo e voltei a enrolar a toalha em volta dele. Depois


encarei meu rosto no espelho.

Lia havia feito pontos falsos no corte em minha testa e, ao menos


para melhorar o sangramento, tinha servido.

O canto esquerdo dos meus lábios estava inchado e arroxeado pelo


ferimento que o soco causara, mas era só isso. Nenhum outro hematoma ou
machucado.

Baixei o rosto para a sutura do tiro, sentia uma dor leve no local,
mas, depois de tanto esforço, não era estranho que estivesse sensível.
— Eu preciso falar com o meu pai… — a voz da garota cortou o
silêncio. — Ele vai ficar preo…

— Musashi não está… — expliquei. — Vou mandar avisá-lo sobre


o que aconteceu…

— Quando vamos para casa? — perguntou.


Abri a porta de vidro e parei ali, os olhos fixos na garota sentada na
cama.

— Quando for seguro… — Acendi um cigarro e dei uma baforada


para cima. — Primeiro preciso entender o que está acontecendo…

Fixei os olhos nela sem nem perceber ao certo. Não podia descartar
a possibilidade de que a garota tivesse algum tipo de envolvimento na
emboscada.

— E, pela maneira como me olha, supõe que eu tenho a resposta.

Arqueei a sobrancelha de maneira inquisitória e, mesmo me


mantendo em silêncio, ganhei um riso irônico dela.

— Se formos pela lógica, eu deveria perguntar o mesmo… —


Estreitou os olhos, encarando-me um pouco mais de perto. — Quem
garante que não estavam atrás de você, Samuel Hitachi… Ou pior, que eram
seus comparsas…
Dei mais um trago no cigarro, a fumaça soprada devagar, bem
perto do rosto dela.
— Ninguém garante… — continuei. — A diferença é que eu não
precisei de ajuda para sair do beco com vida… — Dei de ombros.
A irritação em seu rosto ganhou tamanha proporção que por um
segundo achei que ela fosse mesmo revidar. Mãos cerradas em punho e
narinas pulsando. Eu gostava de como Lia tentava me desafiar e jamais
assumia a submissão que eu lhe impunha. Brincar com ela era divertido e
instigante.

— O celular… — Estendi a mão.

A garota pareceu não entender, então eu dei alguns passos ao redor


dela, ganhando terreno como um felino à espreita.
A garota caminhou até a mochila e entregou o aparelho para mim.

Assim que o peguei, acessei a internet e me conectei para uma


chamada não rastreável. Eu não era tão habilidoso quanto Yuki, mas sabia
desenrolar meus negócios.

— Preciso que descubra a identidade de dois homens… — falei em


japonês para evitar que a garota entendesse. — Eu os derrubei em frente à
casa do sensei agora há pouco… Um deles tinha uma cicatriz no canto do
olho esquerdo, o outro, cabelos raspados nas laterais e uma tatuagem de
rosa vermelha no pescoço. Caucasianos, perto dos quarenta anos…
Acredito que a polícia…

— Ok… — Willian respondeu do outro lado da linha. — Mando as


informações que conseguir o mais rápido possível.

— Fico no aguardo.

Desliguei o telefone e só então vi os olhos dela perdidos no


ideograma em minha mão.

Assim que percebeu que fora pega, ela desviou.


Não perguntou nada, provavelmente sabia que qualquer resposta
vinda de mim não era segura. Eu também não falei nada. Ainda tinha em
mente que, quanto menos nos envolvêssemos, melhor seria para nós dois.

Abri o frigobar e peguei uma cerveja, girando a tampa e virando o


líquido gelado direto na garganta. Com sorte, o filho da puta do cabelo
raspado não morreu e eu terei a oportunidade de dar a ele uma festa de
despedida…
Capítulo Treze
Liandra
Acordei no meio da madrugada.

O dia ainda não havia clareado, então aproveitei que o mestiço


dormia na poltrona e me levantei da cama, o mais silenciosa possível.
Queria chegar mais perto e tirar uma foto da tatuagem, para pesquisar o
significado depois.

Caminhei devagar, pé após pé, respirando lentamente.

O telefone estava na mesinha ao lado, então eu o peguei e abri a


câmera, aproveitando-me da luz fraca que vinha do abajur para não ter que
ligar o flash.

Curvei um pouco o corpo, posicionando o aparelho no lugar certo,


e me preparei, mas não consegui terminar a tarefa.

Samuel agarrou meu telefone tão rápido que, com o susto, caí para
trás, batendo as costas na mesa de um jeito nada confortável. Ainda tentava
conter a dor e a decepção por ter falhado, quando ele se levantou, ajeitando
os cabelos com as mãos.

— Você não dorme nunca? — perguntei irritada.

— Raramente… — devolveu contido, naquele tom inabalável que


sempre usava. O sotaque espanhol pronunciado em suas palavras. — Nunca
quando estou em risco…

Ri sem humor, esfregando o local dolorido perto do quadril.

— Acha mesmo que eu sou um risco para você? — debochei


parando em frente a ele, deixando ainda mais evidente a diferença de
tamanho que nós dois tínhamos.
Ele não recuou, os corpos separados por poucos centímetros. Tão
perto que eu podia sentir o calor da sua pele. Baixou o rosto até a altura do
meu, focando aquelas duas adagas verde-amareladas em mim.
— Um olho fechado, outro aberto, senhorita… Foi o melhor
ensinamento que recebi.

Engoli em seco o misto de sensações que sua proximidade me


causava, mas no instante seguinte a campainha tocou e meu coração
disparou.
Meu companheiro de quarto seguiu até a porta e a abriu, recebendo
da camareira algumas sacolas. Deixou-as sobre a cama.

— Vista-se!
Não soava como um pedido, então não questionei. No fim das
contas, o mestiço tinha razão e eu não tinha muitas opções além de confiar
nele.

Enfiei a mão em uma das sacolas e tirei uma calça jeans e uma
blusa de frio. Havia também um par de sapatos novos e lingerie.

Samuel pegou a outra sacola e entrou no banheiro, quando voltou


de lá usava uma calça social escura ainda aberta, assim como a camisa
branca.

— Vou resolver alguns assuntos e descobrir se sua casa está


segura… Quer que eu a deixe em algum lugar?
Ia explicando e fechando os botões da roupa, caminhando
sorrateiro pelo espaço. As cicatrizes em seu abdômen perfeitamente
esculpido eram um convite aos olhos e eu precisei encarar o teto para
diminuir um pouco o efeito que aquela cena me causava.
Em que porra de lugar você enfiou o seu juízo, Liandra? —
praguejei. Até parece que nunca viu homem pelado na vida!

Respirei fundo.

Não gostoso desse jeito…


Pisquei, soprando o ar com força, controlando os pensamentos.

— Preciso passar no trabalho…

Samuel esboçou aquele meio sorriso sacana que combinava tanto


com ele.

— Parece que vamos para o mesmo lugar então…


Estreitei os olhos.

— O que você quer por lá? — perguntei sem pensar.

O homem terminou de ajeitar a camisa e abriu a porta, girando o


corpo para pegar as sacolas sobre a mesa.
— Assuntos que não lhe dizem respeito… Pelo menos até onde
sei… — provocou.

— Ficou maluco se acha que eu vou até meu trabalho com você…

— Acho que entendeu errado, moça… Não a convidei para ir


comigo ou pedi sua aprovação… Apenas ofereci uma carona, mas não me
oponho caso prefira sair daqui por conta própria.

Engoli em seco o tapa moral. Mestiço filho da puta, sempre


encontra um jeito de sair por cima!
Enfiei as roupas sujas dentro da mochila e a coloquei nas costas,
parando sob o batente da porta sem entender.
Samuel estava ajeitando as sacolas no porta-malas de um esportivo
preto.

— Vamos! — Indicou os degraus da entrada, impaciente.

Ele ocupou seu lugar atrás do volante e eu me sentei ao seu lado.


Ainda não tinha entendido muito bem como ele havia conseguido roupas e
um carro daquele bem no meio da madrugada, mas, sinceramente? Não era
da minha conta. Tudo que eu queria era sumir de perto dele o mais rápido
que conseguisse.

Seguimos até o quarteirão do hospital e o esportivo foi estacionado


rente à calçada.

— Desça… — ordenou. — Tenho negócios a tratar e é melhor que


ninguém nos veja juntos.
Parei com a mão na maçaneta da porta.

Por um segundo, o pensamento do que seriam “os negócios” de


Samuel fizeram meu sangue gelar nas veias.

Não é da sua conta, Lia… Não é!

Respirei fundo e saí do carro o mais rápido possível, sem olhar


para trás. Quanto menos contato Samuel e eu tivéssemos, mais seguro seria.
Apressei o passo, abrindo o portão, e só olhei de volta na direção
do carro quando já estava segura, dentro da base. Ele ajeitou um par de
óculos escuros no rosto e desceu, caminhando firme naquela pose de dono
do mundo que ele tinha.

— Algo interessante? — a voz atrás de mim me fez pular de susto.

Levei a mão ao peito por instinto.


— Credo, Júlio, quer me matar?

O enfermeiro riu e deu alguns tapinhas em meu ombro. Fazia


tempo que não nos víamos, já que trabalhávamos em plantões opostos.

— A Célia está no escritório? — perguntei ainda sentindo meu


corpo tremer.
— Sim… Está, sim… — confirmou.

Assinei o que precisava e me esquivei o máximo que pude de


qualquer pergunta pessoal. Aquela sensação de que algo podia acontecer a
qualquer momento ainda não tinha me deixado.

Saí da administração direto para o vestiário. Sentia-me como uma


fugitiva, ainda que não tivesse feito nada de errado. Tinha acabado de
ganhar a calçada, quando vi Samuel voltando para o carro a passos largos.

Queria ignorar e fingir que nem conhecia o filho da puta tatuado,


mas meus olhos o acompanharam até que o som do alarme do esportivo me
trouxe de volta à realidade. Pisquei algumas vezes para afastar as sensações
que ele me causava e segui rua acima, sem olhar para trás. cabeça baixa e o
coração acelerado como o inferno.

O motor rugiu e eu esperei que ele passasse por mim, mas, em vez
de seguir em frente, ele desacelerou.

— Entre no carro…

O tom era comedido na voz segura e cheia de poder. Não era uma
ordem, nem um pedido, mas por alguma razão eu me sentia compelida a
aceitar.
Levei a mão à maçaneta, mas, antes que a tocasse, ele se curvou e a
porta se abriu.
Passei o cinto de segurança no instante em que ele arrancou com o
carro. O silêncio perdurou pelo tempo que se seguiu, até que atingimos as
proximidades do beco.

Samuel parou perto da entrada dos fundos e destravou as portas.

— Você espera aqui… — avisou.

— Não! — retruquei. — É minha casa, meu pai… Não vou esperar


aqui…

Os olhos esverdeados se voltaram para mim com aquela expressão


sombria que ele tinha sempre que era contrariado.

— Não estou pedindo aprovação! — insisti, já descendo do carro.

O mestiço não me impediu, mas também não esperou. Apressou o


passo em direção a casa e parou no instante em que viu a porta do depósito
aberta.
Sinalizou para que eu ficasse atrás dele e sacou a pistola da cintura,
costas na parede, foi subindo os degraus devagar.

A cada passo que dava, minha casa ia se revelando e meu


desespero, aumentando. Tudo estava revirado e quebrado, de móveis a
utensílios. Estilhaços de vidro e cerâmica forravam o chão.

Samuel aproveitou para conferir o restante da casa, enquanto eu


tentava assimilar o que havia acontecido.
Engoli em seco o bolo de medo que desceu rasgando minha
garganta, os olhos varrendo o espaço até que senti todo o sangue fugir.

— Pai! — foi tudo que consegui gritar, vendo o relance de uma


mão machucada.
Samuel venceu a extensão da sala no mesmo instante, erguendo o
sofá como se ele não pesasse nada. Ali atrás, com o braço estendido, estava
Musashi.

Aproximei-me, ajoelhando ao lado do corpo para conferir se ainda


tinha batimentos.

— Vivo… Muito fraco, mas vivo… — constatei já tentando me


levantar para chamar ajuda. — Precisamos…
— Não! — o mestiço me deteve. — Eu cuido disso…

— E deixá-lo morrer aqui? Ficou maluco? — xinguei.

— Se levá-lo ao hospital, ele será morto lá…

Soltei uma lufada de ar.

— Se quer salvá-lo, deixe que eu faça do meu jeito — completou.

Encarei os olhos profundos dele por uma fração de segundos. Eu


não confiava em nenhum yakuza, mas tinha que concordar que, se alguém
podia proteger Musashi, era um igual.

— Vamos, me ajude a levantá-lo… — pediu e eu obedeci no


mesmo instante.
Musashi não era um homem franzino, então ver Samuel levantá-lo
com tanta facilidade me fez pensar no tamanho do perigo ou da proteção
que ele podia representar.

Descemos as escadas e eu agradeci o beco vazio naquela hora do


dia. Não saberia como explicar o que estava acontecendo, nem queria.

— Vou atrás com ele… — avisei já ocupando meu lugar e


apoiando a cabeça do meu pai.
Samuel deu a partida e acelerou pelas ruas de São Paulo. Eu não
fazia ideia de qual era o caminho, porque estava concentrada em manter
Musashi vivo até que chegássemos aonde o socorro estava.

— Lia… — meu pai tentava balbuciar. — Li…

— Shhhh, pai… Fique quieto… Assim vai aumentar o


sangramento… — Rasguei um pedaço da minha blusa e tentei improvisar
uma atadura. — Vamos ter muito tempo para conversar quando…

— Aqui… — Estendeu a mão. — Eu encontrei…

A mão trêmula buscava pela minha até que algo foi deixado em
minha palma. No instante seguinte Musashi desmaiou.

— Pai! — chamei. — Pai! — insisti sem sucesso.

Abri a mão por instinto, para ver o que ele havia deixado ali, e
quase não acreditei. Passado e futuro se misturando em meus pensamentos.
“Nunca tire o colar, está ouvindo, Lia? Nunca! Ele é sua garantia
de vida…”

As palavras do meu pai ainda ecoavam em meus pensamentos,


quando vi o caminhão se aproximando.

— Samuel! — gritei, esperando pelo pior.


Capítulo Quatorze
Shin
Por um segundo, esqueci onde estava. Os olhos perdidos no
retrovisor, direto no objeto que a garota segurava.

— Samuel! — ela gritou e eu desviei.

Sequer havia percebido que invadira a pista contrária, mas


aproveitei o deslize e tomei um rumo diferente, seguindo pela contramão no
acostamento até a próxima saída.

Precisava de um lugar seguro, um onde eu não fosse questionado, e


sabia que para isso podia contar com o policial.

Fábio e eu não éramos amigos, mas o destino havia tratado de


deixá-lo em débito comigo e eu sabia bem que policial algum gosta de
dever para gente como eu. Se tivesse oportunidade de pagar o favor, o faria
o mais rápido possível.
Puxei o telefone dele na memória, agradecendo por me lembrar.
Era bom com números e melhor ainda quando minha vida dependia disso.

— Preciso do telefone… — avisei estendendo a mão. — O meu


está descarregado.

A garota não demorou a abrir o zíper da mochila e me entregar o


objeto.

Digitei a sequência na tela e esperei que o policial atendesse.

— Alô… — a voz conhecida atendeu depois de alguns toques.


— Preciso de um local seguro para socorro médico… — soltei
simplesmente, esperando que, assim como eu, ele se lembrasse da voz.
A linha ficou muda por alguns segundos, somente a respiração
pesada do outro lado.
— Quem está ferido?

— Um amigo.

— Bandido?

— Um professor de judô…

Mais silêncio.

— Vou enviar uma localização. Assim que chegar lá, diga o meu
nome… — instruiu. — Encontro você lá em alguns minutos.
Desliguei o telefone e o mantive no colo, para seguir as instruções
do aplicativo de localização. Não demorou muito e chegamos ao que
parecia um posto de atendimento médico.

Parei o carro em frente à entrada de emergência e abri a porta,


puxando o banco para que Liandra pudesse descer.

Peguei o sensei no colo e o carreguei porta adentro.


— Fábio Queiroz… — falei assim que um enfermeiro veio ao
nosso encontro. — Pediu que o trouxéssemos até aqui.

O homem estreitou os olhos, encarando-me por alguns segundos,


mas não demorou a entender a ordem implícita em meu olhar.

— É claro… — concordou. — Aqui… Coloque-o aqui… —


indicou uma das macas. — Vamos ver o que podemos fazer.

Assim que acomodei o corpo de Terada sobre a maca, o enfermeiro


se posicionou para empurrá-la.
Liandra tentou passar por mim e acompanhá-los, mas eu segurei
seu braço.

— O colar… — meu pedido soava mais como ordem.

Ela abriu a boca para refutar, mas os olhos se perderam no homem


inconsciente sobre a maca.
Enfiou a mão no bolso e retirou o objeto dourado, colocando-o em
minha palma.

Deixei que acompanhasse o homem a quem chamava de pai e


tomei o rumo contrário, passando de volta pelas portas duplas e encostando
na parede, do lado de fora.
Aproveitei que ainda estava com o telefone e fiz uma chamada
para Willian. Acendi um cigarro, enquanto esperava que atendesse.

— Pegaram o sensei… — contei movendo os dedos em torno do


colar.

— Porra! — xingou. — Está morto?

— Ainda não…, mas talvez não aguente… Estou avisando porque


sei que se importa…
Willian não disse nada, mas o silêncio na linha confirmava o que
eu já sabia.

— Precisa de ajuda com algo? — perguntou depois de se


recompor.

— Não… Vou encontrar uma maneira de limpar essa sujeira…


— Não morra… — falou de repente. — Meus inimigos estão todos
morrendo… O mundo vai ficar meio sem graça… — brincou.
Esbocei um meio sorriso, mas ele tinha razão. Gente demais
andava morrendo, inocente, na maioria das vezes, embora não fosse o meu
caso. Eu tinha que encontrar uma maneira de parar a tirania do meu avô.

Desliguei o telefone e fiquei encarando o coração dourado,


incrustado de diamantes em minha mão.

Como aquele colar havia aparecido na mão do sensei? De onde


havia saído? Não era algo que se podia comprar em uma joalheria qualquer,
era único, feito exclusivamente para minha mãe e dado a ela quando eu
nasci. Se ela morreu no Peru, por que estava no Brasil?

Respirei fundo, soltando o ar de uma vez.

Você não vai encontrar as respostas do lado de fora, Shin… Se


quiser mesmo vigiar os passos do oyabun, terá que ser como o conselheiro
que você é… Ninguém vai negar respostas ao saiko-komon…
Era isso! Se eu queria investigar o que estava acontecendo, tinha
que fazer pelo lado de dentro, no meio deles.

Havia uma boate em São Paulo, cujo controle estava nas mãos dos
kyodais havia muito tempo. Os veteranos de organização tinham carta-
branca para cuidar dos seus próprios negócios, desde que mantivessem os
irmãos acima de tudo, e talvez lá eu encontrasse a ponta do fio desse
emaranhado todo.
Acessei a página do lugar para conferir a programação das
próximas noites, mas, antes que o fizesse, vi a porta se abrindo e o policial
passando por ela com Liandra ao seu lado.

— Vai sobreviver… — falou enquanto ainda se aproximava. —


Passará esta noite aqui e amanhã você encontra um lugar para levá-lo…
Aquiesci.

— Imagino que você responda pela segurança dele esta noite… —


soltei baixo, mas havia um aviso silencioso em meus olhos que eu sabia que
Fábio não iria ignorar.

— É claro… — concordou.
— Bem… Preciso ir… Tenho assuntos importantes a resolver…

Dei as costas e comecei a caminhar, quando fui interrompido.


— Espera… — a voz da garota chamou e eu me virei devagar. —
Vou com você… — explicou. — Ele está dormindo e eu preciso descansar
um pouco também… Senão não vou conseguir cuidar dele amanhã…

Desci os olhos por ela, encarando a blusa clara suja de sangue.


Liandra pareceu desconfortável, mas não questionou.
— Pode me dar uma carona? — insistiu quando eu não falei nada.

Meneei a cabeça em concordância e continuei meu caminho até o


carro.

Ela ocupou o banco do passageiro e passou o cinto de segurança.


As mãos inquietas sobre o colo.
— Vamos voltar para casa? — perguntou.

— Não… — Mantive os olhos na rua a minha frente.

— Para onde, então? — insistiu.

— Você ouviu… Tenho negócios a resolver…

A garota bufou e ajeitou os cabelos com as mãos. Estava irritada,


mas não o suficiente para me desafiar. Em algum momento entre eu ter
matado dois bandidos no beco e resgatado o pai dela com vida, seu medo
havia aumentado.

Eu preferia que fosse assim, quanto mais ela se mantivesse longe,


menos eu teria que me preocupar em mantê-la no lugar em que deveria
estar.

Parei o carro em um ponto tranquilo da estrada e abri o porta-


malas. Havia ainda algumas peças de roupa limpa nas sacolas, então
aproveitei para trocar a camisa suja. Entreguei o paletó preto nas mãos da
garota.

— Vista… — mandei. — E lembre-se de parecer relaxada e


amigável quando chegarmos ao hotel…

Ainda sentia os olhos dela em mim quando dei a partida


novamente.

Não demorou muito para que eu parasse na entrada de um hotel de


rede internacional. Por sorte, tinha conseguido resgatar minha carteira e os
documentos, antes de deixar a casa de Musashi.

O manobrista abriu a porta e eu desci. Liandra pegou a mochila e


fez o mesmo.

— Seja bem-vindo, senhor… — A atendente sorriu.

Mudei a conversa para inglês, já que ainda não dominava a língua


portuguesa o suficiente para explicar o que precisava. Pedi o quarto e
entreguei meu cartão, anotando o valor que deveria ser debitado dele.
Não queria que registrassem a permanência de Liandra comigo,
então me aproveitei de uma prática comum entre homens poderosos que
gostavam de receber a visita de acompanhantes de luxo. Poucas coisas na
vida não podem ser compradas com dinheiro.

Assim que o cartão foi entregue em minha mão, acompanhei o


mensageiro até o elevador, passando algumas instruções.

A porta do quarto foi aberta e deixei que a garota entrasse


primeiro, agradecendo a discrição do mensageiro com uma nota de cem.

Fechei a porta em seguida e comecei a desabotoar a camisa.


Precisava de um banho e uma dose de algo forte, para colocar os
pensamentos em ordem.

Tirei os sapatos e girei a tampa da garrafinha de uísque sobre o


frigobar, despejando o líquido âmbar no copo.

— Quando vai me dizer qual é o seu interesse no meu colar? — a


voz da garota interrompeu o caminho da bebida até minha boca.

Mordi o lábio inferior sem dizer nada, depois dei um gole.


— O colar não é seu… — Acendi um cigarro, soltando a fumaça
em volta de mim.

— É você na fotografia, não é? — insistiu se aproximando. — Por


isso ficou tão perplexo quando o viu… Eu sempre quis saber quem era o
garoto… Ele…
Levou a mão até meu peito, onde o colar estava pendurado, mas,
antes que o tocasse, eu a detive.
— Onde o conseguiu? — perguntei taxativo, meus dedos em volta
da sua mão, apertando com mais força do que deveria.
Ela franziu o cenho e não falou, mantive o aperto mais por instinto
e urgência do que vontade, não pretendia machucá-la, mas queria respostas.

— Meu pai…

— Musashi?
— Não… Pablo… Pablo Chaska.

Chaska… O nome se acendeu em minhas memórias como um


letreiro de cinema, tanto que soltei a mão da garota no mesmo instante.

— Chaska… — ela gritou quando caiu de joelhos, o sangue


vertendo e descendo por seu vestido. — Chas…

Um braço forte me prendeu junto a um corpo que eu não podia ver


e, por mais que eu gritasse, fui levado, afastado da minha mãe enquanto
ela agonizava.

O som do tiro, o rosto do Chaska… Apertei os olhos tentando


afastar os pensamentos, não podia acreditar que o destino havia me
colocado frente a frente com a filha do assassino da minha mãe.
Capítulo Quinze
Liandra
O rosto dele estava impassível. Olhos claros perdidos em algum
lugar entre a realidade e o mundo que só ele via.

Era como se o homem ameaçador e perigoso que eu vira matar sem


hesitar tivesse dado lugar a outro, um do qual eu não tinha medo. Aquele
que havia me feito perder uma noite inteira monitorando febre e cuidando
de ferimento.

Permaneceu naquele universo paralelo por tempo suficiente para


que eu cogitasse me aproximar e tentar entendê-lo, até que, de repente e
sem aviso algum, seus olhos passaram de perdidos a desafiadores e
arrogantes novamente.
Deu um trago no cigarro, soltando a fumaça devagar.

— Onde está o Chaska? — perguntou pausado, entredentes,


fazendo o sangue gelar em minhas veias.
Dei um passo atrás e ele, um a frente. Tínhamos voltado àquela
maldita dança de caça e caçador que eu odiava.

— Morto! — soltei mais alto do que pretendia.

Samuel parou.

— Morreu quando eu tinha oito anos… Assassinado! — xinguei.


— Por um dos seus! A última vez que eu o vi, foi caído na calçada e
sangrando como um porco…

Era instintivo. Ele me ameaçava, eu reagia. Quanto mais medo


sentia, mais queria ir para cima e mostrar que ele não me assustava. Instinto
de sobrevivência? Talvez! Burrice? Certamente! Mas eu não era conhecida
por ser centrada e tranquila.
— Quer saber por que eu encaro tanto essa droga de tatuagem? —
instiguei. — Aqui! — Pressionei o indicador com força no dorso da sua
mão. — O demônio que destruiu minha família tinha uma igual!

Meu corpo tremia descontroladamente e eu nem sabia se era de


ódio ou medo, talvez os dois, mas a verdade é que eu nunca havia
confessado aquilo a ninguém, nem nunca estivera tão perto de descobrir a
verdade sobre a desgraça da minha vida.
Respirando ofegante, usei toda a força que tinha para me manter
ali, sustentando o olhar dele. Por uma fração de segundos, achei ter visto
um pouco de compaixão nos olhos do mestiço à minha frente, mas, no
instante seguinte, ele tragou o cigarro novamente e se afastou, dando-me as
costas como se tudo que eu tivesse dito não significasse nada.

— Peça algo para comer… Vou sair e não devo voltar até que
amanheça… — Apagou o cigarro no cinzeiro de vidro e virou o que restava
do líquido âmbar direto na boca. — Seja esperta e não arranje problemas…
— Pegou o paletó e saiu.
Assim que a porta se fechou, eu me sentei na cama. Esfregando a
testa em movimentos circulares e apertando os olhos. Desgraçado, filho de
uma puta! — xinguei. Não acredito que ele não disse nada!

Eu preferia que tivesse xingado e falado que eu não tinha ideia de


onde estava me metendo, porque assim talvez eu descobrisse quem era ele e
por que diabos tinha saído do inferno para vir atrás de mim e de Musashi,
mas ele não fez. Em vez disso me deixou ali, sem saber qual seria o
próximo passo e se eu estaria nele.
Tirei a roupa e entrei debaixo do chuveiro morno.

Olhos fechados e as mãos apoiadas contra o vidro jateado do boxe,


fiquei ali por tanto tempo quanto precisei para me acalmar. Depois que
consegui, lavei o cabelo e enrolei uma das toalhas nele, usando outra para
secar o corpo.

Eu sabia que contestar e provocar Samuel não me daria nenhuma


resposta. Sabia também que, ainda que ele conhecesse o demônio maldito
que assassinara minha família, eu não poderia culpá-lo apenas por isso.
Samuel ou quem quer que ele fosse não tinha intenção de me machucar; se
tivesse, eu não teria nem saído daquele beco.

Sobre a bancada, havia uma cesta com produtos de higiene, então


aproveitei para escovar os dentes e secar o cabelo com o secador.
Ultimamente os dias andavam tão imprevisíveis que poder fazer coisas
normais era um alívio.

Vesti o roupão felpudo e peguei uma garrafinha de água dentro do


frigobar, girando a tampa e me sentando na cama com o celular na mão, os
olhos perdidos na janela, observando o fim de tarde.
Antes de deixar o posto de atendimento, tinha anotado o número
do médico que atendera meu pai na emergência para que pudesse ter
notícias dele mais tarde. Enviei uma mensagem e esperei; assim, se ele
estivesse ocupado, eu não atrapalharia.

“Boa Noite! Sou a Lia, filha do homem que deu entrada baleado
ontem. Queria ter notícias do meu pai.”
Não demorou muito para que a resposta chegasse.

“Oi, Lia! Ele continua estável. Se tudo correr bem, até amanhã
vamos diminuir a sedação e ver como ele acorda.”
Soltei um suspiro de alívio.

“Amanhã bem cedo estarei aí. Obrigada!”

Deixei o telefone ao meu lado e peguei o cardápio sobre a mesa.


Estava mesmo com fome e tinha que me lembrar que também era humana,
se não cuidasse um pouco de mim, acabaria ao lado do meu pai… Na maca
ao lado!
Liguei a tevê e passei pelos canais até que um me chamou a
atenção. Era um daqueles dramas coreanos bem bobos e românticos a que
eu e Ellen assistíamos só para poder criticar a atuação forçada das
mocinhas. Aqueles em que o CEO forte e bonitão se apaixona pela
funcionária mais tosca que existe na empresa, só porque ela é bonitinha e
desastrada.

Minha comida chegou e eu me sentei com a bandeja na cama. Não


conseguia parar de rir e revirar os olhos, mas também não queria parar de
assistir.
De repente, o mocinho a puxou pelo braço, a mão livre na parte
baixa das costas e os olhos fixos nos dela. Por um segundo, o rosto de
Samuel tomou o lugar do mocinho e eu pisquei algumas vezes, voltando a
mim.

— Credo! — reclamei, mudando de canal e focando no noticiário


da noite.
O bife com fritas que pedi caiu como um carinho no estômago
vazio, tanto que, depois dele e de saber que Musashi estava bem, o sono
começou a chegar e eu não o impedi. Puxei o edredom macio e me ajeitei
na cama.
Não sei em que momento peguei no sono, mas, de repente, eu não
estava mais sozinha no quarto.

Espreguicei-me e abri os olhos lentamente para encontrar Samuel


de costas, a luz fraca do sol incidindo em seu corpo forte, enquanto descia a
camisa pelos ombros, até que ela encontrou o piso. A carpa dragão
brilhando como se tivesse vida.

Engoli em seco no momento em que ele se virou para mim,


levando uma das mãos ao cabelo, ajeitando-o para trás como fazia.

— Você acordou… — constatou sorrindo de canto, daquele jeito


que me fazia esquecer de respirar. — Depois de tudo, achei que dormiria
por mais tempo… — Mordeu o canto do lábio, provocador. — Devo supor
que não está satisfeita?

O caminhar dele era compassado e suave como o de um felino e, a


cada passo que dava, eu sentia meu coração bater mais forte.

— Estou certo? — perguntou parando bem em minha frente.

Tentei responder, mas, quando seus dedos tocaram minha pele,


senti uma onda de luxúria tão grande tomar conta de mim que joguei a
cabeça para trás, expondo o pescoço e deixando o lençol descer pelos meus
seios nus.

Samuel apoiou o joelho na cama, os lábios roçando os meus sem


realmente me beijar. Ele sentou-se ao meu lado, apoiando as costas na
cabeceira, e deu um gole no copo de uísque que estava na mesinha.

— Vem aqui! — Bateu sobre a coxa, chamando por mim.


Meu baixo-ventre estava quente e eu podia sentir a umidade
descendo pelo meu canal sem sequer ter sido tocada por ele.
Sua língua passeou pelos seus lábios entreabertos, fazendo com
que eu apertasse as coxas, ansiosa por mais contato.

— Vem… — repetiu e eu obedeci.

Ajeitei-me em seu colo, uma perna de cada lado da sua cintura.


Samuel cruzou as mãos atrás da cabeça e sorriu com aquela cara de filho da
puta safado que ele tinha, a ereção roçando entre meus pequenos lábios,
levando-me à borda, o tecido fino da calça que usava deixava todas as
sensações bem reais.
— Hum… — gemi, espalmando as mãos em seu peito tatuado, as
unhas arranhando o padrão de flores e vento.

— Assim, Lia… — os lábios roçando minha orelha. — Goza para


mim, goza — pediu.

Minha respiração estava entrecortada, pesada, o corpo eriçado,


desperto, eu estava quase lá, podia sentir os primeiros espasmos, queria
mais. Eu nunca tinha gozado com alguém daquele jeito, sem que nem
estivéssemos nus, mas podia apostar que ia acontecer.

Levantei a mão para apoiar na cabeceira, ter mais controle dos


movimentos, e me desequilibrei, derrubando o copo de suco vazio. Abri os
olhos para encontrar Samuel relaxado na poltrona. Pés sobre o banquinho e
o cigarro entre os dedos.

Encarava-me com a sombra de um sorriso zombeteiro nos lábios.

Alisei os cabelos para trás, tentando me recompor e diminuir a


vergonha que, certamente, estava estampada em minha cara.

— Que horas são? — perguntei constatando que ainda era noite. —


Por que não me acordou?
O trago foi longo e ele umedeceu os lábios antes de soltar a
fumaça.

— Logo vai amanhecer… — soltou coçando a barba por fazer. —


Você parecia estar se divertindo bastante… Não quis atrapalhar seu
descanso…

Levantei-me rápido, fechando bem o roupão e caminhando a


passos largos para o banheiro.
Liguei o chuveiro para ganhar um pouco de tempo e porque
precisava mesmo de um banho frio. Ainda podia sentir o corpo dele, o
perfume, a sensação do quanto nos encaixávamos bem.

Pelo amor de Deus, Liandra… Você perdeu o pouco de juízo que


tinha!
Capítulo Dezesseis
Shin
Ela fechou a porta do banheiro e eu ajeitei o pau apertado na calça.

Tinha sido um show bem interessante, para mim e para ela. Eu


podia não saber quem era o filho da puta com quem Lia estava sonhando,
mas tinha que confessar que ele era um cara de sorte.

Dei mais um trago no cigarro, o som do gemido dela ainda estava


em meus pensamentos. Baixo, pausado, cheio de tesão.

Seria divertido, se ela não fosse protegida do Terada sensei e filha


do Chaska. O maldito assassino…

Apaguei o cigarro no cinzeiro e me levantei, caminhando até onde


havia deixado as sacolas. Coloquei sobre a cama o que havia comprado para
ela e terminei de abotoar a camisa, enfiando por dentro da calça e separando
os sapatos para calçar.
Era melhor que fôssemos logo ao encontro do sensei, ou eu
acabaria sendo um problema para o policial sem que ele merecesse.
Também precisava deixar o hotel. Quanto menos rastros, melhor para todos
os envolvidos.

Não demorou muito e Lia saiu do banheiro.

— Vista-se e prepare-se para ir… — avisei. — Vamos levar


Musashi para um lugar seguro.

A garota encarou o relógio na parede. Eram pouco menos de cinco


da manhã.

— Agora? Não é melhor esperar amanhecer? Eu conversei com o


mé…
— Dr. Beneti… Cláudio Beneti… — interrompi. — Lembra-se do
que eu disse quando saí? — critiquei.
A garota estreitou os olhos por um segundo.

— Ele não… Eu só… Eu queria… — Abria a boca e mexia as


mãos tentando se justificar. — É só um clínico de posto! Ele não… Eu
não…
— Não! — Levantei o dedo em riste. — Mas poderia… As pessoas
não vêm com a ficha tatuada na testa! — Vesti o paletó. — Se fosse um
informante ou coisa assim, Musashi estaria morto e nós também…

Ergui a sobrancelha provocando, esperando que ela retrucasse.


Queria comprar uma briga, justificar a raiva que eu havia cultivado de
Chaska a vida toda, mas a garota não entrou na minha.
Obviamente, eu já esperava que ela fosse descuidada, então tinha
tratado de investigar os funcionários que haviam recebido o sensei no posto
médico, não ia confiar apenas em Fábio. Se ele fosse tão bom quanto
pensava, não ficaria me devendo um favor.

— Eu só queria notícias dele… — Soltou o ar dos pulmões,


derrotada.

— Quando quiser se comunicar com alguém, faça de modo


seguro…

— Eu nem sei como isso deve ser feito… — confessou.


— Exato! E é por isso que deve fazer exatamente o que eu disser
para fazer… — Ergui uma sobrancelha inquisidora em sua direção. — Não
demore, vou descer e fazer o check-out. — Enfiei a carteira e o celular no
bolso, passando pela porta.
Tinha sido uma noite reveladora e cansativa, mas ao menos uma
hora de sono e um pouco de comida haviam entrado em meu organismo.
Também tinha descoberto coisas interessantes na Asian House, só precisava
linkar os fatos com a participação de Chaska, mas para isso ia precisar de
um pouco de colaboração da garota.
Ao menos você descobriu que ainda tem os seus para contar…

Enquanto descia pelo elevador, encarei meu rosto no espelho,


ajeitando a franja para que disfarçasse o corte acima do supercílio. Para a
minha sorte, meu corpo havia aprendido a se curar bem rápido e, em alguns
dias, ninguém mais notaria a pequena cicatriz.

Atravessei a recepção vazia e me dirigi à atendente.

— Minha acompanhante já está descendo e eu gostaria de fechar a


conta… — expliquei.
— É claro!

— Um copo foi quebrado… — adiantei para que ela pudesse


terminar logo.

A garota ainda fechava a conta, quando as portas do elevador se


abriram e Liandra passou por elas. Os cabelos presos em um coque frouxo e
as sacolas nas mãos.

— Vou pedir ao manobrista que traga seu carro, Sr. Hitachi.


Meneei a cabeça e entreguei o cartão para que a despesa fosse
paga.

Assim que o carro chegou, ocupamos nosso lugar e seguimos na


direção do posto médico.
Fábio e a ambulância de remoção já esperavam por nós.

— Entre e veja se precisam de mais alguma coisa… — instruí. —


Tenho assuntos a conversar com o policial.

A garota meneou a cabeça em concordância e seguiu para dentro.


— Pode confiar no Beneti… — Fábio deu alguns passos mais para
perto. — Ele é bom em guardar segredo e melhor ainda em não perguntar…
Trabalha comigo já faz alguns anos.

Aquiesci.

— Eu soube que você e seu avô tiveram problemas na Europa…


— continuou. — Se precisar de ajuda para pegar aquela cobra velha,
garoto… Conte comigo de um jeito… — Fez uma pausa e ergueu a
sobrancelha. — Não oficial…

Reprimi o sorriso, entendia exatamente o que ele queria dizer.

— Minoru… — soltei primeiro. — Sabe alguma coisa sobre esse


nome?

Fábio pensou por alguns segundos.


— A última vez que ouvi esse nome você nem tinha nascido… —
Alisou a barba com as mãos. — Não me diga que…

— Ainda não sei… Tudo que consegui descobrir foi que um dos
homens que tentaram atacar a garota no beco tinha uma rosa igual à do
Minoru tatuada na cabeça…

Fábio cruzou os braços na frente do peito.


— Pelo que me lembro, Nakai… Você também tem uma rosa bem
parecida com a do Minoru tatuada nas costas…
Pensei por um segundo, mas, quando abri a boca para responder, as
portas se abriram.

Um dos enfermeiros preparou a ambulância, enquanto Lia e o


outro empurravam a maca.

— Se eu descobrir algo, falo com você… — Fábio meneou a


cabeça em cumprimento.
Curvei o pescoço em uma reverência sincera.

— Obrigado por ter cuidado do sensei…


O policial aquiesceu e eu me afastei, aproximando-me do motorista
da ambulância para passar as coordenadas.

Entrei sozinho no carro e dei a partida. Tinha conseguido um flat


com elevador privativo. Era uma maneira de não ter que me preocupar em
contratar segurança particular, já que podia contar com a do condomínio.
Sem contar que era mais difícil me encontrar em um prédio residencial
cheio de moradores, do que em uma casa retirada e afastada.

A tag de acesso do meu carro já funcionava e eu havia avisado a


portaria sobre a entrada da ambulância, então seguimos pelo elevador assim
que os portões foram abertos.

Deixei meu carro na vaga e esperei até que a ambulância fosse


estacionada próximo ao elevador.

Enquanto subíamos até o último andar, os olhos de Liandra


passaram pelos meus algumas vezes, mas, em todas, ela os desviou.

Segui na frente assim que descemos e passei o cartão na porta,


abrindo-a e dando espaço.
— É o terceiro quarto, no fim do corredor… — avisei, mas não os
acompanhei.

Em vez disso, aproveitei para conferir a rota de fuga, caso algo


fugisse do controle e precisássemos sair pelo corredor de serviço.

Tinha acabado de entrar de volta no apartamento, quando as vozes


começaram a se aproximar.
— Se tiver qualquer dúvida, pode falar com o Dr. Beneti neste
telefone… — Um dos enfermeiros passou o cartão para as mãos da garota e
no mesmo instante seus olhos encontraram os meus.

— Ah, sim, obrigada. — Sorriu com gentileza.

— Terminamos por aqui, Sr. Hitachi… Tenho certeza de que seu


pai ficará bem assistido com o que foi montado no quarto, não tem com que
se preocupar…

Ia falando e me acompanhando até a porta da saída. Assim que a


abri, enfiei a mão no bolso interno do paletó e tirei algumas notas de cem.
— Agradeço o cuidado e a discrição… — Meneei a cabeça em
cumprimento.

— Disponha… O bom é que sua esposa conhece os procedimentos,


será tranquilo… — Sorriu.

— É claro… — concordei.
Quando voltei para dentro, vi a garota parada no meio da grande
sala, os olhos escuros fixos em mim.

Caminhei até o bar e abri a garrafa de uísque.


— Não fique muito emocionada, são apenas efeitos colaterais… —
provoquei enchendo o copo de bebida.

— Só isso? — perguntou depois de alguns segundos. — Vai


realmente ignorar tudo que eu contei ontem? Não acha que mereço ao
menos uma explicação?

Peguei o cigarro de dentro do bolso e acendi, dando um trago


longo e soltando a fumaça para cima. Depois caminhei até ela em passos
lentos e calculados.

— O que quer que eu lhe diga? O nome do demônio que matou sua
família? Acha mesmo que conseguirá incriminá-lo? — inquiri. — Quanto
menos você souber, melhor… — Estendi a mão, encarando o ideograma
tatuado ali. — Sei bem do que estou falando.

A garota riu sem humor, mordendo o canto do lábio inferior.


Estava tomada pela raiva e eu entendia bem, mas não ia contar a ela quem
eu era.

— Acha que eu não tenho direito de saber quem matou meus pais?
— elevou a voz, aproximando-se provocativa. — Se fosse com você, não
iria querer saber quem é o assassino?

Dei mais um trago, a fumaça soprada direto no rosto dela.

— Eu sei! — Alisei os cabelos com as mãos. — Quem começou e


quem terminou… Quer que eu diga? — devolvi. — O nome do homem que
me olhou nos olhos e depois puxou o gatilho no peito da minha mãe? —
Baixei o rosto, quase encostando no dela. — Chaska!

A garota arregalou os olhos, dando um passo atrás.


— Seu pai era um demônio igualzinho a mim, chiisai… — Estralei
o pescoço de um lado e depois do outro, dando mais um trago no cigarro.
Capítulo Dezessete
Liandra
O desgraçado estava ali, a alguns passos de mim. Aquele sorriso
sarcástico de quem tinha vencido brilhando no canto dos lábios, enquanto
ele observava o dia cinzento lá fora.

Minha boca estava amarga e o coração pesado. Eu sabia que meu


pai não era inocente, mas duvidava que ele tivesse coragem de matar
alguém a sangue-frio, ainda mais na frente de uma criança.

Ninguém esconde a índole que tem por tempo demais. Às vezes


conseguimos fingir, mas é difícil carregar a pele de alguém que não somos.

Mantive a atenção no homem a minha frente. O curativo ainda


estava ali, embora ele tentasse esconder. Um ferimento que não precisava
ter, que escolheu, para me salvar. Samuel, ou quem quer que fosse, tinha
razão. Ele e meu pai eram parecidos. Tentavam parecer mais duros do que
eram, mas às vezes deixavam a máscara cair.

Respirei fundo, lidar com ele era um mal necessário, ao menos até
a garantia de que Musashi e eu estávamos seguros. Eu ainda não sabia se
Samuel tinha trazido o problema até nós, ou sido uma feliz coincidência,
mas, por ora, mantê-lo por perto era o mais inteligente.

— Descobriu algo ontem à noite? — perguntei ignorando nossa


conversa anterior.

— Nada que a envolva… — cortou, mas não se afastou.

Terminou o cigarro e atirou a ponta longe, vendo-a se perder entre


os vasos do jardim.

— Como não? — insisti. — Esqueceu do que aconteceu no beco?


Eu quero minha paz de volta, Sr. Hitachi… — pronunciei o nome dele
devagar, para provocar mesmo. — E para isso preciso descobrir o que
houve…
— Uma coincidência, provavelmente… — Ergueu as sobrancelhas
e correu os olhos por mim. — O caso é bem maior que você, chiisai… —
falou com desdém.

Abri a boca para protestar, mas consegui me controlar. Era uma


defesa, mas não ia funcionar comigo.
— Pense bem… — Cruzei os braços na frente do corpo. — Talvez
eu possa ajudar… Sou boa em atuar e tenho tanto interesse quanto você em
descobrir quem eram aqueles desgraçados…

O mestiço parou no meio do caminho e voltou-se para mim


novamente.
— Eu preciso de uma puta… — Cruzou os braços imitando meu
gesto. — Está disposta a representar esse papel? — Riu, passando a língua
pelo lábio. — Comigo?

Engoli em seco, perdendo os sentidos por um segundo, mas fiz


tudo que pude para manter o exterior impassível, não ia dar esse gostinho a
ele.

— Eu topo! — Caminhei mais uns passos, parando em frente a ele.


— Alguns males são necessários…

Provocar é minha especialidade, filho da puta!


Samuel baixou os olhos, varrendo minha figura mais uma vez,
depois coçou a barba por fazer. Eu sentia meu coração descompassado e o
estômago revirado, mas não ia afinar, assim como sabia que ele também
não.
— Quando eu voltar… — fez uma pausa dramática, aqueles olhos
profundos fixos nos meus — explico qual será o próximo passo.

Prendi a respiração até que ele me desse as costas e estava


voltando ao controle, quando Samuel parou perto da porta. Tirou um cartão
de acesso de dentro do paletó e deixou sobre o balcão da cozinha.

— Para uma emergência… — aquele aviso nada silencioso em seu


olhar. — Você tem tudo que precisa por aqui, não seja idiota e não ofereça
munição ao inimigo.
Aquiesci com um aceno de cabeça e ele se foi. Assim que a porta
se fechou, apoiei a mão no encosto da cadeira, as pernas meio trêmulas e
aquela ansiedade desesperadora que ele me causava tomando conta de tudo.

Calma, Lia… Não será diferente de quando você fingia ser uma
das garotas da Jane. — Soprei o ar para fora. Isso se for verdade! Aquele
filho da puta pode, muito bem, estar brincando com você!
Recuperei um pouco da calma e voltei para o quarto em que
Musashi descansava. O sedativo havia sido retirado desde a saída do posto e
eu sabia que faltava pouco para que ele começasse a acordar.

Puxei a cadeira da escrivaninha e me sentei ao lado dele. Musashi


parecia sereno e tranquilo, diferente do homem que eu havia ajudado a
carregar para o hospital desacordado.
Para a nossa sorte, os ferimentos haviam sido superficiais e em
poucos dias meu pai estaria com a saúde restabelecida.

— Hum… — gemeu, ainda sem abrir os olhos. — Lia, não…


Lia… Afaste-se!

Levei a mão até a dele, acariciando suavemente.


— Estou aqui, pai, não corro perigo… Estamos seguros…

Continuei a carícia até que ele abriu os olhos, assustado.

— Lia, eu…
— Shhhh, calma, Sr. Musashi… Está tudo bem… Samuel cuidou
de tudo… — Sorri de canto, mas não pude sustentar o gesto por muito
tempo.

Engoli em seco assim que as palavras deixaram minha boca.


Samuel cuidou de tudo… — Suspirei. O yakuza tatuado que eu queria bem
longe da minha casa.
Musashi não respondeu, os olhos mirando o lustre do teto.

— Ele viu o colar? — perguntou depois de algum tempo.


Meneei a cabeça concordando e recebi um suspiro como resposta.

— Pai… — comecei devagar. — Como você o conseguiu? Eu o


perdi há tanto tempo…
Deixei o pensamento vagar, os olhos mirando a cidade pela janela.
Eu não me lembrava exatamente como havia perdido o colar, só lembrava
que tinha sido poucos dias antes de Musashi me encontrar.

— Você nunca o perdeu… — confessou. — Eu guardei…

Franzi o cenho.
— Não, querida… Não pense que roubei de você, não foi nada
disso… Seu pai…

— Chaska? — interrompi subindo um tom na voz.

Musashi aquiesceu.
— Seu pai… — Pausou para respirar. — Eu temia que essa hora
chegasse, mas preciso esclarecer as coisas, Lia… Eu… — Interrompeu a
frase e fez uma careta de dor.
— Calma, pai… Não se esforce demais… — pedi. — Teremos
tempo para explicações… Você acabou de acordar, ainda está fraco…

Musashi acariciou minha mão.


— Sempre cuidando dos outros… — Sorriu. — Você se parece
com ele…

Engoli o bolo de sentimentos que entalaram minha garganta. Era a


primeira vez que alguém falava isso para mim.

Musashi tentou falar novamente, mas acabou tossindo. A boca


devia estar seca, depois de acordar da sedação e a tosse só causaria mais
dor.

— Ei, campeão… A gente conversa depois… — Dei dois tapinhas


no dorso da sua mão. — Vou pegar um pouco de água, você deve estar com
sede…
Acariciei seu ombro e me levantei. Queria entender o que estava
acontecendo, mas podia esperar até que ele estivesse mais forte. Tanto
tempo havia se passado e meu pai nem estava mais entre nós… A urgência
por respostas não era maior do que a vontade de ver Musashi bem
novamente.

Caminhei a passos largos até a cozinha e parei em frente ao vidro


espelhado do micro-ondas.
“Você se parece com ele.” — Suspirei.
Não me lembrava muito do rosto dos meus pais. Por mais que
tentasse, tudo parecia vago e nublado, mas naquele momento, de repente, vi
meu pai no reflexo.

“Um demônio igual a mim…” — as palavras do mestiço ecoando


em meus pensamentos.

Balancei a cabeça em negativa e abri o armário procurando por um


copo. Acabei sendo surpreendida por alimentos de vários tipos, muito bem
organizados. A geladeira estava igualmente cheia, tanto que senti o
estômago roncar.

Comer, Lia… Comer e beber água, não se esqueça! Você não é


uma pedra… — Sorri diante da lembrança do que Musashi me falava.

Peguei uma maçã e lavei na água corrente, dando uma mordida


logo em seguida. Depois enchi o copo e levei até o quarto.

— Aqui, pai… Beba um pouco… Vou ajudá-lo a se levantar…

Havia um controle remoto na mesa de cabeceira ao lado da maca


que fora montada no quarto. Acionei o primeiro botão e o colchão foi se
elevando junto às costas do meu pai.
— Melhor, bem melhor… — Ele sorriu. — Você sabe que odeio
ficar deitado!

Sentei-me ao seu lado, levando o copo até sua boca.


— Dê-me aqui… Acho que consigo sozinho… — pediu e eu
obedeci.
Sabia bem o quanto ele odiava ser cuidado.
Pelo que restou do dia, cuidei da medicação prescrita pelo médico
e me assegurei de que meu pai descansasse o melhor que pudesse.

Samuel não voltou para o almoço, nem quando a tarde caiu.

Já era quase noite, quando me sentei na beirada da cama e ajeitei


os pés da bandeja para que meu pai pudesse comer um pouco de sopa.
— Como se sente? — perguntei.

— Melhor, querida…

Sorri. Estava feliz com a velocidade da sua recuperação, mas não


podia ignorar as dúvidas que me consumiam. Se ia mesmo me meter no
meio dos yakuzas, ao menos tinha que pisar em terreno sólido.

— Pai… Sei que disse que deixasse para depois, mas…

Musashi tocou minha mão com a sua.

— Encontrá-la não foi acaso, Liandra… — começou. — Foi um


pedido do seu pai…

Puxei a mão sem nem entender o porquê. Aquele gosto amargo de


ter sido enganada espalhando-se em minha boca.

— Não julgue, querida… Entenda primeiro… — pediu. — O


destino colocou Chaska em meu caminho… Nunca fomos amigos, mas
tínhamos um inimigo em comum…

Meus olhos voltaram aos dele.

— Kazuo Nakai… O chefe da Nakai-Gumi… Organização à qual


seu pai pertencia…

— Então… — Franzi o cenho tentando formar as conexões. — O


colar… Samuel…
— Há uma informação muito importante escondida dentro do
colar… Algo que está sendo procurado por muitos homens com diferentes
interesses… Se cair em mãos erradas, eu…

Musashi voltou os olhos para a porta e interrompeu a fala. No


instante seguinte, o mestiço passou por ela.

— Vejo que está de volta, sensei… — comentou com um aceno de


cabeça.

— Sou uma erva ruim… — Meu pai sorriu. — Não há geada que
me mate…

O mestiço esboçou um sorriso e sentou-se no braço da poltrona, as


pernas cruzadas de um jeito elegante.

— Um enfermeiro virá passar a noite aqui… — avisou. — Gente


minha, de confiança… Não se preocupe…

Musashi tombou a cabeça e franziu o cenho, sem entender.

— Lia…

— Temos um assunto a resolver…

— Juntos? — insistiu.

Samuel se levantou no mesmo instante, os olhos fixos em meu pai


por alguns segundos, mas nenhuma resposta deixou sua boca. Deu alguns
passos em direção à saída e levou a mão ao bolso do terno, em busca do
cigarro.

Antes de sair, voltou a atenção para mim.

— Espero você no meu quarto…


No mesmo instante, senti aquela onda de calor que a voz dele
produzia em mim se espalhar.

Aquiesci pegando o copo da mão do meu pai, mas, antes de soltar,


ele a segurou.

— Tenha cuidado com esse homem, Lia… — pediu.


— Achei que confiasse nele — devolvi.

— No mundo ao qual ele pertence as pessoas não hesitam em


deixar pelo caminho aqueles que não servem mais…

— Então acho melhor não o deixar esperando… — Pisquei e sorri.


— Não se preocupe, pai… Eu não tenho medo de marmanjo, nem de cara
feia!

Não era uma verdade absoluta, mas eu precisava que fosse. Não
tinha como ignorar que havia uma ligação entre mim e aquele maldito
mundo fora da lei. Se eu queria descobrir até que ponto, Samuel era minha
chave.
Capítulo Dezoito
Shin
Parei em frente às portas duplas da suíte e fiquei observando a
cidade. Sobre a cama, a caixa do vestido que eu havia comprado, ao lado da
sacola com as sandálias.

Não demorou muito para que uma batida suave na porta se fizesse
ouvir no silêncio.

— Entre… — pedi.

Passos curtos e comedidos. Estava ansiosa e talvez amedrontada,


mas, se eu tinha aprendido algo nesse tempo com ela, era que iria se
esforçar ao máximo para parecer confiante e segura.

Virei-me devagar, dando mais um trago no cigarro e afrouxando a


gravata.

— Vou explicar como as coisas devem acontecer, senhorita… E


imagino que nem precise destacar o quanto é importante que você faça
exatamente como vou dizer…

Aquiesceu.
— Abra a caixa… — instruí.

A tampa foi retirada e o papel branco e fino, separado, revelando o


rosa- pálido da seda. Lia segurou nas alças finas, levantando o vestido curto
e sexy que eu havia comprado.

Ergueu a sobrancelha e admirou a peça por alguns instantes sem


dizer nada. Eu tinha certeza de que teria exatamente essa reação, porque
não era o tipo de roupa que ela costumava usar; isso só me deixava mais
ansioso para vê-la baixar a guarda e concordar ou desistir do plano.
Deixou o vestido na caixa e fechou a tampa, segurando as compras
nos braços.
— A que horas saímos? — perguntou desafiadora.

— Às nove… — respondi levando o cigarro à boca. — No quarto


ao lado do Terada sensei há tudo de que você vai precisar para se arrumar…
— Lingerie, inclusive? — provocou.

Passei a língua pelos lábios, reprimindo o riso.

— Inclusive…, mas não acho que será possível usar com esse
vestido…

O olhar que me lançou parecia um tiro de fuzil, mas o rosto


continuava seguro e concentrado.
— Mais alguma recomendação?

— Seja discreta… Submissa… Não fale nada que não seja trivial e
sem importância… Trate-me com respeito e lembre-se de duas coisas…
Primeira… — Levantei um dedo. — Qualquer um naquele lugar pode
machucá-la e eu não poderei impedir, simplesmente porque não deveria me
importar, e segundo… — Levantei o outro dedo. — Estamos ali por um
nome… Minoru… Se ouvir qualquer coisa relacionada a ele, preste atenção
e guarde na memória…
Meneou a cabeça em concordância.

— E o seu nome? Não vai me dizer? — questionou. — Seria


estranho que eu estivesse com você e nem soubesse seu verdadeiro nome,
não é?
— Não se preocupe com isso, chiisai… Ninguém me chama pelo
nome… Meu cargo é suficiente para abrir até as portas do Inferno, se eu
desejar…

Cravei os olhos nos seus, queria deixar claro que não ia cair em
nenhum tipo de artimanha que ela tentasse armar. Não ia baixar a guarda
por causa de uma boceta, ainda que fosse uma na qual eu gostaria muito de
me fartar.

— Vá! — Girei os dedos no ar, só para irritá-la mais.


Liandra inspirou com força, segurando a raiva que insistia em
contorcer seu rosto bonito, e deu-me as costas.

Assim que saiu, segui para o closet, livrando-me das roupas.


Abri o chuveiro e entrei debaixo do feixe de água morna. Tinha
deixado um recado para Willian e podia apostar que ele iria me ligar logo,
já que Minoru era um assunto do interesse dele também.

Terminei o banho e fiz a barba, queria deixar claro a todos naquela


festa que ainda era eu quem dava as cartas e que ninguém iria me derrubar.

Enrolei-me na toalha e caminhei até o cabideiro do closet, correndo


os dedos pelos ternos, pensando em qual usaria, até que meu telefone tocou.

— Não faça isso, Nakai… — Willian reclamou. — Não solte uma


bomba dessas e termine com “Ligue-me quando puder!”, eu cortaria um
dedo por essa notícia…
Acabei rindo.

— Não me diga que aquele desgraçado baka está vivo?


— Até onde sei, não…, mas aquele demônio tinha muitos rabos…
Parece que um deles não foi cortado adequadamente…

Silêncio por alguns segundos. Willian e eu conhecíamos pouco da


história de Akira Minoru. Tudo que sabíamos tinha vindo pela boca dos
nossos pais, então a curiosidade ficava mais aguçada a cada nova
descoberta.

— Vou ao Brasil… — avisou. — Quero saber de tudo que diga


respeito àquele diabo maldito!

Sorri de canto, tinha conseguido o que pretendia.

— Ainda não… Se você vier, levantaremos suspeitas… Espere até


que eu lhe diga para vir… Talvez as coisas nem sejam exatamente como
imaginamos… Hoje vou a uma festa tekiyah e, com sorte, poderei descobrir
quem são e onde estão os desgraçados.
— Como chegou até essa informação, Nakai?

— Arranquei do homem no hospital, junto com a garganta…

Willian riu.

— Deve ter sido uma cena e tanto…


— Não sou chamado de yokai à toa…

— Que acha que eles querem? — questionou. — Se estão de volta,


então seu avô…

— Ainda não sei o que pretendem, mas talvez eu possa usá-los a


meu favor…
— Não demore a dar notícias, Nakai… Paciência não é uma das
minhas muitas virtudes…
— Pois aprenda, meu caro oyabun… A vingança é um prato que se
come frio… Lembre-se.

Desliguei e deixei o telefone sobre a mesa de cabeceira. Preferi não


falar nada sobre o colar e a ligação que talvez exista entre Musashi e
Chaska porque não dizia respeito a Willian e munir demais um possível
inimigo era como criar uma cobra no seio… O herdeiro Matsuya podia ser
útil, mas tinha que estar sempre um passo atrás de mim.

Vesti a cueca e a calça, depois procurei por uma camisa branca.


Abotoei, enfiando por dentro e conferindo minha figura no espelho. O
curativo já não era necessário e a pequena linha rosada em minha testa
passaria despercebida à luz baixa que o ambiente certamente teria.
Passei gel no cabelo e arrumei-o com cuidado. Prendi o par de
abotoaduras nos punhos e borrifei um pouco de perfume no colarinho.
Peguei o coldre axilar e o vesti com o cuidado de não amarrotar minha
camisa e guardei a Beretta prateada nele. Calcei os sapatos e peguei meu
paletó, caminhando até a sala, para esperar pela garota.

Abri o armário e enchi um copo com água gelada, tinha dado o


primeiro gole quando Liandra apareceu no corredor. Senti a garganta doer,
pelo quase engasgo, mas disfarcei pigarreando.

Como eu imaginava, o vestido havia abraçado e destacado as


curvas perfeitas do seu corpo. Coxas torneadas expostas e seios delicados
marcando o decote. Pela maneira como o tecido justo descia pelo quadril
sem nenhuma marca sequer, eu tive certeza de que ela havia concordado
comigo em não usar lingerie.

Meu pau respondeu no mesmo instante e eu agradeci mentalmente


pelo balcão entre nós, assim fui capaz de ajeitá-lo com a mão e não ser pego
em minha própria teia.
— Estou pronta… Podemos ir quando quiser… — falou pausado,
os passos suaves pelo chão de madeira.

O olhar astuto havia sido reforçado pela maquiagem. A boca,


tingida de vermelho-escuro, combinava com sua pele morena e os longos
cabelos ondulados estavam soltos, emoldurando o rosto de boneca que
tinha.

Parei a alguns passos dela. Queria fazer um pequeno teste e ter


certeza de que conseguiríamos representar o que fosse necessário.

— Aqui! — chamei com o balançar de um dedo.

Tinha consciência do quanto ela reprovava aquele tipo de


tratamento, então esperei por um revirar de olhos ou lufada de ar, ainda que
discreto, mas me enganei.

A garota sorriu delicada, mordendo de leve o lábio inferior e


fazendo meu pau pulsar. Parou bem em minha frente e elevou o rosto. Tão
perto, que senti o hálito quente em meu peito.

Sorri de canto, disposto a ir além.

Levei a mão até sua cintura e puxei-a para perto, colada em meu
corpo, antes de continuar pela curva da bunda e parar ali.

Aproximei o rosto, esperando que ela fugisse do que podia ser uma
tentativa de beijo, e só desviei quando nossos lábios praticamente
resvalaram.
— Isso! — sussurrei em seu ouvido. — É assim que deve ser! —
Pisquei, antes de me afastar.
O olhar safado e confiante que me lançou foi o suficiente para me
fazer desejar puxá-la novamente e não desviar no último segundo.

— Eu disse que sou boa em representar… — Piscou de volta


imitando meu gesto.

Peguei as chaves do esportivo e segui com ela para o elevador,


seguindo pelos poucos metros até o carro na vaga. Quando nos
aproximamos o suficiente, acionei o alarme e destravei as portas.
Liandra entrou e ajeitou a saia curta do vestido.

Dei a partida e fiz o motor rugir.

— Como devo chamá-lo enquanto estivermos lá? — perguntou.

Corri os olhos pela coxa macia e acelerei, deixando o


estacionamento e o prédio para trás.
— Senhor… Enquanto estivermos nessa… Eu sou o seu dono…
Capítulo Dezenove
Liandra
Meu coração descompassava um pouco mais a cada rugido do
motor, a cada vez que Samuel fazia uma curva e minha perna nua roçava na
dele.

Eu não era inocente, nem podia negar que aquela adrenalina toda
correndo em minhas veias era muito excitante. Corria perigo? Muito mais
do que deveria, mas também sentia como se realmente estivesse resgatando
algo que eu nem sabia que tinha perdido.

Saímos da cidade por uma estrada que eu não conhecia e


continuamos. O condomínio ficava no alto de uma colina afastada. Samuel
parou o carro junto à entrada e um dos seguranças veio até nós.
— Pois não, senhor… Qual o endereço? — perguntou.

Samuel baixou um pouco mais o vidro, levantando a mão tatuada e


ajeitando uma mecha de cabelo atrás da orelha. Não precisou dizer nada.
— Oh, é claro… — O guarda meneou a cabeça e sinalizou para
que os portões fossem abertos.

Continuamos pela estrada íngreme até o topo, onde um grande


terreno, coberto por pinheiros altos e árvores grossas, escondia uma imensa
casa de dois andares, toda feita de concreto e vidro.

Meu acompanhante passou pelos seguranças no portão de entrada


da mesma maneira que havia passado pelo guarda do condomínio e seguiu
em frente, até a porta da entrada.

— Senhor… — um manobrista cumprimentou assim que Samuel


saiu.
Logo em seguida, minha porta foi aberta e uma mão com luvas
brancas me foi oferecida.
Samuel e eu ficamos lado a lado e meu coração se acelerou um
pouco mais. Eu não sabia bem se deveria segurar em seu braço, dar as mãos
ou só esperar. Estava desconfortável porque nunca tinha ido a uma festa tão
elegante como aquela.

— Lembre-se de tudo que combinamos… — soltou entredentes,


sem me olhar, e seguiu em frente.
Esperei que desse o primeiro passo e o segui logo atrás, dando a
ele o controle do que faríamos.

O salão estava cheio de homens de terno escuro. Orientais em sua


maioria e um pouco mais velhos do que meu acompanhante. Salpicando um
pouco de cor aqui e ali, garotas muito jovens e bonitas, em vestidos
chamativos e sensuais, caminhavam por entre os convidados, rindo e
fazendo caras e bocas.
Reprimi a vontade de revirar os olhos e tentei me concentrar em
tudo que acontecia. Se havia algo no colar que valia mais do que a vida de
Musashi e a minha, eu precisava descobrir o que era.

Continuei um passo atrás de Samuel, até que ele parou para


cumprimentar três homens que conversavam.

Baixei o olhar e aceitei a taça de champanhe que me fora oferecida.


O mais velho curvou o corpo em reverência, o que não era nada comum
para orientais e só confirmava o que Samuel havia me dito.

“Meu cargo é suficiente para abrir até as portas do Inferno, se eu


desejar.”
A conversa continuou em japonês, para o meu desgosto. Tudo que
consegui entender foi uma palavra aqui e outra ali. Um dos homens, o que
estava ao lado de Samuel, não tirava os olhos do meu decote e respirei
fundo, usando todo o controle que tinha para continuar com aquele sorriso
idiota estampado no rosto.
De repente, outro homem se aproximou. Oriental, meia-idade e
mãos tatuadas.

— Ora, ora se não é o saiko… — cumprimentou o mestiço em


português, mas manteve os olhos nos meus. — Sempre elegante e bem
acompanhado…

Desviei o olhar e mantive o rosto baixo. A maneira como ele me


olhava era ainda mais desconfortável.

— Qual o seu nome, garota? — perguntou e eu não respondi.


Ele levou a mão até meu rosto e o levantou pelo queixo.

— O gato comeu sua língua?

Continuei em silêncio, então ele me puxou pelo braço. A mão livre


subindo pela minha coxa até a bunda, até que ele riu.

— É muda, por acaso?


Meu coração disparou de ódio, mas, quando Samuel cerrou a mão
em punho, vi todo o nosso plano ir à merda e engoli o orgulho.

— Perdão… — falei baixo e comedido. — Só posso responder se


meu senhor permitir…

Afastei-me e coloquei-me ao lado de Samuel novamente.


— Ohhh… — O desgraçado abusador riu mais. — As submissas
são sempre as melhores… Você tem mesmo sorte… — Deu um tapinha no
ombro do mestiço e ganhou um olhar cortante em resposta, antes de sair.

O homem que encarava meus seios riu e falou algo em japonês que
teria passado como uma brincadeira machista e arrogante, não fosse pela
veia pulsando na têmpora do mestiço.

Senti um calor subir pelo meu estômago, meu braço em volta da


sua cintura, os dedos acariciando-o por baixo do paletó.

Um garçom se aproximou carregando cigarros em uma bandeja.

— Acenda para mim… — Acenou para a bandeja, ordenando sem


me olhar.
Aquiesci, pegando um dos cigarros e aproximando do fogo. Dei o
primeiro trago, avermelhando a ponta e depois soltei a fumaça para cima,
oferecendo o cigarro a ele.

— Muito bem, chiisai… — falou em meu ouvido, apertando


minha bunda com força. — Agora dê uma volta por aí… — sussurrou.

Fiz o que ele havia pedido e comecei a andar pelo lugar. Não fazia
ideia do que estava procurando e nem de quem deveria me aproximar ou
afastar. O certo era que estivesse morrendo de medo, qualquer um estaria,
mas, sempre que olhava para o lugar onde Samuel estava, nossos olhares se
cruzavam. Ele era como um grande felino à espreita, mesmo de longe, fazia
com que eu me sentisse segura.

Um homem de traços latinos sorriu para mim, limpando o canto da


boca daquele jeito que faz parecer que vai nos devorar. Passou a mão em
uma das taças de vinho em uma bandeja e ia estender a mim, quando outro
o impediu.
— Não seja idiota… Ela está com o saiko…

Meneei a cabeça e soltei um sorriso discreto, pegando eu mesma


uma das taças.

Caminhei mais um pouco pelo lugar até sair para o jardim.


Aproveitei que não havia muitas pessoas naquele espaço e segui
pelo lado de fora, usando os arbustos para me esconder. De repente, parei,
meus olhos perdidos no homem lá dentro. O mestiço se destacava e nem era
uma questão de beleza, ou o fato de ter bem mais de um e oitenta, era a
pose, a aura, o que emanava dele.

Eu tinha lido em uma revista boba de moda que a realeza exalava


classe mesmo de chinelos de dedo e, olhando para Samuel ali, no meio
daquelas pessoas, havia confirmado que era verdade. Se pudesse apostar,
diria que ele era mesmo um príncipe.

Engoli em seco, sentindo um aperto estranho no peito. Não seja


boba, Lia! Que diferença faz se ele é a porra do rei do Japão? Você nem
quer nada com ele! Não é? Essa história de gata borralheira só dá certo
em livros infantis… Principalmente se o príncipe em questão não hesita em
puxar o gatilho.

— Ali! — alguém falou, logo atrás de mim. — O filho da puta está


sozinho e com o colar no pescoço… — Travei, tentando parecer o mais
invisível que podia.

— Precisamos ter cuidado, o chefe quer o colar e o garoto vivo…


Você só precisa fazer conforme o Ishiro mandou.

— Ishiro? O Ishiro é um filho da puta arrogante! E quem disse que


vou entregá-lo ao chefe? — A segunda voz riu abafado. — Não estou
interessado na recompensa, Sebas, quero o cargo, assim como o Ishiro… Só
que diferente dele eu sei para qual diabo trabalho! O velho Nakai vai me
dar muito mais que o chefe pela cabeça do garoto…

Parei de respirar por um segundo. Nakai… Kazuo Nakai? Então ele


quer o colar e a cabeça de Samuel…

Esperei até que os homens se afastassem para garantir que não


haviam me visto e dei a volta em direção à entrada, precisava avisá-lo antes
que fosse tarde, mas, assim que pisei no primeiro degrau, Samuel saiu.
Passos rápidos cortando a grande sala, atrás de algo que eu não conseguia
ver.

Voltei, tentando seguir pelo mesmo caminho que os dois latinos


haviam feito. Estava escuro, meus saltos afundavam na porra da grama e eu
não tinha ideia do que, exatamente, estava procurando. Tudo em que tinha
conseguido me fixar era a cicatriz na cabeça raspada e a tatuagem vermelha
no pescoço.

Entrei por uma passagem estreita, meu vestido enganchando nos


espinhos da roseira, segui até a janela. Pulei, xingando o desgraçado do
mestiço que tinha me feito vir sem calcinha. Já tinha me embrenhado em
lugares piores, mas não com a bunda de fora!

Se pelo menos eu estivesse usando um dos meus macacões…

Acabei em um lugar cheio de prateleiras com comida. Tentei abrir


a porta, mas estava trancada.

— Porra! — xinguei baixinho, já pensando em como voltar,


quando a maçaneta girou e eu me escondi atrás de algumas caixas.

Um homem com uniforme da segurança entrou se agarrando com


uma das meninas da festa. Estavam tão empolgados com o que faziam que
não acenderam a luz, então eu me aproveitei da porta semiaberta e da altura
dos gemidos da garota e saí, caminhando rápido pelo corredor, até as portas
duplas de metal com janela de vidro.

Havia uma luz baixa acesa, então me aproximei devagar,


encarando o ambiente e procurando por algum indício de Samuel ou dos
homens que o procuravam, até que o vi. Estava parado perto do balcão de
uma cozinha vazia, ao seu lado, o homem que havia me tocado.
Capítulo Vinte
Shin
O sangue ruim ainda fervia em minhas veias. Sangue esse que não
levava desaforo para casa e não abaixava a cabeça, nem mesmo para poupar
a própria vida.

Havia mandado Liandra para longe de mim e observado até que o


pior capacho do meu avô se sentisse confiante para tentar se aproximar
dela. Esperei que ela saísse para o jardim e o vi fazer o caminho contrário.
Covarde como o rato que era, ele com certeza pretendia interceptá-la e levá-
la para os fundos.

Ishiro e eu tínhamos uma bela briga de mais de dez anos, quando


tomei posse do meu lugar dentro da organização. Ele era um famoso
advogado com muitas vitórias internacionais e experiência em esconder
dinheiro para associados importantes, não perdoou meu avô por ter
preferido nomear o neto recém-saído do colégio como conselheiro.

Não que meu avô fosse gentil e protetor comigo, muito pelo
contrário, ele sempre soube que seria mais fácil dominar a mim do que a
Ishiro e teve razão, até pouco tempo atrás.

Dei a volta pela porta da cozinha e peguei o filho da puta antes que
ele conseguisse encontrar Liandra.

— Perdeu algo aqui, baka? — provoquei.

Ishiro riu.

— Eu, senhor? De maneira alguma… Só estava precisando de um


pouco de ar… — deu alguns passos em minha direção —, mas você vai
perder, seu gaijin filho da puta!
Levei a mão no coldre, mas antes que conseguisse sacar minha
arma, senti o braço em torno do meu pescoço e a perdi para o idiota que me
segurava.
Não tentei revidar de imediato, tinha experiência em lidar com
situações como aquela e sabia bem que, quanto mais eu tentasse me soltar,
mais estaria preso.

Controlei a respiração, esperando até que o homem que me prendia


se desse por vitorioso e então vacilasse.
Ishiro se aproximou a passos tranquilos, seguros da vitória.

— Eu tenho duas propostas para você, gaijin… Qual delas você


prefere ouvir primeiro?
— Nunca entendi por que você me chama de gaijin, se somos
igualmente mestiços e, ao contrário de você, eu fui criado no Japão desde
criança… — dei assunto para ganhar tempo.

Ishiro riu.

— Porque eu não sou a porra de um meio-sangue desgraçado que


na primeira oportunidade trai a família que o alimentou… — Balançou a
cabeça em negativa. — Bem que dizem que o fruto não cai longe da
árvore…

Franzi o cenho por um segundo, não entendia bem o que ele queria
dizer, mas tentei concentrar meus esforços em encontrar o momento
perfeito para escapar da emboscada.
Ao menos errei e Liandra está em segurança… Se for esperta, verá
que eu sumi e irá embora bem rápido.
Os olhos de Ishiro baixaram do meu rosto para o pescoço, onde eu
sabia que ele podia ver relances da corrente.

— Vejo que encontrou um tesouro… — Limpou o canto da boca.

— Para mim, talvez…, mas, a menos que sua fortuna tenha


finalmente sido confiscada pelo governo, um colar de ouro não é
exatamente um tesouro…
O desgraçado deu mais alguns passos e me acertou um tapa na
cara.

— Não seja engraçadinho comigo, Nakai… Eu já era yakuza


quando você estava aprendendo a mijar de pé! Acha que eu não sei o valor
dessa bomba que você carrega no pescoço? — Mais um passo, o rosto a
centímetros do meu. — Acha que vou ficar calado e vê-lo destruir tudo para
o que eu trabalhei a vida toda? Que vou deixá-lo sair por cima?
E foi assim que meu momento chegou.

Baixei a cabeça de uma vez, acertando a testa em seu nariz, em


seguida o cotovelo bateu em cheio no peito do homem que me mantinha,
aproveitando-se do susto que eu havia causado.

Eu estava zonzo, mas sempre fui bom de briga, treinava mais que
qualquer um e não tinha medo de arriscar. Ágil e forte, não demorou para
que o grandão que me mantinha preso caísse no chão.

Ishiro tentou me acertar, mas o tiro de raspão no antebraço não me


impediu de chutá-lo no rosto e derrubá-lo no chão.
Cambaleei até perto da pistola e a peguei no piso, engatilhando.
Meu braço queimava como inferno, o sangue descia da testa, mas eu ia
matar aquele filho da puta nem que tivesse que descarregar o pente todo em
sua direção.

Ishiro estava em minha mira, mas antes que pudesse puxar o


gatilho, eu a vi. Liandra entrou na cozinha com as mãos para cima, olhos
derrotados mirando os meus. Balbuciou um “desculpe” enquanto passava.

Em suas costas, o cano frio de uma pistola, empunhada por um dos


homens de Ishiro.
O desgraçado riu.

— Eu tinha certeza de que a princesa viria resgatar o namoradinho!


— Soltou mais uma gargalhada. — Não é lindo, Sebas? — soltou no meio
do riso. — Aliás… — Andava ao nosso redor. — Acho muito injusto,
gaijin… Antigamente as mulheres serviam a toda a organização… Esta
aqui? — Apertou a bunda de Lia, fazendo meu sangue subir um pouco
mais. — Daria uma bela orgia! Não acha? Pense comigo… — provocava,
esperando que eu lhe desse a chance de matar a nós dois. — Aquela sauna
que o oyabun tanto gosta… Os homens de confiança… E sua putinha
pelada, bem lá no meio… Aposto que ela seria ótima servindo saquê…
O olhar de Lia me pedia calma, mas tudo que eu queria fazer era
cortar fora a mão do filho da puta que a tinha tocado. Juntei as forças que
tinha, olhando ao redor, procurando por algo que pudesse me garantir um
tiro certeiro.

— Não acha que seria divertido, querida? — sussurrou, beijando a


linha da mandíbula de Liandra. — Eu posso ser bem carinhoso quando
quero!
A garota parecia concentrada; não fosse pela velocidade do peito
subindo e descendo, eu acreditaria em sua calma. Foi então que seus olhos
correram para a direita, como se quisesse me mostrar alguma coisa, e eu vi
a faca grande de cozinha ali, bem ao alcance da sua mão.

No mesmo instante, seus dedos indicaram o que iria fazer e eu me


preparei; se ela conseguisse se afastar alguns centímetros, eu acertaria o
alvo.

Respirei fundo e pisquei lento, rezando para que ela entendesse que
era minha deixa. Para a minha surpresa, Liandra entendeu e esticou o braço.
No susto, enfiou a faca na cintura de Ishiro e baixou o corpo, deixando o
espaço livre.
O tiro certeiro fez o homem que a mantinha presa cair, produzindo
um barulho alto. Ishiro caiu de joelhos, as mãos apoiadas no chão, e eu me
aproximei, mirando em sua cabeça.

— Anda, filho da puta, me mata! — pediu, mas eu não me movi.


Queria curtir aquele momento. — Atira! — gritou.

Meus olhos deixaram os dele para encarar a garota alguns passos


atrás. A faca em sua mão pingava sangue, mas seus olhos não tinham
arrependimento algum. Se eu pudesse apostar, diria que não era a primeira
vez que ela machucava alguém para proteger a si mesma.

E foi esse pensamento que guiou minhas próximas ações. Por


alguma razão que eu não sabia justificar, queria que Lia tivesse certeza de
que não estava mais sozinha.

Estendi a mão pedindo a faca e ela me entregou.

— Juro que cheguei a pensar em acabar com a vida miserável que


você tem, Ishiro…, mas, sabe de uma coisa? — Ri vendo-o ajoelhado no
chão, o sangue que descia do ferimento pingando no piso claro. — Decidi
que morrer de uma vez é honrado demais para um verme como você…
Enquanto falava, aproveitei para sentir o peso da faca e me
certificar de que ela daria conta do recado. Bati certeiro na altura do pulso,
decepando no mesmo instante.

O grito alto e assustador cortou o silêncio da cozinha e Ishiro caiu


no chão, mais sangue jorrando do corte. Tentava falar, mas já não
conseguia, tremendo e gemendo, agonizava para morrer.

Abaixei bem perto dele deixei a faca no chão, limpando o cabo


com a barra do paletó.
— Assim é bem melhor… — Sorri de canto. — Vai morrer
sangrando como o porco imundo e desgraçado que sempre foi! — Cuspi e
me levantei.

Guardei minha pistola de volta no coldre e estendi a mão para


Liandra.

— Vamos! O grito não vai passar despercebido e, ao que parece,


meu colar é mais interessante que minha cabeça… Preciso descobrir por
quê!

A garota agarrou minha mão e entrelaçou nossos dedos. Apressei o


passo, seguindo até a saída e agradecendo mentalmente por meu paletó ser
escuro e esconder o sangue que eu sentia descer do meu braço.

— Minha chave! — pedi ao manobrista.

— Só um momento, saiko, o rapaz já…

— Estou com pressa… — Estendi a mão.


No mesmo instante a chave foi colocada em minha palma e eu
segui a passos largos até o estacionamento.
Sentia meu braço arder e formigar, mal conseguia movê-lo,
precisava sair logo dali ou não conseguiria dirigir e não podia contar com a
garota para uma fuga.

Destravei as portas e ocupei meu lugar junto ao volante, já dando a


partida e acelerando, enquanto Liandra prendia o cinto de segurança.

Arranquei portão afora, usando toda a potência do motor que o


esportivo tinha. Já era bem tarde, então encontramos uma estrada vazia e
não foi difícil deixar o condomínio para trás.

Peguei um caminho diferente, não queria colocar a segurança de


Musashi em risco caso fôssemos seguidos.

Estávamos em uma estradinha secundária que eu não tinha ideia de


onde ia dar, quando a dor no ferimento começou a me deixar zonzo.

— Encosta… — ela pediu, mas eu nem respondi, tinha que ir mais


longe. — Encosta, Samuel… Eu levo o carro…

Desviei os olhos da estrada por um segundo.

Samuel… — meus olhos subindo pelas pernas nuas dela, onde o


desgraçado do Ishiro a tocara. Samuel… Essa porra de nome está
começando a me incomodar…
Capítulo Vinte e Um
Liandra
Eu deveria estar assustada e amedrontada, mas não estava.

Ainda podia sentir o sangue pegajoso do desgraçado grudado em


minha mão, o cheiro do perfume dele em meu pescoço. Sem esforço, podia
ver os olhos estalados e moribundos, de quem já não via mais este mundo,
olhando para mim, mas tudo que eu conseguia pensar era que tinha que sair
logo dali e cuidar de Samuel.

O sangue começava a manchar o punho da camisa branca e eu não


tinha ideia do quanto o ferimento era grave, então insisti, sabia que ele não
ia desistir do controle facilmente.

— Ei! — chamei tentando soar sarcástica. — Acredite… Eu sou


um excelente piloto de fuga! — Pisquei sorrindo de canto.

Os olhos verde-amarelados dele se perderam nos meus por mais


um segundo, daquele jeito que quase me afogava. Foi então que ele freou,
assim do nada, fazendo meu corpo ir para a frente com o movimento,
mesmo de cinto.

Abriu a porta, descendo do carro, e eu aproveitei para pular para o


banco do motorista, sentindo o volante entre os dedos. Dei a partida e
acelerei, fazendo o motor rugir e sentindo a potência, depois enfiei o pé
mais fundo.

Fazia muito tempo que a Lia inconsequente dera lugar à enfermeira


organizada e cumpridora de regras, mas ali, naquele carro, eu descobri que
era mesmo verdade, ninguém muda a própria essência.

Pisei mais fundo, seguindo a estrada até que uma placa apareceu e
eu soltei um suspiro de alívio. Fazenda Esmeralda.
Girei o volante para a esquerda, agradecendo a pequena ajuda dos
céus. A família da Manuela tinha um sítio por ali e eu podia jurar que
estaria vazio naquela noite, já que era meio da semana e todos tinham sua
vida em São Paulo.

Desci o morro e entrei na estrada escondida no meio dos pinheiros.


Manu havia me mostrado aquele lugar nas últimas férias, quando tiramos
uma semana para não fazer nada juntas.

Parei em frente ao portão e desci, torcendo para que a chave


reserva ainda ficasse embaixo das pedras, aos pés da primavera que cobria o
toldo da entrada.

— Isso! — soltei agradecida quando achei o objeto metálico.

Destranquei o cadeado e abri os portões. Não demorou muito para


que fosse recepcionada por Brutus e César, os dois pastores belgas que a
família tinha.
— Ei, garoto, sou eu! — Mostrei a mão para o cachorro mais
velho, esperando que ele me reconhecesse.

O outro latiu, abanando o rabo e se aproximando para me lamber,


então logo César fez o mesmo.

Soltei um suspiro aliviado e entrei de volta no carro, assumindo o


volante.

Samuel suava de dor e eu podia imaginar o quão desconfortável


estava, pela maneira como as sobrancelhas vincavam sua testa.
Parei dentro da garagem dos fundos, assim, se alguém chegasse,
iríamos perceber antes de sermos vistos e poderíamos nos preparar.
Desci e dei a volta rápido, para tentar ajudá-lo, mas ele saiu antes
de mim.

— Vem, Samuel!

Tentei segurar sua mão, mas antes que conseguisse ele me agarrou
pelo queixo, a mão boa escorregando até meu pescoço, mantendo minha
cabeça elevada.
Prensou-me contra o carro com o corpo encaixando-se em mim, os
olhos escuros, de algo que eu não conseguia definir, fixos nos meus.

— Meu nome não é Samuel… — sibilou, fazendo-me engolir com


dificuldade graças ao aperto em minha traqueia.
Ele estava reativo, tomado pela adrenalina, não era o homem
controlado e frio de sempre. Levei a mão até seu braço machucado,
tocando-o com leveza e cuidado.

Elevei o corpo, alcançando seu ouvido.

— Então me diga seu nome… — sussurrei.

Ele fechou os olhos e suspirou pesado, fazendo uma onda de calor


se dissipar por todo o meu corpo.
Os lábios tocaram minha pele com suavidade, um resvalo, que
acendeu uma chama tão grande que eu me sentia consumir. Parou perto do
lóbulo da minha orelha, respirando quente ali.

— Shin…

Minha mão escorregou do seu braço até o peito, espalmando ali,


sentindo seu coração.
— Shin… — repeti e mordi o lábio, estava me perdendo. —
Combina bem mais com você!

No mesmo instante a mão que segurava meu pescoço desceu pelo


decote, arrepiando os bicos dos meus seios até se perderem na cintura,
girando pelo quadril e me impulsionando para cima, sobre o capô do carro.

Separei as pernas permitindo que ele se encaixasse no vão delas e


senti o zíper da sua calça sendo baixado. Ofeguei, assim que a carne macia
da glande tocou meus lábios íntimos. Abri a boca para falar que deveríamos
entrar primeiro, que ele estava machucado, mas não tive tempo.

— Ahhhh… — gemi, quando me penetrou forte, preenchendo e


fazendo tudo em mim pulsar descontroladamente. — Hum… — gemi
novamente, depois da primeira estocada.

Minha cabeça girava, as unhas cravadas em suas costas, por baixo


do paletó, as pernas prendendo-o pela cintura.
— Ahhh… — mais um gemido.

Separei meus lábios assim que senti o toque dos dele, queria beijá-
lo mais do que queria ar, mas não foi o que ganhei.

— Meu nome… — sussurrou contra minha boca, a mão apertando


minha bunda e prensando-me contra seu quadril, tão fundo que era quase
doloroso. — Fala! — exigiu.

Joguei a cabeça para trás, estava à beira do precipício e tudo que


mais queria era pular.
— Shin… — soltei mordendo o canto da boca, embriagada de
tesão.
Seus dedos agarraram meu cabelo, perto da nuca, girando e
prendendo, guiando minha boca até onde ele desejava.

Sua língua invadiu o espaço com tanta vontade que tudo que
consegui foi me entregar ainda mais, cedendo tudo que ele queria e
aproveitando o que me fazia sentir.

— É isso! — Encarou-me com os olhos escuros de desejo e poder.


— A partir de agora é só esse o nome que você vai gritar… Ouviu? —
inquiriu.

— Uhum… — balbuciei perdendo o foco, estava quase sem


controle.

Shin puxou mais forte meu cabelo, cheio de posse, como quem
comanda o arreio de um cavalo.

— Como? — insistiu.

Lambi meu próprio lábio, oferecendo a ele.


— Sim, senhor… — soltei um pouco mais alto, encarando-o.

O riso que brotou em seus lábios foi cheio de luxúria e


deliciosamente perfeito. Tanto que não resisti, puxando sua boca para a
minha.

Ele debruçou um pouco o corpo sobre o meu, atingindo o ponto


mais sensível dentro de mim, e então eu me perdi. Os gemidos ficaram mais
fortes, mais altos e intensos, e quando gozei achei que ia desmaiar. Cada
pedaço de mim formigava, pulsava, a pele quente, o corpo mole, até que
Shin jogou a cabeça para trás, apertando os olhos e se permitindo ir
também.
Foi só quando voltei a mim, que percebi o sangue manchando
minha perna, onde a mão dele tocava.

— Meu Deus do céu, que loucura! — Alisei os cabelos para trás


piscando para afastar a letargia. — Você sangrando e a gente aqui… —
Movi a mão inconformada.

O mestiço deslizou a mão pelo cabelo suado.


— Pelo menos se for me costurar agora, chiisai… Já estou
anestesiado!

Deu um passo para trás e bateu a mão no bolso do paletó,


procurando pelo cigarro.

Desci e ajeitei o vestido. Estava frio e, agora que ele havia se


afastado, senti-me arrepiar.

Shin parou na porta da garagem e levou o cigarro à boca, dando


um trago longo.

— De quem é a casa? — perguntou.

— Uma amiga do trabalho…

— É segura?

— Por agora sim…, mas é melhor a gente sair antes do amanhecer,


caso algum vizinho perceba e estranhe…

Aquiesceu sem dizer nada.

Peguei a chave que havia guardado na porta do carro e parei ao


lado dele.

— Vem… Vamos fazer um curativo no seu braço para conter o


sangramento, pelo menos.
Abri a porta dos fundos e indiquei o caminho. Manuela era de uma
família de médicos, então eu tinha certeza de que caixa de curativos não ia
faltar naquela casa.

Seguimos até o banheiro e eu o ajudei a se livrar do paletó, depois


da camisa. Shin sentou-se na tampa do vaso sanitário e apoiou o braço na
pia.

O tiro havia pegado de raspão e, certamente, atingido algum vaso,


já que sangrava mais do que um ferimento daqueles costumava sangrar.

— Você estava certo… — avisei já procurando pelo fio de sutura.


— Vai precisar de pontos! — Ergui uma sobrancelha, esperando alguma
reação dele.

Shin deu mais um trago no cigarro e se ajeitou, encostando a


cabeça na parede.

— Seja rápida… — ordenou. — Preciso de um banho e uma


bebida forte…

Meus olhos se perderam na corrente pendurada em seu pescoço,


brilhando na pele clara.

O que será que há escondido ali? E por quê?

Abri o pacote estéril e comecei o procedimento. Separei também


um comprimido do analgésico mais forte que havia na caixa e passei para
sua mão. Sabia muito bem que aquilo não era algo que uma enfermeira
fizesse, mas tinha aprendido bem cedo com Musashi que a necessidade faz
o ladrão e, modéstia à parte, eu era muito, muito boa no que fazia.
— Pronto! — avisei e ele se levantou, já se livrando da calça e da
cueca. — Vou guardar as coisas e ver se encontro uma roupa para você…
Peguei a maleta de primeiros socorros e guardei de volta no
armário, ganhando o corredor.

Eu sabia que encontraria roupas limpas para nós dois e, por mais
errado que fosse, era uma daquelas situações em que se tem que fazer o que
for necessário e arcar com as consequências depois.

Entrei no closet do quarto de Manuela e peguei uma legging e uma


blusa de frio para mim, além de roupa íntima. Para Samuel, uma calça de
moletom e uma camiseta. Aproveitei para deixar um recado escrito no
bloco de notas, avisando que tivera um problema com o carro e precisara
passar a noite ali com o meu namorado.
Era estranho e abusivo? Era! Mas o que mais eu podia fazer?

— Aqui! Consegui roupas lim… — Parei a frase no meio,


admirando a beleza e o poder que emanava do desgraçado do mestiço bem à
minha frente.

Olhos fechados, deixando a água cair nos cabelos, enquanto a mão


ensaboada alisava o peito forte e musculoso. Soltei um suspiro e acabei
pega em seu olhar.

Queria desviar e não parecer tão boba, mas não consegui. Shin
abriu a porta de vidro e estendeu a mão.

— Vem…
Ato III
Remissão
Uma alma sem respeito é uma morada em ruínas. Deve ser
demolida para construir uma nova.
Bushido
Capítulo Vinte e Dois
Shin
Puxei-a para dentro assim que sua mão me tocou, prensando-a
contra a parede de azulejos e moendo sua boca com a minha.

Tinha ficado duro no instante em que vi como me olhava. Eu


gostava de ser desejado e admirado, mas com ela tinha um sabor especial.
Era muito melhor dominar alguém que não foi criada para servir.

— Ah… — gemeu quando a penetrei novamente.

Eu podia jurar que estava dolorida pelo quanto seu canal apertava
meu pau. Era pequena e delicada ali também, o que só me deixava mais
faminto para tomá-la com a intensidade de que eu gostava.

Sustentei-a com o braço bom, enquanto ela se prendia em meu


pescoço. o rosto corado, afogueado de desejo, a boca entreaberta,
procurando pela minha.
Tracei seu lábio inferior com o polegar, sentindo sua língua em
meu dedo. Era quente e macia, tudo que eu conseguia pensar era em como
seria quando aquela boca carnuda e desenhada à perfeição engolisse meu
pau com a vontade que tinha estampada em seu rosto.

— Ai! — reclamou quando fui mais fundo, mas não me soltou,


então eu continuei.

Apertei sua bunda, esfregando minha pelve na dela, queria vê-la


gozar de novo. Liandra ficava ainda mais bonita quando tinha meu pau
dentro dela. Era perfeito, o encaixe perfeito.

— Shin… — balbuciou quando eu a senti gozar.


Desci a boca em seu pescoço, beijando e mordiscando, era muito
melhor ouvir meu nome do que Samuel.
Quando terminamos, eu a coloquei no chão e continuei o banho.
Deixei o boxe e peguei uma das toalhas brancas dobradas no nicho do
armário.

Liandra fechou o chuveiro em seguida, empurrando a porta de


vidro. Parou com a mão no queixo e ficou me encarando. Um sorriso
divertido brilhando em seu rosto bonito.
— Se continuar assim, vou começar a cobrar ingresso… —
brinquei.

— Engraçado… Eu sempre achei que os japoneses fossem


menos… — Parou a frase no meio e girou os dedos, os olhos encarando-me
na altura da cintura e fazendo-me rir.
— Estou aqui para quebrar paradigmas, chiisai… — Ergui uma
sobrancelha, sarcástico, e ela riu alto, mas o riso morreu logo.

Eu entendia bem daquele peso que via em seus olhos, convivia


com ele desde que nasci. Nada nunca era tranquilo por tempo suficiente.
Aquela sombra da vida que levávamos estava sempre ali, à espreita.

Instintivamente, levei a mão ao relicário e Liandra desviou o olhar.


Era isso, a vida real e tudo que ela cobrava de nós.

— Vamos sair logo daqui… — avisei já vestindo a roupa que ela


havia separado para mim. — Quanto antes, melhor.
A garota aquiesceu e deixou a toalha molhada sobre o vaso
sanitário, ocupando-se de vestir roupas limpas também.
Juntei as peças sujas de sangue e saí do banheiro atrás dela, até a
cozinha, perto de onde o carro estava. Destravei as portas e enfiei tudo em
um saco preto, dentro do porta-malas.

— Quer que eu dirija? — ela perguntou parando ao meu lado.

— Não. A dor está controlada.


A garota não insistiu, em vez disso, ocupou seu lugar ao meu lado.
Olhos mirando a estrada escura e silêncio absoluto.

Eu também não estava muito disposto a conversas, não era uma


situação que eu costumava viver. A maioria das mulheres com as quais me
divertia ficavam nas camas dos hotéis e clubes que eu frequentava, nunca
voltavam comigo para casa.
Era bem tarde da noite e a estrada estava vazia. Eu havia
aproveitado a recepção para trocar informações com algumas pessoas que
sabia que seriam aliados, caso eu precisasse, então quando a tela do meu
telefone acendeu com uma mensagem de Sugoi eu já imaginava do que se
tratava.

Dirigi até uma farmácia aberta e então parei.

— Espere aqui e fique alerta, se perceber algo, assuma o volante


— avisei e ela aquiesceu.

Abri a porta do carro e segui para dentro da loja. Precisava de mais


analgésicos e uma pílula de emergência. A última coisa que queria era uma
consequência nada agradável da merda que havia feito com ela.
Precisava também de um pacote de preservativos, porque, se bem
me conhecia, não seria a última vez.
A garota podia ser filha do desgraçado do Chaska, mas fodia bem
demais e ainda ia me servir como calmante. Corri as mãos pelo cabelo,
ajeitando minhas compras em uma cesta. Pau satisfeito, cabeça de cima no
controle.
Paguei as compras e abri a mensagem que Sugoi, um dos kyodais,
havia me mandado.

“Você tinha razão sobre Minoru… Parece que as coisas não


aconteceram exatamente como seu avô contou.”

Tentei retornar a chamada, mas caía direto na caixa postal. Ou


Sugoi estava comendo uma puta ou em apuros e, de qualquer jeito, não ia
parar o que estava fazendo para me atender.

Parece que as coisas não aconteceram exatamente como seu avô


contou…
Caminhei até o carro e ocupei meu lugar ao volante.

Ninguém jamais havia ousado questionar a maneira como meu avô


herdara o controle da organização, já que ele era o homem de confiança de
Akira Minoru, o antigo oyabun.

Naquela época, em que a palavra de um homem bastava e tudo era


escrito à mão em cadernos de couro, meu avô conseguira uma prova
irrefutável de que Minoru estava roubando a organização. Então, quando
apresentou a cabeça do chefe em uma caixa de seda japonesa, os associados
não tiveram outra opção a não ser oferecer-lhe o cargo mais alto, dada sua
lealdade e bravura, em nome da família que passou a se chamar Nakai-
Gumi.

Eu cresci ouvindo sobre o quanto meu avô era justo e honesto. Por
muito tempo, realmente acreditei que ele era um grande oyabun e que meu
pai era apenas invejoso demais para aceitar que nunca seria tão bom, mas,
naquela fatídica viagem ao Peru, ouvi pela primeira vez, depois de tanto
tempo, o nome Minoru.
Encarei a garota pelo canto dos olhos, sem que ela percebesse.
Estava calada, nenhuma palavra por todo o trajeto. Mãos cruzadas sobre o
peito, como se quisesse se proteger; do frio ou de mim.

Estacionei na vaga e desci sem dizer nada. Ainda tinha perguntas


demais pairando em meus pensamentos.

Por que Ishiro estava com dois latinos?

Que é um filho da puta nunca tive dúvidas, mas os homens da


emboscada na festa não se pareciam nem um pouco com os tekiyas do meu
avô…

Subimos pelo elevador, Liandra mirando o chão, e eu, o teto. Era


exatamente por isso que eu preferia encerrar minhas fodas aos pés da cama
e com algumas notas de cem. Esse papo todo de dia seguinte não
funcionava comigo.

Digitei a senha na fechadura eletrônica e abri a porta, mas, antes que


a garota passasse para dentro, entreguei em sua mão a caixinha da pílula de
emergência.

Seus olhos mal passaram pelos meus, e ela seguiu direto pelo
corredor, perdendo-se na porta do quarto.

Acendi um cigarro e tomei um pouco de água, encarando os


primeiros raios de sol no horizonte. O colar da minha mãe que havia se
perdido em Cusco… Latinos ao lado de Ishiro… A filha do Chaska… O
nome de Minoru de volta… Por que diabos os peruanos estavam em todas
as merdas da minha vida?
Esfreguei o rosto, irritado, até que percebi a garota parada junto à
entrada do corredor. Braços cruzados na frente da blusa de moletom cor-de-
rosa, cabelos presos em um coque alto, meio bagunçado, e aquele olhar
direto e corajoso que tinha.

— Venha até o meu quarto… — pediu.

Bonita, delicada, gostosa para inferno e uma porra de uma faca de


dois gumes… Eu preciso deixar claro que não somos amigos e que o que
aconteceu na noite anterior não muda isso!
Dei alguns passos e parei em frente a ela.

— Sei que ficou impressionada com o meu pau, mas vai ter que se
resolver sozinha… Não estou muito disposto a foder agora… — provoquei.

Sabia que isso a deixaria irada e quando ficava irada ela era reativa,
o que tornava o sexo mais divertido e o pós-foda mais fácil.

A garota riu sem humor, erguendo uma sobrancelha desafiadora


para mim, e depois desceu o olhar pelo meu corpo.
— Não fique muito emocionado, mestiço… — Ergueu uma
sobrancelha provocadora. — Pau não é item de coleção na minha vida!

Venci o espaço entre nós mais rápido do que deveria, mas, antes de
fazer besteira, parei. Não ia ser eu a perder a calma.

— Vamos fazer o que no seu quarto então? Jogar xadrez? — Cocei


a barba por fazer no bom e velho estilo cafajeste, aumentando a pulsação da
veia irritada em sua têmpora.
— Vamos falar do colar… — pegou-me de surpresa e eu parei. —
Tenho algo a contar, mas antes preciso expor minha condição…
Franzi o cenho sem entender, controlando o ímpeto de segurá-la
pelo pescoço novamente.

— Escute minha condição antes de decidir… — continuou, sem


que eu pudesse dizer algo. — Eu quero fazer parte! — pediu. — Não
importa o que, ou onde, eu vou com você… — Suspirou, desviando o olhar.
— Se meu pai matou mesmo a sua mãe, então quero entender o que o
motivou… Se devo odiá-lo, quero saber o porquê!

Encarei os olhos castanhos a minha frente.

Entendia exatamente o que ela queria dizer. Tinha vivido aquela


sensação e sabia que era um pedido justo.

— Então… — chamou já virando as costas. — Você vem?


Capítulo Vinte e Três
Liandra
Assim que virei as costas, soltei o ar que estava segurando.

Filho da puta convencido e arrogante!

Eu queria acertar a cara dele com um tapa bem dado, daquele tipo
que estala deixando uma marca bem vermelha e inchada, mas não era
idiota; sabia que, se o fizesse, cairia no jogo dele.

Parei em frente à porta do meu quarto e esperei que Shin passasse


por ela, fechando logo em seguida.

Musashi e o enfermeiro estavam dormindo, mas eu queria garantir


que não fôssemos interrompidos.

Caminhei pelo quarto, passando pelo homem parado ali e levei


alguns segundos estudando seu rosto, depois baixei os olhos para a
tatuagem em sua mão.

Eu queria contar sobre a informação do colar, mas tinha medo de


estar, como ele mesmo dizia, dando munição ao inimigo. Não ia ficar burra
só porque tínhamos transado e nem ia baixar a guarda para um homem
como ele.

— Qual sua relação com Kazuo Nakai?

O mestiço riu.

— Achei que íamos falar sobre o colar…


— E vamos, mas antes preciso saber com quem estou lidando… —
Apontei para a mão dele. — Se você e o Nakai têm essa tatuagem e nenhum
outro yakuza tem, então alguma relação deve existir…
Shin alisou os cabelos com as mãos e depois virou-se em direção à
porta.
— Caso não tenha ficado claro, chiisai, não tenho paciência nem
tempo para joguinhos… Preciso descobrir por que metade da Yakuza está
atrás dessa porra de colar!

— Eu sei o porquê… — joguei.


Shin parou e girou nos calcanhares, encarando-me com os olhos
escurecidos de algo poderoso. Senti meu sangue gelar e dei alguns passos
atrás, enquanto ele avançava em minha direção.

Franziu o cenho e elevou o braço, então eu me adiantei.

— Eu só quero saber se posso confiar em você! — Levantei as


mãos em sinal de rendição.

— Não pode! — falou de imediato, mas deteve a aproximação. —


Não sou seu amigo, não trabalhamos juntos… Eu sou um lobo solitário,
chiisai…, mas não costumo morder a mão que me alimenta… A menos
que… — Baixou o olhar, umedecendo os lábios, o pensamento longe. —
Ela mereça.

— Você é um Nakai? — insisti. — Por isso tem um cargo alto


sendo tão jovem? Olha… — Ri sem muito humor, encarando seu olhar. —
Posso não entender muito de organizações criminosas, mas, para chegar tão
longe assim com a sua idade, deve ter algo a ver com sangue e essa…

— Tem a ver com sangue… — foi tudo o que me disse. — Agora


me conte o que sabe e eu decido se você merece saber mais… — Coçou a
barba. — Não estamos negociando aqui… Caso não tenha percebido…
Pensei por alguns instantes. Ele tinha razão.
Se eu não lhe contasse o que sabia, só iria atrasá-lo, mas ele daria
um jeito de descobrir; já eu, se não fosse incluída em seu plano, jamais
saberia o que realmente havia acontecido com o meu pai.

— Deixe-me mostrar uma coisa a você…

Durante o caminho de volta, eu havia desbloqueado um montão de


memórias adormecidas. Os anos de terapia não eram páreo para esfaquear
um homem a sangue-frio e fugir com um yakuza em alta velocidade pelas
ruas de São Paulo.
Shin enfiou a mão por dentro da camiseta e retirou o cordão do
pescoço, entregando em minha palma.

Sentei-me na cama.
Um dia, quando cheguei do colégio e vi meu pai mexendo no colar,
havia um pedacinho de papel em sua mão, onde ele anotava algo, que eu
não fui capaz de ler. Só quando guardou de volta no lugar, percebi que na
verdade não era papel, e sim a fotografia.

— Quem é, papai? — Apontei o dedo para a moça bonita, que


segurava um bebê.

— Alguém com quem eu falhei… — confessou.

Alguém com quem eu falhei… — Suspirei.


Com a ponta da unha, tentei soltar a fotografia, mas, antes que
conseguisse, o mestiço o tomou da minha mão.

— Não seja boba, existe uma moldura, a foto é fixa… Por que quer
arrancar?

Segurei firme, impedindo-o de recuperar o relicário.


— Talvez tenha sido fixo algum dia… — Forcei a unha na
fotografia, descolando um pedaço pequeno. — Não é mais…

Puxei o papel com o máximo de cuidado, mas, ainda assim, ele se


rasgou no final, encobrindo o último número do que parecia uma
coordenada geográfica.

O mestiço puxou o papel da minha mão no mesmo instante,


segurando-me pelo queixo com a mão livre. Não era um toque gentil, então
fiquei imóvel, sabia o quanto tudo aquilo custava a ele.

— Como sabia disso?

— Mus… Musa… — tentei falar, mas não conseguia mover a


mandíbula, por causa do seu aperto.
Levei a mão até a sua, tocando suavemente, os olhos perdidos
naquela imensidão esverdeada.

— Musashi… — falei esfregando o local dolorido. — Musashi me


contou ontem, pouco antes de você chegar, que havia uma anotação no
colar… — confessei. — Ontem depois de tudo… — Baixei os olhos,
sentindo-me estranhamente fragilizada. — Acabei me lembrando do dia em
que vi meu pai escrever isso aí…

Shin ficou encarando a anotação atrás da foto por alguns instantes.

— Vai dizer o que está pensando? Eu não tenho bola de cristal,


sabia? — perguntei irritada, mas ele me ignorou.
Em vez de responder, pegou o celular no bolso e tirou uma foto,
enviando para alguém. Depois fez uma ligação, toda falada em japonês.

Eu consegui entender “coordenadas” e “você consegue”, então


supus que estava pedindo a alguém que decifrasse o código numérico que
meu pai havia escrito.

— Conseguiu? — inquiri assim que ele desligou, recebendo uma


levantada de sobrancelha em resposta. — Eu não sou idiota, Shin Nakai…
— supus. — Sei que são coordenadas. Provavelmente, você vai pedir a
alguém para usar inteligência artificial e recuperar o que falta na
anotação… — Cruzei os braços na frente do corpo. — Sou boa em
deduzir…

O mestiço riu.

— É boa em fantasiar também…, mas dessa vez você acertou… —


Focou os olhos nos meus. — Sou Shin Nakai… O neto…, mas como deve
imaginar… não ando nas graças do meu avô… — debochou.

— O que aconteceu? Por que ele o está caçando assim? Aqueles


homens… Os do beco… Então…

— Viu só? Eu disse que você era boa em fantasiar… — Riu mais
uma vez, mas seu rosto ficou sério e letal rápido demais. — Não se
empolgue, chiisai… Não estamos trocando confidências aqui…

Deu-me as costas e eu senti uma onda de irritação tomar conta de


mim.
— Você concordou! — elevei o tom, soltando a raiva entredentes.

O mestiço voltou-se de frente.

— Com o que, exatamente, supõe que eu tenha concordado?


— Em me dar respostas! — subi mais uma nota. — Eu disse que
só ia contar o que sabia se você me incluísse!
— São coisas diferentes… Dar respostas e incluí-la no plano… —
debochou, irritando-me mais. — Faça uma mala pequena e separe seus
documentos… — instruiu. — Vamos para o Peru assim que eu agendar um
voo… — Deu mais alguns passos e só voltou a me olhar quando já estava
na soleira da porta. — Musashi fica… Então cuidado com o que conta a
ele…

Sumiu porta afora e eu fiquei ali, sentindo o gosto amargo de ceder


o controle.

Tentei descansar um pouco, mas tudo que consegui foi rolar na


cama de um lado para o outro até que o relógio marcou sete da manhã.
Abri o armário, peguei a bolsa de viagem que havia visto quando
troquei as roupas de Manuela.

Shin provavelmente havia contratado uma empresa de organização


porque o armário do quarto em que eu estava hospedada tinha tudo que
alguém pode precisar para viver.
Separei as lingeries, montei um nécessaire com produtos de
higiene pessoal e depois fiquei parada na frente do cabideiro.

Cusco… Como será que é o clima naquele lugar?

Eu tinha pequenos flashes do meu pai contando sobre como era


viver em uma fazenda no altiplano e que sempre tinha que sair de casa
cheio de roupas porque nunca sabia quando o clima ia mudar.

Suspirei. É, pai… Parece que vou finalmente entender melhor


você…

Quando terminei a mala, segui direto para o quarto do meu outro


pai. Queria ver como Musashi estava e, ainda que concordasse com Shin
sobre não contar os detalhes a ele, também não queria esconder tudo.

Para a minha sorte, o moletom de gola alta dava conta de esconder


as marcas roxas que poderiam denunciar as atitudes inconsequentes da noite
anterior.

Estava quase na porta, quando ela se abriu e o enfermeiro passou.


— Bom dia, dona Lia… — cumprimentou. — Seu sogro já está
acordado e tomando o café da manhã…

Sogro… Meu sogro… — Esforcei-me para segurar a revirada de


olho, Shin parecia bem mais filho de Musashi do que eu.

— Deixei a prancheta com as anotações da noite sobre a mesa de


cabeceira, seu marido me contou que você é enfermeira.

— Oh, sim, obrigada…


— Eu já vou então…

— Claro, bom descanso.

Empurrei um pouco mais a porta e passei por ela.


— Lia… Que bom que está em casa… — Musashi comentou
levando a xícara de café à boca.

Parecia tranquilo, mas eu o conhecia bem demais para acreditar


naquela nata de calma sobre sua superfície.

— Achei que estaria no trabalho… — continuou.

Sentei-me ao seu lado, na beirada da cama.

— Pedi férias… — Sorri, mas o suspiro me denunciou. — Ando


cansada e já estavam vencidas, eu… — tentei consertar, mas só piorava.
— Imagino que vá ao Peru com o garoto… — soltou na mesma
calma, como se não fosse nada de mais.

Eu não fazia ideia de como ele tinha descoberto tão rápido, mas
tentar negar só iria me fazer perder tempo, então fiquei calada.

— Tenha cuidado… Não confie rápido demais, mas também não


tente resolver tudo sozinha… — Estendeu a mão e entregou-me um pedaço
de papel. — Este é o telefone do policial… O que conseguiu o atendimento
naquele posto para mim… Se estiver em apuros, lembre-se de que você está
limpa… Não é como nós…

Soltei uma lufada de ar.

— Promete que vai se cuidar e ficar bom bem rápido? — pedi e


Musashi sorriu, mas sincero dessa vez.

— Sou duro na queda, querida… Às vezes envergo, mas nunca


quebro…

Abracei-o apertado.
Capítulo Vinte e Quatro
Shin
Você está limpa… Não é como nós… — as palavras ecoavam em
minha cabeça enquanto me afastava da porta do quarto.

Parei junto ao carrinho de bebidas na sala e enchi um copo com


uma bela dose de uísque. Não era verdade e eu sabia bem… Minha mãe não
era como nós, Yuki não era como nós e, ainda assim, a polícia não as
protegeu. É preciso um demônio mais forte para matar outro.

Virei o copo de bebida na boca e liguei a televisão. Era bom saber


o que os noticiários andavam comentando sobre tudo que tinha acontecido
na noite anterior.

Ishiro era um homem conhecido no Brasil. Sua vida pública era


ilibada e cheia de serviços prestados à comunidade. O típico modelo de alto
escalão da yakuza.

Abri o armário em busca de algo para comer. Nem lembrava


quando tinha sido a última vez que colocara algo que não fosse líquido na
boca.

Desisti assim que ouvi a aproximação da garota e peguei uma das


maçãs no cesto de frutas, limpando com a manga da blusa e levando à boca.

— Saímos em uma hora… — avisei ainda sem encará-la.

— Meu pai sabe… — contou.

Virei-me devagar.

— Espero que só o necessário…

— Eu não contei nada… Ele deve ter ouvido algo ou supôs certo…
Eu só não neguei que vamos ao Peru…
Aquiesci.

— Como está a recuperação dele? — perguntei.

Realmente me preocupava em deixá-lo, mas sabia que Terada


sensei era cuidadoso e esperto. Não teria se mantido vivo por tanto tempo
se não fosse.
Liandra abriu a boca para responder, quando um anúncio de
plantão jornalístico entrou na tela e ganhou nossa atenção.

— O corpo do advogado Alberto Ishiro foi encontrado dentro do


seu carro, em uma estrada secundária da Grande São Paulo. Havia sinais
de tortura e a polícia suspeita de sequestro seguido de assassinato. Por
enquanto ninguém foi preso.
Os olhos da garota estavam estalados na tela. Um pequeno
vislumbre de que ver um corpo que ela mesma havia ajudado a matar não
era algo comum em sua vida.

— Nagoya foi esperto… — comentei e ela voltou os olhos para


mim sem entender. — Ossos do ofício, chiisai… Seria difícil demais
explicar um corpo na cozinha de Issei Nagoya…

Passei por ela direto para o quarto, precisava arrumar minha mala e
não queria chegar atrasado no aeroporto.

Liandra ficou me encarando com aquele olhar de “não acredito que


a morte não te choca” que as pessoas geralmente têm, mas a verdade é que,
para alguém que viveu a vida que eu vivi desde os dezesseis anos, corpos
caídos pelo chão vão se tornando triviais. Hoje foi ele, amanhã posso ser eu
ou pode ser alguém que eu conheça, não faz diferença.
Separei algumas roupas e coloquei dentro da bolsa preta de couro.
Para a minha sorte, a empresa de organização tinha sido mesmo certeira na
escolha dos itens, então, ao menos por um tempo, eu não teria que me
preocupar.

Fechei a mala e tomei um banho rápido. Saí do banheiro de cueca e


parei em frente ao armário para vestir a calça, quando uma batida à porta
me fez virar.

— Posso entrar? — o sensei perguntou.


— É claro.

Continuei o que fazia, vendo-o se sentar na cama pelo reflexo no


espelho.
— Imagino que tenha muitas perguntas… — começou.

— Nenhuma para você… Se quisesse me contar o que sabe, teria


feito… — soltei passando o braço machucado pela manga.

— O Ishiro… — Parou a frase no meio.

— Já fazia tempo que eu queria resolver esse problema, agora que


não devo mais nada ao oyabun, pude finalmente agir.
— Foi assim que machucou o braço, e Liandra, os pulsos… —
Estava mais para constatação, então deixei que ele ligasse os pontos
sozinho.

— Lia é corajosa, garoto, mas é imprudente às vezes, então…

Virei-me em sua direção, abotoando a camisa devagar.


— Por mim ela nem iria, Terada sensei… Não gosto de carregar
excesso de bagagem por aí, como você bem sabe…, mas acho que vai fazer
bem a sua protegida descobrir que o telhado dela é de vidro também…
Chaska…

— Talvez não seja só ela que precise disso… — interrompeu-me e


eu afilei os olhos. — Há muito a ser descoberto, Shin-kun… Muito mais do
que você imagina… Sua mãe…

Soltei uma lufada de ar sem que quisesse. Odiava perder o controle


e demonstrar o que sentia.
— Sua mãe e Chaska eram amigos…

Segurei o ar, sentindo aquela pontada aguda no peito.


— Amigos não atiram no coração de outros amigos… — protestei.

— Às vezes uma morte digna…


Joguei a mala sobre a poltrona com força, fechando o zíper em
seguida.

— Se é só isso, paramos por aqui… — soltei entredentes.


O sensei se levantou devagar, apoiando a mão no colchão e
fazendo uma careta de dor. Estava machucado ainda e isso era muito nítido,
por mais que tentasse esconder.

— Ninguém deve pagar pelos crimes dos outros, Shin-kun… Você


deveria saber disso melhor do que ninguém…

Engoli em seco, sabia bem o que ele queria dizer.


Terada havia cuidado de mim quando me machuquei e me
protegido, mesmo sabendo que meu avô era um dos responsáveis por sua
queda na organização.
— Eu vejo como olha para ela, garoto… Vejo como ela olha para
você também e isso me assusta… — Bateu a mão em meu braço bom, um
tapinha de leve. — Aproveite essa ida ao passado e desenterre a faca que
carrega cravada em seu peito…
Meneei a cabeça em reverência, entendia o que ele queria dizer e
não podia negar, então deixei que meu silêncio respondesse.

— E você… — perguntei quando ele se aproximou da porta.

— Não se preocupe… Sei bem como ficar invisível,


principalmente agora que não estou em minha melhor forma…

— Ótimo… — Enfiei os pés no sapato e peguei meu paletó.

— Caso precise, tem meu telefone e o de Nicolas…

Terada aquiesceu e eu passei pela porta para encontrar Liandra


saindo do quarto.

— Estou pronta.

— Ótimo.

Assim que descemos até o estacionamento, o sedã com motorista já


esperava por nós. Eu não tinha ideia de quanto tempo ficaria fora, então
preferi deixar o carro guardado.

Estávamos a caminho do aeroporto, quando meu telefone vibrou


no bolso. Eu o peguei, certo de que seria Willian ou Nicolas, com alguma
informação, mas encontrei a foto de Yuki, com minha sobrinha no colo
brilhando na tela.

Guardei de volta tão logo a vi e continuei encarando a janela. Não


tinha dúvidas de que Yuki já sabia de algo e preferia pensar bem antes de
lidar com ela. Afinal, o apelido de kitsune não tinha sido dado a ela por
acaso.

Seguimos para dentro do aeroporto particular, em direção à pista.


O sedã parou e eu desci, com Liandra ao meu lado.

Um homem com uniforme da companhia de táxi aéreo se


aproximou.
— Podemos ir quando o senhor desejar… — avisou. — As
permissões já foram dadas.

— Imediatamente… — afirmei já cumprimentando a comissária e


o piloto.

Liandra e eu tomamos nossos lugares no jato executivo e o avião


levantou voo. Assim que atingimos o cruzeiro, a comissária veio até mim.

— Posso servir o almoço, senhor?


Levantei os olhos da tela do notebook.

— Sim, por favor.

Fechei o aparelho e o guardei de volta na mala. Sabia que


terminaríamos o almoço perto da hora do pouso, então teria que continuar
minhas pesquisas já em Lima.
A refeição que eu havia encomendado foi servida e eu levei o
primeiro pedaço de sushi à boca. Estava faminto e começava a sentir falta
de comida de verdade. Os lámens e porcarias de boate que eu andava
comendo iam acabar me matando de úlcera, antes que meu avô ou os
homens do Minoru o fizessem.
— Sei que não é muito fã do Japão, chiisai, mas deveria comer…
Vai acabar desmaiando de inanição assim… — constatei continuando meu
almoço.

Liandra se levantou em seguida e ocupou a outra poltrona, de


frente para mim.

Pegou os hashis e levou direto até o sashimi de linguado.

— Quem disse que eu não gosto do Japão? — Ergueu uma


sobrancelha. — Só não gosto de gente como você… — praguejou em tom
sarcástico.

Joguei a cabeça para trás, mordendo o lábio para reprimir o riso.


Eu gostava de ser provocado por ela. Era como um filhotinho de gato
mostrando as unhas para um tigre, divertido, empolgante e fácil de resolver.

Enchi o copo de saquê e o levei à boca, continuando meu almoço


em seguida. Liandra também seguiu comendo, mas parecia desconfortável e
meio sem jeito. Certamente nunca tinha entrado em um jato particular e
constatar aquilo me fez pensar em como tínhamos vivido vidas distintas,
apesar da pequena diferença de idade que tínhamos.

Era meio sádico e muito excitante pensar que, pelo resto da vida
dela, eu estaria em muitas primeiras lembranças.

Meu telefone voltou a tocar e eu o tirei do bolso apenas para


constatar que era a sétima vez que minha irmã tentava falar comigo.

Deixei o telefone sobre a mesa e soltei um suspiro. Garota difícil


de vencer!
— Você deveria atender… — a voz a minha frente me trouxe de
volta à realidade. — Pode ser importante…
— Não é! — afirmei, virando mais uma dose de saquê e deixando
os hashis sobre o prato. — Yuki tem essa mania de contro… — Parei a
frase no meio, quando percebi que estava falando demais.

Segui até o banheiro e fechei a porta. Já estávamos perto de


aterrissar e eu queria lavar o rosto.

Voltei para o assento pouco antes do aviso para afivelar o cinto.


Liandra não disse mais nada, nem eu, e mesmo depois de pegarmos
nossas bagagens e entrarmos no táxi, permanecemos em silêncio.

Lima continuava exatamente a mesma, desde a última vez que eu


pisara naquele chão, mas, para ser sincero, esperava sair de lá em melhor
estado desta vez.

Paramos em frente à entrada do hotel e descemos, caminhando


juntos até a recepção.

— Eu gostaria de uma suíte, por favor… Alta, de preferência… —


falei em espanhol.
— Duas… — Liandra interrompeu. — Você deveria…

— Já tivemos essa conversa, chiisai… — mudei para o português.


— E tenho certeza de que você não vai ficar tímida, caso me veja pelado…
De novo… — provoquei.

— Não seja presunçoso! É só que…

— Uma suíte, senhorita, por favor… — insisti, ignorando Liandra.

Peguei o cartão de acesso e segui até o elevador. Eu odiava as


suítes mais baixas em Lima por causa da poeira vermelha que grudava em
tudo, então estava bem feliz com o décimo quinto andar.
Abri a porta e coloquei a mala sobre a mesa, tirando os sapatos e
desabotoando a camisa. Deixei a carteira e o celular na mesinha de
cabeceira. Estava calor e eu odiava ficar suado. Queria aproveitar o tempo
de folga para descansar, já que Nicolas viria nos buscar bem cedo no outro
dia.

— Eu fico com a cama desta vez… — avisei. — Estou machucado


e com dor nas costas… Você é menor, pode bem se ajeitar por aí! — Girei a
mão pelo quarto, só para irritá-la um pouco mais.

Eu vejo como olha para ela… — as palavras reviraram meus


pensamentos. E como ela olha para você…
Capítulo Vinte e Cinco
Liandra
O mestiço mal tinha dormido, a garota ligou novamente.

Tentei reprimir o instinto de olhar a tela acesa do celular, mas não


era tão forte assim. Curiosidade sempre foi o meu fraco.

Não que eu estivesse interessada na vida dele, ou que fosse me


sentir culpada, longe disso! Eu não era comprometida, não devia nada a
ninguém.

Dei alguns passos e parei. Não toquei o aparelho, mas curvei o


corpo para ver mais de perto a fotografia. A garota parecia bem jovem,
talvez alguns anos mais nova do que eu. Tinha longos cabelos escuros,
desfiados e caindo em ondas perfeitas. Era muito, muito bonita. Com aquele
ar de nobreza que mulheres ricas têm.

Pensou o que, chiisai? — Revirei os olhos para mim mesma diante


do maldito apelido. É claro que esse filho da puta deve ter alguém. Aliás,
alguém não, alguéns! Provavelmente uma trouxa em cada lugar por onde
passa!

Não demorou e uma mensagem de texto em espanhol apareceu.

“Não acredito que vai me ignorar depois de tudo! Você tenta


esconder, mas é claro que eu já sei que…”

Engoli meu orgulho ferido e ele tinha um gosto bem desagradável.


Eu podia não ter culpa, mas sentia algo me corroer bem lá no fundo.

Soltei o ar dos pulmões e ia me afastar, quando Shin me agarrou


pelo braço, forçando-me a ficar de frente para ele.
— Matou sua curiosidade? Quer que eu desbloqueie a tela? —
Ergueu a sobrancelha sarcástico.
— Não! Mas acho que você deveria ser menos idiota e responder à
garota! Pode ser algo com a sua filha ou sei…

— O quê? — perguntou rindo.


— Crianças ficam doentes sempre… Para insistir tanto… — Dei
de ombros, não queria que ele cogitasse a possibilidade de eu estar com
ciúmes, já que, obviamente, não era nada disso.

O desgraçado se levantou ainda rindo e passando a língua pelo


lábio inferior. E eu era uma imbecil por ainda sentir meu corpo todo se
arrepiar só com a aproximação dele.
— Inger tem uma saúde de ferro… — continuou. — Mas estou
certo de que, caso esteja doente, o pai dela seja perfeitamente capaz de
cuidar disso…

Franzi o cenho por impulso, mas quando percebi já era tarde


demais.

— Está com ciúmes de mim, chiisai? — Riu um pouco mais. — O


yakuza filho da puta de quem você quer distância… Seria interessante, se
eu não fosse eu e você não fosse você! — pontuou, a testa vincada de um
jeito sério que fez meu sangue gelar.

Engoli em seco, lutando para aumentar a distância entre nós, mas


ele me encurralava mais a cada passo.
— A garotinha na fotografia é minha sobrinha… No colo da minha
irmã, caso não tenha se atentado às semelhanças de traços… — Bateu as
mãos no grande espelho, uma de cada lado do meu rosto, apoiando-se e
fazendo-me pular de susto. — Não que eu deva satisfação de algo, mas
homens como eu não se apaixonam… — Aproximou a boca da minha
orelha. — Não sentem saudade… Sequer se envolvem… — sussurrou e no
instante seguinte meu corpo foi girado, deixando-me de frente para o
espelho, seu peito colado as minhas costas.
O olhar que me lançava parecia tão intenso e perigoso que senti
uma onda de tremor tomar conta, as pernas amolecendo de um jeito ridículo
e aquela mistura de medo e desejo que ele despertava em mim me dopando
e paralisando.

Seus dedos subiram pelas minhas coxas e uma das laterais da


calcinha que eu usava foi rasgada, deixando minha pele marcada e dolorida.
Não demorou muito e a peça caiu no chão.

A mão espalmada cobriu meu sexo, fazendo uma onda de umidade


inundar o meu canal.

— Isso… — Pesou a mão, afundando um dedo. — É só o que


teremos… — afirmou sem desviar os olhos dos meus, ainda pelo reflexo.
— E não adianta vir com moralismo, chiisai… — Mais um dedo me
penetrou e, quando o tirou, usou a lubrificação para acariciar meu clitóris,
fazendo-me apertar os olhos para reprimir o gemido. — Você quer tanto
quanto eu…

Senti a glande macia se apertar contra a minha bunda e,


sinceramente, o que eu tinha a perder? Estava naquela para matar e morrer
mesmo, ao menos ia me divertir enquanto pudesse!

Empinei a bunda em sua direção e vi seus músculos se retesarem.


Shin se afastou por alguns segundos, levando a mão até a mesa de cabeceira
e pegando algo na carteira.
Rasgou o preservativo e eu não resisti, tomando de sua mão e me
abaixando para colocá-lo com a boca. Não queria pensar, só matar a porra
do tesão que aquele desgraçado me fazia sentir desde o primeiro minuto. Ia
me arrepender? Provavelmente! Mas isso era depois e eu nem sabia se
estaria viva mesmo.
Ajoelhei e ele separou as pernas, segurando-me pelo cabelo.
Levantei o rosto sem me afastar, encarando as veias saltadas abaixo do
umbigo, a marca dos músculos, até que encontrei seus olhos. Aquele sorriso
sacana que ele tinha, deixando claro o quanto sabia que o mundo era dele.

Senti meu coração se acelerar, antes mesmo de deixar escapar as


palavras, queria brincar com ele. Ver até onde ia.

— Outro dia você me perguntou se eu estava disposta a representar


o papel de puta para você… — Sorri. — Eu nem tive chance de te mostrar
minha melhor atuação…

Minha voz era sedosa e carregada da luxúria que eu nem precisava


fingir.
O mestiço mostrou as palmas e riu.

— Estou ansioso para o segundo ato, chiisai…

Deslizei a boca em seu comprimento, segurando a base com os


dedos e massageando, enquanto minha língua e lábios iam e vinham. Eu
tinha morado boa parte da vida em cima de um puteiro, minha bagagem
podia ser mais teórica do que prática, mas eu era uma excelente autodidata.

Depois de alguns minutos, a respiração do mestiço acelerou,


entrecortou e os dedos se enterraram entre meus cabelos, segurando com
força, empurrando minha cabeça no ritmo que ele queria. Jogou a cabeça
para trás, mas no último instante me puxou para cima, tomando o controle.
A estocada foi tão funda e repentina que apoiei as mãos no
espelho, a cabeça baixa, absorvendo a sensação de ardência e prazer. Shin
girou meu cabelo em torno da mão, elevando meu rosto.
— Olha… — ordenou. — Eu quero que você me veja…

Uma das mãos cobriu meu seio, beliscando o bico sensível,


enquanto a outra encontrava espaço entre meus pequenos lábios.
Agradeci por seu braço me sustentando, já que minhas pernas
formigavam e eu estava a cada segundo mais perto do precipício.

Minhas pálpebras tremeram de prazer.

— Olha! — reforçou o controle que tinha sobre mim. — Você não


queria ser a minha puta? Então precisa garantir que seu cliente está
satisfeito, chiisai… Não pode gozar até que eu diga que sim…

Mordi o lábio com força, tentando inutilmente controlar a onda


iminente de prazer, e girei o rosto, beijando e mordiscando seu pescoço.
Queria beijá-lo, mas beijos não faziam parte do papel que
representávamos ali, então o provoquei e depois baixei um pouco mais a
cintura, empinando a bunda para ele. Meus olhos no espelho eram
provocadores e ele esboçou um sorriso, antes de segurar firme meu quadril,
penetrando fundo e rápido.

— Hum… — Reprimiu o gemido e fechou os olhos, o aperto


perdendo intensidade, até que senti o primeiro espasmo.
Então me deixei ir também, apertando os dentes para gemer baixo.

Quando terminamos, eu me sentei no braço da poltrona, sentia que


ia desmaiar. As mãos formigavam e o suor escorria em minhas têmporas. O
cheiro dele estava impregnado em mim, o toque, as marcas em minha pele.
Baixei os olhos para o chão, buscando um pouco de sanidade
enquanto ele se livrava do preservativo. Ouvi quando o chuveiro foi aberto,
mas ainda não tinha certeza se conseguiria me mover.

Pouco tempo depois, Shin voltou ao quarto e pegou a camisa, sobre


o encosto da cadeira, vestindo-a. Calçou os sapatos e guardou o celular,
mas, em vez de guardar a carteira também, tirou um pequeno maço de notas
de cem e jogou na cama ao meu lado.

— Preciso sair, mas não vou demorar… Se quiser, pode pedir o


jantar…

Estava seguindo em direção à porta, quando o chamei.

— O que é isso? — Apontei para as notas na cama.

— Seu pagamento… — Amassou o maço vazio de cigarros, depois


de retirar o último. — Você até que mereceu! — Piscou, dando um trago e
soltando a fumaça para cima.
Capítulo Vinte e Seis
Shin
Saí do quarto direto para o térreo. Havia uma pequena loja de
conveniência no saguão e eu precisava de cigarro e uma bebida; mais do
que isso, precisava organizar os pensamentos.

Chaska e sua mãe eram amigos… E o filho da puta ainda teve


coragem de matá-la! É por isso que eu prefiro ter aliados a ter amigos…

Terada tinha razão. Eu não podia jogar a conta do pai em cima da


filha, não era nada justo. Liandra tinha sido honesta comigo desde o
princípio, inclusive em dizer que não gostava de mim.

Peguei os cigarros e passei o número do quarto para que o valor


fosse debitado na conta, depois segui direto até o bar.

O lugar não estava muito cheio e havia uma cantora em um


pequeno palco à direita da entrada. A música era suave e agradável, então
me sentei no balcão e pedi uma cerveja. Se ia beber até que a garota
dormisse, tinha que começar com algo mais fraco.

Dei o primeiro gole.

Eu não gostava dela também… Tinha aquele jeito intempestivo e


atitudes muito imprudentes. Eu nem conseguia imaginar como tinha
conseguido se virar sozinha por aí! Sorte de principiante… Só pode!

Dei mais um gole e peguei o telefone, retornando a chamada de


Yuki. Não demorou dois toques e ela atendeu xingando em japonês, o que
me fez rir.

— Também senti sua falta, kitsune… — falei com a voz suave,


reprimindo a vontade de rir mais.
— Falta? Você é um desalmado, onii-chan… Uma porra de um
desalmado! Se eu estivesse morrendo, teria morrido sem ouvir a voz do
meu irmão!
Não pude mais conter o riso.

— Para uma japonesinha meio europeia, você anda muito latina,


Yuki-chan! Foram apenas alguns dias e, acredite, eu estive muito, muito
ocupado!
— Quase um mês! — reclamou. — E você saiu fugido de Tóquio!
Aquele idiota do Will só me dava respostas evasivas… — Respirou contra
o telefone, como se precisasse se controlar, e eu acabei me sentindo
culpado. — Achei que estivesse morto!

— Eu estive… — confessei. — Algumas vezes…, mas, como você


bem sabe, um yokai não é fácil de matar…
— Discordo… — contestou. — Você não é um demônio, Shin…
Não é imortal também… — Mais um suspiro. — Onde está? Erik pode…

— Estou em Lima… Vou me encontrar com Nicolas em algumas


horas… — confessei, não queria mais mentir para ela. — Descobri algumas
coisas sobre nossa mãe… Quero investigar melhor…

O silêncio ganhou a linha por alguns segundos.

— Amanhã às cinco sai um voo de Roterdã… Encontro vocês na…


— Não, Yuki… — interrompi. — Não quero você metida em nada
disso… Por isso não tinha contado.

— Mas eu quero ajudar…


— Prometo que peço, se precisar… Uma hacker a distância é
sempre bem-vinda…

Mais um silêncio.

— Jure… Pelo código… Não quero que morra, Shin… Não desse
jeito, correndo e fugindo… Eu…
Sorri.

— Juro! — interrompi mais uma vez. — Também não pretendo


morrer correndo e fugindo, kitsune… Ainda tenho muito a viver…
Combinamos de ir àquela praia, lembra-se? A que íamos quando crianças…

Tentei mudar o rumo da conversa, não queria que ela se


preocupasse comigo. Yuki sempre fora meu calcanhar de aquiles.

— Amo você, onii-chan… Estou com saudades…


— Eu também, raposinha…

Desliguei no momento em que alguém se sentou ao meu lado e me


virei para ver Liandra. Usava uma blusa amarela que deixava sua pele
morena ainda mais bonita. Os cabelos estavam ondulados e soltos, caindo
pelos ombros. Deixei o aparelho sobre a bancada de mármore preto do bar.
— Uma cerveja! — pediu em espanhol, enquanto eu ainda a
encarava. — O quê? Até onde sei não sou sua prisioneira… Ou entendi
errado.

Dei um gole em minha bebida.

— Não é, mas precisa ser cuidadosa…


— Estou ao lado do saiko-komon… — Deu de ombros. — Deve
servir de algo!
Reprimi o riso, mas não protestei.

— Vejo que resolveu o assunto com a sua irmã… — comentou


sem me olhar, levando a long neck à boca.

Continuei em silêncio, então ela seguiu com a conversa solitária.


— Eu sempre quis ter irmãos… — Riu sem muito humor. — Deve
ser divertido ter com quem brincar… — Abriu o cardápio e começou a
descer o dedo pelos pratos. — Uma porção de anticuchos por favor!

— O que está fazendo? — Fechei o cardápio e peguei da sua mão.

— Vivendo! — elevou um tom. — Comendo, bebendo… Estamos


vivos, sabia?

— Não estamos de férias… — reclamei. — Mande embrulhar e


volte para o quarto.

Ia me levantar, quando ela segurou meu braço. Torci o pescoço,


encarando-a de soslaio.

— Sei que está ansioso para pegar o tal Minoru, mas a vida não
pode se resumir a tensão e sexo para aliviar a tensão!
Ergui uma sobrancelha sarcástica para ela.

— Pode, sim.

— É só uma bebida… Com um aliado…


Encarei-a por alguns segundos. Não estava de tudo errada. Não
havia perigo iminente e eu não poderia mesmo fazer nada até que Willian
conseguisse mais informações sobre a inscrição. Como procurar por algo
que eu nem sabia o que era bem no meio da floresta?
A mão de Liandra escorregou pelo meu braço e tocou a minha, mas
logo se afastou.

Sentei-me de volta na banqueta.

— Mais uma cerveja aqui! — Moveu o braço para o garçom.


— No Japão as mulheres não pedem bebidas para homens… —
critiquei.

A garota sorriu e levou a garrafa à boca novamente.


— Ainda bem que estamos no Peru, então!

Balancei a cabeça em negativa e me mantive em silêncio até que a


comida chegou.
— Oh… — Pegou um dos espetos de carne. — Parece bom!

Ia levando à boca com tanto gosto que eu resolvi avisar.


— É picante… — Bebi um gole da cerveja.

— Eu gosto de pi… — Parou de mastigar, abrindo um pouco a


boca para respirar. — Puta que pariu!

Não pude reprimir o riso, quando ela tentou levar a garrafa à boca
e constatou que estava vazia. Tentou chamar o garçom, abanando o rosto, os
olhos começando a lacrimejar.

Peguei minha garrafa e limpei o bico no guardanapo, passando


para as mãos dela.

Liandra bebeu tudo de uma vez, engolindo a comida junto e


suspirando quando a ardência melhorou.
Apontei o prato de espetinhos.
— Os com farinha são menos picantes… Os cobertos com o molho
vermelho nem preciso explicar, não é?

— Atrasado, padawan… Devia ter avisado antes!

— Padawan? — perguntei com vontade de rir.


— Ainda te falta muito para Jedi… — Deu de ombros. —
Controlar essa arrogância toda aí, por exemplo…

Ergui a sobrancelha e peguei um dos espetinhos com molho,


levando à boca. Não era a primeira vez que eu comia aquilo. Quando
crianças, Nicolas e eu costumávamos brincar de ver quem aguentava mais
pimenta e eu era muito bom nessa brincadeira.

— Posso perguntar uma coisa? — soltou de repente, mas não


esperou por uma resposta. — Por que limpou o bico da garrafa para me dar?
Quer dizer, eu…

— Pareceu higiênico… — confessei. — Não costumo compartilhar


coisas… — Os olhos dela me pegaram. — Fora da cama… — completei…
A garota levou a bebida para mais um gole.

— Deveria! — constatou. — As pessoas não mordem sempre,


sabe? Às vezes elas são legais…

Encarei-a por alguns segundos.

Isso é ainda pior… — pensei, mas limitei-me a beber minha


cerveja. Não queria entrar naquela conversa com ela.

Depois de mais duas cervejas e o prato de espetinhos, subimos de


volta para o quarto.
Troquei minhas roupas por uma calça de moletom e me deitei na
cama, apagando a luz do abajur.

Liandra ainda tentava se acomodar na poltrona.

— Pode dormir na cama, se quiser… — ofereci. — É grande o


suficiente…
A garota continuou o que fazia, então eu virei de lado e fechei os
olhos.

Não demorou muito para sentir o edredom se mover e ela deitar,


longe, bem longe de mim, junto à extremidade oposta.

Garota maluca! Perde um tempão pensando na razão que me fez


limpar o bico da garrafa e depois faz isso!

Dormi tão rápido que só acordei quando o sol começou a entrar


pela fresta da cortina. Tentei me mover, mas havia um braço delicado ao
redor do meu peito, os dedos acariciando minha pele por instinto, já que ela
ainda ressonava. Os cabelos espalhados pelo meu ombro, Liandra buscando
uma posição confortável.
As pessoas não mordem sempre… Às vezes elas são legais…

Ri sem muito humor.

Você devia ouvir o seu pai e não confiar tão rápido nas pessoas,
chiisai… Eu sou do tipo que morde, não do tipo legal…

Limpei a garganta esperando que ela acordasse e funcionou. Assim


que percebeu, a garota se afastou de mim como se meu corpo pegasse fogo.

— Desculpe! — pediu sem jeito. — Eu me mexo muito quando


durmo, e…
— Acontece… — Levantei-me e segui para o banheiro, não era
nada de mais.

Tínhamos acabado de nos vestir, quando o telefone do quarto


tocou.

— O senhor Huamán no saguão, Sr. Hitachi.

— Ok — respondi e desliguei, voltando a atenção para Liandra. —


Vamos! Nossa carona chegou.

Peguei a bolsa de viagem e desci pelo elevador, ao lado dela.

Assim que as portas se abriram, vi Nicolas parado lá. Usava um


terno cinza-claro com camisa azul-marinho e aqueles óculos escuros
redondos de que tanto gostava.

— Ele não é o cara dos hotéis?

— Ele mesmo…

— Então ele…

— Não! Nicolas não é um dos meus… Pelo menos não do jeito


tradicional! — Sorri de canto.
Capítulo Vinte e Sete
Liandra
— Então essa é a garota… — o homem à nossa frente falou.

Era bonito e elegante, com aquele ar de perigo que faz a gente


temer mas não se afastar.

Pensei em estender a mão em cumprimento, mas por alguma razão


me detive. Shin deu um passo à frente, assumindo a mesma postura que
tivera no dia da festa.

— Liandra… O nome dela… — explicou.

— A filha do Chaska… — O peruano ergueu a sobrancelha com


um ar divertido.

— Você conheceu o meu pai? — perguntei curiosa.

— Não! Mas conheço alguém que conheceu e ela está ansiosa para
vê-la, Liandra…

— Lia… Pode me chamar de Lia… — consertei.

Caminhamos ao lado do dono dos hotéis até um sedã luxuoso e,


depois que nos acomodamos, seguimos pelas ruas de Lima. Nicolas no
banco da frente, ao lado de um homem de pescoço tatuado e brinco de cruz,
Shin e eu no banco traseiro.
Meus olhos estavam focados na cidade que eu via pelo vidro, mas a
tensão se mantinha na conversa cheia de códigos que os três tinham. Algo
sobre ir a uma fazenda, procurar no meio da selva e manter o pasto limpo.
Imaginei que não era de bois que falavam e senti aquela picadinha
de formiga na consciência. Estava no olho do furacão. Cercada de bandidos,
indo atrás de respostas que eu nem sabia se queria ter.
E você pensando que namorar um médico rico ia te tirar da zona de
conforto!
Entramos pelos portões de um aeroporto particular e nos
aproximamos de um helicóptero.

Shin desceu, então eu segui atrás dele como um cachorro perdido,


direto para dentro da aeronave.
Seguimos os procedimentos de segurança e levantamos voo.
Rapidamente, a paisagem foi mudando, tornando-se mais verde, e o ar, mais
difícil de respirar. Quando nos aproximamos do ponto de pouso, baixamos
rápido e senti tudo escurecer, meio zonza e sem ar. Apertei o braço de Shin
por instinto, mas quando percebi retirei.

— Efeito da altitude… — explicou junto a minha orelha. — Respire


devagar…
Fiz o que pediu, controlando a vontade de puxar tudo de uma vez e,
quando pousamos, já me sentia um pouco melhor.

Nicolas desceu primeiro, seguido do homem tatuado. Shin foi o


terceiro e estendeu a mão para que eu segurasse.

Pisei no apoio junto à porta e senti tudo escurecer novamente. Achei


que fosse cair, mas seu braço forte me amparou.

— Devagar, chiisai… O altiplano é traiçoeiro… — Esboçou aquele


sorriso sacana que tinha.
Meus olhos se perderam nos dele naquela fração de segundos, mas
logo voltei a piscar, retomando o controle e soltando-me do seu apoio.

— Vou pedir ao Nacho que leve a garota até o hotel, você e eu


vamos até a prefeitura… — Nicolas avisou Shin enquanto caminhávamos
na direção de um carro elegante. — Os mapas daquela região ainda não
foram digitalizados…

O mestiço parou o pé no ar por um segundo, como se estivesse


decidindo algo importante.

— Prefiro ir com vocês… — interrompi. — Estou aqui pelas


informações.
O peruano voltou os olhos para os meus e coçou a barba cerrada,
aparada com perfeição. Esboçou um sorriso e voltou-se para Shin, como se
esperasse por uma resposta que não teve.

— Listo! — falou em um espanhol arrastado e difícil de


compreender. — Pegamos os mapas e seguimos direto para a fazenda…
Vou avisar a Tia Lupe para preparar o almoço.
Era pouco mais de meio-dia, quando avistei uma bela casa de
fazenda, no alto de um vale.

— Ainda acho melhor a garota e eu ficarmos em um hotel… — o


mestiço protestou.

— Sabe que, se fizer isso, terá que lidar com as consequências…

Parecia sério, mas no fim das contas os dois riram e eu fiquei sem
entender.
Paramos junto ao jardim na entrada e descemos.

Não demorou muito para que uma bela mulher de cabelos longos e
claros viesse até o nosso encontro.

— Voltei, corazón… — Nicolas a beijou, passando o braço em torno


dos seus ombros. — Esta é Lia… — apresentou-me. — Veja se ela precisa
de algo e providencie, por favor… Na casa dos Huamáns os convidados são
tratados como reis! — gabou-se. — Lia, esta é Verônica, minha esposa…

— Muito prazer… — Sorri e a mulher fez o mesmo.

— Vamos! — chamou entrelaçando os dedos nos do marido e


balançando a mão no ar. — Tia Lupe e Camucha já estão terminando de
arrumar a mesa.
Eu não era o tipo de pessoa que conhece muita gente. Nunca fui
popular, nem frequentei a casa dos amigos de colégio e coisas assim. Era
sempre a garota tímida que enfiava a cara nos livros e ia embora direto para
casa ao soar do sinal. A filha do japonês caolho de quem todo mundo tinha
medo, então, quando passamos pelo caminho de dormentes e a varanda dos
fundos se revelou cheia de gente, travei no chão.

Que porra você está fazendo, Liandra?


Respirei fundo, controlando o impulso de voltar correndo pelo
caminho até o aeroporto e só parar quando estivesse em São Paulo, no
nosso sofá velho e puído.

— Oh, por La Madre! — Uma jovem senhora, rechonchuda e de


sorriso largo, abriu os braços para mim. — Veja, Camucha, se não é mais
um milagre de San Cristobán! O filho da Malena está aqui!
— Agradeço a hospedagem, senhora… Não vamos… — Shin
tentou falar, mas acabou interrompido pela mulher.

— Senhora? — reclamou. — A Senhora está lá no Céu cuidando de


nós, filho… Eu sou sua tia! — Puxou-o para um abraço, apertando-o contra
o peito.

Foi a primeira vez que eu o vi sorrir sem jeito.


— Desculpe, Tia Lupe… Às vezes…

— Às vezes você se esquece que era para mim que vinha correndo
quando esfolava os joelhos no quintal!

O mestiço ajeitou os cabelos com as mãos, a pele assumindo um


tom mais rosado que o de costume. Limpei a garganta para reprimir o riso,
mas não pude deixar de pensar em um Shin pequeno, como o garotinho da
fotografia, frágil e com medo.

Respirei fundo no instante em que a mulher se voltou para mim. O


olhar era terno e gentil, levou as mãos até meu rosto e o segurou entre os
dedos.

— Seja bem-vinda, querida… Aqui está entre os seus…

Sorri em agradecimento.

— Venha, vamos nos sentar ou a comida acaba perdendo o ponto!


— Puxou uma das cadeiras para mim. — Fiz aquele ají de galinha de que
você tanto gostava, Shin… Tenho certeza de que nunca mais comeu!

— Não como o seu, Tia Lupe… — concordou com uma gentileza


que eu nunca o vira ter na voz.

Tínhamos começado a almoçar, quando um homem jovem de olhos


claros se aproximou.

— Cheguei em boa hora! — brincou, beijando o topo da cabeça da


senhora.
— Sempre é uma boa hora para você, mi niño!

— Guille nunca perde a hora da comida! — o peruano brincou. —


Lia, este é Guillermo, meu primo e filho da Tia Lupe…
Meneei a cabeça em cumprimento, mas acabei ganhando um meio
abraço e um beijo no rosto.

— Como está, Nakai? — cumprimentou Shin estendendo a mão.


— Vejo que não perdeu a mania de andar sangrando por aí! — Apontou
para a manga da camisa de Shin, onde uma pequena mancha vermelha
começava a se formar.

Levei a mão por instinto, aproximando do braço machucado do


homem ao meu lado, mas quando dei por mim a merda já tinha sido feita.
— Precisamos trocar o curativo… — tentei consertar, mas o
silêncio na mesa denunciou meu fracasso.

— Termine o almoço, querida… Vou pedir a Camucha que separe


a maleta de medicamentos.

Aquiesci concentrando meu olhar no prato de creme de frango em


minha frente. Pela visão periférica, encontrei os olhos de Shin, que logo
desviou.

— Estava delicioso, obrigada! — Sorri assim que terminei.

— Então coma mais! — o rapaz que havia se apresentado como


Guillermo comentou.

— Estou satisfeita… Obrigada…

— Um pouco de doce de leite, então… O doce…


— Ela vai comer, niño… Depois que trocar o curativo, não é,
querida? — A senhora Guadalupe sorriu e eu engoli em seco.

— É que foi fundo e se não… — contrapus, defendendo-me sei lá


do quê.
— É claro! — concordou ainda sorrindo. — Vá fazer o que tem
que fazer! Ande! — Acenou. — Vou mostrar onde é o quarto.

Levantei e Shin fez o mesmo, seguindo logo atrás da senhora de


vestido florido e coque nos cabelos.

— Aqui! — Indicou uma porta em um grande corredor aberto para


o jardim. — Separei este e o do lado para vocês dois, mas se preferirem
ficar juntos eu…
— Não! — apressei-me em deixar claro. — Fico com o outro…
Obrigada…

A senhora sorriu, empurrando a porta com a mão.

— Camucha já deixou a caixa lá dentro… Se precisar de algo que


não tenhamos aqui, Nacho pode ir comprar.

Concordei, entrando logo depois de Shin.

Ele passou pela cama e abriu os botões da camisa, tirando-a pelos


ombros e se sentando na poltrona de palhinha. O braço apoiado na mesa.

Segui direto até a cama e abri a maleta, procurando pelo material


de higiene e curativo de que iria precisar. Coloquei tudo ao lado do braço
dele e soltei a atadura. Os olhos fixos no ferimento, evitando contato visual.

— Não deveria deixar tão óbvio o quanto queria ficar a sós


comigo, chiisai… — provocou. — As pessoas podem ter uma ideia errada
de que estamos nos dando bem…
Apertei o cotonete no machucado, fazendo-o franzir o cenho de
dor.
— É uma questão óbvia, Sr. Nakai… — Terminei a limpeza e abri
o tubo de pomada. — Se você pegar uma infecção, terá febre e vamos
precisar adiar toda essa merda… Não estou preocupada com você, só quero
minhas respostas…

Os dedos resvalaram em minha coxa, logo abaixo da barra da saia,


de propósito, arrepiando minha pele.

— É claro!

— Terminamos aqui! — anunciei assim que prendi a nova atadura.


— Se me der licença, quero meu doce de leite!
Capítulo Vinte e Oito
Shin
Ela passou pela porta e eu deixei o sorriso ganhar meu rosto.

Garota estranha e difícil de compreender… Ainda bem que o nosso


tempo juntos está perto de acabar…

Aproveitei que tinha tirado a camisa e troquei minhas roupas por


outras menos formais. Jeans e camiseta escura combinavam melhor com o
clima quente e úmido do dia.

Deixei o quarto e segui pelo corredor até que a vi. Liandra estava
lá, sentada na mureta de frente para Guillermo, cuja mão carregava uma
colher cheia de doce. O filho da puta ria e tentava enfiar a colherada na
boca da garota, que ria também.

Senti o sangue se aquecer e fixei o olhar.

Porra de hospitalidade latina! Continue assim e eu…

— Venha… Vamos até o escritório — a voz de Nicolas chamou


bem perto, fazendo-me desviar o olhar da cena lastimável. — Meu drone
conseguiu algumas imagens interessantes…
Meneei a cabeça em concordância e o acompanhei. Não ia perder
tempo com distrações, nunca me importei com exclusividade mesmo.

Seguimos para dentro, passando pela grande sala, onde uma


coleção de armas enfeitava a parede caiada alta.

Fazia muitos anos desde a última vez que eu estivera naquela casa,
mal podia crer em como o tempo não havia mudado nada. Se fixasse os
olhos no fim do corredor, quase podia ver Vigo saindo do escritório com
suas calças de linho cru e camisa branca. Atrás dele, minha mãe com seu
vestido florido e longos cabelos soltos.
Nicolas empurrou a porta com a mão, revelando o escritório
intocado, não fosse pelo computador moderno sobre a mesa.

Ele ocupou-se de liberar o grande tampo de madeira de lei para que


abríssemos os mapas, eu perdi meus olhos na janela, de onde podia ver o
parreiral.
— Parece que o tempo parou, não é? — falou depois de um tempo,
oferecendo-me um cigarro.

Acendi e dei um longo trago. Tinha sido pouco mais de dois anos o
tempo que passamos morando no Peru, mas algumas das lembranças eram
vívidas, como se tivessem sido vinte anos.
Respirei fundo, deixando o ar sair de uma vez.

— Vamos trabalhar… — anunciei, tragando o cigarro e o deixando


pendurado nos lábios. — Quero voltar logo ao Japão… Não sei como você
aguenta essa porra de clima! — praguejei.

Nicolas esboçou um sorriso de sobrancelha erguida, mas não disse


nada. Concentrou-se em desenrolar o velho mapa.

— Esta área toda será difícil… — Apontou para um ponto no


mapa, perto da localização em meu colar. — É uma reserva Aymara e eles
não são muito abertos a receber visitantes…
Subi os olhos do mapa até o rosto do peruano.

— Achei que você fosse o chefe da porra do cartel… — provoquei.


— Mesmo um chefe de cartel precisa respeitar seu povo… —
devolveu. — Os aymaras são pacíficos, mas são muito apegados à própria
terra… Do tipo que mata e morre… Não sei o que procura, mas será difícil
arrancar deles à força…

— Eu diria… — Mais um trago, soltando a fumaça para cima. —


Se tivesse certeza…

— ¡A la puta madre! — xingou, coçando a testa. — Conte ao


menos o que supõe!
Escorei o corpo contra o parapeito da janela, apoiando o quadril e a
mão.

— Um caderno… — soltei mesmo que não gostasse muito de


dividir informações. — Imagino que seja um caderno, livro-caixa, algo
assim… Antigo, muito antigo, do tempo em que meu avô era wakagashira
do Minoru…
Nicolas cruzou os braços na frente do corpo, dando-me sua
atenção.

— Não ia me admirar que aquele filho da puta desgraçado tivesse


dado seu jeito para subir… — soltou entredentes.

— Nem a mim… Meu avô foi capaz de passar por cima do próprio
filho, por que não do Minoru? A questão é, como vamos encontrar a porra
de um caderno numa aldeia de índios!

— Se eles sabem do caderno, o estão guardando muito bem… Se


não sabem, não vão permitir que vasculhemos sem um banho de sangue…
Aquiesci, mas, antes que abrisse a boca para responder, Guadalupe
passou pela porta.
— Vão, sim… — afirmou. — Se souberem que quem está
procurando é o filho da Malena… — Aproximou-se de mim. — Venha…
Vamos tomar uma bebida e falar do passado… — Bateu em meu ombro,
chamando-me.
Deixei Nicolas no escritório e segui com Guadalupe até a cozinha.
Os empregados já haviam se dispersado, então estávamos sozinhos.

A mulher abriu o armário e pegou uma garrafa de vidro cheia de


um líquido claro, levemente âmbar, com tampa de rolha. Não parecia vinho,
nem pisco e menos ainda uísque.

Meus olhos se dividiam entre Guadalupe servindo dois dedos de


bebida em cada copo e a conversa animada da garota com Guillermo no
jardim.

— É pinga… — A senhora bateu o copo sobre a mesa de madeira,


fazendo-me desviar o olhar. — Doce, forte e quente… — Virou na boca de
uma vez. — Como a sua brasileira ali… — Apontou com o olhar.
Peguei o copo e fiz o mesmo, sentindo o líquido queimar a
garganta. Forte e quente, sem dúvida!

— Ela não é nada minha! — afirmei, batendo meu copo na mesa


também.
Guadalupe reprimiu um riso condescendente, depois ajeitou-se ao
meu lado.

— Não se preocupe com os aymaras… Eles o receberão com gosto


e festa… — Sorriu um pouco mais. — Sua mãe foi criada naquela aldeia…
— começou. — Ela e o Chaska…

Engoli em seco, desviando o olhar.


— Imagino como tudo aquilo foi difícil para você, garoto… Tão
jovem, e… — Suspirou, deixando-me sem jeito.

Eu odiava quando alguém tinha razão para sentir pena de mim.

— As coisas são como são… O passado não pode ser mudado…


— interrompi, bebendo mais uma dose da tal pinga e limpando a garganta
em seguida.
— Mudado não, mi niño, mas visto com outro olhar… — Voltou-
se para a janela que dava no jardim, onde Liandra estava sozinha,
admirando as flores. — Ela não fez nada a você…

— Não a estou culpando! — defendi-me. — Eu até a…

— Nem o Chaska… Sei que pensa que ele seguiu as ordens do seu
pai, mas não é verdade… Chaska desertou, assim que seu pai tirou você
daquela casa… Aquele tiro, Shin… Foi de misericórdia… — A mão suave
repousou sobre a minha. — A ordem do seu avô era para que Malena fosse
arrastada pelas ruas de Cusco, ainda viva e sangrando até a praça… Como
ele fez com os outros traidores… Eu sei disso porque foi aqui que o Chaska
se escondeu…

Apertei os olhos, cenas do passado ganhando espaço nos meus


pensamentos, lacunas sendo preenchidas.

— Não! — neguei. — Não foi o que eu vi… E eu vi! — Bati com


o punho na mesa. — Com os meus próprios olhos, Tia Lupe! Eu vi!

— Viu? Ou quis ver? — Encarou-me com seus olhos escuros. —


Era muito mais fácil acreditar que Chaska a matara porque era um traidor
sujo e filho da puta, não é? Afinal seu pai…
— Não! — soltei mais alto do que deveria e saí, rápido, sem olhar
para trás.

— Chaska e sua mãe… eram como irmãos… Ele jurou protegê-la


até o fim… Por isso se tornou um soldado daquele demônio.

Não respondi. Precisava de tempo e sossego para acalmar a cabeça


e minhas lembranças.
Desci rápido até o estábulo, sabia que o lugar estaria vazio àquela
hora e que lá eu conseguiria pensar.

Passei pelas baias até o galpão do depósito. Quando parei já estava


suado. A camiseta grudando na pele e a respiração acelerada.

Um tiro de misericórdia… Não, não foi o que eu vi!

Tirei a camisa, cruzando as mãos atrás da cabeça. Os passos


perdidos, buscando o controle do meu corpo. Inspirei e expirei devagar, mas
não conseguia limpar a mente.

Ele atirou! Atirou no peito dela, enquanto ela ainda o encarava,


ele… — Balancei a cabeça em negativa, já não sabia mais do que me
lembrava.

Fechei a mão em punho e enfiei no saco de ração. Um e outro


soco, forte. Precisava liberar a pressão, tinha que extravasar.

— Aqui, pequeno samurai… — uma voz que eu não ouvia mais,


nem em pensamentos, chamou, pegando-me no colo assim que me
aproximei. — Consegue ver os filhotes? — perguntou elevando-me entre os
galhos da árvore. — Logo estarão voando aqui pelo jardim…

— Eu queria voar também, Chaska, como eles!


— Então vamos voar! — Sorriu. — Eu vou ser o seu avião! —
Acomodou-me nos ombros e correu.

Soquei mais uma vez. Doía mais dentro do peito do que a mão,
embora as marcas de sangue começassem a ficar visíveis no tecido do saco
de grãos.

Aquele velho desgraçado queria machucá-la mais! Não foi


suficiente tudo o que fez enquanto ela tentava sobreviver naquele inferno!
Engoli o bolo de sentimentos, a visão nublada pela raiva e o corpo
em combustão.

Um covarde! Meu pai era um covarde! Um desgraçado que não


protegeu a mulher que amava! Um…

Senti o toque em minhas costas e me virei instintivamente,


segurando o pescoço primeiro e só percebendo de quem se tratava depois,
mas, assim que a vi, afrouxei o toque, liberando-a.

Liandra apertou os olhos e esfregou a marca vermelha que eu havia


feito em sua pele, com a força da raiva, segundos atrás.
— Ninguém avisou que é idiota aproximar-se assim de um lutador?
— cuspi as palavras como se fossem cacos de vidro. — Queria morrer?

Cerrei a mão em punho mais uma vez. Queria ignorá-la e


continuar. Que desistisse e fosse para longe, não que me visse naquele
estado.
— Eu estava preocupada com você…

Parei a mão no ar.


— Olha… Está sangrando de novo… — Levou a mão até meu
braço, tentando tocar a atadura manchada de vermelho. — Desse jeito
nunca vai sarar…

Puxei o braço com força, movendo-o no ar e impedindo seu toque.


Meus olhos cerrados encarando os dela.

Não, chiisai… Não vai sarar… Parece que a cada dia a ferida abre
um pouco mais…
Capítulo Vinte e Nove
Liandra
Minha mão estava lá, parada no ar, esperando por algo que nem eu
mesma entendia o quê.

A imensidão esverdeada daquele olhar parecia mais escura e


profunda que um buraco negro, tragando-me pouco a pouco, sem que eu
conseguisse evitar.

Senti meu braço baixar, voltando a sua posição sem atingir o


objetivo que tinha quando se levantou, mas ainda assim meus olhos
continuaram lá, presos nos dele.

— Volte para a casa! Não é seguro aqui — ordenou naquele tom


baixo e poderoso que fazia meu sangue esfriar e o arrepio descer pela
espinha.

Quanto mais baixo falava, mais letal parecia.


Limpou o suor da testa com a palma, deixando os nós machucados
dos dedos visíveis.

Meu instinto falou mais alto, mas dessa vez fui mais rápida e
consegui agarrar sua mão.

— Está machucado… — falei firme, como fazia com meus


pacientes. — Pessoas morrem por não tratarem ferimentos, sabia? Podem
parecer fra…

Puxou com força a mão da minha, virando as costas. Quando


voltou a me encarar, o rosto havia assumido aquele ar de arrogância que ele
fazia questão de manter quando me queria longe.
— Se acha que só porque tivemos um pouco de diversão eu lhe dei
algum direito de questionar minhas decisões, senhorita… — Deu alguns
passos, aproximando-se de mim em sua melhor pose de predador. — Tenha
cuidado… Eu já disse que não somos amigos…

Desisti.

— Quer saber? — Estreitei os olhos. — Vai se foder, seu yakuza


filho da puta! Eu tenho mais o que fazer!
Virei as costas, mas não dei um passo sequer. Senti os dedos em
torno do meu pulso e meu corpo sendo levado com a força do puxão.

— Como o que, por exemplo? — perguntou entredentes, quase


rosnando para mim. — Se esfregar com o peruano de olhos azuis?
— Se ele quiser… — provoquei. — Ele parece bem mais gent…

As palavras voltaram para dentro da minha boca, empurradas pela


língua ávida e urgente de Shin.
Em um estalar de dedos, toda a tensão de guerra se converteu em
sexual.

Meu corpo foi empurrado para cima do fardo de feno, arranhando


minhas costas com as pontas secas, mas eu não reclamei, muito pelo
contrário. Sentia uma urgência imensurável dele. Precisava, como quem
precisa de ar.
A saia do vestido que eu usava foi puxada para cima, e a calcinha,
afastada de lado, enquanto sua boca me devorava, primeiro nos lábios,
descendo pelo pescoço e traçando um rastro de calor mais potente que
rastilho de pólvora.

— Ah… — gemi quando o senti me penetrar.


O suor e o sangue dele manchando minha pele onde seus dedos
apertavam, os sentidos se perdendo no meio dos gemidos. Era visceral,
quase doentio, mas nenhum de nós queria parar.

— Abre mais as pernas, chiisai… — pediu com a voz rouca de


desejo. — Eu quero me afundar em você… Abre…

Obedeci, cruzando os pés em sua cintura, sentindo o ardor das


estocadas moerem meu quadril, enquanto eu cravava as unhas em suas
costas e sentia o gosto do beijo dele se espalhar em minha boca.
— Hum… — gemi mais alto, não conseguia controlar. — Shin…

Minhas bochechas queimavam de tesão, as pernas amolecendo, a


cabeça girando.
— Eu avisei você… Avisei que era só o meu nome que você ia
gritar quando fosse gozar, chiisai… Só o meu nome, enquanto eu quiser!

Minhas pálpebras se fecharam sem que eu pudesse evitar.

— Ouviu? — exigiu, dando um tapa de leve em minha bochecha.


— Enquanto eu quiser… — repetiu.

Aquiesci, não conseguia falar, nem queria discutir. Teria vendido


minha alma por mais dois segundos do que ele me fazia sentir naquele
momento. E então meu prazer explodiu, tão forte que senti escorrer pelo
meu canal, melando minhas coxas.
Só percebi que o mesmo havia acontecido com ele, quando senti
seu corpo pesar sobre o meu. Olhos semicerrados, respiração entrecortada
encontrando o ritmo, o coração tão acelerado que eu podia sentir contra
meu peito.
Não sei quanto tempo ficamos ali, abraçados sem nos mover,
apenas sentindo o corpo um do outro satisfeito e entregue, mas para mim
foi rápido demais. Ele se levantou, dando-me as costas, e eu sabia que
quando me encarasse teria voltado a ser o desgraçado impassível de sempre.
Respirei fundo e fiz o mesmo, não ia perder naquele jogo.

Ajeitei a roupa e me levantei, alisando os cabelos com as mãos.


— Devia trocar o curativo… — falei o mais impessoal que
conseguia. — Caso não saiba… A pressão aumenta o sangramento… —
Apontei para a gaze ainda mais suja de sangue.

Depois dei as costas e segui pelo caminho que havia me levado até
o depósito, mas, antes de continuar para fora, parei.
— E antes que se preocupe… Já tenho meus próprios métodos
anticoncepcionais…

Quando peguei o rumo da casa, sentia meu coração bater ainda


mais forte e as pernas trêmulas. Os sentimentos dúbios que aquele maldito
yakuza despertava em mim eram cada vez mais fortes e confusos. Eu tinha
medo, sabia do perigo que corria, mas a cada toque, a cada beijo, eu queria
me aproximar. Vencer a barreira que ele havia levantado, tocá-lo de volta,
de verdade.
Passei pela sala vazia, segui até o quarto que Guadalupe havia
reservado para mim e sentei na cama, buscando a calma que havia perdido.
Lentamente, minha pulsação foi voltando ao normal, os pensamentos
também.

Depois separei uma muda de roupas limpas e peguei uma das


toalhas, perto do espelho de corpo inteiro.
Mais alguns dias, Lia… Mais alguns dias e tudo isso terá
acabado! Você volta para a sua vida normal e com a certeza de tudo que
aconteceu no passado. Vai ser bom, você vai ver… E ele… — Respirei
fundo, encarando minha figura e as marcas arroxeadas e avermelhadas que
ele havia deixado em meu pescoço e colo. Não será mais do que uma
lembrança… Efeito colateral, como ele mesmo gosta de dizer…
Saí do quarto e procurei por Guadalupe ou Camucha, mas acabei
encontrando Verônica.

Sorri meio sem jeito.


— Banheiro? — perguntou gentil e eu aquiesci. — À direita,
naquele corredor… — Apontou.

Meneei a cabeça em agradecimento e tomei o caminho indicado.


Não tinha maneira certa de explicar os fiapos de feno ou as marcas de
sangue em minha blusa e braço.

— Lia? — chamou depois de alguns passos. — Separe as roupas e


entregue a Camucha… Ela cuida da lavagem para você! — avisou e eu
agradeci com a cabeça.

Entrei no banheiro, fechei a porta, livrando-me das roupas e


entrando debaixo da água fria mesmo. Quando fechei os olhos para lavar os
cabelos, tudo que conseguia era pensar em Shin. Ainda podia sentir o aperto
firme da sua mão em minha bunda, o ardor entre as pernas, a ferocidade do
beijo.

Não era do tipo masoquista, mas tinha que confessar que sexo
nunca fora tão libertador como era com ele, como se não existisse pudor,
nenhum desejo reprimido, nada. Ele me tocava e eu esquecia a Lia que
devia ser, apenas sentia.
Tinha acabado de me secar, quando meu telefone acendeu com
uma mensagem de Érico.

“Espero que esteja aproveitando as férias, mas não demore! O


Juninho é ruim no pôquer e se lamenta demais.”

Acabei rindo. Tudo havia acontecido tão rápido que pareciam anos
longe.
“Aguente firme, soldado! Logo estarei aí para lhe dar uma coça de
pôquer!” — brinquei.

Ainda ria com o telefone na mão, quando uma onda de medo


tomou conta de mim.

Se precisar falar com alguém, faça de maneira segura — as


palavras de Shin ecoaram em meus pensamentos e eu apertei os olhos com
força, afastando o pensamento. É o Érico, Lia… Você o conhece há quase
dez anos! Deixa de ser paranoica…

Penteei os cabelos e os deixei soltos para que secassem mais


rápido. Aquela picadinha do arrependimento bem ali, atrás da minha orelha
como uma pulga insistente.
Dobrei as roupas sujas e enfiei debaixo do braço, pegando o
caminho de volta.

Assim que pisei na cozinha, vi Verônica, Camucha e mais algumas


mulheres rindo e brincando com um bebê. O garotinho balançava os
bracinhos animado e soltava gritinhos.
Era engraçado saber que em uma casa cheia de mafiosos perigosos
ainda havia espaço para algo tão delicado e inocente como aquele garotinho
de cabelos claros.
— Desculpe interromper… — Sorri. — As roupas…

— Claro! — A loira se levantou. — Aqui, Camucha… Dê um jeito


nisso… — Entregou tudo para a mulher de lenço colorido na cabeça. — Lia
não deve ter trazido muita coisa, logo vai precisar de roupa limpa.

Dei alguns passos em direção à mesa e o garotinho gritou,


balançando os bracinhos para mim. Eu não era boa com bebês, tinha
passado pelo estágio de pediatria a duras penas, então sorri de longe,
evitando muito contato visual.

Verônica riu.

— Não se preocupe, ele nasceu como um Huamán… Acha que o


mundo todo vai se derreter por ele! — brincou e eu acabei rindo. — Aqui…
— Encheu um copo com um líquido cor de vinho. — É chicha morada!

Franzi o cenho sem entender.

— Suco de milho roxo, com algumas frutas… É muito bom e


refrescante!

Levei o copo à boca e dei o primeiro gole, constatando que ela


tinha razão.

— Hum… É mesmo delicioso! — concordei.

— Não é? — Pegou o bebê nos braços e ajeitou os cabelinhos


claros com a mão. — Os sabores desta terra são viciantes, você vai ver!
Nem vai querer ir embora!
Abri a boca para responder, mas parei assim que Shin passou pela
porta. Camisa suada sobre os ombros nus e o cabelo tão molhado que
pingava.
— O banheiro do estábulo estava sem água… — avisou.

— Quebrou ontem… — Verônica afirmou. — Pode usar o


banheiro no final do corredor… Camucha sempre deixa uma toalha dentro
do armário.

Ele passou por nós sem olhar para trás e eu tentei disfarçar o
melhor que podia, mas, ao que parecia, não era tão boa quanto pensava.
Verônica sorriu com entendimento, os olhos deixando clara aquela
mensagem de “é, eu sei… Já passei por isso!”
Capítulo Trinta
Shin
Livrei-me das roupas sujas e da atadura, vendo o sangue verter do
ponto que estourara com a força dos golpes.

Desgraça de tiro de raspão! Se tivesse entrado de uma vez, o


estrago seria menor!

Entrei debaixo da água gelada e deixei que acalmasse um pouco


dos meus músculos tensos. Ainda sentia o cheiro dela em minha pele, o
gosto da boca, a maciez do toque.

Fechei os olhos, lavando os cabelos. A filha do Chaska… Porra de


boceta cara essa! Vai acabar me custando bem mais do que eu estou
disposto a pagar!

Saí do banheiro com a toalha em volta da cintura e segui direto


para o quarto. Vesti a cueca e uma calça limpa, depois me sentei na cama,
ao lado da maleta de primeiros socorros. Ia ter que dar um jeito naquela
porra de ferida eu mesmo.

Rasguei o saco de gaze com a boca e pressionei sobre o ferimento.


Tinha piorado, como a garota havia previsto.

Não sabia costurar, mas não devia ser tão difícil assim. Eu já fizera
coisas mais complicadas na vida do que costurar dois pedaços de pele!

Enfiei a agulha e apertei os dentes. Doía como inferno e era bem


difícil de colocar na posição certa com uma das mãos e ainda machucada
pelos golpes, mas segui tentando.

— Oh, o que está fazendo, mi niño? Vai acabar se machucando


mais. — Guadalupe entrou apressada, tirando a agulha da minha mão.
Franzi o cenho irritado, mas não disse nada. Não ia começar uma
briga que sabia que não podia ganhar.
— A garota… Não é enfermeira? — questionou elevando minha
irritação. — Nico me disse que…

— Não preciso de ajuda… Posso resol…


— Precisa, sim… — Tocou meu braço com a mão. Firme, mas
gentil. — Todos precisam, niño… Todos… Há mais coragem em admitir a
fraqueza do que em desprezá-la…

Respirei fundo, soltando o ar dos pulmões de uma vez.

— Vou chamá-la para você… — Sorriu, já se levantando.

Parou assim que chegou à porta e correu os olhos por mim.


— As tatuagens… — Girou o dedo me apontando com aquele
sorriso no rosto. — Não é que você ficou um cabrón muy guapo! — Riu
um pouco mais. — Não me admira a brasileira não conseguir tirar os olhos
de você!

Não pude conter totalmente o sorriso que brotou em meus lábios,


então apenas o reprimi, meio arrogante, meio debochado e esperei.
Não demorou muito e Liandra passou pela porta, fechando logo
depois de entrar. Parou ali, pouco à frente da soleira. Os braços cruzados na
frente do corpo e aquele olhar inquisitório que tinha.

— Eu disse que ia piorar…

Alisei os cabelos para trás, levantando-me da cama.


— Volte para onde estava… Eu não pedi sua ajuda… — Praguejei.
— É claro que não! O grande saiko-komon da yakuza nunca pede
ajuda… — Aproximou-se alguns passos. — Mesmo que esteja sangrando
por aí… — Ergueu a sobrancelha sarcástica. — Ande, apoie o braço… Ao
menos temos anestésico local aqui…

Mantive os olhos nos dela por uma fração de segundos, mas não
discuti. A dor falou mais alto que meu orgulho, então obedeci.

A garota abriu uma embalagem de pomada e passou uma camada


sobre o machucado. Quando enfiou a agulha torta em minha pele, eu já não
senti como antes.

Enquanto terminava o procedimento, meus olhos percorreram seu


corpo pequeno e esguio, as curvas, a maneira como mordia o lábio inferior
quando se concentrava em algo e aquela mecha cacheada descendo pelos
ombros bem ali, onde meu chupão marcava sua pele morena.

Como alguém pode ser tão delicado e tão forte ao mesmo tempo…
— Pronto! — anunciou afastando a mão e virando-se para guardar
as coisas dentro da caixa novamente.

Continuei olhando para ela. Havia uma parte daquela garota que
me fazia querer ir além e ser alguém diferente, mas eu não podia permitir
que essa parte tomasse o controle ou acabaríamos fodidos os dois.

— Tome isso de oito em oito horas se não quiser acabar com um


choque séptico… — Levantou uma caixa de antibióticos, aproximando da
minha palma.

Quando tentou colocar o remédio ali, seus dedos resvalaram nos


meus e ela se afastou como se eu lhe desse choque.

— Obrigado… — soltei mais baixo do que deveria.


Levantei-me rápido, a maneira como ela me olhava era incômoda.

— Agora vá, chiisai… Preciso me trocar e ir até a cidade… —


Peguei a camiseta branca, mas, com uma mão só, era bem difícil me vestir.

— Vem cá… — pediu, já se aproximando. — Eu ajudo você…


Antes que eu abrisse a boca para protestar, Liandra continuou.

— Não é nada de mais… Já vesti muito marmanjo, quando


trabalhava no hospital… É só um… É…

Estava na ponta dos pés, tentando alcançar meu pescoço para vestir
a camiseta.

— Ossos do ofício? — provoquei rindo e abaixando até sua altura.


Ela sorriu também.

— Isso!

Os dedos desceram pela lateral do meu corpo, junto do tecido fino


da camiseta, aquecendo minha pele. Um contato longo, muito mais do que
ela faria com qualquer paciente que precisasse de ajuda.
— Não devia ir sozinho à cidade… — falou afastando-se. — O
remédio é forte, você comeu pouco então… Se tiver uma tontura ou algo…

— Está se convidando para ir comigo? — Arqueei uma


sobrancelha. — Alguém a nomeou minha copiloto e eu não fiquei sabendo?
— Estúpido!

Tentou espalmar a mão em meu peito, mas eu a peguei antes que


atingisse e não soltei. Meus olhos fixos nos dela sem nem entender bem a
razão.
— Compre gaze e esparadrapo! — pediu quando percebeu que eu
não ia soltar. — Ainda vamos precisar de mais.

Continuei segurando sua mão.

— O que foi? — perguntou depois de alguns segundos de silêncio


absoluto. — Espera que eu me esforce para soltar? — Tocou a mão livre
sobre a minha, suavemente. — Por que está sempre procurando briga? Eu já
disse que não sou sua inimiga…

No mesmo instante, o rosto do Chaska se formou em meus


pensamentos. Era alegre e gostava de assoviar. Não se parecia muito com os
outros homens do meu avô. Liandra se parecia mesmo com ele.

Soltei sua mão de imediato. Tinha que parar de confrontá-la e me


afastar.

Guardei o celular no bolso, junto com a carteira, e segui pelo


corredor, acenando para o homem de confiança de Nicolas.

— Preciso ir a Cusco… Pode me levar?

— Claro! Vamos no 4x4… É mais rápido e chama menos atenção.

Estávamos no caminho, quando recebi uma mensagem de Sugoi


avisando que haviam chegado.

Eu confiava em Nicolas, como confiava em Willian, mas preferia


ter meus próprios homens de confiança à mão. Tinha um longo histórico de
traições familiares e mais furos de bala no corpo do que julgava necessário,
não ia dar sopa ao azar.

Nicolas e eu já havíamos conversado sobre alguns dos meus


homens ficarem no alojamento de funcionários, apenas como retaguarda,
caso meu avô ou o Minoru descobrissem nossos planos antes que
tivéssemos finalizado. Eu não queria os Huamáns em risco por causa de
mais uma merda da yakuza.

Era meio da tarde, quando paramos no portão de serviço do


aeroporto. Sugoi já esperava por mim com outros dois homens.

— Saiko… Hai… — Curvou o corpo em cumprimento.

— Como estão as coisas no Brasil? — perguntei de imediato. — A


segurança do sensei é primordial.

— Dois homens estão de vigília no prédio ao lado… O policial


mantém mais dois à paisana por perto e ninguém além do médico e o
enfermeiro que o senhor autorizou passam por aquela porta…

— Ótimo… — Acendi um cigarro, dando um trago. — Alguma


movimentação do meu avô ou dos homens de Minoru por perto?

— Como o senhor deve imaginar, a morte do desgraçado do Ishiro


levou alguns tekiyas para São Paulo… O Kenji e eu acabamos com os que
poderiam ser uma ameaça, mas descobrimos que aquele advogado filho da
puta estava traindo o seu avô…

Dei mais um trago. Ia resolver as coisas com o meu avô em breve e


entregar a porra do controle a quem os homens do Minoru tivessem como
líder. Não ia ocupar um lugar que não me pertencia, mas também não
pretendia servir outro senhor.

Ocupei meu lugar ao lado de Nacho, e meus homens, o banco


traseiro. Eu não tinha alugado carro ou feito qualquer pagamento com o
cartão de crédito porque queria manter minha passagem pelo Peru em
silêncio, fora exatamente por isso que pedira a Nicolas uma quantidade de
dinheiro peruano em cédulas.
Parei na farmácia e comprei o que Liandra havia indicado, depois
seguimos viagem de volta para a fazenda.

Estacionamos com os últimos raios alaranjados do sol. Nicolas


esperava por nós junto à porta da entrada.

— Tudo certo por lá? — perguntou.


— Tanto quanto é possível para um cara procurado por duas
famílias diferentes! — brinquei e Nicolas riu.

— Vou acomodar seus homens no galpão… Tia Lupe está fazendo


asado de cordeiro… Sabe que não vai escapar, não é?

Acabei rindo.

— É melhor dar uma atenção a ela, se quiser companhia amanhã,


até a aldeia aymara… Eu não entendo uma porra de palavra do que eles
falam!

Assenti ainda rindo e dei alguns tapinhas nas costas de Nicolas.


Precisava treinar um pouco para parecer menos arrogante e sisudo, se
quisesse agradar a matriarca.

Segui sozinho pelo jardim dos fundos, mas parei alguns passos
antes de me aproximar.

Liandra estava lá, dançando ao som da música que um dos


funcionários tocava no violão, bem ao lado de Verônica. Os quadris
seguindo a batida, enquanto os cabelos balançavam ao redor dos ombros, a
luz amarela do sol poente fazia sua pele brilhar.

Linda e absolutamente perigosa… Lembre-se de que um Nakai já


caiu em maldição por causa de um sorriso assim…
Capítulo Trinta e Um
Liandra
Fazia muito tempo que eu não me sentia tão tranquila e isso era
ainda mais assustador do que estar em alerta constante.

Eu não era boba, nem havia esquecido o que as pessoas que


estavam ao meu redor faziam para viver, mas estava cansada de lutar contra
o passado. Minha vida nunca fora normal e eu não conseguia mais mentir
para mim mesma.

Pela visão periférica, eu o vi olhando para mim e senti aquela


mesma agitação boba e adolescente que ele me causava desde o primeiro
olhar. Virei-me de uma vez, queria pegá-lo de surpresa.

— Se disser que eu deveria dançar melhor porque sou brasileira,


vou passar álcool na sua ferida da próxima vez! — Praguejei de brincadeira
e ele riu.

Não era o mesmo riso arrogante e contido que sempre dava, era
aberto, daquele jeito que faz os olhos se fecharem um pouco, então senti
meu coração se acelerar.

Dei alguns passos, ajeitando uma mecha de cabelo atrás da orelha.


Estava tão em paz que não queria caçar guerra, nem mesmo o tipo de guerra
que terminava com a gente gemendo e gozando suados por aí. Eu só queria
continuar na calmaria.

— Vem… — Estendi a mão, esperando que ele também quisesse


um dia de folga de toda a merda que vivíamos.

— Sou japonês, lembra? Dançar não é uma das minhas muitas


habilidades, chiisai… Prefiro observar…
Shin não aceitou meu convite, mas continuou ali, com aquele ar
divertido e meio sacana que me fazia querer provocá-lo um pouco mais.
— Não sabe o que está perdendo… — Dei de ombros, ainda
movendo os quadris no ritmo da música. — Dizem que este exercício ajuda
a desestressar…

Os olhos verde-amarelados desceram pelo meu corpo, aquecendo


tudo por onde passavam, a ponta da língua brilhando em seu lábio inferior e
me fazendo querer apertar as coxas um pouco mais.
— Consigo pensar em muitas outras maneiras de dar vazão ao meu
estresse e nenhuma delas inclui o violeiro ali…

O riso saiu sem que eu conseguisse conter.


— Venha, Lia… Venha experimentar o vinho que produzimos aqui
na fazenda! — Verônica chamou, levando a garota pela mão.

Nicolas havia mandado trazer um dos grandes barris de carvalho e


a bebida foi enchendo os copos de todos os presentes. Definitivamente, os
peruanos, assim como os brasileiros, eram bons em festejar.

Guadalupe cortou um pedaço do cordeiro assado e entregou em


minhas mãos.

— Prove com o vinho, querida, é delicioso!


Fiz como havia pedido e não pude deixar de fazer uma careta de
satisfação.

— Meu Deus do céu, dona Guadalupe, isso é maravilhoso!

— Tia! Já lhe disse que sou como sua tia!


Sorri.
— Desculpe, tia…

Baixei a cabeça por um segundo. Tia… Eu nunca havia chamado


ninguém assim. Não tinha irmãos, parentes, ninguém além do meu pai e os
amigos que fizemos no beco. De repente, a felicidade que eu sentia naquele
momento doeu um pouquinho.

Ainda me recuperava da emoção, quando Shin se aproximou


displicente, o cigarro pendurado na boca daquele jeito sexy como ele
fumava.
— Aqui! — Guadalupe cortou mais uma lasca de carne e entregou
na mão dele. — Veja, niño, veja se esta carne não está derretendo na boca!

O mestiço deu mais um trago, jogando a ponta fora e enfiando a


carne na boca. Arrematou com o último gole da taça de vinho que
carregava.
— Está delicioso, Tia Lupe… — Meneou a cabeça como os
orientais costumam fazer em agradecimento.

— Ande, pegue um prato e coma um pouco de batatas também!


Camucha preparou na manteiga, daquele jeito que sua mãe fazia.

Sua mãe fazia…

Eu não me lembrava muito bem do gosto da comida da minha mãe.


Nem do perfume que ela usava ou de como sua voz soava aos meus
ouvidos. Tudo havia sido esquecido, perdido no meio das lembranças
dolorosas, ferido junto com ela, mas ali, no meio daquelas pessoas, perdida
em algum lugar do altiplano, eu senti vontade de me lembrar. De cavar as
memórias e poder separar o que era justo lembrar.
— Lia! — chamou de repente, arrancando-me dos meus
pensamentos. — Venha, niña, sirva seu homem… — Entregou um dos
pratos em meus braços e saiu como se não fosse nada de mais.

Fiquei parada ali, na frente de Shin sem saber como agir. Fora pega
de surpresa.

— Ande, chiisai… Sirva logo o cordeiro para mim… — Seu ar era


sarcástico, com um leve sorriso contido. — Quero também um pouco de
batatas e mais vinho! — Balançou a taça vazia.

A vontade de mandá-lo à merda veio forte, mas o desejo de manter


aquele sorriso ali, brilhando nos lábios bonitos que ele tinha foi ainda
maior.

Revirei os olhos de brincadeira e peguei a taça vazia das suas


mãos, caminhando até a grande mesa. Servi um pouco de carne, milho
cozido e purê de batatas. Enchi a taça de vinho novamente.
Enquanto caminhava de volta para ele, meus olhos se mantiveram
fixos, provocantes e sensuais. Não ia perder a oportunidade de brincar com
ele novamente.

— Mais alguma coisa, meu senhor? — Ofereci o prato com a


minha melhor pose de submissa.
Para a minha surpresa, Shin deixou o prato de comida na mureta e
bateu a mão espalmada no topo da minha cabeça, como se faz com cães
treinados que buscam o jornal para o dono.

— Isso mesmo, chiisai… Dócil e prestativa… — provocou.

Reprimi o riso, mas não a vontade de xingar.


— Seu yakuza filho da puta! — soltei baixo, em português,
fazendo-o rir. — Na próxima refeição coloco laxante! — menti sarcástica.

Sua mão segurou e girou meu pulso tão rápido que senti tontura.
Meu corpo prensado contra o dele e sua boca raspando minha orelha.

— Na próxima refeição quero comer você, e não o cordeiro… —


Piscou sacana e eu senti minhas bochechas corarem instantaneamente.
É, Lia, você precisa treinar um pouco mais se quiser ganhar desse
desgraçado arrogante na conversa! — pensei enquanto me afastava.

Pelo que restou da festa, eu o observei de longe. Nos últimos


tempos, não vinha sobrando muito da raiva que eu costumava ter de
qualquer um que ostentasse aquelas tatuagens nas costas. Eu olhava para ele
e já não via mais o inimigo que vira lá no beco, quando decidi salvar um
homem de um assalto e dei de cara com a tatuagem que me assombrou por
mais de quinze anos.

Não sei em que momento ele saiu, mas, quando Guadalupe encheu
minha taça de vinho pela última vez, Shin já não estava entre os presentes.

Continuei a conversa e as risadas, mas meus olhos buscavam por


ele instintivamente.
— Vá procurá-lo, niña… Acalme seu coração… — a matriarca
falou, pegando uma pequena manta tecida à mão com motivos peruanos e
colocando sobre meus ombros nus.

Pensei em dizer que não, que ela havia entendido errado e eu não
estava nem aí para o mestiço filho da puta que me levara até aquele lugar,
mas seria mentir muito mais para mim do que para ela. Depois de tanto
vinho, minha honra de mulher fodona e autossuficiente já nem queria mais
aparecer.
Passei pelo quarto, pelo estábulo, e desci contornando o jardim,
sem nenhum sinal dele.

Já estava quase desistindo, quando bem ao longe, no vale perto do


riacho que cortava a fazenda, vi a sombra de alguém e a ponta de cigarro
acesa.

Aproximei-me com cuidado, para ter certeza de que não estava


enganada.

— Está frio, chiisai… — a voz grave e profunda cortou o barulho


suave da água calma correndo. — Você vai acabar doente…

— Devo considerar que está preocupado com a minha saúde? —


devolvi da maneira que ele costumava fazer e ouvi seu riso.

— Pode considerar, se a fizer sentir melhor…, mas entenda que um


companheiro debilitado é risco desnecessário em uma missão…

Foi minha vez de rir. O desgraçado não perde uma!

Parei próximo a ele, mas não disse nada. Ficamos nos encarando
por um tempo, como se fosse mais fácil não falar.

Shin deu um trago no cigarro e o jogou longe, acertando a água. A


lua estava tão grande e clara no céu que eu podia vê-lo completamente.

— Tira a calcinha… — ordenou.

Encarei-o sem entender, sentindo aquele calor latente descer do meu


estômago para o baixo-ventre.

— Tira… — repetiu. — E senta aqui no meu colo… — Bateu a mão


espalmada na coxa e eu engoli em seco.
Os olhos dele me queimavam e arrepiavam minha pele sem que
precisasse me tocar. Mordi o lábio para reprimir o desejo que eu sentia de
obedecer e ele continuou lá, esperando minha guerra perdida ter fim.

Levantei a saia com os dedos, escorregando pelo quadril e me


livrando da calcinha, então caminhei mais para perto. Quando me
aproximei, sua mão capturou a minha com mais delicadeza do que ele
costumava ter, entrelaçando nossos dedos.

Acomodei-me de joelhos, uma perna de cada lado e abri o botão da


sua calça, descendo o zíper devagar, sem deixar de olhá-lo. Quando meus
dedos, frios pelo ar da noite, tocaram o tecido da cueca, ele riu, reprimindo
o gemido.
Uma das suas mãos segurou-me pelo pescoço, por trás, guiando
minha boca até a sua. Enquanto sua língua me devorava, ele encaixou a
glande úmida entre meus lábios íntimos, ainda sem penetrar, roçando e me
provocando.

Não resisti, baixando o corpo e sentindo-o me preencher, embora o


ardor da última vez ainda estivesse ali.

— Hum… — gemi quando encontrei o ritmo e a posição perfeita.

Shin segurou as duas pontas da manta, puxando-me para perto,


abocanhando meu seio por cima do tecido fino da blusa.

Senti meu corpo todo se arrepiar e separei as pernas um pouco mais,


sentindo-o ir mais fundo. Os olhos focados nos meus.

Nas outras vezes que me olhava tão de perto, eu pensava em como


um demônio como ele podia ser tão lindo e sedutor, mas naquele momento,
por alguma razão, tudo que consegui pensar foi que eu não era um anjo
inocente também… Talvez, apesar de tudo, nós dois merecêssemos um
pouco de perdão.
Ato IV
Destino
A perfeição é uma montanha impossível de escalar em uma única
jornada, por isso, é necessário que seja descoberta um passo de
cada vez.
Bushido
Capítulo Trinta e Dois
Shin
Ainda tinha a garota em meus braços, quando ouvi o grito de um
pássaro e a revoada que o seguiu.

Parei em alerta, concentrando a atenção nos ruídos da noite.

— O que…

Toquei o indicador sobre o lábio, cortando a pergunta dela. Se era a


aproximação de alguém, ainda estava longe o suficiente para que pudesse
identificá-lo antes de ser surpreendido.

Liandra se levantou, e eu também. Estávamos no vale, perto do rio,


o que me dava uma boa vista do entorno.

Corri os olhos pelo campo, sem encontrar perigo.

— Vamos voltar… — avisei baixo e ela aquiesceu.

Seguimos o plano, subindo a pequena colina e nos aproximando da


casa da fazenda. Era bem tarde e eu não via nenhum dos homens de Nicolas
fazendo a ronda, nem os meus, o que era muito estranho.

Se ninguém tem a minha localização, então… — Franzi o cenho


sem perder a atenção no espaço ao meu redor. Será que…

Liandra pisou em falso e eu a agarrei rápido, antes que caísse junto


à terra fofa que havia desmoronado.

— Precisa olhar por onde anda, chiisai… Se não quiser virar


oferenda a Pachamama! — brinquei.

A garota estava tão assustada que nem reclamou ou criticou, então


eu acabei agindo por instinto e mantendo minha mão na dela, nossos dedos
entrelaçados.
Ainda não tinha percebido perigo iminente quando chegamos ao
jardim dos fundos, mas aquela sensação estranha ainda picava minha pele,
deixando-me alerta.
Entrei com ela pela porta dos fundos e encontrei Guillermo em pé,
junto à janela.

— Você ouviu? — perguntei e ele aquiesceu.


— Pássaros noturnos não voam em bando… — confirmou o que
eu também havia pensado.

Se tinham revoado, então algo os assustara e não eram os perigos


corriqueiros.

— Não encontrei ninguém de guarda lá fora… — comentei. —


Acho melhor…

— Aqui! — Guillermo passou uma pistola para as minhas mãos,


mostrando que concordava comigo. — Nico fica na casa, vamos ver o que
está acontecendo lá fora, Nakai…

Os dedos pequenos da garota se apertaram nos meus e uma onda


estranha de um medo que eu não costumava sentir tomou conta de mim.

— Mantenha-se em alerta, chiisai… — pedi. — Sabe atirar?


Ela negou com a cabeça.

— Mas me viro se for necessário…

Meus olhos perderam-se nos dela por um instante. Forte e


decidida, mesmo com medo… Garota maluca! Vai acabar morrendo por aí!
Nicolas e Verônica apareceram vindos do corredor.
— Fique sossegado, aqui dentro estamos seguros… — afirmou
prendendo o pente de volta na pistola.

Guillermo e eu saímos para o jardim dos fundos novamente. Arma


em punho e a atenção no silêncio que a noite clara de lua cheia trazia.

Sinalizei que iria pela direção do galpão onde meus homens


estavam, Guillermo foi pelo outro lado. É claro que Nicolas tinha seus
próprios inimigos, mas eu não conhecia ninguém que tivesse a coragem —
ou a burrice — de provocar o rei do cartel em seu próprio palácio!
Assim que me aproximei, assoviei, esperando que Sugoi ou alguns
dos homens respondesse, mas não foi o que aconteceu, então continuei.
Circundei o estábulo, entrando pelos fundos.

Empurrei a porta do alojamento com o pé. Tudo calmo, no lugar e


totalmente vazio.
Na primeira baia, um potro relinchava nervoso, batendo as patas
dianteiras no chão.

Eu não era um profundo conhecedor de animais, me dava bem


melhor com os cavalos mecânicos dos meus esportivos, mas podia jurar que
aquela agitação não fora causada pela revoada de pássaros.

Continuei o caminho, descendo até a adega, então ouvi o som de


alguém correndo pelo mato e mudei de direção, correndo o mais rápido que
podia, até que avistei o homem de roupa preta e capuz. Pulei, batendo um
dos pés bem no meio das omoplatas e fazendo-o cair no chão.

Do jeito que ele caiu, eu já chutei o seu rosto, vendo o sangue


espirrar na ponta da minha bota. Depois me abaixei, segurando-o pela gola
da blusa e suspendendo no ar, fazendo uso dos meus quase um metro e
noventa.
— Quem o mandou aqui? — perguntei em espanhol, porque não
tinha ideia de quem o havia mandado.

O desgraçado riu, cuspindo sangue no chão.

— O traidor filho da puta nem fala mais em sua própria língua…


— praguejou em japonês. — Acha mesmo que o problema está aqui?
Correndo pelo meio do mato? Isso é só um aviso, seu bastardo de merda!
Um aviso de que não vamos parar, até conseguir o que queremos!
Afilei os olhos, franzindo o cenho enquanto o desgraçado ria. De
repente, um estalo me fez jogá-lo no chão com força, sacando a pistola e
acertando um tiro bem no meio dos olhos dele.

Corri de volta para a casa grande. Se era mesmo um dos homens


do meu avô, então Liandra e a família de Nicolas estavam em perigo.
Um aviso… Um aviso de que não vamos parar até ter o que
queremos… Então o que ele quer não sou eu! Ao menos não apenas eu!

Tinha acabado de passar pelo estábulo, quando encontrei Sugoi


correndo da direção contrária, com Guillermo ao seu lado.

— A casa! — Guillermo gritou. — Eles estão lá!

Senti o sangue gelar em minhas veias, conhecia bem aquele


artifício, separar para conquistar.
Estávamos quase chegando, quando o som do primeiro tiro se fez
ouvir, vindo da casa. Mais alguns se seguiram e um homem tentou correr
para o mato, mas Sugoi o acertou, derrubando no meio dos arbustos.

Outros dois entraram em uma caminhonete e arrancaram pela


estrada.
— Vou atrás deles com o Nacho … — Guillermo instruiu. — Você
fica e dá suporte para o Nico com os seus homens.

Aquiesci aproximando-me com cuidado.

Pelo caminho que fizemos, mais três homens caídos. Dois yakuzas
e um latino que eu tinha visto na festa mais cedo.
— Baka dekai… — Sugoi xingou, conferindo que nenhum dos três
tinha pulso. — Vou descer e ver se acho algum dos nossos vivo… — avisou
e eu concordei.

Encontrei Nicolas na porta, ainda segurando a pistola, apesar da


mancha de sangue empapando a manga da blusa clara que usava.

Verônica estava logo atrás, a pistola reluzindo em sua mão, com


Guadalupe a alguns passos. Meus olhos insistiam em procurar por algo que
eu não conseguia ver. Aquela inquietação ruim picando meu peito até que a
vi e a onda de alívio que me atingiu foi tão poderosa que parei por um
instante.

— Shin!
A garota correu até mim como naquele dia no beco. Apertou os
braços em torno do meu peito e descansou a cabeça ali. Fechei a mão em
punho, como se quisesse impedir o que realmente desejava fazer, mas,
diferente daquele dia no beco, eu me deixei levar. Escorreguei a mão em
suas costas, trazendo-a para mim, segurando seu rosto junto a minha pele.

— Eu ouvi os tiros… Achei que… Achei… Você não voltava… Os


homens…
— Estou de volta, chiisai… E sem nenhum ferimento, desta vez…
— brinquei e ela riu, meio nervosa, meio aliviada. Acabei rindo também.
Então é assim que as pessoas se sentem…
Entrei com Liandra e os outros, deixando Sugoi no comando dos
homens lá fora.

— O desgraçado do seu avô… — Nicolas bateu a mão no tampo de


madeira da mesa. — Atirou contra a minha casa! Eu vou arrancar a cabeça
dele!
— Mas primeiro precisamos ver esse tiro! — Verônica começou a
desabotoar a camisa do marido. — Lia… Será que você pode…

— Claro! — concordou de imediato.

— Eu pego a caixa de primeiros socorros.

Nicolas sentou-se em uma das cadeiras e deixou o braço sobre a


mesa. Apesar do sangue, parecia apenas um ferimento de raspão.

Liandra prendeu o cabelo em um coque e despejou um flaconete de


soro sobre a gaze, limpando o ferimento.

— Foi superficial… — constatou o que eu imaginava. — Não


precisa de pontos, apenas um curativo… Vamos cuidar disso! — Sorriu
prestativa.

Acendi um cigarro e escorei o corpo na pia, de onde podia ver lá


fora e o corredor interno ao mesmo tempo. A pistola descansando sobre o
mármore, pronta para ser usada, caso fosse necessário.
De repente, meus olhos se perderam na garota à minha frente. Havia
algo nela que eu não sabia bem o que, mas não tinha encontrado em outra
mulher.
Era bonita, tinha um corpo bem desejável, mas não era isso.
Mulheres bonitas passavam pela minha cama na velocidade com que as
empregadas trocavam os lençóis, mas eu nunca quis dar uma segunda
olhada em nenhuma delas. Apesar disso, lá estava eu, encarando a garota
meio descabelada e usando pijamas largos demais, limpar e cuidar do
ferimento de outro homem.

— Alguém deu com a língua nos dentes! — Nicolas praguejou. —


Tem certeza de que confia nos seus homens, mestiço? Estranho que os
yakuzas do seu avô tenham descoberto sua localização bem quando esse
japonês apareceu por aqui!

— Sugoi é de confiança… — afirmei sem espaço para dúvidas. —


Ele deve ter descoberto de outra maneira.

Coloquei a cabeça para funcionar.

Willian não sabia a localização da fazenda, nem nenhum dos


homens do meu avô. Eu só usara o telefone seguro, Nicolas também, e os…

— Falou com alguém, chiisai? Seu pai… O médico… — perguntei


por via das dúvidas, tinha deixado claro a ela que não podia usar o maldito
telefone sem minha supervisão.

— Não! — defendeu-se. — Eu não fiz ligação alguma! Nem tenho


olhado meu celular! A última vez que vi, quando Érico…

Parou a frase no meio, os olhos tristes e perdidos.

— Eu só… Eu… — Balançou a cabeça em negativa, os olhos


mirando o chão. — Eu só respondi a uma mensagem boba de um amigo…
Não pensei que…
Capítulo Trinta e Três
Liandra
O silêncio de todos doía em mim. O rosto quente de raiva por ter
tomado a decisão errada, por ter sido leviana e colocado todos em risco.

Evitei contato visual com Shin, tinha certeza de que iria me olhar
com aquele ar de reprovação e me fazer sentir ainda pior.

— Seu celular… — Estendeu a mão em minha direção. Voz firme


e baixa, usando o tom poderoso que tinha.

— Está no quarto… — expliquei. — Eu realmente não pensei…


— justifiquei-me mais uma vez.

— Então está na hora de pensar, chica… — a voz grossa do


peruano encheu o silêncio da cozinha. — Você precisa decidir logo com
quem está… Ninguém vive muito tempo acendendo uma vela para Deus e
outra para o Diabo.
Segurei a respiração sem perceber, as palavras batendo em minha
cara como tapas. Aquiesci em silêncio e baixei a cabeça, seguindo pelo
corredor. Podia ser bocuda e o tipo que não levava desaforo para casa, mas
a verdade é que Nicolas Huamán estava certo.

Só não sei se o diabo em questão quer vela ou só está mesmo


curtindo com a minha cara.

Passei pela porta e ia fechá-la, quando a mão grande espalmou no


batente, impedindo-me.

— Se veio até aqui para dizer que eu fui inconsequente e que você
já tinha me avisado, pode poupar o discurso… — Abaixei-me perto da
mesa de cabeceira e peguei o aparelho. — Já estou me sentindo mal o
suficiente.
O homem alto e forte em minha frente não disse nada, apenas
estendeu a mão, esperando pelo celular.
Entreguei, tinha certeza de que ia jogar pela janela ou ao menos
pisar em cima, mas não foi isso que aconteceu. Shin apenas o desligou e
entregou de volta em minhas mãos.

— Não ligue mais, até que estejamos de volta a São Paulo…


Virou as costas, caminhando para perto da porta novamente. Parou
ali, mão na maçaneta, e eu não resisti.

— Só isso? — perguntei.

Sentia como se todo o bolo de sentimentos que eu tentava engolir


havia tempos estivesse disposto a sair de uma vez. Não queria mais fingir
que tudo bem… Que não havia nada além de sexo e que, se ele aparecesse
morto no gramado pela manhã, eu iria me desviar e seguir em frente. Não
era verdade e eu sempre fora uma péssima mentirosa.

Ele continuou ali, mão espalmada na parede branca, de costas, sem


me olhar.

— Não vai me dizer mais nada? — insisti. — Mesmo depois do


que Nicolas falou…

Os ombros do mestiço se moveram devagar, puxando o ar todo de


uma vez e soltando. Depois de alguns segundos, ele se virou.
— O que espera que eu diga? — Deu um passo em minha direção.

O rosto era inquisitório, duro, triste. Não parecia zangado, mas


havia um peso imenso em seus ombros.

Mais um passo e eu ri, de desespero, sem humor.


— Eu não sei! — confessei. — Acha que planejei? Que esperei
estar nessa situação? — provoquei.

— Você nem deveria estar aqui…

Engoli em seco, vendo-o assumir aquela mesma postura arrogante


que usava quando queria me irritar e afastar, mas, dessa vez, eu não iria
permitir.
— Só que eu estou… Estou aqui… Com você… — Dei um passo
também, diminuindo a distância entre nós. — Vai fazer o que, Shin Nakai?
Vai fugir? Fingir que nada aconteceu? Quer mesmo entrar nesse jogo
ridículo!

Eu ia falando e me aproximando, confrontando, enquanto ele


permanecia ali, de cabeça baixa, como se travasse uma guerra mental.
De repente, Shin fez um movimento rápido, girando o corpo e me
prensando contra a parede. As mãos espalmadas nos dois lados da minha
cabeça, ombros curvados, baixando o rosto até minha altura.

— E o que você esperava? Um pedido de casamento? Quer um


anel ou algo assim? — Riu cheio de sarcasmo. — Acha que é mais do que
uma boceta gostosa para mim?

Senti a raiva subir como fervura em uma panela. Levantei a mão


com força, espalmada, mas, antes que meu tapa o atingisse, ele a segurou e
não soltou. Sua mão grande ali, cobrindo a minha, a tatuagem na frente do
meu rosto. Enchendo meu peito com tantos sentimentos diferentes que eu
nem conseguia explicar.

Ficamos em silêncio, a respiração acelerada, entrecortada. Havia


raiva, medo, tesão, e uma dor que eu nunca sentira antes. Era muito mais
dolorida do que a rejeição, mais crua, profunda e latejante.
Seus olhos estavam perdidos nos meus e, pela primeira vez, aquela
imensidão verde-amarelada não pareceu tão escura, nem tão profunda e
assustadora. Era quente, intensa e convidativa, deixando-me hipnotizada
mais uma vez.
Shin separou os lábios, a boca aproximando-se da minha, mas,
antes que seus lábios tocassem os meus, eu desviei, sentindo sua pele
resvalar em minha bochecha.

Não podia beijá-lo, ou iria sucumbir, de novo.

Seu corpo se aproximou mais, tocando o meu, a boca tentou


encontrar a minha mais uma vez e, quando eu neguei, senti sua mão
segurar-me pelo queixo, forçando o toque dos lábios nos meus. Quando
percebeu que eu não o beijaria, ele socou a parede com a mão livre, bem ao
lado do meu rosto, produzindo um barulho tão alto que me fez pular.

— O que quer de mim, chiisai? Quer me destruir? É isso? Está se


vingando do meu avô? — a voz alterada pela primeira vez. — Porque se
acha que o irá punir desse jeito… — Riu sem humor, o rosto contorcido de
raiva. — Sinto informar que, quanto mais eu me foder, mais ele vai ficar
feliz!

Foi minha vez de rir.

— Seu idiota! Acha que estou punindo você porque não o beijei?
— elevei minha voz também, estava perdendo o controle. — Tem ideia do
quanto… Quanto… — Engoli a declaração que não queria fazer.
— Quanto o quê? — provocou, aproximando-se novamente. — O
quanto você me quer? Diz!

Empurrei seu peito, a mão espalmada ali, sentindo o coração bater.


— Seu arrogante, convencido, filho da puta! Acha que…

Seu braço enlaçou-me pela cintura, colidindo meu corpo no dele


com força.

— Diz… — repetiu, o rosto a centímetros do meu.


Fechei os olhos e reprimi a vontade de abraçá-lo de volta.

— Que diferença faz eu querer você? — falei com a voz calma, o


nó na garganta apertando.
— Nenhuma… — reforçou o que eu já sabia, os lábios raspando
nos meus sem realmente beijar, o hálito quente ali, aumentando meu desejo.
— Mas eu quero ouvir…

Senti aquela dor aumentar, bem dentro do meu peito, como um


rolo compressor, esmagando meus sentimentos. Seus olhos estavam nos
meus, a barba por fazer esfregando em meu rosto, então eu não resisti.
Segurei-o e invadi sua boca com a língua, precisava do gosto dele, de um
pouco mais, ainda que fosse a última vez.

Suas mãos desceram pelo meu quadril, levantando-me pela bunda,


e então ele me colocou na cama. Ajoelhei, ajudando-o a abrir o zíper sem
deixar que o beijo perdesse intensidade.

Meu baixo-ventre pulsava, o calor incendiando entre minhas


pernas, os bicos dos seios arrepiados de antecipação, sem que ele nem
tivesse me tocado ainda.
Livrei-me da sua camiseta, correndo os dedos pelas tatuagens,
enquanto ele levantava minha saia e se encaixava ali, onde eu precisava
dele cada vez mais.
— Ah… — gemi alto quando o senti me penetrar. — Ah… — uma
vez mais.

Não queria reprimir, nem controlar, queria me consumir nele.

Ele apoiou a mão na lateral do meu pescoço e se enterrou em mim


até me deixar sem ar.

— Não posso oferecer nada além disso, chiisai… Minha vida… Eu


não posso…

Segurei seu rosto entre minhas mãos. Sugando seu lábio e sentindo
o gosto ferroso da intensidade do nosso beijo.

— Não preciso de mais do que isso… Eu só quero saber que…


Você… Eu…

— Você é minha, chiisai… A única…

Apertei as pernas em torno da sua cintura, sentindo seus


movimentos dentro do meu canal, forçando para ir mais fundo. Precisava de
mim, como eu precisava dele.

Seus olhos se fecharam pela primeira vez, entregando-se,


permitindo que nos consumíssemos em um.

— É só isso que eu preciso, Shin Nakai… — balbuciei quase em


êxtase. — Que você seja meu também… Só isso que quero…

— Hum… — gemeu contra minha orelha, levando-me ao abismo


com ele, pulando comigo, deixando-se ir.

Quando senti que ia gozar, ele acelerou, derramando-se também, o


corpo pesando sobre o meu.
Girou de lado, deitando de costas e me levando junto, meu rosto
apoiado em seu peito. Shin não disse nada, nem eu, mas seus dedos se
enterraram em meus cabelos, escorregando pelos fios e brincando ali,
enchendo meu coração com aquele calor que eu nunca sentira antes dele.

Aconcheguei-me mais, o braço em torno da sua cintura, sentindo o


cheiro da sua pele, tateando os músculos.

— Precisa ser ainda mais esperta e cuidadosa agora, chiisai… —


ele falou suave, o peito subindo e descendo devagar. — No momento em
que perceberem que tem valor para mim, você vai se tornar o maior alvo…
Entende?

Levantei o rosto, encarando-o com um leve sorriso.

— Por mim podemos continuar fingindo que é só sexo… —


propus e ele riu. — Posso fingir que sou sua acompanhante! — Dei de
ombros. — Não me importo…
Sua mão escorregou para o meu pescoço, segurando com força, os
olhos fixos nos meus daquele jeito que me fazia prender a respiração.

— Vai me chamar de senhor e pedir permissão para falar? —


brincou. — Não é tarefa fácil ser puta de yakuza…

Era provocador e terrivelmente sexy, mas, diferente da última vez


que me propôs aquilo, havia um brilho em seu olhar vazio. Um que me
fazia querer ficar ali por um longo tempo.

— Sim, senhor… — Sorri. — Se você continuar me olhando


assim, saiko… Faço qualquer coisa…
Ele riu mais, depois depositou um beijo casto em meus lábios.
— Não vai ser fácil fingir, chiisai… Não sou do tipo que anda por
aí com uma garota a tiracolo… — Suspirou. — Tenho medo de que você
acabe se machucando… Esse mundo… não é seu…

— É sim! — protestei. — Nasci nele, não nasci? Fui criada por um


homem como você… Eu tentei fugir, Shin…, mas parece que este é mesmo
o meu lugar… Só preciso que você me ajude a entrar…

O mestiço não disse nada, apenas se levantou, ajeitando a calça e


estendendo a mão para que eu segurasse. Quando fiquei em pé, bem em sua
frente, ele levantou o dedo em riste.

— Regra número um… — falou pausado. — Os relacionamentos


no meu mundo são regidos por duas coisas, chiisai… Porra e sangue… Isso
significa que posso até fingir não me importar, mas você é minha mulher e,
se alguém tocá-la, eu não vou poupar… Seja quem for, do jeito que for…
Mesmo que você permita… Sangue por sangue… O meu, ou o dele…
Então pense nisso antes de tomar alguma decisão.
Capítulo Trinta e Quatro
Shin
Deixei Liandra no banheiro e vesti calça e camisa limpas. Queria
ver se Guillermo havia voltado e se tinha descoberto algo.

Passei pela cozinha ainda vazia, quando vi a ponta brilhante do


cigarro movendo-se lá fora, onde o dia começava a clarear.

Assim que parei ao lado do peruano, ele me ofereceu o maço e eu


aceitei, acendendo no isqueiro de metal com a caveira mexicana entalhada.

— Pelo tempo que demorou, imagino que resolveu as coisas com a


sua chica…

— Deixei claro a ela como as coisas funcionam… — respondi


dando um trago no cigarro.

Nicolas aquiesceu sem dizer nada.

— Vou procurar um hotel… — avisei. — O cartel não tem que ser


penalizado por problemas que não são dele…

O peruano riu.

— Quando vai admitir que tem um dos pés bem enterrado aqui
nesta terra vermelha, hermanito? Você pode ter nascido com esses olhos
puxados e essa cara de filho da puta arrogante que herdou do seu pai, mas
seu coração é de La Santa Muerte… como o nosso!

Foi minha vez de rir.


— Guillermo já voltou?

— Acabou de avisar que está no caminho… Trouxe um dos


bastardos quase vivo… — Riu de canto, levando o cigarro à boca.
— Ótimo! Assim pelo menos temos a chance de descobrir algo…
— Dei um trago também. — Ou pelo menos vamos mandar um belo
presente ao meu avô…
Não demorou muito e vimos os faróis da caminhonete se
aproximando na estrada. Guillermo passou pela casa e seguiu em direção ao
estábulo, então Nicolas e eu fizemos o mesmo.

— Não está muito consciente, mas nada que um pouco de água dos
Andes não refresque! — Nacho brincou, dando um tapa na cara do filho da
puta de pescoço tatuado.
Nicolas abriu a traseira da caminhonete e puxou o homem pelos
pés, enquanto eu o pegava pelos ombros. Pelo tanto que havia apanhado,
tínhamos que ser cuidadosos, ou acabaríamos matando o filho da puta antes
que ele tivesse a chance de confessar algo.

Jogamos perto da entrada das baias e Guillermo ligou a torneira,


mirando um jato forte de água fria no homem, que acordou assustado,
tremendo pelo frio do início da manhã.
Cruzei os braços na frente do corpo e deixei que meu companheiro
conduzisse o pequeno interrogatório de acordo com sua vontade.

Nicolas tirou o canivete do bolso e levantou a lâmina, enquanto o


yakuza proferia uma série de palavrões e ofensas em japonês. Dei risada,
porque era o único que entendia mesmo.
Pouco tempo depois, Sugoi apareceu carregando um dos homens
que deixava um rastro de sangue por onde vinha.

— Acertaram a perna, saiko… Se não for tratado logo…


— Deite-o no quarto… — mandei. — Vou chamar Liandra.
Passei rápido pelo caminho que levava até a casa. Sabia que
Nicolas e os homens do cartel cuidariam do prisioneiro, tinha que tentar
salvar os que estavam comigo.

— Sabe onde Liandra está, Tia Lupe? — perguntei assim que


passei pela porta.

— Quando a vi, estava no jardim com Camucha, hijo… Do que


precisa?
— Um dos meus homens… Levou um tiro na perna…

— Venha… — Secou as mãos no avental. — Vamos pegar a caixa


de socorro e chamar sua mulher… — Sorriu de canto. — Se ela quer estar
com você, precisa ver o mundo com os olhos bem abertos…
Concordei com um aceno de cabeça, era isso. Eu tinha lhe dado a
chance de sair, mas, se ela queria ficar, então teria que estar ao meu lado de
verdade. Eu não tinha tempo nem disposição para carregar peso morto por
aí e Liandra não era nenhuma novata naquele mundo.

— Aqui, niño… Leve até ela… Completei com o que estava


faltando logo que acordei… — Entregou a caixa pesada em minhas mãos.

Passei pela porta da sala e encontrei Liandra estendendo lençóis no


varal. Ela não demorou a me ver e veio ao meu encontro.

— Vamos até o estábulo… — chamei. — Um dos homens se


feriu… Talvez precise retirar o projétil…
Lia aquiesceu, torcendo o cabelo em um coque e prendendo com
um grampo.

Atravessamos o espaço, mas, assim que passamos pela cena do


interrogatório, a garota parou por um segundo, correndo os olhos pelo
homem quase morto que Nicolas segurava pelo pescoço.

Balançou a cabeça em negativa, como se quisesse convencer a si


mesma de que não tinha nada a ver com aquilo, e seguiu ao meu lado.

Entramos no alojamento, onde Sugoi tentava conter o sangramento


do garoto com um pedaço de lençol.
— Deixe-me ver… — Liandra pediu, sentando ao lado do garoto
na cama. — Preciso que alguém…

Peguei o canivete das mãos de Sugoi e rasguei o jeans da calça,


expondo o ferimento para que ela pudesse tratar.
— Vai doer um pouco, ok? — falou com o garoto em espanhol e eu
traduzi para japonês.

Ele aquiesceu e mordeu a manga da jaqueta preta que usava.

Fiquei de canto, encostado na porta ao lado de Sugoi, enquanto ela


tratava do jovem yakuza baleado.

— A garota é uma boa aquisição, saiko… — Sugoi sorriu de canto,


dando um trago no cigarro.
Encarei-a por mais alguns segundos. Tinha aquela maneira gentil
de fazer o que precisava ser feito. Não reclamava do que tinha em mãos,
apenas resolvia, do melhor jeito que conseguia. Como dizia Nico sobre mim
e o cartel, Liandra tinha nascido com um pé na yakuza sem mesmo saber
que tinha.

— É… Ela é, sim… — concordei.

Em alguns minutos, o curativo foi fechado e Liandra ofereceu


alguns comprimidos para a dor ao garoto, depois de ajudá-lo a se deitar
mais confortável e puxar as cobertas. Esperei por ela do lado de fora, dando
o último trago no meu cigarro e atirando a ponta morro abaixo.

Quando passamos pela frente do estábulo, encontramos os homens


de Nicolas limpando o sangue do yakuza com a mangueira. Esperei que
Liandra demonstrasse algum sentimento ou repúdio diante do que,
obviamente, havia acontecido ali, mas ela meneou a cabeça e seguiu em
frente, logo depois de cumprimentar.

— Parece que a regra número dois você já entendeu, chiisai… —


comentei esperando sua reação.
— O quê? Ficar insensível? Deixar de me importar com a morte de
alguém?

— Não… Esconder a diferença que faz para não demonstrar


fraqueza na frente de quem não é um dos seus.

Liandra baixou a cabeça, mas eu pude perceber a sombra de um


sorriso brilhando em seu rosto. Nenhum de nós era um monstro sem alma, a
gente só escolhia para quem deveria mostrar a verdadeira face.

Assim que chegamos de volta a casa, Verônica chamou a garota


para dentro e eu continuei meu caminho até onde Nicolas falava com
Guillermo.

— Descobriu algo? — perguntei já me aproximando.

— Que o desgraçado do seu avô está importunando os habitantes


da região… Parece que ele ainda não sabe onde está o maldito caderno,
então precisamos encontrá-lo bem rápido… — Deu um trago no cigarro.
Estava irritado e dentro da sua razão. Fazia tempo que meu avô
tinha perdido o ponto e me ver ao lado de Nicolas mais uma vez só
reforçava seu ódio e o fazia querer ir mais longe.
Meu avô era como uma cobra peçonhenta, quanto mais acuado
ficava, mais queria dar o bote.

— Vou mandar meus homens para mais uma ronda pela


propriedade e se tudo estiver tranquilo amanhã mando um mensageiro até
os aymaras… — avisou.
— Sei que não confia muito no Sugoi, mas ele está comigo há
muito tempo, Nico… Eu realmente…

A mão grande bateu em minhas costas.

— Devo minha vida a você, Nakai… Mais de uma vez… Se confia


no japonês, não cabe a mim questionar… Mande-o procurar pelo Guille,
acho justo que você tenha um dos seus junto do grupo.

Concordei com a cabeça e me afastei, seguindo de volta para o


alojamento. Encontrei Sugoi com o cigarro na boca, do lado de fora.

— Nicolas vai mandar um grupo para a ronda… Quero que você


os acompanhe… — avisei.

— Tem uma coisa, saiko… — Deu um trago longo. — Eu não quis


falar perto dos peruanos, nem da garota… Não sei até que ponto o senhor os
quer a par dos negócios…

Puxei o ar com força. Sabia que não eram boas notícias.


— Quando estávamos voltando, Guillermo parou em um bar e eu
dei a volta para urinar. Tinha acabado de terminar, quando vi dois homens
se aproximando do bar em uma motocicleta… Eles não me viram, mas eu
sim… Os dois tinham rosas vermelhas tatuadas no pescoço… Como os
homens do…
— Minoru… — concluí.

— Isso…

Acendi um cigarro também e dei um trago.


— Fique de olho em qualquer coisa que cheire a problema,
Sugoi… Nicolas sabe da história do Minoru e como cheguei até a
informação do povoado, mas eu prefiro mantê-lo fora desse problema… O
cartel ainda está se reerguendo, não quero jogar esse problema nos ombros
dele.

Sugoi curvou o corpo em anuência e eu voltei para a casa grande.


Queria aproveitar as poucas horas que tínhamos antes de irmos ao povoado
para cuidar dos meus negócios e colocar meu cunhado a par dos riscos.
Quando eu colocasse as mãos no caderno verdadeiro, meu avô iria atacar e
sabia bem como me atingir onde doía mais.
Capítulo Trinta e Cinco
Liandra
Pelo que restou da manhã, ajudei Guadalupe e Camucha com as
coisas da casa. Nunca fora o tipo princesa mesmo e os afazeres domésticos
mantinham minha cabeça cheia o suficiente para não pensar em tudo que
estava acontecendo.

Tínhamos acabado de arrumar a cozinha do almoço, então eu me


sentei debaixo das árvores no jardim e fiquei observando o vai e vem de
pessoas.

Ainda me era um pouco estranho ver a vida tranquila que eles


levavam naquele lugar, como se os negócios de Nicolas não fizessem parte
daquele pedaço de mundo.
Vez ou outra, um homem armado era visto ou a movimentação de
seguranças, mas, se eu não soubesse que aquele rancho pertencia ao chefe
do maior cartel de drogas da América do Sul, iria pensar que se tratava
apenas de um empresário preocupado com a segurança da família.

Depois de um tempo, entrei procurando por Shin. Ele havia ficado


no quarto durante toda a manhã e parecia bem ocupado; eu não quis
atrapalhar, mas estava curiosa para saber qual seria o próximo passo.

Bati à porta e esperei que ele abrisse. Tudo estava silencioso, então
empurrei devagar para encontrar o quarto vazio.

— Aqui, chica… Leve água fresca para o seu homem… —


Guadalupe entregou uma moringa em minhas mãos.

— Não sei onde ele está…

— No morro… — Apontou. — Bem lá no alto, depois daquelas


árvores… É para onde eles vão quando precisam de solidão para pensar…
— Sorriu de canto e eu acabei sorrindo também.

Agradeci e tomei o rumo que a matriarca havia indicado. Um


tempo sozinha com ele para poder conversar seria mesmo muito bom.

Passei pelas grandes oliveiras e logo o vi.

Shin estava lá, de costas para mim, a camisa pendurada no galho


de uma árvore, as costas nuas. Parei por um instante, admirando mais uma
vez o desenho que cobria toda a extensão das suas costas. Ele empunhou a
pistola e atirou, derrubando uma lata que estava na cerca, uns bons metros à
frente.

— Devia ter cuidado, chiisai… Nunca se aproxime de surpresa e


desarmada de alguém que poderia matá-la…
Virou-se para mim com aquele sorriso de canto, provocativo e
muito, muito sexy, brilhando na boca bonita.

— Se eu estivesse armada, também não ajudaria muito… — Dei


de ombros. — Não sou boa de tiro…

Entreguei a moringa em sua mão e ele jogou um pouco na cabeça,


antes de beber, molhando o cabelo, pescoço e peito musculoso.

— Precisamos mudar isso então… — Deu alguns passos


aproximando-se de mim.
— Vai me ensinar? — Deslizei a mão em seu peito, fazendo graça.

— Aí depende… — Deixou a moringa no chão. — Meus métodos


não são muito ortodoxos… — Baixou o rosto pelo meu decote, acendendo
aquele fogo no meio das minhas pernas que era minha ruína.

Ri, mordendo o lábio.


— E o que é ortodoxo em você, mestiço?

Ele esboçou mais um sorriso sacana, os olhos focados nos meus.

— Primeiro mostre o que sabe… — Entregou a pistola em minha


mão.
Eu nunca tinha realmente atirado na vida. Segurara uma pistola
para me proteger e apertei o gatilho por descuido, então nem considerava
aquilo um tiro.

Engatilhei como via as pessoas fazendo na TV e segurei firme o


cabo com as duas mãos. Pernas separadas, como os seriados policiais me
ensinavam.
— Acerte aquele galho da árvore… — mandou.

— Não seria a lata? — perguntei curiosa, a árvore parecia grande e


perto demais para eu errar.
— Se acertar, podemos passar para as latas.

Concentrei-me, mas, quando apertei o gatilho, o tranco me fez


mexer a mão e nem o meio da árvore acertei.
— Merda! — xinguei.
Shin veio por trás, as mãos encaixadas nas minhas, mostrando a
posição correta.

— Respire e segure… — instruiu. — Agora você já sabe o que a


espera, não será pega de surpresa…
Fechei um dos olhos e mirei. Acertei o tronco.

— Isso, chiisai… Se continuar assim, em alguns anos, poderemos


passar para as latas! — Riu.
— Bobo! — Bati em seu ombro com a mão livre.

Alguns tiros depois, acertei o galho e pude enfim passar para as


latas.

A cada disparo, eu compreendia melhor o que tinha que fazer e o


peso que a pistola tinha em minhas mãos. Era uma garota inteligente, ia
aprender, nem que fosse para esfregar, na cara daquele yakuza metido, que
eu podia.
Quando o sol começou a baixar no horizonte, amarelando a luz da
paisagem, eu já estava quase tão boa quanto via as mocinhas das minhas
séries.

Shin trocou o pente vazio por um cheio e engatilhou a arma


novamente, entregando em minhas mãos logo depois de reposicionar nossos
alvos. Eu não pude deixar de provocá-lo com o olhar, já que tinha
derrubado todas as latas em uma bela sequência.
— Acha que já aprendeu tudo, chiisai? — provocou com aquela
superioridade que tinha. — Pensa que todos os seus alvos estarão assim,
parados, esperando para serem acertados? — Deu mais um passo, parando
bem atrás de mim. — Que estará sempre no controle, pensamentos livres,
só esperando para puxar o gatilho?

Eu não sabia o que dizer, a presença dele tão perto já me


descontrolava. O desgraçado aproximou a boca da minha orelha, soprando a
respiração e arrepiando minha pele.
— Vamos para a lição número dois… — sussurrou quando eu
tentei atirar e errei a porra da lata. Nem a cerca consegui acertar.

Escutei o zíper ser baixado e uma mão apoiar-se em meu quadril,


enquanto a outra levantava a saia do vestido. Engoli em seco.
— Ei… — protestei rindo, não era uma reclamação sincera.

Shin esfregou a glande no vão das minhas nádegas, abrindo espaço


e eu arrebitei a bunda por instinto, sentindo-o roçar meus grandes lábios.

— Acerte a lata! — ordenou e eu ri.


— Nem fodendo! — reclamei.

Minha cintura foi puxada e eu o senti me penetrar com vontade,


arfei.
— Fodendo, chiisai… — Riu contra meu ouvido, beliscando o
bico do meu seio com os dedos. — Tem que acertar a mira enquanto eu
como você… — Tirou o pau de uma vez, desequilibrando-me e deixando
aquela sensação ruim que a falta dele me trazia. — Se errar, não vou deixar
você gozar…

Baixei a mão e dei um passo atrás, sentindo a ereção dele contra


minha pele novamente. O coração acelerado, a boca seca de desejo, ansiosa
por mais.

— E se eu acertar de primeira? — instiguei.

Senti seu pau abrindo espaço em meu canal novamente e reprimi o


gemido, sentindo meu corpo todo pulsar.

— Aí vamos ter mais tempo para nos divertir antes de voltar para
casa… O dia amanhã será bem cheio…

Seu braço passou em volta da minha cintura, me sustentando


enquanto ele se movia para dentro e para fora, dolorosamente lento.

Mordi o lábio e fechei os olhos por um segundo. A vontade de me


entregar e gemer exigia mais concentração do que mirar a porra da lata.
Vamos, Lia, você consegue! Apertei as coxas aumentando a fricção
e ele arfou em meu ouvido, arrepiando-me ainda mais.

— Vai, chiisai… Acerta a lata… — repetiu com a voz grossa de


desejo.

Atirei, errando feio, mas não me dei por vencida, engatilhando de


novo, enquanto ele mordia e chupava meu pescoço.
— Hum… — deixei escapar entredentes, pouco antes de continuar.

Puxei o ar e segurei, apontando para o alvo mais perto. Apertei o


gatilho sentindo que ia gozar e por muito pouco não errei novamente. O tiro
bateu na beirada da lata, fazendo-a voar longe e, no instante seguinte, a
pistola foi tirada da minha mão.

— Ah… — gemi forte, quando ele aumentou o ritmo.

A arma fria contra minhas costas, fazendo com que toda aquela
adrenalina e sensação de perigo aumentasse, junto com o prazer. Eu estava
viciada naquele yakuza desgraçado, no que ele representava e no que me
fazia sentir.

— Shin… Eu… Eu…

— O quê… — sussurrou contra minha boca, meu rosto preso em


sua mão. — Fala para mim…

— Eu vou gozar… — soltei no meio de um gemido, a cabeça


pendendo contra o peito dele.

O braço em torno da minha cintura apertou mais forte, estocando


com força e prendendo meu corpo junto ao dele.
— Assim, chiisai… Quero você gozando com o meu pau enterrado
na sua boceta…

Perdi o ar, as pernas amolecendo e as pálpebras tremendo


semiabertas. Era sempre assim, como se eu me acabasse nele. Perdia o
controle e me deixava ir, consumida pelo homem que jurei ser meu inimigo
e que tinha ganhado tudo de mim.

Shin me abraçou, amparando meu corpo, e eu encaixei o rosto em


seu pescoço.

— A gente ainda vai morrer disso! — brinquei assim que meus


sentidos voltaram.

O riso dele me fez querer rir também.

— Para quem nunca sabe a hora, esse me parece um final muito


digno…

Meu riso deu lugar a um suspiro cheio de sentimentos. Uma


pontinha de medo ganhando espaço. Fora exatamente aquela incerteza que
me levara tão rápido aos braços dele. Quando se sabe que o tempo é
limitado, não há o que esperar. Cada segundo pode realmente ser o último.

Levantei o rosto e encarei seu olhar. Podia ver resquícios do


mesmo medo que eu sentia ali, brilhando no fundo daquela imensidão
esverdeada.

— Sabia que eu sempre quis comer fugu e nunca tive coragem? —


soltei como se toda a conversa emocional que tivemos não fosse nada de
mais.
Queria suavizar as coisas entre nós.

Shin franziu o cenho, curioso.


— Como não? Terada nunca… Ele sabe preparar…

Neguei com a cabeça.

— Sou meio medrosa!

A risada deixou seu rosto ainda mais bonito.

— Vamos combinar uma coisa, chiisai… Quando tudo isso


terminar, vou fechar o melhor restaurante de Tóquio e comer você de
sobremesa, depois do fugu. — Piscou com aquele riso de canto.
Capítulo Trinta e Seis
Shin
Depois do jantar, deixei Liandra dormindo e segui até o estábulo.

Nicolas e eu havíamos combinado de nos encontrar e acertar os


últimos detalhes da visita que faríamos ao povoado aymara, cuja
coordenada estava em meu colar.

A luz acesa no alojamento denunciou onde os homens estavam.

— Sabe cavalgar, Nakai? — Nicolas falou assim que eu parei junto


ao marco da porta.

Dei um trago no cigarro, soltando a fumaça para cima.

— Aprendo rápido…

O peruano meneou a cabeça, apontando o mapa sobre a cama feita.

— Aqui é onde aponta sua coordenada, mas, segundo esse mapa, é


um cemitério…

— O que vai ser um problema… — Guillermo continuou. —


Ninguém mexe no território de La Madre… — Beijou o cordão da Santa
Morte que usava pendurado no pescoço.

— Menos ainda um estrangeiro… — Nacho, o homem de


confiança de Nicolas, completou.

— Nada em que não se dê jeito! — Sugoi riu de canto, encaixando


o pente na pistola e arrancando risos dos outros yakuzas.

— Não… — interrompi em japonês. — Não é assim que vamos


resolver… É o povoado da minha mãe… Vamos entrar com respeito e sair
como se não tivéssemos entrado… Já fizemos mal demais ao povo desta
terra…
Meu subordinado curvou o corpo em um pedido de desculpas.
Tinha seus métodos, mas cumpria minhas ordens sem pestanejar. Por isso
eu confiava tanto nele.
— Vamos a cavalo eu, você e Tia Lupe… — Nicolas continuou
explicando o plano. — Nacho e Sugoi vão pela estrada, de caminhonete…
Assim protegemos a retaguarda com maior velocidade… Guille fica na casa
com os homens, seus e meus, assim garantimos a segurança das garotas…

Meneei a cabeça em concordância.


— Quando saímos? — perguntei, dando mais um trago.

— Em algumas horas… Pouco antes do amanhecer… Não quero


ser visto…
Cumprimentei-os e saí. Ainda não tinha chegado a casa, quando
Nicolas me alcançou.

— Teve notícias de casa? — puxou conversa.


Ergui a sobrancelha meio debochado, meio curioso.

— Não sei mais se tenho uma… — brinquei.


— Seu avô desembarcou em Lima…
Soltei uma lufada de ar e o peruano fez o mesmo.

— Para ter vindo pessoalmente, o desgraçado deve estar mesmo


interessado em esconder a merda que fez… Ele não viria só para matar
você…
Aquiesci. Aquele demônio não dava ponto sem nó.

— Tem certeza de que Guillermo dá conta de fazer a segurança por


aqui? — questionei.
— Com outros dez homens? Sim… — confirmou. — Verônica
também é boa em comandar, você sabe…

Ri com ele, embora ainda estivesse preocupado demais. Já tinha


visto a Nakai-Gumi derrubar inimigos maiores, o poder de fogo dos meus
companheiros era muito, muito alto.

— Algumas horas, Nakai… Só vai deixá-la sozinha por algumas


horas! — Bateu de leve em meu ombro, seguindo pelo corredor dos
quartos.
Algumas horas…

Algumas horas fora o tempo que Vigo deixara minha mãe sozinha
com duas crianças e um bebê recém-nascido… Algumas horas que
destruíram mais vidas do que pudemos contar.
Abri a porta do quarto e parei, observando a garota na cama.
Quando foi que você ficou tão burro? — xinguei a mim mesmo. Caiu no
mesmo erro que viu derrubar tantos…

— Shin? — ela chamou baixo, a voz carregada de sono e aquele


meio sorriso escondido nos lábios. — Vem… — chamou estendendo a mão.
— Você não é feito de pedra, yakuza… Precisa dormir de vez em quando…

Não pude conter o riso, livrando-me da camiseta e da calça e


deitando junto dela.

Liandra se aconchegou em meu peito, os cabelos ondulados


espalhados em volta de mim e aquele perfume que me inebriava tomando
conta do ar, até que os lábios tocaram minha pele suavemente, sem esperar
nada em troca.
Fiquei parado ali, o braço em volta dela sem tocar. Depois respirei
fundo e descansei a mão espalmada em seu ombro. Parecia bom… Ter um
corpo quente e macio para dividir a cama. Bom e perigoso…

Ponto fraco… Quando foi que você se tornou estúpido o suficiente


para ter um?

Fechei os olhos, não queria pensar demais. Nicolas estava seguro


de que daria certo, eu precisava começar a confiar nas pessoas…
Confiar… Como se confia em alguém depois de ser traído pelo
próprio avô?

Apertei os olhos.
Porra de ansiedade que não me deixa desligar…

Liandra ressonou, jogando a perna por cima de mim, sem nem


perceber.

Desci a mão do ombro dela até a bunda e apertei, virando de lado e


roçando o pau na sua coxa.

— Estou muito ligado para dormir, chiisai… — sussurrei no


ouvido dela.
A garota riu, mas encaixou o corpo no meu um pouquinho mais.

— Preciso que me faça gozar… Tenho que estar descansado para


amanhã… — Deslizei a boca em seu pescoço, sentindo a pele dela se
arrepiar.

— Alguém já te disse que o romantismo é seu ponto forte? —


provocou de sacanagem, montando em mim e enfiando a mão dentro da
minha cueca.
Segurou meu pau, os dedos em volta, indo e vindo e me deixando
ainda mais duro.

— É mesmo? — entrei no jogo. — Achei que meu ponto forte


fosse o pau grande que herdei da minha metade peruana…

Liandra riu alto e eu puxei a calcinha dela de lado, roçando a


cabeça úmida na boceta quente que ela tinha.
— Hum… — gemeu, sentando com vontade, pernas bem abertas,
recebendo-me de uma vez. — Isso também… — confessou.

Fechei os olhos, jogando a cabeça para trás, deixando meu corpo


relaxar no prazer que ela me dava. Queria liberar a mente, acalmar os
pensamentos e manter o foco. Precisava desligar, mesmo que por algumas
horas.

Concentrei-me nos gemidos dela, na forma como seu quadril


rebolava me montando, indo e vindo, friccionando mais forte, mais fundo.

— Ahhhhhh…

Senti o corpo pequeno amolecer, as coxas se contraindo por


instinto, o canal ordenhando meu pau até me levar com ela. Segurei-a pela
bunda, apertando com força, enquanto gozava.

Pelo tempo que durou, não havia yakuza, cartel, nem a porra do
fantasma do Minoru, não havia nada além da calmaria que Liandra era para
mim.
Ela se curvou e me beijou, enquanto eu ainda estava dentro dela.
Os lábios macios, o riso fácil.
Algumas horas… Se alguém tirasse a garota de mim, ia certamente
conhecer o inferno, porque eu me transformaria no demônio só para tê-la de
volta.
Capítulo Trinta e Sete
Liandra
Fiquei parada ali, aconchegada em seu peito.

Não estava com sono, mas a paz que ele me trazia acabou me
fazendo adormecer. Acordei em sobressalto, quando seu corpo começou a
se mexer.

— No! — balbuciou. — No te vás…

Algumas palavras eu não conseguia entender, pareciam grunhidos,


misturando o japonês e o espanhol, gemidos dolorosos, algo que o fazia
sofrer muito.

— No te vás… No te…

Tentei me levantar, mas ele agarrou meu pulso por instinto com
tanta força que doeu.

— Shin… Calma… — Espalmei a mão em seu peito, esperando


que ele acordasse. — Sou eu, Lia… Shin?

Como se saísse do transe, ele abriu os olhos, colocando-me de lado


e deixando a cama tão rápido que não sei como não teve uma vertigem.

— Preciso de um banho…

Fiquei parada ali, com a boca aberta e a mão estendida, sem ter
tempo para chamá-lo, já que ele passou pela porta correndo como um
foguete.
Eu entendia bem daquele artifício, tinha usado muitas vezes
quando não queria falar sobre algo que estava escrito em minha testa.

Pensei em deixá-lo ter seu tempo e voltar para o quarto com aquela
mesma cara de arrogante que não precisava de ninguém, mas tudo que
conseguia pensar era no quanto ele estava sozinho.

Respirei fundo, alisando os cabelos para trás, já sentada na cama.


Eu estava fodida e já não tinha muito que pudesse fazer. Era aquele
momento em que chegamos à conclusão de que o cuspe cai mesmo na testa.

E você jurando que seria uma bela foda e nada mais…


Engoli o orgulho e me levantei, vestindo a saia e prendendo os
cabelos em um coque. A porta do banheiro estava entreaberta, então
aumentei o vão o suficiente para ter certeza de que era ele dentro do boxe.

Sobre a pia, a cueca preta me deu a garantia que eu precisava,


então entrei.

Shin estava de costas, o vapor deixando o vidro fosco para que eu


visse apenas sua silhueta altiva.

Livrei-me da roupa e empurrei o vidro, os braços escorregando


pela cintura dele até abraçá-lo. O rosto afundado em suas costas. Eu não era
do tipo emotivo, estava acostumada a socorrer logo e mandar para a frente,
sem envolvimento, sem saber o que houve depois. Aquele maldito mestiço
fora o único paciente a quem voltei para dar uma segunda olhada.

O único… — Suspirei.

Estava preparada para ser empurrada para longe. Talvez ele


reclamasse e me mandasse sair, então esperei. Esperei e esperei mais um
pouco, mas Shin não se moveu. A água morna caindo sobre nós e o silêncio
confortável no banheiro.
Depois de um longo tempo, eu o soltei.

— Vem? Vamos deitar… Logo vai amanhecer e…


Os olhos dele se fixaram nos meus e eu parei a frase no meio. Toda
vez que me olhava daquele jeito eu queria abraçá-lo forte e não soltar mais.
Era aquele mesmo olhar que tinha me feito ajudá-lo, o mesmo que me fez
tratar a ferida dele mesmo depois de ter sido quase enforcada, o olhar do
menino perdido que eu queria proteger.
Um yakuza perigoso… Mortal… Impiedoso… E, ainda assim, eu o
quero proteger.

Desliguei o chuveiro e entreguei uma toalha em suas mãos.


Shin se secou e a enrolou em torno da cintura; eu vesti minhas
roupas de volta e caminhei com ele pelo grande corredor aberto que dava no
quarto de visitas que estávamos ocupando.

Ele passou pela porta e, logo que vestiu a calça de elástico, sentou-
se no beiral, o cigarro aceso no canto da boca, displicente e charmoso como
só ele conseguia ser.
— Sonhei com a minha mãe… — começou depois de algum tempo
em silêncio.

Suspirei sentindo o peso da voz dele.

— Queria sonhar com a minha… — confessei. — Às vezes tenho


medo de estar esquecendo o rosto dela… Não me sobraram fotos, nem
lembranças palpáveis… Tudo que eu tinha era o colar… — Encarei o
objeto em seu pescoço, rindo sem muito humor. — E ele nem era meu…

O mestiço deu um trago no cigarro e soltou a fumaça devagar,


formando uma névoa em torno do seu rosto.
— Não lembrar é pior do que lembrar de coisas ruins… — Deu
mais um trago, puxando o vermelho da brasa até quase o filtro. — Parecia
um aviso, chiisai… E não era dos bons…

Senti o sangue gelar tão rápido em minhas veias que tremi. Na


última vez que o peguei sonhando daquele jeito, tínhamos sido atacados no
beco e saído ilesos por uma questão de sorte.

— Quando eu estiver fora… — Fez uma pausa e atirou a ponta do


cigarro longe, a fumaça saindo com as palavras. — Quero que prometa que
terá cuidado…
Engoli em seco, a garganta fechando, o coração apertado.

— Nada vai acontecer… Guillermo e Verônica…


— Você o conhece… — continuou, fazendo um arrepio percorrer
minha coluna. — Ele não vai desistir até ter o caderno… E sabe que eu não
vou entregá-lo fácil, chiisai…

Estávamos de frente um para o outro, olhos nos olhos. Havia uma


tensão ali que ninguém queria falar em voz alta. Um medo que não
estávamos acostumados a sentir.

— Vai se deitar… — mandou.

— Vamos… — Estendi a mão.


Shin ficou olhando para ela por alguns segundos, que pareceram
horas. Depois finalmente se levantou e eu aproveitei para segurar sua mão.
Nossos dedos entrelaçados, quente, confortável, como se sempre estivessem
juntas.

Não sei em que momento ele saiu, porque quando acordei estava
sozinha. O lençol amassado e vazio ao meu lado deixava um gosto amargo
em minha boca. Aquela sensação apertada no peito.
Lavei o rosto e me vesti, seguindo para a cozinha. Verônica estava
lá, parada diante da janela com a caneca de café nas mãos. Olhava o
horizonte, com o mesmo peso no olhar que eu.
— São só algumas horas… — falou assim que eu me aproximei.

— Uhum… — concordei com um meio sorriso.


Queria parecer animada, mas Verônica não era boba.

De repente Camucha veio dos quartos, com o bebê nos braços.


— Ei, pardalzinho… — Sorriu com amor. — Venha com a
mamãe…

Encostei-me perto da porta, observando a cena. O bebê balbuciava


e ria, dando gritinhos animados, e Verônica ria junto. Era uma daquelas
felicidades genuínas que não podem ser compradas por dinheiro nenhum.
Eu nunca pensei em ter filhos. Sempre tive a certeza de que seria
sozinha a vida toda e gostava da liberdade que a solidão me dava, mas ali,
naquela casa de fazenda, olhando a garota jovem e bonita com seu bebê,
pensei que talvez as coisas pudessem ser diferentes.

Ainda não queria ser mãe, mas talvez, só talvez, a vida não
precisasse ser tão solitária.

— Quer segurá-lo um pouquinho? — a ex-policial perguntou. —


Sei que parece meio assustador no início, mas acredite… Não é! — Sorriu.

Fiquei sem jeito. Podia contar nos dedos das mãos as vezes que
tinha segurado uma criança no colo, mas aceitei.

O menino riu, brincando com uma mecha de cabelo minha.

— Acho que ele gostou de você! — brincou.


— O bom é que os dois vão ter quase a mesma idade… —
Camucha soltou, ajeitando as roupas dentro de um cesto.

Olhei para Verônica imediatamente, já que não sabia que ela estava
grávida.

— Não! — sinalizou rindo. — Eu não! — Abraçou a mulher. —


Mas Camucha raramente erra! — Piscou. — O que acha de ficar um
pouquinho com ele, enquanto vamos guardar as roupas, Lia?

Concordei de imediato e só entendi quando atravessei a sala.

— Não… — Franzi o cenho. — Não tem possibilidade… De jeito


nenhum… Não!

Deixei o bebê ao lado do cesto de brinquedos.

Não… Dois dias de atraso são normais para você, Lia… Ainda mais
com essa bomba hormonal que você tomou! É estresse! Essa vida maluca
em que você entrou…

Lá fora o dia havia amanhecido estranho, mesmo que o clima fosse


bom. O céu estava cinzento e não havia passarinho algum, nem o canto nem
a presença, nas árvores perto da janela.

Deixe de ser paranoica, Lia… Não comece!

Minha mãe era aquele tipo de mulher que acredita em tudo, desde
simpatias até presságios. Meu pai e ela haviam se conhecido em um bar, na
Liberdade. Ela era recém-chegada do Nordeste, ele fugitivo do Peru, se
olharam, ele ofereceu uma bebida e ela disse que aquela seria sua pior
decisão. Nove meses depois, eu nasci.

Tinha sido assim quando encontrei Shin caído naquele beco. Eu


olhei para o rosto bonito do homem de terno e tive certeza de que ele me
custaria bem mais do que eu estava disposta a oferecer; mesmo assim, ali
estava eu, esperando o yakuza voltar para casa.

— Aproveite enquanto as coisas são simples, bebê… — brinquei.


— Depois a gente cresce e tudo fica muito, muito complicado!

Um corvo gritou, tão perto da janela que eu pulei em sobressalto, a


mão espalmada sobre o coração. Em seguida, o telefone tocou.

Esperei que alguém atendesse. Um toque, dois toques, três toques.


Era uma casa grande e talvez Verônica e Camucha não estivessem por
perto. Eu tinha visto Guillermo sair com alguns homens para a ronda, então
pensei que, se fosse Nicolas, era melhor atender de uma vez.

Tirei o telefone do gancho, mas não disse nada de imediato, apenas


por segurança.

— Veja só… Nos encontramos novamente… — alguém disse com


um sotaque pesado, e eu senti tudo escurecer. — Se me permite dizer,
vermelho lhe cai muito bem, Liandra Oliveira…

Engoli em seco, estava mesmo de vermelho. O desgraçado estalou


a língua negativamente.

— Nem pense em desligar… Se não quiser uma bala no meio da


cabeça do bebezinho.

Imediatamente, meus olhos procuraram por algo ou alguém, mas


tudo que eu via era o silêncio.
— Vou explicar o que vai fazer… — o espanhol arrastado, quase
impossível de entender. — Você vai esperar meia hora… Depois vai descer
até o rio… Aquele onde você e meu neto se divertiram tanto…
Meu coração disparou. Zonza, a vista escurecendo. Uma queda de
pressão, dado o nervosismo, provavelmente.

— Eu não estou com o colar… — soltei sem nem saber a razão. —


Não sou útil para você…

Queria ganhar tempo, talvez até que Shin e Nicolas estivessem de


volta.
— Eu não preciso mais do colar, querida… — continuou. — Meu
cãozinho poupou os meus esforços… — Riu, deixando-me com mais raiva.
— Ele vai entregar para mim em troca da puta dele… Parece que os
homens da minha família não sabem mesmo separar o pau do cérebro… —
reclamou entredentes. — Ande, garota! Não seja idiota como foi anos
atrás… Se você for boazinha…, a policial e esse maldito peruaninho vão
poder viver.

Fiquei parada ali, os olhos perdidos no garotinho em minha frente.

— Meia hora, Liandra… Nem um minuto a mais.


Capítulo Trinta e Oito
Shin
— Logo depois da colina… — O peruano apontou o dedo. — A
aldeia fica bem ali.

Fazia um bom tempo que estávamos cavalgando e eu não


conseguia deixar de pensar no que Nicolas havia dito na noite anterior.

Meu avô no Peru não era de estranhar. Eu já imaginava que ele não
ia ficar quieto e esperar que eu conseguisse a prova de que precisava para
derrubá-lo. Aquela cobra peçonhenta estava sempre um passo a minha
frente.

Um passo a minha frente… Engoli em seco o estalo de consciência


que tive. Os dedos apertando a rédea com força.

Quando a fumaça começou a manchar o céu de cinza-escuro, senti


o gosto da bílis invadir minha boca.
— Por La Santa Madre! — Guadalupe tapou a boca com a mão, os
olhos arregalados.

Puxei a rédea do cavalo, parando-o no mesmo instante e Nicolas


também.

Nós dois, encarando a destruição que conhecíamos tão bem.

Não era a primeira vez que víamos uma cena como aquela e
sabíamos bem quem tinha sido o mandante. Meu avô gostava do fogo.
Dizia que um demônio reconhece outro e que era por isso que ele enviava
seus inimigos direto para o Inferno.

— Vamos! — gritou batendo o chicote no cavalo.

Apertei o galope, e Guadalupe fez o mesmo.


— Pela estrada, Hermano… Encontre o Nacho e siga com ele…

Havia um desespero cheio de ódio em seu olhar. Eu sabia bem,


entendia aquela dor, porque já a tínhamos vivido. Naquele momento,
caderno nenhum era mais importante do que salvar as pessoas que
amávamos.

Aquiesci, seguindo pelo caminho indicado. Nunca pensei que um


cavalo pudesse ser tão rápido, mas não demorou muito para que eu
encontrasse a caminhonete de Nicolas parada no meio da estrada. O vidro
traseiro estourado por um tiro.
Filho da puta desgraçado! — xinguei sentindo o sangue ferver de
ódio.

Parei e desci do cavalo, aproximando-me da porta. O corpo de


Sugoi estava tombado para a frente e sangue manchava todo o painel.
Levei a mão na maçaneta e girei, abrindo-a quando Nacho tentou
se mover. O peruano gemeu algo que eu não consegui entender. Os olhos
revirando pela perda de sangue.

— Para onde eles foram? — perguntei empurrando-o para que eu


pudesse assumir o volante.

— A garota… — Puxou o ar com força, tentando manter a


consciência. — Eles pegaram a… Eu… Eu… — balbuciava apagando e
voltando. A camiseta branca manchada de vermelho e os lábios tão brancos
que nem parecia mais vivo.

Segurei-o com força e sacudi. Precisava que falasse, que mostrasse


o caminho, qualquer coisa. Qualquer mínima coisa poderia ser a diferença
entre vê-la viva de novo e encontrar seu cadáver em uma vala qualquer.
— Só me diga a direção… — gritei, dando um tapa no rosto do
peruano. — Só a direção, porra! — xinguei, o ódio tomando conta de mim.

O desgraçado apagou sem que eu pudesse entender para onde ir.

Soltei-o e apertei o volante, concentrando-me no que fazer, usava


todo o autocontrole para não cair em desespero. Não podia contar com
nenhum dos homens, tinha que ser apenas eu.
Virei a chave no instante em que percebi o rastro de poeira na
estrada. Enfiei o pé no acelerador tão fundo que o carro deslizou na areia,
mas eu não ia parar. Não até ter certeza de que aquele demônio não tiraria
mais nada de mim.

Enquanto seguia o rastro a minha frente, tudo que conseguia pensar


era em minha mãe.
Algumas horas…

Você sabia! — Golpeei o volante. Que porra de yokai que nem


confia em seus próprios instintos! Você sabia! Repeti.

Meu sangue fervia de ódio, os olhos fixos na estrada vazia. Pouco


a pouco, o rastro de poeira foi ficando mais alto, mais forte, até que vi a
traseira de um furgão preto e acelerei ainda mais, os dedos apertados contra
o couro do volante para manter o carro na estrada sinuosa.

No meio do nada, um furgão daqueles, só podia significar uma


coisa.
Velho desgraçado! É claro que você daria um jeito! — xinguei.
Não vai se contentar em perder, não vai desistir… Isso não vai acabar até
que um de nós esteja no Inferno!

— Desgraçado! — gritei batendo a mão contra o painel.


O furgão se aproximou da entrada de uma fazenda e os portões se
abriram. Forcei o motor até o limite, mas não fui capaz de passar pelo vão
sem levar uma das grades comigo. No impacto, o para-brisa estourou,
fazendo cacos de vidro voarem contra meu rosto. Fechei os olhos por
instinto e por pouco não perco o controle da direção, mas segui firme.
O primeiro disparo foi mirado em mim, mas consegui desviar o
rosto e o tiro acertou o encosto do banco.

Saquei a pistola, segurando o volante com as coxas para poder


engatilhar. Tentei acertar o pneu, mas errei por pouco, acertando a lataria.

Diferente de mim, o atirador do furgão acertou meu pneu dianteiro,


estourando-o e me fazendo perder velocidade. Tentei acelerar, quando outro
tiro acertou o motor e fumaça preta subiu pelo capô.

Parei no mesmo instante e desci, arrastando Nacho para fora e o


jogando a uma pequena distância do carro.
Corri, mas não era páreo para um carro em movimento, então
nossa distância foi aumentando até que o motorista estacionou, ao lado de
um avião pequeno daqueles usados para pulverizar plantações.

Eu podia sentir minhas pernas queimarem de dor, mas não ia parar.


Podia não ter chances, mas desistir estava fora de cogitação.
Um homem desceu de arma em punho, tentou me acertar, mas eu o
derrubei primeiro.

Logo depois a porta foi aberta e Lia, arrastada para fora do carro.
Um homem a jogou por cima do ombro e correu até a porta do avião.

Mirei no piloto, mas acertei a fuselagem e o avião levantou voo


mesmo assim, subindo rápido e se aproximando de onde eu estava. Queria
atirar novamente, mas não o fiz. Naquela altura, se eu acertasse, a queda
certamente seria fatal.

— Aaaaaah — gritei de ódio, mirando o carro.

Descarreguei o pente de uma vez só, sem parar para pensar, tudo
que queria era um pouco de alívio para o meu desespero.
Quando apertei o gatilho e nada aconteceu, caí de joelhos. O peito
subindo e descendo rápido, o coração tão acelerado que pensei que ia
morrer. Alisei os cabelos para trás, o ardor no braço machucado era
lancinante.

Ele conseguiu… Mais uma vez, tirou tudo de mim.


Capítulo Trinta e Nove
Liandra
Eu estava zonza.

Sentia a cabeça doer e as vias aéreas arderem pelo cheiro forte do


produto que fora usado para me dopar.

Que droga, Lia… Depois de tudo, ser pega dessa maneira…

Fechava os olhos e tudo que conseguia pensar era nele, meu yakuza
jurado de morte. Eu soube, no instante em que me deixei levar por ele, que
minha vida não seria diferente do que tinha sido a da minha mãe, mas, se
pudesse voltar no tempo, não teria feito nada diferente.

Senti meu corpo ser carregado para fora do carro e jogado em cima
de um banco instável, mas só me dei conta de que estávamos no céu depois
de alguns minutos.

Podia jurar que tinha ouvido tiros, mas não fazia ideia se eram reais
ou fruto dos delírios da intoxicação que havia invadido os meus sentidos.

Uma voz masculina falou algo em japonês que eu não compreendi,


fazendo o homem rir.
Minha garganta estava seca, dolorida e queimando. Tentei falar, mas
acabei tossindo, o que fez tudo doer.

— Água… — balbuciei engolindo em seco. — Eu preciso de…

O tapa estalou tão forte em meu rosto e ouvido que senti o zunido
por alguns segundos. A bochecha ardendo como o inferno.
— Cala a boca, sua puta! — xingou em inglês, queria ter certeza de
que eu entenderia.
Eu queria chorar de ódio, mas me recusava a dar ao desgraçado
que havia me batido o prazer de me ver frágil. Levantei o rosto e respirei
fundo, lutando para manter o controle. Os dentes travados segurando a raiva
que eu não podia deixar sair.

Minha bochecha ainda latejava, quente, como o ódio que corria em


minhas veias, mais rápido que o sangue.

Encarei a janela, não fazia ideia de onde estava, mas podia apostar
que não era mais Cusco, já que o mar esverdeado estava lá embaixo.
Tentei me manter consciente. Queria ao menos saber para onde
estava indo, mas a dor de cabeça e a sensação de tontura ainda seguiam
fortes, assim como a lentidão de movimentos.

Sobrevoamos uma grande cidade e, depois de algum tempo, o


avião pousou e um homem oriental abriu a porta.
Eu sabia que eram yakuzas pela maneira como se comportavam,
ainda que suas roupas pretas cobrissem qualquer vislumbre de tatuagens.
Secos, arrogantes, quase inumanos. Eram homens que não sentiam, apenas
agiam, exatamente como os que passavam pela academia do meu pai.

Fui puxada para fora do avião e escoltada pelo que parecia uma
pista de pouso fechada. Ao longe, pilhas e pilhas de contêineres coloridos
se amontoavam. O apito de um navio terminou de confirmar o que eu já
suspeitava. Estávamos no porto, de Lima, provavelmente.
Enquanto caminhava até perto de um dos hangares, corri os olhos
pelo homem que tinha os dedos apertados em torno do meu braço. Alto e
forte, parecia bem mais jovem do que eu, provavelmente nem atingiria a
maioridade. Mostrava ser pouco mais que um adolescente.
Cabeça raspada na lateral, com um tigre de garras de fora tatuado.
Os olhos, de aparência oriental, estavam cobertos por óculos escuros do tipo
aviador. Nenhum sorriso, nem mesmo a sombra de um.

No mesmo instante, meus pensamentos se perderam em Shin. Em


como era quando o conheci e no quanto de sofrimento tivera que aguentar
para chegar aonde chegou. Eu não entendia bem sua história. Tudo que
sabia era que ele tinha se tornado um traidor para proteger a irmã.

Meu samurai honrado…


Respirei fundo, soltando o ar de uma vez. Não queria pensar no que
aconteceria quando ele viesse atrás de mim. Preferia que ainda fosse o
yakuza sem coração que havia me enforcado no beco para garantir ajuda.
Sabia bem como as coisas terminavam naquele mundo, tinha visto meu pai
morrer para poupar minha mãe e, ainda assim, ela não demorou a ter o
mesmo destino.

Se a máfia não poupa ninguém…, a yakuza faz questão de


assegurar que qualquer traidor se arrependa de ter pisado no mundo, ele e
seus descendentes… — Soltei o ar dos pulmões com a lembrança de uma
das frases que meu pai dizia, quando recebia um aluno novo em sua
academia.

Assim que nos aproximamos, as portas do hangar foram abertas,


revelando um jato executivo preto com a inscrição NK Corp. na lateral.

Nk… Nk… Nakai, provavelmente… — Engoli em seco, sentindo


minha garganta se fechar.
Sentia o sangue gelar apenas por pensar em encontrar aquele velho
desgraçado novamente.
Ainda não tínhamos chegado até as escadas, quando um sedã preto
de luxo parou ao lado do avião. Um yakuza de terno desceu e abriu a porta
traseira, logo uma bengala foi colocada no chão e eu senti a primeira onda
de tontura.
A mão apoiada sobre a bengala, o desenho, o maldito ideograma
marcado na pele enrugada. Senti meu coração acelerar. Boca seca e suor
frio descendo pela testa.

Era ele! O homem que destruíra minha vida e minha família… O


desgraçado que tinha roubado tudo de mim…

Apertei os olhos com força, a cabeça girando sem que eu pudesse


controlar. Era como se eu tivesse voltado a ser criança, a mesma garota
boba que conseguira fugir por um golpe de sorte. Uma sorte que não vai se
repetir…

Senti as pernas fraquejarem antes de encarar o rosto do qual eu


havia fugido pela vida toda. Sabia que ele não queria apenas me matar e era
isso o que mais me apavorava. Os olhos desesperados da minha mãe
estavam lá, olhando o corpo sem vida do meu pai e ocupando meus
pensamentos.

Meu estômago se revirou e eu não fui capaz de conter o vômito. Caí


de joelhos com a força do espasmo, sentindo a garganta queimar pelo ácido
estomacal.

Baixei a cabeça. Mãos frias e trêmulas, senti que podia desmaiar e


não queria que minha última visão fosse o rosto do demônio.
— Levante-a… — a voz grave arrepiou cada centímetro da pele em
meu corpo. — Quero olhar nos olhos da vagabundinha mais uma vez…
Outro tapa estalou em meu rosto e o gosto metálico de sangue
encheu minha saliva. Tentei manter a consciência, forçando as pernas a se
manterem firmes.
Levantei o olhar e encarei meu maior pesadelo.

O desgraçado riu, passando a língua no canino de ouro do lado


esquerdo. Aquele mesmo olhar de quem não tem nada além de maldade
dentro de si.

— Nos encontramos novamente… — Riu mais uma vez. — Veja


como o destino é perfeito! — Virou as costas, andando em torno de mim
como um tigre, esperando o momento de dar o bote.

Senti o cutucão da bengala na parte baixa das costas e só não caí


porque o garoto ainda mantinha meu braço preso entre seus dedos.

— Sabe que até entendo o fascínio do meu cãozinho treinado por


você? — o tom era debochado e fez meu enjoo piorar. — Uma bela
bunda… — Correu a bengala pela minha cintura, os olhos perdendo-se no
meu decote. — Talvez queira me mostrar o que mais tem de especial… —
Desceu a bengala pelo meu umbigo. — Sou velho, mas ainda sei apreciar
uma bela boce…

Cuspi com força na cara dele, aproveitando que minha boca ainda
tinha gosto de vômito. Fiquei tão satisfeita que, quando o chute me fez cair
de joelhos, nem a dor tirou o sorriso de mim.

O velho me bateu no rosto com força. O anel que usava cortando


meu lábio e fazendo o sangue descer.

— Sua puta desgraçada! — xingou enquanto limpava o cuspe na


manga do terno. — Só não acabo com você agora porque preciso pegar o
maldito caderno!
Segurou-me pelo queixo, tirando meus pés do chão e fechando
minha traqueia. Tentei me soltar, mas tudo que conseguia era tossir, os
pulmões queimando e a vista escurecendo.

Senti meu corpo jogado no ar e então tudo apagou.


Capítulo Quarenta
Shin
Demorei alguns segundos para conseguir voltar a mim.

Ainda sentia o gosto amargo do ódio na boca, o corpo machucado e


dolorido, mas, mesmo assim, precisava voltar para a fazenda e pensar no
próximo passo.

Levantei e limpei a terra dos joelhos, depois bati a mão no bolso, em


busca do meu telefone, mas não havia sinal algum.

Guardei-o de volta, caminhando até onde os corpos dos yakuzas


estavam caídos. Eram homens do meu avô. Reconheci pelo padrão de
tatuagens. Ao menos o pente da minha arma tinha sido o bastante para que
nenhum deles escapasse com vida.

Peguei duas pistolas que estavam no chão e conferi se ainda tinham


balas, enfiando na cintura em seguida.
O furgão estava destruído e, a julgar pelo cheiro de gasolina que
vinha do vazamento, não era uma boa tentar ligá-lo. Segui direto para a
caminhonete de Nicolas, que não estava em melhor estado.

A fumaça escura ainda saía do motor, então dei a volta para conferir
o que já sabia, Sugoi, meu companheiro e homem de confiança, havia sido
abatido pelo desgraçado a quem um dia chamei de oyabun.

Nacho soltou um gemido e tentou se mover, então fui até ele,


ajudando-o a se sentar.

— Preciso voltar e encontrar o cavalo ou sinal de telefone… —


avisei. — Você vai ter que esperar aqui… Consegue atirar? — perguntei
levando a mão a uma das pistolas em minha cintura.
O peruano negou com a cabeça, abrindo a palma e mostrando o
ferimento ali.
— Então vamos ter que rezar para que La Madre cumpra seu papel e
o proteja… — Ergui uma sobrancelha, esboçando um sorriso, e o homem
levou a mão machucada até o cordão da Santa Morte.

Trocamos um olhar de pesar e cumplicidade, antes que eu o


deixasse.
Peguei a estrada e apressei o passo o mais rápido que pude. Também
estava machucado e cansado. O sol forte da tarde não ajudava muito.

Depois de alguns metros, conferi o telefone novamente. Havia uma


pequena barra de sinal, oscilante e solitária, mas foi o suficiente para que eu
tivesse um pouco de esperança. Corri o quanto pude, subindo uma pequena
colina e esperando que fosse suficiente.
Foi nesse momento que vi a poeira se levantar na estrada. Por um
segundo, achei que fossem os homens do cartel, mas, quando o carro se
aproximou e eu vi o braço tatuado com a rosa vermelha do lado de fora da
porta da caminhonete, abaixei-me, usando um arbusto seco como
camuflagem.

Não podia deixar que eles chegassem até Nacho desprotegido, tinha
que acertar o motorista sem danificar o carro.

Posicionei a pistola e mirei, esperando pelo momento certo.

Apertei o gatilho e esperei, no instante seguinte o sangue espirrou


no para-brisa e o carro começou a perder força.
O homem que estava ao lado sacou a arma, procurando pela origem
do tiro, mas não me viu, então eu me aproveitei disso para colocá-lo em
minha mira também. Estava pronto para atirar, quando ouvi o click da arma
engatilhada perto da minha orelha.

— Esqueceu da retaguarda, companheiro… — uma voz que eu não


conhecia falou em um espanhol carregado.

Travei o maxilar, a raiva havia me cegado e feito quebrar a regra


mais importante da batalha. Nunca aja pela emoção!
Deixei a pistola na terra e ergui as mãos em sinal de rendição. Virei
devagar para encontrar um homem de meia-idade. Não tinha traços
orientais, mas as tatuagens eram de um yakuza. Em seu pescoço, a rosa
vermelha deixando claro a que organização pertencia.

— Achei que tinha eliminado todos os fantasmas lá em São Paulo…


— debochei.
O homem chupou o ar pelo vão dos dentes, fazendo um barulho
irritante e esboçando um sorriso sarcástico.

— Nesta terra os mortos ganham vida mais fácil do que pode


imaginar, pollito… Os vivos também não permanecem assim por muito
tempo… — Indicou o caminho da estrada com a cabeça, sem perder a mira.
— Vamos… Quero ver o que o chefe vai dizer quando souber que você
matou o Samurai…

Desci alguns passos a sua frente, sentindo o cano da pistola em


minhas costas, e parei ao lado do carro, onde o passageiro da caminhonete
terminava de acomodar o corpo sem vida do homem que eu acertara na
carroceria.

— ¡A La puta madre! — xingou, acertando um soco em minha


boca, que eu não pude revidar.
Limpei o sangue com a ponta da língua, sem baixar as mãos, os
olhos fixos no desgraçado, deixando claro que teria volta ainda que fosse
em outra vida.

— Espero que o chefe alimente os porcos com esse filho da puta! —


xingou novamente, batendo o punho fechado na porta com tanta força que
afundou a lataria.

— Isso não é problema nosso, Pepe! — o que me mantinha em sua


mira revidou. — Vamos, mestiço, entre no carro!

— Para onde? — perguntei por petulância, não fazia diferença.

O homem cujo nome eu não sabia riu alto.


— Sua festa de boas-vindas, ¡cabrón de mierda!

O tal Pepe amarrou minhas mãos e me enfiou no banco de trás,


entrando ao lado, a arma sempre apontada para minha cabeça.

Seguimos por uma estrada diferente, até Cusco. Eu não tinha


conseguido avisar Nicolas sobre meu paradeiro, nem o de Nacho, e
esperava que ele fosse esperto o suficiente para se manter fora de um
problema que não era dele. Esperava também que meu contratempo fosse
pequeno o bastante para não atrasar minha viagem ao Japão.

Se meu avô tivera o cuidado de tirar Liandra de mim viva, era


porque me conhecia o suficiente para saber que eu iria ao seu resgate.
A caminhonete parou em frente a um portão de ferro fechado, no
caminho para as Salinas de Maras. Eu conhecia pouco daquele lugarejo,
mas, pelo pouco que conhecia, sabia que nada de bom saía de lá. Era um
lugar esquecido, perdido no tempo e abandonado por qualquer um que
tivesse juízo.
O portão automático abriu e o carro passou para dentro. Parecia ser
um galpão antigo, cheio de caixas e sacos de milho e batata.

A porta foi aberta e minha recepção feita por meia dúzia de


peruanos irritados pela morte do tal Samurai.

Continuei andando pelo caminho que a pistola em minhas costas


ditava, analisando o que podia do local, para quando conseguisse uma
brecha.

Passamos pela porta de um escritório empoeirado e escuro. Lá no


fundo, alguém de costas parecia esperar por mim.

Fui colocado em frente a uma poltrona e forçado a sentar.

— Aqui, chefe… Trouxe o mestiço como o senhor pediu… —


Meneou a cabeça em uma reverência. Braços para trás e corpo curvado,
como os orientais.

Estranhei o gesto, já que todos os que tinha visto eram latinos,


incluindo o morto que se chamava Samurai, mas, quando o homem se
virou, entendi o motivo; ele sim, tinha traços japoneses claros, embora
também fosse um mestiço, como eu.

O homem, que aparentava os sessenta anos, deu um trago no


cigarro, caminhando calmamente em volta de mim. Usava um terno de boa
qualidade e tinha modos refinados. A rosa vermelha cobria quase toda a sua
mão. Olhos afilados e concentrados, analisando cuidadosamente quem eu
era.

— Desamarre-o… — ordenou.
O homem que havia me escoltado pensou por alguns instantes, mas
não foi capaz de desobedecer.
Quando me livrei das cordas, esfreguei os pulsos doloridos e depois
corri o polegar sobre o sangue no canto dos lábios, limpando na calça jeans.

— Quem bateu nele? — perguntou com uma nota mais ácida.

— Chefe… — o tal Pepe começou a se explicar antes mesmo de ser


acusado. — Esse capullo matou o Samurai! — entregou. — O senhor…

O tapa estalou tão forte que Pepe caiu de joelhos. Encarei-o com a
sombra do sorriso mais sarcástico que eu poderia dar. Não sabia quem era o
mestiço com a voz de comando, mas tinha que confessar que ele era rápido.

— Vire-se para Shin Nakai e peça perdão… — mandou segurando o


colarinho do latino.

O homem enfiou a mão dentro do bolso do paletó e retirou um


caderno de couro, jogando no meu colo.

— Não se levanta a mão para o futuro oyabun! — proferiu como


uma sentença.

Levei um susto tão grande que só não caí porque já estava sentado.
Em meu colo, o caderno perdido de Akira Minoru.
Ato Final
Ascensão
Às vezes encontramos nosso destino no caminho que buscamos
para evitá-lo.
Yamamoto Tsunetomo
Capítulo Quarenta e Um
Liandra
Acordei com uma sensação estranha.

Tentei me mover e só então percebi que havia um acesso venoso


em minha mão.

Minha boca ainda estava seca, mas não tinha mais o gosto ácido do
vômito. Abri os olhos para me ver deitada em uma poltrona confortável de
couro claro. Daquele tipo que se usa em avião. As janelas redondas
confirmaram minha suspeita.

Respirei fundo e tentei voltar a mim, não ia conseguir fugir antes


que chegasse ao chão, mas ao menos queria ter certeza de para onde estava
indo.

Soltei o acesso e pressionei, para evitar que sangrasse. Depois de


alguns segundos, puxei o saco de medicação para mais perto de mim.
Queria saber o que tinha sido injetado em mim, mas não era nada além de
soro e uma dose bem pequena de relaxante.

Levantei-me com cuidado, apoiando a mão no braço da poltrona,


ainda me sentia zonza e estar em pleno voo não ajudava muito meu
equilíbrio parco.

Por trás das cortinas, o céu era negro e sem nuvens, uma completa
e dramática escuridão.

Dei mais alguns passos, até a cortina que separava o espaço em que
eu estava do restante da aeronave.

Conforme ia me aproximando, as vozes se tornavam mais audíveis,


sempre em japonês.
Merda! — praguejei mentalmente por nunca ter tido interesse em
aprender a língua do meu pai. Seria bem útil agora!
Uma pequena turbulência me pegou de surpresa, jogando para a
frente e, para não cair, acabei passando a cortina.

— Ora, ora se não é minha pequena diabinha cuspidora… — o


velho desgraçado da tatuagem falou.
Havia um sorriso nojento em seu rosto, quase hediondo e tão
sarcástico que fez meu estômago se revirar.

Voltou o rosto sério para um dos homens que o acompanhavam e


soltou uma ordem em japonês. O homem curvou-se em reverência e me
segurou pelo pulso, arrastando de volta até a poltrona. Um par de algemas
foi preso, ligando meu pulso a uma argola de ferro soldada perto do assento.
Franzi o cenho irritada, livrando-me do contato com sua mão o
mais rápido que pude; estava irritada, muito mais comigo do que com ele.
Sabia que não adiantaria esbravejar, gritar, chorar. Naquela altura, o que eu
ia fazer? Pular?

Fiquei parada ali por mais algum tempo. Sentia-me um pouco


melhor da intoxicação, mas o coração estava pesado como o inferno. Tudo
que conseguia pensar era em Shin, meu pai, Nicolas e todas as pessoas que,
provavelmente, se colocariam em risco para vir ao meu encontro.

Não podia dizer que fora enganada, já que sabia, no instante em


que aceitei descer até o ponto de encontro, que tudo aquilo aconteceria, mas
no fundo tinha esperança de estar errada.

Engoli a vontade de chorar, apertando os olhos e mirando o


revestimento do teto.
NK Corp… Nunca pensei que andaria de jatinho particular! — Ri
sem humor.

Depois do que pareceu uma eternidade, a cortina se abriu e o outro


homem de terno escuro passou por ela, acompanhado do demônio tatuado.

O velho sentou-se na poltrona do outro lado do corredor e o


homem mais jovem se aproximou.
— Sou médico, Srta. Oliveira… — explicou em inglês, tomando
minha mão e tentando enfiar o acesso em minha veia novamente. — Não
deveria tirar o acesso… Estava desi…

Puxei com força, a agulha deixando um risco vermelho de sangue


em minha pele.
— E eu sou enfermeira, doutor… Digo que não preciso de mais
soro… Tenho o direito, não tenho? De recusar o tratamento? — desafiei.

O velho riu, batendo a bengala no chão e coçando o queixo.

— É claro que tem… — O médico de terno escuro sorriu mais


complacente. Queria parecer gentil. — Mas seria bom que descansasse…
Uma boa noite de sono, em seu estado, seria…

— Prefiro ficar bem acordada! — retruquei.


— Entendo, senhorita…, mas você precisa ter cuidado, levou um
tombo feio, precisamos evitar um sangramento…

Franzi o cenho sem entender. Não me lembrava da queda, já que


apagara antes, mas com certeza não estava machucada a ponto de correr
risco de sangramento.
O velho riu mais alto, o som da sua risada me fazendo querer
vomitar novamente.

— Não me diga que não sabia, putinha… — Levantou-se e se


aproximou de mim. — Isso é ainda mais divertido, Satoshi! — Bateu no
ombro do médico. — Dê-me o prazer de contar a ela, a sós!

O tal Dr. Satoshi concordou meneando a cabeça e passou pela


cortina, deixando-me cara a cara com o desgraçado que matara meus pais.
— Você não sabia mesmo, não é? — Aproximou o rosto, a mão
tatuada apoiada no braço da poltrona ao meu lado. — Todo esse tempo, eu
preocupado com o futuro da organização, quando tinha um herdeiro bem
aqui! — Espalmou a mão livre sobre minha barriga.

Levei um susto tão grande que congelei, estática, endurecida, os


nervos travados e a respiração acelerando a cada segundo. Minha cabeça
perdida em um turbilhão, sem conseguir se fixar em lugar algum.
— Não é mágico como tudo acontece? Uma cria… — Afastou-se
apoiando no braço da poltrona em frente. — É o que acontece quando um
idiota fraco como meu neto se encanta tanto por uma boceta que esquece de
usar a cabeça de cima! — Balançou a mão no ar, fazendo graça. — Mas eu
não estou bravo, não se preocupe… Veio bem a calhar!

Ele ia falando e a cada segundo eu me sentia mais zonza, perdida, a


cabeça latejando e as mãos formigando. Não podia ser! É claro que não! Eu
tinha tomado a porra da pílula direitinho, todos os dias por todos esses
anos… Meus ovários policísticos… Não! Eu não podia… Não… Podia?
É claro que não!

— Você só pode estar maluco, se acha que eu estou grávida! Eu


nem posso engravidar! — blefei o mais segura que consegui.
— É mesmo? Pois se eu fosse cristão, queridinha, ia dizer que
temos outro milagre de Nazaré, então! — debochou. — Porque temos um
feto compatível com oito semanas bem aí dentro!
Puxou a cortina com a mão antes de gritar.

— Satoshi! Os exames! Traga os exames para a nossa Virgem


Maria!
Eu sentia como se estivesse perdida no meio de um transe maluco
do qual não conseguia sair.

Grávida? Não, eu não podia estar grávida! — Engoli o bolo de


sentimentos que apenas a menção ao fato me trazia. Eu não podia, não
agora, não desse jeito nem de nenhum… Um filho que nem ia poder
nascer? Eu não queria morrer com essa culpa nos ombros, não era justo!

O médico passou pela cortina carregando uma pasta nas mãos.


Entregou-a em minhas mãos.

— Nem fodendo! — soltei em português assim que bati o olho no


hemograma.
Não fazia nem um mês que eu havia feito meu check-up semestral
e sabia muito bem o quanto estava saudável.

— Está tudo bem, senhorita… Com o bebê e com você… Imagino


que não esperava, mas…

— Bebê? Vocês estão todos malucos! Eu não estou grávida e esse


exame provavelmente não é meu! — Tentei me levantar, mas acabei tendo
uma onda de vertigem e Satoshi me amparou.
— Quando você desmaiou… — começou. — O Sr. Nakai a
mandou para um hospital de Lima… Veja… — Mostrou o nome do hospital
no alto da folha. — Os exames foram feitos lá, na emergência…
O demônio da mão tatuada revirou as outras folhas na pasta, até
encontrar uma em especial. Riu alto, uma gargalhada daquelas que arrepia a
coluna da gente.

— Aqui, caçadorazinha de dotes… O diabinho que você arrancou


do imbecil do meu neto!
A voz dele desapareceu dos meus ouvidos no instante em que vi a
fotografia do ultrassom. Era um saco gestacional com contornos bem
regulares e, dentro dele, uma mancha cujo formato eu conhecia bem.

Por um segundo, nada mais existiu, como se o mundo todo tivesse


parado e eu só conseguisse perceber aquela fotografia, naquela folha de
exame.

— O que está fazendo, niña? — a voz do meu pai perguntou.

Uma Lia ainda criança, equilibrando-se nos saltos da mãe, virou-


se para a porta da cabana improvisada com toalhas de mesa.
— Shhhhhh, papai! — reclamou com o indicador sobre os lábios.
— Você vai acordar o meu neném!

Os bracinhos infantis seguraram o bebê de plástico nos braços,


acariciando a cabecinha e ajeitando a manta cor-de-rosa.

Um bebê, Lia… Um bebê de verdade! Um bebê dele…


Engoli em seco, sentindo o ardor descer pela garganta. Um bebê
que aquele velho desgraçado não deixaria viver.

— Oh… Finalmente compreendeu! — Riu debochado, parecia


feliz com o meu desespero. — Se está se perguntando o que será do seu
bastardinho quando eu completar o plano maravilhoso que tenho em mente,
poupo seus esforços… Não vou matá-lo!

Desviei a atenção do exame direto para os olhos escuros do


demônio tatuado e tudo que consegui foi fazê-lo rir ainda mais.

— Não se anime demais, querida… Eu disse que não vou matá-lo,


não que vou poupar você! — Girou a mão no ar, fazendo graça. —
Entenda… Eu cometi o erro de enfraquecer um excelente candidato a
sucessor quando permiti que ele crescesse grudado na barra da saia da vadia
que o pariu, não farei isso novamente…
— Seu velho doente! O que acha que vai fazer? Gerá-lo você
mesmo? — interpus, usando toda a raiva que tinha dentro de mim.

O indicador da mão tatuada balançou no ar em negativa.

— De maneira alguma, Liandra… E é por isso que você está aqui,


no conforto do meu jato particular… Nove meses passam rápido… Tudo
que preciso é eliminar o traidor desprezível do meu neto e então a linha de
sucessão será toda minha novamente… — Aproximou o rosto do meu de
um jeito desconfortável. — Graças a você, chiisai!
Capítulo Quarenta e Dois
Shin
— Saiam! — o homem ordenou girando a mão no ar com força. —
A conversa que precisamos ter não inclui subalternos!

Continuei onde estava, ainda tentava me recuperar do susto que


havia levado com as últimas alegações.

— Imagino que saiba do que se trata o caderno… — começou


assim que ficamos sozinhos.

— Se as lendas são verdadeiras, este é o verdadeiro caderno do


Minoru… — Levantei o olhar, encarando seus olhos. — Só não entendi por
que me chama de futuro oyabun… Caso não saiba, rompi com a
organização alguns meses atrás…

O homem esboçou um sorriso, passos comedidos ao redor de mim.

— Uma pequena ratificação… Você não rompeu com a


organização, rompeu com seu avô, o usurpador filho da puta que vamos
fazer pagar…

— Vamos? — Ergui uma sobrancelha inquisidora e meio


sarcástica. — Estou curioso… — Levantei, deixando o caderno sobre a
poltrona e me posicionando de frente para ele. — Em que momento me
tornei seu aliado?

Mais um esboço de riso sarcástico.

— No momento em que nasceu com o sangue dos Minorus em


suas veias!

Travei no chão de novo, mas logo recobrei o controle. Dessa vez, o


riso sarcástico veio de mim.
— Acho que temos um pequeno equívoco aqui… Sou Shin
Nakai… Sei bem a que família pertenço e, definitivamente, não é a dos
Minorus…
O homem enfiou a mão no bolso do terno e tirou um maço de
cigarros, oferecendo a mim. Quando não me movi, tirou ele mesmo um e
acendeu, levando à boca e dando um trago longo.

— Deveria se sentar e relaxar um pouco… É uma longa história.


Perdi a paciência no mesmo instante. Minha mão voando no ar até
a garganta do desgraçado, aproveitando minha altura para tirá-lo do chão.

— Minha mulher está na porra de um avião cheio de yakuzas que


me odeiam neste momento… — sibilei entredentes. — Se há uma coisa que
não vou, é relaxar e ter tempo!
As palmas do homem se levantaram em rendição, meus olhos
encontrando os dele. Naquela pequena fração de segundos, por alguma
razão que eu ainda não conseguia entender, resolvi dar uma chance. Já sabia
que ele não tinha intenção de me matar, então talvez pudesse ser útil de
alguma maneira.

Soltei-o no chão com força e ele se desequilibrou, mas usou a mesa


para se apoiar e não cair.

Ajeitou o terno e deu mais um trago no cigarro.

— Gosto da sua impetuosidade… — Coçou o canto da boca,


reprimindo o riso. — Não é muito útil sob pressão, mas pode ser bem
interessante quando direcionada para o alvo certo…
— A versão curta… — interrompi. — Se quiser mesmo que eu
continue aqui ouvindo o monte de baboseiras que saem da sua boca… É
melhor que a versão curta seja concluída rapidamente…

— Prometo tentar não desperdiçar o seu tempo! — Baixou a


cabeça em sinal de respeito, fazendo-me rir.

Tudo aquilo estava começando a me irritar.


— Quando seu avô armou o golpe e tomou o controle da
organização, matou todos os Minorus que pôde encontrar, mas se esqueceu
de um… Kai Minoru…

Franzi o cenho, nunca tinha ouvido falar daquele nome.

— Kai era filho de uma prostituta… Uma que Akira fazia questão
de manter longe dos olhos da organização… Eu mesmo só soube da
existência do menino quando ele estava para completar vinte anos…

— Quem é você? — perguntei, porque já não aguentava mais


tentar adivinhar.
— Oh… Tem razão… Esqueci de me apresentar… — Curvou o
corpo em reverência, como se realmente estivesse se desculpando. — Sou
Bernardo Sosuki… Não imagino que você tenha ouvido meu nome, já que
seu avô me declarou um traidor e fez questão de tomar minha cabeça… —
Levou o cigarro à boca novamente. — Ou o que ele pensou que fosse ela…
— Deu de ombros.

Afilei os olhos, buscando na memória o nome.


Sosuki… Sosuki… Eu já vi esse nome em algum lugar! Sosuki… É
claro! — o estalo me lembrou.

Muito tempo atrás, quando nos mudamos da antiga casa para a


nova, encontrei uma caixa de seda com fotografias antigas e, entre elas,
uma em que meu avô estava em um barco, pescando com um amigo.
Lembro-me de perguntar quem era e levar um tapa tão forte no rosto que a
marca demorou dias para deixar minha bochecha.

Nunca pergunte sobre um traidor! — ele bradou irritado. Traidores


não merecem sequer nossa lembrança!

— Seu avô e eu éramos amigos, Shin… Até que o poder subiu aos
seus olhos e o cegou… — confirmou o que eu havia lembrado. — Eu jurei
vingança sobre o corpo sem vida do meu oyabun… Jurei que não deixaria
esta terra sem que a justiça fosse feita…

Apontei para o caderno sobre o assento da poltrona.

— E por que precisa de mim? Entregue a porra do caderno ao


conselho e será declarado oyabun…
— Não é tão simples assim… Estou fora há tempo demais… Sou
um desgarrado… Não tenho sangue real, nem disposição para tomar o
controle à força… Já você…

— Sou neto do traidor… — Cocei minha barba por fazer. — Acha


mesmo que ganharei o direito de comandar? Depois de ter matado tantos
associados?

Peguei um dos cigarros no maço sobre a mesa e acendi, levando à


boca para um trago.

— Acho que tem lido muitos dramas ultimamente, Sr. Sosuki… —


debochei.
— É aí que tudo culmina, Sr. Nakai… — imitou meu tom
debochado. — Você não é apenas neto do usurpador… É também herdeiro
da dinastia Minoru…
Travei a fumaça na boca.
— Kai teve uma filha… Uma pobre garotinha, abandonada na
porta da casa dos Chaskas… Acho que você se lembra da história dela, não
é mesmo? Malena… A pobre órfã sem sobrenome…
Minha mãe… Não, minha mãe não podia ser uma Minoru… Ela…

Eu não sabia nada do passado da minha mãe, apenas um detalhe


aqui e outro ali, mas nunca havia pensado na possiblidade de que ela fosse
uma Minoru…

— Você tinha quantos anos quando ela morreu? Sete? Oito? Não
era tão pequeno assim, garoto… — o homem continuou. — Deve ter visto
seu avô falar algo a respeito… Ele soube quem sua mãe era pouco depois
que você nasceu…

Puxei pela memória o mais fundo que pude. Minha mãe não falava
do passado, nem do Chaska ela havia falado, mas então uma lembrança me
veio à memória. No dia em que a encontrei caída na sala das espadas!

Havia um hematoma em seu rosto, um que ela tentava esconder


com os cabelos.

— Um dia, querido… Um dia vamos ter o que é nosso por


direito… E nesse dia eu terei prazer em arrancar a cabeça daquela cobra!
— Mas, mamãe, não temos cobra aqui. O vovô já matou todas as
que moravam no jardim! — retruquei.

Minha mãe riu.


— Não, querido… Ele se esqueceu de uma…

Deslizei a mão pela testa, confuso.


— Não me venha com fantasias… — sibilei mais uma vez,
confrontando o homem em minha frente.

Não podia acreditar em algo tão improvável.

— Jamais! Assim como você, Nakai… Também não tenho tempo a


perder… Não sou mais um garoto e devotei minha vida a esta vingança…

Abriu um armário e retirou alguns papéis de dentro dele.

— Estes são os registros de nascimento da sua mãe… Hina


Minoru…

Entregou o documento em minhas mãos. Nele havia o nome da


criança e o dos pais. Kai Minoru e Madalena Gaza.

— Kai foi descoberto por seu avô e morto pouco antes do


nascimento da sua mãe… Madalena só não teve o mesmo destino porque
seu avô não a encontrou na casa em que moravam… A pobre garota teve
tanto medo que, assim que pariu, sumiu, mas antes fez questão de esconder
a filha o melhor que pôde…
— Chaska foi quem descobriu a origem da sua mãe, por acaso…
No tempo em que ela estava no Japão. Kai não estava mais vivo, mas
encontramos Madalena… Uma pena ela não ter podido conhecer a filha…
— Respirou fundo. — Chaska amava muito sua mãe… Como uma
verdadeira irmã… Foi por isso que ele se tornou um yakuza… Para
protegê-la…

Baixei os olhos para o chão, tentando absorver tudo que tinha


escutado.

— Podemos procurar sua avó depois… Ela ainda está viva e mora
em um pequeno vilarejo, perto de San Pedro… — Respirou fundo. — Não
tenho tempo para brincadeiras, garoto… Acha mesmo que eu perderia meu
tempo protegendo um Nakai?

Franzi o cenho sem entender e Sosuki soltou uma gargalhada.

— Não seja tão arrogante, garoto! Eu estive por trás do silêncio do


seu avô esse tempo todo… Tenho meus infiltrados…
— Seus homens quase mataram a minha mulher, seu filho da puta!
— xinguei.

— Não! Meus homens, não! — Girou os dedos no ar em negativa.


— Os traidores que foram arrebanhados por aquele desgraçado do Ishiro…
Infelizmente, seu avô tem os infiltrados dele também…

Franzi o cenho sem perceber.

— Kazuo está se armando para o bote… Tem certeza de que você


irá encontrar o caderno e levar até ele… Foi por isso que levou sua
namorada viva… — continuou. — Você já tem o caderno, pode ir sozinho
ao Japão e tentar resolver as coisas do seu jeito, ou pode me ouvir… Não o
irei impedir, independente do que decida, mas se quer mesmo acabar com o
seu avô… Precisa de mim, como eu preciso de você.

Abri a boca para responder no instante em que um disparo quebrou


o vidro da janela.
Capítulo Quarenta e Três
Liandra
O avião pousou com o tempo chuvoso e cinzento.

Descemos no que parecia uma pista de aeroporto particular e, ainda


que eu não tivesse sido informada do local, as placas, todas em japonês,
deixavam claro o local em que havíamos chegado.

Desci depois do velho, escoltada por um homem alto e forte com


cara de poucos amigos, Satoshi, o médico, logo atrás de mim.

Havia um sedã preto parado perto da pista, já com as portas


abertas, esperando por nós.

A contragosto, sentei-me ao lado do velho e o motorista deu a


partida.

Pela janela de vidro escuro, vi a primeira placa, ainda saindo do


aeroporto. Tókyo, escrito em inglês, logo abaixo da escrita em ideogramas.
Tóquio… Uma cidade que sempre desejei conhecer, mas que agora teria um
gosto amargo sempre que eu pensasse nela.

O céu parecia baixo e sufocante, apesar do frio que fazia. A chuva


fina caía como uma névoa densa, do mesmo jeito que no dia em que fugi
daquele assassino desgraçado.

Meus olhos foram para a maçaneta, mas eu não era tão ingênua,
sabia que ali, dentro do espaço dele, não teria a mesma sorte que tive em
São Paulo.

Passamos pelo que parecia ser o centro da cidade e pegamos um


desvio, onde os apartamentos começavam a dar lugar a casas imensas com
terrenos ainda maiores. Andamos até depois de um pequeno bosque e então
passamos por um portão de ferro fundido elegante.
O carro parou em frente a uma mansão suntuosa em estilo oriental
moderno, adornada com muita madeira e grandes vãos abertos. Era
absolutamente linda, daquelas que a gente só vê nas revistas e programas de
arquitetura na TV.

Junto à entrada, um homem e uma mulher, já de mais idade,


esperavam. Kazuo Nakai desceu dando ordens em japonês e recebendo
reverências. Ao que parecia, ninguém jamais ousava discutir com ele.

Desci com a ajuda de Satoshi e parei junto à entrada, onde a


senhora meneou a cabeça e sinalizou para que eu seguisse em frente pelo
corredor.

— Você fala inglês? — perguntei quando ficamos sozinhas.

— Muito pouco… — soltou cheia de sotaque. — Somente o que a


menina me ensinou…
Menina… Que menina?

Achei melhor nem perguntar, não fazia mesmo diferença quem era.

— Aqui! — Empurrou uma porta de correr.

O que se revelou a minha frente foi um quarto grande e elegante,


com varanda para um pequeno jardim todo murado.
— Você fica na cama da menina… — falou pausado, como se
procurasse pelas palavras certas.

Tentei encará-la, mas ela desviava o olhar. Tinha aquela postura


submissa que vemos nas senhoras orientais. Mãos juntas, uma esfregando a
outra, e o olhar mirando o chão de madeira.
— Qual o seu nome? — insisti, queria saber em que tipo de terreno
estava pisando, mas não adiantou.

A mulher baixou o corpo em um cumprimento de despedida e se


afastou, fechando a porta logo depois.

Dei alguns passos em torno do lugar. Não tinha ideia de quem era a
tal menina, mas ela gostava de games e de tecnologia. Na parede, alguns
posteres de bandas de K-pop e um de Star Wars.
Não havia uma fotografia sequer, nada que me mostrasse quem
havia morado ali, então segui até o closet. Roupas pequenas, de uma garota
quase colegial. Saias plissadas até os joelhos, vestidos elegantes, pretos, em
sua maioria, contrastavam com as camisetas geek e as calças largas de
moletom.

As prateleiras de sapatos eram de deixar qualquer uma das


Kardashians com inveja. Grifes das mais variadas estavam em bolsas,
casacos, acessórios.
Corri os dedos pela prateleira impecavelmente limpa, organizada e
triste. Por mais que estivesse recheado de glamour, tudo naquele quarto
parecia triste e sem vida.

Quem será que morou aqui? Não era uma prisioneira… Ao menos
não do jeito tradicional…
O banheiro seguia tão limpo e organizado quanto o closet. Itens de
higiene pela metade, alguns já nem estavam mais no prazo de uso. Era
como se o tempo ali não tivesse passado.

Deixei o espaço, voltando ao quarto, e caminhei até o jardim. Eu


não sabia que horas eram e, com o céu tão nublado como estava, nem podia
me guiar pelo sol.
Sentei-me no degrau que dava para o jardim e tirei as sandálias.
Meus pés haviam inchado com o voo e as tiras estavam incomodando.
Pensei na minha vida e em como tudo tinha ficado para trás, eu
provavelmente não o veria mais.
Respirei fundo, olhos fechados, sentindo as gotículas frias da garoa
em meus pés descalços.

Faltavam alguns dias para o fim das minhas férias… Érico não
teria mais uma parceira… Ellen iria aprender a fazer compras sozinha e
meu pai… — Suspirei. Meu pai não teria mais ninguém… Ia se culpar, se
amargar um pouco mais e no fim das contas, nem teria com quem desabafar
de verdade.

Escolhas, Lia… A gente faz escolhas e arca com as


consequências…

De repente, a imagem do ultrassom voltou a minha memória.


Não pode ser… Não pode! Não agora, nem assim… Não é justo!

Fechei os olhos novamente, estava angustiada. Tanto que pensei na


minha mãe. Eu não pensava muito nela. Para ser sincera, minhas
lembranças dos dois, ela e meu pai, estavam cada vez mais distantes e
fracas. Vez ou outra algo vinha bem nítido, mas nem sempre era assim.
Fazia tanto tempo.
— É, mãe… Acho que entendo você bem melhor agora… — Sorri,
ainda sem muito humor. — Às vezes a gente não escolhe, não é mesmo?

Minha mãe era uma garota simples do interior, foi para São Paulo
tentar a sorte, mas acabou se apaixonando pelo homem errado. Porque era
exatamente isso que meu pai era, o homem errado! Assim como Shin… Eu
não era burra, nem inocente, sabia bem onde estava me metendo, como
talvez minha mãe também soubesse, mas quem consegue parar a desgraça
da paixão?

Não demorou muito e a porta se abriu. Virei para encontrar a


senhora com ar de gueixa medieval. Carregava uma bandeja com alguns
potes, fumaça saindo pelas frestas.

Assim que me viu, deixou a comida sobre a cama baixa e correu


com passinhos curtos até mim.

— Não, senhorita, não! — Gesticulava misturando o japonês e o


inglês. — Pés frios, não pode! Não pode frio! — reclamava soando
realmente preocupada.

Tentei me levantar e ela estendeu a mão em amparo.

— Frio faz mal ao bebê!

Estalei os olhos por um segundo, ainda segurando sua mão.

— Banho… Banho quente… Comida quente… Descansar… Dia


cheio…

Esbocei um sorriso triste, sentindo meu coração ainda mais pesado.

— Vem… — Carregou-me pela mão até o banheiro.


Assim que entramos, ela ligou a ducha e temperou a água, logo o
vapor começou a nublar o grande boxe de vidro.

— Banho… — repetiu. — Roupas menina… servem… —


Assentiu para dar mais ênfase ao que tentava falar.

Pensei em dizer que não, mas estava mesmo com frio e cansada.
Meu estômago também parecia disposto a aceitar a comida quente sobre a
cama, então livrei-me das roupas e entrei debaixo da água quente.
Não podia negar que o jato forte em meus ombros era relaxante e
agradável. Deixei que a água caísse por alguns minutos, depois usei um
pouco de sabonete líquido. Lavei o rosto e bochechei um pouco de água.
Enrolei-me na toalha que fora deixada sobre a bancada da pia.

Quando saí para o closet, havia um conjunto de calça e blusa de


moletom cinza sobre a banqueta. Debaixo dele, lingerie e um par de meias.

Vesti-me e caminhei até o quarto com as meias nas mãos.

— Ah… — a senhora balbuciou, indicando a cama.

Sentei-me e ela tomou as meias das minhas mãos, ajoelhando-se


para calçá-las.

— Eu calço… — avisei. — Pode deixar… — Sorri.

Quando terminei, ela sorriu de volta.

— Fome? — perguntou destampando as tigelas sobre a bandeja.

Havia peixe grelhado e uma porção de missoshiru , além de arroz e


alguns tipos de conserva. No canto da bandeja, um pote com cerejas bem
vermelhas e lustrosas.

— Se quer comer algo, Yasu prepara… — Meneou a cabeça.

— Yasu… — repeti. — Então seu nome é Yasu… — Sorri


novamente. — Eu sou Lia…

Pela primeira vez, encontrei seu olhar. Parecia triste, embora


tentasse ser sempre gentil. Não tinha aquele ar pesado que os yakuzas têm,
como se fosse uma peça fora de lugar naquele jogo.

Eu ainda não sabia quem era Yasu, mas talvez ela fosse minha
única possibilidade de salvação.
Capítulo Quarenta e Quatro
Shin
Abaixei por instinto e Sosuki fez o mesmo, abrindo a gaveta da
mesa de madeira e jogando uma pistola para mim.

Mais alguns tiros e eu me posicionei, arma em punho, pronto para


atirar. Engatilhei, mas, por sorte, vi o resvalo de um rosto antes de apertar o
gatilho.

— Nico! — gritei. — Não atire, eu estou bem…

Dei alguns passos para fora do escritório para encontrar o peruano


parado no meio do galpão. Cinco homens do cartel, um baleado e outro
caído no chão. Alguns dos yakuzas de Sosuki também haviam sido
atingidos.

Nicolas segurou Sosuki pelo colarinho.

— Se quer fazer uma festa em meu território, filho da puta, precisa


me comunicar!

Sosuki franziu o cenho, mas não retrucou. Quando Nicolas afastou


a mão, ele ajeitou o terno, assumindo aquela pose arrogante de aristocrata
que tinha.

— Nunca me meti nos seus negócios, Huamán, não se meta nos


meus! — proferiu.

O peruano travou o maxilar de raiva, estava pronto para revidar,


quando eu o impedi.

— ¡Cálmate, hermano! — Bati em suas costas. — Ele não é o


inimigo…

Nicolas levantou a sobrancelha, fitando-me por alguns segundos.


— Eu venho em seu resgate e o encontro confabulando com o
inimigo! — Riu dando de ombros. — Você deve ser mesmo a porra de um
demônio!
— Yokai… — corrigi.

— Foda-se! — provocou. — Vamos para casa! Eu já descobri que


seu avô esteve em Lima… Parece que pegou um jato particular de lá…
— Para Tóquio… — Sosuki interrompeu. — É para lá que estamos
indo, El Condor…

Nicolas voltou o rosto nada amigável para Sosuki e, antes que


dissesse algo, eu me interpus.

— Agradeço por ter vindo me encontrar, mas preciso fazer isso


com Sosuki… Ele conhece a organiza…

— ¡A la puta madre, Nakai! Se acha que vou deixá-lo sozinho


nessa, então não me conhece como eu achei que conhecia…
Balancei a cabeça em negativa.

— Não seja teimoso… Sua mulher e…


— Estão todas seguras, em Cusco… Sugoi e Nacho mandei para a
aquele hospital em que estivemos, em Lima… Vou com você,
companheiro… — A mão pesada tocou meu ombro. — No dia em que era
minha mulher na mira daquele desgraçado, você esteve comigo… Agora é
minha vez de retribuir o favor…

— Você não deve nada, Huamán… Não…

— Sei que não devo… Irmãos não cobram pela ajuda, fazem
porque sabem que é o que tem que ser feito!
Encarei os olhos castanhos do companheiro que, apesar de ocupar
o lugar oposto ao meu no mundo, sempre estivera ao meu lado. Ele tinha
razão, eu jamais o deixaria sozinho, não podia esperar que ele fizesse o
mesmo.

— Precisamos de um avião particular… Um que não deixe…

— Estará na pista particular do porto em duas horas… — Sosuki


interrompeu. — Em nome da senhora Carolina Tierrablanca, uma
empresária de sucesso e sem nenhuma ligação com a organização… —
gabou-se.

Afilei os olhos questionando-o sem dizer nada e o homem riu.

— Tive muito tempo para pensar nessa vingança, garoto! Não


importa do que precisemos, eu provavelmente já tenho uma maneira de
conseguir.
Deixei o depósito com Nicolas para fazer as malas. Nos
encontraríamos com Sosuki direto no aeroporto, para evitar que fôssemos
ligados um ao outro.

Nicolas estacionou em frente à casa da família na cidade, onde dois


homens armados com fuzis faziam a guarda do portão.

Descemos e passamos para dentro.

— Por Dios, niño, pensei que perderíamos você de novo! —


Guadalupe me abraçou.
Demorei alguns segundos para retribuir, ainda tinha dificuldade em
lidar com aquele tipo de reação.

— Vamos para o Japão, tia… — Nicolas avisou. — Preciso que a


senhora esteja com Verônica… Não sei quando volto…
— É claro, mi amor, é claro… — Deu alguns tapinhas nas costas
do sobrinho.

Segui direto para o quarto de visitas e tirei a roupa. Estava sujo de


sangue e poeira da estrada, precisava me vestir com algo menos
comprometedor se queria passar despercebido pela imigração.

Assim que saí do banheiro, peguei o telefone e enviei uma


mensagem para o número protegido do policial.
“Pegaram Liandra e talvez estejam na cola do sensei. Preciso que o
proteja.”

Alguém havia colocado minhas roupas dentro da mala, então só


conferi e fechei o zíper. Logo ouvi o som de uma nova mensagem.
“Não se preocupe.”

Havia uma chamada perdida de um número restrito, imaginei que


fosse Willian, então retornei, mas ele não atendeu. Achei melhor deixar
uma mensagem avisando que estava indo ao Japão, ele saberia de qualquer
maneira, já que os bakutos controlavam os portos e aeroportos.

“Meu avô pegou a Lia, estou indo para o Japão com os homens do
Minoru. Mando notícias.”

Desliguei e enfiei no bolso, junto com a carteira. Peguei a mala e o


casaco; quando cheguei à sala, Nicolas também já estava pronto.
— Ainda dá tempo de desistir… — falei quando me aproximei.

— Desde quando um Huamán desiste, Nakai? — Sorriu de canto.


— Vamos acabar com aquele filho da puta e pegar sua garota de volta… Ele
já envenenou o mundo por tempo demais!
Aquiesci, seguindo até a porta.

Do lado de fora, um dos homens do cartel já havia assumido o


volante de um carro diferente daquele em que havíamos chegado, para
evitar que fôssemos seguidos.

Paramos no hotel de Nicolas, onde o helicóptero já esperava por


nós.
A viagem até Lima durava pouco mais de quarenta minutos, então
chegamos com um pouco de folga.

— Vamos seguir de carro… Infelizmente meu helicóptero é


conhecido demais por essas terras.

Concordei, entrando no banco traseiro de um 4x4 preto.

Paramos junto à entrada e eu enfiei a mão no bolso do casaco. Na


última vez que estivera naquele lugar, tinha usado minha tatuagem como
acesso ilimitado, agora precisava escondê-la se quisesse alguma chance de
pegar meu avô de surpresa.

Assim que Nicolas baixou os óculos, o guarda da entrada liberou a


passagem e seguimos direto até uma pequena pista clandestina, de onde
tudo que não era lícito saía de Lima.

O Gulfstream já esperava por nós na cabeceira, com Sosuki ao lado


da escada.

Ocupamos nossos lugares e encontramos o céu com a tarde caindo.


Era um longo caminho até minha terra, eu sabia que dificilmente
conseguiria dormir, então esperei até que Nicolas se rendesse ao sono e me
levantei, procurando por Sosuki.

Encontrei-o ao telefone.
— Não podemos contar com o conselho… — soltou assim que me
viu. — Meu homem de confiança… Seu avô… — Socou o braço da
poltrona, indicando o que havia acontecido.

— Então vamos criar um conselho novo! — Sentei-me em uma das


poltronas, cruzando as pernas e acendendo um cigarro. — Você pode ter se
preparado por muito tempo, meu caro, mas eu estive em combate durante
toda a minha vida… Não preciso de conselho algum para cortar a cabeça do
meu avô e servi-la em uma bandeja de prata… — Dei mais um trago. —
Tenho tudo de que preciso bem aqui…

Sosuki riu.
— Bem que me disseram que você era convencido, garoto…

— Se não fosse, não mereceria o cargo que você quer me dar… —


pontuei. — Além disso, aquele demônio senil pegou minha mulher… Não
se mexe com a mulher de um yakuza…

Passamos o que restou da noite ajustando os detalhes de como


invadiríamos a mansão e, quando o dia começou a clarear, acabei sendo
pego pelo cansaço. Recostei o corpo na poltrona e reclinei. Tinha que estar
desperto e ativo, se quisesse que meus planos dessem certo, não podia
arriscar, não teria outra chance.

A noite começava a cair novamente, quando descemos em uma


pista particular na cidade portuária de Yokohama. Seria mais fácil esconder
nosso pouso ali, do que no aeroporto da capital.

— Não precisa se preocupar com a imigração… — meu


companheiro de viagem anunciou. — Pedi aos meus homens que cuidassem
de tudo, inclusive para o peruano aí…
A porta se abriu e descemos as escadas. Primeiro Sosuki, eu, Nico
e depois os outros três homens de confiança do antigo saiko. Abri minha
mala para pegar o casaco, já que a noite estava fria e um pouco chuvosa;
quando me levantei, não consegui conter o riso.

— Achei que tinha dito para esperar por notícias… — brinquei


dando alguns passos em frente.

— Como sabe, sou péssimo em seguir ordens… Por isso me tornei


o chefe bem cedo! — Willian Matsuya sorriu de canto, daquele jeito bem
filho da puta sarcástico que sempre fazia.
Meneei a cabeça em cumprimento, mas meu amigo estendeu a
mão, então eu o cumprimentei como os ocidentais, com um aperto firme e
alguns tapinhas nas costas.

— Bem-vindo de volta, Nakai… Espero que desta vez eu não


tenha que sair por aí dirigindo um esportivo em fuga pela sua família…
Está ficando repetitivo já! — brincou.

Acabei rindo, mas o riso morreu logo e deu lugar a um suspiro.

— Você não deveria se envolver, Will… As coisas podem…

— E perder a diversão toda? — Ergueu uma sobrancelha


inquisidora. — Eu já disse, tekiyah, o mundo sem uma disputa nossa é um
lugar maçante… Gosto de adrenalina! — Piscou e seguiu alguns passos em
frente, falando com um dos seus homens.

Nicolas parou ao meu lado.

— Seu amigo? — perguntou.

— Um tipo estranho de inimigo… — expliquei. — Willian é filho


do Matsuya.
— A la puta madre, mestiço! — reclamou. — Definitivamente,
você precisa escolher melhor suas inimizades!
Capítulo Quarenta e Cinco
Liandra
O dia amanheceu e eu continuei deitada na cama. Não queria me
levantar, nem sentia que faria alguma diferença estar em pé. Não
conseguiria mesmo lutar contra aquele demônio.

Durante toda a noite, tivera sonhos estranhos com sangue e choros


de criança.

Abri os olhos e encarei o dia nublado do outro lado das portas


duplas de vidro, havia deixado as cortinas abertas. Sentia-me claustrofóbica
e com o coração apertado de angústia.

— Senhorita? — a voz suave da governanta chamou do outro lado


da porta.

— Pode entrar… — avisei.

Yasu abriu as portas de correr com cuidado, deixando a bandeja


sobre a penteadeira, antes de fechá-las novamente.

— Sente-se mal? — Aproximou-se preocupada. — Precisa de


algo?
Neguei, esforçando-me para me sentar. Alisei os cabelos para trás e
forcei o corpo para me levantar, mas, assim que fiquei em pé, senti uma
onda de tontura e enjoo, que fez tudo girar. Apressei o passo até o banheiro,
escorando nas paredes e, assim que cheguei à bancada da pia, vomitei.

— Bom sinal… — Yasu falou da porta.

Tinha um sorriso suave no rosto, daqueles que a gente mostra


quando quer apoiar alguém que está sofrendo.
— Se isso é bom sinal, não quero ver um sinal ruim! — reclamei
depois de cuspir a água que havia bochechado.
— Bom sinal com o bebê, senhorita… — explicou, imitando o
gesto de vomitar, porque certamente não sabia a palavra para usar.

Acabei rindo. Sabia o que ela queria dizer, ter enjoos matinais era
um dos sintomas mais comuns de gravidez, porque a alta hormonal causava
esse efeito. Então, se eu estava enjoada, teoricamente minhas taxas
hormonais estavam subindo rápido.
— Aqui… — Destampou um potinho com conserva de gengibre.
— Bom para barriga…

Aquiesci, levando uma fatia do alimento até a boca, enquanto ela


destampava as outras tigelas. Sopa, arroz e bolinhos que eu tinha quase
certeza de que eram takoyaki.
Eu estava familiarizada com comida japonesa, tinha sido criada por
um oriental e morava na Liberdade, nada daquilo era estranho para mim,
então comi mais um pedaço de gengibre e esperei até que meu enjoo
estivesse um pouco melhor, para começar a comer.

Yasu caminhou até a porta de vidro e empurrou, deixando a brisa


fresca da manhã entrar no quarto.

— Chuva parou… — constatou, olhando para um céu ainda


nublado, mas com pequenos sinais de que se abriria mais tarde. — Sol vai
nascer amanhã.

O sol vai nascer… Nascer…


Mastiguei o bolinho por mais tempo do que deveria, de repente o
sabor já não parecia mais tão bom e a tristeza do que eu sabia que iria
acontecer bateu forte demais em meu peito.

Meu pensamento foi direto para Shin e para o que eu teria que ver
acontecer com ele sem poder evitar. Tinha ouvido movimentações pela casa
a noite toda, sabia que o demônio tatuado estava se armando.

— Quer revista? Livro? Yasu pode conseguir o que precisar,


senhorita… — ofereceu.
Neguei. Não ia chorar, mas queria. Sentia-me ridiculamente
emotiva e, por mais que pensasse, não conseguia ver possibilidade alguma
de fugir daquele lugar.

A governanta sentou-se ao meu lado na cama, as mãos ansiosas


sobre o próprio colo, como se estivesse pensando no que dizer.
— Vai ficar bem… — falou de repente. — Logo bem… De
volta… O menino…

Voltei o rosto para ela e franzi o cenho. Não sabia se estava falando
do bebê ou de Shin. Menino, menina, a limitação da língua era uma merda,
por mais que quiséssemos nos comunicar.

Abri a boca para perguntar, no instante em que o médico parou


junto à entrada.

— Saia, Yasu… — avisou.


O tom era gentil, apesar da ordem expressa que a mulher nem
tentou ignorar.

Ficamos sozinhos e a porta foi fechada novamente. Deixei os


hashis sobre a tigela de arroz, os olhos baixos, não queria conversas.

— Deveria comer, Senhorita…


— Deveria estar livre também e em minha casa, ou onde eu mesma
escolhesse… — reclamei, empurrando a bandeja para longe. — Se veio me
examinar, comece logo e termine, quero ficar sozinha.

O médico não respondeu minha provocação, em vez disso abriu a


maleta com tranquilidade e pegou um aparelho de pressão.

Ajustou em meu braço.


— Baixa… Você precisa comer um pouco mais… Em seu estado…

Abri a boca para mandá-lo à merda, quando seu dedo indicador


tocou suave sobre os próprios lábios.
— Vou mandar comprar algumas vitaminas… — Apertou a ponta
da caneta e começou a escrever no receituário; logo depois, levantou o
bloco para que eu pudesse ler.

“Não sou o inimigo, vou protegê-la e tirá-la daqui. Precisa


confiar.”

Imediatamente, meus olhos voltaram-se para ele.

— Yasu trará as vitaminas que precisa para a sua gestação.


Imagino que não tenha se cuidado adequadamente, vamos repetir seu
ultrassom daqui a alguns dias, em um hospital melhor…
A maneira como terminou a frase deixou claro que havia mais nas
palavras do que apenas o que fora dito.

Talvez ele aproveite que vamos sair para me ajudar a fugir! —


Senti o coração acelerar. Ou talvez seja algum tipo de emboscada e você vá
se foder um pouco mais!
Engoli os questionamentos e aquiesci. Ele terminou de me
examinar e se levantou, guardando os equipamentos no bolso e amassando
a folha em que havia escrito a frase. Enfiou-a na boca e engoliu, como se
fosse um daqueles agentes secretos que a gente vê em filmes de Hollywood.
Curvou o corpo em cumprimento.

— Se tiver alguma queixa ou precisar de algo, pode pedir a Yasu…


Ela levará até mim…

Deu-me as costas e passou pela porta, recebendo o cumprimento


dos dois seguranças que guardavam minha porta, desde que eu entrara
naquele quarto.

Foi então que um estalo me despertou.

Ele está falando a verdade! Por que esconderia o papel se não


estivesse? De volta! Yasu disse de volta! E ele me disse que ela levaria até
ele! Então é isso, os dois estão contra o desgraçado! Vão me ajudar!

Fiquei sozinha mais uma vez. O pensamento longe, traçando um


milhão de planos que eu não tinha ideia de como colocaria em prática.
Subi na pedra alta que enfeitava o jardim fechado e tentei olhar
além dos muros, mas não consegui ver muito além das copas das árvores.

De repente, meus pensamentos se perderam na fotografia da garota


no telefone de Shin.

Ela fugiu! Fugiu desse desgraçado, por que você não conseguiria?
Com a ajuda certa, vai conseguir! Lembra, Lia… Lembra de tudo que você
já passou… É só mais uma coisa!
Voltei para dentro e me sentei na cama, puxando a bandeja de
comida de volta para o meu colo.
No fim das contas, o doutor tem razão! Precisa comer! Saco vazio
não para em pé e não foge da Yakuza!
Capítulo Quarenta e Seis
Shin
Seguimos do aeroporto direto para o apartamento que Willian
ainda mantinha nos arredores de Tóquio. Não podíamos ir para o meu, nem
a um hotel, se quiséssemos manter em segredo a emboscada que
prepararíamos.

Assim que entramos, os homens de confiança de Will, os que


haviam ajudado na fuga de Yuki, já estavam lá. Cumprimentei-os e
caminhei até perto da janela, acendendo um cigarro enquanto via o
movimento em minha cidade lá embaixo.

— Os homens que ajudaram na fuga da sua irmã já estão vindo


para cá… — Willian avisou servindo uma dose de uísque no copo. — São
os únicos em quem eu realmente confio.

Éramos oito homens, contra mais de vinte que faziam a segurança


da casa do meu avô, mas tínhamos a melhor das armas em nossas mãos, a
sede de vingança!

Um dos homens do Sosuki saiu para comprar comida e voltou com


novidades interessantes.

Meu avô, finalmente, programara o anúncio do meu desligamento


da NK Corp. para a próxima semana; além disso, rumores de que um novo
saiko seria anunciado começavam a correr pelos becos de Tóquio.

— Parece que o desgraçado está certo de que vai enterrar você,


Nakai… — Will brincou, mas havia um fundo de verdade em suas palavras.

— Hijo de una puta, mal parido, ¡a la mierda! — Nicolas fechou o


punho e bateu na mesa, fazendo a bandeja de comida tremer.
— Acho ótimo! — Dei mais um trago, esfregando a mão na
barriga por baixo da camiseta. — Ele está irritado, por isso me dá como
morto… Somente quando uma pessoa está com as emoções instáveis é que
ela comete erros e revela mais do que deveria…

Sosuki riu de canto com aquela aprovação no olhar. Parecia


orgulhoso da minha tranquilidade, mas mal sabia o velhote que por dentro
meu sangue latino fervia mais que o peruano.

— Se me dão licença, senhores… Preciso de um banho… —


Enfiei um sushi na boca e arrematei com uma dose de saquê.
Deixei a sala e entrei em um dos quartos de hóspedes de Willian.
Tínhamos ficado naquele mesmo lugar, antes da minha fuga para o Brasil.

Fechei a porta logo atrás de mim e livrei-me das roupas suadas.


Liguei o chuveiro, mas não esperei até que esquentasse, precisava mesmo
de um pouco de água gelada para esfriar a cabeça.
Apertei os dentes, rosnando baixo, a mão cerrada em punho,
socando o azulejo.

Desgraçado! Aquele filho de uma puta desgraçado não perde por


esperar! Eu vou arrancar os olhos dele e estourar com a sola do meu
sapato!

Fiquei debaixo da água até que meus pensamentos voltassem ao


lugar. Precisava ter calma e serenidade ou colocaria a segurança de Lia em
xeque.

Quando me acalmei, fechei o chuveiro e enrolei uma toalha na


cintura. Saí do banheiro para encontrar Nicolas sentado na poltrona
fumando um cigarro.
— Se queria me ver pelado, era só ter pedido, peruano… Não sou
tímido, como já deve saber…

Nicolas ergueu uma sobrancelha inquisidora.

— Essa maldita pose de japonês pode funcionar com o seu novo


amigo, hermanito, não comigo… — Deu mais um trago, soltando a fumaça
em torno de si. — Sei bem que sua vontade é arrancar as tripas do seu avô
com uma daquelas espadas de que você tanto gosta.
— Katanas… — corrigi e o peruano riu.

— A la mierda… — Lustrou a pistola de cabo de marfim que havia


herdado do avô. — Um tiro no meio da testa é mais rápido… — Testou a
mira e guardou de volta no cós da calça. — Se bem que… — Levantou-se
para olhar pela janela, a atenção nas luzes piscantes da grande capital. — O
desgraçado merece mesmo que seja lento… Depois de tudo que fez…
Soltei uma lufada de ar, entendia daquele sofrimento contido tão
bem quanto ele. Era tempo demais, dor demais e vingança demais
corroendo nossas veias, tinha chegado o momento do acerto de contas.

Abri o zíper da minha mala, que já estava sobre a cama.

Nicolas caminhou até perto da porta.

— Foda-se aquele merda do seu avô… — Deu um último trago,


apagando o cigarro no cinzeiro de vidro. — Passei aqui para lembrá-lo de
que não sou um yakuza, mestiço… Você não precisa fingir que é a porra do
chefe para mim…
Assenti. Sabia o que ele queria dizer e estava grato por ter alguém
como Nicolas ao meu lado.
Assim que a porta se fechou, separei uma camiseta e uma calça
preta; antes que terminasse de me vestir, o telefone vibrou sobre a mesinha.
Peguei o aparelho na mão e conferi a sequência de zeros, na tela, indicando
que se tratava de IP protegido.
Atendi sem dizer nada.

— No fim da rua… Um carro branco irá passar… Entre nele! Sou


um amigo do Hiro…
Desligou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Sentei-me na
cama.

Amigo do Hiro…
Fazia tempo que eu não ouvia aquele nome, mas ainda sentia falta
do amigo que perdera em minha fuga. Hiroshi Takamatsu chegara à casa do
meu avô depois de ter sido pego libertando duas garotas de um prostíbulo
em Kamagasaki.

Meu avô queria matá-lo, mas meu pai resolveu dar a ele uma
chance de provar sua lealdade. No fundo, o que meu pai desejava era
cultivar nossa rivalidade e me fazer cair no conceito do meu avô, mas não
conseguiu. Hiro e eu entendemos o recado e aceitamos nossa posição
contrária, embora em segredo fôssemos nos tornando grandes amigos
aliados.
Pouquíssimos irmãos de organização sabiam da nossa real ligação,
então, se o homem ao telefone tinha citado Hiro, eu precisava ouvir o que
tinha a me dizer.

Vesti a jaqueta sobre a camiseta e escondi a pistola na parte de trás


da cintura. Peguei um boné. Meu rosto era conhecido demais naquele lugar,
mesmo que a barba por fazer me deixasse menos oriental.
Cruzei a sala sem dizer nada e abri a porta, aproveitando-me de
que Sosuki e Nicolas não estavam.

Tinha chamado o elevador, quando Matsuya parou a meu lado.

— Precisando de um trago, Nakai? — brincou. — Tenho bebida


em casa e a chance de acabar com um tiro no meio da testa é menor…
Ainda existe… — Deu de ombros. — Mas é menor.
Acabei esboçando um riso, mas, no fim das contas, achei que seria
bom contar a alguém o que pretendia. Ao menos, se eu desaparecesse,
Willian saberia o porquê.

— Consegue rastrear uma ligação? — Tirei o aparelho do bolso e


entreguei a ele, mostrando a última chamada. — Vou me encontrar com
alguém que se diz amigo do Hiro…

Meu amigo aquiesceu.

— Leve com você… — Tirou o relógio do pulso e me entregou. —


Assim eu consigo rastreá-lo, caso seja necessário.

Prendi o relógio no pulso e entrei no elevador. Assim que deixei a


entrada do prédio, vesti o boné na cabeça, tapando o rosto o melhor que
pude. Estava quase no fim da rua, quando um esportivo branco se
aproximou em velocidade baixa.

Abri a porta para encontrar um rosto que nunca tinha visto na vida.

— Entre! — mandou. — Vamos dar uma volta.


Fiz o que pediu e passei o cinto de segurança, enquanto o
desconhecido arrancava com o carro.
— Vou dizer como as coisas serão feitas, Nakai… — começou sem
tirar os olhos da estrada. — Na madrugada de sexta o oyabun irá anunciar
meu nome como saiko-komon…

Afilei os olhos sem entender.

— Obviamente… não pretendo assumir, mas o fato é que muitas


pessoas diferentes estarão na casa… Será mais fácil entrar e, se está aqui,
imagino que já tenha seus aliados…

Aquiesci.

— A garota está no quarto de Yuki, mas vou dar um jeito de tirá-la


de lá e mandá-la para o porão… Aqui… — Tirou uma chave de dentro do
bolso do terno. — Esta é a chave… Dois homens estarão de guarda, use
supressores e não serão ouvidos na sala de reuniões.

Encarei-o ainda em silêncio, o filho da puta estava esquecendo


quem eu era? Tinha morado naquela porra de casa praticamente a vida toda!

— Não me importo com os efeitos colaterais, Nakai, só quero a


certeza de que Yasu sairá com vida…

Yasu… Fixei os olhos no rosto dele. Yasu… — Franzi o cenho,


tentando me lembrar do nome do filho dela.

— Sim… Sou eu… Yuri Satoshi, o filho daquele desgraçado… —


confirmou minhas suspeitas.
Nenhuma história de amor era bonita na yakuza e não tinha sido
diferente com a jovem governanta.
Yasu fora dada ao meu avô pouco depois que o filho dela nasceu.
O desgraçado que a engravidou decidiu levar a criança e descartar a
adolescente que enganou, como a maioria dos yakuzas fazia.
Meu avô fora encarregado de mantê-la presa naquela casa pelo
tempo que sua vida durasse. Mulheres não eram nada em nosso mundo.
Peças de manobra que podiam ser usadas e descartadas, de acordo com a
vontade do homem que as possuía.

Ela criou a mim e a Yuki como se fôssemos seus filhos, mas o dela,
não havia chegado sequer a ver.

— Tem minha palavra… — Meneei a cabeça em concordância,


enquanto o tal Satoshi se aproximava do lugar em que havia me pegado.

Estava feliz em saber que ao menos meus esforços em contactá-lo,


enquanto estudava fora do Japão, haviam surtido algum tipo de efeito.

Yuri estacionou junto ao meio-fio e eu levei a mão à maçaneta.

— Estou cuidando para que ela fique bem… — soltou enquanto eu


me preparava para descer. — O bebê também…

Parei com a mão no ar, como se tivesse sido congelado. De


repente, o ar parecia rarefeito. Tentei não demonstrar o quanto a revelação
havia mexido comigo.
— Parabéns, Nakai… — o filho da puta brincou, antes de arrancar
com o carro novamente.
Capítulo Quarenta e Sete
Liandra
Fiquei sozinha durante todo o dia, recebendo apenas a comida.

Estava inquieta, irritada, ansiosa, angustiada, como se algo fosse


acontecer sem que eu soubesse o quê.

Andei pelo quarto, indo e vindo tantas vezes que minhas pernas
estavam cansadas e doloridas. A noite caíra quando eu decidi tomar banho e
trocar minhas roupas por algo mais quente. Para a minha sorte, a dona do
quarto e eu tínhamos quase o mesmo tamanho, a maioria das roupas de
algodão dela serviam em mim.

Livrei-me do conjunto de moletom e entrei debaixo da água morna.


Queria ter saído de lá mais leve, mas, assim que encarei o céu escuro da
noite, minha angústia só aumentou.

Sentei-me na cama e fechei os olhos, o corpo recostado sobre a


cabeceira e o pensamento longe.
Estava quase pegando no sono, quando senti a mão quente em
minha coxa. Abri os olhos de imediato, para encontrar Kazuo Nakai, o
demônio tatuado, bem ali, ao meu lado. Seu cheiro de nicotina e suor
fazendo meu estômago se revirar.

— Satoshi me disse que você não está sendo uma boa garota,
Liandra… — meu nome dito devagar, de um jeito nojento. — E isso não
me deixa nem um pouco satisfeito… Diga, algo está faltando a você? O que
mais quer? Roupas de luxo? Joias?

Abri a boca para dizer que nada me faltava, quando ele me agarrou
pelo pescoço, os dedos apertando minha glote até me fazer engasgar.
— Espero não ter que explicar a você qual é o seu lugar aqui, sua
vagabunda! — Apertou um pouco mais e eu comecei a tossir. — Vou
esperar ansioso o momento do seu parto… — Aproximou a boca da minha
orelha, roçando em minha pele. — E fazer questão de tornar sua morte bem
dolorosa!

As primeiras lágrimas começaram a descer sem que eu pudesse


evitar. Sentia tanto ódio que, se conseguisse me soltar, seria capaz de matar
aquele velho filho da puta com as minhas próprias mãos!

Kazuo continuou apertando e eu já começava a sentir a garganta


arder, a visão turvar. Agarrei seu braço, cravando as unhas o mais fundo que
conseguia, precisava de ar ou ia morrer ali mesmo.

De repente, a porta se abriu e Satoshi passou por ela. No mesmo


instante, o velho me soltou. Caí de lado nos travesseiros, tossindo e
sentindo o ardor queimar minha garganta; só não vomitei porque o jantar
ainda não tinha sido servido.

— É como eu sempre digo, garoto… — Kazuo caminhou até o


médico, apoiado em sua bengala. — Precisa mostrar a elas quem é que
manda… — Bateu em seu ombro de leve. — A vadiazinha não vai mais
causar problemas…
O velho nos deixou e eu fiquei ali, de quatro na cama, tentando
recuperar o fôlego sem ter ideia do que tinha acontecido. Quando as mãos
de Satoshi tentaram me ajudar, eu o empurrei para longe.

— Seu desgraçado! O que foi que eu fiz? É assim que espera


que… — Minha boca foi tapada com a sua mão.
Mais uma vez, ele me pediu silêncio. Não sei se foi o desespero,
mas, apesar de tudo, me calei.
Satoshi então caminhou até a escrivaninha e abriu a gaveta,
procurando por algo. Voltou com um abridor de cartas na mão. Deixou em
minha frente e sacou o celular do bolso.

— Vamos ver como está sua pressão agora pela noite, senhorita…
— ia falando, mas digitava algo no celular, em vez de me examinar.

“Pegue o abridor e corte meu braço.”


Ficou maluco? — balbuciei sem som.

“É a única maneira segura de tirá-la daqui.”

Pensei por alguns segundos. Nem fodendo! Eu não fiz nada e quase
fui enforcada por aquele filho da puta de uma figa; se cortar o braço do
protegido dele, o desgraçado me estripa!

Neguei com a cabeça.


“Precisa” — insistiu e eu neguei novamente.

Foi então que o médico pegou o abridor e passou no antebraço ele


mesmo, com força, abrindo uma trilha vermelha e funda. Sujou as mãos no
próprio sangue e então se aproximou.
— Preciso fazer, senhorita… — falou bem baixo, quase inaudível.
Logo depois, várias palavras em japonês que soavam como um
xingamento, bateu a mão na maleta, espalhando os equipamentos e fechou a
mão em punho. Um segundo, e tudo que senti foi a dor lancinante do soco,
apaguei.

***
Acordei sozinha e no escuro. A roupa que eu usava estava molhada
em algumas partes. Havia apenas uma janela alta e fina, de onde uma fresta
de luz entrava. Tentei me levantar, as mãos apoiadas no chão úmido e frio.
Meu rosto doía como o inferno. Pisquei, sentindo o nariz duro e então levei
a mão até o local.

O filho da puta me deu um soco! — constatei assim que toquei o


inchaço, indo do nariz até debaixo dos olhos.

Esperei no mesmo lugar, enquanto minhas pupilas se acostumavam


com a falta de luz e então corri os olhos pelo lugar. Parecia um tipo de cela
disfarçada de depósito. A porta estreita de ferro parecia bem grossa e não
havia uma maçaneta sequer pelo lado de dentro, apenas uma pequena
portinhola, também selada.

Por que ele me trouxe até aqui? Por que queria fingir que eu o
havia atacado? Qual o sentido?

Minha cabeça doía pelo golpe e por tentar entender o plano sádico
do médico.
Não esqueça que ele é um yakuza, Lia! Um yakuza, e não o médico
do posto de saúde!

Com dificuldade, empurrei uma caixa de bebida até perto de onde


havia a janela, e depois empilhei mais uma. Queria ver o que estava
acontecendo do lado de fora ainda que não fosse idiota e soubesse que fugir
não era uma opção.
Subi com medo de cair. As mãos espalmadas na parede, onde
marcas arredondadas me faziam pensar para que porra de negócio aquela
sala servia.

Preciso sair… Preciso sair daqui logo ou vou acabar descobrindo


a função dessa porra de calabouço.
Tentei ficar na ponta dos pés, já que não havia apoio algum. O
vidro descia por toda a abertura, impedindo que eu me segurasse na beirada
da janela.
Não consegui ver muito do lado de fora, mas entendi que estava no
subsolo.

Franzi o cenho, tentando mapear o que tinha visto da casa antes de


ser levada para dentro.

Janelas baixas… Janelas baixas… Onde podia haver aquelas


janelas?

Eu precisava me concentrar e tentar descobrir onde estava, se


houvesse uma pequena chance de fuga em algum momento, tinha que saber
para onde correr ou acabaria sendo pega. A mansão era imensa e cheia de
corredores envidraçados, não era fácil se esconder naquele lugar.

O desgraçado do médico me pediu para confiar nele e acabei


aqui… Qual será a maldita razão? O vidro parecia bem grosso, à prova de
som, provavelmente… Se era difícil fugir do quarto, quanto mais deste
lugar! Por quê?

Por mais que me concentrasse não conseguia entender. Tirei a mão


da parede para coçar a testa e me desequilibrei. Só não caí porque pulei,
mas meus joelhos reclamaram com força, quando bateram no chão duro.

Sentei-me, esfregando a área dolorida. Cheia de raiva e sem


nenhuma certeza, a vontade de chorar começou a se tornar mais e mais
forte. Eu podia ser durona, mas não era inquebrável e estava descobrindo
isso rápido demais.

Inspirei pelo nariz e soltei pela boca, uma, duas vezes, segurando
as lágrimas o mais forte que pude.
Calma, Lia… Calma… Deve haver alguma razão… Desespero só
vai te deixar pior!
Capítulo Quarenta e Oito
Shin
Assim que cheguei à frente do prédio, vi a ponta do cigarro acesa
no meio da escuridão do beco ao lado. Pela postura, tinha certeza do que
era.

— Saiu para brincar e nem me chamou… — Nicolas debochou,


dando um último trago e atirando a ponta longe.

— Vamos tirá-la de lá na sexta… — avisei, ganhando a atenção do


peruano. — O novo saiko do meu avô…

— E é claro que um homem de confiança do seu avô só lhe falaria


a verdade… — Ergueu uma sobrancelha inquisidora para mim.

— Acredite… O desgraçado odeia meu avô quase tanto quanto eu!

Nicolas riu.

— Difícil encontrar alguém que não odeie… — brincou. — Não


gosto do seu plano, Nakai, mas estou aqui para cumprir ordens, então…

— Ótimo! — Digitei a senha e destravei o portão, entrando com


Nicolas logo atrás de mim. — Vamos subir e nos organizar… É necessário
cautela e muita estratégia para quebrar a segurança daquela casa.

— E é aí que eu entro… — Willian alisou os cabelos para trás,


fazendo-me franzir o cenho. — O quê? — Estreitou os olhos. — Esqueci de
dizer que o relógio estava grampeado? — Riu, mas logo limpou a garganta.
— Desculpe, Nakai, mas eu tinha que garantir que você não faria nenhuma
besteira… O amor cega as pessoas, você sabe!

Afilei os olhos, mas não respondi. Willian podia ter a porra de um


humor ácido para cacete, mas, se havia alguém com capacidade suficiente
para derrubar a segurança da Nakai-Gumi, era ele.

— Sua sorte é que você é um filho da puta necessário, Matsuya…


— constatei entrando com os dois no elevador.

— Você confia mesmo no Sosuki? — Willian perguntou. — Não


que eu esteja desconfiando, companheiro, mas “seguro morreu de velho” e
eu não sou do tipo que confia fácil…
— Não confio nem em você, companheiro… — brinquei. — Mas
o fato é que, para restabelecer a ordem, vou precisar do maldito caderno e
quem o trouxe até mim foi o Sosuki…

— Aaaaaah, a lealdade dos samurais… — debochou. — Vamos


garantir que ele não dê um passo fora da linha então! — concordou.
Nicolas ajeitou a pistola na calça.

— De um jeito, ou de outro.
Meus olhos passaram pelo espelho, onde nosso reflexo mostrava
uma situação inusitada. Dois yakuzas rivais e o chefe de um cartel
dividindo um espaço tão pequeno. Era mesmo curioso o poder que o ódio
em comum poderia ter.

Saímos do elevador direto para o apartamento, onde Sosuki


esperava perto da janela.
— Então… Falou com o garoto? — perguntou.

— Conhece Satoshi? — devolvi.

Parabéns, Nakai… — as palavras do desgraçado tomando um


espaço que eu não queria dar.
— O suficiente para saber que ele odeia seu avô tanto quanto
você… O desgraçado tornou a vida da mãe dele um inferno ainda maior do
que seria se ela tivesse ficado com o filho da puta do pai dele… — Deu um
gole na bebida. — É claro que ele iria dar um jeito de falar com você…
Tive certeza disso no momento em que soube que ele estava com o seu avô
no Peru.
Segui alguns passos em frente, mais para perto de Sosuki. Olhos
estreitos, tentando entender o que se passava na cabeça dele.

— Já disse, garoto… No que depender de mim, você é o novo


oyabun… Não quero o cargo, nem o poder que ele representa… Tudo que
desejo é terminar meus dias em paz… Você pode gastar seu tempo
desconfiando de um aliado ou pode se concentrar e salvar a garota…

Ela está bem… O bebê também…

Alisei os cabelos para trás, tinha mesmo que me concentrar.


— Não posso discordar… — Nicolas completou, arrancando-me
dos devaneios.

— Então vamos nos concentrar no plano… Não é sempre que se


invade a casa de um oyabun… — Willian ligou o computador e sentou-se
em sua cadeira.

— Imagino que tenha acesso a uma planta detalhada… — Olhou


em minha direção.

— É claro que tenho, companheiro… Não sou amador…


— Ótimo!

Puxei outra cadeira e Willian empurrou o teclado para perto de


mim. Acessei meu e-mail protegido e comecei a procurar pelo que
precisava enquanto ia explicando.

— Meu avô fará a nomeação do novo saiko-komon na noite de


sexta… A casa estará cheia e será mais fácil passar despercebido…

Abri a planta da mansão na grande tela curva em minha frente.


— Satoshi me disse que levaria Lia para cá! — Apontei para o
subsolo, a câmara do meu avô, mas meus pensamentos ainda estavam
perdidos nas palavras de Satoshi.

Grávida? Não! Ela não pode estar grávida… Ela disse… Disse… E
você acreditou, seu imbecil! Cometeu a porra do pior erro de todos…
Confiou…
Enchi os pulmões de ar.

Grávida… O rosto dela se formou em meus pensamentos. Linda e


delicada… Tão suave e tão forte… Grávida… Porra! Grávida de um filho
meu! Senti o corpo todo se arrepiar e aquecer. Não tinha ideia do que estava
sentindo, mas era difícil para inferno de esconder.

— Nakai? — alguém chamou e só então eu percebi que tinha


parado o assunto no meio.

— É blindada e à prova de som… — continuei como se não fosse


nada de mais. — Ventilação mecânica, janelas seladas… — expliquei. —
Só podemos entrar pela frente…
— Porta blindada? — Nicolas completou. — Vamos ter que…

Tirei a chave do bolso.

— Só precisamos nos livrar dos seguranças. Dois, talvez quatro se


meu avô for esperto…
— Supressores… — Willian comentou. — Você entra… O
peruano te dá cobertura… Eu cuido do sistema de alarmes e
monitoramento, Sosuki…
— Tudo perfeito… — o velho yakuza interrompeu. — Só temos
um problema… Para chegar daqui… — Apontou para os portões. — Até
aqui! — Correu os dedos pela tela até a entrada do subsolo. — Tenho
certeza de que seu avô não conta apenas com o sistema de segurança.

— Essa é a parte difícil… — continuei. — Temos que descobrir


como entrar sem sermos vistos… Chegar de arma em punho será um
problema… A polícia de Tóquio é rápida e está no bolso do meu avô…

— Seu avô gosta de um circo… Willian tomou a palavra. — Se vai


fazer um anúncio tão importante, então teremos uma festa das boas…
Música, comida… Só precisamos descobrir uma das empresas e… fazer
amizade… — Ergueu uma sobrancelha debochada.

Pelo que restou da noite, Willian chamou os reforços necessários e


descobriu o que precisávamos saber sobre a festa do meu avô.
Nicolas e dois dos homens de Sosuki, já que tinham rostos menos
conhecidos, saíram para comprar o que faltava para que o plano estivesse
perfeito. O velho e eu nos concentramos na parte prática. Era um trabalho a
muitas mãos, não podíamos vacilar ou o erro custaria a vida de Lia, a nossa
e o futuro da organização.

— Você deveria descansar um pouco… — Sosuki comentou na


terceira vez que eu cocei a barba por fazer e esfreguei os olhos.

— Estamos todos cansados…

Não era exatamente cansaço, mas eu me aproveitei disso para


esconder o que realmente sentia.
— Só que não é a mulher de todos nós que está no porão daquele
sádico… — Tocou meu ombro devagar. — Descanse, garoto… Já não é
fácil controlar a pressão sem outra coisa na cabeça, se não der um tempo ao
seu corpo, vai acabar falhando.

Esfreguei o rosto mais uma vez.

— Sosuki tem razão… — Willian concordou sem tirar os olhos do


monitor ou os dedos do teclado.

Abri a boca para protestar, mas eles tinham razão. Precisava de um


tempo para assimilar o que me consumia ou acabaria sendo relapso.

— Vou tentar dormir um pouco… — concordei, dando o último


trago no cigarro e apagando no cinzeiro.

Entrei no quarto e fechei a porta, os olhos perdidos no amanhecer e


os pensamentos nela.

Porra, chiisai, e agora? O que vou fazer com um bebê? Onde vou
enfiar um bebê na desgraça de vida que levo? Como vou fazer isso dar
certo?

Os olhos dela não saíam da minha memória. O sorriso, o jeito


debochado como me provocava, o quanto ia em frente, sem se importar
com as consequências do que desejava. Liandra se parecia com a minha
mãe. Tinha aquele ímpeto doce que só alguém que já sofreu demais sabe
ter.

Sentei-me na cama, ainda de frente para as grandes janelas, e cobri


o rosto com a mão.

Não sabia o que pensar, nem como reagir. Jamais achei que algo
como aquilo aconteceria.
Estava tão perdido em pensamentos que só percebi que não estava
sozinho quando Nicolas falou.

— Vai me contar o que mais aconteceu ou vou precisar gastar meu


tempo descobrindo sozinho?

— Porra, peruano… Você gosta mesmo do meu quarto! —


provoquei para mudar o foco. — Isso tem um nome, sabia?

— Sabia… Se chama o caralho da preocupação que você não


merece… — Deu mais alguns passos. — O que houve, Nakai? Você não é
do tipo que se perde em uma conversa… Ainda mais quando a vida de
alguém que você pretende proteger está em risco.

Baixei a cabeça por um segundo. De repente, queria contar…


Dividir com alguém.

— Lia está grávida… — soltei de uma vez. — Satoshi me


contou…

— ¡A la puta madre! — xingou, sentando-se ao meu lado. — Eu


achando que você estava ferrado, mas na verdade você está mais do que
ferrado, mestiço… Está fodido!

Voltei o rosto para ele pronto para xingar, quando Nicolas riu e eu
acabei rindo também.

Depois de alguns segundos o riso morreu, mas continuamos nos


olhando.
— Você será um bom pai, Shin… Sei que parece assustador, mas
vai ver o quanto vale a pena ver o mundo pelos olhos de alguém que só
carrega o bem dentro de si… — Fechou o punho e bateu de leve em meu
peito, perto do coração. — Esse vazio aí dentro… vai se encher de
esperança…

Engoli em seco, o pensamento longe, lá naquela cela, onde a garota


que eu amava esperava para ser salva.

O vazio… Vai se encher de esperança…

Soltei o ar dos pulmões.

Talvez seja mesmo verdade!


Capítulo Quarenta e Nove
Liandra
O tempo passava de um jeito diferente naquele lugar. Eu não sabia
se estava cansada, com sono ou se apenas havia desistido de lutar.

Não vi mais Yasu e minha comida entrava pela portinhola, duas


vezes por dia. Nada de gengibre para o enjoo, nem chá quente para dormir.

O único lugar menos frio que eu tinha para me deitar era um velho
colchão do tipo futon, fedido e grudento, então passava a maior parte do
tempo sentada na caixa de bebidas.

Fiquei pensando se passaria toda a gestação lá, se alguém viria me


ajudar quando a hora chegasse, ou se apenas pegariam o bebê e me
esqueceriam ali de vez.

Bebê… — Baixei os olhos para minha barriga plana, sem nenhum


indício de gravidez.
— Se eu fosse você, ficava aí por muito tempo, ouviu? As coisas
não andam muito boas aqui fora…

Sempre achei maluquice as pessoas que conversavam com a


barriga. Ficava pensando que não fazia o menor sentido conversar com
alguém que nem ouvidos tinha, mas acabei traída pelos meus próprios
preconceitos.

Acho que a gente fica meio boba quando está grávida mesmo!
Hormônios? Provavelmente!

Ri, mas meu riso não tinha força. Havia tristeza demais pairando
densa naquele ar.
Acabei cochilando de exaustão e acordei assustada, com luzes
estranhas indo e vindo pelo espaço escuro da minha cela.
Levantei o mais rápido que pude e empilhei novamente uma caixa
em cima da outra, para poder subir e ver o que acontecia do lado de fora.
Levei um susto quando vi que eram carros estacionando em frente a janela.

Eu não conseguia ouvir nada, mas podia vê-los, apesar da sujeira


no vidro. Um par de sapatos pretos parou bem perto de mim e eu levei um
susto tão grande que quase caí. Para a minha sorte, o dono dos sapatos não
estava interessado em me encontrar.
Continuei ali, observando o ir e vir, atenta. Ainda não tinha ideia
do que estava acontecendo, mas talvez aquela movimentação toda fosse
uma coisa boa para mim.

Mais um carro parou, logo ao lado do primeiro que eu tinha visto.


De dentro dele, um par de pés usando um sapato branco com ponteira preta,
bem naquele estilo aristocrata. Não pude ver quem era o dono, mesmo me
esforçando demais.
Depois de um tempo, a movimentação diminuiu e eu fiquei no
escuro novamente. Fosse como fosse, ninguém iria me ver e menos ainda se
importar com uma garota presa no porão de um yakuza.

Desci de cima das caixas e apoiei a testa na parede fria de metal.


Os dedos escorregando pelas marcas arredondadas de tiro.
Droga! Droga! Droga! Como eu vou sair daqui? Como?

Fechei a mão em punho e soquei o metal, sentindo a dor subir


pelos nós dos dedos até perto do cotovelo.
Pelo menos ele foi esperto o suficiente para não vir me buscar…
— Engoli em seco, o coração apertado, mas a razão tranquila. É melhor
assim, Lia… Muito melhor assim!

E foi então que algo bateu contra a porta, fazendo meu coração
acelerar e o sangue gelar nas veias.
Capítulo Cinquenta
Shin
Nicolas derrubou o primeiro homem, que colidiu com força contra
a porta de metal. A munição subsônica da 9mm foi escolhida exatamente
para que nada além dos corpos ao chão fosse ouvido.

Mirei na cabeça do segundo homem e o derrubei também.


Estávamos quase na porta, quando mais um segurança apareceu, descendo
pelas escadas. Assim que nos viu, tentou voltar, mas não permiti. Pulei por
cima do guarda-corpo e o agarrei, puxando para baixo e jogando no chão. A
poça de sangue começou a se formar antes que os olhos do desgraçado se
vitrificassem.

Nicolas se aproximou, arma em punho protegendo minha


retaguarda, enquanto eu tirava a chave do bolso e enfiava na tranca. Girei
com calma e esperei que o peruano se aproximasse. Não íamos confiar na
palavra de Satoshi, o plano poderia ser uma emboscada bem montada para
pegar todos nós de uma única vez.

O pé de Nicolas bateu com força na porta e eu me preparei para


entrar. Foi então que a vi. As mãos cobrindo os ouvidos e os olhos
fechados. O rosto bonito estava machucado, um inchaço evidente no nariz e
seios da face.

De repente, seus olhos se abriram e miraram os meus. Nunca na


vida tive um misto de sentimentos tão grande com o aquele. Eu queria
correr até ela e protegê-la em meus braços e queria socar o imbecil que
ousara tocar minha mulher.

Quando dei por mim, já estava em sua frente.

— Você veio… — a voz suave, embargada de emoção.


— Fiquei sabendo que você tem algo meu aí dentro… — Ergui a
sobrancelha e indiquei seu corpo com um aceno de cabeça.
Instintivamente, ela levou a mão até a barriga.

— Eu não… Não imaginei que… Shin, eu…

Puxei-a para mim, beijando o topo da sua cabeça. Sentia como se o


mundo todo coubesse dentro dos meus braços, como se nada mais faltasse.

— Não imaginou? — provoquei. — Eu disse que era bom de


pontaria, chiisai… — Esbocei um sorriso de canto.

Ela riu e aquele riso conseguiu encher meu corpo todo de algo
quente e confortável.

— Vamos sair daqui! — Entrelacei nossos dedos e a levei comigo


para fora.
Saí na frente, com Lia atrás de mim e Nicolas na retaguarda. Eu
conhecia aquela casa como a palma da minha mão. Cada entrada e cada
saída, por mais escondida que fosse. Sabia onde meu avô manteria mais
guardas e qual era o lugar que acabaria descoberto.

Em vez de subir as escadas pelas quais havíamos chegado, segui


pelo corredor, até a caldeira do aquecedor central. Havia um antigo duto de
ventilação que ainda não tinha sido fechado. Eu mesmo havia coordenado a
obra de reforma, durante uma das viagens do meu avô, e era por isso que
tinha certeza de que ele não se preocuparia com aquele local.
Chutei o tapume com força, quebrando a madeira fina e mostrando o
túnel. Era apertado para alguém do meu tamanho, mas ia ter que servir.

Parei pouco antes de atingir a saída no jardim dos fundos, precisava


conferir se realmente não havia ninguém do outro lado. Quando saímos, vi
dois corpos caídos no chão. Eram homens do meu avô, o que significava
que Sosuki também tivera êxito em sua tarefa.

Sinalizei para Nicolas, mostrando o caminho a seguir. Meu quarto


era o único cujo jardim terminava no desfiladeiro, e isso o tornava a melhor
rota de fuga que podíamos ter.

— Leve Lia por aqui… Há uma pequena trilha, descendo a


montanha e…
Os dedos se apertaram contra os meus antes que ela dissesse
qualquer coisa.

Acariciei sua mão de leve com o polegar, colocando-me de frente


para ela. Meus dedos levantando seu queixo, seu olhar na altura do meu.
— Você é meu ponto fraco, chiisai… Se eu não tiver certeza de que
está segura, não serei forte como preciso…

— Promete que volta… — pediu.

— Juro… — Baixei a cabeça em reverência.

Queria que ela entendesse que o juramento de um homem como eu é lei.


Quando um yakuza promete algo, é porque já o considera feito.
Nicolas tocou meu ombro com a mão. Era a deixa de que a hora
havia chegado. O fim estava próximo, a vingança. O momento pelo qual ele
havia esperado a vida toda.

— Cuido dela para você, mestiço! — Esboçou um sorriso de lado.


— E você faz o desgraçado sofrer o máximo que puder!

Aquiesci, a mão sobre seu ombro também.


Fiquei parado até que os dois sumissem montanha abaixo.
Havíamos combinado aquele plano em segredo com Willian e eu sabia que
em poucos minutos os dois seriam resgatados e protegidos dentro do
território Bakuto.
Aproveitei que estava sozinho e recarreguei a arma, enfiando na
cintura e saindo pela janela. Fui me esgueirando pelos arbustos que
circundavam a grande sala do meu avô e parei perto da janela.

— Este é o anúncio de um tempo muito mais próspero para nossa


organização, senhores! — a voz do filho da puta ecoou.

Ao seu lado, Satoshi em seu terno branco bem cortado. Mãos


juntas à frente do corpo. Parecia tranquilo, embora a veia saltada em sua
fronte deixasse claro o maxilar contrito de nervoso.

Pela visão periférica, vi um dos homens de Sosuki, arma em punho


e concentração máxima no que acontecia dentro da sala. Dei a volta, por
trás do salgueiro, e então atingi o outro lado.
— Meu filho foi ceifado desta terra por um traidor… — continuou
e eu senti o ódio borbulhar em minhas veias. — E juro pelo meu cargo que
logo vou encontrar aquele desgraçado do meu neto! Vou caçá-lo como a um
coelho e lhes entregar sua cabeça em uma caixa de seda, exatamente como
fiz com o outro traidor antes dele!

Gritos de apoio e palmas se fizeram ouvir, abafando os ruídos da


nossa aproximação.
— Mas hoje o dia é de festa! — Levantou a mão de Satoshi. —
Teremos um novo saiko-komon! Um que realmente merece a lealdade que
lhe é depositada!
Um dos homens de Sosuki, o que carregava a flash bang, se
posicionou, esperando apenas pelo meu comando. Ao lado, um dos seus
companheiros e mais três bakutos de Will.
Esperei até que minha preciosa katana fosse retirada do vidro que a
protegia e empunhada pelas mãos do homem que tentara destruir tudo que
ela significava. Honra, justiça e verdade.

Cerrei as mãos em punho, esperando pelo momento certo.

— Ajoelhe-se, filho… — meu avô ordenou.

— Agora! — balbuciei.

A bomba foi jogada e em seguida o clarão e o estouro levaram


todos que estavam na sala ao chão. Satoshi foi o único que tapou os olhos e
ouvidos, já deitado no chão. Tinha recebido a mensagem de Willian na noite
anterior.

Os homens atrás de mim entraram descarregando os pentes.


Precisávamos assustar e tomar o controle à força, estávamos no seio do
inimigo.
Entrei calmamente, enquanto a poeira baixava. Arma na cintura,
mãos limpas.

— Procurava por mim? — perguntei assim que meu avô conseguiu


se levantar.

— Seu desgraçado! — xingou com tanto ódio que quase engasgou.


— Seu demônio do inferno! O que está fazendo no meio da minha sala? Eu
vou acabar com vo… — Tentou me golpear com a katana, mas errou.
Ainda estava desorientado e eu era mais forte e mais rápido do que
ele.
— A garota! Tragam a garota! — gritou para ninguém em especial.
No instante seguinte, os seguranças que haviam sido amarrados
entraram em fila. Cabeças baixas, derrotados.

— Aaaaaaaaaaargh! — grunhiu tão alto que tremeu, as veias


pulsando em seu rosto e mãos. Estava transfigurado no demônio que
sempre fora.
Deixei que tivesse seu momento de ira, meus homens já haviam
dominado todos no lugar. Eu estava em vantagem e tinha tudo de que
precisava, queria ver sua agonia um pouco mais.

— Seu desgraçado! — Tentou segurar Satoshi pelo colarinho, mas


também não conseguiu. — Como ousa morder a mão que o alimenta?

— Alimenta? Não, seu velho decrépito! Você não me alimenta…


Minha mãe o faz e o sabor do sofrimento dela em minha comida é amargo
como o fel! — Satoshi o segurou pela garganta. — Nunca mais… Ouviu?
Nunca eu me curvo diante de você! — Soltou com força e ele tossiu,
esfregando o pescoço.

— Vou fazer como fui ensinado pelos princípios dessa


organização, meu avô… — Dei alguns passos para perto, aproximando-me
sorrateiro e cheio com a empáfia que tinha herdado dele. — Darei a você a
chance de morrer com honra…

— Tenho uma ideia melhor, seu bastardo de merda… — Virou-se


para mim e golpeou com a força que tinha recuperado. Movido pelo ódio,
acertou-me no peito, rasgando a camiseta preta que eu usava.

Quebrei o vidro da outra katana com um chute e a peguei nas


mãos. Do jeito que girei o corpo, passei a lâmina em sua cintura. Fundo o
suficiente para fazê-lo cair de joelhos, mas não para ceifar sua vida. Ainda
não… Ele precisava sofrer um pouco mais.

— Seu… Seu… — tentava falar, enquanto cuspia sangue sem


querer. Os olhos estalados de dor.

— Antes que morra, quero que testemunhe sua vergonha… —


Joguei o caderno em cima dele. — Aqui, senhores… O verdadeiro caderno
de Akira Minoru… — Apontei para a capa de couro, diante do olhar de
todo o conselho. — A injustiça está desfeita… E a memória do verdadeiro
oyabun desta organização, limpa!
Sosuki caminhou para dentro. Passos lentos de um homem
vingado.

— Finalmente… — Suspirou. — Posso voltar a andar de cabeça


erguida…

— Eu vou encontrar você, seu demônio desgraçado! — meu avô


ainda tentou xingar, as mãos sujas de sangue tateando o carpete claro,
fazendo um rastro pelo pequeno espaço em que se arrastava. — Vou acabar
com aquela sua puta e com o bastardinho que ela carrega na barriga! Do
mesmo jeito que acabei com a sua mãe!

Apertei o cabo da katana com tanta força que os nós dos meus
dedos ficaram brancos. Queria picá-lo como um pedaço de carne, ver seu
sangue manchar meu rosto e cuspir o veneno que ele fazia brotar dentro de
mim, mas me controlei. Não lhe daria o prazer de me ver fora de mim.

— Todos para fora! — ordenei. — Temos um assunto de família


para resolver…

Meus olhos estavam cravados nos dele, enquanto a movimentação


em torno de nós se dava. Quando tudo ficou em silêncio, apoiei a katana no
chão, as mãos sobre o cabo.

Meu avô riu.

— Deve estar feliz com tudo isso… — as palavras saindo devagar


devido ao esforço para respirar.
— Justiça nem sempre traz felicidade, oyabun…, mas deixa a
consciência em paz… — confessei. — Não o estou punindo… Seus atos
estão…

— Eu sou a justiça! Eu sou a lei! — tentou gritar, mas pareceu com


o grunhido de um animal agonizante.

— Não, você não é… Você é um filho da puta sem honra, mas eu


vou lhe dar a chance de pagar pelos seus erros… — Tirei o isqueiro do
bolso e risquei a pedra. — O fogo purifica, meu avô… — O riso torceu
minha boca de lado. — Aproveite!

Travei o botão e joguei o isqueiro aceso onde as garrafas de bebida


quebradas estavam. Não demorou nem um segundo para que o fogo
atingisse os biombos de papel-arroz. Havia muita madeira e tecidos finos
naquela sala.

— Antes de ir quero que saiba que o comando voltará para as mãos


do verdadeiro herdeiro… Eu!

Virei as costas e saí; atrás de mim, os gritos de ódio e estouros do


que restava de vidros intactos. Continuei meu caminho para fora, sem
apressar o passo. O fogo purifica… A ele e a mim.
Capítulo Cinquenta e Um
Liandra
Meus pés me carregavam de um lado para o outro, mas minha
cabeça havia ficado naquela casa, junto dele.

Lá fora a noite estava tão escura que eu me sentia sufocada. Mal


conseguia respirar sem sentir o coração pesado e a garganta embargada.
Queria parecer calma como os outros naquela sala, mas eu não conseguia.

Havíamos deixado o apartamento para ficar na casa da família


Matsuya, já que Willian podia garantir melhor nossa segurança ali, cercado
por seus homens de confiança.

— Se continuar assim, vai acabar furando meu piso de madeira…


— o homem, atrás do monitor de computador, falou sem levantar os olhos.

Não respondi. Gostava do mestiço, mas estava nervosa demais para


ser sarcástica e irritada demais para ser gentil, então continuei calada.
— Aqui… — Nicolas passou um copo de água para as minhas
mãos. — Beba um pouco… Isso pode demorar, Lia…

De repente, uma onda de pavor tomou conta de mim sem que eu


pudesse evitar.

— Como vamos saber se ele está bem? Se ficou ferido? Se precisa


de ajuda? — ia falando e sentindo a garganta fechar de desespero.

O peruano esboçou um sorriso.

— Aquele mestiço filho da puta é duro na queda, Lia… — Pousou


a mão em meu ombro. — Acredite, se ele prometeu que volta, ele volta!

De repente, luzes clarearam as janelas da frente e o som de um


carro estacionando fez meu coração disparar.
— Não é o Nakai, ainda… — Willian explicou, saindo de trás da
mesa, e caminhou até a porta. — Mas sei que você vai gostar da visita.
Não demorou muito e meu pai passou para dentro, apoiando-se em
uma bengala. Estava mais magro e tinha ainda alguns curativos, mas eu
estava tão feliz em vê-lo ali que quase não segurei a emoção.

— Pai! — gritei, correndo até ele.


No momento em que o abracei, todo o turbilhão de sentimentos
que eu tentava manter sob controle saiu. As lágrimas descendo tão rápidas
que eu nem conseguia mais limpar. A voz embargada e o coração acelerado.

— Oh, Lia… Minha Lia… — Segurou meu rosto entre suas mãos,
uma lágrima solitária descendo por sua face.
Musashi não era do tipo emotivo. Como bom yakuza, fora
ensinado desde cedo a esconder qualquer resquício de humanidade que
pudesse ter, mas naquele momento pude ver um pouco do homem que ele
tentava esconder.

— Quando Willian me contou, eu achei que… Ah, querida… Que


bom que está aqui, bem… — Aconchegou-me em seu peito. — Eu nem sei
o que faria se perdesse você.

Apertei os braços em torno da sua cintura. Havia tanta coisa presa


em minha garganta. Tantos sentimentos. Eu compartilhava tudo com ele.
Apesar de não ser meu pai de sangue, sempre foi em meu coração.

— Ah, pai… — Beijei seu rosto. — Eu não… Eu só…


Musashi segurou meu rosto entre suas mãos e sorriu.

— Você será uma ótima mãe, querida… Willian me contou… —


Beijou o topo da minha cabeça. — Veja como o destino é engraçado… Você
e Shin Nakai… — Riu um pouco mais. — Eu deveria ter percebido que o
garoto não era flor que se cheire e a mantido afastada! — brincou. — Meu
sexto sentido nunca erra!

Acabei rindo, enquanto limpava o rosto com os polegares.

— Pai, você não tem jeito! — Segurei sua mão e o levei até a
poltrona, sentando-me ao seu lado, o rosto apoiado em seu ombro.
Musashi, Terada, fosse quem fosse, seria sempre o meu pai.

— Tudo ficará bem, querida… — Bateu de leve em meu queixo, a


mão encaixada em meu rosto com carinho. — Você merece isso e o garoto
também… É hora de ser feliz, Liandra… Hora de ser feliz…
Não sei quantas vezes conferi o horário naquele relógio. Era
madrugada e nenhum sinal do meu yakuza. Os ponteiros pareciam
retroceder.

— Faz cinco minutos… — a voz de Willian quebrou o silêncio da


sala.

Voltei os olhos para ele sem entender.

— Desde que você conferiu o horário… — explicou sem que eu


perguntasse.
Esbocei um sorriso sarcástico.

— Achei que estava concentrado aí nos seus sistemas… —


brinquei.

— E estou! — Um olho no peixe, moça, outro no gato… —


Esticou os braços para trás e estralou, antes de acender um cigarro. — Um
yakuza nunca dorme com os dois olhos fechados… Seu mestiço não lhe
ensinou isso, não? — debochou.

Levantei uma sobrancelha, mas tinha que concordar que ele era
espirituoso. Um amigo fiel também, apesar de estar do outro lado daquela
briga.

Eu ainda não conhecia muito daquele mundo, mas tinha aprendido


a valorizar a lealdade desde pequena, já que sempre pude contar com muito
pouco. Talvez fosse assim para Willian também, como era para Nicolas,
meu pai, Guadalupe, Yasu… Tantas pessoas diferentes que eram mais
parecidas do que imaginavam.

Levantei quando minhas pernas não aguentavam mais ficar


naquela poltrona e caminhei até a janela. As mãos não tinham mais unha,
mas eu seguia mordendo o que restava, até que vi luzes bem ao longe,
aproximando-se rápidas pela estrada.

— Parece que seu príncipe está voltando… — Willian soltou,


empurrando a cadeira para se levantar. — Se eu fosse você, ia esperar no
jardim.
Mal ele terminou a frase e eu corri para fora. Enquanto vencia o
espaço do jardim, vi os faróis se aproximando, passando pelo portão e
seguindo pelo caminho de dormentes até que estacionou.

A porta se abriu e meu coração deu um salto tão grande no peito


que senti uma onda de tontura me dominar.
— Eu disse que voltava, chiisai… — Sorriu de canto. — Nunca
deixo de cumprir uma promessa!

Meus olhos correram do rosto até o rasgo em sua camiseta. Shin


tentou esconder a gravidade do ferimento, mas não conseguiu.
— Efeitos colaterais, você sabe… — brincou.

Corri até ele como se fugisse do fim do mundo. Meus dedos


levantando a camiseta, tateando o corte com cuidado.

— Ei, está tudo bem, foi superficial… De verdade… — Segurou


minhas mãos, levando-as até a boca. — Acabou… Vamos ficar bem…
Abracei-o apertado, meu rosto afundado em seu pescoço, sentindo
o perfume que eu tanto amava.

— Nem acredito que acabou, Shin… Acabou de verdade…


— Acabou… — segurou meu rosto entre as mãos. — Agora
vamos escrever o novo capítulo deste livro, chiisai… Um capítulo só
nosso…

A mão desceu pelo meu ombro e braço até a cintura e contornou,


parando sobre minha barriga, bem ali, onde o fruto de tudo de mais perfeito
que havíamos vivido crescia.
Puxei sua boca para a minha. Sentia tanta falta do gosto dele que
uma lágrima solitária desceu e, pela primeira vez, eu não fiz questão de
esconder. Não queria ser forte, precisava ser cuidada.

Deixei que sua língua tomasse posse, que explorasse minha boca,
que ganhasse todos os meus sentidos. Aproveitei, suspirei, engoli os
gemidos e chorei. Minhas lágrimas descendo e salgando o gosto do nosso
mais importante beijo, o primeiro de uma vida inteira que teríamos o direito
de viver juntos.

— Amo você, Shin Nakai… — soltei porque já não aguentava


mais segurar o que era tão certo dentro de mim.
Ele riu. Aquele riso debochado que era tão seu e que havia me feito
apaixonar.

— Ama? — repetiu fazendo graça, os olhos verde-amarelados


perdidos nos meus. — O yakuza filho da puta que encheu sua vida de
problemas?

Acabei rindo também.


— O yakuza filho da puta que me protegeu dos perigos, mesmo
achando que eu era filha do inimigo… Que me permitiu conhecer a verdade
sobre meu pai e que me ensinou a ser feliz como nunca…

— Não esqueça de acrescentar que te deu o melhor sexo da sua


vida e que…

— Bobo! — Bati em seu ombro ainda rindo. — Você estragou


minha declaração de amor! — reclamei empurrando-o.

Antes que eu conseguisse me afastar, ele segurou meu pulso,


trazendo meu corpo para o seu. Os dedos longos e elegantes deslizando pelo
meu cabelo e um olhar tão cheio de sentimentos que fez meu coração parar
por um segundo.
— Amo você, chiisai… — Soltou um suspiro. — Amo como
nunca pensei que um dia seria capaz de amar alguém… Obrigado por me
mostrar que ainda havia vida dentro de mim e que valia a pena lutar…

Aconcheguei meu corpo no dele, encaixado de um jeito que só nós


dois conseguíamos.
— Vem, amor, vamos ver esse machucado e fazer um curativo…
Você precisa descansar…

Shin não retrucou, apenas riu de canto e alisou os cabelos para trás.
— Sabe que eu gosto disso? — confessou e eu voltei os olhos para
os dele sem entender. — Uma enfermeira particular… — explicou. — É
muito providencial…

— Providencial? — reclamei. — É o que diz da mãe do seu filho?


Meu Deus do céu, mestiço! Não dá para ser um pouquinho mais romântico,
não?

— Eu fui! Há alguns minutos! — defendeu-se. — Não exagere nas


expectativas, senhorita, eu ainda sou o mesmo de sempre!

Abracei-o pela cintura e ele beijou o topo da minha cabeça.

Eu não queria mesmo que nada mudasse. Nem o jeito sarcástico


que ele tinha de dizer que me amava, nem as nossas brigas e provocações.
Amava Shin Nakai exatamente como ele era, porque ele também me via em
minha totalidade.
Capítulo Cinquenta e Dois
Shin
Minha vida toda, eu fugi de qualquer coisa que segurasse minhas
mãos enquanto eu seguia meu destino. Gabei-me de não ter amarras e
jamais desejei que fosse diferente, mas ali, com os braços delicados dela em
torno da minha cintura, senti como era bom pertencer a alguém. Ser, de
fato, parte de algo.

Repousei a mão em torno do seu ombro, meu coração batendo


tranquilo, ainda que o corpo estivesse cheio de dores.

Assim que chegamos à grande varanda da entrada, Nicolas se


aproximou. Trocamos um olhar cúmplice. Aquele tipo que só existe com
quem conhecemos de uma vida toda.
— Acabou… — constatou segurando a emoção que eu sabia que
sentia. — Finalmente… Acabou!

Abriu os braços para mim e Liandra sorriu, dando espaço para que
ele se achegasse mais.

— Acabou, Nico… — concordei.

Como a retrospectiva de cenas antigas, toda uma vida passou


diante dos meus olhos. Houve um tempo em que meu avô tentou me fazer
ver em Nicolas um traidor, mas nem mesmo seu poder sobre mim foi capaz
de me fazer enxergá-lo como outra coisa que não fosse um irmão.

Suas mãos repousaram nos meus ombros e eu fiz o mesmo com


ele.

— Agora vamos viver, hermanito… Só viver…

Aquiesci.
— Trouxe uma caixa de lenços… — a voz de Willian interrompeu.
— Achei que seria providencial, depois de tanto drama…
— Vai se foder, Matsuya! — xinguei, mas não estava realmente
bravo.

Meu amigo riu e curvou o corpo em uma reverência oriental,


demonstrando seu respeito.
— Será um prazer dividir nossa terra com um oyabun como você,
Nakai… A Matsuya-Kai e a Nakai-Gumi nunca mais serão inimigas…

Repeti seu gesto.

— Finalmente a aliança será selada.

Ainda estávamos nos cumprimentando, quando passos se


aproximaram devagar e eu me levantei para ver o Terada sensei à nossa
frente.
— Hoje é o dia em que findo todas as minhas dívidas… Vê-los
lado a lado me faz crer no amanhã com esperança.

Baixei a cabeça em cumprimento e Willian fez o mesmo. Terada


fora o homem responsável pela dose de honra em nossa vida. Tinha sido um
excelente mestre e era bom vê-lo de volta ao Japão, livre, finalmente.
— Agora venha, futuro oyabun… — Liandra estendeu a mão. —
Você precisa de um banho quente e um curativo nesse corte. Às vezes se
esquece de que é humano…

Segui com ela até um dos quartos da grande casa dos Matsuyas.

Passamos pela porta e Liandra a fechou em seguida.


Os primeiros raios de um amanhecer vitorioso começavam a
clarear o céu escuro do começo do outono japonês. Parei em frente às
grandes portas de vidro que davam para o jardim privativo.

— Na última vez que estive nesta casa, as coisas eram bem


diferentes… — confessei.

Os passos suaves foram se aproximando, até que as mãos


circundaram minha cintura, os dedos acariciando perto do ferimento e o
rosto afundado em minhas costas.
— Vai parecer muito clichê e bobo se eu disser que tenho orgulho
de você? — Riu, fazendo cócegas em minha pele.

Virei-me de frente para ela.


— Vai! — afirmei.

— Shin! — Continuou rindo.


Dei de ombros.

— Sinceridade é meu forte… E eu nunca almejei o cargo de


herói… — Alisei os cabelos para trás. — Estou feliz em ser um bom vilão!
A garota umedeceu os lábios, mordiscando o inferior e
aumentando a chama que já ardia em mim.

— Tira a roupa para mim, chiisai…

Não era um pedido, meus olhos fixos nos dela, sua boca curvada
em um meio sorriso atrevido.
— Chiisai… — repetiu. — Quando vai me dizer o que significa?
— provocou.

Peguei-a pela cintura e coloquei sobre a escrivaninha.


— Pequena… — Curvei-me sobre ela, separando suas pernas com
o joelho. — Combina com você! — sussurrei em seu ouvido.

Lia jogou a cabeça para trás, fazendo com que minha boca
resvalasse em seu pescoço.

— Tira a roupa… — repeti.


Ela obedeceu no mesmo instante, levantando a saia do vestido e
tirando pelos ombros. Corri a ponta dos dedos pela sua pele, desde o rosto
ainda machucado até o vale entre os seios, circundando a auréola e
descendo até a barriga.

Meu filho… — Senti o coração dar um tranco.


Peguei-a nos braços e carreguei até a cama, deitando-a
suavemente. Livrei-me da camiseta e abri os botões do jeans.

— Tem certeza de que não prefere ao menos fazer um curativo


antes? Você acabou de…

— Shhhhhhh… — silenciei-a com o indicador sobre seus lábios e


ganhei um beijo suave. — É só um arranhão, chiisai… Já fiz pior caindo de
bicicleta!

Tirei a calça e ajoelhei na cama.


— Você deve ter sido uma criança terrível! — ia falando conforme
eu me posicionava para tirar sua calcinha. — Tem cara de bagunceiro e…
— Aaaahhh… — gemeu quando eu aproximei o rosto e beijei sua barriga.

A pele bronzeada cheirava a sabonete. Tão delicada e feminina que


minha boca se encheu de saliva, com a vontade de provar mais dela.
— Shin… — soltou entrecortado, enquanto minha boca
mordiscava a parte interna de sua coxa. — Ahhhh…

Baixei a calcinha, tirando por suas pernas e separei-as para que


pudesse vê-la. O dia ainda não havia clareado, mas as luzes dos primeiros
raios eram suficientes para que eu percebesse o quanto era linda e
absolutamente perfeita.

— Minha… — soltei com a voz grossa de desejo. — Toda


minha… — Encaixei a palma aberta nos pelos finos e desci pela abertura da
boceta, espalmado, cobrindo toda a extensão.
Baixei o rosto e enfiei a língua entre os pequenos lábios, no mesmo
instante ela soltou um gemido alto, agarrando-se ao edredom.

— Quer me matar? — Riu, engolindo em seco.

— Não… Quero mostrar a você que não sou bom apenas


fodendo… Também sei fazer amor…
Capítulo Final
Liandra
Acordei com um raio de sol fraco entrando pela janela.

Algumas semanas haviam se passado desde tudo que aconteceu,


mas eu sentia como se fossem décadas.

Havíamos viajado de volta para o Brasil apenas para que eu


pudesse regularizar minha situação no emprego e me despedir dos meus
amigos. Era hora de seguir em frente, para o outro lado do mundo, onde
minha nova vida começaria.

Levantei-me devagar, tomando o cuidado de não acordar Shin, e


caminhei até a janela. Era um dia claro e bonito do início do verão em São
Paulo e da janela do apartamento eu podia ver o movimento da rua lá
embaixo.

Engraçado como a vida da gente pode mesmo mudar em um piscar


de olhos. Uma noite qualquer num beco qualquer, e o homem destinado a
mim apareceu. Suspirei, dando as costas para o dia e cruzando os braços na
frente do corpo.

Na cama a minha frente, o homem que eu jurei odiar dormia


tranquilo. Costas fortes e nuas, mostrando o desenho que tanto havia me
encantado desde o primeiro dia em que vi.

Ressonou suave, movendo de leve o corpo e trazendo vida à


majestosa carpa dragão em sua pele. Passos lentos me levaram até ele e eu
me sentei na beirada da cama, os dedos deslizando pelo desenho em suas
omoplatas.

Não demorou mais que um segundo e eu estava debaixo dele,


minhas mãos seguras juntas acima da cabeça. Comecei a rir e ele também.
— Já disse, não é? — perguntou.

— Nunca se aproxime…

— De um yakuza dormindo se não quiser ser pega de surpresa…


— completou.

— Você não relaxa nunca? — perguntei.

Sua mão desceu por entre o nosso corpo, separando meu joelho
para que ele pudesse se encaixar onde queria.

— Hum… — gemi quando o senti me penetrar de uma vez, sem


aviso nem gentileza.

— Relaxo, chiisai… Quando estou aqui… — Afundou-se um


pouco mais, fazendo meu canal se apertar com seu tamanho. — Aí eu
relaxo bastante…
Tentei rir, mas os espasmos que a fricção da sua carne na minha
causavam me fez gemer, apertando os olhos e cravando as unhas em suas
costas. Minhas pernas enlaçadas em sua cintura.

— Porra de boceta gostosa que você tem! — grunhiu, acelerando


os movimentos e me fazendo arquear as costas, para aumentar o contato. —
Eu poderia passar o dia inteiro nesta cama, sabia? Só fumando e fodendo
você!
Tentei responder, mas não consegui, o sexo ficava melhor a cada
dia e eu nem sabia se era culpa dos hormônios da gravidez o do encaixe
perfeito que a gente tinha.

— Ahhhhh, Shin… — sussurrei entre gemidos, estava na borda,


quase gozando.
— O que, chiisai? Fala para mim, fala…

— Puta que pariu, você fode bem demais! — Ri, as pálpebras


fechando de prazer.

Sua mão espalmou na lateral do meu rosto, mantendo meus olhos


nos dele. Por mais que eu quisesse fechá-los, aquela imensidão esverdeada
ainda me tragava com toda a força que tinha.
— Assim… É assim que eu gosto… — Apertou minha bunda,
aumentando a profundidade da penetração e me fazendo gozar com força.
— Obediente e minha… Toda minha!

Perdi o foco por alguns segundos, sentindo seu prazer se derramar


dentro de mim. Aquele olhar terrivelmente sexy ficando mais escuro e mais
intenso, profundo, liberando um pouco da fera que ele guardava dentro de
si.
— Yokai… — sussurrei quando seu rosto pendeu nos meus seios.
— Combina com você!

Shin riu, fazendo cócegas em minha pele. Depois beijou meu


pescoço de um jeito tão suave que fez meu coração transbordar.

Deixei que se aconchegasse ali o tanto que quis. Pelo menos por
mais algum tempo, não havia pressa, nem negócios, tínhamos tirado um
momento para ser apenas nós dois.

De repente, meu estômago roncou e Shin levantou o rosto para me


olhar.
— Desculpe! Seu filho anda esfomeado, não tenho culpa! —
defendi-me rindo.

O mestiço se levantou e estendeu a mão para que fizesse o mesmo.


— Então vamos alimentar esse filhote de yokai logo, antes que o
moleque resolva sair daí e encontrar a própria comida! — brincou.

— Moleque… E se for uma menina? — questionei com as mãos na


cintura.

— Aí estamos fodidos, chiisai! Uma menina com o sangue ruim


dos Nakais é pior que uma bomba nuclear!
Comecei a rir.

— Está rindo porque ainda não conhece minha irmã!

— Duvido que tenha o gênio pior que o seu! — Torci a boca em


uma careta e levantei a sobrancelha. — Mas espero ansiosa para conhecê-
la… Aliás… Precisamos comprar as passagens para o Peru!

Shin já estava a caminho do banheiro, mas parou e voltou para


mim novamente.

— Passagens? — repetiu. — Vamos usar o jato particular,


chiisai… Eu odeio aeroportos! Inclusive, faça suas malas! Marquei nosso
voo para Tóquio ao entardecer…

Tóquio, São Paulo, Lima… Para quem não tinha pisado fora do
próprio país, era uma agenda bem apertada… É, Lia, você precisa mesmo
entender que a vida mudou!
Livrei-me da camisola e entrei com ele no chuveiro, lavando os
cabelos e o corpo.

Quando terminei e me enrolei na toalha, o vi junto a bancada da


pia, ajeitando os cabelos. Pelo reflexo do espelho, a rosa em vermelho vivo
brilhava em seu peito.
— Minha mãe… — soltou antes que eu perguntasse. — Antes que
pergunte se eu já sabia do Minoru… Eram as preferidas dela.

— Musashi diz que nada é por acaso… — Deslizei as mãos pelo


desenho em sua pele. — Talvez aqui no fundo… — Espalmei em seu
coração. — Você já soubesse…

Ganhei um olhar, que fez meu coração se acelerar, e no instante


seguinte eu já estava sentada sobre a bancada, toalha aberta e as mãos dele
sobre minha pele.

— Hum… — gemi quando sua boca agarrou meu mamilo,


sugando-o com vontade. — Shin… O médico… O exame…

Minhas pernas foram separadas e ele roçou o pau nos meus


grandes lábios, fazendo meu corpo todo se aquecer novamente. Apoiei as
mãos no granito, oferecendo-me a ele, já não me importava com mais nada.
De repente o filho da puta se afastou e vestiu a cueca.

Quando se virou, deu um tapa na minha bunda e sorriu de canto,


coçando a barba por fazer.

— Anda, chiisai… Senão vamos nos atrasar para a


ultrassonografia!
Levei um segundo para voltar a mim e conseguir descer de cima da
pia. Minhas vontades divididas entre rir do tamanho do deboche dele e
socar aquela cara lavada e sarcástica que o filho da puta que eu tanto amava
tinha.

Caminhei até o quarto e separei uma calça e uma blusinha de alças


finas. Estava calor e pela minha provável data gestacional já seria possível
fazer o exame de ultrassom abdominal.
Escovei os cabelos e os deixei soltos, para que secassem mais
rápido, depois calcei um par de sandálias baixas e peguei minha bolsa.

Quando saí do quarto, havia uma bela mesa posta e meu yakuza
parado ao lado dela.

— Serviço de quarto, chiisai… Não se anime muito, são as


facilidades de um prédio como este, não meus dotes culinários! — Deu de
ombros, fazendo-me rir.

— Tudo bem… — Puxei a cadeira. — Você já tem os dotes que eu


queria mesmo! — imitei seu gesto.

Tomamos café e depois seguimos direto para minha antiga casa.


Shin havia contratado uma empresa internacional de mudanças para
empacotar o que queríamos levar para o Japão e faltava apenas entregar a
chave para a Jane.

Estacionamos do outro lado e eu desci. Bem lá no fundo, perto da


entrada da boate, vi Ellen acenando para mim, então apertei o passo.

— Prometa que vai mandar notícias todos os dias! — pediu e eu


aquiesci. — E que vai tirar um milhão de fotos! — aquiesci novamente. —
E contar tudo que está acontecendo!

— Vem comigo! — reafirmei o convite.

Ellen soltou o ar dos pulmões. Não tinha contato com a família,


mas, depois de descobrir que o pai não andava bem de saúde, estava
disposta a tentar se reaproximar mais uma vez.
— Promete pelo menos que vai assim que resolver sua vida por
aqui!

A gaúcha riu.
— Prometo, amiga! Prometo prometido! — brincou.

Abracei-a forte.

— Vou sentir sua falta! — confessei.


— Eu também! Mas estarei muito feliz em saber que minha melhor
amiga finalmente encontrou o homem que merecia! — Deu-me um tapa na
bunda, encarando Shin encostado no carro. Braços cruzados na frente do
corpo e óculos escuros. — Você não brinca em serviço!

Depois de me despedir do pessoal que morava ali perto e entregar


as chaves, entrei novamente no carro.

Minha consulta estava marcada para as dez da manhã e acabamos


chegando com algum tempo de antecedência, então deixei Shin no carro,
em uma ligação internacional, e desci direto até a base em que eu
trabalhava.

Já tinha passado por lá no início da semana, para acertar minha


demissão, mas queria dar mais um abraço nos meus amigos.

— Veja, Érico… — Junior bateu no ombro do amigo. — Bem que


dizem que quem é vivo sempre aparece!

Parei junto ao batente da entrada e esperei até que meu colega de


plantão e melhor amigo se levantasse da mesa de truco que haviam
montado.

Tentei fazer uma gracinha, mas saber que aquela, provavelmente,


ia ser a última vez que nos veríamos fez meu coração bater forte e a
garganta se fechar.

— Ah, não, Lia… — reclamou, mas reclamou rindo. — Eu


gostava mais da minha parceira fria e calculista! Bem que dizem que a
gravidez muda as pessoas!

Abri os braços, conforme ele se aproximava.

— Ain, Érico… — Parei a frase no meio, segurando as lágrimas.

— Ei, sua boba! Para com isso! O Japão nem é tão longe assim! —
Aconchegou-me em seu peito. — Quem disse que não vou te visitar?

— Jura? — pedi.

Érico parou por alguns segundos e me olhou com carinho.

— É claro! Só me dê um tempo… O salário, você sabe, é uma


merda! E o dólar está muito caro, então…
Segurei-o em um abraço apertado.

— Obrigada por tudo! Foi um prazer imenso trabalhar com você!

— Idem, moça… — Bateu em meu ombro com o seu. — Agora


vá! Antes que aquele japonês com cara de mafioso aponte uma faca para
mim! — brincou.
Virei para encontrar Shin parado junto a porta, então dei um último
abraço em meus amigos e segui direto para o hospital, onde Manuela
esperava por mim.

— Ah, Lia, finalmente! — Deu um gritinho animado, antes de me


abraçar. — Estou tão ansiosa que até parece que sou eu a grávida!

Manuela ainda não havia acabado a especialização em obstetrícia,


mas como eu não ia mesmo fazer o pré-natal no Brasil, havia decidido
dividir esse momento com alguém que eu gostava.

Entramos na sala de exame e eu me deitei na maca, levantando a


blusa e baixando a calça, enquanto ela preparava tudo.
Shin permaneceu ali, com o rosto sério e os olhos fixos no monitor.
Eu quase podia ver o desespero iminente que ele tentava esconder atrás da
concentração.

— Nove semanas… Quase dez! — Minha amiga apoiou a ponteira


do ultrassom em minha barriga. — Vamos ver… Vamos… — Opa! —
Parou de repente.

Estalei os olhos, fixando na tela. A mão cobrindo a boca no


momento em que Shin se aproximou e tocou meu ombro.

— Não me diga que… — Estreitou os olhos, esforçando-se para


compreender o que as linhas na tela e o som ecoando significavam.

De repente, Manuela fixou bem em um ponto e o saco gestacional


se dividiu em dois, dentro de cada um pequenos pezinhos e mãozinhas se
moviam, sacudindo de um lado para o outro.

Minha mão procurou pela dele até que nossos dedos se


entrelaçassem. Shin não disse nada, olhos afilados na tela, como se
estivesse em outra dimensão.

— São gêmeos, Lia! — minha amiga soltou animada. —


Gêmeos!!! — repetiu. — Se vale minha aposta, eu chuto em um casal!
Sacos diferentes… Olha…

Ia falando e mostrando os detalhes. Tamanho do corpo, dimensão


dos pequenos membros, os coraçõezinhos, tudo que eu pudesse querer
saber. Enquanto íamos analisando os bebês, os olhos de Shin continuavam
ali, perdidos na tela como se o resto do mundo não existisse e os meus,
fixos nele.

Gêmeos? Meu Deus do céu, o destino não brinca mesmo em


serviço! Gêmeos… O que eu vou fazer com gêmeos?… Gêmeos…
Um milhão de pensamentos e estratégias iam se formando,
enquanto a voz de Manuela ia ficando mais e mais longe.

— Não acha? — elevou o tom e eu tomei um susto imenso.

Manuela começou a rir.


— É, amiga… O choque é grande! — brincou. — Vou dar um
tempo aos dois… Espero você lá fora! — Piscou e saiu.

Eu me sentei na maca e alisei os cabelos para trás. Os olhos fixos


no chão, tentando absorver tudo que tinha acontecido ali.

— Gêmeos… — soltei sem encará-lo, ainda não acreditava.

Shin bateu a mão no bolso do cigarro, por instinto, não ia


realmente fumar. Depois respirou fundo, deslizando a mão pela barba.
— Eu disse que era bom de pontaria, chiisai… — gabou-se com
aquele olhar arrogante que tinha. — Acertei dois alvos com um tiro só! —
Deu de ombros.

Comecei a rir.

— Sabe que são crianças, não é? Vão precisar de trocas de fraldas


e mamadeiras em dose dupla… Ninar, colocar para arrotar, banho, soneca…
Tudo vezes dois…

Meu coração começou a acelerar e eu tentei levantar, mas não


encontrava o chão.

E foi então que sua mão segurou a minha novamente, firme,


segura. Pisei no chão com a certeza de que não estava sozinha. Que nunca
mais estaria.
— Fizemos tanta coisa impossível, chiisai… — Sorriu de canto. —
Criar dois bebês com você vai ser divertido! — Piscou e eu sorri.

Era mesmo verdade. Tínhamos dado a volta no mundo para ter o


direito de viver o amor que sentíamos. Lutamos, vencemos… E nosso
grande prêmio estava ali, dentro de mim… Crescendo em dose dupla, para
mostrar que nada era impossível para nós.
Dois meses depois…
Shin
A neve caía suave lá fora, tingindo de branco o jardim da casa que
eu fizera questão de mandar reformar. Eu havia crescido naquele lugar…
Tinha sido dentro daquelas paredes que me tornei o homem que era e nada
mais justo do que renascer das cinzas que meu avô deixara naquele chão.

Era um novo tempo… O meu tempo! E era hora de anunciar isso


ao mundo.

Vesti a camisa branca, encarando minha figura no grande espelho


de corpo inteiro que decorava o novo quarto que Lia e eu havíamos
preparado para nós.

Poucos meses antes, eu era a sombra de um homem que havia


perdido meu respeito e agora me preparava para assumir o cargo mais alto
dentro da organização que ajudei a tornar a mais forte e poderosa de todo o
mundo oriental.

Ouvi a aproximação antes das batidas suaves à porta.

— Oyabun… — a voz conhecida chamou do outro lado das portas


de correr.

Minha boca se curvou em um meio sorriso, assim que meu novo


cargo foi dito. Eu não podia negar que tinha nascido para ocupar aquele
posto. Modéstia em meu mundo servia apenas para elucidar a fraqueza em
confiar em si mesmo e eu, definitivamente, não tinha essa falha.

— Entre! — permiti.

Pelo reflexo, vi Sosuki passar pelo marco. Passos comedidos de


um homem a quem o tempo já havia ensinado a não ter pressa. O yakuza
parou logo atrás de mim.
— Chegou a hora, Nakai… Vamos anunciar o novo tempo…

Meus olhos baixaram para onde uma, das muitas rosas que eu tinha
tatuado pela minha mãe, cobria parte do meu peito.

Nunca em minha vida pensei que estaria ao lado de um dos


homens do Minoru. Menos ainda que eu mesmo seria um deles.
Eu não era muito bom em confiar, mas tinha encontrado em Sosuki
o apoio de que precisava para me reerguer.

O velho yakuza soltou um suspiro profundo. Parecia realmente


feliz em me ver tomar o cargo do homem ao qual devotou sua vida.

Pegou a pequena bandeja de prata onde minhas abotoaduras


estavam e segurou para que eu fechasse os punhos. Ajeitei a gravata e
coloquei o colete; antes que terminasse o último botão, meu paletó foi
oferecido por Sosuki.

— Sempre alerta… — brinquei.


— Eu disse que estaria a sua disposição, oyabun… Esperei por isso
um tempo bem longo! — devolveu, fazendo-me rir.

— Já resolveu seus problemas em Cusco? — perguntei ajeitando o


terno. — Não posso ter um wakagashira viajando por uma semana a cada
mês… Isso seria terrível para os negócios e… — Alisei os cabelos para
trás, segurando o riso diante da surpresa do homem.
— Acho que não entendi…

— A quem mais eu confiaria minha vida e a segurança dos que me


são caros…

— Senhor… Eu… Eu… — Sorriu. — Não sei o que dizer…


— Você mesmo disse… Esperou uma vida toda para me ver onde
estou… Seu lugar sempre foi ao meu lado…

Ganhei uma reverência longa e sincera.

— Farei o melhor para honrar o posto o qual me confia…


Toquei seu ombro com a mão espalmada.

— Já vem fazendo, Sosuki… Só firmaremos as formalidades…

Virei de frente para o corredor e segui até a grande sala. Liandra


tinha saído mais cedo com o pai e dois seguranças direto para a sede da
empresa, para aguardar por mim na cerimônia formal que faríamos.

Era um dia importante, em que eu me tornaria oyabun da Nakai-


Gumi e CEO da NK Corp. ao mesmo tempo.
Quando meu nome fosse anunciado na cerimônia de posse em
minha empresa, todo o Japão conheceria o rosto do homem responsável por
dar as cartas naquele jogo.

Estava quase em frente à entrada, quando o sedã executivo parou e


o motorista desceu para abrir a porta. Pés delicados em uma sandália de
couro preta tocaram a grama do jardim da frente e eu não pude conter o
sorriso que brotou em meu rosto.
— Você está mesmo aqui… — foi tudo que consegui dizer.

Yuki se levantou e ajeitou a saia curta do vestido ajustado no


corpo. Tinha mudado bastante desde a última vez que a vi.

— É claro que vim… — Sorriu de volta, os longos cabelos agora


cortados em camadas, emoldurando seu rosto bonito. — Não perderia este
dia por nada…
— Deveria ter me encontrado na sede então…

— Eu queria era vê-lo assim… — Abriu os braços mostrando as


palmas. — Ocupando seu verdadeiro lugar… — Segurou minha mão. —
Você merece cada degrau que subiu… E eu sempre soube que chegaria ao
topo…

— Também estou feliz em vê-la de volta aqui, kitsune… Esta casa


é nossa… Sempre foi…
Minha irmã girou uma volta completa, contemplando a reforma do
lugar. Quando terminou, sorriu um pouco mais.

— Finalmente este lugar parece vivo!


Aquiesci e ela me abraçou.

— Ah, onii-chan… Como eu senti sua falta! — Suspirou,


sustentando-se na ponta dos sapatos altos para enlaçar meu pescoço. — Às
vezes ainda não acredito que tudo acabou de verdade! — confessou.

Eu me sentia da mesma maneira. Como se a corrente que havia me


prendido naquele lugar por tantos anos tivesse finalmente sido cortada. Às
vezes eu custava a crer também.

— Onde seu marido está? E Inger? Quero vê-la! Aquela diabinha


deve estar enorme!
— Está! — Sorriu. — E esperta, tagarela e cheia de vontades!

— Então está cada dia mais parecida com a mãe! — brinquei,


fazendo-a rir.

— Eles estão a caminho da NK… Eu quis vir sozinha… Um


momento de irmãos, sabe?
Passei o braço em torno dos seus ombros e caminhei com ela pelo
jardim, até o lugar em que costumávamos brincar.

— Shin! — Cobriu a boca com as mãos assim que viu o canteiro


de rosas vermelhas que eu havia mandado plantar.

Uma pequena lágrima desceu dos seus olhos bonitos.


— Mamãe…

— No fim das contas, tudo sempre foi dela… — constatei. —


Ainda assim, foi quem mais sofreu…
— Pagou um preço alto por amar… Espero que agora ela esteja em
paz… — Soltou um suspiro longo.

— Tenho certeza de que está, sim… Yuki-chan…

— É hora de ir, oyabun… — Sosuki me chamou. — Se quiser,


posso acompanhar a senhorita para que ela não vá sozinha.

— Não é necessário… — Yuki beijou meu rosto e meneou a


cabeça em cumprimento. — Boa sorte em seu primeiro discurso, oyabun!
— Sorriu. — Sabe que combina com você? Eu gosto! Oyabun… — repetiu
e eu acabei rindo.

Esperei até que ela saísse pelos grandes portões de ferro preto e
entrei em seguida em meu carro, com meu wakagashira ao meu lado.
A NK Corp. ocupava três andares no topo do edifício mais
moderno e imponente de toda Tóquio. O sedã parou em minha vaga
privativa e Sosuki abriu a porta para mim. Subi pelo elevador particular,
direto para a minha sala.
Assim que a porta se abriu, eu a vi. Usava um vestido preto de
tecido esvoaçante que deixava bem visível a gestação. Os seios, antes
delicados, agora pareciam mais fartos e deliciosamente sexys com o decote
discreto. Cabelos presos em um coque com fios soltos e aquele sorriso
desafiador que sempre tentava sustentar o meu.

— Você está maravilhosa, Liandra Oliveira… — Estendi a mão para


que ela segurasse.

— Você também, oyabun… — Alargou o sorriso.


Satoshi, recém-nomeado meu saiko-komon e diretor de operações
da NK, tomou a palavra, iniciando a cerimônia. Tinha sido um bom amigo
quando eu nem sabia que podia contar com ele, nada mais justo do que lhe
dar o que era de merecimento.

Palavras polidas sobre um novo tempo para a corporação iam


ganhando a multidão ansiosa, mas meus olhos ainda estavam perdidos na
garota bonita em minha frente.
— Preparada para ser a mulher de um oyabun? — perguntei
erguendo a sobrancelha. — Não houve muitas na história da yakuza…
Somos homens solitários… — brinquei.

Ela deu mais alguns passos, a mão espalmada em meu peito subindo
devagar e aquecendo minha pele. Enlaçou meu pescoço, levando minha
orelha até sua boca.

— Estou preparada para o que decidir, meu senhor… — provocou.


— Posso até ser sua puta para sempre… Não me importo… Desde que eu
tenha exclusividade e domínio sobre seus desejos…

Ri, passando a língua pelos lábios.


— É uma proposta interessante… Bem mais que um pedido de
casamento, senhorita… — confessei. — Mas, se continuar me provocando
assim, vamos atrasar a cerimônia e eu terei que castigá-la quando estiver em
casa…

— Vai bater na minha bunda? Como naquele dia?

Ri alto.

— Pior… Vou amarrá-la na cabeceira da cama com a minha gravata


de seda e comê-la de quatro com vontade… — sussurrei em seu ouvido. —
Até minhas bolas doerem, de tanto baterem na sua bunda…

Lia riu também e acertou um tapa em meu peito.

— Meu Deus do céu, mestiço, quando vamos parar com essa


palhaçada de provocação? — perguntou rindo.

— Se depender de mim, chiisai…, nunca! Gosto de nós dois


exatamente assim! — Pisquei. — Agora venha, tenho um cargo a receber…
— O de dono do mundo? — brincou, um riso orgulhoso e meio
arrogante brilhando em sua boca bonita.

— Quase! — ponderei. — Um dia chego lá! — Beijei sua mão,


pouco antes de soltá-la. — E você estará ao meu lado!
Epílogo
Primavera seguinte, cidade de Cusco.

O sol brilhava alaranjado na tarde em que Nicolas e Verônica


haviam escolhido para, finalmente, dizer sim diante de todos a que
amavam.

Delicadas flores em branco e amarelo enfeitavam o caminho até o


altar, o vento balançando o tecido fino e tornando a atmosfera ainda mais
romântica e cheia de significado.

Lá na frente, o noivo elegante em seu terno claro esperava pela


mulher que ele já amava mesmo antes de conhecer.

Verônica soltou um suspiro nervoso e segurou firme o braço do


homem que tomara o lugar de seu pai, ensinando a ela sobre honra, justiça e
lealdade.
— Verônica Malta toda boba e derretida! — o homem debochou.
— Se me contassem eu não acreditaria!
— Para, Fábio! — reclamou. — Não estou boba, nem derretida…
Apenas feliz… — confessou, fazendo o amigo rir.

Foi a vez do policial suspirar.


— Não posso dizer que concordo, Ve, mas esse sorriso em seu
rosto faz o risco valer a pena!

A mulher sorriu mais.


— Vamos, antes que aquele peruano me fuzile com os olhos! —
brincou.

De braços dados, Verônica seguiu pelo altar, passando por todos os


presentes.

Em um dos bancos, a mestiça metida a raposa agarrou o braço do


companheiro, a cabeça pendendo no peito seguro do homem que a
protegera de todos os perigos, enquanto ele acariciava sua barriga de quase
sete meses de gravidez.

— Quando o bebê nascer, vamos fazer uma cerimônia na casa de


Sven… O bom é que será inverno… A Suécia fica bonita no inverno…

Yuki voltou os olhos para ele com aquele sorriso zombeteiro que
apenas as kitsunes têm.

— Isso é algum tipo torto de pedido de casamento, Sr. Veighe? —


Cruzou os braços sobre o barrigão.

Erik, que conhecia muito bem a garota ligeira que tinha debaixo do
seu teto, não perdeu tempo ao perguntar.

— Se fosse… Você aceitaria?

Yuki torceu a boca pensativa.

— Gosto de ser sua companheira de crime… — Deu de ombros.


— Tipo Bonnie e Clyde… Sabe?

Logo em seguida o sorriso acendeu seu rosto bonito.

— Mas adoraria ser a Sra. Veighe! — confessou.

Erik beijou o topo da sua cabeça e a protegeu em seus braços mais


uma vez, enquanto o padre começava a cerimônia.
Não muito longe dali, uma garota apressada que quase perde a hora
procurando pelo vestido perfeito tentava passar por entre os convidados,
sem perceber um pequeno buraco no chão.
Perdendo o equilíbrio, acabou sentada no colo de um homem
elegante e desconhecido.

— ¡Perdón! — pediu envergonhada, ajeitando uma mecha de


cabelo atrás da orelha para só então encarar o dono do perfume amadeirado
que mexera tanto com ela.
A boca ainda tentava esboçar reação, quando o homem de traços
orientais e olhos escuros sorriu de canto.

— Não por isso! É um prazer aparar a queda de uma garota tão…


— Oh! — Maribel levantou-se ainda mais sem jeito.

— Sou Matsuya… — A mão grande de dedos longos ofereceu


cumprimento. — Willian Matsuya.
A boca da garota continuava meio aberta, sem conseguir completar
uma palavra sequer. Havia esquecido até mesmo o próprio nome.

— Maria Isabel! — a voz de Tia Lupe interrompeu a conexão no


mesmo instante.
— Minha mãe… — Sorriu. — Eu vou… lá… — Chacoalhava a
mão como uma boba. — Esquece! — retomou o controle.

— Maria Isabel… — Willian repetiu com o sotaque britânico que


tinha pelos anos morando na Europa. — É um lindo nome…

— Maribel… — A garota sorriu. — Pode me chamar de Maribel…


Enquanto se afastava, os olhos do herdeiro do império de
exportações seguiram com ela, admirando a dança suave dos quadris latinos
ao ritmo dos passos.

— Fecha a boca, Matsuya… Ou eu fecho para você! — Guillermo


sentou-se ao lado do ex-inimigo com quem agora dividia negócios e copos
de chicha.

Braços cruzados na frente do corpo, o peruano fez questão de se


sentar ao lado de Willian para garantir que o yakuza não tivesse liberdades
demais.

A cerimônia continuou e uma música suave, quase infantil


começou a tocar. Camucha, que já fazia parte da família havia muitos anos,
conduziu até o corredor enfeitado a garotinha de cabelos loiros como raios
de sol e olhos azuis estreitos como os do pai.

Do cestinho de vime, a pequena aspirante a raposa jogava pétalas


pelo caminho, sorrindo para o tio que a esperava no altar de braços abertos.
Alguns passos depois, o garotinho que simbolizava o amor do casal
entrou. Carregava em suas mãos as alianças. Olhinhos curiosos para a
multidão e aquele sorriso largo que era marca dos Huamán brilhando em
sua boquinha delicada.

Detrás do último banco, o mestiço cruzou os braços na frente do


corpo, observando tudo que acontecia. Pouco mais de um ano havia
passado, desde que ele deixara de ser um traidor fugitivo, para se tornar o
herdeiro de um império que agora poderia conduzir de acordo com seus
próprios princípios.
Pouco mais de um ano desde que encontrara, na morena de cabelos
ondulados, o sentimento que jurou nunca sentir, a paz que pensou não
merecer.

— Pai, ali… — A garota vestida de vermelho apontou para a


criança que ensaiava passinhos descoordenados pelo gramado. — A Misake
vai cair!

Amparava o menino pela mãozinha gorducha, enquanto o velho


sensei tentava fazer o mesmo pela neta.
Dois bebês… Quem diria, Shin Nakai, que um dia você seria pai!
— pensou enquanto caminhava até a garotinha de olhos puxados como os
seus e cabelos ondulados como os da mãe.

— Vem, mei… — Abaixou-se e abriu os braços, amparando a bebê


a que amava mais que sua própria vida, como o apelido que dera a ela. —
Vem com o papai… — A palavra parecia cheia de mel em sua boca.
A menina esticou os bracinhos em direção ao arbusto, rindo e
apontando para uma pequena borboleta de asas amarelas sobre a rosa
vermelha.

— Cho… — o yakuza falou. — Linda como você, minha mei…

Com o filho nos braços, Liandra caminhou pelo gramado da


fazenda, os olhos perdidos no homem que ela amava. Jamais em sua vida
pensou que ficaria tão feliz em vê-lo com outra garota nos braços.

Aproximou-se o suficiente para que ele ouvisse sua voz.


— Alguém já lhe disse que você fica ainda mais bonito com um
bebê nos braços, oyabun? — brincou sorrindo, o coração transbordando de
amor.

O mestiço voltou-se para ela, encarando-a com o filho sonolento


nos braços. Aquelas crianças eram a maior fortuna que tinha, nada em sua
vida valia mais que aquelas três pessoas.

Correu os dedos pelo rosto do menino, vendo seus olhinhos


esverdeados fecharem com a carícia. Um bocejo delicado e adormeceu.

— Eu disse que daríamos conta! — Deu de ombros. — Pena que


estão crescendo rápido demais! — brincou com aquele sorriso provocador
que era tão seu. — Já começo a sentir falta das muitas fraldas e
mamadeiras!

A enfermeira, que agora tinha como único paciente o homem a que


amava, riu sarcástica.

— Isso é ótimo, porque acho que vamos voltar a primeira fase


desse jogo, mestiço!

Shin afilou os olhos sem entender. Ou sem querer entender…

— Estou três dias atrasada… — confessou.

— ¡A la puta madre! — O yakuza coçou a cabeça, ainda


absorvendo a informação.

— Eu disse a você que aquelaaaaa… — Girou os dedos no ar


procurando pela maneira mais discreta de falar. — Escapada no escritório ia
ser um problema… — provocou rindo.

— Só espero que minha pontaria não tenha sido tão boa dessa vez!
— constatou abraçando a mulher que ele amava com a mão livre e beijando
o topo da sua cabeça. — Família grande, chiisai… Eu sempre quis ter! —
Deu de ombros e conduziu a garota até um dos bancos.

A cerimônia teve fim e o casal cujas bodas eram celebradas


começou a cumprimentar os amigos presentes.
A música teve início e a festa também. Taças e mais taças de
vinho, servidas ao redor da grande mesa de madeira em que a família
comemorava a felicidade de estarem juntos.

Depois que aglomeração diminuiu e enquanto as mulheres se


juntavam para pegar o buquê, Shin, Erik, Guillermo, Willian e Nacho se
aproximaram de Nico. Haviam vivido tanto… Bem mais do que os pouco
mais de trinta anos que tinham, alguns nem isso.

— Enfim amarrado de verdade, como manda o figurino! — Guille


abraçou o primo, dando tapinhas em suas costas. — Felicidades,
¡hermanito!
Nicolas sorriu.

— Espero que o próximo seja você, Veighe… — Shin franziu o


cenho provocativo para o cunhado.

— Não me culpe! — o sueco defendeu-se. — Você conhece bem a


irmã que tem!

E conhecia mesmo! Graças à recente paz que a morte daquele


velho desgraçado trouxera, os encontros de família haviam se tornado mais
frequentes e corriqueiros.

— Isso mesmo… — O peruano tatuado, conhecido como Nacho,


pegou um cigarro do maço em seu bolso e pendurou na boca. — Esta casa
tem muito espaço, precisa de mais crianças correndo por aí…

— Concordo! — Willian se manifestou, levando a mão ao bolso


interno do paletó para encontrar o isqueiro e oferecendo ao amigo. —
Desde que nenhuma seja minha! — debochou mostrando as palmas.
Ganhou uma encarada de Guillermo, que apenas os dois
entenderam, mas logo o peruano sorriu.

— Vocês deveriam se apressar ou nunca vão alcançar o mestiço


aqui… O filho da puta fez dois de uma vez! — brincou.

Shin pegou o maço e acendeu um também.


— É melhor se apressarem mesmo… — Puxou o primeiro trago,
alaranjando a ponta do cigarro. — Porque tenho mais um a caminho!

Desviou de leve o olhar, debaixo do riso e brincadeiras dos amigos,


e fixou-os na garota a que amava, linda em seu vestido vermelho. No
mesmo instante o buquê de Verônica voou no colo da morena, fazendo-a rir.

Lia levantou o maço de flores brancas do campo e deu de ombros,


mostrando a Shin que não tinha sido de propósito. Mal sabia ela o quanto
aquele desejo estava aceso no coração do homem que jurou nunca, jamais,
amar alguém a ponto de torná-la única.

É… A vida tem mesmo suas próprias verdades… Às vezes


encontramos nosso destino no caminho que buscamos para evitá-lo.

Fim
Márcia Lima é paulista do Vale do Paraíba e graduada em
Arquitetura e Urbanismo.
Em 2014 resolveu compartilhar capítulos do seu primeiro livro na
web, obtendo grande sucesso e atraindo muitos leitores, levando assim ao
surgimento de seu primeiro livro, Tão Perto.

Desde então os títulos só aumentaram, sempre com alto teor de


romance e sensualidade. Considerada autora best-seller da Amazon, seus
livros sempre figuram entre os mais vendidos.

Um pouco das minhas obras


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