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We

Can
Be
Mended

Veronica Roth
Sinopse
A autora mundialmente best-seller Veronica Roth retorna ao
mundo de Divergente neste revelador epílogo de contos que se passa
cinco anos após os eventos impressionantes de Convergente.
Enquanto Tobias se esforça para entender e superar seus medos,
o mundo que ele conheceu mudou irreconhecivelmente. Moradores
marginais, ex-membros das facções, desistentes do Departamento e
migrantes agora coexistem nas ruas reconstruídas de Chicago.
É um mundo novo e melhor, onde ele não tem certeza de como
pertencer. Como todo mundo parece seguir em frente, Tobias ainda é
assombrado por aqueles que não conseguiram. Mas novas conexões
de velhos amigos o ajudam a começar a se curar - e a se consertar.

Traduzido por @stateofbooks – 12/2021


Conteú do
Sinopse
Nós podemos ser consertados
Sobre a autora
Livros de Veronica Roth
Nós podemos ser consertados
— A REUNIÃO DE CINCO ANOS está chegando.
Christina se apoia na grade da plataforma do trem, primeiro
curvada, apoiada nos cotovelos, depois se endireitando,
pressionando os quadris contra a grade para se manter estável. Seu
cabelo está mais comprido agora do que nunca, densamente
cacheado e saindo de sua cabeça. Às vezes ela o usa embrulhado em
um lenço, um desafio colorido de sua história da Audácia, mas hoje
está solto.
As palavras caíram sobre mim como um peso, familiar, mas ainda
mais do que eu gostaria de suportar.
— Então, eu ouvi —, eu digo. Todos os anos, os ex-membros da
facção que ainda vivem em Chicago se reúnem para celebrar - ou
lamentar, talvez - nossa história comum. Já fui a alguns desses
eventos e não a outros, mas o deste ano é importante.
Cinco anos.
— Você vai?
Christina inclina a cabeça enquanto olha para mim, então ela
encolhe os ombros.
— Eu estava pensando sobre isso —, diz ela. — É na sede da
Audácia. A antiga sede da Audácia, devo dizer.
Eu aceno, olhando para as luzes da cidade que pontilham os
edifícios ao nosso redor. Alguns deles mostram vislumbres de outras
vidas - uma mulher trançando o cabelo e rindo, um homem
perseguindo seus filhos, o brilho de uma lanterna sob cobertores
enquanto uma criança passa mais tempo acordada. Um ônibus passa
embaixo de nós, levando passageiros atrasados para os prédios de
apartamentos perto do pântano. Atrás de mim estão os trilhos
silenciosos do trem, os trilhos brilhando conforme refletem o luar.
— Eu sei que você vai à sede de vez em quando —, ela diz, olhando
para as mãos. — Zeke me contou.
Zeke. Esse traidor.
— Sim, eu vou lá. E daí?
Ela examina as unhas. Ela está fingindo ser casual. Mas ela nunca
foi muito boa em fingir.
— O que você faz lá?
— Não me lembro de concordar com um interrogatório —, digo o
mais levemente que posso. Eu não quero despertar seu lado
espinhoso muito cedo.
— Você não quer responder a perguntas, apenas diga —, diz ela. —
Mas acho que você já deveria ter descoberto que, se há algo que
deseja esconder, provavelmente também é algo sobre o qual você
precisa conversar.
Eu gemo, provocando, mas ela está certa. Eu sei que ela está
certa.
Desde que ela me impediu de engolir o soro da memória, eu
confiei nela de uma forma que não confio em mais ninguém. Alguém
que viu você tão fraco e não usa isso contra você vale a pena confiar,
eu acho. Mas ainda é difícil admitir outra vulnerabilidade para ela,
até mesmo falar as palavras em voz alta.
— Tudo bem —, eu digo, puxando meus ombros. — Eu passo por
minha paisagem de medo lá.
Ela me encara.
— O que há com você e a paisagem do medo, Eaton? No início era
apenas uma peculiaridade, mas agora é totalmente patológico.
— Não é um grande ato, — eu digo. — É... terapêutico.
— Quatro, — ela diz. Ela faz uma pausa. — Tobias. Não é
terapêutico se nada muda, sabe?
— Quem disse que meus medos não mudaram?
— Ela ainda está lá? — Sua voz suaviza. E não do jeito que as
vozes das outras pessoas suavizam quando elas falam comigo sobre
Tris - o jeito que me faz querer explodir com estou bem, pare, me
deixe em paz. Os olhos de Christina ficam turvos de perda e tristeza,
e sei que ela entende.
— Sim. — Minha mão sobe automaticamente para correr pelo
meu cabelo, cortado curto da Abnegação. — Sim, ela ainda está lá,
claro que está.
— Então você volta para vê-la —, ela diz.
— Não, — eu digo. — Não, não é por isso.
— Mas isso faz parte.
— Seu... Eu... — Eu suspiro. — Não é que eu queira vê-la lá - você
acha que eu gosto de vê-la morrer de novo e de novo? — Eu coloco
minha mão para baixo, com força, no corrimão. — Eu só fico
querendo ver se ela ainda estará lá. Eu estou apenas... esperando
pelo dia em que eu estarei... além disso. Quando eu mudar.
Ela ri um pouco.
— Você não vai superar isso espontaneamente.
— E quanto ao “tempo cura”?
— O tempo não faz essa merda. — Christina suspira e, por um
momento, fica na ponta dos pés, pressionando o parapeito como um
desafio da Audácia. Mas então ela afunda em seus calcanhares e olha
para mim severamente, e diz: — O problema de seguir em frente é
que você tem que se mover.

Christina está certa. Eu volto muito para a sede da Audácia, mas


nunca para o Poço abaixo, apenas para a sala de paisagem do medo
no primeiro andar. Meus estoques de soro estão acabando. Só me
resta um punhado - apenas um punhado de chances de superar meus
medos antes que eu pare de saber do que tenho medo para sempre.
Não sei por que acho isso, por si só, tão assustador.
Talvez seja porque eu costumava sentir que não me conhecia e
não quero me sentir assim novamente. Passei toda a minha vida
assim, cedendo sob o peso dos meus tons de cinza da Abnegação, e
não quero voltar. Não quero contar com centelhas de revelação para
me levar adiante. Eu quero saber.
Ainda tenho quatro medos. Eles são diferentes do que eram
quando Tris morreu, cinco anos atrás.
Na primeira, voo bem acima da cidade em um avião que está sem
combustível. Eu caio em direção ao chão, sem chance de resgate.
No segundo, fico imóvel enquanto uma força sombria -
geralmente com o rosto de David ou Marcus - ataca aqueles com
quem me importo.
Na terceira, estou com dor e não há alívio. Tudo o que posso fazer
é suportar.
Na quarta, ela morre.
Não faz sentido temer o pior quando o pior já aconteceu. Afinal, a
morte não pode acontecer duas vezes.
Fui eu quem disse a ela que o que ela viu nas simulações não foi
seu medo literal aparecendo na frente dela - Bem, você realmente
tem medo de corvos? - mas algo mais profundo, mais simbólico.
Ainda assim, é difícil não aceitar meu quarto medo exatamente como
é, com seus grandes olhos azuis olhando para mim do chão, sua
faísca apagada.

Eu poderia esperar pelo trem com os outros, de pé calmamente na


plataforma enquanto ele desacelera até parar, embarcando, sentado
em um dos assentos recém-instalados como uma pessoa normal.
Mas não parece certo para mim, nunca vai parecer certo para mim
novamente.
Em vez disso, faço uma longa caminhada pelas ruas restauradas
de Chicago, a cidade que se recusa a morrer. Queimou, uma vez, e
eles o reconstruíram com tijolos. Em seguida, foi bombardeada com
explosivos e balas, evacuada e povoada com cinco facções. Então ela
se desfez novamente e somos responsáveis por sua quarta vida.
Somos em partes iguais moradores marginais, ex-membros das
facções, desistentes do Departamento e migrantes de outras cidades.
Não nos importamos mais com a pureza genética, dizemos. De
todos os lugares que afirmam tal coisa, este é talvez o lugar onde
mais se aproxima da verdade. Mas ainda me lembro das imagens do
meu código genético que me fizeram perceber que estava quebrado
de uma forma profunda e fundamental. Eu não fiz, como alguns dos
outros, tatuagem no meu corpo. Eu só faço isso para coisas das quais
quero ser lembrado.
Deixo o caminho limpo, optando por ruas secundárias. Elas ainda
estão presas e quebradas como costumavam estar. O concreto fletido
dando lugar aos canos e aberturas que formam a infraestrutura da
cidade, coisas verdes crescendo nas fendas da estrada, na altura da
cintura. O sol está se pondo e não há luzes aqui para piscar e guiar o
caminho. Coloco as mãos nos bolsos e continuo andando, confiando
na luz fraca e na minha própria memória para me levar até lá.
Eu ouço risos à frente. Uma risada familiar - a de Zeke.
Ele me vê de longe. Seus dentes são um lampejo de branco no
escuro.
— Quatro! Venha aqui!
— Ei. — Eu me aproximo dele. Rostos familiares se materializam
ao meu redor: Shauna, de pé com a ajuda do implante espinhal e dos
suportes para as pernas; Christina em trajes completos da Audácia,
seu cabelo enrolado em um pano preto; e, hesitante na ponta do
grupo, Caleb Prior.
Eu não olho mais para ele e me pergunto por que ele está vivo
quando ela não. De qualquer forma, realmente não há sentido para
esse tipo de pergunta. Na maior parte do tempo, ele parece
determinado a me evitar, e isso é adequado para nós dois. Ele acena
para mim e eu aceno de volta, e se nós dois tivermos sorte, será o fim
de tudo.
— Eu estava reclamando dos recrutas deste ano para a força de
manutenção da paz —, disse Christina.
— Novamente? — Eu pergunto.
— Igual a todos os anos —, fornece Shauna. — Aparentemente,
eles são descoordenados e turbulentos.
— Recrutas barulhentos. — Eu sorrio. — Sim, porque você não
sabe nada sobre isso, Chris.
— Eu posso ter sido desordeira, mas eu não estava nem perto
dessa estupidez, — Christina diz, me cutucando no peito com um
dedo. Eu pego o dedo e o viro, tentando forçá-la a se cutucar. Não é
tão fácil quanto pensei que seria.
— Além disso, — ela diz, libertando sua mão do meu aperto com
um sorriso, — isso não é tão difícil quanto a iniciação na Audácia;
eles não sabem quanta sorte eles têm.
— Isso é uma coisa boa —, lembra Shauna. — Não queremos que
as pessoas saibam como é crescer em uma facção. Você não pode
culpá-los por não saberem algo que não queremos que eles saibam.
— Eu posso culpá-los pelo que eu quiser, — Christina diz com um
sorriso malicioso.
Caminhamos em direção à Pira, que é iluminada por todo o
caminho até o último andar.
— Quem mais estamos encontrando, de novo? — Zeke diz. — Cara
está trazendo Matthew, Nita não pode vir...
— Cara? — Eu digo. — Eu pensei que ela ainda estava em Fila-
dels... Burg.
— Filadélfia, — Caleb me corrige em um tom baixo.
Provavelmente automático para ele, mas eu ainda dou uma olhada
nele.
Não vejo Cara há mais de um ano. Ela está viajando, falando para
pessoas importantes sobre os desenvolvimentos que ela e Matthew
fizeram em seu laboratório. Eu não sabia que ela havia retornado.
Entramos no saguão com o piso de vidro. Por um momento, fico
olhando através dele, para o Poço. O Poço costumava ser um lugar
onde eu guardava memórias - ruins, de cadáveres retirados da água
abaixo, e boas, de rir nas pedras com Zeke e Shauna. Mas agora
alguém esfregou a tinta que a Audácia espalhou por toda parte, anos
atrás, para encobrir as câmeras. E fios de lâmpadas brilhantes
pendem em linhas retas ao longo dos caminhos para iluminá-los.
Parece, pela primeira vez... legal.
Meu peito dói profundamente. Pelo menos quando este lugar era
apenas para memórias, era meu. Mas agora, assim? Este espaço
luminoso e alegre é de outra pessoa.
— Tobias! — Matthew me dá um tapinha no ombro. Ele está
segurando uma xícara com algo escuro e forte; posso sentir o cheiro
de onde estou. Mas seus olhos estão claros onde pousam nos meus.
— Faz um tempo que não te vejo; ouvi que você saiu do jogo político.
— Sim, mais ou menos, — eu digo. — Não foi exatamente o que eu
esperava. Acontece que você tem que ser charmoso para fazer isso
em qualquer lugar.
— Charmoso e um pouco mentiroso —, diz ele com simpatia. —
Você deveria falar com Cara sobre isso; é uma fonte de frustração
sem fim para ela.
— Onde ela está, afinal? — Eu digo.
Mas assim que estou terminando minha pergunta, vejo uma
cabeça emergir da escotilha no chão que se abre para o Poço. Seu
cabelo ficou mais louro escuro com o tempo, e está solto em volta do
rosto. Sua boca se curva em um sorriso ao nos ver.
Ela me abraça, brevemente, e quando sua blusa se afasta de seu
ombro, vejo o canto de uma tatuagem. Uma dupla hélice quebrada,
um sinal de seu dano.
— Não tinha certeza se veria você —, diz ela.
— Não tinha certeza se eu viria —, eu digo. — Como foi a
Filadélfia?
— Você se lembrou do nome da cidade! — Ela sorri. — Eu sabia
que você desenvolveria um interesse por geografia um dia, agora que
existem mapas disponíveis.
— Tenho que admitir, chamei de Filadelsburg —, digo. — Caleb
me corrigiu.
Ela dá uma risadinha.
— Filadelsburg foi bom. Mas Matthew lhe contou nossas
novidades?
Eu balanço minha cabeça.
— Claro que não. — Ela o olha.
— Eu estava prestes a fazer isso —, diz Matthew.
— Claro —, ela responde. — Bem, vamos nos casar, é a notícia.
— Parabéns —, digo, e mais porque sei que é esperado do que
porque é confortável, puxo cada um deles para um abraço de um
braço, por sua vez. — Já era hora —, eu digo enquanto me afasto.
— Já era hora de quê? — Christina pergunta de algum lugar atrás
de mim, e eles seguem em frente para contar a ela.
Eu finalmente olho em volta. A multidão reunida no fundo do
Poço, perto da borda do abismo, é densa e multicolorida, como eu
nunca tinha visto antes. E as pessoas - velhos e jovens e tudo o mais,
segurando xícaras no peito e conversando. Meus olhos ainda
procuram por divisões de facção até agora, mas não encontro
nenhuma - nem mesmo em mim, minha camisa branca da
Franqueza, meu jeans azul da Erudição e meus sapatos pretos da
Audácia.
Somos apenas pessoas agora.

Partes da sala de jantar - paredes inteiras, até - foram despojadas do


que eu me lembro, mas perfeitamente. Depois que recuperamos a
cidade do Departamento, houve uma onda de pilhagem e roubo, e
grupos de iconoclastas incitando todos a queimarem qualquer coisa
relacionada à facção em que pudessem colocar as mãos. Muitos deles
não conseguiram chegar à sede da Audácia, dado que é um lugar tão
perigoso, mas tenho certeza que alguns deles conseguiram.
Agora, a sabedoria predominante é que certas coisas devem ser
preservadas. Não tenho mais certeza de como me sinto sobre isso.
Sentamos ao redor de uma mesa no meio da sala. As conversas
ecoam pelas paredes, sacudindo na minha cabeça. Zeke e Shauna
discutem sobre algo - quem disse o quê, quando - mas há uma onda
na boca de Zeke que significa que ele não está levando a sério.
Matthew, Caleb e Cara estão em uma conversa profunda. Christina se
recosta na cadeira para falar com os pais, que estão atrás dela.
Mãos fecham sobre meus ombros e eu fico tenso, suprimindo a
vontade de torcer, agarrar e empurrar. Você não está em perigo,
penso comigo mesmo. Não mais.
— Desculpe, — minha mãe diz, levantando as mãos. — Eu deveria
saber melhor.
Eu me viro para encarar Evelyn. Ela está carregando bem sua
idade, mas ainda assim, nas rugas ao redor dos olhos e na boca, e nas
mechas cada vez mais grisalhas no cabelo. Ela mora na cidade agora,
trabalhando com transporte - e ela está qualificada, graças a anos de
rastreamento dos trens da cidade com os sem facção. Eu posso dizer
que isso a aborrece, mas é estável o suficiente.
— Faz um tempo que não vejo você —, ela diz. — Está se sentindo
bem?
— Sim.
Ela me lança um olhar duvidoso. Mas estou bem, de verdade. É
difícil para mim estar perto de pessoas e não tenho certeza de como
explicar isso a ela.
— Simplesmente não parece certo estar aqui —, eu digo. — Tudo é
tão limpo. Como um museu.
Que é o que é agora. A restauração do complexo da Audácia foi
concluída há alguns meses, e a cidade ofereceu passeios aos viajantes
para ensiná-los sobre o experimento da facção, seus resultados e suas
consequências. É uma tentativa, eu suspeito, de combater um
enfoque tão estreito na pureza genética. Levará pelo menos algumas
gerações para ver qualquer tipo de mudança, mas estamos
esperançosos. Ou, devo dizer, eles estão esperançosos, já que não
estou mais fazendo meu antigo trabalho.
Vejo Johanna por cima do ombro de minha mãe, uma caneca de
algo embalado contra seu peito. Ela ainda está em um cargo eleito,
supervisionando nossa cidade. Ela tem estômago para isso, e eu não.
Sempre que ela me chamava para falar com pessoas de fora da
cidade, eu ficava gelada ao primeiro sinal de seu julgamento, seu
escrutínio. Essa não é a maneira de fazer as coisas, ela me disse, e
eu concordei, mas não podia escapar da pessoa que era. Sou.
Então agora meu foco é menor. Conserte as ruas, as luzes da rua,
os prédios. Resolva refugiados de outros lugares em moradias
permanentes, certifique-se de que eles tenham aquecimento e água
limpa. Coisas simples.
Johanna sente meus olhos nela e se vira, mostrando-me o lado
com cicatrizes do rosto, exposto agora que está com o cabelo curto.
Ela sorri um pouco e eu aceno de volta.
— Johanna me disse que você está trabalhando em projetos de
melhoria da cidade —, diz Evelyn.
— Eu estou, — eu digo.
— Esse é um caminho de carreira muito da Abnegação—, diz
Evelyn. — Tem certeza que é o que você quer?
— Abnegação era o que você não queria —, eu digo. — Eu não.
Minha mãe toca meu rosto.
— Você sabe que eu quero o que é melhor para você, certo? — ela
diz. É uma coisa estranha de se dizer.
— Claro. — Não é algo que eu poderia ter dito anos atrás, mas
acredito agora.
— Então você sabia que Tris iria querer o que é melhor para você?
— Sua boca se contrai em uma carranca.
Meu estômago se contrai, como uma corda se esticando. Estou
cansado de ver pessoas me dizendo coisas sem sentido e fingindo que
é o que ela queria.
— Você não a conhecia. Você não pode dizer isso.
Ela retira a mão.
— Eu nunca digo a coisa certa com você, nunca.
Ela fala como se fosse minha culpa.
— Esse é o problema —, eu digo. — Você acha que há uma coisa
certa a dizer. Não existe.
É um crédito dela que ela não retroceda imediatamente. Alguns
anos atrás, ela poderia. Ela sempre estava pronta para lutar, mas
agora ela pensa nas minhas palavras. Eu a vejo mastigá-las.
— Justo —, diz ela, que é sempre o que ela diz quando decide que
estou certo. — Mas você é muito duro comigo às vezes.
Eu suspiro.
— Justo.
Eu olho para Christina, que está falando em voz baixa com seu
pai, com a testa franzida. Pelo menos eu não sou o único que ainda
briga com seus pais.
Eu me levanto, meu apetite perdido na estranheza deste lugar
antes familiar. Eu deixei Evelyn me puxar para um abraço, e eu até a
abracei de volta, não querendo mais me separar de ninguém que eu
me importasse com a tensão ainda entre nós. As pessoas se perdem
facilmente.
Digo a ela que vou dar um passeio e saio do refeitório para
caminhar ao longo da grade que antes nos mantinha separados da
água corrente do abismo. Agora, isso apenas nos impede de cair nas
rochas abaixo. Sinto falta do borrifo da água e do som de seu rugido.
Mas há um benefício no silêncio, suponho - ouço Christina quando
ela chama por mim.
— Evelyn ataca de novo? — ela me pergunta, correndo para me
alcançar.
— Eu assisti a uma velha filmagem de alces lutando —, eu digo. —
Duas coisas teimosas com chifres apenas colidindo uma e outra vez.
Isso é o que Evelyn e eu somos.
— Você ainda está assistindo aos vídeos de animais. — Ela ri. — O
que você está fazendo agora? Minhocas? Caramujos?
— Pássaros, — eu digo. — Você sabia que os albatrozes sempre
pousam de repente? Eles são muito grandes para pousar
graciosamente, então eles apenas colidem com o solo.
— Eu sinto que você apenas desalojou algo útil do meu cérebro e o
substituiu por um fato sobre um pássaro que provavelmente nunca
verei —, diz ela. — Vamos. Há um lugar que quero visitar.
— Se você está prestes a me levar para o dormitório de
transferência, eu não irei.
Ela estremece.
— Sim, porque tudo que eu quero é voltar para o lugar onde eu vi
um cara perder um olho. Não. Em outro lugar.
Eu sigo sem perguntar para onde.

Caminhamos pelo longo e escuro corredor em direção à rede, lado a


lado. Às vezes, nossos nós dos dedos roçam enquanto nossos braços
balançam em direções opostas, e eu normalmente me afastaria, mas
desta vez, não.
Estamos juntos na frente da plataforma onde eu estava para
facilitar os iniciandos da Audácia em suas novas vidas. Lembro-me
de estender minha mão para a pequena e pálida de Tris, apertando
meu polegar ao redor dela, puxando-a para a estabilidade. Penso em
seus olhos brilhantes, selvagens com a adrenalina. A pequena e
nervosa Careta, Eric costumava chamá-la.
Eu estava muito ocupado anunciando seu outro nome para a
Audácia para ajudar Christina a sair da rede. Mas, pela primeira vez
em muito tempo, quando repasso a memória em minha mente,
penso em Christina também.
— Você gritou todo o caminho, — eu digo a ela, e ela ri.
— Inferno, sim, eu gritei todo o caminho —, diz ela. — Eu pulei de
um prédio. Você percebe como isso é ridículo?
— Sim .— Eu sorrio um pouco. — Não cheguei nem perto do
primeiro a pular, sabe. Tenho medo de altura.
— Alturas. — Ela balança a cabeça e pega o corrimão da escada na
mão, subindo até a plataforma. — O que mais, se você não se importa
que eu pergunte? Quero dizer, naquela época, não agora.
Eu a sigo pelos degraus.
— Espaços fechados. Me tornar um monstro. Meu pai.
A pressão de sua boca é severa.
— Bem, você conhece todos os meus, graças à iniciação.
Eu me iço sobre o tubo de metal que mantém a rede estável e rolo,
desajeitadamente, em direção ao meio da rede. Ela faz o mesmo e cai
direto em mim, me dando uma joelhada nas costas. Eu gemo, e ela ri
um pedido de desculpas, escalando para o meio.
Ficamos deitados lado a lado, olhando para o céu. Está muito
claro na cidade agora para ver muitas estrelas, mas o próprio céu é
de um azul profundo e agradável, e a lua está brilhante, uma meia-
lua estreita. Os prédios que cercam o buraco pelo qual estamos
olhando permanecem como sentinelas nas bordas da minha visão.
— Todo mundo seguiu em frente com suas vidas —, diz ela. —
Você sabe que eu ouvi Zeke e Shauna falando sobre quando eles vão
tentar ter um filho? Cara e Matthew vão se casar, Caleb tem um
projeto maluco com o qual ele pode muito bem ser casado... e ainda
estou treinando a estúpida força de segurança.
— Você não gostou?
— Eu gosto —, diz ela. — Eu simplesmente sinto que não estou
indo a lugar nenhum.
— Sim —, eu digo, e estou surpreso com o quanto eu entendo o
que ela está dizendo. — Eu também, na verdade.
— Achei que você pudesse —, ela diz. — É sobre isso que meu pai
e eu estávamos discutindo. Ele quer que eu saia da cidade. Para
viajar. Eu não acho que ele entende o quão diferente é para nós,
como tudo parece estranho. Ele não quer ir embora, então por que eu
deveria?
— Ele provavelmente está apenas preocupado com você —, eu
digo. — Preocupado que você não esteja atingindo seu potencial, ou
algo assim.
— Isso é o que Evelyn estava dizendo para você?
— Tipo isso. — Eu faço uma careta. — Ela disse algo como “Isso
não é o que Tris quer para você”.
Christina geme. Ruidosamente.
— Como se ela soubesse —, diz ela, e eu rio, porque é tão perfeito
que diríamos a mesma coisa sobre minha mãe. Já conversei com
Christina o suficiente sobre ela, contei-lhe toda a história de como
ela fugiu da Abnegação e me deixou com meu pai, depois voltou para
minha vida depois que escolhi a Audácia. A resposta de Christina foi
xingamento, cuspindo raiva.
— Eu não acho que sei o que ela teria querido para mim, — eu
digo quando minha risada acalma.
— Quer saber o que eu acho? — Christina diz, e nossos olhos se
encontram enquanto nós dois olhamos de soslaio um para o outro.
Nessa luz, seus olhos são tão escuros que parecem pretos, e há algo
de paz neles.
Eu concordo.
— Acho que ela queria que você ficasse com ela —, diz Christina.
— Tris queria viver, e ela queria você, e ela queria algo melhor para
todos. Se Tris estivesse aqui, ela iria querer você, mas ela não está, e
é assim que é.
— Você está dizendo que não importa o que ela queria? — Eu
digo, algo tenso dentro de mim. Eu pergunto como se fosse uma
ordem.
— Estou dizendo que ela não está aqui para querer coisas. Quer
dizer, talvez ela não esteja em lugar nenhum, ou talvez esteja... em
outro lugar, e se isso for verdade, eu realmente não vejo Tris como o
tipo que passa o tempo todo olhando para nós, desejando coisas boas
para nós, — Christina diz, inabalável. Ela se senta e me encara. —
Quantos anos você tinha quando estavam juntos?
— Dezoito, — eu digo.
Ela repete, lentamente.
— Dezoito. — Ela balança a cabeça e olha para a lua lascada. —
Dezoito anos é muito jovem para pensar que você nunca poderá ter
mais nada que seja bom, Tobias. Muito jovem para não bagunçar
tudo repetidamente, ou... curar. É muito jovem e você também... —
Ela para. — Você é bom demais para não viver sua própria vida.
Ela bufa e se deita novamente. Nossos ombros estão se tocando.
Nossos braços estão se tocando. Eu fecho meus olhos.
Aqueles olhos azuis brilhantes estão lá, olhando para mim de
minha memória. Diga a ele que eu não queria deixá-lo, foi a
mensagem que Tris disse a Caleb para passar para mim. Suas últimas
palavras para mim: que ela não queria ir. E eu sei que Christina está
certa - não há uma resposta fácil aqui, não “que ela teria desejado”,
porque eu sei o que ela queria, e nenhum de nós conseguiu. O “teria”
é irrelevante.
Ela me amou. Eu a amei. E ela morreu, mas eu não. Eu não.
— Desculpe, — Christina diz. — Eu fiz um discurso, não fiz.
— Você fez um discurso, — eu digo. — Mas não se desculpe por
isso.
Os dedos de Christina se movem, seus dedos indicador e médio
enganchando nos meus. Seu aperto é forte e quente. Sua pele escura,
imaculada, contrasta com a minha.
— Está tudo bem? — ela pergunta sem olhar para mim.
— Sim, — eu digo, ignorando a faísca de algo que dispara dentro
de mim. Eu mantenho meus olhos fechados.

— Venha treinar amanhã, certo? Vai ser divertido. Eu prometo.


Isso é o que Christina disse quando eu a acompanhei para casa
ontem. Saímos da rede, gelados pelo ar noturno, e fomos até os
trilhos do trem para seguir com alguns dos outros. Esperamos até
que o trem parasse, entramos calmamente e nos seguramos nas
grades para nos equilibrar, em vez de sentar, porque quem se senta
em um trem?
Eu disse a ela que não queria mais ensinar soldados, e ela me
disse que seria apenas desta vez, pelos velhos tempos. Seus olhos
estavam fixos nos meus, e ela estava perto e cheirava a salva, e um
pequeno cacho escapou do pano que ela amarrou em volta do cabelo
e pendurou sobre a maçã do rosto. Eu não abracei seu adeus. Parecia
perigoso, de alguma forma.
Mas aqui estou eu, suspirando enquanto espero na porta minha
própria coragem aparecer. Finalmente decido que acontecerá se eu
fizer algo, então abro a porta e entro. O ar cheira a suor, sapatos e
serragem. A força de segurança treina em um dos armazéns sem
facção, mas o chão é coberto com esteiras e algum tipo de material
flexível, e há luzes por toda parte.
Christina está demonstrando uma manobra em um dos recém-
chegados barulhentos, como ela os chamou. Ela diz a ele para
empurrá-la, então se vira para o lado, segurando seu braço bem sob a
axila e se movendo para que ele seja forçado a ficar de joelhos. Ela
cresceu em si mesma desde a última vez que a vi fazer algo assim, e
se move com um pouco mais de graça, com muito mais certeza.
Ela olha para cima, me vê e sorri.
Eu envolvo minhas mãos e me aquecendo em uma das bolsas
pesadas, até sentir o suor entre meus ombros. É uma sensação boa,
fácil. Então, quando ela bate no meu ombro e me pede para andar e
corrigir a técnica, eu digo que sim.
É como me rebaixar em um riacho. A água me leva, e sou um
instrutor da Audácia novamente, revirando os olhos quando alguém
se esquece de manter a guarda erguida ou de olhar antes de dar uma
cotovelada na almofada para que, em vez disso, dê uma cotovelada
no braço de seu parceiro. Olhe, eu digo a eles, e fique menor.
Estejam prontos e ajam prontos, ela diz a eles, e eu aceno.
— Ele foi meu professor uma vez, você sabe, — Christina diz a
uma das meninas menores. — E se você acha que sou dura com você,
não sabe o quanto isso pode ficar.
— Boca inteligente da Franqueza, — eu digo.
— Isso mesmo —, ela responde.
Então a sessão termina e os trainees vão embora, então somos só
ela e eu, nos espreguiçando e bebendo água da mesma garrafa.
— Você falou sobre eles como se fossem pequenos tornados, — eu
digo. — Eles não são tão ruins. Acho que você só queria pena.
— Você os pegou em um bom dia —, diz ela.
— “Pobre de mim, sou Christina, tenho que realmente ensinar
coisas às pessoas” —, digo, imitando-a. — Fale comigo depois de
tentar brigar com voluntários ao amanhecer.
— Oh, cale a boca. — Ela me bate com um envoltório de mão
suado.
— Estava molhado —, digo a ela.
Seus olhos brilham de tanto rir. Ela pega o embrulho em seu
punho e o enfia na minha bochecha. Eu afasto a mão dela, e ela
agarra a minha, e então estamos próximos, compartilhando o ar, as
mãos cruzadas, nossos joelhos se tocando, ambos sorrindo.
Seu sorriso desaparece. Nossas mãos se separam. Mas, em vez de
me afastar, toco sua mandíbula, passo o polegar por sua bochecha.
Sua pele está pontilhada de suor e minha mão ainda está envolta em
tecido preto, mas eu sinto - tudo.
— Isto não é algum tipo de... experimento, não é? — ela diz. —
Para ver se você seguiu em frente?
— O que? Não é... Eu estou - eu estou apenas... finalmente me
movendo, — eu digo.
— Oh —, ela responde.
Eu toco meus lábios nos dela. É rápido, um beijinho assustado, e
acho que ela não respira o tempo todo. Eu sei que não.
— Está tudo bem? — Eu digo.
Ela coloca a mão no meu pulso, me puxa em sua direção e sorri.
Nossas testas se tocam.
— Sim, — ela diz. — Está.
Desta vez, quando nossos lábios se encontram, é suave e lento.
Tem um gosto salgado. Seus dedos se enroscam em minha camisa.
E ela me prendeu no tapete

Nós lutamos o tempo todo. Cabe a quem lavar a louça e quem vai
nomear o filho de Zeke e Shauna - nenhum de nós, ao que parece - e
como fico envolvido nos projetos de melhoria da cidade e como ela
fica rabugenta quando volta do trabalho alguns dias.
Ainda sonho com Tris, às vezes. Até sonho com ela morrendo.
Conto a Christina sobre isso, e ela não leva para o lado pessoal,
principalmente, a menos que esteja cansada ou preocupada com
algo. Meu estoque de soro de paisagem do medo permanece intocado
por tanto tempo que acabo dando a Cara para brincar.
Falamos sobre Will e Tris, e as vidas que tiramos, e como temos
medo, às vezes, quando alguém nos assusta, ou se parece muito com
Jeanine ou Marcus ou Max. Eu acordo no meio da noite com ela
chorando enquanto ela se lembra de ter puxado Hector pela beirada
do telhado apenas para perceber que Marlene estava quebrada no
chão. Ela acorda para o pior de mim.
Nós rimos o tempo todo. Às vezes, apenas por causa de um olhar
ou de uma palavra. Ela fala em vozes estranhas, imitando a mim, ou
seus colegas de trabalho, ou os pássaros que vemos vídeos em meu
apartamento. Ela me faz rir até ficar fraco com isso, relaxado contra
as almofadas do sofá com minhas mãos enroladas, inúteis.
Ela é a primeira a quem digo quando algo vai bem ou quando algo
vai mal. Ou quando algo vai, ponto final.
Ela me disse, uma vez, que guarda um frasco de soro da memória
no armário do banheiro, para lembrá-la do que ela quase perdeu,
quando eu quase me perdi.
Trabalhamos e sonhamos. Nós lutamos, rimos e nos
apaixonamos. Nós movemos.
E nós consertamos.
Sobre a autora

FOTO © NELSON FITCH

VERONICA ROTH é a autora do best-seller nº 1 do New York


Times de Divergente, Insurgente, Convergente e Quatro:
histórias da série Divergente. A Sra. Roth e seu marido moram
em Chicago.
Livros de Veronica Roth
Divergente
Insurgente
Convergente
Série Divergente – Coleção Completa

Quatro Medos
Quatro: A Transferência
Quatro: A Iniciação
Quatro: O Filho
Quatro: O Traidor
Quatro: histórias da série Divergente

We Can Be Mended
The World Of Divergent

Crave a marca
Destinos divididos

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