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Copyright © 2020 A. C.

Nunes
Capas: Ge Benjamim – Design Editorial
Revisão e diagramação: Amanda Nunes
Revisão Final: Victória Gomes
Todos os direitos reservados.
_____________________________________________
Box Amores em Paris: Pecado Irresistível, Paixão Irresistível, Desejo
Irresistível
Nunes, A.C.
Campos do Jordão/SP – 1ª edição.
1. Romance.
2. Literatura Brasileira.
3. Série.

Edição Digital | Criado no Brasil.


Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.
___________________________________________
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº.
9.610. De Fevereiro de 1998 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida
sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos,
fotográficos, gravação ou quaisquer outros.
Esta é uma obra de ficção e toda e qualquer semelhança com pessoas
ou situações reais terá sido mera coincidência.
PECADO IRRESISTÍVEL
PRÓLOGO
PRIMEIRO OLHAR
SORRISO AUDACIOSO
DE HOMEM PARA HOMEM
CAMINHOS CRUZADOS
LINDA… COMO VOCÊ
CAIR EM PECADO
SEM SAÍDA
DESEJO INTENSO
ADORÁVEL SURPRESA
TERRÍVEL E ATRAENTE
EM SEUS BRAÇOS
MEU REFÚGIO
PAIXÃO ARDENTE
MAIS MENTIRAS
DE TIRAR O FÔLEGO
PRETEXTO FAJUTO
PROPOSTA INDECENTE
PECADO IRRESISTÍVEL
RUDE E POSSESSIVO
JOGO DE INDECISÃO
REUNIÃO
ACOLHIDA E AMPARADA
EM SEGURANÇA
MINHA CULPA
BECO SEM SAÍDA
INTERLÚDIO I – CARTA NA MANGA
PERDÃO
SOB AS ESTRELAS
ACERTO DE CONTAS
INTERLÚIDO II – VERDADEIRA FACE
DE NOVO EM SEUS BRAÇOS
SEMPRE JUNTOS
TRAGÉDIA ANUNCIADA
NE ME QUITTE PAS
JE T’AIME
FELICIDADE COMPLETA
INTERLÚDIO III – SEM SE DESPEDIR
EPÍLOGO
PAIXÃO IRRESISTÍVEL
PRÓLOGO
BAILE DE MÁSCARAS
DE VOLTA A PARIS
TROCA DE FAVORES
IRMÃOS DUPONT
ENCONTRO MARCARDO
TON PARDON
DAMES PARISIENNES
MEGERA
FAMÍLIA
O SÓCIO
RENÚNCIA
PAIXÃO E CAFÉ
SONHOS ENTERRADOS
COQUETEL
TENTAÇÃO
OFERTA DE PAZ
PAIXÃO EM LOCHES
TRAUMAS E SEGREDOS
REVELAÇÕES
TEU PASSADO TE CONDENA
PAIXÃO IRRESISTÍVEL
DESVENDANDO-O
INVASÃO DE PRIVACIDADE
UN ANGE DANS MA VIE
FRANQUEZA
CHANTAGEM E CONFRONTO
AMOR EM LISBOA
PROMESSA QUEBRADA
ENTRE AMIGOS
CONSELHOS
SEGREDO EXPOSTO
MINHA RUÍNA
O FIM DE VERDADE
CONFISSÃO
DÉSIRÉE
TOUTE LA VÉRITÉ
ARTIMANHAS
BELA FLOR
NOTRE FILLE
EPÍLOGO
DESEJO IRRESISTÍVEL
PRÓLOGO
ERRO TERRÍVEL
OBSESSÃO
INSISTÊNCIA
A PACIENTE
SINAIS
DEPOIMENTO
PODERIO
INQUIETA AFLIÇÃO
“L’HABIT NE FAIT PAS LE MOINE”
VERDADEIRA FACE
IMPUNIDADE
DESPEDIDA
SEGUIR EM FRENTE
SITUAÇÃO DELICADA
ENTRE TÚMULOS E MAUSOLÉUS
CEDO DEMAIS
UM PRETEXTO PRA TE VER
CONFIE EM MIM
COMPROMETIDOS
INTERLÚDIO – PLATÔNICO
MALDITOS IMPREVISTOS
BAILE A DOIS
DESEJO IRRESISTÍVEL
PRAZER CONDUZIDO
UNE SURPRISE
MUITAS FORMAS DE AMAR
MUITAS FORMAS DE PRAZER
PASSOS IMPORTANTES
FRATERNO
PERDAS
BOLHA DE AMOR
SÚBITA MUDANÇA
FANTASIA
MEDO IRRACIONAL
CIÚMES
REAÇÃO EXAGERADA
DECISÃO DIFÍCIL
AMEAÇA
ÀS CLARAS
TÉRMINO
AUSÊNCIA
CONSCIÊNCIA
ALGO EM TROCA
VALENTIN
O JOIO DO TRIGO
FAMÍLIA LAURENT
CONFRATERNIZAÇÃO
EPÍLOGO
PRÓXIMO LANÇAMENTO
PRÓLOGO
CONTATOS DA AUTORA
OUTRAS OBRAS
ANN-MARIE
Meus passos ecoam assim que adentro a Catedral de Notre-Dame.
Cabisbaixa, me seguro para não desabar antes de chegar ao confessionário,
ignorando alguns turistas que aqui estão. Aperto o passo, o barulho dos meus
saltos intensifica, gerando um eco capaz de me atormentar. Malditos sapatos.
Eu deveria tê-los arrancado e os jogados no Rio Sena a caminho daqui.
Jamais olharei para eles de novo da mesma maneira. Não olharei mais da
mesma maneira para estes saltos, para esta saia ridícula, para esta camisa com
um botão faltando no final e a gola com o leve aroma dele.
Eu não me olharei no espelho de novo da mesma maneira.
Alcanço o confessionário — vazio, graças a Deus! — e entro,
sentando-me meio bruscamente. Arquejo, cheia de dificuldade em respirar, e
nem é por ter cruzado a Catedral, ou pela caminhada de quase quinze minutos
até aqui. Há um instante de silêncio. O padre me espera pacientemente.
— Eu pequei, padre — digo, com a voz falha de emoção. Meus olhos
lacrimejam, meu coração descompassa ainda mais.
No caminho, fiz diversas preces a Deus, implorando por perdão
enquanto me perguntava o que estava acontecendo comigo. Sempre fui tão
devota à igreja, à minha fé, à minha religião, e agora acabei de sair da cama
de outro homem. Cometi o pecado da fornicação e do adultério. Sinto-me
suja e indigna do amor de Deus, precisando do seu perdão e ato
misericordioso para comigo, uma pecadora.
— Qual foi o seu pecado, minha filha? — o padre indaga, em tom
calmo e amoroso.
Respiro fundo, sendo-me tão difícil admitir isto em voz alta. Já não
me reconheço. Não sou a Ann-Marie fiel a Deus e a Seus mandamentos. Sou
uma pecadora, uma transgressora. Logo eu, que passei a vida seguindo à risca
as Sagradas Leis, sendo fiel a Ele.
— Eu… traí meu marido, padre. Dormi com outro homem —
sussurro, deixando as lágrimas molharem meu rosto.
Há outro instante de silêncio.
— Você cometeu o pecado do adultério, minha filha. Um pecado
terrível.
Abano a cabeça em positivo, concordando.
— Sim, padre. Mas este não é meu maior pecado — admito.
— E qual é? — ele quer saber.
— Eu traí meu marido. Cometi um pecado imperdoável… E não
estou arrependida.
BERNARDO
Se tem uma coisa que me desagrada é transar com uma mulher e, ao
acordar, ela já ter se levantado. Não porque eu prefira fazer isso antes dela —
não sou o que um dia Alfredo, meu melhor amigo, foi —, mas porque sou um
cara comprometido. Eu sei, fodas casuais são apenas fodas casuais. Eu nem
deveria me importar se uma mulher trepa comigo e depois vai embora. De
fato não me importo, desde que não passe a noite. Contudo, se ela fica na
minha cama, se dorme comigo, acho muito inadmissível simplesmente se
levantar e ir embora.
Não gosto dessa postura. Marie sabe disso, mas a mulher se importa?
Obviamente não, ou estaria aqui, agora, do meu lado, depois de ter me dado
uma noite muito boa de sexo. Não é nossa primeira transa e não é a primeira
vez que ela faz esse tipo de coisa. Se já me posicionei sobre o assunto?
Sempre. Ainda assim, a megera não se importa.
Jogo minhas pernas para fora da cama e pego minha boxer, subindo-a
pelas pernas. Franzo o cenho ao notar a camisa azul de Marie jogada sobre a
calçadeira. Aonde a maluca foi sem camisa? Não importa. Preciso de uma
dose de café para despertar e começar mais um dia de rotina. Olho no relógio
de pulso enquanto faço meu percurso até a cozinha. Seis e vinte da manhã. É
cedo demais para qualquer ser humano estar acordado — principalmente para
quem foi dormir às duas da madrugada —, contudo, tenho compromissos a
serem cumpridos durante o dia.
Na cozinha, eu a vejo. Está usando uma das minhas camisas — deve
ter pegado no meu closet —, os cabelos cacheados estão rebeldes e suas belas
pernas negras e esguias à mostra despertam algum desejo em mim. Ela se
vira com um prato e uma xícara em mãos. Croissant e café. A mulher já
trepou comigo o suficiente para até saber minha combinação favorita no café
da manhã.
Marie Julien me dá um sorriso e põe o prato e a xícara sobre o balcão
que divide o cômodo. Sento-me e, antes de qualquer coisa, dou uma bela e
generosa golada no café.
— Achei que tivesse ido embora — aponto, dando uma mordida no
croissant.
— E por que eu faria isso? — devolve, virando-se para a pia e me
dando uma visão da sua bunda redonda. — Você não gosta e sei disso.
— Sabe, porém não se importa. Não é a primeira vez a se comportar
desta maneira.
Marie se volta novamente em minha direção, agora com sua própria
xícara de café. Já transamos o bastante para eu saber que a mulher não come
nada pela manhã. Sorrio para mim mesmo, sabendo que ela toma meio litro
de água e uma xícara de café e mais nada. Até por volta de dez da manhã. Só
então come. É esquisito a gente não ter nada e eu conhecer esse tipo de coisa
sobre ela?
— Pode ter certeza, Bernardo — diz. Os erres do meu nome saem
fortes e arrastados. Sentada de frente para mim, esfria um pouco sua bebida
antes de bebericá-la. Olha-me e completa: — E nós já saímos tem bem uns
três meses. Em três meses, cometi esse erro apenas duas vezes. Releve, mon
amour.
— Só porque você é gostosa — rebato, e gargalhamos juntos.
— Quem é a mulher loira? — pergunta, de repente, fazendo-me
erguer uma sobrancelha. Apoio minha xícara no balcão e dou outra mordida
na massa folhada.
— Que mulher loira? — indago, realmente confuso com sua
abordagem.
Não sou santo. Nunca foi. Aos trinta e nove anos, consigo contar nos
dedos meus relacionamentos sérios durante minha vida. Tive alguns namoros,
como tive muitos casos de uma noite só, e da mesma maneira tive várias
“relações” (se podemos chamá-las assim) como as que tenho com Marie: a
gente se vê, tem uma transa gostosa e a amizade continua. Os mais jovens
devem chamar isso de amizade colorida.
Embora tenha ciência de que, pelo meu histórico, eu seja considerado
um galinha, jamais me permiti alimentar esperanças com minhas amantes ou
namoradas a ponto de magoá-las. Sempre fui sincero com minhas intenções e
com as mulheres que passaram na minha vida. Não tenho nenhum coração
quebrado na minha lista.
Sem me responder verbalmente, Marie se vira para trás — sem deixar
sua banqueta —, estica o braço e puxa uma gaveta, trazendo uma foto junto e
me mostrando. Suspiro ao reconhecer a loira em questão. E a foto também.
Foi tirada no Brasil, durante a temporada em que estive lá.
— É uma ex-namorada — respondo, enfim.
Victória Santos foi a única mulher que teve algum significado a mais
na minha vida. Eu realmente nutri um sentimento maior por ela, mas não
posso afirmar que era amor, não, não. Era longe disso. Mas pelas minhas
relações, Vic teve uma relevância maior. Quando terminamos, por telefone
porque nosso namoro à distância não vingou e porque ela ainda amava o ex,
levei algum tempo para superá-la.
Bem, isso foi há algum tempo. Uns três anos ou mais. Não sei
precisar. Sinal de que já a esqueci, n'est-ce pas?
— Ela é do Brasil? — continua, bebendo mais um trago do seu café.
Há genuína curiosidade em seu tom de voz; me mostra que apenas quer
manter algum assunto entre nós.
— Sim. Eu a conheci na época em que fui para o Brasil por causa do
acidente do Alfredo. Ficamos durante a minha estadia, depois, quando voltei
para França, tentamos um namoro à distância, mas não demos certo. — Dou
de ombros, terminando meu café. — Rompemos de forma amigável.
— E por que ainda tem uma foto dela? — pergunta, levantando-se e
recolhendo nossa louça.
— É só essa. Deve ter ficado perdida nas minhas coisas. Onde a
encontrou, falando nisso? — Quero saber.
— No seu closet. Na gaveta de cuecas. Lá no fundo. Aliás, sua gaveta
está uma bagunça. Você não chama alguém pra arrumar suas coisas, não? —
adverte, fazendo-me rir.
— E por que estava fuçando na minha gaveta de cuecas? —
questiono, levantando uma sobrancelha, embora já pressuponha sua resposta.
Ela para de lavar a pouca louça e se vira para mim, erguendo minha
camisa social em seu corpo e mostrando uma cueca minha tapando sua
intimidade.
— Queria uma branca. Você diz que adora quando trajo peças íntimas
brancas. Você não tem muitas nessa cor, né? Me recordei de que te vi usando
uma ou duas vezes e fui procurar.
Levanto-me rindo de Marie. É uma boa pessoa, divertida, alegre,
cheia de vida e muito inteligente, não à toa trabalha em um dos jornais mais
renomados de Paris. Já nos conhecemos há algum tempo, mas os encontros
casuais começaram recentemente.
— Sim, adoro — confirmo, tomando seu corpo curvilíneo em meus
braços. Cheiro sua nuca e deixo um beijo cálido na pele negra. — Mas por
que vestir uma cueca minha, chérie? O que houve com sua calcinha? —
pergunto, todo galã, escorregando com a mão por dentro da camisa e tocando
sua tez quente e macia.
— Encharcadíssima. Você me comeu com ela ontem, não se recorda?
Não tem nenhuma chance de eu usá-la hoje. E não trouxe nenhuma reserva
na minha bolsa. Não estava nos meus planos vir pra cá e transarmos.
Sorrio contra sua nuca e a viro para mim, tomando-a em um beijo
duro. Marie retribui, me empurra contra o balcão e abaixa minha cueca — a
que está em mim —, trazendo meu pênis para fora, já semiereto. Está se
agachando para me dar um oral dos deuses, entretanto sou mais rápido e a
giro outra vez, pondo-a sobre a bancada, separando suas pernas.
— Preciso retribuir o favor de ontem — digo, puxando a cueca branca
e a deixando exposta para mim. Antes de Marie poder me responder, separo
suas pernas e vou de encontro à sua vagina, fazendo o que adoro fazer: dar
prazer a uma mulher.
Depois de uma boa xícara de café e um bom croissant, começar o dia
transando com uma mulher gostosa é a minha coisa favorita no mundo.
Deixo Marie em sua casa e, de lá, sigo para o Avenue Coffee —
minha cafeteria em sociedade com Alfredo. Juntos, muitos anos atrás, quando
ele chegou à França para estudar, abrimos nosso próprio negócio que, ao
longo dos anos, ganhou reconhecimento. Hoje, é um dos cafés mais refinados
de Paris, com filiais em outras partes da cidade e franquias em outros
municípios. Abrimos uma filial também no Brasil, justamente na época em
que meu amigo retornou ao seu país de origem para assumir a empresa da
família.
Às nove da manhã, o local já está bem movimentado. Cumprimento
alguns clientes fiéis da casa e os funcionários e me recluso na sala da
gerência. Quando chego, já tenho alguns documentos para conferir e assinar.
Um bater na porta chama minha atenção e ergo o olhar.
— Salut, Juliette — saúdo minha gerente. É uma mulher bonita, de
cabelos caramelos, postura mediana e corpo enxuto.
— Salut, Bernardo. Vim apenas te passar um recado do senhor
Hauser. Ele ligou há pouco e pediu para retornar.
Agradeço o recado e faço a ligação logo depois de ela sair. Alfredo
atende no terceiro toque, pedindo um instante a alguém junto com ele.
Conversamos por uns dez minutos, meu amigo me pondo a par dos nossos
negócios no Brasil.
Emendo sua ligação e quero saber da pequena Lara — a filha dele a
quem eu amo de paixão. Alfredo fala da pequena com uma entonação repleta
de amor e orgulho. Não há dúvidas de que é sua maior alegria. Ele encerra a
chamada dizendo que entra em contato em breve para me deixar informado.
Passo o restante da manhã trancafiado na minha sala, cheio de
planilhas e relatórios para analisar, e-mails para responder e fornecedores
para ligar. Passa do meio-dia quando meu estômago protesta e me obriga a ir
almoçar. O salão principal está mais vazio, com poucos clientes. Perto da
vidraça, avisto um frequentador fiel do café. Está junto de mais dois homens,
cada um tomando uma xícara do que suponho ser café. São homens
elegantes, da alta sociedade de Paris. Um deles é um político renomado da
cidade, o outro é um investidor que bem conheço, mais por nome, e é
considerado um dos maiores da sua geração.
O homem me vê e me cumprimenta. Decido ir até ele e dar-lhes
minha melhor recepção.
— Bonjour, messieurs.
Antony Leclerc — o cliente fiel — se levanta e estica a mão para me
cumprimentar.
— Bonjour, Dousseau. Sente-se conosco — diz, e eu penso em dizer
não, que estou indo almoçar, mas Emilien, o investidor, levanta-se e puxa
uma cadeira ao seu lado. Não vejo muito opção a não ser me juntar aos
homens.
Chamo uma de minhas funcionárias e peço mais café para nós,
enquanto começamos a conversar depois de ser apresentado aos outros dois
homens, iniciando o assunto por política. Dificilmente me junto a clientes na
mesa, salvo quando são pessoas muito próximas a mim. Embora eu conheça
Antony há quase um ano e tenhamos, em algum nível, um tipo de amizade,
ainda assim não seria o suficiente para isso.
Nossos cafés chegam e, quando noto, estamos tão animados
conversando e rindo que até me esqueci de minha fome. Leclerc fala sobre
como gosta do ambiente da cafeteria e de como adora vir aqui ao menos uma
vez ao dia. Ele é dono de uma galeria inteira logo do outro lado da rua —
herança deixada pelo pai e pelo sogro, amigos desde sempre (ao menos, foi o
que sempre ouvi dizer).
— Sua cafeteria é mesmo um lugar aconchegante, Dousseau — diz
Emilien, com a xícara perto dos lábios. — Muito refinada, ambiente calmo,
decoração lindíssima. Você investiu muito bem aqui.
Sorrio e aceno, terminando meu café e ignorando meu estômago que
faz questão de me lembrar de que preciso comer alguma coisa.
— Fico feliz em receber um elogio de você, Dupont. Me faz ter
certeza de que eu e meu sócio fizemos um bom trabalho.
Mais um pouco de conversa jogada fora e resolvo dizer que preciso ir
almoçar. Estou me despedindo deles quando Emilien diz:
— Amanhã haverá uma noite de gala. Um evento beneficente para
arrecadação de fundos para um projeto de ajuda humanitária de minha
empresa. Posso contar com sua presença? — Sorrio um instante e aceno em
positivo, agradecendo pelo convite em seguida. — Estupendo, Dousseau.
Estupendo. Vou deixar o endereço com uma de suas funcionárias. Roupa de
gala, não se esqueça. E vá acompanhado.
Dou uma risada por seu conselho e meneio a cabeça, saindo logo em
seguida.

Ajeito a gravata borboleta enquanto a moça da recepção confere meu


nome na lista de convidados. Marie está do meu lado, exuberante em um
vestido branco; o decote em V é generoso, a fenda no lado esquerdo deixa
sua perna sedutora à mostra.
— Monsieur Dousseau, quem é sua companhia? Consta na lista
apenas que o senhor traria uma acompanhante.
— Mademoiselle Marie Julien — respondo. A recepcionista anota o
nome na lista e finalmente nos dá passagem. Enroscada aos meus braços,
adentramos o salão. É um local amplo, requintado, com muitos comes e
bebes no mesmo nível. Há uma orquestra no palco ao fundo, tocando,
enquanto os convidados estão espalhados, conversando entre si. Vejo e
reconheço muitas personalidades importantes de Paris. O prefeito, senadores
e diversos políticos, estilistas, empresários, alguns artistas.
— Será que consigo um furo de reportagem? — Marie sussurra em
meu ouvido. Não seguro uma risada e aperto mais sua cintura na minha. Não
foi difícil convencê-la a vir comigo. Nem fiz esforço. Convidei-a, por uma
ligação, dez minutos depois do convite de Emilien Dupont, e sua resposta foi
quase parecida com essa. “Oui, mon chéri! Posso conseguir alguma coisa
para uma matéria nova”.
Marie Julien é uma excelente jornalista, que sempre se aventura pelas
reportagens. Recentemente, esteve trabalhando em uma matéria sobre o
extremismo islâmico e os atentados terroristas que aconteceram em vários
pontos da França. A mulher não para. Seu objetivo agora é ganhar um
Pulitzer. Não que ela vá conseguir isso com um furo de reportagem em uma
festa de gala, aliás, não faz muito o seu estilo reportagens sobre fofocas,
maquiagens ou celebridades. Mas Marie é inteligente ao extremo e
conseguiria um bom furo se lhe dessem um tema sobre a taça de champanhe
que nos acabam de servir. Provavelmente investigaria a procedência da
bebida, pesquisaria sobre a empresa responsável pela fabricação. Ela é
perfeita e inteligente. Sempre vê oportunidades nas pequenas coisas. Certa
vez li uma reportagem dela sobre os testes cruéis em animais das marcas de
cosméticos. A ideia tinha surgido durante a preparação do casamento de uma
amiga.
— Temos uma porção de gente conhecida aqui. Fique atenta —
provoco, e ela sorri, bebendo de seu champanhe.
Não demoro a avistar Antony acompanhado de Dupont, ambos
elegantes em seus smokings. O anfitrião me vê e acena para me aproximar.
Apresento-os à minha acompanhante e Emilien mostra interesse à beldade ao
meu lado com um olhar discreto que não me passa despercebido. Eu o
entendo. Ela é mesmo linda.
Peço licença para ir a toalete algum tempo depois e a deixo com os
dois homens. Caminho por entre as pessoas, primeiramente procurando um
local para deixar minha taça antes de seguir ao meu destino. Passo por um
garçom, pondo-a sobre sua badeja e recusando uma segunda que me é
oferecida.
Na saída do toalete, percorro meus olhos pelo salão, admirando a
festividade e todo seu requinte. Próximo à uma extensa mesa cheia de
quitutes, eu a vejo. Como se eu fosse um imã e a tivesse atraído, a mulher se
vira em minha direção e nossos olhares se encontram. Nosso primeiro olhar.
E, Deus do céu, tenho a impressão de que ela é a mulher mais bela de toda
França. A moça sorri para mim — um sorriso conciso e educado — e torna a
escolher um dos aperitivos expostos. Observo-a um instante ao passo que,
vagarosamente, me aproximo. Tem cabelos louros-acobreados na altura da
mandíbula, os olhos são claros, de um azul límpido, a pele branca parece
delicada como porcelana. O corpo é enxuto, curvilíneo, bem-distribuído em
sua estatura — provavelmente perto de um metro e sessenta e oito — e o
vestido realça suas curvas. Todo trabalhado na renda e na cor salmão, não
tem mangas, fazendo-me ter uma visão esplêndida dos seus braços delicados;
o decote é fechado, cobrindo todo o colo, mas deixando o pescoço esguio à
mostra. Abraça-a na cintura de forma perfeita, as barras se abrem aos pés,
dando-lhe um ar de elegância. Essa pequena e rápida análise me deixa a
certeza de que a beldade é uma mulher discreta e recatada.
Sua mão estica para pegar um canapé de presunto defumado no
instante em que me ponho ao seu lado. Sinto seu perfume adocicado,
mesclado ao aroma dos cabelos soltos. Estou inebriado. Notando minha
presença, ela se vira e, pela segunda vez, nossos olhos se encontram. Sorrio
meu melhor sorriso galante e digo:
— É uma bela festividade, n'est-ce pas?
— Mais bonito do que toda essa festa elegante, apenas a sua causa. —
A voz é macia e doce como mel.
Dou-lhe outro do meu sorriso e aceno em positivo.
— Oui. Dupont está fazendo um ótimo trabalho — digo, virando-me e
pegando alguns tomatinhos.
Ao olhá-la, vejo-a fazendo menção de me responder, mas, de repente,
uma figura se junta a nós, abraçando-a pela cintura de forma possessiva.
— Que bom que já conhece minha esposa, Dousseau. Estava mesmo a
procurando para te apresentá-la.
Inferno. A beldade é casada. E com Antony.
Tento disfarçar meu desagrado e digo:
— Estou encantado com sua esposa, Leclerc. — Isso é mais do que
mera formalidade ou educação. É sincero. Estou mesmo encantado,
enfeitiçado por ela, por sua beleza estonteante. Viro-me para a moça, pego
sua mão e deixo um beijo respeitoso. — Bernardo Dousseau, a seu dispor,
madame.
Um rubor ilumina suas bochechas, os olhos de Antony ficam mais
escuros.
— Ann-Marie Leclerc — apresenta-se, a voz quase inaudível.
Noto os braços de Antony a apertarem mais, como se estivesse a
protegendo.
— Se importa se eu roubar minha esposa por alguns minutos?
Pretendo apresentá-la ao senador Blanc.
— À l’aise. — “À vontade”, digo, e, segurando a cintura dela, os
Leclerc se afastam de mim.
Pego uma taça de champanhe quando o garçom passa por mim e tomo
um gole generoso, na intenção de tirar esse sufoco repentino em meu peito.
Não resisto e a procuro pelo salão. Antony continua a abraçando no quadril,
enquanto conversa com o senador Blanc.
Quando a mulher se vira discretamente e me olha por cima dos seus
ombros, preciso de outra dose do champanhe para ajudar a passar o nó em
minha garganta.
Antes de a noite acabar, tenho certeza: Ann-Marie Leclerc ainda vai
me levar à loucura.
ANN-MARIE
Eu não deveria ter feito isso. O que foi que deu em mim em querer
procurar por Dousseau, enquanto meu marido aqui ao meu lado está
conversando com o senador Blanc? Em qualquer outra ocasião, jamais seria
tão… tão… Não sei nem como definir este meu comportamento, esta minha
necessidade quase incontrolável de olhar — uma última vez — para seus
olhos claros.
Antony está distraído, conversando sobre política — um assunto que,
aliás, me foge muito —, e com uma discrição que me assusta, consigo olhar
por cima dos meus ombros. E lá está ele, olhando-me de volta, com uma taça
de champanhe em mãos e um sorriso audacioso.
Ao notar que estou encarando outro homem que não seja meu esposo,
volto-me para frente, forçando um sorriso e fingindo estar inteirada no
assunto deles. Monsieur Blanc nos convida a seguir até o bar do evento, antes
de o jantar para as arrecadações começar. Os senhores fazem seus pedidos,
enquanto prefiro por apenas uma taça pequena de vinho seco. Os homens
praticamente me esquecem. Começo a ficar entediada, sem poder interferir na
conversa.
— Chéri — sussurro ao ouvido de meu companheiro —, se importa
se me juntar a algumas amigas que estão no evento? — pergunto. Ele se vira
no banco para me olhar melhor.
— Amigas, Ann-Marie — frisa a palavra feminina, dando-me a
entender que não devo conversar com homens. Antony sempre teve
problemas de insegurança e nunca gostou que eu conversasse com pessoas do
sexo masculino, exceto se forem estritamente do meu círculo social. — A
última vez, me disse que estaria na companhia da mademoiselle Claire, mas
te peguei de papinho com monsieur Dousseau.
Minhas bochechas coram de vergonha em apenas ouvir o sobrenome
deste homem. Não consigo não me lembrar de sua gentiliza ao me
cumprimentar, ou da sua voz suave e agradável quando puxou conversa
comigo, provavelmente ignorante ao meu estado civil. Ou do primeiro olhar
que trocamos quando, por algum motivo, me virei em sua direção e o peguei
me olhando. O pior de tudo foi, contra todo o bom senso, eu sorrir para ele.
Não consigo não me recordar de seu perfume forte ao se pôr ao meu lado e de
como o analisei rapidamente sem que percebesse. O smoking todo preto, com
a delicada gravata borboleta, deu um caimento ótimo em seus um metro e
oitenta.
Afasto os pensamentos, deixo um beijo no rosto de Antony e vou em
direção ao grupo de socialites logo à frente. Falamos sobre diversos assuntos
por um longo tempo até eu sentir um toque em minha cintura e me virar para
ver meu marido sorrindo para mim. Seus olhos estão levemente vermelhos e
caídos, revelando embriaguez. Cochicha no meu ouvido que o jantar já vai
começar e devemos nos juntar à mesa com o monsieur Dupont. Aceno em
positivo, seguro-me em seus braços e, ao me despedir de minhas amigas,
sigo-o até nossa mesa reservada.
Tivemos o pequeno privilégio de nos juntar à mesa com Emilien. Ele
e Antony se tornaram muito amigos nos últimos três anos. Assim, o jovem
investidor fez questão de nos dar um lugar privilegiado no evento: em uma
das primeiras mesas e em sua companhia.
Estamos chegando a nossos lugares quando tenho a impressão de
quase perder a firmeza das pernas. Dousseau está junto de Emilien, em uma
conversa muito animada, acompanhado de uma mulher negra que o segura
pela cintura. Minha respiração falha sem que eu perceba e meus passos
diminuem à medida que nos aproximamos.
— Chérie, você está bem? — Ouço Antony me perguntar.
Encontro alguma força para abanar a cabeça em positivo e voltar o
ritmo de meus passos. Emilien sorri ao nos ver e nos convida a nos sentarmos
em volta da mesa.
— Monsieur Dousseau e mademoiselle Julien são convidados de
última hora — diz ao meu esposo, olhando-me um instante, enquanto nos
ajeitamos em nossos lugares.
Com um tom de voz estranho, Antony assegura estar tudo bem, mas
sei que não está. Quando esse homem invoca com alguma coisa ou alguém,
não há nada no mundo que o faça mudar de ideia. Mantenho-me em silêncio,
pois, bem, não há muito o que opinar sobre a decisão de Dupont. Ele é o
anfitrião da festa e pode fazer o que bem entender e convidar quem quiser.
Os garçons começam a servir as mesas com as entradas especialmente
preparadas por chefs de renomes em Paris. Emilien fez questão de nos
receber com o melhor que seu dinheiro pode comprar. Enquanto somos
servidos, a orquestra para de tocar para dar lugar a um locutor que começa a
anunciar as “atrações” da noite para o arrecadamento do dinheiro que será
convertido para sua causa humanitária na África. Haverá leilões de joias,
obras de arte, donativos voluntários e também leilões dos solteiros mais
cobiçados da cidade.
Durante o decorrer agradável do jantar, me pego observando
Dousseau e o modo como interage com todos em torno da mesa. Com Marie,
se mostra muito mais íntimo e é impossível não me perguntar que tipo de
relacionamentos eles têm. Notei que não são namorados ou marido e mulher,
mas são, inegavelmente, um casal. Talvez sejam um destes casais liberais,
que não se importam em dividir o parceiro. Ou talvez sejam apenas amigos.
Enquanto como o caviar, tento não pensar no assunto. Sua vida
particular não é de minha conta e muito menos de meu interesse. Porém, não
posso evitar em julgar a postura destes dois. Esta relação deles — seja lá que
tipo seja — é tão desagradável aos olhos de Deus.
Em minha observação, também noto que Bernardo é uma pessoa
radiante, bem-humorada, de conversa fácil e agradável. Várias foram as vezes
em que me peguei rindo discretamente de alguma de suas colocações. Olho
ao redor, levando um pouco de água aos meus lábios secos, e vejo muitas
personalidades, da alta sociedade, artistas, políticos e pessoas de renome. É
uma festa de gala, organizada por Dupont, um dos maiores empresários e
investidores da França, com não mais do que trinta e seis anos e uma conta
com mais zeros do que posso contar. Claro, ter nascido em berço de ouro e
em uma família privilegiada conta para ser tão bem-sucedido antes dos
quarenta. Ainda assim, o homem conseguiu a proeza que seu pai não foi
capaz, inclusive superou a fortuna do velho, que descanse em paz.
Embora seja uma festa para os mais ricos de Paris, e sabendo que
Bernardo é um destes ricos, sou capaz de reconhecer todas as personalidades
neste salão, menos ele. Quem é? O que faz? Com que trabalha?
Oh Deus, por que estou tão interessada em sua vida?
Engulo a água com mais força do que o necessário e faço mais um
esforço em tentar tirar este homem de meus pensamentos. Uma tarefa
impossível quando o ouço dar uma gargalhada gostosa. Emilien e Marie estão
rindo de alguma coisa dita por Dousseau, contudo, estive viajando demais em
meus pensamentos para me atentar ao fato.
Olho para o lado e vejo Antony estático, bebendo mais de sua dose de
uísque. Ou não achou graça nas palavras de Bernardo ou também não prestou
atenção à conversa e está perdido tanto quanto eu.
— Oh, Dousseau — exclama Emilien, recuperando-se da crise de
risos. Bebe mais de sua água e seca os lábios com o guardanapo de pano. —
Juro que, no lugar do seu amigo, eu não teria deixado isso barato.
Por um mísero segundo, Bernardo me olha, sorrindo aquele seu
sorriso tão… lindo, acentuado pelas leves covinhas em torno das bochechas.
Encara-me por apenas um segundo, mas dentro deste segundo consigo sentir
a intensidade do seu olhar, consigo sentir o desejo latente, o mesmo que vi
quando nos olhamos pela primeira vez. Sinto-me acuada e incomodada.
Agora sabe que sou compromissada, então por que ainda me olha como se
me desejasse?
— E ele não deixou — completa, desviando o olhar para o anfitrião
da festa. Meu coração volta a bater normalmente; um alívio estranho
atravessa meu corpo. — Mas esta história não contarei. É inapropriada para o
momento — diz, entornando mais de seu vinho.
Busco pelo olhar de Antony mais uma vez. Ainda estático no lugar,
com seus olhos embriagados cravados em Bernardo, a linha do maxilar está
apertada, os músculos do rosto todos tensionados, enquanto Dousseau está
alheio a este olhar mortífero e segue conversando com o novo amigo.
— Chéri — chamo-o. Devagar, se vira para mim. — Está tudo bem?
Antony me analisa por um instante, estreitando os olhos em minha
direção. Aproxima-se mais e cochicha em meu ouvido:
— Fique longe deste homem.
Fico sem reação, não entendendo o porquê deste pedido. Busco pelos
seus olhos e o cheiro forte de álcool me acerta. Apenas aceno em positivo.
Estou me ajeitando em meu assento quando ouço-o completar:
— E pare de olhar para ele, Ann-Marie.
Diante essas palavras, não tenho reação nenhuma, apenas travo em
meu lugar.

Após o jantar delicioso e refinado, alguns de nós participa dos leilões.


Antony decide ir ao de obras de arte e eu o acompanho, deixando Emilien e o
restante do grupo no de joias. Com uma de suas ofertas, meu esposo
consegue adquirir um quadro muito bonito. Depois, faz uma contribuição
com um donativo de valor elevado e deixa um de seus cartões de crédito
comigo para que eu participe do leilão de joias. Penso que ficará comigo, ao
meu lado, mas depois de dar uma olhada ao redor, diz que retornará ao bar
para consumir um pouco mais e conversar com o prefeito, agora na
companhia de um famoso deputado, aconselhando-me a não “exagerar”.
Espero acabar o lance atual. O próximo é de uma gargantilha de
brilhantes que me chama muita atenção. É linda. Depois do lance inicial,
começam as ofertas das pessoas interessadas. Lanço logo no começo e
disputo com mais três mulheres. São mais ricas e podem ofertar mais do que
eu. Desisto quando sei que Antony não ficará nada feliz se eu gastar um valor
absurdo em seu cartão, embora tenhamos condições de pagar. Decido por não
continuar; assim desisto de tentar arrematar a joia e o leiloeiro já está
fechando a venda quando uma voz conhecida soa pelo salão logo atrás de
mim, cobrindo a oferta da socialite. A mulher sobe um pouco mais. Bernardo
dá outro lance maior e sua voz se aproxima a cada lance novo. Olho para trás
e o vejo com a acompanhante Marie.
Eles param bem de frente ao leiloeiro, dando o último lance e
arrematando a peça. Sinto-me estranha em saber que Dousseau fez o que fez
apenas para ter a gargantilha em mãos e presentear a mulher exuberante ao
seu lado. Engulo o nó em minha garganta e sorrio quando o casal se vira em
minha direção e me cumprimenta.
— Parabéns, monsieur Dousseau. Foi uma bela oferta —
cumprimento-o, apenas por educação.
Ele me responde com um dos seus sorrisos e se volta para buscar seu
prêmio. Que dará à sua… amante? Afasto os pensamentos e decido por não
ficar no mesmo ambiente que este homem. Se Antony aparecer por aqui, com
certeza tirará conclusões equivocadas e quero evitar confusão. Ao me virar,
porém, meu coração dá uma batida a menos.
Ele está na entrada do salão, seus olhos ainda mais vermelhos, paletó
desengonçado, camisa abarrotada. Começo a orar a Deus para dar algum tipo
de discernimento a este homem e que não faça nenhum escândalo. Sorrio um
sorriso forçado, tentando manter a calma. Não há o que temer. Não houve
nada. Volto a andar em sua direção e Antony vem ao meu encontro a passos
cambaleantes. Nem vejo quando sua mão forte me segura pelo braço e aplica
pressão desnecessária. Nossos olhos se encontram, os dele figuram raiva,
ódio, loucura… obsessão.
Pestanejo, tentando encontrar alguma palavra coerente para acalmá-
lo, mas não encontro nenhuma. Mesmo se encontrasse, não teria condições
nem tempo para alguma coisa. Ele me arrasta para fora, sem nada dizer,
puxando-me como se fosse um homem das cavernas. Por algum motivo
desconhecido, olho para trás e encontro os olhos amáveis e preocupados de
Bernardo. Dou um pequeno sorriso. Não faço a mínima ideia do porquê, mas
sorrio.
Quando sou puxada mais bruscamente e encaminhada para o jardim
atrás da mansão, volto ao mundo real. Paramos perto de um chafariz. Ele
passa a mão nos cabelos e anda de um lado a outro por um segundo antes de
dizer:
— Eu te mandei ficar longe dele. — Sua voz está mole e irritadiça. —
Longe, Ann-Marie! Mas outra vez estavam de papinho.
— Antony, não. — Tento explicar. — Só o parabenizei por ter
arrematado a joia no leilão.
Com um passo grande, me segura de novo pelo braço, aplicando outra
pressão desnecessária, desconfortável, que me machuca. Antony me sacoleja
como se eu fosse uma boneca de pano e brada:
— Não sou cego! Vi a troca de olhar entre vocês. Vejo como ele te
olha, com desejo! — Enquanto me sacoleja, saliva escapa de sua boca. O
cheiro de álcool quase me deixa bêbada.
É isso. Ele está bêbado. Por isso sua reação exagerada. Há uns oito
anos, pouco depois de nosso casamento, Antony vem demonstrando essas
crises de ciúmes, mas nunca nesse nível de agora.
— Chéri, se acalme! — peço, tentando me livrar de sua pegada. Meu
marido começa a me machucar, minha cabeça já está doendo por ser
balançada dessa maneira.
Ele ainda está gritando, chamando a atenção de todos, humilhando-
nos perante toda a sociedade de Paris. E o pior: magoando-me com suas
ofensas. Ao conseguir me soltar do seu aperto, desequilibro-me e caio no
gramado, desajeitada. Vejo-o se aproximar de mim cheio de fúria nos olhos.
— Acalme-se, Leclerc. — Dousseau o segura pelos braços, evitando
que faça seja lá o que fosse fazer ao se aproximar de mim desta maneira.
Marie aparece no meu campo de visão junto com Emilien e me ajuda
a me levantar, perguntando-me se estou bem. Estou baratinada demais para
dar qualquer resposta de imediato. Tudo que vejo é Bernardo tentando conter
meu marido, que ainda se debate.
— Solte-me! — brada, conseguindo se soltar. — Seu maldito
desgraçado! — Ao dizer isso, avança sobre Bernardo, desferindo um soco
forte em seu rosto. Tão forte que o derruba.
Dupont se apressa a contê-lo e evitar que avance mais sobre
Dousseau. Estou horrorizada demais com a cena para ter qualquer reação.
Antes de Emilien sequer poder segurar meu esposo, ele já se ergue e revida a
agressão.
Os dois se estatelam no chão e se agridem. Emilien consegue segurá-
lo e separá-lo de Antony, agora caído no gramado do quintal, balbuciando
alguma coisa, quase perdendo a consciência. Faço menção de correr até meu
marido e me certificar de que está tudo bem com ele, mas uma mão macia me
impede de tal ato. Viro-me e encontro os olhos de Marie. Move a cabeça em
negativa, desencorajando-me a me aproximar. Engulo em seco e acato sua
sugestão. A mulher está certa. No estado dele, tão… bêbado e desequilibrado,
depois de uma briga com outro homem, me aproximar é a coisa mais
desaconselhável e idiota a se fazer.
Dupont acalma os nossos nervos e ajuda meu marido a se levantar
com ajuda de uma terceira pessoa, levando-o para dentro. Não sei o que fazer,
não sei se vou atrás ou se fico. Ponho as mãos no rosto, segurando as
lágrimas para mim. A noite não poderia acabar de forma mais desastrosa.
Sinto um toque em meus ombros e me viro para encarar os olhos de
mademoiselle Julien.
— Monsieur Dupont vai cuidar dele, não se preocupe — diz, sacando
o celular do bolso. — Deveria ir pra casa, descansar. Vou ficar para te dar
notícias do seu marido. Você tem as chaves do carro?
Olho para baixo um instante. As pessoas ao redor, que presenciaram a
briga, estão se dissipando, agora que os nervos foram todos acalmados. Dou
uma olhada no entorno e vejo Bernardo ainda alterado, enquanto um terceiro
homem está conversando com ele e, provavelmente, pedindo para se manter
calmo.
— Eu… não sei dirigir. Não tenho carteira de motorista.
Marie me olha um momento como se isso fosse um erro imperdoável
e abana a cabeça em positivo.
— Posso chamar um táxi para te levar para casa — oferece.
— Não precisa. — É a voz masculina de Dousseau soando atrás de
mim. — Eu levo a senhora Leclerc para casa.
Nego-me a olhá-lo neste momento. Isso tudo é culpa dele. Se não
tivesse brigado com Antony… Oh Deus, que estou pensando? Ele estava
apenas tentando ajudar. Meu esposo quem partiu para a ignorância. Respiro
fundo e me viro em sua direção. Ponho meu melhor sorriso, mas o tiro no
instante seguinte. Há grandes hematomas espalhados em sua face; isso me
deixa estranhamente em choque.
— Não quero incomodar, monsieur Dousseau — nego, de forma
educada. — Posso esperar meu marido se recuperar e irmos para casa juntos.
— Antony está muito bêbado, madame — contraria, ainda soando
educado. — Sequer poderá dirigir e nem se recuperará de sua embriaguez
rapidamente. Precisará de, no mínimo, a noite toda para isso. Causei essa
confusão, de um jeito ou de outro, e me sentiria muito melhor se pudesse, ao
menos, te levar em segurança para sua casa.
Não sei por que, mas procuro pelos olhos de Marie, como se pudesse
me dizer o que fazer neste momento.
— Vá, ma chère. Eu ficarei para dar notícias de monsieur Leclerc.
Suspirando, cedo com um aceno de cabeça. Anoto meu telefone no
celular dela e volto para o salão para buscar minha bolsa de mão e meu
casaco. Quando retorno, Dousseau já está me esperando. Caminhamos em
silêncio até o estacionamento e permanecemos assim enquanto o manobrista
traz o veículo. A viagem é feita praticamente da mesma maneira, exceto pelo
único minuto em que passei meu endereço a ele, que colocou no GPS.
Permaneço dentro do carro mesmo quando chegamos. Sinto-o me
olhando e me analisando enquanto arrumo alguma coragem de me virar em
sua direção, agradecer pela carona e descer. Levo alguns segundos para isso
e, ao fazê-lo, me perco nos seus olhos claros. Ele é bonito. Não tem uma
beleza padronizada. É peculiar à sua maneira.
— Obrigada, monsieur Dousseau — agradeço, desviando o olhar um
segundo.
— Bernardo.
Sem entender, eu o olho.
— Me chame de Bernardo. Sei que não somos íntimos o bastante,
mas… Prefiro que me chame pelo nome — diz, com um sorriso bastante
bonito e galante.
Não é muito do costume francês chamarmos desconhecidos pelo
primeiro nome, e ele é isso para mim: um desconhecido. Nem mesmo deveria
ter aceitado sua oferta de carona. Só o aceitei por ser do círculo social de
Antony, então, de algum jeito, sei que é uma pessoa confiável.
— Prefiro te chamar pelo sobrenome — rebato, com delicadeza. Ele
abana a cabeça em positivo. — Je vous remercie — agradeço outra vez,
ajeitando minha bolsa, já prestes a descer do carro.
— De rien — responde.
Ponho a mão na maçaneta, então desisto, pois me lembro de um
detalhe que não posso me esquecer. Viro-me para ele de novo e o olho com
atenção, procurando pelas palavras para pedir tal coisa.
— Dousseau, posso te pedir um favor? — Sua resposta é um aceno
positivo. — Pode não dizer nada a Antony sobre ter me trazido para casa?
Eu… — Suspiro, desviando o olhar, levemente envergonhada. — Quero
evitar intrigas, entende? Ele é…
— … ciumento — completa em meu lugar. — Eu percebi.
— Não ia dizer necessariamente essa palavra. Ia dizer que…
— Eu entendi, Ann-Marie — interrompe-me. Sua audácia de me
chamar pelo primeiro nome não me incomoda. Pelo contrário, mexe comigo
de uma forma que não sou capaz de explicar.
Balanço a cabeça em positivo, aliviada por ele, em algum nível,
compreender meu pedido. Estou novamente prestes a descer do carro, mas
um toque em meu braço me impede pela segunda vez. A mão dele está sobre
minha pele. Isso mexe mais um pouco comigo. Encontro seus olhos, amáveis,
cravados nos meus. Já notei seu interesse em mim, porém, sua insistência em
me olhar com este desejo todo é desconcertante e inadmissível, uma vez que
sou uma mulher casada e ele sabe disso.
— Espere, tenho algo para te dar — diz, deixando-me surpresa.
Nem tenho tempo de responder e negar seja lá o que queira me dar,
pois ele já está se inclinando sobre meu corpo e abrindo o porta-luvas. Retira
uma caixinha de veludo e a abre em minha direção, revelando a gargantilha
de brilhantes arrematada no leilão. Meus olhos se arregalam diante a joia.
Encaro-o, espantada por tamanho atrevimento. Ora, nós nem nos conhecemos
direito e quer me presentear desta maneira? Poderia ser mais audacioso?
Estou abrindo a boca para dizer algumas palavras presas em minha
garganta, quando, por fim, me dou conta do que está acontecendo aqui.
Enrubesço no mesmo instante e meu coração dá uma batida a menos.
Bernardo não arrematou a joia para Marie, sua acompanhante, e sim para
mim.
Não sei o que dizer, nem o que sentir.
Este homem é… surpreendentemente petulante.
— Monsieur Dousseau, não posso aceitar isso.
— Por favor, Ann-Marie — insiste, novamente usando meu nome e o
tom informal, como se fôssemos íntimos o bastante para tal. — Vi que estava
tentando laçar a peça. E, embora saiba que você poderia muito bem ter a
comprado, por algum motivo desistiu dela. — Suspira, afasta o toque de suas
mãos em mim e me olha, mais atento, como se procurasse pelo meu eu
escondido no recôndito mais inalcançável de minha alma. — Arrematei esta
joia pra você, pois sei que a queria muito.
Fico o encarando por longos segundos sem saber que tipo de resposta
dar a este homem. Sua audácia me dá um nó no estômago e me desconcerta.
Audácia de me chamar pelo primeiro nome, de me presentear com algo tão
caro.
Afasto a gargantilha de meu alcance.
— Não posso aceitar, monsieur Dousseau. Mesmo se eu quisesse.
Não posso. O que meu marido pensará disto? Ele não se agradará com um
presente tão… inapropriado como esse. Por favor!
Insolente como ele só, ele aproxima a caixinha de veludo perto de
mim, apoiando-a sobre minhas palmas e fechando-as com suas mãos grandes.
Sinto seu toque macio e quente. Algo dentro de mim se remexe.
— Esconda por algum tempo. Depois, diga que encontrou em alguma
joalheria e como queria muito essa gargantilha desde que a viu no leilão,
então você comprou. Ele vai acreditar.
Horrorizada.
Estou horrorizada com tamanha sugestão. Bernardo quer que eu minta
para meu marido, perante os olhos de Deus, que não se agrada com mentiras.
— Sou uma mulher cristã, senhor Dousseau — repudio-o. — Fiel a
Deus e à igreja. Minha religião não tolera nem se agrada com mentiras como
essa.
Ele não diz nada, também não se afasta. Seu toque continua em minha
pele, fechando a caixa em minhas mãos. É tão inapropriada e ousada essa sua
aproximação. Seus olhos estão em mim, com um sorriso galante e charmoso,
doce feito mel, e não consigo me desviar mais deles. São tão… lindos.
— Vou aceitar a joia — pego-me dizendo. Oh, Deus, que estou
fazendo? Perdi todo meu juízo e temor ao Senhor? — Mas farei questão de
pagá-la em breve. — Vejo-o querer abrir a boca para, com toda certeza,
protestar minha decisão, mas não o deixo. — Isso ou não aceito seu presente
inconveniente.
Ele me dá um sorrisinho de lado.
— Está bem, madame Leclerc. — Sua voz é divertida. Creio que ele
está debochando de mim. Por que tenho a impressão de que não me deixará
pagar por esta gargantilha?
Estou me advertindo por aceitar o presente — mesmo sob meus
termos — quando ele sai do carro e abre a porta do passageiro para mim. Sua
grande mão direita está esticada em minha direção para me ajudar a descer.
Não a nego; sua pele quente outra vez me dá uma sensação diferente no
estômago. Agarro-me à joia como se minha vida dependesse disso enquanto
se aproxima e deixa um beijo estalado em minha bochecha.
Que homem mais insolente!
Quando se afasta, seus olhos claros estão nos meus.
— Salut, Ann-Marie — despede-se, a voz ainda divertida. Sua
informalidade me irrita.
Não me despeço de volta. Dou-lhe as costas e faço meu caminho. No
meio do percurso, porém, não me seguro e olho para trás. Minha pior
decisão.
Dousseau está encostado à lataria de seu carro, olhando-me com o
mesmo sorrisinho audaz e galante de antes.
E mais uma vez sinto algo diferente se remexer dentro de mim.
BERNARDO
Depois de deixá-la em sua casa, vou direto para meu apartamento,
sentindo apenas agora a dor nos hematomas em meu rosto. Maldito Antony.
Pegou-me completamente desprevenido quando estava apenas tentando
ajudar. Por todo o jantar, após tomar conhecimento de que Ann-Marie e ele
eram marido e mulher, senti seu olhar estranho e diferente em cima de mim.
Não vou mentir dizendo que não estou interessado nela. Estou. E
muito. Não me importaria em me envolver com ela, embora, se acontecesse,
seria a primeira vez a dormir com uma mulher casada. Sempre evito mulheres
compromissadas, entretanto, esta em especial me chamou atenção mais do
que de costume. É tão linda. Seu jeito recatado mexe comigo.
Quando Antony a arrastou para fora do salão onde ocorria o leilão de
joias, fiquei em alerta, como se um sexto sentindo tivesse despertado dentro
de mim. Fui atrás de Emilien e contei das minhas suspeitas. O homem estava
bêbado e parecia a ponto de ter um ataque de ciúmes por causa da esposa ter
trocado algumas palavras comigo. Encontramos os dois com facilidade,
cheguei a tempo de presenciar Leclerc transtornado. Derrubou a esposa e
estava prestes a avançar sobre ela quando o alcancei primeiro e o impedi de
cometer algo pior.
— Nunca te vi tão distraído dessa maneira — alguém pronuncia. Ergo
o olhar e noto que já estou frente ao meu apartamento. Saí do elevador e
cruzei todo o corredor sem nem perceber, perdido em meus pensamentos em
Ann-Marie. Não disse que antes de a noite acabar ela ainda ia me levar à
loucura? Pois bem…
Abro um pequeno sorriso para Marie, parada à minha porta, já aberta
— a vantagem de ela possuir uma cópia da chave —, a luz de lá de dentro
incidindo no corredor. Ainda vestida da mesma maneira que no evento de
Dupont. Não esperava vê-la, para ser sincero. Emilien quase não desgrudou
dela durante a noite e vi um interesse real e mútuo entre os dois.
— A razão é a madame Leclerc? — pergunta-me enquanto me
aproximo.
Entro e me jogo no sofá antes de qualquer coisa. Marie vem logo atrás
e, conhecendo meu apartamento tanto quanto eu, caminha até o minibar no
outro lado da sala e me serve com uma dose de uísque. Odeio uísque. Ela
sabe disso. Faço uma careta para o etílico oferecido. Insiste com um
movimento de mão; acabo cedendo e beberico do líquido âmbar.
— Obrigado — agradeço, enquanto ela está na minha cozinha,
preparando uma bolsa de gelo. — Odeio essa porcaria, mas sei que preciso
disso agora.
Ela se volta para mim com um sorriso meigo, se põe do meu lado e
encosta o gelo no meu supercílio esquerdo, onde há um corte pequeno.
— Você não me respondeu — diz, fazendo uma pequena pressão. —
A razão de sua distração é Ann-Marie?
Faço uma careta de dor.
— Sim. Estava pensando no motivo de Antony ter armado aquela
confusão.
Marie se afasta um instante e me olha nos olhos.
— Como se você não soubesse — aponta, com um sorrisinho. —
Ficou bem claro que foi por ciúmes… de você.
Suspiro, abaixo os olhos para meu uísque e tomo um gole pequeno.
— Descabido — respondo. — Não há motivos para sentir ciúmes de
mim. Represento alguma ameaça ao casamento dele? — pergunto,
procurando pelos seus olhos.
Marie entorta a cabeça levemente e me analisa.
— Você é uma ameaça a qualquer casamento, Ber. É bonito,
charmoso, galante… E galinha. — Rio de seu comentário e maneio a cabeça
em positivo. Segue pressionando o gelo em meus hematomas e ficamos em
silêncio por alguns segundos. — Demonstrou interesse em Ann-Marie que eu
vi. — Volta a dizer. — Antony sabe o tipo de homem que você é e se sentiu
ameaçado. Mas se quer uma opinião sincera, é babaquice dele. — Olho-a
com atenção, esperando-a terminar sua frase. — Ele não confia na própria
esposa. Poderia ser o próprio Brad Pitt, se não confia na companheira, faria
showzinho, é óbvio.
Analiso suas palavras por um instante.
— Acha que não tenho chances com Ann-Marie?
Ela arregala os olhos e até para com sua tarefa de pressionar o gelo
em algumas partes do meu rosto.
— Está pensando em seduzi-la?
Dou de ombros.
— Se eu tivesse uma chance, talvez.
— Bernardo… — diz, com tom de advertência. — Já viu do que
Antony é capaz. É um homem ciumento. Por favor, não se meta nisso. Além
do mais… ela é uma mulher…
— … religiosa — completo. — Eu sei. — Marie me analisa por mais
alguns segundos. — Não tenho chances nenhuma. Tudo bem. Vou esquecer
essa mulher — garanto, embora não tenha tanta certeza assim.
Termino meu uísque, Marie termina sua tarefa de amenizar os
hematomas no meu rosto. Depois, me dá alguns analgésicos para dor.
Pegando uma pomada no meu kit de primeiros socorros, se põe ao meu lado
de novo e começa a espalhar o creme nos roxos em minha face.
— Tem tido notícias do Alfredo? — Marie pergunta, segundos depois
de ficarmos em silêncio absoluto. Viro meu pescoço em sua direção
lentamente.
Dou um pequeno sorriso. É engraçado me recordar de como nos
conhecemos. Foi exatamente por causa do crétin. Foi na época em que ele e
Lívia haviam rompido por conta de um segredo dela. Para esfriar a cabeça,
Alfredo veio passar uma temporada na França. Aqui, conheceu e se envolveu
com Marie. Algum tempo depois, a ex-noiva apareceu no país, pedindo sua
ajuda. Meu melhor amigo então precisou voltar ao Brasil, meio que às
pressas.
Dois ou três dias depois de sua partida, Marie foi o procurar na
cafeteria, porque, pelo que eu soube, quando Lívia bateu na porta do
apartamento dele, ela estava por lá, pois tinham transado na noite anterior.
Tinha sido o último dia em que os dois se viram. Falei sobre sua volta
repentina ao Brasil por questões familiares e ficou por isso mesmo. Marie
acabou voltando outras vezes à cafeteria, se tornou uma cliente fiel e, num
dia desses, meses atrás, acabamos transando pela primeira vez. Desde a
partida do meu melhor amigo — e isso já tem bastante tempo — nunca mais
me perguntou dele. Não sei por que o faz agora.
— Nós nos falamos hoje pela manhã quando eu estava na Avenue. Te
contei que ele tem uma filhinha? Deve estar com um ano mais ou menos —
comento, de forma casual.
Marie me dá um sorriso sincero e abana a cabeça em negativo.
— Não me contou. É filha dele com aquela moça que veio procurá-lo
uns anos atrás? E com quem já tem um filho, um menino muito bonito, aliás?
— Sim, essa mesma. Demorou, mas os dois por fim se entenderam.
— Sorrio. — Se casaram e tudo mais. E pensar que uns dez anos atrás ele era
um verdadeiro cretino. — Rio e balanço a cabeça.
É verdade quando dizem que uma mulher é capaz de mudar um
homem. Nesse caso, duas, uma vez que a primeira esposa dele foi Sophie
Dubois — que descanse em paz — e em muito foi responsável pela mudança
no comportamento do meu melhor amigo.
— E você? — Marie indaga, terminando de passar a pomada em mim.
— Não pensa em sossegar o facho com alguém? Namorar, casar, ter filhos?
Já está entrando na casa dos quarenta, não?
Olho-a um instante e analiso sua pergunta. Realmente nunca me
interessei nisso. Não que eu tenha sido algum dia uma cópia mais bonita e
gostosa de Alfredo. Como já disse, minhas amantes sempre souberam das
minhas intenções. Entretanto, também nunca tive esse desejo de namorar,
casar ou formar família. Nunca me envolvi com alguém o bastante para isso.
— Se um dia surgir alguém que consiga me prender a esse ponto,
sossego o facho — brinco, dando um peteleco em seu nariz.
Marie ri e me empurra. Encosta sua cabeça em meu ombro e ficamos
novamente em silêncio. Por um minuto, penso mais uma vez em suas
palavras. Nunca fugi, ignorei ou evitei o amor, não tive medo de me
apaixonar, nem nada do tipo. Se até hoje nunca amei alguém a ponto de
querer casar e ter filhos foi por simplesmente não ter acontecido.
E isso me faz questionar meus próprios sentimentos.
Alfredo sempre repudiou relacionamentos. Ele envolvia as garotas,
transava com elas e depois as abandonava. Era sempre assim. Dificilmente
transava com alguma mulher mais do que uma vez. Não se envolvia, de
forma alguma. Seu maior prazer era vê-las de coração partido. Ele sim era um
babaca sem sentimentos, que fugia de relacionamentos como o diabo foge da
cruz. Mas em algum momento dos seus trinta e poucos anos, reencontrou
uma das meninas de quem partiu o coração e… puft! Estava apaixonado.
Então qual o problema comigo? Jamais faria o que meu melhor amigo
fez. Gosto de sexo sem compromisso, encontros casuais e mulheres bonitas
na minha cama que me satisfaçam. Namorei poucas vezes e posso dizer não
as ter amado. Certamente fiquei encantado, mas não amei. Fico me
perguntando então se sou incapaz de amar alguma mulher…
— Está pensativo de novo. — Marie me puxa de volta ao mundo
real.
Viro-me para ela e vejo seus olhos âmbar brilhando em minha
direção. Sorrio ao constatar que não tenho nenhum problema em relação aos
meus sentimentos. Amo as mulheres. Todas elas. Amo tanto que não quero
ter apenas uma, nem me prender a elas. Isso é, querendo ou não, uma forma
de amar. Não da forma convencional, talvez não da forma como a sociedade
quer impor, mas eu as amo. As que já passaram pela minha cama e as que
ainda vão passar. E talvez não exista uma capaz de me fazer querer esquecer
todas as outras.
Ou talvez exista. Quem pode dizer?
Paro de me preocupar com tanta bobagem, aproximo meus lábios dos
de Marie e a beijo, respondendo em seguida:
— Estava apenas pensando nas posições que vou te comer hoje à
noite.
Ela sorri em minha boca e começa a me despir.

Estou no Avenue Coffee em um horário movimentado, ajudando


Juliette a comandar a equipe de funcionários. Eu deveria estar na gerência,
conferindo a lista de fornecedores e dos produtos que preciso encomendar
para a cafeteria, porém acabei precisando vir auxiliá-la. Os horários de picos
sempre deixam todos com os nervos à flor da pele.
Estou distraído no caixa, cobrindo a funcionária que se ausentou para
ir ao banheiro, enquanto contabilizo as vendas do primeiro período, embora
isso seja trabalho da minha gerente.
— Dousseau. — A voz que me chama é conhecida. Ergo o olhar
imediatamente e dou de cara com Antony. Ele está dentro do seu terno caro,
rosto e olhares impassíveis, alguns hematomas roxos na pele branca. Tento
não sorrir diante à constatação de que o acertei para valer, como homem, e
não como um covarde, igual a ele, que precisou me pegar desprevenido.
Olho por cima dos seus ombros, procurando por alguém que esteja lhe
fazendo companhia — não sua esposa necessariamente. Emilien, por
exemplo.
— Está procurando pela minha mulher assim, na caradura? —
praticamente rosna.
Volto a olhá-lo e dou um sorriso prático.
— Não estou procurando sua mulher, Leclerc. Queria apenas saber se
está na companhia de algum amigo. Você dificilmente vem sozinho aqui.
Onde está Dupont, ou aquele político com quem sempre anda para cima e
para baixo?
Antony se ajeita em uma das banquetas no balcão e chama uma de
minhas funcionárias, que prontamente vem atendê-lo. Deixo a contabilidade
do caixa de lado assim que a responsável chega. Aproximo-me de onde
Leclerc está e o encaro, esperando-o dizer o que queria comigo ao chegar.
— Sobre ontem… — começa, olhando para algum ponto atrás de
mim. — Quero me desculpar com você. — Sua desculpa me pega de
surpresa, confesso. Não esperava por uma retratação de sua parte, de jeito
nenhum. — Eu estava bêbado e tenho tendências a ser agressivo quando
nesse estado.
Maneio a cabeça em positivo e semicerro os olhos em sua direção.
Não sei se acredito muito em suas palavras. Tenho quase quarenta anos e,
acreditem, já vi e vivi muita coisa. Não sou muito de acreditar nisso de “fico
alterado quando bebo”. Na grande maioria das vezes, o álcool apenas revela
quem a pessoa realmente é. Minha mãe já dizia que quando estamos bêbados
falamos e fazemos coisas que, em sã consciência, não teríamos coragem.
— Você estava machucando sua esposa. Vi você a agredindo —
acuso, cruzando os braços. Ele me encara com um olhar cheio de ódio, talvez
muito incomodado com minha acusação.
— Não a agredi — defende-se, ofendido. — Já expliquei que…
— Oui, oui, entendi. Ainda assim, não muda o fato de que estava
prestes a machucá-la, mesmo sem intenção.
— E por que esse interesse súbito em defender minha mulher,
Dousseau? — pergunta. Juliette se aproxima com o pedido dele, apenas um
café, e nós dois ficamos em silêncio enquanto é servido. Antes de ela se
afastar, Antony agradece. — Merci, Juliette.
Franzo o cenho levemente ao ver a leve interação dos dois. Juliette
devolve o agradecimento com um “De rien, Antony”. Isso não me escapa, de
forma alguma, uma vez que usaram expressões informais, mais usadas para
com quem temos intimidade. É o costume francês. E, até onde sei, os dois
não são íntimos o bastante para se tratarem informalmente.
Afasto os pensamentos da cabeça com um leve mover. Leclerc
frequenta minha cafeteria já tem um bom tempo, Gautier conhece todos os
clientes fiéis. Com um ou outro ela já pegou amizade. Não seria a primeira
vez a acontecer. Inclusive aconteceu comigo. Marie é a prova viva disso.
— Não fuja do meu questionamento — exige, baixo, tomando um
pouco do seu café.
— Não é um interesse meu de defender a sua esposa — devolvo. —
Teria feito com qualquer madame ou mademoiselle na mesma situação,
independente de quem fosse o homem as acompanhando ou quem elas
fossem.
Leclerc me estuda por longos segundos, a borda da xícara contra seus
lábios franzidos, os olhos semicerrados e atentos em minha direção. Por fim,
baixa a xícara no pires e diz:
— Fique longe da minha esposa. — Sinto ameaça em seu tom.
— Isso é uma ameaça? — Dou um passo à frente, o balcão nos
separando.
— Isso é um aviso — contrapõe-se. — De homem para homem, fique
longe de Ann-Marie.
— Não confia nela? — provoco, com um sorriso canalha.
Ele dá uma risada seca e limpa os lábios com um guardanapo.
— Em minha esposa confio cegamente. Ann-Marie é mulher direita,
você me ofende e mancha a integridade dela quando pondera que seria capaz
de se deitar com qualquer outro homem que não seja eu. Como dizia, confio
em minha esposa. — Seus olhos me fitam com mais atenção, o rosto
vermelho de raiva. — Não confio em você. Escute-me, Dousseau, tente
seduzi-la e farei questão de quebrar sua cara sem me desculpar por isso.
Não me agrado com sua ameaça, seu tom de voz, sua afronta. Quem
pensa que é para me dirigir a palavra desta maneira? Quem pensa que é para
me ameaçar assim, no meu café, na frente dos meus clientes e funcionários?
Espalmo contra o balcão deixando nossos rostos bem próximos um do
outro, e respondo:
— Primeiro, nunca mais me ameace dessa maneira. Da próxima vez,
seja homem o bastante para cumprir o que deseja fazer comigo. Cão que
ladra, não morde, já ouviu esse ditado? — Vejo raiva e ódio atravessar o
olhar dele. Ignoro-o e continuo dizendo: — Em segundo lugar, não se
preocupe comigo em relação à sua esposa. Jamais me interessaria por alguém
tão sem graça como ela. — Dou um sorriso cínico. — Gosto de mulheres
liberais, Antony. E aposto que sua mulher sequer te chupa. Ela deve dizer
“Deus não se agrada com isso”. É uma patética, jamais iria querê-la na minha
cama. Então… não se preocupe, não vou seduzir sua esposa — termino e me
afasto.
Antony tem um olhar mortífero em minha direção. Os punhos estão
cerrados sobre o balcão e sei que o homem se segura para não pular o
obstáculo nos separando e partir para a briga. Pois que ele venha. Que eu
quebre todo meu aparato da cafeteria desde que possa quebrá-lo junto.
Levantando-se em um movimento brusco, joga alguns euros sobre o
balcão, ajeita a gola do casaco e deixa a cafeteria. Só quando cruza a porta
que me dou conta do quanto fui um escroto ao dizer todas aquelas palavras
sobre Ann-Marie. Além de inescrupulosas, foram palavras mentirosas.
Desejo-a de qualquer maneira, sendo uma cristã fiel ou uma ateia convicta.
Eu a quero, com toda sua religiosidade, sua postura meio tímida e recatada. E
se houvesse uma chance de seduzi-la, de levá-la para minha cama, eu o faria,
com toda certeza.
Sem nem pensar duas vezes.
ANN-MARIE
Olho-me no espelho por mais tempo do que normalmente faço. Estou
tentada a voltar para o quarto, abrir uma das minhas gavetas no closet, puxar
uma caixa para fora e olhar para a gargantilha pela vigésima vez.
Oh, Deus, que há comigo que não consigo parar de pensar na atitude
de Dousseau em ter se preocupado em me arrematar aquela joia? Sequer
consegui dormir direito esta noite e nem foi por estar preocupada com
Antony — em partes, era —, mas por não ser capaz de parar de pensar
naquele homem e em seu ato.
Passei boas horas sentada na cama, com os pensamentos vagando em
meu marido enquanto olhava para a joia brilhante frente aos meus olhos.
Precisei de algum esforço para escondê-la na caixa, fechar com o cadeado e
esconder no closet. Antony nem pode desconfiar de que fui presenteada por
Dousseau. As coisas piorariam consideravelmente.
A senhorita Marie me deu algumas notícias de meu marido ao longo
da noite. Bêbado como estava, não tinha condições alguma de voltar para
casa, por isso, Emilien o levou para sua cobertura e o deixou passar a noite lá.
Fiquei mais aliviada em saber que estaria bem cuidado e em segurança.
Pela manhã, ao me levantar, a vontade de pôr as mãos na gargantilha,
senti-la e ficar relembrando do sorriso dele e de sua gentileza em me
presentear — uma completa desconhecida para ele — quase me dominou. Fiz
algum esforço para ignorar meus desejos e ir direto para o banheiro. Agora
estou aqui, frente ao espelho, ainda me esforçando para não ceder às minhas
vontades. Não posso ficar pensando naquele homem desta maneira e nem
posso arriscar que Antony descubra sobre a gargantilha. Dentro de algumas
semanas direi que comprei em alguma joalheira.
Fecho os olhos e faço uma prece mental para Deus, pedindo perdão
por ter de mentir ao meu marido deste jeito.
Marido este que, aliás, ainda não chegou. E já passam das nove da
manhã. Onde estará este homem?
Lavo o rosto após a higiene bucal. Sigo para o quarto, sento-me à
penteadeira e escovo meus cabelos, reprimindo a vontade de pegar o telefone
e ligar para meu esposo e saber de seu paradeiro. E se ele foi direto para a
galeria trabalhar? Não quero incomodá-lo. Talvez devesse ligar para
Dupont… Também titubeio nesta decisão. É alguém tão ocupado quanto.
Suspiro, decidindo que se meu esposo não aparecer até por volta do horário
do almoço, não hesitarei em telefonar para ele.
Para meu alívio, vinte minutos depois Antony chega em casa. Usa as
mesmas roupas da noite anterior, sua camisa branca, que inclusive tem alguns
respingos de sangue — e não sei dizer se é dele ou de Bernardo. Levanto-me
do meu lugar no mesmo instante e vou em sua direção, preocupada. Abraço-o
forte, depois me afasto e o analiso um instante. Seu rosto está lesionado,
naturalmente, uma vez que Dousseau o acertou.
— Chéri… — murmuro, tornando a abraçá-lo. — Você está bem?
— Estou, ma chérie. Não se preocupe — diz amável e retribui ao meu
abraço. — Quem te trouxe para casa?
Meu corpo trava entre os braços dele. O amargor toma conta de minha
boca, meu coração acelera tanto que tenho medo de que Antony possa sentir
as batidas descompassadas e loucas. Minha consciência acusa — eu
precisarei mentir para meu marido e isso é tão errado!
Deus, perdoe-me por isso, rezo enquanto ainda estou nos braços de
Antony.
— Responda-me — exige, com voz de comando.
— Marie… a acompanhante do monsieur Dousseau me chamou um
táxi, chéri. — Sinto o corpo dele se retesar a menção desse sobrenome.
Apesar disso, não diz nada, apenas acena em positivo e beija o topo de minha
cabeça.
— Vou tomar um banho, trocar de roupa e ir para a galeria — diz, de
um jeito frio.
Não tenho tempo para respondê-lo. Antony já desfez nosso abraço e
entrou no banheiro.
Vencida pela vontade, corro até o closet, aproveitando da breve
ausência de meu esposo, puxo a caixa para fora, coloco a senha do cadeado e
tomo a gargantilha em mãos. Observo-a por um ou dois minutos inteiros,
sentindo algo tão… estranho dentro de mim. Penso em Bernardo, em seus
olhos, seu sorriso, gentileza. Penso na sua audácia de, mesmo nós dois não
sendo íntimos, me chamar pelo primeiro nome. Fecho os olhos e consigo
visualizar seus lábios pronunciando meu nome.
É tão…
Sexy, que se diz?
Horrorizada, balanço a cabeça, desfazendo-me desses pensamentos.
Guardo a joia de volta à caixa, tranco-a novamente e a empurro para o local
mais fundo. Volto ao quarto, pego meu terço na gaveta do criado-mudo,
ajoelho-me na cama e rezo. Rezo pedindo perdão a Deus pelos meus
pensamentos inadequados e pelas minhas mentiras.

Já tem uma semana desde o evento beneficente de Dupont. Uma


semana desde a briga no evento de Dupont. Uma semana desde que recebi
esse presente estúpido entre meus dedos.
Sentada, de pernas cruzadas, praticamente escondida dentro do closet,
estou segurando a joia novamente, encarando-a, analisando-a com cuidado,
sendo impossível não reprisar em minha mente todos os acontecimentos
daquela noite: do momento em que o conheci ao momento que me deixou
aqui na porta.
Embora tenha relutado, estar aqui, todos os dias na última semana,
segurando essa gargantilha estupidamente cara, cedi às minhas vontades e cá
estou, com os pensamentos vagando em Bernardo Dousseau e em como
desejo muito — muito mesmo — poder colocar esse adorno em meu pescoço.
É uma bela peça, isto é inegável, e meu interesse nela foi muito sincero.
Sorrio pela milionésima vez ao me recordar da atitude gentil dele de
arrematá-la para mim.
Desfaço o sorriso, guardo a joia de volta ao seu esconderijo e saio
para meu quarto.
Não sei o que há comigo e por que fico tão mexida com esse gesto de
Dousseau. Ora, é apenas um cavalheiro. Tenho certeza que teria feito o
mesmo com qualquer outra mulher.
— Não seja patética, Ann-Marie — repreendo-me, tirando minhas
roupas de dormir e vestindo outro par que está sobre minha cama e
previamente escolhida um dia antes. — Bernardo realmente não faria isso
com qualquer outra. Está interessado em você, não percebe?
Paro de falar comigo mesma e me viro para o espelho comprido.
Olho-me por alguns instantes, não conseguindo realmente me achar bonita. O
que poderia ter visto em mim, afinal? Tudo bem, não sou de toda desajeitada,
nem deselegante, tampouco muito feia. Porém, também não sou um modelo
de beleza. Não sou bela como aquela Marie. Há milhares de outras mulheres
muito mais interessantes e belas do que eu.
Tomo um susto quando um soar alto ecoa pelo quarto. Viro-me e,
sobre o criado-mudo, vejo o celular de Antony. Ele deve ter saído para o
trabalho e se esquecido do aparelho. Aproximo-me e não reconheço o
número identificado na tela. Resolvo atender a ligação, pois pode ser algo
importante:
— Alô.
Não recebo resposta alguma por alguns segundos.
— Pardon. — É uma voz feminina. — Liguei para o número errado.
Desculpe o incômodo.
Eu nem tenho tempo de responder, pois a mulher do outro lado da
linha já desligou.
Termino de me arrumar e decido por levar o celular para Antony.
Confiro minha carteira, documentos e alguns euros. Chamo um táxi e, vinte e
cinco minutos depois, estou a caminho. O conjunto de lojas no corredor de
um dos principais centros de Paris foi herança de meu pai e meu sogro,
amigos desde a infância. Como filha única, não poderia assumir os negócios
quando meu pai se aposentasse — era necessário um homem, segundo
Armand Fleury. Por isso, meu casamento com Antony foi arranjado e é ele
quem está no comando da galeria desde que nos casamos, há cerca de dez
anos.
Caminho pelo extenso corredor, observando as lojas alocadas. A
maioria é de roupas, muitas delas de marcas. Outras são usadas como
restaurantes, pequenos cafés, chocolatarias, cervejaria, fast-food. Sigo até o
final do extenso corredor pavimentado e viro à esquerda, subindo alguns
lances de degraus até o escritório de Antony. No percurso, cumprimento
alguns funcionários do prédio, como um segurança e o zelador.
Encontro a porta de seu escritório fechada. Frequento a galeria muito
pouco, mas o bastante para saber que quando a porta está fechada significa
que Antony não está. Provavelmente deve estar resolvendo alguma coisa.
Mesmo sabendo desta pequena regra, arrisco-me a dar duas batidas no vidro e
chamá-lo. A falta de resposta apenas confirma o que já sabia.
Uma auxiliar de limpeza está vindo por um dos corredores; abordo-a:
— Excusez-moi. — Sorrio quando a mulher para para me atender e
olho em direção ao escritório de meu marido. — Por acaso sabe me dizer
onde Antony Leclerc está?
A simpática senhora olha em seu relógio de pulso.
— Monsieur Leclerc sai meia hora para o café neste horário, madame.
Ele frequenta o Avenue Coffee, logo aqui em frente.
Agradeço pela informação e sigo para o local indicado. Antes de
atravessar a rua, localizo o café. Tem uma fachada de vidro e daqui posso ver
as mesas elegantes e refinadas distribuídas pelo salão principal. Atravesso a
rua, empurro a porta de vidro e o procuro dentre os clientes — muitos,
ressalto. Encontro-o apenas um segundo depois. Está na companhia de
Emilien. Os dois conversam e riem discretamente de alguma coisa.
Aproximo-me rapidamente, pondo meu melhor sorriso no rosto. Estou perto
de alcançá-lo quando sou abordada:
— Mademoiselle, precisa de ajuda? — Viro-me, reconhecendo essa
voz de algum lugar. Dou de cara com uma moça jovem, talvez não mais do
que vinte e oito, cabelos acastanhados, estatura média e muito bonita.
Embora suas roupas sejam elegantes e o corte pareça ter sido sob medida, é
nitidamente o uniforme da cafeteria. Deve ser a gerente ou supervisora, sua
vestimenta não esconde a escala hierárquica a qual pertence dentro deste
estabelecimento. — Je suis Juliette, em que posso ajudar, mademoiselle?
— Madame — corrijo-a gentilmente. Ela acena em positivo. — Vim
me encontrar com meu marido, Antony Leclerc.
Tenho a impressão de vê-la perdendo a compostura por apenas um
segundo. Seu sorriso amigável no rosto vacila. Quase de forma imperceptível,
mas vacila. Deve conhecê-lo, obviamente. Se meu esposo é um frequentador
assíduo deste café, seu nome é reconhecido.
— Claro — diz, cordial, recuperando sua postura, que, aliás, não
compreendi por que chegou a vacilar. — Acredito que já o tenha localizado.
Fique à vontade, madame Leclerc. Pedirei a alguém para vir retirar seu
pedido.
Estou abrindo a boca para dizer que não pretendo ficar, mas a mulher
já me deu as costas e está se afastando.
— Ann-Marie? — Antony me chama, surpreso. Quando me viro em
sua direção, ele já está a um centímetro de mim, olhando-me atentamente, as
grossas sobrancelhas franzidas, mãos no bolso, os lábios finos apertados. —
O que está fazendo aqui? — Sinto-o segurando a tensão atrás dos dentes.
— Salut, mon chéri — cumprimento-o e o abraço por um segundo. —
Você se esqueceu de seu celular em casa. Vim trazê-lo — explico, revirando
a bolsa atrás do telefone. Ainda estou procurando pelo aparelho quando sou
agarrada pelo braço e levada até a mesa onde está acompanhado do amigo. —
Salut, monsieur Dupont — cumprimento-o, e ele me responde erguendo sua
xícara de café em minha direção.
Antony arruma uma terceira cadeira para mim ao seu lado.
— Une belle surprise, n'est-ce pas, Antony? — “Uma bela surpresa,
não é?”
— Certamente — responde, mas seu tom de voz denuncia o contrário.
Não compreendo sua postura, apenas vim trazer seu celular, uma vez que
poderia receber ligações importantes. Ignoro seu mau humor, afinal, não sei
como foi seu dia até o momento — embora ainda nem seja o horário do
almoço direito — para deixá-lo irritado e decido cumprir com a missão que
me trouxe até aqui.
Enquanto Antony pede um café para mim, reviro a bolsa outra vez
atrás de seu telefone.
— Aqui está, mon ange — digo, encontrando o aparelho e o
entregando. Antony o toma em mãos e me dá um sorriso. — Você o esqueceu
em casa, sobre o criado-mudo, considerei que seria importante para você.
— Oh, Ann-Marie, não deveria ter se dado o trabalho. Notei mesmo
ter me esquecido do celular, mas não era necessário ter se incomodado desta
maneira. Há o telefone em meu escritório para qualquer urgência ou contato
comigo. De qualquer maneira — continua, verificando a tela do telefone —,
agradeço sua preocupação. Você é mesmo uma mulher incrível.
Fico feliz com seu elogio — afinal, ele não é lá muito dessas
gentilezas — e me inclino para deixar um beijo em seu rosto.
— Você recebeu uma ligação, porém era engano — informo. Meu
esposo ergue o olhar para mim. Sua expressão é marcada pelo franzir dos
sobrolhos.
— Atendeu meu celular? — A voz está controlada, entretanto,
reconheço seu desagrado pela minha atitude.
— Sim. Pensei que poderia ser algo importante.
Ele baixa o olhar e verifica a tela novamente. Vejo uma linha tensa
surgir em seu maxilar quando vê o número no histórico de chamadas
recebidas.
— Conhece este número? — pergunto, meio desconfiada.
Ele guarda o celular no bolso de seu casaco muito rapidamente, ao
mesmo tempo em que Juliette surge trazendo meu café, um copinho de água
gaseificada e um pequeno chocolate amargo ao lado da xícara sobre o pires.
— Non, mon amour. Como disse, foi apenas um engano.
— Deseja algo mais, monsieur Leclerc? — Juliette pergunta.
Observo-a por um segundo, tentando afastar da cabeça de que conheço esta
voz de algum lugar.
— Non, Gautier. Je vous remercie.
Com apenas um aceno de cabeça, a moça se afasta.
Antony e Dupont retomam o assunto logo em seguida. O assunto é,
como sempre quando Emilien está envolvido, investimento, negócios e bolsa
de valores. Retiro um livro em minha bolsa e, enquanto degusto do café, faço
minha leitura. Uma vez que não entendo nada do que meu marido e seu
amigo estão conversando, e para não me sentir deslocada, entediada e uma
intrusa, ler me fará me desligar do mundo, dando espaço e liberdade para
conversarem.
Leio bem umas quinze páginas quando, por fim, Antony me convida
para irmos embora. Ele me deixará em casa, almoçaremos e depois retornará
para o trabalho. Dupont paga sua parte no consumo e se despede, alegando
estar atrasado para alguma reunião. Depois de pagar sua parte, meu esposo
me pede um segundo para ir até ao banheiro antes de seguirmos para casa.
Decido esperá-lo no lado de fora da cafeteria lendo o restante do
capítulo. Estou saindo, distraída enquanto procuro onde marquei a página,
quando esbarro em alguém na porta de vidro. Desequilibro-me nos saltos e só
não caio porque sou amparada.
— Je suis désolé — lamento, com uma risada sem graça,
recompondo-me. Ao erguer os olhos, deparo-me com o homem que eu menos
esperava ver neste momento.
— Ann-Marie — diz, surpreso ao me ver. Um sorriso galante brota no
canto de sua boca, revelando aquela covinha irritantemente charmosa.
Pestanejo três vezes, só agora me dando conta de que, outra vez, me chamou
pelo primeiro nome.
— Monsieur Dousseau — digo, do jeito mais formal que encontro.
Empino o nariz e corrijo a postura. Preciso colocá-lo em seu lugar. —
Desculpe pelo esbarrão. Eu estava distraída.
— Notei — afirma, com um sorriso divertido. Suas sobrancelhas se
balançam um instante em minha direção e, um segundo depois, fica sério. —
Está acompanhada de seu marido? — pergunta.
— Oui — digo apenas.
Ele semicerra os olhos e depois vasculha o local, como se à procura
de Antony.
— Entendo — murmura, olhando-me novamente. — E como tem
passado, desde a última semana? — indaga, mostrando um real interesse.
— Muito bem, obrigada. — Tento soar o mais evasiva possível. Não
posso dar corda a ele. Conheço Antony, se me vir conversando com
Bernardo… Teremos outro escândalo aqui, e não quero isso. — Preciso ir,
monsieur Dousseau. Vou esperar meu esposo lá fora. Excusez-moi — digo.
Já estou com metade do corpo para fora quando o ouço dizer:
— Volte sempre.
Giro nos calcanhares e o encaro. Ele está ali, a meio metro, com as
mãos no bolso e o sorriso meio brincalhão, meio galante.
— Do que está falando?
Com um passo adiante, vence a distância entre nós.
— Ann-Marie, vai me dizer que não sabia? — murmura, para que
somente eu o escute me chamar ainda mais intimamente. Meu corpo
estremece ao som do meu nome em seus lábios. — Sou o proprietário desta
cafeteria — ele joga a bomba assim, em cima de mim e se afasta, dando-me
as costas e adentrando mais o estabelecimento. — Espero que tenha
apreciado nosso café, madame Leclerc. — Sua formalidade é um nítido
deboche.
O ar parece faltar em meus pulmões. Deixo a cafeteria no mesmo
instante, respirando fundo o ar parisiense. Controlo a respiração e tento, de
alguma maneira, entender por que Antony frequenta a cafeteria de Dousseau.
Fecho os olhos e regulo minha frequência cardíaca. Esforço-me ao máximo
para não pensar em como parece que Bernardo e eu tivemos nossos caminhos
cruzados.
BERNARDO
Parece improvável Antony Leclerc ter voltado a frequentar minha
cafeteria depois de termos saído no braço e eu ter o provocado a despeito de
sua esposa. Francamente, esperava ter perdido um cliente fiel por conta disso.
Entretanto, apenas três dias depois de aparecer aqui se desculpando por sua
postura e me pedindo para ficar longe de sua mulher, ele entrou por aquela
porta de vidro, acompanhado de Emilien e seus amigos políticos, escolheram
uma mesa, fizeram seus pedidos, conversaram e comeram como sempre
fizeram.
Todo dia, desde então, Antony vem aqui, no mesmo horário, quase
sempre junto dos mesmos homens, consome as mesmas coisas e vai embora.
Nós mal trocamos um olhar — não por aversão um ao outro, e sim por
estarmos ocupados demais com outras coisas: eu, com meu trabalho na
cafeteria, ele, com seus colegas. Ontem, inclusive, antes de sair, Leclerc se
despediu de mim de forma amigável, desejando-me bom-dia e bons
negócios.
Para ser bem sincero, fico feliz que por alguma razão Antony tenha se
esquecido e superado nossa pequena desavença — causada por ele próprio,
aliás. Talvez tenha colocado a mão na consciência e notado como foi um
babaca, principalmente com Ann-Marie.
Falando nessa mulher, ainda estou pensando na surpresa que
atravessou os olhos dela quando nos esbarramos, menos de cinco minutos
atrás. Só então me dou conta de que, nesse tempo todo em que seu marido
frequenta minha cafeteria, essa é a primeira vez que ela vem aqui. Ou a
primeira vez que a vejo vir aqui. Essa questão me faz pensar em sua vida. O
que faz para ocupar seu tempo?
— Au revoir, Bernardo — Antony diz, surgindo de algum lugar e
deixando a cafeteria, mal me dando tempo de respondê-lo.
Trabalho o restante da tarde trancafiado no meu escritório, quase
incapaz de me concentrar por causa de uma mulher de belos olhos azuis.
Droga, que diabos há comigo? Não me recordo de em nenhum momento de
minha vida ter ficado tão obcecado por uma mulher como está acontecendo
em relação a Ann-Marie Leclerc. Casada, ainda por cima. Com um fiel
cliente da minha cafeteria e, em algum nível, um amigo, para piorar a
situação. Cristã fiel à igreja, para o meu azar. Que chances tenho com essa
mulher? Nenhuma e menos dez.
Concentro-me em meu trabalho novamente, esforçando-me para não
pensar nela.
Finalizo meu expediente por volta de oito horas, mas o café continua
aberto até às vinte e duas, sendo comandada e gerenciada pelo pessoal do
segundo turno. Despeço-me de todos e sigo para meu apartamento.
Para minha surpresa, Marie está aqui, trajando apenas uma das
minhas camisas e cozinhando.
Em silêncio, me aproximo, pego uma garrafa de vinho e me sirvo.
Minha amante já tem a taça dela pela metade, por isso não me preocupo em
oferecer. Sento-me à banqueta do balcão e a observo por um segundo.
— Tenho uma coisa para te dizer — comenta, trazendo a comida e a
apoiando-a no balcão que divide a cozinha.
Olho-a com bastante atenção, analisando seu corpo e seu rosto. É
engraçado pensar que temos intimidade o bastante para ela invadir meu
apartamento, arrancar a roupa, vestir uma camisa minha e ficar andando para
lá e para cá, seminua. E ainda quer conversar. Não sei se conseguirei manter
a concentração desta maneira.
— Precisarei me vestir, Bernardo? — pergunta, tocando meu queixo e
me fazendo subir o olhar, pois estava de olho no pequeno decote mostrando
seus seios.
— O que é? — Mostro interesse, bebendo uma dose do meu vinho.
Servindo a entrada — foie gras —, responde:
— Emilien Dupont me convidou para uma viagem até a África.
Ergo uma sobrancelha e a encaro um segundo.
— Quer que eu faça uma reportagem sobre esse projeto humanitário
dele — explica, e contenho um sorriso. Marie acha que nasci ontem. Tudo
bem que Dupont é um filantropo muito conhecido e até faz sentido querer
uma reportagem sobre suas obras de caridade, mas também percebi que se
interessou por Marie assim que foram apresentados. Nem posso julgá-lo. Está
certíssimo. Então, por mais que esse convite seja profissional, tenho a
impressão de que só o fez para tê-la por perto.
Não sei muito sobre Emilien. Ele tem um comportamento muito
discreto e evasivo. Nunca o vi com uma namorada, nem irmãos ou familiares.
O pai sei que é falecido, mas nunca nem o vi com a mãe, ao menos. Nada.
Pensando nisso, dá a impressão de que é um homem sozinho, embora jovem
— não deve ter mais do que trinta e três.
— E você aceitou essa proposta? — pergunto, comendo meu foie
gras.
— Não seria nem louca em não aceitar. É uma oportunidade única
fazer uma reportagem na África para um homem como Emilien. Meu editor
está em polvorosa.
— Bem, só tenho então que te desejar boa sorte. Quando você viaja?
— Em um mês. Tempo necessário para nos organizarmos por aqui.
Vou sentir sua falta, sabia? — diz, acariciando meu braço.
Marie e eu temos uma relação bacana. Não é nada grudento ou
possessivo. Não há cobranças em nenhum de nossos lados, nem ciúmes ou
proibições. Há, claro, algumas regras, como sempre usar camisinha quando
transamos, naturalmente. Como não temos restrições de parceiros, é o
mínimo que devemos fazer. A segunda regra é sempre respeitar a vontade e
os limites do outro, sexualmente falando. Em terceiro, e não menos
importante, o respeito mútuo em todos os aspectos de nossa convivência.
— Mentirosa — digo, rindo e bebendo um pouco de meu vinho.
Limpo os lábios ao terminar. Marie nos serve o prato principal. — Você vai
passar o quê? Dois ou três meses na companhia de Emilien Dupont e diz que
sentirá minha falta? Por favor. Só cego para não ver que vocês estão
querendo se comer.
Ela dá uma risada alta e bate no meu ombro.
— Ficou assim tão explícito?
— Pra alguém com o olhar apurado como o meu, sim — respondo. —
Eu aproveitaria se fosse você — incentivo-a. — Emilien é um bom partido. E
bonitão.
Marie ri um pouco mais e concorda com um aceno de cabeça.
Conversamos por mais alguns minutos; ela discorre sobre esse projeto na
África, ainda sem muitas informações mais aprofundadas e relevantes, uma
vez que a viagem ainda está sendo organizada, mas promete me deixar
informado quando obtiver mais novidades.
— E Ann-Marie, você teve alguma notícia? — pergunta-me,
sinceramente interessada e até com um tom a mais de preocupação, eu diria.
— Não te ouvi falar dela depois daquele escândalo no evento beneficente.
Dou de ombros, pois bem, também tenho pouca informação acerca
disto.
— Está bem, acredito eu. Deixei-a em sua casa aquela noite e pediu-
me pediu para não dizer nada a Antony sobre essa carona. — Ergo o olhar
para Marie e ofereço um sorriso. — Não vá contar nada a ele, tudo bem? Não
queremos confusão com Leclerc.
Marie abana a cabeça em positivo e toma mais do seu vinho.
— Também a vi hoje, mais cedo, na cafeteria. Estava com o marido.
Me parecia… bem, até — complemento.
— Por que acho que você está me escondendo informação? —
dispara, terminando seu prato. Olha-me por sobre a borda da taça, tomando o
restante do seu vinho.
Pego um pedaço de pão da cestinha e dou uma mordida — meio que
um modo de tentar fugir deste questionamento. Serei muito repreendido se
contar sobre ter dado a joia a Ann-Marie. Até posso ouvi-la me dizendo como
é imprudente e inadequado presentear com uma gargantilha que me custou
muitos milhares de euros uma mulher casada. Aliás, deixou-me muito feliz e
surpreso ter aceitado minha oferta, embora com intenções de me pagar. Como
se eu fosse permitir uma coisa dessas.
— A gargantilha do leilão, a que comprei — conto, precisando tomar
um pouco do meu vinho antes de continuar.
— Sei. Você disse que doaria novamente para Dupont.
Abro um sorriso forçado. Realmente disse isso porque minha
verdadeira intenção sempre foi dá-la a Ann-Marie, mas não queira deixar tão
à vista. Ela nota meu sorriso falso e parece ler meus pensamentos. Abre a
boca em um O perfeito e arregala os olhos.
— Deu a Ann-Marie! — constata. — Ela aceitou?
— Sim, embora eu tenha precisado ludibriá-la para isso — informo.
Marie me pede mais detalhes e tenho que contar. Claro, sou muito
advertido por essa minha atitude. Sou obrigado a ouvir aquilo que já
imaginava: foi inadequado de minha parte, foi perigoso e imprudente. Já
sabemos que Antony não é a pessoa mais pacífica do mundo quando se trata
da esposa e me arrisco desta maneira, presenteando uma mulher casada com
um marido meio ciumento.
Tudo bem. Completamente ciumento.
Ainda assim, acredito que o risco tenha valido a pena. Sei que a
mulher ficou feliz com meu presente, por mais inconveniente que tenha sido.
— Ber… — chama-me pelo meu apelido, em tom de advertência. —
Não se envolva com essa mulher, pode me prometer isso? Ela é casada, com
um homem que já se mostrou ciumento. Pode até ser mais agressivo do que
realmente aparenta.
— Não vou me envolver com ela — garanto. A menos, claro, que ela
queira. — Já te disse, Marie, não há nenhuma chance para mim. Como você
bem mesma apontou, Ann-Marie é uma mulher casada e muito cristã. Jamais
cometeria um pecado tão sério como a traição. — Suspiro, afastando meu
prato vazio. Termino meu vinho e torno a olhar para minha companheira. —
Não se preocupe, nem vou tentar seduzi-la.
A expressão no rosto negro parece suavizar com minha garantia.
Preciso reforçar isso também para mim: não devo tentar seduzi-la, de maneira
alguma. Mas sou um perfeito galanteador. Mesmo quando não estou tentando
conquistar uma mulher, eu o faço, porque isso está em mim, em minhas
veias, em meus trejeitos, em minha personalidade. Aquilo de lhe dar a
gargantilha de brilhantes não foi uma tentativa de sedução? Claro que foi.
Estou interessado em Ann-Marie, muito mais do que posso controlar e sei
que tentarei seduzi-la sim, mesmo inconscientemente disso.
Se Deus existe, que ele tenha piedade de minha alma.

Outra vez, ela se levantou e foi embora. Estou me arrumando quando


atendo uma chamada de Marie, pedindo-me desculpas por, depois de uma
transa deliciosa, ter levantado antes de mim e partido.
— Terceira vez. Estou contando — digo, passando o cinto na minha
calça de alfaiataria. No viva-voz, sua risada discreta ecoa pelo meu quarto.
— Pardon, chéri. Eu estava atrasada para chegar na redação. Perdi a
hora.
— Não me culpe por isso — brinco, recordando-me de termos ido
dormir tarde porque estávamos transando gostoso.
Ela ri de novo, diz que vai me recompensar essa noite — se eu quiser
— e se despede.
Chego na cafeteria por volta de dez da manhã. Trabalho uma boa
parte do tempo trancafiado no escritório. Depois saio para resolver outras
diversas questões; almoço em casa e retorno perto de quatro da tarde. Um
bater na porta me faz levantar os olhos de alguns documentos.
— Monsieur Dousseau, Leclerc está aí fora e deseja falar com o
senhor — minha funcionária avisa.
Ergo uma sobrancelha, perguntando-me o que Antony tem a falar
comigo.
— Tudo bem, já estou indo — digo, com um suspiro.
Termino alguns cálculos e faço algumas anotações nas planilhas
impressas antes de me levantar e seguir até o salão principal. Procuro-o entre
os clientes, mas não o encontro. É quando meus olhos estacionam em um
canto extremo. Ela está ali, trajando um conjunto branco, segurando uma
bolsa a tiracolo. Ann-Marie parece nervosa, olhando de um lado ao outro,
entrelaçando os dedos na alça da bolsa.
Uma sobrancelha minha sobe, um sorriso se manifesta. Sua presença
aqui é, no mínimo, instigante.
Viro-me para uma das balconistas e peço para me servir dois cafés na
mesa treze. Ela acena em positivo enquanto me aproximo a passos vagarosos,
sentindo meu coração bater descontrolado dentro do peito. É incrível a
influência desta mulher sobre meu corpo. Puxo uma cadeira e seu olhar
acompanhando meus movimentos não me escapa. Cruzo as pernas e a encaro
por um instante.
— Em que posso ajudar, Ann-Marie? — pergunto, enfatizando seu
nome. Vejo raiva por minha insolência atravessar seus olhos. Um sorriso de
deboche brinca em meus lábios enquanto continuo a fitando. Adoro provocá-
la, adoro ver como reage toda vez ao ouvir seu nome sair de minha boca, ao
som da minha voz. É excitante.
Sem dizer uma palavra, a mulher revira a bolsa em seu colo e retira a
caixinha retangular de veludo que lhe dei dias atrás. Está para apoiá-la sobre
a mesa, mas recua ao ver a funcionária trazer nossos cafés. Seu olhar
inquisidor recai sobre o meu, contudo, ignoro-a. Tomo meu café calmamente,
olhando-a e ainda a esperando dizer o que quer. Por fim, quando a garçonete
se afasta, põe o objeto sobre a mesa e diz:
— Vim te devolver essa joia estúpida — fala. O tom de sua voz sai
quase cuspido.
Ergo uma sobrancelha, perguntando-me o que aconteceu para essa sua
reação agressiva.
— É sua, Ann-Marie — afirmo, apoiando a xícara sobre o pires. —
Não a quero de volta.
— Não quero essa porcaria — rebate, cada vez mais cheia de raiva.
— Bem, esta porcaria — digo, mantendo minha calma e postura — já
não me pertence mais. É sua. Faça o que bem entender com ela, mas não
venha querer me devolver. É uma falta de respeito sem tamanho.
Ann-Marie dá uma risada sem humor algum e me encara.
— Veja só. Logo você querendo falar sobre respeito, monsieur
Dousseau!
Como resposta, apenas sorrio de forma irônica e continuo degustando
meu café. Olho para a xícara dela — intocada — e sinto algo estranho em
mim por sua desfeita. Ela não quer a joia e não quer meu café. Seu desdém
me atinge de um modo incompreensível. Não é a primeira vez que lido com
uma situação assim. Muitas mulheres autossuficientes ignoraram ou
desprezaram a mim ou a um presente meu. O desprezo dela, porém, me
incomoda, me deixa aflito e desesperado por atenção — como se eu fosse a
merda de um garoto de dezoito anos querendo atrair a professora gostosa.
Seu dedo delicado empurra a caixinha de veludo em minha direção.
— Dê para Marie — sugere, a voz saindo firme e convicta. — Ou
para qualquer uma das inúmeras mulheres que passam pela sua cama. —
Inúmeras mulheres é uma afirmação um tanto quanto exagerada, penso. —
Não quero nada vindo de você, Dousseau.
— Bernardo — corrijo-a. Quero desesperadamente que me chame
pelo primeiro nome, mas a teimosa insiste nessa formalidade besta.
— Dousseau — frisa, erguendo uma sobrancelha, deixando-me ciente
de que, quanto a isso, está irredutível. — Ao contrário de você, tenho alguma
educação — dispara.
Dou uma risadinha e balanço a cabeça em positivo, não me sentindo
nada atingido por seu disparate. Estou habituado a esse tipo de resposta
afiada.
— Tudo bem — rendo-me, porém não toco na joia sobre a mesa. —
Pode me dizer por que decidiu devolvê-la? Achei que tivesse gostado dela.
— E gostei. É linda, eu mesma a teria comprado. — Não seguro uma
risadinha. Sabemos que não foi bem assim. Ann-Marie limpa a garganta e
desvia o olhar de mim por um segundo. — Mas como já disse, não quero
vindo nada de você.
— E por que não? — pergunto, curioso. Troco o cruzar das pernas e
recosto ao respaldo da cadeira acolchoada. Não deixo o sorriso em mim
morrer, dificilmente algo abala meu bom humor, mas também porque sei que
meu sorriso a atrai. Notei como seus olhos descem até meus lábios e se
prendem ali por apenas alguns segundos. Consigo lê-la mesmo sem a
conhecer direito.
Eu gosto de — e quero — seduzi-la e provocá-la. Ver até onde essa
pose toda vai. De repente, sinto uma esperança patética em pensar que ela
poderia se interessar mesmo por mim. Talvez em uma realidade paralela,
minha consciência acusa.
Estou cansado de saber que não há chance nenhuma entre nós.
Mesmo que eu tenha percebido seu interesse em meu sorriso e aparente
desconforto com minha presença, isso não significa nada. Ela é casada, mas
não está morta. Pode simplesmente me achar bonito, atraente e galante e
continuar amando Antony.
— Porque é inadequado — responde, enfim, trazendo-me de volta à
realidade. — Sou uma mulher casada. Não é correto aceitar presentes caros
como esse de um completo estranho.
Fecho a cara quando diz “completo estranho”. Tudo bem, somos
exatamente isso, uma vez que nos conhecemos há pouco mais de uma
semana, e, ainda assim, nossa troca de palavras foi rápida e pouco sabemos
um do outro. De qualquer maneira, por mais que concorde com sua
afirmação, não gosto dela.
Mesmo contrariado, digo apenas:
— Certo. — Empurro a caixinha de volta na direção dela. — Como
eu já disse, a joia é sua. Se não a quer, venda, jogue no lixo, doe, presenteie.
Mas não me devolva. Não vou aceitar, Ann-Marie. — Faz outra de suas
caretas quando a trato sem formalidades.
— Pois acho que se fizer qualquer uma destas coisas será pior do que
te devolver. Não a quero, mas também não acho correto me desfazer de um
presente seu desta maneira. Por isso, te devolver é a coisa mais educada a se
fazer.
O sorriso em mim aumenta.
— Então você não quer fazer desfeita do presente de um completo
desconhecido? — completo, com um tom debochado.
Rubor parece cruzar suas bochechas brancas. Que adorável.
Inclino-me sobre a mesa, afastando minha xícara mais para o lado.
Ela se assusta com a minha proximidade súbita — nossos rostos estão a
centímetros de distância —, porém não se distancia.
— Por que não me diz o verdadeiro motivo de querer me devolver a
gargantilha? — pressiono-a. De alguma forma, eu sei. Ela não quer abrir mão
da joia e há algum outro motivo para tal.
A moça fica ereta, tentando me intimidar com um ar de superioridade
que, comigo, ela não tem. Seguro uma risada diante sua tentativa e a deixo
pensar que pode me diminuir desta maneira.
— Antony me contou sobre as coisas asquerosas que você disse a
meu respeito.
Minha compostura vacila. Meu sorriso murcha.
Inferno.
Perco todas as palavras do meu vasto vocabulário por segundos
inteiros. Tudo o que consigo é apenas encarar Ann-Marie, ainda com sua
coluna ereta, o queixo erguido, o olhar sobre mim como se eu fosse um mero
inseto. Pela primeira vez, estou sem palavras. Pela primeira vez, me vejo em
uma saia justa e não sei como sair dela de imediato.
Abro e fecho a boca diversas vezes, procurando alguma explicação
para isso. E há alguma explicação para tudo aquilo que disse? Embora tenha
sido apenas para provocar Antony e tirar da sua cabeça que tenho interesse
em sua esposa… É isso! Estou abrindo a boca para me explicar quando ela se
levanta e agarra a bolsa, pronta a ir embora.
Em um átimo — assustado pela sua decisão brusca e tomado por uma
vontade imensa de me explicar — dou um pulo da minha cadeira e a seguro
pelos punhos, impedindo-a de continuar seu caminho. Seus olhos voam para
minhas mãos em torno de seus pulsos, os olhos arregalados pela minha
atitude atrevida.
Antes de lhe dar tempo de se afastar e me esbofetear, eu a solto. O
semblante dela suaviza um pouco, mas o horror por ter sido pega tão de
surpresa continua levemente estampado ali, em seus olhos e nos lábios
apertados em uma linha fina.
— Não tive a intenção de te ofender — explico com um sussurro. —
Antony veio me ameaçar — confesso, exagerando um pouco. Encontro os
olhos dela, ainda mais arregalados. — Seu marido me mandou ficar longe de
você. Ora, Ann-Marie, me senti ultrajado com isso. Embora esteja
interessado em você desde o primeiro momento em que te vi, sei respeitar um
matrimônio. Por isso, disse todas aquelas coisas idiotas, apenas para enganar
seu marido e não o deixar saber que estou realmente interessado em você.
Atrevo-me a dar um passo à frente e segurá-la pelo rosto com as duas
mãos. Seus olhos claros se abrem ainda mais, a boca forma um O perfeito.
Meu polegar discretamente repousa sobre o canto de sua boca, e eu a afago
ali, controlando todos os meus desejos de experimentar do seu beijo.
— Só quis evitar uma confusão com Antony. Tanto para mim, quanto
para você. Jamais quis te ofender ou magoar. Je suis désolé de vous avoir
blessé. — Sinto muito ter magoado você.
Meus dedos ficam em seu rosto por segundos que parecem eternos.
Nossos olhares se encontram de forma intensa. Meu coração está
descompassado, consigo sentir sua respiração irregular.
De repente, a mulher se afasta com alguns passos atrás. Seus olhos
recaem sobre a gargantilha ainda sobre a mesa. Vagarosamente, os dedos
esguios a alcançam. Ann-Marie devolve a joia à sua bolsa e, muito hesitante,
me olha.
— Preciso ir — diz apenas. — Antony… pode aparecer por aqui, e
não quero…
— Eu entendo — interrompo-a, meio brusco. Não gosto de saber que
Leclerc a controla desta maneira.
— E obrigada. Por esclarecer essa confusão e… pela joia. É linda.
Sorrio da minha forma mais galante e a olho profundamente,
declarando:
— Sim, é linda. Linda… como você.
ANN-MARIE
— Que estava pensando ao ir atrás de mim? — Antony indaga, ao
chegarmos.
Ele me trouxe diretamente para casa, depois de sairmos da cafeteria
de Bernardo. Obviamente, ocultei o fato de ter me esbarrado com ele. Não vi
necessidade de comentar nada e causar ainda mais confusão em nosso
casamento.
Olho-o por um instante. Está de costas no minibar de nossa sala,
servindo-se com uísque, suponho, já está sem o paletó — tirou-o assim que
entramos. Franzo o cenho, um pouco perdida com sua abordagem. Já
expliquei minha ida até lá, não entendo sua pergunta. Tomo seu paletó em
mãos e o dobro, respondendo:
— Fui levar seu celular para você, mon chéri. — Minha resposta sai
calma e contida. — Achei que fosse importante para você. Aliás… Não sabia
que a cafeteria era de Dousseau.
Antony se vira em minha direção, o copo na altura dos lábios, seus
olhos me olhando minuciosamente, entreabertos. Bebe um gole generoso de
seu etílico, engolindo de uma maneira como se precisasse fazer força para
tal.
— Como sabe que a cafeteria é de Dousseau?
Deveria dizer a verdade. Dizer que nos esbarramos na porta e
trocamos algumas palavras. Já tenho mentido para meu marido em relação à
gargantilha. Faço uma nota mental de que esta mentira é para evitar que
Antony se altere ainda mais por causa de Dousseau.
— Estava te esperando quando o vi entrando na cafeteria.
Outra vez, seus olhos me analisam.
— E isso logo te fez supor que é dono do local? Não poderia ser,
simplesmente, um cliente?
As palavras fogem de mim por um minuto. Se eu for dizer exatamente
de como tomei conhecimento sobre isso, terei de dizer que nos esbarramos e
conversamos — o que não é nada bom. Ainda estou pensando em como
responder à sua pergunta quando meus pensamentos são interrompidos:
— Ann-Marie. — Meu nome sai dito de forma raivosa. — Me diga
como sabe desse detalhe. Só consigo pensar em duas razões: você andou
especulando a vida de Dousseau ou… vocês conversaram. Me responda! —
Demoro a perceber que meu marido está muito próximo de mim, os olhos
levemente vermelhos e brilhando de ciúme.
— Por que eu especularia a vida dele? — manobro o assunto,
ganhando assim, tempo para pensar em um pretexto convincente.
Não me responde de imediato. Dá um passo atrás e bebe mais do seu
uísque, sem tirar os olhos de mim.
— Eu não sei. — Dá de ombros. — Você tem especulado a vida dele?
— Non, Antony — nego, aproximando-me e o segurando pela
gravata. — Não tenho razão para especular a vida daquele homem. Eu amo
você… Tenho olhos apenas pra você, chéri.
Desato o nó de sua gravata e o olho, mordendo o lábio inferior,
tentando ser provocante. Meu esposo segue calado, apenas bebericando seu
uísque e fixando seus olhos em mim. Passo a desabotoar sua camisa quando o
ouço dizer:
— Você ainda não me respondeu.
Meus dedos param por um segundo na tarefa que realizam; ergo os
olhos em sua direção, medindo bem minhas próximas palavras. Preciso tomar
cuidado com o que direi a seguir, pois qualquer brecha será o suficiente para
alimentá-lo de falsas desconfianças e causar atrito entre nós.
— Eu… devo ter ouvido algum comentário das funcionárias quando
ele chegou. — A cara dele me revela que não está satisfeito com minha
resposta. De qualquer maneira, tento manobrar o assunto, dizendo: — Mas
vamos parar de falar dele, oui? É insignificante em nossas vidas. — Passo a
camisa pelos seus braços e deixo um beijo molhado no peito desnudo.
Delicadamente, ele me afasta.
— É, tem razão — diz, me dando um sorriso forçado. — Vou tomar
um banho, almoçar e voltar para a galeria. Tenho trabalho a ser feito.
Sorrio, desconcertada com sua distância, e apenas aceno em positivo,
não querendo aborrecê-lo.

Mais à noite, perto de Antony chegar, preparo o quarto para mais


tarde. Já tem alguns dias desde a última vez que fizemos sexo. Por isso, quero
preparar uma pequena e excitante surpresa para depois do jantar. Sei que ele
tem trabalhado bastante nas últimas semanas, o estresse é grande, assim como
a exaustão. É compreensível chegar em casa e querer apenas dormir, não é?
Perfumo o quarto, arrumo a cama, deixo uma lingerie e camisola mais
provocantes no banheiro para me trocar e abaixo as luzes. Está bonito,
agradável e aconchegante. Sorrio para mim mesma, feliz em poder agradar
meu marido.
Desço de volta à cozinha, onde o jantar está quase pronto. Organizo a
mesa com pratos e talheres e escolho um bom vinho. Está tudo pronto quando
Antony chega. Corro recepcioná-lo, ainda na sala, pegando sua valise e o
ajudando a se desfazer do paletó e gravata, deixando-o mais confortável.
— Como foi o restante do seu dia? — pergunto, ajudando-o a se
sentar no sofá.
Vou até o minibar e o sirvo com uma dose pequena de uísque.
— O mesmo de sempre — responde-me, demonstrando estar sem
muita paciência.
Preferindo não o incomodar ao insistir no assunto, convido-o para
jantarmos. Fazemos a refeição em silêncio, o que é bem estranho. Nossas
refeições são sempre um momento sagrado do nosso dia. Eu, em particular,
sempre faço uma pequena oração antes de começar a comer. Antony, embora
não seja religioso como eu, também considera esses momentos de suma
importância. Tanto que, normalmente, passamos muito tempo em torno da
mesa, comendo e conversando.
Porém, as últimas semanas têm sido tão… estranhas. Ele anda
distante, evasivo, conversamos pouco. Seco e meio bruto sempre foi, nem me
surpreendo mais com esse seu tipo de postura. Entretanto, as demais atitudes
fogem de sua personalidade. Unirmo-nos em torno da mesa e conversamos
bastante, falando de nossos dias, é do que sinto falta. Penso em perguntar se
está tudo bem, se tem algo acontecendo nos negócios, penso em demonstrar
alguma preocupação e deixá-lo saber que sempre estarei aqui para ouvi-lo e
apoiá-lo, mas conheço o temperamento do meu esposo. É o tipo de homem
que dificilmente guarda sentimentos para si. Então, se está acontecendo
alguma coisa e ainda não me contou o que está o frustrando, sinal de que
prefere não falar no assunto. Respeitarei sua vontade e silêncio.
Organizo a louça do jantar sozinha, enquanto Antony está na sala,
assistindo ao telejornal. Ao final, subo até nossa suíte, tomo um banho e visto
a lingerie que escolhi para a noite. Jogo um robe de seda por cima, perfumo-
me e escovo os cabelos. Passo uma maquiagem apenas de leve e um batom
rosa clarinho. Desço até a sala e me sento no sofá, deitando-me em seu colo.
Ele me olha com um sorriso pequeno e afaga meus cabelos.
— Está bonita, chérie — diz. Sorrio de volta. Ele não é muito de
elogios.
Viro-me em meus cotovelos e brinco com o zíper do seu jeans.
— Podíamos subir. Preparei algo pra nós — falo, abrindo o botão.
As mãos grossas e grandes dele seguram as minhas — pequenas —,
impedindo-me de continuar.
— Estou cansado. — Faço uma careta. Seu dedo indicador brinca
com minha bochecha. — Não faça essa cara, mon amour. O trabalho está me
sugando nos últimos dias.
— Eu sei, querido. Mas já tem bem uns quinze dias desde a última
vez.
Ele enrola um dedo numa mecha do meu cabelo.
— Sim, mas destas, uma semana você estava menstruada — indica.
Reviro os olhos e me ajeito no sofá, passando os dedos por entre sua
gola, esbarrando-os na pele do seu pescoço, numa tentativa de seduzi-lo.
— Você tem razão.
— Sempre tenho razão — fala, afastando-me.
Bufo e desisto. Não insistirei nem mendigarei nada.
— Tudo bem, então. Vou me deitar. Você vem?
— Mais tarde. Vou terminar o telejornal primeiro.
Isso porque você está cansando, não é, chéri?, penso em dizer, mas
travo minha própria língua.
Na suíte, retiro a maquiagem, troco de roupa e, ajoelhada, faço minha
oração antes de dormir. Deito-me, apagando o abajur do meu lado. Não
consigo pegar no sono e, pelos primeiros longos minutos, não penso em nada.
Até que aquele homem invade meus pensamentos, assim, sem mais nem
menos.
Seu sorriso, seguido do brilho dos seus olhos refletidos e
intensificados pela gargantilha de brilhantes, atormenta minha cabeça e
acelera meu coração. Deus, sinto até uma vontade de suspirar como uma tola
adolescente apaixonada.
Um desejo imenso de pegar a joia em minhas mãos outra vez e
observá-la toma conta do meu âmago. Sem nem perceber, estou me
levantando e indo até o closet. Sento-me no chão e retiro a joia de seu
esconderijo. Observo-a por um minuto inteiro antes de decidir me levantar e
me pôr em frente ao espelho. Encaro-me por um instante; aos poucos, vou
levando o adorno até meu pescoço, curiosa em saber como ficará em mim.
Estou quase alcançando a garganta quando a porta do quarto bate e faz um
barulho estrepitoso, seguida da voz de meu marido me chamando. Tomo um
susto e, desajeitada, quase deixo a gargantilha despencar no chão.
Estabanada, enfio a joia no primeiro nicho do meu closet que encontro. Um
segundo depois, Antony aparece.
— O que está fazendo aí, chérie?
Respiro fundo e me viro, pondo meu melhor sorriso no rosto.
— Vim escolher meu look para amanhã, mon amour — minto pela
terceira vez para meu esposo. — Mas não consigo me decidir. Talvez possa
me ajudar? — Minha voz treme levemente, com medo de que ele resolva
xeretear meu lado no closet e descubra a gargantilha escondida.
— Sou péssimo para isso, você sabe. — Ele segura meu punho e me
puxa. — Vem, vamos deitar, amanhã você escolhe uma roupa.
Aliviada, e também me sentindo culpada por me envolver em mais
mentiras, eu o sigo, pensando que no dia seguinte, sem falta, preciso devolver
a joia ao seu esconderijo seguro.

Antony já está na mesa de café da manhã quando o encontro na sala,


bem antes das oito. Está na ponta, lendo um jornal enquanto bebe uma xícara
de café — feita por uma de nossas funcionárias. Sento-me ao seu lado e
escolho o que comer.
— Bonjour — digo. Ele murmura em resposta, sem desgrudar os
olhos do periódico.
Fazemos parte de nossa refeição em silêncio, até que resolvo abordá-
lo:
— Antony… Por que ainda frequenta a cafeteria de Dousseau?
Vocês… — Pigarreio sob seu olhar inquisidor por sobre a borda da xícara. —
Se entenderam, depois daquela briga?
Calmo, apoia a xícara no pires.
— Por que o interesse, Ann-Marie? — indaga, voz rígida.
— Non… — Atrapalho-me por um segundo. — Não, não é interesse,
mon amour. É… só fiquei surpresa por você ainda frequentar a cafeteria dele
depois de tudo.
— Eu estava bêbado — fala, mantendo o tom rígido — Conheço-o já
tem algum tempo e sou um frequentador fiel de sua cafeteria porque é um
lugar agradável que oferece bons serviços e um ótimo café. Eu o procurei, me
desculpei pela nossa briga e é isso. Torno a frequentar um dos meus lugares
favoritos em Paris.
Fico quieta por alguns segundos, analisando sua explicação. Estou
casada há tempo suficiente com este homem para saber que as coisas com ele
não funcionam deste modo. Meu marido é rancoroso e orgulhoso,
normalmente não dá o braço a torcer. Voltar a frequentar o estabelecimento
de Dousseau depois do desentendimento entre os dois é, no mínimo, curioso,
levando em consideração sua personalidade.
Afasto os pensamentos da cabeça e decido esquecer do assunto.
Talvez seja apenas isso mesmo que disse: a cafeteria é um lugar agradável de
se frequentar e ter, de fato, bons serviços e ótimo café, como pude
comprovar. Seria bobagem deixar de consumir lá por causa de uma briga sem
sentido causada por uma embriaguez.
— De qualquer modo. — A voz dele me puxa de volta à realidade. —
Não quero você próxima de Bernardo. Nem pense em pôr os pés naquela
cafeteria sem que eu esteja junto, fui claro? — diz, com voz autoritária.
Antony sempre foi meio controlador em relação à minha vida em
geral. Conviver com outros homens, somente aqueles estritamente de nosso
círculo social; desfiz algumas amizades femininas que ele considerava más
para mim, não segui carreira a seu pedido, uma vez que, como homem
tradicional, preferia me ter dentro de casa e fazer seu papel de marido e
prover sua família sozinho. Mas essa sua obsessão com Dousseau começa a
passar dos limites; além de ser completamente sem sentido. Já não deixei
claro que aquele homem não me interessa? Não importa quantas vezes eu
diga, meu esposo é paranoico e, se eu ousar passar na frente daquele
estabelecimento, fará um escândalo e dirá que estou procurando motivos para
vê-lo.
Quero evitar conflito com meu marido, ainda mais por pouca coisa.
Meu pároco uma vez disse que a esposa de verdade edifica seu lar.
— Tudo bem, chéri — concordo, terminando meu café. — Também
não tenho motivos para ir lá sozinha, sem você. Aquele homem não me
agrada — garanto, e uma parte soa com sinceridade. Mas só uma parte. Na
verdade, minha aversão por ele é porque mexe comigo daquela forma que sou
incapaz de explicar.
— Bom — murmura. — É bom mesmo se manter longe dele, mon
amour. Ainda mais depois das coisas que disse a seu respeito — comenta,
quase divagando.
Congelo em meu lugar e ergo o olhar em sua direção, desnorteada
com a guinada do assunto. Bernardo andou falando de mim para Antony?
Inspiro profundamente e tento não demonstrar interesse nisso, mas é
impossível, quando percebo, já estou perguntando:
— O que ele andou falando a meu respeito?
Pegando em minha mão e me olhando dentro dos olhos, meu esposo
conta as coisas que lhe disse dias antes. Minhas bochechas coram com
algumas partes e, em outras, sinto meu coração despedaçado em raiva pelas
palavras dele. Além de petulante, é grosseiro!
— Entende por que não te quero perto dele? Dousseau ainda vai te
difamar para Paris toda. Você é preciosa demais para mim, não suportarei
ouvir determinados comentários a seu respeito.
Abano a cabeça em positivo. Antony está certo. Bernardo é um
asqueroso. Não poderia esperar menos de alguém que troca mais de mulheres
do que de roupa.
Minutos depois, meu esposo se despede de mim e segue para seu
trabalho. Fico em casa, como faz parte de minha rotina. Cuido do meu
jardim, leio bastante, consulto revista de modas e leio sobre as tendências. No
meu pequeno ateliê, sento e rabisco algumas ideias para novas peças ao meu
guarda-roupa — formada em designer de moda, eu mesma confecciono
grande parte do meu vestuário.
Outras ideias surgem — ideias estas que não colocarei em prática — e
as desenho em meu caderno. É um vestido de noiva, com um decote mais
extravagante para ser usado com uma gargantilha.
Quando me noto desenhando o esboço da joia no desenho do
manequim, paro imediatamente. Recordo-me então da peça escondida de
qualquer maneira em meu closet. Corro até o quarto e a retiro de seu
esconderijo improvisado. Asco, raiva e nojo se apossam do meu corpo ao me
recordar dos absurdos ditos sobre mim. Coloco o adorno de volta à sua
caixinha de veludo e troco de roupa.
Encaro-me no espelho por longos segundos, reprisando em minha
mente o pedido de Antony para não pisar naquele local desacompanhada de
sua presença. Contudo, se eu quiser devolver esta… porcaria, preciso
contrariar meu marido mais uma vez.
Pela última vez.

Eu nem tento disfarçar o desconforto que sinto quando Bernardo me


diz tal coisa.
Sim, é linda. Linda… como você.
Ele é descarado, abusado, mal-educado, audacioso e… galante. A
mistura destas coisas causa em mim um conflito de sentimentos que não sei
explicar. Não me agrada ser dessa maneira, mas, ao mesmo tempo, sua
ousadia e charme mexem comigo de um jeito também inexplicável, aflorando
em mim sentidos que nem sabia existir.
Eu deveria odiar esse homem. Primeiro, por ser petulante. Segundo,
por ter feito declarações nojentas a meu respeito. Terceiro, por insistir que eu
fique com essa joia idiota da qual me vejo com dificuldade em abrir mão.
Assusta-me como me apeguei a esta gargantilha e como ter tomado coragem
de vir aqui na intenção de devolvê-la foi uma das coisas mais difíceis que fiz
na vida. Quarto, por ter explicado a situação e, por esse motivo, eu estar
desistindo de devolver a maldita joia, sentindo até um alívio em não precisar
fazê-lo. Quinto, por conseguir perdoá-lo tão facilmente por ter dito aquelas
coisas nojentas sobre mim, uma vez que, segundo ele, foi apenas para evitar
mais confusão com Antony. O que é, claro, muito burro de sua parte. Ofender
a esposa de outro homem para evitar uma confusão não é a solução mais
inteligente, convenhamos. E, pensando nisso somente agora, me dou conta de
que meu marido não teve o trabalho de me defender. Ou ele o fez e não sei?
Pisco seguidas vezes e afasto os pensamentos da cabeça.
— J-Je vous remercie — agradeço, meio encabulada. — Preciso ir
agora, Dousseau.
Sem esperar por sua resposta, me retiro rapidamente de sua presença,
pois esse homem me faz cair em pecado.

Antes de voltar para casa, paro na Catedral de Notre-Dame — um dos


meus pontos religiosos favoritos. Acomodo-me em um dos bancos, ajoelho e
faço uma oração. Passo bons minutos conversando com Deus, pedindo
discernimento, fé e forças. Depois, decido passar por algumas lojas no centro
da cidade, procurando por novos tecidos para confeccionar os desenhos que
criei mais cedo.
Faço uma boa encomenda, peço para me entregarem no dia seguinte e
só então chamo um táxi para voltar para casa. Ao chegar, Antony já está aqui,
com o telefone na mão e gritando com sabe-se lá quem. Quando me vê, para
imediatamente, dizendo:
— Ela já chegou. — E encerra a ligação.
Oh, era sobre mim?
Pisco, e, de repente, sua mão grande está em meu braço, seus olhos
frenéticos, olhando-me com atenção, avaliando-me, escaneando-me como se
procurasse alguma coisa.
— Onde estava, Ann-Marie?
Compreendo sua irritação. É raríssimo ele chegar em casa — mais de
seis da tarde — e eu não estar aqui. Quando acontece, é notificado e posto a
par de onde estarei: na igreja ou na casa de meus pais. Perdi noção do tempo
fazendo minhas compras.
— Pardon, mon amour. Estava comprando alguns tecidos para umas
peças novas que pretendo fazer. Inclusive — digo, aproximando-me dele e o
segurando pela gola da camisa —, desenhei um terno exclusivo pra você.
Espero que goste.
— E precisava demorar isso tudo? — questiona, ainda com a voz
elevada. — O porteiro me informou que você saiu pouco depois das três!
Pisco algumas vezes e controlo minha própria respiração. Outra vez
terei de mentir para meu marido. Deus, já estou perdendo as contas.
— Passei na igreja, chéri. Sabe que quando converso com Ele, perco a
noção da hora. E depois foi difícil encontrar os tecidos certos que queria para
as peças. Andei bastante pelo centro de Paris até encontrar os ideais.
Antony me encara por longos segundos, parecendo não se convencer.
Mantenho meu olhar no seu, tentando não vacilar. Agora me dou conta de
que arrisquei demais indo até a cafeteria de Bernardo — um local tão
próximo ao trabalho de meu marido. Neste instante, penso se por acaso ele
sabe que estive lá. É provável que tenha visto, ou alguém viu e contou.
— Tudo bem — diz, suavizando a expressão. Imediatamente me sinto
mais aliviada. — Vá terminar nosso jantar.
— Claro, mon amour. Vou apenas trocar de roupa. — Dou outro
pretexto. A joia ainda está comigo. Preciso devolvê-la ao seu esconderijo
seguro.
Subo até o quarto correndo, guardo o presente, nem percebendo de
imediato o sorriso em mim em poder ficar com a joia ridícula. Troco de roupa
e volto até a cozinha para preparar nosso jantar.

Esborrifo um pouco de perfume atrás da orelha e ajeito o sutiã.


Encaro-me no espelho e fico feliz com minha aparência. Poucas mulheres se
sentem bem e confortáveis aos trinta e quatro anos. Confiro novamente a
lingerie preta, pensando em agradar a Antony e termos uma noite de amor.
Amacio os cabelos e tomo ar para os pulmões antes de deixar o banheiro.
Ele está deitado, apenas de cueca, os olhos atentos na televisão.
— Chéri — chamo-o, aproximando-me. Ajoelho na cama e engatinho
em sua direção. Ele sorri para mim, um sorriso pequeno e sem muita
animação, quando sento em meu colo. — Quer uma massagem? — ofereço.
— Devíamos dormir — diz, apoiando suas mãos grandes em minha
cintura. — Amanhã ainda trabalho. — Engulo em seco, incomodada com
essa frieza, essa insistência em me negar. Penso em perguntar por que anda
tão sem vontade de fazer sexo comigo, mas minha ação é interrompida: — E
tire essa lingerie, querida. Não valoriza seu corpo. Isso é coisa pra moça
nova, que tenha tudo em cima. Em você fica ridículo.
Olho-o nos olhos, sendo atingida por suas palavras. Pisco, segurando
as lágrimas para mim. Saio de cima do seu colo e volto ao banheiro,
sentindo-me uma estúpida. Olho-me no espelho uma segunda vez e vejo que
Antony tem razão. Comprei-a na semana passada, pensando em atrair e
agradar meu marido, porém só o fiz afastá-lo. Estúpida, Ann-Marie. Você é
uma estúpida.
Tiro a lingerie e a jogo na lata de lixo. Visto uma calcinha comum e
por cima jogo minha camisola de dormir. Volto ao quarto e meu esposo já
está dormindo, completamente no escuro.
Deito-me ao seu lado, mas de costas a ele, e tento não pensar em suas
palavras, em como me feriram.
“Isso é coisa pra moça nova, que tenha tudo em cima. Em você fica
ridículo.”
Fecho os olhos e faço minha oração antes de dormir, agradecendo
pelo dia e pedindo perdão pelos meus pecados.
Uma lágrima rola dos meus olhos para meu rosto quando o sorriso de
Bernardo invade minha mente sem permissão.
BERNARDO
— Quando você pretende vir ao Brasil? — Alfredo me pergunta.
Estamos conectados via Skype. Falamo-nos ao menos uma vez a cada
duas semanas, para nos deixarmos a par de nossos negócios. Viajo para lá
cerca de uma vez no ano e passo alguns meses no país. Em uma das últimas
vezes, fiquei bem quase um ano, auxiliando meu melhor amigo em sua
recuperação depois do seu acidente de carro.
— Ainda não sei, crétin — digo, fazendo uma careta para tentar me
lembrar de quando foi minha última ida ao Brasil e de quanto tempo durou
minha estadia. Deve ter sido em algum momento depois do nascimento da
filha dele. — Por quê? Está precisando de mim aí, seu imprestável?
Ele dá uma risada exagerada que me faz rir junto e sentir falta da
companhia desse cretino.
— Não, sabe que posso me virar bem sozinho sem você. Só estava
pensando em expandir os negócios e queria que estivesse por aqui pra
debatermos isso, juntos.
— Certo. Não é nada de importante então pode esperar mais algum
tempo. Realmente não sei quando vou.
Poderia dizer que tenho disponibilidade para ir agora mesmo se ele
quiser. Embora eu tome conta da maior parte dos negócios em Paris, é
perfeitamente possível deixar tudo nas mãos dos meus gerentes e do gerente-
geral — supervisionando-os de longe — por algum tempo para que possa
viajar ao Brasil. Contudo, há uma bela mulher casada que tem chamado
minha atenção e é o motivo por me prender à França por mais algum tempo.
Por ora, não vejo necessidade de falar de Ann-Marie para meu melhor
amigo. Sei como vai me repreender se souber desse meu interesse em uma
mulher comprometida.
— Tudo bem. Mas não pense que pergunto isso só por causa de
trabalho. Você é meu amigo, é como um irmão pra mim. Sinto sua falta. E
Lara também, não é, Larinha? — diz, perguntando a bebê em seu colo,
fazendo-a balançar as mãozinhas em minha direção.
A menina ri em seu colo e balança o corpinho, toda alegre.
— Eu sei, crétin. Também sinto sua falta. Mas não se esqueça de que
você precisa vir à França também, ouviu?
Ele me dá uma risada e acena em positivo.
— Bernardo, já estou indo! — Marie informa, passando pela sala.
Ergo os olhos do notebook para vê-la já perto da porta, trajando um
conjunto branco que cai bem nela. Seus cabelos cacheados ainda estão
molhados do banho em meu chuveiro. Sorrio. Essa nossa relação está quase
virando monogâmica. Pelas minhas contas, já é quarta vez essa semana que
ela passa a noite comigo.
— Tudo bem, chéri. Você volta hoje à noite?
Marie já está saindo quando responde:
— Hoje não, bonitão. Te ligo quando o tesão gritar alto.
Dou uma risada exagerada ao mesmo tempo em que ela bate a porta.
Torno a dar atenção ao meu amigo, que continua conecto via Skype.
— Namorada? — pergunta, cheio de curiosidade.
— Não. Só alguém com quem estou saindo. Dificilmente namoro,
você sabe. — Não vejo necessidade de comentar que a moça se trata de
Julien. Não é relevante e talvez ele nem se lembre dela.
— Eu sei. Bem, preciso ir agora. Diga tchau ao tio Bernardo, Lara.
Tchaaaaau — fala, balançando as mãozinhas da pequena.
Quando chego na cafeteria, pouco depois das nove da manhã, vejo
Emilien em uma mesa, sozinho, tomando uma xícara do que acredito ser café,
enquanto fala em inglês ao telefone. Ele me vê, acena em cumprimento e
devolvo com um sorriso e erguer das mãos. Isolo-me, como de costume, em
meu escritório e começo a trabalhar. Meia hora depois, Juliette bate à minha
porta, pedindo permissão para entrar. Ela se põe em uma das cadeiras frente à
minha mesa e me entrega uma documentação da contabilidade.
— Só para te lembrar, minhas férias começam na próxima semana. A
subgerente vai ficar no meu lugar até eu voltar. Dentro de uns dias o
escritório deve mandar todos os documentos necessários.
— Certo. Obrigado. Espero que esse lugar funcione bem sem você —
comento, e ela dá uma risada gostosa.
Despede-se após deixar os documentos, dizendo-me que Emilien
deseja falar comigo assim que possível. Agradeço pelo recado, organizo
algumas coisas sobre minha mesa e vou até o salão principal. Lá, Dupont
agora está na companhia de Leclerc, o que não me deixa surpreso, aliás. Os
dois são como carne e unha. Aproximo-me deles, pondo meu melhor sorriso.
Desde nossa briga no evento beneficente, duas semanas atrás, que esse
homem não me passa.
— Dupont — cumprimento-o com um aceno de cabeça. Meio a
contragosto, viro-me em direção à sua companhia e faço o mesmo. —
Leclerc. — Sua resposta é um sorriso azedo.
— Sente-se, Dousseau — Emilien indica a cadeira entre ele e Antony.
Engulo em seco e o encaro por alguns segundos, procurando em seus olhos o
quão séria é sua sugestão. Ele só pode estar brincando, não?
Entretanto, o sorriso conciso — e levemente divertido — me dá a
certeza de que, embora saiba da aversão entre nós dois, não está brincando
quando sugere sentarmos um perto do outro. Cedo com um suspiro e me
ponho no lugar indicado.
— Não vai tomar nada, Dousseau?
Nego com um movimento de cabeça.
— Hoje não — esclareço. — Podemos ir direto ao assunto? —
pergunto, recostando-me à minha cadeira.
— Sábado à noite — começa, bebericando seu café —, em minha
casa, farei uma pequena confraternização para minha temporada na África e a
ajuda humanitária que realizarei lá. Quero que você vá.
Sorrio, não realmente animado, porque sei que nesta festa estarão os
Leclerc. A presença de Ann-Marie me deixaria feliz e satisfeito, o problema é
o marido dela. Estou abrindo a boca para agradecer e negar o convite, afinal,
quero evitar a tentação que aquela mulher exerce sobre mim, mas Emilien
toma a frente e me interrompe:
— Nem pense em negar, Dousseau… — Um sorriso dança em seus
lábios. — Você é responsável pela senhorita Julien estar me acompanhando
nesta viagem para fazer uma matéria incrível sobre minha empresa e nossa
ação na África. Quero você lá.
Sem muitas opções a não ser aceitar o convite, me levanto, fazendo
um gesto positivo com a cabeça e dizendo em seguida:
— Eu irei. Agradeço pelo convite.
— Não pensa em nos fazer mais um pouco de companhia? — inquire,
levando a xícara aos lábios e alternando o olhar entre mim e Antony.
Não sei qual sua intenção em forçar essa aproximação minha com
Leclerc. Não sei se faz de propósito para ver o circo pegar fogo ou se apenas
quer nos fazer reconciliar — uma vez que antes da briga idiota nos dávamos
bem. Dou uma espiada em Antony, que permanecera calado durante minha
rápida conversa com Dupont e não me olha de volta.
De qualquer maneira, respondo:
— Hoje não. Estou atolado de trabalho. Se os senhores me
permitem… — Maneio a cabeça, em sinal de respeito. Antony segue mudo,
enquanto Emilien me dispensa com um movimento de mão.
Respiro fundo ao voltar para meu escritório. A ideia de revê-la já
começa a me atormentar e a mexer com meus desejos.
“Vá acompanhado”.
Uma mensagem de um número desconhecido, assinando por Emilien,
chega em meu celular. Como conseguiu meu número particular, é um
mistério. Deve ter pegado com alguma funcionária ou com Marie.
Estamos a um dia da festa em sua casa e só agora me notifica de que
devo ir com alguém?
Penso em convidar Marie, mas ela já estará lá de qualquer forma, na
companhia do anfitrião da festividade. Em minha mente, passo uma lista de
mulheres que poderiam me acompanhar e descarto cada uma delas. São toda
casos que tive, algumas duraram uma noite, outras, alguns dias, semanas e,
raras como Julien, meses. Jamais teria me importado em levar qualquer uma
delas apenas pela formalidade exigida por conta de nosso envolvimento.
Contudo, quando recordo que Ann-Marie estará lá, repenso na possibilidade
de levar alguém com que já tenha transado. Não quero reforçar a imagem que
ela já tem de mim — um galinha descompromissado, embora eu seja
realmente isso.
Balanço a cabeça com força, dispersando esses pensamentos
absurdos. Desde quando me importo com o que as pessoas vão pensar ou
deixar de pensar a meu respeito?
— Importante? — Juliette me tira dos meus devaneios. Só então me
recordo de estarmos no meu escritório na cafeteria, fazendo o balanço de
lucros do mês. Parei um segundo para ler a mensagem no meu celular e me
distraí.
— Não. É uma mensagem de Emilien. Quer que eu leve companhia
na festa dele, amanhã. Estava pensando em quem levar. — Sorrio; ela apenas
acena. Torna a virar seus olhos para os papéis em suas mãos.
Uma ideia passa pela minha cabeça.
— Quer ir comigo? — pergunto.
Gautier ergue os olhos em minha direção, surpresa com a oferta.
— À festa do monsieur Dupont? — inquire, como se quisesse ter
certeza.
— Oui — afirmo.
A moça parece hesitar um segundo, avaliando meu convite.
— Tudo bem — aceita, com um sorriso pequeno.
— Te pego às sete.

A mansão de Dupont está toda iluminada e cheia de gente, com


garçons andando tanto dentro do local, quanto por todo o extenso jardim.
Enroscada em meus braços, Juliette olha tudo ao redor; o esplendor e a
elegância que o dinheiro de Emilien pode proporcionar a deixam
impressionada. Estou há tempo suficiente em contato com esse tipo de gente
para que nem me surpreenda mais.
A passos cautelosos, subimos os degraus do alpendre. O hall principal
está ainda mais luxuoso e lotado de pessoas em seus ternos e vestidos caros e
penteados extravagantes. Todo tipo de figura parisiense famosa está aqui,
conversando uns com os outros, rindo discretamente, bebendo taças de
champanhe.
Adentramos o salão e cumprimentamos os que conhecemos. Um
garçom nos oferece bebida e petisco. Aceito apenas o champanhe, assim
como Juliette. Cerca de dois minutos depois, avisto Dupont em um canto do
local. Está acompanhado de Marie — exuberante em um vestido branco —
conversando com alguém que desconheço. Para meu alívio — e decepção —
ainda não vi os Leclerc. É até uma surpresa para mim não ver Antony na cola
de Emilien, como um cachorrinho abandonado.
Aproximo-me dele, que para sua conversa ao me ver, abre um sorriso
enorme e vem me abraçar, dizendo como está feliz por eu ter vindo. Gosto da
receptividade de Emilien, me sinto até como se fôssemos realmente amigos
de longa data.
— Você já conhece a mademoiselle Gautier, minha gerente — digo,
apoiando a mão na cintura dela e a fazendo dar um passo à frente. Emilien dá
outro daquele seu sorriso encantador e receptivo e a cumprimenta com um
beijo respeitoso em seu rosto.
— Sintam-se à vontade, Dousseau. Comam e bebam o quanto quiser
— diz, após me apresentar ao empresário em sua companhia.
Gautier cochicha em meu ouvido que vai andar um pouco pelo salão e
pelo jardim. Aceno em positivo ao mesmo tempo em que Marie se põe do
meu lado. Dupont se distrai outra vez em uma conversa com o empresário.
Ela se enrosca nos meus braços e começa a me tirar de perto deles. Abro um
sorriso e fito seus olhos.
— Conversa chata sobre negócios — explica, revirando os olhos e
apontando os dois com a cabeça.
Rio um pouco e abano em positivo. Pigarreio e faço alguma
cerimônia, escolhendo bem as palavras e meu tom — para não dar a entender
que me importo, mesmo me importando — antes de proferir:
— Antony veio? Ele normalmente não desgruda de Emilien.
Marie para frente a uma mesa de petiscos e escolhe algo para comer.
— Veio sim. Emilien o incumbiu de falar com alguns pequenos
investidores. Parece que Antony será um sênior nos negócios dele. Não sei
direito. Alguma coisa assim. Por quê? — Vira-se para mim, mastigando de
boca fechada.
— Por nada. — Dou de ombros. Marie revira os olhos.
— Quer saber da Ann-Marie. Não nasci ontem, Bernardo. E eu já
disse…
Puxo-a para meu tórax, nossos corpos se colam. O movimento brusco
a faz dar um sobressalto.
— Sei muito bem o que me disse. Mas, Marie, que culpa tenho se
aquela mulher mexe comigo? O que posso fazer se não consigo tirá-la da
minha mente?
— Quer uma lista? — brinca, passando o dedo em minha gola. —
Um: pode se distrair com outras mulheres.
Passo o polegar em seus lábios carnudos.
— Acha que já não tentei?
Surpresa atravessa seu olhar. Ela dá um tapa em minha mão.
— Tentou esquecê-la dormindo comigo? — Seu tom ofendido é
falso.
Abro um sorriso galante e a afasto para pegar os aperitivos na mesa.
— Foi um conselho seu — aponto, em tom divertido.
Julien me dá um tapa no ombro e ri discretamente.
— Mas não comigo, seu cretino.
— Cretino é o Alfredo.
O sorriso nela murcha um segundo. Penso em pedir desculpas por
tocar no nome do meu amigo — não sei exatamente quais são, ou foram, seus
sentimentos por ele —, mas a moça me abre um sorriso bonito e concorda,
rindo em seguida.
Marie e eu aproveitamos um pouco da festividade, conversando com
outros conhecidos, experimentando dos diversos aperitivos expostos,
caminhando pelo jardim rindo e bebendo champanhe. Algum tempo depois,
Dupont nos encontra perto da piscina e rouba minha amiga de mim, dizendo
que a apresentará a um grupo de voluntários que o acompanhará em sua
viagem à África.
Estou voltando para o hall principal quando avisto Juliette. Ela vem
de alguma parte do jardim, anda rapidamente, olhando-se no pequeno espelho
de mão, como se conferindo a maquiagem no rosto.
— Gautier… — chamo-a e a assusto com minha chegada repentina.
As mãos cobrem os cabelos, ajeitando-os de leve.
— Oi, Bernardo — cumprimenta-me, forçando um sorriso.
Ofereço meu braço. Juliette me olha por um segundo e então aceita
minha oferta. Voltamos ao salão, juntos e indago:
— Onde você estava?
Gautier pensa um pouco e toma outra taça de champanhe em mãos
quando uma garçonete passa ao nosso lado. Após um gole generoso,
responde:
— Estava conhecendo a mansão. É um lugar muito bonito, não acha?
Sorrio e afirmo, roubando outro aperitivo da mesa.
— Monsieur Dousseau! — alguém exclama, e eu me viro na direção
da voz para ver René Deschamps se aproximando, acompanhado de ninguém
mais ninguém menos que Antony e sua esposa.
Inferno. Mil vezes inferno.
Os olhos claros dela encontram os meus e neste instante sinto todo o
meu corpo tremer. A desgraçada está linda dentro de um vestido preto com
um decote em tule muito discreto; o coque severo prende seus cabelos loiro-
acobreados e o rosto recebe uma maquiagem delicada. O marido, logo ao
lado, me encara com cara de poucos amigos.
Forço-me a ter alguma reação além daquela de admirar e desejar a
mulher de outro homem e sorrio para René, que me abraça um segundo
depois. Deschamps é um bom amigo e cliente fiel da minha cafeteria. Foi, na
verdade e literalmente, meu primeiro cliente, muitos anos atrás. Foi o
primeiro a entrar no meu estabelecimento e desde então vai lá todos os dias.
Faça chuva ou faça sol. É dono de uma rede de hotéis aqui em Paris. Temos
uma boa freguesia de turistas muito por causa dele e de uma sociedade que
montamos juntos. Todo hóspede de um dos seus hotéis que chega na Avenue
Coffee e diz que foi por indicação ganha um desconto no consumo. Da
mesma maneira, sempre indicamos um dos seus hotéis aos turistas que nos
pedem recomendações.
— René, mon bon ami! — Retribuo ao seu abraço.
— Não esperava te ver aqui — diz, agora deixando a formalidade de
lado. — Não sabia que você e Emilien se conheciam.
Abro um pequeno sorriso e esclareço:
— Já o conhecia por nome. Dupont é um jovem prodígio nos
investimentos. Mas viemos a ter um contato direto tempos atrás, quando
esteve na cafeteria com… — Direciono meu olhar a Antony, esforçando-me
muito para não apreciar a beldade ao seu lado. — Com Leclerc. Fui
convidado à festa de gala na ocasião e novamente recebi um convite para vir
hoje aqui. Minha amiga, Marie, acompanhará Emilien à África e fará uma
matéria sobre a ação dele no país.
— Fico feliz então que já conheça Antony! — exclama, trazendo-o
mais para frente. — Podemos dispensar as apresentações.
— Sim. — Seguro Juliette pela cintura. — Já deve conhecer a
senhorita Gautier, é minha gerente.
— Oui. Como poderia me esquecer de um rosto tão jovem e bonito
como a da mademoiselle Gautier? — indaga, em tom divertido e meio
galante. René é um homem de meia-idade, com pouco mais de cinquenta
anos, mas não perdeu o charme francês.
Segurando na mão delicada de Juliette, cumprimenta-a com um beijo.
— Prazer em te rever, senhorita Gautier.
Meus olhos se desviam para Ann-Marie e me distraio da resposta de
minha gerente para Deschamps. Prendo-me a ela por um segundo; sua
expressão facial ao me olhar de volta é indecifrável. O rosto parece tenso,
rígido, como se estivesse com raiva ou qualquer coisa do tipo.
Antony nota nossa troca de olhar. Rapidamente olho para qualquer
outro lugar.
Mal escuto René nos convidando a nos unirmos à sua mesa para
conversarmos. Quando dou por mim, já estamos o acompanhando; Ann-
Marie completamente calada, Antony parecendo tenso. Deus, que situação
mais constrangedora. Deschamps não para de falar em torno da mesa. Pelo
pouco que acompanho — pois estou sendo tentado demais pelo perfume
desta mulher para me atentar às suas palavras —, Leclerc o convenceu a
investir junto com a empresa de Emilien. Aliás, nem sabia que Antony
trabalhava junto de Dupont. Achei que seus negócios se resumiam apenas à
galeria.
Alguns aperitivos, bebidas e conversas depois, decido me ausentar da
mesa para usar o toalete. Lavo bem as mãos após deixar a cabine e molho
meu rosto. Encaro-me no espelho por longos segundos, tomando alguma
coragem para voltar à mesa e permanecer na presença de Ann-Marie. Ela é
tão linda que tira meu fôlego e atormenta minha mente. Tomo ar para os
pulmões, balanço as mãos na pia e retorno.
Na mesa, restam apenas o casal Leclerc. Ao passo que me aproximo,
noto os olhos dela, meio marejados, a expressão tão tensa que me dá a certeza
de que está se segurando para não desabar. Ao mesmo tempo, ouço Antony
falando com ela, em um tom que me desagrada. Paro à suas costas — ele não
nota minha chegada — e presencio a barbaridade que diz à sua mulher:
— Você não tem mais vinte anos, chérie. Está envelhecendo. Aceite
isso. Nenhum outro homem, além de mim, vai te querer.
A vontade que tenho é de virar esse desgraçado aqui mesmo e
esmurrá-lo até sobrar apenas ossos e pele. Como ousa falar dessa maneira da
própria esposa? Como pode não enxergar a mulher maravilhosa ao seu lado?
Por que quer a diminuir dessa forma?
Ann-Marie abre a boca para dizer alguma coisa ao marido, mas então
me vê e desiste na mesma hora. Seus olhos claros estão cheios de lágrimas e
parte meu coração de uma maneira nunca sentida antes. Meu corpo está
rígido no lugar e toda minha vontade agora não é de socar Antony, e sim de
abraçá-la e dizer que esse babaca está errado.
— Com licença — diz, levantando-se em um átimo e se distanciando
a passos apressados.
Finalmente o homem nota minha presença. Vendo seus olhos
vermelhos, constato que o imbecil está bêbado — e isso não alivia para seu
lado de maneira nenhuma. Só piora sua situação, na verdade.
Sem nada dizer, ele também levanta e se vai.

Consigo ver para onde Ann-Marie se refugia. Sobe as escadas da


mansão às pressas, com as mãos no rosto, com certeza não se permitindo
desabar por conta do comentário idiota do marido. Olho ao meu redor,
certificando-me de que ninguém esteja vendo. Vou atrás dela e a alcanço a
tempo de vê-la entrando em um dos cômodos. Consigo impedir que feche a
porta; seus olhos vermelhos pelo choro me encaram, surpresos. Forço-a a
entrar e nos fecho lá dentro.
Ann-Marie dá um passo atrás e vira de costas para mim. No silêncio
entre nós, posso ouvir seu choro baixo.
Aproximo-me dela e pouso minha mão em seu ombro. Dá um
sobressalto e se esquiva de mim como se eu fosse fazer-lhe algum mal.
Insisto no toque e, desta vez, não se distancia.
— Ann-Marie… — chamo-a. Ela permanece na mesma posição,
chorando um choro reprimido. — Se vire pra mim — peço, com cautela.
A teimosa não o faz.
— Vá embora, Dousseau — manda.
— Não vou.
Finalmente, se volta em minha direção, a expressão marcada de dor.
— Vá embora — manda outra vez. — Vá tomar conta da sua
funcionária — diz, enfatizando a última palavra com um tom de reprovação.
Ergo uma sobrancelha, pegando imediatamente o que pensa a respeito da
minha relação com Gautier. Quero rir. O que é isso que sente ao pensar que
eu e Juliette temos qualquer coisa sexual?
— Juliette é bem grandinha. Sabe se cuidar. E não fale assim, Ann-
Marie. Não transo com minhas funcionárias.
A mulher dá uma risada insana e seca as lágrimas remanescentes.
— Para alguém como você, que troca mais de mulher do que de terno,
me surpreende.
— Apenas sei separar as coisas — esclareço, dando um passo à
frente. — Mas não vim aqui pra te dar satisfações da minha vida sexual. Vim
saber como você está.
Ela se afasta mais um pouco, encostando-se à parede. Olho mais
atentamente ao redor e noto que estamos em um quarto de hóspedes.
— Se está me perguntando isso por causa… do que Antony disse, não
se preocupe. Estou… — A voz vacila antes de completar, em seus olhos
cruza uma onda de tristeza: — Estou bem.
Com um meio-sorriso, encurralo-a. Ela arregala os olhos ao notar
minha proximidade e como está entre mim e a parede, sem saída. Direciono
meu olhar para seus lábios pintados de rosa e tenho uma vontade quase
incontrolável de beijá-los, de matar minha curiosidade em saber como é o
sabor e a textura da sua boca.
— Por que aquele imbecil te disse aquelas palavras? Não que pra isso
tenha alguma justificativa.
Ela vira o rosto, negando-se a me olhar. Tento contato visual, mas é
teimosa quando quer.
— Não é de seu interesse, monsieur Dousseau. — Merda, ela ainda
insiste em me tratar pelo sobrenome.
— Ann-Marie… — pressiono-a um pouco mais. Então me olha, de
queixo empinado, demonstrando força e confiança que sabe não ter neste
momento. — Não tente desconversar ou mentir para mim. Sei que não está
bem. Nenhuma mulher fica bem depois de ouvir aquelas palavras.
Atrevo-me a erguer a mão e afagar sua bochecha com meu polegar.
Ela me olha intensamente, deixando-me tocá-la. Trata-me pelo sobrenome e
me deixa me aproximar assim, acariciá-la. Jamais vou entendê-la, mas fica
claro que mexo com ela assim como ela mexe comigo.
— Meu marido está bêbado — alega, tentando defendê-lo. — Nem
tem… noção do que está falando. — A voz sai entrecortada, o tom me
fazendo crer que nem ela acredita nisso.
Abro um pequeno sorriso, resvalo meu polegar em seus lábios
carnudos e murmuro:
— Eu estou bem são, Ann-Marie. E sabe de uma coisa? — pergunto.
Sua resposta é um mover leve de cabeça em negativo. — Sou o homem que
ia querer você, do que jeito que você é.
ANN-MARIE
— Pare com isso, agora — ordeno, embora minha voz saia sem
firmeza alguma.
Estou encurralada contra a parede, ele me olhando com mais desejo
do que qualquer outro homem um dia me olhou. Sinto minhas entranhas se
remexerem diante esse olhar de paixão.
À minha ordem, ele abre seu sorriso galante e ergue uma sobrancelha.
Espalma contra a parede onde estou praticamente imprensada, deixando
ambas as mãos ao lado da minha cabeça. Seu queixo se aproxima mais do
meu, deixando nossos lábios rentes.
— Monsieur Dousseau, sou uma mulher casada, por favor.
— Com um babaca que diz que você está velha quando deveria dizer
que você é linda.
Meu coração dispara com sua declaração; diante disso até me esqueço
de Antony e de seu comentário maldoso. Ele está bêbado de qualquer
maneira, sei que sua intenção não foi me magoar.
Seu hálito quente me atinge e se mistura ao aroma da sua colônia
apaixonante, deixando-me ainda mais atordoada. Meus pensamentos
praticamente nublam e penso que, se ele investir em um beijo aqui e agora
mesmo, não resistirei.
Não encontro palavras para respondê-lo e, mesmo se tivesse, nem sei
se conseguiria articular qualquer coisa, ainda mais quando o vejo se
aproximar mais de mim, desviando seus lábios para meu pescoço,
sedutoramente. Algo parecido com um gemido engasgado escapa da minha
garganta quando ele encosta levemente sua boca em minha pele. Ele provoca
algo estranho em meu estômago e em meu centro de mulher, que se desperta
quase instantaneamente e implora por algo mais.
Arregalo meus olhos, não por conta da aproximação dele, que
deposita beijos suaves e provocantes na curva do meu pescoço, mas sim por
conta desse desejo intenso e insano que, de repente, brotou dentro de mim,
com sua presença e esse seu atrevimento — e diria até abuso — de me tocar
desta maneira. Essa paixão avassaladora cresce dentro do meu âmago, se
espalha por cada célula do meu corpo e se concentra no meu ponto de prazer.
Este que implora por atenção e, há semanas, não tem seu pedido atendido.
Bernardo está aqui agora, provocando-me esse misto de desejos e
sentimentos e me levando a pecar contra Deus e contra minha fidelidade ao
meu marido.
Estou quase tomando a decisão estúpida de erguer uma mão e o tocar
na nuca quando ele se afasta, cessando o contato delicioso em minha pele.
Olha-me, com a ponta de um pequeno sorriso estampado no rosto de beleza
peculiar. Com o polegar, me afaga a bochecha, escorregando-o até o início do
canto dos meus lábios. Demoro a notar minha respiração resfolegando ante
sua carícia. Seu rosto novamente se aproxima, agora, contudo, não se desvia
para meu pescoço e vem direto para minha boca.
Arquejo ainda mais forte, separando os lábios e apenas o aguardando
me beijar. Ele, entretanto, apenas deixa um beijo bem suave no canto da
minha boca e se distancia de novo. Seu sorriso e seus olhos, ao me
focalizarem, emitem um brilho de diversão.
— Não se esqueça disso, Ann-Marie — sussurra, seus lábios ainda
rentes ao meu, incitando-me a querer mais do que está me oferecendo. —
Você é linda. E há homens que fariam fila por você. Eu seria o primeiro.
Sem nem mesmo ter tempo de respondê-lo, Bernardo me dá as costas
e se vai, deixando-me sozinha e na semiescuridão.
Levo alguns segundos para recuperar minha respiração e postura. Só
depois de Dousseau sair por aquela porta me dou conta do terrível erro que
estava prestes a cometer, além do pecado consumado em pensamento. Ao me
dar conta disso, meus olhos marejam na mesma hora, o arrependimento me
acerta como uma faca afiada.
Olho ao redor e noto estar em um quarto. Com a visão embaçada,
procuro por uma Bíblia no local, revirando prateleiras e gavetas. Encontro
uma versão de bolso na gaveta da escrivaninha. Ajoelho-me rapidamente à
beira da cama, procuro pelo livro, capítulo e versículo específicos. Faço
minha leitura e a oração, pedindo pelo perdão de Deus.
Ao final, uso o banheiro do quarto para molhar o pescoço e nuca e
fazer baixar a temperatura que subiu pelo meu corpo. Ajusto o vestido pela
centésima vez e deixo o cômodo. Mal começo a descer as escadas quando um
garçom passa por mim; pego uma taça de champanhe sem sequer pestanejar e
bebo um gole generoso, enquanto passo os olhos pelo hall principal à procura
de Antony. Ainda estou o procurando quando uma mão forte aperta meu
braço e me gira. Dou de cara com meu marido, o rosto e olhos vermelhos de
raiva e embriaguez.
— Onde você estava? — pergunta, quase salivando.
— Eu… só fui ao banheiro, chéri — respondo e preciso de algum
esforço para não tremer na voz.
— Vamos pra casa. Agora — ordena, agarrando-me pelo braço e me
arrastando escada abaixo.
Sigo-o, meio destrambelhada, ignorando os olhares dos demais para a
ceninha que está causando. Atravessamos todo o salão, Antony anda
esbarrando nos presentes aproveitando a festa. As pessoas protestam sua falta
de educação, mas, bêbado como só, nem se importa. Estamos chegando à
porta de saída quando decido olhar para trás. Meus olhos encontram os dele,
abraçado à cintura de sua funcionária, senhorita Gautier. Seu semblante ao
me ver ser arrastada é rígido, de desagrado. Tento lhe dar algum sorriso, mas
falho.
Antony me põe dentro do carro e pede ao nosso motorista para nos
levar para casa.

Acordo cedo no dia seguinte. É domingo e gosto de comparecer às


missas em Notre-Dame. Não falo com Antony desde a noite passada, quando
me enfiou em nosso carro e rumamos de volta para casa, deixando a festa de
Dupont. Não nos falamos não por raiva ou intriga, mas porque ele
simplesmente estava bêbado demais para tal e adormeceu ainda no percurso.
Tive de pedir ao motorista para me ajudar a trazê-lo para dentro e o deitar na
cama — onde continua em sono profundo, dentro do terno de gala usado para
a festividade.
Opto por um vestido discreto, amarelo, refaço o coque da noite
passada e decido não usar nenhuma maquiagem. O buzinar no pátio frontal
faz Antony se remexer e resmungar e me avisa que já estou no horário.
Lá embaixo, em um sedan preto, meus pais me esperam. Como de
costume, todo domingo comparecemos juntos à missa em Notre-Dame. Meus
pais, Armand e Simonie Fleury estão casados há mais de trinta anos e são o
exemplo perfeito de amor, cumplicidade e fé em Deus. Desde que me
conheço por gente ambos são engajados na Igreja; são, inclusive, ministros na
paróquia da comunidade onde morei, desde muitos anos atrás. Fui inserida na
catequese logo cedo; crismei e não muito tempo depois participava
ativamente da igreja e em pastorais.
Como minha paixão sempre foi moda, amava costurar e reparar as
vestimentas dos padres, coroinhas e ministros. Quando havia peças teatrais
em épocas comemorativas — como Natal e Páscoa —, minha maior alegria
era poder confeccionar as roupas das personagens.
Cumprimento-os com um beijo em cada lado de seus rostos.
— Minha pequena Ann-Marie — meu pai diz, afastando-se um pouco
para me olhar de um jeito doce e paternal. Deixo outro beijo em sua testa e
me ajeito entre meus pais. Armand dá sinal ao motorista para seguirmos até a
Catedral e volta seu olhar para mim. — Como você está, querida? E seu
marido?
— Estou bem, papa. Antony continua dormindo. Estivemos em uma
festa ontem, na casa de Emilien Dupont. Sabe como ele se diverte e fica
cansado quando comparece a esses eventos. Não quis amolá-lo.
Fazemos nosso percurso colocando um pouco da conversa em dia.
Mamãe fala sobre suas aulas ministradas na catequese. Seus olhos brilham
conforme conta como é ser catequista em sua paróquia atuante. Admiro seu
engajamento e atuação na igreja; mamãe sempre gostou de ser ativa na
paróquia e o quanto pode — ou seja, quase o tempo todo — está
participando. Papai faz parte do Ministério da Palavra até hoje; sua função é
organizar e escalar outros membros da paróquia para as leituras dos textos
bíblicos nas missas. Meu objetivo de vida sempre foi me casar com alguém
que tivesse a mesma fé, com quem pudesse participar da vida da igreja.
Contudo, Armand e Emmanuel Leclerc — meu sogro — sempre foram
amigos a vida toda e, embora o senhor Leclerc também tenha sido sempre um
homem de Deus, seu filho não seguiu os mesmos passos. Não que Antony
seja um incrédulo completo. É um cristão declarado, porém não ativo e
frequentador. A amizade entre meu pai e meu sogro foi tão forte que minha
vida com Antony foi traçada a partir de nossos nascimentos e reforçada
quando Armand precisou de um homem para comandar os negócios dos
Fleury.
Chegamos à Catedral cerca de quarenta e cinco minutos antes da
missa. Como se trata de um ponto turístico muito visitado, se chegássemos
muito perto do horário da celebração não encontraríamos lugar para nos
sentarmos. Mamãe escolhe um banco mais perto do altar — relativamente
vazio, principalmente por conta do horário, já que não são nem oito da
manhã. Às oito e meia, dá-se início ao ato litúrgico, e neste momento a
Catedral já está bem cheia.
A cerimônia é belíssima, como sempre, e o sermão do padre é sobre
casamento, amor e união, o que me atinge em cheio. Ao receber minha
eucaristia, ajoelho-me no meu lugar de volta e converso com Deus, pedindo
não somente perdão pelo pecado em pensamento, mas pedindo também para
me dar forças e fé para resistir à tentação.
Ao final, esperamos boa parte dos presentes se dispersar para só então
sairmos também.
— Estou morrendo de fome. Devíamos tomar um café — papai
sugere, enquanto caminhamos lentamente para fora da Catedral.
Engulo em seco a essa sugestão pois imediatamente me vem à cabeça
Bernardo Dousseau. De repente, desejo com todo meu coração que papai —
por algum milagre — sugira irmos ao Avenue Coffee.
Agarrada aos braços do marido, mamãe responde:
— Acho uma ótima ideia. Que acha de irmos ao Aux Tours de Notre-
Dame, minha filha?
A referida brasserie fica logo aqui, atravessando a rua, na D’Arcole,
fazendo esquina com a Rue du Cloître-Notre-Dame. Não sei se fico aliviada
ou decepcionada em não irmos a cafeteria de Bernardo.
Deus, acabei de sair de uma Santa Missa, não faz muito que pedi
perdão por meus pecados em pensamentos e aqui estou eu, caindo em
tentação novamente, desejando, no mais profundo do meu âmago, rever
aquele homem estúpido.
— Acho uma boa ideia — digo, sorrindo de forma forçada e tentando
soar animada.
Seguimos para lá, não levando mais do que um minuto, e nos
acomodamos em uma das mesas distribuídas na calçada da brasserie.
Aguardamos a chegada dos nossos pedidos enquanto conversamos sobre a
missa.
Estou rindo de uma piada de papai quando, de repente, eu o vejo. Meu
coração dispara dentro do peito, o sorriso em mim se desfazendo pouco a
pouco. Ele está atravessando a rua, acompanhado de uma senhora bem mais
baixa que ele, enroscado aos seus braços. Os dois parecem conversar
divertidamente, pois ele ri e abana a cabeça em positivo.
Estou prestes a desviar o olhar e tentar me esconder atrás do menu,
mas é tarde demais. Seus olhos encontram os meus, o riso alegre nele
também se esvai ao me ver. Quase estaca no meio da rua e só não o faz
porque a multidão andando para lá e para cá e os carros não o deixam.
Junto da senhora enroscada aos seus braços, termina de atravessar a
rua e escolhe uma das mesas ao ar livre do estabelecimento. Meus olhos o
perseguem em cada movimento, meu coração bate descompassado e fico me
perguntando por que diabos teve de escolher uma mesa justamente aqui —
embora relativamente longe de mim.
Nosso pedido é entregue, mas quase não percebo. Minha mãe me
pergunta se está tudo bem e abano a cabeça em positivo. Recupero a postura
e o ar dos pulmões, desvio meu olhar dos dele — que também me olhou a
cada instante — e tomo meu café, voltando a conversar com meus pais.
Vez ou outra, me pego buscando por Bernardo. E, na maioria das
vezes, ele está me olhando de volta, daquele seu jeito apaixonado e
conquistador, que mexe com minhas entranhas.
Terminamos nossa refeição e ficamos algum tempo em torno da mesa,
como de costume, conversando mais um pouco. Quando meus pais me
convidam a ir embora, vou usar o toalete enquanto os deixo pagando a conta
com um de meus cartões. Na saída, me encontro com este homem que
desperta em mim desejos pecaminosos. Ele me olha da sua maneira intensa,
com seu sorrisinho cínico e galante.
Ignoro-o e tento passar, mas ele põe seu corpo no meu caminho,
bloqueando-me. Meus olhos estacam em seu peito. Não tenho coragem de
erguê-los para encará-lo. Fico ali por um segundo todo, imóvel, apreciando a
vista da sua camisa de linho azul-claro — os dois botões abertos me dão a
visão da sua pele branca e lisa do tórax.
Minhas palavras finalmente fazem caminho e escorregam dos meus
lábios:
— Monsieur Dousseau, pode me dar licença? Está bloqueando minha
passagem.
Ignorando meu pedido, ele diz:
— Como você está?
Levanto meu olhar em sua direção.
— Por que o interesse?
Um sorriso divertido nasce em seus lábios.
— Estou me referindo a ontem, Ann-Marie. Vi o modo como seu
marido te levou da festa — explica. No mesmo instante, um sentimento
negativo atravessa seus olhos, assim como seu corpo e seu maxilar ficam
rígidos.
— Isso não te diz respeito, monsieur Dousseau. E gostaria de pedir
para parar de me seguir.
Seu supercílio direito se arqueia diante meu pedido.
— Não estou seguindo você. Vim à missa com minha mãe.
— E desde quando você é homem de frequentar a missa?
Ele dá uma risadinha antes de responder:
— Não sou. Vim apenas para atender ao pedido dela. E como estamos
com fome… viemos aqui.
— Mas está na mesma brasserie que eu — aponto, molhando os
lábios, enquanto tento afastar da cabeça imagem de nós dois ontem, da sua
boca roçando minha pele de leve. — Não é você que tem sua própria
cafeteria?
Bernardo me vasculha com outro do seu olhar intenso e responde,
sem vacilar em seu sorriso galante:
— Às vezes é bom experimentar outros lugares, Ann-Marie. Você,
como uma boa francesa, deve saber que a culinária de nosso país é, inclusive,
um patrimônio imaterial da humidade. Gosto de comer e gosto deste lugar.
Não seria a primeira vez a vir aqui em minha vida, mesmo tendo meu próprio
café.
Por um segundo, fico sem jeito diante sua explicação. É lógico que,
mesmo tendo seu próprio estabelecimento, nada o impede de frequentar
outros.
— Não importa, de qualquer forma. Se puder me dar licença, eu
agradeceria — peço de novo, não podendo não me recordar de ontem,
quando fui praticamente imprensada contra a parede de um dos quartos da
mansão de Dupont.
Eu penso que insistirá em ficar no meu caminho, mas, para minha
surpresa, se afasta com um passo ao lado. Já estou passando por ele, quando
sou segurada pelos punhos. Nossos olhos se encontram outra vez.
— Só me diz se Antony se comportou ontem, depois que foram
embora. Só assim para eu deixar de me preocupar.
Aperto os lábios, observando-o atentamente. Está… preocupado
comigo?
— Antony não me agrediu, se é o que está pensando. Meu marido não
teria coragem, senhor Dousseau.
Ele fecha a cara quando o trato pelo sobrenome. Sei que odeia esse
tratamento, da mesma maneira como odeio quando me chama pelo meu
primeiro nome.
Sem dizer mais nada, me afasto e o deixo para trás, sem que seja
impedida disso.
BERNARDO
Tento fazer meu coração parar de bater tão rápido enquanto a
observo se afastar e voltar para seu lugar. Preciso, urgentemente, acabar com
essa obsessão em Ann-Marie. Se sem vê-la já a desejo com todas as minhas
forças, quando estamos no mesmo ambiente quase perco a racionalidade e o
controle sobre minhas ações.
Preciso parar de assediar essa mulher, de tentar seduzi-la, mas cada
vez que a vejo e me recordo de que está casada com um babaca que não a
merece, minha vontade é de segurá-la nos braços, levá-la para longe e dar o
tratamento digno que toda mulher merece.
Não vou ser hipócrita e dizer que estarmos na mesma brasserie não
foi de propósito. Minha vinda à missa, não. Mamãe realmente me ligou hoje,
praticamente de madrugada, e me pediu para acompanhá-la até a Catedral. Eu
normalmente não teria aceitado, mas ela fez aquela chantagem emocional de
mães, dizendo que sou um filho ingrato e não nos vemos já tem bastante
tempo. Então, acabei cedendo e fui buscá-la. Ao final da cerimônia, minha
intenção era, sim, de levá-la para tomarmos um café no Avenue Coffee, ou
no Le Procope — um dos nossos pontos favoritos e a menos de dois
quilômetros da Catedral —, mas confesso ter mudado de ideia quando
atravessávamos a rua para buscarmos o carro. Eu a vi em uma das mesas do
Aux Tours de Notre-Dame e meu modo obsessivo nesta mulher acionou por
si próprio. Convenci minha mãe a comermos ali mesmo. Como nós dois
temos boa experiência com o lugar, ela topou.
Ao vê-la se levantando, prontamente a segui, na ânsia de saber como
o imbecil do Antony a tratou depois que saíram da festa. Confesso, não me
agradou ver o modo como ele a agarrou pelo braço e a arrastou mansão afora,
como se fosse uma propriedade, alguém sem voz e sem vontades.
— É impressão minha ou aquela moça não tira os olhos de você? —
dona Ester Dousseau, minha mãe, pergunta assim que volto e me ponho em
meu lugar.
Desvio os olhos discretamente em direção a Ann-Marie, onde ela e o
casal que a acompanha estão terminando de juntar suas coisas para irem
embora. Neste instante, ela está me olhando de volta, mas foge do meu olhar
quando vê que faço o mesmo. Não digo nada à mamãe, apenas sorrio e volto
a tomar meu café.
— Você a conhece? — me pergunta, em português.
Franzo o cenho e a encaro um instante. Mamãe, embora seja
brasileira, não é muito de falar português. Não depois que passou a dominar o
idioma desde que nos mudamos para cá por causa do meu pai, aquele francês
cabeça-dura, há mais de trinta anos. Há poucas ocasiões em que minha mãe
conversa em seu idioma nativo. Um deles é quando quer que alguém não
entenda o que estamos conversando.
— Digamos que sim — respondo em francês, analisando-a
minuciosamente. O maior sonho de dona Ester é que eu “sossegue o facho” e
lhe arranje netos, minha obrigação como filho único, segundo suas palavras.
— É uma moça bonita — pontua ainda em português, bebendo mais
do seu chá.
Com a boca na borda da minha xícara, respondo:
— E casada, maman.
O sorriso em mamãe se esvai no mesmo instante. Seu semblante
endurece seriamente durante alguns segundos. Até fico aliviado acreditando
que ela desistirá do assunto. Nunca estive tão enganado. Não muito tempo
depois, se pronuncia:
— Mesmo sabendo disso, ainda está interessado em uma mulher
casada, Ber? — Reviro os olhos. Já me preparo psicologicamente para
escutar seus sermões e ignorá-los. — Sabe, sempre sonhei para você
encontrar uma boa moça, se casar com ela e me dar um ou dois netos. Você
nunca parou com ninguém. Até achei que finalmente tinha encontrado
alguém quando me disse estar namorando aquela moça… Como se chama
mesmo? A chefe de cozinha?
— Victória — lembro-a, encostando-me à minha cadeira. Meus olhos
correm rapidamente até a mesa de Leclerc, mas a essa altura já há uma
funcionária recolhendo a louça. Bebo o restante do meu café e volto a olhar
para mamãe.
— Isso mesmo. Victória. Bem, como estava dizendo. — Tento não
revirar os olhos. — Achei que, por fim, você ia sossegar com ela e finalmente
me dar netos.
Forço uma tossida e seguro uma risada. Mamãe me olha de forma
repreensiva. Ela sabe muito bem que, mesmo se Victória Santos e eu
tivéssemos ficado juntos, ainda assim não teria um neto, uma vez que ela é
daquelas que nunca sonhou em ser mãe e nada a faria mudar de ideia quanto
a isso.
— Mas vocês terminaram — mamãe continua. — E desde então você
não teve outra namorada séria. Apenas sai com aquela moça. Marie, o nome
dela, não é? — Afirmo em positivo. — E embora eu torça muito pra que
encontre alguém que te leve para o altar, reprovo muito o fato de você estar
tentando destruir um casamento.
É mais forte do que eu. Reviro os olhos.
— Não estou tentando destruir nada.
Mamãe me olha por bons segundos antes de continuar.
— É bom se manter afastado, filho. Se ela, sendo casada, estava te
encarando daquela maneira, não me surpreenderia que fizesse o mesmo com
você caso viessem a ficar juntos.
Na capacidade de visualizar um futuro incerto minha mãe é
especialista. Incrível.
— Não deveria falar assim. Sequer a conhece, não sabe se ela é feliz
no casamento ou não, não conhece nada da vida de Ann-Marie — defendo-a,
parecendo que eu a conheço.
— Ann-Marie… Este o nome dela? Um belo nome… — divaga. —
Realmente, você está certo, Bernardo, mas de qualquer maneira, não se
envolva com uma mulher casada. Escute os conselhos de sua mãe, ao menos
uma vez na vida.
— Não vou me envolver, mamãe, mesmo se eu quisesse. Ela é fiel ao
marido.
Maman me dá outro daquele olhar “não acredito em nada do que está
dizendo”.
— Quem você quer enganar, meu filho? Acha que nasci ontem?
Engraçado, tínhamos combinado de irmos ao seu café, talvez ao Le Procope,
mas enquanto atravessávamos a rua, mudou de ideia porque a viu. Depois, ela
se levantou, provavelmente indo ao banheiro, e logo você foi atrás. Chérie,
você está correndo atrás dessa moça como um cão sem dono. — Fecho o
sobrolho com tal comparação. — Está tentando conquistá-la, eu sei, já notei
isso.
Droga. Esqueço-me que mamãe é detalhista e capta as coisas com
mais facilidade do que qualquer outra pessoa que conheço. Ela percebeu meu
interesse em Ann-Marie antes mesmo de nos sentarmos nessa mesa.
— E por isso estou te aconselhando a se manter longe dessa mulher,
não importa o quão infeliz ela seja no casamento. Filho — diz, segurando-me
amavelmente pelas mãos e me olhando dentro dos olhos —, esqueça essa
moça, procure alguém solteira. Há tantas boas mulheres com quem você pode
se relacionar. Se você quiser, conheço a filha de uma advogada…
— Mãe, para… — peço, delicadamente. — Não quero ninguém na
minha vida, não por enquanto.
— “Não por enquanto” — imita-me, em forma de resmungo. — Pour
l'amour de Dieu! Você já tem quase quarenta anos. E já passei dos sessenta.
Preciso de netos pra tomar conta, fazer bolo, encher a minha casa, costurar
casaquinhos! E logo, Bernardo, antes que eu fiquei velha demais e com os
ossos atrofiados.
Quero rir de seu exagero, mas estou aborrecido demais com essa sua
cobrança. Não vou cuspir para cima e dizer que nunca vou querer filhos. A
verdade é que não tenho uma “opinião” formada sobre isso. Nunca visei a
paternidade porque nunca me estabeleci com alguém para tal, não porque eu
tenha qualquer aversão à criança ou a ser pai. Se um dia encontrar alguém, e
esse alguém quiser filhos, por mim tudo bem, e se esse alguém não quiser —
ou não puder — ter filhos, tudo bem também. Entretanto, não gosto dessa
pressão de mamãe, como se ter filhos fosse a coisa mais essencial do mundo
e a minha razão para ser feliz.
— É bom se acostumar com a ideia, mãe — falo, com um suspiro. —
Pode realmente acontecer de eu não deixar herdeiros.
— E daí a linhagem Dousseau morre! — Nisso, ela tem razão. Meu
pai só teve uma irmã, que se casou e adotou o sobrenome do marido.
— Existem muitos Dousseaus por aí, mamãe — provoco. Ela me olha
com cara de ultrajada. Tento não rir de sua expressão e a pego pelas mãos de
novo. — Vamos esquecer desse assunto, tá bom?
Ester não fica satisfeita em darmos um basta no assunto, mas
concorda mesmo assim. Pago nossa conta e a levo embora para casa.

Dupont me telefona, todo misterioso, dias depois da sua festa na


mansão, e solicita um encontro comigo. Tento ludibriá-lo a vir ao Avenue
Coffee, mas ele diz que o único horário livre na semana é perto do almoço,
então precisamos marcar um encontro em um restaurante. Combinamos de
nos vermos no Café Le Procope, ao meio-dia. Quando chego, Emilien já está
aqui, todo elegante em um terno preto e gravata rosa-claro, bebendo uma taça
de água. Levanta-se ao ver eu me aproximar e me recebe com um abraço
fraternal.
Com minha chegada, o garçom vem nos atender. Levo algum tempo
até decidir pelo menu. Feito o pedido, decido ir logo ao assunto:
— Chega de mistério, Dupont. Me diga o que precisa falar comigo.
O homem me dá um daqueles seus sorrisos amigáveis, pega sua taça e
bebe mais da água.
— Quero tratar de negócios.
— Eu supus. Mas você bem sabe que não sou do ramo de
investimentos.
— Sei disso — responde-me, inclinando-se para frente. — Porém, sou
um investidor, o melhor desse país, e quero investir seu dinheiro. Já deve
saber como funciona a Dupont Investimentos.
Maneio a cabeça em positivo. Emilien tem um trabalho sério. Sua
empresa trabalha com diversos bancos privados em toda França, empresas
nos mais diversos ramos e pessoas físicas. Sei muito bem que a Dupont
Investimentos não é uma fraude e tem uma atuação séria e muito rentável.
Nunca pensei em investir em nada porque minha paixão sempre foi a
administração. Investi, sim, muito suor e trabalho junto com Alfredo na
Avenue Coffee. Meu capital em investimento também foi todo para minha
empresa, nunca para fora disso.
— Eu compreendo, mas não sei se quero entrar neste ramo. Agradeço
o convite, mas conheço os riscos de investimentos como com os que sua
empresa trabalha.
— É por isso que estou aqui. Você não conhece o ramo como eu
conheço. Estou disposto a te explicar tudo que você quiser, com detalhes e
tudo mais.
Ergo uma sobrancelha e o encaro um segundo. Emilien é CEO de uma
grande empresa de investimentos. Explicar como seus métodos de aplicação
de capital funcionam é coisa para os economistas de sua cadeia hierárquica
dentro da empresa, uma vez que tem coisas mais importantes a serem feitas.
Sinto-me lisonjeado pelo próprio Dupont querer me dar um pouco de seu
tempo para pessoalmente me falar de que forma trabalha sua empresa. Cedo
com um maneio de cabeça e, enquanto comemos, ele me fala tudo
detalhadamente. Estamos na sobremesa quando, por fim, acaba de me
explicar como funciona.
— Se você quiser um relato de experiências mais próximas, pode
falar com Leclerc — afirma, raspando sua taça de mousse.
Ergo uma sobrancelha.
— Leclerc investe com você?
— Já há algum tempo. Recentemente, decidi abrir um programa de
investimentos com capitais mais baixos. Antony é meu sênior neste
programa. Inclusive, está em viagem a Lyon para fecharmos novas parcerias.
Recosto-me ao espaldar da minha cadeira, roçando o indicador dos
lábios.
— Não sabia que Leclerc tinha… experiência nessa área.
— Ele é formado em administração com mestrado em Economia —
Dupont revela, afastando sua taça ao terminar o doce. — É inteligente,
dedicado e proativo. Não o coloquei à frente deste programa apenas porque é
meu amigo, Dousseau. Antony é competente, por isso tem minha confiança.
— Certo… — respondo, compenetrado. — Eu, bem… vou pensar na
sua proposta de investimento.
— Os riscos são pequenos.
Levanto-me do meu lugar, balançando a cabeça em positivo.
— Ainda assim, existem. Vou analisar tudo com cuidado. Pode me
enviar a proposta em escrito, por e-mail?
— Certamente — concorda, levando a taça de água até os lábios, sem
tirar os olhos de mim.
Agradeço pelo almoço em sua companhia, despeço-me dizendo que
lhe darei uma resposta em breve e deixo o Le Procope, pensando apenas que
Antony não está na cidade.
Logo, isso significa que…

A cafeteria está uma loucura sem minha gerente. Tudo bem, a


subgerente é tão competente quanto, mas justamente hoje a moça está de
folga e parece que o movimento resolveu ser maior. Acho que nunca mais
vou dar férias a Juliette. Esse lugar parece que não funciona sem ela.
Passo boa parte do restante da tarde, um dia depois do meu encontro
com Emilien, resolvendo partes burocráticas do café. Perto das quinze horas
estou com minhas costas doloridas e o sono quase me domina por completo.
Preciso de café. Saio da sala da gerência em direção ao salão principal. A
cafeteria está cheia, os funcionários parecem se desdobrar para atender todo
mundo. Penso em pedir para uma das atendentes me preparar um expresso,
todavia ao ver que está todo mundo ocupado, eu mesmo decido ir à máquina
e moer os grãos. O aroma da cafeína enquanto o líquido é despejado na xícara
de porcelana me anima e motiva. Beberico meu café e me viro, pronto para
voltar à minha gerência, mas estaco ao vê-la cruzando a porta de vidro e
adentrando o local, uma adorável surpresa para animar mais meu dia.
Tenho a impressão de perder o ar dos pulmões quando nossos olhos
se encontram. Não, não é possível. Ann-Marie só pode… estar me
provocando, testando meus limites, querendo me deixar maluco. Ela entra na
minha cafeteria, não apenas linda dentro de um vestido vermelho rodado com
um decote discreto redondo.
Entra usando a gargantilha que lhe dei de presente.
ANN-MARIE
Estou no meu ateliê, costurando um vestido novo, quando Antony
entra, batendo rapidamente à porta. Ergo os olhos um instante e paro com a
costura. Sorrio e o observo por um segundo. Está com um sorriso radiante, os
olhos emitem um brilho mais intenso. Está trajando um terno cinza que o
deixa elegante e realça sua beleza. Antes de eu ter tempo de perguntar o
motivo dessa animação, ele me puxa pelo punho e me ergue da cadeira,
dando-me um beijo profundo que me pega de surpresa.
Escoro-me ao seu peito forte e retribuo ao beijo — uma repentina
demonstração de afeto incomum ao meu marido —,na mesma intensidade.
— Alguém viu um passarinho verde — brinco. Um segundo depois,
ele me rodopia por baixo do seu braço, trazendo-me de volta para seu tórax.
— Tenho uma novidade — diz, e apoia as mãos sobre minha cintura.
Encaro-o com um sorriso, esperando-o me contar. — Como você já sabe,
estava fazendo trabalhos esporádicos com a empresa de Dupont. — Abano a
cabeça a positivo e subo as mãos até sua gravata, arrumando-a. — Há alguns
dias, Emilien me fez uma proposta para ser sênior num novo programa de
investimentos dele.
— Sim, você comentou alguma coisa.
— Isso, mas ainda era apenas especulação. Emilien só me confirmou
mesmo na festa em sua mansão. — Antony abre um sorriso ainda maior e
completa: — Com isso, mon ange, terei de fazer uma viagem de alguns dias
para Lyon.
O sorriso em mim murcha um pouco. Não gosto desta ideia de passar
dias longe do meu marido.
— Por quê? — questiono.
Antony me puxa novamente e nos senta na pequena poltrona em meu
ateliê. Segura em minhas mãos e me olha dentro dos olhos.
— Vou liderar esse programa, querida. Meu trabalho em Lyon será
fechar novas parcerias. Será por apenas umas duas semanas. Não mais do que
isso.
— Duas semanas? — indago, surpresa com o tempo que passará
longe. — Por que isso tudo, chéri?
— Não ficarei só em Lyon. O ponto de partida será lá, mas terei de
passar em mais três ou quatro cidades. Querida, entenda, é uma oportunidade
incrível de crescimento para nós, tudo bem? Serão só alguns dias.
Forço um sorriso, tentando demonstrar uma animação que não tenho.
Um segundo depois, uma ideia passa na minha cabeça.
— E se eu for com você, mon amour?
A expressão de Antony muda bruscamente. O sorriso radiante
desaparece no mesmo instante.
— Não — nega, veemente, pondo-se de pé. — Preciso que fique em
Paris. Preciso que… — Seus olhos encaram os meus, como se estivesse
pensando em alguma coisa. Antony volta a se sentar ao meu lado e completa:
— Preciso que fique e tome conta da galeria pra mim.
Franzo o cenho, estranhando seu pedido. Não é a primeira vez que ele
passa alguns dias fora, por conta de negócios, mas é a primeira vez que me
pede para tomar conta da galeria — algo completamente desnecessário, uma
vez que há gente mais competente para tal coisa.
— Chéri … — Tento contestar sua decisão, contudo, ele me
interrompe, tocando seus lábios levemente nos meus.
— Ann-Marie, não estou pedindo para administrar o local. — Sorri,
acariciando meu rosto. — Só quero que você passe uma ou duas vezes no dia
por lá e veja se está tudo certo, pegue os relatórios com meu gerente, veja se
o pessoal está trabalhando. Coisas assim.
Abano a cabeça em positivo, mesmo estranhando essa decisão súbita
em me deixar “tomar conta” da galeria. Decido não o contrariar, nem sobre
eu ficar em Paris nem sobre essa sua longa viagem a negócios.
— Tudo bem, mon ange. — Cedo, e recebo um sorriso pequeno como
resposta.
Antony deixa um beijo no meu rosto e sai, dizendo ir preparar as
malas.

Já tem dois dias que Antony está de viagem. Sinto falta dele nessa
casa imensa. Meus dias são preenchidos pela mesma rotina de sempre. Criei e
costurei algumas peças novas para meu vestuário na maior parte do tempo.
Sinto falta de trabalhar, de exercer minhas habilidades aperfeiçoadas com
meu curso de designer de moda, de ocupar minha cabeça e meu tempo com
coisas de que realmente gosto.
Furo o dedo em uma agulha quando tomo um susto com o soar alto do
meu celular. No visor, o número é de uma amiga de longa data, com quem
converso pouco, infelizmente.
— Salut, Giselle — atendo, deixando minha mesa e saindo do ateliê.
Caminho até a área aberta, pois é uma manhã bonita e agradável.
— Salut, ma chère amie — responde-me, animada. Sento-me em um
dos bancos do jardim e aproveito o calor matutino contra meu rosto. —
Desculpe te ligar assim, mas estou precisando de um favor. É urgente,
amiga.
Endireito minha postura.
— Em que posso te ajudar?
Giselle então me explica a situação. Ela tem uma empresa de porte
médio que celebra e organiza casamentos. Uma das madrinhas da noiva teve
um pequeno incidente com seu vestido e agora está sem, faltando apenas
algumas horas para a cerimônia.
— Angeline está quase tendo um ataque de nervos — minha amiga
comenta, referindo-se à noiva. — Ela quer as madrinhas todas vestidas
iguais, como foi planejado, e os modelos foram todos sob medida. A
costureira responsável pelos vestidos não está na cidade e não encontramos
mais ninguém que faça dentro do prazo que precisamos. Para dentro de, no
máximo, quatro horas.
Olho no relógio, já entendendo qual o propósito desta ligação. São
dez da manhã. Ela precisa do vestido para, no máximo, duas tardes. Para
mim, é tempo até de sobra.
— Pensei em você, Ann-Marie. Sei que tem um dom nato para a
costura e poderia me ajudar. Por favor, apenas desta vez!
Sequer penso duas vezes ao responder:
— Claro, Giselle! Será um prazer. Preciso apenas do modelo do
vestido e as medidas da madrinha. Se ela puder vir aqui em casa para
experimentar será ainda melhor. E, claro, do tecido.
— Oh, mon amie! Você é espetacular. Eu já consegui o tecido na
mesma cor da peça. Vou mandar alguém levar pra você. Merci beaucoup!
Apenas trinta minutos depois, recebo uma caixa com tudo que preciso
e corro até meu ateliê. Sou boa no que faço, modéstia à parte, e, em pouco
mais de duas horas, o vestido já está pronto. Ligo para Giselle e a informo do
trabalho finalizado. Em mais vinte minutos, ela e a referida madrinha estão
no meu ateliê, embasbacadas olhando para o vestido no manequim. A moça o
experimenta, faço apenas pequenos ajustes na costura e voi là! Está
belíssima.
— Nem sei como agradecer você por essa ajuda imensa! — Giselle
diz, abraçando-me. — Depois me passe o valor de sua mão de obra e…
Afasto-me dele no mesmo instante e abano a cabeça em negativo.
— Não é nada, Giselle. Não se preocupe com isso.
— Imagine! — protesta. — Você fez um trabalho incrível.
— Isso foi apenas um favor para uma amiga. Mas, olhe, já que você
insiste nisso, me pague um café um dia desses e estamos quites, o que acha?
Ela me abre o sorriso mais lindo do mundo antes de responder:
— Combinado! Pode ser amanhã à tarde? Será meu único dia mais
folgado. Depois disso tenho mais um milhão de casamentos para organizar —
diz, toda alegre e exagerada, soltando uma risada contagiante. Afirmo em
positivo e marcamos um horário mais específico. Acompanho-a até à porta
quando me dá um ponto de encontro mais exato antes de ir embora: —
Amanhã, às três, no Avenue Coffee. Te mando o endereço por mensagem.
Levo um segundo inteiro para assimilar onde foi que Giselle
combinou de se encontrar comigo. Ao finalmente processar, abro a boca para
contestar e implorar para que nós nos encontremos em outro lugar, mas a essa
altura Giselle já está entrando em seu carro e partindo.
Nem consigo dormir à noite com a ideia de pôr os pés naquela
cafeteria. Antony me alertou a não ir lá. Eu não quero ir lá e, por algum azar,
encontrar aquele homem. Penso, por várias vezes, em ligar para minha amiga
e desmarcarmos, ou marcarmos em outro ponto. Entretanto, tal sentimento
não é forte o suficiente. Quero ir ao Avenue Coffee, esta é a verdade, e revê-
lo. Revirando na cama com meus pensamentos e desejos em conflito,
levanto-me instantes depois e caminho até o closet, na minha mania ridícula e
estúpida de pegar essa joia ainda mais ridícula e estúpida e ficá-la
namorando.
Em um momento de criatividade às duas da madrugada, corro até meu
ateliê, pego meu caderninho de inspirações e desenho um vestido rodado,
vermelho, com um decote discreto, mas não que cubra todo meu colo, para a
gargantilha ficar mais à mostra. No dia seguinte, cedo, encomendo o tecido.
Logo quando chega, costuro a peça em pouco mais de uma hora e meia.
Experimento-a de frente ao espelho e dou mais alguns ajustes pequenos.
Ficou bom em meu corpo e valorizou minhas curvas. Fico tentada a
pegar a gargantilha e vesti-la para combinar com a peça, como esbocei no
desenho. Contenho-me, entretanto; pelo menos pelas primeiras horas.
Quando vai dando o horário de me encontrar com Giselle na cafeteria de
Dousseau, recebo a mensagem de minha amiga, informando-me
(desnecessariamente) o endereço de nosso ponto de encontro. No closet, já
vestida e maquiada, a joia está entre meus dedos e, pela primeira vez desde
que a ganhei, eu a visto.
Resfolego um segundo ao ver o adorno em meu pescoço esguio.
Ficou tão lindo… Levo a mão à joia e a toco com carinho; sem quase
perceber, sorrio, recordando-me do sorriso e os olhos de Dousseau. Tento
tirá-la de mim, afinal, não posso ir à sua cafeteria trajando esta joia. Não
quando a ganhei de um galinha galanteador e quando sou uma mulher casada.
Tento tirá-la, juro que tento. Perco as contas de quantas vezes levo as mãos
até o fecho e quero abri-lo e tirá-la do meu pescoço. Mas não consigo.
Nenhuma das vezes.
Quais são as chances de usá-la e me encontrar com Bernardo na
cafeteria? Ele é um homem ocupado, talvez nem esteja por lá hoje.
Contrariando todo o bom senso, decido que a usarei hoje,
aproveitando que Antony não está na cidade.

A portaria me interfona, avisando que o táxi que pedi já chegou. Uma


última vez me olho no espelho, confiro minha aparência e contemplo a
gargantilha em meu pescoço. Eu sei que é um erro ir até lá, ainda mais
usando isso. Mas não consigo me controlar. Penso no quanto é errada minha
atitude enquanto deixo o closet, desço as escadas, cruzo todo o pátio e entro
no táxi. Penso em como isso é errado durante a viagem de minha casa até a
cafeteria. Penso no meu erro estúpido durante os longos cinco minutos em
que fico na calçada, apenas encarando a fachada do estabelecimento,
convencendo-me a virar nos calcanhares e ir embora — sem sucesso algum,
devo ressaltar. Mas, de todos os momentos em que pensei em como este é um
erro idiota e terrível, quando atravesso a porta de vidro e os olhos dele
encontram os meus, então tenho a mais absoluta certeza de que sim: foi um
erro ter vindo aqui, com essa gargantilha. Um erro terrível. Bonito. Que me
olha com paixão. Um erro terrível e atraente.
Tenho a impressão de que o tempo para em torno de nós enquanto
Bernardo está olhando para mim com aquele seu olhar galante, conquistador,
que faz meu estômago virar de cabeça para baixo. Vejo seu olhar se desviar
de mim para o meu pescoço. Engulo em seco e não mexo um músculo ou um
globo ocular até que os olhos dele retornem aos meus. O indício de um
sorriso surge em seus lábios.
Pigarreio e me lembro de que o mundo ainda gira. Olho ao redor,
sentindo o coração se descompassar levemente. Encontro uma mesa mais ao
fundo, bem discreta e reservada, e caminho até lá, rezando para ele não me
seguir. Uma funcionária vem me atender, mas a dispenso, alegando que vou
esperar minha amiga chegar.
Ela mal volta ao seu lugar e o que mais temo acontece: Dousseau se
aproxima de mim, com seu sorriso cínico em minha direção. Ele espalma
contra a mesa e me olha dentro dos olhos, inclinando levemente seu corpo.
— O que você está tentando fazer comigo, Ann-Marie? — pergunta,
em um tom conquistador e meio rouco.
— Vim apenas tomar um café com uma amiga, monsieur Dousseau
— respondo, tentando manter a calma e a postura diante esse homem.
O sorriso nele não se abala. Senta-se de frente para mim e cruza as
pernas.
— Tanto lugar em Paris para se encontrar com sua amiga e você
marca exatamente aqui? E ainda usando a gargantilha que te dei. Devo dizer,
estou criando expectativas com você — diz, alargando o sorriso.
Meu coração dá uma batida a menos com sua sentença. Encontro todo
meu autocontrole e respondo:
— Pois não crie. Jamais vai acontecer algo entre mim e você. E
apenas para viés de esclarecimento, não marquei nada, quem marcou foi
minha amiga. Só me dei conta de que nos encontraríamos aqui quando me
enviou o endereço em meu celular, hoje de manhã. E sobre a gargantilha…
foi feita para ser usada, n'est-ce pas?
Descruza as pernas e se inclina sobre a mesa.
— Isso significa que você já mentiu para Antony sobre a origem
dessa joia? — indaga, com um tom irritantemente de deboche.
Engulo em seco, pensando no assunto. Meu marido ainda não sabe da
gargantilha e muito menos que foi Bernardo quem me presenteou. Sobre este
último ele nunca vai saber.
— Ainda não contei nada, mas vou usar a sua ment… — Paro de falar
e reformulo minha frase: — A ideia que você me deu.
— Ou seja, vai mentir — exprime o óbvio, com um sorrisinho
convencido.
Desvio o olhar do dele por vários segundos, tentando não ser atingida
por sua verdade. Minha consciência acusa, fazendo meu estômago revirar.
Decido não responder nada e nem tornar a olhá-lo.
— Quero que saiba apenas. — Sua voz chega a meus ouvidos, mas
me mantenho firme em não o olhar. Não posso me render a esses desejos
absurdos dentro de mim, não posso ceder ao charme deste homem, ou vou
cair em tentação — que estou feliz com sua presença aqui. E ainda mais por
estar usando o presente que te dei.
Minha respiração fica desregulada sem eu perceber. Ao menos
consigo me manter firme em não encontrar seu olhar. Há silêncio por longos
segundos. Quando encontro coragem para virar o pescoço, Bernardo já não
está mais aqui.
Para meu alívio.
E decepção.
BERNARDO
Dane-se se meu trabalho vai acumular. Dane-se se eu precisar levar
papelada para minha casa e tiver de abrir mão de uma noite de sexo ou de
vinho para terminar de revisar planilhas, contratos e balanços da cafeteria.
Não me importo. Vale a pena se a recompensa for essa visão maravilhosa que
estou tendo agora: Ann-Marie sentada em uma das mesas, usando a
gargantilha que lhe dei, enquanto toma café e conversa com uma amiga —
aliás, conheço-a de vista. Ela e o marido são clientes regulares daqui e, se não
me falha a memória, são donos de uma empresa que organiza cerimônias de
casamento.
Após deixá-la sozinha e parar de azucriná-la, volto para trás do balcão
e me nego a retomar para a gerência e continuar enfurnado naquele lugar
rodeado de papéis burocráticos. Observar essa mulher é muito mais
interessante.
Para não levantar nenhum tipo de comentário maldoso e nos colocar a
em conflito com o traste do marido, ocasionado por algum tipo de fofoca,
tento ser o mais discreto possível em meus olhares para essa beldade. Para
isso, finjo andar entre os clientes e conversar com os que mais sou íntimo.
Quando um velho amigo chega e se senta em uma mesa perto dela, me junto
a ele, de frente para Leclerc, e daqui posso observá-la bem melhor.
Vejo aqueles olhos azuis-claros se arregalarem quando finalmente me
nota a dois metros dela, olhando-a, sem poder evitar o meu sorriso de canto.
Não consigo tirar meus olhos dos dela e, neste momento, enquanto meu
amigo e cliente fala alguma coisa que não presto atenção, não faço questão de
ser discreto em meus olhares.
Não vou negar, me deixou muito animado e esperançoso ela ter vindo
até minha cafeteria. Seu pretexto para justificar sua vinda — e usando meu
presente — não me convenceu nem um pouco. De algum jeito, sinto que
mexo com essa mulher da mesma maneira que ela mexe comigo. E suspeitar
disso me faz, sim, criar expectativas. Eu não pensaria duas vezes em tê-la em
minha cama, mesmo casada, mesmo correndo risco tremendo de me envolver
com ela e levar um sermão — senão uma surra — de minha mãe.
Quarenta e cinco minutos depois de atravessar por aquela porta, ela e
a amiga se levantam da mesa, ainda conversando, e seguem até o caixa. Meus
olhos não perdem nem mesmo um movimento dela, cada sorriso, cada piscar
de olhos, cada mover dos dedos, talvez de forma nervosa, em seu vestido
vermelho. Não perco nada. Elas já estão abrindo a porta para irem embora
quando Ann-Marie olha para trás, diretamente para mim. Sustentamos o olhar
um do outro por um segundo antes de me dar um pequeníssimo sorriso e
seguir seu caminho.

Peço licença ao meu colega e deixo a mesa praticamente um segundo


depois. Nem penso em ser discreto para não levantar suspeitas. Consigo
chegar à porta a tempo suficiente de vê-la se despedindo da amiga e a
colocando dentro de um táxi. Em seguida, atravessa a rua e entra na galeria.
Faço o mesmo, sem pestanejar em segui-la. Está subindo o primeiro lance de
degraus quando a seguro pelos punhos. Ela se vira em minha direção e me
olha com surpresa. Seus olhos descem até minhas mãos em torno do seu
pulso e depois voltam para mim.
Penso em soltar, mas não o faço. Sempre fui abusado, não será agora
que vou mudar de postura. Gosto mesmo de provocá-la.
— Monsieur Dousseau? — exclama, em tom de confusão.
— Madame Leclerc… — devolvo, com uma pitada de sarcasmo.
Delicadamente, se desvencilha do meu toque.
— O que está fazendo? — indaga, com um sussurro, inclinando-se
levemente para mim, como se murmurando um segredo. — Ficou maluco em
me seguir até aqui?
— É, estou maluco, sim, Ann-Marie, mas por você — confidencio,
alcançando seu punho de novo.
— Dousseau, por favor, sou…
— … uma mulher casada, eu sei. E isso é uma pena. Uma pena
mesmo.
A mulher apenas me olha com atenção. Noto como sua respiração
falha conforme nossos olhares se cruzam. Por um segundo, o tempo parece
parar para nós dois e o mundo a nossa volta para de existir. Só voltamos à
realidade quando ouvimos passos subindo o primeiro lance de escadas,
seguido de uma troca de palavras e risadas. Ela se volta para mim, com os
olhos arregalados. De repente, segura no meu punho e me puxa escada acima,
como se fôssemos duas crianças fugindo dos adultos após uma traquinagem.
Sou empurrado para dentro de uma sala no próximo andar.
Ann-Marie se encosta à porta fechada, levando a mão ao coração.
Aproximo-me sem que ela veja e deixo nossos corpos próximos, espalmando
em ambos os lados de sua cabeça. Seus belos olhos azuis se erguem na minha
direção e, mais uma vez, nos encaramos como se o mundo não existisse. Um
segundo depois, me abre um sorriso pequeno, que aumenta conforme sorrio
de volta.
— Do que estamos fugindo, exatamente? — pergunto, com um
sussurro.
Ela morde o lábio inferior, sem deixar de me encarar.
— Eu não sei. Não sei quem estava subindo — responde, segurando
uma risadinha.
Semicerro os olhos em sua direção e ponho um sorrisinho de lado.
— Vou reformular a pergunta — falo, diminuindo um pouco mais a
distância entre nós. — Por que estamos fugindo?
Ela continua me encarando por mais alguns segundos antes de
responder:
— Antony… não pode saber que estive com você.
Abano a cabeça em positivo, novamente sentindo essa sensação ruim
de saber que Leclerc controla a própria esposa dessa maneira. Realmente não
me agrada. Penso em abrir a boca e falar o que penso dessa relação de
controle, mas sou impedido quando suas mãos pequenas subitamente tocam
meu tórax. Arregalo os olhos com sua atitude, surpreso com tal aproximação.
Ann me frustra, porém, porque seu toque não é uma aproximação, é para me
afastar. Ela me empurra e passa por mim. Viro-me e a vejo se encostar à
mesa na sala. Olho mais atentamente ao redor e só então noto que estamos
em algum tipo de escritório.
— É o escritório do Antony? — indago, excitando-me com a ideia de
estar “aprisionado” com ela justamente aqui.
— Não. Meu marido mantém o dele trancado, principalmente quando
não está — responde, agora não mais me olhando.
Há silêncio entre nós de novo. Não sei exatamente por que tomei a
atitude de vir atrás dela. Foi algo não muito planejado e agora me encontro
aqui, sem saber o que lhe dizer. Fixo meu olhar na joia em seu pescoço,
deixando alguns pensamentos impróprios me tomarem.
— Eu vou sair primeiro, depois você sai. E, por favor, monsieur
Dousseau, pare de me perseguir — pede.
Quando levanto meu olhar ao seu, vejo seus olhos brilhando de forma
diferente. Nunca fui homem de perseguir ou assediar uma mulher. Sei ouvir a
porra de um “não”. O que é isso então que estou me tornando, obcecado em
Ann-Marie, uma mulher casada? Desrespeitando seu espaço, suas vontades,
seu estado civil. Não reconheço este Bernardo. De nenhuma maneira.
— Claro, me desculpe. — As palavras escorregam dos meus lábios; a
expressão dela se transforma em surpresa. Talvez esperasse que eu resistisse
mais um pouco e continuasse a atormentando. — Não quero te pôr em uma
situação… complicada com Antony, nem atrapalhar seu casamento… —
Balanço a cabeça em negativo, questionando-me sobre minha postura. Já
reparei que Leclerc é um homem controlador. Aproximar-me assim de sua
esposa pode trazer problemas, não somente a mim (aliás, nem me importo
comigo, pois com ele eu me entenderia), como para Ann-Marie também.
Droga, sou um idiota. — Me perdoe. Isso… não vai voltar a acontecer.
Olho-a uma última vez antes de abrir a porta, observar ao redor, me
certificar de que não há ninguém nos corredores e então a deixar para trás.
Por mais que minha vontade seja de envolvê-la em meus braços.

— Dousseau? — alguém me aborda quando estou descendo o último


lance de degraus.
É Deschamps, que vem dos fundos da galeria, usando seu terno caro
sob medida e o chapéu preto cobrindo os fios grisalhos. Ele sorri quando me
viro para encará-lo e me recebe com um abraço amigável. Mal retribuo, ainda
meio atordoado por causa de meu “encontro” com Ann-Marie.
— René! — Finalmente consigo exclamar e forçar um sorriso. Ele me
faz companhia na volta até a cafeteria.
— O que está fazendo aqui? — pergunta, enquanto aguardamos o
momento certo de atravessar a rua.
Os segundos passam enquanto procuro por qualquer desculpa
esfarrapada convincente.
— Vim procurar Antony… — respondo, soltando o ar dos pulmões.
— Já tem algum tempo que não o vejo na cafeteria. Pensei que pudesse ter
acontecido alguma coisa.
Cruzamos a avenida junto de mais algumas pessoas.
— Antony está de viagem, n'est-ce pas? Está trabalhando com
Dupont. Achei que soubesse.
Pestanejo um instante antes de aumentar ainda mais minha mentira:
— Eu sei. Emilien comentou. Mas achei que já tivesse voltado.
— Toma um café comigo? — René convida, mudando de assunto
bruscamente.
Aceno em positivo e nos acomodamos em uma das mesas. Alguém
vem prontamente nos atender e René pede o de sempre. Já tomei cafeína
demais por hoje, mas não posso recusar o convite dele, por isso, peço apenas
uma xícara pequena.
— É impressão minha ou você e Antony não se dão muito bem? —
Deschamps pergunta, como quem não quer nada, brincando com relógio em
seu pulso.
Pigarreio um segundo e respondo:
— Nos damos, sim. Quero dizer… — Não vai adiantar querer
enganar René. É um cara experiente com um sexto sentido aguçado.
Conheço-o suficiente para saber que ele notou a tensão entre mim e Leclerc
na festa de Dupont, dias atrás. — Não sei mais como estamos. Há algum
tempo cortejei a esposa dele, sem saber que era esposa dele, e depois tivemos
uma briga idiota. Após isso, Antony ficou diferente comigo. — Dou de
ombros, preferindo não entrar muito em detalhes.
— Compreendo. Antony é um homem… — Parece pensar na palavra
exata enquanto degusta do seu café. — De personalidade forte. É difícil de
lidar com ele em certas ocasiões. Temos alguns negócios juntos e alguma
amizade, mas… Se quer minha sinceridade, Antony não me passa confiança.
Nunca me passou, desde quando o conheci. Nós mantemos uma amizade
pacífica, porém… não confiaria nele como Emilien confia, a ponto de colocá-
lo no comando de um projeto como o dele.
Não sei explicar, mas fico aliviado com a confidência de Deschamps.
Nunca conheci Antony além destas paredes. Nós criamos um vínculo por
conta de sua frequência em minha cafeteria e o homem que eu conheci aqui
estava na presença de gente importante, dando risada, sendo gentil com
todos, bem-humorado; sempre aparentou ser uma boa pessoa. Toda essa
imagem começou a se desfazer pouco a pouco, principalmente pelo que
presenciei de sua postura com a esposa e de como a controla.
— É bom conversar com alguém que entenda meus sentimentos por
ele — brinco, bebericando minha cafeína.
René e eu conversamos mais um pouco em torno da mesa, deixando o
assunto “Antony Leclerc” de lado. Ao final do dia, preciso levar toda aquela
documentação em meu escritório e trabalhar em casa.

Puxo a caneca ao meu lado e bebo mais um gole do meu café, sem
desgrudar os olhos da planilha. Preferia estar revisando isso em casa, bem
acomodado e confortável na minha cama, talvez com uma taça de vinho e um
filme qualquer na televisão apenas para não ficar em silêncio. Mas o
expediente acabou e Deus mandou uma chuva torrencial que me deixou preso
aqui dentro. Poderia ter ido embora meia hora atrás, quando a tempestade por
fim deu uma trégua. Todos meus funcionários aproveitaram essa folga
correram para suas casas. Não eu. Tive a brilhante ideia de enrolar mais dez
minutos e acabou que a chuva veio com mais força de novo. É impossível ir
lá fora e chegar seco ao carro.
Agora estou aqui, completamente sozinho — exceto pelas planilhas
—, há vinte minutos, esperando essa droga de chuva passar. É tarde da noite,
quase onze horas. Estou cansado, ao menos não com fome, e entediado.
Minha maior vontade é deixar esses papéis sobre minha mesa e me estirar no
sofá logo ali, chamando-me, embora seja meio desconfortável para tirar
mesmo um cochilo. Entretanto, não posso me dar ao luxo de atrasar ainda
mais esses relatórios.
Um barulho contra o vidro me desconcentra da minha leitura. Ergo os
olhos e os fixo no nada, pois é a minha audição que estou apurando. Deve ter
sido apenas uma pedrinha que bateu na janela ou na vidraça da fachada.
Torno a analisar os documentos quando outro barulho chama minha atenção.
Meu coração começa a ribombar dentro do peito. Nunca fui assaltado ou
roubado em minha própria cafeteria, mas não dizem que há uma primeira vez
para tudo?
Agarro meu celular e deixo o teclado de discagem pronto para ligar
para o 112, caso seja necessário, enquanto me levanto com cautela e sigo até
o salão principal. As luzes estão apagadas, o local à meia-luz por conta da
iluminação pública que adentra pela vidraça da fachada. Na porta de entrada,
debaixo da tempestade impiedosa, vejo uma silhueta de estatura média, sendo
fustigada pela água, trajando um moletom e com a cabeça coberta por um
capuz.
Continuo me aproximando a passos pequenos, não sabendo quais as
intenções da pessoa do outro lado. Pode ser apenas um pobre coitado que está
com fome e sem um teto. Estou a um metro da porta quando a figura ergue a
cabeça e retira o capuz. No mesmo instante, me apresso e destranco as portas
duplas. Mal as abro e ela se joga em meus braços, sem se importar em me
molhar, me abraçando com força enquanto soluça em meu peito.
— Bernardo… — murmura. Pela primeira vez desde que a conheci,
me chama pelo primeiro nome. — Por favor, me ajude.
Afasto-a do meu corpo. Avalio, assustado, toda a sua situação.
— O que aconteceu com você, Ann-Marie?
ANN-MARIE
Meu marido retorna de sua viagem em pouco mais de duas semanas.
Durante sua ausência, me dedico a ir à igreja, à casa dos meus pais, a
desenhar alguns novos modelos de vestidos e a, principalmente, ficar longe
da cafeteria de Dousseau. Sabia que era uma péssima ideia ir até lá me
encontrar com Giselle. Havia uma grande chance de nós nos encontrarmos, e,
mesmo assim, eu fui. Usando a gargantilha idiota.
Bernardo ter me seguido e me abordado daquela maneira na galeria
me deixou surpresa e assustada. Pude sentir, pela primeira vez, o calor da sua
pele na minha. Não posso explicar a sensação que passeou em cada
centímetro do meu corpo com esse rápido contato. E depois, quando apoiei
minhas mãos em seu peito para empurrá-lo, senti a consistência do seu tórax
e a mesma sensação inexplicável de antes.
A perseguição e o assédio de Dousseau desde o início me
desagradaram. Embora muitas das vezes tenha consentido suas aproximações
abusadas e isso mexesse comigo de uma maneira indizível, ainda assim, me
incomodavam. Pedi algumas vezes para parar; ele, claro, insistia em me
perseguir. Duas semanas atrás, quando pedi novamente para cessar suas
investidas, vi algo estranho em seu olhar, como se, finalmente, tivesse se
dado conta do quanto estava sendo impertinente comigo. Então,
simplesmente se foi, depois de me pedir desculpas, e desde então não o vejo
mais. Quero dizer, o vi em uma única ocasião, em Notre-Dame, no domingo
passado, na missa pela manhã. Estava acompanhado da mãe, me viu junto de
uma amiga e sequer me cumprimentou. Escolheu outro banco e se afastou.
Levei isso como um sinal de respeito ao meu pedido e meu estado civil.
Na noite em que Antony está para chegar, cheia de desejo e saudade
do meu marido, arrumo nosso quarto e preparo um jantar especial para
recepcioná-lo. Às oito da noite, ele está atravessando a sala, trajando um
casaco creme pesado por cima do terno todo preto. Está chuviscando lá fora,
por isso os ombros e as costas trazem resquícios das gotículas caídas do céu.
Corro até ele e o abraço, enquanto o ajudo a se desfazer do casaco pesado e
da valise.
— Salut, mon chéri — cumprimento-o, beijando seus lábios.
Ele retribui abraçando minha cintura e sorrindo em minha boca.
— Senti sua falta, mon ange — declara, acariciando minha bochecha.
— Estou exausto e com fome. Quero comer uma boa comida e dormir.
Preciso dormir — diz. Estas poucas palavras já me desanimam.
Encaro-o seriamente por longos segundos, perguntando-me o que está
acontecendo com esse homem. Já estamos caminhando para mais de um mês
e meio sem sexo. Cada vez é uma desculpa diferente. Canseira, trabalho,
viagem. O problema é ele? Ou seria eu? Já nem sei mais o que pensar.
— Chérie, você não vem? — pergunta. Só então me dou conta de que
ele já está a caminho da cozinha.
Jantamos, mas pelo menos não em silêncio como em algumas vezes.
Antony me conta sobre sua viagem a Lyon e às outras cidades, dos novos
parceiros que firmou para a Dupont Investimentos e fala, animadamente,
sobre o novo projeto da empresa. Vejo algum brilho em seu olhar em
conversar comigo sobre esse projeto que está engajado com Emilien. No
começo, fico feliz por ele, de verdade. É bom vê-lo ocupar a cabeça com
outros empreendimentos além da galeria. Um instante depois, sinto que isso é
péssimo. Estar envolvido em um novo trabalho significa menos tempo em
casa e, consequentemente, menos tempo para mim e mais pretextos para não
ter tempo para nossa vida conjugal e sexual.
Tento demonstrar alguma animação e fingir que o apoio em todas as
suas decisões, mas, por dentro, estou impaciente, com meu corpo em chamas,
clamando para ter meu desejo saciado, enquanto este homem está aqui, na
minha frente, tagarelando sobre negócios e economia, um monte de coisas
que não compreendo.
Decidida a fazê-lo saciar meu desejo, ergo o pé por baixo da mesa e
resvalo em sua virilha, olhando-o com um sorriso pequeno de malícia.
Antony devolve o sorriso e pega em meu pé, direcionando-o mais para o
meio de suas pernas. Sinto seu membro e sorrio, mordendo o lábio inferior.
— Preparei o quarto pra nós — digo, com um sussurro.
— Ótimo — fala, com um sorriso. — Vamos subir e tomar um banho
depois do jantar.
Sua declaração me deixa um pouco mais animada. Após comermos,
subimos até a suíte principal. Ele toma banho primeiro enquanto escolho
minha melhor lingerie.
— Estou te esperando, ma chérie — diz, deitando-se na cama apenas
com uma cueca boxer. Animada, corro tomar um banho e me preparar.
Hidrato a pele com um creme e borrifo um pouco de perfume.
Saio para o quarto, à meia-luz, e o chamo baixinho. Antony não
responde, sequer se move na cama. Aproximo-me mais, a passos cautelosos,
chamando-o mais uma vez. Só quando estou mais perto noto que está…
dormindo. Suspiro e contorno a cama, deitando ao seu lado. Tento acordá-lo,
mas o homem resmunga e me dá as costas.
Nesse instante, minha cabeça começa a criar paranoias, talvez não tão
infundadas. Começo a desconfiar. Desconfiar de que Antony Leclerc tem
uma amante.

Desisti de ter qualquer relação sexual com meu marido. Logo depois
de retornar de Lyon, não demorou muito e Antony já estava engajado em
outras viagens de negócios com Dupont, um pouco mais curtas, mas que,
ainda assim, tomaram dele alguns dias esporádicos. Quando finalmente achei
que poderíamos tirar o atraso de quase dois meses sem sexo, minha
menstruação resolveu descer. Qualquer outro homem teria implorado por
outros meios de satisfação nestes dias, mas meu companheiro pareceu muito
tranquilo quanto a isso. Sua atitude, de não me procurar e sequer mostrar
interesse, começou a despertar minha paranoia e desconfianças.
Nem desconfianças são mais, na verdade. Quase tenho certeza de que
ele tem uma amante. É a única explicação para estar se privando desta
maneira de ter sexo comigo. O pensamento de estar me traindo me deixa com
os nervos à flor da pele, sem saber o que fazer caso minhas suspeitas sejam
confirmadas. Uma pessoa qualquer pediria o divórcio e, embora eu seja muito
religiosa, confessor ter ponderado por este caminho caso o problema do meu
marido seja estar em pecado da fornicação e adultério, mas descartei a ideia
logo em seguida. As Sagradas Escrituras são bem claras quanto a divórcio,
mesmo que haja um “adendo” para traição e permita o divórcio ao cônjuge
traído. Além disto, fiz um juramento diante Deus e diante à igreja quando nos
casamos: na saúde e na doença, até que a morte nos separe.
O que Deus uniu, o homem não separa.
Não sei o que fazer e como lidar diante essa situação. Não quero
aborrecer Antony e fazer acusações infundadas, mas também não posso
simplesmente aceitar que se deite com outra mulher e não tomar qualquer
atitude.
Querendo buscar algum conselho, depois da minha costumeira missa
aos domingos em Notre-Dame com meus pais, decido acompanhá-los de
volta à casa. Papai se retira para um cochilo depois de tomarmos um café da
manhã reforçado. Mamãe e eu nos reunimos no jardim, sentando-nos ao sol
matutino em torno da mesa, com outra xícara de café.
— Maman, preciso de um conselho — digo, apoiando a xícara no
pires. — É sobre Antony.
Mamãe me olha por cima da borda da sua xícara um segundo antes de
abaixá-la.
— Que conselho, ma fille?
Ajeito-me em meu lugar, procurando como começar a abordar esse
assunto com mamãe. Nós nunca realmente tivemos esse tipo de conversa,
nem mesmo com papai eu tive, e me sinto incomodada, se não envergonhada,
de falarmos sobre tal coisa.
— Acho que Antony está me traindo.
Simonie Fleury me encara seriamente por um segundo inteiro.
— Por que acha isso? — indaga, erguendo uma sobrancelha.
Mordisco o lábio inferior e desvio o olhar por um segundo. É
constrangedor para mim proferir isso.
— Bem… Ele anda frio e distante, me evita… — praticamente
gaguejo. — Me evita, à noite, sabe?
Simonie não diz nada por alguns instantes. Continua bebendo seu café
calma e vagarosamente, como se o fato de seu genro estar traindo a própria
filha não a incomodasse de forma alguma. Umedeço os lábios, nervosa com a
situação e com seu silêncio súbito.
— Não está fazendo suposições infundadas, chérie? — indaga,
deixando a xícara sobre a mesa outra vez.
— Eu queria, mamãe. Mas nós… — Fecho os olhos e respiro fundo.
— Não nos tocamos há bastante tempo. Não sei mais o que pensar se não que
ele tem uma amante.
— E se realmente tiver, o que pretende fazer? — pergunta aquilo que
vim buscar resposta.
— Não sei. Por isso vim pedir seu conselho, maman.
Mamãe se levanta do seu lugar e traz a cadeira para mais perto de
mim, sentando-se ao meu lado.
— Antes de tudo, precisa conversar com seu marido, ma fille.
Tento não dar uma risada sarcástica.
— Se ele estiver saindo com outra, acha que irá me dizer?
— Não, mas você saberá se seu marido está mentindo ou não.
Abano a cabeça em positivo, vagarosamente, assimilando suas
palavras.
— Independente do que esteja acontecendo em seu casamento —
mamãe continua —, precisa lutar. Ter fé em Deus e pedir a Ele discernimento
para lutar pela sua vida com Antony.
— Devo me manter casada mesmo se Antony estiver me traindo?
Mamãe abana a cabeça em positivo.
— Sim, Ann-Marie, porque Deus escreve certo por linhas tortas —
aconselha. — Muitas vezes coisas ruins acontecem conosco para pôr à prova
nossa fé, pois é muito fácil crer e ser fiel a Deus nos bons momentos. Isto se
chama provação, querida. E você precisa ser forte para passar por ela.
— Sim, tem razão — concordo, apertando seus dedos aos meus.
Simonie me dá um sorriso antes de finalizar:
— De qualquer maneira, chérie, converse com seu marido e tente
entender o que está acontecendo antes de tomar suposições como essa.

Antony chega mais tarde do que o comum, beirando dez da noite. Ele
liga, avisando de seu atraso por conta do trabalho. Minha paranoia e suspeitas
não param de me atormentar de que esse atraso é, na verdade, porque está
com outra mulher.
Estou no quarto, deitada, trajando calça e blusas de moletom,
pensando na conversa que tive com mamãe no dia anterior. Lá fora, a chuva
cai pesadamente, sem dar sinais de trégua. Levanto-me e ando de um lado a
outro, pensando em como abordar meu marido sobre o assunto. De ontem
para hoje, já conversei com Deus e lhe pedi sensatez e calma para essa
conversa.
Pela janela, vejo os faróis cortarem a noite. Antony chegou. Controlo
meus batimentos cardíacos e repasso tudo que ensaiei dizer a ele. Preciso tirar
essa questão a limpo. Dois minutos depois, meu marido entra no quarto,
praticamente encharcado. Estou perto da janela, os braços cruzados,
encarando-o seriamente. Ele percebe meu olhar duro em sua direção e
expressa confusão.
— Salut… — diz, fechando a porta e tirando o casaco molhado. Não
respondo. Antony me olha, sobrolho franzido. — Está tudo bem, mon
amour?
Levo mais dois segundos até disparar, sem cerimônias:
— Você tem uma amante?
Antony arregala os olhos. Sua fisionomia, por um mero instante, é de
susto. Logo, porém, relaxa e volta a tirar a roupa molhada.
— De onde você tirou esse absurdo, Ann-Marie? — inquire, a voz
calma.
Permaneço em meu lugar, na mesma posição, esmagando meu lábio
inferior.
— Você ainda pergunta, Antony? — devolvo, sentindo cada parte do
meu corpo tenso.
Meu esposo não me dá resposta alguma. Uma sobrancelha se ergue às
minhas palavras. Chutando a roupa molhada para um canto, profere:
— Precisa ser mais específica. E devo dizer que não gosto deste tipo
de acusação.
— Você não me toca há semanas. Não consigo pensar em outra coisa
a não ser que tem matado seus desejos com outra mulher — confesso de uma
vez, segurando as lágrimas dentro dos meus olhos.
Os olhos dele, calmos, se chocam aos meus.
— Ah, então é isso.
Pisco. Que diabos mais poderia ser?
De forma mecânica, balanço a cabeça em positivo enquanto se
aproxima de mim a passos pequenos, trajando apenas a cueca branca
molhada. Sua mão fria toca em meu rosto quente; me esquivo por conta da
diferença brusca de temperatura. Os lábios dele formam um mínimo sorriso.
— Confie em mim, mon amour. Estar algum tempo sem ter sexo com
você não significa que tenho uma amante.
Engulo em seco.
— Então significa o quê? Não consigo compreender, Antony.
Ele parece pensar um minuto na resposta antes de me dizer:
— Há algum tempo, se lembra de que eu te acompanhei a uma das
missas em Notre-Dame? — Balanço a cabeça em afirmativo. Embora seja
católico, suas idas à missa são sempre muito raras. Semanas atrás, foi uma
destas raras vezes. — E se lembra de que o sermão do padre foi sobre
sacrifícios e abrir mão daquilo que mais nos faria falta pra alcançar alguma
graça?
Franzo o cenho, não compreendendo onde Antony quer chegar.
Embora confusa, e ainda sem proferir palavra alguma, faço um gesto
positivo.
— Pois bem — continua e segue afagando meu rosto. — Há algumas
semanas, eu e Emilien já estávamos estudando esse projeto que agora estou
engajado. Queria muito que desse certo, ma chérie, e naquela manhã na
igreja, decidi por fazer um sacrifício a Deus para ter essa graça. Minha vida
sexual com você é a coisa que mais me faz falta. — Pestanejo segundos
inteiros, assimilando suas palavras. Por que simplesmente não me contou? —
Por isso me afastei de ti. Sei que é difícil, é difícil pra mim também, mas
preciso ser forte na promessa se eu quiser ter minha graça concedida. Já
obtive uma parte, mas não é tudo. Assim, te peço paciência, chérie. Agora
falta pouco.
Sinto-me uma tola por ter desconfiado de Antony, ter cogitado que
tenha uma amante. Ele pode ser explosivo e controlador, mas não é infiel.
Aliviada, abraço-o de repente, e o choque da diferença de temperatura entre
nossos corpos nos causa arrepios. Peço desculpas por minhas tolas
desconfianças e meu esposo me diz que está tudo bem. Afasto-me e o beijo
pacificamente.
— Só não entendo por que não me disse nada. Teria feito essa
promessa contigo. Juntos, seríamos mais fortes — falo, segurando suas
mãos.
— Eu… achei que você não fosse concordar em ficar algum tempo
sem sexo.
Reviro os olhos e o abraço outra vez.
— Bobo. Quando se trata de nossa fé sabe que faço qualquer coisa.
Agora, vá tomar um banho antes que fique doente — digo, empurrando-o
para o banheiro. — Enquanto isso, te farei uma sopa de cebola bem
quentinha.
Ele sorri, me beija amorosamente nos lábios e adentra o banheiro. Na
cozinha, separo os ingredientes e começo o preparo da sopa. Já está quase
tudo pronto quando Antony aparece, o semblante transtornado, vestindo
apenas as calças. Ergue meu celular na altura dos meus olhos e brada:
— Posso saber que porra é essa, Ann-Marie?
— Do que está falando, Antony? — indago, realmente confusa com
tal abordagem. Não sei o que possa ter visto em meu celular para deixá-lo
nesse estado.
— Uma mensagem de Giselle — esclarece, a voz ainda alta. — “Ann-
Marie, devemos repetir nosso encontro no Avenue Coffee. Foi bom conversar
com você. Podemos marcar para essa semana ainda?” — lê a mensagem.
Seus olhos tomam tons avermelhados e sinto medo de sua reação. — Você
foi lá sem meu consentimento? Quando claramente te disse para ficar longe
de Dousseau?
Encosto-me à borda da pia, meu coração a ponto de sair pela boca. É
a primeira vez que vejo meu marido nesse estado de raiva. E tudo por minha
culpa. Eu sabia que não deveria ter ido à cafeteria. Fecho os olhos, ainda sem
reação, meu corpo todo tremendo por dentro e por fora. Abro-os, assustada,
quando sinto uma pegada em meu braço.
— Me responde, mulher! — grita, completamente fora de si. — Por
que foi lá?
— Eu… Antony, me deixe te explicar.
— Foi atrás dele? Enquanto eu estava em viagem foi procurar outro
macho?
As lágrimas começam a despontar dos meus olhos, tal qual a chuva
impiedosa lá fora.
— Por favor, chéri, me deixe esclarecer a situação.
Com sua pegada forte em meu braço, ele me desencosta da pia e gira
nossos corpos. Os dentes trincam, o maxilar parece ficar mais tenso, os olhos
tomam proporções da loucura que Antony carrega quando está com ciúmes.
— Não há o que esclarecer. Você foi lá! Quando te disse pra não ir.
Cheio de raiva e descontrole, Antony joga meu celular no chão e
passa a esmagá-lo a pesadas, ainda gritando um monte de coisas desconexas
que não consigo compreender. Tento impedi-lo, peço, em meio às minhas
lágrimas, por favor, para parar e me ouvir, me deixar explicar. Não é o que
está pensando! Ele se vira e, em um átimo, me empurra. Desequilibro-me e
caio sentada, com toda força.
Olho-o, estarrecida por sua atitude. Seu semblante, ao se dar conta do
que fez, é de pavor. Antony dá um passo para se aproximar, mas neste
interim já me levantei e saí em disparada. Ouço-o gritar meu nome à medida
que me afasto e alcanço a porta da sala. Saio em meio à chuva, deixando as
lágrimas verterem cada vez mais fortes e se mesclarem às gotas caindo do
céu.
— Ann-Marie! — meu esposo me chama. Olho para trás, já no meio
do pátio de nossa casa, e ele está na porta, enquanto a chuva me fustiga sem
piedade.
Eu não lhe dou atenção e torno a correr debaixo d’água, sem saber
exatamente para onde ir.

Não quero ser encontrada. Não neste momento. Ainda estou perplexa
de como Antony teve coragem de me agredir daquela maneira. Continuo
andando sem rumo pelas ruas, tremendo de frio por causa da chuva feroz que
segue caindo sobre Paris. Peso todas as minhas opções de refúgio e descarto
cada uma delas, porque sei que meu marido facilmente me encontrará. Nesse
instante, porém, preciso ficar sozinha.
Minhas pernas então me levam, sem que eu perceba, para o local
causador disso tudo. Repreendo minha mente idiota por ter me trazido a este
lugar. Nada disso teria acontecido se tivesse ficado longe desta cafeteria. Paro
frente à fachada de vidro e fico aqui, longos minutos, com as lágrimas
rolando e o praguejando por esse conflito em meu casamento. Fecho os olhos
e, por um segundo de insanidade, penso que ele pode ser meu refúgio.
Antony jamais pensaria em me procurar na casa dele.
Oh, Deus, que é que estou pensando? Só posso estar ficando louca em
ponderar em ficar na casa deste homem, o causador dessa desgraça toda.
Contorno a cafeteria, saindo em uma rua logo atrás, pensando apenas em
continuar andando sem rumo. Então, vejo uma luz acesa no prédio do café.
Pisco muitas vezes observando a luminosidade, indicando que tem alguém no
local. Pode ser algum funcionário que tenha ficado até mais tarde. Ou… pode
ser Bernardo. Meu peito dói só de pensar na ideia rondando meus
pensamentos. Não tenho para onde ir essa noite. Está chovendo. Estou sem
dinheiro. Sem um lugar para ficar.
Situações desesperadas exigem atitudes desesperadas, não é o que
dizem?
Engolindo todo meu orgulho, volto para a avenida principal e bato à
porta de vidro, mantendo minha cabeça baixa com o capuz me escondendo.
Primeiro, quero ter certeza de quem está aqui. Se não for ele, então virarei as
costas, irei embora e darei meu jeito. Engraçado pensar que só nele posso
confiar para vir aqui e pedir ajuda. Não quero arriscar que algum de seus
funcionários me reconheça e depois diga a Antony. Seria apenas mais
confusão.
Demora um pouco até alguém surgir, atraído pelo meu bater na porta,
e quando vejo que é Bernardo, me sinto até mais aliviada e segura em erguer
a cabeça e retirar o capuz para ser reconhecida. No mesmo instante, ele se
apressa a me abrigar em sua cafeteria e em seus braços — onde me jogo e o
aperto contra meu peito, impulsionada por uma atitude desesperada e pelas
emoções que esse homem desperta em mim.
— Bernardo… — murmuro. Agora, aqui, acolhida em seu abraço,
num ato tão íntimo, não vejo necessidade de formalidades. Em meio ao
desespero do momento, ainda assim gosto de como seu nome se forma em
minha boca. — Por favor, me ajude — peço.
Ele afasta seu corpo quente do meu, molhado e frio. Sinto seus olhos
me avaliarem, a expressão assustada.
— O que aconteceu com você, Ann-Marie? — pergunta.
Só então me dou conta de que terei que falar a ele sobre a agressão de
meu marido.
Deus, por que diabos eu vim procurá-lo?
BERNARDO
Seu corpo treme levemente em meus braços, enquanto a encaro,
esperando-a me dar uma explicação para sua situação — embora eu possa ter
alguma ideia do que aconteceu.
— Antony e eu… discutimos — diz; a voz é um fiapo quase
inaudível. Seus dentes batem um contra o outro.
Contorno seus ombros com um abraço e a levo até meu escritório,
ignorando, por ora, suas justificativas. Meio receosa, ela me segue e olha meu
ambiente de trabalho enquanto pego meu blazer pendurado a um cabide e lhe
entrego.
— Tire essa roupa molhada e vista o paletó para se aquecer. Vou te
fazer algo quente para beber. Prefere chá, café, cappuccino?
Ela me olha por um instante, abraçada ao próprio corpo como uma
forma de se esquentar.
— Quer que eu tire toda minha roupa e vista apenas o seu paletó? —
pergunta, apreensiva. Seus olhos frenéticos esporadicamente encontram os
meus, os dentes moem o lábio inferior, um claro sinal de nervosismo.
— Melhor do que ficar com esses trajes molhados e se arriscar a
pegar uma hipotermia, n’este-ce pas? — devolvo, calmo. — Vista-se, Ann-
Marie. Vou te fazer um chá.
— Cappuccino — solicita, quando já estou na porta. Viro-me em sua
direção, abro um pequeno sorriso e então vou lhe preparar a bebida.
Dois minutos depois, ela aparece na área vital da cafeteria. Estou
terminando de colocar uma espuma de leite em sua caneca quando a vejo. O
esforço físico e mental que faço diante à visão é devastador. Eu,
definitivamente, não estava preparado para vê-la dessa maneira. Seu corpo
curvilíneo é bem recebido no meu casaco, que está todo fechado e abotoado,
cobrindo-a de um palmo acima dos seus joelhos para cima. Os cabelos louro-
acobreados continuam uma bagunça molhada e, ainda assim, a mulher
consegue ser exuberante.
Ela me encara, muito incomodada, com certeza pelo meu olhar sobre
seu corpo. Discrição. Aproximo-me e lhe estico a caneca com o cappuccino.
Ela aceita a oferta, mesmo ainda muito sem jeito com a “vestimenta” e minha
presença. Encosto-me ao balcão e a assisto dar pequenos goles na bebida
quente.
— Pode me contar agora o que houve, exatamente? — peço, em tom
ameno.
Ann-Marie continua cabisbaixa, sem coragem de me encarar.
— Antony te fez alguma coisa? — pergunto, já supondo que o
problema é o traste do marido dela.
Finalmente, a mulher ergue seu olhar apavorado.
— Ele me proibiu de vir aqui… — confessa, sussurrando.
Sua afirmação me deixa surpreso. E furioso. Quem diabos aquele
inútil pensa que é para proibir sua mulher de qualquer coisa que seja?
— … sozinha. Sem ele, entende? — A voz fica cada vez mais baixa.
— E eu vim, algumas vezes, sem ele ter conhecimento disto. A última, foi
com uma amiga. Você deve se lembrar. — Cruzo os braços na frente do tórax
e maneio a cabeça, apesar de ela ainda se negar a me olhar. — Antony
descobriu, ficou furioso, deu um ataque de ciúmes em casa, quebrou meu
celular e… — Seca uma lágrima e continua na mesma posição cabisbaixa e
reclusa. — Fui tentar impedi-lo, queria explicar, mas aí ele… me empurrou.
Com muita força. Fiquei assustada, saí de casa como estava, debaixo de
chuva. — Por fim, decide me olhar nos olhos. — Tive medo de Antony me
bater.
Meu corpo está tenso e rígido no lugar. Esforço-me além do normal
para não sair daqui agora mesmo, procurar esse imbecil e enchê-lo de
porrada. Meus dentes se forçam tanto dentro da minha boca que tenho medo
de quebrá-los. Ficamos em silêncio por vários segundos depois da situação
ser esclarecida. Quero lhe dar algum conforto, acolhê-la, levá-la para casa e
cuidar dela. Farei isso, depois que essa raiva por Leclerc passar. Ando de um
lado a outro, tentando acalmar meus nervos. Só não vou atrás dele agora
mesmo por causa de Ann-Marie, que precisa de cuidados e de um lugar para
ficar.
— Eu não queria ter te incomodado — diz, por fim, tirando-me do
meu modo raivoso. Meu corpo relaxa por um segundo e decido me esquecer
de Antony no momento, focando em ajudá-la. — Me desculpe.
Com dois passos largos, estou próximo dela, tocando seu rosto ainda
gelado com minhas mãos.
— Não se desculpe por isso.
Ela acena em positivo, mas não me encara de volta. Termina seu
cappuccino e deixa a xícara sobre o balcão.
— Posso passar a noite aqui? Vi que você tem um sofá no seu
escritório. Prometo ir antes de vocês abrirem a cafeteria.
Mas nem por um caralho ela fica aqui.
— Que pedido mais absurdo, Ann-Marie. É claro que você não pode
ficar aqui.
Seus olhos se abatem diante minha sentença.
— Não tenho pra onde ir — profere, em um tom humilhante de
súplica. Até demoro a perceber que me chamou pelo primeiro nome pela
segunda vez. — Em qualquer das minhas opções para me refugiar, Antony
me encontra facilmente. Na casa dos meus pais, na casa de minhas amigas.
Nem em uma vida ele pensaria em me procurar aqui. Por favor, por favor…
Juro que não vou…
Calo-a colocando dois dedos sobre seus lábios roxos de frio.
— Você não pode ficar aqui, mas isso não significa que eu não tenha
um lugar mais seguro pra te levar — esclareço.
Mais uma vez, seus olhos se arregalam perante minhas palavras.
— Vai me levar para sua casa? — inquire, baixinho.
A ideia mexe comigo. Não seria a pior de minhas decisões.
— Não. Se bem conheço Antony, e se vocês brigaram por minha
causa, não duvido nada que te procure no meu apartamento. Vou te levar a
outro lugar.
— Certo… — murmura. Imediatamente um segundo depois, suas
feições tomam proporções de puro pavor. — Não! Não posso. — A cabeça se
movimenta de um lado para outro. Penso em perguntar o motivo, entretanto,
ela responde antes de pôr minhas dúvidas em palavras: — Não posso passar a
noite fora! Que vou dizer a Antony amanhã? Não poderei dizer que passei a
noite com… — Suas íris azuis se levantam em minha direção. Há medo
genuíno nelas. — Com você… E se eu mentir, ele vai saber a verdade!
Agradeço sua ajuda, mas não posso. Melhor voltar para casa e enfrentá-lo…
— Ann-Marie faz menção de se virar e partir, porém, impeço-a segurando em
seu punho e a puxando para mim. A força do meu movimento a traz para
junto do meu tórax. Gosto de sentir sua pele fria na minha, quente. Dá a
sensação de que posso aquecê-la e protegê-la. E gosto disto.
— Minha mãe costuma dizer que se dá jeito para tudo, menos para a
morte. Não se preocupe, ma chère. Já tenho uma ideia de como enganar seu
marido.
— Ele vai descobrir — choraminga, aconchegando-se em meus
braços. Embora envolvida no paletó, acredito que ainda esteja com frio. Esta
mulher precisa de um banho quente, de roupas confortáveis e decentes
capazes de aquecê-la de verdade.
Apoio o queixo sobre sua cabeça, tendo a impressão de que ela não
nota como se aproxima e se aconchega em meus braços.
— Não vai. Confie em mim.
Ela emite um “tudo bem” quase inaudível. Ficamos assim, abraçados
um ao outro, eu lhe servindo como um porto seguro quente e aconchegante,
por vários segundos. Depois, me afasto, dizendo que preciso fazer algumas
ligações. Resolvo os problemas dela em dez minutos e então volto ao salão,
onde continua no mesmo lugar, o olhar perdido para a noite através da
vidraça.
— Podemos ir — digo-lhe, surgindo logo atrás dela e a fazendo se
sobressaltar. Ela se vira em minha direção e faço outro daqueles esforços
sobre-humanos para não deslizar meus olhos para suas pernas despidas.
Também não vou negar estar imaginando seu corpo por debaixo do
meu paletó. Porra, ela está sexy demais nesse terno.
— Tudo bem — sussurra em resposta.
— Vamos pelos fundos — oriento-a. Saímos pela porta do escritório,
que desemboca em uma rua secundária à avenida principal da cafeteria. —
Meu carro não está muito longe — informo, enquanto caminhamos pelo
trajeto semiescuro e silencioso. Não recebo resposta.
Ann-Marie se acomoda no banco do passageiro em silêncio e
permanece assim toda a viagem até um condomínio localizado no 7ème
arrondissement de Paris. Na guarita, me identifico e o porteiro me dá
passagem livre. Estaciono o carro na garagem subterrânea. Antes de descer,
eu a olho. Continua cabisbaixa e emudecida.
— Vem, vamos. — Ela desce e me espera guiá-la.
A viagem de elevador também é feita em completo silêncio.
— Que lugar é este? — finalmente a mulher decide se pronunciar.
Giro a chave na fechadura e lhe dou passagem, entrando em seguida e
fechando a porta.
— É o apartamento de um amigo. Do meu sócio, na verdade.
Ela se vira em minha direção, os braços cruzados fazem a vestimenta
se erguer um pouco mais e me dando a visão de mais pele de suas pernas
brancas.
— Bernardo… — começa, pronta a me advertir, porém, eu a corto.
— Não se preocupe, ele não mora aqui. Mantém o apartamento para
quando vem à França — explico, caminhando até a cozinha. — Um monte de
anos atrás, nós morávamos juntos. Eu o conheci na faculdade, quando aquele
cretino foi mandado para cá por ter dormido com a namorada do irmão mais
velho. — Começo a revirar as panelas nos armários e a retirá-las do lugar. —
Dividíamos o aluguel de um apartamento bem pequeno perto da
Universidade. Quando nos formamos e o Avenue Coffee nos dava lucros
suficientes, ele comprou esse lugar. Claro, com uma boa e generosa ajuda da
mãe. Ele vem de uma família bem abastada, dona de uma empresa
alimentícia enorme no Brasil. Enfim… — Suspiro, virando-me de volta em
sua direção. — Acho que estou falando demais, não é? — Ela exibe um
sorrisinho e balança a cabeça em positivo. — Com isso tudo, só quero dizer
pra você não se preocupar, meu sócio não vai aparecer por aqui, de surpresa.
Tenho uma cópia da chave para vir de vez em quando e abrir o lugar, dar uma
arejada, porque aquele mão-de-vaca nem para pagar alguém pra isso.
Retiro alguns ingredientes da despensa e apoio sobre o balcão. Por
sorte, Alfredo mantém mantimentos não-perecíveis por aqui que dá para fazer
algo para comermos. Quando a olho de novo, vejo-a com um sorriso maior e
ainda mais encantador.
— Ninguém vai te achar aqui — finalizo. Apenas faz um gesto em
positivo e olha ao redor, como se estivesse deslocada. Começo a preparar
uma coisa rápida para comermos e digo:
— Pegue um cobertor no quarto, ao fim do corredor, para se aquecer
até suas roupas chegarem.
Ann-Marie me fita com curiosidade, os braços cruzados na frente do
tórax.
— Liguei pra um funcionário e pedi para passar em meu apartamento
e me trazer alguns pares de roupa. Espero que não se importe em vestir uma
cueca, calça e camisas minhas — brinco, exibindo um sorriso galante.
Vejo o rubor cruzar suas bochechas. Adorável. Ainda se negando a
falar comigo, ela se afasta e volta instantes depois enrolada na coberta.
Enquanto cozinho um macarrão, noto-a andando pela sala e observando os
retratos espalhados pelo cômodo. O telefone toca algum tempo depois. É da
portaria. Entregaram-me uma mala. Desço, busco e retorno cinco minutos
mais tarde. Retiro uma cueca branca, uma camisa preta, calças de moletom
cinza e lhe entrego.
— Tome um banho e se agasalhe. A comida está quase pronta.
— Merci — agradece, tomando os trajes de minhas mãos e se
retirando até o banheiro.
Minutos depois, ela está de volta. A visão que tenho dela é tão linda e
adorável quanto a última, quando estava vestida apenas com meu paletó. Os
cabelos ainda estão molhados, mas penteados e cheirosos. A roupa toda fica
enorme nela no que se refere ao comprimento. O importante, contudo, é estar
confortável e aquecida. Ela se senta no sofá, cruza as pernas e enfia as mãos
no bolso da blusa.
— Bernardo — chama. Coloco um pouco de macarronada no prato e
a olho em seguida. — Se importa se perguntar como você resolveu a questão
de… o que vou dizer a Antony amanhã, quando me perguntar onde passei a
noite?
— Liguei para Deschamps. Ele tem uma rede de hotéis, deve saber
disso. Conversamos. Ele vai inserir informações de check-in e check-out em
um dos seus hotéis e depois mandar a conta para Antony. Para todos os
efeitos, você chegou pedindo hospedagem, toda molhada, sem documentos e
dinheiro e, como te conhece, te cedeu um quarto. Você não deu maiores
informações, apenas pediu hospedagem. O horário da entrada será à meia-
noite, o da saída, quando você puder ir pra casa.
A mulher se encolhe ainda mais no sofá.
— Falou com o Deschamps? — Seu tom é de pavor, alarmante, e
combina com sua expressão. — Os dois são amigos! Ele vai contar tudo a
Antony! Vai contar que estou com você! — Dá um pulo do sofá, como uma
gata arisca. Corro para conter uma provável fuga e a seguro pelos braços.
— René não vai contar nada… Expliquei a situação, disse que Antony
está alterado demais e pode te machucar caso te encontre. Ma chère, confie
em mim. Não teria ligado para ele se não confiasse no meu amigo.
Vejo-a engolir em seco e hesitar por um segundo inteiro. Por fim,
abana em positivo e fica mais calma. Torna a sentar no sofá e volto buscar
nossos pratos de macarronadas. Comemos, sentados um lado do outro, em
completo silêncio de novo.
— Notei que só tem um quarto neste apartamento… — comenta, após
terminar sua refeição.
— Eu sei — digo, com um pequeno sorriso. — Não se preocupe, você
dorme no quarto. Vou ficar nesse sofá… — Olho para o móvel por alguns
instantes. — Onde o Alfredo transou com um monte de mulher,
provavelmente.
Ela gargalha da minha frase e da minha expressão.
— Obrigada — agradece, sorrindo para mim. Não sei se percebe,
mas, de repente, suas mãos estão nas minhas. — Muito obrigada mesmo,
Bernardo.
Não contenho a felicidade se manifestando em meus lábios e olhos
por me chamar pelo primeiro nome. Significa que avançamos uma escala no
nível de nossa intimidade. Significa que ela deve me considerar um amigo. É
um bom passo.
— Não me agradeça — falo apenas, aproximando-me e deixando um
beijo em seu rosto.
Levanto-me, recolhendo nossos pratos e os levando para a pia. Busco
pelas horas e vejo que passa da uma da manhã.
— Vá descansar. É tarde. Amanhã… vemos como fica sua situação
com Antony, tudo bem?
Ela também se levanta do sofá e abana a cabeça em positivo,
afastando-se até o quarto e agradecendo mais uma vez. Lavo os pratos. Ela
retorna não muito tempo depois, com lençóis, cobertores e travesseiros. Não
digo nada quando a vejo arrumar o sofá para mim. Não digo nada quando se
aproxima, me abraça forte e me beija no rosto, perto demais do canto da
minha boca. Não digo nada quando ela retorna ao quarto.

Levanto-me bem cedo no dia seguinte. Aliás, nem sei se posso dizer
que cheguei a dormir. O sofá é uma droga, mal preguei os olhos. O fato é que
me levantei primeiro do que Ann-Marie para ir até o Avenue Coffee para,
um: buscar suas roupas, pois não pode sair andando por aí com meus trajes de
dormir; dois: trazer para ela alguma coisa para um café da manhã reforçado.
O ambiente já está movimentado quando chego. Cumprimento alguns
clientes rapidamente e me dirijo até o escritório, onde as peças dela
continuam jogadas e molhadas. Coloco tudo dentro da bolsa que trago
comigo e escolho diversas guloseimas da vitrine enquanto uma funcionária
prepara os cafés para viagem.
As portas duplas da entrada se abrem abruptamente, trazendo um
Antony transtornado para dentro. Não mexo um músculo enquanto ele avança
cafeteria adentro e para bem na minha frente, tendo apenas o balcão nos
separando.
— Onde está minha mulher? — brada, mal contendo a ira em sua
voz.
Abro um sorriso cínico.
— Antony… se você não sabe, por que eu deveria saber? É sua
esposa, não minha.
— Não passou a noite no seu apartamento — aponta, trincando os
dentes. — Ann-Marie não dormiu em nossa casa. E aquela abusada veio aqui
no outro dia! — grita, de repente. — Sem minha permissão, quando disse
para ficar longe de você!
Tenho de fazer outro esforço descomunal para não pular por cima do
balcão e socar o desgraçado até virá-lo do avesso.
— Escute, Antony, o que faço da minha vida ou deixo de fazer não te
diz respeito. Mas para que eu possa sair daqui sem precisar te dar um soco na
cara por sua insolência, vou esclarecer as coisas: não passei a noite em meu
apartamento porque estive na casa de uma das minhas amantes. Marie está
em viagem com Dupont e sou um homem que precisa de sexo, então procurei
na minha lista de fodas casuais alguma disponível. Quanto à sua esposa, te
aconselho a ser um marido melhor, talvez assim não a perca de vista.
Pego a caixa cheia de guloseimas e os cafés com minha funcionária e
saio pela porta dos fundos.

Enquanto dirijo de volta para o apartamento do Alfredo, fico atento se


não estou sendo seguido. Não duvido nada que Antony não tenha acreditado
em mim e esteja me seguindo, apenas para comprovar se a esposa não está
mesmo comigo. Para meu alívio, o maluco não veio atrás de mim.
Quando entro em casa, Ann-Marie já está acordada, sentada no sofá
enrolada nos cobertores. Antes de sair, deixei um recado na geladeira
avisando que ia buscar suas roupas e café da manhã para nós. Sorri ao me ver
e vem em minha direção, pegando a caixa das minhas mãos e a abrindo.
— Quantas delícias — diz, toda animada. — Tem doces e salgados.
— E café — completo, mostrando os copos de isopores. — Pode
arrumar a mesa para nós, s’il te plaît? Vou colocar suas roupas pra lavar e
secar. Se vai voltar para sua casa, ou pra qualquer lugar que você for, precisa
ir com as roupas que saiu de casa.
Deixo-a arrumando a mesa e sigo até a lavanderia. Ponho tudo na
lavadeira e volto à sala, onde já está tudo posto. Ela tem um sorriso calmo
para mim.
— Bonjour — diz. — Me dei conta de que não te cumprimentei
quando chegou.
Rio de sua preocupação tola e me sento; ela se põe ao meu lado.
— Antony apareceu na cafeteria — revelo; a mulher fica tensa no
mesmo instante. — Acredita que ele foi mesmo no meu apartamento?
Medo atravessa os olhos dela. Seguro-a pelas mãos, na intenção de
acalentá-la.
— Não contei nenhuma palavra. Ele não sabe que está aqui comigo.
Não precisa ter medo. Mas estou preocupado com você, quando voltar para
casa. Ann-Marie — murmuro, suspirando pesadamente —, temo por você.
Aquele homem é um desequilibrado.
Ela abana a cabeça em negativo.
— Antony não é perigoso, nunca me… agrediu daquela maneira. Foi
só um momento de raiva. E fugi porque fiquei assustada e com medo.
— E com razão. Mas agora, você passou uma noite fora. Como acha
que seu marido estará quando retornar para casa? Com raiva. E com raiva
você sabe como ele reage. De um empurrão evolui para uma agressão pior.
Acho que… você deveria procurar a delegacia e…
— É desnecessário — interrompe-me, meio ríspida. — Ele não é
perigoso.
Suspiro e desisto de insistir nesse assunto, pelo menos por ora.
— Tudo bem. Só… estou preocupado com sua segurança e
integridade. Leclerc já demonstrou muita agressividade quando está bêbado e
com raiva. Tenho medo por você.
— Não se preocupe — garante, embora sua voz esteja levemente
trêmula. — Sei me cuidar e sei como lidar com Antony.
Eu não consigo não me preocupar. Apesar disso, apenas não a
contrario. Vou dar meu jeito de garantir que Antony não a machuque —
física e psicologicamente. Terei algumas horas para pensar em alguma coisa.
Deixo o assunto de lado e aproveito meu café da manhã ao lado desta mulher,
que tem despertado em mim meus melhores sentimentos.
Observando-a comer, em silêncio, tenho certeza de que estou
apaixonado por ela, como poucas vezes estive. Ann-Marie é minha paixão
ardente.
ANN-MARIE
Fico feliz com o cuidado e o zelo que Bernardo vem tendo comigo
desde o momento que pedi refúgio. Preocupou-se em me aquecer, me
alimentar, resolver alguns de meus problemas e me arrumar um abrigo seguro
para passar a noite. Apesar de muitas vezes ter o tratado com hostilidade, no
momento em que precisei de ajuda, foi gentil e me ofereceu uma mão
estendida. Confesso que fiz um mal julgamento dele e só agora posso admitir
que é um bom homem.
Fazemos o restante do nosso desjejum praticamente em silêncio,
depois de dizer para não se preocupar comigo, pois saberei lidar com meu
marido — mesmo não estando tão confiante assim e, por dentro, eu seja um
poço de medo. Agradeço pela sua preocupação, mas não quero lhe causar
mais problemas e nem lhe dar trabalho. Já fez demais por mim.
— Vou ligar para René e pedir para te pegar aqui e te levar… para sua
casa — diz, terminando de comer um croissant. — Antony vai querer saber
onde você passou a noite, então… Deschamps pode te ajudar a corroborar a
mentira.
Mentira.
Outra vez estou me envolvendo em mais mentiras. Mentiras
necessárias para evitar mais confusão.
— Tudo bem, obrigada. No caminho posso conversar melhor com ele
pra combinarmos nossa história — digo, quase com um murmuro. Odeio
mentir.
Ele esboça um projeto de sorriso e bebe mais do seu café. Sua
expressão não me parece das mais amigáveis, revelando que não se agrada
com a ideia de eu ter de voltar para minha casa e enfrentar meu marido. Fico
grata por não ser contrariada. Terminamos o café; enquanto ele limpa a mesa,
sigo até a lavanderia. A lavadeira ainda está processando e deve levar cerca
de mais vinte minutos para minhas roupas estarem secas.
Volto à cozinha e o observo lavar a pouca louça suja.
— Me avise quando chegar em casa — enuncia, de repente, e dou um
salto em meu lugar. — Sei que você disse que sabe lidar com seu marido,
mas não vou conseguir trabalhar ou fazer qualquer outra coisa se não tiver
notícias suas e de que está bem.
O homem se vira para mim. As mangas da camisa branca social estão
dobradas até os cotovelos, seu cabelo castanho está jogado de lado e meio
úmido, dando-me a impressão de que o umedeceu com água da pia.
— Eu não… — começo a dizer, mas sou interrompida no mesmo
instante:
— Vou te passar meu telefone. Tente me ligar, me enviar uma
mensagem. Qualquer coisa serve.
Aproxima-se de mim, tira uma caneta do bolso da calça e pega um
pedaço de guardanapo, anotando dois números de telefone.
— Este é meu celular pessoal e este é da minha casa. — Parecendo se
recordar, rabisca um terceiro. — E este é do Avenue. Me ligue e me dê
notícias. Se precisar de ajuda, não hesite em me pedir. — Pega minha mão,
coloca o guardanapo dobrado em minha palma e a fecha, mantendo as suas
por cima, apertando-me. — Me prometa que vai me avisar e vai me pedir
ajuda, caso precise.
— Prometo — respondo, olhando para nossas mãos unidas,
apreciando seu toque acolhedor.
Bernardo se afasta, dando-me um sorriso fúnebre. Sem dizer nada,
volto para a lavanderia, onde a máquina já finalizou o processo. Retiro meus
moletons já secos e vou até o quarto, fechando a porta atrás de mim. Olho
para os atuais trajes em meu corpo e não consigo não sorrir. Estou usando
algumas peças dele. São quentes e confortáveis; por algum motivo, tenho
dificuldade em me desfazer delas. Bem devagar, tiro o moletom e a camisa
branca, vestindo as minhas em seguida — quase no mesmo estilo, a diferença
que são femininas. Depois, me desfaço da calça e a cueca branca e me visto
outra vez com minhas próprias roupas.
Demoro mais um pouco no ambiente, segurando os dele entre meus
dedos, tentando sentir qualquer resquício do perfume ou do aroma natural
dele. Quando noto o que estou fazendo, rapidamente os deixo cair sobre a
cama bagunçada. Um bater na porta me faz girar nos calcanhares. Ele
pergunta se pode entrar e, como resposta, corro para seus braços e o espremo
contra meu corpo.
— Obrigada — agradeço, outra vez. — Não sei o que teria feito se
você não tivesse me ajudado.
Suas mãos grandes retribuem ao meu gesto e sou esmagada com mais
força do que aplico nele.
— Sempre que precisar — assegura, ao pé do meu ouvido, com um
sussurro rouco. Sinto seu hálito quente em minha pele e fico arrepiada em
cada poro do meu corpo.
Afasto-me um segundo depois, cabisbaixa. Não consigo distinguir ou
compreender a emoção em meu peito quando estou perto deste homem. Meu
medo, nesse momento, é ter meus sentimentos ampliados a partir de hoje,
depois de tudo que fez por mim.

Antes de descermos até a portaria, onde René já me aguarda,


Bernardo me faz reafirmar minha promessa de contatá-lo para dizer se estou
bem e de procurá-lo caso precise de ajuda. Novamente agradeço por seu
apoio e preocupação, garantindo que vou avisá-lo quando resolver minhas
divergências com Antony. Penso em assegurá-lo que, embora meu marido
tenha demonstrado um comportamento um pouco mais agressivo do que o
normal, ainda assim, ele não teria coragem de realmente me machucar.
Entretanto, decido não dizer nada, porque sei que serei contrariada.
Ele me acompanha até o carro de René, parecendo hesitar em me
deixar entrar.
— Vai ficar tudo bem, Dousseau — Deschamps assegura, em seu
lugar no lado do motorista, olhando-nos.
Com uma expressão insatisfeita, ele solta meu pulso; finalmente
posso me ajeitar no banco traseiro. Despeço, evitando olhar seus olhos,
sentindo algo estranho em meu coração diante essa nossa “despedida”.
— Bem… — René exprime, saindo vagarosamente com o veículo. —
Temos que acertar alguns detalhes.
Abano a cabeça em positivo e desvio nossos olhares, que se cruzam
através do retrovisor central. Combinamos que apareci molhada e sem
dinheiro no seu hotel, o Mont Blanc Deschamps, e por sorte o encontrei por
lá, que me cedeu ajuda e deixou que me hospedasse em um dos quartos. Para
todos os efeitos, não entrei em detalhes sobre o acontecido, por isso René não
deve falar sobre nossa discussão ou o empurrão de Antony. Para finalizar,
René bateu na porta do quarto apenas para saber se estava tudo bem e me
ofereceu um carona até em casa.
Contudo… não quero ir para casa. Confesso, estou receosa quanto à
reação de meu companheiro sobre meu pernoite fora de casa. Por isso, prefiro
ir à casa de meus pais e, de lá, ligar para meu marido e dar sinal de vida.
Passo as coordenadas necessárias a Deschamps; ele franze o cenho, pois sabe
que não são as mesmas de minha casa.
Identifico-me na portaria do condomínio e nossa entrada é permitida
logo em seguida.
— Não precisa me acompanhar, René — digo, quando desce do
veículo após estacioná-lo na garagem. — Já está fazendo muito me trazendo
até aqui e, ainda por cima, concordando em me acobertar desta maneira.
— E perder a chance de fumar um charuto com o velho Fleury? Não
mesmo, ma chère — rebate, com um sorriso caloroso. Oferece-me um braço
e imediatamente aceito.
— René… — murmuro, enquanto avançamos quintal adentro. —
Nem preciso dizer que Antony não pode saber sobre mim e Bernardo… Digo,
sobre ter buscado ajuda nele, e não em você. Posso confiar em sua palavra?
Sei que vocês são amigos e…
— Por favor, Ann-Marie — interrompe-me, suavemente. — Você me
ofende quando desconfia de mim deste jeito.
— Pardon, monsieur Deschamps — peço, encabulada.
Ele apenas sorri para mim, com seu jeito gentil.
— Mon amour! — alguém exclama. Viro-me para frente e vejo
Antony na companhia dos meus pais, ambos sentados em torno da mesa na
área de lazer do jardim. Os três se levantam à minha chegada; meu marido
vem em minha direção a passos rápidos. Sou tomada em seus braços em um
aperto sufocante. Um segundo depois, meus pais também estão me rodeando,
exclamando frases de preocupação.
— Onde esteve, mon ange? Te procurei por Paris toda! — Antony
exclama, preocupado, segurando-me pelos braços. — Seus pais e eu já íamos
chamar a polícia.
— Estou bem — asseguro, forçando um sorriso. — Estive hospedada
no Mont Blanc Deschamps. René foi um bom samaritano e me deu
hospedagem.
O homem dá um passo à frente, com seu semblante sempre gentil e
alegre, e abraça Antony, dizendo:
— Vim garantir que sua esposa chegasse em segurança e trazer a
conta do hotel. — Esta última parte é uma clara brincadeira. Vejo Antony
sorrir um pouquinho diante ao bom-humor do amigo. — Estou brincando,
Leclerc — esclarece, desfazendo o abraço em meu esposo. — Jamais poderia
cobrar de vocês em uma situação delicada como esta.
As feições de meu esposo tomam proporções levemente sombrias.
Seus olhos escuram encontram os meus.
— Espero que, o que tenha acontecido entre vocês, seja resolvido.
Formam um belo casal — finaliza, dando-me cobertura outra vez. Antes de
Antony ter tempo de dar qualquer resposta, René se desvia dele e vai até meu
pai, para abraçá-lo e cumprimentá-lo.
Olho apreensivamente para minha mãe, que apenas vem até mim, me
dá um abraço maternal e diz estar feliz por eu estar bem. Ela também se
afasta, como se quisesse me dar privacidade para conversar com meu esposo.
Falando nisso, não sei como encará-lo, não sei o que dizer. Ao menos, o
medo em meu âmago se dissipou levemente em relação ao seu
comportamento diante minha ausência na noite passada. O homem está
nervoso, mas no sentindo de preocupação, não no sentido negativo da
palavra.
— Podemos conversar em um lugar mais reservado? — pergunta. Sua
voz está muito calma.
Consigo apenas abanar a cabeça em positivo. Segura em meu punho e
me leva até a dependência nos fundos da casa. Encosto-me à porta fechada,
meu esposo fica de frente para mim, de braços cruzados e expressão serena.
— Je suis désolé, mon ange — exprime, com o tom de voz carregado.
— Não queria ter te assustado ou te machucado. Apenas agi por impulso,
domado pela raiva… — Dá um passo adiante e me abraça outra vez,
deixando um beijo cálido na minha pele. Não consigo ter nenhuma reação ao
seu toque. Notando minha falta de palavras e atitude, se afasta e me olha nos
olhos. — Por favor, me perdoe, mon amour. Te juro que isso nunca mais vai
acontecer.
Permaneço em silêncio por mais algum tempo, apenas encarando as
feições do meu marido.
— Você me assustou — digo, com um sussurro. — Fez escândalo
por… tão pouco.
— Não foi por pouco — rebate. Vejo seu semblante vacilar
minimamente. — Te pedi para não ir à cafeteria de Dousseau, mesmo assim,
você foi.
Desencosto da porta e dou um passo à frente, cruzando os braços
diante o tórax.
— Fui com Giselle, uma amiga. Não havia nada de mais. Seu ciúme é
descabido.
— Descabido é sua desobediência e insolência — retruca, entre os
dentes, e a calmaria de segundos atrás começa a se dissolver. Suspira em
seguida e passa os dedos entre seus fios pretos volumosos. — Ann-Marie,
entenda — continua, e seu tom de voz agora está manso de novo —, ele não é
uma boa pessoa e flerta com você sem se importar com seu estado civil. —
Antony se aproxima com um passo e me segura pelos braços, olhando-me
dentro dos olhos. — Fico insano de ciúme em saber que você tão perto dele
pode…
Não o deixo terminar sua frase. Avanço sobre ele e o calo com um
beijo sereno.
— Não importa o que pense dele — sussurro, rente aos seus lábios. —
Não importa se ele não respeita meu estado civil. Eu respeito, mon amour.
Amo você e nunca… nunca me interessaria por outro alguém além de você
— garanto, de olhos fechados, enquanto tento ignorar os momentos da noite
passada e de como aquele homem desperta em mim sentimentos
incompreensíveis.
Quando ergo as pálpebras, a expressão de meu esposo está muito mais
relaxada e serena.
— Confio em você, que fique claro — assegura. Seu polegar afaga
em minha bochecha. — Não confio nele. É por isso que te peço pra não
voltar lá. Principalmente depois daquelas coisas asquerosas e absurdas que
falou sobre você.
Engulo em seco, fitando-o. Queria poder dizer a Antony que a
intenção dele não foi me ofender, que apenas disse aquilo para não criar mais
conflitos em nosso casamento. Mas simplesmente não posso confidenciar
nada, ou meu esposo saberá que meu café com Giselle não foi minha única
vez na cafeteria de Dousseau.
— Eu sei — murmuro em resposta. — Mas não fui lá de propósito.
Fiz um favor a Giselle, ela quis agradecer me pagando um café. Combinamos
para o dia seguinte, ela me enviou o endereço de onde nos encontraríamos
algumas horas antes. Só aí me dei conta de que se tratava da cafeteria de
Bernardo — explico, mentindo um pouco.
Mais mentiras.
Deus, precisarei ainda esta semana me confessar.
— Poderia ter recusado, marcado em outro lugar — diz.
— Achei que teria sido muito rude e falta de educação se realmente
tivesse feito isso.
— Tudo bem, ma chérie. Só me prometa que não volta mais lá
sozinha. Não te quero perto daquele homem.
Não consigo não expressar desagrado quando me diz isso. Começo a
ficar incomodada com esse seu controle sobre minha autonomia e meu direito
de ir e vir. Penso em argumentar isso, em contestar suas palavras e insistir na
minha liberdade de fazer minhas próprias escolhas e poder ir onde quiser.
Entretanto, prefiro manter meus protestos para mim e evitar mais discussões
entre nós dois.
— Não vou voltar — afirmo, contrariada.
Sorrindo, me segura pela nuca e me puxa para um beijo molhado.
E só consigo pensar no perfume de Dousseau, que senti ao vestir
somente o seu paletó.

Em casa, Antony me leva ao nosso quarto e vai até o closet, dizendo


que tem algo para mim. Meu corpo fica tenso no lugar, um medo quase
patológico toma conta de cada célula do meu corpo. Será que descobriu sobre
a gargantilha? E se me perguntar a procedência da joia, o que lhe direi? Não
posso simplesmente afirmar ter comprado sem ter como comprovar, uma vez
que meu marido é quem paga exatamente tudo para mim. A peça está
guardada no mesmo lugar de sempre e a última vez em que a peguei foi
quando me encontrei com Giselle, um mês atrás.
Meu esposo retorna com uma sacola e me entrega, dizendo:
— Te comprei um celular novo.
Consigo sorrir bem pouco. Abro o embrulho e vejo um telefone de
última geração.
— Obrigada — agradeço, mesmo que me sinta patética por isso. Ora,
ele quebrou o meu anterior. O mínimo que deveria fazer era me dar um
novo.
Meu esposo me abraça, deixando um beijo em meu rosto.
— Agora que você já está em casa e está bem, preciso trabalhar.
Apenas abano em positivo. Quando ele se vai, entro no banheiro e tiro
minha roupa. O guardanapo de papel com os telefones de Bernardo está no
bolso do meu moletom. Pego-o com cuidado e o desdobro, olhando com
atenção para os números anotados. Não evito um pequeno sorriso ao me
recordar de sua preocupação. Dobro-o de novo e escondo sob as roupas na
bancada. Tomo um banho rápido, troco de roupa e desembrulho o novo
celular. Ao finalmente ligá-lo e cadastrá-lo, envio uma mensagem no número
pessoal de Dousseau:

Estou bem. Eu e Antony tivemos uma conversa civilizada. Nos


entendemos. Inclusive, ele me deu esse telefone novo. Obrigada pela sua
preocupação e hospedagem.
Ann-Marie
Depois de enviar, apago a mensagem.

— Precisamos conversar — digo a Antony, quando já estamos em


nosso quarto, à noite, após jantarmos.
Ele está se despindo, preparando-se para deitarmos e dormir.
Tive toda a tarde para pensar na minha situação. O gatilho para isso
foi meu medo de ele descobrir sobre a gargantilha e não poder dizer que
comprei com meu próprio dinheiro porque é meu marido quem controla
minhas finanças. Cada centavo. Pensando sobre o assunto, notei que isso
agora me incomoda. Quero minha liberdade financeira também. Quero poder
comprar coisas sem precisar ter um cartão de crédito vinculado ao dele, ou ter
de perguntá-lo se isso ou aquilo caberia em nosso orçamento. Quero ter
minha liberdade financeira. Para isso, preciso trabalhar.
— Sobre o quê? — questiona, abaixando as calças.
— Pensei em abrir meu próprio negócio — falo, com cuidado. —
Sabe, Giselle me procurou um mês atrás, precisava urgentemente de uma
costureira, acabei a ajudando. Com isso, minha paixão por moda e costura se
aflorou mais em mim. Sinto falta de trabalhar com isso, Antony. Pensei que
poderia…
— Não — interrompe-me, sem nem ter a coragem de ouvir meus
argumentos. — Tudo que precisa, dou a você. Não precisa trabalhar.
— Mas eu quero! — digo, firme. — Não faço nem mesmo pelo
dinheiro. Faço por amor, para passar o tempo, ocupar minha cabeça. Não vou
trabalhar fora, chéri. Posso aproveitar meu ateliê daqui de casa e fazer
pequenos trabalhos, apenas aqueles que ocupem poucas horas do meu dia.
Ele me olha com o cenho franzido em desagrado. Contudo, não estou
disposta a dar meu braço a torcer sobre isso. Com um suspiro cansado, vejo-o
ceder, acenando em positivo. Nem noto quando pulo em sua direção e o
abraço fortemente.
Em minha mente, já começo a fazer planos de sair amanhã e comprar
alguns tecidos e fazer algumas ligações.
É hora de tirar um sonho do papel e dar vida a ele. É hora de Style
Leclerc ter seu espaço.
BERNARDO
Suspiro e deixo o celular cair no meu colo. Desvio o olhar para a
avenida movimentada e me obrigo a prestar atenção no trânsito. Já são duas
semanas desde que Ann-Marie veio me procurar na cafeteria, pedindo minha
ajuda. De lá para cá, parece que foi uma eternidade. Ela me enviou uma
mensagem dizendo que estava tudo bem e tinha se entendido com o marido.
Na ocasião, eu estava no trabalho, olhando o celular a cada dois minutos e
perguntando aos meus funcionários se alguém tentou fazer contato comigo
pelo telefone comercial. Não nego, estava uma pilha de nervos. Tinha medo
de aquele imbecil desequilibrado fazer algum mal à mulher.
Ao ler sua mensagem, não soube explicar o sentimento confuso se
formando no mais profundo do meu âmago. Se por um lado me senti aliviado
por Antony não a ter machucado, por outro, havia algo de frustração em mim.
Não vou mentir: bem lá no fundo, talvez de forma até inconsciente, desejei
que os dois não se entendessem, que Leclerc continuasse sendo um babaca
desequilibrado a ponto de fazê-la precisar de minha ajuda de novo. Eu sei,
sou um idiota por ansiar por esse tipo de coisa.
Não respondi sua mensagem em questão, temendo que o marido,
controlador como é, pudesse conferir seu celular e descobrir tudo. A última
coisa que queria era que ela saísse machucada nessa história, seja de forma
psicológica ou física. Contudo, também não irei negar que pensei, sim, em
enviar uma resposta tendo em mente essa perspectiva. Sou tão imbecil quanto
Antony. Definitivamente. É tão mórbido e errado desejar esse tipo de coisa
àquela mulher querendo que venha ao meu encontro e me peça ajuda!
Desde aquele dia, não a vejo. Todo santo dia, porém, fico em estado
de alerta com meus telefones pensando que, a qualquer momento, ela pode
me ligar e precisar de mim. Confiro as mensagens o tempo todo, corro até o
celular quando toca e fico frustrado quando não é ela; meu coração dispara
cada vez que alguém me repassa uma ligação no telefone comercial, na
esperança idiota de ser essa mulher que tem mexido com meus nervos e
mente mais do que qualquer outra.
Meu celular grita no meu colo, e, com a mesma urgência de sempre,
pego-o na mesma expectativa imbecil. Entretanto, o número, reconheço, é
sobre trabalho. Não atendo e atiro o telefone no banco do passageiro. Não
vou atender, primeiro, porque estou dirigindo, e, segundo, estou a menos de
um quarteirão do meu destino — também o local de onde provém ligação.
Ele pode esperar.
Mais uns cinco minutos e paro o veículo no estacionamento exclusivo
de uma das filiais do Avenue Coffee em Paris. Diferente da matriz, localizada
no 7ème arrondissement, esta em questão fica no 9ème arrondissement, cerca
de trinta minutos de viagem de um café ao outro. A arquitetura aqui é
completamente diferente da nossa sede; contudo, a decoração interior e
uniformes, em todas as nossas filiais ou franquias, são padronizados.
Meu gerente-geral e contador já me espera sentado em uma mesa no
centro do salão principal. Ele se levanta para me receber e me dar um abraço
apertado. Jacques Aubert, além de meu contador e gerente-geral, também
comanda a Avenue Coffee do 9ème arrondissement e, nas horas vagas, é um
bom amigo.
Pedimos um café e algumas guloseimas para comer. Jacques, proativo
como só ele, já tem na mesa o seu notebook ligado e aberto na planilha de
contabilidade, onde há, principalmente, toda a informação de contribuições e
imposto de renda. Conversamos amenidades entre uma planilha e outra e
depois ele me fala sobre as recentes demissões, contratações e a
produtividade dos funcionários. Por fim, passamos a falar sobre novos
fornecedores, balanço de mercadoria e relatório de estoque. Ficamos bem
umas duas horas em torno da mesa. Bebo mais café do que posso contar
nesse interim.
Ao final, com tudo resolvido, me despeço de Jacques com outro
abraço fraternal e sigo até o carro. Estou engatando a ré para sair quando meu
celular toca no meu bolso. Pelo toque, sei que é minha mãe me ligando.
— Salut, maman — atendo, já sabendo o motivo dessa ligação.
Mamãe raramente me liga por outra razão a não ser exigir minha presença
junto dela.
— Onde você está, querido? — pergunta, em português.
— Trabalhando, mamãe — respondo, ajeitando o celular no ombro.
Engato a ré e começo a sair.
— Teria um tempo para me visitar?
Estou tentado a dizer não. Não por maldade, mas porque realmente
estou atolado de trabalho. É meio de semana, pelo amor de Deus. Entretanto,
não consigo dizer não para minha mãe. Ela tem um poder de persuasão com
qualquer pessoa que é inacreditável. Por isso, contrariado, enquanto tomo as
ruas de Paris, respondo:
— Claro. Está em casa?
— Sim. Venha logo. Estou te preparando café…
Penso em dizer que café é desnecessário, afinal, já bebi demais
durante minha reunião com Aubert e, se ingerir mais cafeína a essa hora —
cinco da tarde —, é capaz de eu não dormir essa noite; porém, não tenho
tempo de responder. Mamãe já desligou.
Sem outras opções, sigo para lá, fazendo uma rápida ligação para
Juliette e a notificando que demorarei um pouco a chegar e, por esse motivo,
deve permanecer na cafeteria até meu retorno, excedendo seu horário de
expediente. Bem, nada que um abono por hora extra não resolva.
Quando chego, dona Ester já está me esperando com um banquete na
sala de jantar. Sou recebido com beijos e abraços e arrastado a sentar ao seu
lado.
— Vamos, diga o que quer de mim — pressiono-a, fazendo um
movimento de mão quando faz menção de me servir com café. — Acabo de
vir de uma reunião e minha cota de cafeína já deu por hoje.
Ela então se serve e pega um croissant.
— Por que você acha que quero alguma coisa de você? A não ser
passar um tempo com meu filho.
Meus lábios sobem em um pequeno sorriso de lado. Mamãe acha que
não a conheço.
— Eu te vi no domingo, maman. Aliás, estamos nos vendo
praticamente todo final de semana; você tem me obrigado a acompanhar a
senhora nas missas dominicais.
Ester revira os olhos e bebe mais do seu café.
— Certo. Não há como te ludibriar. Quero algo de você. No sábado,
gostaria que me acompanhasse ao Dames Parisiennes.
Ergo uma sobrancelha.
— Até onde sei, mamãe, tenho um pênis entre o vão das pernas. Por
isso, não me encaixo no quesito “damas parisienses” — debocho.
O rosto de Ester não demonstra humor. Imediatamente tiro meu
sorriso do rosto.
— Não seja rude nem mal-educado, Bernardo — adverte, o rosto
severo. Desculpo-me, e mamãe continua: — E você sabe que este evento não
é restrito apenas para mulheres.
Suspiro e aceno. Eu sei. O evento tem esse nome porque é organizado
apenas por mulheres. É uma solenidade anual que visa arrecadar fundos para
obras de caridade em Paris. Cada ano uma instituição diferente recebe os
fundos arrecadados pelas “damas parisienses”.
— Por que eu? — indago, fazendo uma careta. Sinceramente, odeio
esse tipo de evento. Não são como as festividades de Dupont, por exemplo.
Embora ambos reúnam personalidades de Paris, este organizado apenas por
mulheres é um saco, porque a maioria dos presentes são pessoas esnobes,
metidas, com o ego inflado, que doam um monte de euros não por caridade,
mas apenas por vaidade. — Leve o papai com a senhora. O velho Edmond
Dousseau deve aguentar um pouco de socialização.
— Seu pai vai participar de um campeonato de xadrez no mesmo final
de semana — rebate.
— Mamãe, o papai nem sabe jogar xadrez! — protesto.
— Ele está aprendendo! — devolve, insistente, tentando me
encurralar e me deixar sem opções a não ser acompanhá-la nesse evento.
Semicerro os olhos em sua direção, entendendo perfeitamente o que
dona Ester está tentando fazer aqui.
— Mãe… — suspiro.
Ela me segura pelas mãos e me olha nos olhos, do seu modo terno e
amável, o mesmo olhar e semblante que faz o maior dos insensíveis se render
a uma senhora doce e gentil de sessenta e tantos anos.
— Ber, meu filho, entende a importância desse evento? Ele atrai uma
porção de moças solteiras que você pode conhecer e ter a chance de formar
uma família.
— Pare de dar uma de casamenteira, mãe — peço, sem me alterar.
Odeio sua intromissão na minha vida pessoal, de querer me juntar a alguma
mulher. Sou um homem de espírito livre. Por que é tão difícil entender isso?
— Você tem praticamente quarenta anos, chéri. Está na hora de
encontrar alguém e arranjar um herdeiro. Como ficará seus negócios e sua
herança sem, ao menos, um filho?
Encaro-a seriamente por algum tempo, processando suas palavras.
Sinceramente, nunca tinha parado para pensar nesse aspecto. Como filho
único dos Dousseau, se eu não tiver ao menos um herdeiro, minha herança
vai para o parente mais próximo — e nem sei que é! — e meus negócios
ficam aos cuidados do meu sócio, Alfredo.
— Vai dizer que não tenho razão? — Sua voz me chama de volta ao
mundo real.
Droga, por que ela teve de levantar esse questionamento? Vou ficar
com essa porcaria de herdeiro na minha cabeça por todo o resto da semana.
— Você sempre tem razão, mamãe — digo, com um suspiro,
preferindo não tentar argumentar com Ester. Ela me dá um sorriso vitorioso.
Revirando os olhos, cedo: — Esteja pronta quando vier te buscar.
Seus lábios se curvam ainda mais e responde:
— Estarei, filho querido. Estarei.

O evento está acontecendo ao ar livre na mansão de alguma


personalidade ricaça de Paris que, no momento, não tenho a mínima ideia de
quem seja. Mamãe está enroscada aos meus braços enquanto caminhamos
pelo jardim, após sermos recepcionados na entrada. Dona Ester está muito
bonita dentro de um vestido azul que acompanha echarpe. Optei apenas pelo
básico: jeans escuro, camisa branca e blazer preto. É claro que fui muito
repreendido quando apareci assim em sua casa para pegá-la.
— Tanto terno no seu closet e hoje você me vem desta maneira.
Francamente, Bernardo… — Foi o que resmungou durante todo o caminho.
Não estou tão mal assim. É uma roupa mais informal, mas estou
muito bem-vestido. Ester que é cheia de frescuras.
— Você não sabe que toda mulher tem tesão e fetiche por homens de
terno? — diz, enquanto sorri em cumprimento para as pessoas passando por
nós. Deus, dê-me paciência com essa mulher. Seguro uma risadinha e
balanço a cabeça em negativo.
— Mamãe, vim para fazer uma doação, não arranjar uma esposa.
— Você veio para ambos — rebate, pegando uma taça de champanhe
quando o garçom passa por nós. Abstenho-me de qualquer bebida alcóolica,
uma vez que estou dirigindo, e tento não revirar os olhos com essa fase de
cupido da minha mãe.
Ester me leva para cima e para baixo, apresentando-me a uma porção
de homens e mulheres, mas principalmente mulheres, as solteiras, todas na
faixa de vinte e cinco e vinte e oito anos. As acima de trinta são todas
casadas. Não que eu me importe com diferença de idade, mas se for para
casar, que seja com alguém que também esteja na casa dos trinta. Balanço a
cabeça em negativo, afastando esses pensamentos absurdos. Não vim arranjar
mulher.
Mamãe está agora em uma roda de um novo grupo, formado por
ambos os sexos, conversando sobre a instituição que receberá os donativos
esse ano — um orfanato muito conhecido na cidade. Cada um aqui ajudará de
alguma forma, além das doações em dinheiro: roupas, comidas, material
escolar, brinquedos.
— Uma de nossas colaboradoras vai costurar novos uniformes e
roupas sociais para os órfãos — diz uma senhora de meia-idade, com taça e
guardanapo de papel na mão. — É uma moça jovem, muito bonita… que me
foge o nome agora! Conheci-a uns minutos atrás… Precisa conhecê-la
também, Ester! — exclama, toda animada. — É um doce de mulher. E
prendada. Costura muito bem, precisa ver.
Mamãe abre um sorriso e depois me olha.
— Ela é solteira, Adeline? — questiona, com seu sorriso maroto de
quem não quer nada.
Mantenho-me rígido e imóvel em meu lugar. Ela não vai sossegar
enquanto eu não sair daqui com alguma pretendente.
— Casada, se não me engano. Vou procurá-la e trazê-la aqui para se
conhecerem — diz toda animada e se retira em seguida.
Viro-me em sua direção, encaro-a nos olhos e peço:
— Mamãe, pare com isso, por favor.
— Estou apenas tentando ajudar, meu filho.
Quanto tempo mais esse inferno vai durar? Preciso desesperadamente
ir embora daqui antes de minha mãe me deixar maluco com essa história.
Ainda bem que sou filho único e homem. Nem gosto de imaginar quão maior
seria essa pressão se eu fosse mulher.
— Tanto faz. Vou pegar algo para comer — digo, dando-lhe um beijo
na testa e me afastando até a mesa de petiscos.
Seria muito canalha da minha parte me esconder durante todo o
restante do evento? Se não estiver à vista de minha mãe, ela vai parar com
essa história de ficar tentando me arrumar uma pretendente. Não é uma má
ideia. Talvez eu vá embora e depois volte buscá-la quando isso tudo acabar.
Pensando bem, com ou sem minha presença, Ester vai continuar na sua saga
de me casar com alguém. Dessa maneira, é bom eu ficar por aqui ou amanhã
cedo alguma mulher vai me procurar na cafeteria ou me ligar no número
pessoal. Se ficar, posso refrear minha mãe ou dispensar qualquer moça que
venha a me arranjar.
— Pensei que fosse fugir de mim… — mamãe brinca, quando
retorno.
— Não vou dizer que não pensei nisso — devolvo, abraçando sua
cintura.
— Ester! A moça que te falei — Adeline exclama às nossas costas.
Nós nos viramos para ver de quem se trata a mulher tanto exaltada por
Adeline; no mesmo instante quase tenho o ar arrancado dos meus pulmões.
Ann-Marie, ao me ver, para de caminhar em nossa direção e me
encara com o semblante assustado. A mais velha torna a arrastá-la pelos
punhos até nossa presença. Sinto o olhar de mamãe em mim enquanto não
consigo parar de admirar essa beleza em forma de mulher.
— Bernardo… — adverte quando nota que não faço discrição para
Leclerc. — Tanta mulher solteira e você continua interessada em uma
casada… — murmura, entre os dentes, somente para que eu a ouça.
Não tenho tempo de resposta, pois a essas alturas Adeline já está nos
apresentando:
— Ester, esta é Ann-Marie Leclerc…
Mamãe faz uma cara de desdém e a cumprimenta.
— Dispense apresentações ao meu filho, Adeline. A madame Leclerc
já o conhece. — Já sei de quem herdei tanto abuso. O tom na voz de Ester é
uma afronta a mim e acho completamente desnecessário.
— Ah, que ótimo! — a mais velha exclama. — E de onde se
conhecem, monsieur Dousseau?
Por fim, consigo desviar meus olhares de Ann-Marie e responder:
— Fomos apresentados em um evento de Emilien Dupont. Além
disso, o marido dela é um fiel cliente da minha cafeteria. — Incapaz de conter
meu olhar de luxúria, volto-me a ela mais uma vez: — É sempre bom te
rever, madame Leclerc — digo, dando um passo à frente. Minha mão direita
a toca no braço despido e encosto nossas bochechas, em um beijo de
cumprimento.
Sinto seu corpo tenso em meus braços. Por uma fração de segundos,
mantenho nossa posição e, ligeiramente, desço meu nariz pelo seu pescoço,
sentindo o aroma da sua colônia. Droga. Seu cheiro é maravilhoso e me deixa
excitado. Afasto-me sem cerimônia em esconder meu olhar de desejo sobre
ela.
Ann-Marie força um sorriso para mim.
— É bom te rever também, monsieur Dousseau — fala, a voz
levemente trépida.
Adeline engata a falar sobre Leclerc e seu dom da costura, elogiando-
a e a fazendo girar em seu próprio eixo enquanto diz que o vestido em seu
corpo curvilíneo foi ela mesma quem costurou. A mulher está visivelmente
encabulada com esta senhora a bombardeando de elogios. O rubor em suas
bochechas é adorável, e, diante isso, não consigo não sorrir um pouquinho.
Ela não fica mais do que cinco minutos na nossa presença e logo pede
licença, dizendo que precisa ir ao toalete. Adeline se prontifica a acompanhá-
la até a uma altura do caminho, pois quer apresentá-la a outra senhora antes
disso.
— Não bastava ser casada, precisa ser com um homem que você
conhece, Bernardo? — mamãe profere. Ela vai me perturbar até eu implorar a
Deus para que alguém arranque meus ouvidos.
Viro-me em sua direção e forço um sorriso.
— Eu gosto dela, sim — confesso. Não me recordo de ter confessado
isso em voz alta pra mamãe. — Mas já disse, maman, é impossível acontecer
qualquer coisa entre nós. Ela é casada, católica e ama o marido. Agora, para
de ficar me atormentando.
Não a deixo responder, viro nos calcanhares e me afasto. Meus olhos
procuram freneticamente por Ann-Marie. Ela acaba de se despedir de outro
grupo de gente esnobe e está indo em direção à mansão. Imediatamente dou
um passo à frente, pronto a segui-la. Entretanto, paro antes do segundo passo.
Na última vez que a segui — quando ela deixou minha cafeteria após um
encontro com uma amiga —, me pediu para parar de assediá-la. E, nesse
momento, preciso respeitar seu espaço. Porcaria. Não a seguir é a coisa mais
difícil que já fiz na vida. Quero ir atrás dela, quero conversar — qualquer
maldita coisa. Só quero ouvir sua voz, olhar seus olhos, inalar seu cheiro.
Estaco no meu lugar e fico apenas a observando caminhar para dentro
da mansão. Ann-Marie se vira, seus olhos encontram os meus, um sorriso
pequenino ilumina seu rosto. No instante em que devolvo seu sorriso, ela me
dá um ligeiro movimento de cabeça, como se me chamasse. Olho ao redor,
procurando se alguém mais notou esse minúsculo sinal. Aparentemente, não.
Ela já não está mais no umbral de entrada e me apresso a alcançá-la.
Termino de subir os degraus; ela está no final do corredor, abrindo uma porta.
Espalmo contra a madeira, impedindo-a de fechar, e jogo meu corpo para
dentro. Os olhos arregalados dela denunciam que minha presença é uma
surpresa. Droga, eu a peguei desprevenida? Mas recebi um sinal, não recebi?
— O que está fazendo aqui? — pergunta, sussurrando.
Observo melhor o ambiente onde estamos. É um lavabo. Grande e
luxuoso demais para um lavabo, mas tudo bem. Tem um espelho enorme
sobre uma bancada de mármore preto. Luminárias no teto e uma decoração,
admito, muito bonita.
— Você me pediu para te seguir — rebato, também com um
sussurro.
Ela balança a cabeça em negativo.
— Não pedi, não.
— O sinal…
— Está louco? Não te dei sinal nenhum.
Merda. Entendi tudo errado. O correto então seria virar as costas e
deixá-la em paz. Mas, porcaria, quem disse que consigo? Não sou capaz de
mexer um músculo enquanto essa mulher linda me olha assustada. E não
seria para menos. Estamos trancados dentro de um banheiro.
Pestanejo seguidamente, tentando encontrar alguma razão e me
afastar. Todavia, dou um passo à frente. O vestido dela é longo e bonito,
bastante discreto — como sempre —, florido na parte de cima e azul-marinho
da cintura para baixo.
— Foi você mesma quem costurou esse vestido? — pergunto,
analisando seu corpo por um segundo e encontrando seus olhos, por fim.
Responde-me com um gesto afirmativo. — É muito bonito. Seu dom é
incrível. É só um hobby?
— Não — responde. — Fiz faculdade de designer de moda e minha
intenção sempre foi criar uma marca minha.
— E por que não existe uma marca chamada Ann-Marie Leclerc? —
pergunto, em tom divertido.
O semblante dela fica rígido.
— Antony nunca deixou — revela. O sorriso em mim some.
Ele é um babaca imbecil, não entendo como pode estar casada com
um homem desses.
— Ann-Marie… — murmuro, segurando-a delicadamente pelos
braços. — Por que se casou com Antony? Ele é um idiota — digo, sendo
franco. A mulher fecha a cara para mim, claramente ofendida com meu
xingamento ao marido babaca. Desvia o olhar e não me responde. — Já parou
pra pensar que… você vive em uma relação abusiva?
Com esta minha frase, consigo chamar seus olhos aos meus de novo.
— Relação abusiva? — pergunta, como se desconhecesse o termo. —
O que quer dizer?
— Ele te controla, te manipula, tira sua liberdade, sua autonomia…
Até te agrediu e quebrou seu celular. São sinais de um homem abusivo, de
um relacionamento tóxico. Você não deveria se submeter a esse tipo de
relacionamento. — Com mais um passo à frente, toco-a nos braços despidos.
Sua pele quente eletriza cada célula do meu corpo. Sinto um leve tremor nela,
dando-me a certeza de que eu lhe causo o mesmo efeito. — Você merece
alguém melhor do que ele.
Meu polegar direito a afaga na bochecha corada, nossos olhos não se
desencontram por vários segundos. Sua respiração fica desregular contra meu
rosto, meu coração se desregula na mesma medida. Meu olhar desce para
seus lábios e fixam ali. Deus, a vontade de beijá-la está me atormentando.
Aproximo-me da sua boca, em câmera lenta, sem nem perceber. A mulher
não se move, também não me rejeita nem me pede para parar. Simplesmente
deixa eu me aproximar; meu polegar segue acariciando sua bochecha à
medida que nossas bocas estão mais perto uma da outra.
Penso que nosso primeiro beijo será calmo, sereno, apenas um roçar
leve de nossos lábios, com a respiração ofegante. O passo que damos,
contudo, é de tirar o fôlego. Ann-Marie me puxa pela nunca e termina de
findar a distância entre nós, beijando-me avidamente, sua língua abrindo
caminho em minha boca e a explorando com desespero. Seguro-a pela
cintura, firme, e, com um impulso, ponho-a sentada na bancada de mármore
da pia. Ela geme, estrangulada, quando minhas mãos sobem por dentro da sua
saia e alcançam a pele de suas pernas.
Somos dois corpos desesperados em uma luta incansável. Desabotoo
a parte de cima do seu vestido e afasto o tecido o máximo que consigo. Ela
usa um sutiã preto, meia-taça, que acomoda os seios pequenos e redondos.
Tiro minha boca da sua e a guio para seu queixo, passando pelo colo e
chegando finalmente entre seus seios enquanto minhas mãos tornam a
apalpá-la por baixo do vestido. Encaixo-me entre suas pernas, que me
circundam um segundo depois, e reencontro sua boca para outro beijo
intenso.
Estou a ponto de ter um orgasmo apenas com nossa ávida troca de
beijos quando, de repente, ela para e me afasta. Seus olhos estão ainda mais
arregalados. Posso imaginar o que está se passando em sua cabeça nesse
exato momento. Empurram-me, desce da bancada, abotoando o vestido
rapidamente com as mãos trêmulas. Encara-me um instante — os olhos
marejados — antes de abrir a porta e se mandar.
Passo os dedos pelos cabelos, tentando fazer o coração voltar aos
batimentos normais e esquecer desse momento quente entre nós.
Ambas tarefas parecem impossíveis.
ANN-MARIE
Caminho rapidamente para fora da mansão. Meu coração está
entalado na garganta, meus olhos ardem pelas lágrimas acumulando. Meu
Deus, o que foi que eu fiz? Desço as escadas olhando para baixo e tentando
controlar minhas emoções afloradas.
Deveria ter entendido os sinais de Deus hoje pela manhã. Eu não
deveria ter vindo a esse evento idiota. Tudo bem, não tão idiota assim. Tem
uma boa causa, uma causa linda, na verdade, mas vi os sinais: minha
máquina resolveu quebrar e me atrasou na costura desse vestido ridículo em
que Bernardo teve a coragem de pôr suas mãos macias e quentes por dentro
e… Foco, Ann-Marie, foco! Certo. Atrasei-me algum tempo costurando o
vestido à mão, depois queimei o arroz, o que atrasou meu almoço; perdi
minha bolsa dentro da minha própria casa, atrasando-me mais um bocado de
horas. Foram sinais atrás de sinais, avisando-me para não vir a essa
confraternização.
Deveria ter ficado em casa. Se tivesse ficado, não teria cometido esse
erro terrível… Terrível, delicioso, quente e…
— Foco! — exijo de mim mesma, enquanto atravesso o jardim.
Seco as lágrimas e respiro fundo. Preciso controlar minhas emoções e
manter a compostura.
— Onde você estava? — Giselle aparece ao meu lado, logo na porta
de entrada do hall principal. — Está chorando?
— Não! — rebato imediatamente, secando as últimas gotas. — Estou
apenas emotiva com o evento. E animada para começar a confeccionar as
roupas para as criancinhas. — Sorrio. Um sorriso forçado. — Mas estou
cansada, Giselle. Preciso mesmo ir embora. Você fica e aproveita mais um
pouco por mim. Eu chamo um táxi.
Minha amiga acena em positivo e se despede me abraçando. Durante
esse rápido gesto, meus olhos vagam até a entrada na mansão, de onde agora
está saindo, com semblante de derrota, cabelos bagunçados, lábios inchados e
desejo nos olhos. Ele me nota, faz menção de vir até mim, mas sou mais
rápida, desfazendo-me do aperto de Giselle e me distanciando a passos
apressados, não me atrevendo a olhar para trás. Cruzo todo o jardim e
finalmente alcanço a saída. Olho para ambos os lados da rua, à procura de um
táxi.
Uma mão segura em meu pulso e me gira. Dou de cara com um par de
pupilas dilatadas e uma boca entreaberta que me chama para o pecado. Sinto
as lágrimas e me esforço a me manter no controle.
— Não fuja — pede, a voz rouca.
— Preciso ir embora — respondo, soltando-me do seu aperto e
fazendo sinal para um táxi que passa próximo.
Novamente, ele me gira e sou levada a encontrar seus olhos
transbordando de paixão. Homem nenhum me olhou desta maneira antes.
Não é como se me olhasse apenas como um pedaço de carne. Não é apenas
luxúria. Tem alguma coisa de paixão nesse olhar.
— Eu levo você.
— Bernardo, por favor — peço, quase desesperada. Seu toque arde
em minha pele, mas não é algo ruim. — Só me deixe ir. Por favor.
Com um passo para trás, se afasta, atendendo ao meu pedido. Encara-
me com uma intensidade que não sei desvendar. A linha do seu maxilar está
tensa e meio rígida, os olhos se abateram um pouco. Ele não diz nada e nem
me impede quando me viro e entro no táxi. O veículo se põe em movimento;
metros mais adiante, incapaz de conter minhas próprias ações, me viro para
trás e o vejo plantado no mesmo lugar, seu olhar triste cravado em mim.

Peço ao taxista para me levar à Notre-Dame. É uma viagem rápida,


cerca de quinze minutos. Meu coração segue batendo de forma
descompassada e violenta, meus lábios continuam ansiando por outro daquele
beijo. Uma confusão de pensamentos e sentimentos acontece dentro de mim
agora. Estou tão arrependida, mas, ao mesmo tempo, penso em como desejo
mais daquele homem e do que ele tem a me oferecer.
Pago minha corrida e corro para dentro da Catedral como se o mundo
estivesse acabando. Ajoelho-me no primeiro banco vazio que encontro, junto
as mãos e abaixo minha cabeça. A primeira coisa que faço não é orar, nem
pedir perdão a Deus. É chorar. Choro tentando não fazer muito escândalo. O
peito dói conforme reprimo meus sentimentos e as lágrimas querem sair.
Levo bem uns dez minutos até estar mais calma. Meus olhos, com toda
certeza, estão vermelhos e inchados. Por fim, ergo a cabeça e diviso Cristo na
cruz.
Eu traí meu esposo.
Foi apenas um beijo, mas não deixou de ser uma traição.
Fico minutos incontáveis na mesma posição, fazendo minhas preces a
Deus, pedindo perdão, forças para resistir e implorando para que tire esses
desejos e pensamentos impróprios dentro de mim. Sou uma mulher casada,
Bernardo é um homem do mundo, e não quero desagradá-Lo. Após minhas
orações, sento-me ao banco e fico apenas ali, observando o altar da Catedral,
com os pensamentos avulsos, ainda na tentativa de dominar minhas emoções
afloradas.
Chamo outro táxi quando noto que estou bem há uma hora aqui e
volto para casa, com medo de que Antony perceba minha mudança de
postura, me pressione e eu acabe lhe falando tudo.
Isso seria a coisa mais terrível do mundo.
Passei o restante da tarde enfurnada em meu ateliê, ocupando a cabeça
com trabalho. Mamãe já bem dizia que mente parada é oficina do Diabo.
Elaboro alguns esboços dos uniformes do orfanato que prometi entregar
dentro de um mês. Para as meninas, desenho um conjunto de saia rodada e
camiseta polos; para os meninos, camisetas e bermudas. Isto, para o verão.
Para o inverno, opto pelo tradicional: calças, camisas longas e casacos. Passo
uma boa parte do tempo me atentando a pequenos detalhes, encomendando
os tecidos e procurando alguns ateliês que tenham máquina para bordar nos
uniformes o brasão do orfanato. Sequer reparo no avançar das horas e só me
dou conta de que escureceu porque Antony bate à porta e entra.
Ao vê-lo, aquilo que esqueci por toda a tarde vêm à minha memória
como uma onda forte. Recordo-me nosso beijo indecente no banheiro da
mansão. Lembro-me de minha traição. Engulo em seco, tentando afastar a
culpa e o medo da minha cabeça e do meu coração. Foi apenas uma vez. Uma
única e maldita vez e jamais acontecerá de novo. Não há necessidade de
contar nada ao meu marido — isso apenas causaria mais brigas e confusão.
— São nove da noite. O que ainda está fazendo aqui? É por isso que
não quis que trabalhasse! — diz, de uma forma rígida, jogando sua maleta
sobre uma pequena poltrona no cômodo.
Levanto-me rapidamente e me aproximo dele, pegando-o pela
gravata. Concentro-me antes de abrir a boca e proferir:
— Desculpe, chéri. Perdi a noção das horas trabalhando em um
projeto solidário. Vou confeccionar novos uniformes ao orfanato Saint
Joseph, a instituição que receberá os donativos da Dames Parisiennes esse
ano.
Antony me segura pelo rosto e deixa um beijo molhado em mim. A
culpa parece vir mais vigorosamente contra meu peito. A consciência acusa
que, horas antes, estive beijando outro homem, enquanto as mãos dele
apalpavam meu corpo.
— Sua atitude é louvável, mon amour. Mas não faça com que isso te
distraia de suas obrigações comigo. Estou com fome, vá servir nosso jantar.
Com os olhos ainda fechados, reprisando o momento insano com
Dousseau, afirmo em positivo e me retiro. Preparo algo rápido e ajeito a mesa
com o vinho favorito de Antony. Em torno da mesa, ele me fala sobre novas
viagens que terá de fazer por conta de seu trabalho com Dupont.
— Outra viagem a negócios? — pergunto, dando uma garfada em
minha comida. — Há algumas semanas você foi a Monte Carlo e a
Marselha.
Antony olha em minha direção com o rosto rígido.
— Por que me questiona desta maneira? É meu trabalho. Emilien
ainda está na África e sou eu quem está comandando o novo projeto de
investimentos dele. É natural que eu viaje ao menos quatro vezes no mês.
— Desta vez poderei ir junto? — indago, após beber uma dose de
meu vinho.
— Não, querida. Como disse, preciso de você aqui para supervisionar
a galeria.
— Você tem um assistente para isto — devolvo, incomodando-me
com sua resistência de me levar junto a essas viagens. Já tem bem um ano
inteiro que não saio de Paris para lugar algum e gostaria muito de conhecer
Monte Carlo e Marselha.
Antony solta os talheres em sua mão com força desnecessária. Seus
olhos me fuzilam por causa da minha persistência de acompanhá-lo.
— Ann-Marie, vou viajar a trabalho — frisa, como se eu não
soubesse disso. — Não estou indo me divertir. E, por mais que eu tenha um
assistente, gostaria que você ficasse e supervisionasse tudo. É bom ter uma
figura importante e de poder para os funcionários não perderem o foco no
trabalho, inclusive o meu assistente. Então, por favor, você poderia ficar?
— E eu sou essa figura importante? — pergunto, cética. — Eles
jamais me respeitariam, Antony!
— Claro que sim, chérie. Você é a esposa do patrão; os funcionários
vão te respeitar. Continue fazendo o que te ordenei, me redigindo os
relatórios diários e supervisionando a equipe para mim. Além do mais, você
está construindo seu próprio negócio agora. Ainda tem algumas burocracias
para resolver até ter seu aval de funcionamento. Se for viajar comigo, vai se
atrasar nos seus projetos, inclusive o do orfanato.
Suspiro, odiando que ele tenha razão.
— Tudo bem — concordo apenas.
Fazemos o restante da refeição em silêncio. Quando meu esposo
acaba, levanta-se e vem até mim, inclinando-se sobre meu ouvido.
— Não me questione mais desta maneira, me ouviu bem? — Sua voz
sai em tom de ameaça.
Não o respondo; ele logo deixa a sala de jantar.

Dois dias depois, estou no jardim, logo após o café da manhã,


cuidando de algumas rosas, quando Antony aparece, marchando em minha
direção segurando um jornal nas mãos.
— Pode me dizer o que é isso? — brada, parando a um metro de
mim.
Ergo-me e limpo os joelhos, encarando-o sem entender do que está
falando. Meu marido levanta o periódico à altura dos meus olhos, mas
continuo sem compreender sua fúria. Parecendo entender minha confusão,
esclarece:
— Bernardo esteve no evento Dames Parisiennes! — Seu tom
continua irritadiço.
Meu corpo se enrijece, a garganta fica seca no mesmo instante. Meu
vocabulário inexiste por alguns segundos, minha cabeça neste momento está
trabalhando fervorosamente por uma resposta. Eu minto? Digo que nem
mesmo o vi? Ou conto parte da verdade, que apenas o vi de longe? Não sei o
que dizer enquanto seus olhos praticamente me comem viva.
— Sim. — É só o que respondo, tentando não tremular na voz.
— E falou com ele! — É mais uma afirmação do que uma pergunta.
— Não — nego, com cuidado. Deus, ele sabe! De alguma forma, ele
sabe.
Antony abre o jornal e me mostra. Há uma foto em uma das matérias
sobre a solenidade. A imagem me mostra ao lado de Adeline, junto de
Bernardo e sua mãe, no momento em que somos apresentados. No momento
em que Dousseau me cumprimenta com um beijo. Meu coração dispara de
uma vez; começo a tremer ligeiramente. Tenho muito medo da reação do meu
marido. Ele não vai me escutar nem compreender o contexto dessa imagem.
— Não… — repito, minha voz sai quase inaudível. — Eu não sabia
que o senhor Dousseau estava nesse evento. A senhora Adeline é uma amiga
em comum e me levou para apresentar a ele e à sua mãe. Este foi o único
momento em que estive perto deste homem, Antony! — explico rapidamente,
quase tropeçando em minhas próprias palavras e mal podendo esconder meu
nervosismo. — Se soubesse que ela iria me apresentar a Dousseau, não teria
ido, mon amour.
Antony me encara seriamente por um longo tempo. Suas pupilas estão
dilatadas, os olhos fixos em mim, transmitindo toda a raiva dentro do seu
corpo. Dá um passo à frente e me pega pelo braço, fazendo uma pressão
incômoda.
— Já te disse pra se manter longe desse cara! Qual a porra do seu
problema? — berra, completamente descontrolado.
Seus dedos se fecham ainda mais contra minha pele, ele me sacode
enquanto brada um monte de frases que, no momento, não consigo
compreender porque estou focada em tentar me soltar do seu aperto.
— Mal falei com ele — explico outra vez, sem sucesso em me
esquivar do seu aperto violento. — Já te esclareci isso, Antony! Me solte,
está me machucando — peço, não sendo capaz de segurar as lágrimas dentro
dos meus olhos. Odeio e sinto medo dessa reação do meu marido. Se reage
assim apenas porque Bernardo estava no mesmo ambiente do que eu, imagine
se souber… que o beijei!
Deus queira que isso jamais aconteça, ou não sei realmente o que será
de mim.
— Deveria ter ido embora no mesmo instante em que notou que ele
estava naquele evento estúpido! — continua gritando e me sacodindo como
se eu fosse uma boneca de pano.
— Não quis ser mal-educada com Adeline, Antony! Por favor, me
solte! — berro, conseguindo empurrá-lo.
Afasto-me três passos e o fito, minhas lágrimas rolando. Deixo o
medo explícito em meus olhos. Uma hora ele ainda vai me machucar, tenho
certeza disso. Viro-me para sair correndo, para o mais longe que conseguir,
mas sou impedida com uma pegada em meu pulso. Ao me virar, as
expressões dele estão mais amenas e calmas; os olhos, mais amáveis. Sou
levada a um abraço apertado e meu esposo sussurra em meu ouvido:
— Me desculpe. Perco a cabeça com a ideia desse homem perto de
você. Não era minha intenção te machucar. Não vai acontecer mais, mon
ange. Juro. Juro por Deus.
Os meus batimentos se acalmam conforme Antony também amansa
os nervos. Não consigo responder com palavras. Apenas aceno; meu esposo
me abraça de novo. Mesmo um pouco mais calma, o medo continua na
superfície da minha pele. Agora, mais do que nunca, penso sobre as palavras
dele:
Já parou pra pensar que… você vive em uma relação abusiva?

É uma decisão precipitada e idiota. Muito precipitada e idiota. Tudo


bem, talvez não tão precipitada, porque pensei bastante sobre o assunto
durante toda essa semana. Mas, com toda certeza, é uma decisão idiota.
Antony já deixou claro que não me quer falando ou perto de
Dousseau, mas aqui estou eu, no closet, procurando por uma roupa adequada
para me encontrar com ele. Quero dizer, nem sei se ele vai poder me ver a
essa hora — pouco depois das nove da noite —, ainda assim, estou
procurando pelo look ideal. Nada chamativo demais, mas também nada muito
discreto.
Por fim, pego o celular e envio uma mensagem a Bernardo:
“Podemos conversar hoje?”
Deixo o telefone de lado e escolho um vestido de veludo preto. Tem
uma gola arredonda que mostra um pouco mais de pele do colo, o
cumprimento na altura dos joelhos. O som de mensagem soa pelo closet, nem
pestanejo para conferir a resposta.
“Claro que sim. Aconteceu alguma coisa?”
Digito rapidamente.
“Não. Em uma hora e meia, no seu café?”
A resposta vem dois segundos mais tarde:
“O café estará fechado em uma hora e meia.”
“Eu sei. Por isso mesmo”.
Ele envia um emoticon de uma carinha safada. Reviro os olhos, sinto
minhas bochechas corarem e não seguro uma risadinha.
“Estarei te esperando. Como fica seu marido?”
“Viajando. Até já”.
Não checo a resposta depois da minha mensagem e termino de me
arrumar. Confiro minha bolsa, documentos e celular. Antes de deixar o
closet, reviro o esconderijo da gargantilha e a retiro de lá. Coloco-a na bolsa e
chamo um táxi, pedindo para me pegar na rua de trás. Assim, não preciso
passar pela portaria — não quero correr o risco de ser delatada por porteiros e
seguranças para Antony por estar saindo tarde da noite sozinha. Avanço pelo
quintal até os fundos do jardim e acesso a rua secundária por um portão
inutilizado quando recebo a mensagem do taxista, já à minha espera.
Pontualmente, chego às onze no Avenue Coffee. Bernardo já está
frente às folhas duplas de vidro. A luz da cafeteria incende sobre ele, dando-
lhe até um ar angelical. O homem está de terno preto, sem gravata, e camisa
verde-azul. As mãos no bolso denunciam uma postura mais casual,
juntamente do seu sorrisinho cínico bem no canto da boca.
Pago minha corrida ao descer do carro e o assisto se distanciar
enquanto tomo coragem para me virar e encarar esse homem — que é
impaciente e se aproxima de mim, ficando às minhas costas. Sinto minha
respiração falhar com sua aproximação.
— Esperar o marido viajar para se encontrar comigo… — murmura
contra meu ouvido. Maldito homem que precisa ter essa voz rouca que faz
minhas pernas virarem gelatina.
— Não é nada do que você está pensando — respondo, virando-me
em sua direção, por fim.
Ele sorri daquela sua maneira irritante e charmosa e me dá espaço
para entrarmos na cafeteria. Passo à sua frente e, recordando-me brevemente
do caminho que fiz da última vez que estive aqui, sigo direto para seu
escritório.
Bernardo chega um segundo depois, abrindo o último botão do paletó
e se pondo atrás da mesa em sua sala. Ergue uma sobrancelha, encarando-me
com seu sorriso estúpido. Sento-me à sua frente e cruzo as mãos sobre meu
colo.
— O que precisamos conversar?
Inspiro fundo e respondo:
— O beijo, sábado passado. Não vai nunca mais, nunca mais mesmo,
acontecer — digo, confiante e incisiva. — Foi um erro estúpido da minha
parte.
Ele se recosta à sua cadeira de couro e roça os dedos na barba por
fazer.
— Eu não tinha esperanças nem de que acontecesse uma primeira
vez, quanto mais que isso fosse se repetir — profere, colocando uma
expressão séria que nunca vi nele nesse tempo todo.
— Quero que você entenda…
— Já entendi, na verdade. Você é casada, a gente se beijou, você está
arrependida… Já entendi, Ann-Marie. Não precisava vir aqui dizer na minha
cara que fui um erro pra você. — Fico surpresa com o tom de voz dele.
Sinto-me deslocada e sem jeito diante sua postura dura. Abaixo os
olhos e torço a barra da manga do meu vestido, permanecendo em silêncio.
Reviro minha bolsa algum tempo depois e retiro a caixa de veludo da joia.
Coloco sobre a mesa e arrasto em sua direção. Ergo meu olhar ao seu. A linha
do maxilar dele está tensa, seus olhos desviam dos meus e se fixam no objeto
à sua frente.
Passei os últimos dias pensando muito em procurá-lo para devolver
essa joia. Preciso cortar esse homem da minha vida de uma vez por todas e só
vou conseguir isso me livrando de qualquer coisa que nos ligue, começando
por essa gargantilha de brilhantes. Depois daqui, pretendo nunca mais vê-lo
e, se por um acaso a gente venha a se encontrar nesses eventos, eu o evitarei a
todo custo. Antony está coberto de razão. Deveria ter deixado a festividade
assim que me dei conta de que estávamos no mesmo ambiente.
Inclinando-se sobre os braços, olha-me de uma maneira indecifrável.
— Já te disse que não a quero de volta.
— Por favor, entenda… Estou apenas evitando mais confusão com
meu marido. Ele fica mais raivoso do que o normal quando o assunto é você.
— Percebi… — murmura, com um tom vago.
— O que quer dizer com isso?
O homem suspira e volta a se recostar na cadeira.
— Na segunda-feira depois do evento, ele veio aqui e me confrontou
de novo. Parecia um lunático me acusando de te seguir enquanto sacudia um
jornal na frente do meu rosto.
Pestanejo diversas vezes, não sabendo exatamente como reagir a essa
informação. Antony está passando dos limites ao perturbá-lo com seus
exageros e ciúmes.
— Espera… — diz, me fazendo olhá-lo. — Ele brigou com você por
causa dessa foto no jornal? — pergunta, seu timbre de voz emitindo
preocupação genuína.
Não o respondo por algum tempo, apenas mordendo o lábio e
pensando no que dizer, porque definitivamente não vou falar sobre a reação
agressiva do meu marido. É desnecessário, Bernardo não tem por que saber
sobre isso. Mal o percebo se levantar e vir em minha direção, segurando-me
pelos braços e chamando meu nome. Seus olhos me vasculham com atenção,
enquanto as mãos percorrem minha pele em um ato inquieto de temor.
— Ann-Marie, me responda! Ele agrediu você?! — Sua voz sai
aguda.
— Não! — respondo, alarmada. Dousseau relaxa um pouco e se
recosta à borda da mesa, analisando-me concentradamente. — Digo… ele
reagiu mal, claro. Gritou e fez escândalo, mas não me agrediu. — Oculto o
fato de Antony ter me agarrado e me apertado com mais força do que o
comum. — Compreenda, só estou evitando tirar meu marido do sério e
provocar atrito entre nós. Se ele fica sabendo dessa joia ou do nosso beijo…
Nem sei do que é capaz de fazer.
O rosto dele fica ainda mais rígido e cheio de rugas. Parece fazer um
esforço enorme para controlar alguma explosão de raiva. Cruzando os braços
na frente do tórax, seus olhos se desviam dos meus, ele se esforçando a fazer
a respiração ficar regular outra vez.
— Para quem está tentando evitar uma confusão e manter-se longe de
mim, vir aqui tarde da noite e ficar sozinha comigo, enquanto seu marido não
está na cidade, não me parece a melhor das ideias — diz, levemente
debochado. Quando seus olhos se voltam em minha direção, há cinismo
neles.
Minha boca se entreabre. Que tipo de coisa esse homem está
insinuando?
— Vim te devolver esta joia e te cortar de vez da minha vida — falo,
incisiva. Pois é isto mesmo que vim fazer aqui, não é?
Ele dá um sorrisinho de lado e se inclina um pouco mais na minha
direção, apoiando os cotovelos nas pernas longas.
— Ora, a quem você quer enganar? Se sua intenção era se livrar da
gargantilha não precisava necessariamente me devolver. Poderia ter vendido,
jogado fora, presenteado. Ou, se preferisse, por educação, devolvê-la a mim,
poderia ter me enviado por correios para o endereço da cafeteria, ou ter
deixado com uma das minhas funcionárias. Mas você preferiu me encontrar
às escondidas, fora de hora. Tenho a impressão que isso foi apenas um
pretexto para me ver de novo, porque sabe que nosso beijo no sábado mexeu
com você tanto quanto mexeu comigo. Você não me engana com esse seu
pretexto fajuto.
Encaro-o, sentindo o coração ribombar dentro do peito com tanta
força que tenho a impressão de que ele pode ouvir as batidas
descompassadas. A verdade se esfregando em minha cara é praticamente
incontestável. Esse homem está certo. Eu tinha infinitas possibilidades de me
livrar da gargantilha estúpida sem necessidade de fazermos contato. De forma
inconsciente fui arrastada até sua presença.
Que efeito é esse que Bernardo tem sobre mim?
Engulo em seco e desvio o olhar, sem saber o que dizer. Se é que
existe a algo a ser dito. Minha atração por ele é tão óbvia. Mas como posso
estar atraída por alguém do mundo, quando sou casada? Ele é
descompromissado, mulherengo, descrente… Este homem não é um
companheiro ideal para mim. E por Deus do céu! Por quais motivos estou
pensando nele como companheiro?
Balanço a cabeça em negativo e me forço a segurar as lágrimas. Estou
tão confusa.
— Não importa o que pense — falo, por fim, controlando a emoção
em minha voz. — Apenas quero que fique com a joia de volta. Agradeço pelo
seu zelo de a ter arrematado para mim, mas não posso aceitá-la e não posso
mais te ver. É para o bem do meu casamento e para agradar os olhos do
Senhor.
Sua expressão muda ligeiramente. O sorrisinho petulante vai embora
e dá lugar a uma única linha fina de seus lábios. Está sério outra vez e, de
alguma forma, isso me preocupa. Estou acostumada a vê-lo sempre
irreverente, cínico e debochado. Bernardo faz um gesto em positivo com um
mover de cabeça. Desencosta-se da mesa e a contorna, abrindo uma gaveta e
a revirando um segundo. Retira alguma coisa de lá de dentro e arrasta em
minha direção. É uma chave.
— É uma cópia do apartamento de Alfredo. Se um dia precisar…
como precisou semanas atrás, é para ser usada. Já vou deixar seu nome
autorizado na portaria hoje mesmo.
Não sei como reagir a essa atitude num primeiro momento. Eu
deveria negar, agradecê-lo, mas minha atitude um segundo depois é pegar a
chave e fechá-la com toda força em minha palma.
— Obrigada — sussurro, colocando a cópia dentro da bolsa.
O toque dele queima em mim quando seus dedos encostam ao meu
queixo e me fazem olhá-lo.
— Estou falando sério. Se uma hora, por qualquer motivo, precisar de
um lugar pra ficar, não pense duas vezes em usar essa chave, me entendeu? E
não hesite em entrar em contato comigo. Realmente me preocupo com você.
Nossos olhares se chocam por tempo indeterminado. Uma atmosfera
intensa nos rodeia enquanto nos encaramos, um sentimento de querer jogá-lo
nessa mesa e montar em seu colo cresce em meu âmago, deixando-me
assustada. Levanto-me em um pulo quando me dou conta deste desejo
impuro e me afasto com um passo.
— Agradeço sua preocupação — digo, tentando não encontrar seus
olhos. — Preciso ir agora.
Preparo-me mentalmente para dizer não à sua oferta de me levar para
casa, esperando-o ter essa atitude, mas ele apenas faz um único gesto em
positivo com a cabeça. É uma luta fazer minhas pernas se moverem para fora
de seu escritório, até parece que criaram raízes aqui. Por fim, consigo deixar
o interior da cafeteria. O ar gélido de Paris me recebe para refrescar meu
corpo da chama que Bernardo acendeu em mim.
Da chama que ele sempre acende.
BERNARDO
Não sei se foi uma boa ideia vir aqui.
Hoje mais cedo, quando recebi sua mensagem, me parecia ser.
Agora, contudo, enquanto a espero desembarcar, começo a duvidar
disso. Emilien provavelmente estará em sua companhia e não sei a que pé
anda a relação dele com Marie — se é que existe uma. De qualquer maneira,
estava com saudades da minha amiga e sentindo falta do nosso sexo, para ser
bem franco, por isso tive a ideia genial de vir esperá-la, mesmo com a grande
probabilidade de Dupont estar ao seu lado. Que seja falta de educação, mas
vou levá-la comigo.
Como imaginei, os dois surgem juntos algum tempo depois. Andam
lado a lado, cada um carregando sua mala de rodinha, enquanto conversam e
riem de alguma coisa. À medida que se aproximam, não me movo, espero
notarem minha presença, o que não demora a acontecer. Marie abre um
sorriso enorme e vem rapidamente em minha direção, jogando-se em mim
para um abraço apertado.
— Não esperava te ver aqui! — exprime, ainda me apertando.
— Quando você me enviou uma mensagem me falando da sua volta à
França, achei que poderia te fazer uma surpresa.
Ela me dá uma risada gostosa e aproxima mais sua boca da minha
orelha, sussurrando:
— Confesse, estava com saudade de mim e do nosso sexo. Está na
seca há quanto tempo?
Meus olhos vão até Emilien, parado a alguns metros de nós, agora
falando ao telefone. Ele me dá um aceno e um sorriso e se vira de costas para
continuar com sua ligação.
— Você me conhece muito bem, Marie — digo, escorregando meu
polegar em uma faixa de pele exposta da sua cintura de forma discreta. —
Estou com saudades de trepar com você, sim, mas não pense que fiz voto de
castidade. Minha última transa foi há dois dias. Com uma cliente da cafeteria
do 9ème arrondissement. Entretanto, nenhuma das minhas transas nesses
meses em que você esteve afastada chegam aos seus pés, ma chérie.
Marie desfaz nosso abraço meio demorado soltando outra de suas
gargalhadas exageradas e se põe ao meu lado. Emilien acaba de encerrar sua
ligação e se vira para nós.
— Dousseau! — exclama e me cumprimenta com um aperto de mão e
um abraço rápido. — Marie não me disse que você estaria a esperando.
— Ela não sabia. Decidi vir por conta. Se importa se ela for embora
comigo, e não com você? — pergunto, como quem não quer nada.
Um brilho diferente corta os olhos azuis de Emilien. Mantém o
sorriso simpático e a expressão amena e amável de sempre, mas seus olhos
nublam quase imperceptivelmente. Está na cara que está de quatro por Marie.
Fico curioso em saber se rolou alguma coisa entre os dois durante essa
viagem à África. Faço uma nota metal de perguntar isto a minha amiga
quando estivermos em um local mais apropriado para tal.
— Não, claro que não. Ela é toda sua. Já a tive por mais de dois meses
— diz, e a última parte de sua frase me parece ter um duplo sentindo.
Olho Marie. Suas bochechas negras parecem um pouco mais coradas.
É, eles transaram.
Despedimos de Emil e seguimos até meu carro. Durante a viagem até
meu apartamento, Marie me fala sobre seus dias na África como jornalista e
todo o trabalho que realizou lá. A reportagem feita agora está na mão dos
editores e deverá ficar pronta em breve. Ela me adianta, porém, que a versão
escrita da matéria sairá no seu jornal de atuação em alguns dias e também
para uma revista jornalística que pertence ao mesmo grupo editorial. Julien
não toca em assuntos pessoais e quase não menciona Dupont.
— Ei, por que está me levando para seu apartamento? — pergunta,
quando nota a rota que estamos traçando.
— Ué, eu disse que estava com saudades de você — falo, sem olhá-la,
pois mantenho a atenção na estrada escura à minha frente.
— Você nem sabe se quero transar hoje com você — alega, mas
percebo um traço de deboche no seu tom.
Paro e penso um segundo. Sou mesmo um idiota. Deveria ter
perguntado primeiro se ela ia querer passar a noite comigo, e não apenas
decidir por nós dois. Mesmo que, pelo seu tom, não esteja realmente chateada
com essa minha atitude impensada, reconsidero levá-la para meu
apartamento:
— Quer que eu te deixe em casa, então?
Marie revira os olhos e toca na minha coxa.
— Quero ir para seu apartamento. Preciso trepar em um pau diferente
— diz, soltando uma risada exagerada. Não me aguento e a acompanho.
— Então, você e Emilien realmente transaram?
— Todos os dias nos últimos dois meses — confirma, mordendo o
lábio inferior. Seus olhos amendoados brilham de uma forma diferente.
Porra, tem alguém apaixonada. Certeza.
Não dizemos mais nada um ao outro até chegarmos. Ajudo-a com a
mala no elevador e preparo algo para comermos enquanto ela está no banho.
Sirvo-nos de vinho e espero o coq au vin ficar pronto. Ela aparece na minha
cozinha trajando uma camisa masculina. Uma camisa masculina que não é
minha. Ergo uma sobrancelha inquisitiva junto de um sorriso de deboche.
— Devo ter pegado sem querer. Nós estávamos dividindo o mesmo
quarto tinha mais ou menos um mês — explica, dando de ombros e se
sentando à bancada. Toma uma das taças com vinho e bebe um gole, sem me
olhar.
Rio da sua desculpa esfarrapada e também bebo da minha bebida.
Trinta minutos depois, o jantar está pronto e comemos conversando
amenidades. Ao final, Marie quer limpar a cozinha e me manda tomar banho
para aproveitarmos a noite. Não me oponho às suas ordens. Quando saio do
banho, completamente nu, vou até a cozinha e a pego na pia. A camisa
masculina cai bem em seu corpo curvilíneo e tem um cumprimento ideal.
Consigo ver a curva da sua bunda gostosa. Aproximo-me e deixo um tapa
estalado. Ela grita de susto e dá um pulinho. Faz menção de se virar, mas a
imprenso contra a pia, esfregando nela meu começo de ereção. Afasto seus
cabelos e desço meus lábios até sua nuca, roçando-os de leve em sua pele
quente e exposta. A mulher geme em meus braços e empina a bunda mais em
minha direção. Meus dedos cravam em sua cintura, eu a giro até a bancada,
mantendo-nos na mesma posição, apenas trocando de lugar. Apoio a mão
direita em sua nuca e forço seu rosto para baixo, contra a bancada, e subo a
esquerda por dentro da sua camisa até alcançar seus seios.
Junto seus cabelos em um rabo de cavalo e a puxo de leve para trás,
enquanto os dedos da outra mão ainda brincam com seus mamilos. Marie
segue gemendo baixinho sob meus estímulos. Suas pernas se contorcem à
medida que a toco, como implorando para que acabe logo com a tortura.
Mon ange, ainda nem comecei.
Sem virá-la para mim, tiro a peça cobrindo seu corpo, deixando-a
completamente nua. A visão dela de costas, com a bunda empinada em minha
direção, gemendo de prazer e implorando para que eu a foda, me deixa cada
vez mais duro. Preciso de sexo. De sexo bom. Foi verdade quando disse que
nenhuma das mulheres com quem transei nesse meio-tempo de sua ausência
foi boa o suficiente para me satisfazer.
Esfrego sua boceta úmida e deslizo um dedo para dentro. Puxo mais
seus cabelos no mesmo instante em que afundo mais em sua abertura. Em
paralelo, meu polegar circunda seu clitóris inchado e sensível, arrancando da
minha amante suspiros mais altos. Cansado de preliminares, me encaixo atrás
dela depois de me revestir com camisinha que trouxe comigo e a penetro sem
aviso, com um movimento brusco e rude. Deslizo-me sem dificuldade e nós
dois gememos em uníssono.
O ato carnal na cozinha dura meia hora. Satisfaço-me dentro dela
enquanto estamos no chão, Marie por cima, cavalgando em mim, depois de
ela própria ter gozado umas duas vezes. Trago-a para minha boca no
momento em que vou me libertar e gemo contra seus lábios, dolorido, o gozo
me rasgando e me aliviando ao mesmo tempo. Ela deita sobre meu peito e
regulamos nossas respirações em um único ritmo. Um tempo depois de nos
recuperarmos, se levanta e juntos seguimos até o banheiro.
Estou esfregando suas costas quando decido perguntar:
— Por que me disse que precisava trepar em um pau diferente? Se
enjoou do de Emilien?
Marie dá uma risada gostosa e deita a cabeça de lado, dando-me
acesso ao seu ombro, que esfrego delicadamente.
— Não, pelo contrário — revela.
Sua confissão me deixa confuso.
— Como assim?
Ela suspira e fica em silêncio por algum tempo. Respeito sua decisão
de não me dizer nada e sigo lavando suas costas.
— Nos últimos dois meses, eu e Emilien transamos todos os dias.
Literalmente, todos os dias.
Dou uma risadinha.
— Você já me disse isso. Que disposição, hein?
Marie também ri e me dá um chute na canela.
— É, essa disposição também me assustou. Quero dizer… Me
conheço, Bernardo. Nem com você eu transava todo dia, nem com homem
algum, nem mesmo com meus namorados. Mas com Emil… — Emil? Se está
o chamando pelo apelido é porque está bastante íntima e apegada. — Depois
da nossa primeira vez juntos, dentro da limusine dele a caminho da casa que
ficamos hospedados, foi como se… eu tivesse sido infectada pelo vírus do
tesão sem fim. — Não me aguento e dou uma risada exagerada. A mulher se
vira para mim com o semblante duro, a água escorrendo dos seus cabelos
cacheados para seu rosto rígido e bonito. — É sério, Ber! Eu… queria todo
dia. Todo. Santo. Dia. Jamais me enjoaria do Emilien.
Abano a cabeça em positivo, entendendo onde quer chegar com isso
de precisar de um pau diferente.
— Achou que se transasse com um cara diferente esse fogo todo por
Dupont fosse passar — afirmo. Ela diz que sim com um mover de cabeça. —
E passou? — Marie revira os olhos.
— Não. Não me leve a mal. Você é ótimo. Ótimo, mesmo. Mas ainda
estou a fim de procurar o Emilien e trepar com ele de novo. Eu não… Droga,
não sei o que é isso.
Sorrio um pouquinho e a toco no rosto, afagando o polegar em sua
bochecha molhada.
— Isso se chama amor, Marie. Você está apaixonada por Emilien.
— Ah, não seja ridículo! — exclama, dando-me um tapa no braço.
Em seguida, fica emudecida, deixando a água escorrer em seu corpo bonito.
Após o banho, ela veste a camisa de Dupont e se deita na minha
cama. Ergo uma sobrancelha inquisitiva enquanto me seco.
— Vai mesmo dormir comigo, na minha cama, depois de treparmos,
com a camisa de outro homem?
Ela revira os olhos e puxa o lençol para cobrir mais o corpo.
— Como se você realmente se importasse com isso.
Subo a cueca pelas pernas e rio. De fato, não me importo. Ponho um
filme qualquer na televisão e me deito ao seu lado. Antes de amantes, somos
amigos, acima de tudo. Importo-me com Marie, de verdade. Conversamos
por bastante tempo, sem mais nenhum ato carnal entre nós. Ela termina de me
contar sobre a viagem à África, uma vez que mais de dois meses no
continente africano, passando por dois ou três países diferentes, lhe rendeu
muitas boas histórias para contar e não necessariamente sobre seu caso com
Emilien. Inclusive evita falar dele e quando fala há uma entonação diferente
em sua voz e um brilho mais intenso em seus olhos. Eles se gostam, não
entendo por que então não investir em alguma coisa.
Melhor para mim, afinal. Não estou mesmo a fim de perder uma
transa boa.
Já estou em casa, depois de mais um dia de rotina intensa quando meu
celular apita. Demoro uns dez minutos até conferir a mensagem porque estou
no fogão, terminando meu jantar. Ponho a comida no prato, me sirvo de
vinho e me sento à bancada para comer. Dou uma garfada antes de pegar no
celular. A mensagem é de Ann-Marie e me deixa em alerta no mesmo
instante. Abro-a rapidamente, sentindo meu coração descompassado dentro
do peito. Não a vejo já tem algumas semanas. Nosso último contato foi
quando esteve na cafeteria para me devolver a gargantilha de brilhantes.
“Estou no apartamento do seu sócio”, diz a mensagem. É o suficiente
para me fazer largar minha refeição e correr até meu quarto para me vestir
adequadamente e pegar as chaves do carro. Enquanto desço até a garagem,
respondo:
“Estou a caminho”.
Quinze minutos depois, já estou lá. Abro a porta com a minha cópia
da chave e a encontro sentada no sofá, as pernas cruzadas, trajando uma saia-
lápis, camisa de botões e salto-alto. Não me nota chegar, perdida com um
retrato em mãos que, a princípio, não consigo distinguir. Encosto a porta com
cuidado para não a assustar e me aproximo, olhando por cima dos seus
ombros. Ela segura uma foto onde meu amigo está com a filha Lauren nos
braços, abraçado à falecida esposa.
Contorno o sofá e me ponho à sua frente. Ela não ergue o olhar para
mim, mas nota minha chegada.
— Ele tinha uma família linda — comenta, a voz embargada. Porra,
ela está chorando?
Agacho-me à sua altura para tentar fazer contato visual, mas a mulher
se esforça para não me deixar ver seu estado emocional. O que aquele porra
do Antony fez agora? Toco sua perna suavemente, mas a mulher segue se
negando a encontrar meus olhos.
— Como sabe que ele tinha? — pergunto, sussurrando. Não me
recordo de ter falado a ela sobre a história de Alfredo.
— Internet — diz, mordendo o lábio inferior. — Tem uma urna aqui,
já viu? — Por fim, ergue seus olhos claros para mim. Como desconfiei, estão
úmidos. — Tem cinzas lá. Fiquei curiosa e joguei o nome dele no Google,
depois de pegar com o porteiro — explica com um sorrisinho acanhado. —
Fiz isso enquanto te esperava.
Não digo nada em resposta por alguns segundos.
— O que está fazendo aqui? — indago.
Ela desvia o olhar, mirando uma última vez o quadro em mãos e, por
fim, devolvendo-o ao seu lugar, em uma mesinha ao lado.
— Você me disse para vir pra cá, se precisasse.
— Você não entendeu. Quero saber o que o imbecil do seu marido fez
agora que você precisou usar a sua cópia.
Olha-me de novo, com lágrimas nos olhos, mordendo o lábio
inferior.
— Não vem ao caso. Nem era pra você ter vindo. Só… quis te avisar.
Inspiro fundo e me ponho ao seu lado. Não vou insistir para que ela
me conte. Aparentemente, não foi agressão física, seu rosto não tem marca
nenhuma, nem os braços. Mas não sei o restante do corpo. Deixa-me insano a
ideia de aquele babaca ter a machucado, física ou psicologicamente.
— Posso te ajudar em alguma coisa? — quero saber. — Roupa,
comida, algum telefonema? — Da última vez, ela precisou destes três.
— Não. Antony viajou hoje à noite. Foi para Lyon de novo, com
Emilien, que mal voltou da África. Não se preocupe, ele não vai saber que
passei a noite fora.
Franzo o cenho e engulo em seco, minha preocupação redobrando. Se
Antony não está na cidade, se não oferece nenhum tipo de ameaça a ela,
então por que veio se refugiar aqui? Verbalizo essa pergunta e recebo como
resposta:
— Eu apenas… preciso ficar longe daquela casa. Preciso, depois de
tudo que Antony me disse.
— O que foi que ele te disse? — insisto e seguro em suas mãos,
querendo passar um pouco de confiança.
De repente, ela se joga nos meus braços e esconde o rosto na curva do
meu pescoço. As lágrimas a tomam por completo, ela soluça em meus
ombros por longos minutos. Acaricio seu cabelo e a deixo desabar, tirar essa
dor que está carregando por ter um marido de merda. A minha vontade é de ir
atrás de Leclerc e arrebentar o desgraçado. Para ela estar nesse estado, boa
coisa não aconteceu. Ele deve ter dito um monte de merdas, merdas como eu
já ouvi da boca dele, para diminui-la e abalar a sua autoestima.
— Ann-Marie… — murmuro, quando a noto mais calma.
A mulher se afasta e seca as lágrimas remanescentes, agora mais
controlada.
— Ele me disse que nunca me amou. Que… se casou comigo apenas
por conta dos negócios entre nossos pais. Disse que jamais poderia amar
alguém como eu.
Pestanejo, recebendo as informações.
— E o que há de errado com você? Pra mim, você é perfeita.
Ela me dá um pequeno sorriso e me segura pelas mãos.
— Não sei… Antony vive pondo defeitos em mim e em meu corpo.
— Porque é um babaca que não reconhece sua beleza.
Subitamente, ela me abraça, seu perfume delicado invade minhas
narinas, levando-me à beira da loucura. Essa mulher irremediavelmente mexe
comigo. Eu a quero tanto para mim, tanto que chegar a doer o meu peito.
Estou apaixonado por ela, sei disso há tempos, e é uma lástima ser casada
com um idiota que não a valoriza. Se eu, ao menos, pudesse conquistá-la…
A ideia é absurda e nem me vejo abrindo a boca para fazer uma
proposta indecente:
— Deixe o Antony e fique comigo. — Ela se distancia na mesma
hora, encarando-me com seus assustados olhos claros. Está abrindo a boca
para protestar, mas a impeço, tomando a palavra primeiro: — Ele é um idiota,
você merece algo muito melhor.
Ann-Marie levanta uma sobrancelha, com uma expressão que é uma
mistura de deboche e tristeza:
— E você seria esse “algo melhor”?
— Escute — falo, com seriedade —, posso ter muitos defeitos, posso
não ser o tipo ideal de homem para você, por conta do meu histórico com
mulheres, mas pode ter certeza: não sou um cara violento, controlador ou
possessivo. Enquanto Antony tenta, de todas as formas, abalar sua
autoestima, eu te colocaria num pedestal e todos os dias exaltaria sua beleza.
— Minha mão a toca no rosto, acariciando-a com ternura. — Porque você é
linda e apenas um idiota não reconheceria isto.
— Não posso — sussurra, fechando os olhos e parecendo se agradar
com meus dedos em seu rosto quente. — Por mais que esteja tentada a me
jogar em seus braços e aceitar essa loucura, por mais que você desperte em
mim tantos… sentimentos diferentes e conflitantes, não posso.
— E por que não? — pergunto, murmurando e me aproximando mais
da sua boca pouco a pouco. Quero tomá-la para mim mais uma vez e quantas
vezes mais forem possíveis. — Se seu medo é de Antony não aceitar o
término, nós damos um jeito. Não precisa temer. Jamais o deixaria te
machucar.
A mulher se levanta com um movimento brusco, deixando-me
atônito. Anda de um lado a outro, sem dizer nada.
— A questão não é essa. “O que Deus uniu, o homem não separa” —
diz, ainda andando para lá e para cá. — Deus me juntou a Antony com um
propósito, não posso simplesmente me divorciar.
Balanço a cabeça em negativo, não acreditando que está se usando da
sua religião para permanecer casada com um homem tóxico.
— Sua religião é uma estupidez — solto de uma vez, sem pensar que
posso feri-la com este meu comentário infeliz.
Ann-Marie para de andar e me olha, o rosto mostra o desagrado pela
minha frase.
— Minha religião é o que eu sou.
Dou um pulo e me ponho em pé e à sua frente, segurando-a pelos
braços.
— Sua religião usa de um livro velho pra te manipular e legitimar
violência doméstica! — rebato, entre os dentes. — Eles te dizem “Deus não
se agrada com divórcio”, “Deus o pôs em sua vida para alguma missão
divina”, “O que Deus uniu, o homem não separa” e legitima que um cara
como Antony faça o que bem entender. Sua religião é condizente com relação
abusiva! Quantas mulheres não são surradas diariamente, traída, humilhadas
e enganadas, mas permanecem casadas por conta de suas religiões? Com
medo de serem atiradas ao inferno ou que as pessoas as julguem? Não se
permita ser mais uma dessas vítimas, mon amour. Você não deixará de ser
menos católica nem fiel a Deus se der um pé na bunda em um homem babaca
como seu marido!
Ela me encara por intensos longos segundos. Rezo a Deus para que
ela me ouça e pondere o que estou dizendo. Nada tenho contra sua religião,
nem suas crenças, mas ela não pode se manter em uma relação que, se não a
matar, vai afundá-la numa depressão, por estar seguindo uma lei religiosa
idiota, manipuladora, machista e arcaica.
— Acho melhor eu ir pra casa — diz, muito tempo depois,
cabisbaixa.
— Levo você — ofereço-me.
— Não é uma boa ideia. A portaria tem câmeras, os funcionários
podem comentar com Antony que eu cheguei tarde da noite com outro
homem.
— Como você mesma disse, está tarde. Não vou deixar que volte pra
casa sozinha. Levo você. Ou se preferir, fique aqui. Não tem problema
nenhum.
Ann-Marie continua se negando a me olhar, brincando com a barra da
sua camisa e mordendo o interior da bochecha em um claro sinal de
nervosismo.
— Na verdade, não quero voltar pra lá. Vim pra cá porque queria me
afastar um pouco daquela casa e tudo o que representa — confessa, com um
sussurro. — Mas também não quero ficar aqui. Me sinto como uma invasora.
Seu amigo sabe que me deu uma cópia? Ele não vai gostar nada disso se
souber.
Seguro-a pelos braços de novo e a faço olhar para mim.
— Ele não vai se importar. Não se preocupe. Mas se mesmo assim se
sente deslocada… vem comigo. Passe a noite no meu apartamento. — A
oferta parece quase indecente aos olhos dela. Novamente me olha de forma
assustada e surpresa. — Pode confiar em mim, se abrir mais comigo. Sou
louco por você, desde o momento em que nos olhamos pela primeira vez,
mas jamais me aproveitaria de você. Somos amigos, acima de tudo, tudo
bem?
Ela me dá um sorriso acanhado — meio de alívio, meio de
agradecimento — e balança a cabeça em positivo. Oh! Agora sou eu quem
não está acreditando. Ela realmente aceitou vir ao meu apartamento e passar a
noite comigo lá? Sorrio com seu consentimento e a seguro pelas mãos. Seu
toque faz revirar meu estômago e acelerar meu coração.
Aos olhos do cristianismo, cometi muitos pecados, com toda certeza.
E desejar essa mulher deve ser o maior deles.
ANN-MARIE
O apartamento dele é bonito. Tem uma atmosfera clean e agradável.
Olho ao redor e observo tudo com atenção. Sobre a bancada da cozinha, vejo
um prato com comida e uma taça de vinho.
— Estava jantando quando vi sua mensagem. — Surge logo atrás,
fechando a porta.
— Eu não deveria ter te incomodado — falo, sem me virar em sua
direção, cabisbaixa.
Suas mãos quentes tocam-me no ombro e me viram para ele. Vejo-me
dentro dos seus olhos claros ternos.
— Você jamais me incomodaria, Ann-Marie — diz. Sorrio pequenino
e me mantenho calada, perguntando a mim mesma o que deu em mim de ter
vindo para cá.
Só posso ter perdido o juízo. Não há outra explicação. É a presença
desse homem que causa tanto atrito entre mim e Antony, mas, mesmo assim,
continuo sendo atraída para ele, continuo o procurando para ser meu refúgio
nas horas em que mais preciso. Como hoje, horas atrás, quando meu marido,
durante uma discussão, me disse que nunca me amou, que nosso casamento
foi por puro interesse nos negócios entre Fleury e Leclerc. Aquilo me atingiu
muito forte, pois sempre tive algum tipo de veneração por Antony. Eu o
amei, de verdade. Não logo no início, mas com o tempo, construí esse
sentimento. Foi doloroso ouvir de sua boca que nunca signifiquei algo em sua
vida.
Bernardo me encaminha até o sofá em sua sala e diz para que me
acomode enquanto faz algo para comermos. Tento dizer que não é necessário,
mas a essas alturas já está na cozinha, andando para lá e para cá. Observo-o
se organizar no espaço, retirando as panelas anteriores de cima do fogão e
pegando outras novas.
— Não seria mais fácil pedir comida? — questiono-o, levantando-me
do sofá e me pondo em uma das baquetas.
— Gosto de cozinhar — explica, dispondo alguns ingredientes. Então,
se vira para mim, com um brilho intenso nos olhos e um sorriso maravilhoso.
— Principalmente quando é para você.
Não digo nada, apenas sorrio, sentindo meu coração dar aquela
pulsada que ele sempre causa. Não sei se ele é atencioso assim de forma
deliberada ou se é realmente algo de sua personalidade. De qualquer maneira,
não estou acostumada com tanto zelo, tantos… elogios. Não me recordo de
Antony ter me feito o jantar, ou levado café na cama, ou comprado flores…
Bernardo já fez mais do que ele nesse quesito. E isso porque nos conhecemos
há pouco mais de três meses e nem somos um casal.
— Mas essa é a primeira vez que você cozinha pra mim — pontuo,
por fim, erguendo uma sobrancelha.
Ele dá uma risada contagiante e mais uma vez tento ignorar minha
consciência me acusando de que é muito errado estar aqui. Se Antony
souber… com toda certeza começaria a Terceira Guerra Mundial. Balanço a
cabeça e afasto meus pensamentos, voltando a dar atenção à resposta de
Dousseau, que agora me olha com seu costumeiro sorriso galante.
— Podemos mudar isso, se você quiser. — Sinto o desejo em cada
letra pronunciada. Vejo a paixão avassaladora em seus olhos. Meu estômago
se revira dentro de mim, num misto de alerta, como se me dissesse “afaste-se
deste homem!”, e de admiração, com cada célula do meu corpo quase me
influenciando a me jogar nos braços dele.
Abaixo os olhos e decido me manter em silêncio. Não posso dar corda
a esse assunto ou fazê-lo criar expectativas entre nós. Por mais que meu
casamento esteja passando por um momento ruim, não significa que irei me
consolar nele.
Ele termina a comida e nos serve em dois pratos, juntamente com um
bom vinho. De início, comemos em silêncio, até que me aborda:
— Tento entender, juro que tento, mas não consigo encontrar uma
explicação razoável para ainda estar casada com Antony.
Suspiro e bebo um pouco do meu vinho. Bernardo nunca entenderia
meus motivos para continuar com meu marido. Acima de tudo, eu o amo. Por
mais defeitos que tenha, por mais que seja explosivo e violento às vezes,
continuo o amando. Penso em dizer isso, mas desisto imediatamente. Não por
não querer tocar no assunto, mas porque pronunciar que ainda amo meu
marido vai me machucar. Vai me machucar porque me recordo de que
Antony não me ama igual.
— Não importa — falo, suavemente. — Tenho meus motivos —
suspiro e balanço a taça de vinho, olhando o líquido escuro como forma de
fugir do olhar de Dousseau.
— Você é feliz? — indaga, de repente.
Seu questionamento me acerta com a força de um tsunami. Ergo meus
olhos para os seus, precisando sua pergunta. Nunca parei para pensar nisso.
Eu… sou feliz? A verdade é que não sei responder. Tive momentos bons ao
lado de Antony, mas pensando em todas as coisas de que fui privada,
afastada… Como fui manipulada a favor de seus desejos, as explosões de
raiva, suas tentativas de abalar minha autoestima… Todos esses fatores põem
em dúvida a minha felicidade.
— Não sei… — respondo, sinceramente. — Não sei. — Minha voz se
reduz a um mero sussurro.
— Trate de descobrir. Só assim verá sua vida de casada de outra
maneira. Verá como não faz sentindo se manter numa relação com um
homem como Antony — aconselha. — Se quer uma opinião pessoal, acho
que você não é feliz.
Franzo o cenho em sua direção.
— Por que acha isso?
— Seus olhos — diz apenas.
Abaixo a cabeça. Bernardo está certo. Os olhos são a porta da alma.
— Eu não sou — admito em voz alta, algo que não tinha planejado
fazer. Tapo a boca um segundo depois, assustada com minha confissão. Fico
um segundo em silêncio e tomo coragem de olhá-lo. — Não sou feliz —
reafirmo. Não posso mesmo voltar atrás no que foi dito. — Percebi isso
agora, analisando os últimos anos. — Dou uma risadinha e, quando percebo,
já estou revelando: — Antony nem me toca há quatro meses.
Vejo seu supercílio subir diante minhas palavras.
— Vocês não transam há quatro meses? — pergunta, incrédulo.
Afirmo e deixo um suspiro alto escapar. — Qual o problema do Antony? Ah,
já sei! Ele tem uma amante.
Encaro-o seriamente, reprovando o tom meio alegre. Ele já está
criando expectativas com essa ideia. Já até imagino o discurso dentro da sua
cabeça.
— Não. Ele fez uma promessa a Deus e… — Não consigo terminar
de me pronunciar, pois ele me interrompe rindo alto.
— E você acreditou?
Avalio sua indagação. Já tinha ponderado algo desse tipo quando
notei que Antony me evitava. Ele me explicou a situação, eu acreditei porque
nunca me deu motivos para desconfianças.
Decido não o responder e me recluo a pensar em seu questionamento.
Antony pode mesmo ter uma amante? Bernardo respeita meu silêncio e não
toca mais no assunto. E eu pensando que insistiria nessa ideia para tentar me
convencer. Terminamos o jantar em silêncio. Quero ao menos lavar a louça,
mas ele garante que não precisa. Faz-me sentar no sofá e liga a TV,
esticando-me o controle.
— Escolha alguma coisa. Vou tomar um banho — diz, antes de se
retirar.
Sinto-me estranhamente acolhida e confortável em sua casa. Não
quero ver nada na televisão, por isso a desligo e me permito um momento a
mais para observar o local. Não me atrevo a zanzar em seu apartamento,
analiso tudo sem sair do meu lugar.
Se passam bem uns quinze minutos desde que me deixou quando a
campainha toca e me sobressalta. Encaro fixamente a porta de entrada, meu
coração batendo descompassado. Dousseau surge um segundo mais tarde.
Para se juntar aos meus batimentos cardíacos acelerados, fico sem ar. Ele está
apenas com uma toalha enrolada na cintura, o torso traz respingos da água do
banho e o cabelo castanho está levemente mais escuro por estar molhado.
Ele me olha com seu sorriso galante enquanto estou paralisada em pé,
do outro lado do sofá. Nem sei mais se estou em choque pela visita repentina
dele ou pela… visão que estou tendo. Nem faço cerimônia de olhá-lo.
Bernardo tem um corpo atlético e esguio com músculos definidos, sem
exageros. A toalha está perigosamente baixa, permitindo-me ter o vislumbre
do V perfeito das virilhas.
— Apreciando a vista? — zomba, desviando o olhar de mim e se
aproximando da porta.
Pestanejo seguidas vezes e não consigo deixar de encarar suas costas.
O homem tem ombros fortes e largos, o que me faz morder o lábio inferior
sem nem perceber. Dando por mim de que vai atender a porta, tento me
esconder inutilmente atrás do sofá.
— Oi — ele cumprimenta a pessoa do outro lado, com um tom de
surpresa. Espio por sobre o encosto e vejo que mantém seu corpo bloqueando
a entrada e sem abrir muito a porta.
— Oi. — Reconheço a voz feminina. É de Marie.
Um gosto amargo se apossa da minha boca. Enoja-me só de pensar o
que ela veio fazer aqui a essa hora da noite. Não que eu não saiba que os dois
têm algum tipo de relação sexual. Só me dá um sentimento estranho
presenciar isso tão… abertamente.
— Desculpe aparecer sem avisar, não que você se importe. Esqueci
minhas chaves, meu celular descarregou. Fiquei até mais tarde na redação.
Estou morta de cansada, precisando de uma boa taça de vinho e…
— Marie… — Bernardo a interrompe, com a voz meio tensa. —
Eu… estou com alguém. Agora.
— Oh… — Ouço-a exclamar. — Me perdoe, não queria atrapalhar
seu encontro. Já estou indo.
Dois segundos mais tarde, fecha a porta e volta para o centro da sala.
Ergo-me, saindo de trás do meu “esconderijo”. Não consigo não esconder
minha expressão rígida. Nada tenho a ver com sua vida, mas não vou negar
esse sentimento ruim em mim em presenciar Marie vindo procurá-lo para…
Balanço a cabeça de leve. Nem gosto de pensar.
— Ei, está tudo bem? — pergunta-me. Só agora noto que está perto
de mim. Seu corpo cheira a sabonete e colônia. Pisco muitas vezes para me
concentrar e encontrar as palavras do meu vocabulário.
— Sim, tudo bem — consigo dizer, quase balbuciando. Mal posso
sustentar o olhar dele. Só o que meus olhos querem é ficar admirando esse
tórax forte e essa barriga com gominhos.
Sua mão — que está meio úmida e fria — alcança meu rosto e só
então consigo olhá-lo nos olhos sem me sentir tentada a outra coisa.
— Está chateada porque Marie me procurou?
Sim, é o que quero realmente dizer. Em vez disso, digo:
— Por que ficaria chateada?
— Você parece chateada — rebate, sua mão ainda me acariciando. —
Sabe de uma coisa? — murmura, de um jeito muito sedutor, inclinando-se
pouco a pouco na direção de minha boca. — Eu abriria mão de todas as
mulheres se pudesse ter você. Fosse por um mísero segundo ou pra vida
toda.
Sua declaração me deixa tão completamente desestabilizada que nem
percebo quando nossas bocas se tocam. Eu lhe dou mais espaço, Bernardo me
toma com avidez, em um beijo profundo e rude. Suas mãos fortes e ásperas
descem pela lateral do meu corpo, entrando por dentro da minha camisa. O
contraste da minha pele quente e da sua mão ainda meio úmida causa arrepios
em minha coluna, libertando dos meus lábios para os dele um gemido
estrangulado. Respiro com dificuldade. Mordisco a parte inferior de sua boca,
incapaz de reprimir o desejo que começa a queimar em meu ponto mais
sensível.
Com um único movimento, ele me põe em seu colo, minhas pernas o
abraçam pela cintura. A altura e a posição me fazem sentir sua dureza
despontando através da toalha branca e pressionando minha intimidade. Esse
rápido contato quase me deixa insana.
Sem separar nossas bocas desesperadas, ele caminha até seu quarto. A
porta se fecha e sou prensada contra ela. Estou ciente de que estou cometendo
um pecado terrível. Mas que posso fazer se Bernardo é meu pecado
irresistível e se meu corpo clama por ele mais do que tudo nesta vida? Não há
por que me esconder mais disso, nem me renegar, ou fugir, ou evitar. Está
evidente de que esse homem mexe com todos os meus nervos e sentidos,
desperta em mim meus anseios e desejos mais profundos e adormecidos. Não
sei explicar por que tem esse poder sobre mim e nem quero entender sua
influência sobre meu corpo e mente. Apenas preciso dele.
Inclino meu quadril em direção ao seu, um claro pedido de mais.
Bernardo desvia seus lábios de mim e os escorrega para meu pescoço, entre
beijos molhados e mordidas excitantes. Mal reconheço a Ann-Marie que está
gemendo sem pudor com esse simples contato. Acho que nunca em minha
vida gemi tanto como nos últimos cinco minutos. Ele esfrega sua barba rala
em minha pele, aspirando, inspirando, beijando.
— Ann-Marie… — sussurra, rouco e sexy. Sua voz só estimula mais
o meu ponto lá embaixo. — Eu… estou louco. E excitado pra caralho. Quero
tomar você e cada centímetro do seu corpo aqui e agora mesmo. Mas preciso
saber se está completamente de acordo com isso.
Engulo em seco e tento contato visual. Contudo, o rosto dele está
escondido na curva do meu pescoço. Por um segundo penso no que estou
fazendo e chego à conclusão: me deitar com ele é a coisa que mais quero no
momento.
— Eu quero — falo, com a voz entrecortada. — Quero e quero muito.
Por favor — imploro, com um sussurro estrangulado. — Mate minha vontade
de você.
Leva um milésimo de segundo para minha boca ser invadida de novo,
dessa vez com mais urgência e intensidade de antes. Nem consigo respirar
direito! Meus dedos embolam em seus volumosos cabelos e me dá uma
indescritível sensação de prazer quando geme com minha pegada. Apertando
seus fios, o forço a inclinar a cabeça para trás e beijo seus olhos, descendo
pelas bochechas, passando pelo queixo e chegando ao pomo-de-adão.
Sua pele tem gosto de colônia; procuro os respingos de água para
secar gota por gota.
Por fim, ele me solta, deixando-me em pé encostada à porta,
encurralada pelo seu corpo seminu. Nossos olhares se encontram pelo que
parece a eternidade enquanto estamos com as respirações afobadas. Minha
mão voa até sua toalha; já estou pronta para arrancá-la, mas ele me impede,
segurando em meus punhos.
— Ainda não.
Pestanejo; no segundo seguinte ele não está mais aqui. Perplexa,
continuo parada em meu lugar, enquanto o assisto entrar no closet e voltar
dez segundos mais tarde, com a gargantilha de brilhantes nas mãos. Não
tenho tempo de perguntar o que pretende com isso, porque já a deixou em
algum canto e está abrindo minha camisa com um puxão que faz voar o
último botão pelo seu piso laminado.
Ele se inclina em meu colo e me beija, escorregando as mãos pela
minha cintura e subindo devagar até alcançar o fecho do meu sutiã. Um
segundo mais tarde, estou nua na parte de cima, meus seios acesos
implorando por mais atenção. Aliás, cada centímetro do meu corpo implora
por mais atenção dele. Bernardo se vira e pega a gargantilha, girando-me em
seguida. Dou de cara com um espelho enorme do outro lado do quarto, a
cama no meio do ambiente. Olho-o através dos nossos reflexos, enquanto
posiciona a gargantilha em mim e tento entender sua atitude.
— Posição estratégica, não acha? — indaga, sussurrando
sensualmente e dando uma mordidinha na minha orelha. Levo um segundo
para entender sua sugestão. Engulo em seco ao me dar conta de que o espelho
reflete a cama no meio do quarto e que as posições destes dois móveis foram
dispostas deliberadamente.
Maldito mulherengo.
Nem o pensamento de que nessa cama já se passou uma boa quantia
de mulheres, e que eu provavelmente serei apenas mais uma, me faz parar.
Pelo contrário. Quero cada vez mais. Quero ver meu reflexo quando esse
homem estiver por cima e dentro de mim. Meu centro aperta e lateja. Quanto
tempo mais vai durar essa tortura?
As mãos dele me abraçam por trás, segurando meus seios.
— Se olhe — instrui, estimulando meus mamilos. — Veja como você
é perfeita à sua maneira.
Meus olhos nublam. Como ele pode ver perfeição em mim? Meu
corpo tem marcas dos meus trinta e quatro anos. Estou longe de ser perfeita.
Tenho vontade de chorar. Minha baixa autoestima se força em minha
garganta. Mas então me agarro aos inúmeros elogios que me fez ao longo
destes meses em que nos conhecemos. E só aqui, só agora, entre seus braços,
enquanto ele venera meu corpo, sinto-me realmente bem comigo mesma.
Sinto-me amada, desejada… Sinto-me bonita.
— Pretendo arrancar o resto da sua roupa — fala, beijando meu
ombro. Suas mãos agora estão entre minhas coxas, os dedos longos roçando
cada vez mais perto de onde o quero desesperadamente. — Mas esperei tanto
por esse momento que farei isso devagar. Quero te experimentar de todas as
formas possíveis. Vestida, sem roupa, na cama, em pé. No banheiro. Temos a
noite inteira. Não tenho pressa, e você?
Com muita dificuldade, respondo:
— A única pressa que tenho é ter você dentro de mim.
Vejo seu reflexo no espelho abrir um sorriso malicioso enquanto puxa
uma gaveta no criado-mudo e retira um pacote de camisinha. Em um
movimento, me inclina sobre a cama, deixando minhas costas arqueadas e,
ainda de pé, posiciona-se atrás de mim. Ergo somente o pescoço para divisá-
lo arrancar a toalha, revelar sua ereção e se revestir com a proteção. Perco o
ar por um segundo e mal tenho tempo de me recuperar quando me penetra
devagar, mas profundo. Ele dita um ritmo calmo e intenso, mantendo-se atrás
de mim e nunca cessando nosso contato. A gargantilha em meu pescoço
balança à medida que intensifica suas investidas, os gemidos incontroláveis
que deixam meus lábios parecem não pertencer a mim. E, de fato, não
pertencem. Eu não me pertenço mais. Pertenço a Bernardo.
Ele faz amor comigo nessa posição depravada e excitante, que me faz
ter um orgasmo logo nos primeiros minutos. Seu polegar me massageia, os
dedos puxam meus cabelos, os lábios beijam minhas costas. Então me gira, se
põe na altura da minha intimidade e abaixa a saia, vagarosamente, depois a
calcinha, passando-a pelo meu salto sem tirá-lo. Beija meu ponto quente,
inchado e sensível, alternando com chupadas enquanto massageia o clitóris.
Nesse momento, tenho meu segundo orgasmo.
Bernardo me deita na cama e abre mais minhas pernas para trabalhar
em minha intimidade com mais afinco e vigor. Contorço-me e gemo de
prazer como em nenhum outro momento em toda minha vida. Sou penetrada
de novo, numa posição mais clássica, mas, ainda assim, consigo sentir o
prazer percorrer minhas veias. Porque é isso que este homem causa em mim.
Fazemos amor sem pressa, como me prometeu, de todas as maneiras
que nossa imaginação permite, em todos os cantos desse apartamento em que
nossos corpos couberam, quase a noite toda. Até perco as contas de quantas
vezes tive um orgasmo, de quantas vezes gemi o nome dele pedindo mais e
de quantas vezes o ouvi dizer que eu deveria ser dele, só dele.
Ao final, só me recordo de estar nua, suada, exausta e satisfeita com a
gargantilha ainda no pescoço e de adormecer ao lado de dele. Envolvida pelo
seu abraço protetor e quente.
BERNARDO
Maldição.
Eu sabia. Lá no fundo, bem no fundo, eu tinha ideia de que essa
mulher ia me escapar pelos dedos. Mas ela não pode fazer isso comigo. Não
pode simplesmente se levantar e ir embora, como se nada tivesse acontecido,
como se eu não significasse nada para ela, como se ela não significasse
alguma coisa para mim.
Saio da cama, ainda nu, irado por ela ter ido embora depois da nossa
noite juntos. Porcaria. E que noite. Tenho uma boa carga de experiências
sexuais e vai soar clichê, eu sei, mas nunca em trinta e nove anos uma mulher
me domou e mexeu comigo como Ann-Marie Leclerc. Nunca tive um sexo
tão maravilhoso como o de ontem à noite. Poderia atribuir ao fato da minha
necessidade humana, se estivesse necessitado de sexo. Mas não estava.
Talvez tenha sido além das minhas expectativas por conta do meu desejo em
tê-la que estava beirando a obsessão. Não importa qual seja a explicação. A
única coisa que importa é que tive o melhor sexo em uma vida e ela
simplesmente foi embora, deixando-me essa pilha de nervos que sou agora.
Tomo banho com raiva. Visto-me com raiva. Pego as chaves do carro
com raiva e sigo com raiva para minha cafeteria. Quando passo por todo
mundo sem cumprimentar ninguém, eles já sabem que meu humor está
péssimo. Refugio-me no escritório e passo longos minutos tentando me
concentrar na minha agenda e organizar a porra do meu dia para realizar
todas as minhas tarefas.
Alguém bate à porta e entra um segundo depois. É minha subgerente
trazendo mais trabalho para mim. Ela nota meu estado de espírito raivoso e se
aproxima com cuidado, como se eu fosse um cão prestes a atacá-la.
— Onde está Juliette? — indago, quando a moça deixa os papéis
sobre a mesa, explicando o que significam e o que preciso fazer. — Isso é
trabalho dela.
— Está de folga, monsieur Dousseau. Ela tem algumas horas
acumuladas na casa, por isso ficará três dias fora. Parece-me que foi para
Lyon.
Franzo o cenho, mas logo aceno em positivo. Gautier normalmente
me comunica dessas suas ausências, não sei por que não o fez desta vez.
— Tudo bem — digo. No segundo seguinte, quando minha
funcionária já está de retirada, inquiro, interrompendo-a de seguir seu
caminho: — Para onde você disse que Juliette foi?
— Lyon — responde-me.
Dispenso-a com um movimento de mão e roço os dedos nos lábios,
pensativo. Lyon. É o mesmo destino que Emilien e Antony viajaram para
tratar de negócios. Minha cabeça começa a criar paranoias infundadas, então
me obrigo a me concentrar no trabalho e esquecer essas baboseiras.
De qualquer maneira, não consigo me concentrar cem por cento
nesses malditos papéis. Minha mente insiste em me transportar para a noite
passada, nos momentos em que estava escorregando para dentro de dela, de
quando a pus de joelhos sobre a cama, de frente para o espelho, e me arremeti
com tanta força, como se minha vida dependesse dela. Estou ficando duro só
de me lembrar dos nossos olhos se encontrando pelo reflexo enquanto
fazíamos amor. Porra.
Levanto-me e vou até o salão. Preciso de uma xícara de café. Faço um
expresso e retorno para minha mesa. Mal me sento quando o telefone ao lado
toca. É Jacques, meu gerente-geral, pedindo-me para encontrá-lo no Avenue
da 9ème arrondissement. Sua voz é alarmada e me deixa em alerta. Saio ao
seu encontro no mesmo instante.
Ele está em seu escritório na cafeteria, andando de um lado a outro,
com a mão na cabeça.
— Jacques, o que houve? — pergunto, encostando a porta. O homem
cai na cadeira, com uma expressão derrotada. — É algum problema
financeiro? — suponho. Quando um contador faz essa cara de arrasado, só
pode ser qualquer coisa relacionada a dinheiro.
— Mais ou menos.
Sento-me em uma das poltronas frente a ele.
— Me diga logo o que aconteceu — peço.
— Algumas de nossas lojas… — empeça, meio tenso. —
Descobrimos um esquema de caixa-dois e lavagem de dinheiro.
Travo em meu lugar, digerindo a informação.
— No total, são sete lojas envolvidas no processo, duas filiais aqui em
Paris, duas em Orleans e uma Monte Carlo, e duas franquias em Chartres.
Passo a mão pelo rosto, atordoado com a notícia. Estão fraudando a
porra da minha empresa e me roubando. Abaixo a cabeça e não digo nada,
ainda atordoado com o que acabei de receber.
— Estamos investigando os envolvidos, não temos ideia de quem está
por trás disso. Só descobrimos porque a gerente de Orleans encontrou
algumas notas fiscais manufaturadas. Por conta própria, investiguei todo
nosso balanço financeiro, a lista de fornecedores e preços que nos dispõem.
Bernardo, o desvio de dinheiro até o momento é gritante.
— Há quanto tempo sabe disso?
— Uma semana.
— E está me contando somente agora?
— Queria ter certeza de minhas suspeitas antes. E fazer a investigação
que fiz, revendo todos os contratos, levantando balanços e controles de
caixa… Levou tempo.
Suspiro pesadamente e me recosto na cadeira. Jacques me explica
mais um pouco do esquema e do pouco que descobriram. As investigações
vão continuar para rastrearem os responsáveis por isso; peço para me manter
informado. No carro, deixo o celular no viva-voz e disco para Alfredo. Ele
atende com a voz ofegante enquanto corto as ruas de Paris.
— Péssima hora para me ligar.
Embora eu esteja com o humor péssimo por causa de Ann-Marie e
por conta desse arrombo nos nossos cofres, me permito um segundo de
descontração e respondo:
— Trepando com Lívia? Você não trabalha, não, seu cretino?
Meu amigo dá uma risada alta e suspira.
— Bernardo, são seis e meia da manhã aqui no Brasil, sabia? Estou
fazendo minha corrida matinal.
— É bom saber que você quer manter a forma desse seu corpo
gostoso — zombo; rimos juntos por um segundo. — Escute, deixando a
brincadeira de lado, preciso que você venha à França. Urgente.
A linha fica muda por um instante intenso.
— O que está acontecendo?
Explico a ele todo o esquema que nosso contador-gerente-geral
descobriu e reforço de que preciso dele nesse instante aqui, para resolvermos
isso juntos. Afinal, a empresa também lhe pertence.
— Preciso mesmo ir? — pergunta. — Cara, essa semana é meu
aniversário de casamento. Estava planejando uma coisa bem romântica com
Lívia.
Merda. Odeio ter de estragar esse momento. Se fosse qualquer outra
situação, relevaria e nem o incomodaria com isso. Eu mesmo ia lá e resolvia
o assunto. Mas estamos falando de uma fraude em nossa empresa. Não posso
e nem quero resolver essa porra sozinho. Vejo-me em um impasse e
sinceramente não sei o que fazer. Por um lado, tenho vontade de mandá-lo ter
mais comprometimento com nossa empresa que, com muito suor e trabalho,
erguemos. Por outro, quero dizer para aproveitar sua esposa.
— Você não pode fazer esse programa romântico depois de
resolvermos nosso problema? Olha, não é incomum as pessoas comemorarem
aniversários posteriormente às suas datas.
Com um suspiro cansado, ele diz:
— Bem, caso eu esteja vivo depois que der essa notícia à minha
mulher, chego aí em vinte e quatro horas.
Dou uma risadinha com seu exagero — Lívia é bem compreensiva,
vai relevar o marido estar fora do país na data de aniversário de casamento
deles — e o agradeço pelo esforço. Nós nos despedimos, depois de mais um
minuto acertando sobre sua vinda para cá, e desligo logo quando estaciono na
minha vaga.
Estou prestes a adentrar minha cafeteria quando a vejo do outro lado
da rua, distraída falando ao celular. Ela entra na galeria do marido sem ter me
notado e decido segui-la, movido por um impulso quase primitivo. A raiva
contida minutos atrás vem à superfície quando me recordo da nossa noite e de
que ela foi embora logo ao amanhecer.
Alcanço-a no segundo lance de escadas. Ouço-a ao telefone, falando
alguma coisa sobre tecidos. Pego-a pelo braço e a giro em minha direção.
Seus olhos se arregalam na minha frente. Em outro momento, abriria meu
sorrisinho galante e conquistador, mas agora estou tão irado por sua atitude
que permaneço de semblante rígido.
— Te ligo depois — diz, encerrando sua chamada. — Salut, monsieur
Dousseau.
Meu sangue ferve diante sua indiferença. Seguro-a pelo braço e a
arrasto escada acima. Cego de raiva, testo a primeira a primeira porta que
encontro. Destrancada e vazia. Trago-a para dentro, esbarrando em um balde
com produtos de limpeza logo à frente, e passo a chave, trancando-nos.
— Que porra é essa de monsieur Dousseau? — brado, praticamente
fora de mim. Não, não. Ela não vai me tratar formalmente depois de ter se
deitado comigo!
— Se acalme, Bernardo! — pede, também erguendo a voz e se
impondo. — Preciso explicar que você, por acaso, está na galeria do meu
marido, onde os funcionários, clientes e amigos circulam livremente? —
pergunta, cerrando os dentes.
Jogo as mãos ao ar, pouco me fodendo com sua preocupação idiota.
Obrigo-me a ficar calmo e a respirar fundo.
— Por que foi embora hoje de manhã? — Quero saber. Mantenho
minha pose e expressões rígidas.
A mulher me encara por alguns segundos, mordendo o lábio inferior,
como se estivesse pensando em uma resposta. Cada segundo de silêncio dela
é como ser torturado no inferno. Já até imagino que tipo de discurso fará.
Adianto-me, diante seu silêncio, e digo:
— Olha, se vai me dizer que nós dois, ontem, foi um erro — faço um
gesto de mão entre mim e ela — e que está arrependida, nem gaste suas
palavras.
— Não estou arrependida — responde, o que me pega de surpresa.
Arregalo os olhos, perguntando-me se entendi certo.
— Não? — indago, incrédulo.
Ann-Marie suspira e se encosta à borda da mesa logo atrás.
— Não.
Um pequeno sorriso nasce em mim. Dou um passo à frente, apenas
querendo envolver essa Ontem … — fala, mordendo o lábio inferior. — Foi a
melhor noite da minha vida. Não estou arrependida. E é isso o que me
assusta. mulher em meu abraço. Entretanto, ela está arisca e fica tensa no
lugar, enquanto espalma para eu não me aproximar mais. Não a compreendo.
Acabou de dizer que nossa noite ontem foi a melhor da sua vida, mas agora
está me evitando?
— Não posso, Bernardo. Continuo sendo uma mulher casada. E
católica. Não estou arrependida por ontem, mas isso não significa que vá se
repetir.
Maldição. Por que insiste em se esconder atrás da sua religião? Isso
não está certo, de forma nenhuma!
— Você não entende? Por que continua em um casamento sem amor,
com um homem abusivo, que tem uma amante, se baseando apenas na sua
crença? Isso não está certo.
Ann-Marie suspira de novo e desvia o olhar de mim.
— Você nunca vai compreender meus motivos. — Realmente, penso.
— Você não vê, mas eu sim. Isso tudo que está acontecendo… É uma
provação.
Fecho os olhos e respiro fundo. A capacidade dessa mulher em
encontrar uma explicação divina para tudo é surpreendente
— Deus está testando minha fé. — Faço um esforço enorme para não
bufar e revirar os olhos. Esforço inútil, devo ressaltar. Ela me encara
seriamente. — Minha crença é uma piada pra você, não é? Nunca daríamos
certo — diz, contrariada, e tenta passar por mim, mas a impeço, segurando
em seu punho. Prenso-a contra a borda da mesa e a sento na superfície de
madeira em seguida, encaixando-me entre suas pernas e deixando nossos
lábios rentes. Os olhos dela estão encantadoramente arregalados.
— Sua crença não é uma piada pra mim. — Talvez seja, mas nunca
diria isso em voz alta. — Nasci e cresci em uma família religiosa, chérie.
Respeito isso em você. Só não sou capaz de compreender que Deus é esse em
quem você crê que quer te manter casada com um bosta como o Antony.
Ela respira com dificuldade. Minhas mãos estão em sua cintura,
apertando-a de leve.
— Talvez Ele tenha uma missão pra mim e para Antony. Como você
mesmo disse, ele é um homem agressivo. Talvez Deus queira que eu o mude
e…
— Desde quando você é assistente social divina?
Ela me encara com reprovação nos olhos. Ann-Marie odeia que eu
faça piadas infames como essa. Desculpo-me e a acaricio no rosto.
— Então deixe-me ver se entendi. Deus diz que traição é pecado, mas
deixa que Antony te traia porque faz tudo parte de Seu plano divino para
você redimi-lo e serem felizes para sempre. É isso?
Novamente, silêncio. Apenas seus olhos sérios me fitando.
— Como tem tanta certeza de que Antony me trai?
Não está óbvio o bastante?
— Porque ele não transa com você há quatro meses? — rebato, no
mesmo tom de interrogativa.
Ann-Marie morde o lábio inferior e desvia o olhar de mim. Seu
silêncio me dá a oportunidade de me aproximar da curvatura de seu pescoço e
depositar um beijo ali. Quente, úmido, macio. Sinto-a se arrepiar sob meu
toque e sorrio, gostando do poder que exerço sobre ela. Vou subindo minha
boca em sua pele, bem devagar, aproveitando para experimentá-la outra vez.
Delicadamente, ela me afasta.
— O pecado dele não justifica o meu. — Porra! Ela corta o clima
completamente. Não é possível que seja cega e fanática nesse nível.
Suspiro, contrariado, e me viro de costas, passando a mão nos
cabelos. Sempre soube que essa mulher era inalcançável e impossível para
mim.
— Além do mais — continua, sua voz agora um mero sussurro
balbuciante e rouco. — Se eu o deixar por você, o que será de nós dentro de
algum tempo, quando quiser outra mulher para esquentar sua cama? O que
será de mim? Não posso deixar o certo pelo duvidoso.
Giro o corpo de forma tão brusca que nem vejo meu único passo em
sua direção. Quando noto, já estou encaixado entre suas pernas novamente,
tão perto que ela precisa encurvar as costas para trás. Seus olhos assustados
me dizem que minha expressão não é das melhores.
— O que porra você acha que eu sou, Ann-Marie? — digo, rude. —
Um moleque? Sou um homem com quase quarenta anos e honro minha
palavra! Quando disse que abriria mão de todas as mulheres para ter você
para mim, não era mero galanteio para conseguir te levar para minha cama.
Estava falando sério. Muito sério!
Minha mandíbula dói de tanto que a aperto, meus batimentos
cardíacos estão acelerados, fecho a mão com tanta força ao lado do tronco
que mesmo de unhas curtas sinto a pele arder.
Ela pestaneja na minha frente e resfolega. Frente à sua falta de
resposta, seguro-a pela nuca e a beijo, possessivo, desvairado, louco, rude.
Beijo-a e a aperto, descarregando a fúria misturada à luxúria que só Ann-
Marie desperta em mim. Deito-a na mesa e me inclino sobre seu corpo,
erguendo sua saia quando minhas mãos sobem por suas pernas quentes.
— Bernardo — geme, tentando me afastar. Continuo a beijando forte,
prendendo-a a mim, sem lhe dar brechas para escapar. — Aqui não. É
escritório de Antony.
— Melhor ainda — rujo, mordendo seu lábio inferior e rasgando sua
calcinha. Ela geme ainda mais quando meus dedos a tocam na boceta. Não
digo mais nada, apenas a estimulo e a satisfaço. Puxo uma camisinha de
dentro da minha carteira e fazemos amor de novo em cima da mesa. Não sou
tão delicado como na noite passada, sou mais rude e possessivo porque, pela
primeira vez em muito tempo, estou enciumado, desejando uma mulher que
não pode ser minha.
Levanto-a e a faço ficar de costas para mim.
— Os mesmos saltos de ontem — observo, juntando um punhado de
seus cabelos em minhas mãos. Penetro-a devagar e dito um ritmo constante
entre rápido e médio, alternando em estocadas intensas, profundas e duras. —
Aposto que sempre que olha para esses saltos você se lembra de ontem,
quando te possuí com eles, na minha cama, de quatro, nos olhando no
espelho.
— Bernardo… — guincha, ofegante e fora de si.
— Se lembra depois, de como pus sua perna direita no meu ombro e
me enterrei em você enquanto meu polegar estava bem… aqui — provoco,
apoiando o dedo em seu botão do prazer e o circundando duramente.
— Deus, estou gozando! — anuncia, mordendo a própria mão para
abafar o grito de prazer.
Não demoro muito para chegar no mesmo estado e me liberto
enquanto esmago sua cintura e a marco.
A marca dos meus dedos em sua pele é temporária.
Igual a essa mulher em minha vida.
Merda.
ANN-MARIE
Eu fiz de novo.
De que adiantou me confessar hoje pela manhã, se agora à tarde tornei
a cair em pecado? Outra vez não tenho a sensação de arrependimento. Que
efeito é esse de Bernardo sobre meu corpo, minha mente e até sobre minhas
crenças? Não consigo me arrepender, não quando ele me venera de uma
maneira que meu próprio marido nunca fez.
Recebo um abraço forte antes de se afastar e sair de dentro de mim.
Ele se desfaz da camisinha e a amarra na ponta, jogando no lixo ao lado. Nota
mental: retirar o lixo antes de qualquer outra pessoa da limpeza.
Continuo na mesma posição, sentada na mesa, com os joelhos
separados, recuperando a respiração e do gozo estupendo que esse homem
me fez sentir. Ele se retira até o banheiro do escritório e volta um segundo
depois com papel toalha. Com delicadeza, ele limpa o vão das minhas pernas
e depois me dá um beijo leve.
— Você rasgou minha calcinha — digo, sentindo o rubor em minhas
bochechas. Como voltarei para casa sem calcinha? Mon Dieu!
Ele abre um sorrisinho galante, pega a peça rasgada no chão e enfia
no bolso.
— Devo dizer que fiquei surpreso por você não estar usando calcinhas
de vovó?
Eu o empurro, abafando uma risada mais escandalosa. Suspiro e o
olho nos olhos, admirando-o. Bernardo é mesmo um homem bom, diferente
do que imaginei que era, meses atrás, quando nos conhecemos. Ainda o
considero abusado, mal-educado e galante. Mas é muito bem-humorado
também, o que lhe dá um charme a mais.
— Preciso ir— falo, com um sussurro. Nem sei o que é isso dentro de
mim se remexendo por esse homem.
— E quanto a nós? — Quer saber. Dá um passo à frente e coloca suas
mãos em torno da minha cintura. — E quanto à minha proposta? Deixe
aquele imbecil que você chama de marido e me dê uma chance.
Mordo o lábio inferior, encarando seus olhos claros. Sinceramente
não sei o que fazer neste momento. Sinto-me dividida e confusa. Por um
lado, tem minha crença, minha religião, que respeito e sigo fielmente. Tem
meu marido, a quem eu… Penso um segundo. Eu o amo? O turbilhão de
sentimentos em meu coração agora me deixa tão zonza. Tento não pensar
muito no assunto. Por outro lado, tem Bernardo Dousseau, que me cativou
durante os últimos meses. Não sei ainda distinguir o que sinto por ele, mas
posso dizer que é algo especial.
— Preciso pensar — respondo, por fim. Sua expressão me diz que
não está satisfeito com minha resposta. Desvia o olhar de mim por um
segundo e diz apenas:
— Tudo bem — concorda, afastando-se e ajeitando o terno no corpo.
Seu tom, porém, dá a entender o contrário. — Quando tiver uma decisão, me
procure — diz, indo até a porta. Está prestes a sair, mas então se vira para
mim e completa: — Já estava me esquecendo. Meu sócio chega amanhã em
Paris. O que significa…
— Se eu precisar, não posso usar a cópia da chave que você me deu.
— Isso — confirma, com um aceno de cabeça. — Mas o meu
apartamento sempre estará de portas abertas pra você — garante, voltando até
mim. Puxa um molho de chaves do bolso e retira uma dentre as que tem,
entregando-me em seguida. — Use se precisar.
Agradeço-o com um sorriso e a guardo no bolso. Ele abre a porta com
cuidado, observa atentamente o corredor antes de se retirar. Fecha a porta
quando sai, e então que minha ficha realmente cai.
Eu fiz de novo.

Limpo o escritório de Antony, escondendo todas as evidências de que


transei com outro homem aqui. Há um bale de limpeza perto da porta,
indicando que alguma funcionária da limpeza estava por aqui. Isso explica
por que o escritório estava destrancado. Depois disso, resolvo os assuntos que
vim resolver antes de ser abordada por Dousseau. Antony me deixou
incumbida de pegar a assinatura de alguns contratos que serão renovados.
Troco algumas palavras com seu assistente e só então passo nas lojas para
cumprir com o que meu marido me pediu antes de viajar.
Já estou de saída quando noto uma sala da galeria, no andar térreo e
de frente para a avenida, vazia. Recordo-me vagamente de ter sido esvaziada
há alguns dias. Volto lá para cima e peço as chaves para o assistente.
Enquanto procura pela cópia específica, pergunto-lhe se já apareceu algum
interessado em alocar o espaço. Ele me diz que sim, mas que qualquer novo
contrato só será fechado quando meu esposo retornar.
Não vou mentir dizendo que não tenho uma ideia se passando pela
minha cabeça. A localização do espaço é bem estratégica — de frente para
uma avenida movimentada. As vitrines são espaçosas e, com uma boa
adaptação, podem acolher alguns manequins.
Eu sei que garanti ao meu marido que meus negócios se resumiriam
apenas à esfera de nossa casa, com trabalhos pequenos. Mas agora, olhando
para o espaço de sessenta metros quadrados, começo a fomentar ideias para
expor meus modelos.
Se eu falar com Antony e dizer que posso abrir uma loja aqui em
nossa galeria, talvez aceite melhor. Afinal, podemos trabalhar juntos.
Meus olhos se erguem para a vitrine. O assistente, que me
acompanhou, está tagarelando qualquer coisa, mas só consigo pensar em
nele, exatamente do outro lado da rua. Seria interessante trabalhar aqui e
todos os dias poder vê-lo.
Arregalo os olhos ao perceber que tipos de pensamentos estão
tomando conta da minha mente.
Tratando de tirar Dousseau da cabeça, me viro para o assistente e digo
para não aceitar mais nenhuma oferta de contrato de locação para a loja 02.
— Estou interessada nela — explico somente.
Em casa, vou direto para meu ateliê. Já tenho uma boa coleção
desenhada para fazer meu primeiro lançamento. Seleciono alguns de meus
melhores esboços para trabalhar nas peças no decorrer da semana. Já avisei
algumas de minhas amigas, como Giselle, sobre a Style Leclerc. Todas elas
estão ansiosas para a estreia da minha primeira coleção. Planejei,
primeiramente, fazer algo pequeno e aqui em casa. Seria algo bem fechado,
seleto e exclusivo. Mas depois de estar na galeria e de sentir vontade de ter
uma loja, estou mudando de ideia. O local é bem amplo e, enquanto separo
alguns tecidos, já imagino onde ficará a passarela, as mesas de petiscos, as
posições dos fotógrafos e imprensa em geral.
Durante horas, em meu ateliê, fico idealizando como será meu espaço.
O que simplesmente pode não acontecer, caso meu marido me diga não.
Mas ora, não sou eu também dona da galeria? Não apenas por ser
esposa dele, mas porque meu pai me transferiu legalmente sua parte. Logo,
tenho direito. Antony querendo ou não, vou adaptar aquele espaço para expor
meus trabalhos como estilista.
Pensando nisto, chego a uma conclusão que, nestes anos todos, nunca
me passou pela cabeça. Meu marido controla minha vida em todos os
aspectos. Social, profissional, financeiro. Então, as palavras de Dousseau se
repetem em minha mente:
“Já parou pra pensar… que você vive em uma relação abusiva?”
Deixo minha máquina de costura e vou ao notebook, em uma pequena
mesa do ateliê que está toda bagunçada com tecidos, recortes, amostras e
croquis. Afasto tudo e acesso uma página de busca, jogando algumas
palavras-chaves. Leio uma porção de matérias e artigos. Fecho todas as
páginas e volto às minhas costuras pensando que Bernardo tem razão: Antony
demonstra todos os aspectos e comportamentos de um homem abusivo.
Janto sozinha enquanto tento contato com meu esposo. Ele não atende
nenhuma das sete vezes que ligo em seu telefone em um intervalo de uma
hora.
Quão errada estou em telefoná-lo enquanto penso nas duas vezes em
que fiz sexo com outro homem? Certamente é errado ao extremo. Minhas
orações a Deus são pedindo perdão pelo meu pecado, por não me sentir
realmente culpada ou arrependida e implorando para que Antony jamais saiba
sobre este meu erro imperdoável.
Mas de nada adiantam todas as minhas súplicas e penitências se agora
aqui estou, segurando a chave que recebi, pensando em sua proposta para lá
de atrevida em termos alguma coisa. Não consigo parar de pensar nele, no
nosso sexo, em como ele galanteia e me elogia, coisas que Antony deixa a
desejar.
Pela vigésima vez, afasto este homem da minha cabeça e tento ligar
para meu marido outra vez.
— Alô — alguém atende quando já estou desistindo da oitava
tentativa de contato.
A voz do outro lado, porém, não é a de Antony. É, inclusive, de uma
mulher. Tenho a impressão de que já conheço essa voz!
— Quem fala? — pergunto, dando um salto da minha cadeira. A
pessoa do outro lado não me responde. — Este celular é de Antony Leclerc.
Onde ele está? — insisto, mas o silêncio também. — Quem é você?! —
Vejo-me aos berros no telefone.
Antony tem uma amante!, penso. E que moral tenho para reclamar,
uma vez que me deitei com outro homem? Estou abrindo a boca para exigir
saber quem atendeu ao telefone de meu marido quando a linha cai.
Maldição!
Respiro fundo. Meus olhos voam até a chave do apartamento de
Dousseau sobre a mesa. Em um ato completamente impensado e movida pela
raiva, agarro a chave e meu celular.

São quase dez da noite quando o táxi encosta no edifício onde ele
mora. Penso em voltar e desistir dessa ideia estúpida. Foi um erro vir aqui.
Você é uma mulher casada, pelo amor de Deus!
Já estou abrindo a boca para pedir ao taxista me levar embora, mas o
porteiro do prédio vem nos abordar.
— Identificação, por favor.
Estou ridícula com um lenço enrolado no meu pescoço e cabeça e
usando óculos escuros à noite, na tentativa idiota de não ser reconhecida.
— Ann-Marie — digo, evitando o sobrenome. — Vim ver o monsieur
Dousseau.
O porteiro se retira um segundo e retorna com uma prancheta em
mãos.
— Ann-Marie Leclerc? — pergunta. Afirmo com a cabeça. — Pode
subir. A senhora está na lista de pessoas autorizadas. Quer que interfone ao
senhor Dousseau e avise que está subindo?
— Não precisa, obrigada. — Admira-me que Bernardo já tenha
deixado minha subida autorizada.
Pago minha corrida em espécie e subo de elevador até o andar dele
enquanto me desfaço do meu disfarce ridículo. Penso bastante antes de
colocar a chave na fechadura e girá-la. Quando abro a porta, a imagem que
vejo não sei se me dá medo, arrependimento ou asco.
Na sala, ele está com Marie.

A bela mulher está usando uma camisa dele. Estão em pé, bem
próximos um do outro, como se eu tivesse interrompido um beijo. Bernardo
está vestido, segurando-a pela cintura e mostrando um daqueles seus sorrisos
charmosos.
Noto isso tudo no segundo após abrir a porta. Então, interrompidos
por mim, se viram em minha direção. Ele arregala os olhos em uma
expressão de surpresa. Marie, a princípio, faz o mesmo, mas em seguida,
lança a ele um olhar e um sorriso maliciosos.
— Ann-Marie? — ele indaga, tirando-me do meu torpor e medo que
me paralisaram.
Agora Marie sabe. Ela sabe que estamos envolvidos. E vai contar tudo
a Antony, não vai? Ou vai comentar com Dupont e este, sendo fiel amigo de
meu esposo, contará tudo.
Isso só pode ser Deus me castigando.
— Me desculpem, eu não… — Não consigo sequer formar uma frase
coerente.
Viro os calcanhares para ir embora daqui, mas ele me puxa de volta e
fecha a porta.
— Espere — pede. — Aconteceu algo? Você usou a chave e …
— Sim, eu sei — falo, mandando um olhar a Marie.
Um sentimento estranho cresce dentro de mim. Bernardo disse que
abriria mão de todas as mulheres se pudéssemos ficar juntos. Mas veja só,
não é o que parece. Mas também, o que eu deveria esperar de um mulherengo
como ele?
— Só vim pra conversarmos — explico. — Liguei para Antony;
quem atendeu foi uma mulher. Acho que você tem razão. Meu marido deve
ter uma amante — despejo tudo de uma vez, segurando minhas lágrimas. Ele
me puxa para um abraço e acaricia meus cabelos. Olho por cima dos seus
ombros e não vejo mais Marie. Afasto-me e fico cabisbaixa, mordendo o
lábio inferior. Tocando-me no rosto, ergue meu olhar para o seu.
— Marie não vai contar nada — sussurra.
— Como pode ter tanta certeza? — devolvo no mesmo tom.
— Porque ela é minha amiga e sabe que Antony é um idiota
agressivo.
Abano em positivo, não muito segura disso. A mulher surge
novamente no segundo seguinte, vestida agora com as próprias roupas. Vem
até mim e me dá um sorriso complacente.
— Nem mesmo você resistiu a esse pedaço de mal caminho? —
brinca, sem traços de julgamento na voz.
Fico completamente desconcertada e sem encontrar resposta para dar.
— Eu te entendo, se posso ser franca — continua, no mesmo tom de
brincadeira.
De repente, ela me abraça.
— Não vou contar nada a ninguém, não se preocupe — assegura;
sinto uma forte sinceridade nela. Não deveria, mas confio em Marie.
Ela se afasta e me olha ainda sorrindo.
— Mas não fique nessa situação a vida toda, está bem? — aconselha.
Enrubesço sem quase notar. Ela se volta a Bernardo, abraça-o e diz: — E
você ainda vai me explicar essa história direitinho.
Dousseau ri e abana em positivo. Marie se despede e se vai em
seguida.
Meu corpo ainda está meio tenso por conta desse encontro repentino.
Embora ela tenha garantido que não contará nada, sentir receio é inevitável.
Seus braços me contornam na cintura e então o olho com um pequeno
sorriso. Que foi que vim fazer aqui, mesmo? Ele me puxa mais para dentro e
me acomoda no sofá. Oferece algo para comer ou beber, mas recuso.
De repente, não consigo mais olhá-lo, meu interior se remexendo ao
pensar no que estariam fazendo agora caso não tivesse os interrompido.
Bernardo senta ao meu lado e segura minha mão, mas continuo não querendo
contato visual.
— Ei, o que há? — pergunta. Sou incapaz de conter uma risada
irônica.
— Você disse que abriria mão de todas as mulheres pra ficar comigo.
Praticamente no mesmo dia, estava prestes a se deitar com uma de suas
amantes.
Ele ergue uma sobrancelha e exibe um sorriso sacana.
— Bem — diz, suavemente —, você não me disse se quer ficar
comigo ou não. — Quero argumentar, mas ele está certo. Contra fatos não há
argumentos. Além do mais, ele é um homem livre. Diferente de mim. Sou
mesmo uma estúpida. — E eu não estava prestes a transar com Marie. Pelo
contrário. Estava justamente dizendo a ela que não quero mais encontros
casuais entre nós, não até ter uma resposta sua.
Não evito sorrir diante sua resposta.
— É sério? — pergunto.
Sua mão macia encosta em meu rosto e ali deixa uma carícia gostosa.
— Claro que é sério… Te disse que sou um homem de palavra.
— Você disse a ela sobre nós?
— Não. Apenas contei que estou saindo com alguém e quero algo
mais, mas ela ainda está indecisa. Então, até que essa mulher decida se fica
comigo ou não, prefiro me manter fiel. De qualquer forma, isso não importa
mais. Marie já sabe sobre nós, mas não se preocupe, ela não vai dizer nada.
Fiel.
Algo que não estou sendo com meu marido. E muito provavelmente
nem ele comigo.
— Se não aconteceu nada — me pego perguntando — por que ela
estava praticamente seminua com uma de suas camisas?
Dando-me um sorrisinho convencido, explica:
— Ela tem as chaves. Quando cheguei, Marie já estava aqui, vestida
com uma das minhas camisas. É uma mania, meio invasiva, mas é uma
mania. Já estou acostumado com o jeito dela. — Segura-me pelas mãos e
completa: — Mas não tem mais que se preocupar. Vou pedir para me
devolver a chave; teria feito isso hoje, se não tivesse chegado… De qualquer
forma, enquanto não tiver uma resposta sua, não terei nada com Marie.
Sorrio e o beijo de leve no canto da boca. O telefone dele toca para
quebrar o pequeno momento entre nós. Ele se levanta, me pedindo licença, e
vai atender sua ligação. Conversa com alguém por uns dois minutos apenas.
Não entendo sequer uma palavra, pois não fala em francês.
— Você fala português — digo, quando Bernardo retorna ao meu
lado. Recebo outro daqueles seus sorrisos e responde:
— Sim. Sou filho de uma brasileira. Cresci no Brasil até os oito anos.
Meu pai precisou voltar para cá, então tivemos de vir junto.
— Não sabia disso sobre você. É por isso que tem um nome tão
incomum para um francês.
Ele sorri um pouco mais e aproxima sua boca da minha.
— Talvez um dia possa te levar para conhecer o Brasil.
Não o respondo. Venço a distância que separa nossas bocas e o beijo.
Ele retribui, segurando-me pela nuca e me levando mais para seus lábios.
No seu sofá, nós fazemos amor.

Estamos em sua cama, enrolados no lençol úmido de nossos suores.


Minha perna se enrosca a dele, e encosto a cabeça em seu ombro enquanto
tomo um gole de vinho.
— Então… — murmura. — Se você veio até aqui me procurar,
suponho que já se decidiu sobre Antony.
Na verdade, não. Ainda não tomei decisão alguma. Vim procurá-lo
movida por um ato impensado.
— Não me decidi. — Sou sincera. — Vim para… conversarmos.
Como disse, acho que você tem razão em relação a Antony ter uma amante.
Bernardo tira a taça de vinho da minha mão e deixa no criado-mudo,
me puxa para o seu colo e apoia as palmas em minha cintura. Seus olhos
encontram os meus.
— Nem estou surpreso. Está bem óbvio pra mim que ele tem uma
amante. — Sua boca sopra a minha e então desce pelo meu pescoço até
chegar ao colo. — Isso será suficiente para te ajudar a decidir a ficar comigo?
Toco-o no queixo e o faço olhar para mim.
— Não tenho certeza de nada. Não é uma decisão que eu possa tomar
assim, com tanta facilidade.
A expressão suave se desfaz do seu rosto, dando lugar a algo mais
duro e sério.
— Ele está trepando com outra. Quer motivo maior do que uma
traição para pedir o divórcio?
— Você insiste em afirmar que ele tem uma amante.
— Porque ele tem! — Bernardo começa a ficar irritado. — Não
precisa ser um gênio para notar. Até uma pessoa com retardo mental
perceberia.
Saio do seu colo no instante dessas palavras, sentindo-me ofendida.
Busco pelas minhas roupas enquanto o ouço dizer:
— Me desculpe. Eu não queria ter te ofendido.
Não digo nada. Está tarde e preciso ir embora. Ele se levanta e me
segura pelo punho.
— Você mesma disse que uma mulher atendeu ao telefone dele e que
acha que ele tem uma amante.
— Porque você pôs isso na minha cabeça! — Ergo a voz. — Não
posso julgar Antony sem ouvir a versão dele. Você pode não ser um cristão,
mas deve saber que não podemos julgar para não sermos julgados.
Bernardo dá uma risada sarcástica. Ele sempre zomba da minha fé. É
por este motivo que nunca daríamos certo. Ele nem mesmo respeita minha
crença.
Visto-me e ele não me impede. Apenas me assiste, emudecido,
também pondo as próprias roupas para cobrir o corpo.
— Gosto de você — diz, de repente, enquanto estou calçando meus
sapatos. — E é uma pena preferir ficar com alguém que sequer te valoriza.
Estou tomando esta sua atitude de ir embora como um não para minha
proposta.
— Estou casada há anos com Antony! — rebato, alterada. — E você
tem razão, ele se encaixa no perfil de homem abusivo, mas continua sendo
meu marido. Para você pode ser bobagem, mas li alguns relatos religiosos
hoje na internet de esposas que passaram pelo mesmo. Porém, com fé,
obediência e orações, esses homens agressivos e abusivos mudaram!
Ele passa por mim, deixando o quarto sem dizer nada. Engulo em
seco, termino de calçar meus sapatos e decido ir embora. Na sala, ele está na
porta, já aberta.
— Vá lá tentar mudar seu marido com orações — diz, em tom de
deboche. — Agora já sei que decisão você tomou. — Sua voz sai
amargurada.
— Não tomei decisão alguma. Só quero que você entenda que preciso
de discernimento pra tomá-la. Não quero desagradar a Deus tomando a
decisão errada de me divorciar. Não sei o que Ele quer de mim. Talvez seja
um sinal para me livrar de Antony, como pode ser uma provação, uma missão
para ajudá-lo a ser uma pessoa melhor.
— Deus não pode ser provado por coisas más — cita Tiago, em tom
irritado e impaciente. — Sabe o que isso significa? Posso ser um homem do
mundo, como gosta de apontar, mas tive uma educação religiosa e sou capaz
de te dizer com propriedade: se Deus existe, Ele não faz coisas ruins apenas
pra saber quem será fiel ou não. Então pare de dizer que é uma provação
divina, porque não é!
É a primeira vez que fala um pouco mais alto comigo. Sinto as
lágrimas se acumularem em meus olhos. Penso em responder, mas mesmo se
tivesse o que lhe dizer, não teria chances, pois ele finaliza:
— Até posso te esperar decidir se fica com seu marido ou se pede o
divórcio e me dá uma chance. Mas isso não vai acontecer na minha cama,
Ann-Marie. Me procure quando parar com esse seu jogo de indecisão e tiver
se decidido definitivamente. — Seu tom é incisivo e incontestável. Fugindo
do meu olhar, mira a porta aberta.
É um claro convite para me retirar. Vejam só, ele é educado para me
expulsar de sua casa. Passo por ele, pensando em como sou uma idiota e
rezando para encontrar um táxi com facilidade a essa hora da noite.
Mal dou dois passos para fora, ouço a porta bater. Uma lágrima
escorre dos meus olhos, a tristeza e um misto de sentimentos me assolando.
Um segundo depois, sinto um toque quente em minha mão. Olho para o lado
e ali está ele, com um pequenino sorriso em meio a uma expressão
entristecida.
— Se você achou que eu ia mesmo te deixar voltar sozinha para casa,
tão tarde da noite, então realmente não me conhece, Ann-Marie Leclerc.
BERNARDO
Não queria ter sido tão rude e inflexível como eu fui. Mas também
não posso deixar que essa mulher jogue comigo desta maneira. Preciso de
uma decisão definitiva, mas sem que ela fique fazendo de mim o que bem
entender. Por mais que esteja atraído por ela, ainda tenho um pouco de
orgulho, dignidade e amor-próprio. Não deixarei que me façam de bobo.
No dia seguinte, bem cedo, já tem uma criatura asquerosa afundando
o dedo na minha campainha. Levanto-me muito mal-humorado por ser
acordado com essa algazarra e atendo a porta. Do outro lado está Marie
dentro de um vestido amarelo e com um sorriso enorme.
— Você tem a porra da chave, Marie. Por que esse escândalo todo?
— cuspo. Ela me empurra e vem para dentro.
— Não sabia se você ainda estava acompanhado ou não. Preferi evitar
te flagrar em cima de Ann-Marie.
Reviro os olhos e deixo a porta bater.
— Ela foi embora ainda ontem à noite.
— Então está sozinho?
— Oui — afirmo.
Ela me segura pela mão e me puxa até o sofá:
— Ótimo. Podemos conversar. Vai me explicar essa história. Não te
disse para não se envolver com essa mulher?
Suspiro e afago o rosto. Marie vai mesmo me dar sermão a essas
horas da manhã, quando sequer estou vestido adequadamente? Na verdade,
nem vestido estou, exceto pela boxer vinho.
— Pelo menos posso pôr uma roupa para termos essa conversa?
Marie me analisa dos pés à cabeça e por fim faz um movimento de
mão. Retiro-me até meu quarto e ponho uma camisa e jeans.
Quando volto para a sala, Julien está preparando um café para nós.
— Então, me conte todos os detalhes. Até os sórdidos — diz, bem-
humorada, sem se virar para mim.
Dou uma risada e balanço a cabeça em negativo. Acomodo-me em
uma das banquetas do balcão e respondo:
— Apenas aconteceu. — Suspiro. Não estou mesmo a fim de ouvir
sermão hoje.
— Você me garantiu que não se envolveria com ela — aponta,
erguendo-se para pegar duas canecas no armário.
— Mudei de ideia quando ela começou a mostrar interesse em mim.
Marie por fim se vira em minha direção. Seu semblante não é dos
melhores.
— Precisa tomar cuidado — alerta.
Maneio a cabeça.
— Eu sei.
— Então foi por ela que me dispensou? — pergunta, com um sorriso
em meio a uma expressão dramática.
Rio um pouco e afirmo com um gesto. Ela nos serve com café e sou
obrigado a contar como realmente tudo aconteceu. Minha amiga me ouve
sem me interromper e pela primeira vez sinto um alívio por poder dividir isso
com alguém. Não sou do tipo que gosta de guardar segredos ou sufocar
sentimentos. Meu envolvimento com Ann-Marie me obrigou aos dois.
— Você gosta dela? — inquire, tomando um gole de seu café.
Com a xícara perto dos meus lábios, peso um segundo a sua pergunta.
É claro que gosto de dela. Isto é inegável. Mas conheço Marie o suficiente
para saber que a intenção de sua pergunta é um pouco mais profunda. Quer
saber se a amo. E porra, é tão cedo para afirmar qualquer coisa.
— Do mesmo modo como gosto de você — minto. Não posso
comparar meus sentimentos por Ann-Marie com qualquer outra mulher. Nem
mesmo Victória, a brasileira que namorei por um tempo e teve um
significado maior na minha vida, mexeu com meu corpo e mente da maneira
como Leclerc faz.
— Mas é mesmo um mentiroso — diz, rindo. Eu a acompanho, até
que segura em minhas mãos e me olha nos olhos. — Precisa resolver logo
essa sua situação. — Sua voz tem algo de preocupação. — Se Antony
descobrir… Vocês dois estão bem encrencados.
— Estou ciente disso. Ontem, já dei um xeque-mate para que se
decida de uma vez. Nem eu quero continuar assim.
Marie me dá um sorriso complacente e termina seu café. Conto algo
mais sobre minha “relação” com Leclerc, o modo como é tratada pelo marido
e de como acredito que Antony tem uma amante. Não deveria dizer esses
detalhes, mas quero que, de alguma forma, Marie não a julgue. No lugar dela,
teria feito o mesmo e por muito menos. Aproveito o momento e peço,
educadamente, que me devolva a sua cópia da chave, o que faz sem
resistência e sem ressentimentos.
Algum tempo depois, me dou conta da hora e que preciso me
encontrar com Alfredo no aeroporto. Ele me ligou ontem à noite, dizendo que
já estava para embarcar e chegaria aqui por volta de oito da manhã.
— Marie, preciso ir — digo, terminando meu café, já praticamente
frio. — Alfredo vai desembarcar em Paris dentro de quarenta minutos,
preciso encontrá-lo.
O semblante dela muda um pouco.
— Alfredo está chegando em Paris?
— Oui. Veio a negócios. Houve uma urgência na cafeteria e não
quero resolver esse pepino sozinho.
— Entendi — diz, forçando um sorriso. Tenho a impressão de que
meu amigo ainda significa alguma coisa para ela. — Nesse caso, vou indo.
Preciso mesmo chegar mais cedo na redação.
A mulher deixa um beijo na minha bochecha antes de partir.

Meu melhor amigo me dá um abraço apertado quando finalmente


desembarca. A saudade desse cretino é enorme e eu queria poder cobrar dele
mais vindas sua à França, mas sei que tem uma vida no Brasil.
Ele trouxe apenas uma bagagem, que cabe com facilidade no porta-
malas do meu carro. Enquanto dirijo até seu apartamento, conversamos
banalidades. Alfredo me fala sobre sua filha Lara e as evoluções que ela tem
dia após dia. A nova é que está começando a dar os primeiros passos sozinha.
Cara, ele é um pai muito coruja.
— Quando podemos começar a resolver essa fraude no Avenue
Coffee? Quanto mais rápido resolver isso, mais rápido posso voltar para o
Brasil.
Faço uma cara de quem está ofendido.
— Mal chegou e já quer ir embora. Que consideração você tem por
mim, hein?! — resmungo, sem desviar os olhos da estrada.
— Em dois dias é meu aniversário de casamento, Bernardo. Planejava
levar minha esposa para um jantar romântico e depois para um motel onde
íamos trepar até eu perder a firmeza das pernas. Não me culpe se quero que
essa droga se resolva logo para poder voltar para ela e cumprir o planejado.
Porcaria.
Embora cada palavra tenha saído em tom de brincadeira, com um
fundo de verdade, não consigo não me sentir culpado por tirá-lo do lado de
Lívia em uma semana especial para os dois. Sou um idiota. Merda.
— Não faça essa cara — adverte, ao notar meu silêncio repentino. —
Estou brincando. Lívia foi compreensiva. Vamos comemorar assim que
voltar. Leve o tempo que precisar.
Com um sorriso, aceno em positivo.
— Tudo bem. Mas não quero te encher de preocupações quando você
mal desembarcou. Vamos para seu apartamento, tome um banho, descanse
algumas horas. O jet lag deve estar te matando, n’est-ce pas? — Ri e afirma.
— Enquanto isso, vou solicitar uma reunião com nossos gerentes e com
Jacques para depois do almoço.
— Certo. Agradeço a preocupação.
Terminamos o percurso em mais dez minutos. Enquanto meu amigo
está no banho, providencio um café da manhã reforçado para nós, uma vez
que ingeri apenas cafeína antes de buscá-lo. Ligo em nossa cafeteria e peço
para entregarem alguns pães, doces e salgados. Durante a espera, entro em
contato com meu contador e solicito uma reunião na matriz às quinze horas.
Alfredo surge vinte minutos depois, no momento em que estou
pensando em ligar para Ann-Marie e saber se está tudo bem. Ontem, deixei-a
a um quarteirão de sua casa e estacionei por perto para ter certeza que
chegaria em segurança, mas quero confirmar se está tudo certo. Inferno. Já
estou procurando pretexto para ligar para ela e ouvir sua voz. A presença de
meu amigo, porém, me faz recuar. Ele ainda não sabe do meu envolvimento
com uma mulher casada. E por ora não vou contar nada. De sermão por hoje
já bastam os de Marie.

Hauser e eu chegamos à cafeteria quinze minutos antes do horário


combinado com Jacques e meus gerentes da região.
Emilien está aqui, como de costume, na companhia de Antony. No
momento em que o vejo, meu corpo trava. Quando foi que esse desgraçado
voltou de viagem? Até ontem, sei que estava fora de Paris. Minha boca
amarga só de pensar que chegou ontem e não encontrou a esposa em casa.
Será que fez algum mal a ela? Porra, se Leclerc…
Meus pensamentos são interrompidos quando Alfredo me cutuca nas
costelas. Volto meu olhar a ele, olhando-me como se eu tivesse um pênis no
meio da testa.
— O cavalheiro ali está acenando pra você — diz, apontando para
Dupont com um mover de cabeça. — Parece perdido no mundo da lua.
Ignoro seu último comentário e o convido a irmos cumprimentar
Emilien.
— Dupont! — exclamo quando chego à sua mesa. — Que surpresa
você por aqui… Soube que estava viajando a negócios.
— Chegamos hoje de madrugada, Dousseau — esclarece. Limito-me
a um rápido cumprimento a Antony. Com a mesma antipatia desde que nos
desentendemos, me cumprimenta de volta. — Tenho boas novas sobre o
capital que investiu conosco. Quando estiver menos ocupado e pudermos
conversar, me procure. Você tem o meu número.
— Claro — concordo. — Deixe-me apresentar meu sócio Alfredo
Hauser. Ele veio do Brasil para tratarmos de alguns assuntos da cafeteria.
Alfredo os cumprimenta, enquanto eu os apresento e resumo o que
cada um faz da vida. Trocamos mais meia dúzia de palavras até Jacques
chegar.
— Esse Antony não me parece muito agradável — meu amigo
pontua, enquanto caminhamos em direção ao nosso contador. — Vocês têm
alguma rixa?
— Longa história. Outra hora te conto — sussurro de volta. — Agora
a gente precisa descobrir quem está por trás da fraude na nossa empresa.

A reunião dura cerca de duas horas e é feita na sala da gerência.


Jacques trouxe um relatório completo que conseguiu com nossos
fornecedores dos produtos supermanufaturados. A fraude está acontecendo há
cerca de seis meses, mas ainda não sabemos quais os funcionários, em ambas
as empresas, estão envolvidos no esquema. O dinheiro desse desvio é lavado,
o que torna ainda mais difícil rastrear os responsáveis, uma vez que se
utilizam de laranjas, movimentações pequenas e investimentos em ações para
esconder a origem desonesta da quantia acumulada. Jacques foi muito
prudente em não alarmar nossos funcionários para que possamos traçar uma
abordagem e pegarmos os infratores. Até mesmo antes de me comunicar e de
comunicar os demais gerentes sobre essa fraude, ele fez uma pesquisa
completa para ter certeza de que não alarmaria gerentes ou subgerentes que
pudessem estar envolvidos no crime.
Passadas pouco mais de duas horas e uma infinidade de café batizado
com uísque para que seja minimamente suportável essa reunião, temos um
plano traçado para tentarmos resolver o problema. Uma nova reunião é
marcada para dentro de dois dias. Iremos até Orleans — onde está uma das
nossas filiais — e lá nos encontraremos com outros dois gerentes e mais os
representantes dos fornecedores que tiveram suas empresas envolvidas no
golpe.
— Compromisso para mais tarde? — Alfredo pergunta, quando já
estamos retornando para seu apartamento.
— Não, por quê?
— Devíamos sair e jantar fora, pormos a conversa em dia. Aproveito
pra te falar sobre o projeto para expandirmos nossa filial no Brasil. Nossa
única loja lá já não está dando conta da oferta.
— Por mim tudo bem, mas prefiro pedirmos comida no seu
apartamento mesmo. Não estou com cabeça nem ânimo para sair hoje à
noite.
— Eu cozinho nesse caso — diz, desviando do nosso trajeto original.
Pelo caminho, sei que está indo até o supermercado Carrefour City, uns
quinze minutos de distância. Não vou contestar sua ideia de cozinhar, até
porque esse cretino cozinha bem que é uma desgraça.
Compramos os ingredientes para um coq au vin — um dos nossos
pratos favoritos — e ele insiste em levar uma nova garrafa de vinho. Alfredo
se encarrega do jantar enquanto conversamos animadamente, relembrando os
velhos tempos. Parece que foi ontem que vi esse cretino perdido nos
corredores da universidade, com uma das alças da mochila pendurada nos
ombros. Em francês, perguntei se precisava de ajuda; ele me olhou por um
segundo, como se procurando como articular qualquer resposta no idioma
local. Fez uma careta e, em português, disse “franceses idiotas”. Gargalhei e
respondi: “Que bom que também falo português”. Descobri que ele não
falava nada de nosso idioma oficial, exceto por uma ou outra palavra, e
estava tendo aulas há cerca de um mês com um professor nativo. Morava no
país há pouco mais disso e sua comunicação desde então se baseava no inglês
— o que os franceses odeiam, aliás. Curioso, quis saber o que um brasileiro
que não falava nada de francês estava fazendo em Paris e, ainda por cima,
numa universidade.
— Minha mãe me exilou. Só porque comi a namorada do meu irmão
mais velho e depois a dispensei — disse na época, dando de ombros.
Ele morou dez anos aqui. Nesse meio-tempo, vi esse cretino sofrer e
se desdobrar para estudar, porque perdera muitas regalias da mãe depois do
que fizera no Brasil. Eu o ajudei muito com o idioma, dividimos o
apartamento (e algumas mulheres) e nos tornamos bons amigos. Também
vivi para vê-lo se arrastar pela ex-namorada que ele comeu e dispensou e foi
a causa de um nariz quebrado e exílio de dez anos — hoje sua esposa.
Tirando as canalhices que aprontou, invariavelmente da mesma
maneira — envolvendo, iludindo enganando, levando para cama e depois as
abandonando —, ele sempre foi uma boa pessoa e temos desde então uma
amizade muito sólida e duradoura. Tenho Alfredo até mesmo como um
irmão. Passamos por poucas e boas, lutamos para conquistarmos nossa
cafeteria e o espaço e o renome que ela tem em Paris e nas demais regiões.
Não à toa quando sofreu um acidente que quase lhe tirou a vida e o
movimento das pernas, deixei tudo para trás e vivi no Brasil por quase um
ano. Acompanhei-o na fisioterapia, aturei suas mudanças bruscas de humor
causadas pelo luto, dei uma de cupido para ajudá-lo a se entender com a
mulher que hoje é sua esposa, fui padrinho das duas filhas, gritei e xinguei
esse cretino quando decidiu romper seu noivado e voltar para França ao
descobrir um segredo de Lívia… São tantas coisas boas ao lado dele que não
tem como eu não considerá-lo um irmão.
Já durante o jantar, falamos de negócios. Alfredo me passa um pouco
das suas ideias sobre expandirmos a filial brasileira. Tudo ainda está no
papel. Ele quer que eu vá ao Brasil para escolhermos um ponto estratégico,
traçarmos um plano de negócios, capital de giro, contratação de funcionários.
Ele poderia resolver isso tudo sozinho? Poderia. Mas claro que me ama o
bastante e está com saudade, por isso quer desesperadamente que viaje para
lá.
— Não seja tão convencido — diz, recuperando-se de uma risada. —
Você não faz falta nenhuma na minha vida, sabe disso. Imprestável.
— Uhum. Esse seu desespero pra que eu passe uma temporada no
Brasil não é saudade de mim, não. Pode confiar.
Rimos e bebemos mais um pouco. Meu celular vibra sobre a mesa.
Discretamente, confiro. É uma mensagem de Ann-Marie.
“Podemos conversar?”
São nove da noite. Meu coração dá uma guinada dentro do peito. Ela
tem tendência a me procurar apenas quando o traste do marido apronta
alguma coisa.
“Pessoalmente?”, digito.
A resposta vem um segundo depois.
“Sim”.
“No meu apartamento, em meia hora.”
— Já sei — Alfredo profere antes mesmo que eu erga os olhos do
celular. — Aquela mulher com quem está saindo. Solicitou sua presença?
Dou um pequeno sorriso, odiando ter de esconder essa minha…
relação?… dele.
— É. Ela quer me ver. Se importa se nos falarmos amanhã?
— Você sempre me trocou por um rabo de saia, não seria diferente
agora. Nem me surpreendo mais.
Dramático. Reviro os olhos e rio, como se ele não tivesse me trocado
uma porção de vezes por rabos de saia também. Dou-lhe um abraço de
despedida depois de combinarmos de tomarmos café da manhã juntos no
Avenue Coffee da 7ème arrondissement.
Quando chego, já está na minha sala, à minha espera. A primeira
coisa que quero perguntar é se não é arriscado sua visita. Antony está na
cidade, é perigoso demais. Contudo, não tenho tempo de nem mesmo abrir a
boca ou de formar as palavras em minha mente, pois ela já está abraçada a
mim.
— Me desculpe… — pede, soluçando.
Mon Dieu! Ela está chorando.
Afago seus cabelos.
— Pelo que está me pedindo desculpas? — indago, suavemente. Ela
se afasta do meu abraço e seca as lágrimas. Seguro seu rosto com as duas
mãos e pego uma lágrima remanescente com o polegar. — Ann-Marie…? —
sussurro.
— O Antony… chegou de madrugada, logo depois que você me
deixou em casa. Ele veio antes do planejado. — Maneio a cabeça em positivo
e digo que já estou sabendo, pois o vi mais cedo na minha cafeteria. — Por
alguma razão ele… me procurou, Bernardo.
Franzo o cenho, não entendendo nada do que está me dizendo.
— Depois de quatro meses sem me tocar… — continua, e só então
entendo o que ela quer me dizer. Um negócio esquisito sobe pela minha
espinha, minha boca seca. — Ele quis, e eu…
— Ele te forçou? — pergunto, sentindo o corpo rígido.
Ann-Marie balança a cabeça em negativo. Isso não deveria me atingir,
mas me atinge. Atinge-me de um jeito insano pensar que ela dormiu com
aquele que nem pode ser chamado de ser humano. Engulo em seco, tentando
ignorar esse nó na garganta.
— Mas eu não queria — revela. — Cedi, porque tive medo que
desconfiasse caso me negasse. Não queria transar com ele, mas também não
podia dizer não! — Soluça de novo e mais uma vez se joga em meus braços.
Não sei o que dizer nem o que fazer diante essa situação. — Senti como se
tivesse traído você, me entende? — diz, agora um pouco mais calma. — O
que é irônico porque quando aconteceu o contrário não me arrependi… Mas
agora, agora… Oh, por favor, me perdoe!
Abraço-a com mais força e beijo seus cabelos. A sensação em mim é
um misto confuso de sentimentos. Ela sentiu que me traiu quando dormiu
com o traste do marido… Bem, estamos no caminho certo.
— Está tudo bem. Não tem com o que se preocupar. — Ela abana a
cabeça em positivo e se afasta, olhando-me nos olhos e mordendo o lábio
inferior.
— Preciso ir embora — diz. — Antony está jogando pôquer com
Emilien, pode chegar a qualquer momento em casa. Se não me encontrar, vai
ser um inferno. — Trinco o maxilar e engulo em seco, preferindo me abster
em opinar sobre essa relação abusiva em que vive. — Antes, posso te pedir
um favor?
Aceno em positivo, ela retira um pedaço de papel de dentro do bolso.
— Hoje mais cedo, encontrei no escritório dele a fatura de um cartão
de crédito. É um cartão que até então desconhecia. No detalhamento da
fatura, entre outras coisas, tem uma cobrança para uma conta mensal de um
celular. O número é o mesmo que ligou para ele uma vez.
— Você acha que pode ser…
—… da amante dele? Acho, sim — confirma, com a voz meio
embargada. — Só quero ter certeza, antes de qualquer coisa. Mas se ligar, e a
pessoa reconhecer a minha voz… não vou conseguir nada. Se o confrontar,
ele vai negar. — Ann-Marie me estica o papel. — Pode ligar para mim e ver
o que descobre? Não precisa ser hoje.
Pego o pedaço de papel da sua mão e confiro o número.
— Droga — murmuro.
— O que foi? — indaga, curiosa.
— Não preciso ligar nesse número para saber de quem é — explico e
ergo o olhar em sua direção.
— Do que está falando?
Engulo em seco e tomo um segundo de coragem para dizer:
— Esse telefone é de Juliette Gautier. Minha gerente.
ANN-MARIE
— Gautier? — indago, surpresa com a afirmação. Só neste momento
então me dou conta de que a voz dela sempre me foi familiar. Era a mesma
que ligou “por engano” no celular do meu marido algum tempo atrás. — A
amante dele é a Gautier?
— É o que tudo indica — murmura, afagando meu rosto.
Contrariando o bom senso, aproximo-me mais dele e me aconchego
em seus braços, sentindo-me agora bem mais calma do que anteriormente.
Ter que dormir com Antony na noite passada me deixou mal e
desconfortável. A mesma noite serviu para me fazer notar que não o amo
mais. Saber que ele tem uma amante — sabe-se lá há quanto tempo —
colabora para o sentimento negativo dentro de mim.
É pensando nisso que, finalmente, tomo uma decisão. Pedirei o
divórcio. Não importa se desagradarei meus pais sendo a primeira mulher na
família a se divorciar, ou se isso, de alguma maneira, vai contra a minha
religião. Não me sinto bem e nem feliz casada com Antony Leclerc. Deus há
de me entender e somente Ele poderá me julgar.
Sorrio diante minha decisão, meu rosto escondido no peitoral dele.
Bernardo é um bom homem, fui uma estúpida por pensar o contrário a seu
respeito por conta do seu estilo vida. Ele pode ser um mulherengo sem-
vergonha, mas tem mais caráter do que meu marido.
De repente, sua boca está na minha, exigindo por mais passagem,
enquanto sua mão forte desce pela lateral do meu corpo e procura um meio
de abaixar minha saia. Enlaço meus braços em torno do seu pescoço e
saboreio sua boca macia e suculenta ao mesmo tempo que meus dedos
trabalham no cinto de couro preso à sua calça de alfaiataria.
— O que me disse mesmo sobre não esperar por uma decisão minha
na sua cama? — debocho, arrancando seu cinto. Ele me empurra até o sofá e
recai sobre meu corpo, abrindo lentamente os botões da minha camisa.
— Continuo inflexível quanto a isso. Por esse motivo, vou te comer
no sofá.
Resfolego sem nem perceber diante sua promessa. Um segundo
depois, estou nua por completo e seu corpo cobre o meu. Ele me acaricia com
sua língua úmida, começando pelo lóbulo da orelha e descendo pelo pescoço,
alcançando a omoplata direita, desviando para o colo e chegando aos meus
seios, que venera, dando uma atenção quase divina a esta parte do meu corpo.
Fecho os olhos e suspiro à medida que chupa e massageia meus mamilos.
Bernardo faz isso com tanta reverência, intensidade e paixão… Seu charme
me cativou logo quando o conheci, seus galanteios e insistências em me
elogiar elevaram minha autoestima, mas é seu desempenho na cama o ponto
máximo da minha admiração por esse homem.
Ele se ajoelha no chão e separa mais minhas pernas. Dá-me prazer lá
embaixo, sugando-me forte, saboreando cada centímetro do meu sexo
encharcado, pulsante e inchado, que deseja muito mais do que essas lambidas
maravilhosas. Contorço-me no sofá, agarrando-o pelos cabelos volumosos.
Eu deveria parar. Antony não pode chegar em casa e não me encontrar. Mas
sou incapaz de qualquer coisa nesse momento a não ser gemer e pedir por
mais. Muito mais. Peço, e ele me dá até que eu goze em sua boca. Ainda me
lambe delicadamente por mais alguns segundos antes de voltar para mim e
me passar meu próprio gosto em um beijo forte e rude.
Termina de baixar as calças e se encaixa em minha fenda úmida. Com
um movimento brusco e inesperado, consigo subjugá-lo. Ele está à minha
mercê agora, por baixo do meu corpo. A ação faz com que seu membro se
escorregasse para dentro de mim e nos arranca gemidos uníssonos. Saio de
cima dele e me ponho de joelhos entre suas pernas. O homem me olha
atentamente, o pomo-de-adão se movimenta ao passo que me inclino de
lábios entreabertos sobre seu pênis ereto.
— Vou te fazer pagar a língua, monsieur Dousseau — sussurro,
segurando-o suavemente pela base.
Ele parece abrir a boca para dizer alguma coisa. Ao invés de palavras,
o que escapa é um gemido descontrolado por conta dos meus lábios o
rodeando. O membro está quente; seu gosto é almiscarado e se mistura à
minha própria essência. Sugo-o e o acaricio nos testículos.
— Ann-Marie… — geme, levando ambas as mãos até meus cabelos.
Levemente, conduz o sexo oral. Seus quadris se erguem um centímetro,
empurrando-o devagar para dentro da minha garganta. — Pare — ordena, voz
ofegante. Ao invés de acatá-lo, sugo com mais força, sabendo que está a
ponto de atingir seu ápice. — Pare, mulher — exige outra vez, estrangulado.
— Se continuar… vou gozar na sua boca.
Como resposta, apenas continuo. Quero sentir o gosto dele, quero que
ele goze na minha boca assim como gozei na dele. Aumento a sucção e a
velocidade, rodeando a língua em sua coroa e massageando suas bolas que
também estão duras. Um janto longo e grosso de sêmen atinge minha língua
apenas dois segundos depois, seguido de um gemido rouco e entrecortado
dele. O sabor é agridoce e quente. Sorrio com seu pênis ainda entre meus
lábios. Faço o mesmo que fez comigo: lambo-o mais um pouco para estar
limpo.
Ergo meus olhos em sua direção e o vejo estirado no sofá; cabelos
bagunçados, rosto vermelho, olhos fechados, ofegante.
— Droga — reclama, sem me olhar. — Eu realmente paguei minha
língua.
Rio um pouco e monto seus quadris, abraçando-o e escondendo o
rosto na curva do seu pescoço. Ele me traz para um beijo no próximo
segundo, acariciando meu rosto e cabelos. Ficamos assim, por cinco minutos
inteiros, apenas curtindo o calor um do outro. Então preciso me levantar e
voltar para minha casa. Não direi nada sobre minha decisão de divórcio. Não
por ora. Ele saberá, no momento certo.
— Vai voltar bem sozinha para casa? — pergunta, já na porta. Enrolo
minha echarpe na cabeça e pescoço.
— Sim, não se preocupe. Te passo uma mensagem assim que chegar.
Ele acena em positivo.
— O que fará em relação a Antony? Sobre Gautier e sobre… hum…
— Desvia o olhar, e vejo uma linha tensa surgir em seu maxilar. — Sexo com
ele. — O tom de sua voz é de asco.
— Vou evitá-lo. — Quero poder dizer que não se preocupe com meu
futuro ex-marido, mas deixarei para o momento certo. Que não passará de
amanhã. — Farei alguns exames também, na primeira oportunidade, só por
garantia. E sobre Gautier… vou tentar descobrir há quanto tempo eles têm se
encontrado.
A expressão sisuda continua em seu rosto.
— Você sabe agora que ele tem uma amante e continua resistindo em
pedir o divórcio… — diz, meio irritado.
— Amanhã, chéri — digo apenas, acariciando seu rosto. Ele faz uma
cara de ponto de interrogação. — Amanhã — reafirmo. Beijo seus lábios
finos e me viro para ir embora.

Finjo que estou dormindo quando Antony chega. Passa bem de uma
da manhã e agora, sabendo que realmente tem uma amante, me pergunto se
não estava junto de Juliette até a essa hora, em vez de estar com Emilien,
como afirmou que estaria.
Meu marido entra esbarrando nos móveis ao redor, não sei se por
estar escuro ou, provavelmente, bêbado. Talvez pelos dois. Continuo imóvel
em meu lugar até que se deita ao meu lado e me abraça. Seu sopro quente
contra minha nuca cheira fortemente a uísque. Suas mãos geladas sobem por
dentro da minha camisola, e tento ao máximo manter a minha farsa. Talvez,
se perceber que estou dormindo, me deixe em paz.
Mas Antony não deixa. Continua me tocando, seus lábios agora
roçam meu lóbulo da orelha.
— Ann-Marie… — murmura.
Remexo-me na cama e tiro suas mãos do meu alcance. Meu esposo,
entretanto, é um teimoso. Seu toque gélido logo está em minha pele quente
outra vez, obrigando-me a me afastar um pouco na cama.
— Estou cansada, Antony — digo, tentando forçar uma voz de sono.
— Sou seu marido, venha fazer seu papel de esposa — fala. Pelo seu
tom, noto que realmente está bêbado.
Preciso me controlar muito para não soltar poucas e boas.
— Eu não quero! — Sou mais incisiva. Ele bufa e se vira de costas na
cama, resmungando alguma coisa inaudível.
Por fim, o silêncio toma conta do quarto; meu marido não demora a
dormir.
No dia seguinte, refugio-me em meu ateliê durante o horário do café
da manhã. Quero conversar com Antony a despeito do pedido de divórcio,
mas antes preciso tomar um pouco de coragem e ensaiar meu discurso. Não
direi que sei sobre sua amante; Antony vai negar, com toda certeza, arrumar
pretextos, talvez até envolva Bernardo no processo, e dessa maneira, não tem
como isso acabar bem.
Dedico-me à costura por horas, com afinco. Minha coleção de estreia
está quase pronta. Isso me faz lembrar que preciso resolver sobre o local onde
será minha butique. Antony pelo jeito ainda não sabe da minha decisão de
ficar com a loja 02 da nossa galeria. Quando pedir o divórcio, não sei como
isso será resolvido. Ele não aceitará nem um nem outro.
Almoço sozinha. À tardezinha decido falar com meu marido sobre o
espaço que quero transformar no meu negócio. Arrumo-me com o tradicional
— saia, camisa e saltos — e chamo um táxi. No percurso, outra ideia me
surge: tirar minha carteira de motorista. Já chega de Antony controlando
todos os aspectos da minha vida.
Na galeria, não o encontro em seu escritório. Pela hora, deve estar na
cafeteria de seu costume. Meu coração dá uma batida a menos só em pensar
em ter de procurá-lo lá. Não porque Dousseau me desagrada como era no
começo, mas porque sei que será um fator para Antony ficar ainda mais
nervoso. Todavia, tenho o direito de ir e vir. Homem nenhum — muito
menos o meu marido — vai me impedir de entrar em uma cafeteria.
Decidida, marcho até lá e o procuro por entre as mesas.
Ele não está. Meus olhos então estacionam em Gautier, que está
falando com uma das subalternas, dando, acredito eu, alguma orientação. Um
segundo depois, se volta para mim. Sorrio e vou em sua direção, criando um
esforço sobre-humano dentro de mim para não perder a compostura. Em
outra ocasião, o fato de ela estar dormindo com meu esposo seria o bastante
para sequer olhar em sua cara. Hoje, vendo-me apaixonada por Bernardo, sair
com Antony é um favor que me faz.
— Madame Leclerc — cumprimenta, com um pequeno sorriso. —
Em que posso ajudar?
— Sabe se Antony veio aqui hoje? Estou o procurando, mas não o
encontrei na cafeteria.
Ela não tem chances de me responder, pois nesse momento as folhas
duplas de vidro da entrada se abrem, trazendo para dentro um Emilien rindo
juntamente com Antony. Os olhos dele encontram os meus um segundo mais
tarde, o largo sorriso se desfaz no mesmo instante. Agradeço Juliette e sigo
na direção dele, que também vem ao meu encontro. Abro a boca para falar
com ele, mas me agarra pelo braço e indaga, entre os dentes:
— Que diabos está fazendo aqui?
Pestanejo por um segundo. Agora a dúvida me bate. Antony nunca
quis que eu viesse aqui por causa de Dousseau ou por causa de sua amante?
— Vim te procurar — respondo, mantendo a calma. Olho por cima do
seu ombro e vejo Emilien me encarando com um semblante neutro. Ele
desvia o olhar de mim e puxa uma cadeira da mesa que escolheu para se
acomodar e consumir.
— É a mim mesmo que veio procurar? — questiona, os olhos
tomando uma cor avermelhada.
— E quem mais eu viria procurar, Antony? — devolvo, de forma
altiva. Acabou o tempo em que esse homem vai me subjugar.
Ele se aproxima mais do meu rosto.
— Quantas vezes já te pedi pra não vir aqui?
Empino o nariz.
— Tenho o direito de ir e vir, caso não saiba.
Os olhos dele semicerram diante de mim; o maxilar fica tenso e a
pressão em meu braço aumenta. Um segundo mais tarde, Dupont está ao seu
lado.
— Devíamos nos sentar — aconselha, apoiando a mão sobre o ombro
do amigo. — Estamos atrapalhando a circulação.
— Não se meta — Antony rechaça, o que faz nós dois arregalarmos
os olhos. Ele nunca falou nesse tom com Emilien.
Dupont dá um passo atrás, o rosto agora contraído de desprezo e,
talvez, raiva.
— Escute… — Tento dizer, mas sou interrompida quando ele fala um
pouco mais alto:
— Você é uma insolente! Saia agora mesmo daqui. Em casa
conversaremos.
Antony me dá as costas, para se juntar com o amigo, mas permaneço
no mesmo lugar. Não vou “obedecê-lo”. Não mais. Quando nota que não me
movi um centímetro, meu marido se vira para mim e me encara com ainda
mais raiva.
— Se mexa!
— Não. — A resposta me surpreende. Dificilmente o contrario. —
Vim pra conversar com você, então vou conversar com você! — A essa
altura, alguns clientes nos assistem.
Ele dá uma risada sem humor, esganiçada, e com dois passos, está me
encurralando contra o balcão. Por cima dos seus ombros, vejo Emilien dar
um passo à frente, como que para impedi-lo de alguma coisa, mas recua um
instante depois, parecendo indeciso. Minha respiração falha, meus olhos
voltam para os do meu frenético marido.
— Você vai pra casa, e lá, nós vamos conversar — diz, quase sem
separar os lábios.
— Vou conversar com você agora! — Ergo a voz, impondo-me.
Antony dá um passo atrás, encarando-me. Passo por ele, dizendo que
vou esperá-lo em seu escritório na galeria, mas outra vez sou impedida. Mal
dou dois passos e sou puxada de volta, agora ele ficando de costas para o
balcão, onde os funcionários assistem a esse seu escândalo.
— Veio aqui atrás de macho, sua desgraçada? — A voz se eleva.
Sinto-me completamente atingida pelo modo como me chama. Antony
sempre foi controlador e explosivo, mas essa é a primeira vez que se dirige a
mim desta maneira.
Sinto alguém às minhas costas, pedindo-lhe calma, mas estou
paralisada demais para me atentar quem seja. Meu marido se aproxima de
mim e me agarra pelo braço de novo.
— Me responde! Veio atrás dele, não é? Sua vadia! — Estalo um tapa
em seu rosto no mesmo instante. As lágrimas queimam meus olhos e mal
percebo.
Emilien agarra Antony pelo braço e pede para se acalmar, pois está
chamando a atenção. Um funcionário também aparece e pede que se contenha
ou se retire.
Ele afaga o local do tapa, seus olhos queimando de fúria.
— Nem sei por que estou dizendo isso — fala no exato instante em
que Bernardo surge atrás dele, acompanhado de Juliette, que com certeza foi
chamá-lo para nos enxotar daqui e parar de espantar seus clientes. — Que
homem ia querer você, além de mim? Olhe só pra você. Está gorda,
malcuidada, nem mesmo a maquiagem esconde suas rugas!
Cada palavra sua é como uma facada no peito. Não sei como ainda
consegue abalar minha autoestima.
— SAIA DA MINHA CAFETERIA AGORA MESMO! — A voz de
Dousseau soa como um trovão. Assusto-me junto com Antony quando
esbraveja dessa maneira. Contornando o balcão, fica frente a frente com meu
marido. Meu coração está na boca. Eles não podem sair no soco aqui. Dupont
se põe entre os dois; pede calma a Bernardo e manda Antony sair, mas o
teimoso fica estacionado onde está, desafiando a ira do dono do local.
Dou um passo atrás até esbarrar em Juliette, que me acolhe com um
sorriso. É mesmo uma falsa. Um segundo depois, sinto pena dela. Será que
Antony é assim agressivo com ela também? Se não é, e se se assumirem
algum dia, será.
— Não se intrometa, Bernardo — meu esposo ruge, empurrando-o.
Ele quer, a todo custo, começar uma briga.
— Antony, cala essa boca e sai daqui! — Emilien exige.
— Eu me intrometo — devolve, gritando mais alto. — Não vai
ofender e humilhar uma mulher dessa maneira na minha cafeteria. Saia ou
vou chamar a polícia pra você.
Contrariado, Antony se livra de Emilien, que ainda o segura, e vem
até mim, arrastando-me, enquanto reluto a acompanhá-lo. Dousseau e Dupont
intercedem por mim, graças a Deus.
— Nesse estado de raiva, a madame Leclerc não vai te acompanhar
— diz, afastando-o de mim enquanto Emilien me abraça pelos ombros.
— Ela é minha esposa!
— E você está alterado! — devolve. — Vá pra casa, se acalme. Em
algumas horas, Emilien vai levá-la até você. — Antony ainda reluta um
pouco. — Agora!
— Isso não vai ficar assim, Dousseau — ameaça antes de sair,
pisando firme.
Ele se volta para mim, olhando-me cheio de preocupações. Ainda
estou acolhida nos braços de Emilien, chocada demais para qualquer outra
reação. Bernardo se aproxima e pergunta se estou bem. Pergunta ridícula,
claro que não estou bem. Estou letárgica demais para responder com palavras
ou gestos. Não consigo. Minhas lágrimas vertem timidamente, sem nem
reparar.
— Vem comigo — sussurra, aconchegando-me em seu abraço. —
Merci — diz para Dupont, que sussurra um “de rien” de volta.
Acompanho-o até sua sala na gerência. Ele fecha a porta e a tranca.
Abraça-me de novo e ficamos assim por minutos infinitos. Nunca me senti
tão acolhida e amparada nos braços de alguém como nos dele.
— Ann-Marie… — Seu hálito sopra contra meu pescoço.
— Vou pedir o divórcio — digo, quase de forma inaudível. — Mas
tenho medo da reação de Antony. Tenho medo de que me faça algum mal.
Bernardo me afasta e me segura pelo rosto com as duas mãos. Depois
me beija na boca e nos olhos, secando minhas lágrimas.
— Não vou deixar. Eu não vou deixar — murmura.
Sou beijada de novo. E, pela primeira vez, sinto que sou beijada com
amor.
BERNARDO
Sempre repudiei violência. Meus pais sempre me orientaram a nunca
revidar qualquer coisa com violência, exceto em caso de legítima defesa.
Certa vez, quando ainda morava no Brasil, empurrei dois colegas durante
uma brincadeira em que nos desentendemos. Um deles, era, na verdade, uma
garota. Minha mãe foi chamada na escola e, em casa, ela teve uma conversa
séria comigo sobre agressão física a qualquer ser humano, mas, sobretudo,
agressão física à mulher. No dia seguinte, me desculpei com meus amigos e
os abracei. Desde então, até me tornar adulto, meus pais sempre tiveram um
foco bem intenso nessa parte da minha educação. É claro que, em algumas
ocasiões, me envolvi em brigas. Mas no geral, detesto qualquer ato violento,
a qualquer tipo de pessoa e não sou um homem agressivo. Neste instante,
contudo, enquanto Ann-Marie está nos meus braços com medo de pedir o
divórcio ao marido, cresce dentro de mim um desejo quase insano de ir atrás
daquele desgraçado e arrebentá-lo na porrada.
Separo nossos lábios e a olho dentro dos olhos, reafirmando minha
promessa:
— Não vou deixar que ele te faça qualquer mal, está me entendendo?
Você estará em segurança comigo.
Ela abana em positivo e me abraça de novo. Eu a aperto um tanto
mais em meus braços e suspiro pesadamente.
— Não quero voltar pra casa hoje. Estou com tanto medo, não sei o
que fazer.
Afasto-a, mas mantenho minhas mãos em seus braços.
— Vamos dar um jeito. Se Alfredo não estivesse na cidade, sabe que
poderia ficar no apartamento dele. E também não quero envolvê-lo nisso tão
cedo. Ainda não contei a ele sobre nós.
— E se eu ficasse no seu apartamento? — pergunta, puxando minha
mão para entrelaçar nossos dedos.
— Óbvio demais. Tenho medo de ele aparecer por lá. Mesmo que a
segurança seja boa e a portaria jamais o deixe subir sem minha autorização,
nada o impede de espiar da rua. Se te vê saindo de lá, será pior ainda.
Devemos pensar em outra solução.
Ela abana em positivo e torna a me abraçar. Apoio o queixo sobre sua
cabeça e permanecemos assim por alguns minutos, procurando uma solução.
Não vou deixar mesmo que ela volte para sua casa com Antony naquele
estado alterado. Não disse nada, mas também sinto medo do que possa fazer
contra sua integridade física. Só de pensar nisso me dá asco e um nó
intragável na garganta.
— Quero tirar minha carta de motorista — diz de repente. — E ter um
espaço para expor minhas criações. Quero fazer um monte de coisas que não
fiz esses anos todos por ter sido controlada pelo meu próprio marido.
Sorrio e acaricio seus cabelos.
— Terá sua autonomia, ma chérie. E do que depender de mim, vou te
apoiar em tudo. Te quero ver livre, independente… E de preferência que
esteja ao meu lado, pra comemorar contigo cada conquista sua.
Sinto seus braços me esmagarem mais em torno da minha cintura.
Ficamos em silêncio por mais alguns instantes até que uma ideia se
forma na minha cabeça. É absurda, é estúpida e provavelmente vou me
arrepender no futuro. Contudo, parece ser a única solução viável no
momento. E segura, o que é o mais importante no momento. Antony jamais
pensaria em procurá-la lá. Respiro fundo e digo:
— Já sei onde poderá ficar.

Deixo-a no meu escritório e vou até o salão principal. Emilien


continua aqui, esperando-a para levá-la para casa, como prometeu ao traste
do Leclerc.
— Tem um minuto? — pergunto. Dupont afirma; solicito para que me
siga. Não é o melhor lugar para uma conversa desse nível, mas como Ann-
Marie está no meu escritório e não quero arriscar que os funcionários
escutem minha conversa, nos encaminho até o estoque. Acendo a luz e tranco
a porta. — Desculpe pelo local — peço. Emilien me dá um sorriso e move a
mão no ar, desprezando meu pedido.
— Ann-Marie está mais calma? — Quer saber.
— Sim. Mas está com medo de voltar para casa.
— É compreensível. — Dupont foge do meu olhar um segundo. —
Está dormindo com ela, não está? — Não sei que reação ter nesse momento.
Qualquer coisa que diga ou faça pode confirmar as suspeitas dele. O homem
abre um sorriso cínico e completa: — Nem adianta mentir para mim. Sei que
estão tendo um caso.
— Como pode ter tanta certeza? — Faço-me de desentendido. Um
segundo depois, penso que Marie pode ter dito algo. Se ela realmente o fez,
confesso que isso vai abalar minha confiança nela.
Emilien dá um sorriso frio e coloca as mãos no bolso da calça,
desviando novamente o olhar para um ponto fixo e ao longe.
— Prometa-me que não vai dizer nada a Marie — fala, com um tom
duro e inflexível. Noto até mesmo que seu corpo ficou rígido de uma hora
para outra. Que merda ele fez?
— Não posso prometer nada, Emilien, não sei do que se trata.
Ele bufa e passa a mão pelo rosto. Enfia novamente as mãos no bolso
e me olha com atenção, as sobrancelhas unidas.
— Coloquei um rastreador no celular dela. — Arregalo os olhos,
surpreso com sua confissão. — Foi em um dos nossos encontros depois que
voltamos da África. Sempre estou em viagem e, acredite, Dousseau, me
preocupo com aquela mulher.
— Está vigiando os passos dela? Droga, você é controlador e abusivo
como Antony?! Chegou a esse nível, Emilien?
A expressão dele não se abala.
— Marie quase sofreu uma tentativa de abuso no passado, você sabia?
— Engulo em seco, pois não tinha conhecimento deste fato. — Ela me
contou, disse que tinha sido depois de pegar um táxi. Uma das minhas
empresas desenvolveu um aplicativo de localização que emite sinais de
alertas para a polícia e celulares registrados na agenda telefônica, basta que a
pessoa aperte uma sequência de três números. Pedi a Marie para instalar, para
lhe dar algum tipo de segurança. O que ela não sabe é que consigo rastreá-la,
mesmo se não acionar a sequência de pedido de socorro. Eu estava em uma
das minhas viagens e… não sei — suspira, mordendo o lábio inferior. — Me
deu vontade de saber dela. Então a rastreei. E ela estava no seu endereço. Me
bateu um sentimento negativo … então mandei um dos meus funcionários
ficar na frente do seu prédio.
Emilien dá uma risada seca e sem humor.
— Ele me retornou com um relatório completo. Marie tinha saído
logo depois de uma segunda mulher chegar em um táxi e se identificar apenas
como Ann-Marie, ocultando o sobrenome, mas o porteiro confirmou um
segundo mais tarde. — Isso foi quando transamos pela primeira vez. Isso foi
há dois dias! — Não contei nada a Antony e nem pretendo contar — diz, e eu
confio em sua palavra. Se quisesse ter falado qualquer coisa, já teria feito.
— Agradeço. Se ele souber, nem sei o que poderá fazer com a esposa.
A integridade física dela está em jogo.
— A sua também.
— Não me importo comigo. É por isso que preciso de um favor.
Preciso que vá até Antony e diga que a esposa dele não voltará para casa hoje
e ficará em um lugar seguro.
— Em sua casa? — Ergue uma sobrancelha.
— Não sou estúpido nesse nível.
Emilien dá um pequeno sorriso e abana em positivo.
— Tente acalmar aquele ogro para que a mulher possa voltar amanhã
em segurança.
— E você aceitará ser o outro assim, dessa maneira?
Sua pergunta me ofende.
— Não. Ann-Marie vai pedir o divórcio em breve.
Dupont apenas acena em positivo e me deseja sorte. Agradeço-o pela
ajuda e trocamos um abraço rápido. Ele se vai, e torço para que honre sua
palavra e realmente não conte nada a Leclerc sobre eu ser amante da mulher
dele.

— Aonde está me levando? — Ann-Marie me pergunta, durante o


trajeto.
Não queria que elas se conhecessem nessas circunstâncias. Inclusive,
já até posso ouvir o sermão que vou receber até os últimos dias da minha
vida. Mas estou numa sinuca de bico e não vejo outra solução a não ser pedir
a ajuda de Ester.
— À casa dos meus pais — falo com cuidado, sem desviar minha
atenção do trânsito.
Pela visão periférica, noto-a me olhando assustada. Até posso dizer
que seu corpo fica rígido no lugar.
— Bernardo… — Tenta me advertir, mas a impeço, tocando sua coxa
e dizendo:
— Olha, também odeio ter que recorrer à minha mãe. Mas prefiro
passar o resto da vida ouvindo-a resmungar sobre eu ser amante de uma
mulher casada do que pôr em risco sua segurança.
Ficamos em silêncio por dois segundos inteiros. Olho-a com um
sorriso, ela sorri para mim também. Sua mão toca minha coxa e fica ali me
acariciando durante o restante do percurso.
Quando chegamos, minha mãe está me esperando no jardim principal
e faz cara de poucos amigos ao notar que estou acompanhado. Tenta soar
agradável com Ann-Marie, cumprimenta-a e nos convida para entrar e tomar
café. Meu pai está na cozinha, onde a mesa já está posta — avisei com
antecedência sobre minha vinda, não que eu tenha mencionado trazer uma
acompanhante —, e lê o jornal. Ao notar nossas presenças, se levanta e vem
nos cumprimentar. Ele me dá um beijo no rosto e na testa e faz o mesmo com
minha acompanhante. Papai é bem mais sociável do que minha mãe, o que
me dá algum alívio para deixá-la passar a noite aqui sem perigo de sofrer
represálias de Ester. Tudo bem. Talvez esteja exagerando um pouco. Mas
mamãe com toda certeza arrumaria jeitinhos de alfinetá-la. A última coisa
que quero é minha mãe a julgando sem saber a história por completo.
— Que moça mais linda, meu filho — papai diz, encantado com Ann-
Marie, puxando uma cadeira e a convidando a se sentar. Ela me olha com um
sorriso. Pois é, chérie. Foi desse velho que puxei todo esse charme. Ela se
senta e agradece enquanto mamãe também se põe em seu lugar e
complementa:
— E casada, Edmond.
Reviro os olhos. Leclerc fica corada. Papai me olha meio surpreso,
mas depois abre um sorriso pequeno.
— E qual o motivo da visita? — Edmond quer saber, servindo-nos
com café.
— Vim pedir ajuda. O marido dela está alterado, é um homem
violento e abusivo, e ela está com medo de voltar para casa e ser agredida.
Papai me olha atentamente, parando um segundo com sua tarefa.
Qualquer outra pessoa teria perguntando logo de cara “o que ela fez?”, mas
não meu pai. Porque meu velho é consciente o bastante para entender que não
importa o que tenha feito, nada justifica agredir uma mulher.
— Ele é violento ou está apenas furioso porque você está dormindo
com a mulher dele? — Ester alfineta, o que me deixa surpreso e irritado.
Mamãe nunca foi de ter esse tipo de comportamento quando o assunto
envolve violência doméstica. Não sei por que o faz agora. Muito
provavelmente porque preferia que eu estivesse me envolvendo com uma
moça solteira.
— Ester… — papai adverte. Notando seu erro, mamãe pede
desculpas e a encara com os olhos mais maternais.
— Pode ficar conosco o tempo que precisar.
Ann-Marie abre um sorriso de agradecimento (eu me sinto aliviado
por mamãe ter baixado um pouco a guarda) e explica um pouco mais sobre o
comportamento de Antony, que sempre foi agressivo e controlador antes
mesmo de nos conhecermos e nos envolvermos.
— Nunca notei de como ele era abusivo. Achava que era normal,
apenas o jeito dele. Depois que o conheci… — Seus olhos claros se voltam
para mim, com um sorriso. — Ele me fez perceber o verdadeiro caráter de
Antony e de como minha crença em Deus estava legitimando as atrocidades
de meu marido sem que eu percebesse. Seu filho me fez ver que posso ser fiel
à minha crença mesmo se me livrar de um homem abusivo. Agora sei que
Deus sempre quer o melhor para seus filhos. Antony com toda certeza não é o
melhor pra mim. Bernardo é.
Porcaria. Fico sem reação diante sua fala. Dificilmente perco a voz
quando o assunto é mulher. Sempre tenho resposta para tudo. Não nesse
momento. Não quando Ann-Marie faz essa declaração que mexe comigo de
uma forma indizível. Sem ter o que responder, apenas me aproximo e deixo
um beijo suave em seus lábios, encostando nossas testas em seguida.
— Merci — agradece, com um sussurro.
Sorrio e lhe dou outro beijo.
— Sempre que precisar, mon ange. Sempre que precisar…

Ann-Marie continua na presença do meu pai enquanto mamãe me


chama para uma conversa mais reservada. Ela me conduz até um pequeno
cômodo que meu pai usava como escritório quando eu era criança e fecha a
porta. Já me preparo psicologicamente para seus sermões, mas segundos
inteiros se passam antes de se pronunciar:
— Você a ama? — A pergunta me atinge com o mesmo efeito de um
trem passando em cima do meu corpo. Estou atraído por ela, isto é tão
cristalino quanto água, mas acredito que amar seja um verbo forte demais
para se dizer levianamente. — Isso vai durar, Bernardo? — pressiona-me
mais. — Ou será outras das suas aventuras sexuais e dentro de alguns meses
essa moça não significará mais nada para você e simplesmente passará para a
próxima?
Trinco o maxilar e a encaro seriamente, pesando sua pergunta. Sinto
que Ann-Marie significa mais para mim do que qualquer outra mulher já
significou, mas daí afirmar que é amor é um passo grande demais que não
posso dar nesse momento.
— Não posso ter certeza de nada, mãe. O futuro é incerto.
Ela põe a mão na cintura e dá um passo à frente.
— Você quer ficar com essa moça? — Sua voz é incisiva.
— Eu quero — respondo de imediato. — Mas não posso garantir
viver “feliz para sempre” porque não tenho bola de cristal.
Ester chuta minha canela.
— Não seja respondão — adverte, enquanto me abaixo para afagar o
lugar que ela acertou. — Estou falando sério com você. Preferia que se
envolvesse mil vezes com uma moça solteira, pra poderem se casar na igreja,
não com uma divorciada, mas já que não tenho opção, preciso saber que vai
honrá-la e sossegar com essa mulher. E me dar netos.
Encosto-me à borda da mesa e suspiro baixo.
— Mãe, a única coisa que prometo é me esforçar pra não a magoar e
ser um bom homem para ela. Casamento, filhos e o futuro da nossa relação
não vai depender de mim. É tudo ainda muito incerto. Vamos devagar, dona
Ester.
Ela me olha com cara de contrariada, mas vem em minha direção e
me abraça, pedindo-me para tomar cuidado com Antony. Retribuo seu abraço
e agradeço a preocupação e por acolher Ann-Marie um dia aqui. Voltamos
até a cozinha, onde meu velho está em uma conversa animada com a futura
nora. Sento-me ao seu lado e passamos mais algum tempo na companhia dos
meus pais até eu precisar me ausentar. Tenho que ajeitar umas coisas para
minha viagem com Alfredo amanhã a Orleans. Despeço-me dela prometendo
voltar em breve e, novamente, agradeço aos meus pais pelo acolhimento.
Depois de me ajudar dessa maneira, Ester pode me azucrinar sobre
casamento e filhos o quanto ela quiser.
Não vou reclamar.
ANN-MARIE
Os senhores Dousseau são boas pessoas, embora de primeira Ester
tenha sido um pouco hostil e desagradável. Até a compreendo. Depois que
minha situação é brevemente explicada, eles se tornam mais amáveis comigo.
O monsieur Edmond é um homem encantador; agora sei de onde Bernardo
herdou tanto charme e carisma. A audácia e os modos cínicos puxou da mãe,
algo que percebi durante o tempo em que conversamos. De qualquer maneira,
são um casal de pessoas de bom coração.
Passo todo o restante da tarde na companhia de Edmond, jogando
xadrez, jogo este que ainda está aprendendo, e me divirto muito. Madame
Dousseau fica junto de nós lendo um livro ou tricotando. Quando a tarde vai
acabando, ajudo Ester com os preparativos do jantar enquanto espero pela
volta de Bernardo. Embora goste muito de estar aqui, tenho saudades dele e
começo a me sentir deslocada. Ele chega pouco antes de terminar de pôr à
mesa. Sou recebida com um abraço quente e um beijo singelo na testa.
— Mamãe se comportou? — sussurra, acariciando meu rosto e
colocando uma mexa do meu cabelo atrás da orelha.
— Sim, Ber… — respondo. — Ester é uma boa pessoa.
Ele ergue uma sobrancelha e exibe um sorriso.
— Ninguém elogia minha mãe além do meu pai. E por razões de que
ele não quer tomar uma panelada na cabeça se não o fizer — diz, cheio de
humor.
Seguro uma risada maior e me jogo em seus braços de novo, sentindo
falta do seu calor e da sua pele. Coloco as mãos por dentro do seu terno de
três peças, enveredando meus dedos pelas suas costas macias. Ele se inclina
mais sobre meu pescoço e inspira profundamente.
— Senti saudades — falo, sinceramente.
— Eu também — devolve, com a voz rouca. Por fim, me afasta dos
seus braços e me mostra a mochila pendurada em seus ombros. — Trouxe
algumas roupas minhas para você usar hoje à noite. Ester já te preparou um
quarto? — Abano a cabeça em positivo. — Não me diz que é o meu antigo?
— indaga, fazendo uma careta.
— É, sim. — Não evito um sorrisinho enquanto ele fecha os olhos e
bufa. — Sabia que lá ainda tem pôsteres de algumas atrizes e debaixo da sua
cama tem revistas da Playboy?
— Por que acha que fiz essa cara de decepção? — questiona, mirando
o próprio rosto. Gargalho e pego a mochila da sua mão, agradecendo-o pela
preocupação. Levo-a para meu quarto temporário enquanto ele segue para a
cozinha para ajudar Ester a trazer a comida para a mesa.
Depois do jantar, que decorre com uma conversa bem animada e
prazerosa, nos recolhemos em sua antiga suíte. Ele mal entra e começa a
arrancar os pôsteres da parede. Não me contenho e rio ao vê-lo constrangido
por sua mãe ainda manter a “decoração” da sua fase de adolescente. Por fim,
me puxa pelos punhos e me traz para um beijo indecente, que retribuo sem
pensar duas vezes, enquanto tento arrancar seu paletó. Sou jogada na cama e
Bernardo vem por cima de mim, devorando-me, apalpando os centímetros de
pele que sua mão encontra. Metemo-nos por debaixo dos edredons e fazemos
amor. Quando volta do banheiro, onde foi descartar a camisinha, me
acomodo em seu peito desnudo e suado e conversamos por alguns minutos;
ele me fala sobre a fraude em sua empresa e que a reunião no dia seguinte
será para investigar quem está por trás dos desvios.
Meu indicador brinca com a pele do seu tórax e, sem nem perceber,
me declaro com um sussurro:
— Je t’aime.
Não tenho coragem de encontrar seus olhos após dizer que o amo. Por
longos segundos, ele tampouco me responde. Ficamos em silêncio, até que
caio no sono. Sem obter uma resposta dele.

No outro dia, acordo e me vejo sozinha na cama. Um sentimento de


solidão invade meu peito e me faz engolir em seco. Eu o espantei com minha
declaração ridícula. Levanto-me e pego um par de roupa da mochila — já
meio vazia, indicando que ele também usou algumas peças — e sigo até o
banheiro. Tomo um banho rápido, tentando pôr os pensamentos em ordem e
criando alguma coragem para ir embora e encarar meu marido. Antes de me
vestir, reflito por algum tempo. Definitivamente não posso aparecer em casa
com roupas masculinas. Decido que resolvo isso depois e me visto com uma
calça de moletom e uma das camisas dele. Ligo meu telefone –— que
desliguei para evitar aquele traste — e confiro as horas. Quase dez da manhã.
Nem acredito que dormi tanto.
Esgueiro até a cozinha, descalça, e encontro Edmond sentado à mesa,
com uma xícara de café e lendo jornal. Ao reparar em minha chegada, desvia
sua atenção da leitura e sorri para mim.
— Bonjour — cumprimenta-me e oferece em seguida: — Café?
Aceito com um maneio de cabeça. Ele me serve enquanto me ajeito
no lugar.
— E Bernardo? — pergunto, esfriando minha bebida.
— Saiu logo cedo. Ele tem uma reunião em Orleans. — Seus olhos
encontram os meus. — Ele não te avisou?
— Avisou, sim — afirmo com um suspiro e um mover de cabeça. —
Mas… ele me deixou dormindo e foi embora? — pergunto, mesmo
parecendo óbvio.
Agora estou com medo de tê-lo assustado. Estou ciente de que
Dousseau é um homem de espírito livre e que não se prende a ninguém. Que
ideia estúpida foi essa minha de me declarar? Talvez até me dispense. A
insegurança e a incerteza da minha relação com ele atormentam minha
cabeça e já nem sei mais o que pensar.
Edmond me olha com cuidado antes de responder:
— Talvez não quisesse te acordar.
Aceno em positivo.
— Talvez seja isso.
Tento ignorar meu coração sendo açoitado pelo pensamento de que
ele pode me deixar e tomo meu café. Tento contato com Bernardo mais um
par de vezes, mas não atende ou retorna minhas ligações. Durante as
próximas horas, sinto meu coração na boca, ansiosa e insegura com o que
acontecerá entre nós daqui para frente. Seu sumiço me faz criar paranoias e
tenho quase certeza de que o espantei. Isolo-me no quarto onde passei a noite,
fazendo um esforço para não julgar sua atitude sem saber o que aconteceu,
mas pensar que vai me dispensar é inevitável. O homem é um maldito
mulherengo. Não deveria esperar menos.
Alguém bate à porta. Ajeito-me na cama, permitindo a entrada. Rezo
tanto para que seja ele. Todavia, quem aparece é sua mãe, segurando uma
sacola de uma marca famosa de roupas.
— O almoço está quase pronto — avisa, com um sorriso maternal. —
Bernardo me ligou e pediu para te entregar isto. — Estica a sacola para mim.
Pego-a e confiro seu conteúdo. Algumas trocas de roupa femininas.
— Ele ligou para a senhora? — indago.
— Sim. Umas duas horas atrás. Pediu para te comprar alguns pares de
roupas.
Engulo em seco e desvio o olhar. Isso significa que viu minhas
ligações perdidas e mesmo assim não me retornou. Suspiro e seguro uma
lágrima. Ester se senta ao meu lado e pega minha mão.
— O que há, chérie?
— Não é nada. — Só me declarei para seu filho, ele foi embora e não
quer mais falar comigo. — Mas ele saiu logo cedo sem nem se despedir.
Tentei ligar pra ele, não atendeu nem retornou. Mas ele ligou para senhora,
então… — Encolho os ombros.
— Compreendo… — murmura, levantando-me em seguida. — Não
quero parecer uma megera, Ann-Marie, mas meu filho… — Olha-me com
atenção, umedecendo os lábios, talvez escolhendo com cuidado as próximas
palavras. — Ouça, o que eu mais quero na vida é que aquele safado sossegue
o facho, se case e tenha filhos. Não sou uma sogra ruim, pode acreditar, não
sou aquele tipo louca que inferniza a vida da nora porque não a acha boa o
suficiente para o meu bebê. Na verdade, qualquer uma que consiga fazê-lo ter
uma relação monogâmica e estável já é boa o bastante. Mas ele está com
trinta e nove anos e até agora só teve muitos romances passageiros e
pouquíssimos namoros. Não crie expectativas demais com Bernardo. E não
estou dizendo isso pra te afastar dele. Non, chérie, não pense isso. É um
conselho. Porque gostei de você e não quero te ver sofrendo por causa do
meu filho. Se isso acontecer, serei obrigada a fazer algo que nunca fiz com
Ber: dar uns tapas nele.
Abro um sorriso, meio de graça, meio fúnebre, e acabo concordando
com Ester. Ela tem razão. Não posso criar expectativas com Dousseau, não
quando conheço seu modo de vida e sua fama de mulherengo
descompromissado.
— Merci — agradeço pelo conselho. Ester apenas sorri e me deixa
sozinha. Troco de roupa, pondo o vestido preto que me foi comprado. Ficou
bonito em mim e me serviu perfeitamente. Fico feliz com a preocupação dele,
apesar de tudo.
Balanço a cabeça em negativo e me concentro no que está por vir:
preciso voltar para casa e enfrentar meu marido. O medo aflora na superfície
da minha pele e decido ir à casa de meus pais primeiro e de lá ligar para
Antony e dar notícias do meu paradeiro. Não quero arriscar ficar sozinha com
aquele homem quando for pedir o divórcio.
Almoço na companhia dos senhores Dousseau e depois os ajudo com
a limpeza da cozinha. Já passa das três da tarde quando decido que é
necessário retornar para minha vida. Monsieur Edmond me acompanha até a
saída; sigo calada, atormentada pelos meus pensamentos. Bernardo não fez
contato até agora e estou preocupada e com medo de que possa ter desistido
de nós.
— Me conte o que está acontecendo, ma chère — Edmond pede
quando chegamos ao portão de entrada. Olho para o horizonte para que ele
não veja tristeza e incerteza em meus olhos.
— Eu disse que o amo. E provavelmente ele ouviu “amo você, quero
casar e encher nossa casa de filhos. Acabou sua vida de galinha
descompromissado.” Eu o assustei e ele fugiu de mim — despejo de uma vez,
o humor ácido na ponta da língua.
— Provavelmente — Edmond concorda, com um leve sorriso. — Mas
não porque meu filho foge de compromisso como o diabo foge da cruz, e sim
porque percebeu que quer o mesmo.
Suspiro e finalmente o olho.
— Se fosse mesmo verdade, teria me respondido ontem quando me
declarei.
Edmond me segura pelas mãos e me olha nos olhos.
— Tenha paciência. Isso tudo o que ele está sentindo deve ser novo e
é o que realmente o deixou assustado. Espere-o voltar da reunião em Orleans
e ponham tudo em pratos limpos.
Sorrio e o abraço, agraciada de como Edmond é um homem incrível.
Acolheu-me, me amparou, não me julgou como qualquer outra pessoa faria e
tem tentado me deixar mais confiante em relação a Bernardo. Agradeço-o
pela última vez por tudo e entro no táxi que acabou de chegar.
Apoio a cabeça no vidro durante a viagem, pensando em que rumo
darei à minha vida.

Quando chego à casa de meus pais, mamãe já está sabendo que passei
a noite fora. Já era de se esperar. Antony deve ter vindo aqui à minha
procura. Mamãe quer saber o que houve ente mim e meu marido e onde
estive a noite toda. Decido ser sincera e conto sobre a confusão do dia
anterior na cafeteria.
— Passei a noite na casa de Marie, uma amiga de Bernardo — minto.
No percurso até aqui, pensando que deveria ter uma mentira para dizer onde
fiquei, liguei para Julien e pedi para me encobrir. Por sorte aquela mulher é
uma pessoa maravilhosa e aceitou me acobertar. — Vou ligar para Antony
agora e dar sinal de vida. Nós precisamos ter uma conversa séria.
Enquanto espero a chegada de meu marido, tento contato mais um par
de vezes. Preciso de certeza que ele estará mesmo ao meu lado e me dando ao
apoio quando pedir o divórcio a Antony. Preciso de sua segurança caso meu
esposo tenha uma reação raivosa e exagerada com o pedido — o que
certamente acontecerá. Contudo, continua a não atender minhas chamadas.
Começo a me preocupar e a pôr em dúvida o futuro da nossa relação,
fazendo-me questionar: ele vai cumprir sua promessa?
Antony chega cerca de meia hora depois. A expressão não é nada do
que esperava ver. Está assustado, com olheiras, cabelos desgrenhados e roupa
engomada. Seus braços me esmagam em um abraço sufocante.
— Pour l'amour de Dieu! Onde você esteve? Fiquei tão preocupado.
Queria tanto me desculpar e…
Ergo a mão e o impeço de continuar falando.
— Aqui não, Antony. Precisamos de um lugar mais reservado.
— Vamos para casa — diz, já me puxando pelo punho.
Dou um passo atrás e o encaro.
— Não quero ficar sozinha com você.
Antony me olha com cuidado e franze o cenho.
— Acha que sou capaz de te fazer alguma coisa? — indaga, o tom de
quem está ofendido.
Tempos atrás eu o defendia, dizia a mim mesma que ele não seria
capaz de me machucar. Agora tenho sérias dúvidas. Antony já provou que em
acessos de raiva e descontrole é ainda mais agressivo.
— Vamos conversar em um local mais reservado, por favor. E aqui.
Vou pedir ao papai que permita usar o escritório dele.
Viro nos calcanhares e vou ao encontro de papai, na cozinha junto de
minha mãe. Ele libera o escritório no segundo andar para conversarmos. O
local é seguro, com grades nas janelas e câmera de segurança interna. Só
assim me sinto confiante o suficiente para chamá-lo e dizer tudo o que
preciso.
Ele adentra o local com cara de contrariado, observando tudo ao
redor. Fecho a porta, mas, por segurança, não a tranco.
— Você ainda não me respondeu. Acha mesmo que seria capaz de te
agredir?
— Você já o fez em outras ocasiões — devolvo, pondo-me atrás da
mesa no escritório.
Mais uma vez, sua expressão é de ultraje.
— S’il te plaît… Aquilo nem pode ser considerado agressão! Te
apertei com um pouco mais de força, talvez, mas porque estava bastante
irritado com você. E todas as vezes em que me exaltei foi por sua culpa, por
insistir em ficar perto de Dousseau quando claramente te mandei se afastar
dele.
— Agora você quer me culpar pelos seus acessos de raiva e ciúmes
descabido? Você me empurrou, me intimidou, quebrou meu celular, me
manipulou e sempre controlou todos os aspectos da minha vida! Isso tudo
configura violência, se não física, certamente psicológica e patrimonial.
Então não me culpe por ter medo de ficar perto de você.
Há um instante de silêncio entre nós, denso, quase palpável. Meu
esposo me analisa por segundos inteiros, talvez não me reconhecendo. Eu
mesma não me reconheço. Em outras ocasiões jamais teria falado com ele
desta maneira, sequer teria essa consciência que tenho agora. Demorei a notar
o relacionamento tóxico em que estava inserida. Graças a Bernardo, que me
abriu os olhos, hoje sou capaz disto, e tudo que mais quero na vida é me
livrar de Antony e viver minha vida em paz e melhor ao lado de alguém que
realmente me valorize. Alguém este que está longe, não me retorna e me
deixou insegura quanto sua palavra de estar ao meu lado nesse momento
decisivo.
— Tem razão — Antony confessa, deixando-me surpresa. — Mon
Dieu, tu as raison. — “Você tem razão.” — Pretendo mudar, chérie. Juro que
nunca mais isso vai acontecer. Vou me esforçar para ser menos ciumento e
controlador. Como prova disso… vou te ajudar com a loja na galeria. Meu
assistente me disse que você quer o local para expor seus modelos. Vou te
ajudar, mon amour.
Quando li a matéria a respeito de homens abusivos, uma das
características era a promessa de mudanças de comportamento. Não é a
primeira vez que pede desculpas por me magoar, nem a primeira vez que
promete mudar. Conheço o padrão. Se decidir por perdoá-lo, dentro de breve
repetirá sua postura abusiva e agressiva — às vezes até pior —, me pedirá
desculpas de novo até conseguir acabar com meu psicológico e me enfiar
numa depressão.
Desvio meus olhos dos seus. Deveria abrir a boca e pedir o divórcio
agora mesmo, dizer que sei que tem dormido com Juliette. O medo, contudo,
me refreia. Preciso esperá-lo voltar de Orleans e saber se estará mesmo ao
meu lado se precisar de apoio.
— Comprei duas passagens para Marselha — Antony diz de repente,
tirando-me dos meus devaneios. — Nosso voo é amanhã. Acho que
precisamos de umas férias, descanso… — Aproxima-se de mim e faz carinho
no meu rosto. — Uma segunda lua de mel, o que acha?
Acho terrível. Não consigo respondê-lo de imediato. Minha cabeça
está tão confusa…
— Tudo bem… — concordo com um murmuro, quase sem nem
perceber, e me arrependo um segundo depois.
Antony me toma em um beijo singelo e me convida a irmos para casa.
Abano em positivo, ainda sem acreditar que aceitei essa viagem estúpida. Só
torço para Bernardo entrar em contato comigo. Apenas se me assegurar que
estamos bem terei coragem de cancelar com meu marido e pedir o divórcio
ainda hoje. Do contrário, me farei refém de meu próprio medo até pensar em
outra solução de me livrar deste homem.

Desembarco sozinha em Paris, depois de duas semanas em Marselha


com Antony, em uma viagem que, de acordo com ele, foi nossa segunda lua
de mel. No nosso último dia lá, Emilien entrou em contato e pediu que
viajasse até Monte Carlo a negócios. Meu marido até me convidou a
acompanhá-lo ao distrito de Mônaco, distante apenas em umas duas horas e
meia de carro de Marselha, mas passados quinze dias sem contato com
Bernardo, preferi retornar à capital e ter dois dias para procurá-lo e
conversarmos sobre essa maldita situação.
Pego um táxi e passo as coordenadas da viagem enquanto ligo pela
primeira vez para ele desde a última vez. Atende no primeiro toque, sua voz
rouca e cheia de paixão faz minhas pernas tremerem e meu interior se
remexer todo.
— Ann-Marie…
— Posso usar a cópia de seu sócio? — indago.
— Oui. Ele foi embora há mais de uma semana.
— Chego em trinta minutos — digo apenas e desligo.
Uma vez em nosso ponto de encontro, ele já está aqui. Vem em minha
direção e me toma em um abraço apertado, depois, em um beijo profundo.
Suas mãos fortes apertam minha cintura, como se me reivindicasse para si.
Sou prensada contra porta, seu corpo grande esmaga o meu enquanto tento
afastá-lo para, ao menos, respirar. Bernardo espalma contra a superfície atrás
de nós e afasta apenas o suficiente para que eu possa tomar um pouco de ar.
Ele está de olhos fechados; a respiração, esbaforida.
— Por que passou esses dias todos longe e ainda por cima com
Antony? — sussurra, seus lábios molhados perto dos meus.
— Você sumiu por todo aquele dia, não atendeu minhas ligações —
murmuro em resposta, mirando seus olhos claros. — Fiquei em dúvida se ia
mesmo ficar comigo depois… — Mordo o lábio inferior e desfaço o contato
visual por um segundo. — Depois que disse que te amo.
— E por conta disso correu de volta para os braços daquele imbecil?
— indaga, cheio de incredulidade.
Empurro-o, sentindo a raiva passear pelo meu corpo, e respondo:
— Não corri de volta para os braços de ninguém. Você nunca vai
saber como é estar na minha pele e ter medo de falar com Antony, medo de
que reaja mal e me agrida. Tive medo de pedir o divórcio e tomar uma surra
em seguida. Você sequer estava aqui para me dar segurança de que poderia
recorrer a você se precisasse de apoio e refúgio.
Ele parece atingido pelas minhas palavras e me encara seriamente,
talvez percebendo como foi idiota da sua parte simplesmente “me abandonar”
quando tinha prometido não permitir que Antony me machucasse. E se em
uma das minhas ligações eu estivesse pedindo socorro? Teria me ignorado.
— Por que fugiu de mim?
Vejo-o engolir em seco e se aproximar de mim novamente, tocando
meu rosto com carinho.
— Fiquei assustado — confessa.
— Só porque me declarei?
— Não. Porque você foi a primeira mulher a dizer que me ama. Isso
mexeu comigo. É tudo tão novo pra mim, esse meu sentimento por você, o
modo como quero te proteger, te tomar em meus braços, ficar contigo.
Precisava digerir tudo, precisava de um tempo sozinho pra dimensionar o
quanto… — Para de falar, seu cenho se franze, um brilho diferente cruza seus
olhos. Espero ansiosa pela declaração, mas apenas diz: — O quanto é
importante e significa pra mim.
Bernardo não me ama. Talvez nunca vá amar. Eu sabia que sua
atração era mero desejo sexual, que eu seria apenas mais uma na sua longa
lista de conquistas sexuais. Não sei por que fui me envolver tanto com este
homem, criar tamanhas expectativas. Ester, no fim, estava correta. Agora
sinto meu coração se despedaçar aos pouquinhos.
— Você não me ama de volta, não é? — As palavras escorregam,
quase inaudíveis.
Sua carícia em mim continua; ouço um suspiro escapar de seus lábios
saborosos.
— Não sei… já te disse. É tudo tão novo e confuso pra mim. Preciso
de tempo pra distinguir o que sinto por você, até porque nunca amei alguma
mulher na minha vida. Mas de uma coisa você pode estar certa. Quero estar
com você, te assumir, te trazer pra morar comigo. Você não vai ser só mais
uma na minha vida.
Consigo sorrir um pouquinho e me ergo em meus pés para deixar um
beijo em seus lábios.
— Você dormiu com Antony? — pergunta de repente. Engulo em
seco e desvio o olhar por um segundo; ele me pressiona: — Ann-Marie…?
— Eu tive que… — Nem termino de proferir, ele dá um soco na
parede. Seus olhos, antes amáveis, estão cheios de loucura.
— Quantas vezes? — exige. Há um traço de cólera em suas palavras.
Pela primeira vez desde que o conheci, me sinto intimidada.
— Três ou quatro, nas últimas duas semanas — respondo, com um
fiapo de voz.
A linha dos seus lábios se torna uma só e tensa. Ele parece pronto a
explodir de raiva e isso me deixa com medo. Subitamente, se afasta de mim,
andando pelo apartamento com a mão na cabeça.
— Eu precisei… — Pego-me explicando. A voz está carregada, meus
olhos se enchem de lágrimas sem que eu perceba. — Não podia negar… Tive
medo de que ele desconfiasse e…
— Isso me deixa insano! — grita, sobressaltando-me. Vem até mim,
encurralando-me de novo. — Saber que ele te tocou me deixa insano!
Estou assustada com essa reação, as lágrimas descem livremente
pelos meus olhos.
— Está se comportando como ele — murmuro. — Está me
assustando, Bernardo.
— Como pode pensar por um segundo que sou igual àquele canalha?
— ruge, assustando-me ainda mais.
— Porque você está gritando comigo, me intimidando e me fazendo
sentir que é minha culpa ter tomado certas atitudes, influenciada pelo medo
de ser agredida! — grito, deixando mais lágrimas escaparem.
Um segundo mais tarde seu abraço me esmaga e sua boca está na
minha, beijando-me com força e necessidade. Ele me gira, me põe em seu
colo e me leva até o sofá. Quase não me vejo perdendo o vestido, só me dou
conta disto quando seus dedos habilidosos estão lá embaixo, estimulando-me
enquanto o polegar da mão direita seca minhas lágrimas insistentes.
— Nunca mais vou te fazer se sentir assim — diz, com a voz rouca.
Meus olhos enfim encontram os seus e noto uma expressão dolorida e de
arrependimento em cada traço do seu rosto. — A única vez em que você vai
chorar por mim será quando eu estiver te comendo.
Um gemido me escapa ao mesmo tempo em que dois dedos me
penetram lentamente. Resfolego e me agarro ao sofá. Minhas lágrimas dão
lugar aos gemidos altos e incontroláveis. Nesse momento sei que Bernardo
não tem e nunca terá nada de Antony.
Eu amo infinitamente mais por isso.
BERNARDO
Ela geme meu nome, deixando-me insano e cada vez mais duro. Sou
um idiota por ter gritado com Ann-Marie, movido por um ciúme inflado e de
raiva. Raiva de mim, jamais dela, por ter sumido um dia inteiro e colaborado
para que se sentisse insegura em relação a nós. Nunca deveria deixá-la
duvidar do quanto a quero e de quanto estarei ao seu lado, apoiando e dando
a segurança necessária para pedir o divórcio.
Sua declaração, contudo, duas semanas atrás, me assustou. Assustou-
me porque ainda não me acho digno do amor dessa mulher. Não esperava por
um passo tão grande como ela deu e quero amá-la de volta na mesma medida,
com a mesma intensidade. O sentimento é recíproco. Só não sei se na mesma
escala. Quando me declarar, estaremos igualados em relação a nossos
sentimentos.
— Bernardo… — É a décima vez que geme meu nome em um curto
espaço de tempo. Ainda estou entre suas pernas, trabalhando a língua em seu
clitóris enquanto dois de meus dedos a penetram. — Preciso tanto de você…
— implora, aumentando minha necessidade de me afundar nela.
Subo os beijos pela sua pele, em direção à boca, meus dedos ainda a
estimulando. Ela me toma em um beijo necessitado, gemendo sem pudor
contra minha língua, contorcendo o corpo, suplicando por mais entre
múrmuros intercalados. Separo suas pernas, me encaixo entre elas e a penetro
devagar. Tomo seus lábios outra vez, para conter os gemidos incansáveis que
nos escapam. Suas pernas me contornam a cintura, as unhas cravam nas
minhas costas e deslizam sem dificuldade. Giro nossos corpos, deixando-a
por cima. Seguro seus quadris e a ajudo a cavalgar em mim enquanto dou
atenção ao seu par de seios. Não muito tempo depois estamos no chão, eu já
suado pelo esforço, mas ainda disposto a continuar fazendo amor com ela até
a exaustão. Terminamos no quarto, enrolados em lençóis. Ann-Marie está de
costas para mim, respirando com dificuldade, os cabelos bagunçados,
grudados em sua pele molhada. Beijo seu ombro direito e acaricio sua pele
quente. Gosto de ficarmos assim.
— Vai passar a noite comigo? — cicio, distribuindo outros beijos em
suas costas.
— Acho melhor ir pra casa primeiro. Deixar as malas. Depois saio na
surdina mais à noite — diz, virando-se para mim. — Pode me esperar na rua
secundária. Vou tentar sair sem ser vista pela portaria.
Abro um pequeno sorriso e abano em positivo. É bom mesmo fazer
isso. Caso não apareça, pode levantar suspeitas.
— Quando pretende pedir o divórcio? — toco delicadamente no
assunto.
— Assim que Antony retornar, em dois dias. Mas, e você —
murmura, passando os dedos esguios pelo meu rosto —, resolveu aquele
problema na cafeteria?
— Sim. Descobrimos os funcionários envolvidos, que já foram
demitidos e acusados como manda a lei. Mas não sei… — Suspiro. — Ainda
acho que não pegamos o “cabeça” dos esquemas.
— Por que acha isso?
— Porque boa parte do dinheiro lavado eram quantias insignificantes,
perto do que foi desviado. A maior parte não sei com quem está ou onde foi
investido.
Ela sorri pequenino e se aconchega mais perto de mim.
— Espero que descubra logo.
Não digo nada. Acaricio seus cabelos, pensando em como não tenho
esperança nenhuma quanto a isso.

Os dois dias seguintes antes de Leclerc voltar de Monte Carlo são


regados a muitos encontros à escondida e sexo gostoso. Busco aproveitar
cada segundo ao lado dela porque não sei quanto tempo essa calmaria entre
nós vai durar. Quando ela por fim pedir o divórcio, o desgraçado, claro, vai
negar e ameaçá-la. Depois, quando forem oficialmente divorciados e puder
assumi-la, com toda certeza o homem terá uma explosão de raiva e vai nos
pôr em risco outra vez. Isso me faz pensar que preciso de alguma segurança a
mais. Talvez até um guarda-costas para nós dois.
Nos últimos dois dias, ela também esteve na cafeteria e trocamos
olhares confidentes. Como está trabalhando na loja logo à frente, onde
colocará em exposição sua primeira coleção, foi um belo pretexto para ficar
mais tempo no salão, observando-a pela vidraça. De fato, está engajada em
seu próprio negócio. Isso me fez torcer ainda mais para se livrar do marido
controlador. Quero-a livre e autossuficiente para trabalhar naquilo que mais
ama.
Acordo com meu celular tocando sobre o criado-mudo. Faço algum
esforço para esticar o braço e tatear o móvel, à procura do maldito que me
azucrina. Olho para a tela. Reconheço o número. São dez para a sete da
manhã. Inferno.
— Salut — atendo, sonolento.
A voz do outro lado é de minha subgerente, dizendo que Juliette ainda
não chegou para abrir a cafeteria. Uma vez que às sete da manhã o local
precisa estar com tudo pronto para atender os primeiros clientes que
começarão seus dias, minha gerente já deveria estar lá há pelo menos uma
hora.
Sou obrigado então a me levantar rapidamente e seguir até o local.
Chego em cerca de meia hora, mal-humorado e mal cumprimentando as
pessoas. Odeio dormir pouco, pois mexe com meu humor. Enquanto os
funcionários correm para se vestir e preparar a cafeteria — já há clientes
aguardando e escolhendo mesas —tento ligar para Gautier e saber onde se
meteu para não ter honrado seus compromissos. Duas tentativas ignoradas.
Resmungo um palavrão e vou até meu escritório. Mal entro e já noto a porta
dos fundos entreaberta. Isso significa que Juliette esteve aqui antes…
Porcaria!, penso. Corro até o cofre, já imaginando o pior, mas está intacto.
Conto a quantia guardada ali e confiro a planilha do caixa novamente. As
contas batem. Minha gerente apenas se esqueceu de fechar a porta, algo bem
irresponsável de sua parte.
Quando vou para fechar o acesso, ouço um resmungo baixo. Saio para
a rua de trás e, em meio à caixas de papelão jogadas na calçada, atrás de uma
caçamba de lixo, quase imperceptível, vejo-a jogada. Corro em sua direção, o
coração entalado na garganta.
— Juliette — murmuro, estarrecido com sua condição. A mulher foi
espancada e tem hematomas em todo rosto e corpo. Saco o celular do bolso e
disco para emergência, tendo certeza de quem fez isso com ela. — Preciso de
uma ambulância. Agora!

Aflito, espero por notícias da minha funcionária. Durante a espera,


tento não fazer acusações precipitadas, mas algo me diz que o responsável é
Antony. O motivo, suponho que ela tenha ameaçado contar tudo a Ann-
Marie. Talvez quisesse que ele deixasse a esposa e a assumisse. Não sei. Mas
não importa o motivo, nada é bom o suficiente para justificar toda essa
covardia. No fundo, torço para não ser Leclerc o causador dessa merda toda.
Meu celular ecoa pela sala de espera do hospital, escandaloso em
meio ao silêncio do local. Afasto-me rapidamente e atendo:
— Chérie…
— Estou no apartamento do seu sócio — diz. O apartamento de
Alfredo se tornou nosso ponto de encontro sexuais. Se ele vai ficar puto
quando descobrir que batizei cada centímetro daquele lugar, inclusive a cama
que dorme quando vem à França? Não tenho dúvidas. Mas precisamos de um
local seguro e neutro para nos encontrarmos. — Vem pra cá?
— Queria muito — respondo, suspirando —, mas não posso. Juliette
foi espancada e está no hospital.
Ann-Marie fica horrorizada com a notícia e exige mais detalhes de
seu estado de saúde, que eu não posso dar porque nenhum médico veio me
falar dela ou de seu quadro clínico.
— Estou a caminho.
— Chérie, não! Antony pode…
— Ele viajou ontem à noite — informa, voz ofegante, e já a imagino
correndo até o elevador. — Te vejo em vinte minutos. — Se Antony viajou
ontem à noite, significa que não espancou Juliette. Porcaria. Em que essa
mulher se meteu?
Enquanto a espero, os policias chegam e colhem meu depoimento do
caso. Tentarão descobrir alguma coisa. Ann-Marie chega em exatos vinte
minutos. Olho ao redor antes de lhe dar um abraço e um beijo sereno nos
lábios.
— Alguém já veio informar o estado dela? — Quer saber.
— Ainda não.
— Tem ideia do que aconteceu?
— Também não — falo, com um suspiro. Decido não mencionar
minha suspeita anterior até porque não fará sentido nenhum nesse momento.
Aguardamos mais algum tempo na recepção; a demora por notícias de
minha gerente me deixa muito aflito. Algum tempo depois, um Emilien muito
abalado irrompe pela porta e vem até mim
— Cheguei ao seu café e me informaram sobre Gautier. Vocês já têm
notícias dela, de como está?
Nego com a cabeça. A tensão entre nós é quase tangível enquanto
esperamos. Também sinto Ann-Marie aflita em meus braços por causa da
presença de Emilien. Cochicho em seu ouvido para não se preocupar, pois ele
já sabe do nosso caso e não vai contar nada ao seu marido. Ela me olha com
um ponto de interrogação no lugar dos olhos. Murmuro apenas um “mais
tarde te explico”.
— Dupont — chamo-o, baixinho. Ele está no sofá oposto, com a
cabeça baixa. Ergue seus olhos azuis e abatidos na minha direção. — Você
está cansado, vá pra casa. Te informo quando souber de alguma coisa.
Emil faz um gesto de mão, ignorando minha oferta.
— Estou bem. Vou buscar um café na lanchonete, querem? —
Negamos seu pedido. — Certo. Volto já — diz, sacando o celular do bolso.
— Aproveito e ligo para Antony antes de embarcar.
— Como assim? — eu e ela perguntamos ao mesmo tempo.
Dupont nos olha atentamente como se fôssemos dois extraterrestres.
— Ele embarcou ontem à noite, não foi? — Ann-Marie indaga.
Emilien move a cabeça em negativo.
— Não. O voo dele é para hoje. Às nove. — Confere o relógio. —
Dentro de meia hora.
Ela me olha, mordendo o lábio inferior. Enquanto isso minha cabeça
já está fervilhando. Está óbvio de que ele mentiu e passou a noite com
Juliette. Os dois discutiram por qualquer motivo e o desgraçado a espancou.
Passo a mão pelo rosto, querendo estar errado nessa última parte.
Levanto-me e vou até Dupont.
— Vou com Emilien até a lanchonete — digo a Ann-Marie. — Não
demoro.
Quando estamos distantes o bastante, interrompo minha caminhada e
paro à sua frente. Ele levanta o olhar do celular para mim.
— Antony e Juliette são amantes — revelo. Emilien não faz cara de
surpreso. — Você sabia?
— Desconfiava. — Dá de ombros. — Numa de nossas viagens a
Lyon, por acaso encontrei Juliette no mesmo hotel em que estávamos
hospedados. Ela me disse que estava de férias. Desconfiei porque Antony
sumiu a noite toda nessa ocasião. Depois passei a observar os dois. Não tinha
muita certeza, mas…Enfim. Não me deixa realmente surpreso.
Quero perguntar por que ele nunca tentou abrir os olhos dela para as
traições do marido, mas decido que essa não é a hora para abordar o assunto.
Concentro-me no que de fato quero falar.
— Acho que Antony quem a espancou. — Dessa vez consigo arrancar
alguma expressão dele, que sempre se mantém impassível. Seus lábios se
entreabrem, o semblante de susto está estampado em cada centímetro do seu
rosto. — Faz sentido, Emilien. Ele mentiu sobre o horário do voo para poder
passar a noite com Gautier. Ela deve ter terminado o caso com ele, que não
aceitou muito bem e tentou matá-la. Ou ela ameaçou contar para Ann-Marie
sobre os encontros que estavam tendo. E Leclerc tentou matá-la. Você, mais
do que ninguém, sabe que o maldito tem inclinações para agressividade.
Emilien desvia o olhar de mim. Seu maxilar está tenso, o peito sob o
terno alinhado sobe e desce em uma respiração pesada e acelerada. Os dois
são muito amigos, talvez seja difícil de digerir que uma das pessoas mais
próximas dele é um covarde agressor de mulheres.
— Vamos esperar Gautier acordar e esclarecer o assunto. Se você
estiver certo, as medidas cabíveis serão tomadas.
Não tenho tempo de respondê-lo, o homem já disparou na frente.
Sigo-o de imediato. Agora sim preciso de uma dose generosa de cafeína.

Finalmente alguém vem nos dar notícias de Juliette. Os hematomas,


apesar de aparentemente graves, não provocaram maiores danos. Ela sofreu
uma concussão e ficará de observação nas próximas quarenta e oito horas.
Teve uma fratura em duas costelas. Sinto que a médica deixa passar alguma
informação, mas não contesto. Uma visita rápida é liberada. Somente um de
cada vez. Sou o primeiro a entrar. Juliette está na companhia de um segundo
médico, que examina seu abdômen com um pequeno aparelho.
— Salut, ma chère. — Evito perguntar se ela está bem, pois é uma
pergunta estúpida. Gautier me dá um sorriso fraco e engole em seco. Seu
estado é bem lastimável. O olho direito está inchado, o lábio inferior tem um
corte grande, e todo o rosto tem tons arroxeados. — Que susto você nos deu.
Ela suspira e não diz nada. Volta seus olhos até o médico. O som de
batidas preenche o ambiente um segundo depois e eu levo algum tempo para
entender o que é. Assustado, olho para Juliette, que está atenta à própria
barriga.
— Seu bebê está bem. Os batimentos estão fortes e saudáveis — o
doutor diz, guardando o aparelho. Retira as luvas e as joga no lixo. — Vou
marcar um ultrassom transvaginal pra que possa vê-lo, tudo bem?
Porra! Então é isso. O filho é de Antony! O desgraçado tentou matar
mãe e criança para esconder suas puladas de cerca.
Filho da puta!
Minha vontade é de ir atrás dele, onde quer que esteja, e lhe dar o
mesmo destino de Juliette.
O médico abaixa a roupa hospitalar da paciente, cobrindo sua barriga
já com indícios da gestação. Ela deve estar com umas oito semanas. Como foi
que não percebi?
Por fim, se vira para mim.
— Pierre Laurent. Ginecologista e obstetra. Você é o pai do bebê?
— Non — nego. — Bernardo Dousseau. Juliette é minha funcionária.
— Aproximo-me dela e a seguro pelas mãos. Gautier não me olha. Não sei
explicar o que possa estar se passando na sua cabeça agora. Acaricio seus
cabelos e nesse momento a moça cai em um choro tímido. Seus dedos se
fecham mais nos meus, em um ato de desespero.
— Já sabem quem possa ter feito isso com ela? — Pierre indaga. —
Ela não disse uma palavra desde que acordou. Está em estado de choque. Já
chamamos um psicólogo para acompanhamento.
— Não sabemos — digo, com um pesar enorme. Antes de fazer
acusações preciso conversar com ela. — A polícia está trabalhando nisso —
informo.
— Certo. Vou deixar vocês a sós. Se precisarem, é só chamar.
Há tensos segundos de silêncio depois que Pierre sai. Continuo aqui,
segurando a mão dela, enquanto chora baixinho. Puxo uma cadeira mais para
perto e me sento. Seco suas lágrimas e murmuro:
— Me conte o que houve. — Nada. Ela se recusa a falar. — Juliette,
sei que foi ele. — A mulher então me olha apavorada. — Sei que tem um
caso com Antony Leclerc. Esse filho é dele. Você contou da gravidez…
Talvez até tenha ameaçado dizer tudo a Ann-Marie. Ele ficou furioso e tentou
matar seu bebê. Estou certo?
Vejo-a engolir em seco e acenar em positivo muito devagar. Fecho os
olhos e suspiro. Maldito.
— Precisa denunciá-lo à polícia — falo, levantando-me. A mão dela
me segura com força.
— Por favor, não — pede. A voz está rouca e fraca. Os olhos
inchados, repletos de lágrimas e temor. — Se fizer isso, ele vai tentar contra a
minha vida de novo. Por favor. Não faça nada.
Estou perplexo. Como pode querer não o denunciar, depois disso
tudo?
— Juliette…
— Não tenho como provar. É minha palavra contra a dele. Se eu não
conseguir incriminá-lo, ele vai tentar me matar de novo. Por favor. Não diga
nada.
Até parece que vou deixar isso passar dessa maneira. O canalha não
pode ficar sem uma punição. Por um lado, entendo o medo de Juliette. A
palavra de uma mulher contra um homem é sempre posta em dúvida.
Recordo-me, certa vez, de uma notícia de um político muito conhecido que
foi denunciado por trinta mulheres por abuso sexual. Vi muita gente
duvidando, indagando se era verdade, questionando por que não denunciaram
antes. Faz todo sentido ela estar com medo. Nem que seja necessário eu pagar
o melhor advogado da França, esse desgraçado precisa ter o que merece.
— Se você fizer qualquer coisa, juro que conto a Antony sobre estar
dormindo com Ann-Marie. — Fico paralisado diante sua ameaça, com um
tom de desespero também. Ela não quer me ameaçar, nem me chantagear. O
momento, contudo, exige isso. Não me atrevo a perguntar como sabe. Desvio
o olhar e trinco o maxilar, não gostando de ser chantageado. — Eu não sabia.
Só desconfiava. Você acaba de me confirmar. — Merda! Caí no conto mais
antigo do mundo. Volto meus olhos a ela e amenizo a expressão.
— Não pode deixar o Antony impune.
Ela balança a cabeça em negativo.
— Ele quis me dar um aviso. E já entendi. Não vou dizer nada a Ann-
Marie sobre nosso caso e vou criar meu filho sozinha. Antony não vai mais
ser uma ameaça pra mim.
Queria acreditar nisso. De verdade. Aproximo-me de novo e me sento
ao seu lado, segurando outra vez sua mão.
— Sabe que não conseguirei deixar isso pra lá., mesmo se eu
quisesse.
— Bernardo… — suplica, fechando os olhos.
— Não vou te pôr em risco, Juliette. Mas também não vou me
esquecer do que esse canalha te fez. Serei cauteloso, mas que esse traste vai
pagar por tudo, ele vai. — Faço uma promessa. A mulher abre os olhos e me
dá um sorriso entristecido. Meio desajeitadamente me abraça e me agradece.
Não vou viver em paz enquanto não ver Antony atrás das grades.

Volto para a recepção, onde Ann-Marie e Emilien me esperam.


— Posso falar com você um segundo antes de entrar? — pergunto a
Ann-Marie. Ela assente e vamos até um canto mais reservado. Antes, digo a
Emil que, enquanto isso, se ele quiser, pode entrar para ver Gautier. — Ela
está grávida — falo, sem cerimônias. Leclerc arregala os olhos. — Juliette
ameaçou trazer à tona o envolvimento com Antony. Ele tentou silenciá-la.
Ann-Marie leva a mão à boca. Estarrecida. Não sei por que ainda se
surpreende. Estava na cara de que, uma hora ou outra, o desgraçado ia perder
a sanidade e fazer algo pior do que gritar e empurrar.
— Ela e o bebê estão bem? — indaga, com um múrmuro.
— Estão — afirmo. Seguro-a pelos braços e a faço olhar para mim. —
Chérie, escute, pois o que vou te dizer é de extrema importância. Antony
tentou ou matar o bebê ou matar Juliette. De qualquer maneira, agiu por
medo de você descobrir as traições. Se pedir o divórcio agora, alegando que
sabe sobre o adultério, Antony vai pensar que Gautier te contou e pode
atentar contra a vida dela de novo. Entende a delicadeza da situação? —
questiono, odiando a mim mesmo por sugerir que, por ora, não entre com o
pedido de divórcio.
Ela balança a cabeça em afirmativo, quase de forma letárgica,
compreendendo a atitude que devemos ter nesse momento.
— Preciso ficar casada com esse diabo mais algum tempo —
murmura.
Desprezo completamente essa decisão, mas pela segurança de Juliette,
é o que devemos fazer agora. Todavia, me encontro entre a cruz e a espada.
Se pedir o divórcio, pode colocar a vida de minha funcionária em risco; não
pedir coloca a integridade de Ann-Marie em perigo. Em uma boa expressão
brasileira que minha mãe vive dizendo: estamos em um beco sem saída.
Tomo-a em meus braços, tentando acalmá-la, pois, do nada, ela
começou a chorar. Preciso conversar com Emilien. Precisamos encontrar um
jeito de Antony não ser uma ameaça para nenhuma dessas duas mulheres.
Esse momento em minha vida é único. Nunca senti tanto medo e
impotente como agora.
E isso é um verdadeiro inferno.

Minha semana não poderia piorar. Na verdade, poderia. Depois de


deixar o hospital e providenciar tudo que Juliette precisará, tenho que tomar
as rédeas da cafeteria pelos próximos dias, enquanto me desdobro para
procurar um jeito de incriminar Antony por tudo que fez sem colocar Gautier
em risco. Emilien me garante que vai tirá-lo da Dupont Investimentos e
também consultará os melhores advogados para resolvermos o problema.
Minha manhã está uma merda. Não muito pelo tanto de trabalho sobre
minha mesa, mas porque não a vejo desde esse maldito episódio, há quase
uma semana. Ela preferiu se afastar um pouco para não comprometermos
ainda mais nossa segurança. Para piorar meu dia, o telefone tocou, vinte
minutos atrás, trazendo uma notícia que me deixou aflito.
Estava concentrado em alguns papéis quando atendi o telefonema de
Alfredo.
— Olá, Cretino. — Usei seu apelido que, carinhosamente, Victória
deu a ele, um monte de anos atrás.
— Salut — disse, com a voz cansada e um suspiro. Conheço-o o
suficiente para saber que tinha alguma coisa de errada, perguntei o que era, e
sua resposta me fez dar um salto na cadeira: — Tomei um tiro, Bernardo.
— Oh mon Dieu! Você está bem? — Foi a primeira coisa que
perguntei. Não quis nem saber como, por que ou onde.
Com um suspiro atravessando a linha, respondeu:
— Sim. Foi no braço e foi de raspão. Não se preocupe, estou bem.
Estamos bem — frisa, dando-me a entender que alguém mais sofreu esse
atentado.
Tornei a me sentar e pedi que me explicasse o que diabos aconteceu.
O irresponsável, depois de sair de um jantar com a esposa, reagiu a um
assalto. Mas o que é que esse cretino tem na cabeça? Certamente não é o
cérebro
— Já fiz um boletim de ocorrência, Li está e bem e lúcida, acordou
pela manhã. Vai ficar de observação até à noite, só por garantia. Só quis te
informar, para não fazer drama se soubesse só quando viesse pra cá — disse,
levemente debochado em meio à situação tensa.
Desejei melhoras e o adverti a nunca mais reagir a um assalto.
— Não aja mais como um jumento — falei, e ele deu uma risada
quase de desespero.
Embora Alfredo tenha me garantido o bem-estar seu e de Lívia, essa
notícia colaborou para tornar o meu dia de merda ainda pior. Acho que me
senti meio culpado por isso, porque era o jantar em que saiu para comemorar
o aniversário de casamento — que foi há semanas, mas ele estava aqui, a meu
pedido, para resolvermos sobre a fraude.
Meus pensamentos são dispersos quando alguém bate à porta.
— Monsieur Dousseau, Emilien Dupont está aí fora e quer conversar
com o senhor.
— Peça para ele entrar, por favor.
Um minuto depois, Emil está na minha frente, trajando um terno todo
preto. Cenho levemente enrugado, maxilar tenso, olhos impassíveis. Espero
por uma boa notícia, mas pela expressão dele sei que não há uma.
— Não podemos fazer nada contra Antony — profere, com um
suspiro exasperado.
Eu disse que minha semana de merda poderia ficar pior, não disse?
EMILIEN
Ela se remexe na cama quando traço um caminho suave com a ponta
do indicador sobre a lateral do seu corpo nu. Paro com o contato, não
querendo acordá-la. Enquanto a observo dormir, tento entender a atração que
essa mulher exerce sobre mim. Desde que a conheci, meses atrás, Marie
Julien me atraiu de um jeito avassalador. No começo, achei que era apenas o
meu corpo e meus desejos reagindo a uma beldade como ela, da mesma
maneira que reagiu em diversas outras ocasiões em que o apetite sexual
sobressaiu ao meu controle.
E, como das vezes anteriores, a minha atração só passaria quando
finalmente a levasse para minha cama. Ledo engano. Nossa primeira vez não
foi exatamente na minha cama. Tínhamos acabado de desembarcar na África
do Sul e estávamos a caminho da mansão em que ficaríamos durante nossa
hospedagem no país. Depois de algumas insinuações, joguinhos e piadas
sexuais, na discrição da limusine que nos carregava para nosso destino, eu a
comi. Foi rápido, não mais que dez minutos, mas gostoso. Inclusive, a
coloquei em duas ou três posições diferentes e igualmente excitantes. Mesmo
tendo gozado e feito sexo de uma maneira libidinosa, não foi o suficiente
para mim.
No dia seguinte, me vi em seu quarto, à meia-luz, por trás dela,
arremetendo-me como um louco, não querendo que aquele momento
acabasse. Durante os dois meses em que estivemos no continente africano,
compareci ao seu quarto todo dia. Todo maldito santo dia. Nem mesmo nas
ocasiões do seu ciclo e perto dele — quando estava ainda mais sensível e
com a libido beirando a estratosfera — nós nos privamos. O que é um pouco
de sangue sob a água corrente de um chuveiro?
O único motivo por nunca dormir com uma mulher mais do que uma
ou duas vezes é não querer me envolver. Não que eu me apaixone com
facilidade. O problema jamais sou eu, e sim elas. Não as quero criando
vínculo comigo, nem construindo qualquer tipo de sentimento de amor,
posse, ciúme. Tenho pavor a esse tipo de coisa. Com Marie não deveria ter
sido diferente. Aquela vez na limusine deveria ter sido a primeira e a última.
Quando nossa estadia estava quase chegando ao fim, minha obsessão
não estava nem perto de ser aplacada. Marie me cativou dia após dia e
conseguiu derrubar um pouco das minhas barreiras a ponto de, durante todo o
último mês nosso na África, conseguir me fazer dividirmos o mesmo quarto,
dormirmos de conchinha. Ao raiar do dia da primeira vez em que isso
aconteceu, acordei apavorado. Disse a mim mesmo que esse tipo de coisa não
poderia, nunca, nunca mais voltar a acontecer. Outra vez, dominado pelos
meus desejos incompreensíveis, nos demais vinte e nove dias dormi ao seu
lado.
Uma semana antes de retomarmos a Paris, contudo, estava decidido a
sufocar essa paixão súbita que se instalou no meu peito. Precisava me afastar
dela e faria isso quando pousássemos em terras francesas. Eu já me magoei
uma vez — assumo toda a responsabilidade — e levei algum tempo para me
recuperar do golpe. Deixá-la entrar não significa apenas correr o risco de me
magoar de novo. Significa magoá-la também.
Ao retornarmos a nosso país de origem, tratei de me afastar. Diminuí
nosso contato e nossas transas. Não respondi suas mensagens, nem retornei as
ligações. Evitei pensar ou falar com esta mulher. Apenas para levar por água
baixo todo meu esforço, nos encontramos esporadicamente nas últimas
semanas. Então Marie passava a noite comigo e ia embora no dia seguinte, e
cada vez levava um pedacinho meu junto dela. Quando atravessava a porta,
inutilmente reforçava que não deveria permitir que ela derrubasse minhas
barreiras e penetrasse meu coração.
Tenho segredos demais que não posso permitir que nem ela nem
qualquer outra pessoa desvende. Trazê-la para minha vida significa correr o
risco de me expor. Mas, por mais que tente de todas as maneiras manter-me
distante, me vejo cada vez mais perto e envolvido.
— Bonjour. — Sua voz grave de sono me tira dos meus pensamentos.
Sorrio um pouco, inclino-me e a beijo.
— Bonjour.
Marie se vira para o criado-mudo e olha as horas no seu celular.
— Por que acordou tão cedo? — pergunta, se aninhando mais em
meus braços.
— Sou um homem matutino — murmuro em resposta. — E porque
preciso chegar mais cedo na Dupont Investimentos hoje — explico, afagando
sua bochecha. — Antony chegou de Nova Iorque ontem à noite. Preciso
tomar as providências cabíveis.
A mulher se ajeita na cama, sentando-se e puxando o lençol branco
para cobrir os seios.
— Ainda não consigo acreditar que ele teve coragem de espancar
Juliette daquela maneira.
— Nem eu. Ele era meu amigo. Fiquei tão… perplexo. — Descobrir
que Antony Leclerc, alguém próximo em quem sempre confiei, fez isso, me
desestabilizou. Não vou mentir dizendo que nunca reparei que ele é um
homem de personalidade forte, explosivo e controlador. Mas jamais imaginei
que teria coragem de tais atrocidades contra qualquer ser humano, muito
menos contra uma mulher. Uma mulher grávida. De um filho dele.
Quero dizer mais a ela. Quero dizer que descobri um esquema de
lavagem de dinheiro de Leclerc. Mas confidenciar certas coisas é o mesmo
que estreitar nossos laços. Não posso me permitir a isso porque dentro de
algumas semanas tomarei a atitude mais difícil nos últimos dez anos para
conseguir, por fim, tirar Marie da minha vida. Quando menos laços tivermos,
mais fácil será para ela. Mais fácil será para mim.
Sua mão toca meu rosto e me afaga um segundo.
— Vou fazer algo pra comermos — diz e se levanta em seguida.
Meus olhos traiçoeiros não se desviam do seu corpo nu até que seja coberto
com um roupão. Marie deixa o quarto, amarrando a vestimenta e me dizendo
para não demorar a descer.
Engulo em seco e me levanto, indo até o banheiro para uma ducha.
Tento ofuscar os pensamentos sobre a bela mulher, direcionando-os todos
para a conversa com Antony. Não vou colocá-lo na cadeia por causa de sua
atitude covarde contra Juliette simplesmente porque a mulher implorou para
não o denunciarmos. O medo estava explícito em seus olhos quando a visitei,
três dias atrás. Nós não somos próximos nem nada, mas como um assíduo
frequentador da cafeteria de Dousseau, a notícia de que fora espancada me
deixou alarmado e por algum motivo me desloquei para prestar
solidariedade.
Quando deixei seu quarto hospitalar, Bernardo me puxou para um
local mais reservado e confirmou que Antony realmente a espancou por conta
de sua gestação. Ele nem precisou exigir que eu o afastasse de minha
empresa. Eu o faria de qualquer maneira. Durante os dias seguintes, em que
Leclerc esteve representando minha companhia em Nova Iorque, precisava de
uma maneira de colocá-lo atrás das grades sem ser pelo espancamento da
amante, para não comprometer sua segurança. Pensei que se tivesse cometido
outro crime…
Foi aí que me ocorreu que a índole dele poderia não ser das melhores.
Instrui uma investigação aprofundada sobre toda a movimentação de Antony
enquanto meu sênior no programa de investimentos. Para minha surpresa,
descobri que ele estava fraudando não apenas a minha empresa, mas a de
Bernardo também. Nunca pensei que agradeceria a Deus por um roubo
desses, mas era a desculpa perfeita para o colocarmos na cadeia.
Saio do banho e escolho meu melhor terno. Na cozinha, Marie está
terminando o café da manhã. Como enquanto ela tagarela sobre algumas
reportagens em que está trabalhando, tomando apenas um copo d’água. Estou
tenso demais para prestar atenção. Minha conversa com Antony não será
fácil. Quando termino, deixamos juntos minha cobertura. Deixo-a na redação
do jornal em que trabalha — La Parisienne — e sigo para minha empresa.
Antony já está na minha sala, à minha espera, pontualmente.
Convoquei-o a essa reunião há dois dias. Tento me segurar aqui mesmo para
não avançar sobre o desgraçado e quebrar dente por dente. Sento-me atrás de
minha mesa e me ajeito em meu lugar.
— O dia começou ruim, Emil? — pergunta ao notar minha expressão
austera.
Não o respondo de imediato. Puxo a gaveta e retiro uma pasta grossa,
contendo todo o dossiê que o incrimina de caixa-dois e lavagem de dinheiro.
Jogo-a sobre a superfície da mesa e só então o encaro intensamente dentro
dos olhos.
— Um pouco — respondo. Antony olha um segundo para a pasta e
depois para mim.
— Qual o motivo da reunião? — pergunta.
Jogo-me contra o encosto da cadeira giratória de couro e afago o
queixo.
— Sei que espancou Juliette.
Os olhos dele se transformam na mesma hora. Entreabre a boca, como
que querendo dizer algo em sua defesa.
— De onde tirou esse absurdo? — inquire, por fim. — E do que está
falando?
Levanto-me do meu lugar e começo a andar pela sala, rodeando-o
como um leão prestes a atacar sua presa.
— Não vai fazer esse jogo comigo, Antony — falo, o tom de voz
rígido. — Vocês eram amantes e de repente ela aparece grávida e
espancada… Está óbvio que tentou matar o bebê. Ou ela. Pra proteger seu
casamento e sua imagem de bom marido.
Ele também se levanta, em um rompante, e me encara, furioso.
— Como pode me acusar de uma atrocidade dessas, Dupont? —
brada. — Sou casado e…
Ergo a mão e o interrompo.
— Não me venha com essas desculpas morais. Seja homem ao menos
uma vez na vida e assuma a porra das suas ações! — grito, deixando nossos
rostos próximos um do outro.
Antony afasta um centímetro e solta uma gargalhada lunática.
— Aquela vagabunda engravidou de propósito e me ameaçou,
Emilien! Ameaçou procurar minha esposa e contar tudo. O que eu deveria ter
feito?!
Com certeza não tentado matar a pobre mulher!
Fito-o por longos segundos, em silêncio, procurando ter algum
controle. Fecho os olhos e respiro ruidosamente. Quero muito socar a cara
desse maldito. Mas talvez deixe o mérito para Dousseau, que deve ter mais
ódio dele do que eu.
— O que mais a desgraçada te contou, hein? Vou te dizer uma coisa,
Dupont. Se você ou aquela puta me levarem à polícia, juro por Deus que
acabo com a vida dela. E, de quebra, dou um jeito de atingir Marie Julien
também!
À menção do nome de Marie, abro os olhos imediatamente. Esse
maldito não vai ameaçá-la dessa maneira. Não mesmo.
— Toque em um fio daquela mulher e sou eu quem jura por Deus,
Leclerc… Não terá de se ver com a polícia, mas comigo.
Ele me dá um sorriso de escárnio.
— Peguei no seu ponto fraco? Está mesmo presos pelas bolas, não é?
Pois ouça o que estou te dizendo. Me denuncie à polícia e sua amada Marie
vai sofrer as consequências. Talvez não seja eu mesmo a apertar aquele
pescoço esguio dela até vê-la morrer, mas tenho meus contatos e gente capaz
de fazer isso. Não duvide de minha palavra.
— Acha que suas ameaças me amedrontam? Posso tirar Marie e
Juliette do país agora e te pôr na cadeia na hora seguinte! Não por ter
espancado a pobre coitada, porque sabemos que até provarmos isso, você já
conseguiu cumprir suas ameaças, mas por desvio e lavagem de dinheiro!
Antony fica branco como papel enquanto me viro para a mesa e pego
a pasta.
— Está tudo aí — digo, jogando a pasta em sua direção, que cai no
piso de porcelanato. Ele baixa o olhar, mas não se abaixa para pegá-la. —
Todo o seu esquema está nesses documentos — falo, retirando o telefone do
gancho. — A segurança já está ciente de que você não pode deixar o prédio e
agora mesmo vou chamar a polícia.
O homem nem mesmo se mexe enquanto faço a ligação.
— Por favor, queria fazer uma denúncia — digo, quando alguém
atende.
— Desligue essa porra — diz, entre os dentes, aproximando-se de
mim pouco a pouco.
— Sim, um esquema de corrupção dentro de da Dupont Investimentos
— informo, ignorando os avisos dele.
— Me denuncie e revelo seu segredo sujo, Emilien — pronuncia, com
uma calma diabólica.
Na mesma hora, eu o olho, assustado com essa menção. Como diabos
ele pode saber sobre isso? A pessoa do outro lado está falando comigo, mas
meus olhos e minha atenção estão presos em Antony, que sorri de modo
perverso.
— Desligue o telefone — ordena.
Faço-o na mesma hora.
— Como sabe…? — indago, a voz trêmula. Pela primeira vez em dez
anos me vejo vulnerável e exposto.
— Não há passado enterrado o suficiente que não possa ser trazido à
tona — diz apenas. Deixa-me insano saber que, de alguma maneira, meu
passado chegou a seu conhecimento. Esse passado que me assombra e me
atormenta e do qual pensei ter finalmente me livrado. — Você pode proteger
Marie e a puta da Juliette, mas e você, Emil? Quem vai te proteger? Como as
pessoas reagiriam ao saber do seu segredinho sujo, hein? Isso mancharia sua
imagem junto da sociedade parisiense, não é? No fim, Emilien, nós dois
somos iguais.
Meu coração bate tão rápido que sequer consigo abrir a boca para
dizer que não, nós não nos parecemos em nada. Em nada!
— Você vai discar para a segurança do prédio e dizer que seu alerta
sobre mim não passou de uma mera confusão. — Sequer me vejo acatando
sua ordem sem pestanejar. — Bom… muito bom. Agora eu vou embora,
Emil, e a partir do momento que cruzar a porta, não terei mais vínculo
nenhum com sua empresa. Mas antes, quero aqueles malditos papéis — diz,
apontando para a pasta ainda no chão. Ele se encaminha até lá e a pega. Estou
tão travado de pavor que nem penso em tentar impedi-lo. Antony me tem em
suas mãos. Preciso fazer tudo o que me pede se quiser ter minha imagem
preservada. Não posso correr o risco de me expor. Meus olhos queimam.
Demoro a notar que são lágrimas de ódio.
— Se lembre, Dupont. Ameace minha liberdade e conto à imprensa
tudo que sei sobre seu passado sujo. E sabe quem teria essas informações em
primeira mão? — É uma pergunta retórica. Ele sorri. — Isso mesmo. Marie.
Sua jornalista favorita.
Desarmado, vulnerável e atingido, vejo-o deixar a minha sala, sem
saber o que fazer. Só o que consigo sentir é um pavor imenso em estar nas
mãos dele. Enquanto esse maldito estiver vivo, isso vai me amedrontar dia
após dia. Deixo minha empresa um minuto depois. Só há uma coisa que
posso fazer no momento: comunicar Dousseau que estamos de mãos atadas
porque Antony tem uma carta na manga.
ANN-MARIE
Chego ao hospital dez minutos depois do horário de visitas. Saí cedo
de casa, logo depois de Antony — ele tinha alguma reunião com Emilien nas
primeiras horas do dia — e rumei para cá, após passar na floricultura. Quase
uma semana atrás, quando Bernardo me informou sobre o que aconteceu com
Juliette, fui vê-la após Dupont. Quando entrei, porém, a moça estava
dormindo — ou fingindo que dormia — e decidi não a perturbar. Voltei para
a recepção, onde Bernardo me esperava, ainda estarrecida com todos os
acontecimentos e não querendo acreditar que Antony realmente cometeu
tantas atrocidades. Não mentirei dizendo que também não temi pela minha
própria integridade. Naquele instante, pensei em como deveria pedir o
divórcio a ele o mais rápido possível. Fazer isso, entretanto, era um risco a
Juliette e, em comum acordo, decidimos não ir por esse caminho tão já; não
até termos uma maneira de incriminar meu marido sem prejudicar a moça.
Também como um modo de segurança, nos afastamos, mesmo Antony tendo
estado em Nova Iorque e retornado ontem à noite.
Agora, depois de me identificar na recepção, enquanto atravesso o
corredor extenso em direção ao quarto de Juliette, sinto falta dele e me bate
um medo desesperador de continuar em minha casa, vivendo sob o mesmo
teto de um homem violento. Tento controlar as lágrimas e o sentimento
negativo. Ele me garantiu que vão encontrar uma maneira de exorcizar
Antony de nossas vidas.
Bato à porta do quarto quando chego e entro em seguida. Juliette está
deitada, assistindo à tevê. Ao me notar, abre um pequeno sorriso. Vejo-a
corar, ao mesmo tempo que vergonha, e talvez medo, atravessa seus olhos
castanhos.
— Salut, Gautier — cumprimento-a com um sussurro e me aproximo
a passos pequenos, após encostar a porta.
Seu sorriso encabulado se mantém quando me responde:
— Bonjour, madame Leclerc — responde, a voz é quase inaudível.
Sorrio e contorno a cama, colocando o buquê de girassol em um vaso
ali perto. Depois, pedirei para que alguém o encha com água. Retorno e puxo
uma cadeira, sentando-me de frente para ela.
— Como você está?
— Bem, na medida do possível. Obrigada por perguntar.
— E seu bebê? — Ao perguntar, desvia seu olhar do meu e morde o
lábio inferior. A resposta vem sem que façamos qualquer tipo de contato
visual:
— O doutor Pierre Laurent me garantiu que está tudo bem.
Um silêncio denso recai sobre nós duas. Juliette ainda não me olha, o
que é bem compreensível, mas não vim aqui para julgá-la. Não quero que se
sinta intimidada ou envergonhada com minha presença. Assim, reviro minha
bolsa e retiro um pequeno embrulho.
— Comprei para você — digo, esticando o presente. — Na verdade, é
para o bebê.
Gautier o toma de minhas mãos e vejo alguma emoção em seus olhos
enquanto retira o papel que envolve o presente. Ela sorri, abraça a pequena
peça e uma lágrima escorre dos seus olhos.
— Obrigada, Leclerc… — agradece, a voz embargada. — Não
deveria ter se incomodado com isso. É tão… inapropriado.
— Por que esse bebê é do meu marido? — questiono-a, suavemente.
De novo seu rosto ruboriza, seus olhos lacrimejantes evitam os meus.
— Pardon — pede, a voz chorosa e arrependida. Quando torna a me
olhar, vejo as lágrimas descerem sem cerimônia. — Não deveria ter me
envolvido com ele. Sabia que era casado e… — Sua mão vai à boca,
abafando um gemido dolorido.
Não a quero passando por emoções fortes assim enquanto estiver
grávida. Seguro-a fortemente pelas mãos e tento acalmá-la. Não preciso de
explicações. Nem as quero. Talvez eu seja a última pessoa do mundo digna
de julgá-la. Talvez até mesmo possa compreendê-la. Jurei a mim que não ia
me deixar ser seduzida por Bernardo, mas não demorou muito e me vi em sua
cama, tornando-me sua amante. Como posso condená-la se cometi um erro
parecido, embora o desgraçado merecesse ter sido traído?
— Não justifica… — Tenta dizer.
— Juliette, por favor, não diga mais nada — peço, usando um tom de
voz mais brando.
— Eu preciso, Ann-Marie. — Seus dedos apertam os meus quase
como um ato de súplica. — Sei que não justifica, mas… nunca foi minha
intenção me envolver com seu marido! Ele era cliente da cafeteria, vivia por
lá e, com o passar do tempo, nos tornamos bons amigos. Apenas isso! E
apenas dentro do meu local de trabalho. Certa vez, ele chegou quando já
estávamos fechando, visivelmente abalado. Tinha olheiras, cabelo
desengonçado… — Juliette fecha os olhos, tomando um pouco de ar para os
pulmões. A essa altura, já estou mais atenta à suas palavras. — Me disse que
vocês tinham discutido e não estava bem. Antony ficou no café até pouco
depois de fecharmos, conversando comigo, dizendo que… — Morde o lábio
inferior e inspira mais um par de vezes antes de continuar: — Não estava
feliz no casamento, de que não te amava, que o casamento de vocês foi
arranjado… — A moça deixa escapar um suspiro agoniado.
Estou vidrada em suas palavras, ouvindo-as com atenção, não
sabendo explicar o sentimento dentro de mim. Está claro de que Antony
mentiu e a manipulou — assim como fizera diversas vezes comigo — para
seduzi-la e, posteriormente, convencê-la a terem um caso.
— Ele me disse tantas coisas terríveis a seu respeito. Que você era
histérica, ciumenta, possessiva… acomodada e preguiçosa. Que enquanto
trabalhava duro pra sustentar seus luxos, você só sabia criticá-lo e gastar
dinheiro.
Minha boca deve estar aberta. Estou horrorizada com o relato de
Gautier.
— Eu acreditei nele! — fala, soluçando um pouco mais. — Não te
conhecia pessoalmente, pouco te via, então foi fácil ter sido enganada dessa
maneira. — Balança a cabeça em negativo, como se não pudesse aceitar ter
sio ludibriada por um homem. — Eu ainda o aconselhei a pedir o divórcio…
— Ri sem humor, secando algumas lágrimas. — Depois disso, algum tempo
se passou e ele de novo me procurou… Me envolveu aos poucos, com
elogios, presentes singelos… E junto vinham mais as reclamações do
casamento… Certo dia, disse que estava apaixonado por mim.
Há um instante de silêncio no quarto. Juliette soltou minha mão e
colocou as suas sobre o próprio colo. Baixando o olhar para seus dedos
entrelaçados, continua:
— Acabei acreditando que você merecia… Merecia que Antony te
traísse. E ele também me prometeu que pediria o divórcio e me assumiria. Só
precisava… Não sei… Dizia algo sobre algum projeto com Dupont. Que
esperava dar certo e só então ficaríamos juntos. Fui burra em acreditar nele.
Por favor, me perdoe!
Não tenho o que perdoar essa mulher. Antony conseguiu criar uma
imagem ruim de mim para ela, mentiu e manipulou.
— Se ele não tivesse…? — murmuro, quase em transe e baixando os
olhos.
Ela parece entender o que quero dizer e dispara:
— Jamais, Ann-Marie! Jamais me envolveria com um homem casado.
Não sou assim. Mas Antony… me passou uma imagem tão ruim sua, me
convenceu de verdade que estava infeliz no casamento… Confiei e acreditei
nele. Achei que você merecia ser traída. Por favor, me desculpe.
— Não tenho o que te desculpar — digo, erguendo o olhar em sua
direção. — Sabe que… — Suspiro e evito que uma lágrima caia. — Bernardo
conseguiu me seduzir dessa maneira, me mostrando que eu estava infeliz e
Antony era um homem perigoso e cheio de defeitos e… trai-lo era o que ele
merecia. Então, não tenho o que te desculpar.
— A diferença é que ele realmente conhecia Antony. Ele viu sinais
dessas coisas ruins que ele tinha. Ao contrário de mim. Nunca te vi… Como
pude te julgar e te condenar sem ao menos conhecer o seu lado da história?
Torno a segurar suas mãos na minha e a olho nos olhos.
— As pessoas são falhas, Gautier. Nós erramos. Você errou. E eu te
perdoo.
Trocamos um abraço apertado enquanto ela me agradece, deixando a
emoção tomar conta de sua voz, e as lágrimas, de seus olhos.
— E Antony… tinha esses sinais violentos com você? — indago
baixinho, não sabendo ao certo se é uma boa ideia tocar nesse assunto com
ela.
Juliette balança a cabeça em positivo.
— Começou sutilmente. Quero dizer, no começo era… tão romântico,
atencioso, dedicado. Ficava me perguntando por que você não o valorizava.
Viajamos algumas vezes juntos — confessa, corando levemente e desviando
o olhar de mim outra vez. — Ele… me comprou presentes, mandou preparar
um quarto de hotel para nós com champanhe, pétalas de rosa. Era perfeito…
— murmura, engasgando-se com a própria saliva.
Abano a cabeça lentamente, recordando-me que, no começo do nosso
casamento, era exatamente assim, mas, com o passar dos anos, tudo foi
esmorecendo até o ponto de ser muito raro me fazer um pequeno elogio que
fosse. Pelo contrário. Só sabia pôr defeito.
— Mas aí um dia… Ele me ofendeu durante uma discussão, quando
pedi para se divorciar de vez. No dia seguinte, Antony me ligou, pediu
perdão, mandou flores e bombom lá pra casa. E assim começou… Verificava
meu telefone, minhas mensagens, criticava minhas amizades e até tentou me
afastar de um primo a quem sou muito apegada… Certa vez até disse que,
quando me assumisse, não me deixaria trabalhar com Dousseau ou em
qualquer outro lugar. Não notei esses sinais de um homem desequilibrado e
violento, batia de frente com ele, dizia que não ia parar nem de trabalhar de
nem ter amigos. O homem ficava contrariado, mas sabia que não poderia
fazer nada.
— Não enquanto você fosse apenas a amante… — constato.
Com um sorriso fúnebre, Juliette completa:
— Isso.
Outro instante de silêncio nos envolve.
— Então engravidei. Confesso que foi de propósito. Pensei que um
filho finalmente o forçaria a sair de um casamento que vivia dizendo não
estar feliz. Antony foi até em casa uma noite antes de viajar para Nova
Iorque. Ele te disse que ia pegar o voo noturno? — Concordo com um gesto
de cabeça. — Passamos a noite juntos, eu… estava me preparando para
contar. Antony me levou até meu trabalho e lá… Antes de ir embora… dei a
notícia. Ele ficou petrificado e branco por um segundo. Depois começou a me
falar sobre aborto e um monte de coisas que não consegui mais entender
porque fiquei pasma demais com sua sugestão de tirar o bebê. Começamos a
discutir. Novamente me ofendeu com uma porção de palavreados… —
Juliette outra vez morde o lábio inferior, segurando o choro. Imagino que tipo
de atrocidades Antony deve ter lhe falado, abalando sua autoestima e
massacrando seu coração. — Eu deveria ter deixado pra lá, mas… Fiz a
burrada de ameaçar contar a você sobre nosso caso e a gravidez. Antony
perdeu a cabeça e então… — Engole em seco e, desta vez, permite que
novamente as lágrimas a tomem. — Fez isso comigo.
Sento-me na cama e a abraço com força, deixando-a chorar em meus
ombros e desabar toda a sua dor. Afago seus cabelos e tento acalentá-la.
— Está tudo bem agora. Antony não vai mais te fazer mal. E, de mim,
você tem perdão e tudo que precisar para o seu bebê.
— Merci beaucoup! — exclama, entre soluços e lágrimas.
Ficamos abraçadas uma à outra mais alguns minutos, até que as
lágrimas já não descem mais pelos olhos dela e seu coração bate normal outra
vez. A porta abre, trazendo para dentro um homem alto, de jaleco,
estetoscópio e aparelho para medir a pressão. Ele nos olha por um segundo e
se desculpa.
— Pardon. Não sabia que a senhorita Gautier estava com visitas.
Desfazemos nosso abraço e me levanto.
— Já estou de saída, doutor… — Olho o nome bordado. — Pierre
Laurent. — Ele sorri para mim e olha para Juliette logo atrás, que também
não tira os olhos dele. — Pode cuidar bem da minha amiga e do bebê dela?
— Estou aqui pra isso — alega, indo até Gautier, solicitando o braço
direito para tirar sua pressão arterial.
Dou um pequeno sorriso e me despeço.
Antes de finalmente sair, dou uma olhadinha por cima do ombro.
Pierre está sorrindo e conversando com Juliette, enquanto seus olhos
castanhos parecem admirados pelo médico.
Suspiro e deixo o hospital, torcendo para ela encontrar o seu final
feliz.
BERNARDO
— Ele não está simplesmente blefando? — pergunto a Emilien,
quando me diz os motivos por não podermos fazer qualquer coisa contra
Antony.
Com um suspiro agoniado, balança a cabeça em negativo.
— Bernardo, só de ele mencionar que sabe sobre isso já me dá certeza
de que não é um blefe. Somente duas pessoas no mundo todo sabem sobre
meu segredo. Eu sou uma delas.
Roço o queixo e tento segurar a raiva atrás dos dentes. A ideia de
Leclerc sair impune me deixa repleto de raiva e com vontade de socar ainda
mais aquele desgraçado. Olho de volta para Emil, que parece apreensivo. Não
é para menos. O cara está nas mãos de um homem que achou que fosse seu
amigo.
— Tem ideia de como ele descobriu isso… de você? Seja lá o que
for.
— Não — responde, com outro suspiro. Sua expressão, antes sempre
confiante e bem-humorada, transformou-se em uma máscara de preocupação.
— Estou vulnerável, Dousseau. Não posso arriscar contrariar aquele homem
e ter minha vida exposta. Seria terrível.
Encaro-o um segundo, corroendo-me de curiosidade em saber que
diabos é esse seu segredo e como pode ser tão grave a ponto de fazê-lo recuar
diante das ameaças de Antony.
— Que foi que você fez, Emil? Matou uma pessoa? — indago, meio
levando na brincadeira. Não consigo pensar em nada mais grave do que o
assassinato de alguém. O rosto de Emilien fica rígido de repente, parece
imóvel no lugar enquanto me olha atentamente. Sua postura me deixa meio
em alerta e então me vejo perguntando: — Meu Deus, você matou uma
pessoa?
Emilien pisca duas vezes seguidas e recupera a postura antes de me
responder:
— Não, Pour l'amour de Dieu… Não matei uma pessoa. —
Estranhamente, relaxo em meu lugar, mas a expressão meio sombria e rígida
em Dupont continua nele. — Isso não vem ao caso agora. De qualquer
maneira, Antony segue impune, até eu encontrar um jeito de reverter essa
situação que me deixa suscetível.
Abano a cabeça em positivo, odiando ter de concordar com essa
decisão. Antony é mesmo um desgraçado. Não basta ter Ann-Marie, Juliette e
Marie Julien em suas mãos, conseguiu a proeza de ter o poderoso Emilien
Dupont também. Não sei como podemos resolver esse problema quando usa
de medo e ameaças para nos controlar.
— Como andam as finanças da sua cafeteria? — pergunta, cortando o
breve silêncio interposto entre nós. Ergo meu olhar em sua direção,
estranhando tal questionamento.
— Bem… Apesar de ter descoberto uma fraude em algumas lojas e
franquias. Por quê?
— Fraudes… como desvio e lavagem de dinheiro?
Não escondo a cara de surpresa. Não me recordo de ter comentado
algo do gênero com ele.
— Sim. Como sabe?
Emilien se ajeita em seu lugar. Toma uma caneta do porta-treco em
cima da minha mesa e começa a rabiscar riscos aleatórios em um pedaço de
papel-rascunho, que também encontra no meio da minha bagunça, e
responde:
— Depois do que aconteceu com Juliette, a índole de Leclerc ruiu pra
mim. Decidi fazer uma investigação profunda e completa com o trabalho dele
dentro da Dupont Investimentos. Descobri que estava envolvido num
esquema de caixa-dois e lavagem de dinheiro. Uma somatória bem generosa
vinha de pessoas da sua cafeteria. Antony estava usando a minha empresa
para lavar os desvios dos seus funcionários. Ele ficava com uma boa parte,
que aplicava em uma porção de investimentos em nomes de laranjas, algumas
quantias eram declaradas como de seus próprios rendimentos. Montei um
dossiê completo que usaríamos para acusá-lo de corrupção, mas… Ele sabe
onde é meu calcanhar de Aquiles e usou isso contra mim. Vou mandar uma
cópia do documento para o seu e-mail.
Acreditei que não seria possível sentir mais raiva daquele verme. Mon
Dieu!, como estava enganado. Então, neste instante, tudo fica mais claro para
mim. O “cabeça” do esquema corrupto dentro da Avenue Coffee era ele o
tempo todo. Fils de pute!
— Achei que ia querer saber dessa informação — Emilien diz,
levantando-se e fechando um botão do seu terno. — Pode ser um motivo a
mais para… Não sei, quebrar o nariz dele.
Não seguro um sorrisinho de lado. Faz tempo que estou a fim de
esmurrar as fuças do maldito, muito por Ann-Marie, mas nunca pude
exatamente por ser por ela. Com essa informação em mãos, mais o que fez a
Juliette, é a desculpa perfeita. Posso não o colocar atrás das grades tão já, mas
ele também não vai sair tão impune assim. Alguma justiça esse homem tem
de conhecer. Nem que seja a do “olho por olho, dente por dente”.
— Obrigado, Dupont. Essa informação me será valiosa e usarei seu
conselho — digo. Ele me dá um sorriso fúnebre, acena em despedida e se vai.

Queimo o dedo na frigideira ao mesmo tempo em que a campainha


toca. Limpo a mão com papel-toalha e desligo o fogo, pois a carne já está no
ponto. Corro atender a porta, meu coração já ansiando em vê-la. Deus, nem
posso acreditar que já se passou uma semana e não a vejo desde então. Ao
recebê-la, não tenho nem chances de cumprimentá-la. Ela se joga em meus
braços e me beija, ambas as mãos escorregando pelo meu tronco despido.
A porta bate atrás dela enquanto a puxo mais para dentro, sem
desgrudar nossas bocas, e a jogo no sofá. Ann-Marie me abraça pela cintura
com as pernas, os dedos se enroscam na cordinha da minha calça de
moletom, sua língua úmida traça um caminho delicioso pelo meu tórax. Fico
hipnotizado admirando-a abaixar a peça que me cobre da cintura para baixo.
Aquela mulher tímida e reclusa não existe mais. Admito: amo esta nova Ann-
Marie, sensual, provocante, descarada…
Perco a calça um segundo depois e ela me toca no membro já duro.
Com um movimento rápido, eu a puxo e a deixo por cima de mim, em meu
colo. A mulher ri e dá um gritinho, que abafo por um segundo, colando
minha boca à sua.
— Me diz que o traste vai ficar, pelo menos, quinze dias fora.
— Só uma semana — fala, com um suspiro, acariciando-me no peito.
— Não é o suficiente, mas vamos aproveitar para matar a saudade um do
outro — diz, tornando a cair em minha boca, beijando-me ávida, com toda
vontade reprimida dentro de si.
Retribuo, abraçando suas costas e enveredando minha mão por dentro
da sua camisa de golinha, passando a peça pela sua cabeça. Beijo seu queixo
e colo, meus dedos roçam o fecho do seu sutiã, que também logo está
fazendo companhia à camisa branca. Dou atenção merecida ao seu belo par
de seios, beijando-os, chupando-os e os acariciando. Ann-Marie se move em
meus quadris, esfregando-se contra minha ereção e gemendo baixinho à
medida que trabalho nos mamilos acesos.
— Fiz o jantar. Vai esfriar se não formos lá agora.
— Podemos esquentar de novo — murmura em resposta, inclinando
sobre a minha orelha e me lambendo vagarosamente.
Agrado-me com a ideia e sorrio contra seus seios. Ann-Marie está de
saia. Se tem uma coisa que amo fazer com essa mulher mais do que transar, é
transar com ela de saia. Assim, apenas termino de me despir e roço meu
membro duro contra sua boceta que implora por mim. Seus dedos se agarram
com força em um monte de cabelos meus, vejo sua cabeça ir para trás,
deixando um gemido estrangulado no ar. Esbarro os dedos em sua carne
quente e úmida, afasto sua calcinha e a penetro devagar. No mesmo ritmo que
o meu, ela remexe mais seus quadris em cima de mim, espalmando contra
meu tórax. Fazemos contato visual e ela sorri. Acompanhado de gemidos
baixos, seu sorriso traz luxúria e prazer para o meio de nós. Seguro firme em
sua cintura e a faço ir mais rápido. Quando seu corpo estremece sobre o meu,
sei que atingiu seu ponto alto.
Rapidamente a tiro de cima do meu colo e a ponho de joelhos. Seguro
com delicadeza em seus cabelos e a trago para meu tórax enquanto a penetro
de volta, desta vez mais forte, sem muita gentileza ou cerimônia. Quero
aproveitar que está sensível para fazê-la ter um orgasmo duplo.
— Bernardo… — geme. Seus dedos se fecham com toda força no
sofá.
Dou outra puxada em seu cabelo e acelero o movimento do meu
quadril contra o seu. O som de pele batendo em pele reverbera por todo o
apartamento. Ann-Marie está úmida ao extremo; deslizo para dentro dela com
facilidade, o vão de suas pernas até brilha com os fluídos corporais. Estapeio
sua bunda e puxo novamente a porção de cabelo em minhas mãos. Inclino-me
sobre suas costas; minha mão direita a toca no ponto sensível e inchado.
— Quero te ver gemendo meu nome enquanto goza de novo. — Sua
respiração fica mais acelerada, os gemidos se tornam mais escandalosos e
incontroláveis. — Geme gostoso pra mim. Mon amour… — É minha vez de
gemer, enquanto sinto o orgasmo vindo, pronto a me rasgar. — Goze
comigo… Porra, preciso gozar na sua boceta!
— Eu… estou gozando — anuncia. Ao mesmo tempo, me liberto
dentro dela com um gemido rouco e quase cavernal.
Caímos no sofá, abraçados, recuperando a respiração. Ela se ajeita em
meus braços e deita a cabeça nos meus ombros.
— Transamos sem camisinha — sussurra, traçando um padrão de
círculos no meu mamilo. — Foi a primeira vez, não foi?
Balanço a cabeça em positivo.
— Sou limpo — digo, deixando um beijo suave nos cabelos louros
dela. — Meu exame recente tem pouco mais de um ano, e, por mais que eu
tenha me envolvido com muitas mulheres, sempre me protegi.
Ann-Marie se ajeita de novo e me olha, apoiando-se nos cotovelos.
— Fiz alguns exames semana passada. Deveria ter feito assim que
descobri as traições do Antony… Vou pegar os resultados por esses dias.
Eu… — Hesita um instante, então continua. — Tenho medo do que possa
dar. Sabe-se lá com quantas mulheres aquele traste fez sexo sem proteção.
Ponho meu corpo sobre o seu e a beijo de novo, inalando seu cheiro
almíscar delicioso.
— Vai dar tudo certo.
Ela me dá um sorriso pequeno e devolve meu beijo, afundando os
dedos em meus cabelos. Começa a enroscar as pernas em mim de novo e a
gemer em minha boca, querendo uma segunda dose, mas tenho outros planos
para essa noite. Por isso me levanto e a puxo para junto de mim.
— Vamos tomar um banho e jantar. Depois, tenho uma espécie de
surpresa pra você.
Levo-a até o banheiro, ignorando seus questionamentos sobre o que
vamos fazer. Lavo seu corpo e beijo sua boca. Olhando-a nos olhos, digo:
— Você é tão linda, sabia? — Ann-Marie parece ficar envergonhada
com o elogio. Seu rosto cora mais do que a água quente já o havia feito
enrubescer. Abraço-a e acaricio na bochecha, sorrindo bem pouquinho. —
Acostume-se, mon ange. Todos os elogios que você não ouviu da boca
daquele idiota, vai ouvir da minha.
Num rompante, ela me devolve o abraço, apertando-me com força
tremenda; uma força que até então não sabia que tinha. Seu rosto se esconde
em meu peito e ficamos assim, entrelaçados um no outro, sem nada dizer. Há
momentos que dispensam palavras e este é um deles. Ela é a coisa mais
incrível que já me aconteceu; não me vejo mais “galinhando” por aí, trocando
mais de mulher do que de terno. Vejo-me juntos,, sentados naquela varanda,
ela no meu colo, tomando café, enquanto me conta sobre a nova ideia que
teve para sua coleção. Ela conversa comigo e eu nada digo, porque gosto de
observá-la, de vê-la feliz e planejando. Porque gosto de ouvir sua voz, suas
ideias. Isso é… amor, não é?
Afasto-a e torno a afagá-la, trazendo seu olhar ao meu.
— Quero que venha morar comigo. — A mulher arregala os olhos,
surpresa. — Não agora. Quando por fim nos livrarmos de Antony. Acha que
dentro de uns três meses você já pode pedir o divórcio sem Gautier correr
perigo? Estive pensando em… transferi-la de filial, pra ele não pensar que ela
te contou sobre a gravidez quando der entrada no processo.
— Três meses? — indaga, meio receosa. — Emilien… disse que ia
nos ajudar com isso.
Merda. Como nos mantivemos afastados e sem contato, esqueci de
esclarecer esse ponto. Com um suspiro, explico sobre as ameaças de Leclerc
de trazer algum passado tenebroso de Dupont à tona caso seja denunciado.
— Seu marido tem Emil, eu, você, Gautier e até Marie na palma das
mãos.
Ela fecha a cara e desvia o olhar de mim, mordendo o lábio inferior.
— E se fugíssemos? — propõe. Dou uma risadinha diante sua
ingenuidade.
— Tenho uma vida aqui. Meus negócios. Não quero fugir do maldito.
Quero ter o prazer de encará-lo e dar o que merece. — Coloco uma mecha de
cabelo molhado atrás da sua orelha. — Vamos ficar e vencer esse babaca,
tudo bem? Eu sei que vai ser difícil, principalmente pra você aturar esse
homem mais três meses… E, chérie, acredite, me deixa possesso só de pensar
em vocês na cama… — Meu maxilar se aperta na mesma hora, uma raiva
desconhecida começa a atravessar meu corpo. — No momento, é nossa única
solução.
Vagarosamente, ela balança a cabeça em positivo, sem dizer mais
nenhuma palavra. Odeio não poder protegê-la como gostaria. Só torço para
Antony arrumar mais uma porção de amantes e viagens e ficar longe dela o
bastante até esse inferno chegar ao fim.
— Vamos esquecer isso agora e aproveitar os dias que teremos juntos
— sussurro, aproximando-me da sua boca. — A começar pelo jantar frio na
cozinha. — Desligo o chuveiro e puxo uma toalha branca, enrolando-a no seu
corpo molhado.
Faço o mesmo comigo e saio do box, secando os cabelos com uma
segunda. Ann-Marie puxa meu punho e me gira em sua direção, beijando
minha boca rapidamente.
— Obrigada — diz apenas, antes de passar por mim e ir se vestir.
Sorrio e respondo enquanto ela sai:
— Eu que agradeço, chérie.

Levo-a de carro para um local mais afastado e calmo de Paris.


Durante todo o percurso, Ann-Marie quer saber aonde estamos, mas insisto
que faz parte da surpresa. Paramos em um bairro deserto; as ruas são largas e
não há trânsito a esta hora — pouco depois das sete da noite. Ela olha ao
redor, confusa com o local onde estacionei, afinal, não há nada de
excepcional aqui.
— Essa é sua surpresa? — questiona.
Sorrio e saio do carro, pedindo para que faça ao mesmo. Ajeito-me no
banco do passageiro. A mulher fica no lado de fora, encarando-me com
dúvidas nos olhos. Com outro sorriso, digo:
— Sente no lugar do motorista, chérie.
Ela me olha de forma ainda mais estranha, mas o faz no final das
contas.
— Há algum tempo você me disse que queria tirar sua habilitação de
motorista. Acho uma boa você praticar um pouco antes de tentar seu Le
Code. Quando conseguir, saiba que quero ser seu acompanhante para te
ajudar a treinar até a prova prática. Então… surpresa!
Ela ri um pouco e balança a cabeça em negativo. Sei que não é a
melhor das surpresas, mas é de coração. Quero mesmo apoiá-la em coisas
que, nesses anos todos, não fez por causa do escroto do marido.
— Tudo bem — diz com um sorriso lindo, passando o cinto. Faço o
mesmo.
Dou algumas instruções básicas antes de começarmos: freio de mão,
marcha, embreagem… As primeiras tentativas nos arrancam algumas
gargalhadas, porque ela deixa o carro morrer ou dar solavanco por soltar a
embreagem muito rápido. Mas logo pega o jeito e estamos andando bem
devagarzinho, não mais que vinte por hora, cortando a rua extensa. Ela parece
tensa no lugar, as mãos seguram com firmeza o volante. Tento acalentá-la
dizendo que está indo muito bem. Damos uma volta completa no quarteirão
até que ela estaciona no nosso ponto de partida.
Ann-Marie está radiante, parecendo criança em noite de Natal cheia
de presentes. Ela se joga em meus braços e me aperta contra seu corpo, meio
desajeitado porque ainda estamos dentro do carro.
— Você é tão bom pra mim… — sussurra. Afasta-se o suficiente para
deixar um beijo no canto da minha boca. — Obrigada. Hoje à noite… foi
uma das melhores surpresas que já tive.
Fico mexido com sua declaração. Tenho noção de que não fiz nada
demais. Talvez até ela esperasse por algum jantar romântico com direito à luz
de velas. Mas através dos seus olhos noto que o efeito de a trazer aqui, de
apoiá-la na decisão de ser uma mulher independente e autônoma, surte o
mesmo efeito. Então tenho certeza de que estou no caminho certo para fazê-la
feliz.
— Ainda não acabou — murmuro em sua boca, acariciando seu belo
rosto. — Pula pra cá. Quero te levar pra um lugar.
Trocamos nossas posições outra vez. Faço uma viagem de cerca de
vinte minutos, deixo o veículo em um estacionamento e terminamos o
percurso a pé — nada mais que cinco minutos. O local tem turistas e está
todo iluminado. Outra vez, não é nenhum roteiro inédito ou propriamente
romântico. Ela me olha atentamente quando paramos frente à Torre Eiffel, do
outro lado da rua.
— Está fechada — indica, olhando para o monumento atrás de mim.
— Eu sei. Não é isso que quero te mostrar — falo, puxando-a para um
local mais reservado do parque em torno da torre, o Champs de Mars.
Escolho uma árvore aleatória, sento-me no gramado e deito. Ann-Marie
aparece no meu campo de visão, sorrindo e achando graça de alguma coisa,
olhando-me de cima para baixo. — Venha, deita aqui do meu lado e
contemple.
Ela pisca algumas vezes, mas também fica do meu lado. Seus olhos se
fixam no céu estrelado.
— Nunca vim aqui à noite, nem me deitei no gramado para olhar o
céu — sussurra.
— Eu vinha sempre — confesso, arrastando minha mão até a sua e
entrelaçando nossos dedos. — Quando criança também, principalmente nos
primeiros anos. Paris era uma novidade pra mim. Na faculdade, reuníamos os
amigos e varávamos a noite conversando, rindo e bebendo.
Pela visão periférica, sinto-a me olhar. Viro-me em sua direção, ela
está sorrindo pequenino para mim.
— Consegui visitar Juliette outro dia. Inclusive levei um presente para
o bebê dela — diz, manobrando o assunto. Aproximo minha testa da sua,
meu braço contorna sua cintura. — Ela foi só outra vítima do Antony, Ber…
E digo isso não no sentido de ter sido agredida. Ele também a manipulava.
Disse coisas terríveis a meu respeito pra que ela achasse que eu merecia ser
traída.
Não respondo nada por alguns instantes. Quero evitar pensar em
como esse homem é um perigo para qualquer mulher. Evito pensar que Ann-
Marie terá que ficar ao seu lado mais algum tempo até poder pedir o
divórcio.
Faço uma carícia no seu rosto e abro um pequeno sorriso.
— Sei que não é da minha conta, mas… por que nunca tiveram
filhos?
— Ele nunca quis — responde, o tom meio triste. — Eu queria,
sempre foi meu sonho, mas não o de Antony. E agora vejo que a melhor coisa
foi não ter tido filhos com ele.
Torno a olhar para o céu. As estrelas são meio ofuscadas por conta do
grande número de iluminação artificial, mas, ainda assim, é possível apreciar
a beleza da natureza noturna.
— Acho que devíamos fazer um — solto, de repente, e eu mesmo fico
surpreso com que disse. Dou uma risada gostosa, pensando no absurdo que
saiu da minha boca. Encontro os olhos dela, que exalam surpresa, enquanto
seus lábios mostram um sorriso divertido. — Quando pudermos enfim ficar
juntos — esclareço.
Ela fica em seus cotovelos, o dedo indicador passeando em meu
peito.
— Isso é sério? — inquire, com um sussurro quase inaudível.
Que porra há comigo que não consigo me declarar, mas proponho
fazer um filho nela?
— Mais do que você pensa — devolvo no mesmo tom. Meus dedos
novamente a tocam na face, numa carícia branda. Colo uma mecha atrás da
orelha e a beijo sob as estrelas. Vagarosamente, ela retribui, não se
importando em demonstramos afeto em público.
Não tocamos mais no assunto quando cessamos o beijo. Tornamos
apenas a mirar no céu, nossos dedos juntos outra vez. Um longo silêncio recai
sobre nós, mas é confortável e prazeroso. Algum tempo depois, decidimos ir
embora. Antes, quero bater uma foto nossa. A Torre Eiffel iluminada faz
plano de fundo com nossos sorrisos. Só então, a levo para sua casa, mesmo
querendo que passe a noite comigo. Deixo-a cerca de um quarteirão antes e a
espero me enviar uma mensagem confirmando que chegou bem.
Só então volto para meu apartamento, sentindo o coração apertado por
termos de nos separar.
Merda.
Acho que amo aquela mulher.
BERNARDO
Ann-Marie faz uma careta desagradável quando dou a notícia. Odeio
ter que ir neste momento, odeio ter que deixá-la sob o mesmo teto que aquele
maldito desgraçado, mas por ora não tenho escolha.
— Quanto tempo você vai ficar fora? — pergunta, brincando com a
pele da minha barriga.
Estamos na minha cama, nus. É madrugada e acabamos de fazer sexo.
Ela se arriscou passando a noite comigo, mas deixou avisado para a equipe de
segurança e da portaria do condomínio que dormiria na casa dos pais.
Embora Antony tenha deixado seus negócios com a Dupont Investimentos,
continua viajando com muita frequência. Diz à esposa que é a trabalho, mas
ela já andou revirando seu escritório e encontrou as faturas do cartão que ele
tem escondido para gastar com mulheres. Nas últimas semanas, as datas de
suas viagens batem com datas em que esteve em motéis, casas noturnas,
restaurantes e lojas de grife. O traste já arranjou uma amante nova e está
esbanjando dinheiro, provavelmente de origem ilícita. A boa notícia nessa
merda toda é que ele não a procura para fazer sexo, como já não fazia um
monte de meses atrás.
— Realmente não sei, mon amour. Sempre viajo ao Brasil por conta
da cafeteria. Meu sócio pensa em abrir uma filial nova por lá e quer minha
presença pra que trabalhemos juntos nisso. Já tem algum tempo que estou
sendo cobrado. Além do mais, ele… está passando por uma fase meio
complicada no casamento. Sempre estive ao lado dele nos momentos mais
críticos. Quero estar agora também. Você me entende, chérie?
Ela balança a cabeça em positivo.
— Entendo. Sentirei muito a sua falta.
Sorrio um pouquinho e toco seu rosto.
— Pense que, quando eu retornar, aquele prazo de três meses que
demos pra você pedir o divórcio já terá vencido.
— É, tem razão — concorda, com um suspiro. — Teve notícias de
Gautier?
Já tem um mês que a encontrei naquela situação crítica. Cerca de
quinze dias depois, ao se recuperar, Juliette preferiu a demissão, mesmo
garantindo que a transferiria para outra cidade e a manteria em segurança. A
moça, contudo, disse que não deixaria Paris por causa de Antony. De
qualquer maneira, a capital é grande o bastante. Tenho certeza que vai
recomeçar e encontrar outro emprego. Inclusive lhe dei uma carta de
recomendação.
— Desde que assinei a demissão dela, não. E quando Antony volta,
dessa vez?
— Depois de amanhã, no primeiro horário. Espero que continue não
querendo sexo comigo.
Dou uma risadinha e concordo. Também espero.
— Queria poder te ver antes de embarcar para o Brasil. Mas já vi que
não será possível — digo, fazendo um biquinho. Meu voo é para o mesmo
dia da chegada do traste, mas à noite.
— Por isso, deveríamos aproveitar muito hoje — fala, girando seu
corpo sobre o meu. Um segundo depois, sua boca está na minha, tirando de
mim todo meu ar.
Pela terceira vez na noite, fazemos amor.
Dou uma última conferida na cafeteria antes de viajar. Deveria estar
me preparando para embarcar dentro de algumas horas, mas decidi que
precisava ter certeza que tudo está no lugar. O local ficará sob a
administração de uma nova gerente e do meu gerente-geral, Jacques Aubert.
Repasso com eles as planilhas de estoque, lista de fornecedores, folhas de
pagamento, logística, metas de venda e todo o necessário para que o
estabelecimento funcione.
Só quando estou confiante de que repassei tudo que precisava, decido
ir para meu apartamento terminar de preparar minhas malas. Quando deixo o
escritório, no salão principal eu o vejo. Mas como é que esse diabo ainda tem
o disparate de voltar aqui? Fico cego de fúria de tal maneira que mal me vejo
atravessando a cafeteria e indo em sua direção.
— Dousseau! — cumprimenta-me com um tom cínico e um sorriso
debochado, quando estou a dois passos dele. — Sempre bom te rever, mon
ami.
— Não sou teu amigo nem aqui nem nos confins do inferno, Antony
— cuspo, trincando os dentes. — Quero que saia da minha cafeteria. Agora
mesmo.
Ele me encara intensamente por longos segundos, sem desfazer seu
sorriso de deboche.
— O que é isso? — pergunta, como se realmente não soubesse do
motivo por expulsá-lo. Alguns clientes são atraídos para nossa pequena
“conversa” e nos observam. — Vim apenas tomar um café, como nos velhos
tempos, se lembra?
Espalmo contra sua mesa e o olho nos olhos. Nossos rostos estão bem
próximos e não faço questão de esconder o nojo que sinto por ele.
— Isso foi antes de saber que você fraudava minha empresa e
espancava mulheres grávidas — sussurro para que somente ele me escute.
Antony fica rígido na mesma hora. O sorrisinho cínico se desfaz
pouco a pouco. Os lábios tremem antes de fixarem em uma única linha tensa.
Seus olhos me analisam e me queimam. Conheço esse olhar. É ódio. Genuíno
e puro.
— Você não sabe de porra nenhuma — cospe.
— Emilien me falou sobre seu envolvimento com lavagem de
dinheiro que vinha de caixas-dois da minha empresa, Antony. E sobre
Gautier… Acha que nunca notei como vocês eram íntimos, que mesmo
depois de discutirmos e de eu te provocar, você sempre voltava a frequentar
minha cafeteria? Estava na cara de que tinham um caso. Para sua sorte,
Juliette não me contou nada, negou até o último que esse filho seja seu ou
que você tivesse a espancado e não procurou a polícia. Mas para mim, seu
diabo imundo, nada me tira da cabeça que foi você quem tentou matá-la —
digo, com todo ódio e desprezo.
Para todos os efeitos, o espancamento de Juliette foi por conta de uma
tentativa de assalto que ela reagiu. Inclusive, essa foi a versão dada às
autoridades por medo de denunciá-lo e se pôr em risco. Continuo dançando
conforme sua música até termos uma maneira de colocar esse filho da puta na
cadeia.
— Bem… — diz, ainda sussurrando e tornando a sorrir de escárnio.
— Emil deve ter te informado que não há nada que vocês possam fazer
contra mim. Sabe, sei um segredinho sujo dele e o ameacei… Como ameacei
aquela puta da Gautier e a negrinha da Marie.
Que Deus me perdoe, mas não aguento mais. Está na hora de termos
um acerto de contas. Apenas um milésimo de segundo depois destas palavras
eu o agarro pelo colarinho e o puxo com toda minha força, arrastando-o para
fora da minha cafeteria. Nós nos estatelamos na calçada. Caio por cima do
desgraçado e soco sua cara, empregando toda a força do ódio que está dentro
de mim. Antony tenta revidar e se proteger, mas estou tão possesso, mas tão
possesso, que ele não tem nenhuma chance. Quero matar esse filho da puta.
Morto, todos nossos problemas são resolvidos: Gautier estará em segurança;
Ann-Marie, viúva; o segredo de Emilien, tão morto quanto.
Meus dedos e minha roupa já estão salpicadas de sangue quando
alguém consegue me tirar de cima dele. Reluto e tento me soltar da pegada de
quem quer que seja. Ainda não acabei com ele! Uma segunda pessoa o ajuda
a se levantar. Seu nariz está em um ângulo esquisito, todo torto e vermelho. A
camisa branca traz respingos de sangue.
— Você é um homem morto — avisa, apontando o dedo para mim. —
Guarde bem isso que estou te dizendo. Você. É um homem. Morto.
Sua ameaça não me intimida.
Por fim, acalmo meus nervos. Solto-me da pegada de quem está me
contendo, ignoro todos os olhares dos pedestres e volto para dentro do café.

Desembarco no Brasil pela manhã. Do aeroporto, sigo direto para a


casa onde vivi até meus oito anos de idade e que ainda pertence à minha
família. Embora cansado por causa da viagem e com sintomas do jet lag, me
obrigo a abrir as janelas, retirar os lençóis de cima dos móveis e arrumar o
quarto com roupas de cama limpas, que encontro no armário. O local está
relativamente arrumado, uma vez que meu pai mantém uma pessoa que vem
limpar e abrir a casa duas vezes no mês. Até algum tempo atrás, estava
locada, mas já tem bem uns quatro anos que o inquilino foi embora e meu pai
não quis saber mais de alugá-la.
Depois de tomar um banho, caio na cama e durmo por algumas horas.
Acordo com meu celular tocando. Meio estabanado, o procuro por debaixo
dos travesseiros e me esforço para estar mais ou menos lúcido quando atendo.
— Alô.
— Já está no Brasil, suponho. — É Alfredo do outro lado da linha.
— Cheguei de manhã — informo, virando-me na cama de barriga
para cima.
— Certo. Pode vir hoje à noite aqui em casa? Farei um foie gras.
— Você sabe que não recuso comida de graça, Cretino.
A sua risada exagerada atravessa a linha telefônica e me faz rir junto.
Combinamos um horário e ele encerra a ligação, falando-me para não atrasar.
Tento dormir depois disso, mas não consigo. Levanto-me e tomo outro
banho. Tenho fome e algumas coisas necessárias a resolver na cidade para
minha estadia, como por exemplo locar um carro. São perto de duas da tarde
quando consigo, por fim, ir a um restaurante forrar o estômago.
Não hesito em vir aqui. Mesmo tendo uma variedade de escolhas,
prefiro este restaurante. É um local que já frequentava, conheço o serviço
e…
— Bernardo? — Victória vem em minha direção quando me vê
entrando no estabelecimento.
Limito-me a sorrir e acenar. Ela para à minha frente com um sorriso
caloroso. Vic está com seu habitual dólmã branco (não tão branco, dando-me
a certeza de que estava cozinhando), os cabelos louros presos em um coque
desajeitado. Esqueci-me de como essa mulher é bonita até desajeitada.
— Salut, ma chère — cumprimento-a e a abraço, deixando um beijo
úmido em sua bochecha.
— Desde quando está no Brasil? — pergunta, puxando-me até uma
mesa mais reservada. Sentamo-nos de frente um para o outro enquanto a
respondo:
— Cheguei hoje de manhã. Alfredo está sabendo que venho pra cá
desde a semana passada. Ele não te falou?
— Aquele cretino não me disse nada.
— Ainda não se dão bem? — provoco. No passado, os dois tinham
uma inimizade por causa de Lívia, que é melhor amiga de Vic. — Achei que
já tivessem superado suas diferenças.
Ela me abre um sorriso bonito depois de uma risada gostosa e diz:
— Aprendi a gostar daquele cretino depois que provou que não ia
mais ser um babaca com a Li.
Aceno em positivo e seguro uma risadinha. Uma garçonete se
aproxima e nos cumprimenta, retirando meu pedido em seguida.
— E como estão as coisas na França? — Quer saber.
Termino de beber um gole de água antes de responder:
— Estão… bem. — Não entrarei em detalhes com Victória, ou
qualquer outra pessoa, sobre minha relação com Ann-Marie ou dos socos que
dei no marido dela. Pelo menos, não por ora. Não até aquela mulher ser
minha realmente e o traste do Antony não estiver mais em nossos caminhos.
— Alfredo falou algo outro dia sobre estar saindo com alguém —
comenta, em um tom natural. Há apenas interesse em manter a conversa. —
Ela conseguiu te fisgar?
Preciso de outro gole de água. Sorrio contra a borda da taça e lhe
lanço um olhar galante.
— Talvez — respondo, evasivo. Apoio a taça na mesa outra vez e
seco os lábios com o guardanapo de pano. — Gosto dela, é uma boa pessoa…
Meio insegura às vezes e é… — Suspiro, de um jeito meio “adolescente
apaixonado”. — É diferente de todas as mulheres com quem já saí.
Victória me dá outro daquele seu sorriso contagiante.
— Bem, pelo jeito temos uma forte candidata a te levar ao altar —
zomba, remexendo no cabelo louro. Reviro os olhos e me permito rir um
instante. — Não, não faz essa cara. Só falta você pra sossegar e encontrar
alguém. O Cretino nunca quis nada com nada, mas tá com a Li há um
tempão. Eu desde pequena disse que não ia ter relacionamento fixo com
ninguém, mas… — Ela faz um pequeno gesto com ambas as mãos, virando
as palmas para cima. — Tô com o Henri, morando na mesma casa e tudo
mais.
— Uau! — exclamo, meio debochado, enquanto ela diz “só falta você
pra sossegar”. — Você e Henrique Hauser? Quando estávamos juntos não
podia nem mesmo ouvir o nome dele.
Vic dá um tapa na minha mão, deixando uma gargalhada no ar. Um
instante de silêncio recai sobre nós e, depois de um suspiro, diz:
— A gente se reaproximou depois daquela noite, no noivado da Li e
do Alfredo, que encontraram Enzo boiando na piscina e descobriram a
leucemia dele, se lembra? — Faço um aceno em positivo. Estava presente
quando isso aconteceu. Aliás, nessa ocasião ela mal falou comigo porque
ainda se sentia desconfortável por termos terminado, alguns meses antes, por
telefone. — Foi um baque quando descobriram a doença. Alfredo e Lívia
tinham um ao outro, mas o Henri… Ele estava sozinho nessa fase do filho.
Foi mais por solidariedade, por apoio. Sabia que não ia ser uma fase fácil de
passar e queria ser alguém com quem ele pudesse contar.
— Enzo e seu dom mágico de juntar os casais — brinco, dando uma
risadinha.
Meu pedido chega e Victória me faz um pouco mais de companhia,
atualizando-me sobre seu restaurante e como anda a vida por aqui. É
engraçado pensar que, um tempo atrás, depois de terminarmos, ela me
evitava. Não sei por quê. Talvez porque sabe que foi especial para mim e ter
terminado comigo, por telefone, porque ainda gostava de Henrique, me
magoou mais do que uma mulher já tinha feito uma vez. Quando percebeu
que já não representava mais nada para mim, parou de se esquivar e nos
tornamos amigos.
— Preciso voltar lá pra dentro — diz, um tempo depois. Estou quase
terminando minha refeição. — Foi bom te ver de novo. A gente se esbarra
por aí. — Vem até mim e deixa um beijo no meu rosto, afastando-se em
seguida.
Observo-a sair enquanto fico com meus pensamentos. Não sou
homem de comparar as mulheres com que me envolvi, mas, neste momento,
é impossível não fazer isso e chegar à conclusão de que meus sentimentos por
Ann-Marie são infinitamente maiores do que aqueles que senti por Victória.
Bebo um gole de vinho, assustado com a vontade que me tomou
agora. Assim que retornar a Paris, direi o que ela merece ouvir.
Que eu a amo.

Alfredo me recebe de forma calorosa e com um abraço. Enquanto


termina o jantar, me incumbe de cuidar da pequena Lara, o que não é para
mim nenhum incômodo. Já conhecendo o caminho, subo até o quarto da
pequena, que está na companhia da mãe. Lívia vem até mim, me abraça e
beija meu rosto, perguntando como estou.
— Bem, ma chère. Ficarei melhor quando puder dar umas mordidas
nessa coisa gostosa — digo, pegando Lara no colo e a enchendo de cócegas.
A pequena se remexe e pede a ajuda da mãe.
— Como foi de viagem? — pergunta. Sento-me na poltrona com
minha afilhada ainda no colo. Pego um ursinho de pelúcia e dou para ela, que
se entretém enquanto converso com sua mãe.
— Foi muito boa. E você, ma chère, como está? Alfredo me falou…
— Faço uma pausa um segundo, sabendo que estou entrando em terreno
minado. Meu amigo me contou que Lívia ainda está traumatizada com o
assalto, um mês atrás. Não sei se tocar no assunto é uma boa ideia. E se ela
tiver alguma reação negativa? Merda. Deveria ter ficado com a boca fechada.
Mas já disse, não há como voltar atrás. — Que você ainda está… Sabe?
Reagindo mal às lembranças.
Ela me dá um sorriso meio fúnebre e se escora à porta do quarto. Seus
olhos se desviam para a filha em meu colo, quietinha e brincando com o
ursinho.
— Bem, na medida do possível. Estou fazendo um acompanhamento
psicológico pra poder lidar com o trauma — diz, dando de ombros. —
Alfredo tem sido paciente comigo porque eu realmente… Estou mais irritada
e ansiosa que o normal. Mas, enfim, acredito que logo vou melhorar.
Sorrio, meio sem graça, e abaixo o olhar.
— Eu não deveria ter ligado para Alfredo e pedido que ele fosse à
França. Talvez se vocês tivessem ido comemorar o aniversário de casamento
na data certa e…
— Ah não, Bernardo. Nem comece com isso — Lívia me interrompe.
Ergo meu olhar para ela, que me olha de volta com olhos de reprovação. —
Sabe que não tem culpa de nada. Ninguém poderia prever que… — Engole
em seco e respira fundo. — Coisas ruins acontecem, tudo bem? Não se sinta
culpado por algo que você não tem como ter controle.
Abano em positivo. Ela vem em minha direção, beija a filha no rosto
e pede para que se comporte comigo enquanto vai ajudar Alfredo com o
restante do jantar e depois se arrumar. Antes de sair, me dá um abraço e diz
que qualquer coisa posso levar Lara para o pai (leia-se: caso comece a chorar
descontroladamente e eu não saiba lidar). Tranquilizo-a de que ficará tudo
bem.
Passo os próximos minutos com a pequena, brincando e fazendo
cócegas nela. É aqui também, durante este momento com ela, que outra
vontade esquisita se apossa do meu corpo. Quero muito um filho. Com Ann-
Marie. Sorrio para mim mesmo, agradando-me com a ideia e pensando como
Ester vai ficar eufórica. Talvez até mais do que eu.
— Ei. — Alfredo surge à porta. — Vou servir o jantar.
Com Lara no colo, que logo quer ir com o pai, eu o acompanho. Na
sala, o primogênito dele acaba de chegar da casa de Henrique — o tio que é
na verdade seu pai “adotivo” — e fica histérico quando me vê. Brinco por um
instante com o menino antes de nos reunirmos em torno da mesa. Como
prometido, Alfredo fez foie gras de prato principal e musse de maracujá
como sobremesa. Ao final, brinco um pouco mais com as crianças até Lívia
querer pô-las para dormir. Em sua ausência, tomando cada um uma cerveja e
depois de falarmos trivialidades, meu amigo comenta um pouco sobre o
assalto e a situação com a polícia, no momento sem novidades.
Só então decido falar sobre Ann-Marie e da nossa relação. Como já
imaginava, ele me dá um sermão:
— Você não deveria se envolver com ela. E se o cara é um marido
ciumento? Você perdeu a noção do perigo?
Eu não tenho nenhuma intenção de dizer que Antony é mesmo um
cara ciumento e que, inclusive, eu o soquei antes de embarcar para cá. Quero
evitar preocupá-lo e poupar meus ouvidos de mais sermões. Sendo assim,
digo apenas:
— Ele nem se importa com a esposa, crétin. Na nossa primeira noite
juntos, ela me disse que estava sem sexo tinha quatro meses. Você acha
mesmo que ele não tem uma amante também? Ele a trata feito um nada. Já
ouvi algumas discussões deles, aquele imbecil já a chamou de feia,
descuidada, disse que está envelhecendo e com o corpo flácido, que ninguém
vai querer uma mulher como ela — Tiro a carteira do bolso e puxo uma foto
dela, mostrando para ele. É uma que tiramos em frente a Torre Eiffel. —
Olhe isso, Alfredo. É uma mulher linda, não concorda?
Meu amigo olha a foto e fica um instante em silêncio. Ele há de
concordar que Ann-Marie é bonita, sim. Antony que é um babaca que sempre
tentou destruir a autoestima da mulher.
— De fato, ela é linda, mas ainda assim, Bernardo. Tome cuidado —
alerta.
— Não se preocupe — asseguro —, ela pedirá o divórcio quando eu
retornar à França. Então viveremos juntos.
Encerramos o assunto depois disso e tornamos a falar de coisas banais
de novo até estar tarde o suficiente. Mesmo tendo bebido um pouco de
cerveja, me arrisco a dirigir de volta para casa. Na cama, não consigo dormir,
girando sempre de um lado a outro. Sempre gostei de minhas temporadas no
Brasil. Agora, contudo, enquanto Ann-Marie está em Paris, sob o mesmo teto
daquele maldito desgraçado, sinto que os próximos meses serão os mais
longos e torturantes da minha vida.
E odeio esse sentimento de medo açoitando meu coração.
JULIETTE
Antony aparece em casa por volta de dez da noite. Sorrio ao vê-lo,
está bonito e elegante dentro de um casaco creme. Mal o recebo e ele invade
minha boca com um beijo profundo, de tirar o fôlego. Trago-o para dentro e
bato a porta. Já conhecendo cada canto da minha casa, me conduz de olhos
fechados até o sofá, onde me joga e cai sobre meu corpo. Sua boca não
desgruda da minha. O beijo então se torna mais suave e calmo à medida que
vai perdendo as peças de roupa. Preferia que conversássemos antes do sexo.
Contudo, sei que é uma boa jogada agradá-lo e satisfazê-lo e depois dar a
notícia.
Realmente não sei como ele vai reagir.
Cansei de apenas ser a outra, a amante. Embora Antony pareça dar
mais atenção para mim do que à própria esposa que não o merece, a situação
já está insustentável. Não quero ter mais de me esconder ou mentir. Quanto
mais arrastamos essa situação, pior será. Não estou mesmo a fim de sair mal
falada quando finalmente nos assumirmos. Não importa o quanto Ann-Marie
seja uma louca histérica que apenas se aproveita do marido, ou o quanto
Antony apenas procura o que não acha em casa, a amante é sempre a errada
da história. Sempre. Não quero arrastar esse caso a ponto de alguém
descobrir e eu cair na boca de Paris toda.
Talvez não tenha sido a ideia mais sensata ou esperta, mas foi o único
modo que encontrei de forçar esse homem a se divorciar de vez da mulher.
Ele tem levado esse casamento adiante mesmo não a amando desde que se
conhece por gente, mesmo ela sendo uma mulher mesquinha e egoísta que
vive o perturbando. Mesmo assim, ele reluta em pedir o divórcio, sempre me
dando a desculpa de que ainda não é o momento, que a mulher é instável e
vai fazer escândalo e ameaças de suicídio caso queira se separar.
Não a conheço muito bem. Quero dizer, a vi em uma ou outra
ocasião, e, se tivesse de julgá-la apenas pela sua aparência, jamais diria que é
tudo aquilo que Antony sempre me relata. Mas já não diz o ditado que quem
vê cara não vê coração?
O segundo motivo por não querer pedir o divórcio é por conta dos
negócios. Até onde sei, o pai de Antony e o sogro sempre foram amigos e
juntos investiram na galeria de frente para o café de Bernardo, que gerencio e
foi onde nos conhecemos. Como é ele quem cuida do local, o divórcio,
segundo me disse, além de decepcionar seu pai e seu sogro, ainda geraria
conflito de interesses.
Já perdi as contas de quantas vezes Antony Leclerc me pediu calma e
paciência, que o divórcio viria em breve. Disse-me que a forçaria a se
separar, não o contrário. Um dia desses, inclusive, o presenciei dar um
showzinho na cafeteria, porque a esposa estava lá, à sua procura. Bem, ao
menos foi o que disse, mas acho que foi mesmo atrás de meu chefe.
Desconfio de que os dois têm um caso, entretanto não posso confirmar ou
provar, apenas supor. Notei algumas trocas de olhares, de como Dousseau
sempre a rodeava e a cercava, lançando sorrisos maliciosos e galantes,
olhares indiscretos e sugestivos. Tenho quase certeza que aquela louca dorme
com meu patrão, o que é uma pena para ambos. Bernardo, por não saber onde
está se metendo, e Antony, porque sabe-se lá quantas vezes a esposa o traiu.
De qualquer modo, o plano dele é infernizar a mulher até ela não aguentar
mais e pedir o divórcio. Seu escândalo na cafeteria nessa ocasião foi uma das
suas encenações para tentar pressioná-la a desfazer o casamento.
Porém, como já afirmei, não quero mais levar essa situação adiante.
Antony terá de dar um basta de uma vez por todas ou não terei mais nada
com ele até que seja um homem completamente livre.
— O que está acontecendo com você? — pergunta, olhando-me com
curiosidade. Só então me dou conta de que me perdi nos meus próprios
pensamentos enquanto está aqui, em cima de mim, beijando-me.
Abro um pequeno sorriso e digo:
— Não é nada. Apenas um pouco cansada. E triste. Amanhã cedo
você viaja de novo. E dessa vez não poderei ir junto. De novo. — Faço um
biquinho dramático. Antony passara mais de quinze dias fora, mal voltara e
agora vai viajar outra vez. Tínhamos até planejado viajar duas semanas para
Marselha, ele inclusive já tinha comprado nossas passagens. De última hora,
entretanto, cancelou porque Emilien o incumbiu de realizar alguns negócios
em Monte Carlo. Nessa ocasião teve de levar a esposa junto porque ela o
infernizou para acompanhá-lo.
Antony ri brevemente e me beija de novo, passando a mão por dentro
da minha camisa e encontrando minha pele quente.
— Bem… se tivesse se afastado do seu emprego, como já bem disse
pra fazer porque posso te sustentar, poderia ir comigo. Uma pena você ter
obrigações na cafeteria de Dousseau.
Deus me livre. Sempre amei ter meu próprio trabalho, meu próprio
dinheiro e ser independente financeiramente. Jamais me permitiria depender
de homem nenhum. Não é a primeira vez que Antony sugere me afastar do
meu emprego e ser sustentada por ele. Inclusive, uma vez chegou a dar a
entender que, quando por fim pudesse me assumir, exigiria que eu não
trabalhasse mais. Como se eu fosse mesmo esse tipo de mulher. Nesse dia em
questão até discutimos.
— Já falamos desse assunto. Além do mais, quando você finalmente
estiver divorciado, poderemos fazer mais dessas viagens, sem a necessidade
de ficar me escondendo.
O homem me encara um segundo, me dá um sorriso meio frio e não
diz nada. Sinto uma coisa esquisita se remexer dentro de mim, como algum
tipo de alerta natural do meu corpo acerca de Antony. Ele tem relutado tanto
em se separar da esposa que começo a desconfiar que está me enrolando. Ou
apenas é dependente demais, emocionalmente falando, da mulher. Não sei.
Só sei que preciso convencê-lo a dar um fim no seu relacionamento, ou nós
dois não vamos mais acontecer.
— Ficou quieta de novo — resmunga, saindo de cima de mim e se
levantando. — Olha, menti para Ann-Marie sobre o horário do meu voo só
pra poder me despedir de você. Mas já vi que não está a fim hoje… Então,
vou pra casa e arranjo alguma desculpa.
Dou um pulo tão grande no sofá que quase não percebo. Seguro-o
pelo punho e, antes que tenha tempo de me contestar, tomo-o em outro beijo
forte e necessitado. Não quero que ele vá. Não antes de conversarmos.
— Desculpe — murmuro em sua boca. — Não vou me distrair de
novo, juro.
Antony acena em positivo e me beija, terminando de tirar a roupa que
ficou em seu corpo. Aos poucos, também vou perdendo a minha. Em
instantes, estou completamente nua, de joelhos no sofá, enquanto ele está por
trás de mim, segurando firme em minha cintura e me penetrando com todo
vigor.

Depois do sexo, tomamos um banho juntos. Faço alguma hora no


quarto e o oriento a ir até a sala e pedir uma pizza para comermos. Aproveito
sua ausência para voltar ao banheiro e retirar da gaveta do gabinete um
pequeno teste de farmácia usado. Comprei e o fiz hoje pela manhã. O
resultado é positivo. Minhas mãos tremem levemente enquanto seguro o
pequeno objeto entre meus dedos e ensaio um modo de dar a notícia a
Antony. Minha mente me reporta para algum tempo atrás, quando, nus na
cama, perguntei porque ele e a esposa ainda não tinham filhos. A resposta foi
bem categórica:
— Não quero filhos. Não tenho paciência, ânimo e energia pra
crianças.
Então é bastante óbvio que ter engravidado dele — de propósito —
foi minha ideia mais idiota. Mas se me amar o suficiente, como diz que ama,
talvez esse filho venha para nos unir definitivamente. O medo constante,
porém, de não saber como vai reagir à notícia me domina por completo. Nem
mesmo sei como começar a dizer.
— “Então, estou grávida”. — Ensaio frente ao espelho, o teste ainda
em minhas mãos. Balanço a cabeça em negativo. Direta demais. Suspiro e
desisto por ora de formular uma maneira de contar. Guardo o exame de volta
na gaveta, por baixo das toalhas de rosto, e volto para a sala.
Antony arrumou a mesa para comermos a pizza quando chegar e
escolheu um filme de terror, que está pausado.
— Está com dor? — questiona, franzindo as grossas e negras
sobrancelhas. Pestanejo sem entender seu questionamento. Ele parece
entender a expressão confusa em meu rosto e esclarece: — Está com a mão
no abdômen. Está com dor?
Viro o rosto para baixo e só então noto ambas as mãos sobre meu
ventre. Mal de grávida, acredito. Desfaço o gesto rapidamente e me
aproximo, negando com um mover de cabeça, ao mesmo tempo em que digo:
— Não, não estou com dor.
Abraço-o um instante e escondo o rosto em seu peito. Fico assim,
agarrada nele por longos segundos, repreendendo-me por ter sido estúpida em
gerar um filho sem o consentimento do meu parceiro. Um parceiro que já
alegou ser avesso a crianças.
— Juliette, você está tão esquisita hoje. Tem algo que quer me
contar?
Afasto-me do seu abraço e o encaro nos olhos. Aproveite o momento
e diga de um vez, Juliette!, minha consciência acusa. “Sim. Estou grávida!
Parabéns, papai!”.
— Quando vai pedir o divórcio, Antony? — digo, contudo. Preciso
pensar em uma maneira mais fofa e suave de dar a notícia. Talvez eu compre
alguma roupinha escrito “Papai do ano” ou qualquer coisa do gênero.
Sua expressão se torna sombria e rude um segundo depois.
— Acho que já conversamos sobre isso — diz, exasperando um
suspiro logo em seguida.
— E acho que você está me enrolando — disparo.
Antony me encara seriamente, com certeza não gostando do meu tom.
Engulo em seco e desvio o olhar, incomodada e intimidada com a maneira de
como me avalia. Abraço meu próprio corpo e até demoro a perceber que
novamente abracei meu ventre, em um ato inconsciente de proteger meu
filho.
— Não gosto desse tipo de pressão, Juliette. Já te disse que vai
acontecer no momento certo — alega, com o tom de voz meio rude.
Alguma coisa estranha me atinge e, pela primeira vez desde que
conheci e me envolvi com ele, sinto uma intimidação fora do comum. Engulo
em seco e apenas aceno em positivo, não querendo estender mais o assunto e
gerar confusão. A campainha toca e quebra a tensão quase palpável. Ele se
retira para receber o entregador. Comemos e assistimos ao filme em um
silêncio incômodo. Acho que é a primeira vez que fico desconfortável com
Antony. O longa ainda está rodando quando junto pratos, talheres e copos e
levo para a cozinha. Encostada à pia, cabisbaixa, fico procurando a maneira
mais suave de falar da gravidez.
De repente, um par de braços me envolve e um beijo macio estala em
minha nuca.
— Pardon, ma chérie. Sei que fui meio rude contigo — pede, com
um sussurro e a voz suave. — Só quero que espere mais um pouco, juro que
agora estou perto de me divorciar.
Viro-me em sua direção, sorrindo pequenino.
— Não está mesmo me enrolando, Antony?
— Claro que não, Juliette. Sou louco por você — declara e se inclina
para deixar um beijo úmido em meus lábios.
Mesmo algo dentro de mim me dizendo para não confiar em suas
palavras, eu confio.

— São cinco da manhã, por que está em pé? — Antony pergunta,


surgindo no banheiro.
Dou um sobressalto em meu lugar, assustada com sua chegada tão
repentina. Enrolada em um roupão, pronta a tomar um banho rápido, estava
admirando meu abdômen que já dá pequenos sinais da gestação. Fecho-o
rapidamente e me viro para ele, forçando um sorriso.
— Eu abro a cafeteria, se esqueceu? Preciso estar lá às seis para
esquentar as máquinas, fazer abertura do caixa, organizar prateleiras… —
digo, abrindo o chuveiro para aquecer a água.
Antony nada responde. Dispo-me e jogo o corpo debaixo da água
quente e o encaro de volta. Algo nos seus olhos escuros me incomoda. As
sobrancelhas também estão levemente franzidas, mas não entendo o motivo
dessa sua expressão. Um segundo depois, seu rosto se suaviza e ele começa a
se despir também. Seu corpo atlético se junta ao meu, as mãos fortes apertam
minha cintura, sua boca invade a minha em um beijo forte. Sou jogada contra
a parede de ladrilhos enquanto ainda sou devorada. Os dedos grossos vão
passando pelo meu corpo até minha coxa, que é erguida à altura de seus
quadris.
— Antony… — gemo. Ele está se encaixando na minha entrada, mas
ainda não estou preparada o suficiente. — Não, por favor. Ainda não. Não
estou…
— Vai ficar — interrompe com um rosnado, penetrando-me sem
delicadeza. A aspereza me machuca. Fecho os olhos para aguentar a dor do
atrito. Antony continua se movendo para frente e para trás, não se importando
que eu não esteja molhada o bastante.
Demora algum tempo que esteja úmida para recebê-lo sem me
machucar. O sexo não é tão prazeroso como das outras vezes. A magia parece
que se dissipou um pouco. Para piorar, nem consigo ter um orgasmo, ao
contrário dele. Ao final, estou sozinha, debaixo do chuveiro e insatisfeita.

— Quando você volta? — pergunto, antes que ele vá. Antony veio me
deixar na cafeteria antes de seguir para o aeroporto. Coloco a chave na
fechadura da porta dos fundos, que dá direto para o escritório da gerência, e a
giro para destrancá-la.
— Em três dias — responde, olhando para o outro lado da rua,
praticamente vazia às dez para seis da manhã, onde seu carro está
estacionado.
— Certo… — É só o que digo.
Um silêncio esquisito nos ronda novamente. Mordo o lábio inferior,
sentindo-me uma estúpida por ainda não ter contado sobre a gravidez. Quanto
tempo mais devo esperar? Quando a criança nascer? Perco-me em meus
pensamentos e inseguranças que sequer o vejo se aproximar e me abraçar a
cintura. Beija-me serenamente e indaga em seguida:
— Juliette, preciso que seja franca comigo e conte exatamente o que
está acontecendo com você. Não sou tolo, já percebi que está estranha. Me
conte de uma vez e vamos resolver isso juntos.
Olho-o, sentindo-me a pessoa mais insegura do mundo. O medo
começa a se formar em meu estômago e a subir vagarosamente até a
garganta, quase me sufocando. Ele não vai ficar feliz com a notícia. Tenho
certeza. Mon Dieu. Como fui estúpida, irresponsável e precipitada em
engravidar de propósito para segurar homem!
Inspiro profundamente e, sem mais rodeios, solto:
— Estou grávida.
Antony se afasta com um passo atrás, de modo súbito. Seu semblante
se transforma instantaneamente, aquela expressão sombria e intimidadora
tomando posse dos seus traços.
— O quê? — murmura, entre os dentes. — Está brincando comigo,
não é?
Engulo em seco. Nem percebo minhas mãos tremendo levemente.
— Não. Eu realmente… estou grávida.
Um silêncio denso recai sobre nós outra vez. Antony está
completamente transfigurado nesse momento. O homem que conheci —
pacífico e amoroso — simplesmente não existe. O homem na minha frente
agora é outro. É alguém que não conheço. Ele afaga o rosto e anda de um
lado a outro, emudecido. Permaneço igualmente calada, apenas o esperando
reagir a notícia e saber que tipo de decisão tomará.
— Conheço uma clínica particular que pode… fazer o procedimento
de aborto — diz, fazendo-me arregalar os olhos. Involuntariamente, envolvo
meu abdômen. Deus, ele não sugeriu isso, sugeriu? Lágrimas se formam em
meus olhos. Esperava que a gravidez o forçasse a pedir o divórcio, a me
assumir de uma vez por todas e formarmos uma família. Sua sugestão de
aborto me pega desprevenida e me deixa perplexa. — E depois do
procedimento, vamos tomar mais cuidado para não acontecer de novo.
— Não — digo, firme e convicta, a voz saindo levemente rouca. —
Não vou abortar.
Antony me olha como se eu tivesse apedrejado a cruz de Cristo.
— Juliette… — O tom é de advertência.
— Eu fiz de propósito! — confesso, praticamente cuspindo cada
palavra. — Achei que uma gravidez ia te forçar a largar sua esposa!
O que vem a seguir é inesperado até para mim. Antony ri. Uma risada
áspera, lunática e sem nenhum traço de humor.
— Você só pode ter ficado louca — dispara, dando um passo à frente
e me segurando pelos braços. — Como você é idiota, Gautier. Jamais
deixaria minha esposa, uma mulher de verdade, pra ficar com uma vagabunda
interesseira igual a você. Ainda não entendeu que sempre foi e sempre será a
outra?
O barulho da minha mão contra seu rosto é ensurdecedor. Quando
Antony me olha de novo, há fúria e loucura em suas íris escuras. Só então me
dou conta de quem ele realmente é. Não é o homem que eu sempre pensei
que fosse. Não, não. Longe disto. É apenas mais um escroto, lobo revestido
de cordeiro, que conseguiu me manipular e me colocar contra uma mulher
que sequer conheço direito, me fez julgá-la e repudiá-la. Aqui e agora, diante
seu olhar bestial, sei quem é Antony Leclerc. Sua máscara caiu, posso ver sua
verdadeira face.
— Só quero ver a cara que sua esposa fará quando souber que o
marido dela é um maldito traidor — provoco, a frase saindo entre meus
dentes. — Você queria ficar com sua esposa e com a vagabunda interesseira
ao mesmo tempo, mas depois que eu contar a Ann-Marie sobre nós e sobre a
gravidez, não terá nenhuma das duas.
Giro nos calcanhares, pronta a entrar na cafeteria e deixar esse
maldito sozinho, mas ele é mais rápido do que eu. Segura-me pelo punho e
me puxa com toda força, jogando-me contra uma parede no segundo
seguinte. Seus dedos fortes se fecham contra meu pescoço, apertando sem
piedade e me sufocando.
Rebato-me e tento sair de seu aperto, mas o homem é muito mais
forte do que eu. O máximo que consigo é apenas me sufocar mais. Com
violência, me bate contra a parede umas três vezes, enquanto ainda segue me
asfixiando. Prazer e insanidade indescritíveis atravessam a loucura que são
seus olhos nesse momento.
— Experimente abrir essa boca de boqueteira que você tem para ver o
que faço com você, sua vagabunda desgraçada. — A ameaça tão direta me
deixa assustada. — Você não dirá nada à minha esposa, entendeu? —
pergunta, fechando mais o dedo em meu pescoço. Começo a perder a lucidez,
mas consigo acenar em positivo. — ENTENDEU? — grita, batendo-me
contra o concreto outra vez. Meus pulmões parecem que são esmagados
ainda mais.
— En…t… — Tento dizer.
Antony me solta de repente. Caio estatelada no chão, puxando
desesperadamente ar para os pulmões. Então, começo a chorar, assustada
com a agressão de um homem com quem cogitei passar a vida ao lado.
Um soco atinge meu abdômen de repente. Uma dor lancinante viaja
pelo meu corpo, que jogo para trás. Mal tenho tempo de processar o que está
acontecendo quando mais socos e chutes me atingem sem piedade, com uma
força esmagadora. As agressões se espalham, atingindo costela e meu rosto.
Quando finalmente acaba, estou dolorida, semiconsciente, preocupada apenas
com meu bebê. Sinto uma respiração quente contra meu ouvido.
— Se por acaso te encontrarem e ainda estiver viva, que isso fique
como um recado: abra a boca e diga qualquer coisa a Ann-Marie e juro por
Deus que termino o que comecei com você e com esse bastardo.
Um segundo depois, não vejo e nem sinto mais nada.
— Juliette — alguém murmura meu nome. Demoro a reconhecer que
é Bernardo. Oh meu Deus, finalmente alguém me encontrou. Nem sei quanto
tempo se passou desde a agressão de Antony, mas balbuciei entre a
inconsciência e a lucidez, sentindo a dor em cada centímetro do meu corpo,
preocupada com meu bebê, enfraquecida demais para me levantar e buscar
ajuda. — Preciso de uma ambulância. Agora! — grita para alguém.
Uma comoção se instala à minha volta. Pessoas gritando e correndo.
Delicadamente, uma mão quente toca a minha.
— Juliette, por favor, aguente só mais um pouco — pede, a voz cheia
de preocupação.
Esforço-me o máximo que consigo. Ele precisa saber que estou
grávida. Os médicos que vão me atender precisam priorizar meu bebê. Não a
mim, mas meu bebê. POR FAVOR! Contudo, não consigo dizer nada, nem
mesmo uma palavra. Minha boca parece inchada demais para isso, minhas
energias são insuficientes. Tudo que consigo fazer é resmungar algo
incompreensível.
— Shh… — Dousseau tenta me tranquilizar. — Vai ficar tudo bem.
Vamos te ajudar e você vai ficar bem. Não se preocupe. — Sua voz me
acalenta por um instante, mas não o bastante. Não posso perder meu bebê.
Não posso.
Minha próxima lembrança é de ser socorrida pelos profissionais. O
caminho até o hospital é um borrão. Depois, só me recordo do movimento da
maca deslizando pelos corredores. Um par de olhos azuis encontram os meus.
O médico usa uma máscara cirúrgica. Tento dizer alguma coisa, porém, tem
algo obstruindo meus lábios. Faço menção de erguer a mão, mas também não
consigo. O médico dos olhos azuis parece sorrir pequenino para mim no
mesmo instante em que sinto um calor em minha pele. Desvio os olhos para
baixo. Uma mão enluvada segura a minha.
— Está tudo bem — sussurra. — Os paramédicos encontraram um
exame de farmácia na sua bolsa. Vamos cuidar muito bem de você e do seu
bebê. Tudo bem?
Vagarosamente, aceno em positivo.
— Doutor Pierre, os batimentos cardíacos… — alguém diz,
longínquo, mas não consigo compreender o restante da frase, porque outra
vez apago. Antes o nome dele fica gravado em minha mente.
Doutor Pierre.

Quando acordo, há uma enfermeira em minha companhia. Mal


consigo abrir o olho direito porque está inchado demais. Minha boca está
seca e tenho dificuldade em respirar. A moça me ajuda assim que percebe
meu despertar. Dá-me água para beber e me ajeita na cama para ficar mais
confortável. De forma involuntária, levo minha mão ao abdômen. Quero
perguntar como ele está, mas não consigo. Separo os lábios, esforço-me.
Todo esforço é inútil. Não consigo dizer nada. Lembranças de Antony me
agredindo ainda estão bastante vivas em minha mente. Deus, ele tentou me
matar. Tentou matar meu filho.
— Vocês estão bem — a enfermeira informa, parecendo notar minha
indagação silenciosa.
Abro os olhos que nem notei ter fechado. Uma lágrima escorre pela
minha face. Não sei se de medo ou se de alegria por saber que meu bebê nada
sofreu.
— Vou avisar o doutor Pierre que você está acordada — diz, com um
sorriso complacente.
Não respondo. Sequer me movo. A enfermeira me deixa sozinha em
seguida, então caio em um choro compulsivo quando por fim digiro tudo o
que aconteceu. Cerca de dez minutos depois, já estou mais calma, mas não
com menos medo. Seco uma última lágrima no exato instante em que a porta
se abre, trazendo para dentro um homem de jaleco, carregando um tablet. Ele
sorri pequenino e tenho a impressão de já conhecê-lo de algum lugar. Sem
dizer nada, se aproxima, ficando de frente para mim.
— Juliette Gautier, não é? — pergunta.
Como resposta, apenas aceno em positivo. Baixa seus olhos para o
aparelho eletrônico.
— Grávida de oito semanas. Descobriu sua gravidez hoje?
Suspiro e balanço a cabeça em negativo, ainda me negando a me
comunicar em palavras. O médico me olha seriamente por um instante. Então
se vira e caminha até a porta. Chama uma das enfermeiras e cochicha alguma
coisa que não compreendo. Volta dez segundos depois.
— Há quanto tempo sabe que está grávida? — questiona. Seus olhos
se desviam para o tablet em mãos, que acredito ter informações clínicas
minhas.
Engulo em seco e pestanejo diversas vezes antes de erguer o
indicador.
— Descobriu ontem, então? — Graças a Deus ele entende esse meu
método de comunicação quase rudimentar. Assinto com a cabeça.
Novamente baixa seus olhos para o tablet e toca na tela, anotando
algo em meu prontuário.
— Você teve uma concussão — explica, erguendo seu olhar ao meu
outra vez. — Precisará ficar em observação por dois dias, mas pretendo te
manter aqui um pouco mais que isso por causa do bebê e dos seus
hematomas, dentre eles duas costelas quebradas. Não encontramos nenhum
contato de urgência em seu celular. Quer que eu avise alguém sobre seu
estado? Pai, mãe, marido…?
Nego com outro gesto. Não tenho ninguém de qualquer maneira. Meu
pai morreu quando eu tinha quinze anos, minha mãe se foi há menos de três.
Tenho uma irmã mais nova na Inglaterra e só.
O médico me encara por longos segundos e, de uma forma muito
estranha, não consigo cortar o contato. Seus olhos são tão… bonitos e
familiares.
— Que descuidado eu sou — fala, de repente. — Sou Pierre Laurent.
Ginecologista e obstetra. Vou cuidar de você e do seu bebê enquanto
estiverem aqui.
Consigo apenas abrir um pequeno sorriso e contornar meu ventre.
Uma enfermeira bate à porta no instante seguinte, entregando a Pierre um
instrumento que desconheço. Ele a agradece e ficamos a sós outra vez.
— Quer ouvir os batimentos do seu filho? — pergunta, sorrindo bem
pequenino.
Meus olhos lacrimejam na mesma hora, enquanto afirmo outra vez,
ainda utilizando apenas dos gestos.
Pierre põe um par de luvas e depois ergue delicadamente minha roupa
hospitalar, expondo minha barriga. Ajusta o objeto por alguns segundos e
logo ouço as batidas fortes e rápidas. Mais lágrimas juntam em meus olhos.
Tive tanto medo de perder meu pinguinho de amor… Mon Dieu. Ele ainda é
um pontinho pequeno dentro de mim, mas conseguiu sobreviver ao ataque
monstruoso daquele que deveria cuidar e dar amor.
Obrigo-me a controlar minhas emoções e atento-me a este som que se
tornou o meu favorito no mundo.
Um bater na porta desvia minha atenção. Bernardo entra em seguida,
o semblante cheio de preocupação.
— Salut, ma chère — cumprimenta-me, olhando com atenção meu
estado deplorável. — Que susto você nos deu.
Suspiro e não digo nada. Volto meus olhos a Pierre e depois para
minha barriga, tornando a prestar atenção às batidas do meu bebê.
— Seu bebê está bem. Os batimentos estão fortes e saudáveis — diz,
como que para me assegurar e acalentar, e guarda o aparelho. Retira as luvas
e as joga no lixo. — Vou marcar um ultrassom transvaginal pra que você
possa vê-lo, tudo bem? — Quero agradecê-lo infinitamente por esse zelo.
Contudo só consigo sorrir e admirá-lo enquanto abaixa a roupa hospitalar e
cobre minha barriga. — Pierre Laurent. Ginecologista e obstetra —
apresenta-se. — Você é o pai do bebê?
— Non — nega, e nesse momento queria poder enfiar a cabeça em
um buraco. Como raios vou explicar isso a ele? — Bernardo Dousseau.
Juliette é minha funcionária. — Aproxima-se de mim e, para minha surpresa,
me segura pelas mãos. Não consigo olhá-lo, tão cheia de vergonha. Seus
dedos acariciam meus cabelos, que me confortam. Nesse momento, caio em
um choro tímido e aperto mais os dedos dele, quase em um ato de desespero.
Se não tivesse me encontrado… poderia estar morta. Pior. Meu bebê poderia
estar morto.
— Já sabem quem possa ter feito isso com ela? — Pierre indaga. —
Ela não disse uma palavra desde que acordou. Está em estado de choque. Já
chamamos um psicólogo para acompanhamento.
— Não sabemos — meu chefe responde. — A polícia está
trabalhando nisso.
— Certo. Vou deixar vocês a sós. Se precisarem, é só chamar.
Para meu terror, Pierre se vai, deixando-me sozinha com Bernardo.
Estou tão envergonhada… Não quero de maneira nenhuma explicar essa
situação. Que desculpa darei? Mas Dousseau não é bobo. Ele sabe que foi
Antony quem causou isso em mim, que tínhamos um caso. Como, não faço
ideia. Mas ele sabe. Talvez da mesma maneira como eu desconfiava de seu
caso com Leclerc, que me confirma quando ameaço contar tudo ao
desgraçado caso procure a polícia em meu nome e o denuncie. Demorei a
notar que Antony é extremamente perigoso. Sua ameaça quando me deixou
espancada e à mercê foi bem clara. Só o chantageei para me proteger, para
proteger meu filho.
Mas Dousseau não quer — e sei que não vai — permitir que isso saia
impune. Antes de ir embora, me garante que encontrará um jeito para Leclerc
ter o que merece sem me pôr em risco.
Torço muito a Deus para que ele encontre mesmo essa maneira.
BERNARDO
É a primeira vez que direi isso. Mas graças a Deus é minha última
semana no Brasil. Não vejo a hora de poder voltar à França e ter Ann-Marie
de novo em meus braços. Não vejo a hora de chegar a Paris e, a primeira
coisa a fazer, depois de matar minha saudade dela, procurar um advogado
para o divórcio.
Os últimos dois meses foram os mais longos da minha vida. Como já
vinha me cobrando há muito tempo, Alfredo e eu abrimos uma nova filial da
nossa cafeteria. Foi um processo relativamente pequeno — mas para mim,
que estou com parte do meu coração na França, foi quase o tempo de uma
vida. Encontramos um local para locação, resolvemos burocracia da
prefeitura, contratamos uma empresa para o design e decoração,
acompanhamos as obras de adaptação do espaço, encomendamos maquinário
e preparamos o estoque, encontramos uma boa confecção para os uniformes,
entrevistamos candidatos às vagas e, por fim, a inauguração será dentro de
umas duas semanas. Gostaria de ficar e participar, mas tenho pressa de voltar
ao meu país. Meu amigo até insiste que eu fique mais umas três semanas,
mas nem sob tortura ficaria.
— Acho que deveríamos fazer um programa noturno, já que você vai
embora na próxima semana — Alfredo diz, terminando seu café. Limpo os
lábios com o guardanapo e chamo a garçonete para retirar nossa mesa.
Estamos na nossa filial, a que meu amigo abriu quando terminou sua
temporada na Europa e retornou para assumir os negócios da família. — Eu,
você, Lívia, meu irmão e Victória.
— E por que você acha que vou querer um programa noturno com
dois casais quando estou sozinho, Cretino? Sou péssimo e odeio segurar
vela.
Ele abre um sorrisinho jocoso. Antes de me responder, solicita uma
água gelada sem gás à funcionária que recolhe nossas xícaras.
— Você é solteiro… Pode arrumar alguém — provoca em resposta.
Instantaneamente fecho a cara. Eu já lhe disse que estou
comprometido com Ann-Marie, mesmo que não seja, propriamente dizendo,
uma relação “séria”. Entretanto, sou homem de palavra. Fiz uma promessa,
estou cumprindo e continuarei a cumprir. Nada de mulher além dela. Penso
em provocá-lo com uma resposta afiada, mas desisto em seguida. Durante
minha estadia aqui, ele passou por uma fase complicada no casamento por
causa do pós-traumático da esposa e agora as coisas parecem estar nos trilhos
de novo. Então desisto de insultá-lo sobre Angelina Savhoya, a design de
interiores que contratamos para a filial da zona norte, que sempre flertou com
ele na caradura. Inclusive, um dia desses nós dois meio que brigamos porque
o “aconselhei” a tomar cuidado para não cair em tentação e se envolver com
ela. Eu sei, foi um conselho estúpido. Alfredo também achou isso e por esse
motivo me xingou e me deixou falando sozinho. Não falei por mal, claro que
não. Mas seu casamento estava em crise, a esposa sofrendo de estresse pós-
traumático a ponto de não querer fazer sexo com ele por, sei lá, uns dois
meses (segundo me contou). Meio que por experiência própria, sei que a
carne pode ser fraca quando um dos cônjuges é privado da sua vida sexual.
Também tenho ciência de que é uma comparação ridícula. Ela estava sendo
traída pelo marido, por isso o traste a evitava, e por isso mereceu o belo par
de chifres. Meu amigo, por mais babaca que tenha sido no passado, venera a
esposa quase a ponto da obsessão e não a trairia em circunstância alguma.
Para ter sua vida de volta, estava a ajudando, acompanhando-a nas sessões
com o psicólogo e fazendo programas românticos.
De qualquer maneira, meu conselho idiota foi porque ele é meu
amigo, porque me preocupo e porque o amo, de verdade. Agora, neste
momento, ao sugerir que eu “procure alguém”, consigo ler nas entrelinhas.
Alfredo não me quer envolvido com ela porque se preocupa comigo. Mas
dispenso sua preocupação. Eu a amo, sei disso agora mais do que no dia de
minha chegada, e é ela quem quero em minha vida.
— Não sou solteiro. Estou com Ann-Marie. De verdade. Como um
casal.
— Ela é casada, amigo — diz suavemente. A garçonete retorna com
sua água e ele a agradece. — Isso ainda pode dar problema pra você —
aconselha.
— Alfredo, agradeço a preocupação, mas não vou trocar aquela
mulher por nenhuma outra.
Por fim, parece desistir no assunto e apenas abana a cabeça, bebendo
sua água.
— Tudo bem. Mas mesmo assim, quero que venha com a gente para
um programa noturno. É isso ou rasgo seu passaporte.
Rio um pouco e acabo cedendo ao seu convite.

Combinamos de nos encontrarmos em um bar famoso na região.


Quando chego, Victória já está na entrada, usando uma roupa extravagante
que é sua marca registrada, junto de Henrique Hauser — irmão de Alfredo e
seu atual namorado. Dou um abraço e um beijo em seu rosto e troco um
aperto de mão com Henrique. Nós já nos vimos em outra ocasião, durante um
jantar em família na casa de Lívia, semanas atrás.
— Os dois ainda não chegaram? — pergunto, precisando falar um
pouco mais alto por causa das batidas rock n’roll que atravessam as paredes
do bar.
— Acabaram de chegar — Henrique informa, apontado para atrás de
mim. Viro-me no mesmo instante e o vejo se aproximar, agarrado à cintura
da esposa que está… uau. Muito linda. Acho que nunca vi Lívia assim. Não
faz seu estilo. Usa uma minissaia preta de couro, meia-calça preta, botas de
cano longo brancas, camisa de seda e jaqueta também de couro.
— Uau! — Victória exclama. — Que mulherão é essa, hein, Alfredo?
A amiga enrubesce no mesmo instante e a adverte, enquanto eu e
Henrique rimos da situação. Agarrado à cintura dela, o esposo diz:
— Um espetáculo, não? E é só minha. — provoca, e ela o belisca na
costela. — Ai! Estou te elogiando!
— Você é um cretino possessivo agora? Olha, vamos entrar antes de
eu desistir de ficar aqui com essa roupa ridícula. — diz, mal-humorada, e sai
na frente.
Rindo do seu mau humor, nós a seguimos. Lá dentro, ocupamos uma
mesa de sinuca e pedimos uísque e cerveja. Embora não goste muito do
primeiro, o tomo em algumas raras ocasiões. Esses bastardos se reúnem em
dupla para jogarmos uma partida, o que me obriga a procurar um parceiro.
Rodo o bar atrás de algum cara que queira se juntar a mim, mas não encontro
nenhum. Então, não tenho alternativa a não ser usar o meu charme francês e
convencer uma mulher, o que não demora a acontecer. Íris é o nome da moça
que aceita ser minha dupla.
A noite com meus amigos me faz esquecer por algumas poucas horas
minha saudade de Ann-Marie. Rimos, conversamos muito enquanto
encaçapamos bolas incríveis. Alfredo e o irmão ganham quatro vezes
seguidas quando formam duplas e comemoram como duas crianças. Nem
parece que, anos atrás, não podiam nem sequer respirar o mesmo ar que já
estavam se matando. Faço dupla com ele umas quatro vezes, perdendo apenas
uma. Alguém inventa de menino versus menina, então somos obrigados a nos
reunirmos em trios. Ganhamos de cinco a três. Nossa “noitada” acaba com
todos nós muito bêbados e tendo de ser levados de táxi para casa. Ainda bem
que deixei meu carro na garagem.
Ísis (ou seria Íris? Cara, estou bêbado demais para me lembrar) e eu
somos os últimos dentro do táxi, pois temos uma rota parecida. Ela encosta a
cabeça no meu ombro, letárgica, e passa o indicador na minha perna. Demoro
uns segundos para abaixar a cabeça e acompanhar o dedo dela subindo
lentamente em direção ao vão das minhas pernas. Está quase chegando lá
quando seguro seu punho e a afasto, suavemente.
— Pardon, ma chère, não é hoje que você dormirá com um francês
cheio de charme e bom de cama como eu. Tenho uma mulher espetacular me
esperando em Paris e não pretendo trair a confiança dela.
A moça me olha um instante e então volta a tocar minha perna com o
indicador, tentando me provocar.
— Ela está tão longe. Nem vai ficar sabendo.
— Tenho caráter suficiente para continuar te dizendo que não vou
dormir com você, mesmo que minha mulher nunca saiba disso, e também
porque você está bêbada — respondo e novamente tiro seu dedo indo de
encontro ao lugar reservado para apenas uma pessoa na face da Terra.
A menina não insiste mais, mas sua cabeça continua encostada em
meu ombro. Peço ao motorista que a entregue primeiro. Ele contesta, dizendo
que o percurso dela é muito contramão para entregá-la antes.
— Pago o equivalente, não se preocupe — digo, e o taxista acaba
acatando meu pedido.
Íris, Ísis, ou seja lá o nome dela, é uma desconhecida para mim, mas
ainda é uma mulher. Bêbada. Que está voltando para casa tarde da noite. Não
vou deixá-la sozinha dentro de um carro com um homem estranho. Vai me
custar cem reais a mais e quarenta minutos da minha vida, mas pode poupar a
dela.
O táxi já está retornando para me deixar em casa quando, por fim, me
dou conta do que disse à menina. Sem perceber, chamei Ann-Marie de
“minha mulher”. Dou uma risadinha para mim mesmo e encosto a cabeça na
janela do passageiro.
Em breve ela será Ann-Marie… Dousseau.

São oito da noite quando desembarco no Aeroporto Charles de


Gaulle, já munido de minha bagagem, indo direto até o ponto de táxi do local.
Estou exausto pela viagem de doze horas, porém disposto a ver Ann-Marie o
quanto antes, mas nem sei se será possível vê-la hoje, por causa do babaca do
marido — que pretendo eliminar de nossas vidas tão breve.
Já dentro do táxi, ligo meu telefone e, durante o trajeto, fico pensando
se arrisco enviar uma mensagem ou não. O motorista ainda nem tem um
destino certo, porque pedi que apenas rodasse até eu decidir para onde ir.
Meu celular toca em minha mão, quase me assustando. O DDI é do Brasil.
Aquele Cretino tem uma paixão secreta por mim, não é possível. Atendo,
meio em tom de deboche:
— Te vi umas vinte horas atrás, Alfredo. Já está morrendo de
saudade?
Sua risada atravessa a linha antes de me responder:
— Só queria saber se ocorreu tudo bem no voo.
— Tudo certo. Estou inteiro — confirmo. — E como foi o restante do
jantar? — Uma noite antes de embarcar, jantei na casa dele. Victória e
Henrique estavam lá também, mas não fiquei até o final, porque pegaria o
voo cedo para cá e preferi estar descansado.
Um instante de silêncio.
— Acabou desastrosamente. Vic e Henri terminaram.
Pestanejo um par de vezes e até me ajeito no banco, meio perplexo
com a notícia. Como assim “terminaram”? Eles pareciam bem quando fui
embora, noite retrasada. Como então…
— Explique moi — peço que esclareça isso.
— Resumindo: ele a pediu em casamento, ela rejeitou. Os dois
discutiram. Vic até colocou a relação que ele e Lívia tiveram no meio dessa
merda toda… Enfim… Foi uma bosta total.
— Uma pena — suspiro. — Mas não me surpreende. Quero dizer, a
Victória sempre foi avessa a relacionamento amorosos e de qualquer maneira
os dois já estavam vivendo na mesma casa tinha algum tempo. Em time que
está ganhando não se mexe. Que diferença faz casar no papel quando estão
em uma união estável?
— Vic argumentou o mesmo. Mas você conhece o Henrique, não
conhece? Ele é ortodoxo e tradicional.
Penso em questionar, perguntando então porque Henri e Lívia nunca
formalizaram nada, uma vez que viveram juntos por um bom tempo, na
época que Alfredo era casado com Sophie, mas engulo minhas palavras e
deixo para lá. A última coisa que quero é também trazer o passado do irmão
dele com sua esposa atual para o meio disso tudo. Conversamos mais um ou
dois minutos até que encerro a ligação.
Mal termino de falar com meu melhor amigo e meu telefone toca de
novo. Reconheço o número de Dupont.
— Salut, Emilien.
— Já está em Paris? Ann-Marie comentou que você estaria de volta
hoje. — Conversei com ela algumas vezes por telefone, enquanto Antony
estava em suas viagens a “trabalho”, e a avisei da data de meu retorno.
— Sim. Já desembarquei. Estou indo pra casa.
— Venha à minha cobertura, s'il te plaît.
Franzo o cenho, estranhando seu pedido. Eu quero mesmo é entrar em
contato com Ann-Marie e tentar vê-la.
— Emilien, olha… Estou…
— É sobre Ann-Marie, se isso ajuda a te convencer a vir para cá agora
mesmo.
Ô se ajuda. Na mesma hora, redireciono a rota para o taxista, que me
atende prontamente. Pergunto a Emil o que está acontecendo, mas ele não me
adianta o assunto, deixando-me mais ansioso do que já estou. A viagem leva
quarenta e cinco minutos e, por agilidade, minha subida até sua cobertura está
autorizada. Ele me espera do outro lado do elevador privativo, de terno preto,
cabelos bem penteados, braços cruzados na frente do peito, expressão
impassível.
— Vai me dizer o que houve?
— Precisa me prometer que vai manter a calma — diz, sem mudar um
traço da sua expressão e sem sair um centímetro do lugar.
— Emil… Você está me assustando. O que aconteceu?
Ele me olha por longos segundos. Posso notar como sua linguagem
corporal é tensa. O homem não me responde. Apenas vira nos calcanhares e
eu o sigo prontamente. Quando a porta se abre para sua sala, vejo-a de costas
para mim, na bancada da cozinha, conversando com Marie, do outro lado do
balcão. Procuro por Emilien, sem entender mais nada. Seus olhos, porém,
estão para baixo.
— Ann-Marie — sussurro seu nome. Ela parece ficar tensa no seu
lugar ao ouvir minha voz. Mon Dieu, que se passe-t-il?
Aproximo-me rápido enquanto ela se vira em sua banqueta, devagar.
Apoio minha mão sobre seu ombro e a giro mais depressa. Ela está de
enormes óculos escuros. À noite. Um tremor esquisito percorre o meu corpo.
Está meio cabisbaixa, negando-se a me olhar. Toco seu queixo e a obrigo a
erguer a cabeça. Aos poucos, retiro seus óculos e o que eu temia se torna a
mais terrível realidade.
Aquele filho da puta desgraçado dos infernos a agrediu!
Eu quero matar um homem.
Meu coração parece prestes a saltar pela boca. Toco seu rosto
delicadamente, avaliando os hematomas em seu rosto, controlando todos os
instintos primitivos que uma pessoa possa ter dentro de si. Seria capaz de
tomar o próximo avião e ir atrás de Antony só para espancar o maldito.
— Quando foi isso? — pergunto, mantendo uma calma que não tenho
nesse momento e que me surpreende.
Engolindo em seco, me diz:
— Ontem.
— Seu marido descobriu… sobre nós? — Meu Deus do céu, o ódio
que está se formando em mim não é natural. Se mistura a algo como culpa.
Não deveria ter me envolvido com ela. Não quando o marido dela é um
babaca agressivo. Deveria tê-la ajudado a sair desse casamento de merda
antes de qualquer coisa. Deveria tê-la arrastado para o Brasil comigo. Eu
deveria ter…
— Não. A culpa foi minha. — Sua resposta corta meus pensamentos.
— Não foi — digo, veementemente. — Não importa o que tenha
feito, nada justifica. Ann-Marie, isso precisa acabar. Amanhã mesmo vamos
procurar um bom advogado e pedir o divórcio — declaro, mais do que
decidido. Não importa se precisar colocar guarda-costas para todos nós, ou
nos escondermos, nos mudarmos. Antony não nos será mais uma ameaça.
Não mesmo!
— Já pedi o divórcio, Bernardo. Foi por isso que ele me bateu.
Em um átimo, apenas a abraço. Quero questioná-la. Quero saber pour
quelle raison pediu o divórcio antes do meu retorno. Não foi o que
combinamos. Ela sabia que deveria me esperar exatamente para evitarmos
esse tipo de coisa. Embora queira a advertir por uma atitude tão impensada,
apenas a abraço forte e engulo meus questionamentos. Percebo que Emilien e
Marie nos deixaram a sós. Submerso em raiva e, em partes, culpa, demoro a
notar que ela chora baixinho em meus ombros.
Ergo minha mão até seus cabelos e a acaricio. Também choro nesse
momento. Pela primeira vez em anos, eu choro. De raiva, de medo, de culpa.
Não deveria tê-la deixado sozinha em Paris com Antony. Mon Dieu, porquoi
não a arrastei comigo para o Brasil? Por que adiamos tanto o pedido desse
divórcio? Separo-a de mim e mal a enxergo através das minhas lágrimas.
Seguro seu rosto com firmeza. A mulher me olha assustada, talvez porque
nunca me viu chorar.
— Pardon, mon amour — peço, soluçando em seguida. A dor que
rasga em meu peito é tão grande… tão grande que não consigo nem a
dimensionar. — Falhei com você, chérie. Prometi que te protegeria, que não
precisaria temer seu marido porque não ia deixá-lo te machucar. Mas eu
falhei, mon ange. Eu falhei. Me perdoe. Je suis désolé…
Ann-Marie me abraça de novo, me apertando forte contra seus
braços.
— Não tenho pelo que te desculpar — fala baixinho contra meu
ouvido. — Você me disse que estava voltando, então… tomei coragem e pedi
o divórcio. — Sua pausa é para chorar mais um pouco. Então se recompõe e
continua: — Ele não aceitou, claro. Eu disse que sabia que tinha amantes…
Não citei Gautier, não se preocupe. Falei do cartão que encontrei no escritório
dele, que vinha com todo detalhamento de restaurantes, lojas de grife e
motéis. Foi aí que me bateu.
Ela se afasta e é sua vez de me segurar pelo rosto. Ela sorri pequeno,
seca minhas lágrimas que ainda descem sem que eu perceba.
— Você é tão lindo chorando… — sussurra, aproximando-se da
minha boca e me dando um beijo salgado. — E eu te amo tanto, Ber. Não
pense nem por um segundo que você fracassou comigo. Você me tirou de um
casamento que estava me fazendo mal e me amou mais do que Antony um
dia pode cogitar amar alguém. Serei eternamente grata por ter me galanteado
aquela vez, na festa de Emil.
Sem que eu espere, me abraça de novo. Levo alguns segundos até
digerir tudo que me disse. “Você me tirou de um casamento que estava me
fazendo mal e me amou mais do que Antony um dia pode cogitar amar
alguém.” Eu a amei mais, sim. Eu a amo. Ela sabe disso, apesar da minha
falta de palavras. Preciso dizer isto a ela, dizer o quanto a amo, que a amo
tanto que chego a perder o ar só de pensar em não a ter ao meu lado. Que o
francês aqui finalmente vai “sossegar o facho” e casar. Mas não posso dizer
isso agora, nesse momento. Não quando a raiva está me tomando como uma
erva-daninha. Ela precisa saber que a amo mais do que tudo nesse mundo em
um momento calmo, talvez até romântico, quando não tiver medo, culpa, ira
e tristeza entre nós.
Aperto-a mais em seus braços e, apenas em pensamento, digo: “Je
t’aime”.
ANN-MARIE
Ele jamais pode pensar que falhou comigo. Antony ter me agredido
não foi culpa dele, talvez tenha sido minha, mas não dele. Não o quero
carregando uma culpa que não o pertence. Seco algumas de suas lágrimas
remanescentes e o beijo mais uma vez. Apoio a mão no lado esquerdo do seu
peito e sinto seu ritmo cardíaco mais calmo.
— Você vai passar a noite onde? — questiona, com o tom de voz
grave. Embola os dedos em meus cabelos e me acaricia um instante antes de
me dar outro beijo.
— Na casa dos meus pais — respondo, quando sua boca afasta da
minha. De novo me beija, como se estivesse recuperando os beijos que não
demos nesses três meses em que ficamos distantes um do outro. Não me
contenho e rio em sua boca, segurando-o pelo rosto e também enfiando os
dedos em seus fios volumosos.
— Como você veio parar aqui? — Ele me pega pelos punhos e me
leva até o sofá. Sentamos um ao lado do outro e eu explico tudo desde o
começo:
— Depois que Antony… — Faço uma pausa e engulo em seco,
odiando ter de recordar aqueles momentos horríveis. — Me agrediu —
consigo completar —, tentei acionar a polícia, pedir ajuda aos meus pais…
Mas ele surtou. — Olho para minhas mãos em meu colo. Minhas unhas estão
lascadas porque houve luta corporal entre nós, enquanto tentava me proteger.
— Quebrou meu celular e o telefone de casa. Chegou até a me deixar presa
dentro do quarto.
Ergo o olhar para Bernardo, esforçando-me para afastar da minha
cabeça a imagem do momento em que ele me arrastou (não sem muita
resistência minha) até nossa suíte e me jogou lá dentro, deixando-me trancada
a noite toda, para impedir que eu procurasse ajuda ou acionasse a polícia. O
maxilar dele está tenso, os olhos faíscam de raiva primitiva.
— Fiquei presa a noite toda de ontem e hoje até por volta de cinco da
tarde. Ele não me tirou de lá de dentro, nem mesmo enquanto berrava a
plenos pulmões que estava com fome e com sede. — Seco uma lágrima. No
instante em que minhas mãos estão voltando ao meu colo, ele agarra uma e
fecha seus dedos em torno dos meus, apertando-os suavemente. — Por fim
ele decidiu entrar no quarto levando comida, mas não quis nada dele. Tive
medo de ter veneno.
Ele me dá um sorrisinho pequeno e volta a olhar nossas mãos juntas.
— Antony tentou conversar comigo, me pedia desculpas e que eu
revesse minha decisão de me divorciar. Discutimos, ele me agarrou e me
sacolejou outra vez, gritando completamente desequilibrado que só ia me
livrar dele se um de nós morrêssemos. Me acertou mais uns dois tapas antes
de me deixar sozinha no quarto e me trancar lá de novo. Foi aí que tive uma
ideia absurda. Me escondi atrás da porta e gritei, gritei que minha garganta
chegou a doer, dizendo que tudo bem, ele tinha vencido, que ia desistir do
divórcio, mas, pelo amor de Deus, que me deixasse sair do quarto e comer
alguma coisa. Quando aquele traste voltou ao quarto, quebrei um vaso na
cabeça dele.
Bernardo arregala os olhos.. Um segundo depois, o indício de um
pequeno sorriso se manifesta em sua boca. Agora, vendo por este ângulo, a
cena realmente parece engraçada. Naquele momento, contudo, foi um terror
para mim. Um dos piores momentos que vivi na vida.
— Claro que não ia ser o suficiente. Mas foi o bastante para
desnorteá-lo e me permitiu sair correndo. Na portaria pedi para chamarem a
polícia e liguei para Marie, pedindo ajuda. Estava com Emilien, então… foi
assim que vim parar aqui. Já comuniquei meus pais, já vieram me ver e até
me pediram pra ir embora, mas decidi que ia te esperar… pra conversarmos.
— E a polícia? — murmura.
— Não sei. Não esperei até a viatura chegar. Fugi como uma
desvairada e peguei o primeiro táxi que vi e vim pra cá. Ainda preciso
devolver alguns euros que Marie me emprestou para pagar a corrida.
Ele me abraça mais uma vez e me aperta muito mais contra o seu
abraço.
— Mon Dieu! Nem gosto de pensar no terror que você viveu. Me dói
muito, me deixa insano, com uma raiva doentia. Juro que se eu o vir… —
Deixa a frase no ar, e não respondo. Também não o impediria a nada contra
Antony. — Mon amour… — sussurra, afastando-se e me olhando nos olhos
com atenção. — Ontem, ou em qualquer outro momento durante minha
ausência, ele chegou a te… violar?
Balanço a cabeça em negativo. Não vou mentir que não tive medo de
que hoje, quando quis forçar uma aproximação, me violasse. Mas não
aconteceu. É difícil compreender a cabeça de Antony. É um homem instável
e imprevisível.
— Não… não me violentou. Aliás, ele me procurou apenas uma vez
pra fazer sexo, mas eu disse não. Por algum milagre, Antony respeitou minha
vontade e desde então não me pediu mais. Nunca achei que diria isso, mas…
estou aliviada que meu marido tenha alguma amante por aí.
Bernardo suspira e mantém no rosto o sorriso triste.
— É… Uma mulher que talvez seja outra vítima dele.
Sinto-me mal por pensar nisso. Nenhuma mulher merece um homem
como Antony. Sem nem mesmo conhecer essas suas amantes, já sinto por
elas.
— Você tem certeza de que é seguro passar a noite na casa dos seus
pais? Ele pode te procurar lá —pergunta, tomando-me entre suas mãos. Olho-
o no fundo dos olhos, que ainda estão meio úmidos de suas lágrimas recentes.
— O maldito não sabe que estou em Paris. Fique em meu apartamento, ou
vamos para o do meu sócio. Mas, por favor… fica comigo para que eu possa
te proteger.
Penso um segundo em suas palavras e por fim acabo concordando.
Ele tem razão. Antony pode mesmo me procurar na casa de meus pais. Temo
que seja capaz de fazer algo ruim a eles na esperança de tentar me atingir.
Depois do que fez a Gautier e a mim, não duvido de mais nada daquele
desequilibrado.
— Eu fico. Preciso apenas usar o telefone de Emil e avisar meus pais
que vou ficar com você.
Ele me dá um pequeno sorriso e afaga meu rosto.
— Então… eles já sabem sobre mim?
Sinto minhas bochechas se enrubescerem um pouco.
— Tive que contar o motivo de querer ficar aqui e ir pra casa deles só
mais tarde. — Ele apenas me olha atentamente, com um triste e pequeno
sorriso. E o conheço o suficiente para compreender a pergunta em seus olhos.
— Não disseram nada a respeito, mas vi pelo olhar da minha mãe que ter me
envolvido com você a desagradou um pouco. Meu pai é mais fácil de lidar…
acho que apenas não me julga. Não depois de descobrir que o genro agrediu a
única filha dele.
— Será que terei de jogar meu charme pra conquistar sua mãe
também? — brinca, com uma risadinha quase fúnebre.
Seguro-o fortemente pelas mãos e murmuro:
— Dê tempo ao tempo. Simonie uma hora vai te aceitar.
Recebo um sorriso e um último beijo antes de eu chamar Emilien e
perguntar se posso usar seu telefone novamente.

Passo três dias no apartamento de Bernardo. Não vou nem mesmo à


galeria, onde inaugurei minha loja um mês e meio atrás. Passamos o dia
inteiro juntos, “presos” aqui dentro — não é uma reclamação. Ele também
não sai durante esse período, para que ninguém saiba que já está em Paris. A
última coisa de que precisamos é de Antony ponderar que estou refugiada em
sua casa e vir procurá-lo.
Depois desse tempo, porém, não posso mais me esconder. Preciso
primeiro procurar uma delegacia e fazer um boletim de ocorrência, talvez até
pedir uma medida restritiva. Depois, procurar um advogado para poder
encarar Antony com os papéis do divórcio já em mãos.
Encerro a chamada com um advogado recomendado por Dupont,
agendando um horário ainda hoje, e retorno até o quarto. Olho-o na cama,
suado e nu, com os olhos fixos na televisão e o polegar nos lábios,
concentrado. Ele é tão bonito.
Engatinho em sua direção, ainda enrolada no roupão branco, e me
aconchego no seu braço. Ele beija minha testa e volta sua atenção ao filme
rodando.
— Conseguiu falar com Lefèvre?
— Sim. Marquei um horário com ele para às quinze. — Bernardo
olha no relógio. São onze da manhã. — Preciso de roupas. Estou usando as
suas desde que cheguei aqui.
Ele dá uma risadinha e garante:
— Vou pedir para Marie comprar alguma coisa. — Ficamos em
silêncio por algum tempo, apenas o som da televisão e de nossas respirações
preenchendo o cômodo. — Como vai ficar nossa situação? —pergunta de
repente. Nós não conversamos sobre o assunto nesses três dias. Acho que
estávamos ocupados demais sendo minimamente felizes e fazendo amor duas
vezes por dia para nos preocuparmos com isso. — Queria que você ficasse
aqui, mas… Sei que ao meu lado, enquanto Antony for seu marido, sou um
risco pra você.
Odeio essa situação. Odeio viver sob a sombra do medo. Tenho sérias
dúvidas se teremos paz mesmo depois do divórcio. Antony vai criar confusão
quando nos assumirmos. Espero conseguir uma ordem de restrição. Talvez
assim possa viver em paz.
— Me hospedarei nos meus pais até o divórcio… caso não consiga
um modo de ficar com a casa. Preciso conversar com Lefèvre sobre isso.
Vamos ter que continuar assim, Ber… Encontros às escondidas até Antony
não nos ser mais uma ameaça.
Ele suspira e abana a cabeça em positivo. Por fim, se levanta e liga
para Julien comprar algumas roupas para mim, pedindo para entregar por
uma empresa de fretagem. Decido me vestir com um de seus moletons e
cozinhar alguma coisa para almoçarmos.
Meu pai chega uma hora antes do meu horário com Lefèvre. Ele vai
me acompanhar na consulta com o advogado, uma vez que estou muito
receosa em andar sozinha por aí depois do acontecido. Consegui esconder os
hematomas tanto quanto foi possível com maquiagem que Marie também
enviou, como havia pedido.
— Você está pronta? — papai pergunta, parado do lado de fora do
corredor. Olho por sobre meus ombros e o vejo atrás de mim, braços
cruzados, expressão indecifrável.
— Estou, sim, papa — respondo. — Mas antes, quero te apresentar a
uma pessoa. — Vou até Bernardo e o trago à porta. Os dois se encaram por
um segundo inteiro. Meu pai o analisa de cima a baixo, mas Ber não faz o
mesmo. — Papai, ele é um bom homem. Sempre me ajudou e me deu refúgio
e apoio quando precisei. — Meus pais agora sabem de toda a história de
agressões psicológicas que o genro exercia sobre mim. — E eu o amo de
verdade.
— Bernardo Dousseau — diz, esticando a mão para meu pai, que
prontamente o cumprimenta de volta.
— Armand Fleury. Fico grato por ter ajudado minha filha. Entretanto,
ela poderia ter buscado ajuda nos pais e contado toda a situação que estava
vivendo com o marido. Com toda certeza, teríamos dado nosso apoio.
Menos a mamãe, penso. Simonie talvez fosse relutar em acreditar em
mim. Ia me aconselhar a rezar e pedir a Deus ajuda para lidar com meu
marido. Não me arrependo nem um pouco de tê-lo procurado para me ajudar
ao invés de meus pais.
— Papai — repreendo-o suavemente.
— Se ela tivesse feito isso, não teríamos nos envolvido. E minha vida
sem essa mulher não faz sentido algum.
Eu o olho instantaneamente a essas palavras, sentindo-me atingida
pela paixão como pronunciou cada sílaba. Papai oferece um sorriso de
satisfação e por fim solta a mão dele, olhando para mim e me convidando a
irmos. Despeço-me com um beijo suave em seus lábios e o abraço forte.
Só Deus sabe quando nos veremos de novo.

Duas semanas se passam até que eu o veja novamente. Com meu


pedido de divórcio mais o boletim de ocorrência na delegacia, consegui uma
ordem de restrição de duzentos metros. Junto dessa ordem, meu advogado
também conseguiu que eu fique na casa até a partilha definitiva dos bens. Ele
realmente é ágil e competente — talvez por isso seja um dos advogados mais
caros de Paris — e resolveu parte da minha situação em alguns dias. Nota:
tenho que me lembrar de pagar cada euro que Emilien desembolsou para
estes honorários caros
Até meu futuro ex-marido se mudar por ordem judicial, fico na casa
de meus pais, sentindo-me mais segura pelo amparo da lei. Nesse meio-
tempo, a saudade dele parece duplicar. Nós ficamos três meses afastados, ao
seu retorno, ficamos juntos por apenas mais três dias e tivemos de nos separar
novamente. As últimas duas semanas parecem ter sido as mais longas da
minha vida. Saber que ele está em Paris, tão perto de mim, e não poder vê-lo,
me dá a impressão de que a saudade aumenta exponencialmente, mais do que
se estivesse realmente longe, em outro continente.
Minha falta dele, entretanto, está para ser sanada. Hoje, por fim, o
verei. Por troca de mensagens (Bernardo teve o zelo de me comprar outro
celular e enviar ao endereço de meus pais), combino um horário com ele, em
seu apartamento. Ainda preciso me organizar para voltar para minha casa,
agora que Antony não está lá já tem pelo menos uns cinco dias.
— Ann-Marie… — papai diz, puxando o freio de mão quando para
em frente ao condomínio de Dousseau. Olho-o no instante em que pega
minhas mãos e, de forma paternal, me acaricia. — Nos últimos dias tudo que
fez foi exaltar esse homem com quem você está… saindo. — Suas palavras
soam com cuidado. Minha conversa sobre Bernardo se restringiu mais ao
meu pai, alguém mais fácil de lidar e desabafar, do que com minha mãe. Ela
me ouviu falar dele apenas uma única vez e ainda assim me alfinetou com
seus pré-julgamentos religiosos. Simonie, embora me apoie no pedido de
divórcio porque o genro se mostrou um verdadeiro cafajeste (isto porque não
contei sobre Gautier e o bebê), segue desaprovando minha recente relação.
— Você está fornicando com esse homem — disse na ocasião. —
Além de ainda cometer o pecado da traição porque continua casada com
Antony.
Nesse mesmo dia, optei apenas por ignorá-la e não dar uma devida
resposta. Não valeria a pena. Estou bem ciente de que estamos em pecado,
mas só há uma pessoa capaz de julgar meus atos, e não é minha mãe.
— E estou muito feliz que encontrou alguém que te ame de verdade
— papai prossegue, tirando-me dos meus devaneios súbitos. — Aliás, acho
que nunca cheguei a te pedir perdão por não ter percebido quem Leclerc era
realmente. O pai dele é um bom homem… esperava que o filho fosse da
mesma maneira, uma vez que teve boa educação. — Assinto com um gesto
de cabeça, desviando os olhos rapidamente para as mãos de meu pai nas
minhas. Não sei como Emmanuel Leclerc reagiu ao pedido de divórcio e à
ordem de restrição.
— Não há por que se desculpar, papa — falo por fim. — Se eu, que
era esposa dele, demorei a notar o verdadeiro Antony, por que o senhor teria
de ter percebido antes? Não faz sentido e não deveria se preocupar com isso.
Papai me dá um sorriso cálido e me beija no rosto em seguida.
— Enfim, o que eu queria dizer é que convide Dousseau para um
jantar em família. Já simpatizei um pouco com ele. — Seu sorriso aumenta
gradualmente e isso me faz ter a impressão de que Armand procurou saber
sobre Bernardo. — Mas sua mãe precisa ser conquistada também. E tenha
paciência com ela, ma chérie. Sabe que Simonie é uma pessoa com
dificuldade em se adaptar a mudanças bruscas.
Abraço-o e deixo um beijo em suas bochechas.
— Vou falar com Bernardo. Me sentiria mais confortável se
fizéssemos esse jantar lá em casa.
— Como você quiser, minha filha. Agora, vá ver seu amado — diz,
indicando-me a porta do passageiro.
Eu o atendo sem pensar duas vezes.
Depois de tocar a campainha, a porta se abre em dois ou três
segundos. Separo os lábios para cumprimentá-lo, mas sou recepcionada com
um beijo profundo e forte que me faz engolir minha saudação. Ele me puxa
para dentro sem desgrudar nossas bocas e me empurra contra a parede mais
próxima. Rio em meio ao seu beijo enquanto vou perdendo algumas peças de
roupa. Minha meia-estação já está no chão.
Os dedos longos dele desabotoam minha camisa de gola, desesperado,
ágil, sem delicadeza. Meio segundo mais tarde, estou apenas de sutiã.
Finalmente ele larga minha boca, respiração ofegante, e se afasta, olhando-
me de cima a baixo com o sorriso mais lindo do mundo.
— A definição perfeita de “visão do paraíso” — profere com um
sussurro rouco, esticando sua mão grande e forte até entre meus seios,
massageando-os.
— Oi, pra você também — rebato no mesmo tom, com um gemidinho
estrangulado causado pelo seu toque quente. Abrindo outro daquele seu
sorriso descarado, vem para mim mais uma vez e me beija com mais calma.
Ambas as mãos alcançam o fecho do meu sutiã e o desatam, tirando-o em
seguida. Seus lábios escorregam para dar atenção aos meus mamilos.
Jogo a cabeça para trás, meu centro se apertando e começando a
desejá-lo. Bernardo vai descendo sua boca pelo meu corpo. Ajoelha-se no
chão, na altura do meu ventre, e solta um botão da minha calça jeans.
Devagar, ele retira a peça, junto com meus saltos, e a joga para o outro lado
da sala. Seus olhos se erguem para mim enquanto seus dedos me acariciam
por cima da calcinha. Ele sorri de novo, do seu jeito devasso e galante, com
as covinhas estupidamente charmosas se formando em suas bochechas.
Minhas pernas se remexem sem que quase eu perceba, meu corpo já
implorando para que venha aqui e me sacie. Mas ele gosta de me tentar, de
provocar e me deixar à beira do limite. De repente sua língua está ali,
brincando com minha intimidade e com minha mente.
— Por favor… — murmuro, apertando os olhos. Meus dedos voam
até seus cabelos e o forçam a se afundar mais. Ele não me atende. Segue me
sugando sem se livrar do tecido que separa sua boca da minha vagina. — Por
favor! — peço de novo, meu centro queimando de prazer.
Olho para baixo e a visão que tenho é esplêndida. Ele está me olhando
de volta, jogando sua língua maravilhosa para lá e para cá, exibindo o maldito
sorriso convencido. Está claro que esse homem gosta de me ver implorando
para que me dê prazer.
— Diga… — Sua voz é um mero sussurro rouco contra meu clitóris
desesperado. — Diga. Eu amo o lado devasso que você libera quando
estamos juntos. Só… diga — instrui, acrescentando dedos à sua brincadeira
com a língua.
Minhas pernas tremem. Deus, eu o quero tanto.
— Me coma — peço, quase estrangula pelo prazer percorrendo
minhas veias. — Baise-moi, s’il te plaît!
Por fim, ele abaixa minha calcinha molhada, pronto a atender meu
suplício. Não sem antes, claro, me provocar um tanto mais. O indicador
longo se envereda por entre meus lábios vaginais úmidos e fica ali, alisando-
me por segundos que parecem infinitos como a eternidade. Então me penetra
com dois dedos, olhando-me de novo. O sorriso se foi. A expressão marcada
em cada traço do seu rosto é dura, rígida, mas de um modo… excitante. O
azul dos seus olhos está forte, brilhando em luxúria. Estou prestes a implorar
outra vez, mas engulo minhas palavras quando Bernardo ergue minha perna
direita, jogando-a sobre seus ombros e enfiando a língua na minha fenda
úmida. Solto um grito exagerado de prazer, que preciso conter mordendo
minha própria mão. Dois dedos deslizam para dentro de mim, enquanto sua
língua circunda meu clitóris inchado e sensível.
Meu orgasmo está começando a me atingir quando sou subitamente
frustrada. Suspiro, trêmula e desesperada; mal o vejo se despir e me
imprensar mais contra a parede. Suas mãos seguram-me com firmeza pelas
pernas, impulsionando-me ao seu colo um instante depois. A ponta da sua
ereção se pressiona contra minha entrada.
— Ponha logo tudo de uma vez — peço, já tomada pelo desespero. —
Mon amour, não me torture mais. Eu preciso… preciso… — Mal consigo
falar. Abro os olhos e encontro os seus e um sorrisinho canalha. — Que me
foda — completo, dando as palavras que ele quer e que o excitam.
Ele desliza fácil e sem delicadeza, arremetendo-se forte e profundo.
Nossos gemidos se confundem e preenchem o ar. Gozo no primeiro minuto,
beijando-o enquanto continua me comendo contra a parede, segurando-me
em seus braços fortes e mantendo o ritmo constante e fundo de suas
investidas. Meu corpo entra em ebulição e, de repente, me vejo querendo
cada vez mais, não satisfeita com o que tem me dado. Então peço, imploro
por mais, mais rápido, mais fundo, mais forte. Ele atende cada pedido,
gemendo junto comigo.
Quando gozo pela terceira vez, estou em pé, de costas para ele, bunda
empinada. As mãos fortes me apertam na cintura com toda força enquanto
está atrás de mim, penetrando-me em um ritmo alucinado e forte.
— Vou gozar — anuncia, quase com um grasnado. Um gemido alto e
longo escapa dele quando se satisfaz dentro de mim. Aos poucos, suas
estocadas diminuem, ao passo que se recupera do êxtase. Ofegante, me
abraça por trás, beijando meu ombro. — Tu es si belle — murmura ao meu
ouvido. Um segundo depois, sai de dentro de mim e me vira em sua direção,
beijando-me com ardor. — Linda e gostosa — completa, o que me faz enfiar
o rosto em seu tórax, as bochechas corando. Ainda não aprendi a receber
elogios dele sem corar.
Bernardo dá uma risada gostosa e me faz olhá-lo.
— Precisa se acostumar. Vou dizer o quanto você é linda até que eu
morra.
— Vou me acostumar — garanto, encostando a cabeça em seu peito.
Fecho os olhos e suspiro, imaginando nosso futuro. Bernardo ainda não me
disse as três palavras, as que quero muito ouvir. Mas aprendi uma coisa sobre
ele. É um homem que faz mais do que fala. Suas ações compensam sua falta
de palavras. Sei que ele me ama; suas declarações de amor são veladas, mas
sinceras, reais e verdadeiras.
— Toma um banho comigo. Depois, quero te mostrar uma coisa —
pede, já nos encaminhando para o banheiro.
Ele lava meu corpo, intercalando com beijos suaves. Conversamos
amenidades, nada relacionado às duas últimas semanas, mas sei que terei de
abordar o assunto em algum momento. Visto-me com uma de suas cuecas e
um moletom de capuz que me cai quase como um vestido curto. Teria posto
uma calça, mas Ber me pede para ficar como estou. Aceito, com a condição
de que ele use apenas cueca. Ele traz algumas coisas da cozinha para
comermos — muitas bobagens — e nos reunimos em sua cama. Abro uma
batata chips quando por fim solicita:
— Me atualize.
Jogo uma batata na boca e digo:
— Levèfre já deu entrada no divórcio. Consegui uma medida
preventiva contra Antony. Ele tem que ficar a duzentos metros de mim.
Também fiquei com a casa até a partilha dos bens, então… Já tenho para
onde ir. Mandei essa semana trocarem todas as fechaduras, só pra caso ele
tenha guardado alguma cópia e tente invadir durante a noite. A portaria está
avisada de que Antony não tem mais permissão para entrar.
Suspirando de alívio, abre uma latinha de Coca-Cola e rouba uma das
minhas batatas em seguida.
— E a galeria? Você tem sua loja lá, e é Antony quem administra o
local… Mas se há uma ordem de restrição, então…
— Levèfre me aconselhou a deixar a loja fechada até tudo ser
acordado na justiça.
Depois de tomar um gole do seu refrigerante, ele pergunta:
— Mas a galeria não é do seu pai e do seu ex-sogro? Legalmente
vocês ainda não têm poder sobre essa herança, ou tem?
Abano a cabeça em positivo.
— A galeria foi posta em nossos nomes assim que nos casamos.
Legalmente, é nossa.
Ele deixa a lata de Coca no criado-mudo e me puxa para mais perto
dele, roubando um beijo. Ele sorri e afaga minha bochecha.
— Sua boca já é uma delícia… com gosto de batatas chips fica ainda
melhor — graceja, roubando outro beijo e recaindo sobre meu corpo. A
vontade de montá-lo nos quadris começa a me tomar aos pouquinhos, mas
sou frustrada quando ele sai de cima de mim e caminha até o closet. Suspiro,
contrariada, e me sento na cama de novo. Ele não demora a retornar, trazendo
junto algo em mãos, um sorrisinho no rosto. — Já foi a um show de rock? —
pergunta.
Arregalo os olhos e digiro sua pergunta enquanto me entrega dois
ingressos para o show de uma banda chamada Doktor Rock. Conheço
vagamente esse nome…
— A banda estará Paris dentro de algumas semanas. Não sou um
consumidor assíduo do gênero, mas me agrada. Que tal, você vem?
Eu nunca estive em qualquer tipo de show, quanto mais um de rock
n’roll. Conheço algumas bandas clássicas, mas também não consumo o
suficiente para saber mais do que uma ou duas músicas. E esta dos ingressos,
sinceramente, não conheço nada além de ter ouvido algumas notícias sobre
um dos membros que vive se metendo em escândalos. Não sei quem
exatamente.
— Eu vou — digo, sorrindo e ainda olhando para o par de ingressos.
Preciso mesmo me divertir, ter novas experiências. — Eu vou — reafirmo.
Quando ergo o olhar, ele me rouba um beijo profundo e intenso.
Um beijo cheio de significado, um beijo que me dá certeza de uma
coisa: estaremos sempre juntos, não importa quantos obstáculos precisemos
vencer.
BERNARDO
— Você acha que ela vai usar isso? — Marie me pergunta, apontando
para a vestimenta que a funcionária da loja segura.
Inclino levemente a cabeça para o lado, analisando melhor a peça.
Não é um traje que Ann-Marie usaria, mas estamos falando de um show de
rock hoje à noite, o que ela espera usar? Certamente não um dos seus
conjuntos comportados. Talvez eu tenha que chantageá-la. Que seja.
— É um pouco curto demais para os padrões “Ann-Marie”, mas devo
conseguir convencê-la — digo, dando de ombros e decidido a levar a saia de
couro. Já faz uma meia hora que estamos nesta loja, procurando por algo
ideal, e odeio ficar mais do que quinze minutos comprando roupas. Sem
contar os outros quarenta e cinco minutos que ficamos nas demais lojas,
escolhendo os acessórios.
A funcionária se retira para embrulhar a saia e um casaco que
completará o look enquanto eu e Marie caminhamos até o caixa para efetuar
o pagamento. Eu a convoquei até aqui para me auxiliar nessa escolha. Nunca
comprei roupas para ela. Quando precisou, ou usava as minhas, ou pedia a
alguém capacitado para fazê-lo por mim. Pedi a Julien para que me ajudasse,
porque sou um completo desastre para isso.
— Tira uma foto dela e me manda? Quero ver a doce e recatada Ann-
Marie em roupas como essa — pede, encostando-se ao balcão quando
entrego meu cartão de crédito à atendente. Ela me olha piscando seus cílios
longos docemente. Rio um instante e respondo que sim ao mesmo tempo em
que coloco a senha na máquina.
A vendedora me entrega minha compra, agradecendo pela
preferência. Marie se enrosca nos meus braços e me acompanha até a
cafeteria, enquanto conversamos trivialidades. Ela está toda orgulhosa
falando sobre dois ou três prêmios jornalísticos que ganhou com a
reportagem sobre o projeto de Emilien na África — que já deve estar
beirando quase um ano. Tento arrancar dela alguma informação sobre a
“relação” dos dois, mas não tiro nada de proveitoso. Diz apenas que estão
mantendo uma boa amizade, conversam com alguma frequência por ligação
ou mensagem, se veem vez ou outra para transar, mas nada além disso.
— Depois que voltamos da África, Emilien ficou meio frio e distante.
Sempre está trabalhando demais, ocupado demais, viajando demais — fala,
erguendo os ombros. Sua cabeça se encosta no meu braço e ela fica muda por
longos segundos de repente.
Terminamos o percurso sem falar mais sobre Dupont. Está bem na
cara que Marie é apaixonada por ele. Emil demonstra ter algum interesse
nela, não sei se no mesmo nível, mas demonstra. Não entendo por que depois
de voltarem do continente africano ele se afastou (quando lá a vontade sexual
era quase insaciável). De qualquer forma, não vou ser como minha mãe e
ficar me intrometendo na vida amorosa alheia, dando uma de cupido.
— Quer um café? — ofereço, abrindo as portas duplas e dando espaço
para que ela entre primeiro.
— Grãos moídos e sem açúcar — diz, passando à minha frente.
Travo logo atrás, sentindo meus pulmões queimarem só de respirar o
mesmo ar dele. Marie também logo o nota e para de caminhar em direção ao
balcão. Um segundo mais tarde, se vira para mim e volta os passos que deu.
— Bernardo, fica calmo — pede, sussurrando.
O maldito percebe nossa chegada, gira sobre o banco em que está
sentado e me olha com um sorrisinho asqueroso.
Minha garganta seca. Quase nem me vejo fechando os punhos com
força.
— Bernardo… — Marie me chama pela segunda vez, puxando meu
rosto e me obrigando a olhá-la nos olhos. — Mantenha. A. Calma — fala,
baixo e pausado.
Isso será bem difícil, chérie.
Vagarosamente balanço a cabeça em positivo, desviando meu olhar
dela para Antony, que continua me encarando com seu sorriso falso e
debochado. Inspiro fundo e caminho até ele. Entrego a sacola a uma de
minhas funcionárias e peço para guardar no meu escritório. Apoio o cotovelo
no balcão e me viro para Leclerc, realmente tendo de fazer um esforço quase
sobre-humano para não avançar nele aqui mesmo e enchê-lo de socos. De
novo.
Agora, mais perto, cara a cara, noto o estrago que fiz na última vez
em que nos vimos. Seu nariz, antes aristocrático e perfeito, está torto. Fico
feliz que a ossificação já aconteceu e ele não pôde endireitá-lo.
— Acho que já fui claro com você, Antony, de que não te quero no
meu estabelecimento — digo, severo. Por cima dos seus ombros, vejo Marie
parada logo atrás dele, advertindo-me apenas com o olhar e suplicando para
que eu não me exceda. Difícil me manter pacífico quando só o que quero é
bater nesse maldito por causa de Ann-Marie e dizer tudo que está entalado na
minha garganta.
— Então você sabe como é pedir que alguém não faça algo, mas te
contrariam — debocha, puxando a xícara pela asa e bebendo mais do seu
café. — Sabe, eu disse uma porção de vezes à minha esposa: “não vá à
cafeteria de Dousseau, não te quero perto daquele homem, que te corteja e
não respeita seu estado civil”. Mas ela me desobedeceu todas as vezes. Se
tivesse dado um corretivo nela, talvez tivesse me escutado e me respeitado.
Meu sangue ferve nas veias. Meu rosto deve estar vermelho de raiva,
que nem faço questão de esconder. Ele me dá as costas, virando-se para
Marie, e diz:
— Sei que ela procurou sua ajuda daquela vez. Você e Emil a
ampararam. Quando a vir, diga que ela teve sorte, porque teria a matado
naquela noite se tivesse conseguido alcançá-la.
Mal termina de falar quando o seguro pela camisa e o viro para mim,
pronto a desentortar seu nariz de forma nada convencional e muito dolorosa.
Mas o maldito já esperava por minha reação e revida antes que eu tenha
tempo de acertá-lo. O soco pega no meu estômago, o que faz eu me encurvar.
Antony me segura pelos cabelos e me ergue à sua altura. Já estou para dar
uma cotovelada nesse maldito desgraçado quando ele apenas chega perto do
meu ouvido e murmura:
— No nosso último encontro, te disse que você era um homem morto,
se recorda? Pois saiba, Dousseau, assim como você, sou um homem de
palavra e costumo cumprir minhas promessas. Só vim aqui te dizer para
aproveitar… Aproveite, porque você é um homem morto.
Ele me solta, ao mesmo tempo em que o agarro pelo colarinho e rosno
em sua cara:
— Não tenho medo de suas ameaças, Antony, mas se for fazer
alguma coisa comigo, seja homem o bastante para fazê-lo você mesmo, e de
preferência que não precise me pegar de guarda baixa pra conseguir me
atingir, seu maldito covarde.
Leclerc me empurra, joga alguns euros sobre o balcão e se afasta.
Tomo os euros que ele deixou e rasgo em diversos pedacinhos, cheio de
raiva, desejando mesmo acabar com a raça dele.
Viro-me para os funcionários e esbravejo:
— Da próxima vez que esse maldito entrar na minha cafeteria não
sirvam nem mesmo um pão velho a ele! E quem o fizer, será demitido. EU
FUI CLARO? — Assustados, os funcionários balançam a cabeça em
positivo.
— Ei, bonitão, fica calmo — Marie pede, colocando uma mão sobre
meu ombro.
Desvencilho-me dela e vou me refugiar no meu escritório. Preciso de
um tempo sozinho.

— Por que você achou que eu usaria isso? — Ann-Marie me


pergunta, erguendo o olhar em minha direção.
A combinação que criei com a ajuda de Marie está sobre a minha
cama, posicionada na ordem. Uma camisa preta com o logo da Doktor Rock,
a saia preta de couro cintura-alta, o casaco preto; ao lado, um par de saltos
fechados também pretos. A meia-calça deixei como peça opcional, assim
como o chapéu. Sua surpresa maior está pela saia, que vai ficar mais curta do
que está costumada a usar. Talvez até mais justa, mas vai deixá-la muito
gostosa. Gosto nem de pensar porque já fico excitado e agora não é hora para
isso. Temos um show de rock para irmos.
— Vamos, nem é tão curto assim. Dois ou três dedos acima do
joelho? Tenho certeza que você é capaz de usar — argumento, abraçando-a
por trás e deixando um beijo em sua nuca enquanto ela ainda analisa o look
para hoje à noite.
— Pensei em algo mais comportado. Inclusive, até costurei um
vestido preto, cravejado de spikes. É um tanto mais longo e não tão…
apertado.
Dou uma risadinha e a aperto mais em meus braços.
— Vai mesmo fazer desfeita ao presente que te dei? Que
deselegante… — chantageio-a. Ann-Marie se vira para mim, olhando-me
com desaprovação.
— Golpe baixo… — sussurra, enlaçando meu pescoço e me dando
um beijo em seguida. — Tudo bem, eu uso — cede, por fim. Sorrio em sua
boca e a mordo no lábio inferior.
São pouco depois das seis da tarde. O show está marcado para a
madrugada, então temos algum tempo para nos arrumarmos. Levo-a até a
cozinha, onde começo a preparar algo para comermos. Ainda não falei a ela
sobre meu “encontro” com Antony mais cedo, na cafeteria. Acho que nem
vou falar. Não por enquanto. Não quero estragar nossa noite com assuntos
desagradáveis. Então apenas a distraio, discorrendo sobre minha tarde com
Marie no shopping e como ela me ajudou a montar a combinação que usará
mais tarde. Ela faz uma carinha fofa de ciúmes, mas sabe que Julien é apenas
uma boa amiga e não representa nenhum perigo. Depois, enquanto o bolo de
carne está no forno, coloco algumas músicas da banda que veremos mais
tarde para ensaiarmos algumas melodias. Ann-Marie não fala nada além do
francês, então suas tentativas de cantar canções dos norte-americanos (que
vem ouvindo há umas duas semanas) me arranca boas risadas. Ela me
estapeia e cai nos meus braços. Seguro-a com firmeza e a beijo, inclinando-
me sobre seu corpo e a deitando em meus bíceps.
— Eu te amo tanto — diz, quando a ergo de novo e a música acaba.
Abraça-me, encostando a cabeça em meu peito. Acaricio seus cabelos e deixo
um beijo neles, inspirando seu aroma inebriante. — Je t'aime beaucoup —
repete, erguendo a cabeça de leve e passando a ponta do seu nariz no meu
pescoço, precisando se erguer nos pés para isso.
Afasto-a um centímetro e a olho nos olhos, afagando suas bochechas.
Sei que está ansiosa para que eu diga a mesma coisa. Vou dizer, no momento
certo, talvez nem passe desta noite. Quero pegá-la de surpresa, sem que esteja
esperando, sem que tenha me dito “Je t’aime” para que não soe como uma
resposta mecânica apenas para agradá-la. Quero que soe natural, sincero,
espontâneo. Talvez diga hoje à noite, quando voltarmos do show e estiver
dentro dela. Que melhor momento para dizer que a amo enquanto faço amor
com ela?
Não respondo, apenas me inclino e a beijo mais profundamente para
que possa sentir as palavras que ainda não disse.
O jantar fica pronto. Ann-Marie abre uma garrafa de vinho e nos
serve, enquanto ponho o bolo de carne na bancada da cozinha.
— Mamãe quer que você jante conosco de novo um dia desses —
comenta, colocando dois guardanapos perto de nossos pratos e talheres.
Ergo o olhar e balanço as sobrancelhas, de um jeito meio charmoso e
cínico, abrindo junto um sorrisinho.
— Quer dizer então que finalmente conquistei o coração de Simonie
Fleury? Estou lisonjeado.
Ann-Marie cai na gargalhada e se ajeita à sua banqueta. Semana
passada, estive na presença dos pais dela, em sua casa, em um jantar de
família. Um convite de Armand que aceitei de bom-grado. Foi uma noite
agradável, de início meio desconfortante por conta da mãe dela que ainda
parecia ter algo contra mim. Aos poucos, entretanto, fui conseguindo
conquistá-la. Antes de a noite acabar, Simonie estava tagarelando comigo
animadamente. Claro que, ao ir embora, a mulher retomou sua postura fria,
dizendo que, por mais que eu tenha sido simpático, ainda desaprovava meu
relacionamento com sua filha, principalmente por conta das circunstâncias
em que nos envolvemos. Nada disse, certo de que tinha voltado à estaca zero
com minha futura sogra.
Cortando um pedaço do bolo de carne, me responde:
— Ela gostou de você, chéri. Só o que a desagrada é estarmos…
fornicando — diz, dando uma risadinha. Sento-me de frente para ela e
também me sirvo com a comida, acompanhando-a na risada. A palavra
parece tão inapropriada para o século XXI.
— E você? — pergunto, apontando o garfo em sua direção. — Não te
desagrada estarmos… fornicando?
Dá de ombros e baixa os olhos por um segundo.
— Há pecados piores para Deus se preocupar — diz, sem traços de
culpa na voz. — E eu te amo, com toda força do meu coração. Isso é pecado,
Bernardo? Sabe… ainda amo muito minha religião, ainda respeito muito
minha fé e minhas crenças — prossegue. Sua mão então toca na minha,
acariciando-me —, mas não quero mais me deixar ser influenciada em
demasia por um livro que foi a base para tantas vertentes e interpretações
diferentes em todo o mundo. Sei que Deus condena sexo fora do casamento,
mas não é como se eu estivesse saindo por aí dormindo com todo homem que
vejo pela frente. E longe de mim julgar quem o faz, mas eu, mon amour, amo
você. Não faço sexo com você só pelo prazer, mas porque te amo. Deus deve
ser capaz de me perdoar por isso.
Sorrio um pouco e acaricio sua mão.
— Quando esse inferno acabar e finalmente você for divorciada de
Antony… quero marcar nosso casamento, o mais rápido possível. Na Igreja
também, se você quiser.
Seus olhos brilham diante minhas palavras.
— Casaria comigo na igreja? — pergunta, meio duvidosa.
— Isso vai te fazer feliz? — Abana a cabeça em positivo. — Então,
sim. Subo ao altar e comungo com você.
Ela contorna o balcão que nos separa e me beija na boca
delicadamente, abraçando-me em seguida.
Circundo-a em torno dos meus braços também e, em pensamento,
agradeço a Deus por tê-la em minha vida. Eu, Bernardo Dousseau, um
homem do mundo, agradeço ao Divino, algo que não faço desde meus doze
anos, por ter em minha vida uma mulher que amo imensamente.
Quem diria, não é mesmo?

“ELA ESTÁ UM ARRASO, MEU DEEEEUS. UM HOMEM DE


SORTE, VOCÊ” — essa é a mensagem exagerada de Marie que confiro
depois de mandar uma foto de Ann-Marie com os trajes que compramos. Ela
está à frente, puxando-me pelos punhos e atravessando o mar de pessoas no
local do show. É em uma arena fechada, um evento mais privativo, então
realmente não tem muita gente em comparação a um show aberto. Dou uma
risada, que é abafada pelo som alto do lugar, e guardo meu telefone no bolso.
Ela se vira para mim, sorrindo pequeno, e o vislumbre que tenho
dessa mulher me faz parar de andar. Julien está certa. Ela está um arraso. A
saia de couro abraça sua cintura e desce até três dedos acima dos joelhos
despidos, bem justo. Justo o suficiente para me dar uma visão maravilhosa da
bunda dela. Porra. Mulher gostosa do caralho. A camisa preta da Doktor
Rock não tem mangas e traz um pequeno decote, que marca os seios dela e
me dá vontade de ir embora agora mesmo só para que possa beijar seu colo e
comê-la vestida como está. O casaco preto e a bota de salto completam o look
rock n’roll, junto do cabelo louro despenteado e rebelde e da maquiagem
forte. Ela delineou os olhos com lápis preto com um pouco mais de força,
destacando o verde deles.
— Vamos — diz, puxando-me pelos punhos, exibindo um sorriso
contagiante. Acho que nunca a vi tão feliz como esta noite.
Sigo-a, sem nada dizer, até conseguirmos ficar a uma ou duas fileiras
depois do palco. Deixa-me impressionado ver que tem público de toda faixa
etária aqui, o que me alivia bastante porque não sou o único com quase
quarenta anos no meio dos jovens com menos de trinta. O rock n’ roll é um
gênero que realmente une todas as gerações.
É quase uma da manhã quando a banda finalmente sobe ao palco, de
um jeito muito épico, devo dizer. Agarrado à cintura da minha mulher, eu a
vejo se divertir com a pirotecnia que anuncia a entrada dos integrantes.
Primeiro surge a baterista — uma ruiva de cabelos rebeldes —, que domina
as baquetas como uma deusa. As luzes dos holofotes focalizam-se nela e em
suas manobras, enquanto conduz a introdução da música. Em seguida, após
uma pequena explosão, baixista e vocalista surgem juntos, ao mesmo tempo
em que o líder começa a cantar e os acordes de uma guitarra se juntam aos
demais instrumentos. O público ao nosso redor vibra, grita e acompanha a
letra da melodia.
Vira-se para mim, sorrindo, e grita por sobre a música:
— Eles são demais!
Abano em positivo e a puxo para um beijo. Ofegante, ela me afasta e
me puxa para o seu lado, e então voltamos a apreciar o show no instante em
que o guitarrista aparece, descendo de algum lugar do teto até o palco
principal por uma plataforma.
O show dura pouco mais de duas horas. Entre uma música e outra,
bebo algumas cervejas, minha mulher prefere refrigerante, e trocamos alguns
beijos que variam de indecentes a suaves, este último principalmente quando
a banda toca baladas mais românticas.
São quase quatro da manhã quando conseguimos deixar o local do
show. Muitos decidem ficar pelas calçadas e arredores, conversando,
bebendo e entoando cações da banda e de outros clássicos do estilo. Nós
voltamos para casa da mesma maneira que viemos: de táxi. Fazemos todo o
percurso conversando baixinho e rindo, ela me contando como adorou o
show. Chega a dizer que quer ir em outros quando possível. Eu a levarei em
todos. Essa mulher precisa recuperar o tempo perdido que teve ao lado do
traste do Antony.
O motorista nos deixa em sua casa.
— Passa a noite aqui comigo, não é? — pede, segurando-me pela
mão. Levanto os olhos para a casa diante os meus olhos. Preferia que
fôssemos ao meu apartamento, não sei por qual razão, mas preferia.
Entretanto, quero e gosto de fazer as vontades dela. Por isso mesmo, quase
não me vejo concordando em ficar.
Sorrindo, ela instrui o motorista a avançar mais e passar pela portaria.
Ann-Marie abaixa um pouco o vidro do seu lado e troca algumas palavras
com o porteiro de plantão, que libera nossa passagem em seguida. Fiquei
oculto o tempo todo. Melhor assim por enquanto. A última coisa que quero é
fofocas sobre ela já estar em um novo relacionamento antes de ter se
separado.
Depois de pagar a corrida, me conduz até a cozinha, onde forramos o
estômago com sanduíches naturais.
— Vem — chama, pegando minha mão e me levando até seu quarto.
Entro com cuidado, olhando ao redor depois que ela acende a luz. É uma
suíte de casal. Não tenho dúvidas de que se trata da suíte deles. Um nó
esquisito se forma em minha garganta. Não sei explicar. Por que diabos me
trouxe aqui? E por que diabos me importo com isso agora, pour l'amour de
Dieu? — Foi uma ideia idiota te trazer aqui? — pergunta, chamando-me ao
mundo real. Volto-me a ela e minha respiração falha por um segundo.
Ann-Marie já está seminua, apenas com a saia de couro, os braços
cruzados escondem os seios desnudos. Morde o polegar de forma sugestiva, e
o luar que atravessa a janela e incide sobre ela lhe dá um ar sensual.
Dou dois grandes passos em sua direção e a tomo em seus braços,
beijando-a como se minha vida dependesse disso. Ergo sua saia até o umbigo
e acaricio suas pernas alvas, a pele macia na ponta dos meus dedos me ajuda
a fica mais excitado. Desço os lábios, traçando um caminho até entre seus
seios. Passei o dia querendo dar a atenção devida a eles, beijá-los, chupá-los e
acariciá-los. E eu o faço. Ann-Marie arqueia a coluna para trás quando invisto
nos mamilos, abocanhando o esquerdo delicadamente e massageando o
direito.
Jogo-a na cama e cubro seu corpo com o meu. Beijo-a no pescoço,
mordisco seu lóbulo da orelha, passo para o queixo, omoplata direita, o colo e
então vou descendo pelo seu corpo escultural até a barriga. Toco sua boceta
levemente úmida e a sinto remexer sob meu toque. Olho para ela, que morde
o lábio inferior e aperta os olhos. Sorrio, extasiado de como tenho poder de
excitá-la com facilidade. Afasto sua calcinha e brinco com seus lábios
vaginais enquanto volto para sua boca traçando beijos a partir do umbigo. Ela
geme quase de forma desesperada quando a tomo em outro beijo sôfrego, os
quadris balançando de encontro ao meu indicador a acariciando.
Ajoelho-me na cama e passo a me despir. Ann-Marie apoia-se aos
cotovelos e me assiste tirar a roupa, passando a língua pelos lábios. Inferno.
Quero essa boca em torno de mim. Já nu, deito sobre o corpo feminino e
tomo seus seios livres em minha boca de novo, enquanto me ajeito entre suas
pernas e a penetro devagar. Sua boceta me engolindo me faz gemer contra
seus peitos, engasgado, quase dolorido. Ela também geme um pouco mais,
agarrando-se aos meus cabelos e movendo seus quadris de encontro aos
meus. Espalmo contra a cama e fico nos meus braços, então acelero o ritmo
das minhas investidas. Jogando as pernas em torno da minha cintura, arranha
minhas costas à medida que estoco mais.
Ela ainda está gozando a primeira vez quando a ponho de costas e
empino sua bunda. Chupo-a um momento antes de penetrá-la de novo,
empregando toda as minhas forças nas pernas para dar o que ela merece. Os
dedos esguios apertam o lençol e Ann-Marie geme mais descontroladamente,
anunciando o segundo orgasmo. Faço-a se deitar enquanto seu corpo treme
pelo prazer atingido, mantendo-a de barriga para baixo. Distribuo o peso nos
meus braços esticados, como se fosse fazer flexões, e movo os quadris mais
rápido e mais forte, gemendo junto dela cada vez mais alto.
Em algum momento depois do seu terceiro orgasmo, ela me faz
deitar, vindo por cima de mim. Fecho os olhos e jogo a cabeça para trás
quando se senta, fazendo-me deslizar sem dificuldade para dentro da sua
boceta. Aperto-a na cintura, deixando a marca dos meus dedos em sua pele
branca, e a ajudo a cavalgar em mim, vez ou outra eu mesmo erguendo os
quadris e ditando o ritmo e o ângulo do sexo.
Ann-Marie me deixa de coração acelerado quando se levanta e se põe
entre minhas pernas fracas. Abocanha-me sem aviso e me masturba ao
mesmo tempo. Tenho que fazer algum esforço para não gozar um minuto
mais tarde, principalmente quando a safada me olha sem tirar seus lábios
esplêndidos do meu pau.
É demais para mim. Estou no meu limite e preciso gozar. Puxo-a e a
beijo profundamente enquanto a giro e a deixo por baixo do meu corpo. Não
desgrudo sua boca da minha quando a penetro de novo, mais forte, mais
fundo, mais vigoroso.
— Estou quase — anuncio entre os dentes. — Goze comigo — peço;
ela apenas acena em positivo.
Conduzo um ritmo mais intenso para atingir meu ápice. Até começo a
sentir o orgasmo vir, rasgando-me de dentro para fora. É nesse momento que
preciso dizer.
— Ann-Marie… — Seu nome sai entre meus gemidos. Ela abre seus
olhos brilhosos para mim. Toco-a no rosto, sorrio entre algumas expressões
de prazer que faço e separo os lábios para dizer: — Je t’…
Mas algo me interrompe de dizer e interrompe nosso sexo. Sinto
minhas costas serem perfuradas duas vezes, uma seguida da outra, junto de
sons que acredito ser de disparo. Ann-Marie move os lábios em uma
expressão desesperada, talvez chamando meu nome… Não sei. Não consigo
ouvi-la. Um gosto ocre invade minha boca. É sangue. Minha cabeça pesa,
minha visão turva.
A escuridão me engole até não ter mais noção da minha existência.
ANN-MARIE
— O que foi que você fez? — grito em completo desespero, tirando
seu corpo desfalecido de cima de mim.
Antony está parado no umbral da porta, segurando uma pistola. Não
entendo como possa ter entrado… Não sei como ele sabia que Bernardo
estava aqui, mas isso agora de nada importa. Só o que penso é ajudar o
homem que amo sangrando aos montes, inconsciente sobre minha cama. Pulo
para alcançar o telefone sobre o criado-mudo e chamar uma ambulância, mas
antes que eu possa alcançá-lo, Antony o faz primeiro, jogando-o no chão com
toda força. Então me puxa pelos cabelos e me arrasta quarto a fora.
Domada por uma raiva visceral, resisto, esperneio e, de algum jeito,
consigo me virar e arranhá-lo. Exerço uma força que nem sabia que tinha.
Grito como uma louca desvairada enquanto dou unhadas na sua cara maldita.
Ele tenta me repelir, mas perde o controle e cai de costas. A pistola escorrega
dos seus dedos e desliza elegantemente pelo piso, parando alguns metros de
nós. A queda de Antony também causou a minha, amortecida pelo seu corpo.
Quase não percebo isso, porque meus olhos estão fixos na arma a apenas
quatro metros de mim. As mãos asquerosas dele agarram minha bunda, na
clara intenção de me virar e me subjugar.
Agindo mais rápido, enfio os polegares em seus olhos, com toda força
que encontro. Ele me solta para levar a mão às pupilas, enquanto berra e me
chama de “vagabunda desgraçada”. Arrasto-me em direção à arma de fogo,
mas mesmo machucado, meu ex-marido segue implacável. Segura-me pelas
pernas, eu o chuto, gritando e pedindo socorro. A portaria precisa me ouvir!
Puxa-me de volta, distanciando-me ainda mais da arma. Sua mão forte fecha
em meu cabelo e repuxa minha cabeça para trás. Sinto o ardor em meu couro
cabeludo.
— Faz tempo que você está abrindo as pernas para esse desgraçado,
não é? Não sabia que estava casado com uma vagabunda — diz, ciciando
cheio de raiva. — Mas não tenho mais que me preocupar com isso. Homens
mortos não fodem mulheres casadas. Eles não fodem ninguém.
Esganiçando outro grito cavernoso, movo minha cabeça para trás ao
mesmo tempo em que o acotovelo no estômago. Antony resiste mais; há uma
luta corporal entre nós enquanto sigo tentando alcançar a arma. Passo a
chutá-lo descontroladamente e, por um segundo, escapo de sua pegada.
Levanto-me, desestabilizada, e corro em direção à pistola. Entretanto, o
maldito me derruba de novo, de barriga para baixo, meus dedos agora a
poucos centímetros do objeto almejado. Começo a chorar compulsivamente,
entendendo que não há chances contra ele. É homem e mais forte do que eu.
Ele monta em meus quadris e puxa meus cabelos de novo.
— Vou aproveitar que sua boceta está encharcada e te mostrar de
quem você é e com quem tem que foder — profere. Um segundo mais tarde,
ouço-o desfivelando o cinto. As lágrimas me tomam com mais força. Não sei
o que me alucina mais: o homem que amo no quarto sangrando e à beira da
morte ou ser violada. Estico mais os dedos, na vã esperança de alcançar a
pistola. Está tão perto e ao mesmo tempo tão longe. — Abra essas pernas de
vagabunda, Ann-Marie — exige, aliviando o peso sobre os meus quadris.
Nesse instante, aproveito minha última oportunidade. Dou-lhe uma
cotovelada no peito e chuto-o seguidas vezes. Pego de surpresa, Antony tenta
me conter, mas, tomada por uma força incompreensível, movida pelo
desespero e senso de sobrevivência, consigo mover meu corpo para frente em
apenas três centímetros, mas os três centímetros que faltavam para que
alcançasse a arma. Pego-a em minhas mãos e giro de barriga para frente,
apontando-a em sua direção e desferindo um chute no ombro dele, que estava
chegando mais perto.
— EU VOU ATIRAR — berro, completamente ensandecida. Pus-me
de pé e nem vi. —Vagarosamente, ele também se levanta. Meu corpo nu
treme, meus dedos parecem incapazes de segurar essa coisa que nem sei
como funciona. — SE MEXA E EU ATIRO, ANTONY! — grito mais alto,
tomada por loucura e lágrimas.
Meu Deus, BERNARDO! Ele está morto, não está?
— Você nem consegue segurar essa arma direito! Por favor. Não
tenho medo de você — fala, vindo em minha direção.
Recuo a mesma medida, empunhando a maldita pistola em sua
direção.
— Deixo você fazer o que quiser comigo — digo, chorando e
desesperada. — Só me deixe chamar a ambulância para Bernardo! POR
FAVOR! — imploro, tremendo violentamente.
— Eu disse a ele ontem que era um homem morto. Gosto de cumprir
minhas promessas.
Antony avança como um animal em minha direção. Fecho os olhos,
pronta a desistir e me render. Estou cansada, nua, sem forças, humilhada…
arrasada. Mas nada acontece.
— Se afaste! — alguém diz atrás de mim. É uma voz forte,
impassível, rouca e de comando. — MANDEI SE AFASTAR! — grita.
Viro-me para trás e vejo três homens fardados, portando revólveres.
Um deles me chama para si. Traumatizada e envergonhada na mesma
medida, me distancio de meu agressor e tomo o policial como um escudo.
Olho por cima dos ombros do agente da polícia que é minha barreira humana
e vejo Antony apertar o maxilar enquanto o da voz de comando se aproxima
dele e o algema, anunciando sua prisão.
Alguém me estica uma caneca de chá. De forma mecânica, eu a
agarro. Ainda sinto meu corpo sujo de sangue, sangue dele, agora encoberto
por um roupão branco e nada mais. Estou uma bagunça, física e
psicologicamente falando. Minhas mãos ainda tremem de leve, meu coração
continua batendo desesperado, vez ou outra caio no choro.
— Vai ficar tudo bem — Marie me diz, sentando-se ao meu lado e
colocando seus braços em torno de mim.
Não digo nada. Bebo meu chá morno, obrigando minhas mãos a
pararem de tremer. Parem de tremer, droga!
Nem sei como Marie ficou sabendo do acontecido. Não comuniquei
ninguém. Não pude. Só sei que ela está aqui agora, três horas depois de toda
essa tragédia. Os policiais tentaram recolher meu depoimento, apenas por
protocolo, mas estou nervosa demais e nem sei se lhes disse algo útil. A
ambulância chegou a tempo de levá-lo ainda com vida para o hospital, mas
não sei… Não sei como possa estar agora. Tenho medo de saber, de
perguntar.
— Ann-Marie… — a mulher me chama, afagando meus ombros. —
Estive no hospital. Estão fazendo o possível pra salvá-lo… — comunica.
Isso é demais para mim. Entrego-me a outro dos meus choros
copiosos. Marie me abraça com toda sua força e tenta me acalentar, mas nada
neste momento é capaz de sanar meu desespero. Na verdade, há uma coisa,
sim: me garantirem que ele vai sair dessa. Ele precisa ficar vivo. Precisa, ou
nunca mais vou saber conviver com essa dor e a culpa…
— Foi minha culpa… — falo, mal percebendo as lágrimas rolando
pelos meus olhos. — Eu deveria tê-lo afastado da minha vida… Se ele
morrer, é minha culpa. Minha culpa. MINHA CULPA!
Julien me abraça outra vez, como se quisesse me confortar.
— Não foi sua culpa, ma chère. Não foi. E Bernardo é forte. Ele vai
ficar bem. Não se preocupe.
Realmente torço para isso. Termino meu chá em silêncio. De repente,
maman et papa invadem o quarto de hóspedes onde estou agora (não tinha
condições de ficar onde ele foi baleado, de forma alguma) e me tomam seus
braços. Filha ingrata. Nem mesmo para eles consegui ligar e dizer o que
aconteceu. Já disse que não liguei para ninguém? Depois que Antony foi
levado sob voz de prisão, o porteiro me entregou este roupão e me explicou
que chamara a polícia quando meu ex-marido conseguiu burlar a segurança
da portaria, ameaçando-os com a pistola, e invadir a casa. Ele até teria
tentado me avisar pelo interfone, mas o desequilibrado quebrou todas as
formas de comunicação. Sou meio responsável por isso também. Depois que
chegamos do show, não tranquei a porta, o que facilitou a invasão dele. Mas
duvido que uma porta trancada o impediria de invadir a casa.
Eu deveria ao menos ter agradecido a Deus pela polícia que chegou
no momento certo e pela ambulância que levou o homem que mais amo no
mundo ainda com vida. Mas nem isso consegui fazer. Apenas me enrolei no
roupão, deitei no chão do corredor, em posição fetal, e chorei por horas
depois que os agentes se foram. Eles quiseram me levar ao hospital, mas
aleguei que estava bem. Pediram-me para ir à delegacia, mas quando comecei
a gritar como uma louca que só queria ficar sozinha, então se foram,
deixando-me sob supervisão de um oficial. Algum tempo depois, ele me
convenceu a me levantar do chão e me acomodar melhor em outro quarto,
onde deitei na cama e fiquei lá, sem dizer nada, apenas chorando baixinho,
com medo demais para vestir uma roupa e ir até o hospital saber de Bernardo.
Acho que em algum momento dormi por uns vinte minutos. Acordei com
Marie me chamando baixinho e me pondo sentada na cama, perguntando-me
como eu estava, se tinha ferimentos, se precisava de alguma coisa…
Devo ter respondido que queria apenas café. Ou chá. Qualquer coisa
capaz de me acalmar.
— Mon Dieu! Por que não nos avisou, chérie? — mamãe indaga,
enchendo-me de abraços ao passo que também chora.
— Não consegui — sussurro apenas. Então olho para Marie ao meu
lado e indago: — Alguém avisou os pais dele?
— Eu avisei. E pedi para o hospital ligar para o melhor amigo
também. Acho que ele ia querer saber. Só espero que ainda tenha o mesmo
número de quando saíamos — diz, erguendo os ombros.
Torno a olhar minha mãe e a abraço de novo. Papai se põe do outro
lado e também me envolve em seus braços. Acalentam-me por algum tempo,
até que Simonie me convence a tomar um banho e tirar esses resquícios de
sangue. Debaixo do chuveiro, enquanto a sujeita escorrega pelo ralo, choro
mais um pouco, sentada no box, abraçando meus joelhos, e deixo a água se
misturar às minhas lágrimas. Quando consigo me recuperar o bastante para
me pôr em pé, saio enrolada em um roupão limpo que encontro no armário. O
quarto está vazio, mas deixaram algumas peças de roupa minhas. Visto-me
sem ânimo algum, a tristeza assolando cada célula do meu corpo. Quero tanto
saber dele, mas ao mesmo tempo tenho medo de notícias ruins.
Um bater na porta me chama à realidade. Marie entra com cuidado,
carregando uma bandeja com comida.
— Precisa se alimentar — diz.
— Não sinto fome — respondo, sentando-me na cama. — Como você
soube? — pergunto, olhando para minhas mãos.
Marie senta ao meu lado e me abraça de novo.
— A polícia me ligou. Estavam tentando falar com você, querendo
saber algum contato para informar do acontecido, mas… Estava sem
condições alguma, em choque. Encontram o telefone dele no quarto e
pegaram meu número. Acho que era um dos mais recentes no histórico de
chamadas.
Não digo nada, apenas aceno em positivo. Decido comer e pego um
pedaço de queijo.
— Depois do hospital, passei na delegacia — comenta, o tom de voz
baixo, cauteloso. Inspiro ruidosamente e fecho os olhos. Não sei se quero
saber. — Antony está preso, ele depôs e… contou como sabia de vocês dois.
— Olho-a nesse momento, engolindo o naco de queijo sem mastigar direito.
— Ele… tinha uma câmera de vídeo escondida no escritório da galeria.
Oh, porcaria. Marie nem precisa terminar de falar para que eu saiba o
que exatamente aconteceu.
— Ele usava essa câmera para gravar as trepadas dele com as amantes
e depois soltava em sites pornográficos. — Arregalo os olhos, surpresa com a
informação. Como pode ser tão asqueroso? — Segundo relatou, ficou meses
sem gravar nada, porque estava envolvido só com Gautier… Mas depois que
“romperam” — faz aspas com os dedos —, voltou a levar mulher fora de
hora na galeria e gravar o sexo. Essa semana, Antony estava revirando os
arquivos de vídeo atrás das últimas gravações que fez ao longo desses quatro
meses e, por acaso…
— …achou um vídeo nosso transando — completo, poupando-a disto.
Ela me dá um sorrisinho e abana em positivo. Suas mãos me afagam
de repente, num ato de carinho e conforto.
— Ele estava seguindo vocês havia uns dois dias, segundo o
depoimento.
— Você já tem notícias dele? — pergunto, desviando o assunto, com
um fiapo de voz.
— Liguei há pouco para Ester. Bernardo continua em cirurgia para
remover os projéteis. E vai precisar de transfusão de sangue.
Não digo nada outra vez, mas deixo que as lágrimas me tomem de
novo. Nunca chorei tanto em uma vida como agora. Meu coração dói e fica
apertado só de imaginar o pior para ele. Deus queira que não.
— Quero ir ao hospital… — peço, envergonhada por nem mesmo ter
condições de ir sozinha. Que bela merda de mulher eu sou.
— Levo você — Marie se prontifica, acariciando-me nas mãos. —
Mas coma alguma antes, tudo bem?
Aceno em positivo e faço um sanduíche pequeno com queijo. Quase
não toco nas frutas ou no suco. Calço um tênis e escovo os dentes depois que
termino. Marie ainda me espera aqui, pacientemente. Saiu só por um minuto
para avisar meus pais que estou “bem”.
— Posso fazer uma parada na igreja antes? — indago, descendo as
escadas ao seu lado.
Com um sorriso complacente, ela acena em positivo.
Meus pais estão na sala, um ao lado do outro no sofá, mas se
levantam assim que me veem. Anuncio que vou à igreja e depois ao hospital
e eles decidem me acompanhar. Vamos todos no carro de Marie. Permaneço
muda praticamente todo o percurso, tensa de preocupação e arrependimento,
deixando as lágrimas rolarem timidamente.
Prostrada frente ao altar, minutos depois, entre meus pais, oro a Deus
pedindo pela vida de Bernardo. Não, eu não peço. Suplico. Imploro. Meus
soluços ecoam pela Catedral, enquanto estou de cabeça abaixada, as mãos no
rosto, clamando para que Ele não o tire de mim. Não suportaria, não
suportaria mesmo.
Sinto dois abraços me envolverem, quentes, protetores. Mamãe
sussurra para que eu tenha fé, papai me diz que tudo ficará bem e não serei
abandona por Deus neste momento. Devagar, ergo o olhar para a cruz e seco
minhas lágrimas. Tomo ar para os pulmões, obrigo-me a ficar calma e
finalizo rezando um Pai Nosso. Só então seguimos para o hospital.
Embora não saiba como encará-los, Ester e Edmond me recebem com
abraços apertados. Estão visivelmente abalados, mas esperançosos por
notícias positivas. Aproveito a aproximação e o abraço confortante que me
dão e peço perdão. É tudo culpa minha… Por mais que me digam que não,
não consigo não carregar essa responsabilidade em meus ombros. Se ele se
for, se algo der errado, não saberei como conviver com minha consciência.
— A culpa não é sua — Edmond me garante novamente, acariciando
meus cabelos e me dando um sorriso fúnebre. — A culpa é e sempre será de
quem apertou o gatilho. Não se torture por isso, Ann-Marie. Bernardo jamais
gostaria que carregasse essa culpa.
Leva mais algum tempo até termos notícias. Ele saiu da cirurgia e
recebeu a transfusão, mas seu estado ainda é grave. Em coma, respira com
ajuda de aparelhos. Segundo o médico, as próximas vinte e quatro horas
serão críticas e decisivas em sua recuperação.
Desejo entrar para vê-lo, estou desesperada para isso, mas sei que
seus pais têm prioridade. Além disso, a visita precisa ser rápida. Ele está na
UTI e não pode haver circulação para não comprometer sua melhora. Longos
dez minutos se passam até que eu possa entrar. Uma enfermeira me
acompanha até o quarto; quando entro, meu coração se quebra em
incontáveis pedações. Dói tanto vê-lo debilitado dessa maneira.
— Cinco minutos — a enfermeira informa.
Apenas abano a cabeça em positivo e me aproximo dele, tomando
seus dedos nos meus. Aperto-o com delicadeza e me desfaço em lágrimas.
Afago seus cabelos castanhos com a outra mão, obrigando-me a me manter
no controle. Inclino-me e deixo um beijo em sua testa.
— Mon amour — cicio, mantendo meu rosto perto do seu —, s’il te
plaît, ne me quitte pas. — “Por favor, não me deixe.” — Je t’aime beaucoup.
— “Eu te amo muito.”
Aperto mais sua mão na minha e fico o restante do meu tempo ao seu
lado, desejando que esse pesadelo passe logo e que ele melhore. Caso
contrário, não vou sobreviver.
Simplesmente não vou.
ANN-MARIE
Com meu coração doendo em ter que deixá-lo para trás, retorno para
a recepção. Mal chego quando dois braços largos me tomam com força. Eu
até mesmo demoro a perceber de quem se trata. Só quando me afasta dos seus
braços e estou olhando para seus olhos azuis que reconheço um Emilien
muito abalado. Analiso-o por um segundo inteiro, notando uma
informalidade que, confesso, nunca vi nele. Está vestido com jeans e camisa
preta. Habituada a vê-lo sempre de terno, quase não o reconheci.
— Não acredito que aquele canalha teve coragem disso — Dupont
murmura, a voz de derrota.
Emilien não deveria estar surpreso. Antony espancou uma mulher
grávida de um filho dele. Pensando nisso, fui tão burra… Deveria ter tomado
o dobro de cuidado. Mas como poderia adivinhar que descobriria sobre
Bernardo antes do divórcio? Fomos prudentes com nossos encontros, exceto
pelo sexo no escritório tantos meses atrás…
Abano a cabeça para cima e para baixo, ainda meio em choque com
tudo isso. São duas da tarde. Sete horas desde que Bernardo foi baleado, mas
parece que aconteceu há uma vida.
— Ele fez — digo apenas. — Mas poderíamos ter evitado se eu…
se…
— Já falamos sobre isso — Marie me interrompe, surgindo ao lado de
Emil. — Você não teve culpa alguma. Sua única culpa é amá-lo demais.
Marie me toma em seus braços de novo, e de novo caio em um choro
copioso. Culpa e medo se instalam em meu âmago, lutando para saber quem
se sobressai. Não consigo aliviar nenhum dos dois.
— Marie está certa — Dupont profere, suavemente. — Não deixe que
Antony continue te influenciando dessa maneira, te fazendo se sentir culpada
por algo que você não tem responsabilidade alguma.
Olho para Emilien e seco minhas lágrimas teimosas. Consigo sorrir
um pouco e concordar. É, eles têm razão. A culpa então se transforma em
raiva. Parece que só agora sou capaz de sentir esse ódio violento nascendo
dentro de mim. Nunca pensei que um dia pudesse odiar tanto alguém como
agora odeio meu ex-marido.
Espero que, além de apodrecer na cadeia, também queime no fogo do
inferno.
— Posso falar com você um minuto? — Emilien pede. Seus olhos se
abatem de repente, a postura vacila. Realmente parece perturbado.
Busco os olhos de Marie, que estão fixos nele, como se também
estivesse surpresa pelo pedido. Assinto com um gesto e vamos até um canto
mais reservado. Dupont está meio distante, olhando por cima do meu ombro.
Ao olhar para trás, vejo que está observando Marie. Pigarreio, e então parece
se lembrar de mim.
— Ann-Marie… — Sua voz sai arrastada. Meu corpo todo fica rígido
e em alerta. Tenho a impressão de que coisa boa não sairá desta conversa. —
Nem sei como começar a te dizer isso — murmura, suspirando em seguida.
Ele leva a mão até os cabelos, em um claro sinal de nervosismo.
Não falo uma palavra. Espero-o encontrar a coragem para me dizer o
que quer que seja.
Inspirando profundamente, por fim diz:
— Recebi um telefonema mais cedo. Da delegacia. Antony pedia pra
que eu fosse lá. Até então não estava sabendo do ocorrido.
— O que ele queria com você? — pergunto, cruzando os braços.
O semblante de Emilien diante meu questionamento é um misto de
desprezo e dor.
— Quer um advogado de defesa. Quer que eu arranje e custeie o
melhor advogado de defesa.
Por um segundo, minha garganta fecha. Analiso a expressão de
desespero de Dupont e não posso acreditar que está cogitando…
— Não vai ajudá-lo, não é? Você não pode ajudá-lo, Emilien! —
protesto, erguendo um pouco mais meu tom de voz.
Ele desvia o olhar de mim e engole em seco. Um suspiro exasperado
escapa de seus lábios trêmulos. Quando torna a me olhar, vejo seus olhos
marejados. Antes fossem apenas as lágrimas; há um traço de aflição em sua
íris azul.
— Antony me tem em suas mãos — confidencia, apertando o maxilar.
— Ele me ameaçou… Ameaçou trazer algo do meu passado ao conhecimento
da imprensa… se eu não o ajudar.
— Bernardo pode morrer por causa dele! — falo, começando a ficar
desvairada com a ideia de Antony, de alguma forma, conseguir sair impune
ou ter sua sentença aliviada.
— Como você acha que estou com essa situação? Estou num maldito
impasse, quase tendo uma crise moral. Jamais o ajudaria se não estivesse tão
vulnerável. Je suis désolé… Sinto muito mesmo… Mas não posso arriscar ter
meu passado exposto como ele ameaça fazer.
Eu deveria virar as costas, deixá-lo falando sozinho e nunca mais
olhar em sua cara. Como Emilien pode cogitar ajudar aquele monstro depois
de tudo? É tão egoísta de sua parte. Está pensando somente neste seu segredo,
que nem mesmo temos certeza de que Antony sabe, e se esquecendo de que
há um homem em estado grave, à beira da morte. Entretanto, de alguma
maneira, em algum nível, consigo compreendê-lo. A angústia em seu rosto e
olhos é visível e sincera.
Tomada por um sentimento de empatia, abraço-o com toda minha
força.
— Faça o que for melhor pra você, Emil — sussurro. — Nós vamos
ficar bem. Todos nós.
— Merci, Ann-Marie. Merci beaucoup — agradece; até sinto um
pouco de alívio em sua voz.

Meus pais conseguem me convencer a ir para casa, comer alguma


coisa e tomar outro banho. Eu vou, resistindo um pouco antes, mas vou. Sou
levada então para a residência deles. Mamãe prepara algo para comermos
enquanto estou no chuveiro, preocupada. Quero voltar para lá o quanto antes,
mas sei que não me deixarão se ao menos não me alimentar direito.
Papai me convence a descansar no meu antigo quarto. Bernardo não
está sozinho — Marie, seus pais e Emilien se prontificaram a revezar — e
não há mais nada que possamos fazer a não ser esperar. Então, durmo até o
dia seguinte, meu corpo massacrado de cansaço. A noite passada em claro e
todo o desespero das últimas horas cobraram seu preço. Acordo por volta de
seis da manhã. Tomo outro banho e troco de roupa. Na cozinha, faço um café
forte. Estou pensando em chamar um táxi até o hospital quando papai aparece
usando seu pijama de seda. Cumprimenta-me com um beijo no rosto e
pergunta se estou mais descansada. Aceno em positivo e tomo do meu café,
servindo-o uma xícara em seguida.
— Pode me levar para vê-lo? — pergunto.
— Claro, ma chérie — confirma, terminando seu café e se levantado
para trocar de roupa.
Dez minutos depois, estamos saindo de casa.
Espero por quase uma hora até poder entrar e vê-lo mais um pouco.
Seguro-o na mão outra vez e fico apenas o observando, pensando positivo e
fazendo inúmeras orações a Deus.
— Você deve ser Ann-Marie — alguém profere às minhas costas.
Viro-me e encontro um homem alto, cabelos pretos e olhos azuis.
Reconheço-o imediatamente pelas fotos no Google e no apartamento. —
Bernardo me falou de você — prossegue, pondo-se do outro lado da cama. —
Alfredo Hauser — apresenta-se por fim.
Consigo sorrir um pouquinho. Um sorriso fúnebre.
— Ele também me falou de você. Meilleurs amis, n'est-ce pas?
— Oui, melhores amigos… — confirma, segurando na mão de
Bernardo. — Cheguei ontem à noite. Marie estava aqui e me explicou tudo o
que aconteceu. Sinto muito…
Não digo nada por um tempo.
— Merci — falo. Alfredo me olha sem entender direito. — Por ter
vindo. Sua presença é muito importante.
Com um sorriso triste, volta a olhá-lo e então diz:
— Há quatro anos eu estava na mesma situação. Bernardo deixou
tudo aqui em Paris e ficou quase um ano no Brasil, junto comigo. Não
poderia fazer menos por ele — murmura, a voz triste, os dedos longos
acariciando o amigo nos cabelos. — Ficarei o tempo necessário até ver esse
imprestável bem de novo.
Não seguro uma risadinha. Quase nem noto as lágrimas juntando em
meus olhos pela vigésima vez.
— Vou deixar você um tempinho com ele — enuncio baixinho. —
Quer um café? — ofereço, já chegando à porta.
— Non, merci.
Caminho até a lanchonete e compro um copo de café. De lá, decido ir
até a recepção dizer a papai que se ele quiser pode voltar para casa. Ficarei o
dia todo aqui e não há quem me leve deste hospital. Armand está folheando
uma revista ao mesmo tempo em que troca algumas palavras com Edmond ao
seu lado. De frente para o monsieur Dousseau, Ester está atenta aos dois.
Aproximo-me, cumprimentando-os com um mero sussurro. Tanto Edmond
quanto Ester se levantam para me abraçar e perguntar como estou me
sentindo hoje. Sorrio, pensando em como são simpáticos e atenciosos.
— Estou um pouco melhor — respondo. — Mas ainda muito
preocupada — confesso, olhando para meu café.
— Todos nós estamos — Ester murmura, apertando meu ombro. —
Mas vamos ser positivos. Ainda quero levar meu filho no altar. De
preferência para você — diz, deixando-me muito rubra de vergonha.
Então surge o questionamento: se Bernardo melhorar… corrigindo…
quando melhorar, ainda vai querer algo comigo? Dada a situação em que o
coloquei (quase morreu por minha causa, literalmente), continuará me
querendo? De repente, a insegurança bate em meu peito com toda força.
Espero apenas que não me odeie e não me deixe.
Consigo sorrir um pouco diante a sentença de Ester e até estou
abrindo a boca para dizer que também torço muito para isso, mas travo um
segundo depois quando meus olhos estacionam na entrada do hospital. Há um
homem alto e forte, branco, cabelos cortados à escovinha. Seus olhos não
desgrudam de mim, uma expressão fria e assassina toma posse de cada traço
do seu rosto. Usa jeans surrado e regata branca.
— Mon Dieu… — murmuro, sentindo o terror se instalar dentro de
mim.
— Quoi? — “O que foi?”, papai pergunta, levantando-se e vindo ao
meu encontro.
— Apollon — sussurro para papai, que se põe no meu campo de visão
e olha para trás. Levo a mão à boca e suprimo meu choro.
Aquele desgraçado do Antony não vai desistir enquanto não matá-lo.
Ester e Edmond se cercam de mim também, perguntando-me o que
está acontecendo e quem é Apollon.
— É um sobrinho meu — papai explica. — Não é boa pessoa.
Edmond desvia o olhar para o mesmo local que estou olhando
fixamente, com medo do que sua presença aqui possa causar.
— Bernardo corre perigo? — Ester pergunta.
— Oui. Oh, mon Dieu… Mesmo preso Antony quer a todo custo
matá-lo.
— Não podemos deixá-lo sozinho e temos que alertar o hospital —
Alfredo diz, surgindo de repente e se pondo ao nosso lado, dando-me a
certeza de que ouviu nossa conversa.
Edmond e papai se prontificam a procurar por um responsável e
informar a ameaça que um dos pacientes está correndo. Eu me afasto e ligo
para Marie e posteriormente para Emilien, deixando-os a par da situação. Por
mais que Dupont esteja sendo obrigado a ajudar aquele desalmado, merece
saber o que Antony está planejando, mesmo encarcerado. Durante esses cinco
minutos, Alfredo fica ao longe, conversando com Ester. Quando nota que
encerrei minhas conversas, vem até mim.
— Não acho que você esteja segura — informa, pondo a mão no
bolso. — Esse tal de Apollon pode estar aqui pra machucar o Bernardo, como
pode também estar aqui pra te machucar. Precisa tomar o dobro de cuidado.
— Vou tomar, obrigada.
— Deveria passar a noite comigo. — Sua frase me soa estranha. Ele
parece perceber o mesmo e dá uma risada, corrigindo-se em seguida: —
Digo, passar a noite no meu apartamento. Para despistar, sabe? Caso esse
cara esteja mesmo tentando te fazer mal. A sua casa ou a dos seus pais são
locais óbvios demais.
Ele pensa igual ao amigo. Contudo, não sei se é apropriado. Seu
apartamento tem apenas um quarto. Em geral, eu não me sentiria confortável
dormindo lá. Sei que Alfredo é de extrema confiança, mas não consigo evitar
o sentimento.
— Ligue pra Marie. Convide-a pra te fazer companhia — oferece,
parecendo notar que, embora ache uma boa ideia, é ao mesmo tempo
desconfortável. — Essa noite ficarei aqui. E, até termos certeza de que esse
homem não representa nenhuma ameaça a você ou ao meu amigo, vamos
tomar algumas precauções. Uma delas é você não ficar em locais óbvios. Só
saiba que se quiser ficar os próximos dias no meu apartamento, ele é todo
seu.
— Agradeço muito a sua preocupação, Alfredo — digo, não
conseguindo olhá-lo nos olhos. — Estou com medo, então… vou aceitar a
oferta. Você não se importa mesmo se Marie me fizer companhia? — indago.
— De maneira alguma.
Agradeço com um sorriso e me afasto para ligar para Julien outra vez
e pedir sua companhia pelos próximos dias. Ela não só aceita, como também
sugere que eu alterne minhas noites em sua casa, para dificultar qualquer tipo
de perseguição. Depois, informo meu pai da minha decisão, e ele garante me
trazer alguns pares de roupa.
O hospital já foi alertado e dobrará a segurança no quarto de
Bernardo. Caminho para lá uma última vez para me despedir. Seguro sua
mão e encosto nossas testas, mantendo-me em silêncio. Uma lágrima rola dos
meus olhos quando deixo um beijo nele.
— Je t’aime — sussurro, antes de partir.

Marie entra, olhando tudo ao redor. Estou enroscada em seus braços e


Alfredo vem logo atrás, carregando uma pequena bagagem minha.
— Vou fazer um café pra vocês antes de voltar para o hospital —
anuncia, deixando minha mala perto do sofá e indo até a cozinha. — Fiquem
à vontade.
São oito da noite. Passei o dia todo no hospital, na esperança de ter
alguma notícia positiva. O melhor amigo veio apenas nos trazer, como
combinamos, e vai voltar para se revezar com monsieur Dousseau na vigília.
Do meu lugar, ergo os olhos para Marie e a vejo meio estática no
lugar, parecendo perdida ou incomodada. Leva algum tempo até que feche a
porta e por fim se junte a mim no sofá. Alfredo abre e fecha as portas dos
armários, procurando por alguma coisa.
— Se estiver procurando o pó de café, está na segunda porta superior
à direita — instruo.
Ele me olha por cima do ombro por um segundo. Oh, droga, acho que
disse demais. Atendendo minha instrução, acha o que estava procurando e
então se vira para mim, com um ponto de interrogação no lugar dos olhos.
Molho os lábios e desvio o olhar um segundo antes de confessar:
— Viemos algumas vezes aqui. Para conversarmos. Era um local
seguro, em que Antony não pensaria em me procurar.
Seus olhos azuis me analisam por um segundo inteiro, semicerrados.
— Conversar? — indaga, deixando seus lábios subirem em um
sorrisinho divertido. — Sei — diz apenas e se vira para terminar o café.
Fico vermelha quase sem nem perceber; Marie dá uma risadinha
abafada.
Não consigo dormir, na maior parte do tempo, por isso ela me faz
companhia, conversando comigo, mesmo parecendo cansada ao extremo. Até
me fala um pouquinho do caso rápido que teve com Alfredo e é por isso que
estava tão estranha quando chegou. Não necessariamente por causa dele, mas
porque a última vez em que esteve aqui foi também a última vez que o viu,
quando ele precisou voltar ao Brasil, e desde então nunca mais deu as caras.
Tento falar de Emilien, mas esse também parece um assunto que não a
agrada.
— Emil está esquisito comigo desde que voltamos da África, meses
atrás. Quero dizer, ele é muito gentil ainda, mas ficou… distante, quase não
me procura pra sexo — diz, dando de ombros. — Bem, pelo menos não me
procura apenas pra sexo. Temos uma amizade bacana.
Ela fica quieta de repente, algo estranho rondando seus olhos. Marie
parece não saber mais o que dizer. São duas da manhã. Já liguei para Alfredo
umas seis vezes desde que foi embora. Já deve estar quase querendo me
enforcar. Mas vou ligar de novo, não só pela preocupação, mas porque quero
quebrar esse clima esquisito. Afasto-me até a sacada, converso trinta
segundos com ele — Bernardo está do mesmo jeito e Apollon não apareceu
mais — e então volto para o quarto. Ela está quietinha e com a cabeça coberta
no seu lado do colchão — vamos dividir a cama. Tenho certeza que não está
dormindo, mas mesmo assim não vou incomodá-la mais.
Nos próximos dias, tento não criar uma rotina, como forma de
segurança. Visito-o em horários diferentes e alterno minhas noites entre o
apartamento de Alfredo e o de Marie. Mesmo assim, nos últimos quatro dias,
vi Apollon em três ou quatro lugares que estive. Falei com Levèfre e
consegui uma ordem de restrição, o que não pareceu adiantar muito. Sendo
proibido de estar a menos de duzentos metros de mim, o primo de Antony
continuou me perseguindo de formas sutis.
Quando completam dez dias desde o incidente, recebo uma ligação de
Marie no meio da madrugada. Ela me pede para ir ao hospital pois Bernardo
está dando sinais de consciência. Levanto, me troco rapidamente e vou até a
sala, onde Alfredo está dormindo no sofá. Ou era para estar pelo menos. A
televisão está ligada e ele está assistindo a algum filme em inglês. Quando me
vê, se levanta imediatamente, como em alerta. Antes que ele possa perguntar,
digo:
— Bernardo está acordando do coma.
Cinco minutos depois, estamos na estrada, em direção ao hospital.
Disparo na frente assim que chegamos e praguejo cada segundo que o
elevador demora para me levar até o quarto dele. Quando chego, vou direto
até ele e o seguro pelas mãos. Seu rosto pálido tem um sorriso fraco e —
como pode, meu Deus? — cínico, aquele sorriso galante que me cativou
desde sempre. Seus olhos estão opacos quando encontram os meus. Como um
sinal de consciência, aperta minha mão.
— Mon amour — profiro, deixando as lágrimas verterem livremente
dos meus olhos. Beijo-o nos lábios singelamente, agora livre das intubações,
uma vez que está respirando sozinho já tem dois dias. Afago seus cabelos,
tentando controlar minha emoção. Ele apenas me olha, sem tirar o sorriso
galante e cansado. Passo o polegar por sobre suas covinhas fracas. — Senti
tanta falta desse sorriso lindo. Senti tanta falta de você. Só Deus sabe o medo
que tive de te perder. S’il te plaît, mon ange… me diga que ainda vai me
querer depois disso tudo — peço, engolindo em seco e apertando mais seus
dedos nos meus.
O sorriso em seu rosto se desfaz aos poucos, causando uma dor
irracional em meu coração. Ele me olha fixamente por vários segundos, sério.
— Ber… diz alguma coisa — suplico. — Mesmo que seja para me
mandar embora. Só… diz alguma coisa.
Seus olhos correm por cima dos meus ombros. Marie e Alfredo estão
na porta, respeitando esse momento entre nós. Nem me dei conta de como fui
egoísta em não dar espaço a eles. São seus amigos, estiveram aqui nos
últimos dias.
— Je… — murmura, sua voz saindo mais rouca do que o normal. —
Je t’aime — declara, exibindo seu sorriso fraco de novo. Pisco seguidas
vezes, liberando as lágrimas em meus olhos. Ele disse. Finalmente disse.
Com a visão turva, não desgrudo meus olhos dos seus, embora mal o
enxergue. Seus dedos longos me apertam mais, mas ainda assim o ato é
debilitado. — Eu te amo — fala outra vez. — E a única… maneira de não
ficarmos juntos… — Uma pausa para respirar. — É um de nós morrer.
Abraço-o, terminando de me desfazer em prantos. Ele afaga minhas
costas, bem devagar, enquanto murmura que está tudo bem agora. Alfredo e
Marie se aproximam, conversam com ele, trocam abraços e mensagens de
felicidade. Não saio do seu lado nem por um segundo enquanto o atualizamos
dos últimos dias. Nós o poupamos sobre Apollon por enquanto. Apesar de ter
acordado, ainda precisa se recuperar. Não quero preocupações o rondando
neste momento em que deve concentrar suas energias em apenas melhorar e
voltar para casa.
— Sabe o que seria pior do que morrer? — indaga, horas depois,
quando a enfermeira traz o café da manhã para ele comer. Bernardo dá uma
mordida na maçã. Ajeito pela centésima vez o travesseiro para deixá-lo mais
confortável.
Alfredo, sentado na poltrona frente à cama, cruza as pernas, abre um
pequeno sorriso e responde:
— Não faço ideia
— Morrer sem ter tido um orgasmo.
Levo a mão à boca, assustada, enquanto o amigo cai na gargalhada.
Que tipo de asneiras esse homem está falando? Ele me olha e ri ao ver minha
expressão embasbacada.
— É a verdade, mon amour. Estava prestes a gozar quando o
desgraçado me atingiu. Quando melhorar, precisa me compensar.
O melhor amigo está vermelho de rir, enquanto estou vermelha de
vergonha. Alfredo até parece que sabia que ele ia fazer piada com a própria
desgraça. Não vendo humor algum nisso, digo:
— Não brinque com isso, Ber. Vivi os piores dias desde então.
Ele me puxa pelo punho e me dá um beijo sereno. Seus dedos me
acariciam na bochecha. Quando abro os olhos, vejo o mesmo olhar cheio de
paixão com qual sempre me olhou.
— Uma coisa sobre mim, chérie: perco a vida, mas não perco a piada
— diz, abrindo seu sorrisinho de deboche. Reviro os olhos e consigo sorrir.
Ele não tem jeito mesmo. Beijo-o de novo e, quando nossos lábios se
separam, declara: — Eu te amo.
— Eu te amo.
Encosto nossas testas e sorrimos um para o outro.
Nós nos amamos.
BERNARDO
— Eu te disse que um dia ia te levar para conhecer o Brasil, não
disse? — sussurro em seu ouvido logo depois de embarcarmos.
Tudo bem, não é exatamente nessas circunstâncias que gostaria de
trazê-la para conhecer minha terra natal. Há três semanas, Antony tentou me
matar. Mesmo que não tenha conseguido, Apollon nos representou ameaça,
conforme Ann-Marie me deixou a par um dia depois de eu acordar. Mesmo
com ordem de restrição, nada o impediu de mandar outra pessoa em seu lugar
para nos intimidar. Nunca saberemos se de fato queria me machucar ou
machucar a mulher que amo, porque, de comum acordo, decidimos passar um
tempo no Brasil até eu estar mais recuperado e não sermos mais alvo de
ninguém.
Emilien, também sob ameaça, está pagando o melhor advogado de
defesa para Antony. Entretanto, como nos confidenciou, ofereceu o dobro dos
seus honorários ao profissional para que ele não consiga diminuir a sentença
do cliente. Resumindo: está pagando o melhor advogado de Paris para agir
como uma espécie de agente duplo. Não o julgo, de verdade, e só espero que
tudo dê certo para todos nós.
Ela sorri o sorriso mais lindo do mundo e encosta a cabeça em meu
ombro. Beijo seus cabelos e fecho os olhos, sentindo-me completo ao lado
dela de uma forma que nunca senti. Estou quase tirando um cochilo quando
meu melhor amigo, sentado uma poltrona atrás, se inclina e sussurra em meu
ouvido:
— Bernardo Dousseau preso pelas bolas. — Dá uma risadinha e
também não seguro um sorriso maior. — Quem diria… — debocha, voltando
ao seu lugar.
Sem abrir os olhos, apenas digo:
— Quem diria…
Desembarcamos no Brasil de noite. Vou ficar hospedado na casa de
Alfredo, muito mais por facilidade e porque ele insistiu. Lara corre para os
braços do pai enquanto sua esposa nos recepciona. Os dois se cumprimentam
e Lívia diz que o jantar ficará pronto em breve. Até faço uma piada porque o
prato principal é fetucine alfredo e nós dois temos uma história engraçada que
envolve essa massa. Deixando Lívia terminando nossa refeição, ele nos leva
até o quarto onde vamos ficar pelas próximas semanas, que já está arrumado,
à nossa espera.
— Descansem um pouco antes do jantar — meu melhor amigo diz,
conferindo se tem tudo que precisamos no quesito roupa de cama e banho
após deixar nossa bagagem em um canto. Um segundo depois, me olha,
sorrindo como o cretino que é. — E aproveitem para “conversarem” como
faziam no meu apartamento — provoca, em português, por isso Ann-Marie
não compreende sua sugestão maliciosa.
Dou uma risada e jogo um travesseiro nele. Alfredo se vai, fechando a
porta e dizendo que avisará quando a mesa for servida.
— O que foi que ele disse? — Quer saber, engatinhando na cama em
minha direção.
— Nada, chérie — digo, trazendo-a para um beijo. — Aquele cretino
só sabe dizer asneiras.
Ela não insiste no assunto. Enquanto desfaz nossas malas e guarda as
roupas no closet, decido tomar um banho rápido. Dez minutos depois, um
corpo nu se junta ao meu. Sua boca invade a minha em um beijo sereno e
sedutor. Retribuo, envolvendo meus braços em torno da sua cintura. Afasto-
me para respirar e afago sua bochecha. Sorrio. Ela sorri de volta,
emaranhando seus dedos nos meus cabelos molhados. Beijamo-nos outra vez,
sem nada dizer, porque nosso amor um pelo outro é grande demais para ser
expressado apenas em palavras.

Nossa estadia no Brasil dura um mês. Nesse meio-tempo, descanso e


me recupero, enquanto meu amigo toma conta de tudo. Agora, é hora de
partir. Voltar para França e levá-la para o altar. Se ela quiser, claro. Ainda
não fiz o pedido oficial, mas o farei em breve. Em algum momento entre
nosso embarque e desembarque. Ou talvez depois de chegarmos a Paris. Nem
mesmo tenho uma aliança. Merda. Não pensei nesse detalhe. Tudo bem. Faço
o pedido depois que desembarcarmos e estiver em posse de uma aliança.
— Bernardo! — Estou fechando uma das nossas malas quando ela me
chama. Viro-me em sua direção e a vejo parada à porta do banheiro,
segurando o celular contra o peito, os olhos cheios de lágrimas. Aproximo-
me rapidamente, sem entender o motivo de estar chorando.
— O que houve? — pergunto, segurando-a pelos dois braços.
— Marie me ligou… — diz, pestanejando. Seco suas lágrimas
teimosas e a espero continuar. — O Antony… está morto.
Pisco uma porção de vezes, recebendo a notícia. No último mês,
Emilien nos deixou informado do processo que estava correndo. Leclerc foi
condenado por tentativa de homicídio, invasão domiciliar e desacato à ordem
judicial (por causa da medida restritiva) e nem mesmo seu “melhor”
advogado conseguiu amenizar a sentença. Ela se senta na cama e leva a mão
ao lado esquerdo do peito, acho que ainda em… choque?
— Morto? — questiono, para ter certeza de que ouvi certo. Ela abana
em positivo.
— Ele se envolveu em uma briga dentro do presídio. Foi espancado
até a morte…
Suspiro, meio assustado com a notícia. Olho-a com atenção,
perguntando-me por que está tão… abalada.
— Por que está chorando por causa dele? — pergunto, e não consigo
não transparecer desprezo em minha voz. Depois de tudo que Antony fez, ele
não merece piedade ou lágrimas de ninguém.
Ann-Marie me dá um sorriso em meio às suas lágrimas e segura meu
rosto com as duas mãos.
— Não estou chorando por causa dele. Mon Dieu, Bernardo, estou
chorando… de felicidade! Acabou, entende? Antony um dia ia sair da cadeia
e talvez fosse nos atormentar… Mas agora, acabou, amour de ma vie.
Acabou. — Então me abraça com toda sua força. Retribuo na mesma medida,
sentindo alívio passar por cada parte do meu corpo. Morto. Que Deus me
perdoe, mas… foi merecido.
Afasto-a dos meus braços e beijo seus lábios vermelhos. Será agora.
Aqui no Brasil. E sem aliança.
— Acabou… para ele, não para nós. Nós estamos só começando, mon
amour. — Pego suas mãos e a olho nos olhos. — Aceita deixar de ser Leclerc
para se tornar uma Dousseau? — pergunto, inclinando-me para sua boca à
medida que seus olhos se arregalam. Ela não me dá resposta alguma porque a
beijo. Profundo, com força, necessitado.
— Como vou responder se você não deixa? — diz, rindo e
acariciando meu rosto.
— Sei que a resposta é sim — falo, todo convencido, beijando-a de
novo.
Ela bate em meu ombro e me empurra contra a cama, montando em
meus quadris em seguida.
— A resposta é sim — murmura, aproximando nossos lábios.
Sorrio e a puxo para outro beijo. Temos um tempo antes do voo. Vou
fazer um filho nessa mulher… Giro nossos corpos e a deixo por baixo. Ann-
Marie gargalha e me abraça a cintura com as pernas.
— Não ia mesmo aceitar não como resposta — profiro antes de tomá-
la em outro beijo.
Marcamos o casamento para dali a três meses. Minha noiva quem
escolheu a data. Ela poderia ter escolhido para dentro de uma semana, mas
minha mulher quer algo digno e tempo para preparar tudo que precisa. Quer
costurar o próprio vestido e o das madrinhas também. Quer inclusive
confeccionar o meu terno. Não me oponho a nenhuma decisão sua. De toda
maneira, ela tem mais aptidão nisso de organizar casamentos do que eu.
Contará com a ajuda da amiga Giselle — uma de suas madrinhas — para os
preparativos.
Minha única função todo o tempo foi tomar alfinetadas enquanto
Ann-Marie tirava minhas medidas, experimentar quinhentas vezes o terno e
opinar no sabor do bolo. Só. Local, convite, paleta de cores… Nada disso ela
quis saber minha opinião. Quem diria que minha mulher ia ser uma ditadora
quando se tratasse do próprio casamento.
— Está ótimo assim — diz com a mão na cintura, enquanto olha para
placa de sua loja na galeria. A antiga, escrito “Style Leclerc”, foi substituída
por uma com um novo nome e novo logo.
Com a morte de Antony, e como o processo de divórcio à época ainda
estava em andamento sem que tivesse assinado a petição, ela acabou por
herdar tudo. O dinheiro na conta bancária foi doado para algumas ONGs e
centros de caridade. Ela não sabia o quanto do montante era proveniente de
forma suja, então decidiu que faria algo de bom. Quis inclusive me devolver
a quantia desviada da minha cafeteria, mas não deixei.
— Podemos ir agora. — Finalmente se volta para mim.
— Estava quase desistindo. — Abro a porta do carro para ela.
— Exagerado… Nem demorei tanto assim — brinca, entrando.
Ponho-me atrás do volante e tomo as ruas de Paris.
— Depois de nossa lua de mel quero realmente me dedicar à loja —
comenta, colocando uma mão em minha coxa.
Sorrio, feliz que ela esteja por fim realizando seus sonhos. Ainda
temos muito o que realizar, juntos. Ela já tem seu Le Code, que a permite
praticar a direção com alguém habilitado para logo começar as aulas práticas
na autoescola. Está conquistando seu espaço como estilista, embora, por
conta dos recentes acontecimentos e por conta do nosso casamento, não possa
se dedicar como gostaria. Entretanto, o ateliê voltou a funcionar logo quando
chegamos do Brasil. Ann-Marie contratou duas funcionárias para a loja e
duas costureiras para ajudá-la nas confecções.
— Quero fazer uma reinauguração — continua dizendo —, com uma
nova coleção. Já tenho algumas ideias rabiscadas no meu caderno. O espaço
da loja no piso cabe uma passarela de uns três metros. Deve ser o suficiente.
— Se não for, alugamos um espaço maior — sugiro, olhando-a
rapidamente. Ela sorri e concorda.
Durante todo o restante do caminho, minha noiva segue falando dos
seus planos e sonhos: quer expandir os negócios em breve, com peças
variadas, para outros pontos da cidade e do país. Ela sonha alto e eu sonho
junto. Ann-Marie viveu tanto tempo presa, impossibilitada de realizar seus
desejos, que agora o que mais quero é apenas dar todo apoio que precisar.
Por fim, chegamos ao nosso destino. Ela é a primeira a descer. Chama
Gautier pelo interfone e espera que sejamos recepcionados. Minha ex-gerente
surge dois minutos depois. Está bem-arrumada, de cabelos presos e
maquiagem leve. A barriga gestacional já deve estar beirando os nove meses.
Ela nos recepciona com um abraço e nos convida a entrar. Na sala, tem uma
pequena mesa posta com café, que nos serve sem oferecer.
— Bernardo me ligou, avisou que vocês viriam, mas… Ainda não
entendi o motivo da visita.
— Preciso te dar uma coisa — diz, tomando um gole do café. Em
seguida revira a bolsa e retira um cheque. Arrasta-o na direção de Juliette e
diz: — Isso é parte do dinheiro de Antony. Um pouco do que tinha em conta
mais metade do valor da casa que vendemos, no mês passado. É para você.
Juliette olha o cheque por segundos inteiros, com uma expressão
espantada.
— Desculpe… E até agradeço, mas não posso aceitar.
— Por que não? Esse bebê é filho dele. É um herdeiro. Tem direito —
explica.
— Eu sei. Só… não acho correto. — Suspira, desviando o olhar por
um segundo.
Ann-Marie se inclina e a pega pelas mãos.
— Depois de todas as atrocidades de Antony contra seu bebê e contra
você, é o mínimo que devo fazer. Se estivesse aqui, nunca assumiria seu filho
e as responsabilidades. Mas ele não está e deixou uma pequena fortuna. Não
sou como meu ex-marido, Juliette. Você é mãe do filho dele e merece esse
cheque. Então quero que, por favor, você aceite.
De repente, Juliette a abraça, muito forte, agradecendo quase sem
parar.
— Não precisa me agradecer — murmura, afastando-se. — Estou
feliz que vocês estejam bem — diz, colocando a mão sobre a barriga
gestacional de Gautier. Minha mulher fica esquisita subitamente. Mas um
“esquisita” bom. Seus olhos claros parecem brilhar, o sorriso em seu rosto é
tão bonito. — Valentin, não é? — pergunta.
— Valentin… — confirma. — Significa “guerreiro”. É isso que ele é.
Um guerreiro. Foi tão forte em suportar as agressões daquele que deveria
protegê-lo — sussurra, distante, colocando ambas as mãos sobre o ventre. —
Somos só nós dois, mas darei todo o amor que ele precisar.
— Não duvido disso — minha noiva diz, levantando-se, pronta para
se despedir. Ainda temos coisas a serem resolvidas. — Espero você no nosso
casamento, dentro de uma semana.
Gautier também se levanta e nos acompanha até a porta. Despede-se
com beijos e abraços, mas antes de eu ir, ela me impede, segurando meu
punho.
— Acho que nunca te agradeci… por ter me ajudado meses atrás.
— Não tem o que me agradecer, Juliette. Você precisava de socorro.
Eu te socorri.
Ela abana em positivo. Vejo seus olhos marejados.
— Me desculpe a ameaça que te fiz. — Balança a cabeça em
negativo. — Estava tão desesperada e com medo de que… — Não a deixo
terminar. Tomo-a em meus braços e a aperto forte, o tanto quanto sua barriga
permite.
— Passou, Gautier. Antony estava ameaçando todos nós. — Afasto-
me, seguro-a pelos punhos e a olho nos olhos. — Passou. Esqueça isso. Viva
sua vida, cuide do pequeno Valentin. Tente ser feliz. E não se esqueça dos
amigos.
Recebo um sorriso e um abraço e, finalmente, posso me juntar à
minha noiva.

Lívia ajeita minha gravata pela centésima vez. A meu pedido. Ela dá
um passo para o lado, para que eu possa me ver no espelho.
— Está bom agora? — pergunta, segurando uma risadinha. — Não
que não estivesse bom das últimas três vezes.
Apalpo a gravata borboleta, ainda não muito satisfeito. Parece que
essa merda está torta. Por que tenho a impressão de que essa merda está
torta?
— É o nervosismo — Alfredo diz, sentado numa poltrona no quarto.
— Não se preocupe, as coisas só pioram depois que você casa.
Lívia pega uma almofada do sofá oposto e joga no marido, que ri e
devolve a almofadada. Não seguro uma risadinha, juntando-me a eles.
Obrigo-me a ficar calmo e respiro fundo. Em meia hora estarei casado.
Mamãe fez questão de que a cerimônia acontecesse em sua casa, no jardim, à
luz do dia. Ann-Marie preferia em uma igreja, mas as duas acabaram
entrando em algum tipo de acordo.
Confiro minha aparência novamente no espelho e aliso o terno. Meu
melhor amigo sai de seu lugar e vem até mim. Segura nos meus ombros e me
vira em sua direção. Não consigo encará-lo nos olhos.
— Você deveria mesmo estar de salto? — pergunto à Lívia, em
português, olhando com atenção para sua barriga gestacional de quatro
meses. — Não dizem que grávidas não podem usar saltos?
— Não quer que eu seja sua madrinha de tênis, não é? Não se
preocupe, estou bem. Depois da cerimônia vou vestir a sapatilha que trouxe
— assegura.
Volto a olhar meu amigo, que continua na minha frente e com a mão
nos meus ombros.
— Você foi meu padrinho de casamento duas vezes — diz. — Mas
não quero ser o seu padrinho de casamento mais do que uma vez, entendeu?
Abano em positivo e rio.
— Ann-Marie vai ter de me aturar quando eu tiver oitenta anos e for
um velho muito charmoso.
Nós rimos por alguns instantes, aliviando a tensão.
Mon Dieu, hoje é o dia mais importante da minha vida.
Nosso momento é interrompido quando alguém bate à porta. Marie
surge dentro de um vestido longo e bonito, na cor branca, igual ao de Lívia,
aliás, junto de Emilien, que traja um smoking como do meu melhor amigo.
— Viemos requisitar sua presença, monsieur Dousseau — brinca,
adentrando o recinto. — Já podemos nos posicionar. A cerimônia começa em
vinte minutos.
— Certo. Me deem um minuto apenas — peço. Todos se despedem
de mim com beijos no rosto e abraços, deixando-me sozinho.
Dois minutos depois, deixo o quarto e esgueiro pelos corredores até a
suíte principal, onde minha futura esposa está se aprontando. Eu sei, eu sei.
Não deveria vê-la antes da cerimônia, mas não acredito em superstições. Bato
na porta e a abro em seguida, dando uma espiadela. Minha noiva está de
frente ao espelho. Sozinha. Sorri ao me ver. Entro e fecho a porta, girando a
chave na fechadura. Uma sobrancelha dela se ergue à minha atitude.
— Não está pensando em consumarmos…
— Não estava. Mas agora que você sugeriu… — provoco,
aproximando-me dela e pousando as mãos em ambos os lados de sua cintura.
Ela ri e me estapeia, aconchegando-se em meus braços.
Aperto-a contra meu peito, olhando seu reflexo. Encosto meu queixo
em seu ombro esquerdo e passo segundos inteiros admirando sua beleza. Ela
traja um vestido marfim, ombro a ombro, com algumas pedrarias no busto,
costurado por ela mesma. É longo, escondendo os pés, com uma cauda curta.
A maquiagem é suave, os cabelos estão presos com uma tiara adornada de
pedrinhas brancas. Usa o colar de brilhantes que lhe dei ano passado. O
símbolo do início da nossa história.
— Tu es si belle. — Você está tão bonita. Um enorme sorriso se
manifesta em seu rosto, deixando-a ainda mais bela. Beijo a curva do seu
pescoço delicadamente e aspiro seu ar. Minhas mãos deslizam até seu
abdome. — Me diga, Ann-Marie, quando é que você vai me contar que está
grávida?
Sem tirar meus lábios do seu pescoço, olho seu reflexo e sorrio.
Minha noiva pestaneja seguidas vezes e entreabre os lábios.
— Como soube? — sussurra.
— Vejamos… — murmuro contra sua pele. — Um: já tem alguns
dias que você está com os seios doloridos. Dois: nós transamos bastante nas
últimas semanas, inclusive sem interrupção por conta do seu ciclo. Três: essa
semana te vi desesperada ao experimentar o vestido e ver que não servia
como antes e teve que reajustá-lo quase em cima da hora. Quatro: você me
fez comprar sorvete de baunilha às três da manhã para comer com banana,
dias atrás. Cinco: está mais emotiva do que o normal. Chorou assistindo um
filme de terror. Seis…
— Tudo bem, já entendi que você é um noivo muito observador e me
conhece mais do que imaginei — diz, abrindo um leve sorriso e colocando
suas mãos sobre as minhas ainda em seu ventre. — Ia te contar depois da
cerimônia. Estragou a surpresa, Bernardo Dousseau.
Eu a giro de frente para mim.
— Olha nos meus olhos e me diz que está grávida de um filho meu —
peço.
Ela me enlaça pelo pescoço, deixa um beijo suave em meus lábios e,
olhando-me nos olhos, profere:
— Estou grávida de um filho seu.
A emoção aflora em minha pele. Nem mesmo vejo lágrimas se
acumularem em meus olhos. Tomo-a em outro beijo, envolvendo seu corpo
com os braços e a trazendo mais para mim. Depois, me ajoelho e beijo seu
ventre.
— Hoje é mesmo o dia mais feliz da minha vida — sussurro,
abraçando-a outra vez. — Prestes a me casar com a mulher que amo, grávida
de um filho meu. — Afago seu rosto. — Nossa felicidade está completa
agora. No fim das contas, talvez exista mesmo um Deus.
Ela sorri, segurando minhas mãos contra sua barriga e então me beija.
Acariciando meus cabelos, sussurra:
— Vou agradecer a Deus todos os dias por ter posto você em minha
vida. Por ter me dado a dádiva de finalmente ser mãe, de estar me casando
com um homem incrível como você. E mesmo que agradeça todos os dias,
ainda não me será suficiente. Eu te amo tanto… Tenho medo de acordar e ser
tudo um sonho.
— Não é, ma chérie. E tenha certeza que farei de tudo, pelo resto dos
meus dias, para que você seja feliz ao meu lado.
— Já sou, mon amour — pronuncia, abraçando-me e encostando a
cabeça em meu tórax. — Eu já sou.
— Preciso ir agora — sussurro em seu ouvido. — A cerimônia
começa em breve. — Beijo seus cabelos, depois seus lábios e por fim seu
abdômen. — Não demore, mon ange. Quero que seja minha esposa logo.
Ela ri enquanto me afasto e garante que não vai se atrasar.

Estamos todos reunidos em volta da mesa, com um belo banquete


servido. Casar-me com Ann-Marie foi, até hoje, a coisa mais linda que
aconteceu na minha vida. Meu coração palpitou enquanto ela caminhava em
minha direção, enroscada aos braços de Armand, tão linda e angelical. O
padre realizou toda a cerimônia, mas confesso que boa parte me passou
despercebida, porque era mais interessante admirar a beleza ao meu lado. Tão
delicada, tão linda, gerando um filho meu… Então vieram os votos, onde
reafirmamos nosso amor um pelo outro e a promessa de nos fazermos felizes,
sermos fiéis, sermos amigos, em toda e qualquer situação, até que a morte
nos separe. Deixamos o altar com pombas brancas sobrevoando o local, um
símbolo de esperança e paz para nosso futuro juntos. Paz que nós dois
merecemos, depois de tudo.
Levanto-me do meu lugar à ponta da mesa, ergo minha taça e chamo
a atenção de todos, batendo suavemente a colher no cristal. Os convidados
fazem silêncio e me olham. Meus olhos passeiam de um por um. Alfredo,
junto da esposa grávida e dos dois filhos; Marie ao lado de Emilien; meus
sogros, que sorriem como se tivessem ganhado na loteria, e não um genro
novo. Meus pais, que também parecem orgulhosos. Henri e Vic, que
finalmente se entenderam e fizeram questão de viajar até aqui para viver esse
momento comigo. René Deschamps e família, a quem preciso agradecer pelo
belo presente de casamento. Amigos, funcionários, alguns clientes. Olho cada
um deles antes de começar meu discurso:
— Hoje é um dia feliz. Talvez mais para minha mãe que sempre
cobrou isso de mim — brinco, arrancando gargalhada de todo mundo. Ester
me olha, lágrimas nos olhos e toda orgulhosa. — Brincadeiras à parte, hoje
realmente é um dia feliz. Pouco mais de um ano atrás se me dissessem
“Bernardo, dentro de um ano você estará se casando” eu não acreditaria e
levaria apenas como uma piada. E tudo isso por sua culpa, Emilien — digo,
procurando-o entre os convidados, que riem. Ele se junta às risadas e ergue
sua taça.
— De rien! — Por nada, ele diz.
— De fato, preciso te agradecer. Se não tivesse me convidado para ir
à sua festa, talvez nunca tivesse conhecido essa mulher incrível que se tornou
minha esposa. Entre altos e baixos por quais passamos — falo, virando-me
para minha mulher — e também por tantas incertezas que vivemos, nós
vencemos. Hoje é um dia feliz, não só porque me casei com a mulher que
amo. — Nesse momento, seguro-a pela mão e a puxo para mim. — Mas
porque a mulher que amo está esperando um filho meu.
Os convidados aplaudem e assobiam. Ester e Simonie são as
primeiras a chegar até Ann-Marie para abraçá-la, ambas emocionadas e com
lágrimas nos olhos. Então, mamãe vem me abraçar:
— Finalmente… — exclama ao pé do meu ouvido. — Achei que não
fosse viver para te ver casado e me dando netos.
Rio um pouco e a aperto em meus braços.
— Comam e bebam à vontade — anuncio, erguendo minha taça. —
Porque hoje é um dia feliz. Santé!
— Santé! — exclamam de volta, erguendo as taças e brindando o
momento.
Aos poucos, todos vêm nos cumprimentar e desejar felicidade e saúde
ao bebê. Alfredo me abraça, radiante, já dizendo para me acostumar a ficar
sem dormir. A festa se desenrola até o entardecer. Ann-Marie joga o buquê e
quem pega é Marie, que parece ficar perdida com as flores em suas mãos.
Meus olhos correm até Emilien, sentado no lado oposto, com uma expressão
quase impenetrável.
A noite cai, a festa finalmente acaba.
Levo minha esposa para meu antigo apartamento — antigo porque
compramos uma casa nova —, onde vamos passar a noite antes de viajarmos
no dia seguinte para Monte Carlo, local da nossa lua de mel, conforme desejo
dela. No quarto, frente ao espelho, devagar, abaixo o zíper do seu vestido.
Minhas pupilas crescem quando a peça cai aos seus pés. Ela está usando uma
lingerie branca, que a deixa mais linda do que já é.
— Gostou? — murmura.
Acaricio todo seu corpo, sem parar de olhá-la pelo espelho. O reflexo
da gargantinha brilha em meus olhos. Meus lábios fazem um caminho pelo
seu pescoço.
— Mais do que você imagina — digo em resposta. Giro-a para mim,
beijando sua boca e descendo meu dedo até sua boceta. Ela suspira em meus
lábios e remexe os quadris contra meu contato. — Espero que esteja bem-
disposta, Ann-Marie Dousseau… porque quero fazer amor com você a noite
toda.
— É uma ideia interessante — brinca, não segurando um gemido
estrangulado. Deito-a na cama e separo suas pernas, afastando a calcinha para
o lado. Passo minha língua em seu clitóris, enquanto meus dedos brincam
suavemente em seus mamilos.
Estourando de desejo por ela, me dispo e me encaixo entre suas
pernas, penetrando-a devagar sem tirar meus olhos dos seus.
— Eu te amo — declaro, movendo-me lentamente. Suas pernas me
circundam o quadril, dando-nos um ângulo mais prazeroso.
— Eu te amo — responde entre gemidos e beijos desesperados em
minha boca.
Quinze minutos depois, chegamos juntos ao nosso ápice. Ela fica
deitada em meu peito por mais cinco minutos até que nos levo até o banheiro.
Sob a água do chuveiro conversamos, rimos e trocamos beijos. Mais delicado
do que o normal, lavo sua barriga, acariciando-a, como se eu pudesse sentir
esse grãozinho de amor crescer dentro dela.
Fazemos sexo de novo sob a água quente, apenas para que essa noite
acabe de forma perfeita.
Perfeita e feliz.
MARIE
— O que acha de vir para o meu apartamento? — Emilien murmura
contra meu ouvido, sua mão forte e máscula deslizando de forma sensual pela
minha espinha, causando-me arrepios na pele e me deixando úmida lá
embaixo.
Estamos na festa de casamento de Dousseau. Está escurecendo, mas a
festividade parece longe de acabar. Dupont me tirou para uma dança lenta e
gostosa, talvez apenas com o intuito de me fazer esse convite. O que é meio
estranho de sua parte porque ultimamente só eu é quem o procurava para
isso. Não que ele me deva qualquer tipo de explicação ou obrigação, mas fico
me perguntando onde está o homem praticamente insaciável com quem
dormi dois meses seguidos quase um ano atrás quando estivemos na África.
Emilien se afastou e ficou frio assim que desembarcamos em Paris. Tudo
bem que mantivemos a amizade e o contato, que não se restringiu apenas ao
sexo. O que me deixa curiosa e confusa é sua mudança brusca de postura em
relação a nós dois.
Sei que ele gosta do nosso sexo — ou não teríamos trepado como
coelhos enquanto estivemos no continente africano —, só não entendo então
por que de repente pareceu se distanciar e preferir não nos envolvermos
sexualmente. De vez em quando, como agora, Emilien me chama para
transar. E qual deveria ser minha atitude? Sim, isso mesmo: prensá-lo contra
a parede e exigir que me explique por que age assim. Mas não é o que
realmente consigo fazer. Quando penso em dizer “não”, já disse “sim” e
estou debaixo dele tendo um orgasmo enquanto chamo seu nome.
Droga de homem gostoso que precisa ter esse controle todo sobre
mim.
— Podemos ir agora? — pergunto, olhando para os lados. Bernardo
está distraído com Alfredo, rindo e bebendo. Ann-Marie ainda está recebendo
as felicitações pela gravidez. Já almoçamos, já jogaram o buquê, que eu por
um acaso qualquer peguei, mas dei para a pequena Lara Hauser brincar. Já
cortaram o bolo. Acho que Emilien e eu cumprimos todas as etapas de uma
festa antes que se possa ir embora.
Ele me gira embaixo do seu braço e me puxa bruscamente contra seu
tórax definido. Meus olhos se perdem nos seus. Estão tão azuis hoje. Sinto a
parede de músculos sob o smoking. Uma vontade quase insana de despir esse
homem e lamber cada centímetro de sua pele se apodera do meu corpo.
— Vamos nos despedir — diz, a voz muito rouca.
Dez minutos depois, estamos a caminho do seu apartamento. Emilien
está estranho. Quieto demais, parecendo tenso sob o terno. Seus dedos longos
desatam a gravata borboleta e a jogam no banco de trás. Quero perguntar se
tem alguma coisa o incomodando, mas o conheço o suficiente para saber que,
quando está em silêncio dessa maneira, é melhor mantê-lo assim. Ele é um
homem fechado quando quer. Digo, na maior parte do tempo ele é um
homem fechado. Nunca o vi com outra mulher (não que isso signifique que
não tenha uma companheira além de mim), sempre se esquivou de perguntas
sobre sua família, não é de falar muito sobre si mesmo — como gostos
pessoais ou a infância e adolescência —, evita a imprensa quando se trata de
sua vida particular. Se você pesquisar o nome dele do Google, verá apenas
notícias relacionadas a negócios. Nenhum escândalo, nenhuma foto em redes
sociais, nenhuma notícia de fofocas onde está estampado com alguma modelo
de capa de revista. Emil tem mistério. Talvez tenha sido isso que me agradou
nele.
Perdida em meus próprios pensamentos, demoro a notar que já
estamos no elevador privativo para a cobertura. A mão quente dele está em
minha coluna, subindo devagar para a abertura que há nas costas. Seus dedos
me dedilham na parte de pele exposta. Ele me conhece o bastante para saber
que a espinha é um dos meus pontos fracos.
— Se não parar, te ataco aqui mesmo.
— É um elevador privativo, para uma cobertura que só eu tenho
acesso — sussurra contra meu ouvido. — Vá em frente e me ataque.
Neste instante, me viro e o beijo profundamente, enlaçando seu
pescoço e o encostando contra a parede do elevador. Nunca transei em um
elevador. Talvez agora seja o momento, quem sabe? Sem tirar meus lábios
dos seus, escorrego minha mão pelo seu tronco, sentindo a firmeza dos
músculos. Paro em seu tórax apenas por um segundo, apalpando essa dureza
deliciosa sob a carne. Então continuo meu caminho, querendo sentir outra
dureza que também é uma delícia. Emilien praticamente rosna contra minha
boca quando alcanço seu membro ereto. Enfio a mão por dentro da sua calça,
com alguma dificuldade por causa do cinto, e o seguro com firmeza, sentindo
a pele macia e quente contra meu toque.
Enquanto o acaricio no pênis duro e o beijo como uma louca, na
mesma medida Emil sobe suas mãos pelas minhas pernas, erguendo o vestido
junto. Elas se detêm em minhas coxas por meros segundos antes de continuar
o caminho até minha bunda. Rosna de novo quando constata que uso uma
calcinha fio-dental pequenina e indecente.
— Se soubesse que estava usando isso — fala rudemente, puxando a
lateral da peça, que volta e estrala contra minha pele —, eu teria te arrastado
pra um canto qualquer naquela festa e te fodido por lá mesmo.
Sorrio em sua boca, excitando-me de como eu também o deixo sem
controle. Desfivelo seu cinto, tomando-o em outro beijo ao mesmo tempo em
que ele segue me apalpando de forma desesperada. Abaixo sua calça e me
ajoelho à altura de seu sexo ereto. Seguro-o com mais firmeza e ergo meu
olhar para Emilien. Encostado na parede do elevador, joga a cabeça para trás
e geme baixinho ao passo que o masturbo lentamente. Estou prestes a colocá-
lo todo em minha boca quando sou puxada para outro beijo devastador. Com
um movimento brusco, agora sou eu quem estou contra a parede, quase não
conseguindo respirar porque ele me devora com seus beijos.
O que está havendo com esse homem hoje? Não que Emil não seja
bom de cama. Mas a intensidade do momento, o desespero com qual me beija
e me apalpa parece o prenúncio de uma separação, como se fosse essa a nossa
última vez. Decido não reclamar e aproveitar que está excitado ao extremo
para ter um orgasmo dos deuses.
De repente seus dedos estão lá, tocando-me ferozmente e arrancando
os mais obscenos gemidos de mim. Um segundo mais tarde, debaixo do meu
vestido, é sua boca quem brinca com minha vagina e sanidade, a língua
deslizando em um sobe-e-desce delicioso contra meu clitóris sensível.
Murmuro seu nome e retorço o quadril, pedindo mais. À língua, Emil soma
mais dois dedos, que se intercalam entre meu ponto sensível e dentro de
mim.
— Nós não temos tempo suficiente para preliminares aqui — fala
pondo-se de pé e sacando uma camisinha da carteira.
— Homem precavido — brinco, ainda ofegante, enquanto o vejo se
revestir com a proteção.
Emilien apenas sorri antes de me tomar em seus braços e impulsionar
meu corpo contra o seu, pegando-me no colo e me prensando contra a parede.
Seu membro me penetra centímetro por centímetro, lentamente. Acomodo-o
com facilidade, sentindo o cumprimento e a largura me preencherem. Nova
definição de felicidade: ser penetrada por Emilien Dupont.
Ele pesca minha boca quando começa a se mover mais rápido,
batendo nossos quadris. O atrito causa um som de pele contra pele
maravilhoso, intensificado pelo elevador fechado. Seus braços me seguram
com força, mantendo-me presa e em um ângulo esplêndido para recebê-lo.
— Que buceta encharcada. — Emilien é homem de poucas palavras
durante o sexo. É mais do tipo “faz mais” e “fala menos”, mas toda vez que
decide abrir a boca, isso queima o meu centro e me dá um prazer
indescritível. Jogo a cabeça para trás quando seu polegar encosta em meu
clitóris. — Mas quero você ainda mais molhada pra mim.
— Emil… — Meus lábios tremulam em meio a gemidos.
As portas do elevador se abrem para o hall da cobertura quando estou
prestes a ter um orgasmo. Ele sai de dentro de mim, frustrando-me
sobremaneira. Sobe as calças sem afivelá-las e então me puxa. Minhas pernas
estão moles, quase sem vida. Nem sei como realmente consigo chegar até seu
apartamento. Em algum momento depois de deixarmos o elevador, já estou
no seu quarto, de quatro na beira da cama, sentindo-me exposta e excitada
além do que sou capaz de suportar. Imploro para que ele continue me
comendo e me dê o orgasmo merecido. Ele não o faz por algum tempo.
Apenas se ajoelha na cama, ao meu lado, nu sem eu sequer tê-lo visto se
despir, os dedos da mão esquerda deslizando para dentro de mim e me
fodendo; a mão direita puxa meu rosto para me dar um beijo possessivo.
Continuo implorando pelos próximos cinco minutos e imploro ainda mais
quando ele me chupa e me lambe na mesma posição, apertando meu clitóris
na mesma medida. Sensível e com o tesão lá em cima, gozo em sua boca,
gritando e gemendo desvairadamente.
Meu corpo todo ainda treme quando Emilien finalmente me penetra,
puxando meu cabelo e erguendo o vestido delicadamente costurado por Ann-
Marie para ser madrinha do seu casamento. Atrás de mim, arremetendo-se
com toda sua potência, o homem não economiza ou esconde os gemidos de
prazer. Os sons graves escapando dele me dão uma incrível sensação de
prazer. E é movida por essa sensação que consigo mudar o jogo a meu favor,
colocando-o por baixo de mim. Seus olhos azuis tomam proporções mais
intensas quando começo a cavalgar com todo fervor, subindo e descendo
nele, forte, rápido, rebolando.
Perco meu vestido e a lingerie preta em algum momento, sobrando
somente a calcinha fina de lado, que ele faz questão de manter. Gostando
sempre de comandar, Emil segura-me com firmeza na cintura e trava meus
movimentos, preferindo ele mesmo ditar o ritmo.
Minha cabeça está jogada para trás e meus olhos estão fechados
quando o sinto tocar em meu queixo. Nossos olhos se encontram um segundo
antes de novamente ser posta de joelhos. Minhas mãos são colocadas contra a
cabeceira da cama, que range no nosso ritmo. Ele não diz nada. Apenas me
penetra de novo, comendo-me cada vez mais vigorosamente, apertando seus
dedos longos em minha cintura. Eu o incentivo, inclinando o quadril em sua
direção e o movendo o quanto consigo.
Com um gemido grave e descontrolado, Emilien goza. Deita na cama,
trazendo-me junto, respirando com dificuldade. Os dedos longos se
emaranham em meus cabelos e me acariciam. Ele se vira para mim, olhando-
me com um sorriso cansado.
— Isso foi incrível só pra mim? — pergunta.
Movo a cabeça em negativo.
— Hoje foi esplêndido — sussurro.
Ficamos um tempão em silêncio, enroscados um no outro. Seu calor
corporal é tão gostoso que pego no sono. Acordo um tempo depois e Emilien
pediu comida. Jantamos conversando trivialidades. São dez da noite quando
começamos a segunda rodada de sexo, dessa vez em cima da mesa na sala.
São duas da manhã quando decidimos ter uma terceira rodada, na banheira.
Nunca senti sensação melhor do que trepar de quatro na borda da banheira,
com ele todo molhado e liso deslizando com facilidade.
São dez da manhã quando acordo no dia seguinte. Giro na cama,
apalpando o seu lugar, mas não o encontro. Abro os olhos apenas para
confirmar sua ausência. Um sentimento esquisito invade meu corpo,
formando um nó em minha garganta. Emilien nunca me deixou dormindo
sozinha depois de transarmos. Acho que agora sou capaz de compreender por
que Bernardo odiava que fizesse isso. A sensação é mesmo muito esquisita.
Levanto-me e me enrolo em um roupão.
— Emil? — chamo-o, recebendo o silêncio como resposta. Confiro o
banheiro. Ninguém. Desço até a sala. O apartamento está à meia-luz e em
completo silêncio. Não há ninguém aqui também. — Emilien? — chamo de
novo, indo até a cozinha.
Sobre a mesa de vidro que fizemos sexo ontem à noite tem uma
bandeja de café da manhã. Aproximo-me e vejo um copo de suco de laranja,
morangos, uvas e maçã, cereal matinal e leite integral. Olho para os lados,
perguntando-me o que está havendo. Só quando olho a bandeja pela segunda
vez que noto um pequeno pedaço de papel debaixo da tigela de cereal. Ao lê-
lo, as lágrimas descem dos meus olhos e um aperto no meu coração quase me
sufoca. Corro para o quarto e me visto o mais rápido que consigo. Antes de ir
embora, preciso conferir… Preciso confirmar que não é apenas uma
brincadeira de mal gosto. Invado o closet dele. A realidade me atinge quando
vejo que não há nenhuma peça de roupa de Emilien.

“Chérie, sei que depois desse bilhete você vai me odiar. A intenção é
realmente essa. Não me leve a mal. Gosto de você e do nosso sexo e por esse
motivo preciso fazer isso. Não quero e nem posso cultivar nada por você,
nem te deixar derrubar minhas barreiras e entrar. Não posso. Acredite, você
merece alguém melhor do que eu. Por isso… decidi ir embora. Foi o único
modo que encontrei pra te afastar de vez da minha vida. Juro que tentei
outras maneiras, Marie, mas você conseguiu me contaminar de tal maneira
que não vi outra solução a não ser uma radical. Comandarei a Dupont
Investimentos da sua sede em Nova Iorque. Espero que possa me perdoar um
dia.
Adeus.
Emilien”

Amasso o maldito bilhete entre meus dedos enquanto tento de todas


as maneiras ignorar a dor me afligindo neste momento e manter minhas
lágrimas só para mim. Deixo o apartamento dele, abalada e despedaçada,
porque ele não somente foi embora sem se despedir, mas transou comigo
antes, deixando-me às cegas de sua decisão. Ele me magoou. Mais do que
qualquer outro homem o fez um dia.
Paro o primeiro táxi que vejo e me jogo no banco de trás, incapaz de
controlar meu choro. O motorista me olha por cima do ombro, analisa-me um
segundo e pergunta se está tudo bem. Com dificuldade digo que sim.
— Para onde? — pergunta.
Passo o endereço de minha casa e faço todo o restante do percurso
tentando me convencer de que não amo Emilien Dupont. Porque só assim
para que eu suporte a dor em meu coração.
BERNARDO
Subo correndo dois degraus de cada vez. Quando chego ao corredor
dos quartos, minha esposa já está deixando seu ateliê improvisado e
caminhando rapidamente até o quarto do bebê. Apresso o passo e bloqueio
seu caminho. Ela me olha atentamente e põe a mão na cintura.
— Eu cuido dele. Você tem uma coleção pra terminar. O desfile do
novo lançamento é no final de semana, mon amour.
Como não poderia esperar menos da minha esposa, Ann-Marie está
ascendendo como estilista. Nos últimos dois anos, uma das coisas mais linda
que vi foi essa mulher realizando seus sonhos, conquistando sua
independência, alçando voos cada vez mais altos. É claro que com o bebê não
há como se dedicar integralmente, mas nada que algumas funcionárias e um
espaço improvisado perto do nosso filho não resolva. É óbvio que tem meu
apoio e procuro fazer meu papel de pai e de marido o tanto quanto é
possível.
Como agora.
Mesmo que eu estivesse lá no escritório, contabilizando os lucros do
café depois de ter passado o dia inteiro trabalhando, quando ouvi o chorinho
dele pela babá-eletrônica. Nós nos revezamos como podemos. Ann-Marie
fica com ele durante todo o dia. Nada mais justo do que cuidar do meu filho
quando estou em casa, mesmo que cansado.
— Ele quer mamar, Bernardo. E preciso mesmo de uma pausa — diz,
passando por mim e entrando no quarto do bebê. — Olhe isso… Que menino
sapeca — murmura, aproximando-se.
Não sei, mas fico muito bobo com cada fase dele. Com um ano de
idade, Jean-Luc já dá alguns passos escorando pelos móveis. Agora está ali,
segurando nas grades do berço, olhando-nos com seus olhinhos verdes
úmidos. O menino se agita e estica os bracinhos quando nos vê,
desequilibrando-se e caindo para dentro do berço de novo, com os pés para
cima. Gargalho junto com minha esposa enquanto ela o pega no colo.
Ann-Marie o leva até nossa suíte, deita-o na cama e se põe ao seu
lado, dando-lhe de mamar. Meu filho gira o corpinho de lado, agarrando os
seios da mãe e sugando com toda força. Fico na porta, parado, observando-os
um instante, duas pessoas que amo mais do que posso explicar. Então decido
me aproximar e deitar ao lado deles, deixando o pequeno entre nós dois. Ele
parece sentir minha presença e joga um dos bracinhos para trás, como que me
procurando. Abraço seu corpo pequeno e beijo sua cabecinha, o cheirinho
dele me fazendo tão bem.
— Não é a coisa mais fofa que você já viu na vida, mon amour? —
murmuro, acariciando cada centímetro do corpinho dele.
Ela ri e concorda.
— Um pacotinho de amor — murmura.
Jean segura o indicador dela e aperta. Então beijo sua bochecha. O
menino para de mamar e vira o rosto em minha direção, abrindo a boquinha e
também me beijando enquanto balança os bracinhos e solta alguns gritinhos
em meio a um sorriso lindo. Meu coração pulsa forte dentro do peito e não
evito rir. Ann-Marie se inclina e o beija do outro lado. O bebê repete o gesto,
virando-se na direção da mãe e encostando a boquinha sorridente na
bochecha dela. Ficamos assim, eu beijando de um lado, Jean se virando para
me beijar; a mãe beijando do outro, e ele fazendo o mesmo. Cada “beijinho”
que nosso filho retribui nos arranca uma risada.
Por fim, desiste da brincadeira e volta a se alimentar, parecendo que
vai cair no sono de novo.
Não saio do seu lado. Fico aqui, com meu indicador entre suas
mãozinhas enquanto ele mama, admirando o milagre que esse menino é em
nossas vidas, como preenche nossos dias, trazendo-nos alegria, alimentando
nosso coração e fortalecendo nosso amor. Admiro minha esposa, que cada dia
está mais linda. Mesmo com algumas olheiras pelas noites em claro, ou as
marcas da gestação, ou quando está mal-humorada.
Nunca tive dúvidas de que seria plenamente feliz ao lado dela. Nunca
tive dúvidas de que amaria a ela e ao meu filho todos os dias até o fim da
minha existência. Só não estava preparado para receber tanto amor de volta,
não estava preparado para amá-los tanto e de tal forma que esse sentimento
por eles se transformou em algo grande demais para caber no peito, que
transborda ao mesmo tempo que me enche de felicidade.
Três anos atrás, sequer sonhava em esposa ou filho. Agora tenho os
dois. Ann-Marie e Jean-Luc são minha família, um pedaço de mim por quem
morreria e mataria, as duas pessoas por quem levanto todos os dias querendo
fazê-los feliz.
Três anos atrás, ser feliz para mim era ter uma bela mulher na minha
cama e não me prender a ninguém.
Hoje, minha esposa e meu filho são minha nova definição de feliz por
completo.
EMILIEN
São cinco da manhã. Ela dorme profundamente, como um anjo.
Sequer consegui pregar os olhos desde nossa última transa. Minha cabeça me
atormenta, meu coração bate acelerado. Sei que não é correto. Vai magoá-la
ao extremo. Mas tenho que afastá-la da minha vida porque não posso… não
posso deixá-la entrar de maneira alguma.
É tão covarde e egoísta. Mesquinho.
Eu deveria desfazer as malas no meu closet, prontas desde ontem, e
cancelar o jatinho particular que me espera. Deveria mesmo. Abrir o jogo
com ela, ficar em Paris e sermos bons amigos, só bons amigos, sem sexo
entre nós. Mas não posso. Se estivermos tão próximos, não vou resistir, sei
disso. Vou procurá-la, vamos conversar, talvez jantar com uma boa garrafa
de vinho e, embora devêssemos ser apenas amigos, nós vamos transar, e cada
vez mais me verei apaixonado por ela. E não posso me envolver com
ninguém… Não de novo. Não quando sou instável — mesmo que ela não
saiba desse meu lado, mesmo que esteja sob controle há bastante tempo.
Assim, preciso ir embora. Sem acordá-la, sem me despedir. É melhor para
ambos. Ela merece alguém melhor do que eu. E eu não mereço ninguém.
Inclino-me suavemente e a beijo no rosto. Marie não acorda, nem
mesmo se mexe. Sorrio para mim mesmo e levanto-me com cuidado. O
vestido bonito dela, que usou no casamento de nosso amigo Bernardo noite
passada, está esparramado no chão. Abaixo-me e o pego entre meus dedos
por um instante. Inalo seu perfume delicioso, profundamente, na esperança
desesperada de ter uma última memória dessa mulher que não seja eu
levantando-me depois de uma noite intensa de sexo e indo embora. Não para
sempre, mas por um bom tempo. Tempo o suficiente para ela me esquecer e
seguir a vida; tempo o suficiente para eu mesmo a esquecer e seguir a vida.
Deixo o vestido no mesmo lugar, quase obrigando-me a isso, porque
minha vontade é de levá-lo comigo… Ter um pedacinho dela sempre ao meu
lado. Faria isso, se não fosse sua única vestimenta no apartamento. Tomo um
banho longo, quente, relaxante, tentando afastar meus demônios internos e
esquecer meu passado, tentando não pensar quem poderia ter vazado
informações de minha vida pregressa e suja para Antony Leclerc — alguém
que considerei um amigo, mas em um determinando momento ameaçou me
expor.
Para minha sorte, Antony não é mais uma ameaça para mim. Ainda
assim, fico preocupado. Só existem duas pessoas no mundo que sabem meu
segredo. Eu sou uma delas.
Esfrego os cabelos e ergo o rosto para a água, que cai sobre mim e
lava minha alma. Não gosto de considerar que a outra única pessoa que
conhece meus segredos possa ter me traído dessa maneira, delatando-me. Por
que faria isso? É de seu feitio me punir quando eu a contrario, mas há tanto
tempo não nos vemos… Parece tão improvável Antony conhecê-la.
Fecho o registro e me enrolo na toalha. Isso não importa mais. Queria
telefonar e perguntar “Por acaso você se encontrou com Leclerc e abriu a
boca? Por quê? Porque certamente me odeia. Sempre foi assim. Diz que me
ama, mas suas demonstrações de amor parecem apenas me prejudicar. Jamais
vou te entender. Não consigo te amar de volta. Me puna por isso.”
Visto-me vagarosamente, apenas querendo adiar o momento o quanto
possível. Quando estou pronto, sento-me na poltrona em frente à cama e
passo as próximas horas antes do meu voo apenas velando o sono dela,
observando-a com atenção, gravando cada detalhe do seu rosto, da sua pele,
do seu corpo em minha mente, porque sei… sei que nunca mais vou esquecê-
la, por mais que eu tente. E mesmo se pudesse esquecê-la, eu não ia querer.
Marie é esplendida demais para ser esquecida.
São oito da manhã quando finalmente saio da minha poltrona e desço
minhas malas até o hall principal, onde um funcionário as pegará para mim e
as levará até meu carro. Enquanto isso, na cozinha, preparo um café da
manhã reforçado para ela. Sorrio enquanto separo um pouco do cereal,
conhecendo-a o suficiente para saber que Marie não come nada antes das dez
da manhã, mas sei que só acordará depois desse horário. Modéstia à parte, eu
a cansei bastante noite passada, como ela também me cansou. Foi
maravilhoso.
Escrevo um bilhete e deixo junto da bandeja.
Passo longos segundos encarando o rápido recado e o café da manhã.
Dou uma risada esganiçada e baixa. É meio que “pardon por te comer a noite
toda e depois me mudar de país. Tome um belo café da manhã, isso vai te
acalmar e certamente te fará me esquecer”.
Mon Dieu, como isso é errado.
Esforço-me mais para conseguir deixar minha cobertura e entrar no
meu carro. Meu motorista não conversa comigo. Quando não cumprimento
ninguém — o que é raro —, todos sabem que estou de mau humor ou
chateado, então também não falam comigo, exceto pelo estritamente
necessário.
Encosto a cabeça no vidro e evito olhar para trás, para o edifício onde
morei por um bom tempo, onde na minha cama dorme uma bela mulher.
Que acordará sozinha.
Eu me odeio por isso.
MARIE
Dois anos depois
Ele tem cara de quem vai me pedir alguma coisa. Conheço essa cara.
Conheço os trejeitos dele quando vai me pedir alguma coisa. Chega como
quem não quer nada, zanzando pela redação, então para em frente à minha
mesa, pega uma caneta e um pedaço de papel e começa a rabiscá-lo,
querendo saber sobre o meu dia, como estou, o que comi no almoço ou no dia
anterior.
Héron Poirier não é nenhum exemplo de simpatia. Pelo contrário. Um
ano atrás, ele trabalhava em uma editora de livros, como editor. Analisava
originais para publicação e era conhecido por suas críticas ferrenhas e
indelicadas. Os autores da casa praticamente o odiavam quando ele editava
suas obras, porque o homem realmente não perdoava nada. “Uma porcaria”,
“Meu sobrinho teria escrito algo melhor. E nem sobrinho eu tenho”, “Como
alguém considera isso um livro?”, “Lixo transcrito em folhas”, “Imaturo,
infantil, mal escrito, horrível”, “Enredo fraco, isso para não dizer que é uma
bosta” — essas são algumas das suas críticas. Claro que suas avaliações não
se resumiam a apenas “lixo e porcaria”. Já o vi criticando algumas obras com
propriedade. Ele é inteligente e tem conhecimento de causa para dizer se algo
é bom ou ruim, e dar dicas do que e como melhorar. Só é um babaca mesmo
com as palavras. Mas nunca diz esse tipo de coisa diretamente com o autor,
porque sabe que esse palavreado pode desanimá-los.
Mas não foi sua antipatia que o levou a sair da editora e vir parar em
uma revista jornalística. Héron apenas recebeu uma proposta muito melhor e
agarrou a oportunidade de crescimento financeiro. Para nosso terror, claro,
porque o mesmo que ele fazia na editora, faz aqui, com os jornalistas.
Comigo.
Apesar de ser um babaca, profissionalmente falando, é um cara legal,
mas é longe de ser alguém simpático com quem quer que seja. Duvido que
seja simpático até mesmo com a mãe dele. Por isso sei que, quando está todo
amável dessa maneira, alguma coisa quer e provavelmente é algo péssimo.
— Fala logo o que você quer de mim, Héron — digo com um suspiro,
erguendo os olhos do teclado onde digito uma matéria e fitando-o
seriamente.
Dando-me um sorriso, senta-se à borda de minha mesa, brincando com
a caneta e o papel em mãos.
— Há quanto tempo você está aqui, Marie? — indaga, passando os
dedos de um jeito meio sensual nos lábios e me encarando.
Ah, não, belezinha. Isso não vai funcionar comigo e a última coisa que
farei será dormir com meu chefe. Reviro os olhos, volto a teclar e respondo:
— Uns oito meses.
Antes disso, eu trabalhava no jornal La Parisienne. Foi lá que cresci
como jornalista. Dediquei-me por um tempo na coluna de política — um
assunto que sempre me agradou —, depois me colocaram em assuntos
internacionais — uma área que também me interessava muito, por isso não
reclamei. Não era raro, por vezes, meu editor me requisitar para outras áreas e
assuntos para matérias que sairiam apenas na versão on-line ou para outras
redações que pertenciam ao jornal. Nessa época, fui parar no continente
africano para uma série de reportagens sobre a ação de um jovem e rico
investidor e sua filantropia no continente. Passamos por alguns países
africanos durante os dois meses que lá estivemos, permanecendo mais tempo
na África do Sul. A matéria escrita foi vinculada a uma das revistas
jornalísticas pertencentes ao grupo Parisienne; a versão em vídeo virou
documentário e está disponível em uma plataforma streaming.
O filantropo era o lindo-barra-filho-da-puta de Emilien Dupont.
Aquele desgraçado.
Paro de digitar, pego a caneta e o papel da mão de Héron e escrevo um
pequeno lembrete no verso que ele não rabiscou: mandar uma mensagem a
Bernardo Dousseau xingando-o por ser o responsável por eu conhecer
Emilien. Eu sei, meu amigo não tem culpa nenhuma por Dupont ter sido um
idiota comigo dois anos atrás, quando transou comigo e simplesmente se
levantou e foi embora, para outro país, deixando-me dormindo em sua
cama.
Héron dá uma espiada por cima para ver o que escrevo, mas
imediatamente jogo o bilhete idiota no lixo. Já são dois anos e já superei esse
cara (assim espero). Ele ergue uma sobrancelha em minha direção, mas dou
de ombros e nada digo. Não sei se chegou a ler o que estava escrito.
— Certo. E nesses oito meses, quantas vezes te pedi um favor? — Finjo
que faço uma conta mental. Poirier ri e me joga uma bolinha de papel. —
Vamos, não exagere.
— Se quer que eu seja sincera, ao menos duas vezes no mês. Então isso
dá dezesseis favores.
— Bom, então acho que posso te pedir mais um. E juro que será o
último.
Reviro os olhos e me apoio nos cotovelos.
— Sei. Que tipo de favor você quer agora? Por l’amour de Dieu, não
me mande escrever uma matéria sobre tendência de maquiagem.
Ele ri mais um pouco e abana a cabeça em negativo.
— É um pouco pior do que isso, mas sei que você é capaz. Neste
sábado, terá um baile de máscaras de uma famosa estilista portuguesa. Ela
fará um desfile antes do baile. Tinha alguém para ir, mas de última hora
precisou cancelar.
— Por quê? — Quero saber.
Héron molha os lábios e me encara por um segundo inteiro, como se
estivesse pensando.
— Olha, o motivo não importa. Nem eu sei direito, na verdade. O
editor do La Mode me ligou agora há pouco me perguntando se eu não tinha
alguém competente o bastante para emprestá-lo para esse evento.
— E eles não têm gente lá na redação para isso? — questiono,
suspirando e tentando me concentrar no meu trabalho outra vez. — Acho
esquisito um editor de uma revista de moda ligar para outro de uma revista
jornalística pedindo para cobrir um evento de moda. Nada contra quem
trabalha nessa área, mas você sabe que gosto de outros assuntos.
— Eu sei. Mas o baile já é depois de amanhã e ninguém topou trabalhar
num sábado à noite. Devem ter outros compromissos, não sei. — Dá de
ombros, não me convencendo nem um pouco. Aí tem coisa. — Só sei que
você é uma jornalista espetacular e versátil, capaz de escrever uma
reportagem sobre filantropia na África e também sobre a última tendência de
Paris.
Mentiroso. Não tenho toda essa versatilidade, não. Não vou mentir
dizendo que não comecei escrevendo para revistas para adolescentes, pois
comecei. Se cheguei a uma das maiores revistas jornalísticas da França foi
devido a muito esforço, suor, estudo e trabalho. E não vou mentir: odeio
quando me pedem para cobrir matérias desse tipo. Mas tudo bem, sei que sou
capaz de escrever algo decente.
— Não sei, Héron — falo, com um suspiro. Eu não tinha plano nenhum
para esse sábado à noite a não ser ficar deitada no sofá com a televisão ligada
e um livro nas mãos.
— Tenho alguns contatos… Posso conseguir te colocar na próxima
conferência de Davos.
Ele não precisa de mais nada para me convencer.
— Tudo bem. — Aceito o trabalho. — Mas você vai mesmo me enviar
a Davos no próximo Fórum, ou eu nunca mais falo com você.
Héron sorri e abana a cabeça em positivo, por fim deixando minha
mesa e voltando para sua sala. Sem nem mesmo me agradecer.
Que mal-educado.
Deixo meu trabalho atual de lado e começo a me preparar para sábado.
Ainda bem que estou incumbida para uma conversa com Silvia Ferreira,
então não preciso necessariamente entender (muito) sobre moda para escrever
a matéria que virá antes da entrevista. Ainda assim, preciso estudar um pouco
sobre a estilista para fazer perguntas interessantes. No meu intervalo, corro
até a cafeteria de Dousseau, cerca de vinte minutos daqui. Carrego comigo
meu bloquinho, uma caneta e meu netbook, para continuar trabalhando
enquanto degusto um café forte.
Sento-me ao balcão principal e peço um expresso e croissant. Bato a
caneta na superfície, encarando a tela do computador, lendo mais sobre a
estilista. Rabisco algumas palavras-chaves no bloquinho. Tomo uma dose
generosa quando meu café me é entregue.
Uma figura para ao meu lado. Olho-o, e ele está ali, com o filho
pequeno no colo e seu sorriso galante, marcado por covinhas.
— Salut, ma chère — me cumprimenta, inclinando-se em minha
direção e deixando um beijo no meu rosto.
— Salut, Bernardo — devolvo, levantando-me do meu lugar e pegando
o pequeno Jean-Luc no colo. — Mon Dieu! Como ele está lindo.
— São os genes do pai — brinca, todo convencido, indo para trás do
balcão. Ele dá algumas instruções aos funcionários enquanto me deixa com o
bebê de pouco mais de um ano. Uma coisinha fofa de olhinhos verdes,
cabelos louro-escuro e pele branquinha. Volta minutos depois, com um
ursinho em mãos, e retoma o filho para si.
Sento-me de volta ao meu lugar e bebo meu café, rolando a página da
minha pesquisa. Bernardo se senta ao meu lado, o filho entretido com o
ursinho, e pergunta:
— Desde quando se interessa por moda?
— Não me interesso. Isso é coisa do Héron. Quer que eu vá a um baile
idiota de máscaras — respondo, xícara nos lábios, olhos na tela do netbook.
— Está falando do baile da Silvia Ferreira, a portuguesa estilista?
Olho-o rapidamente.
— Sim, ela mesma.
—Ann-Marie e eu vamos juntos. Minha esposa está eufórica.
Sorrio e abano em positivo. Ann-Marie é estilista também. Está em
ascensão, uma vez que passou anos casada com um embuste que controlava
todos os aspectos da vida dela. Agora, ao lado de Bernardo, ela recebe o
apoio e o incentivo necessários. Então é claro que estará nesse evento. Silvia
Ferreira é uma das novas referências da atualidade tratando-se de moda.
— Falando nisso, onde ela está? — Quero saber.
— Na galeria — responde, pegando o ursinho que Jean-Luc jogou no
chão e dando a ele outra vez. — Veio fazer alguns ajustes num vestido de
casamento que desenhou para uma atriz.
Viro-me um pouco sobre o banquinho, olhando por cima dos ombros.
A galeria dela fica exatamente atravessando a rua. É um conjunto de lojas
alugadas para diversas finalidades, e seu ateliê fica logo na fachada, expondo
vestidos em manequins.
— Preciso de um vestido novo — comento, virando-me para frente. —
Não que isso vá sair do meu bolso. Mando a conta para Héron depois —
digo, dando de ombros. — Ele me quer nesse baile, nada mais justo que me
pagar um vestido de gala novo.
Bernardo dá uma risada gostosa e concorda.
— Ann-Marie deve ter alguma coisa no ateliê. Acho até que tem um
modelo ótimo pra você — fala, analisando-me de cima a baixo. — É bonito e
ela estava louca pra usá-lo nesse baile, sabe… pra chamar a atenção de
Silvia? Mas achou pretensioso demais ela mesma ir com a peça.
— Vou falar com ela — digo, terminando meu café e juntando minhas
coisas. — Posso servir de modelo.
Despeço-me com um beijo em seu rosto e no pequeno Jean-Luc. Na
galeria, Ann-Marie está de frente a um manequim, no fundo das lojas, com
uma fita métrica no pescoço e alfinetes na boca, olhando atentamente para
um vestido de noiva espetacular. Tem duas assistentes ao seu lado, ajudando-
a nos ajustes necessários.
— Chérie… — chamo-a. Um segundo depois, ela vem em minha
direção, um sorriso enorme, e me abraça, perguntando se estou bem. — Seu
marido me disse que você tem um vestido lindo… e queria que Silvia
Ferreira o visse. Vim me candidatar a modelo — brinco.
Ela ri um instante antes de dizer:
— Você irá ao baile também?
— Sim. A trabalho, mas irei.
— Vamos ver suas medidas — diz, puxando-me pelos punhos até mais
ao fundo do ateliê.
Ann-Marie conversa o tempo todo comigo, a maior parte do tempo
falando do filho enquanto me mede da cabeça aos pés. É uma mulher bonita,
com uns trinta e seis anos, talvez trinta e sete, cabelos louro-acobreados,
olhos claros. Por fim, pede para uma das suas auxiliares trazer o vestido em
questão.
Bernardo não estava mentindo quando disse que o modelo é lindo. É
todo preto, feito de tule nas mangas e parte do colo. O busto é em renda,
bordado com fios dourados. A criadora o pega com delicadeza e o coloca à
frente do meu torso.
— Vai ficar tão lindo em você — murmura. — Vá, vista-o para que
possa fazer os ajustes — diz, encaminhando-me até o trocador.
Passo a próxima hora no ateliê. Envio uma mensagem a Héron,
informando-o do motivo de minha ausência, mas garantindo que estou me
preparando para o evento de sábado. Ele nem mesmo me responde. Bem,
avisar, eu avisei.
— Semana que vem Bernardo e eu completamos dois anos de casados
— comenta, atrás de mim, agachada, arrumando alguma coisa na barra. —
Vamos viajar para o Brasil.
Ela se levanta e se põe às minhas costas, ajeitando os ombros. Nossos
olhos se encontram pelo reflexo do espelho. Ann-Marie percebe que fiquei
esquisita de uma hora para outra. Droga. Não queria estragar a animação
dela, mas é impossível para mim. A lembrança do seu casamento deveria ser
algo feliz, de uma noite linda que tive o prazer de viver junto deles, sendo
madrinha de Bernardo… junto com Emilien. Mas não consigo pensar em
nada feliz quando ele simplesmente foi embora no dia seguinte.
— Pardon — pede, percebendo o leve incômodo em mim. — Às vezes
me esqueço que o Emil…
Abano a mão no ar, como se eu não me importasse.
— Está tudo bem — garanto, embora tenha dúvidas sobre isso.
— Não teve mais notícias dele? — pergunta, ficando de frente para
mim.
— Não, e nem faço questão de ter — respondo, mais rude do que
gostaria.
Ann-Marie apenas me oferece um sorriso pequeno e não diz mais nada.
Finalmente, cerca de cinco minutos depois, o vestido está pronto para as
minhas medidas. Troco-me rapidamente. Preciso voltar para a redação.
— Vou mandar que entreguem o vestido para você em sua casa — ela
me assegura, abraçando-me em despedida. — Te vejo no baile de sábado. E
não se esqueça…
— … de comentar com Silvia sobre o vestido e você — completo,
dando uma risada. — Pode deixar, não vou me esquecer.
Beijo-a no rosto e volto para a redação.

Já fiz minha parte no evento, acho que posso me divertir um pouco.


Preciso admitir: é um belo baile e foi um belo desfile. Todas as modelos
estavam usando máscaras venezianas belíssimas, criadas pela própria estilista
portuguesa. Logo depois do desfile, me reuni com Silvia em um lugar mais
reservado para uma entrevista exclusiva para o Le Mode, como já havia sido
previamente combinado. Ficamos juntas por cerca de uma hora, a mulher é a
simpatia em pessoa, embora sua cara diga o contrário. Depois da entrevista,
ela se reuniu com outros jornalistas na área da imprensa e só após responder
outras perguntas que finalmente se deu início ao baile.
Deixo a área reservada para a imprensa e sigo até a mesa de Bernardo e
Ann-Marie. Puxo uma terceira cadeira e me sento na companhia deles. A
esposa de Dousseau quer logo saber todos os detalhes do meu encontro
reservado com Ferreira. Então, dou o que ela quer ouvir: Silvia ficou, sim,
encantada com meu vestido e quis o nome da criadora dele.
— Passei seu telefone e o endereço do seu ateliê. — É notável que
Ann-Marie fica exultante com a notícia e me agradece quase infinitamente
por isso.
Rio do seu exagero e da sua animação, mas a compreendo, no final das
contas. Conversamos por bons minutos, apreciando os aperitivos e as
bebidas. Bernardo, com uma máscara de Fantasma da Ópera, tira a esposa
para uma dança. Eu fico no meu lugar, observando a festividade e os casais
no centro do salão, sendo conduzidos pela música suave.
De repente, me sinto ser observada. Meu olhar atravessa o mar de gente
dançando para lá e para cá e encontra um par de olhos azuis intensos. O
homem está do outro lado do salão, segurando uma taça de champanhe,
encostado à parede. Veste um fraque preto e cartola na mesma cor. O
acessório no rosto o cobre quase por completo, tendo um grande nariz que
lembra a mórbida máscara da peste negra. Apesar de o apetrecho ser bastante
taciturno, é elegante e bonito. Ele não para de me olhar, com um pequeno
sorriso. Tem uma barba preta e cheia, bem-cuidada.
Meu corpo estremece. Não sei exatamente o porquê, mas sinto como se
conhecesse esse olhar, esse sorriso… Apesar de não me recordar a quem
possa pertencer.
— Sua vez. — A voz de Bernardo chama minha atenção. Ergo o olhar
e o vejo com a mão esticada em minha direção. Ann-Marie está se ajeitando
em seu lugar novamente e me incentiva com um sorriso. — Não vou deixar
que passe a noite toda sem ao menos uma dança.
Reviro os olhos e me levanto, segurando em sua mão. Ele me leva até o
salão e me conduz suavemente.
— Por que veio sozinha? — Quer saber.
Dou de ombros, olhando através de Bernardo para o outro lado, onde o
misterioso homem está. Seus olhos ainda estão sobre mim, analisando-me.
São suaves, sem resquício de desejo perverso. Amáveis.
— Eu vim a trabalho — digo em resposta.
— Seu editor não te arrumou nenhuma companhia? Que grosseria.
Rio discretamente e giro por baixo dos seus braços.
— Não me importo, Bernardo, de verdade. Mas obrigada por se
preocupar o bastante e me tirar para uma dança.
Ele nada diz, apenas sorri e me gira de novo, soltando minha mão. Meu
corpo rodopia e paro frente a um tronco duro. Um par de mãos fortes me
segura pela cintura. Ergo o olhar e me deparo com aqueles olhos azuis
sedutores, o sorriso charmoso e conciso quase escondido pela barba.
— Salut. — É só o que consigo dizer diante esse homem misterioso.
Ele não responde, apenas segura minha mão e começa a me guiar na
dança. Procuro Bernardo no salão. Meu amigo está voltando para sua mesa,
olhando-me com um pequeno sorriso. Suspiro, pestanejo e torno a mirar meu
mais novo acompanhante. Seu aroma é gostoso e másculo.
— Sou Marie Julien… — apresento-me, fazendo algum esforço para
manter minhas pernas firmes.
O misterioso continua a não me responder. Deveria considerar uma
indelicadeza e má educação de sua parte, mas o modo como me olha, o
sorrisinho comedido, seu perfume, a maneira como segura minha cintura…
Tudo isso me faz ficar presa a ele, ao mistério que o ronda, deslumbrada e
obstinada nele.
A música acaba. Ficamos longos segundos nos braços um do outro, nos
olhando.
— Será que agora eu posso saber quem é você? — sussurro, molhando
o lábio inferior.
O sorriso some gradualmente. Seus olhos tomam proporções sombrias
e misteriosas. Ele apenas acena em positivo. Devagar, retira a máscara e,
quando finalmente vejo seu rosto, um tremor incompressível atinge meu
corpo. Minhas pernas perdem firmeza, minha respiração falha.
— Salut, Marie — sussurra, a voz rouca.
Espantada e quase gaguejando, digo seu nome:
— Emilien…
EMILIEN
Dezessete anos antes
Bato a porta com mais força do que gostaria. No andar de baixo, um
grito estridente e um vaso contra a parede. Ignoro. Estou farto dessa
convivência. Não suportarei viver um dia a mais sequer nessa casa. Minha
saúde mental, fodida desde que me conheço por gente, é mais importante no
momento. Por isso minha decisão. E contrariar Elizabeth Dupont, no meu
caso, nunca é bom. Ela vai me punir, em algum momento, de alguma forma,
mas não se eu estiver longe o suficiente de suas armações.
Sigo até a varanda no meu quarto e me encosto à balaustrada. Puxo
um maço de cigarros do bolso e isqueiro. Acendo um e trago fundo. Odeio
essa coisa, sinceramente, e raramente fumo. Mas às vezes preciso de uma
tragada ou outra para aliviar a tensão. Dou uma risada esganiçada, deixando a
fumaça escapar entre meus dentes. Estrago meus pulmões para manter a
saúde mental. Irônico.
A porta se abre novamente, mas não me viro. Os passos calmos se
aproximam de mim. Olho para o lado, o cigarro ainda entre meus lábios. Meu
pai delicadamente retira o câncer em bastão da minha boca e o amassa contra
o balaústre. Diferente da minha mãe, Thierry não é histérico. Se fosse
Elizabeth aqui, estaria gritando comigo, dizendo como só sei decepcioná-la.
Meu pai é o oposto dela.
— Ela me odeia, não é? — sussurro, encontrando seus olhos iguais
aos meus.
— Não, Emil — garante, mas sei que é mentira. — Ela só tem um
jeito diferente de demonstrar amor.
Movimento a cabeça de um lado a outro. Não acho que seja bem
assim. Com minha irmã, as demonstrações de amor dela são bem menos
hostis. Nicole, embora tenha apenas oito anos, é a menina de ouro de mamãe.
Não importa o que ela faça, Elizabeth sempre a coloca num pedestal. Se tira
uma nota dez na escola, ela a exulta. Se a nota não é tão boa assim, a
incentiva a estudar mais. Mas invertemos os papéis. Quando tirei minha
primeira nota ruim, aos dez anos, mamãe me disse que eu apenas a
decepcionava. Não era a primeira vez que Elizabeth me falava coisas do tipo,
então me esforçava além do comum para melhorar a minha nota e agradá-la.
Quando cheguei com um dez em todas as matérias, só o que recebi foi um
“Não fez mais que sua obrigação”.
— Desculpe, não queria te decepcionar — falo, fitando o jardim
enorme que circunda nossa casa.
Papai apoia a mão sobre meu ombro e me dá um sorriso
complacente.
— Você não me decepcionou, Emilien. Você nunca me decepciona,
filho.
Sorrio um pouco, desejando receber esse amor e esse tipo de
incentivo e compreensão da minha mãe também.
— É sério? — É tão patético me sentir inseguro aos dezoito anos.
Mas não posso evitar. É o resultado de ter convivido com minha mãe. —
Você preferia que eu administrasse a Dupont Investimentos e estudasse para
isso, mas eu realmente…
— Emilien… — papai me interrompe, sempre do seu jeito calmo. —
Só o que quero é ver você feliz. Se fotografia é o que ama, então vá em
frente. A empresa de nossa família pode ser administrada no futuro por
Nicole, se ela quiser.
Abro um pequeno sorriso e o abraço, fortemente. Mamãe deve ter
pensado que ele viria atrás de mim para me desanimar sobre ir embora de
casa e cursar fotografia. Elizabeth quer, a todo custo, que eu fique aqui e
curse gestão financeira.
Mas estou cansado de viver sob o mesmo lar dela, fazendo as coisas
que ela quer.
— Merci, papa — agradeço-o, dando-lhe um beijo em seguida. —
Obrigado por tudo.
Thierry se afasta e me beija no rosto também.
— Boa sorte, filho — deseja-me antes de ir. Há uma esposa no andar
debaixo para ser contida.

Seus olhos âmbar estão arregalados de surpresa. Ela se afastou assim


que me reconheceu. Mon Dieu, Marie está tão bonita. Usa um vestido todo
preto, bordado com fios dourados, agarrado ao seu corpo e acentuando suas
curvas generosas. O decote, desde que a vi, deu asas à minha imaginação e ao
meu desejo. A máscara veneziana é pequena, delicada e combina com o
vestido: toda preta com detalhes e adornos em relevo na cor dourada.
É, estou de volta a Paris com o único propósito de trazê-la
definitivamente para minha vida. De reconquistar sua confiança e conseguir
seu perdão. Sei, desde que saí de Nova Iorque, pouco mais de dois dias atrás,
que não será fácil ser perdoado. Estou ciente de que o que fiz foi o ato de um
verdadeiro canalha. Quero me redimir, de verdade, e espero que essa mulher
linda que me olha assustada, como se tivesse visto um fantasma, seja flexível
e me perdoe.
— Emilien… — pronuncia de novo meu nome, a voz levemente
trêmula. — É você mesmo? — indaga, engolindo em seco.
— C’est moi, ma chérie — confirmo, esboçando um pequeno sorriso.
Ergo minha mão e a toco nas bochechas, acariciando-a suavemente, como se
quisesse dar uma prova concreta de que sim, sou eu. Emilien Dupont.
Um segundo depois, ela afasta minha mão com um movimento
brusco. Um tapa acerta meu rosto, deixando-me assustado. A agressão é forte
o suficiente e faz o barulho ecoar pelo hall. Mesmo que meus olhos estejam
presos em Marie, perplexo com seu ataque, consigo sentir a tensão no ar, os
demais convidados todos nos olhando. Somos o centro das atenções, que
maravilha.
A expressão dela passou de surpresa para altiva e raivosa em
pouquíssimo tempo. Seus olhos me fuzilam. Sem me dizer sequer mais uma
palavra, passa por mim, pronta a ir embora. Eu a impeço, entretanto. Seguro
seu punho com força e a puxo em minha direção. Preciso apenas de um
minuto.
— Espere — peço.
Marie olha ao nosso redor, as pessoas ainda atentas à nossa pequena
interação. Violentamente, se desfaz da minha pegada e caminha para o outro
lado do salão, em direção a uma enorme porta de vidro que dá para uma
sacada. Passa por entre as pessoas sem olhar para trás. Meus olhos passeiam
por entre a multidão e encontram os de Bernardo Dousseau. Ele me olha com
um pequeno sorriso ao lado da esposa e me incentiva, com um leve mover de
cabeça, a segui-la.
Eu o faço sem pensar duas vezes.
Abro passagem pelo aglomerado de curiosos. Alguns me reconhecem
e cochicham meu nome. Ignoro cada sussurro ou suposição que possam fazer
sobre nós e marcho até ela. Marie está encostada ao balaústre da sacada, de
costas para mim, fitando o horizonte noturno. Há mais duas ou três pessoas
no local; peço gentilmente que nos deem um momento a sós. Quando
estamos apenas nós dois, fecho as folhas duplas de vidro.
— Marie — chamo-a, mantendo-me a uma distância respeitosa (e
segura).
A mulher bufa, impaciente, e se vira para mim, braços cruzados, olhos
irados.
— Trinta segundos — diz, irritada.
Ergo uma sobrancelha, perdido com sua sentença.
— Você tem trinta segundos para dizer o que quer comigo. Depois
disso, vou sair por aquela porta e, se você tentar me impedir, vai tomar outro
tapa nessa sua cara ordinária!
Trinta segundos? Preciso de muito, muito mais, do que isso. Abro e
fecho a boca, sem nem saber por onde começar. Tudo bem que eu tinha
ensaiado algo desde minha decisão de retornar à França, mas agora, diante
dela, de uma mulher completamente diferente da que conheci três anos atrás,
não sei o que e como dizer tudo o que quero.
— Vinte segundos, Emilien — sentencia.
— Me desculpe — peço. É tudo que posso dizer no momento. — Je
suis désolé — redimo-me e sou sincero em cada letra.
Baixo os olhos para o chão, meus batimentos desregulados. Queria
poder dizer mais, explicar meus motivos, queria apenas que me entendesse…
Entretanto, não terei tempo e sei disso. Ao menos, não agora. Estou ciente de
que precisarei trabalhar muito para conseguir que me escute e me perdoe.
— Não — responde-me, a voz incisiva e dura. — Você não pode
simplesmente trepar comigo numa noite, ir embora para outro país no dia
seguinte, me deixar para trás ainda dormindo na sua cama, voltar dois anos
depois, me tirar para uma dança e dizer que sente muito.
— Eu sei, Marie.
— Não, você não sabe. — A voz sobe uma oitava. — Se soubesse,
não teria se prestado a fazer esse papel ridículo de me pedir desculpas como
se tivesse… como se tivesse… sei lá, se atrasado para um encontro! —
Ficamos em um silêncio constrangedor por segundos inteiros. — Você me
magoou, Emilien. O que fez não é nem mesmo digno de desculpas.
Ela dá um passo à frente, pondo-se mais perto de mim. Por causa da
diferença de altura preciso baixar ligeiramente meu olhar para o dela.
— Eu voltei por sua causa — confesso, apertando o maxilar. Meu
corpo todo está tenso e rígido. — Me dê uma chance para me expl…
— Saia da minha frente, monsieur Dupont — pede, sem me olhar, voz
dura como rocha. — Seus trinta segundos já se esgotaram.
Penso em insistir, em continuar bloqueando seu caminho até que pelo
menos me ouça. Mas forçar a situação não vai resolver, pelo contrário, só vai
deixá-la ainda mais possessa do que já está. Sendo assim, dou um passo para
o lado, liberando a passagem. Marie me deixa sozinho sem nem mesmo olhar
para trás.
Igual fiz com ela dois anos antes.

Penteio meus cabelos com os dedos, recoloco a cartola na cabeça e


torno a esconder meu rosto com a máscara. Ajeito o fraque em meu corpo e
inspiro profundamente um par de vezes antes voltar para o salão principal.
Passo por entre as pessoas, desviando-me de algumas, meus olhos
percorrendo pelos convidados em busca dela.
De repente, alguém se põe ao meu lado, enroscando-se ao meu braço
e me acompanhando enquanto atravesso o recinto. Olho para o lado, meio
esperançoso de que seja ela. Mas não é. Mesmo com a máscara prateada,
consigo reconhecer seus olhos castanhos.
— De volta a Paris e nem para avisar aos amigos.
Analiso-a um instante. Ela é inegavelmente bonita, dentro de um
vestido vermelho justo que ressalta suas curvas. Decote generoso. Fenda
discreta. Cabelos presos em um coque severo com uma mecha ondulada no
lado esquerdo.
Sorrio meio forçado e continuo caminhando, ela ainda enroscada em
mim. Pego uma taça de champanhe de uma garçonete que passa por nós.
Bebo um gole profuso.
— Vamos, Emilien, não pode me ignorar toda a vida.
— O que está fazendo aqui? — pergunto, parando meu caminhar e
virando-me em sua direção.
Seus olhos piscam de forma infantil em minha direção.
— Fui uma das modelos de Silvia Ferreira. Me impressiona que não
tenha me reconhecido depois de tudo que já vivemos juntos. Te reconheci
assim que te vi, mesmo com essa máscara elegantemente horrenda — diz,
fazendo uma pequena careta. — Diferente daquela moça com quem você
estava dançando. Aliás — fala, pegando minha taça e bebendo do meu
champanhe. A marca de sua boca pintada de vermelho fica no cristal. — Por
que ela te estapeou?
— Isso não vem ao caso agora — rebato, desfazendo-me, por fim, do
seu toque. — Sabia que eu estaria aqui?
Um sorriso malicioso se forma em seus lábios finos.
— Por um acaso, eu soube. Devo dizer que estou chateada por ter ido
embora e mais ainda por ter regressado e não ter contatado ninguém? Nicole
quase não te considera mais um irmão.
Não a respondo por vários segundos. Apenas viro-me para frente e
observo a movimentação do baile. Entre tantas pessoas, consigo localizá-la.
Está na porta de entrada, o rosto sisudo olhando-me como se quisesse me
matar. É claro que Marie quer te matar, Emilien. Você partiu o coração dela.
— Não sei por que esse drama — falo, quebrando meu breve silêncio.
Volto-me em sua direção de novo. — Mal vejo minha irmã desde que papai
morreu.
— Mas você mantinha contato, apesar disso. Entretanto, nos dois
últimos anos não deu uma ligação para sua família, Emilien.
— Não tenho família — rebato, sentindo meu corpo ficar rígido.
Odeio entrar no assunto de esfera familiar. Ela sabe disso e mesmo assim
resolve cutucar minhas feridas.
— Nicole é sua família. E tem sua mãe.
Dou uma risada sem humor e desvio o olhar. Por mais alguns
segundos admiro a festividade. Olho de novo para o ponto em que Marie está.
Ela continua no mesmo lugar, analisando-me da mesma maneira, com a
mesma raiva. Então se vira e se mistura às pessoas, circulando para lá e para
cá, dançando, comendo e conversando.
— Não falo com minha mãe tem bem uns dez anos.
— Porque você se afastou — pontua.
Encaro-a bruscamente.
— Porque ela sempre adorou foder com minha mente — rebato,
trincando os dentes. — Se eu me mudei e me afastei, cortei contato, foi para
preservar minha saúde mental que até hoje é desgraçada por causa da minha
mãe.
Minha companheira não diz nada a respeito, porque sabe que estou
certo. Embora ela quase venere Elizabeth Dupont, precisa concordar comigo
que minha mãe é uma megera.
— Ao menos fale com sua irmã, Emil — sussurra, erguendo-se nos
pés para falar ao meu ouvido. Meu apelido em seus lábios me faz desprezá-la.
Há muito que perdemos nossa amizade e intimidade. — Nicole vai gostar de
saber que está na cidade.
Não a respondo. Simplesmente dou as costas e a deixo sozinha.

Aproximo-me da mesa de Dousseau. No pequeno percurso, peguei


outra taça de champanhe, já que tive a minha subtraída instantes antes. Ao me
ver chegando, Bernardo se levanta da sua mesa e me recebe com um abraço
caloroso.
— Feliz que esteja de volta, Dupont! — exclama, puxando uma
cadeira ao seu lado para que me junte a ele. Olho mais ao redor, procurando
por sua esposa. — Ela foi ao banheiro — esclarece, parecendo notar a quem
estava procurando.
— Como vocês estão? E o bebê? É menino ou menina? Já deve estar
enorme.
Bernardo abre um sorriso grandioso e abana a cabeça.
— É um garoto. Meu maior orgulho. Jean-Luc. Está com pouco mais
de um ano. E esperto, Emilien. Precisa ir lá em casa conhecê-lo.
— É só marcar um dia — digo, tomando outro gole do meu
champanhe.
— Não sabia que se interessava por moda — profere, encostando-se
ao seu assento e ajeitando a gravata azul-marinho.
— Não me interesso — respondo. — Vim apenas para acompanhar
uma das modelos de Silvia que é minha amiga — minto. — Foi uma bela
coincidência me encontrar com Marie.
Dousseau me olha atentamente, como se analisando a mim e às
minhas palavras. Mantém o sorrisinho debochado — quase uma marca
registrada dele — e tenho certeza de que não acredita em nada do que digo.
De qualquer maneira, e para meu alívio, não insiste no assunto.
— Sua conversa com Marie pelo jeito não surtiu muito efeito.
Solto um suspiro exasperado.
— Não esperava que fosse fácil assim, se quer que eu seja sincero.
Eu… realmente fiz merda, Bernardo.
— Eu sei. Marie me contou.
Abaixo o olhar, meio envergonhado com o fato de ele saber o que
houve entre a gente. Deveria ter ponderado que saberia. Os dois são bons
amigos.
— Estou disposto a reconquistar a confiança dela — digo, erguendo
os olhos em sua direção. — Será difícil e vai levar algum tempo, mas terei
paciência.
— Espero que dê tudo certo — deseja. — Vocês formam um belo
casal.
Sorrio e agradeço. Conversamos mais algum tempo. Ann-Marie não
tarda a chegar e a se juntar conosco na mesa. A mulher está bem eufórica
porque esbarrou com Silvia no caminho de volta e elas trocaram algumas
palavras. Observo o casal à minha frente, feliz pela felicidade deles, tão
merecida.
Os ponteiros vão se aproximando de onze da noite quando decido ir
para casa. Não sem antes dar mais uma conferida pelo salão, à procura dela.
Mas pelo jeito Marie já foi embora.
Pego meu carro com o manobrista e sigo até minha cobertura, a
mesma em que Marie e eu transamos pela última vez. Tomo um banho
quente, tentando afastar minhas aflições, mas a voz dela não para de me
atormentar, obrigando-me a concordar com elas. “Nicole vai gostar de saber
que está na cidade.”
Coloco apenas uma cueca e me deito na cama, na semiescuridão.
Olho para meu celular por um minuto inteiro antes de enviar uma mensagem
à minha irmã.
“Estou de volta a Paris. Definitivamente. Amo você. Ass: Emil.”
Jogo o aparelho sobre o criado-mudo e me cubro com o lençol de
seda. Meio segundo depois, meu celular vibra. Confiro sua resposta.
“Você é um babaca.”
Sorrio para mim mesmo, sabendo que esse é seu modo de dizer que
está feliz pela minha volta. Conheço Nicole o suficiente. Se estivesse mesmo
odiando-me e pouco se importando comigo, não teria se dado ao trabalho
nem de me responder.
Suspiro outra vez e devolvo o celular ao seu lugar. Numa coisa,
Nicole tem razão.
Sou um babaca.
MARIE
Três anos antes
Chego à redação do La Parisienne no meu horário habitual: ou seja,
vinte minutos antes do meu expediente. Gosto de chegar com antecedência
para ter tempo de tomar um café e trocar algumas palavras com meus
colegas. Às vezes acontece de me atrasar. Principalmente quando passo a
noite com Bernardo.
Deixo a bolsa em minha mesa e sigo até a copa. Cumprimento alguns
redatores e me sirvo de uma dose generosa da minha bebida favorita.
Encosto-me ao balcão da pia e saboreio meu café forte e sem açúcar,
fechando os olhos. Bebida dos deuses.
Alguém puxa conversa comigo, o que me distrai pelos próximos
minutos. Dando meu horário, lavo minha xícara de porcelana, a devolvo em
seu lugar no armário debaixo da pia e me dirijo até minha mesa. Não chego
nem a me sentar. Meu editor, Charles Bernoit, me interpela:
— Marie, tem um minuto?
— Claro. Do que precisa?
Pede-me para que o acompanhe até sua sala. Durante o percurso,
sequer me adianta o assunto. Quando chegamos, noto uma segunda pessoa
sentada frente à sua mesa executiva. É um homem, parece jovem, mas
durante os primeiros segundos não sei de quem se trata porque está de costas
para mim.
Fico parada no meu lugar, enquanto Charles avança sala adentro e vai
até seu convidado, tocando-o no ombro.
— Julien, suponho que já conheça o monsieur Emilien Dupont — diz,
no exato momento em que o homem se levanta do seu lugar e se vira em
minha direção, mostrando um sorriso bonito.
Minha respiração falha por um segundo. Quase posso dizer que sinto
minhas pernas meio bambas. Meu rosto cora levemente diante esse homem
tremendamente bonito. Nós nos conhecemos na semana passada, em uma
festa de gala que ele ofereceu para arrecadar fundos para uma campanha de
ajuda humanitária na África. Eu mesma não fui convidada. Bernardo é quem
foi. Pelo que entendi, Dupont é cliente de sua cafeteria e o convidou a ir à
festa. Como precisava de uma companhia, e nós mantemos uma amizade
colorida, então acabou me convidando. Lá, Dousseau me apresentou a
Emilien.
Não direi que foi amor à primeira vista, porque não acredito nisso.
Mas foi atração à primeira vista. Não sei explicar o sentimento esquisito que
atravessou meu corpo quando nossos olhos se encontraram pela primeira vez.
Emilien estava dentro de um tuxedo sob medida, todo elegante, os cabelos
escuros bem penteados, o aroma do seu perfume Bleu de Chanel exalando
pelo ar. Até o vi, discretamente, me analisar. Modéstia à parte, eu estava bem
bonita em um vestido branco longo. Seus olhos passeando pelo meu corpo,
estudando-me com desejo, não só fizeram meu estômago se remexer como
fizeram eu me sentir ainda mais bonita. Foi discreto em me observar, mas
senti o desejo latente mesmo assim. Gosto disso.
Nessa ocasião, acabei por praticamente abandonar meu parceiro e
fiquei mais na companhia de Dupont. É um homem de poucos sorrisos,
bastante misterioso e conversa inteligente. Ao final da noite, trocamos
telefone, ele me enviou um “bonjour” no dia seguinte, eu respondi, e só.
Até agora.
Agora, esse homem está bem na minha frente, vestido em um terno
cinza que quase arranca meu fôlego, as mãos casualmente dentro do bolso de
sua calça. Emilien se aproxima de mim, quase como em câmera lenta, ainda
sorrindo. Então, só por uma fração de segundos, meus olhos descem e
pousam na parte entre o vão de suas pernas. Pensamentos bem inadequados
se formam na minha cabeça e me pego perguntando se é grande ou ao menos
tem um tamanho considerável. Deve ter. Pelo leve volume ali, evidenciado
pela peça justa, deve ter. Nesse mesmo um segundo e meio, meus olhos
observam suas pernas. São longas, bonitas, e o recorte da peça as delineiam
charmosamente.
Quando por fim meus olhos voltam aos dele, Emilien está com um
sorrisinho convencido. Engulo em seco e coro mais um pouco. Acho que
alguém percebeu minha pequena indiscrição.
— Sim — digo de repente, voltando ao mundo real e apertando a mão
que ele me estica. — Conheci o monsieur Dupont semana passada, na festa
de gala que ofereceu em sua mansão.
— Por favor — o jovem investidor profere, tornando a pôr a mão
dentro do bolso. — Sem formalidades. Me chame de Emilien.
— Bom — Charles toma a palavra, enquanto não evito sorrir para
Dupont —, é por sua causa que Emilien está aqui.
Arregalo os olhos diante sua afirmação. Olho para ele, que continua
na mesma posição, com o mesmo sorriso.
— Bernoit tem razão — confirma. — Como bem sabe, estou de
viagem à África dentro de pouco mais de um mês e precisarei da imprensa
me acompanhando. Por isso quero te fazer o convite de escrever uma matéria
sobre minha filantropia e o trabalho que minha empresa exercerá no
continente.
Por um segundo inteiro não sei o que responder. Quero dizer, a minha
resposta é sim, claro! Mas estou mesmo surpresa que Emilien me queira para
dissertar e estar à frente de um projeto tão importante, para um homem… tão
importante como ele. Não que eu não seja competente no que faço, mas
pensei que ele fosse querer jornalistas mais experientes, talvez até algum de
renome internacional, com um Pulitzer e tudo mais. Mas não. Ele me quer.
Talvez não só no âmbito profissional.
Afasto os pensamentos absurdos da cabeça. Os dois homens me
olham atentamente, esperando minha resposta, enquanto ainda digiro toda
essa informação. Dois segundos mais tarde, respondo com a voz animada:
— Eu aceito, é claro! — O sorriso em Emilien aumenta
generosamente; Charles bate palmas, tão animado quanto eu.
Bem discretamente, ele se aproxima de mim, sua mão direita tocando
minha cintura. Uma eletricidade percorre minha coluna, uma pulsação boa,
gostosa, excitante… Seu sorriso continua em minha direção. Então, se inclina
até meu ouvido e murmura, arrepiando todos os pelos do meu corpo
(principalmente os lá de baixo):
— Não sabe a felicidade que será para mim passar dois meses inteiros
com você.
Quase engasgo com minha própria saliva. Nem tenho tempo de
respondê-lo. Emilien já se afastou e tornou ao seu lugar de frente à mesa de
Charles. Os dois começam a falar do projeto no continente africano e eu
preciso de um segundo para me recuperar da sua voz rouca contra meu
ouvido.
— Julien — Charles me chama. — Vamos, temos coisas a serem
acertadas.
Ainda meio baratinada, sento-me ao lado de Emilien, que não para de
olhar para mim.

Canalha estúpido. Cretino dissimulado.


Eu não sei com que cara Emilien teve coragem de me encarar e vir
com um fajuto pedido de desculpas. Francamente…
Seu arrependimento pareceu durar bem pouco, porque mal o deixei
sozinho na varanda e logo estava enroscado nos braços de outra mulher,
conversando bem intimamente, como se a conhecesse de longa data.
Do outro lado do salão, depois de beber de uma só vez uma dose de
champanhe, meu estômago apertou e minhas entranhas se remexeram ao
presenciar a cena. Fiz algum esforço para ignorar o sentimento esquisito
apossando-se do meu corpo. Um segundo mais tarde, seus olhos azuis
estavam nos meus. Eu devolvi o olhar com raiva, raiva ao quadrado, porque
ele foi um babaca comigo dois anos antes e porque estava dando atenção à
outra mulher, bem na minha frente.
Era ciúme. Sei disso agora. Um ciúme descabido de um homem que
não é nada meu, nem tem nada comigo. Um homem por quem não deveria
sentir nada dessas coisas estranhas. Para fugir não somente do seu olhar, mas
como de minhas próprias emoções, simplesmente virei as costas e me juntei
às pessoas. Teria voltado à companhia de Dousseau e sua esposa, mas
Emilien decidiu ir cumprimentar o amigo e não saiu mais de lá por um bom
tempo.
Não bastou ter sido um idiota dois anos atrás, teve de acabar com o
pouquinho da diversão que eu estava tendo naquela noite. Acabei decidindo
por ir embora — sem me despedir de Bernardo e Ann-Marie.
Agora, apenas dois dias depois do baile estúpido, deveria estar
dissertando a respeito da matéria com Silvia Ferreira. Entretanto, em um
pequeno momento de distração, assim, sem querer, me vi abrindo o
navegador e digitando “Emilien Dupont” no campo de busca.
Sou uma idiota.
Estou tentando descobrir quem possa ser a mulher com quem falava,
mas estou cansada de saber que o homem não se expõe, então minha busca é
infrutífera. Todas as notícias de Dupont estão vinculadas a matérias sobre seu
retorno a Paris, projetos econômicos e investimentos, filantropia (ações
recentes e antigas), palestras, cursos de gestão financeira etc. Nenhuma
fofoca. Nenhuma foto com alguma mulher agarrada ao seu braço, ou o
beijando. Nenhum flagra saindo de boates, casas noturnas ou de
acompanhantes de luxo. Nada. Rede social… Emilien deve desconhecer esse
tipo de interação humana.
Esse homem parece que não vive.
E eu continuo sendo uma idiota por persegui-lo ciberneticamente, por
querer saber quem é a mulher com quem conversou durante poucos minutos.
Mordo o lábio inferior, batendo a ponta da caneta de leve sobre minha
mesa, enquanto meus olhos estão fixos em uma foto dele de terno, todo
elegante, atrás de um púlpito, em um enorme salão, falando para… Clico no
link. Leio dinamicamente… Falando para quinhentas pessoas. Alunos, para
ser mais específica. Um curso de educação financeira em uma faculdade em
Lyon. Confiro a data da matéria. Já tem quase cinco anos isso. Faço uma
conta mental. Dupont deveria ter, no máximo, trinta anos nessa época.
Emilien é considerado um prodígio no mundo dos investimentos.
Nasceu em família abastada, o pai também era investidor, mas o filho
conseguiu superá-lo. O que Thierry levou quase uma vida para erguer,
Emilien o fez em menos de uma década. Rico e bem-sucedido antes dos
trinta.
Que sonho.
E eu aqui, aos trinta e quatro me matando em uma redação, tentando
meu lugar ao sol. Às vezes me pergunto qual o segredo do sucesso. Diferente
de Dupont, nasci em uma família pobre. Nada de passarmos fome ou
qualquer outro tipo de necessidade, mas, para os padrões Família Dupont, a
minha foi pobre. Meu pai, hoje aposentado, foi professor. Minha mãe, de
quem herdei parte da paixão por jornalismo, é até hoje escritora e
historiadora. Não foi nenhuma best-seller mundial, mas seu nome é bem
conhecido na França. Não enriquecemos com seus romances históricos. Boa
parte da renda dela, na verdade, provinha do seu trabalho em museus e
palestras. Nas horas vagas, escrevia. Tinha contrato com uma editora, uma de
suas maiores conquistas, que publicava até sua lista de compras se mamãe
quisesse. Embora não fosse a escritora francesa mais famosa, ainda assim
tinha um público fiel; o pouco da sua porcentagem complementava na renda
da casa e, apesar de nada luxuoso, nos dava conforto. Comida sempre na
mesa, roupas sempre novas, estudos em dia — minha irmã Isabelle e eu até
fizemos cursos complementares, como inglês, ballet e canto.
Consegui me formar em jornalismo e sempre corri atrás de meus
objetivos. Apesar de todo meu esforço e de hoje ter uma vida melhor do que
a de meus pais, anos atrás, tenho certeza de que o número de zeros na minha
conta bancária nem se comparam ao número de zeros na conta de Emilien —
que tem praticamente a minha idade.
A receita do sucesso então nem sempre se dá só pelo esforço. Jamais
tirarei o mérito dele em ter conquistado seu espaço e ter superado a fortuna
do pai usando de seus conhecimentos, esforços e inteligência. Mas me
pergunto: ele teria feito sua fortuna atual em tão pouco tempo se tivesse
levado a minha vida? Se não tivesse a influência que o sobrenome de sua
família carrega?
— Quem é o bonitão? — Isabelle pergunta, espalmando contra minha
mesa, olhando para a foto de Emilien por cima dos meus ombros. Tomo um
susto dos grandes por causa de sua chegada inesperada. Nem tenho tempo de
respondê-la, pois essa intrometida já está dizendo: — Espera, esse não é o
cara com quem você viajou três anos atrás para a África?
Viro-me em minha cadeira, ficando na frente do computador e
obstruindo a tela. Cruzo os braços na frente do peito.
— Isabelle, o que está fazendo aqui? — questiono, olhando em volta.
Cada redator está em sua mesa, fazendo seu trabalho. — E não me assuste
mais assim.
Ela dá um passo atrás e sorri, a mão na cintura.
— Te chamei enquanto me aproximava, mas você estava aí, os
olhinhos grudados na tela do computador, distraída. E tudo bem, te entendo
perfeitamente. Ele é de dar água na boca.
Reviro os olhos e fecho a aba de pesquisa.
— Vim te chamar para um café. Vamos à cafeteria daquele seu
amigo… — Um instante para ser recordar do nome. — Bernardo?
Olho no relógio. É quase horário do meu intervalo. Temos tempo de
ir, tomar um café, conversar um pouquinho… E ainda me sobra uns
minutinhos para caso Dousseau esteja por lá, perguntar se sabia que Emilien
estaria no desfile. Se por ventura me disser que sim, Ann-Marie que me
perdoe, mas irei esganar o marido dela.
Pego minha bolsa pendurada à cadeira e meu celular perto do teclado.
— Mas eu não posso demorar — digo, passando por ela e já
imaginando o que quer comigo.
A garçonete está pacientemente esperando-me decidir. Isabelle já
optou por suco e profiterones sem calda — ela é simplesmente apaixonada
por doces. O cardápio da cafeteria de Bernardo é bastante variado, o que
torna impossível a missão de escolher logo algo para consumir. Diante a
tantas opções, acabo decidindo pelo básico e mesmo de sempre: croissant e
chá de gengibre. A moça se retira em seguida e tão logo minha irmã se vira
para mim, debruçando-se sobre a mesa e proferindo:
— Preciso de um favor. — Sabia que esse dia ia chegar. Quando
comecei a trabalhar com Héron e comentei isso com minha irmã, já sabia que
esse momento ia chegar um dia. Até que demorou.
Isabelle, assim como nossa mãe, é escritora. Não no mesmo gênero,
claro. Minha irmã se dedica a romances policiais, a maioria deles
contemporâneos, mas seu trabalho mais recente é ambientado na Europa
medieval. Passou um ano estudando sobre esse período da história antes de
traçar um roteiro e começar a escrever. Parece que o finalizou há uma ou
duas semanas e, segundo mamãe, que foi a primeira a lê-lo, é o melhor
romance dela. Tal elogio, vindo de uma escritora que vendeu alguns mil
exemplares, elevou a autoestima de minha irmã. Agora, sei exatamente o que
quer de mim.
— Pode falar com Héron para dar uma avaliada no meu original? —
pede, juntando as mãos, quase em súplica.
— Ele nem está mais trabalhando nessa área, Isabelle — informo,
com um suspiro.
— E daí? — Dá de ombros. — Héron continua sendo um tremendo
editor. Preciso mesmo que ele dê uma lida, Marie. Se gostar, pode me indicar
para alguma dessas editoras onde trabalhou. É uma oportunidade única,
entende? Todos os livros que Poirier editou viraram um sucesso estrondoso!
Suspiro e estou para abrir a boca e lhe dizer que, por mais que queira
ajudá-la, não posso fazer isso. Não por má vontade, mas porque Poirier é
conhecido por ser bastante antipático e rude, beirando o mal-educado. Não
vou pedir favores a ele em nome de minha irmã e arriscar levar um coice ou,
de alguma forma, comprometer meu emprego. Mas não consigo argumentar
porque, no mesmo instante, Bernardo chega na cafeteria, como de seu
costume, acompanhado da esposa, com o filho nos braços.
Preciso falar com meu amigo antes de qualquer coisa e saber se ele
tinha ideia da presença de Emilien no baile de máscaras no sábado à noite.
Nada me tira da cabeça de que sim, pois me tirou para dançar e menos de um
minuto depois eu estava nos braços de Dupont. Se Bernardo ajudou-o nisso,
juro que não penso duas vezes em esganá-lo.
— Prometo que vou pensar nisso, Isabelle — falo, virando-me
rapidamente em sua direção e emendando: — Mas agora preciso tirar uma
questão a limpo com Bernardo. Se importa se eu me ausentar por cinco
minutos? — Minha irmã bufa e movimenta as mãos no ar, dispensando-me,
visivelmente chateada por não lhe dar a atenção devida. — Não vou demorar.
Se meu chá chegar, deixe o pires sobre a xícara para não esfriar — instruo, e
ela parece fazer pouco caso.
Levanto-me e vou até Bernardo, que logo me vê e abre seu sorriso
amigável. Cumprimento Ann-Marie e não resisto a apertar de levezinho a
bochecha de Jean-Luc. Ela se afasta com o filho até os fundos da cafeteria,
para o escritório do marido; meu amigo e eu nos acomodamos em uma mesa
mais ao fundo.
— Já pediu alguma coisa? — pergunta, solicito.
— Sim. Estou com minha irmã ali. — Aponto para trás, onde uma
entediada Isabelle está brincando no celular. — Não pretendo te tomar muito
da sua esposa. Só preciso que seja franco comigo — digo, séria, mantendo-
me rígida e ereta em meu lugar. Ele me analisa atentamente. — Você sabia
que Emilien estaria no baile de máscaras da Silvia Ferreira?
Afagando sua barba rala, responde:
— Não tinha ideia. Nem imaginava que se interessava por moda.
Conversamos um pouco. Ele disse que estava acompanhado de uma das
modelos de Ferreira.
Opa. Nova informação.
Mordisco o lábio inferior, pensativa. Conheço-o o bastante para saber
quando está sendo sincero — o que acontece na maioria das vezes. De fato,
ele não sabia da presença de Emilien e tampouco o ajudou a se aproximar de
mim na festa.
Levanto-me, pronta a voltar para minha irmã, mas o agradeço antes:
— Tudo bem, obrigada pela informação.
Já estou virando nos calcanhares quando Bernardo pergunta:
— Como você está com a volta dele?
Devagar, giro meu corpo outra vez e o fito nos olhos.
— Estou bem — garanto, embora não saiba precisar muito como
realmente estou me sentindo com isso. — Com um pouco de raiva,
naturalmente.
Bernardo dá uma risadinha e não diz mais nada, mas algo trespassa
seus olhos claros. Analiso-o um segundo inteiro, perguntando-me o que está
passando pela sua cabeça nesse momento. Decido não pensar muito no
assunto e volto até Isabelle.
Agora preciso aguentá-la implorando-me por um favor.

Garanti à minha irmã que pensaria no assunto de falar com Héron. É


claro que não foi uma resposta que queria ouvir, mas aceitou de qualquer
maneira. Sendo assim, terminamos nosso café e então rumei de volta à
redação. Não tive nem a oportunidade de me sentar à minha mesa. A porta da
sala de Poirier se abriu, ele colocou a cabeça para fora e me chamou. Segunda
vez em menos de uma semana? Por favor, mon Dieu, que não me envie para
mais desses eventos de moda e celebridade.
Sem muitas opções, caminho até sua sala. Ele me oferece a cadeira
frente sua mesa estrategicamente organizada. Aceito a oferta e cruzo os
braços sobre minhas pernas.
— Manda — digo.
Héron ri um instante, leva os dedos aos lábios — meio que uma
mania — e se recosta à sua cadeira.
— Não vou te pedir um favor. — Alívio percorre meu corpo. —
Preciso te informar duas coisas. Já falei com o restante da equipe, mas você
não estava quando fiz isso, por isso te chamei aqui.
— Certo. — Abano em positivo.
— Mesmo que esteja há menos de um ano conosco, deve saber que
todo ano publicamos uma edição especial da nossa revista. Uma edição
abordando um único tema.
Balanço a cabeça em positivo. Eu até tenho duas ou três dessas
edições em casa, a minha favorita sendo sobre a Torre Eiffel. Um monte de
histórias e curiosidades sobre o cartão postal de Paris.
— Teremos uma reunião na semana que vem para escolhermos o
tema da próxima edição, que sairá em seis meses.
— Certo — assinto.
Héron me dá um pouco mais de detalhes dessa reunião. Nela
escolheremos o tema, a equipe e designaremos o que cada um fará.
— Nessa reunião, o novo sócio majoritário do grupo estará presente
— informa, para minha surpresa. — Por algum motivo, está fazendo questão
de vir.
Cerca de um ano atrás, sessenta por cento das ações do nosso grupo
editorial foram vendidas para uma única pessoa. Uma corporação jurídica, na
verdade, que também é dona de outras empresas no mesmo ramo. Sabemos
que o acionista majoritário de ambos os grupos é uma única pessoa,
extremamente rica, só nunca deu as caras por aqui — o que a maioria faz, de
fato — e ninguém tem ideia de quem possa ser, se é homem ou mulher. Não
há nem mesmo um nome. Tudo sigiloso. O porquê, nunca soubemos. Mesmo
que não seja costume de os acionistas aparecem na sede, eles vêm vez ou
outra. Até sei o nome deles — são apenas cinco donos — e já os vi em uma
ou outra ocasião. Menos o novo sócio majoritário. Então acho bastante
estranho que, de uma hora para outra, depois de um ano desde a aquisição,
resolva aparecer.
— Tudo bem. — É só o que tenho a dizer, mas não deixo de
questionar. — Por que só agora?
— Vai saber. — Héron dá de ombros. — Mas ele já estava se
programando para visitar as sedes das revistas e jornais do grupo tem algum
tempo, segundo a assessora me informou. Surgiu uma brecha, e ele virá na
próxima semana.
— Então é um homem?
Poirier afirma com um gesto de cabeça.
— Bem, era só isso que queria te informar.
— Certo. Muito obrigada.
Antes que eu tenha tempo de me levantar, Héron me interpela:
— Algo para fazer no sábado à tarde?
— Nada, por quê?
— Tenho um evento para ir, mas não queria aparecer sozinho. Você
poderia vir comigo?
Quero fazer uma piada, de verdade. Héron sendo educado e simpático
é algo que raramente vejo, a não ser quando quer me pedir algo a mais. E ele
também nunca foi muito de se importar com esse tipo de coisa. Já o vi
comparecendo sozinho a muitos eventos sociais e de trabalho que exigiam
uma companhia. Bem, mas se está precisando de mim, posso tirar algum
proveito da situação e ajudar minha irmã.
— Hum… — murmuro, ajeitando-me em meu lugar. — Não quero
soar indelicada e interesseira nem nada, mas… se eu for com você, pode me
fazer um favor em troca? —
Héron ergue a sobrancelha e junta as mãos frente ao queixo.
— Que tipo de favor?
— Minha irmã é escritora, sabe?
— Ah, é? — Ele parece surpreso, já sabendo onde isso vai parar.
— Sim. E ela, bem… queria que você lesse o original dela e desse
uma opinião sincera. Isabelle quase te venera.
Vejo aquele sorrisinho convencido surgir em seus lábios. Héron sabe
que é bom no que faz, por mais insuportável e exigente que seja. É bom no
que faz, e é bonito. Trinta e cinco anos, sorriso alinhado e branco, cabelos à
escovinha, olhos castanhos, pele negra, um metro e oitenta, corpo atlético,
músculos bem espalhados e definidos e cavanhaque bem-aparado. Quase um
deus de ébano.
— Está bem — concorda, por fim. — Na próxima segunda pela
manhã, me traga esse original da sua irmã para eu ler.
Abro um sorriso satisfeito.
— Que evento é esse, aliás? — pergunto.
— Dames Parisiennes.
Conheço. É um evento beneficente anual organizado apenas por
mulheres que visam arrecadar quantias consideráveis para causas sociais.
Esse ano a ajuda se destinará a ONGs de causas animais e meio ambiente.
Héron é um defensor assíduo desse tipo de causa, então faz sentido querer
ajudar.
— Passo em seu apartamento te buscar — informa. Assinto e me
levanto, pronta a retornar à minha mesa e continuar com meu trabalho.
Já estou chegando na porta quando algo me ocorre. Viro-me em meus
calcanhares e o encaro seriamente.
— Você sabia que Emilien Dupont estaria no baile de Silvia Ferreira?
Héron exibe uma carranca confusa.
— Quem? — Antes de eu ter tempo de repetir, ele parece ligar o
nome à pessoa e diz: — Ah, sim. Emilien Dupont, o filantropo com quem
você esteve na África fazendo uma reportagem uns três anos atrás?
— Esse mesmo.
Héron movimenta o mouse sobre sua mesa, fixando os olhos no
computador, e me responde:
— Não. Aliás, nem sabia que ele se interessava por moda.
Exatamente. Esse tipo de evento não é a cara de Emilien. Ele disse a
Bernardo que estava apenas acompanhando uma “amiga”, mas nada me tira
da cabeça que sabia que eu estaria no evento e deu um jeito de aparecer por
lá. Pestanejo, movo a cabeça levemente de um lado a outro e afasto meus
pensamentos. Foi só uma coincidência infeliz.
— Por quê? — Poirier indaga, voltando seus olhos para mim.
— Por nada — digo apenas.
Não lhe dou tempo de me fazer mais perguntas. Abro a porta e deixo
sua sala.
No restante da tarde, tento focar no trabalho, mas estou atormentada
demais com essa volta de Emilien para conseguir me concentrar em qualquer
coisa que seja. Alivia-me o fato de que Paris é grande o suficiente e espero
não esbarrar mais com ele por aí.
Que Deus me ouça.
EMILIEN
Três anos antes
Nossa química é quase palpável. Desde que a conheci, um mês atrás,
eu a desejei. Logo quando fomos apresentados, fui discreto em demonstrar a
paixão que ela despertou em mim, mas óbvio o bastante para que ela notasse
o meu interesse.
Estivemos em constante contato nas últimas semanas, dando os
últimos ajustes à nossa viagem ao continente africano. Marie será a maior
responsável pela matéria, mas teremos uma equipe de mais três jornalistas,
quatro cameramen, cinco fotógrafos, dois editores, três tradutores de
africâner, dois de francês e uma escritora nos acompanhando nessa viagem
— todo grupo montado pelo La Parisienne. Além disto, meu próprio pessoal
também nos acompanhará. São médicos, psicólogos, pediatras, professores,
empresários, costureiros, cozinheiros e pedagogos. Todos dispostos em nossa
causa humanitária. No total, somos em trinta e cinco pessoas.
Desembarcamos no Aeroporto Internacional da Cidade do Cabo por
volta de seis e meia da tarde. O grupo se divide em duas vans que seguem
para um mesmo destino. Eu e Marie, contudo, temos uma limusine especial à
nossa espera, assim como tivemos um jatinho para virmos separados dos
demais. Duas horas antes do desembarque, depois de quase doze horas de
viagem, tomamos um banho e trocamos de roupa — um luxo que o
Bombardier Global 6000 oferece. A bela jornalista ergue uma sobrancelha
para mim quando vê o chofer parado frente à porta aberta do passageiro,
devidamente uniformizado.
Não digo nada. Apenas apoio a mão em sua coluna e a conduzo.
Acomodamo-nos no banco de trás; faço questão de me manter perto o
bastante, mesmo que haja espaço de sobra para ficar afastado. Quero estar
perto, na verdade. Sentir o calor do corpo dela no meu. Um mês desde que
nos conhecemos e, apesar de já termos pegado certa intimidade, ainda não
trocamos um primeiro beijo. Estou louco para enfiar minha língua nela, e não
só na boca. Mas não serei eu a dar esse passo. Gosto de provocá-la, testá-la…
seduzi-la até que não aguente mais e se renda. Quando nos beijarmos, terá
sido uma iniciativa dela.
— O que achou da viagem? — pergunto, olhando-a com um meio-
sorriso.
Ela se vira em minha direção, sorrindo e mordendo o lábio inferior.
— Foi boa. Principalmente porque a fiz toda ao seu lado — responde,
os dentes ainda mordiscando a carne da parte de baixo da sua boca, olhando-
me atentamente.
Muito por isso fiz questão de fretar um jatinho particular.
Conversamos bastante, dormimos na mesma medida, e ela conseguiu ler um
livro inteiro nesse interim.
— Então você gosta da minha companhia? — indago, inclinando-me
levemente sobre seu corpo. Marie prende a respiração, engolindo em seco em
seguida. Seus olhos descem lentamente pelo meu tronco, parando por um
segundo entre os vãos das minhas pernas. Continua moendo o lábio inferior,
de um jeito sexy que faz meu pau pulsar.
— Gosto muito — responde, tornando a me olhar nos olhos.
Seus dedos macios esbarram em minha mão sobre minha perna.
Abaixo o olhar para nosso contato. Ela brinca, traçando círculos macios em
minha pele. Seus olhos estão nos meus quando a olho de volta, insinuando,
sensual, excitante…
Lentamente, inclina-se em direção ao pequeno balcão acoplado à sua
frente. Tem algumas taças, champanhe e uma bomboniere com guloseimas.
Ela analisa este último com alguma atenção e então pega um pirulito.
Desembala-o e o coloca na boca, tornando-me a olhar enquanto suga o doce,
rodando-o dentro da boca, passando a língua provocativamente, movendo-o
para frente e para trás.
Tenho certeza que azul dos meus olhos está bem mais escuro agora
enquanto a observo brincar com o pirulito. Minha garganta seca. Sem
nenhum constrangimento, ajeito meu pênis duro, desconfortável e de lado
dentro da cueca.
— Você gosta de chupar, não é? — pergunto, rouco e baixo.
Ela sorri com seus lábios carnudos ainda no doce.
— Ah, eu adoro chupar, Emilien. Você nem imagina o quanto.
Minha respiração chia. Sinto minhas pupilas dilatarem. Meu pau pulsa
que chega a doer.
Dali a um segundo, o indicador dela está na parte inferior da minha
coxa, subindo em direção à parte que lateja de desejo e quer sua boca
também. Abaixo o olhar e acompanho seu movimento provocante.
— E mesmo com minha idade… — fala, bem baixinho, sua boca
aproximando-se do canto da minha, o pirulito agora descartado. O ar quente
de seu hálito me atinge e quase me deixa zonzo. Porra de mulher sensual. —
Ainda não parei de mamar, sabia?
Caralho.
Resfolego sem nem perceber. O indicador dela alcança seu destino,
mas é insuficiente para mim. Seguro sua mão e a faço me cobrir por inteiro,
para que sinta minha dureza. Inclino-me um pouco mais sobre sua boca,
deixando-a um centímetro, talvez um pouco mais, da minha.
— Você deve ser bem habilidosa com a língua — murmuro e deixo
um selinho suave contra seus lábios.
Marie para de respirar um segundo. Afasto-me e a olho. Está
desconcertada e visivelmente sem ar.
— Sou sim. E você?
— Que tal descobrir por si só? — devolvo, passando minha mão pelas
suas pernas despidas.
Marie usa uma saia lápis que valoriza suas curvas. As pernas estão
quentes, então vou subindo meu toque perigosamente até chegar ao seu ponto
sensível. Meu dedo esbarra em sua calcinha de renda, macia e levemente
úmida. Minha garganta faz um ruído esquisito quando constato que está
molhada para mim.
Sem tirar meus olhos dos seus, enveredo meu indicador até sua
boceta, afastando a calcinha para o lado. Mon Dieu. Ela está quente e úmida.
Minhas narinas inflam conforme a acaricio e presencio sua expressão facial
de prazer enquanto a toco. Suas pernas vão se separando devagar, o olhar no
meu, os lábios entreabertos gemendo baixinho. Com minha mão desocupada,
desfivelo meu cinto e a faço me tocar.
— Grosso… — murmura, masturbando-me devagar. Gemidos
incompreensíveis escapam de mim, meus lábios rentes ao dela, meus dedos
ainda a acariciando. — É grosso.
Sorrio em meio ao prazer e nada digo. De repente, ela me toma em
um beijo sôfrego, os quadris rebolando contra meus dedos. Entendo seu
pedido e a penetro com o indicador e o médio, fodendo-a rápido e duro. Seus
gemidos ficam entre nosso beijo depravado, as mãos em meu pau me
bombeiam mais forte.
Tenho dificuldade em respirar. Meu pau está tão duro como nunca
esteve antes.
Cesso nosso beijo e a faço se deitar no estofado da limusine. Separo
suas pernas, subo sua saia até o umbigo e a observo um segundo inteiro, seu
peito subindo e descendo em uma respiração ofegante, os quadris movendo-
se de leve e impacientemente.
— Quer que eu te coma, Marie? — pergunto, apertando seu clitóris
com pressão necessária apenas para lhe dar prazer.
— Oui. S’il te plaît — pede por favor em palavras entrecortadas.
Mantenho meu sorriso e meu toque nela. Aperto o pequeno interfone
e, em inglês, digo ao motorista:
— Mudança de planos. Rode pela cidade um pouco mais.
— Sim, senhor.
Volto minha atenção à Marie e ponho meu rosto entre suas pernas.
Seu cheiro almíscar invade minhas narinas; a temperatura quente de seu
corpo e sexo atinge meu rosto.
— Ma jolie, vou te mostrar que eu também sei chupar — murmuro
entre suas pernas. Não espero resposta. Enfio dois dedos em sua entrada
encharcada, adicionando minha língua em seu clitóris. Trabalho avidamente
nela, intercalando chupadas, lambidas, pressão com o polegar, penetradas
com língua ou dedos.
Marie aperta suas pernas contra minhas têmporas, as mãos me
seguram pelo cabelo e me forçam contra sua boceta, os gemidos saem
ininteligíveis e baixos, mas sei que ela se controla ao máximo para não gritar
como uma desvairada.
— Mon Dieu, Emilien…
Seu corpo começa a ser tomado por pequenos espasmos. Então paro
imediatamente de chupá-la e abaixo as calças, coloco uma camisinha que tiro
da carteira e entro nela com facilidade. Suas pernas me contornam, seus
músculos interiores fecham-se contra meu comprimento duro.
Engasgo quando ela faz isso.
— Me aperta — peço, tascando um beijo profundo em sua boca. —
Me aperta com sua boceta de novo.
Ela o faz. Isso é quase a minha perdição.
Encolho suas pernas, colocando os joelhos em sua barriga, e empurro-
me para dentro dela outra vez, com muita força.
— Emilien! — grita dessa vez. O ângulo em que nos colocamos é
maravilhoso; também preciso me esforçar muito para não gemer alto. Tapo
sua boca e a como vigorosamente. Ela geme contra minha mão, lágrimas
juntando nos seus olhos.
Seu corpo todo treme enquanto continuo socando forte. Vendo que ela
vai gozar, frustro-a de novo. O gemido que dela escapa é de decepção.
Ponho-a de quatro, as mãos espalmadas contra o estofado.
— Eu preciso gozar! — suplica, enquanto me encaixo em sua fenda
escorregadia. — Não me frustre uma terceira vez, Emilien. Por favor.
— Nós vamos juntos — falo ao pé do seu ouvido. Coloco-me dentro
dela, centímetro por centímetro, devagar, sentindo-a me rodear e se contrair.
Meu maxilar trinca. Que esforço sobre-humano estou fazendo para não
ejacular.
Movimento-me em ritmos calmos, abraçando-a pelos seios e beijando
sua nuca. Como-a assim, devagar, profundo, com estocadas intensas que a
fazem gritar e empinar a bunda em minha direção para receber mais. A
velocidade vai aumentando gradativamente. Então, estou tão rápido que o
som dos nossos quadris entra pelos meus ouvidos. Ela anuncia que está
gozando enquanto se toca furiosamente. Seu corpo ainda está tremendo pelo
prazer atingido quando, sem sair de dentro dela, troco de posição de novo,
colocando-a para cavalgar.
Marie pula em meu colo com todo vigor. Beija-me na boca enquanto
as pernas dobradas flexionam-se e sua boceta engole meu pau. Gozo um
instante depois, chupando seu par de seios e abafando um gemido
descontrolado.
Ela me abraça e esconde o rosto contra a curva do meu pescoço.
Preciso de um instante para recuperar minha respiração e meu
controle.
Preciso de um instante para admitir que estava errado. Errado quando
pensei que transar uma única vez com ela seria suficiente para aplacar meus
desejos que surgiram assim que a conheci.

Pego a segunda saída na rotatória e mantenho-me na Avenue Pablo


Picasso, deixando a comuna de Nanterre para trás. Meu coração está
levemente apertado depois de minha rápida visita, após dois anos longe de
Paris. Não que eu tivesse me descomprometido por completo durante esse
tempo. A mensalidade — cara, aliás — foi paga sem atrasos. Liguei com
alguma frequência, pelo menos duas vezes por semana, mandei roupas e
medicamentos conforme foi necessário, recebi e-mails de exames periódicos,
como sempre exigi. Em algumas ocasiões, nos conectamos via Skype e pude
trocar algumas palavras.
Hoje, entretanto, foi nosso primeiro contato pessoal desde minha
partida. Fiquei por pouco tempo, não mais que uma hora, mas vi satisfação
em seus olhos com minha presença, minha volta — minha garantia de que
ficaria em Paris e voltaríamos a nos ver pessoalmente com mais frequência.
A viagem até a Dupont Investimentos leva pouco mais de meia hora,
pois Nanterre fica a apenas onze quilômetros da região metropolitana da
capital francesa. Passa um pouco do meio-dia quando adentro o prédio de
vinte andares. Tomo um elevador privativo e subo até o último andar, onde
está localizada a presidência da corporação.
— Monsieur Dupont, bonjour. — Sou recepcionado pela minha
secretária segurando um tablet. — Sua agenda já está atualizada, poderá
acessá-la pelo seu tablet, celular ou computador.
— Merci beaucoup — agradeço, tomando o aparelho que ela me
entrega.
— Mademoiselle Dupont está em sua sala, à sua espera — informa, o
que me pega de surpresa.
Giro meu corpo tão bruscamente que mal percebo; estou a um metro
da porta de meu escritório, meu sangue quase congela com a informação. O
que raios Nicole está fazendo aqui? Um naco se forma em minha garganta.
Aperto os lábios em uma linha fina, concentrando a raiva nos punhos. Com a
autorização de quem ela deixou que minha irmã invadisse meu espaço de
trabalho e privativo?
Controlo-me, entretanto, pois a conheço o suficiente para saber que
provavelmente invadiu minha sala e ignorou as advertências de minha
secretária. E com toda certeza fez alguma ameaça do tipo “O que meu irmão
mais velho, o seu patrão, vai achar se souber que andou me tratando muito
mal?”. Então ela bateu seus cílios longos infantilmente, como se carregasse
mesmo toda essa inocência naqueles olhos verdes.
— Tudo bem — concordo, soltando o ar dos pulmões e retomando o
controle.
Inspiro profundamente e me preparo para encará-la. Abro a porta e ali
está ela, deitada — ou melhor jogada — no sofá cinza no centro do
escritório, pernas cruzadas, brincando no celular.
— Nicole — chamo-a.
Seus olhos verdes encontram os meus e um sorriso ilumina seu rosto.
A porta atrás de mim encosta enquanto minha irmã vem em minha direção e
pula no meu pescoço, abraçando-me como se não me visse há décadas. Bem,
de fato, há muito não nos vemos.
— Emilien! — exclama e então se afasta, olhando-me nos olhos. —
Seu babaca insensível, como você tem coragem de ir embora por dois anos e
nunca nem dar uma ligação!? — reclama, dando um soco no meu peito.
Eu nem mesmo saio do meu lugar durante um segundo inteiro. Abro
um pequeno sorriso e beijo sua testa.
— Precisava ficar um tempo longe — respondo, caminhando em
direção à minha mesa.
— Você está longe desde que o papai morreu — diz, a voz
amargurada. Giro em meu próprio eixo e a vejo cabisbaixa, olhando para os
pés.
Mordo o lábio inferior, odiando a dor que atinge meu coração. Nosso
pai nos deixou há mais de dez anos. Uma morte precoce e súbita, que
desestabilizou toda nossa família. Anos antes desse baque em nossas vidas,
embora em determinado momento eu não estivesse morando sob o mesmo
teto que meus pais, mantínhamos contato frequente, principalmente porque
Nicole era só uma criança e precisava de mim. Mas depois que Thierry se foi,
minha relação com minha mãe, que a vida toda foi conturbada, piorou
consideravelmente. Tive de me afastar ainda mais para manter minha saúde
mental.
Também me afastei de Nicole para poupá-la no narcisismo de
Elizabeth Dupont. Por mais que fosse a protegida e a preferida, não seria
poupada caso contrariasse nossa progenitora. Ela tomaria minhas dores, uma
hora ou outra, e se revoltaria contra nossa mãe por conta de meu afastamento,
ela ia me escolher, disso tinha certeza, e seria catastrófico. Mamãe sempre a
tratou diferente de mim, e a última coisa que eu queria era que ela vivesse a
mesma relação tóxica que vivi por anos. Preferi me distanciar e deixar minha
irmã pensar que eu era um babaca mal-agradecido — pensamento reforçado
com comentários de maman, que passou a vida me chamando disto.
— Culpe nossa mãe por isso — falo do meu lugar. Há anos ela sabe
do real motivo por eu ter saído de casa. — Sabe que pra mim é impossível
passarmos mais do que dez minutos no mesmo ambiente.
Suspiro e contorno minha mesa, pondo-me em meu lugar. Devagar,
Nicole se aproxima e se senta à cadeira confortável logo à minha frente.
— Eu sei — confirma, suspirando, desanimada.
Observo-a com atenção redobrada. Umedece o lábio inferior com
alguma frequência. Minha irmã está diferente, consigo sentir. Nicole é uma
pessoa extrovertida, alegre, fala mais que a boca. Sua postura reclusa me
preocupa.
— Que se passe-t-il? — “O que aconteceu?”.
Nicole me encara um segundo inteiro antes de dizer:
— Agora entendo o que você viveu com a mamãe. — Seu olhar foge
do meu. — Quero dizer, sei que presenciei muitas discussões suas, mas
maman sempre dizia que você era mal-agradecido, ingrato e só sabia dar
desgosto… Acabava acreditando que você realmente só fazia as coisas
erradas, sabe? — Torna a me olhar, mordendo o lábio inferior.
— Ma petite¸ você era só uma criança. Mamãe é mestre na arte de
manipular. É claro que te colocaria contra mim.
Nicole balança a cabeça em positivo.
— Sim. Mas o que quero dizer, Emil, é que mamãe está se
comportando comigo da mesma maneira que fazia com você.
Meu coração vem na garganta. Nem me vejo saindo do meu lugar e
me sentando ao lado dela, segurando sua mão e a olhando com preocupação.
Nunca pensei que a preferida fosse passar pela mesma situação. Meu peito
dói. Por que Elizabeth estaria acabando com a saúde mental de minha irmã?
Ela teve seus motivos comigo (se podemos chamar de motivos) e, lá no
fundo, eu a compreendia, psicologicamente falando. Mas Nicole sempre foi o
objeto de adoração de mamãe. Não consigo pensar o que possa ter feito
(porque alguma coisa grave ela fez) para despertar o pior lado da matriarca.
— O que você fez, chérie?
— Só estou sendo eu mesma — murmura em resposta, os olhos
úmidos, segurando o choro. — Há dois anos, Emilien… logo depois que você
se foi… eu… — Pausa brusca. Olha-me com atenção. — Eu me assumi
lésbica.
A informação me deixa surpreso por alguns segundos. Nicole está
chorando timidamente, como se fosse algum tipo de pecado ou abominação.
— Ah… — exclamo, ainda meio atordoado. — Achei que fosse algo
muito grave.
Minha irmã levanta seus olhos úmidos para mim.
— Você… está bem com isso?
Sorrio pequenino e afago sua bochecha rosada. Seco algumas de suas
lágrimas e respondo:
— Por que eu não estaria, Nicole? Só me deixa chateado que tenha
esperado tanto tempo para me contar.
Ela beija minha mão em seu rosto e me abraça. Eu sinto de verdade a
sua falta. Apesar da nossa diferença de idade — dez anos — sempre fomos
muito amigos, unidos. Do tipo que tomávamos a dores um do outro, do tipo
de ela ir para diretoria da escola porque pegou uma colega falando mal de
mim e socou a cara da menina. Sinto falta de nossa convivência, mas mamãe
conseguiu que nos afastássemos pouco a pouco. Nos últimos quase vinte
anos, só quis me manter longe de Elizabeth, e para isso tive de me distanciar
de meu pai e da minha irmã.
— Désolée — se desculpa, suspirando em meu ombro. — Tive medo
de não me aceitar.
Afasto-a e seguro seu rosto delicado com as duas mãos.
— Você é e sempre será ma petite soeur — minha irmãzinha —, e
vou te amar em todas as situações. Pardon se me distanciei, se nos últimos
dois anos nem mesmo te liguei. Mais je t'aime très.
— Eu também te amo muito — responde. Então sorri, afastando suas
lágrimas. — Eu vim te ver, dizer que saí de casa. Estou morando com minha
colega de trabalho… Que… hum… bem, é minha namorada há algum tempo.
Mamãe não vai mais poder ficar entre mim e você. Podemos nos ver com
mais frequência agora. Se você quiser e tiver tempo, claro.
Abro um grande sorriso e seguro suas mãos.
— Vou me esforçar muito para recuperarmos os dias que ficamos
longe um do outro, oui? Pra começarmos, que tal marcar um jantar lá em casa
para eu conhecer minha cunhada?
Os olhos de Nicole se umedecem ainda mais e outra vez sou apertado
em um abraço caloroso, forte. Mon Dieu, como senti falta da minha irmã.
— Vou falar com Lorraine. Assim que tivermos uma data, te ligo.
Nicole dá um salto da cadeira, olhando no relógio e dizendo que agora
precisa ir. Dá-me outro abraço gostoso e um beijo úmido nos dois lados do
meu rosto. Já na porta, se despede:
— À bientônt, frère.
MARIE
Só posso estar louca.
Não vejo outra explicação.
Não sei por que continuo obcecada pela vida de Emilien Dupont. Ora,
dois anos atrás, quando esse safado descarado e gostoso me abandonou,
simplesmente me afastei de tudo que me recordava dele. Agora que está de
volta, depois do nosso encontro “por acaso” (ainda acho que tem dedo dele
nisso tudo, me julguem), uma vontade insólita de saber mais de sua vida se
instalou em meu peito e tem me forçado a fazer pesquisas sobre ele.
Com muita facilidade, respeitei os mistérios de Emil. Nunca
falávamos sobre sua família, amigos ou relacionamentos amorosos passados,
mesmo me interessando muito. Respeitei o espaço e o direito dele de não
querer falar nada que envolvesse esse assunto e sempre convivi bem com
isto. Acho até que foi exatamente esse seu lado misterioso que me
conquistou.
Quando Antony Leclerc ameaçou — anos atrás — trazer um segredo
dele à tona, é claro que tive uma curiosidade imensa em saber do que se
tratava, mas não toquei no assunto, da mesma forma que Emilien não se abriu
comigo, nem mesmo uma menção quando estávamos juntos. Lidei bem com
isto. Mas não o faço agora. Agora, quero desesperadamente saber quem era a
mulher ao seu lado no baile de Silvia Ferreira. Bernardo me informou que é
uma das modelos da estilista. Com alguns contatos, consegui a relação. Tem,
ao menos, cinquenta mulheres na listagem. Impossível para mim, neste
momento, em expediente, jogar o nome delas, um por um, no campo de busca
e descobrir se tem alguma semelhança com a acompanhante de Dupont, uma
vez que estava de máscara e não pude ver seu rosto.
Deste modo, desisti da lista, mas a guardei, preferindo outra
abordagem. Chego à conclusão, enquanto encaro o cursor na barra de
pesquisa do Facebook, que só posso estar louca. Mesmo concluindo isto, não
evito de apoiar meus dedos sobre o teclado do computador e digitar
“Dupont”. Minha pesquisa me direciona a um monte de perfis com esse
sobrenome nada incomum na França. Burra. Marie, você é uma burra. Filtro
melhor minha busca e digito “Emilien Dupont” mesmo sabendo que ele não
tem conta em rede social alguma. Encontro um número considerável de
“Emiliens Dupont”, mas nenhum deles é o meu.
O meu ?
Balanço a cabeça em negativo, afastando pensamentos absurdos.
Continuo rolando a tela. Encontro a página oficial da Dupont Investimentos
— obviamente há uma equipe que cuida dela. Clico sobre a fanpage e confiro
as postagens recentes. Em uma publicação mais antiga, de mais de quatro
meses atrás, encontro por fim uma foto dele. Está junto de outros três homens
— bem mais velhos —, o check-in é em algum hotel de luxo em Nevada,
Estados Unidos. A legenda diz “XI Conferência Internacional de
Empreendimentos e Investimentos. Emilien Dupont, jovem e prodígio
investidor parisiense, junto de Richard Kelly, Thomas Johnson e Hudson
Garfield, grandes nomes da hotelaria estadunidense.”
Concentro-me por longos segundos nesta foto. Emil tem um sorriso
bonito, embora bastante discreto e conciso. Seus trajes são completamente
pretos — o terno sob medida, a calça bem recortada, a camisa fechada até a
gola e a gravata de cetim. Está tão bonito e destaca tanto seus olhos azuis.
Gostoso.
Suspiro, percebendo que estou olhando para ele como uma
adolescente apaixonada, e não como uma mulher no auge dos trinta e poucos
anos. Volto a página e continuo minha pesquisa patética e obcecada. Maldito
homem discreto. Tão difícil achar uma foto dele mais pessoal, mais casual…
Diminuo um pouco mais meu campo de busca. Seleciono o filtro de
“fotos”. Mais imagens da página da Dupont Investimentos aparecem na
minha tela, todas têm na legenda as palavras-chaves da minha busca, ou seja:
“Emilien Dupont”. Grande parte dos resultados são mais do mesmo. Estou
quase desistindo quando, finalmente, um perfil diferente chama minha
atenção.
Clico no nome “Nicole Dupont”. Analiso seu perfil um instante. É
público; a foto atual é recente, apenas cinco dias atrás. É uma moça loira,
cabelos longos ondulados, com mexas mais escuras puxando para o dourado,
olhos verdes, rosto retangular, nariz afinado. É muito bonita e tem traços que
lembram os de Emilien. Talvez sejam… irmãos? Alguns compartilhamentos,
status alegres e selfies. Por fim, encontro a foto que o filtro me direcionou.
Foi postada três quintas-feiras atrás com a hashtag “TBT”. A legenda tem
três palavras: Saudades desse bastardo.
A foto em questão parece ser bem antiga, dada a sua qualidade, mas
também nem tanto. O Emilien desta foto sorri. Um sorriso largo, alegre,
daqueles que iluminam e nos alegram junto. Acho que nunca o vi sorrir dessa
maneira. Está bastante informal também. Blazer, camisa branca e jeans.
Segura uma menina no colo, aproximadamente oito anos, vestida de fada.
Pelos traços, é Nicole. Atrás deles, se lê “Joyeux Anniversaire” — feliz
aniversário. Nesta imagem, aparenta ser bem mais novo. Uns dezoito anos,
talvez dezenove. Não mais que isso.
E puta que pariu. Ele era lindo e gostoso mesmo novinho. Não nego
que os anos o melhoraram consideravelmente, mas já naquela época era um
bom pedaço de mal caminho. Deus me livre, mas quem me dera.
Resolvo ir mais a fundo e acesso o álbum de fotos da menina. Há
muitas imagens dela mesma, ou com amigas, em um consultório, check-ins,
foto das pernas bronzeadas frente à piscina. Demora algum tempo para
encontrar outra foto dela com Emilien. Outra vez, é uma recordação, postada
na quinta-feira. Tem mais de dois anos a postagem. Nicole ainda é uma
criança, aparentando ter seus doze anos. Toda de rosa, com coroa e tudo
mais, o vestido armado como os usados no século passado. Ela está entre o
irmão — que sorri, mas não como na primeira foto que vi — e uma segunda
mulher, ruiva, o rosto escondido por um emoji colocado deliberadamente ali.
Fico intrigada por alguns segundos. Por que Nicole esconderia o rosto da
mulher? Não encontro nenhuma menção ou pessoas marcadas. Na legenda,
lê-se apenas “Je t’aime, mon frère” — “Eu te amo, irmão”
Passo mais algum tempo rolando a página pelas fotos até encontrar
uma terceira dos dois juntos. Postada um ano antes da última. Outra vez
numa quinta-feira. Outra vez, em uma festa de aniversário, o que dá bastante
a entender que os dois se viam — ou se fotografavam — apenas na ocasião
do aniversário dela. Nicole agora está vestida como debutante. É sua festa de
quinze anos. Está entre Emilien — que agora tem um sorriso mínimo no rosto
e uma tristeza indescritível no olhar — e uma segunda mulher, não a mesma
da foto anterior; é outra, sei por causa da cor do cabelo e porque seu rosto não
está tampado. Nicole escreveu: “Este dia foi tão especial e inesquecível. Tu
me manques, frère”. Encontro mais duas postagens no mesmo dia, uma dela
sozinha e outra com o irmão, dançando valsa. Ambas as legendas, assim
como na anterior, Nicole expressa a saudade pelo irmão.
É uma imagem bonita. Penso que os dois se dão — ou se davam —
bem, e se amam. O modo como ele a olha durante a dança revela isso. Emil
aparenta ter uns vinte e cinco anos nessa fotografia. Não mais que isso. Mas
também noto que o sorriso e o brilho em seus olhos sumiram por completo,
perderam vida, como se sete anos antes ele fosse mais feliz do que nesse
momento do aniversário de debutante da irmã. Isso me faz pensar por que
nunca o ouvi falar dela. Até mesmo pelas postagens de Nicole nota-se que os
dois não têm contato frequente. Não encontrei nada mais recente dos dois
juntos. Por que se separaram, se parecem tão unidos?
Volto minha atenção à fotografia em que ele sorri quase
imperceptivelmente. Está formal, dentro de um fraque, e muito, muito bonito.
A moça logo ao lado, segurando a cintura de Nicole e sorrindo abertamente
para a câmera, também é linda. Olhos castanhos, cabelos na mesma cor, na
altura da mandíbula, ondulados. Lábios grossos, seios pequenos marcados
por um decote discreto. Atento-me em seu olhar e tenho a impressão de que a
conheço. Com os dedos, cubro seu rosto, deixando apenas nariz, queixo, boca
e olhos de fora.
Mon Dieu, é ela! A moça que estava com Emilien no baile de
máscaras. Mas não tem nem mesmo um nome na legenda. Nada. Rolo mais
pelo álbum de foto até chegar ao final. E é tudo. Todas as fotos que Nicole
tem com o irmão são apenas três e não são recentes.
O que aconteceu na vida desse homem?

Quando meu expediente acaba, estou exausta e preciso de um café.


Penso em ir para casa, moer alguns grãos e degustar da minha bebida favorita
enrolada no sofá depois de um banho relaxante, mas simplesmente não posso.
Tenho que terminar de escrever uma matéria para minha coluna e já estou
atrasada na entrega. Se eu for para meu apartamento, as chances de
procrastinar o resto do dia são muito grandes.
Então pego meu notebook e sigo até a Avenue Coffee, a cafeteria de
Bernardo, onde poderei colocar meu trabalho em dia — atrasado porque
passei mais de uma hora do meu expediente perseguindo Emilien Dupont
pela internet — e degustar de um bom e delicioso expresso. Enquanto espero
meu pedido, abro o documento no Word e faço minhas anotações,
desligando-me do mundo por um momento. A funcionária me entrega a
bebida e mal percebo, tão introspectiva estou.
Puxo a xícara pela asa e levo o líquido escaldante até meus lábios,
assoprando antes de sorver um gole generoso. Fecho os olhos um segundo,
apreciando o sabor desta bebida inigualável. Torno a me concentrar em meu
trabalho e, o que eu deveria ter feito na hora perdida perseguindo aquele
homem, o faço em pouco mais de quarenta minutos e três xícaras de café.
Finalmente termino meu artigo e o envio para Héron, via e-mail. Peço
a quarta dose de cafeína, desta vez acompanhado de uma fatia de bolo
integral. Degusto do momento devagar, permitindo-me sentir o gosto da
bebida em minha língua.
Já estou quase terminando, pronta para pagar a conta e ir embora,
quando ele entra no ambiente. Meu corpo trava no lugar quando, através das
portas duplas de vidro da cafeteria, o vejo adentrar o local, falando ao
telefone discretamente, uma das mãos no bolso da calça azul-marinho.
Desgraça de homem bonito.
Prendo a respiração sem nem perceber.
Emilien acena para uma das moças atrás do balcão, e ela parece
entender seu pedido — que deve ser o mesmo de sempre —, pois assente em
positivo e já se direciona à máquina para moer os grãos.
Observo-o por esses breves segundos sem que tenha me notado,
travada em minha cadeira, sem nem mesmo conseguir agir, me esconder atrás
do menu ou fingir que não o vi. Quando penso em desviar meu olhar e
abaixar a cabeça, Emilien já me notou e também estacou em seu lugar — a
quatro passos da porta de entrada. Ele me encara, surpreso, o celular ainda
colocado ao ouvido, mas os lábios não mais se movem.
Nossos olhares não se desgrudam por segundos que parecem eternos.
Emilien murmura algo e encerra sua ligação. Penso que ele virá em minha
direção; inclusive já estudo uma saída de me esquivar desse homem. Talvez
tenha que deixar a cafeteria sem pagar, mas depois volto e acerto com juros.
Olho com atenção ao redor. Posso escapulir pela direita, zanzar entre as
mesas e chegar até à porta de entrada. É uma boa estratégia. Exceto por
Emilien não sair do lugar, obstruindo a passagem. Droga. Ele provavelmente
já leu minha mente e deduziu meu plano.
Mas uma hora esse homem terá de se mover. Assim, rapidamente
junto minhas coisas, guardando o notebook em minha bolsa, levantando-me
da cadeira. Quando ergo o olhar para a entrada, Emil já não está mais ali.
Alívio percorre meu corpo, mas dura apenas alguns segundos. Ao girar-me
em meu próprio eixo, ele está bem aqui do meu lado, os olhos suaves sobre
mim, a mão no bolso, os lábios inexpressivos.
Tento passar por ele, mas minhas tentativas são todas obstruídas pelo
seu tronco forte, acomodado dentro do terno azul-marinho que o deixa muito
gostoso. Suspiro e levanto meus olhos em sua direção, tentando não me
deixar ser levada pela paixão por esse homem que ainda existe dentro de
mim.
— S’il te plaît — murmura, seu tom voz e seus olhos se abatendo. —
Vamos conversar.
Inspiro fundo.
— Trinta…
— Nada de trinta segundos, Marie — me interrompe, meio rude e
irritado. — Eu preciso de uma hora inteira, pelo menos.
— Eu não tenho uma hora inteira — respondo, cansada.
Caio em minha cadeira outra vez. Elegantemente, Emil se senta de
frente para mim.
— Sei que não — responde, por fim. A funcionária se aproxima, me
cumprimenta com um aceno e o serve uma xícara de café, retirando-se em
seguida. — Por isso, quero que você me dê só uma oportunidade para
conversarmos, para me explicar.
— E você acha que o que fez tem explicação, Emilien?
Seus olhos se prendem aos meus por tensos segundos. Sempre notei
mistério neles, uma névoa de enigma e tristeza… Não evito em me recordar
da foto dele que vi mais cedo, com a irmã caçula nos braços, o sorriso
estampado no rosto, o azul brilhando de forma intensa. Não sei o que pode ter
acontecido àquele homem, porque o que eu conheci anos atrás — o que está
na minha frente agora — não é a mesma pessoa daquela foto alegre.
— Nenhuma — concorda, trazendo-me de volta ao mundo real. — Eu
agi errado com você, sei disso, chérie. — Com um suspiro, toma o primeiro
gole de seu café. — Mas entenda que só queria que me odiasse.
Dou uma risada ácida.
— Parabéns, você conseguiu — respondo, sarcástica. Ele nada diz por
algum tempo. Seu silêncio me incomoda. Odeio isso, mas quando percebo, já
soltei a pergunta: — Por quê? — Um nó se forma em minha garganta, sinto
as lágrimas queimarem meus olhos, mas me mantenho firme em não me
mostrar vulnerável em sua frente. — Por que queria me magoar? Por que foi
embora?
Emilien deixa um suspiro longo escapar, os olhos fechados, a
expressão marcada, dolorida.
— Nunca quis te magoar, Marie… Quero dizer… A intenção foi te
magoar, sim, mas pra poder te afastar de mim. Minha vida… é complicada.
Não queria te trazer para o caos completo que eu sou, ma belle.
Balanço a cabeça em negativo, cada vez mais confusa com esse
homem.
— Não entendo — expresso-me.
Vejo sua mão grande mover-se em direção à minha, na intenção de
me tocar, mas consigo evitar tal contato. Emilien fica sem graça com meu
distanciamento, noto isso quando o maxilar trinca, os olhos viram para baixo
e sua mão se recolhe vagarosamente.
— Marie… Não sou capaz de dizer tudo que preciso em pouco tempo.
Não é nem o local nem o momento ideal. — Já pressinto onde ele quer
chegar. — Por favor, jante comigo amanhã à noite.
Seu convite nem mesmo me surpreende. De alguma forma, eu já
esperava.
— Não. — Minha resposta é incisiva, mas talvez não definitiva. Se
ele insistir… se fizer algum charme, daqueles que sei que não vou resistir,
posso reconsiderar. E a última coisa que quero é reconsiderar. Não importa o
que Emilien tenha a me dizer, ou o quanto esteja arrependido, ou quais sejam
as suas justificativas, ou quanto sua vida seja complicada e um caos total. Ele
me magoou, brincou comigo. Nada do que me diga deve ser o suficiente para
ser digno do meu perdão.
— Marie, por favor… — A voz é baixa, quase um silvo.
Acho que nunca o vi suplicar nada a ninguém. Neste instante, ele está
implorando. Para mim. Para que lhe dê uma chance de se explicar, talvez até
de se desculpar. Embora a voz não traga nenhum traço de súplica, porque
provavelmente é orgulhoso demais para se rebaixar a tanto, seus olhos
imploram o que a boca não proferiu.
Meu coração dá uma batida a menos diante suas palavras e seu olhar.
Mas estou irredutível em minha decisão. Não vou jantar com ele, mas darei o
que quer ouvir.
— Tudo bem. Às oito horas. Local público. No máximo até às dez da
noite. Eu escolho o restaurante e te passo o endereço — imponho minhas
condições. Emilien parece surpreso pelo modo como ditei as regras, mas não
contrariado.
— Como você quiser — responde-me. — Te pego às sete e meia em
seu apartamento?
— Não. Vou sozinha. Nos encontramos lá. — Agora sim ele faz uma
cara de inconformado. Talvez esteja pressentindo que vai tomar um bolo.
Apesar disto, aceita os termos com um meneio de cabeça. — Sendo assim —
falo, retirando alguns euros de minha carteira e deixando-os sobre a mesa —,
nos vemos amanhã.

São oito e dez da noite. Deveria estar no restaurante que escolhi para
encontrar com Emilien, mas estou em casa, debaixo dos lençóis, lendo um
livro. Bastante plena. Não darei o braço a torcer para aquele homem. Não, ele
não pode simplesmente quebrar meu coração e depois querer um encontro.
As coisas não funcionam dessa maneira.
Viro a página, concentrada na leitura. Meu celular vibra sobre o
criado-mudo. Olho-o por um segundo antes de desbloquear a tela e ver a
mensagem dele. Como sou uma idiota orgulhosa, ainda tenho seu número em
minha lista de contatos.
“Você não vem, não é?”
Ignoro sua mensagem e torno a ler.
E assim, de repente, sinto um pequeno incômodo no coração. É uma
pontada de leve, mas insólita, que me desconcentra da minha leitura, me
deixa inquieta e me faz pensar em Emil sozinho no restaurante, à minha
espera. Suspiro, o livro caindo sobre meu colo. Seja forte, Marie! Ele não
pensou duas vezes em se levantar e ir embora, dois anos atrás.
Outra mensagem chega. Confiro imediatamente.
“Tudo bem. Compreendo sua raiva. Quando estiver disposta a
conversar, pode me ligar?”
Engulo em seco, a pontada incômoda e chata apertando-se ainda mais
em torno do meu coração mole e idiota. Exaspero, sentindo raiva de mim
mesma enquanto digito:
“Estou a caminho. Imprevisto no trabalho. Chego em meia hora.”
Saio do conforto da minha cama, sentindo-me uma estúpida por isso.
Como posso ter qualquer tipo de compaixão ou empatia por Emilien Dupont?
Tomo um banho rápido depois de chamar um Uber. Frente ao espelho,
analiso minha aparência. Não houve tempo para maquiagem além de um
delineador e máscara para cílios. Ajeitei meus cabelos na altura dos ombros o
tanto quanto pude com as mãos e um creme específico. Pus um vestido preto,
frente única, até os joelhos e sem decote, e sandálias de tiras.
Estou terminando de me arrumar quando o interfone toca e o porteiro
me avisa da chegada do meu carro. Agarro minha bolsa e saio apressada,
repreendendo-me por ter voltado na minha decisão. Espero apenas que a
noite não seja um desastre total, ou seja, espero não amanhecer na cama
daquele gostoso ordinário.
A viagem dura vinte minutos. No percurso, envio outra mensagem a
Emilien, pois já ultrapassei minha meia hora, dizendo que estou a caminho e
quase chegando. Apenas para ele não pensar que estou mentindo, envio
minha localização. Ele me responde dez segundos depois:
“Ansioso para te ver, ma belle.”
Mordo o lábio inferior e guardo o celular na bolsa.
Finalmente, chego ao meu destino. Pago a corrida e desço do carro.
Encaro o restaurante à minha frente por um instante antes de entrar. Tem uma
fachada de vidro elegante, luzes baixas e uma recepcionista na porta.
Vagarosamente, meus olhos vão passeando pelo estabelecimento. Meu corpo
congela um segundo depois quando, por entre as mesas delicadas, com sua
própria iluminação sofisticada, através da vidraça, eu vejo Emil. Não está
sozinho. Uma mulher — que não consigo dizer quem é, pois está de perfil —
lhe faz companhia, ao que me parece conversando, segurando uma taça de
vinho. Ela sorri o tempo todo, toca-o nas mãos. Emilien não se esquiva do
toque, mas também não sorri como sua “companheira”. Não consigo ler sua
linguagem corporal diante à situação. Não sei se a companhia o agrada ou
não.
Um nó tremendo se forma em minha garganta quando a moça se vira
e nossos olhos se encontram. Eu a reconheço. É a mesma da foto que vi no
dia anterior, no perfil do Facebook de Nicole Dupont. A mesma que estava
com ele no baile de Silvia Ferreira. Emilien acompanha seu olhar e
finalmente me nota a dez metros dele, do outro lado do restaurante. Seus
olhos azuis transformam-se. Ele se levanta do seu lugar, muito bruscamente,
e eu me viro para sair daqui. Caminho rapidamente, tanto quanto meus saltos
me permitem. Olho para os lados, à procura de um táxi.
— Marie! — Dupont me chama, ao longe. Viro-me apenas para vê-lo
a trinta metros de distância, vinte e nove, vinte e oito… e aproximando-se a
cada passada larga.
Inspiro fundo, aumento o passo e finalmente encontro um táxi. Faço
sinal ao motorista, que para na faixa da direita para que eu possa entrar. Abro
a porta traseira do passageiro e já estou jogando meu corpo para dentro do
veículo quando uma mão quente e forte me impede. Sou puxada suavemente,
desequilibro-me por um segundo e preciso me escorar nele. Seu perfume
amadeirado invade meu olfato, deixando-me zonza. Seu tórax é duro como
ainda me recordava.
Ele bate a porta do carro e diz ao motorista, tudo sem me largar:
— Désolé, monsieur. A senhorita aqui não precisará mais. Je vous
remercie. — “Obrigado”.
O condutor me olha atentamente, como se para confirmar.
— Tudo bem. Ele é um amigo. — Bem, nem tanto. Sem nada a dizer,
aciona a seta e sai vagarosamente, tomando as ruas de Paris. Consigo me
livrar da pegada de Emilien e volto a caminhar, sem olhá-lo.
Novamente me agarra pelos braços e me vira em sua direção.
— Marie, quer, por favor, me escutar?
— Não, eu não quero! Sou uma estúpida por ter vindo… Deveria ter
ignorado sua mensagem e ter ficado em casa, lendo meu livro. Teria evitado
presenciar sua ceninha.
Mon Dieu, o que é isto? Por que preciso demonstrar todo esse ciúme
para ele, para que saiba como ainda mexe comigo?
— É só uma amiga — explica, puxando meu queixo. Virei o rosto
para o lado e nem percebi.
— Chamou uma amiga para nosso encontro? — indago, perfurando-o
com um olhar quase mortal.
— Não. Nos encontramos por acaso. Ela está na mesa ao lado, com
Silvia Ferreira e mais algumas modelos.
O vento gelado parisiense acaricia meu rosto e braços, dando-me
arrepios. Tremo sem quase perceber. Desvio o olhar de novo, não sendo
capaz de encará-lo. Burra. Já disse que sou burra? Havia necessidade de
deixar tão à vista como sinto ciúmes dele? Isso com toda certeza alimentará
seu maldito ego. Pisco e volto ao mundo real quando sinto um calor em meus
braços. Viro a cabeça novamente e vejo Emil terminando de ajeitar seu paletó
em mim.
Golpe baixo.
— Está frio aqui fora e você não trouxe nada — explica, como se
fosse realmente necessário. — Lá dentro está mais quente e agradável. Vem
comigo? — Sua voz é doce e baixa.
Eu agi como uma cadela raivosa e ciumenta e ele continua calmo.
Balanço a cabeça, concordando.
Emilien me conduz de volta ao restaurante.
Só quando chegamos, percebo que percorremos os quarenta metros
com ele abraçado à minha cintura.
EMILIEN
“Você não vem, não é?”
Envio a mensagem para Marie quando seu atraso beira os dez
minutos.
Bem, eu previa que ela falharia comigo. Não tiro sua razão.
Meu corpo parece tenso debaixo do terno enquanto encaro o celular, à
espera de uma resposta dela. Embora eu já esperasse por isso, tinha ainda
certa esperança de que considerasse e viesse mesmo me encontrar. Mas acho
que a subestimei. Talvez seja orgulhosa o suficiente para não dar o braço a
torcer. E quer saber? Compreendo-a perfeitamente. Minha atitude foi
cafajeste, covarde e egoísta. Entretanto, só queria uma chance de me explicar,
para que entendesse meus motivos.
A mulher não responde. Suspiro e aceno para a garçonete. Enquanto a
moça vem em minha direção, digito outra mensagem, pronto a pagar meu
único consumo — uma taça de água — e voltar para minha cobertura.
“Tudo bem. Compreendo sua raiva. Quando estiver disposta a
conversar, pode me ligar?”
Deixo meu telefone sobre a mesa quando a funcionária chega. Ela
sorri educadamente e pergunta se preciso de alguma coisa. Estou para abrir a
boca e pedir a conta quando meu celular notifica uma mensagem. Erguendo o
indicador, peço um instante e confiro a resposta dela.
“Estou a caminho. Imprevisto no trabalho. Chego em meia hora.”
Um sorriso desponta em mim ao mesmo tempo em que uma
alfinetada atinge meu coração. Ela está mesmo a caminho ou quer que eu
fique aqui, sozinho, à sua espera, enquanto continua não tendo pretensões de
vir apenas como modo de se vingar? Engulo em seco e decido dar um voto de
confiança. Ajeito a gravata que começa a me incomodar e inspiro fundo.
— Un autre verre d'eau , s’il vous plaît .
Com um aceno de cabeça, a garçonete recolhe minha taça e volta
instantes depois trazendo outra com água, perguntando:
— Gostaria de fazer seu pedido agora, monsieur?
— Ainda não. Minha companhia já está chegando. Je vous remercie.
Com um sorriso candente, ela se afasta, e eu tomo um gole generoso
da minha água. Aguardo mais alguns instantes, suando sob o terno,
apreensivo demais. O medo de que ela não venha me incomoda e passeia
pelas minhas veias junto do oxigênio. Um novo grupo de clientes — quatro
ou cinco pessoas — chega no restaurante, a hostess encaminhando-o até a
mesa reservada. Não me atento a eles e confiro meu e-mail pelo celular,
respondendo aos mais urgentes. Mais dez minutos e o tempo de Marie vence.
Então aceito que ela não virá, que me fez de bobo e terei de me desdobrar
para conseguir uma hora da vida dela. Quando novamente estou desistindo de
esperá-la, uma segunda mensagem chega:
“Estou a caminho”. Junto, sua localização. Pela distância, apenas mais
uns quinze minutos e estará aqui. Meu coração se alivia, até parece que tiro
um peso de cima dos meus ombros, voltando a respirar normalmente. Marie
virá.
“Ansioso para te ver, ma belle”, respondo.
Tomo o restante de minha água, agora mais confiante de sua vinda.
— Ela furou com você? — uma voz sussurra em meu ouvido. Sinto o
calor dos seus lábios contra meu ouvido, assustando-me levemente.
Ela deixa minhas costas e se põe à minha frente, sentando-se no lugar
vago, no lugar de Marie. Segura uma taça de vinho branco e sorri do seu jeito
meigo. Olho ao redor. O grupo que chegara minutos atrás, só agora percebo,
traz algumas modelos e uma pessoa conhecida: Silvia Ferreira.
— Do que você está falando? — desconverso, guardando o celular no
bolso interno do meu paletó.
Seu sorriso aumenta. Revira os olhos.
— A sua companheira. Isso é um encontro, não é?
— Por que o interesse? — Continuo a não lhe dar resposta.
— Me preocupo com você — responde, tomando uma pequena dose
de seu vinho.
Tento segurar uma risada sem humor, mas sem sucesso. Desvio meu
olhar do seu por alguns segundos, pego minha taça com água e bebo o
restante. Não quero pensar no assunto neste momento, mas sei que ela vai
abordá-lo da mesma maneira.
— É casual ou é sério?
Não disse?
— Não importa — respondo apenas, tornando a olhá-la.
Ela dá de ombros.
— Importa. E você sabe. Se for casual, tudo bem, mas se for algo
mais sério… — Sua frase fica no ar. Os lábios bonitos entornam um pouco
mais de vinho. — Você não tem nenhum relacionamento sério há… hum…
— Finge pensar. Ela sabe mais sobre isso do que eu mesmo. — Onze ou doze
anos?
Engulo em seco. Continuo encarando-a sem emoção alguma.
— Por aí — respondo, quase sem nem mesmo mover o maxilar. —
Pode me deixar em paz, agora? Minha companhia está para chegar.
— É ciumenta? — segue especulando.
Deus, dê-me paciência.
— Non, chérie, mas ficará um clima estranho se ela chegar e você
estiver aqui, toda íntima comigo. Intimidade, aliás, que não temos há bastante
tempo. Só… por favor, volte para sua mesa.
A mulher não atende ao meu pedido. Continua olhando-me com seu
sorriso meigo, a taça delicada e elegantemente entre seus dedos.
— Como lidará com seu segredo se isso for uma relação séria, do
tipo… vocês serem namorados?
Meu corpo retesa por debaixo do terno. Meu maxilar trinca com tanta
força que tenho a impressão de que quebrarei meus dentes. A respiração falha
por tensos segundos enquanto a encaro seriamente, perguntando-me como…
Merde! A mesma pessoa que provavelmente vazou minhas informações para
Antony vazou para ela também. Mas que inferno! O que ela quer, afinal de
contas? Eu nem deveria estar surpreso, uma vez que as duas são amigas. Até
acho que demorou bastante tempo para isso acontecer. Contudo, ela garantiu!
Garantiu que não contaria a ninguém e estaríamos seguros. Isso é uma
punição. Ela adora me punir. Mesmo quando não há motivos para tal.
— Quando Elizabeth te contou? — pergunto, empertigando-me sobre
a mesa, meu tom de voz baixo, rouco, meio desesperado. Oh, mon Dieu! A
última coisa que quero é estar nas mãos dessas duas!
— Sua mãe? — A moça parece surpresa. — Não foi ela quem me
contou, Emilien.
Desespero bate à porta do meu peito. Deixa-me insano ponderar que
mais pessoas sabem sobre meu passado. Não, não é possível!
— Antony Leclerc — revela, aliviando-me no mesmo instante. — Ele
quem me contou. Não deliberadamente, claro. Eu tinha feito um boquete nele
e estava meio bêbado, de qualquer maneira.
Faço uma cara de nojo ao imaginá-la chupando Leclerc.
— Foi minha mãe então quem confidenciou meus segredos para
Antony?
— Não — responde, sem me dar muita segurança disso. — Antony
era esperto, Emil. Ele te observava, sempre estava na sua cobertura, no seu
escritório. Você confiava nele cegamente. — Isso é bem verdade. Meu maior
erro foi ter posto minhas mãos no fogo por aquele cretino. Eu deveria saber
que não era boa pessoa quando mostrava sinais de ser um marido abusivo
para com Ann-Marie. — Leclerc percebeu que você sempre tinha três
compromissos não nomeados na sua agenda. Horários e dias alternados. Um
dia ele te seguiu, descobriu que um dos seus compromissos era em um
consultório psicológico. Os outros dois, em Nanterre. Não foi difícil
descobrir a pessoa que você mantém praticamente isolada e escondida da
sociedade parisiense. Revirou um pouco seu apartamento, seu escritório,
documentos pessoais e… voi là. Todo seu passado era do conhecimento dele
também.
Maldito desgraçado!, praguejo mentalmente. Um pavor toma posse
do meu corpo, deixando-me quase irracional. Suo frio por debaixo do terno.
— Emilien — me chama suavemente, tocando em minha mão —, não
precisa se preocupar, não direi nada a ninguém.
— Vai me chantagear — constato, voz embargada.
Ela move a cabeça em negativo.
— Não sou sua mãe, Emil. Não vou te expor. Nem usar isso contra
você. Como prova, Antony deixou todo o dossiê que ele ergueu sobre seu
passado comigo. Em breve, estará em sua mesa e você poderá dar fim nesses
documentos. Não terei como provar nada, mesmo se quisesse.
— Quem me garante que você não tem cópia de cada maldita prova?
— Nada, apenas minha palavra. Há mais de dois anos sei sobre seu
segredo e nunca te chantageei. Não fiz nada para te prejudicar. Se eu
quisesse, poderia não ter te dito nada, ou ter te exposto, mas não o fiz.
Porque, apesar de tudo, apesar do nosso passado, sou sua amiga. Não guardo
rancor de você.
Olho-a sem expressão alguma, inclinado a acreditar em sua palavra.
Mas com Antony aprendi, da pior forma, uma lição valiosa: não confiar em
ninguém. Hoje, não confio nem em mim mesmo. Aceito suas palavras, mas
ficarei com um olho aberto. Ela já foi de minha extrema confiança, mas não
sei como está seu coração agora, depois que o quebrei pedacinho por
pedacinho. E se ainda tiver raiva de mim, mesmo após tantos anos? E se o
que ela quer é me ver de guarda baixa e, no momento mais propício e
inesperado, trazer à tona esse passado que me amedronta e me atormenta?
— Tudo bem… — murmuro, ainda meio desconfiado. A moça sorri
ainda mais para mim, e só então percebo que sua mão toca a minha. Quando
bebe mais do seu vinho, digo: — É um encontro. Eu gosto dela, de verdade.
— O sorriso em seu rosto não se abala, talvez já tenha mesmo me superado.
É claro que superou. Ela andou chupando o Antony. Inferno, isso nem
mesmo significa alguma coisa. — E pela primeira vez em muito tempo,
quero tentar um relacionamento. Estou com trinta e cinco anos, entende? Não
quero ficar sozinho o resto da minha vida… Não quero terminar sozinho…
— repito, entristecido, abaixando o olhar para sua mão na minha.
— Você não vai, Emilien. Tenho certeza que essa moça, seja lá quem
for, é a mulher ideal para você.
Sorrio um pouco e tão logo torno a ficar sisudo.
— Mas isso só será possível se minha mãe continuar neutra na minha
vida. Se ela souber que estou tentando me reerguer e quero… namorar essa
garota, que depois de mais de dez anos desde… — Trinco o maxilar e fujo
dos seus olhos castanhos. — Você sabe — completo, evasivo. — Se
Elizabeth Dupont souber que estou tentando ser feliz, vai me atormentar, me
infernizar até que eu fique sozinho de novo. Porque é isso o que ela quer.
A mulher à minha frente me encara como se eu tivesse proferido um
monte de exageros. Sei que vai me dizer que não é bem assim e que minha
mãe quer, de fato, me ver bem, feliz e casado. O problema é que Elizabeth já
escolheu por mim com quem eu deveria me casar, formar uma família e ser
feliz. Qualquer “escolha” minha que a contrarie é motivo para ser
importunado até o final dos meus dias. Desta maneira, nunca mais namorei.
Por isso minha relação com Marie — se eu conseguir seu perdão e uma
segunda chance — precisa estar fora do radar daquela megera que me gerou e
me criou.
— Não contarei nada à sua mãe, não precisa se preocupar — garante,
ainda acariciando minha mão e olhando-me com um sorriso, mas não consigo
sorrir de volta.
Lentamente, sua cabeça se vira para o lado e permanece ali. Sigo seu
olhar, encontrando os olhos âmbar de Marie do outro lado do restaurante. Ah,
droga! Levanto-me bruscamente ao mesmo tempo em que ela vira as costas e
sai andando às pressas. Mal dou dois passos quando meu punho é segurado
delicadamente.
— Boa sorte — me deseja, deixando um beijo cálido no meu rosto.
Não a respondo; um segundo depois vou atrás de Marie.
Puxo uma cadeira para ela, que se acomoda ao passo que retiro meu
paletó de sobre seus ombros. A temperatura aqui dentro é mais confortável.
Coloco-o no espaldar do meu assento e me ajeito em meu lugar. Ergo o
indicador e finalmente chamo a garçonete para anotar nossos pedidos.
Marie analisa o menu, o rosto sereno, mas com uma leve ruga entre
suas sobrancelhas. Está bonita com um vestido preto que ressalta suas curvas
generosas. De entrada, pede patê de foie gras, enquanto prefiro cogumelos
recheados. Para o prato principal, peço carne de coelho com purê, e ela opta
por sopa de cebola. O vinho é rose para ela — seu preferido — e tinto para
mim.
Quando a garçonete se retira para trazer nossos aperitivos antes da
entrada e prato principal, finalmente a encaro, sem saber exatamente como
iniciar nossa conversa. Tenho tanto a falar, mas não sei por onde começar.
— Quem era ela? — pergunta suavemente, tomando a palavra antes
de mim.
Não preciso indagá-la sobre quem pergunta.
— Já disse. Uma amiga.
Marie faz uma careta de quem não está satisfeita com a resposta.
— Quero saber o nome dela — especifica.
Abro um pequeno sorriso e desvio o olhar para a mesa dela. Está ao
lado de Silvia Ferreira, sua taça de vinho branco ainda entre os dedos,
conversando com a famosa estilista enquanto ri discretamente de alguma
coisa.
— Por quê? — questiono, realmente curioso com seu interesse.
Marie dá de ombros e olha para as próprias mãos sobre seu colo.
— Era a mesma com você no baile, sábado à noite.
Franzo cenho e sorrio pequenino. Bem, acho que alguém andou me
observando mais do que deveria.
— Não importa, ma jolie. O assunto do nosso encontro não é ela.
Ela me dá um pequeno sorriso e abana em positivo. Nossos aperitivos
chegam, juntamente das taças de vinho. Bebo um pequeno gole após mastigar
o torsade folhado antes de dizer:
— Como você está? — É uma pergunta sincera. Talvez apenas um
meio de quebrar o silêncio incômodo entre nós. Sinto falta das nossas
conversas. Marie sempre foi uma boa companhia. Recordo-me de algumas
noites, enquanto ainda estávamos na África, pelados debaixo do lençol,
depois de uma rodada de sexo, rindo, conversando e tomando sorvete, mesmo
sendo tarde.
Uma de suas sobrancelhas sobe diante minha pergunta.
— Bem, na medida do possível — responde, sorvendo um gole de sua
água na taça. Em seguida, degusta do vinho. Ela não devolve a pergunta.
Olha-me um instante e diz: — Viemos aqui uma vez, se recorda?
— Sim — digo, com um pequeno sorriso. — Duas noites antes de
nossa viagem. Nos reunimos com a equipe e acertamos os últimos detalhes.
Ela abre outro do seu singelo sorriso e confirma. Falo mais do que
Marie, porque a maior parte do tempo a mulher prefere ficar em silêncio.
Evita me olhar diretamente nos olhos, suas respostas são sucintas, sorri muito
pouco, quase sempre forçado. Tento falar sobre os dois últimos anos, focando
mais em trabalho. Marie nunca se importou, quando estávamos juntos, que eu
abordasse sobre meu trabalho. Aliás, ela alegava gostar. Dizia que dava tesão
e eu ficava muito gostoso agindo como o Emilien Dupont investidor e
presidente de uma grande empresa de investimentos. Quase sempre depois
desse tipo de conversa, transávamos bem à beça. Rio interiormente,
recordando-me de uma ou duas ocasiões em que brincamos de chefe e
secretária.
Mas agora, Marie Julien parece desinteressada no que tenho a dizer.
Não estou falando apenas de mim, ou do meu trabalho. Tento abordar nossos
amigos, Bernardo e Ann-Marie, ou o evento de sábado passado, ou ainda seu
trabalho como jornalista no La Parisienne. Ela, entretanto, não parece
disposta a conversar muito. Diz apenas que o filho de Dousseau é lindo, o
baile de máscaras estava esplêndido e não trabalha mais naquele jornal, sem
me dar mais detalhes.
Um garçom vem nos entregar o prato principal, uma vez que as
entradas já foram entregues enquanto tentava fazê-la se abrir comigo. Marie
brinca por um instante com o indicador na borda da sua segunda taça de
vinho, e eu a observo atentamente.
— Escute — digo. Ela ergue seus olhos para mim. — Você não está
se sentindo confortável comigo — constato. Odeio essa situação, de verdade.
Era bom quando não havia essa tensão pairando entre nós, quando ficávamos
confortáveis um na frente do outro. Nossa conversa fluía, os sorrisos eram
sinceros, assunto não faltava. — Vou compreender se quiser ir embora.
Ela molha o lábio inferior; os olhos âmbar se fixam em algum ponto
atrás de mim antes de voltar para os meus.
— Não espere que eu aja naturalmente depois de tudo, não é? —
profere. Não há nenhum traço de raiva ou acusação. Seu tom saiu ameno,
natural.
— Não. Por isso, não se sinta obrigada a ficar. Entenderei se preferir
ir embora. Quando estiver disposta a conversar, se um dia estiver disposta a
conversar, me ligue e terei o prazer de te encontrar de novo. — Embora com
todas as forças do meu coração eu queira que me escute, não desejo que isso
seja feito enquanto se sinta obrigada ou desconfortável. Se quero reconquistar
sua confiança, sua amizade, sua paixão por mim, devo fazê-lo de forma
honesta, espontânea e consentida.
Diante minhas palavras, pela primeira vez na noite eu a vejo sorrir de
forma mais franca. O sorriso dura apenas um segundo. Logo, sua expressão
fria retorna aos seus traços femininos e delicados.
— Eu vim e quero ficar. Mas preciso que você vá direto ao ponto,
Emilien, em vez de ficar dando voltas, mostrando interesse em minha vida
como se realmente se importasse.
Penso em dizer que me importo, sim, mas me contenho, já supondo
que tipo de resposta receberei: “Se você se importasse, não teria ido embora
depois de uma noite maravilhosa de sexo.”
— Tudo bem — concordo. Mastigo um pedaço da minha carne e bebo
um gole do meu vinho para ajudar a descer pela garganta. — Me deixe pensar
por onde começo. Tenho tanto a te dizer… — murmuro, meus pensamentos
dispersos.
Marie se ajeita em seu lugar e ingere uma colherada de sua sopa.
Após limpar os lábios com o guardanapo de pano, sugere:
— Comece me explicando algo que nunca entendi depois de nosso
retorno da África. — Faço uma expressão de quem está confuso. A
explicação vem em seguida: — Por que você se afastou, Emilien? Por que
ficou frio, distante…? — Noto um traço de tristeza em seu tom de voz. —
Enquanto estávamos trabalhando na reportagem, por dois meses nós
transamos. Literalmente todos os dias. Dormimos por um mês no mesmo
quarto, na mesma cama. Mas quando desembarcamos em Paris… — Sua
cabeça se movimenta de um lado a outro, os cachos bem hidratados e
perfumados movendo-se juntos. — Você simplesmente se distanciou.
Preciso de uma dose de coragem e de ar para conseguir responder.
Nosso tempo juntos no continente africano foi ótimo, e eu acabei me
envolvendo mais do que gostaria. Dificilmente me envolvo com alguém. Não
depois dela. Desde ela tenho aversões a relacionamentos amorosos. Muito
por causa da minha mãe, que não poderia nunca saber que eu estava tentando
ser feliz que fazia o inferno na Terra para me abalar; muito porque eu de fato
não conseguia retribuir aos sentimentos de mulher alguma e a última coisa de
que precisava era uma fila de ex-namoradas com o coração partido. Dessa
forma, preferia sempre uma mulher aqui, outra ali, e nunca estender nossos
encontros a mais do que três. Três era um número bom para dormir com uma
mulher sem que ela se envolvesse comigo ou vice e versa.
Com Marie, a coisa toda foi diferente. Acreditei piamente de que seria
suficiente levá-la para cama três vezes. Não foi. E quando ela diz que nos
dois meses em que estivemos agindo na África nós transamos literalmente
todos os dias, não é uma mentira. Não nos privamos de sexo nem mesmo
durante o seu fluxo, quando incrivelmente ela também estava mais sensível e
repleta de tesão.
Peguei-me apaixonado, da mesma maneira que me vi mais de dez
anos antes. Mas eu não podia trazê-la para minha vida, não enquanto tivesse
uma relação complicada com minha mãe — que faria de tudo para nos
separar —, não enquanto eu fosse um caos e tivesse de manter meus segredos
guardados no mais profundo do meu ser — e odeio ter de me relacionar com
alguém e não poder ser cem por cento sincero —, não quando tinha medo de
mim mesmo, medo no que poderia me transformar caso perdesse o controle.
Então, quando desembarcamos em Paris, admito, estava apaixonado
por Marie Julien. Tinha de fato sentimentos por ela. Mas nós dois nunca
íamos funcionar, por causa da minha mãe, do meu passado, do meu
segredo… Minha decisão, nesse caso, foi me distanciar, ficar frio, cortar
nossos encontros sexuais… Apesar disso, não queria parar de vê-la, queria
ser ao menos seu amigo, porque isso me afagava o ego e acalmava meu
coração. Se não podia tê-la como minha mulher, queria ao menos sua
amizade. Essa perspectiva me consolava, de um jeito ou de outro, e tornava
meus dias sem ela um pouco mais suportáveis. Assim, nos víamos vez ou
outra, não só para trepar. Mantivemos uma boa amizade. Logicamente, era
Marie quem mais me ligava sugerindo sexo, e eu nunca dizia não quando
esses convites chegavam. Eu, porém, dificilmente fazia o mesmo. E
acreditem, tive que ter muita força de vontade para conseguir não pegar o
telefone, ligar para ela e pedir que fosse até minha cobertura para fodermos a
noite toda.
— Não podia me envolver com você — explico, por fim, voltando à
realidade. Marie me olha atentamente, esperando uma explicação mais
plausível e convincente. — Já te disse, chérie… Minha vida é complicada.
Não poderia te trazer para o meio dela. Isso ia te quebrar e ia me quebrar
junto. — Faço uma pausa, umedecendo o lábio inferior e criando coragem
para proferir: — Eu… realmente gosto de você. — Desvio levemente meus
olhos dos seus. — Depois de dois meses na África, todos os dias ao seu lado,
me vi mais apegado do que deveria. Me distanciar de ti, quando voltamos
para cá, foi minha maneira de continuar te protegendo de mim e da minha
vida complicada.
Com um pequeno suspiro, ela toma seu vinho e foge do meu olhar por
alguns segundos. Sei que deveria falar sobre minha mãe — uma megera
manipuladora que não nos daria sossego —, mas não quero espantá-la nesse
momento. Pelo contrário. O que mais desejo é trazê-la para minha vida
complicada, para o caos que eu sou, mesmo que isso signifique enfrentar a
fúria de Elizabeth e tomar o dobro de cuidado com meu passado e meus
segredos.
— Por que foi embora? — questiona-me, quase impassível e rígida
em seu lugar, olhando-me com algum ar de superioridade.
— Porque ter me distanciado de você não resolveu, Marie. Juro que
tentei lutar contra meus sentimentos, me distanciar, sermos só amigos… Mas
falhei. Mesmo que nossos encontros tivessem diminuído muito, cada vez que
nos víamos era ainda mais arrebatador, mexia ainda mais comigo… —
Minha voz se reduz a um mero sussurro. — Ir embora de vez foi a única
solução que encontrei.
— E agora? Por que voltou? Sua vida por um acaso não é mais
complicada? E você não está mais tentando fugir do que sente por mim?
Como um pouco mais de meu coelho com purê antes de respondê-la:
— Minha vida continua o mesmo caos de sempre. A diferença é que
estou disposto a enfrentar tudo o que nos impede de ficarmos juntos… por
você, ma belle. Percebi, Marie, enquanto estive em Nova Iorque, que não
importa quanto tempo ou quão longe eu esteja, nada será suficiente… pra te
esquecer.
Engulo em seco sob seu olhar firme e sem emoção. Seus olhos
vacilam por um segundo, desviando-se para baixo. A mulher permanece em
silêncio, mirando sua sopa de cebola.
Com cuidado, digo:
— Voltei para que me dê uma chance… e me perdoe. J'ai besoin de
ton pardon. — “Eu preciso do seu perdão”.
— Não vai ser fácil te perdoar — diz, encarando-me. — Ter ido
embora, depois de ter transado comigo uma noite antes… foi a atitude mais
covarde que alguém poderia tomar. — Quero concordar, mas escolho ficar
quieto. — Você deveria ter sido sincero comigo, ter me falado que não queria
se envolver, que estava apaixonado, mas não queria. Pelo amor de Deus, eu
teria entendido seus motivos. Sou uma mulher adulta, não uma adolescente
histérica. Você teria sido apenas mais um na minha vida a me dar um fora.
Bernardo, Alfredo, Jacques, Leroy, Antoine, Claude… Todos eles algum dia,
por algum motivo, não quiseram mais encontros comigo. E tudo bem, porque
a vida é assim. Mas nenhum deles me magoou como você. Era só ter sido
sincero, Emilien.
Era só ter sido sincero .
Porra, ela tem razão. Mas Marie precisa entender uma coisa:
— O problema jamais foi você, chérie — explico, com um sussurro.
— Sabia que se estivéssemos tão perto, eu não ia resistir à tentação. E veja
só, nem mesmo ter passado dois anos longe, sem te ver, sem nos falarmos,
resolveu alguma coisa. Continuo apaixonado por você tanto quanto estava no
dia que tomei a decisão estúpida de deixar Paris.
Seus olhos me analisam, ainda sem emoção. Não importa o que eu
diga, nada parece o suficiente para mexer com ela, para convencê-la a me dar
uma chance de me redimir, de me perdoar. Nunca pensei que Marie pudesse
ser tão inflexível e impenetrável. Não, essa mulher à minha frente, de sorriso
forçado e expressão sisuda não é a mesma mulher alegre, cheia de vida, bem-
humorada que conheci anos atrás; aquela que me conquistou com tão pouco.
Engulo em seco diante seu silêncio e tomo o resto do meu vinho.
— Quero… ir embora — diz, com um sussurro, mordendo o lábio
inferior. Ela fica cabisbaixa por alguns segundos. Nossos pratos ainda estão
pela metade.
Suspiro e respeito sua decisão. O clima está mesmo esquisito,
desconfortável até para mim. Será mais difícil do que pensei reconquistar a
confiança, a amizade dela…
— Tudo bem. Posso ao menos te levar para casa?
Marie termina sua taça de vinho e limpa os lábios no guardanapo.
Chamo um dos funcionários para pedir a conta. Então, responde:
— Não precisa. Chamo um Uber. Ou táxi.
— Táxi — sugiro, meio incisivo. — É mais seguro. — Ela balança a
cabeça, concordando. — Se importa se eu pagar sua corrida?
— Me importo, sim — responde.
O garçom se aproxima. Peço a conta. Não insisto mais no assunto.
Marie se levanta para ir ao toalete. Nesse interim, pago nosso consumo e a
espero, em pé, ao lado da nossa mesa, meu paletó jogado em meus braços, o
celular entre meus dedos. Seguimos juntos até o lado de fora do restaurante.
Coloco minhas mãos dentro dos bolsos enquanto a espero pedir seu táxi,
sentindo-me deslocado. Olho para a rua movimentada, observando a noite, as
pessoas, os casais.
— Pronto — diz, guardando o celular na bolsa. — Cinco minutos
para meu táxi chegar.
— Se importa se eu esperar aqui com você?
Ela dá de ombros. Sorrio um pouco e volto a observar a noite
parisiense. Os segundos passam, e cada vez parece que a tensão e o
desconforto entre nós aumentam, pairando sobre nossas cabeças.
— Obrigado por ter vindo — agradeço; sou sincero, mas também é
uma forma de quebrar essa quietude incômoda e insólita entre nós. — Por ter
me escutado. Por ter vindo. Significou muito pra mim.
— Tudo bem — devolve, abrindo o segundo sorriso natural na noite.
— Acha que um dia poderá me perdoar? — pergunto, olhando para
meus pés arrastando na calçada.
— Não sei, Emilien — responde, sincera. — Mas acho que sim, não
sou de guardar rancor.
Bem, mas já se foram dois anos e ainda nada… Penso em dizer, mas
guardo minhas palavras para mim. Não sei o que se passa em seu coração, e
ela está muito certa em me odiar, em algum nível. Fecho os olhos e sinto a
brisa noturna acariciar meu rosto. Se pudesse voltar atrás e corrigir meus
erros… Quando torno a olhar para ela, vejo-a abraçando os próprios braços
para se proteger do frio.
— Me deixe te oferecer meu paletó? — indago, já o jogando sobre
suas costas, sem esperar respostas.
Marie sorri de novo, pequeno, singelo, mas sincero. Pela terceira vez.
Acho que aos pouquinhos posso, sim, reconquistá-la.
— Merci — agradece.
Não respondo. Assim, tão perto dela, fico apenas a observando,
alternando entre seus olhos âmbar e os lábios bonitos. Minha respiração
parece falhar por alguns segundos enquanto minha memória me leva aos
momentos em que experimentei da sua boca. Perdido em pensamentos
longínquos, desejando apenas saboreá-la outra vez, findar essa distância
torturante e acabar com minha vontade de tê-la em meus braços de novo, nem
percebo que, vagarosamente, me inclino em direção aos seus lábios.
— Emilien… — sussurra. Não ergo meu olhar de encontro ao seu.
Estou fixado na sua boca, quase salivando de vontade de querer tomá-la para
mim. — Estou com alguém, por favor… — informa, para minha surpresa.
Isso me tira do meu torpor e só então a olho nos olhos.
Pisco, seguidas vezes, absorvendo a informação. Ela está com
alguém. Claro que estaria. Já se passaram dois anos, seu babaca idiota. Marie
tocou a vida dela. Engulo o nó na minha garganta e me afasto lentamente,
minha cabeça zunindo, o coração descompassado.
— É sério? — exclamo e me corrijo logo em seguida: — Quero
dizer… Esse cara, com quem você está. É uma relação séria, do tipo namoro
monogâmico, ou é casual, como você e eu estávamos juntos anos atrás?
Marie ajeita meu paletó sobre seus ombros e desvia o olhar,
preferindo contemplar a movimentação nas ruas e calçadas.
— É um namoro sério — informa apenas.
Balanço a cabeça em positivo, recolhendo-me em seguida ao meu
silêncio constrangedor. O táxi chega um segundo depois. Marie tenta me
devolver meu paletó, mas o recuso.
— Está frio, fique com ele. Em uma outra oportunidade, você me
devolve.
Não mentirei dizendo que não fiquei surpreso por ela aceitar ficar
com o blazer. Com um pequeno sorriso, agradece e entra no veículo. Vejo-o
se distanciar, tomando as ruas da capital.
Inspiro e expiro profundamente, pensando na batalha que terei pela
frente.
MARIE
Maldito homem cheiroso. Posso fingir demência e não devolver mais
o paletó dele? Penso seriamente nisso.
Fecho os olhos, o balançar suave do táxi embalando-me às
lembranças passadas. Emilien sempre foi cheiroso. Uma mistura amadeirada
— proveniente de seu perfume favorito — e chocolate ao leite, algo mais
natural nele. É, Emil cheira a chocolate ao leite. É uma delícia.
Tento me repreender quando aperto mais seu paletó em meus braços,
os pensamentos vagando nos momentos em que estive em sua cama,
observando-o de bruços, suas belas costas à mostra, a pele macia, quente,
deliciosa… Velando sua respiração calma e ritmada, perguntando-me que
tipo de segredo obscuro um homem tão lindo como ele poderia guardar
dentro de si.
Suspiro e levanto as pálpebras, esvanecendo da minha mente essas
recordações dolorosas.
Eu disse a Emilien que estou com alguém. Claramente, foi uma
mentira. Precisei dizer isso se não quisesse aquela boca saborosa na minha. A
verdade é que queria muito beijá-lo, agarrá-lo no meio da calçada, no centro
de Paris. Mas sou orgulhosa demais para me render ao seu charme de novo. É
necessário manter um limite seguro entre nós, e, naquele instante, Dupont
estava prestes a avançar esse limite. Sinceramente, se tivesse ultrapassado tal
distância, se tivesse me beijado, muito capaz de eu ter ido parar na sua cama.
Mentir dizendo que estou namorando sério foi a minha solução para resistir à
tentação.
O táxi encosta frente ao meu condomínio. Dispersei-me tanto em
meus pensamentos que nem reparei em como a viagem durou pouco. Pago a
corrida e, ainda enrolada no paletó dele, subo até meu apartamento, no sétimo
andar. Acendo as luzes ao entrar e me encaminho até a cozinha. Já tive minha
cota necessária de vinho do dia, mas talvez precise de mais uma taça. Sirvo
uma dose pequena e me sento à bancada, tentando encontrar alguma coragem
para tirar essa peça ridícula de sobre meus ombros e despachá-la de volta ao
seu dono.
Puxo a lapela e inspiro profundamente o aroma de Emilien, o que me
traz boas e más recordações. Balanço a cabeça fortemente em negativo, bebo
o restante do meu vinho em apenas um gole e finalmente arranco o blazer de
mim, deixando-o sobre o espaldar de uma cadeira na minha sala. No
banheiro, tomo um banho longo e quente, pedindo a Deus para minha mentira
ser suficiente para manter aquele homem longe de mim…
Quando durmo, tento não o idealizar em meus sonhos. Mas minha
mente é traiçoeira demais e, confabulando junto de meu coração, me faz
sonhar a noite toda com Emil.

Três anos antes

Caio na cama macia, enrolada apenas em um robe de seda, sentindo-


me exausta. O dia fora longo e cansativo. Chegamos ontem à noite ao país e
estamos hospedados em uma mansão muito bonita, que ainda não tive a
oportunidade de explorar. Mas Emil já me deixou uma planta da casa com os
principais pontos de lazer: piscina, sauna, academia, biblioteca e sala de
mídia. Como se eu realmente fosse ter tempo para me divertir.
Depois do nosso sexo rápido e gostoso na limusine na noite anterior,
nós viemos para cá. Uma funcionária do local nos apresentou nossos
aposentos, a sala de estar, de jantar e a cozinha. Emilien mal pôs os pés para
dentro e estava no modo CEO fodão, atendendo a telefonemas em inglês e
resolvendo assuntos. Ele me deu um beijo rápido na testa, com o celular
grudado ao ouvido, e disse para me sentir à vontade. Então tomou um dos
corredores do imenso lugar e sumiu. Não o vejo desde então.
Hoje pela manhã, tomei um café reforçado junto de parte da equipe
envolvida no trabalho, apesar de eu raramente comer alguma coisa antes das
dez. Como nosso dia seria agitado e com poucas pausas, decidi ir bem
alimentada. Outros membros estavam com Emilien, resolvendo sabe-se lá o
quê. Isso porque não eram nem sete da manhã direito. Adoro que Emil seja
um homem matutino — enquanto eu travo uma batalha para despertar às seis.
Estranhamente, me dá tesão.
Logo após o desjejum, eu e o restante da equipe nos reunimos com
uma ONG local para traçarmos uma agenda para as próximas semanas e tudo
que faremos em cada dia de nossa estadia no país. A reunião dura três horas;
depois disso, continuamos trabalhando, conferindo equipamentos, atribuindo
cargos e tarefas. Emil alugou um prédio com estúdio e saletas de escritório
para trabalharmos nas edições e todo processo que a reportagem exigir.
Às oito da noite, tudo está pronto para começarmos, de fato, a
trabalhar no dia seguinte. Do centro da cidade, vim direto para a mansão,
enquanto a maioria da equipe preferiu ficar por lá e conhecer o local e sua
cultura. Estou cansada o bastante para preferir ter vindo embora, tomar um
banho e preparar uma xícara quente de chá.
Fecho os olhos por um minuto inteiro, apreciando a semiescuridão do
quarto, praticamente desistindo do chá e quase cochilando. Um bater na porta
me desperta. Coço os olhos e me ajeito na cama, sentada.
— Pode entrar.
Um segundo depois, a silhueta alta e definida dele está no umbral, a
luz do corredor principal incidindo sobre seu corpo. Engulo em seco, quase
perdendo o ar ao me deparar com um Emilien sem camisa, apenas com calças
de algodão, descalço. Os músculos do tórax chamam minha atenção. Embora
tenhamos transado ontem, ainda não vi esse homem nu.
— Atrapalho? — pergunta, adentrando mais o cômodo e encostando a
porta. Não consigo ver seus olhos azuis, por causa da luminosidade parca. As
lâmpadas do meu quarto estão apagadas, tendo apenas dois abajures de luzes
baixas, um em cada lado da cama, iluminando o ambiente.
— Não — respondo com um sussurro rouco.
Emilien se aproxima e para à minha frente. Ergo meu olhar ao seu.
Cruzo as pernas, de um jeito provocante, e o robe sobe levemente para
revelar minhas coxas. Os olhos dele captam meu movimento. Ele umedece os
lábios enquanto estuda minha pele despida. Mordo o lábio inferior, sentindo o
vão entre minhas pernas se contrair à medida que me recordo de ontem, do
seu membro dentro de mim.
— Como foi seu dia? — pergunta, desviando lentamente seu olhar
para o meu. Parece um sacrifício deixar de observar minhas pernas. Gosto
disso.
— Bem. Poderia ter sido melhor se eu tivesse visto você — respondo,
trocando o cruzar das pernas. Outra vez, Emilien olha para elas, sem
nenhuma cerimônia.
Meu centro queima ainda mais sob seu olhar de desejo. Enquanto ele
está observando minhas coxas, concentro-me no membro que está
praticamente na altura dos meus olhos, ereto. Ele nem mesmo usa cueca. Mon
Dieu. Resfolego quase sem perceber, encarando sua ereção escondida
debaixo do tecido.
— Gosto de saber que melhoro seu dia — devolve, a voz em uma
rouquidão sensual.
— Hum? — murmuro, ainda concentrada no seu volume.
Seus dedos tocam no meu queixo e me levam a olhá-lo.
— Disse que gosto de saber que melhoro seu dia. Você também
melhora o meu — repete, encurvando-se de encontro à minha boca. Então
suas mãos descem vagarosamente até as minhas e as pega, subindo-as de
volta pelo seu tronco. Sinto o calor do seu abdome em minhas palmas, a
rigidez dos músculos, a maciez da sua pele cálida e branca.
Meu estômago aperta, minha vagina ensopa quase instantaneamente.
Emilien me faz tocá-lo por alguns segundos até que estaciona minhas mãos
em sua cintura. Outra vez sou levada a olhar para sua ereção. Suspiro, quase
sem perceber que ele já não me conduz mais e que meus dedos se movem
sozinhos para a bainha da calça, se enroscam ali e, muito devagar, começam a
puxá-la para baixo.
Seu pau duro pula para fora, ereto, majestoso. Mesmo à meia-luz,
contemplo a beleza do seu órgão. Não é exageradamente grande, mas
também não é minúsculo. Está dentro da média, com dezessete ou dezoito
centímetros. E, de qualquer maneira, Emilien Dupont já provou que tamanho
não é documento e que sabe usar muito bem seus atributos.
Um grasnado escapa de sua garganta quando minha mão se fecha em
torno dele. Começo com toques suaves de para cima e para baixo, subindo
tudo até a glande e descendo o máximo até a base, meus olhos fixados em
como esse desgraçado tem um pênis bonito. Tudo bem. Pênis são todos
iguais, mas já vi uma boa porção destes órgãos sexuais para afirmar que o de
Emil parece mais bonito.
Separo meus lábios devagar e o tomo em minha boca na mesma
velocidade. Escuto seu gemido baixo e, logo em seguida, me toca no rosto.
Então eu o olho. Emil me agarra suavemente pelos cabelos e me acaricia
enquanto o chupo sem pressa.
Abro minhas pernas e começo a me tocar enquanto o engulo. Seus
olhos escurecem à minha atitude e até posso dizer que o sinto mais duro em
minha boca. Um segundo mais tarde, ele me levanta da cama e desfaz o nó do
robe, abrindo-o com algum desespero e rispidez. Meu corpo despido por
baixo da vestimenta se revela aos seus olhos, e ele arqueja.
Seu corpo se inclina de encontro ao meu e toma meus seios em sua
boca, chupando-me sôfrego, ávido, intenso. Minha cabeça vai para trás e
deixo um gemido alto no ar.
— Camisinha… — digo. Os dedos dele, esplêndidos, alcançam meu
ponto desesperado e me tocam furiosamente. — Você tem camisinha? —
Quase não consigo perguntar.
Ele enfia a mão no bolso de sua calça do pijama e retira um conjunto
com três pacotes. Mon Dieu, o homem não só veio preparado como veio para
dar mais de uma. Adoro.
Emil se afasta apenas o suficiente para rasgar uma embalagem e se
revestir. Eu já estou fazendo menção de me deitar e arreganhar as pernas,
desesperada em querê-lo dentro de mim, quando ele me puxa com tudo de
encontro ao seu tórax duro e me toma em um beijo alucinado. Sua boca se
desvia um segundo depois para meu colo, encontrando meu par de seios
intumescidos, abocanhando-os deliciosamente, seus dentes beliscando-me
com uma pressão que me dá prazer lá embaixo e por todo meu corpo.
As mãos me agarram com força pela cintura e me impulsionam para
seu colo, segurando minhas pernas pela curva interna dos seus braços. Como
se eu não pesasse nada, Emilien me desce de encontro ao seu membro erigido
e me penetra fundo ao mesmo tempo em que me beija, calando meu gemido
mais insano. Seus lábios novamente abocanham meus seios, trabalhando nos
mamilos enquanto os quadris batem de encontro aos meus, elevando-me a um
nível surpreendente de prazer.
Agarro seus ombros com toda força e lambo seu pescoço com tudo
que há dentro de mim quando o primeiro orgasmo invade meu corpo.

Acordo molhada. Não de suor, mas lá embaixo. Desconfio até que


gozei.
Giro na minha cama, frustrada com esse sonho maldito. Um sonho
que, na verdade, foi uma lembrança do meu segundo dia na África do Sul,
junto com Emilien. Homem desgraçado que me faz gozar inclusive nos
sonhos.
Travo uma batalha para sair da cama e seguir para o banheiro. Uma
ducha rápida e morna me ajuda a me despertar. Na cozinha, preparo apenas
um chá verde, uma vez que não como nada antes das dez da manhã.
A porta de entrada do meu apartamento se abre e por ela passa uma
Isabelle toda trabalhada na maquiagem e no salto-alto. Olho no relógio na
parede da cozinha. Não são nem sete da manhã direito. Ela me toma em um
abraço apertado e forte e depois se afasta, acomodando-se em uma das
banquetas da ilha enquanto tagarela sobre alguma coisa. Tudo isso em apenas
alguns segundos. Nem tive tempo de cumprimentá-la.
— Falou com Héron? — pergunta, dispensando os cumprimentos
básicos.
— Bonjour para você também. — Isabelle revira os olhos e me
desdenha com um movimento de mão. — Falei, sim. Ele vai ler seu original
na próxima segunda, depois que eu o acompanhar a um evento beneficente.
Então, me traga seu livro no domingo à noite, pode ser?
Os olhinhos da minha irmã brilham como criança em noite de Natal.
O sorriso estampado em seu rosto demonstra que está muito animada e
contente com a notícia. Ela sai de seu lugar e abre minha geladeira, sem
cerimônia, pegando um dos meus iogurtes.
— Marie, obrigada, de verdade — agradece, a colher erguida frente a
seus lábios. — Você não sabe o quanto isso significa pra mim.
Termino de beber meu chá verde e deixo a xícara dentro da pia.
Aproximo-me da minha irmã e a abraço, deixando um beijo suave em seu
rosto.
— Sei, sim. E não há de quê. Espero que dê tudo certo. Agora, tenho
que ir pra redação. Não esqueça de trancar a porta quando for embora —
lembro-a, abraçando-a pela última vez antes de sair.

Héron, como todo bom francês, é pontual. O evento beneficente


Dames Parisiennes começou às treze horas, mas ele ficou de vir me buscar às
quatorze. E aqui está ele, bonito dentro de uma camisa branca, de terno e
gravata preta. Enrosco-me ao seu braço e o acompanho até o carro,
estacionado na garagem no subsolo do prédio. O percurso é feito com uma
conversa amena e agradável sobre trivialidades. Educadamente, ele abre a
porta do passageiro e se põe ao meu lado em seguida, colocando a chave na
ignição.
— Por que precisa de mim nesse evento? — pergunto, por fim. Quis
lhe fazer essa pergunta a semana toda, contudo, conhecendo seu jeito meio
rude, preferi evitar levar patada.
Mas, agora, Héron parece mais descontraído e menos antissocial. Não
o conheço muito além das paredes da redação, mas tenho a impressão de que
sua fama de ser um cara arrogante e grosso não se estende muito à sua vida
particular.
— Já te disse, oras — responde-me, no seu tom nada moderado. —
Não quero aparecer sozinho.
— Entendi essa parte — devolvo, mantendo-me educada. — Mas por
que justamente eu?
Héron me olha atentamente, as sobrancelhas vincadas.
— Se não queria vir, era só ter me dito, Marie Julien. — Aí está, o
cara rude e mal-educado que todo mundo fala.
Reviro os olhos e decido ficar na minha. Ele guia o restante do
caminho também em silêncio. Eu quero perguntar onde será a festividade
desse ano, entretanto prefiro não fazer mais perguntas para ele. No retrovisor,
antes de descer, confiro minha maquiagem e cabelo. Estou limpando uma
pequena borra de batom quando a porta se abre e ele me pega pelo braço,
indelicadamente, e começa a me puxar para fora do veículo.
— Héron Poirier! — exclamo, enquanto ele ri e me prende à sua
cintura, pouco se importando com sua indelicadeza. O homem joga as chaves
do carro para o manobrista e só então me dou o luxo de reparar onde
estamos.
O Hotel Saint James Paris é maravilhoso. Tem um chafariz no meio
do extenso pátio de entrada, adornado por um canteiro verde e bem-cuidado.
Sua fachada, de janelas e portas altas, é imponente como um castelo. Bem, de
fato, o hotel é um castelo. Ao meu redor, o paisagismo abrilhanta os olhos de
qualquer um: arbustos, árvores e plantas rodeiam todo o local. Mais à frente,
no lance de escada logo à entrada, um homem e uma mulher bem-vestidos
recepcionam aqueles que chegam.
Quando nos aproximamos, Héron dá nossos nomes, que coincidem na
lista de convidados. Nossa passagem é liberada e logo estamos no salão
principal do hotel. Tem várias mesas espalhadas, delicadamente cobertas com
toalhas brancas e guarnecidas de taças de cristais, porcelanas e talheres de
prata pura. No centro do salão, estende-se uma alargada escadaria, de tapete
vermelho, que leva para os pisos superiores do hotel-castelo.
— Aqui — Héron diz, puxando uma cadeira para mim. Na mesa, uma
plaquinha com nossos sobrenomes indica que cada convidado tem seu lugar
reservado.
Sorrio e agradeço sua — incomum — gentileza. Um garçom tão
rapidamente vem nos atender. Peço apenas água, Poirier quer um vinho tinto.
Não muito longe, vejo Dousseau e sua esposa conversando com um
conhecido hoteleiro de Paris, René Deschamps. Inclino-me no ouvido de
Héron e digo que não me demoro.
— Vou cumprimentar alguns amigos — esclareço, mas ele não diz
nada.
Aproximo-me de meu amigo e o cumprimento com um beijo no rosto
e um abraço apertado, fazendo o mesmo com sua esposa. Ann-Marie e
Bernardo são bem engajados em projetos desse tipo. Inclusive, os dois se
conheceram na festa de gala que Emilien deu para arrecadar fundos para sua
ação na África. Desde que a conheci, sei que ela é ativa no Dames
Parisiennes, colaborando no levantamento de fundos e doações. Mais
recentemente, está engajada em colaborar com a organização da festividade
também. A causa social deste ano é animal e ambiental. Três edições atrás,
por exemplo, as arrecadações foram todas para os orfanatos da cidade.
— Veio sozinha? — Ann-Marie pergunta, olhando atentamente ao
redor.
— Com um amigo — respondo. Prefiro não falar que Héron é meu
chefe. Não sei por que exatamente. Sei que Ann-Marie não é de julgar
ninguém, ela é uma boa mulher, de verdade, mas prefiro evitar comentários
maldosos caso isso saia daqui. — Ele veio representando o grupo editorial —
explico.
Ann-Marie abre um sorriso pequeno e acena em positivo. Uma
garçonete passa, oferecendo-nos champanhe e aperitivos. Minha amiga nega
ambos, mas eu acabo por aceitar a bebida. Nós conversamos amenidades por
uns cinco minutos até que, por fim, decido voltar à minha mesa e trazer
Héron para fazer as devidas apresentações. Sei que já deveria ter feito isso, ao
invés de deixá-lo sozinho; pois bem, se ele não faz questão de ser educado
comigo, não terei a mesma preocupação.
O evento perdurará até por volta de oito da noite, um buffet será
servido às dezesseis para os convidados que farão os donativos. Dousseau e
Poirier engatam em uma conversa e, algum tempo depois, decidem ir
cumprimentar outras personalidades presentes. Ann-Marie me conta as
novidades sobre seu ateliê. Ela está bastante animada com a perspectiva de
crescimento e dos elogios que recebeu de Silvia Ferreira no sábado passado.
A estilista prometeu fazer uma visita para conhecer as criações dela, o que a
deixou em polvorosa e na expectativa.
Uma bela mulher, já de idade, aparentando seus sessenta anos, sobe
até metade dos degraus do hall, segurando um microfone em mãos. Testa o
som, batendo suavemente seus dedos no objeto. Seu vestido é verde-
esmeralda, longo, adornado com pequenas pedrinhas brilhantes. Seus cabelos
alourados estão presos em um coque francês e as orelhas acomodam brincos
de esmeralda, combinando com sua elegante vestimenta.
— Boa tarde, mesdames et messieurs — ela começa. Sua voz é suave
e clara. O discurso inicial é relativamente rápido. Ela agradece a presença de
todos e pelas doações generosas. Fala sobre o destino das arrecadações,
apresentando rapidamente, para a plateia, os presidentes das ONGs que
receberão as doações.
Aplausos irrompem por todo hall, e os homens agradecem com
murmúrios e mover de cabeça.
— Como alguns de vocês devem saber — a interlocutora continua seu
discurso —, o Dames Parisiennes tem vários colaboradores, voluntários e
patrocínios. Entretanto, há sempre aqueles que mais se destacam e todo ano
temos um patrono oficial da nossa causa. — Ela recebe um pequeno envelope
das mãos de um homem também vestido com muito esmero. Com toda
delicadeza, abre e lê os nomes de destaque do evento: — René Deschamps,
empresário do ramo hoteleiro, Édouard Michaud, advogado e voluntário de
causas animais… — Conforme os nomes vão surgindo, os aplausos sobem à
atmosfera ao passo que os mencionados se levantam de seus lugares e
acenam aos demais. — Héron Poirier, conceituado editor representando o
grupo editorial Intéressant. Ann-Marie e Bernardo Dousseau, amigos já
conhecidíssimos de nosso evento. A todos vocês, nossos sinceros
agradecimentos.
Busco por Héron, praticamente do outro lado do salão, com uma taça
de champanhe nas mãos, ao lado de Bernardo. Sorrio para ele, que ergue a
taça em minha direção e sorri de volta.
— Agora, quero apresentar o nosso padrinho oficial desta edição. Esta
figura generosa que nos ajuda há muitas edições do Dames Parisiennes e este
ano decidiu nos apadrinhar. Um jovem muito bonito e filantropo. — A estas
palavras, a mulher se vira de frente para a escadaria. — Por favor, recebam
com aplausos Emilien Dupont.
O salto que eu dou na cadeira é tão grande que quase me derruba. Um
segundo depois, meu corpo todo fica tenso, retesado. Uma pontada atinge
meu estômago e minha cabeça dói enquanto as palmas fervorosas preenchem
a atmosfera. Todos se levantam de seus lugares para recepcionar Dupont. Eu,
contudo, estou em choque demais até para isso. Ann-Marie, muito solidária,
se inclina levemente sobre meu ouvido e toca meus ombros, perguntando-me
se me sinto bem.
Engulo em seco e abano a cabeça em positivo. Levanto-me de meu
lugar, com certa dificuldade, admito, e me junto às palmas — mesmo a
contragosto. Quando meus olhos se erguem para as escadas de tapete
vermelho que se abrem bem no meio do salão, a visão que tenho dele é quase
divina. Emilien está usando um conjunto cinza escuro, brilhante, feito
provavelmente de seda. A vestimenta tem três peças: a calça, que dá um
caimento lindo em suas pernas longas, o colete, levemente mais escuro que as
demais partes, e o paletó. A camisa é branquíssima e contrasta com uma
gravata de mesmo tecido e tonalidade do terno. Os cabelos pretos estão bem
penteados para trás.
Odeio admitir, mas ele está irresistível enquanto desce,
elegantemente, quase de forma majestosa, as escadas. As mãos pousadas ao
lado do corpo, os olhos azuis passeando pelo hall e por todos os convidados
até ele encontrar os meus. Então uma leve surpresa cruza sua expressão. Seu
olhar se prende a mim quando Emil para de andar por apenas um segundo. A
postura é retomada tão rápido que acho impossível alguém, além de mim, ter
notado seu hesitar.
A atenção dele se desvia para a senhora, que o recebe com um abraço
e três beijos no rosto. O microfone é passado para suas mãos. Seus olhos
correm pelos presentes outra vez, os dedos firmes seguram o microfone perto
dos lábios.
Emilien começa seu discurso. Dura uns cinco minutos e só então,
enquanto fala, me dou conta. Meu Deus, como nós dois estamos no mesmo
ambiente de novo em exatamente uma semana? Nosso reencontro no baile
ainda acho que foi premeditado, mas aqui, não me parece ter sido algo de
propósito.
Resfolego quase sem perceber — aliás, até me coloquei em meu lugar
outra vez, como todos os outros, e sequer percebi. Estou hipnotizada na fala
deste homem, em como gesticula enquanto conversa com todos, simpático,
sorridente… Nem mesmo me atento direito ao que ele diz, concentrada estou
em seus trejeitos, no sorriso…
Lembranças de repente me atormentam e apertam meu coração. Num
átimo, me levanto de novo, chamando atenção de algumas pessoas ao meu
redor. Emilien me olha, parando de falar por um mísero segundo, e lhe dou as
costas, saindo sem pedir licença. Atravesso as portas duplas e altas do hotel,
abrindo um pequeno sorriso para os recepcionistas ainda plantados ao pé da
escada. Desço os poucos degraus rapidamente e caminho em direção ao
chafariz no centro do pátio. O sol da tarde esquenta meu rosto; fecho meus
olhos e deixo o calor acariciar minha pele, enquanto tento fazer meu coração
bater normalmente.
Será que esse homem vai estar em todos os lugares que eu estiver?
Dou uma risada baixa e sem humor. E eu achei que Paris era grande o
suficiente para nunca mais nos encontrarmos. Aparentemente, estava
enganada. Sento-me à mureta do chafariz, abaixando a cabeça.
Uma mão pousa sobre meu ombro um instante depois, assustando-me.
Abro os olhos e me deparo com Héron sentado ao meu lado.
— Está tudo bem com você?
— Sim. Só preciso de um pouco de ar — respondo, com um pequeno
sorriso.
— É por causa de Dupont? — pergunta, deitando um pouco sua
cabeça.
Eu o fito por um interminável segundo, não sabendo como responder
a essa pergunta sem me sentir patética como uma adolescente apaixonada que
sofreu uma decepção amorosa com o cara mais popular do colégio. Corto
nosso contato, mirando para frente, para a entrada do hotel.
— Já sei — murmura. — Vocês se envolveram e ele foi um babaca.
Suspiro, seguido de um bufar, e aceno em positivo.
— Isso. E também porque é a segunda vez que nos encontramos em
um evento em apenas uma semana. Emil voltou à França tem pouco mais que
isso, e eu só queria ficar longe dele. Parece impossível.
Héron nada diz. Só me olha complacentemente e sorri pequenino.
— Quer alguma coisa? — oferece. Toda sua educação e gentileza me
parecem bastante atípicas.
Bem, aproveitarei que está se oferecendo:
— Pode me trazer uma água?
Sem dizer mais nenhuma palavra, ele me deixa sozinha.
Minutos se passam enquanto permaneço só, vagando em meus
pensamentos, tentando entender se é algum sinal do Universo Emilien e eu
nos encontrarmos dessa maneira. Meus devaneios são interrompidos quando
alguém se põe do meu lado. Já estou abrindo a boca para agradecer a água,
acreditando piamente se tratar de Héron, mas travo um segundo depois,
deparando-me com seus intensos olhos azuis. Assim, tão perto, olhando bem
dentro dos seus olhos, ele parece mais bonito do que me lembrava. A barba
está média e bem-aparada, o que lhe dá um aspecto ao mesmo tempo viril e
maduro.
— Por que está me perseguindo? — cuspo, movendo-me alguns
centímetros e distanciando-me dele.
Emil ergue uma sobrancelha e esboça um sorrisinho meio canalha.
— Sou o patrono do evento esse ano, Marie. Não estou te
perseguindo.
— Será mesmo? — devolvo, fazendo-me de incrédula. Lá no fundo,
algo me diz que esses encontros não são apenas por acaso. — Não me
surpreenderia se você soubesse que eu estaria aqui e deu um jeito de ser o
“patrono” — exprimo, fazendo aspas com os dedos na última palavra.
Por algum motivo, Emilien ri. Uma risada graciosa e gostosa. Será
que soei estúpida demais?
— Chérie, sou filantropo. É bem normal eu estar envolvido em
eventos beneficentes. Aliás, essa não é a primeira edição do D.P. que
participo.
Dou uma risada meio lunática.
— Engraçado você dizer isso, porque é a primeira vez que te vejo
aqui.
A língua (maravilhosa) dele passa pelos lábios, umedecendo-os de um
jeito bastante provocativo. Meus olhos traidores deslizam sem discrição
alguma para captar a singela ação.
— Talvez porque nos conhecemos há três anos, e nas três últimas
edições eu não estivesse em Paris — explica, calmamente, um sorriso
brincando nos lábios finos. Odeio quando Emilien tem razão. Três edições
atrás, foi exatamente quando estávamos na África. Duas dos anos seguintes,
ele estava morando em Nova Iorque. — Mas se você pesquisar sobre o
evento nos anos anteriores em que nos conhecemos…
— Já sei, já sei — interrompo-o, impaciente e nem um pouco
interessada em vê-lo se esnobar. — Vou encontrar generosas doações suas e
ativas participações. Bem, de algum jeito faz sentido você ter apadrinhado
uma causa animal esse ano, já que você é um cachorro! — exclamo dando de
ombros.
Emilien faz uma cara de ofendido que dura só um segundo. Depois,
dá outra da sua gargalhada profunda e rouca, que mexe um pouco mais com
meu âmago, fazendo-me parar para observá-lo.
Olhamo-nos por alguns segundos, Emilien ainda se recuperando da
sua risada. O silêncio impera sobre nós, a tensão e o desconforto se tornam
quase palpáveis. Ele suspira e desvia o olhar de mim por um segundo.
— Estamos bem? — pergunta, mirando para baixo, e sigo seu olhar
por alguns segundos. A grama do canteiro é saudável e bem-cuidada.
Estranho seu questionamento, mas o compreendo facilmente.
— Não, Emilien — respondo. — Pare de me pressionar a te perdoar.
O que você fez…
— Eu sei — corta-me, meio rígido. Ele odeia ouvir a verdade. —
Eu… Você tem razão — fala, movendo a cabeça de um lado a outro, os olhos
fechados e apertados. Sua ação é como se estivesse espantando pensamentos
indesejados. — A última coisa que quero é te impelir a me perdoar. Entendo
que isso, se acontecer, deve ser de forma natural. Desculpe, não vou mais te
atormentar com isso.
Não digo nada, apenas sorrio. Penso em agradecê-lo, mas desisto no
mesmo instante. Ora essa, não vou agradecê-lo por não estar fazendo mais
que sua obrigação de respeitar meu tempo e meu espaço. Só espero que
cumpra com sua palavra.
— Você está mesmo com alguém? — questiona, tornando a me olhar.
Os cotovelos estão apoiados nas coxas, o queixo entre as mãos, seus olhos me
analisam de um jeito até infantil, eu diria.
— Estou — reafirmo minha mentira.
Emil acena em positivo, devagar.
— Ele veio junto?
Em um ato muito impensado, respondo:
— Sim. — Outros segundos esquisitos de silêncio. — Não me olhe
como se ter tocado a minha vida fosse um erro imperdoável — repreendo-o.
Um sorriso fúnebre surge em seus lábios.
— Não estou te olhando de forma alguma. Só não consigo evitar o
sentimento de ciúmes. Esse cara… tem você. Só a mulher que eu mais queria
nesse mundo.
Minha respiração parece falhar por um segundo diante sua declaração.
Minha postura deve ter vacilado por alguns instantes, e se o que Emil fez não
tivesse sido tão… canalha… com toda certeza já teria me jogado em seus
braços e o perdoado. Ah, mas eu não vou mesmo perdoá-lo com facilidade,
nem me render a esse charme que só ele tem. Mesmo se quisesse, ainda não
sou capaz. A mágoa e a raiva de dois anos atrás ainda existem; não no mesmo
nível — porque uma hora a gente supera —, mas existem. Talvez até tenham
tomado um pouco mais de força com essa sua volta tão inesperada.
— Sei que não é da sua conta, mas nos últimos oito meses não estive
com ninguém — fala, levantando-se do meu lado.
— Pois eu estive com vários — respondo, dando de ombros. Não era
minha intenção ser rude ou magoá-lo, mas acabo por fazer os dois. Noto isso
em como a expressão dele se fecha em uma careta que me parece ser de dor.
Bem, não parei minha vida por conta dele e não pedi que parasse a sua por
mim. Nenhum discursinho de “não estive com ninguém” vai me amolecer.
— Achei que estivesse namorando — ele observa, semicerrando os
olhos em minha direção.
Engulo em seco, dando-me conta do furo.
— E estou… Estamos há pouco tempo juntos. Sei lá, uns três ou
quatro meses — minto, mordendo o lábio inferior.
Emilien enfia a mão no bolso da sua calça e comtempla algum ponto
por entre as águas do chafariz.
— E onde ele está agora, Marie? — questiona-me, com certo tom de
desconfiança, virando seus olhos em minha direção.
Ele está me desafiando a provar que estou com alguém. E, se eu não
fizer, Emilien vai saber que menti por causa dele. Isso só vai alimentar seu
ego e sua esperança de conseguir meu perdão e uma relação comigo — que é,
creio eu, o que busca em mim.
Pestanejo algumas vezes, perguntando-me por que raios fui inventar
essa mentira, confirmá-la e, ainda por cima, dizer que meu “namorado” está
me acompanhando no evento. E — por Deus do céu! — onde acharei um
namorado de mentira agora?
Como uma resposta para meu pedido, Héron vem caminhando em
minha direção, às costas de Emilien, trazendo duas taças, ao que parece, uma
de água e uma de vinho. A ideia mais insana passa pela minha cabeça.
— Bem atrás de você — digo, levantando-me e passando por ele, que
se vira no mesmo instante e me vê abraçando Héron pelo pescoço e dando-
lhe um beijo profundo.
Poirier retribui depois de relutar por um segundo. E só nesse
momento me dou conta da burrada que cometi.
Eu beijei Héron.
Meu chefe.
Mon Dieu, por que eu fiz isso?
EMILIEN
Bile sobe pela minha garganta e amarga minha boca enquanto a vejo
beijar Héron Poirier, seu atual namorado. Tento não demonstrar como isso
me afeta, mas acho que falho miseravelmente.
Por fim, Marie para com seu exibicionismo e se afasta do namorado,
segurando-o pelos braços. Os dois se olham por um segundo que me parece
ser esquisito, como se não estivessem acostumados a essas demonstrações em
público. Ela murmura algo inaudível na boca dele, pega em seguida uma das
taças que ele traz em mãos e então se vira para mim, abraçando-o pela
cintura.
— Emilien, meu namorado, Héron, que você já deve saber que é
editor na Intéressant.
Com uma carranca no rosto, ele estica sua mão em minha direção. Eu
reluto em trocar cumprimento, mas me recordo de que preciso parecer
civilizado, por mais que minha vontade seja de agir como um grosseiro,
ciumento e babaca. Por esse motivo, estico minha palma e troco um
cumprimento, apenas acenando rapidamente com a cabeça.
O clima fica desconfortável na mesma hora. Desvio o olhar para à
entrada do hotel.
— Vou voltar lá para dentro. Com licença — digo, meneando a
cabeça brevemente e retirando-me em seguida, caminhando a passos lentos,
obrigando-me a não olhar para trás.
Ao adentrar novamente o local, um garçom está passando e
oferecendo uísque. Pego um copo e viro tudo de uma vez, a bebida
queimando conforme desce. Tento ignorar o desconforto batendo à porta do
meu peito. Confesso que, em dado momento depois do nosso jantar, ponderei
que Marie tinha mentido sobre estar com alguém só para me frustrar. Mas
hoje provou que estava dizendo a verdade. Inferno. Odeio esse sentimento de
ciúme e raiva subindo pela minha espinha.
Caminho até o bar no salão e peço outra dose de uísque. Viro a bebida
na mesma velocidade que a anterior. O líquido marrom novamente desce
queimando. Bato o copo no balcão e peço mais uma, que me é servida sem
protestos. Antes de virar outro gole, encaro o copo à minha frente, a bebida
movendo-se levemente em pequenas ondas. Nesse momento, me recordo no
que me transformo quando fico bêbado e é por esse motivo que não me
embriago de verdade há bastante tempo, mais de uma década. Afasto a dose
de perto de mim no mesmo instante que uma mão apoia em meu ombro e
Bernardo diz:
— Vai com calma, ami. Não pega bem o patrono do evento ficar
bêbado. — Ele se senta do meu lado e pede uma água com gelo. Enquanto
espera seu pedido, vira-se para mim. — O que há?
Suspiro e aperto os olhos, sentindo a frustração percorrer minhas
veias. Por que achei que depois de dois anos, depois do que fiz a ela, Marie
me perdoaria e, ainda por cima, estaria sozinha? Sou um idiota por não ter
ponderado que estaria com alguém. Uma pessoa que realmente mereça. Não
eu.
— Sabia que Marie está namorando? — questiono-o, mirando-o
profundamente dentro dos olhos. Se ele sabia, então por que não me alertou?
Bernardo faz uma expressão de surpresa e confusão.
— Marie? Marie Julien… namorando? — Aceno em positivo. Volto-
me para o barman e peço uma taça de água também. Dousseau dá um gole
generoso na sua e, apoiando-a sobre um pequeno descansa-copos, responde:
— Não fazia ideia. Ela não me disse nada.
Com os braços apoiados à superfície, em uma postura que demonstra
como estou frustrado e me sentindo derrotado, observo-o com bastante
atenção, analisando sua resposta. Marie e ele são bastante amigos. Acho
difícil ela namorar um cara por quatro meses e não contar nada a Bernardo.
Minha água chega. Bebo um gole generoso e resolvo deixar por isso
mesmo.
— Tudo bem, não importa mais. Minhas chances de reconquistar a
confiança dela caíram por terra — falo, fechando os olhos, mais uma vez
ignorando as pontadas no coração.
Bernardo permanece em silêncio, apenas me olhando, talvez sem
saber o que me dizer. Quando volto meu olhar para a entrada do salão, vejo-
os juntos, braços entrelaçados. O olhar dela se junta ao meu, e eu não sei
decifrá-los. Marie sorri para Héron e o guia para algum canto do enorme hall,
ignorando-me. Suspiro, exasperado, e bebo o resto da minha água.
Vai ser uma tortura o resto desse evento.

Dezesseis anos antes

Quando ela abre a porta, paro de olhar as fotos, ergo minha câmera
profissional para a entrada e bato um retrato dela. Assim, bem espontânea.
Adoro pegar momentos espontâneos.
Désirée sorri e coloca uma mecha do seu cabelo ruivo atrás da orelha,
enquanto ajeita a alça da bolsa no ombro direito e fecha a porta.
— Sabe que eu odeio tirar foto — fala, sentando-se do meu lado e
conferindo o retrato que acabei de tirar. Sorrio e a olho. — Uau, ficou boa!
— exclama.
— Ficou. Você é bonita. Ajuda muito — respondo.
Um lindo sorriso ilumina seu rosto. Um segundo depois, estou
capturando esse momento. Ela gargalha e me estapeia no ombro,
empurrando-me em seguida. Então, se recosta no sofá onde estou sentado e
arranca os tênis, colocando os pés sobre a mesinha de vidro no centro da
sala.
— Como foi seu curso hoje? — pergunto, voltando a conferir as fotos
que tirei mais cedo, no Champs de Mars.
Com um suspiro, Désirée Lacroix discorre sobre seu dia. Embora eu
esteja com os olhos grudados nas imagens da minha câmera, presto atenção a
tudo que me diz. Gosto dela, como amigo, claro. Ela foi a pessoa que me
estendeu a mão quando decidi sair da casa dos meus pais, ano passado.
Estudamos na mesma universidade — a Vincennes-Saint-Denis —, mas
cursos diferentes. Ela faz Economia e Gestão, enquanto eu estudo Fotografia.
Além disso, dividimos o apartamento. Pago um aluguel mensal a ela, que
herdou tudo dos pais. Brinco, às vezes, que ela é um clichê ambulante. A
garota rica que perdeu os familiares em um acidente. Não de carro, mas de
avião. Eles morreram dois anos atrás, quando voltavam de uma segunda lua
de mel e o avião caiu no oceano. Nunca recuperaram os corpos deles.
Os Lacroix são uma família conhecida em Paris. Eles têm um império
de redes de supermercados, empresas alimentícias e de cosméticos.
Cinquenta por cento de todas as ações estão em poder da família dela. Na
verdade, com o falecimento dos pais e sendo filha única, esses cinquenta por
cento estão nas mãos dela. Mesmo que não precise me cobrar aluguel — e
tenha se negado a receber nas primeiras vezes e eu tenha tido que enfiar
dentro de sua bolsa —, faço questão de pagá-la. Papai disse que me daria um
apartamento, mas gosto da companhia e da amizade de Désirée, então
agradeci, mas neguei. Nós nos conhecemos ainda na adolescência. Sendo da
alta sociedade de Paris, era comum nos esbarrarmos nos mesmos eventos.
Aos poucos, estreitamos nossos laços e nos tornamos bons amigos, daqueles
de fazermos todos os programas de finais de semana juntos.
—… e o seu? — me questiona ao terminar de falar do seu dia.
Abro um sorriso enorme. Estou realmente animado com meu curso.
Amo tanto o que faço. Já estou no segundo semestre e cada dia mais sei que
fiz a escolha certa para a minha carreira. Ajeito-me no sofá e falo sobre
minhas aulas do dia. Da mesma maneira, ela presta atenção em mim,
interessada no assunto. No final, mostro algumas fotos que tirei na volta para
cá.
— Estão todas lindas, Emil. Você realmente tem o dom — elogia,
enquanto continuo passando as fotos.
— Opa! — exclamo ao me deparar com algo mais comprometedor.
— Mas que porra…
Désirée ri enquanto vou avançando nas fotografias, uma pior do que a
outra. São selfies minhas fazendo careta, segurando garrafas de cerveja
pilsen, abraçando uma garota morena — ou outras delas —, rindo com alguns
amigos, fotos aleatórias de pernas, paisagens, braços, colos…
— Você estava tão bêbado nesse dia — minha amiga diz, em meio à
sua risada.
Franzo o cenho, não me recordando de ter batido tais fotografias.
Fecho os olhos e inspiro fundo. Odeio me embriagar por causa disso. Nunca
me lembro de nada. Apago as imagens comprometedoras enquanto ela se
recupera da sua crise de risos. Então, um silêncio meio tenso. Olho para o
lado e a vejo com a expressão franzida.
— Precisa se controlar. Sei que não é por mal e é só quando está
bêbado, mas você fica muito instável quando bebe muito.
— Eu sei — digo, suspirando.
— Nessa festa, você estava superbem, mesmo bêbado. A gente se
divertiu. Mas mais lá pro final da noite, você mudou, ficou meio agressivo,
começou a discutir com uma garota. — Leva a mão à boca, abafando uma
risada. — Se eu não te tiro de lá, capaz de ter apanhado dela.
Jogo minha cabeça para trás, rindo exageradamente dessa parte. Mas
Désirée tem razão. Preciso maneirar na bebida — não que eu seja um
alcoólatra — ou ainda vou arrumar dor de cabeça por causa do meu
temperamento, que fica oscilante quando bebo além do limite.
— Vou ouvir seus conselhos — digo, desligando a câmera
fotográfica. — Aliás, vou passar esse final de semana na casa dos meus pais.
Désirée me oferece um sorrisinho sacana.
— Vai visitar a mãegera — caçoa.
Mãegera. Uma mistura de mãe e megera, uma palavra que define
bastante Elizabeth Dupont. Dou uma risada meio sem graça e abano em
positivo.
— Não vejo meu pai nem minha irmãzinha já tem uns três meses.
Apenas ligações. Sinto saudades deles.
— Sinto muito precisar ter se afastado deles por causa da sua mãe.
Ela nunca aceitou tratamento, não é?
— Non — nego, suspirando em seguida. — Maman jamais sequer
aceitou o diagnóstico dela, quanto mais tratamento.
Um breve silêncio paira sobre nós. Não é desconfortável, é até
comum entre nós dois. Por fim, levanto-me, inclino-me para minha amiga e a
beijo no rosto, dizendo que vou preparar algumas coisas para minha ida à
casa dos meus pais no dia seguinte. Ela devolve o beijo e me deseja sorte.
De fato, precisarei.

Confiro alguns e-mails, respondo os mais importantes e acesso minha


agenda, consultando meu próximo compromisso enquanto espero o elevador
subir. Segunda-feira de manhã e estou atolado de trabalho. Como sempre.
Alguém se põe do meu lado, uma das estagiárias, e me cumprimenta
educadamente. Sem quase desviar meus olhos do meu celular, eu a respondo.
A menina parece tensa do meu lado, quase suando frio, como se eu
fosse o Todo Poderoso. De alguma forma, sou. Como CEO do grupo, é
normal que os funcionários tenham certo receio ao meu lado. Mas isso
porque ela é nova. Quem trabalha comigo há mais tempo sabe que sou
agradável — quando quero — e não se tremem tanto de medo, embora a
linha de respeito seja mantida.
— Me empreste seu celular, s’il vous plaît? — peço, deitando minha
cabeça um pouco de lado e guardando o meu no bolso interno do paletó.
— Como é? — Praticamente gagueja.
— Seu celular. Você tem redes sociais, como Facebook ou Instagram,
não tem?
A menina abana a cabeça em positivo e me entrega, com as mãos
trêmulas, seu aparelho telefônico, já com a tela desbloqueada. Ela morde o
lábio inferior e me encara ansiosamente enquanto acesso seu perfil no
Instagram.
— Excusez-moi, monsieur Dupont — interfere, amedrontada.
Ergo meus olhos em sua direção, compreendendo seu medo.
— Oh, ne vous inquiétez pas — acalento-a para não se preocupar. —
Só preciso procurar uma pessoa. Désolé, nem perguntei se você se importa.
A moça sorri e anui.
— C’est bon. — “Tudo bem.”
Faço uma busca rápida, torcendo para achar com facilidade. Jogo o
nome completo dela e encontro muitos perfis. Marie não tem um nome e
sobrenome incomuns. Acho mais fácil procurar pelo perfil do La Parisienne
e ver se encontro alguma foto marcada. Três minutos depois, com a garota
mais tensa do que o normal, e talvez impaciente, encontro uma foto dela, na
África, três anos atrás, dissertando uma parte da matéria que o jornal publicou
em uma das suas revistas do grupo editorial. Acesso o perfil marcado na foto,
memorizando seu nome de usuário para eventuais futuras pesquisas.
Procuro pela última postagem. Uma imagem de uma caneca branca
com café perto de um teclado de notebook. Tem quase uma semana. Vou
rolando a tela, procurando alguma foto dela com Héron, mas não encontro
nada. A essa altura, o elevador que estava esperando já chegou e desceu
novamente.
— Tomei demais o seu tempo — digo à moça, devolvendo o seu
celular após sair do perfil de Marie. — Merci beaucoup. — Chamo o
elevador outra vez e confiro a hora no meu relógio de pulso.
Fico pensativo, olhando para os números indicadores do andar.
Conheço Marie. Diferente de mim, ela adora exposição e essa coisa de redes
sociais. Conheço-a o suficiente para saber que, se estivesse mesmo
namorando Héron, teria colocado uma foto dos dois juntos. Dou uma
risadinha, desviando meu olhar para o piso. Quando estávamos na África do
Sul, a mulher quis a todo custo tirar uma foto minha e postar nas suas mídias,
mas não deixei. Odeio exposição.
Então, diante do fato de não haver nenhuma imagem que indique que
realmente está namorando sério com o editor, me questiono se não foi uma
mentira apenas para me afastar.
O apitar do elevador me tira das minhas divagações. As portas se
abrem e meu corpo congela no mesmo instante quando a vejo. Lá dentro,
com um coque severo, terninho elegante, óculos escuros grandes, salto-alto,
bolsa Louis Vuitton e sua postura intimidadora, minha mãe me encara de
volta. Não traz o sorriso que comumente uma mãe que está há, praticamente,
dez anos sem ver o filho traria.
— Mãe? — Solto o ar dos pulmões, atormentado com sua visita
indesejável e repentina.
Ela deixa o elevador. A mocinha ao meu lado entra em seguida e me
olha, como se me esperasse segui-la. Dispenso-a com a mão. Um segundo
mais tarde as portas se fecham.
— Cancele seus compromissos para agora, Emilien — despeja uma
ordem, fria e metódica. — Precisamos conversar.
Sua frieza me afeta. Não deveria, mas afeta. Nós não nos vemos ou
nos falamos há uma década e é desta maneira indiferente que ela age. Suspiro
e aceno em positivo, aceitando que sempre serei o filho que ela odeia.
— Não vou cancelar minha agenda por sua causa — digo, passando
por ela e me encaminhando até minha sala. Sinto-a em meu encalço,
seguindo-me. — Basta ser rápida. Tenho uma hora livre, então… — falo,
abrindo a porta para mamãe entrar primeiro. Ela nada diz, olha-me com
desdém, depois para minha secretária, que está tão surpresa com sua chegada
quanto eu, e finalmente entra. — Se aparecer qualquer coisa — falo à minha
funcionária —, estou te dizendo qualquer coisa… Não hesite em me
interromper, entendeu? Qualquer assunto irrelevante deve ser tratado como
prioridade enquanto estiver com minha mãe. Fui claro?
— Oui, monsieur Dupont.
Inspiro e expiro diversas vezes antes de adentrar minha sala e
enfrentar o olho do furacão.
Sento-me na minha cadeira presidencial e a encaro, esperando-a me
dizer o que deseja. Embora ambos moremos em Paris, a distância entre nós é
grande e extremamente necessária. Ao menos para mim e para meu
psicológico. Na última década, ela conseguiu — por algum milagre —
respeitar meu espaço e minha decisão de me manter longe. Nunca me ligou,
mandou cartas ou e-mails. Nem mesmo uma visita parecida como essa.
Quando eu telefonava para Nicole, acabava perguntando por ela. Minha irmã
dizia que estava bem e por vezes reclamava de saudades de mim. Em ligações
ocasionais, ao fundo, eu a ouvia pedir à minha irmã para me mandar um beijo
e um abraço, de uma maneira maternal e carinhosa que raramente existia no
contato físico. Como mamãe possui cinquenta por cento das ações
pertencentes à nossa família, algumas vezes é preciso contatá-la. Mas isso
sempre é feito por meio de advogados e e-mails.
— Me contaram que você voltou para Paris — diz, com sua voz
mecânica e firme. Elizabeth me encara ainda de óculos escuros, a postura
ereta, com seu ar de superioridade exalando pela sala.
— E já até imagino quem… — resmungo mais para mim do que para
ela, roçando os dedos pelos lábios.
— Oui, exactement — afirma, e não me deixa surpreso. — Falou com
sua irmã desde a sua volta? — Afirmo com um maneio de cabeça. — E te
contou sobra a pouca vergonha dela?
Estreito os olhos em sua direção e cruzo os braços no peito.
— Com “pouca vergonha” você se refere à orientação sexual de
Nicole?
Mamãe faz um gesto de desdém com a mão. Por fim, retira os óculos
escuros e revira a bolsa até encontrar o estojo preto. Enquanto guarda o
acessório em seu lugar, me responde:
— Espero que você não compactue com isso — fala, erguendo uma
sobrancelha inquisidora. Seus olhos azuis me encaram seriamente, como se
minha resposta fosse determinar se vivo ou se morro.
— O que é “compactuar com isso” para você, mamãe? Respeitar a
orientação dela e amá-la acima de qualquer coisa?
Longos e tensos segundo se passam. Seu olhar me examina com
arrogância, toda sua expressão corporal denunciando que minha resposta é
para ela uma decepção.
— Não sei o que fiz para merecer vocês dois — reclama, divisando
algum ponto na minha sala.
Inspiro profundamente e balanço a cabeça em negativo.
— Sempre fizemos tudo o que você quis, mãe. Eu sacrifiquei meus
sonhos em razão dos seus! — falo, erguendo levemente a voz. É isso o que
acontece quando Elizabeth e eu estamos no mesmo ambiente por mais de
cinco minutos.
— Seus sonhos eram insignificantes, Emilien! — protesta.
— Ainda assim, eram meus! — rebato, agora já fora de controle.
— Veja só. — Seu tom tem ironia e arrogância. — Uma década sem
me ver e é assim que trata sua mãe? Aos gritos?
Coloco o rosto entre as mãos, já sentindo minha mente cansada em ter
de lidar com minha mãe. Inspiro e expiro um par de vezes, procurando por
uma calma que raramente tenho quando se trata dessa mulher.
— Mère, apenas diga o que quer de mim — falo, não me importando
em demonstrar como estou derrotado diante sua presença. É assim que ela me
faz sentir. Sempre.
— Vim pedir sua ajuda. — Estranhamente, seu tom de voz é quase
suplicante. Ao erguer o olhar em sua direção, surpreso com tal pedido, até a
postura assoberbada esvaiu dela, dando lugar a ombros caídos e olhar
distante. — Precisa me ajudar a convencer Nicole a fazer terapia… a se
curar.
Oh, mon Dieu!, penso, aterrorizado com o que minha mãe está me
propondo.
— Você quer “curar” — faço aspas com os dedos — a sexualidade de
Nicole? Mamãe, homossexualidade não é doença para ser curada.
— É uma afronta aos olhos de Deus! — rebate, visivelmente
alterada.
Massageio minhas têmporas e me encosto à cadeira, odiando o rumo
desse assunto.
— Não vou sugerir um absurdo desses à minha irmã e nem vou
permitir que você, de algum jeito, a submeta a “terapias” ou tratamento para
“reverter” o que ela é. Só… a aceite.
De repente, minha mãe cai em um choro copioso, o rosto entre as
mãos, coluna encurvada. Apenas a observo, sentindo-me meio esquisito por
vê-la chorar. Uma vida inteira e foram poucas as ocasiões em que a vi se
desmanchar em lágrimas dessa forma. Na ocasião da morte do meu pai foi
uma dessas vezes. Em todo aniversário meu ela também chorava, assim como
em dezenove de maio. Desconfio que, mesmo depois de tantos anos, continue
chorando nestas datas, inclusive no aniversário de morte do papai. Elizabeth
pode ser uma megera comigo, mas amou Thierry com todo seu coração. A
partida dele mexeu demais com sua estrutura psicológica e só a deixou ainda
mais insuportável de se conviver.
— O sobrenome Dupont morrerá em você — fala, voz embargada.
Limpa algumas lágrimas com um lenço que retira da bolsa, sem me olhar. —
Mesmo se Nicole se casasse com um homem e me desse netos, ele não teria o
legado de nossa família. Mesmo assim, eu queria um neto! Uma neta, na
verdade. Para mimá-la, levá-la para passear… aumentar nossa família. —
Elizabeth recoloca os óculos escuros e então me olha. — Mas se ela se casa
com uma mulher, como terei meu sonho realizado, Emilien?
Reviro os olhos e inspiro fundo pela vigésima vez.
— Mamãe, o mundo mudou. Elas podem adotar uma criança ou optar
por bancos de esperma. Nicole é gay, não estéril.
Suas mãos esguias — cheia de anéis — passam pelos cabelos
impecáveis.
— Como se isso fosse um jeito natural de ter filhos. Adoção? Quero
uma neta com nosso sangue, por favor. E que ideia mais absurda essa de
pegar… esperma de um homem desconhecido para gerar uma criança!
— Pense pelo lado positivo. — Resolvo debochar. — A filha de
Nicole será uma Dupont, de toda forma. E o legado da família continua.
Mamãe me repreende com uma expressão severa.
— É o que mais quer, Emilien? Fugir da responsabilidade de ter um
herdeiro e dar continuidade ao sobrenome da família?
— Pelo contrário, mãe — respondo, sinceramente. — Eu posso ter
um herdeiro. E em algum momento ainda terei um filho.
— Não com qualquer uma — responde-me, a postura altiva e
presunçosa retornando.
— Na verdade você quer dizer: “você não terá um filho com ninguém
mais a não ser com a mulher que escolhi”.
— Porque vocês são perfeitos um para o outro, meu filho! — Ela
tenta, de toda forma, provar que suas escolhas e seu ponto de vista são
sempre o melhor para mim. Não importa à minha mãe minhas vontades,
apenas o que ela acha que é bom para minha vida. Muito por isso saí de casa
e me afastei, porque nunca tive poder de escolha com ela. — Veja, vocês dois
são lindíssimos! Têm genes maravilhosos, me dariam netos belos e fortes. Ela
também é da elite de Paris, como nós, elegante, educada, bem-apessoada.
Seria, inclusive, bom para nossos negócios.
— Mas eu não a amo — digo, começando a perder a paciência de
novo.
— Você a amou um dia — alfineta.
Balanço a cabeça em negativo.
— Nunca a amei, mãe. Confundi meus sentimentos porque você me
fez pensar que a amava.
— Que seja, Emilien! O amor é algo que se constrói. E vocês dois
poderiam construir o amor e uma família.
— Fácil para a senhora me sugerir isso, não é? Casou-se com o
homem que amava e sempre teve tudo o que quis. Absolutamente tudo. —
Levanto-me do meu lugar, farto dessa conversa infrutífera, dessa visita
desagradável. De coração, espero ver minha mãe novamente daqui a dez
anos. Caminho até a porta, enquanto a ouço dizer, com a voz embargada:
— Sabe que eu não tive tudo o que quis. — Ela se ergue de sua
cadeira e me encara.
Engulo em seco e desvio o olhar, a porta aberta. Elizabeth adora usar
esse fato contra mim. Chantagem emocional e manipulação são suas
especialidades. E ela sabe que me atinge quando me culpa dessa maneira.
Mesmo eu tendo consciência que era algo que fugia do meu controle — por
Deus, eu era só uma criança! —, minha mãe faz questão de me alfinetar com
isso porque sabe que me sinto péssimo.
— Não tive culpa nenhuma — respondo, trincando o maxilar e
segurando a emoção nos olhos.
— É o que você diz, Emilien — fala baixinho, aproximando-se de
mim e me puxando para dar um beijo em minha testa.
Sem dizer mais nada, Elizabeth deixa minha sala. Como sempre
depois de uma “conversa” com minha mãe, estou me sentindo
psicologicamente cansado. Meu peito dói, as lágrimas ameaçam vir, mas as
seguro para mim.
Volto à minha mesa e me jogo na cadeira, massageando o pescoço.
Meu celular me notifica uma nova mensagem. Um sorriso pequeno se abre ao
ler o texto rápido de Nicole. Somente ela para me alegrar nesse momento.
“O jantar pra você conhecer Lorraine pode ser amanhã à noite?
Bisous. Je t’aime.”
Respondo em seguida, confirmando:
“Bien sûr, petite soeur.” — “Claro, irmãzinha.” — “Te espero às oito,
na minha cobertura, você sabe o caminho. Je t’aime”.
Guardo meu telefone, fechando os olhos e apreciando o meu
momento de paz. Demoro a notar que choro silenciosamente enquanto meu
passado roda em minha mente.
EMILIEN
Nicole chega bastante tempo antes do horário. Como eu apenas
cozinho o básico, mas minha irmã quer algo mais elaborado para recepcionar
a namorada, ela aparece com antecedência, carregando algumas sacolas de
supermercado e já tomando conta da minha cozinha.
— Você pode deixar um pouco o seu trabalho de lado e me dar
atenção? — exige de mim, picando alguns tomates na ilha, enquanto estou
terminando de confirmar minha agenda da semana. Tenho uma reunião no
primeiro horário do dia seguinte, uma conferência depois do almoço e duas
viagens antes do final de semana.
Estirado no sofá, ergo meu olhar em sua direção e escondo o celular
por baixo das almofadas, atendendo ao seu pedido. Nicole tem razão. Nós
temos que aproveitar nosso tempo juntos.
— E vá se arrumar, Emilien, por l’amour de Dieu. Com esses trajes,
Lorraine vai pensar que você é um desleixado. — Seus olhos verdes se
levantam em minha direção, severos. Habilidosamente, continua picando os
tomates como se não precisasse olhar. Se fosse eu, já teria perdido os cinco
dedos.
Uma leve risada escapa de mim, enquanto saio do meu lugar
confortável e confiro minha roupa. É uma calça de algodão preta e uma
camiseta na mesma cor, com uma estampa da Torre Eiffel. Passo o dia todo
dentro de um terno, o mínimo que gosto de fazer quando chego em casa é me
vestir com algo mais confortável. Descalços, aproximo-me de minha irmã e
me ponho ao seu lado, deixando um beijo atrás da sua orelha.
— Ainda tem meia hora até você ir buscá-la. Tenho tempo de me
arrumar — digo, roubando um tomate e jogando-o na boca. Ela estapeia
minha mão e me manda lavar as taças do armário, usadas em ocasiões como a
dessa noite, mas que quase nunca têm tal finalidade, para arrumar a mesa.
Faço o que me pede. Enquanto estou ensaboando os cristais, mantenho
nossa conversa.
— Mamãe me procurou ontem — revelo e me arrependo no instante
seguinte. Não queria ter trazido Elizabeth para nosso meio, para uma noite
que deveria ser agradável. De maneira geral, não gosto de esconder nada de
Nicole, principalmente quando se trata de nossa progenitora.
Um segundo mais tarde, ela está do meu lado na pia, limpando as mãos
com cheiro de tomate em um pedaço de papel-toalha.
— Sérieux? — Seu tom de voz tem surpresa e espanto. Aceno em
positivo, passando a taça na água corrente e tirando o sabão. — O que ela
queria com você?
Olho-a por um instante, sobrancelhas vincadas, indecisão martelando
meu peito. Devo mesmo contar os reais motivos de nossa mãe ter me
procurado? Queria poder lhe dizer que Elizabeth sentiu saudades de mim, o
filho que mesmo morando na mesma cidade não via por uma década, talvez
um pouco mais. Entretanto, mamãe me procurou para sugerir que a ajudasse
a curar algo incurável.
— Só me disse que sentia saudades — minto. Opto pela mentira para
não a magoar. O quanto saber que mamãe quer reverter sua orientação sexual
pode perturbá-la? Não, não. Definitivamente, não quero ver minha irmãzinha
magoando-se por causa disso.
Nicole me olha atentamente por longos segundos. Então se vira para o
fogão, acende uma boca e, pegando uma frigideira no armário acima de sua
cabeça, coloca-a para aquecer.
— Me diz a verdade, Emil — pede. Consigo identificar um tom
melancólico nela. Se estivesse me olhando, tenho certeza que veria lágrimas
em seus olhos. — Posso aguentar a barra de ouvir a verdade. — Meu coração
dá uma alfinetada neste instante. Como uma forma de ultimato, vira-se para
mim e minhas suspeitas se confirmam: seus olhos estão marejados. — Nunca
mentimos um para o outro, se lembra?
— Nunca — confirmo, movendo a cabeça e quase me esquecendo da
água corrente. Desligo a torneira, deixo a taça escorrendo na pia e pego outra
para ensaboar. — Só prefiro omitir a verdade para não te magoar, Nic… —
murmuro, usando seu apelido pela primeira vez desde muito tempo.
Minha irmã sorri para mim docemente e apoia sua cabeça em meu
braço. Abro a torneira e enxáguo a taça.
— Ela foi te pedir para me convencer a fazer terapia, não é? —
pergunta. Na frigideira, joga uma quantia de azeite de oliva e dentes de alhos
que ela picou anteriormente, refogando-os em fogo baixo. Gemo, frustrado,
só de me recordar da conversa. Pego a última taça para ensaboar. — Não
precisa mentir. Não é a primeira vez que ela me sugere uma coisa dessas.
Afastando-se do fogão, pega os tomates picados e os joga na frigideira,
mexendo-os vagarosamente. Nós dois ficamos em silêncio por alguns
minutos, remoendo nossas mágoas com Elizabeth Dupont. Ela cozinha; eu
termino de lavar o último cristal.
— Sinto falta da mamãe — revela, engolindo em seco e suspirando.
Seca rapidamente uma lágrima nos olhos e torna a mexer os tomates
refogados. — Quero dizer, da mãe amorosa, dedicada e que me apoiava em
tudo. De dois anos pra cá… nós duas nos distanciamos tanto.
Não digo nada, ocupado demais pensando em como essa mãe que
Nicole teve quase não existiu em minha vida. Claro, houve momentos assim.
Eram raros, mas existiram. Tratando-se de mim, Elizabeth ia de um extremo
a outro. Ou ela me sufocava com seus excessos de cuidados, sendo
superprotetora, ou me despreza, me manipulava e abalava meu psicológico.
Ambos os extremos vinham com a desculpa de que era para o meu bem, que
fazia aquilo por me amar.
— Desculpe! — Nicole pede enquanto estou secando as mãos com o
pano de prato, distraído e melancólico. Então ela se joga nos meus braços e
me abraça apertado. — Às vezes me esqueço que mamãe sempre foi distante
com você. — Retribuo seu abraço e me acolho nele por um segundo, como se
ela fosse a irmã mais velha vindo em meu socorro. — Nem me preocupei em
te perguntar como se sentiu. Ficou dez anos sem ver a mamãe e quando ela te
procura é por minha causa. Désolée, Emil. Je suis désolée.
Afasto-a de meus braços, um pouco mais recuperado, e beijo cada uma
de suas bochechas.
— Não se desculpe, petite soeur. Eu estou bem, já acostumado com o
modo como Elizabeth me ama.
Nicole esconde o rosto em meu peito por mais um segundo. Então volta
ao fogão, retirando os tomates e preparando a frigideira para refogar as
abobrinhas picadas. Meio abalado com essa conversa, pego as taças e as seco,
em silêncio. Do mesmo modo, me retiro para ajeitar a mesa. Quando toda a
louça está à posta, decido ir me arrumar. Estou prestes a subir as escadas
quando minha irmã me interrompe, dizendo:
— Emil… — Paro no primeiro degrau. Daqui, só posso ouvi-la. — Eu
te amo muito. — Volto a ouvir o bater de panelas e os legumes refogados
estralando no azeite quente.
Sorrio para mim mesmo, um pouco do peso e da melancolia indo
embora como em passe de mágica.

Nicole bate à porta do meu quarto, avisando que está de saída para ir
buscar a namorada e volta em meia hora. No closet, grito de volta, dizendo
que já estou me arrumando. Tomei um banho e aparei um pouco a barba.
Como é algo mais íntimo, opto por algo elegante e casual ao mesmo tempo.
Visto uma camisa branca, uma malha cinza fina e calça alfaiataria azul-
escuro. Ajeito a gola sobre a blusa frente ao espelho e esborrifo um perfume.
Calço sapatos pretos e penteio os cabelos com os dedos.
Busco pelas horas em meu celular sobre o criado-mudo. Ainda tem uns
vinte minutos até minha irmã chegar. Desço até a cozinha, onde a janta já está
pronta — aperitivos, entrada, prato principal e sobremesa — e a mesa posta.
Enquanto espero Nicole e sua namorada, tento me distrair com uma
leitura. Minha mente, porém, não me deixa me concentrar. Está insistindo em
projetar uma certa mulher de pele chocolate, macia como algodão, olhos
âmbar encantadores e que provavelmente perdi para um bom-partido.
Pensando nisso, me recordo do dia anterior, quando a procurei na
internet. Reluto alguns segundos antes de tomar a decisão besta de me
levantar e pegar o celular de Nicole sobre o balcão. A tela não tem senha ou
trava de segurança. Basta que deslize o dedo e consigo ter acesso a suas redes
sociais. Acesso seu perfil no Instagram, ignorando as dezenas de notificações
que surgem quando abro o aplicativo. Minha boca se entreabre ao notar que
Nicole tem mais de vinte mil seguidores. Rolo algumas fotos. Paisagens,
pratos de comida ou xícaras de café, selfies. Ela também não tem nenhuma
foto com a namorada. Mordo o lábio inferior, minhas esperanças de que
Marie e Héron não estejam juntos caindo por terra outra vez. Bem, talvez
Lorraine não goste de se expor, assim como eu.
Navego por mais algumas imagens até encontrar uma foto antiga —
não de data de publicação, mas quando foi tirada. Minha garganta seca.
Nicole sabe que odeio ter minha vida privada postada na internet, mas pelo
jeito não se importa muito. A publicação tem uns três anos, e traz uma foto
minha, aos vinte anos, com ela no colo, em uma de suas festas de aniversário.
A legenda: “Saudades desse bastardo.”
Rio comigo mesmo e decido parar de vasculhar suas publicações e
procurar o que de fato me interessa. No campo de busca, digito “Héron
Poirier”. Diferente de Marie, encontro-o com mais facilidade. Um número
considerável de seguidores. Poucas publicações. E nada frequente. A última
tem meses. Nenhuma delas com Marie — ou com qualquer outra mulher. No
Facebook, faço a mesma pesquisa, procurando pelos dois. Embora encontre
seus respectivos perfis, não tiro proveito algum, pois não são públicos.
— Ei, bisbilhoteiro. — A voz de Nicole chama minha atenção. Ela está
parada à porta, um sorriso divertido brincando em seus lábios. Ao seu lado,
uma mulher de beleza exótica. O completo oposto de minha irmã.
Ligeiramente mais alta, olhos escuros feito a noite, os cabelos, soltos e
extremamente lisos, são tão pretos que beiram o azul, lábios cor de pêssego,
seios fartos. Magra, mas um pouco mais encorpada que minha irmã, usando
saltos e trajando um vestido preto dois dedos acima dos joelhos.
Imediatamente, deixo o celular sobre o balcão e me aproximo das duas,
explicando-me:
— Estava só fazendo uma pesquisa.
— E por acaso você não tem celular? — minha irmã rebate, segurando
o riso.
Olho para Lorraine e abro um pequeno sorriso.
— Era no Instagram. Sabe que não tenho essas coisas — respondo,
retornando o olhar para ela.
— Esqueci que você é antissocial.
Dou uma risadinha e por fim me apresento para Lorraine.
— Emilien Dupont.
— Lorraine Meyer. — Ela tem sotaque do sul do país.
Trocamos um aperto de mão e dois beijos na bochecha.
A moça parece tensa no seu lugar, sem saber como agir direito. Nicole
a convida para entrar e ordena que eu pegue uma taça de vinho para nós.
Enquanto elas se acomodam na sala, pego as taças que lavei e a garrafa de
vinho. Sirvo-as e me sento no sofá oposto, de frente às duas.
— Nicole me fala muito de você — Lorraine diz, colocando uma mão
delicada e de unhas bem-feitas na perna despida de minha irmã e a olha com
ternura. — Confesso que estava ansiosa e amedrontada para esta noite. São
só vocês, não é…? Um é a família do outro.
De certa forma, isso é verdade.
Tomo um gole do meu vinho e abano a cabeça em positivo.
— Nosso pai morreu há bastante tempo. Com minha mãe, eu sempre
tive uma relação complicada, diferente de Nicole. — Olho um instante para
minha bebida. — O que parece ter mudado depois que ela se assumiu. —
Suspiro. Levanto-me e me sento ao lado da minha pequena, deixando-a entre
mim e a namorada. — Isso não importa mais, de qualquer maneira. Temos
um ao outro agora. — Seguro suas mãos e deixo um beijo em sua têmpora.
Nicole sorri de volta e deita a cabeça em meu ombro.
— Fico feliz que possamos contar com sua aprovação, Emilien. É
importante demais para nós duas esse apoio.
— Não me importo com quem Nicole esteja, desde que a faça feliz —
digo, sincero.
Lorraine fica esquisita de repente. Seus olhos se abatem, os ombros
caem. Não entendo o que eu possa ter dito de errado. Compreendendo a
confusão em meu rosto, Nicole explica:
— Lorraine ainda não se assumiu para a família. — Outro instante de
silêncio perturbador. Nicole se vira para a namorada e a pega por ambas as
mãos. — E estamos com medo de que, assim como mamãe, a família dela
também não a aceite. São religiosos e tradicionais, entende? — Vira-se para
mim. — A família dela mora em Provença. Vamos viajar para lá dentro de
quinze dias. — E então, volta para a namorada. — E finalmente você vai se
assumir, não é, mon amour? Nos assumir.
Bem, isso explica o fato de não haver nenhuma foto delas juntas nas
redes sociais. Lorraine acena em positivo, dando-lhe um rápido beijo nos
lábios e acariciando-a no rosto e cabelos.
Jogamos mais cinco ou dez minutos de conversa fora até decidirmos
servir o jantar. Em volta da mesa, ouço histórias de como elas se conheceram
— pouco mais de dois anos atrás, mas o relacionamento começou há um ano
e meio —, depois Lorraine conta como saiu de Provença e veio para Paris,
estudar nutrição, assim como Nicole, que engata falar de sua infância, mas
evita os anos difíceis sem papai, quando ela sequer tinha doze anos.
Passa da meia-noite quando minha irmã e minha cunhada, depois de
um jantar agradável e que me deixou alegre — como não me sentia havia
bastante tempo —, decidem voltar para casa. Nicole usa o toalete antes de ir e
volta minutos mais tarde, com um ar meio misterioso, mãos para trás.
— Preciso te fazer um pedido, Lorraine — diz, trazendo as mãos para
frente, revelando uma caixinha de veludo. — Quero saber se casa comigo.
O pedido pega até a mim despreparado. No meu lugar no sofá, giro tão
rápido para minha irmã como se estivesse desviando de uma bala. Ela sorri,
seus olhos brilham de uma forma que nunca vi. Nicole ama Lorraine, é feliz
com ela e quer um futuro, uma família, uma companheira… Não posso estar
mais satisfeito e alegre pela minha irmãzinha. Algo aperta meu coração,
fazendo-me ofegar por um mísero segundo. Acho que nunca aceitei direito
que aquele projetinho de gente, loirinha e peralta cresceu, se tornou uma bela
mulher, se apaixonou e quer se casar.
Volto meus olhos a Lorraine, estática no lugar, a boca tampada,
surpresa, os olhos arregalados. Um segundo depois, ela dá um salto no lugar
e abraça a noiva fortemente depois de beijá-la.
— Aceito! Nem precisava pedir — diz, eufórica e emocionada. — Eu
aceito, ma blonde.
Nicole se vira para mim, olhos marejados.
— Emil… você aceita ser nosso padrinho?
Como resposta, apenas me levanto e a abraço forte, praticamente
esmagando-a em meu peito.
— Ficaria muito chateado se não me pedisse isso — sussurro em seu
ouvido.
Ela ri e beija meu rosto. Abraço Lorraine, pedindo que não magoe
minha petite soeur.
Saudações e felicitações trocadas, é hora de nos despedir. Com um
beijo sereno na noiva, Nicole pede que ela vá à frente pois quer ter um
minuto comigo. Olhando-me com ternura e amor, ela me abraça de repente,
dizendo:
— Quando você vai arrumar alguém, Emil?
Pestanejo diante sua pergunta, sentindo-me atingido. A perspectiva de
uma vida sozinho não me agrada. Na verdade, me amedronta. Não que eu
ache que não possa ser feliz sozinho ou dependa de uma companheira para
isso. Mas eu quero estar com alguém. De preferência com Marie. Entretanto,
há tanta coisa em meu caminho que parece me impedir de ser feliz ou ter uma
mulher ao meu lado, como Nicole tem.
— Nic… Não vamos falar disso.
Ela se afasta e me toca no rosto.
— Qualquer uma, menos aquela sem-sal com quem a mamãe queria
que você se casasse, entendeu? Tem de escolher alguém que você ame. E
você nunca a amou, Emilien.
— Eu sei. Mas tenho medo de me envolver com qualquer outra pessoa
e mamãe me infernizar. Sabe por que ela sempre respeitou meu espaço e
nunca me procurou na última década? Porque me mantive solteiro. Se eu
arrumar uma namorada… se cogitar me casar um dia com alguém que não
seja com quem mamãe quer, ela vai me atormentar… Vai me infernizar como
quando descobriu que eu e Dés… — Paro de falar abruptamente, dando-me
conta de que Nicole não sabe sobre essa parte da minha vida.
Jurei jamais mentir para ela ou manter segredos entre nós. Mas há
certas coisas que precisam permanecer enterradas.
— Com quem? — pergunta, curiosa.
— Ninguém. Esqueça — falo, desviando o assunto rapidamente. —
Talvez eu tenha que esperar ela morrer para arrumar uma namorada —
brinco, meio fúnebre, dando uma risada melancólica.
Nicole me acompanha por um segundo. Pega em minha mão e me
acaricia.
— Não há nenhuma maneira de enganá-la?
Meu corpo tensiona no lugar.
— Talvez. E até estou disposto a enfrentá-la. Só preciso consertar
algumas bobagens que fiz dois anos atrás e reconquistar a confiança de uma
mulher que quero muito.
Os olhinhos de minha irmã emitem um brilho esperançoso. Abraçando-
me novamente, me deseja toda sorte do mundo. Algo que nós dois vamos
precisar. Com um último beijo de despedida, ela vai ao encontro da noiva.
Vou direto para meu quarto, tomo outro banho e visto meu pijama. Fico
tentado a mandar ao menos um “Boa noite” a Marie, mas desisto.
Preciso respeitar o espaço dela. E seu namoro.
Esse suposto namoro que tem me deixado cheio de dúvidas.
MARIE
Héron não fala comigo desde sábado, depois da estupidez de tê-lo
beijado na intenção de provar a Emilien que estou em uma relação séria.
Claro que o peguei desprevenido e só me dei conta da burrada quando minha
boca já estava na dele. Ao me afastar, seus olhos escuros passavam a
mensagem de que ele, no mínimo, ia apertar meu pescoço. Bem rente aos
seus lábios, sussurrei para apenas fingir e depois explicaria tudo.
Naquele instante, não pensei que tal pedido fosse atendido. Para
minha surpresa completa, Héron não me desmentiu na frente de Dupont, mas
também não tirou a carranca durante todo o resto da festa. Emilien pareceu
acreditar na farsa e se retirou, claramente atingido por eu ter um
“companheiro”. Assim que atravessou a porta de volta para o hall do hotel, já
estava prestes a abrir a boca e explicar tudo, de forma rápida, desesperada e
seguida de um milhão de pedidos de desculpa. Poirier, entretanto, ergueu um
dedo em riste antes mesmo de eu pronunciar uma só sílaba. A expressão
severa era acentuada em seus traços bonitos. Então simplesmente me agarrou
pelo braço e me direcionou para a recepção do hotel. Ainda tínhamos um
evento para participar.
Por mais que tenha tentado falar com ele, fui interrompida em todas
as minhas investidas. Meu editor sequer conseguia me olhar e suas
interrupções pareciam rosnados de cão com raiva. Acabei aceitando de que
fiz burrada e era melhor não insistir no assunto. Passei o restante do evento
emudecida, conversando com alguns conhecidos e ignorando Héron e seu
mau humor. Ao menos, ele continuou sustentando a farsa de um namoro
comigo na frente de Emilien, que depois de me ver beijando outro, manteve
distância.
No final da festividade, ele me levou para casa, ainda me ignorando.
Hoje já é quarta-feira. Desde então, o homem não me deu uma
oportunidade de conversarmos sobre o que aconteceu e de lhe pedir
desculpas. Na redação, se mantém praticamente inalcançável, enfurnado
dentro do escritório. Esbarramo-nos algumas vezes pelos corredores e
trocamos apenas cumprimentos. “Bonjour”. “Salut”. “Ça vá?”.
Agora estou aqui, esperando dar meu horário de ir para a redação,
encarando minha xícara de café preto sem açúcar, pensando em como,
provavelmente, estraguei tudo para Isabelle. Ela veio aqui no domingo, toda
animada me entregar uma cópia impressa do seu original, para que eu
entregue a Héron avaliar, como havíamos combinado.
Contudo, não tive a cara de pau para isso, uma vez que ele nem
mesmo está falando comigo direito. Merda. Estraguei tudo! Deveria ter dito a
Emilien que estava solteira, mas indisponível para ele e ter exigido, com um
pouco mais de rispidez e autoridade, que parasse de me atormentar e tentar
conseguir meu perdão. Mas não, eu tive que ter a ideia idiota de beijar o meu
chefe e pôr tudo a perder.
Minha porta se abre no instante seguinte, trazendo uma Isabelle
eufórica para dentro. Meus olhos abatidos se erguem em sua direção, já
esperando o que sua visita logo cedo representa.
— Entregou Sanctus para Héron? O que ele disse? Chegou a dar uma
folheada? Sabe, um editor como ele só termina a avaliação de um original se
as cinco primeiras linhas o fisgarem. Do contrário, esqueça. E então? —
dispara, como uma metralhadora de palavras e euforia.
Olho-a um longo instante, pensando em como vou decepcioná-la — e
irritá-la com toda certeza — se contar que estreguei a oportunidade da sua
vida. Ela me encara com expectativa, aguardando a tão esperada resposta.
— Ainda não — respondo, com cuidado, pegando meu café e
sorvendo uma dose. Ela vinca as sobrancelhas. — Eu me esqueci de levar na
segunda-feira, e ontem Héron esteve o dia todo ocupado, nem o vi. Vou levar
hoje. Já está na minha bolsa. — Mentira. O original continua no mesmo lugar
onde o coloquei domingo à noite: na gaveta da minha escrivaninha.
— Ah, certo. Estou muito ansiosa pelo feedback dele. Em quanto
tempo você acha que Héron lê? Uma semana? É um romance pequeno, só
tem cem mil palavras.
Suspirando pesadamente, respondo:
— Não sei, Isabelle. Ele é um homem ocupado. Mas acredito que até
no sábado da próxima semana ele envie as impressões que teve no seu e-mail.
Você anexou seu endereço eletrônico junto do original, não é?
— Oui. Claro. — Contornando o balcão que nos separa, minha irmã
vem em minha direção e me abraça apertado, dando um beijo suave nas
minhas bochechas e me agradecendo pela força.
Depois, ela vai embora, para cumprir seu compromisso diário.

Chego à redação em meu horário habitual. Tomo mais uma xícara de


café, bato o ponto e vou para minha mesa. Estou rodeada de alguns livros,
meu Kindle tem alguns artigos que baixei, a maioria em inglês, e no meu e-
mail recebo a entrevista respondida de uma especialista na área. Já tem
algumas semanas que estou me dedicando a esta reportagem; agora, com o
prazo apertado para entregá-la, preciso começar o quanto antes.
Passo as próximas horas concentrada frente ao computador, digitando
rapidamente, fazendo pequenas pausas para consultar algo nos livros ou nos
artigos. Uma caneca me faz companhia, nunca estando fazia. Café renova
minhas energias e me dá ânimo para ficar tanto tempo sentada, digitando.
Héron só aparece perto do horário do almoço. Vejo-o chegar sozinho,
sem cumprimentar ninguém, e se refugiar em sua sala. Inspiro profundamente
e tomo uma dose de coragem antes de deixar minha mesa e ir até seu
escritório. Bato à porta de leve e espero por permissão, que vem em seguida
em um tom rouco.
Lá dentro, dou de cara com um Poirier atrás de sua mesa, uma
carranca bem expressiva no rosto. Ao notar que se trata de mim, suas feições
severas se aprofundam um pouco mais, fazendo meu interior estremecer de
nervoso. Eu provoquei a fera e agora preciso estar cara a cara com ela.
— Posso falar com você? — pergunto, meio com cuidado.
— Você já está falando, Marie — responde, da sua forma
desagradável, e se recosta à cadeira, encarando-me com duas metralhadoras
no lugar dos olhos.
Tento não me sentir incomodada com sua má educação. Afinal, eu
queria o quê? Em algum nível, compreendo sua reação, mas ele também
poderia ser um pouco mais flexível e reconsiderar, principalmente depois de
tantos favores que já fiz em seu nome.
— Quero conversar sobre sábado — falo, trocando o peso das pernas,
ainda muito sem jeito com a situação. Normalmente não me sentiria sim. Eu
sou desinibida, completamente invasiva e descarada. Mas a carranca de
Héron não me ajuda a relaxar.
— Tenho mais a fazer do que falar sobre aquela tarde estúpida —
rebate, ajeitando-se em sua cadeira e levando os olhos até a tela do seu
computador.
— Ah, que porra, Héron! — Ergo o tom de voz, o que finalmente
chama sua atenção. E, obviamente, o modo como lhe dirijo a palavra o deixa
ainda mais possesso comigo. Como se já não estivesse possesso o suficiente.
Com um suspiro estrangulado, e sob seu olhar irado, me atrevo a dar passos
para frente até me sentar em uma das poltronas disponíveis, mesmo que ele
não tenha oferecido. — Estou tentando ter uma conversa civilizada com você
desde sábado, mas você não colabora — reclamo.
Héron afaga o queixo preenchido por um leve cavanhaque e torna a se
recostar na cadeira, observando-me agora sem sua cara mal-humorada. Bem,
não muito mal-humorada. Sua expressão se suavizou um pouco, mas ainda
continua como se quisesse me pôr em seu colo e dar uns tapas na minha
bunda — não de um jeito bom, se é que me entendem.
— Você me beijou para fazer ciúmes naquele investidor metido a
besta, Marie. Não espere que eu esteja um docinho com você.
Certo. Se bem entendi, Héron está chateado porque o “usei” na frente
de Emilien. Quem diria que por trás de toda essa pose arrogante e rude tem
um homem com sentimentos. Abano a cabeça em negativo, tentando afastar
os pensamentos e me focar no que realmente importa.
— Não! Não foi para fazer ciúmes — explico, meio alarmada. Ele
entendeu tudo errado. — Emilien pisou na bola comigo dois anos atrás e
agora voltou arrependido, querendo perdão e uma segunda chance. Mas não
estou mesmo disposta a cair naquele charme dele. Acabei dizendo que estava
com alguém, Dupont sugeriu que provasse, aí você apareceu e…
— … decidiu me beijar — completa por mim. — Você agiu de forma
inadequada. Sou seu chefe, você me deve algum respeito — fala, a voz dura
feito rocha.
Engulo em seco.
— Eu sei. Je suis désolée. Estou ciente de que foi uma ideia muito,
muito estúpida. Não vai mais voltar a acontecer.
— Pois eu acho muito bom — exige, da sua forma áspera. — Agora,
esqueça isso e me deixe trabalhar, oui? — Abano a cabeça e me levanto do
meu lugar. Já estou chegando à porta quando ele me informa: — E não se
esqueça que temos reunião hoje, no último horário. Vamos escolher o tema
da edição especial e conhecer o novo sócio do grupo Intéressant.
— Não vou esquecer. — E nem poderia, pelo amor de Deus.

São cinco da tarde. Tecnicamente, eu já deveria estar batendo ponto


para ir embora, mas o novo dono do grupo editorial fez questão de ter essa
abençoada reunião no último horário. Segundo Poirier, ele tem uma agenda
cheia e essa hora foi a única que encontrou em sua lotada semana.
Sinceramente, não sei por que de sua visita e por que faz tanta questão de
participar na nossa reunião para a escolha e designações para a edição
especial. Normalmente eles ficam lá do alto — na sede do grupo —
comandando tudo e estudando o mercado.
Toda a equipe que estará envolvida na matéria já está reunida na sala
de reuniões no quinto andar. Héron está na cabeceira da extensa mesa de
vidro, na ponta oposta, claro, porque a outra ponta, a que está logo atrás de
um enorme telão estampando o logo da revista e do grupo editorial por um
projetor, pertence ao Senhor-Todo-Poderoso-Desconhecido. Estamos
equipados com água, caneta, blocos de anotação e notebooks, aguardando a
chegada da única pessoa que falta. A mesma que paga nossos salários.
As portas duplas de madeira se abrem um segundo mais tarde. Uma
conversa animada e risadas discretas são trazidas para dentro junto com os
homens que entram. Héron se põe em pé imediatamente, pronto a recebê-lo.
Sua expressão muda de agradável e receptivo para assustado e surpreso. Os
olhos escuros voam até mim e aquele sentimento de querer apertar meu
pescoço surge em sua íris.
Desvio meu olhar do seu, cada fibra do meu corpo parecendo travar
enquanto reconheço as costas largas e a voz grossa. O novo sócio está
acompanhado de um dos acionistas, um senhor de cinquenta e tantos anos
que o toca nos ombros como se fossem amigos íntimos há muito tempo. Eu,
em meu lugar, estou rezando para todos os deuses para ser apenas alguém
parecido com ele.
— Héron, meu querido! — Guillaume exclama, andando na direção
do editor e conduzindo o visitante junto, contornando a mesa. — Deixe-me te
apresentar a Emilien Dupont.
A mandíbula de Héron está tão contraída que acho que ele pode
quebrar os dentes. Quando Emilien o reconhece, seus olhos percorrem todo o
ambiente até estacionarem nos meus. Sustenta-me com seus olhos azuis
enquanto caminha junto do velho Guillaume. Puta merda, como esse
desgraçado está bonito. Usa um terno azul-marinho, gravata cinza e camisa
azul que destaca a cor dos seus olhos. Esse homem, definitivamente, sabe
vestir um terno.
— Emilien é o novo sócio majoritário do grupo — o mais velho avisa,
enquanto os dois trocam um aperto de mão. Héron ainda tenso.
— Sério? — Poirier exclama, alternando o olhar entre os dois
homens. — Nos vimos no sábado, no Dames Parisiennes, e não me disse
nada, monsieur Dupont.
Um segundo de silêncio paira no ar. Poirier não economiza na rudeza
nem mesmo com o chefe! Emilien não parece abalado com a afronta. Pelo
contrário. Enfia as mãos nos bolsos da calça e responde com um leve sorriso:
— Não achei que fosse apropriado falar de trabalho naquela ocasião.
— Ao menos não deu a esfarrapada desculpa de “Não sabia que você é
editor aqui”, porque uma das coisas mais exaltadas nele quando apresentado
ao público foi seu trabalho na Intéressant.
Discretamente, levo a mão à boca, recebendo a informação. Se
Emilien é o novo sócio majoritário, e no sábado ele já tinha conhecimento da
posição do meu editor na revista, há quanto tempo esse gostoso de uma figa
sabe que sou jornalista aqui? Minha boca do estômago recebe uma pontada
incômoda. Preciso inspirar fundo e me obrigar a pensar nisso mais tarde, pois
agora Guillaume está apresentando-o ao resto da equipe, enquanto ele se põe
em seu lugar de Poderoso Chefão.
Oh mon Dieu! Só agora me dou conta.
Emilien é meu chefe.

A reunião dura longas e torturantes quatro horas. Nós definimos o


tema da próxima edição especial — Revolução Francesa —, designamos
quem escreverá o que, os subtemas, revisores responsáveis, ilustradores,
designers, editores, supervisores, fotógrafos etc. Durante todo o tempo, me
esforcei muito para não o olhar. Pela visão periférica, entretanto, notei que
Emilien não teve a mesma preocupação. Ele me observava, não sei se
discretamente ou sem cerimônia. Confesso que, em dados momentos, não
aguentei e procurei pelos olhos dele. Às vezes o pegava concentrado no que
estava sendo debatido, a postura impecável em seu lugar, dedos nos lábios,
olhos atentos. Então, parecia me sentir e me olhava de volta — e eu
rapidamente fugia, pega no flagra. Outras vezes, Emilien já estava me
olhando, com a mesma paixão e intensidade que me olhava desde o dia em
que nos conhecemos.
Dupont fica até o fim. Sinceramente, acreditei que iria embora logo na
primeira hora, porque realmente essas reuniões não são nem um pouco
animadoras. Mas aí me lembrei de que ele é CEO e dono de uma das maiores
empresas de investimento do país e já deve estar habituado a reuniões até
mais entediantes do que essa.
— Então é isso, pessoal — Héron diz, dando a reunião por encerrada.
As pessoas começam a juntar suas cosias sobre a mesa, saindo pouco
a pouco. Sou uma das primeiras a sair e ir direto para a cafeteria da redação.
Preciso de uma dose de cafeína forte o bastante para me ajudar lidar com essa
situação que ainda não consegui digerir muito bem. Emilien é meu chefe.
Dono do grupo editorial que têm variados títulos de revistas. Não tenho
dúvidas de que ele virá aqui com frequência só para me atormentar.
Preparo a cafeteira, à meia-luz do cômodo, e tento ignorar meus
pensamentos. Emilien é um homem ocupado. Vive em viagens, reuniões,
conferências. Espero que sua agenda para o próximo milênio esteja bem
cheia, sem brechas e chances de ele vir parar na redação.
— Marie. — Uma mão pousa em meu ombro ao mesmo tempo que
uma voz me chama, sobressaltando-me. Coloco a mão no coração e me viro
para Héron, que tem uma carranca no rosto. — Você me colocou em uma
situação delicada — fala, afastando-se um passo, sem nunca tirar a expressão
de desagrado. Bato a mão na testa. Entendo o que ele quer dizer. — Posso
perder o meu emprego.
Perco o ar por um segundo.
— Héron… — digo, com cuidado. — O Emilien não vai te demitir.
Tenho certeza disso.
— Bem… — rebate, indo até a cafeteira e pegando o meu café que já
está pronto. Em vez de me entregar, toma um gole, sem nem mesmo adoçar.
Amém. — Ele pensa que estamos juntos, gosta de você e está tentando te
reconquistar. Agora, Dupont é meu chefe e se quiser me tirar do caminho,
tem poder suficiente para fazer isso.
Encaro-o por alguns segundos, sem saber o que dizer nesse momento.
Entendo a preocupação dele, de verdade, mas eu conheço Emilien. Ele não é
esse tipo de cara.
— Poirier — a voz sedutora de Dupont ressoa às suas costas. Firme,
forte, dura. Ah, droga! — Antes de ir embora, posso falar mais dez minutos
com você?
Héron olha para mim seriamente por um segundo inteiro. Se pudesse,
me comeria viva, tenho toda certeza. Então, lentamente, se vira para Emil e
sorri forçado.
— Claro — anui, com um mover de cabeça. Erguendo a xícara de
café, que roubou de mim, completa: — Te encontro em um minuto. Se não se
importar em ir à frente e me esperar na minha sala.
Lançando-me um último olhar intenso, Dupont acena em positivo e se
retira.
Poirier termina seu café em um gole só, bate a xícara contra a bancada
de granito e se aproxima de mim, sussurrando em meu ouvido:
— Se eu perceber que meu emprego e minha carreira estão em jogo
por conta da sua mentira idiota, vou dizer toda a verdade, Marie.
Não tenho tempo de respondê-lo, pois Héron já foi ao encontro de
Emilien.

Decido esperá-lo. Preparo outro café para mim e volto à minha mesa,
ligando o computador e tentando me concentrar em algumas pesquisas.
Quinze intermináveis minutos se passam até a porta da sala de Poirier se
abrir. Ele e Emilien saem juntos, conversando alguma coisa que não consigo
captar.
Dou um salto imediato da minha cadeira, já pronta a qualquer coisa,
se necessário. Os olhos de Emil vêm até mim, surpresos pela minha presença.
Seus lábios suculentos se abrem em um pequeno sorriso.
— Bonsoir, Marie. — Deseja-me boa-noite, enfiando as mãos no
bolso.
Analiso Héron. Ele não está com cara de pitbull raivoso. Sinal de que
não foi demitido, certo?
— Bonsoir, Emilien — respondo, soltando lentamente o ar dos
pulmões.
Héron me olha, molhando o lábio inferior.
— Chérie, você vem lá para casa?
Oh Céus! Ele ainda quer manter essa farsa na frente de Dupont. Que
raios esses dois conversaram no escritório dele? Troco o peso da perna e
ajeito meu cabelo. Quando procuro por Emilien, ele está estático no seu
lugar, a cinco metros de distância de mim, o corpo parecendo tenso debaixo
do terno, os olhos analisando-me como um predador destemido.
— Vou ficar mais um pouco — respondo, por fim. — Quero terminar
um trabalho que comecei. Espero que não se importe.
— C’est bon — Poirier responde, vindo até mim e deixando um beijo
casto em minha testa. Seus olhos abaixam-se para os meus. Sem dizer mais
nada, ele se vira e vai embora.
Um instante mais tarde percebo que estou sozinha com Emilien na
redação da revista.
Droga.
Estou encrencada.
Emilien permanece longe e em silêncio, apenas olhando-me. Seus
olhos agora estão meio abatidos e tristonhos, as mãos continuam dentro do
bolso, mantendo a postura casual e despreocupada. O que não parece
combinar nada com a expressão tensa e triste.
— Você vai demitir o Héron? — É a única coisa que consigo
perguntar para quebrar o silêncio entre nós.
Suas belas e grossas sobrancelhas vincam diante meu
questionamento.
— Eu tenho motivos para demiti-lo? — responde com outra pergunta.
Passo a língua pelos lábios, desviando meu olhar do dele. Outra vez,
uma quietude desconfortável recai sobre nós. Sou orgulhosa demais para
admitir em voz alta que achei que ele demitiria Poirier por causa do nosso
namoro de mentira. Entretanto, Emil é um homem inteligente e com toda
certeza sabe minhas razões para ter feito uma pergunta tão idiota e narcisista
dessa maneira.
— Não sou esse tipo de cara, Marie — diz, suavemente. Olho-o outra
vez. — Entenda, eu quero muito uma chance com você. — Pausa. Olha para
os lados, molhando o lábio inferior. — E sei que insistir nisso, enquanto você
está comprometida com ele, é muito errado, mas não posso evitar. — Então,
os olhos azuis estão nos meus de novo. — E quero fazer isso da maneira
certa. De um jeito honesto. Se demiti-lo por sua causa, pelas razões que estão
se passando nessa sua cabecinha, não seria justo e seria um tiro no pé. E, de
qualquer maneira, não sou assim — repete, desta vez enfatizando.
— Sei que não — concordo, maneando a cabeça. Emilien permanece
em seu lugar, quase sem se mover. — Por que está tão longe? — murmuro,
não podendo acreditar que realmente fiz isso. A última coisa que quero é este
homem muito perto de mim.
Ele arregala os olhos e respira ruidosamente. As pernas parecem
vacilar por um segundo enquanto suas íris estão cravadas em minha direção.
Com um suspiro trêmulo e longo, Emilien responde:
— Estou resistindo. — A resposta me deixa confusa. Cruzo os braços
na frente do tórax e troco o peso da perna. — Estou resistindo à vontade de
me aproximar, te pôr em meus braços e roubar um beijo, porque
desesperadamente sinto falta da sua boca na minha. E a última coisa de que
preciso — sua voz agora desce uma oitava e os olhos fitam o chão, como um
garotinho envergonhado — é que você mova um processo de assédio sexual
contra mim ou a empresa.
Pestanejo seguidas vezes, querendo gritar com ele para que se
aproxime e me tome em um beijo, sim! Que me coloque nos seus braços e
enfie sua língua na minha boca, porque, assim como ele, também sinto sua
falta e falta dos seus lábios suculentos, do seu toque, do seu calor. Esforço-
me para evitar as lágrimas e soltar que tenho saudades.
— Preciso ir agora, termino meu trabalho em casa, mesmo —
informo, virando-me de costas para que ele não veja o estado que sua
declaração me deixou, e nem que o sentimento e a vontade são recíprocos.
Pego minha bolsa na cadeira e guardo meu celular e outros pertences.
— Precisa de um táxi ou uma carona? — pergunta, baixo e rouco. —
Está tarde.
— Estou com meu carro. Merci. — Jogo a alça da bolsa no ombro e
me viro para ele. Inspiro fundo uma última vez antes de tomar coragem e
mover minhas pernas para ir embora.
Odeio admitir. Mas está sendo cada vez mais difícil deixá-lo.
EMILIEN
Dezesseis anos antes
— EMIL! — A voz alta, estridente e infantil de Nicole reverbera pela
mansão assim que atravesso a porta de entrada.
Ela vem correndo em minha direção, abraçada a uma boneca Barbie, e
pula no meu colo. Uma gargalhada escapa de mim enquanto a aperto em
meus braços e beijo sua bochecha.
— Petite soeur! Que saudade de você, pirralhinha! — exclamo,
bagunçando seus cabelos áureos.
Mamãe aparece na sala, caminhando como uma soberana dentro de
sua roupa elegante, o cabelo impecável e a maquiagem leve. Seus olhos azuis
e frios me analisam de cima a baixo. O sorriso é conciso e quase sem vida.
Inspiro fundo e desço minha irmã do meu colo, que se mantém agarrada à
minha cintura.
Elizabeth se aproxima de mim, segura-me firme pelos braços e me
olha nos olhos um segundo antes de me dar um abraço apertado.
— Emilien — diz apenas, afastando-se, mas ainda mantendo os dedos
em meus ombros.
— Salut, maman — cumprimento-a de volta e lhe dou um beijo na
bochecha.
Mais uma vez, ela me analisa, erguendo uma sobrancelha
inquisidora.
— Tem se alimentado direito, querido? Parece tão magro e desnutrido
— aponta.
Suspiro e bagunço um pouco mais os cabelos de Nicole.
— Oui, maman. Estou comendo direito, não se preocupe.
Ela faz uma careta de quem não está muito convencida de minha
resposta, mas a aceita, de qualquer maneira. Segurando em meu pulso e no de
Nicole, nos leva até a sala de jantar, onde a mesa do café da manhã está
posta. Elizabeth se senta à cabeceira enquanto me acomodo no primeiro lugar
ao seu lado esquerdo e minha irmã à minha frente.
— Acredito que aqui se alimentará melhor durante sua estadia —
mamãe diz, servindo-me com leite morno. — Não me surpreenderia se
soubesse que convivendo com aquela sua amiga… — Faz uma pausa, talvez
tentando se recordar do nome em questão. — Désirée Lacroix… você esteja
apenas a base de frituras, refrigerantes e fast food.
Minha mãe é um poço de exagero quando quer. Mas conheço sua
estratégia. Isso é seu modo de tentar me convencer a voltar a morar aqui. Sei
de cor e salteado o padrão de Elizabeth Dupont. Ela começa a pôr defeitos e
obstáculos na minha vida fora dessas paredes e depois enaltece os benefícios
que seria se eu tornasse a viver junto dela.
— Mère, não se preocupe comigo. Tenho mantido uma alimentação
saudável, durmo oito horas por dia, faço exercícios físicos e não assisto
pornografia — brinco, arrependendo-me da última parte. Esqueci-me
completamente de Nicole na nossa presença.
— O que é pornografia, Emil? — a menina pergunta um segundo
depois, distraída, amaciando os cabelos da sua Barbie.
Engulo em seco e olho para minha mãe, que já está pronta para comer
meu fígado. Pigarreio um segundo enquanto procuro por uma explicação que
satisfaça a curiosidade sagaz e praticamente insaciável da minha irmã caçula.
— É uma coisa feita para adultos que nem mesmo adultos deveriam
ver.
Suas pequenas sobrancelhas se vincam e ela me olha atentamente,
confusa com minha resposta.
— Se é feita para adultos, por que adultos não deveriam ver?
— É isso que estou te dizendo, petite soeur. É algo muito feio.
Mesmo para adultos. Por isso, os bons adultos não assistem a essa coisa feia.
Entendeu?
Parecendo satisfeita com minha resposta, torna a se entreter com sua
boneca enquanto toma um copo de leite e come alguns biscoitos de chocolate.
Mamãe se serve com café, a carranca ainda em suas expressões levemente
envelhecidas, não sei se por causa do assunto pornografia na frente da minha
irmã ou se porque mais uma vez tentou me convencer a voltar para casa e
mais uma vez estou negando.
Tomo um gole do meu leite, ignorando por ora seu mau humor, e
corto um pedaço de bolo.
— Onde está o papai? — pergunto alguns segundos depois.
Limpando os lábios com um guardanapo, mamãe informa:
— No escritório no andar de cima. Teve uma reunião de última hora.
Pediu desculpas por não poder te receber, mas estará na mesa conosco no
horário do almoço.
O restante do café da manhã, entre mim e mamãe, é feito sem assunto
algum. Ela come quieta sua porção de fibras, carboidratos bons e proteínas.
Nicole me conta todas as novidades da escola e as coisas que está
aprendendo, os livros que leu no último mês, as amizades recentes feitas na
nova turma e pratica um pouco de seu inglês comigo. Depois, me pede para
falar do meu curso. Nesse momento, mamãe pigarreia furiosamente à mesa,
tentando atrapalhar o assunto. Sei que é de propósito.
— Em vez de te falar, que tal eu te mostrar? — falo, balançando as
sobrancelhas.
Terminada minha refeição, pego minha irmã pelos punhos e a levo até
meu quarto. Minha pequena bagagem, que um dos funcionários da casa
trouxe para cá, está em cima da cama. Reviro-a até encontrar minha câmera
fotográfica e levo Nicole para o extenso jardim atrás da mansão.
— Que tal um ensaio fotográfico, irmãzinha?
A menina se anima com a ideia, pulando e batendo palminhas. A
próxima hora é recheada de risadas, poses, cliques e alguns malabarismo para
que eu consiga pegar um ângulo bem bacana para as fotos. Nicole leva jeito
para a coisa. É bonita, muito sorridente e espontânea, além de fotogênica.
Nem faz esforço para sair bonita nas imagens e consegue essa proeza mesmo
fazendo caretas. Minha irmã é uma fofa.
Estamos fazendo uma série de imagens na piscina quando mamãe
surge:
— Você continua com essa ideia tola de ser fotógrafo, Emilien? —
Quando a olho, ela está se acomodando em uma das espreguiçadeiras,
trajando um maiô preto e óculos escuros. Sem me encarar, passa o protetor na
pele, com movimentos elegantes e suaves. — Que desperdício de talento.
— Já falamos sobre isso, mère. — Solto um suspiro cansado e caio na
espreguiçadeira ao lado. Nicole, de cara fechada e braços cruzados, vem até
mim, frustrada com a interrupção. Estávamos nos divertindo. Acolho-a em
meu abraço e beijo sua bochecha.
— Já — confirma, virando-se para mim. Retira os óculos escuros e
me encara seriamente. — Contudo, você prefere não me dar ouvidos e insiste
nessa besteira. Está jogando toda a oportunidade de uma vida por causa…
disso? — indaga, desdenhosa, apontando para a câmera pendurada em meu
pescoço.
— Está vendo por que não volto a morar aqui? Tem três meses que
não me vê e, quando venho fazer uma visita, tudo o que sabe fazer é me
criticar! — protesto, levantando-me do meu lugar e passando a mão pelos
cabelos.
— Não briguem, por favor — Nicole pede, agarrando-se às minhas
pernas.
Na mesma velocidade, Elizabeth também se levanta, apontando um
dedo indicador em minha direção, bradando:
— Você é um ingrato! Seu pai e eu batalhamos uma vida para te dar a
oportunidade de ser alguém, uma pessoa importante, para batalhar conosco,
mas você quer ser um fotógrafo inútil! Pense, Emilien, quantos rapazes na
sua idade não gostariam de ter a oportunidade de ser um empresário
importante? Você tem isso e está jogando pela janela.
Abano a mão no ar, arrependendo-me de ter vindo. Talvez eu vá
embora ainda hoje e não volte mais. Quando eu quiser ver meu pai e minha
irmã, marcamos um lugar para isto. Mas não posso. É toda vez a mesma
história. Basta estar dez minutos no mesmo ambiente que minha mãe e que
eu não esteja cumprindo seus desejos para ela me atormentar e me tirar do
sério.
— Para mim já deu, maman. Vem, Nicole, vamos entrar — falo,
puxando minha irmã pelo punho.
Às minhas costas, Elizabeth grita comigo, me manda voltar, a não a
ignorar ou lhe dar as costas. Faço cada uma delas, pouco me importando. Ela
grita cada vez mais alto à medida que me afasto, quase consigo sentir sua
garganta arranhando. Mulher histérica.
— Maman! — Nicole esbraveja, soltando-se do meu apego e
correndo na direção oposta.
Tento impedi-la e quando me viro para onde estávamos, vejo minha
mãe estirada no chão, inconsciente.

— Taquicardia? — papai pergunta ao médico.


Estou encostado à porta da suíte principal, observando de longe.
Mamãe está deitada na cama, coberta por um lençol fino, consciente outra
vez, acariciando os cabelos áureos de Nicole e lançando-me olhares culposos.
Suspiro e desvio o olhar para o senhor de jaleco branco, o médico da família,
que veio imediatamente atender à emergência.
Depois que Elizabeth caiu desmaiada na beira da piscina, mandei
minha irmã chamar pelo papai enquanto a pegava no colo e a trazia para cá.
Uma das funcionárias chamou pelo médico. Thierry mal falou comigo — não
quis nem saber o que aconteceu — e ficou o tempo todo ao lado da esposa.
Após examiná-la, o doutor já tinha um prognóstico.
— Taquicardia — o profissional afirma. — Mas Elizabeth não tem
nenhum problema cardíaco, então acredito que possa ter sido apenas um
susto causado por algum estresse emocional.
— Viu só, Emilien, o que você fez? — mamãe acusa, como eu achei
que acusaria.
Já estou acostumado a essas culpabilizações. Sempre que a contrario e
ela passa mal, mamãe atribui suas dores e mal-estar a mim, por não a ouvir e
saciar seus desejos. Ao longo dos anos, principalmente durante minha
infância, quando eu era uma criança inocente das manipulações dela, esse seu
“método” funcionava comigo. Dores de cabeça aqui, machucados causados
por distrações ali, choros exagerados acolá, e pronto. Estava nas mãos dela,
fazendo tudo o que pedia para que não a visse mal. Na minha cabeça, eu
realmente tinha causado toda aquela tristeza nela e me esforçava para não a
deixar mais triste. Isso significava que, muitas vezes, suprimi minhas
vontades em razão das dela. Por mais que Elizabeth sempre tenha usado isso
para me manipular, nunca chegou ao ponto de um desmaio. O que agora
realmente me deixa assustado e traz à tona o sentimento de culpa que tive
quando criança e demorei a me libertar — apenas com ajuda profissional.
Papai se vira para mim, o rosto demonstrando paz serena. Thierry
sempre ouve todas as versões antes de tomar qualquer partido. Teria sido um
bom juiz se tivesse seguido por esse caminho.
— Como isso pode ser culpa sua, Emil?
Encolho os ombros e olho para baixo. Antes que eu possa responder,
minha mãe o faz por mim:
— Porque ele é teimoso, Thierry! E ingrato. Um filho que só me dá
decepção. Estava apenas tentando convencê-lo a mudar de ideia e investir em
um curso que possa capacitá-lo para estar à frente da empresa da família, mas
ele me ignorou, deu-me as costas! Veja que filho mais mal-educado nós
criamos.
Papai ouve palavra por palavra sem se dar ao luxo de encarar minha
mãe. Seus olhos idênticos aos meus não se desgrudam de mim. Ele ergue as
sobrancelhas ao fim do dramático discurso da esposa, sabendo que ela está
exagerando um bocado.
Sem nada dizer a nenhum de nós dois, Thierry se volta para o médico
e o agradece pela visita. Chamando uma funcionária, pede para acompanhá-lo
até a saída. Quando somente a família está no ambiente, papai diz:
— Vocês já não haviam conversado sobre esse assunto? — Olhando
para minha mãe, ele completa: — E você não tinha aceitado a escolha de
Emil, mon amour? A felicidade dele está acima de qualquer coisa.
Elizabeth solta uma risada sem humor, até meio histérica, eu diria.
— Este menino ainda é uma criança! E está tomando decisões que, no
futuro, se arrependerá. Thierry, mon chéri. — Ela o segura pelas mãos, de um
jeito amoroso. — Preocupo-me com nosso filho. Apenas eu sei o que é
melhor para ele.
— A senhora está certa — digo, interrompendo o momento deles por
um segundo. Um silêncio ronda o quarto. Ainda estou olhando para baixo,
segurando a tristeza nos olhos e perguntando-me por que estou tomando essa
decisão tão estúpida. Não aprendi nada sobre Elizabeth e sua mania de me
fazer de marionete?
Ergo os olhos para minha mãe e me aproximo, sentando-me ao seu
lado. Ela me olha atentamente, as íris azuis mais suaves, como se já soubesse
que ganhou esse maldito jogo. Meu pai tem as sobrancelhas unidas,
esperando-me terminar de dizer.
— Vou… desistir do curso de fotografia — revelo, pegando-a pelas
mãos.
— Emil… — A voz de papai é um mero sussurro de advertência.
— A empresa da família vai precisar de mim no futuro e… não quero
desapontar ninguém. Mère, estou cansado de discutirmos sobre isso, cansado
de ficar tempos sem ver minha família por conta dos nossos
desentendimentos. Se me preparar para assumir a Dupont Investimentos é o
que te fará feliz e o que acabará com nossas intrigas… — Suspiro alto,
esforçando-me ao extremo para segurar as lágrimas para mim. — Então farei
isso.
Mamãe abre um sorriso enorme — de vitória — e me traz para um
abraço apertado, maternal. Aperta minhas bochechas depois, dizendo como
estou tomando a atitude correta, para o bem de todos. Consigo sorrir pouco,
beijo sua testa, digo que a deixarei descansar e me ausento do quarto.
Estou descendo as escadas quando papai me aborda:
— Emilien.
Giro nos calcanhares e o encaro. O semblante dele muda radicalmente
quando nota que meu rosto está molhado. Em um segundo, estou nos braços
dele.
— Filho, está tomando a decisão errada. Elizabeth está manipulando
você.
— Eu sei — respondo com um suspiro estrangulado. — Mas tudo que
disse lá é verdade. Pai, estou cansado de mamãe me punir dessa maneira. Se
para ter um pouco de paz eu preciso abrir mão dos meus sonhos em razão das
vontades narcisistas dela, que assim seja. Vou mudar de curso, vou voltar
para cá. Vou fazer cada maldita coisa que ela quiser. Não suporto mais a
saudade de você, de Nicole, até dela… porque mamãe é boa comigo quando
não a estou contrariando. Estou cansado das discussões, das ofensas, mesmo
eu a vendo uma vez a cada três meses. Não sei o que fazer a não ser acatar os
desejos dela.
Papai suspira pesadamente e me afasta de seu abraço. Seus olhos se
cravam em mim, repletos de dor e emoção. Ele tenta, por várias vezes, me
dizer alguma coisa, mas nada sai dos seus lábios. É até engraçado pensar que,
quando saí de casa, no ano passado, foi por causa da minha mãe e da nossa
convivência. Saí de casa para poder trilhar meu próprio destino, fazer minhas
próprias escolhas, mas agora estou voltando e desistindo dos meus sonhos
quase pelo mesmo motivo que me levou a me mudar. Elizabeth sempre vai
ter algum controle sobre mim, minhas escolhas e vontades.
— Apenas saiba, mon fils, não importa qual decisão você tome, qual
caminho você siga. Sempre estarei aqui para te apoiar.
Ele me toma em outro abraço apertado e só então, pela primeira vez
desde que cheguei aqui, me sinto realmente acolhido.
Nosso instante é interrompido meio segundo depois.
— Thierry, eu soube de Elizabeth e… — Ela para de dizer quando me
vê junto de papai. — Emilien! — exclama, alegre, e vem até mim. Dá-me um
abraço apertado e beija o canto da minha boca. — Que saudades de você.
Não sabia que estava aqui.
— Cheguei pela manhã — informo, mostrando um pequeno e forçado
sorriso.
— E sua mãe? — indaga, olhando por cima dos meus ombros, direto
para meu pai, um degrau acima. — Ela está bem, Thierry?
— Oui, Marjorie, foi apenas um susto. Nada demais. Vou informá-la
de que você está aqui para uma visita. — Dizendo isso, papai se ausenta,
deixando-me a sós com Chevalier.
— O que houve, Emil? — pergunta, acariciando-me nos braços.
Depois de papai, e da própria Nicole, Marjorie é quem mais consegue
cativar meu afeto. Ela é uma boa amiga e, apesar da sua quase veneração pela
minha mãe, me apoiou nas minhas decisões, mesmo não concordando com
elas. Gosto dela. Nossas mães são melhores amigas desde sempre, o que
significa que crescemos praticamente juntos, pois sou apenas dois meses mais
velho que ela. Em algum momento dos meus dezesseis anos, eu a olhei com
um pouco mais de malícia, até tivemos um namorico rápido e tiramos um a
virgindade do outro. Não duramos seis meses namorando às escondidas.
Conhecemos outras pessoas, nos distanciamos por conta de estudos e
viagens, mas mantivemos contato e amizade. Quando nossas mães
descobriram que tínhamos namorado por algum tempo, ficaram bem
animadas, a minha principalmente, e começaram a falar de casamento. Eu em
particular achei ridículo que as duas quisessem nos unir em algum momento
do futuro. Por mais que eu tenha gostado de Marjorie — em algum nível —
não era o suficiente para me ver casado com ela. Quando me mudei, boa parte
da histeria de Elizabeth era porque também não tinha conseguido me
convencer a namorá-la. Muito antes disso, ela inclusive fazia de tudo para
arruinar meus relacionamentos — que já não eram muitos.
Sorrio um pouco, sentindo-me levemente frustrado. Minha decisão de
me mudar para cá outra vez alimentará as esperanças de mamãe em me juntar
com Marjorie — e as esperanças da própria Marjorie, que descobri algum
tempo atrás ainda ser apaixonada por mim.
— Só outra discussão rotineira com minha mãe — respondo por fim,
parando de divagar.
— Emil… — Seu tom é uma reprimenda.
Abano a mão no ar.
— Elas vão acabar — garanto, olhando para um ponto fixo atrás de
seus ombros, sem coragem o suficiente para olhá-la nos olhos. — Decidi
voltar para cá e mudar o curso da faculdade. Estou decidido a fazer todas as
vontades dela se isso for me dar a paz que quis nos últimos dezenove anos.
Os olhos de Marjorie brilham, esperançosos. Um sorriso conciso
nasce em seus lábios bonitos pintados de alguma tonalidade de rosa.
— Inclusive a vontade que ela tem de nos casar? — Sua sugestão tem
uma pitada de humor e uma pitada de verdadeiro desejo na mesma medida,
em uma nuance quase imperceptível. Se não a conhecesse tão bem, se não
conhecesse seus sentimentos por mim, teria notado apenas o deboche.
Aproximo-me um pouco mais dela, segurando-a pela nuca e a
olhando nos olhos.
— Vai depender do quanto minha mãe me atormentará com a ideia.
Sem mais nada a dizer, me distancio dela, precisando tomar um pouco
ar e uma água gelada.
MARIE
Café.
Desesperadamente preciso de café. Sabia que deveria ter tomado uma
dose antes de sair de casa, mesmo levemente atrasada para meu expediente.
Chego na redação da revista e me encaminho direto para a copa para
preparar minha dose diária de cafeína. Enquanto a cafeteira processa os
grãos, tomo dois copos de água, como de costume. Confiro a hora em meu
relógio de pulso. Ainda faltam dez minutos. Tenho tempo.
— Bonjour — uma voz rouca soa atrás de mim, assustando-me.
Não me viro imediatamente, precisando de um instante, não apenas
para me recuperar do susto, como para tomar coragem de encarar seus olhos
azuis. O que Emilien está fazendo aqui, antes das oito? Esse homem não tem
mais o que fazer da vida, não?
Inspirando profundamente, giro nos calcanhares. Concentro-me em
manter minha postura e não me sentir abalada por sua presença. Gente, tem
necessidade de ser tão tentador dessa maneira? Ele está trajando um terno
vinho muito elegante, gravata preta, camisa cinza com estampa quadriculada
e sapatos italianos que devem custar um ano do meu salário, se não mais.
— Bonjour — respondo, esforçando-me para ser educada.
Que diabos ele quer agora? Já não bastou a reunião de ontem, em que
descobri que é meu chefe e dono de mais da metade do grupo editorial a qual
a revista onde trabalho pertence?
Emil se aproxima, as mãos nos bolsos, seus olhos em mim. Prendo a
respiração por um segundo. Ele se põe ao lado da cafeteira e ergue os braços
longos até pegar uma cápsula de expresso. Então coloca uma xícara ao lado
da minha, aperta alguns botões depois de inserir o cartucho no local indicado
e fica ali, emudecido.
O meu lado da máquina — a que mói os grãos — já terminou de
processar. Limpo rapidamente o compartimento dos grãos moídos e só então
degusto da minha bebida. Rápido demais. O calor queima minha língua e me
impede de sentir o sabor da cafeína.
— Então… agora você vai vir todo santo dia aqui? — Minha língua
se desenrola para perguntar.
Emilien se vira em minha direção por um segundo, depois torna a dar
atenção ao café que cai em sua xícara.
— Não. Nem tenho tempo para isso — responde.
— Não parece — murmuro, olhando para a espuminha se desfazendo
no líquido preto.
Um segundo de silêncio paira sobre nós.
— O que quer dizer com isso? — pergunta, encostando-se à bancada,
bem ao meu lado.
Seu perfume francês caro se acentua no meu olfato quando se
aproxima mais de mim. Ainda olhando para baixo, vejo seus pés bem
pertinho dos meus, cruzados. Ao olhar para o lado, seus olhos azuis estão
mais próximos do que eu gostaria e permitiria depois de tudo. Os lábios estão
tampados pela delicada xícara. Faço o mesmo, tomando uma dose do meu
café antes de responder:
— Já veio aqui ontem, conhecer a redação. O que mais teria para
resolver? Você comprou o grupo há mais de um ano e só ontem deu as caras.
Mas aí descobriu que eu trabalho aqui e decidiu aparecer hoje também?
Emilien envolve a pequena peça de porcelana com as duas mãos e
olha para baixo. Um segundo mais tarde, se pronuncia:
— Não tive tempo de vir antes, Marie. Quando comprei os sessenta
por cento do grupo, estava morando em Nova Iorque. Além disso, hoje tenho
mais alguns assuntos pendentes para tratar com Héron antes de viajar e voltar
só no fim de semana. Não se preocupe, não me verá com frequência por esses
corredores.
Não dizemos nada um ao outro por longos segundos. Tento não criar
paranoias na minha cabeça, mas é estranho o fato de ele ter comprado
justamente o grupo em que eu trabalho e ter mantido seu nome desvinculado
a essa compra até ontem. Franzo levemente o cenho, minhas engrenagens
trabalhando dentro da cabeça. Olho-o meio de esguelha, sua atitude soando-
me muito suspeita. Além do mais, na festividade do Dames Parisiennes, no
sábado, ele já sabia que eu estava trabalhando aqui, com toda certeza. Se fez
de sonso, esse desgraçado.
— No sábado, você já sabia que eu trabalho aqui, non? — pergunto,
soando acusatória.
— De forma alguma — nega, mas não acredito nem um pouco.
— Mas sabia do Héron — aponto.
— Sim, soube semanas antes do evento, quando doei uma quantia
generosa em nome da empresa e precisava de alguém para representar o
grupo. Escolhi o Héron, porque ele tem um nome de peso no meio editorial e
pedi para que o incumbissem de ir. Que você trabalha aqui, até ontem não
sabia. A empresa é enorme, meu tempo é curto. Acha que ficaria horas
procurando seu nome na relação de funcionários? Além do mais, só há
poucos dias você me informou que tinha saído do La Parisienne.
Sua explicação faz sentido, mas ainda não me é suficiente. Ajeito-me,
ficando de frente para ele, e o olho seriamente.
— Mas me parece que você sabia e comprou o grupo… — Paro de
falar um instante, pensando em como isso vai soar muito, mas muito ridículo.
Engulo em seco e decido não terminar minha frase. Movo a cabeça de um
lado a outro e obrigo minhas palavras descerem pela garganta junto com o
café.
— … que eu comprei o grupo por sua causa? — Enfatiza as duas
últimas palavras, mas não de um jeito debochado e pejorativo. Tem algum
tom divertido no modo como as pronuncia. Agora ele deve me achar uma
babaca narcisista convencida e metida a besta que acha que o mundo gira em
torno do meu umbigo. — Isso não faz sentido, Marie. Até onde entendi, você
está aqui há pouco mais de oito meses, enquanto eu comprei o grupo tem
mais de um ano, bem antes de você vir para cá.
Bem, contra fatos não há argumentos. Ele tem razão.
— Espera… como sabe o tempo que trabalho aqui?
Dando de ombros e virando-se para colocar a xícara vazia dentro da
pia, responde:
— Héron. Falamos de você ontem, em particular.
Pisco uma porção de vezes, absorvendo a informação. Eles… falaram
de mim?
— O que vocês falaram de mim? — Quero saber, pondo a mão na
cintura.
Emilien se encosta à pia e coloca as mãos no bolso, abrindo um
sorrisinho misterioso.
— Nada de mais, não se preocupe. — E é tudo.
A resposta não me agrada, mas não vou implorar para Emilien. Não
digo o mesmo em relação a Poirier. Na primeira oportunidade, vou pressioná-
lo e saber o que diabos falaram de mim.
— Certo. E por que comprar o grupo e esconder seu vínculo por tanto
tempo? — Sinceramente, ainda não entendi o motivo disso tudo e, mesmo
que ele já tenha argumentado a seu favor, minhas paranoias não são
aplacadas. Tenho um sexto sentido que não falha. Por alguma razão, sinto
que tem algo muito errado nessa história de comprar uma das maiores
companhias editoriais do país.
— Negócios — explica, bastante evasivo, e fica por isso mesmo.
Decido não insistir no assunto, porque de nada adiantará. Emilien não vai dar
mais detalhes.
Tomo o restante do meu café — já quase frio — e ponho minha
xícara dentro da pia, perto da dele. Então cruzo os braços na frente do tórax e
o encaro.
— Por que comprar um grupo editorial? — sigo especulando. Deus,
nada me tira da cabeça de que não há coincidência nenhuma de eu vir
trabalhar justamente para ele.
Emilien exibe um sorrisinho maroto e suspira, desviando o olhar um
segundo.
— Marie, constantemente estou à procura de revistas interessadas em
fazer reportagens sobre minhas filantropias. Apenas achei mais viável ter
logo uma empresa que atenda a essa minha demanda.
Encaro-o por alguns segundos, ponderando suas respostas. Odeio
admitir, mas faz algum sentido. Enquanto vagueio pela minha mente, nem o
vejo se aproximar de mim, elegante como um jaguar, e pôr seu corpo grande
e quente perto do meu. Perco a respiração só por um segundo ao vê-lo bem
próximo, seus olhos vasculhando os meus, as mãos pousadas na bancada da
pia onde estou encostada, uma de cada lado, deixando-me encaixada em seus
braços.
— Às vezes sonho com nossos dias na África — ele murmura,
inclinando-se levemente em direção à minha boca. Sinto seu hálito quente e
cheirando a café. A boca dele é uma delícia, com sabor de café é ainda
melhor. Quase posso sentir na ponta da língua o gosto do seu beijo de
cafeína.
Não quero admitir o mesmo. Nos últimos dois anos, sonhar com
Emilien foi bastante recorrente. Não só sonhei com nossos dias no continente
africano, mas até tive momentos fantasiosos. Como quando tive um sonho de
que transávamos em uma festa de casamento.
Diante meu silêncio, ele continua, seu indicador roçando de leve em
minha bochecha:
— Fui tão estúpido achando que podia te esquecer. — Sua voz está
rouca e baixa.
Meu estômago dói. Vagarosamente, ele resvala o dedo pelo meu
rosto, passando pelo queixo, pelo colo e para no meu decote, os olhos presos
nos meus seios por vários segundos. Seu olhar de paixão queimando sobre
mim me desestabiliza e mexe comigo lá embaixo.
Não consigo respondê-lo, nem mesmo formar uma frase coerente,
porque estou surpresa demais com essa reaproximação e assustada como ele
ainda significa algo para mim, mesmo depois de tudo. Emilien me magoou.
Já deveria tê-lo esquecido e superado, não é?
— Você sente falta do meu toque tanto quanto eu sinto falta do seu?
— sussurra, o indicador agora deslizando mais para baixo, alcançando o
interior da minha coxa. Homem atrevido! Ele me acaricia ali, mas não posso
sentir pele na pele por conta da meia-calça preta. Recuperando a sanidade,
consigo empurrá-lo delicadamente. Ele se afasta, expressando uma cara
entristecida. Não, ele não pode quebrar meu coração e achar que é simples ser
perdoado. — O que preciso fazer para me perdoar, Marie? — indaga,
colocando as mãos no bolso e olhando para baixo.
— Talvez nascer de novo e deixar de ser um idiota — respondo.
Emilien me olha de um jeito indecifrável, provavelmente atingido pelo que eu
disse. — E nós já falamos sobre isso — pontuo, deixando um suspiro pesado
escapar. — Pare de me pressionar. Se tiver de te perdoar, deve ser
naturalmente, não porque está me coagindo!
Ele dá dois passos atrás, como se tivesse sido atingido por um tiro, e
se nega a me olhar.
— O que te faz pensar que estou te coagindo? — pergunta, olhando
para os lados.
— Está insistindo no assunto, mesmo que de forma sutil, mesmo
sabendo que estou com Héron — reafirmo minha mentira. Só quero que ele
pare de se aproximar tanto… ou não sou capaz de resistir. E eu quero resistir.
Não estou disposta a me entregar a ele de novo e arriscar meu coração pela
segunda vez. Emilien foi o único que conseguiu me ter por completo e foi o
único a me despedaçar também. — Só se afaste e me deixe em paz.
— Então… não há nenhuma chance de eu ser perdoado? — inquire,
meio entristecido. — Não há nenhuma maneira de eu tentar reparar o erro que
cometi com você?
— Já te disse que não sou uma pessoa rancorosa, Emilien. Algum dia,
pode ser que te perdoe. Mas não será hoje, nem amanhã.
— Não sei como conseguir seu perdão se você não me dá espaço para
isso — fala, suspirando. — Podemos ser amigos, pelo menos? — Seus olhos
azuis se erguem para mim quando muda de assunto meio bruscamente.
Jamais conseguiríamos ser amigos. Estou para responder isso, mas
então noto que estou atrasada para meu turno — já deveria ter batido cartão
há cinco minutos — ao mesmo tempo em que Héron surge na copa.
— Dupont… chegou mais cedo? — Olha para mim. — Tudo bem
aqui, Marie?
— Oui. Preciso começar meu turno — digo rapidamente e me retiro
depressa.

Os dois ficam trancafiados no escritório por cerca de quarenta


minutos. Concentro-me no trabalho nesse interim, tentando não me sentir
ansiosa e curiosa em saber sobre o que tanto tratam e por que falaram de mim
no dia anterior. Quando Emilien finalmente deixa a sala de Poirier e vai
embora, tomo uma dose dupla de coragem e o abordo antes que feche a porta
e se refugie novamente:
— Quero falar com você, posso?
Com um aceno de cabeça, ele me dá passagem. Acomodo-me em uma
das poltronas frente à sua mesa e o espero se ajeitar em seu lugar antes de
soltar as palavras:
— Por que eu fui assunto entre vocês ontem à noite? — Não faço
nenhuma cerimônia na pergunta. Sou direta e reta. Não há motivos para ficar
dando voltas. Héron tem trabalho a ser feito, assim como eu. Então, direto ao
assunto.
Ele se recosta à sua cadeira e leva o indicador aos lábios, analisando-
me quase minuciosamente com os olhos semicerrados. Um suspiro escapa de
entre seus dentes.
— Não foi nada de mais. Ne vous inquiète pas. — Não me preocupar?
Sua resposta é igual a de Emil e me deixa insatisfeita da mesma maneira.
Bufo, não me importando em demonstrar minha insatisfação.
— Vamos, Héron, tenho o direito de saber — exijo, o que não é lá
uma boa ideia.
Ele me olha com o maxilar meio tenso, com toda certeza
desaprovando minha insistência, meu tom e o fato de estar fazendo-o perder
tempo, do mesmo modo como eu estou perdendo. Inclinando-se para frente,
apoia o corpo sobre os braços e diz:
— Falamos de trabalho, apenas. Isso te alivia?
Nem um pouco.
— Non! — rebato.
Héron revira os olhos.
— D'accord. Écoute — fala com um suspiro longo. Ajeito-me em seu
lugar e me atento às suas palavras. — Emilien está fazendo um
remanejamento. Ele me deu uma promoção.
Pisco duas vezes, absorvendo o que ele disse. Mordo a carne interior
da bochecha e cruzo as pernas, avaliando a informação. Emil o promoveu. E
nós com medo de que fosse ser demitido.
— Dupont te promoveu a editor-chefe? — questiono. O brilho dos
seus olhos pretos se intensifica e um sorriso enorme cresce em seu rosto.
— Não. Editor-executivo. Mas o processo ainda está em trâmite. Isso
não deve sair daqui até minha mudança de cargo for oficial.
Balanço a cabeça em positivo, feliz por ele ter recebido uma bela
promoção. Mas isso não explica como os dois envolveram meu nome durante
a conversa. Parecendo entender meu questionamento interior, Héron se
prontifica a explicar:
— Bem, como fui promovido, alguém precisará ficar no meu lugar.
Ele perguntou se eu tinha alguém para indicar. — Não preciso demais para
entender onde quer chegar; mesmo assim, ele faz: — Eu disse que você é
uma forte candidata. Que apesar de estar há pouco tempo no grupo, tem um
currículo invejável e experiência o suficiente para assumir meu lugar.
Não vou negar. Estou lisonjeada pela indicação. Um sorriso grande
surge em mim com a perspectiva de ascender na editora.
— Não sei nem como te agradecer — digo.
Ele abana a mão no ar.
— Não é nada certo. Há outros nomes. Você terá concorrência.
Emilien não foi específico se ele mesmo vai escolher alguém para o cargo ou
deixará um responsável incumbido disso. Mas se for ele a escolher e se for
um homem parcial… esse cargo já é seu.
Suas palavras me estremecem por dentro, desagradando-me. Quero
muito essa promoção, não vou negar, mas não quero subir na minha profissão
dentro do grupo porque o dono tem uma paixão por mim. De maneira
alguma. Meu crescimento profissional deve vir através de meus esforços.
Nesse instante, uma coisa me acomete. Mesmo que Emilien incumba uma
pessoa a selecionar um candidato apto, ele tem o poder de coerção. O homem
pode simplesmente exigir que eu seja a escolhida. Ele está tentando ganhar
pontos comigo e é inteligente o bastante para saber que se ele mesmo me der
esse cargo, sairá mais prejudicado do que beneficiado. Eu não o aceitaria e
ainda por cima ficaria mais irritada. Mas se me fizer pensar que fui
promovida porque um responsável analisou meu currículo e meu trabalho e
me achou apta para a função, o jogo estaria a seu favor. Se Emilien é
inteligente, eu também sou. Ele que não pense que vou aceitar qualquer
promoção para ser ludibriada!
— Ficou muda de repente. — Poirier me traz de volta. Recupero a
postura e descruzo as pernas, colocando ambas as mãos sobre minhas coxas.
— Bem, vamos esperar. — É tudo o que digo. Não há mesmo o que
ser feito nesse momento em relação a isto. Minha melhor opção é aguardar os
próximos capítulos. — Tem outra coisa — falo, mudando de assunto. — Se
recorda de que te pedi para ler o livro da minha irmã? — Héron balança a
cabeça, concordando. — Depois da minha besteira de quase uma semana
atrás, ainda vai ler? — pergunto, com cuidado, mordendo o lábio inferior.
Espero sinceramente por um sim. Do contrário, terei de me refugiar em
algum país do Terceiro Mundo para que Isabelle não me mate por ter
estragado tudo.
Héron se recosta novamente à sua cadeira e responde, para meu
alívio:
— Oui. O original está com você?
— Non. Está em casa. Posso trazer amanhã?
— Não. Tenho uma ideia melhor. Quero conhecer sua irmã, conversar
com ela e pegar o original diretamente das mãos dela. Podemos marcar um
jantar amanhã à noite?
— Tudo bem.
Ele me dá um sorriso enigmático e para encerrar nossa conversa, diz:
— Chego em sua casa às oito.

Minha parada obrigatória todo final de expediente tem endereço físico


e serve cafés deliciosos. A cafeteria de Bernardo é um dos meus pontos
favoritos em Paris. Depois de tomar um expresso bem-feito, vou me
encontrar com Isabelle no supermercado para comprarmos os suplementos
necessários para o jantar que Héron fez questão de termos para conhecê-la e
pegar diretamente com ela seu original.
Não disse nada sobre o porquê de seu livro ainda não estar nas mãos
dele, uma vez que prometi que na segunda-feira logo após o evento
beneficente entregaria. Expliquei apenas que me esqueci de levá-lo dia após
dia e que meu chefe decidiu, por fim, conhecê-la durante um jantar. A
mentira pegou com facilidade e minha cabeça continua intacta, amém.
Dousseau está aqui quando chego. Conversamos por alguns minutos
enquanto degusto do meu café e lhe conto a novidade de Emilien ser meu
“chefe”. Mais essa, agora. Ainda não me conformei. Meu amigo me dá um
daqueles seus sorrisos galantes e cínicos, o mesmo que conquistou a esposa, e
pouco fala sobre o fato de Dupont ter comprado outro grupo editorial. E isso
me ocorre somente agora. Até onde sabíamos, enquanto seu nome não estava
vinculado na aquisição das ações da companhia, a compra foi feita por outra
empresa no ramo, uma concorrente, e o sócio majoritário detinha cerca de
setenta e dois por cento de toda empresa. Não tinha ideia de que se tratava de
Emilien.
Minha cabeça começa a funcionar de novo, achando isso tudo muito
estranho. Se ele já tinha uma editora de revistas — e assim, poderia fazer as
suas matérias de filantropia, como alegou ontem —, então por que comprar
outra? Certo, ele é um homem rico, um empresário e, acima de tudo,
investidor bem-sucedido. É isso que investidores fazem, certo? Investem.
Então ter adquirido dois grandes grupos editoriais é apenas isso: um
investimento. Esperando estar certa disso, afasto meus pensamentos e me
concentro na conversa com meu amigo.
Algum tempo depois, Dousseau precisa se ausentar. Termino meu
café, pago meu consumo e me encontro com minha irmã. Compramos todo o
necessário e rumamos até meu apartamento. Dividimos as tarefas e
preparamos o jantar, Isabelle toda ansiosa e animada com a perspectiva de ter
seu livro avaliado — e talvez até editado — por Héron.
Às oito em ponto, a campainha toca. Isabelle corre atender e eu a sigo
de pronto. Poirier está do outro lado da porta, com um sorriso amigável —
sorriso, amigável e Héron na mesma frase? — e as mãos dentro do bolso.
Veste uma roupa bastante casual, diferente das formais às quais estou
habituada a ver na redação da revista.
— Bonsoir.
Faço as devidas apresentações e o acomodo na sala. Servimo-nos com
um bom vinho e iniciamos uma conversa agradável. A princípio, falamos de
trabalho. Isabelle, embora se dedique bastante à escrita, é formada em
engenharia de alimentos. Ela discorre um pouco sobre sua rotina e função.
Enquanto tagarela quase sem parar, sentada perto de Poirier, acabo por me
dar conta de que deixei passar um ponto importante em nossa conversa no dia
anterior. Quando minha irmã termina de falar (finalmente), manobro o
assunto com cuidado:
— Anteontem… na sua pequena reunião com Dupont. — Héron
abana a cabeça em positivo, prestando atenção em mim. — Vocês falaram
algo mais além daquele assunto de… hum… bem… você sabe. — Lanço um
olhar a Isabelle, que faz um beicinho por eu ser um pouco evasiva.
— Por que quer saber? — ele indaga, meio mal-educado.
Dou de ombros e tomo mais do meu vinho.
— Porque vocês ficaram bastante tempo na sua sala. Bem mais do
que os dez minutos que ele disse. E depois Emilien voltou no dia seguinte,
alegando que tinha assuntos pendentes com você. Fiquei curiosa. Mas bem,
não diga se não quiser.
— Não deveria mesmo dizer. Marie, você está abaixo de mim na
escala hierárquica. Não seja tão indiscreta e invasiva ao querer saber o que
seu chefe tratou em particular com o dono da porra do seu trabalho.
Merde! Parece que não aprendo nunca. Levanto-me imediatamente,
ignorando a rispidez dele. Enquanto deixo a sala, em direção, à cozinha,
apenas digo:
— Mas deveria dizer, ao menos em consideração a todos os favores
que te fiz. Seu mal-agradecido.
Na cozinha, retiro meu jogo de jantar e começo a pôr à mesa. Héron
aparece do meu lado oferecendo ajuda e entrego os talheres e guardanapo
para ele. Distribuindo garfos, facas e colheres em nossos respectivos lugares,
ele diz:
— O coquetel que fazemos todo ano… em comemoração à edição
especial — começa, dando a volta na mesa. Não digo nada, apenas o olho e
sigo distribuindo os pratos. — Deve saber que são dois. Um antes de
iniciarmos os trabalhos, o outro no dia do lançamento. — Assinto e me
encosto ao espaldar de uma das cadeiras, observando-o. — Bem, Emilien
veio me informar que esse ano faremos em sua mansão, para economizarmos
com locação, e me pediu para adiarmos em algumas semanas, para que possa
participar porque a agenda está cheia até o final do mês. Então, marcamos
para daqui um mês. É isso.
Troco o peso da perna e cruzo os braços.
— Certo. — Olho para os lados. Isabelle está vindo com um maço de
folhas em mãos. Acredito que seja o original dela. — Vou servir o jantar. —
Estou retirando-me quando Héron me segura pelo punho e me faz olhá-lo.
— Marie, eu te contei tudo o que conversei em particular com
Emilien. Não deveria, mas contei. Espero que isso satisfaça sua curiosidade e
você pare de me atormentar.
Dou um murro no seu ombro e abro um sorriso, esquecendo-me de
sua grosseria minutos antes. Bem, de algum modo, mereci. Ele me
acompanha com uma risadinha baixa e solta meu punho.
Sigo meu caminho sem nada dizer. Da mesma forma, ele não se
desculpa. Héron não se desculpa. Nunca.
Já estou acostumada.
MARIE
Já perdi as contas de quantos envelopes recebi nas últimas três
semanas. Talvez tenha sido um por dia, incluindo sábados e domingos. Com
um suspiro, deixo minha bolsa sobre a mesa, tomo o envelope em mãos e o
levo até a copa comigo, para meu ritual matinal de café antes do expediente.
Enquanto a cafeteira mói meus grãos favoritos, analiso o envelope entre meus
dedos. No anverso tem apenas meu nome, escrito com caneta preta em uma
letra irregular, mas bonita. Uma letra que bem conheço.
Não vejo ou falo com Emilien desde a manhã em que esteve aqui para
conversar com Héron. Não sei se simplesmente não teve mais tempo de vir,
sob qualquer pretexto, ou se está, por fim, respeitando meu espaço.
Bem, nem tanto. Uma semana depois dessa ocasião, cheguei aqui na
redação e me deparei com um envelope branco idêntico a este, destinado a
mim. Reconheci a letra de Emilien no instante em que vi meu nome gravado
no papel. Na mesma hora pensei em rasgá-lo em pedacinhos, jogar no lixo e
depois atear fogo. Acreditei de que se tratava de alguma carta brega com
pedido de perdão. Por algum motivo, resisti à tentação de me livrar da
correspondência e a abri. O que tinha lá dentro pegou-me completamente
desprevenida. Não havia nenhum pedido de perdão escrito em papel branco.
Havia uma foto. Nossa. A primeira e única. Tiramos durante nossa
estadia no continente africano, depois de um dia cheio de trabalho com a
equipe e a comunidade pobre de um dos bairros do Zimbábue. Com um
sorriso, recordei-me de que foi um calvário convencê-lo a juntar nossas
bochechas e bater o retrato. Tive até que chantageá-lo para abrir um sorriso.
Eu quis postar nas redes sociais, mas, ao sugerir isso, o homem simplesmente
travou e puxou o celular da minha mão querendo apagar a imagem.
Tranquilizei-o de quem não o exporia, se assim fosse sua vontade, e consegui
guardar a imagem. Meses depois, ele me pediu para enviar como mensagem
em seu telefone. Estranhei o pedido, mas não o questionei.
No verso do retrato, em sua habitual letra irregular, estava escrito:

Você sente minha falta tanto quanto sinto a sua?


Você significa tanto para mim.
Com carinho,
Emil

Não vou negar. Aquilo mexeu comigo de uma maneira


incompreensível. Eu sabia que se tratava apenas de uma das suas estratégias
para reconquistar minha confiança, ainda assim, não pude evitar o
sentimento. Se eu fosse um pouco mais orgulhosa, teria rasgado a foto em
pedacinhos e jogado no lixo; ao invés disso, guardei-a na minha bolsa.
Desde então, ao menos uma vez no dia, recebo esse envelope de
Emilien, sempre tendo uma foto e uma mensagem atrás. A seguinte depois
dessa, recebi em meu apartamento. O porteiro me entregou. Dentro do
elevador, enquanto seguia até meu andar, conferi seu conteúdo. A imagem
em questão foi tirada no Champ de Mars, com a Torre Eiffel desfocada mais
atrás. Um casal — de costas para a câmera — estava sentado no gramado do
parque, ele com os braços jogados por cima dos ombros da companheira. Era
um dia ensolarado. A mensagem atrás dizia:

Você sente falta da nossa amizade tanto quanto eu sinto?


Nunca encontrei uma amiga como você.
Com amor,
Emil

Só no segundo envelope entendi que, em suas mensagens, Emilien


estava parafraseando uma frase que havia me dito dias antes: Você sente falta
do meu toque tanto quanto sinto do seu? Não sei se interpretei direito, mas
entendi, com os retratos ao longo dos dias, que não sentia apenas falta do
nosso contato físico, do sexo, do prazer. Era no geral. Era nossa amizade, a
cumplicidade, o companheirismo. Apesar de ter se afastado logo quando
retornamos à França, continuamos amigos acima de tudo. Por vezes, nos
encontrávamos e transávamos. Mas éramos bons amigos. Emilien nunca me
procurou somente para o sexo. Houve muitas ocasiões em que tomamos café,
almoçamos ou jantamos juntos e no final não acabei na cama dele. Outras
tantas ocasiões passamos horas trocando mensagens e conversando por
telefone.
Cada fotografia representava algo em nós que ele tinha saudade. A
terceira imagem recebi na cafeteria de Dousseau. Foi tirada à noite, em um
restaurante. Particularmente, gostei bastante dela; a câmera captou o
momento em que um homem segurava a mão de uma mulher e encostavam
suas testas; as luzes amareladas do local estavam desfocadas, rodeando o
casal. Não posso dizer que expressões ambos tinham, pois o fotógrafo
capturou apenas a silhueta deles. Ainda assim era uma foto muito bonita e
romântica. A mensagem desta dizia:

Você tem saudade da minha companhia tanto quanto tenho da sua?


Sem você, tenho me sentido mais sozinho do que o costume.
Emil

Um casal se beijando indicava que ele sentia falta dos meus beijos.
Um casal se abraçando, sua saudade era do nosso abraço. No metrô, um
homem cabisbaixo e triste — e a foto em preto e branco — revelava seu
arrependimento por ter feito o que fez.
Agora, depois de já ter perdido as contas de quantas imagens Emilien
me enviou, estou curiosa para saber que fotografia representa o quê.
Encostada ao balcão da copa, ainda esperando a cafeteira processar os grãos,
retiro a nova foto de dentro. Então, sou pega de surpresa. Ergo meu olhar,
averiguando o local, estranhamente tendo uma sensação de ser perseguida.
Abaixo os olhos para o papel entre meus dedos e me reconheço na fotografia.
Foi tirada ontem, depois do almoço. Deixando a cafeteria de Bernardo,
segurava um copo de isopor com uma mão, e com a outra, o celular. Ria de
alguma coisa olhando para a tela, parada na calçada.
Engulo em seco, perguntando-me se Emilien chegou a ponto de
contratar alguém para me seguir e me fotografar. Os retratos anteriores não
me foram uma preocupação porque ele deve ter encontrado as imagens na
internet e mandado revelar. Mas agora… ele mandou me fotografar? Não
gosto do sentimento na minha garganta.
Puxo a caneca e bebo um gole generoso do meu café. Cumprimento
alguns colegas da redação que ali chegam e me retiro para minha mesa.
Apoio a xícara perto do computador e só então tenho coragem de virar o
verso e ler a mensagem de hoje.

Você sente falta do meu sorriso como sinto falta do seu?


Têm sido dias torturantes sem ouvir sua risada.
Com carinho,
Emil

Encarando a minha imagem nessa fotografia tomo uma decisão


importante: a de quebrar o gelo entre mim e Emilien. Eu vou procurá-lo. E
não será para me render.

A presidência fica no último andar — como já era de se esperar.


Dentro do elevador, fico ensaiando minhas palavras para Dupont, caso o
encontre. Sei que ele é um homem ocupado e vive mais dentro do seu jatinho
particular do que na cobertura, mas vou arriscar a sorte. De qualquer forma,
se ele não estiver, posso esperar até amanhã. Amanhã será o coquetel da
Intéressant para celebrar a nova edição especial da revista, que abordará a
Revolução Francesa (aliás, estamos trabalhando a todo vapor). Emilien estará
na celebração. De um jeito ou de outro, falarei com ele.
As portas do elevador se abrem para um extenso corredor. É a
primeira vez que venho ao edifício da Dupont Investimentos. Lá fora, na
fachada, um letreiro cinza traz o de forma imponente o nome da empresa.
Avanço pelo corredor, atentando-me à textura das paredes e à sua cor terrosa.
Vasos de plantas se espalham entre um canto e outro e todo o local tem
cheiro de limpeza, de coisa esterilizada.
Ao fim do corredor, abre-se um imenso hall. Dois jogos de sofá
dividem o ambiente; mesinhas de centro com diversas revistas, que acredito
serem todas sobre investimentos, negócios, empreendedorismo… Uma
televisão de led pendurada na parede de frente para os sofás passa um
programa qualquer, em volume mínimo. Atrás do balcão da recepção, uma
moça uniformizada fala ao telefone. O mesmo letreiro da fachada exibe-se
aqui, na parede atrás da bancada, junto do logotipo da empresa, um D e um I
meio que entrelaçados dentro de um círculo. Aproximo-me devagar e fico a
uma distância considerável, esperando a recepcionista terminar sua ligação.
— Bonjour. — Ela finalmente me atende, com um sorriso caloroso.
— Em que posso ajudar?
Ajeito minha bolsa no ombro e respondo:
— Gostaria de saber se Emilien está. — Um segundo depois, noto que
fui bastante informal. Como, por Deus, eu o chamo pelo primeiro nome?
— O monsieur Dupont está ocupado agora e não pode ser
interrompido. A senhorita tem hora marcada?
— Non. Mas tudo bem… Posso voltar outra hora.
A simpática funcionária olho no relógio e interrompe minha saída:
— O horário dessa reunião já está quase acabando. Se quiser esperar
uns quinze minutos, confirmo se o senhor Dupont pode ou não atender a
senhorita.
Um pequeno sorriso ilumina meu rosto e fico feliz pela iniciativa da
moça.
— Isso não vai te colocar em apuros?
A moça balança a cabeça em negativo.
— O senhor Dupont é uma boa pessoa. Normalmente ele atende todo
mundo que chega, mesmo sem hora marcada. Exceto quando está muito
ocupado ou com a agenda apertada, o que de fato acontece na maioria das
vezes, mas… — Teclando rapidamente em seu computador, ela completa: —
Ele tem duas horas livres na agenda hoje.
Arrisco esperar. Se a recepcionista me anunciar, e se Emilien
realmente tem duas horas livres, tenho uma grande chance de ser atendida.
Cerca de quinze minutos se passam até que a funcionária retira o telefone do
gancho e me anuncia. Minha respiração falha por um segundo na
expectativa.
— A secretária do senhor Dupont está te esperando — informa, após
recolocar o telefone no gancho. — Só pegar a sua primeira à esquerda.
Agradeço à recepcionista e sigo as coordenadas. Esse segundo espaço
é ligeiramente menor que o primeiro, mas imponente e bonito da mesma
maneira. O porcelanato preto reflete minha chegada. À minha frente, tem
uma porta de vidro esfumaçado e folhas duplas. Uma mesa bem organizada
exibe uma mulher na faixa dos trinta e cinco anos, loira, magra, alta, cabelos
presos em um coque severo, usando um terninho preto e digitando
rapidamente no computador. Pigarreio um segundo, e então a secretária nota
minha presença.
— S’il vous plaît, sente-se — diz, indicando o sofá no lado oposto,
encostado à uma parede texturizada e em tom cinza. — O senhor Dupont já
está finalizando e vai te atender em breve.
— Je vous remercie — agradeço, aceitando o convite de me sentar. A
secretária pergunta se quero água ou café, mas declino aos dois. Pego uma
das revistas da mesinha de centro e folheio enquanto espero.
Não muito tempo depois, as grandes portas de vidro se abrem;
Emilien deixa a sala acompanhado de um segundo homem, ligeiramente mais
baixo e bem mais velho — talvez uns cinquenta anos. Contudo, não se parece
nem um pouco com um empresário ou qualquer coisa do ramo da Dupont
Investimentos. Usa óculos, blazer tweed e calça de alfaiataria.
— Gostaria que você viesse até mim na próxima semana — o homem
fala, esticando a mão para se despedir de Emilien.
Com um suspiro, e ainda sem me notar, ele responde:
— Minha agenda é apertada. Prefiro continuar com nossos encontros
aqui. Minha secretária vai telefonar para marcar um horário para a semana
que vem.
— Como quiser — o mais velho cede. Eles se despedem com um
aperto de mão e o homem deixa o hall da presidência. Emilien está se virando
para entrar em sua sala novamente quando me nota ao mesmo tempo em que
a secretária o informa de minha visita.
Seu corpo trava por um segundo, os olhos azuis analisando-me em
surpresa. Levanto-me do meu lugar, arrumando a alça da bolsa e empino o
queixo, tentando não me sentir atingida por ele. Deus, Emilien é tão gostoso
dentro de um terno. Agora ele está trajando um conjunto cinza, mas sem o
paletó. As mangas da camisa branquíssima estão dobradas até um pouco
acima dos punhos e o colete agarra seu tronco de forma perfeita.
— Marie… — exclama, quase inaudível. A surpresa em seu rosto,
pouco a pouco, vai dando lugar a um sorriso pequeno.
— Você tem um minuto? — pergunto, trocando o peso das pernas.
— Tenho mais do que um minuto — responde, apontando para sua
sala. — Entre, por favor.
Passo por ele, sentindo o aroma bom do seu perfume Bleu de Chanel.
Acho que essa conversa vai ser mais difícil do que imaginei. Ainda estou
adentrando a sala quando o ouço dizer à sua secretária para não nos
interromper. Parece que serei tratada com prioridade.
Observo seu ambiente de trabalho. A sala é ampla, as paredes e
móveis são em tons monocromáticos de cinza, o que dá uma atmosfera um
pouco insólita e triste. A decoração é simples e até escassa, eu diria, contendo
apenas alguns arranjos, uma prateleira pequena com livros, um jogo de sofá e
um tapete centralizado. Assim como em sua cobertura, não vejo um porta-
retratos. No tempo que passamos juntos, Emilien nunca me falou de sua
família, mas pelas minhas buscas nas redes sociais, sei que tem uma irmã
mais nova. Sua mesa está organizada e limpa. Atrás dela, tem uma enorme
janela de vidro que exibe a capital francesa.
— Por que não se senta? — Sua voz ressoa ao pé do meu ouvido,
assustando-me. Emilien me contorna um segundo depois e se acomoda em
sua cadeira de presidente. Inspiro profundamente e me acomodo em uma das
poltronas frente à sua mesa. — Qual o motivo da visita? — Como se ele não
soubesse.
— Não se faça de bobo, Emilien — rebato, mas não soo rude. Reviro
minha bolsa e retiro todas as imagens que me enviou nas últimas três
semanas. Sim, eu guardei cada uma delas. E continuaria apenas as recebendo
se a de mais cedo não tivesse me dado um sentimento esquisito. Não gosto da
ideia de alguém me seguindo por aí para tirar fotos minhas sem permissão.
Espalho-as sobre sua elegante mesa de vidro e o encaro.
— Não esperava que fosse guardá-las — Emilien pontua
sinceramente, pegando uma dentre o monte. É uma imagem dele mesmo, mas
de costas (reconheceria suas costas largas em qualquer situação), sem camisa,
apenas usando calças cinzas de algodão, perto da cafeteira, a luz da manhã
incidindo sobre o ambiente. “Sente falta de tomar meu café tanto quanto
sinto falta de prepará-lo para você?” é a mensagem dessa fotografia. Devo
ter a recebido em algum momento da semana passada e me recordo de ter
pensado “Sim”, porque o café dele é maravilhoso — ou ele só tem uma
cafeteira maravilhosa, de qualquer maneira.
— Hum… — murmuro, não sabendo o que dizer para explicar o
porquê de não ter ateado fogo nisso. — Vim devolvê-las e te pedir para parar
com isso.
O sorrisinho em Emilien desaparece no espaço de um segundo. Ele se
recosta à sua cadeira e me olha atentamente.
— Você não gostou?
Eu gostei? Que pergunta. Não sei responder. Por um lado sim, melhor
do que ter mandado flores e bombons — não que eu odeie bombons, mas foi
original de sua parte —, por outro não, porque ele continua insistindo no
assunto, mesmo eu dizendo que se tiver de perdoá-lo vai acontecer
naturalmente, e mesmo ele sabendo que estou em um “namoro sério”.
— Não é isso. A questão é que é inapropriado. Deu sorte de Héron
não ter visto nenhuma dessas fotos — minto um pouco mais. E, quer saber,
manter esse relacionamento de mentira na frente dele não tem adiantado
nada. Emilien parece decidido.
— Tudo bem. Eu paro com as fotos — diz, em um tom melancólico,
os olhos se desviando de mim para um ponto fixo por cima dos meus ombros.
— Mas não sei mais o que fazer para que você me perdoe.
— Não faça nada, Emilien… — Suspiro, cansada de ter de pedir isso.
— Já te disse para deixar as coisas entre nós… simplesmente acontecerem.
Ele dá uma risadinha baixa e meio amarga.
— Você sequer fala comigo, Marie. Como as coisas entre nós podem
simplesmente acontecer? Nem mesmo a minha amizade você quer.
Abaixo os olhos para minhas mãos, pensando em suas palavras. Não é
que não queira a amizade dele. Mas nós dois sabemos que nunca
conseguiríamos ser apenas amigos. Quando acordei sozinha na sua cama,
dois anos atrás, e li seu bilhete idiota de que estava indo embora (fugindo
seria mais apropriado), a tristeza em mim foi tão grande que naquele
momento finalmente compreendi que o amava. De algum modo, ainda amo.
Mas não posso deixá-lo entrar, não de novo, não quando superei e estou bem
sem ele. E se eu me entregar e Emilien quebrar meu coração de novo?
— Podemos ser amigos — falo, para minha própria surpresa. Ao
erguer meus olhos, ele tem um leve sorriso. Trato de tirar logo suas
esperanças: — Só amigos, Emilien. E não aquele tipo de amigos íntimos, que
saem toda semana. Você sabe tão bem quanto eu… que jamais teríamos esse
tipo de amizade. — Porque sempre vamos acabar trepando, o que eu não
reclamaria se não fosse sua pisada de bola comigo, penso em acrescentar,
mas deixo para lá.
— Certo — diz apenas, mas a expressão em seu rosto continua como
se a ideia não o agradasse. — Bem, se vamos ser amigos, posso te mandar
algumas mensagens ao longo do dia? — questiona, balançando as
sobrancelhas.
— Duas, no máximo — determino. Emil abana a cabeça em positivo.
— E nada mais de fotos — reforço. — Principalmente minhas. Emilien, onde
estava com a cabeça em mandar um fotógrafo me seguir e tirar fotografias
minhas sem minha permissão? Perdeu o juízo? — digo, meio irritada.
Espero por ao menos um pedido de desculpas. Em vez disso, ele
manobra o assunto bruscamente e diz:
— Vem comigo a um lugar? Quero te mostrar uma coisa.
Seu pedido me pega de surpresa. Engulo em seco, fugindo dos seus
olhos azuis cravados em mim em expectativa. O modo como me observa,
quase em súplica, me faz balançar a cabeça em positivo. Um segundo depois,
ele retira o telefone do gancho e pede que um motorista nos espere na
garagem subterrânea.
Ao deixarmos sua sala, no sofá onde estive esperando-o, está uma
mulher que conheço de vista. Ela esteve no baile de Silvia Ferreira semanas
atrás, vi uma foto dos dois juntos no perfil do Facebook de Nicole e depois os
presenciei conversando no restaurante, quando nos encontramos logo à sua
volta para Paris. Ainda nem sei o nome dessa criatura e isso me irrita,
sinceramente. Emilien trava logo ao meu lado enquanto ela vem em nossa
direção, sorrindo meigamente e segurando uma pasta de couro nas mãos.
— Emil… — cumprimenta-o, ignorando-me completamente e o
abraçando. Ele retribui, mas logo a afasta, parecendo túrbido com a presença
dela. Também não me agrada vê-la chamando-o pelo apelido. Fecho a cara
quase sem nem perceber.
— Por que está aqui? — ele pergunta, tensionando o maxilar.
Sem perder a postura, a mulher estica a pasta de couro:
— Aqueles documentos que te prometi semanas atrás. Peço desculpa
pela demora, mas a turnê com Silvia Ferreira tem sugado cada segundo do
meu dia. Fizemos uma pausa hoje antes de seguirmos para Milão, nossa
última parada.
Os olhos de Emilien escurecem de repente, sua mandíbula está
apertada e tensa, como se estivesse esmagando os próprios dentes.
— Merci — agradece, voz apreensiva, pegando a pasta.
Em nenhum momento somos apresentadas uma a outra. Ele me pede
para esperar um segundo e se retira de volta à sua sala. Retorna menos de um
minuto e a essa altura já estou sozinha novamente. A moça foi embora sem se
preocupar em despedidas. Purée! Preciso descobrir o nome dela. Contudo,
está descartado perguntar a Emilien, que já se esquivou da pergunta uma vez
e o fará novamente.
Em silêncio, descemos até a garagem subterrânea. O motorista nos
leva para o destino que Dupont sussurra em seu ouvido, o que me deixa
bastante curiosa. Perdida em meus pensamentos, me pergunto quem pode ser
a mulher, que ligação os dois têm, que documentos eram e por que Emilien se
recusa a me falar dela. Tento abordá-lo sobre o assunto, mas novamente ele
diz que não tem importância. Desisto de arrancar alguma coisa desse homem
e faço a viagem em silêncio.
O carro estaciona em uma nova garagem. Assim que ponho os pés
para fora do veículo, reconheço o local imediatamente. Estamos no edifício
onde Emilien mora. Estúpido! Que ideia absurda é essa de me trazer aqui? A
última vez foi há dois anos… quando esse cretino idiota foi embora. Penso
em repreendê-lo, e já até estou fazendo menção de voltar para o carro e exigir
ser levada ao prédio da Dupont Investimentos novamente, mas Emilien é
mais rápido, põe seu corpo na frente do meu — obstruindo meu caminho — e
esclarece:
— Calma, Marie… Faites-moi confiance.
— Confiar em você? — Deixo uma risada cáustica escapar de mim.
Ele só pode estar brincando com a minha cara.
— Não vai levar dez minutos, te prometo.
Olho para os lados, resistindo a dizer tudo bem e seguir para sua
cobertura. Não sei o que possa estar aprontando e tenho medo, de verdade, de
me render ao seu charme e à paixão que ainda tenho em mim.
Um toque em meu punho me traz de volta à realidade. Suas mãos
fortes — as veias grossas saltando como uma mensagem viril — estão em
torno dos meus pulsos. Seu toque é quente e traz nostalgia de nossos dias
juntos. Merde, Marie. Concentre-se.
— S’il te plaît — pede. Seu “por favor” é uma súplica. Esse
desgraçado sabe exatamente como me convencer.
Balanço a cabeça em positivo e ele nos guia até o elevador privativo.
Em sua cobertura, Emilien atravessa cômodos que já conheço. Mas há uma
parte, um pouco escondida, que nunca visitei, por não saber de sua existência.
Ele para frente a uma porta, revira o molho de chaves que pegou na entrada e
gira uma delas na fechadura. O espaço que se abre se parece com um
pequeno escritório e tem uma segunda porta ao fundo, que eu acredito ser um
lavabo. O espaço não tem móvel algum. Apenas algumas prateleiras com
alguns livros e câmeras fotográficas. Conto quatro no total e só reconheço
uma polaroide.
— Aqui — Emil diz, apontando para a porta que achei ser do lavabo.
Sigo-o e de repente estou em um ambiente escuro, iluminado por uma luz
vermelha.
— Um laboratório fotográfico? — indago, muito surpresa. Olho mais
ao redor, absorvendo os detalhes. Emilien tem todo o aparato para revelar
fotos analógicas, mas no momento nenhum trabalho está sendo executado.
— Oui. As fotos que te enviei… — murmura, caminhando até um
canto e retirando uma quinta máquina fotográfica. Está escrito Canon EOS-
3 . — Fui eu quem tirei, Marie. Todas elas, inclusive a sua. Depois, as revelei
aqui.
Seus olhos estão vidrados na câmera de aspecto antigo. Sua postura é
melancólica enquanto encara o objeto em mãos. Absorvo a informação,
atordoada. Como ele…?
— Fotografia sempre foi minha paixão — revela, interrompendo
meus pensamentos. Procuro pelo seu olhar. Rugas de tristeza aparecem entre
suas sobrancelhas. — Mas o peso de carregar o sobrenome Dupont… de
carregar o legado de minha família… me fez abrir mão dos meus sonhos.
Meu coração aperta no peito. Seu tom de voz e sua linguagem
corporal demonstram como realmente está abatido. Deus, por um ano dormi
com ele e não imaginava uma coisa dessas. Por que Emilien nunca me
contou? Não era confiável o bastante para ele?
— Desde os dezenove anos que não pego em uma câmera para
fotografar — conta, apoiando a Canon de volta ao seu lugar, e me olha, por
fim. — Mas eu o fiz esses dias, por sua causa. Me deu alguma motivação,
sabe? Motivação que não tive desde que abandonei o curso de fotografia para
me dedicar à empresa da família.
Isso me atinge com a mesma força de um tsunami. Ele passou mais de
uma década sem fotografar e quando o faz é por minha causa. Estou bastante
reclinada a acreditar, porque nunca Emilien deu algum indício de que tinha
esse amor por fotografia. Ele sempre foi enigmático e todo misterioso… E
agora está me mostrando um dos seus segredos.
— Acredite, depois de tanto tempo, achei que tinha perdido a prática
— segue dizendo, agora a dois passos mais perto de mim. — Mas vi que não.
Então bati todas aquelas fotos, uma por uma, usando a Canon analógica, e as
revelei pelo processo antigo, embora eu tenha uma câmera digital e pudesse
ter mandado imprimir em papel fotográfico. — Um sorriso contagiante e
bonito ilumina o cômodo e me faz sorrir junto com ele. — Um dos processos
que mais amo na fotografia é ver a mágica acontecer.
Meu coração bate descompassado dentro do peito, ouvindo todo seu
relato e vendo-o se aproximar cada vez mais até nossos corpos estarem a um
palmo de distância. Por conta da nossa ligeira diferença de altura, preciso
erguer meu olhar ao seu. Apesar do sorriso em seu rosto, os olhos estão
abatidos. Consigo entender o sentimento. Eu não me vejo fazendo outra coisa
a não ser jornalismo. Amo meu trabalho, minha profissão. Odiaria ter de abrir
mão do que realmente amo.
— Isso deve ter levado algum tempo… — murmuro, molhando o
lábio inferior. — Achei que fosse um homem ocupado.
Ele sorri um pouco mais e de repente seu indicador está me
acariciando suavemente na bochecha.
— Cancelei uma semana da minha agenda para isso — confessa.
Emilien Dupont, CEO e um dos maiores investidores franceses,
cancelou uma semana inteira de compromissos para que pudesse fotografar
imagens lindas, escrever mensagens e me enviar. Alguém ganhou um ponto
comigo.
— Por que ainda tem as câmeras e o laboratório? — pergunto,
fechando os olhos e curtindo sua carícia em mim, ao mesmo tempo que
interiormente me repreendo para não me render.
— Para me lembrar de não ter esperanças — diz. Seu tom é frio e
fúnebre. Abro os olhos e o encaro. — Para me lembrar de que meus sonhos
estão enterrados e que nunca poderei me dedicar àquilo que realmente amo da
forma como gostaria.
Em um átimo, tomada por empatia e compaixão, jogo-me em seus
braços, apertando-o com toda minha força.
— Sinto muito, Emil… — falo. Um segundo depois, noto que o
chamei pelo apelido pela primeira vez desde sua volta. Suas mãos fortes
sobem e descem em minhas costas, como se fosse eu precisando de acalento.
— Ter que desistir dos seus sonhos… — Suspiro e deixo a frase no ar.
— Está tudo bem, chérie — assegura, embora sua voz não passe
essa segurança toda.
Afasto-me e o fito nos olhos azuis, nossos braços entrelaçados. Aos
poucos vejo-o se aproximar de mim, mirando fixamente minha boca. Prendo
o ar com essa aproximação. Seus lábios estão quase roçando nos meus
quando digo apenas:
— Emilien…
Ele parece entender e se afasta, respirando com dificuldade e
passando a mão nos cabelos.
— Preciso ir agora — digo, baixinho, mirando meus pés.
Emilien acena em positivo e me guia para volta do seu laboratório,
encaminhando-me até o motorista, a quem dá as instruções necessárias.
— Não vai voltar comigo? — pergunto, ajeitando-me no banco.
— Désolé… — É tudo que diz.
O veículo está deixando a garagem, a menos de dez por hora, quando
coloco a cabeça para fora e o vejo ao ponto de entrar no elevador, as costas
arqueadas, mãos nos bolsos, postura abatida.
— Emilien! — grito, e nem acredito que vou pedir uma coisa dessas.
— Não pare de me enviar as fotos.
Ele se vira na minha direção, sorrindo bem pequenino, quase infeliz.
— Não vou parar, chérie — responde.
E eu achando que ia conversar com ele e não me render.
EMILIEN
Volto para a Dupont Investimentos cerca de meia hora depois, com
meu psicológico estabilizado. Precisei ficar um tempo sozinho para me
recuperar. Nunca esteve nos meus planos contar a Marie que eu tirei aquelas
fotos e muito menos que ela conhecesse essa parte da minha vida.
Adentro minha sala e vou direto ao cofre. Insiro a senha e retiro a
pasta de couro que recebi mais cedo, contendo todas as provas do meu
passado e do meu segredo. Peço à minha secretária para não ser interrompido
e tranco as portas duplas. Ainda tenho alguns minutos antes do meu último
compromisso do dia. Dobro as mangas da camisa até a altura dos cotovelos e,
criando alguma coragem, retiro o chumaço de papéis de dentro da pasta.
Avalio todo o dossiê com um misto de tristeza, culpa, arrependimento e ódio.
Fui estúpido em confiar em Antony, em tê-lo como um bom amigo. Hoje, só
consigo pensar que sempre teve a intenção de procurar meu ponto vulnerável
para se proteger quando eu descobrisse suas fraudes dentro da minha
empresa, quase três anos atrás.
Grande parte dos documentos são cópias de originais que tenho em
minha cobertura. Não estão guardados em qualquer lugar, à vista de todos,
mas Leclerc aparentemente revirou cada centímetro até encontrar. Maldito.
Pego todos os papéis e os destruo no picotador. Embora parte das
evidências palpáveis tenha sido dizimada, ainda há duas pessoas, além de
mim, que detém do meu segredo. Não confio em nenhuma delas, apesar de a
que me entregou essas provas tenha me garantido jamais me expor. Fecho os
olhos e inspiro fundo. Talvez deva lhe dar um voto de confiança, afinal, ela
sabe há anos sobre isso e poderia ter acabado com minha reputação se
quisesse. Entretanto, não o fez. A segunda pessoa é minha mãe. E,
definitivamente, não confio nela, mas sei que me expor também a
prejudicaria. Ela me encobriu no passado, me protegeu como poucas vezes
fez nada vida. Revelar meus segredos poria em risco nossos negócios e
mancharia o nome da família. Minha mãe odiaria uma repercussão negativa
que pudesse abalar nossa empresa, nos fazer perder grandes parcerias e
contratos e, ainda por cima, jogar o sobrenome Dupont na lama. Não confio
nela, mas me dá uma mínima segurança saber que não vai tentar me
prejudicar.
Isso, claro, não a isenta de me chantagear se quiser.

No dia seguinte, logo cedo, sigo para a redação da Intéressant. Hoje à


noite, em minha mansão, acontecerá o coquetel em comemoração à edição
especial que será lançada dentro de alguns meses. Já tem uma equipe no local
trabalhando na organização da festividade, mas, além disso, preciso fazer o
pronunciamento oficial dos novos cargos para os demais subordinados. Na
próxima semana, Héron já deve iniciar seus trabalhos como editor-executivo.
Também nomeei um novo editor, para ocupar seu lugar. Não mentirei: fiquei
tentado a escolher Marie. Ela é inteligente, proativa, organizada, dinâmica,
versátil e trabalha bem em equipe — qualidades que constatei durante nosso
trabalho na África. Seu currículo também é bastante invejável e a mulher já
tem experiência o suficiente para assumir o cargo. Entretanto, descartei tal
ideia, tendo dois motivos. Um: ela com toda certeza pensaria que só
conseguiu o cargo por minha causa. Dois: mesmo que deixasse nas mãos de
Poirier e ele a escolhesse, os demais redatores poderiam pensar que Marie só
ascendeu dentro da revista por estar namorando-o. Ambas as perspectivas não
me agradam nem um pouco e sei que também não a agradariam. Dessa
maneira, escolhi outra pessoa para ocupar a vaga.
Fiz algumas entrevistas rápidas nas últimas semanas. Não fui até a
redação, para não ter de encontrá-la, mas pedi que os candidatos se
encontrassem comigo no Le Procope. Deveria ter designado alguém para
isso, eu sei, mas minha intenção, no começo, era ter um pretexto para estar no
edifício da revista, a fim de vê-la, claro. A postura inflexível de Marie,
porém, somada à sua argumentação de que eu estava tentando persuadi-la a
me perdoar me fizeram recuar. Mas a essa altura, já estava comprometido
com as entrevistas… Então tive de ir até o fim.
— Bonjour — cumprimento a todos assim que coloco os pés na sala
de reunião. Poirier já reuniu os redatores com antecedência porque ainda
tenho uma agenda para ser cumprida antes da festa, no início da noite. Meus
olhos passeiam pelo local até encontrar os dela.
Esforço-me para não a observar mais do que necessário e me
aproximo, ficando atrás da cadeira na ponta da mesa extensa enquanto os
funcionários respondem ao meu bom dia. Inspiro um pouco de ar antes de
fazer os pronunciamentos: Héron Poirier como editor-executivo e Delphine
Laurence substituindo-o.
Dou mais algumas palavras, explicando o motivo dos
remanejamentos. A reunião não dura mais que dez minutos. Todos
cumprimentam os novos promovidos. Noto que Marie permanece em seu
lugar, analisando-me com olhos semicerrados e expressão sisuda.
A equipe começa a voltar para seus afazeres. Héron conversa comigo
mais um ou dois minutos e logo também deixa a sala para cumprir seu dia.
Por fim, fico sozinho na presença dela. Ergo uma sobrancelha, surpreso por
ela permanecer. Marie se levanta, fecha a porta e se volta em minha direção,
encostando-se à borda da mesa e cruzando os braços na frente do tórax.
— Precisa tratar algo comigo? — pergunto, olhando o relógio. —
Tenho outra reunião de negócios e odeio chegar atrasado.
— Héron me contou que vocês cogitaram meu nome para a vaga na
edição.
— Sim, cogitamos. Mas havia outros. Escolhi apenas a mais
capacitada para ocupar o cargo.
Seu rosto franze um pouco mais. Merde, não queria dar a entender de
que ela não é capaz de assumir as responsabilidades. Ela é. Só tive meus
motivos para não a promover.
— Sinceramente, achei que me escolheria — revela, molhando o
lábio inferior e desviando seus olhos de mim. — Digo, achei que faria isso
para ganhar pontos comigo.
Consigo me aproximar dela sem que note. Quando seu olhar
finalmente está no meu, ela me avalia, assustada por eu estar mais perto do
que ela gostaria. Tenta dar um passo atrás, mas a mesa delimita o espaço.
— Te conheço o suficiente para saber que te promover, por essas
razões, seria um erro — exprimo, sussurrando, e miro atentamente seus
lábios cheios, pintados de vermelho. — Além do mais, seus colegas fariam
mal julgamento se você ocupasse o cargo estando envolvida com o dono do
grupo.
Marie expressa confusão.
— Não estou envolvida com o dono do grupo, Emilien — rebate.
Abro um sorriso galante, inclino-me levemente e deixo nossas bocas
bem próximas antes de murmurar:
— Não… ainda.
Ela espalma contra meu tórax e me afasta, subitamente respirando
com dificuldade. Sem me dizer mais nada, se ausenta da sala. Acho que estou
ganhando espaço.

Preciso de um instante antes de aparecer na festa. A música eletrônica


atravessa as paredes do quarto onde estou e chega aos meus ouvidos de forma
abafada. Confiro minha aparência no espelho e ajeito o cabelo pela última
vez. Alguém bate à porta. Autorizo a entrada, e Nicole surge dentro de um
vestido preto brilhante com um decote profundo. Seus cabelos loiros estão
repartidos ao meio e ondulados. A maquiagem é pesada e ressalta os olhos
claros. Na mão direita, traz uma pequena bolsinha.
— Se você não fosse meu irmão e se eu não fosse lésbica, com toda
certeza me casaria com você — diz, toda alegre. Deixa sua bolsa de mão
sobre a cômoda perto da porta e se aproxima de mim, virando-me em sua
direção. — Está tão bonito, Emilien.
Consigo sorrir um pouco. Inclino-me e beijo sua testa.
— Que bom que pôde vir. Lorraine veio junto? — pergunto, virando-
me de volta para meu reflexo. Nicole se põe entre mim e o espelho e segura
na minha lapela, analisando-me. Estou trajando um tuxedo em três cores:
calças pretas, camisa branca e blazer vinho, a lapela, gravata e botões em
preto. Minha irmã passa a mão pelo meu tronco e ajeita a gravata-borboleta.
— Não. Lorraine não está para festas — responde, em um tom meio
melancólico. — Anda desanimada desde que voltamos de Provença.
Abano em positivo e a deixo arrumar o pequeno acessório, embora
esteja perfeito em mim. Ela viajou até o sul da França para conhecer a família
da noiva, que se assumiu nessa ocasião. Pelo que me contou, semanas atrás,
os Meyer não reagiram muito bem à notícia, o que já era de se esperar, por se
tratar de uma família mais conservadora e tradicional. Naturalmente, Lorraine
ficou triste com a não aceitação dos pais e irmãos e tem passado dias
melancólicos.
— O que pretende fazer sobre isso? — Seus olhos se erguem aos
meus, meio marejados.
— Vou ficar ao lado dela, dar o apoio que precisar. Entendo o
sentimento… — sussurra, referindo-se à nossa mãe, que também não reagiu
muito bem. — Juro que quase não vim, Emil. Queria apenas ficar lá e tentar
animá-la.
— Deveria ir e ficar com sua noiva — aconselho, segurando-a pelos
ombros.
— Mas eu também quero estar ao seu lado. Perdemos tantos anos
juntos por causa da maman. Percebe que hoje é nossa primeira festa juntos
desde meu aniversário de quinze anos? — Nicole sorri um pouquinho, o olhar
fixo na minha gravata. Ela me dá um tapinha no peito, como se estivesse
satisfeita de como a arrumou, e por fim me olha: — Você e Lorraine são
minha família agora.
— Não tem visto nossa mãe?
— Não. Quero dizer… Fui visitá-la na semana passada, mas ela
começou com os dramas e a me dizer como sou uma decepção. Então fui
embora e não voltei mais, nem mesmo liguei. Mamãe não percebe que vai
acabar sozinha por ser dessa maneira? Ela já te afastou e agora está me
afastando sob o pretexto de que sabe o que é melhor para mim.
— O que eu mais queria era que Elizabeth se tratasse — confidencio,
baixando o olhar. — Ela é uma boa mãe quando não está sendo uma megera,
você há de concordar. — Minha irmã me dá um sorriso tristonho e balança a
cabeça em positivo. — Mas o distúrbio dela é como o vício em álcool, chérie.
Enquanto não admitir que precisa de ajuda, nunca vai melhorar. Mamãe
jamais aceitou o diagnóstico, fica difícil fazermos qualquer coisa em relação
a isso.
De repente, Nicole me abraça, apertado, quase me sufocando.
Acaricio suas costas, com movimentos de para cima e para baixo. Ela funga
em meu pescoço e em seguida me beija na mesma área. Minha irmã não diz
nada por vários segundos. Compreendo o sentimento dela. Uma vida toda
Elizabeth a venerou e fez todas as suas vontades. Afeto, amor e carinho eram
comuns na vida de Nicole; comigo a história era outra. Não importa o quanto
me esforçasse para agradá-la, nada parecia o suficiente. Sempre fui o filho
que decepciona, o imperfeito… enquanto me dizia como a criança de fulana
era isso e aquilo, comparando-me sempre aos filhos de outras mulheres para
me manipular, controlar minha vida em todos os aspectos e me chantagear ao
seu bel prazer. Tudo sempre precisava sair do jeito dela, do contrário, eu era
punido de alguma forma. Não digo agressões físicas, mas ela adorava fazer
tortura psicológica em mim como forma de punição, o que sempre considerei
pior.
Depois que Nicole nasceu, seu desprezo por mim aumentou. Todo
amor, carinho e atenção iam para o novo bebê, a quem Elizabeth endeusava.
Nunca foi segredo que a menina era sua filha favorita. Ao longo dos anos,
mamãe também a manipulou — bem mais sutilmente do que comigo — e
creio que minha irmã nunca tenha percebido essas manipulações para que a
vontade dela prevalecesse sobre a de seus filhos.
Não vou mentir: nos primeiros anos, odiava Nicole e, com vergonha,
confesso que tentei machucá-la fisicamente em algum momento dos meus
treze anos. Ela era a menina de ouro da minha mãe e recebia aquilo que eu
nunca tinha recebido. Como uma criança com o psicológico abalado e
traumatizado pelos abusos, acreditei que minha irmã era o problema, não
minha mãe. Elizabeth nunca soube dessa ocasião. Foi papai quem me
encontrou tentando sufocar a criança de pouco mais de três anos e decidiu
não me punir, como a esposa teria feito, mas me ajudar. Comecei a frequentar
a terapia e só então entendi por que havia uma diferença de tratamento entre
mim e Nicole. Não era que minha mãe a amasse mais. Provavelmente ela nos
amava igual (ou não amava nenhum dos dois), mas sabia que tê-la como
preferida e dar todo o afeto que eu não recebia ia me atingir. Era esse o seu
objetivo: me atingir e me torturar por eu ser homem, por eu — segundo sua
mente traumatizada — ter tirado algo dela. Então toda sua postura comigo, a
falta de amor e o desprezo eram sua forma de castigo por algo que eu não tive
culpa porque era só a porra de uma criança de pouco mais de um ano de
idade.
— Vamos ficar bem — decido dizer. — Petite soeur, ainda somos
uma família, oui? — Afasto-a de meus braços e a olho. Afago sua bochecha e
a beijo em seguida.
— Oui — me responde, erguendo-se nos pés para me beijar também.
— Vou voltar para o salão, você vem?
— Em um minuto irei.
Ela se despede de mim e me deixa sozinho novamente. Volto-me ao
espelho e encaro meu reflexo pela última vez. Inspiro fundo e me preparo
para ver Marie e ter minha estrutura abalada.
Pego uma taça de champanhe enquanto desço as escadas em direção à
festa que acontece na extensa sala da mansão. Sorvo um gole generoso
enquanto meus olhos passeiam pelas pessoas conversando em pequenos
grupos, rindo, comendo e bebendo. Deve haver umas cem pessoas aqui.
Redatores, editores, executivos, diretores… Toda a equipe da revista e alguns
convidados extras.
Demoro a encontrá-la. Preciso vencer a multidão distribuída e
atravessar a porta extensa que dá para o jardim largo e iluminado. Marie está
com Héron, segurando uma taça de champanhe e conversando
animadamente. Mon Dieu, ela está tão linda. Traja um vestido vermelho de
alças finas e uma fenda bastante extravagante na coxa direita, justo em seu
corpo cheio de curvas, ressaltando-as de forma elegante e sensual. Seus
cabelos crespos estão presos em um coque alto e volumoso; nas orelhas,
brincos de pedraria vermelhos.
Antes que ela possa me notar, volto para o centro do salão, respirando
fundo. Pego um canapé, embora esteja sem vontade de comer. Cumprimento
algumas pessoas e continuo zanzando entre os convidados, contendo-me para
não a procurar. Pelo menos por enquanto.
Minutos depois, noto uma mulher sozinha, acomodada em um dos
sofás. A maioria está acompanhada seja de um parceiro ou amigo. Não vi
ninguém sozinho, além de mim e agora dela. Até mesmo Nicole — que não
encontrei desde que desci — está acompanhada. Apesar de a noiva ter ficado
em casa, ela trouxe um colega de trabalho. Aproximo-me, mais curioso do
que atraído, porque não a conheço. Bem, não conheço metade dos
convidados, mas ela me parece ser alguém de fora do grupo editorial.
— Posso? — pergunto, apontando para o lugar vago ao seu lado. Ela
sorri e maneia a cabeça em positivo.
— Conheço você — diz, ajeitando-se no sofá para me olhar melhor.
Seu vestido lembra bastante as togas romanas: comprimento até a altura dos
joelhos, com uma única alça transversal no braço direito. A cor é chamativa
— laranja —, mas valoriza o tom escuro de sua pele. — Émile Dupont?
Abro um pequeno sorriso e abano em negativo.
— Quase. — Estico a mão em sua direção para cumprimentá-la. —
Emilien, na verdade — friso. — Os mais íntimos me chamam de Emil. Dá
pra confundir — explico, pois a pronúncia de “Émile” é idêntica ao meu
apelido.
A moça se desculpa pelo engano e finalmente aperta minha mão,
esclarecendo de onde me conhece:
— Isso! Você trabalhou com minha irmã, anos atrás. Ela me falou de
você algumas vezes, só não consegui me recordar do seu nome. Sou péssima
para nomes — fala, abrindo um singelo sorriso. — Mas esse rosto bonito eu
não me esqueceria.
Franzo levemente a testa.
— Suponho que sua irmã seja Marie Julien — arrisco, somente agora
notando alguma semelhança.
— Oui. Isabelle Julien — confirma e se apresenta em seguida. Sua
feição de repente se fecha diante de mim. — E você é o cara que quebrou o
coração dela.
Quase de forma involuntária, meus olhos se desviam para o chão.
Observo por longos segundos o tapete felpudo creme que minha mãe
comprou um milhão de anos atrás.
— Oui. Je suis désolé. Sei que fiz bobagem e estou tentando consertar
meus erros, mas sua irmã é bastante rancorosa quando quer.
Isabelle balança a cabeça em negativo.
— Na verdade não. Para fazer aquela mulher ficar rancorosa tem que
ser algo muito, muito grave. Ou ser um babaca — diz, dando de ombros. —
Sem ofensas. — Não evito uma risadinha e balanço a cabeça. — Você gosta
dela? — indaga, o pescoço inclinando suavemente para o lado.
— Gosto — respondo com um suspiro. — Tentei fugir dos meus
sentimentos por ela, inclusive agindo como um idiota, mas foi inútil. —
Novamente, abaixo o olhar para o tapete durante dois segundos. Depois torno
a olhá-la. — Voltei para Paris por causa dela, mas me esqueci que a vida
segue, sabe? Ela encontrou uma pessoa e parece bem sem mim… — Ergo os
ombros em um gesto de derrota. — E quero reconquistá-la, mas com Héron
no caminho e…
— Espera — me interrompe, erguendo as mãos e fechando os olhos
por um segundo. — O que foi que você disse?
Acho estranho seu questionamento, porém repito:
—… mas com Héron no caminho…
Sua expressão está carrancuda agora.
— Ela e Poirier estão juntos? — Há nítida confusão em sua voz.
Estranho o fato de não saber dessa relação de Marie. — Há quanto tempo?
Dou de ombros, sem saber precisar.
— Não sei. Ela me disse um tempo atrás que namoravam há uns
quatro meses.
Isabelle se vira no sofá e chama um garçom, pegando um copo com
dois dedos de uísque e bebendo tudo de uma vez só. Penso em dizer para ir
com calma, mas pelo jeito a mulher precisa da dose. A informação
nitidamente a pegou de surpresa. Por que Marie esconderia seu namoro da
própria irmã? De repente, parece tensa e nervosa.
— Estou dormindo com Héron — confidencia, baixinho. Isso me
pega completamente desprevenido. Seus olhos então se enchem de lágrimas e
me fitam quase desesperados. — Mas eu não sabia. Marie não me disse nada
e aquele canalha sem vergonha também não! Ele inclusive me pediu para não
contar a ela. — De tristes, seus olhos passaram para raivosos.
Em um átimo, Isabelle já está de pé, marchando em direção à saída.
Sigo-a imediatamente. Ela pega outra dose de uísque no meio do caminho e
começa a procurar alguém no meio da multidão — provavelmente Poirier.
Embora a casa seja muito grande, ela os encontra com facilidade.
Com uma raiva que só uma mulher enganada pode cultivar, Isabelle
chega até Héron — ainda conversando com Marie na área externa —,
distribui um tapa forte em seu rosto e o molha em seguida com o uísque. As
pessoas ao redor acompanham a cena. Eu até paro no meu lugar por um
segundo, assustado com a agressividade dela. Bem, em algum nível a
compreendo.
— Que porcaria é essa, Isabelle? — Héron brada, secando a bebida do
rosto com a gravata.
— Já está bêbada? — a irmã indaga, avaliando-a com olhos severos e
depois ajudando o namorado.
Aproximo-me mais e apoio as mãos sobre seus ombros, fazendo-me
notar por Marie e Héron.
— Ei, mantenha a calma — falo, olhando ao redor. A última coisa de
que precisamos é um escândalo no coquetel em comemoração à décima
quinta edição especial da Intéressant.
— Você mentiu para mim, Héron! — Isabelle diz, entre os dentes.
Voltando-se para a irmã, complementa: — Estamos dormindo juntos, Marie.
Há pouco mais de uma semana, mas eu não sabia que vocês estavam
namorando. Je jure devant Dieu! — “Juro por Deus!”
O casal, simultaneamente, me olha, como se soubessem que foi eu a
causa dessa confusão toda. Com um olhar quase bestial, Héron se volta para
Marie e exige:
— Conte a porra da verdade ou eu conto.
A nova informação me deixa atento. Marie me olha espantada,
parecendo respirar com dificuldade. Isabelle quer saber do que estão falando.
No fundo, porém, já sei do que se trata. Poirier a pressiona um pouco mais,
soando de um jeito rude e desagradável que não me deixa contente. Não
gosto desse seu jeito ácido. Suspirando, por fim ela diz à irmã:
— Não estamos juntos, Isabelle. Não se preocupe. Héron e eu
inventamos esse namoro… — Pausa de alguns segundos. Seus olhos deixam
a irmã para me encontrarem. — Eu pedi a ele que fingisse ser meu namorado
na frente do Emilien para afastá-lo. O que não adiantou muito, porque esse
homem não respeita uma mulher compromissada, mesmo que de mentira —
cospe as últimas palavras, olhando diretamente para mim. — É isso — diz
com um suspiro e se retira rapidamente em seguida.
Eu fico no meu lugar, sentindo a tensão ainda pairando na atmosfera.
Isabelle leva algum tempo para digerir a informação e se dar conta do erro
estúpido que cometeu. Ela se aproxima de Héron e o toca no ombro,
começando a se desculpar. Poirier, entretanto, está irritado o bastante para
não a escutar.
— Não toca em mim — repele, retirando-se em seguida.
— Merde! — Isabelle esbraveja, socando. — Acho que estraguei
tudo!
Deixo Isabelle Julien com sua frustração e vou atrás de Marie. Não
deveria, mas vou. Ela já me disse incontáveis vezes para não a atormentar e
deixar as coisas entre nós correr naturalmente. Nesse momento, tenho ciência
de que a última pessoa que quer ver sou eu. Precisamos dessa conversa,
contudo.
Marie abre uma das portas ainda no andar térreo da mansão. Consigo
alcançá-la antes de ela passar a fechadura na porta. O ambiente está escuro.
Pela penumbra, sei que está de costas para mim. Caminho pelo cômodo que
um dia foi o escritório do meu pai e puxo o blackout da janela, deixando o
luar e a iluminação artificial do jardim atravessarem o vidro e iluminar um
pouco o local.
— Cuidado com o que vai dizer, Emilien — adverte, de um jeito
ácido. Por fim, se vira para mim, resvalando o indicador na superfície da
mesa de cerejeira. — Se me tirar do sério, chuto suas bolas.
Rio baixinho e me mantenho no meu lugar, a três metros dela.
Observo-a por um segundo inteiro. Seu vestido a deixa sexy e me deixa com
vontade de despi-la para mim. Seus olhos se desviam dos meus, ela ainda
brincando com o indicador na mesa em movimentos suaves.
— Você fez o que achou que deveria fazer para me afastar — digo
segundos mais tarde. — Embora não tenha dado muito certo. — Abro um
sorriso cínico; ela revira os olhos.
— Por que você não mora aqui? — pergunta, mudando de assunto
bruscamente. Ela faz isso quando quer fugir de questionamentos.
Suspiro e olho ao redor. Essa mansão já foi meu lar um dia. Antes de
decidir ir embora e viver minha vida de forma independente, a convivência
com minha mãe só se tornou suportável porque eu tinha o amor do meu pai.
Tudo o que Elizabeth não me dava, Thierry me supria em dobro.
— É grande demais para mim — respondo, molhando o lábio inferior
e tentando evitar lembranças dolorosas.
— E sua família?
Franzo o cenho e aperto o maxilar. Não é a primeira vez que me
pergunta sobre minha família. Na ocasião, me esquivei de responder e ela
respeitou a minha decisão. Muito por isso essa mulher me cativou. Nunca foi
de me pressionar a contar sobre meu passado, ou minha infância, ou até
mesmo o meu segredo. Durante o tempo que estivemos juntos, sempre foi
compreensiva.
— Sou sozinho — sussurro, quase melancólico. — Minha mãe
decidiu se mudar daqui meses depois do falecimento do meu pai. É uma casa
que tem muitas lembranças felizes deles. — Meu rosto encrespa quando
pronuncio as últimas palavras. É claro que eu também tive momentos felizes,
mas a maior parte do tempo minha mãe estava fazendo da minha vida um
inferno, por mais dedicado que eu fosse em agradá-la.
— Por que se distanciou da sua irmã? — A pergunta sai de sua boca
quase de forma inaudível. Ela não está me olhando, preferindo admirar seu
indicador traçando um padrão em círculos sobre a mesa.
Ignoro o fato de ela saber sobre Nicole, uma vez que nunca a
mencionei em nossas conversas.
— Foi preciso. — É tudo o que digo. A última coisa que quero agora
é falar sobre meus dramas familiares e sobre minha mãe narcisista.
Sem que perceba, diminuo a distância entre nós. Atrevo-me a tocá-la
na cintura, levemente. No mesmo instante, ela me olha assustada com minha
aproximação. Apesar disto, não se afasta, como achei que se afastaria. Engole
em seco e fecha os olhos quando minha mão direita a agarra pela nuca.
— É um bom momento para responder as perguntas que te fiz nas
fotografias — sussurro, acariciando-a na nunca enquanto a mão esquerda
escorrega por cima do seu vestido e estaciona na coluna, no ponto que bem
sei ser o seu fraco. — Talvez eu comece a te enviar algo mais… digamos…
picante.
— Picante como? — indaga, abrindo os olhos. Suas pupilas estão
dilatadas, os lábios tremem ligeiramente. Meus dedos fazem um pouco mais
de pressão em sua cintura.
Minha mão sai de sua nuca e desliza até seu rosto, acariciando-a.
— Uma foto de casal, bastante sensual, e atrás pergunto se você sente
falta de foder comigo como eu sinto falta de foder você.
A respiração dela fica ruidosa um segundo depois. A luxúria pesa no
ar. Excitação. Só de pronunciar essa frase e me recordar dos nossos dias
juntos, debaixo dos lençóis, mergulhados na banheira, contra a parede,
estirados no sofá, no meu carro, na minha cobertura, sobre a mesa… porra, já
fico duro como rocha.
— Sinto — responde, inclinando-se em direção à minha boca.
Novamente, meus dedos a pegam pela nuca, trazendo-a mais para
mim. Então nossas bocas se chocam em um beijo profundo e duro, quase
indecente. Aperto sua cintura e colo mais seu corpo ao meu, podendo sentir o
calor que dela emana. Minha língua abre mais passagem pelos seus lábios,
invadindo-a de forma obscena. Empurro-a contra a parede mais próxima,
forçando meu tronco no seu e esfregando minha ereção em sua virilha. Marie
geme em minha boca, as mãos pequenas descendo até o zíper da minha calça.
Afasto-as um segundo depois, embora eu queira muito seu toque no meu
pau.
Segurando firme em suas coxas, coloco-a em meu colo, suas pernas
rodeando-me. O ângulo é perfeito para o encontro dos nossos sexos. Deixo
seus lábios inchados e movo o quadril contra ela, friccionando meu pau em
sua boceta coberta pela calcinha.
— Quero muito me enterrar nessa sua boceta gostosa, Marie —
murmuro, rouco e quase alucinado de excitação. Não é justo com um homem
ter de lidar com uma mulher como ela depois de alguns meses sem sexo, mas
me esforço para resistir à tentação do momento. — Chérie, você nem
imagina como estou louco para enfiar fundo meu pau em você e socar forte
até as bolas começarem a bater contra sua boceta.
— Emilien… — choraminga, inclinando os quadris em minha
direção, rebolando enlouquecidamente contra meu comprimento tão duro que
chega a doer.
Roço meus lábios nos seus e começo a descer pelo seu pescoço —
que tem gosto de perfume e cheira à baunilha — até alcançar o colo. Retiro
seus seios acesos do vestido e tomo um deles em minha boca, circundando o
bico e a auréola com minha língua suculenta.
— Mas quando isso acontecer, quando eu te fizer gozar tão gostoso
com meu pau tão profundamente dentro de você que se esquecerá do seu
nome, vai ter me dito as três palavras que quero ouvir.
— Je te aime? — “Eu te amo?”, pergunta, em meio a gemidos
incontroláveis enquanto sigo dando atenção aos mamilos esplendidamente
duros.
— Je te pardonne — corrijo. “Eu te perdoo”. Minha mão desce até
seu centro pulsante, onde sei que o clitóris implora por mim. Abaixo sua
calcinha o suficiente apenas para tocá-la na boceta encharcada. — Tão
molhada… — rosno contra seu peito, penetrando-a com dois dedos. Marie se
contorce mais contra minha mão e geme algo inaudível.
Em um rompante, giro nossos corpos, trocando a posição. Ela
continua em meu colo, as pernas abraçando minha cintura, mas agora sou eu
contra a parede. Preciso de um ponto fixo para me escorar para fazer o que
quero fazer. Seguro sua nuca com um pouco mais de pressão e, em um
malabarismo que só um homem excitado é capaz de fazer, consigo abaixar
minha calça, permanecendo de cueca.
— Não vou te deixar sair daqui sem um orgasmo, ma belle — falo,
agarrando seus quadris vigorosamente e forçando-a para baixo e para cima,
contra minha ereção. Ela geme descontrolada, a cabeça jogada para trás, os
olhos fechados, uma gotícula de suor escorrendo de sua testa. Inclino-me para
frente e acentuo seu prazer sugando os mamilos intumescidos.
Leva apenas dois minutos até senti-la tremendo e anunciando
baixinho que está gozando. Marie fica em meus braços mais alguns segundos.
Suas pernas ainda me contornam, o rosto escondido na curva do meu
pescoço, recuperando a respiração. Minhas mãos sobem e descem em suas
costas, enquanto também regulo meus batimentos cardíacos, extasiado com
nosso momento. Seu gozo atravessou o tecido da minha boxer e umedeceu a
cabeça do meu pau.
— Você quer gozar? — ela me pergunta. A voz sai abafada por causa
da sua boca contra minha pele.
Trago seu olhar ao meu e beijo delicadamente seus lábios.
— Quero, mas não agora, nem assim. Quando eu gozar, estarei te
comendo com força.
Marie sorri e enrubesce. Então, por fim desce do meu colo e olha para
os lados e depois para si mesma, vendo seu estado desgrenhado. Não evito
um sorriso de esnobe. Seguro sua nuca e a olho intensamente. Sua íris âmbar
continuam dilatadas de luxúria.
— Precisa se limpar — sussurro, desviando minha atenção para seus
lábios. Ainda estou duro à beça e talvez seja necessário me aliviar debaixo do
chuveiro, mais tarde. Mas estou decidido a esperar pelo perdão dela. — Tem
um banheiro ali. — Aponto para uma porta ao fundo.
Deixo um beijo suave em sua boca inchada antes de ela se virar e
adentrar o banheiro.
Estamos fazendo progressos.
MARIE
Não sei como ainda estou equilibrada em meus saltos. O orgasmo
que cortou meu corpo foi esplêndido, e isso porque Emilien nem mesmo me
penetrou.
Recosto-me na porta do banheiro que acabei de fechar e afago o rosto,
meus batimentos ainda desregulados. Aproximo-me da pia e abro a torneira,
molhando os punhos. Olho-me no espelho. Meu batom está intacto — apesar
da nossa ávida troca de beijos — graças à alta fixação do produto —, meus
cabelos estão desgrenhados, resultado da força com qual ele me agarrou, e
minha nuca está levemente úmida de suor.
Umedeço minha cerviz e inspiro fundo. Ao menos não precisarei
retocar a maquiagem. Penso em como estou deixando minhas barreiras
ruírem. Desde o início, por mais que estivesse decidida a não me render,
sabia que seria uma tarefa difícil e que, em algum momento, eu o deixaria
entrar. E não só no meu coração.
Droga.
Afasto os pensamentos obscenos da minha cabeça, mas a umidade
entre minhas coxas é um claro lembrete de como meu corpo reage àquele
homem. Limpo-me com papel higiênico o tanto quanto é possível e saio do
banheiro. Emilien ainda está aqui, de frente para a janela do cômodo. Há um
jardim bastante bonito. Minhas bochechas se avermelham. Nós fomos
indecentes segundos atrás. Será que alguém nos viu? Acercando-me mais
dele, noto que o espaço em questão está vazio. Tem algumas mudas, um
caminho de pedras, pequenos arbustos, um banco de madeira, luminárias
luxuosas e palmeiras baixas. Sei que ninguém mora aqui, mas deve haver um
caseiro para que o local esteja tão bem-cuidado.
— Será que alguém nos viu? — pergunto, parando ao seu lado.
— Não. Essa parte da casa está delimitada. Meu pai amava esse lugar.
Sentava-se ali todo dia para ler — diz, apontando para o banco.
Emilien fica cabisbaixo de repente. Não é difícil perceber que ele
tinha uma ligação muito forte com o pai. Um segundo depois, vira-se para
mim e dá um passo à frente, segurando-me pelos braços. Suas mãos quentes
mandam boas vibrações através do meu corpo e sobem delicadamente até
estarem me acariciando no rosto.
— Não queria dizer isso, mas… estou feliz por você e Héron não
estarem juntos — murmura.
— Isso não muda o fato de que ainda estou irredutível a te dar uma
chance.
Suas mãos caem ao lado do corpo. Ele aperta o maxilar e desvia os
olhos de mim por longos segundos, mirando através da janela para o jardim
privativo.
— Ainda posso te enviar as fotos ou me disse aquilo ontem apenas da
boca para fora?
Odeio admitir, mas saber que ele quem fotografou as imagens, que
tirou um tempinho da sua semana conturbada para se dedicar a isso, mexe
com meus sentimentos. No começo, achei desagradável — apesar de
romântico —, talvez porque estava deixando a raiva sobressair, mas depois
de estar em sua cobertura e conhecer um outro lado dele, alguma coisa dentro
de mim mudou e passei a ver as fotos e mensagens com outra perspectiva.
— Não foi da boca para fora — admito.
Seus olhos se voltam para mim, um pequeno sorriso ilumina o
ambiente. Emilien se inclina em minha direção e deixa um beijo estalado no
canto da minha boca. Antes que eu possa ter tempo de reagir, ele já se afastou
e partiu.

Saio do que parece ser o escritório um minuto depois de Emilien. Ao


pôr o pé no salão principal onde acontece a festa, eu o vejo na companhia de
uma segunda pessoa, abraçando e sendo abraçado. Ciúme sobe à minha
garganta no mesmo instante e praguejo mentalmente. O desgraçado acabou
de me dar um orgasmo maravilhoso e já está se esfregando… Espera!
Observo-o melhor. Quando a mulher se afasta, reconheço seu rosto. Respiro
aliviada. É só a irmã dele, que reconheço por causa da perseguição
cibernética que fiz semanas atrás.
Pestanejo por um segundo, assimilando a cena. Pelo que pude
entender, os dois estavam afastados, por um motivo que Emilien não quis me
contar. Mas a troca de abraços entre eles é bastante afetuoso. Meus olhos
abaixam para o vão entre suas pernas e consigo notar o volume ali. O homem
nem mesmo se sente constrangido por estar com uma ereção e sai por aí
desfilando o pacote marcado nas calças.
Sou pega os admirando. Emilien sorri de um jeito meio cínico, Nicole
mantém um sorrisinho mais recatado e amigável. Viro nos calcanhares e me
misturo ao restante dos convidados. Perambulo até encontrar um garçom.
Preciso de uma bebida. Agarro uma taça de champanhe e estou prestes a virar
o primeiro gole garganta abaixo quando uma pressão no meu punho me
impede. Um segundo mais tarde, estou sendo arrastada. Demoro a assimilar
de que se trata de Isabelle puxando-me para um canto mais reservado.
Sigo-a, esforçando-me para manter o equilíbrio nos saltos, porque ela
me pegou desprevenida. Sou levada até a cozinha, onde não tem nada além
de caixas de bebidas e aperitivos.
— Estraguei tudo, Marie — Isabelle choraminga. — Precisa falar
com o Héron e…
— Non… — interrompo-a antes que continue com isso. — Já pedi
para ele avaliar seu original, já apresentei vocês e… — Subitamente me
recordo do que ela falou minutos atrás. — Você e Poirier estavam dormindo
juntos?
Desviando o olhar do meu, minha irmã pega uma mecha do seu
cabelo liso e enrola no indicador.
— Estávamos. Rolou uma química legal entre a gente.
— Isabelle! — advirto-a. Mon Dieu. Onde essa desmiolada estava
com a cabeça quando decidiu dormir com o Héron? Tudo bem, não tenho
nada a ver com sua vida amorosa e sexual, mas bom senso de vez em quando
não mata ninguém. Ela pede que o cara avalie um livro seu e depois dorme
com ele? Não o conheço tão bem como gostaria, mas Poirier pode ser aquele
tipo de homem babaca que vai acreditar que Isabelle só dormiu com ele para
ter sua obra elogiada ou indicada para alguma editora que ele trabalhou.
— Eu sei! — devolve, entre os dentes. — No começo, depois que
aconteceu a primeira vez, achei que tivesse cometido uma burrice. Mas foi o
Héron quem me procurou dois dias depois.
Suspiro, aliviada.
— Então, por que precisa que eu fale com ele?
Isabelle me olha como se eu tivesse chifres na cabeça.
— Dei um tapa na nele e o molhei com uísque — diz, como se fosse
bastante óbvio. E é, na verdade. Mas meu organismo ainda está liberando
oxitocina demais para que eu seja capaz de pensar racionalmente. — Porque
achei que ele estava te traindo!
Deixo outro suspiro escapar. Agora, mais do que nunca, preciso
beber. De uma vez só, viro a champanhe em minha mão. Essa confusão toda
é em partes culpa minha.
— Você provocou a fera, Isabelle — falo, apoiando a taça vazia sobre
o balcão elegante de mármore preto italiano. — Se eu tentar chegar perto,
vou ser atacada. Já tenho que suportar o mau humor de Héron na redação a
semana inteira. Não quero tocar no assunto e irritá-lo ainda mais. —
Aproximo-me da minha irmã e seguro seus braços, beijando suas bochechas
em seguida. — Deixe a poeira baixar e o meu chefe esfriar a cabeça, depois
disso, você o procura e se desculpa.
Sua feição é de contrariada e de vergonha ao mesmo tempo. Com
Isabelle, tudo precisa ser na hora. Por ela, deveríamos falar com Héron agora
mesmo. Mas eu também conheço a personalidade daquele homem e sei que
não devo me aproximar muito quando está aborrecido. O melhor mesmo é
dar tempo ao tempo. Relutante, contudo, raciocinando, Isabelle concorda e
me dá um abraço, agradecendo-me. Deixamos juntas a cozinha e voltamos a
nos misturar com as pessoas.

Já é tarde da noite. Tomei um banho quente e relaxante, preparei


algumas porcarias calóricas para comer e escolhi um filme. Tudo isso numa
tentativa hilária e desesperada de não me tocar pensando em Emilien.
Durante todo o restante do coquetel, nos mantivemos afastados. Ele ocupado
cumprimentando sócios e conhecidos, e eu apenas querendo me manter longe
para resistir à tentação. Isso significa que tive de aturar as inseguranças de
Isabelle em relação a Poirier depois da confusão. Héron foi outro de quem
nos mantivemos longe, mais por escolha dele do que nossa. A verdade é que
após o desentendimento com minha irmã, o vimos em apenas uma ocasião,
quando Emilien reuniu os chefões que estarão na frente dessa edição especial
para desejar sorte e um bom trabalho a todos.
Durante cada maldito segundo da festa depois do orgasmo
maravilhoso que me fez ter, eu pensei nele. Pensei em puxá-lo pelo punho,
levá-lo até um dos quartos da mansão e me sentar nele até meus joelhos
doerem. Tive de ter muita força de vontade para isso. Mas agora, sozinha na
solidão do meu apartamento, o filme não consegue me distrair e me fazer não
pensar no momento intenso entre mim e Emilien, seu pau duro forçando-se
contra a minha intimidade.
Foi um orgasmo dos deuses? Foi. Mas também foi tortura. O tanto
que desejei que ele abaixasse a cueca e me penetrasse com vigor não há
palavras para ser explicado. Mas Emil fez uma promessa idiota de me possuir
apenas quando perdoá-lo. Não quero perdoá-lo. Dar para ele? Com toda
certeza, mas perdoar ainda não. Contraditório, eu sei.
O filme, que é para me distrair, não está me ajudando em nada.
Principalmente porque essa bendita cena de sexo está me reportando para
horas atrás, quando estive prensada contra a parede e Emilien se esfregava
em mim. Fecho os olhos e resfolego, levando a mão até minha vagina. A
camisola sobe com meu ato, coloco a mão por dentro da calcinha…
… e paro um segundo depois.
Não vou me masturbar pensando nesse filho da mãe, em como beija e
trepa bem à beça. Recuso-me a me recordar das vezes em que ele me comeu
com força e gozamos juntos, gemendo descontrolados.
De todas as formas, tento resistir à tentação. Mas não consigo.
Por Deus! Eu sou humana, feita de carne e osso.
Sei que vou me arrepender dessa decisão. O orgasmo que virá junto
com ela, porém, valerá muito a pena.

Emilien arregala os olhos quando me vê parada do outro lado da sua


porta, usando salto-alto e um casaco preto longo até quase meus pés. Soltei
meus cabelos e os deixei bagunçados, esborrifei um bom perfume, passei um
delineador nos olhos e apenas um gloss labial — a pressa de vir me obrigou a
racionar a maquiagem.
Ele faz cara de surpresa não sei por qual razão, pois fui anunciada
antes de subir. Concentro-me por um segundo em sua íris azul antes de
analisá-lo dos pés à cabeça. Ah, puta que pariu. Eu tento odiá-lo, mas esse
homem não colabora. Emil está usando uma calça de flanela, descalço e sem
camisa, exibindo o tórax forte e liso. Seus cabelos estão desgrenhados,
dando-me certeza de que já estava dormindo. Às vezes me esqueço que ele é
homem matutino, daqueles que acordam cedo, correm na esteira e se enchem
de proteínas antes de começar mais um dia corrido.
— É quase uma da manhã. — Sua voz rouca, branda e sussurrada me
chama de volta ao mundo real. — Aconteceu alguma coisa?
— Aconteceu — respondo. Tenho de fazer um pequeno esforço para
não virar nos calcanhares e voltar para casa. Vim com o propósito de transar
com ele e não vou embora enquanto não o cumprir. — Aconteceu que você
me torturou mais cedo… e preciso de mais de você, Emilien — falo, não
tendo pudor ou vergonha, sem esconder o desejo em minha voz.
Acho que nunca o quis tanto como o quero agora.
Dou um passo à frente e apoio minhas mãos quentes em seu tronco
definido. Sua pele é macia e cheira à lavanda. Encosto meu rosto em seu
peito, envolvendo-o pela cintura e inalando fundo seu cheiro. Os dedos dele
se emaranham em meus fios crespos, a outra mão enlaça meu quadril.
— Vou ouvir as três palavras? — indaga ao pé do meu ouvido.
As três palavras. “Eu te perdoo”. Ao invés de respondê-lo, afasto-me
dos seus braços e dou um passo atrás, desabotoando vagarosamente meu
longo casaco. Emilien me olha com curiosidade, atento a cada movimento
meu. Ao terminar de desabotoar, puxo as laterais da peça, dando-lhe uma
visão despudorada do meu corpo. Emil ofega ruidosamente quando vê que,
por baixo da vestimenta, trajo apenas um sutiã preto de bojo que ressalta
meus seios, uma calcinha também preta de renda e cinta-liga.
— Caralho… — murmura, dando um passo em minha direção, seus
olhos correndo pelo meu corpo. Ele toca entre meus seios; o contato quente
aciona minhas terminações nervosas lá embaixo. Suspiro baixinho,
esforçando-me para ignorar o apelo entre minhas pernas. Preciso desse
homem dentro de mim. — Vou ouvir as três palavras? — pergunta outra vez,
descendo o indicador pelo meu torso.
— Você vai ouvir palavras bem mais interessantes, chéri —
respondo, inclinando-me levemente nos pés para aproximar nossas bocas e
deixá-las a um centímetro uma da outra.
Subitamente, ele se afasta e cruza os braços, olhando para algum
ponto atrás de mim.
— Não vamos transar enquanto não me perdoar — murmura,
molhando o lábio inferior.
A calça de flanela marca seu pênis gostoso e grosso solto sob o
tecido. Emilien odeia dormir de cueca e eu amo isso nele. Se tem algo que eu
adorava fazer quando dormíamos juntos era colocar a mão por dentro do seu
pijama e senti-lo quente e duro, mesmo que estivesse em sono profundo.
Consigo me recordar de algumas madrugadas em que o acordei com um oral
suculento.
— Você quer transar comigo tanto quanto eu quero transar com você,
Emil… — sussurro, eliminando o espaço interposto entre nós. Ele me olha
com narinas infladas e as pupilas exalando luxúria.
— Nunca disse que não quero te comer, ma jolie — responde,
encurvando-se para minha boca e segurando-me pela cintura de novo, uma de
suas mãos enveredando para minha calcinha que já está úmida. — Mas
prometi que quando eu te foder de novo, terei sido perdoado.
— Eu perdoo você — falo, minha voz saindo estrangulada e quase
desesperada. Remexo meus quadris contra seu indicador longo e esplêndido
dançando em meus lábios vaginais.
— Está dizendo isso apenas porque sua boceta está encharcada e
desesperadamente quer que eu te foda… — declara. O maldito está certo. —
Não é dessa maneira que quero te ouvir dizer je te pardonne. Tem que ser
natural, espontâneo e principalmente… — fala, retirando seu dedo
maravilhoso do meu ponto do prazer. Fico frustrada e demonstro isso com
um suspiro agoniado. Emilien toca o lado esquerdo do meu peito e completa:
— Tem que vir daqui.
Sustento meu olhar no seu, não podendo negar que suas palavras me
atingiram. Não tenho tempo de resposta, pois um segundo depois ele puxa
meu punho e me leva para dentro da sua cobertura, fechando meu casaco e
escondendo meu corpo seminu. Nunca pensei que ele fosse agir tão
“certinho” comigo, ainda mais quando o procuro para ter um sexo depravado
e intenso. Quando percebo, já estou em sua cozinha elegante e de inox.
Emilien me acomoda em uma das banquetas e nos serve com uma taça de
vinho.
— Quer passar a noite comigo? — pergunta, sorvendo um gole da sua
bebida.
Ergo uma sobrancelha.
— Você acabou de dizer que não vamos transar — aponto, passando
o dedo pela borda da minha taça. Cruzo as pernas sob o balcão. Do outro
lado, Emilien se apoia sobre a superfície e me olha com um sorrisinho.
— Não usei eufemismo, Marie — esclarece. — Pode ficar aqui essa
noite se quiser. Na mesma cama que eu ou não. Você decide. Mas confesso
que estou tentado a te ter do meu lado.
Por fim, dou uma golada no meu vinho e digo:
— Por que está me rejeitando, Emilien?
Ele me olha um segundo, pego pela surpresa da minha pergunta.
— Mon ange, não estou te rejeitando — explica. — Só não quero
mais nada casual entre nós, entende? Voltei para França por sua causa, não só
porque sentia falta do nosso sexo, mas sobretudo de você. Não quero só mais
uma trepada, chérie, quero algo a mais porque eu… — Emilien faz uma
pausa brusca e bebe mais do seu vinho antes de continuar: —… estou
apaixonado por você. Essa é a verdade.
Queria poder dizer que não me sinto atingida pela sua declaração, mas
não posso. Alguma coisa dentro de mim se remexe com isso. Diante suas
palavras, não sei que reação ter. Admito que a ideia de ficar é tentadora e me
vejo cogitando a possibilidade. Perdida nos pensamentos, sequer o noto dar a
volta no balcão e se pôr perto de mim, envolvendo minha nuca com sua mão
quente. De repente, estou olhando dentro dos seus olhos azuis, uma das mãos
dele segurando-me pelo punho. Emilien se reclina em minha direção, sua
boca vindo para a minha.
Mesmo se eu quisesse resistir, não seria capaz. Seu cheiro natural me
atrai, seus lábios suculentos e com gosto de vinho me arrebatam. Quando
menos espero, estou beijando-o avidamente, alisando seu tronco caloroso. Ele
me segura com mais força pela cerviz, como se me reivindicasse. Meu corpo
não responde mais aos meus comandos e tudo o que faço é me entregar a esse
homem.
Emilien me pega em seus braços, como se eu fosse uma pluma, sem
desunir nossos lábios. Agarro-o pela nuca enquanto ele nos leva escada acima
até a suíte. Sou posta em uma cama macia e tenho seu corpo jogado sobre o
meu. Abraço sua cintura com as pernas, sentindo a ereção dele contra meu
sexo. Gemo em sua boca, necessitada pelo seu toque.
— Você vai mesmo me torturar, não é? — murmuro, esfregando-me
nele. De olhos fechados, ele sorri, a expressão em êxtase.
— É uma tortura para mim também, chérie — confessa, descendo os
lábios pelo meu pescoço. Ele desabotoa meu casaco novamente e me puxa
para ficar sentada na cama. Desfazendo-se da peça, deixa-me apenas com a
lingerie. Vagarosamente, Emilien me despe, tirando primeiro o sutiã, depois a
cinta-liga, a calcinha e por fim os saltos.
Durante os longos segundos, não digo nada, apenas o assisto me
desnudar, pensando que ele sucumbirá à sua vontade e me dará aquilo que
mais preciso dele neste momento. Contundo, quando estou completamente
nua, ele se levanta e vai até o closet, retornando sem demora com um
moletom. Ele me veste, como se eu fosse uma criança precisando de
cuidados, deixa um beijo cálido na minha boca e sussurra:
— Vai dormir comigo, não vai?
— É o que estou tentando fazer — respondo, sugestiva, balançando as
sobrancelhas.
— Não nesse sentido. Ainda — responde, dando uma risada gostosa.
Eu sei que deveria ir embora, mas a oferta de ficar e sentir o calor do
seu corpo no meu por toda uma noite é tentadora demais para ser recusada.
Sendo assim, balanço a cabeça em afirmativo. Quase no mesmo instante,
Emilien está puxando-me para debaixo dos lençóis já desarrumados e
cobrindo-me com seu físico divino. Ele me abraça, escondendo o rosto em
meu pescoço e inspirando profundamente meu aroma.
Abraço-o de volta, envolvida demais para odiá-lo nesse momento.
EMILIEN
Nunca pensei que fosse possível passar uma noite na mesma cama
que Marie e não transar com ela. O desejo estava em mim, claro, latente,
forte, quase forçando-me a esquecer da minha palavra e me enterrar nela,
principalmente quando a abracei e aspirei fundo seu aroma natural, o calor do
seu corpo aquecendo-me de uma forma inebriante. Resisti, tendo de encontrar
toda força de vontade dentro de mim para tal.
Quando acordo no sábado de manhã, nossas pernas ainda estão
enroscadas umas nas outras. Marie dorme como um anjo, seus braços em
volta da minha cintura, a respiração ritmada. Tiro uma mecha do seu cabelo
caído no rosto e deixo um beijo cálido no canto da sua boca. Ela se remexe e,
sem acordar, exibe um sorriso pequeno, aconchegando-se mais em meu
tórax.
A sensação que me atinge é esplêndida. Aperto-a um pouco mais,
beijo seus cabelos e me levanto com cuidado para não a acordar. Caminho até
o banheiro, deixo a porta entreaberta para que, caso desperte, veja que estou
aqui. Tomo um banho quente e longo, relaxando os músculos e mandando o
sono embora. Poderia acordá-la com um café da manhã na cama, mas a
mulher não come nada antes das dez e muito provavelmente vai me odiar se
eu a acordar às cinco da manhã.
Visto apenas uma calça confortável, beijo-a novamente e me esgueiro
pela minha cobertura. Na academia privativa, cumpro minha rotina de
exercícios. Corro uma hora na esteira, levanto alguns pesos e trabalho as
pernas. Duas horas depois, às sete, estou faminto e suado. Preciso de outro
banho e talvez torne a deitar com Marie para velar seu sono e observá-la.
Meus planos caem por terra quando ouço ruídos vindos da cozinha. É
ela quem está lá, moendo grãos na minha cafeteira para um petit déjeuner —
café da manhã. Sobre a minha mesa, tem um prato com pedaços em rodela de
baguete, geleia de amora e um pires. Ao se virar para mim, Marie dá um
saltinho de susto, segurando a xícara já com café. Um segundo depois, sorri e
vem em minha direção, apoiando a xícara no pratinho. Dá uma conferida na
mesa e então me olha.
— Fiz seu café da manhã — diz. Seus olhos correm pelo meu corpo
seminu. Tenho certeza que estou brilhando de suor.
— Percebi — respondo, com um leve sorriso. Deixa-me admirado
que ela se recorde de como gosto do meu desjejum: baguete, café e geleia de
amora. Por vezes, como um croissant no lugar do pão, e suco de laranja
substituindo a cafeína. Mas no geral, essa combinação é a perfeita para mim.
— O que isso significa? — indago, cruzando os braços na frente do tórax. —
São sete da manhã de um sábado. Te conheço o suficiente pra saber que você
odeia se levantar cedo aos finais de semana.
Ela dá de ombros e volta para a cafeteira, preparando uma dose para
si.
— É uma oferta de paz — responde, ainda de costas para mim.
Marie usa um moletom meu. É curto, mal tampa sua bunda, o que faz
meu amigo começar a ganhar vida e fertilizar minha imaginação. Já me vejo
aproximando-me por trás, erguendo a peça para expor sua pele quente,
beijando seu pescoço enquanto a como contra a bancada. Fecho os olhos,
inspiro fundo e balanço a cabeça em negativo, como se pudesse afastar esses
pensamentos obscenos para longe.
Sento-me à mesa e sorvo um gole do meu café.
— Oferta de paz? — repito, sem compreender direito o que quis dizer
com isso.
— Uhum — responde, finalizando seu café. Ela se aproxima e se
senta na outra cadeira, de frente para mim. Toma um gole da bebida,
expressando prazer enquanto o líquido desce pela sua garganta. Marie adora
o café processado na minha cafeteira.
— O que isso significa? — pergunto depois de morder uma rodela da
baguete.
A mulher me olha com atenção, a borda de sua xícara a centímetros
de seus lábios carnudos.
— Que você está perdoado. — A sentença me pega de surpresa,
confesso. Principalmente porque sinto franqueza em suas palavras. Não foi
da boca para fora, não como ontem à noite, quando me procurou, cheia de
tesão. Antes que eu possa abrir um sorriso, ela completa para me frustrar: —
Mas não te perdoei o suficiente para termos algo além da amizade.
Começo a aceitar que não vou conseguir quebrar o muro em torno do
seu coração. Não sei mais o que posso fazer para que ela me dê uma chance,
para que acredite que estou de fato arrependido e disposto a assumir uma
relação séria ao seu lado.
— Então… somente amigos? — inquiro, passando um pouco de
geleia no pedaço de baguete. — Amigos coloridos, talvez? — proponho,
balançando a sobrancelhas.
Marie me dá um sorrisinho e balança a cabeça em negativo.
— Só amigos, Emilien. Nada que envolva sexo ou qualquer contato
íntimo.
— Você parecia pensar diferente ontem à noite — aponto, dando uma
mordida no pão.
Suas bochechas coram no mesmo instante. No meu lugar, sinto meu
pau dar uma pulsada só de me recordar dos trajes com que ela apareceu aqui.
Respiro com dificuldade sem nem perceber. Em qualquer outra ocasião, teria
a puxado para dentro e a fodido ainda no sofá, sem nem mesmo tirar o pouco
de roupa que usava.
— Estava necessitada — responde, voz trêmula. — Você me deixou
querendo mais — assume, enrubescendo. Como eu a adoro quando fica
vermelha assim. — E isso não importa mais, de qualquer maneira. Eu não
estava pensando direito, mas agora… que estou raciocinando melhor, é essa
minha decisão: você está perdoado; contudo, não me sinto confiante a te
entregar meu coração de novo. Podemos ser amigos, trocar mensagens e
ligações de vez em quando, sair uma ou duas vezes a cada quinze dias, de
preferência com outros colegas…
Seu receio é justo, preciso admitir. Não tenho muito o que fazer a não
ser aceitar. É um passo grande, querendo ou não. Talvez uma hora ela ceda.
Deixo meu café da manhã pela metade e me levanto da mesa.
— Onde você vai? — pergunta, enquanto avanço apartamento
adentro.
— Não demoro — respondo apenas.
Volto uns dois minutos depois, munido com minha polaroide. Marie
me encara com um ponto de interrogação no lugar dos olhos. Puxo-a pelos
punhos e a trago para mim.
— Bem, se vamos recomeçar, que tal nossa primeira foto como
amigos? — sugiro, colocando nossos rostos e erguendo a máquina na nossa
direção.
— Não me parece uma boa ideia — retruca, passando o braço pela
minha cintura. — Você está sem camisa, suado e muito sexy… E eu estou
nua por baixo de um moletom seu. — Sorrimos juntos quando bato a
fotografia. — Isso não se parece nada com uma foto de dois amigos — diz
baixinho, enquanto vê a nossa imagem surgir aos poucos.
Olho-a e sorrio, deixando um beijo inocente na sua bochecha. Entrego
a foto revelada para ela.
— É sua.
Marie segura a imagem entre os dedos e a olha por alguns segundos,
mordendo o lábio inferior e exibindo um sorrisinho de adolescente
apaixonada.
— Merci — agradece, beijando-me na bochecha. Sinto a paixão dela
por mim enquanto me olha. — Preciso ir.
Ergo uma sobrancelha.
— Não me agrada a ideia de você andando por aí de lingerie e casaco.
— Fecho a cara, uma pontada de ciúme apossando-se do meu corpo.
Ela sorri docemente e, com um tapinha no meu peito desnudo,
responde:
— Ainda bem que não me importo com sua opinião, Emilien.

Quatorze anos antes

— A que horas você precisa ir provar o terno? — papai pergunta,


ofegante por conta dos cinco quilômetros que fizemos até aqui, correndo.
Ao seu lado, acompanhando-o no ritmo da corrida, pingo de suor.
Inspiro fundo para tomar um pouco de ar. Temos mais cinco quilômetros pela
frente até terminarmos o percurso. Olho para o céu; o dia ainda
amanhecendo. Tento não pensar muito no assunto. Meu casamento com
Marjorie Chevalier está marcado para daqui a um mês. Como eu achei que
aconteceria, minha mãe conseguiu me convencer a isto.
Nossa convivência melhorou minimamente desde que decidi voltar
para casa e cursar Gestão Financeira, dois anos atrás. Elizabeth continua
sendo uma megera comigo quando quer, mesmo eu fazendo todas as suas
vontades. Achei que voltar resolveria nossas diferenças, mas isso não
aconteceu. Minha mãe segue infernizando minha vida, alegando ser tudo por
amor. Em minhas consultas com o psicólogo, ele continua aconselhando-me
a me mudar e permanecer afastado ou, ao menos, convencer minha mãe a se
tratar junto comigo. Somente assim para que a paz realmente prevaleça e eu
garanta minha saúde mental. Mas somente eu sei que nem mesmo me mudar
resolveria o problema. Experiência própria.
Durante todo os seis primeiros meses desde a minha volta, minha mãe
conversou comigo a respeito de Marjorie e de como queria nos ver juntos
outra vez, pois ela era a mulher ideal para mim. Elizabeth, de alguma forma,
me fez perceber que ainda nutria algum sentimento pela moça, fazendo-me
relembrar nossos bons momentos. Ela também manipulou os fatos a seu
favor, marcando encontros entre nós, convidando os Chevalier para nossos
almoços de domingo.
Com meu retorno, somado às investidas de maman, meu contato com
Marjorie aumentou. Consequentemente, aquele sentimento que tive por ela na
minha adolescência despertou dentro de mim, a ponto de me fazer aceitar
reatarmos e, meses depois, ficarmos noivos. Nosso casamento está marcado
há cinco meses, faltando apenas mais um para o “grande dia”. Mamãe, minha
futura sogra e minha noiva estão trabalhando avidamente nos preparativos.
— Às cinco — respondo.
— Ansioso? — Thierry sorri, seu rosto brilhando de suor.
— Não mais do que a mamãe — brinco, forçando um sorriso.
— Está tomando a decisão certa, Emil? — pergunta, em tom de voz
sério. Quando anunciei meu noivado, papai me puxou para um canto e me
perguntou a mesma coisa. Ele se importa com minha felicidade e, diferente
da esposa, não ligaria se eu decidisse me casar com outra mulher.
— Estou, père — afirmo. — Eu gosto da Marjorie.
Thierry para de correr e me segura pelos braços.
— Não é o suficiente, mon fils. Precisa amá-la. De verdade. Entrar
em um casamento sem esse sentimento é pedir para ser um péssimo marido.
Você vai sofrer e fará sua esposa sofrer também.
Penso por um segundo em suas palavras. Se minha mãe o escutasse
desencorajando-me desta maneira, ficaria um mês sem falar com ele. No
mínimo.
— Vou me esforçar — digo apenas e torno a correr.
Papai me segue e não tocamos mais no assunto. Enquanto corro nesta
manhã de quarta-feira, em silêncio ao seu lado, me disperso em meus
pensamentos, pesando as palavras dele. Nunca tive tanta incerteza na minha
vida, mas Elizabeth vai me punir se não atender suas vontades. Perdido em
minhas divagações, demoro a notar que ultrapassei Thierry. Quando percebo,
ele está cinco metros atrás, corpo encurvado, mãos nos joelhos, cabeça
abaixada. Sorrio e volto.
— Vamos, velhote. Faltam apenas mais uns dois quilômetros —
debocho. De repente, papai cai no chão, os joelhos estralando no asfalto, as
duas mãos sobre o peito esquerdo. Só então me dou conta de que é algo sério.
— Papa! — exclamo, segurando-o. — Papai, o que houve?
Thierry aperta a mão contra o peito cada vez mais forte, o rosto
contorcido em dor.
— Acho que estou tendo um infarto.
Desespero bate em meu âmago. Em um átimo de segundo, estou
fazendo menção de me levantar e correr atrás de ajuda. Contudo, meu pai
segura firme em meus punhos e me puxa para baixo.
— Não há tempo, Emilien…
Pisco diversas vezes, lágrimas acumulando-se em meus olhos.
— Vou pedir ajuda… Aguente firme, meu velho.
Outra vez, como um pedido de súplica, meu pai me impede.
— Non, nous n'avons pas le temps! — “Não temos tempo!” —
Emilien… — ofega, apertando o lado esquerdo do peito com a mão livre. —
Preciso que saiba de uma coisa, mon fils. — Quero dizer para guardar suas
forças, quero me levantar e buscar ajuda, mas Thierry me impede, segurando-
me com muita força. — A Dupont Investimentos… está falindo.
Aperto sua mão na minha, processando a informação. Por que está me
contando isso somente agora? E como a Dupont Investimentos pode estar
falindo… Por quê? Como? Desde quando?
— Papa, s’il te plaît …
— Écoute-moi… — “Escute-me”. — Estou morrendo, meu filho…
— Lágrimas rolam pelo meu rosto. Não posso perder meu pai, não agora! —
No meu escritório, na sede… — Seu rosto se fecha em dor, a palma da mão
pressionando mais o coração a ponto de parar. Ele está deitado sobre minhas
pernas dobradas, eu segurando sua mão livre. — Tem tudo o que precisa
saber sobre essa falência iminente de nossa empresa. Filho… — A voz sai
falha, papai me segura com mais força. — Não deixe nossa empresa falir, por
favor! Eu vou morrer e você assumirá os negócios…
— Non, papa! — soluço, desvairado com a ideia. — Aguente! Eu vou
chamar ajuda e…
— Emilien… Não deixe nossa empresa falir. Não deixe nem mesmo
sua mãe saber que estamos em crise ou ela… vai surtar. Me escutou? Salve
nossa família, mon fils.
Mal o enxergo através das minhas lágrimas. Thierry aperta minha
mão, sorri morbidamente e tenta dizer:
— Emil… — Pausa, seus olhos começando a se fechar. Papai
resmunga de dor. — Diga à sua mãe e à sua irmã que eu as amo muito. —
Limpo minhas lágrimas com as costas da mão. — E eu também… eu também
te…
Thierry não consegue dizer que me ama. A morte o leva antes que
tenha tempo.
Meu pai, o homem que mais amo na minha vida, morre em meus
braços.
MARIE
— Você não fez isso! — grito com Emilien.
— Eu fiz — responde, debochado e balançado as sobrancelhas.
Ele está aqui agora, parado no umbral da minha porta, todo lindo
dentro de uma roupa casual, perfumado com seu habitual Bleu de Chanel e
sorrindo de orelha a orelha. O desgraçado sabe que me pegou de surpresa e,
acima de tudo, sabe que eu adorei!
Não sei se se trata de outro do seu modo de tentar me reconquistar ou
está apenas sendo meu amigo. No último mês, desde que estive em seu
apartamento e propus nada além de amizade entre nós, Emilien mudou
comigo. No bom sentido. Ele tem respeitado meu espaço mais do que
posterior à sua volta. Suas mensagens variam de uma a três por dia, sem
nenhuma conotação sexual ou sugestiva, muito menos pressionando-me a
perdoá-lo a ponto de ultrapassarmos a barreira que nos impus.
Achei que ele fosse usar o fato de ser dono da Intéressant para
aparecer na redação quando bem entendesse, mas a última vez que o vi pelos
corredores foi na semana do coquetel.
As fotos ainda continuam, mas não têm mais as mensagens atrás e
mudaram de foco também. Se antes recebia uma fotografia todo dia, com
algo relacionado ao que ele sentia falta em mim ou em nós, agora recebo, no
máximo, duas na semana, e são de temas variados — de pores do sol a
paisagens noturnas. Emilien é um homem ocupado, mas tem feito questão de
mantê-las, enviando-me principalmente imagens de pontos turísticos de
locais onde está viajando a negócios. Esses dias, mandou-me uma foto da
Torre de Pisa e do Coliseu. Segundo me informou, ele mesmo tem batido
essas imagens, o que me deixa estranhamente feliz por ele, ao mesmo tempo
em que faz cócegas no meu estômago. Emilien continua tirando um tempo do
seu dia atarefado para me presentear com algo tão singelo.
Tivemos dois encontros, e em nenhum deles ficamos sozinhos.
Bernardo e Ann-Marie nos acompanharam a um restaurante na semana
passada; da mesma maneira, nos receberam em sua casa para um jantar
agradável.
No geral, Emilien tem se comportado.
Agora, entretanto, ele me pega desprevenida quando aparece aqui
com um presente maravilhoso desses.
— Desculpe por aparecer a essa hora — diz, abaixando-se e pegando
a grande caixa perto do pé. — Mas vou viajar em dois dias, e amanhã estarei
o dia todo ocupado. Me sobrou uma brecha e decidi vir hoje. Você não se
incomoda, n’est ce pas?
Tirando o fato de que estou descabelada e de vestido de moletom em
uma segunda-feira-feira às nove da noite, não, não me incomodo. Dou espaço
para ele entrar, pois noto que a caixa começa a pesar em seus braços.
— Não acredito que você fez isso — digo, seguindo-o até a cozinha.
Ele apoia a grande embalagem sobre a bancada e se vira para mim.
— Você vive dizendo que ama meu café… — fala, apoiando a mão
sobre o presente que me trouxe. — Como sei que, provavelmente, nunca mais
poderei te preparar algumas xícaras… — Ele baixa o olhar de repente;
balança a cabeça em negativo e então torna a me encarar, completando sua
sentença: — Decidi comprar uma cafeteira igual à minha. Não sei se seu café
sairá igual ao meu, mas… — Dá de ombros, exibindo um sorriso lindo. —
Você pode tentar.
Nem vejo quando me jogo em seus braços e o aperto com toda minha
força. Parece uma besteira sem tamanho, mas realmente estou feliz com seu
presente. Uma cafeteira. Maravilhosa.
— Merci, Emilien! — exclamo em agradecimento, arrastando meu
nariz pela pele do seu pescoço. Fecho os olhos e inspiro fundo seu cheiro
esplêndido. Estou relaxada em seus braços ao passo que o sinto tenso e
relutante em retribuir ao meu afeto. Só por um segundo me esqueço do
acordo estúpido que firmamos de sermos apenas amigos (e eu sei que é
impossível ser apenas sua amiga) e deixo me levar por esse breve momento
em seus braços. Nosso primeiro contato mais próximo desde o coquetel em
sua mansão.
Parecendo ter um pouco mais de juízo do que eu, Emilien me afasta
de seus braços, com um sorriso fúnebre e olhos perdidos. Um segundo
depois, também me sinto mal por ter me aproximado dessa maneira.
— Trouxe algo a mais. — Quebra o silêncio pequeno entre nós,
virando-se para a caixa e a abrindo. De lá de dentro, puxa duas embalagens
de St. Helena Coffee. — Achei propício, já que você está trabalhando em
uma matéria especial sobre a Revolução Francesa — brinca, pois o St.
Helena foi cultivado por Napoleão Bonaparte na ilha de mesmo nome.
Tecnicamente, é o café oficial do homem que foi Imperador da França por
dez anos.
Pego as embalagens de sua mão e as admiro por um instante. Ele
desembala a cafeteira e começa a instalá-la no lugar da minha antiga.
— Ah! — exclama, ainda mexendo no aparelho. — Também trouxe
um vale-compra de mil euros para você comprar mais quando acabar. — Fica
em silêncio por um segundo, como se estivesse calculando. — Deve
conseguir comprar uns quatorze quilos. — Nem me surpreendo. Esse café é
realmente caro. — É o suficiente para você passar o ano degustando de uma
boa safra? — indaga, virando-se em minha direção.
— Está louco, Emilien? É claro que é suficiente! Não vou consumir
mais de um quilo de café por mês. Sou viciada, mas nem tanto.
Ele deixa uma risada profunda e gostosa no ar, enquanto segue
mexendo na aparelhagem. Minutos se passam até que, por fim, consegue
instalar a cafeteira. No mesmo instante, Emil prepara duas xícaras da bebida
para nós, estreando a máquina.
Fecho os olhos enquanto degusto dessa bebida divina. Ouço uma
risada engasgada; ao erguer as pálpebras de novo, Emilien está vermelho de
rir. Não entendo a graça e indago:
— O que é tão engraçado?
Ele cai na gargalhada ainda mais, levando-me a rir junto dele sem
nem saber o motivo. Dificilmente presenciei sorrisos dele assim. Emil sempre
foi bastante fechado e sério. Ao se recuperar da sua crise de risos, me
responde:
— A cara e os sons que você faz pra tomar o café que fiz… Parece
que está tendo um orgasmo. É adorável.
Coro sem nem perceber. Só ele mesmo para pensar em orgasmo
enquanto tomo uma xícara estupidamente maravilhosa de cafeína. Dou um
tapa na sua mão sobre a mesa.
— Não tenho culpa se você é bom em dar orgasmos até mesmo com
cafés! — rebato, arregalando os olhos um segundo depois ao me dar conta do
que saiu dos meus lábios.
O sorriso em Emilien some na mesma hora. Ele engole em seco e olha
para baixo. O clima fica estranho de repente. Nessas semanas todas em que
estamos tentando ser só amigos, não fizemos nenhuma piada com conotação
sexual ou qualquer coisa do tipo… Já no intuito de evitar sermos tentados a
ultrapassar a linha da amizade.
Também não consigo dizer nada. Tomo mais do meu café para ajudar
a descer o nó em minha garganta.
— Preciso ir — anuncia segundos mais tarde, terminando a sua dose.
— Vou deixar você descansar. — Levantando-se da mesa, vem em minha
direção e deixa um beijo casto na minha testa. — Au revoir.
Sorrio e o acompanho até a porta.
— Vou pensar em algo para recompensar o seu presente, chéri —
digo-lhe enquanto ele caminha até o elevador. Emilien se vira em minha
direção e sorri minimamente, quase de forma triste.
— Não se preocupe com isso, ma belle.
Tiro uns dias fora da redação para escrever minha matéria da edição
especial. Conversando com Héron, peguei dois dias — quinta e sexta-feira —
para emendar com o final de semana e ficar em um local tranquilo para
trabalhar no meu arquivo. A viagem para Loches, uma comuna a três horas
de Paris, foi feita na quarta-feira logo após o expediente. No porta-malas
coloquei roupas e pertences, livros para eventuais pesquisas e entretenimento,
meu notebook, bloco de anotações, meu cronograma, duas garrafas de vinho
e café.
Minha mãe foi criada na comuna até os dezoito anos. Após a morte
dos pais, herdou a pequena propriedade da família Fournier, que, anos mais
tarde, usava para passar pelo menos uma semana de cada mês para escrever
seus romances. Conversando com ela, consegui permissão de me hospedar na
casa para realizar meu trabalho.
Como na quinta-feira pretendo me concentrar o dia todo em estudo e
escrita, ajeito o local logo quando chego. Preparo uma taça de vinho e deixo
o queijo, que comprei durante a viagem, de forma acessível enquanto tiro o
pó e troco as roupas de cama. Beiram onze da noite quando tudo está
organizado para minha estadia. Faço uma sopa rápida para forrar o estômago
antes de dormir.
No dia seguinte, preparo uma garrafa de café generosa, acomodo-me
na sala e começo a trabalhar. Paro eventualmente para comer, beber água e
tirar pequenos descansos de dez ou quinze minutos. Trabalho quase
exaustivamente até por volta de seis da tarde, tendo começado pouco antes
das oito. Finalizado o dia, preciso de um bom jantar e uma boa taça de vinho
em frente à televisão. Tomo um banho rápido, coloco um vestido de mangas
compridas, meia-calça e casaco grosso, pois as temperaturas estão baixas.
A viagem até o supermercado E. Leclerc Loches, na Avenue La
Coutiere, é rápida, não mais que dez minutos. A rede de hipermercados,
mesmo em uma comuna pequena como aqui, é bem grande e traz variedades.
Caminho pelos corredores, escolhendo frutas, queijos, congelados e
chocolates. Lembro-me de que preciso de um vinho para harmonizar com o
queijo e empurro meu carrinho até a sessão específica. Estou analisando um
dos rótulos quando uma mão pousa sobre meu ombro, assustando-me
levemente.
Quando olho para os lados, deparo-me com seus olhos azuis de
felicidade e surpresa e um dos sorrisos mais estúpidos e lindos de toda
França. Não é possível. Mas nem aqui esse ser humano vai me dar sossego?
— Emilien?
Ele se aproxima de mim e me dá dois beijos no rosto, um de cada
lado.
— Salut, chérie. O que está fazendo aqui?
— Eu quem te pergunto isso — rebato, pondo a mão na cintura.
— Tirei o final de semana de folga — explica, analisando a prateleira
à nossa frente. Depois, seus olhos se desviam para minhas mãos segurando a
garrafa de vinho e por fim para no meu carrinho de compras. — Não acho
que será uma boa combinação — opina. Com o indicador, ele escolhe uma
garrafa e retira da prateleira: — A harmonização ficará melhor com um
Cabernet Sauvignon.
Meio irritada, pego a garrafa da mão dele.
— Eu sei fazer uma harmonização de vinho e queijo, Emilien.
— Certo, pardon . Mas ainda não me disse o que está fazendo aqui.
Devolvendo o Cabernet para seu lugar e optando por um Barolo,
respondo:
— Vim para ter sossego e escrever a minha matéria da edição
especial da Intéressant. É muita coincidência nos encontrarmos justamente
aqui em Loches, não acha? — pergunto, meio desconfiada e acusadora.
Baile de máscaras, Dames Parisiennes, ele ser dono do grupo
editorial onde trabalho… agora Loches. São muitos encontros “por acaso”
que têm levantado minhas suspeitas.
— Será isso um sinal do Universo? — responde, erguendo as
sobrancelhas sugestivamente. Reviro os olhos e não seguro uma risadinha.
— O que vai fazer amanhã à noite? — pergunta, atentando-se aos diversos
rótulos de vinhos. Penso em responder quando ele emenda: — Poderia vir
jantar em casa. Minha família tem uma propriedade na saída da cidade.
Engulo em seco, sentindo o suor começar a se formar na minha
espinha. Emilien sabe que não é bom ficarmos sozinhos. Somos apenas
amigos e quero continuar assim.
— Não sei, Emilien — suspiro, mordendo o lábio inferior. — Não
acho uma boa ideia eu e você sozinhos, em um jantar, na sua casa.
Ele finalmente me olha, observando-me de um jeito meio
entristecido. É claro que minha recusa o atormenta. Esse homem segue
tentando encontrar maneiras de me reconquistar.
— Não estaremos sozinhos — informa, pegando-me meio de
surpresa.
Estou para perguntar quem mais estará conosco quando uma moça
surge no corredor, chamando-o. É alta, muito bonita. Corpo avantajado,
cabelos negros como a noite. Ele se vira em direção à mulher e sorri. Uma
bolota de ciúme se forma na minha garganta. O que esse safado está
tentando aqui, afinal? Convidar-me para ir à sua casa jantar junto com ele e
com seu novo caso parece-me uma maneira de tentar me causar ciúmes.
Admito, está funcionando, mesmo que não devesse.
— Você acha que Nicole vai gostar se fizermos um cassoulet ?
Quero que amanhã à noite seja tudo perfeito e agrade sua irmã.
Tenho vontade de vomitar. Já entendi o que está acontecendo. Ele
vai apresentar a namoradinha para a irmã, e ela está ansiosa, pensando em
agradar e ser aceita. Quero muito mentir dizendo que não me sinto
incomodada. Emilien jamais me falou de sua família, quanto mais me
apresentar a eles.
— Oui. Nicole vai adorar. Se fizermos petit gâteu de sobremesa,
ficará perfeito.
— Maravilha! Vou buscar o sorvete de creme.
— Espere. — Dupont a segura pelo punho. — Quero te apresentar a
uma pessoa.
Forço um sorriso para a moça, odiando o momento.
— Lorraine, essa é Marie Julien… Uma amiga. Marie, essa é
Lorraine Meyer, noiva de Nicole.
Arregalo os olhos um segundo depois, pega de surpresa pela
informação. Sinto-me uma estúpida por sempre julgá-lo de forma errada.
Eu já deveria saber que Emilien é discreto demais para se deixar ser visto
com um casinho qualquer.
Com um alívio estranhamente delicioso percorrendo meu corpo,
troco cumprimentos com Lorraine. A moça diz que foi um prazer me
conhecer e se retira em seguida para buscar o sorvete de creme.
— Amanhã é aniversário de Nicole. Por isso tirei o final de semana
de folga. Há anos não passo um aniversário com ela e estou tentando
recuperar o tempo perdido — diz, o olhar triste e perdido por cima dos
meus ombros. Ele sorri um instante depois, de forma meio fúnebre, e então
me fita, completando: — Faremos um jantar especial. Por isso… seria
importante se você pudesse vir. Seremos só nós três… quatro, se você vier.
Nicole tem a noiva, mas eu… estou sozinho. Queria que estivesse lá, ao
menos como minha amiga. Já que está na cidade…
Deveria existir o manual “Como recusar um pedido de Emilien
Dupont quando ele faz uma carinha de cachorro abandonado”. Não consigo
dizer não para este homem. Não quando me pede assim.
— Me passe seu endereço.

A noite em Loches está fria. Por esse motivo, Emilien me recebe,


além do seu terno habitual que o deixa irresistivelmente gostoso, vestido
com um casaco pesado. Seus olhos passeiam pelo meu corpo, acompanhado
de um sorriso inocente, enquanto estou do lado de fora da propriedade da
sua família. Optei por uma combinação monocromática de preto. Um
vestido de veludo que comprei mais cedo, echarpe, meia-calça e pea coat .
Ainda estou admirando sua beleza monumental quando se aproxima
de mim, apoia a mão sobre a base da minha coluna e me cumprimenta com
um beijo quente no meu rosto.
— Entre — sussurra ao pé do meu ouvido.
O interior da sua casa é aconchegante e está aquecida por uma
lareira na sala principal. A construção é de pedra, imitando os diversos
castelos na comuna, com uma decoração digna da realeza. Ele me acomoda
no sofá frente ao fogo crepitando e pergunta se quero alguma coisa para
beber. Aceito uma taça de vinho ao mesmo tempo em que ouço risadas
femininas vindas do que suponho ser a cozinha. Emilien prepara minha
bebida no pequeno bar no ambiente e se senta ao meu lado, ele próprio em
posse de uma dose de Cabernet.
— Obrigado por ter vindo — agradece, cruzando as pernas. Às
vezes fico impressionada de como ele é elegante. Sorrio e tomo uma
pequena dose do meu vinho rosé , que ele sabe ser meu favorito.
— Obrigada por ter me convidado — devolvo.
Neste instante, a morena de cabelos pretos e corpo avantajado entra
na sala, acompanhada de uma segunda mulher que é seu completo oposto:
loira, olhos verdes, ligeiramente mais baixa, corpo enxugado. Reconheço
Nicole no mesmo instante e, quando seus olhos batem em mim, ela parece
fazer o mesmo, sorrindo alegremente enquanto vem em minha direção.
Emilien se levanta primeiro e me puxa pelo punho no exato momento que
estava pensando em recebê-la.
— Então é você a garota que Emilien tem comentado comigo? —
indaga, acolhendo-me em um abraço caloroso e forte. Pisco por várias
vezes, sem saber como agir. Emil andou falando de mim para a irmã? — Vi
você no coquetel da revista — informa, afastando-me em seguida. Só
consigo sorrir diante sua simpatia. Nicole dá uma olhadinha para o irmão
mais velho e depois se volta para mim. — Que bom que está aqui. Fico
muito feliz em conhecer a mulher que finalmente conseguiu roubar o
coração dele.
Emilien pigarreia e lança um olhar de advertência para Nicole, que
dá de ombros e continua esperando uma resposta minha. Ela sabe que o
canalha me magoou mais que qualquer outro homem?
— Hum… obrigada pelo convite. E feliz aniversário — falo, meio
desajeitada. — Te trouxe um presente singelo, porque não sabia o que te
comprar. — Reviro minha bolsa a tiracolo e retiro uma caixinha de veludo.
A moça abre um enorme sorriso ao se deparar com um colar banhado à
prata.
Novamente ela me abraça, o que me pega de surpresa, porque não
estou acostumada com tanta troca de afeto dessa maneira com pessoas
desconhecidas ou com quem não mantenho intimidade. A moça parece não
se importar muito.
— Merci beaucoup! É lindo. Vou usar ainda hoje. — Virando-se
para noiva, pega-a pela mão e a traz mais para frente. — Suponho que já
conheça minha futura esposa, Lorraine Meyer.
— Sim, nos conhecemos ontem, quando encontrei seu irmão por
acaso no supermercado. É um prazer rever você, madeimoselle Meyer.
— Sem formalidades — ela dispensa. — Estamos em família, pode
me chamar de Lorraine.
Lorraine ajuda Nicole a vestir o colar que lhe dei, enquanto Emilien
se põe ao meu lado e abraça minha cintura. Olho-o, assustada com sua
aproximação. Ele nada diz, apenas me observa por longos segundos com
um sorriso singelo e depois se volta para a irmã, que agora está beijando
amorosamente a noiva.
— Vou servir o jantar — Nicole anuncia.

Nicole Dupont é uma pessoa maravilhosa. Comprovo isto durante a


hora em que ficamos em torno da mesa. Descobri que ela e a noiva são
nutricionistas e trabalham juntas em Paris. Sua conversa é sempre muito
agradável e alegre, o que contrasta com o jeito enigmático e recolhido do
irmão mais velho. Falamos de tudo pouco, mas não entramos no âmbito que
eu mais queria: família. Embora a curiosidade estivesse me corroendo por
dentro, não fui indelicada em perguntar onde estaria a mãe deles, afinal é seu
aniversário, e por que os dois se distanciaram por alguns anos.
A moça me fez contar de como conheci Emilien e se mostrou bastante
favorável a termos algum tipo de relação. O que já era de se esperar, quando
cheguei na parte em que ele me magoou — sem entrar em detalhes —, Emil
ficou mais recluso do que o normal. Depois de me ouvir, a irmã deu um
murro no braço dele e o mandou arrumar as coisas comigo. Não consegui
segurar uma risada com isso.
Eu deveria ter ido embora logo após o jantar e algumas horas de
conversa jogada fora. Mas entardeceu além do que pude notar e Nicole não
me deixou voltar para casa dirigindo tão tarde da noite. Não sei se foi
deliberado ou se sua sugestão de pernoitar em um dos quartos de hóspedes da
imensa propriedade foi inocente, mas, de qualquer maneira, aceitei. Ela me
arrumou uma roupa de dormir e escova de dentes nova.
São duas da manhã e ainda não consegui pregar os olhos, não sei por
quê. Virando-me de um lado a outro na cama, decido me levantar, me enrolar
em um robe e descer até a cozinha beber um copo d’água. Encontro uma
garrafa em temperatura ambiente sobre o balcão e disponho uma dose
generosa no copo. Estou voltando para meu quarto quando noto uma luz
acesa do outro lado da sala de estar, onde tem uma porta-balcão que dá para
uma varanda na lateral da casa. A passos pequenos, aproximo-me e deslizo a
porta, encontrando um Emilien sentado no banco da sacada, de pijama e
enrolado em uma coberta que parece quentinha. Encosto as folhas duplas e
sento-me ao seu lado.
— O que está fazendo aqui? — pergunto, com um sussurro.
Ele se vira para mim e me dá um sorrisinho triste.
— Estou sem sono.
— Não está com frio?
Como resposta, ele abre a coberta em seu corpo e joga sobre meus
ombros, puxando-me para o calor da sua pele.
— Agora não mais — responde, meio brincalhão.
Não reluto em me aconchegar em seu calor. Em silêncio, observo a
paisagem noturna junto com ele, vendo as estrelas no céu cintilarem e
ouvindo o cantar dos grilos. Em um gesto mecânico, apoio a cabeça em seu
ombro.
Longos segundos de silêncio pairam sobre nós até que decido abordá-
lo:
— Por que não me conta o que aconteceu para ter se afastado da sua
irmã?
— Foi preciso. — Essa resposta de novo.
Suspiro.
— Estou cansada de você nunca se abrir comigo — revelo, quase de
forma inaudível. — Sempre fui sua amiga, Emilien, mas você nunca confiou
em mim o bastante para me contar sobre sua família e seu passado.
— Não se trata de confiança — fala, franzindo as sobrancelhas.
— Então por que não me conta? — murmuro.
— Porque me machuca — responde.
Sua resposta me atinge quase com o mesmo efeito de uma bala no
meio do peito. Ele evita o assunto não porque é evasivo. Ele evita o assunto
porque o machuca. Mon Dieu, por que nunca considerei isso? Meus olhos se
enchem de lágrimas sem que eu perceba. De algum modo, sei que Emilien é
um homem quebrado. Tem algo no seu passado que o transformou nessa
figura misteriosa e sombria, que pouco sorri e odeia compartilhar sua vida
particular.
As gotas deslizam pelo meu rosto e demoro a notar que choro
timidamente por conta dele. Com uma expressão dolorosa, ele vem até mim e
limpa minhas lágrimas.
— Minha mãe… — começa, afagando minha bochecha. — Ela tem
um transtorno narcisista que sempre a fez ser tóxica comigo. Desde que me
conheço por gente. Isso prejudicou muito o meu desenvolvimento, minha
autoestima, porque eu nunca… recebi direito o amor dela, entende? — Estou
presa a suas palavras, atenta a cada sílaba dele. Emilien resolveu se abrir. Por
algum motivo, decidiu me contar mais sobre uma parte da sua vida. —
Quando Nicole nasceu, ela usou minha irmã para me atingir ainda mais.
— Por quê? — Quero saber. Não consigo conceber como uma mãe
pode querer machucar o próprio filho.
Emilien fica cabisbaixo de repente. Sinto um leve tremor em seu
corpo, como se o assunto o deixasse vulnerável e fraco. Temo que seja
realmente isso.
— Minha mãe sempre me manipulou, Marie. Ela adora me punir
quando as coisas não saem do jeito dela. É o transtorno, entende? Eu era uma
criança quando… — Faz uma pausa bastante longa. Seus olhos saem de mim
para fitar o horizonte negro. — Não importa — murmura, balançando a
cabeça. Ele não vai me contar essa parte. — Aconteceu algo e ela sempre pôs
a culpa em mim. Por conta disso, Elizabeth, ou o distúrbio narcisista dela,
acredita que mereço ser punido… Por isso, a vida toda minha mãe sempre fez
de tudo para me castigar.
Seguro sua mão nesse instante, tocada por essa parte da história de
sua vida que não conhecia. Ele olha para nossas mãos juntas e sorri um
pouquinho.
— Saí de casa por um tempo — continua, ainda cabisbaixo — quando
me dei conta de que, se quisesse manter minha mente saudável, precisava
fazer isso. Essa decisão me obrigou a me afastar da minha irmã e do meu pai.
Um tempo depois, Elizabeth conseguiu me fazer voltar. A situação não
melhorou, mas meu acompanhamento com o psicólogo me ajudava a suportar
a convivência. Depois da morte do meu pai, minha mãe piorou
consideravelmente. Se já era insuportável conviver com ela antes da partida
de Thierry, imagine depois? Não aguentei três meses e fui embora de novo.
Outra vez, me distanciar da minha mãe significava me distanciar da minha
irmã. Me afastei de vez para poder protegê-la, porque maman ia puni-la
assim como me punia, e a última coisa que desejava à minha petite soeur era
ter o psicológico abalado. Eu a via muito pouco, a maioria das vezes na
ocasião de seu aniversário. Ela não entendia por que eu tinha ido embora, e
preferi deixar que nossa mãe desse sua versão: a de que eu era um ingrato e
vivia dando desgosto. Apenas anos mais tarde, quando Nicole tinha uns
dezoito anos, que ela soube do verdadeiro motivo por eu ser tão afastado.
Meses atrás, Nic me procurou e contou que também se distanciou da mamãe,
que começou a ser tóxica depois que ela se assumiu. Decidimos então
recuperar os anos perdidos. Marie…eu amo demais aquela garota. Apesar de
ter sido sempre a preferida e recebido da minha mãe tudo que não tive. É
minha irmã. Meu sangue. Mataria e morreria por Nicole. Nunca mais quero
ter de me afastar dela.
Seu relato me emociona em um nível incapaz de ser medido. Nem
consigo imaginar como é crescer com uma mãe narcisista, sem amor, afeto,
carinho. Acho que Emil só não é mais quebrado por causa do amor do pai e
da irmã.
Em um ato impensado, movida pelas minhas emoções à flor da pele,
me jogo em seus braços e o aperto forte contra meu peito, como se pudesse
aliviar todas as suas dores. Ficamos assim um com o outro por segundos
inteiros. Ao me afastar, ele está com os olhos vermelhos e marejados. Miro
sua boca levemente entreaberta e quase salivo de vontade de beijá-lo. Por
mais que odeie este fato, Emilien tem uma influência absurda sobre meu
corpo e meus desejos.
Sem poder mais resistir à minha paixão aflorada por este homem,
recaio sobre seus lábios em um beijo rude e profundo, puxando-o pela nuca.
Emilien me abraça mais pela cintura e, com um impulso, me põe em seu colo,
a coberta caindo no chão. Abraço-o pelo pescoço e exijo mais da sua boca.
Dois segundos mais tarde, sinto uma pontada contra meu sexo. Sorrio e
mordo-o no lábio inferior, sentindo sua ereção. Beijo seu rosto, passando a
língua no lóbulo da orelha e deslizando até o queixo barbado.
— Marie… — murmura, estrangulado.
— Quero você… — respondo, abrindo os botões da sua camisa do
pijama. O peitoral dele abrilhanta meus olhos. Resvalo o indicador em sua
pele, numa marca discreta e quase imperceptível que ele tem no peito, na
vertical. Parece uma cicatriz, ou uma mancha, não tenho muita certeza.
Inclino-me e beijo sua mama esquerda.
Emilien me agarra com firmeza pelos cabelos, fazendo-me soltar um
gemido estrangulado.
— Diga… De forma sincera — pede, engolindo em seco.
— Je te pardonne — falo, sinceramente. — Eu te perdoo, Emilien.
De verdade.
Um segundo depois ele está beijando-me de forma sôfrega, quase
como se sua vida dependesse disso. Sua língua desce até meu colo e
abocanha um dos meus seios que salta para fora da camisola. Gemo e mordo
o lábio inferior, movendo os quadris sobre sua ereção.
— Você tem camisinha? — pergunto, olhos fechados.
— Não. Não vim esperando transar, chérie.
Oh, droga!
Solto um suspiro frustrado, mas não deixo de provocá-lo.
— Confio em você — ele diz, puxando o outro seio para fora.
Enquanto dá atenção devida para esta parte do meu corpo, sua mão direita
desce até meu clitóris e o aperta na medida certa.
— Sem camisinha, então? — questiono, gemendo em seguida com a
combinação da pressão em meu clitóris e da mordida em meu mamilo
direito.
— Confio em você — reafirma.
Sem perder mais tempo, trago seu pau duro e majestoso para fora,
afasto minha calcinha para o lado e o ponho dentro de mim.
No instante em que Emilien me penetra, eu me dou conta de que
ultrapassamos a linha da amizade e de que tomei um caminho sem volta.
MARIE
— Ah, porra! Que saudade senti da sua boceta, Marie… — Emilien
murmura, agarrando forte minha bunda e abrindo-a para meter cada vez mais
fundo em mim.
Meu corpo queima em contraste com a brisa fria que atinge a varanda,
mas não me incomoda o suficiente para parar. Apoio as mãos em seus
ombros e faço menção de cavalgar com força, mas ele me impede, segurando
minha cintura e determinando seu próprio padrão de estocadas intensas que
me atingem com uma pontada prazerosa. Arqueio as costas para trás,
recebendo com felicidade o que ele me dá.
Emil me envolve pelo pescoço com uma de suas mãos macias e
calorosas e me puxa de volta aos seus lábios, de onde eu não deveria ter
saído, afinal. Suspiro em sua boca enquanto ele ainda me come com todo
vigor, socando tão fundo e atingindo um ponto que nem mesmo ele tinha
chegado antes.
Seu nome deixa meus lábios em forma de múrmuros incontroláveis,
bem rentes à sua boca inchada. O desejo percorre meu corpo, começando a se
concentrar no meu nervo sensível. Em tão pouco tempo, já estou prestes a
gozar, porque é esse o controle deste homem sobre mim.
— Estou quase — anuncio, fincando minhas unhas vermelhas em
seus ombros. Fecho os olhos e os aperto, concentrando-me para me libertar.
Emilien se levanta de repente, segurando-me com a facilidade que
seus braços potentes permitem. Sem sair de dentro de mim, ele sobe as
escadas em direção aos quartos e me deita em sua cama, separando minhas
pernas o máximo que consegue. Ajoelhado no colchão, ainda conectados, ele
volta a se arremeter vigorosa e alucinadamente. A cama balança e faz ruídos,
que ele parece não o preocupar se estão ou não atravessando as paredes da
casa e acordando a irmã e a noiva.
— Emil… — gemo pela milésima vez, o orgasmo de novo dando
indícios de explodir. O homem recai sobre meu corpo, tomando meus seios, e
em seguida meus lábios, em um beijo tresloucado e cheio de luxúria. Abraço
sua cintura com as pernas e inclino meu quadril em um ângulo ligeiramente
para cima, dando-lhe acesso mais fundo em mim, apertando meu sexo contra
o seu.
— Porra! — ele exclama, pescando minha mão e fechando-a forte
contra a sua.
O prazer está atingindo-me quando ele sai de dentro de mim e coloca
a cabeça entre minhas coxas, fazendo-me gozar na sua língua suculenta que
se movimenta para cima, para baixo e circularmente no meu ponto inchado e
encharcado. Agarro seus cabelos e o pressiono mais em mim, ainda
explodindo com o orgasmo que me propicia.
Meu corpo quase desfalece um instante depois, meu coração
acelerado, minha vista turva, todo meu organismo subitamente em um estado
de euforia, felicidade e relaxamento. Mon Dieu, como esse homem é
maravilhoso. Ele fica ali mais algum tempo enquanto recupero o fôlego,
agora mais brando e brincando com línguas e dedos.
Emilien se deita na cama e me puxa para me sentar sobre seu pênis
majestosamente duro, aperta minha cintura e me faz cavalgar da maneira que
quis desde o primeiro momento que me sentei nele, na varanda. Desta vez,
deixa-me comandar o sexo, o que faço com bastante satisfação. De olhos
fechados e com a cabeça para trás, ele geme despudoradamente, marcando
minha pele à medida que subo e desço tão forte que o som do atrito de nossas
peles preenche o cômodo.
— Me deixa gozar dentro de você — pede. Suas pupilas e narinas
estão dilatadas, suas íris azuis tomando uma tonalidade mais forte que o
normal. — Você toma algum contraceptivo? Porra…! Preciso muito gozar na
sua boceta, ma belle…
Como resposta, apenas abano em positivo. Um segundo mais tarde,
Emilien trava meus movimentos, agarra-me pelos quadris com mais força e
se arremete contra mim até me fazer gozar pela segunda vez enquanto ele
próprio encontra seu ápice.
Ofegante e cansada, deito-me sobre seu peito e escondo meu rosto na
curva do seu pescoço, inalando seu cheiro almiscarado. Ele acaricia minhas
costas amavelmente, movimentando suas mãos quentes para cima e para
baixo.
— Me dê quinze minutos — diz, deixando-me confusa. Sem
desgrudar do calor do seu abraço, peço para explicar. — Para recuperar o
fôlego e te comer de novo — responde, beijando minha bochecha.
Dou uma risadinha contra sua pele e não contesto. Afinal, estou
mesmo disposta a uma segunda rodada.

Levanto-me com cuidado e me enrolo no robe. Emilien, nu e


esparramado na cama, está em sono profundo. Observo-o por um segundo
inteiro — do rosto barbado ao sexo com uma ereção matinal — antes de
pegar papel e caneta e escrever um bilhete rápido que deixo no criado-mudo
perto da cabeceira.
São sete da manhã quando, pé por pé, volto ao quarto de hóspedes,
tomo um banho quente e visto minhas roupas do dia anterior, exceto pela
calcinha; opto por uma cueca emprestada dele que peguei em seu quarto antes
de vir para cá. Tentando não fazer muito barulho — com isto quero dizer que
meus saltos estão entre meus dedos, e não nos pés — desço as escadas da
mansão que já recebe os primeiros raios do sol.
— Você deve ser a garota com quem Emilien está dormindo — uma
voz ecoa pelo ambiente. Andando cabisbaixa, prestando atenção nos meus
pés para não pisar em nada e fazer barulho para casa toda, não me dou conta
de uma figura imponente sentada no sofá da sala de estar.
É uma mulher de idade avançada, talvez uns sessenta e três anos no
máximo. Cabelos loiros-escuro presos em um coque severo e perfeito, sem
um fio fora do lugar. Pernas cruzadas elegantemente, olhar ferino e
intimidador enquanto segura um copo de uísque (sim, às sete da manhã) nos
dedos finos e envelhecidos.
Não sei que reação ter, então apenas solto múrmuros ininteligíveis e
penso em algo a dizer para me tirar dessa situação constrangedora. Nesse
interim, a “invasora” se levanta do seu lugar e vem em minha direção a
passos decididos e quase realengos.
— Uma moça bonita, mas acho inaceitável trepar a noite toda com
meu filho e ir embora pela manhã. Acaso é algum tipo de prostituta?
Meu rosto queima, não sei se de vergonha pelo flagra ou de raiva pelo
modo como erroneamente me classifica. Estou para abrir a boca e respondê-la
quando uma segunda figura surge no ambiente, carregando uma xícara de
café — sei por conta do cheiro inconfundível — exclamando alguma coisa,
mas para abruptamente ao me ver nos lances da escada. Meus olhos
arregalam ao reconhecê-la. É a mulher do baile de máscaras, das fotos com
Emilien, do restaurante, a que entregou uma pasta de documentos a ele
semanas atrás.
— Não sabia que Emil havia trazido companhia — ela diz, abrindo
um sorriso e parando ao pé da escada, tendo de erguer o olhar ligeiramente
para poder me encarar. — Tenho a leve impressão de que já te conheço.
Molho o lábio inferior e fujo de seu olhar por um segundo.
— A moça está saindo na surdina. — A mais velha, a que agora sei
que se trata da matriarca Dupont, se intromete, a voz soando rígida e
desdenhosa. — Como uma prostituta. — Usa novamente esta palavra. —
Duvido que a conheça, ma chérie. Ela não me parece do tipo que frequenta os
mesmos ambientes sociais que você.
— Eu não sou uma prostituta! — exclamo, irritada, ao mesmo tempo
que a mais nova também diz:
— Ela não é uma prostituta, Elizabeth. Já a vi em outras ocasiões com
Emil. — A estas palavras, a mãe dele faz uma carranca e um movimento de
descaso com as mãos, retornado ao seu sofá e sentando-se como se fosse a
Rainha da Inglaterra. E eu odeio monarquistas!
Termino de descer as escadas, decidida a pegar meu carro e ir embora,
mas a mulher de cabelos castanhos para bem à minha frente, dando-me um
sorriso simpático e caloroso, esticando a mão em minha direção:
— Ainda não fomos apresentadas.
Inspiro profundamente e, apenas por educação, aperto a mão dela,
respondendo:
— Marie Julien. Sou uma amiga do Emil.
Elizabeth pigarreia e dá uma risada sarcástica. Lanço um olhar duro a
ela, que continua indiferente a mim.
— Muito prazer. Sou Marjorie Chevalier. Ex-noiva do Emilien.
A informação me pega de surpresa.

Ex-noiva. A palavra roda em minha mente por segundos inteiros,


como se meu cérebro fosse um computador velho processando um programa
moderno. Ex-noiva! Acho que minha pele fica pálida, porque Marjorie me
pergunta se me sinto bem. Antes que eu possa responder, Elizabeth se
intromete mais uma vez:
— Ela está surpresa com a informação, chérie. Conhece meu filho.
Ele nunca fala sobre o relacionamento de vocês. Para ninguém. E essa moça
visivelmente está apaixonada pelo Emilien, o que é uma pena. Nós duas
sabemos o que acontece com as moças que se apaixonam por ele.
Um medo estranho toma conta do meu corpo. O que essa megera quis
dizer?
— Não ligue para isso — Chevalier murmura. — Elizabeth é um
pouco exagerada.
— Não estou apaixonada pelo Emilien — respondo com uma enorme
mentira. — É só sexo casual.
A mulher faz uma carranca ainda pior, pressionando os lábios em uma
linha fina e enrugada.
— O que é ainda pior para sua imagem, ma chère.
Estou abrindo a boca para dizer que não me importo com a imagem
que tem de mim quando uma voz masculina e rouca soa às minhas costas,
interrompendo minha ação:
— Marie, onde você…? — Viro-me em sua direção e dou de cara
com um Emilien apenas de boxer branca, com o roupão preto aberto, cabelos
bagunçados, rosto marcado de sono. O homem estaca no meio do caminho ao
notar a mãe e a ex-noiva em nossa presença. Imediatamente, ele fica ainda
mais pálido, como se tivesse visto um fantasma. — O que estão fazendo
aqui? — Sua voz sai áspera e dura.
Calmamente, Elizabeth se levanta do seu lugar, mantendo o ar de
superioridade que a faz parecer uma megera, e caminha até o filho, passando
por mim e ignorando-me por completo. Ela o abraça de forma desajeitada;
um abraço que Emil não retribui. Muito pelo contrário. Parece desconfortável
com tal aproximação, como se essa troca de afeto não fosse comum entre os
dois.
— Vim passar um final de semana com minha família. Principalmente
porque ontem foi aniversário de minha filha querida. Quis ter vindo antes,
mas não consegui. — Emilien a afasta, mantém o olhar para baixo e não diz
nada. — Infelizmente, flagrei uma cena desagradável da sua… — Direciona-
se para mim, a expressão em seu rosto ainda de desdém, como se eu fosse um
inseto asqueroso a perturbando. Abraço meu próprio corpo, incomodada e
diminuída pelo modo como me olha. — Amante — enfatiza — indo embora.
Emilien me olha no mesmo instante, tão rápido que tenho a impressão
de que sua cabeça vai desgrudar do pescoço. Seus olhos se transformam em
um misto de raiva, decepção, tristeza e desaprovação.
— Trouxe duas funcionárias comigo — a mãe dele prossegue — que
já estão preparando um café da manhã delicioso para nossa família. —
Olhando para mim, completa: — Espero que entenda que o momento é um
tanto quanto mais íntimo e familiar.
Cansada desse destrato, bufo e balanço a cabeça em positivo, já me
retirando:
— Não se preocupe. Compreendi que não sou bem-vinda.
Mal dou três passos quando Emilien me agarra pelo punho e me traz
para junto do seu corpo quente.
— Marie fica.
Elizabeth lança um olhar desafiador para o filho.
— Vai mesmo me contrariar, Emilien?
Ergo-me nas pontas dos pés e murmuro em seu ouvido:
— Está tudo bem. Não quero atrito entre vocês por minha causa e
nem ficar em um ambiente em que não sou bem-vinda.
Emil me aperta mais contra seu torso, prendendo-me e impedindo-me
de ir embora.
— Você é bem-vinda, sim — responde-me, embora os olhos
possessos estejam na mãe. — Ma mère terá de se acostumar com você na
família.
Tento não pensar em sua colocação, até porque estou entretida demais
no momento tenso na sala. Busco os olhos de Marjorie, que se manteve
calada e apenas observando o tempo todo, bebendo vagarosamente seu café.
— Apoio o Emil. Acho que Marie deve ficar — Chevalier por fim se
expressa, sorrindo para mim e para ele. Emilien fica neutro diante sua
resposta, sinto inclusive seu corpo retesado. Voltando-se para Elizabeth,
retoma: — Os dois são amigos, não vejo mal nenhum em ela ficar.
A mais velha mantém sua postura impassível, sustentando meu olhar
de uma forma bastante intimidadora. Sem nada dizer por alguns segundos,
mas entendendo de que não se oporá à minha presença, ela se retira em
seguida em direção à cozinha, enquanto exclama:
— O café será servido às oito horas. Vista-se, mon fils, e comunique
minha preferida. — “Minha preferida” se refere a Nicole. A expressão de
Emilien toma formas entristecidas e melancólicas, esmagando meu coração.
Elizabeth não se importa em deixar à vista que a caçula é sua predileta. Um
segundo depois, me recordo das palavras dele na noite passada, sobre como a
mãe gosta de puni-lo. Emilien acabou de contrariá-la. A mulher sabe como
afligir dor no filho e usa a filha mais nova como meio de atingi-lo.
Tomada por um sentimento extremo de empatia e compaixão, jogo-
me em seus braços e o aperto com toda minha força. Ele retribui e muito
sutilmente ouço um soluço escapar de sua garganta.

— Estava mesmo indo embora? — pergunta assim que entramos em


seu quarto. Olho ao redor com cuidado, notando o pequeno bilhete, que
deixei no criado-mudo, intocável.
Antes de respondê-lo, vejo-o abrir a primeira gaveta da cômoda de
madeira e retirar uma camiseta preta lisa e vesti-la.
— Não é como se eu estivesse indo para outro país por dois anos —
alfineto.
Emilien demonstra ter sido atingido pelas minhas palavras. Abrindo a
terceira gaveta, retira uma calça jeans, subindo-a pelas pernas em seguida.
— Achei que já tivéssemos superado isso — pontua, fechando o
botão da calça.
— Não superamos — afirmo.
— Je ne comprend pas… — “Não entendo…”, ele murmura. —
Ontem à noite, disse que me perdoava.
— E perdoei — ratifico. — Mas perdoar não significa esquecer,
Emilien.
Ele me olha por longos segundos, mordendo o lábio inferior e
balançando a cabeça em positivo quase imperceptivelmente.
— Não pode ficar jogando isso na minha cara por toda a vida — cicia,
mirando para baixo. Senta-se na cama e calça um par de tênis que pega perto
da cabeceira.
— Posso, sim — devolvo. Enquanto me sentir magoada com o fato de
ele ter deixado Paris, me abandonado na sua cama, posso, sim!
— Não se vamos tentar ser um casal.
Olho-o como se seu pênis tivesse saído do vão das suas pernas e ido
parar na testa.
— E quem disse que estamos tentando ser um casal? — questiono-o.
Emilien para de amarrar o tênis e levanta os olhos azuis para mim. O
maxilar fica apertado enquanto me analisa.
— Eu voltei para França por sua causa e não foi para continuar sendo
seu amigo colorido ou qualquer merda do gênero — diz, em um tom de raiva
controlada. Ele se levanta da cama e vem em minha direção, pegando meu
rosto com as duas mãos. — Marie, não percebe que eu realmente quero
tentar? Quero te assumir e te trazer para minha vida.
Não respondo nada por alguns segundos, minha mente rodando em
momentos atrás quando sua mãe disse “Nós duas sabemos o que acontece
com as moças que se apaixonam pelo meu filho.” Neste instante, um medo
irracional se instala no meu coração. O que Emilien fez com outras garotas?
Já provei um pouco de como ele é capaz de quebrar uma mulher sem esforço
algum. A sentença de Elizabeth me faz ponderar se ele tem mesmo históricos
de ser um babaca idiota ou se falou aquilo apenas para me atingir.
— Sua mãe me disse que não é bom se apaixonar por você —
confesso, desviando-me levemente do assunto.
Emilien suspira e se afasta, sentando-se na cama outra vez.
Encurvando-se para terminar de amarrar o tênis, responde:
— Minha mãe é uma narcisista, Marie. Ela sempre planejou que
Marjorie e eu nos casássemos e não aprova mais ninguém na minha vida. O
que ela te disse, foi apenas para te assustar e te afastar de mim.
— Por quê? Por que essa necessidade da sua mãe em controlar a sua
vida?
Ele dá de ombros e continua olhando para baixo, embora já tenha
terminado de amarrar o tênis.
— Elizabeth alega que sabe sempre o que é melhor para mim, que faz
isso pelo meu bem, minha felicidade, porque me ama. — Dizendo isto, dá
uma risada esganiçada. — Ela tem uma visão bem deturpada de “o melhor
para mim”. Meses atrás, quando disse que estava disposto a enfrentar tudo
para que ficássemos juntos, estava me referindo à minha mãe, porque ela vai
nos infernizar, Marie, disto pode ter certeza. Eu não pretendia que ela
soubesse da nossa relação tão cedo. Consegui esconder um namoro uma vez,
não ia ser difícil mantê-la afastada da minha vida de novo.
Sento-me ao seu lado e apoio a mão em sua coxa. Ele está tão
charmoso usando jeans e T-shirt.
— Por que você e Marjorie terminaram? — pergunto, mas se bem o
conheço, ele não irá responder ou dará uma resposta insatisfatória.
— Não importa. — Foi o que pensei. Ele se levanta e passa a mão
diversas vezes pela camisa preta, num ato de ansiedade e nervosismo. — Vou
avisar a Nicole da visita desagradável. Vejo você na mesa do café, às oito. —
Aproximando-se, deixa um beijo cândido no meu rosto.
Enquanto se afasta, penso em como esse homem tem mais segredos
do que imaginei.

Desço pontualmente às oito para o desjejum, meio ansiosa e tremendo


por dentro. Não era bem nessas circunstâncias que pretendia conhecer a mãe
de Emilien. Também não esperava que ela fosse uma pessoa difícil de lidar.
Muito menos que venerasse a ex-noiva do filho e tivesse feito questão de
trazê-la para um evento mais íntimo e familiar.
Em volta da mesa, Nicole está no primeiro lugar à esquerda da mãe,
ao lado da noiva, que ocupa a segunda cadeira na mesma direção. Ambas
parecem meio tensas, o que é compreensível. Pelo que entendi, Lorraine
também está conhecendo a sogra hoje. Emilien está no primeiro assento à
direita da matriarca, o segundo lugar ocupado por ninguém menos que
Marjorie. A moça está fazendo menção de se levantar e trocar de lugar
comigo — aparentemente para que eu fique ao lado de Emil —, mas
Elizabeth a interrompe ao mesmo tempo em que me instrui a sentar-me em
algum dos lugares vagos da mesa para umas quinze pessoas.
Olho atentamente para Emilien, que mal se mexe em seu assento.
Espero algum pronunciamento dele, mas não vem. Com uma pontada insólita
no meu coração, sento-me ao lado de Lorraine.
— Há bastante tempo que não reunimos nossa família para um
momento como esse — Elizabeth se pronuncia depois de o desjejum ser
servido. — Vínhamos com frequência para cá, principalmente nas festas de
final de ano. Se recorda, Emilien? — indaga, levando sua xícara de porcelana
chinesa aos lábios e olhando para o filho. — Você e Marjorie adoravam
brincar lá fora, com a neve. Depois que sua irmã nasceu e pegou uma certa
idade, parou de passar esses feriados conosco. Bom, o que se esperar de um
adolescente de quinze anos, não é?
Por longos segundos, Emilien não responde nada. Seus olhos estão
fixos no croissant à sua frente, intocado como o café preto. A postura dele de
repente é mais abatida e derrotada. Imagino que em sua mente não está vindo
nenhuma boa lembrança desse passado que Elizabeth faz questão de exaltar.
Será que os natais dele também foram terríveis?
Engulo com dificuldade um naco de baguete e bebo do meu café para
ajudar a descer.
— Teve uma vez que Emilien foi parar no hospital — Nicole quebra o
gelo, olhando da mãe para o irmão — porque o deixei trancado pelo lado de
fora da casa; eu tinha uns quatro anos, nevava e fazia muito frio. — Seus
olhos se voltam para mim. — Papa et maman tinham nos deixado com uma
babá e saído para um programa de casal. Emil teve hipotermia. — A menina
dá um sorrisinho envergonhado pela peraltice e busca pela reação do irmão.
— Você quase me matou daquela vez — ele por fim se pronuncia,
abrindo um leve sorriso. — Nunca passei tanto frio na minha vida.
A tensão vai se dissipando aos poucos, enquanto todos estão
engajados na conversa, relembrando momentos engraçados. Elizabeth passa a
maior parte do tempo calada, apenas observando a interação dos filhos;
Marjorie se junta à conversa, também relembrando a época de quando eram
crianças. Para meu alívio, nenhum dos dois toca sobre o passado que tiveram
juntos. Até mesmo Lorraine, que parecia mais reclusa e desconfortável,
participa do diálogo. Eu fico deslocada demais para pronunciar qualquer
palavra.
— Devíamos nos reunir mais vezes — a mãe deles profere, limpando
os lábios com um guardanapo de pano. — Nossa família anda tão distante. —
Virando-se para Nicole, toca-a nas mãos, em um gesto muito maternal e
amoroso, com um sorriso caloroso. — Sempre fomos tão amigas, ma fille. E
nos últimos anos nos distanciamos tanto. Muito por minha culpa, entendo.
Mas tente compreender sua mãe. Sempre sonhei com um bom homem para
você, um marido que…
— Mamãe, por favor — Nicole a interrompe, suspirando. — Já
falamos sobre isso. Não insista no assunto, principalmente na frente da minha
noiva. — Ela pega na mão de Lorraine e a aperta.
— Eu sei, ma chérie. E te peço desculpas. Hoje vejo que sua
felicidade é o que importa. Se a senhorita Meyer é quem te fará feliz, então
vocês têm minha benção.
No mesmo instante, Nicole dá um salto da cadeira e corre abraçar a
mãe. Procuro por Emilien, que acompanha a cena com a testa vincada em
uma expressão extremamente triste. Quando nota que estou observando-o, ele
baixa o olhar para seu croissant ainda pela metade.
— Tudo o que mais quero é ver meus filhos felizes — a matriarca
prossegue, segurando na mão da caçula, mas não segura a de Emil. Por fim,
olhando para ele, completa: — Você pode pensar que não, mas também me
importo com sua felicidade. Se fosse um bom filho, ouviria os conselhos da
sua mãe.
— Você não se importa comigo, ou me daria sua bênção
independente de quem eu escolher para passar minha vida. Mas as coisas
precisam ser do seu jeito, n’est ce pas, mère? — O tom dele é irritadiço.
— Pelo contrário — rebate a mãe. — É por me importar com você
que faço de tudo para que não tenha mais escolhas erradas, como no
passado.
— Não a chame de escolha errada. Meu único erro foi ter deixado
você saber que ela estava na minha vida! — Emilien ergue a voz.
A tensão novamente ronda a sala de jantar. Nicole encara a mãe e o
irmão, nitidamente perdida na conversa. Dessa forma, descubro que ela
também não sabe sobre uma parte do passado de Emil. Diferente de Marjorie,
que demonstra estar inteiramente por dentro do assunto.
— Do que vocês estão falando? — a caçula indaga.
Ignorando a filha, Elizabeth prossegue:
— Non, seu erro foi não ter me dado ouvidos! Você mais do que
ninguém sabe o mal que causou àquela menina. Sabe que errou, Emilien…
tanto é que não tem uma relação séria desde Dé…
— NÃO TOCA NO NOME DELA! — ele grita, fincando o garfo na
mesa com tanta força que os dentes do objeto entortam.
— Esqueci-me de que não posso macular o nome dela. Isso é função
sua, estou certa? — Há deboche e desprezo no tom de voz de Elizabeth.
Emilien enfia o rosto entre as mãos e desaba sobre a mesa. Marjorie
tenta acalmar a situação, enquanto Nicole continua perdida na conversa,
assim como a noiva. Eu nem sei qual deve ser a expressão em meu rosto.
Sinto-me uma intrusa. Não disse uma palavra desde que cheguei, estou
perdida sobre o assunto que mãe e filho abordaram e com medo do que ela
disse em relação a essa moça que Emil causou mal. Trata-se disso o seu
segredo? O que ele fez para ter causado este mal?
— Mãe… — É Nicole com a voz trêmula. — Por favor, deixe o Emil
em paz. Deixe que ele viva com quem bem entender e pare… de atormentá-lo
dessa maneira! Não percebe que ele não vai ser feliz enquanto insistir nessa
relação dele com a Marjorie?
— Nicole tem razão, Elizabeth. Eu já superei, segui em frente —
Chevalier diz. — Permita que Emilien também siga. Pelo que entendi aqui,
ele já encontrou alguém que possa fazê-lo feliz. — Seus olhos se voltam para
mim, amáveis, pegando-me de surpresa. O que ela está sugerindo? A atenção
de todos se volta em minha direção. Inclusive Emilien, com seus olhos
vermelhos e marejados.
— Está na cara que os dois estão apaixonados — Lorraine pronuncia
baixinho, como se fosse uma afronta que não deveria dizer, mas o faz em
consideração à mulher que ama. — Emilien roubou o coração de Marie. Está
evidente.
Penso em abrir a boca e dizer algo pela primeira vez, mas Elizabeth
toma a dianteira e desdenha:
— Emilien é especialista em roubar corações. Se Émilie estivesse
aqui poderia confirmar.
A tensão pairando no ar pode quase ser cortada com uma faca.
— Quem é Émilie? — Vejo-me perguntando.
— Ninguém — Emil responde, o corpo tão retesado que ele é capaz
de cair duro para trás.
Elizabeth se levanta da sua cadeira com brusquidão, arrastando-a pelo
piso de linóleo, encarando o filho com uma raiva visceral.
— Como “ninguém”? — brada, e é a primeira vez que a presencio
perder o controle. — Ela sacrificou a vida dela pela sua, maldito ingrato!
Num rompante, Emilien também se levanta, os olhos ainda mais
marejados e vermelhos:
— Para mim já deu. — Dizendo isto, deixa a mesa a passos rápidos.
Não penso duas vezes antes de segui-lo.
Esse café da manhã foi um desastre.
EMILIEN
Entro no quarto e espero a porta bater. Delicadamente, ela se fecha, o
que me surpreende, pois a empurrei com força. Com muita força. Um
segundo mais tarde, um toque brando se faz em meus ombros e no mesmo
instante sei quem é. É a pessoa que mais preciso nesse momento. Mal
termino de me virar em sua direção e sou recepcionado pelo seu abraço
quente e aconchegante. Como uma criança assustada, refugio-me nela,
enfiando meu rosto no seu pescoço e apertando-a contra meu peito.
— Quem é Émilie? — Marie pergunta em um sussurro contra o pé do
meu ouvido.
Exaspero pesadamente, tentando não falar do assunto. Quase sem
perceber, ela me pega pelo punho e me leva para a cama, sentando-me ao
lado. Então, repete seu questionamento.
— Não quero falar sobre isso, chérie — murmuro em resposta,
olhando para o piso.
Marie suspira e apoia sua mão em minha coxa, pedindo-me para olhá-
la, o que faço sem pestanejar.
— Se vamos tentar ser um casal, precisa se abrir mais comigo,
Emil… — fala baixinho, acariciando minha perna.
Meu coração erra uma batida, pego pela surpresa do seu
pronunciamento.
— Isso é o seu modo de aceitar meu pedido de namoro? — devolvo,
com a voz ainda mais baixa, contendo minha leve animação.
Ela ergue uma sobrancelha.
— Você não chegou a me pedir em namoro.
— Ficou subentendido — respondo, dando de ombros.
Com um dos sorrisos mais lindos que já vi na minha vida, Marie
segura minha mão, se aproxima da minha boca e me beija de forma serena e
lenta, abraçando minha nuca um segundo mais tarde.
— Oui. Eu aceito. Mas precisa se abrir comigo, mon chéri. Guardar
tantos sentimentos negativos aqui — fala, colocando a mão no meu peito —
não te fará bem aqui. — E toca minha testa.
Engulo em seco e desvio o olhar por um instante. A última coisa que
gostaria de fazer era trazê-la para esse drama familiar. Mas, no fundo, ela tem
toda razão. Casais confidenciam coisas um ao outro, são o bálsamo, o porto
seguro de que precisam em momentos de pura tempestade.
— Émilie… — empeço, tomando um pouco de ar para os pulmões e
tentando afastar a discussão com minha mãe minutos atrás — era minha
gêmea.
Os olhos dela se arregalam com a revelação. Sua surpresa é
compreensiva. Pouquíssimas pessoas sabem desse fato sobre a família
Dupont.
— O que aconteceu com ela? — pergunta, cuidadosamente, ainda
segurando minha mão e fazendo-me uma carícia branda, que me acalma e me
passa confiança.
— Morreu quando tínhamos pouco mais de um ano de idade —
informo, sem coragem de encontrar seus olhos.
— Por que sua mãe te culpa pela morte dela?
Inspiro fundo novamente e me ajeito na cama, ficando de frente para
ela. Minha namorada agora. Não evito um sorriso ao pensar na palavra.
Namorada. Sento-me em cima de uma das minhas pernas, pego-a pelas duas
mãos e continuo meu relato:
— Vamos começar desde o princípio. Elizabeth perdeu a mãe muito
cedo. Por conta disso, foi criada em uma família majoritariamente masculina,
com o pai, um tio e quatro irmãos. É natural que, depois de crescer em um
meio masculino e estruturalmente machista, quisesse muito ser mãe de
menina. Por toda a vida, isso foi o maior sonho dela. Logo depois de se casar
com Thierry, ela engravidou de uma. Emmanuelle. — Sorrio um pouco e
baixo o olhar por um breve momento. — Era a primeira filha, minha mãe não
tinha ninguém para ensiná-la. Ela e minha avó paterna não se davam, perdera
a mãe cedo demais e não havia qualquer outra figura feminina que a
ensinasse a maternidade. Minha mãe aprendeu na raça. Quando a primogênita
estava para completar dois anos, houve um acidente doméstico, um descuido
bobo da minha mãe, e Emmanuelle faleceu.
Marie pestaneja seguidas vezes, soltando suas mãos das minhas para
levá-las à boca entreaberta.
— Mon Dieu! Que terrível — murmura, abalada. Abano a cabeça em
positivo, tornando a pegar suas mãos.
— Isso mexeu muito com ela, quase a colocando numa depressão
profunda. Mas tempos depois, minha mãe engravidou novamente.
— De você e de sua irmã Émilie? — supõe.
— Oui. — Suspiro, molhando o lábio inferior. — Logo ao nascermos,
os médicos descobriram que nós dois tínhamos uma condição rara no coração
e precisávamos de um transplante.
Marie ofega profundamente, já entendendo onde a história vai acabar.
Calmamente, abro os botões da minha camisa e continuo o relato:
— Se dependesse da minha mãe, ela teria salvado a Émilie… E
Elizabeth ainda acredita em reencarnação. Para ela, o fato de ter engravidado
tão rapidamente de novo e de outra menina era sinal de que Emmanuelle
tinha reencarnado. — Engulo em seco, fazendo uma pausa efêmera e
terminando de abrir minha camisa, expondo a cicatriz quase imperceptível
que tenho no peito. — Mas as coisas não funcionam assim. Quando surgiu
um órgão compatível, e havendo apenas um para duas crianças, aquela que
estivesse precisando mais receberia.
— No caso, era você — diz, baixinho, apertando minha mão.
Faço um gesto afirmativo. Marie desliza delicadamente o indicador
pela linha do meu tórax, quase em transe.
— Meu estado era o mais crítico. Se eu não recebesse o transplante
naquela ocasião, ficaria cada vez mais fraco, tão fraco que, quando surgisse
outro coração, estaria debilitado demais e não resistiria à cirurgia. Isso se eu
não morresse antes. A equipe médica então me escolheu. Minha mãe manteve
as esperanças de que surgiria um segundo órgão para Émilie… Mas não
aconteceu. Ela não resistiu e faleceu com um ano e meio.
Deixo o silêncio pairando no ar por alguns instantes, para que Marie
assimile tudo o que acabei de dizer.
— A morte de duas filhas abalou o psicológico da minha mãe. Ela
não é uma megera porque quer. Anos depois, Elizabeth foi diagnosticada
como mãe narcisista, mas nunca aceitou o diagnóstico ou um tratamento
adequado com psicólogo.
— Isso explica o porquê de ela te culpar pela morte da sua gêmea —
Marie murmura, seus olhos ainda fixos no meu peito. — Mas você não teve
culpa nenhuma, Emilien. Nenhuma.
— Não. Mas na cabeça dela, eu tive. Isso provavelmente é um
mecanismo de defesa. Emmanuelle morreu por um descuido dela, bobo,
quase infantil. Émilie também faleceu e, para não tomar essa culpa para si e
sofrer ainda mais, maman preferiu colocar em mim. Por isso me tortura até
hoje, me pune e me manipula. Por um lado, é seu modo de me “proteger”.
Depois da morte de duas filhas, ela ficou metódica, meticulosa. Tudo precisa
ser do jeito dela, do modo perfeito, porque se não for assim, posso me
machucar. E se eu a contrario, me castiga, para me mostrar que ela é quem
tem razão e o jeito dela é o ideal para o meu bem. Você… entende a
complexidade da cabeça da minha mãe, chérie?
— Acho que posso ter uma ideia — admite. — Com Nicole,
Elizabeth também agia ou age dessa maneira? — pergunta, fechando
vagarosamente minha camisa.
— Oui, mas de maneira mais sutil. Nicole nunca reparou em como
mamãe a manipulava para atender aos desejos dela.
Dando-me outro sorriso cândido, Marie indaga:
— Como se sente ao desabafar com sua… — Pausa. Olhos nos olhos.
— Namorada? — frisa, molhando o lábio inferior.
— Um tanto melhor, devo admitir. Você estava certa sobre isso. Foi
bom desabafar com minha namorada — respondo, também realçando o
substantivo, ao passo que me aproximo dela e a tomo em um beijo suculento
e demorado.
Ela sorri na minha boca, afasta-me e murmura:
— E quando estará disposto a me contar sobre a garota a qual sua mãe
se referiu? — Meu rosto toma uma proporção sombria no mesmo instante.
Distancio-me mais de Marie, evitando seus olhos e seu toque. — Emilien? —
pressiona-me.
— Ainda não estou preparado para isso, ma belle. Nem sei se um dia
estarei. Por favor — suplico, ainda sem a audácia de olhá-la diretamente. —
Não queira desenterrar meu passado e meus segredos.
Sua mão branda toca meu queixo e sou levado a, por fim, encará-la.
— Tudo bem, chéri. — E sorri, docemente, tomando-me em outro
abraço apertado.
Retribuo ao gesto, fecho os olhos e tento aplacar os demônios do meu
passado sujo.

Quatorze anos antes

Entro no escritório do meu pai com minha consciência gritando de


que eu não deveria estar aqui. Pelo menos não hoje, a poucas horas do funeral
de Thierry. Mas desde sua revelação, dois dias atrás, preciso constatar por
mim mesmo.
Fecho a porta e, tomando alguma coragem, aproximo-me de sua
mesa, sentando-me na cadeira que ele ainda deveria estar ocupando, a de
presidente da Dupont Investimentos. Fico um longo instante nessa posição,
tentando segurar minhas lágrimas e não desabar. Depois deste meu momento,
levanto-me e caminho até o cofre logo atrás de um quadro renascentista na
parede à minha esquerda. Insiro a senha e retiro todo a documentação que
meu pai, antes de morrer, disse que eu encontraria. Volto à minha mesa. Abro
a pasta e avalio os documentos. Os investimentos errados, a queda nos lucros,
contratos rompidos, dívidas enormes… Caio na cadeira outra vez,
atemorizado por como a empresa da família está a um fiasco de falir
completamente. Só não o fez ainda, pelo que entendi, por conta de um
empréstimo — com juros abusivos — feito pelo monsieur Chevalier, meu
futuro sogro, ao meu pai.
Folheio a documentação até encontrar um contrato de
confidencialidade entre Thierry e Chevalier, firmado mais de doze meses
antes. Meu pai tinha dois anos para quitar o empréstimo ou as ações da
família seriam usadas como parte do pagamento. Confiro a data do acordo.
Vence em cinco meses. Em cinco meses, se esse empréstimo não for quitado,
minha família perde o poder e a influência que Thierry levou uma vida para
construir — e ainda continuaremos devendo. Não se trata apenas de dinheiro,
mas de tempo, de suor, de trabalho, de tudo que meu pai teve de abrir mão
para chegar aonde chegou. Por conta de alguns investimentos errados e
perdas exorbitantes, está perto de perder tudo; cada tijolo assentado com suor
e sacrifício.
Sua voz moribunda retorna à minha mente, suplicando-me para não o
decepcionar, para não deixar que percamos o trabalho de uma vida para os
Chevalier. Mas eu não sei! Não sei como, em cinco meses, posso pagar uma
dívida que ainda tem quarenta e sete por cento para ser quitada — com juros
e correções. Afago o queixo, tentando afastar o luto e focando no pedido de
papa. Mamãe não pode saber dessa falência iminente ou também terá um
ataque cardíaco. A última coisa de que preciso agora é ficar órfão — eu e
Nicole.
Por segundos, estudo alguma maneira de começar a livrar a empresa
da família dessa situação. Mas, porra! Por mais que papai tenha me ensinado
muito nos últimos anos, que eu tenha estudado o mercado e feito eu mesmo
minhas próprias aplicações e negócios, nada se compara a salvar a Dupont
Investimentos dessa crise. Mon Dieu! Ainda estou me preparando! Não
deveria caber a mim assumir a empresa da família nesse momento, com
apenas vinte e um anos. À beira da falência!
Afago o rosto, perdido. Não tenho ideia do que fazer. Meu casamento
com Marjorie poderia ajudar, se, meses atrás, quando marcamos a data, seu
pai não tivesse exigido que nos casássemos por separação total de bens e
ainda fizéssemos um acordo pré-nupcial. Maldito! Só agora entendo a razão
dessa sua exigência. Ele já sabia da falência, o acordo de tomar as ações
pertencente aos Dupont já tinha sido firmado. Ele já torcia pela derrota do
meu pai e queria garantir que de nenhuma forma a empresa tivesse vínculo
conosco outra vez.
Uma batida na porta me tira do meu transe. Ergo os olhos e a diviso
ali, entrando vagarosamente, trajando um vestido preto comportado, dois
dedos abaixo dos joelhos, echarpe na mesma cor. Cabelos ruivos bem
escovados, sem maquiagem. É nesse instante que a ideia mais absurda passa
pela minha cabeça.
— Emil… — Désirée murmura, brincando timidamente com a alça da
sua bolsa a tiracolo. Levanto-me devagar, alinhando o terno completamente
preto no meu corpo. Saio de trás da mesa; um segundo mais tarde ela está me
abraçando. — Eu soube por uma amiga que seu pai faleceu — cicia ao pé do
meu ouvido, apertando-me cada vez mais. — Por que não me contou? —
Então se afasta, olhando-me profundamente. Noto que choro de verdade e é
ela a única pessoa que tenho para secar minhas lágrimas, o que faz nesse
instante. — Mes sincères condoléances — deseja, passando o polegar pela
minha bochecha. — Tu m'as manqué. — “Senti sua falta”.
Consigo sorrir um pouquinho e a abraço de novo. Desde que voltei
para casa dos meus pais, nós nos distanciamos bastante, não só porque desisti
do meu curso, mas porque também troquei de universidade. Nossa amizade é
a mesma; conversamos por telefone em algumas ocasiões, mas não nos
vemos com tanta frequência, principalmente porque Marjorie sente um ciúme
exagerado da minha amiga.
— Também senti sua falta, Désirée — digo, aos prantos. Aperto-a
contra meu peito, chorando torrencialmente pela primeira vez desde a morte
do papai. É como se só agora, a duas horas de ser enterrado, a ficha cai de
que meu pai — mon papa, mon chèr papa! — está morto.
Fico entrelaçado a ela assim, por algum tempo que parece o infinito,
minha amiga afagando minhas costas, em silêncio. Sua presença aqui
dispensa palavras. Só sua presença já me acalenta um pouco e me conforta.
Então, num ato impensado, tomado por uma profusão de sentimentos, eu me
afasto, seguro seu rosto e a tomo em um beijo profundo, segurando
firmemente sua nuca em direção aos meus lábios como se os dela fossem o
único lugar da Terra em que eu gostaria de estar.
Assustada com minha ação, reluta nos primeiros segundos, mas não
demora para que se renda e se encaixe nos meus braços, retribuindo à mesma
medida que a beijo — um misto de excitação, euforia e tristeza.
— Emilien… — Uma voz feminina interrompe o momento. Désirée
congela nos meus braços. Olho por cima dos seus ombros e dou de cara com
Marjorie, o rosto marcado em desaprovação e raiva.
Lentamente, Lacroix se vira e encara minha noiva de um jeito
envergonhado. Engole em seco, olha-me de través, murmura alguma coisa
que mal compreendo e se retira rapidamente. Marjorie a ignora, preferindo
cravar seus olhos cheios de fúria — e lágrimas — em mim.
— Há quanto tempo tem um caso com ela? — pergunta. Noto que se
segura ao extremo para não avançar e me esmurrar como mereço.
— Não tenho um caso com ela, Marjorie — respondo, tornando à
mesa de papai e juntando todos os documentos para guardá-los de volta ao
cofre. Acho que já tenho uma ideia de como salvar nossa empresa. — Désirée
veio me prestar condolências — explico-me, virando para o cofre e enfiando
as documentações lá dentro. — Confesso que… em um momento de loucura,
a beijei. Não sei por quê — minto.
Volto-me a ela novamente, que continua parada no mesmo lugar,
olhando-me com a mesma cólera anterior.
— Então ela não significa nada para você? — indaga, empinando o
nariz.
— Claro que significa — rebato. — É minha amiga desde que me
conheço por gente. Mas não tenho interesse nela como você está pensando…
Foi um erro idiota.
Minha noiva me encara por mais alguns segundos, talvez esperando
que eu me desculpe. Não vai acontecer, desculpas ou matrimônio.
— Quero cancelar nosso casamento — revelo.
Ela fica pálida e dá um saltinho no lugar, assustada.
— O quê? Por quê? Por causa dela? — Há desprezo em seu tom.
— Non! — elevo minha voz. — Meu pai morreu, Marjorie! O homem
que ia me acompanhar até o altar, dentro de um mês, está morto. Você acha
mesmo que terei cabeça para casamento?
Ela vem até mim a passos desesperados. Tenta me abraçar, mas me
afasto.
— Então vamos apenas adiar. Mas cancelar, Emilien? Isso é o mesmo
que terminar comigo!
— É o que estou fazendo. A verdade é que só aceitei essa merda de
matrimônio por conta da minha mãe. Je ne t’aime pas. — “Não te amo.” —
A paixão que nutri um dia por você acabou quando me tornei homem.
Ela dá uma risada seca.
— Pois a atitude que está tendo não é de um homem, é de um
moleque!
— Estou decidido e não vou debater isto aqui, hoje. Désolé, mas
tenho meu pai para enterrar — digo e passo por ela, deixando-a para trás.
Escuto quando ela soluça alto e quebra alguma coisa no escritório.
Ignorando todas as minhas aflições por esse momento, mantenho-me firme e
sigo meu caminho.

Marie se afasta dos meus braços e beija o canto dos meus lábios.
— Agora você vai me dizer por que estava indo embora na surdina?
— pergunto, sereno, colocando um cacho do seu cabelo atrás da orelha.
— Eu vim para Loches a trabalho, Emil… — confidencia. Não
admito em voz alta, mas gosto quando me trata pelo apelido. — Preciso
voltar e terminar meu artigo.
— Vai mesmo trabalhar em pleno final de semana e deixar seu
namorado sozinho? — Faço um bico dramático. Marie dá uma risada
graciosa e beija meus lábios.
— Se quiser, pode vir comigo. Trabalho um pouco… almoçamos
juntos… fazemos uma rodada de sexo… depois eu trabalho mais um pouco e
à noite podemos fazer algum programa.
— Adorei a parte de fazermos sexo… — brinco, balançando as
sobrancelhas.
Ela cai nos meus braços, gargalhando, e me abraça, acariciando meus
cabelos.
— Vamos. Quanto mais rápido terminar meu trabalho, mais tempo
teremos para aproveitar um ao outro — diz, puxando-me pelo punho.
Descemos juntos as escadas, combinando de irmos no carro dela e
que, mais tarde, me trará de volta e passará a noite na minha cama — se nada
atrapalhar, ou seja, se minha mãe não puser empecilho. Mal chegamos à sala
principal quando Elizabeth me aborda, enviando olhares nada agradáveis à
minha companheira.
— Posso falar um instante com você?
Quero dizer que não, mas minha mãe vai me atazanar se não fizer
suas vontades. Além do mais, precisamos mesmo dessa conversa. Marie e eu
estamos juntos agora — finalmente, como um casal — e a última coisa que
quero é Elizabeth infernizando nossa vida, tentando nos separar.
Aceno em positivo, deixo um beijo suave em Marie e peço que me
espere. Saio na frente, indicando uma saleta ao final do corredor, e mamãe
me segue no mesmo instante. Enquanto entra e encosta a porta, já me preparo
psicologicamente para ouvir seus dramas.
— O que você tem com essa moça é sério? — pergunta, a quatro
passos da porta.
Viro-me em sua direção e suspiro, encostando-me à borda da mesa
logo atrás de mim.
— Oui. Estamos juntos.
— E por que ela estava indo embora na surdina mais cedo? —
especula, erguendo uma sobrancelha inquisidora. Seus dedos longos,
adornados de anéis, ajeitam os cabelos louros impecáveis, sem nem mesmo
um fio fora do lugar. — Além do mais, ela mesmo me informou que entre
vocês é apenas sexo casual.
— Até dez minutos atrás, era mesmo. Mas não a conheço de hoje e
não é de hoje que estou apaixonado por ela. Lá em cima, nos entendemos e
estamos juntos. Somos um casal agora, mãe — falo essa última parte com
cuidado, inclinando meu corpo ligeiramente para frente.
Elizabeth parece estremecer no lugar quando alego que meu
relacionamento é sério, de que estou apaixonado. Inspiro fundo, esperando
pelo surto.
— Você merece mais, Emilien… — diz, rígida em seu lugar. —
Merece mais do que uma moça da classe trabalhadora. Você merece alguém
como Marjorie, da elite e…
— Pare — interrompo-a, elevando a voz mais do que é considerado
respeitoso. — Já sou um homem adulto e tenho direito de fazer minhas
próprias escolhas. Então, pare! Continuarei com Marie, queira a senhora ou
não.
Estou para encerrar essa conversa, antes que vire outra de nossas
discussões, e voltar para minha garota quando mamãe se põe no meu
caminho, espalmando contra meu tórax. Ela é bem mais baixa do que eu, mas
nem por isso o modo como me olha deixa de ser intimidador.
— Aproveite o final de semana com ela. Façam tanto sexo quanto é
possível. Mas na segunda-feira, afaste-se dela — murmura, como se estivesse
no seu direito de controlar a porra da minha vida. — Afaste-se dessa moça,
Emilien Dupont, ou eu a afastarei de você. — Meu maxilar trinca na mesma
hora, entendendo sua ameaça. — Sabe muito bem que eu tenho meios para
isso — complementa, dando um passo atrás.
— Meu passado — constato. Dificilmente minha mãe usa do meu
segredo para me chantagear, porque sabe que me expor não manchará só
minha imagem, mas também o sobrenome Dupont, o que não seria nada bom
para nossos negócios. Não sei por qual razão, neste momento, ela acredita
que poderá me manipular usando deste artifício. — Você não faria isso,
Elizabeth. Sabe que sujar minha imagem é um tiro no seu pé.
Minha mãe abre um sorriso malicioso.
— Não preciso divulgar sua vida passada para toda a imprensa, mon
chéri. Posso apenas pintar para Marie o monstro que você foi. Ela é uma
mulher inteligente, tenho certeza que se dará conta de que, uma hora ou outra,
você fará com ela o que fez com Marjorie e Désirée.
Eu nem me vejo dando um passo para a frente, agarrando-a pelo braço
e o apertando com força desnecessária.
— Não sou esse monstro que você pensa que sou — falo entre os
dentes, a raiva tremendo-me quase por completo. — Não perco o controle
tem muito tempo! E você sabe, sabe que nunca foi de propósito!
— Será? — desdenha, remexendo-se no meu aperto. — Está bastante
descontrolado agora, machucando a sua mãe, a mulher que te pôs no mundo!
Afasto-me subitamente, como se tivesse tomado um tiro no peito.
— Mesmo assim — rebato, um tanto mais calmo. — Contar a Marie
meu passado não é a melhor das ideias. Se ela souber… vai me expor. Vai me
odiar com tanta força, que vai querer me ver manchado, arruinado… Já até
consigo imaginar uma matéria que ela escreveria a meu respeito. — A
concepção me dá medo e fico levemente trêmulo. — Não vai dizer nada a ela,
Elizabeth, nem a ninguém, porque de nenhuma maneira você pode revelar
meus segredos e sair ilesa. Se eu cair, você cai junto.
Outro dos seus sorrisos de deboche nasce nos seus lábios
delicadamente pintados.
— Vejamos… Você já a magoou uma vez, dois anos atrás, estou
correta? — pergunta, pegando-me de surpreso. Seu sorriso aumenta. — Você
subestima sua mãe, Emilien. Já fiz minhas devidas pesquisas sobre essa moça
e sei que você já a machucou uma vez. Não sei exatamente o que fez, mas fez
algo. Então, retomemos ao meu raciocínio. Você a magoou, mas conseguiu o
perdão dela… E aí ela trabalha justamente para a revista do grupo editorial
que você é dono. Se ela descobrir seu passado e espalhar isso, eu tenho poder
e dinheiro o suficiente para manipular as coisas a nosso favor, sabe bem
disso, não sabe, chéri? Usei destes mesmos recursos anos atrás para encobrir
seus erros quase fatais, se recorda?
Fecho os olhos e inspiro fundo, tentando não pensar nisso.
— Tudo o que as pessoas vão achar é que Marie continua magoada
com você e, desesperadamente, inventou uma história maluca dessas para se
vingar, tentar manchar a imagem do filantropo parisiense que você é. Mas eu,
você e ela saberemos a verdade. Ninguém acreditará numa mulher que teve
seu coração quebrado, Emilien… principalmente se ela parecer uma histérica,
o que pode acontecer quando descobrir as coisas que você esconde por baixo
desse seu rostinho bonito.
Nesses anos todos, mantive-me solteiro para evitar suas chantagens e
o inferno que faz na minha vida. Afastei-me de minha família por causa dela,
fiz escolhas péssimas por causa dela e do seu narcisismo. Mas agora… Agora
estou cansado de ser uma marionete em suas mãos. Nunca tive um motivo
forte para enfrentá-la. Preferia fazer suas vontades e ter um pouco de paz (o
que nem sempre acontecia e comprometia ainda mais minha saúde mental)
porque seria o melhor para todo mundo. Hoje, entretanto, eu tenho Marie. E
por ela vou enfrentar essa megera que chamo de mãe.
— Não vou deixar você contar nada para minha namorada. Nem que
para isso eu precise me casar com ela e me mudar da França, levando-a
comigo para algum país em que você jamais nos encontre outra vez! Não vai
mais decidir por mim, Elizabeth, nem interferir mais na minha felicidade! —
Imponho-me de uma maneira que nunca me impus de verdade, pois era mais
fácil atender seus desejos ou fugir.
— Você não ousaria! — rebate, verdadeiramente incrédula.
— Ah, eu ousaria, sim. Marie é mais importante para mim do que
você pode imaginar, mère. E eu faria qualquer coisa, qualquer coisa mesmo,
para protegê-la do meu passado e de você.
Elizabeth me segura com firmeza pelos dois braços e me perfura com
seu olhar.
— Não sabe o que está fazendo, Emilien!
Solto-me do seu aperto e caminho até a porta, dando um basta nessa
conversa.
— Eu sei, sim. Estou tomando as rédeas da porra da minha vida. —
Miro minha mãe uma última vez, sabendo que não é aconselhável contrariá-
la, e me retiro em seguida.
A ideia de me casar com Marie e nos mudar para nos proteger nunca
foi tão forte.
MARIE
Sigo até a cozinha enquanto Emilien vai conversar com a mãe-barra-
jararaca. No caminho, repreendo-me pelo apelido, porque agora conheço a
história por trás da mulher megera e dura que ele tem como mãe. É claro que
Elizabeth não pode usar da sua condição psicológica para atazanar o filho e
fazer dele um homem infeliz para atender seus caprichos narcisistas. Por mais
dolorosa que seja sua história, nada justifica o modo como culpa e pune o
próprio filho. Ela deveria mesmo passar por um acompanhamento com o
psicólogo.
Na cozinha, torço para encontrar Nicole ou Lorraine enquanto espero
por ele, mas deparo-me com a última mulher que gostaria de ver nesse
momento. Marjorie está sentada à mesa já limpa, com apenas uma xícara
pequena de café. Meu estômago aperta quando ela me dá um sorriso
pequeno. Inspiro fundo.
— Ainda tem café? — pergunto, parada na entrada do cômodo.
Minha vontade por cafeína é maior que meu orgulho. Se não fosse por isso,
teria a ignorado e voltado para a sala principal.
Com um único movimento, Marjorie me indica a cafeteira e completa:
— É expresso. As cápsulas você encontra na segunda gaveta.
Prefiro grãos moídos, mas não posso me dar ao luxo de exigir algo.
Por isso, preparo um expresso em cápsulas assim mesmo.
— O Emilien está bem? — Ela quer saber.
Reluto um segundo em responder. Continuo de costas para ela,
esperando meu café ficar pronto. Demoro a dar uma resposta porque sua
pergunta é difícil para mim. Emilien está bem? É tão difícil saber os
sentimentos dele. É claro que ele deixou a mesa do café da manhã bastante
atormentado, então conversamos, ele desabafou, mas não sei se seu desabafo
o ajudou a aliviar. Não sei o que se passa naquela cabecinha dele com tanta
manipulação da mãe — com quem está conversando agora sabe-se lá o quê.
Talvez ela esteja o atormentando mais uma vez.
Por fim, pego minha xícara e me viro para Marjorie.
— Acredito que esteja. O Emilien não é muito de pôr os sentimentos
para fora, não é? — alfineto, remoendo um ciúme por esse homem. Não
gosto de pensar que tiveram intimidade o bastante a ponto de ela conhecê-lo
assim tão bem. Dessa maneira, fica impossível não me perguntar se ela
conhece o passado dele.
— Não, não é — diz, forçando um sorriso.
Por mais que tente não o fazer, acabo por me sentar à mesa, no lugar
de frente para Marjorie. Emilien não me respondeu quando lhe perguntei,
mas posso perguntar à sua ex-noiva, não posso? Se o homem não se abre
comigo, se não me conta mais sobre sua vida, então preciso conversar com
pessoas que podem me contar sobre ele.
— Por que vocês romperam o noivado? — indago, tentando não
demonstrar muita curiosidade. Bebo um gole do meu café para disfarçar o
leve tremor nos meus lábios.
A moça ergue uma sobrancelha e apoia sua xícara na mesa.
— A versão que ele conta é por conta da morte do pai. Thierry faleceu
um mês antes do nosso casamento.
— Por que você dá a entender de que não acredita nessa versão?
Ela abre um sorriso amargo e desvia o olhar para o líquido preto.
— No dia do enterro do pai dele, eu o peguei beijando outra mulher.
Marjorie já mostrou mais cedo, ao redor da mesa, que superou
Emilien. Não sei quanto tempo faz que os dois foram noivos, mas acredito
que foi há tempo suficiente para que seguisse em frente. Mas agora, ao falar
que o viu a traindo, demonstra um sentimento que pareceu ter escondido a
vida toda.
Não sei o que dizer, realmente. Isso explica por que não me contou os
motivos de romperem. Ele não queria que eu soubesse que um dia já foi um
traidor? Ou talvez seja até hoje? Não me agrada o pensamento, porque decidi
confiar nele mais uma vez, entregar meu coração de novo, o mesmo que Emil
já o tenha quebrado em outra ocasião.
— Compreendo. — É tudo que consigo dizer por alguns segundos. —
Eu também não perdoaria uma traição.
— Mas eu estava disposta — responde. Olho-a com atenção,
querendo entender seu posicionamento. — Ora, foi apenas um beijo. E ele me
disse que não tinham nada, que foi algo de momento. Acreditei nele. Emil
ficou arrasado com a morte de Thierry. Entendo que, em um momento de
dor, tenha cometido um erro.
Não acredito que um momento delicado possa justificar uma atitude
tão errada como uma traição — mesmo que com apenas um beijo —, mas não
me manifesto. Espero-a terminar seu raciocínio.
— Emilien, entretanto, terminou comigo mesmo assim.
Imediatamente um minuto depois de ter o visto beijando a melhor amiga,
com a desculpa que te contei, somada ao fato de que só aceitou nosso
casamento por causa da mãe.
Sem dificuldade, entendo o porquê de sua desconfiança.
— Você acha que ele terminou com você por causa dessa melhor
amiga que ele beijou?
— Eu tenho certeza. Na época, ele escondeu, por causa de Elizabeth,
mas Emilien e Désirée tiveram um relacionamento longo, acredito que por
uns três anos.
Não me surpreende que Emil tenha conseguido namorar por três anos
sem ninguém saber disso. O homem é o rei da discrição.
Processando suas palavras, meus lábios se abrem para perguntar:
— Essa Désirée… é a garota que Elizabeth mencionou mais cedo? A
garota que… Emil fez algum mal? — Ela me encara com uma expressão
hesitante, como se, assim como o ex-noivo, não quisesse tocar no assunto.
Apesar disso, acena em positivo. — O que ele fez? — pergunto, com a voz
quase esganiçada e trêmula. Ela sabe o passado de Emilien, que agora
desconfio ter a ver com essa Désirée. Nem mesmo Nicole tem ciência disso.
Quão grave pode ser?
Marjorie suspira e bebe o restante do seu café antes de me dizer:
— Não sei os detalhes — revela, passando a língua no lábio inferior.
Algo me diz que está mentindo. — Mas, resumidamente, fez o mesmo com
Désirée. Emilien a traiu.
A confissão tem o mesmo efeito de um murro no meu estômago. Não
quero acreditar que Emilien seja esse tipo de homem. Mas por quais motivos
ela mentiria sobre esse assunto? Não quero estereotipá-la como a ex-noiva
histérica que quer a todo custo separá-lo da atual. Além do mais, embora eu
tenha a impressão de que sabe mais do que quer admitir, a moça me parece
estar sendo bastante sincera.
— E não foi traição com um beijo — continua, olhando para os lados.
— Pelo que sei, foi com mais de uma mulher, e ele não fazia questão de
esconder que a traía. Isso mexeu demais com o psicológico da Désirée. —
Voltando-se para mim, completa: — O Emilien foi tóxico com ela.
Tudo o que eu menos queria ouvir. Que Emil é um cara tóxico. Um
abusador. Não quero acreditar nisso. Esforço-me para manter minhas
lágrimas para mim e não demonstrar que estou abalada com essa revelação.
— Não quero parecer a ex rancorosa — Marjorie diz, com cuidado
—, mas Emilien vai fazer com você o que fez comigo e com a melhor amiga.
Em algum momento, ele vai te trair. Se quer meu conselho, deveria se afastar
dele.
— O que aconteceu com a Désirée? — pergunto, ignorando por ora
seu conselho.
— Se ele não te contou, não serei eu a fazer isso, Marie. Mas o que
posso te contar é que, depois dela, Emilien se tornou mais recluso e evitou
relações amorosas por medo de antigos hábitos. Não sei se foi o trauma da
morte do pai, ou as constantes manipulações da mãe, mas ele se tornou uma
pessoa tóxica com a melhor amiga, coisa que comigo, durante o tempo em
que o conheci e estivemos juntos, não foi. Por que você acha que ele faz
acompanhamento com o psicólogo e evita relacionamentos? Emilien vai te
dizer que é por causa da mãe, mas não é. É porque ele tem medo de se
envolver com alguém e fazer o mesmo mal que fez à melhor amiga.
Engulo em seco e só então me lembro do meu café, que já está frio.
Tomo-o mesmo assim, fazendo uma careta por conta da falta de temperatura
adequada. Deixo a xícara pela metade e a afasto, pensando no que me disse.
Faz algum sentido, devo admitir. Será por esse motivo que Emilien deixou o
país dois anos atrás? Ele nunca realmente foi claro sobre isso, mas se de fato,
em algum nível, se importava comigo e não queria repetir o mesmo erro, isso
explica ter ido embora. E quando retornou e nos encontramos no restaurante,
alegou que sua vida era um caos e estava disposto a enfrentar as coisas que
ficariam entre nós. Penso agora que essas coisas nada mais são que sua
vontade de me fazer mal.
— Merci — agradeço, quase com um sussurro. Seus relatos podem
me dar algum norte sobre meu namorado.
Marjorie está abrindo a boca para me dizer algo, mas Emil surge na
cozinha, expressão indecifrável, corpo ereto e meio rígido. A conversa com a
mãe não deve ter sido das melhores. Os contornos do seu rosto tomam formas
mais sombrias ao me ver junto da ex-noiva. Pigarreia e então vem até mim.
— Podemos ir agora — enuncia.
Abano a cabeça em positivo e me levanto. No mesmo instante, ele
abraça minha cintura, com um aperto fora do comum. Despeço-me de
Marjorie. Emilien não faz o mesmo, mas antes de deixarmos a cozinha, ele
lança um olhar discreto e esquisito à ex-noiva que não me passa
despercebido.
Vamos ter uma conversa.
Emilien não diz nada sobre o assunto por todo o resto do dia. Ele se
aconchega na minha casa e fica comigo o tempo todo enquanto trabalho.
Confesso que foi difícil me concentrar no arquivo do projeto, porque todo o
relato de Marjorie ia e vinha com frequência na minha mente. Quando o
olhava por cima da tela do notebook, não conseguia acreditar que aquele
homem, estirado no meu sofá e lendo um livro que encontrou numa das
prateleiras do escritório, pudesse ser um cara tóxico.
Eu já convivi com caras assim. Já tive relacionamentos abusivos. A
regra é: nos primeiros meses, ele é perfeito. Não demonstra ser um idiota
manipulador que vai acabar com sua autoestima e psicológico. Com o passar
do tempo, ele mostra quem realmente é. Com Emilien, não vi esse padrão.
Muito pelo contrário. Sempre se mostrou uma ótima pessoa, apesar de todo o
mistério em torno da sua vida pessoal e do seu passado. Marjorie também
alegou que ele faz acompanhamento psicológico. Talvez um profissional
tenha o ajudado a ser uma pessoa melhor? E se for isso, o que ele foi no
passado pode ser perdoado, esquecido, superado? Mesmo que hoje não seja
mais tóxico, posso fechar os olhos para seu passado?
Sinceramente, não sei a resposta. No meu interior, porém, torço
profundamente para que Marjorie tenha apenas mentido, na intenção de me
afastar dele. Não consigo conceber a ideia de Emilien ser esse tipo de pessoa.
Ele prepara o almoço e paro por uma hora para comer. Ao redor da
mesa, não abordamos o assunto. Emil fala de alguns projetos filantrópicos ao
quais dará atenção quando retornarmos à capital; por mais que eu queira
questioná-lo sobre o que Marjorie disse a seu respeito, decido que farei isso
em um momento mais adequado. Após o almoço, deixo-o com a louça e
retomo ao meu escritório. São seis da tarde quando surge novamente (ele
sumiu por todo o restante da tarde) e fecha meu notebook.
— Ei! — protesto. Emilien me olha com o sorriso mais lindo. — Eu
estava escrevendo!
— São seis da tarde, mademoiselle Julien. Hora de me dar atenção, e
outra coisa — diz, contornando a mesa e puxando-me pelo punho direto para
sua boca e seu tórax definido.
Não resisto e me entrego, retribuindo seu beijo à medida que acaricio
seu peito. Suspiro contra seus lábios quando sua mão vai descendo pelo meu
corpo e alcança o meio das minhas pernas. Delicadamente, o afasto.
Precisamos de uma conversa aberta e sincera antes de qualquer coisa.
— Emilien… nós precisamos conversar.
Ele me olha com suas pupilas dilatadas de luxúria, com uma
expressão de quem não está acreditando de que eu o interrompi num
momento como esse. Expirando lentamente, se encosta à borda da minha
mesa e cruza os braços.
— O que Marjorie te falou a meu respeito? — pergunta, sem rodeios
e sem me olhar.
Tomo um pouco de ar para os pulmões e digo:
— Que você é um cara tóxico. — Ele se volta para mim com tanta
rapidez que quase não vejo o movimento do seu pescoço. — Ela me falou da
Désirée. — Seu maxilar trinca e os músculos do seu rosto parecem ficar
rígidos.
— O que exatamente ela te falou da Désirée?
— Não muito — confesso, baixando o olhar e molhando os lábios. —
Apenas que você rompeu o noivado e logo depois namorou sua melhor amiga
por um bom tempo até trai-la tanto que a abalou. Me disse que o que você fez
com elas, fará comigo também. — Levanto o olhar em sua direção e
pergunto: — Você teria coragem de me trair ou de me magoar, Emilien?
Seu silêncio por intermináveis segundos me tortura; os olhos azuis
cravados em mim.
— E você acreditou na versão da minha ex-noiva?
— Não sei. — Sou sincera novamente. — Mas quero ouvir sua versão
dos fatos.
— E se eu não estiver disposto a dizer?
Balanço a cabeça em negativo e inspiro fundo.
— Então serei obrigada a acreditar nas palavras da Marjorie. —
Silêncio entre nós outra vez. — Emil… — falo com cuidado, vencendo a
distância de um passo que me separa dele. — Somos um casal agora. Tem
que confiar em mim e se abrir. Me deixar às escuras sobre quem você foi no
passado só vai nos atrapalhar.
Ele me encara sem nada dizer, hesitante em olhar para mim ou para os
bíceps fortes, enquanto seus lábios se entreabrem na mesma velocidade que
se fecham.
— Não sou esse homem que Marjorie pintou — revela, com um tom
de voz tão baixo que quase não o compreendo. — Nunca fui.
— Me conte o que aconteceu — falo suavemente.
Emilien suspira antes de prosseguir:
— Désirée e eu realmente passamos um tempo juntos. Tive de
esconder nosso namoro por conta da minha mãe. Ela nunca aceitou que eu
tivesse terminado com Marjorie. Estávamos bem… até Elizabeth descobrir
tudo. Ela passou a me infernizar, eu… tomei uma atitude errada e…
— Que atitude? — interrompo.
— Não importa.
— Importa, Emilien! — Elevo a voz, cansada dos seus segredos.
— Não, não importa! — Ele também se altera um pouco. — Fiz uma
coisa errada que desencadeou um monte de eventos ruins na nossa relação, é
só o que precisa saber — fala rudemente, desviando seus olhos de mim. —
Depois disso, nosso namoro declinou. Houve mal-entendidos que a levaram a
me trair. Eu fiquei… — Ele engole em seco, apertando o maxilar. — Fiquei
possesso…
Emilien faz uma pausa drástica. Eu fico estática no lugar, apenas
pensando o pior. Será que ele… a agrediu por causa dessa traição?
— Fiquei possesso com minha mãe… porque ela armou isso tudo,
entende? — Algum alívio percorre meu corpo. — Mesmo que tenha sido uma
armação e eu tenha a perdoado, não voltamos a ser o casal de antes. Não sei o
que houve. De repente, ela ficou afastada… reclusa, me evitava de todo
modo, mal conversava comigo. Parou de trabalhar, vivia pelos cantos,
abatida, melancólica. Tentei conversar com ela, entender o que estava
acontecendo, mas ela não se abria comigo. — Emil faz outra pausa, agora sua
feição tomando contornos sombrios e dolorosos, como se ele soubesse sim do
motivo pelo distanciamento da namorada, só não quer comentar. — No final,
decidimos cada um seguir a sua vida, terminarmos. Eu… realmente a amava,
Marie. E nosso rompimento mexeu comigo, então fiz o que qualquer outro
homem estúpido faria: procurei refúgio no sexo com outras mulheres. Eu
nunca a traí. Te dou minha palavra.
— Por que Marjorie e sua mãe acham que você a traía e por isso
causou esse mal nela?
Ele pestaneja seguidas vezes.
— Porque não contei a elas do meu rompimento com Désirée. Se
soubesse que tínhamos terminado, maman tornaria a insistir no meu
casamento com Marjorie. — Baixa o olhar para os bíceps novamente, seus
braços ainda cruzados. — Acredite, eu não a traía.
— Era tóxico com ela? Abusivo? Talvez por isso tenha se afastado de
você?
Emilien move a cabeça.
— Ela se distanciou por outro motivo. Descobri algum tempo depois.
Penso em perguntar qual foi a razão, já que ele sabe, mas desisto.
Emilien não vai dizer se não quiser.
— Désirée estava grávida — revela, pegando-me completamente
desprevenida. — Eu não sabia. Ela ia me contar, mas no dia, tivemos uma
discussão bem acalorada, saí de casa e passei dois dias fora. Ela sofreu um
aborto espontâneo por conta do stress.
— Ela se distanciou de você porque te culpava pela morte do bebê —
concluo, entendendo o resto da história. Ainda assim, há algumas lacunas que
ele não preencheu, e talvez nunca vá preencher.
Emil balança a cabeça devagar, como se ainda carregasse a dor e a
culpa nos próprios ombros.
Começo a compreender que é esse o mal que Emilien causou. Não
que eu concorde totalmente com Elizabeth. Ele não sabia da gravidez,
discussões todo casal tem. Foi apenas uma fatalidade, não foi?
Sem me dar conta, me encaixo no abraço dele e recebo um beijo entre
meus cabelos.
— Nunca quis causar nenhum mal a ela. Je jure devant Dieu!
Aperto-o em meus braços e não digo mais nada. Nesse pequeno gesto,
ele entende o que não proferi em palavras.
Eu acredito nele.
EMILIEN
— Acredito em você — diz ao pé do meu ouvido, apertando-me forte
entre seus braços.
Suspiro, trêmulo, tentando afastar meus próprios demônios. Não fui
completamente sincero com Marie sobre minha relação com Désirée e isso
me atormenta de um jeito insano. Não posso contar para ela, não toda a
verdade. Isso a faria me odiar, mesmo que eu me explicasse… explicasse que
jamais foi intencional. Não suportaria seu ódio, seu desprezo. Não agora
quando dei por mim de que a am…
— Você está bem? — pergunta, quebrando minha linha de
raciocínio.
— Estou — respondo, desfazendo nosso contato. Então sorrio e
acaricio sua bochecha. Ela se agrada com o carinho, pois fecha os olhos e
sorri, como em êxtase. — Mas se pudermos parar de falar sobre esse assunto,
Marie… Eu ficaria imensamente grato.
A expressão em seu rosto não me agrada. Está no DNA desta mulher
ser curiosa. Ela não vai parar até desenterrar meu passado. É por isso que
preciso me precaver, jamais deixá-la chegar a descobrir meus segredos.
— Tudo bem. — Seu rosto, entretanto, diz o contrário.
Passo o polegar sobre sua boca, desviando sua atenção para outra
coisa. Sei como fazê-la se esquecer do assunto. Enquanto meu dedo desliza
por entre seus lábios suculentos, minha outra mão escorrega pela lateral do
seu corpo até estacionar na cintura. Ela suga meu polegar com força, sensual,
e já a imagino em torno do meu pau, mamando da maneira que só ela sabe
fazer para me levar ao meu êxtase mais esplêndido.
Entendendo onde quero chegar, Marie resvala seu nariz em meu
pescoço ao passo que distribui beijos cálidos e úmidos na minha pele. Os
dedos macios vão abrindo devagar os botões da minha camisa, sua boca
nunca me deixando. Entre minhas pernas, meu companheiro ganha vida e já
quero jogá-la sobre essa mesa e comê-la até que esteja toda dolorida.
Perco a camisa no interim em que estou imaginando-a gemer meu
nome, meu corpo sobre o seu, meu pau fundo e cravado nela, minhas mãos
apertando-a com força pela cintura. Nem reparo que solto um suspiro quase
estrangulado quando essas imagens rodam em minha mente, incentivado pelo
seu beijo em meu tórax despido. Marie vai tecendo seus beijos em meu peito,
escorregando para baixo devagar, sexy, ora olhando para mim, ora
concentrada no caminho que percorre. Então ela está agachada à minha
frente, de joelhos, mordendo o lábio inferior enquanto desabotoa minha calça
e a abaixa.
— Já te disse que você tem um belo de um pau? — pergunta, sua voz
rouca de desejo, sedutora, pronta para me arrebatar e me envolver em sua
luxúria.
Não consigo responder porque sinto uma pulsada violenta em meu
pênis quando essas palavras deixam sua boca. Antes que eu tenha tempo de
qualquer resposta, Marie já puxou minha cueca e está me abocanhando,
levando-me até o fundo de sua garganta vagarosamente e o suficiente para me
fazer quase cambalear para trás. Inclino-me para frente e espalmo contra a
mesa de trabalho dela, fechando os olhos e apenas apreciando o momento,
precisando admitir que nunca uma mulher me deixou de pernas bambas tanto
quanto ela.
— Porra… — murmuro, quase sem perceber. Então já me afastei da
mesa e estou segurando seus cabelos crespos entre meus dedos, que se
afundam com facilidade nesse mar revolto, sua marca registrada, uma das
partes mais lindas do seu corpo. Acaricio-a ali um instante, gostando da
sensação, desse contato com seus fios macios. Mas o prazer que atinge cada
célula do meu corpo é forte demais para que eu fique sem comandá-la.
Assim, um segundo mais tarde, travo seu maxilar, aperto seu cabelo um
pouco mais e movo meu quadril para frente e para trás, devagar, sentindo
meu pau bater no fundo da garganta dela.
Meu corpo todo está rígido de tesão enquanto a vejo me chupar,
segurando minhas bolas e as acariciando. Seguro sua cabeça com as duas
mãos, separo levemente as pernas para dar um pouco mais de estabilidade e
fico imóvel, deixando-a me engolir em seu ritmo. Ela é tão boa nisso.
— Não há qualquer outro lugar no mundo que eu quisesse estar senão
aqui, com você — falo entredentes, afagando sua nuca. Ela me olha, ainda
me engolindo, e a visão é esplêndida o suficiente para me deixar ainda mais
duro. Marie abre um leve sorriso e escorrega sua boca até a ponta,
circundando minha glande como se brincasse com um pirulito suculento.
Puxo-a bruscamente para mim, encosto-a à mesa, e a beijo ao me
encaixar entre suas coxas. Desço meu indicador até o vão das suas pernas,
travando uma batalha com minhas calças até que, por fim, consigo me livrar
da peça em meus pés, chutando-a para longe, ao mesmo tempo em que a
penetro com três dedos. Ela se agarra aos meus braços, fincando a unha em
minha carne e gemendo desesperadamente em minha boca colada à sua.
Mantenho os dedos dentro, meus lábios aos seus e, de qualquer maneira,
arrasto para o lado todos os pertences sobre o móvel.
Impulsionando seu corpo leve, ponho-a sentada sobre a mesa, separo
seus joelhos e apoio seus pés na superfície de madeira.
— Mantenha suas pernas abertas — oriento, quase com um rosnado.
Fecho minha mão direita em torno do meu pau e me masturbo por dois
segundos enquanto a observo exposta para mim, sua boceta úmida para me
receber.
— Emilien… — Sua voz é um suplício. — Venha aqui e me coma —
pede, levando dois dedos até o clitóris e o circundando.
Seguro seu punho e afasto seus dedos do ponto sensível, substituindo-
os pelos meus, rudes e duros. Ela se contorce sobre a mesa e murmura uma
porção de obscenidades que me estimulam.
— Quando estiver comigo — sussurro, apertando na medida certa o
pequeno órgão. Marie grita de prazer e rebola contra minha mão. — Não vai
precisar se dar prazer, embora eu goste muito de te ver se tocando. Mas mais
lindo, prazeroso e excitante do que ver você com os dedos nessa boceta
apertada, é ver os meus dedos nela. Meus dedos, minha boca e meu pau.
Então, chérie — murmuro mais baixo, penetrando-a com o indicador e o
médio virados para baixo, dando-me assim a oportunidade de, ao mesmo
tempo, tocá-la com o polegar —, quando estivermos juntos a função de te dar
prazer é minha.
Marie sequer tem tempo de responder — nem sei se chegou a
processar minhas palavras — porque levo meus lábios até sua boceta e a sugo
com a mesma intensidade com que sugou meu pau. Movo minha língua em
um ritmo frenético, juntando-a aos meus dedos que a fodem e ao polegar,
acionando suas terminações nervosas. Quando seu corpo treme e os gemidos
altos e incontroláveis preenchem o cômodo, sei que teve um orgasmo.
Rapidamente, ponho-me entre suas coxas e a penetro, indo tão fundo
quanto a posição me permite. Seguro suas pernas ao redor da minha cintura
porque ela claramente não tem condições neste momento para mantê-las
dessa maneira. Preciso firmar seu corpo ao meu, pois Marie parece exausta e
fraca. Diminuo o ritmo e acaricio seu rosto.
— Você está bem? Quer que eu pare? — pergunto, preocupado com
sua mudança brusca de ânimo.
Como resposta, ela aperta meu pau com a boceta e finca a unha no
meu braço.
— Continua… Estava quase tendo um orgasmo duplo. Pelo amor de
Deus, só… continua — pede, desesperada.
Mais confiante de que ela está bem, torno a me arremeter como se
fosse nosso último dia na Terra. Não demora para Marie chegar ao segundo
orgasmo. A expressão que ela faz, o modo como me aperta com a boceta, os
gemidos chegando ao meu ouvido, essa combinação perfeita é a minha
perdição. Saio de dentro dela quando estou gozando, bombeando-me forte e
despejando uma quantia considerável de sêmen entre sua barriga e a vagina
enquanto gemo entrecortado e descontrolado. Um segundo mais tarde, estou
abraçado a ela, meu rosto enfiado em torno do seu pescoço, suas mãos macias
e delicadas afagando minhas costas despidas.
— Marie… — falo, baixo e com um suspiro contra sua pele quente e
deliciosa. — Eu não tenho muita certeza do que será da minha vida, dos meus
dias daqui para frente. O amanhã é incerto demais. Ainda assim, tenho uma
única certeza. — Neste instante, cesso nosso contato e a olho, afagando suas
bochechas, como sei que a agrada. — Não importa como será meu futuro, eu
quero você nele. É a minha única certeza.

Decidimos por tomarmos um banho e fazermos um programa noturno


na cidade real. Ela me leva até o chuveiro e, agarrada a mim, deixa a água
nos lavar pelos primeiros segundos. Não falamos nada, sequer nos movemos,
apenas apreciamos a presença um do outro.
Por fim, ela se afasta, pega o sabonete e começa a passar pelo meu
tórax, os olhos fixos nessa minha parte do corpo que, bem sei, a agrada
sobremaneira. Seu olhar queimando sobre mim, como se me desejasse,
estimula-me de novo. Minha ereção nem foi embora ainda e já a sinto latejar.
Apesar desse momento entre nós e do seu desejo em treparmos mais uma vez
ser quase palpável, tem algo que a incomoda. Posso sentir isso também.
— Me diz… — instruo, sussurrando ao me inclinar em direção aos
seus lábios suculentos. Marie sorri um pouquinho e levanta seu olhar para
mim. — Me diz o que está te incomodando.
Sem parar de passar o sabonete em minha pele, declara:
— Estou pensando na conversa que tivemos.
Tento não demonstrar que esse assunto me afeta e por isso meu corpo
fica endurecido e tenso. Engulo em seco e controlo minha voz antes de
prosseguir:
— Por que está pensando nisso agora?
— Porque você não foi cem por cento sincero comigo — revela de
um jeito brando. Então para de me ensaboar para que a água corrente leve
embora a espuma em meu peito. — Porque sinto que me contou apenas parte
da história. — Por fim, me fita seriamente. — Aconteceu algo a mais na sua
relação com a Désirée, não é?
— Oui — confirmo, desviando meus olhos dos seus para um ponto
fixo além do vidro do box. — Aconteceu.
— E foi isso o que realmente a magoou. Não foi o aborto… Foi isso
que você fez a ela, que sua mãe citou como o “mal que causou àquela
menina…”. — Fecho os olhos, ignorando meu coração sendo açoitado. —
Não é?
Afirmo outra vez, sem coragem de olhá-la. Não consigo conceber
que, aos poucos, ela está me desvendando. Mantive-me tanto tempo fechado,
recluso, levantei um muro em torno de mim, do meu coração… Para proteger
meu passado, meu segredo, mas, pouco a pouco, tijolo por tijolo, Marie está
derrubando minhas barreiras e desvendando todos os meus mistérios. Penso
que será inevitável o dia que descobrirá toda a verdade. Esse dia será terrível,
o pior de todos. E vou perdê-la. Tenho certeza disso.
— Faria comigo o que fez com ela? — sussurra, pegando-me
desprevenido. Uma pergunta absurda dessas!
Alarmado, seguro-a pelos braços e a faço me olhar.
— Non! — Minha voz sai mais alta e esganiçada do que previ. —
Nunca, Marie. — Então eu a tomo em meus braços e a aperto forte contra
minha pele, uma dor excruciante fisgando meu coração e flagelando minha
alma. — Nunca quis magoá-la, chérie. Não foi intencional, juro por Deus.
— Foi um acidente?
Afasto-a e hesito por um mísero segundo antes de responder, fitando-
a nos olhos:
— Foi. — Mas é uma meia-verdade. Não foi um acidente. Entretanto,
também não foi completamente deliberado.
Marie move a cabeça em positivo, vagarosamente. Apesar disso, me
dá a impressão de que continua insegura, incomodada.
— Chérie… — sussurro, chamando seus olhos e sua atenção para
mim. — Eu nunca magoaria você de propósito. Tirando dois anos atrás —
menciono, um pequeno sorriso de remorso nascendo em mim. — Mas saiba
que sou humano; eu erro. Então, pode acontecer de eu magoar você, mas
jamais de forma deliberada. Não poderia nunca te machucar de propósito
porque… — Faço uma pausa para saborear a frase em minha boca. — Parce
que je t’aime. — “Porque eu te amo”.
Ela pisca diversas vezes, talvez assimilando minhas palavras. É
adorável o modo como me olha, a água respingando dos cachos para seu
rosto. Seguro-a pela cintura quando Marie abaixa os olhos, molhando o lábio
inferior. Meu coração bate forte e descompassado diante de seu silêncio.
— Écoute-moi — murmuro, tocando seu queixo e erguendo seu olhar
para mim. — Isso não é um pedido de casamento, não é algo que necessita de
uma resposta. Não fique assim, ma belle, se ainda não se sente segura em
retribuir, oui?
Ela abre um pequeno sorriso e encosta a cabeça no meu peito.
— Só precisa saber de uma coisa, Emil… Eu sinto o mesmo. Percebi
isso na manhã em que acordei sozinha, dois anos atrás… — Um sentimento
esquisito atravessa meu corpo com essa informação. — Só vou me declarar
como você acabou de fazer quando tiver certeza de que não vai me magoar de
novo.
— C’est juste. — “Justo”. Sorrio e me aproximo aos poucos dos seus
lábios. Embora não tenha me dito, saber que ela retribui ao meu amor me
deixa feliz como um garotinho em dia de Natal. Nossas bocas se encontram
delicadamente, a água quente se juntando ao nosso beijo suave. Basta menos
de um minuto até eu estar excitado e duro de novo, encostando-a ferozmente
contra os ladrilhos pretos, sugando sua boca como se fosse a fonte divina da
vida.
Puxo suas pernas para contornar minha cintura.
— Emilien… — geme quando meu pau se força em sua boceta.
Sorrio contra seus lábios e movo meus quadris vagarosamente para frente e
para trás, esfregando-me em seu clitóris. Quando ela menos espera, arremeto-
me para dentro, ríspido, forte, duro, procurando o ponto mais fundo. Marie se
segura em meus braços ao passo que a como com todo vigor, investindo
estocadas profundas e firmes.
— É um desejo muito egoísta eu estar feliz por agora só eu te comer?
— pergunto quase sem nem mexer o maxilar, estocando cada vez mais forte
nela. Marie aperta seus dedos em meu braço a cada investida violenta do meu
quadril no seu. — Nunca admiti, ma jolie — menciono, escorregando a mão
até seu clitóris e acrescentando a pressão certa. Ela morde o lábio inferior
com mais força, olhando-me cheia de fascínio e volúpia. Essa mulher sempre
despertou uma paixão irresistível em mim, e continua despertando. — Mas
eu me queimava de ciúmes de você.
Ela abre o sorriso mais convencido do mundo, como se zombasse de
mim e do meu sentimento descabido de posse e de ciúme em uma época em
que consentimos não sermos exclusivos. Megera. Preciso castigá-la.
Adiciono dois dedos em sua boceta, sem parar de meter meu pau nela, e
acaricio o clitóris mais rudemente. Seu sorriso de escárnio se desfaz, dando
lugar a uma expressão de êxtase, seu olhar concentrado no meu.
— Me deixava insano saber que outro podia te dar prazer… —
prossigo. O ciúme se revela pouco a pouco em mim e desconto essa raiva em
movimentos ferozes e rígidos. — Mas agora… agora esse corpo é meu, essa é
boceta é minha… essa boca… — Recaio de encontro a ela, beijando-a
obscenamente, tragando cada partícula de ar do seu pulmão.
— Vou gozar… — anuncia, contraindo-se em torno do meu pau.
Fecho os olhos e jogo a cabeça para trás, deixando-me levar pelo momento e
pela excitação. — Estou gozando… — Sua voz se confunde aos gemidos
enquanto se liberta, o corpo encontrando pequenos espasmos de prazer.
Junto-me à mulher da minha vida e gozo no mesmo instante que ela.
Abraço-a quando terminamos, nossos corpos ainda conectados.
— E, um dia — falo para completar o que não terminei anteriormente
—, serei dono do seu amor também.
MARIE
Apesar de conhecer Loches como a palma da minha mão, Emilien e
eu turistamos pelos principais pontos da cidade. A noite tem uma leve brisa
fria, o que acabou nos obrigando a vestir casacos.
Não vou mentir: caminhar agarrada a ele, conversando sobre uma
porção de coisas, rindo e trocando beijos foi uma das melhores sensações da
minha vida. Eu não tive muitas relações amorosas — focada sempre na
minha carreira e no meu trabalho —, e as evitava por conta de cobranças.
Experiências passadas me fizeram preferir sexo casual a um namoro que me
prendesse e me cobrasse. Mas com Emilien tenho essa liberdade. Sempre
tive. Mesmo quando mantínhamos uma amizade colorida, ele jamais se
mostrou alguém que me sufocaria, ou me faria escolher entre ele e minha
profissão, ou demonstrou ser um cara possessivo e controlador.
Mais cedo, debaixo do chuveiro, ele confessou que teve ciúmes com a
perspectiva de eu estar com outros caras. Não admiti, mas pensar nele com
outras mulheres também nunca me agradou, mesmo que de mútuo
consentimento nossa “relação” fosse sem exclusividade. Assumir que tinha
ciúmes dele era dar um passo para admitir que meus sentimentos eram mais
profundos do que imaginava. Além do mais, na época, meses depois de nos
conhecermos e de já termos nos envolvido o bastante, nem mesmo eu
conseguia compreender o sentimento. Nós dois, entretanto, fomos adultos e
maduros o suficiente para respeitarmos a liberdade individual de cada um.
Não gostávamos de saber que o outro poderia se envolver com outra pessoa,
mas compreendíamos que sem exclusividade não tinha razão de haver
cobranças.
Jantamos em um restaurante de comida local, Le P’tit Restau. Emilien
quer saber sobre o arquivo em que vim para trabalhar, então acabo
tagarelando muito mais do que costumo fazer contando sobre as pesquisas e o
processo todo em si. Mais tarde, é minha vez de ouvi-lo falar.
Improvavelmente, ele me conta um pouco sobre sua infância — deixando de
lado a parte ruim de ter sido criado por uma mãe narcisista —, sobre Nicole,
e noto verdadeira veneração dele pela irmã. Fala com amor sobre o pai, que
tentou de todas as formas suprir emocionalmente a falta que Elizabeth fez na
sua vida, e acabo por descobrir que Thierry morreu nos braços dele.
— O que está fazendo? — indaga, ao me ver arrastando minha
cadeira para o lado da sua.
— Temos que tirar algumas fotos. Somos namorados agora — falo,
encostando meu rosto ao dele. — Casais tiram fotografias. Vamos, não seja
chato e sorria — digo, erguendo a câmera do celular em nossa direção.
Pela tela, vejo-o olhar para mim com a testa meio franzida.
— Não vai postar isso em nenhuma rede social, né?
Reviro os olhos e aperto mais sua bochecha na minha.
— Não, senhor Odeio-Exposição. Agora, sorria.
Ele o faz. Um sorriso tão lindo que balança todo meu mundo.
— Mais uma — diz, enquanto ainda estou conferindo a primeira.
Olho-o surpresa por isso. Emilien pega o celular da minha mão, nos enquadra
na imagem e bate a foto enquanto está beijando o canto da minha boca. —
Manda essa para mim.
Não contesto sua atitude, afinal, ele não é muito de tirar fotografias.
Então preciso aproveitar esses momentos em que cede aos meus desejos. No
final da noite, como combinado (e apesar de não me agradar por causa da
mãe dele) voltamos para sua casa.
— Shhhh… — ele pede, colocando o indicador na frente dos lábios e
dando uma risadinha baixa. É uma da manhã, a casa toda está em silêncio,
mergulhada na escuridão. Estou levemente bêbada e tropeçando nos meus
saltos. Se não fosse os braços fortes de Emilien, já teria beijado o chão.
— Ainda bem que você está sóbrio — falo escandalosamente, dando
uma risada esganiçada em seguida. Emilien voa em minha direção e tapa
minha boca com sua mão grande. Noto pelas rugas ao redor dos seus olhos
que ele está se segurando para não cair na gargalhada. Tiro sua mão me
sufocando e digo baixinho enquanto ele fecha e tranca a porta: — Por que
você não bebe?
Emil se recosta à porta e me olha com uma expressão dura. Aquela
que faz quando toco em algo delicado e ele não quer se abrir comigo, me
contar seus segredos mais profundos.
— Alguém precisava voltar dirigindo — informa, desviando o olhar
de mim por um segundo. Dou um passo à frente e seguro sua mão,
aconchegando-me em seus braços em seguida.
— Mas nunca vi você bêbado, Emilien. Nem sequer levemente. Você
prefere vinho tinto que eu sei, e raramente te vejo bebendo qualquer outra
coisa. Por quê?
— Só não gosto, ma chérie — explica, abrindo um pequeno sorriso e
sugando meus lábios em seguida. — Não faz meu estilo e eu odiaria ter de
lidar com uma ressaca no dia seguinte.
Satisfeita com sua resposta, apenas abano em positivo e fico quietinha
abraçada a ele, nem mesmo percebendo que começo a pegar no sono. Ouço-o
dar uma risadinha de leve e então o chão some dos meus pés.
— Opa — exclamo, a tontura acertando-me brevemente. Um
momento mais tarde, reparo que estou nos braços dele, sendo carregada
escada acima até seu quarto, como uma princesa.
Não vejo mais nada porque durmo nos braços do meu homem.
Desperto aos poucos e giro na cama, procurando por ele. Seu corpo
quente está logo ao lado do meu, completamente despido. Aconchego-me em
seu tórax, seu braço forte e longo contornando-me um segundo depois.
Ronrono baixinho e enrosco nossas pernas. Abro os olhos e ali está ele, os
cabelos desgrenhados, olhos fechados e um sorriso singelo estampado em seu
rosto marcado pelo sono.
— Bonjour — cumprimento-o, deixando um beijo cálido em sua
mama esquerda.
— Bonjour. Como dormiu?
Só nesse instante, então, percebo que estou tão nua quanto ele,
sentindo nossas peles se tocarem. Pisco diversas vezes e olho por debaixo do
lençol, constatando aquilo que meu tato já tinha notado. Em que momento
tirei minha roupa?
— Eu te despi e te pus para dormir. Você estava bêbada e sonolenta a
ponto de não aguentar arrancar os saltos.
Onde está o emoji de coração nos olhos quando se precisa dele?
— Merci. Foi muito adorável da sua parte.
Ele abre um sorriso preguiçoso e beija meus cabelos. Em seguida, me
puxa pelos punhos e me leva até o banheiro. Tomamos banho juntos; esfrego
suas costas e seu tórax, deslizando pela sua pele macia e úmida até chegar ao
seu pau, que já está duro. Um ou dois minutos depois, estou com o rosto
grudado contra a parede de ladrilhos, Emilien por trás de mim, comendo-me
com todo vigor e gemendo despudoramente. Muitas coisas nele são capazes
de me excitar sobremaneira: o pau dentro de mim é uma delas; sua habilidade
com dedos e línguas é outra. E os gemidos roucos e entrecortados enquanto
me fode é uma das coisas mais lindas do mundo de se ouvir.
Seco seu corpo com a toalha branca quando terminamos nosso sexo
safado e matinal de domingo. Ele sorri como uma criança enquanto me vê
passar o pano no seu corpo definido, quase salivando e querendo trepar nele
de novo.
— Vai descer tomar café da manhã com sua família? — pergunto,
resvalando a toalha pelos seus braços fortes.
— E aturar o péssimo humor da minha mãe? Nem pensar. — Ele
suspira pesadamente e fita para além de mim, o olhar perdido. — Ela acabou
com meu final de semana com Nicole. Eu tinha planos para hoje.
Uma ideia se passa pela minha cabeça. Simples, mas que o fará feliz.
— Talvez não.
Emil me encara com o sobrolho franzido.
— Como assim?
Abro um sorriso sapeca e jogo a toalha em suas mãos.
— Termine de se vestir. Tenho uma ideia.
Sem esperar por sua resposta, deixo o banheiro rapidamente e visto
um par de roupas de Emilien — já que é inviável vestir as minhas da noite
anterior, saia-lápis e camisa frente única, às oito da manhã. Ele sai do
banheiro secando os cabelos com uma toalha e com outra amarrada à cintura.
Parece um deus grego esculpido. Gostoso.
— O que vai fazer? — Quer saber.
— Promete ficar aqui?
Emil ergue uma sobrancelha.
— Vai me trazer o café na cama?
— Mais ou menos.
Ele dá de ombros e acena em positivo, sentando-se na cama.
Enquanto saio do quarto, digo:
— Mas vista-se. De preferência de modo adequado.
Nicole adora a ideia, apesar de ter mostrado alguma tristeza. Eu sei
que ela preferia reunir toda a família em torno da mesa do café da manhã,
mas sabendo que Elizabeth é um tormento para o irmão, aceita minha
proposta. Por sorte, a menina já estava acordada quando bati delicadamente à
porta do seu quarto. Deus me livre incomodá-la. Ela comunica a noiva sobre
nossos planos e logo descemos nós duas juntas até a cozinha. As funcionárias
que a matriarca Dupont trouxe já serviram a mesa.
— A mamãe vai ficar chateada em não tomarmos café com ela —
Nicole pontua, enquanto pega uma garrafa de suco e prepara os copos. Eu
fico incumbida de roubar alguns pedaços de queijo, croissants, geleia e uma
baguete que dê para nós quatro.
— Ela vai ter a companhia da nojenta da Marjorie, não vai? — falo,
colocando tudo que peguei dentro de uma cesta que encontrei.
Nicole abre um sorrisinho triste e abana em positivo.
— Se soubesse que ela teria vindo para infernizar meu irmão, não
teria contado sobre nossos planos.
Paro um segundo com minha tarefa e a olho atentamente. Isso faz
algum sentido. Ainda não tinha compreendido como Elizabeth veio parar em
Loches. Sua chegada não pareceu algo combinado ou planejado. A surpresa
de Emilien ontem de manhã deixou isso bastante evidente.
— Eu a convidei, sabe? Para vir ao meu jantar de aniversário de
sexta-feira à noite. Mas mamãe disse que não suportaria me ver com minha
companheira. — Sua voz baixa consideravelmente, os olhos ficando abatidos
e cabisbaixos. — Elizabeth me garantiu que não viria. Meu erro foi ter dito
que Emilien estaria aqui. Ela adora torturá-lo e pressioná-lo a se casar com
aquela sem-sal da Marjorie. — Nesse instante, seu nariz fino e proeminente
se enruga de um jeito até meio fofinho. — É por isso que ela a trouxe.
— Seu irmão me contou sobre a Émilie. Sinto muito por tudo.
Ela me encara de repente.
— Emil não fala com ninguém sobre esse assunto. — Um segundo
depois, exibe um sorriso bastante convencido. — Isso significa que você é
extremamente importante para ele, como ninguém em uma vida toda foi.
Penso em abrir a boca e perguntar de Désirée. Ela sabia sobre a
gêmea? Sobre as manipulações, as torturas psicológicas, o amor dele por
fotografia que foi interrompido…? Mas aí me recordo que, em torno da mesa,
Nicole demonstrou não saber do que sua mãe e seu irmão estavam falando
quando Elizabeth mencionou o “mal que fez àquela menina”. Isso deve ser
porque ele manteve em segredo seu relacionamento. Faz sentido ter
escondido isso da própria irmã — até porque ela deveria ser só uma criança
na época — se quisesse manter tudo sigilosamente seguro.
— Então… — falo, com cuidado, sentindo que estou o traindo em
querer buscar mais sobre sua vida pelas suas costas. Mas se não se abre
comigo, vou falar com pessoas que possam me contar mais sobre. — Ele
nunca namorou ninguém?
Pegando uma porção de guardanapos de papel e os ajeitando na cesta
que coloquei nosso café, ela responde:
— Tirando o noivado com a Marjorie, que durou cerca de um ano e
meio, acho que não. Pelo menos Emilien nunca nos apresentou ninguém.
Depois da morte do papai, e ele ter ido embora de novo, se distanciado ainda
mais por causa da nossa mãe, meu irmão ficou mais fechado e antissocial.
— Compreendo… — murmuro, jogando um paninho por cima da
cesta depois de tudo já estar pronto. — E você sabe me dizer por que Emilien
não fala sobre o passado dele? — Toco delicadamente no assunto, tentando
não a alarmar. Nicole dá a entender que desconhece o segredo do irmão.
Pensando bem, anos atrás, quando esteve sob ameaça de Leclerc, ele disse
mesmo que somente duas pessoas sabiam sobre isso, uma delas era ele
próprio.
— Sobre o passado dele? — questiona-me, confusa.
— Oui. Você sabe… tem alguma coisa no passado dele… escondido
a todo custo, não tem?
Nicole dá uma risadinha e abana a cabeça em negativo.
— Por que você acha isso?
“Porque o ameaçaram uma vez”, penso em dizer. Em vez disso, digo:
— Porque sempre que quero saber sobre ele, seu passado, Emilien se
esquiva, fica tenso, nervoso, desconversa. Tenho a impressão de que me
esconde alguma coisa.
A menina fica pensativa por algum tempo.
— Emilien passou por uma fase delicada. Pode ser isso. Ele ficou
bastante abalado, sabe? — Novamente, seus olhos ficam cabisbaixos. Quero
desesperadamente perguntar o que aconteceu, mas me seguro. — Foi por
causa da melhor amiga dele, a Désirée. Ela…
— Bonjour! — uma voz irritantemente alegre interrompe o momento.
Fuzilo Marjorie com os olhos enquanto, enrolada em um robe de seda e com
uma maquiagem leve e impecável no rosto, impecável como seus belos
cabelos castanhos, ela adentra a cozinha. — Atrapalho vocês? — indaga,
tomando um lugar à mesa.
SIM!, quero gritar. Ao invés disso, Nicole abre um sorriso forçado e
pega a cesta que arrumamos com nosso café da manhã.
— Já estamos subindo — informa.
— Não tomarão café conosco? Sua mãe já está descendo para se
juntar à mesa.
— Hoje não. Certas presenças são desagradáveis — Nicole diz,
puxando-me pelo punho e levando-me escada acima.

Nós nos juntamos no quarto de Emilien e tomamos café empoleirados


em sua cama. Ao meu lado, ele beija minha têmpora e agradece o momento.
Fico feliz em poder lhe proporcionar alguma felicidade. Fazemos alguns
planos para o domingo, como um passeio pela cidade e almoço em algum
restaurante, nós quatro. Como era de se esperar, Nicole se importa com a
mãe, que veio para passar um final de semana com os filhos.
— Nos últimos anos, tudo o que ela fez foi afastar nossa família,
Nicole — Emilien argumenta. — E sabe muito bem que eu e ela não
podemos ficar no mesmo ambiente por muito tempo.
Compadecida pelo irmão, a moça o abraça desajeitadamente e diz que
ele tem razão. Enquanto ela e a noiva vão vestir algo mais adequado para
nosso passeio, me prontifico a levar a louça para a cozinha, mesmo com o
perigo iminente de encontrar alguém desagradável no caminho. Lavo a pouca
louça que usamos. Estou finalizando quando Marjorie surge, outra vez
impecavelmente vestida. Ignoro-a, seco as mãos e estou voltando para o
quarto de Emil, mas ela me interrompe:
— Elizabeth comentou que você e Emilien estão juntos.
— Desde ontem de manhã, sim — informo, tentando manter a
civilidade. — Conversamos, assumimos que gostamos um do outro, então
não vejo motivo para não sermos um casal.
Marjorie sorri. Parece-me um sorriso falso. A pequena bolsa em sua
mão é apoiada na mesa já limpa.
— Não pude evitar em ouvir uma parte da sua conversa com Nicole.
Se quer um conselho, tome cuidado com o que diz à menina. Ela não sabe
sobre o segredo do Emilien. E se souber, isso com certeza vai abalá-la, vai
mudar toda a visão perfeita e divina que tem do irmão mais velho.
Semicerro os olhos em sua direção, tentando entender aonde quer
chegar com isso tudo.
— Certo. — É só o que digo.
Estou passando por ela para voltar lá para cima e me arrumar para
nosso programa quando Marjorie segura delicadamente meu pulso.
— Em uma relação como a de vocês não se deve haver segredos —
diz, olhando-me nos olhos. — Mas Emil não vai te dizer. Precisa descobrir
por si só. As provas que precisa estão em algum lugar do apartamento dele.
— Por que você simplesmente não me conta? — disparo, trincando o
maxilar. Se ela sabe sobre o passado do meu namorado, não tem que ficar
nesse joguinho de enigmas.
— Não seria justo — argumenta. — Antony revirou o apartamento
dele até encontrar o ponto vulnerável do Emilien. Ele deve ter tomado o
dobro de precaução e mudado tudo de lugar. Mas você pode procurar. E fique
atenta à agenda dele. — Dizendo isto, ela pisca para mim, agarra sua bolsa e
se vai.
Não tenho nem mesmo oportunidade de perguntar como ela sabe
sobre Antony Leclerc.

Fazemos uma espécie de encontros de casais durante o resto do


domingo. Revisitamos diversos pontos turísticos e almoçamos em um bom
restaurante. No final da tarde, antes de partirmos de volta a Paris, passamos
no supermercado e compramos alguns suprimentos para a viagem de pouco
mais de três horas. Ao retornamos para a casa dos Dupont e nos prepararmos
para nosso retorno, descobrimos que Elizabeth e Marjorie já haviam partido.
Nicole fica nitidamente abatida com isso, mas Emilien sequer demonstra
qualquer sentimento — seja de satisfação ou tristeza.
Como Emil e Nicole vieram no carro dele, ele a manda voltar com a
noiva para poder me fazer companhia no meu carro. Chegamos por volta de
oito da noite na capital. Ele não me deixa voltar para meu apartamento, então
sou “obrigada” a ficar em sua cobertura. Nem preciso dizer que a cama
rangeu bastante durante a noite e que fomos dormir bem tarde. Resultado: no
dia seguinte preciso quase ser arrancada debaixo das cobertas para ir à
redação.
Até por volta das duas da tarde, enfrento o mal humor de Héron —
que está pior desde o coquetel. Ele e Isabelle realmente não se entenderam.
Ele terminou de ler o original dela, fez muitos elogios, apontou
superficialmente alguns pontos a serem melhorados e só. Não tocou no
assunto sobre minha irmã ter jogado uísque em sua cara — e eu fiz o mesmo;
cutucar a fera para quê? — e nem disse se toparia editar Sanctus ou indicá-lo
para um editor tão bom quanto ele.
Logo depois do almoço, surge uma ideia e acabo por abandonar meu
posto (as vantagens de ser namorada do dono). Explico a Poirier que
precisarei sair por algumas horas, mas compensarei durante a semana. Corro
até meu apartamento e pego tudo o que preciso. Já sei como retribuir ao
presente que Emilien me deu na semana passada. Mais no final do dia, ligo
para ele e pergunto se estará em sua cobertura. Ele afirma e então
combinamos de nos vermos.
Meu presente é grande e pesado, por isso preciso da ajuda de um
carregador para subi-lo até a cobertura. Emilien atende a porta ainda trajando
suas vestimentas de trabalho. Como sempre, está delicioso em seu terno sob
medida. Seu olhar me analisa atentamente enquanto me apoio no enorme
embrulho.
— O que é isso? — pergunta, erguendo a embalagem. — Mon Dieu, é
pesado! — exclama, adentrando seu apartamento.
— Um presente — falo. Emilien o coloca no sofá e olha para mim.
— Desse tamanho? — Sua surpresa é compreensível.
Sorrio de forma travessa e mordo o lábio inferior. O pacote tem cerca
de um metro de largura, setenta centímetros de comprimento e um dedo de
espessura.
— Abre logo! — incentivo.
Ele o faz, rasgando o embrulho como uma criança desesperada.
Quando termina de desembrulhar, vejo a emoção mais linda e sincera
trespassar seus olhos. Ele se volta para mim, nitidamente emocionado. Um
segundo mais tarde, estou sendo tomada pelos seus braços e boca.
— Você é tão incrível — murmura, dando-me vários beijos.
— Só retribui o presente.
Beijando-me pela última vez, Emilien pega o quadro e o leva até seu
quarto.
Seu presente nada mais é que um painel de vidro com todas as fotos
que ele me mandou nas últimas semanas. Há fotografias nossas também.
Uma das primeiras que tiramos juntos na África, uma no casamento de
Bernardo, e algumas em Loches — milagrosamente ele aceitou tirar mais de
uma.
— Mandei fazer um quadro igual para mim, com as mesmas fotos —
falo, aproximando-me dele e segurando-o pelas mãos. — Quero que você
olhe para essas fotos e se lembre-se de que tem um talento lindo e não
deveria desistir dele.
— Marie… — Sua voz sai arrastada e melancólica.
— Sei que tem responsabilidades com a empresa da sua família, mon
chéri. Mas se não pode viver seu sonho por inteiro, por que não vivenciar ao
menos uma parte dele? Aproveite suas viagens para fotografar, tire um tempo
para si para fazer aquilo que mais gosta. Se quer um incentivo, eu adoraria
receber mais fotografias ou… ser sua modelo. Mas não desista, Emil.
Suas pupilas se dilatam com a sugestão e um mínimo sorriso nasce
em seus belos lábios.
— Podíamos comprar um painel de metal… — sugiro, acariciando
seu rosto. — E todo momento que você fotografar, podíamos revelar e fazer
um mural. Ficaria lindo, não acha…?
— Quero tirar mais fotos com você — fala, apertando seu corpo no
meu, num movimento quase de possessão. — Quero encher a porra desse
painel de fotos nossas. — Seu jeito romanticamente rude me arranca uma
gargalhada, que é abafada quando seus lábios ferozes tomam os meus.
Sou jogada na cama. Ele vem por cima em um segundo, enveredando
sua mão máscula por dentro da minha camisa, em busca dos meus mamilos.
Fazemos um sexo duro e gostoso por mais de uma hora. Estamos nus, suados
e exaustos, mas, mesmo assim, ele faz questão de puxar meu celular e tirar
uma selfie.
— Fotografia pós-orgasmo — brinca, verificando a imagem na tela.
Eu, deitada sobre seu peito desnudo, tampando minha nudez com o lençol
branco. Ele, com um braço em torno de mim e o outro embaixo da cabeça.
Meu sorriso é de êxtase, aquele que você dá quando ainda sente seu
organismo recebendo todos os hormônios que o sexo libera. O sorriso de
Emilien é mais aberto, de felicidade. Preciso confessar: é a primeira vez que
o vejo sorrir dessa maneira.
Emilien desce até a cozinha para preparar algo para comermos. Fico
em sua cama, enrolada nos lençóis, a televisão ligada no Discovery Chanel
falando sobre a área 51, mas não me atento muito. Estou ocupada demais
amaciando o lugar onde ele esteve, inalando o cheiro almíscar e perfumado
que exala da fronha do travesseiro dele.
Namorado. A palavra parece estranha. Tanto tempo que não tenho um
namorado de verdade. No mesmo instante, as palavras de Marjorie invadem
minha mente. “Em uma relação como a de vocês não se deve haver
segredos”. “Mas Emil não vai te dizer. Precisa descobrir por si só. As provas
que precisa estão em algum lugar do apartamento dele.” “E fique atenta à
agenda dele.”
Estou ciente de que é muito errado vasculhar a intimidade de Emilien.
O correto não seria conquistar sua confiança e fazê-lo se abrir comigo? Sim.
Mas o conheço o suficiente para saber que ele não vai contar nada. Tomada
pela curiosidade, levanto-me enrolada no lençol e caminho pelo quarto,
observando tudo ao redor, atenta. Abro algumas gavetas, procuro entre as
prateleiras de uma estante com alguns livros, olho debaixo da cama. Nada.
Adentro o closet. É enorme e extremamente organizado. Vasculho o local por
algum tempo, afastando camisas, tateando fundos, analisando as paredes e
nichos.
É num fundo falso de uma parte onde pendura os blazers casuais que
encontro um cofre. Engulo em seco. A pequena tela digital exibe três palavras
seguidas por seis underlines.

Insira a senha :
______

Penso por vários segundos em uma combinação que possa dar certo.
As possibilidades são o quê… uma em um bilhão?
— O que está fazendo aí? — Sua voz potente soa logo atrás de mim.
Viro nos calcanhares para encontrar um Emilien usando apenas cueca,
braços cruzados na frente do tórax, expressão sisuda, maxilar trincado. Bem
cara de poucos amigos. Penso rápido em uma resposta:
— Estava procurando algo para usar para dormir. Gosto das suas
camisas.
— Você esteve nessa cobertura por tempo suficiente para saber onde
minhas camisas ficam, Marie — adverte, caminhando até a parte exata onde
guarda essas peças. Pega uma de um azul suave e joga em minha direção.
Agarro-a no ar, fazendo o lençol em torno do meu corpo cair aos meus pés.
Emil me come com os olhos, parecendo se esquecer por um segundo
da sua raiva comigo. Visto-me com sua camisa e digo:
— Me dei conta de que não conhecia o restante do seu closet. Estava
apenas olhando suas roupas. — Olho para trás, para o cofre, depois volto a
ele e completo: — Por acaso descobri o cofre. O que você guarda aí?
Uma sobrancelha dele sobe. Novamente, cruza os braços.
— Talvez uma reserva de dinheiro em espécie.
— Você não parece o tipo de homem que precisa de dinheiro em
espécie.
— Nunca se sabe quando precisarei — afirma, sua voz ficando cada
vez mais tensa.
— Pode me mostrar? Não gosto que você me esconda as coisas.
— Então é sobre isso. — Suspira pesadamente, fugindo do meu olhar.
— Continua insistindo. — Com três passos, ele está perto de mim, seus dedos
rodeando meus braços. — Por que insiste nesse assunto? Por que insiste em
tentar me desvendar? Droga, Marie. Você é tão curiosa. E teimosa. Pare de
procurar.
Esquivo-me do seu aperto e dou um pequeno passo atrás, minha
bunda encontrando o armário.
— Por que não me mostra o que tem dentro do cofre, Emilien? —
pressiono. — Porque aí tem alguma coisa do seu passado, não é? Tem o seu
terrível segredo. Não sei se podemos manter uma relação se você me esconde
as coisas! — cuspo, mal percebendo as lágrimas em meus olhos.
Com o rosto marcado de raiva, ele vem até mim, bufando como um
touro. Por algum motivo, fecho meus olhos, amedrontada com sua reação.
Um instante mais tarde, ouço a porta do cofre sendo aberta.
— Veja — ordena, rude. Viro-me e tudo que há lá dentro é o que já
me disse: uma reserva de dinheiro em espécie. — Veja — praticamente rosna.
Aproximo-me mais e analiso todo o interior. Tateio, observo. Não há nada
comprometedor. Apenas dinheiro.
Minha cara queima de vergonha.
— Emil, je suis dé…
Ele ergue a mão, interrompendo meu pedido de desculpas, e sai do
closet sem dizer mais nada. Vou atrás dele um segundo depois. A mesa
redonda em um canto do quarto está delicadamente arrumada com um jantar
improvisado — completamente não-saudável —, mas amo a intenção dele.
Emilien está vestindo sua calça social e se nega a me olhar.
Fico parada no limiar entre o closet e o quarto, pensando se vou
embora, se tento me desculpar ou se o espero se acalmar. Ele termina de se
vestir e se põe à mesa. Então me olha, pega um garfo e aponta para o lugar
vazio.
— Não vem comer? Precisa repor as energias. — Um passo de cada
vez, me aproximo, mas não me sento. Seu olhar encontra o meu. Ele suspira.
— Está tudo bem. Não estou bravo com você.
— Não? — indago, duvidosa. — Sua carranca diz o contrário.
— Não é com você. É justa a sua desconfiança. Só… odeio essa
situação, Marie.
— Me conte, Emilien… — peço suavemente, pondo-me na cadeira
vazia e tocando sua mão. — Confie em mim e me conte. O que aconteceu no
seu passado, o que aconteceu com a Désirée?
Seu corpo fica tenso e rígido como sempre quando toco nesse assunto.
Ele engole um pouco de água na taça e desfaz nosso contato.
— Não insista. Ela sequer está em Paris. Podemos esquecer esse
assunto? Marie… só quero viver em paz contigo. Insistir na minha vida
passada é colocar conflito na nossa relação. Vamos seguir em frente, oui?
Quero contrariá-lo, mas decido por não. Decido que vou usar dos
meios que forem necessários para descobrir mais sobre ele, seu passado e
Désirée. Não é correto, não é ético, mas preciso saber. Preciso descobrir.
Preciso desvendá-lo.
MARIE
Durante a primeira semana do meu namoro com Emilien, passo mais
tempo no apartamento dele — e debaixo dele — do que na minha própria
casa. Sua agenda estava mais folgada nessa ocasião, o que nos permitiu
passar bastante tempo juntos. Nas duas semanas seguinte, porém, seus
compromissos tomam quase as vinte e quatro horas do seu dia. Ele tem
algumas viagens, diversas reuniões e videoconferências e um Congresso em
Lisboa no terceiro sábado depois de Loches, para qual me convida para lhe
fazer companhia.
Estamos caminhando para vinte e um dias de compromisso sério, e eu
já perdi as contas de quantas vezes quebrei os princípios de confiança em um
relacionamento revirando a vida particular dele. Qualquer brecha que eu tinha
sozinha, vasculhava suas roupas, gavetas, livros, celular, notebook. E nada.
Não encontrei uma mísera pista. Marjorie me garantiu que eu encontraria as
provas do passado dele em seu apartamento. Entretanto, Emilien deve ter se
precavido ao quadrado e levado essas tais “provas” para qualquer outro lugar.
Um cofre no banco talvez?
Chevalier também me advertiu a observar a agenda dele. Algo que
não consegui inteiramente. Tentei arrancar algumas informações de Emilien,
mas suas respostas eram sempre iguais: reunião, viagem, reunião,
conferência, viagem, reunião. Não me deu nenhum detalhe a mais, exceto
pelos locais.
Começo a desconfiar de que Marjorie só me disse aquilo tudo para me
deixar paranoica e me fazer invadir a privacidade do meu namorado. Se Emil
descobrir que ando tentando desenterrar seu passado, com certeza ficará
furioso. É isso o que aquela mulher quer, não é? Ver nosso relacionamento
abalado pela falta de confiança.
Então deveria deixar para lá, desistir e, ao invés de invadir sua
privacidade, fazê-lo confiar em mim para se abrir. Quem disse que consigo?
Se ele não contou nem mesmo para a irmã — alguém em quem já
demonstrou ter uma enorme confiança —, não será para mim que contará.
Suspiro alto, afastando os pensamentos da cabeça e tentando me
concentrar no meu trabalho mais uma vez. Quero adiantar o tanto quanto for
possível e ficar mais tranquila para aproveitar a capital portuguesa com meu
namorado sem estar pensando em minhas obrigações — e ele que faça o
mesmo ou vai perder as bolas. A última coisa que quero neste sábado é vê-lo
enfurnado dentro de uma sala de reuniões ou escritório. Já basta as longas
horas que passa durante a semana…
Então, de repente, algo passa pela minha cabeça. Talvez eu já saiba
onde procurar por essas provas, tentar conferir sua agenda e ver o que posso
encontrar. Ligo para ele e pergunto se tem um horário livre depois do meu
expediente. Emil diz que tem uma última reunião às dezenove — um jantar
de negócios num restaurante nos arredores da Dupont Investimentos. Estará
livre às vinte e uma.
— Se importa se nos vermos no seu escritório? — pergunto,
brincando com um lápis e mordendo o lábio inferior. É baixo eu usar sexo e
uma fantasia sexual como pretexto para estar em seu ambiente de trabalho e
vasculhar cada centímetro que eu puder? É. Sei disso. Mas não posso evitar.
Que Emilien nunca descubra, amém. — Tenho um look de secretária bem
interessante, monsieur Dupont.
A linha fica muda de repente, e só posso ouvir a respiração ruidosa
dele. Seguro uma risadinha. Aposto que já está duro ao imaginar o que vamos
fazer em cima da sua mesa. Nunca transamos no seu ambiente de trabalho,
apesar de já termos fantasiado algo do tipo.
— Me espere na portaria do edifício às vinte e uma.
No horário combinado, já estou à sua espera, sob o letreiro enorme da
empresa de sua família. Uso um casaco longo — o mesmo que vesti quando
apareci em sua porta semanas atrás, na noite do coquetel — que o faz
arregalar os olhos enquanto se aproxima depois de estacionar ao lado do
meio-fio e entregar as chaves ao manobrista. Abro um sorriso malicioso,
adivinhando o que se passa em sua cabeça.
— Você não…? — indaga baixinho, parando à minha frente e
olhando-me de cima a baixo. Não sei dizer se suas pupilas dilatadas são de
luxúria ou ciúme.
— Se estou nua por baixo do casaco? — provoco, erguendo a perna
direita até alcançar seu quadril. Emilien me segura com firmeza e faz uma
carranca dura, olhando para os lados. Há um segurança na guarita do prédio
que nos observa.
— Preciso admitir: a perspectiva de você estar sem roupa por baixo
desse casaco me deixa excitado e enciumado ao mesmo tempo.
Sorrio contra sua boca e o beijo singelamente. Por fim, segura minha
mão e nos leva até o último andar. Ele tenta me agarrar no elevador e tirar a
dúvida se estou ou não despida, mas não deixo. Uma vez em sua sala, jogo-o
contra a mesa de trabalho e esfrego nossos corpos, beijando-o, sôfrega e
verdadeiramente necessitada do seu toque. Emilien agarra minha bunda e a
aperta, enviando excitação através do meu organismo. Afastando-me
bruscamente, desabotoa o casaco, quase de forma desesperada.
— Você quer acabar comigo… — murmura, os olhos passeando pelo
meu corpo.
— Com certeza, chéri — devolvo, dando um passo atrás, tirando o
sobretudo e o jogando para o outro lado.
Divirto-me com a expressão de volúpia em seu rosto e o modo como
me come com os olhos.
Trajo uma saia de couro bastante curta e justa, que contorna meu
corpo e salienta minhas curvas. A camisa de seda é frente única; as duas tiras
do tecido fazem um decote profundo e deixam a lateral dos meus seios soltos
à mostra. Aproximo-me dele com o polegar nos lábios e sorrio de um jeito
safado, gostando de exercer algum poder sobre seu corpo.
Viro-me de costas e esfrego-me na ereção que já marca sua calça
social. Seus lábios encontram a pele do meu pescoço ao mesmo tempo em
que o enlaço com meus braços e jogo a cabeça para trás, dando-lhe mais
espaço. As mãos deslizam pelo meu tórax, passam pelos seios, abdômen e
chegam até o vão das minhas pernas. Então ele volta, enveredando por dentro
do decido e encontrando meus mamilos entumecidos.
Por algum tempo, ele dá atenção a esta parte do meu corpo, beijando-
me indecentemente no pescoço, roçando sua barba na minha pele e
murmurando obscenidades em meu ouvido que me deixam cada vez mais
úmida. Num rompante, estou encurvada contra a mesa, minha bunda
empinada em sua direção, um tapa estalando com força.
— Você me provoca, mulher — cicia, descendo sua boca suculenta
nas minhas costas expostas. Tudo que posso fazer é suspirar enquanto ele me
toca e se agacha à altura da minha bunda. — E por me provocar, seu castigo
será eu te comer gostoso.
— Adoro esse castigo — murmuro, mordendo o lábio inferior.
Emilien abaixa minha saia e beija cada lado das minhas nádegas, rosnando
alguma coisa sobre minha calcinha finíssima.
Ele se põe às minhas costas e esfrega sua ereção em mim enquanto os
dedos enroscam na tira fina da calcinha. Emilien a puxa e a solta, estalando
na minha pele. Um tapa esquenta minha bunda, forte, estalado, que faz
percorrer uma sensação maravilhosa pelo meu corpo.
Gemo meio descontroladamente, principalmente quando agarra minha
calcinha e a esfrega para frente e para trás, lentamente, roçando o tecido em
meu clitóris e enviando sensações esplêndidas para cada célula do meu corpo.
Emilien separa minhas pernas e me faz inclinar mais sobre sua mesa de
trabalho, de um jeito meio duro. Sinto-me completamente exposta e devassa,
aumentando a umidade entre minhas coxas. Seus dedos habilidosos colocam
minha calcinha de lado e um segundo mais tarde deslizam para dentro de
mim, entrando e saindo devagar, mas igualmente delicioso. Choramingo o
nome dele, quase em tom de súplica, querendo logo que me coma com força,
como me prometeu segundos atrás.
Ele ainda me fode com os dedos quando beija meu pescoço, lenta e
sensualmente, sua boca suculenta resvalando pela minha pele e enviando
arrepios na minha coluna e entre as pernas. Novamente, Emilien vai tecendo
seus beijos pelas minhas costas, descendo e deixando o rastro úmido e quente
dos seus lábios até estar à altura do meu sexo.
Um segundo mais tarde, sua língua está no meu ponto mais sensível,
fazendo as maravilhas que somente Emilien Dupont parece ser capaz de
fazer. Agarro-me à borda da mesa com força em um ato desesperado de
aguentar o prazer que está me dando.
Dois dedos se juntam às suas chupadas maravilhosas, enquanto o
polegar da outra mão acaricia meu clitóris com a pressão perfeita. Começo a
sentir a onda do primeiro orgasmo. Emilien mantém o ritmo e o prazer até
que meu corpo estremece e eu gozo com sua língua e indicador dentro de
mim. Meu grito é trêmulo e esganiçado. Desabo sem forças sobre a mesa,
sentindo o relaxamento proporcionado.
Ele se põe atrás de mim e me abraça, segurando meus seios com
firmeza, penetrando-me devagar, centímetro por centímetro.
— Porra de mulher apertada — rosna no meu ouvido, movendo-se
lentamente.
Então é tudo o que diz pelos próximos minutos enquanto me fode
com toda sua potência, as mãos fortes segurando-me pela cintura, firmes,
apertando-me conforme entra e sai de mim em um ritmo enlouquecidamente
rápido. Nossos gemidos se misturam, nossos corpos grudam um no outro, o
suor escorrendo de nossas peles. Ofegante, Emilien diminui a velocidade,
mas sem deixar de socar fundo e alcançar aquele ponto maravilhoso que me
leva às alturas. De repente, sinto o toque do seu polegar na área que
pouquíssimos homens tiveram acesso. Ele me massageia ali, com
movimentos circulares e suaves, lubrificando-o com minha própria essência.
A sensação de prazer é intensificada quando, vagarosamente, seu polegar me
penetra. Fecho os olhos e o recebo com agrado, gostando, além do que posso
admitir, que me foda dessa maneira.
Emil apoia o pé direito sobre a mesa e, num rompante, impulsiona seu
quadril contra o meu. A mão livre me segura firme pelos cabelos e me leva a
encontrar sua boca em um beijo rude, sua barba marcando a pele do meu
rosto. Gemo alto contra seus lábios, sem pudor, sem controle sobre meu
próprio corpo, sem vergonha de mostrar o estado que me deixa. A posição é
magnífica e se torna ainda mais quando a outra mão solta meu cabelo para
tocar no meu ponto sensível.
— Emilien, vou gozar de novo… — anuncio, sentindo os trancos que
seu quadril causa no meu.
— De novo, ma belle? — indaga, e tenho certeza que está exibindo
um sorrisinho convencido.
— Não tenho culpa se me come gostoso — devolvo, trincando os
dentes por causa das suas investidas atrás de mim. Seguro-me com mais força
à borda da mesa e relaxo o corpo, deixando o segundo orgasmo estremecer
todas as minhas bases.
No mesmo instante, o peso do porte dele cai todo sobre mim. Tenho
certeza que gozamos juntos. Permanecemos conectados, recuperando a
respiração por algum tempo. Emilien sai de dentro de mim e me vira em sua
direção, tomando-me em um beijo amoroso e me cobrindo com seus grandes
braços.
— Vai dormir lá em casa? — pergunta, afastando-se e subindo as
calças. Pego meu casaco jogado do outro lado e o visto, fechando as laterais e
as segurando.
— Preciso pegar mais uns pares de roupa se eu for.
— Passamos no seu apartamento, então.
Olho ao redor. O local está à meia-luz. Preciso de uma oportunidade
para revirar alguns cantos.
— Tudo bem. Estou com fome. Podemos pedir alguma coisa? —
indago, aproximando-me dele e o pegando pela gola da camisa, o que me
obriga a soltar o sobretudo, que se abre e revela meu corpo seminu e suado.
Emilien desce seus olhos para mim e abre um leve sorriso.
— O que você quiser, ma jolie.
— Peça e mandem entregar aqui. Vou repor as energias e acho que
deveríamos ter mais uma rodada, dessa vez no seu sofá — sugiro, descendo a
mão até o vão das suas pernas.
A expressão em seu rosto me dá a certeza de que a ideia o agrada.
Emilien pega o celular e pede comida italiana para nós. Enquanto esperamos
pela entrega, trocamos mais alguns beijos indecentes no seu sofá. Minutos
depois, o telefone dele toca, a portaria avisando da entrega. Ele deixa um
beijo no meu rosto e me diz que volta logo. Emil mal atravessa a porta e já
estou em pé, olhando atentamente ao redor. Acendo todas as luzes e começo
pelas gavetas. Encontro algumas pastas de documentos que nada tem a ver
com o que procuro. A verdade é que aqui não há muito onde procurar. Seu
escritório é praticamente desprovido de móveis. Ainda assim, olho algumas
prateleiras, entre os livros. Encontro um pequeno cofre, mas está destravado e
vazio. Vasculho sua mesa e encontro um tablet. Ligo-o e acesso sua agenda,
seguindo o conselho de Marjorie.
Analiso-a minuciosamente. Um monte de reuniões como sempre,
viagens marcadas, inclusive, para dentro de meses, jantares e almoços de
negócio, visitas a algumas instituições que ele mantém com as filantropias,
eventos beneficentes, palestras, congressos…
Duas especificações, contudo, chamam minha atenção. Uma delas
está apenas com a letra “N” num espaço de quase duas horas. A outra é a
letra “P” e dura pouco mais de uma hora. Não há mais detalhes do que seriam
esses seus compromissos. Analiso as semanas anteriores e confiro que os
eventos “N” e “P” são constantes, apesar de serem em horários e dias
alternados. Em algumas ocasiões, “N” aparece duas vezes na mesma semana.
— Procurando alguma coisa? — a voz de Emilien soa no meio do
silêncio, assustando-me. Quase deixo o tablet despencar da minha mão para o
chão. Ergo o olhar e o vejo adentrando mais o cômodo, trazendo nossa
comida. Ele coloca tudo no sofá e me olha novamente, cruzando os braços na
frente do tórax.
— Só queria saber como está sua semana. E vi que está lotada, como
sempre. Tem uma viagem para Lyon antes de Lisboa. — Emil sempre está
em Lyon. É um dos maiores polos de seu negócio.
Sento-me no sofá e pego uma das caixas, abrindo-a. Meu estômago
ronca de verdade ao ver a lindeza de um risoto bem-feito.
— Como se eu não tivesse te dito que tinha compromissos à beça —
rebate, pondo-se ao meu lado e pegando a sua refeição. Emilien optou por
lasanha.
Dou uma garfada no risoto e pergunto, como quem não quer nada:
— O que são seus compromissos “N” e “P”?
— “N” de não é da sua conta e “P” de pare de vasculhar minha
vida .
Assustada com seu tom rude e mal-educado, paro de comer na mesma
hora. Seu semblante é tão duro quanto sua voz e frase. Levanto-me, deixando
a comida praticamente intocada, e caminho até minha saia, que continua
jogada no meio do seu escritório. Visto-me sem que ele diga uma palavra.
— Você veio aqui só para procurar alguma coisa? — questiona, seu
tom de voz denunciando chateação e raiva.
“Oui” seria a resposta mais verdadeira, mas não posso ser sincera
com ele nesse momento. Bem, ele não é sincero comigo, não tenho obrigação
nenhuma de também ser.
— Non. Eu vim porque realmente queria trepar com você na sua
mesa, Emilien — respondo, odiando ter de mentir assim. — Me desculpe se
mexi na sua agenda, não sabia que era segredo de Estado os seus
compromissos.
O maxilar dele trinca. Seus olhos praticamente faíscam. Ele deixa a
comida de lado e vem até mim, mas me esquivo do seu toque. Ele não vai ser
um estúpido comigo e depois me amansar.
— Acho melhor eu ir para meu apartamento — falo, contornando seu
corpo e caminhando para a porta.
Emilien me segura pelos punhos e me impede de continuar meu
caminho.
— Desculpe minha grosseria. Mas está me irritando essa sua mania de
procurar coisas onde não tem.
— Não estou procurando nada, Emil — respondo, desfazendo-me do
seu toque. — Peguei sua agenda apenas como uma forma de passar o tempo,
não fiz por mal nem por segundas intenções. Mas pelo jeito, até alguns dos
seus compromissos você gosta de manter em segredo. E quer saber? Odeio
isso. Você me conhece como ninguém, eu sempre me abro para você, e não
só no sentido sexual, e em compensação você se fecha cada vez mais.
Ele passa a mão pelos cabelos e suspira.
— Está errada. Você sabe mais de mim do que qualquer outra mulher.
Eu me abri em Loches… Te contei segredos que nem mesmo Nicole sabe.
Mas certas coisas prefiro manter para mim. Por que simplesmente não pode
respeitar isso?
— Se abriu depois de muita pressão! Você nunca me conta nada por
vontade própria. Como agora. O que tem de mais me contar do que se tratam
dois compromissos? Se o fizer, será porque estou aqui te pressionando. Não
vamos funcionar dessa maneira, Emilien. Não posso conviver com um monte
de segredos rondando nosso relacionamento.
— Uma relação é baseada em amor, confiança e respeito. Você parece
que não tem nenhum dos três por mim — diz, entre os dentes, em um tom de
raiva e tristeza.
Sua frase é como um tapa na minha cara. Remoo suas palavras,
sentindo uma dor insana no coração.
— Como você espera que eu ame, respeite e confie em alguém que é
uma incógnita para mim, que mente e me esconde as coisas?
— Por que isso agora? Sempre respeitou meu direito de não te falar
da minha vida, meu passado, meu segredo. Mas agora, depois de Loches,
depois de Marjorie, tudo o que faz é me pressionar, vasculhar e tentar invocar
meus demônios!
— Porque agora somos um casal! — grito, apontando um dedo na sua
cara.
— Sermos um casal não tira o meu direito de ter privacidade! —
Emilien devolve, pegando meu dedo e abaixando minha mão com violência.
Ele afaga o próprio rosto, visivelmente abalado com nossa discussão.
Respiro fundo e fecho os olhos, recuperando o ar e tentando não chorar em
sua frente. Mon Dieu, por que estou agindo dessa maneira, como uma
namorada louca e paranoica? Não sou assim, odeio pessoas assim e odiaria se
os papéis fossem invertidos. Emilien tem razão. Por mais curiosa que eu seja,
mesmo quando era só sexo entre nós, sempre respeitei seu espaço, sua
privacidade, seus segredos…
— Psicólogo — murmura, de repente, ainda cabisbaixo. — É “P” de
psicólogo. Você deve saber que tenho a mente meio fodida por causa da
minha mãe.
— Por que está abreviado?
Ele dá de ombros.
— Era eu mesmo quem marcava minhas consultas. Para evitar que as
funcionárias que tinham acesso à minha agenda soubessem da terapia, eu
colocava apenas um “P”. Acho que é algo particular demais para as pessoas
saberem. Mesmo que agora uma ou duas pessoas saibam que esse
compromisso é com um psicólogo, mantive por hábito.
— E a letra “N”?
Seu rosto toma as mesmas proporções sombrias, a expressão que não
consigo ler.
— É particular…
— Emilien… — suspiro, cansada disso. Não vou insistir. Não vai
resolver pressioná-lo e só colocará mais tensão no nosso namoro. Não quero
isso. Quero viver em paz com ele. Dou um passo à frente e o envolvo em
meus braços. — Tudo bem. Se não quer dizer, não diga.
— Nanterre — confessa, acariciando meus cabelos. — Tenho uma
reunião lá amanhã. Estou estudando algumas instituições para manter.
Penso em perguntar por que está abreviado, mas desisto. Desisto
porque sei que ele está mentindo. Toda semana ele tem reunião em Nanterre?
Desde a sua volta? Não é possível que seja isso. Tem alguma coisa lá… e ele
está me escondendo. Por sorte, memorizei o horário desse seu compromisso e
sei exatamente o que fazer para descobrir o que ele de fato fará na comuna.
Eu vou segui-lo.

O compromisso “N” de Emilien está marcado para as quatorze horas.


Sendo assim, às treze já o espero frente ao edifício da Dupont Investimentos,
dentro de um carro alugado. Por volta de uma e vinte, ele deixa a garagem do
prédio e segue até a comuna. A viagem dura menos de meia hora; o destino é
uma casa de repouso.
O que esse homem veio fazer em uma casa de repouso? Observo de
longe, a uma distância segura. O local é uma construção extensa de dois
andares, dentro de muros e ambiente arborizado. Há uma guarita na entrada,
onde ele se identifica e entra com o carro.
Emil veio visitar algum parente? Um dos avós? Talvez o pai…? E se
Thierry não for seu pai biológico e o verdadeiro estiver aqui, sob cuidados de
terceiros? Essa tortura de remoer um monte de teorias dura uma hora.
Emilien só deixa o local às quinze e cinco. Quando seu carro avança a rua e
vira a esquina, saio do meu e caminho rapidamente até a guarita. Um guarda
me aborda e pede identificação. Entrego-lhe minha carteira de motorista e
digo que vim ver uma vaga para minha avó. Minha entrada é liberada e em
cinco minutos estou na recepção, tentando tirar alguma informação. A
recepcionista primeiramente me fala sobre as regras da instituição e mais uma
porção de coisas nas quais não estou interessada. Só depois de alguns
minutos consigo interrompê-la e dizer:
— Escute, preciso de uma informação. — A moça fica atenta às
minhas palavras. — Sou jornalista e trabalho no grupo editorial de Emilien
Dupont, você deve conhecê-lo. Ele mantém alguém aqui, non?
— Sim, o monsieur Dupont mantém uma paciente nessa instituição.
— Então… é uma mulher?
— Sim, senhorita Julien. Mas me desculpe, não posso dar detalhes
sobre nossos pacientes.
— Eu só preciso de um nome e sobrenome.
A funcionária parece bastante incomodada e se remexe em seu lugar,
ajeitando o terninho em seu corpo.
— Sinto muito. Qualquer informação sobre nossos pacientes é
completamente confidencial. Não temos nenhuma autorização para isso,
senhorita Julien.
Suspiro, derrotada, sem saber mais o que fazer. Subitamente um
absurdo passa pela minha cabeça. Empertigo sobre o balcão e sussurro:
— Só me confirme uma única coisa. A paciente que Emilien mantém
aqui… o primeiro nome dela é … Désirée?
A recepcionista me encara com olhos arregalados, um misto de
surpresa e hesitação saltando de sua íris castanha. Ela está para abrir a boca e
me responder, quando uma voz forte como trovão ressoa bem às minhas
costas.
— O que está fazendo aqui?!
Por um segundo inteiro fico imóvel, praguejando-me por ter sido
flagrada. Então me viro lentamente e fito um Emilien extremamente
enraivecido.
— Você me seguiu, Marie Julien?
EMILIEN
Quatorze anos antes.
Exatamente um mês depois, eu apareço em sua porta.
É de manhã, Désirée nem se trocou ainda. Usa um pijama de ursinhos
que sempre achei fofo, cabelos bagunçados e uma caneca de chá mate nas
mãos — sei pelo cheiro. Ela ergue os olhos em minha direção e entreabre os
lábios ao me ver. Meu nome continua na lista de pessoas autorizadas a subir e
ainda tenho a chave de quando morei aqui.
— Emil… — murmura, surpresa com minha visita.
Fico parado no umbral da porta, sem saber como agir exatamente. A
última vez em que a vi foi no funeral de Thierry, uma hora mais tarde de tê-la
beijado e terminado meu noivado com Marjorie. Mesmo nessa ocasião, não
trocamos nenhuma palavra.
— Salut… podemos conversar?
De um modo estranho, ela me parece sem jeito com minha presença.
Apesar disto, acena em positivo, me dá passagem para entrar e oferece o sofá
arrumado para eu me sentar. Ela se põe no lugar oposto, de frente para mim.
— Como você está? — pergunto, como uma forma educada de
começar nosso diálogo.
— Estou bem. E você?
Desvio o olhar por um instante, concentrando-me em meus dedos
entrelaçados.
— Ainda me habituando à ausência de Thierry.
Ficamos em silêncio por algum tempo, até que Désirée o quebra:
— Seu casamento é na próxima semana, não é?
Suspiro alto e me recosto no sofá. Minha mãe ficou histérica quando
soube que terminei meu noivado. Ela já estava com os nervos aflorados por
conta da morte do meu pai e a notícia do meu rompimento com Marjorie só
piorou tudo a ponto de ela me agredir com alguns tapas.
— Na verdade, não. Nós terminamos — revelo. Aguardo um segundo
antes de encontrar seu olhar.
Como imaginei, Désirée está surpresa e, conhecendo-a bem, seu
semblante também revela que se sente parcialmente culpada.
— Foi por causa do nosso beijo? — pergunta, levemente alarmada. —
Emilien, eu não quis… — Não a deixo continuar. Antes que possa esperar,
estou ao seu lado, segurando-a pelas mãos e a olhando dentro dos olhos.
— Não foi sua culpa. Eu te beijei. Eu terminei com Marjorie. Só
aceitei me casar com ela por causa da pressão da minha mãe. Mas eu não a
amo, Désirée. O que tivemos foi há muito tempo e foi passageiro.
Ela balança a cabeça em positivo, parecendo um pouco mais aliviada
com a perspectiva de não ter “destruído” um noivado. Ao terminar seu chá,
apoia a xícara na mesinha de centro e então me questiona:
— O que precisamos conversar?
Molho o lábio inferior, procurando pelo modo certo de abordar o
assunto. Não vejo outra saída senão recorrer a ela. Eu poderia tentar um
empréstimo no banco, mas já vou pagar a dívida com Chevalier a juros altos
e abusivos; empréstimo bancário — que me cobrará ainda mais juros — está
fora de cogitação.
— Antes de morrer, papai me contou que… a Dupont Investimentos
está falindo — confidencio, quase como um sussurro. Os dedos dela se
apertam mais nos meus. Ergo meu olhar. — Ele contraiu uma dívida enorme,
fez um empréstimo com o pai da Marjorie a juros altíssimos para tentar
reerguer a empresa. Vamos perdê-la e tudo que Thierry conquistou se não
quitarmos esse débito. Eu não sei como salvar nossa empresa, Désirée.
— Veio me pedir dinheiro emprestado? — questiona, suavemente.
Fecho os olhos, sentindo meu orgulho ferido. Não queria ter de me
rebaixar a esse ponto, claro que não. Mas não vejo alternativa viável.
— Isso. Podemos fazer algum tipo de negócio, não sei — falo,
levantando as pálpebras novamente. — Desde que seja benéfico para mim
também. Já vou pagar juros abusivos ao Chevalier. Teremos de entrar em um
acordo sobre o quanto você pretende cobrar e…
Um segundo depois, ela me abraça, amaciando meus cabelos.
— Emilien, você é meu amigo… Claro que te empresto esse dinheiro
e sem te cobrar um euro a mais por isso.
— É muito dinheiro, Désirée — alerto. — E não seria justo não te
pagar juros.
— E com certeza eu tenho. — Dá de ombros. — Mas façamos assim,
os juros que acertamos, você ajuda alguma instituição de caridade, o que
acha?
Sorrio levemente, pensando em como ela tem um coração que não
cabe no peito. Désirée começou a ser mais engajada em projetos sociais e
filantropias de alguns tempos para cá, segundo acompanhei por meio de
algumas notícias a seu respeito.
— Tu es un ange dans ma vie. — “Você é um anjo na minha vida”.
Tomo-a em meus braços novamente, apertando-a forte, grato por tê-la como
minha amiga.
— Nada que você não faria por mim se os papéis fossem invertidos
— sussurra de volta ao meu ouvido.
E ela está coberta de razão.
Désirée me acompanha até a primeira instituição que receberá o valor
referente ao que seriam os juros do meu empréstimo. Escolho um dos
orfanatos da cidade e assino o cheque. De lá, passamos no Le Procope para
almoçarmos juntos.
— E como anda a Dupont? — ela quer saber enquanto aguardamos
nossos pedidos.
Só tem um mês que quitei minha dívida com Chevalier. Minha amiga
me emprestou bem mais do que eu estava precisando. O dinheiro ajudou a
pagar meu débito com o pai de Marjorie e ter um capital para voltar a investir
corretamente. Também como ajuda, Désirée me “emprestou” um dos seus
maiores conselheiros e especialistas na área de economia e investimentos —
Remy Gaillard — para me ajudar nessa fase de, pouco a pouco, reerguer a
empresa da minha família. Decidi me focar com mais afinco e tenho feito
bons contratos, contando com ajuda da minha equipe e do monsieur Gaillard.
Inclusive, como um apoio moral, minha amiga decidiu investir em algumas
ações comigo.
— Graças a você e a Remy estou conseguindo reerguer a Dupont
Investimentos. Eu não saberia triplicar o capital investido em duas semanas
não fosse a ajuda de vocês dois.
A mão macia e acolhedora dela vem até a minha, acariciando-me,
acompanhada de um sorrisinho.
— Fico feliz em te ajudar, Emilien. E como estão as coisas com sua
mãe?
Suspiro alto e pesado, odiando ter de entrar nesse âmbito.
— Cada vez pior. Vou embora outra vez. Elizabeth está insuportável
desde a morte do papai. Ela ainda… me culpa por eu não ter buscado ajuda.
— Balanço a cabeça, tentando afastar o sentimento da minha cabeça e do
meu coração. Só Deus sabe como também me senti culpado. Eu deveria tê-lo
mandando fechar a boca e saído correndo para pedir socorro. Talvez Thierry
estivesse vivo hoje. — Não dá mais, Désirée. Não suporto mais o humor
daquela mulher, como me manipula e me pune.
— Deveria mesmo sair de casa, Emilien. Sabe que nunca concordei
que voltasse para lá — pontua, abrindo um pequeno sorriso de agradecimento
quando a garçonete entrega nossas comidas. — E sabe de uma coisa? Meu
apartamento sempre estará a sua disposição. Seu quarto ainda está vazio.
Sorrio, baixando levemente os olhos. Désirée é tão minha amiga. E
preciso confessar que tenho pensado no nosso beijo mais do que deveria.
— Você me suportaria de novo? Ter minhas cuecas e meias jogadas
pelo apartamento? — brinco, bebendo um pouco do meu vinho.
Ela dá uma risada gostosa e responde:
— Você é um cara organizado, sabe disso. Mais fácil eu deixar
calcinhas e meias espalhadas do que você.
Rio um pouco e sou obrigado a concordar.
— O que me diz? — pressiona, ainda acariciando minhas mãos.
— Prometo pensar no assunto.
Terminamos nosso almoço falando de outras coisas. Consigo me
divertir um pouco com Désirée, como há tempos não me divertia. Confesso
que senti falta da sua amizade, conversa, os risos exagerados que chamam a
atenção dos clientes à nossa volta. Ela é uma mulher alegre e feliz que não
tem medo nem receio de demonstrar isso em público. Ao final, eu a levo para
seu apartamento. Ela para no limiar e se vira para mim, a bolsa dependurada
em seu ombro direito.
— Quer entrar e tomar alguma coisa?
— Non, merci. Tenho que voltar para a Dupont. Sabe? — murmuro,
balançando as sobrancelhas. — Sou um homem de negócios agora.
Désirée ri e me dá um tapa no peito. Ela meio que se desequilibra,
dando um passo desajeitado para frente e precisando se escorar em mim.
Seguro-a com firmeza e a ajudo a se levantar. Nós nos encaramos por alguns
segundos, uma tensão diferente rondando acima de nossas cabeças. Minha
respiração fica desregulada e meu coração erra uma batida quando sinto
nossa proximidade. É estranho, porque sempre fomos próximos, mas agora, o
modo como a seguro, a maneira como fita meus lábios e como sinto suas
mãos frias, parece diferente e mais intenso. Ergo-a devagar, ela continua
apoiada em meu tórax, os olhos fixos e atentos na minha boca…
Tento murmurar seu nome e perguntar se está tudo bem, mas sou
calado quando ela me beija, de repente, pegando-me completamente
desprevenido. Désirée enlaça meu pescoço e se ergue nos pés, forçando
minha boca contra a sua. Eu reluto por um segundo, mais surpreso do que por
qualquer outra coisa, e quando me envolvo no momento, quando começo a
abrir mais espaço e penso em circundar sua cintura e trazê-la mais para mim,
ela se afasta tão subitamente quanto se aproximou.
Com as mãos na boca, o rosto horrorizado, murmura:
— Emilien, désolée. Je… — Desta vez sou eu quem a calo. Tomo-a
em outro beijo e termino o que ela não teve coragem. Empurro-a para dentro
do apartamento. A porta bate atrás de nós quando caímos no seu sofá e
começamos a um despir ao outro.

O cheiro de café fresco desperta meus sentidos. Giro na cama


vagarosamente à procura dela, mas não a encontro. Encosto-me na cabeceira
e coço os olhos antes de decidir me levantar e me arrastar até a cozinha.
Désirée traja apenas um moletom longo que mal cobre sua bunda, os cabelos
ruivos amarrados de qualquer maneira. Aproximo-me e a abraço por trás,
inspirando fundo seu cheiro e deixando um beijo quente e úmido em seu
pescoço.
— Bonjour — murmuro, beliscando sua orelha com meus dentes.
Ela se vira para mim, com um dos sorrisos mais lindos que já vi, e me
enlaça pela nuca, dando-me um beijo suave nos lábios. Suas mãos pequenas
escorregam pelo meu tronco despido conforme me beija.
— Bonjour — responde, por fim. — Fiz seu café da manhã — diz,
virando-se de volta à bancada e pegando uma bandeja com minha
combinação favorita: croissant, baguete, geleia de amora e café. — Pela sua
formatura ontem. Félicitations, monsieur Dupont. Seu primeiro dia à frente
da empresa como homem formado.
Pego a bandeja da sua mão e a deixo na mesa, ignorando-a por um
segundo. Envolvo-a pela cintura e a ponho sobre a bancada da pia,
encaixando-me entre suas pernas e roubando outro beijo intenso e profundo.
Nos últimos quase três anos, consegui colocar a Dupont Investimentos nos
trilhos outra vez. Aprendi muito com Remy e dei o máximo de mim para não
decepcionar o meu pai. As ações da empresa estão em alta novamente, paguei
toda a dívida com Chevalier, seis meses atrás quitei o empréstimo com
Lacroix, e meu patrimônio cresceu quase duzentos por cento desde então.
Jamais teria conseguido isso se não fosse pela ajuda dela, pelo seu
apoio e sua dedicação para comigo. Devo muito ao meu mentor Remy, mas
devo ainda mais a Désirée que confiou em mim.
— Tenho muito o que te agradecer, mon ange — digo, acariciando
seu rosto. Ela me beija um instante depois, abraçando minha cintura com as
pernas, e então sorri. — A Dupont Investimentos não estaria tão bem se não
fosse você. — Je t’aime beaucoup.
— Je t'aime aussi beaucoup. — “Eu também te amo muito.” Estou
prestes a devorar sua boca, erguer o moletom e fazer amor com ela aqui
mesmo, mas sou interrompido. — Ton petit-déjeuner, Emilien — lembra-me,
apontando para o meu café da manhã sobre a mesa atrás de mim. — Coma
antes que esfrie. — Dá-me um beijo na ponta do nariz e desce da bancada,
sumindo pelo apartamento até nosso quarto.
Estou terminando de comer quando ela surge, linda dentro de um
conjunto de calça e blazer femininos, o scarpin preto deixando-a dois dedos
mais baixa do que eu, maquiada e penteada. Como eu, ela também está à
frente da empresa da família.
— Já estou de saída, mon chéri.
Levanto-me e lhe dou um beijo e um abraço.
— Vou chegar mais cedo. Faço o jantar ou peço alguma coisa?
— Peça uma pizza — instrui, caminhando até a porta, e eu a sigo. —
Estive pensando… neste final de semana, podemos sair com Nicole e levá-la
a algum lugar. O que acha?
Sua sugestão me deixa muito feliz. A última vez que vi minha irmã
foi alguns meses atrás, em sua festa de aniversário. Désirée me acompanhou
e ficou ainda mais próxima de Nicole. Por conta da minha mãe e do seu
maldito narcisismo, tive de me distanciar e de esconder nossa relação. Já
estamos juntos há quase três anos e ninguém sabe disso. As pessoas
comentam, mas somos bem discretos. A última coisa que queremos é minha
mãe nos infernizando.
— Ela está com quase quatorze anos. Levá-la ao zoológico não vai
mais funcionar.
Désirée dá uma risadinha e concorda, aconchegando-me mais no meu
tórax.
— Uma noite no cinema, que tal? Depois a levamos para comer um
lanche e tomar um sorvete.
— Vou ligar para ela e saber o que acha.
— Ótimo. Vejo você à noite. — Por fim, despede-se com um beijo e
se vai.
Eu volto para nosso quarto e começo a me arrumar. Não muito tempo
depois, meu interfone toca; a portaria avisa que minha mãe quer subir e me
ver.
Confesso que congelo quase no mesmo instante. O que raios ela
estaria fazendo aqui? Não é segredo para ela onde moro e com quem vivo,
nem da minha “amizade” com Désirée, mas mamãe nunca teve a iniciativa de
uma visita pessoal e informal como essa. Respiro fundo e permito que suba.
Cinco minutos depois, quando atendo a porta, ela me olha de cima a baixo,
com seu mesmo ar de superioridade.
Sem dizer nada, mamãe vem até mim, me dá um beijo na testa e entra
no apartamento. Fecho a porta vagarosamente, ainda assimilando sua
presença. Quando menos espero, seus dedos habilidosos estão terminando de
abotoar minha camisa e dando o nó na minha gravata.
— Mamãe, pode me dizer o que veio fazer aqui? — pergunto. Ela não
me encara, concentrada no nó.
— Vim ver meu filho e parabenizá-lo por sua formatura.
— Você não apareceu — aponto, meio ressentido.
— Tive contratempos.
Penso em perguntar que contratempos, mas desisto. Ela vai mentir, de
qualquer maneira.
— Não seja mal-educado e me ofereça um café, Emilien.
Com um suspiro, deixo-a na sala e vou para a cozinha preparar o café.
Quando retorno, ela não está mais aqui.
— Mère? — chamo-a. Ouço um barulho vindo do final do corredor e
sigo até lá, a xícara ainda nas minhas mãos.
A porta do meu quarto está aberta. Meu coração acelera. Minha mãe
está parada no meio do cômodo, analisando tudo minuciosamente. Mas que
maldita invasão de privacidade é essa? Apoio o café com força sobre a
cômoda e cruzo os braços na frente do tórax, irritado com sua falta de
educação. Elizabeth não diz nada. Fica apenas olhando ao redor por longos
segundos. Minha cama de casal desarrumada, as fotografias em que estou
junto de Désirée nas paredes e prateleiras. Demoro a notar a porta do closet e
do banheiro abertas.
— Por que invadiu o meu quarto? — indago entredentes.
Por fim, ela se volta para mim, encarando-me daquela sua maneira
intimidadora.
— Sabe, Emilien… — começa, andando pelo quarto. — Você está há
quase três anos morando com esta sua amiga… Désirée. É engraçado o fato
de, apesar de o apartamento ter dois quartos, apenas um deles estar habitado.
A cama de casal foi usada nos dois lados, o closet tem roupas masculinas e
femininas, na gaveta do criado-mudo à esquerda tem muitos preservativos; no
banheiro, as escovas de dentes estão juntas. Não vi anticoncepcionais, então
acredito que ela seja alérgica ou simplesmente não queira fazer uso; o que
explica a quantidade de camisinhas. Agora, seja sincero com sua mãe e me
diga, mon fils: há quanto tempo está brincando de casinha com essa moça?
Tudo o que eu menos queria acontece: minha mãe descobre sobre
minha relação. Isso não é bom. Na verdade, isso é péssimo. Suspiro e passo a
mão pelo rosto antes de recompor minha postura e dizer:
— Não estou brincando de casinha com ninguém. Désirée é minha
companheira. Isso não é brincadeira. É sério.
— Entendo… — mamãe murmura, trazendo suas mãos para frente e
revelando algo que tenho escondido desde a última semana. A megera
revirou meus paletós até encontrar! Ela ergue a caixinha de veludo à frente
dos meus olhos e diz: — Não está mesmo pensando em cometer um erro
grotesco desses, não é?
Tomo a aliança de suas mãos, com certa brutalidade, admito.
— Eu a amo, mãe. Me casar com ela será a melhor das minhas
decisões.
— Você só pode ter perdido o juízo, Emilien! — Minha mãe se vira e
caminha até o criado-mudo à direita da cama, tomando em mãos uma foto
que estou ao lado da minha namorada, sorrindo na frente do Cristo Redentor.
— Esta foto. Isso foi quando você foi ao Brasil a negócios, seis meses depois
da morte de seu pai…! Olhe isso. Vocês já estavam juntos. Terminou seu
noivado com Marjorie e logo estava com ela. Não acredito que rompeu com
Chevalier e a trocou por essa moça estúpida e sem graça.
— Não ouse chamá-la dessa maneira! — advirto, erguendo a voz.
Minha mãe não virá na minha casa me insultar dessa maneira. — Não
entendo realmente qual seu problema, mère. Désirée é tão linda e rica quanto
Marjorie. Não é com isso que você realmente se importa? Que eu esteja com
alguém à minha altura, da elite parisiense? Então por que essa implicância
com minha namorada?
Ela dá uma risada meio psicótica e devolve o porta-retratos com
violência ao seu lugar.
— Désirée não é para você. Escute o que sua mãe diz, mon chéri. A
mulher ideal para você sempre será Marjorie Chevalier.
Cansado dessa conversa, eu a pego pelo braço e a arrasto para fora do
meu quarto, até a sala. Abro a porta e indico a saída:
— Partir d'ici. — “Vá embora”. — Será bem-vinda aqui quando
respeitar meu lar, minha mulher e minhas decisões; do contrário, é melhor
esquecer que tem um filho. Aliás, maman, não finja se importar comigo
quando sua preferida é Nicole e quando, se dependesse de você, teria
escolhido Émilie no meu lugar.
Elizabeth me encara por longos segundos, queixo e nariz empinados,
raiva trespassando seus olhos claros.
— Nós dois sabemos por que Nic é minha preferida e porque eu teria
escolhido Émilie no seu lugar — fala, completamente fria, dando-me ainda
mais certeza de que ela nunca me amou e nunca vai amar. — Nenhuma delas
me decepcionaria como você, Emilien. — Dá um passo para fora, mas vira-se
para mim e aponta o indicador na minha cara: — Chegará o dia em que você
perceberá que sempre tive razão.
Não a respondo. Simplesmente bato a porta em sua cara. Afago o
rosto e desabo no chão, segurando as lágrimas.
Agora Elizabeth sabe do meu namoro, que eu amo outra mulher, não
aquela que idealizou como a melhor para mim. Eu mais do que ninguém sei
como contrariá-la é sempre sinônimo de punição.
Minha mãe fará de tudo para me punir.
E começará por transformar minha vida num maldito inferno.
MARIE
— Você me seguiu, Marie Julien? — Sua voz rouca e grossa, em um
tom nada agradável, adentra meus ouvidos e faz todo meu coração bater
como um louco.
Eu fui pega no flagra.
Abro e fecho a boca uma porção de vezes sem saber como me
explicar. Pestanejo um par de vezes quando ele passa por mim, se debruça no
balcão e diz à recepcionista que esqueceu o celular no quarto dela. A moça
retira um telefone do gancho, disca algum ramal e solicita que alguém traga o
celular dele de volta. Emilien fica debruçado no balcão, de costas para mim,
seu corpo todo parecendo tenso e rígido. Até que tragam seu telefone de
volta, não fala comigo e não se vira para mim.
— Venha — praticamente rosna, segurando-me pelo braço e
arrastando-me para fora.
Solto-me de sua pegada, irritada com o jeito “homem das cavernas”
dele, e o sigo por mim mesma. Emilien segue à frente, passadas duras e
largas, as mãos fechadas ao lado do corpo. Ao chegar ao seu carro —
estacionado em uma parte específica da casa de repouso —, se vira em minha
direção e se apoia à lataria do veículo.
— Explique-toi — exige. Sua mandíbula mal se mexe.
Cruzo os braços e o encaro de queixo erguido. Se ele pensa que vou
ficar cabisbaixa e que vai me tratar com intimidação, está muito enganado.
— Quem você veio visitar? — questiono, entretanto. Quem deve
respostas é ele, não eu, ora essa!
Emilien dá uma risadinha, como se estivesse inconformado, e cruza
os braços.
— Te disse que tinha uma reunião hoje aqui, não disse?
E ali está. A mesma mentira de antes.
— Você mentiu para mim — aponto, começando a me sentir irritada.
— Reunião, Emilien? Sério. Você tem uma reunião por semana, às vezes
duas, aqui em Nanterre?
Toda sua expressão e postura intimidadora se vão neste segundo. Ele
parece surpreso com a informação, o que o faz apertar mais os punhos.
Desviando os olhos de mim por alguns segundos, pergunta:
— Revirou toda a minha agenda? — Sua pergunta é contida, mas traz
traços de raiva e irritação. — Invadiu minha privacidade e meu espaço de
trabalho? — aponta, voltando-se para mim e desencostando-se do carro.
— Oui — confirmo, embora não seja necessário.
O azul do seus olhos faísca mais intensamente.
— Por que fez isso, Marie? Onde está sua confiança em mim?
— Não confio em você — devolvo, e ele recua como se tivesse sido
atingido por uma pedra. Seu rosto se contorce por inteiro, o maxilar trincando
cada vez mais. — Mentiu para mim sobre seu compromisso, como espera que
confie em você? Marjorie estava certa e…
— Marjorie? — interrompe, rude. — O que Marjorie tem a ver com
isso tudo?
Dou um passo à frente e o encaro seriamente.
— Ela me disse para vasculhar sua agenda que eu ia encontrar algo.
Parece que tinha razão…
Ele me fita firmemente, o semblante duro, maxilar tão apertado que
acho que vai quebrar os dentes.
— E desde quando você dá ouvidos às palavras da minha ex-noiva?
— pergunta, nitidamente controlando a raiva na voz.
— Desde que descobri que ela sabe sobre o seu segredo, e eu, a sua
namorada, não sei. Contou para ela, mas não para mim. Como posso confiar
em você?
Emilien cessa o contato visual de novo, balançando a cabeça de um
lado a outro.
— Não contei nada. Antony conseguiu desenterrar meu passado e
contou para ela em troca de um boquete. — Uma risada esganiçada e sem
humor algum escapa da garganta dele. Seus olhos se voltam para mim e
reafirma: — Eu não contei nada.
Sinto minha garganta fechar e os olhos lacrimejarem. Então começo a
desistir. Desistir de penetrar os muros que Emilien levantou, desistir de tentar
entendê-lo, conhecer seus segredos. Queria poder confiar nele cegamente,
esquecer-me que tem um segredo e seguir em frente, porque a vida é curta
demais para ficarmos presos ao passado. Queria poder ser compreensiva a
esse nível, fechar os olhos e fingir que nada disso existe em torno de nós.
Mas não posso. Não consigo. Não quando esse segredo pode pôr em risco
nosso namoro, não quando não o conheço por completo. Pode parecer
bobeira ou paranoia, mas há tantos casos de feminicídio, que tenho medo de
ser mais uma na estatística. Por mais que ele não tenha demonstrado ser um
homem desequilibrado, a verdade é que não o conheço. Ninguém conhece
ninguém. Então simplesmente não posso fechar os olhos e fingir que não tem
algo muito ruim em sua vida passada.
— Não podemos continuar dessa maneira — sussurro, a voz
embargada, lágrimas tímidas escorrendo pelos meus olhos. É uma das
decisões mais difíceis que já tomei, principalmente porque o amo. — Se não
for franco comigo, Emil, nós não podemos continuar…
Seu semblante se transforma no mesmo instante, expressando dor,
tristeza, incredulidade. Nem o vejo desencostar da lataria do carro e vir em
minha direção, segurando meu rosto com as duas mãos. Emilien limpa
minhas lágrimas com beijos suaves e cândidos enquanto murmura repetidas
vezes:
— Por favor, não…
Aperto os olhos com força.
— Se não houver franqueza entre nós, não poderemos mais…
Um momento de quietude se interpõe entre nós. É curto, mas parece
longo como a eternidade. De olhos fechados, só consigo ouvir sua respiração
ofegante e ruidosa antes de ele pronunciar:
— Tudo bem… — Ergo as pálpebras e o encaro. — Vou te falar
sobre a Désirée e o que aconteceu… — Emil acaricia meu rosto com um
sorriso dolorido. — Mas sobre meu segredo, Marie… Te peço paciência. Não
estou preparado para me abrir a esse ponto. Eu não… — Ele se engasga no
meio da frase, uma lágrima escorrendo em sua feição marcada. — Ainda não
consigo.
Abano a cabeça em positivo.
— Vou me abrir aos poucos porque não quero te perder. Ma chérie,
você é a única coisa boa que me aconteceu em todos esses anos. Vou
enlouquecer se me deixar… — Repentinamente, me abraça como se eu fosse
seu último refúgio no mundo.

Emilien e eu seguimos até uma padaria a cinco minutos da casa de


repouso. Para esta conversa, precisamos de um lugar mais adequado.
Escolhemos uma mesa reservada e pedimos café, pãezinhos e queijos. Ele
está mais inquieto do que o normal, mas tento confortá-lo segurando-o pelas
mãos e o acariciando. Emil olha para mim com um pequeno sorriso até
nossos pedidos chegarem.
Sorvo um gole do meu café e suspiro:
— E então…?
Emilien engole em seco e parece se preparar para o que vai me dizer.
Abre e fecha os lábios, ensaiando dizer alguma coisa e criando um suspense
que faz meu coração pulsar forte dentro do peito.
— É a Désirée quem está naquela casa de repouso — confessa,
olhando para baixo.
Sinto meu coração bater nos ouvidos. De alguma maneira eu já sabia,
mas a revelação me deixa surpresa do mesmo jeito.
— O que aconteceu com ela? — pergunto com cuidado.
Emil suspira e bebe da sua cafeína em um gole longo. Depois de
limpar os lábios com o guardanapo de papel, continua:
— Ela… sofreu um acidente doméstico. — Meus batimentos
cardíacos aceleram. Emilien comentou alguma coisa sobre um “acidente”.
— Você quem causou isso? Mesmo que sem querer? — indago,
sentindo medo da resposta.
Ele balança a cabeça em negativo.
— Não.
Contudo, não sinto muita confiança em sua resposta. Parece que está
mentindo ou omitindo alguma informação.
— O que aconteceu é que nós… — Inspira fundo e fecha os olhos.
Expirando lentamente, continua: — Nós estávamos separados, mas ainda
dividíamos o mesmo apartamento. Ela continuava fragilizada por causa do
aborto e de toda a avalanche que tomou nosso relacionamento, e era minha
melhor amiga acima de tudo. Por mais que tenhamos nos desentendido e
parado de funcionar como um casal, éramos bons como amigos. Eu continuei
por mais algum tempo com ela… para apoiá-la até estar mais recuperada.
Há uma pausa pequena, mas para mim é longa demais. Emilien come
um pedaço do queijo e observa o movimento na rua por um breve instante.
— Era aniversário dela, vinte e cinco anos. Nós tínhamos combinado
de comemoramos em casa, com um jantar que ela ia preparar. Désirée estava
mais animada do que nos últimos dias, até foi ao supermercado comigo muito
alegre, na expectativa de que teríamos um momento bom entre nós. —
Emilien dá um sorriso fúnebre, expressando algum remorso. — Mas eu… me
esqueci. — Suas mãos cobrem o rosto, num ato de desespero. — Foi a
bebida. É por isso que não bebo, porque me esqueço das coisas. Na véspera
do aniversário dela, saí com uma garota, trepamos como coelhos e bebemos
como viciados. No dia seguinte, ela me arrastou para um monte de lugar e eu
fui parar numa boate.
Emilien faz outra pausa, um pouco mais longa dessa vez. Seu rosto
continua escondido entre as mãos, a voz baixou uma oitava e está mais rouca
e carregada.
— Só me lembrei do jantar quando já estava amanhecendo e me
ligaram no celular. Era a minha mãe dizendo que… a Désirée tinha sofrido
um acidente no apartamento. Eu saí na mesma hora, correndo o mais rápido
que consegui, mas era… era tarde demais. — Fecha os olhos com força e
prossegue: — Ela escorregou no banheiro, caiu de costas e bateu a cabeça na
beira da banheira, sofrendo um traumatismo craniano encefálico. Houve uma
contusão no córtex cerebral, o que a fez perder parte dos movimentos e a fala.
Levo a mão à boca, petrificada com a informação.
— Emilien… — murmuro, compadecida.
Ele fecha os olhos com mais força, outra lágrima escorrendo dos
olhos para seu rosto marcado.
— Se eu estivesse em casa… não teria acontecido, entende? Eu
cheguei e… a mesa estava toda posta, meu lugar arrumado, o dela… — Solta
um soluço alto, o que chama a atenção de algumas pessoas ao nosso redor.
Recompondo-se um segundo depois, termina: — Ela jantou sozinha. Era para
eu estar lá!
Levanto-me do meu lugar, arrasto a cadeira até o seu lado e seguro
suas mãos com toda força.
— Se acalme — peço, vendo-o perder o controle pouco a pouco. —
Você não teve culpa.
— Não… Mas ela estava me esperando. Eu fui tão estúpido! Ela fez
tudo de bom coração, me esperou… e eu não apareci porque estava comendo
uma vadia qualquer. Tudo indica que, depois que jantou sozinha, foi tomar
um banho e… foi onde aconteceu essa desgraça toda. Ela estava sozinha e só
foi socorrida porque minha mãe apareceu no dia seguinte de manhã para falar
comigo. Désirée passou a porra da noite toda inconsciente, o que agravou sua
lesão. Marie… se eu estivesse lá como tinha prometido, eu a teria
socorrido… Talvez estivesse bem hoje.
Trago-o para um abraço apertado e acaricio seus cabelos,
compreendendo o remorso que toma sua mente e seu coração.
— É por isso que cuido dela, que a mantenho na casa de repouso.
Venho visitá-la com frequência. Désirée é sozinha, os pais morreram muito
tempo atrás. Sou a única família dela. Cuidar da minha amiga é o mínimo que
devo fazer.
Meus dedos se fecham com mais força contra os seus.
— Por que não me contou isso antes?
Emilien desfaz nosso abraço e encara as mãos sobre seu colo.
— Não sei, sinceramente. Acho que tive medo de eu te contar e ser
julgado, de você me achar um babaca. — Dá uma risada sem humor. — Eu
mesmo acho isso de mim, me culpo tanto pelo que aconteceu. Não suportaria
se alguém mais colocasse essa responsabilidade nos meus ombros.
— Como a sua mãe faz? — Suspira e afirma em positivo. — É esse o
mal que ela tanto se refere? É esse o acidente que você disse que causou?
— Oui.
Tomo-o em meus braços novamente e o acalento em um abraço
amoroso.
— Você não teve culpa, Emilien. Foi um acidente — digo, na
intenção de acalentá-lo. Mon Dieu, esse homem já carrega tanta coisa, não é
justo que a mãe o culpe pela morte da gêmea, pelo acidente de Désirée. Ele
precisa de alguém que diga ao contrário. — E me perdoe, por favor. Por ter te
pressionado tanto… Eu não queria…
Seus dedos esguios e quentes se embolam nos meus cachos e ele
inspira fundo meu aroma.
— Está tudo bem, chérie. Só me assegure que não vai me deixar. Eu
não suportaria.
Aperto-o ainda mais em meu abraço e sussurro.
— Não vou te deixar. Não vou.
Voltamos para Paris logo depois disso. Foi bom vê-lo confiar em mim
e se abrir de novo. Talvez eu precise apenas disso: de paciência com ele.
Talvez se conquistar sua confiança pouco a pouco, se parar de pressioná-lo,
de prensá-lo contra a parede como tenho feito nas últimas semanas, Emilien
desabafe comigo, se sinta seguro para me contar mais da sua vida e do seu
passado. Querendo ou não, fizemos alguns progressos e ele me contou coisas
que nem mesmo sua irmã sabe.
Devolvo o veículo alugado à locadora; de lá seguimos direto para meu
apartamento no carro dele. Emilien estaciona ao lado da minha vaga. Ele
segura minha mão e entrelaça nossos dedos enquanto subimos juntos até o
meu andar. Faço todo o percurso olhando para nossas mãos juntas e sorrindo
como uma boba apaixonada.
— Não tem que ir para a Dupont Investimentos? — pergunto quando
entramos.
— Não tem que ir para a redação da Intéressant? — alfineta,
agarrando minha cintura e me puxando de encontro ao seu tórax duro.
— Estou meio ocupada com o patrão, sabe? — respondo, balançando
as sobrancelhas.
Ele dá uma risada gostosa e aproxima seu rosto do meu, deixando
nossos lábios bem rentes um ao outro.
— Então você tem se aproveitado do fato.
— Longe de mim, monsieur Dupont.
Emilien sorri em minha boca antes de me tomar em um beijo
profundo, segurando minha nuca e me forçando mais contra seus lábios
molhados e suculentos. Subo minhas mãos por dentro da sua camisa, sentindo
a pele quente contra minha palma. Um gemido estrangulado escapa dele para
mim, quase dando um choque de prazer no meu clitóris. Já disse que os
gemidos de Emil me dão um tesão incontrolável?
Direciono-o e o jogo no meu sofá, vindo por cima do seu colo em
seguida, sem desunir nossas bocas tresloucadas uma pela outra. Devagar,
desabotoo a camisa dele, mordendo seu lábio inferior e rebolando lentamente
sobre sua pélvis, começando a sentir a ereção roçando em meu sexo
umedecido.
Passo a camisa pelos seus braços fortes e escorrego meus beijos
através do seu queixo, passando pelo pomo-de-adão e colo até chegar em
suas mamas definidas. Meus dedos dedilham sua barriga trincada enquanto
minha língua trabalha em seus mamilos. Ele segura firmemente uma mecha
do meu cabelo e geme baixinho.
— Está sentindo isso? — questiona, erguendo o quadril em minha
direção e, segurando-me pela cintura, força minha pélvis na dele. — Meu pau
está tão duro, Marie… — fala de um jeito excitantemente estrangulado. — E
o que você fez para me deixar assim? — Outra vez me segura pelo cabelo e
ergue meu olhar ao seu. — Apenas chupou a porra dos meus mamilos. Vê
como meu corpo reage a você? — Sem aviso, ele direciona meu rosto para o
meio das suas pernas.
Entendendo seu pedido, me ajoelho no chão e fico entre suas coxas,
abrindo vagarosamente o botão da sua calça sem tirar meus olhos dos seus.
Sorrio conforme mordo o lábio inferior e puxo sua calça e cueca para baixo.
Seguro seu pau quente e ereto, masturbando-o sem pressa, admirando seu
órgão e pensando em como o acho o mais lindo que já vi na vida.
— Não sei o que é melhor, chérie — ele diz, num sussurro rouco e
sensual. — Foder sua boceta ou sua boca. Provavelmente os dois.
Sorrio com suas palavras sujas e o direciono para entre meus lábios,
sugando-o com força. Emilien respira entre os dentes e geme sem pudor
enquanto desço e subo em seu pau majestoso. Seus dedos se apertam com
mais firmeza em meus cabelos, ele levemente conduzindo o sexo oral. Passo
a língua em sua glande em movimentos circulares, dando sugadas leves na
cabeça e descendo até o limite da minha garganta ao mesmo tempo em que o
acaricio nas bolas. Este padrão o faz contorcer no sofá e soltar uma porção de
múrmuros ininteligíveis.
Sinto o líquido seminal um instante depois, os gemidos
descontrolados dele preenchendo meus ouvidos. Passo a língua
delicadamente, capturando a gota do fluído. Sem que ele espere, aumento a
pressão da sucção sobre seu pau, descendo com força até engoli-lo por
completo.
— Desse jeito vai engolir minhas bolas — murmura, apertando mais
meus cabelos. Abro outro sorriso com seu pau na minha boca e o forço um
pouco mais, visando realmente essa perspectiva: colocá-lo por inteiro. —
Marie… — adverte, mas não paro de chupá-lo com intensidade, na minha
tentativa de engoli-lo todo. — Marie! — diz de novo, puxando meu cabelo.
— Vou gozar na sua boca se não parar.
— Adoraria que fizesse isso, chéri — falo, passando a língua no meu
lábio inferior. — Seu gosto é uma delícia. — Estou voltando para chupá-lo
até sentir seu sémen no meu paladar quando sou impedida. Emilien me puxa
para cima e me toma em um beijo voraz e rude.
— Eu não me importaria de encher essa boca gulosa com a minha
porra — provoca, acariciando meus lábios com seu polegar. — Mas antes
disso, vou chupar e comer muito a sua boceta.
O vão entre minhas pernas se aperta, de uma forma até dolorida, com
tal promessa. Sem que eu possa esperar, Emil arranca minha roupa, deita-se
no sofá e me traz para seu colo, virando minha bunda em seu rosto. Pisco ao
processar em que posição estamos e um segundo depois sua boca estupenda
está na minha entrada úmida, chupando-me furiosamente. Ele faz milagres no
meu clitóris, a ponta da língua subindo e descendo no meu ponto mais
sensível. Vagarosamente me abaixo de encontro ao seu pau e calo meus
gemidos altos colocando-o em minha boca.
Sinto-o me abrindo para me chupar com mais avidez, colocando sua
língua e dedos dentro de mim, arrancando-me um punhado de suspiro e
gemidos abafados pelo seu pau que chupo com a mesma ferocidade. Os sons
do prazer que damos um ao outro preenchem o ambiente e acentuam o
momento de tesão.
Estou quase gozando na boca dele quando Emilien me troca de
posição. Ele fica no chão, sentado e com a nuca apoiada no assento do sofá, e
então me faz sentar em seu rosto, minhas pernas cada uma do lado da sua
cabeça. Balanço vagarosamente minha boceta na sua boca, o prazer
consumindo cada célula do meu corpo e cada resquício de insanidade da
minha mente.
Emilien pega minha mão e a direciona para meu sexo.
— Veja como sua boceta está molhada, Marie. Tão pronta para mim,
para que eu te coma a porra da tarde inteira. — Sua voz sai levemente
abafada por conta da posição. Como resposta, só consigo gemer. Esse safado
sabe como me deixar cada vez mais excitada.
De repente, ele não está mais embaixo de mim, e sim atrás. Sua mão
grande e máscula na minha intimidade, os dedos esguios roçando meus lábios
vaginais em movimentos de vaivém. Separando mais meus joelhos, me
inclina sobre o encosto do sofá. Ele se afasta, deixando-me assim.
— Adoro te ver com as pernas bem abertas. Ver você de quatro para
mim, a visão da sua boceta encharcada, pronta para engolir meu pau, é a
coisa mais linda do mundo. — Um instante mais tarde, ele está me
penetrando sem aviso. Em uma única estocada, está todo dentro de mim,
chegando tão fundo que tenho a impressão de que alcança meu útero.
— Emilien! — grito prazerosamente, sentindo-o atrás de mim
empregando toda sua potência para me comer.
— Sente como é recíproco, ma belle? — sussurra, abraçando-me. —
Eu deixo sua boceta empapada e você me deixa duro como pedra. — Ergue
minha bunda em um ângulo mais para cima e me penetra com mais força,
alcançando um ponto maravilhoso que me faz gozar dois segundos depois.
Gemo entre os dentes enquanto meu corpo trêmulo ainda recebe a onda do
orgasmo esplêndido.
Minha visão continua meio turva por conta do ápice atingido quando
Emil me direciona até o braço do sofá, deixando-me ainda de quatro. Meu pé
direito apoia no chão, minha perna esquerda fica dobrada sobre o assento.
Respiro com dificuldade, tentando entender o que ele fará comigo agora. Mas
neste momento confio nele o suficiente para saber que trará mais prazer a nós
dois. Ele abaixa um pouco mais minha pélvis e então me penetra de novo.
Quando recomeça o entra e sai intenso, o movimento dos seus quadris contra
o meu faz meu clitóris roçar no braço do sofá à medida que estoca em mim.
— Mon Dieu! — exclamo, toda trêmula, preparando-me para um
segundo orgasmo. Ele me segura com mais firmeza pela cintura, cravando
seus dedos em mim e aumentando cada vez mais seu próprio ritmo.
Emilien dá um tapa estalado no lado direito da minha bunda e diz algo
que não compreendo. Gemo prazerosamente, e ele distribui outro tapa, desta
vez no lado esquerdo. Enquanto me come mantendo o ritmo alucinado,
intercala os tapas prazerosos em mim, causando choques deliciosos no meu
clitóris. Seu polegar brinca em minha entrada, quase competindo com o pau,
mas sobe vagarosamente até um pouco acima, acariciando-me ali. Sinto seu
dedo lubrificado adentrando devagar minha entrada apertada.
— Vou te fazer gozar mais uma vez e dessa vez será comendo sua
boceta com meu pau e fodendo seu traseiro com meu dedo — murmura,
girando o polegar dentro de mim.
Então, isso é minha perdição. Não demora muito para que outro
orgasmo me rasgue de dentro para fora, transformando minhas pernas em
gelatinas. Gozo pela terceira vez, clamando o nome dele e dizendo como só
ele me fode gostoso. Emil me puxa para si, colando minhas costas no seu
peito duro e suado, seu quadril ainda trabalhando avidamente contra o meu,
não demonstrando nenhum sinal de cansaço. Ele pesca minha boca com a
sua, deixando um gemido delicioso na minha garganta, as mãos voando para
meus seios e aplicando a pressão certa nos mamilos enquanto termino de
gozar.
— Preciso gozar em você — anuncia, voltando a me pôr de joelhos
no assento. Emil fica de pé atrás de mim, em cima do sofá, os joelhos
flexionados, suas mãos me segurando pelos ombros. Ele se força para dentro
de mim outra vez, comendo-me com mais força, seus gemidos altos
misturando-se ao som da sua pélvis batendo na minha. Fecho os olhos e me
seguro como posso, mordendo o lábio inferior e me concentrando em suas
bolas batendo na minha entrada.
Com um gemido entrecortado, Emilien sai de dentro de mim e jorra
um jato longo, viscoso e quente de sêmen, que atinge minha boceta e meu
traseiro. Ele cai no sofá, descabelado e visivelmente acabado, puxando-me
para seu colo e tomando minha boca em um beijo profundo. Emil me abraça
e fica grudado ao meu corpo até estar mais recuperado. Eu o abraço de volta,
aconchegando-me no seu calor e no seu corpo suado, simplesmente
desejando que esse momento não acabe mais.
Nunca mais.
MARIE
— É um milagre te achar em casa! — Isabelle grita
escandalosamente ao passar pela porta de entrada do meu apartamento.
No sofá, sentada no colo de Emilien, dou um pulo em meu lugar
enquanto ele abafa uma risada maior. Nota mental: tirar a cópia da chave da
minha irmã. A última coisa de que preciso é ela invadir meu espaço e me
flagrar fazendo qualquer coisa inadequada com meu namorado.
— Isabelle! — advirto, indo em sua direção. Ela ri e caminha até
minha cozinha, abrindo a geladeira. Penso em criticar sua atitude, mas me
recordo de que eu sou tão invasiva quanto, ou seja, sem moral para falar
qualquer coisa. — Você poderia ao menos bater — falo, dando uma olhada
em Emil ainda no sofá, ajeitando o amigo duro dentro da cueca. Fico
vermelha quase sem perceber.
— Desde que você e Emilien começaram a namorar, é difícil te achar
em casa — comenta, ignorando minha advertência. Tira uma jarra de suco e
dispõe uma dose no copo.
Emilien por fim deixa seu lugar e vem até mim, beijando minha
têmpora. Seu perfume habitual invade minhas narinas, despertando meus
anseios lá de baixo.
— Sua irmã tem razão — ele fala. — Tem passado muito tempo no
meu apartamento. Acho que está na hora de eu trazer uma troca de roupa e
uma escova de dente para cá, o que acha?
Isabelle parece se afogar com o suco. Emilien dá uma risada gostosa
enquanto eu o estapeio no ombro.
— Pense nisso, chérie — me diz, com um sorrisinho convencido,
inclinando-se na direção da minha boca para um selinho rápido. — Tenho
que ir para a Dupont Investimentos agora. Vejo você mais tarde. — Com um
beijo na minha testa, ele se despede de nós duas e então vai embora.
Isabelle me puxa até o sofá, mais animada do que o normal, e nesse
instante sei que deve ter alguma novidade para me contar.
— Como foi seu final de semana? — pergunta, terminando seu suco e
deixando o copo sobre a mesinha de centro. — Você e Emil foram para
Lisboa, certo?
— Foi ótimo. Chegamos agora há pouco. Vou pegar o turno da tarde
para trabalhar. — Olho no relógio. — Isso significa que tenho apenas umas
três horas antes de ir para a redação. Então desembucha logo.
Minha irmã ri e me segura pelas mãos.
— Tenho uma novidade incrível. Sanctus será editado e publicado
pela Allumer.
O sorriso de espanto que nasce em mim é instantâneo. Abraço minha
irmã um segundo mais tarde, feliz pela notícia. Allumer é apenas uma das
maiores editoras tradicionais da França.
— Isso é obra do Héron? — pergunto, afastando-me de seu abraço.
Isabelle faz uma cara desagradável, como se dar os créditos a Poirier
fosse um pecado imperdoável.
— Não. Ele não voltou a falar comigo depois do episódio do coquetel
— explica, voz amarga, dando de ombros. — Eu recebi uma mensagem de
um agente literário. Ele me pediu o original para ser avaliado. Isso já tem
alguns dias. Nesse final de semana, me ligou e disse que meu livro foi
aprovado! — Isabelle bate palmas e se levanta do lugar, dando saltinhos pela
minha sala. Nem parece uma mulher com mais de trinta anos.
Quando me vejo, estou sendo puxada para o meio do cômodo e sendo
obrigada a integrar sua comemoração. Abraço-a novamente, feliz por essa
conquista. Uma publicação com a Allumer com toda certeza dará um up na
sua carreira como escritora.
— Parabéns, soeur! Você mais do que ninguém merece essa
conquista.
Isabelle me abraça uma última vez, toda sua alegria contagiando-me
de uma forma indescritível. Eu odiaria vê-la triste ou decepcionada. Por esse
motivo, fecho os olhos e faço uma prece mental. Peço a Deus para tudo dar
certo para minha irmã.

Estou concentrada no meu trabalho quando alguém para à minha


frente, bloqueando a luz natural que ilumina minha mesa. Ao erguer os olhos,
não evito um saltinho de surpresa. Sua postura é intimidadora, de
superioridade, e me enoja ao mesmo tempo. Não gosto do modo como me
olha, como se eu fosse uma leprosa.
— Tem um minuto para conversarmos? — Sua voz é toda metódica
ao proferir a frase que mais parece uma ordem.
— Estou trabalhando agora — devolvo. Esforço-me para ignorá-la e
voltar ao meu trabalho, mas a mulher me provoca:
— Você está dormindo com meu filho, que curiosamente é dono do
grupo editorial desta revista. Acho que você pode se aproveitar da situação e
me dar uma hora do seu expediente para tratarmos de um assunto de seu
interesse.
Minha cabeça se ergue imediatamente. Não gosto do seu tom nem de
como insinua sobre minha relação com Emilien. Inspiro fundo e abano em
positivo. Peço um minuto para que eu pegue minha bolsa e avise a Delphine
— minha editora — que terei de me ausentar por uma hora. Sem trocar uma
palavra com ela, tomamos o elevador e seguimos até uma pequena brasserie
no outro lado da rua. Vou aproveitar que não almocei e pedir uma refeição
leve. Elizabeth solicita apenas uma água. Enquanto aguardo nossos pedidos,
eu a confronto:
— O que quer falar comigo?
— Vim te fazer uma proposta.
Ergo uma sobrancelha, meus instintos todos dizendo que não vem
nada de bom pela frente.
— Que tipo de proposta?
Muito calmamente, ela abre sua bolsa e retira de lá de dentro um
pequeno chumaço de papel, arrastando-o em minha direção.
— Sua irmã Isabelle é escritora, estou certa? — indaga, sorrindo
como uma fera felina prestes a atacar sua presa. Meu coração dá uma batida a
menos. Pego os papéis e os analiso. É uma cópia de um contrato de
publicação. — Andei pesquisando sobre vocês. Tenho alguns conhecidos
dentro da Allumer que me devem favores.
Afasto os malditos documentos da minha frente, já compreendendo
onde Elizabeth quer chegar com esse assunto.
— Eles vão publicar Sanctus, da sua irmã. Um deles inclusive andou
conversando com Héron, o antigo editor de livros, e ele fez muitos elogios ao
romance policial ambientado na Idade Média que Isabelle escreveu. Imagine
o reconhecimento que ela teria com uma publicação por uma editora tão
renomada…
— Pare de rodeios e diga de uma vez por todas o que você quer
comigo.
— Se afaste do Emilien — ordena rudemente. — Sei que estão juntos,
em uma relação séria. Mas se quer garantir um ótimo futuro para a carreira da
sua querida irmã, se afaste do meu filho.
A vontade que tenho é de pular aqui e agora mesmo no pescoço dessa
mulher. Só não o faço por dois motivos: um, pelo ambiente em que estamos;
dois, porque ela é uma pessoa que precisa de ajuda, não de represálias.
Lembro-me de Emilien ter me contado sobre uma vez ter tentado machucar
Nicole. Thierry o ajudou, em vez de puni-lo. Elizabeth merece a mesma
coisa, mas não serei eu a aconselhá-la ou a convencê-la. Se os próprios filhos
nunca conseguiram fazê-la ter um acompanhamento psicológico, não serei eu
— uma mulher que a desagrada — a conseguir.
A garçonete traz meu pedido e enche minha taça de vinho. Agradeço-
a e, assim que se afasta, me volto para essa megera, dizendo entredentes:
— Isso não é uma proposta. Isso é chantagem.
— Entenda como quiser, ma chère.
Balanço a cabeça em negativo. Olho pela vidraça do ambiente, o dia
ameno, carros e pessoas passando. Peso as palavras de Elizabeth, mas não as
cogitando. Eu jamais me afastaria do homem que amo por conta de uma
chantagem idiota como essa. Ela pode ameaçar destruir os sonhos de Isabelle
o quanto quiser, vou lutar contra isso nem que seja com unhas e dentes. Vou
procurar meu namorado e lhe contar sobre a chantagem de sua mãe. Talvez
possa me ajudar a garantir que ela não prejudique Isabelle.
Como um pouco da comida em meu prato. Por fim, viro-me para ela e
declaro:
— Não. Não vou me afastar do Emilien. Eu amo o seu filho,
Elizabeth. E ele me ama de volta. Por que você precisa tanto interferir na
felicidade dele? Por que tem que puni-lo e manipulá-lo dessa maneira? Pare
de culpá-lo pela morte de Émilie! — Minha voz sobe um pouco na última
frase, chamando a atenção de alguns clientes ao nosso redor.
A mulher parece ficar rígida em seu lugar quando menciono o nome
da falecida filha.
— Não ouse tocar no nome de Émilie.
— Eu ouso! — rebato, erguendo o queixo. — Ouso porque você não
aceita que o que aconteceu com ela foi uma fatalidade. Ouso porque você
culpa o Emil pela morte dela, não se dando ao trabalho de estar feliz que ele
esteja vivo! Seu filho! Ouso porque você usa da sua dor para infligir dor nele.
Ouso porque você não se importa com a felicidade dele, mas eu me importo!
— Não diga esse tipo de asneiras, criança — rebate, muito
calmamente. Sorve uma dose da sua água antes de continuar: — É por me
importar com a felicidade dele que estou fazendo isso. Emilien jamais seria
feliz com você. Marjorie é a mulher ideal para meu filho. — Queria muito
entender essa fixação de Elizabeth por Chevalier. Já não está claro o bastante
de que ele não a ama? — No passado, ele não me ouviu. Achou que poderia
ser feliz com aquela amiguinha dele… Mas não foi.
Dou uma risada histérica sem nem perceber.
— Talvez porque você infernizou a vida deles!
Um sorriso arrogante surge no canto de seus lábios.
— Emilien pode ter te falado da Désirée, mas não te contou a história
toda. Você não conhece meu filho, Marie, e das coisas que ele é capaz.
Deixo minha refeição pela metade, cansada desse assunto e dessa
mulher. Não vou ficar dando corda às suas palavras que têm intenção de me
pôr contra meu namorado e abalar nosso relacionamento.
— Perdeu o seu tempo, Elizabeth — anuncio, levantando-me. —
Você não vai conseguir me colocar contra o Emilien e nem me separar dele.
Tenha um bom dia. — Estou passando por ela quando a mulher me impede,
segurando em meus punhos.
— Ele manipulou você — revela, pescando minha atenção.
Novamente ela revira a bolsa e retira um envelope branco grande,
arrastando-o em direção ao lugar onde estive segundos atrás. Vencida pela
curiosidade, sento-me novamente e tiro o conteúdo de lá de dentro. Analiso
os papéis em minhas mãos. São ligações transcritas em texto entre Emilien e
meu antigo chefe — reconheço o número de telefone de ambos. Algumas
estão datadas com pouco mais de um ano, outras são mais recentes. Meu
coração começa a bater descompassado, as lágrimas se forçam nos meus
olhos quando constato o óbvio: Emilien comprou minha demissão no La
Parisienne.
— Ele fez tudo meticulosamente. Primeiro, comprou um grupo
editorial, logo após, comprou o grupo que Intéressant pertence, sob sigilo.
Cerca de quatro meses depois, convenceu o seu chefe a te demitir do jornal
onde trabalhava. Você mal ficou desempregada, não é, ma chère? Logo
recebeu uma proposta de trabalho.
Engulo em seco, odiando ter de ouvir isso. Emilien realmente me
manipulou dessa maneira? Ou tudo não passa de uma farsa dela? Volto meus
olhos para os papéis, tornando a acompanhar a conversa transcrita dele, dessa
vez sobre minha contratação.
“Quero que contrate a senhorita Marie Julien. Ela foi redatora do La
Parisienne. E tudo sob sigilo, me entendeu? Ninguém deve saber, nem
mesmo ela, sobre as condições de sua contratação. Fui claro?” “Sim, senhor
D.”
Elizabeth dá uma risadinha.
— Ele foi tão perfeito que quem te demitiu e quem te contratou nem
sabiam o nome ou o sobrenome de quem estava dando as ordens. Tudo isso
para evitar que você soubesse que era ele por trás de tudo. Até ser
conveniente ele se revelar. Mas continue lendo, querida — incentiva.
Com meu coração na mão, eu o faço. As próximas conversas são de
Emilien exigindo que eu cobrisse um determinado evento que nada tinha a
ver com minha área. As ordens vinham dele e passavam por uma ou duas
pessoas antes de chegar a Héron, que me incumbia de ir. Isso tudo para
quando eu tivesse de ir ao baile de máscaras de Silvia Ferreira ou ao Dames
Parisiennes sem que desconfiasse de nada. Nenhum de nossos encontros foi
por acaso — de algum modo, já tinha pressentido isso, não tinha? — porque
ele me manipulou como uma marionete.
Uma lágrima teimosa escorre pelo meu rosto. Estou me sentindo tão
usada. O sentimento de ter sido apenas um brinquedo na mão de Emil
intensifica quando leio a última conversa dele com Poirier. Emilien pergunta
se eu estou na redação — isso foi numa quinta-feira de manhã — e Héron o
informa de que viajei para Loches para passar um final de semana lá.
Ele sabia que eu estava em Loches e agiu como se não soubesse.
Limpo minhas lágrimas, repleta de raiva. Não quero saber de que
maneira Elizabeth descobriu isso e preciso tirar o assunto a limpo de qualquer
maneira. Fico com seus papéis para mim e já estou para sair quando a mulher
segura em meu pulso novamente, se põe à minha altura e me adverte:
— Isso é só um fio da meada, Marie. Emilien esconde mais coisas de
você, nada comparado a ter te manipulado assim. E que fique bem claro: se
você descobrir, acho bom não pensar em sujar o sobrenome Dupont. Tenho
poder o suficiente para destruir a carreira da sua irmã e toda a sua família, me
entendeu?
Desfaço-me do seu toque com brusquidão, odiando sua ameaça e seu
tom de voz comigo. Deixo-a para trás, sentindo uma raiva descontrolada
acertar cada célula do meu corpo.

Estou na cozinha do meu apartamento, procurando todo meu


autocontrole, quando Emilien chega. Ele vem até mim; logo nota que não
estou de bom humor e para a uma distância de dois passos, analisando-me.
— Aconteceu alguma coisa?
Dissimulado!, penso, enquanto seguro toda a raiva nos meus punhos.
Pego os papéis que Elizabeth me mostrou e jogo sobre o balcão. Eu tomei o
cuidado de, antes de confrontá-lo, ter certeza de que realmente fez isso.
Conversei com Charles, meu antigo chefe. Ele me confirmou que alguém de
fato comprou minha demissão, mas não soube dizer quem. Depois prensei
Héron contra a parede, e ele afirmou que recebeu algumas ordens claras de
me incumbir ao evento do baile e do Dames Parisiennes. Questionei-o sobre
Loches. Segundo Poirier, ele achou que eu sabia da ida de Emilien para lá,
por minha causa. Tentei acreditar de que Emil não agiu de forma tão
desonesta comigo, mas os fatos estão expostos e são verdadeiros.
— Você mentiu para mim — falo, controlando a raiva no meu tom de
voz.
Ele fica tenso por um segundo inteiro. Então toma os papéis em suas
mãos e os analisa. Uma veia grossa do seu pescoço salta quando repara do
que se trata. Calmo como só esse homem poderia estar, devolve os
documentos no balcão e me olha.
— Quem te deu isso?
— E importa?
— Importa.
— Não importa — rebato. — Você me manipulou, Emilien!
— Já imagino quem foi — murmura, como se eu não estivesse aqui,
irada com sua postura. Contorno o balcão e vou até ele, batendo no seu peito
com o indicador.
— Não mude de assunto! — protesto.
Ele me agarra pelos dois braços.
— É, eu fiz isso, Marie. Estava arrependido, sendo torturado por te
amar em segredo, por ter ido embora e por saber que você me odiava. Queria
me reaproximar, mas não sabia como fazer isso sem forçar a barra.
Dou uma risada histérica.
— E sua ideia genial foi comprar minha demissão e me contratar na
sua empresa? Depois ordenar que eu fosse em eventos em que você estaria?
Até em Loches, Emilien! Nenhum desses nossos encontros foi por acaso,
você planejou tudo. Tudo!
— E é por causa disso que estamos juntos agora.
Cheia de raiva, empurro-o com força.
— Seu estúpido! Eu amava o meu emprego, amava aquele jornal! Me
tirou de lá para atender a seus desejos egoístas.
Ele me agarra de novo, tentando me controlar. Deus, estou tão
possessa que sou capaz de arrancar as bolas dele. Emilien me prende em um
abraço, contendo um pouco da minha ira, só porque é mais forte do que eu.
— Me desculpe… S’il te plaît, me desculpe! Foi errado, admito, mas
eu não sabia o que fazer! — Ele me afasta e me segura pelo rosto, olhando
nos olhos. — Je t’aime. Je t’aime beaucoup!
Meu coração vai acalmando as batidas descompassadas à medida que
sua voz desesperada adentra meus ouvidos. Seu semblante de
arrependimento, o medo explícito nos seus olhos de me perder por causa
disso, sua declaração que eu sei que é sincera… Sou uma idiota por me
deixar levar dessa maneira.
— Algum dia ia me contar? — pergunto, esforçando-me para segurar
as lágrimas nos meus olhos, mas o esforço é inútil. Emilien seca meus olhos,
o semblante cada vez mais marcado.
— Não… porque sabia que você ficaria irritada comigo.
Desfaço-me do seu toque e me afasto, abraçando meu próprio corpo.
Ele logo me toma por trás, envolvendo seus braços grandes e quentes em
torno de mim. Sinto-me subitamente acolhida, numa sensação que só Emil é
capaz de despertar em mim.
— Eu amo você — repete ao pé do meu ouvido. — Você me perdoou
de coisa pior. Sei que pode me perdoar por ter feito o que estava ao meu
alcance para te reconquistar. Por favor, Marie. Não vê que minha mãe te
entregou isso exatamente para nos abalar? Discutirmos por causa disso é dar
o que ela quer.
Inspiro fundo e fecho os olhos, odiando como meu corpo se encaixa
no dele e como me sinto confortável quando seus bíceps fortes me apertam de
um jeito até protetor. Emilien tem razão. Elizabeth quer nos infernizar a todo
custo. Mas não vou deixar que essa mulher interfira na minha relação com ele
como fez com Désirée. Pode nos atormentar o quanto quiser. Não vou
permitir que seu veneno nos atinja.
Decidida, viro-me para Emilien e apoio a cabeça em seu tórax,
contornando sua cintura com meus braços.
— Sua mãe vai tentar de todas as formas me separar de você.
— Ela vai — confirma, melancólico, selando um beijo em minha
testa.
— Promets-moi, Emil… não importa o que ela faça para nos destruir,
não vamos deixá-la conseguir. Me prometa!
— Je te promets — responde, apertando-me em seus braços fortes.
Agarro-me a sua promessa como se fosse meu porto seguro,
confiando cegamente em Emilien. Só espero que ele seja um homem de
palavra.
Ou não vou suportar ter meu coração quebrado outra vez.
EMILIEN
— Ainda estou preso na reunião, chérie, mas chego a tempo para
pegar o voo, não se preocupe — sussurro ao telefone, falando com Marie.
Meu coração se aperta em ter de mentir para ela dessa maneira, mas é
necessário.
Tenho que tirar uma questão a limpo antes de viajar para Lisboa, para
um final de semana no Congresso sobre empreendedorismo e investimentos.
O voo será dentro de duas horas, minha namorada já está no aeroporto à
minha espera. Não pretendo demorar, no máximo em uma hora já estarei
junto dela.
Encerro a ligação e ajeito-me no sofá quando ela retorna da cozinha,
com uma xícara de café — que não me foi oferecida, mas Marjorie trouxe
mesmo assim. Entrega-me o pires e se senta no sofá oposto ao meu, cruzando
as pernas. A última vez em que a vi foi em Loches, e eu teria vindo antes se
ela estivesse na capital. Soube pela sua agenciadora que esteve em viagem
nas últimas semanas com Silvia Ferreira, a estilista portuguesa que tem feito
um tour pela Europa com sua nova coleção. Sendo uma das modelos dela, é
natural que Chevalier a acompanhe e passe uns dias fora de casa. Agora que
está de volta — fui avisado pela sua agência —, precisamos conversar.
— Estava vindo para cá e não pude deixar de te ouvir ao telefone.
Mentindo para ela, Emilien… — Seu tom é de advertência. — Como se já
não mentisse o suficiente.
Aperto o maxilar com força, sentindo-me afrontado com o tom e a
frase de Marjorie para mim.
— É bom ter tocado nesse assunto — falo, encostando-me no meu
lugar e cruzando as pernas. Assopro um instante meu café antes de ingeri-lo.
— É exatamente sobre isso que gostaria de falar com você.
Marjorie exibe um leve sorriso com a boca grudada à borda da sua
xícara e me aguarda dizer o que quero.
— Quero saber por que foi falar da minha vida e da Désirée para
Marie.
— As mulheres precisam ser unidas. Eu só quis abrir os olhos dela —
diz, dando-me um sorrisinho cínico.
Inspiro profundamente para controlar os meus nervos.
— Você pintou para ela um cara que eu não sou, Marjorie! —
protesto.
— Mas já foi. — Lembra-me.
Fecho os olhos e tento me concentrar para não pular no pescoço dela
aqui mesmo.
— Nunca fui esse cara — falo, tornando a encará-la. — O boquete no
Antony não foi bom o bastante, pelo jeito, porque ele não te contou todos os
acontecimentos — provoco.
Marjorie me olha com fúria e descruza as pernas, praticamente
jogando sua xícara na mesinha de centro e se encurvando na minha direção.
Toda sua pose elegante e paciente esvaiu-se nesse instante, porque
certamente peguei em seu ponto fraco.
— Eu apenas disse a verdade à sua namorada por achar que ela
merecia saber.
— Não. Você contou uma versão completamente mentirosa! —
acuso, apontando um dedo em sua cara. — Jamais traí a Désirée, jamais foi
tóxico com ela!
— Exceto quando me levou para sua casa e me comeu lá, na cama
dela? — Seu tom é afiado e provocador. — Se lembra, Emil? Você me
procurou, estava bêbado e possesso, dizendo que precisava me foder, que
estava com raiva e precisava descontar no sexo e queria fazer isso com
“alguém que a atingisse”. Na época você não me contou nada, mas sabia que
que estava se referindo à Désirée. Teve uma briguinha qualquer com ela e
correu para mim. Foi isso que fez nos três anos de namoro? Bebia e a enchia
de chifres sempre que discutiam?
Sinto tanta tensão no maxilar que penso que poderei quebrar meus
dentes a qualquer momento. Nós nos encaramos por longos segundos, ela
mantendo sua pose arrogante. De algum modo, eu sabia que Marjorie jamais
esqueceria o fato de eu tê-la deixado. Isso de dizer que me superou e seguiu
em frente é pura balela. Seu ódio por mim sempre esteve na parte mais
obscura do seu coração. E essa parte sombria se intensificou depois de
descobrir que comecei uma vida com Lacroix — na mesma época que minha
mãe. Marjorie não aceita, e penso que jamais aceitará, que eu tenha amado
minha melhor amiga.
Tento afastar da minha mente as atitudes erradas, principalmente as
que tomei depois que minha mãe passou a infernizar minha vida com
Désirée. Ela armou para mim, a fez acreditar que eu tinha a traído, a
manipulou como faz com todos à sua volta, e depois veio até mim, como se
minha namorada tivesse me traído primeiro, apontando um dedo na minha
cara e dizendo que tinha me avisado. Na hora, fiquei cego e descontrolado,
acreditando que tinha mesmo sido enganado. Na loucura do momento, apenas
levei Marjorie para casa e a fodi até externar toda a raiva no meu corpo. Fiz
questão de mantê-la comigo até que minha namorada chegasse e me visse
com outra mulher na nossa cama. Foi somente nessa ocasião que
descobrimos a armação de Elizabeth para cima de nós. Desse dia em diante,
nosso namoro declinou.
— Você não sabe da porra da história toda, Marjorie — falo entre os
dentes. Também não me darei ao luxo de explicar. — A única coisa que vim
te dizer é para parar de incentivar Marie a revirar minha vida. Ela andou me
prensando contra parede, revirando minha privacidade, meu ambiente de
trabalho, mexeu até na minha agenda, me seguiu e descobriu sobre minhas
visitas a Nanterre.
Um sorriso glorioso abrilhanta seu rosto bonito.
— Então ela sabe o que aconteceu a Désirée? — pergunta, em um
tom de júbilo. Não a respondo, desviando meu olhar do seu e desistindo dessa
merda de café. Apoio a xícara de qualquer maneira e torno a olhá-la quando
pronuncia: — Você contou os motivos que a levaram àquela casa de
repouso? — Antes de eu poder respondê-la, ela emenda: — Ah, espere! Você
deve ter contado a versão oficial, mas não a verdadeira. Marie realmente
acreditou na sua história de ela ter caído e batido a cabeça? — Sua risada
sarcástica ecoa por toda a casa, atormentando-me e me deixando à beira da
loucura.
Subitamente me levanto, farto do seu sarcasmo e do seu deboche.
Aproximo-me dela e paro bem na sua frente, obrigando-a a erguer o olhar em
minha direção, calando seu riso.
— Só vim te dar um aviso. Não ouse contar a verdade para Marie,
pare de plantar a dúvida na cabeça dela e de incentivá-la a descobrir meu
passado. Ou…
Neste instante, Marjorie se levanta, colando seu rosto ao meu:
— Ou o quê? — Essa mulher me desafia e isso me deixa insano. —
Vai fazer comigo o que fez com sua melhor amiga?
Agarro seu braço e o aperto com força desnecessária. Minha ameaça
morre comigo. Marjorie não é de confiança. Preciso dar um jeito de comprar
seu silêncio e descobrir um modo de mantê-la calada. Ela deve ter alguma
vulnerabilidade, algum ponto fraco que posso usar para ameaçá-la e tê-la em
minhas mãos, como ela me tem em suas.
Solto seu braço um instante depois e me afasto.
— O recado está dado, Marjorie.
Retiro-me em seguida, tentando descobrir um modo de lidar com
minha mãe e com Marjorie — as duas maiores ameaças de trazer meu
passado de volta.
Chegamos por volta de oito da noite em Lisboa. A viagem de avião é
rápida, pouco mais de duas horas. Já deixei um carro alugado nos esperando
no aeroporto e de lá seguimos direto para o Hotel The Lumiares, onde
ficaremos hospedados.
— Obrigada — Marie diz em português depois que um funcionário
traz nossas malas para a suíte.
Observando o local enquanto desato a gravata, volto-me para ela.
— Você fala português? — pergunto, curioso. Começo a desabotoar a
camisa, seus olhos âmbar presos nos meus movimentos. Marie sorri um
pouquinho e morde o lábio inferior de um jeito sensual, vem até mim e
termina a tarefa no meu lugar ao mesmo tempo em que responde:
— Não. Aprendi uma coisa ou outra com o Bernardo — esclarece.
Ergo uma sobrancelha e me forço a engolir meu ciúme primitivo por
causa dessa mulher. Só de me lembrar que ela manteve com Dousseau a
mesma amizade que tivemos um tempo atrás, minha cabeça fica irracional.
— Hum… — cicio, tentando afastar da minha mente a imagem dos
dois juntos, nus na cama depois de uma rodada de sexo, e de ele ensinando-a
a falar algumas palavras em português.
Marie nota meu silêncio e, passando a camisa pelos meus braços e
atirando-a sobre a cama, me questiona:
— Por que esse “hum” e essa cara, Emilien Dupont?
Dou de ombros e molho o lábio inferior. Não vou dizer em voz alta
que estou com ciúme dela por um caso antigo que não tem chance nenhuma
de voltar a ter. Seus dedos sedutores puxam meu cinto com uma força sexy,
colando mais minha pélvis na dela. Marie se ergue nos pés e deixa sua boca
suculenta bem rente à minha, sua respiração quente e provocante incitando
meu corpo. Olho por cima do seu ombro, o ciúme esvaindo-se e dando lugar
ao tesão. A cama está logo atrás. Já sinto vontade de empurrá-la, subir o
vestido dela e entrar no meio das suas coxas.
— Não é nada — respondo enfim, dando um sorriso sincero e
acariciando seu rosto. — Só não sabia que Dousseau falava português.
— A mãe dele é brasileira — informa, desabotoando minha calça e
descendo-a até meu calcanhar, ficando de joelhos na minha frente. Porra, essa
mulher me provoca. Sua mão acaricia meu pau por cima da cueca, a língua
passando pelo lábio superior. Vou ganhando vida pouco a pouco em suas
mãos.
Em um segundo, sou eu quem está sentado na cama, ela entre minhas
pernas, tirando minha cueca e me masturbando com sua mão de veludo.
Seguro em seus cabelos delicadamente e a acaricio enquanto agarra meu pau
e aproxima devagar sua boca de onde a quero. Resfolego antes mesmo que
me engula, tão desejoso e ansioso que estou por esse momento.
Marie me coloca inteiro em sua boca, levando-me até o limite da
garganta. O prazer percorre todo o meu corpo, fazendo-me ficar nos
cotovelos e fechar os olhos, minha cabeça jogada para trás, sua mão direita
afagando meu abdômen ao passo que me suga forte, subindo e descendo com
seus lábios esplêndidos no meu pau. Leva apenas cinco minutos até que eu
goze em sua boca. Quando ela engole a última gota, puxo-a para mim e a
beijo, sentindo meu próprio gosto.
— Estou feliz que esteja aqui comigo — murmuro, afagando seus
cabelos crespos. — Sabe que, se depender de mim, não viajo mais sozinho.
Ela dá uma risadinha e cai por cima do meu tórax, montando meus
quadris.
— Parece que não sou eu que estou me aproveitando do fato de você
ser meu patrão, não é mesmo?
— Por que acha que te contratei? Exatamente para ter essa liberdade,
chérie.
Seu semblante muda um segundo mais tarde, e só então me dou conta
do que eu disse.
— Como assim “te contratei”? — questiona.
Pestanejo seguidamente, pensando em uma resposta rápida e
convincente.
— Quis dizer sobre te manter no cargo. Te mantive na Intéressant
exatamente para isso. Se trabalhasse em outro lugar, não teríamos essa
liberdade, não concorda?
Parecendo satisfeita com minha resposta, Marie concorda e abre outro
do seu sorrisinho. Beija-me um instante enquanto vai subindo devagar o seu
vestido. Então ela sobe até meus lábios, sentando-se no meu rosto e diz:
— Hora de retribuir o favor, monsieur Dupont.
Agarro suas coxas vigorosamente, enfio minha língua em sua boceta e
respondo:
— Com todo prazer, senhorita Julien. Com todo prazer.

No sábado pela manhã, tomamos café juntos no restaurante do hotel.


O Congresso começará às nove horas, por isso descemos cedo, por volta de
seis e meia. Encontro-me com alguns amigos e conhecidos do ramo que
também estarão no evento e se hospedaram por aqui. Troco alguns
cumprimentos e apresento a bela mulher agarrada à minha cintura:
— Monsieurs, esta é Marie Julien, minha namorada.
Sinto um olhar e um sorrisinho de satisfação dela sobre mim,
enquanto os homens a cumprimentam. Acabamos por nos reunir em uma
única mesa e fazemos nós cinco o desjejum, falando um pouco sobre o
mercado e nossas expectativas para o Congresso. Após o café da manhã,
voltamos à nossa suíte para eu vestir algo mais adequado e reunir meu
material para a palestra. No elevador, inclino-me sobre seu ouvido e sussurro:
— Desculpe por não ter te dado a atenção devida na mesa. Deve ter
sido insuportável me ouvir falar de negócios.
Virando-se para mim e agarrando na minha gola, ela responde:
— Você está cansado de saber que sinto um tesão desgraçado quando
te vejo falando de negócios, não é? — Seus dedos roçam na pele do meu
pescoço e enviam uma excitação fora do comum para entre as minhas pernas.
— Sua inteligência me deixa excitada.
Dou uma risada ao pé do seu ouvido e aperto mais sua cintura contra
meu corpo.
— Ainda assim, sinto que deveria ter te dado a atenção devida. Por
esse motivo, hoje à noite vou te levar para jantar. Esteja pronta às vinte e
uma.
— Oui, monsieur Dupont — brinca, beliscando minha costela.
Tomo-a em outro beijo, circundando-a em um abraço carinhoso.
— Passará bem o dia sem mim? — pergunto, acariciando seu rosto e
colocando uma mecha do seu cabelo atrás da orelha. — Digo, tem algo em
mente para se ocupar ou entreter?
— Trouxe meu notebook. Vou trabalhar um pouco e depois prometo
ir te ver palestrar, no seu horário. Às quatorze, no auditório principal, certo?
É o que está na credencial que me deu.
— Isso mesmo — confirmo quando as portas do elevador se abrem
para o corredor da nossa suíte.
Troco-me rapidamente, junto meu material da palestra e sigo até o
local do Congresso, cerca de dez minutos de carro. O primeiro horário é
preenchido pela abertura, com um debate pertinente, e uma rápida pausa para
o café. Prestigio outros palestrantes, cumprimento e converso com uma
porção de gente conhecida e troco contatos com tantos outros homens e
mulheres do ramo. Perto do meio-dia — quando fazemos a pausa para o
almoço que acontece no próprio local do evento — faço algumas ligações,
uma delas para fazer uma reserva num bom restaurante em Lisboa.
Às treze e meia, dirijo-me até o palco principal, preparando-me para
minha palestra. Cinco minutos antes do meu horário, o grandioso telão exibe
uma informação, em inglês, resumida sobre o tema.

X CONGRESSO INTERNACIONAL DE INVESTIMENTOS


E EMPREENDEDORISMO: LISBOA
Tema: Investimentos e filantropia: a aplicação
de capital como gerador de ação social.
Palestrante: Emilien Dupont, CEO da Dupont
Investimentos
14h – 15h30
Às quatorze em ponto, posiciono-me atrás do púlpito e dou início à
minha palestra. Encontro seus olhos âmbar cerca de dez minutos depois.
Marie está sentada na primeira fileira, exuberante dentro de um terninho
cinza. Uma hora e meia depois, deixo o palco sob aplausos e com um
sentimento de dever cumprido. Minha namorada vem ao meu encontro e me
beija antes de qualquer palavra que eu possa proferir.
Afasto-a dos meus braços apenas porque não consigo respirar. Sorrio
em sua boca e afago suas costas.
— Sua palestra foi maravilhosa — ela diz, ajeitando minha gravata.
— Investimentos e filantropia… Não poderia ter abordado outro tema.
— Domino com facilidade — digo, pressionando sua cintura e a
direcionando por entre os assentos. Teremos uma pausa para um coffee break.
— Inclusive, Investimento Social foi o tema do meu mestrado.
— Sério? — indaga, curiosa, olhando-me com certa veneração.
Apenas afirmo com um gesto de cabeça e continuo a direcionando até
a mesa de petiscos. Marie para no meio do caminho, colocando-se na minha
frente.
— Não te disse nada mais cedo, mas fiquei feliz por… ter me
assumido na frente dos seus amigos.
— Tenho algum motivo para não o ter feito? Você é minha namorada,
n’est ce pas?
— Sim, mas… Tu sais. — “Você sabe”, murmura, aproximando-se de
mim e encaixando seu corpo no meu, pouco se importando se estamos
atravancando o caminho dos demais. — Você nunca é visto com alguém,
sempre tão discreto…
Seguro-a pelo queixo e a faço olhar para mim:
— Mon amour, nunca me deixei ser visto com alguém porque elas
nunca foram importants pour moi. Foram paixões passageiras, muitas delas
de uma noite só, sem significância ou relevância alguma na minha vida. —
Toco seu rosto delicadamente e completo: — Mas não você. Você é
importante para mim. E agora quero que todos saibam quem é a mulher que
eu amo, quem é a mulher com quem estou profunda e extremamente
comprometido. Não há mais espaço para ninguém na minha vida, na minha
cama ou no meu coração a não ser para você, ma belle.
A emoção que trespassa seus olhos me enche de bons sentimentos.
Marie torna a me abraçar com toda sua força. Fecho os olhos e retribuo ao
seu gesto, esperando ansioso que ela me responda, que diga que me ama na
mesma medida. A declaração não vem, entretanto. Isso não me abala; muito
pelo contrário. Incentiva-me ainda a mais a provar que não pretendo mais
magoá-la.

O Congresso começou na sexta-feira. Minha participação estava


marcada para sábado e para o último horário do domingo — às quatorze. A
cerimônia de encerramento às dezesseis, logo depois da minha palestra. Às
vinte e uma, apenas para palestrantes, alguns convidados especiais e
organizadores, haverá um jantar de confraternização.
— O que é isso? — Marie indaga assim que sai do banho, no
domingo de manhã. Há uma caixa prateada sobre a cama que o camareiro me
entregou há pouco. Ela se volta para mim, curiosidade nos seus olhos,
apertando a toalha contra o corpo negro.
Do meu lugar na poltrona, já vestido para o último dia do Congresso,
incentivo-a:
— Abra e descubra.
Ela se volta para mim, sorrisinho e mão na cintura.
— Já sei. Vi muito disso nos livros de romances. Você me comprou
um vestido maravilhoso e perfeito para usar hoje à noite, provando que: ou
sabe muito de mim a ponto de acertar o tamanho do meu manequim ou tem
um ótimo personal stylist.
Deixo uma risada preencher o ambiente. Levanto-me e caminho em
sua direção.
— Tenho certeza que você vai se surpreender.
Dando uma risadinha, ela abre a caixa. Instantaneamente fica estática
por longos segundos, apenas encarando o fundo. Então me fita com as
sobrancelhas enrugadas, com certeza não entendendo nada.
— Você disse que ia me surpreender, mas eu não estava esperando…
isso — fala, apontando para dentro da caixa.
Abraço seu corpo meio úmido por trás e beijo o lóbulo da sua orelha.
— Eu queria muito ser aquele homem dos romances que sabe até seu
manequim e que vai acertar comprar um vestido que caberá perfeitamente em
você. Mas a verdade, Marie, é que eu não sou esse homem. E nem sei se
realmente existe na face da Terra um com tamanha habilidade — brinco, e ela
dá uma risadinha, virando-se para mim. — Não faço a mínima ideia qual
tamanho você veste e não tenho bom gosto nenhum para te comprar um
vestido. Por esse motivo, te dei isso — digo, apontando para o cartão de
crédito no fundo da caixa. — Vá às compras hoje e compre algo que te faça
ser a mulher mais linda daquele jantar. O que não será nem um pouco difícil.
— Só você mesmo, Emil — diz, abraçando meu pescoço e unindo
nossos lábios. — Vou comprar algo para ser a mulher mais linda do jantar e a
mais sexy nessa cama, mais tarde. — Minha respiração até falha com sua
promessa.
Ela me beija languidamente, selando sua palavra.

Involuntariamente, uma risada escapa dos meus lábios quando entro


na nossa suíte, após a palestra. Há uma caixa cinza sobre a cama e um
pequeno papel branco com meu nome escrito em sua letra cursiva e delicada.
Retiro a tampa, divisando o conteúdo lá dentro. Um sorriso enorme se
manifesta em mim enquanto leio o bilhete de Marie:

“Talvez seja hora de inverter os papéis, chéri. Você pode não saber
meu número de manequim, nem ter ideia do que me comprar. Eu não te culpo
nem te julgo por isso. Realmente não me importo. Mas eu já dedilhei tantas
vezes o seu corpo, já vesti tantas camisas suas, já te observei atentamente por
tanto tempo, que fica fácil saber o que cairá perfeitamente em você. Também
conheço seu gosto: confortável, sofisticado, que transmita mistério,
elegância, ao mesmo tempo que te deixe gostoso e irresistível. Exatamente o
que tem nessa caixa. Faço questão que você seja o homem mais bonito e
bem-vestido desse jantar, embora eu pretenda arrancar sua roupa quando
chegarmos na suíte. Te esperarei no saguão. Ansiosa para te ver, mon joli.”
Deixo o bilhete de lado e pego o smoking de dentro da caixa. É um
conjunto de três peças, todo preto — da calça à gravata-borboleta.
Surpreendo-me pelo fato de ela realmente ter acertado meu manequim. Não é
nada sob medida como meus ternos habituais, mas me servirá com perfeição.
Tomo um banho longo e faço a barba. Frente ao espelho, ajeito minha gravata
e me perfumo. Encaro meu reflexo por um instante, perguntando-me como
Marie estará. Confesso que meu coração bate descompassado para vê-la.
Ao descer até o saguão do hotel, procuro-a rapidamente e a encontro
com facilidade. Minha respiração falha quase na mesma hora.
Inconscientemente, até paro de caminhar, sendo arrebatado pela beleza dela.
Ela usa um vestido longo e vermelho de costas trançadas, muito justo, de
corte reto, que realça sua cintura e todas as suas curvas sublimes; o decote
profundo até perto do umbigo deixa à mostra os seios pequenos; a fenda nada
discreta na perna direita semeia minha imaginação: tudo o que quero é me
enterrar nela.
Com um sorriso sexy, fatal e convencido ela caminha em minha
direção, triunfal, arrebatadora, que faz todo meu mundo parar de girar. Meu
coração erra umas vinte batidas e paro de respirar por alguns segundos sem
nem perceber. Enquanto vem até mim, termino de avaliar sua beleza
encantadora: olhos esfumados em preto e marrom, cílios alongados, lábios
pintados fortemente de vinho. Os cabelos estão presos de lado, lisos até a
metade e cacheados na outra metade, que cai por cima do ombro esquerdo.
Quando chega até mim, apoio ambas as mãos em sua cintura
enquanto ela me abraça pela nuca.
— Gostoso — diz, saliente, observando-me de cima a baixo. —
Como eu achei que ficaria.
Abro um sorriso pequeno e deixo um beijo suave no seu rosto. Desvio
os lábios lentamente até o lóbulo da sua orelha, minha mão deslizando até sua
cintura, no ponto onde sei que provoca arrepios por todo seu corpo, e
murmuro:
— Exuberante sem nem fazer esforço. Ah, Marie… — exclamo,
sentindo uma pontada insólita no peito. Parece algo como medo e aflição. —
Você com toda certeza será a mulher mais linda desse jantar e preciso
admitir: estou com um ciúme descabido e irracional.
Beijando suavemente minha boca, ela murmura:
— Não importa quantos homens me olhem ou quantos me desejem.
No final da noite, acabarei na sua cama, com você entre minhas pernas,
porque você é o único com quem realmente me importo. — Sua mão macia
me acaricia no rosto, em movimentos brandos e suaves.
Eu não poderia ter me apaixonado por ninguém mais a não ser por
ela.

No salão da solenidade, todos os olhares se voltam para nós. Marie,


carregando sua beleza estonteante, está agarrada aos meus braços quando
entramos e viramos o centro das atenções. Seu vestido vermelho com meu
smoking completamente preto criam um contraste que faz todas as cabeças se
virarem para nós.
Somos recepcionados pelo cerimonialista da abertura do Congresso,
que me cumprimenta com um aperto de mão caloroso. Conforme avançamos
salão adentro até nossa mesa, muitas pessoas me param e me cumprimentam.
Sinto alguns cliques mais intensos quando apresento Marie como minha
namorada. Fazemos alguma social por um tempo, andando pelo salão,
encontrando conhecidos, trocando conversas calorosas. Marie se mantém o
tempo todo ao meu lado, agarrada à minha cintura, e a cada pessoa nova faço
questão de apresentá-la como minha companheira. Eu odeio exposição, de
verdade, e nada mais me dá asco do que exibir uma mulher como uma
namorada-troféu. Marie não é — e nem nunca será — isso para mim, mas
não consigo não dizer com orgulho e satisfação o que ela é na minha vida,
assumi-la perante todos.
Ela tem um sorriso satisfeito e feliz quando puxo uma cadeira da
nossa mesa reservada depois de finalmente conversarmos com algumas
pessoas importantes. O jantar já está para ser servido, e a maioria dos
convidados ocupa seus respectivos lugares.
— Você sabe que essas fotos que tiraram provavelmente serão
postadas em redes sociais, não é? — provoca, ajeitando-se no seu lugar.
Reviro os olhos e me sento de frente para ela.
— Estamos em um evento social, ma belle. É diferente. Além do
mais, eu não me importo que a imprensa saiba sobre nós.
Marie sorri e abana em positivo. Está para falar mais alguma coisa,
mas nossa mesa é invadida por alguns colegas e amigos que acabam por
chegar e vêm me cumprimentar. Levanto-me do meu lugar para recepcioná-
los. Troco apertos de mãos e conversamos calorosamente por alguns minutos.
Quando finalmente vão embora, volto ao meu lugar e um garçom vem retirar
nossos pedidos. Ele nos passa um pequeno menu com as opções do jantar.
Enquanto analisa as alternativas, Marie comenta:
— É tão difícil sair com um homem importante.
Dou uma risadinha e a olho por cima do meu menu. Por fim,
escolhemos nossos pratos. O garçom nos serve com água e vinho antes de se
retirar. Por um lado, ela tem razão. Mal o garçom nos deixa e mais um par de
conhecidos no ramo me abordam. Se vão mais cinco ou dez minutos de
conversa até que finalmente posso dar atenção à minha namorada.
Durante o jantar, conversamos sobre alguns pontos de Lisboa que
deveríamos visitar em um retorno futuro. Eu poderia facilmente cancelar um
ou dois dias da minha agenda e ficar na capital portuguesa com ela, levando-a
para lá e para cá, ou mantendo-a na nossa suíte do hotel, de preferência
debaixo de mim ou de quatro, mas ao sugerir isso, Marie diz que não pode
simplesmente faltar na redação — ela ainda tem um trabalho a ser feito.
Comemos uma sobremesa deliciosa e tomamos umas três xícaras de
café após o jantar. Assistimos, ainda, a um breve discurso do CEO da
organização responsável pelo evento. Antes do final do jantar, as mesas são
retiradas para liberar espaço no salão e realizar um pequeno baile. Puxo
Marie pelos punhos, um pouco contra sua vontade, e a levo até o centro do
salão. Agarro seu corpo no meu e a conduzo levemente no ritmo da música
suave que preenche o ambiente.
Ficamos um instante em silêncio, olhos nos olhos, sua mão na minha,
minha outra mão em sua cintura, sua outra mão em meu ombro, nossos
passes suaves como pluma.
— Acho que não te agradeci pelo terno — digo, girando-a um
momento depois e trazendo-a de volta para meu tórax. Marie sorri e afaga
meu peito, os olhos fixos por um breve segundo na minha vestimenta.
— Não é difícil te vestir — responde, e damos um rodopio pelo salão.
— Você fica lindo e gostoso de qualquer maneira.
— Como foi o final de semana para você? Tirando o fato de que eu
estive noventa por cento do tempo ocupado.
— Só me importo com os outros dez por cento do tempo em que
esteve comigo — devolve, aproximando sua boca da minha. — Não é o
quanto passamos juntos, mas como aproveitamos cada segundo um do lado
do outro. Sempre soube que você é um homem ocupado, Emilien. Não será
agora que vou exigir mais do seu tempo para mim.
Colo sua boca na minha e a beijo suavemente, parando com a dança.
Não me importo de sermos o centro das atenções, só preciso beijá-la, aqui,
agora, para ter certeza que essa mulher na minha vida é mesmo real, que não
é um sonho. Ela me afasta delicadamente e, olhando-me nos olhos, diz:
— Je t’aime .
Sua declaração balança toda a minha estrutura. Não é a declaração em
si. Ela já me disse, semanas atrás, de que retribuía ao meu amor, mas só ia se
declarar quando tivesse certeza de que eu não a magoaria novamente. Seu “eu
te amo” também significa “confio em você”, e isso é tudo muito para mim.
— Je t’aime — devolvo, abraçando-a forte.
Envolto em seus braços, penso que preciso manter nossa relação
blindada e protegida da minha mãe, do meu segredo que pode afastá-la de
mim. Não faço ideia de como vou enfrentar Elizabeth Dupont, nem garantir
que Marjorie não abra a boca, nem como fazer Marie desistir de desenterrar
meu passado.
Mas vou me esforçar para solucionar cada um dos meus problemas.

Chegamos no hotel por volta de meia-noite. Marie está sóbria — o


que é um milagre, pois conheço sua inclinação para beber em eventos sociais
— e me empurra contra a porta assim que entramos, tomando-me em um
beijo tresloucado e repleto de desejo. Minhas mãos voam diretamente para
sua bunda à medida que também a devoro. A noite toda quis apertá-la, seu
vestido provocante despertando meus anseios mais pecaminosos. Sem
desgrudar nossos lábios, ela me empurra até a cama. Caio deitado enquanto
ela continua em pé, fitando-me com olhar fatal. Levo a mão direita até meu
pau que já está duro e inspiro profundamente.
Marie começa a tirar o vestido, bem devagar, como que para me
provocar. Passa os braços pelas alças finas e o deixa cair, formando um
círculo aos seus pés. Prendo a respiração quando vejo sua lingerie também
vermelha. Um body de renda, frente única, com uma abertura central que
começa nos seios e termina na cintura. Ela gira o corpo, dando-me uma visão
estupenda da sua bunda; o fio da calcinha não tampa nada. De frente para
mim outra vez, engatinha em minha direção, parando no meio das minhas
pernas e acariciando meu pau.
Sua boca me provoca, começando na minha área que quer seus lábios
e sua boceta, e vem subindo, os dedos desabotoando meu colete. Fico nos
meus cotovelos, deixando a sensação esplêndida me guiar. A visão da sua
bunda empinada pulsa e lateja meu pênis.
— Quanto tempo mais de preliminares, chérie? — pergunto, repleto
de tesão. — Preciso me enterrar até as bolas em você.
Ela sorri indecentemente e tira meu paletó. Suas mãos quentes sobem
por dentro da minha camisa por um breve instante, incitando-me ainda mais.
Seu calor é tão bom e latente. Tudo que quero é segurar seus cabelos, prostrá-
la de quatro e comê-la com todo vigor, como ela merece.
— Tenha calma, Emil… — sussurra, desabotoando minha camisa e a
arrancando junto do colete. Sua boca cor de vinho se cola ao meu peito e
distribui beijos cálidos, descendo por todo meu corpo. Ela se detém por
vários segundos na minha virilha, passando a língua úmida para lá e para cá,
arranhando-me no abdômen. Cada lambida e cada arranhada aumenta meu
tesão.
— Mulher, quando eu te pegar… — murmuro, estirado na cama,
sôfrego e a ponto de explodir de prazer.
— O que fará? — provoca, abaixando minha calça.
Em um movimento que ela não espera, agarro-a pelos cabelos,
colando meu rosto no seu e quase rosnando:
— Vou te comer a porra da noite toda até essa boceta estar esfolada.
Sem esperar uma resposta sua, invado sua boca em um beijo obsceno,
apertando seus seios, sentindo-os entumecidos. Marie geme contra meus
lábios, sua mão ainda me acariciando no pau. Retomando o controle, ela me
joga de volta a cama e se põe entre minhas pernas, abaixando minha cueca.
Meu pau salta para fora, extremamente duro. Seu boquete dura cinco
minutos, mas é o suficiente para me levar incontáveis vezes ao paraíso.
Ainda estou me recuperando quando ela monta meus quadris, afasta
um pouco a parte debaixo do body e se senta em mim sem aviso nenhum, em
um movimento brusco e rápido, sua boceta engolindo-me em um milésimo de
segundo. Meu coração quase vem na garganta e eu mal tenho tempo de
processar quando ela começa a cavalgar em mim vigorosamente, os joelhos
flexionados, espalmando contra meu peito. Tudo que posso fazer nesse
instante é apenas jogar a cabeça para trás e gemer, segurando-me para não
gozar logo.
— Gosta quando eu sento gostoso no seu pau? — provoca, subindo e
voltando a se sentar em reboladas vagarosas. Não consigo responder, porque
ela sobe e desce rapidamente, traçando um padrão delicioso de subir, descer
devagar rebolando e depois intensificar o ritmo por dois ou três segundos,
cavalgando forte. — Gosta, Emilien?! — exclama, arranhando todo meu
peito. Dez tiras vermelhas marcam a pele do meu tórax.
— Gosto. Porra! E como eu gosto. — Dou um tapa na sua bunda e
cravo meus dedos na sua cintura. — Porra de mulher safada.
Então ela sai de cima de mim, frustrando-me de um jeito insano.
Ajeita-me na beira da cama, meus pés tocando o chão. Marie fica de costas
para mim e inclina a coluna, empinando sua bunda na minha cara. Passo a
mão em sua fenda molhada, movimentando os dedos para frente e para trás.
Acaricio seu clitóris com o polegar e, com o auxílio da minha mão livre,
faço-a se curvar mais e enfio minha língua nela, sentindo seu gosto delicioso.
Minha brincadeira não dura muito tempo. Marie se afasta com um passo para
frente, frustrando-me de novo.
— Volte aqui e me deixe te chupar como você merece — reclamo.
Ela volta, mas não atende meu pedido. Vira-se de costas para mim de novo e
me encaixa na sua entrada, dando outra sentada de me tirar o fôlego. Com as
mãos nos joelhos, ela senta e rebola no meu pau, as pernas separadas, polegar
nos lábios, nossos gemidos se confundindo.
Sem poder aguentar mais e precisando comandar o sexo, eu me ergo,
ainda encaixado dentro dela, e a empurro contra a parede da cama. Levanto
sua perna direita e me arremeto enlouquecidamente, descarregando todo o
tesão que ela me fez acumular. Entre gemidos de “me coma com força”, não
demora para Marie gozar. Quando sinto seu gozo escorrendo pelo meu pau,
eu a ponho na cama, de quatro, sua bunda empinada. Toco furiosamente seu
clitóris na intenção de prolongar o prazer e propiciar um orgasmo duplo. Os
dedos dela se fecham nos lençóis, meu nome sai engasgado da sua garganta,
anunciando que está gozando de novo. Ela grita e treme quando atinge o
ápice, o vão das suas pernas brilhando pelos fluídos corporais.
Viro-a para mim e abro bem as suas pernas, dobrando seus joelhos e
mantendo os pés no ar. Dou uma risadinha ao notar que ela nem tirou os
saltos. Segurando-a pelas coxas abertas, meto-me para dentro dela sem
demora; a visão do meu pau entrando e saindo de sua boceta me faz gemer
roucamente. Ah, porra! É gostoso para caralho. Meu polegar repousa em seu
clitóris pela segunda vez, porque nada é mais lindo do que ver meu pau
fodendo-a e meu dedo apertando seu botão do prazer.
Um minuto depois, encontro meu próprio orgasmo, gozando forte
dentro dela. Caio por cima do seu corpo, abraçando-o, nós dois suados e
exaustos.
— Vai mesmo me comer a noite toda? — ela sussurra em meu ouvido
com uma risadinha.
Acompanho-a na risada e respondo:
— Pode apostar que vou.
EMILIEN
Onze anos antes
— A sua mãe esteve aqui — Désirée diz, olhando-se no espelho do
banheiro enquanto passa um batom vermelho nos lábios. Ao seu lado,
fazendo a barba, a informação me pega de surpresa.
Já tem uns três meses que Elizabeth descobriu minha atual relação.
Como achei que aconteceria, ela está me infernizando. Outro dia apareceu de
surpresa para jantar conosco e começou a revirar meu passado e falar da
minha paixão por Marjorie. Uma paixão adolescente que não existe mais
desde os meus dezoito anos, mas que maman faz questão de ressaltar para
provocar. É claro que depois que foi embora, Désirée ficou irritadíssima, deu
uma crise de ciúmes e insegurança, perguntando-me um milhão de vezes se
eu realmente a amava. Provei meu amor por ela comendo-a com força em
cima da mesa por mais de uma hora.
— Quando? — pergunto, limpando o creme de barbear do meu rosto
com uma toalha pequena.
— Ontem, depois que você saiu.
Ela termina de passar o batom, pega uma escova e começa a pentear
os cabelos, embora já tenha feito essa tarefa antes. Conheço-a bem o
suficiente para saber que isso é sinal de ansiedade e nervosismo. Duas coisas
que minha mãe nos causa toda vez que aparece.
— E o que ela queria?
— Perguntou de você. E me pediu para avisar que hoje é aniversário
da Marjorie e por isso você tem, ênfase no “tem”, que acompanhá-la ao jantar
oferecido pelos Chevalier na mansão deles, às oito. Nota: de preferência que
eu não vá junto.
Suspiro e jogo a toalha de rosto no cesto de roupa suja. Viro-me para
ela e digo:
— Eu não vou. Não tenho motivos para ir.
— Sei que você não vai — fala, deixando a escova de lado e
conferindo sua aparência no espelho. Abraço seu corpo por trás e deixo um
beijo perto do lóbulo da sua orelha. — Mas está começando a me irritar essas
investidas da sua mãe. Desde que descobriu sobre nós, ela está nos
infernizando, Emil. Precisa dar um jeito nela.
Nossos olhares se cruzam pelo reflexo do espelho.
— “Um jeito” como? — pergunto, meio desconfiado de sua sugestão.
— Não sei. A mãe é sua — rebate, saindo do meu abraço e seguindo
para o quarto. Acompanho-a. Ela pega meu terno sobre a cama e me entrega.
Desenrolo a toalha na minha cintura e começo a me vestir. — Só sei que não
quero mais a sua mãe aqui, Emilien. Não a quero mais atormentando nossa
vida.
— Vou avisar na portaria que ela deve ser dispensada assim que
chegar. Não devem nem mesmo perder tempo nos interfonando.
— Já devíamos ter feito isso meses atrás — reclama, conferindo os
pertences na sua bolsa. — Preciso ir para a empresa agora. Tenho reunião em
uma hora.
Ela me beija um instante antes e me abraça apertado. Sinto seu corpo
meio tenso e aflito.
— Amo você, Désirée. Não importa o que Elizabeth faça para nos
provocar e tentar nos separar. Não vai funcionar, oui?
Minha namorada se afasta e exibe um leve sorriso.
— Oui. — Beija-me pela última vez e sai para cumprir sua agenda.
Termino de me vestir e preparo um café forte. Na mesa de desjejum,
reparo que Désirée esqueceu seu BlackBerry. Dou uma risadinha e faço uma
nota mental de aconselhá-la a parar de tomar café da manhã conferindo e-
mails pelo telefone. O interfone toca e anuncia a presença da minha mãe.
Falando no diabo…
Eu deveria informá-los que a partir de hoje não vou mais recebê-la e
ordenar de que a mandem embora. Contudo, Elizabeth e eu precisamos de
uma última conversa. Sendo assim, permito sua subida.
— Sua namoradinha deu o meu recado, Emilien? — É a primeira
coisa que pergunta quando abro a porta. Ela passa por mim, embora eu não
tenha a convidado para entrar, e segue até a cozinha. Analisa minha mesa do
café da manhã e junta a louça, colocando-a na pia. Sento-me à bancada,
confuso com essa atitude de Elizabeth, e a observo por um instante.
— Mãe?
Ela pega uma xícara e mexe na cafeteira. Isso não é do feitio dela,
essa má educação toda. Está fazendo apenas porque sabe que sua invasão me
irrita.
— Vista o seu melhor terno essa noite, querido Emilien.
Reviro os olhos.
— Não vou, mãe.
Ela se volta para mim.
— Por qual motivo?
Bufo.
— Pelo motivo de que Marjorie e eu não temos mais nada, nem
mesmo amizade. E porque está fazendo isso apenas para provocar ciúmes na
Désirée.
Seus olhos azuis ferozes me examinam atentamente, o rosto marcado
de descontentamento pela minha resposta. Sem dizer uma palavra, mamãe se
volta para a cafeteira e termina seu café. Então se senta do outro lado do
balcão, de frente para mim. Com um modo até aristocrático, sorve um gole
pequeno da sua bebida e me encara.
— Nunca vou entender por que você terminou com Marjorie para
ficar com alguém como Désirée. Vocês eram tão perfeitos juntos, mon fils!
Suspiro pesadamente, cansado dessa insistência e obsessão de me
juntar com Marjorie. Não sei mais o que posso fazer para convencer minha
mãe a me deixar em paz com minha namorada, a aceitar minhas escolhas e
torcer pela minha felicidade. Nem mesmo papai, quando em vida, conseguiu
persuadi-la a procurar uma ajuda psicológica. Fico sem alternativas diante
Elizabeth. Eu a contrariei e minha punição é ser atormentado como vem
fazendo nos últimos meses, provocando ciúmes, intrigas, discussões entre
mim e minha namorada.
E se eu der o que ela quer? E se a fizer pensar que estou acatando seus
desejos, mas na verdade não estou? Se ela me der uma semana de paz sou
capaz de encontrar outro lugar para viver com minha companheira e manter
meu novo endereço sigilosamente protegido dessa megera que chamo de
mãe. Assim, estaremos livres da sua perseguição.
— Quer mesmo saber por que terminei com Marjorie? — questiono,
decidido a manipulá-la da mesma maneira como fez comigo nos últimos
vinte e quatro anos. — Papai deixou a empresa falir — revelo subitamente.
Mamãe arregala os olhos e leva a mão ao coração, nitidamente surpresa e
assustada com a informação. — Ele fez um empréstimo com juros abusivos
com o senhor Chevalier e não estava dando conta de pagar.
Conto sobre as perdas exorbitantes, o contrato firmado com o pai da
minha ex-noiva e de como perderíamos nossas ações caso não quitássemos a
dívida.
— Se me casasse com Marjorie, primeiramente não conseguiria quitar
nosso débito. Em segundo lugar, como nosso casamento seria por separação
total de bens, a Dupont Investimentos sairia da nossa família para ser posse
dos Chevalier. Não me casei com Marjorie para poder evitar nossa falência e
perder o fruto do trabalho árduo do papai.
Elizabeth toma mais um gole do seu café, a expressão completamente
indecifrável. Deixo-a que assimile a verdade que acabei de contar. Um ou
dois minutos depois, completo:
— Désirée foi quem nos salvou. Me emprestou o dinheiro para salvar
a Dupont Investimentos e um capital para voltarmos a investir. Sem ela,
estaríamos na miséria.
— Então isso tudo aqui — fala, com desdém, movendo o indicador
em seu próprio eixo — é apenas um sentimento de gratidão? Você não ama a
Désirée?
— Não, eu não a amo — minto. Preciso mentir. O que enfurece
minha mãe é eu amar e estar junto de alguém que ela não aprova. Elizabeth
não aprovaria nem mesmo a sucessora do trono da Inglaterra. — Ela foi
apenas um meio de salvar a empresa, mère. E a verdade é que a Dupont
Investimentos ainda está na corda bamba. Nos reerguemos, mas nada
comparado a antes da crise. — Mais um pouco de mentira para dramatizar
minha declaração. — Lacroix é minha garantia de não quebrarmos
novamente. É tudo pelo dinheiro. Assim que nos estabilizarmos de novo… —
Faço uma pausa e molho o lábio inferior antes de prosseguir: — Vou deixá-la
e voltar com Marjorie.
Um sorriso grandioso ilumina o rosto de Elizabeth. Minha boca está
amarga só de pensar que o que a agrada me enoja. Entretanto, dei o que ela
quer ouvir.
— Para isso, mãe, preciso que nossa empresa esteja cem por cento
nos trilhos outra vez. O que não vai acontecer se você continuar
atormentando minha relação. Ela pode se cansar e me deixar por conta da sua
pressão.
Com um olhar vago por cima do meu ombro e um sorrisinho, ela
indaga:
— O anel de casamento que achei meses atrás. O que significa? —
Seus olhos encontram os meus.
Inspiro fundo e respondo:
— É para Marjorie. Por isso você ainda não viu o anel no dedo de
Désirée porque não é para ela. — Mentira. Desisti de pedi-la em casamento
depois que mamãe descobriu sobre nós. Pelo menos por ora. Enquanto
Elizabeth não for eliminada de vez de nossas vidas, não farei o pedido.
— Diga de novo. É música para meus ouvidos te ouvir dizendo que
não ama a mademoiselle Lacroix.
Minha garganta fecha. Tomando coragem, digo:
— Eu não amo a Désirée, mãe. Já disse que é só pelo dinheiro.
O sorriso de vitória e satisfação se intensifica no rosto dela.
Apontando com o queixo por cima do meu ombro, sentencia:
— Então diga isso olhando nos olhos dela.
Ao me virar no meu lugar, vejo Désirée na sala, logo atrás de mim, a
expressão marcada em dor, os olhos marejados.
Horror acerta meu peito quando me dou conta de que fodi com tudo.

— Monsieur Dupont? — minha secretária surge na porta.


Desconcentro-me de alguns papéis e ergo o olhar em sua direção. — Sua mãe
está aí fora e deseja falar com o senhor.
Massageio minhas têmporas, já ficando mentalmente cansado só de
pensar em conversar com Elizabeth. Imagino o teor do assunto. Há três dias
estive em Lisboa, onde assumi publicamente meu namoro com Marie. Se
minha mãe acompanha as mídias da empresa, já deve estar sabendo e veio me
atazanar.
Apenas abano em positivo e espero pela entrada dela. Como sempre,
maman surge toda elegante, vestida com um conjunto de calça e blazer azul,
que contrasta com a cor dos seus olhos, segurando majestosamente sua bolsa
Louis Vuitton, os cabelos louros grisalhos presos em um coque baixo e
severo. Ela se senta à poltrona frente à minha mesa e me fita do seu jeito
presunçoso e aristocrático.
— Não tenho o dia todo, maman — informo logo de uma vez. —
Veio falar sobre mim e Marie? — Adianto o assunto.
Ela sorri forçadamente e retira um jornal enrolado de dentro da sua
bolsa. Na página em questão, há uma foto minha com Marie no jantar da
cerimônia do Congresso. A manchete: “Emilien Dupont e jornalista que o
acompanhou à África assumem namoro”.
— Pode avisar ao redator dessa matéria que o nome dela é Marie
Julien? — provoco.
— Eu não fui clara, Emilien? — mamãe profere. — Um mês atrás,
quando estivemos em Loches, acho que te disse para se afastar dessa menina.
— Na mesma ocasião, te disse que não ia mais deixar que a senhora
interferisse na minha vida — rebato.
— Está me obrigando a tomar uma atitude radical, filho — ameaça.
Meu corpo quase trava no lugar, compreendendo sua intimidação.
Meu segredo, meu maldito segredo! Aperto os punhos por debaixo da mesa,
um sentimento de ódio nascendo em mim. Pela primeira vez em trinta e cinco
anos desejo que minha mãe morra. Só assim para parar de ser chantageado.
— Sua ameaça não me assusta — blefo. — Não pode me expor sem
se expor, mãe. Lembra-se de que você me encobriu?
Ela sorri de um jeito maléfico e guarda o jornal de volta à sua bolsa.
— Não preciso que a imprensa saiba, Emilien. Preciso apenas que
Marie saiba. E já tomei algumas providências. Ela não vai tornar pública a
sua vida passada e suja sem prejudicar a irmã. Está ciente de que se fizer isso,
afundo a carreira de escritora de Isabelle que nem mesmo começou e consigo
atingir a família dela também.
Nesse segundo, vacilo. Já não estou mais tão confiante de que
Elizabeth não vai contar tudo a Marie. E se ela souber… Mon Dieu! Se ela
souber, nosso relacionamento está acabado. Elizabeth já provou que é capaz
de tudo para nos separar. Ter revirado minha vida e descoberto que a
demissão e contratação de Marie foram manipulações minhas são as maiores
provas.
— Pense bem, Emilien — adverte, erguendo-se do seu lugar. — Já te
dei um prazo, mas vou prolongá-lo.
— POR QUÊ? — esbravejo, desvairado, saindo do meu lugar. Sangue
nos olhos, coração descompassado, desespero batendo na porta do meu peito.
— Por que não me deixa ser feliz?! Por que tudo precisa ser do seu jeito?!
— O meu jeito é o melhor! — grita de volta, apontando o dedo para
mim. — A sua mãe sabe o que é melhor para você!
Contorno a mesa e vou até ela, perdendo a paciência que me resta.
— Como tem tanta certeza assim, Elizabeth? — Ela empina o queixo,
odiando por eu tratá-la pelo nome. — Todas as vezes em que você interferiu
na minha vida com o argumento de que era o melhor para mim só me fez
mal!
Sua postura oscila um segundo diante minhas palavras, como se só
agora percebesse como suas interferências abalaram meu psicológico e me
afundaram cada vez mais. Essa oscilação, entretanto, dura apenas poucos
segundos. Não sei por que ainda insisto no assunto. Ela é uma mãe narcisista.
Tudo o que ela ama é a si mesma e por isso tudo precisa ser do jeito dela. Se
não supro seus sentimentos egoístas, ela me pune, porque não se importa
comigo.
— O recado está dado, Emilien. Você tem até o final de semana para
se afastar de Marie ou contarei tudo que sei a ela.
Maman se vira para deixar minha sala. Num momento tomado de
loucura, agarro seu braço pequeno e fraco com força desproporcional e a viro
para mim. Entredentes, repleto de fúria e desvairado com essa mulher,
murmuro:
— Vou fazer o que você quer. Mas não pense que vou desistir dela.
Vou achar um jeito de enterrar de vez meu passado e me proteger das suas
ameaças e manipulações.
— Vai me colocar numa casa de repouso? — provoca, pegando no
meu ponto mais fraco.
Solto-a bruscamente e a deixo ir.
Cancelo meus compromissos para o resto da tarde e vou para minha
academia na cobertura.
Preciso socar alguma coisa.

— Me ajude aqui? — Marie pede, entrando no apartamento. Quando


me viro, ela para imediatamente e arregala os olhos, entreabrindo os lábios e
me fitando por longos segundos como se eu fosse uma espécie de outro
mundo.
Rio da sua surpresa e me aproximo para ajudá-la com um pacote
enorme que traz.
— Feche a boca, chérie. Não vou te beijar se estiver babando —
brinco. Ela gargalha e me estapeia no ombro.
— Você está muito gostoso — diz, enquanto pego o embrulho e o
coloco sobre seu sofá. Estou usando apenas a calça social e um avental. —
Cozinhando só de avental. Mon Dieu, Emil, quer mesmo me matar do
coração.
Rio por um instante do seu exagero e a tomo em meus braços. Corro
para finalizar o jantar enquanto ela abre o embrulho.
— O que é isso? — pergunto, experimentando a sopa.
— O painel de metal que disse que deveríamos comprar para
montarmos um mural. As fotos de Loches e em Lisboa já poderão vir para
cá.
Forço um sorriso e desligo o fogo, ignorando a aflição crescente no
meu peito. Estou prestes a tomar uma decisão ruim para nós dois. Chegar
animada com um presente desses me aflige o coração.
— Por que está com essa cara? — questiona, aproximando-se de mim.
Pego pratos, copos e talheres e entrego para ela.
— Não é nada. Pode arrumar a mesa para jantarmos?
Marie acena em positivo, apesar de sua feição demonstrar que está
desconfiada. Ela me conta do seu dia enquanto comemos, e eu faço o mesmo,
ocultando a parte da visita desagradável da minha mãe. Não quero ter de
tocar no assunto, mas peço que me conte com mais detalhes sobre a conversa
que ela e Elizabeth tiveram antes de ontem. Meio hesitante, ela o faz: me fala
sobre minha mãe tê-la chantageado a se afastar de mim em troca de não
frustrar a publicação do livro de Isabelle, mostrou minhas conversas
transcritas e por fim ameaçou acabar com a carreira de escritora da irmã e
atingir sua família caso ela descubra meus segredos e decida manchar o
sobrenome Dupont.
Fico em silêncio por longos segundos, apenas assimilando tudo.
Marie toca minha mão e murmura:
— Emilien… por que não me conta?
Levanto-me bruscamente e recolho a louça suja. Coloco tudo dentro
da pia e começo a lavar. Há um longo instante de silêncio entre nós. Ouço-a
sair do seu lugar e vir até mim. Ela me abraça e apoia sua cabeça nas minhas
costas; ficamos assim mais um tempo. Quando me viro, ao terminar de lavar
nossos pratos, sou tomado por um beijo profundo e apaixonado, as mãos dela
já encaminhando-se para dentro da minha calça. Suspiro em sua boca e
seguro-a pela nuca. Um minuto depois, já estamos no sofá, eu dentro dela,
fodendo-a como se fosse a última vez.
Porque provavelmente será.

— Aonde você vai? — Marie se vira e fica nos cotovelos,


observando-me pegar minha roupa e me vestir.
— Preciso ir para casa.
— Não vai passar a noite comigo? — pergunta, curiosa, sentando-se
na cama e puxando o lençol para cobrir os seios. Coça os olhos e procura
pelas horas. Meia-noite e dois. — Está tarde, Emilien. Durma aqui.
Passo a mão pelo rosto, controlando as lágrimas que ameaçam vir. A
dor aperta meu peito, deixando-me quase à beira da loucura. Sento-me na
cama e a puxo para mim, beijando sua boca e depois sua testa. Eu pretendia
ter essa conversa amanhã, durante o almoço. Mas vou abrir o jogo agora
mesmo.
— Vista-se. Temos que conversar.
— Nua eu sou uma distração para você? — provoca, passando o
indicador na minha virilha.
Sorrio um pouco.
— Sim. Mas também porque o assunto é sério.
Ela me fita de um jeito preocupado, mas acata minha sugestão. Veste
uma camisa regata e uma calça de moletom. Seguimos até a sala e nos
sentamos um ao lado do outro. Não faço rodeios. Vou direto ao assunto:
— Preciso de um tempo.
A expressão que marca seu rosto no instante que digo isso é algo que
jamais esquecerei. Tristeza invade seus olhos. Medo. Confusão.
— Está terminando comigo? — sussurra, voz embargada.
— Não. Estou te pedindo um tempo.
— Tempo para quê? — rechaça.
Mordo o lábio inferior e olho para meus pés. Engulo em seco, não
permito que as lágrimas me dominem. Recomposto, me viro para ela e seguro
suas mãos, apertando seus dedos contra os meus num ato em que peço que
compreenda meus motivos.
— Minha mãe… me ameaçou também. Com meu segredo. Me disse
para me afastar de você ou vai te contar tudo. E não posso permitir isso,
Marie.
Ela balança a cabeça em negativo. Com seus olhos cravados nos
meus, ela intensifica o aperto em meus dedos.
— Então me conte você — pede suavemente.
Acaricio seu rosto, exibindo um leve sorriso fúnebre.
— Só preciso de tempo, chérie. Encontrar um jeito de enterrar meu
passado de vez e garantir que maman não me ameace mais. Nem ela, nem
ninguém.
Lágrimas invadem seu rosto belo, acentuando a tristeza que marca
cada traço de sua expressão. Isso corta meu coração de um jeito insano.
Queria ter escolhas, mas no momento não tenho.
— Me conte! — exige, quase de forma desesperada. Então se joga
nos meus braços, apertando-me com toda sua força. — Confie em mim, mon
amour.
Afasto-a e limpo suas lágrimas.
— Marie, vou te perder de qualquer maneira — explico, baixando
ainda mais meu tom de voz. — Seja porque minha mãe vai te contar, seja
porque eu vou te contar, de qualquer forma… sei que vou te perder.
— Não vai! — garante, mas é uma garantia falsa. Ela não sabe sobre
mim e as coisas horríveis que fiz.
— Vou — reafirmo. — Sei disso.
Ela se levanta em um rompante. Sua postura pode ser resumida em
desespero e aflição.
— Está quebrando sua promessa! Há dois dias me prometeu que não
deixaria sua mãe nos destruir, e olhe só! Está fugindo, como um covarde.
Seguro-a pelos braços e a faço olhar para mim. Seus olhos estão tão
marejados… Odeio saber que estou causando isso, mas é temporário; ela
precisa compreender isso.
— Não é um adeus, Marie. Não vou desistir de você. Só preciso dar à
minha mãe o que ela quer, mesmo que por um tempo. Apenas o suficiente
para eu encontrar uma maneira de dizimar meu passado de uma vez por
todas. Só assim ela não vai mais me ameaçar.
Marie dá um passo atrás, fugindo de mim e me olhando da mesma
maneira que se olha para um traficante de mulheres.
— Se contar para mim, todos os problemas estão resolvidos. Vou
saber lidar com a informação! Sua mãe não será mais uma ameaça e
poderemos viver em paz. Por favor, Emilien… Por favor. Me conte!
Meu coração dói enquanto a encaro, vendo como nossa separação a
afeta tanto quanto me afeta.
— Marie… — digo, com cuidado. — Estou fazendo o melhor para
nós dois. Está doendo agora, eu sei… Dói em mim também. Mas quando eu
resolver esse problema, e se você me quiser de volta, teremos o sossego que
nossa relação merece. Estou te deixando, mas não é definitivo. Se eu te
contar… — Respiro com dificuldade e dessa vez permito que minhas
lágrimas prevaleçam sobre mim. — Vou te perder e será para sempre.
Entende a questão?
— Me prometeu — murmura timidamente, chorando baixinho. —
Não só prometeu que não deixaria sua mãe interferir na nossa relação como
prometeu que não me magoaria de novo. Está deixando sua mãe nos separar e
de quebra está me magoando junto.
Dou um passo à frente e venço a distância que nos separa. Seguro seu
rosto firmemente, beijo-o seguidas vezes e o gosto salgado das suas lágrimas
fica na minha língua.
— Me perdoe… — cicio, baixando minha boca para sua. — Leve isso
como… outros dos seus rompimentos.
Ela me empurra e me dá um tapa.
— Os caras que romperam comigo… Não amei nenhum deles, seu
imbecil!
Suas palavras me atingem com a mesma força de um trator. Sinto-me
um estúpido por ter dito algo tão idiota.
— Marie… — Ela me empurra e passa por mim, abrindo a porta do
apartamento.
— Se vai embora, vá de uma vez. Não vou te implorar para ficar, nem
para confiar em mim e me contar seus segredos. Mas se passar por essa porta
— adverte, desviando seus olhos dos meus. — Saiba que não tem mais volta
enquanto não for franco comigo.
Sua sentença me deixa entre a cruz e a espada. Então eu deveria ficar,
escolhê-la, enfrentar minha mãe, contar a verdade para ela. Mas o medo me
domina. Medo de perdê-la, do seu desprezo, do seu ódio.
Sem muitas opções, decido pela mais fácil, mas também a mais
dolorida nesse momento.
Eu vou embora.
MARIE
— Não dormiu direito essa noite? — Héron me pergunta logo que
entro em sua sala.
As olheiras e a cara de acabada estão tão óbvias assim?
Suspiro e deixo meu corpo cair na poltrona em frente à sua mesa.
Poirier me olha com um sorriso meio sugestivo e balança a cabeça.
— Já entendi. Emilien tem te dado canseira?
Olho-o com o semblante extremamente sério, odiando a piadinha
inadequada. Em outro momento, eu teria rido e entrado na dele, mas não
hoje. Não dois dias depois de Emilien ter me deixado.
— Nós terminamos — informo, entregando o manuscrito da minha
matéria da edição especial que sai em pouco mais de três meses. Ele poderia
ter recebido por e-mail, mas Héron diz que prefere ler na versão impressa.
Esse trabalho de qualquer maneira pertence à Delphine, mas ela tirou licença
de uma semana. Como Poirier é um cara muito proativo, se propôs a analisar
a terceira versão do conteúdo. — Ele terminou comigo, melhor dizendo.
Meu chefe exibe surpresa enquanto pega os papéis e os analisa
rapidamente.
— Vocês não tinham nem um mês de namoro, não é?
— Íamos completar dentro de alguns dias.
— E por esse motivo você está assim — profere, apontando o
indicador para o meu rosto. — Lamentou a noite toda?
— E eu lá sou mulher de lamentar por homens, Héron? — indago.
Não vou ser hipócrita e dizer que não doeu o afastamento de Emilien. Ele
preferiu terminar nossa relação, depois de se declarar e de prometer que não
deixaria Elizabeth se intrometer na nossa vida, a se abrir comigo e enfrentar a
megera da mãe. Mas não passei a noite lamentando por ele. Não o fiz dois
anos atrás quando foi embora para Nova Iorque e não o farei agora. —
Fiquei, sim, triste e com muita raiva, e descontei isso no trabalho. Dormi
umas três horas nos últimos dois dias, mas já dei todos os ajustes no arquivo
da minha matéria.
Héron olha um segundo para baixo, para o manuscrito que acabei te
entregar, e depois se volta para mim, afagando o queixo e me olhando
atentamente.
— Todos os seus trabalhos estão dentro do prazo? — questiona.
— Oui — respondo.
— Por que não tira o restante do dia de folga? Vá para casa, durma
um pouco, tome uma boa taça de vinho e assista algo na Netflix.
— Sério? — A perspectiva me deixa animada. Duas noites mal
dormidas estão cobrando seu preço no meu humor, que já está ficando
péssimo.
— Claro. Tenho certeza de que o Emilien não vai se importar. Afinal,
isso é culpa dele, não é? — Mesmo se ele se importasse, penso, dando uma
risadinha e concordando. — Eu soube — desvia do assunto de repente — que
sua irmã conseguiu um contrato com a Allumer. É verdade?
Sim, e acredita que isso nada mais foi do que um plano de Elizabeth
Dupont para tentar me chantagear?, a pergunta se passa pela minha cabeça.
Ao invés disso, apenas respondo:
— É, sim. Isabelle está muito feliz. Vocês dois não estão mesmo se
falando?
Héron ajeita a gravata fina e vermelha do seu terno e pigarreia,
acomodando-se melhor em seu lugar.
— Não. Desde o coquetel.
— Isso tem mais de um mês, não tem?
— Tem.
— E vai perdoá-la quando?
Ele fica em silêncio por longos segundos e não me encara.
— Ela me deu um tapa na cara e me molhou com uísque. Teria
compreendido se eu tivesse merecido, mas não mereci.
— Ela não sabia. — Tento defendê-la, levantando-me do meu lugar
para ir para casa e aproveitar o dia de folga. — Isso até meio que foi culpa
minha.
— Mesmo assim. Se Isabelle tivesse ao menos exigido uma
explicação antes de sair me esbofeteando, ainda estaríamos juntos.
Suspiro e balanço a cabeça em negativo. Conheço Héron o bastante
para saber que é orgulhoso quando quer. Ele teve seu orgulho ferido e não vai
superar isso com facilidade. Abandonando o assunto, agradeço o dia de folga
e me ausento de sua sala.

— Eu incomodo? — pergunto quando Ann-Marie me recebe em sua


casa. Eu deveria ter ido para meu apartamento para dormir, como Poirier
sugeriu, mas senti saudades dos meus amigos e decidi por uma visita.
— Você não incomoda nunca, Marie — ela diz, puxando-me para
dentro.
O centro da sua sala está uma bagunça. Jean-Luc está sentadinho em
um tatame colorido, com um monte de brinquedos apropriados para sua idade
espalhados ao seu redor. Bernardo está ao seu lado, segurando um aviãozinho
de pelúcia e brincando junto do filho, que gargalha cada vez que o pai bate o
bico do avião no narizinho dele. O menino ri de cair para trás e erguer as
perninhas.
— Chérie! — Dousseau exclama, deixando o filho por um instante e
vindo até mim para me dar um abraço apertado. Sua esposa me acomoda no
sofá (depois de tirar alguns brinquedos e cobertas) e pede ao marido que me
faça companhia enquanto prepara algo para comermos. — Já tem algum
tempo que não nos vemos. Como está?
— Bem, na medida do possível. Você andou sumido da cafeteria.
Com um movimento engraçado de cabeça, ele indica o pequeno Jean-
Luc.
— Obrigações paternais. Ann-Marie recebeu um convite de Silvia
Ferreira para mostrar um portfólio inédito, então minha esposa está
trabalhando intensamente. O que me obriga a passar mais tempo com meu
menino.
— Isso é tão incrível! — exclamo, realmente animada. Fico feliz que
Ann-Marie esteja ascendendo em sua profissão. — Torço muito pelo sucesso
dela.
Bernardo abre aquele sorriso maravilhoso de covinhas e abana em
positivo. Sua esposa aparece carregando uma bandeja com queijos e diversos
aperitivos, suco e uma taça de vinho que ela entrega ao marido depois de
beijá-lo.
— E seu namoro com Emilien, está tudo certo? — Meu amigo quer
saber, pegando da mão do filho uma peça de brinquedo que ele ia colocando
na boca. Bernardo faz um gesto negativo com o indicador para o pequeno,
depois coloca a mão livre da taça no pescoço e imita alguém se engasgando
(como se o menino fosse entender sua mensagem.). Ann-Marie e eu não
seguramos a risada da sua mímica, principalmente porque Jean-Luc gargalha
com a careta do pai.
Minha risada vai se dissipando pouco a pouco, porque terei de
responder à pergunta de Bernardo. Ainda estou me preparando para isto
quando ele emenda:
— Nos encontramos por acaso na cafeteria uns… seis dias atrás. Ele
estava bem feliz. Depois vi na internet uma foto de vocês dois juntos em
Lisboa. Ele finalmente te assumiu em público. É um bom passo.
O casal nota que fico inquieta e me perguntam o que há.
— Emil terminou comigo. É por causa daquele segredo dele… —
falo. Suspiro pesadamente, cansada desse assunto. — A mãe está o
ameaçando expor e, em vez de se abrir comigo, Emilien preferiu romper.
— E ele tem mãe? — Bernardo indaga, meio debochado.
Dou uma risadinha e abano em positivo. Seu questionamento é
natural. Emilien nunca fala da família (agora entendo o porquê), se afastou da
mãe e da irmã por um tempo. Acho que, se eu não tivesse esbarrado com
Elizabeth por acaso em Loches, nunca a teria a conhecido (e eu não ia
reclamar). Entendendo que Bernardo e Ann-Marie não conhecem a história
por completo, faço um resumo do que vi, vivi e ouvi nesses últimos três
meses desde que ele voltou.
— Então foi a mãe dele quem contou ao Antony? — Ann-Marie
indaga, mordendo o lábio inferior. Bernardo, na poltrona de frente para ela,
bebe o restante do vinho em um gole só, meio forçado e fazendo uma
carranca. Está bastante óbvio que ele não gosta nem de tocar no nome desse
traste.
— Não. Antony descobriu revirando a privacidade dele. Não sei
como, mas descobriu e contou para uma terceira pessoa: Marjorie, a ex-noiva
de Emilien. Bem, até onde sei, ela não o expôs e nem o ameaçou. Por
enquanto. O problema mesmo é a mãe.
— Mãe, irmã, ex-noiva, melhor amiga em Nanterre… — Bernardo
zomba levemente. — Para quem não tinha familiar nenhum…
Ann-Marie o adverte com o olhar, e o esposo abre seu sorriso cínico e
dá de ombros.
— De qualquer maneira — continua, encurvando-se sobre os joelhos
—, quão sério é esse segredo? O Emilien tem tanto medo que isso venha à
tona que para até de raciocinar. Antony o chantageou duas vezes detendo
dessa informação; a mãe faz a mesma coisa, pelo que entendi, há bastante
tempo. Ele mesmo já me disse, quando Juliette estava correndo perigo, que é
algo capaz de manchar sua imagem. Emil nega, mas ainda acho que ele
matou alguém.
— Que asneira, Bernardo! — a esposa exclama, horrorizada com sua
sugestão.
— Talvez não de propósito — conjecturo, concordando com meu
amigo. Faz algum sentido. — Emilien tem… uma coisa com bebida e não
fica bêbado, nunca. Ele pode… ter passado do limite e causado um acidente?
Isso não é incomum, Ann-Marie! Principalmente entre calouros e veteranos
na faculdade, com esses trotes idiotas. Emil pode ter se envolvido em algo
parecido quando mais novo, sabe?
— Viu só? — Bernardo profere, olhando para a esposa. — Minha
teoria não é tão absurda.
— E por que ele não te conta, chérie? A mãe não o chantagearia mais
se ele simplesmente se abrisse.
— É o que eu argumento! Mas o homem insiste de que não importa
quem me conte sobre esse passado obscuro, eu vou deixá-lo de qualquer
maneira.
Um instante de silêncio paira sobre nós. Mordo o lábio inferior e pego
um pedaço de queijo — os aperitivos dela estão intocados até agora.
— Dê tempo ao tempo — meu amigo aconselha. — Está claro de que
o Emilien ama você, de verdade. Quando superar o medo de te perder por
conta desse segredo, ele vai te contar. Só… dê o espaço de que precisa.
Quero dizer que isso provavelmente não vai acontecer. Emil está mais
obcecado em enterrar seu passado do que superar seus medos. Como
resposta, apenas suspiro e aceno em positivo, murmurando bem baixinho:
— Só espero que quando isso acontecer, não seja tarde demais.
EMILIEN
— Você acha que foi sua melhor decisão? — meu psicólogo
pergunta.
Definitivamente a resposta é “não”. Ter pedido um tempo a Marie foi,
na verdade, a pior escolha que eu poderia ter tomado na vida. Eu amo aquela
mulher, respiro aquela mulher, não vejo sentido em um futuro sem ela
comigo, do meu lado. Não foi minha melhor decisão e foi a mais difícil que
já tomei.
Recosto-me no encosto do sofá e cruzo as pernas, desviando o olhar
para a janela logo ao lado. Absorvo a imagem de um dia ensolarado e ameno,
enquanto reluto em responder.
— Eu não tive escolha — murmuro.
— Sempre há escolha, Emilien.
Olho para meu psicólogo outra vez e refaço minha resposta:
— Fiz o que era melhor para nós dois.
Maurice troca o cruzar das pernas e profere:
— Fez o que era melhor para vocês ou o mais fácil para você?
Seu questionamento me ofende.
— Terminar com Marie foi a decisão mais dura da minha vida.
— No entanto, entre se abrir com ela e deixá-la, o mais difícil foi ser
franco. Tanto que preferiu terminar seu relacionamento. Estou errado?
A constatação óbvia feita por Maurice me acerta como uma tapa na
cara. Ele não está de todo errado. Droga. Odeio admitir isso.
— Ter sido sincero com ela era a parte fácil — cicio, fugindo outra
vez do olhar suave do psicólogo sobre mim. — Lidar com o desprezo dela é
que seria a parte difícil.
Fito por longos segundos o ambiente através da janela do consultório,
mantendo meu silêncio. Maurice se inclina um pouco mais para frente,
deixando um suspiro leve no ar. Sinto seu olhar calmo, paciente e acolhedor
sobre mim. Já me consultei o suficiente com ele para saber que essa sua
postura revela que me dará um conselho valioso e, no final do dia, mesmo
que agora eu relute em aceitá-lo, vou acabar considerando. Ele é um bom
psicólogo.
— Você está com medo, Emilien. E isso é natural. Considerando a
relevância que dá a seu segredo… Compreendo que esteja com medo. Mas
esse sentimento negativo está te fazendo projetar uma reação de Marie que
pode simplesmente não existir.
Lentamente, viro meu pescoço em sua direção, assimilando suas
palavras.
— Eu fiz uma coisa terrível. O desprezo dela é a única certeza que eu
tenho se decidir contar tudo sobre meu passado.
O terapeuta ajeita os óculos e volta a se acomodar contra o espaldar
da sua poltrona, cruzando as pernas e me analisando atentamente.
— Este é o ponto. Você tem certeza que ela vai te desprezar, mas já
considerou que isso é apenas fruto do seu medo de se abrir? Para ser mais
claro, é como quando somos crianças e precisamos nos vacinar ou tirar
sangue. O pensamento de que uma simples picada doa muito nos faz ter um
medo irracional de agulha. É onde as crianças choram e se desesperam antes
mesmo de entrarem na sala de vacinação. E aí temos duas resoluções após a
picada: ou a agulhada realmente vai doer, porque nosso psicológico diz isso,
ou vamos nos dar conta de que não doeu tanto assim. Não seria este o seu
caso?
Pondero seu conselho por um segundo.
— Maurice, se eu decidir torcer o meu braço até esmigalhar os ossos,
sei que vai doer muito. Essa perspectiva não é coisa da minha cabeça que cria
um medo irracional. É um fato. Estou ciente de que cometi um erro terrível o
bastante para prever a reação negativa de Marie.
— Nesse caso — ele pondera —, temos duas possibilidades. Só vai
saber qual delas está correta se você revelar esse seu passado.
Balanço a cabeça em negativo, resoluto em tomar essa decisão.
— Veja — sua voz branda me chama de volta —, quando um médico
vai dar uma notícia ruim ao paciente ou aos familiares, ele não começa pela
parte ruim. O médico prepara o terreno, acalma a pessoa que receberá a
informação, e só então conta. Você pode fazer o mesmo com Marie. Prepare-
a antes. Não é possível que esse seu segredo seja de todo ruim.
Fecho os olhos e inspiro profundamente o ar para os pulmões.
— Não foi de propósito. Nunca foi de propósito.
— É um bom argumento. Comece dizendo que você não teve
intenção. Explique os motivos que te levaram a cometer esse erro e ressalte
que não foi deliberado.
Encaro meu terapeuta. Em anos de sessão, é a primeira vez que
decido abordar o assunto com ele. Nunca dei indícios de que guardava um
segredo. Ele sabe parte do meu passado, Maurice me acompanha desde
Désirée… Quando precisei voltar para a terapia se quisesse saber lidar com
tudo o que aconteceu entre nós e depois do acidente. “Acidente”. Dou uma
risada amarga. Por mais que seja um ótimo profissional, nunca fui corajoso o
suficiente para falar com ele sobre isso. Até o dia de hoje. Ao perguntar como
como eu estava e, apesar de eu ter dito “Estou bem, merci”, Maurice notou
que não era verdade. Então, acabei me abrindo parcialmente, falei do meu
segredo, das chantagens da minha mãe, de ter decidido me afastar de Marie
até encontrar um jeito de enterrar meu passado e poder viver em paz sem a
iminência de alguém surgir para me chantagear.
— Preciso pensar — digo, porque não quero admitir que vou
descartar seu conselho.

Tenho me focado no trabalho. Faz uma semana que terminei com


Marie e me dedico a encontrar um modo de me livrar do meu passado sujo.
Coloquei uma pessoa responsável para tentar descobrir qualquer podre de
Marjorie ou da família Chevalier que eu possa usar contra ela. Eu sei. Tive de
me rebaixar ao nível da minha ex-noiva. Meses atrás, quando me contou que
sabia do meu segredo já tinha dois anos, eu lhe dei um voto de confiança.
Mas agora retifico o meu voto. A mulher já me provou que não é de
confiança e talvez esteja apenas esperando que eu baixe a guarda para atacar.
Fiz o mesmo com minha mãe, mas acredito que dificilmente ela tenha
qualquer coisa que possa ser usada contra ela.
O telefone ao meu lado toca, assustando-me. Desconcentro-me da
leitura de alguns relatórios de investimentos e atendo ao ramal.
— Monsieur Dupont, mademoiselle Julien deseja falar com o senhor.
Meu coração dá um grande salto no peito e tenho a impressão de que
ele para na garganta.
— Marie está aí fora? — pergunto, apenas para ter certeza de que
compreendi direito.
— Non. É a senhorita Isabelle.
Uma onda de frustração avança sobre meu corpo. Suspiro e abaixo a
cabeça, passando os dedos pelos meus fios.
— Deixe-a entrar.
Menos de um minuto mais tarde, Isabelle adentra minha sala, a
expressão de quem vai comer meu fígado e jogar o resto aos cães. Levanto-
me para recepcioná-la e ofereço uma poltrona para se sentar.
— Não pretendo demorar — diz em um tom sério ao negar minha
oferta. Isabelle se mantém alguns passos distantes, o que me dá a
oportunidade de contornar minha mesa e me encostar na borda do outro lado.
Cruzo os braços e a espero me xingar o tanto quanto quiser.
Ela nada fala por alguns segundos, alimentando minha ansiedade e
aflição.
— Ela está bem? — Pego-me fazendo essa pergunta ridícula.
Isabelle dá uma risada sem humor e ergue uma sobrancelha.
— Não vou dar uma de cupido — declara, fugindo do meu
questionamento. — Você quebrou o coração dela uma vez e quebrou de novo
na semana passada quando terminou com ela sabe-se lá por quê. Só vou te
pedir uma vez, Emilien, para reconsiderar. Torço por vocês dois. Minha irmã
te ama e está bem na cara que o sentimento é recíproco. Então pare de ser um
idiota covarde, vá atrás dela e seja sincero. Conte tudo o que Marie precisa
saber.
— Se eu fizer isso…
— Não me venha com essa ladainha! — protesta, erguendo o tom de
voz. — Pare de pensar que Marie vai deixar você por qualquer motivo que
seja. Dê um voto de confiança para minha irmã. Ela é uma mulher adulta,
comece a confiar nela como tal!
Não tenho oportunidade para argumentar, porque Isabelle vira as
costas e começa a sair da minha sala.
— É meu primeiro e último conselho para você, Emilien.

Em casa, tudo que preciso é de um bom banho e uma taça de vinho.


Não sinto nem mesmo fome. Estou cansado — física e mentalmente falando
— e só quero uma noite de sossego para recuperar minhas energias e pensar
na resolução dos meus problemas de nome Marjorie e Elizabeth. Não tenho
tempo de realizar nenhum dos meus desejos porque minha campainha toca
furiosamente.
Mal atendo a porta e Nicole entra como um furacão.
— Quando ia me contar? — questiona. O tom sério em sua voz,
somado à sua estatura mediana, uns vinte centímetros mais baixa do que eu,
dá a ela um aspecto engraçado. Nicole brava é como um chihuahua.
Fecho a porta e desato minha gravata.
— Contar o quê?
— Não se faça de desentendido! — protesta, vindo em minha direção
e batendo o indicador contra meu peito. — Terminou com Marie já tem uma
semana e não me contou!
Suspiro e fecho os olhos. Jogo a gravata e meu corpo no sofá. Tiro o
paletó vagarosamente, praguejando por esse dia. Sabia que uma hora minha
irmã ia saber e ia exigir uma explicação.
— E como você soube? — redireciono o assunto, entretanto.
A expressão em seu rosto suaviza e ela se senta do meu lado.
— Lorraine e eu marcamos a data do nosso casamento. — Suspira. —
Liguei para Marie, toda animada por sinal, para convidá-la a ser minha
madrinha junto com você e irmos nesse final de semana provarmos alguns
vestidos. Ela me contou que não estão mais juntos, eu quis saber o motivo e
fui orientada a te perguntar. Por que terminou com ela, frère?
Odeio esse dia. Odeio a merda desse dia. Não posso mentir mais do
que já minto para Nicole. Mas também não quero decepcioná-la contando um
lado podre da minha vida. Minha irmãzinha me olharia com outros olhos se
soubesse do que fiz.
Ajeito-me no sofá e inspiro fundo, preparando-me para contar
parcialmente a história. Explico-lhe o que posso, falando da mamãe
ameaçando contar tudo a Marie caso eu não a deixasse, da minha decisão de
me afastar porque é o melhor para nós dois, de como tenho procurado um
jeito de enterrar novamente o meu passado e me precaver das chantagens de
nossa progenitora.
No fim do meu relato, o espanto no rosto de Nicole é compreensível.
— Por que nunca me falou sobre isso? — pergunta bem baixinho,
segurando minha mão. — Emilien… Jamais guardamos segredos um do
outro.
— Eu sei, petite soeur. O que fiz… é algo tão desagradável. E você
me tem como um modelo a ser seguido. — Dou uma risada melancólica. —
Você me ama acima de tudo e tenho medo de perder o seu amor e a sua
confiança caso saiba. Além do que, você é curiosa e teria revirado minha vida
até descobrir.
— Pode apostar — brinca, com um leve sorriso triste. — E não seja
bobo, eu te amaria em todas as circunstâncias, Emil. Em todas. — Uma pausa
pequena. — Não quer me contar que segredo é esse que está te fazendo se
afastar da mulher que ama? Talvez… Se me disser, eu posso avaliar se Marie
vai mesmo te rejeitar se decidir contar para ela.
Balanço a cabeça negativamente.
— De jeito nenhum.
Ficamos em silêncio por longos segundos. A companhia de Nicole
aplaca um pouco dos sentimentos aflitivos em meu peito. Fazendo uma
carícia no meu rosto, ela murmura:
— Conte pra ela, Emil… Não deixe mais que a mamãe interfira na
sua vida ou na sua felicidade. Você já ficou tanto tempo sozinho por causa do
narcisismo de Elizabeth, desistiu da Fotografia… Sempre fez de tudo para
agradá-la na intenção de ter um pouco de paz a ponto de nem se dar conta de
que, nos últimos trinta e cinco anos, tem vivido em razão da vontade de
mamãe. Me diz, mon frère, teve algum momento em que você decidiu pela
sua felicidade, e não pela dela? Alguma vez tomou uma decisão sem se
preocupar se mamãe ia surtar ou te punir com torturas psicológicas,
chantagens emocionais e manipulações? Emilien, você tem vivido para e por
você?
As palavras de Nicole tocam no fundo do meu coração e da minha
alma. Meus olhos juntam lágrimas que nem percebo. O golpe de
misericórdia, porém, se dá quando minha irmã completa:
— Sempre desistiu de tudo por causa da nossa mãe e de algum modo
você aprendeu a conviver com isso. Deixou a Fotografia e aprendeu amar o
mundo dos negócios, desistiu de ter uma relação amorosa, mas aprendeu a ser
um homem sozinho. Você se habituou aos desejos de Elizabeth, aprendeu a
lidar da melhor forma possível a fazer as vontades dela e ficar bem com essas
decisões, mesmo que lá no fundo isso te atingisse. Mas agora eu te pergunto:
você vai saber aprender a viver sem Marie se desistir dela para sempre? Ela
se tornará tão substituível como tudo na sua vida foi?
Meu peito aperta e dói de um jeito inexplicável.
— Não — respondo, enfiando o rosto entre as mãos, voz embargada e
rouca.
Nicole afaga minhas costas e incentiva:
— Então a procure. Seja franco, conte tudo o que precisa contar, tire
esse obstáculo que mamãe usa como chantagem do caminho de vocês dois.
— E se ela me rejeitar? — indago, erguendo os olhos úmidos para
Nicole. Ela seca minhas lágrimas e beija minha bochecha.
— Emilien, se isso for tão sério como você diz que é, vai ser natural
uma reação negativa de Marie num primeiro momento. Você precisará dar
espaço a ela, ter paciência para que digira tudo o que contar, aguentar o seu
desprezo temporário. Mas se ela te amar de verdade, tudo isso será
passageiro. Quando a poeira abaixar, quando assimilar tudo e aceitar que o
que você fez foi um erro da qual você se arrepende… — Ela me olha dentro
dos olhos. — Você se arrepende, não é?
— Não tem um só dia em que durmo sem o peso na consciência,
Nicole — devolvo.
Ela abre um leve sorriso e completa:
— Então ela vai voltar para você.
Tomo minha irmã em um abraço apertado. Na minha mente, analiso
todos os conselhos que recebi no dia de hoje: de Maurice, de Isabelle e de
Nicole. E preciso admitir que os três estão cobertos de razão.
Minhas mãos tremem dentro do bolso enquanto a espero atender a
porta. Eu ainda tenho a chave, mas, como estamos separados, decidi que seria
muita falta de educação apenas entrar. Confiro a hora mais uma vez. Dez da
noite. Tentei ligar, mas Marie não me atendeu nas cinco vezes. Não sei se por
não querer ou por não ter visto o celular tocando. Aposto na última opção
porque, se não quisesse contato comigo, não teria permitido minha subida.
Embora meu nome ainda esteja na lista de pessoas autorizadas, preferi
confirmar com o porteiro que eu podia vê-la.
Quando ela finalmente surge, é como se o ar fosse arrancado
brutalmente dos meus pulmões. Marie está enrolada em um robe de seda
curto, que deixa suas pernas perfumadas à mostra. Sua pele cheira a creme
hidrante de baunilha, os cabelos molhados têm o mesmo aroma.
Achei que a encontraria cheia de raiva. Confesso até que, por um
instante, pensei que ela tinha me deixado subir apenas para ter o prazer de
bater a porta no meu nariz. No entanto, sua expressão está suave enquanto
mantém a porta aberta e me espera dizer o que quero.
— Vou contar.
Marie faz uma cara de quem não entendeu o que eu quis dizer.
Tomando uma boa dose de ar para meu organismo, sentencio:
— Vou te contar meu segredo, Marie.
MARIE
— Vou te contar meu segredo, Marie. — A estas palavras, eu o puxo
imediatamente para dentro. Fecho e me recosto à porta, sentindo meu coração
bater nos ouvidos.
Uma pequena frase foi capaz de me deixar ansiosa e na expectativa.
Ele está emudecido, olhando para os sapatos italianos com atenção. Inspiro
fundo e tento me acalmar.
— Antes de qualquer coisa — ele profere, inspirando profundamente,
ainda sem me encarar. — Quero saber se podemos voltar.
Pestanejo por um instante antes de respondê-lo. Uma semana atrás, ao
terminar nosso relacionamento, ele me magoou. Entendo que estava com
medo, inseguro, sendo chantageado pela mãe e foi isso que o incitou à sua
ação. Mas agora está aqui, diante de mim, disposto a se abrir. Isso é válido,
não é?
— Emilien… — Suspiro seu nome, mordendo o lábio inferior, sem
saber exatamente o que responder. — Essa será sua condição? Só vai me
contar se voltarmos?
— Não — nega imediatamente, olhando para mim. — Até porque
estou convencido de que você vai me deixar de qualquer maneira quando
souber. Mas preciso dessa segurança. Preciso que você me diga que, ao
menos, vai me ouvir primeiro, vai me deixar contar, sem me interromper. Vai
tentar compreender tudo o que aconteceu antes de fazer seu julgamento.
Assimilo suas palavras e aceno em positivo, meus batimentos
cardíacos aumentando gradativamente conforme esse homem faz suspense.
— Prometa que vai considerar, Marie… e ao menos tentar me
entender. E depois que você assimilar, quero saber se podemos voltar. Se
você vai perdoar o meu passado e vai me perdoar por ter terminado com você
por conta dele.
Enfim, entendo seu questionamento. Com um passo adiante, fico a
uma distância pequena dele e toco seu rosto. Lentamente, colo minha boca na
sua, em um beijo rápido e suave. Nada mais que um roçar de lábios. Seu
perfume delicioso quase me obriga a me render e a cair em seus braços fortes.
Afasto-me um centímetro, olho-o nos olhos e vejo-o surpreso com minha
aproximação.
— Se eu conseguir lidar com seu segredo, o que aconteceu semana
passada será insignificante para mim, Emil… — falo com toda sinceridade.
— Nós podemos voltar porque eu te amo demais para ficar afastada de ti por
pouca coisa.
Ele me dá um sorrio triste. Tenho a impressão de ver, inclusive,
lágrimas em seus olhos. Com uma carícia gostosa na minha bochecha, diz:
— Amanhã… vá até minha cobertura, depois do almoço. Vou
cancelar minha agenda do período da tarde e vamos conversar, com calma.
Meu corpo recebe uma onda de decepção. Ele não vai me contar neste
instante?
— Por que não conversamos agora mesmo?
— Non. Eu preciso me preparar, chérie. Tomei essa decisão há menos
de duas horas.
— Quer mesmo me matar de ansiedade — protesto baixinho.
Ele dá uma risadinha melancólica e deixa um beijo na minha boca.
Diferente do meu, o dele é mais demorado e lânguido. Quando Emil se vai
porta afora, tenho a impressão de que não dormirei essa noite.
Não chegamos a combinar um horário específico, mas no dia
seguinte, perto de uma da tarde, chego à sua cobertura. Tento ligar no
telefone de Emilien e avisar que estou a caminho, contudo, ele não atende
nenhuma das minhas tentativas e nem me retorna. Confesso que fiquei meio
na dúvida, quando não me atendeu, se ia realmente me contar tudo o que eu
precisava saber. E se ele tiver desistido?
Afasto os pensamentos da minha cabeça, me concentro na estrada e
sigo para o meu destino. Já em seu edifico, depois de ter minha subida
liberada, no elevador privativo, tento ligar novamente para Emil. Mais uma
vez, não me atende. Arrisco ligar no ramal da sua secretária e, para o meu
alívio, sou informada que ele está em reunião e acabará em breve.
Mais confiante de que Emilien não vai desistir dessa conversa,
adentro seu apartamento e vou direto para a cozinha. Abro a geladeira, pego
alguns pedaços de queijo e escolho um vinho na adega dele (bem invasiva, eu
sei).
Tiro meus saltos, deixo-os num cantinho da sala e, descalça, enquanto
degusto de uma boa taça de vinho e de queijos de ótima qualidade, exploro o
local (como se eu nunca tivesse estado aqui antes, não é mesmo?). Subo
primeiro para o quarto, onde o enorme painel de vidro, com fotos nossas e as
fotografias que ele tirou meses atrás, ainda está exposto. Surpreende-me ver
um painel de inox — igual ao que comprei semana passada — noutro canto,
preenchido com dois ou três retratos de Loches e Lisboa. Aproximo-me e o
observo melhor. Ele provavelmente comprou depois que me pediu um
tempo.
Rodo pelo seu quarto, apreciando a decoração singela. Adentro seu
closet, gostando de passar a mão pelas suas camisas. Detenho-me um
segundo na parte onde fica o cofre. Certa noite, cerca de uns quatro dias antes
de terminar comigo, Emilien me pediu para guardar um documento aqui,
passando-me assim a combinação. 15.48.56. Ele não chegou a dizer, mas
desconfio de que fez isso para me mostrar que continua não guardando nada
aqui além de algum dinheiro e documentos da empresa.
Passeio por toda a sua cobertura. Volto ao seu laboratório fotográfico,
onde tudo continua igual. Brinco com algumas de suas câmeras e as volto no
mesmo lugar. Passo na academia e fico excitada ao imaginá-lo se
exercitando. Homem quente dos infernos. Desfaço-me dos pensamentos
safados e vou para a cozinha me servir de outra taça de vinho. Algo me diz
que essa tarde me exigirá isso. Olho no relógio. Quase duas horas. Ele deve
chegar a qualquer momento. Continuo explorando sua casa e dessa vez vou
até o escritório, um local onde tivemos uma ou duas ocasiões de sexo
gostoso. É uma espécie de biblioteca também. Há uma prateleira bem grande,
ocupa toda uma parede de quase sete metros de comprimento e pouco mais
de dois metros de altura, que está cheia de livros. Nunca realmente parei para
analisar seus títulos e começo a fazê-lo por agora.
Não sei se foi Emilien quem organizou, mas tudo está catalogado por
gêneros, subgêneros, autores e ordem alfabética. Provavelmente ele contratou
uma bibliotecária para isso. Distraída, continuo degustando meu vinho,
passando o indicador pelas lombadas e lendo os títulos. Ele tem uma coleção
de clássicos e muitos livros sobre a área que atua, além de um número
considerável de livros sobre fotografia.
Uma carreira de lombadas, quatro ou cinco prateleiras acima da
minha cabeça, me chama a atenção. Procuro em torno e encontro uma
escadinha de alguns degraus. Deixo minha taça sobre a mesa do escritório e
tomo os degraus para me erguer até a carreira em questão. A fileira me
lembra aqueles livros antigos, de couro, costurados a mão. Mas minha
surpresa é maior quando tento puxá-la e descubro que é um conjunto de
livros falsos. Meu coração bate um pouco mais descompassado enquanto
puxo o material ilusório em minha direção. No fundo, atrás do espaço em que
ocupava, há um segundo cofre.
Minhas mãos suam, a voz de Marjorie retorna em minha mente: “As
provas que precisa estão em algum lugar do apartamento dele.” Meio
trêmula com minha descoberta, ponho os livros falsos em qualquer canto e
retorno ao cofre, idêntico ao que ele tem no quarto. Este também está
trancado e tem um painel digital que exibe:
Insira a senha
______

Sinto a pressão sanguínea aumentar conforme estico meu braço e


digito os números pausadamente, na esperança de ser a mesma combinação.
1.5.4.8.5.6.
O som de destrave da portinha me assusta e faz meu coração pulsar.
Abro-a vagarosamente, irritada comigo mesma pelo suspense que crio. Lá
dentro, repousada bem ao fundo, há uma pasta de couro. Retiro-a com
cuidado e vou até a mesa, afastando os pertences para acomodá-la melhor.
Antes de abri-la e revelar o que tem dentro — e desconfio de que tenha
relação com o passado e o segredo de Emilien —, inspiro profundamente e
me questiono se é o certo a se fazer. Ele já decidiu se abrir comigo, não foi?
Então o mais honesto nesse caso não seria esperá-lo? Mas e se Emil mentir?
E se ele não me contar, de fato, a verdade? Não faço a mínima ideia do que se
trata esse temeroso segredo, e ele pode simplesmente inventar qualquer coisa
apenas para me satisfazer.
Decidida que, embora não seja o mais correto, é o que precisa ser
feito, abro a pasta. Há diversos papéis e começo a analisá-los imediatamente.
À medida que leio os documentos, analiso as fotos, os exames, os boletins…
meus olhos juntam lágrimas, meu coração praticamente para na garganta e
agradeço a Deus por estar sentada.
Perplexa, começo a juntar as pontas soltas do passado de Emilien, as
brechas que ele nunca tampou, sua resistência em me contar alegando que eu
me afastaria dele… Terrivelmente abalada com a revelação diante dos meus
olhos, me nego a acreditar por alguns segundos, enquanto choro debruçada
sobre meus braços.
Quando consigo me acalmar, fecho o cofre, devolvo os livros no lugar
e guardo os documentos de volta na pasta. Trago-a comigo até a sala, onde
está minha bolsa. Meu celular tem uma mensagem de Emilien:

“ Chérie, pardon pela demora. A reunião está demorando mais do


que esperava. É algo muito importante que não pude cancelar. Mas prometo
que não demoro mais que duas horas. Espere por mim e sinta-se em casa.”

Não respondo à sua mensagem. Enfio as provas que encontrei dentro


da minha bolsa, calço meus saltos e deixo seu apartamento.

Antes de confrontá-lo, preciso saber de que não estou criando fatos


onde não existem. Embora as provas sejam bastante claras sobre o que
aconteceu — o que realmente aconteceu —, preciso ouvir a versão de quem
também detém desse segredo. Por esse motivo, procuro por Elizabeth. Não
foi difícil conseguir o endereço dela, que só me recebeu quando anunciei de
que se tratava do segredo do filho.
Ela me recepciona em sua sala, com uma xícara de café. Seus olhos se
fixam por longos instantes nas minhas mãos trêmulas enquanto sigo calada,
pensando num modo de começar isso. Por fim, mostro a pasta com toda a
documentação. Retendo esses papéis, a mulher os analisa e, para o meu
desespero, me confirma o que eu já desconfiava desde que os descobri no
cofre.
Novamente, me nego a aceitar.
Elizabeth me diz algumas palavras, algo de como sente por mim e
entende meu desespero, minha decepção.
— As aparências enganam — sussurra, sentada em seu lugar do sofá,
com uma postura diferente da que estou acostumada a ver. Não tem a
arrogância habitual. A mulher parece mesmo compadecida por mim.
Seco minhas lágrimas, junto os documentos na pasta novamente e
agradeço o café.
— O que você fará? — pergunta, também se erguendo do seu lugar.
— Ouvi sua versão dos fatos. Vou ouvir a dele agora.
— Ele mentirá — diz, toda convicta.
— Não se eu o confrontar com as provas.
Já estou deixando sua casa quando Elizabeth me chama outra vez:
— Lembre-se que…
— Não se preocupe — interrompo-a, sem me virar, olhando-a por
cima do meu ombro. — Se isso for verdade, não pretendo destruir a imagem
dele e nem manchar o sobrenome da sua família. Não faria isso porque sei
das consequências que isso acarretaria não só para os negócios, mas como
para as causas sociais que seu filho apoia. E, de um jeito ou de outro, ele
ajuda muita gente, por mais… que tenha um passado como esse.
Sem esperar sua resposta, sigo até a Dupont Investimentos, tentando
de todas as formas não desabar antes de chegar.

A palavra “educação” não existe no meu vocabulário neste momento.


Nem a palavra “paciência”. A secretária-executiva de Emilien me informa
que ele continua em reunião, mas estou ansiosa e desesperada demais para
esperá-lo sabe-se lá por mais quanto tempo. Ignorando todos os protestos da
mulher, invado o escritório dele em um rompante. Do outro lado, ele está em
sua mesa, conversando com um homem careca e de meia-idade. Seus olhos
me encaram surpresos, ao passo que sua companhia se vira para me ver
parada a dois metros do limiar da porta com o semblante de quem viu uma
pessoa ser assassinada na minha frente.
A secretária surge logo atrás, pedindo mil desculpas ao patrão e
alegando que eu entrei sem permissão.
— Está tudo bem — ele acalma a funcionária, que me segura pelo
braço e pede que eu me retire. Desfaço de sua pegada com violência e me
volto para Emilien.
— Temos que conversar.
Ele me olha atentamente e depois se vira para o homem careca, como
se pedisse desculpas pelo inconveniente que estou causando.
— Marie, estou em uma reunião importante. Sei que está…
— Agora! — falo mais incisiva, aproximando-me, retirando a pasta
de couro da minha bolsa e abanando para ele. O homem parece congelar na
sua cadeira de presidente, o rosto perde a cor como se o seu sangue tivesse
sido drenado. — Vamos conversar sobre isso aqui e agora!
Emil me encara aterrorizado, imóvel em seu lugar. Gaguejando, diz à
sua companhia:
— Désolé, monsieur Arnaud. Nós podemos remarcar a reunião para
terminarmos de tratar sobre isso? Eu sei que já esperamos demais…
Muito elegantemente, o senhor Arnaud se levanta do seu lugar,
alterna o olhar entre mim e Emilien enquanto abotoa seu terno e diz:
— Está tudo bem, Dupont. Percebo que o assunto é de extrema
importância e urgente. Vou pedir para minha secretária remarcar um horário e
te avisar.
Emilien mal o agradece enquanto o homem deixa sua sala. Ele
também dispensa a funcionária. A passos que denunciam como está nervoso,
vai até a porta e a tranca. Permanece segundos inteiros de costas para mim
antes de se virar, me fitar com o olhar mais amedrontado que já vi em toda
minha vida e indagar:
— Como encontrou isso? — Sua voz está trêmula e baixa.
— Por acaso — respondo, segurando as lágrimas para mim.
Retiro os papéis de dentro da pasta e os jogo em sua mesa. Eles se
espalham sobre a superfície, revelando alguns exames de Désirée,
diagnóstico de depressão, procedimento da curetagem, exame de BETAHCG,
boletins de ocorrência, corpo de delito, fotografias de diversas partes do
corpo dela com hematomas… Volto-me para ele, que ficou parado
praticamente no mesmo lugar esse tempo todo.
— Me diz — peço, deixando as lágrimas me tomarem. — Me diz, por
favor! Me diz que isso não é o que estou pensando que é!
Emilien fecha os olhos e afaga o rosto. Pressiono-o mais,
descontrolada, lágrimas escorrendo pela minha face como chuva torrencial.
— O que quer que eu diga? — ele devolve, também aos prantos e aos
gritos.
Com uma imensa dor no coração e no peito, ainda negando-me a
aceitar, esbravejo:
— ME DIZ QUE VOCÊ NÃO BATIA NELA!
EMILIEN
Meu coração bate loucamente. A pressão está nos meus ouvidos, que
zunem com esse momento. O momento que mais temi. Marie descobriu. Ela
agora sabe. E — meu Deus do céu! — não era assim que deveria ter sabido.
Ela me encara, furiosa e cheia de lágrimas, enquanto espera por uma
resposta minha. Por fora e por dentro estou puro nervosismo. Meu corpo
treme levemente, minha garganta parece seca, tenho a impressão de que as
palavras fugiram do meu vocabulário. Tudo que quero é gritar: “Não, eu não
batia nela!”. Mas não posso mentir tão covardemente dessa maneira.
— Me fala que não batia nela, Emilien! — Marie insiste, como se ela
própria não acreditasse.
Fecho os olhos e respiro fundo, tentando de todas as formas ignorar a
agonia, aflição e remorso que me atingem em ondas.
— Não posso te dizer isso. Sinto muito.
Num rompante, ela avança sobre mim, muito descontrolada e em
pratos, e me empurra:
— Mentiu para mim! — Outro empurrão, que me faz cambalear um
passo para trás. — Mentiu para mim, seu canalha!
Seguro-a pelos punhos, na intenção de impedi-la de continuar me
agredindo, embora eu mereça toda essa descarga de raiva. Marie se balança,
tentando se soltar da minha pegada. A mulher consegue se libertar e se afasta
de mim repentinamente, como se eu fosse um inseto asqueroso.
— Ela não sofreu um acidente doméstico coisa nenhuma — diz, a voz
áspera e cheia de nojo. — Désirée tentou suicídio! Por sua causa. Porque
você batia nela. Porque bateu nela quando estava grávida e foi esse o motivo
do aborto! Porque ela estava com depressão que você causou de tanto surrá-
la!
Cada maldita palavra me acerta com a mesma intensidade de uma
faca sendo cravada no meu peito. Por anos, soterrei todas essas verdades
porque sabia que não era capaz de lidar com elas, com a culpa, o remorso…
Mas agora Marie traz à tona tudo o que me causa dor, me deixa insano e me
faz odiar o homem que fui.
Compreendo sua reação e sua raiva. Ainda assim, há coisas que
precisa saber para entender tudo o que houve entre mim e Désirée. Não que
justifiquem, mas lança uma nova perspectiva. Não sou esse monstro que está
projetando. Não foi deliberado. Não foi de propósito. Senhor Deus, eu nem
mesmo me lembrava das agressões!
— Marie, me escute… — peço com a voz mais calma que consigo
encontrar, apesar de eu ser todo nervosismo. A mulher, entretanto, está
implacável. Novamente me empurra, descontando toda a fúria dentro de si.
— Te escutar? Você ia mentir para mim. Ia me contar mais mentiras
para acobertar as merdas que você fez! O que falaria dessa vez, Emilien? —
Com dois passos mais distante de mim, ela completa: — Não há explicação
para o fato de você ser um agressor.
Agressor.
A palavra dói na minha alma. Dilacera meu coração. Perturba a minha
mente, deixando-me quase desvairado. Fecho os olhos com força. Não, eu
não sou isso. Cometi um erro terrível, me arrependi e busquei ser uma pessoa
melhor. Voltei para a terapia, parei de beber, mesmo socialmente — a bebida,
a maldita bebida causou minha ruína — e tenho me mantido no controle
desde então. Nunca nem dei indícios de que machucaria a ela ou a qualquer
outra pessoa.
Então por que Marie me acusa dessa maneira, por que não me ouve,
quando ontem, ao tomar a decisão de me abrir, pedi para me deixar explicar
tudo primeiro, me ouvir, tentar compreender os fatos com a minha
perspectiva e só depois fazer seu julgamento?
Molho o lábio inferior, desviando o meu olhar por um segundo e
controlando as batidas loucas do meu coração. Seguro minhas lágrimas para
mim, não querendo me mostrar mais vulnerável do que já estou.
Um segundo mais tarde, as palavras de Nicole rodam em minha
mente: “… vai ser natural uma reação negativa de Marie num primeiro
momento. Você precisará dar espaço a ela, ter paciência para que digira
tudo o que contar, aguentar o desprezo temporário dela.”
Então é isto. Nada do que eu diga — ou tente dizer — neste momento
fará diferença para ela. Marie precisa de tempo e espaço para processar todas
as informações. Não era dessa maneira que deveria ter descoberto meu
segredo, mas o que está feito, está feito.
Aliso minhas pernas, num ato de nervosismo, enquanto ela me encara
através das suas lágrimas e eu tomo uma decisão difícil: me afasto. Dou dois,
três, quatro passos para trás, cortando nosso contato visual e olhando para
meus sapatos. Não há mais nada entre nós. Nada além de um vazio e espaço
imensos. Uma lágrima escorre pelo meu rosto quando ouço a porta do meu
escritório bater. Ao erguer o olhar, estou sozinho.
Como nunca estive em uma vida toda.

Minha campainha toca mais à noite, mas tudo que quero é continuar
enfurnado no meu escritório, usando o trabalho como uma válvula de escape
para esquecer o desastre que foi o dia de hoje e que, muito provavelmente,
perdi a mulher da minha vida, a mulher que amo, para sempre.
Como achei que perderia.
Massageio minha têmpora e ignoro o primeiro toque. Só há duas
pessoas nesse mundo que podem subir à minha cobertura sem serem
anunciadas: Marie ou Nicole. Duvido muito que seja a primeira opção, e a
última coisa que quero nesse momento é encarar minha irmã mais nova. Não
no estado em que estou: cabelos desgrenhados, cara de quem chorou e
externou toda a raiva por um longo tempo, roupa amassada e semblante
cansado.
Mas a menina é irritantemente persistente e continua afundando o
dedo no maldito botão. Bufo, abaixo a cabeça e tento ignorar mais uma vez.
Um segundo mais tarde, o celular vibra ao meu lado. É uma mensagem dela.

“Emil, sei que está aí dentro. Abra essa porta. Ou vou descer na
portaria e dizer que você está passando mal e vão dar um jeito de
arrombar.”

Não duvidando de que ela realmente seja capaz disto, deixo meu
escritório e a recebo. Nicole olha-me de cima a baixo, sua expressão
complacente e compadecida de mim. Minha irmã se joga nos meus braços,
apertando-me forte. Antes que eu tenha tempo de compreender sua atitude,
sou puxado para dentro e acomodado no sofá, ela logo ao meu lado, olhando-
me com seus olhos suaves e sem julgamento.
— Marie… — começa, umedecendo os lábios e falando com cuidado.
— Eu a procurei para saber se tinham conversado… E ela me contou. Sobre
você, sobre… Désirée. — Nicole balança a cabeça, provavelmente muito
confusa com toda a história.
Sua confusão é natural. Para Nicole — e para a maçante maioria —,
Lacroix sofreu um acidente doméstico e nós nunca tivemos uma relação além
da amizade. Então minha petite soeur me olha de um jeito diferente, um jeito
que não sei explicar, mas não é o modo habitual que me olha: com amor,
carinho e admiração. Meu peito dói. Ela vai me desprezar da mesma maneira
que Marie fez sem nem mesmo me ouvir?
— Vim ouvir o que tem a dizer a respeito disso — diz, para minha
surpresa. Um alívio toma meu corpo dos pés à cabeça.
Inspiro fundo e, olhando para minha irmã, começo a contar tudo
desde o início.

Onze anos antes

Meu relacionamento entrou em ruína e eu realmente não soube mais o


que fazer para consertá-lo. Désirée se negou a acreditar que eu disse aquelas
palavras apenas da boca para fora. Ela é uma pessoa boa, mas guarda rancor
com muita facilidade. Nada do que eu disse ou fiz mudou sua ideia de que
não a amo de verdade. Para piorar a situação, ela me traiu. Não vi, não
descobri, ninguém me contou. Exceto por ela mesma.
— Dormi com alguém que não se importa só com meu dinheiro —
disse cinco dias depois da visita desagradável da minha mãe.
Fiquei possesso e fora de mim. Saí de casa, bebi até quase não parar
em pé. Alcoolizado, com raiva e entristecido, fiz o que qualquer homem faria
no meu lugar: sexo por vingança. Não me lembro dos detalhes, pois sou
péssimo para conciliar bebida e memória, mas me recordo muito bem da cara
de Désirée no dia seguinte, quando me viu nu na nossa cama com Marjorie.
Também me recordo de como ela ficou enraivecida e expulsou minha ex-
noiva aos berros e aos prantos. Uma postura tresloucada que confesso nunca
ter presenciado nela. A mulher me fez de saco de pancadas, descontando toda
sua raiva em mim, e na hora eu pensei que não tinha moral nenhuma para me
odiar naquele momento. Ela também tinha me traído, não tinha? Mas durante
nossa discussão, descobrimos que minha mãe nos manipulou.
Dias antes, eu tinha ido a um almoço em uma das organizações que
Désirée e eu mantínhamos. Marjorie estava lá. Ela me disse que tinha sido
convidada por um dos patrocinadores com quem estava tendo um caso, mas
nunca me interessei em confirmar a informação. Nós conversamos
rapidamente durante um dado momento, não mais do que cinco minutos.
Entretanto, nesse pequeno intervalo, ela se aproveitou para me prejudicar.
Segurou minha mão — como se estivéssemos caminhando juntos — e me
deu um beijo na boca.
Na manhã seguinte, Désirée recebeu uma série de fotos desses
malditos cinco minutos. Foi o suficiente para ela achar que eu estava mesmo
apenas interessado em seu dinheiro, de que eu voltaria para Marjorie e que
estava a traindo. Como se pode notar, nem só os homens fazem sexo por
vingança. Ela me traiu achando que eu a tinha traído primeiro, e eu a traí
achando que ela tinha me traído. O que a falta de comunicação entre um casal
não faz.
Apesar de termos descoberto e esclarecido tudo entre nós e de, dias
depois, em comum acordo, termos decidido reatar, não voltamos de fato a ser
o mesmo casal. Passei a beber com mais frequência, afogando as mágoas e
buscando algum alívio. Meu relacionamento com ela era tão intenso, tão
bonito… e foi destruído pela megera sem coração que me pôs no mundo. E
eu deixei, mesmo dizendo a Désirée que jamais deixaria minha mãe interferir
em nosso namoro. Eu falhei. Quebrei minha promessa. Não fui capaz de uma
coisa tão banal: manter Elizabeth longe de nós.
A bebida era a única que me fazia esquecer dos problemas. E de tudo
o que eu fazia enquanto estava bêbado. No começo, apesar de estarmos um
pouco estranhos um com o outro, Désirée não aprovava minha bebedeira.
Pedia-me para não exagerar toda vez que eu saía e sabia que era para beber.
Eu lhe dava um sorriso e dizia “tudo bem”. No dia seguinte, acordava no sofá
e não sabia de que modo tinha ido parar lá. Passamos a brigar por muito
pouco e com bastante frequência. Quanto mais brigávamos, mais eu tinha a
necessidade de beber e esquecer a merda que minha vida tinha se
transformado. Quando Désirée perdeu o bebê, dei uma maneirada, mas não
durou muito e era tarde demais. Concordamos que não estávamos mais
funcionando como casal, alguma coisa tinha se perdido, se apagado… De
comum acordo, terminamos, mas ela ainda era minha amiga e tinha sofrido
um aborto. Decidi ficar mais um tempo no apartamento e dar o apoio que
estava precisando.
Nunca tínhamos falado de filhos, mas a perda do bebê demonstrou
que talvez uma criança fosse bem um sonho dela. Aos poucos, ela foi se
recuperando. Eu seguia bebendo uma vez ou outra porque não conseguia
entender como tudo tinha se ruído tão rápido e porque, em algum nível, ainda
a amava demais. Désirée tornou a ficar distante de mim, embora eu estivesse
muito dedicado a dar o apoio que necessitava. Ela mal conversava comigo,
passava bastante tempo enfurnada no quarto; quando saía, ia para algum
lugar e não me dizia para onde. Eu me preocupei com sua postura, mas não
havia muito a fazer se ela não se abria comigo e não contava o que estava
acontecendo.
Semanas depois, seu humor melhorou levemente e, na semana do seu
aniversário, ela decidiu fazer um jantar. Estava animada com um momento
em que passaríamos juntos, sem brigas, sem mágoas. Conhecia-a o suficiente
para saber que poderia estar magoada comigo o quanto fosse, mas que, em
datas especiais, engolia toda a mágoa e orgulho e se esforçava para termos
um momento bom e agradável. Como sempre, eu estraguei tudo. Vinha me
envolvendo com algumas outras garotas, apenas tocando minha vida.
Marjorie e mamãe achavam que eu estava a traindo porque não contei que
tínhamos terminado. Não, não. Para quê? Para Elizabeth me infernizar com a
história de casamento com Chevalier? De forma alguma. Preferi fazê-las
pensar que ainda estávamos juntos e que eu era um babaca traidor. Não foi
essa imagem que quiseram passar quando armaram para cima de mim?
Então, me esqueci do seu jantar de aniversário. Simplesmente me
esqueci porque estava com outra garota. Minha mãe me ligou, desesperada,
falando que minha amiga estava no hospital depois de um acidente
doméstico. De qualquer maneira, cheguei tarde demais. Os danos eram
irreversíveis. Abalado, deixei o hospital e fui para nosso apartamento. Meu
coração quase entrou em colapso quando notei a mesa arrumada, o meu lugar
delicadamente colocado ao seu lado, com indícios de ter jantado sozinha. No
seu aniversário. Eu me senti um idiota. Um nada. Um trapo de ser humano.
Caí no sofá e chorei na mesma intensidade que chorei com a morte de
Thierry. Era tudo culpa minha. Se eu estivesse em casa, se tivesse ido para lá
como prometi… nada disso teria acontecido. Mamãe me ligou, disse que
precisávamos conversar, estava séria. Eram cinco da tarde, eu só queria ficar
sozinho e remoer minhas mágoas, mas acatei. Enquanto a esperava, descobri
algumas mensagens de voz e de texto de Désirée.
“Emil, o jantar está quase pronto. Que horas você chega?”
“Vou servir a mesa. Já está chegando?”
“Emilien?”
A última era uma mensagem de voz.
“Acredito que esteja muito ocupado para passar meu aniversário
comigo. Tudo bem. Você tem a sua vida. Só gostaria que soubesse que,
quando chegar, seja lá quando for, não estarei mais aqui”.
Engoli em seco, o remorso atingindo meu peito outra vez. Ela ia
embora. E eu não teria tirado sua razão.
Mamãe chegou minutos depois. Sua expressão estava mais séria do
que o normal. Carregava alguns papéis em mãos e me pediu para me sentar
no sofá. Então, me contou algo que fez ruir ainda mais o meu mundo.
Eu a agredia. As agressões só aconteciam quando eu estava bêbado,
mas eu não me lembrava de nada! Num primeiro momento, não quis
acreditar. Elizabeth, porém, me mostrou as provas. Fotos de hematomas
espalhados pelo corpo, principalmente nos braços e pernas. Lembrei-me de
que Désirée passou a se vestir de modo mais coberto, às vezes usava óculos
escuros o dia todo, dentro de casa, e, quando a questionava sobre isso, dizia
sempre que a claridade estava incomodando-a, alegava dor nos olhos, de
cabeça, qualquer coisa assim. Eu a aconselhava a procurar um oftalmo,
apesar de acreditar que queria apenas esconder olheiras de noites mal
dormidas — noites iguais às minhas. Naquele momento, tudo fez sentido. As
roupas e os óculos eram para esconder as marcas das agressões. Por isso ela
me pedia para não beber muito. Porque sabia que eu ia bater nela.
Mamãe continuou me mostrando: dois boletins de ocorrência, dos
quais de alguma maneira Elizabeth conseguiu se livrar, segundo me garantiu.
Um procedimento de curetagem, dois dias depois de uma das noites em que
eu cheguei bêbado. Naquele instante, eu soube que Désirée perdeu o bebê por
minha causa, não por stress. Um diagnóstico de depressão e receitas de
remédios controlados. Ficou claro onde ia e não me contava: ao psicólogo e
ao psiquiatra. Por conta das agressões. Mamãe também me garantiu que
nenhum dos dois profissionais sabiam da minha identidade.
Mas o que mais me desestruturou foi a revelação final. Désirée tinha
tentado suicídio com os medicamentos. Mamãe a encontrou no banheiro, com
o frasco do calmante vazio nas mãos, espumando pela boca. Então, sua
mensagem de voz fez todo o sentido para mim. “Só gostaria que soubesse
que, quando chegar, seja lá quando for, não estarei mais aqui.” A
constatação me deixou em um estado catatônico. Eu acabei com a vida dela e
isso me deixou profundamente perturbado por um bom tempo.
Pela primeira vez na vida, Elizabeth fez algo bom por mim: me
encobriu. Qualquer notícia minha vinculada à violência doméstica seria
terrível para a empresa e para o renome da família. Mamãe conseguiu limpar
os dois boletins de ocorrência contra mim; conseguiu, de alguma maneira,
que o relatório final do médico e da polícia constassem acidente doméstico, e
não tentativa de suicídio por overdose de medicamentos porque o parceiro
dela era um maldito bêbado que a espancava constantemente. O poder do
dinheiro e da influência, não é mesmo?
Mas nem todo dinheiro e nem toda influência me tiraram o peso da
consciência, o remorso, a culpa e a tristeza que apossaram minha vida nos
anos seguintes. Encontrei na filantropia um modo de reverter todo meu
arrependimento e o mal que causei à minha melhor amiga em algo bom.
Comprei as ações da empresa dela que a pertenciam (por intermédio de um
representante legal e apto, já que ela não tinha mais como consentir qualquer
coisa) e reverti todo o lucro para: um, dar-lhe uma vida digna em um local
agradável, com exames periódicos, e onde seria bem tratada; dois, em causas
que ela apoiava e para custear tratamentos de dependentes químicos.
Mamãe me ajudou a abafar o caso e tirar qualquer suspeita de cima de
mim. Dessa maneira, na época, a notícia oficial foi mesmo a de um acidente
doméstico. Por anos, fiz de tudo para soterrar essa parte obscura da minha
vida. Guardei todas as provas como um lembrete para jamais perder o
controle de novo, porque a última coisa que queria era machucar outra
pessoa.
Nunca entendi por que Désirée não me contou sobre as agressões, por
que não me confrontou, por que não deu um basta. E não saber disso me
ajudou a intensificar a dor da culpa.

Nicole me olha atentamente, lábios levemente separados.


— É isso, Nic. Nunca foi de propósito, eu… jamais teria coragem de
bater nela de forma consciente. — Minha garganta está seca, meu coração
dói. Aperto minha mão na dela, buscando sua compreensão.
Mas Nicole se afasta lentamente de mim. Não! Não, não… Ela não
pode…
— Desculpe, Emil… — fala com um sussurro, dando passos
vagarosos para trás, de encontro à porta. — Mas não acredito nessa versão.
Pisco várias vezes, a dor em meu peito aumentando exponencialmente
à medida que ela se afasta.
— Nicole… — suplico, erguendo-me do meu lugar. Não vou suportar
o desprezo dela também. Já basta o de Marie.
— Désolée — pede, abrindo a porta. — Vai ficar tudo bem. Tenho
certeza.
Quando minha irmã vai embora, a solidão me toma e me assola de
uma maneira intensa e perturbadora. Fico minutos inteiros parado no mesmo
lugar, lágrimas vertendo dos meus olhos, sem acreditar no colapso em que
entrou minha vida, sem acreditar que perdi o amor de duas mulheres
importantes, a quem eu amo mais do que posso expressar.
Nicole.
Marie.
Não tenho mais ninguém.
E posso culpá-las?
Se Nicole, que é sempre tão boa e otimista, não acreditou na minha
versão, estou desiludido de que Marie o faça. Duvido até que me ouça.
Num momento de intenso desespero, tomo uma decisão estúpida.
Tranco meu apartamento e escondo a chave. Vou até minha adega e abraço
uma garrafa de uísque. Aos poucos vou entornando o líquido que me
transforma na pior pessoa do mundo.
O único capaz de me entender nesse momento.
MARIE
Tentei me concentrar no trabalho nas semanas seguintes, porque eu
realmente não sou mulher de me enfurnar e chorar por causa de homem.
Doeu em mim, não vou mentir. O rompimento com Emilien, ter descoberto o
segredo dele, tudo o que foi no passado. Depois de deixar a Dupont
Investimentos muito abalada com toda a revelação, confesso que, só por duas
horas, voltei para meu apartamento, deitei-me em posição fetal e chorei como
uma criança que perdeu os pais.
Embora após esse tempo meu coração continuasse doendo, me
obriguei a me levantar, tomar um banho quente e voltar para a redação, onde
virei a noite fazendo os últimos ajustes necessários no arquivo da minha
matéria que Héron e Delphine haviam sugerido. O primeiro dia foi o mais
fácil e o mais difícil de todos.
Mais fácil porque, movida por uma mágoa avassaladora e uma dor
constante, consegui descontar no trabalho, digitando loucamente no
notebook. O mais difícil porque a dor era imensa, parecia quase infinita, e se
forçou contra o meu peito a cada maldito segundo. Então os dias foram
passando e ficou cada vez mais complicado me concentrar no trabalho. A
falta dos beijos do Emilien, dos carinhos, da risada dele, dos abraços, do sexo
quente, lento e gostoso, de dormir aconchegada em sua cama, de sentir no
meio da noite os braços dele contornando-me, ou um beijo casto na minha
bochecha, suas pernas enroscadas nas minhas, seu corpo grande suado e
grudado ao meu, seu rosto entre minhas coxas… Tudo isso começou a me
fazer uma falta inexplicável e dilacerante, cortando meu coração como uma
faca afiada sendo cravada lentamente no peito. Eu não sabia o que doía a
mais: toda a falta dele ou o fato de Emil não ser quem eu pensei que era.
Duas semanas se passaram, então ficou impossível de adentrar a
redação e não pensar naquele homem. Eu continuava trabalhando para ele,
mas não queria ter qualquer vínculo com Dupont. Pedi minha demissão.
Precisava me livrar de tudo que me lembrasse ou me vinculasse a ele, mas a
única coisa que consegui me desfazer foi do emprego. A cafeteira
maravilhosa continua aqui, os grãos de café que comprei mês passado com o
vale-compras que me deixou, o painel de vidro com as fotos que mandou…
Até o paletó dele, o mesmo que me emprestou meses atrás, no nosso primeiro
jantar juntos depois de sua volta. Não consegui me desfazer de nada disso.
Passei a ocupar meus dias procurando um novo emprego e lendo o original de
Isabelle, que será lançado por uma editora de renome. Estou feliz por ela.
É final de tarde de uma sexta-feira. Estou acompanhada de uma taça
de vinho e louca para saber o desfecho de Sanctus. Já quero pular no pescoço
da minha irmã por ter matado meu personagem favorito. Meu interfone toca e
o porteiro me informa de que Nicole Dupont veio para uma visita. Estou bem
tentada a dispensar sua vinda. A última vez em que a vi foi no mesmo dia em
que descobri o segredo do irmão. Ela veio até mim no início do entardecer
para saber se Emil me contou toda a verdade. Então eu contei o que sabia… e
ela, sem acreditar, deixou meu apartamento em um estado desvairado.
Mesmo hesitante, permito sua subida. Recebo-a na sala e ofereço
café, que Nicole recusa educadamente, mas aceita um chá gelado.
— Já se passaram três semanas — fala, apoiando sua xícara na perna
cruzada. — Procurou pelo Emil?
Suspiro e tomo um gole do meu café, desviando o olhar por um
segundo.
— Non…
— Não quer saber o que ele tem a dizer?
Eu, de fato, admiro a bondade de Nicole. Ela tem um coração puro e
sempre tenta enxergar o lado bom das pessoas.
— Escute, Nicole… — sussurro com cuidado para não a magoar. —
Imagino que esteja sendo difícil para você. O Emilien… — Uma pausa
pequena, olho-a nos olhos. — Você tem uma imagem muito boa do seu
irmão. Ele demonstra ser um cara bacana, é engajado em causas sociais e
filantropias. Você tem uma imagem perfeita dele… E ele ter machucado a
Désirée destrói toda essa… personificação positiva que criou. Compreendo.
Mas precisa aceitar o fato que…
Nicole me interrompe suavemente:
— Deveria ouvi-lo. Lançar uma perspectiva nova sobre o ocorrido,
não se deixar levar apenas pelos documentos que encontrou.
— Você conversou com Emilien? Ouviu a versão dele? — pergunto,
embora eu já saiba a resposta.
Desconfio até que ele a convenceu a vir aqui para tentar me induzir a
ouvi-lo.
— Oui — confirma.
Molho o lábio inferior e aceno em positivo. Por algum motivo,
suspeito que o irmão lhe contou alguma mentira.
— Suponho que tenha acreditado nesta versão.
— Na verdade, não.
Sua resposta me pega de surpresa e me deixa confusa, o que fica
bastante claro na expressão do meu rosto.
— Me deixa ver se eu entendi. Você sabe que o Emilien contou uma
versão mentirosa e mesmo assim quer que eu vá até ele e o escute?
Um pequeno sorriso desponta nela por cima da borda da sua xícara.
— Não disse que ele mentiu, Marie. Disse que não acreditei na versão
dele. São duas coisas bem diferentes.
Sua resposta continua não fazendo sentido para mim. Desisto de
tentar entendê-la de qualquer maneira e suspiro, convicta na minha decisão de
não o ouvir. Mas essa menina deve ter algum dom de persuasão porque
facilmente consegue me convencer:
— Eu disse ao Emil, quando estava o encorajando a contar a verdade,
de que deveria te dar tempo e espaço, porque provavelmente ia precisar. E
você também garantiu que o ouviria, não foi, Marie?
Engulo em seco e corto nosso contato visual por um mísero segundo.
Ela tem razão. Eu descobri da pior forma possível o segredo dele, mas
Emilien decidiu se abrir. Não sei exatamente se ia ser sincero, mas conto que
sim. E eu prometi ouvi-lo.
Com um suspiro agoniado, digo:
— Você venceu. Vou procurar seu irmão.

Emil parece cansado. Seus cabelos pretos estão bastante desalinhados,


a barba desleixada e grande, o que o deixa com aspecto mais velho e — puta
merda — mais sexy e viril. Apesar da aparência horrível, ele ainda se veste
bem. Usa um terno preto com gravata cinza, meio desengonçada, é verdade,
tirando só um pouquinho da elegância dele. Seus olhos azuis têm algo de
surpresa e felicidade ao me ver.
— Salut… — cumprimento-o, meio sem jeito.
Ele sorri um pouquinho.
— Salut… Entre. — E me dá espaço.
Acomodo-me em seu sofá e agradeço o café que ele vem me trazer
minutos depois. O desgraçado sabe que adoro o café dele.
— Você só está aqui por causa da Nicole, não é?
Dou uma risadinha encabulada e aceno em positivo.
— Ela te convenceu a se abrir e me convenceu a vir te ouvir. — Um
instante de silêncio paira sobre nós. — Mas não teria vindo se não quisesse.
Então… estou aqui por vontade própria.
Emilien me dá um sorriso frio e beberica seu café. Ele sabe para o que
vim, por isso apenas o espero tomar a coragem de que precisa para contar a
sua versão. Leva um ou dois minutos até começar a me dizer. Tudo. Desde o
início. A morte de Thierry. A falência da Dupont. Ter emprestado dinheiro de
Désirée, se apaixonado por ela, a relação deles, de como a amava e como
tudo ruiu quando Elizabeth começou a infernizá-lo. Conta-me coisas que já
sei, como as armações da mãe que levaram um a trair o outro. O declínio da
sua relação, o conforto no álcool. As pontas do seu passado são finalmente
aparadas. Aí ele começa a parte mais difícil. A parte em que me conta sobre
as agressões e alega que não se recordava por causa da bebida. Tudo foi
encobertado pela mãe que, pela influência de nome e dinheiro, conseguiu
eliminar todas as evidências de violência doméstica e tentativa de suicídio,
que ocasionou as sequelas que a levaram para a casa de repouso.
No final do seu relato, preciso de um tempo para processar tanta
informação. Ele me conta cada instante com comoção na voz, os olhos
marejados, como se me suplicasse para acreditar. Nicole diz que não
acreditou. Mas há tanta sinceridade em seu tom, como pôde não dar créditos
à sua versão?
— Acredita em mim? — Sua pergunta me traz de volta ao mundo
real. Dispersei-me e sequer notei. Quando faço contato visual de novo, vejo
desespero e suplício, como se ele fosse extremamente dependente da minha
resposta positiva. — Tem que acreditar em mim…
— Sua irmã…
Emilien me interrompe:
— Nicole não acredita. O que me deixa muito confuso porque… ela
te incentivou a vir conversar comigo.
Uma lágrima teimosa se forma no meu olho e a seguro com toda a
força que é exigida de mim. Outros eternos segundos se passam antes de eu
dizer:
— Acredito em você, Emilien. — Lágrimas se misturam ao sorriso
fúnebre dele a essas minhas palavras. — Mas nós… — Faço uma objeção
cuidadosa. — Nós não podemos…
— Por quê? — pergunta, esganiçado. — Disse que acredita em mim!
Marie… Je jure! Jamais te machucaria de propósito e consciente. Jamais
machucaria qualquer mulher de propósito e consciente… S’il te plaît…
— Eu sei… Mas confesso que tenho medo. Medo de uma recaída sua,
medo de velhos hábitos, medo de você perder o controle. Medo de me
machucar, mesmo inconscientemente disso.
Ele balança a cabeça negativamente com toda força, mais gotas
vertendo dos seus olhos e molhando seu rosto. Nós não terminamos
propriamente dizendo. Mas agora… é nosso fim. O fim de verdade.
— Não perco o controle há anos, Marie. Não passo dos limites com a
bebida, faço minha terapia toda semana… Não vou sair da linha.
Eu tenho outros medos que não digo de imediato a Emilien. Ele me
garante que está no controle, e eu de fato acredito nisso. Passei mais de um
ano na cama desse homem, convivendo com ele, e nunca o vi beber além do
limite. Meu medo maior é a mãe dele, que consegue manipulá-lo e atormentá-
lo. Voltarmos a ter uma relação é o mesmo que pedir para sermos
infernizados. E se ela for capaz de nos colocar um contra o outro como fez
com ele e Désirée? E se conseguir nos destruir? E se por causa disso
Emilien… cair em velhos hábitos? Não posso conviver com o medo e a
incerteza. Expresso isso para ele, sinceramente.
— Nós podemos ir embora! — insiste, desesperado. — Nos casamos,
mudamos do país. Eu ainda tenho o apartamento em Nova Iorque e…
— Pare — peço, delicadamente. Levanto-me, deixando minha xícara
vazia na mesinha de vidro no centro da sala dele. — Não vamos funcionar
assim. Não quero deixar a França, nem Paris. É meu lar.
Ele continua no seu lugar, o olhar cabisbaixo.
— Au revoir, Emilien.
Estou encostando a porta do outro lado quando o ouço dizer:
— Au revoir , mon amour.
Dois dias depois, acordo às seis da manhã com meu telefone vibrando
alto sobre o criado-mudo. Demoro a me localizar. O toque cessa. Dez
segundos mais tarde, o celular volta a tocar. Pego-o e confiro o número no
visor. É de Emilien.
— Alô — atendo, sonolenta.
— Marie? — A voz é vagamente familiar; ainda estou dormindo o
suficiente para não saber de quem se trata, mas não é de Emil. É de uma
mulher. — Marie, aqui é a Marjorie! — Marjorie. O ciúme me desperta
rapidamente. O que ela está fazendo com Emil a essas horas da manhã?
Passaram a noite juntos? — Está me ouvindo? — praticamente grita,
desesperada e, noto agora, em prantos.
Um senso de alerta berra dentro de mim.
— Oui — afirmo. Sento-me na cama, atenta e completamente
desperta. — O que houve?
Um ruído toma conta da linha. Dura meio segundo, mas é longo como
a eternidade.
— É o Emil… — Sua voz continua angustiada, deixando-me ainda
mais em alerta. — Marie… — Meu coração bate nos ouvidos. Marjorie
chora. — Acho que o Emilien cometeu suicídio!
EMILIEN
— Dupont? — alguém me chama, puxando-me de volta ao mundo
real.
Estou em uma das salas de reunião na Dupont Investimentos, na
presença de diversos acionistas e novos investidores. A verdade é que há dias
não estou com cabeça para o trabalho, por mais que eu tente me focar. Odeio
essa situação. Odeio que minha vida pessoal interfira nos meus negócios, mas
como ignorar a crescente aflição em meu peito? Como ignorar a falta extrema
que Marie faz na minha vida? Acima de tudo, como suportar que, mesmo
sabendo o que de fato aconteceu, ela continua me evitando?
Acho que preciso de uns dias de folga. Não durmo direito há semanas
— muitas noites insones se apossaram de mim — e o cansaço está cobrando
seu preço nesse momento. Preciso me permitir sentir a dor, a distância dela.
Tentar sufocar o sentimento e ignorá-lo usando o trabalho como via para isso
não está me fazendo bem. Nem para minha mente nem para meu físico.
— Désolé — desculpo-me. — Não estou me sentindo muito bem. Se
importam se continuarem a reunião sem mim por alguns minutos? —
pergunto, já me levantando. Não espero por uma resposta unânime e me
retiro.
Caminho pelos corredores, meio perdido e disperso. Quero ir para
casa. Preciso ir para casa. Esse ambiente tem me sufocado mais do que o
normal… Mas não posso. Vou me ausentar somente o suficiente para respirar
com tranquilidade, dar uma espairecida e me obrigar a concentrar-me na
maldita reunião. Desço de elevador os vinte andares até o saguão, contando
os segundos mentalmente, olhando para os sapatos marrons em meus pés.
Quando as portas se abrem, ela expressa surpresa por me encontrar.
— Emilien… — exclama. — Era você mesmo quem eu queria ver.
Deixo o elevador, meio desgostoso por esse encontro.
— Estou ocupado agora, Marjorie — respondo, passando por ela e
caminhando para fora do prédio. Preciso de ar.
A mulher vem em meu encalço, parecendo decidida a termos essa
conversa. Ela segura no meu punho e me faz girar em sua direção.
— Eu sei. Liguei no seu telefone, mas você não atendeu. Por isso vim
aqui. Não precisa ser agora. Podemos nos ver quando cumprir toda a sua
agenda.
Nunca desejei tanto ter compromissos até onze da noite como estou
desejando nesse instante. Solto-me delicadamente da sua pegada.
— Não sei se temos o que conversar. — Talvez tenhamos. Ela
provavelmente descobriu que coloquei alguém para espioná-la e agora está
furiosa. De qualquer maneira, não descobri nada relevante, até porque
suspendi as investigações quando decidi ser franco com Marie.
Ela me olha contrariada, mas então suaviza, como se achasse razoável
minha indiferença.
— É um assunto que te interessa também. Por favor, Emilien.
Não sei por qual motivo, mas acabo concordando, talvez apenas para
que ela me deixe em paz neste momento. Combinamos de nos vermos no
meu apartamento, às nove da noite, ainda hoje.
Tomo o ar que preciso por longos minutos, sentado em um canto
afastado do edifício, e retorno para a sala de reunião. Antes de o dia acabar,
talvez eu precise de uma consulta extra com Maurice.
Estou morrendo por dentro.
— O cheiro está ótimo — Marjorie elogia ao adentrar minha
cobertura.
Consigo apenas lhe dar um sorriso fúnebre. Volto para a cozinha e
coloco sobre o balcão o réchaud com o fondue de queijo já pronto e os
acompanhamentos: pão italiano e filet mignon em cubinhos, tomate-cereja,
champignons e fatias de bacon, duas taças e uma garrafa de vinho.
Ela se senta do lado de fora do balcão, enquanto eu me acomodo na
parte oposta, de frente. Marjorie deixa sua bolsa no chão e inspira fundo o
aroma do queijo derretido no réchaud.
— Sabe que fondue de queijo é uma das minhas preferências no
mundo todo, não sabe?
Dou de ombros, nos sirvo com o vinho, finco um pedaço de pão no
garfo e mergulho no queijo.
— Eu sei.
Marjorie faz o mesmo, preferindo começar pelo filé em cubos. Depois
de mastigar e engolir, diz:
— Elizabeth me contou que você e Marie romperam. Ela soube sobre
tudo, não é?
Meu maxilar se aperta com mais força do que posso prever. É claro
que minha mãe correria contar para Marjorie. Um dia depois de Marie
descobrir, maman começou a me atormentar, mas não me deixou surpreso.
Surpreso ficaria se Elizabeth não tivesse me procurado para me atazanar. Em
pouco mais de três semanas, já me procurou três vezes (e três vezes nós
discutimos), cobrando-me um casamento, herdeiros, a mesma porra de
ladainha de sempre. Claro que me casar e ter filhos precisa ser com Marjorie,
a única mulher que ela aceita na minha vida.
Ela que se case com Marjorie, já que a venera tanto!
Muito por isso estou esse trapo: cabelos desalinhados, barba malfeita,
semblante abatido. Estou horrível. A distância da mulher que amo e a pressão
da minha mãe são os responsáveis por isso. Só agora me dou conta de que
não é do trabalho que preciso me distanciar por uns dias. Preciso de férias de
minha mãe também. De preferência por umas cinco décadas. Pensando nisso,
decido que vou me afastar de novo. Vou bloquear suas ligações, proibir suas
visitas, ignorá-la na empresa…
— É — respondo enfim, bastante desgostoso. — Decidi ser sincero,
mas ela descobriu tudo antes. Não reagiu muito bem.
— Imagino que não — sussurra, mergulhando uma bolinha de
tomate.
— Nem quando me expliquei — acrescento.
Marjorie ergue o olhar para mim, meio confusa. Dou uma risadinha,
porque ela também não tem conhecimento dessa parte.
— Nunca fui agressivo com Désirée de propósito — explico. Tenho
essa necessidade. Marjorie acha que causei um mal irreversível na minha
amiga de forma intencional, assim como provavelmente Antony achava o
mesmo. — Eu sequer me recordava de ter batido nela, por causa da bebida.
Se eu soubesse…
— Mas ela nunca…?
— Não. Nunca me disse nada. É algo que jamais vou compreender.
— Suspiro. Tomo uma dose do meu vinho e imerjo uma fatia de bacon no
queijo. — O que quer falar comigo? — pergunto, por fim. É hora de irmos
direto ao ponto.
Ela fica um instante em silêncio, brincando com um pedaço de pão
dentro do réchaud.
— É sobre sua mãe. Nós dois deveríamos falar com ela.
— Sobre o quê?
Marjorie emerge o pedaço de pão e o come, tomando um gole de
vinho em seguida e limpando os lábios com um pedaço de guardanapo.
— Sobre a obsessão dela em nos casar.
Uma risadinha meio sarcástica escapa de mim. Marjorie reclamando
disto?
— Você sempre foi condizente com essa obsessão da minha mãe. O
que está te fazendo mudar de ideia?
— Tem razão. Nesses anos todos, nunca a adverti sobre querer nos
juntar de todas as maneiras, mesmo quando está bastante claro que não
sentimos mais nada um pelo outro. Pode não acreditar, Emil, mas eu superei
você. A verdade é que eu gostava de vê-la te atormentando com isso.
— Por quê? — questiono, indignado.
— Porque achava justo. — Marjorie baixa os olhos, parecendo meio
envergonhada. — Por ter me trocado pela Désirée. Eu amei você, de verdade.
A um mês de nos casarmos, você simplesmente terminou comigo após beijá-
la. Menos de três anos mais tarde, descobri que estavam juntos desde um
pouco depois do enterro do seu pai. — Seus olhos se erguem para mim. —
Fiquei com tanta raiva, tão enciumada, tão triste… — Balança a cabeça,
como se para afastar algumas lágrimas. — Me disse que não tinha cabeça
para o nosso casamento, mas… teve cabeça para ela.
Silêncio paira sobre nós por longos segundos. Marjorie nunca me
falou nada dessas coisas e de como se sentiu após nosso rompimento. E eu
também nunca fui atencioso o bastante para perguntar. Só agora me dou
conta de que ela tinha mesmo sentimentos por mim, que eu simplesmente
ignorei quando rompi nosso relacionamento. Sou um idiota.
— Levou algum tempo — Marjorie continua —, mas superei você.
Nesse interim, gostava de ver sua mãe espantar suas namoradas, te infernizar
sobre se casar comigo, gostava de ver você sozinho porque não podia arranjar
alguém pois sabia como Elizabeth ia arruinar tudo. Era errado, sei disso. Mas
me dava alguma satisfação… me sentia vingada, sabe? Você quebrou meu
coração, então… parecia justo. E de qualquer maneira, sabia que, por mais
que ela te atormentasse, você não daria o braço a torcer. Por isso, relevava.
Balanço a cabeça em positivo, compreendendo-a em algum nível.
— Porém, a vida segue, Emilien. Já tem algum tempo que disse à sua
mãe para esquecer o assunto e parar de tentar nos juntar porque já não sinto
mais nada por você. No começo, claro, ela relutou muito, tentou argumentar,
mas acatou depois que você foi embora e eu também não me estabelecia em
Paris por causa das turnês com Silvia. Mas há três semanas… desde que ela
descobriu seu rompimento com Marie… Elizabeth tornou a me atormentar, a
me dizer para te procurar e “te consolar”.
Rio de nervoso. Isso é muito a minha mãe, meu Deus do céu. Eu não
tinha ideia de que Elizabeth a atormentava. Para mim, Marjorie não se
importava e, inclusive, compactuava com as ideias dela.
— Eu conheci um cara, Emil… — revela, enrubescendo de uma
maneira que vi poucas vezes. Seu olhar está para baixo, a taça de vinho pela
metade na mão direita. — É um bom rapaz. Bonito, charmoso, muito
educado. Mas… não pertence à minha realidade.
— Está querendo dizer que ele é pobre?
Com um sorriso encabulado, ela afirma.
— Sim. Trabalha com meu pai.
Entendo o que “trabalha com meu pai” significa.
— Estão tendo um caso proibido?
— É — confirma, com uma risadinha sem graça. — E ele é mais
novo do que eu.
— Qual a idade dele? — Pego-me curioso.
— Vinte e oito.
Marjorie tem trinta e cinco, a mesma idade que eu. Isso a faz ser sete
anos mais velha do que ele. Não é uma diferença muito grande.
— O caso é que — continua seu relato — eu gosto dele. E ontem
saímos para jantar. Adrien… me levou a um bom restaurante e deixou todas
as economias dele lá. — Marjorie fala de um modo de quem realmente ficou
encantada com o gesto. — No caminho de volta, sua mãe estava no meu
edifício, me esperando. Emilien… ela foi tão inconveniente. Falou de você,
do nosso “casamento”, que era hora de eu parar de brincar com a ralé e ficar
com alguém à minha altura.
— Marjorie… Sinto muito.
— Tudo bem. Mas precisamos falar com Elizabeth, nós dois, Emil, e
dar um fim nisso.
Balanço a cabeça em positivo, concordando. Nunca pensei que eu e
ela nos uniríamos para contrariar minha mãe. Talvez agora, se Marjorie se
impor e disser que também não quer se casar comigo, maman pare de nos
atormentar com essa ideia.
— Vamos falar com ela amanhã.
Marjorie sorri em agradecimento e toma mais do seu vinho. Ficamos
em silêncio por algum tempo, mergulhando os acompanhamentos no queijo
derretido e comendo. É ela quem se pronuncia depois de longos segundos:
— Quando incentivei a Marie a descobrir seu segredo, não fiz por
mal. — Ergo meu olhar ao seu, não entendendo a abordagem. — Não sabia
sobre o detalhe dos esquecimentos, só de que você bebia e a agredia nessas
ocasiões. Foi o que Antony me disse. No final, você estava certo. Ele não me
contou a história toda. — Dá-me um sorriso pequeno e continua: — Achei
justo que ela soubesse. Emilien, o que você foi, o que fez… é algo grave
demais, entende? Marie precisava saber. No lugar dela, eu ia querer saber.
Reflito por alguns segundos, meneando levemente a cabeça.
— Tem razão até certo ponto. Mas não deveria ter interferido na
minha relação dessa maneira — critico-a. — Foi inadmissível ter se
intrometido, tê-la incentivado a revirar minha privacidade, dando a impressão
de que queria abalar nosso namoro.
— Je suis désolée — desculpa-se, e sinto uma forte sinceridade nela,
mas não insiste no assunto, nem tenta se justificar. Talvez porque saiba que
sua postura foi muito errada e inadequada. — Torço para que se entendam.
Neste instante, meu coração dói. Tenho minhas dúvidas de que Marie
um dia reconsidere e volte para mim. A tristeza me ronda, tomando meu ser e
sufocando-me. Não há mais dúvidas de que amo aquela mulher com tudo que
sou. O amor dela foi minha maior alegria; sua distância e desprezo, meu pior
pesadelo.
Marjorie toca na minha mão e me oferece um pequeno sorriso de
consolo, como se quisesse me dizer que tudo ficará bem. Uma hora, tudo
ficará bem. Ela fica animada de repente, talvez para me alegrar e me tirar da
fossa em que me encontro, e invade minha cozinha, dizendo que vai preparar
fondue de chocolate e cappuccinos. Não me oponho. Houve uma época em
que, por mais que fosse apaixonada por mim, mantínhamos uma boa
amizade.
Ela relembra os velhos tempos. Se seu propósito era me animar um
pouco, conseguiu. Permito-me ter um momento de descontração,
esquecendo-me das dores, das mágoas e tristezas arraigadas na parte mais
profunda do meu coração. Conversamos, rimos, comemos e nos entupimos de
cafeína. O tempo no meu apartamento passa sem que o sintamos. Ao nos dar
conta das horas, são quase duas da manhã.
— Está tarde para ir embora — falo, colocando a louça suja na pia. —
Tenho um quarto de hóspedes vazio. Passe a noite aqui.
Ela se despede e me deseja boa-noite. Permaneço mais algum tempo
na sala, sentado no sofá, melancólico, pensando em Marie e em como a
saudade dela tem apertado meu peito. Deus, ela faz tanta falta na minha vida.
Tornei-me tão dependente dela, do seu amor, dos beijos, dos abraços, do
sorriso… de como geme meu nome quando estou dentro dela, de como gosta
do meu café e da alegria que apossa seus olhos com uma simples xícara que
eu preparo. Merda. Sinto falta de moer os grãos para ela, sinto falta dela na
minha cama, embolada nos lençóis, de vê-la levantar cedo, beber dois copos
de água e sair para ir à redação. Sinto falta dos detalhes mais insignificantes
da nossa efêmera relação.
Vou para o quarto, tomo um banho e tento dormir. Mais cedo, estava
cansado, exausto, querendo tirar uns dias de folga, mas agora, no meio da
noite, estou completamente desperto, insone porque não consigo esquecê-la e
porque me atormenta a perspectiva de um futuro sem Marie. A insônia se
deve, muito provavelmente também, às xícaras entupidas de cafeína.
O psiquiatra que Maurice recomendou me prescreveu um remédio
para dormir, que, confesso, nas últimas noites não tem cumprido seu
propósito. Mas preciso descansar, repor as energias, dormir uma boa noite de
sono. São quase seis da manhã e ainda não preguei os olhos. Maldita insônia.
Decidido, vou até o banheiro e seleciono uma dose maior do que me está
prescrito, juntamente com alguns comprimidos para dor de cabeça e
estômago. Jogo tudo na boca e volto para meu quarto numa última esperança
desses remédios fazerem efeito para que eu consiga ter meu descanso
merecido.
Acordo sentindo-me desorientado, minha boca amarga. Uma mão
quente repousa sobre meu punho. Com alguma dificuldade, viro-me para o
lado e vejo uma mulher vestida de jaleco branco, cabelos pretos, amarrados
em um rabo de cavalo, subindo vagarosamente a manga da minha
vestimenta.
Ela me vê acordado e sorri, medindo minha pressão. Tento perguntar
onde estou, mas minha voz sai muito fraca. Não me lembro de muita coisa.
Apenas que não conseguia dormir e tomei alguns comprimidos. Certo.
Muitos comprimidos, isso apenas porque os receitados não estavam mais
fazendo nenhum efeito.
Um minuto mais tarde, outra mulher adentra o recinto.
— Bonjour… — Confere meu nome em uma prancheta. — Monsieur
Emilien Dupont. Como está se sentindo?
Coço os olhos e suspiro. Demoro a responder porque ainda estou me
localizando, mas logo entendo onde estou. Como diabos vim parar no
hospital?
— O que houve comigo? — pergunto, o amargo ainda no meu paladar
da mesma forma que minha voz continua fraca e rouca.
— Overdose por medicamento.
A informação me deixa transtornado.
— Sua sorte é que sua amiga, a senhorita Chevalier, te encontrou a
tempo. Te desintoxicamos e os exames apontam que não há sequelas. Mas
preciso saber de você, Dupont. Como se sente?
Desvio o olhar por um segundo, não conseguindo não me recordar de
Désirée. Ela sofreu o mesmo, a diferença é que foi proposital e eu não estava
lá para socorrê-la. Não chegou a óbito, mas os danos no cérebro dela foram
irreversíveis, comprometendo sua fala e sistema motor.
Por fim, respondo às perguntas da médica, que quer ter certeza de que
não ficarei com sequelas da minha estupidez.
— Eu ia te encaminhar para a psiquiatria, mas sua amiga me informou
de que você já se consulta.
Tomo um pouco de água que a enfermeira me trouxe.
— Sim. — Um instante depois, compreendo sua sugestão. — Não
tentei suicídio. Foi apenas…negligência da minha parte. Estava com insônia,
a dose receitada não surtia mais efeito, eu…
— … se automedicou — a doutora completa por mim, dando-me um
sermão em seguida.
Ela ainda está me falando sobre os riscos da automedicação quando a
porta do meu quarto se abre em um supetão, trazendo para dentro minha mãe
em um estado desesperado, enquanto Marjorie vem atrás, acompanhada de
minha irmã, e tenta impedi-la.
Elizabeth ignora médica e enfermeira e vem diretamente para mim,
abraçando-me e soluçando nos meus ombros. Não tenho reação nenhuma por
alguns segundos, assimilando essa atitude. Não me lembro da última vez em
que ela demonstrou preocupação comigo, preocupação de verdade, não os
seus pretextos para me manipular velados de “me preocupo com você”. Ela
se afasta, segura meu rosto com as duas mãos. Seus olhos estão vermelhos e
marejados.
— Emil… — murmura. Pestanejo seguidas vezes, um nó na garganta.
Minha mãe nunca me chamou de Emil ou qualquer outro apelido carinhoso.
Nunca. — Mon fils, por que fez isso?
Olho por cima do seu ombro, para a médica e a enfermeira. Elas
entendem meu pedido silencioso, pedem licença e deixam o quarto. Nicole se
senta do outro lado da cama, Marjorie se mantém em pé, de frente para mim.
Se Elizabeth não fosse minha mãe, se ela não fosse quem é, eu teria
dito a verdade. Mas pela primeira vez, tenho em mãos a oportunidade de
manipulá-la, de controlá-la a meu favor, como fez comigo uma porção de
vezes por tantos anos.
— Estava cansado… — digo, e, embora o que eu vá contar seja uma
mentira, estou, de fato, cansado. — Exausto de viver a minha vida em razão
dos seus desejos, mãe. Sua obsessão em me casar com Marjorie, ignorando
todos os meus sentimentos, sua perseguição em destruir todos os meus
relacionamentos porque não pode aceitar ninguém além da Marjorie. Eu amo
a Marie! Só queria viver a minha vida em paz com a mulher que eu amo, mas
você não permite. Simplesmente não vi motivos para continuar vivendo.
O rosto de Elizabeth está em choque. Eu consegui arrancar uma
reação dela além da arrogância e do desdém. Nicole me olha com um
pequeno sorriso e segura na minha mão. Vira-se para nossa mãe, que ficou
cabisbaixa e emudecida de repente.
— Mère, você acha que do seu jeito é o que fará bem ao Emilien, mas
percebe que ele está infeliz a ponto de tentar contra a própria vida? —
Mamãe pisca muitas vezes, lágrimas molhando sua face. Ela me segura
firmemente com as duas mãos pelo rosto. — É seu narcisismo, mãe… —
Nicole murmura. — O psicólogo já disse que precisa de acompanhamento. Se
quiser parar de ser uma pessoa ruim ao Emil, precisa de acompanhamento.
Maman, você passou por muita coisa e viveu uma vida remoendo seus
traumas sem saber lidar com eles da forma correta. Isso tudo reflete na sua
convivência com Emilien e faz muito mal para ele.
Ela não olha para minha irmã durante esse momento. Sua
concentração está toda em mim, lágrimas vertendo timidamente em seu rosto
envelhecido.
— Pode marcar uma consulta com Maurice para mim, ma fille? —
indaga, puxando minha mão e acariciando-a suavemente. — Não quero mais
ser uma pessoa ruim para meu menino. — Sem que eu espere, Elizabeth me
abraça de novo, num ato maternal que pouco teve comigo.
Não sei o que dá em mim, mas retribuo ao seu abraço e me aconchego
nela, sentindo seu aroma bom. Cheiro de mãe. Senti tanto a falta disso. Ela se
afasta, beija os dois lados da minha bochecha e minha testa e então diz que
vai me buscar um par de roupas e itens de higiene pessoal. Quando ela deixa
o cômodo, Nicole puxa minha orelha.
— Não nos dê mais esse susto. Emilien… Estava desistindo da sua
vida, de tudo…
— Não — interrompo-a suavemente. — Foi uma negligência minha.
Me automediquei, exagerei na dose… Não foi intencional, Nic. Je jure
devant Dieu.
— Então por que disse à mamãe que…?
— Nicole, eu a manipulei. Igual ela fez comigo por uma vida —
confesso, baixando o olhar. — Precisava despertar alguma coisa nela,
qualquer sentimento… Dói tanto em mim pensar que ela nunca se importou
realmente comigo. Mas hoje eu vi… lá no fundo, ela realmente me ama. Do
seu modo mais disfuncional e talvez não tanto quanto qualquer outra mãe
amaria seu filho, mas o sentimento está lá. E, apesar de tudo, quero o bem
dela. Se mamãe cumprir sua palavra, vai frequentar a terapia e pode ser uma
pessoa melhor.
Nicole aperta minha mão e dá um tapinha no meu ombro. Não me
orgulho de ter manipulado Elizabeth daquela maneira, mas estou fazendo o
que de fato é o melhor para nós. E minha tentativa não é nenhum pretexto
narcisista.
— Fiquei tão assustada… — Marjorie se aproxima lentamente,
sentando-se no outro lado da minha cama. — Te encontrei espumando pela
boca, entrei em desespero. Achei… que tinha tentado suicídio.
— Desculpe o susto — peço, abrindo um leve sorriso. — O que foi
fazer no meu quarto para me encontrar?
— Não consegui dormir durante a noite toda. Bebi café demais. —
Dou uma risadinha. — Decidi ir embora e passei para ver se estava acordado
e me despedir.
Uma batida na porta interrompe nosso momento. Marie surge à porta,
a expressão é um misto de euforia e desespero. Ela vem em minha direção na
mesma hora. Marjorie dá espaço para ela, que me toma em seus braços
calorosos. Fecho os olhos, deslizo meu nariz pelo seu pescoço e o afundo em
seus cachos macios. Cheiram a chocolate.
— Finalmente me deixaram entrar para te ver. Como se sente? —
pergunta, acariciando meu rosto.
— Estou bem. Desculpe o susto, chérie.
Ela sorri candentemente e beija meu rosto.
— Importante é que você está bem. — Ela olha para Marjorie. —
Obrigada por me avisar.
Chevalier não responde, apenas abre um leve sorriso e move a cabeça
uma vez.
— Emil, por quê…?
Pela terceira vez, explico a confusão. Ela parece mais aliviada em
saber que não tentei suicídio, mas me chama a atenção do mesmo modo que a
médica fez. Nicole e Marjorie nos deixam a sós algum tempo depois. Marie
fica do meu lado, acariciando minha mão sobre seu colo.
Permanecemos em silêncio por muito tempo, mas não é nada
constrangedor. É confortável, na verdade. O fato de ela estar aqui me deixa
estranhamente feliz. Ela acaricia meu cabelo e, quebrando o gelo entre nós,
começa a me contar sobre Sanctus, a história que Isabelle escreveu. Vou
sendo embalado pela sua voz suave e pelo seu carinho no meu cabelo. Não
sei qual o desfecho da trama porque caio no sono.

Confesso que me deixa surpreso quando encontro mamãe e Nicole no


consultório de Maurice para uma consulta. O terapeuta aconselhou que
fizéssemos uma sessão juntos para trabalharmos nossas diferenças. Juro,
achei que ela não viria.
Na presença do psicólogo — nós três —, ele faz algumas perguntas à
mamãe, um procedimento padrão que bem conheço. Elizabeth é a primeira a
falar durante a sessão, ainda negando seu narcisismo. Minutos depois, o
terapeuta nos faz interagir. Exponho todos os meus sentimentos, como nunca
pude expor antes porque ela nunca me ouvia. Maman tentou de todas as
formas justificar suas ações. Maurice apenas ouviu e uma vez ou outra
interviu para nos acalmar.
— Bem — ele diz, quando termino minha vez. — Emilien já disse
tudo o que tinha para dizer, foi sincero em seus sentimentos. Sua vez,
Elizabeth, de dizer o que sente ao seu filho, ser sincera.
Mamãe me olha por longos segundos, um olhar hesitante.
— Mãe — Nicole, que está acompanhando a sessão, chama-a
suavemente. Mamãe olha para ela, quase de um jeito suplicante. — Conte a
verdade ao Emil. — Fico atento a essas palavras, sem entender do que minha
irmã está falando. O que Elizabeth teria para me contar? O que Nicole sabe,
mas eu não? — Precisa dizer a verdade ao Emilien, mère.
Lentamente ela se vira para mim, lágrimas tímidas pingando dos seus
olhos. Um segundo de tensão paira sobre nós antes de mamãe proferir:
— Você nunca agrediu a Désirée, mon fils. — Assimilo suas palavras
sem conseguir compreendê-las. — Eu te manipulei, fiz você acreditar de que
a machucava quando estava bêbado. Aproveitei-me da sua falta de memória
em relação à bebida e do silêncio forçado de Lacroix e… te levei a acreditar
em algo que nunca aconteceu.
Levanto-me do meu lugar, atordoado com a confissão. Balanço a
cabeça fortemente, confuso. Meu coração está acelerado, minhas têmporas
doem.
— Mãe, do que está falando…?
Elizabeth também se levanta e me segura pelas mãos.
— Quis te punir por ter desfeito o casamento com Marjorie para ficar
com Désirée. — O rosto dela está marcado por uma expressão de
arrependimento que nunca vi na minha vida. — Depois que descobri que
estavam juntos, dei o meu jeito de saber tudo sobre aquela menina. Estava
louca para encontrar qualquer coisa que pudesse te colocar contra ela.
Vasculhei a vida de Lacroix até quase virá-la do avesso. Semanas antes de ela
ir parar no hospital, descobri algumas coisas…
Afasto-me com um passo atrás, zonzo.
— Isso não faz sentido. E os hematomas? Boletins de ocorrências,
diagnóstico de depressão, o aborto, exame de corpo de delito… Está claro
que eu causei isso tudo e…
Mamãe me segura pelas mãos de novo.
— Non, chéri. Os boletins e o exame de corpo de delito eram falsos…
Eu os consegui apenas para sustentar minha farsa. Os hematomas eram reais,
mas… Désirée foi diagnosticada com púrpura, uma doença rara que surge
repentinamente. Um dos sintomas são as manchas roxas pelo corpo, podem
surgir tanto de repente como causados por leves colisões. Ela descobriu cedo
e estava fazendo tratamento para curá-la. Ela não te contou nada porque…
não estavam muito bem. Por minha causa.
Nego-me a acreditar. Balanço a cabeça com mais força, quase não
sentindo meu rosto umedecendo pelas lágrimas. Não, não. Mamãe não foi
capaz de me manipular nessa escala.
— O aborto foi espontâneo, algo comum no primeiro trimestre da
gravidez. Não foi sua culpa. O diagnóstico de depressão… era verdadeiro,
mas nada tinha a ver com suas supostas agressões. Ela te amava, Emilien, e o
declínio do relacionamento de vocês, a minha insistência em atormentá-los,
as traições, a distância um do outro que vocês estavam vivenciando, a perda
do bebê… — Elizabeth faz uma pausa longa e chora por alguns instantes. —
Foi o que a deixou com indícios de depressão.
— E a tentativa de suicídio? Ela se entupiu de remédios e…
— Non, chéri. Foi de fato um acidente. Ela escorregou no banheiro e
bateu a nuca. Fui até a casa de vocês para te ver, o porteiro proibiu minha
subida, mas eu o subornei e consegui uma cópia da sua chave. Encontrei a
Désirée no banheiro, caída perto da banheira. Não havia frasco nenhum de
remédio na mão dela. Inventei isso para… — Ela não termina, não é
necessário. Compreendo perfeitamente suas intenções.
Distancio-me da minha mãe, como se tivesse levado um choque.
Olho-a com desdém, sentindo-me enojado. Deus, ela mentiu para mim! Mais
do que isso, me fez carregar a dor dilacerante de uma culpa que nunca me
pertenceu. Tudo passa a fazer sentido. A facilidade com que “encobriu” as
evidências contra mim, a facilidade com que comprou o silêncio de quem
tenha sido necessário para não sujar o sobrenome Dupont com um escândalo
de violência doméstica, a facilidade que encontrou para que a informação
oficial acerca da hospitalização de Désirée fosse acidente doméstico, e não
tentativa de suicídio. Foi fácil para Elizabeth porque não precisou fazer nada
disto. Só precisou me enganar, me fazer pensar que era culpa minha, que eu
tinha machucado minha namorada. Ela me manipulou, como sempre.
Aproveitou-se da falta de comunicação entre nós, da minha amnésia pós-
bebedeira, das circunstâncias que poderiam ser facilmente manipuladas a seu
favor e contra mim, das sequelas do acidente de Lacroix que a impediam de
desmenti-la, do estado catatônico em que fiquei quando recebi a notícia, o
que facilitou com que jogasse a culpa sobre meus ombros. Fiquei tão
aterrorizado com tudo que aconteceu que aceitei a versão dela, sem nem
mesmo questionar.
— Por quê? — É tudo o que eu pergunto, aos prantos.
— Punição. — É tudo o que ela responde, chorando.
Elizabeth sempre foi mestre em me punir quando a contrariava. Nem
sei por que me surpreendo. Fico meio letárgico depois dessa confissão, não
sabendo o que sentir, o que pensar. Por um lado, tem o alívio de saber que
nunca bati em Désirée, que não causei seu aborto, nem sua depressão, nem
mesmo sua suposta tentativa de suicídio. Por outro lado, tem o sentimento de
raiva, de ter sido enganado, de ter carregado por tanto tempo uma dor e um
remorso que não eram meus.
— Emilien, me desculpe — mamãe pede, secando as lágrimas.
Ignoro-a e olho para Nicole.
— Quando disse que não acreditava na sua versão dos fatos, não achei
que estava mentindo. Só achei a história mal contada. Fui atrás da verdade,
Emil, porque me negava a acreditar que, mesmo bêbado e sem intenção,
machucava a Désirée. Procurei pelo histórico médico dela, fui às delegacias,
conversei com o terapeuta dela… Pressionei a mamãe a contar a verdade
depois da sua… tentativa de suicídio. — Minha irmã revira sua bolsa e retira
uma pasta de lá de dentro. — Tenho todo o dossiê que levantei aqui. Pode
olhar depois com mais calma.
Recebo isso tudo com muita dificuldade. Preciso de tempo, preciso de
ar. Preciso sair daqui. Preciso ficar longe da minha mãe.
— Emilien… — mamãe me chama de novo.
— Elizabeth — Maurice a adverte suavemente. — Seu filho precisará
de tempo e espaço. Dê o que ele precisa.
Nicole vem até mim, me abraça por um segundo, diz que me ama
mais do que tudo e me leva para fora do consultório.
EMILIEN
Foi natural que eu levasse algum tempo para absorver toda a verdade
que me acertou com peso. Passei dois dias sem dormir, remoendo uma raiva
dilacerante por ter sido tão facilmente enganado e manipulado pela minha
mãe. Senti-me um estúpido. Como não pude enxergar a verdade debaixo do
meu nariz?
O ódio veio com mais força ao pensar em cada momento em que
hesitei contrariá-la por estar em suas mãos quando, na realidade, nunca
estive. Mamãe me fez carregar uma culpa que jamais me pertenceu. Não
bastou apenas me manipular a respeito do que de fato aconteceu com minha
namorada, continuou usando-me, ameaçando-me, infernizando meus dias e
me chantageando, impedindo a minha felicidade.
E eu, como um idiota, acreditei em sua versão, sem questionar,
aceitando tudo o que me disse e tomando isso como verdade absoluta. Se não
fosse por Nicole, provavelmente continuaria acreditando numa enorme
mentira até hoje.
Nos últimos dias, vivi um conflito de sentimentos dentro de mim que
me tiraram o sono. Raiva, mágoa, tristeza, decepção (comigo, por me deixar
ser iludido, com minha mãe, que mais uma vez me fez de marionete), solidão,
alívio, euforia… Quando finalmente consigo conter esse misto de emoção,
estou pronto para vê-la.
Minha agenda está toda cancelada já tem alguns dias e aproveito esse
tempo para ir até Nanterre. Quando chego, é horário do almoço. Ela está no
quarto, sendo alimentada pela enfermeira e pela auxiliar. Um sorriso nasce
em seu rosto — pequeno, porque uma das sequelas de seu acidente foi a
paralisia facial parcial.
Aproximo-me, puxo uma cadeira e me sento de frente para ela, que
está comendo vagarosamente uma sopa. A enfermeira precisa pôr em sua
boca e ajudá-la a engolir. Presenciei essa cena quase um milhão de vezes na
última década e ainda não me acostumei. Dói como se fosse a primeira vez.
Quando termina sua refeição, me deixam sozinho em sua companhia.
— Senti sua falta — digo baixinho, depois de dar um beijo nas suas
duas bochechas e em sua testa. Ajeito meu assento de frente para sua cadeira
de rodas. — Desculpe ter demorado para vir — peço, acariciando sua mão e
as olhando atentamente.
Levanto-me um segundo depois e caminho até a penteadeira. Procuro
por escova de cabelos e alguma maquiagem. Então levo-a até de frente ao
espelho. Seu reflexo tem alguma tristeza ao se ver. Engulo em seco,
perguntando-me se foi minha melhor decisão.
— Você está linda — encorajo-a. Pego a escova e penteio seus
cabelos, vagarosamente. Gosto de ter esse zelo com ela, essa proximidade. —
Por que nunca me contou, chérie? — pergunto com um sussurro. Pelo brilho
dos seus olhos castanhos, noto que Désirée não tem ideia do que estou
falando. — Sobre a púrpura. — Ela fica abatida por algum tempo, e eu
respeito este instante, penteando seus cabelos ruivos.
Ao terminar, pego um pó e passo um pouco sobre seu rosto, depois
pinto seus lábios com um batom rosa bem fraquinho. Viro-a para seu reflexo
outra vez, e minha amiga parece gostar do que vê.
Levo-a para dar uma volta pelo jardim. Converso algumas
amenidades, embora nossa conversa seja mais um monólogo, mas consigo
notar cada traço de satisfação por eu estar aqui, por dialogar com ela. Paro
sob a copa de uma árvore, sento-me em um dos bancos e a puxo para perto de
mim, deixando-a à minha frente. O sol aquece nossas peles ao passo que a
leve brisa nos refresca.
Inspiro ar para meus pulmões e mudo de assunto.
— Gosto de uma pessoa. — Désirée me dá um sorriso bastante
enfraquecido. Não sei se minha confissão a machuca, também não consigo lê-
la, mas acredito que preciso ser sincero. — Eu… a amo, na verdade. Mas
você sabe… minha mãe… — Suspiro, pegando-a pela mão novamente e a
acariciando. — Me atormentou até conseguir nos separar, como fez conosco.
Sabe o que é pior? Elizabeth sempre me manipulou e desta vez… passou dos
limites.
Baixo o olhar, brincando com as linhas e veias nas costas da sua mão.
— Me fez acreditar que te machuquei. Que quando eu bebia, te
agredia, te machucava. Pensei que seu aborto foi por minha culpa, as
manchas na sua pele… achei que eram resultado das agressões… E você me
conhece, não é? Sabe que eu me esqueço de tudo quando bebo. — Ergo o
olhar em sua direção. O rosto dela, mesmo com a paralisia facial, expressa
levemente surpresa, confusão e um horror genuíno nas íris castanhas. — O
seu indício de depressão… Minha mãe se aproveitou que você… — Faço
uma pausa, molhando os lábios. — Que você sofreu sequelas e decidiu contar
uma versão para me fazer sentir remorso. Por todos esses anos, chérie,
carreguei uma culpa enorme achando que tinha te feito mal, que você tinha
tentado suicídio por minha causa, quando tudo não passou de um infeliz
acidente. Juro que ainda me sinto péssimo, porque você caiu naquele
banheiro e eu deveria ter estado lá, como prometi.
Ergo o rosto para o sol, sentindo-o me aquecer. Apuro minha audição
por alguns segundos, ouvindo o burburinho de conversas ao nosso redor, o
cantar dos pássaros, as folhas farfalhando, sua respiração lenta e ritmada.
Nunca comentei com ela sobre as supostas agressões. Decidi que era melhor
não. Eu achava que já tinha lhe causado danos demais para remoer o passado
e fazê-la se recordar das coisas que cometi contra sua integridade.
— Por anos, Elizabeth me chantageou usando de algo que não
aconteceu. Imagine, Désirée, o meu desespero ao pensar no que supostamente
fiz com você. Senti tanto medo de isso manchar minha imagem, prejudicar os
negócios… de ir para a cadeia. — Balanço a cabeça em negativo, afastando
as lágrimas que se acumulam nos meus olhos. — Minha mãe me disse que
tinha sumido com todas as “evidências”. — Rio de nervoso e faço aspas com
os dedos. — Vivi à margem do meu próprio medo por anos. E ela usou disto
para me separar da mulher que amo.
Tento explicar detalhadamente minha relação com Marie, que sempre
me pressionava, meu medo constante de ter meu “segredo” exposto, como ela
descobriu, como reagiu. Nossa separação, o modo como fiquei mal, minhas
noites insones e meu exagero com os medicamentos que me levou a uma
overdose. Como me aproveitei disso para causar algum sentimento em
Elizabeth, fazê-la sentir qualquer coisa ao menos uma vez na vida e,
conseguindo despertar isso nela, sua confissão de que tudo tinha sido um jeito
de me manipular e me punir por não ter me casado com Marjorie.
Mesmo que não possa me responder, passo mais de uma hora em sua
companhia, andando com ela pelo jardim e contando isto tudo. Não sei por
que exatamente faço isso, apenas faço, como uma necessidade incontrolável
de desabafar.
— Espero que um dia possa me perdoar — falo, agora já de volta ao
seu quarto. — Por não ter estado lá naquela noite do seu aniversário, sinto
muito mesmo. — Aperto seus dedos nos meus. Um murmuro dela chama
minha atenção. Há o mesmo sorriso débil em seu rosto parcialmente
paralisado, mas os olhos… estão mais brilhosos e marejados, transmitindo
todo o perdão de que preciso.
Se ela pudesse falar, não sei se me encorajaria a voltar para Marie, a
dizer para a mulher que amo tudo o que disse aqui, mas sei que ao menos o
seu perdão eu tenho.
É tudo de que preciso no momento.

Surpreendo-a no meio da minha sala quando abro a porta.


Marie toma aquele susto de quem foi flagrada fazendo alguma coisa
de errado. Sua presença me deixa surpreso, confuso e feliz.
— Desculpe… — murmura, baixando os olhos. — Ainda tenho a
cópia que me deu e meu nome continua na lista de pessoas autorizadas.
Jogo meu molho de chaves na mesa de vidro no centro do ambiente.
Não vou mentir e dizer que ela estar aqui não mexe comigo. Será que
reconsiderou? Nosso último contato foi há quase uma semana, quando esteve
no hospital para me ver. Recordo-me de ter dormido com ela contando-me o
enredo do livro de Isabelle, mas, ao acordar, já tinha ido embora.
Neste momento, a esperança não bate em meu peito. Ela soca,
desesperada, gritando dentro de mim. Forço-me a controlar todas as minhas
expectativas. Não sei de suas intenções para ter vindo, mas não quero ficar
ainda mais decepcionado se Marie não tem intenção de voltar para minha
vida.
— Vim buscar algumas coisas minhas que esqueci — esclarece, ainda
sem me olhar. Dessa maneira, minhas esperanças vão esvaindo-se pouco a
pouco. — Pensei que estivesse trabalhando e…
— Quis me evitar? — indago. Ela ergue seu olhar ao meu.
— Não é isso.
Apenas abano em positivo, sem querer estender ou insistir no
assunto.
— Como você está? — questiona.
— Tirando a falta extrema que sinto de você… estou bem.
Marie fica desconcertada mais uma vez, desviando o olhar do meu,
trocando o peso da perna a cada segundo, molhando o lábio inferior.
— Também trouxe o seu paletó — informa. — Aquele que me
emprestou no nosso encontro, logo quando voltou a Paris. Se recorda?
Abro um leve e fúnebre sorriso, olhando para um ponto fixo atrás
dela. Parece que foi há um milhão de anos, mas foi há uns cinco meses.
— Sim. Não precisava ter se incomodado.
— Deixei no seu closet. Está limpo. Não sei por que esqueci de te
devolver. Désolée.
Suspiro pesadamente, voltando meu olhar ao dela. Marie coloca uma
mecha do seu cabelo atrás da orelha.
— Não se preocupe, ma belle.
Ela fecha os olhos e sorri docemente por tratá-la por ma belle. Sei que
gosta. Um segundo depois, sussurra um “preciso ir” e começa a se retirar.
Mais uma vez, vejo-me perdendo a mulher que amo para uma bobagem sem
sentido. Se ela soubesse a verdade, talvez não fosse embora. Talvez, ao invés
de sair por aquela porta, voltasse para mim, pulasse no meu colo, beijasse a
minha boca, fizesse amor comigo e tirasse do meu peito essa aflição maldita.
Marie tem que saber que não sou uma pessoa ruim e que não causei mal a
ninguém. Eu a quero tão desesperadamente na minha vida de novo, que por
um segundo impensado, tomo uma atitude precipitada.
— Marie… — chamo-a, decidido a falar o que de fato aconteceu.
Ela já está no umbral da porta quando se vira ao som do seu nome na
minha boca.
— Oui?
Meus lábios se entreabrem. As palavras formam na minha mente e
são conduzidas até a ponta da minha língua. Quando estou para expor a
verdade, repentinamente recuo e desisto. Não quero isso. Estou tão
desesperado pelo amor dela que nem raciocino direito.
Ela me encara atentamente, esperando-me.
— Precisa de uma carta de recomendação? — pergunto qualquer
merda que vem na minha mente.
Ela parece decepcionada com meu questionamento. Talvez esperasse
que eu pedisse para ficar, ou implorasse para me aceitar de volta. E eu
realmente teria feito isso, se já não tivesse me arrastado demais por essa
mulher. Sei como ela é difícil quando quer.
— Se você puder… Ficaria muito grata.
Nós nos olhamos por longos segundos antes de ela virar nos
calcanhares e ir embora.
MARIE
Fui estúpida e covarde. Se arrependimento matasse, com toda certeza
já estaria morta, enterrada e em decomposição. Eu tinha decidido ir até o
apartamento de Emilien sob um pretexto idiota de devolver seu paletó e
buscar alguns pertences meus que ficaram por lá. A verdade é que no meu
coração eu conservava uma esperança grandiosa de achá-lo, embora
desconfiasse de que estaria na sede da Dupont Investimentos ou em qualquer
outro lugar a negócios porque sei como é um homem ocupado. Mesmo assim,
eu fui.
Tinha uma desculpa para ir até lá e, se o encontrasse, poderíamos ter
uma conversa, talvez nos entendêssemos. Estava disposta a ser mais
maleável, estava mesmo. O medo constante de que Elizabeth conseguisse
interferir na nossa vida a dois e, consequentemente, nos desestruturar, além
do receio de Emilien cair em velhos hábitos e voltar a ser violento
influenciado pela bebida, ainda existia dentro de mim. Estava ali, à espreita,
lutando arduamente com meus sentimentos. Tudo o que eu queria era
procurá-lo, me jogar em seus braços, confiar em sua palavra de que
ficaríamos bem. Mas então vinha a incerteza e me fazia recuar.
Não serei hipócrita. Comecei a reconsiderar em continuar longe dele
depois da semana passada, quando foi parar no hospital por ser negligente
com os remédios. Fiquei tão apavorada com a ideia de perdê-lo que tive três
noites de insônia e ligava várias vezes ao dia para Nicole, que me confirmava
que o irmão estava bem. Esse pavor que me tomou por inteira, confesso, foi
um dos principais motivos que me fizeram repensar a decisão de me manter
afastada dele.
Amo aquele homem. Sei disso há muito tempo. Não sei precisar o
momento em que comecei a nutrir esse sentimento, mas o amor é assim
mesmo, não é? Vem aos poucos, sutil, sorrateiro, silencioso. Quando se dá
conta, em algum ponto da sua vida, você olha para aquela pessoa e percebe
que a ama. Ama os defeitos, as qualidades, o modo como sorri, ama sua pele,
o seu calor, como seu corpo se molda ao dela.
No nanosegundo em que Marjorie pronunciou “Acho que Emilien
cometeu suicídio!”, todos os nossos momentos juntos passaram na frente dos
meus olhos, semelhante ao que dizem que acontece quando estamos para
morrer. Lembrei-me de cada momento — desde quando o conheci, em sua
festa de gala, ao nosso último instante juntos — e percebi, finalmente, que
estava desperdiçando um tempo precioso longe do meu homem. Era hora de
superar meu medo, inseguranças e o passado dele.
Ele dormiu nos meus braços e decidi que precisava de repouso depois
da overdose. Deixei um beijo no seu rosto sereno e barbado e fui embora.
Não fizemos mais contato a partir daí. Durante a semana seguinte, tentei
superar todas as minhas inseguranças, lidar com o passado dele, quem
Emilien foi, tentei considerar que nada foi deliberado e o fato de ele ter me
assegurado que nunca mais perdeu o controle desde então. Convenço-me que
se estivermos cara a cara, se Emilien me olhar daquele seu jeito apaixonado,
com luxúria, com admiração, vou ceder. Decido que não posso mais ficar
nesse apartamento, permitindo essa batalha infinita entre meu medo e meu
coração.
Pego seu paletó no meu closet, pois preciso de um pretexto para a
portaria: “Salut, vim devolver esse blazer do Emilien e pegar algumas
calcinhas minhas deixadas na gaveta dele”. Mas ele não está em sua
cobertura. Fico sabendo que foi para Nanterre. Uma leve pontada de ciúmes
brota na parte mais profunda do meu coração. Emil foi vê-la, como
costumeiramente faz. Logo o sentimento negativo vai embora, substituído por
um sentimento de empatia muito forte. E então vem o orgulho. Ele jamais a
abandonou.
Subo até sua cobertura, pego uma ou duas peças de roupa minhas,
enfio na minha bolsa e coloco o paletó dele no closet. Faço alguma hora aqui,
esperando pela sua volta, mas minutos se passam e ele não chega. Estou indo
embora quando Emilien surge pela porta, flagrando-me. A surpresa de revê-
lo é real, porque já tinha desistido.
Aí vem o momento de covardia. Tudo que ensaiei dizer me sufoca e
parece doer no fundo do meu coração. Não tenho mais somente medo de
velhos hábitos ou da sua agressividade quando bebe. Tenho medo da sua
rejeição; de que me odeie por não ter sido compreensiva o bastante, por ter
precisado que Nicole me convencesse a ouvi-lo, por ter quebrado minha
promessa. Mais uma vez, recuo. Contudo, quando Emilien pronuncia meu
nome, uma chama se acende dentro de mim. Penso que vai me pedir para
conversarmos e nesse momento eu simplesmente direi que o quero de volta.
Mas Emil me oferece uma carta de recomendação.
Ele não me impede de ir embora, não me pede para ficar. Não que eu
o quisesse rastejando por mim. Claro que não! Só queria um sinal de que não
me rejeitaria. Um sinal que não obtive e, por isso, vou para casa sem cumprir
meu propósito, odiando-me por não ter falado com Emilien e pedido uma
nova chance para nós dois.
E isso me faz a maior das estúpidas e das covardes.

“Podemos nos ver? Talvez tomar um café juntos no Avenue


Coffee? ??”
Leio e releio a mensagem umas duzentas vezes, hesitando em clicar
em “enviar”. Se Emilien me responder com qualquer outra coisa que não seja
um “sim”, tenho a impressão de que todo meu mundo vai desabar. Já se foi
quase uma semana desde que o vi em seu apartamento. Foram sete dias
terríveis e longos, mas necessários para criar coragem. Estou decidida a não
passar nem mais um segundo longe desse homem. O “não” eu já tenho, então
o que tenho a perder?
Envio a mensagem e espero ansiosamente pela resposta dele. Demora
bem uns vinte minutos até me responder.
“Adoraria, ma belle. A que horas?”.
Ma belle… Só Deus sabe como gosto desse tratamento. Até demoro a
assimilar que ele topou! Mon Dieu… Emilien disse sim.
Respondo o mais rápido que consigo:
“Em uma hora, pode ser? Ou está muito ocupado?”
Meu desespero para vê-lo é grande demais porque nós já ficamos
separados tempo o suficiente, mas preciso ter em mente que Emil tem seus
compromissos.
“Nunca estou ocupado demais para você”, responde em seguida,
quase me fazendo perder a firmeza das pernas. Ainda bem que estou sentada.
“Em uma hora, na cafeteria de Dousseau. À bientôt, ma belle.”
Corro para me arrumar. Opto por algo bem básico, casual e
confortável: uma camisa azul de botões e mangas compridas, dobradas até
perto dos cotovelos, jeans skinny numa tonalidade mais forte do que a peça
de cima e scarpin vermelho. Olho-me no espelho e gosto do contraste das
cores. Ajeito os cabelos e faço uma maquiagem leve. Confiro meus pertences
na bolsa e pego a chave do carro. Estou para sair quando meu interfone toca e
a portaria me avisa de uma visita repentina e, diga-se de passagem,
desagradável. Não sei por qual motivo, mas libero sua subida.
Dois minutos depois, Elizabeth está parada na minha frente, elegante
como só ela consegue ser, irradiando sua arrogância como de costume.
Preciso tomar uma porção de ar para meus pulmões antes de dar um passo ao
lado para que entre. Não faço questão nenhuma de ser educada, então não
ofereço qualquer coisa além do sofá.
— Desculpe vir sem avisar — pede, deixando-me surpresa. Elizabeth
não é do tipo de pessoa que se desculpa. — Mas precisava falar com você.
Sento-me no sofá oposto e abano em positivo.
— Certo… — murmuro, meio desconfiada da sua visita. Espero que
não tenha vindo aqui para me chantagear de novo. Sinceramente, se fizer
isso, é capaz de eu perder toda a minha paciência com essa mulher.
— Tem visto meu filho? — pergunta.
Abro a boca para dizer que o verei dentro de meia hora, mas desisto.
Ainda não sei sua intenção com essa conversa toda.
— Não. Vi o Emilien na semana passada quando… fui ao
apartamento dele buscar algumas cosias minhas. Porquoi?
Elizabeth se ajeita em seu lugar por um segundo, criando um certo
suspense no ambiente que me deixa apreensiva. Nada de bom pode vir dessa
mulher. Isto é um fato.
— Você sabe…? — indaga cuidadosamente.
— Que o Emilien agredia a Désirée quando estava bêbado? Eu
soube… — murmuro, molhando os lábios e obrigando-me a não me
acovardar novamente. Já me decidi a procurá-lo e nos resolvermos. É
necessário esquecer e superar esse passado. — Descobri — explico.
— Entendo — murmura de volta, abaixando o olhar para suas mãos
unidas sobre o colo, a postura ereta e elegante. — Então vocês terminaram?
A pergunta dói no meu coração. Com dificuldade, respondo:
— Oui.
Elizabeth parece ensaiar antes de proferir as próximas palavras, que
me pegam completamente de surpresa e desprevenida:
— Precisa procurá-lo para se entenderem. — Um silêncio repentino
recai sobre nós. Quero perguntar o que aconteceu com ela, se se sente bem.
Será que precisa de um médico? Mas a mulher prossegue: — Emilien…
nunca fez mal à Désirée.
A informação me pega de surpresa, mas tudo fica mais esclarecido
quando Elizabeth me conta toute la vérité — toda a verdade. De começo,
sinto raiva, nojo, inquietação. Como ela pôde fazer isso com o próprio filho?
Depois, tudo o que quero é apenas ir ao encontro dele e abraçá-lo, não porque
estou aliviada de que ele não tenha cometido aquelas coisas horríveis, mas
porque merece esse abraço, um abraço para confortá-lo por ter, por tanto
tempo, se culpado por algo que jamais aconteceu, por ter carregado uma dor e
responsabilidade desnecessárias.
Não sei por que ela tem esse senso de altruísmo e decide contar a
verdadeira versão dos fatos. Também não entendo por que Emilien não me
disse. Estava assim com tanta raiva de mim a ponto de não querer sequer me
contar que tudo isso não passou de uma enorme armação? Meu peito aperta.
Sinto medo novamente de ele me rejeitar e, se o fizer será justo, muito justo.
Fui tão idiota.
— Escute… — Elizabeth diz, do seu lugar. — Estou trabalhando esse
meu jeito de ser, de querer controlar Emilien e sua vida, para que tudo seja da
minha maneira. Estou tentando mesmo, e vir aqui, te incentivar a ficar com
ele… é uma das coisas mais difíceis que já fiz na vida. — Uma pequena
pausa. — Não me leve a mal, Marie, você é uma mulher bonita, digna de
alguém que te mereça, ainda assim, não consigo te idealizar com meu filho. A
vida toda, meu sonho foi…
— Que Emil se casasse com Marjorie — completo, meio hostil. Qual
é a dessa mulher, afinal?
— Sim — responde firmemente. — Mas estou me esforçando para
pensar mais na felicidade do Emilien do que na satisfação dos meus desejos
egoístas e narcisistas. E você, no momento, é a definição de felicidade dele.
Por esse motivo… agora que sabe a verdade, que ele jamais foi um homem
ruim, violento ou tóxico, precisa procurá-lo.
O tempo parece parar por um momento, tão surreal é esse instante.
Elizabeth Dupont incentivando-me a ir atrás de Emil. Eu já ia, de qualquer
maneira, com ou sem o incentivo dela. Preciso confessar: saber que Emilien
não causou nenhum mal a ninguém deixou minha alma mais leve.
— Agradeço por ter sido sincera comigo — digo, levantando-me do
meu lugar, uma deixa para ela se retirar. Elizabeth também se levanta, aperta
minha mão e me dá um sorriso pequeno. — E por finalmente apoiar as
decisões do Emilien. Mas posso te pedir um primeiro e último favor? — A
mulher aquiesce. — Fique longe dele por um tempo. Ao menos até… estar
melhor. Você já infligiu dor demais naquele homem.
A expressão em seu rosto muda radicalmente. Toma proporções
sombrias que lembram as de Emil quando estava me escondendo partes do
seu passado. Não sei se tenho o direito de pedir para ficar longe do próprio
filho, mas peço mesmo assim. Se vou querer uma chance com ele, se vamos
tentar de novo essa relação, quero-a fora do nosso caminho.
— Vou aceitar sua sugestão.
Ela não se despede. Sequer olha para trás quando vai embora.

Chego cinco minutos atrasada. Emilien já me espera, conferindo um


jornal, todo elegante no seu terno, pernas cruzadas. Deixa sua leitura de lado
quando me vê adentrando a cafeteria de nosso amigo Bernardo. Aliás, ele
está aqui, atrás do balcão, e acena para mim ao me notar. Aceno de volta,
revirando os olhos quando ele balança as sobrancelhas de forma sugestiva e
lança olhares entre mim e Emil. Homem malicioso, credo.
Emilien me recepciona com um beijo no rosto e puxa uma cadeira de
frente para ele.
— Estava ficando preocupado com seu atraso — fala, entregando-me
o menu.
— Desculpe. Tive um imprevisto — respondo, mas decido não entrar
em detalhes por ora.
Fazemos nossos pedidos e, quando a funcionária se afasta, Emil fala
baixinho:
— Fiquei feliz com sua mensagem.
Meu Deus, quero pular nesse homem e colar nossas bocas. Ele está
tão bonito. Mesmo que ainda esteja meio desleixado. Tem leves olheiras, a
barba precisa ser aparada (mas realmente não me importo porque lhe dá um
aspecto bastante másculo) e seus olhos estão mais abatidos do que o normal.
Seu rosto parece se iluminar e todos esses “defeitos” ficam em segundo plano
quando abre um sorriso. Ele sorri porque enviei uma mensagem convidando-
o para tomarmos um café. Talvez haja uma chance.
— Precisava te ver. Sinto sua falta, Emilien — confesso.
Ele entrelaça nossos dedos, seus olhos amáveis em mim, o sorrisinho
de quem entende o sentimento. Emil deixa um beijo suave nas costas da
minha mão.
— Quer conversar sobre isso?
Nossos pedidos chegam. Dou uma mordida no meu croissant e bebo
um pouco do meu expresso antes de responder. Eu quero conversar sobre
isso. Quero pedir desculpas por ter sido uma estúpida que não soube lidar
com seu passado, por não ter confiado nele plenamente. Depois quero dizer
para tentarmos de novo e sermos um casal. Agora sem passado, sem segredo,
sem ameaças, sem mãe narcisista entre nós. Nossa melhor chance de sermos
felizes é agora.
— Quero — afirmo, apoiando a xícara no pires. — Mas se vamos
começar isso, Emil, é bom não termos mais nenhum segredo nos rondando.
— Ele fica em alerta. — Sua mãe me procurou… — Emilien recua; é nítido
que a mãe ainda tem uma influência negativa muito grande sobre ele. Seu
olhar se perde em algum ponto na cafeteria. — E me contou tudo. Tudo,
chéri. — Vagarosamente, os olhos azuis estão em mim, sua expressão
endurecida. — Por que não me contou?
— Achei pretensioso demais — responde amargamente. — Te queria
de volta, mas deveria partir de você aceitar o que acreditava a meu respeito,
não porque tudo não passou de uma grande mentira.
— Você está certo — assinto. — E por isso estou aqui. Quero tentar
de novo, quero consertar as coisas entre nós. Quero você.
Por alguns segundos, nada responde. Sua postura mudou de uma hora
para outra. Emilien não está mais bem-humorado com minha presença como
estava quando cheguei. Seu rosto parece rígido.
— Agora que não sou mais um agressor, você me quer de volta?
Pisco diversas vezes, assimilando seu posicionamento. Não, meu
Deus, não! Ele está entendendo tudo errado! Não vim procurá-lo porque
Elizabeth esclareceu as coisas. É isso que Emilien está pensando? Eu estava
vindo de qualquer maneira!
— Não, Emil. — Apresso-me a explicar, mas ele não deixa.
— Engraçado você decidir me procurar justo hoje, depois de
descobrir que jamais agredi minha ex, de que não fico violento com a bebida.
Enquanto eu era o maldito agressor, não quis saber de mim! — Ele está
ficando alterado. Há tristeza e decepção nas marcas do seu rosto, lágrimas
nos olhos ameaçando deslizar por sua face endurecida. — Esperei dias por
uma ligação sua, para que conversássemos. Me enchi de esperanças dizendo a
mim mesmo de que você precisava de tempo e espaço, que uma hora ia me
compreender… Pelo jeito me enganei.
— Emilien, eu decidi te procurar antes de saber toda a verdade.
Acredita em mim.
— Conveniente demais me dizer isso, não acha? — cospe, tomando
seu café quase em um gole só. Então ele fica quieto por longos segundos,
olhando para sua xícara vazia. — Desculpe, mas não consigo. — Sua voz
está embargada. Lágrimas tomam seu rosto, assim com as minhas escorregam
pelo meu. — Não consigo, Marie… Dói tanto o fato de saber que você só
veio me procurar porque…
— Emilien… — Tento mais uma vez convencê-lo de que a verdade
sobre seu passado não foi o que me motivou a vir, mas ele continua não me
deixando.
— Esqueça. — Num rompante, está em pé, jogando alguns euros
sobre a mesa. — Não preciso das suas explicações. — Abaixa a cabeça e
permanece assim por alguns segundos. — Doeu o seu desprezo. Quando me
olhou daquele jeito, no meu escritório, pensando que eu fui um cara violento
com Désirée. — Ergue os olhos para mim, o rosto molhado. — Mas nada se
compara a esse momento… Não se compara à dor de você só ter
reconsiderado porque minha mãe contou o que de fato aconteceu.
Penso em me explicar, mas desisto. Não vai adiantar. Emilien está
disposto a não ouvir e nem a acreditar. De algum modo, ele tem razão. É
conveniente demais me defender justo agora. Eu deveria tê-lo procurado
antes. Bem antes! Marie, sua estúpida!
Emilien me deu espaço e tempo quando precisei. Agora ele precisa do
mesmo. Então vou respeitar seu momento de não me ouvir, de duvidar, de
sentir raiva, porque é justo depois do que fiz a ele. Porque eu agi igual. Não
digo nada, sequer me movo. Seus olhos se desviam de novo de mim, ele
molha os lábios, como se criando coragem para me deixar.
— Eu te magoei — retoma, quase inaudível. — E você me magoou.
Estamos quites.
Abro um leve sorriso.
— Ainda não. Para estarmos quites, falta você me perdoar.
Ele me encara, pego pela minha resposta.
— Não sei se isso vai acontecer — murmura, deixando-me sozinha
em seguida.
EMILIEN
— Não sei por qual razão ainda me surpreendo com sua beleza… —
Nicole pronuncia, adentrando o closet do meu quarto. Estou de frente para o
espelho, terminando de ajeitar o tuxedo vinho no meu corpo.
Hoje, a noite é especial. A edição da Intéressant sobre a Revolução
Francesa já está nas bancas, o que significa que teremos o coquetel de
lançamento. Eu preferia ficar em casa, trabalhando, dormindo ou fazendo
qualquer outra coisa, mas minha irmã me convenceu a ir, sob a alegação de
que preciso me divertir.
— Porque você fica bonito de qualquer maneira — completa,
aproximando-se de mim e ficando às minhas costas. Ela também está muito
bonita dentro de um vestido azul-turquesa, os cabelos trançados de lado e
maquiada. — Todo arrumado assim só para ela? — provoca, virando-me em
sua direção e arrumando a gola da camisa e a lapela do paletó.
Nicole se refere a Marie. Embora não esteja mais trabalhando na
redação, estará presente no evento porque contribuiu com uma matéria, e
minha irmã acha que eu não sei que sua insistência para eu ir é só um dos
seus modos de me aproximar dela.
— Estou me arrumando porque preciso me arrumar — falo, mas lá no
fundo, de um jeito até inconsciente, devo ter mesmo pensado em ficar bem
para ela.
— Sei — ma petite soeur debocha.
Reviro os olhos, não querendo admitir que provavelmente está certa.
Já tem algumas semanas que nos encontramos na cafeteria de Dousseau e
tivemos aquele desastre de conversa. Quando recebi sua mensagem, fiquei
muito esperançoso de que fosse para nos entendermos. E era. Mas me deixou
profundamente magoado o fato de ela ter me procurado só porque Elizabeth
tirou toda a imagem ruim que fez de mim. Se minha mãe não tivesse a
procurado, Marie teria tido a intenção de sermos um casal de novo? Ela
insistiu que sim, mas tenho minhas dúvidas.
— Tem visto a mamãe? — indago, voltando para o quarto.
— Sim. Maurice achou melhor recomendá-la a um terapeuta com
experiência em narcisismo. Mamãe já fez umas duas sessões com o novo
psicólogo.
— Bom — digo apenas. Finalmente Elizabeth aceitou um
acompanhamento profissional. Ela se mantém longe de mim, me liga uma ou
duas vezes na semana, pergunta como estou e só. É melhor assim por
enquanto. Maurice aconselhou o mesmo.
— Estava me esquecendo — Nicole pronuncia, pegando sua bolsa em
cima da minha cama e esticando-me um envelope branco. — A portaria pediu
para te entregar.
Não evito um leve sorriso. Já sei do que se trata. Pego o envelope e
retiro uma fotografia de lá de dentro. Meu corpo todo estremece na mesma
hora. Como eu fiz meses atrás, Marie tem me enviado algumas fotos com
mensagens. Cada imagem representa algo que ela sente falta em mim, em nós
ou no nosso relacionamento. Já tem algum tempo que recebo as cartas, talvez
cerca de quatro semanas, e já acumulei algo em torno de vinte fotos. A
imagem de hoje mexe com meu âmago e com todos os meus desejos,
alimentando a saudade insana que sinto dessa mulher.
É uma foto de si mesma. Está de costas, frente a uma janela, cabelos
soltos, rosto levemente virado para a direita, sob a penumbra. Está nua, mas
não é nada explícito. A fotografia pegou por completo suas costas despidas e
parou pouco abaixo da cintura, dando ao expectador uma visão limitada da
sua bunda, mas que abre portas à imaginação.
Puta. Que. Pariu.
É sexy demais.
Viro a fotografia com cuidado e leio a mensagem de hoje:

“ Sente falta de tocar no meu corpo como eu sinto falta de ser tocada e de te
tocar?
Quero tanto fazer amor com você. Tenho saudades. Com carinho,
Marie.”

— Cara, ela está decidida — Nicole pronuncia, dando uma risadinha e


olhando por cima do meu ombro. — Por que não a perdoa de uma vez?
Suspiro e levo a fotografia até o painel de inox, grudando-a com o
auxílio de um imã junto às demais. Tem todas as fotos que Marie me enviou
desde então e algumas que tiramos antes de nos separarmos. Mesmo que eu
quisesse me desfazer dessas lembranças, não conseguiria.
— Emilien… Olha só para você. Está tão óbvio de que Marie é a
mulher da sua vida. Pare de ser orgulhoso. Ela já não demonstrou que te quer
de volta?
Abaixo o olhar por um instante.
— Já — respondo, afastando-me do mural e sentando-me na cama.
Minha irmã se põe do meu lado e pega na minha mão.
— Por que tanto ressentimento?
— Porque ela… — Não sei o que responder. — Não consigo explicar,
Nic. Mas me magoou ela ter me procurado só depois que mamãe contou o
que de fato aconteceu. Esperava que Marie tivesse confiado em mim,
acreditado que eu estava sob controle e jamais ia machucá-la. Se tivesse me
procurado com essas intenções, estaríamos juntos e eu teria dito a verdade.
— Já tentou compreender o lado dela? — indaga. — Ela sentiu medo,
Emil. Sabe quantas mulheres morrem nas mãos de homens violentos?
Expresso uma carranca com essa última frase. Estou bem ciente disso,
mas já não tinha demonstrado o suficiente que eu não era violento? O que eu
achava que tinha acontecido no meu passado foi um erro que vinha
consertando e evitando repetir. Marie deveria ter me dado um voto de
confiança. Estivemos juntos por mais de um ano, em algum momento
demonstrei qualquer indício violento? Não.
Tudo bem, eu aceitei que ela precisava de tempo, de espaço, e seu
medo era compreensível. Ainda assim, deveria ter considerado o todo, não
apenas uma parte da história.
— Esqueça isso — profiro, beijando sua testa e preferindo não
continuar abordando esse assunto. Sem lhe dar tempo de resposta, me levanto
e a puxo para junto de mim. — Vem, temos um coquetel para irmos.

Traidora.
Deixou-me sozinho e foi zanzar por aí com Lorraine. Tudo bem, ela
me convidou para virmos juntos, mas já vim segurando vela o caminho todo.
Não vou competir a atenção de Nicole com a noiva, mas se tivesse me dito
que teria a trazido, eu não viria. Odeio segurar vela.
Caminho por entre a multidão. A mansão Dupont está cheia, cerca de
cem convidados, e me desvio dos corpos como posso, segurando firme uma
taça de champanhe. Encontro alguns conhecidos com quem passo alguns
minutos conversando. Ao menos, me distrai. Como alguns petiscos e bebo
água para me manter hidratado.
Encontro-me com Héron, que me cumprimenta calorosamente e diz
estar feliz por eu ter vindo.
— Você e Marie…? — pergunta, com cuidado.
Apenas balanço a cabeça em negativo e observo ao redor. Desde que
cheguei, ainda não a vi. Sinceramente, não consigo me decidir se isso é bom
ou ruim. Poirier deseja que a gente se entenda e diz torcer pela nossa relação.
Apenas ofereço um sorriso de agradecimento e digo que vou cumprimentar
um outro conhecido que avisto perto dos jardins, o que é uma tremenda
mentira. Faço isso apenas para escapar de um momento meio constrangedor
com meu editor-executivo.
Estou chegando na área externa para inspirar um pouco do ar noturno
quando uma mão firme segura meu punho. Viro-me e me deparo com Nicole
levemente assustada. Meu corpo fica em alerta no mesmo instante.
— Me encontra na suíte principal em cinco minutos? — pede,
completamente alarmada.
— O que aconteceu? — Estou preocupado. Que raios houve para
deixá-la nesse estado?
— Te explico depois. Me encontra na suíte principal em cinco
minutos, por favor! — Seu pedido é quase um grito esganiçado.
— Está bem! — concordo, assustado.
Os próximos cinco minutos são os mais longos da minha vida.
Quando vence o tempo que Nicole impôs, vou ao seu encontro, tentando não
alarmar os convidados. Saio calmamente, apesar de por dentro estar
apavorado, e, quando termino os degraus, corro como um louco pelo corredor
vazio porque essa parte da mansão não está acessível. Entro na suíte em um
rompante, ofegante.
— Nicole?! — chamo-a, a porta batendo atrás de mim, mas um
segundo mais tarde, noto que está tudo quieto e escuro. Acendo as luzes e
vejo o quarto vazio.
Mas que diabos…
A imagem a minha frente me deixa confuso. Há um balde com gelo,
duas taças e champanhe em cima da cama delicadamente arrumada com
lençóis, fronhas e edredons brancos. Há algumas pétalas de rosas espalhadas
pelo local, o ambiente está aromatizado e tem algumas caixas de bombom
junto da bebida.
Estou para virar nos calcanhares e procurar pela minha irmã para que
me explique que porra está acontecendo aqui, mas a porta se abre de novo,
trazendo para dentro uma mulher exclamando:
— O que quer me mostrar, Nicole?
Ela se vira um segundo depois, os olhos arregalando ao me ver.
— Só vão sair daí quando se entenderem — minha irmã fala, enfiando
a cabeça por entre a fresta da porta um instante antes de fechá-la. Ouço a
chave virar na fechadura. — Tem camisinha na gaveta do criado-mudo, caso
precisem — informa, sua voz saindo abafada e seguida de uma risadinha.
Levo um bocado de tempo para notar que Nicole nos prendeu dentro
do quarto. Quando noto, corro até a porta e a testo, batendo contra a madeira
e chamando-a para que venha aqui agora mesmo!
Marie se junta a mim para chamar pela desgraçada da minha irmã,
mas é igual a nada. Estamos mesmo presos um com o outro aqui dentro.
Engulo em seco e me distancio alguns passos. Ao me virar para ela, o ar para
de circular nos meus pulmões. Ela está exuberante em um vestido preto e
longo. Toda a parte de cima é feita em renda e tule, em uma trama intricada
de fios cor de areia que descem pelas laterais da sua coxa até quase o meio da
vestimenta. Nas barras, a renda no mesmo tom de areia adorna a calda de
sereia.
— Não tenho nada a ver com isso — Marie se defende, encostando-se
na porta.
Acho engraçado seu posicionamento.
— Eu sei. Isso tudo é muito a cara da Nicole — falo, virando-me para
a champanhe. Estouro a garrafa e sirvo duas taças. Entrego uma a Marie. Ela
resiste um pouco, mas aceita.
— Isso não era para abrirmos caso nos resolvêssemos? — pergunta.
Dou de ombros e me sento na cama, pegando uma pétala de rosa e rindo
baixinho. Mon Dieu, em que momento Nicole foi promovida a cupido
reconciliador?
— Era — respondo, abrindo a caixa de bombons. Pego um e entrego
para Marie. Ela balança a cabeça em negativo, se aproxima, pega o chocolate
e se senta do meu lado. — Aliás, gostei da foto de hoje — murmuro, virando-
me lentamente em sua direção.
Seus olhos tomam um brilho diferente após dizer isso.
— Não sou tão talentosa quanto você, mas o importante é a intenção,
não é?
Não respondo, mas admito mentalmente que a imagem ficou boa.
Minutos inteiros se passam e nos mantemos em silêncio, tomando a
champanhe e comendo o bombom. De repente, ela me toca na mão,
chamando minha atenção. Olho-a, sentindo todo o meu interior estremecer
com esse contato. Ela faz tanta falta nos meus dias, na minha cama, na minha
vida.
— Desculpe — pede com um murmuro e segue acariciando-me. —
Mas estou com saudades da sua pele… do seu calor, do seu toque… — Como
se percebesse que está cometendo um erro, cessa o contato rapidamente e
desvia o olhar.
Guiado pelo meu instinto mais primitivo, ergo a mão direita e acaricio
seu pescoço. O toque envia uma onda de excitação extrema para entre minhas
pernas, principalmente quando ela geme baixinho e suspira, fechando os
olhos. Resvalo meus dedos para de encontro a sua nuca e a puxo para perto
da minha boca, esquecendo-me da minha mágoa e dos nossos
desentendimentos.
Meu coração bate acelerado e minha respiração falha quando Marie
abre os olhos e separa ligeiramente os lábios, como se aspirasse um beijo
meu. Falta tão pouco para eu ceder, para esquecer completamente de todo
mal que nos rondou, deitá-la nessa cama, montar em seus quadris e amá-la do
jeito que nós dois merecemos.
— Jure para mim — peço, vencendo vagarosamente a pequena
distância de nossas bocas. — Jure que não me procurou só porque descobriu
que nunca fui uma pessoa ruim.
Ela resfolega.
— Je jure, Emilien — responde, seus olhos deslizando para minha
boca. — Quando te mandei a mensagem te convidando para um café, já tinha
intenção de nos entendermos. Eu ainda não sabia… Sua mãe apareceu meia
hora depois e me contou. — Marie pisca algumas vezes, evitando as
lágrimas. — S’il te plaît, crois moi et pardonne moi. — “Por favor, acredite
em mim e me perdoe”.
Estou tão cansado. Cansado mesmo. Passamos por muita coisa juntos.
Levei algum tempo para reconquistá-la, depois de nos assumirmos mamãe
nos infernizou, tinha o meu “segredo”, a pressão dela de querer que eu me
abrisse, o que nos levou a rompermos com menos de um mês de namoro. Por
fim, íamos nos entender e tudo pareceu desandar novamente. Neste momento,
tudo está esclarecido. Meu segredo que nunca foi meu já não é uma ameaça,
nem minha mãe, nem Marjorie, nem ninguém. O único que está ameaçando
minha felicidade ao lado dessa mulher sou eu mesmo, sendo teimoso e
orgulhoso. Ela me perdoou meses atrás depois que a magoei. Por que não
posso fazer o mesmo? Por que não esquecer o passado, todas as nossas
desavenças, as mágoas, a falta de confiança? Por que não simplesmente
recomeçar? Sem segredos sombrios, sem mãe narcisista nos atrapalhando. Eu
lutei por ela quando havia pedras no caminho, vou mesmo desistir justo
agora, depois que a tempestade já passou?
— Je te pardonne — murmuro em sua boca e a tomo em um beijo
forte, repleto de desejo, saudade e amor.
Imediatamente, ela me agarra pela nuca, puxando-me mais para si,
num ato completamente desesperado. Deixo nossas taças de champanhe
sobre o criado-mudo e volto para seus lábios. Fico em pé e a trago junto,
colocando suas costas no meu peito.
— Je t’aime — diz quando coloco seu cabelo de lado e desço o zíper
escondido pela costura até na altura da sua cintura. Abaixo uma alça e depois
a outra, até despi-la e a peça cair aos seus pés.
— Je t’aime — respondo, depositando um beijo no seu ombro. Marie
geme ao meu toque, que sobe para seu pescoço e a provoca ali. Encosto
minha ereção na sua bunda, minhas mãos abraçando seus seios e meus lábios
dedicando-se a deixar uma trilha de beijos por todo o seu pescoço e ombros.
— Eu te amo e vou te amar sempre.
Ela se vira para mim e sorri, abraçando-me em seguida e escondendo
o rosto contra meu tórax. Marie inspira meu cheiro profundamente antes de
se afastar e começar a tirar minha roupa. Quando estou só de cueca, eu a
deito na cama, as pétalas grudando no seu corpo. Ajoelho-me no colchão e
abro bem suas pernas, admirando seu sexo debaixo da calcinha preta. Meu
pau lateja tanto que chega a doer. Como senti falta de me enterrar nela…
Toco sua boceta por cima do tecido, e ela se contorce e geme, separando mais
as pernas.
— Vamos mesmo trepar aqui, quando há uma festa de gala lá
embaixo?
— Chérie — respondo, abaixando sua calcinha até nos calcanhares
—, estou tão louco de saudade de você que te comeria inclusive na frente
daquelas pessoas.
Ela dá uma risadinha e morde o lábio inferior. Não cesso nosso
contato visual quando direciono minha boca até sua boceta e a sugo sem
delicadeza, passando a língua por toda sua extensão e dando uma atenção
merecida no seu feixe de nervos tanto com meu polegar quanto com a boca.
Marie se afunda no colchão e agarra meus cabelos, apertando minhas
têmporas com os joelhos.
— Eu morreria sem me esquecer do gosto da sua boceta, ma belle —
cicio, colocando um dedo dentro dela. — Sempre tão molhada, tão saborosa,
tão fácil para receber meu pau.
— Emilien… — implora, contorcendo-se cada vez mais. — Te quero
tanto.
Sorrio pelo canto da boca quando uma ideia surge na minha cabeça.
Trago-a para mim e a levo até o banheiro. Nós dois expressamos surpresa ao
notarmos algumas velas acesas espalhadas no ambiente, sais de banho,
roupões, toalhas e bombons sobre a bancada da pia.
Marie me mostra um óleo lubrificante para sexo anal que Nicole
deixou aqui. Dou uma risada exagerada, perguntando-me se minha irmã
realmente existe. Isso chega a ser constrangedor.
— Deveríamos usar — sugere, passando a língua pelo lábio inferior e
derramando um pouco por entre seus seios. Sua pele de ébano brilha na
mesma hora, fazendo meu cacete ficar ainda mais duro.
Meio desesperado, me aproximo e a beijo, escorregando meu dedo
pelo rastro do óleo até chegar à sua entrada e penetrá-la novamente. Um
gemido preenche minha garganta.
— Entre na banheira — ordeno.
— Está vazia — constata.
— Por enquanto. — E sorrio. Ela faz o que eu mando. Coloco suas
pernas uma em cada lado da borda da banheira que fica no meio do ambiente,
os pés pendidos no lado de fora, deixando-a toda exposta. — Puta que pariu.
Que visão esplêndida a de você aberta para mim, ma jolie.
Marie fecha os olhos e geme ao som das minhas palavras sujas.
Sento-me na borda, mantendo-me fora, e pego a ducha de mão. Ela me olha
quando aciono o jato quente e molho seus pés. Meus olhos não desgrudam
dos seus enquanto vou subindo o esguicho vagarosamente. Ela geme e
resfolega de um modo alucinante, já conhecendo minhas pretensões. Quando
a água atinge seu clitóris sensível, solta um grito escandaloso, suas pernas
abertas tremem e a cabeça vai para trás. Para intensificar o prazer, coloco
dois dedos dentro dela e a fodo assim. Agarrando-se com firmeza às bordas
da banheira, seus gemidos são adoráveis e deliciosos. Porra, estou quase
batendo uma e gozando só de ver essa imagem maravilhosa.
— Emil… — geme meu nome de novo, os quadris dando leves
solavancos causados pelo prazer da ducha no seu ponto sensível e meus
dedos a comendo. — Isso… oh, sim. Você é tão gostoso. — Então,
exatamente um minuto mais tarde, ela goza. Eu deveria ter eternizado seu
rosto neste momento com uma fotografia maravilhosa. Talvez eu o faça em
uma outra ocasião.
Acaricio sua boceta suavemente e beijo sua boca com a mesma
intensidade enquanto se recupera do orgasmo.
— Fique em pé na outra ponta — pede, ainda ofegante.
Ergo uma sobrancelha, curioso com sua sentença, e a atendo.
Mudando de posição, vem para mim, de quatro. Sem que eu espere, ela me
põe todo em sua boca, indo até o fundo da garganta e voltando em uma
sucção perfeita.
— Porra. — O gemido escapa de mim, incontrolável e alto.
Ela me chupa forte, passando a língua em círculos pela cabeça do meu
pau e depois lambendo-me como se eu fosse um picolé. Aperto os olhos e
tento me segurar para não esporrar agora mesmo. Marie se deita na banheira e
joga a cabeça toda para trás, olhando-me de ponta-cabeça. Caralho. Só a
imagem me deixa ainda mais duro. E, assim, eu me aproximo e fodo sua boca
de novo, conseguindo alcançar um ponto na sua garganta que achei ser
impossível. Movo-me devagar para não a engasgar, gemendo entrecortado
conforme sou engolido por essa boca gulosa. Marie abre as pernas de novo,
colocando-as da mesma maneira que as dispus antes; a posição me permite
receber um boquete e tocar seu clitóris ao mesmo tempo.
Decido que preciso fodê-la. Saio de dentro da sua boca e ponho a
banheira para encher. Jogo alguns sais de banho e sabonete líquido na água
ao passo que ela me olha atentamente, de um jeito bem safado, enquanto a
água vai ganhando níveis. Minha imaginação já idealiza essa mulher de
quatro, água e sabão rodeando sua cintura e espirrando para o piso porque a
como com força. Enquanto esperamos, ela se toca e eu bato uma, um
gemendo para o outro. Finalmente, posso imergir na água e colocá-la de
joelhos.
Encaixo meu pau na entrada da sua boceta e me preparo antes de
penetrá-la. Quando me sinto dentro dela de novo depois de tanto tempo, a
sensação é a mesma de ter ido para o Céu. Aperto sua cintura e me movo
devagar, ainda assimilando que estou comendo essa mulher de novo, que vou
comer para o resto dos meus dias.
— Casa comigo — peço, aumentando o ritmo. Fico ainda mais duro
quando a imagem que idealizei segundos atrás se forma: Marie de quatro para
mim, toda molhada e ensaboada. Puta merda de tesão do caralho. Não escuto
sua resposta, concentro-me apenas em foder rápido e com força. — Porra,
Marie, casa comigo!
Em um segundo, não sei como, estou subjugado, debaixo dela. Ela se
senta com força no meu pau e me tira o fôlego.
— Eu caso — responde, subindo e descendo em uma cavalgada
intensa. Esticando os braços, pega o óleo lubrificante na pia ao lado, se
levanta, deixando-me frustrado e de pernas moles, e joga pelo corpo,
começando no colo. Inclinando-se para frente, espalha o produto nas costas e
na bunda. Perco o ar só de pensar que ela vai… Não consigo terminar de
raciocinar. Vagarosamente, ela já está encaixando-me na sua entrada apertada
que nunca tive acesso até hoje.
Meus dentes rangem de prazer, meu pau dói de tão duro que estou.
Aos poucos, Marie me acomoda dentro dela e sobe e desce em mim bem
lentamente, gemendo de forma despudorada ao passo que se acostuma
comigo.
— Se estiver doendo… — começo a avisar.
— Não está… — responde, aumentando a velocidade da cavalgada.
— Na verdade… Está muito bom. Está tão… — Fecha os olhos e morde o
lábio. — Me come, Emil…
Meu polegar voa para seu clitóris e o toco furiosamente enquanto bato
meu quadril contra o dela. O som dos nossos gemidos em uníssono é a
sinfonia mais linda que ouvi na vida. Cinco minutos depois, nós dois
gozamos juntos, nossos corpos trêmulos, as vozes esganiçadas, os gritos altos
de prazer, nossa conexão esplêndida, o orgasmo estupendo rasgando-nos de
ponta a ponta.
É tão bom gozar com ela.
Marie se deita sobre meu tórax, recuperando o fôlego. Abraço-a forte
contra mim e deixo um beijo cândido no seu rosto molhado. Ficamos assim
por minutos inteiros, curtindo a água quente e a presença um do outro.
Nicole seja louvada.
MARIE
— A água está esfriando — Emil sussurra ao pé do meu ouvido, seus
braços fortes contornando minha cintura. Sorrio e deito minha cabeça no seu
tórax, querendo ficar mais um pouquinho assim com ele. Passamos algumas
semanas separados, mas finalmente nos entendemos.
Devemos muito isso a Nicole. Apesar da sua boa intenção, vou
agradecê-la e ao mesmo tempo adverti-la. Onde já se viu me deixar presa
com seu irmão em um quarto todo romanticamente arrumado?
— Será que notaram nossa falta? — pergunto, referindo-me aos
convidados do coquetel de lançamento, lá embaixo.
Emilien beija atrás da minha orelha.
— Provavelmente.
Rimos juntos ao imaginar o constrangimento que será nos reunirmos
novamente na festa depois de mais de uma hora “sumidos”. Levanto-me, a
água esparramando pelo piso do banheiro, e me enrolo em um dos roupões.
Entrego outro a Emilien, que faz o mesmo. No quarto, nos servimos de mais
uma taça de champanhe e comemos o restante dos bombons. Ligo a televisão
para fazer algum barulho enquanto nos vestimos novamente para voltarmos
para a festa.
Uma programação qualquer é interrompida por um plantão de
notícias.
— Emilien — chamo-o, assustada. Ele está no banheiro fazendo sabe-
se lá o quê. — Venha ver!
Ele aparece um segundo depois com uma toalha secando os cabelos.
Aponto para a televisão. O repórter noticia uma catástrofe natural em
Moçambique, em várias partes do país, mas o foco é na cidade de Beira, que
foi a mais atingida, enquanto um helicóptero sobrevoa o local e filma
imagens estarrecedoras de como a cidade ficou após a passagem de um
ciclone horas antes.
— Mon Dieu! — exclama, aproximando-se e aumentando o som da
televisão.
Cinco minutos depois, quando a reportagem acaba, afirmando sobre a
situação crítica da cidade, Emilien pega o celular e faz uma ligação pedindo
para prepararem um jatinho particular para a meia-noite. Ao desligar, penso
em perguntar para que ele quer um jatinho, mas não tenho tempo, pois
profere:
— Arrume as malas e depressa.
— Para onde vamos? — pergunto, vendo-o terminar de se vestir
rapidamente.
Ele me olha por um breve instante e responde:
— Ajudar aquelas pessoas o tanto quanto pudermos.

Noventa por cento da cidade foi devastada pelo ciclone. A paisagem


de calamidade é assustadora. Alagamentos, árvores caídas ou arrancadas,
lama para todo lado, ruas destruídas, casas aniquiladas. Sem contar os
feridos, os mortos e os sobreviventes em situações de extrema necessidade do
básico: água potável, comida, roupas e abrigo.
Saímos à meia-noite naquela mesma noite do coquetel, às pressas, e
pousamos no aeroporto Internacional da Beira perto das duas da tarde. Como
o fuso-horário entre Paris e Beira é o mesmo, não sentimos tanto o jet lag.
Por esse motivo, Emilien mal pousou — estarrecendo-se por ver parte do
aeroporto deteriorado — e já se reuniu com alguns empresários locais, ONGs
e autoridades (todas contatadas durante a viagem) para a mobilização de
fundos para ajudar na infraestrutura da cidade e no atendimento às vítimas
sobreviventes.
Mais tarde no mesmo dia, ele anunciou uma doação do grupo Dupont
Investimentos e Lacroix Inc. que, juntas, somam uma quantia de quinhentos
milhões de dólares para serem repassadas às cidades atingidas. Até as dez da
noite, Emil não parou um segundo, atendendo e fazendo ligações, traçando
planos para levantar mais dinheiro, reunindo-se com autoridades e figuras
importantes e visitando algumas partes da cidade para conhecer de perto a
situação. Nós nos hospedamos em um hotel localizado em um ponto não tão
atingindo, mas Emilien mal dorme.
Quatro dias depois de chegarmos, às seis da manhã, ele já está em pé
novamente, tomando um desjejum muito rápido, e logo seguimos outra vez
para nos reunirmos com demais autoridades e empresários. Perto de onze
horas, Emil vai para outras partes da cidade junto com o presidente de uma
das ONGs com a qual a Dupont Investimentos firmou aliança para
analisarmos os estragos.
A paisagem é de cortar o coração. Os habitantes estão em uma brigo
improvisado no meio do caos, tantos outros tentam recuperar seus pertences
no meio dos destroços, os bombeiros trabalham arduamente em vários pontos
para localizar corpos e sobreviventes.
O presidente da ONG está falando algo sobre as doações de
alimentos, remédios e roupas que chegarão de todo o lugar do mundo quando
Emil ergue a mão vagarosamente, pedindo um segundo. Parece concentrado
na paisagem à sua frente, os olhos vasculhando atentamente o local.
— Emil, o que foi? — sussurro.
— Espere… — pede, no mesmo tom.
De repente, o homem sai em disparada, correndo em direção aos
destroços de uma casa cem metros à frente.
— Emilien! — grito, vendo-o avançar rapidamente em direção ao
ponto que almeja. Ele se ajoelha no chão barroso, sujando a calça, camisa e o
rosto, e começa uma desesperada e árdua tarefa de retirar a estrutura do que
um dia foi um telhado. Corro até ele, sem entender o que está fazendo e,
quando estou me aproximando, compreendo sua atitude.
Há uma criança chorando sob os escombros!
— Ajuda! — grita, jogando uma viga despedaça para o lado. Eu faço
minha parte, retirando o quanto posso dos pedaços de concreto ao redor. —
Tem uma criança viva aqui! Chamem os bombeiros!
Algumas pessoas ao redor nos ajudam. É uma menina. Sua roupa está
em farrapos, pele machucada, corpo todo sujo e magrinho, lábios brancos. A
criança parece balbuciar entre consciência e inconsciência. Emil a toma em
seus braços, com cuidado enquanto diz:
— Ei, pegamos você. Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem.
A imagem dele distanciando-se às pressas e indo de encontro a um
bombeiro que vem na direção contrária para prestar os primeiros socorros é
algo que jamais sairá da minha mente.

Emilien e eu voltamos para o hotel apenas para trocarmos de roupa.


Ele decidiu ficar em um hospital improvisado junto da pequena menina, que
descobrimos que se chama Ayanna e tem cinco anos de idade, até ter notícias
de familiares. Ninguém aparece nos próximos dois dias, e sua identificação é
feita ainda no local por um dos moradores do abrigo que a reconheceu. Ela
tem pai, mãe e três irmãos, que continuam desaparecidos, segundo nossas
informações. A garotinha sofreu leves escoriações, ficou desnutrida por conta
dos quatro dias sem água e comida e tem o tornozelo luxado. Sua situação,
apesar de triste e deplorável, é surpreendente. De alguma forma, ela é um
milagre.
Mais uma semana se passa. Os pais e irmãos são localizados, mas
estão mortos. Emilien recebe a notícia e fica em um estado lastimável. Ele se
tranca no banheiro do hotel e fica lá por uma hora inteira, sem nem falar
comigo. Não sei exatamente o que desencadeou esta sua reação, mas respeito
o seu direito de sentir por uma menina de cinco anos de idade que perdeu a
família inteira para um desastre natural.
Quando está mais recuperado, deixa o banheiro e para bem no umbral,
olhando para baixo e molhando o lábio inferior.
— Vamos nos casar, não vamos? — indaga com um sussurro quase
inaudível.
Aproximo-me dele.
— Vamos — confirmo.
— Já pensou em ter filhos? — A pergunta me deixa confusa. Emilien
e eu nunca conversamos sobre filhos.
Circundo sua cintura e apoio a cabeça em seu tórax. Ele me envolve
em seu abraço e beija o alto da minha cabeça.
— Não sei, mon ange. Sou uma mulher de trinta e quatro anos que
ainda se dedica muito à carreira. Mas acredito que depois do casamento
podemos pensar a respeito. Por quê? Você quer filhos?
Ele fica em silêncio por alguns segundos.
— Podíamos adotar a Ayanna. — Entendo isso como um “sim, quero
filhos”, o que me deixa em um misto de surpresa e orgulho. Ele quer adotar a
pequena. — Se você topar. Me diz ao menos que podemos conversar sobre
isso.
Pondero por um segundo. Sempre fui bastante independente e nunca
pensei em filhos durante quase toda a vida. Meus estudos e minha carreira
sempre ocuparam um tempo precioso para que eu chegasse a pensar nisso.
Principalmente porque uma criança exige muito. Cuidados, carinhos,
alimentação, educação e tempo. De nada adianta encher um filho de coisas
materiais se não fornecer o básico e o essencial. Emilien é um homem
ocupado. Eu sou uma mulher ocupada. Teríamos tempo para os cuidados e
amor com uma criança?
— Emilien, precisamos pensar nisso. Sabe que criança demanda
tempo e cuidados? Não é como um cãozinho que você coloca ração, água e
leva para passear de vez em quando e está tudo bem.
— Sei disso, chérie. E, sinceramente, estou disposto a arcar com todas
as responsabilidades. Eu quero ficar com a Ayanna. Ainda assim, sei que a
decisão de adoção é algo que precisamos conversar e pensar com cuidado.
Então… depois de jantarmos, podemos falar sobre isso?
Abro um leve sorriso, deixo um beijo nos seus lábios doces e
confirmo. Emil sorri de volta, um sorriso repleto de esperança e emoção que
denuncia como esse homem realmente sabe o que quer.

Ayanna está melhor. Tem comido bem e bastante, o tornozelo não


sofreu nenhuma sequela com a luxação e ela poderá voltar a andar assim que
se recuperar. Ela é uma garotinha tímida que conversa muito pouco e é bem-
educada. Naturalmente, perguntou pelos pais e pelos irmãos. Com a ajuda de
um intérprete, tivemos de dar a triste notícia de que ela ficara órfã. A menina
se agarrou ao Emilien (uma pessoa que viu constantemente nos últimos quase
quinze dias) e chorou convulsivamente. O modo como ele a acalentou foi
muito paternal. Não sei se foi algo que despertou dentro dele depois que a
socorreu ou ele quem sempre teve esse instinto dentro de si, mas Emil
demonstrou que tem muito jeito com criança. Seria um ótimo pai.
Será, corrijo-me mentalmente.
Conversamos bastante durante esse tempo sobre a adoção. Com
minha própria aproximação da menina, acabei por criar um vínculo muito
forte com ela. Ver essa imagem agora, Emilien ninando-a no colo,
acalmando-a depois que recebeu a notícia de que seus pais faleceram, me
ajuda muito a, por fim, decidir.
Então eu me aproximo e me sento do outro lado da cama, que range
com meu peso.
— Ayanna, escute — digo, e o intérprete conosco traduz em tempo
real. — Eu e o tio Emilien estamos muito tristes com a perda do seu papai, da
sua mamãe e dos seus irmãozinhos. Sentimos muito. E gostaríamos de saber
se quer que nós cuidemos de você.
Emilien me olha na mesma hora, surpreso. Aos pouquinhos um
sorriso lindo e emocionado vai surgindo nele.
— Oui — ele prossegue, acariciando-a suavemente. — Se você
quiser, pode vir morar conosco, na França. É um país lindo… Moraria na
nossa casa, teria um quarto só para você, mas, acima de tudo, teria muito
amor e carinho.
A menina nos olha atentamente depois que o tradutor repassa a
mensagem. Seus olhinhos ficam levemente abatidos e indecisos.
— Tudo bem — Emil diz, beijando sua cabecinha. — Você precisa
pensar. Vamos ficar aqui por mais alguns dias, certo? Se decidir vir morar
com a gente, só pedir para nos avisar para fazermos tudo certinho e te
recebermos numa casa confortável.
Ayanna balança a cabeça em positivo e se deita no colo de Emil,
caindo no sono quando ele começa a contar uma história sobre uma menina
que tinha um nome que significava bela flor .
EMILIEN
Nós nos preparamos para recebê-la. Leva alguns meses antes que,
finalmente, Ayanna possa vir passar um tempo conosco para um período de
experiência e adaptação. Neste interim de espera, tomo algumas providências
necessárias para acomodá-la melhor. O primeiro passo foi deixar minha
cobertura e me instalar na mansão Dupont. A garota precisará de espaço e
quero dar o melhor para ela, para que se sinta confortável, livre e tenha um
ambiente amplo e agradável para o seu desenvolvimento.
O segundo passo foi pagar um bom professor para ensiná-la francês
enquanto aguardávamos pela liberação da sua fase de adaptação conosco. Da
mesma maneira, Marie e eu aprendemos um pouco de português, que
Bernardo nos ensinou, apesar de seu português ser brasileiro, e não
moçambicano. De toda maneira, nos ajudou a ter ao menos o básico para nos
comunicarmos com a pequena.
Marie foi às compras. Decorou o quarto dela, encheu-o de brinquedos,
livros, eletrônicos e roupas. Ficou sabendo que a cor preferida dela era
amarelo, então a decoração foi toda neste tom.
Nos dias que antecederam sua chegada, fiquei um poço de nervos a
ponto de não conseguir dormir. Toda a aflição, ansiedade e medo que estava
sentindo nos últimos meses foram embora no instante em que a buscamos no
aeroporto e pude abraçá-la. Aquele pequeno ser entre meus braços, meio
intimidada com meu tamanho e de como eu a abraçava, encolhida e tentando
balbuciar no meu idioma, trouxe mais luz à minha vida do que qualquer outra
coisa.
No primeiro dia, ela ficou encantada com o quarto que seria apenas
dela, os olhinhos brilharam quando fomos para a cozinha, onde Marie tinha
preparado uma porção de comidas — francesas e moçambicanas. Assistimos
filmes, comemos sorvete, contamos história; na primeira noite, Ayanna ficou
com medo de dormir sozinha, então a trouxemos para nossa cama.
Nossa comunicação ainda é meio falha, por causa dos idiomas, mas
temos nos esforçado. Bernardo esteve aqui nas últimas semanas e continuou
nos ajudando. A garotinha ficou encantada com Jean-Luc e se divertiu muito
com ele.
Os últimos vinte e um dias têm sido uma experiência incrível.
Diminuí consideravelmente meus compromissos e viagens para estar ao lado
de Ayanna. Cuidar dela, preparar o café da manhã, brincar no playground no
jardim, niná-la, contar histórias antes de dormir, nos reunirmos no sofá, com
um balde enorme de pipoca e assistirmos a várias animações… Nada disto
poderá um dia ser substituído na minha vida. Confesso que essa fase tem me
deixado com muito medo. Já me apeguei a ela, muito. Para mim, Ayanna já é
notre fille — nossa filha. Nunca fui muito religioso, mas já me peguei, em
alguns momentos, observando-a se entreter com alguma pintura ou atividade,
pedindo a Deus para não a tirar de mim, para que o juiz nos dê a guarda
definitiva dela.
— Emil… — Estou tomando o petit-déjeuner com Ayanna quando
minha noiva adentra a cozinha. Ergo meu olhar ao dela e a vejo entrando com
duas sacolas nas mãos. Põe sobre a mesa, ao lado da menina, e sorri. — Sua
mãe mandou trazer. É um presente. Vai aceitar?
Penso por um segundo, meus olhos fixos na sacola. Nossa
convivência melhorou muito, isso porque nos mantivemos longe. Mamãe
segue fazendo terapia com um psicólogo especialista em narcisismo e
continua respeitando meu espaço. De algum modo, ela sabe que nossa relação
jamais será a mesma. Ainda assim, demonstra algum interesse em mim e na
minha vida. Liga-me uma vez a cada quinze ou vinte dias, pergunta como
estou, pergunta da minha noiva, me conta alguma novidade — como estar
indo a um clube do livro —, e só. Isso tudo não dura mais que cinco minutos,
e encerramos a ligação. De início, como esperei que aconteceria, mamãe fez
cara quando disse que adotaria uma criança. Mas para mandar um presente
agora, deve estar se esforçando para isso. Ainda estou pensando se deixarei
minha filha ter convivência com ela.
— Tudo bem.
Com um sorriso, Marie desembrulha o pacote dentro da sacola. Tem
dois vestidos. Um é amarelo, todo rodado, cheios de babados e enfeites.
Ayanna fica feliz e eufórica. Agarra a peça e a abraça como se fosse a coisa
mais valiosa do mundo. Abro um leve sorriso, feliz pela felicidade simples
dela.
— A vovó quem dar? — pergunta, fazendo pequenas pausas e
conjugando errado o verbo. Marie a ajuda a pronunciar corretamente a frase.
— A vovó quem deu?
— Sim, mas outra vovó. A mamãe do tio Emilien.
Ayanna ainda não nos chama de papa ou maman, mas chama de vovó
a minha sogra. Ela se vira para mim, lentamente.
— Onde… — Pausa para se recordar da pronúncia correta. — Está
sua mamãe?
Suspiro e tento procurar uma resposta adequada.
— Nós nos vemos muito pouco, mon petit amour. — “Meu
amorzinho”.
— Ela pode vir aqui em casa?
Olho para Marie, que dá de ombros e se senta ao lado dela.
— Vamos marcar um dia, está bem? — Ayanna abana a cabeça em
positivo seguidas vezes, agarrando mais o vestido.
— E este? — Marie indaga, puxando o segundo vestido. É branco,
delicado e bastante simples. — É para uma ocasião bastante especial neste
sábado.
— É para o… — Ayanna me olha. Ajudo-a com a palavra:
— Casamento.
— … casamento da tia Nicole?
Minha irmã insistiu que queria a pequena como daminha de honra em
seu casamento. Tanto que adiou a cerimônia para isto e se unirá a Lorraine
em três dias.
— Sim. É lindo, não é?
— Achei que ela já tivesse experimentado o vestido do casamento —
aponto.
— Esse é para festa, Emil — Marie esclarece, beijando a bochecha de
Ayanna, que se agarra aos dois vestidos como se sua vida dependesse deles.
— Também tem algo para você — diz, olhando para mim.
Paro de comer meu croissant na mesma hora, pego pela surpresa.
— O quê?
Marie pega a segunda sacola, retira uma câmera fotográfica
profissional e a arrasta em minha direção.
— Minha mãe me deu isso? — indago, bastante incrédulo.
Minha noiva ri e abana a cabeça em positivo.
— Uau. Bem… — Fico sem jeito enquanto abro a embalagem. —
Preciso ligar e agradecer. — Retiro a câmera de dentro da caixa e a analiso
um instante. É uma Canon última geração. Não entendo muito bem o
propósito de Elizabeth em me presentear com isso, e não sei se me deixa feliz
ou me magoa. Continuo apaixonado por fotografia, mas isso se tornou apenas
um hobby em minha vida. Um hobby que tenho praticado pouco, devo
admitir. Há um pequeno bilhete escrito a punho. — “Emilien, espero ver em
breve uma linda sessão de fotos da minha neta capturada pela lente deste
singelo presente, que de nada adiantaria sem o talento nato que você tem para
fotografia. Não se esqueça de me enviar ao menos um retrato de Ayanna para
eu mandar fazer uma linda moldura. Sua mãe.” — Leio em voz alta.
Fico alguns segundos analisando o bilhete, o presente, as palavras
dela. Por motivos justificáveis, fico tentado a não acreditar nesta sinceridade,
mas depois me repreendo. Elizabeth está tentando.
— Sua mãe tem razão — Marie profere, puxando-me de volta à
realidade. Pisco duas vezes para afastar a vontade de chorar e sorrio. — Uma
sessão de fotos de Ayanna seria maravilhoso. Com esse vestidinho — ergue o
de cor amarela cheio de babados —, num ambiente todo florido, com bolhas
de sabão e dia ensolarado. O que acha, mon joli?
No mesmo instante, a ideia me agrada. Começo a pensar em vários
cenários que podemos montar aqui mesmo na mansão.
— Acho uma ótima ideia, ma belle. Quero fazer isso ainda hoje.

Marie põe o vestido amarelo em Ayanna e, junto dela, colhem


algumas plantas no jardim para adornarem os cabelos. Enquanto isso, faço o
que posso montando o cenário para a sessão. Encomendo muitos buquês de
flores, ajeitando-os em vasos e cestas, e monto todo aparato de iluminação.
Cerca de duas horas depois, os cliques começam a ser disparados. A primeira
bateria é feita apenas com minha filha, e minha noiva me auxilia no que
pode.
Ela brinca com bolhas de sabão, segura uma joaninha, se esconde
entre as flores, corre atrás de borboletas, deita-se sobre o banco cheio de
almofadas, assopra um dente-de-leão sentada na escada perto do alpendre.
Também faço algumas fotos mais naturais e espontâneas dela: o momento em
que ficou assustada com uma abelha, ou quando gargalhou por Marie dizer
algo engraçado, o modo como trançou as perninhas, apertada para ir ao
banheiro, o rostinho emburrado quando brinquei que não tomaríamos mais
sorvete, ou a alegria que trespassou seus olhos e lábios no instante em que
Marie chegou com um urso de pelúcia maior que ela; a maneira como
abraçou o brinquedo, então sua corrida em minha direção para me agradecer
e também me abraçar; sua futura mãe erguendo-a no ar e gargalhando junto.
Um segundo depois de pegar essa imagem, eu paro de fotografá-las e
apenas observo, sentindo uma emoção completamente diferente percorrer
todo meu corpo. Um nó se forma na minha garganta e. neste momento,
entendo que o sentimento é uma mistura de medo, aflição e alegria. Dou-me
conta de que minha vida jamais terá sentido sem elas. Volto a fotografar,
capturando cada movimento, cada instante, cada sorriso da minha futura
esposa, da minha filha. Minha família.
Depois dessa primeira bateria, fazemos uma pausa. Ayanna se
alimenta e descansa com um cochilo no sofá. Marie e eu ficamos na sala com
ela, velando seu sono, observando cada tracinho do seu rosto sereno. Meses
atrás, quando a conheci, seu semblante era sofrido. Tinha passado por um
desastre natural, ficara presa sob os escombros da sua casa por quatro dias e
perdera os pais e irmãos biológicos. Era natural que sua expressão fosse de
tristeza. Mas agora, parece mais serena. Sei que a perda da sua família será
algo que a marcará para a vida toda e, por mais feliz que seja conosco, a
tristeza ainda estará em alguma parte do seu ser mais profundo. A dor dar
perda não é algo que vai embora, você simplesmente aprende a conviver.
À tarde, iniciamos nossa segunda bateria de fotografias, que consiste
em fotos de Marie e Ayanna e, posteriormente, eu e Ayanna. A minha
preferida se torna a que estamos de costas, caminhando de mãos dadas, eu
olhando para ela, que está dando saltinhos alegres. No momento desta
fotografia, eu pensei como um ser tão pequeno, tão frágil, tão inocente
poderia me trazer tanta felicidade e sentido na vida. A última bateria, por fim,
são fotos de nós três juntos. Várias delas. Uma em que eu e Marie beijamos
nossa filha ao mesmo tempo, um de cada lado de suas bochechinhas. Eu a
colocarei em uma bela moldura e porei na minha mesinha de cabeceira.
Faço umas cinco fotos na máquina analógica e revelo no meu estúdio
improvisado, levando Ayanna comigo para me ajudar no processo.
Ao final do dia, a pequena está exausta e dorme na minha cama
depois de um banho quente e de forrar o estômago. Perto da meia-noite,
depois de muito velar seu descanso, levo-a para seu quarto. Quando retorno,
Marie está parada no meio do cômodo, trajando uma lingerie sexy demais e
segurando minha câmera.
— Que tal um ensaio mais sensual… monsieur Dupont? — sugere,
passando a língua pelos lábios carnudos. — Eu adoraria ser fotografada
enquanto você me fode.
Não preciso de mais nada para avançar sobre sua boca, beijá-la e
atender ao seu pedido.
EMILIEN
Meses depois
Eu me casei com a mulher mais linda do mundo, e não estou sendo
nem um pouco modesto. Contorno sua cintura assim que saímos do cartório
onde acabamos de firmar nossa união. Marie usa um vestido branco simples
na altura dos joelhos, os cabelos estão cacheados, preso por uma tiara, e, atrás
da orelha, prendeu uma rosa branca.
Beijo sua boca antes de entrarmos na limusine e pronuncio “minha
esposa” diversas vezes, como se eu quisesse ter certeza de que estamos
mesmo vivendo isso hoje, agora, aqui. O veículo nos leva até a Torre Eiffel.
São oito da noite e, semanas atrás, consegui fechá-la para um evento
particular esta noite. Subimos até o topo com o auxílio do guia, onde nossos
amigos já nos esperam: Nicole e sua esposa Lorraine, Héron e Isabelle, que
parecem que estão se entendendo, e Bernardo e Ann-Marie.
Já fizemos a cerimônia legal do nosso casamento, agora vem a
simbólica.
Seguro nas mãos da minha esposa e olho em seus olhos âmbar. Ela é
tão linda, meu Deus. Bernardo se coloca perto de nós, como o
“cerimonialista”. Improvisa algumas palavras e, dois minutos depois, pede
nossos votos. Confesso que não consegui escrever nada decente porque sou
mais de atos do que de palavras. Por isso, meu discurso é breve, simples, mas
todo sincero:
— Posso te fazer mil promessas, te prometer o mundo ou prometer te
fazer feliz para sempre. Posso prometer te amar até meu último dia ou jurar
nunca decepcionar você. Mas palavras não valem nada sem ações, Marie.
Palavras, o vento leva, mas atitudes eternizam e reforçam o amor. Sabe que
não sou o cara perfeito, daqueles dos livros que fazem declarações
românticas. Sou péssimo para esse tipo de coisa. Mas pode ter certeza, mon
ange, o que me faltar em palavras, compensarei em ações. A partir de hoje,
durante todos os dias, vou te provar o quanto te amo e o quanto sou grato pela
chance que nos deu.
Minha esposa sorri e aperta minha mão na sua.
— Emilien… Nossa história começou naquela noite em que te
conheci, na sua festa de gala. Éramos para ser um para o outro apenas mais
um caso, uma aventura sexual. Mas então você começou a entrar na minha
vida mais intensamente, começou a tomar conta dos meus pensamentos, a ter
mais significado para mim, a fazer meu coração bater mais rápido. De
repente, eu queria estar do seu lado mais tempo, sentia falta do seu toque, da
sua pele, da sua voz, do seu corpo. — Marie faz uma pausa breve, ergue
meus dedos e os beija. — Você surgiu para ser mais um homem na minha
vida, mas inesperadamente se tornou o homem da minha vida. Eu te amo,
chéri, e vou te amar para sempre.
A emoção toma conta dos meus olhos e do meu corpo.
— Com o poder a mim investido — Bernardo profere, brincalhão —
eu vos declaro casados. Pode…
Não o espero terminar de falar; puxo minha esposa para mim e lhe
dou um beijo profundo e lânguido. Nossos amigos assobiam, batem palmas e
jogam confetes brancos sobre nossas cabeças.
Sorrio em meio ao nosso beijo e acaricio seu rosto, dizendo seguidas
vezes que a amo.
— Podem trocar as alianças — Dousseau diz, jogando um olhar para
a esposa logo atrás. Ela aquiesce e se retira rapidamente.
— Onde ela está indo? — pergunto, meio confuso.
— Buscar nossas alianças — Marie responde, toda misteriosa.
Cinco minutos depois, Ann-Marie retorna na presença de uma
pequena criança que bem conheço, dentro de um vestidinho branco, tiara na
cabeça e rosa branca presa à orelha, imitando minha esposa. Meu coração
bate tão louco dentro do peito quando vejo Ayanna segurando uma cestinha
toda adornada, acomodando o par de alianças.
— Chéri — murmura, pescando minha atenção. — Ayanna, nossa
bela flor, está aqui não apenas para nos entregar as alianças, mas porque
oficialmente é nossa filha.
Pisco diversas vezes, assimilando as palavras dela. Já tem alguns
meses que demos entrada no pedido de adoção. Ayanna passou uma fase
conosco, em nossa casa, como forma de adaptação. Em Moçambique, nos
dias a mais que fiquei lá por sua causa, me agarrei demais a essa pequena
criança e nosso vínculo foi ainda mais intensificado pelas semanas que morou
conosco. Eu a amo com todo meu coração, não há dúvidas disso, e meus
sentimentos transbordam ao constatar que agora ela é minha. Minha filha. Ma
belle fleur.
Pego-a em meu colo e beijo seu rostinho. Ela sorri e gargalha,
apertando meu pescoço em um abraço sufocante.
— Je t'aime, papa — diz em seu francês com sotaque.
— Je t'aime, ma Ayanna, ma belle fleur — respondo, cheio de
emoção.
Marie se junta ao nosso abraço, beijando o rostinho da nossa filha, em
seguida me beijando também. Trocamos declarações de amor, selinhos
suaves e nossas alianças.
Nicole me entrega uma polaroide e murmura:
— Eternize esse momento.
Junto minha esposa e minha filha — minha família agora, tudo o que
eu tenho e parte de todo o homem que me esforçarei para ser —, nos
enquadro o máximo que consigo e bato a foto.
Nossos amigos mais uma vez aplaudem e assobiam, a brisa noturna e
fresca no alto da Torre soprando contra os cabelos das duas mulheres mais
importantes da minha vida.
Observo Marie e Ayanna olhando atentamente para a polaroide em
minhas mãos enquanto a foto vai aos poucos aparecendo. Minha esposa fala
baixinho com a pequena, algo sobre prestar bem atenção porque nós
apareceremos na imagem, como mágica. Ela está feliz, radiante,
transbordando felicidade e amor. Minha filha fica toda atenta, olhinhos
esbugalhados, mãozinhas inquietas e risadinhas.
Enquanto as observo, não tenho nenhuma dúvida de que sou o homem
mais sortudo do mundo por tê-las em minha vida.

FIM
PIERRE
Meu celular vibra dentro do meu bolso pela vigésima vez no dia, que
mal começou. Forço um sorriso para a paciente — uma menina de dezessete
anos, grávida — e prescrevo a medicação, tentando ignorar o maldito
telefone. Mesmo se pudesse, não atenderia.
— Não sei como vou contar isso à minha mãe — a adolescente diz,
enquanto assino a prescrição. — Quando ela chegar aqui, provavelmente
serei uma adolescente morta. Por que teve que ligar para ela, docteur
Laurent? — pergunta em tom magoado, como se o que fiz fosse o maior erro
da face da Terra.
— Você chegou sozinha essa madrugada, com dores de parto aos seis
meses de gestação, é menor de idade e seus pais não sabem da sua gravidez.
É o procedimento do hospital, Hellene — explico-me, arrancando a receita
médica e a entregando. — Terá alta assim que sua mãe chegar. Uma
enfermeira irá me avisar, e vamos conversar com ela, eu e você, juntos. Se for
preciso, terão acompanhamento de uma assistente social. — Aproximo-me da
menina, acariciando seus cabelos morenos. Sorrio e praguejo pelo celular que
torna a tocar. — Vai ficar tudo bem.
Hellene acena em positivo, apesar da expressão contrariada.
Saco o celular do meu bolso, irritado de como vibra. O nome pisca
insistentemente na tela. Suspiro e deslizo o dedo pelo botão vermelho,
ignorando sua chamada. A última coisa de que preciso é de ser atazanado no
meu plantão. Caminho rapidamente até as salas de descanso e agradeço por
encontrar uma vazia. Preciso de um cochilo. Fecho a porta e me recosto na
madeira, afagando o rosto. O maldito volta a tocar. Irado, arranco a bateria e
o jogo na mesinha de cabeceira do beliche. No meio da escuridão, consigo
ouvir meu coração descompassado, minha respiração ruidosa. O plantão que
já está virando quarenta e oito horas cobra seu preço sobre meu corpo e
mente. Nunca mais prometo cobrir turnos que não são meus.
Só mais algumas horas, Pierre, penso comigo, e poderá ir embora.
Deito-me na cama debaixo, debruço, agradecendo o momento que
posso fechar meus olhos. Meu cochilo não dura muito. O bip no meu bolso
me chama ao dever. Levanto-me rapidamente e saio da salinha, encontrando-
me com uma enfermeira.
— Emergência chegando, doutor Laurent — informa, andando
rapidamente.
— Não estou cobrindo a emergência — rebato, meio mal-humorado. —
É Menard quem está lá.
— O plantão dela acabou há meia hora, mas o plantonista da vez ainda
não chegou.
Tento me recordar quem está na escala. Morin. Sempre ele. Ainda não
sei por que a administração não o afastou de suas funções. Sempre chega
atrasado e deixa os plantões pela metade para trepar com enfermeiras ou
internas.
— Qual o caso? — pergunto, querendo me esquecer do irresponsável.
A enfermeira olha a prancheta em suas mãos, enquanto paro no
corredor para vestir luvas, máscara e vestimenta adequada.
— Juliette Gautier, vinte e oito anos. Foi encontrada espancada atrás de
uma cafeteria. Os paramédicos encontraram entre os pertences dela um
exame de farmácia. Positivo. Está grávida de oito semanas.
Olho imediatamente para a enfermeira, assustado com a informação.
Não tenho tempo de questionar se o que ouvi é realmente que uma mulher
grávida foi espancada, pois os paramédicos que a socorreram entram
correndo, empurrando-a na maca.
Decido esquecer isso por ora e vou em direção à paciente, recebendo
todas as informações da moça: idade, gênero, pressão arterial, batimentos
cardíacos, principais pontos onde foi machucada e sua situação de gestante,
enquanto a minha equipe troca de lugar com os paramédicos.
Arrasto a maca, empregando certa velocidade, pois cada segundo é de
extrema importância para salvarmos a paciente. A moça tem hematomas por
todo corpo, principalmente no rosto, que está bem inchado, em especial a
face direita.
— Vamos para a ressonância magnética. Chamem o neurologista de
plantão! — ordeno, virando a maca em uma curva à esquerda. Internos,
médicos, residentes e enfermeiras vão abrindo caminho conforme avanço.
Ao olhar para baixo, vejo-a recobrando a consciência. Seus olhos
machucados e castanhos estão abatidos e confusos. Muito provavelmente está
perdida com tudo o que está acontecendo. Ela me olha fixamente,
provocando algo inexplicável dentro de mim. Parece tentar dizer alguma
coisa, mas os tubos que a auxiliam na respiração não permitem. Um
movimento débil dos seus dedos chama minha atenção. A moça está tentando
dizer alguma coisa. Por algum motivo, sorrio para ela e seguro sua mão, o
que a faz olhar para meu toque.
— Está tudo bem — acalento-a e só então me dou conta de que posso
simplesmente estar dando esperanças falsas a essa mulher. Ainda assim,
entendo o seu questionamento, a preocupação nos seus traços feridos. — Os
paramédicos encontraram um exame de farmácia na sua bolsa — falo, para
que saiba que faremos o possível por ela e pelo seu filho. — Vamos cuidar
muito bem de você e do seu bebê. Tudo bem?
Com dificuldade, ela acena em positivo.
— Doutor Pierre, os batimentos cardíacos dela estão caindo — uma das
enfermeiras diz.
Cravo meus olhos nela, que tornou a ficar inconsciente, enquanto ainda
corremos loucamente pelos corredores até a ressonância magnética.
Pergunto-me o que justificaria uma ação tão bárbara contra uma mulher, uma
mulher grávida. A enfermeira me chama de novo, informando-me o mesmo.
Passado o horror do momento, de atender uma paciente nessas condições,
volto ao meu modo normal e ministro uma medicação para regular seus
batimentos cardíacos.
JULIETTE
Cometi um erro terrível.
Só me dou conta disso quando rolo na cama e sinto seu corpo
masculino quente e nu roçar no meu. Abro os olhos e me deparo com ele já
acordado, a cabeça apoiada na mão direita, olhando-me com um leve sorriso.
Seus cabelos curtos e volumosos estão bem bagunçados, os olhos ainda
inchados de sono. Não posso negar que Antony Leclerc é um homem bonito,
com uma beleza particular. Os fios pretos têm alguns brancos, denunciando
que beira os quarenta anos.
Mas é um homem casado.
Meu Deus! Dormi com um homem casado.
Devo expressar algum tipo de arrependimento, porque ele franze as
grossas sobrancelhas e estica um indicador longo para me afagar a bochecha.
— Imagino o que está pensando — sussurra, sem deixar sua carícia no
meu rosto.
Pisco algumas vezes, ainda absorvendo essa situação toda. Um
sentimento insólito se instala no meu coração; não sei se é arrependimento ou
repulsa de mim mesma. Deve ser repulsa. Eu me deixei ser seduzida por ele,
pelo seu sorriso contagiante, pelas vezes em que apareceu na cafeteria,
transtornado, cheio de olheiras e cansado, dizendo que não aguentava mais o
casamento fracassado.
Eu o conheço já tem algum tempo. É um frequentador assíduo da
Avenue Coffee, a cafeteria que gerencio. Nossa “relação” sempre foi
estritamente profissional. Até alguns meses atrás, ainda o chamava pelo
sobrenome. Depois, pegamos algum nível de intimidade, o que é natural
quando se cria um vínculo de amizade com um cliente regular.
Certa noite, ele apareceu quando já estávamos fechando. Eu me
desatentei da planilha do caixa e ergui os olhos para me deparar com um
Antony abalado, de olhos abatidos, cabelos bagunçados e gravata
desgrenhada. Não parecia bêbado, apenas… perturbado. Ele se debruçou
sobre o balcão e me olhou com alguma súplica, como se estivesse pedindo
desculpas pela sua situação.
— Precisa de alguma coisa, Antony? — perguntei, preocupada.
Com um suspiro agoniado, lançou um olhar a uma das funcionárias que
fazia a higienização da máquina de expresso.
— Ficaria muito brava comigo se te pedisse um café? — E forçou um
sorriso. — Preciso mesmo de uma dose de cafeína.
Virei-me para a menina e a dispensei, juntamente dos demais
funcionários que ainda estavam ali. Quando saíram, fechei as portas duplas,
tranquei-as e coloquei a plaquinha de “fechado”. Voltei para atrás do balcão e
preparei o café dele. Servi-o e o observei sorvar lentamente a bebida quente.
— O que aconteceu? — Quis saber.
Antony deu outro suspiro agoniado.
— Discuti com minha esposa. É meu casamento. — Sua voz tinha o
tom de quem queria muito desabafar. — Estou infeliz nele, entende?
“Não, não entendo”, quis responder, “porque sou solteira”. Ao invés
disso, aconselhei:
— Por que não pede o divórcio? — Parecia o mais óbvio.
O homem balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Não é tão simples. Por ora, não posso pedir o divórcio.
Pensei em perguntar o porquê, mas Antony não deixou. Continuou
desabafando suas mágoas comigo, fazendo-me estender meu horário até mais
do que realmente estava acostumada. Falou-me coisas terríveis sobre a
esposa, sobre o ciúme exagerado dela, as histerias, as humilhações. Nem me
dei conta de como fiquei horrorizada com a imagem ruim que ele pintou da
mulher.
Ao final, tomou o resto do seu café, já frio, se levantou, pagou o
consumo e me deu vinte euros de gorjeta.
— Obrigado por ter me ouvido — disse, já na porta, virando-se para
mim, que o acompanhei para destrancá-la. — E desculpe pelo desabafo.
Precisava falar com alguém e você é a única amiga que tenho.
Abri um pequeno sorriso, estranhamente feliz pela sua confiança em
mim. É claro que Antony tem outros amigos. Ele vive vindo aqui com um
político e um jovem investidor. Talvez só precisasse que outro tipo de pessoa
o ouvisse. Foi o que fiz. Apenas ouvi, sem ousar aconselhá-lo novamente a se
separar depois da sua primeira negativa. Era um homem adulto, sabia o que
está fazendo. Além do mais, ainda não conhecia os motivos por não poder se
separar dela. Então, apenas ofereci meu ombro amigo e disse a mentira
universal que qualquer outra pessoa no meu lugar teria dito: “vai ficar tudo
bem”. Provavelmente não ia ficar tudo bem, mas era tudo o que tinha a
oferecer naquela noite.
Dias depois, Antony tornou a me procurar, trazendo-me um colar
simples, mas muito bonito, em sinal de agradecimento por tê-lo ouvido
algumas noites antes. Na hora, achei inadequado demais. Perguntei se tinha
se acertado com a esposa; ele me disse que não, que continuavam discutindo
com frequência.
Os dias foram passando, e Antony e eu fazíamos contato frequente. Ele
me enviava mensagens simples — bonjour, bonsoir, ou perguntava como
tinha sido meu dia. Por vezes, conversávamos sobre a situação do seu
casamento, o homem cada vez mais infeliz por ter se submetido a uma
relação que foi somente para agradar seu pai e seu sogro. Sem perceber, fui
criando uma simpatia, uma empatia muito forte por ele. Com a mesma
frequência, me enviava presentes singelos, principalmente depois que eu o
ouvia e tentava lhe dar algum conselho.
Ontem à noite, ele disse que está apaixonado por mim. Eu já o vi sofrer
tanto em um casamento falido, com uma mulher que, claramente, não dá o
devido valor ao homem ao seu lado, que pensei que ele merece uma pessoa
melhor. Movida por um sentimento incompreensível, eu o beijei.
E acabamos aqui.
Nossa primeira noite juntos.
Dormi com um homem casado.
— Você não está assustado com o que fizemos? — indago, puxando
mais o lençol para cobrir meu corpo.
Ele move a cabeça em negativo.
— Não. O que fizemos não foi errado. Foi para você?
— Você é casado, Antony.
— Com uma mulher que nunca me amou — aponta. — Com uma
mulher que já me magoou mais vezes do que sou capaz de contar.
Suspiro e viro na cama, pesando suas palavras. Se está tão infeliz, por
que simplesmente não se divorcia? Mesmo que seu casamento esteja em
crise, ainda assim não acho correto o que fizemos. Pretendo não repetir.
Pareço balbuciar na minha decisão quando ele sobe sua mão quente
pela minha pele e me acaricia entre os seios, em um movimento suave e
delicado. Odeio admitir, mas me agrado com a carícia, ainda mais quando
Antony move seus lábios na pele do meu pescoço subindo para o lóbulo da
minha orelha e beijando-me num lugarzinho ali atrás que ele já sabe ser meu
ponto mais fraco, o que me causa um arrepio na coluna.
— Tenho que ir trabalhar. — Tento dizer, mas mais gemo do que digo.
Carinhoso, ele roça seu nariz no meu pescoço e cola mais seu corpo no
meu.
— Fica só mais cinco minutos comigo.
— Abro a cafeteria de Dousseau, Antony… — rebato, fazendo algum
esforço para escapar da sua pegada. A verdade é que, por mais errado que
seja, quero continuar enrolada nos lençóis com ele, talvez transarmos mais
uma vez. Ele desperta algo bom em mim, diferente. É sempre todo gentil e
carinhoso, algo que foi difícil encontrar nos meus relacionamentos passados.
Ele se afasta, parecendo contrariado, mas não bravo. Levanta-se, pega
sua roupa jogada no chão e começa a se vestir. Faço o mesmo. Quando já
estamos vestidos, ele vem até mim e coloca uma mecha do meu cabelo atrás
da orelha, sorrindo.
— Se eu deixasse minha mulher para ficar com você…
Não espero nem mesmo que termine sua frase; já estou assustada
colocando um indicador nos seus lábios.
— Não, por favor. Isso não vai mais se repetir.
Uma sombra de tristeza trespassa seus olhos. Cabisbaixo, diz:
— Eu não a amo. Meu casamento está falido há muito tempo. —
Erguendo seus olhos em direção aos meus, completa: — Amo você, Juliette.
— A declaração me pega desprevenida. — Dê uma chance para nós — pede,
colando sua boca delicadamente na minha. — Eu só quero… ser feliz,
entende? Sei que posso ser com você ao meu lado.
— Antony… podemos conversar sobre isso depois? Estou atrasada para
o meu turno — desconverso. Não quero ter de pensar nisso agora. Não quero
ter de lidar com ele nesse momento.
— Posso te ver hoje à noite, então? — indaga, seus olhos brilhando
meio esperançosos. — Para conversarmos?
Droga! Não era para este rumo que eu queria levar nossa conversa.
— Tudo bem — cedo, repreendendo-me em pensamento logo em
seguida.
Sorrindo, Antony deixa um beijo casto no canto da minha boca, se
despede e volta para sua vida. Sua vida de casado.
Rapidamente, pego meu celular do bolso e envio uma mensagem para a
única pessoa com quem posso confidenciar isso.

“Posso ver você no horário do almoço? Almoçamos no Le


Procope.”

A resposta vem um minuto depois:


“Só se você pagar. Estou duro. E não no bom sentido.”

Dou uma risada enquanto respondo:

“Eu pago nossos almoços, não se preocupe. Te vejo às 14h.”

Ele não responde mais nada.


Confiro minha bolsa, meus pertences e rumo para o trabalho tentando
esquecer a noite de ontem.
Sem sucesso.

Ele está de costas para mim quando adentro o Le Procope. Sentado em


um canto mais afastado, em uma mesa para dois, meu primo parece mexer no
celular, introspectivo e distraído. Aproximo-me em silêncio e olho por cima
do seu ombro. Está entretido em um comercial de perfume feminino, onde
uma moça bem bonita, de cabelos e olhos castanhos, é a protagonista do
vídeo de uns trinta segundos. Quando acaba, ele toca na tela e roda
novamente.
— Paixão platônica — sussurro ao pé do seu ouvido, assustando-o. O
homem dá um salto na cadeira e quase derruba o telefone.
Rio e o contorno, sentando-me no lugar de frente a ele.
— Mon Dieu — exclama, a mão no lado esquerdo no peito. — Você
sabe que sou taquicardíaco, não sabe?
— Dramático e exagerado, como sempre — digo, analisando-o de cima
a baixo e abafando uma risadinha. — Estava aí, namorando essa modelo…
Se nunca se arriscar, ficará a vida toda apenas olhando Adrien morde o lábio
inferior e desvia o olhar lentamente, observando o ambiente no lado de fora
pela janela de vidro.
— Ela é filha do meu patrão, Julie. Trabalho com o pai dela desde os
meus dezoito anos, e convivo com eles desde os treze, e ela nunca reparou
em mim. Sou completamente invisível para Marjorie. Pertencemos a
realidades diferentes; jamais teria uma oportunidade com ela.
Penso em dizer alguma coisa, encorajá-lo a dar um passo a mais, mas
desisto, porque de nada vai adiantar. Adrien Bourdieu sustenta essa paixão
platônica por Marjorie Chevalier desde os treze anos, logo quando minha tia
conseguiu um trabalho de doméstica na casa de Fernand Chevalier. Um
garoto de treze anos apaixonado pela filha do patrão da mãe, de vinte anos e,
na época, noiva de outro homem. Nós dois sabíamos que era aquela típica
paixão adolescente e que logo morreria. Mais de dez anos se passaram desde
então, mas Adrien continua visivelmente apaixonado pela moça.
— Certo — decido mudar de assunto. Pego o menu e analiso um
momento enquanto digo: — De qualquer maneira, não vim aqui para falar da
sua paixonite.
A garçonete se aproxima antes que ele tenha tempo de me responder
rudemente e colhe nossos pedidos. Quando se afasta, meu primo diz:
— Diga logo o que quer conversar comigo antes que eu precise voltar
para o meu trabalho — resmunga.
Mordo o lábio inferior, pensando em como contar isso. Adrien sempre
me ouviu. Dos meus momentos calmos aos instantes mais surtados. Como
temos praticamente a mesma idade, ele sendo três anos mais novo do que eu,
crescemos juntos, ele tendo de ir para ficar lá em casa sempre que a mãe
precisava trabalhar e não tinha com quem deixá-lo. Acabamos por nos
tornarmos próximos. É como um irmão para mim.
— Dormi com um cara casado — revelo.
Espero pela sua reação, que não vai ser boa e já sei o porquê. Mas num
primeiro momento, ele apenas vira o pescoço na minha direção, rápido, meio
brusco. Seus olhos azuis levemente assustados.
— Por que está me contando isso? — pergunta, expirando devagar.
— Porque preciso de um conselho.
Adrien balança a cabeça de um lado a outro, como se já soubesse que
tipos de conselhos quero ouvir dele.
— Eu gosto dele — tento me explicar.
— Mas ele é casado — rebate. — Tem um monte de homem solteiro no
mercado, Juliette, por que justamente um comprometido?
Eu me faço a mesma pergunta. Mas a verdade é que Antony me
convenceu, de alguma maneira, que não foi errado o que fizemos. A esposa
não o ama, o casamento em crise… Por algum motivo, acredito nele, na sua
versão dos fatos.
— O caso é diferente — explico. — Antony não ama a mulher, da
mesma maneira ela não o ama. Inclusive… ela é uma megera egoísta. Ele
disse que se divorcia dela para ficarmos juntos. Isso é algo, não é?
— É — concorda, a contragosto. — É algo, sim. Algo muito ruim,
Juliette.
Nossos pedidos chegam e, enquanto a garçonete nos entrega nossos
pratos, analiso como foi uma estupidez ter vindo querer algum conselho dele
nesse quesito. Adrien é filho bastardo. A mãe também foi amante de alguém.
A relação extraconjugal do pai o gerou. Ele e a mãe foram abandonados e sei
que, por algum tempo, passaram necessidade por conta desse abandono.
Então meu primo tem pavor de traição e jamais concordaria com uma postura
dessas.
— Por que exatamente quer meu conselho? — questiona ao notar que
emudeci repentinamente, perdida nos meus pensamentos.
Inspiro fundo e respondo:
— Sei que repudia traição, mas e no caso dele? Que foi forçado a se
casar sem amor, que ouve constantemente ofensas da mulher, uma mulher
paranoica, ciumenta, possessiva. Eu já o vi com alguns arranhões no rosto e
de uns tempos para cá ele vive abatido, totalmente infeliz. Uma mulher
dessas merece ser traída, não merece?
Eu nem me dou conta da estupidez que escapa da minha boca. Estou
sendo precipitada demais em julgar uma mulher que nem conheço.
— Supondo que tudo o que ele te disse sobre a esposa seja verdade —
Adrien diz depois de beber um pouco de água — e que você concorde que,
por causa disso, ela mereça ser traída, precisa se questionar se você merece
ser a outra.
Peso um segundo o seu questionamento.
— Por mais infeliz que esteja nesse casamento, Juliette, o mais correto
é ele pedir o divórcio. Não vou aqui falar se é certo ou não o cara se divorciar
da esposa só para ficar com você, nem vou pôr em dúvida o que sentem um
pelo outro, mas sabe que eu não concordaria em serem amantes em nenhuma
situação.
Por longos segundos fico pensando no que ele disse, olhando para meu
prato pela metade. Vim procurá-lo em uma esperança tola de ele me dizer que
estou certa, de que se a esposa não o trata como deve, Antony não está errado
em procurar alguém que o valorize. Contudo, Adrien me dá outra
perspectiva.
Ter dormido com um homem casado continua sendo um erro, a esposa
merecendo ou não. Digo isso mais por mim, que ainda tenho alguma
dignidade e amor-próprio. Eu gosto de Antony. Ele é um bom homem e
conseguiu me conquistar aos poucos, e se vamos ficar juntos, se ele
realmente me ama como disse mais cedo, terá de fazer uma escolha.
— Merci, Adrien — agradeço, erguendo meus olhos em sua direção. —
Você está certo. — É tudo o que digo.
Terminamos de almoçar conversando esporadicamente. Ele mais
interessado em assistir cinquenta vezes o comercial onde Marjorie aparece e
eu pensando que vou mandar uma mensagem a Antony e dizer tudo o que
precisa ser dito.
PIERRE
O alarme soa no horário programado. Meio sonolento, giro na cama e
pego o celular, desativando o programa. Na porta, ela aparece com uma
xícara de café.
— Você tem plantão hoje? — pergunta, encostada no batente.
Coço os olhos e, com algum esforço, me levanto, deixando o telefone
no criado-mudo.
— Tenho — respondo, me espreguiçando.
No banheiro, escovo os dentes e lavo o rosto. Quando retorno para o
quarto, ela está com meu celular em mãos, conferindo minhas mensagens.
Não gosto dessa invasão, dessas desconfianças, mas se a questionar sobre
isso, Francine vai achar que estou escondendo alguma coisa e, sinceramente,
não tenho mais paciência para as paranoias dela.
— Quem vai cuidar de Édouard? Também estou de plantão hoje. O
menino não pode ficar sozinho, Pierre — informa, dando outro gole no seu
café.
Como se eu não soubesse disso. Suspiro e caminho até o pequeno
closet no quarto, escolhendo o que vestir. Opto pelo básico, jeans e camisa
branca, e me visto.
— Vou falar com Étienne — respondo, me encaminhando até a
cozinha.
Édouard está sentado à mesa tomando uma xícara de chocolate quente e
comendo um pedaço de pão enquanto se distrai com um desenho animado
passando na televisão. Ela me puxa pelo braço até um canto, olha para a
criança e depois para mim.
— Não acho aconselhável. Vou ligar para minha mãe.
— Não, Francine. Na verdade, já está na hora…
Sou interrompido pelo menino que finalmente nota minha presença e
vem até mim, me abraçando pela cintura. Pego-o no colo. O garoto está
ficando pesado.
— Ei, cara… Como você dormiu?
— Não quero ir para a escola — reclama ao invés disso.
— Mas precisa ir, mon bebé. Termine seu café e vá se arrumar, ou
vamos nos atrasar, oui? — Francine diz, pegando-o do meu colo e o levando
de volta à mesa.
Ela me serve com café e um croissant e se senta de frente para mim.
Observo Édouard comer, quietinho e atento ao desenho. Sinto falta do garoto
extrovertido, inquieto e falante.
— Quem é Marie? — Francine pergunta, me dispersando dos meus
pensamentos. — Vi uma mensagem dela no seu celular.
— É uma paciente, Francine — respondo, com um suspiro.
— Você costuma dar seu telefone particular para suas pacientes? Para
que serve então o telefone do consultório da clínica, mon chéri?
— Fran… já conversamos sobre isso, não conversamos? — falo, me
referindo à sua possessividade. Nosso namoro anda tão desgastado por conta
disso que tenho preferido dobrar meus plantões a ficar em casa com ela.
— Não me respondeu, Pierre.
— Não, não costumo, exceto quando é necessário. Sou um obstetra, por
favor! Se uma paciente entra em trabalho de parto de madrugada e se eu sou
o médico particular dela, para onde você espera que ela ligue?
Francine nada diz, continua passando geleia em um pedaço de torrada e
me encarando com o semblante nada amigável.
— Essa Marie não me parecia uma mulher grávida.
— É minha paciente, mas também é minha amiga, não vejo mal
nenhum em dar meu telefone particular para ela.
— Não vê? — indaga, erguendo a sobrancelha. — Você é ingênuo,
Pierre. Uma pesquisa rápida no Facebook dela e descobri que cada dia está
com um macho diferente. É uma vagabunda qualquer que não se dá o
respeito. Não quero você sendo amiguinho dela.
Levanto-me do meu lugar, perdendo o apetite na mesma hora. O
movimento é brusco e faz o pé da cadeira arranhar contra o piso. Isso chama
a atenção de Édouard que me encara com seus olhinhos verdes grandes e
assustados. Engulo em seco, decidindo não discutir com Francine na frente
dele. O garoto já passou por muito. A última coisa de que ele precisa é
presenciar uma discussão de casal.
— Não se preocupe. Vou deixá-lo na escola e arrumar alguém para
ficar com ele até o fim do meu plantão.
Pego-o rapidamente no meu colo e o levo para se arrumar, não dando
chance nenhuma de a minha namorada me atazanar com seus ciúmes
descabidos.

Mal entro no apartamento dele e tropeço em uma garrafa de uísque


vazia. O cômodo está uma completa bagunça, com roupas e sapatos
espalhados por todo canto; pratos com restos de comidas e latas de
refrigerante por cima dos móveis. A televisão está ligada em um canal
qualquer; sobre a mesa de centro, uma porção de fotos espalhadas de
Jeaninne Laurent, faturas de cartão de crédito, extratos de contas em bancos,
um mapa, um copo com resquício de uísque e uma bituca de cigarro.
Abaixo-me e vou pegando as roupas espalhadas pelo chão.
— Étienne — chamo-o. Ele está dormindo no sofá, ainda usando jeans
e sapatos. Vou até a lavanderia e coloco toda a roupa no cesto. Volto e
chacoalho meu irmão. — Étienne, acorde.
Ele resmunga e vira o corpo para cima. A barba grisalha, indicando
seus quarenta anos, está grande e malcuidada. Além disso, ele cheira
fortemente a bebida alcoólica.
— Cara, você precisa de um banho — falo, balançando-o mais.
Desisto por ora e me encaminho até sua cozinha, que está tão
bagunçada quanto sua sala. Preparo um café forte e adoçado. Enquanto a
cafeteira processa, procuro no quarto e no banheiro alguns comprimidos.
Torno a chamá-lo, agora já em posse da cafeína, um copo com água e
aspirina.
Demora um pouco, mas finalmente ele desperta. Resmunga, massageia
as têmporas, coça os olhos e se senta desajeitadamente no sofá. Estico a água
e a aspirina. Ele não recusa. Depois, ofereço o café. Étienne não é muito fã de
café, e sabe que não vai curar a ressaca, mas sabe que precisa da cafeína para
estimular e aliviar a sonolência.
Viro o olhar para a mesinha de centro.
— Passou a noite bebendo e fazendo um trabalho que não é seu, Étien?
Ele afaga o rosto, num ato desesperado e suspira.
— Não achei nada relevante — diz. — Nada.
— Tem que deixar isso para a polícia — aconselho, me sentando ao seu
lado depois de afastar o edredom que usou durante a noite.
— Já se passaram seis meses, Pierre, e a porra da polícia não encontrou
minha mulher. Nem sei se ela está viva.
Mordisco o lábio inferior, sem saber o que dizer ao meu irmão nesse
momento. Entendo o desespero dele. A esposa saiu para ir ao mercado e não
voltou mais para casa. Antes disso tudo ele era um bom pai para Édouard,
mas desde o sumiço de Jeaninne, ele se tornou negligente, esquecendo-se do
filho na escola, de alimentá-lo, dar banho, suprir o básico. A primeira semana
ficou desesperado, virou noites procurando pela mulher, espalhando fotos
dela por todo lugar, buscando informação. A segunda semana, veio a queda.
De noites procurando a mulher, passou-as bebendo. Étienne foi afastado do
trabalho definitivamente porque não tinha condições psicológicas de estar em
uma sala de cirurgia. A terceira semana, veio a obsessão de fazer o trabalho
da polícia e encontrá-la. Analisou extratos de conta, fatura do cartão de
crédito, câmeras de segurança, tudo que esteve ao seu alcance, mas não
encontrou nada. Quando meu sobrinho quase colocou fogo no apartamento
porque estava tentando aquecer um pouco de leite, e o pai estava ocupado
demais na sua busca, ele enfim percebeu que sua obsessão o tornou um
péssimo pai. Ao invés de tentar ao menos tocar a vida enquanto as
autoridades competentes faziam seu trabalho, preferiu me passar a guarda
legítima do menino. Aceitei porque era isso ou deixar Édouard com o pai
negligente.
— Eu entendo seu desespero, mas, ouça, Édouard sente sua falta. Estou
cuidando dele há pouco mais de cinco meses e você sabe que amo aquele
garoto como se fosse meu próprio filho e não me incomodo de cuidar dele.
Só que você é o pai dele e isso eu jamais poderei substituir. O menino já
perdeu a mãe, Étienne, não deixe que ele te perca também.
Meu irmão me olha atentamente, seu semblante cansado, abatido, até
envelhecido. Sua obsessão em encontrar a esposa está sugando toda sua
vitalidade e energia. E talvez seja apenas uma busca infrutífera.
— Ele está precisando de alguma coisa? — indaga com um sussurro
quase inaudível.
Penso em dizer “sim, do pai dele”, mas engulo minhas palavras para
mim. Étienne precisa de tudo nesse momento, menos de alguém o
repreendendo a como ser pai do garoto.
— Estou de plantão hoje, e Francine também. Alguém terá de ficar com
ele depois da escola. — Analiso um segundo inteiro, me perguntando se foi
uma boa ideia vir até aqui. — Tenho minhas dúvidas se você é capaz de
cuidar dele por algumas horas.
Étienne se levanta do seu lugar, mostrando-se irritado comigo, e se vira
para mim, pronto a rebater. Mas então parece cair em si mesmo. Repara no
estado que se encontra: roupas amassadas, cheirando fortemente a uísque, o
apartamento revirado, impossível de receber qualquer pessoa, ainda mais uma
criança.
— Vou chamar uma diarista — fala, cabisbaixo, parecendo
envergonhado. — E vou buscá-lo na escola, não se preocupe.
Levanto-me e paro à sua frente, apoiando a mão em um gesto solidário.
— Está na hora de voltar a tocar a sua vida, Étienne. Deixar a polícia
fazer o trabalho dela.
Lágrimas grossas escorrem dos seus olhos para seu rosto de traços
envelhecidos e cansados.
— Não consigo — cicia, secando as gotas que o molham. — É minha
esposa, Pierre.
— E você tem um filho — rebato — que precisa do pai. Pense nisso só
por um segundo.
Envolvo meu irmão em um abraço apertado e digo a ele para não se
esquecer do garoto antes de me despedir e ir embora.

Estou me preparando na sala dos médicos quando a porta se abre. Testo


uma caneta click e a guardo no meu bolso. Francine se aproxima, o rabo de
cavalo do seu cabelo castanho balançando de um lado a outro conforme
avança cômodo adentro. Estou pensando em abrir a boca e dizer que Étienne
prometeu ficar com o filho, mas ela é mais rápida e dispara:
— Onde esteve? — Seu tom é acusatório.
— Na casa de Étienne. Fui falar com ele sobre Édouard. Você sabe
disso, Francine.
— Mentira — rebate, sacando o celular do bolso.
Ela mexe em alguma coisa e então vira a tela em minha direção. É
algum tipo de aplicativo rastreador. Mas que diabo é isso?
— Você saiu da casa do seu irmão — fala, apontando para um ponto no
celular. Há um trajeto extenso mostrado no mapa, o ponto de partida,
suponho, é da nossa casa até a moradia do meu irmão, e depois de lá até aqui.
— E não seguiu a rota comum para chegar aqui — explica, voz levemente
alterada, apontando para a tela. — Pegou outra rua, fez uma parada de vinte
minutos e levou mais quinze para chegar. Então eu te pergunto, Pierre, onde
esteve?
Ergo meu olhar ao seu, inconformado de que ela tem mesmo um
aplicativo para me rastrear.
— É horário de pico — informo, segurando minha impaciência. —
Tomei um atalho um pouco mais longo, mas com menos trânsito. Parei em
um supermercado para comprar algumas coisas para o plantão.
Ela me olha atentamente, o semblante denunciando de que continua
desconfiada. Com as mãos no bolso do seu jaleco, Francine olha ao redor,
depois se volta para mim:
— Onde estão?
Confuso, respondo com outra pergunta:
— Onde estão o quê?
— As coisas que comprou no supermercado.
Inspiro fundo e tento não surtar. Fecho os olhos e aperto a ponte do
nariz, me perguntando por qual razão espero alguma mudança dela. Já
conversamos a respeito das suas desconfianças, das paranoias, dos ciúmes
exagerados, das ligações infinitas a cada cinco minutos para saber onde estou,
com quem estou e que estou fazendo, já conversamos sobre querer controlar
minha vida, ter acesso ao meu celular e redes sociais. Eu cedi uma parte,
porque um relacionamento é feito disto, de concessões, e porque nunca tive
nada a esconder. Minhas redes sociais são conectas ao seu smartphone, ela
sabe a combinação do meu bloqueio de tela e pode ler minhas conversas
quando quiser e, mesmo assim, sempre há esses momentos de extrema
desconfiança.
Nós já conversamos. Chegamos a ficar duas semanas separados porque
se não há confiança em um relacionamento, então não há nada, mas ela veio
até mim, me implorando para voltarmos, jurando que mudaria de
comportamento e confiaria em mim como uma namorada deve fazer. O
primeiro mês, vi esta mudança. Mas depois, as coisas voltam a desandar, ela
tornou essa pessoa paranoica e obsessiva, tentando controlar cada passo que
dou porque simplesmente acha que serei igual os demais namorados dela.
— Deixei no refeitório. A grande maioria precisa ser refrigerado e só lá
tem geladeira, Francine — respondo, suspirando. — Está lá, tudo com meu
nome, e se quiser pode conferir no aplicativo do banco, que você também tem
a minha senha, e confirmar que fiz uma compra no supermercado cerca de
meia hora atrás.
Penso que ela não fará isso porque já dei provas o bastante, nos últimos
anos que estamos juntos, de que não serei como os idiotas que namorou. Mas
Francine se tornou tão desconfiada que mesmo com todas as demonstrações
de fidelidade é capaz de checar se estou falando a verdade.
— Comprei inclusive macarons pra você — falo.
Ela me olha com a expressão mais suave e dá um passo à frente,
findando a distância que nos separa, e me envolve em seus braços.
— Eu adoro macarons — sussurra, beijando minha bochecha. —
Merci, mon chéri.
— Sei que gosta, por isso comprei. — Afasto-a e toco seu rosto. —
Francine… quero ser sincero com você e dizer que estamos caindo em velhos
hábitos de novo. Estou mentalmente cansado das suas desconfianças o tempo
todo. E você me prometeu… prometeu que ia mudar.
— Pierre, não me culpe se estou cuidando do que é meu — murmura de
volta, acariciando meu rosto. — Você é tão bonito e todo dia tem contato
com diversas mulheres. Só… tenho medo de te perder. Se sinto ciúmes é
porque me importo, porque te amo.
— Tudo em excesso faz mal, chérie — digo, abrindo um pequeno
sorriso. — Precisa confiar em mim. Não vou ser como seus namorados, os
que quebraram seu coração com traições e mentiras, te fazendo perder a
confiança. Não sou eles, Fran… Tente entender isto.
— É tudo por amor, Pierre — insiste nessa resposta, tomando-me em
um beijo rápido.
Forço outro sorriso, descontente com o rumo que nossa relação está
tomando, Francine se negando a enxergar que seu excesso de ciúme e toda a
sua necessidade de ser controladora comigo tem abalado nosso namoro, me
afastado dela, tem desgastado o sentimento bonito que sempre senti. Quero
dizer isto tudo a ela, mas não tenho tempo. O bip do pager da minha
namorada ecoa por toda a sala, chamando-a.
Ela se vai para cumprir o seu dever de salvar vidas, enquanto, ao que
me parece, tenta destruir a minha.
JULIETTE
Aproveito um pequeno intervalo no meu expediente para pegar no
celular e pensar. Sim, pensar. Estou preocupada e curiosa. Quatro dias atrás,
meu patrão chegou aqui com alguns hematomas no rosto, mas não explicou o
que aconteceu, apenas que teve uma discussão com Antony no dia anterior,
na festa de Emilien Dupont. É claro que fiquei assustada porque o conheço e
sei que ele não é um homem violento. Muito pelo contrário. Bernardo é um
homem que cativa com facilidade, bem-humorado, debochado em horas
inoportunas, cínico e galante na mesma medida e um tanto quanto
mulherengo.
Horas depois, Antony apareceu, com escoriações parecidas, como era
de se esperar. Estava tenso, meio nervoso, com uma expressão sisuda. Trocou
algumas palavras com meu patrão, mas senti uma grande tensão no ar. Os
dois não estavam conversando, nem de longe. Parecia que um queria devorar
o outro.
Tentei entender o que diabos poderia ter causado a desavença entre
eles, que embora não sejam melhores amigos, mantêm uma amizade
respeitável. Consegui compreender, quando me aproximei deles para entregar
um pedido de Leclerc, apenas algumas palavras desconexas. Como tive de
me afastar para continuar meu trabalho, fiquei sem compreender qual
exatamente a relação entre meu chefe e a mulher do meu amante. Mas já
suponho o que possa ter acontecido. Aposto que Dousseau a cortejou, e o
marido não gostou nem um pouco. O que me leva a sentir um incômodo no
coração. Se a esposa é uma megera que o atormenta, que nunca o amou, se
seu casamento está falido e já se declarou para mim, por que sentiria ciúmes
da mulher? A não ser que o cortejo tenha sido muito descarado (o que é bem
a cara de Bernardo fazer) e Antony apenas tenha assumido o papel de marido
ciumento, mas sem realmente se importar.
No auge da conversa, Dousseau deu algum tipo de resposta que não
agradou meu amante, porque ele se levantou furioso, jogou alguns euros
sobre o balcão para pagar o consumo e foi embora sem nem mesmo olhar
para trás. Ficou três dias sem aparecer por aqui e, sinceramente, achei que
tínhamos perdido um cliente fiel. Contudo, logo ele entrou por aquelas
portas, acompanhado como sempre de Emilien e alguns amigos políticos,
fizeram o mesmo pedido que estão habituados a fazer, consumiram e jogaram
conversa fora.
Há três dias que aconteceu a pequena discussão entre os dois, mas
continuo curiosa sobre os fatos que os levaram a sair no braço. Antony não
fala comigo já tem bem uma semana, apesar de dar as caras por aqui. Ele
entra, lança-me um olhar, um sorriso conciso, aproxima-se, faz o pedido,
consome, despede-se e repete o ciclo. Ele não me liga, não manda uma
mensagem, e eu tampouco tento fazer contato, porque ele já me pediu para
não ligar em seu telefone pessoal por causa da esposa. Também não me atrevi
a atravessar a rua e ir até o escritório em sua galeria, pois a última coisa de
que precisamos é levantar algum tipo de suspeita.
Seu silêncio tem me causado uma aflição. E é por esse motivo que
estou pensando se me arrisco a ligar em seu telefone. Ando de um lado a
outro, olhando para a tela do meu celular, ponderando. Busco pelas horas.
Neste horário normalmente está trabalhando, então não corro risco de
telefoná-lo e a mulher estar por perto.
Contrariando todo o bom senso, disco seu número e o aguardo atender,
ouvindo os toques do outro lado da linha que me causam algum tipo de
suspense.
— Alô. — Droga! A voz não é de Antony. É de uma mulher. É da
esposa dele.
Meu coração dá uma acelerada violenta, pensando no erro que acabei
de cometer. Nada digo por alguns segundos, buscando uma maneira rápida de
não nos comprometer.
— Pardon — peço. — Liguei para o número errado. Desculpe o
incômodo.
Não lhe dou tempo de responder, pois desligo rapidamente.
Acalmo as batidas do meu coração e inspiro fundo.
— Juliette! — minha subgerente me chama, colocando a cabeça por
entre uma fresta da porta aberta. — Preciso da sua ajuda aqui.
— Estou indo, estou indo — digo, soltando o ar dos pulmões.
Guardo o celular no bolso da calça e volto lá para dentro. O local está
um pouco movimentado e preciso liderar a equipe. Pouco mais de dez
minutos depois, as portas duplas de vidro se abrem, trazendo para dentro um
sorridente Antony acompanhado de seu amigo Emilien. Ele lança um rápido
olhar para mim e sorri disfarçadamente. Diz algo ao amigo, que acena e se
retira em direção a uma mesa. Leclerc caminha até o balcão e faz o pedido a
uma das funcionárias. Discretamente seus olhos cravam nos meus.
— Salut, Juliette — cumprimenta-me.
— Salut, Antony. — Quando minha subalterna se retira para preparar o
pedido dele, me inclino sobre o balcão e sussurro. — Senti sua falta.
A expressão dele muda bruscamente para algo menos ameno e mais
severo. Merde! Não deveria ter dito nada disto, onde é que estou com a
cabeça? Sua faceta sisuda, porém, vai dando lugar à calmaria de novo. Ele
olha ao redor, por cima dos ombros, certificando-se de que não somos
observados, para só então dizer:
— Também senti sua falta. Vou te ver hoje à noite — informa, fazendo
meu coração dar um salto de alegria. Mal posso esperar.
— Vai me contar o que houve semana passada entre vocês? — Não
preciso especificar mais do que isso, pois sabe perfeitamente do que estou
falando.
Suas grossas sobrancelhas se vincam ligeiramente.
— Talvez — responde apenas com um sussurro. Ele se levanta e volta
para junto do amigo.
Observo-o de longe pelos próximos minutos, sua interação com
Emilien. Algum tempo depois, uma mulher adentra a cafeteria. Não a
conheço, pois não se trata de uma cliente frequente. É bonita, aparentando ter
uns trinta e poucos anos, cabelos na altura dos ombros, loiro-acobreados,
olhos claros, elegante e discreta. A moça olha ao redor, como se à procura de
alguém. Prontifico a ajudá-la com o que é que esteja procurando. Estou me
aproximando quando ela parece ter encontrado o que veio em busca, pois
começa a caminhar em direção a algumas mesas.
— Mademoiselle, precisa de ajuda? — abordo-a. Ela se vira para mim,
analisando-me um rápido segundo. Apresento-me: — Je suis Juliette, em que
posso ajudar, mademoiselle?
— Madame — corrijo-me, de forma gentil. Aceno positivo,
compreendendo. Trata-se de uma mulher casada. — Vim me encontrar com
meu marido, Antony Leclerc.
A estas palavras, só por um segundo, perco minha postura. Meu sorriso
receptivo vacila com a informação. Então é ela. Ann-Marie. Meu coração
bate como o motor de um carro desgovernado. Estou cara a cara com a
esposa do meu amante, o homem que amo. Recupero minha postura
rapidamente, não podendo entregar em sua presença o desconforto e a
surpresa que isso me causou.
— Claro — digo, esforçando-me para me manter calma. — Acredito
que já o tenha localizado. Fique à vontade, madame Leclerc. Pedirei a alguém
para vir retirar seu pedido.
Giro nos calcanhares sem esperar por uma resposta e volto para atrás
do balcão. Ouço Antony exclamar:
— Ann-Marie? — Arrisco olhar por cima do ombro por um breve
instante e quando o faço, o homem está perto da esposa, olhando-a
atentamente, suas sobrancelhas vincadas, as mãos guardadas no bolso, os
lábios apertados. — O que está fazendo aqui?
Ao passo que me distancio, não posso mais ouvir a conversa entre os
dois, apenas observar, por esse motivo, não sei qual resposta dá ao marido.
— Christien — chamo um dos balconistas. — Retire o pedido da
madame Leclerc, oui? — peço, lançando mais olhares em direção ao casal.
Agora ela está revirando a bolsa atrás de alguma coisa. Oh, merde! Já até sei
o que veio lhe entregar. Ela ainda está procurando o que suponho ser o
celular dele quando o marido a agarra pelo braço e a leva à mesa onde está
acompanhado de Dupont. Ela o cumprimenta; Emilien responde erguendo a
xícara de café em sua direção.
— Oui — Christien responde, me despertando para a realidade. Ele
pega comanda e uma caneta e se retira em seguida.
Me desloco até o caixa e, daqui, fingindo avaliar alguns papéis de
mercadorias e fornecedores, continuo estudando meu amante e a interação
com sua esposa. Ele arranja uma terceira cadeira para ela ao seu lado. Os três
seguem conversando, Antony meio tenso e desconfortável perto dela. O
esposo faz o pedido em seu nome a Christien enquanto Ann-Marie retira o
celular de dentro da bolsa e o arrasta na direção ao marido. Sabia! Ele deve
ter esquecido em casa, por isso a esposa atendeu o telefone em seu lugar.
Quero dar um tapa na minha testa por tamanha falta de sorte.
Certamente foi por esse motivo que ela veio aqui. Não porque se preocupou
que o marido poderia receber ligações importantes, mas com toda certeza
para pressioná-lo a saber porque uma mulher ligou em seu telefone,
supostamente por engano.
Curiosidade me corrói para saber o que eles conversam. Ele diz alguma
coisa, conferindo a tela do telefone. Tenho a impressão de que é um elogio ou
algo assim, porque a esposa sorri. Um amargor diferente se apossa da minha
boca. É ciúme. Ciúme de um homem que não me pertence. Não por
enquanto. Quando Ann-Marie diz alguma coisa, o rosto dele é marcado pelo
franzir dos sobrolhos. Meu coração dispara, já imaginando do que se trata.
Ela deve ter comentado sobre a ligação “por engano”. Tenho uma enorme
necessidade de querer ouvir a conversa com eles. A oportunidade surge
quando Christien está se retirando para levar o pedido dela. Aproximo-me
rapidamente e tomo a bandeja de suas mãos, dizendo:
— Deixa que eu levo.
Ao passo que me aproximo, observo a reação de Antony. Ele diz
alguma coisa à mulher e embora não compreenda perfeitamente, noto traços
de irritabilidade no seu tom de voz. Algo na atitude da esposa o desagradou.
Após a resposta dela, ele baixa o olhar e verifica a tela novamente. A tensão o
rodeia, os olhos grudados no telefone. Com toda certeza reconheceu o meu
número e agora vai querer me comer viva.
Rapidamente, ele guarda o celular no bolso do seu casaco.
— Conhece este número? — a esposa pergunta, meio desconfiada, no
momento em que alcanço sua mesa trazendo na bandeja o seu café, um
copinho de água gaseificada e uma barra pequena de chocolate amargo ao
lado da xícara sobre o pires.
— Non, mon amour. Como disse, foi apenas um engano.
— Deseja algo mais, monsieur Leclerc? — pergunto, tentando ler sua
postura. Sinto o olhar de Ann-Marie sobre mim, como se estivesse me
avaliando, desconfiada de alguma coisa. Mon Dieu! Terá ela sido capaz de
reconhecer minha voz? Só agora esse pensamento me ocorre e, mais do que
nunca, desejo não ter me aproximado e a abordado.
Um monte de sentimentos se mistura dentro de mim nesse momento.
Medo da reação de Antony, que agora sabe que tentei ligar no seu telefone
quando ele claramente me pediu para não fazer isso, medo de sua esposa
reconhecer minha voz e ligado os pontos. Ciúme pelo tratamento dele para
ela, mon amour, como se ela fosse mesmo um amor de pessoa, mas
compreendo que na frente de Emilien ou de qualquer outra pessoa, precisa
manter as aparências.
— Non, Gautier. Je vous remercie. — Há tempos ele não me trata
formalmente, mas entendo que a ocasião exige e que não pode dar indício de
qualquer tipo de intimidade comigo ou despertará desconfianças.
Aceno em positivo e me afasto. Torno ao caixa e fico ali, observando-
os por cima do computador ou de documentos. Antony fica mais relaxado
conversando com Emilien enquanto a esposa lê um livro. Cerca de quinze
minutos depois, eles se levantam da mesa, prontos a ir embora. Emilien vem
até mim e paga seu consumo. Enquanto passo seu cartão de crédito, ele me
pergunta se está tudo bem. Digo que sim e agradeço por perguntar. Por fim,
Antony vem ao caixa. Seu semblante parece calmo quando seus olhos
encontram os meus, mas noto um pequeno traço de advertência ao me
entregar alguns euros. Confiro o pagamento, há troco. Minhas mãos
tremeluzem levemente enquanto devolvo a diferença. Enfiando o dinheiro no
bolso, diz à esposa que irá ao toalete antes. A mulher acena e se retira, talvez
decidindo esperá-lo no lado de fora, voltando a se atentar ao livro em suas
mãos, folheando as páginas. Na saída, ela esbarra em Bernardo, que está
entrando. Ele a ampara, porque a mulher perde o equilíbrio sobre os saltos
com a colisão.
— Ann-Marie — diz, mas não consigo ouvi-lo claramente, apenas faço
a leitura labial do nome dela. Sua expressão é de surpresa por vê-la. Um
sorriso galante brota em seus lábios, mostrando uma covinha charmosa que
ele tem.
Bernardo a chamou de Ann-Marie. Pelo primeiro nome. Isso não é
muito comum quando não temos intimidade uns com os outros.
Desconfianças de que eles estão se envolvendo se reforçam na minha mente.
— Monsieur Dousseau — responde, formalmente e em um tom pouco
mais alto, empinando o nariz, achando-se muito superior, com toda certeza.
Bem que Antony me disse que ela é uma mulher nojenta e metida a besta. —
Desculpe… distraída. — Não me atento a resposta, pois um cliente se
aproxima para pagar o consumo, por isso compreendo apenas palavras
desconectadas da frase. Atendo-o rapidamente e, assim que gira nos
calcanhares e vai embora, volto a me atentar a conversa deles, ainda ouvindo
apenas parte dos diálogos.
— Entendo — murmura, em resposta a alguma coisa que ela disse
antes. — … tem passado… última semana?
Última semana?
Talvez isso signifique que eles se viram em algum momento nos
últimos sete dias? Ou talvez ele esteja se referindo à festividade de Dupont,
quem sabe até está subentendido de que se viram depois desta ocasião. Ela o
responde ainda mais baixo, por isso não compreendo uma palavra sequer, e
começa a se retirar. Entendo apenas um “Excusez-moi”. Ann-Marie já está
quase no lado de fora quando Bernardo diz, o tom mais alto e meio cínico.
— Volte sempre.
A mulher se vira para ele, pergunta algo que outra vez não entendo por
causa do barulho intenso da máquina de expresso aquecendo o leite.
Bernardo dá um passo adiante, diminuindo a distância entre os dois.
Inclinando-se ligeiramente na direção dela, cochicha alguma coisa, deixando-
a meio petrificada. Um segundo mais tarde, se distancia, gira nos calcanhares
e adentra mais o estabelecimento, dizendo, desta vez bem alto e debochado:
— Espero que tenha apreciado nosso café, madame Leclerc.
A mulher deixa a cafeteria no mesmo instante, como se estivesse
fugindo do diabo. Dousseau vem até mim, mantendo-se do outro lado do
balcão. Sorri e pergunta:
— Se importa em ficar até mais tarde hoje? Preciso de alguém para
comandar a equipe no segundo turno até o fechamento. Não poderei ficar.
Oh, droga. Justo hoje, Bernardo?
— Tudo bem — assinto, não tendo muito o que fazer sobre isso.
— Merci — agradece, virando-se lentamente para frente. Os olhos
fixam-se em Ann-Marie no lado de fora, a cabeça levemente jogada para trás,
como se estivesse apreciado a brisa parisiense.
Ele parece se perder em seus próprios pensamentos, analisando-a. Do
corredor dos toaletes, Antony ressurge. Ao notar meu patrão ali, parado,
olhando para sua esposa, um traço meio selvagem se apossa da sua beleza.
Isso dura só dois segundos, e desconfio de que ele só suaviza a expressão por
notar que estou o observando. Leclerc se aproxima, despedindo-se de
Dousseau e deixando a cafeteria em seguida. Bernardo não o responde,
parecendo voltar ao mundo real. De repente, ele gira nos calcanhares e vai se
refugiar no escritório, onde passa a tarde toda trancafiado.
Tento me concentrar no meu trabalho até o fim do meu expediente ao
invés de ficar remoendo conjecturas se Bernardo e Ann-Marie estão tendo ou
não um caso. Confesso ser uma tentativa completamente inútil.

Ao abrir a porta para recebê-lo, a cara de Antony não é das melhores. O


episódio em que sua mulher apareceu na cafeteria já foi há três dias. Por eu
ter precisado prolongar meu expediente, não nos vimos naquela ocasião,
como combinamos antes. Não o avisei que não estaria em minha casa no
horário combinado porque isso ia exigir ligação ou mensagem, e depois de a
mulher dele ter atendido ao meu telefonema, preferi não arriscar. Ele próprio
fez contato quando chegou e eu não estava lá. Expliquei a situação e
marcamos para hoje.
— Por que ligou no meu telefone? — pergunta meio bravo, como se
fosse a questão mais importante dos últimos três dias.
Fecho a porta vagarosamente e me encosto a ela, encarando-o meio
sem jeito.
— Estava preocupada. Você não falava comigo já tinhas alguns dias,
apesar de aparecer lá na cafeteria, e tinha aquela briga com Bernardo na
semana anterior que nunca compreendi direito o que foi que aconteceu.
— Essa sua estupidez me colocou em uma situação delicada, Juliette —
fala, quase sem separar os lábios. É realmente a primeira vez que o vejo um
pouco mais alterado. Talvez seja a primeira vez inclusive que me trata com
um pouco mais de rudez.
— Não fiz por mal, Tony… — Tento me explicar, dando um passo à
frente. Ele permanece imóvel, com a mesma expressão rígida. — Me
desculpe.
— Por conta disso não pude vir antes, depois que não pôde me
encontrar — informa. — Eu já tinha dito a ela, com antecedência, de que
naquela ocasião eu ficaria até mais tarde no trabalho. Voltei para casa e
expliquei que consegui terminar meus trabalhos antes do previsto, mas se
logo no dia seguinte eu dissesse novamente que precisaria exceder minhas
horas na galeria, após menos de vinte e quatro horas que uma mulher ligou
“por engano” para mim, ela ia desconfiar e me perturbar. Se não fosse sua
ligação, poderia ter vindo antes. Deveria ter esperado que eu me comunicasse
com você.
— Ter esperado pela sua boa vontade? — Ergo um pouco a voz. —
Tinha dias sem te ver direito, você se recusando a falar comigo! Só… tive
medo de que tivesse mudado de ideia.
— Tive meus motivos para não falar com você, Juliette — explica, seus
olhos transformando-se ligeiramente em traços de raiva que não reconheço.
— O que houve entre você e Bernardo? Por que brigaram? —
pressiono-o, mudando radicalmente de assunto.
— Isso não vem ao caso — responde, subitamente mais calmo. Com
apenas três passos ele me prensa contra a porta, tomando minha boca em um
beijo suave e carinhoso, seus dedos longos afagando minha bochecha. — Não
vou perder meu tempo te explicando uma desavença idiota entre nós dois
que, aliás, já foi resolvida, quando tudo que quero é matar minha saudade de
você e me enterrar na sua boceta.
Suas mãos fortes descem pela lateral do meu corpo, parando abaixo das
coxas e me tocando na pele nua. Então ele sobe meu vestido, seu toque
chegando até minha bunda e a apertando. Afasto-o delicadamente e cruzo os
braços. Antony me olha com cara de indignado por tê-lo recusado.
— Quando pedirá o divórcio? — insisto. — Não quero mais esses
encontros às escondidas nem te dividir com sua mulher.
— Não está me dividindo com ninguém. Há semanas que não transo
com ela.
Como se isso aliviasse alguma coisa.
— Ainda assim, Antony, não quero mais continuar sendo a outra. Não
importa quanto a sua esposa seja uma megera com você, a amante é quem
sempre está errada. E sinceramente, não tenho nenhuma pretensão de sair
manchada nessa história.
Vejo-o fechar os punhos com minha insistência. Ele já me explicou os
motivos de ainda não ter se divorciado. Está trabalhando em alguma coisa
com Emilien para poder abrir mão da galeria.
— Já te expliquei os motivos, mas continua me pressionando —
murmura entre os dentes.
— Desculpe se não gosto dessa situação — devolvo, meio debochada.
— Juliette, tenha um pouco mais de paciência. Toda minha renda
provém da galeria. Não posso simplesmente me divorciar nesse momento
porque isso implicaria em ter de dividir metade dos meus bens com ela e, por
enquanto, não tenho condições de manter meu estilo de vida se meus lucros
caírem pela metade. Estou trabalhando em um projeto de investimentos com
Emilien que vai me dar muito mais retorno e faturamento, dessa maneira,
posso ceder minha parte a Ann-Marie, manter minha renda e, de quebra,
cortá-la de uma vez da minha vida.
Antony se aproxima de novo, a raiva parecendo se esvair dele. Ele me
segura pelas mãos e completa:
— Quero abrir mão da galeria porque dividi-la com Ann-Marie
significa continuar a aceitando na minha vida e me perturbando. Não quero
isso, mon amour. Quero ficar livre dela e para isso terei de ceder a minha
parte, mas não posso ceder sem antes ter outro negócio rentável. Você me
entende?
Sinto-me uma estúpida por pressioná-lo dessa maneira. Mon Dieu, ele
está coberto de razão. Abraço-o fortemente, murmurando pedidos de
desculpas. Ele afaga meus cabelos e diz que está tudo bem, que compreende
meus desejos e que me ama.
Agarro-me à esperança de que em breve Antony será meu, apenas meu.
O pensamento nem me faz perceber que, aos poucos, perco minha roupa.
Quando ele entra em mim com todo vigor, me esqueço de tudo e somente me
entrego.
PIERRE
O bebê dela tem batimentos cardíacos.
Comprovei isso instantes antes de ela entrar na ressonância magnética
após a estabilizarmos, utilizando-me de um sonar. O resultado da ressonância
não indicou nenhum trauma sério na cabeça, apenas uma concussão e duas
costelas quebradas.
Agora, estou aqui, por algum motivo que desconheço, velando seu
sono, sentindo uma felicidade incomum dentro do peito. Sempre me sinto
satisfeito, realizado e feliz quando cumpro meu dever, mas este caso
despertou algo mais intenso em mim. Talvez porque quando ela me olhou, o
fez com súplica. Prometi cuidar dela e do bebê, uma promessa que não
deveria ter feito com tanta veemência. No máximo, deveria ter dito “faremos
de tudo para salvarmos seu bebê”, mas jamais garantir coisa alguma.
Entretanto, aqui estamos. Ela, viva; seu bebê, bem. Quando acordar, poderei
dar uma notícia boa em meio a este evento ruim. Seu rosto inchado e
escoriado desperta em mim ainda mais curiosidade sobre seu caso. Continuo
assustado e indignado com sua situação, com a covardia que cometeram
contra ela.
Juliette Gautier está estabilizada e passa bem. Ainda assim, pego o
estetoscópio e, delicadamente, apoio-o sobre o lado esquerdo do seu peito,
conferindo os batimentos cardíacos. Devolvo o instrumento ao meu pescoço e
enfio as mãos nos bolsos do jaleco, meus olhos fixando-se na paciente por
longos segundos. Em um instinto quase indomável, uma atitude perigosa e
ousada, levo minha mão direita até seu rosto, acariciando-o por um instante.
A porta do quarto se abre de repente, assustando-me e fazendo-me recuar um
passo.
Uma enfermeira adentra o ambiente e sorri ao me ver.
— Doutor Laurent — cumprimenta-me, contornando a cama e
ajustando o soro da paciente. — Não sabia que estava aqui.
Pigarreio antes de responder:
— Vim examiná-la de novo, ter certeza de que está bem.
A enfermeira mantém o sorriso e ajeita o lençol sobre Gautier.
— Informaram para alguém o estado dela, ou já vieram procurá-la? —
indago. — Familiares, namorado, marido…? — especulo.
— Não encontramos nenhum contato de emergência no celular dela,
mas há um homem aí fora — informa. — Chegou junto com os paramédicos,
ele quem a encontrou atrás da cafeteria. Monsieur… — Pausa para se
recordar. — Dousseau. Não tem parentesco nenhum, mas me parece que é
funcionária dele. Por isso não entramos em contato com qualquer um dos
números no telefone dela.
Absorvo as informações por um segundo, tentando não criar teorias
sem fundamentos. Contudo, não consigo não pensar em como é estranho ele
tê-la encontrado, assim, parecendo tão por acaso atrás de uma cafeteria
qualquer. Afasto meus pensamentos absurdos e me repreendo por querer dar
uma de Étienne. Esse assunto não é de minha alçada; em breve, quando a
moça acordar, poderá esclarecer tudo.
— Não diga nada ainda — instruo-a. — Estou esperando o neurologista
de plantão analisar de novo as chapas da ressonância e me confirmar que
houve apenas uma leve concussão. Quero ter certeza de que ela está
realmente bem antes de qualquer coisa.
É um cuidado idiota, sei disso. Alan Baron já me garantiu de que não
há nenhum trauma crítico, e os exames de reflexos que fiz nela foram bons,
mas, ainda assim, pedi que analisasse novamente, só para termos certeza.
Entretanto, chegaram outros dois casos mais urgentes aos quais precisou dar
atenção, então tenho de esperar.
— Sim, doutor Laurent — anui.
— Quando der notícias dela ao homem que está lá fora… — falo com
cuidado, desviando meu olhar por um breve instante para Juliette. — Não
diga nada sobre a gestação. Ainda não sabemos se ele sabe a respeito ou se a
paciente tinha pretensões de contar. Vamos esperá-la despertar e, ao receber
visitas, ela mesma conta, se assim desejar.
— Como quiser — responde-me, terminando de ajustar o soro.
Aceno em positivo e não tenho mais desculpas para ficar. Molho o
lábio inferior, custando a dar um passo para trás e sair do quarto.
— Quando ela acordar… — peço, já próximo à porta. — Pode me
chamar, por favor? Quero examiná-la de novo, fazer um ultrassom e
preencher o relatório de atendimento.
— Oui, docteur.
Dando uma última olhada em Juliette, finalmente me afasto.

Adentro a sala da neurologia. As chapas com os resultados de Gautier


continuam expostas, mas o médico responsável ainda não está aqui.
Aproximo-me e as observo com atenção, mãos nos bolsos, concentrado, à
procura de algo que, graças a Deus, não existe. Ainda assim, estou
preocupado e levemente paranoico.
— É só uma concussão, nada grave — a voz dela soa atrás de mim.
Assusto-me, mas não me viro. Eu a evitei o dia todo ontem e parte
desta manhã, o que parece não ter valido de nada. Francine se põe ao meu
lado e me olha; não faço o mesmo. Continuo atento aos resultados diante os
meus olhos, ignorando-a.
— Pierre…
— Eu escutei, Francine — falo, dando um passo ao lado e passando a
analisar a outra chapa. — Ainda assim, prefiro ouvir a opinião do Baron, se
não se importa.
— Pois também sou neurologista. Deveria confiar em mim.
Com uma risada ácida, jogo um olhar para ela. Confiança é algo que
jamais existiu de sua parte na nossa relação, apesar de todos os meus
esforços. Chega a ser irônico.
— Você, falando de confiança? — debocho, tornando a analisar as
imagens em preto e branco à minha frente.
— Estou te pedindo para confiar em mim como profissional.
Ignoro-a de novo, pouco me importando com suas justificativas. Droga,
só queria ter ficado longe dela. Mas sabia que havia uma possibilidade de nos
vermos ao vir para a área da neurologia.
— De qualquer maneira — falo, quando noto que não me deixará em
paz. — Esse caso é do Baron. Agradeço a informação, mas…
— Na verdade — interrompe suavemente, recolhendo as chapas, uma
por uma. — Esse caso agora é meu. Nosso, se assim preferir.
Pisco diversas vezes, assimilando a notícia que acaba de me dar. Não,
não é possível.
— Do que está falando?
Francine dá de ombros.
— Alan me pediu para assumir o caso com você. — Duvido muito. Ele
sabe da aversão que tenho a essa mulher. Sabe que estou evitando-a a todo
custo e que, para o bem da minha saúde mental, ela deve ficar longe de mim
o tanto quanto for possível. Aposto minha bola esquerda que ela se ofereceu
e conseguiu isso de alguma outra forma. — Surgiu um caso de tumor
inoperável e ele quer arriscar, então… Aqui estamos. De nada adiantou tentar
me evitar.
Cerro os punhos com força, tentando não perder o controle com
Francine. Estou tão tomado de raiva que nem a vejo se aproximar de mim e
me segurar pelos braços.
— Sinto sua falta, Pierre… Estamos mesmo jogando tanto tempo de
namoro fora por tão pouco?
Ao notar seu toque em mim, me afasto como se tivesse levado um
choque.
— Não. Você sente falta de me controlar, controlar minha vida. Está
me atazanando porque não consegue aceitar que agora não pode mais ter
controle sobre mim e não suporta a ideia de que sou um homem livre. Livre
das suas histerias, paranoias e agressões. Livre de você.
Estou passando por ela para sair, mas Francine me agarra pelo braço.
— Não pense que vou desistir de você, de nós.
— Nós terminamos — lembro-a, mas não deveria ser necessário. — Há
três semanas. Me deixe em paz.
Desvencilho-me do seu toque e me retiro.

Estou terminando uma curetagem quando a enfermeira da minha equipe


surge na sala e me informa do despertar de Juliette Gautier. Agradeço pela
informação e termino o procedimento. Minha paciente precisará de uma
assistente social e acompanhamento psicológico. Além de um obstetra
melhor. É sua quarta gestação, e o quarto aborto espontâneo antes de
completar o primeiro trimestre. Ela precisará de tratamento e
acompanhamento de perto. Entrego um cartão de visitas, caso ela queira ir até
a clínica onde atuo intercalando com meu plantão no hospital.
Higienizo-me rapidamente, confiro caneta, receituário, estetoscópio,
pego o tablet com o prontuário da paciente e sigo até seu quarto. Quando
chego, meu peito dá uma leve apertada, pois tenho a impressão de vê-la
secando uma lágrima.
Tudo que consigo fazer é abrir um pequeno sorriso e me aproximar,
mantendo-me em silêncio.
— Juliette Gautier, não é? — pergunto a única coisa que surge na
minha mente para quebrar o silêncio. É uma constatação óbvia, mas, por
algum motivo, não consegui encontrar nada mais adequado do que confirmar
seu nome e sobrenome.
Como resposta, apenas acena em positivo.
Estou tentado a ficar olhando-a, compadecido da sua situação,
admirado pela sua beleza que, por trás de todos machucados e hematomas,
sei que existe. Para não parecer inconveniente, baixo meus olhos para o
aparelho eletrônico como uma forma de buscar a próxima informação,
embora não precise dela.
— Grávida de oito semanas. Descobriu sua gravidez hoje?
Com um suspiro, ela balança a cabeça em negativo. Estranho o fato de
ainda não querer se comunicar por palavras e a encaro, seriamente
preocupado. Talvez esteja em estado de choque. Por isso, me viro, caminho
até a porta e chamo uma enfermeira. Peço a ela para chamar um psicólogo e
para me trazer um sonar. Volto um instante mais tarde.
— Há quanto tempo sabe que está grávida? — questiono, e novamente
tenho a necessidade de fugir dela, de entreter-me mirando as informações
clínicas dela em minhas mãos. Não sei por que isso. Pondero que seu estado
me causa desconforto. Deus, ainda não me conformo com o que fizeram a
ela.
Juliette faz um segundo de suspense e, por fim, engolindo em seco,
ergue o indicador. Considero isso como um dia que descobriu a gravidez. O
que nos leva ao dia anterior.
— Descobriu ontem, então? — indago, para confirmar se compreendi
corretamente a sua mímica. Ela assente com a cabeça, parecendo aliviada por
compreendê-la com facilidade.
Anoto a informação no seu prontuário eletrônico.
— Você teve uma concussão — explico, erguendo meu olhar ao seu
outra vez. — Precisará ficar em observação por dois dias, mas pretendo te
manter aqui um pouco mais que isso por causa do bebê e dos seus ferimentos,
dentre eles duas costelas quebradas. Não encontramos nenhum contato de
urgência em seu celular. Quer que eu avise alguém sobre seu estado? Pai,
mãe, marido…?
Ela nega outra vez, ainda se recusando a se comunicar de forma oral.
Demoro a notar que a fito por longos segundos, perdido nos meus próprios
pensamentos, questionando-me se ela realmente não tem ninguém. O que
aconteceu com seus pais? E o pai do bebê?
De repente, me dou conta de que sequer me apresentei.
— Que descuidado eu sou — falo. — Sou Pierre Laurent.
Ginecologista e obstetra. Vou cuidar de você e do seu bebê enquanto
estiverem aqui.
Sua resposta é apenas um sorriso pequeno. Suas mãos contornam o
ventre de um jeito bastante protetor. Observo-a, sem reparar na singela
felicidade que me toma pela imagem diante dos meus olhos. Uma enfermeira
bate à porta no instante seguinte, interrompendo o momento, libertando-me
das minhas divagações e me entregando o sonar.
— Merci — agradeço e ficamos sozinhos novamente. Volto-me para
ela e pergunto: — Quer ouvir os batimentos do seu filho? — Seus olhos
lacrimejam na mesma hora, enquanto confirma com outro gesto de cabeça.
Preparo-me, vestindo um par de luvas descartáveis. Levanto
delicadamente sua roupa hospitalar, expondo sua barriga gestacional
pequenina. Durante alguns segundos, ajusto o sonar até que, de repente, as
batidas fortes, rápidas e saudáveis de seu bebê preenchem o quarto. Vejo a
emoção tomar conta dos seus olhos e se verterem em lágrimas tímidas.
Juliette fica concentrada ouvindo os batimentos cardíacos, como se qualquer
mínimo ruído pudesse atrapalhá-la de vivenciar esse momento tão único.
Estou para abrir a boca e explicar que, pela quantidade de batimentos
por minuto, seu filho está saudável, mas a porta do quarto se abre e
interrompe minha ação. Um homem, com semblante cheio de preocupação,
bem-vestido e alto, entra no cômodo. Pela preocupação no seu rosto, pondero
que se trata de alguém que se importa com ela. Talvez o pai do bebê?
— Salut, ma chère — cumprimenta-a e, olhando com atenção o estado
vulnerável dela, completa: — Que susto você nos deu.
Juliette nada responde; nada além de um suspiro. Seus olhos
estacionam no meu por um segundo e depois retornam para sua barriga,
voltando a prestar atenção às batidas do bebê.
— Seu bebê está bem — digo, por fim, novamente quebrando o
silêncio constrangedor que se apossou do cômodo. — Os batimentos estão
fortes e saudáveis. — Guardo o sonar e arranco as luvas, descartando-as no
lixo. — Vou marcar um ultrassom transvaginal pra que você possa vê-lo,
tudo bem?
O ultrassom vai permitir sabermos suas semanas gestacionais com mais
precisão, além de conferirmos o peso e tamanho do bebê, que ainda é um
feto.
Enquanto baixo sua roupa hospitalar e cubro sua barriga, sinto-a me
olhando e fico tentado a devolver o olhar. Ao invés disso, viro-me para o
homem que adentrou o recinto há pouco e me apresento:
— Pierre Laurent. Ginecologista e obstetra. Você é o pai do bebê? —
especulo, de um jeito que soa muito antiético para meus ouvidos. Não era
exatamente essa pergunta que deveria ter feito, nem com essas intenções de
querer saber mais sobre Juliette, nem me preocupar se ela é mãe solteira,
como tenho ponderado, mas minha curiosidade venceu.
— Non — nega. — Bernardo Dousseau. Juliette é minha funcionária —
informa, aproximando-se dela e pegando-a pelas mãos. Pela mudança sutil da
expressão em seu rosto, foi pega de surpresa. Apesar do toque, a moça não o
olha de volta, talvez envergonhada de alguma coisa. Do que exatamente?
Bernardo a acaricia nos cabelos e, nesse momento, Juliette cai em um
choro tímido, apertando os dedos dele contra os seus, num ato que entendo
como de desespero. Então, me dou conta de quem é ele. A pessoa que a
encontrou espancada atrás de uma cafeteria. Começo a compreender que seu
choro talvez não seja de vergonha, ou apenas de vergonha, mas deve ter
algum sentimento de gratidão.
— Já sabem quem possa ter feito isso com ela? — pergunto, rompendo
o instante entre eles por um segundo. — Ela não disse uma palavra desde que
acordou. Está em estado de choque. Já chamamos um psicólogo para
acompanhamento.
— Não sabemos — Dousseau responde. — A polícia está trabalhando
nisso.
O modo como me responde, sem me olhar, sua atenção toda em
Juliette, me dá a deixa de que precisam de um instante a sós. Sendo assim,
decido deixá-los conversar.
— Certo. Vou deixar vocês a sós. Se precisarem, é só chamar.
No lado de fora, recosto-me à porta por alguns segundos, tomo ar para
os pulmões e me obrigo a me concentrar em outros pacientes, e não somente
nela e no que possa ter acontecido.
JULIETTE
— Importante? — pergunto, notando que Dousseau se distraiu lendo
uma mensagem no celular.
Estou na gerência da cafeteria, ajudando-o com o balanço de lucros do
mês. Ele não é de se distrair, a menos que isso envolva algum rabo de saia.
Ultimamente, observando-o, tenho notado que ele está bastante interessado
em Ann-Marie Leclerc. Pouco mais de uma semana atrás, inclusive, ela veio
aqui, sozinha, muito provavelmente escondida do marido e perguntou de
Bernardo para outra funcionária. Ele logo saiu do escritório e foi atendê-la; os
dois conversaram numa mesa mais reservada. A mulher tinha alguma coisa
em mãos, mas pela distância em que estavam, e como meu patrão estava
sentado de frente para ela e de costas para mim, não pude ver com exatidão
do que se tratava. Conversaram por algum tempo e depois a mulher foi
embora, meio de rosto corado.
Tenho uma vontade imensa de contar tudo a Antony, da sua vinda aqui,
do modo como Dousseau a olha e das minhas suspeitas de que eles têm um
caso. Conheço meu chefe bem o suficiente para saber quando está se
envolvendo com uma mulher. A novidade é que nunca o vi com alguém
casado. Só não faço isso porque posso me comprometer e prejudicar
Bernardo, duas coisas que não quero nesse momento.
— Não — responde. — É uma mensagem de Emilien. Quer que eu leve
companhia na festa dele, amanhã. Estava pensando em quem levar.
Emilien vai oferecer outra festividade na sua mansão. Alguma coisa
sobre uma viagem à África. O homem é um filantropo ativo, vive apoiando
causas e criando eventos beneficentes. Recordo-me de, noites atrás, meu
amante ter resmungado algo sobre Dupont ter convidado Bernardo. O tom de
voz dele demonstrou que o convite não o agradou nem um pouco. Quis
perguntar o que aconteceu que os dois se desentenderam de uma hora para
outra, saber com mais detalhes, uma vez que todas as informações que recebi
foram evasivas e desconexas. Ainda não compreendi os fatos. Leclerc é um
cliente fiel e, apesar de ele e Dousseau não serem amigos muito próximos,
tinham um nível de amizade, daqueles de, de vez em quando, se sentarem em
uma das mesas da cafeteria e tomarem um café. Minha única certeza é que a
tal discussão entre os dois envolveu Ann-Marie. Mesmo curiosa por mais
detalhes, preferi não perguntar nada. Antony tem pavio curto; se insisto muito
em assuntos que o desagradam, o homem fica explosivo. Por isso, evito.
Aceito sua resposta e apenas aceno, tonando a analisar os papéis em
minhas mãos.
Um segundo depois, Bernardo pergunta:
— Quer ir comigo?
Seu convite me pega de surpresa, deixando-me meio confusa. Para
confirmar se que entendi direito, indago:
— À festa do monsieur Dupont?
— Oui — confirma.
Penso por um segundo, avaliando seu convite. Se eu aparecer nessa
festa, Antony poderá ficar furioso por dois motivos. Primeiro, porque estarei
acompanhada de Bernardo, e como os dois estão com algum tipo de
inimizade, fica bastante claro que estar junto dele vai desagradá-lo. Segundo,
porque pode acreditar que estou o perseguindo com a intenção de criar algum
conflito com a esposa, o que jamais seria o caso. Ele me prometeu que vai se
divorciar assim que seus negócios com Emilien se concretizarem. Após uma
breve avaliação, decido que vou, sim, acompanhar meu chefe. Ora, eu ainda
tenho o direito de ir e vir com quem e onde bem entender.
— Tudo bem — aceito, sorrindo pequeno.
Como resposta, ele diz:
— Te pego às sete.
Pontualmente, Bernardo aparece em minha casa, elegante dentro do seu
terno. Seguimos até a mansão de Dupont, que está toda iluminada. Há
diversos convidados em seus trajes finos e caríssimos espalhados por todo o
jardim extenso. Enroscada aos braços dele, caminho com cuidado em meus
saltos, absorvendo todo o requinte que o dinheiro pode proporcionar. Não
vou mentir: estou bastante encantada. O luxo sempre chama a atenção e
encanta.
Cautelosamente, ele nos guia até o alpendre na entrada. No hall
principal, a decoração é ainda mais requintada, com mesas postas e cheias de
aperitivos, e centenas de convidados de todos os ramos, mas igualmente
ricos, além celebridades parisienses. Bernardo não é nenhum multimilionário,
mas sua rede de cafeterias gourmet na França, com uma filial inclusive no
Brasil em sociedade com um amigo brasileiro, garante que sua conta bancária
tenha um bom número de zeros, mais do que eu teria mesmo se trabalhasse
em dois empregos por uma vida toda.
Cumprimentamos algumas pessoas que conhecemos e que passam por
nós quando adentramos o salão. Um garçom nos oferece bebida e petiscos.
Bernardo aceita o champanhe, e faço o mesmo. Rodamos pelo ambiente por
uns dois minutos, meus olhos vasculhando tudo e todos à procura de quem de
fato me interessa. Meu coração até bate um pouco mais acelerado quando
penso na reação que ele terá ao me ver.
Talvez esteja com Emilien; ultimamente, desde que começaram a fazer
negócios juntos, Antony não tem desgrudado dele. Uns dois minutos depois,
avistamos Dupont em um canto, acompanhado de Marie — uma cliente da
cafeteria que virou amiga/uma das amantes de Bernardo. Pelo que ouvi dela
outro dia, enquanto tomava um café e conversava ao telefone, fará uma
matéria sobre a filantropia do anfitrião da festa no continente africano.
Ao contrário do que pensei, Antony não está junto do amigo. Bernardo
me arrasta até lá. Quando nos vê, Dupont para de conversar com o homem
em sua presença e abre um sorriso enorme, enquanto o abraça e diz que está
feliz pela presença dele.
— Você já conhece a mademoiselle Gautier, minha gerente — meu
patrão diz, apoiando a mão na minha cintura e me trazendo um passo à frente.
Emilien abre outro do seu sorriso encantador e receptivo e me cumprimenta
com um beijo respeitoso.
— Sintam-se à vontade, Dousseau. Comam e bebam o quanto quiser —
diz, após apresentar-nos ao empresário em sua companhia.
Dando uma última olhada em volta, ergo-me nos pés e cochicho ao
ouvido dele:
— Vou andar um pouco pelo jardim e pelo salão, tudo bem?
Bernardo acena em positivo ao mesmo tempo em que Marie se enrosca
no braço dele e começa a afastá-los de perto de Emilien, que se distraiu
falando de negócios. Deixo-os um na companhia um do outro e percorro o
espaço atentamente. Passo pela mesa de petiscos e surrupio alguns
tomatinhos. Saio do salão principal, desço os degraus do alpendre e
desemboco no jardim. Exploro um pouco mais a noroeste do terreno,
passando por luminárias elegantes e por uma piscina enorme. À borda dela,
mais convidados conversam e riem, degustando os tira-gostos e bebidas. Uma
garçonete me aborda e me oferece outra taça de champanhe, uma vez que a
minha já está vazia. Aceito e faço a troca.
Vou caminhando por todo local, meus olhos vasculhando tudo com
cuidado, à procura dele. Droga, onde esse homem se meteu? Tudo bem que a
residência é bem grande, mas a maioria das pessoas está concentrada em um
espaço pequeno. Não tem como Antony estar em qualquer outro lugar.
Aperto minha bolsinha a tiracolo um pouco mais contra meu corpo e presto
atenção aos meus saltos fincando no gramado. Preciso de qualquer coisa,
menos de um tombo.
Contorno toda a mansão até chegar a uma porta mais aos fundos. Dou
uma espiadela e constato que é a cozinha. Há homens e mulheres andando
para lá e para cá, trajando uniformes. Funcionários do buffet. Quando me viro
para retornar aonde acontece a festa, dou um saltinho ao me deparar com seus
olhos claros, assustada com sua presença.
— Juliette! — exclama, surpreso com minha presença.
Ora essa, também estou surpresa com a presença dele. Que raios está
fazendo aqui? Analiso-o por um segundo. O terno e gravata bem-passados e
ajeitados no seu corpo, o quepe entre os dedos.
— Adrien, que susto você me deu! — digo, exasperando um suspiro e
levando a mão ao coração. — Por que está aqui? — pergunto, esquivando-me
de seu porte grande. Minha bunda roça levemente na parede antes de eu
tornar a caminhar lentamente de volta à festa.
Meu primo me acompanha, ajeitando o quepe na cabeça.
— Estou a trabalho. Vim trazer o seu Ferdinand — responde, olhando
mais ao redor e parando de caminhar quando nota para onde estou indo.
Também paro e me viro para ele, que tem os olhos fixos nos convidados mais
ao longe, divertindo-se.
Entendendo que ele prefere não se misturar com os ricaços, retorno
alguns passos e caminho na direção contrária. Ele volta a me acompanhar e
indaga:
— E você? O que está fazendo aqui?
— Meu patrão precisava de uma companhia, por isso me convidou.
Meu primo abre um pequeno sorriso, me avalia por um breve segundo e
me elogia.
— Posso te fazer uma pergunta? — questiona, molhando o lábio
inferior.
— Faça — devolvo, prestando atenção na sua linguagem corporal.
— Viu se Marjorie está aí?
Ergo uma sobrancelha.
— E por que ela estaria aqui?
— Porque o monsieur Dupont é ex-noivo dela. Seu Ferdinand foi
convidado, mas não sei da filha. Se bem que… — reflete, respondendo à
própria pergunta: — Acho que ela foi para Milão com uma estilista para
quem estava desfilando. Não sei direito. — Balança a cabeça em negativo. —
Esqueça que te perguntei isso. Mesmo se tivesse vindo, não faria diferença.
A informação é interessante.
— Eu não sabia que a Marjorie era ex-noiva do Emilien. Ele sempre
me pareceu um homem bastante sozinho. Eu mesma nunca o vi na companhia
de alguma namorada…
— Você o conhece? — Adrien inquire, meio surpreso.
— Sim. Ele frequenta a cafeteria e é amigo do Antony… — falo,
suspirando no último nome. Torno a olhar ao redor, com uma expectativa
boba de encontrá-lo, enquanto mordo o lábio inferior.
Um silêncio repentino nos ronda. Ao longe, música e conversas.
— Está falando do seu amante? — O tom do meu primo não é nem um
pouco agradável.
Volto meu olhar para ele, assustada com como consegue compreender
as coisas com facilidade. Nunca mencionei o nome de Antony em sua frente.
Depois daquele nosso almoço no Le Procope, uns dois meses atrás, não disse
mais nada a respeito do meu envolvimento com um homem casado.
Pretendia, na verdade, não contar nada até que não fosse mais comprometido.
— Juliette — o tom é de advertência —, não se afastou do homem
depois daquele dia que conversamos?
Suspiro e engulo o restante do meu champanhe de uma vez só. Não
estou com paciência para os sermões de um rapaz de vinte e cinco anos que
tem medo de se aproximar da filha do chefe.
— Eu não pude — respondo, baixando o olhar. — Gosto dele, Adrien,
de verdade.
O homem balança a mão no ar, em um gesto de completo descaso e
desdém.
— Ainda bem que você quem pagou a conta naquele dia. Imagina eu ir
lá, perder meu horário de almoço e alguns euros que não caberiam no meu
orçamento pra você simplesmente jogar meus conselhos pela janela!
Francamente, Juliette.
— Não seja dramático. — Faço biquinho, aproximando-me dele e o
envolvendo pelo pescoço. — Você, mais do que ninguém, sabe que a gente
não manda no coração.
— Não, mas somos responsáveis pelas nossas escolhas e atitudes —
fala, suavizando um pouco a expressão e segurando minha cintura. —
E você pode mandar nas suas escolhas e atitudes. Não vou ficar aqui
te dando sermão ou te dizendo o que deve ou não fazer da sua vida, até
porque você é uma mulher adulta, mas ao menos uma vez pense no que te
digo. E tome cuidado.
Sorrio e o abraço apertado. Penso em dizer que suspeito sobre as
traições de Ann-Marie, mas descarto, já conhecendo que tipo de respostas
terei. Algo como “o erro dela não justifica o seu” ou “vocês duas estão
erradas”.
Um pigarro atrás de nós interrompe o momento. Quando giro nos meus
calcanhares, dou de cara com Antony nos observando atentamente, o
semblante nada feliz, sobrancelhas vincadas, corpo meio retesado, lábios
apertados em uma linha fina. Bem cara de poucos amigos. A luz da cozinha
incide às suas costas, criando um aspecto nele meio intimidador.
Meu coração dá um salto dentro do peito, meio violento e
descompassado, e não sei se o motivo é porque ele está bonito e isso mexe
comigo, ou se por causa da sua postura descontente, o ciúme quase pulando
dos seus olhos por causa de Adrien. Afasto-me do meu primo rapidamente, à
medida que ele dá dois grandes passos e se aproxima de mim, deixando-me
entre os dois.
Viro-me para Adrien, que me olha de volta com os olhos semicerrados,
como se perguntasse de quem se trata. Um segundo mais tarde, parece
exatamente saber quem é o homem que nos interrompeu, e de confuso, seu
rosto vai para decepcionado.
— Até mais, Juliette — ele se despede, enfiando o quepe na cabeça e se
retirando em direção à área dos funcionários.
Acompanho-o até que minha visão é obstruída pelo semblante sisudo
do meu amante.
— Seu namoradinho? — praticamente rosna.
Pisco diversas vezes, assimilando sua pergunta descabida. Um tremor
esquisito atravessa meu corpo por conta da sua insinuação. Tenho suportado
dividi-lo com a mulher, estou esperando-o resolver sua vida para pedir o
divórcio, e ele me vêm com esse tipo de desconfiança sem pé nem cabeça?
— Meu primo — informo e completo em seguida: — Não precisa fazer
essa cara, Tony.
— Que cara? — indaga, quase como um cão raivoso. Dá um último
passo à frente e me segura pelos braços. — A cara de quem pegou a mulher
que ama se esfregando em outro macho?
Empurro-o delicadamente, desagradando-me do seu ciúme sem
cabimento.
— Estava apenas trocando um abraço. Adrien é como um irmão para
mim — explico. Antony suaviza a expressão, e eu o envolvo em meus
braços. Olho para os lados antes de beijar sua boca, afundando meus dedos
em seus cabelos. Ele retribui, apertando minha bunda com a possessividade
de sempre. — Eu amo você.
Seus olhos brilham por um instante antes de ele me tomar em outro
beijo desvairado. Dura só um segundo.
— O que está fazendo aqui? — Quer saber.
— Bernardo me convidou.
O semblante dele muda outra vez, mas é diferente. É uma expressão
mais de raiva do que de ciúmes. O que de novo me dá uma sensação estranha
de ciúme ao pensar que meu amante ainda se importa com a esposa, mesmo
minimamente.
Estudo sua feição enquanto me fita após mencionar o nome do meu
patrão. Aos poucos, a raiva vai dando lugar ao desejo. Em um segundo, ele
me puxa pelos punhos e murmura:
— Venha — Quero saber aonde vamos. — Matar minha saudade de
você — responde, passando pela porta da cozinha e contornando a mansão.
Ele vai tateando as paredes externas até que encontra uma porta de vidro; o
cômodo do outro lado está submerso na escuridão.
— Antony… — cicio quando ele me empurra para dentro.
Desvio-me do que me parece uma poltrona.
— Estive aqui mais cedo — responde de volta, no mesmo tom. —
Conheço a mansão — fala, encostando a porta vagarosamente. Torna a me
pegar pelo punho e, provando que de fato conhece o local, me puxa e
desembocamos em um corredor à meia-luz. Ao olhar para o outro lado, posso
ver as luzes da festa, ouvir as conversas animadas.
Ele me leva na direção contrária, o corredor cada vez mais escuro,
viramos à esquerda e subimos um pequeno lance de escadas. O corredor aqui
em cima é menor, mas escuro da mesma forma. Antony dá três ou quatro
passos, abre outra porta e acende a luz. O cômodo se revela um quarto
pequeno. Tem uma cama de solteiro, uma televisão, um guarda-roupa com as
portas abertas e vazio, uma mesinha de cabeceira e um banheiro singelo do
outro lado. Estou assimilando e compreendendo que estamos na área dos
empregados quando a mão forte dele toma minha cintura e me puxa para sua
boca desesperada.
Dou espaço para sua língua e me entrego, procurando com dificuldade
a fivela do seu cinto. Leva apenas um minuto para estar deitada na cama,
pernas abertas, ele dentro de mim, metendo com o vigor de sempre.
Quando terminamos, fico sozinha só por um minuto. Antony vai ao
banheiro se limpar e descartar a camisinha, o que me permite refletir sobre os
últimos minutos — mais especificamente sobre o ciúme que demonstrou ter
de Adrien. Ele nunca tinha demonstrado isso antes. Admito que não gostei do
seu tom de voz comigo, mas não consigo ignorar que seu ciúme é porque se
importa, porque me ama. Não posso ser hipócrita e dizer que não sinto
vontade de pular no pescoço dele só de imaginá-lo com a esposa, então sou
capaz de compreender o sentimento.
— Provavelmente, farei uma viagem dentro de três dias — ele diz,
surgindo no quarto, terminando de secar o rosto. — Para Lyon. Emilien me
comunicou há alguns dias, mas não é nada certo. Ele me assegurou que me dá
uma resposta definitiva ainda hoje. Vai entrar de férias essa semana, estou
certo?
Abro um pequeno sorriso e afirmo, levantando-me da cama. Caminho
rapidamente até o banheiro e me limpo o quanto posso. Antony me segue,
recostando-se ao batente e terminando de dizer:
— Se essa viagem for confirmada, gostaria que fosse comigo.
Ajusto meu vestido no corpo e o olho, meio encantada com o convite.
Será nossa primeira viagem juntos.
— Mas, e sua esposa? — questiono. — Ela não vai querer ir com você?
Antony balança a cabeça em negativo.
— Ann-Marie odeia essas viagens a negócios. Não se preocupe.
Ele vem até mim e me agarra de novo, acariciando meus cabelos e
sorrindo.
— Você vem, não é? Darei um jeito de passar algum tempo com você.
— Eu vou — confirmo.
Antony me dá outro do seu sorriso estonteante e me beija pela última
vez, muito intenso, muito forte, quase como se quisesse me comer de novo.
— Volte pelo mesmo caminho que viemos — sussurra. — Preciso
voltar antes que minha esposa dê minha falta — fala. O desagrado quase
consome meu corpo, mas me esforço para não o demonstrar.
Meu amante sai na frente. Espero um minuto antes de fazer o mesmo.
Mal dou dois passos e esbarro em um peito duro. Ergo os olhos e me deparo
com um olhar severo sob um quepe preto.
— Você não tem jeito — murmura, balançando a cabeça em negativo.
Passo por ele, dispensando seus conselhos. Ele não sabe nada sobre
minha vida e meus sentimentos. O homem vem no meu encalço e me segura
pelos braços. Vira-me em sua direção e já estou pronta para mandá-lo pastar
quando noto que seu rosto está mais suave.
— Escute… Só tome cuidado, tu vois? — “Você entendeu?” — Acabei
de esbarrar com ele e não gostei do modo como me olhou, como me avaliou.
Juliette — sua voz é um mero sussurro amedrontado —, fique atenta aos
sinais. — Antes que eu possa perguntar “Que sinais?”, Adrien deixa um beijo
na minha testa e vira nos calcanhares.
Homem maluco. Aliás, de onde foi que ele saiu? Se esbarrou com
Antony, deve ter sido por esses corredores; deduziu que eu estava por aqui e
veio confirmar ou descartar. De repente, dou-me conta de que sumi já tem
uns vinte minutos ou mais. Bernardo deve até estar atrás de mim. Refaço o
caminho de volta rapidamente e só quando estou no jardim me dou conta de
que não conferi minha maquiagem depois da transa. Retiro um espelho de
mão de dentro da minha bolsinha a tiracolo e verifico meu batom e
delineador. Tudo no lugar. Merci, mon Dieu.
— Gautier… — alguém me chama, assustando-me. Ao erguer os olhos,
ajeitando levemente meus cabelos, me deparo com Dousseau.
— Oi, Bernardo — cumprimento-o, forçando um sorriso.
Sem dizer nada, me oferece seu braço. Fico sem entender direito e o
olho por um segundo inteiro antes de aceitar e me enroscar a ele. Juntos,
retornamos ao salão principal.
— Onde você estava? — pergunta.
Penso um segundo e pego outra taça de champanhe quando uma
garçonete passa ao nosso lado. Depois de um gole generoso, respondo:
— Estava conhecendo a mansão. É um lugar muito bonito, não acha?
Ele sorri e afirma; aproximando-se da mesa, rouba alguns aperitivos.
— Monsieur Dousseau! — alguém exclama, e ele se vira na direção da
voz. Quem o cumprimentou é René Deschamps, um cliente da cafeteria, que
se aproxima acompanhado de Antony e sua esposa. Um ciúme malditamente
grande entala na minha garganta e preciso me esforçar para manter a postura.
Que Deus me ajude a aturar essa noite.
PIERRE
— Seu plantão já não acabou? — Francine pergunta, adentrando a sala
dos atendentes.
Inspiro profundamente antes de erguer o olhar do celular e encarar seus
olhos castanhos. Ela está do mesmo jeito de mais cedo: jaleco branco,
cabelos amarrados em um rabo de cavalo e um sorriso que anos antes me
encantou, mas agora me irrita.
— Já, mas decidi ficar — esclareço, tornando a olhar para a tela do
meu telefone, conferindo minha agenda para o dia seguinte da clínica. A
verdade é que estou procurando alguma brecha nos meus horários para poder
voltar aqui amanhã.
Minha ex-namorada se aproxima e, só quando se senta de frente para
mim, noto um copo de isopor nas mãos. Chá de camomila, pelo aroma da
fumaça que serpenteia direto para meu olfato. Francine odeia café.
— É por causa da paciente nova? — especula.
Quero dizer que não, mas seria uma mentira das grandes.
— Sim. — Pego-me respondendo e me arrependo um segundo depois.
Não devo mais satisfação nenhuma a Francine. Eu bati ponto, então
tecnicamente já fui embora. Contudo, enquanto me preparava para ir para
casa e dormir um pouco, algo me fez recuar. Continuo preocupado com os
exames de Juliette. Alan me garantiu apenas uma concussão na cabeça, mas
quero uma segunda ressonância feita com contraste, só para termos certeza.
Quero que Gautier refaça o exame, se assim ela quiser e puder, para descartar
qualquer risco ou lesões que tenham passado despercebidos. Quero
acompanhar o processo, os resultados e as novas avaliações e prognósticos. A
ideia me parece péssima quando me recordo de que Perrot é quem está à
frente desse caso na parte da neurologia, o que significa ter de trabalhar com
ela.
Merde.
— Por quê? — indaga, seus olhos semicerrando em minha direção. —
É só uma paciente — aponta, tomando um pouco do seu chá.
— Não é só uma paciente, Francine — rebato, incomodado com a falta
de sensibilidade dela. — É uma mulher grávida, que foi agredida sabe-se lá
por que e por quem, que precisa dos nossos cuidados. Desculpe se estou
tomando todas as precauções para que ela saia bem deste hospital. — Nas
últimas palavras, minha voz fica mais alta e aguda.
Obrigo-me a ficar calmo de novo. Não sou de perder a paciência com
facilidade. Na verdade, sou calmo até demais. Mas algo no desprezo dela
diante desse caso delicado, o modo como olha para mim, como se insinuasse
alguma coisa, deixa-me enojado e enraivecido. Não é só mais uma paciente, é
a minha paciente. Se ela trata os seus casos como “só mais um”, sem nenhum
tipo de humanidade e empatia, então ela não deveria exercer a medicina.
— Ficou alterado, Pierre. — Segue com seu tom de deboche, querendo
me provocar e me desequilibrar. — Já está envolvido emocionalmente com a
moça? — indaga, abaixando vagarosamente seu copo de isopor sobre a mesa.
— Você nunca soube separar o profissional do pessoal.
— Deve ser por isso que dormi com você, minha residente na época. E
quer saber? Das escolhas mais idiotas que fiz, você está em primeiro lugar —
rebato, levantando-me do meu lugar, pronto a deixar a sala. Vou aproveitar
para tirar um cochilo até eu poder examinar Gautier novamente.
Francine não se vira para mim ao dar uma risadinha sarcástica. Estou
chegando à porta quando ouço seu deboche.
— Vejo você em meia hora, no quarto da sua paciente — diz,
despreocupadamente. — Vou conversar com ela, então… — E deixa a frase
no ar.
Eu não me viro para ela. Aperto meu punho e trinco o maxilar, cansado
dessas provocações. Francine sabe como me perturbar. A ideia de arrumar
uma vaga em outro hospital começa a ganhar mais força na minha cabeça.
Preciso ficar longe dessa mulher.

Respira, Pierre. Respira.


Repito essas palavras para mim como se fossem um mantra sagrado,
enquanto caminho até os aposentos de Juliette. Francine já deve estar lá e
preciso de todo o meu controle mental para suportá-la. No começo, eu sabia
que seria complicado trabalhar no mesmo ambiente da mulher com quem
passei quase uma década da minha vida.
Era meu último ano como interno, aos vinte cinco anos, quando a
conheci. Perrot se dedicava ao seu segundo ano na residência. Meses depois,
nos atravancávamos escondidos em um sexo quente e gostoso depois de um
plantão intenso. Era bom para aliviar a tensão e manter a mente e o corpo
sãos para aguentar a pressão da nossa profissão. Não sei exatamente em que
momento iniciamos uma relação séria. Só sei que até três semanas atrás,
dividíamos a mesma casa já havia bem uns três anos e éramos monogâmicos.
Também não consigo precisar com exatidão em qual ponto
desandamos. Os ciúmes, as cobranças, as pressões e paranoias de Francine
começaram muito sutilmente, tão sutilmente que não sou capaz de me
lembrar quando ela se transformou na pessoa maravilhosa que conheci em
uma megera descontrolada que chegava a me seguir para saber se não estava
a traindo. Foi tão sutil que demorei a notar os sinais, acreditei nas suas
promessas de mudanças, cansei de dar segundas, terceiras, quartas, quintas
chances, acreditando que era só uma fase, que ela estava insegura por conta
de relacionamentos passados.
Três semanas atrás, me dei conta da relação tóxica em que estava
inserido. A mulher precisou chegar ao extremo para eu notar o quão
desequilibrada ela é e como nossa vida a dois estava acabando comigo pouco
a pouco. Tudo por conta de uma confusão. Estava para encerrar o meu
plantão, já tinha inclusive batido o ponto e tirado toda minha roupa, quando
recebi uma ligação de uma paciente em trabalho de parto. Uma mulher de
trinta e nove anos com contrações a cada sete minutos que queria um parto
humanizado em casa. Eu acompanhava o caso dela de perto e sabia que ela
não ia confiar em ninguém mais para trazer seu filho ao mundo senão eu. Ela
me pediu para ir até sua casa, então eu fui, com uma pequena equipe. Passei
as próximas doze horas com minha paciente, isolado do mundo. Oito horas
em trabalho de parto e mais quatro no pós-parto. Eram seis da tarde quando
finalmente liguei o telefone e recebi uma enxurrada de mensagens e ligações
não atendidas da minha namorada.
Quando cheguei em casa, fui recebido com tapas e arranhões, Francine
me xingou de todos os nomes possíveis, dizendo como eu era um canalha
sem escrúpulos, exigindo saber onde eu estava, com quem estava. Édouard,
em um canto da sala, assistia à “nossa” briga, chorando timidamente. Tentei
me explicar, dizer que tinha ido fazer um parto humanizado, por isso não me
encontrou no hospital, mas não tive tempo. A mulher começou a fazer
escândalo, arrancou todas as minhas roupas e pertences do quarto e jogou
tudo no quintal. Assisti, horrorizado, à cena de ela desvairada, jogando
minhas coisas pela janela, gritando comigo e dizendo que não ia aceitar ser
traída e ficar quieta. Tentei acalmá-la, impedi-la de arremessar meu
notebook, meu aparelho de som, meus perfumes, meu tablet, meu Kindle,
minhas roupas, mas ela parecia possuída.
No final disso tudo, juntou os meus pertences em uma pilha. Achei que
ela fosse fazer uma mala e me mandar embora, o que eu teria feito sem
resistência nenhuma porque aquela situação me fez perceber que precisava
dar um basta numa relação abusiva, mas não. Ela juntou tudo em uma pilha,
espalhou álcool e riscou um fósforo.
Enquanto todos meus bens, objetos, roupas e documentos crepitavam
na frente dos meus olhos, jurei para mim mesmo que Francine seria
erradicada da minha vida. Ela me olhou com seu ar superior e vingativo, e eu
devolvi o olhar, mas enojado e me perguntando o que mesmo tinha visto nela.
Virei as costas e voltei para dentro de casa, peguei meu sobrinho no colo e fui
para casa do meu irmão.
Foi difícil na primeira semana. Eu tinha uma rotina com ela, uma vida,
uma relação estável de oito anos. Um relacionamento longo assim é sempre
difícil de abrir mão. Mas na segunda semana, quando notei que não havia
trezentas ligações e quinhentas mensagens, que não tinha que ficar dando
satisfação de onde estava, ou porque estava conversando com a enfermeira do
terceiro andar, ou porque demorei dez minutos a mais que o habitual para
chegar em casa; quando notei que chegava, preparava o jantar, cuidava do
meu sobrinho e tudo estava na santa paz, sem discussões desnecessárias, vi
que estava feliz. E bem. Notei que nos oito anos em que vivi com Francine
não tive um instante de paz realmente. Naquele momento, vivendo com
Étienne, por mais que ele continuasse na sua busca insaciável de encontrar a
mulher e seguisse ignorando o filho, eu estava vivendo melhor.
Meu único problema continua sendo o trabalho. Às vezes, as escalas
dos nossos plantões coincidem, como é o caso dessa semana. Mesmo quando
não coincidem, ela me atormenta de qualquer maneira. Liga infinitas vezes,
me manda mensagens, pega meus pacientes. Inferno. Francine começou a
atazanar minha vida imediatamente uma semana depois de toda a merda que
fez lá em casa. Descobriu pela equipe que eu estive fazendo um parto
humanizado, e é claro que a porra do arrependimento bateu.
— Pode entrar, doutor Laurent. — Sua voz soprano soa aos meus
ouvidos. Ergo o olhar, dispersando meus pensamentos e me dando conta que
já estou no umbral da porta do quarto de Gautier.
Francine está próxima à cama dela, com um sorriso conciso, mãos nos
bolsos.
— Estávamos apenas esperando por você.
Engulo em seco e me aproximo.
— Como está se sentindo? — indago, colocando-me ao lado de
Francine. Sinto seu olhar em mim, mas me concentro na minha paciente, seu
rosto ainda em estado crítico que não me permite ver com clareza seus
contornos femininos.
— Bem… — responde, a voz saindo levemente anasalada. — Já me
medicaram, então estou com menos dor e consigo respirar melhor. — Ela não
sorri e pouco me olha enquanto fala. — Já vamos fazer a ultrassom? —
indaga, olhando-me rapidamente e depois para Francine.
— Ainda não — respondo. Só tem umas duas horas que prometi fazer o
exame e reservei uma máquina, mas acabei me ocupando com outras
pacientes e não tive tempo. — Vamos fazer assim que acabarmos aqui, tudo
bem?
Juliette apenas balança a cabeça em positivo.
— Como eu estava te dizendo… — Perrot toma a palavra, retomando
algum assunto que perdi. — Seus resultados da ressonância foram bons, mas
como tivemos de tomar alguns cuidados às restrições, precisaríamos fazer
outro, completo, para nos certificarmos de que não sofreu nenhuma lesão
grave na cabeça. — Francine lança um rápido olhar para mim, então volta
para a moça e completa: — Isso é uma preocupação boba do doutor Laurent,
porque já examinei seus reflexos e você está bem, não há com que se
preocupar, mas ele insiste em refazermos. Quero que saiba que cabe a você
decidir se quer o procedimento ou não.
Não sei que reação ter. Francine disse “Isso é uma preocupação boba
do doutor Laurent” de uma maneira sugestiva demais, como se… meu
cuidado fosse um exagero e exclusivo para Gautier. Não é. Estaria exigindo
outra ressonância a qualquer outra paciente que tivesse chegado em suas
condições. É meu dever garantir o bem-estar dela, pelo amor de Deus.
Engulo em seco novamente. Olho para Juliette, perdendo todas as
palavras do meu vocabulário por um efêmero instante, enquanto ela me olha
de volta, talvez com um misto de curiosidade e gratidão.
— Só quero garantir que esteja tudo bem com você. Mas se confiar no
prognóstico da doutora Perrot e preferir não refazer o exame, não refazemos.
Como ela mesma disse, a decisão cabe a você.
Há um segundo de silêncio no quarto.
— Tudo bem. Podemos refazer — diz, fitando-me rapidamente e
depois voltando-se para Francine. — Não que eu não confie no seu parecer,
mas se isso vai deixar o doutor Laurent mais aliviado e de consciência leve,
então vamos refazer.
Eu sorrio, meio encantado com a atenção dela. Francine se vira
lentamente para mim, mantendo um sorriso forçado nos lábios.
— Muito bem, doutor Laurent. Faça as perguntas pertinentes à
senhorita Gautier e, se não houver nenhuma restrição, leve-a para a sala da
ressonância. Espero por vocês lá. — Ela me dá um tapinha nas costas, e sei
que é algo nem um pouco amigável.
Ignoro sua postura esquisita e apenas me atento à Juliette, que está com
o rosto abaixado, as mãos em torno do abdômen. Aproximo-me, fazendo um
esforço estranho para resistir à tentação de tocar suas mãos, e digo:
— Merci.
Não sei exatamente pelo que agradeço, mas gradeço.
Gautier não responde. Apenas sorri.

Juliette olha para mim por um segundo inteiro antes de tomar a


medicação. A ressonância com contraste para mulheres grávidas é evitada por
não haver estudos suficientes sobre a segurança de seu uso, embora também
não haja estudos que comprovem que traz riscos para mulher ou o bebê. Ela
consentiu fazer depois de responder a um pequeno questionário que descartou
qualquer restrição à ressonância ou ao contraste.
Depois de ingerir o medicamento via oral, ajudo-a a se acomodar na
mesa de exame e noto como suas mãos levemente frias tremem um pouco.
— Tem medo de lugares fechados? — indago, ajustando delicadamente
sua cabeça sobre o travesseiro.
— Não.
Sorrio um pouco e tento compreender o suor frio e o tremeluzir.
— Preciso que fique o mais imóvel que conseguir, o exame vai durar
cerca de vinte minutos. — Ergo para ela um pequeno Ipod e fones de ouvido.
— Gosta de música?
Ela abana em positivo. Seleciono um playlist mais calma e ajeito os
fones em seu ouvido. De cima para baixo, fito seu rosto lesionado, seus olhos
presos em algum ponto ao lado esquerdo. Então, ela se volta para mim e
permanece impassível.
— Após o exame, pode sentir alguma reação do contraste, mas vai
durar pouco tempo — explico. — Mas caso sinta medo, inquietação ou
aflição durante o processo, é só acionar esse botão e vamos parar — falo,
pegando em sua mão e posicionando sobre o botão vermelho. Por um instante
longo demais, fecho meus dedos sobre os seus. — Eu aconselharia a tentar
não interromper o exame, senão teremos que começar tudo de novo.
— Tudo bem — murmura, abrindo um leve sorriso.
Afasto-me da mesa e vou para a cabine, de onde acompanharei o
processo. Quando adentro a sala, um olhar atravessado de Francine recai
sobre mim. Ignoro-a e observo a esteira levar Juliette até o centro da
máquina.
— Sabe que esse exame é completamente desnecessário. Está perdendo
tempo, tomando lugar de outro paciente e incluindo mais um exame na conta
dessa menina.
— A recepção consultou o Carte Vitale que encontraram na bolsa dela.
A moça é amparada pela Mutuelle vinculada à empresa em que trabalha —
respondo, cruzando os braços. — Não se preocupe com as condições
financeiras da moça.
Francine não me responde, mas sinto seu olhar feroz sobre mim. Ela
pigarreia um instante e se dirige até o médico radiologista que está
acompanhando o caso; trocam algumas palavras durante o exame. Eu fico na
minha, olhando para a máquina por todo o exame, odiando ter que concordar
com Francine. Juliette está bem, na medida do possível. Mesmo no primeiro
exame, feito sem o contraste, os resultados foram bons. Os exames de pupilas
e reflexos também estão dentro do esperado; não há com que se preocupar,
mas aqui estou eu, repetindo a ressonância para garantir que aquela moça
grávida vá embora para casa em segurança.
No geral, sempre me preocupo com meus pacientes. Um trauma na
cabeça é algo que não pode ser ignorado e precisa sempre de muita atenção.
Mas sinto uma aflição diferente no peito diante esse caso. Um medo idiota,
irracional e infantil de não estar fazendo meu serviço direito.
Passado o tempo do exame, e já com os resultados na tela do
computador do radiologista, um assistente vai ajudar Juliette a sair da
máquina, se vestir e retornar para o quarto.
— Nada relevante — informa Francine, virando a tela do computador
em minha direção. — Apenas a concussão que já identificamos e estamos
tomando os cuidados necessários. Sente-se mais aliviado agora, doutor
Laurent? — questiona, com o mesmo tom de deboche de antes.
Inspiro fundo e tento não ser grosseiro com ela, ao menos não na frente
de um colega de trabalho. Dou um passo adiante, deixando meu rosto rente
ao seu.
— É, estou aliviado, sim. Aliviado porque aquela moça poderá voltar
para casa em segurança, aliviado porque essa noite posso colocar minha
cabeça no travesseiro e saber que ela está bem. Você pode fazer o mesmo,
Francine? — questiono, pegando em seu ponto fraco.
A postura da mulher vacila e ela dá um passo atrás, claramente atingida
pelas minhas palavras.
— Nunca mais mencione isso — diz, a voz uma mistura de medo e
raiva.
— Então nunca mais questione as minhas preocupações com os meus
pacientes.
Antes que ela possa me responder, eu deixo a sala.

Bato na porta antes de entrar. Ela está na cama, comendo alguma coisa.
Olho no relógio. É quase meio-dia. Parece tanto tempo, mas só faz algumas
horas que ela chegou aqui.
— Salut — cumprimento-a, mantendo-me a uma distância respeitável.
Juliette me dá outro dos seus sorrisos fúnebres. — Não queria ter te
incomodado. Quando terminar… chame uma enfermeira para fazermos o
ultrassom.
Seu rosto machucado parece se iluminar com a menção.
— Mas termine primeiro — digo, vendo-a afastar o prato.
— Já estou satisfeita — diz baixinho. — Quero ver meu filho, doutor
Laurent. Só quero… ver meu bebê — murmura, passando a mão pela barriga.
Dou um passo adiante e a ajudo a se levantar.
— A sala não é muito longe — informo.
Ela responde apenas com um mover de cabeça e caminha ao meu lado.
Quando chegamos, peço para que vista uma roupa mais adequada para o
exame e depois ajudo-a a se deitar, ela o tempo todo em silêncio. Não sei se é
uma mulher de poucas palavras ou se está assim por causa de todos os
recentes acontecimentos. Pego-me curioso para saber mais dela, não só do
que aconteceu, mas tudo. Seus gostos, sua cor favorita, com o que trabalha,
onde mora…
Fico introspectivo nos meus próprios pensamentos enquanto preparo o
ultrassom.
— Relaxe, tudo bem? — peço. — Vai se sentir um pouco incomodada
no começo, mas logo passa.
Juliette acena e cora levemente quando ergo um pouco sua vestimenta e
introduzo o transvaginal. Sinto-a se retesar com o contato e me apresso em
confortá-la, dizendo que está tudo bem, baixando novamente sua vestimenta
e olhando-a, mas ela não me olha de volta, sua atenção presa na tela ao seu
lado.
Um minuto depois, tenho a imagem perfeita. Na tela, está seu tempo
gestacional, previsão do parto e informações do feto, como tamanho e peso.
Com o mouse, vou detalhando o exame.
— Nessa fase — explico, mantendo meu tom de voz baixo. Juliette
ainda não me olha, concentrada na imagem em preto e branco — seu bebê é
um feto, muito pequeno. Ele tem apenas vinte milímetros. O peso… não
passa de um grama.
— Tão pequeno — murmura, ainda sem me olhar.
— Oui. E aqui… — Estico a mão livre e ajusto o doppler. As batidas
rápidas do coraçãozinho preenchem a sala à meia-luz. — Os batimentos
cardíacos do seu bebê.
Vejo os olhos dela se encherem de lágrimas novamente. Os dedos ao
lado do corpo mexem-se freneticamente, como se em busca de alguém. Por
algum motivo, com a mão esquerda livre, eu seguro a dela. Juliette me olha
por um longo instante, depois vira-se para meus dedos nos seus. Então os
aperta e torna a olhar para a tela.
Um minuto depois, finalizo o exame, e ela vai se trocar novamente.
Quando retorna, ergue seus olhos para mim e indaga:
— Com quanto tempo consigo saber o sexo?
Caminhamos de volta para seu quarto enquanto respondo:
— Pelo ultrassom, por volta da décima terceira semana. Alguma
preferência?
Gautier para frente à porta do seu quarto e olha por cima dos meus
ombros. Remexe um pouco nos cabelos e molha os lábios inchados antes de
responder:
— Menino.
Então é tudo o que diz. Adentra o cômodo e, com um pouco de
dificuldade por conta das costelas, se acomoda em seu leito novamente.
— Deu tudo certo com a ressonância — informo. — Não há com que
se preocupar.
— Merci, doutor Laurent.
— Não precisa me agradecer.
Em um ato meio impensado, eu me aproximo e seguro suas mãos. Não
é a primeira vez que faço isso com um paciente. Às vezes, eles precisam. Ser
médico não é apenas curar ou medicar. Ser médico também é ser humano e
saber quando o paciente precisa mais do que um exame, é saber quando ele
precisa não só do médico, mais de um amigo, alguém com quem contar, com
quem desabafar. Mas o modo como me aproximo de Juliette, a vontade
desconhecida que tenho de tocá-la, me assusta e me parece muito antiética.
— Vai ficar tudo bem. Qualquer coisa que precisar, estarei aqui.
Juliette faz menção de abrir um sorriso e, talvez, me agradecer, quando
a porta se abre e interrompe o momento. Eu me afasto em um passo brusco,
como se o ato de estar tão próximo dela fosse algo muito errado.
Olho para trás. Uma das enfermeiras entrou acompanhada de um agente
da polícia.
— Bonjour — o homem cumprimenta, retirando os óculos escuros e os
pendurando à gola da camisa. — Meu nome é Antoine Macron, agente
policial. — Ele estica a mão para mim e eu a aperto, apresentando-me em
seguida. — Vim retirar o depoimento da senhorita Gautier.
Ao olhar para trás, o sangue dela parece ter sido sugado. Está pálida
como papel.
— Se ela tiver condições para isso, tudo bem. Do contrário,
infelizmente não poderei permitir. Ela passou por um trauma, está grávida e
precisa de descanso.
O policial apenas acena em positivo e direciona um olhar para minha
paciente.
— Foi um assalto — diz de repente, caindo em lágrimas.
— Gautier… — Tento interrompê-la. Está nítido que o acontecimento
ainda mexe com ela e a última coisa que quero é vê-la sob pressão e estresse.
Entretanto, a moça ignora-me e continua:
— Eu cheguei no meu trabalho e… — Ela soluça. Aproximo-me
rapidamente e seguro suas mãos, pedindo para que mantenha a calma e
respire fundo. Antoine a acalenta, afirmando que se não tiver condições de
falar agora, não precisa. — Eu reagi — informa. — Ele queria levar minha
bolsa, não deixei, reagi. Foi o que aconteceu.
Troco um olhar com Antoine. O modo como está atento à Juliette me
diz que compartilhamos do mesmo sentimento: o de não acreditar nessa
versão.
— Senhorita Gautier, tem certeza de que foi um assalto? — o policial
pergunta. — Aparentemente, nada foi levado dos seus pertences, nem do
cofre da cafeteria onde você trabalha. Conversei com o monsieur Dousseau,
ele me garantiu que não há nenhum sinal de roubo no estabelecimento.
— Estou dizendo… — Juliette tenta soar firmeza, mas a voz chorosa,
trêmula e os olhos lacrimejados não colaboram. — Foi um assalto.
Antoine balança a cabeça em positivo e faz algumas anotações em um
bloco que traz consigo.
— Conseguiria fazer um retrato falado dele?
Ela balança a cabeça em negativo, freneticamente.
— Estava com o rosto tampado.
— Pelo quê?
Aqui, ela faz uma pausa, pega pela surpresa do questionamento. Seus
lábios se entreabrem algumas vezes, como se estivesse pensando em uma
resposta convincente.
— Uma máscara de lã. Eu acho… Eu não… — Um choro convulsivo a
toma de novo. Envolvo-a em meus braços e tento acalmá-la, dizendo que vai
ficar tudo bem.
Lanço um olhar ao policial e digo:
— Acho que já está bom de perguntas por hoje.
Antoine balança a cabeça em um gesto afirmativo, agradece a atenção,
deseja melhores à paciente e se retira.
De repente, sinto seus dedos se fecharem com força no meu jaleco,
trazendo-me mais para perto dela, seu rosto escondido no meu peito, o choro
convulsivo transformando-se em algo mais tímido. Acaricio seus cabelos
macios e deixo um beijo no topo da sua cabeça.
— Estou aqui — murmuro apenas, e ela se agarra com mais força em
mim.
O que aconteceu com ela não foi assalto coisa nenhuma.
JULIETTE
Essa noite parece que não vai acabar. A conversa chata em torno da
mesa entre Bernardo, René e os Leclerc não é a pior parte. Nem sei se
podemos chamar isto de conversa, porque parece mais um monólogo de
Deschamps. A situação é meio tensa e constrangedora. Antony está rígido no
seu lugar, e a causa com toda certeza é o meu chefe — este que aparenta estar
com a cabeça no mundo da lua, mas com os olhos discretos bem em cima de
Ann-Marie. A pior parte é ter de ver o homem que amo ao lado de uma
mulher que não o valoriza. Deus, ela é tão descarada… Mas preciso admitir
que disfarça bem quando olha para Dousseau.
Ela deve estar achando que ninguém em torno da mesa percebe, mas eu
percebo. Percebo, porque precisei aprender a ser discreta igual ela se quisesse
observar Antony sem levantar suspeitas. Só alguém como nós duas — que
tem um amante e precisa mantê-lo em segredo — reconhece uma troca de
olhar, por mais discreta que seja. O marido está bêbado o suficiente para não
notar o que está bem embaixo do seu nariz. Outra vez, sinto uma vontade
imensa de abrir seus olhos, talvez isso o incentive a pedir de vez o divórcio,
mas então recuo. Ela pode não valer nada, mas Bernardo, por mais
mulherengo que seja, é uma boa pessoa. Sei que mencionar para meu amante
sobre minhas suspeita poderá prejudicá-lo. A última coisa que quero é vê-los
metidos em uma confusão.
Preciso de um gole de champanhe. Generoso.
Sempre que penso que Leclerc se irritaria se descobrisse algum caso da
mulher me dá um gosto amargo na boca. Esforço-me para compreendê-lo em
algum nível, afinal, é um casamento longo, e em algum momento ele a amou,
então seria compreensível que se irritasse e se magoasse se descobrisse uma
traição da esposa — apesar de não ter moral nenhuma. Esforço-me para
compreendê-lo, mas não consigo. Só queria que se divorciasse de uma vez e
me assumisse. Não aguento mais dividi-lo, nem encontrá-lo às escondidas.
Um tempo depois, Bernardo pede licença e se retira. René faz o mesmo
em menos de um minuto, dizendo que irá falar algo com Emilien. Então,
ficamos apenas nós três. Antony não me olha — ele tem um autocontrole
muito melhor do que o meu. Não aguento essa situação mais do que cinco
segundos. Incomoda-me ficar na mesma mesa do meu amante na companhia
da esposa. Levanto-me, peço licença e me retiro, caminhando em direção ao
toalete. Lá, lavo as mãos e molho um pouco a nuca. Encaro-me no espelho
por um longo tempo, perguntando-me o rumo que tomou a minha vida.
Dormindo com um homem casado. Não tem um só dia que esse conflito
interno, essa crise moral, não me acometa. Sei que é errado, por mais que a
mulher mereça; ainda assim, não consigo me afastar dele.
Estou voltando para minha mesa, já pensando em convidar Bernardo
para irmos embora — esses saltos estão me matando — quando o vejo se
aproximar também, os olhos fixos nas costas de Antony, que diz alguma
coisa à mulher. Estou longe o suficiente para não compreender do que se
trata, mas pela cara de Dousseau, ele escutou e não gostou nem um pouco;
noto isso pela expressão do seu rosto, a rigidez do seu corpo. Ann-Marie, um
tanto quanto abalada, é verdade, com o que seja que o marido falou, entreabre
os lábios para dizer alguma coisa, mas então repara em Bernardo logo à sua
frente e desiste na mesma hora. Ela diz alguma coisa, levanta-se rapidamente
e se distancia dos homens, a passos apressados.
Pestanejo seguidas vezes, tentando entender o que está acontecendo.
Antony nota meu chefe logo atrás, e os movimentos débeis do seu corpo e
cabeça denunciam seu estado bêbado. Ele também se levanta e se retira em
seguida, quase trançando as pernas por entre as pessoas, em direção a Emil
em uma mesa junto de Marie.
Meus olhos viram de volta para Bernardo, que agora sobe as escadas da
mansão pulando dois degraus de cada vez, seguindo Ann-Marie que fez o
mesmo caminho. Está mais do que na cara o caso desses dois.
Suspiro e molho os lábios, frustrada que não poderei ir embora tão já.
Olho ao redor, à procura de Leclerc, que já não está mais perturbando
Emilien. Rodo a mansão um pouco até encontrá-lo perto da piscina, as mãos
dentro do bolso, postura vacilante — típica de quem exagerou no álcool.
Ponho-me ao seu lado e não digo nada por algum tempo.
— O que aconteceu lá na sua mesa? — pergunto, com um sussurro.
Antony sequer me olha.
— Não foi nada.
— Você disse alguma coisa a Ann-Marie que…
Ele vira o pescoço em minha direção num movimento brusco e rude,
seus olhos murchos analisando-me com raiva. O homem é bipolar, porque um
segundo mais tarde suaviza a expressão e se aproxima de mim, pegando meu
rosto e me dando um beijo profundo como se não se importasse com mais
nada no mundo. Afasto-o alarmada, olhando ao redor e limpando a boca.
Deus, alguém poderia nos ver!
— Nunca me rejeitou… — reclama, dando um passo cambaleante para
frente. Preciso segurá-lo pelo blazer ou cairia dentro da piscina.
— Estamos em público, Tony, com um monte de gente conhecida ao
redor. Está sendo imprudente.
Antony suspira e passa a mão no rosto, acenando em positivo e
murmurando um “Je suis désolé”.
— Como está aquele seu negócio com Emilien? — pergunto, tocando
rapidamente seu braço, sentindo a falta do nosso toque. — Quero tanto que
isso dê certo para que possa se divorciar dela.
O homem fica em silêncio por longos segundos, como se não tivesse
me ouvido, ou como se estivesse me ignorando. Não sei por qual razão, mas
considero muito a segunda opção.
— Antony… — insisto, com cuidado.
— Tenha paciência, Juliette. — Sua voz contraria o que me pede. — O
negócio ainda é novo. Já disse que para me divorciar preciso de segurança
financeira. O projeto está no começo, não espere que eu consiga me
estabilizar tão rápido.
Não gosto de sua resposta, o tom com que me dirige a palavra.
Ultimamente, tem perdido a paciência comigo com muita facilidade, o que
nunca aconteceu antes. No começo desse… relacionamento…, ele sempre se
mostrou uma pessoa amorosa, paciente. Apesar de não gostar de como fala
comigo, eu relevo, afinal, ele está bêbado. É a primeira vez que o vejo nesse
estado.
— Tudo bem, me desculpe — peço e me sinto estranha um segundo
depois. Antony tem um poder diferente sobre mim. Não é só no sentido
sexual, é o modo como, facilmente, consegue me fazer sentir culpa, perceber
que estou errada sempre que o pressiono. Não me agrada a sensação. Sinto
que não estou completamente errada, mas também tenho a impressão de que
não estou totalmente certa em pressioná-lo, exigir o divórcio quando ele já
me explicou os motivos por ainda se manter casado.
Merde.
É tão contraditório isso tudo.
— Em três dias — diz de repente, despertando-me para o mundo real
outra vez. — Em Lyon. Vou te mandar a passagem, o endereço do hotel e
deixarei um quarto reservado para você, tudo por minha conta.
Abro um pequeno sorriso. Isso significa que os negócios com Emil
estão caminhando para dar tudo certo.
— Vou adorar passar um tempo com você — murmuro, arriscando
outro toque no seu braço.
Sem se preocupar em sermos vistos, Antony se aproxima. Sinto cheiro
forte de álcool. Ele deixa um beijo rápido nos meus lábios e sussurra algo
obsceno que me faz ficar úmida. Então, se afasta o mais rápido que suas
pernas de bêbado permitem, voltando lá para dentro. Permaneço por um
longo tempo no meu lugar antes de procurar por Bernardo e convidá-lo para
irmos embora.
Essa noite parece que não vai acabar.
São oito da noite quando chego no hotel indicado na mensagem que
Antony me enviou. No dia seguinte à festa na casa de Emilien, ele me
mandou a passagem área para Lyon, flores, bombons e um post-it azul escrito
apenas um je t’aime. A viagem de Paris até aqui foi rápida, cerca de uma
hora. Faço o check-in e subo até meu quarto, estrategicamente reservado ao
lado do dele. Desfaço as malas e envio uma mensagem:

“Acabei de chegar.”

Leva bem uns vinte minutos até ele me responder:

“Em reunião com Emilien. Terminaremos em breve. Me espere


acordada. De preferência sem roupa.”

Mordo o lábio inferior e me agrado com a ideia. Tomo um banho


relaxante, visto uma lingerie um pouco mais ousada e ponho uma roupa para
ir jantar no restaurante do hotel enquanto espero por ele. Meu telefone toca
quando estou aguardando meu pedido. É Adrien. Suspiro e penso em
desligar, nem um pouco a fim de ouvir os sermões dele. Mas se não o
atender, ele vai ficar me azucrinando. Além do mais, pode ser algo
importante.
— Salut… — atendo no quinto toque.
— Bonsoir. Onde você está? Estou aqui na sua porta, com duas caixas
de pizzas e cerveja. Sei que você odeia cerveja. Fiz de propósito mesmo.
Rio um instante com a última frase. Ele é um idiota.
— Adrien… — murmuro seu nome, mas ele me interrompe
tagarelando sem parar:
— Passa no supermercado e compra um refrigerante pra você, e eu
fico com as cervejas, tá bom? Já pensa em algo para assistirmos na Netflix.
Onde é que você deixa a chave reserva? Eu já vou preparando tudo aqui e…
— Não estou em Paris — corto-o rapidamente, conseguindo fazê-lo
parar de falar.
Há um silêncio estranho entre nós. Posso ouvir apenas os ruídos da
linha e o barulho de ambiente ao fundo.
— Quando você chega? — pergunta, cuidadosamente. — A pizza vai
esfriar se demorar muito. Pizza amanhecida é gostoso; fria, não.
Penso em como vou dizer isso. Sou uma idiota. Deveria tê-lo avisado
que não estaria na cidade.
— Não vou chegar, Adrien.
Outro silêncio incômodo.
— Mas, e a tradição?
Sorrio com amargura, embora ele não possa ver. Temos uma tradição
entre nós desde crianças, durante as férias escolares. O primeiro e último dia
de férias são sempre os mais importantes. É quando nos reunimos para
comermos bobeiras e assistirmos filmes, virando noite adentro conversando
trivialidades e nos divertindo. Sempre fizemos isso como um modo de
aliviarmos a pressão da escola, depois da faculdade e posteriormente do
trabalho. O momento é também para recompensarmos o tempo perdido.
Adrien e eu somos muito ligados, temos uma amizade bonita, quase como de
irmãos. A rotina do dia a dia da vida adulta — eu com meu trabalho e
estudos, ele com os dele — nos distanciou aos poucos. O início das nossas
férias deveria ser um momento nosso, de divertimento e descontração. Essa é
a primeira vez que quebro tradição e sei que vou magoá-lo. Principalmente
porque o troquei por Antony.
— Désolée… — peço, realmente arrependida. — Me esqueci de avisar
que estaria de viagem.
— Viagem para onde? — Quer saber. — Com quem? — Antes que
possa responder, ele emenda: — Não me diz que está com seu amante?!
— Não surta, Adrien! — advirto com um sussurro, mas minha vontade
mesmo é de dar um grito com ele. Só não faço porque o local não permite. —
Você não tem o direito de me julgar, nem julgar meus sentimentos.
Pelo ruído da linha, ouço seu caminhar, passos rápidos e duros, como
se estivesse com raiva. Obviamente está com raiva.
— Não estou julgando ninguém — rebate. O barulho de uma porta de
carro batendo com força. — Já disse que você é adulta e sabe o que está
fazendo. Mas era a nossa noite, Juliette! Nosso ritual… Poderia ter ao menos
me avisado! Não teria feito papel de idiota nem gastado com as pizzas. Eu
nem estou podendo gastar!
Sinto-me mal por ele. Adrien sempre foi muito atencioso comigo. O
mínimo que eu deveria ter feito era mesmo ter avisado sobre minha ausência.
— Chame a Marjorie para comer a pizza com você — digo, mas me
arrependo um segundo depois. O modo como proferi essas palavras foi
completamente debochado e maldoso. Mexi na sua ferida mais dolorida.
Merde, merde, merde! — Je suis… — Tento me desculpar, mas ele desliga
na minha cara.
Penso em retornar a ligação e me redimir. Fui uma vaca sem
sentimentos provocando-o dessa maneira, mas desisto em seguida porque não
vai me atender. Isso se não bloquear minhas ligações. Vou esperar uns dias
antes de falar com ele.
Meu pedido chega e faço minha refeição remoendo meus remorsos.
Termino, pago a conta e volto caminhando preguiçosamente de volta para
minha suíte. Ao buscar as horas, passam-se um pouco das nove horas. Há
uma mensagem de Antony, de dez minutos atrás, combinando um horário
para passar no meu quarto. Meu coração dá uma batida violenta, de
ansiedade, e pego-me sorrindo olhando sem parar para a tela do smartphone.
De repente, esbarro em alguém, derrubando meu telefone no chão
acarpetado do hotel. Pego-o rapidamente, enquanto me desculpo. Ao erguer o
olhar, dou de cara com um rosto extremamente conhecido. Merda de novo.
Os olhos azuis de Emilien me avaliam com surpresa e curiosidade.
— Gautier… — exclama, abrindo um leve sorriso. — Que surpresa
você por aqui.
Engulo em seco e forço um sorriso, desajeitada com esse encontro
repentino.
— Estou de férias — explico, esforçando-me para não parecer uma
pateta mentirosa. — Vim descansar uns dias.
Emilien balança a cabeça em positivo, vagarosamente, daquele jeito
que não está muito convencido da minha resposta, mas prefere me fazer
acreditar que acredita em mim. Estou encrencada. E se desconfiar do meu
caso com Antony? Ele pode contar tudo à megera da esposa dele? Ou Emil é
aquele tipo de homem que encobre os erros dos amigos?
— Que coincidência nos hospedarmos no mesmo hotel… na mesma
ala, não acha?
Os músculos do meu rosto doem pelo esforço de manter meu sorriso
falso. Sinto uma tremedeira esquisita por dentro. Acalme-se, Juliette!
— Pois é! E Lyon é tão grande. Troquei minhas milhas por
hospedagem, então decidi escolher um dos melhores hotéis. Acho que
mereço um pouco de conforto… — Dou uma risada sem graça, meio
histérica, meio nervosa.
— É claro — concorda, ainda me analisando. — Vou te deixar seguir
seu caminho — diz, dando um passo ao lado. — Bonne soirée, senhorita
Gautier — deseja-me boa noite.
— Merci, monsieur Dupont.

Perto de uma da manhã, ele bate delicadamente à minha porta. Aperto o


roupão branco em torno do meu corpo quando o recebo. Antony está dentro
de uma calça de alfaiataria na cor azul-marinho, camisa cinza aberta em dois
botões, a gola meio desengonçada, cabelos bem-penteados e o sorriso
estonteante que me cativa desde sempre.
Ele dá um passo à frente, empurrando-me para dentro. Preparo-me para
receber sua boca deliciosa e rude na minha, mas não sou beijada com a
intensidade que espero. Não sou nem mesmo beijada. Ao invés disso, Antony
segura meus punhos firmemente e os coloca para baixo. O movimento me faz
soltar as laterais do roupão, que se abre. O homem explora meu corpo seminu
com olhos repletos de tensão sexual, puro desejo, luxúria…
Vagarosamente, me toca nos seios, acariciando-os como se fossem um
cristal delicado e raro. Gosto do seu toque, do modo como me deseja, da
maneira como aprecia meu corpo e dos momentos que passamos juntos.
Antony é bom. Não sei como a mulher pode desprezá-lo tanto.
Por fim, me beija, daquele seu jeito insensível e forte, sua barba
roçando minha pele, mas que estranhamente me agrada. Sua falta de
delicadeza e sua rudeza me deixam excitada. Enlaço sua nuca e me entrego
com facilidade, deixando-o me conduzir até a cama e jogando seu corpo
sobre o meu.
— Seu cheiro é tão bom… — murmura contra meu pescoço, inalando
meu aroma e descendo seus beijos ásperos pelo meu colo até o meio dos
meus seios. Afundo meus dedos em seus cabelos volumosos e abraço-o pela
cintura com as pernas, sentindo sua ereção.
Antony tira minha calcinha e se enfia entre minhas pernas, roçando o
nariz no meu clitóris, depois a barba entre minhas coxas. Ele não faz o
melhor oral do mundo, até porque raramente me chupa. Não é muito de
preliminares, mas aprecio quando se esforça em algo diferente. Afundo meus
dedos nos seus fios grisalhos e o trago mais para mim, necessitando da sua
língua no meu ponto de prazer. Está ficando verdadeiramente bom quando
ele para. Solto um suspiro trêmulo, de frustração, que é abafado ao colar sua
boca na minha, passando meu gosto para mim. Ele não faz muita questão de
se despir, como se o momento agora fosse só de uma transa rápida e sem
sentido. Apenas abre a calça e me penetra rispidamente, em um movimento
brusco e rápido, indo fundo em mim.
Ele me segura pelos ombros para se impulsionar e se arremeter
vigorosamente. Inclino os quadris mais para cima e o aperto mais com as
pernas para recebê-lo melhor. Fecho os olhos por um instante, apreciando o
prazer, a sensação de tê-lo dentro de mim, comendo-me com força. Um toque
indelicado me aperta a bochecha. Quando abro os olhos, vejo-o com uma
expressão que é uma mistura de prazer, insanidade e raiva. Seus dedos longos
e grossos me apertam forte.
— Me olhe enquanto te fodo — exige.
Não sei por qual motivo, mas me vejo acatando sua ordem, balançando
a cabeça em positivo. Então, ele não diz mais nada; segue investindo em
mim. Sua expressão nunca se suaviza, até que suas narinas inflam, seus dedos
cravam na minha cintura e ele aumenta o ritmo, sinal de que está gozando.
Preciso de um pequeno esforço para gozar junto com ele, imaginando uma
cena mais erótica que essa: ele me comendo por trás e murmurando um
palavreado bastante obsceno. Preciso desse estímulo para gozarmos juntos,
porque sei que o homem tem tendências a parar depois de se satisfazer. Meu
gemido baixo se mistura aos seus, mais roucos e controlados, quando
chegamos ao ápice. Antony fica em cima de mim por alguns segundos,
recuperando o ar. Acaricio seus cabelos nesse ínterim.
— Toma um banho comigo? — pergunto.
Ele rola de cima de mim e deita de barriga para cima.
— Vai você na frente.
Suspiro e vou na frente, ainda desejando que me acompanhasse. Tiro o
que restou da minha lingerie — ou seja, o sutiã — e entro debaixo do
chuveiro. Aproveito a água quente por cinco minutos inteiros antes de
esfregar o corpo com sabão. No quarto, já enrolada na toalha, flagro-o em pé,
calças erguidas, mas não afivelada, mexendo no meu celular.
— O que está fazendo? — questiono, meio confusa com sua atitude.
Ele nunca foi de mexer nas minhas coisas, assim, pelas costas, como se
estivesse à procura de algum segredo.
Antony ergue os olhos em minha direção, o semblante sisudo que bem
conheço, apertando o aparelho em suas mãos com mais força do que o
necessário.
— Por que o Adrien te ligou? — indaga, controlando um traço de raiva
na voz.
Oi?
Pisco duas vezes, assimilando sua pergunta. O tom conversa com a
expressão carrancuda. Demoro algum tempo para respondê-lo porque estou
incomodada demais com essa invasão de privacidade.
Antony vem até mim, segurando-me pelo braço com um pouco mais de
violência.
— Me responde. Por que o Adrien te ligou?
— Por que se incomoda? — devolvo, empinando o nariz, em vez de
respondê-lo.
Ele demonstra que não gosta nem um pouco da minha resposta. Seus
dedos me apertam mais. Isso me deixa irritada. Com um repuxe brusco, solto-
me de sua pegada. Não, não. Ele não vai me tratar dessa maneira.
— Quem me liga e quem deixa de me ligar não te diz respeito, Antony.
— Ah, diz… diz respeito, sim! Ou você espera que eu aceite qualquer
macho ligando no telefone da minha mulher?
Mon Dieu, esse discurso machista para cima de mim de novo não! Não
vou permitir que fale comigo nesse tom. Se não me impuser agora, se não
cortar essa sua atitude agora, mais tarde será impossível.
— Não sou sua mulher! — Ergo a voz, mas não o suficiente para que
outros hóspedes escutem nossa discussão. — Sou a porra da amante, Antony!
A sua mulher é a Ann-Marie!
Ele trinca os dentes, as narinas infladas de raiva, os olhos fixados em
mim, com o mesmo sentimento de cólera.
— Não vou perguntar de novo, Juliette. Por que a porra do Adrien te
ligou?
Dou-lhe as costas e caminho até a porta, abrindo-a.
— Se vai me tratar assim, pode ir embora e então amanhã mesmo volto
para Paris. Mas se quiser ficar… se quiser passar um tempo comigo, vai
mudar esse comportamento. Entendeu? Não te devo explicações das ligações
que recebo, nunca te dei satisfação sobre isso e nunca vou dar!
Ele solta um resmungo, algo como uma risadinha inconformada. Dá um
passo em direção à porta e fica sob o umbral, olhando-me com atenção.
Antony é difícil de entender. No mesmo instante que está repleto de raiva, já
não está mais. Ele muda tão radicalmente que fica complicado entender sua
oscilação de humor e o que se passa na sua cabeça. Sua mão acaricia meu
rosto; é tão bom seu toque, sua carícia branda, o calor da sua pele. Droga de
homem bipolar.
— Você tem razão — fala, aproximando sua boca da minha. —
Desculpe, eu só… — Sorri, seus lábios cada vez mais próximos dos meus. —
Tenho medo de te perder… Me deixa insano a ideia de te perder, de… que
você me troque por qualquer outro.
Olho-o, incrédula com suas palavras. Em um ato súbito, colo nossos
lábios, beijando-o profundamente, quase como se seu beijo fosse minha força
vital.
— Amo você, Antony. Quantas vezes precisarei dizer isso? Não
entendeu que amo você? Jamais te trocaria por qualquer outro homem! —
Aliso seu rosto barbado, brandamente, e sinto a aspereza da sua barba na
ponta dos meus dedos, seus olhos agora amáveis sobre mim. — Precisa que
eu te diga todos os dias? Então vou dizer. Eu te…
Ele me interrompe, cobrindo meus lábios com os seus, no seu habitual
beijo rude e sem delicadeza, fechando a porta e me encaminhando de volta
para a cama. E mais uma vez, é fácil ele exercer esse poderio sobre meu
corpo, sobre minha mente, minhas ações e decisões.
É tão fácil me entregar.
JULIETTE
Ela se afasta de mim como se tivesse levado um choque, causando-me
uma falta extrema do nosso contato, o toque de sua pele na minha. Só quero
trazê-la para o meu peito, envolver seu corpo pequeno em um abraço
apertado e deixar que continue chorando até estar mais calma. Juliette,
entretanto, parece notar como essa proximidade súbita é estranha e um pouco
inadequada, por isso se afasta, controlando o choro, olhos cabisbaixos,
suspiros trêmulos.
— Me perdoe — pede, com a voz quase inaudível, sem coragem de me
olhar.
Em uma necessidade estranha, seguro suas mãos novamente, o que a
faz me olhar. Acaricio-a, quase sem perceber, em movimentos brandos e
circulares com o polegar.
— Não precisa se preocupar, Juliette — acalento-a, usando seu
primeiro nome. Demoro a notar que a tratei informalmente, como se
fôssemos íntimos para isso. Corrijo-me rapidamente, assim que percebo meu
deslize: — Senhorita Gautier.
Ela me abre um pequeno sorriso e fixa seus olhos nas minhas mãos
envolvendo as suas. Penso que vai se afastar de novo, cessar meu toque, mas,
ao invés disso, permite meu contato.
— O que disse ao policial — murmuro, tentando não a assustar — não
é bem verdade, estou certo?
Juliette recua bruscamente, recolhendo as mãos e as colocando por
baixo do lençol. Olha fixamente para um ponto qualquer e se recusa a me
dirigir a palavra. Observo-a com um misto de empatia e compaixão,
arrependendo-me de tocar em um assunto tão delicado. Não faço ideia do que
realmente aconteceu, e a verdade é que tenho medo de saber. Pelo modo
como reage à situação é algo que causou algum trauma, que ainda causa
medo.
— Saiba que pode confiar em mim para contar a verdade — sussurro,
falando devagar, querendo transmitir confiança e tranquilidade. — Seja lá
o…
— Foi um assalto — me interrompe, de forma rude, seus olhos ainda
fixados em um ponto distante. — Podemos, por favor, não falar mais nesse
assunto?
Respeito seu pedido e abano a cabeça em positivo, meio sem jeito com
o constrangimento que acabei de causar em nós. Molho o lábio inferior e dou
um passo atrás.
— Claro. Me desculpe por qualquer inconveniente — peço, um
sentimento estranho martelando meu peito. Não estou me comportando de
maneira adequada e profissional com ela. Vou andando para trás, a passos
vagarosos, distanciando-me, embora minha vontade seja de ficar. — Meu
plantão já acabou — informo —, mas se precisar de qualquer coisa, pode
chamar uma das enfermeiras ou o plantonista.
Juliette olha para mim quando já estou chegando na porta e faz uma
pergunta que balança toda minha estrutura:
— E se eu quiser você? — Sua voz é um mero sussurro envergonhado.
Ela rapidamente desvia o olhar e, parecendo notar a pergunta absurda que fez,
corrige-se: — Digo… — Engole em seco — Se precisar da sua ajuda como
profissional? Você me ajudou, cuidou de mim e do meu filho. Parece
estranho dizer… — Uma lágrima desce do seu olho. — Mas só confio em
você nesse momento.
E é estranho mesmo, mas não nego que suas palavras me dão um
acalento diferente.
— O obstetra de plantão é um excelente médico — digo. — Pode
confiar nele como se fosse confiar em mim. — Tenho a impressão de que ela
se abate por um segundo, como se eu estivesse a desprezando. — Mas se
mesmo assim precisar de mim, se tiver de passar por qualquer situação e
prefira que seja eu o responsável por te acompanhar, peça para que me
liguem. Venho sem pensar duas vezes.
Um pequeno sorriso ilumina seu rosto, e Juliette balança a cabeça,
murmurando um merci beaucoup. Olho-a por mais um ou dois segundos
antes de sair e encostar levemente a porta.

O apartamento de Étienne está limpo e cheira a jasmim quando chego.


Olho ao redor, querendo ter certeza de que entrei no lugar certo. Tudo bem
que, desde que mudei para cá, há três semanas, as coisas têm permanecido
mais organizadas do que antes. Ainda assim, meu irmão anda tão absorto e
negligente que nem mesmo mantém a organização. Mais de doze horas desde
que saí de casa para o meu plantão e ela continua limpa e cheirosa do mesmo
jeito. Algum tipo de milagre deve estar acontecendo aqui.
Vou direto para a cozinha, precisando comer alguma coisa. Minha
chegada com certeza chama a atenção do meu sobrinho, que logo aparece
correndo e gritando por mim. Agarra-me pelas pernas e me abraça apertado.
Pego-o no colo, beijo suas bochechas rosadas e bagunço seus cabelos
escorridos.
— Ei, cara, que saudade senti de você — falo, ajeitando-o nos meus
braços. — Como é que você está?
— Com fome — reclama.
Engulo em seco, com medo de ter feito uma idiotice deixando Édouard
com o pai. Merda. Étienne já demonstrou uma vez que não tem mais
capacidade de cuidar do próprio filho, mas com quem mais eu deixaria o
garoto senão com ele? Antes de vir para cá, Francine e eu nos revezávamos,
pedíamos para evitar que nos colocassem nos mesmos plantões nas escalas
para que pudéssemos cuidar do menino, mas, como rompemos, ele não tem
ficado mais com ela, embora pergunte pela “tia” com bastante frequência. Em
algum nível, compreendo o garoto. A mulher é paranoica e insegura nos
relacionamentos, mas tem jeito com criança. Sempre cuidou bem de Édouard
desde que me comprometi a ficar com a guarda. Os dois criaram um vínculo,
acredito muito porque o menino começou a projetar em Perrot uma mãe, para
compensar a falta que Jeaninne estava fazendo em sua vida.
Nos primeiros dias aqui, Édouard chorou e pediu muito pela tia. O pai
tinha virado um completo estranho para ele, a mãe desaparecida e, apesar da
pouca idade, o pequeno parecia compreender que não a veria mais. Francine
era, querendo ou não, sua única figura materna. Afastar-se dela também
mexeu com ele de algum jeito e fiquei receoso de mais isso abalar seu
psicológico. Com o passar dos dias, porém, fui explicando por que viemos
embora e conversei muito com Étienne, exigindo que ele suprisse o menino
emocionalmente ao menos, já que a parte financeira era toda eu que estava —
e ainda estou — fazendo. Meu irmão vivia enfurnado no quarto, ora bebendo,
ora procurando por pistas da mulher, ora simplesmente disperso, como se
tivesse se esquecido do mundo, se esquecido de viver.
Pouco a pouco, foi voltando ao normal. É verdade que foi algo meio
forçado, porque tive uma conversa séria com ele sobre as responsabilidades
com o garoto, como se fosse eu o irmão mais velho, não ele. Étienne pareceu
acordar para o mundo e passou a se comprometer mais com o filho.
Logicamente, não permiti que meu sobrinho ficasse sozinho com o pai nas
primeiras semanas. Contratei uma babá, ela vinha, cuidava dele, dava o que
comer; quando tinha aula, levava e buscava na escola, cuidava de suas
roupas, ajudava-o nas tarefas escolares. A babá dormiu aqui por alguns
plantões, mas depois pedi para que fosse embora e deixasse meu irmão
assumir as responsabilidades. Então eu ligava o tempo todo, de hora em hora,
para saber se estava tudo bem. Se estava ocupado para fazer isso, incumbia
alguém de ligar e certificar de que Étienne estava cuidando bem do filho.
Cerca de duas semanas depois, me senti mais confiante em deixar
Édouard com o pai. Étienne mudou bastante desde que voltamos para cá;
toma banho regularmente, parou de beber, cuida bem do garoto, não se
esquece de levar ou buscá-lo na escola. Para tão pouco tempo, foi uma
mudança radical. Acabei inclusive me perguntando se meu erro, um ano
atrás, não foi tê-lo separado do pai. Ou meu irmão simplesmente aceitou de
que a esposa não vai mais aparecer e está tocando a vida.
Seja como for, ele melhorou. Mas agora, quando meu sobrinho
resmunga de fome, me pergunto se não foi errado confiar cegamente em
Étienne. E se ele ainda estiver obcecado em encontrar a esposa? E se começar
a ter lapsos novamente e a ser negligente com o filho?
— Com fome? — indago, finalmente, colocando-o sentado na cadeira.
— Papai não te deu nada para comer?
— Eu dei, sim — meu irmão profere, surgindo na cozinha.
Está diferente. Parece mais jovial. Está de banho tomado, noto isso
pelos cabelos molhados, barba feita e cheiro de loção de barbear. Veste o
básico: jeans novos, camisa preta e tênis.
— Mas esse garoto como feito uma draga, Pierre — reclama,
aproximando-se de nós e abrindo a geladeira.
— O que deu de almoço para ele?
— Fiz um saumon a l’oseille, arroz e salada. Brownie de chocolate
como sobremesa — responde, pegando a garrafa de leite.
Olho para Édouard, que está com uma carinha triste e com as
mãozinhas na barriga, numa posição até meio dramática. Dou uma risada,
achando engraçado o seu drama. Procuro pelas horas. São duas da tarde. Só
então me dou conta de que ele deveria ter ido à escola. Olho para Étienne e
ele parece entender meu questionamento silencioso. Dando de ombros,
responde:
— Quis passar o dia com ele. Foi bom… Tomamos café da manhã fora,
depois eu o levei para andar de bicicleta na rua e chupamos sorvete um pouco
antes do almoço.
— Não se dá sorvete antes do almoço, Étienne — repreendo-o, em tom
de brincadeira.
Ele pega um pouco de sucrilhos no armário, distribui em uma tigela e
despeja o leite que pegou na geladeira. Submerge uma colher e entrega para o
filho comer.
— Ouça… — diz, meio com cuidado, enquanto preparo um café e
mordo um pedaço de pão que encontro no armário. Estou morrendo de fome.
— Estará em casa amanhã à noite?
Olho-o com atenção e murmuro em afirmativo, minha boca cheia
enquanto mastigo. Meu irmão fica estranho de repente, alisando as pernas e
evitando me olhar.
— Por quê? — pergunto, ao engolir o que estava mastigando.
— Preciso fazer uma coisa — diz. — Não vou demorar. Devo chegar
pouco depois das onze. Pode ficar com Édouard para mim?
Não gosto do seu pedido, principalmente porque vem acompanhado de
um mistério. Ele está me escondendo alguma coisa. Tenho medo de que
esteja caindo na obsessão em encontrar a esposa novamente. Encontrou
alguma pista relevante e vai segui-la? É isso que fará essa noite? Não o culpo
por querer encontrar Jeaninne, mas se deixá-lo iniciar essa busca implacável,
vai se transformar naquela figura doentia outra vez.
— O que vai fazer, Étien?
— Só preciso que fique com o garoto, Pierre — pede, a voz meio
trêmula. — Não vou demorar.
— Se isso tiver a ver com Jeaninne e sua busca…
— Não é — me interrompe. Étienne molha o lábio inferior e suspira.
Olha para o garoto, quieto e atento enquanto come. Vencido, me puxa para
um canto e faz algum suspense antes de dizer: — É um encontro.
Pisco uma porção de vezes, absorvendo a informação. De primeira, fico
confuso, meio assustado, porque Étienne sempre teve uma verdadeira
veneração pela mulher. Mas no segundo seguinte, fico feliz que esteja
tocando a vida. E imediatamente um instante depois, receio por ele. Medo
que se machuque, de alguma maneira.
— Um encontro? — repito, como que para ter certeza, e emendo: —
Um encontro romântico?
Ele passa a mão pelos cabelos grisalhos e suspira.
— Oui — confirma, meio envergonhado. — É um encontro romântico.
Abro um pequeno sorriso e abano a cabeça em positivo. Ele não me
responde, apenas sorri de volta, um sorriso de alívio e agradecimento. Então,
volta até o filho, deixa um beijo estalado em seus cabelos e se retira.
Eu tomo uma decisão precipitada, mas é mais forte do que eu. Não
consigo simplesmente esquecer o assunto, deixar para lá. Uma inquieta
aflição que me atormenta. Nas pouco mais de doze horas depois do meu
plantão no hospital, remoo o estado que Juliette ficou quando o agente da
polícia foi retirar seu depoimento e saber o que aconteceu. Ela mentiu, disso
tenho certeza, e quero entender os reais acontecimentos. Não estou
descartando a possibilidade de ter sofrido algum tipo de violência doméstica.
Quem fez aquilo com ela pode ter sido um namorado, marido… ou o pai.
Este último, penso que talvez possa ser por causa da gravidez. Ninguém a
procurou no hospital, segundo minhas fontes lá dentro; nenhum familiar,
exceto por um homem que se disse primo dela, e a moça não mencionou o
pai de seu filho em momento algum até agora.
A ideia de que seja mãe solteira e o pai dela tenha feito isso reforça em
minha mente. Mas também não descarto um companheiro que simplesmente
não queria o bebê e achou que espancá-la era uma boa ideia. Um amargo
esquisito toma minha boca só de pensar nisso. Suspiro e afasto os
pensamentos da cabeça, tomando alguma coragem para atravessar as portas
duplas de vidro da cafeteria onde ela trabalha.
Olha só eu aqui, incorporando um Étienne e fazendo um trabalho que
não é meu.
Inspiro fundo e entro. Olho ao redor, procurando pela pessoa certa. Não
foi difícil conseguir o endereço do lugar. Bastou que eu pesquisasse por
“Bernardo Dousseau” na internet, filtrasse minha busca e descobrisse que ele
é dono de uma rede de cafeterias gourmet. Em Paris, tem mais de uma filial,
então tive que confirmar com uma ligação onde seria mais fácil encontrá-lo.
Uma funcionária me passou este endereço e aqui estou.
Alguém vem me atender, pergunta se preciso de ajuda. Pergunto por
Dousseau; o funcionário pede meu nome para que eu seja anunciado e me
oferece uma das mesas para me acomodar enquanto chama pelo patrão;
aceito a oferta e aguardo. Ele aparece menos de dois minutos depois e se
senta à minha frente, cruzando as pernas.
— Bonjour, doutor Laurent — cumprimenta-me, oferecendo-me um
sorriso caloroso.
— Bonjour, Dousseau. Estamos fora do hospital. Pode me chamar de
Pierre.
Trocamos um aperto de mão, enquanto ele balança a cabeça em
positivo e diz que, nesse caso, posso tratá-lo pelo primeiro nome.
— Aconteceu alguma coisa com Juliette? — indaga, genuinamente
preocupado.
— Não, não. — Apresso-me para acalmá-lo. — Ela está bem. Eu… —
Faço uma pausa, sem saber como fazer essa pergunta sem parecer muito
inconveniente, invasivo e, acima de tudo, sem tentar transparecer que estou
mais preocupado do que deveria com esse caso. — Gostaria de saber se
Gautier te disse o que aconteceu no dia em que você a encontrou, quando foi
visitá-la no hospital.
Noto uma ligeira mudança na postura dele quando menciono isso, o
que me faz acreditar que ele sabe de alguma coisa. Mas, em vez de me dizer a
verdade, tenho a impressão de que mente quando profere o seguinte:
— Ela não me disse nada. — Olho para o lado, observando a paisagem
parisiense através da parede de vidraça da cafeteria, tentando desvendar esse
mistério, pegando-me tão obcecado quanto meu irmão em encontrar respostas
que me satisfaçam. — Por que quer saber? — pergunta, descruzando as
pernas e debruçando-se sobre a mesa, seus olhos claros nos meus.
— Porque tenho a impressão de que ela está com medo e está mentindo
para acobertar o agressor, seja ele quem for. Só quero ajudar. Acho que…
Juliette está com medo de denunciar e por isso inventou essa história de
assalto.
Bernardo torna a se recostar na cadeira, analisando-me atentamente.
— Ela te disse que foi um assalto?
— Para mim diretamente, não. A polícia foi recolher o depoimento dela
para um boletim de ocorrência e foi esta a versão que deu, mas não levaram
nenhum pertence dela. E é verdade que também não roubaram nada do seu
estabelecimento?
— Não, não roubaram. — Outra vez ele se inclina sobre a mesa. —
Desculpe-me se vou parecer grosseiro, mas esta sua preocupação cabe a
você? Digo… isso deveria ser trabalho de agentes competentes, non?
Acho que sinto meu rosto queimar. Engulo em seco. Droga. É claro que
qualquer idiota com um quarto de cérebro perceberia meu interesse incomum
nesse caso.
— Só estou tentando ajudar — repito depois que me recupero da ligeira
vergonha que me acomete por me intrometer tanto assim em algo que não
cabe a mim resolver.
Mas o que fazer se isso é mais forte do que eu? Estou de fato
preocupado com ela e a verdade é que não seria a primeira vez que atendo
uma mulher vítima de violência doméstica que está encobrindo o agressor por
medo. Não é a primeira vez que me preocupo em ajudar essas mulheres, nem
a primeira vez que procuro ajudá-las a deixar um companheiro violento,
embora eu tenha feito isso dentro do hospital, contatando assistentes sociais,
polícia, familiares, ONGs e qualquer outra entidade que pudesse ampará-las.
É verdade que esta é a primeira vez que procuro ajuda para um caso
semelhante fora das paredes dos hospitais.
Bernardo abre um sorriso alegre, meio cínico, eu diria, e se levanta.
— Désolé… Não posso te ajudar nesse caso. Não sei nada além do que
Juliette contou para você.
Também me levanto, conformado de que não vou descobrir nada de
relevante a não ser com ela mesma. Talvez eu deva chamar mesmo um
assistente social, que tem mais lábia e experiência nisso e pode convencer a
moça a contar o que realmente aconteceu, e, se for mesmo caso de violência
doméstica, a denunciar o agressor.
— Tudo bem. Agradeço por ter me dado um pouco do seu tempo.
Trocamos um aperto de mão de despedida.
Bernardo já está virando-se para voltar ao seu trabalho quando o
interpelo:
— Pouvez-vous me faire une faveur? — “Pode me fazer um favor?”
— Carrément. — “Claro”.
— Não comente com ela que vim aqui, falar com você. Não quero
parecer inconveniente demais, me entende?
Dousseau abre um sorriso convencido e acena em positivo.
— Não se preocupe, não vou comentar nada com ninguém.
Agradeço sua compreensão e estou me retirando quando é ele quem me
interrompe:
— Juliette é uma boa moça. Se ela te contar o que de fato aconteceu…
espero que saiba compreendê-la.
Não tenho tempo de questioná-lo sobre o que está falando porque ele se
retira em seguida. De volta à clínica onde trabalho quando não estou de
plantão, durante todo o caminho penso seriamente no que me disse, tentando
compreender o que suas palavras significam.

O filme está chegando ao fim, perto da meia-noite, quando Étienne


chega do seu encontro. Édouard está dormindo no sofá, sua cabeça apoiada
nas minhas pernas, o corpinho coberto pela sua manta favorita. Meu irmão
fica surpreso quando me vê acordado. Ele joga as chaves do carro e do
apartamento sobre o balcão da cozinha e, parecendo meio encabulado, se
senta do outro lado, colocando as perninhas do filho em seu colo. Está bem-
arrumado, algo que raramente vi desde o sumiço da mulher. Blazer, jeans e
camisa comprida. Cabelos bem-penteados, perfumado.
— Como foi seu encontro? — murmuro.
— Bem.
Étienne fica em silêncio, os olhos fixos no filho. Ele estica a mão e o
acaricia na bochecha suavemente, como em um transe. Sei que é um cara
reservado e que provavelmente não vai mais me contar sobre isso. Sempre foi
assim. Ele dificilmente compartilha sua vida, seus desejos. Não vai adiantar
pressioná-lo a se abrir, porque não vai acontecer. Longos segundos se
passam. Torno a assistir ao filme, meu irmão segue sua introspecção,
acarinhando o filho.
— Acha que é cedo demais? — cicia, quebrando o silêncio longo. —
Precipitado demais? — Ergue seus olhos para mim. A sala está na
semiescuridão, então não posso dizer com certeza se vi ou não uma lágrima
neles.
Não entendo o que quer dizer, então ele se explica:
— O encontro. Acha que é cedo demais? — Seus olhos se desviam
para o pequeno de novo e engole em seco. — Às vezes, tenho a impressão de
que estou traindo a Jeaninne. Em outros momentos, penso que está na hora de
tocar minha vida porque não sei… — Deixa a frase incompleta e balança a
cabeça em negativo. — Mas daí outra vez a culpa me consome, porque só
tem um ano e já estou me engraçando pro lado de outra mulher.
Não sei o que dizer. A verdade é que não tenho nenhum conselho
valioso para o meu irmão nesse momento. Não faço ideia do que ele está
passando e não sei como eu reagiria no lugar dele. Queria poder dizer
qualquer palavra de conforto, mas não posso. Por outro lado, ele tem razão.
Está na hora de tocar a vida. Nunca disse nada para não o entristecer, mas
acredito que a esposa esteja morta.
— Penso que… — continua, seu tom baixo e rouco, sua atenção toda
no filho e na carícia que segue fazendo no rostinho sereno. — Ela ainda está
por aí, em algum lugar… — Aperta as pálpebras e dessa vez vejo com
clareza uma lágrima escorrendo pelo seu rosto. — Passando por situações
terríveis…
— Étienne… — Tento dizer alguma coisa para quebrar sua linha de
raciocínio. Ele não pode ficar imaginando esse tipo de coisa ou vai
enlouquecer.
—… enquanto estou aqui, tocando a minha vida, marcando encontro
com outra mulher.
Meu irmão dá uma risada meio esganiçada, histérica, e seca
rapidamente a lágrima que desliza pelo seu rosto.
— Não é errado você seguir em frente, Étien, mas se isso está te
machucando, te fazendo sentir culpa, então dê um tempo… Um tempo pra si
mesmo, sabe? — É tudo que consigo dizer nesse momento. Não posso
encorajá-lo a mergulhar fundo nessa relação, mas também não posso
aconselhá-lo a parar sua vida. — Tente voltar ao trabalho — encorajo-o. —
Comece pelo mais simples — aconselho. Beijo a testa de Édouard, levanto-
me, ajeitando-o nas pernas do pai, e olho meu irmão uma última vez antes de
seguir para meu quarto. — Na via das dúvidas, apenas siga o seu coração.
Ele não responde. Fica ali, na mesma posição de sempre, dando ao filho
um carinho que pouco existiu nos últimos doze meses. Vou saindo aos
pouquinhos, sendo tomado agora pelos meus próprios conflitos e problemas,
minha preocupação insólita com Gautier. Já estou alcançando o corredor dos
quartos quando o ouço me agradecer:
— Merci.
Dou um leve sorriso para mim mesmo e me enfio debaixo dos lençóis.
JULIETTE
— Você é muito cara de pau! — Adrien esbraveja quando apareço em
sua casa, pouco mais de duas semanas depois.
Impeço que bata a porta no meu nariz espalmando na madeira com a
mão desocupada. Na outra, equilibro duas caixas de pizzas. Meu primo bufa,
furioso, e me dá as costas. Entro com cuidado no seu apartamento. É um
lugar simples, pequeno, mas organizado e aconchegante. Tem uma cozinha
conjugada com a sala, um quarto pequeno e um banheiro que,
milagrosamente, para um homem solteiro, ele mantém limpo.
— Mais de duas semanas, Juliette! — resmunga, voltando para o fogão
e levantando a tapa de uma panela. Aproximo-me e vejo que está cozinhando
arroz. — Esse é o tempo que você passou fora de Paris depois de me dar um
bolo e só agora vem me procurar? — Indignado, olha para as caixas de pizza
da minha mão, levanta a tampa da primeira e faz uma careta. — E ainda
trouxe um sabor que eu detesto!
Seguro uma risada maior, sentindo-me levemente vingada.
— Ora, aquele dia você trouxe cerveja e sabe muito bem que eu odeio.
Adrien ergue o indicador em riste e enumera enquanto fala:
— Um, você nem apareceu. Dois, que bela francesa você é! Uma
francesa que odeia cerveja. Veja se posso com isso. — Ele desliga o fogo,
escorre a água e abre o saquinho onde o arroz foi cozido. Distribui numa
tigela e se vira para mim, que estou colocando as caixas de pizza sobre seu
pequeno balcão. — Onde esteve esse tempo todo? — pergunta, um pouco
mais calmo.
Sento-me na banqueta de madeira e retiro a tampa da caixa. Mesmo
contrariado por ter trazido um sabor que ele não gosta muito, Adrien pega
pratos e talheres para comermos. Entrega-me um conjunto, e eu me sirvo com
uma fatia. Da geladeira, ele retira duas garrafas de cerveja, entregando-me
uma. Faço uma careta, mas aceito.
— Estava viajando. Ficamos um tempo em Lyon, depois fomos para
outros lugares… — digo, abaixando o olhar. É esquisito falar disso com ele.
Meu “relacionamento” com Antony é proibido, então, tecnicamente, deveria
manter segredo, mas estou aqui, contando para Adrien, que claramente odeia
qualquer tipo de relação extraconjugal. Ele não diz nada, mas noto a ruga
entre suas sobrancelhas enquanto pega uma fatia de pizza. Toco sua mão e ele
ergue o olhar para mim. — Me desculpe. Por ter furado com você aquele dia.
Sei que quebrei nosso ritual. E por ter falado da Marjorie.
Dando ombros, ele morde seu pedaço. Entorna um gole da cerveja para
ajudar a descer.
— Está tudo bem. — Mas sei que não está.
— Como andam as coisas por aqui? Seu trabalho, o doutorado?
Admiro o esforço desse rapaz, preciso admitir. A mãe o criou sozinho,
trabalhando como doméstica na casa dos Chevalier. Adrien cresceu sem pai e
logo que pegou alguma idade, começou a trabalhar para ajudar a mãe. É claro
que ele fazia esses trabalhos escondidos da minha tia, porque ela queria
mesmo que o filho apenas estudasse e garantisse seu futuro. Mas meu primo
sempre foi cabeça-dura e do contra. Começou limpando jardins, carregando
sacolas, entregando encomendas. Descolava trocados que ajudavam a mãe.
Quando completou dezoito anos, passou a trabalhar como chofer de
Ferdinand e a estudar à noite. Fez a graduação em uma universidade privada,
e isso exigia quase setenta por cento do seu salário. Com os outros trinta por
cento, pagava as contas e o aluguel. Esse apartamento ele comprou há uns
dois anos, depois de fazer um acordo com o patrão, que pagou à vista pelo
imóvel e desconta aos poucos do seu salário. Isso só foi possível porque meu
primo conseguiu uma bolsa de mestrado em uma universidade pública. Após
tornar-se mestre, engatou nos estudos e conseguiu a bolsa para o doutorado,
alguns meses atrás.
Mesmo assim, continua trabalhando de motorista. Diz que ainda não
encontrou uma oportunidade na sua área — arquitetura — e que ainda tem
dívidas com Chevalier que prefere quitar. Ele sabe que se pedir as contas,
perde todos os direitos. Se encontrar outro emprego na sua área, seu salário
pode ser menor por falta de experiência (e Ferdinand o paga muito bem para
ser motorista, por isso prefere não arriscar); se for contratado como
estagiário, não recebe o salário mínimo e isso pode impactar no seu
financeiro. Por ora, sua melhor opção é continuar como motorista.
— Sugando toda minha vitalidade, como sempre — responde, com um
tom dramático.
Rio um pouco e viro um gole de cerveja, fazendo uma leve careta
quando o líquido toca minha língua. Odeio, mas não é de todo ruim. Há um
silêncio confortável entre nós até que meu celular começa a gritar dentro do
meu bolso. Confiro o número no identificador. É Antony. Dou uma olhada
em Adrien, que me olha de volta com a reprovação. Decido ignorar a
chamada. Vim para compensar minha mancada de alguns dias atrás. Ele não
diz nada, mas sei que quer muito me dizer alguma coisa. Talvez até imagine o
que seja.
— Vai, fala o que está entalado aí — incentivo, apontando a ponta da
garrafa em sua direção, e depois tomo um gole generoso da cerveja,
preparando-me para os sermões.
Adrien ergue uma sobrancelha e me encara com um traço de
incredulidade. Molha o lábio inferior, morde sua pizza e bebe um pouco da
sua cerveja antes de dizer:
— Não tenho nada entalado na garganta, Julie.
— Até parece. — Meu celular toca de novo. Adrien mordisca o lábio
inferior, com uma carranca na cara. Ignoro a chamada de Antony e o encaro
novamente. — Está querendo me dizer alguma coisa. Vai, me diz.
Ele balança a cabeça em negativo e limpa os dedos com um
guardanapo de pano.
— Não vou chamar sua atenção, já te disse isso. Você é uma mulher
adulta.
— Sim, já me disse isso, mas sua cara é de quem quer me pegar pelo
braço e me dar uns tapas na bunda.
Adrien solta uma gargalhada profunda e rouca, abanando em positivo.
— Só estou preocupado contigo — revela, seus traços tomando
proporções mais suaves. — Não gostei daquele Antony. Não me parece ser
uma boa pessoa.
Pela terceira vez, meu telefone toca, escandaloso. Pela terceira vez, é o
meu amante. Suspiro e baixo o volume. Meu primo está com seus olhos
fixados em mim, em uma expressão que não sei explicar. Parece sério demais
para ele, embora seja parisiense e o mau humor seja quase que uma das
nossas marcas registradas.
— Você não o conhece — respondo, baixando os olhos e terminando
de comer meu pedaço de pizza. — Ele é uma boa pessoa.
— Se fosse, não estaria traindo a esposa — rebate, imediatamente.
E lá vamos nós entrar nessa esfera outra vez. De certa forma eu sabia
que, uma hora ou outra, Adrien fosse me alfinetar, por mais que viesse com
esse discurso de “você é adulta e sabe o que faz”. Ele é um cara certinho
demais para ver uma coisa errada e ficar calado.
— Não conhece a vida dele, Adrien.
Ele me olha por um segundo inteiro e pergunta:
— E você conhece? — Estou para abrir a boca e dizer que conheço,
mas sou interrompida, porque ele complementa: — Conhece além daquilo
que Antony te conta?
Reflito por um instante, tendo dificuldade em admitir que não conheço
nada além das coisas que me diz. Não posso dizer que conheço sua vida, para
justificar ter uma amante, porque não conheço. Ele me diz coisas horríveis da
esposa, mas eu a vi apenas em uma ou outra ocasião. Não tive uma boa
impressão dela nas poucas vezes em que tivemos rápido contato, é verdade,
mas também não me pareceu que é tudo isto que Antony alega ser. Inclusive,
no evento de Emil semanas atrás, em sua mansão, apesar de a mulher ter
olhado discretamente para Bernardo, não me pareceu aquele ser desprezível
que meu amante adora pintar. Na ocasião, estava vestida de forma mais
reservada e falou bem pouco em volta da mesa.
Mais l’habit ne fait pas le moine — “ mas as aparências enganam”, é o
que meu pai diria se ainda estivesse vivo. Ann-Marie mantém as aparências,
apenas isto. Nada mais do que isto.
— Não, mas sei que ele está dizendo a verdade.
— Você é ingênua, Juliette — meu primo murmura, balançando a
cabeça em negativo.
Levanto-me do meu lugar, dando-me por satisfeita dessa conversa
infrutífera. Adrien jamais entenderia a situação. Ele é correto demais nesse
quesito.
— Se pensa isso do Tony, acha que também não sou uma boa pessoa?
— devolvo, levando minha louça até a pia.
Há um breve instante de hesitação da parte dele.
— Não disse isso.
Viro-me e me encosto à pia.
— Mas o julga sem conhecê-lo. Deve fazer o mesmo comigo. Deve
pensar “essa vadia abre as pernas para homem casado, então não presta!”.
Desculpe, senhor Todo-Correto, se estou apaixonada por um homem que vive
na merda de um casamento com uma mulher que provavelmente dorme com
meu chefe.
Inspiro fundo depois de soltar isso tudo de uma vez só, sem pausas. Oh,
merde! Estou sendo dramática e sei disso. No momento de raiva, até disse
algo que não deveria. Não tenho provas nenhuma de que Ann-Marie e
Bernardo têm um caso, só desconfianças.
— Eu conheço você — anuncia, saindo do seu lugar e ficando de frente
para mim. — Sei que não é uma má pessoa. Estar saindo com um cara casado
não te faz mau-caráter, Juliette, apenas ingênua.
Dou uma risada sem humor, inconformada. Adrien se aproxima de mim
e me segura pelos braços, em um toque de conforto e amor. Amo esse idiota,
por mais que a gente brigue vez ou outra. Entendo que ele quer apenas o meu
bem. Mas sei me cuidar e sei o que é melhor para mim.
— Me preocupo com você, sabe disso — continua. — Estou tentando
te mostrar quem Antony verdadeiramente é. Você está tapando os olhos para
a realidade, Julie. Está tão cega e apaixonada por esse homem que não
consegue ver quem ele de fato é.
Afasto-me, cansada desse assunto e de acusações sem sentido. Adrien
não o conhece, como pode julgá-lo?
— Pare, Adrien! Se para você, eu, que estou dormindo com ele, não o
conheço, como você pode conhecê-lo? Fala do caráter dele apenas se
baseando na relação extraconjugal, sem tentar ver o lado de Antony, sem
considerar a péssima esposa que tem, o casamento de merda que vive.
Decido ir embora e findar essa discussão sem sentido. Adrien vem
atrás, mas não tenta me impedir, apenas diz:
— É exatamente este o ponto! Ele está mentindo sobre tudo isso e você
está acreditando!
Viro-me para ele, a porta do seu apartamento entreaberta, minha mão
na maçaneta.
— Como pode ter tanta certeza de que ele está mentindo?
— Conheço homens como ele! A porra do meu pai era um homem
como ele!
— Nem todos são como seu pai, Adrien. Supere isso.
Eu não o deixo me responder. Bato a porta e desço as escadas do
edifício rapidamente, tentando esquecer e ignorar tudo o que meu primo me
disse nos últimos minutos.

Quando confiro meu celular de novo, tem uma enxurrada de ligações


perdidas e mensagens de Leclerc. Desço do táxi, pago minha corrida e
caminho cabisbaixa, enquanto o respondo. Antes que eu possa clicar em
“enviar” com a resposta de que já estou em casa, a porta da frente se abre.
Ergo o olhar e dou de cara com Antony, seu rosto severo, telefone nas mãos.
Penso em perguntar o que está fazendo aqui, mas ele me agarra pelo braço e
me puxa para dentro, meio de forma violenta.
— Onde esteve? — indaga, batendo a porta. Ele me encara com
seriedade, expressão rude. — Cansei de te ligar, Juliette! Por que não atendeu
a porra das minhas ligações? — Ele está alterado.
Cruzo os braços e o fito, queixo empinado. Ele não vai me tratar assim.
Nada digo, aguardando que se acalme.
— Não me ignore. — O tom é de advertência.
Viro as costas e caminho para minha cozinha. Vou beber uma taça de
vinho e comer uns pedaços de queijo. O homem vem em meu encalço e me
agarra pelo braço, girando-me bruscamente em sua direção.
— Não me ignore! — diz, mais incisivo. — Te fiz uma pergunta.
Solto-me da sua pegada, irritada com o seu jeito de me tratar. De
repente, as palavras de Adrien invadem minha mente, advertindo-me de que
esse homem na minha frente não é quem eu penso que é.
— Estava com Adrien — respondo, mas mantenho minha postura
inflexível. Não vou abaixar a cabeça para ele, nem me deixar ser intimidada.
Os olhos dele transformam-se. Vagarosamente, confere as horas no
relógio.
— São quase dez da noite. O que estava fazendo com ele a essas horas,
Juliette?
Suspiro pesadamente, cansada de ter sempre que explicar que entre
mim e Adrien nunca, nunca vai acontecer qualquer coisa.
— Eu não o via já tinha algumas semanas, por causa da nossa viagem.
Fui só fazer uma visita. Antony, já falamos sobre isso.
O homem dá um passo adiante, deixando seu rosto perto do meu.
— Quero você longe dele. Chega de visitas fora de hora, de
conversinhas fiadas, de ligações no seu telefone. É por isso que não me
atendeu, porque estava com ele?
Empurro-o para longe de mim, não acreditando nesse discurso idiota.
— Não vai me proibir de falar com meu primo — rebato. — Não vai
controlar a minha vida.
Ele fica em silêncio por longos segundos, seus olhos cravados em mim
naquela expressão de quem está com uma raiva visceral. Vejo-o engolir em
seco, fechar e abrir os dedos como se estivesse se controlando para não socar
alguma coisa. Inspirando profundamente, murmura:
— Não quero controlar sua vida, mas não me agrada que você me
ignore por causa dele. Eu… — Antony vacila, sua postura se abate, toda a
raiva que parecia concentrada nele se esvai e dá lugar a um semblante de
derrota. — Precisei de você.
Isso me atinge de um jeito que não posso mensurar. Ele precisou de
mim? Dou um passo adiante, aproximando meu corpo do seu. Acaricio seu
rosto, mas ele se esquiva quando o toco. De novo, aquele sentimento de
culpa.
— O que aconteceu? — murmuro.
— Não importa mais. Eu precisei de você, mas me ignorou! Tudo bem,
entendo que não sou tão importante na sua vida quanto ele é.
— Não diz isso, Tony — peço, tomando-o em meus braços. — Eu não
te ignorei — minto. — Não vi o telefone tocar. Só isso.
— O que estavam fazendo?
— Apenas conversando. Comprei umas pizzas, comemos e
conversamos. Juro que foi apenas isso, mon amour. — Afasto-me e o olho.
— Me diz o que aconteceu.
— Esqueça.
Tento insistir, mas ele me dá as costas e sai andando. Uma cólera
diferente sobe por todo meu corpo. Antony não pode me tratar dessa maneira.
Eu não fiz nada de errado! Tomada por um ódio que desconheço, vou atrás
dele e tenho a mesma atitude que teve comigo minutos antes, seguro seu
braço e o giro na minha direção.
— Tudo bem. Quer que eu me afaste do Adrien? Então se divorcie da
Ann-Marie — imponho. O homem me fita como se, no meu lugar, tivessem
colocado uma louca. — Se divorcie dela. Acabe com a droga desse
casamento, me assuma e vamos viver nossas vidas juntos. Me afasto do meu
primo, faço isso por você, mas primeiro, dê um basta nesse seu casamento.
Estou dizendo um monte de asneiras. Essa “proposta” absurda de me
afastar do meu primo em troca de ele se divorciar é um blefe. Não me
afastaria dele por nada no mundo, mas foi o jeito que encontrei para forçá-lo
ao divórcio. Começo a achar que está me enrolando.
— Já falamos sobre esse assunto. Meus negócios com Emilien…
— Não me importo! — Ergo a voz, interrompendo-o. — Pouco me
importo com a droga dos seus negócios com Dupont! Você deve ter uma
reserva de dinheiro que possa te ajudar a se manter até esses investimentos te
darem retorno. E não sou uma acomodada como a sua mulher. Tenho meu
trabalho na cafeteria, posso te ajudar a…
Sou interrompida por outra risada lunática dele. Gesticulando
desvairadamente, ele diz:
— Você acha mesmo que vou permitir que trabalhe na cafeteria de
Dousseau quando nos assumirmos?
O silêncio que nos envolve é sepulcral. Ele não pode estar falando sério
sobre isso. Pisco diversas vezes, assimilando o que disse. O cérebro dele deve
ter derretido, é a única explicação. Deixar de trabalhar está fora de cogitação.
Não vou passar a depender do dinheiro dele. Gosto da minha independência
financeira e não trocaria isso por nada no mundo. Nesse instante, diante do
que me disse, as palavras do meu primo rebobinam na minha cabeça. “Ele
não é uma boa pessoa”. “Juliette, fique atenta aos sinais”. Essa sua postura é
um sinal, não é? Antony está tentando me controlar, controlar minha vida,
minhas finanças. É isso que ele quer? Ver-me dependente do seu dinheiro
para que não o deixe?
Merde! Isso é a droga de um sinal.
— Você não tem o direito de permitir ou proibir qualquer coisa
referente ao meu trabalho, Antony. Continuarei trabalhando com Dousseau
até quando eu bem entender.
Aquela mesma expressão de contrariado surge no seu rosto. Já percebi
que não gosta quando o contrario, quando minhas escolhas o desagradam. E
de novo isso é um sinal. Mas por que me nego a acreditar que ele é mau-
caráter? Por que me nego a enxergar o verdadeiro lado dele?
— Não disse que você não pode trabalhar — rebate, suavizando sua
expressão. Ele dá um passo à frente, e eu tento recuar, mas o homem me
segura pelos braços, não com força, e sim com delicadeza. — Não quero te
proibir de nada. Disse que não te quero perto de Bernardo. Ele… não presta,
Juliette.
Quero discordar porque isso não é verdade. Tudo bem. Bernardo pode
ser um mulherengo safado, que cada dia está com uma mulher diferente, mas
eu o conheço há mais de seis anos e sei que é sim uma boa pessoa e nunca
faria mal a ninguém. Ele é um galinha incorrigível? Sim. Mau-caráter? Tenho
certeza que não.
— Por que acha isso? — questiono, segurando-me para não ser
insolente. — É porque ele flerta com a sua mulher? — O maxilar dele trinca.
É nítido que essa ideia o desagrada. — É o Bernardo, Antony. Ele flerta com
qualquer coisa que ande e tenha uma vagina entre as pernas.
— Exatamente! — Ergue a voz, mas não está sendo rude. — Quanto
tempo até começar a flertar com você?
Ah, então se trata disso. Apoio minha cabeça em seu peito e circundo
sua cintura com os braços, inspirando fundo seu cheiro gostoso. Antony e
suas preocupações e inseguranças bobas. Agora eu o entendo. A mulher
conseguiu abalar toda a confiança dele, então o homem fica inseguro comigo.
Talvez por isso aja dessa maneira possessiva, como se quisesse me controlar.
Ele não quer me controlar. É apenas inseguro por causa da esposa que não o
valoriza. Preciso mudar isso.
— Nunca vi Dousseau se envolver com uma funcionária, Tony. Ele é
mulherengo, mas não mistura o pessoal com o profissional. Além do mais, já
te disse que não tenho interesse em mais ninguém, a não ser em você.
Antony não me responde, apenas retribui meu abraço. Por um tempo,
permanecemos assim, envolvidos um nos braços do outro. Com o ouvido
grudado ao seu tórax, consigo ouvir as batidas do seu coração. Estão normais
agora. Notando que está mais calmo, retomo o assunto com delicadeza:
— Vai se divorciar de Ann-Marie?
Não me afasto do seu abraço para ver sua expressão. Ele também não
me afasta, mas permanece em silêncio por longos segundos.
— Vou, mas no tempo certo.
Não gosto da sua resposta. Parece que está resistindo ao divórcio.
Distancio-me três passos para trás.
— Tudo bem. Será como você quiser. — Cruzo os braços, tentando
demonstrar uma postura mais impositiva. — Mas enquanto isso não
acontecer, eu e você — aponto de mim para ele — não vai mais rolar.
Antony me avalia, as sobrancelhas ligeiramente enrugadas.
— O que quer dizer com isso?
— Quero dizer que, enquanto não for um homem completamente livre,
não terei mais nada com você.
— Está brincando comigo? — indaga, sua postura de raiva parecendo
voltar, mesmo que sutilmente.
— Não, Antony… Nunca falei tão sério em toda minha vida.
Então, eu o vejo perder a cabeça.
— Não pode fazer isso comigo, sua vagabunda! — esbraveja, dando
um passo para frente e tornando a me segurar pelos punhos. Ele me aperta
com força desnecessária, dando leves solavancos no meu corpo enquanto
grita que não vai admitir que eu imponha isso entre nós.
Só por um segundo, eu não o reconheço. Este não é o Antony que me
cativou meses atrás. Ele não é desequilibrado, ciumento, possessivo e
controlador. O homem por quem me apaixonei e este na minha frente,
gritando comigo, ofendendo-me e me machucando, não podem ser a mesma
pessoa. Invadida por uma raiva que não me pertence, e arranjando energias
de não sei onde, empurro-o para longe de mim, soltando-me de sua pegada.
— É a minha decisão — imponho-me, abrindo a porta. — Vá embora e
só volte quando for um homem divorciado e mais equilibrado. Não vou aturar
que outra vez me trate aos berros e me machuque. Eu fui bem clara?
Ele faz menção de se aproximar de mim outra vez, mas dou um passo
atrás, ainda apontando para fora, esperando que saia.
— Juliette, vamos conversar — pede.
— Vai embora, Antony! — exijo, erguendo o tom de voz.
Tenho a impressão de que está prestes a explodir de raiva. Mesmo
assim, respeita meu pedido. Fecho a porta logo em seguida, inspirando fundo
e me segurando para não chorar.
Com todas as forças, não quero acreditar que ele é esse tipo de cara. Eu
o amo demais para suportar uma verdade tão dolorosa como essa.

No dia seguinte, acordo perto de nove da manhã com alguém ligando


no meu telefone. Não reconheço o número no visor, mas atendo mesmo
assim. A pessoa do outro lado da linha é um entregador e diz que tem algo
para mim. Pergunto o que e de quem é, mas ela me diz que não tem
permissão para informar a identidade do remetente e que se trata de uma
cesta de café da manhã. Bem, não preciso fazer muito esforço nem ser muito
inteligente para adivinhar de quem se trata. Peço para que o entregador me
espere cinco minutos. Levanto-me, troco de roupa rapidamente, lavo o rosto e
escovo os dentes.
Recebo a entrega. Junto da cesta de café da manhã, tem um cartão, uma
caixa de bombom, um ramalhete de flores e um bilhete. Apoio tudo na mesa
na sala, coloco as rosas em um vaso com água e abro o pequeno envelope
vermelho. Tento me recordar se, em algum outro momento, vi a caligrafia de
Antony e não consigo chegar a uma conclusão. Mas acho que não. Sua letra é
irregular e pequena, mas legível.

“Como sinal do meu arrependimento. Não agi corretamente com você


ontem, fui grosseiro e machista. Minha atitude foi desnecessária e noto isto
somente agora, mais calmo e com a cabeça no lugar. Você está certa em se
impor daquela maneira. No seu lugar, eu faria a mesma coisa. Prometo que
isso não vai se repetir, mon amour. Mas por favor, não me deixe, não pare de
me ver. Amo você, Julie… Mais do que consigo explicar em um pequeno
bilhete e não suportaria ficar distante de ti. Falta pouco para me divorciar,
tenha um pouco de paciência e não me deixe. Se ainda quiser me ver depois
de tudo, me ligue no horário que estou na galeria.
Espero que possa me perdoar.
Antony Leclerc.”

Encaro o bilhete por longos segundos, tentada a acreditar nele. E é o


que eu faço. Acredito em cada palavra escrita. Olho para a caixa de bombom,
o ramalhete de flores, a cesta de café da manhã com tudo que gosto. Ele me
conhece, sabe dos meus gostos, das minhas manias, meus desejos… Da
mesma maneira, sei sobre ele.
Vou até o quarto, pego meu telefone e fico o encarando, pensando se
ligo ou não. Mas é Antony quem me liga. Atendo no segundo toque.
— Chérie… — murmura. — Suponho que já recebeu meu presente.
— Sim — digo, sentando-me na cama, sentindo-me com dezesseis
anos. Ele tem um efeito estranho em mim. — Mas não pense que pode me
comprar com isto.
— Não estou tentando te comprar com nada, Juliette. É um gesto de
arrependimento e amor. Desculpe-me por ontem. Não queria ter te magoado
ou te ofendido.
— Antony… — digo, suspirando. Passo a mão pelos cabelos e fecho os
olhos. — Não gosto quando perde o controle assim. Você me aperta, grita
comigo, me ofende, agora essa história de não querer que eu trabalhe ou fale
com Adrien. Não gosto disto. Se você não mudar, nós não vamos funcionar,
com ou sem divórcio, você me entende?
— Eu entendo, entendo sim. E juro que vou mudar. Isso não vai mais
voltar a acontecer, tudo bem? Acha que pode me perdoar? Amo tanto você. É
por sua causa que tenho trabalhado nisso com Emilien e suportado meu
casamento porque sei que quando isso tudo acabar, nós dois vamos ficar
juntos. Julie… não jogue fora isso que temos.
— Promete que não vai mais se comportar como se comportou ontem?
— Oui, je te promets. — Um silêncio curto corta a linha. Antony se
pronuncia, cuidadosamente: — Vou poder te ver hoje à noite?
Quero dizer não. Dizer que, enquanto for casado, vai se manter longe
de mim. Mas me recordo do bilhete, da cesta do café da manhã, das rosas,
dos bombons, e tenho uma forte inclinação a dizer sim. Ontem foi só um
momento, certo? Antony sempre foi bom comigo. Em Lyon, preparou o
quarto para nós em uma das noites; jantamos fora na maior parte das nossas
estadias, não na cidade, mas nos demais locais em que passamos. Ele é um
cara bom. Só tem os seus momentos como todo mundo tem.
Eu quero dizer não, mas quando percebo já disse:
— Sim.
JULIETTE
Estou grávida e fiz de propósito.
Respiro fundo enquanto encaro o teste de farmácia entre meus dedos,
olhos fixos no resultado positivo: oito semanas de gravidez. Antony vai ficar
uma fera. Ele não tem filhos com a esposa porque já alegou que não gosta,
não tem tempo nem paciência para crianças. Mas aqui estou eu, esperando
um filho dele. Engravidei de propósito de um homem que já me disse que não
quer filhos.
Eu sou doida.
Guardo o exame na gaveta do gabinete e termino de me arrumar para o
meu turno na cafeteria. Trabalho todo o dia sentindo uma aflição no peito.
Não sei como vou contar isso ao meu amante. Não tenho ideia de como ele
vai reagir e me sinto uma estúpida — sim, somente agora a ideia me parece
absurda e desesperada — de ter engravidado de propósito para segurá-lo.
Eu sou doida.
Chego em casa no final do dia. Bernardo queria que eu fizesse algumas
horas extras, mas desta vez tive que negar. Antony apareceu na cafeteria
depois de umas duas semanas sem vê-lo. Viajou a negócios, e eu deveria ter
ido junto, por dois ou três dias, trocando minhas horas extras por descanso,
mas a esposa desta vez fez questão de ir. Voltou de Monte Carlo tem apenas
uns três dias e amanhã viajará de novo, para Nova Iorque, então preciso
aproveitar hoje à noite para contar.
Tomo um banho rápido e me esforço para ignorar o resultado na
gaveta. Antony aparece em casa por volta de dez da noite. Sorrio ao vê-lo.
Está bonito e elegante dentro de um casaco creme. Mal o recebo e ele invade
minha boca com um beijo profundo, de tirar o fôlego. Trago-o para dentro e
bato a porta. Já conhecendo cada canto da minha casa, me conduz de olhos
fechados até o sofá, onde me joga e cai sobre meu corpo. Sua boca não
desgruda da minha. O beijo se torna mais suave e calmo à medida que vai
perdendo as peças de roupa. Preferia que conversássemos antes do sexo.
Contudo, sei que é uma boa jogada agradá-lo e satisfazê-lo e depois dar a
notícia.
Realmente não sei como ele vai reagir.
Cansei de apenas ser a outra, a amante. Embora Antony pareça dar
mais atenção a mim do que à própria esposa que não o merece, a situação já
está insustentável. Não quero ter mais de me esconder ou mentir. Quanto
mais arrastarmos essa situação, pior será. Não estou mesmo a fim de sair mal
falada quando finalmente nos assumirmos. Não importa o quanto Ann-Marie
seja uma louca histérica que apenas se aproveita do marido, ou o quanto
Antony apenas procura o que não acha em casa, a amante é sempre a errada
da história. Sempre. Não quero arrastar esse caso a ponto de alguém
descobrir e eu cair na boca de Paris toda.
Talvez não tenha sido a ideia mais sensata ou esperta, mas foi o único
modo que encontrei de forçar esse homem a se divorciar de vez da mulher.
Já perdi as contas de quantas vezes Antony Leclerc me pediu calma e
paciência, que o divórcio viria em breve. Esse “breve” já se arrasta por
meses. Disse-me que a forçaria a se separar, não o contrário. Um dia desses,
inclusive, o presenciei dar um showzinho na cafeteria, porque a esposa estava
lá, à sua procura. Bem, ao menos foi o que disse, mas acho que foi mesmo
atrás de meu chefe. De qualquer modo, o plano dele é infernizar a mulher até
ela não aguentar mais e pedir o divórcio. Seu escândalo na cafeteria nessa
ocasião foi uma das suas encenações para tentar pressioná-la a desfazer o
casamento.
Porém, como já afirmei, não quero mais levar essa situação adiante.
Antony terá de dar um basta de uma vez por todas ou não terei mais nada
com ele até que seja um homem completamente livre. Sei que já me propus a
isso uma vez e falhei. Mas agora estou tão cansada de esperar, tão farta dessa
sua falta de posicionamento, que desta vez serei mais firme.
— O que está acontecendo com você? — pergunta, olhando-me com
curiosidade. Só então me dou conta de que me perdi nos meus próprios
pensamentos enquanto está aqui, em cima de mim, beijando-me.
Abro um pequeno sorriso e digo:
— Não é nada. Apenas um pouco cansada. E triste. Amanhã cedo você
viaja de novo. E dessa vez não poderei ir junto. De novo. — Faço um
biquinho dramático.
Antony ri brevemente e me beija de novo, passando a mão por dentro
da minha camisa e encontrando minha pele quente.
— Bem… se tivesse se afastado do seu emprego, como já bem disse
pra fazer porque posso te sustentar, poderia ir comigo. Uma pena você ter
obrigações na cafeteria de Dousseau.
Deus me livre. Não é a primeira vez que Antony sugere me afastar do
meu emprego e ser sustentada por ele. Sim, depois daquela ocasião em que
me disse que não me permitiria trabalhar com Dousseau, ele me veio com
essa proposta absurda de novo de me sustentar, dizendo que é dever dele me
suprir.
— Já falamos desse assunto. Além do mais, quando você finalmente
estiver divorciado, poderemos fazer mais dessas viagens, sem a necessidade
de ficar me escondendo.
O homem me encara um segundo, me dá um sorriso meio frio e não diz
nada. Sinto uma coisa esquisita se remexer dentro de mim, como algum tipo
de alerta natural do meu corpo acerca de Antony. Ele tem relutado tanto em
se separar da esposa que começo a desconfiar que está me enrolando. Ou
apenas é dependente demais, emocionalmente falando, da mulher. Não sei.
Só sei que preciso convencê-lo a dar um fim no seu relacionamento, ou nós
dois não vamos mais acontecer.
— Ficou quieta de novo — resmunga, saindo de cima de mim e se
levantando. — Olha, menti para Ann-Marie sobre o horário do meu voo só
pra poder me despedir de você. Mas já vi que não está a fim hoje… Então,
vou pra casa e arranjo alguma desculpa.
Dou um pulo tão grande no sofá que quase não percebo. Seguro-o pelo
punho e, antes que tenha tempo de me contestar, tomo-o em outro beijo forte
e necessitado. Não quero que ele vá. Não antes de conversarmos.
— Desculpe — murmuro em sua boca. — Não vou me distrair de novo,
juro.
Antony acena em positivo e me beija, terminando de tirar a roupa que
ficou em seu corpo. Aos poucos, também vou perdendo a minha. Em
instantes, estou completamente nua, de joelhos no sofá, enquanto ele está por
trás de mim, segurando firme em minha cintura e me penetrando com todo
vigor.

Depois do sexo, tomamos um banho juntos. Faço hora no quarto e o


oriento a ir até a sala, pedir uma pizza para comermos. Aproveito sua
ausência para voltar ao banheiro e retirar da gaveta do gabinete o pequeno
teste de farmácia. Minhas mãos tremem levemente ao segurar o pequeno
objeto entre meus dedos e ensaio um modo de dar a notícia. Minha mente me
reporta para algum tempo atrás, quando, nus na cama, perguntei por que ele e
a esposa ainda não tinham filhos. A resposta foi bem categórica:
— Não quero filhos. Não tenho paciência, ânimo nem energia pra
crianças.
Então é bastante óbvio que ter engravidado dele — de propósito — foi
minha ideia mais idiota. Mas se me amar o suficiente, como diz que ama,
talvez esse filho venha para nos unir definitivamente. O medo constante,
porém, de não saber como vai reagir à notícia, me domina por completo.
Nem mesmo sei como começar a dizer.
— “Então, estou grávida”. — Ensaio frente ao espelho, o teste ainda
em minhas mãos. Balanço a cabeça em negativo. Direta demais. Suspiro e
desisto por ora de formular uma maneira de contar. Guardo o exame de volta
na gaveta, por baixo das toalhas de rosto, e volto para a sala.
Antony arrumou a mesa para comermos a pizza quando chegar e
escolheu um filme de terror, que está pausado.
— Está com dor? — questiona, franzindo as grossas e negras
sobrancelhas. Pestanejo sem entender seu questionamento. Ele parece
entender a expressão confusa em meu rosto e esclarece: — Está com a mão
no abdômen. Está com dor?
Viro o rosto para baixo e só então noto ambas as mãos sobre meu
ventre. Mal de grávida, acredito. Desfaço o gesto rapidamente e me
aproximo, negando com um mover de cabeça, ao mesmo tempo em que digo:
— Não, não estou com dor.
Abraço-o um instante e escondo o rosto em seu peito. Fico assim,
agarrada nele por longos segundos, repreendendo-me por ter sido estúpida em
gerar um filho sem o consentimento do meu parceiro.
— Juliette, você está tão esquisita hoje. Tem algo que quer me contar?
Afasto-me do seu abraço e o encaro nos olhos. Aproveite o momento e
diga de um vez, Juliette!, minha consciência acusa. “Sim. Estou grávida!
Parabéns, papai!”.
— Quando vai pedir o divórcio, Antony? — digo, contudo. Preciso
pensar em uma maneira mais fofa e suave de dar a notícia. Talvez eu compre
alguma roupinha escrito “Papai do ano” ou qualquer coisa do gênero.
Sua expressão se torna sombria e rude um segundo depois.
— Acho que já conversamos sobre isso — diz, exasperando um suspiro
logo em seguida.
— E acho que você está me enrolando — disparo.
Antony me encara com seriedade, com certeza não gostando do meu
tom. Engulo em seco e desvio o olhar, incomodada e intimidada com a
maneira de como me avalia. Abraço meu próprio corpo e até demoro a
perceber que novamente abracei meu ventre, em um ato inconsciente de
proteger meu filho.
— Não gosto desse tipo de pressão, Juliette. Já te disse que vai
acontecer no momento certo — alega, com o tom de voz meio rude.
Alguma coisa estranha me atinge e, pela primeira vez desde que
conheci e me envolvi com ele, sinto uma intimidação fora do comum. Engulo
em seco e apenas aceno em positivo, não querendo estender mais o assunto e
gerar confusão. A campainha toca e quebra a tensão quase palpável. Ele se
retira para receber o entregador. Comemos e assistimos ao filme em um
silêncio incômodo. Acho que é a primeira vez que fico desconfortável com
Antony. O longa ainda está rodando quando junto pratos, talheres e copos e
os levo para a cozinha. Encostada à pia, cabisbaixa, fico procurando a
maneira mais suave de falar da gravidez.
De repente, um par de braços me envolve e um beijo macio estala na
minha nuca.
— Pardon, ma chérie. Sei que fui meio rude contigo — pede com um
sussurro e a voz suave. — Só quero que espere mais um pouco, juro que
agora estou perto de me divorciar.
Viro-me em sua direção, sorrindo pequenino.
— Não está mesmo me enrolando, Antony?
— Claro que não, Juliette. Sou louco por você — declara e se inclina
para deixar um beijo úmido em meus lábios.
Mesmo algo dentro de mim me dizendo para não confiar em suas
palavras, eu confio.

— São cinco da manhã, por que está em pé? — Antony pergunta,


surgindo no banheiro.
Dou um sobressalto em meu lugar, assustada com sua chegada tão
repentina. Enrolada em um roupão, pronta a tomar um banho rápido, estava
admirando meu abdômen que já dá pequenos sinais da gestação. Fecho-o
rapidamente e me viro para ele, forçando um sorriso.
— Eu abro a cafeteria, se esqueceu? Preciso estar lá às seis para
esquentar as máquinas, fazer abertura do caixa, organizar prateleiras… —
digo, abrindo o chuveiro para aquecer a água.
Antony nada responde. Dispo-me, jogo o corpo debaixo da água quente
e o encaro de volta. Algo nos seus olhos escuros me incomoda. As
sobrancelhas também estão levemente franzidas, mas não entendo o motivo
dessa sua expressão. Um segundo depois, seu rosto se suaviza e ele começa a
se despir também. Seu corpo atlético se junta ao meu, as mãos fortes apertam
minha cintura, sua boca invade a minha em um beijo forte. Sou jogada contra
a parede de ladrilhos enquanto ainda sou devorada. Os dedos grossos vão
passando pelo meu corpo até minha coxa, que é erguida à altura de seus
quadris.
— Antony… — gemo. Ele está se encaixando na minha entrada, mas
ainda não estou preparada o suficiente. — Não, por favor. Ainda não. Não
estou…
— Vai ficar — interrompe com um rosnado, penetrando-me sem
delicadeza. A aspereza me machuca. Fecho os olhos para aguentar a dor do
atrito. Antony continua se movendo para frente e para trás, não se importando
que eu não esteja molhada o bastante.
Demora algum tempo que esteja úmida para recebê-lo sem me
machucar. O sexo não é tão prazeroso como das outras vezes. A magia parece
que se dissipou um pouco. Para piorar, nem consigo ter um orgasmo, ao
contrário dele. Ao final, estou sozinha, debaixo do chuveiro e insatisfeita.

— Quando você volta? — pergunto, antes que ele vá. Antony veio me
deixar na cafeteria antes de seguir para o aeroporto. Coloco a chave na
fechadura da porta dos fundos, que dá direto para o escritório da gerência, e a
giro para destrancá-la.
— Em três dias — responde, olhando para o outro lado da rua,
praticamente vazia às dez para seis da manhã, onde seu carro está
estacionado.
— Certo… — É só o que digo.
Um silêncio esquisito nos ronda novamente. Mordo o lábio inferior,
sentindo-me uma estúpida por ainda não ter contado sobre a gravidez. Quanto
tempo mais devo esperar? Quando a criança nascer? Perco-me em meus
pensamentos e inseguranças que sequer o vejo se aproximar e me abraçar a
cintura. Beija-me serenamente e indaga em seguida:
— Juliette, preciso que seja franca comigo e conte exatamente o que
está acontecendo com você. Não sou tolo, já percebi que está estranha. Me
conte de uma vez e vamos resolver isso juntos.
Olho-o, sentindo-me a pessoa mais insegura do mundo. O medo
começa a se formar em meu estômago e a subir vagarosamente até a
garganta, quase me sufocando. Ele não vai ficar feliz com a notícia. Tenho
certeza. Mon Dieu. Como fui estúpida, irresponsável e precipitada em
engravidar de propósito para segurar homem!
Inspiro profundamente e, sem mais rodeios, solto:
— Estou grávida.
Antony se afasta com um passo para trás, de modo súbito. Seu
semblante se transforma instantaneamente, aquela expressão sombria e
intimidadora tomando posse dos seus traços.
— O quê? — murmura, entre os dentes. — Está brincando comigo, não
é?
Engulo em seco. Nem percebo minhas mãos tremendo levemente.
— Não. Eu realmente… estou grávida.
Um silêncio denso recai sobre nós outra vez. Antony está
completamente transfigurado nesse momento. O homem que conheci —
pacífico e amoroso — simplesmente não existe. O homem na minha frente
agora é outro. É alguém que não conheço. Ele afaga o rosto e anda de um
lado a outro, emudecido. Permaneço igualmente calada, apenas o esperando
reagir à notícia e saber que tipo de decisão tomará.
— Conheço uma clínica particular que pode… fazer o procedimento de
aborto — diz, fazendo-me arregalar os olhos. Involuntariamente, envolvo
meu abdômen. Deus, ele não sugeriu isso, sugeriu? Lágrimas se formam em
meus olhos. Esperava que a gravidez o forçasse a pedir o divórcio, a me
assumir de uma vez por todas e formarmos uma família. Sua sugestão de
aborto me pega desprevenida e me deixa perplexa. — E depois do
procedimento, vamos tomar mais cuidado para não acontecer de novo.
— Não — digo, firme e convicta, a voz saindo levemente rouca. —
Não vou abortar.
Antony me olha como se eu tivesse apedrejado a cruz de Cristo.
— Juliette… — O tom é de advertência.
— Eu fiz de propósito! — confesso, praticamente cuspindo cada
palavra. — Achei que uma gravidez ia te forçar a largar sua esposa!
O que vem a seguir é inesperado até para mim. Antony ri. Uma risada
áspera, lunática e sem nenhum traço de humor.
— Você só pode ter ficado louca — dispara, dando um passo à frente e
me segurando pelos braços. — Como você é idiota, Gautier. Jamais deixaria
minha esposa, uma mulher de verdade, pra ficar com uma vagabunda
interesseira igual a você. Ainda não entendeu que sempre foi e sempre será a
outra?
O barulho da minha mão contra seu rosto é ensurdecedor. Quando
Antony me olha de novo, há fúria e loucura em suas íris escuras. Só então me
dou conta de quem ele realmente é. Não é o homem que sempre pensei que
fosse. Não, não. Longe disto. É apenas mais um escroto, lobo revestido de
cordeiro, que conseguiu me manipular e me colocar contra uma mulher que
sequer conheço direito, que me fez julgá-la e repudiá-la. Aqui e agora, diante
seu olhar bestial, sei quem é Antony Leclerc. Sua máscara caiu, posso ver sua
verdadeira face.
— Só quero ver a cara que sua esposa fará quando souber que o marido
dela é um maldito traidor — provoco, a frase saindo entre meus dentes. —
Você queria ficar com sua esposa e com a vagabunda interesseira ao mesmo
tempo, mas depois que eu contar a Ann-Marie sobre nós e sobre a gravidez,
não terá nenhuma das duas.
Giro nos calcanhares, pronta a entrar na cafeteria e deixar esse maldito
sozinho, mas ele é mais rápido do que eu. Segura-me pelo punho e me puxa
com toda força, jogando-me contra uma parede no segundo seguinte. Seus
dedos fortes se fecham contra meu pescoço, apertando sem piedade e me
sufocando.
Debato-me e tento sair de seu aperto, mas o homem é muito mais forte
do que eu. O máximo que consigo é apenas me sufocar mais. Com violência,
me bate contra a parede umas três vezes, enquanto ainda segue me
asfixiando. Prazer e insanidade indescritíveis atravessam a loucura que são
seus olhos nesse momento.
— Experimente abrir essa boca de boqueteira que você tem para ver o
que faço com você, sua vagabunda desgraçada. — A ameaça tão direta me
deixa assustada. — Você não dirá nada à minha esposa, entendeu? —
pergunta, fechando mais o dedo em meu pescoço. Começo a perder a lucidez,
mas consigo acenar em positivo. — ENTENDEU? — grita, batendo-me
contra o concreto outra vez. Meus pulmões parecem que são esmagados
ainda mais.
— En…t… — Tento dizer.
Antony me solta de repente. Caio estatelada no chão, puxando
desesperadamente ar para os pulmões. Então, começo a chorar, assustada
com a agressão de um homem com quem cogitei passar a vida ao lado.
Um soco atinge meu abdômen de repente. Uma dor lancinante viaja
pelo meu corpo, que jogo para trás. Mal tenho tempo de processar o que está
acontecendo quando mais socos e chutes me atingem sem piedade, com uma
força esmagadora. As agressões se espalham, atingindo costela e meu rosto.
Quando finalmente acaba, estou dolorida, semiconsciente, preocupada apenas
com meu bebê. Sinto uma respiração quente contra meu ouvido.
— Se por acaso te encontrarem e ainda estiver viva, que isso fique
como um recado: abra a boca e diga qualquer coisa a Ann-Marie e juro por
Deus que termino o que comecei com você e com esse bastardo.
Um segundo depois, não vejo e nem sinto mais nada.

— Juliette — alguém murmura meu nome. Demoro a reconhecer que é


Bernardo. Oh, meu Deus! Finalmente alguém me encontrou. Nem sei quanto
tempo se passou desde a agressão de Antony, mas balbuciei entre a
inconsciência e a lucidez, sentindo a dor em cada centímetro do meu corpo,
preocupada com meu bebê, enfraquecida demais para me levantar e buscar
ajuda. — Preciso de uma ambulância. Agora! — grita para alguém.
Uma comoção se instala à minha volta. Pessoas gritando e correndo.
Delicadamente, uma mão quente toca a minha.
— Juliette, por favor, aguente só mais um pouco — pede, a voz cheia
de preocupação.
Esforço-me o máximo que consigo. Ele precisa saber que estou
grávida. Os médicos que vão me atender precisam priorizar meu bebê. Não a
mim, mas meu bebê. POR FAVOR! Contudo, não consigo dizer nada, nem
mesmo uma palavra. Minha boca parece inchada demais para isso, minhas
energias são insuficientes. Tudo que consigo fazer é resmungar algo
incompreensível.
— Shh… — Dousseau tenta me tranquilizar. — Vai ficar tudo bem.
Vamos te ajudar e você vai ficar bem. Não se preocupe. — Sua voz me
acalenta por um instante, mas não o bastante. Não posso perder meu bebê.
Não posso.
Minha próxima lembrança é de ser socorrida pelos profissionais. O
caminho até o hospital é um borrão. Depois, só me recordo do movimento da
maca deslizando pelos corredores. Um par de olhos azuis encontram os meus.
O médico usa uma máscara cirúrgica. Tento dizer alguma coisa, porém, tem
algo obstruindo meus lábios. Faço menção de erguer a mão, mas também não
consigo. O médico dos olhos azuis parece sorrir pequenino para mim no
mesmo instante em que sinto um calor em minha pele. Desvio os olhos para
baixo. Uma mão enluvada segura a minha.
— Está tudo bem — sussurra. — Os paramédicos encontraram um
exame de farmácia na sua bolsa. Vamos cuidar muito bem de você e do seu
bebê. Tudo bem?
Vagarosamente, aceno em positivo.
— Doutor Pierre, os batimentos cardíacos… — alguém diz, longínquo,
mas não consigo compreender o restante da frase, porque outra vez apago.
Antes, o nome dele fica gravado em minha mente.
Doutor Pierre.
JULIETTE
Quando acordo, há uma enfermeira em minha companhia. Mal
consigo abrir o olho direito porque está inchado demais. Minha boca está
seca e tenho dificuldade em respirar. A moça me ajuda assim que percebe
meu despertar. Dá-me água para beber e me ajeita na cama para ficar mais
confortável. De forma involuntária, levo minha mão ao abdômen. Quero
perguntar como ele está, mas não consigo. Separo os lábios, esforço-me.
Todo esforço é inútil. Não consigo dizer nada. Lembranças de Antony me
agredindo ainda estão bastante vivas na minha mente. Deus, ele tentou me
matar. Tentou matar meu filho.
— Vocês estão bem — a enfermeira informa, parecendo notar minha
indagação silenciosa.
Abro os olhos que nem notei ter fechado. Uma lágrima escorre pela
minha face. Não sei se de medo ou se de alegria por saber que meu bebê não
sofreu nada.
— Vou avisar o doutor Pierre que você está acordada — diz, com um
sorriso complacente.
Não respondo. Sequer me movo. A enfermeira me deixa sozinha em
seguida, então caio em um choro compulsivo quando por fim digiro tudo o
que aconteceu. Cerca de dez minutos depois, já estou mais calma, mas não
com menos medo. Seco uma última lágrima no exato instante em que a porta
se abre, trazendo para dentro um homem de jaleco, carregando um tablet. Ele
sorri pequenino e tenho a impressão de já conhecê-lo de algum lugar. Sem
dizer nada, se aproxima, ficando de frente para mim.
— Juliette Gautier, não é? — pergunta.
Como resposta, apenas aceno em positivo. Baixa seus olhos para o
aparelho eletrônico.
— Grávida de oito semanas. Descobriu sua gravidez hoje?
Suspiro e balanço a cabeça em negativo, ainda me negando a me
comunicar em palavras. O médico me olha seriamente por um instante.
Então, se vira e caminha até a porta. Chama uma das enfermeiras e cochicha
alguma coisa que não compreendo. Volta dez segundos depois.
— Há quanto tempo sabe que está grávida? — questiona. Seus olhos se
desviam para o tablet em mãos, que acredito ter informações clínicas minhas.
Engulo em seco e pestanejo diversas vezes antes de erguer o indicador.
— Descobriu ontem, então? — Graças a Deus ele entende esse meu
método de comunicação quase rudimentar. Assinto com a cabeça.
Novamente baixa seus olhos para o tablet e toca na tela, anotando algo
no meu prontuário. Ele fica aqui por mais algum tempo, fazendo-me
perguntas. Explica-me que tive uma concussão e duas costelas quebradas, e
por isso terei de ficar por mais algum tempo no hospital. Não importa. Estou
aliviada de que meu bebê esteja bem. Depois de se apresentar — doutor
Pierre Laurent —, me oferece a coisa que mais quero no mundo: ouvir os
batimentos do meu bebê.
Ele põe um par de luvas e depois ergue delicadamente minha roupa
hospitalar, expondo minha barriga. Ajusta o objeto por alguns segundos e
logo ouço as batidas fortes e rápidas. Mais lágrimas juntam em meus olhos.
Tive tanto medo de perder meu pinguinho de amor… Mon Dieu. Ele ainda é
um pontinho pequeno dentro de mim, mas conseguiu sobreviver ao ataque
monstruoso daquele que deveria cuidar dele.
Obrigo-me a controlar minhas emoções e atento-me a este som que se
tornou o meu favorito no mundo.
Um bater na porta desvia minha atenção. Bernardo entra em seguida, o
semblante cheio de preocupação.
— Salut, ma chère — cumprimenta-me, olhando com atenção meu
estado deplorável. — Que susto você nos deu.
Suspiro e não digo nada. Volto meus olhos para Laurent e depois para
minha barriga, tornando a prestar atenção às batidas do meu bebê. O médico
me diz que está tudo bem com meu bebê e, depois de se apresentar para
Dousseau e trocar algumas palavras com ele, Pierre se vai, deixando-me
sozinha com Bernardo. Estou tão envergonhada… Não quero de maneira
nenhuma explicar essa situação. Que desculpa darei?
Longos segundos de silêncio se passam depois que o doutor nos deixa.
Ele continua aqui, segurando-me pelas mãos enquanto choro baixinho,
envergonhada demais em levantar os olhos e encará-lo. Bernardo puxa uma
cadeira e senta-se perto de mim; seco minhas lágrimas e ele murmura:
— Me conte o que houve. — Não, eu não quero! — Juliette, sei que foi
ele. — A estas palavras, fico apavorada. Como pode saber? Nunca fui
imprudente, nunca dei indícios de que dormia com ele. Como Dousseau pode
saber disso? Sua afirmação me faz finalmente olhá-lo. — Sei que tem um
caso com Antony Leclerc. Esse filho é dele. Você contou da gravidez…
Talvez até tenha ameaçado dizer tudo a Ann-Marie. Ele ficou furioso e tentou
matar seu bebê. Estou certo?
Não sei como Bernardo descobriu, não sei como supôs tão bem os
fatos, mas não posso simplesmente negar o que aconteceu. Engolindo em
seco, aceno em positivo, muito devagar, quase de forma débil.
— Precisa denunciá-lo à polícia. — Ele se levanta em uma postura
determinada. NÃO! Pelo amor de Deus, não. Seguro-o pelas mãos, com força.
Muita força.
— Por favor, não — peço, dizendo minhas primeiras palavras desde
que acordei nessa cama de hospital. — Se fizer isso, ele vai tentar contra a
minha vida de novo. Por favor. Não faça nada.
Dousseau me encara, perplexo. Claro que está. Depois de tudo que
Antony me fez, eu deveria denunciá-lo. Mas sua ameaça foi bem clara. Não
quero pagar para ver.
— Juliette…
— Não tenho como provar. É minha palavra contra a dele. Se eu não
conseguir incriminá-lo, ele vai tentar me matar de novo. Por favor. Não diga
nada — suplico. Bernardo fica em silêncio, submerso nos próprios
pensamentos, talvez ponderando me contrariar e ir à polícia, sim. É neste
momento, tomada de medo de ser machucada de novo, pensando na
integridade minha e do meu filho, que decido usar uma artimanha baixa: —
Se você fizer qualquer coisa, juro que conto a Antony sobre estar dormindo
com Ann-Marie.
O homem paralisa diante minha ameaça. Não queria ameaçá-lo ou
chantageá-lo, mas no momento preciso garantir que não vai denunciar
Antony. O modo como fica em silêncio e trinca o maxilar me dá a certeza de
tudo o que supus durante esses meses é verdade. Não há mais dúvidas. Ele
está mesmo tendo um caso com Ann-Marie.
— Eu não sabia. Só desconfiava. Você acaba de me confirmar —
explico. Meu chefe faz uma cara de decepcionado consigo mesmo, como se
fosse inacreditável que tivesse caído em um golpe tão baixo.
— Não pode deixar o Antony impune — diz, suavizando a expressão.
Balanço a cabeça em negativo.
— Ele quis me dar um aviso. E já entendi. Não vou dizer nada a Ann-
Marie sobre nosso caso e vou criar meu filho sozinha. Antony não vai mais
ser uma ameaça pra mim.
Bernardo se aproxima de novo e se senta ao meu lado, segurando outra
vez minha mão.
— Sabe que não conseguirei deixar isso pra lá, mesmo se eu quisesse.
Quero beijá-lo por isso. De verdade. Sou imensamente grata por querer
me ajudar, por querer justiça, mas eu não quero. Estou com tanto medo nesse
momento que prefiro deixar tudo como está. Não quero contrariar Leclerc.
Ele já provou do que é capaz.
— Bernardo… — suplico, fechando os olhos, rogando a Deus para que
desista dessa ideia.
— Não vou te pôr em risco, Juliette. Mas também não vou me esquecer
do que esse canalha te fez. Serei cauteloso, mas que esse traste vai pagar por
tudo, ele vai — promete.
Abro os olhos e sorrio pequenino, agradecida por sua preocupação.
Então, eu o abraço e agradeço por tudo, enquanto torço muito a Deus para
que ele encontre mesmo uma maneira de isso não ficar impune.

Adrien aparece no dia seguinte, semblante desesperado, no horário de


visitas. Ele me toma pelas mãos e me puxa para um abraço apertado,
enquanto ainda penso no que direi a ele. O tempo todo meu primo sempre me
alertou sobre Antony, não alertou? Eu ignorei todos os seus conselhos,
dizendo que ele não conhecia Leclerc. No final das contas, nem eu mesma o
conhecia.
— Por que não pediu para me ligarem? — pergunta, olhando-me nos
olhos. Parece que ficou sabendo disso somente agora e veio do jeito que
levantou. Noto isso pela camisa velha que usa como pijama e tem um furo
perto da barra, a calça jeans marcada pelo alvejante e o casaco que um dia foi
do senhor Chevalier. Além do cabelo desgrenhado e rosto cansado.
— Não queria te preocupar — confesso, baixando levemente os olhos.
É uma mentira, na verdade. Eu sabia que uma hora ou outra eu teria de
enfrentá-lo e dizer o que aconteceu de fato, mas preferi adiar esse momento,
o sermão e o conhecido “eu te avisei!”.
— Como você acha que fiquei quando estou curtindo meu dia de folga
fazendo um monte de nada e recebo uma ligação da sua amiga na cafeteria
me perguntando se tenho notícias suas? Eu quase tive um infarto, Juliette!
Como sempre, um poço de exageros. Abro a boca para dizer qualquer
coisa que não vai satisfazê-lo nem o acalmar sequer um pouco, mas me
impede ao tocar em meu rosto. O inchaço diminuiu parcialmente e não dói
mais tanto por conta dos medicamentos.
— Foi aquele filho de uma puta que fez isso em você? — indaga,
acariciando-me suavemente. Seus olhos claros encontram os meus. — Não
pense em mentir para mim. Os outros podem acreditar na sua versão de
assalto, mas eu te conheço.
Calo-me por longos segundos, a vergonha de admitir que Antony me
causou isso tudo me impedindo de falar qualquer palavra. Estava tão na cara
o verdadeiro caráter dele e só eu não vi isso. Os sinais estavam bem debaixo
do meu nariz e não os enxerguei, achando que todo o seu comportamento
tinha uma justificativa, acreditando que ia mudar, culpando a esposa. Fui tão
idiota. Sinto vontade de chorar.
— Juliette… — pressiona-me.
Desabo nas minhas lágrimas, afirmando com a cabeça. Adrien me traz
para seu abraço, afagando meus cabelos e me pedindo calma. Realmente,
preciso me acalmar. Pelo meu bebê.
— O que aconteceu? Vocês discutiram? — Meu primo quer saber.
Inspiro fundo e me preparo para contar a verdade.
— Ameacei contar para a esposa dele sobre nosso caso e… sobre a
minha gravidez.
Pouco a pouco, a expressão de Adrien vai se transformando enquanto
recebe a informação. Não sei o que o deixa mais surpreso: minha gravidez ou
o fato de Antony ter me espancado. Talvez os dois. Fecho os olhos,
esperando que meu primo me advirta por ter sido enganada, por não ter dado
ouvido aos seus conselhos. Ao invés disso, silêncio. Abro os olhos e ele
continua no mesmo lugar, na mesma posição, encarando-me como se ainda
processasse tudo o que eu disse segundos atrás.
— Preciso bater na sua cabeça como a gente faz com televisão velha
que não quer pegar? — brinco, abrindo um sorriso encabulado.
— Você está grávida? — pergunta, em tom suave, de repente falando
baixo.
O sorriso em mim vai embora.
— Estou. — Penso em dizer mais, dizer que fui imprudente e fiz de
propósito, visando forçar Antony a se divorciar, mas desisto. É muita
vergonha para um dia só.
Adrien apoia a mão no meu abdômen; seu semblante preocupado
acentuou depois da notícia. Ele passa uns bons segundos com a mão e os
olhos fixados na minha barriga.
— E esse maldito te machucou mesmo sabendo que você está grávida?
Tento afastar as imagens da minha cabeça. Não gosto de me lembrar da
dor e do desespero que senti com a agressão daquele homem. As lágrimas
queimam meus olhos, mas me esforço para me concentrar em coisas boas.
Estou bem, meu bebê está bem, e é isso o que realmente importa.
— Esquece, Adrien — peço, a voz trêmula.
Ele faz uma cara de ultrajado.
— Esquecer… — Uma risada sem humor escapa dele. — Que pedido
mais absurdo. Por que diabos não o denunciou? — Entrelaço nossos dedos,
apertando os seus nos meus com bastante força.
Então, conto meus motivos por não querer denunciá-lo.
— Bernardo disse que vai encontrar um jeito de ele não ficar impune,
mas sem que me coloque em risco. Adrien, por favor — quase suplico —,
tem que me prometer que não vai fazer nada. Antony já mostrou do que é
capaz. Não tenho dúvidas de que ele cumpra suas ameaças caso eu o
denuncie.
Relutante, Adrien abana a cabeça em positivo, mas está nítido que a
situação o deixa desconfortável.
— Tem algo que eu possa fazer por você?
— Preciso de algumas roupas e itens de higiene pessoal. Pode trazer
isso para mim?
— Quanto tempo mais vai ficar?
— Não sei. Doutor Laurent me disse que eu ficaria quarenta e oito
horas em observação e depois me manteria aqui um pouco mais por causa dos
hematomas nas costelas e no rosto.
Meu primo se inclina na minha direção e deixa um beijo casto na minha
testa.
— Vou trazer tudo o que precisar. Aliás, você avisou sua irmã?
Molho o lábio inferior e aceno em negativo.
— Claro que não. Se eu, que moro aqui em Paris, você não contatou,
imagine se ia avisar a Juliene, que está na Inglaterra.
— Não quero a preocupar, só isso. Ela deve estar toda ocupada com os
estudos. A última coisa que quero é atrapalhar. Prometo que, assim que eu
me recuperar e sair daqui, vou ligar e contar da gravidez.
Ele acaricia meus cabelos e sorri.
— Como quiser. Vou buscar as coisas de que precisa e volto em breve.
Adrien já está chegando na porta quando eu o chamo:
— Não vai me dizer? — Ele se vira para mim e faz uma cara de quem
não está entendendo nada. — “Eu te avisei” — explico.
Um pequeno sorriso se manifesta no seu rosto bonito.
— Não vou nunca te culpar por isso, Julie.
Sem dizer mais nada, Adrien deixa o quarto. Em meus pensamentos, eu
o agradeço por não jogar nada na minha cara.

Já tem uns quatro dias que estou aqui. Sinto falta dele. Estranhamente,
sinto falta dele. Deus, por que estou sentindo falta dele? O plantonista dos
dois últimos dias é bom, como Laurent me disse que seria, e confio nos seus
cuidados comigo e com meu bebê. De um jeito estranho, por algum motivo
eu preferia que fosse Pierre. Eu acabei me lembrando dele, de dois dias atrás,
quando cheguei aqui. Os olhos azuis e seu nome voltaram às minhas
lembranças de repente e soube que foi ele quem me atendeu, quem segurou
minha mão e prometeu cuidar de mim e do meu bebê. Prometeu e cumpriu.
Talvez por isso preferisse que fosse Laurent o plantonista.
Alguém bate à porta, interrompendo meus pensamentos absurdos que
nem mesmo a televisão ligada foi capaz de me impedir de existir. Coro de
vergonha quando noto que se trata de Ann-Marie. Não é a primeira vez que
vem me visitar. Ela entrou aqui na ocasião em que fui internada, logo depois
de Bernardo e Emilien. Mas eu estava com tanta vergonha de encará-la que
preferi fingir que estava dormindo.
— Salut, Gautier — cumprimenta-me com um sussurro. Encosta a
porta e se aproxima de mim a passos vagarosos, segurando um buque de
girassóis.
Ainda sinto meu rosto queimar quando respondo, mantendo um sorriso
de vergonha.
— Bonjour, madame Leclerc — respondo, murmurando quase de
forma inaudível. Ainda não sei como encará-la depois de tudo.
Ela está aqui agora, se importou o bastante para vir visitar a amante do
marido. Ann-Marie não é nada do que Antony disse que era. Claro que não é.
Ele mentiu como sempre fez e conseguiu me enganar, me colocar contra uma
mulher que eu sequer conhecia direito. Sou tão estúpida. Meu Deus, eu sou
tão estúpida!
Ela sorri e contorna a cama, colocando as flores em um vaso. Depois,
puxa uma cadeira e se senta de frente para mim, perguntando:
— Como você está?
— Bem, na medida do possível. Obrigada por perguntar.
— E seu bebê?
A pergunta me incomoda. Desvio o olhar e mordo o lábio inferior.
Respondo, ainda sem coragem de fazer qualquer contato visual:
— O doutor Pierre Laurent me garantiu que está tudo bem.
Um silêncio recai sobre nós duas. Sigo com o olhar baixo, recusando-
me a encará-la, tão envergonhada que estou. De repente, sinto medo. Medo
de que tenha vindo aqui me julgar, me humilhar, dizer como sou uma vadia
desgraçada por abrir as pernas para um homem casado, por ser a responsável
por destruir seu casamento. De novo, sinto vontade de chorar. Malditos
hormônios de grávida, transformaram-me em uma chorona.
— Comprei para você — ela diz, esticando um pequeno embrulho. —
Na verdade, é para o bebê.
Pego o presente de suas mãos. Não evito a emoção em meus olhos
quando desembrulho o pacote. Sorrio, abraço a pequena peça e deixo uma
lágrima escorrer pelo meu rosto.
— Obrigada, Leclerc… — agradeço, e minha voz sai embargada. —
Não deveria ter se incomodado com isso. É tão… inapropriado.
— Por que esse bebê é do meu marido? — questiona-me, suavemente.
Não há nenhum traço de julgamento em sua voz, mas mesmo assim
meu rosto ruboriza.
— Pardon — peço, a voz chorosa e arrependida.
Quando finalmente tenho coragem de olhá-la, lágrimas descem pelo
meu rosto. Preciso me desculpar com Ann-Marie, sinto essa necessidade. Não
posso simplesmente receber seu presente, sua preocupação, sua boa vontade
de vir me ver e saber como estou e não me desculpar. Dói assumir que errei,
que fiz um mau julgamento de sua pessoa, que acreditei em um homem
mentiroso e manipulador, apesar de todos os sinais, mas tenho caráter
suficiente para admitir isto e me redimir. — Não deveria ter me envolvido
com ele. Sabia que era casado e… — Não consigo terminar de falar. Tapo a
boca com mão.
Sem que eu espere, ela me segura e tenta me acalmar.
— Não justifica… — Tento dizer.
— Juliette, por favor, não diga mais nada — pede, calma.
— Eu preciso, Ann-Marie. — Aperto meus dedos nos seus, quase como
um ato de súplica. — Sei que não justifica, mas… nunca foi minha intenção
me envolver com seu marido! Ele era cliente da cafeteria, vivia por lá, e, com
o passar do tempo, nos tornamos bons amigos. Apenas isso! E apenas dentro
do meu local de trabalho. Certa vez, ele chegou quando já estávamos
fechando, visivelmente abalado. Tinha olheiras, cabelo desengonçado… —
Fecho os olhos, tomando um pouco de ar para os pulmões. — Me disse que
vocês tinham discutido e não estava bem. Antony ficou no café até pouco
depois de fecharmos, conversando comigo, dizendo que… — Mordo o lábio
inferior e inspiro antes de prosseguir: — Não estava feliz no casamento, de
que não te amava, que o casamento de vocês foi arranjado… — Um gemido
agoniado escapa de mim. Fui tão burra e me arrependo tanto! — Ele me disse
tantas coisas terríveis a seu respeito. Que você era histérica, ciumenta,
possessiva… acomodada e preguiçosa. Que, enquanto trabalhava duro pra
sustentar seus luxos, você só sabia criticá-lo e gastar dinheiro.
Ann-Marie entreabre os lábios, horrorizada com meu relato.
— Eu acreditei nele! — digo, soluçando um pouco mais, o
arrependimento socando meu peito como uma marreta forte. — Não te
conhecia pessoalmente, pouco te via, então foi fácil ter sido enganada dessa
maneira. Eu ainda o aconselhei a pedir o divórcio… — Rio sem humor e seco
algumas lágrimas. — Depois disso, algum tempo se passou e ele de novo me
procurou… Me envolveu aos poucos, com elogios, presentes singelos… E
junto vinham mais as reclamações do casamento… Certo dia, disse que
estava apaixonado por mim.
Faço um instante de silêncio. Solto minhas mãos das suas e as coloco
sobre meu colo, entrelaçando meus dedos. Ainda envergonhada com essa
situação toda, baixo o olhar e continuo:
— Acabei acreditando que você merecia… merecia que Antony te
traísse. E ele também me prometeu que pediria o divórcio e me assumiria. Só
precisava… Não sei… Dizia algo sobre algum projeto com Dupont. Que
esperava dar certo e só então ficaríamos juntos. Fui burra em acreditar nele.
Por favor, me perdoe!
— Se ele não tivesse…? — murmura, baixando os olhos.
Entendo o seu questionamento e disparo:
— Jamais, Ann-Marie! Jamais me envolveria com um homem casado.
Não sou assim. Mas Antony… me passou uma imagem tão ruim sua, me
convenceu de verdade que estava infeliz no casamento… Confiei e acreditei
nele. Achei que você merecia ser traída. Por favor, me desculpe.
— Não tenho o que te desculpar — diz, olhando para mim. — Sabe
que… — Suspira. — Bernardo conseguiu me seduzir dessa maneira, me
mostrando que eu estava infeliz e Antony era um homem perigoso e cheio de
defeitos e… trai-lo era o que ele merecia. Então, não tenho o que te
desculpar.
— A diferença é que ele realmente conhecia Antony. Ele viu sinais
dessas coisas ruins que ele tinha. Ao contrário de mim. Nunca te vi… Como
pude te julgar e te condenar sem ao menos conhecer o seu lado da história?
Ela torna a segurar minhas mãos.
— As pessoas são falhas, Gautier. Nós erramos. Você errou. E eu te
perdoo.
Trocamos um abraço apertado, enquanto eu a agradeço, sentindo um
alívio enorme no peito. A emoção aflora em minha pele, toma conta da minha
voz e dos meus olhos, transformando-se em lágrimas.
— E Antony… tinha esses sinais violentos com você? — questiona,
baixinho, como se não tivesse certeza se faz bem tocar no nome dele perto de
mim.
Afirmo com um mover de cabeça e profiro:
— Começou sutilmente. Quero dizer, no começo era… tão romântico,
atencioso, dedicado. Ficava me perguntando por que você não o valorizava.
Viajamos algumas vezes juntos — confesso, corando levemente e desviando
o olhar dela outra vez. — Ele… me comprou presentes, mandou preparar um
quarto de hotel para nós com champanhe, pétalas de rosa. Era perfeito… —
murmuro e me engasgo com minha própria saliva.
Meu coração dói com essas lembranças. Amei aquele homem, de
verdade, mais do que amei qualquer outro um dia. Mesmo depois de ontem,
das suas ameaças, da sua agressão, sei que em algum nível o sentimento
ainda existe. Não vou mentir, não vou ser hipócrita em dizer que o amor foi
embora do dia para a noite, porque não foi. Talvez seja essa a parte mais
dolorida. Ser capaz de amar, de sentir qualquer coisa por alguém que tentou
me machucar é o que mais dói em mim.
Ela abana a cabeça lentamente, talvez recordando-se de ter vivido algo
parecido, reconhecendo o padrão de comportamento de Antony.
— Mas aí um dia… — continuo. — Ele me ofendeu durante uma
discussão, quando pedi para se divorciar de vez. No dia seguinte, Antony me
ligou, pediu perdão, mandou flores e bombons lá pra casa. E assim
começou… Verificava meu telefone, minhas mensagens, criticava minhas
amizades e até tentou me afastar de um primo a quem sou muito apegada…
Certa vez até disse que, quando me assumisse, não me deixaria trabalhar com
Dousseau ou em qualquer outro lugar. Não notei esses sinais de um homem
desequilibrado e violento, batia de frente com ele, dizia que não ia parar nem
de trabalhar, de nem ter amigos. O homem ficava contrariado, mas sabia que
não poderia fazer nada.
— Não enquanto você fosse apenas a amante… — constata.
Com um sorriso fúnebre, completo:
— Isso.
Outro instante de silêncio nos envolve.
— Então engravidei. Confesso que foi de propósito. Pensei que um
filho finalmente o forçaria a sair de um casamento em que vivia dizendo não
estar feliz. Antony foi até minha casa uma noite antes de viajar para Nova
Iorque. Ele te disse que ia pegar o voo noturno? — Concorda com um gesto
de cabeça. — Passamos a noite juntos, eu… estava me preparando para
contar. Antony me levou até meu trabalho e lá… Antes de ir embora… dei a
notícia. Ele ficou petrificado e branco por um segundo. Depois começou a me
falar sobre aborto e um monte de coisas que não consegui mais entender
porque fiquei pasma demais com sua sugestão de tirar o bebê. Começamos a
discutir. Novamente me ofendeu com uma porção de palavreados… —
Preciso de um instante de pausa. Lembrar dessas coisas me machuca tanto.
Só queria esquecer e seguir em frente. Farei isso depois que contar tudo a ela.
— Eu deveria ter deixado pra lá, mas… Fiz a burrada de ameaçar contar a
você sobre nosso caso e a gravidez. Antony perdeu a cabeça e então… —
Engulo em seco e, não podendo mais segurar, permito que novamente as
lágrimas me tomem. — Fez isso comigo.
Ann-Marie senta-se na cama e me abraça com força, deixando-me
chorar em seus ombros e desabar toda a minha dor. Ela afaga meus cabelos e
tenta me acalentar de novo.
— Está tudo bem agora. Antony não vai mais te fazer mal. E, de mim,
você tem perdão e tudo que precisar para o seu bebê.
Mon Dieu, ela é tão boa. O total oposto do que aquele miserável me
disse. Tento controlar minhas lágrimas, mas elas vêm com força, lavando
minha alma, levando embora toda a aflição, a vergonha, o arrependimento. É
um choro de medo, de pavor por tudo que vivi, das lembranças que ainda me
acometem, mas também é alívio e gratidão.
— Merci beaucoup! — agradeço, ainda sem poder controlar minha
emoção.
Ficamos abraçadas mais alguns minutos, por tempo suficiente até
minhas lágrimas não existirem mais e meu coração voltar a bater
normalmente outra vez. De repente, a porta abre, trazendo para dentro um
Pierre de jaleco, estetoscópio e aparelho para medir a pressão. Sua presença
parece mandar embora toda a tensão e a tristeza que, segundos atrás,
pairavam sobre mim. Estou feliz por ele estar aqui. Ele nos olha por um
segundo e se desculpa.
— Pardon. Não sabia que a senhorita Gautier estava com visitas.
Desfazemos nosso abraço e Ann-Marie se levanta, dizendo:
— Já estou de saída, doutor… Pierre Laurent. — Ele sorri para ela e
lança um olhar para mim. Não desfaço nosso contato visual. Ele me transmite
segurança, proteção. Gosto da sensação boa que me causa. — Pode cuidar
bem da minha amiga e do bebê dela?
— Estou aqui para isso — alega, vindo até mim, solicitando o braço
direito para tirar minha pressão arterial.
Ann-Marie sorri e se despede. Eu mal a respondo porque estou ocupada
demais prestando atenção no que Pierre me diz:
— Soube que andou recebendo visitas durante minha ausência.
Algo em meu interior se remexe. Se ele soube das visitas que recebi
significa que andou perguntando por mim?
— Só os amigos de sempre — respondo apenas.
Pierre me abre um leve sorriso e mede minha pressão. Um silêncio
confortável recai sobre nós. Tento conter meus olhares para ele, mas é quase
impossível. Ele é bonito. Tem pálpebras dobradas, dando a impressão de que
seus olhos claros são levemente puxados, cabelos que ainda não decidi se são
castanho-escuros ou pretos, cavanhaque ralo, pele branca, rosto oval e
covinha no queixo.
— Pelo menos não está completamente sozinha — fala, retirando o
instrumento do meu braço. — Sua pressão está normal. Como está se
sentindo hoje? — pergunta, retirando uma pequena lanterna do bolso e a
acionando contra minhas pupilas.
— Bem. — Olho no relógio perto da parede. É cedo, perto das dez da
manhã. O médico de plantão passou aqui pouco depois das seis, me fez as
perguntas habituais, conferiu os batimentos do bebê, conferiu minha pressão,
testou meus reflexos, me medicou. Essa ronda de Pierre me parece atípica. —
A que horas começou o seu plantão? — indago, com cuidado, não querendo
parecer interessada demais.
Ele me dá um sorriso pequeno, até meio encabulado, eu diria. Coloca o
estetoscópio no meu peito e responde:
— Ainda não começou.
Pisco seguidas vezes, quieta, processando sua resposta. Se ele não está
de plantão, por que está aqui? Pierre se afasta, colocando o instrumento em
torno do pescoço de novo.
— Meu plantão hoje só começa às sete da noite. Estava passando por
perto e… — Faz uma pausa pequena, olhando-me com seu sorrisinho meio
contagiante. — Quis ter certeza de que a equipe está cuidando bem de você.
— Seus olhos me analisam rapidamente. — Pelo jeito, estão mesmo.
Desfaço nosso contato visual, um pouco mexida com sua atitude. Ele
não tinha obrigação nenhuma de estar aqui, mas está. Engulo em seco e fico
meio tensa, tentando desvendar o efeito que isso causa em mim. Pela visão
periférica, vejo-o mover-se pelo quarto e pegar os girassóis que Ann-Marie
trouxe.
— Da sua amiga? — questiona, indo até o banheiro no quarto. Ouço
água corrente. Ele volta com o vaso cheio e torna a pôr o ramalhete no seu
lugar.
“Amiga” não é bem a palavra. É a esposa do meu amante, que me
espancou. Quero dizer a verdade para Pierre, mas prefiro manter essa
informação comigo.
— Oui. É uma cliente da cafeteria. — Olho para a roupinha branca que
ela atenciosamente comprou para o bebê. Abro um pequeno sorriso e brinco
com a delicada peça entre os meus dedos. Não vejo a hora de poder sair desse
hospital. Vou começar a preparar tudo para a chegada do meu bebê.
— Atencioso da parte dela vir te visitar. — Pierre mantém a conversa,
contornando a cama e parando de frente para mim de novo.
— É… — Consigo murmurar apenas, o remorso por ter me envolvido
com o marido dela batendo em mim novamente.
Um bater suave na porta interrompe nosso momento. Ergo os olhos ao
mesmo tempo em que Pierre gira o corpo para ver Emilien adentrar o recinto,
mãos no bolso, o rosto meio em um sorriso aparentemente forçado.
— Bonjour, Gautier — ele me cumprimenta, parando a um metro da
porta. Ele se vira para Laurent e estica a mão, pois ainda não se conhecem. —
Emilien Dupont.
Por um segundo, tenho a impressão de que Pierre hesita. Seus olhos
estão fixos em Emil, como se o avaliando ou com os pensamentos perdidos.
Parecendo voltar ao mundo real, ele o cumprimenta:
— Pierre Laurent. — Virando-se para mim, diz: — Vou deixar você
com sua visita. Te vejo à noite.
Abano a cabeça em positivo, Pierre se despede e deixa o quarto.
Emilien encosta a porta e estranho sua atitude. A passos vagarosos, ele se
aproxima de mim. Mantém as mãos dentro dos bolsos, a expressão
indecifrável. Não entendo o motivo de sua visita. Ele veio na ocasião da
minha internação, não ficou mais do que dois minutos, disse que se eu
precisasse de qualquer coisa faria questão de me ajudar, me perguntou do
bebê e desejou melhoras. Não somos do tipo íntimos a ponto de vir me visitar
mais do que uma vez, mas aqui está ele, molhando o lábio inferior como se
quisesse me contar alguma coisa e não tivesse ideia de como começar.
— Está tudo bem? — Rompo o silêncio entre nós. Devagar, seus olhos
azuis direcionam para os meus.
— Queria dizer que sim. — Suspira. Pega uma cadeira e a põe perto da
cama, onde se senta, apoiando os cotovelos nos joelhos e o rosto entre as
mãos. — Afastei Antony da minha empresa.
A mera menção desse nome me deixa em choque. Engulo em seco e
faço um esforço tremendo para não chorar de medo na frente dele.
— Era o mínimo que deveria ter feito — respondo. Demoro a notar que
sou um pouco rude com Emilien. Estou abrindo a boca para me desculpar
pela minha atitude mal-educada, mas ele me interrompe quando profere:
— Fiz uma investigação e descobri que ele estava fraudando a minha
empresa e a cafeteria de Bernardo.
Fico assustada com a informação. O mau-caratismo dele não tem
limites. Fui uma estúpida por acreditar na bondade e na índole dele. Quero
perguntar como Antony fazia isso, mas decido por ficar na ignorância. Chega
de decepções relacionadas a esse homem.
— Reuni provas o suficiente para denunciá-lo por corrupção, caixa-
dois, lavagem de dinheiro e superfaturamento. Podíamos fazê-lo pagar pelo
que fez a você sem te colocar em risco, como Bernardo prometeu.
Um alívio instantâneo toma conta do meu coração quando Emilien diz
isso. O alívio, porém, dura pouco. Dura muito pouco. A expressão dele não é
de alguém que está feliz por conseguir resolver um problema. Tem algo a
mais aí que ainda não me contou.
— Tem um “porém” nessa história, não tem? — questiono, já perdendo
as esperanças de Antony não sair impune.
De repente, Emilien parece mais triste a abatido. Por dez segundos, ele
abaixa a cabeça, depois de acenar em positivo, e fica em silêncio. Quando
ergue os olhos para mim, vejo dor no seu semblante.
— Tem, sim — responde, enfim. — Ele me ameaçou. Antony…
descobriu algo sobre mim, sobre meu passado, e ameaçou me expor caso eu o
denunciasse. Juliette, je suis vraiment désolé. — “Eu sinto muito, muito
mesmo”. — Mas não posso deixar que ele me exponha. Isso seria
catastrófico, me entende? Mancharia minha imagem, a imagem da minha
empresa, atrapalharia os negócios, as causas sociais e filantrópicas que estão
vinculadas ao meu nome.
Tem um tom de súplica em sua voz, na sua postura de derrota,
completamente o oposto do que estava costumada a ver quando ia à cafeteria
rotineiramente. Mas eu entendo o medo nos seus olhos. Leclerc também me
ameaçou. Leclerc ainda é uma ameaça para mim.
— Está tudo bem, Emilien… — murmuro, esticando minha mão para
pegar a dele. — Entendo perfeitamente, não se preocupe.
Ele se levanta da cadeira e vem até mim, apertando mais seus dedos
nos meus, olhos nos olhos.
— Vamos encontrar outro jeito, está bem? Vou resolver essa questão,
descobrir um modo de não estar mais vulnerável às ameaças dele.
— Emilien, talvez o jeito seja apenas não mexer com Antony — digo,
aceitando que não há maneira de enfrentarmos esse monstro. Ele tem todos
sob controle e ameaças. Está usando nossos maiores medos para conseguir
levar a melhor. — Ele já mostrou do que é capaz de fazer. Talvez o mais
aconselhável seja não mexermos no vespeiro, me entende?
Seus olhos me encaram com um misto de confusão e empatia.
— Não podemos deixar que esse homem saia impune, Juliette.
— Acredito em justiça divina, acredito na lei do retorno, acredito que
aqui se faz, aqui se paga. A justiça será feita, Emilien, mais cedo ou mais
tarde. Enquanto isso não acontece, é melhor prezarmos pela nossa segurança.
Ele me fita por alguns longos segundos, até por fim concordar que, no
momento, o mais sensato é não provocarmos Antony.
— Você tem razão. Caso precise de qualquer coisa, pode me contatar.
Melhoras, Juliette — deseja-me, antes de sair, seu corpo grande parecendo
pequeno perto do sentimento de ter fracassado em fazer justiça.
Fecho os olhos logo quando ele sai, tentando não pensar no assunto.
Cometi erros terríveis, sei disso agora, e ter me envolvido com um homem
casado foi o pior deles. Acredito na lei do retorno, e talvez esse momento de
impunidade seja apenas o meu carma.
PIERRE
Torço para não encontrar Francine. Ela vai me infernizar se souber
que estou aqui fora do meu plantão e vai querer saber os motivos. Não vai
levar mais do que um segundo para compreender e me infernizar. Ando
rapidamente para a sala dos atendentes. Vou me trocar e dirigir de volta para
a clínica até que meu plantão realmente comece.
Eu menti para Juliette.
Não estava passando aqui por perto coisa nenhuma. Simplesmente
acordei e, aproveitando que duas pacientes cancelaram o horário, decidi vir
vê-la. É claro que eu não poderia aparecer em seu quarto todo informal como
se fosse uma visita, então minha ideia genial foi vestir o jaleco. Mas também
não achei que ela fosse ser observadora o suficiente para notar que eu não
estava no meu turno.
Estou chegando à sala quando meu telefone toca. No visor, reconheço o
número da clínica. Atendo, e é uma das recepcionistas me perguntando se
posso vir para cá, pois uma das minhas pacientes particulares deu entrada no
trabalho de parto e já está a caminho do hospital. Digo que já estou por aqui e
vou me preparar para recebê-la.
A paciente chega rápido.
— Bonjour, Charlotte — digo, aproximando-me dela enquanto visto
luvas de látex.
A mulher me dá um sorriso enfraquecido e fecha a cara quando outra
contração a acerta. O marido, um homem ruivo e alto, que me parece ter
origens irlandesas ou escocesas, segura na mão da esposa quando ela se
contorce na cama, resmungando de dor. A contração vai embora, e ela
suaviza a expressão. Seus cabelos já estão bagunçados e levemente suados.
— Quando as contrações começaram? — pergunto, colocando-me aos
pés da cama.
— De madrugada. Umas cinco da manhã.
Aceno em positivo e peço licença ao marido. Ele me dá espaço com um
passo ao lado.
— Sabe me dizer a intensidade com que elas começaram e quanto
tempo duravam as contrações?
— Parecia dor de… cólica menstrual. Incômoda, mas suportável.
Durava menos de um minuto — responde, inspirando profundamente. — E
voltava cerca de dez ou quinze minutos depois. Mal dormi à noite por causa
do desconforto. Senti a barriga muito dura.
— Sua bolsa rompeu?
— Não.
— Sabe precisar de quanto em quanto tempo a dor vem agora?

— A cada cinco minutos, talvez. Dói por um minuto ou um pouco


menos.
— Tudo indica que está mesmo em trabalho de parto — informo,
sentando-me cuidadosamente aos seus pés. — Terei de fazer um exame de
toque para confirmar sua dilatação. Será um pouco desconfortável, vai doer,
mas prometo ser rápido.
Ela me dá outro daqueles sorrisos doloridos e abana a cabeça em
positivo. Olho para o lado, para o marido parado perto de nós, cotovelo
direito na mão esquerda, dedos nos lábios, pensativo. Volto minha atenção a
paciente, ergo sua camisola hospitalar somente o suficiente e faço o exame.
Charlotte remexe a pélvis e faz uma careta. O toque é rápido. Descarto as
luvas.
— Está com quatro centímetros de dilatação. Seu bebê ainda vai
demorar um pouco para vir.
— Um pouco quanto? — o marido pergunta. — Ela está com dor já
tem umas cinco horas. Isso é normal?
— Claude… — A esposa tenta advertir, como se questionar um
especialista fosse um dos sete pecados capitais. Mas a dúvida e a
preocupação são compreensíveis.
— É completamente normal, monsieur Faure. Um parto natural pode
durar até quarenta e oito horas.
— Não me desanime, doutor Pierre — Charlotte brinca.
Dou uma risadinha e seguro sua mão fria.
— Não se preocupe, as quarenta e oito horas não são necessariamente
de dor. É um processo que envolve várias etapas do seu corpo e tem uma
porção de variações. De qualquer maneira, você e sua pequena Cécile terão
todo o cuidado possível. E, respondendo à sua pergunta — viro-me para o
esposo —, ela precisa de mais seis centímetros. Se tudo correr bem, deve
alcançar a dilatação necessária em seis ou sete horas.
Os olhos do homem se arregalam, meio surpreso com a informação.
Aproximo-me dele e toco seu ombro.
— Dê todo apoio que sua esposa precisar nesse instante. Pode parecer
desesperador, essas dores e contrações, o modo como vai reclamar do
desconforto, mas estarei aqui para que vocês dois vivam o melhor momento
de suas vidas, para que sua filha venha saudável ao mundo e para que sua
esposa tenha o melhor pré-parto, o melhor parto e pós-parto.
— Merci, doutor Pierre. Merci beaucoup.
— Minha equipe fará rondas a cada uma hora. Vejo vocês na sala de
parto.
A bebê de Charlotte nasce às seis da tarde, depois de pouco mais de
doze horas desde que atingiu a dilatação ativa. O marido acompanhou tudo.
No quarto, enquanto a mulher recebia as dores das contrações, na sala de pré-
parto, quando a dilatação já estava em oito centímetros, e depois, enquanto a
esposa fazia força para trazer a pequena Cécile para o mundo. Gosto dessa
parte, quando acontece. Gosto de ver o pai dando todo o suporte nesse
momento tão único e bonito, a confiança que a mulher sente ao ter ao seu
lado alguém em quem se apoiar. Depois, de toda a emoção ao pegarem o
filho pela primeira vez. Eles me agradecem, radiantes de felicidade, quando
termino todo o procedimento e cuidados do pós-parto. Amanhã ainda estarei
aqui, então asseguro que passarei para vê-la durante a rondas de rotina antes
da alta, em cinco dias.
— Doutor Laurent — uma enfermeira me chama, caminhando
rapidamente na minha direção. — Ligaram da escola do seu sobrinho e
disseram que ninguém foi buscá-lo ainda.
Recebo a informação como se tivesse levado um soco na boca do
estômago. Olho no relógio. São sete e cinco da noite. Pour l’amour de Dieu!
Étienne deveria tê-lo buscado, no máximo, às seis e meia. Agradeço, ainda
meio atordoado, e corro me trocar. Ligo no telefone do meu irmão, mas ele
não atende. Eu quero matá-lo. Sabia que não deveria confiar nele para cuidar
do próprio filho. Enquanto essa obsessão em encontrar a esposa não acabar,
ele continuará relapso, negligente e irresponsável.
Troco-me em tempo recorde, aviso ao chefe da obstetrícia de que
voltarei logo para cumprir meu plantão, entro no carro e acelero até a escola
de Édouard. Lá, tudo está na mais absoluta quietude. Uma funcionária
termina de trancar a porta quando me aproximo e a abordo.
— Com licença. Sou Pierre, tio de Édouard Laurent. Vim buscá-lo.
Peço perdão pela demora, mas…
A moça me interrompe:
— Édouard já foi embora.
Pestanejo, confuso com o conflito de informações.
— Quem o levou? — questiono, sentindo um medo estranho apossando
do meu peito. — Conseguiram ligar para o pai dele?
A funcionária me olha sem entender nada.
— Não ligamos para ninguém, senhor Laurent. A tia do pequeno veio
buscá-lo, a senhorita Francine, dentro do horário habitual.
Francine! É claro. Aperto a ponte do nariz, odiando a mim mesmo por
não ter tirado o nome dela da lista de pessoas autorizadas a pegá-lo. Farei isso
amanhã. Agradeço à moça e volto para meu carro. Disco o número dessa
megera. Ela não me atende. Que inferno! Ligo para Étienne, que finalmente
responde às minhas chamadas.
— Por que não foi buscar o Édouard? — esbravejo quando ele mal fala
“Alô?”.
— Porque você o buscou, não foi? — devolve, atônito.
— Étienne, que história é essa?
— A escola me ligou, informando que você já tinha o pegado. Depois
recebi uma mensagem sua, dizendo que estava com ele e ia levá-lo ao cinema
porque mudaram sua escala e estava fora do plantão essa noite. Pierre, por
favor, me diz que meu filho está com você!
Francine. Ela. Sempre ela! Deve ter se passado por uma funcionária do
colégio quando ligou para meu irmão, depois aproveitou que eu estava
ocupado com o parto de Charlotte e pegou meu telefone para enviar uma
mensagem a Étienne, apagando em seguida para que eu não visse. Usou do
mesmo artificio com a recepção do hospital, para me ver nesse estado de
desespero e ir atrás dela assim que descobrisse essa armação toda.
Essa mulher é doente.
— Não está comigo. — Antes que ele possa berrar perguntando pelo
filho, respondo: — Francine o pegou na escola.
— Por que ela faria isso?
— Porque quer chamar minha atenção — respondo, com um suspiro.
— Traz o meu filho de volta, Pierre.
Fecho os olhos e os aperto com força, odiando com todo o meu ser esse
momento. Jurei nunca mais voltar naquela casa, mas Francine deu um jeito
de me fazer quebrar minha promessa.
— Vou trazer. — Então desligo.
— Eu deveria chamar a polícia para você — cuspo assim que Perrot
abre a porta.
Ela me recebe com nada mais nada menos que um sorriso cínico. Um
ódio esquisito atravessa todo meu corpo e preciso me segurar para não a
empurrar, invadir a casa, pegar meu sobrinho e ir embora.
— Sob quais alegações você chamaria a polícia para mim, Pierre? —
inquire, dando um passo ao lado, um convite subentendido para eu entrar. —
Sequestro? Mas meu nome está na lista de pessoas autorizadas a buscar
Édouard…
Fecho os olhos e inspiro fundo, mantendo-me no controle. Ela quer me
ver irritado, mas não vai conseguir.
— Só o chame para mim — peço, forçando um sorriso.
Não vou entrar, não vou entrar mesmo.
Sem dizer uma palavra, ela me dá as costas e se retira. Fico do lado de
fora, acalmando meu coração e dizendo para mim mesmo que vai dar tudo
certo. Não sei como aguentei essa personalidade difícil de Francine por tanto
tempo. Demorei muito para ver os sinais. Étienne, antes de mergulhar no
fundo do poço, dizia-me que o comportamento da minha namorada não era
normal, não era saudável. Mas então eu falava com outros amigos e eles me
diziam “Ah, mas mulher é assim mesmo”, justificando sua conduta
descontrolada como algo natural. Não, mulher não é “assim mesmo”.
Aprendi isso do pior jeito possível. Aprendi que não tem essa de exaltar
mulher histérica, desconfiada, controladora como as pessoas parecem fazer.
Em época de faculdade, quando via um comportamento parecido, ria com
outros amigos, fazíamos piada e debochávamos dos caras quando suas
namoradas tinham um comportamento descontrolado. É claro que paguei
com a minha língua e só me dei conta de uma relação abusiva tempos
depois.
— Tio Pierre! — Édouard exclama, correndo em minha direção e me
abraçando pela cintura. Beijo seus cabelos e sorrio, perguntando como ele
está, como foi seu dia. Francine para à porta, estudando-me com a mão na
cintura. Meu sobrinho me conta as novidades, tagarelando quase sem parar
nem para respirar.
— Já dei algo para ele comer, não se preocupe — ela diz.
— Édou, espera o tio lá no carro — peço, e ele atende, correndo até o
veículo, a mochilinha quicando nas costas. Quando entra no veículo e sei que
não pode me ouvir, volto-me a ela e digo: — Fica longe do meu sobrinho.
A mulher dá um passo adiante, e recuo um, não querendo proximidade.
Ainda assim, Francine consegue me segurar pelo punho. Desfaço-me do seu
toque rapidamente.
— Ele é meu sobrinho também, Pierre.
— Non, il n’est pas! — “Não, ele não é!” — Ele é meu sobrinho,
Francine. E você está usando o garoto para se aproximar de mim, para me
atazanar. É a primeira e última vez que vou te pedir para ficar longe dele. Fui
claro?
Ela me olha de um jeito nada agradável. Está com raiva.
— Você é um mal-agradecido — rebate, entredentes. — Tudo o que fiz
por esse menino por quase um ano, cuidei dele como se fosse meu próprio
filho, assumi com você todas as responsabilidades. Lavei, passei e cozinhei.
Fiz o papel de mãe. É assim que me agradece, querendo me afastar dele?
Massageio as têmporas, inspirando fundo para não perder a paciência.
Não, ela não vai vir com esse tipo de chantagem para cima de mim. Agradeço
por tudo o que fez por nós nos últimos meses. De fato, ela cuidou de
Édouard, me ajudou muito. Sinceramente não sei o que teria feito se não
fosse por ela. Étienne andava desligado do mundo, às vezes tinha que ligar
para saber se tinha se alimentado, tirado o lixo, tomado banho, pagado as
faturas de água, luz e gás. Eu estava trabalhando no hospital, na clínica, tendo
de suprir o básico para uma criança de cinco anos e, ainda por cima,
averiguar constantemente se meu irmão não tinha se asfixiado no próprio
vômito.
Não gosto de parecer ingrato e, por esse lado, sempre vou agradecê-la
por ter me ajudado. Acho que se não fosse por ela, eu teria me
sobrecarregado. Mas Francine não pode usar isto para me chantagear toda
vez, não pode ficar jogando isto na minha cara sempre que bem entender.
Não a obriguei a cuidar do garoto. Ela poderia ter me deixado, ou
simplesmente ter se recusado a assumir as responsabilidades de cuidar dele,
mas não foi o que aconteceu. Se entrou nisso comigo, foi de livre e
espontânea vontade. Ter me ajudado, ter sido, por meses, a única figura
materna de Édouard, não anula as coisas ruins que me fez, veladas de “amo
você” e “me importo com você”.
— Você o pegou sem minha autorização, armou para que eu viesse
aqui… Não venha me dizer que fez isso sem segundas intenções.
Ela dá outro passo para frente e tenta segurar minha mão. Outra vez,
me esquivo.
— Só queria te ver, ter uma chance de conversarmos. Pierre, você tem
me evitado a todo custo!
— Você ateou fogo nas minhas coisas, nos meus documentos! —
protesto, erguendo a voz. — É claro que estou te evitando.
Francine faz um instante de silêncio.
— Désolée — pede, como se suas desculpas fossem reverter todas as
histerias, brigas, agressões verbais e físicas dos últimos anos. — Eu achei que
estava…
Não a deixo terminar:
— Esse é o seu problema. Nunca confiou em mim. Se eu me atrasava
dois minutos, era motivo para achar que eu estava transando com outra
mulher. — Suspiro alto, dando um passo à frente, quase sem perceber,
sentindo uma preocupação com ela que não deveria sentir de jeito nenhum.
— Suas paranoias não eram saudáveis para mim, tampouco são para você. Já
considerou uma ajuda psicológica?
A mulher abre um pequeno sorriso, e só então me dou conta de que não
deveria ter demonstrado esse tipo de preocupação. Tudo bem, me preocupo
com ela, embora não devesse, porque realmente precisa de um respaldo
psicológico. Francine só vai magoar as pessoas ao seu redor se não lidar com
suas inseguranças.
— Ainda se importa comigo, Pierre? E se você se importa, significa…
— Não significa nada… — corto-a, antes que crie mais expectativas.
— Só quero que você pare de me importunar e de me perseguir.
— Não vou desistir de você, mon trésor.
Eu me afasto dela, voltando para meu carro. Talvez tenha que tomar
medidas drásticas se ela continuar em sua obsessão comigo.

Juliette não tem mais motivos clínicos para continuar internada. Seu
bebê está bem e saudável, os hematomas no rosto diminuíram
consideravelmente e o restante da recuperação — inclusive das costelas
lesionadas — poderá ser feita em sua casa. Os exames de reflexo estão
ótimos, o que significa que a concussão não resultou mesmo em sequelas
piores. O teste de AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis deu
negativo, o hemograma está dentro do esperado, a glicemia também está em
bons níveis, exames de urina e fezes não detectaram nenhuma infecção ou
parasitas, os testes de anticorpos não identificaram nenhuma doença que
possa comprometer a saúde do feto. Inclusive a psiquiatria considerou que ela
pode receber alta, apesar da sugestão de acompanhamento psicológico fora
do hospital.
Ela está completamente saudável.
Enquanto caminho até seu quarto, sinto o coração aflito por ter que
assinar sua alta. Por algum motivo desconhecido, estou com essa aflição.
Aperto mais a pequena sacola de academia entre meus dedos, perguntando-
me se foi mesmo uma boa ideia trazer isto. Parece inadequado demais. Penso
em desistir, em deixar em qualquer canto, mas quando me dou conta, já estou
aqui.
Ela se vira para mim, notando minha presença. Está em pé, terminando
de ajeitar uma pequena bolsa com os pertences pessoais e itens de higiene
que alguém trouxe para ela. Já está vestida com roupas próprias e limpas —
camisa de gola e botões, jeans e um cardigã vermelho.
— Bonjour — cumprimenta-me, puxando o zíper da bolsa. — Uma
enfermeira me avisou que vou ter alta hoje.
— Oui — afirmo, soltando o ar e terminando de me aproximar. Ergo o
papel assinado. — Vim trazê-la para você. Está livre — brinco um pouco. —
Também vim para fazermos seu relatório de internação.
A mulher fica levemente tensa, porque o relatório inclui ter que
informar o que exatamente aconteceu que a trouxe para cá. É o processo de
qualquer hospital público do país. Nele, constarão também todos os
procedimentos e exames. Dentro de algumas semanas, ela receberá uma carta
com esse relatório e o valor a ser pago pelo serviço, a segurança social
arcando com quase oitenta por cento dos gastos. Como ela é beneficiária da
Mutuelle — um seguro de saúde privado, com vários preços e modalidades
—, o recurso vai cobrir outra parte dos gastos do hospital. Dessa maneira, ela
pagará um valor quase irrisório, se chegar a pagar.
— Tudo bem — cicia, olhando para minhas mãos, que ainda seguram a
sacola de poliéster.
Parecendo me lembrar de por que trouxe isso, eu a estico em sua
direção.
— Trouxe para você.
Ela me olha com cuidado ao dar um passo à frente e pegar a mochila.
Tem um kit bem básico de maquiagem — supus que deva gostar — e escova
de cabelos que ouvi-a dizer ontem que o primo esqueceu de trazer. Juliette
confere o conteúdo, e acho adequado explicar por que tive essa atitude tão…
sem cabimento? Não sei. Confesso que é a primeira vez a me preocupar com
uma paciente assim, a ponto de me mobilizar a trazer algo. Já recebi outras
pacientes que entraram e saíram sem uma escova de cabelo por não ter
nenhum familiar, e eu incumbi alguém de arranjar o necessário. Mas Juliette
tem o primo, que, mesmo esquecendo uma coisa ou outra, trouxe o básico.
— Merci — agradece, parecendo desconcertada, enquanto ainda
confere os itens e retira a escova.
— Desculpe se soou inadequado — peço. — Só achei que gostaria de
usar.
Juliette ergue seu olhar para mim.
— Você acertou, na verdade. Não pedi a Adrien para me trazer porque
ou ia esquecer, ou ia trazer tudo errado.
Fico feliz por ter feito a coisa certa. Pigarreio um segundo mais tarde,
olho para o formulário em minhas mãos e sou obrigado a iniciar todas as
perguntas pertinentes para o relatório. Nervosa, ela mantém sua versão dos
fatos. Continuo inclinado a não acreditar nela e até tentado a pedir que se
abra comigo e me conte a verdade, mas esforço-me para não ultrapassar essa
linha. Afinal, por que diabos me contaria a verdade? Sou praticamente um
desconhecido.
Vou fazendo as perguntas enquanto ela escova os cabelos e se maquia.
Como a grande maioria das francesas, Juliette prefere algo mais simples,
usando apenas uma base, blush e batom claro que ajudam a esconder alguns
pontos amarelados do seu rosto. Confesso que não sou nenhum entendedor
do mundo feminino e precisei de ajuda de uma vendedora para comprar a
base no tom correto da pele dela. Também trouxe um lápis delineador, mas
ela não usa porque seus olhos ainda estão meio inchados, embora não como
quando chegou aqui.
Finalizo o questionário quando uma batida leve na porta aberta anuncia
um homem alto no recinto. Ele abre um pequeno sorriso e se aproxima com
as mãos dentro dos bolsos da calça de uniforme.
— Ei, Julie — diz, aproximando-se de nós. Dá-me um sorriso
complacente e me cumprimenta. — Consegui uma hora livre e vim te buscar.
— Não precisava, Adrien — devolve suavemente. — Te disse que ia
embora de táxi.
— Até parece que ia deixar você ir sozinha depois que… — Faz uma
pausa pequena, como se estivesse escolhendo as palavras. — Foi atacada.
Pela expressão no rosto dela, noto que não se agradou da menção. Ou
talvez do tom dele. Pareceu-me um pouco irônico. Talvez ele também não
acredite em sua versão da mesma maneira que eu.
Juliette se vira para mim.
— Então… já posso mesmo ir?
Pisco duas vezes.
— Claro. Sua alta está assinada — digo, entregando o documento.
Adrien pega os pertences dela, se despede de mim e deixa o quarto, a
prima acompanhando-o em seguida. Ele continua seu caminho pelo corredor,
mas Gautier para no umbral da porta, segurando os girassóis que uma amiga
trouxe no outro dia, e se vira para mim. Há um instante de hesitação da parte
dela, a língua molhando timidamente os lábios. Estranho sua postura inquieta
e até quero perguntar se aconteceu alguma coisa, mas de repente ela dá um
passo à frente, abraçando-me com o braço desocupado.
— Merci. Merci beaucoup. Por ter cuidado de mim e do meu bebê.
Abraço seu corpo, divagando um momento com nosso contato, seu
aroma suave e natural subindo pelo meu nariz. É tão bom. Quase não me vejo
apertando sua cintura e a trazendo para mim um pouco mais, com cuidado
por causa das suas costelas machucadas.
— Não me agradeça. Fiz apenas a minha obrigação.
Ela se afasta, olhando-me nos olhos.
— Não, você fez muito por mim — diz, desviando o olhar rapidamente.
Em um movimento inesperado, ela segura minha mão direita. — Fez bem
mais do que apenas sua obrigação, Pierre. Teve um cuidado comigo que,
confesso, não esperava. Foi muito atencioso e se preocupou de verdade com
meu bem-estar. — Faz uma pausa e tenho medo de que possa ouvir como
meu coração bate descompassado. — Se preocupou como poucas pessoas se
preocuparam um dia…
Não sei o que falar nesse instante. Antes que tenha tempo de formular
qualquer resposta, ela solta minha mão e se afasta. Está para sair de novo
quando a impeço, segurando levemente seu punho. Retiro um cartão de
visitas do bolso do meu jaleco e entrego para ela.
— É da clínica onde trabalho. Se ainda não tiver um ginecologista para
um pré-natal, pode me procurar. Tenho acordo com o seguro social, então…
parte do valor da consulta pode ser reembolsado.
Juliette pega o cartão e o analisa um segundo.
— Você é exceção em meio à regra — murmura, em tom de
brincadeira, referindo-se ao fato de que a maioria dos médicos especialistas
não têm esse acordo com o governo. — Obrigada, Pierre — agradece pela
segunda vez, inclinando-se nos pés e deixando um beijo afetivo.
Eu a acompanho com os olhos enquanto se distancia, apressando os
passos no corredor para alcançar o primo que já está longe. Meu coração dá
uma batida a menos quando Juliette olha para trás e sorri.
JULIETTE
Entro em casa pela primeira vez em mais de uma semana. Tudo está
exatamente como deixei naquela manhã ao ir para o trabalho. Adrien surge
atrás, colocando a mão no meu ombro e perguntando se me sinto bem. Aceno
em positivo e termino de entrar. Ele coloca o pouco dos meus pertences sobre
o sofá e me avalia com cara de preocupado.
— Vou fazer alguma coisa para comermos — diz, pegando minha mão.
— Não deveria se incomodar, Adrien. Vou me virar bem — murmuro
de volta, dizendo isto muito por educação porque a verdade é que não vou me
virar bem.
Sempre gostei do fato de morar sozinha, de ter minha liberdade e
privacidade. Mas agora estou com um pressentimento ruim dentro do peito só
de pensar que vou passar a noite sem alguém por perto. Não quero que ele vá,
mas sei que meu primo tem sua vida, seu trabalho, seus estudos. Não quero
atrapalhá-lo.
Seus dedos me acariciam suavemente.
— Você não incomoda. Não se preocupe. O que quer comer?
— O que você fizer está ótimo — respondo.
Ele sorri e se retira para a cozinha. Fico na sala mais algum tempo,
tentando afastar da minha mente as lembranças da última vez em que estive
aqui. Pego minhas coisas e, vagarosamente, o tanto quanto minhas duas
costelas quebradas permitem, vou até meu quarto. A cama da noite que passei
com Antony continua desarrumada. Uma aflição intensa e insólita se instala
no meu coração. Memórias me invadem, mas só quero esquecer. Arranco os
lençóis e fronhas, e os jogo num canto. Por alguns longos segundos, fico
apenas olhando para o embolado de tecido, pensando seriamente em tacar
fogo porque tenho a impressão de que não importa quantas vezes eu os lave,
vão continuar sujos, com o cheiro dele, o suor dele, resquícios dele. Não
quero lembrança nenhuma desse homem na minha casa.
Uma lágrima escorre pelo meu rosto quando me dou conta de que isso é
simplesmente impossível. Estou grávida dele. Se tem algo que vou carregar a
vida inteira junto de mim, será uma parte de Antony. Aperto as pálpebras e
me esforço para não pensar assim. Meu filho não tem pai. Terá uma mãe que
vai fazer de tudo por ele, matar e morrer, dar todo o necessário, do emocional
ao material, mas ele não vai ter um pai.
Balanço a cabeça em negativo, afastando os pensamentos, e troco a
roupa de cama por novas. Demoro além do normal porque não posso fazer
muito esforço. Quando termino, vou até o banheiro. Está seco, mas sujo. As
toalhas que usamos naquela manhã continuam jogadas no mesmo lugar, perto
da porta, com sinais de bolor; o shampoo aberto está na cantoneira. Somente
agora, analisando todo o cenário e me recordando daquela manhã com ele,
debaixo do chuveiro enquanto me penetrava sem eu estar suficientemente
preparada, me dou conta de uma coisa. Antony não só me agrediu
fisicamente momentos depois, como nós não fizemos sexo. Eu não fiz sexo
com ele. O homem me violou. Não estava preparada para aquilo naquele
momento, tentei argumentar, mas fui ignorada. Ele apenas rosnou um “vai
estar…” e entrou em mim, sem se importar se eu queria, se estava pronta.
Engulo em seco e novamente preciso de um pequeno esforço para me
livrar das lembranças. Só quero esquecer e seguir em frente. Limpo o
banheiro o tanto quanto é possível. Jogo as toalhas sujas junto com os
lençóis, reorganizo a pia e coloco no lixo a escova de dentes que ele tinha
aqui. Volto para o quarto e abro gavetas e portas do armário. Há algumas
coisas dele. Blazers. Calças. Camisas. Meias. Cuecas. Gravatas. Com um
ódio justo e descontrolado, junto tudo e jogo na pilha de roupas. Tudo que
Antony me deu de presente nos últimos sete meses, eu me desfaço, colocando
no montante.
Adrien aparece quarenta minutos depois e me vê sentada na cama, o
olhar perdido, expressão abatida, as mãos na minha barriga. Ele se aproxima
e se senta do outro lado do colchão.
— A comida está pronta.
Não sinto fome, mas penso mais no meu bebê do que em mim, por isso,
decido me alimentar. Ele me ajuda a me levantar. Olha para a pilha de roupas
e objetos perto da porta e depois me indaga com um olhar curioso.
— Pode descartar para mim depois?
Com um sorriso, meu primo acena em positivo. Embola tudo e enfia
em um saco de lixo, descartando-o em seguida quando já estamos na cozinha.
Ele fez algo simples e rápido, mas ajeitou a mesa de modo a ter uma
atmosfera mais aconchegante e familiar. Estamos terminando de comer
quando o celular dele toca. Adrien confere a ligação.
— É o seu Ferdinand… — cicia, olhando fixamente para a tela do
telefone.
— Pode ir. Eu vou ficar bem.
— Tem certeza? — Confirmo. — Eu volto à noite, para te fazer
companhia.
Ele se levanta, deixa um beijo na minha testa, me manda trancar a porta
e ligar para ele, caso precise. Termino de comer, junto a louça na pia e subo
para o quarto. Ligo a televisão e deixo em um canal qualquer. Fecho as
cortinas, não querendo a luz do dia. Deito-me na cama e tento me concentrar
na televisão, passando um comercial qualquer de creme dental.
Por um instante de paz, me esqueço de tudo e consigo apenas pensar no
meu bebê. Envolvo meu abdômen de novo, desejando já poder senti-lo. É
incrível como sou capaz de amar um ser que não conheço, que sequer sei o
sexo, que ainda nem vi. Fecho os olhos, planejando uma porção de coisas
para meu futuro. Tem um quarto ao lado do meu que pode ser do bebê
quando tiver mais idade, e já penso em decorá-lo. Colocar uns ursos de
pelúcias, poltrona de balanço, cômodas recheadas de roupinhas dobradas,
perfumadas e passadas. Livros infantis para ler para ele antes de dormir.
Sistema de som com músicas suaves.
Fazendo esse tipo de planejamento, pego no sono. Desperto aos poucos,
não sei quanto tempo depois, por causa de um barulho vindo da sala.
Remexo-me na cama e puxo o edredom no meu corpo, sentindo o cansaço
massacrar meu corpo e ignorando o barulho. O gemer da porta dispara meu
coração, os passos pesados pelo quarto me deixam nervosa. Abro os olhos,
assustada, no mesmo instante em que uma mão grande tapa minha boca e seu
corpo pesado recai sobre o meu.
Pavor toma conta de mim quando nossos olhos se encontram. Ele está
aqui! Seu sorriso é perverso para mim. Tento gritar, mas sua mão pesada
abafa qualquer tentativa.
— Não vou te fazer mal — Antony diz, mas seus olhos dizem o
contrário. — Não digo o mesmo sobre o bastardo no seu útero. — Com isso,
ele ergue um canivete à altura dos meus olhos.
Tento gritar, a plenos pulmões, e lágrimas escorrem dos meus olhos,
entretanto, sua mão continua impedindo que eu peça qualquer tipo de ajuda.
Quero implorar, por tudo quanto é mais sagrado, que não faça nada ao meu
bebê. Começo a ficar sem ar, me debato debaixo dele, mas Antony sequer se
move, não dando nenhuma brecha de que vai se afastar mesmo que seja um
centímetro para eu respirar.
— Quero garantir que não abra a porra da boca e conte a Ann-Marie —
murmura, encostando a lâmina fria no meu rosto e descendo.
Ela já sabe, seu idiota! Não, por favor, por favor, não. Não-não-não-
não-não. NÃO!
— Eu também nunca gostei de crianças, Julie. São serezinhos irritantes
e nojentos que só dão prejuízo. — Com a mão desocupada ergue meu
cardigã. Sinto a temperatura quente da sua pele na minha e em seguida a
frieza do canivete estacionado na altura do meu útero.
Berro ainda mais, o ar ficando cada vez mais escasso, a inconsciência
ameaçando me dominar. Meus pulmões doem, a garganta arranha.
— Vou te fazer um favor e um dia você ainda vai me agradecer.
Sem que eu espere, ele crava o canivete em mim.
Eu grito estrondosamente, encurvando o corpo para frente e acordando
de um pesadelo real demais para suportar.
Estou em lágrimas, apalpando desesperadamente meu abdômen.
Intacto.
— Julie! — Adrien aparece, todo alarmado, e vem até mim.
Eu caio nos seus braços, chorando como uma criança que perdeu os
pais. Ele me abraça forte, murmurando palavras que não têm o poder de me
acalentar. De repente, eu me afasto do conforto e da segurança dos braços
dele e torno a averiguar minha barriga, olhando para meus dedos à procura de
sangue de uma ferida que não existe.
— Juliette, o que aconteceu?
— Ele estava aqui! — explico, toda desesperada e aos prantos. Minhas
mãos estão trêmulas e seguem examinando minha pele.

— Julie, estamos só eu e você — Adrien diz, suavemente, tentando


segurar minhas mãos. Eu me desfaço do seu toque com um movimento
rápido e enojado, como se estivesse espantando uma barata.
— Ele estava aqui! — grito, parecendo uma histérica. — Antony estava
aqui e tentou me machucar! Tentou matar meu filho.
Meu primo me segura pelo rosto com firmeza, fazendo-me finalmente
olhá-lo, controlando toda a minha histeria. Não diz uma palavra, apenas me
olha. Então, a realidade cai sobre mim. Estou em casa e estou bem. Assim
como meu bebê. Pouco a pouco, vou me acalmando, percebendo que tudo
não passou de um sonho. Um sonho ruim. Adrien me abraça de novo,
beijando minha têmpora e garantindo que estamos em segurança.
— As fechaduras… — murmuro, o rosto escondido contra seu peito. —
Troque as fechaduras das portas para mim, por favor. Antony… tem a cópia
das chaves.
— Farei isso amanhã.
Agarro-o com força pela gola da camisa.
— Agora.
Delicadamente ele desprende meus dedos do tecido.
— São nove da noite, chérie. Não vou encontrar lugar nenhum para
comprar fechaduras novas. — Inclinando-se em minha direção, ele beija
minha bochecha. — Vou dormir aqui por esses dias, não terá com que se
preocupar.
Pareço uma lunática e só me dou conta disto agora. Abano em positivo
e me obrigo a acalmar os nervos.
— Vem, eu fiz o jantar.
— Não sei o que seria da minha vida sem você — comento, enroscada
nos braços dele, enquanto caminhamos até a cozinha.
Adrien ri de um jeito gostoso.
— Estaria bem encrencada — comenta, servindo-nos com uma sopa de
cebola.
Ele me conta como foi o seu dia, mas estou distraída demais e sei que
deveria prestar mais atenção nele. Meu primo está sendo maravilhoso comigo
— sempre foi, na verdade —, e eu aqui, brincando com a comida e com os
pensamentos longe, ainda tentando afastar todo o medo, o horror e as
imagens do sonho ruim de mais cedo. Tento me concentrar em algo bom para
esquecer as coisas más. Então, me distraio ao pensar na única coisa boa que
me aconteceu na última semana.
— Tá quieta — comenta, cobrindo sua mão com a minha. — O que
está se passando na sua cabeça? — Não vou mesmo falar que estou pensando
nas gentilizas de Pierre. Não vou admitir que os cuidados dele comigo
causaram um efeito diferente em mim. Ainda estou ponderando o que dizer
quando ele completa: — Está pensando nele, Julie, naquele traste? — Não há
nenhum traço de julgamento na sua voz, e sim compaixão. — Quer falar
sobre isso?
Balanço a cabeça em negativo. Não, não quero. Quero esquecer, seguir
em frente, mas ficar trazendo esse assunto o tempo todo não vai me ajudar.
— Ei — murmura, tocando meu queixo e me fazendo olhá-lo. — Sabe
que pode contar comigo, não sabe? Para qualquer coisa. Não vai estar
sozinha nessa.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
— Não precisa…
— Precisa, sim. — Adrien acaricia minha mão e me oferece um sorriso
complacente.
Eu me levanto do meu lugar e vou até ele, abraçando-o. Nunca terei
palavras suficientes para agradecê-lo.

Bernardo vem para uma visita uma semana depois. Estou sozinha nessa
ocasião, uma vez que Adrien me faz companhia somente à noite. Ele vem,
prepara o jantar, conversa comigo e dorme no quarto ao lado do meu. Ainda
não me sinto preparada para ficar sozinha na minha casa outra vez, mesmo
assim, disse ao meu primo que se ele quisesse, poderia voltar a dormir em seu
apartamento e seguir a vida. O homem me escuta? Não. Ele já trouxe alguns
pertences e itens de higiene pessoal, e tem ficado comigo desde então. Disse
que ficará quanto tempo for necessário.
Durante a primeira semana, foi um pouco mais difícil retomar a rotina.
Eu me afastei do trabalho e, em casa, durante o dia, sozinha, não consegui
repousar como queria. Adrien chegava e fazia uma coisa ou outra para que eu
apenas repousasse no dia seguinte, mas confesso que não tive paciência para
ficar de molho na cama o dia todo, então fiz algo aqui ou ali, o quanto minhas
costelas permitiam. Meu rosto está quase cem por cento recuperado. O
inchaço foi embora, o corte na boca fechou, os hematomas roxos sumiram
quase por completo, restando apenas algumas poucas e pequenas manchas
amareladas que também devem sumir nos próximos dias.
— Como você está, ma chère? — pergunta, acomodando-se no sofá.
Sento-me ao lado dele, entregando-lhe uma xícara de café.
— Me recuperando, merci.
Molho os lábios, tentada a perguntar se ele tem notícias de Leclerc, se
encontraram uma maneira de puni-lo por ter me espancado e por ter fraudado
duas empresas. Se Bernardo veio aqui, talvez seja porque tem novidades
sobre o caso?
— E seu bebê?
Abro um sorriso pequeno e desvio o olhar por um segundo.
— Estamos bem, Bernardo. Obrigada por perguntar.
Ele toca minha perna.
— É bom ouvir isso. — Apoiando a xícara sobre o pires na minha mesa
de centro, prossegue: — Vim porque preciso resolver com você sua situação
lá na cafeteria. Não pense que quero que volte logo, não é isso. Tire o tempo
que precisar para se recuperar.
— Não sei se quero voltar — respondo, com sinceridade.
— Eu entendo. Supus que não gostaria mesmo de continuar. E quer
saber? Faz muito bem. Não pode ser presa fácil para Antony, porque sabe lá
Deus o que ele é capaz de fazer. Mas quero que continue comigo. Posso te
transferir para uma das filiais na cidade vizinha, onde ele não vai te
encontrar.
Fico tocada com o gesto e com as intenções de Dousseau. Ele está
mesmo preocupado comigo, com meu bem-estar, mas eu não vou deixar
minha cidade por causa de Antony. Paris é grande o bastante para que eu viva
bem e em paz. Se for necessário me mudar de casa, de bairro, ainda faço isso,
embora eu prefira optar por um sistema de segurança; contudo, mudar-me da
minha cidade natal está fora de cogitação. Aquele homem não vai me
controlar.
— Agradeço muito, Bernardo, e desculpe se vou parecer ingrata, mas
não quero deixar Paris. Não vou me mudar por causa de Antony. Nesse
momento, prefiro deixar a cafeteria, talvez arrumar outro emprego… Não sei
se conseguirei isso por causa da gravidez. Mas, de qualquer maneira, tenho
uma reserva de dinheiro e posso me manter até poder dar entrada na licença-
maternidade. Espero que possa me compreender.
— É claro que compreendo, Juliette. Mas sabe que eu não posso te
demitir, por causa da estabilidade, e se você pedir demissão, perde os
benefícios do seguro-desemprego.
— Estou ciente disso, não se preocupe.
Bernardo balança a cabeça em positivo e termina seu café.
— Vou te dar uma carta de recomendação. Se não conseguir nada
agora, pode conseguir depois que ganhar o bebê e puder ingressar o mercado
outra vez. E saiba que se uma hora quiser voltar a trabalhar comigo, sempre
terei uma vaga para você. Basta me procurar.
Eu me aproximo dele e o abraço, sentindo minha emoção na garganta,
os olhos queimarem. A gente sabe quem é nosso amigo de verdade em
momentos como esse. Bernardo e eu sempre mantivemos uma relação muito
estritamente profissional. Ele tem um jeito excêntrico demais para um
francês. É quente no sentido de ser muito receptivo, algo avesso aos
parisienses, talvez por causa da sua metade brasileira. O tempo todo que
trabalhamos juntos, ele manteve um limite de intimidade entre nós, nunca
deixando que seu lado excêntrico e brasileiro ultrapassasse esse limite. Não
me lembro de alguma vez ter chegado na cafeteria e perguntado como foi
meu dia de folga. Esse tipo de comportamento até pode transparecer que
nunca se importou de verdade, mas aqui está ele, mostrando que, apesar de
nunca ter demonstrado qualquer tipo de preocupação, se preocupa, sim.
— Merci, Bernardo. Por tudo. Tudo mesmo.
Ele me afasta e deixa um beijo no meu rosto.
— Qualquer coisa que precisar, me ligue, oui?
Eu o acompanho até a porta.
— Oui — afirmo. — Bernardo… — chamo-o com cuidado. Ele se vira
para mim. — Alguma novidade? — Não preciso explicar, ele sabe do que
estou falando.
— Infelizmente não. — Suspira. — E isso me atormenta também,
sabe? Ann-Marie ia pedir o divórcio, para finalmente ficarmos juntos, mas
teve que adiar porque ficamos com medo de Antony achar que você contou
alguma coisa e pudesse tentar te fazer algum mal de novo por causa disso.
— O Antony também a agredia…? — pergunto, quase com um
sussurro.
— Não como fez com você — menciona, baixando o tom de voz.
Inspiro fundo, tentando afastar lembranças doloridas. — Mas ele a agredia,
sim. Agredia sua autoestima, a agredia com palavras. Ele a privava de ter um
trabalho, suas próprias finanças, tirava sua liberdade, a afastava das amigas.
Uma vez chegou a empurrá-la. Antony nunca bateu nela, mas não anula o
fato de que continua sendo tóxico e violento. A violência física sempre
começa com a psicológica, Juliette.
Reflito um momento, tendo de concordar com ele.
— Como ela está? — Sou sincera. Quero mesmo saber do estado dela
com essa história toda. Fui estúpida em julgá-la. Agora vejo que ela se
aproximou de Bernardo muito provavelmente porque o marido era um idiota.
É claro que era. Ele me dizia que tinha de sustentá-la porque era uma
acomodada. Mentiroso dos infernos! A verdade, noto somente agora, é que
ele a proibia de trabalhar, de ter sua independência e autonomia.
Essa mulher estava vivendo um casamento de merda e de repente
conhece o Bernardo, que deve ter colocado sua autoestima em um pedestal e
demonstrado como é o completo oposto de Antony.
— Ann-Marie está bem, na medida do possível. Com medo de ficar sob
o mesmo teto dele, claro, mas não podemos fazer nada no momento. Não
enquanto for uma ameaça para todos nós.
— Sinto muito — falo, sentindo-me levemente responsável por isso. Se
eu não tivesse tido a ideia absurda de engravidar, ou de confrontá-lo,
ameaçando contar tudo a esposa, talvez não tivéssemos chegado a esse ponto.
— Isso é minha culpa, não é?
Ele dá um passo para frente e me segura pelas mãos.
— Não. Nunca será.
Um nó se forma na minha garganta.
— Eu me envolvi com ele. Engravidei para tentar afastá-lo da mulher,
depois ameacei trazer nosso caso à tona, e foi onde me espancou e saiu
impune, colocando todo mundo sob ameaça. Se eu não tivesse…
Seu dedo indicador toca meus lábios.
— Nem pense em terminar esse absurdo. Você não tem culpa de nada.
Pode ter errado, Juliette, e todos nós erramos, mas foi ele quem cometeu um
crime, não você, oui?
Sorrio e abano a cabeça em positivo.
— Espero que dê tudo certo para você e Ann-Marie
Bernardo sorri e me dá um último abraço e um beijo no rosto antes de ir
embora.

Entro com cuidado na clínica, sentindo um tremor estranho dentro do


peito. Adrien acha que é loucura eu pagar pelas consultas do meu pré-natal
quando posso usar o sistema público de saúde, que vai cobrir cem por cento
dos gastos, não apenas uma parte como nas consultas privadas, e quando
estou desempregada. Mas tenho um bom seguro que vai cobrir uma parte dos
valores, de qualquer maneira. Quando me perguntou por que optei pelo
acompanhamento privado, é claro que não admiti que o motivo é
exclusivamente um certo obstetra que já conheço. Dei uma desculpa meia-
boca qualquer; ele não acreditou, mas também não insistiu.
Quando me recuperei, cerca de três semanas depois do ataque, fui dar
entrada na parte burocrática para que, dentro de alguns meses, tenha o direito
à licença-maternidade. Passei pelo médico generalista, fiz exames de sangue
e ultrassom que comprovaram a gravidez e preenchi uma papelada para o
dossiê exigido pelo governo. Eu tinha que escolher a maternidade, mas optei
pelo parto domiciliar depois que fiz algumas pesquisas, assisti alguns vídeos
sobre o assunto e falei com algumas mães que passaram pela experiência.
Enquanto resolvia a parte administrativa, já deixei uma data marcada para
minha primeira consulta, que seria quando completasse cerca de quatorze
semanas de gravidez. Antes disso, é impossível mesmo no sistema privado.
Pierre também tem uma agenda cheia, o que contribuiu pela demora
para conseguir um horário com ele. Já tem quase dois meses desde que fui
parar na emergência e só agora vou revê-lo. Deus, meu coração bate rápido
demais com essa perspectiva.
Obrigo-me a me concentrar no momento e responder à pergunta da
recepcionista da clínica, mas divaguei um minuto. Passo as informações
necessárias e tenho apenas que aguardar.
Enquanto espero, observo as demais pacientes. Algumas estão
sozinhas, assim como eu, outras têm companhia de outras mulheres — talvez
a mãe ou alguma amiga — e outras três estão acompanhadas dos maridos. É
nesse momento que o sentimento amarga minha boca e a realidade parece
realmente cair sobre meus ombros. Vou ser mãe solteira. Meu único
arrependimento é ter apostado em Antony, acreditado que ele seria bom, que
me amava de verdade e aprenderia a amar a criança sendo gerada em mim.
Jamais vou me arrepender do meu filho, apesar de todas essas circunstâncias.
Também estou ciente que a maternidade será difícil e não é esse mar de
rosas que as pessoas gostam de pintar. Vou ter noites insones, de surto,
momentos em que vou me questionar por que resolvi ter um filho; terei
momentos em que vou querer apenas sentar no vaso e ter um minuto de paz,
ou comprar uma barra de chocolate e esconder para comer sozinha, ou chorar
de canseira porque estou sobrecarregada. Vou passar por tudo isso e sei disso.
Ainda assim, meu filho será sempre a minha melhor escolha.
Divago por alguns instantes, nem me dando conta do tempo até que me
chamam. Uma moça negra, de jaleco. É a minha vez para a consulta. Ela
estica a mão para mim, para me ajudar a me levantar; agradeço e recuso,
podendo fazer isto sozinha. A assistente me pede para acompanhá-la.
Enquanto avanço o pequeno corredor até a sala dele, tento controlar minha
ansiedade e a vontade de revê-lo que me acomete de repente. Michéle —
como se apresenta segundos mais tarde — dá uma batidinha na porta e a abre,
pedindo com licença e informando sobre a próxima paciente. Ela me dá
espaço para entrar e, pé ante pé, eu o faço, quase podendo dizer que sinto
meu coração bater na boca.
Pierre está na sua mesa, concentrado em alguns papéis. Seu ambiente
de trabalho é amplo, arejado, com um computador, telefone, estante com
alguns livros e protótipos do sistema reprodutor feminino, quadros e alguns
arranjos. Eu mal ponho o pé para dentro quando ele levanta os olhos claros
para mim, um sorriso estampado para me recepcionar, mas sua expressão
muda por um segundo ao me reconhecer.
Meu coração acelera.
O sorriso dele retorna e ele sai do seu lugar, vindo em minha direção.
O que é que ele está fazendo?
De repente, o homem está na minha frente, com uma expressão
calorosa e receptiva, dizendo:
— Estou feliz por ter me escolhido, Gautier.
Só Deus sabe como essa frase significa mais do que realmente quero
admitir.
PIERRE
— Estou feliz por ter me escolhido, Gautier — digo, mantendo-me a
uma distância respeitável dela, mas com uma vontade estranha de me
aproximar mais.
Juliette sorri e agradece, parecendo deslocada com a minha recepção.
Não deve estar acostumada com um parisiense tão minimamente suportável.
A verdade é que não gosto de ser frio e distante com as minhas pacientes, e
talvez seja por isso que as pessoas estranham o fato de eu me destacar entre
os outros médicos, com fama de indiferentes.
Minha assistente a ajuda a se acomodar de frente para minha mesa e se
retira para preparar a sala do ultrassom. Voltando ao meu lugar, pergunto:
— Como você está?
— Estou bem — responde, baixando o olhar rapidamente.
— Ocorreu tudo bem na sua recuperação? — Analiso-a com mais
atenção agora.
Nunca tive dúvidas que Gautier é uma mulher bonita, mas posso ter
uma noção melhor agora de sua beleza sem o inchaço das agressões. O rosto
está completamente recuperado, sem sinais dos hematomas. É incrível como
a beleza dela me atrai. Juliette é uma mulher pequena, com talvez um metro e
sessenta centímetros de altura, cabelos castanho-claros na altura do ombro,
ondulados, nariz fino e levemente arrebitado. Se você olhar bem de perto, vai
reparar em algumas sardas bem discretas pontilhadas em torno do nariz.
— Ocorreu sim — afirma, erguendo os olhos para mim. — Estou bem
melhor agora.
Ela põe a mão na barriga e sou tentado a observar o movimento.
Quando a atendi no hospital, ela estava com oito semanas de gestação. Agora,
fazendo as contas meio por cima, deve estar beirando a décima quarta ou
décima quinta semana, e é claro que já dá para notar um pouco mais o realce
do seu abdômen.
Travo minha língua para não entrar em detalhes que não são da minha
conta, como por exemplo insistir em perguntar o que realmente aconteceu
cerca de seis semanas atrás porque ainda não acredito na sua versão. Então,
me concentro e começo a fazer as perguntas rotineiras que um médico
obstetra faz à sua paciente. Preparo uma caderneta de pré-natal para ela, onde
anoto todas as informações relevantes.
Vou fazendo as perguntas e preenchendo as lacunas, às vezes paro e
desviamos o assunto levemente, fazendo algum comentário aleatório. De
início, ela parece tensa, deslocada, mas logo vai se tranquilizando. Solicito
alguns exames, embora ela já tenha os feito no hospital, apenas para constar
no seu prontuário na clínica, e prescrevo as vitaminas necessárias.
Findada a primeira parte da consulta, é hora da segunda, onde faremos
um novo ultrassom. Michéle aparece quando a chamo pelo sistema de ramal e
se retira com Juliette para prepará-la. Espero cinco minutos e me retiro,
caminhando até uma pequena saleta conjugada à principal. Gautier já está na
maca, preparada. Minha assistente me entrega a caderneta onde anotou o peso
dela.
Preparo-a para o exame, espirrando um pouco do gel frio em sua
barriga.
— Já voltou a trabalhar? — indago, baixinho, apenas como um modo
de manter a conversa.
— Pedi demissão — rebate, no mesmo tom. Eu a olho, não podendo
conter a surpresa em minha expressão. — Prefiro me dedicar ao meu filho
nesse momento.
Abro um pequeno sorriso, ajusto o transdutor sobre sua barriga e movo-
o por alguns segundos até as ondas de ultrassom se transformam em imagens
no monitor. Algo dentro de mim grita para não fazer tal pergunta, mas é mais
forte do que eu. Enquanto estou movendo o objeto sobre sua pele, buscando
pela melhor imagem, questiono:
— O pai do seu bebê não quis vir junto?
Um silêncio denso recai na sala. Juliette desvia o olhar para mim, de
uma maneira como se eu tivesse cuspido no rosto do Papa. Foi uma pergunta
estúpida, Pierre!, minha consciência acusa. No hospital, ela deixou bastante
claro a ausência paterna. Se o pai do bebê estivesse realmente assumindo suas
responsabilidades, teria aparecido semanas atrás, na ocasião em que a mulher
estava internada. Se ele nem sequer apareceu em um momento delicado como
aquele, duvido muito que o faria agora.
— Je suis désolé — me redimo instantaneamente, sentindo-me um
idiota insensível por ter a questionado dessa maneira, colocando-nos em uma
situação delicada e até antiética. — Eu me esqueci que…
— … meu filho não tem pai? — devolve, meio hostil.
Do outro lado, Michéle abaixa a cabeça. Fico desconcertado com sua
resposta, mas fui indelicado primeiro, então não a culpo.
— Eu ia dizer que não mencionou o pai do bebê no hospital, semanas
atrás. Me desculpe, Gautier. Não deveria… ter sido tão indelicado e invasivo.
Ela desvia o olhar de mim para o monitor ao seu lado e fica emudecida.
Pigarreio, tentando me encontrar de novo, e finalmente faço o meu papel de
médico. Avalio tudo o que precisa ser avaliado, mostrando o tempo
gestacional, previsão de parto, calculando o tamanho e peso aproximado do
feto. Com o auxílio do sonar, ela ouve os batimentos cardíacos do bebê.
— Já posso te dizer — menciono, movendo o transdutor um pouco
mais para baixo — o sexo do seu filho. Probabilidade de oitenta por cento,
por causa da posição dele. Você quer saber?
Juliette vira seus olhos em minha direção, a expressão mais suave
agora.
— Eu quero. — Sua voz está contida, mas levemente trêmula.
Ansiosa. Ela está ansiosa.
— Vamos confirmar com mais segurança na sua próxima ultrassom,
quando entrar no terceiro trimestre. Ou… — Faço uma pausa, pensando
melhor. O que estou prestes a fazer, fiz para pouquíssimas pacientes. Todas
elas eram pessoas muito próximas a mim e tinham um grau de importância na
minha vida. — Volte aqui dentro de três semanas e faremos um novo
ultrassom.
Minha assistente me dá uma olhadinha rápida, estranhando meu pedido.
Isso é atípico. É claro que é. Na França, como a segurança social cobre cem
por cento dos exames das gestantes, o ultrassom é feito apenas três vezes:
uma vez a cada trimestre. Se os pais querem mais do que isso, precisam pagar
do bolso e não é reembolsável, nem mesmo parcialmente, como o caso da
consulta.
Juliette me estuda um segundo, com toda certeza também estranhando a
minha oferta.
— Não sei se um novo ultrassom e uma nova consulta caberiam no
meu orçamento, doutor Laurent… Mas agradeço sua sugestão.
Quero dizer para não se preocupar com gasto, porque eu cobriria esse
exame, mas acho inadequado demais oferecer isto a ela, na frente da minha
assistente.
— Tudo bem… — murmuro, voltando meus olhos para o monitor. —
O seu bebê tem uma probabilidade de oitenta por cento de ser menino. Aqui.
— Levo a pequena flecha até um ponto específico na imagem. — É o órgão
dele, o pênis, e aqui… — Arrasto levemente para baixo. — O saco escrotal.
Vai ser um garotão.
O sorriso nela é de orgulho. Os olhos estão grudados no monitor, as
mãos nas laterais da barriga, onde o gel não atingiu. Finalizo o exame, limpo
seu abdômen e subo o cós da calça delicadamente. Michéle ajuda-a a se
levantar e voltamos para a sala principal.
Faço as últimas anotações na caderneta de Juliette, que está quieta, mas
com aquele brilho que só uma mãe pode exalar, mãos ainda no ventre, olhos
cabisbaixos, pequeno sorriso.
— Seu ultrassom. — Estico a imagem impressa para ela, junto da
caderneta, que ela pega, analisa um rápido instante e guarda dentro do
caderninho. — Escute — murmuro, não sabendo como vou começar isso. —
Nãos quis ter sido indelicado minutos atrás. Apenas tinha me esquecido desse
detalhe — minto. Não me esqueci. Fiz mesmo uma pergunta idiota, movido
por um instinto desconhecido. — Pensei naquele rapaz que te buscou, liguei
uma coisa à outra e acabei sendo muito antiético.
— Não se preocupe com isso, doutor Laurent — diz de um jeito
bastante calmo. — Sei que não fez de propósito. Está tudo bem, de verdade.
Aceno em positivo, aliviado que tenha me desculpado. Então, aproveito
que estamos sozinhos e confidencio outra coisa:
— Sobre outro ultrassom… se precisar, saiba que pode entrar em
contato comigo. — Pego um pedaço de papel e caneta e anoto meu número
particular.
Se já a assustei com minha recepção atípica, vou assustá-la ainda mais
agora. Não conheço nenhum outro médico francês que informe o número
particular aos seus pacientes. Eu informo, porque tenho um senso de
preocupação além do normal e gosto que minhas pacientes se sintam seguras.
Arrasto o papel em sua direção. Ela o toma em mãos, estudando-o com certa
curiosidade.
— É meu telefone particular — explico. Por um instante, não sei como
explicar essa atitude sem parecer antiquado demais. — Para entrar em contato
comigo caso precise de qualquer coisa. Se sentir uma dor incomum, se tiver
alguma dúvida… Se precisar de um atendimento domiciliar. — Desta vez ela
me olha. — Se eu estiver disponível, pode ter certeza de que vou fazer o
possível para te atender.
— Você é… tão diferente — diz, sorrindo de um jeito encabulado. — É
mais atencioso do que a maioria dos médicos com quem me consultei ao
longo da vida.
— Só me importo com o bem-estar de vocês. — Queria admitir para
mim mesmo que quando digo “bem-estar de vocês” estou generalizando. Por
um lado, estou mesmo, mas por outro, o “vocês” é mais específico. Se trata
dela e do seu bebê.
Cuidadosamente, Juliette dobra o papel e o guarda junto com a imagem
do ultrassom.
— Agradeço muito por toda sua atenção, Laurent — murmura,
hesitando entre me encarar e olhar para os dedos sobre o seu colo. — Você
realmente consegue fazer com que a gente se sinta acolhida e bem-recebida.
Suas palavras me alegram. Ela se levanta, encerrando a consulta.
Acompanho-a até a porta.
— Gautier — chamo-a, e ela se vira para mim. — O ultrassom, ofereci
por minha conta — confesso. Ela estuda meu rosto, de um jeito que não
consigo decifrar se está curiosa, surpresa ou indiferente à minha oferta. — Se
quiser…
— … eu entrarei em contato — finaliza. — Obrigada de novo. — Está
para dar um passo para fora, mas então desiste, retorna e me dá um abraço
rápido e desajeitado.
Quando ela vai embora, ainda estou processando esse efêmero contato.

Preciso encontrar alguma coisa que me distraia depois de encerrar os


horários das consultas, então começo a reorganizar algumas fichas e
prontuários de pacientes. Ainda assim, vez ou outra me pego pensando nela
mais do que deveria.
Deus, isso é tão errado. Mal a conheço, é minha paciente. Tudo bem
que não é nenhum tipo de pensamento inadequado, parece-me mais com…
preocupação. Fui descuidado em perguntar do pai do filho dela, muito
inconveniente da minha parte, mas não pude evitar o sentimento.
Forço-me a me concentrar nas fichas em vez de criar aflições
desnecessárias.
— Doutor Laurent? — Michéle surge na porta, segurando o telefone
sem fio contra o peito. — Ligação para o senhor. É da delegacia.
Um calafrio esquisito sobe pela minha espinha.
— Transfira, s’il vous plait. — Retiro o telefone do gancho. — Pierre
Laurent. — O agente policial do outro lado da linha me informa o acontecido.
— O quê? — Fecho os olhos, inspirando fundo. Sabia que uma hora ou outra
isso ia acontecer; não dá mais para confiar nele. — Estou a caminho. Merci.
Retiro o jaleco e visto meu casaco rapidamente. Saio da clínica sem dar
nenhum tipo de satisfação, com um sentimento de exaustão instaurado no
peito. Chego à delegacia vinte minutos depois. Passo as informações que
preciso, pago a fiança e uma agente me encaminha até onde meu irmão está.
Eu o encontro em uma cela pequena, sozinho.
— Sériux, Étienne? — murmuro enquanto a mulher destranca as grades
da cela. — Desacato à autoridade?
Ele ergue os olhos para mim, em um misto de vergonha e tristeza.
Étienne está agindo como o adolescente encrenqueiro e me fazendo ser o pai
que tem de ficar colocando-o na linha. Isso não está certo. Ele é um homem
adulto, com mais de quarenta anos. Não pode mais ter esse tipo de
comportamento.
— Eles não podem fazer isso comigo, Pierre — cochicha, suspirando
pesadamente em seguida. — Não podem suspender as buscas pela minha
esposa.
Sinceramente, achei que estivesse mesmo seguindo em frente. Ele teve
mais um ou dois encontros e parecia realmente bem. Estava começando a
acreditar que meu irmão voltaria a ser o mesmo de sempre. Voltaria a
trabalhar, a cuidar do filho, a ser o homem responsável que foi uma vida
inteira. Nossa mãe morreu quando eu ainda era criança, mas não ele. Na
época, já estava na faculdade, cursando medicina. A morte dela desestruturou
muito a cabeça do nosso pai, que passou por uma fase difícil nos primeiros
meses. Enquanto ele se recuperava do golpe de perder minha mãe por uma
negligência médica, Étienne tomou as rédeas da situação e cuidou de mim e
do nosso velho. Mesmo quando papa se recuperou, ele precisou continuar o
ajudando com as despesas. Tempos depois, vivia para a medicina e as
responsabilidades com sua carreira médica eram a coisa mais importante. Foi
se casar somente aos trinta e cinco porque Jeaninne engravidou de Édouard
na primeira vez em que transaram. É claro que nós dissemos que não
precisava se casar desde que assumisse o garoto, mas os dois resolveram
tentar. E eles deram certo, por incrível que pareça, ao menos por um tempo.
O desaparecimento da esposa foi a única coisa capaz de arrancar dele tudo o
que foi durante uma vida: extremamente responsável.
— Étien… — Suspiro quando dá um passo para fora da cela. — Já tem
um ano, ela sumiu sem deixar pista nenhuma… A polícia fez o melhor que
pôde.
— Não fizeram o suficiente — reclama.
Apoio uma mão em seu ombro.
— Está na hora de aceitar que…
— Nem termine, Pierre.
Molho o lábio inferior, perguntando-me quanto tempo mais ficará nessa
fase de negação. A agente policial nos encaminha para fora da área das celas.
Meu irmão está melancólico. Tento dizer alguma coisa, mas a verdade é que
eu tenho nada. Nunca tive.
— Eles já me disseram para considerar que Jeaninne esteja morta —
sussurra, acomodando-se no banco do passageiro. — Mas sinto, Pierre…
Sinto que ela está viva, em algum lugar, e está precisando de mim. Não
podem simplesmente desistir dela.
Olho para frente, apertando o volante entre meus dedos, pensando no
surto que ele teve quando veio a delegacia e disseram que arquivariam o
caso, tentando me pôr no lugar dele, compreender seu desespero. Às vezes,
preferia mil vezes que minha cunhada aparecesse morta, porque essa
incerteza… essa incerteza mexe demais com meu irmão. Odeio vê-lo nesse
estado.
Não falamos nada um para o outro por alguns segundos. Sei que o que
vou dizer a seguir vai machucá-lo, mas Étienne precisa disso. Precisa voltar a
viver.
— Étien… está na hora de seguir em frente. De verdade.
Ele me olha.
— O que quer dizer com isso?
— Que sua mulher merece um funeral, uma lápide no cemitério.
Meu irmão me encara como se não me reconhecesse. Está aturdido com
a sugestão, é claro que está, só que não vejo outra solução senão essa. Nós
precisamos de um recomeço e só vamos consegui-lo se pusermos um fim em
algumas coisas. A incerteza do paradeiro de Jeaninne e do seu estado é algo
que continuará nos mantendo nesse ciclo. Étienne não vai conseguir
recomeçar se não houver um fim. Ele já passou pela fase do desespero, da
negação, da negligência, da tristeza. Precisa do luto agora para caminhar para
a aceitação e recomeçar a vida.
— Ela não está morta — afirma.
— Como pode ter tanta certeza? — devolvo, suavemente.
— Como você pode ter certeza de que ela está morta, Pierre?
— Não tenho, mas é exatamente isso que está te impedindo de seguir
em frente, Étienne. Essa incerteza de não saber onde ela está, o que
aconteceu. Você precisa seguir em frente, senão por você, ao menos por
Édouard. Putain! — “Porra”. — Quantas vezes já tivemos essa conversa,
cara? O garoto precisa do pai dele!
— É muito fácil para você, não é? — contesta, erguendo a voz. — Me
mandar viver minha vida como se nada tivesse acontecido, como se a minha
esposa não estivesse por aí, sabe-se lá Deus passando pelo que, porque não é
a sua mulher nessa situação, não é você no meu lugar, então parece muito
fácil me dizer esse monte de baboseira! — grita, dando um soco no painel do
carro.
Nem tenho tempo de acalentá-lo, ele sai do veículo agora estacionado e
caminha noite adentro. Saio rapidamente ao seu encalço e tento trazê-lo de
volta, acalmar seus nervos, mas meu irmão se esquiva de mim como se eu
fosse um rato de esgoto.
— Com quem você deixou o meu sobrinho? — grito para ele, que
continua se distanciando.
— Francine. — É tudo o que diz.
— Mas que diabos, Étienne!
Volto para dentro do carro e acelero até a casa de Perrot. Chego e ela
não está. Tento ligar no seu telefone, mas toca até cair na caixa de
mensagens. Inferno! Onde essa mulher se meteu com meu sobrinho? Tento
mais uma vez e finalmente ela me atende. Está no hospital, de plantão, e
levou Édouard junto. Eu grito com ela, perguntando com que direito… A
megera desliga na minha cara. Controlando toda a minha raiva, dirijo até lá.
Encontro o garoto sob os cuidados intercalado das enfermeiras. Ele está na
sala dos atendentes, na companhia de várias folhas impressas, lápis de cor e
giz de cera. Vou matar o pai dele. Aproximo-me com cautela para não o
assustar, dispensando a enfermeira que está com ele.
— Doudou… — chamo-o. Ele abre um grande sorriso para mim e corre
me abraçar. Beijo seus cabelos escorridos e me sento ao seu lado. Ele me
mostra o desenho que está pintando, animado e alheio a essa confusão em
que seu pai nos meteu. Tudo o que quero é pegá-lo pelos punhos e irmos
embora antes que Francine apareça.
— Cadê o papai? — pergunta, olhando rapidamente para cima do meu
ombro e depois voltando a se concentrar na tarefa de colorir.
Não sei o que responder.
— Vai chegar em casa em breve. Não se preocupe. Vamos?
Nesse instante, Francine aparece. Meu sangue ferve. Quero gritar com
ela porque já deixei claro para ficar longe do meu sobrinho, mas
provavelmente o irresponsável do Étienne quem telefonou para ela e pediu
para cuidar do filho enquanto ia a delegacia. Por que faria uma coisa dessas,
não sei, pois sabe da aversão que sinto pela minha ex-namorada.
Pego a mochila da escola dele e começo a guardar seus desenhos.
— Antes que você surte — Perrot profere, encostando a porta e
colocando as mãos dentro dos bolsos —, seu irmão me ligou, disse que
precisava ir à delegacia, não queria levar o Édou e por isso me pediu para
buscá-lo na escola.
— Não precisa se explicar, Francine — respondo, fechando o zíper.
Ajeito a mochilinha nas costas dele. — Por que não me ligou?
Ela me dá um sorriso.
— E perder a oportunidade de passar a tarde com meu sobrinho? Nos
divertimos muito, não é, Doudou?
O menino abana a cabeça em positivo e freneticamente.
— Tomamos sorvete e tia Francine me levou no parquinho! — diz,
todo alegre.
— Além do mais, Étienne me garantiu que o pegaria de volta antes que
você voltasse para casa e antes que eu entrasse no plantão. O que obviamente
não aconteceu. O que houve com ele?
— Nada — falo, meio ríspido. — Só está relapso, como sempre desde
que… — Faço uma pausa brusca, não querendo tocar no nome da mãe do
meu sobrinho perto dele.
Francine não diz nada, mas noto um brilho indecifrável no seu olhar
quando falo sobre o comportamento negligente do meu irmão. Uma
premonição ruim sobe pela minha espinha e, por algum motivo, sinto que não
deveria ter comentado nada a respeito.
— Agradeço por ter ficado com ele — falo, segurando-o pelos punhos.
— Mas temos que ir agora.
Perrot lança um olhar esquisito a Édouard, que de repente se vira para
mim e pede:
— Tio Pierre, quando vou poder dormir na casa da tia Fran? Eu sinto
saudades de lá.
A pergunta me pega desprevenido, mas demoro apenas um segundo
para compreender o que está acontecendo. Eu disperso por um segundo,
encarando-a com tanta raiva que não consigo dimensionar. O garoto sente
falta de uma resposta e começa a me puxar pela manga.
— Doudou… eu não sei — respondo, não encontrando nada melhor. O
que digo para esse menino? Que nunca mais vai dormir na casa da Francine
porque os dois não têm nenhum grau de parentesco? Como falo isso para ele,
que vê em Perrot uma figura materna? Uma figura que faz falta em sua vida?
Como explico ao meu sobrinho que não temos mais nenhum relacionamento
porque ela me sufocava com ciúmes excessivo e agressões físicas e verbais?
— Terei uma noite de folga na sexta-feira — Francine menciona,
abrindo um leve sorriso de provocação. — Pode mandá-lo para lá.
— Nem sobre o meu cadáver — falo, entredentes.
— Por favor, tio Pierre. Por favor, por favor, por favor, por
favooooooooooooooooooor. — O garoto faz manha.
Inspiro fundo e tento me manter no controle.
— Vamos conversar com seu pai antes, está bem? — digo, mesmo que
as decisões do meu irmão não valham muito mais para mim. A guarda está
comigo, sou eu quem está suprindo tudo o que necessita. Eu sou o
responsável legal pelo garoto, então sou eu quem decide o que é melhor para
ele ou não.
Édouard fecha a cara, parecendo não gostar muito da resposta, mas
aceita.
— Vai ser só uma noite, Pierre — Francine diz, bloqueando a saída. —
Por favor, considere. O menino sente minha falta, como sinto falta dele. Sei
que nós dois não demos certo, mas não o envolva nas nossas mágoas.
Édouard já passou por muito — murmura essa última parte, não querendo
que ele ouça.
Francine fala como se ele fosse nosso filho e fôssemos o casal em
processo de divórcio. Oh, merda, e é o que essa situação realmente parece.
Por quase um ano, nós convivemos com o menino, cuidando dele, provendo
todas as suas necessidades mais básicas. Não gosto de admitir, mas Fran
cuidava bem dele. Nunca o maltratou ou o desprezou. Dói o fato, mas ela
ama o meu sobrinho e parece realmente sentir falta dele.
Ou só está o usando para me manipular e me atingir.
— Já disse que preciso falar com Étienne — reafirmo meu pretexto
fajuto. — Te dou uma resposta em breve. Vem, Doudou… — Eu o puxo
pelos punhos. Francine o segura rapidamente e deixa um beijo na sua
bochecha, dizendo que o ama muito. Édouard devolve o beijo e acrescenta
um abraço na sua despedida, também dizendo “je t’aime beaucoup”
Meu coração aperta enquanto o encaminho até o carro, não podendo
negar a conexão que os dois criaram.
Merde, por que tenho o pressentimento de que isso ainda vai me trazer
problemas?
PIERRE
Quando chego em casa, perto das nove da noite, meu irmão ainda não
está aqui. O filho pergunta por ele e não tenho nada mais o que responder
senão que Étienne está resolvendo alguma coisa. Mas Édouard não é bobo.
Mesmo para a pouca idade, ele entende que o pai está se tornando ausente de
novo, depois de uma leve melhorada. Arquivar o caso de Jeaninne vai trazer
o pior dele de volta. Esquivo-me de suas perguntas, coloco-o para tomar
banho, fazer o dever da escola, jantar e dormir.
Étienne só aparece horas depois, perto da meia-noite, quando estou
terminando de arrumar a lancheira de Édouard. Fico surpreso porque ele não
entra trançando as pernas, então isso significa que está são — ou ao menos
não tão embriagado. Decido não dizer nada. Não vou mesmo bancar a figura
patriarca da família. Ele é mais velho do que eu e é um homem adulto.
— Ele já está na cama? — pergunta, com um sussurro, abrindo a
geladeira e pegando uma jarra de leite. Sinto-o às minhas costas, seus olhos
em mim. Fecho a lancheira e a deixo sobre o balcão.
Minha vontade é de dar uma resposta afiada, mas me contenho e apenas
murmuro um oui. Meu irmão não diz nada, eu tampouco. Não me viro para
encará-lo e ficamos algum tempo em silêncio.
— Queria dizer que você tem razão, mas não tem.
Eu suspiro, cansado de tentar lidar com a atual situação de Étienne.
Talvez eu esteja sendo um egoísta sem empatia, ignorando a dor dele, mas
não aguento mais vê-lo nesse estado, não aguento mais vê-lo se tornando um
estranho para Édouard. Quero ajudá-lo, mas começo a perceber que sem um
auxílio psicológico, minhas tentativas serão vãs.
— Foi só uma sugestão — digo, virando-me para encará-lo. — Quero
te ajudar e não sei mais como fazer isso.
— Uma lápide e uma cova vazia no cemitério não vão me ajudar,
Pierre — murmura, fugindo dos meus olhos. Ele cruza os braços na frente do
peito, como um ato de defesa, como se estivesse vulnerável.
— E o que vai te ajudar, Étienne? — rebato. — Uma garrafa de uísque?
Sua obsessão que te leva a esquecer de manter o básico? Os relapsos com seu
próprio filho? Se não fosse eu na sua vida, o que teria acontecido com
Édouard?
Étienne fecha os olhos, o rosto contorcido em uma faceta dolorida.
— Não vou mais ser assim — sussurra, ainda sem me olhar.
Queria acreditar nele, mas meu irmão já me provou o suficiente que
talvez nunca mais volte a ser o mesmo de sempre. Ao menos não enquanto
não tiver respostas sobre o que aconteceu com a esposa.
— Só… preciso de um tempo agora. Durante todo o último ano — fala,
erguendo as pálpebras e me fitando. Seus olhos claros estão marejados —,
mantive alguma esperança de encontrá-la. — Umedece os lábios, e sinto que
falar isso tortura-o de uma maneira incompreensível. — Eu queria encontrá-
la, mesmo que fosse morta porque… qualquer resposta é melhor do que
nenhuma.
Étienne faz uma pausa longa, e não me atrevo a dizer qualquer coisa.
— Parece que a dor é maior agora, sabe? Depois que você perde as
esperanças, quando a ficha cai e você começa a se conformar que nunca mais
vai ver aquela pessoa. É o que estou sentindo agora, Pierre. — Balança a
cabeça em negativo, fechando os olhos com força. — Sei que estou sendo um
péssimo pai e decepcionando você, me distanciando do meu filho, desistindo
da minha carreira. Mas eu juro… juro que vou mudar, vou seguir em frente,
vou voltar a ser o pai que Édouard merecer ter. Só me dê mais um tempo…
Dou um passo à frente e o abraço. Ele retribui, escondendo o rosto no
meu ombro. Quase posso dizer que sinto toda a energia negativa dele
descarregando sobre mim.
— Não demore muito, Étien. — É meu último conselho. — Senão,
quando der por si, vai ter perdido toda a sua vida.

Mesmo que Étienne não tenha concordado com a ideia, decido colocar
o nome de Jeaninne no mausoléu da família Laurent no Cemitério do Père-
Lachaise, localizado na Boulevard de Ménilmontant, no 20º arrondisement
de Paris, cerca de meia hora da minha casa.
Aproveito para levar flores para minha mãe e colocar uma foto nova, já
que a daqui o tempo desgastou. Acendo uma vela ou outra e rezo pelas almas
delas. Passo algum tempo no cemitério, talvez não mais do que vinte
minutos. Não venho aqui com frequência. Talvez duas vezes ao ano: em dois
de novembro e dez de janeiro, dia dos mortos e aniversário de morte da
minha mãe, respectivamente.
Busco pelas horas. Oito da manhã. Preciso me apressar para começar o
atendimento na clínica e depois para meu plantão no hospital público, às sete
da noite. Puxo a gola do casaco para proteger meu pescoço do vento gelado
que sopra contra minha pele e caminho entre as lápides em direção à saída do
cemitério.
Então, nas mais improváveis das hipóteses, eu a vejo. Está ao longe,
segurando um ramalhete de flores, entre túmulos e mausoléus, em um
corredor apertado onde passam mais pessoas. Juliette está cabisbaixa, posso
vê-la apenas de perfil, ajoelhando-se devagar para colocar as flores sobre a
cripta. Demoro a notar que sorrio levemente para mim mesmo, observando-a.
Forço minhas pernas a continuarem meu caminho, mas não me obedecem e
permanecem no mesmo lugar, meus olhos fixos nela. Talvez eu devesse me
aproximar e dizer um olá, ou talvez não. Tenho medo de parecer que estou a
seguindo quando o encontro é por acaso.
Por fim, consigo forçar minhas pernas e torno a fazer meu trajeto. Já
estou cruzando o portão de saída quando ouço sua voz:
— Doutor Laurent?
Giro lentamente nos meus calcanhares. Juliette está a quatro metros de
mim. Cabelos soltos, maquiagem leve, uma boina, echarpe, casaco e vestido
preto.
— Juliette… — digo suavemente, sem forçar surpresa em minha voz e
sem perceber que a chamo pelo primeiro nome. Ela dá três passos para frente,
vencendo a distância entre nós. — Que bom ver você.
— Está sozinho? — indaga, olhando ao redor.
— Sim. Vim visitar o túmulo da minha mãe. — Não entro em detalhes
sobre Jeaninne. Acho desnecessário no momento.
— Sinto muito — murmura, parando do meu lado por um segundo e
tornando a caminhar. Eu a acompanho, segurando com mais firmeza do que o
necessário a alça da minha bolsa.
— Foi há muito tempo — respondo, abrindo um sorriso fúnebre. — E
você, quem veio visitar?
Ela suspira.
— Meus pais.
Um silêncio denso recai sobre nós enquanto continuamos caminhando.
Deixei meu carro a duas quadras daqui para poder caminhar um pouco. Tento
encontrar algo além do habitual “sinto muito”. Não consigo não pensar que
ela terá de lidar sozinha com a maternidade sem o apoio da mãe. Minha
mente me leva para Étienne, que se virou quando Édouard nasceu, porque a
esposa também não tinha nenhuma figura materna. Na primeira semana, uma
enfermeira do hospital onde meu sobrinho nasceu ajudou nos primeiros
cuidados; depois disso, meu irmão contratou uma para acompanhá-la no
primeiro mês.
Fico pensativo se Juliette vai ter o mesmo. Muito provavelmente, fará o
curso que o governo oferece aos pais para lidar com a dor do parto, a
amamentação, os cuidados com o recém-nascido, mas nada disso supre a
presença de uma figura que estará ao seu lado para ajudá-la de fato. Sorrio ao
me lembrar de Jeaninne chegando no meu apartamento que dividia com
Francine e me pedindo, quase de forma desesperada, para ficar com o menino
porque ela queria dormir, tomar um banho mais longo, ou simplesmente se
sentar no sofá, se empanturrar de guloseimas e assistir a um filme qualquer.
Se eu podia ficar com ele, ficava, sem reclamar, porque sabia que ela
precisava realmente de um tempo.
Odeio pensar que poucas mulheres podem de fato contar com alguém
para esse tipo de coisa. Na maioria das vezes, estão sobrecarregadas,
cumprindo jornada dupla ou tripla de trabalho, mal tendo tempo para comer
sossegadas. Então, me pego pensando nela, na rotina maluca que sua vida vai
se tornar, em tudo que terá de abrir mão, nas noites mal dormidas, em como
terá que se virar para conciliar vida pessoal (se ainda tiver), trabalho e os
cuidados com o filho. Pensar nisso me deixa meio triste.
— O que vai fazer agora? — pergunto e só neste momento percebo que
ela segura uma bolsa transversal contra o tronco, parecida com a minha.
— Ia entregar alguns currículos apenas — confessa, desviando os olhos
rapidamente.
— Quer tomar um café? — ofereço. — Por minha conta. — Ignoro sua
leve contradição sobre trabalho. Uma semana atrás, me disse que deixou a
cafeteria de Dousseau para cuidar do filho.
— Laurent… — Ela suspira, e já sei que vai negar meu pedido, talvez
achando inadequado. — Não quero incomodar.
— Se estou convidando é porque você não me incomoda. Vamos? —
reforço o convite, ignorando meu horário apertado para chegar à clínica.
Juliette aceita e caminhamos até o Café Ménilmontant, na mesma rua
do cemitério e a seis minutos de caminhada. Escolhemos uma mesa para dois
no ambiente externo e nos sentamos um de frente para o outro. Uma pessoa
vem nos atender; ela opta por chocolate quente e um croissant. Escolho suco
e salada de frutas.
— Visita o túmulo dos seus pais com frequência? — pergunto,
retomando nosso assunto anterior.
— Não como gostaria — admite. — Mas hoje me deu aquela saudade
que aperta, sabe? Eu… acho que minha mãe não ia ficar muito feliz com a
minha gravidez, dadas as circunstâncias e… — Para de falar de repente,
como se estivesse revelando algo que não deveria.
Sorrio, fingindo que seu deslize não despertou ainda mais curiosidade
em mim. O que quis dizer com “dadas as circunstâncias”? Já entendi que a
figura paterna é nula, então penso que sua mãe não ficaria feliz com a filha
grávida de um idiota que não assumiu as responsabilidades. Juliette leva
apenas um segundo para consertar seu erro:
— Ainda assim, ela me ajudaria, porque não conseguiria ficar muito
tempo com raiva de mim. É uma pena nunca poder conhecer o neto.
— Se importa se eu perguntar o que houve com sua mãe? — indago,
esforçando-me para não questionar o que realmente quero saber.
— Câncer de pulmão. Morreu aos quarenta e cinco anos, eu tinha
quinze. Ela fumava desde os doze.
— Um mal hábito do nosso povo — pontuo, e ela concorda com um
pequeno sorriso.
— Eu também fumei, por algum tempo. Sei lá, dos quinze aos dezoito.
Consegui me livrar do vício — completa.
— Seu pai também faleceu… — Deixo a frase no ar, com um sussurro.
— Sim. Teve um AVC hemorrágico, três anos atrás.
Nossos pedidos chegam. Ela beberica seu chocolate quente e não deixo
de achar gracioso quando o chantilly faz um bigode nos seus lábios. Juliette
limpa, passando a língua algumas vezes e saboreando o creme ao mesmo
tempo.
— E sua mãe? — Se vira para mim e pergunta.
Brinco um instante com a minha salada de frutas antes de responder:
— Faleceu por negligência médica. Eu tinha uns onze anos quando isso
aconteceu. Meu pai ainda é vivo. Se casou de novo, há uns nove anos, e vive
em Rennes, numa pequena fazenda.
Ela sorri, os lábios rentes à xícara, e bebe um gole do seu chocolate.
Como minha salada de frutas, saboreando o instante de silêncio sobre nós.
Quando ela se manifesta de novo, mudamos de assunto. Gautier me pergunta
sobre meu trabalho e depois, meio resignada, posso sentir, comenta sobre o
trabalho que tinha na cafeteria de Dousseau. Eu sinto que ela sente falta de lá,
da rotina, do trabalho, dos colegas. Sinto pelo modo cabisbaixo que me conta
sobre os últimos anos, pelo tom de voz carregado, o olhar meio perdido,
postura ligeiramente abatida. Ela não deixou o emprego para se dedicar ao
bebê. Tem algo por trás dessa decisão que não está me contando.
— Disse que ia entregar alguns currículos — menciono, terminando
meu suco. Ela come o último pedaço do seu croissant e abana em positivo. —
Mudou de ideia? — questiono-a, e Juliette me olha de soslaio. — Digo… na
semana passada me contou que tinha deixado o emprego para cuidar do filho.
— Ela parece notar a contradição que caiu e faz uma expressão engraçada. —
Está tudo bem — acalento. — Não tem motivos para me contar por que
decidiu deixar o emprego.
A moça sorri, em agradecimento.
— Não sei se vou encontrar outro com facilidade. Na minha condição,
entende? — brinca, mandando olhares para a barriga.
É então que uma ideia absurda passa pela minha cabeça.
— Posso te conseguir alguma coisa.
Ela me analisa, curiosa e resignada.
— Não tem que se incomodar com isso, Laurent…
Em um ato meio impensado, toco sua mão sobre a mesa. Juliette olha
de mim para nosso contato, e demoro a notar a aproximação ousada. Sua mão
está quente, na temperatura de quem a aqueceu com a xícara de chocolate. É
gostoso. Mesmo quando percebo o contato, não me desfaço dele. Não
consigo.
— Vamos pular a formalidade, que tal? Não me importo que me chame
pelo primeiro nome.
— Tudo bem — murmureja, direcionando um rápido olhar para mim.
— Ainda assim, não precisa se incomodar.
— Não é incômodo algum. Pelo que entendi, na cafeteria você cuidava
da parte administrativa, certo? — Juliette concorda. — Há uma vaga no RH
da clínica. É um trabalho fácil, horário comercial, que não vai te exigir muito.
Posso conversar com o responsável pela seleção… Ele me deve um favor,
então, não vejo por que não te indicar.
— E você acha que ele vai aceitar uma mulher grávida que, dentro de
alguns meses, terá de tirar uma licença, e ele precisará fazer outra seleção?
— Em nome da amizade que nós temos, ele vai, sim. Se você quiser,
posso arranjar isso.
Juliette desvia o olhar por um momento, fixando-o no prato vazio e
com migalhas do salgado folhado.
— Eu aceito — diz, um segundo depois. — Não terei nunca como te
agradecer, Pierre.
Aperto seus dedos nos meus.
— Não tem que me agradecer. Deixe um currículo comigo, entregarei
ao meu colega ainda hoje.
Sem esperar muito, ela retira um da sua bolsa, junto com a cópia de
uma carta de recomendação assinada por Bernardo, e guardo na minha bolsa.
Juliette olha a hora no relógio de pulso.
— Tenho que ir. Muito obrigada pelo café e pela ajuda. Muito obrigada
mesmo. — A moça se levanta da sua cadeira e vem até mim, envolvendo-me
naquele seu abraço gostoso e apertado. Eu a sinto inclinar a cabeça levemente
para o lado, roçando o nariz no meu pescoço. Meu coração acelera nesse
instante. Correspondo ao seu gesto, apertando-a contra a mim mais do que
deveria.
— Não precisa me agradecer. Vou pagar a conta e… talvez te dê uma
carona? — sugiro, chamando a garçonete e entregando meu cartão de crédito.
— Vou de metrô, Pierre, não se preocupe. Moro em Montreuil.
Insiro a senha na maquininha e digo:
— Posso te acompanhar até o metrô, então?
Ela concorda com um sorriso. Pego meu cartão e a via do cliente, enfio
tudo no bolso de trás e deixamos a cafeteria. A caminhada até a estação
Ménilmontant é rápida, menos de cinco minutos. Conversamos durante o
rápido percurso, ela me contando que já vai começar os preparativos para
montar o enxoval.
— Espero que esteja certo sobre o sexo do bebê — brinca — porque já
estou planejando montar tudo azul.
— Meninas também podem usar azul — devolvo, no mesmo tom de
brincadeira. Ela ri e é obrigada a concordar. — Já escolheu o nome?
— Ainda não. Estou procurando por algo que tenha algum significado
especial, sabe?
Balanço a cabeça em positivo e faço um segundo de silêncio antes de
soltar:
— Valentin.
Juliette para de caminhar e me olha, curiosa com a sugestão.
— É um nome bonito e significa “forte” e “valente”, como os
guerreiros. E sabe… — suspiro, tornando a andar lentamente, minhas mãos
nos bolsos; ela me acompanha. — De certa forma seu bebê foi forte. — Não
gostaria de entrar no assunto, mas acaba sendo inevitável. — Depois de tudo
pelo que você passou… ele sobreviveu, lutou pela vida dele.
Juliette fica cabisbaixa outra vez, caminhando e olhando para suas
sapatilhas. Engulo em seco, não sabendo se foi certo me intrometer assim e
fazê-la se lembrar do ataque que sofreu.
— Olha… — Tento dizer alguma coisa, mas sou interrompido.
— Gostei da sugestão — alega, virando-se para mim e sorrindo. —
Valentin. Valentin — repete, como se experimentando a sonoridade do nome.
— Vai se chamar Valentin.
Juliette olha ao redor. Chegamos à estação.
— Obrigada, Pierre — agradece, dando um passo em minha direção.
Meus batimentos cardíacos falham de novo, como quando acontece quando
essa mulher se aproxima assim e sei que vai me abraçar. — Fico te devendo
um café — murmura, meio hesitante.
Estou quase findando a distância entre nós dois para eu mesmo abraçá-
la, mas ela, por fim, deixa de resistir e me abraça. Fecho os olhos por um
segundo, concentrando-me no aroma da sua pele, do seu cabelo, da sua
temperatura corporal.
— De rien — murmuro em seu ouvido. “De nada”.
Juliette se afasta aos poucos, mas para quando nossos olhos se
encontram, seu nariz tão perto do meu que posso sentir sua respiração quente.
Então, ela deixa um beijo no meu rosto, meio úmido, sorri pequenino,
despede-se com um murmúrio e segue seu caminho.
JULIETTE
A porta se abre antes que eu possa pôr a chave na fechadura. Adrien
está do outro lado, com um sorriso enorme, calças jeans velhas, camisa
branca com manchas antigas de tinta e um cinto com algumas ferramentas
penduradas à cintura. Olho-o de cima a baixo, curiosa do porquê estaria
vestido assim.
— Bonjour — cumprimento-o, e ele me puxa para dentro, respondendo
com uma alegria que parece atípica do meu primo.
— Bonjour. Onde estava? Acordei e não te vi.
Jogo minha bolsa no sofá e me sento em seguida enquanto respondo:
— Fui ao cemitério visitar o papai e a mamãe. — Meu tom sai meio
melancólico. Sinto saudades deles.
Estou esticando minhas pernas para apoiá-las na mesinha de centro,
mas Adrien me puxa pelo punho, pondo-me em pé outra vez. O desânimo me
acerta com força, quase me arrastando de volta para o estofado. Preciso
descansar. Minha barriga nem realmente pesa ainda e já estou fadigada,
credo.
— Vem, tenho uma coisa para te mostrar — fala, levando-me para o
quarto onde tem dormido.
Pois é. Já tem mais de um mês que tudo aconteceu e ele continua aqui.
Eu já o mandei embora, mas meu primo me conhece bem o bastante para
saber que ainda não estou preparada para ficar sozinha de novo, então se
mudou para cá temporariamente já tem cinco ou seis semanas e não tem
previsão de voltar para seu apartamento. Serei eternamente grata por todo seu
apoio.
Adrien para frente à porta do quarto, que está fechada, e me olha com
um semblante superanimado. Fico contagiada com o jeito dele e estou
sorrindo abertamente sem nem saber o motivo. Ele põe a mão na maçaneta e
vai abrindo devagarinho. Lá dentro, por fim, me revela o motivo por fazer
tanto suspense. Está uma bagunça e já quero matá-lo. Adentro o ambiente,
desviando-me de algumas latas de tintas, madeiras, ferramentas, rolos e
pincéis. A cama dele está desmontada e encostada em um canto, o colchão
enrolado em um plástico improvisado. Viro-me para ele, compreendendo o
que está acontecendo aqui. Fico balançada com sua atitude e, se segundos
atrás queria matá-lo agora, quero colocá-lo em um potinho.
— Adrien… — Nem sei como começar.
Meu primo dá um passo à frente e me toma em seus braços fortes.
— Vamos começar a preparar o quarto para esse pivetinho, tá bem?
Rio contra seu peito duro quando ele chama Valentin de pivetinho. E
rio ainda mais quando noto que já me habituei ao nome do bebê. Um segundo
mais tarde, estou pensando em Pierre, no momento agradável que tivemos na
cafeteria uma hora atrás.
— Você não tem que fazer isso … — murmuro, não querendo parecer
uma ingrata, mas também não querendo me aproveitar da boa vontade dele.
— Não tem obrigação nenhuma.
Ele me afasta e me olha.
— Não estou fazendo por obrigação. Estou fazendo porque quero,
porque você é minha prima, porque esse garotão aqui… — Coloca a mão no
meu abdômen. — É minha família.
— Mesmo assim — cicio, ainda sem jeito com esse seu gesto. — Não
tinha que gastar com isso, Adrien. Você já tem suas despesas e…
Ele cala meus lábios com dois dedos.
— Não tem que se preocupar com minhas finanças. Considere isso
como… — Adrien pensa por um segundo, entortando a boca de um modo
engraçado que sempre faz quando está refletindo. — Presente de padrinho.
— Presente de padrinho? — devolvo, enquanto ele me contorna e pega
uma lixa. — Quem disse que você será padrinho do Valentin? — debocho.
Adrien está lixando a parede da janela quando se vira para mim, o
cenho enrugado.
— Valentin?
— O nome dele — falo, colocando a mão na minha barriga — será
Valentin.
— Lindo nome — elogia. Balança os ombros em seguida,
completando: — E queira você ou não, eu serei o padrinho dele.
— Precisamos arrumar uma madrinha.
O atrito da lixa com a parede, um rec-rec-rec, causa um arrepio
esquisito na minha coluna. Pessoas têm arrepios com mãos molhadas em
plásticos, o risco do giz na lousa, quando o garfo arranha o fundo do prato de
vidro, e eu acabei de descobrir que tenho arrepios com o atrito da lixa. Adrien
raspa o concreto, retirando os resquícios da antiga pintura, com rapidez e
habilidade. O cara é um verdadeiro faz-tudo. Está agachado agora, lixando o
rodapé.
— Não tem nenhuma amiga?
Penso por um segundo e descarto qualquer uma que me venha à mente.
Nenhuma delas têm o mesmo nível de importância que Adrien tem. E
entendam, quero alguém presente na vida do meu filho. Não digo para mimar
com coisas materiais e enchê-lo de bajulações. Quero alguém que se
comprometa com o garoto e o ame de verdade. Como sei que meu primo vai
amar. Com muita dor no coração, penso que ele será a única figura paterna
que Valentin terá. Seco uma lágrima que escorre quase sem que eu perceba e
afasto esses pensamentos bobos. A figura de Bourdieu será a melhor que meu
filho poderá ter. Tenho muito orgulho do meu primo, do seu esforço, do seu
caráter.
— Nenhuma que mereça o posto ao seu lado — respondo,
aproximando-me e me sentando sobre uma lata de tinta azul-bebê. Observo-o
trabalhar e só então me ocorre que: — Espera, hoje não é o seu dia de folga?
Quando Adrien olha para mim, seu rosto, cílios, sobrancelhas e barba
estão cheios de pontinhos brancos. Ele dá de ombros e torna a realizar sua
tarefa de preparar a parede para receber a demão de tinta.
— É, sim.
— Adrien! — advirto-o e tomo a lixa da sua mão. — Você deveria
estar descansando!
Ele consegue recuperá-la com um golpe muito baixo: prende minha
cintura e faz cócegas nas minhas axilas. Caio na gargalhada enquanto a rouba
de volta.
— Se eu não fizesse isso hoje, não sei mais quando faria. Sabe que
minhas folgas não têm dia fixo.
— O Ferdinand te explora, sabia? — rebato, sentando-me novamente
na lata de tinta. — Acho muito injusto você não ter uma folga por semana.
Aliás, antes dessa, quando foi que você folgou? No dia em que foi me ver no
hospital, não é? Adrien, você está ciente que isso está muito errado e…
— Olha, Julie, não precisa se preocupar comigo, certo? — interrompe-
me suavemente. — Tenho um horário flexível com o seu Ferdinand, ganho
muito acima do piso de motorista e recebo regalias porque ele me estima
muito. Não há motivos para eu reclamar.
Decido não insistir no assunto, mas que acho injusto, eu acho.
— Mesmo assim — digo —, você deveria estar aproveitando sua folga
para, sei lá, dormir, fazer nada, ver série, sair com alguma garota. — A essa
última sugestão ele bufa e balança a cabeça em negativo, e eu preciso segurar
uma risada maior. — Ou até se dedicar ao seu doutorado. Não tinha que estar
aqui, fazendo isso por mim.
— Eu durmo à noite; sabe que dificilmente fico sem fazer nada; odeio
séries de televisão; não tenho nenhuma pretendente e não quero nem saber de
doutorado nas minhas folgas; já me preocupo o bastante com ele nos outros
vinte e nove dias do mês. — O maldito tem resposta para tudo. Adrien para
seu trabalho, bate as mãos na bunda para limpá-las e vem até mim de novo,
agachando-se à minha altura. — Se eu não quisesse estar aqui, fazendo isto,
sabe que eu não estaria, Juliette. Então… me deixa estar aqui, pode ser? Me
deixa fazer o quarto do Valentin, porque faço de bom grado.
Meus olhos juntam tantas lágrimas que mal consigo enxergá-lo. Nem
sei o que fiz para merecê-lo na minha vida. Se não fosse meu primo, com
toda certeza ia segurá-lo para mim, porque Adrien é uma raridade nesse
mundo. Deixo um beijo no seu rosto e abano a cabeça em positivo. Ele sorri,
afaga minha bochecha e então volta para a sua tarefa.
— Vou pedir alguma coisa pra comermos. Tem alguma preferência?
Menos chinesa e afins, sabe que eu odeio — digo, sacando o celular e
acessando o aplicativo delivery.
Ele dá uma risada e responde:
— O que pedir, para mim está ótimo. Mas, olhe, deve pedir coisa
saudável, por causa do bebê.
— Mas Valentin está muito a fim de um hamburguer enorme, porção
de batata frita, um refrigerante e de sobremesa um crème brûlée delicioso —
brinco, pedindo realmente hamburgueres, batatas fritas e refrigerante para
almoçarmos.
Adrien gargalha e balança a cabeça em negativo.
— Por que escolheu esse nome? — pergunta, terminando sua tarefa
nesse ponto e passando para a próxima parede. Preciso girar meu traseiro
sobre a lata de tinta para vê-lo trabalhando.
— Sugestão de um amigo — respondo.
Meu primo se vira para mim. A sujeira branca no seu rosto e cabelos o
deixa engraçado.
— Amigo? Que amigo?
Desvio o olhar. Às vezes me esqueço que Adrien me conhece melhor
do que qualquer outra pessoa. Ele sabe que tenho poucos amigos e, se um do
nosso círculo tivesse mesmo dado essa sugestão, eu teria sido mais
específica. Ele inclusive conhece todos os sinais de quando estou mentindo,
ou me esquivando, ou sendo sucinta.
Ele espera por uma resposta, mão na cintura, olhar fixo em mim.
— O doutor Pierre — respondo, torcendo para que Adrien não junte
“a” mais “b”. Mas ele não é estúpido nesse nível. Claro que não.
— O mesmo que cuidou do seu caso? — Agora ele se aproxima e se
senta na outra lata de tinta, de frente para mim, altamente curioso.
— Oui. Ele mesmo. Inclusive, é o obstetra que está fazendo meu pré-
natal na clínica particular. Não mencionei nada para você?
Adrien me dá um empurrão amigável.
— Seu cinismo me admira, sabia? — fala, rindo um pouquinho. Então
o sorriso vai indo embora pouco a pouco. Um silêncio recai sobre nós e sei
que está matutando. — Quando foi que ele te deu essa sugestão?
— Hoje. Nos encontramos por acaso, no cemitério.
Meu primo pestaneja um monte de vezes.
— Tanto lugar em Paris para vocês se esbarrarem, foram fazer isso
justamente no cemitério? — Gargalho sem poder me controlar. Pensando
nisso agora, realmente foi muito esquisito. Ao me recuperar, Adrien me diz
algo que faz minha momentânea felicidade se esvair: — Não acha que é cedo
demais, Julie?
Meus olhos viram para baixo, mirando meus pés sobre o assoalho
forrado com alguns jornais. Noto agora que ele precisa ser encerado.
— Não sei do que está falando … — desconverso.
Ele suspira e pega minhas mãos.
— Está gostando dele, não é?
Abro e fecho a boca, procurando por uma resposta mentirosa e
convincente, não para dar ao meu primo, e sim para mim mesma. Como
posso gostar de Pierre? Tudo bem, ele é uma pessoa que te cativa com
facilidade, tem carisma e é… tão bom. Mas ainda não sei como… como
posso gostar dele, praticamente um desconhecido para mim e sem que
tenhamos tido qualquer contato além da relação médico-paciente, exceto pelo
café mais cedo.
— Acho que sim… — admito com um sussurro envergonhado.
O aperto dos seus dedos se intensifica contra os meus.
— Juliette, você acabou de sair de um relacionamento e…
— Eu sei — murmuro, odiando ter de concordar com o raciocínio dele.
—… e é cedo demais, entende? — completa.
Olho-o com atenção, assimilando suas palavras, estudando meus
sentimentos, tentando entender os batimentos desregulados do meu coração
nesse momento, pensando nele. Adrien tem razão. Há menos de dois meses,
estava envolvida com Antony, tão cega de amor que não conseguia enxergar
o mau-caráter que ele era e sempre foi, e agora estou aqui, tendo de ouvir do
meu primo que é cedo demais para eu estar sentindo qualquer coisa por outro
homem, por um homem que nem sequer conheço, por um homem que é o
meu médico.
— Adrien, não é nada demais — falo com a voz trêmula, não tão
segura da minha frase. — É só…
—… uma palpitação no peito, mãos suando frio, dificuldade em
respirar?
— Isso me parece taquicardia, não amor.
Ele ri, dando-me outro daquele empurrão que só amigos dão uns aos
outros.
— Estou falando sério, Julie. Conheço os sinais porque…
Inspiro profundamente e é minha vez de interrompê-lo:
— É como você fica quando vê a Marjorie?
Pela primeira vez no dia, é ele quem fica desarmado. Seus olhos claros
correm para um ponto qualquer acima dos meus ombros e fica em silêncio.
— Não torne isso sobre mim — responde. — Eu nem deveria estar te
dando esse tipo de conselho. Você é uma mulher adulta, que acabou de sair
de uma relação de merda que inclusive te levou para o hospital. — Sua voz
está firme, meio autoritária e completamente em advertência.
Levanto-me em um movimento brusco, não gostando muito do jeito
que me dirige a palavra. Adrien se ergue junto, segurando meus pulsos com
um pouco mais de firmeza, como se tivesse percebido que foi rude comigo.
— Pierre não é o Antony — rebato, livrando-me do seu toque.
Ele dá uma risada cínica e me observa como se não me reconhecesse.
— Como pode ter tanta certeza? Você nem o conhece!
Quero abrir a boca e dizer para ele parar com sua paranoia e
desconfianças sobre todos os caras de quem me aproximo, mas desisto.
Desisto, porque da última vez não lhe dei ouvidos. Desisto, porque estava
certo sobre Leclerc o tempo todo e simplesmente o ignorei. Pisco uma porção
de vezes, tentando afastar minhas lágrimas.
— Me desculpa… — pede, segurando-me pelos punhos de novo, agora
em um toque mais suave, a expressão mais branda. — Não queria ter gritado
contigo. Eu só… me preocupo, Julie.
Balanço a cabeça em positivo.
— Eu sei, Adrien. Você tem razão. Não conheço Pierre como gostaria.
E o fato de ele ser médico…
— Julie… sabe quantos casos de médicos que abusavam das suas
pacientes existem?
Dou uma risadinha amargurada e encosto o rosto no seu peito.
— Já disse que você tem razão, quantas vezes terei de repetir para
inflar o seu ego?
Ele me afasta e tem um sorriso lindo.
— E eu já te disse que me preocupo com você. — Sua mão acaricia
meu rosto. — Não estou te pedindo para nunca mais se envolver com alguém.
Estou te pedindo para ser cautelosa, para não confiar cegamente, não se
deixar levar pelas aparências e…
— … ficar atenta aos sinais?
— Sim — responde em meio a uma única risada, ainda me acariciando
no rosto. — Fique atenta aos sinais.
Uma moto buzina na rua, anunciando que nosso almoço chegou. Antes
de ir buscar a comida, eu o abraço forte de novo, refletindo todas as suas
palavras e tendo de concordar que tem razão. É cedo demais para deixar
qualquer outro homem entrar na minha vida assim. É pensando nisso que
decido que preciso me manter protegida, manter meu coração protegido,
fechado.
Longe de Pierre.
JULIETTE
Eu me forço a não torcer por um esbarrão nos corredores da clínica.
Prometi a mim mesma que manteria meu coração fechado e protegido, é meu
propósito de vida agora e tenho que me esforçar um pouco — ou talvez muito
— para conseguir inibir meus pensamentos de me levarem até ele.
Como prometido, Pierre me conseguiu uma vaga no RH da clínica onde
trabalha. Não demorou nem dois dias e fui chamada para uma entrevista. Não
que houvesse concorrência. Esperava ver alguém mais velho, mas Gustave
Legrand não deve ter mais do que trinta e cinco anos. Fez-me as perguntas
habituais, querendo saber das minhas experiências profissionais, formação
acadêmica, e fez perguntas idiotas, como por exemplo, como farei para
trabalhar quando o bebê nascer, com quem meu filho ficará e coisas que ele
não perguntaria a um homem prestes a ser pai. Mas tudo bem, é algo, acredito
eu, muito enraizado na sociedade patriarcal, não é mesmo? No geral, ele é um
cara legal comigo e temos nos dado bem durante esses cinco primeiros dias
de trabalho.
Ainda não pude agradecer Pierre pela ajuda. Ele não apareceu na
clínica, ou, se apareceu, não o vi, porque fico trancafiada em um escritório o
dia todo — exceto nos horários de pausa. É por esse motivo que preciso me
repreender por torcer para me esbarrar com ele por algum corredor. O homem
é meu médico, acabei de sair de uma relação abusiva, estou grávida e a última
coisa de que preciso é me envolver emocionalmente com alguém. Eu o verei
em breve, dentro de no máximo duas semanas, quando será minha próxima
consulta, então sossegue, Juliette.
— Gautier, horário de almoço — Gustave avisa, surgindo na frente da
minha mesa. Ergo meus olhos para me deparar com seu jeito casual e
despojado, mas elegante e profissional. Veste um blazer marrom, camisa
social azul e jeans escuros. Os cabelos são pretos, curtos e encaracolados, e
ele opta por um cavanhaque âncora, que lhe dá um charme à parte. — Faça
uma pausa, garota. O primeiro turno já acabou há quinze minutos.
Olho no relógio, do outro lado da parede, e constato o que disse.
— Me concentrei demais no trabalho — digo, levantando-me e
pegando minha bolsa.
— Olha… — diz, e noto certo cuidado na sua voz quando fala comigo.
Gustave molha os lábios mais vezes do que é necessário. — Eu normalmente
almoço em casa, moro aqui perto, mas não deixei nada pronto hoje, então…
— Pausa rápida. — Estou indo a um restaurante. Você quer vir comigo?
Diga não, Juliette!, minha cabeça manda. Eu realmente quero dizer
não, mas ele é meu chefe. No que um “não” acarretaria?
— Não é um encontro ou qualquer coisa do tipo — explica-se. —
Estou te convidando como um amigo e porque notei que você almoça sozinha
na maioria das vezes. O pessoal do RH é meio antissocial mesmo.
— Você notou, é? — indago, não gostando muito do rumo dessa
conversa.
Ele ri, meio desconcertado.
— Não é o que está pensando, Gautier. Você almoça em um restaurante
que fica na minha rota. Foi impossível não te ver sentada no mesmo lugar nos
últimos cinco dias. — Gustave olha para os lados, percebendo como tentar se
explicar só está o complicando ainda mais. — Tudo bem não aceitar, tá? Só
quis ser gentil.
Ajeito minha bolsa no ombro e cedo, afinal, ele só está tentando ser
legal, certo?
— Eu vou. Désolée se pareci desconfiada demais, é só que…
— Não precisa se explicar — interrompe-me suavemente. — Vamos?
Nós deixamos o escritório, Gustave perguntando-me o que tenho
achado do trabalho. Caminhamos lentamente pelo corredor enquanto
respondo que estou gostando, e é verdade. Não tem a loucura da cafeteria de
Dousseau, e não que eu não gostasse da loucura da cafeteria, mas a
tranquilidade do RH está me fazendo bem. Ao sairmos na recepção da
clínica, na ala da ginecologia, meu coração dá aquela disparada quando o
vejo. Pierre está terminando de dizer alguma coisa à recepcionista. Vira-se
em nossa direção, um sorriso surge nele e, ao mesmo tempo, em mim; ele
vem até nós. Troca um cumprimento com Gustave e me olha em seguida,
cumprimentando-me. Leva mais de um segundo para encontrar as palavras do
meu vocabulário e cumprimentá-lo de volta.
— Estamos indo almoçar — Legrand informa. — Quer vir junto?
Pierre nos avalia por um segundo antes de confirmar. Seguimos até um
restaurante local, não muito longe da clínica. Preciso confessar que fico feliz
que ele nos acompanhe, embora não devesse. Minha meta de não desejar esse
homem está falhando miseravelmente. Para minha sorte — ou talvez não —,
ele se senta de frente para mim no restaurante, e Gustave se senta ao meu
lado.
O telefone de Legrand toca de forma discreta enquanto ainda estamos
escolhendo o que comer. Ele pede um segundo, vira-se em sua cadeira e fala
com quem quer que seja, murmurando um merde! antes de finalizar a ligação.
— Peço desculpas — diz, guardando o telefone no bolso interno do seu
blazer —, mas surgiu uma emergência e vou ter que sair. Tudo bem para
vocês?
Quero implorar para que ele não me deixe aqui sozinha com Pierre,
mas nem isso posso fazer.
— Bien sûr. — “Claro”, Pierre responde. — O que aconteceu?
— Minha ex-mulher quer que eu vá buscar nossa filha na escola, parece
que está reclamando de dor no estômago. — Já em pé, pronto a sair, ele me
olha com um semblante de quem está realmente sentido em não poder
almoçar. Bem, eu entendo, estaria sentindo a mesma coisa. — Sinto muito.
Nosso almoço fica para uma próxima oportunidade.
Consigo apenas sorrir e acenar, estranhando o fato de me dizer isso
olhando apenas para mim.
— Não te vi esses dias para poder te agradecer — falo, assim que
Gustave deixa o restaurante, meus olhos presos no menu porque não tenho
coragem de olhá-lo nos olhos.
— Está gostando do emprego? — questiona. Quando dou uma rápida
olhada por cima do cardápio; ele está concentrado no dele, mordendo
levemente a unha do indicador. No instante em que me olha de volta, paro de
encará-lo e torno a me concentrar nas opções de pratos. Ops, pega no flagra.
Culpada.
— Estou, sim — respondo, por fim. — Gosto do ambiente calmo. Fazia
tempo que não trabalhava nessa tranquilidade toda.
— E Gustave… — Pierre menciona o nome do meu chefe com um tom
de cuidado, meio pausadamente, e abaixa o cardápio em suas mãos para me
olhar. — Tem te tratado bem?
— Gustave está sendo ótimo comigo.
— Se ele te fizer qualquer coisa que te desagrade, me avise e eu quebro
o nariz dele — brinca, abrindo um sorriso em seguida.
Gosto do humor de Pierre.
— Por quê? Ele é do tipo idiota? — pergunto.
— Ele é chefe, Juliette. Todo chefe, por mais gente boa que seja,
sempre vai ter o seu momento babaca.
Dou uma risada e preciso concordar.
— De fato. Já fui chefe, sei bem como é.
Ele aponta o dedo para mim e diz:
— Viu só.
Rimos um instante e a atmosfera fica mais leve. Pierre tem um poder
diferente sobre mim. É claro que às vezes sinto o coração bater mais rápido e
as mãos suarem frio quando estou perto dele, mas dura pouco e logo estou à
vontade. Chamamos o garçom, que anota nossos pedidos. Enquanto
aguardamos, falo um pouco sobre os últimos cinco dias e como estou me
habituando bem ao novo ambiente de trabalho.
— Tem uma coisa que está me deixando intrigada — comento,
brincando com o purê de batata um momento antes de comer. — Ainda não
chegou a conta do hospital pra mim. Meu seguro não cobriu tudo, ficou uma
pequena quantia a ser paga, mas a cobrança nunca chegou.
Pierre bebe um pouco da sua água.
— Ele não tem contou? — questiona, fincando o garfo na sua carne.
— “Ele” quem e não me contou o quê?
O homem faz uma carranca de quem está pensando, talvez tentando se
recordar de algum nome.
— Dupont. Emilien Dupont… O dia em que esteve no hospital, para te
fazer uma visita, sabe? Foi quase uma semana depois que você chegou.
Balanço a cabeça em positivo, recordando-me do referido dia. Ele tinha
ido me ver para dizer que não podia fazer nada contra Antony porque
também estava sob suas ameaças.
— Sim, me recordo.
— Então… depois que ele saiu do seu quarto, acabei ficando no
hospital por causa de uma paciente em trabalho de parto que estava
chegando. Enquanto esperava por ela, eu o vi na recepção, pedindo para a
funcionária colocar toda a conta do hospital no nome dele.
A informação me pega de surpresa, até solto minha colher. Eu não
sabia que Emilien tinha feito isso por mim. Por que raios não me contou?
— Você não sabia? — pergunta, mastigando seu pedaço de carne.
Suspiro, respondo e torno a comer.
— Não tinha ideia. Preciso procurá-lo para agradecê-lo pessoalmente.
— Vocês se conhecem do seu antigo trabalho, suponho.
E porque ele era amigo do homem que me espancou, quero adicionar,
mas faço minhas palavras descerem junto com o suco de uva na minha taça.
— Sim. É outro cliente da cafeteria.
— Você tem bons amigos. Bernardo, Emilien, aquela moça dos
girassóis, o seu primo, Marie…
— Marie… — murmuro, e me forço a ignorar que ele sabe da
informação, uma vez que ela só apareceu por lá no dia em que não estava de
plantão. Isso me abre um leque de possibilidades: ou Pierre pediu para que o
deixassem informado sobre mim e minhas visitas, ou esteve no hospital
mesmo fora do seu plantão, o que não seria nenhuma surpresa porque ele fez
isso uma vez. — Você a conhece?
— Sim. Sou ginecologista dela também. — Isso explica como a
conhece, mas não como soube que ela foi me ver. — Todos foram te visitar.
É difícil encontrar amigos assim.
Abro um pequeno sorriso e desvio o olhar para minha comida, já pela
metade. Todos eles foram realmente muito bons comigo. Não recebi
nenhuma outra visita além dessas. Nenhum dos meus colegas de trabalho, ou
dos os antigos — e escassos — amigos da escola com quem ainda mantenho
algum contato. E quer saber? Não os culpo, de verdade. Aquela cafeteria
deve ter virado de ponta-cabeça sem mim, embora a subgerente seja bem
competente e tenha habilidade o suficiente para comandar a equipe. Mas
mesmo assim, cada um deles lá tem o seu trabalho, o seu turno, sua vida e
suas próprias preocupações. Recebi algumas ligações dias depois que recebi
alta, me perguntaram como eu estava, me parabenizaram pela gravidez
(devem ter sabido por Dousseau) e me desejaram melhoras.
— Acho que tenho sorte — digo finalmente, erguendo meus olhos para
Pierre — em ter amigos como eles, apesar de não sermos tão próximos. São
boas pessoas.
— Esse Emilien… — pergunta com cuidado, depois de concordar com
minha última frase. — Ele cobriu seus gastos no hospital… Isso é normal?
Ou você acha que pode ter uma outra intenção por trás?
Acho engraçado o seu posicionamento. E fofo. Talvez tenha uma
nuance de ciúme empregado na pergunta, e isso me dá uma sensação boa, ao
mesmo tempo que esquisita. Ele está preocupado que Emilien seja um
pretendente ou estou interpretando errado? Talvez eu que esteja louca.
— É normal. Dupont tem muitas causas filantrópicas vinculadas ao
nome dele. — Quero adicionar que, provavelmente, ele também fez isso
porque, de alguma forma, se sente responsável pela atitude covarde de
Antony, ou para amenizar um pouco o fato de não poder punir meu agressor
da forma como merecia. — Duvido muito que ele saia por aí pagando contas
em hospitais, mas… nos conhecemos. Pode ser isso.
— Pode ser? — indaga, erguendo a sobrancelha de leve.
Deixo uma risadinha no ar.
— Pode. Não se preocupe que ele não teria outras intenções comigo. Se
tivesse, teria me contado, não acha? — Pierre pondera minha resposta. —
Além do mais, aquele homem deve ser assexuado.
Laurent ri quase de forma exagerada. Precisa beber mais da sua água
para ajudar a descer os pedaços de carne pela garganta.
— Por que você acha isso?
Dou de ombros.
— Nunca o vi com alguém, homem ou mulher. Sabe, se você procurar
pelo nome dele na internet, só vai ver coisas relacionadas a negócios. Não vê
uma fofoca, um escândalo, sempre sozinho. Ele é discreto demais.
— E como sabe disso? — pergunta, meio debochado. — Sinal de que
andou procurando por ele na internet.
Meu rosto enrubesce quase sem perceber. Culpada de novo.
— Bem, não posso negar de que ele é um espécime de homem muito
bonito e atraente.
— Concordo — brinca, o que me faz rir junto dele.
— E quando apareceu por lá na cafeteria, pela primeira vez, eu era uma
moça solteira, com os hormônios à flor da pele. Ele pagou em cartão, então
descobrimos o nome dele.
— “Descobrimos”? — interrompe, ainda com um tom debochado.
— Você acha que eu era a única interessada no homem? Todas as
mulheres daquela equipe ficaram ovulando.
Ele ri um pouco mais e juro: poderia passar o dia ouvindo a risada dele
que eu não reclamaria.
— Então, pesquisamos pelo nome e sobrenome dele na internet, e não
conseguimos descobrir muita coisa e nem o mais importante: status de
relacionamento e orientação sexual. Porque, convenhamos, de nada adiantaria
o homem ser solteiro se fosse gay. Conforme Emilien frequentava a cafeteria,
fui descobrindo um lado muito discreto dele. Nunca o vi acompanhado de
qualquer pessoa que não fossem homens de negócio. Por isso acho que é
assexuado.
— Nunca o ter visto com alguém não significa que seja assexuado.
Talvez muito discreto, mas não assexuado.
— É, tem razão — concordo apenas, preferindo não mencionar minha
teoria de que ele e Marie têm um caso.
— Acho que o conheço de algum lugar — Pierre declara, afastando seu
prato, agora já vazio. — O rosto dele não me é estranho.
— Ele não é nenhuma celebridade de Hollywood, mas é bem
conhecido em Paris. É CEO de uma das maiores empresas de investimentos
do país e tem as filantropias, que sempre estão em matérias de revistas.
Parece que atualmente está produzindo um documentário sobre uma ação que
ele fez na África.
Laurent reflete sobre o que eu disse. O garçom se aproxima de novo e
anota a sobremesa. Se estou louca por uma xícara de café? Sim, mas ouvi
dizer que é bom evitar cafeína na gestação. Verdade ou mentira, prefiro não
me arriscar e prezar pela saúde de Valentin.
— Pode ser, ainda assim tenho a impressão de que o conheço de algum
outro lugar.
Quando nossas sobremesas chegam, mudamos de assunto outra vez.
Dez minutos depois, pagamos a conta e caminhamos de volta à clínica. Ainda
tenho cerca de meia hora até meu segundo turno, então me despeço dele na
recepção da ginecologia, sigo pelos corredores até o escritório e retiro um
livro da minha bolsa para ler enquanto espero dar o meu horário.
Na maior parte do tempo, consigo me concentrar na leitura. Mas em
alguns instantes de distração, minha mente me leva para o almoço com Pierre
e me pego sorrindo quase nem perceber.
Liguei para cá antes de vir e me confirmaram que ele estaria aqui, mas
eu precisava ser rápida porque haveria um jatinho particular o esperando às
sete e quinze. Ele deixaria o prédio perto de seis e meia, e então só retornaria
a Paris dentro de quatro dias. Meu expediente acaba às cinco e parece
bastante tempo, mas talvez não fosse se eu ficasse presa no trânsito caótico
da cidade. Chego ao prédio da Dupont Investimentos beirando seis horas da
tarde.
Minha entrada é liberada sem muita demora. Dentro do seu terno,
elegante como sempre, Emilien vem ao meu encontro, mantendo um sorriso
amigável e receptivo.
— Gautier, que surpresa você por aqui — cumprimenta-me, parando à
minha frente e apontando para um sofá logo ao lado.
Minha conversa com Pierre sobre ele ser assexuado rebobina na minha
cabeça e preciso fazer dois esforços: o primeiro é para não rir que nem uma
louca na frente desse homem, porque seria a coisa mais constrangedora da
minha vida ter que explicar isso pra ele; o segundo é inibir pensamentos de
Emilien transando com a secretária dele justamente nesse sofá. Por que penso
nele transando com a secretária nesse sofá? Nem eu sei. Sofás, CEOs,
escritório e secretárias meio que fertilizam a imaginação, né? Deve ser isso.
Aceito sua oferta e me sento, Emilien pondo-se ao meu lado.
— Vim pessoalmente te agradecer. — Ele me olha sem me entender.
— Por ter pagado os gastos do hospital. Não precisava ter se incomodado.
— Era o mínimo que eu poderia fazer depois que… não pude te ajudar
a colocar aquele desgraçado atrás das grades.
Como pensei. De alguma forma, ele sente por também estar sob ameaça
de Antony e não ter podido fazer nada.
— Nenhuma novidade? — Não evito a pergunta. Mesmo que eu tenha
decidido não fazer nada contra Leclerc, muito por medo, lá no fundo quero
sim que pague por tudo que fez.
Emilien abana a cabeça em negativo.
— Sinto muito.
— Está tudo bem. E mais uma vez, muito obrigada.
Levanto-me, pronta a ir embora. Emilien me acompanha até a porta.
— Você e seu bebê estão bem?
— Estamos ótimos. É um menino — digo, toda orgulhosa, colocando a
mão na barriga. — Valentin.
Emilien me dá um sorriso pequeno.
— Se precisar de qualquer coisa, sabe que pode me procurar, não é?
— Eu sei, sim. Muito obrigada, Emilien. — Preciso me erguer nos pés
para abraçá-lo rapidamente.
Em casa, tiro o tênis, jogo minha bolsa no sofá e corro até a cozinha
preparar algo para comer. Minutos depois, minha campainha toca. Meu
coração dá aquela batida a menos. Adrien tem a chave, então não teria
necessidade de me chamar. São seis e meia da tarde, quem poderia ser?
Engulo em seco, com medo que seja ele. Inspiro fundo e vou atender quem
quer que esteja do outro lado.
— Pierre? — indago, surpresa ao vê-lo do outro lado da minha porta.
Com um sorriso, ele ergue um livro na frente dos meus olhos. Demoro
a notar que é o meu livro. O que ele está fazendo com meu livro?
— Você esqueceu na clínica. Achei que deveria te trazer porque…
poderia querer lê-lo. — Faz uma pausa enquanto ainda estou surpresa demais
com esse homem na minha porta, seus olhos me analisando. — Ou talvez seja
só um pretexto pra te ver.
Meu rosto enrubesce, mas não deixo de apreciar o gesto, mesmo que
seja apenas um pretexto para me ver. Principalmente porque é apenas um
pretexto para me ver. Dou um passo para o lado e convido:
— Quer entrar?
Ele entra, e eu fecho a porta, mantendo-me encostada à parede.
— Não posso ficar muito tempo. Tenho plantão em uma hora — alega,
esticando o livro em minha direção.
— Como sabia que era meu?
Pierre abre as primeiras páginas e o vira em minha direção.
— Tem um autógrafo no seu nome assinado por um tal de Theo
Venturini. Brasileiro, né? Vi as informações na orelha da capa.
Desencosto da porta e tomo o livro em mãos, o primeiro de uma série,
traduzido para o francês.
— Sim. Ele esteve em um evento literário aqui em Paris, uns dois anos
atrás. Eu fui e consegui um autógrafo. Mas me diga… — murmuro, tomada
pela curiosidade. — Como soube que esqueci o livro na clínica?
Pierre dá de ombros.
— Fui me despedir de você, mas não tinha ninguém no escritório além
desse livro na sua mesa, que, aliás, me chamou muita a atenção. Folheei e vi
seu nome nele.
Coro levemente, abraçando o exemplar contra meu peito. A capa é um
pouco chamativa mesmo, que entrega completamente o teor erótico da
história.
— E aí resolveu usá-lo como pretexto para vir me ver?
O homem abre um sorriso desavergonhado.
— Aqui estou eu, não é?
Por um instante, simplesmente não sei como reagir a isso. Pierre está
deixando bastante claro que me deseja, e o sentimento é mais do que
recíproco. Então, me recordo dos conselhos de Adrien, de que é cedo demais,
e tem o fator de ele ser meu médico, então isso soa como inadequado ou
antético, não?
— Aceita um café?
— Vai ficar para uma outra oportunidade. Só vim mesmo te trazer o
livro… como um pretexto para te ver. — E me dá outro do seu sorriso.
Abro a porta novamente. Pierre para ao meu lado. Nossos olhos se
encontram e meu coração dá aquele tranco de sempre quando o assunto é esse
homem. Ele se aproxima e deixa um beijo no canto da minha boca. Minha
respiração falha. Antes que tenha tempo de processar, ele já está caminhando
em direção ao seu carro.
Nos dois dias seguintes, não leio mais o meu livro da mesma maneira,
pensando sempre na atitude de Pierre. Não o vi mais desde então. Ele faz
plantões de doze horas no hospital, em turnos que podem variar nas escalas, e
sua agenda na clínica é elaborada de acordo com sua disponibilidade, o que
normalmente o faz estar aqui duas ou três vezes por semana.
Gustave aparece cinco minutos antes de encerrar meu expediente. Traz
um cupcake rosa, senta-se à borda da minha mesa e arrasta o bolinho na
minha direção.
— Pelo seu aniversário de uma semana na clínica.
Olho para o doce e depois para ele. Pisco algumas vezes, tentando
entender o que isso significa. Pego-o e dou uma mordida, sentindo o chantilly
grudar no meu lábio superior.
— Merci. Você costuma fazer isso com todos os funcionários?
— Na verdade, não — confessa, esticando um guardanapo de papel que
estava enrolado no bolinho e limpando minha boca.
Engulo em seco, pego o guardanapo da sua mão e termino eu mesma de
limpar meus lábios.
— Por que está fazendo isso? — questiono, levantando-me e juntando
meus pertences.
— O bolinho não te dá nenhuma pista? — devolve, abrindo um
pequeno sorriso e roubando um pedaço de papel-rascunho para fazer um
origami. Ele também se levanta enquanto ainda estou pensando no que
responder. — Até amanhã, Gautier — despede-se, deixado o escritório.
Encaro o cupcake mordido e o significado que traz junto. Bem, sou
uma mulher grávida que está mesmo com fome e não recusa nada doce.
Suspiro, termino de comê-lo e vou pra casa, esquecendo por ora o fato de ter
um novo pretendente.
Chego fatigada o bastante para me deitar no sofá e não querer fazer
nada. Tem louça que meu primo deixou de ontem à noite, minha cama que
não tive coragem de arrumar pela manhã e um cesto de roupas sujas a serem
lavadas, mas não quero fazer nada além de deitar, talvez tirar um cochilo,
assistir a dois ou três episódios da minha série e pedir comida italiana porque
não estou a fim de cozinhar.
Meu celular notifica uma nova mensagem do meu primo.

“Estou com meu orientador. Vou chegar tarde. Não esquece de


comer. Coisas saudáveis, tá, Julie? Amo você”.

Adrien e suas preocupações.


Ligo a televisão, arranco os sapatos e me ajeito no sofá. Não demora
até que eu cochile. Desperto sentindo cólicas e com uma umidade estranha no
vão das pernas. Levanto-me, ainda meio grogue de sono, no meio da
semiescuridão, não fosse pela luz azulada da tevê. Já deve estar de noite.
Caminho até o interruptor, a dor aumentando conforme meus passos, e tateio
minhas coxas. Meus dedos ficam úmidos e levemente pegajosos.
Imediatamente um segundo antes de acender a luz e ver sangue em mim, eu
sinto o cheiro, reconheço-o e entro em desespero.
Minhas mãos tremem enquanto tento ligar para Adrien, mas ele não
atende. Tento mais uma porção de vezes e não obtenho resposta. A cólica
aumenta e só um pensamento me ocorre: estou sofrendo um aborto. Meus
olhos enchem de lágrimas só de pensar em perder o meu bebê. Inspiro fundo
e tento ficar calma. Ligo para a ambulância; em vinte minutos, já dei entrada
no hospital e estou em um quarto com mais duas mulheres, uma em trabalho
de parto e outra já com o filho nos braços.
Uma médica me atende. Tive uma ameaça de aborto, mas já fui
medicada. Meu colo do útero não está dilatando, então não corro mais
nenhum tipo de risco. Entretanto, vou ficar duas horas de observação antes de
ir para casa. Aconselha-me repouso, evitar exercícios, trabalhos mais pesados
e sexo (rá!). Pergunto por que tive essa ameaça, e a médica me fala que é
difícil fazer um diagnóstico na maioria das vezes, e este é o meu caso.

“Já terminou o livro? Fiquei interessado e queria ler”


Recebo a mensagem de Pierre algum tempo depois.

“Quem te deu o meu número, Pierre?”

Respondo, não podendo conter o típico sorriso de “adolescente


apaixonada”.

“Seu currículo”

Rio e balanço a cabeça em negativo.

“Que trapaceiro!”

“Devo ficar feliz porque você salvou o meu número?”

“Apenas para fins médicos, doutor Laurent.”

Ele não responde imediatamente como estava fazendo. A resposta vem


cinco minutos depois.

“Fico com a esperança de ter salvado por outro motivo.”

Talvez tenha sido por isso. Então, como meu médico, me lembro de
que preciso informá-lo sobre meu atual estado.

“Pierre, estou no hospital. Desculpe não ter te avisado antes. A


médica que me atendeu me informou que sofri uma ameaça de aborto,
mas passo bem. Vou terminar de receber a medicação, ficar de
observação até umas dez da noite e posso ir embora”.

Uma enfermeira entra no quarto, me pergunta como estou e se a dor


passou. Enquanto respondo, ela ajusta o fluxo do medicamento que recebo
por intravenosa e sai um segundo mais tarde, dizendo que trará o jantar. A
moça em trabalho de parto deixa o quarto para ir ganhar o seu bebê, e a outra
recebe alta depois de cinco dias. Estou sozinha quando recebo:

“Em qual hospital???”

“Saint-Simon. Mas estou bem, Pie…”

Nem termino de digitar quando meu telefone começa a tocar nas


minhas mãos. O nome dele pisca de forma incansável na tela. Atendo,
dizendo com cuidado:
— Alô.
— Por que não me ligou? — pergunta e, apesar do tom de
advertência, está calmo. — Sou seu médico, poderia ter me ligado.
— Tinha sangue escorrendo pelas minhas pernas. Fiquei desesperada e
só me recordei de ligar para o Adrien, que não me atendeu. Então, liguei para
a emergência.
— Fez bem. Estou finalizando meu plantão agora e vou aí te ver.
Quero dizer que não precisa, que não se incomode e nem se preocupe,
mas a verdade é que quero seu zelo, sua preocupação, sua visita. Quero vê-lo.
Então, não respondo nada além de:
— Estou te esperando.
Encerro a ligação no exato momento em que a enfermeira retorna com
uma sopa. Faço minha refeição e depois fico apenas encarando relógio,
contando os minutos para a chegada dele. Pierre trabalha no Necker, então
vai levar bem uma meia hora até aqui. Quando faltam uns cinco minutos para
que ele chegue, meu coração já bate daquela forma rápida e descompassada.
A enfermeira volta para buscar o meu prato.
— Senhor — ela diz para alguém na porta —, não estamos em horário
de visitas. Por favor, se retire.
Viro-me, pensando que é Pierre, mas o homem parado no umbral é o
último que gostaria de ver na vida.
Antony.
PIERRE
— Tirem ele daqui! — Um grito estridente vem do quarto de Juliette.
Posso ouvi-lo ao passo que me aproximo pelo corredor. — Tirem esse
homem daqui! Tirem esse homem daqui! — Corro os últimos cinco metros,
alarmado com os protestos dela.
Entro no quarto em um rompante. Há uma enfermeira e um homem, ao
qual ela pede que se retire, mas ele reluta, tentando dar alguma justificativa.
Juliette está em desespero, pedindo entre lágrimas que o tirem do quarto.
— O que está acontecendo? — pergunto alto, minha voz sobressaindo à
pequena confusão no ambiente. Juliette me olha, tem algum traço de alívio.
— Só vim para uma visita — o homem diz, de forma calma. — Saber
como a mãe do meu filho está. — Um sorriso meio debochado surge na boca
dele, e isso não me agrada. Não me agrada nem um pouco.
Uma raiva esquisita sobe por toda minha espinha. Nunca fui dado a
sexto sentido, mas agora tem alguma coisa me dizendo que esse homem não
é uma boa pessoa.
— Juliette está hospitalizada e precisa de descanso. Por favor, se retire
— exijo, apoiando a mão no seu ombro e apontando a saída.
— E quem é você? — Sua pergunta é presunçosa, atenuada pelo modo
como empina o nariz.
Respondo sem titubear:
— O médico dela.
O homem me avalia de cima abaixo. Vagarosamente, acena em
positivo e olha por cima do meu ombro.
— Certo. Você não me quer aqui, Julie, e tudo bem, entendo suas
razões. — Ela nada responde, os olhos ainda escorrendo lágrimas. — Só
queria saber se você e meu filho estão bem.
— Sai daqui — pede, chorando. — Sai daqui!
Novamente, indico a porta e lhe dou um incentivo. Ele vai, sem
resistência. Dá dois passos e se vira para mim. Avalia-me de novo, não diz
uma palavra, e caminha para longe. Volto imediatamente para o quarto. A
enfermeira tenta me dizer que não estamos em horário de visitas, mas
asseguro que sou o médico de Juliette e que fui autorizado a estar aqui.
Mal me aproximo dela e sou puxado, ela se enrolando nos meus braços,
apoiando a cabeça no meu peito. Demoro um segundo para assimilar sua
aproximação. Acaricio seus cabelos como uma forma de tentar acalmá-la.
— Ele já foi embora, Juliette — sussurro, deixando um beijo em sua
cabeça. — Esse homem não vai mais te incomodar.
Leva algum tempo até ela se acalmar. Quando o faz, pergunto:
— Por que ficou assim? Por que ficou tão apavorada em vê-lo?
Ela se afasta e me faz falta. Seca as últimas lágrimas, em silêncio,
cabisbaixa, talvez envergonhada com alguma coisa. Leva mais alguns
segundos para que obtenha uma resposta:
— Foi ele quem me espancou.
Não sei como recebo essa informação. Dói. Não é uma dor na carne. É
pior. É uma dor na alma, que dilacera e chega no meu coração, atingindo-me
de uma maneira indizível. Não consigo nem mesmo explicar o que sinto
quando Juliette confessa que aquele homem… o pai do filho dela… a agrediu
de forma tão violenta, covarde e desumana. Por Deus no céu, por que ele
viria vê-la? Para infligir mais dor, desespero e medo? Por que não está preso?
Onde está a justiça nesse país?
Nesse momento, não digo nada, apenas ajo por impulso, movido por
uma raiva desconhecida, atípica para mim. Quero ir atrás dele e fazer justiça.
Talvez não com as próprias mãos, mas não posso garantir não dar uns socos
nele. Faço menção de deixar o quarto, cego de ódio, mas ela segura meus
punhos com firmeza.
— Não — pede, notando o que estava prestes a fazer. — Pierre, por
favor, não.
— Por que ele está impune? — questiono, indignado. — Por que não o
denunciou, por que não… — Preciso tomar um pouco de ar antes de
continuar: — Por que inventou essa história de assalto, Juliette?
Ela está chorando de novo quando diz:
— Tive meus motivos, Pierre. Por favor, por favor, estou implorando.
Não mexa com o Antony. Não sabe do que ele é capaz.
— Que motivos? — Quero saber.
Mas ela se nega a falar. Balança a cabeça em negativo, as lágrimas
tornando a descer pelo seu rosto. Seguro sua mão com força e tento acalmá-
la.
— Sabe que pode confiar em mim, não sabe? Para me contar o que
quer que seja. Por que não o denunciou? Esse homem te ameaça?
Com um movimento débil, ela acena em positivo.
— Podemos dar um jeito de…
— Não — responde, com um fiapo de voz. — Você não entende. Não é
só a mim que ele ameaça. Tem mais gente envolvida nisso e não quero que
ninguém mais se machuque ou seja prejudicada.
— Juliette… — Suspiro, sentindo-me incomodado com essa sua
decisão absurda.
— Só… deixe, Pierre. Não quero despertar a fúria daquele homem.
Fico em silêncio por longos segundos, mal percebendo que afago os
cabelos dela, de forma suave.
— Tudo bem. Vamos esquecer o assunto.
Ela fica mais calma conforme sussurra “merci” um punhado de vezes.
Procuro pela médica de plantão, querendo saber do quadro clínico dela. Ela
me passa as informações necessárias, mas nada que Juliette não tenha me dito
nas mensagens: ameaça de aborto, com sangramento, cólica, mas controlado
com medicação, e já passa bem. Prescreveu repouso.
— Alguma possibilidade de ela já poder ir embora? Sou o obstetra dela
e posso cuidar do caso, estarei por perto para o que precisar.
A médica autoriza a alta e eu vou lhe dar a notícia.
— Pode ir pra casa. Vou levar você.
— Você não é do tipo que oferece carona, né? — pergunta, enquanto
tiro o intravenoso. — Tenho a opção de dizer que não precisa e posso ligar
para o Adrien?
— Não, você não tem essa opção — brinco, colando um pedacinho de
esparadrapo onde o acesso esteve. Um segundo de silêncio. — Estou
brincando. — Ajudo-a a se levantar. — Se você não quiser que eu te leve…
Ela se escora em mim, suas mãos pequenas sobre meu tórax. Espero
que não sinta como meu coração bate de forma louca por sua causa.
— Aprecio muito que não tenha opção com você — responde,
erguendo seus olhos para mim.
No carro, insiro seu endereço no GPS, Rue Carnot, em Montreuil, no
intuito de encontrar alguma rota alternativa e fugir do trânsito do caminho
tradicional. A viagem vai durar uns vinte minutos, por causa da distância,
mas será feita com maior fluidez. Ela está cansada, noto isso no seu
semblante e postura.
— Por que não tira um cochilo? A viagem vai ser rápida, mas acho que
você precisa descansar. Te chamo quando chegarmos.
Juliette me dá um pequeno sorriso e encosta a cabeça na janela,
fechando os olhos. Antes de sair com o carro, pego um blazer meu no banco
de trás e jogo sobre seus ombros. Ela sorri, ainda de olhos fechados, e se
agarra à peça.
O trajeto dura dezesseis minutos. Juliette está dormindo. Não cumpro
minha promessa. De um jeito invasivo, pego sua bolsa e procuro pelas chaves
da casa. Ao encontrá-la, abro a porta e volto para buscá-la. Pego-a no colo,
sua cabeça pendendo para o lado do meu peito.
A primeira porta que encontro não é a do seu quarto. Tem um monte de
latas de tintas e ferramentas. A próxima porta parece ser o quarto dela. Tem
uma cama de casal, penteadeira, guarda-roupa e uma poltrona. Deito-a e a
cubro. Sento-me na poltrona e a observo por algum tempo. Meu plantão de
doze horas começa a cobrar o seu preço e sequer me vejo fechando os olhos
vagarosamente, caindo no sono. Não sei por quanto tempo durmo, mas
acordo com a porta se abrindo e uma voz que exclama baixinho:
— Juliette, você já…
Ergo-me imediatamente, e mesmo com a pouca luz no ambiente, eu o
reconheço.
— Doutor Laurent? — Seus olhos vão de mim para a prima, sua
expressão se transformando na mesma hora. Está preocupado. — Aconteceu
alguma coisa?
Deixo o quarto, ele me acompanha. No lado de fora, com a porta
entreaberta, sussurro:
— Teve uma ameaça de aborto, mas já foi controlada e está bem. Só
precisa e repouso e nada de fazer esforço.
— Certeza de que ela está bem? Nós precisamos levá-la a um hospital
e…
Apoio a mão em seu ombro.
— Ela já esteve no hospital, Adrien. Só vim trazê-la.
— Há quanto tempo está aqui? — Sua pergunta tem um tom de
curiosidade.
Olho no meu relógio de pulso. Pouco depois das onze.
— Pouco mais de uma hora. Nós deixamos o hospital umas nove e
meia. Ela dormiu durante a viagem, não quis acordá-la, por isso a trouxe para
cá.
— E achou que seria uma boa ideia passar a noite toda aqui, sentado
naquela poltrona?
— Você não estava — justifico, o que em partes é mentira. — Não quis
deixá-la sozinha, dormindo… Estava esperando você chegar. Juliette
comentou que tem passado algum tempo com ela.
Ele balança a cabeça em positivo, olhando para ela através da fresta da
porta e depois para mim. Há um instante de silêncio constrangedor entre nós.
Em que mundo eu achei que era uma boa ideia carregar uma mulher grávida e
dormindo até o quarto dela e ficar aqui, vigiando-a? Deveria ter ligado para
ele, ela deveria tê-lo informado da sua condição, para que esse momento
embaraçoso não estivesse acontecendo.
— Ela me disse que tentou te ligar, mas não conseguiu — explico. —
Juliette me telefonou, me disse que estava no La Croix Saint-Simon. Como
médico dela, me senti na obrigação de ir até lá — minto. Não foi só “como
médico dela” que me senti na obrigação de ir até lá.
Adrien fecha os olhos e suspira.
— Estava com meu orientador. Fiquei longe do celular para que
pudesse me concentrar na minha tese — justifica. — Ela está mesmo bem?
— indaga.
— Sim. Só seguir as recomendações médicas — afirmo.
Outro segundo de silêncio. Decido que Adrien precisa saber da visita
desagradável do pai do filho dela. Não sei o quanto sabe da verdade, mas
suponho que, ligados e unidos como são, deve saber por inteira.
— O pai do filho dela estava lá quando cheguei.
Ele vira o pescoço para mim, em um movimento tão rápido que tenho a
impressão de que vai deslocá-lo do lugar.
— O que aquele fils de pute do Antony foi fazer atrás dela?
Dou de ombros, tão sedento por respostas quanto.
— Não faço ideia. Juliette também não soube dizer como ele a
encontrou. Mas pondero que não foi até lá com boas intenções. — Adrien me
analisa um segundo, o cenho levemente franzido. Esclareço: — Ela me
contou a verdade. Me contou que foi ele quem… — Tenho dificuldade em
completar a sentença. — Quem a machucou daquela maneira. Não foi assalto.
Foi deliberado. Se esse Antony foi vê-la, depois de tudo que fez, não foi de
boa-fé.
— É claro que não — murmura, olhando por cima do meu ombro, para
a porta entreaberta. — Vou ver o que descubro sobre essa visita dele, como
soube que minha prima estava lá e o que queria. Nem que eu precise ir atrás
desse homem e socar a maldita fuça dele.
Aceno, em silêncio, torcendo para que descubra de que forma aquele
diabo a encontrou e quase implorando para que, se for dar uns socos nele, me
chamar. Um segundo depois, noto que minha presença é desnecessária.
Preciso de um pequeno esforço para dizer:
— Como você já está aqui, vou indo. — Dou um passo para frente, mas
sou impedido.
— Fica. Não é legal carregar uma garota grávida até o quarto dela e não
esperar nem mesmo para se despedir.
— Juliette pode nem acordar hoje — observo.
Adrien abre um pequeno sorriso.
— Pelo jeito terá de passar a noite aqui. — Ele me dá dois tapinhas nos
ombros. — Vou preparar alguma coisa para comermos.
Volto para o quarto e encosto a porta. Ela continua dormindo, então
volto ao meu posto na poltrona e apenas fico a observando em silêncio por
não sei quanto tempo. Adrien aparece minutos depois, com um copo de suco
e dois sanduíches, e nos deixa sozinhos novamente. Acendo a luz do abajur
para comer e, quando estou terminando, ela desperta. Remexe-se na cama e
abre os olhos bem devagar. Localiza-se por um segundo e finalmente me vê.
— Já estamos em casa? — murmura.
— Sim. Não quis te acordar então… te trouxe para cá.
Juliette me olha atentamente por alguns segundos e sorri. Ela se afasta
um pouco na cama, e vejo isso como um sinal. Não sei se entendo direito,
mas resolvo arriscar assim mesmo. Se estiver entendendo errado,
simplesmente me distancio. Contudo, conforme me aproximo e me deito ao
seu lado, de frente para ela, não recebo nenhum protesto. Sinto sua respiração
quente contra meu rosto; estamos tão perto e tão quietos que consigo ouvir as
batidas calmas do seu coração. Jogo a coberta sobre nós.
— Vai me contar por que não denunciou o pai do seu filho por ter te
machucado? — Ela desvia os olhos de mim e permanece em silêncio.
Aguardo uma resposta, que nem sei se terei, pacientemente, inspirando seu
aroma natural e gostoso. — Confie em mim — peço, levando minha mão até
seu rosto e a acariciando. — Confie em mim pra me contar o que aconteceu.
Tudo o que aconteceu.
— Para pensar mal de mim depois?
— Jamais faria isso, ma chère.
— Não até saber o que fiz.
— Você está falando com um cara que já teve sua cota de erros e
vergonhas, que muito provavelmente ainda terá muitas outras pela frente.
Não tenho moral alguma para te julgar pelo quer que tenha feito.
Juliette fecha os olhos, suspira e move o rosto levemente de encontro à
minha mão que ainda a acaricia, apreciando o contato.
— Ele é casado — sussurra, sem coragem de erguer as pálpebras e me
encarar. — Dormi com um homem casado. — Quando aperta os olhos com
força, sei como isso a afeta, de como se arrepende.
Cesso o carinho no seu rosto, não porque de repente sinto repulsa pela
sua confissão, mas porque vou deslizando para outras partes do seu corpo, em
um toque suave, brando, estacionando na sua cintura.
— Continue… — peço, baixinho.
Ela me conta como o conheceu, como se envolveram. Conta-me sobre
as manipulações, como ele a fazia acreditar que a esposa merecia ser traída,
como percebia os sinais sutis de um homem abusivo, mas tapava os olhos
para isso, achando que podia mudá-lo, ignorando todos os conselhos de
Adrien para tomar cuidado, como estava cega a ponto de engravidar de
propósito como uma tentativa desesperada de fazê-lo se divorciar e prendê-lo.
Diz-me que revelou a gravidez e ameaçou contar sobre o caso deles à esposa,
que a reação dele foi agredi-la.
— A moça dos girassóis, que foi me visitar outro dia — menciona —, é
a mulher dele. Ela é uma boa pessoa, Pierre. Eu que fui burra, muito burra,
em acreditar naquele homem.
— Você confiou nele. Ninguém pode te culpar por acreditar e confiar
em uma pessoa, Juliette.
— Nesse caso, podem. Porque ele é casado, eu sabia disso. Sabia que
não era correto me envolver com um homem comprometido e me envolvi
mesmo assim.
— Porque ele te fez acreditar que a mulher merecia ser traída. Não
estou dizendo que foi certo ser amante dele, mas… esse homem te
manipulou, mentiu pra você e ninguém pode te culpar isso. Ele te agrediu. —
Engulo em seco, odiando só de pensar naquele covarde a atacando. — Juro
que ainda não entendo por que não o denunciou.
Há um silêncio breve entre nós. Ela segue de olhos fechados, talvez
envergonhada demais para me encarar. O que é um sentimento tolo. Jamais
poderia julgá-la, não tenho sequer moral para isso. As pessoas são falhas, e
falhar nem sempre significa falta de caráter. Alguém tem muito menos caráter
quando não se arrepende, não aprende com os erros, quando se nega a admitir
que errou. Este não é o caso dela.
— Ele me ameaçou. Disse que se eu fizesse qualquer coisa, terminaria
o que começou. — Ela aperta os lábios, segurando o choro. Minha mão
direita, em repouso sobre sua cintura, desliza para cima de novo, secando
uma lágrima prestes a descer dos olhos dela, o que a faz finalmente me olhar.
— Bernardo ficou louco, disse que daria um jeito de fazer justiça sem me
comprometer, mas tem a Ann-Marie, a esposa do Antony… — Juliette abre
um parêntese breve para me explicar sobre o envolvimento dos dois. — Ela
ia pedir o divórcio e agora também não pode. Por minha causa, entende? Eles
têm medo que Antony pense que a mulher pediu o divórcio porque contei
sobre nós.
— Uma medida de proteção, uma ordem de restrição a vocês duas não
resolveria?
— Pierre, até conseguirmos isso, ele já teria tido uma oportunidade de
nos machucar — argumenta.
Bile amarga sobe pela minha boca ao perceber que muito
provavelmente ela está certa.
— Dupont encontrou um jeito — prossegue. — Descobriu algumas
fraudes que o “amigo” estava envolvido na empresa dele e tínhamos o
suficiente para colocá-lo na cadeia. Mas… — Sempre tem que ter um “mas”
não é? — O desgraçado também o ameaçou. Alguma coisa sobre expor o
passado do Emilien, um passado que pode manchar o sobrenome dele,
atrapalhar os negócios. Não faço a mínima ideia do que possa ser, nem como
descobriu sobre isso, mas a questão é que Antony tem nós quatro sob ameaça
e é por isso que não ousamos denunciá-lo.
Preciso de alguns segundos para processar tudo o que ouvi. O mau-
caratismo desse homem não tem limites, e eu o odeio sem nem mesmo
conhecê-lo. Sinto uma vontade insana de sair daqui, procurá-lo em cada beco
de Paris e enchê-lo de socos. Minha voz está levemente trêmula de raiva
quando pergunto:
— Tem ideia de como te encontrou no hospital?
Sua resposta é um movimento negativo com a cabeça.
— Mas ele não foi lá porque teve uma crise de consciência e de repente
se preocupava comigo e com o filho. Ele foi para me fazer mal, Pierre. Tenho
certeza disso.
Em um rompante, ela está chorando, e no mesmo segundo abraço seu
corpo, apertando-a forte contra mim. Não digo uma palavra, apenas deixo
que chore e sinta que estou aqui e pode confiar em mim. Meus dedos
afundam nos seus cabelos e massageio sua cabeça. De repente, dói em mim
que ela esteja chorando. Meu coração aperta no peito, causando-me uma
aflição quase insólita. Se pudesse tirar o medo, a dor que sente, se pudesse
mudar sua história e reescrevê-la sem Antony na sua vida, não pensaria duas
vezes.
— Você ainda está aqui — murmura, meio sem graça, afundando seu
rosto no meu tórax.
— É claro que estou. Por que não estaria?
Sinto sua mão pequena entre nossos corpos, subindo lentamente até
meu peito, parando na gola da minha camisa e a segurando com um pouco
mais de força.
— Porque sou a vadia que dorme com homens casados… — responde,
afastando-se um pouco para que eu possa vê-la morder o lábio inferior.
— Sabe… — cicio, afundo mais meus dedos nos seus cabelos e trago
suavemente de novo seu rosto para de encontro ao meu peito. — Se te faz se
sentir melhor, eu já traí.
Ela me olha, esperando que eu continue.
— Era mais novo, dezoito ou dezenove anos, e estávamos em um
relacionamento aberto.
Juliette me interrompe:
— Como se trai alguém em um relacionamento aberto? — O tom tem
uma nuance de deboche, salientado pelo sorrisinho que ela abre.
— De muitas formas, acredite — respondo, aproximando meu rosto do
seu. Ela fica séria no mesmo instante com a proximidade, minha boca rente à
sua. — Tínhamos algumas regras — continuo — e a primeira delas era
sempre falar com quem íamos sair. A segunda, não íamos manter com mais
ninguém o que nós tínhamos. A primeira regra não era nem uma questão de
ciúme ou possessividade, até porque se fosse, não estaríamos em um namoro
aberto. Era uma precaução, principalmente com ela. Tinha receio de que
encontrasse algum idiota que pudesse, sabe… machucá-la. Então sempre
contávamos com quem estávamos saindo. Se íamos a um encontro, ela
deixava endereço do local onde estava e o telefone de lá, nome com quem
estava e um horário aproximado de quando chegaria. Eu fazia a mesma coisa.
Seus olhos estão atentos em mim, e percebo que hora ou outra desviam
mais para baixo, talvez para minha boca, ou para o pedaço de pele exposta do
meu peito que os dois botões abertos da minha camisa mostram.
— Logo quando entrei na faculdade, conheci uma garota. Era da minha
turma. Rolou uma química entre nós, Mas não sei, por algum motivo que não
entendo até hoje, não falei que tinha uma namorada e começamos a sair.
— Me deixa adivinhar — Juliette murmura, seus dedos delicados
brincando com a gola da minha camisa. — Não contou para sua namorada
que estava dormindo com essa outra garota?
— Não. Comecei a mentir. Dizia que ia a um lugar, mas ia me
encontrar com ela. Nos vimos algumas vezes, mas deixamos claro que era
casual. Ela não queria nada sério e eu tampouco, porque já estava
comprometido com uma e a amava, e tinha a regra número dois. Não entro
em uma relação amorosa se não estiver apaixonado e não estava apaixonado
por ninguém mais do que senão minha namorada.
— Entendo. — Sua voz continua baixa e é seguida de uma pequena
risada.
— Mas aí — prossigo —, depois de algum tempo, as coisas mudaram.
Comecei a me distanciar da minha companheira, mentir cada vez para ela,
para estar com a outra. Mais ou menos como acontece em relacionamentos
fechados. A questão é que eu não amava aquela garota. Tínhamos uma
atração incrível, o sexo era esplêndido, e se eu não tivesse passado tanto
tempo mentindo para minha namorada sobre o meu caso, teria proposto um
ménage à trois.
Juliette dá outra da sua risadinha acanhada e balança a cabeça em
positivo. Faço uma pequena pausa e aproveito o momento para diminuir
ainda mais a distância entre nossas bocas. Ela está respirando com um pouco
mais de dificuldade agora.
— E o que aconteceu? — murmura. Quero beijá-la.
— Minha namorada descobriu. Quebrei duas das nossas regras, a mais
essenciais do nosso relacionamento. Quebrei a confiança entre nós, eu a traí.
Não tenho motivos para te achar uma vadia por ter dormido com homem
casado, Juliette, porque, em algum nível, fui como o Ant…
Mais rápido do que eu posso ver, ela coloca o indicador sobre meus
lábios.
— Não toca no nome dele e nunca, nunca mais, se compare a ele.
Vocês são completamente opostos, está bem?
Balanço a cabeça em positivo.
— Vocês terminaram depois disso? — Quer saber.
— Oui. E não as culpo. Mereci ficar sozinho. — Passo os dedos pelas
suas sobrancelhas como se pudesse decorar seus contornos pelo meu toque.
— Então, se sente melhor? — pergunto, passando o polegar no canto dos
seus lábios.
— Um pouquinho — brinca, fazendo um gesto com os dedos.
Caímos em silêncio de novo, seus olhos doces presos ao meu. Meu
polegar ainda afaga o canto da sua boca, então desliza para cima, para a
bochecha, detém-se um instante ali e volta, passando pelo lábio inferior,
alcançando o queixo, tocando-a no pescoço e descendo vagarosamente até o
colo. Meus olhos estacionam um instante no seu decote, os seios espremidos
que estimulam meus desejos mais lascivos. Quero tomar sua boca,
experimentar seu gosto, acabar com essa vontade imensa. Torno a traçar o
caminho do meu polegar, desviando-o agora para a direita e alcançando seus
braços despidos, escorregando-o devagar cada vez mais para baixo, seguindo
a curva do seu antebraço até encontrar seus dedos que se desprenderam da
minha gola para encontrar os meus. Entrelaçamos nossas mãos, mantendo o
contato visual.
— Minha maior vontade nesse momento — sussurro — é de te beijar.
— Por que está resistindo? — devolve, umedecendo o lábio inferior.
— Não estou mais — respondo, findando o espaço minúsculo que me
separava dela.
Colo nossas bocas em um movimento suave e úmido. Juliette segura
minha nuca e separa os lábios vagarosamente, sugando-me no mesmo ritmo,
sua respiração ficando irregular. Seguro atrás da sua cabeça, uma porção do
seu cabelo solto emaranhando nos meus dedos, e intensifico o momento,
contornando o queixo delicado, descendo pelo pescoço. Com cuidado, minha
mão livre sobe por dentro da sua camisa e para entre seus seios. Separo-me
dela e, quando a olho, não vejo qualquer indício de que meu toque ousado a
desagrada. Então recaio sobre sua boca de novo e termino o caminho da
minha mão, enfiando-a por dentro do seu sutiã. Rosno e ela geme no encontro
da minha pele com a sua, quente e macia.
Delicadamente, giro meu corpo sobre o seu, mantendo-me nos meus
braços para não pressionar sua barriga com meu peso. Ela pisca uma porção
de vezes, suas mãos escorregando para dentro da minha camisa. Dedilha meu
abdômen, o tórax, os ombros, e então volta, seu olhar atento em mim, o toque
brando, como se quisesse me gravar na ponta dos seus dedos. Ela se detém no
meu cinto, parecendo perceber que os dedos enroscaram na braguilha da
minha calça e, inclusive, ela abriu o botão.
Minha respiração falha. Não quero que desista agora. Quero que
continue, que desça meu zíper e me segure. Mas Juliette não faz isso. Suas
mãos voltam rápido demais para o meu gosto, param na lateral do meu corpo
por um segundo e alcançam minhas costas em seguida. Essa é a segunda
parte em mim que queria senti-la.
O modo como me olha e umedece os lábios, sei que é um pedido. Um
pedido para que a beije de novo. É o que eu faço. Gosto da sua boca, gosto
mesmo, mas quero experimentar da sua pele, tudo de novo. É por isso que
deixo seus lábios e desço mais uma vez, meus olhos ainda atentos aos seus.
Detenho-me um pouco no queixo. No pescoço, a atenção é especial e maior,
principalmente quando noto que a agrada. Sua expressão entrega que essa
parte é seu ponto fraco.
Meus lábios estacionam no limite do seu colo, no “y” entre seus seios.
Meu polegar e indicador estão trabalhando no seu mamilo intumescido
quando, com a outra mão, abaixo um pouco mais seu decote e beijo o peito
esquerdo. Estou prestes a tirá-lo para fora da camisa e sugá-lo até que a faça
gozar só com isso, mas Juliette murmura:
— Pierre… — Ofega, o rosto virado para o lado, negando-se a me
olhar, e só agora noto. — Eu não… — Compreendo antes mesmo que ela
peça: — Pare, por favor.
Giro meu corpo de cima do seu e volto para o meu lugar, deitando-me
de lado. Toco seu rosto e ela me olha.
— Você está bem? — pergunto.
Ela acena em positivo.
— Só não posso agora.
Dou um beijo no canto da sua boca.
— Está tudo bem.
Juliette abre um sorriso pequeno, aconchega-se no calor dos meus
braços, esconde o rosto contra o meu tórax e sussurra:
— Agora sei que posso mesmo confiar em você.
— Sempre, Julie. Sempre.
JULIETTE
Durmo nos braços de Pierre e acordo ainda nos braços dele, meu rosto
contra suas costas despidas e quentes, meu braço contornando seu tronco
forte. Desperto aos poucos, aproveitando que ainda dorme para inspirar o seu
cheiro, apreciar o calor da sua pele, a textura dela, a maciez. Resvalo o nariz
nas suas costas, lentamente, parecendo uma viciada. Rio baixinho contra seu
dorso com o pensamento.
— Me agrada acordar com uma risada sua — ele murmura, rouco.
Nem me preparo psicologicamente para me deparar com seu rosto
quando ele gira na cama, sorrindo.
— Bonjour — cicio, avaliando seu semblante marcado de sono. Como
pode ser bonito inclusive com os olhos inchados de dormir? — Como passou
a noite?
— Bonjour. — Pierre se inclina para mim, sua aproximação acontece
quase como em câmera lenta, e eu fico na expectativa de um beijo que
acontece em seguida. Fecho os olhos e recebo seu beijo com agrado,
retribuindo na mesma medida. Ele tem um sabor tão bom… Seus lábios são
leves, suculentos, úmidos na medida certa. — Dormi bem, e você?
— Bem… muito bem.
Ele me beija de novo, deslizando até um ponto um pouco abaixo do
lóbulo da minha orelha. Circundo seu corpo, abraçando-o de um jeito meio
desajeitado. Não sei se o que aconteceu aqui é certo, e eu já tive minha cota
de coisas erradas por um tempo, mas não consigo me importar o suficiente
com o fato de ter beijado, e quase dormido, com meu médico. Só Deus sabe
como queria ter avançado o sinal ontem, e o que me impediu nem foi o senso
de certo e errado, ético ou antiético.
— Ontem… — sussurro, passando o indicador pelo seu tórax. —
Queria, queria muito, mas não posso…
— Juliette, não precisa se explicar, eu…
— Não é o que você está pensando — interrompo-o, passando o
polegar pelos seus lábios como fez comigo ontem. Ele me dá um olhar
curioso, perdido na minha justificativa. — Ordens médicas — esclareço. —
Preciso repousar, não fazer exercícios intensos e nada de sexo.
O semblante dele muda radicalmente, de sereno está agora apavorado,
os olhos azuis bem abertos.
— Oh mon Dieu! C’est vrai! — “É verdade!” — Me esqueci… me
esqueci completamente. Eu não… — Calo-o grudando nossas bocas. Ele
reluta um segundo, mas corresponde, contornando minha cintura e me
puxando mais para si. — Juliette, je suis désolé… Fui tão descuidado. E sou
seu médico. Como pode o seu médico ter se esquecido disso?
Afago seu rosto, rindo da sua preocupação boba.
— Não tem que se preocupar com isso, Pierre.
Ele suspira, sorri e rola seu corpo sobre o meu, o que nos faz rir. Me
beija uma última vez antes de se levantar. Pega a camisa jogada sobre a
poltrona e se veste.
— Preciso ir para a clínica. Vou avisar o Gustave que não poderá ir por
uns dias e assino seu atestado médico.
Observo seus movimentos, gostando até de como fecha a fivela do
cinto, e esqueço de agradecer sua gentileza.
— Fica para um café da manhã comigo?
— Junto do seu primo? — pergunta. — Não vai ficar um clima
estranho? Ele pareceu não gostar muito da minha presença ontem.
Bato a mão na testa, tendo me esquecido dele completamente. Adrien
me aconselhou e aqui estou eu não lhe dando ouvidos pela segunda vez.
Posso estar contrariando todas as suas advertências nesse momento, mas juro
para mim mesma que vou ficar atenta aos sinais. Fui falha nessa questão com
Antony, mas não o serei com Pierre. Ao mínimo sinal de que é um idiota,
corto nosso contato.
— Adrien é inofensivo. Um pouco preocupado demais, mas inofensivo.
Ele sorri e concorda:
— Tudo bem. Vou esperar no lado de fora, pra você se trocar. — Vem
até mim, se inclina e deixa um beijo rápido na minha boca.
Eu me visto com jeans básico, camisa branca, cashmere cinza e
sapatilhas. Pierre está do outro lado da porta, esperando-me. Na cozinha,
Adrien está terminando de espremer algumas laranjas para um suco. Ele nos
cumprimenta e o agradeço por não alfinetar nenhum de nós dois sobre a noite
passada. Pierre se senta ao meu lado e se serve com suco. Os próximos vinte
minutos é agradável. Meu primo se mantém amigável e fala um pouco do seu
doutorado. Laurent termina seu café da manhã, agradece a hospitalidade e diz
que está no seu horário. Antes, claro, ele passa suas recomendações médicas:
— Precisa ficar de repouso, não invente de fazer esforços
desnecessários.
Nem posso concordar porque Adrien me interrompe:
— Vou garantir que ela não erga nem mesmo o peso de um copo
d’água.
Pierre ri enquanto se levanta, e eu bufo, irritada com seu excesso de
preocupação e cuidado.
— Você não tem que trabalhar? — indago, também me levantando para
acompanhar Pierre até a porta.
— Pedi três dias para o seu Ferdinand. Vou cuidar de você, Julie,
queira você ou não.
Nem vai adiantar discutir com Adrien, então simplesmente o ignoro.
— Ele é um cara legal — Pierre menciona, já no lado de fora. —
Superprotetor?
— Um pouco — admito, não podendo ficar realmente irritada com ele
por conta disso. Faz parte de Adrien ser assim e jamais poderia pedir para que
deixasse de se preocupar.
— Se cuida, tá? — Ele me segura pelos dois braços, abre seu sorriso
encantador e me beija, começando com um beijo suave que se transforma em
intenso em pouco tempo. — Ligue para mim se precisar.
Quando fecho a porta e giro o corpo para voltar para a cozinha, Adrien
está atrás de mim. Sua presença repentina me assusta. Pelo seu olhar, sei que
viu Pierre me beijando.
— Não fala nada.
Ele faz um bico engraçado e depois sorri.
— Não vou dizer nada. Já disse tudo o que precisava dizer. Cabe a você
decidir o que é melhor para a sua vida. Sempre vou torcer por você, Julie —
diz, dando um passo à frente e me tomando em um abraço fraterno. —
Mesmo que escolha errado.
— O que achou dele? — Quero saber. — Quando conheceu o Antony,
teve uma má impressão logo de cara. E o Pierre, o que acha dele?
— Me pareceu uma boa pessoa, mas… as pessoas são mais do que
aparentam ser.
Afasto-me dele e deixo um beijo no seu rosto. Fico grata pela sua
preocupação, pela sua amizade, companhia e apoio.
— Vou ficar atenta aos sinais — garanto, repetindo o que se tornou o
nosso mantra.
— Já sei que aqui e aqui — ele coloca a mão na minha barriga e depois
no lado esquerdo do meu peito — está tudo certo. — Sorri um pouquinho e
completa: — Mas e aqui, Julie? — pergunta, tocando na minha têmpora. —
Depois que aquele desgraçado foi te aterrorizar, como você está?
Meu coração se aperta ao me lembrar do terror psicológico que aquele
homem me causou só de aparecer no meu quarto de hospital. Estava indo tão
bem, cuidando da minha vida, do meu bebê, seguindo em frente, fazendo
minhas consultas psicológicas uma vez por semana para lidar com isso tudo,
aí aquele demônio aparece para trazer de volta as lembranças mais terríveis.
Na hora, fiquei muito desesperada e comecei a chorar no mesmo instante.
Mas quando Pierre atravessou a porta um minuto depois e o colocou para
fora, senti um alívio enorme, embora continuasse histérica. Ele me abraçou,
acariciou meus cabelos e me acalmou. Acalmou-me a ponto de eu confiar
nele e contar tudo. Não sei que efeito é esse dele sobre mim, mas fico bem do
seu lado, com a sua presença. Esqueço de qualquer dor, medo ou trauma.
— Bem, na medida do possível. Pierre chegou na hora certa e o
colocou para fora. Antony não me perturbou mais do que alguns segundos.
Adrien acaricia o meu rosto, em um movimento suave, exibindo um
sorriso conciso e o olhar perdido, embora esteja fixo em mim. Tem alguma
coisa se passando nessa sua cabecinha.
— Sabe como ele te encontrou, o que foi fazer lá?
— Não para as duas perguntas — respondo.
Não consigo entender como me encontrou. Talvez esteja me vigiando?
A simples ideia revira o meu estômago e me deixa com aquele medo
irracional de novo.
— Essa ameaça de aborto… — menciona, afastando os dedos da minha
pele e descendo os olhos para meu abdômen. — Você estava bem, não
estava? Fez algo além da sua rotina, chérie? Não sei. Passou por algum
estresse? Fez algum esforço? Tomou algum remédio? Isso. Remédio! Alguns
deles podem ser abortivos.
— Não, Adrien. Não passei por nenhum estresse, nem fiz esforço e
nem tomei remédio sem prescrição.
— E comida? Bebida? Você e sua mania de ingerir porcarias. Pode ter
comido alguma coisa que desencadeou isso. Ou beber. Tem bebido ou
fumado?
Quero dar na cara dele. Adrien sabe que estou em abstinência até de
café porque não quero correr riscos de fazer mal ao meu bebê. Até parece que
ia fumar ou ingerir bebida alcoólica a ponto de causar um aborto.
Nego de novo, dizendo que tenho me alimentado bem nos últimos dias
e que a única bobagem que comi foi um cupcake que Gustave me deu.
— Quem é Gustave Legrand? — Quer saber, erguendo uma
sobrancelha.
— Meu chefe.
Há um instante em que ele fica refletindo alguma coisa.
— Por que ele te deu um cupcake, assim, do nada?
— Não foi do nada, Adrien — explico. — Era para “comemorar” meu
aniversário de uma semana na clínica. Perguntei se ele faz isso com todo
mundo e disse que não. Está na cara que era só o seu modo de flertar comigo
e demonstrar que está interessado.
Meu primo fica reflexivo de novo e só o que quero saber é o que está se
passando nessa sua cabecinha nesse momento. Mas provavelmente ele acha
que o cupcake causou minha ameaça de aborto. Como se um docinho fosse
capaz disso. Adrien sendo exagerado só para não perder o costume.
— Olha, não deve ter sido nada que comi — argumento. — A médica
que me atendeu disse que é muito comum ameaças e abortos espontâneos até
a vigésima segunda semana de gestação. No primeiro trimestre é ainda mais
normal. Já estou melhor, chéri, não tem que ficar procurando chifre em
cabeça de cavalo, oui?
Ele me dá um pequeno sorriso antes de se dar por vencido e dizer,
encerrando o assunto:
— Tudo bem. Vá descansar, chérie.
Não sei por qual razão, mas algo me diz que Adrien ainda não está
satisfeito.

— Apesar do susto há duas semanas — Pierre diz em tom baixo,


passando o transdutor pela minha barriga na sala de ultrassom —, está tudo
bem com o Valentin.
Suspiro de alívio, obrigando meu coração a bater em ritmo mais
devagar. Não que ele não tivesse me assegurado o mesmo semana passada,
quando apareceu na porta de casa às dez da noite e me arrastou para cá,
desarmou o alarme da clínica, utilizou-se dos privilégios do seu cartão de
acesso e fez um ultrassom. Confirmou que estava tudo bem com meu bebê e
me deu cem por cento de certeza de que é um menino.
— Sua décima oitava semana de gestação. — Limpa o gel da minha
barriga. — Já entrou no quinto mês. Parabéns, mamãe.
Pierre me ajuda a me levantar da maca. Minha mão repousa sobre seu
tórax forte e nossos olhos se encontram por um segundo. Ele olha rápido ao
redor, certificando-se de que estamos sós. Meu horário da consulta seria
apenas às quinze, mas ele me trouxe antes, bem antes, durante nosso horário
de almoço, quando nem a recepcionista nem sua assistente estão.
Confirmando que estamos sozinhos, ele se inclina e me beija, e eu não penso
duas vezes em retribuir. Não o vejo desde a ameaça do aborto durante a
primeira semana, apesar de ter me ligado todos os dias para garantir de que
estava repousando como deveria. Quando minha licença médica de uma
semana acabou, voltei a trabalhar, mas não nos encontramos, até ontem
pouco antes do final do horário de almoço, por causa da sua agenda. Fiquei
feliz em vê-lo e nem fiz questão de esconder. Acho que ele sentiu o mesmo,
por isso me tomou noutro daquele beijo suave que fica forte e me tira o
fôlego.
— Estive pensando… — fala com certo cuidado, suas mãos deslizando
até a minha cintura. — Queria te levar para jantar hoje à noite. Não tenho
plantão e devo sair daqui umas sete ou sete e meia.
— Tem que ser hoje? — indago, enfiando a mão dentro do seu jaleco.
Ele fica bem de jaleco, fica sexy.
— Você não pode?
— Tenho o curso de maternidade às sete no Saint-Simon. Podemos ir
depois ou deixar para quando estiver menos ocupado.
— Não me importo de irmos depois. Você me liga e vou te buscar.
Pode ser?
— Combinado.
Ergo-me nos pés e beijo seu rosto. Vamos juntos até a lanchonete da
clínica e comemos um sanduíche natural. Conversamos um pouco e ele quer
saber se Antony não tornou a me incomodar (como se não tivesse me
perguntado o mesmo nos últimos quinze dias, todos os dias), e digo que não.
Adrien descobriu como ele me encontrou e quais as intenções tinha comigo,
que, segundo descobriu, não era de me machucar fisicamente, apenas me
causar mais terror para garantir que eu não contasse nada à esposa. Babaca,
nem tem ideia de que a mulher já sabe há muito tempo. Inclusive encontrou
alguém que lhe dá o devido valor e só não se divorciou ainda por minha
causa, para assegurar que eu fique bem e aquele crápula não desconte em
mim suas frustrações e acessos de raiva. Bernardo não está no país, soube que
viajou a negócios para o Brasil e ficará lá por algum tempo, o que só reforça
que não devemos fazer nada, uma vez que Ann-Marie está sem a proteção de
Dousseau e sob o mesmo teto do marido violento. Emilien me telefonou
outro dia, disse que ainda não conseguiu nada para que possamos denunciá-
lo, então seguimos sob suas ameaças e de mãos atadas.
Perto de vencer o intervalo, ele se despede de mim nos corredores,
segurando-me um segundo pelas mãos e me olhando com um sorriso. Ele vai
para seu consultório e eu sigo meu caminho até o escritório. Gustave está
aqui, falando com alguém no telefone e dando os últimos ajustes sobre algum
evento. Acomodo-me em meu lugar e reorganizo meu espaço antes de
retomar os trabalhos. Legrand encerra a ligação e, do seu lugar na mesa, me
dá um sorriso de cumprimento.
— Algum problema? — pergunto, apenas para não ficar um silêncio
esquisito sobre nós. Gustave não agiu mais de forma estranha comigo,
trazendo-me cupcakes para comemorar os aniversários desde que comecei a
trabalhar aqui.
— Nenhum. Só terminando de combinar os preços com um buffet. —
Ele mexe em uma papelada sobre sua mesa e questiona em seguida: — Vi
que você entrou no consultório do Pierre. — Gustave não é nem um pouco
observador, pode acreditar. — Sua consulta não era às quinze?
— Conversei com ele, perguntei se podia me atender no horário do
almoço, sabe? Pra não atrapalhar meu trabalho — minto. — Tem três
semanas que comecei a trabalhar aqui e já tirei uma de licença. Não acho
justo pegar outro atestado.
— É um direito seu — menciona, ainda concentrado nos papéis e na
bagunça da sua mesa. Não sei como consegue se concentrar e produzir com
tanta coisa desorganizada ao seu redor, mas consegue. — Não tem que ter
receio por causa disso.
— Merci — agradeço, e ele finalmente me olha, dando-me um sorriso
pequeno.
Gustave não diz mais nada, torna a se concentrar no seu trabalho e eu
faço o mesmo.

Sinto-me deslocada quando entro na sala do curso na ala da


maternidade. Tem cerca de dez grávidas, todas com seus respectivos
companheiros. Ótimo. A única sozinha por aqui. Paro no umbral da porta,
observando o ambiente branco, espaçoso, bem-iluminado; há algumas
cadeiras dispostas em fileiras, a grande maioria vazia. Quero virar nos
calcanhares e ir embora. Estou pensando seriamente nisso quando o
palestrante chama minha atenção e pede que eu entre. Aproximo-me e me
acomodo mais ao fundo.
O curso começa no horário. O palestrante faz uma introdução rápida
sobre os temas abordados durante as palestras. Passa bem quase uma hora
quando a parte prática começa, e é nesse momento que me arrependo de ter
vindo, porque fico completamente excluída desse primeiro instante. Os pais
estão cingindo a barriga das esposas e conversando com os bebês. O curso
preza pelo vínculo paternal e maternal desde o útero e estimula isso.
Meus olhos juntam lágrimas. Pensei em pedir ao Adrien para vir, ao
menos para não ficar sozinha nesse momento e porque ele será a única figura
paterna que Valentin terá. Teria pedido isso, mas não achei justo, porque já
tem feito demais por mim, e eu o vi estirado no sofá, dormindo. Rio comigo
mesma em pensar que ele tem dormido naquele sofá duro porque resolveu
montar o quarto do bebê, mesmo que ainda falte relativamente muito para o
nascimento. Não seria justo interromper seu momento de descanso e pedir
que viesse.
— Gautier — o palestrante murmura, ao meu lado, e eu volto ao mundo
real. — Sei que está sozinha, mas você pode…
— Ela não está sozinha. — Pierre surge de repente ao seu lado, o
semblante meio esbaforido, sorriso cansado de quem correu uma maratona.
Olha-me, mas estou surpresa e assustada demais com sua presença aqui
para confirmar, negar ou qualquer outra coisa. Estou grata, feliz, eufórica,
confusa… Tudo ao mesmo tempo. Mas é o que ele diz em seguida que mexe
comigo, mexe tanto comigo que não sei dimensionar nem o que significa
exatamente.
— Pierre Laurent — apresenta-se. — Sou o pai do bebê e companheiro
dela. Desculpe o atraso. Trabalho.
— Sem problemas, Laurent. — O palestrante explica de novo a
atividade e nos deixa sozinhos.
Pierre coloca a mão sobre minha barriga e me olha.
— Por que disse isso? — sussurro, abraçando seu pescoço e mirando
seus lábios curvados. — Por que disse que é o pai do Valentin?
Antes de receber uma resposta, ganho um beijo cálido no canto da
boca.
— Porque eu não podia dizer a verdade. Ia soar estranho, não acha? —
Pensando bem, ia soar mesmo. “Oi, eu sou Pierre, o obstetra dela, e vim
acompanhá-la no curso”. Estranho, muito estranho.
Rio para mim mesma e ele me acompanha. Sua testa encosta na minha
e penso que não tinha por que Pierre vir. Nenhuma obrigação. Mas aqui está
ele, segurando minha barriga e a acariciando devagar e suavemente, os olhos
amáveis nos meus. Isso demonstra o afeto que tem por mim, o quanto
realmente se importa.
— Não precisava ter vindo, Pierre — murmuro, sentindo o nó na
garganta, as lágrimas nos olhos. Ele tem feito por mim mais do que de fato
mereço.
— Não vim porque precisava, vim por vontade própria. — Seu polegar
me faz um afago na bochecha. — Vim porque gosto e me importo com você.
— Tenho a impressão de que minha respiração falha por um segundo, mas
nem tenho tempo de processar isso direito porque ele avança e me beija de
novo.
Ao separar sua boca da minha, se ajoelha, o rosto na altura do meu
abdômen. Coloca a mão por dentro da minha blusa e posso sentir sua pele
levemente gelada na minha. Prendo o ar quando ele aproxima seus lábios e
deixa um beijo na minha barriga.
— Ei, garotão — Pierre murmura, movendo as mãos devagar sobre
meu ventre. — A gente ainda não se conhece e espero te conhecer em breve.
Para isso você precisa parar de nos dar sustos como nos deu semanas atrás,
combinado?
Sorrio e deixo uma lágrima descer pelo meu rosto. Nunca vou entender
por que ele está fazendo isso, nunca vou poder agradecê-lo por esse
momento. Enquanto conversa com Valentin, de repente sinto medo. Medo de
que criemos esse vínculo e depois simplesmente nos afastemos. Penso
seriamente nessa possibilidade por longos segundos, quase me esquecendo
dele ajoelhado, falando com meu filho, criando vínculo com meu filho,
afagando minha barriga como se esse bebê… fosse dele também.
— Pierre… — chamo-o, já na intenção de pedir para pararmos com
isso, pelo bem de nós dois, mas um movimento dentro de mim me
interrompe. Surpresa, olho para baixo, ainda sentindo pequenos chutes.
— Está sentindo isso? — pergunta, erguendo os olhos para mim. Pela
expressão no seu rosto, está tão emocionado quanto eu.
— Estou. Valentin… está chutando. Está se mexendo.
— É a primeira vez? — Há um grande sorriso nele.
Abano a cabeça em positivo e cubro a sua mão com a minha,
apreciando todo esse conjunto: minha mão sobre a dele, a dele em meu
abdômen e os movimentos do bebê, que cessam um segundo depois. Quero
sentir de novo. Quero essa conexão, esse vínculo entre nós três.
Pierre começa a falar outra vez, contando que viu um quarto sendo
preparado para sua chegada, que ele terá a melhor mãe do mundo e um primo
de segundo grau de quem vai gostar muito. Não demora quase nada até que
Valentin volte a se mexer dentro de mim. Fica fácil compreender.
— Ele gosta da sua voz — constato.
Laurent não diz nada, os olhos fixos na minha barriga, sentindo os
movimentos do bebê, que fica quieto outra vez. Como se para testar minha
teoria, torna a falar, e, como eu já tinha suposto, os chutes voltam.
— Ele gosta da minha voz. — Pierre ri, não só com alegria, mas com
uma genuína emoção que se manifesta em cada traço do seu rosto. —
Valentin gosta da minha voz — repete, pondo-se de pé e segurando meu
rosto com firmeza. Sem que eu espere, me beija ao mesmo tempo que sorri e
afaga meu rosto. — Agora sua vez de conversar com o bebê.
Faço o mesmo, contornando minha barriga, desejando fortemente que
Valentin se mova mais um pouquinho para poder senti-lo. Digo que estou
ansiosa para conhecê-lo, ver seu rostinho, acariciar sua cabecinha e deslizar
por todo seu corpo pequeno e delicado, brincar com seus pezinhos,
mãozinhas, a barriguinha. Menciono o Adrien, que será seu padrinho, que
também está querendo conhecê-lo e que serão bons amigos. Até já posso
imaginá-lo levando-o para brincar no playground perto de casa. Começo
animada, falando de todos os planos e de como vai ser um bebê amado, mas
daí… quando Valentin não se mexe ao som da minha voz, fico preocupada,
frustrada e levemente triste. Por que só com Pierre?
Sinto um toque no meu queixo e ergo a cabeça para encontrar os olhos
azuis e suaves.
— Não fique assim. Ele vai mexer independente se eu falar com ele ou
não. Paciência. — Beija minha testa, minha bochecha e meu queixo. Agarro-
me a isto e abano a cabeça em positivo, apoiando minha cabeça no seu peito.
Seu aroma bom me invade e me sinto confortável e protegida nos
braços dele. Eu me sinto diferente perto de Pierre. Não gosto de pensar na
comparação, mas é inevitável, porque me ajuda a distinguir meus
sentimentos, mas a verdade é que nunca me senti assim com ninguém.
Qualquer homem que tenha passado pela minha vida, só por Antony eu tive
algo mais profundo. Não quero afirmar que o amei, não mesmo, porque
machuca no fundo da minha alma pensar só por um instante que amei uma
pessoa como Leclerc.
Mesmo com esse desgraçado que despertou isso em mim, não é nem de
longe como me sinto perto de Pierre. Não mesmo. Com Antony, fazia planos
bobos de vê-lo separado da mulher e ser assumida, queria viajar para todo
lado sem ser às escondidas, morar com ele. Com Pierre, não penso em planos
bobos, ou em ser assumida, ou em viagens, ou em sexo. Penso em como
gosto do toque dele, da voz, do sorriso, da risada, do cuidado que sempre teve
comigo, do modo como me beija, como me olha, da forma como meu
coração dispara quando penso nele ou quando estamos juntos e como fico
toda balançada só com o fato de ele estar por perto.
Com outros caras, havia tensão sexual, e não reclamo da tensão sexual
porque a adorava, mas nunca passaram disso e sei disso agora, sei porque,
por mais que eu queira dormir com Pierre, não se trata apenas de dormir com
ele, se trata de deitar ao seu lado e abraçá-lo, de tocar suas costas, dedilhar o
seu rosto, sentir a aspereza do cavanhaque, deslizar os dedos até seus cabelos
e afundá-los, sentir a maciez dos fios pretos (ou seriam castanho-escuros?
Preciso perguntar), e apreciar o seu corpo rolando sobre o meu antes de me
dar um beijo, se levantar e ir cumprir sua rotina. Com Laurent, não é só o
desejo sexual, é como fico atraída por cada gesto simples, é como adoro cada
detalhe dele, é como cada parte de mim parece amar cada parte dele.
Volto ao mundo real quando o palestrante dá novas instruções no curso.
Ele distribui algumas bonecas usando fraldas e nos pede para irmos até o
fundo da sala, onde há alguns trocadores disponíveis.
Ótimo, vamos aprender a trocar fraldas. Preciso mesmo disso.

— Não sabia que você sabia trocar fraldas! — protesto, caminhando


pela calçada enroscada aos braços dele cinco minutos depois que o curso
acaba.
Foi bom. Aprendemos a trocar fraldas (eu aprendi, uma vez que ele já
sabia. Como, não faço ideia), depois tivemos uma aula rápida sobre a
amamentação, detendo-nos pouco sobre a parte teórica e informações de
como amamentar o bebê pode fazer muito bem e focando mais na parte
prática. Depois, falaram sobre o parto, as dores, contrações e conselhos de
procurar o hospital só quando as contrações vierem a cada cinco minutos. A
cada nova informação, Pierre sussurrava um “já sei disso e poderia ter te
ensinado”. E torci, cada maldito segundo, para que se inclinasse em meu
ouvido e sussurrasse de novo e de novo e de novo. Porque amo o som da voz
dele.
— Não é só da saúde de mulheres que entendo — responde, puxando
suavemente minha cabeça para deitá-la em seu ombro.
— Como pode saber trocar fraldas?
Ele fica em silêncio por alguns segundos, como se hesitasse em
responder.
— Tenho um sobrinho.
— Faz muito sentido — admito e espero que me conte mais sobre sua
vida.
Só nesse momento noto que não o conheço de fato. Sei que trabalha no
Necker, na clínica e acabei de descobrir que tem um sobrinho. E… é tudo.
Não sei onde mora, se tem mais irmãos… Mon Dieu! Não sei nem da idade
dele direito. Então, tenho uma sensação que me acerta com a força de um
raio, dando-me um insight. Paro de caminhar de repente, atingida pela minha
falta de cuidado.
— O que foi? — Pierre pergunta.
— Você é solteiro, não é? — questiono, como se só agora me desse
conta de que posso outra vez estar me envolvendo com um cara
comprometido. Não deveria realmente fazer esse tipo de pergunta porque é
ridícula. Um cara comprometido que está se envolvendo com outra pessoa
não vai contar a verdade.
— Por que está me perguntando isso? — Ele está confuso.
— Só responde. Sinceramente, só responde.
— Se eu não fosse solteiro, não estaríamos juntos, Juliette.
— Minha experiência diz o contrário — respondo, um pouco mais rude
do que gostaria. — E você também já traiu, se lembra?
Imediatamente um segundo mais tarde, me dou conta da besteira que
disse e tapo a boca, como se pudesse voltar atrás nas palavras ditas. Dou um
passo à frente, murmurando um “désolée”, e ele recua. Vejo a decepção em
seu rosto e me sinto uma estúpida.
— Não sou o Antony. Posso ter, em algum momento da minha vida,
cometido erros semelhantes, mas absolutamente não sou ele. Eu errei,
Juliette, nunca escondi isso, mas não te contei para você usar contra mim.
Sou uma idiota. Eu me afasto dele, caminhando para longe, sentindo-
me a pessoa mais estúpida da face da Terra. Como pude dizer isto para ele?
Pierre me contou para que me sentisse melhor, para que não me sentisse uma
vadia suja, e é assim que retribuo? Sendo uma vaca julgadora?
Eu mal ando cinco metros quando ele me agarra pelos braços e me vira
em sua direção. Só noto que choro quando ele seca minhas lágrimas
teimosas.
— Entendo você, está bem? Não quer cometer o mesmo erro e,
acredite, Julie, também não quero errar de novo. Te garanto que sou solteiro.
Quero dizer… talvez não, porque estou comprometido com você.
— Me desculpe — peço, desesperando-me mais ao invés de me
acalmar. — Não queria ter dito aquilo, saiu sem nenhuma intenção de… —
Pierre me abraça, com força, beijando o pedaço de pele abaixo do meu lóbulo
da orelha. Não diz uma palavra, só fica assim, envolvendo meu corpo com
seus braços até a minha histeria passar.
— Passou, Julie, está tudo bem agora.
— Você me perdoa?
Pierre se afasta, acaricia meu rosto, o vento parisiense balançando meus
cabelos.
— Claro que perdoo. Agora, a gente pode esquecer a nossa primeira
discussão de casal e ir comer? Estou morrendo de fome.
ADRIEN
Eu vou matar aquele desgraçado, penso, enquanto caminho pelos
corredores da clínica. Vou matar o maldito do Antony, não só por ter ido
atazanar a vida da minha prima, mas pela covardia de ter atentado contra a
vida dela. Ainda não me conformo que Juliette não tenha o denunciado, e se
ele não apareceu com a cara arrebentada foi porque tive que ter muito
autocontrole para não o procurar e enchê-lo de socos. Maldito desgraçado dos
infernos. Esforço-me para manter a calma. Não posso demonstrar nenhum
tipo de nervosismo para essa conversa com Gustave.
Ele já está na porta do escritório quando chego. Fui anunciado ainda na
recepção e orientado a seguir por aqui quando Legrand autorizou. O homem
estica a mão para mim para me cumprimentar. Juliette me falou dele duas
horas atrás e, confesso, fiquei desconfiado. A garota estava bem e, de repente,
tem uma ameaça de aborto, depois que ingeriu um cupcake que ele deu? Pode
ser só paranoia minha, mas prefiro investigar a fundo e ficar mais tranquilo.
Ou socar a cara do maldito.
— Gustave Legrand — apresenta-se, apertando minha mão com força.
Ele é bonito e parece bem-apessoado dentro do seu jeans passado,
camisa de gola e malha azul-marinho. Entretanto, minha experiência diz que
aparência não define caráter de ninguém.
— Paul Garnier — invento um nome qualquer. Não quero que ele
saiba, de alguma forma, que tenho parentesco com Juliette, nem que ela saiba
que estive aqui.
Legrand indica sua sala e eu entro, sentando-me em uma cadeira frente
à sua mesa extremamente bagunçada depois que me oferece. Ele se põe no
lado oposto, joga um pouco da bagunça para dentro de uma gaveta e
finalmente me olha.
— A recepção me disse que gostaria de falar comigo. Desculpe se é
indelicado da minha parte, mas, nós nos conhecemos?
— Non. Vim por indicação. — O franzir das suas sobrancelhas se
acentua mais. — Temos um amigo em comum, ele me disse que você está à
procura de um arquiteto, para fazer um projeto, então… Vim para podermos
conversar a respeito.
Gustave se ajeita na sua cadeira, levando a mão até o queixo com um
cavanhaque bem-aparado e o afagando. Ele me analisa um instante antes de
perguntar:
— Um amigo em comum? Que amigo em comum?
Bem, é agora. Se Gustave der um sinal de que conhece aquele
desgraçado, vou prensá-lo contra a parede, enchê-lo de socos e depois
perguntar se, a mando do maldito, colocou alguma coisa no bolinho que
pudesse ter causado a ameaça de aborto. Isso mesmo, bato e depois pergunto,
porque é dessa maneira que esse tipo de gente deve ser tratada. Sem dó, sem
piedade, sem compaixão.
— Antony Leclerc — menciono, atento e estudando a reação de
Legrand diante o nome.
O homem franze ainda mais as sobrancelhas e balança a cabeça em
negativo.
— Désolé, mas não conheço nenhum Antony Leclerc. E, além do mais,
também não estou precisando de nenhum projeto.
Retiro o celular do bolso, acesso uma foto qualquer de Leclerc que
achei na internet e mostro para ele.
— Tem certeza?
Gustave pega o telefone da minha mão, observa a foto e novamente
nega.
— Não, não o conheço. Está certo disso? De que ele disse que eu
estava precisando desse tipo de serviço e que somos amigos?
Tomo o celular e o guardo no bolso outra vez.
— Sim, foi o que Antony me disse. Gustave Legrand. Me deu o
endereço daqui e tudo mais.
— Sinto muito, Garnier, mas não sou esse homem que está procurando.
Seu amigo deve ter se confundido.
Fico em silêncio durante um segundo, encarando-o, procurando alguma
indicação nas suas palavras, na sua postura, na sua feição, de que está
mentindo para mim. Contudo, Gustave está mesmo confuso com isso tudo,
com cara de quem não está entendendo nada. Não, ele realmente não conhece
o traste do Antony. Talvez o episódio do bolinho tenha sido só mesmo o que
Juliette alegou: um flerte.
— Tudo bem — digo, por fim, esticando a mão para uma despedida. —
Desculpe se te incomodei.
— Não é nada.
Da clínica, decido ir para o Saint-Simon. Mesmo que Legrand tenha me
passado um pouco (mas só um pouco) de confiança, ainda estou
encasquetado com essa ameaça de aborto e esse abençoado bolinho. Se ele
colocou algo de propósito no cupcake para provocar algo assim, com toda
certeza um exame detectaria a substância.
Procuro pela médica que atendeu minha prima e, por sorte, ela ainda
está de plantão. Identifico-me como primo de Juliette e relato minhas
desconfianças de que a ameaça de aborto foi provocada por alguma
medicação que possam ter colocado em um bolinho que ela comeu, mas a
doutora me informa que nos exames não foi identificado nenhuma substância
ou medicamento que possa ter induzido um aborto A doutora me informa o
mesmo que Juliette: que esse tipo de coisa é muito comum e que não
identificar o motivo desses sintomas também é bem normal.
Deixo o La Croix Saint-Simon com o peito mais leve, mas ainda com
uma dúvida na cabeça. Já está claro que Gustave não conhece Antony e nem
colocou qualquer coisa abortiva no cupcake a mando do maldito. Foi algo
natural e comum, conforme a médica do caso me assegurou. Ainda assim,
não consigo entender como ele a encontrou, como exatamente sabia onde
minha prima estava.
Tenho vontade de procurá-lo na galeria que comanda e enchê-lo de
porrada e perguntas. Só não faço isso porque conheço bem homens como ele.
Antony vai revidar, mas não será em mim. Vai me atingir pegando no meu
ponto mais fraco, ameaçando Juliette e Valentin. Jamais os colocaria sob esse
risco sendo que posso evitar.
Estou chegando em casa quando vejo uma das vizinhas de Juliette
terminando de descarregar algumas sacolas de um táxi. São bastante e me
parecem pesadas. Corro oferecer minha ajuda. Com um sorriso caloroso,
madame Clement agradece e me entrega as sacolas, liderando o caminho até
sua casa. Descarrego suas compras sobre a mesa.
— Muito obrigada, mon chèr — a senhora agradece, já retirando um
bule para preparar um café, colocando um sorriso agradável no rosto. — Não
se encontram muitos jovens dispostos a ajudar hoje em dia.
— Não precisa me agradecer, senhora Clement. Posso ajudar em algo
mais?
— Talvez apenas ficar e tomar um café com esta velha? — pede,
enchendo o bule com água.
Abro um sorriso pequeno.
— Aprecio sua oferta, mas não posso ficar. Tirei uns dias de folga para
cuidar da minha prima.
A senhora se vira na minha direção depois de colocar a chaleira no
fogo.
— Ah, eu soube. Vi a ambulância parada aí em frente. Pobrezinha.
Como ela está? Tudo bem com ela e com o bebê?
— Sim. Foi apenas um susto. Os dois estão bem.
Clement coloca a mão no coração, em um gesto de alívio.
— Ah, que bom. Foi um belo de um susto, não é? O pai do bebê ficou
tão apavorado quando contei!
Arregalo os olhos com essa informação e nem me vejo dando passos
para frente, desviando-me da mesa no centro da cozinha e chegando mais
perto da senhora.
— O que disse?
Ela me encara ligeiramente assustada como o modo como me aproximo
e o tom raivoso da minha voz.
— O pai do bebê dela — reafirma. — Ficou assustado quando soube.
— Leclerc esteve aqui ontem? — indago, tendo de controlar a raiva que
sobe pela minha espinha. Ah, mas aquele maldito ousou mesmo vir procurá-
la? É claro que sim. Antony não é bobo, sabe que ela vive sozinha, é uma
mulher grávida que facilmente infligiria medo.
— Oui. Uma meia hora depois que a ambulância a levou. Eu estava
aqui preparando o jantar e o vi apertando a campainha. — A senhora aponta
para a janela acima da pia, que dá uma visão direta para a porta de entrada de
Juliette. — Fui informá-lo que não havia ninguém em casa, ele disse que era
o pai do bebê da senhorita Gautier e perguntou se eu sabia onde ela tinha ido.
Me senti na obrigação de informar que ela tinha sido levada para o hospital.
Fecho os olhos e inspiro profundamente. Então foi assim que ele soube,
mas não explica como a encontrou. Muito provavelmente ligou nos hospitais
da redondeza perguntando por ela e não demorou a descobrir que estava no
Saint-Simon. Então foi lá aterrorizá-la.
— Eu fiz algum mal? — pergunta, voz levemente trêmula de
arrependimento.
— Sei que só quis ajudar, madame Clement. Mas aquele homem não é
boa pessoa. Fez muito mal a Julie no passado.
— Sinto muito! Se soubesse, jamais teria dado essa informação. Ele foi
atrás dela no hospital, lhe fez algum mal?
Abano a cabeça em negativo e explico que o médico de Juliette chegou
a tempo de expulsá-lo e impedi-lo que a perturbasse. A senhora fica
inconsolável por alguns minutos, sentindo-se mal por ter feito o que fez.
Como se ela tivesse mesmo culpa. Estava apenas tentando ajudar. Jamais
poderia julgá-la ou culpá-la por isso. Consigo acalmá-la e dizer que está tudo
bem.
— Mas se esse homem aparecer por aqui de novo…
— … eu aviso — ela completa por mim.
Pego um pedaço de guardanapo e uma caneta e anoto meu telefone.
— Não importa que horas sejam. Me ligue se esse homem vier
incomodar minha prima. — Ela acena em positivo e, por fim, deixo sua
residência.
Ao invés de ir para a casa ao lado, tenho um assunto a resolver. Mando
uma mensagem para Juliette, dizendo que vou demorar um pouquinho mais,
mas que chego em breve. Aconselho que se mantenha de repouso e não coma
muitas besteiras. Tirei três dias para cuidar dessa cabeça-dura, só que antes
preciso tirar algumas coisas a limpo e garantir a segurança dela.
Isso significa que preciso confrontar o Antony.

Ele sorri como se fôssemos amigos há décadas, atrás da sua mesa, em


pé, e tudo o que quero é empurrá-lo pela janela e vê-lo espatifado na avenida
lá embaixo. Eu me seguro para não concretizar esse desejo porque homicídio
continua sendo crime na França e o único criminoso aqui é ele.
— Que surpresa a sua visita — diz, erguendo uma sobrancelha.
Concentre-se, Adrien. Concentre-se.
Forço um sorriso e encosto a porta atrás de mim, sentindo meu coração
bater feito um louco.
— Não diga isso como se estivesse realmente pasmo com minha
presença — rebato, minhas palavras saindo entredentes.
Antony não se dá ao luxo de tirar esse maldito sorriso cínico do rosto e
indica a cadeira à frente da sua mesa para que eu me sente, mas recuso. Não
pretendo demorar e isso não é uma visita social.
— Juliette me disse que foi perturbá-la no hospital.
Ele coloca a mão no peito, num sinal que está ofendido com o que
disse. É mesmo um hipócrita desgraçado.
— Fui apenas saber como ela e meu filho estavam. Não a vejo desde…
— … que a espancou? — interrompo, completando sua sentença.
O sorriso nele vai desvanecendo aos poucos, seus olhos fixos em mim
marcados por um traço de raiva e loucura. Antony volta a se sentar na sua
cadeira, remexe em alguns papéis sobre sua mesa, talvez à procura de alguma
coisa, e me responde:
— É uma acusação muito grave. Tem alguma prova disso? — pergunta,
erguendo os olhos para mim outra vez.
Aperto o maxilar com mais força e fecho os punhos, precisando contar
até dez para me manter no controle.
— Nenhuma. Mas eu sei. Julie nega até a morte que você fez isso,
insiste na maldita história do assalto, mas não acredito, nunca acreditei. —
Dou passos para dentro até chegar à mesa dele. Espalmo contra a superfície e
inclino levemente o corpo para frente, encarando-o seriamente. — Essa sua
visita, e como minha prima ficou perturbada, só confirmou minhas suspeitas
de que você a machucou daquela maneira covarde.
— Se insiste nisso, por que não me denunciaram? — pergunta, abrindo
outro do seu sorriso de triunfo com uma pitada de ironia.
— Você sabe bem por quê. Mas escute, Antony, ainda vamos descobrir
um jeito de fazer justiça sem que isso ameace a integridade da Julie ou a
imagem de Dupont.
— Estou ansioso para isso, Bourdieu — responde, pleno de si. — Se
era só isso o que veio fazer aqui, pode ir embora. Tenho mais o que fazer.
Endireito minha postura e, movido por um ataque de raiva, derrubo
tudo o que está na mesa dele. Papéis, canetas e toda sorte de objetos de
escritório voam direto para o chão. Ele se levanta do seu lugar, enfurecido, e
vem até mim, os olhos vermelhos, a face contorcida em uma raiva
demoníaca, mas, antes que possa me golpear, eu o seguro pelo colarinho.
— Me diz o que foi fazer atrás da Julie — ordeno. Meu coração bate
nos ouvidos e estou a um passo de socar a cara dele. — O que queria com ela,
verme desgraçado? Me fala!
Antony se livra da minha pegada e dá um passo atrás, sem se abalar
com minha reação raivosa.
— Já disse, fui saber se eles estavam bem.
Dou uma risada lunática.
— Esse seu cinismo e falsa preocupação não vão funcionar comigo. —
Cerco-me dele outra vez, deixando nossos rostos próximos um do outro. —
Ou me diz o que foi fazer atrás dela, que intenções tinha, ou juro por Deus
que você só sai daqui em cima de uma maca.
Ele abre outro do seu sorriso cínico e, espalmando contra meu peito,
empurra-me para longe.
— Não gosto disso, Adrien. Deveria tomar cuidado com o que fala para
mim e como fala comigo. Já tenho sua prima sob ameaça. Não ligo em
colocar você na lista também.
Meu sangue borbulha e por um fio não fico irracional, prestes a agir
como um Neandertal. A sorte de Antony é que ele sabe que pode ameaçar a
integridade de Juliette e isso é o bastante para me manter na linha. Juro que
usaria meu réu primário nesse maldito se ao menos valesse a pena. Mas nem
isso vale.
— Como sou um cara legal, vou responder à sua pergunta e relevar a
sua ameaça — diz, contornando sua mesa e sentando-se outra vez. — Minha
mulher está estranha. Mal conversa comigo, evita me olhar, anda distante.
Desconfiei de que Juliette abriu a boca e contou sobre nosso caso, sobre a
gravidez, talvez até sobre o… — Faz uma pausa, me olha atentamente e sorri
de um jeito perverso. Por Deus, por que não tenho um gravador aqui e agora?
— Você sabe. Enfim, fui lá para pressioná-la um pouco e tirar minhas
dúvidas.
Sinto meu corpo tremer ligeiramente. Trinco os dentes, como um meio
de manter o controle das minhas ações. Está cada vez mais difícil ficar aqui e
não arrebentar o nariz de Antony.
— Juliette não contou nada — digo, tenso e rígido no meu lugar,
contendo toda a minha fúria. — Ela só quer tocar a vida, Antony. Minha
prima não quis nem te denunciar, e, sabendo que você é uma ameaça à
integridade dela, não teria coragem de contar qualquer coisa à sua esposa.
— Só fui me certificar disso. E é bom que ela continue de boca
fechada.
— É bom — digo, aproximando-me da mesa outra vez — que você
pare de perturbá-la. Deixe minha prima e o bebê dela em paz. Se eu souber
que a procurou de novo, escute bem, não vou pensar duas vezes em socar a
sua cara, mesmo que isso me leve para a delegacia.
Antony me dá um sorriso desprezível e não espero por uma resposta
sua. Vou embora antes disso.

Sobressalto, meio desajeitado no sofá, quando meu telefone toca.


Localizo-me um instante antes de procurar pelo aparelho por baixo das
almofadas, ainda sonolento pelo cochilo. No visor, o nome do seu Ferdinand
pisca como um aviso de que não vou poder voltar a dormir. Atendo
rapidamente, tentando disfarçar a voz de sono.
— Garoto, sei que seu expediente já acabou, mas estou preso em uma
maldita reunião, não tenho ideia de quando vou sair. Pode ser logo, como
pode demorar, e Marjorie está desembarcando em Paris.
Meu coração dá um salto dentro do peito quando suponho que pedido
ele vai me fazer. Apesar de trabalhar com Ferdinand, o contato com a filha
dele é bastante raro, muito porque ela vive mais fora do país e tem um
apartamento independente na cidade. E mesmo quando esses “contatos”
acontecem, ela nunca, nunca repara em mim. Porque não faço parte do seu
mundo, porque sou completamente invisível para ela. Juliette já me
aconselhou a dar um passo em vez de ficar com essa minha paixão platônica
desde que era um pivete, e não é nem por falta de coragem, mas nas raras
vezes que a vejo a mulher, sempre está ocupada demais digitando no
telefone, ou conversando no telefone, ou acompanhada de uma amiga, da
mãe, do pai.
— Preciso que vá buscá-la para mim. Posso contar com sua ajuda?
Abano a cabeça em positivo. Digo, quando me recordo de que ele não
pode ver meu gesto:
— Claro, monsieur Chevalier. Estou indo agora mesmo.
Ele agradece e pede para que eu passe na sede da sua empresa depois
que entregar a filha para assinar um cheque de abono da semana. Não tenho
do que reclamar do meu emprego. Ferdinand me paga muito acima do piso da
categoria, recebo horas extras muitas vezes em dinheiro, e toda semana ele
me dá esses abonos. Trabalho feito um condenado? Trabalho. Mas não são
todos os funcionários que têm os privilégios que eu tenho com o patrão.
Talvez isso seja porque ele me viu crescer, empregou minha mãe que trabalha
na família até hoje. Talvez tenha algum tipo de carinho especial por mim e
por esse motivo sempre que preciso, me ajuda. Como ter comprado o
apartamento em que moro e descontar do meu salário, me dar férias duas
vezes no ano e folgas quando preciso, como aconteceu quinze dias atrás que
pedi três dias para cuidar da Julie.
Levanto-me rapidamente e desamasso a roupa do corpo. Ainda estou de
uniforme porque cheguei extremamente cansado, mal escutei o que Juliette
me disse, despenquei no sofá e caí no sono. Falando em Juliette, eu a procuro
pela casa, mas tudo que encontro é um bilhete escrito a punho.

“Fui ao curso de maternidade no Saint-Simon. De lá, vou jantar


com Pierre. Não precisa me esperar nem cozinhar pra dois. Se cuida. Te
amo”.

Amasso seu bilhete, procuro meu quepe e o encaixo na cabeça assim


que encontro. No carro da empresa, que fica comigo porque meu contrato
exige que esteja à disposição do patrão a qualquer hora, inspiro fundo duas
vezes antes de dar a partida e seguir para o aeroporto. Confiro se o lugar está
todo em ordem quando estaciono. Estofados e assoalhos limpos, kit de
higiene básica no porta-luvas, carregador de celular, um telefone
“descartável” com chip, alguns euros, caneta esferográfica e piloto, papel e
cartão de crédito no nome de Ferdinand. O homem mantém esse pequeno kit
em caso de alguma necessidade.
Pego uma folha sulfite e risco nome e sobrenome da minha passageira
com a caneta piloto. Dez minutos mais tarde, estou na área de desembarque,
segurando a plaquinha — “Marjorie Chevalier” — e a esperando. Não sei por
que estou nervoso dessa maneira enquanto a espero, tendo de trocar o peso
das pernas a cada dois minutos e sentindo meu corpo suar frio por baixo do
terno. Mantenha a calma, Adrien, exijo de mim mesmo. É só a filha do meu
patrão. Por quem sou apaixonado desde os meus treze anos, sete anos mais
velha do que eu e que não faz ideia que existo. Nada demais.
Ela surge dois minutos depois e prendo a respiração sem nem perceber.
Está usando uma calça meia-canela, preta e justa, camisa social de seda rosé,
saltos. Seus cabelos castanhos estão repicados na altura da mandíbula e ela
fala e ri ao telefone à medida que se aproxima.
Não morre, Adrien.
Ela me vê e sorri. Eu me mantenho no meu lugar, sem mexer um
músculo, sem expressar qualquer emoção.
— Senhorita Chevalier — mesuro, fazendo um movimento rápido de
cabeça quando se aproxima.
Ela sorri bem pequeno, sorriso de educação, e acena, passando por
mim, sem deixar de falar ao telefone, arrastando sua mala de rodinhas.
Apresso-me a liderar o caminho até o carro. Abro a porta de trás para ela, que
entra, deixando a bagagem no lado de fora, que eu coloco no porta-malas.
— Oi — diz, assim que saio com o carro. Olho pelo retrovisor, e
Marjorie está com a mão tampando o microfone do celular, levemente
inclinada para frente. — Se importa em me levar para um lugar antes de me
deixar em casa?
— Estou à sua disposição, senhorita. Posso te levar aonde quiser.
Marjorie sorri, passa as coordenadas de onde devo levá-la, se recosta no
banco do carro e torna a conversar com quem quer que seja do outro lado da
linha. Esforço-me para não prestar atenção na sua conversa, mas não consigo,
principalmente porque está falando sobre o ex-noivo.
— Elizabeth, já te disse que não vou atrás do Emil. — Marjorie suspira,
olhando para fora. Ela entreabre os lábios, na intenção de dizer algo, mas
desiste. Alguns segundos se passam até que consegue se pronunciar: —
Escuta, sei que o maior sonho da sua vida é me ver casada com seu filho, mas
você sabe que ele não me ama. Talvez nunca tenha amado. Está na hora de
superarmos isso e seguirmos a vida.
Só um idiota é capaz de não amar essa mulher. Olha só para ela. É
bonita, bem-sucedida, independente, acho até que é carismática. Paro de
observá-la pelo espelho e me concentro no trânsito, afastando meus
pensamentos porque preciso admitir que nem eu a conheço direito.
— Não sei — responde, o olhar ainda perdido na visão noturna
passando pelo lado de fora. — Sabe que amei seu filho um dia, mas isso foi
há… sei lá… dez anos? Não sei se ainda sinto o mesmo. — Silêncio de novo,
e isso parece me atormentar.
Sempre soube que minhas chances com essa mulher eram nulas, mas
agora, com essa dúvida pairando sobre a atmosfera, essa dúvida se ainda ama
o ex-noivo ou não, minhas chances caem para menos cinquenta.
Suspiro e aperto o volante, precisando me conformar em amar essa
mulher em segredo, em sufocar essa paixão platônica. Combinando um jantar
com a tal Elizabeth, finalmente encerra a ligação. Uma quietude densa recai
no ambiente, mas talvez só eu esteja sentindo porque Marjorie parece serena
e natural demais enquanto mexe no celular.
— Ex-sogra casamenteira? — solto, sem nem perceber.
Porra, porra, porra!
Se minhas mãos não estivessem no volante, com toda certeza estaria
me dando socos na cabeça. Mas por que diabos fui fazer uma pergunta
estúpida dessas? Isso é suicídio empregatício. Ela vai saber que estive
prestando atenção na sua conversa, vai ficar furiosa porque estou me
intrometendo na sua vida particular, vai delatar minha postura para meu chefe
e, venerada pelo pai como ela é, vou perder meu emprego.
Adrien, você é um idiota.
Fito-a pelo espelho retrovisor, já esperando pela bronca. Nunca tive
uma oportunidade de falar com ela e, quando tenho, é para foder ainda mais
com a minha vida. Seus olhos suaves me encaram de volta, uma expressão
meio confusa estampada no seu rosto. Então, para minha surpresa, ela ri.
Ri e acena em positivo.
— É. Essa mulher não tem jeito. Nem adianta falar que não há a
mínima possibilidade entre mim e o filho porque ele não me ama e não o amo
mais porque ela não dá a mínima. Vai infernizar nós dois a vida toda com
essa história de casamento.
Não o amo mais.
Caralho, sinto como se um peso tivesse saído dos meus ombros.
Minhas chances com ela passaram de novo de menos cinquenta para só nulas.
Vejam só, progresso!
Consigo apenas sorrir de volta, estranhamente feliz por causa desse
“diálogo” entre nós. Meu Deus, isso é patético, não é? Estou feliz porque
Marjorie conversou comigo. Se é que podemos chamar isso de conversa.
De qualquer maneira, o restante do percurso até o endereço indicado é
feito em silêncio. Quando estamos nos aproximando do local é que
reconheço. Estaciono em uma vaga rápida e ligo o pisca-alerta. Marjorie saca
o telefone e faz uma ligação, dizendo um “já estou aqui”. Cinco minutos
inteiros se passam até que a figura aparece. Meu sangue ferve quando ela
baixa o vidro traseiro e recebe um selinho de Antony. Viro o rosto para o
outro lado, para que esse verme não me reconheça, e tento controlar todos os
meus instintos mais primitivos para não descer do veículo e jogar esse
maldito nos meios dos carros que passam pela avenida.
— Por que não me ligou para ir te buscar, chérie?
— E contrariar as vontades do meu pai? Nem pensar. Só passei mesmo
pra te ver rapidinho e perguntar se podemos nos encontrar em dois dias.
Antony demora a responder um segundo e, dando uma olhadinha rápida
no casal patético e ainda me esforçando para controlar raiva e ciúme subindo
pela minha garganta, vejo o mesmo sorriso arrogante nele.
— Ainda aquele assunto? Mon amour, já te disse que odeio essas
insistências, não disse?
— Não vou insistir no assunto. Ne t'inquiète pas. — “Não se
preocupe”.
Os dois trocam mais algumas palavras e ele por fim se despede.
Marjorie diz que já posso levá-la para seu apartamento e me passa o
endereço. Enquanto deixo os arredores da galeria de Leclerc, minha língua
atrevida fica coçando para resmungar. E alertá-la. Meu Deus, fico
amedrontado só de pensar no mal que Antony pode causar a ela. Meu
estômago revira e, contrariando todo o bom senso, digo:
— Antony não é uma boa pessoa.
Marjorie ergue seus olhos para mim, deixando de lado algo que
digitava no telefone, e me encara pelo reflexo do retrovisor, erguendo uma
sobrancelha. Segundos de tensão se passam entre nós até que me responde:
— Um homem casado que sai às escondidas com outra mulher
certamente boa pessoa não é. Mas obrigada pelo toque.
Meu coração aperta. Então Marjorie sabe e, mesmo assim, continua se
envolvendo com ele. Sua imagem perfeita idealizada na minha cabeça fica
maculada. Repudio esse comportamento e isso me decepciona um pouco.
Não pensei que ela fosse esse tipo de pessoa.
— Você sabe que Antony é casado e mesmo assim sai com ele? —
pergunto, porque já que é para perder o meu emprego sendo intrometido e
atrevido, ao menos que seja entendendo a cabeça dessa mulher.
De repente, Marjorie faz um movimento inesperado demais até para
mim. Ela pula para o banco da frente. Assim, sem mais nem menos. E está
aqui, olhando-me com curiosidade e um sorriso leve.
— Tenho nojo daquele homem, de verdade, mas estou desesperada
atrás de uma informação que ele detém. Ele me contou que sabe algo muito
ruim sobre meu ex-noivo. — “Emilien Dupont”, quero dizer, mas se disser
ficará óbvio que sei tudo sobre ela. — Mas ele não quer me contar, disse que
se mais alguém souber fica em desvantagem. Parece que está o chantageando
com isso.
Balanço a cabeça em positivo, precisando encontrar todo meu
autocontrole para não mencionar que sei mais do que imagina. Olho para ela
de novo, sentada no banco da frente sem o cinto de segurança, a perna direita
por baixo da bunda, seu semblante carismático mais atenuado. Ela está
conversando com o motorista como se fosse uma amiga íntima e nem se
importa. Por que então passei esses anos todos invisível aos olhos dela?
— Pode me julgar o quanto quiser, mas uma mulher desesperada por
informação precisa usar as armas que tem para conseguir o que precisa. Não
concorda? — Penso em negar verbalmente, mas ela não permite porque
completa: — Deve estar pensando que dormi com ele, mas não dormi.
Antony é bonito, mas é ordinário. Também não vou negar que estou usando
da sedução para arrancar essa informação dele. Talvez até o embriague.
Eu rio um pouco. Não sei exatamente por qual motivo, mas rio. A
atmosfera fica mais leve e fazemos o percurso restante em um silêncio
confortável. Ajudo-a a descer quando chegamos e, pela primeira vez, sinto o
calor e a maciez da sua pele. Ela me olha, sempre com seu sorriso cordial, e
agradece. Entrego sua mala e estou prestes a me despedir, mas ela se vira
para mim e pergunta:
— Qual é mesmo o seu nome?
Ah, porra.
Um grande sorriso nasce no meu rosto. Essa mulher finalmente está
reparando em mim ou é impressão minha? Quando estou para me apresentar,
seu Ferdinand surge, pulando do lado do motorista do seu veículo:
— Ma chère fille! — “Minha filha querida”. Os dois se abraçam
apertado, Ferdinand reclamando de saudades dela. — Obrigado, garoto — diz
para mim, esticando o cheque que ia me entregar na empresa. — Vá para casa
descansar.
Aceno em positivo e nem tenho tempo de me apresentar para Marjorie
porque pai e filha engatam em uma conversa animada enquanto caminham
em direção à portaria do prédio.
E Adrien torna-se invisível de novo.
Antes de dar a partida no carro, meu telefone toca, identificando o
nome de Juliette na tela.
— Está muito ocupado? — pergunta assim que atendo.
— Não. Precisei fazer um trabalho para o seu Ferdinand, mas já estou
voltando para casa. Por quê?
— Surgiu um imprevisto. Pierre precisa ir para o hospital fazer um
parto e estamos no meio do jantar. Ele não quer que eu vá embora sozinha,
nem de táxi, e vai se sentir mais tranquilo se você puder vir me buscar. Tem
como?
— Claro. Me passe o endereço — solicito, e ela recita as coordenadas.
— Chego em quinze minutos.
Olho uma última vez para o edifico de Marjorie com um sorriso bobo
de felicidade pelo dia de hoje, dou a partida e vou buscar minha prima.
PIERRE

Não quero que essa noite termine. Não mesmo. Irremediavelmente,


gosto dela. Parece loucura gostar de outra pessoa quando faz pouco tempo
que sai de uma relação, uma relação longa, completamente tóxica. Eu deveria
estar traumatizado, ou algo do tipo, não deveria? Querendo evitar qualquer
tipo de relacionamento, tendo pavor de me envolver com outra mulher. Ou ao
menos deveria estar paranoico. Depois que Francine desgastou minha saúde
mental, no mínimo deveria estar com medo de que Juliette seja igual.
Ciumenta, possessiva, controladora, manipuladora. Mas a verdade é que não
tenho nem um pouco de receio. Parece que a conheço o suficiente para não
ter esse tipo de medo.
Eu a olho por cima do menu, admirando sua beleza, o modo como
analisa o cardápio, as pernas cruzadas sob a mesa balançando-as
vagarosamente, como morde a ponta do polegar enquanto escolhe o que
pedir. O garçom se aproxima cinco minutos depois e recolhe nossos pedidos.
De repente, ela segura na minha mão e me puxa.
— Vem aqui, vem aqui — pede, um grande sorriso no rosto, ainda me
repuxando como se sua vida dependesse disso.
Contorno a mesa e vou até ela, espremendo-nos na mesma cadeira.
Juliette pega minha mão direita e a leva até sua barriga. Sinto os chutes do
bebê e a emoção é como na primeira vez. É bom, é indescritível, e não sei
explicar por que esse fato mexe tanto comigo. É só filho dela, mas já tenho
um vínculo tanto com ela como com Valentin que é incapaz de ser
mensurado.
— Valentin está se mexendo mesmo sem você falar com ele. Isso não é
incrível? — Juliette pega minhas duas as mãos e as posiciona melhor,
seguindo os movimentos do bebê. O sorriso nela é lindo; é o mais lindo que
já vi na vida. De repente, quero viver cada instante dessa gestação com ela, e
não apenas no contexto médico-paciente, mesmo que eu não seja o pai desse
bebê, mas quero.
— É incrível, sim — sussurro rente à sua boca.
Volto ao meu lugar e ela me conta, de um jeito animado, como gostou
do curso no La Croix Saint-Simon. Está dizendo como continua com muito
medo do parto e da dor que virá com ele, mas que, com as instruções da
palestra, está mais confiante e menos amedrontada. Então aproveito o
momento para tranquilizá-la mais, assegurando que o processo do parto
natural pode ser doloroso, longo e intenso, mas será um momento único e
inesquecível e…
— … eu farei questão de estar com você. Cada segundo. E não apenas
como o seu médico.
Ela sorri e seus dedos se fecham com força ao redor dos meus quando
nossa comida chega. Não passa muito tempo e meu telefone vibra sobre a
mesa, interrompendo nossa conversa sobre a decoração que Adrien está
fazendo no quarto de Valentin. Confiro rapidamente e é um número
desconhecido. Pela aba da notificação vejo o único nome capaz de despertar
curiosidade suficiente em mim para me fazer e abrir imediatamente a
mensagem que me deixa sem órbita por vários segundos.
— Aconteceu alguma coisa? — Juliette pergunta, encarando-me
atentamente enquanto apoia a taça de água de volta à mesa. Quase não a
ouço.
— Je suis désolé — desculpo-me, tirando carteira do bolso interno do
meu paletó. Começo a suar frio e engulo em seco. Minhas mãos trêmulas
tiram algumas notas de euros e coloco sobre a mesa. A mentira que conto dói
em mim: — Tem uma paciente em trabalho de parto no hospital. É particular.
Eu… — Paro um segundo, fitando seus olhos doces e levemente
preocupados. Não deveria mentir, mas se contar a verdade, ela provavelmente
vai querer ir comigo ao Necker e não seria nada bom. Prometo a mim mesmo
que assim que resolver isso vou contar a verdade. — Tenho que ir, sinto
muito.
— Está tudo bem. — Ela é compreensiva. Levanto-me rapidamente,
cada vez mais nervoso, querendo apenas ir embora, o mais rápido possível.
Juliette nota minha pressa. — Pode ir, Pierre, eu peço um táxi.
— Posso te deixar em casa.
— Não, é sério. Vá até sua paciente. O filho dela está nascendo. Posso
ir pra casa sozinha.
— De jeito nenhum. — Estou desesperado para ir logo, mas não vou
ser descuidado a ponto de deixá-la voltar sozinha para casa tão tarde da noite.
— Liga para o Adrien. Vou me sentir bem mais tranquilo.
Ela concorda e liga para o primo.
— Ele chega em quinze minutos.
— Espera ele aqui dentro, está bem? Não na rua — instruo e dou um
beijo no canto da sua boca de despedida antes de ir.
No carro, as minhas mãos estão trêmulas quando coloco a chave na
ignição. Demoro a notar minhas lágrimas descendo pelo meu rosto. É
arrependimento. Arrependo-me de confiar em que não deveria. Ultrapasso os
limites de velocidade durante todo o trajeto, mas chego no Hospital Necker
em sete minutos. Entro esbaforido na sala da emergência, uso dos meus
privilégios dentro do hospital e adentro a ala pediátrica, mais especificamente
em uma ala que qualquer outra pessoa não teria acesso, nem mesmo com
autorização. Na sala de cirurgia, vejo a equipe médica ao redor do pequeno
corpo de Édouard, entubado e anestesiado.
Ofego, a respiração falhando. Pisco diversas vezes, as lágrimas
escorrendo pelo meu rosto, quase nem percebendo que me aproximei e
espalmei contra a parede de vidro, assistindo à cirurgia do meu sobrinho com
uma aflição enorme no meu peito. Outra mensagem chega no meu telefone.
Confiro, minha vista embaçada, e é da última pessoa com quem quero falar
no momento. A porra do meu irmão. Juro por Deus que vou matar esse
desgraçado assim que estiver mais calmo, o que só vai acontecer quando
Édouard sair da cirurgia e me garantirem que vai ficar bem.
— Por que você não está lá? — pergunto, sem olhar para trás, mas
notando sua chegada. Posso odiá-la, por tudo que fez por mim, mas Francine
é a melhor neurocirurgiã que conheço, depois de Étienne, e não quero
ninguém menos que o melhor para meu sobrinho. Ela entra, se aproxima mais
e fica ao meu lado, observando a cirurgia lá embaixo.
— Porque tenho vínculo com Édouard. Não me deixaram ficar com o
caso. Além disso, não é o meu plantão. Mas está tudo sob controle, Pierre.
Estão drenando o sangue do cérebro e controlando a hemorragia interna. Não
precisa se preocupar.
— Não me preocupar, Francine? — Teria esbravejado se tivesse forças
para isso, mas estou tão chocado e com medo que minha voz sai um sussurro.
— Ele foi atropelado! Como quer que eu fique calmo e não me preocupe?
Ela apoia a mão em meu ombro, mas não vou deixar que se aproveite
da situação para se aproximar de mim de novo. Então, dou um passo para
trás, desfazendo nosso contato. Francine entende e respeita meu espaço.
— Obrigado por me avisar — digo. Não quero parecer um ingrato. Ela
me avisou que meu sobrinho estava aqui e me informou seu quadro clínico
positivo talvez como uma medida de me manter calmo. Como eu a bloquei,
teve de avisar com algum telefone de terceiro.
— Não precisa me agradecer — responde. Há um instante de silêncio.
— Ele está na sala de espera.
— Eu sei — respondo quase com um rosnado. Não quero ir até lá agora
ou vou quebrar a cara dele.
— Não vai dar notícias do filho para seu irmão?
Fecho os punhos com força e tento ignorar a raiva que cresce em mim.
Faço um esforço quase sobre-humano para tentar compreendê-lo ao menos
um pouco. Mas eu não consigo, não consigo mesmo. Nada justifica essa falta
de responsabilidade e comprometimento de Étienne.
— Se ele se preocupasse de verdade, para início de conversa, Édouard
nem estaria aqui agora.
Francine não responde porque sabe que estou certo. Mas no fundo, ela
também está com a razão. Por mais negligente que ele seja, tem o direito de
saber o estado do filho. Obrigo-me a ficar calmo para essa conversa. Quando
estou confiante de que indo até lá não farei nada contra sua integridade física,
vou em direção à recepção. Ele está andando de um lado para o outro, a mão
na cabeça, dedos enfiados nos cabelos desgrenhados, postura cansada, parte
da camisa para fora da calça jeans amassada. Ao me ver, vem em minha
direção e está perto de mim mais rápido do que previ que estaria. Étienne me
agarra pelos braços, balançando-me de forma desesperada:
— Preciso saber do Édouard. Me diz que meu filho está bem.
Eu tento, juro que tento, mas a raiva sobe à minha cabeça do mesmo
jeito. Livro-me da sua pegada de um jeito brusco.
— Francine me disse que estão controlando a hemorragia interna,
drenando o sangue do cérebro e que ele vai ficar bem.
Étienne passa a mão trêmula na testa e não demora nada para estar
chorando. Ele cai na poltrona logo atrás, cabisbaixo, as palmas cobrindo o
rosto. Eu me compadeço dele, mas não demonstro. Talvez um pouco de
frieza o ajude a colocar a cabeça no lugar.
— Étienne, juro que estou me esforçando para não socar a sua cara
agora mesmo. Preciso entender o que aconteceu, como aconteceu, por que
aconteceu. O seu filho… — Trinco o maxilar controlando a raiva. — Poderia
ter morrido.
Ele não responde, cai em outro choro de desespero. Por mais que tente
sentir qualquer empatia com meu irmão nesse momento, não consigo e tudo o
que sinto é raiva e decepção.
— Me conta! — exijo, erguendo a voz e perturbando o silêncio da
recepção. — Estava bêbado, não é? Você estava caído de bêbado com o
garoto dentro de casa, Étienne?! Quando confiei em você pra cuidar do seu
próprio filho?!
— Ela me ligou — murmura, ainda cabisbaixo e chorando. — Me disse
que estava bem, me disse para não me preocupar, me pediu para dizer ao
Édouard que o ama e… desligou. Durou uns quinze segundos, Pierre. Quinze
segundos! — grita, levantando-se e me segurando pelo colarinho.
— De quem você está falando? — indago, estranhando sua postura
histérica.
— Jeaninne! — urra outra vez, e uma enfermeira vem até nós dois,
pedindo para nos acalmarmos e fazermos silêncio. — Ligou lá pra casa, mas
só durou quinze segundos.
Fora de mim, dou um murro nele. Étienne cai no chão. O mesmo
segurança que o ajuda a se levantar, nos expulsa. Do lado de fora do hospital,
e ainda descontrolado, eu o seguro pelo colarinho e tento agredi-lo de novo,
mas meu irmão se defende.
— Para com essa obsessão! Sua mulher está morta, entendeu?
MORTA! Aceita e toca a vida, putain! — esbravejo, apertando a gola da sua
camisa entre meus dedos mais uma vez. — Foi um trote. Coloca isso na sua
maldita cabeça. — Bato o indicador na sua têmpora com toda força. —
Alguém querendo brincar com você! Pra te desestruturar e veja só!
Conseguiram. Seu filho foi atropelado por sua culpa! Sua culpa, Étienne.
Pare de viver na merda por uma esposa que você nem amava direito —
menciono e sei que o atinjo.
Ele se desvencilha da minha pegada, recuando como se tivesse sido
atingido por pedras. Toquei em um ponto fraco demais, um ponto que nunca
deveria ter tocado. Sei que, em algum momento, meu irmão amou a mulher,
mas quando ela sumiu, o casamento estava em crise, Jeaninne prestes a pedir
o divórcio, ele passando mais tempo no hospital do que em casa. Toda essa
carcaça humana que se tornou não é porque ama tanto a esposa que nem sabe
viver a vida sem ela. É remorso. Remorso por ter sido um marido de merda,
remorso pelas palavras que disse para a mulher um dia antes do sumiço dela.
— Não é amor, é remorso — verbalizo meu último pensamento.
De repente, ele está em cima de mim, segurando meu pescoço.
— Não sabe de porra nenhuma, Pierre. De porra nenhuma.
— Sabe do que eu sei, Étienne? Que há um ano virou um pai negligente
por causa de uma mulher. Uma mulher. Que você encontra em qualquer
esquina. Mas, e o seu filho, hã? Se ele morrer na porra daquela mesa de
cirurgia, você pode encontrar outro pra substituir?
Como resposta, recebo apenas um empurrão. Meu irmão está irado,
olhos vermelhos, rosto contorcido. Está com raiva. Pois bem, sinto o mesmo
em relação a ele. Quando Étienne volta lá para dentro, me dou conta da
idiotice que disse num momento de fúria.
Espero quinze minutos. Nós dois precisamos disso. Compro um café
forte na cafeteria do hospital e espero. Quando estou mais calmo, e sei que
meu irmão também está, retorno para a recepção. O mesmo segurança que
nos expulsou vinte minutos atrás vem até mim, e garanto que não farei
nenhum tipo de escândalo. Paro na frente de um Étienne com os cotovelos
nas coxas, rosto entre as mãos.
— Me desculpe — peço, realmente arrependido. Falei bobeira e
assumo isto. — Estava de cabeça quente e disse tudo aquilo sem pensar.
— Não — murmura, erguendo os olhos vermelhos para mim. — Você
disse exatamente o que pensa, a diferença é que não teria dito se não estivesse
com raiva.
Odeio ter de concordar, mas é a verdade. Diante disso, só posso
assentir.
— Sei que poderia ter sido um marido melhor — prossegue,
confessando sem medo de me olhar nos olhos. — Ela engravidou quando
estava ascendendo na minha profissão, nos casamos dois meses depois da
primeira transa e passei mais tempo me dedicando à medicina do que à minha
família.
Étienne fica em silêncio, talvez remoendo suas próprias mágoas,
ressentimentos, culpa e arrependimentos.
— Às vezes, eu chegava em casa e tudo que queria era me deitar na
porra do sofá e dormir, mas Édouard chorava, Jeaninne reclamava de mim,
dos afazeres domésticos, da bagunça, que estava cansada, sobrecarregada,
que eu deveria passar mais tempo em casa e toda sorte de reclamações. E aí
era onde pensava que merda tinha feito da minha vida em ter engravidado ela,
em ter me casado, e se pudesse voltar no tempo… — Ri uma risada sem
humor. — Teria evitado aquela mulher ou pelo menos usado camisinha.
Escuto isso sem saber como reagir. Se arrepender de um casamento é a
coisa mais natural do mundo, mas não consigo conceber que meu irmão tenha
se arrependido de Édouard. Ele não é meu filho, mas sou tão apegado a esse
garoto como se fosse meu. Não consigo nem mesmo idealizar os últimos seis
anos sem ele.
Tento dizer alguma coisa, mas meu irmão continua:
— A questão é que… eu falhei. Falhei com a minha esposa, falhei com
meu filho. — Outra da sua risada fúnebre. — Falhei na minha profissão. Mas
há uma coisa que você precisa saber, Pierre. Por mais que meu casamento
estivesse em crise quando Jeaninne desapareceu, isso não significa que não
me importo com ela. Isso não te dá o direito de medir meus sentimentos nem
de insinuar que posso substitui-la por qualquer outra mulher, porque não
posso.
Engulo em seco e aceno em positivo. Sento-me ao seu lado e me
redimo:
— Pardon. Você está certo. Foi idiota da minha parte dizer aquilo,
mas, Étienne…
— Eu sei. — Desaba de novo, enfiando o rosto entre as mãos. — Me
sinto tão culpado por Édouard. Afundo de vez se alguma coisa acontecer ao
meu garoto, Pierre.
Aperto seu ombro, com toda força.
— Não fala assim, vai ficar tudo bem.
Étienne se recupera, secando as últimas lágrimas, e tenta se manter
mais calmo.
— Me conta o que aconteceu — peço de novo.
Ele inspira fundo.
— Recebi essa maldita ligação. Não sei se foi trote, ou se era ela de
verdade, mas a voz era muito parecida. Ela me disse aquelas coisas e quando
estava para pedir mais informações, a ligação caiu… ou foi desligada.
Não preciso de muito para compreender o que aconteceu em seguida.
— Você bebeu, não é?
Meu irmão aperta os olhos, mais lágrimas molhando o rosto, e,
titubeando, acena em positivo. Não dizemos nada um ao outro por algum
tempo. Ele está abalado com o que aconteceu ao filho, talvez ainda com a
ligação, e respeito seu momento. Dói na parte mais profunda da minha alma
vê-lo nesse estado, mergulhado em dor e culpa, mas não dizem que há males
que vêm para o bem? Estou acreditando que hoje deve ser um desses
momentos. Embora odeie ver meu próprio irmão dessa maneira, tenho
esperanças de que melhore, que pare de beber, de ser negligente, que volte a
viver sua vida, a trabalhar, a se dedicar à sua carreira.
— Pus o garoto para dormir — relata. — Fui até o mercado perto de
casa e comprei duas garrafas. Voltei, tranquei a porta e entornei metade de
uma em pouco tempo. Não lembro de nada depois disso, só de acordar com
alguns gritos pelos corredores do andar e ver a porta escancarada. Mesmo de
resseca, meu primeiro pensamento foi meu filho e. quando vi que não estava
no quarto dele, entrei em desespero. Mal saí de casa e um vizinho veio me
dizer que Édouard tinha sido atro… — Ele não consegue terminar, precisa de
um esforço enorme para controlar suas emoções e continuar — … pelado. A
ambulância já estava a caminho. Me deram glicose quando notaram que
estava meio bêbado e não me deixaram entrar com ele. Só consegui pensar
em ligar…
— … para a Francine — completo por ele. Étienne assente. — Por que
não me informou?
— Sabia que ia querer arrancar meus testículos. Ia te avisar quando
tivesse notícias positivas. Désolé.
Eu o abraço, de um modo meio desajeitado.
— O tempo que pedi, Pierre — sussurra em meu ouvido —, para viver
o meu luto, acaba hoje. Não quero mais ser uma ameaça para meu filho, não
quero mais ser perigoso para ele. Édouard quase morreu por minha causa —
ofega, prendendo o ar por um segundo. — Isso acaba hoje.
Aperto-o mais em meus braços e torço para que cumpra sua palavra
dessa vez.

Mando meu irmão para casa — ele precisa de um banho e de roupas


limpas — e faço companhia ao meu sobrinho no quarto após a cirurgia.
Correu tudo bem, a hemorragia foi contida, e o traumatismo craniano,
tratado. Ele ainda está sedado, em sono tranquilo, e não foi preciso uma
intervenção mais severa, como coma induzido. Quando acordar, faremos os
exames necessários para saber como está seu quadro clínico.
Étienne volta uma hora depois; quer que eu vá embora, mas não acato
sua sugestão. Deixo-o com o filho e fico na recepção. Durante toda a
madrugada, tomo café preto, como sanduíches e navego na internet pelo
celular. Juliette me manda uma mensagem que não vejo na hora. Foi perto de
onze da noite.

“Cheguei em casa já tem algum tempo. Adrien foi me buscar e o


esperei no lado de dentro do restaurante, como você sugeriu.”

Sorrio com a mensagem, mas não tenho cabeça para responder. Guardo
o celular no bolso e retorno para a o quarto de Édouard assim que amanhece.
Ele já está acordado, o neurologista de plantão nos informa do seu quadro
clínico e, mesmo que Étienne seja um especialista na área e saiba, pelos
testes e imagens computadorizadas, que o menino está bem, não consegue se
sentir mais tranquilo, nem menos preocupado.
Outra mensagem apita no meu telefone assim que o plantonista nos
deixa a sós. Confiro e é de Juliette novamente.

“Bonjour. Ça va bien? Ocorreu tudo bem com o parto da sua


paciente?”.

Enfio o celular no bolso novamente, ignorando por ora sua mensagem e


a aflição em meu peito. Não deveria ter mentido sobre isso, mas sabia que se
falasse do meu sobrinho, ela provavelmente se solidarizaria, viria atrás de
mim, para uma visita e daria de cara com Francine. A última coisa que quero
nesse momento é que minha ex-namorada paranoica descubra que estou me
envolvendo com alguém. Com uma paciente. Ela ia me infernizar e infernizar
minha atual namorada. Assim que sair daqui, vou procurá-la e contar o que
de fato aconteceu e por que menti. Por enquanto, darei atenção ao meu
sobrinho.
— Ei, Doudou… — digo, podendo finalmente me aproximar dele.
Sento-me do outro lado da cama, deixando-o entre mim e o pai. — Garoto,
você quase matou seu pai e seu tio do coração.
Ele deita sua cabecinha no meu braço, meio melancólico.
— Me desculpem.
— Você não tem culpa, Édou… — Étienne murmura tirando a
franjinha da sua testa. — Eu… — Engole em seco, com alguma dificuldade
em admitir que isso tudo é culpa dele. Não quero que sinta ainda mais
remorso do que já tem sentido desde o desaparecimento da esposa, mas nesse
caso não tem como não o responsabilizar. — A culpa foi minha. Não tenho
sido um bom pai para você.
— É por causa da mamãe, não é? — o menino indaga, cheio de
inocência e em tom triste. Tem saudades da mãe e isto é visível.
— É, sim, Doudou. Fiquei muito mal, perdi a razão. Isso me tornou
negligente com você. Mas te prometo, meu filho, que a partir de hoje isso vai
mudar, tudo bem?
Em vez de concordar, ele indaga:
— O que é “negligente”, papa?
Étienne dá um sorriso um pouco fúnebre e explica o significado da
palavra, não parando nunca de amaciar os cabelinhos do filho.
— Quer contar para o titio por que saiu de casa? — questiono.
— Não consegui dormir e estava com fome — explica, direcionando o
olhar para o pai. — Tentei acordar o papai, mas ele estava dormindo e não
me respondia. Não quis mexer com o fogão, por causa daquela vez que a casa
quase pegou fogo porque fui mexer com o que não podia. — Étienne desvia o
olhar um segundo, parecendo perdido, com toda certeza pensando que essa
ocasião também fora culpa sua. — Pensei que podia comprar alguma coisa na
padaria do outro lado da rua. A chave estava na porta, então eu decidi ir lá
comprar baguete e chocolate quente.
Meu irmão se levanta do lado dele, passando a mão pelo rosto. Inspiro
fundo e fico fitando meu sobrinho com algum senso extremo de empatia. Ele
é só uma criança inocente.
— Estão bravos comigo?
Antes que eu possa responder, Étienne já está abraçando o filho e
dizendo:
— Non! Claro que não, Édou… — Aperta o pequeno em seus braços
fortes, depois beija o topo da sua testa e o acaricia no rosto. — Não estamos
bravos com você. Seu tio talvez esteja comigo, mas não com você, está bem?
— Seu pai está certo — acalento, também acariciando seus cabelos
escorridos. — Nas duas coisas.
Étienne dá uma risada fúnebre e toma o filho nos braços outra vez. Eu o
deixo ter um momento com o pequeno; os dois precisam disso, criar esse
vínculo pai e filho novamente, então saio do quarto, dizendo que vou para
casa tomar um banho, dormir um pouco para o meu plantão mais tarde. O que
me alivia um pouco é que a equipe médica poderá cuidar do meu sobrinho.
Sinto-me péssimo por ainda não confiar no meu irmão, mas a culpa é dele
mesmo. Durmo a manhã toda, acordo pouco depois do almoço e como um
sanduíche enquanto confiro meus e-mails. Tem outra mensagem de Juliette
de uma hora atrás.

“Ei, não apareceu na clínica hoje, sei que não é seu dia, mas só
queria saber de você. Está tudo bem?”

Limpo os dedos na calça e respondo.

“Tudo certo. Surgiu uns problemas familiares. Talvez não te veja


essa semana. Mas vou te contar tudo assim que puder. Se precisar de
mim, pode me ligar. Beijos e se cuida.”

A resposta vem dez minutos depois.

“Espero que tudo se resolva. Beijos e se cuida.”


Sorrio com a última frase copiada. Deixo o celular sobre o balcão e
corro tomar um banho. Visto algo mais confortável, preparo minha mochila
para o plantão, porque provavelmente já vou ficar por lá, e volto para o
hospital. Passo pela sala de espera e um homem, sentado numa das cadeiras
disponíveis, vem até mim, abordando-me.
— Monsieur Laurent?
Viro-me para ele.
— Oui. C’est moi. — “Sim, sou eu.” — Posso ajudar em alguma coisa?
Ele revira o bolso interno do seu paletó e retira um cartão de visitas,
esticando-o para mim e dizendo:
— Je suis Artus Huet. Advogado do direito familiar. — Ressabiado,
pego o cartão e o encaro por alguns segundos, sem entender a abordagem. Ele
prossegue. — Estou representando a mademoiselle Francine Perrot. — Ergo
meu olhar em sua direção, franzindo o cenho e ainda mais confuso. — Ela
está movendo uma ação para conseguir a custódia de Édouard Laurent.
Nesse instante, sinto meu coração parar. Ela só pode estar de
brincadeira com a minha cara!
— Francine o quê? — praticamente esbravejo. — Ela não pode… —
Fico confuso. — Essa mulher não tem parentesco nenhum com meu
sobrinho.
— Désolé, senhor Laurent, não acho que esse seja o melhor ambiente
para conversarmos. Mas saiba que minha cliente está disposta a entrar em um
acordo antes de levarmos o caso ao juizado. Amanhã à tarde, às quinze horas,
compareça ao meu escritório, no endereço marcado no cartão, junto com seu
advogado, e vamos conversar.
Irado, rasgo o maldito cartão em inúmeros pedacinhos.
— Para o inferno você e sua cliente.
Giro nos calcanhares e retomo meu rumo. Que Deus permita que não
encontre Perrot por esses corredores, porque ao invés de um advogado de
direito familiar, ela terá de procurar por um advogado criminalista.
JULIETTE
Confiro meu celular pela vigésima vez em um curto espaço de tempo
enquanto caminho pelo corredor silencioso da clínica em direção ao
escritório, perto de vencer o meu horário de almoço. Quero mentir e dizer que
não estou ansiosa por notícias de Pierre, que não vejo já vai fazer dois dias,
mas a verdade é que estou. Apesar de querer saber dele, não vou me prezar a
enchê-lo de mensagens. Enviei algumas, ele demorou a responder e alegou
que estava com problemas na família. Hoje pela manhã, mandei um
“Bonjour, çá va bien?”, que foi ignorado até o momento.
O homem pode estar simplesmente ocupado, sem bateria no celular, em
uma sala de parto, acompanhando algum exame. Não vou exigir nenhuma
resposta imediata nem criar paranoias na minha cabeça por causa de uma
mensagem. Confesso que estou tentada a mandar outras porque
desesperadamente preciso de notícias dele, mas sigo firme na minha decisão
de esperar que entre em contato comigo.
Sinto alguém me puxar pelo punho no instante em que minhas mãos
tocam a maçaneta da porta do escritório. Nem tenho tempo de processar e
minha boca já está sendo tomada em um beijo suave. Eu teria empurrado o
atrevido que decidiu me beijar, mas reconheço o aroma do meu namorado um
segundo mais tarde. Na mesma hora, meu coração está dando saltinhos de
felicidade enquanto o abraço pelo pescoço e dou mais espaço para sua língua
atrevida. Ele quase esmaga meu corpo em um abraço de urso. Aproveito
nossa proximidade para inalar o cheiro da sua pele.
— Senti sua falta — dizemos juntos. Rio contra seu pescoço e me
afasto para encarar seus olhos.
— Está tudo bem? — pergunto, acariciando seu rosto. — Resolveu o
problema na sua família?
O sorriso dele esvanece pouco a pouco, o que significa que a resposta
não é nada boa.
— Não. Só passei aqui para avisar à administração que vou cancelar
minha agenda e ficar uns dias afastados até isso se revolver.
— Que… seria? — menciono com cuidado.
— Vou te contar tudo com calma assim que eu puder, está bem? E não
vai ser pelos corredores da clínica, não é? Quando isso tudo passar… —
Pierre dá um sorriso fraco, meio sem vida e triste. — Vou te levar para jantar,
te contar tudo o que aconteceu nessa semana louca e vamos terminar a noite
na sua casa. — Ele se aproxima da minha boca, sua mão escorregando de
forma atrevida pelo vão das minhas coxas, muito abaixo de onde eu
realmente gostaria que me tocasse. — Talvez na sua cama.
Meu rosto cora, mas a ideia me agrada sobremaneira.
— Tudo bem, como quiser. Só torço para que o que esteja acontecendo
na sua família se resolva logo.
— Merci, merci beaucoup por compreender, Julie. Olha… —
murmura, brincando com uma mecha solta do meu cabelo. — Vim aqui
também pra te pedir uma coisa. Ia falar sobre isso no jantar, mas daí… tive
que ir embora e depois não nos vimos mais. Enfim… — Molha o lábio
inferior antes de prosseguir: — Queria te pedir para sermos discretos no
nosso relacionamento. Sei que estamos juntos há pouco tempo e não é minha
intenção te esconder das pessoas.
Não gosto nem um pouco do rumo dessa conversa e preciso de um
esforço para afastar a voz de Adrien da minha cabeça me alertando aos sinais.
Isso é um sinal, não é? Ele me quer, mas não quer me assumir diante às
pessoas.
— Se a sua intenção não é me esconder — digo, baixando o olhar e
mantendo a voz calma — por que temos que ser discretos?
— Porque você é minha paciente, eu sou seu médico e trabalhamos no
mesmo lugar. Isso poderia trazer problemas, tanto pra você quanto pra mim.
Abano a cabeça em positivo, precisando concordar que tem razão.
Mesmo que faça sentido sua justificativa, não me agrada a ideia de
permanecer em uma relação em que continuarei sendo escondida das pessoas,
e não sei se quero manter um relacionamento desse jeito.
— Julie, não precisa fazer essa carinha — murmura, acariciando meu
rosto. — Não pense que vou te tratar como Antony te tratava — adverte,
suavemente, de repente parecendo me encostar contra a parede, seu corpo
grande quase prensando o meu. — Só preciso que esse imprevisto familiar se
resolva, então vou procurar pelos nossos superiores e explicar nossa situação.
Só não quero que quem deva saber sobre nós saiba pela boca de terceiros, e
sim pela nossa. De acordo com isso?
— De acordo — respondo, com um cicio, erguendo-me nos pés e
pescando sua boca. Ele retribui, pressionando-me contra a parede.
— Tenho que ir agora — diz, afastando-se de mim, e tudo que quero é
trazê-lo de volta. — Se cuida — murmura e beija o canto da minha boca em
despedida.

— Não para de olhar para esse celular — Adrien pontua, colocando


uma travessa de lasanha sobre a mesa.
Pierre já me disse que não nos falaríamos durante essa semana, por
causa do seu problema familiar. Ainda assim, estou aqui, ávida que ele
mande nem que seja um “bonsoir”, ou que me ligue e diga para
conversarmos, que vai explicar tudo o que aconteceu na última semana.
— Impressão sua — desconverso, enfiando meu celular por debaixo
das almofadas. — O cheiro está bom, né? — Rodeio a mesa, faminta e
precisando admitir que amo a comida dele.
— Ah, vamos lá! — exclama, distribuindo taças e talheres. — Não sou
idiota. — Ele está baixando um garfo, mas para no meio do caminho e me
olha. — Ele não tem te ligado, né?
Engulo em seco e desvio o olhar. Não é como se Pierre estivesse me
evitando e sendo um babaca comigo. Ele me deu seus motivos, me avisou
que ficaríamos sem contato por alguns dias e que no momento certo nos
assumiríamos. Não há nenhum motivo para que me sinta assim, desesperada
pela atenção dele.
— Não — respondo, fingindo uma confiança que sei que não tenho
nesse momento. — Mas me avisou que ficaria uns dias sem contato —
explico, cortando um pedaço da lasanha.
— Hum. — É tudo o que ele diz.
Não gosto do seu tom. Observo-o se servir e colocar um pouco de
vinho na taça para ele.
— Por que fez esse “hum”? — indago.
Ele abana a mão, como se não fosse nada demais.
— Só acho que uma mensagem não ia matar ele.
— De repente, você torce por mim e por Pierre?
Adrien me dá um sorriso e uma mordida na sua lasanha. Ele tem cara
de quem não aprova minha relação, mas também não diz nada porque sabe
que sou adulta e devo tomar minhas próprias decisões. E porque eu prometi
que tomaria cuidado com Pierre.
— De repente, acho que ele está te enrolando… — murmura, não tendo
coragem de me olhar.
Há um silêncio estranho entre nós. Desconfortável. Sei que meu primo
provavelmente só está preocupado comigo, porque, convenhamos, fiz
escolhas erradas e não o culpo por querer me proteger de caras ruins. Mas
não gosto de como está insinuando alguma coisa agora.
— Por que acha isso? — indago, querendo entender seus motivos.
Talvez esteja apenas paranoico depois de Antony, o que é irônico, porque
deveria ser eu a estar paranoica com novos relacionamentos.
— Porque ele sumiu depois que saiu correndo de um jantar que
estavam tendo, não te ligou mais, não responde suas mensagens, nem veio te
ver? Sinais, Juliette.
— Pierre me explicou, Adrien.
— Não, ele te deu uma desculpa.
Balanço a cabeça em negativo e tento não demonstrar como isso me
irrita. Decido que não vou discutir com meu primo por um assunto tão sem
importância. Pierre me deu uma garantia e estou acreditando nela no
momento. Faço minha refeição em silêncio, tentando esquecer do assunto.
— Olha, Julie — diz, de um jeito mais suave —, sei que gosta dele e
talvez por isso não esteja enxergando o que está diante dos seus olhos. Como
aconteceu quando estava com aquele traste.
O garfo cai da minha mão e faz um barulho estrepitoso contra a mesa.
— Me poupa dos seus conselhos. Pierre não é o Antony. Nem de longe.
— Não estou dizendo que é. Estou dizendo apenas que ele deve ter…
não sei… se desinteressado.
Isso chega em mim e dói mais do que posso admitir. Mas se Pierre não
quisesse nada sério, teria me dito, teria sido sincero desde o primeiro
momento que me beijou. Ele não ia me deixar pensando que estamos juntos
quando simplesmente não queria nada além de um casinho.
— Acontece, Juliette — continua, levando outro pedaço de lasanha à
boca. — Pode ser por conta de estar grávida e…
— Espera — interrompo-o nesse momento, perdida com sua
argumentação sem embasamento nenhum. — O que quis dizer com “por
conta de estar grávida”?
Adrien desvia o olhar por um segundo, como se pesando, escolhendo as
palavras certas para me dizer.
— Sabe que é difícil para um homem assumir uma mãe solteira. Não
vejo por que Pierre faria isso.
Sinto uma pontada no meu coração quando meu primo me diz essas
palavras, como se por causa da minha gravidez ninguém mais fosse me levar
a sério ou fosse se interessar por mim. Não faz sentido algum. Pierre desde o
princípio sabia da minha condição. Se ele não quisesse ficar comigo por
causa disso, não teria ficado.
— Quer dizer que tenho menos valor porque estou grávida?
Ele faz uma cara de assustado.
— Não disse isso. — Adrien fica na defensiva.
Levanto-me do meu lugar, abalada e sem fome.
— Você disse exatamente “não vejo por que Pierre faria isso”,
referindo-se a assumir uma mulher grávida. Então ficou subentendido de que
você acha que não tenho valor nenhum.
Meu primo também se levanta, querendo corrigir as merdas que falou
para mim.
— Não foi isso o que quis dizer.
— Não importa. Só vai embora daqui, Adrien — peço, segurando
minhas lágrimas. Ele olha de mim para o relógio na parede. Nove da noite. —
Pode ir. Aliás, nem precisa mais vir. Já estou bem e posso voltar a dormir
sozinha outra vez.
— Julie… — Tenta de novo.
— Vai embora! — esbravejo, irrompendo em lágrimas. Malditos
hormônios de grávida.
Adrien hesita, mas vai. Deixo minha comida pela metade, corro para
meu quarto e me deito na cama, abraçando meus joelhos o tanto quanto
minha barriga permite. Luto contra todas as minhas vontades, mas elas me
vencem. Acabo por pegar meu celular e enviar uma única palavra a Pierre.

“Bonsoir”.

Amanhece, mas ele ainda não me respondeu.


Estou começando a ficar preocupada. Pierre não faz contato há dias, e
não quero que meu primo tenha razão. Estou tentada a ligar ao invés de só
enviar mensagens como tenho feito, mas recuo a cada vez que digito o
número dele. Encerro a ligação antes mesmo que complete a chamada. Não
quero parecer nenhuma louca perseguidora, mas a falta de notícias dele está
me consumindo.
Minha experiência me diz o que acontece quando um homem some
dessa maneira. Ou ele está desinteressado e não sabe como dizer, ou é
comprometido. As duas perspectivas não me agradam, a segunda pior ainda.
— Você sempre fica sozinha? — Gustave pergunta, surgindo no
escritório deserto por conta do horário de almoço. — Já tem algum tempo
que tenho te notado solitária nos intervalos.
Sorrio um pouco e afasto o celular da minha mão, ignorando o fato de
que tinha digitado o número dele outra vez, prestes a apertar o botão verde.
— Às vezes gosto de ficar sozinha. Almoço rápido e volto pra cá para
ler ou apenas descansar — justifico, vendo-o se aproximar da sua mesa e
procurar por alguma coisa entre sua bagunça. Um francês desorganizado.
Veja se posso com isso. — Por que está aqui no horário do almoço? —
pergunto, realmente curiosa.
Ele ergue seu olhar para mim e abre um sorriso pequeno. Talvez eu não
precise de resposta, ou talvez a resposta seja eu mesma. Gustave já deu
indícios de que estava interessado em mim, embora não tenha mais
demonstrado nada parecido desde o episódio do cupcake.
— Isso não é nem minha função, mas já que me incumbiram, não tem
muito o que ser feito. Quando precisam de mim, não importa que horas sejam
ou onde esteja, preciso estar à disposição — responde, puxando uma agenda
para cima e encontrando o que estava à procura. — Estou terminando de
organizar o baile de trinta anos da clínica. Os preparativos do meu casamento
falido foram menos burocráticos, sabia? — brinca, e eu acabo rindo um
pouco. Ele pega o telefone e disca o número que está no cartão de visitas
entre seus dedos.
Essa confraternização de aniversário está marcada já tem um tempo, e
inclusive o vi mesmo todo atarefado com os preparativos nos últimos dias. Eu
o observo fazer sua ligação, falando com o bufê contratado. Aparentemente
houve uma mudança de última hora no cardápio da festa e isso está deixando
todo mundo meio maluco — inclusive ele. Gustave encerra seu telefonema, o
problema parecendo estar resolvido.
— Agora é só esperar pelo próximo imprevisto — diz, cheio de humor,
olhando para mim.
— Deveria ir almoçar.
— Eu já comi — responde, e me dá um alívio enorme vê-lo organizar
sua mesa. Já não era sem tempo. — Estou acostumado a isso, sabe? Trabalhar
inclusive no meu intervalo. Não reclamo. Me pagam bem, então é isso que
importa. O dinheiro das minhas horas extras normalmente vai todo para
minha filha. — Ele dá uma risada suave, “risada de pai.” — Levo-a para
passear, fazer compras, viajar. Essas coisas.
— Vocês não passam muito tempo juntos, não é? — questiono, tendo
essa impressão. O modo como disse essas coisas dá a entender que tenta
suprir sua ausência como pode.
Gustave não me olha e sua postura de repente se abate um pouco,
mostrando que talvez esteja certa no que disse.
— É. O trabalho me consome, ela mora do outro lado da cidade, nossos
horários nunca coincidem. Tento vê-la ao menos duas vezes na semana. Ir
buscar na escola, levar ela lá pra casa pra dormir, dar um passeio aos finais de
semana. Tento ser um pai presente como posso.
— Qual o nome dela?
Agora ele me olha e se enche de orgulho para falar:
— Amélie.
— É um nome lindo.
— Claro que é, eu quem escolhi — diz, todo convencido.
Ficamos em silêncio por um segundo, eu pensando que, por mais que
Gustave não veja a filha com frequência, ao menos se esforça para estar com
ela, suprir suas necessidades. Ser presente parece ir muito além do contato
físico ou do contato diário. Não é só estar ali todos os dias. Não é estar
presente, mas se fazer presente. Eu o admiro por isso, pelo seu esforço de ser
um bom pai e de fazer todo o possível para que a filha seja feliz e tenha todo
o necessário — e falo não só de coisas materiais.
— Já tem companhia para o baile? — pergunta, de repente, acordando-
me para a vida outra vez.
— Não — respondo, mas queria mesmo dizer “estava esperando um
certo doutor que sumiu me convidar”.
— Quer ir comigo?
Pisco duas vezes, assimilando sua proposta, sem saber o que responder.
Não sei quanto tempo mais Pierre vai ficar incomunicável e o baile é depois
de amanhã. Não que ter uma companhia seja uma regra, mas é um baile, não
se vai a um baile sozinha. Talvez eu devesse ligar para ele antes, saber se
pretende ir, fazer o papel “inverso” e eu convidá-lo. Mas se ainda está com
problemas familiares a última coisa de que vai querer é ir a uma festa.
— Tudo bem — aceito, sem pensar direito.
Gustave sorri e diz que depois combinamos um horário para ele passar
lá em casa e me buscar. Concordo, ainda meio perdida por ter aceitado o
convite. Também não quero dar nenhum tipo de ilusão a esse homem, que
deve pensar que sou solteira porque ainda não pude falar de mim e Pierre
porque ele me pediu para não falar até ele poder falar.
Sinais.
Adrien deve estar com a razão e o odeio nesse momento. Odeio ainda
mais porque insinuou que ninguém mais pode se interessar por mim porque
sou uma mãe solteira. Como se ser mãe fosse um estado civil. Aliás, nem
gosto mais desse termo. “Mãe solo” se encaixa melhor.
— Gustave — chamo-o e, para minha própria surpresa, pergunto: —
Sairia com uma mãe solo? — Ele me olha como se eu não fosse desse
mundo. Apresso-me em me explicar. — Não estou falando de mim, é claro.
O homem me dá um sorrisinho convencido, como se pensasse “sei,
quem você quer enganar, ma chère?”, sai do seu lugar e vem em minha
direção, sentando-se na minha mesa, bem de frente para mim. Pega uma
caneta e brinca com ela entre os dedos.
— Como um homem divorciado que tem uma filha, eu até preferia
alguém que entendesse minhas obrigações. Que compreendesse que vou
acabar furando um encontro porque Amélie ficou doente e a mãe está
trabalhando, então terei de ficar com ela; ou que nos finais de semana a cama
não pode ranger tanto porque a menina dorme no quarto ao lado; ou que em
algumas ocasiões vou ter que levá-la para a nossa viagem. Não vejo outra
pessoa capaz de entender isso tudo a não ser uma mãe solteira.
Gosto da sua colocação mais do que posso admitir. Mas ele tem uma
filha. Então, de alguma maneira, compreende as obrigações da maternidade e
sabe que não faz sentido não sair com uma mãe solo quando ele é pai e
divorciado. Não duvido nada de que existam pessoas com esse tipo de
preconceito idiota, e torço para que Laurent não seja esse tipo de cara, para
que Adrien não esteja certo.
— Por que me perguntou isso? — questiona, puxando um post-it verde
e rabiscando qualquer coisa sem significado nenhum.
Penso em uma resposta convincente porque não vou falar do
envolvimento que estou tendo com meu ginecologista e, quando estou para
respondê-lo, alguém bate à porta e nos interrompe. Gustave não sai do seu
lugar — sentado na borda da minha mesa — e apenas se vira o suficiente
para ver quem entra em seguida. Preciso inclinar um pouco para enxergar
porque seu corpo impede minha visão.
— Atrapalho a conversa de vocês? — Pierre pergunta, com um sorriso
amigável, mãos nos bolsos, camisa branca e calças jeans.
Oi, sumido, tudo bom?
— Claro que não, Laurent — meu chefe responde. — Gautier estava
apenas querendo saber se eu sairia com uma mãe solteira.
Mon Dieu… Meu rosto cora quase sem nem perceber. Pierre me olha,
com uma expressão divertida no rosto, o sorriso gentil não se desfazendo.
— Ah, é? — exclama, adentrando mais o recinto.
— É claro que ela não estava falando de si mesma. — Legrand não
poderia ser mais indiscreto.
Pierre dá uma risada gostosa e abana a cabeça em positivo. Lançando-
me um olhar suave, pergunta:
— Posso falar com você um instante no meu consultório?
Olho as horas no relógio. Ainda tenho alguns minutos antes do meu
próximo turno. Abano a cabeça em positivo, despeço-me de Gustave e o sigo
até a sala dele. Ele abre a porta para mim e entra em seguida, encostando-a.
Quando giro nos calcanhares, dou de cara com ele perto demais de mim e
esbarro no seu tórax largo. O perfume forte e amadeirado mexe comigo e faz
o desejo que sinto por esse homem ganhar força e tamanho. Colabore com
meus hormônios de grávida, Pierre. Sorrindo, toca no meu rosto,
aproximando-se para um beijo singelo que não recuso.
— Senti sua falta — murmura, lambendo meu lábio inferior.
— Onde esteve? — Quero saber. Tento não soar como uma maluca
autoritária, mas por mais que me esforce, ainda tenho a impressão de que saiu
exatamente como quis evitar.
— Problemas familiares. Já estou resolvendo tudo.
Suspiro e me esquivo dele. Pierre nota que fico distante e chateada de
repente. Encosto-me à beira da sua mesa e cruzo os braços.
— O que foi?
— Você sumiu por mais de uma semana, disse que ia me explicar tudo,
mas ainda não me explicou. Ignora minhas mensagens, não me liga, não dá
sinal de vida. Pierre, eu… — Pauso um momento, pergunto-me se não estou
sendo exagerada, deixando-me levar por experiências passadas. — A minha
vivência diz que isso são sinais, entende? E não dos bons.
Ele balança a cabeça em positivo, lentamente, e se aproxima de mim,
tocando-me na cintura. Fico meio prensada à mesa, seu corpo grande e
quente contra o meu. Não tem ninguém reclamando.
— Acha que estou mentindo para você — murmura, mas não tem
nenhum traço de mágoa por pensar disso dele. — Entendo. Tem motivo para
desconfiar. Mas não estou mentindo, Juliette. Talvez adiando uma conversa
séria, mas não mentindo. Me desculpe pelas mensagens. Sei que me
comportei como um babaca na última semana e faz todo sentido estar assim
comigo.
— Por que não me conta o que está acontecendo? — peço.
— Vou contar — assegura, acariciando minha bochecha. — Vim aqui
para te convidar para o baile da clínica e pensei em conversarmos sobre isso
depois.
Pestanejo um par de vezes, arrependida por não ter esperado mais um
pouco. Oras, não tinha como eu saber que ele ia aparecer logo depois que
aceitasse convite de outro homem. Baixo os olhos, não sabendo como
disfarçar que estou em um impasse. Desmarcar com Gustave e aparecer com
Pierre? Ou manter e magoar o meu namorado? Ele nota que fiquei estranha e
me pede para contar o que há.
— Gustave me convidou. — Decido ser sincera. — Não tem quinze
minutos. Aceitei porque não sabia quando você ia aparecer de novo, e como
estava ignorando minhas mensagens não achei que me comunicar antes de
aceitar o convite fosse fazer diferença. Pierre, seria muito deselegante
cancelar com ele e aparecer com você. Me desculpe, mas…
Ele me cala, tocando dois dedos na minha boca.
— Não tem que se explicar, está tudo bem — acalenta, e pela sua
expressão está tudo bem mesmo. Não está magoado ou incomodado. Não se
importa que eu vá com outro homem para o baile. — Vou aparecer sozinho e
posso te roubar uns minutos dele quando sair para buscar champanhe —
brinca, e eu rio, encostando a cabeça contra seu peito. — Ainda assim, depois
do baile, podemos conversar? Posso ir até sua casa e vamos falar sobre isso,
certo?
— Está bem — concordo. — E sobre nós, quando vai falar com seus
superiores?
— Assim que passar essa semana de aniversário. Estou me organizando
para voltar a atender na clínica, remarcando consultas. Está meio que uma
loucura. Prometo que dentro de, no máximo, uma semana, isso já será
resolvido.
Acredito nele. A voz de Adrien soa na minha cabeça, dizendo-me que
não deveria acreditar, mas eu a ignoro, ergo-me nos pés e o beijo.

Gustave não vem.


Comprei um vestido novo só para essa ocasião e me produzi toda. Sabe
como é difícil você mesma ter que fazer cabelo, maquiagem e unha porque
salão de beleza em Paris é artigo de luxo? Ter todo esse trabalho e
simplesmente não poder ir ao baile que estava ansiosa para comparecer. Eu
mereço.
Legrand mandou uma mensagem meia hora atrás, quando estava quinze
minutos atrasado para vir me buscar. A filha se machucou e teve de ir às
pressas ao hospital com ela. Não me deu muitos detalhes e finalizou
escrevendo:

“Sei que vai compreender meu furo porque você é mãe. Lembre-se
da nossa conversa dois dias atrás.”

Respondi que tudo bem e desejei melhoras a Amélie. Ele não me


respondeu mais.
Agora estou aqui, parada de frente ao espelho no meu quarto, pensando
se vou sozinha ou se tiro a maquiagem, o vestido preto e compro uma pizza
para comer na frente da televisão. Talvez devesse ligar para Pierre e, se não
tiver arrumado ninguém, pedir para que vá comigo. Decido pela última
opção. Quem sabe ele fique até animado de que não estarei com Gustave?
Não consigo nada na primeira tentativa. Tento mais duas e somente na quarta
ligação ele me atende. Está ofegante quando diz:
— Oi.
— Ei — murmuro, girando nos calcanhares e me sentando na cama. —
Gustave precisou cancelar comigo — informo. — Pensei que poderíamos ir
juntos ao baile na clínica.
— Julie… — Há um traço de desânimo na sua voz quando menciona
meu nome. — Me perdoe, mas também não poderei ir — avisa. — Estou
entrando agora para fazer uma cesárea de última hora e depois terei que
cobrir esse plantão por falta de médico no quadro. Sinto muito, mas juro que
foi um imprevisto.
Malditos imprevistos.
— Está tudo bem — digo, levantando-me e indo até o banheiro. — Fica
para uma próxima vez, não é? — Seleciono um demaquilante e lenços.
— Oui. Juro que vou te compensar, está bem?
— Não precisa me compensar — falo, segurando o telefone com os
ombros. Molho o lenço no demaquilante e passo no olho direito. — Não foi
você quem furou comigo. Faça seu trabalho.
— Merci, mon coeur. — Sorrio com o seu “meu coração”.
Ele desliga em seguida. Retiro a maquiagem, livro-me do vestido e
desfaço o coque baixo. Pego cobertas, travesseiros e jogo tudo no sofá.
Preparo um balde de pipoca e escolho um filme para assistir. Valentin se
remexe dentro de mim e envolvo meu abdômen para senti-lo melhor. Fecho
os olhos, ignorando a programação por alguns segundos, e me permito curtir
o momento com ele. Lembro-me das orientações do curso sobre vínculo
maternal e tomo uma decisão. Desligo a televisão, desisto da pipoca pela
metade e corro até o quarto dele, ainda em obras. Adrien deixou um rádio
aqui para ouvir música quando estiver trabalhando. Uso-o agora para
conectar o Bluetooth com meu celular e escolher uma música calma. Sento-
me no chão, pernas cruzadas, minhas mãos ainda na barriga.
— Tio Adrien está fazendo um quarto pra você — digo, conversando
com Valentin, fazendo-o conhecer minha voz. — Bem, ainda acho que ele
vai querer fazer um quarto para você depois que tivemos uma pequena briga.
Isso não importa. Ele vai me procurar em breve porque é assim, vamos nos
perdoar pelo desentendimento e tudo ficará bem.
Faço uma pausa, apenas olhando para baixo, afagando meu ventre,
sorrindo cada vez que se mexe e me chuta. Às vezes, ele se mete em lugares
que não deveria, como debaixo das minhas costelas.
— Você não terá um pai, Valentin — murmuro, um nó entalado na
minha garganta. — É bom que saiba isso desde o começo. Mas terá uma mãe
que vai fazer de tudo por você, vai te amar mais do que tudo nessa vida. Você
vai ser o homem da minha vida.
Ele continua mexendo, para lá e para cá. Isso é tão incrível. Passo um
longo tempo assim, falando com ele, até canto e leio uma história. Quando
minha bunda começa a doer porque estou sentada há tempos demais no chão
duro e frio, decido terminar meu filme estirada no sofá.
É uma da manhã quando minha campainha toca. Acordo, meio
sobressaltada, ainda no sofá, televisão ligada, e dor nas costas porque caí no
sono de mau jeito. Demoro algum tempo para me localizar, entender que é
tarde e tem alguém do outro lado. Meu coração dispara e não me atrevo a sair
do lugar. Não sou louca de atender a porta a essas horas da madrugada.
— Juliette, c’est moi. Pierre.
Dou um pulo do sofá e o atendo um segundo depois. Deparo-me com
Pierre elegante dentro de um smoking preto, camisa branca e gravata
borboleta. De onde foi que esse homem saiu?
— Eu te devo um baile e vou te levar a um baile — diz, abrindo um
sorriso galante. — Pronta para essa noite, senhorita Gautier?
JULIETTE
Se tivesse mais pessoas a essas horas da noite na clínica, Juliette com
toda certeza seria a mulher mais bonita. Com um pouco de dificuldade,
consegui convencê-la a se arrumar de novo, alegando que vou levá-la ao
baile. Ela resiste de início, mas se rende e se troca, optando por um vestido
preto com mangas curtas e decote discreto. Faz um coque francês e passa
uma maquiagem básica: base, pó e máscara de cílios.
Nada mais e está linda para cacete.
— Me disse que ia cobrir o plantão — diz terminando de se maquiar.
— É, mas o plantonista da escala chegou. Resolveu os imprevistos dele
e foi cumprir sua carga — explico, dando um passo à frente e tocando-a na
cintura.
Juliette guarda a máscara de cílios e me olha através do reflexo no
espelho. Ela sorri um pouco e se vira para mim, abraçando-me pelo pescoço.
— Vai mesmo me contar o que aconteceu para ter sumido por mais de
uma semana?
Sei que agi como um babaca desaparecendo do mapa assim, sem mais
nem menos, mas o atropelamento de Édouard me deixou meio perturbado e
passei os últimos dias ajudando meu irmão a cuidar do moleque depois da
cirurgia. E teve Francine, com a maldita história de querer a guarda do
garoto. Naquele mesmo dia, depois que o advogado dela me abordou no
hospital, eu a encontrei pelos corredores e tivemos uma discussão bastante
acalorada no almoxarifado. Ela saiu de lá vermelha de raiva me dizendo que
não ia desistir de tirar meu sobrinho de mim porque…
— … você está sendo negligente com ele tanto quanto seu irmão —
justificara.
Eu tinha ficado possesso como nunca fiquei em uma vida, mas ignorei
suas ameaças — nem mesmo comentei sobre isso com Étienne — porque ela
não tem chance nenhuma. Pode contratar o melhor advogado de Paris, da
França, do mundo, da porra que for, ninguém vai tirar Édouard de mim e
deixar sob os cuidados de uma paranoica como ela.
Por conta de todos esses acontecimentos, desapareci por alguns dias,
não liguei para ela, nem respondi suas mensagens — o que foi bem idiota da
minha parte, admito —, mas eu realmente não tinha cabeça para contar tudo o
que estava acontecendo. Não era algo que eu quisesse fazer por mensagem ou
ligação, e também não queria mentir mais do que já tinha mentido.
A poeira baixou um pouco agora. Meu sobrinho está fazendo bons
progressos na sua recuperação, o maldito advogado de Francine não me
infernizou mais, nem ela tocou no assunto — aliás, a mulher nem mesmo me
dirigiu a palavra nas vezes em que nos encontramos no hospital na última
semana. Agora que vou começar a reorganizar a vida, posso ser franco com
Juliette e contar a verdade. Isso não vai passar da noite de hoje, depois do
baile.
— É claro que vou — respondo, por fim, beijando seus lábios. —
Vamos nos divertir um pouco e quando voltarmos, vou contar tudo o que
precisa saber. D’accord? — “Combinado?”.
— Oui — concorda, enroscando-se aos meus braços.
Fazemos o percurso até a clínica com ela me contando como foi sua
semana. Finalmente está se enturmando com o pessoal do RH e fazendo
algumas amizades. Pergunto de Gustave, de como ele se comporta, porque
sei que está interessado nela. Não sou cego. Juliette reage bem à pergunta e
tece elogios a Legrand. Bem, de certa forma sempre soube que ele é um cara
legal, só queria mesmo ter certeza de que não está se aproveitando da posição
de poder que ocupa para assediá-la ou ludibriá-la de alguma maneira.
— Está tudo tão quieto — observa, olhando ao redor quando estaciono
na clínica.
Não respondo, apenas abro a porta do passageiro para ela e a puxo
pelos punhos. Ela sussurra meu nome diversas vezes quando uso uma cópia
da entrada principal e digito a senha para desativar o alarme.
— Pierre, não tem ninguém aqui! — adverte, resistindo em avançar os
corredores comigo. — O baile já acabou, chéri. É claro que já acabou. São
duas e dez da manhã, pour l’amour de Dieu! O que estamos fazendo, homem
do céu?
— O nosso baile ainda nem começou — alego, olhando-a rapidamente
por cima do meu ombro e oferecendo um sorriso sapeca. Ela me encara, sem
entender nada.
Paro frente a uma porta dupla de vidros. O outro lado está parcialmente
escuro e em silêncio.
— Não acredito — murmura, entendendo o que está acontecendo aqui.
Sorri e se aproxima mais, erguendo-se nos pés para espiar lá dentro. —
Pierre… — Vira-se para mim. — Não acredito que você fez isso.
Ofereço um pequeno sorriso e abro as portas, revelando um salão
coberto por balões pretos e vermelhos no chão. Um pouco do que restou do
baile continua aqui, como mesas desarrumadas e copos descartáveis
espalhados aqui ou ali. Mais ao fundo, tem uma mesa arrumada com suco de
uva (especialmente para mocinhas grávidas, rá!), pratos, talheres e alguns
petiscos que sobraram e roubei da cozinha.
— Não precisava…
— Precisava — interrompo-a, virando-a para mim. — Sei que não vai
ser a mesma coisa sem os outros convidados, mas…
Desta vez é ela quem me interrompe:
— Prefiro assim, a sós com você. — Julie me segura pelas mãos e se
ergue nos pés para depositar um beijo cálido na minha boca. — Isso não vai
te pôr em apuros? Invadir a clínica no meio da noite para um baile a dois?
— Não vão saber, não se preocupe — garanto.
Ela acena, sorri e caminhamos até a mesa que preparei para nós.
— Não acha melhor passar uma mensagem para o seu primo? —
pergunto, jogando um pedaço de canapé na boca. — Ele pode ficar
preocupado se por acaso levantar no meio da noite e não te ver.
Suas bochechas ruborizam um pouco. Juliette abaixa os olhos para sua
taça de suco por alguns segundos antes de me olhar e dizer:
— Adrien não está mais em casa, não se preocupe. — Seu tom é meio
entristecido e desperta curiosidade em mim. Aconteceu alguma coisa entre os
dois durante minha ausência. — Já estou melhor, posso voltar a ficar sozinha
em casa e… bem. — Ela se remexe na cadeira, desconfortável, enche a boca
de rolinhos de massa folhada e completa: — Meio que o expulsei.
A informação me pega de surpresa.
— Por quê?
Há outro momento de silêncio entre nós, Juliette ainda demonstrando
que tem alguma coisa a incomodando. Limpando os lábios com o guardanapo
de papel, responde:
— Ele fez uma insinuação pouco agradável a seu respeito, não gostei,
saí em sua defesa e o expulsei de casa. Bem, meu primo também me ofendeu.
Ergo uma sobrancelha, curioso em saber o que Adrien teria dito ao meu
respeito que inclusive chegou a ofendê-la.
— Que insinuação? — pergunto, engolindo um tomatinho com
Boursin.
— Você sumiu por esses dias e foi impossível não ficar preocupada
com você, com o que teria acontecido e isso me deixou um pouco aflita.
Adrien percebeu, me falou para ficar “atenta aos sinais”, sabe? Sinais de um
cara idiota igual o… — Para de falar e não preciso que continue. Sei
exatamente a quem se refere. — Enfim. Ele achou que você tinha sumido
porque perdeu o interesse em mim por eu… ser uma mãe solteira. — Seus
olhos castanhos se erguem lentamente na minha direção, e estão tão aflitos,
quase como se suplicassem um pedido para que o primo esteja errado em sua
teoria. E está. Totalmente.
Não digo nada por dois ou três segundos, estudando o absurdo que é a
conclusão de Bourdieu. Então, me levanto, pego minha cadeira e levo mais
para perto dela. Seguro suas mãos e beijo seus lábios com delicadeza.
— Se você não me tivesse dito agora que é mãe solteira, nunca teria
sabido — brinco, murmurando contra sua boca e acariciando sua bochecha.
Aqui, tão pertinho dela, posso observar seu rosto, suas pequenas e quase
imperceptíveis sardas em torno do nariz, sentir seu cheiro doce e suave. Ela ri
da minha piada e me olha com mais intensidade. — Seu primo disse uma
besteira sem tamanho. Estava grávida quando te conheci, estava grávida
quando me interessei por você, estava grávida quando decidi te trazer para
minha vida. Sei o que implica namorar uma mãe solteira e estou disposto a
enfrentar todos os riscos.
Juliette sorri e desce os olhos para sua barriga. Faço o mesmo e, vendo-
a com a mão contornando o abdômen, cubro as suas com as minhas. Sinto
Valentin se remexer, de um lado para outro.
— Ele gosta mesmo da sua voz.
Abro um sorriso pequeno e fecho os olhos, deixando-me levar pela
sensação. É bom senti-lo mexendo. Não sei explicar por que gosto disso, só
gosto. O bebê para de se mover e terminamos nossa “refeição”, ela me
dizendo que pretende começar a montar o enxoval do menino em breve. Digo
que quero acompanhá-la nesse dia e Juliette me dá um dos sorrisos mais
incríveis.
— Ainda não acabamos — digo, levantando-me e a puxando pelos
punhos. — Um baile não é um baile sem uma dança, não concorda, senhorita,
Gautier?
Eu nos levo até o centro do salão, o mar de bexigas rodeando nossos
pés. Com um controle remoto, aciono o sistema de som. O grande globo
espelhado fixado no teto começa a girar e cria uma atmosfera gostosa no
ritmo das primeiras notas de Is This Love, Whitesnake. As batidas da balada
dos anos oitenta vai preenchendo o ambiente. Ao passo que ela se segura à
minha cintura, me apoio nos seus ombros e nós seguimos os compassos da
música, olhos nos olhos. Cara, ela é tão linda.
Não dizemos nada um ao outro enquanto dançamos, passos lentos,
deslizando pelo salão, fazendo as bexigas flutuarem conforme nos movemos.
No refrão da música, tenho um ímpeto incontrolável de beijá-la. Minha boca
cola à dela quando David Coverdale pergunta se o que ele sente é amor.
Isso é amor, o que estou sentindo?
Esse é o amor que eu estive procurando?
Isso é amor, ou eu estou sonhando?
Isso deve ser amor
Porque isso realmente toma conta de mim
Toma conta de mim

Eu a beijo, com paixão, nesse momento em que minha dúvida se iguala


ao do vocalista. O mundo parece parar enquanto estou aqui, tomado pelos
lábios dela, perdido no desejo avassalador que essa mulher me faz sentir,
tentando distinguir meus sentimentos e me perguntando por que fiquei tão
envolvido em tão pouco tempo. Talvez o amor seja isso mesmo, algo que não
pode ser explicado, apenas sentido.

Eu posso sentir meu amor por você


Ficando mais forte dia a dia
E eu mal posso esperar pra te ver novamente
Para que eu possa te envolver nos meus braços

Separo-me da sua boca, mas me mantenho perto o suficiente, e sorrio.


Ela sorri de volta, deita a cabeça no meu tórax e não dizemos mais nada um
ao outro até a música acabar. Talvez o amor dispense palavras porque quem
ama não apenas diz, mas sente, demonstra e vive.
— Quer subir? — sussurra para mim, frente à porta da sua casa. É
tarde, quase quatro da manhã.
Não quero incomodar, mas prometi que, depois do baile, iríamos
conversar. A menos que me peça para deixar para outra hora, vou contar tudo
o que precisa saber agora mesmo.
— Não quer descansar? Posso ir embora se quiser — digo, embora meu
desejo seja mesmo de subir, me deitar na cama com ela, colocá-la em meus
braços, beijar sua boca.
Como resposta, ela apenas me puxa pelos punhos e me leva para
dentro. Meio minuto depois, estamos no seu quarto, frente a frente. O abajur
perto da cabeceira está aceso, criando uma atmosfera agradável à meia-luz.
— Nós vamos conversar? — pergunto, baixinho.
Juliette abana a cabeça em positivo e me segura pelos dois braços,
afagando-me vagarosamente — para cima e para baixo — e diz:
— Vamos, mas não agora. — Penso em protestar, dizer que não dá
mais para ficar adiando isso e quero mesmo contar tudo, mas ela interrompe
qualquer menção que eu faça e completa: — Vamos aproveitar o restinho da
noite e quando amanhecer, nós conversamos. Esperei até agora, Pierre. Posso
esperar mais algumas horinhas.
Suspiro e cedo, principalmente quando, de um jeito meio sensual, ela
tira meu paletó, jogando-o sobre a cama. Então, nesse momento, sei por que
não quer conversar comigo. Sinto um tremor diferente dentro de mim ao
pensar nisso.
— Você tem camisinha? — pergunto, engolindo em seco, enquanto ela
abre lenta e sedutoramente os botões da minha camisa. É madrugada. Não
vou achar nada aberto a essas horas. Para minha sorte, ela confirma com um
sussurro:
— Na gaveta do criado-mudo.
Sorrio um pouco, entusiasmado com o passo importante que vamos dar.
Nossa primeira vez.
PIERRE
Ela me toca, as mãos pequenas e ligeiramente geladas contra meu
tórax, e seu contato me causa uma energia boa. Molhando os lábios — acho
até que é um ato inconsciente e mecânico —, Juliette não tira os olhos do
meu peito, suas palmas escorregando para cima e para baixo, suavemente.
Quando estou pensando em tocá-la, ela se aproxima de repente, colando sua
boca no meu mamilo direito. Fecho os olhos, apreciando o toque, ao passo
que distribui beijos por toda a extensão do meu tronco.
Suspiro e abro os olhos quando sua boca úmida encontra a minha, seus
braços me cingindo em um abraço gostoso. Retribuo, ritmo calmo,
apreciando o gosto da sua boca, o calor do seu corpo no meu. Aperto sua
cintura, trazendo-a mais para mim o quanto sua barriga permite. Desvio meus
lábios para seu pescoço e sinto o gosto do seu perfume na ponta da minha
língua. Jogando a cabeça para trás, deixa um gemido no ar, e eu vou
distribuindo meus beijos úmidos pela sua pele do pescoço, ombros, clavícula.
Abaixo as alças do seu vestido até ter a visão dos seus seios pequenos e
acesos. Em um movimento lento, inclino-me e tomo o direito entre meus
dentes, chupando-o vagarosamente, circundando a língua no bico
intumescido. Ela afunda seus dedos nos meus cabelos, puxando-me mais,
exigindo mais, querendo mais. E eu dou tudo o que ela quer. Enquanto dou
atenção ao seu seio direito com um chupada lenta e suculenta, massageio o
esquerdo, intervalando com pegadas firmes e pequenos beliscões no mamilo.
Ela gosta, porque geme, se contorce e me aperta cada vez mais com força.
Satisfeito, passo para o esquerdo, repetindo o processo prazeroso. Coloco-o
todo em minha boca, sugando o mamilo, circulando a auréola, e dou a
atenção que essa sua parte do corpo merece por algum tempo.
Estou duro antes mesmo que possa perceber. Um gemido escapa de
mim, seu seio esquerdo ainda entre meus dentes, quando sua pequena mão
escorrega até o vão das minhas pernas e me aperta. Contorço-me, desejando
mais do que um simples toque por cima da calça. Nossos olhos se encontram
e, à medida que deixo seus peitos mais acesos e ela mais excitada, Juliette
desfivela minha calça, abre o botão e tem livre acesso ao meu pau. Acaricia-
me por cima da cueca e estou prestes a conduzi-la para dentro do tecido
quando o faz por si só. Seu toque quente me arranca um suspiro estrangulado,
e agora chupo seu par de peitos com mais afinco.
Tiro seu vestido por completo, deixando-a praticamente nua para mim.
A calcinha preta de renda é a única peça no seu corpo. Admiro-a por um
minuto inteiro, e ela me toma em suas mãos de novo, olhando dentro dos
meus olhos enquanto me masturba. Minha respiração falha à medida que me
toca, devagar. Não sei se está sendo suave ou se está tímida.
Retribuo as carícias, tocando sua boceta. Ela solta um suspiro de
surpresa quando minha mão grande encontra seu sexo pequeno. Quero sentir
toda a sua carne úmida, mas mantenho o carinho por cima do tecido rendado
por algum tempo, até que eu sinta que ela está confortável com a situação.
Devagar, vou colocando a mão por dentro da calcinha, deslizando meu toque
até seu ponto mais sensível. Encontro seu clitóris e o acaricio, meus olhos nos
dela, que ela batalha para manter abertos ao passo que geme baixinho contra
meu indicador. Escorrego minha mão livre na coluna dela, empurrando-a
mais para mim, e murmuro ao pé do seu ouvido:
— Se esfrega nos meus dedos, Julie.
Soltando um grasnado baixo, joga a cabeça levemente para trás. Com
minha mão na sua coluna, incentivo-a. Começa com movimentos tímidos dos
quadris, devagar, mas quando introduzo o indicador e o médio dentro dela,
minha namorada se agarra aos meus ombros com as duas mãos e se esfrega
com mais vontade, em um ritmo frenético. Para facilitar, me sento na cama e
a ponho no meu colo. Mais estabilizada, o movimento do seu quadril contra
meus dedos intensifica. Suas pupilas dilatadas nas minhas, eu sentindo que
cada vez mais fica molhada.
— Eu… — Não sei o que vai dizer porque Juliette se interrompe,
enfiando o rosto entre meu pescoço, mas tenho quase certeza de que estava
para anunciar um orgasmo. Morde meu ombro e abafa um gemido trêmulo.
Os movimentos acabam, e ela fica somente abraçada a mim, respirando
com dificuldade. Sigo acariciando seu clitóris, agora mais suavemente,
esperando seu corpo se acalmar. Um minuto depois, giro-a e a deito na cama,
ficando por cima dela, com cuidado para não descarregar muito peso sobre
sua barriga. Tomo-a em um beijo sereno mais uma vez, tornando a fazer
caminho à sua boceta e sentir como está extremamente molhada, pronta para
me receber. Ela dobra os joelhos, facilitando nosso contato. Está tão
escorregadia. Alterno entre circular seu clitóris e penetrá-la com os dedos,
beijando sua boca ou a olhando nos olhos.
Segura meu punho, parando meu toque nela, puxa minha mão para
cima. Penso em insistir em continuar a masturbando, mas o movimento
ousado que faz me deixa sem ação e mais excitado. Juliette chupa meus
dedos, nunca parando de me olhar, saboreando seu próprio gosto. Então me
conduz para baixo outra vez e dita o ritmo que quer que eu a acaricie. Meus
dedos estão cheios do seu fluído de novo quando os puxa para cima, mas, em
vez de chupá-los, direciona-os para minha boca. O sabor agridoce da sua
boceta é uma delícia. Quando percebo, já estou me ajustando entre suas
pernas, aspirando fundo o seu aroma e circundando seu clitóris com a língua,
movendo-a em círculos ou para cima e para baixo. Ela geme, se contorce,
prende minhas têmporas com os joelhos, mergulha os dedos nos meus
cabelos. Quero mais espaço, por isso afasto suas pernas o quanto consigo,
deixando-a exposta para mim. Penetro dois dedos nela e a fodo assim um
instante enquanto minha língua continua sua tarefa.
Juliette sempre teve uma influência diferente sobre mim, sobre minha
mente, desde que a conheci. No começo, foi difícil me acostumar ou entender
por que me preocupava com ela além da minha obrigação, por que queria
protegê-la, estar por perto, ajudá-la. Demorei a notar que despertava meus
mais profundos anseios, e agora, enquanto a chupo, sinto seu gosto e o ato me
deixa cada vez mais excitado, ela prova que não é capaz apenas de dominar
minha mente, mas também o meu corpo, despertando-me para um desejo
irresistível de tê-la de todas as formas.
— Preciso entrar em você — murmuro, voltando para sua boca. Ela
está em êxtase, pálpebras apertadas, uma pequena gota de suor na testa.
Beijo-a de novo, ainda a tocando, quando digo um pouco mais obsceno: —
Preciso comer você.
Juliette arqueja, suspira e balança a cabeça, erguendo os quadris de
encontro ao meu. Pego a camisinha no criado-mudo e me revisto. Encaixo-
me na sua entrada e toco seu queixo antes de penetrá-la.
— Olhe para mim, Julie — peço. Ela abre os olhos, atendendo aos
meus comandos. As pupilas estão dilatadas, repletas de desejo. — Quero que
olhe para mim quando eu entrar nas suas pernas. Quero seus olhos nos meus
enquanto te fodo.
E — putain! — ela realmente não desvia seus olhos dos meus quando
escorrego para dentro dela, devagar, tomando-a centímetro por centímetro, e
isso me deixa em um nível de excitação maravilhoso. Gosto desse contato,
dos olhos nos olhos, dos lábios se roçando e dos gemidos que trocamos.
Juliette abraça minha cintura com as pernas, apertando-me, ao mesmo tempo
em que os braços esmagam minhas costas e sua boca, sedenta, procura pela
minha. Eu a beijo, com tudo que há em mim. Mantendo o peso do meu corpo
nos braços, movo os quadris um pouco mais forte, mais rápido. Seus gemidos
se intensificam à medida que estoco nela. Fecho os olhos, deixando o êxtase
correr pelas minhas veias.
Giro na cama, colocando-a sobre mim. Seguro sua cintura e nem
preciso de nenhum comando. Juliette por si própria começa a cavalgar em
mim, mas não suporto mais que dez segundos nessa posição. A pequena
distância entre nossos tórax é grande demais para mim. Por esse motivo, eu
me sento na cama, colando meu peito ao dela, escorregando a mão até sua
coluna e forçando-a para mim, da mesma maneira como movo os quadris de
encontro ao seu. Tomo sua boca na minha, enquanto a ajudo a cavalgar.
Quando joga a cabeça para trás e deixa um gemido alto escapar, abocanho
seus seios e sei que está gozando pela segunda vez.
Seu pequeno corpo estremece sobre mim, os quadris contra o meu com
mais força, com mais intensidade, mais desespero. A imagem à minha frente
é quente demais, linda demais, excitante demais para que aguente segurar.
Puxo seu rosto, seus olhos nos meus.
— Juntos — sussurro apenas. Beijo-a, forte, deixando um gemido
descontrolado na sua garganta quando me liberto.
Mesmo depois do gozo, por trinta segundos, mantemos o ritmo intenso,
eu contra seus quadris, ela contra os meus, nossas bocas coladas, um
gemendo gostoso para o outro. Aos poucos, diminuímos a intensidade até
estarmos parados, enroscados, conectados, beijando-nos calmamente,
acalmando nossos corpos.
Juliette me olha, sorri, acaricia meus cabelos bagunçados e beija o
canto da minha boca. Faço o mesmo, ainda recuperando minha respiração e
sentindo meu coração acelerado. Ela sai de cima de mim, e contemplo seu
corpo nu por um instante enquanto se enrola no meu casaco, só no meu
casaco. Puta merda, que imagem.
Descarto a camisinha, ela me olha de um jeito meio acanhado. Rodeio
seu corpo e beijo o alto da sua cabeça. Juliette também me abraça e sua mão
direita de repente desce entre nossos corpos. Ri contra meu pescoço quando
sente que continuo duro.
— Vamos tomar um banho — convida.
No chuveiro, ela lava minhas costas, brinca com meu pau que segue
rijo e gargalha de alguma piada infame que conto. Depois, eu a ensaboo,
roubo um beijo, circundo sua barriga, brinco com seu clitóris, e vejo o desejo
atravessar seus olhos quando começa a ficar excitada de novo. No quarto,
vestido apenas com minha cueca e debaixo dos seus lençóis, ela se ajeita no
meu tórax, abraçando meus quadris e ronronando.
— Ei, dorminhoca, temos que conversar — digo.
— Depois, Pierre — pede, puxando mais a coberta para se cobrir. —
Estou cansada. Juro que conversamos assim que acordamos, tudo bem?
Jamais seria capaz de privar uma mulher grávida do seu merecido
descanso, por isso apenas concordo. Juliette sorri um sorriso sonolento,
ajeita-se pela última vez no meu peito, dá um último suspiro e cai no sono.
Não consigo dormir por algum tempo. Fico a observando, velando seu sono,
brincando com seus cabelos, beijando sua boca. Ela está tão cansada que nem
acorda com minhas pequenas investidas.
Desperto, mas ela continua dormindo. São onze da manhã. Desço até a
cozinha e preparo alguma coisa para comermos. Compro frutas, baguete e
croissant no mercado perto da sua casa. Espremo algumas laranjas e separo
um pouco de geleia. Ponho tudo em uma bandeja e levo para o quarto.
Juliette está despertando quando me sento ao seu lado.
— Um namorado que traz café da manhã na cama — murmura, ainda
meio sonolenta. Senta-se, puxando o lençol para cobrir o dorso despido. —
Onde você estava esse tempo todo?
Rio e a beijo, colocando uma uva na sua boca. Ela mastiga e engole.
Mordo um pedaço do croissant e digo:
— Podemos conversar agora?
Ela balança a cabeça em positivo, passando um pouco de geleia na
baguete. Espero alguns segundos, pensando em como começar isso.
— Menti pra você — murmuro, e ela levanta o olhar para mim no
mesmo instante. — Semana passada, no restaurante, a ligação que recebi, não
era de nenhuma paciente em trabalho de parto. O meu sobrinho foi
atropelado.
Julie arregala os olhos, assustada com a informação.
— Por que não me contou a verdade? — pergunta, confusa.
— Quem me informou foi… minha ex-namorada — informo, e um
instante de tensão cresce entre nós. — Ela é médica também, neurocirurgiã, e
trabalha no Necker junto comigo. Você inclusive chegou a conhecê-la. —
Juliette me olha com atenção, esperando que eu complete minha frase: — A
doutora Perrot.
— Oh. — Um murmuro de surpresa escapa dela. — Mas ainda não
entendi por que mentiu.
Umedeço o lábio inferior e explico:
— Ela é uma pessoa complicada e nunca aceitou o nosso término. Se
eu tivesse te contado sobre o que aconteceu, teria ido atrás de mim no
hospital, não teria?
— É claro que sim!
Aponto o indicador em sua direção.
— É exatamente por isso que não contei. — Seguro suas mãos e a olho
nos olhos. — Ainda não quero que ela saiba que tenho uma nova namorada,
entende? Porque isso seria o suficiente para ela nos perturbar, poderia
inclusive… contar para os meus chefes sobre nosso namoro e nos prejudicar
com isso.
— Ela é tão ruim assim?
— Francine não é ruim. — Acaricio suas mãos. — Só… rancorosa e
possessiva demais. — Suspiro. — Enfim, quando recebi a ligação, não tinha
tempo de te explicar isso tudo que estou explicando agora porque meu
sobrinho estava entrando na sala de cirurgia. Désolé.
Juliette sorri e abana a cabeça.
— Não se desculpe, Pierre. Teve seus motivos.
— Uma mentira continua sendo uma mentira mesmo com as melhores
das intenções.
Juliette se inclina para mim e me beija. Afaga minha bochecha, pega
uma uva e coloca na minha boca.
— Desculpado — cicia.
— De verdade? Mesmo por ter me comportado como um babaca
sumindo por mais de uma semana, ignorando suas ligações?
— Estava cuidando do seu sobrinho, Pierre, que foi atropelado. Podia
pelo menos ter me dado uma ligação, mas… já passou. Vamos só seguir em
frente e…
— Não vai mais acontecer — interrompo-a. — Je te promets —
prometo. — E sobre nós, pretendo conversar com meus superiores ainda essa
semana. — Suspiro e pego uma mecha do seu cabelo. — Preciso te dizer que
terei que te indicar para outro obstetra.
Juliette se afasta de mim, ligeiramente assustada, e me olha com
atenção.
— Por quê?
— Porque nossa relação é proibida e antiética. O Conselho de Medicina
não admite nenhum tipo de relacionamento amoroso ou sexual entre médico e
paciente. Foi por isso que te pedi para sermos discretos até eu poder
conversar com meus chefes, explicar a situação. É arriscado eu perder meu
emprego no Necker e na clínica. Odeio essa situação, Julie, odeio mesmo,
mas não vão permitir que eu seja seu médico. Sinto muito.
Ela fica em silêncio por algum tempo, olhos fixos em algum lugar,
umedecendo os lábios constantemente. Pega-me de surpresa quando diz:
— Então não diga nada.
Não acho aconselhável. A última coisa que quero é ficar a escondendo
dos outros.
— Julie, não — advirto, suavemente. — Seria imprudente demais da
minha parte.
— Sei que é um pedido egoísta — diz, segurando minhas mãos, seus
olhos nos meus. — Nosso relacionamento pode te colocar em uma situação
delicada e pode até a perder seu emprego, mas, Pierre, não quero me
consultar com ninguém mais a não ser você. Não confio em nenhum outro
médico para cuidar de mim e de Valentin a não ser você. S’il te plaît —
suplica.
Estudo seu pedido por alguns segundos, relutante em atendê-lo. O mais
correto seria eu indicar outro especialista que acompanhará sua gravidez, mas
fico tentado em mantermos tudo como está. Também não gosto da ideia de
ela se consultando com outro médico, não por ciúme, mas porque tenho a
impressão que só eu sei cuidar dela, que só eu conheço suas necessidades de
mulher, de gestante.
— Pierre — me chama, puxando meu queixo e me fazendo olhá-la —,
você foi o único médico em toda uma vida que foi mais atencioso comigo.
Todos os outros são sempre tão distantes e frios. Gosto que seja receptivo e
caloroso, gosto do seu humor, da sua paciência. Por favor… Olha, o Valentin
vai nascer em breve, podemos nos manter discretos até o nascimento e até
você não ser mais o meu médico. Depois, podemos nos assumir como se não
estivéssemos juntos esse tempo todo.
Parece simples, mas não é. Na clínica, não é antiético se relacionar com
uma ex-paciente desde que não tenha nenhum contato profissional com ela
há, pelo menos, dois anos. No Necker, isso sobe para três. Se eles descobrem
meu envolvimento com Juliette enquanto é minha paciente, mesmo se isso
acontecer quando ela não for mais minha paciente, ainda é passível de
punição com demissão.
Mas tem como resistir a esse pedido absurdo quando me pede assim,
olhando-me como se eu fosse a única pessoa no mundo todo em que confia
cegamente? E talvez seja, porque ela completa:
— Só confio em você pra cuidar da gente. — Juliette pega minha mão e
coloca sobre seu abdômen.
É o suficiente para que eu ceda.
— Tudo bem — suspiro.
Ela envolve minha nuca, me olha nos olhos e me acaricia, agradecendo.
Em seguida, toma-me em um beijo singelo. O lençol que cobre seu seio cai, e
isso é o suficiente para que eu reaja. Livro-me de toda a bandeja do café da
manhã e torno a beijá-la, puxando-a para mim e trocando nossas posições.
Recosto-me à cabeceira da cama e chupo seus seios enquanto, sobre mim, ela
rebola e me provoca. Não demora para que eu esteja realmente duro e Julie
esteja muito molhada. Depois que coloco uma camisinha, é um movimento
rápido e simples penetrá-la. Enquanto cavalga intensamente em mim, eu só
tenho um pensamento.
Obrigado, libido de grávida.

É difícil deixá-la, mas preciso. Depois de almoçarmos juntos, preciso ir


para casa. Antes, faço algumas pesquisas e descubro onde Adrien trabalha.
Procuro-o lá, mas sou informado de que não está. Consigo o endereço dele,
em um prédio modesto. A portaria me anuncia e subo quando é permitido. O
rapaz já está na porta quando chego no seu andar.
— Quem é vivo sempre aparece — diz, encostado ao batente da porta.
— Soube que você e Julie discutiram por minha causa — menciono,
sem rodeios.
Ele desvia o olhar um segundo.
— Não me leve a mal, Laurent — fala, voltando-se para mim. — Mas o
seu comportamento…
— Eu sei — corto-o. — Não agi direito com ela, mas já a procurei,
expliquei o que houve e nos entendemos.
Adrien acena em positivo, ainda meio resignado de mim.
— Agradeço que se importe com Juliette e queira protegê-la. Jamais
poderia me ofender ou me irritar com o fato de tentar mantê-la em segurança.
É por isso que vim aqui pessoalmente te dizer que não precisa se preocupar
comigo. Não sou igual ao Antony, eu nunca faria qualquer mal àquela
mulher. Você tem a minha palavra.
Ele ergue uma sobrancelha, me estuda por alguns segundos.
— E de que sua palavra me vale?
— É tudo o que tenho e, pode ter certeza, minha palavra é uma das
coisas mais importantes pra mim. Não é só sobre o que prometo, Adrien. É
sobre o meu caráter. Se se permitir me conhecer melhor, vai ver que não
precisa se preocupar com Julie enquanto estiver comigo.
Bourdieu suspira, dá um passo à frente e estica a mão para mim.
— Não me faça me arrepender em te dar a minha benção.
Quando aperto sua mão, ele me traz para um abraço.
JULIETTE
— MON DIEU, VOCÊ VAI EXPLODIR! — Juliene grita,
escandalosamente. Ela me toma em um abraço apertado e, sentido uma
saudade imensa dessa criaturinha, retribuo seu gesto.
Nem me importo que estejamos no meio do caminho, enquanto outras
pessoas desembarcam e são recepcionadas por amigos e entes queridos.
Afasto-me e a analiso. Minha menininha cresceu, embora continue baixinha,
com seus um metro e cinquenta e cinco. Abro um sorriso, orgulhosa dela.
Juliene é incrível, de verdade. Não que eu tenha sido a ovelha desgarrada da
família, mas minha irmã sempre foi a mais centrada de nós duas, mais
ajuizada, decidida e esforçada.
Temos uma diferença de sete anos. Quando essa pirralha nasceu, ela se
tornou tudo para mim. Eu era a irmã mais velha, e meus pais viviam dizendo
que deveria dar o exemplo. Passei a vida tentando ser uma pessoa perfeita
para que Juliene se espelhasse em mim, sentisse orgulho de mim, que me
visse como uma pessoa a ser seguida. Ao longo dos anos, é claro, cometi
erros. Perdi a virgindade antes dos dezessete, no banheiro da escola; fumei
por alguns anos, parte deles escondidos dos meus pais, experimentei
maconha, menti e faltei às aulas no ensino médio. Toda a postura de “irmã
perfeita” era apenas uma fachada, porque no fundo, no fundo, eu era uma
adolescente rebelde que vivia se metendo com coisas erradas.
Meu maior medo era que Juliene descobrisse meus podres, as coisas
erradas que fiz, e se decepcionasse comigo. Não conseguia vê-la fazendo as
mesmas coisas que eu. Era hipócrita da minha parte, sei disso, mas não podia
evitar o sentimento. Quando entrei na faculdade, dei uma endireitada.
Dediquei-me aos estudos, não tanto quanto ela quando iniciou sua vida
acadêmica, mas me dediquei. Vez ou outra, só para não perder o costume,
fazia algo de errado.
Minha irmã sempre viu em mim o exemplo perfeito a ser seguido. E eu
sempre tive medo de não suprir suas expectativas, de frustrá-la. É por isso
que não contei a verdade sobre minha gravidez, não contei sobre meu
envolvimento com um homem casado, nem sobre ter sido espancada pelo pai
do meu filho porque fui burra o bastante de engravidar dele e ameaçar contar
toda a verdade para a esposa. Não, não. Ainda morro de medo de decepcioná-
la. Então, tudo que minha irmã sabe é que me envolvi com um cara, não me
preveni como exaustivamente eu a aconselhei quando começou a ter relações
sexuais, engravidei, o safado não quis assumir a criança e sumiu da minha
vida.
Adrien se opôs muito à mentira, tentou me convencer de que Juliene
merecia saber a verdade, mas me decidi que era melhor a doçura da mentira
do que o amargor da verdade. Acho que jamais suportaria o olhar de desprezo
dela se soubesse das coisas terríveis que fiz. Por fim, convenci o teimoso do
meu primo a manter a boca fechada e concordar com a minha versão dos
fatos.
— Senti tantas saudades — reclamo, abraçando-a de novo e inalando
seu cheiro suave. Já tem bem uns dois anos desde a última vez em que nos
vimos, embora minha irmã more relativamente perto.
— Eu também. Não sabe como fiquei animada e ansiosa pra vir te ver
depois que me contou da gravidez.
Fecho os olhos por um instante, me recordando desse dia. Tinha sido
logo ao me recuperar cem por cento das agressões do Antony, cerca de um
mês e meio depois. Isso deve fazer mais ou menos umas oito semanas. Decidi
que só ia me comunicar com ela quando os sinais daquela violência não
estivessem mais visíveis no meu rosto, só para caso ela quisesse uma
conferência em vídeo ou, imprevisível como é, voasse da Inglaterra para cá
de uma hora para outra só para me ver. A última coisa de que precisava é que
minha irmã caçula visse meu rosto lesionado e eu tivesse de explicar os
motivos verdadeiros dos machucados e da gravidez.
— Como vocês estão? — pergunta, afastando-se e colocando a mão na
minha barriga. — Depois daquele susto?
O “susto” foi a ameaça de aborto, um mês e meio atrás, exatamente
duas semanas depois que contei para ela sobre minha gravidez. É claro que
ela surtou primeiro porque demorei mais de um mês desde que descobri a
gravidez para contar. Minha desculpa foi que eu estava envergonhada porque
seria mãe solteira. Dois dias depois da minha alta, quando pedi a Adrien para
informar que estive no hospital, ela surtou mais ainda e me mandava
mensagens o tempo todo querendo saber do meu estado de saúde. Esses
exageros descabidos devem ser de família.
— Estamos bem, Juliene, não se preocupe — garanto, beijando sua
bochecha. — Vamos? — convido-a.
Ela puxa sua mala de rodinhas e seguimos até o ponto de táxi, a mais
nova tagarelando sobre a faculdade, ao mesmo tempo lamentando que só
poderá ficar o final de semana para visita, pois na segunda-feira precisa estar
de volta a Londres e continuar com as aulas.
Quando o motorista do táxi joga sua bagagem no porta-malas, ela ainda
está tagarelando, falando de irmos às compras amanhã depois do almoço, que
já combinou tudo com Adrien para continuarmos montando o quarto de
Valentin — com as obras lentas porque o homem só tem folga uma vez na
vida e outra na morte.
— Aliás, que história foi essa de escolher o nome do meu sobrinho sem
me consultar? — brinca, puxando o cinto de segurança enquanto dou as
coordenadas ao taxista sobre nosso destino.
Coro levemente quando me dou conta de sua pergunta. Ainda não
contei sobre Pierre para Juliene. Tinha toda a questão de estar me envolvendo
com outra pessoa logo depois de “ser abandonada” e não queria que ela
pensasse o pior de mim ou viesse com os mesmos conselhos que Adrien deu
quando percebeu que estava envolvida com o doutor.
— Desculpe — peço. — Foi algo decidido meio subitamente.
— Como assim? — Quer saber.
— Prometo te contar quando chegarmos em casa, tudo bem?
Ela faz cara de contrariada, porém concorda. Em casa, depois de
descarregar a mala e instalá-la no meu quarto — teremos que dormir na
mesma cama —, minha irmã me arrasta para cozinha, toda enérgica, e
começa a revirar minha geladeira e armários para preparar algo para
comermos.
— Vai, agora conta tudo — diz, colocando o arroz para cozinhar.
Quando se vira para mim, só então dou por mim que contar sobre como
escolhi o nome do bebê pode, e vai, puxar o fio da meada e minha irmã, uma
hora ou outra, vai acabar descobrindo toda a verdade. Engulo em seco,
ignorando seus olhos suaves sobre mim enquanto aguarda uma resposta
minha. Debruçada sobre o balcão, na minha frente, brinca com uma mexa do
seu cabelo castanho.
— Estou com alguém. — Não é a minha melhor maneira de começar
isso, mas não vejo outro modo. Uma hora ou outra ela vai saber mesmo. Que
seja. Juliene arregala os olhos e entreabre os lábios. — E foi ele quem sugeriu
— confesso, mordendo a parte interna da minha bochecha. — Gostei da
sugestão e decidi que seria Valentin.
— Espera… — murmura, fazendo um sinal com a mão. — Você está
com alguém e não me contou? — Seu tom tem notas de mágoa comigo.
É claro que está magoada comigo. Tudo bem que nunca fomos do tipo
grudadas que confidenciam tudo o tempo todo e esse distanciamento
aumentou desde que se mudou para a Inglaterra a estudos, mesmo que a
distância entre Londres e Paris seja pequena e, se ela quisesse, poderia me
visitar com mais frequência. Ainda assim, era o mínimo que eu deveria ter
feito, não? Ter contado que estou com alguém, mesmo que seja relativamente
cedo essa relação com Pierre.
— Estou. Não faz muito tempo.
— Ainda assim, poderia ter me contado — sublinha, desviando o olhar
de mim por um segundo.
— Eu sei. Me perdoe. Mas, de qualquer maneira, quando Pierre sugeriu
o nome do bebê, não tínhamos nada. Éramos só amigos, mas eu…
Juliene se volta para mim, grande sorriso, olhos brilhando, daquele seu
modo romântica incurável. Detenho-me diante seu olhar e sorriso, sabendo
que nem preciso terminar minha frase para que a faça entender. Minha irmã
já compreendeu.
— Ai que fofo. Como vocês se conheceram?
Coro um pouco mais sem quase perceber. Bem, faltou um detalhe que
deixei de fora e não sei como vai reagir. Ela se levanta, torna a revirar a
geladeira até encontrar a jarra de suco e nos serve, preparando um sanduíche
para forrarmos o estômago enquanto o arroz não fica pronto. Aliás, nem sei o
que essa garota pretende cozinhar. Talvez esteja apenas desperdiçando
tempo, gás e comida. Enquanto monta o sanduíche de queijo, tomo uma dose
de coragem e menciono o detalhe mais importante dessa minha relação:
— Ele é meu obstetra. — É claro que não tenho intenção nenhuma de
dizer como de fato nos conhecemos porque isso inclui contar a verdade.
Juliene tosse, engasgando-se com um pedaço de queijo que mastigava,
e me olha. Vejo advertência e reprovação nesse olhar. Mas daí, de repente,
ela suaviza a expressão, empertiga-se mais no balcão e murmura:
— Já transaram no consultório dele?
Bato na sua mão e dou uma risada escandalosa:
— Juliene!
— Ah, vamos! Vai me dizer que não pensou nisso?
Não quero bancar a santa, mas a verdade é que não, não pensei em sexo
com Pierre no consultório dele. Até porque só tivemos nossa primeira vez
três semanas atrás. Mas não acho que sexo no consultório dele seja a coisa
mais prudente do mundo. Tem o fato que sou uma paciente e isso poderia
colocá-lo em uma situação muito, muito comprometedora e prejudicar sua
carreira. Deus me livre. A última coisa que quero é prejudicá-lo.
Mas agora, quando minha irmã faz essa pequena insinuação, a ideia me
agrada. É uma fantasia que surge de repente, e na mesma medida me vejo
desejando estar nua naquela sua mesa extremamente organizada, ele em pé,
entre minhas pernas, segurando minha cintura com toda força e murmurando
coisas obscenas com a boca bem rente à minha. Credo, que delícia. Balanço a
cabeça em negativo, afastando as imagens da minha mente, e respondo:
— Não, não pensei nisso — respondo. — Até agora — acrescento, e
Juliene abre um sorriso sacana enorme.
Ela termina nossos sanduíches e arrasta um prato em minha direção,
dando uma generosa mordida no seu. Mastigo um pedaço do meu e conto
como, aos poucos, fui me envolvendo com Pierre. Queria poder dar mais
detalhes, dizer que minha admiração e ligação com ele começaram quando
estive internada depois de ser surrada, mas prefiro contar uma meia-verdade.
Para todos os efeitos, passei mal, fui parar no hospital, Laurent quem me
atendeu, fez os exames e me deu a notícia da gravidez. Confesso que fiquei
encantada com ele, com seu zelo e simpatia e decidi que o queria fazendo
meu pré-natal. A história parece satisfazê-la e convencê-la. Melhor assim.
Adrien chega minutos depois, ainda uniformizado, com sacolas nas
mãos. Ele me cumprimenta com um beijo e aperta Juliene em um abraço
meio desajeitado. Eles são amigos, mas não tanto quanto eu e ele somos. Isso
se deve ao fato de que minha irmã, numa época qualquer, teve uma queda
enorme pelo nosso primo. Só que, como sempre, o garoto estava ocupado
demais amando uma mulher sete anos mais velha que ele, nunca dando
espaço ou oportunidade para qualquer outra pretendente. Ser ignorada fez
com que Juliene, uma adolescente de dezesseis anos (e três mais nova que
ele) criasse birra e vivesse o atormentando de propósito, só para irritá-lo, o
que resultava em constantes discussões e desavenças. Ainda bem que as
pessoas mudam e amadurecem. Minha irmã não demorou a perceber como
era infantil ficar com raiva dele porque Adrien não retribuía aos seus
sentimentos. Tempo e um novo garoto na sua sala a ajudaram a superar a
mágoa e a paixão pelo nosso primo.
Adrien descarrega as sacolas e começa a retirar algumas coisas que,
segundo ele, estão faltando no meu armário. Só coisas saudáveis, devo
ressaltar. Onde estão meus chocolates e refrigerantes, homem de Deus?
Como posso viver dessa maneira, me diga?
— Julie estava me contando do Pierre. Você o conhece? — minha irmã
menciona.
Bourdieu olha de relance para mim, os braços esticados para guardar o
pacote de pão integral na parte superior do armário. Eu o advirto com o olhar,
uma ameaça velada para não abrir o bico e contar qualquer outra coisa além
da que combinamos ontem.
— Sim. É um cara bacana. No começo, eu estava receoso, mas ele se
mostrou uma boa pessoa — Adrien responde, recolhendo nossos pratos
vazios, apenas com as migalhas dos sanduíches. Ele chega já querendo deixar
tudo organizado, credo.
Apesar da leve mentira, sinto notas de sinceridade no seu tom de voz,
sobre ter se preocupado comigo e sobre Pierre ser um cara legal.
— Por que receoso? — Juliene não deixa escapar nada.
Outra vez, ele me dá um olhar tenso. Pigarreio, minha irmã me olha;
ele coloca a louça na pia e dá de ombros:
— Porque fiquei com medo de que fosse só outro babaca na vida da sua
irmã. Aquele traste do pai do Valentin fez muito a magoando — diz, sua
atenção repousando sobre mim, voz cautelosa. Suas palavras significam
muito mais do que realmente está dizendo e só nós dois sabemos o
significado oculto por trás disso.
Juliene suspira e não diz nada sobre o “pai” do Valentin. Ela nunca quis
detalhes, principalmente porque disse que não queria falar sobre isso, então
simplesmente respeitou o meu direito de não querer tocar no assunto.
— Juliette sempre teve dedo podre para homens — diz, o que é uma
tremenda mentira. Dou um tapa na sua mão de novo e ela ri, tapando a boca
com a mão. Recuperando-se do seu riso, pergunta: — Quando vou conhecer
esse Pierre? Por que não hoje? Ele pode vir aqui jantar conosco.
Balanço a cabeça em negativo.
— Ele está de plantão. Combinamos que virá amanhã, para o almoço.
— Estou louca para conhecer o Doutor Delícia.
Eu rio, impressionada com a falta de vergonha de Juliene, mas sem de
fato me importar. Ela me manda ir tomar um banho enquanto, junto com
Adrien, termina o jantar. Não protesto nem me oponho porque preciso
mesmo de um banho e fico aliviada em não ter que preparar algo para
comermos. Amo ser paparicada, não vou negar.
No quarto, ainda de lingerie, ligo para Pierre. Ele demora a atender.
— Ei, já está com sua irmã? — pergunta assim que atende.
— Oui. Ela está doida para conhecer o “Doutor Delícia”, vulgo você.
A risada grossa e rouca do meu namorado atravessa a linha, dando-me
uma sensação boa. Caminho até o banheiro e paro frente ao espelho,
contemplando meu rosto por um tempo, meus seios que aumentaram
consideravelmente de tamanho e que, de algum modo, fazem eu me sentir
sexy com o tamanho deles. Pierre sempre dá uma atenção dedicada e especial
a eles quando estamos juntos. Não posso nem me lembrar desse homem entre
minhas pernas que meu corpo já sente saudades. Nem parece que ele me deu
um orgasmo maravilhoso hoje de manhã.
Olho ao redor enquanto ainda o ouço rir e dizer que já gosta de Juliene
sem nem ao menos conhecê-la. Sobre a bancada da pia, tem um desodorante
dele, uma escova de cabelos, creme de barbear, escova de dentes. No cesto de
roupa suja, Pierre deixou uma calça de moletom e uma cueca vinho. No
guarda-roupa, tem algumas peças de roupas dele — dois ou três pares —
meias, sapatos, tênis e um par de jaleco.
Não falta muito para o bonito se instalar de vez aqui em casa. E não
estou reclamando. Pelo contrário. Sorrio, ouvindo a voz dele atravessar a
linha agora falando que pegou um caso de uma grávida com câncer, e é difícil
acreditar que ele está mesmo na minha vida, que alguém tão incrível como
ele está na minha vida.
— Ainda está aí ou já se cansou de me ouvir falar sem parar?
Rio baixinho.
— Poderia te ouvir falar o resto da vida, Pierre. — Ele ri de novo e isso
mexe comigo. — Queria confirmar com você amanhã. Você vem almoçar
aqui em casa, né?
— Bien sûr, mon coeur — confirma.
— Certo. Vejo você amanhã. Preciso desligar. Adrien e Juliene estão
fazendo o jantar. Vou tomar um banho e me juntar a eles.
Há um instante de silêncio na linha.
— Vai tomar banho agora? — indaga, e há uma rouquidão sensual na
sua voz. — Como você está?
Alguma coisa dentro de mim estremece. Não sei dizer por qual razão,
mas consigo visualizar o rosto dele, meio tenso, maxilar trincado, narinas
infladas, pupilas dilatadas, respiração ofegante, excitado.
— Vou — respondo sua primeira pergunta. — De calcinha e sutiã. O
conjunto preto que você gosta.
Não é sexy. É lingerie para grávidas. Ou seja, confortável, porque
“sexy” e “confortável” são antagônicas quando se trata de lingeries. O sutiã é
bojo, mas sem aro porque os meus sempre me incomodam. A calcinha tem as
laterais mais grossas, não marcam nem me apertam, e acomoda toda a minha
bunda. Por algum motivo, Pierre gosta desse conjunto.
— Puta merda — exclama, e noto que está com a respiração ofegante.
— Não sabe como eu daria qualquer coisa para estar aí com você, agora,
nas suas costas, descendo minha mão pelo seu corpo até chegar no seu
clitóris.
Dessa vez, sou eu quem ofego. Até consigo imaginar essa cena. Seus
lábios no meu pescoço, seu quadril no meu, sua ereção contra minha bunda e
sua mão quente deslizando até o ponto onde mais o desejo. Engulo em seco,
sentindo o aperto entre minhas pernas, contorcendo-as quase de forma
inconsciente. Que maldade dele me acender e nem estar aqui para apagar o
meu fogo.
— Chérie, se toca pra mim — pede, sua voz rouca manda uma vibração
intensa para o meio das minhas coxas. — Se toca pensando em mim.
Nem me vejo obedecendo à sua ordem e, com uma mão segurando o
celular, desço a outra para minha parte íntima. Quando meu indicador alcança
o meu clitóris, quase engasgo com a eletricidade que avança por todo meu
corpo, com como estou sensível.
— Estou me tocando — informo, circundando-me levemente. Fecho os
olhos e suspiro. Está bom, mas preciso de algo mais, de algum estímulo, e ele
me dá quando diz:
— Pense em mim, Julie. Me imagine aí com você, te colocando contra
a parede, agachando na sua altura e enfiando minha língua em você.
Gemo baixinho, apertando os olhos e imaginando o que ele me instrui.
Estou debaixo do chuveiro, sentindo a água quente cair sobre nós, enquanto
ele está aqui, minhas pernas levemente separadas, suas mãos na minha
cintura, sua língua circulando meu clitóris, junto com o toque macio do
polegar e penetrações intercaladas do seu indicador longo.
Fico cada vez mais molhada à medida que me toco e imagino as coisas
que Pierre me diz, estimulando minha excitação.
— Estou aí agora, atrás de você, e estamos de frente para o espelho.
Está pensando nisso, Juliette? — pergunta. Sua voz tem um comando
autoritário que é prazeroso demais. Pierre não é esse tipo de cara, rude ou
possessivo, ao menos não na cama, e gosto de como comanda o nosso prazer,
o meu prazer. Autoritário. Sexy. Incontestável. Rude. Firme. — Está
pensando nisso? — pergunta de novo e noto que não o respondi porque
estava presa demais nesse pensamento bom, presa demais nos meus dedos me
acariciando e no desejo imenso de que ele esteja aqui realmente.
— Estou — respondo, de um jeito até meio esganiçado.
— Continue imaginando — ordena, e nem por um minuto penso em
desobedecê-lo. — Estamos de frente para o espelho, você completamente
nua e minha mão na sua boceta encharcada.
— Pierre — sibilo seu nome, aumentando as investidas contra mim
mesma.
— Estou apertando seu clitóris e você está gemendo gostoso pra mim
enquanto me olha pelo espelho. Então me curvo no seu ouvido e digo, sem
cortar nosso contato visual, o quanto quero te foder.
Gemo de novo, incapaz de controlar lascívia que toma conta de mim.
Não estou mais no controle do meu prazer. Não. Meus dedos me tocando são
apenas uma extensão do que Pierre está fazendo comigo. Porque esse prazer
imenso me cortando dos pés à cabeça é ele quem está me proporcionando.
Não eu, mas ele. Sou apenas o meio que está usando para que isso seja feito.
— Depois que digo isso, você me implora para te comer. Me implore
isso, Juliette — comanda.
— Me come, Pierre. — Atendo seu comando, inserindo dois dedos
dentro de mim o tanto quanto consigo.
— Eu nem penso duas vezes. Inclino seu corpo um pouco mais na
bancada da pia, ergo sua perna direita e meto em você. E você geme, tão
gostoso, conforme estoco fundo meu pau na sua boceta.
— Sim. Isso. — Nem sei o que estou dizendo, apenas murmurando
qualquer coisa sem sentido, perdida demais com o prazer eletrizando cada
partícula do meu corpo. — Você sempre me come tão gostoso — digo,
imaginando-o aqui, nossos olhos encontrando-se no reflexo enquanto está
atrás de mim, arremetendo-se com força e me levando ao orgasmo como só
ele pode fazer.
— Te fodo um pouco por trás, mas depois, eu te viro, te coloco na pia e
me encaixo entre suas pernas. Beijo sua boca quando te penetro de novo e a
gente fode e faz amor ao mesmo tempo, Juliette. Aperto sua cintura e te como
enquanto te beijo e gemo contra seus lábios porque transar com você me
deixa descontrolado.
Tiro meus dedos de dentro de mim, ignoro a dor que começa a avançar
sobre a mão que segura o telefone e volto para meu clitóris, apertando-o com
a pressão certa, tentando (de forma meio inútil) encontrar o modo como
Pierre o aperta. Não chego nem perto, mas me contento com o que consigo
me dar. Estou quase lá.
— Eu deslizo minha boca da sua para seus seios, sem parar de te
comer. Você diz que está quase gozando. — Oh, droga, e sim, estou quase
gozando. Aumento o ritmo dos meus dedos no clitóris e aperto os olhos,
sentindo meu ápice chegar. — Chupo seus seios, ávido, me arremetendo
cada vez mais com força para dentro de você, e faço essas três coisas: te
como com força, chupo seus peitos e aperto seu clitóris.
— Pierre, je vais jouir. — “Vou gozar”, anuncio, recostando-me à
parede atrás de mim para ter alguma equilíbrio e estabilidade quando o
orgasmo me acertar.
— Oui, juit pour moi… Juit avec moi. — “Isso, goza pra mim… Goza
comigo”. — Quando você goza comigo, Julie, está de quatro na cama,
tocando sua boceta, me pedindo pra te foder com mais força.
Dou um último suspiro antes de gemer um pouco mais alto e me
libertar. O orgasmo vem com força e me acerta, fazendo-me jogar a cabeça
para trás e perder só por um instante o movimento das minhas pernas. Minha
mão fica encharcada com meu próprio gozo, minha respiração acelerada, o
coração descontrolado. Ficamos em silêncio por um segundo, mas posso
ouvir a respiração ruidosa dele atravessando a linha.
— A imagem de você gozando com seus dedos enquanto te falo essas
safadezas deve ser a coisa mais excitante que existe, Juliette — Pierre diz,
sua voz ainda muito grave e muito sexy. — Porra, preciso ver isso ao vivo.
Sorrio, olhos fechados, meus batimentos cardíacos que continuam
acelerados.
— Vou adorar me tocar na sua frente, chéri.
Ele suspira, um suspiro pesado.
— Estou duro. Não sei como vou voltar para lá nessas condições —
brinca, rindo em seguida.
— Onde você está? — pergunto, só agora me dando conta de que, para
ter me falado todas essas coisas, deve ter se refugiado em algum lugar mais
reservado. Pierre não ia sair falando sobre me comer pelos corredores do
hospital, claro que não.
— No banheiro.
— Quero te fazer gozar, mon amour. — Ele está para dizer que não
precisa, mas o interrompo e digo que precisa sim. Instruo a se encostar na
parede, abaixar a calça e segurar seu membro, imaginando que estou
cavalgando nele com força.
— Julie — reclama, voz entrecortada. Consigo escutar o atrito da sua
mão subindo e descendo no seu pau.
— Sabe como você vai gozar comigo, Pierre? — sussurro. — Acabou
de me comer de quatro, com toda sua força, e eu gozei horrores. Seu pau está
todo melado do meu gozo.
— Oui, oui — geme. — Oui, chérie, continue. Putain! Estou quase.
— Eu me viro para você, ainda de quatro, e te coloco todo na minha
boca, sentindo o gosto que é o seu pau com meu gozo. E te chupo gostoso,
subindo e descendo, acariciando suas bolas, sugando e te levando até o fundo
da minha garganta. Você geme e segura meus cabelos, move os quadris e
fode minha boca também.
Pierre fica quieto, mas ainda posso ouvir sua respiração acelerada e os
sons da sua masturbação. Eu o estimulo mais um pouco até que, com um
gemido abafado e trêmulo, ele anuncia que está gozando. E o som é tão
bonito. A sua voz rouca, junto da respiração ofegante e os gemidos graves é
um som tão bonito.
— Já tinha feito sexo pelo telefone, Julie? — pergunta, ainda se
recuperando. Posso claramente imaginá-lo contra a parede, descabelado,
olhos fechados, tentando controlar a respiração descompassada, as mãos em
torno de si mesmo, acariciando-se vagarosamente até que seu corpo todo
esteja calmo.
— Non, nunca tinha feito isso. E você?
— É minha primeira vez também — brinca, em meio a uma risadinha.
— Gosto que sejamos um o primeiro do outro — devolvo, no mesmo
tom de brincadeira.
Ele ri e começa a falar qualquer coisa aleatória enquanto se recupera.
Um minuto depois, sua respiração está normal de novo, e Pierre se despede,
dizendo que precisa voltar para assumir seu posto. Encerro a ligação e,
debaixo do chuveiro, me toco pensando nele de novo, mas quando gozo não é
nem de longe tão gostoso como foi minutos antes, com ele me conduzindo.
PIERRE
— Posso mesmo confiar em você? — pergunto, virando-me em sua
direção, e Étienne me olha como se eu tivesse cuspido na cruz de Cristo.
Ele não pode me julgar por estar preocupado. Já tem um mês desde o
atropelamento de Édouard por causa de uma negligência dele e, mesmo que
tenha me dito naquela ocasião que não seria mais uma ameaça para o próprio
filho, não consigo confiar nele plenamente. Nas últimas semanas, estivemos
juntos constantemente, eu o “vigiando” enquanto o ajudava a cuidar do
garoto se recuperando do acidente. Diminuí minha carga horária no Necker e
na clínica por algumas semanas para estar aqui e ajudar em tudo que fosse
necessário.
Agora que Édouard já está melhor — inclusive tornou a frequentar as
aulas essa semana —, voltei à minha rotina normal. Étienne decidiu colocar a
vida nos trilhos de novo. Enquanto o filho está na escola o dia todo, ele está
se esforçando para voltar a trabalhar. É um dos melhores neurocirurgiões que
conheço e seria um desperdício de talento se desistisse da sua carreira. Até
penso que focar no trabalho o ajude a superar o sumiço de Jeaninne. Meu
irmão conversou com o Conselho de Medicina e estão analisando se ele tem
condições de voltar a atuar em salas de cirurgia. Mesmo que decidam por
colocá-lo em uma sala de aula, já é alguma coisa para que esse homem
recomece.
Não o vi beber nessas últimas semanas, cuidou bem do garoto e se
manteve minimamente responsável. Mas isso porque, talvez, eu estive junto.
Hoje vai ser a primeira vez que o deixarei sozinho com o filho e, confesso,
estou meio receoso. Étienne traiu minha confiança, não pode me culpar por
ainda me preocupar.
— É claro que pode — responde, finalmente, parado no umbral da
porta, no lado de dentro do apartamento. — Já disse que não vou mais ser
uma ameaça para Édouard.
Mordo a carne interna da minha bochecha, hesitante. Procuro pelas
horas e constato que estou no horário para o almoço com Juliette. Se pudesse,
levaria o garoto comigo só por via das dúvidas. Mas se fizer isso, meu irmão
vai ficar muito magoado e a última coisa que preciso nesse momento é
colocá-lo ainda mais para baixo.
— Se precisar de mim…

— … eu te ligo — interrompe-me, meio contrariado. Sei que sua


vontade foi mesmo de dizer que é um homem adulto e sabe se virar; só não
disse porque suas últimas atitudes demonstraram o contrário.
Convencendo-me de que Étienne é capaz de cuidar do filho de seis
anos, faço meu caminho até a casa da minha namorada. Ela me recebe com
um sorriso encantador e um beijo delicioso. Seus braços contornam minha
nunca e os meus a circundam pela cintura. Seu perfume de notas de baunilha
sobe pelas minhas narinas e, junto do seu beijo suave e úmido, estimula meus
desejos mais profundos.
É impossível não me lembrar de ontem à noite, quando pedi, por
telefone, que se tocasse pensando em mim. Quero muito mais do que arrastá-
la para o primeiro quarto que encontrar, despi-la e entrar entre suas pernas.
Eu quero ver. Ver a beleza que deve ser essa mulher se masturbando
enquanto a conduzo com palavras obscenas e fantasias sensuais. Fico duro só
de pensar, puta que pariu. Juliette ri em minha boca e esfrega sua pélvis na
minha, lentamente, mostrando que está sentindo minha ereção contra sua
carne.
— Deixe-me adivinhar — sussurra nos meus lábios —, está pensando
em ontem?
— Oui. Não me culpe se meu corpo desesperadamente sente saudade
do seu. — Olho por cima do seu ombro, só para garantir que estamos mesmo
sozinhos. Constatado isso, deixo minha boca rente à sua e murmuro: —
Ainda quero muito ver você se tocar pra mim. Talvez hoje à noite? — sugiro.
Ela molha o lábio inferior. Inferno. É sensual demais. Se não fosse seu
primo e sua irmã em algum lugar dessa casa, eu já a teria jogado no sofá da
sala e saciado essa minha fantasia.
— Juliene… — diz apenas, e não preciso de mais nada para
compreender. Merde. — Ela só vai embora na segunda pela manhã. Mas se
quiser — pondera, amaciando meu peito com as palmas das mãos, descendo
e subindo lenta e sensualmente — podemos ir à sua casa.
— Étienne — respondo, abrindo um sorriso pequeno e fazendo uma
leve carranca. Julie compreende e faz biquinho. Colo nossas bocas de novo,
rindo da sua expressão por não termos lugar para transar. — Segunda à noite,
combinado?
— Combinado.
Um pigarreio atrás de nós chama nossa atenção. Juliette se vira, dando-
me a visão de Adrien parado e nos observando.
— O que farão na segunda? — Quer saber. As bochechas da minha
namorada coram diante à curiosidade dele e servem como uma resposta à
pergunta do primo que, vendo a vermelhidão em seu rosto, compreende o que
acabamos de programar. — Oh. Tudo bem.
Dou um passo à frente, salvando-nos desse constrangimento.
— Bom te ver de novo, Adrien — digo, esticando a mão.
Ele me cumprimenta de volta e anuncia que o almoço está pronto. Na
cozinha, conheço a irmã de Juliette. Ela tem traços semelhantes aos da mais
velha — cor dos olhos, do cabelo, formato do rosto —, mas para além do
físico em nada se parecem. Enquanto Julie tem um comportamento mais
contido, Juliene é agitada e faladeira, adora piadas e de divagar contando
sobre sua experiência e estudos na Inglaterra.
Em volta da mesa, enquanto almoçamos, sinto-me estranhamente
acolhido nessa família. Eles têm uma conversa fácil e divertida, relembrando
velhos tempos, amizades e momentos especiais. De repente, começam a falar
sobre os padrinhos de Valentin. Adrien já disse que quer apadrinhar o garoto,
o que me deixa muito admirado. Nunca tive dúvidas de que é um bom
homem, mas o carinho com que fala do menino, dos planos de batizá-lo,
levá-lo para passear, ensiná-lo a jogar futebol, tudo isso me faz ter um
sentimento estranho de orgulho. Ao mesmo tempo, surge algo insólito dentro
de mim. Está claro que ele pretende ser a figura masculina e paterna do
garoto. Embora o admire por isso, por querer assumir esse papel, também me
incomoda. Não sei dizer o motivo, só sei que me incomoda. Afasto o
pensamento absurdo da minha cabeça quando Juliene briga com a irmã por
nem mesmo ter cogitado convidá-la a ser madrinha do sobrinho, junto com o
primo.
Juliette se desculpa, justificando que pensou que ela ia recusar o
convite, uma vez que está ocupada com seus estudos e trabalho. A irmã a
segura pelas duas mãos e, olhando-a bem no fundo dos olhos, diz que não
quer outra coisa da vida a não ser batizar o garoto. O assunto muda, de
repente. Minha cunhada começa a querer saber mais da minha relação com a
irmã mais velha. Fui orientado mais cedo, por meio de uma ligação, a contar
uma nova versão de como nos conhecemos. Não concordei de começo, mas
minha namorada deu suas justificativas e implorou para que concordasse em
não dizer nada sobre o amante e o espancamento, que foi o que nos levou a
nos conhecermos.
Com cuidado, vou contando um pouco do que fui orientado a dizer,
Juliette vez ou outra tendo de intermediar para que não entre em contradição
ou diga alguma coisa errada. Por fim, o almoço termina com Juliene
convencendo a irmã de irem até o shopping comprar algumas roupas para o
bebê. É claro que minha namorada se opõe um pouco, dá desculpas de que
não vai sair porque tem visitas. Eu a incentivo a ir, porque quero mesmo que
vá. Adrien argumenta mais e a caçula insiste, até que ela cede.
— Já foram? — Adrien pergunta assim que retorno. Fui acompanhá-las
até a porta enquanto ele ficou lavando a louça. Emprestei meu carro (Juliene
dirige) para que pudessem ir até o shopping.
— Já — respondo. — Onde está tudo?
Ele seca a mão e me encaminha até o fundo da casa. Dias atrás, quando
vim para uma visita, Adrien estava de folga, mas trabalhando no quarto de
Valentin. Em um momento em que estávamos a sós, disse que gostaria de
ajudar. A preparação está um pouco adiantada, mas como ele só trabalha aqui
quando está de folga, ainda tem coisa a ser feita. Juliette entrou no sexto mês,
então só nos restam mais três até a chegada do garoto. Nesse ritmo, ele não
termina a tempo. É por isso que me propus a ajudá-lo.
Pegamos tudo o que precisamos e subimos até o quarto. As paredes já
foram lixadas e tem uma demão de tinta, mas precisa de outra. E precisa de
móveis, que providenciei e agendei a entrega para hoje, justamente quando
ela decidiu sair com a irmã. Não vou negar de que nós três planejamos isso.
Adrien se encarregou de conversar com Juliene antes de sua chegada e
convencê-la a tirá-la de casa por algumas horas, não só para que façamos uma
surpresa, mas também porque seu primo e eu preferimos que ela não inale o
cheiro de tinta, mesmo que essas mais atuais sejam inodoras.
Estamos preparando a parede para a segunda camada de tinta quando
ele diz:
— Sabe que não precisa fazer isso, não é?
— Eu sei. Faço mesmo assim.
— Não está cansado? — indaga, abaixando para diluir um pouco da
tinta em um balde apropriado. — Esteve de plantão na noite passada, não?
Pego um rolo, imerso um pouco na tinta azul e respondo:
— Estou bem. Tirei um cochilo pela manhã. Dou conta de um pouco de
trabalho duro.
Adrien sorri e abana em positivo. Pega seu rolo, molha-o, e começamos
a pintar as paredes.
— Como você vai lidar com isso tudo, Pierre? — questiona, virando-se
para mim. Corrige-se em seguida. — Como está lidando com isso tudo?
Reflito um segundo sobre sua pergunta, sem parar o meu trabalho e
sem desfazer o contato visual. Não demoro a entender seu questionamento.
Adrien acha que não posso lidar com o fato de Juliette estar esperando um
filho de outro homem, de ser “mãe solteira”. Nós nunca realmente
conversamos sobre isso. Semanas atrás os dois chegaram a discutir por conta
dessa sua preocupação boba, insinuando que tinha me desinteressado dela por
causa da sua condição. Garanti que minhas intenções eram as melhores, que
jamais poderia pensar em machucá-la e que tinha minha palavra. Depois
disso, nunca mais tocamos no assunto.
Até hoje.
Não o julgo por estar preocupado com a prima e acho mesmo que
precisamos dessa conversa. Ele precisa entender de uma vez por todas que
não faz a mínima diferença para mim que Juliette esteja grávida de outro
homem. Apaixonei-me pela mulher que ela é, independente da sua condição
de grávida ou dos erros que cometeu no passado.
— Isso não te incomoda? — completa, passando lentamente o rolo na
parede.
Percebo que divaguei e não lhe dei resposta alguma.
— Não. Disse para Juliette uma vez e vou dizer para você agora,
Adrien. Sei o que implica namorar uma mãe solteira e estou disposto a
enfrentar todos os riscos.
Ele abre um pequeno sorriso e volta sua atenção para o trabalho a ser
feito, mas sei que não terminamos por aqui. Adrien vai me interrogar
exaustivamente até ter certeza de que não serei um babaca com sua prima.
Ele é como o irmão mais velho superprotetor. Agrada-me sua preocupação,
mesmo que isso signifique desconfiar da minha índole, porque demonstra que
realmente se importa com Juliette e, se algum dia, por qualquer motivo, nos
separarmos, vai cuidar dela, vai querer o melhor para ela e vai vigiá-la.
Estranhamente, dói em mim cogitar um futuro sem essa mulher na minha
vida, mas não posso ser ingênuo demais a ponto de pensar que isso nunca
pode acontecer. Porque pode. O para sempre não existe, é incerto. Estamos
bem agora, mas amanhã podemos não estar. Se não estivermos, não importa
por qual motivo não estejamos mais juntos, não quero menos do que o bem
dela, alguém bom para Juliette. O primo é minha garantia de que ela vai
arrumar um cara bacana se um dia rompermos.
— Por que está fazendo isso?
— Porque me importo. Porque gosto dela. De verdade, Adrien. Não é
só da boca para fora — declaro, molhando mais o rolo e tornando a passá-lo
na parede. — Se me importasse com o fato de ser mãe solteira, nem sequer
teria chegado perto dela. Mas eu a conheci grávida, me interessei por ela
ainda grávida e sempre soube da inexistência paterna nesse caso. Não seria
babaca em me aproximar dela, sabendo da sua condição, e depois
simplesmente dispensá-la por um preconceito tão bobo.
Adrien não me olha. Continua sua tarefa, mas vejo um sorriso surgir
nos seus lábios. É pequeno, mas demonstra que está mais do que satisfeito
com a minha resposta. Sei que ainda estarei sob sua vigilância até provar meu
valor e ganhar sua completa confiança, entretanto, isso aqui hoje, essa nossa
conversa, já é um bom passo.
Não tocamos mais no assunto, embora eu saiba que, a qualquer
momento, ele vai abordá-lo de novo. É sua natureza protetora. Fazemos todo
o trabalho conversando sobre outras coisas, debatendo sobre a melhor
localização dos móveis e prateleiras que pretendemos pregar nas paredes
assim que estiverem secas. Depois da demão de tinta, instalamos as
prateleiras e envernizamos portas e janelas.
Nossa entrega chega duas horas depois. Os carregadores colocam tudo
no quarto e dispensamos a montagem. Faremos isso nós dois. Desembalamos
primeiro o berço. Dou uma olhada nas instruções, mas Adrien demonstra que
tem mais habilidade nisso do que eu e já está separando parafusos, porcas,
roscas e peças do móvel. Auxilio-o, mantendo nossa conversa amigável.
Depois de encaixadas e parafusadas aqui e ali, o berço está montado.
Discutimos sobre a melhor posição um instante antes de o ajeitarmos quase
encostado na parede. Mais algumas parafusadas e a cômoda está montada.
Todo o resto então é apenas a decoração. Junto com os móveis, veio o
colchão para o berço, bichos de pelúcia, livros infantis, travesseiros,
almofadinhas, protetores, mosqueteiro, babá-eletrônica, alguns lençóis e
fronhas. Não é um enxoval completo, até porque Juliette disse que quer
montar, mas somente o básico para deixar o quarto pronto.
Arrumamos o berço e distribuímos os ursinhos nas prateleiras. Adrien
fez um livreiro e o colocou aos pés de uma poltrona que já estava por aqui e
que só colocamos mais uma almofada. Babá-eletrônica em cima da cômoda,
assim como uma luminária em LED da letra V. Na parede do berço, um
painel de gesso forma o nome que Juliette escolheu para o garoto. Que eu
escolhi. Sorrio para mim mesmo, feliz que tenha aceitado minha sugestão,
como se, na época, fôssemos um casal decidindo o nome do filho.
Já está escurecendo quando terminamos tudo. Juliene ligou umas três
vezes querendo saber se já poderiam voltar para casa porque Juliette estava
insuportável querendo vir embora e ela não tinha mais desculpas para mantê-
la perambulando pelo shopping.
Tomamos um banho e, por sorte, tenho alguns pares de roupa que estou
mantendo aqui. Adrien pede comida já que estamos cansados demais para
cozinhar. Aguardamos as duas chegarem enquanto ajeitamos a mesa para
quando a comida for entregue.
— Vou convidar Juliene para sairmos — Adrien diz, de repente,
distribuindo os garfos. — Para que você e Juliette tenham privacidade e não
precisem esperar até segunda-feira.
Rio baixinho, sentindo-me meio envergonhado com a situação.
— Merci. — É tudo que digo antes de a porta da frente se abrir e trazer
para dentro uma grávida cansada e reclamando de dor nos pés.
PIERRE
Ela me abraça e enfia o rosto contra meu peito, contendo um soluço.
Seus braços me apertam com força enquanto deslizo meus lábios pelo seu
rosto o tanto quanto consigo. Quando Juliette se afasta, preciso limpar seus
olhos marejados e dar um selinho nos seus lábios que se curvam em um
sorriso pequeno. Olha por cima do meu ombro, em busca do primo e da irmã,
meus comparsas nessa pequena surpresa. O sorriso dela se intensifica e, cara,
como amo ver o sorriso dessa mulher.
— Foi por isso que me enrolou todo aquele tempo no shopping? —
murmura, voz ainda embargada de emoção. Deixando meus braços, Julie
corre até a irmã e se joga nos braços dela. — Resmunguei a tarde toda como
uma velha de oitenta anos e você estava ajudando os meninos nisso. Me
desculpe, Juliene.
— Como se você realmente me devesse desculpas — a mais nova a
acalenta, acariciando as bochechas e cabelos dela de um jeito muito amoroso
e fraterno.
Então ela se volta para Adrien, parado ainda no umbral da porta, o
maior responsável por isso. Com apenas dois passos, ela está abraçando o
primo, precisando se erguer um pouco nos pés para alcançá-lo.
Antes que possa dizer qualquer palavra, o primo diz:
— Eu sei, sou incrível.
Julie ri em meio às lagrimas nos olhos e o aperta contra seu pequeno
corpo.
— Nunca vou te agradecer o suficiente por tudo o que está fazendo —
sussurra, afastando-se em seguida e buscando por mim e pela irmã. — Por
tudo o que vocês estão fazendo.
Juliette abre os braços, chamando-nos. Seu pequeno corpo some
quando três pares de braços a envolvem. Beijo seu rosto, Adrien acaricia sua
barriga e Juliene afaga seus cabelos, dizendo depois que nos afastamos:
— Somos uma família, Julie, amamos você. Amamos muito.
Ela sorri e abraça a irmã outra vez. Ainda nos braços dela, detém seu
olhar meigo e intenso sobre mim, estudando-me depois do “somos uma
família e amamos você”. Não preciso de palavras para entender o que seus
olhos querem me perguntar. Ela quer saber se faço parte da família, se a amo,
se me incluo nisso. A verdade é que existem muitas formas de amar e eu a
amo de todas as formas que existem.
Amo seu companheirismo, sua amizade, nosso sexo, amo como me
olha, quando me olha, amo seu toque, sua risada, como enrola os cabelos nos
dedos, pensativa. Amo seus pequenos detalhes, amo vê-la com as pernas
enroladas, cabisbaixa, afagando a barriga, conversando com o filho, amo
nossa conexão. Eu a amo mesmo que ela não me ame de volta.
Sorrio e faço um rápido movimento positivo, um “somos uma família,
amamos você e me incluso nisso”. É o bastante para que me ofereça um
sorriso pequeno e torne a dar atenção à irmã, que diz algo sobre guardarem as
compras. Adrien se encarrega de buscar as sacolas e volta instante depois.
Elas compraram algumas coisas para o bebê e, enquanto conversam, vão
desempacotando tudo, mostrando-nos peça por peça, cada macacãozinho,
camisetinha, fralda, mijãozinho e conjuntos.
A irmã guarda tudo nas gavetas e Juliette rodeia o quarto, tocando na
ponta dos dedos cada detalhe, da parede azul ao bercinho recém-montado.
Abraça os ursinhos, inspira o cheiro deles, acende e apaga a luminária em V.
Toca no letreiro com o nome do bebê, então volta para mim e me beija sem
motivo.
— Juliene, vamos, vou te levar ao cinema — Adrien convida, puxando-
a com delicadeza pelos punhos quando a garota está dobrando a última peça e
a enfiando na gaveta.
— Cinema? Prefiro ficar aqui e fazer companhia…
— Vamos, garota, ou sua irmã terá que esperar até segunda-feira.
Seguro uma risada maior, e Juliette fica encantadoramente rubra,
entendendo a sugestão do primo. Juliene leva algum tempo para compreender
e, quando o faz, explode em uma gargalhada que faz a minha escapulir.
Minha namorada estapeia o meu ombro, cada vez mais vermelha de
vergonha. Adorável.
Eles se despedem e vou acompanhá-los até a porta. É meio que um
jeito de a deixar no ambiente do bebê, sozinha por algum tempo para se
recuperar da vergonha e apreciar o espaço. Demoro cinco minutos para voltar
e, uma vez aqui de novo, encontro-a na cômoda com a primeira repartição
aberta, algumas das roupinhas que estiveram guardadas pouco tempo atrás
agora espalhadas na parte de cima. Entre seus dedos, uma camiseta branca
escrita “L’amour de mama”
Aproximo-me, silencioso, e a abraço por trás. Repouso o queixo no seu
ombro e minhas mãos vão para sua barriga, num gesto praticamente
automático. Permanecemos em silêncio por um tempo, mantendo nossa
posição, e sinto o perfume da sua pele, dos seus cabelos. Sorrio quase sem
perceber e fecho os olhos, apreciando o momento. De repente, suas mãos
cobrem as minhas e, nesse instante, nossa conexão se intensifica. Somos só
nós três.
Minutos se passam, ela conversa comigo, acariciando meus dedos na
sua barriga. Detém-se falando do seu passeio com Juliene, das escolhas que
fizeram, ri quando diz que queria levar toda a loja do departamento de bebês.
— Passei uma tarde feliz hoje — pronuncia, tornando a guardar as
peças no lugar. — Estava mesmo com saudades de Juliene e me alivia que
esteja me apoiando, mesmo que não saiba dos erros que cometi e acarretaram
nessa… — Ela para de falar. Vira-se para mim, olhos ligeiramente molhados.
Meu coração dói só por um segundo e nem sei o motivo. — Fui uma idiota.
— Juliette… — Tento adverti-la para que não se martirize dessa
maneira, mas ela toca o indicador nos meus lábios, interrompendo.
— Fui uma idiota, Pierre. Fui tola achando que poderia segurá-lo…
com um filho.
Julie suspira, desvia o olhar de mim e dá um passo atrás, recostando-se
à cômoda e cortando nosso contato. Não a quero longe, não quero que se
sinta assim, como se eu fosse repudiá-la pelo que fez. Aproximo-me de novo,
cercando seu corpo com o meu, sentindo sua barriga gestacional contra meu
abdômen. Ela sorri porque nesse momento Valentin chuta e posso senti-lo
tanto quanto ela.
— Não tem que me dizer nada disto agora — falo baixinho, acariciando
seu rosto e deixando um beijo na ponta do seu nariz. — Só siga em frente,
mon coeur, e esqueça os erros do passado.
Outro sorriso corta seu rosto bonito, meio entristecido no momento, e
deita a cabeça no meu peito.
— Eu sei, chéri. Querendo ou não, Valentin sempre vai me lembrar do
meu erro, embora ele seja a coisa mais certa da minha vida. Não importa
quanto tempo passe, sempre, sempre vou me sentir arrependida e
envergonhada pelo que fiz. Por pior que tenha sido esse erro, não quero
esconder isso da Juliene, você me entende? Ela acha que simplesmente me
envolvi com alguém que não quis o bebê e está tudo bem com isso, mas não
posso continuar a privando da verdade.
— Não importa qual decisão tome — digo, erguendo seu olhar para o
meu —, vou te apoiar no que decidir. Tudo bem?
Seu rosto se transforma em uma expressão um pouco mais fúnebre e
entristecida.
— Tenho medo do desprezo dela — confessa, voltando para o meu
peito.
— Ouviu sua irmã, Juliette. Somos uma família e amamos você. O
perdão faz parte de uma família unida e amorosa. Pode ser que a princípio ela
fique um pouco brava, mais por ter escondido dela do que pelo que
aconteceu, mas basta tempo e espaço para que as coisas se ajeitem. Não vê
você e Adrien? Discutiram por minha causa e já fizeram as pazes.
— Isto é. — Suspira de novo, agora mais calma. Calma o suficiente
para suas mãos macias e insinuantes dedilharem minhas costas, por dentro da
camisa. — Ele sempre me alertou sobre o traste, dei pouca atenção. E depois
de tudo… meu primo continuou do meu lado, sem nenhum tipo de
julgamento.
Perco minhas palavras porque seu toque me deixa disperso, faz-me
concentrar em nada além dos seus dedos ponteando minha pele de um jeito
sensual que desperta meus instintos e desejos de homem.
— Quer mesmo continuar falando do seu primo? — brinco e solto uma
risada engasgada, em meio a uma respiração irregular.
Um sorriso adorável atravessa seu rosto e seus olhos.
— Não mesmo. Não me deixe esquecer de agradecê-lo por não deixar
que uma mulher grávida cheia de hormônios e libido espere até segunda-
feira.
Rio ao passo que sua boca cola na minha, seus braços contornando
minha cintura, prendendo-me a ela.
— Ainda quer me ver me tocando pra você? — pergunta, voz de
luxúria, pupilas dilatadas, boca rente à minha, dedos no meu zíper.
Minha respiração falha uma vez mais antes de abanar a cabeça em
positivo. Suas mãos sobem para os meus braços, lentamente, seus olhos nos
meus. Tira o meu blazer e desabotoa minha camisa, nunca cessando nosso
contato visual. Gosto do silêncio entre nós enquanto me despe. Um segundo
depois, também estou sem camisa e a boca dela está contra o meu torso, os
dedos nas minhas costas, dedilhando daquela maneira que aprendi a gostar
com Juliette. Eles vão deslizando para cima, centrados bem na minha coluna
vertebral à medida que seus lábios dançam na minha pele, indo de um
mamilo a outro, parando no colo, descendo pelo rastro fino de pelos a partir
da altura do esterno até próximo ao umbigo.
— Preciso de um banho antes, doutor Laurent — murmura, sua boca
agora de volta na minha. Os dedos da mão esquerda sobem pelo meu
pescoço, passam pela nuca até afundarem nos meus cabelos e se
emaranharem ali.
— Só existe uma coisa que quero mais do que ver você se masturbando
sob meu comando. É ver você se masturbando sob meu comando debaixo do
chuveiro.
Juliette não leva nem um segundo para me puxar em direção ao
banheiro. Ela se despe na minha frente. Estou escorado à porta, apenas
observando e resistindo à vontade de me envolver e começar a me bombear.
Não, ainda não. Minha namorada fica de frente para mim por um tempo,
enquanto a água aquece, brincando com seus mamilos. Ela me chama com o
indicador e bastam dois passos para que esteja perto o bastante e seus dedos
estejam abrindo meu zíper.
— Julie… — Engasgo quando sua mão quente invade minha cueca,
alcançando minha ereção. Ela me olha com um sorriso safado, brincando
comigo. Fecho os olhos no momento em que abaixa minhas calças até os
calcanhares e se ajoelha.
— Sabia que fico molhada quando chupo você? — pergunta,
umedecendo os lábios e puxando minha cueca preta só o bastante para
libertar minha excitação.
Preciso me escorar na bancada da pia quando ela me engole, devagar,
colocando-me centímetro por centímetro na sua boca. Tomo uma porção de
cabelos nas minhas mãos e apenas acompanho o ritmo que ela estabelece.
Isso dura algum tempo até que preciso ditar meu próprio modo. Forço
ligeiramente sua cabeça de encontro aos meus quadris, que também movo
devagar.
— Se toque — ordeno, olhando para baixo. A visão dessa mulher me
engolindo funciona como um afrodisíaco e sinto meu pau pulsar na sua boca,
dando-me a impressão de que estou ainda mais duro. — Vim aqui para ver
você se tocar e não quero ir embora sem presenciar essa cena maravilhosa. —
Juliette faz menção de se afastar, mas não permito, empurrando-a de volta
para mim. — Essa boca continua onde está, senhorita Gautier. Toque na sua
boceta enquanto engole meu pau.
Ela arqueja e fecha os olhos, abafando um gemido estimulado pelas
palavras obscenas. E, porra, isso também me deixa com mais tesão. Ela
atende meu comando, escorrendo a mão esquerda até o clitóris, separando as
pernas. Começa tocando-o timidamente, gemendo baixinho sem deixar de me
chupar. Mas dali a dez segundos, os movimentos se tornam mais frenéticos,
os múrmuros de prazer se intensificam e se misturam aos meus. Só leva dois
minutos para Julie atingir seu ápice. É lindo como seus lábios se comprimem
em torno de mim, sugando-me com mais ferocidade à medida que se toca, e o
rosto encrespa, os olhos se apertam e ela se concentra para gozar só com os
dedos em meio aos gemidos que, mesmo abafados, ainda soam alto.
Recupera o fôlego, acariciando seu ponto sensível vagarosamente e
diminuindo a velocidade das sugadas em mim. Prefiro eu mesmo acalmar seu
corpo, então a afasto de mim e a empurro para dentro do chuveiro, entrando
com ela de roupa e tudo. Encosto-a contra a parede de ladrilhos e prenso seu
corpo ao meu, escorregando meus dedos até seu sexo e encontrando o clitóris
inchado e sensível. Minha namorada geme e se contorce com o toque sutil.
Ficamos assim por um tempo, carícias nas partes íntimas, olhos nos olhos,
água escorrendo nas nossas peles.
— Estou excitada de novo — anuncia, segurando meu punho e me
direcionando mais para dentro. Compreendo seu pedido e introduzo dois
dedos nela, sentindo sua carne quente me rodear.
— Me mostre o seu espetáculo, mon amour — peço, roubando um
beijo intenso em seguida e comendo-a com meus dedos por um minuto
inteiro.
Eu me afasto, escorando-me à parede oposta à dela, arranco minhas
roupas molhadas e seguro meu pênis, meus olhos nunca perdendo o contato
com o corpo de Juliette. Dando-me um sorriso meio encabulado, meio
safado, separa mais as pernas, encontra um ponto de apoio melhor e começa
o show. De olhos fechados, mordendo o lábio inferior e deixando que a água
quente lave seu rosto, minha namorada se masturba para mim de novo,
começando com toques suaves e alternando com penetração dos dedos.
— Me conduza, Pierre — pede, sem erguer as pálpebras.
Estou completamente fascinado, comendo-a com os olhos e me
masturbando tão devagar que demoro a notar seu pedido. Ela precisa me
pedir mais um par de vezes. Pergunto que tipo de coisas quer que eu diga, se
tem algo em mente, alguma fantasia. Sem parar de se tocar, Juliette me olha
e, em meio ao prazer que atravessa suas íris castanhas, há um pouco de
hesitação, como se estivesse se decidindo se me pede o que tem em mente ou
não.
— Transar na sua mesa do consultório — diz, ofegante e tornando a
abaixar as pálpebras.
Dou uma arquejada profunda só de imaginar a cena.
— Estamos no meu consultório — começo, e toda a imagem dessa
fantasia louca roda na minha cabeça. Posições e mais posições que
poderíamos fazer naquela mesa passam na minha mente como um filme
rápido. Aumento as investidas contra mim mesmo e me concentro nas
palavras e na visão dela nua, molhada, masturbando-se enquanto fantasia
uma trepada comigo no meu ambiente de trabalho.
— Você me recebe só de jaleco — ela intervém. — Oui, isso. Só de
jaleco, sem cueca, mostrando seu corpo gostoso e o pau duro.
Aperto os olhos só por um segundo, estimulado pelo que disse. Quero
um pouco de tortura, então começo minha narrativa falando de como ela
chega, como a beijo no pescoço, no colo, como brinco com seus seios até por
fim escorregar meus dedos para dentro da saia que na minha imaginação ela
usa e apertar seu fecho de nervos. Demora dois ou três minutos para que eu
realmente esteja pronunciando coisas obscenas.
— Te ponho na minha mesa, de costas para mim — falo, batendo
minha punheta agora bem mais rápido, cheio de tesão por causa da nossa
brincadeira e porque realmente é lindo e excitante vê-la se dando prazer
enquanto a conduzo. — Está com uma saia minúscula, sem calcinha, e salto
agulha. Você está tão gostosa com sua boceta empinada pra mim, apenas
esperando que me enterre nela e me faça esquecer do mundo enquanto te
fodo.
— O que você faz comigo, Pierre? Estou inclinada sobre sua mesa, de
bunda para cima, com uma saia minúscula e sem calcinha. O que faz comigo?
— incentiva, fazendo contato visual e se tocando rapidamente, quase
sincronizada com a velocidade que eu me masturbo.
— Coloco sua perna esquerda no tampo da mesa e te chupo por trás,
tão gostoso, tão intenso, que você goza na minha língua. — Juliette murmura
algo que não compreendo. Morde o lábio inferior e seus gemidos
intensificam cada vez mais. — Ainda está se recuperando do orgasmo
quando te penetro e começo a te foder gostoso, segurando firme na sua
cintura.
— Peço para que você me foda com força e digo que quero sentir o
gosto do seu gozo na minha língua.
Sorrio de prazer, imaginando a cena, a sensação. O orgasmo começa a
dar sinais e preciso fazer um controle mental para aguentar um pouco mais.
Nós ficamos em silêncio por uns segundos; estou me concentrando para não
gozar, mas é difícil porque ao mesmo tempo tenho uma imagem na minha
cabeça que me faz ficar mais duro e só estimula a ejaculação.
— Pierre… — implora, e não sei se pede porque está idealizando nós
dois na minha sala trepando ou se porque parei de conduzi-la.
Abro os olhos que fechei e nem percebi. Ela está me olhando de volta,
tocando-se furiosamente, olhos enevoados de luxúria, respiração ofegante,
cheia de expectativa para que pare de falar somente quando a fizer atingir o
ápice dessa fantasia. Controlo-me, diminuindo a frequência da minha
masturbação e pronuncio o meu desejo mais secreto:
— Estou comendo a sua boceta, mas pra mim não é o bastante e
pergunto se você gosta de anal.
Os olhos dela se arregalam por um milésimo de segundo, e acho que
toquei em um ponto que não deveria ter tocado nesse momento. Mas então
ela revira os olhos de prazer, intensifica os dedos no clitóris e abana a cabeça
em positivo. A sua afirmativa me faz aumentar os movimentos da minha mão
em torno de mim mesmo e a terminar de proferir a fantasia que nos leva ao
orgasmo esplêndido:
— Eu te como por trás enquanto você toca seu clitóris.
Nossos gemidos se confundem enquanto estamos gozando juntos,
Juliette perdendo a firmeza das pernas e deslizando até o chão, e eu
esguichando um janto longo e viscoso de sêmen. Dez segundos depois, eu a
puxo para mim e, mesmo ofegante, beijo sua boca calmamente. Ela retribui e
só paramos quando nossos corpos estão mais calmos.
— Garota, não pense que pode me fazer imaginar uma cena dessas e
achar que não vou querer fazer um dia — digo, rente aos seus lábios
inchados.
Ela sorri, me olha nos olhos e escorrega sua mão pequena até meu pau
ainda duro.
— É só marcar uma data, doutor Laurent.
JULIETTE
Um sorriso bobo cruza meu rosto quando sinto as mãos dele passeando
pelas minhas costas. Pierre deixa um beijo no meu ombro e massageia um
instante minha nuca antes do seu toque ensaboado descer pela minha coluna
vertebral e contornar minha barriga.
— Sei que já jantamos — murmuro, virando-me para ele. Apoio a mão
nos seus ombros e contemplo um instante o seu corpo desnudo. Mordo o
lábio inferior, sentindo o meu reagir a essa imagem linda na minha frente. —
Mas ainda estou com fome — reclamo.
Ele ri um pouquinho e se inclina na minha direção, beijando meus
lábios e acariciando meu rosto. Sua mão atrevida escorrega para meu seio
direito e brinca um instante com meu mamilo. Pierre chupa minha boca antes
de descer pelo meu pescoço, demorando um minuto longo e delicioso nessa
minha parte. Mal sinto minha respiração falhar quando meu organismo
começa a reagir a suas investidas.
— Posso cozinhar pra você — murmura, intercalando palavras e beijos.
Os lábios suculentos continuam no meu pescoço, alternando entre o lado
direito e o esquerdo, ao passo que as mãos estão uma no meu peito, em uma
carícia excitante, e a outra na altura da minha coluna, escorregando
vagarosamente para minha bunda.
— Meu namorado bonito e gostoso, na minha cozinha, de preferência
só de cueca, cozinhando pra mim? Gosto da ideia.
Pierre sorri de novo, sua boca suculenta agora intervalando entre um
seio e outro. Fecho os olhos e mordo os lábios, sentindo o vão das minhas
pernas começar a ficar úmido outra vez. Não é difícil me deixar excitada,
nunca foi, mas entre um orgasmo e outro preciso de alguns minutos para
recuperar o fôlego e a vontade para uma segunda rodada. Com ele é muito
diferente. Não faz nem cinco minutos direito que gozei pela segunda vez,
sem penetração, e aqui está meu namorado de novo, estimulando os lugares
certos para me acender pela terceira vez na noite.
Não sei se essa facilidade de me excitar depois de um orgasmo
esplêndido se deve ao fato de que Pierre é naturalmente bom no que faz, ou
se porque é naturalmente bom no que faz e porque conhece o corpo de uma
mulher mais do que um homem comum. Não importa qual seja a explicação,
a verdade é que já me provou mais de uma vez que é capaz de me fazer
conhecer diferentes formas de prazer além daquelas resumidas à penetração e
ao oral.
Um gemido de frustração escapa de mim quando se afasta, cessando o
contato da sua boca incrível com meus seios intumescidos. Pelo amor de
Deus, não se faz isso com uma mulher, ainda mais com uma mulher grávida
cheia de hormônios. Estou prestes a implorar para que volte aqui e termine o
que começou, mas engulo minhas palavras quando seus lábios tapam os meus
em um beijo suave. Pierre gira o registro, interrompendo a água que cai sobre
nós, pega a toalha e enrola meu corpo em um gesto devagar, protetor e cheio
de afeto.
— Sei que quer me ver cozinhando só de cueca — diz, enrolando seu
próprio corpo em uma toalha, frustrando-me ainda mais. Interromper umas
carícias que iam me dar outro orgasmo tudo bem, mas daí me privar de ter
uma visão do seu corpo nu cheio de gotículas de água que imagino lamber é
demais. Sem condições. Muita covardia. — Mas pode ficar para outro dia?
Essa noite está fazendo muito frio.
Gargalho e envolvo meus braços em torno do seu pescoço.
— Acho que agora tenho um incentivo para mandar consertar meu
aquecedor.
Pierre ri, dando-me um último beijo antes de se virar e sair do banheiro,
dizendo que vai se trocar para ir até a cozinha e fazer algo para eu comer.
Demoro um pouco para ir ao seu encontro porque passo no quarto do
Valentin e namoro o ambiente uns minutos. Nem consigo explicar a gratidão
por tudo o que estão fazendo por mim. Adrien e eu sempre fomos ligados,
desde a infância, e tenho-o como um irmão caçula. Quando começou a
preparar o quarto do bebê, de certa maneira já esperava isso dele. É do feitio
daquele homem se prontificar dessa maneira com quem realmente se importa.
Uma vez a mãe dele sofreu um pequeno acidente e teve que engessar a perna
esquerda. O gesso não ficaria mais do que um mês, mas Adrien foi lá, com
seus pregos e martelos e ele mesmo adaptou o acesso da mãe a alguns pontos
da casa para que pudesse se locomover melhor e com mais autonomia.
Não esperava tanto de Juliene. Mesmo sendo irmãs, a nossa
convivência sempre foi meio distante por causa da diferença de idade, o que
não significa que não a amo ou que ela não me ame de volta. Esperava dela,
no máximo, alguns presentes. Mas a atitude de Pierre foi completamente
inesperada pra mim. Estamos juntos há tão pouco tempo e ele não tem
nenhuma obrigação de nada; mesmo assim, não só ajudou na reforma do
quarto, como comprou parte dos móveis e do enxoval com seu próprio
dinheiro. Eu já ficaria satisfeita se apenas gostasse do Valentin, porque não
há nada que uma mãe solo goste mais do que um companheiro que gosta do
filho dela. Meu namorado está fazendo muito além de apenas gostar do meu
menino. Está agindo de uma forma paternal que jamais esperei ou quis dele.
— Ei. — Sua voz rouca e baixa soa atrás de mim. Viro-me e o vejo no
umbral da porta, encostado ao batente. — A comida está pronta. Vem
alimentar o nosso garoto — diz, e isso me desestabiliza um pouco mais.
Não sei se ele percebeu que disse “nosso garoto” ou se o que disse foi
proposital. Nem tenho tempo para pensar no assunto ou questioná-lo, porque
Pierre se aproxima e me puxa pelos punhos, levando-me até a cozinha onde a
mesa já está posta. Tem uma travessa de arroz, bife na frigideira, um prato
separado com cebolas — porque ele ama bife acebolado, mas eu não —,
salada simples e uma jarra de suco.
Um gemido escapa da minha garganta quando dou a primeira garfada.
É uma refeição tão simples, mas está tão gostosa. Acho que nunca comi um
arroz com bife e salada tão bons em toda minha vida. Conversamos enquanto
comemos, depois que elogio sua comida e ele agradece. Falamos de
trivialidades que se detém sobre sua carreira e a semana no hospital e na
clínica. O homem sempre tem assunto interessante para contar, como quando
uma vez atendeu uma paciente grávida que não sabia que estava grávida. Ela
chegou reclamando de dores abdominais e logo descobriu que a mulher
estava em trabalho de parto. Pergunto como diabos uma mulher está grávida
e não sabe disso, e Pierre me explica alguns motivos para isso, como dois
úteros e gestação assintomática por variados motivos.
É nessa conversa que noto que ainda não falamos muito sobre sua vida
pessoal. Sei que tem um irmão mais velho, um sobrinho, uma ex-namorada, o
pai mora em Rennes, a mãe faleceu quando era criança (não me lembro de ter
citado a idade dele quando isso aconteceu), onde trabalha, que mora no 15º
distrito de Paris, tem trinta e três anos, faz aniversário em abril, ariano, mas
não acredita em signos. E pelo fato de ele não ter nenhuma característica de
um ariano, além do apetite sexual, começo a não acreditar também. É o que
sei dele além de alguns pequenos gostos, como gostar de bife acebolado.
Quero perguntar algo mais pessoal quando começamos a lavar a louça,
mas recuo porque acho que isso seria invasivo demais e não quero dar a
entender que estou o pressionando. Se Pierre tiver de me contar sobre
qualquer coisa da sua vida pessoal, precisa partir dele, quando se sentir
confortável para isso. Talvez se eu der algum incentivo se abra comigo.
Ele lava a pouca louça da nossa refeição enquanto eu seco e guardo.
Começo a tagarelar coisas da minha vida pessoal como um modo de
incentivá-lo a fazer o mesmo. Isso me obriga a contar alguns fatos
constrangedores sobre mim na adolescência, o que o faz rir aquela sua
gargalhada gostosa, que mexe comigo e me dá todas as sensações boas que
pouco senti na vida. Falo da minha primeira vez, que foi desastrosa, da
faculdade, de momentos bêbados que só me trouxeram lembranças
embaraçosas. Mesmo que eu diga coisas sobre mim, meu namorado não
retribui. Fica calado, ensaboando a louça, ouvindo minhas histórias malucas e
rindo delas.
Quando terminamos, me pega no colo, como uma princesa, e rio
descontroladamente enquanto me carrega até o quarto e me deita na cama.
Ele gira o corpo, deixando-me por cima. Suas mãos apoiam na minha cintura
e ele me encara com seu olhar de “adoro você, mas também quero trepar”. É
desejo e amor ao mesmo tempo.
Eu quero transar. Tocar-me na frente dele de novo e depois senti-lo o
mais fundo possível em mim, mas também quero saber mais dele. Tento uma
última investida de fazê-lo me contar mais sobre si mesmo, perguntando:
— Por que ginecologia? — Já notei que Pierre gosta de falar da sua
profissão, da rotina do hospital, e qualquer coisa que gire em torno do que
escolheu para sua vida. Escolhas de profissão podem envolver questões
pessoais, então essa é minha tática de fazê-lo se abrir comigo. Claro, se ele
quiser me contar.
Meu namorado me olha por um instante, mantendo o sorriso pequeno
nos lábios, estudando-me com seus olhos claros e amáveis. Suas mãos se
movem para minha barriga e isto é mais uma coisa que sei sobre ele: Pierre
sabe que Valentin fica mais agitado ao som da sua voz e gosta de senti-lo
pulando para lá e para cá, e é por isso que toca meu ventre toda vez que o
momento de conversa permite.
— Cresci em uma família de médicos. Minha mãe era generalista, meu
pai era cirurgião cardiovascular, e Étienne optou por neurocirurgia. Parte da
minha infância foi ver meu pai, minha mãe e meu irmão dedicando-se à
medicina. Acho que, desde sempre, eu sabia que queria atuar na mesma área,
só não tinha ideia em que me especializar.
Pierre sorri quando o bebê começa a chutar, reconhecendo sua voz
grossa. Os olhos se detêm meio segundo nas suas mãos sobre minha barriga e
eu as envolvo, selando essa conexão.
— Quando eu tinha onze anos, minha mãe morreu em uma mesa de
cirurgia, por negligência médica. — Ele desvia o olhar de mim por um
segundo, e vejo essa tristeza que bem conheço atravessar seus olhos. —
Mamãe estava grávida de cinco meses, aos quarenta e cinco anos. Uma
loucura, eu sei — brinca, meio triste, e só consigo dar um sorriso na mesma
medida. — Ela morreu depois do parto cesárea de emergência. Meu
irmãozinho sobreviveu por mais quinze dias, mas também não resistiu. —
Quero perguntar o que aconteceu, mas desisto porque se Pierre quisesse falar,
falaria. O caso é que de, qualquer maneira, está se abrindo; não vou me
importar com os detalhes.
Ele fica em silêncio outra vez, talvez organizando as ideias, ou apenas
se recuperando para continuar me contando sua história. Não que eu precise
que ele termine, porque já estou supondo os motivos que o levaram a
escolher a ginecologia e obstetrícia. Tem a ver com a morte da mãe. Tenho
certeza.
— Acho que foi aí, na minha cabeça de criança, que decidi pela
ginecologia. Queria ser um bom médico para evitar que outras mulheres
morressem como minha mãe, por uma irresponsabilidade boba. Queria ser
melhor do que aquele médico que a tirou de nós. Mas… — Pierre suspira,
abrindo um pequeno sorriso quando Valentin chuta de novo.
— Tem um “mas”? — indago, baixinho. Pensei mesmo que a morte da
mãe fosse o estímulo para escolher a especialização.
— Tem — afirma, olhando-me nos olhos e abrindo um sorriso um
pouquinho maior. — A questão é que perdi um pouco dessa convicção
quando ingressei no internato e tínhamos que cumprir cargas horárias em
outras áreas. Comecei a flertar com a pediatria e a medicina geral.
— Bom, e quando isso mudou?
A pergunta parece mexer com ele. Pierre fica estranho, o olhar meio
perdido, umedecendo os lábios em silêncio.
— Conheci uma garota certa vez. — Muda de assunto bruscamente,
deixando-me meio confusa com essa guinada. Não sei se tem relação com o
que vai me dizer ou se está querendo evitar a conversa. De qualquer forma,
ouço-o, esperando pacientemente pelo desfecho e para ver onde isso vai
parar. — Eu já era um interno na época. Tinha acabado de sair de um plantão
puxado, mas estava empolgado porque tinha acompanhado um procedimento
incrível. Aí encontrei essa garota em um bar, ela estava meio triste, alguma
coisa sobre uma traição do namorado, algo assim. Conversamos e acabei
servindo como sexo de consolo e de vingança.
Sorrio um pouco e baixo o olhar para suas mãos que, meio
mecanicamente, afagam minha barriga.
— Um tempo depois, tornei a vê-la, mas não em condições muito
agradáveis. Estava na ginecologia nesse dia quando a recebi com sintomas de
aborto. Ela estava tão… desesperada, chorando, implorando para que
salvasse o bebê dela.
Pierre molha os lábios de novo e faz uma pausa longa. Ele precisa
desse momento e posso sentir isso.
— Na minha ingenuidade e inexperiência, fiz uma promessa absurda.
— Balança a cabeça em negativo, num total ato de arrependimento e
descrença. — Prometi que o bebê dela ficaria bem, que ela seguiria com a
gestação e em breve ia ser mãe.
— Pierre… — murmuro, compadecida dele e já entendendo como essa
situação acabou. — Você não teve culpa.
— Pelo aborto, não mesmo, mas por intensificar a dor daquela mulher,
sim. — Meu namorado não me olha nos olhos nesse momento, preferindo
deter-se nas mãos ainda na minha barriga. — Tinha feito uma promessa que
não podia cumprir. O aborto estava muito avançado, não havia nada que
pudesse fazer por ela, ainda assim, sem nem mesmo um prognóstico, prometi
salvar o bebê dela. Não conseguimos. Meu staff ficou furioso comigo e me
fez dar à notícia a ela de que teríamos que passar pela curetagem e ainda me
fez realizar o procedimento.
Imagino o choque nele quando isso aconteceu. Inclino-me sobre seu
peito, como se pudesse sentir a dor dele daquele momento, e me deito sobre
seu tórax o quanto consigo. A barriga não está muito grande, então consigo
fazer sem muita dificuldade e sem que fique incômodo para nós dois.
Valentin ainda está chutando e agora Pierre pode sentir os chutes dele contra
seu próprio abdômen. Há outro silêncio entre nós e o incentivo a terminar a
história.
— Eu fiz. Durante a curetagem ela não parava de chorar. Aquilo me fez
perceber que tinha cometido um erro, que, apesar de não ter sido um que me
igualava ao médico que tirou a vida da minha mãe, ainda assim era um erro,
quando eu tinha prometido a mim mesmo que seria o melhor em tudo.
— Chéri… todo mundo erra. Faz parte do aprendizado.
Ele balança a cabeça em negativo.
— Na medicina, isso pode te dar um processo, na melhor das hipóteses,
ou custar uma vida, na pior delas. Aquela garota poderia ter me processado.
Foi um erro bobo, como poderia ter sido um fatal. Foi por causa dessa garota
que finalmente entendi que a ginecologia e obstetrícia eram a minha área,
porque queria cuidar delas como não pude cuidar dessa minha paciente. Esse
caso me deu um empurrãozinho para me ajudar a me decidir na minha
especialização, e escolhi ginecologia não porque queria, de alguma forma,
compensar os erros do médico que negligenciou minha mãe ou porque queria
ser melhor do que ele. Queria ser o melhor de mim mesmo, queria ver isso.
— Ele me afasta e leva o polegar até meus lábios, que se curvam num
pequeno sorriso quando outro chute do bebê me atinge. — Quando isso
acontece — diz, tocando o ponto onde Valentin se enfiou e está chutando.
Toco sua mão por cima da minha enquanto o ouço elencar as razões por
ter escolhido ginecologia. O caso da sua paciente foi o pontapé para fazê-lo
optar a passar mais tempo na especialidade, que começou como uma forma
de punição a si mesmo, segundo me explicou. Pierre pretendeu passar mais
tempo na ginecologia para aprender com seus erros, mas acabou sendo
enlaçado de vez a cada caso que recebia, fossem alegres, como partos e
consultas pré-natais, ou tristes como abortos espontâneos ou provocados,
fetos mortos, natimortos, gravidezes indesejadas, grávidas envolvidas em
acidentes.
— Tornou a vê-la? Essa moça que atendeu? — pergunto depois que me
conta tudo o que precisa contar.
Outra vez vejo uma sombra de tristeza rondar seus olhos claros. Ele
maneia a cabeça em positivo, não muito animado, e suspira.
— Sim, infelizmente, não numa situação agradável. Ela… chegou na
emergência depois de um acidente doméstico onde bateu a nuca. Étienne a
operou, mas os danos no córtex cerebral eram irreversíveis. Ela não morreu,
mas teve sequelas severas. Perdeu os movimentos e a fala. Nunca mais soube
dela depois que a família a levou do hospital.
Pierre fica em silêncio de novo, seus olhos distantes outra vez, e sei que
quando faz essa cara está pensativo.
— O que foi?
Ele me olha, como se voltando à realidade e sorri, puxando-me para um
beijo sereno.
— Não é nada — murmura, enfiando os dedos na minha nuca e
pegando uma porção de cabelo.
Decido que não vou pressioná-lo a me contar o que passou na sua
cabeça e intensifico o beijo, querendo apenas mais uma rodada de orgasmo e
a primeira com penetração, por favor. Ele parece entender minhas intenções e
gira o corpo novamente, deixando-me debaixo dele. Com um sorriso safado,
Pierre começa a puxar minha calça legging pelas pernas, sem desfazer nosso
contato visual.
Meu corpo instantaneamente anseia por mais, anseia pelo dele, e fecho
os olhos, esperando apenas que termine de tirar minha calça. Quando o faz,
sinto seu toque macio na minha intimidade, colocando a calcinha de lado e
acariciando meu clitóris em movimentos circulares.
— Abra os olhos — ordena; atendo sem pensar duas vezes. O homem
está entre minhas pernas, umedecendo o lábio inferior, dando-me prazer
apenas com dois dedos e olhando-me repleto de luxúria, paixão e desejo. —
Quero que veja o que faço com você e com o seu corpo — murmura.
Nem tenho tempo de dizer qualquer outra coisa porque Pierre se
acomoda entre minhas pernas, enfiando sua língua esplêndida em mim,
segurando-me firmemente pelas pernas, prendendo-me à cama. Suspiro,
gemo e me contorço à medida que o oral dele vai tomando proporções
incríveis. Ele é bom no que faz, é habilidoso, dedicado e atencioso. É intenso
quando dá uma chupada mais forte, introduzindo o indicador em mim e
rodopiando a língua no meu clitóris, mas também é suave ao dar lambidas
leves e beijos na parte interna da minha coxa quando atinjo o orgasmo e gozo
na sua boca.
Pierre vem até mim, distribuindo o peso do corpo nos braços para
manter seu abdômen levemente distante do meu. Seus lábios me tomam, de
um jeito único e desesperado, passando para meu paladar o gosto do prazer
que me deu. Minhas pernas o rodeiam na cintura, e ergo o quadril levemente,
roçando no dele, procurando pela sua ereção sob o jeans apertado. Venha
logo para dentro de mim, homem, nunca te pedi nada.
Ele desce para meu queixo, deixando uma mordida ali, e chega no meu
pescoço, roçando o nariz para cima e para baixo. Posso ouvir quando inspira
fundo mais de uma vez. Sua mão escorrega pela lateral do meu corpo até a
cintura e de repente está ali de novo, no ponto que mais clama por ele,
massageando-me suavemente.
— Pierre — imploro, quase sem perceber o tom de súplica que deixa
minha garganta.
Sinto-o sorrir contra minha pele e o toque cessa. Ele se levanta,
trazendo-me junto, e, de uma forma vagarosa demais, arranca o resto da
minha roupa de novo. Sentada de frente para ele, completamente nua e
excitada, penso que, finalmente, vai me erguer e me sentar no seu colo. A
ereção marcando o jeans não esconde o desejo dele. Contudo, Pierre apenas
se inclina na minha direção e suga meus seios, alternando entre toques leves,
sutis e calmos e intensos, vigorosos e depravados.
— Sei que está louca para que me enterre em você — diz, sua boca
agora rente à minha enquanto o polegar e o indicador direitos fazem um lindo
espetáculo com meus bicos entumecidos. — Mas preciso de outra visão sua
se masturbando. Juro que só mais uma vez e te como como você merece,
Julie. Pode fazer isso por mim?
Sei que deveria estar implorando para que me penetre logo, mas o seu
pedido rouco somado à promessa de me comer e a como fico excitada ao
idealizar me tocar para ele de novo fazem com que simplesmente balance a
cabeça em positivo. Um sorriso gostoso cruza os lábios dele, que deixa um
último beijo antes de se afastar de mim, frustrando-me completamente, e se
despe por completo.
Esparramada na cama, contemplo a visão desse homem nu. Umedeço
os lábios, percorrendo os olhos pelo corpo dele. Pierre tem ombros largos,
barriga gostosa, malhada, mas nada exagerado, inclusive até vejo uma
gordurinha na lombar que deve ser a coisa mais deliciosa de apertar. Pouso os
olhos na parte que é uma das responsáveis por me dar prazer e vejo ali toda o
seu desejo expresso. Suspiro e demoro a perceber que já estou brincando
comigo mesma enquanto o observo parado na minha frente, segurando seu
membro duro e se masturbando bem devagar. Posso sentir seus olhos em
mim, mas eu não consigo fazer o mesmo, presa na visão divina dele se
tocando.
Pierre anda para trás até se acomodar na poltrona ao lado da minha
cama. Esparrama-se todo, os olhos fixos em mim, pupilas dilatadas, a mão
direita ainda o contornando.
— Deite-se e abra as pernas — comanda, e sua voz toma uma
proporção muito rouca, muito sensual. É uma ordem, mas não é rude. É
quente, é bom, e eu atendo sem pestanejar. Acomodo-me melhor na cama,
colocando alguns travesseiros para apoiar a cabeça e a coluna. Minhas pernas
ficam dobradas e separadas, e já estou levando minha mão até meu fecho de
nervos quando sua voz me interrompe. — Não, ainda não.
Paro no meio do caminho, arquejando, sem compreender seu último
comando. Ele me instrui a fechar os olhos; eu faço, tentando controlar minha
respiração descompassada. Pierre me pede para esperar, apenas esperar.
Então, eu sinto. Demora só um segundo, mas sinto. Ele está me observando,
deitada, nua, de pernas abertas, e inesperadamente isso aperta todo o meu
órgão, dando-me um choque de prazer indescritível. Não há nada
acontecendo aqui, nenhum toque, ou lambidas, ou palavras obscenas, apenas
um silêncio breve quebrado pelas nossas respirações ofegantes e o atrito da
sua mão contra o pau.
Ainda assim, todo meu corpo clama pelo dele, tudo o que quero é me
tocar furiosamente, pensando nele nessa cama, atrás de mim, arremetendo-se
com força. Somente o fato de saber que estou exposta, aberta na sua frente,
que ele me observa e se masturba, provavelmente fantasiando posições e
palavreados, é o suficiente para me dar esse aperto, essa necessidade insana
de querer me satisfazer, essa vontade quase incontrolável que se compara a
quando ele está me provocando com dedos ou língua, negando-se a entrar em
mim enquanto não me torturar um pouco e me deixar excitada ao extremo.
— Não aguento — choramingo, contorcendo quadris e pernas.
Para meu alívio, Pierre comanda para que eu me toque. Quando meu
indicador encontra o clitóris sensível, uma onda de prazer me invade por
completo, arrancando-me um gemido escandaloso. Trabalho em mim em
toques efervescentes, desesperados, procurando o meu ápice, que encontro
com mais facilidade quando meu homem me conduz. O que ele faz no
instante seguinte, falando de uma praia paradisíaca, de posições pervertidas e
deliciosas, de me comer dentro da água e de gozar na minha boca.
Anuncio meu gozo, jogando o corpo para trás o tanto quanto consigo,
afundando no colchão. Os espasmos de um orgasmo esplêndido começam a
me atingir quando o sinto se pôr entre minhas pernas, abrindo-as mais e me
penetrando vigorosamente, deslizando para dentro de mim com uma
facilidade deliciosa. Ergo as pálpebras, divisando-o sobre meu corpo, seu
rosto completamente contorcido de prazer, ajoelhado na cama. Faço menção
de unir meus calcanhares em torno da sua cintura, mas ele me impede,
separando-as ainda mais.
— Aberta pra mim — rosna apenas, ao mesmo tempo em que me
entrego totalmente e o ápice me atinge com um solavanco inesperado.
Grito enquanto me liberto, invadida por uma sensação desconhecida de
bem-estar e satisfação. Meu corpo todo treme sob Pierre, que afunda mais
seus dedos na minha cintura e dita um ritmo alucinante para dentro de mim.
— Porra, Julie — murmura, o polegar desocupado encontrando meu
clitóris e me dando outro choque. Não sou capaz de lidar com essa pressão
deliciosa que ele faz junto com o pico de prazer que ainda se alastra por todo
o meu organismo. Sinto-me fraca, de um jeito bom, feliz e satisfeita. — Não
tem a mínima chance de eu passar o resto da vida sem ver você gozar para
mim.
Pierre me puxa, de repente, sentando-me no seu colo. Não tenho tempo
de dizer qualquer coisa que o incentive a encontrar o próprio clímax porque
ele gruda sua boca na minha, em um beijo profundo e forte, e seus quadris
batem contra os meus mais rápido, com mais vigor, procurando o ponto mais
fundo. Seus lábios deixam os meus, mas mantêm-se separados por apenas um
milímetro, distância o suficiente para que ele respire pelas narinas infladas e
consiga gemer de um jeito excitante demais.
— Estou indo — anuncia, cravando seus dedos em mim.
Ele aperta os olhos, joga a cabeça para trás e deixa um gemido rouco no
ar. Pierre goza, dando estocadas intensas e profundas em mim. Quando dá um
último golpe, ele me abraça, escondendo o rosto na curva do meu pescoço.
Tudo para. O tempo, o mundo. Somos só nós dois, juntos, enroscados,
conectados, recuperando o fôlego de uma transa incrível por longos
segundos.
Mais recuperado, sai de dentro de mim, descarta a camisinha e me puxa
para o seu tórax quando se deita na cama. Eu nos cubro e me ajeito sobre seu
tronco suado, o sono dando sinais de que vai me render. Os dedos dele se
embolam nos meus cabelos ao mesmo tempo que sinto um beijo estalar na
minha têmpora.
— Descanse — sussurra, apertando-me contra seu corpo quente.
Eu não me oponho.
Já vi homens bonitos na minha vida, mas Pierre abusa. O desgraçado é
lindo mesmo dormindo, com a cara amassada no travesseiro, ronronando
baixinho e deixando um fio de baba descer para a fronha do meu travesseiro.
Abafo uma risada maior e me aproximo um pouquinho mais dele, acariciando
seu cabelo bagunçado. Ele resmunga, ainda de olhos fechados, e, parecendo
sentir a umidade, passa as costas das mãos nos lábios. Não me controlo e rio,
não escandalosamente, mas alto o suficiente para despertá-lo.
Ele leva um tempo para se lembrar de onde está, com quem está, e
então sorri, meio débil por causa do sono. Pierre chega mais perto e penso
que vai querer me beijar, mas, em vez disso, apenas me abraça, se enfia na
curva do meu pescoço e cai no sono de novo. Deixo que fique assim comigo,
porque também gosto da sua proximidade, do calor da sua pele, da maciez
dela, da sua ereção matinal contra meu abdômen, do seu cheiro almíscar.
Acabo dormindo outra vez com ele e só acordamos um pouco mais tarde por
causa de um esbarrão na porta.
— Desculpe — Juliene diz apenas e parece sumir logo em seguida.
Pierre ri, balançando a cabeça.
— Acha que ela estava ouvindo atrás da porta? — pergunta, com um
sorriso divertido e despreocupado.
— Pra saber se estávamos transando? — devolvo a pergunta com outro
questionamento. Isso é muito a cara da Juliene. Rio com a ideia e balanço a
cabeça em positivo. — Provavelmente. Achei que Adrien não fosse voltar
para cá — observo.
Pierre se vira na cama, pegando o telefone no criado-mudo e
conferindo as horas.
— São mais de meio-dia, Julie — informa, para minha surpresa. —
Estava mesmo cansado. — Ele toca meu nariz com o indicador. — Você
deve ser só hormônio de grávida — brinca.
Eu mordo seu dedo. Pierre ri, fazendo-me rir junto, e ele me cala
colando sua boca na minha.
— Ei, eu trabalhei muito essa semana e a barriga está pesando já,
sabia? — protesto, o que não é mentira. Nem me lembro quando foi a última
vez que dormi tanto. Foi um descanso merecido, convenhamos.
Pierre contorna meu abdômen com as duas mãos e sorri, aplicando um
carinho suave e lento. Seus olhos não deixam os meus e o sorriso pequeno se
mantém ali, enquanto me observa e me acaricia.
— Ele tem mais ou menos o tamanho de um mamão — murmura. — E
já é capaz de franzir as sobrancelhas — diz, fazendo o movimento que
acabou de mencionar.
Abro um sorriso singelo. Um pouco é amor maternal em saber esses
detalhes, em saber que Valentin já está grandinho, desenvolvendo-se com
saúde. Mas outra parte é por causa desse zelo do Pierre, do afeto que vejo nos
seus olhos.
— Quantas mulheres no mundo têm o privilégio de uma consulta
obstétrica com o obstetra na cama delas? — gracejo, cobrindo sua mão com a
minha. Pierre desvia o olhar por um segundo, a expressão divertida sumindo
dos seus traços. — Ei, o que há?
Meu namorado suspira e vira seus olhos na minha direção.
— Não gosto dessa situação… — diz, com cuidado, umedecendo os
lábios. — Não queria ter que te esconder, nem tomar cuidado para que não
descubram sobre nós. Tem certeza de que não prefere que eu te recomende
para outro médico? Meu antigo atendente é um ótimo doutor, Julie, cuidaria
tão bem de você tanto quanto eu.
Fito-o um momento, tentando decifrar essa necessidade repentina que
tenho dele. Sei que ele não me recomendaria para ninguém menos do que
incrível para acompanhar minha gravidez, e ele próprio estaria comigo para
qualquer eventual precisão, mas não consigo me desapegar. Sei que é egoísta
e sei que pode colocar em risco o seu emprego, a sua carreira… Ainda assim,
tem algo dentro de mim com dificuldade de abrir mão dessa relação médico-
paciente que construímos. Não sei explicar o que é, nem entender o motivo
de isso existir dentro de mim quando está claro que nosso relacionamento às
escondidas é capaz de prejudicá-lo, mas a verdade é que eu apenas não
consigo.
— Tudo bem — digo, mas não está tudo bem e meu rosto expressa o
contrário do que digo. — Pode me recomendar a outro obstetra.
Levanto-me depois disso, caçando um robe para enrolar meu corpo
ainda nu da noite de ontem. Fico abatida sem nem saber por quê. Pierre me
chama, mas o ignoro e vou até o banheiro. Encaro-me no espelho, tentando
evitar as lágrimas forçando contra meus olhos. Por que diabos estou com
vontade de chorar? Aperto com mais força a abertura do robe e de repente
todo meu esforço é em vão. Meu rosto se banha em lágrimas
incompreensíveis. A porta se abre um instante depois e não preciso erguer as
pálpebras para saber que é ele.
— Juliette. — Sua voz tem um tom de preocupação. Seus braços me
esmagam em um aperto aconchegante, e só consigo me virar para ele e
afundar o rosto no seu peito. — Por que está chorando?
— Não sei — respondo, e é completamente verdadeiro.
Os dedos dele me acariciam meus cabelos ao passo que me pede calma.
— Tudo bem — diz —, não vamos procurar por outro obstetra. —
Afastando-me, olha-me com ternura e compaixão. — Se é isso que está te
fazendo chorar, esqueça, não vou te recomendar para outro médico.
Balanço a cabeça em negativo, mas não posso deixar de admitir que
suas palavras me dão consolo e alívio.
— Não. Não quero que pense que estou te chantageando. — Ergo meus
olhos úmidos e o enxergo de forma embaçada. — Porque não estou, Pierre.
Je jure devant Dieu.
— Sei que não está, mas se a ideia de não ser mais o seu médico te
deixa nesse estado, então não vou deixar de ser o seu médico, oui?
Um sorrisinho fúnebre nasce no meu rosto. Eu me refugio de novo no
seu tórax, precisando de mais alguns segundos para me recuperar. Ele fica
aqui comigo, dando-me beijos no rosto e carícias nos cabelos. Uma parte de
mim me diz que isso tudo é muito egoísta, que eu deveria me esforçar para
abrir mão dele como meu médico, mas outra parte, uma parte mais forte e
desconhecida, se alivia porque Pierre não vai cortar nossa relação médico-
paciente.
JULIETTE
Juliene mastiga um pedaço de baguete, sentada à bancada, olhando-me
descaradamente quando surjo na cozinha, acompanhada de Pierre, enroscada
aos braços dele. A safada nem tenta disfarçar que estava ouvindo atrás da
porta.
— Bonjour, dorminhocos — provoca.
Sinto minhas bochechas quentes. Pierre se aproxima dela e rouba o
último pedaço do pão, jogando-o na boca. Ela protesta, meu namorado ri e se
vira para mim, dando-me um beijo suave depois de engolir a porção roubada.
— Preciso ir para casa — informa, acariciando meu rosto e colocando
uma mecha do meu cabelo atrás da orelha. — Aproveite o domingo com sua
família — diz, dando-me um beijo na testa.
Abro um pequeno sorriso e o acompanho até a porta. Preferia que ele
ficasse, mas sei que preciso de um tempo com minha irmã para contar a
verdade sobre nosso envolvimento e a gravidez. Além disso, ele tem sua
própria família e precisa descansar para o plantão à noite. Pierre abraça
minha cintura e me dá um abraço apertado antes de se afastar, me olhar nos
olhos e dizer:
— Estava pensando que está na hora de você conhecer meu irmão e
meu sobrinho. O que acha?
Simplesmente amo a ideia e expresso isso em um sorriso enorme e no
modo como me jogo em seus braços e o aperto contra mim. Pierre sempre foi
muito evasivo sobre sua vida pessoal e sobre sua família. Nunca entendi
direito por que insistir em não me contar nada, e até hoje não entendo o que
aconteceu com a cunhada dele, que nunca é mencionada. Sempre fala muito
de Édouard e Étienne, mas nunca o vi mencionar a mãe da criança. Eu
também nunca perguntei por respeito. Se meu namorado não comentou nada
é porque certamente não quis comentar.
— Ia adorar — digo por fim, ao pé do seu ouvido, resvalando um beijo
pelo seu pescoço em seguida e inalando seu cheiro gostoso uma vez mais
antes de ele partir de vez. — É só marcar um dia.
— Que tal no próximo final de semana? — sugere, afastando-me dele.
Sei que só fez isso porque estou arrastando o nariz pela sua pele e isso está o
provocando.
— Por mim tudo bem — confirmo, segurando sua mão e dando uma
olhada rápida no jeans apertado, comprovando que está mesmo excitado. Rio
baixinho e ele se aproxima de mim, segurando-me pela nuca e levando minha
boca para muito perto da dele, sussurrando:
— Não me olhe como se você não soubesse o que é capaz de fazer
comigo, Julie.
Olho por cima do meu ombro, certificando-me de que estamos
sozinhos, e o pego pelos punhos, trazendo sua mão para dentro da minha
calça. Pierre arregala os olhos, não sei se surpreso com minha atitude tão
ousada e perigosa ou se porque sente como estou úmida.
— É recíproco, chéri — murmuro nos seus lábios, querendo dançar
contra seus dedos.
Ele rapidamente puxa a mão de dentro da minha calcinha e balança a
cabeça em negativo, oferecendo o seu sorriso gostoso e despreocupado de
sempre. Pierre me dá um último beijo de despedida, entra no carro e parte.
Volto lá para dentro, encontrando uma Juliene ajeitando a bagunça.
— Adrien? — pergunto por ele, abrindo a geladeira e caçando alguma
coisa para comer. Deveria almoçar, uma vez que já passou do horário, mas
não tem nada pronto e estou com preguiça de cozinhar. Analiso as opções e
opto por alguns pedaços de queijo, suco de laranja e uma fruta.
— Estava aí até agora há pouco. Saiu para atender um chamado do
patrão.
Faço um esgar enquanto me acomodo na bancada e começo a comer.
Aquele homem já trabalha tanto, custa dar um domingo ao coitado? Nem me
lembro quando foi a última vez que meu primo realmente folgou em um
domingo. Folga, folga mesmo. Sem essa de estar de prontidão para atender
Ferdinand.
— Como foi o cinema ontem?
— Bacana. Ele me levou para ver uma comédia romântica, depois
comemos umas besteiras e tomamos sorvete. Tinha me esquecido de como
Adrien é incrível.
Sorrio, mastigando o queijo, e preciso concordar. Adrien é incrível
mesmo. Às vezes discutimos, o que é normal, e tenho ciência de que já agi
feito uma ingrata quando ele demonstrou extrema preocupação comigo e
fiquei ofendida com isso. No final, ele estando certo ou não, sempre me
desculpo, reconhecendo de que fui uma idiota, e meu primo sempre me
perdoa, não importa a desavença que tenhamos.
— Tivemos que dormir lá no apartamento dele, sabe? — comenta,
terminando de limpar a pia. — Porque você e o Pierre estavam… — insinua,
e preciso de um gole do meu suco para fazer o pedaço de queijo que ficou
entalado na garganta descer. Juliene me olha por cima do ombro, torcendo o
pano da pia, e dá uma risadinha ao ver que fiquei sem jeito. — Bem, você
sabe. Mas o apartamento dele só tem um quarto e… — Ela se vira para mim,
seus olhinhos brilhando apaixonadamente como quando cultivava a paixão
adolescente pelo nosso primo. — Adrien dormiu no sofá desconfortável e
cedeu a cama dele pra mim.
— Um gentleman… — brinco, nem me surpreendendo mais com essas
gentilezas da sua parte.
Adrien merece alguém bom na vida dele, que estime todas essas
pequenas coisas que ele faz. Definitivamente, ele é homem pra se casar. Sabe
de tudo um pouco — marcenaria, elétrica, hidráulica, até mecânica —, é
supercompanheiro, divertido, atencioso. É a espécie rara de homem que você
não precisa esperar seis meses para que desentupa o cano da pia ou troque o
bocal da lâmpada por um novo, nem pedir mais do que uma vez. A mulher
que conseguir fisgá-lo vai ter um pacote completo que toda garota pediu a
Deus. Espero de coração que encontre alguém à altura, que seja tão
companheira e divertida como ele é. Sempre torci pela felicidade do meu
primo e só queria que ou tomasse coragem e falasse com Marjorie, ou se
permitisse conhecer outras pessoas. O teimoso faz alguma dessas coisas?
Não. Prefere passar a vida sonhando com Chevalier do que tomar uma
atitude.
— Desculpa lá em cima — pede, indicando com a sobrancelha. — Não
queria ter chamado sua atenção.
Franzo o cenho em sua direção.
— Estava tentando escutar o que atrás da porta?
— Se estavam trepando, é claro — responde, com muita naturalidade.
— Juliene! — advirto, soltando uma risada mais escandalosa.
Vergonha na cara que é bom, nada.
Ela ri e dá de ombros, virando-se e se inclinando sobre o balcão,
roubando meu último pedaço de queijo.
— Nós chegamos e a casa estava silenciosa demais, achamos que
pudessem ter saído. Subi até seu quarto e tentei escutar qualquer coisa,
maluca. Uma conversa, risada, barulho de chuveiro, não que estivessem
transando. Só queria confirmar que estavam por aqui. Estavam dormindo,
suponho, então isso significa que a noite de ontem… — suspira,
semicerrando os olhos em minha direção. — Safadinha!
Gargalho de novo, impressionada com o humor e a audácia dessa
menina. Tinha me esquecido como Juliene é cheia de vida, alegre e bem-
humorada o tempo todo. Sinto saudades dela e queria exigir que viesse me
visitar mais vezes, mas nem isso posso. A distância de Londres para Paris é a
mesma de Paris para Londres, então se ela não pode vir para cá com tanta
frequência, embora seja uma viagem de uma hora, talvez um pouco mais, eu
deveria ir visitá-la, certo? Mas não foi o que fiz nos dois últimos anos,
concentrada demais no meu trabalho e na minha própria vida particular. É
injusto exigir qualquer coisa da minha irmã quando eu mesma pouco me
esforcei para estar com ela.
Afasto os pensamentos da minha mente e decido encabeçar uma
conversa sobre sua graduação e a residência em Londres. Quero saber mais
dela, da sua vida, dos seus estudos, compensar um pouco essa distância
emocional e geográfica entre nós. Ela me conta. Tudo. Animadamente. Apoia
os cotovelos na bancada e começa a tagarelar, parecendo realmente feliz que
eu tenha perguntado e me interessado pela sua vida. Enquanto a ouço, vou
tomando a coragem necessária para contar a verdade que escondi dela
durante esse final de semana.
Preciso perder o medo do seu julgamento, preciso mesmo. Ela tem me
dado um apoio que não esperava. O mínimo que tenho de fazer é ser franca,
abrir o jogo. Mesmo que depois não me olhe mais da mesma maneira, mesmo
que vá embora com raiva, mesmo que não me apoie mais como fez esses
dias, ao menos saberá a verdade e não ficará ofendida caso descubra de
qualquer outra forma, sentindo-se enganada.
—… ele é a coisa mais linda e tem uma habilidade com os dedos —
finaliza, dando uma risada gostosa quando levo a mão à boca para abafar uma
risada maior frente à sua narrativa sobre um cara qualquer que conheceu no
seu estágio.
Juliene suspira, parecendo, finalmente, não ter mais nada para contar.
Dou uma mordida na minha pera, pensando em como começar isso.
— Juju… — murmuro, chamando-a pelo seu apelido de infância. Ela
volta seus olhos para mim, surpresa que tenha usado uma alcunha que há
tempos parecia esquecida. — Preciso te contar uma coisa.
Ela me olha atentamente, estudando minhas feições.
— Tudo bem. Onde está o corpo?
— Quê? — Solto imediatamente, confusa com sua reação.
— Pra fazer essa cara aí — diz, apontando o dedo para o meu rosto —
deve ter matado alguém. Cadê o corpo? Te ajudo a enterrar.
Fecho os olhos e rio. Essa garota é inacreditável. Ela me acompanha, e
a atmosfera fica um pouco mais leve, o que me deixa mais confiante para
essa conversa. Quando me recupero do breve ataque de risos, arrasto minha
mão até a dela e a seguro com firmeza. Juliene percebe que o assunto é
realmente sério e ajusta sua postura de acordo com o que o momento exige.
— Não te contei antes porque senti muita vergonha — admito,
baixando os olhos para nossas mãos unidas. — E porque não queria não te
preocupar.
Juliene toca meu queixo com a mão livre e me faz olhá-la nos olhos.
— Ei, não fica assim, como se eu fosse comer o seu fígado. Me conta o
que é, sem medo. Vai — encoraja-me, dando-me a confiança de que
precisava para abordar esse assunto.
— O Valentin é… fruto de um erro muito irresponsável da minha parte.
— Não diz isso — adverte.
— É verdade, Juju — rebato, balançando a cabeça. — Amo esse
garotinho mais do que consigo explicar, mas não muda o fato de que fui
muito, muito inconsequente. — Ela espera, aceitando meu breve silêncio para
me recompor e começar a explicar essa confusão. — O pai dele é um homem
casado.
Ela expressa surpresa, mas suas mãos não se soltam das minhas. Há um
instante de quietude entre nós duas, eu esperando pelo surto dela, pelo
sermão, pelo julgamento, pela expressão de nojo e decepção. Mas nada disso
vem. Juliene apenas me encara surpresa e me espera continuar, explicar algo
inexplicável, justificar algo injustificável. Pacientemente espera, segurando
minha mão na sua.
Desabo e conto tudo desde o início. Como conheci o Antony, o modo
como me fazia acreditar que estava infeliz no casamento, nossa primeira
transa, das promessas vazias, das reclamações da esposa, dos relatos que me
faziam acreditar que Ann-Marie era uma pessoa terrível e merecia a traição.
Falo por que tive a ideia absurda e irresponsável de engravidar dele, e de
como ameacei falar tudo para a esposa, da sua reação raivosa, do
espancamento, e como foi por causa disso que realmente conheci o Pierre, de
como saiu impune porque estava ameaçando Deus e o mundo.
Nessa parte, minha irmã vem para o meu lado, jogando seus braços ao
redor do meu corpo, tentando me acalmar porque estou chorando e nem vejo.
É incrível como ainda dói tudo o que aconteceu, mesmo depois de, sei lá, uns
três meses e meio. Pensando bem, é tudo muito recente. Menos de quatro
meses é recente demais, mas parece que foi há tanto tempo, parece que foi há
uma vida. Ainda assim dói, mesmo tendo encontrado Pierre e seu apoio
incondicional, seu carisma, sua atenção. Dói me lembrar disso. Nas últimas
semanas, bloqueei as lembranças ruins, muito provavelmente porque meu
namorado passou bastante tempo comigo, e minha atenção estava nele. E
tinha Adrien, sempre disposto a tudo.
— Se acalma, Julie — pede, beijando meu rosto encharcado.
Leva algum tempo até estar mais calma, com os batimentos cardíacos
regulados outra vez. Minha irmã não sai do meu lado, não solta minha mão,
só espera, murmurando para eu respirar fundo, para pensar no bebê e não
passar por nenhum estresse desnecessário. Quando finalmente consigo olhá-
la nos olhos, cheia de vergonha pela minha confissão, espero ver a
reprovação nas suas íris castanhas, espero ver advertência, julgamento. Não
vejo nada disso. Há preocupação, compaixão, empatia, amor, ternura. Meu
choro entala na garganta de novo, mas agora é porque consigo enxergar que
Juliene vai continuar aqui para mim mesmo depois dos meus erros mais
estúpidos.
— Por que não me contou? — pergunta, baixinho, acariciando meu
rosto. — Eu teria deixado tudo na Inglaterra para estar aqui pra você.
— Senti vergonha. Medo… que me julgasse. — Balanço a cabeça em
negativo, só agora notando como foi um medo idiota. Jamais deveria tê-la
privado da verdade. Se ia me amar ou me condenar, ela tinha o direito de
saber.
— Garota tola — murmura, dando-me um sorriso genuíno e pequeno.
— Jamais faria isso, Juliette. Você é minha irmã. Não importa que tenha
errado, nada justifica a atrocidade que aquele canalha cometeu e eu nunca,
nunca te julgaria.
Antes que possa notar, já estou nos braços dela, enfiando o rosto na
curva do seu pescoço, e nem posso dizer quem abraçou quem primeiro.
Juliene afaga minhas costas, diz que está tudo bem agora e pede para que
nunca mais eu esconda qualquer coisa dela, que sempre poderei contar com
seu apoio e amor. Prometo, peço seu perdão e ela alega que não há nada para
ser perdoado. Terminamos a tarde no sofá, comendo pipoca e vendo seriado.
Depois, minha irmã precisa arrumar as malas para seu voo pela manhã. Eu a
ajudo, o que é rápido porque não trouxe muita coisa.
Juliene sugere comermos uma pizza e aceito, pensando no bico que
Adrien vai fazer ao souber. “Comida de grávida, Juliette, é disso que você
precisa”, será o discurso dele quando chegar e ver as caixas de pizza e
garrafas de refrigerante. Ajeito a sala com cobertores e almofadas, escolho
um filme e deixo pausado até nosso pedido chegar. Mandei uma mensagem
ao nosso primo, querendo saber que horas volta porque quero passar esse
resto de tarde junto dele. A resposta vem dez minutos depois, dizendo que já
está a caminho.
Quando Adrien atravessa a porta, eu me jogo em seus braços,
apertando-o com toda minha força, como se não o visse há uma década e ele
fosse um veterano voltando da guerra. Apalpo suas costas, inalo seu cheiro, e
ele não tem reação nenhuma a não ser surpresa.
— Ei — diz, devolvendo meu abraço, com certo cuidado. Não sou dada
a muitas demonstrações de afeto e minha atitude agora deve estar o deixando
curioso. — Quem morreu?
Rio contra seu pescoço e bato no seu ombro, finalmente me afastando
dele e o encarando.
— Ninguém, seu bobo. Só… senti saudades.
Adrien ergue uma sobrancelha. Olha por cima do meu ombro, acho que
para minha irmã atrás de mim. Aponta o indicador na minha direção, depois o
leva até a orelha e faz um movimento universal de doido. Dou outra risada,
empurrando-o amigavelmente. Meu primo me acompanha, seus braços
contornando minha cintura e me tomando em outro abraço.
— Amo você, Dri — digo, usando seu apelido de infância que há muito
não usava. Ele não gosta muito, mas não protesta nesse momento. — Me
perdoa pelas vezes que fui uma babaca com você?
Ele me afasta e me olha cheio de humor e curiosidade.
— Por que isso agora? — questiona, erguendo uma sobrancelha.
Dou de ombros.
— Notei que você é incrível e que muitas vezes me comportei como
uma idiota com você, que sempre está apenas tentando me ajudar.
— Já não era sem tempo você perceber que sou incrível, não é? —
brinca, deixando um beijo no meu rosto. Eu rio e balanço a cabeça. — Não se
preocupa com isso, Julie. Somos uma família, sempre vou perdoar você.
Ele me leva mais para dentro, observando as caixas de pizza que
chegaram um pouco antes dele na mesinha de centro, o refrigerante, cobertas
e travesseiros espalhados no sofá e no chão, um filme pausado na tela da
tevê, à nossa espera. Trago Juliene para mim, deixando-me entre os dois.
— Uma noite em família? — pergunto, olhando de um para outro.
Os dois me apertam em um abraço duplo, gritando e rindo ao mesmo
tempo:
— Noite em família!

Ando pelo corredor extenso, atenta à minha volta, segurando-me ao


máximo para não comer o bolinho que comprei para Pierre. Passei em uma
padaria e comprei três. Comi dois, um meu, um de Valentin, o terceiro é para
o meu namorado, mas parece que o bebê está gritando dentro de mim para
que eu dê só uma mordidinha no chantily. Ele nem vai perceber mesmo.
— Não — murmuro, olhando para minha barriga. — Não seja guloso,
Valentin. Vamos deixar o cupcake para o tio Pierre, ouviu?
Ergo meus olhos para o caminho a ser feito e torno a observar ao redor.
Enfermeiras, internos, residentes, atendentes, visitantes e todo tipo de
funcionários passam por mim. Uns mais apressados, outros despreocupados,
outros conversando, ao telefone, digitando.
Inspiro fundo e tento não pensar que Pierre vai ficar chateado porque
vim procurá-lo aqui no Necker. Perguntei dele na recepção, a funcionária
discou um ramal, trocou algumas palavras e me deu instruções de como
chegar ao seu consultório. Dei sorte de não estar em uma sala de parto.
— Julie… — Sua voz ecoa bem perto de mim. Noto só agora que
estava olhando para todos os lados, menos para frente, e que Pierre deve ter
vindo ao meu encontro, o que explica essa sua proximidade súbita. Meu
namorado tem um pequeno brilho indecifrável nos olhos. — Aconteceu
alguma coisa? — pergunta, em um tom de preocupação.
Deus, será que assustei o homem vindo aqui? Balanço a cabeça em
negativo, recordando-me de que na recepção dei a desculpa de que não estava
muito bem, que ele é meu obstetra e precisava de uma consulta. Foi uma
meia-verdade, se formos analisar. Não estou passando mal, mas ele é meu
obstetra.
— Não — respondo, por fim. — Só estava com saudade. Não te vejo
desde domingo, depois que foi embora — digo, fazendo bico.
Ele dá um sorrisinho e avalia o ambiente ao nosso redor.
Aparentemente estamos sendo ignorados com sucesso. Não pensei direito
quando deixei a clínica, no meu horário de almoço, e vim procurá-lo. Não
pensei que minha presença podia comprometê-lo e só me dou conta disso
agora. Pierre me disse que a ex-namorada trabalha com ele, não é? Ela pode
aparecer e nos ver juntos? Mesmo que não estejamos fazendo nada
comprometedor. É só uma conversa, nada demais. Não tem como ninguém
desconfiar de qualquer coisa.
— Desculpe — peço, e ele se vira para mim. — Nem pensei que você
poderia estar ocupado e que… — baixo o tom de voz aqui — possam
desconfiar de nós. Eu vou…
—… a lugar nenhum — me interrompe, segurando-me pelos punhos,
impedindo-me de ir embora, coisa que já estava prestes a fazer.
Agi por impulso vindo aqui, movida por uma saudade descabida. Não
nos vemos desde domingo, mas me ligou ao menos três vezes no dia e
trocamos mensagens. Não é como se estivéssemos incomunicáveis nesse
interim. Pierre me explicou que o turno da sua escala ia trocar e precisaria
dobrar para cobrir os dois turnos, o que normalmente acontece quando troca
os horários da sua jornada, e por conta disso trabalhou no domingo e na
segunda. Folgou na terça, mas depois de um plantão de trinta e seis horas,
tudo o que esse homem estaria desejando era dormir o dia todo. Prometeu
que ia lá em casa hoje, assim que o plantão acabasse, mas mesmo assim fui
estúpida o suficiente para vir aqui, como se não pudesse aguentar até de noite
para vê-lo.
— Não quero atrapalhar seu trabalho — cicio, olhando para os lados.
Pierre certifica-se uma última vez antes de abrir uma porta atrás de nós
e me levar lá para dentro. Assim que entro, me dou conta de que é seu
consultório. É um pouco menor do que o da clínica, tem uma decoração mais
simples, uma maca, um armário, arquivo de metal, instrumento de trabalho e
um livro que roubou da minha estante sobre sua mesa.
— Não está atrapalhando. Não pediria pra que liberassem sua entrada
se tivesse trabalho a ser feito — explica, pegando meus pulsos e me girando
contra porta, deixando-me entre ele e a superfície de madeira. — Tenho um
encaixe em quinze minutos e tem outro obstetra atendendo os partos. — Sua
mão acaricia meu rosto, em um toque singelo, suave e acolhedor.
Seus olhos abaixam e ele sorri, só agora percebendo o cupcake que
seguro com cuidado para não o deformar.
— Trouxe pra você — digo, erguendo na altura dos seus olhos.
Pierre volta a me fitar, apoiando a mão direita acima da minha cabeça,
um sorriso fácil e gostoso traçando seu rosto bonito.
— Por que tenho a impressão de que está fazendo muito esforço para
não dar uma mordida no meu cupcake, Juliette? — indaga, todo brincalhão.
Minhas bochechas esquentam.
— Porque estou. Não sou eu, é o Valentin! — explico, enfiando o rosto
contra seu peito.
Ele ri, pegando o doce da minha mão e o alinhando na altura das nossas
bocas.
— Juntos, tá bom?
Balanço a cabeça.
— Não. É seu, Pierre. Eu… já comi dois — admito, meio
envergonhada.
Ele ergue meu queixo, passando o topo de chantily nos meus lábios.
Sinto o gosto delicioso do creme azul. Gente, isso não se faz. É pecado
capital. Crime contra o Estado. Como resisto a isso? Sem condições
nenhuma. Sou capaz de dar uma mordida nesse bolinho e se bobear levo o
dedo dele junto.
— Certeza? — provoca, erguendo uma sobrancelha e pintando um
pouco mais meus lábios com o chantily.
Suspiro um gemido frustrado e abro a boca vagarosamente, cedendo a
esse desejo perverso e egoísta de comer o doce do meu namorado depois de
ter comido dois. Estou para dar uma mordida, mas Pierre o afasta lentamente
de mim, o que me faz seguir o seu movimento. Um segundo depois, consigo
alcançar o bolinho e dar uma mordida, ao mesmo tempo que ele faz o
mesmo, só que do outro lado. Isso causa um encontro súbito e delicioso dos
nossos lábios.
Ele me beija, segurando firme na minha nuca, o bolinho na outra mão,
longe o suficiente para que não seja esmagado quando joga seu corpo em
mim, prensando-me contra a porta. Perco-me nesse beijo doce, literalmente, e
o abraço pelo pescoço, lambendo seus lábios azuis pelo chantily.
Repetimos o procedimento até não ter mais creme sobre o bolinho. Ele
dá uma mordida na massa branca e me oferece o restante, que recuso de
início, mas cedo quando insiste. Termino de engolir meu pedaço e Pierre
limpa o canto dos meus lábios com um pedaço de papel-toalha que pegou no
armário na sua sala.
— Adorei sua visita — diz, colocando uma mecha do meu cabelo atrás
da minha orelha. Pierre lambe meus lábios uma última vez antes de se afastar
e passar o polegar no canto da minha boca, de um jeito sensual demais.
Colabore aqui comigo, amor.
— Não ia aguentar esperar até de noite para te ver e te entregar isso
aqui… — falo, enfiando a mão no bolso da minha calça e tirando a chave da
minha casa. — É uma cópia.
Pierre olha de mim para a chave. Quando seus olhos azuis pousam nos
meus, ele está sorrindo.
— Certeza disso?
— Você dorme ao menos três vezes por semana lá em casa, Pierre.
Tem alguns pares de roupas e itens de higiene pessoal. Claro que tenho
certeza. Pode aparecer a hora que quiser.
— É um passo importante demais, Julie… — constata, as costas da sua
mão tocando meu rosto de um jeito muito bom.
— Vai me levar para conhecer seu irmão nesse final de semana. É um
passo importante também. Isso aqui — digo, balançando a chave — é meu
modo de dizer que estou pronta para dar passos importantes com você.
Pierre pega a cópia da minha mão e a analisa um segundo antes de
enfiá-la no bolso do jaleco e me dar um beijo profundo, quente e apaixonado.
— Obrigado pela visita, pelo bolinho e pela chave… — cicia,
escorregando seu toque pela lateral do meu corpo em um ato que não tem
desejo, nem intenções sexuais. É puro. — Preciso me preparar para a próxima
paciente.
Balanço a cabeça em positivo.
— Vejo você em casa?
Pierre abre outro do seu sorriso gostoso, que faz os olhos brilharem.
— Vejo você em casa — repete.
Demoro a notar que “em casa” está se tornando um significado
importante.
Estou preparada para passos importantes.

Recebo uma mensagem do meu namorado de que vai se atrasar e não


chegará para jantarmos juntos, informando que não tem muita certeza de
quando sairá do hospital, mas assim que sair vem direto para cá. Não tem
mais nenhuma explicação por trás desse atraso, e penso que ele escreveu
correndo, porque tem muitas abreviações e erros de digitação, mas que não
deixa a mensagem menos inteligível. Suponho que tenha surgido algum
imprevisto na família ou no hospital. Fico tranquila porque sei que ele vai me
contar assim que puder e não só porque enviou um “wxpilco depois”.
Chamo Adrien para jantar comigo, já que não quero ficar sozinha, mas
ele também não pode. Está com o orientador e à disposição de Ferdinand, que
não tem dia nem hora para ligar para o coitado. Acabo me contentando com
minha própria companhia, faço só um macarrão para comer e me entupo mais
tarde de chocolate que achei perdido no meu armário. Meu primo certamente
tentou esconder de mim, mas uma mulher quando está louca por um doce
revira a casa até encontrar alguma coisa, nem que seja um torrão de açúcar.
Assisto um filme, dois episódios de uma série qualquer e, quando o
sono bate, vou para o quarto descansar. Resolvo ler um ou dois capítulos do
meu livro antes de dormir. Estou finalizando o quinto capítulo quando ouço a
porta principal ranger. Sorrio para mim, porque sei que é ele. Procuro pelas
horas. Quase onze da noite. Ajeito-me na cama, descobrindo deliberadamente
meu corpo e deixando minha coxa esquerda exposta, a camisola subindo o
suficiente para que, assim que entrar, Pierre tenha uma bela visão.
Ele demora mais do que o comum para chegar até aqui. Consigo ouvir
seus passos, estão arrastados, devagar, como se andasse com cautela. Engulo
em seco, segurando-me para não pular da cama e ir ao seu encontro. Não
nego que a paranoia me pega de jeito e, só por um segundo, questiono se é
Pierre mesmo quem está aqui. Quando surge no umbral da porta, alívio me
acerta. Só que meu namorado não avança quarto adentro, fica parado no
limiar, olhar cabisbaixo, os dedos brincando de forma fúnebre com a touca
cirúrgica dele.
— Pierre — chamo-o, e seus olhos se erguem para mim.
Daqui, vejo uma enorme tristeza nesse homem. Uma tristeza que, até
então, em quase quatro meses que o conheço e pouco mais de um mês desde
que estamos juntos, nunca tinha visto. É visceral. Consigo ver uma dor
lacerante nos seus olhos azuis marejados, na sua postura abatida, em como
engole em seco e aperta os lábios para não cair no choro.
— Você está bem? — pergunto, mesmo parecendo bem óbvio de que
não está nada bem. Ele balança a cabeça, de um lado a outro. Permanece no
mesmo lugar, sem fazer menção de se aproximar. — Venha aqui — peço,
abrindo os braços.
Ele vem. Pierre se arrasta até mim, engatinha na cama e se deita do
meu lado, encaixando-se no meu abraço e enfiando o rosto contra meu
pescoço. Posso sentir sua respiração pesada, o coração acelerado. Estou sem
entender nada. O que aconteceu com esse homem? Alguma coisa com o
sobrinho?
— Quer me contar o que aconteceu? — digo, baixinho, apertando-o
mais contra mim.
Sem que eu espere, Pierre cai em um choro copioso, de fazer tremer seu
corpo grande, de soluçar alto. Fico completamente sem reação, não
entendendo o que possa ter acontecido para deixá-lo nesse estado. Não posso
fazer nada nesse instante.
A não ser deixá-lo chorar nos meus ombros.
PIERRE
Étienne está sentado de pernas cruzadas, no centro da sala, junto com
Édouard, ajudando-o a pintar um desenho impresso, quando chego da casa de
Juliette. Paro na porta por um segundo, analisando a cena. Tinha algum
tempo que não via uma interação assim entre eles, mais genuína, menos
forçada, desde o sumiço de Jeaninne.
Sorrio para mim, feliz que, finalmente, meu irmão esteja colocando a
vida nos trilhos outra vez. Vai voltar a trabalhar em breve; não em salas
cirúrgicas, acho que ainda não tem emocional o bastante, mas vai dar
continuidade a uma pesquisa neurológica sobre estimuladores cerebrais em
que trabalhava tempos atrás e que parou por causa da reviravolta que deu sua
vida. Está recebendo apoio do hospital e patrocínio de algumas empresas e
pessoas importantes.
Ele nota minha chegada e sorri, tornando a dar atenção ao filho,
indicando algum ponto para pintar e sugerindo uma cor. Deixo-o com o
pequeno e vou direto para a cozinha, atendendo aos protestos do meu
estômago que não recebe nada desde ontem à noite. Poderia ter ficado com
Julie e almoçado com ela, mas decidi que minha namorada precisava ter um
tempo a sós com a irmã, já que tinha decido falar sobre nós, sobre a gravidez
e sobre o inominável.
Monto um sanduíche apenas, preparo um suco e me sento à mesa,
dando a primeira mordida e conferindo meu celular. Tem um e-mail da
clínica com meus horários para a semana que vem, um do Necker com a
minha nova escala, uma mensagem da operadora e um lembrete do aplicativo
para beber água.
— Ei. — Étienne surge na cozinha, pondo-se do outro lado da mesa. —
Como foi com sua namorada? — pergunta.
— Conheci a irmã dela — digo com um sorriso, limpando os lábios
com o dorso da mão em seguida, limitando-me somente a isso.
Étienne sorri de volta, levantando-se e caminhando até a geladeira. Ele
sabe que estou envolvido com alguém, mesmo que eu não tenha comentado
nada, mas minhas escapadas, as inúmeras noites fora, ligações e mensagens
deixam bastante óbvio que estou num relacionamento amoroso. Só ainda não
contei que essa relação é com uma paciente minha. Grávida. O que pretendo
mudar ainda hoje porque no final de semana vou trazê-la para que se
conheçam. Viro-me para ele, que está se servindo com um pouco de água
gelada.
— Ela vem almoçar aqui nesse fim de semana. Tudo bem pra você?
— Já não era sem tempo — resmunga, bebendo o conteúdo do copo em
um único gole em seguida.
Dou uma risada e também me levanto, juntando a louça que sujei e
dispondo-a na cuba da pia.
— Estamos juntos só tem pouco mais de um mês, Étienne — pontuo.
— Levei pelo menos um ano para apresentar a Francine pra você —
menciono.
Meu irmão cruza os braços na frente do tórax, exibindo um sorrisinho
de deboche.
— Porque na época ela era sua superior. Só por isso demorou para nos
apresentar.
Molho o lábio inferior, precisando admitir que é verdade. Era meu
primeiro ano no internato, ela foi minha residente por algumas semanas, logo
depois que passei uns dias na ginecologia. Mesmo que tenha sido minha
“superior”, como meu irmão gostou de exageradamente pontuar, por um
curto período, foi o bastante para rolar uma química e ficarmos juntos.
Étienne era neurocirurgião no mesmo hospital que nós. Era, inclusive, o staff
da Francine, o que fez nós dois decidirmos por manter nossa relação longe
dos olhos dele. Não que meu irmão fosse tapado e não soubesse que
estávamos juntos. Ele sabia, não tinha nem como não saber porque nós
mantínhamos nossa relação longe dele, não dos outros, então é claro que
boatos chegaram ao seu ouvido. Só que meu irmão nunca disse nada para
nenhum de nós dois, porque ele não se intromete.
— Como se você não soubesse — devolvo, com um murmuro,
encostando-me na pia ao seu lado.
— Você e ela se separaram há pouco tempo — assinala. — Tem só uns
quatro meses, não tem? Está mesmo preparado para outra relação, Pierre? —
pergunta, e sinto um tom de preocupação na sua voz.
— Estou. Por que não estaria? — questiono, olhando-o atentamente e
aguardando uma resposta.
— Porque seu último namoro durou uns oito anos e ela era uma pessoa
complicada? — responde, como se apontasse o óbvio.
Faz sentido, mas não é assim que me sinto. Não estou inseguro, nem
com medo, nem traumatizado. Não sei se é assim que deveria estar me
sentindo, se é a forma “certa” de sentir depois que a gente sai de uma relação
como a qual eu estava inserido. Talvez porque o abuso da Francine é muito
estruturalmente diferente de um homem abusador. Ela tinha suas paranoias,
inseguranças, ciúmes exagerados, desconfianças, momentos de raiva que iam
de gritos simples às agressões físicas que, sim, me machucavam, mas nada
comparado a se eu resolvesse agredi-la. No máximo, eram uns tapas e
arranhões. Seja como for, estou bem, me sinto seguro para entrar em outro
relacionamento.
A verdade é que não tenho mais tempo para casos sem sentido, nunca
tive, para ser bem sincero. Sempre fui um cara de relacionamentos,
comprometido. Não que eu nunca tenha tido meus momentos casuais, mas
foram raros. Minha preferência é a estabilidade de um relacionamento, de
estar com uma única pessoa. Embora já tenha estado em uma relação aberta,
ainda assim era um compromisso. Passado dos trinta anos, não vejo motivo
para ficar me privando de ter uma namorada porque outra não foi boa para
mim.
— Estou bem, Étienne, de verdade. Não se preocupe comigo.
Ele abana a cabeça em positivo, erguendo os braços e pegando uma
porção de envelopes dos correios. Vai conferindo um por um, ignorando
todos, e não sei se está procurando alguma correspondência em específico,
mas quando não encontra o que quer, se é que estava à procura de algo, joga
tudo sobre a mesa e me olha de novo quando digo:
— Preciso mencionar um detalhe importante. — Sou cauteloso nas
palavras e hesito um segundo antes de completar: — Ela é minha paciente…
— O quê? — exclama, imediatamente, desencostando da pia e ficando
de frente para mim.
— … e está grávida — completo, fechando um olho e só esperando
pela bronca.
— Pierre! — Suspiro, sabendo que ele ia reagir desse jeito. Ter
namorado uma “superior” minha é aceitável; uma paciente, não. — Você
perdeu o juízo?
— Aconteceu — justifico, dando de ombros.
Meu irmão me encara como se eu tivesse vindo de outro mundo. Foi
por isso que não comentei nada antes, porque sabia que ele ia dar esse surto e,
muito provavelmente, ia querer me dar um sermão, como se no último um
ano e meio ele tivesse moral para alguma coisa.
— Como “aconteceu”? — pergunta, sua voz agora em um tom mais
baixo, um tanto quanto mais calmo.
— Eu a atendi na emergência — explico, mas não vou me aprofundar
no que de fato ocorreu porque essa história não é só minha. Quando se
conhecerem, se minha namorada quiser dar detalhes, ela dará. Do contrário,
não vou sair por aí expondo sua vida, mesmo que para meu irmão.
Principalmente porque nem se conhecem ainda. — Ficamos amigos durante o
tempo em que esteve internada, depois… ela decidiu fazer o pré-natal comigo
e… aconteceu, Étien. Eu realmente gosto dela.
— Sabe que não pode se envolver com ela, Pierre — adverte, de um
jeito mais cansado do que bravo.
— Eu sei.
— Então por que não a indicou para outro obstetra?
Mordo o interior da bochecha, pensando no motivo que tive para não a
indicar para outro médico. Eu quis, por mim, por ela, porque Juliette passou
por uma relação em que foi escondida das pessoas e tudo o que eu mais
queria era simplesmente assumi-la, mas não podemos assumir uma relação
amorosa quando temos um vínculo médico-paciente. Isso me comprometeria
de uma forma que nem gosto de pensar. Mas o modo como me pediu para
mantermos tudo como está, e hoje mais cedo, quando a vi chorando no
banheiro, mesmo que não tenha confirmado que foi porque sugeri de novo
que se consultasse com outro médico, me fizeram por manter nossa relação
de médico e paciente. Só que não vou dizer isso a Étienne, porque, na minha
cabeça, compreendo os motivos dela, e gosto tanto daquela mulher a ponto de
fazer suas vontades se isso for deixá-la mais confortável, menos triste, mas
não sei se meu irmão vai me compreender da mesma maneira.
— Porque não confio em mais ninguém para cuidar da minha namorada
— digo, tendo de mentir um pouco.
Étienne suspira, balança a cabeça e diz:
— Você, mais do que ninguém, deveria entender que seu julgamento
pode te cegar.
Sei o que isso significa, mas não vou protestar. Ele está certo; contudo,
não estou fazendo um julgamento cego. Tenho certeza disso.
— É um homem adulto — murmura, apertando meu ombro. — Sabe o
que está fazendo, não sabe?
— Sei, sim.
Como resposta, só recebo um sorriso. Étienne se retira da cozinha e
volta para o filho, que está chamando por ele para mostrar o desenho pronto.
O pequeno está radiante e feliz com a reaproximação afetiva do pai. Tanto
que nem notou que eu cheguei e veio me receber com seus gritos estridentes
e abraços na altura das minhas pernas. Pego as correspondências que meu
irmão deixou sobre a mesa e as levo comigo. No percurso, o garoto
finalmente me vê, vindo na minha direção, pronto para seu ritual. Beijo suas
madeixas, pergunto como foi o sábado e o domingo com o papai, e ele diz
que foi “muito legal!”. Meu irmão o manda para o banho e sigo meu
caminho, olhando os envelopes.
Abro a conta telefônica para conferir o valor desse mês e me assusto
com a cifra impressa no papel. Veio muito acima do comum. Pego algumas
roupas sujas minhas no quarto, dentro do cesto, e levo até a lavanderia,
conferindo o detalhamento da fatura. Encosto-me na máquina, a bola de
roupas sobre a tampa, debaixo dos meus braços, e confiro a lista de ligações
feitas. Durante as últimas três semanas foram realizadas inúmeras chamadas
para um telefone celular que desconheço o número. Tem mais de três por dia.
Mas que diabos…
Enfio o papel no bolso da calça, de qualquer jeito, abro a máquina e
tem roupa suja lá dentro. Uma camisa do meu irmão. Suspiro e a tiro de lá,
tentando não reclamar com o fato de que temos um cesto justamente para
essa finalidade. Quando a pego nos meus dedos, sinto um cheiro diferente.
Analiso-a melhor e vejo uma macha pequena no tecido, abaixo da gola.
Estudo o cheiro e, quando reconheço o que é, fico uma fera. Então, não
demoro a entender o que aconteceu e para quem são aquelas infinitas
ligações.
— Que merda é essa? — esbravejo, entrando no quarto dele sem nem
bater.
Étienne está sem camisa, só com as calças jeans, de frente para as
gavetas do guarda-roupa, pronto a pegar outra. Ele me olha sem entender,
depois analisa a camisa na minha mão e a fatura do telefone.
— Do que está falando? — pergunta, franzindo o cenho.
— Andou bebendo. De novo, Étienne!? Com seu filho dentro de casa?
E ligou para aquele número, não é? O do trote. No maldito último mês você
ligou para tentar descobrir alguma coisa. Não conseguiu nada, e por isso
bebeu tanto a ponto de não conseguir mais encontrar o buraco da boca e
derramar na roupa.
Noto quando o maxilar dele trinca, seus olhos chispando raiva.
— Eu bebi. Uma dose. Não sou a porra de um alcoólatra, Pierre.
Não acredito nisso. Sinceramente. Não acredito nisso. Depois de tudo o
que aconteceu, ele ainda tem coragem de fazer uma coisa dessas comigo.
Sabia que não deveria confiar nele. Deus, Francine tem razão. Estou sendo
negligente com meu sobrinho deixando-o com o pai que claramente não sabe
mais fazer a merda do seu papel.
— Duvido muito que tenha bebido só uma dose — reclamo, jogando a
camisa dele sobre a cama.
Ele pega outra camisa e fecha a gaveta com força, virando-se para mim
como se estivesse com uma vontade insana de apertar o meu pescoço. Pois
bem. O sentimento é recíproco.
— Isso foi na sexta-feira. Paguei uma babá, fui ver um colega,
investidor, que vai patrocinar minha pesquisa — explica, entredentes. —
Jantamos e decidi beber uma dose de uísque para comemorar que estou
voltando a me dedicar à minha carreira, que estou finalmente seguindo em
frente.
Uma tensão esquisita cresce entre nós. Estou me sentindo mal por
duvidar dele, mas meu irmão não pode me culpar por isso.
— E as ligações? — questiono, menos raivoso agora.
Ele suspira e se senta na beira da cama, enfiando o rosto entre as mãos.
— Só queria ter certeza que não era ela. Não consegui nada. Todas as
minhas tentativas foram inúteis porque sempre que ligava, caía direto na
caixa-postal. Eu deixava um recado, mas… nunca me retornou, seja lá quem
tenha me ligado e se passado por Jeaninne.
Meu coração aperta. Ponho-me ao seu lado. Toco sua coxa. Ele me
olha, abre um pequeno sorriso e torna a esconder o rosto entre as mãos,
murmurando que jura por tudo quanto é mais sagrado que não bebeu de
trançar as pernas, que foi só uma dose, na sexta-feira, depois de um mês
desde a última vez, e que derramou um pouco na roupa por distração. Torna a
reafirmar que posso confiar nele, que não quer ser mais uma ameaça para
Édouard.
— Você tem razões para ficar bravo comigo — cicia, molhando os
lábios. — Mas juro que não sou mais aquele Étienne. Para ter uma ideia,
levei o número de telefone para a delegacia, na sexta-feira mesmo. Cansei de
ficar ligando e não ter respostas. Expliquei o que aconteceu e o responsável
do caso disse que ia tentar triangular o sinal para ver se descobrimos alguma
coisa.
— É sensato deixar que a polícia faça o trabalho dela — menciono,
com um leve tom de brincadeira. — Reabriram o caso?
Ele move a cabeça em negativa.
— Ainda não. Vão reabrir se tiverem alguma pista concreta com a
triangulação.
— Vai ver que foi só um trote, uma brincadeira de mau gosto — digo,
torcendo realmente por isso.
Parece insensível da minha parte desejar que não seja qualquer coisa
relacionada a Jeaninne, mas não consigo evitar o sentimento. Estamos bem
sem a sua versão obcecada em busca da esposa e tenho medo de que qualquer
pista pequena possa desencadear o pior lado dele, possa torná-lo relapso e
negligente de novo. E o pior, se a pista não nos levar a lugar nenhum, vou ter
que vê-lo se afundar mais uma vez. Não tenho coração forte o bastante para
isso.
Étienne apenas sorri como resposta e se levanta, dobrando a peça que
pegou da gaveta e a dispondo sobre a cama. Vai até o guarda-roupa e fica um
tempo analisando as calças, escolhendo uma que vai combinar com a camisa.
— Estou feliz por você, Étien — menciono, ainda no meu lugar. —
Feliz que vai voltar com sua pesquisa.
— Só hoje percebo que não deveria nunca ter parado — diz, com um
suspiro triste. — Deveria ter dado um tempo, mas não desistido
completamente, numa busca cega e infrutífera pela minha mulher.
— O importante é que agora você está bem de novo, está tocando vida,
pelo seu bem, pelo bem do seu filho. Estou ansioso para quando sua pesquisa
for patenteada como uma revolução na medicina neurológica.
Ele dá uma risada gostosa e, parecendo finalmente escolher a calça que
vai usar, dá um passo à frente, ficando meio escondido dentro do guarda-
roupa, ao mesmo tempo em que diz:
— Está colocando muita fé em mim. A pesquisa estava em fase inicial
quando desisti de tudo por causa… — Meu irmão faz uma pausa e não
termina a frase, preferindo contornar o assunto: — Tecnicamente,
continuamos em fase inicial.
— É um passo, isso que importa. Têm pessoas que acreditam no seu
potencial. Olha só, até ganhou outro patrocínio. Quem é o novo patrocinador,
falando nisso?
— É um antigo conhecido — menciona, colocando a calça que
escolheu sobre a camisa dobrada. — Dupont tem uma empresa de
investimentos, vive engajado com filantropias e tem um interesse particular
nessa pesquisa.
— Dupont? — indago, reconhecendo o sobrenome. — Emilien
Dupont? — pergunto, só para ter certeza de que se trata da mesma pessoa.
Étienne se vira para mim, balançando a cabeça.
— Ele mesmo. Você o conhece? — questiona, virando-se de novo para
o guarda-roupa e analisando suas opções de malha.
Só agora noto que está concentrado demais em montar uma boa
combinação só para ficar em casa. Sinal de que não vai ficar em casa. Ele tem
um encontro, tenho quase certeza.
— Temos alguns amigos em comum — respondo. — Por que disse que
ele tem um interesse particular pela sua pesquisa?
— Anos atrás, operei uma amiga dele. Chegou no hospital com uma
laceração no córtex cerebral depois de uma queda. Apesar de tentar reverter
os danos o máximo que podia, ela ficou com sequelas severas. Sei que
Emilien mantém as despesas dela até hoje e a pesquisa poderia ajudar a
reparar um pouco dos danos.
Maneio a cabeça em positivo, sabendo de quem ele está falando. É a
mesma garota com quem me envolvi no internato e, um tempo depois, fiz a
curetagem. A mesma que me deu um empurrãozinho para me ajudar a decidir
pela ginecologia. Sinto até hoje o sofrimento que causei nela prometendo
algo que não podia. Desde que o vi no hospital, quando foi visitar Juliette,
tive uma impressão de que o conhecia de algum lugar. Agora me lembro de
onde. Cheguei a vê-lo na recepção, conversando com Étienne, recebendo a
notícia de que a amiga estava viva, mas incapaz de realizar as funções mais
básicas. Vi quando ele apertou os olhos, em uma expressão de completa
consternação.
Mundo pequeno.
— Tem alguma parceria nessa pesquisa? — indago, preferindo não
mencionar que conheço sua antiga paciente.
— Ainda não, mas Francine… demonstrou interesse — diz, olhando-
me com cuidado quando toca no nome dela.
Faço um esgar com a menção e com a ideia desses dois sendo
parceiros. Ele não cogitaria essa parceria se soubesse que ela tentou tirar a
custódia de Édouard. Mordo minha língua, preferindo não mencionar nada.
— Está cogitando aceitá-la nisso?
— Depois da sua relação conturbada com ela? Não mesmo. A não ser
que… — Ele hesita, e sei exatamente o que vai dizer. — Que tenha uma boa
contribuição. Você entende que seria por um bem maior, não entende? De
qualquer maneira, vou escolher mais um ou dois neurocirurgiões para me
ajudar nisso.
Abro um pequeno sorriso, já sabendo que para selecionar esses
parceiros ele vai fazê-los competir entre si por isso.
Levanto-me, decidido a deixá-lo se arrumar. Estou quase certo de que
vai sair com alguém, mas também não vou me intrometer e perguntar. Da
última vez que teve um encontro, meu irmão me contou por si próprio. Vou
esperá-lo fazer o mesmo.
— Vou aproveitar o restante da tarde para descansar antes do plantão
— digo.
— Está bem. Vou deixar Édou com uma babá — comenta, estudando
as peças que escolheu. Seus olhos se levantam aos meus e ele sorri um
pouquinho. — Vou me encontrar com o diretor do Necker para tratarmos dos
últimos ajustes da pesquisa. Começo em duas semanas. Estou animado,
Pierre.
Abro um grande sorriso. É um encontro, mas não amoroso. Nem
sempre a felicidade de alguém precisa estar necessariamente em outra pessoa,
em uma relação amorosa.
— Imagino que está.
— Falando nisso, haverá uma pequena confraternização em
comemoração à minha volta e a retomada da pesquisa. Isso é coisa da
diretoria do hospital — diz. — Eu disse que era desnecessário, mas
insistiram. Será um pequeno jantar com a diretoria, os patrocinadores e minha
equipe de pesquisa. Você não está incluso, mas… gostaria que viesse mesmo
assim. Te aviso quando confirmarem o dia e horário.
Aproximo-me dele e o envolvo em um abraço. Estamos no caminho
certo.
— Eu vou, com toda certeza.
Quando me afasto, ele tem um enorme sorriso. Deixo-o terminar de se
arrumar e volto para a lavanderia para colocar minhas roupas na máquina. No
meu quarto, tento tirar um cochilo para repor as energias para meu plantão
quando meu celular notifica uma mensagem. É Julie.

“Conversei com Juliene. Contei a verdade. Foi melhor do que eu


esperava. Almoçamos juntos amanhã?”

“Ei, que bom que ela foi compreensiva. Não que estivesse
duvidando disso. Minha escala mudou, plantão de trinta e seis horas no
hospital. Só vou conseguir te ver na quarta-feira de tarde :/ prometo
manter contato. Fica bem, Julie. Você é importante demais pra mim.”

“Vejo você na quarta, então. Fique bem porque você também é


muito importante pra mim. Bisous”.

Coloco um sorriso no rosto, relendo a última parte da sua mensagem


uma porção de vezes.
Eu realmente estou apaixonado por essa mulher.
PIERRE
Brinco com a cópia que Juliette me deu. Não consigo evitar o sorriso
enquanto passo a chave para lá e para cá, pensando na importância que um
simples objeto tem. Encosto-me na cadeira e a enfio de volta no meu bolso,
concentrando-me para organizar minha mesa antes que meu plantão acabe.
Vou receber a próxima paciente em cinco minutos e isso precisa estar
organizado.
Guardo prontuários, cadernetas e pastas no arquivo de metal.
Reorganizo o porta-canetas, jogo fora papéis inúteis que acumulei durante o
dia, abro uma nova caixa de luvas descartáveis e esterilizo a mesa de vidro
com álcool em gel. Termino tudo e me levanto para chamar a última paciente
do dia.
Ela entra e se senta de frente para mim, colocando a mão na barriga
gestacional de umas trinta e duas semanas, oferecendo-me um sorriso
acolhedor. Apresento-me, esticando a mão para um cumprimento, e Charisse
me cumprimenta de volta, meio hesitante, franzindo levemente o cenho,
porque possivelmente não está acostumada com um médico parisiense tão
receptivo.
Gosto de ser receptivo.
— Charisse Martin — digo, lendo sua ficha, analisando o restante em
silêncio. Idade, tempo gestacional, peso, altura, outras gestações e/ou partos,
doenças etc. — O que está acontecendo? — pergunto, colocando seu registro
de lado.
— Dor abdominal — responde, pondo a mão em uma determinada
região do seu abdômen. — Bem aqui. Começou bem de repente, ontem à
noite.
Levanto-me e peço que se deite na maca. Ajudo-a a subir dois degraus
para alcançar o leito e a se acomodar. Faço algumas perguntas de rotina
enquanto visto um par de luvas de procedimento. Ela me responde, relatando
a intensidade da dor, dor nas costas fora do comum, que também começou
juto com a abdominal, e sangramento vaginal. Seu histórico não tem nada,
mas pergunto se bebe, se fuma, se tem diabete ou alguma outra doença
crônica.
— Pode ser contração? — pergunta, a voz meio tremida.
— Pelos sintomas, não — respondo, apoiando a mão sobre seu
abdômen após murmurar um “com licença”. — Dói? — indago, quando
pressiono de leve a área que relatou desconforto. Sinto sua barriga mais
rígida do que o costume e franzo o cenho quando recebo sua resposta: uma
careta e um mover positivo da cabeça. — Seu bebê se moveu normalmente
de ontem para hoje?
Charisse pensa por alguns segundos.
— Não. — A mulher me olha, assustada, como se só agora se desse
conta de que seu bebê não mexeu nada. — Ela está bem, não está? Doutor
Laurent, minha bebê não morreu, não é?
— Fique calma, está bem? — peço, segurando sua mão. — Não tem
motivos para se alarmar. Vamos descobrir por que sua filha está quietinha. —
A paciente balança a cabeça em positivo, ainda meio nervosa. Pego um
estetoscópio de Pinard e apoio sobre sua barriga, colocando o ouvido do
outro lado. — Ela tem sinais vitais — digo, para acalentá-la, já tendo um
prognóstico. — Mas não estão bons. Pelos seus sintomas sua placenta está
descolada.
— O que isso significa? — Quer saber.
— Duas possibilidades — digo. — A primeira é sua placenta ter
descolado só um pouco, então te mantenho aqui no hospital até sua bebê
nascer, para te monitorar. A segunda é uma cesárea de emergência. Vou fazer
uma ultrassonografia para confirmarmos se sua placenta realmente descolou
e, se sim, o quanto foi, tudo bem?
Charisse balança a cabeça em positivo e preparo o equipamento para o
exame.
— A cesárea é segura? — pergunta, quando passo o gel sobre seu
abdômen. — Estou com trinta e duas semanas.
— Sua bebê pode terminar de se desenvolver na UTI Neonatal —
informo, posicionando o sonar na sua barriga — sem nenhum problema.
Ela fica em silêncio, abanando a cabeça em positivo e desviando o
olhar para a tela da ultrassonografia. Localizo o bebê, confiro o líquido
amniótico, que está baixo e pode ser a causa do descolamento da placenta,
checo seus batimentos cardíacos e, por fim, confirmo minhas suspeitas.
— Charisse, vamos mesmo precisar interferir e adiantar o seu parto —
digo, encerrando o exame, com um pouco de urgência. — Vou pedir para te
prepararem para a cirurgia. Aproveite esse tempinho para avisar alguém da
sua família. Pode usar meu celular, se precisar.
Ajudo-a a se levantar, enquanto diz que está com seu telefone na bolsa.
Eu a deixo um segundo sozinha para pedir que preparem a sala de cirurgia e,
quando retorno, está encerrando sua chamada.
— Vejo você em breve. Bisous. — Ela me olha, guardando o telefone
de volta na bolsa. — Avisei meu marido. Ele está vindo para cá.
— Ótimo. Vamos lá te preparar?
Charisse me acompanha até o pré-operatório. Deixo-a sob os cuidados
das enfermeiras e vou me preparar. Olho a hora no relógio e constato que
tenho tempo de fazer a cesárea, sair mais ou menos dentro do meu horário e
ir para casa de Juliette. Usar a chave que me deu. Sorrio, pensando em
quando me disse te vejo em casa, no significado que isso tem tomado.
A paciente já está na sala de parto, pronta para o procedimento, sendo
monitorada, e minha equipe está à minha espera. Amarro a touca na cabeça,
visto a máscara e começo a me lavar.
— Ei, Charisse — digo, enquanto uma enfermeira me ajuda a colocar
as luvas cirúrgicas —, como você está?
— Com medo — confessa.
Dou um pequeno sorriso.
— Vai ficar tudo bem. Não se preocupe.
Ela sorri de volta e faço um sinal para o anestesista. Quando o local
está sedado, começo o procedimento. Seu bebê é muito pequeno e frágil. Vai
direto para os cuidados do pediatra que me acompanha e, rapidamente, dá
início aos exames de vitalidade. Retiro sua placenta, jogando-a em um
recipiente que a enfermeira me estica. De repente, o monitor cardíaco berra,
apitando estridentemente e dizendo que tem alguma coisa errada.
Olho para minha paciente, avaliando todo o procedimento e descubro
uma hemorragia. Agilizo para contê-la, tentando me concentrar no meu
trabalho e esquecer do aparelho apitando na minha cabeça. Não posso fazer
nada no seu coração agora se não conseguir conter a perda extrema de
sangue. Grito pelos meus instrumentos e que preparem sangue O- para uma
transfusão. Contenho a hemorragia e me apresso para reestabelecer os
batimentos cardíacos de Charisse. Minha equipe carrega o desfibrilador e
choco contra seu peito, mas os bipes irritantes do monitor que acusam a
parada continuam ressoando alto pela sala. Aumento a carga, repito o
procedimento e nada de reanimá-la.
Um sentimento de desespero contido começa a subir por todo meu
corpo. Não tem nada mais que um médico tema e odeie do que perder um
paciente. Faço outra tentativa, carregando o aparelho com uma carga um
pouco maior, mas, ainda assim, Charisse não reestabelece os batimentos
cardíacos. Jogo o aparelho de lado, desistindo dessa porcaria, apoio uma mão
sobre a outra e começo a massagem cardíaca, contando e massageando. O
tempo parece parar nesse instante. Não sinto nada, nada além das minhas
mãos sobre o tórax dela, forçando-se para baixo. Não escuto nada ao meu
redor, as vozes abafadas que me dizem alguma coisa, concentrado em salvar
minha paciente.
Não, ela não pode morrer. Eu prometi! Porra, prometi que tudo ficaria
bem. Ofego, quase sem perceber, empregando todos os meus esforços.
— Doutor Laurent! — alguém me chama, puxando-me pelos ombros.
Olho para o lado, encontrando a atenção de uma enfermeira
preocupada.
— Já são quinze minutos — informa, com um tom de pesar que me
dilacera.
Sei o que essa merda significa, mas simplesmente a ignoro e continuo a
massagem, contando até dez, rezando ao Deus com quem pouco falo, com
quem falo só nessas horas, mais pelas minhas pacientes do que por mim,
pedindo que não, não leve essa moça.
— Doutor Laurent — me chama de novo e o que diz em seguida acaba
comigo de uma forma que nunca aconteceu antes: — Ela se foi.
— Não — murmuro, tentando ignorar o maldito bipe que acusa a falta
de batimentos. Ergo meus olhos para o monitor e dói mais do que posso
prever aquela linha reta projetando-se na minha direção.
Delicadamente, a enfermeira me tira perto de Charisse, repetindo mais
duas vezes que ela se foi. Minha paciente se foi. Por um segundo, inteiro fico
letárgico, mirando o seu corpo agora sem vida. Não é a primeira vez que
perco uma paciente, não será a última, mesmo que eu tenha feito tudo certo.
Fiz tudo certo, não fiz? Repasso todo o procedimento na minha mente e não
consigo encontrar nenhum ponto que acuse qualquer negligência da minha
parte. Foi natural. Complicações em um parto prematuro, por conta de
placenta descolada, são comuns. Hemorragias são comuns. Paradas cardíacas
são comuns. Não fiz nada de errado.
— Doutor Laurent, precisa declarar a hora da morte.
Não.
Fecho os olhos, inspirando profundamente. Leva mais um segundo para
que eu me recomponha e finalmente aceite que perdi minha paciente. Busco
pelas horas e as palavras saem cortando minha garganta:
— Hora da morte: dezenove e vinte e sete.
Livro-me das luvas e da roupa cirúrgica como se estivessem me
queimando e deixo a sala de parto, sentindo o peso do mundo sobre meus
ombros.
Caminho rapidamente até a recepção e digito na mesma velocidade
uma mensagem para Juliette. Não me preocupo em escrever certo. Estou com
pressa e aéreo demais para me preocupar com ortografia. Aviso-a de que não
chegarei no horário e nem tenho previsão de quando chegarei.
Guardo o celular no bolso do jaleco e me detenho um instante atrás da
porta antes de adentrar a sala de espera. Leva um minuto inteiro até que tomo
coragem de ir falar com o marido de Charisse. O homem está entretido com
uma revista quando me aproximo e o abordo. Ele sorri e não preciso me
apresentar para saber que sou o responsável pelo parto da sua esposa.
— Daniel Martin — se apresenta, apertando minha mão.
— Pierre Laurent. Sou o obstetra responsável pela Charisse.
— Deu tudo certo? Ela e minha filha estão bem?
Fico em silêncio por dois segundos, mas diante de um pai e marido isso
é tempo demais e diz muita coisa. Diz tudo. Não bastasse a morte de
Charisse, esse homem terá de lidar com a morte da filha também, que não
resistiu. O descolamento da placenta causou um sofrimento fetal muito
intenso na pequena.
Não sei como dizer isso. Quando você se torna médico, é comum que,
com o tempo, saiba lidar com essa situação, aprenda a dar uma notícia dessa
magnitude. Mas nesse momento, estou travado, encarando-o com uma
tristeza que sou incapaz de disfarçar, não sabendo como informar que sua
esposa, que estava bem uma hora atrás, está no necrotério agora.
— Doutor Laurent? — Sua voz tem um traço de temor que me deixa
pior do que já estou.
Perder uma paciente é algo que sempre me deixa abalado, abalado
demais, mas agora me sinto terrivelmente abalado e tem um motivo muito
simples para isso.
— Sua esposa chegou aqui com a placenta descolada — começo,
explicando os motivos de ter adiantado o parto dela. Dou detalhes do que
posso, da consulta, do diagnóstico, da necessidade de uma cesárea. — Depois
do parto, ela teve uma hemorragia, que causou uma parada cardíaca. — Faço
uma pausa, reorganizando meus pensamentos, procurando pelas palavras
certas para dar o restante da notícia. Arrependo-me um segundo depois de ter
feito essa pausa, porque o olhar de pavor dele diante o meu silêncio já dá a
entender que compreende onde quero chegar. — Fizemos de tudo para
reanimá-la, monsieur Martin. Infelizmente…
Não termino de dizer. Não consigo. Daniel leva a mão à boca e seus
olhos marejam no mesmo instante. Demora só um segundo para que ele
esteja realmente chorando, olhando para os lados, como se à procura de
alguém que possa ajudá-lo nesse instante difícil. Não há mais nenhum
parente aqui e me dói a dor dele.
— Sinto muito — completo, com um sussurro quase inaudível. — Sua
filha também não resistiu.
O homem fecha os olhos com força e balança a cabeça em negativo.
Sou tomado por um grande sentimento de empatia e, quando percebo, já me
aproximei dele e o abracei. Daniel fica enroscado em mim, soluçando a morte
da esposa e da filha por tempo que parece a eternidade. Bloqueio minhas
emoções, todas elas, sufocando-as dentro de mim. Cinco minutos depois, me
distancio, dizendo que preciso ir e, em breve, virão conversar com ele para o
procedimento funerário.
Procuro pelas horas. Dez para as oito. Volto para a sala de parto, já está
limpa e esterilizada. Repasso tudo na minha mente. Todo maldito segundo
desde que peguei no bisturi e abri seu abdômen. Forço minha mente a me
reportar cada passo, cada decisão tomada, cada procedimento feito, cada
gesto. Não posso ter cometido um erro fatal. Balanço a cabeça em negativo,
não conseguindo encontrar nada que me culpe. Foi só uma fatalidade, um
risco que qualquer cirurgia tem. Já conheci médicos que perderam pacientes
retirando a porra do apêndice, uma cirurgia simples e corriqueira.
Tiro minha touca cirúrgica e volto para meu consultório. Fico um
tempo longo na letargia, submerso nos meus pensamentos, perguntando-me
por que a vida é algo tão banal. Deus, Charisse estava naquela maca,
consultando-se comigo pouco tempo atrás. E se foi. Assim, de repente.
Um medo tremendo acerta meu peito com uma força visceral. Eu o
ignoro, com muito esforço, e o jogo para a parte mais profunda da minha
mente. Não vou ficar pensando nessas coisas agora. Concentro-me para
digitar meu relatório, o que é doloroso demais e leva mais tempo do que
imaginei. Termino por volta de dez da noite. Junto meus pertences e vou até a
casa de Juliette. Dirijo o tempo todo com minha touca cirúrgica entre os
dedos, uma mania idiota que me ajuda a controlar as emoções quando esse
tipo de coisa acontece. Passá-la entre os dedos me ajuda a ficar calmo,
controlado.
Quando chego na casa de Julie, subo até seu quarto de um jeito
vagaroso demais, sentindo toda a emoção das últimas horas se forçar contra
meu peito. Segurei todos os meus sentimentos, mas agora estou cedendo
espaço, permitindo-me pensar, sentir. Paro no umbral da porta, não
conseguindo avançar, olhando para baixo, para a touca entre meus dedos. Ela
já me ajudou muito, agora parece que não está fazendo nenhum efeito.
— Pierre — Juliette me chama.
Todo meu corpo treme por dentro. É bom ouvir a voz dela, é bom
chegar em casa e vê-la aqui, vê-la bem. Ergo meu olhar para o dela e não
consigo esconder minha tristeza, permitindo que as lágrimas venham, mesmo
que timidamente, mesmo que eu esteja lutando para não chorar.
— Você está bem? — pergunta, e nego com a cabeça, sem me
aproximar. — Venha aqui — pede, abrindo os braços.
Eu vou, porque preciso do calor dessa mulher, ter certeza de que é real,
de que ela está bem. Vou a passos arrastados, engatinho na cama e me deito
ao meu lado, encaixando-me no abraço que ela oferece e escondendo o rosto
contra seu pescoço macio e quente. Não digo uma palavra, e sei que estou a
assustando. Só preciso de um tempo para digerir essa emoção tão repentina
que tomou conta de mim de uma forma que nem consigo explicar.
— Quer me contar o que aconteceu? — questiona, baixinho, apertando-
me mais contra seu corpo.
Só de pensar em abrir a boca e relatar o que aconteceu me machuca de
um jeito que não sabia ser capaz de machucar. Desde que perdi Charisse,
tenho sufocado minhas emoções, não as permitindo revelar à superfície.
Muito para que pudesse agir de forma racional frente ao marido dela, muito
para que pudesse fazer meu relatório. Só que agora, aqui, sentindo o aroma
dela, na sua presença aconchegante, misturado a esse sentimento tão
repentino, não consigo mais segurar, e cedo.
Eu choro. Choro tão forte que sinto pequenos espasmos no meu corpo.
Solto um soluço alto, involuntário, como se estivesse me libertando de algo
pesado demais para suportar.
Eu choro, e Juliette não diz nada. Só afunda os dedos nos meus cabelos
e me acaricia, trazendo-me mais para seu colo, deixando-me ter esse
momento de tristeza e perda que me atinge e me assola.
Leva um tempo até que eu consiga parar de chorar e me recomponha.
Mesmo mais calmo, não me distancio do aconchego que me envolve. Arrasto
o nariz pela extensão do seu pescoço, inalando seu cheiro que vai me
acalmando ao mesmo tempo.
— Tem a ver com seu sobrinho? — sussurra, beijando minha têmpora.
— Não — consigo dizer, meio rouco.
Afasto-me dela, que toca meu rosto e seca os resquícios de lágrimas
nos meus olhos.
— Quer falar sobre isso?
Aceno em positivo e me ajeito mais perto dela.
— Perdi uma paciente hoje — digo, descendo minha mão direita em
busca da dela. Entrelaço nossos dedos e levanto meus olhos para encontrar
suas íris castanhas atentas em mim. — Uma mulher grávida de trinta e duas
semanas que precisou de uma cesárea de emergência.
Vejo-a engolir em seco. A mão que não segura a minha acaricia meus
cabelos, em um ato que valorizo mais do que o comum.
— Sinto muito — murmura. — Deve ser difícil pra você.
— É. Eu fiz de tudo, para salvar aquela mulher, mas eu… — Paro
bruscamente, porque me engasgo com minha própria saliva. — Não
consegui.
— Não foi sua culpa, Pierre.
Concordo.
— Não foi. Sei que não foi. Repassei cada detalhe na minha mente e fiz
tudo certo. Não cometi nenhum erro, nenhuma negligência. Foi uma
fatalidade, uma complicação que está sujeita em qualquer intervenção
cirúrgica.
Seu olhar suave me estuda por um instante, talvez esteja tentando
entender, então, por que reagi assim, como se eu tivesse culpa ou como se
aquela paciente grávida fosse alguém muito próximo de mim. Já senti a morte
de uma paciente, eu sinto toda vez que perco uma, e não é algo que tenha me
acostumado, só aprendi a lidar. Você tem que aprender a lidar com esse tipo
de coisa ou não serve para essa profissão.
— Doeu a perda dela — digo, desenroscado nossos dedos e pousando
minha mão sobre sua barriga. — Não só porque era minha paciente, porque
era uma pessoa e porque sou um ser humano que tem sentimentos. Doeu
muito além do comum, Julie, e sabe por quê?
— Não — responde, cobrindo minha mão com a sua.
Eu a olho dentro dos olhos. Sempre soube o que era essa emoção súbita
dentro de mim. Não teve um só momento em que não soubesse o que estava
sentindo e por que estava sentindo.
— Porque me identifiquei. Porque enquanto estava lá, contendo a
hemorragia, e depois, quando tentava reanimá-la, só conseguia pensar em
você. — Ela me olha, surpresa, arquejando suavemente. — Só conseguia
pensar no medo que estava sentindo caso fosse você naquela mesa, se te
perdesse, se eu perdesse… — Passo a mão pela sua barriga, acariciando-a
lentamente. — O Valentin.
— Pierre… — murmura, tomando-me nos seus braços e escondendo o
rosto contra meu ombro.
De novo, um nó forte se forma na minha garganta e a vontade de chorar
me atinge mais uma vez. Não tenho como expressar o medo que senti
naquela sala cirúrgica.
— Nunca tinha me sentido dessa maneira — continuo, beijando a curva
do seu pescoço — porque não tinha alguém como ela na minha vida. Mas
hoje tenho você e só passava pela minha cabeça a ideia dolorosa de, um dia,
estar te esperando e você não voltar. De me dizer “vejo você em casa” e eu
não te ver em casa.
Aqui, não suporto de novo. Dói só de imaginar e dói a ponto de me
fazer chorar outra vez.
— Estou aqui, chéri. Não vou a lugar nenhum — diz, contra minha
pele, afagando minhas costas.
— Não consigo conceber um mundo onde você e o Valentin não
existem, Juliette.
Ela se afasta e me olha nos olhos, sorrindo pequenino. Sua boca vem na
minha, em um beijo singelo e intenso, suas duas mãos segurando-me pelo
rosto.
— Vai ficar tudo bem — diz.
É a mesma frase que eu disse para Charisse e, no fim, não ficou tudo
bem. Ela se foi. Não pôde ver o marido em breve, como prometeu.
— Vai ficar tudo bem — repito, seus lábios rentes ao meu, mesmo
sabendo que isso simplesmente pode não acontecer. Pessoas morrem o tempo
todo. É o curso natural da vida. Mesmo assim, digo de novo, expondo um
leve sorriso: — Vai ficar tudo bem.
Preciso acreditar que vai ficar tudo bem. Porque é isso que mantém
todos nós sãos.
Acreditar que tudo vai ficar bem.
JULIETTE
— Nervosa? — Pierre pergunta, atrás de mim, e eu o olho pelo
reflexo do espelho.
Abro um pequeno sorriso e torno a estudar minha aparência. Faço um
bico, não gostando da combinação de roupa que fiz. Parece que, ultimamente,
nada tem ficado bom em mim. Ou só é mesmo nervosismo, como meu
namorado bem apontou, porque vou conhecer o irmão dele.
— Um pouco — admito, alisando o vestido longo no meu corpo. —
Conhecer o seu irmão meio que equivale a conhecer os seus pais, não é? —
questiono, procurando pelo olhar dele outra vez.
O homem está seminu, só com uma toalha enrolada na cintura, cabelos
respingando depois do banho quente, molhando parte do seu dorso. Uma
delícia dessas em forma de gente. Ele desenrola o tecido, dando-me uma
visão tentadora de todo seu corpo. Dou uma atenção especial ao vão das suas
pernas, o membro semiereto, a última evidência do nosso sexo antes do
banho, em cima da bancada da pia do banheiro. Molho os lábios com a
lembrança dele entre minhas coxas, depois encurvando minhas costas e se
arremetendo por trás de mim. Quando subo meu olhar ao dele outra vez, o
safado está com um sorriso convencido. Seguro uma risada e decido que esse
vestido com casaco não está bom, então tiro-os de mim.
— Ele não vai comer o seu fígado, não se preocupe — diz, subindo a
cueca vinho pelas pernas. — Por que está trocando de roupa, de novo? É a
terceira vez que experimenta algo diferente — aponta, vendo-me selecionar
um macacão cinza.
— Não gostei. Estava me pegando demais e parecia estranho no meu
corpo — explico, avaliando a nova peça nas minhas mãos.
Pierre se aproxima ficando de frente para mim, comendo-me com os
olhos. Estou com a lingerie que estranhamente gosta, o conjunto preto de
grávida, sutiã grande, calcinha grande, mas que tem o seu charme, admito,
com umas rendinhas delicadas e que acomodam meus seios e meu bumbum
de um jeito que até eu acho sensual. Quem disse que preciso usar aquelas
coisas finas entrando na minha bunda para ficar sexy?
Meu namorado toca entre meus seios, um sorriso maroto desenhando
nos seus lábios rosados, e a outra mão desce pela lateral do meu corpo, em
um toque gostoso, quente e suave.
— Você é perfeita, Julie — murmura, aproximando sua boca da minha.
— Com estrias no seio e nas coxas? Depois de ter ganhado alguns
quilos? — pergunto com um sussurro.
— A perfeição não está em um padrão estabelecido, Juliette. Você está
gerando uma vida, seu corpo por dentro e por fora está se adaptando para o
crescimento desse bebê. Seus órgãos se apertam, seus seios crescem, ele fica
encaixado para o parto, depois tem as dilatações e o nascimento. Percebe
como isso é perfeito? Essas marcas — cicia, passando o indicador entre meus
peitos outra vez — não são um defeito, nunca vão ser. Vista um saco de
batatas e ficará linda mesmo assim.
Eu rio, deitando a cabeça no seu peito. O pensamento é inevitável, e
não sei por que exatamente penso em Antony, ou por que estou fazendo essa
comparação ridícula. Pierre pouco se importa com as “imperfeições”,
enquanto o outro fazia comentários sutis sobre minha aparência quando algo
o desagradava, disfarçados de preocupações. “Não coma tanto chocolate,
precisa tomar cuidado com diabetes e o sobrepeso”. “Te comprei um creme
antiestria, espero que goste”.
Idiota.
Afasto o pensamento da cabeça e colo minha boca na dele.
— Vou usar o macacão e podemos ir.
Ele sorri, abana a cabeça e termina de se vestir, enquanto faço o
mesmo. Pierre está bonito com jeans, uma malha preta, blazer cinza de lã e
uma boina que finaliza o look.
Estou novamente de frente para o espelho, terminando de amarrar meu
cabelo, quando ele se aproxima, me abraça por trás e apoia seu queixo no
meu ombro. No seu gesto automático — acho que ele nem percebe que faz
isso —, apoia a mão sobre minha barriga, acariciando-a de leve.
— Étienne… — murmura, fazendo uma pausa breve que não
compreendo. — É difícil definir o estado civil dele nesse momento. — Fico
atenta às suas palavras porque, de repente, Pierre decidiu me contar um
pouco mais sobre sua família. — Ele é casado, mas a esposa sumiu e não
temos notícias desde então.
— Sinto muito. — É tudo que consigo dizer nesse instante. — Por que
nunca me contou isso antes? — pergunto, olhando-o pelo reflexo.
— Você nunca perguntou — responde, apontando como se fosse o
óbvio.
Viro-me para ele, testa franzida.
— Tudo o que eu tinha que fazer era perguntar?
Ele ri, escorregando as mãos pelo meu corpo e estacionando-as na
minha cintura.
— Era. Por que duvidou de que não podia me perguntar?
Dou de ombros.
— Não perguntei porque estava te esperando me dizer. Achei que
simplesmente não queira tocar no assunto.
Pierre dá uma risadinha, diminuindo o espaço entre nossas bocas e
deixando um selinho em mim.
— E eu não disse nada porque às vezes acho que vou incomodar
falando sobre assuntos que talvez ninguém se importe.
Seguro-o pelas lapelas, ajeitando a gola dele. Escorrego a mão pelo seu
tórax, sentindo a firmeza dos músculos.
— Vamos fazer assim — proponho —, sempre que quiser me dizer
alguma coisa, me diga. E sempre que eu quiser perguntar, eu pergunto.
D’accord?
— D’accord — concorda, pegando-me pelos punhos e me puxando
para seus lábios.
A gente se perde na nossa bolha de amor por um minuto, sua boca
suculenta tomando a minha de forma lenta, seus braços contornando minha
cintura. Quando decidimos que não podemos ficar aqui o dia todo
namorando, embora eu queira muito isso, seguimos até sua casa. A viagem
dura cerca de meia hora, uma vez que ele mora no 15º distrito de Paris, e eu
moro em Montreuil, uma comuna da região metropolitana da capital. Pierre
mora no sexto e último andar de um prédio de arquitetura antiga, com janelas
altas e estreitas e grades nas sacadas, o que é bem comum por aqui. Ele
estaciona no pátio central contornado pelo prédio, onde há uma garagem
coberta, um jardim bem-cuidado e um playground que, no momento, está
vazio.
Subimos devagar até seu apartamento, caminhando degrau por degrau,
já que não tem elevador. Resmungo baixinho, e ele me diz que um pouquinho
de exercício não vai me matar. Dou um soco no seu ombro e rio. Quando
paramos diante da sua porta, ele fica de frente para mim, segurando-me pela
mão direita, com seu sorriso acolhedor e reconfortante.
— Étienne vai adorar você — diz, talvez como uma forma de me
acalmar porque sentiu que estou meio tensa. — Meu sobrinho também.
Abano a cabeça em positivo e me preparo. Pierre coloca a chave na
fechadura e abre a porta, trazendo-me para dentro. Assim que entro, um
aroma delicioso de coq au vin me invade, fazendo meu estômago se remexer.
Só tomei café da manhã e gastei minhas últimas energias em duas rodadas de
sexo delicioso com meu namorado depois disso.
— Étienne? — chama, encostando a porta enquanto observo tudo ao
redor.
A sala está com a televisão ligada, mas não tem ninguém assistindo. O
ambiente está organizado, bem-iluminado pela luz natural, e é um espaço
mediano — nem muito grande, nem muito pequeno — com móveis bem
distribuídos.
— Aqui — o irmão devolve, e ele me leva imediatamente até a
cozinha.
Deparo-me com um homem na casa dos quarenta anos, cabelos curtos,
grisalhos, barba bem-aparada, usando jeans e camisa branca de botões
protegida por um avental preto e com as mangas arregaçadas na altura dos
cotovelos. Quando se vira para mim, eu jamais poderia dizer que é irmão de
Pierre. Não tem semelhança alguma além dos olhos claros.
— Vocês chegaram — exclama, deixando a tampa cair sobre a sua
panela e limpando as mãos com o pano de prato antes de vir na nossa direção.
Nesse pequeno espaço de tempo, posso observar ao redor e ver um
garotinho sentado à mesa, com uma folha impressa, canetinhas e lápis de cor,
pintando com muito zelo o desenho no papel. Abro um pequeno sorriso e
coloco a mão na minha barriga, imaginando que, em breve, Valentin estará
fazendo o mesmo. Pela primeira vez, então, pego-me me perguntando como
ele será, como serão seus traços, suas características, a cor dos seus olhos, a
espessura do seu cabelo. Só torço para que não tenha nada, absolutamente
nada do pai biológico.
— Juliette — Pierre murmura, chamando minha atenção para ele outra
vez. Desvio os olhos do menino e encontro meu cunhado ao lado do meu
namorado, recebendo-me com um sorriso caloroso. — Esse é meu irmão,
Étienne.
Ele me estuda só por um segundo, sem desfazer o sorriso, e se
aproxima para me cumprimentar com um beijo no rosto. Tenho tempo
somente de processar sua aproximação e responder ao seu “prazer em te
conhecer”.
— Estava ansioso para te conhecer. Queria dizer que Pierre me falou
muito de você, mas estaria mentindo.
— Étienne! — Pierre adverte, voltando para mim.
Eu cubro a boca para conter uma risada maior. Não me surpreende que
ele não tenha comentado sobre mim com o próprio irmão.
— Estou errado? — Étienne devolve, bem-humorado.
Pierre crava mais seus dedos na minha cintura e balança a cabeça em
negativo.
— Bem, então estamos quites — digo — porque ele também não me
falou muito de você.
— Ah, pronto — meu namorado resmunga, o que arranca uma risada
de mim e do irmão mais velho.
Étienne segura-me pelos braços e me leva até a mesa onde o pequeno
está, pedindo para que me sinta à vontade, depois de eu entregar o vinho que
trouxe junto comigo para a ocasião. O menino na minha frente ergue os
pequenos olhos azuis para mim, e aqui vejo muita semelhança tanto com o
pai, quanto com o tio. Pierre surge atrás dele, envolvendo o pequeno corpinho
do garoto em um abraço apertado, que gargalha e se debate nos braços dele
até conseguir se virar e pular no pescoço do tio, recebendo-o com um beijo
no rosto.
— Pierre tem muito jeito com criança — Étienne diz, colocando-se na
cadeira ao meu lado. Desvio a atenção do rapazinho, que começa a tagarelar
com o tio, falando do desenho e da história por trás, e viro-me para o pai dele.
— Estou vendo — respondo, lançando um rápido olhar para Pierre,
todo sorridente com Édouard, prestando atenção na tagarelice do menino.
— Ele me disse, na semana passada, de você. Que é paciente dele. O
pai do seu filho…?
Sinto meu corpo retesar diante a pergunta. Não acho que essa é um tipo
de pergunta adequada para a namorada do seu irmão, grávida de outro
homem, que você conheceu há cinco minutos.
— Não quero confusão nem intriga para o lado do Pierre — diz, com
cuidado, e sorrio um pouquinho, compreendendo a intenção da sua pergunta.
— Não precisa se preocupar. O pai biológico do Valentin não quis o
bebê — explico, ignorando o aperto no meu coração quando minha mente me
leva até Antony e das lembranças dolorosas.
Étienne acena em positivo, dando um olhar rápido ao filho e ao irmão
ainda interagindo animadamente.
— Sabe, o Pierre tem isso nele, de assumir responsabilidades —
menciona, um pouco baixo. Olho para meu namorado, que me olha de volta
em seguida e sorri por um segundo, voltando a dar atenção ao sobrinho. —
Não sei se ele chegou a falar com você sobre… a mãe do Doudou.
— Comentou alguma coisa comigo, sim — respondo. — Ela
desapareceu, não é? Sinto muito.
Ele suspira e fica cabisbaixo depois de confirmar.
— Até o mês passado, antes do meu filho… ser atropelado, eu era um
pai negligente. Me tornei — enfatiza, como que para se corrigir. — Depois
que Jeaninne sumiu, perdi o rumo da vida, fiquei tão obcecado em tentar
encontrá-la que esqueci de ser um bom pai.
Enquanto Pierre espera que eu pergunte sobre sua vida porque acha que
sair falando sobre si vai importunar os outros, seu irmão despeja sobre mim
coisas que meu namorado poderia ter me contado. Não sei se ele é assim com
qualquer pessoa, ou se está me contando isso porque estou namorando o
irmão dele.
— Pierre assumiu as responsabilidades do garoto nos últimos quase
dois anos. Ainda estava em uma relação com a ex-namorada. Inclusive, a
custódia legal de Édouard não é minha, mas do meu irmão.
A informação me pega de surpresa, porque não tinha ideia disso. Pierre
nunca comentou nada comigo.
— Ele cuidou, e ainda cuida, muito bem do sobrinho. Supriu o menino
em todos os aspectos que deixei faltar na vida dele desde então. — Abro um
sorriso e observo meu namorado outra vez, orgulhosa dele, das suas ações.
Não tenho como sequer duvidar do seu caráter, das suas intenções comigo. —
Então se prepare — diz.
Franzo o cenho, sem entender o que quis dizer com sua última frase.
Étienne sorri de volta, meio se divertindo com a confusão nos meus olhos e
no meu rosto.
— Me preparar para o quê? — questiono-o.
— Meu irmão gosta de você, Juliette. Vai ser a coisa mais natural do
mundo para o Pierre gostar desse garoto como gosta da mãe dele.
Separo os lábios para pedir que me explique melhor, mas Pierre me
interrompe, vindo até mim e pondo as mãos nos meus ombros.
— Essa é a Juliette, Doudou — diz para o menininho, que deve ter
finalmente perguntado ao tio quem é a mulher grávida na cozinha da casa
dele.
Espanto os pensamentos da minha cabeça e vejo, pelo canto do olho,
que Étienne deixa sua cadeira, com um pequeno sorriso. Tento não remoer o
que me disse segundos atrás e me concentro no garotinho à minha frente,
estudando-me com seus olhos espertos e sérios. Nunca vi uma criança tão
séria na minha vida.
— É sua namorada, oncle Pierre?
Ele aperta meus ombros um instante antes de me abraçar e apoiar seu
queixo em mim, seu rosto ao lado do meu.
— É, sim. Diga oi para a tia Julie.
Eu sorrio para ele, mas o menino não faz o mesmo. Pelo contrário, me
olha e me estuda de um jeito que parece muito incomum para uma criança.
Meu sorriso vacila um segundo e decido quebrar esse silêncio.
— Salut, Édouard.
— Não gosto de você — diz, de repente, acertando minha canela com
um chute.
Não dói de verdade, porque seus pés mal me alcançam, mas isso não
me deixa menos assustada.
Pierre se levanta na mesma hora, em uma postura intimidadora que
nunca vi nele, ao mesmo tempo em que Étienne já está do lado do menino,
perguntando por que toda essa má educação.
Não sei como reagir nesse momento enquanto Étienne adverte o filho,
puxando-o delicadamente pelo pulso e indagando, com uma voz grossa e
autoritária, qual o motivo de ter me tratado assim. Pierre me olha, e no brilho
da sua íris clara vejo um pedido de desculpas e confusão, como se não
soubesse explicar o comportamento do sobrinho.
— Édouard, peça desculpas agora mesmo — Étienne exige.
O garoto, entretanto, se livra da pegada do pai e sai correndo. Pierre faz
menção de ir atrás, mas o irmão o detém.
— É meu filho. É meu dever corrigi-lo e educá-lo. — Dizendo isso, ele
vai arás do pequeno.
Continuo na mesma posição, ainda desconcertada com o que acabou de
acontecer.
— Você está bem? — Pierre pergunta, sentando-se ao meu lado e
segurando minhas mãos. — Chegou a te machucar?
— Não — respondo para a última pergunta. — Mal relou em mim,
estou bem, não se preocupe.
— Je suis désolé — pede, acariciando o dorso da minha mão. — Não
sei por que meu sobrinho agiu dessa maneira. Édouard é… uma criança
muito amorosa e educada.
— Está tudo bem. Deve ser ciúmes de você. Já considerou isso?
Pierre move a cabeça de um lado para o outro e suspira.
— Não acho que seja ciúmes de mim. Ele nunca agiu assim com…
Meu namorado faz uma pausa brusca, olhando fixamente para mim,
mas não exatamente para mim, daquele seu jeito quando fica pensativo. Está
considerando alguma coisa. Um segundo depois, fecha os olhos e suspira
pesadamente.
— Me deixa adivinhar — digo. — Já tem uma ideia do porquê seu
sobrinho agiu dessa maneira?
— Posso ter uma ideia — responde, meio amargo. — Acho que isso é
coisa da doida da minha ex.
Desvio os olhos por um segundo, incomodada. Não porque a ex-
namorada dele possa ter, de alguma forma, feito a cabeça do menino para
ficar contra qualquer nova companheira de Pierre. Fico levemente
incomodada com o modo como se refere a ela. Doida. Molho o lábio inferior,
tentando espantar os pensamentos da minha cabeça. Ele usou uma expressão
infeliz para se referir à ex-namorada, talvez tenha sido automático, sem
nenhuma intenção por trás; talvez nem tenha percebido que falou isso.
Mesmo que não tenha tido a intenção, me incomoda da mesma maneira.
Balanço levemente a cabeça, de um lado a outro, espantando
pensamentos bobos e me concentrando no que realmente importa agora. O
fato de Perrot provavelmente saber sobre nós significa que nos viu no
hospital, na quarta-feira. Se eu não tivesse ido até lá… Aperto os olhos. Os
dedos dele se enroscam com mais força nos meus, fazendo-me olhá-lo. Pierre
faz um gesto negativo, como se soubesse exatamente o que estou pensando, o
que estou sentindo. Confirmo isso quando ele diz:
— Não foi culpa sua. Você queria me ver e foi até lá me ver. Eu me
certifiquei de que estávamos sozinhos, mas ela deve ter nos visto quando foi
embora, e confesso que não fui cuidadoso em olhar ao redor pra você sair do
meu consultório como fui cuidadoso antes de entrar. Ela deve ter nos visto
juntos nesse momento, ou te viu pelos corredores e ligou um ponto ao outro.
— Ainda assim — murmuro, quase me engasgando com minha própria
saliva. — Se eu não tivesse ido…
— Mas você foi. E me fez bem te ver, dividir aquele cupcake. Francine,
uma hora ou outra, ia ficar sabendo e ia fazer isso do mesmo jeito. — Pierre
aproxima seu rosto do meu, deixando um beijo inocente na ponta do meu
nariz.
Abro um sorriso pequeno, sentindo o aroma da sua pele, gostando da
sensação de proteção que o simples gesto me passa. Ele desce sua boca até a
minha e me beija, suave, amoroso, deslizando sua mão direita para minha
nuca e me puxando mais para ele.
Étienne surge na cozinha outra vez e pigarreia, chamando nossa
atenção e interrompendo o momento. Abro um sorriso, rente aos lábios dele,
e minhas bochechas coram pelo flagra. O irmão mais velho está parado na
entrada da cozinha, em pé, atrás do filho pequeno, que nos encara meio
cabisbaixo, as mãos grandes do pai apoiadas sobre seus ombros pequenos.
— Édouard pensou na vida — Étienne diz, dando uma apertadinha nos
ombros dele. — E quer se desculpar.
Olho para o menininho, que me olha de volta bastante envergonhado.
Ele murmura, mas não entendo. O pai exige que fale um pouco mais alto.
— Désolé — pede, com sua voz fina e infantil. — O que fiz foi muito
feio. Prometo que não vou fazer de novo.
— Está tudo bem, Édouard. Eu desculpo você.
O tio se aproxima, ficando de frente para o garotinho e na sua altura.
— Quer me dizer por que chutou a Juliette e por que disse que não
gosta dela? Você nem a conhece, Doudou.
O menino olha para mim, depois, com uma inclinada de cabeça para
trás, procura pelo olhar do pai, que não se moveu um centímetro, e
finalmente encontra os olhos de Pierre.
— Tia Francine me disse que está triste por causa dela. Eu gosto da tia
Francine, tio Pierre. Não gosto de quem deixa ela triste.
Supomos bem, no final das contas. Tem dedo da ex-namorada dele.
Pierre lança um rápido olhar para mim antes de abrir os braços e encaixar o
sobrinho entre eles.
— O que exatamente Francine falou para você, Doudou?
O menino dá de ombros.
— Só que ainda gosta de você e está triste porque está namorando outra
menina. Por que vocês não estão mais juntos, titio? Sinto saudades dela. Você
nunca mais me deixou dormir lá na casa dela, ou passear com ela.
Um ciúme esquisito sobe e entala na minha garganta. Não gosto da
ideia de Perrot ainda sentir alguma coisa pelo meu namorado e estar, de
alguma forma, tentando nos afastar. De repente, sinto um medo irracional de
perder o Pierre. Ele tem sido tão bom para mim. Não quero perdê-lo, nem
perder o que temos.
— Quando foi que falou com ela?
— Quando fui no hospital, com o papai.
Pierre olha para o irmão, buscando uma explicação melhor.
— Quarta-feira, de manhã. Tinha uma reunião com a diretoria, sobre
meu estudo com os estimuladores cerebrais. Édouard não tem aulas às
quartas, Pierre, tive que levá-lo comigo. Você estava atendendo consultas,
então deixei…
— Com a Francine — interrompe, meio brusco, num tom que acredito
quase com toda certeza de que não tinha visto nele ainda. — Mesmo depois
de todo inferno que causou na minha vida, foi deixar meu sobrinho com ela,
para que essa mulher tenha mais munição para me atazanar?
Pierre fala da ex-namorada de um jeito agressivo, em uma tonalidade
que não reconheço. Nunca o vi sequer levantar a voz para mim, nunca o vi
com raiva. Nós nem brigamos durante esse mês que estamos juntos e, mesmo
naquela noite, quando perguntei se era realmente solteiro e, num acesso
incompreensível de raiva, joguei na cara dele que já tinha traído uma vez, ele
me advertiu, mas não subiu o tom, nem perdeu a paciência. Mas agora,
quando fala de Francine, reprovando a perspectiva de o sobrinho estar perto
dela, noto como fica levemente alterado. Tem uma tonalidade de irritação e
cansaço parecida com a de Antony, quando fazia as reclamações (falsas) da
esposa. Pierre nunca me falou dela, ou do relacionamento deles, salvo quando
disse que era uma pessoa “complicada” e que não tinha aceitado o fim do
relacionamento deles. Apenas isso. Nunca mais fez qualquer menção a essa
relação, nem como foi, nem porque terminaram.
— Eu o deixei com uma residente da neurocirurgia — Étienne
responde, e o modo como diz demonstra que está ofendido com a acusação
do irmão. — Francine deve tê-lo encontrado. Não tenho culpa. Eu precisava
estar lá, Pierre. E o que quer dizer com “para que essa mulher tenha mais
munição para me atazanar”?
Pierre desvia o olhar, ficando estranhamente em silêncio.
— Nada… Só quis dizer que Francine pode usar o garoto para tentar
me manipular. Viu como ela já foi dizer asneiras para Édouard? — responde,
tornando a dar atenção ao sobrinho à sua frente. — Não acredite em tudo que
ela te disser, Doudou.
— Ela mentiu para mim?
Pierre suspira e sei que esse homem é honesto demais para ferir uma
criança desiludindo-a assim. Mesmo que a ex seja “complicada”, está claro
que o menino gosta dela, que os dois têm um vínculo. Étienne me contou que
ela ajudou Pierre com as responsabilidades do menino. É claro que criaram
uma ligação.
— Não, não mentiu. Quando você gosta de alguém e vocês terminam, é
natural ficar triste, Doudou. Também fiquei triste porque também gostava
dela. — Ouvi-lo dizer que gostava de Francine dói de um jeito que não sei
explicar nem entender, mas ignoro a sensação o tanto quanto consigo. — Mas
não podemos ficar tristes para sempre. Uma hora a gente conhece outra
pessoa que nos deixa feliz. Eu conheci a Julie, tenho certeza que a tia Fran
vai conhecer alguém, um dia, que vai deixá-la feliz de novo. Me promete que
não vai ser mais mal-educado com ela? Você a chutou, Édouard. Uma moça
grávida. Podia tê-la machucado de verdade.
O garotinho arregala os olhos e me olha, bastante assustado.
— Me desculpe — pede de novo, e dessa vez sinto mais sinceridade
nele. A primeira era mais mecânica, como uma obrigação.
Abro um pequeno sorriso e abano em positivo.
— Eu te desculpo.
Em um ato inesperado, Édouard corre até mim e me abraça pela
cintura, seu rostinho grudando na minha barriga saliente. Pierre sorri
enquanto ainda estou meio chocada com a aproximação repentina dele e
demoro a retribuir o abraço.
— Bom, agora que vocês se entenderam — Étienne anuncia —, vá
lavar as mãos para almoçarmos, garoto.
O menino sai em disparada e outros braços substituem os dele.
Maiores, mais fortes, e me contornam por inteira. Encontro os olhos de Pierre
e sua boca vem na minha antes que possa dizer qualquer outra coisa.

Coloco a mão sobre a barriga e jogo as costas para trás, rindo


escandalosamente. Pierre passa um braço sobre meus ombros, sentado ao
meu lado da mesa e me olhando do seu jeito apaixonado, sorrindo da mesma
maneira. Étienne ri junto comigo, mais contido, os lábios contra a borda de
uma taça de vinho. Médicos, às vezes, podem ter histórias engraçadas, e meu
cunhado me relata uma porção delas, das coisas bizarras que já viu em salas
de cirurgia.
— Se controle, amor — Pierre sussurra no meu ouvido. — Vai acabar
caindo para trás de tanto que encurva as costas.
Inspiro e respiro profundamente, controlando minha risada exagerada.
Afasto o prato vazio da minha frente e pego a taça de água, bebendo um gole
generoso. O almoço foi extremamente agradável. A comida estava ótima, e
me senti acolhida nessa pequena família. Édouard se comportou, Étienne
manteve uma conversa prazerosa, engraçada e interessante, falando mais
sobre a pesquisa que vai começar a liderar em breve. Confesso que, mais
cedo, fiquei nervosa à toa. O irmão dele é uma pessoa maravilhosa, que me
acolheu na sua casa, na sua família. Admito que meu maior medo em vir
conhecê-lo era ser julgada, não ser aceita por causa da minha gravidez. Senti
medo de um preconceito que sei que existe em pessoas por aí.
— Desculpe o escândalo — peço, já mais controlada.
— Não se desculpe por estar feliz, Juliette — Étienne diz, levantando-
se e juntando a louça. Eu me levanto, prontificando-me a ajudá-lo, mas ele
toma os pratos da minha mão e declara: — Você é visita. Eu cuido disso.
Aproveite o restante da tarde com Pierre.
Olho para meu namorado, que balança a cabeça e concorda.
— Podemos levar Édouard junto? — pergunto, olhando para o
garotinho em uma pequena mesa à parte da principal, terminando sua
refeição. — Podemos brincar com ele no playground e comprar um sorvete.
Étienne coloca a louça na pia e balança a cabeça em positivo.
— Doudou — chama o garoto, que levanta os olhos para o pai. — Quer
passear com tio Pierre e tia Julie?
Com um grande sorriso, Édouard faz um gesto afirmativo e frenético,
saindo do seu lugar e indo até o tio, enrolando os bracinhos na cintura dele.
Étienne me dá um tapinha nos ombros, como um incentivo, e eu me junto aos
meninos.
O garotinho dispara na frente, mas nos espera a cada esquina do
corredor antes de descer um lance de escadas. Pierre e eu descemos
vagarosamente, ele atado à minha cintura de forma despreocupada, como se
nada mais no mundo importasse a não ser esse singelo momento. Compramos
o sorvete para seu sobrinho, e meu namorado faz questão de comprar um para
mim também, sujando a ponta do meu nariz.
Édouard brinca no playground do prédio depois do sorvete, enquanto
eu e o tio namoramos por um tempo, sentados em um dos bancos do
ambiente. Ele fica meio abatido, observando-nos de longe, e Pierre e eu
decidimos nos unir à brincadeira, revezando entre nós para o empurrarmos no
balanço.
O restante da tarde é recheado de boas risadas, brincadeiras e
comilança, porque é claro que Pierre nos comprou coisas deliciosas no
mercado do outro lado da rua para nos empanturrar em um piquenique
improvisado sob o pôr do sol. Já está escurecendo quando voltamos para o
apartamento. O garoto vai direto para o banho, acompanhado do pai munido
do pijama dele. Pierre se direciona para a cozinha, e eu o sigo, sendo
impedida de ajudar no jantar e “obrigada” a ficar quietinha, sentada na mesa
da cozinha, apenas vendo-o cozinhar. Admito, a visão é linda.
— Acho que deveria dormir aqui essa noite — Pierre sugere, refogando
alguns tomates e pimentões na frigideira.
Engulo um pedaço de queijo que ele me serviu e balanço a cabeça em
positivo.
— Não tenho nenhuma roupa aqui, Pierre.
Meu namorado me olha, com seu sorriso encantador que convence
qualquer uma sem nenhuma dificuldade.
— Não preciso de você vestida.
Gargalho e sei que minhas bochechas coram. Não hesitaria em ficar,
mesmo sem roupa, se ele morasse sozinho. Mas fica inviável quando divide o
apartamento com o irmão. Imagine o constrangimento. Deus me livre.
Como se lesse meus pensamentos, Pierre completa, piscando um olho:
— Posso te manter presa no meu quarto, de preferência embaixo de
mim. Ou em cima, depende da sua posição favorita.
— É uma solução muito agradável — pontuo, recuperando-me de outro
riso. Pierre continua me olhando, com seu sorriso contagiante e bonito,
esperando-me dar uma resposta. Deus, ele não está mesmo falando sério, ou
está? — Pierre…
— Vamos, já anoiteceu. Você toma um banho, usa uma das minhas
camisas e ficamos no meu quarto, onde tem televisão e uma ótima distração
— diz, enfatizando a última parte passando a mão direita pelo próprio tórax.
— Étienne tem um banheiro no quarto dele, então não precisa ficar com
medo de ser surpreendida quando for o usar o do corredor.
Preciso admitir que o argumento é forte e válido. Suspiro e cedo. Pierre
vem até mim, dando-me um beijo gostoso e murmurando um “merci” com a
boca rente à minha, causando um arrepio gostoso na minha coluna.
Jantamos em família logo depois de enviar uma mensagem a Adrien,
avisando que vou passar a noite fora. Étienne vai colocar o filho para dormir
quando terminamos a refeição, enquanto Pierre e eu limpamos a louça do
jantar. Perto de nove da noite, o irmão já está enfurnado no próprio quarto,
junto com o filho, e eu tomo um banho rápido, enrolando-me numa das
camisas dele e correndo até seu quarto assim que termino, com medo de ser
flagrada nesses trajes, ou na falta deles, no caminho.
Pierre está me esperando com uma xícara de chá, televisão ligada em
um filme qualquer, cama arrumada e luzes apagadas, o ambiente à meia-luz
do abajur no criado-mudo logo ao lado. Ele me estica a xícara e indica o lado
direito na cama. Eu me acomodo, pegando o chá que me oferece e tomando
um gole generoso, aquecendo-me de um jeito agradável.
— Aproveite o chá — murmura ao pé do meu ouvido, deixando um
beijo suave na minha têmpora —, vou tomar um banho e volto logo.
Abano a cabeça em positivo e ele deixa o quarto um instante depois de
enrolar o pijama em uma toalha azul e sair para o banheiro. Dez minutos
depois, Pierre bate à porta, me pedindo para fechar os olhos. Quero saber por
que e só obtenho uma resposta insatisfatória de “confie em mim”. Suspiro e
fecho os olhos, avisando-o. Ouço-o abrir a porta, advertindo para que eu nem
mesmo espie. Estou tentada a erguer as pálpebras, mas me contenho.
Tem alguma movimentação rápida no quarto até que ele me autoriza a
abrir os olhos. Um sorriso enorme se manifesta em mim, seguida de uma
gargalhada alta. Ajeito-me melhor na cama para observar esse homem na
minha frente, com um sorriso safado e a pose convencida, o semblante de
quem sabe que me surpreendeu.
— Gostou, senhorita Gautier? — pergunta, dando uma volta completa.
Que traseiro, meu Deus.
Mordo o lábio inferior, começando a ficar excitada só de vê-lo assim.
Praticamente nu na minha frente, ereto, usando só o jaleco de médico, as
mãos nos bolsos.
— Isso é tortura? Por que está todo gostoso assim na minha frente se
nem podemos transar?
Pierre ergue uma sobrancelha.
— Por que não podemos transar?
— Não temos camisinha. — O safado abre um enorme sorriso
convencido. — Ou temos?
Meu namorado puxa a mão do bolso, mostrando um conjunto com três
preservativos e o balançando na frente dos meus olhos. Temos o suficiente
para essa noite.
— Nesse caso — digo, com um sussurro, separando minhas pernas
lentamente, como um chamado.
Pierre vem sobre mim, beijando-me na boca, apalpando o meu corpo,
descendo sua mão quente até o meu clitóris e me estimulando do modo como
só ele parece capaz de fazer. Não demora para que eu esteja muito excitada,
molhada o bastante para recebê-lo com facilidade. Não demora para que ele
se revista, coloque-se entre minhas pernas e me penetre, tomando tudo de
mim para si.
E o melhor de tudo, sem tirar o jaleco.
PIERRE
Preciso trocar essa cama. Só me dei conta disso ontem à noite, e o
pensamento se reforça agora, enquanto estou dentro de Juliette, distribuindo o
peso do meu corpo nos braços, movendo-me para frente e para trás, as pernas
dela enroladas na minha cintura, sua boceta se contraindo contra mim. Já a
conheço o suficiente para saber que isso é sinal de que está prestes a gozar.
Essa maldita cama range enquanto trepamos, e a cabeceira, de ferro,
bate contra a parede, denunciando o sexo fantástico que estamos fazendo.
Denunciou o sexo fantástico que fizemos ontem à noite.
Juliette fecha os olhos, apertando-os, e se contrai ainda mais contra
meu membro duro, arqueando as costas levemente para trás, afundando no
colchão. Só preciso de um comando simples para fazê-la se libertar de vez.
Ponho minha mão entre nossos corpos e estimulo seu clitóris com a pressão
certa. Não demora para um gemido gostoso escapar dos seus lábios,
anunciando o orgasmo atingindo-a. Abafo o gemido dela colando nossas
bocas, ao mesmo tempo em que também encontro meu próprio prazer e gozo.
Como de costume, mantenho o ritmo por alguns segundos, diminuindo
gradativamente à medida que meu coração vai acalmando, que minha
namorada vai se acalmando. Giro de cima dela, descarto a camisinha e a
trago para meu peito, que sobe e desce em uma respiração levemente
ofegante.
— Nada melhor do que começar um domingo de manhã com uma
rodada de sexo, não acha? — pergunto, balançando as sobrancelhas.
Juliette sorri manhosamente, encaixando seu corpo mais no meu e
jogando a perna sobre as minhas. Ela ainda veste a minha camisa, que está
com todos os botões abertos, dando-me uma visão excitante do seu corpo.
Amo o corpo dela, cada detalhe, e amo o toque da sua pele sob meus dedos.
— Orgasmo dominical — brinca, rindo contra a curva do meu pescoço.
Ficamos em silêncio confortável por algum tempo, apenas curtindo a
presença um do outro. Acaricio seus cabelos, apreciando o calor do seu corpo
no meu. Não são nem seis horas da manhã e tenho certeza de que ninguém
vai estragar meu dia hoje.
— Por que tinha camisinha? — pergunta, colocando-se nos cotovelos e
me olhando. — Costuma sempre ter preservativos guardados no seu quarto?
Pestanejo seguidas vezes, meio confuso não com sua pergunta, mas
com o tom da sua voz. Não me agrada a leve tonalidade de acusação. Como
se estivesse desconfiada.
— Não. Até mês passado eu era solteiro, e mesmo quando não era,
vivia com…
Paro de falar, porque não vou tocar no nome da minha ex-namorada
enquanto estou nu na cama com minha atual, também nua, depois de ter feito
sexo. Juliette se remexe e se afasta ligeiramente. Mesmo que eu não tenha
dito, ela não é boba e ficou subentendido.
— Enfim, não mantenho preservativos aqui em casa porque não sou de
trazer alguém pra cá. Você é exceção — digo, acariciando seu rosto.
— Então?
— Peguei da sua casa, Juliette. Enquanto estava no banho, surrupiei
alguns dos seus no criado-mudo. Já tinha intenções de te fazer ficar.
Ela desvia o olhar por um segundo e, bem lentamente, torna a ficar
perto de mim. Não diz mais nenhuma palavra, apenas acena em positivo e se
encaixa nos meus braços de novo. Tento não pensar no assunto no momento,
mas não deixo de negar que sua atitude foi um pouco estranha. Julie nunca
demonstrou qualquer desconfiança em relação a mim, nenhum sinal de
ciúmes exagerado, ou de paranoias e inseguranças como Francine. Nossa
relação é nova, e até mesmo Perrot levou algum tempo para demonstrar todos
os sinais doentio do seu comportamento controlador. Antes disso, vejo isso
hoje, ela deu sinais sutis. Sinais sutis como uma acusação velada igual à da
minha namorada. Ela pode não ter dito com todas as palavras, mas sei que, ao
achar que eu mantinha preservativos aqui, pensou que sou de trazer outras
mulheres para cá. Mulheres além dela.
— Está pensativo — me chama de volta para o mundo real,
interrompendo minhas divagações.
Decido não pensar no assunto agora e me viro em sua direção, forçando
um sorriso.
— Só estou chateado porque preciso ir para o Necker, cobrir o meu
plantão em… — Confiro as horas no meu relógio de pulso, que está ao lado
do abajur. — Pouco mais de uma hora.
Ela também faz uma careta e me abraça com um pouco mais de força.
— Promete que vamos passar um final de semana todo na cama,
seminus?
— Por que não nus? — indago, girando-a para cima de mim.
Juliette ri, subindo as mãos pelo meu tórax.
— Na sua próxima folga, o que acha?
— Por mim, tudo bem — digo. — Um final de semana todo em cima
de uma cama com você, nus. Mas agora, preciso começar a me arrumar para
o meu turno.
Ela pega na minha mão e a leva até seu seio direito, estimulando-me a
massageá-lo.
— Não temos tempo nem para mais uma? — pergunta, sua mão
cobrindo a minha, seu quadril roçando o meu, lenta e provocativamente.
Meu corpo reage novamente, como se agora há pouco não tivesse tido
um orgasmo dos bons. Seguro sua cintura na minha e sorrio em resposta. Ela
puxa o último preservativo e rasga com os dentes.
— Dez minutos — sentencio, gemendo enquanto ela desenrola o
preservativo pela minha extensão.
— É o suficiente, doutor Laurent.
Deixo minha namorada na casa dela antes de seguir para meu trabalho.
Não queria ter de ir, mas fiquei um pouco mais aliviado ao ver Adrien abrir a
porta de entrada para recebê-la. Está em segurança e é o que de fato importa.
Quando chego ao Necker, só tenho tempo de colocar meu jaleco
quando sou bipado para uma cesárea de emergência. A mãe está em trabalho
de parto há doze horas, com dois centímetros de dilatação. Entro na sala
cirúrgica, pronto para o que deve ser feito, e preciso de um momento para me
situar e recompor minha postura. A última vez que fiz uma cesárea, perdi
minha paciente.
Afasto o pessimismo da minha cabeça. A situação da semana passada
era outra. A emergência era outra. Ninguém vai morrer hoje. Converso com a
mãe um instante, mas não ouso dizer que ficará tudo bem. Limito-me apenas
a dizer que será um procedimento rápido. Depois de anestesiado o local, faço
o parto, que ocorre bem. Mãe e filha se encontram pela primeira vez, e meu
coração fica leve com a missão cumprida.
Minha equipe cuida do pós-parto quando termino de fechar a paciente e
me retiro. Começo uma intensa rotina de rondas na ala da maternidade,
atendendo mães que já ganharam seus bebês, outras que, depois de cinco
dias, já podem receber alta, outras que ainda estão em trabalho de parto. Feito
meu trabalho aqui, atendo mulheres em outras situações, na ala da
ginecologia e cobrindo a emergência por duas ou três horas.
— Devia ir almoçar — Morin surge quando estou terminando de
assinar uns formulários.
Busco as horas. Quase duas da tarde. Eu deveria mesmo, mas estava
esperando-o voltar para me substituir porque não sou nenhum irresponsável
que deixaria minha ala sem um especialista para atender as pacientes. Mas
Morin não se importa em chegar no horário e normalmente se atrasa porque
está se atracando com internas ou enfermeiras por aí.
— Estou indo — respondo, entregando o formulário para a
recepcionista e agradecendo com um sorriso. Viro-me para meu colega de
trabalho. — Tente chegar no horário, da próxima vez.
Não espero por uma resposta dele e caminho até a sala dos atendentes
para pegar minha bolsa. Para meu desespero, Francine está aqui. Ela me olha
por cima dos ombros, me ignora por algum motivo que não compreendo,
deixando-me confuso, porém agradecido, e torna a terminar de se arrumar,
ajustando o jaleco no corpo e prendendo o cabelo.
Aproximo-me da minha repartição do armário, em silêncio, e começo a
tirar meu uniforme. Essa quietude entre nós é estranha e me incomoda.
Francine está me ignorando, e deveria estar feliz com isso, grato. Fiquei, num
primeiro momento, mas queria uma provocação para poder ter um fio para
puxar e exigir alguma explicação sobre a atitude de Édouard.
Só que nada. Nem uma palavra. Francine termina de se preparar para
começar — ou voltar — para seu turno e está saindo, ainda agindo como se
eu simplesmente não estivesse aqui. Está alcançando a porta quando não
aguento segurar minha língua e digo:
— Fique longe do meu sobrinho.
A mulher se vira na minha direção, estudando-me com atenção e
curiosidade por um ou dois segundos. Ela está decidida a me desdenhar e
deixa isso claro quando gira nos calcanhares outra vez, pronta a partir. Não
me contenho e me aproximo, interrompendo-a:
— Francine, estou falando sério.
Ela bufa e me encara, as mãos na cintura.
— Diz com um tom como se eu fosse sequestrar o garoto.
— Vindo de você, não duvido nem um pouco.
Francine dá uma risada ácida, em meio-tom, e balança a cabeça em
negativo.
— Meu mundo não gira em torno do seu umbigo, Pierre.
Franzo cenho, perguntando-me o que diabos está acontecendo com essa
mulher. Meses atrás, quando ainda estávamos juntos, parecia sim que seu
mundo girava em torno do meu umbigo. Girava tanto que ela me sufocava
com ciúme patológico, paranoias e inseguranças. Quando terminamos,
continuou me perseguindo, falando qualquer merda sobre não desistir de
mim, não desistir de nós. Fiz de tudo para ignorá-la e me manter afastado, e
ela fez de tudo para chamar minha atenção para si de novo, como aquela
história de buscar o menino e não avisar ninguém, só para que eu fosse pegá-
lo e tivesse uma oportunidade comigo.
— Ah é? E que porra de história foi aquela de falar para Édouard tratar
mal minha namorada? Está claro que tentou fazer a cabeça do menino.
Ela ergue uma sobrancelha, e fica bastante expresso no seu rosto que ou
não tem ideia do que estou falando, ou sabe fingir muito bem.
— Não disse nada ao garoto.
— Então por que ele a chutou e disse que não gosta dela? Sem nem
mesmo conhecê-la? Justamente depois de ter estado com você?
— Interessante que esteja mesmo com uma nova namorada —
menciona, fazendo uma careta durante a pronúncia.
Francine não diz mais nada. Não diz se sabe que minha companheira é
Juliette, não diz que sabe disso porque a viu na quarta-feira pelos corredores
do hospital. Nesse momento, não faço ideia se ela realmente não tem
conhecimento da minha nova namorada ou simplesmente está ocultando o
que sabe para usar contra mim em algum momento.
— Não diga como se não soubesse — arrisco, fazendo um muxoxo.
— Eu desconfiava — confessa. — Via você por aí todo alegre,
conversando no telefone, digitando. Qualquer idiota com meio cérebro
perceberia isso. Quando vi seu sobrinho na quarta-feira, que você tem
deixado aos cuidados de um pai que já demonstrou extrema negligência —
pontua, abrindo um sorriso forçado —, foi ele quem veio até mim, não o
contrário. Nós conversamos, porque eu não ia ignorar uma criança de seis
anos que gosta de mim só porque é o sobrinho do meu ex-namorado, e
Édouard perguntou de novo quando poderia dormir em casa, ou sairmos. Fiz
o que pelo jeito você não fez, Pierre: expliquei que não estamos mais juntos.
— Fez mais do que isso — rebato, suspirando, cansado dessa conversa,
arrependido de tê-la abordado. — Deu a entender que uma mulher que você
nem conhece tem te feito mal porque está comigo.
— Me responsabilizo pelo que disse, não pelo que seu sobrinho
compreendeu — responde imediatamente, em um tom altivo e desafiador. —
O que eu disse é que não estávamos mais juntos, que você inclusive já
deveria estar com uma nova namorada, e apesar de isso me deixar muito
triste, não tinha nada a ser feito.
Analiso um instante sua resposta, inclinado a acreditar que realmente
possa ter acontecido isso, mas decido que Francine não é de confiança.
Também fico confuso com essa sua súbita mudança. Tudo bem que já tem
algum tempo que ela não me perturba. Mesmo quando a evitava, a mulher
encontrava uma maneira de me atazanar. Só agora percebo que a última vez
que me infernizou foi com a maldita história de tentar me tomar a custódia de
Doudou. Desde então, ela se manteve quieta, deixando-me em paz. Minha
mãe costumava dizer que o silêncio é suspeito.
— Sei que te disse, um tempo atrás, que não ia desistir de você, mas
desisti. Não vou me rastejar por alguém que claramente não me quer e já
seguiu em frente. Seja feliz, Pierre — deseja, girando no próprio eixo e
deixando a sala do atendente.
Fico estático no meu lugar, tentando entender o que aconteceu aqui.
Alguém trocou a Francine e colocou outra pessoa no lugar dela? Parece a
única explicação plausível.
Ou ela simplesmente usou a razão uma vez na vida e está seguindo
em frente.
PIERRE
— Eu disse que ela era linda. — Ouço a voz de Gustave ressoar por
detrás da porta do RH da clínica.
Olho no relógio de pulso, que marca quase sete horas da noite de uma
quarta-feira. Juliette já deveria ter ido para casa, mas pedi que ficasse e me
esperasse para “irmos embora” juntos. Ela deve ter dado qualquer desculpa
para o chefe para ficar e fazer algumas horas extras.
Bato na porta, de leve, e a abro vagarosamente. Lá dentro, vejo Julie
agachada na altura de uma menininha loira, com os cabelos encaracolados
iguais os de Legrand, e não demoro a entender que é a filha dele. Gustave
está atrás da pequena, com um sorriso enorme de orgulho, as mãos sobre os
ombros da garotinha, os olhos brilhando apaixonadamente. Por um segundo,
penso que esse brilho é para a minha namorada, porque sempre soube que
tem — ou tinha — uma queda por ela. Só que os olhos dele não brilham com
essa paixão toda pela mulher que amo, é para a mulher que ele ama. Uma
garotinha, na verdade.
Os três se voltam para mim assim que entro. Juliette se levanta, e
Gustave a ajuda, esticando a mão e a puxando para cima. Ela sorri para ele,
agradece e se vira para mim. Não sei muito bem o que dizer nesse momento
porque não esperava vê-lo aqui. Achei que já tivesse encerrado o expediente.
— Doutor Laurent — Julie diz, mantendo a formalidade entre nós na
frente de quem não sabe sobre nosso relacionamento.
Abro um pequeno sorriso e já tenho a desculpa perfeita quando sou
interrompido por uma voz feminina e infantil.
— Quem é o moço bonito, papa? — a menina pergunta, olhando para o
pai.
A sala é preenchida por três pessoas rindo alto. Gustave nos apresenta.
A pequena se chama Amélie. Trocamos algumas palavras sobre o que
estavam conversando antes de chegar até que digo a minha desculpa: Juliette
tem uma consulta comigo, no último horário, e que me atrasei com minha
última paciente, mas agora posso atendê-la.
— Só preciso finalizar um trabalho antes. Se importa em esperar mais
uns quinze minutos?
— De forma alguma — digo, meneando a cabeça.
Juliette volta para sua mesa e começa a digitar no computador. Gustave
vem até mim, dando uma última olhada na minha mulher, e se despede,
dizendo à filha pequena que já está na hora de irem. A menina se despede de
mim, abraçando-me pelas pernas. A porta mal se fecha, e ela está pendurada
no meu pescoço, tomando minha boca na sua. Envolvo sua cintura, trazendo-
a mais para mim. Ela não pode me culpar por estar com saudade, mesmo que
a última vez que eu tenha a visto tenha sido ontem pela manhã.
— Oi — digo, sorrindo.
— Oi — responde, enfiando a mão por dentro da minha camisa.
Sinto sua palma quente e o calor me agrada.
— Vou terminar aqui e já podemos ir embora.
— Não quero ir embora — respondo. Ela ergue uma sobrancelha e me
olha, atenta, curiosa. — Tenho uma surpresa para você.
— Que surpresa? — indaga.
— Não seria surpresa se te contasse agora, não é?
Ela ri, apoiando a cabeça no meu tórax e encaixa seus lábios nos meus,
em um beijo suculento e devagar. Somos interrompidos com o abrir abrupto
da porta. Nós dois nos viramos ao mesmo tempo para ver Gustave parado no
umbral, telefone colado ao ouvido, falando com alguém, mas para quando vê
que nos interrompeu e que estamos próximos demais para sermos somente
médico e paciente.
Ele nos dá um sorriso fraco, termina de adentrar a sala e revira sua
mesa, dizendo que está procurando. Encontra uma folha, que puxa de dentro
de um caderno de brochura e capa preta, e anuncia que encontrou a relação de
funcionários. Começa a sair, ignorando nós dois, ainda parados no mesmo
lugar. Antes de deixar a sala, se vira na nossa direção, tampa o microfone e
sussurra:
— Eu não vi nada.
Um segundo depois, nós caímos na risada.
— Acha que ele vai dizer alguma coisa? — Juliette pergunta, agora
preocupada.
— Vou falar com ele amanhã, não se preocupe.
Ela acena em positivo, volta para sua mesa e começa a digitar
rapidamente. Quinze minutos depois, quando termina o seu trabalho, peço
que vá até a ducha para funcionários e tome um banho. Seus olhos emitem
leve confusão. Insisto e, antes que diga que não tem nada para vestir,
argumento que trouxe um par de roupa dela na minha bolsa, que está no meu
consultório e vou buscar.
— Consegui usando a chave que me deu — explico, balançando as
sobrancelhas.
Ela ri, revirando os olhos em bom humor, e acena, acatando minha
sugestão. Volto para meu consultório, pego a mochila que tem os pertences
dela e deixo-a no vestuário. Na recepção, as últimas funcionárias se
despedem de mim, e garanto que em breve vou embora, tranco tudo e aciono
o alarme. Elas não estranham, porque não seria a primeira vez a ser o último
a sair.
Ao finalmente estarmos só nós dois, no vestuário masculino tomo um
banho e troco de roupa, que também trouxe na minha mochila e deixei
separada. Juliette está na recepção, esperando-me, a mochila pendura nos
ombros.
— E a surpresa? — indaga, cheia de curiosidade.
Puxo-a pelos punhos e a levo até meu consultório. Julie entra,
observando ao redor, descarregando a mochila no chão. Encosto a porta e a
tranco. Penso em fechar as persianas, mas não vai ter necessidade. Estamos
sozinhos, de qualquer forma.
Aproximo-me dela, tocando sua cintura e me mantendo às suas costas.
Inspiro o cheiro do seu pescoço, deixando um beijo atrás da sua orelha. Ela
me dá mais espaço e vou tecendo beijos ao longo da sua pele, minhas mãos
deixando sua cintura e subindo pelo seu corpo até alcançar os seios. O aroma
dela de pós-banho é delicioso e me deixa excitado.
— Senhorita Gautier — sussurro ao seu ouvido —, a senhorita tem uma
consulta comigo hoje, para atender e satisfazer uma certa fantasia sexual.
Giro-a nos meus braços, contornando seus lábios com os meus.
Direciono-a para minha mesa e, com um impulso, coloco-a sentada à
superfície de vidro, encaixando-me entre suas pernas. Ela sorri durante nosso
beijo, puxando-me um pouco mais para si.
— Pierre — murmura, afastando-me um centímetro. Cola sua testa na
minha e suspira. — Isso pode te colocar em apuros. Não quero te colocar em
apuros.
Vejo uma real hesitação nos seus olhos. Ela recua um pouco, mesmo
sobre a mesa, e me olha de forma cabisbaixa, indecisa.
— Não vai pôr — garanto, abrindo um sorriso e esticando minha mão
para acariciá-la no rosto. — Mas se você não quiser, se estiver com medo e
insegura, nós paramos. Eu achei… que você ia gostar, por isso arranjei isso.
— Franzo o cenho, dando-me conta da minha estupidez. — Nem te perguntei
se você queria, se ficaria confortável com a situação. Desculpe.
Ela sorri, agradando-se com a minha carícia, e balança a cabeça em
positivo.
— Tem certeza de que quer isso?
— Quero se você quiser — respondo.
— Sendo assim — diz, molhando o lábio inferior e abrindo os botões
da minha camisa —, vamos ao que interessa.
Minha mão sobe pela sua coxa, em um livre acesso permitido pela saia
que ela usa, e alcanço seu sexo. Dedilho-a por cima da calcinha e vejo como
suas pupilas dilatam à medida que a toco.
— O jaleco — pede, com um sussurro estrangulado, quando termina de
tirar minha camisa.
Sorrio com o seu pedido e pego a peça estendida no espaldar da minha
cadeira, vestindo-a. Paro à sua frente de novo, de jaleco, sem camisa, ainda
com as calças, e gosto de como ela me olha, de como me analisa mordendo o
lábio inferior. Juliette me chama com o dedo e eu vou, encaixando-me entre
suas pernas de novo e encontrando-me com sua boca. Julie suspira durante o
beijo e geme conforme subo minhas mãos pelas suas pernas, levando a saia
junto e a enrolando um pouco acima da sua barriga de seis meses.
— Abra mais — instruo, e minha namorada me atende com facilidade.
Afasto sua calcinha e resvalo meu indicador na sua vagina, encontrando o
clitóris e exercendo a pressão na medida que ela gosta.
— Isso — murmura, rebolando contra meu dedo, a voz saindo abafada
porque não deixo que sua boca desgrude da minha. — Se importa se
pularmos essa tortura que você chama de preliminares, doutor Laurent? —
pergunta, com um suspiro.
Sorrio contra seus lábios, sentindo-me mais excitado quando me chama
de doutor Laurent.
— Não me importo nem um pouco — murmuro de volta, deixando-a só
para pegar a camisinha e me revestir. Volto para ela, puxando-a um pouco
mais para a borda da mesa, e a penetro sem dificuldade. — Porra, está tão
molhada — gemo, repuxando seu lábio inferior.
Juliette abraça minha cintura com as pernas, puxando-me pelo jaleco,
seus gemidos misturando-se aos meus. Desço um caminho de beijos quentes
pelo seu pescoço à medida que estoco nela, cravando meus dedos na sua
cintura. Droga, ela está tão quente e apertada.
Deito-a na mesa, segurando suas pernas ainda em torno dos meus
quadris, e recaio sobre seus lábios mais uma vez, detendo-me muito pouco
aqui, porque ela tem um corpo incrível que precisa ser explorado. Minha mão
direita sobe por dentro da blusa branca de botões, enquanto minha boca se
desloca na direção contrária. Meus dedos encontram seu mamilo direito ao
mesmo tempo em que meus dentes beliscam o mamilo esquerdo. O gemido
que escapa dela é música para meus ouvidos. Abro os botões da sua camisa,
devagar, expondo seus seios sob um sutiã de renda vermelho que há muito
não os acomoda mais. Seguro-os com as duas mãos, passando a língua nas
aureolas e chupando os bicos endurecidos.
— Estou quase — anuncia, e sorrio contra seu peito, voltando para sua
boca, segurando-a com mais firmeza nos quadris e ajustando o sexo em um
ritmo maior, para que alcance o orgasmo com mais facilidade.
Com a cabeça jogada para trás, os dedos firmes contra a borda da mesa,
Juliette retorce o corpo, aperta os olhos e se liberta com um suspiro nada mais
do que prazeroso. Sob mim, sinto-a mais úmida, escorrendo em minha
extensão, as pernas tremendo, o quadril desesperadamente procurando o meu.
Saio de dentro dela, que fica frustrada. Separo mais seus joelhos e encontro
seu ponto inchado com a língua. Ela se abre mais para mim, apoiando os pés
sobre a mesa, as mãos se agarram nos meus cabelos, levando-me mais de
encontro à sua boceta. Dedico-me ao sexo oral com o mesmo afinco que
estava me dedicando na penetração. Encontro a maneira e os pontos que a
deixam em fervorosa. É bom conhecer o corpo dela, e eu o conheço como
ninguém. Sei a pressão certa que devo dar no clitóris, a intensidade dos
movimentos com a penetração ou com os dedos, sei que gosta do leve choque
dos meus dentes no seu fecho de nervos, sei que curte uma sugada mais
intensa, a língua dentro dela, lambidas intercaladas com dois dedos. Sei que
gosta das carícias nos bicos dos seios enquanto a chupo, ou dos beijos
cândidos no interior da sua coxa. Conheço cada gesto para levá-la ao
orgasmo e me concentro em cada um deles.
— Acho que vou de novo — diz, pouco tempo depois, em um silvo
rouco e quase inaudível.
Não respondo. Não respondo porque falar significa parar de chupá-la, e
não saio daqui enquanto ela não tiver um orgasmo duplo, enquanto não a
sentir na minha língua. O golpe que a faz se libertar pela segunda vez nessa
noite é um malabarismo da minha língua no seu ponto mais sensível, do meu
dedo esquerdo apertando seu bico e do meu indicador direito dentro dela. A
combinação parece perfeita para a minha mulher, que se desfaz sem pudor ou
ressalvas. Prossigo com o sexo oral por mais alguns segundos, até que esteja
mais recuperada, e só então volto para ela, puxando-a para mim e tomando
sua boca na minha.
Em um ato inesperado, Juliette puxa o restante da minha calça para
baixo, e eu ajudo-a a me livrar dela e dos sapatos ainda nos meus pés,
jogando-os em um canto qualquer do consultório. Agora, estou exatamente
como me imaginou pouco mais de uma semana atrás. Somente com o jaleco,
minha ereção despontando na sua direção, reluzindo na camisinha toda a sua
essência em mim. Ela me encosta na mesa, roubando um beijo meu um
segundo antes de escorregar seus lábios pelo meu tórax, agachando-se até
estar de joelhos, engolindo meu pau por completo. Mal me vejo jogando a
cabeça para trás, separando um pouco mais as pernas para encontrar um
ponto favorável de equilíbrio e me deleitando com o momento. Merda.
Queria a porra de um oral sem esse pedaço de látex nos separando. Quero
isso. Peço isso.
Juliette se livra da camisinha e quando sinto o calor da sua boca quente
na minha pele, é impossível controlar o gemido estrangulado que sai da
minha garganta. Ela agarra minhas pernas, movendo meus quadris para frente
e para trás, como se me pedisse para comandar o momento. Seguro-a pelas
têmporas e, devagar, vou forçando-me para dentro da sua boca, inflando as
narinas e fixando os olhos nessa imagem linda e excitante. Estou prestes a ter
um orgasmo, mas não é assim que quero gozar hoje, pelo menos não agora.
Há posições e lugares nesse consultório que precisam ser explorados antes de
encontrar meu ápice. Trago-a para mim, que resiste um pouco, parecendo
determinada a me chupar até sentir meu sêmen na sua língua.
— Ainda não — digo, e com isso ela vem sem maior resistência.
Encontro sua boceta de novo, ao mesmo tempo em que mordisco sua
boca já inchada e beijo-a com todo fervor. Giro-a de costas para mim,
inclinando-a sobre minha mesa, sua barriga afastada o suficiente para não ser
pressionada contra o vidro. Acaricio seu sexo molhado mais um pouco,
introduzindo meu indicador nela, que implora por algo maior e mais grosso.
Puxo outra camisinha e me revisto antes de atender o seu pedido. Não é a
primeira vez que a como nessa posição, mas é a primeira vez que a como
nessa posição em cima de uma mesa, e é muito mais excitante do que
somente ter imaginado. É excitante ver suas costas curvadas, os seios
esmagando contra o vidro, sua bunda empinada na minha direção, as pernas
separadas…
— Puta que pariu — solto, puxando sua cintura na mesma velocidade
que estoco nela.
Concentro-me no momento, segurando meu orgasmo. Não ainda. Só
depois que experimento uma porção de posições — e de ela gozar enquanto
cavalga ao contrário em mim, sentado na cadeira — é que a deixo me chupar
até atingir meu ápice. Ela está agachada na minha frente, segurando-me com
firmeza enquanto sua boca desce e sobe , meu corpo jogado na cadeira,
quando o orgasmo vem e sai rasgando, junto com um gemido alto que não
consigo evitar.
Juliette se senta no meu colo depois de me acalmar, uma perna de cada
lado, beijando-me calmamente. Subo a mão por dentro da sua saia, a única
peça que ficou no seu corpo, porque até mesmo a calcinha em algum
momento arranquei. Ela se afasta e me olha, com um brilho diferente e
intenso nos olhos. Entreabre os lábios, parece que vai me dizer alguma coisa,
mas desiste, passando a língua e desviando o olhar.
— O que foi? — pergunto, ainda meio ofegante, subindo o indicador
pela sua coluna.
Juliette deita a cabeça no meu ombro, escondendo o rosto, e suas mãos
vão para a barriga, ficando entre nós.
— Não é nada. Queria saber se posso dormir na sua casa hoje, em vez
da minha.
Sorrio e beijo suas bochechas vermelhas.
— Claro que pode. Ainda bem que trepamos aqui, porque aquela minha
cama está muito escandalosa — brinco, fazendo-a gargalhar de um jeito
gostoso.
— Acha que seu irmão ouviu?
— Dado o fato de que quando o vi no domingo à noite ele me pediu
para trocar de cama caso suas idas para lá sejam constantes, sim, acho que
ouviu sim.
Ela me encara, com o rosto ainda mais corado.
— Ai, meu deus, que vergonha! — exclama.
Dou outra risada e puxo-a para um beijo uma última vez antes de me
levantar. Descarto as camisinhas na descarga e visto minha roupa; ela faz o
mesmo e limpamos o consultório, colocando as coisas no lugar. Conferimos
se estamos com todos os nossos pertences e vamos embora para meu
apartamento.
Talvez eu lhe dê uma cópia da minha chave também.
JULIETTE
Acordo enrolada nos braços dele, nua, uma hora antes do meu
despertador. Pierre ainda dorme, sua ereção matinal despontando contra
minha coluna, o braço esquerdo jogado sobre mim, a mão sobre meu ventre.
Encaixo-me mais no abraço dele, que se remexe um pouco e deixa um beijo
meio inconsciente na minha nuca. São seis da manhã e já posso ouvir a
movimentação do irmão dele pelo apartamento. É a segunda noite que passo
aqui desde que o conheci, quase uma semana atrás, mas ainda não tive que
encará-lo depois daquele sábado à noite e domingo de manhã que a cama
denunciou que não estávamos só dormindo. Tínhamos conseguido evitá-lo na
ocasião, saído na surdina, o irmão apenas gritando um “Já estou indo!”
quando já tínhamos atravessado a porta e Étienne estava enfurnado em algum
outro lugar do apartamento.
Só que hoje talvez eu tenha que encarar meu cunhado, depois de a
cama ranger mais um pouquinho após a meia-noite. Pierre já disse que vai me
fazer tomar café da manhã com ele e o sobrinho antes de me deixar na
clínica. Clínica esta que nunca mais verei do mesmo jeito depois de ontem.
Nunca mais entro naquele consultório sem pensar nas posições que me
colocou.
— Por que acordou tão cedo? — A voz dele sussurra ao pé do meu
ouvido,
Antes que possa responder, ele me aperta mais contra seu corpo quente,
estalando um beijo úmido no meu ombro.
— Relógio biológico, talvez.
— Que bom pra você. Se eu fosse depender do meu, acho que
hibernava.
Rio, girando-me na cama e encontrando com seus olhos inchados e
cabelo bagunçado. Aproximo-me e deixo um selinho nos seus lábios, seus
braços laçando minha cintura de novo. Jogamos fora a próxima hora com
conversa fácil, Pierre dizendo que, antes de ir para o Necker, vai falar com
Gustave sobre ter nos surpreendido. Temos mais essa. Nem sei como vou
olhar para o meu chefe depois do flagra de ontem. Só espero que ele seja
tranquilo e não diga nada a ninguém.
Quando faltam dez minutos para meu celular despertar, eu me levanto,
enrolo-me em uma toalha, pego minha roupa e corro até o banheiro no
corredor do seu quarto para um banho rápido. Visto-me por lá mesmo,
porque, caso Étienne resolva vir chamar o irmão, não vai me pegar seminua
pelo apartamento. Saio secando os cabelos, relaxada com a ducha, e digo que
o banheiro está liberado para ele.
— Já terminou aquele meu livro? — pergunto, enquanto Pierre termina
de escolher o que vestir.
Ele enrola tudo em uma toalha limpa e aponta para uma prateleira.
— Já sim. Está ali. Pode levar embora se quiser.
É claro que vou querer. É um dos meus favoritos, com autógrafo, e não
vou arriscar deixar aqui. Vai que o sobrinho dele entra, pega e rabisca? Deus
me livre. Tomo o exemplar em mãos, abro as páginas e folheio um segundo
antes de guardar dentro da minha bolsa. Enquanto penteio meus cabelos,
confiro os títulos que ele tem aqui. Não deve ter mais do que doze livros
nessa prateleira, boa parte são clássicos e uma minoria são livros de
medicina. Não sei se Pierre não é muito adepto da leitura ou se tem mais
exemplares guardados em caixas debaixo da cama.
Passo o dedo em uma lombada vermelha que me chama a atenção pelo
título. A curiosidade vence e puxo o exemplar para mim. Pois bem, ele
surrupiou um livro meu, se me interessar por esse vou surrupiar também.
Abro a primeira página e franzo o cenho, um sentimento estranho invadindo
meu peito quando vejo a letra caligráfica feminina, a assinatura no final das
palavras.
É um presente. Claramente. Da ex-namorada. Por algum motivo, não
gosto disso. Eu me livrei de tudo que me lembrava Antony, de todas as coisas
que me deu. Livrei-me até de coisas que eram minhas, mas que aquele
homem tocou e, de alguma forma, me reportavam às lembranças que não
queria mais ter. Por que diabos ele ainda tem esse presente? Será que, em
algum nível, continua nutrindo qualquer sentimento por Francine?
Passo a página e, no instante seguinte, meu peito queima com mais
força, como se uma bola de fogo estivesse pulsando no lugar do meu coração.
Tem duas fotos. Uma dela, sentada em torno de uma mesa redonda, com
uniforme de um hospital, cabelos amarrados em um rabo de cavalo,
debruçada sobre um livro grosso que suponho ser de medicina. Olho o verso
e reconheço a letra dele das prescrições que já me fez.

“Amour de ma vie”.

Data de cerca de sete anos atrás.


Engulo a bile amarga na minha garganta e seguro a outra fotografia
entre meus dedos. É dos dois juntos. Ele com os braços em torno dos ombros
de Francine, todo vestido casualmente, com um sorriso enorme de felicidade,
segurando uma garrafa de cerveja na mão, enquanto recebe um beijo dela no
rosto.
Tem outros dizeres, na mesma letra dele:

“Pra você se lembrar que é o motivo dos meus sorrisos. Feliz um ano
de namoro.”

— Ei. — Pierre surge, toalha jogada em torno da nuca, calça jeans e


sem camisa. Ele me olha, olha para minhas mãos e sorri. O maldito sorri. —
É meu livro favorito — menciona.
Claro que é. Foi o “amor da sua vida” que te deu de presente. Não teria
como não ser o seu livro favorito. Esforço-me ao máximo para controlar o
ciúme que parece surgir do nada, a ponto de me dominar, e olho de novo para
a foto dos dois juntos, o sorriso perfeito dele.
— … tem uma narrativa mais arrastada, mas vale a pena — completa,
mas perdi parte da sua frase porque estava concentrada em não surtar.
Só que, apesar de todo controle, não seguro minha língua e solto:
— Por que ainda tem isso? — Ergo as fotos para ele, que desfaz o
sorriso no mesmo instante. — Por que ainda tem isso? — indago de novo,
mais incisiva, balançando agora o livro de capa dura e vermelha.
Pierre se aproxima de mim, uma ruguinha entre suas sobrancelhas
grossas, e toma as fotografias da minha mão, observando-a por um segundo.
Engulo a bile amarga que se forma na minha língua e tento fazer um esforço
para ignorar o desconforto que se apossa de mim. Um medo incompreensível
de que ele nutra alguma coisa pela ex-namorada me acerta com toda força e
dói só de pensar na possibilidade de que os dois possam reatar um dia desses.
— Vai me explicar por que ainda guarda uma foto da sua ex ou vai
ficar aí, só olhando para ela como se sentisse falta do que tiveram? —
pergunto, em um modo agressivo demais até para mim.
Meu namorado ergue os olhos na minha direção e, nesse instante, sinto
falta da amabilidade que sempre vi nele. O homem está sério, com expressão
de contrariado.
— Tive uma vida com ela — responde, maxilar trincando, voz contida.
— Chegamos a morar juntos por uns três anos. É natural que, depois que
rompemos, algumas coisas tenham ficado perdidas.
— Mas e o livro? — questiono, dando um passo atrás e abraçando meu
próprio corpo, como se fosse um escudo. Sinto-me levemente nervosa e
paranoica sem saber exatamente o motivo. Acho que é só um medo irracional
de perder o que temos. Pierre é bom para mim, como nenhum outro homem
foi. É normal que eu tenha receio de perdê-lo, não é? — Por que ainda tem?
Ele me olha, suas feições ficando mais expressivas.
— É meu livro favorito.
— É só um livro — pontuo, jogando o exemplar na cama como se fosse
algo desprezível. Afasto da minha mente as palavras de amor e carinho na
página de dedicatória, o Je t’aime beaucoup no final e a assinatura dela, com
um coraçãozinho e a data. — Era só comprar outro.
Um momento tenso cresce entre nós enquanto sinto-me ser estudada.
— É uma versão limitada, de colecionador, não acharia com facilidade.
E mesmo se achasse, não ia me desfazer só porque é um presente da minha
ex-namorada — responde e tem uma conotação de desprezo no tom dele.
Está bravo comigo. Tudo bem, porque também estou brava com ele.
Abano a cabeça em positivo, desviando meu olhar do dele. Meu
coração dispara dentro do peito e as lágrimas começam a se forçar nos meus
olhos. São esses malditos hormônios de grávida que me fazem ficar emotiva
desse jeito, querendo chorar por tudo o tempo todo.
— Acho melhor eu ir embora — digo, e sei um instante depois que é
uma chantagem emocional.
Sinto uma pontada, um incômodo no peito por agir dessa maneira, mas
não consigo evitar. Digo isso porque quero que me impeça e diga que tudo
bem, ele vai se livrar desse livro idiota com a declaração de amor da ex-
namorada.
— Tudo bem — concorda, contrariando tudo o que achei que faria.
Ergo meu olhar para o dele, surpresa com a sua resposta. Machuca-me
o modo como parece pouco se importar. Pierre diz “tudo bem”, mas o som da
sua voz e seu rosto o contrariam. Se não quer que eu vá, por que está
permitindo?
— Se importa tão pouco assim comigo que nem mesmo vai me pedir
para ficar? — resmungo, deixando uma lágrima escapar dos meus olhos e
escorrer pelo meu rosto.
— Eu me importo, Juliette — devolve, com um suspiro cansado,
passando a mão nos cabelos grossos. — Sabe disso. Só que eu… passei muito
tempo namorando uma garota que se comportava exatamente assim. Cheia de
desconfianças, paranoias e ciúmes. Então não, não vou te impedir de ir
embora, se quiser. Mas você pode ficar para conversarmos como dois
adultos.
Ele está certo. Não me reconheço. Não reconheço essa minha atitude.
Nunca fui ciumenta, nem possessiva, nem dada a paranoias e desconfianças.
Por que então agora estou agindo exatamente assim? Hormônios de grávida.
Isso. É a única explicação. Malditos hormônios de grávida.
Mesmo sabendo que meu comportamento é errado, ainda acho que meu
posicionamento é válido. Deveria ter falado com ele menos passivo-agressiva
— certo, fui completamente agressiva, mas isso não vem ao caso agora. Não
é o que falei, mas como falei. Então inspiro fundo, recupero a calma e abano
em positivo.
— Isso significa alguma coisa para você? — pergunto, apontando para
o livro.
— Te disse que é meu livro favorito, é claro que significa algo para
mim. O que está nessa dedicatória? Não. Hoje não significa mais nada.
Uma onda de alívio percorre meu corpo quando me garante que
Francine não tem importância nenhuma na sua vida.
— Pode arrancar a página? — peço, e se fizer isso vou ficar
estranhamente feliz e mais aliviada. — Se não se importa mais com isso, não
tem problema, não é? — Demoro a notar o absurdo que escapa da minha
boca e, mesmo quando noto, não volto atrás no que disse. É algo que me
daria mais segurança.
— Não. — Sua resposta me contraria, e aquele desconforto, o ciúme
descabido, retorna. — Não posso.
— Disse que não se importa — acuso, com uma entonação de mágoa
na voz, o choro entalado na garganta.
Pierre dá um passo à frente, aproximando-se de mim. Levanto os olhos
para encarar suas feições, que continuam com a ruga entre as sobrancelhas, o
maxilar levemente trincado, mas há suavidade nos seus olhos azuis.
— Não me importo, mas não vou arrancar a página. Isso é uma
concessão. Pequena, mas uma concessão. Quando Francine e eu estávamos
juntos, tudo o que desgastou nosso relacionamento foram as minhas
concessões, que começaram com coisas pequenas, como deixar meu celular
desbloqueado. Tempos depois, ela tinha até acesso à conta do meu banco e
me rastreava. Então não, não vou arrancar a página do livro só porque você
quer.
— Mas um relacionamento não é feito disso? — argumento, querendo
diminuir a pequena distância entre nós, contudo, não me atrevendo a dar o
passo que falta para isso. — De concessões?
— Sim, é claro — confirma. — Mas uma relação também é construída
na base da confiança, e aprendi a não ceder mais se é só para provar meu
amor, ou minha fidelidade. Ou você confia em mim ou não confia, Juliette.
Se não confia, me desculpe, mas nós dois não vamos funcionar dessa
maneira, e prefiro mil vezes terminar do que viver rodeado de inseguranças e
ciúmes descabidos.
Sua sinceridade é crua, cruel e visceral. Não há nenhum traço de
hesitação, dúvida ou blefe na sua voz, na sua postura, nos seus olhos. Ele está
falando sério sobre terminarmos. Isso, de repente, me aterroriza. Jogo-me nos
braços dele, quase sem perceber, e enfio o rosto na curva do seu pescoço,
apertando-o contra mim. Ele fica petrificado um segundo antes de enlaçar
minha cintura e retribuir meu abraço.
— Não me deixa — peço, quase como uma súplica. — Você disse que
não vê um mundo sem mim e sem Valentin. Eu também não vejo um mundo
sem você.
Pierre me separa dos seus braços e me analisa. Seu polegar toca no meu
rosto e limpa uma lágrima teimosa que deixei cair e nem percebi.
— Preciso que confie em mim — sussurra. — Quando digo que Perrot
não me importa mais, estou dizendo a verdade. Quando digo que nenhuma
outra mulher me atrai a não ser você, estou dizendo a verdade. Julie, não
quero viver de novo o que vivi com Francine. Isso me desgastou mentalmente
e não estou disposto a suportar esse tipo de comportamento, por mais que
eu… goste de você.
Abano a cabeça em positivo, entendendo-o. Pierre tem razão. Nem sei
o porquê desse meu surto. O homem nunca me deu motivos para
desconfianças, muito pelo contrário. Sempre foi sincero comigo, aberto, e se
não fosse nossa relação médico-paciente, não estaríamos tomando precauções
para não sermos descobertos.
— Me desculpe. Acho que são meus hormônios.
Ele não diz nada, apenas me analisa por longos segundos com o olhar
fixo que conheço quando está pensativo. Quero perguntar o que se passa na
sua cabeça, mas sou impedida quando delicadamente toca seus lábios nos
meus.
— Não vou me desfazer do livro — murmura, acariciando meu rosto.
— Já disse que é um exemplar de colecionador, que dificilmente vou
encontrar outro. Não me importo com a declaração da Francine, mas posso
me desfazer disso — diz, dando um passo atrás e erguendo as fotografias na
altura dos meus olhos. Ele as rasga no meio, sem titubear, sem desfazer seu
contato visual comigo. — Me desfiz de todas as nossas fotos juntos —
pontua, pegando meu rosto outra vez e passando a língua saborosa nos meus
lábios. — Essas ficaram perdidas, ia me desfazer delas de qualquer maneira.
Um pequeno sorriso surge em mim, aliviada. Pierre sorri de volta, mas
sinto que é algo um pouco forçado, ou meio triste. Sei que é por minha causa,
por conta do meu comportamento. Sou uma idiota. Abraço-o, murmurando
outro pedido de desculpas, e ele diz que está tudo bem, mas sei que não está.
Preciso pensar em um modo de compensar o meu surto descabido.
Pierre termina de se vestir, um pouco emudecido e distante, e seguimos
até a cozinha. Étienne já está em torno da mesa, Édouard tomando o café da
manhã no seu cantinho habitual, separado dos adultos. Meu cunhado
pergunta se pode falar um instante com o irmão, a sós, antes de ele se
acomodar. Os dois se distanciam alguns metros e trocam algumas palavras.
Observo-os, estudando as expressões, as linguagens corporais. Noto
quando meu namorado fica meio rígido, franze o cenho e aperta os lábios. A
conversa não dura mais do que um minuto, mas ainda assim é possível sentir
a tensão que o assunto — seja lá qual seja — causou nos irmãos.
— O que aconteceu? — pergunto com um sussurro, tentando não soar
muito curiosa, enquanto me sirvo de um pouco de suco de laranja, quando
Pierre se põe ao meu lado.
— Nada importante — responde, dispondo café na sua xícara.
Sua resposta não me agrada muito, mas não posso protestar. Está no
direito dele em não comentar nada. Esforço-me para respeitar seu silêncio e
fazemos nossa refeição conversando sobre o próximo final de semana,
quando pretendo ir ao shopping fazer as compras para o enxoval do Valentin.
Pierre precisa conferir sua agenda para confirmar o melhor dia porque quer ir
comigo.
Étienne o estuda fazendo planos de me acompanhar nessa empreitada.
Não sei o que pensa disso tudo, de Pierre assumir esse papel comigo, de
querer estar ao meu lado nesse momento, mas não vejo nenhum julgamento
maldoso nos seus olhos quando nos observa. Aqui, de novo, penso sobre o
que me disse quando nos conhecemos, que o irmão é comprometido e vai ser
natural da parte dele gostar de Valentin. Não tenho dúvidas disso. Ele já gosta
sem ao menos o menino ter nascido. Nós ainda não conversamos sobre como
será essa convivência e nem sei se temos o que conversar, sinceramente.
— A diretoria do hospital confirmou comigo o dia e o horário da
confraternização — Étienne menciona para Pierre, pousando sua xícara no
pires e limpando os lábios. — Sábado, às vinte horas. Espero você. — Ele me
olha um segundo antes de, com cuidado, dizer ao irmão: — Quero adiantar
que Perrot estará lá.
Meu corpo trava com a menção e sinto aquela bile amarga subir e parar
na ponta da minha língua. Olho para meu namorado que, apesar da cara de
contrariado, parece não se importar muito. Fecho os olhos e ignoro o
sentimento negativo tentando me dominar.
Preciso que confie em mim.
Inspiro fundo e tomo mais do meu suco, engolindo o nó que se formou
na minha garganta.
— Não me olha assim, Pierre. — O irmão suspira, cansado. — Sei que
não se dão, mas ela é da neurocirurgia e faz parte da minha equipe. Francine
provou que pode me ajudar nessa pesquisa, de forma honesta. Merece estar
comigo.
— Justo — murmura. — Ela tem mesmo me ignorado, não acho que vá
ser um problema.
Aperto os lábios com um pouco mais de força, dizendo para mim
mesma que não é nada demais, mesmo que, para Pierre afirmar que a ex-
namorada está o ignorando, significa que tentou algum contato. Para o bem
da minha mente, não falam mais sobre Perrot pelo restante do desjejum.
Depois do café, seguimos nossa rotina. Étienne vai levar o filho para escola, e
Pierre e eu seguimos para a clínica. Gustave já está aqui quando chegamos —
ele sempre parece o primeiro a chegar e o último a sair —, concentrado na
frente do computador. Meu namorado o chama, pergunta se podem conversar
um minuto e se retiram da sala.
Guardo minha bolsa e me preparo para começar o dia. Cinco minutos
depois, Legrand retorna, sem Pierre, e para na frente da minha mesa. Ergo o
olhar para ele, que não tira sua expressão amigável e despreocupada.
— Seu segredo está bem guardado comigo — diz, com um breve
sorriso.
Sorrio de volta, agradecendo a compreensão, e ele volta para sua mesa.
Trabalho o restante do primeiro turno, isolada nos meus próprios
pensamentos, Gustave estranhamente também não puxa assunto, e eu o
agradeço por isso.
Precisava mesmo ficar com meus próprios pensamentos paranoicos.

Estou finalizando o jantar, perto de oito da noite, quando alguém toca


minha campainha. Minha respiração falha nesse instante porque não sou de
receber visitas, além daquelas que possuem a cópia da minha chave: Adrien e
Pierre. Mesmo quando meu primo esquece a dele em algum canto e vem para
cá, costuma passar uma mensagem ou ligar avisando, exatamente para eu não
ficar assustada, pensando que é aquele traste quem veio me atormentar.
Aproximo-me da porta, sentindo o coração na garganta, e a abro bem
devagar, conferindo pela fresta quem possa ser e já me preparando caso seja
necessário fechá-la abruptamente e trancá-la. O rosto do outro lado é
conhecido, mas não é o de Antony, para meu alívio. Ele tem um sorriso fácil
e meio encabulado no rosto, como se estar aqui, na minha frente, a essas
horas da noite, fosse algo muito inadequado. Bom, talvez seja, e sua vinda
realmente desperta meu interesse e curiosidade.
— Gautier — cumprimenta-me, com seu tom formal e extremamente
educado.
Emilien está dentro de um dos seus ternos caros, mãos nos bolsos,
cabelos bem-penteados, barba aparada, perfumado. Eu o vi vezes o suficiente
para saber que ele é a elegância em pessoa e que fica impossível distinguir se
está impecável dessa maneira porque tem um compromisso depois daqui ou
se continua impecável dessa maneira após um dia cheio de trabalho.
— Dupont — exclamo, não escondendo a surpresa em vê-lo.
O homem dá uma olhada por cima do meu ombro e depois para mim.
— Se importa se eu entrar?
Nego com a cabeça e dou espaço. Ofereço algo para beber, mas ele
nega, acomodando-se no meu sofá. Sento-me no oposto, de frente para ele,
aguardando-o dizer o motivo da sua visita inesperada.
— Desculpe o horário, incomodo?
— Claro que não — respondo.
Só passa pela minha cabeça que ele tem novidades sobre Antony.
Torço tão fortemente para que venha me dar boas notícias e diga que
encontrou um modo de colocar o maldito atrás das grades sem arriscar a
integridade de Ann-Marie, a minha e a sua imagem.
— Alguma novidade? — indago, sem poder realmente me segurar.
Uma tonalidade mais sombria se apossa dos seus olhos e, nesse
instante, sei que não temos nada contra Leclerc.
— Não, nenhuma. Vim por outro motivo. — Abano a cabeça em
positivo e espero. — Vai soar muito estranho e inapropriado — diz, com um
sorriso meio nervoso. Emilien desvia os olhos de mim e reconheço um
padrão de tensão no modo com trança os dedos uns nos outros. — Mas,
acredite, não viria se não fosse de extrema necessidade.
— Nunca gostei de suspense — brinco, ajeitando-me no meu lugar.
Ele me dá um sorriso ainda mais nervoso e inspira fundo antes de
prosseguir:
— Tenho um evento no sábado à noite. Há alguns dias, a organização
me ligou e pediu para que eu fosse acompanhado. Marie é quem iria comigo,
mas ela teve um imprevisto de última hora e viajou a trabalho. Não sabe se
vai conseguir chegar a tempo de me acompanhar.
Não demoro para entender onde esse homem quer chegar. E tem toda
razão. Soa muito inapropriado o seu convite, mesmo que ainda não tenha me
convidado, diretamente falando. Não é inapropriado por qualquer motivo a
não ser que não temos nenhum nível de intimidade. Eu o conheço da cafeteria
de Dousseau. Sempre houve uma linha formal entre nós, nunca fomos amigos
íntimos e raramente nos vimos em qualquer ambiente fora do meu trabalho.
Ele chegava, desejava bom dia, fazia o pedido de sempre, pagava a conta, se
despedia e só. Um pouco desse limite foi quebrado depois do que Antony fez.
Emilien foi me visitar no hospital, mais de uma vez, e pagou a conta da
minha internação. Ainda assim, não acho que tenhamos intimidade o
suficiente para eu aparecer ao lado dele em um evento.
— Quer que eu vá com você? — pergunto, molhando o lábio inferior.
— Oui, se não se importar, é claro.
— Não tem mais ninguém que possa te acompanhar? Mãe, irmã,
amiga? — questiono e me arrependo no segundo seguinte.
Parece uma recusa, embora não seja. Só acho estranho demais esse
homem não ter mais nenhuma mulher próxima que possa acompanhá-lo.
Tudo bem, não é segredo para ninguém que ele é uma pessoa solitária,
discreta e que odeia holofotes. Desse tempo que o conheço, não só não o vi
em nenhum relacionamento amoroso, como nunca o vi em qualquer outro
tipo de relação social. Seus “amigos” se resumiam a Antony e alguns
políticos que sempre o acompanhavam à cafeteria. Nunca o vi junto de
qualquer parente — irmã, mãe, prima —, nem amigas. Nada. Ainda assim, é
estranho que não tenha outra pessoa no seu círculo social.
Emilien dá uma risadinha e abana a cabeça.
— Pode parecer mentira, mas não tenho. Não sou muito apegado à
minha mãe — revela, com um pequeno suspiro —, que não vejo há quase
uma década, e minha irmã não está na cidade. Eu costumava levar… —
Pausa, ergue os olhos para mim. Engulo em seco e me ajeito de novo no meu
lugar. — Leclerc comigo nesses eventos que exigiam uma companhia. Pensei
em convidar o Bernardo, mas ele chegou do Brasil ontem e não está nada
bem depois…
Ele trava na sua frase e desperta minha curiosidade.
— O que foi?
O homem me estuda por longos segundos, como se estivesse decidindo
se me conta ou não.
— Ann-Marie pediu o divórcio ao Antony — revela, com certo
cuidado. — Ele não reagiu muito bem e a agrediu.
Resfolego, sem quase perceber, com a última parte. As lágrimas se
forçam nos meus olhos, por mim, pelas lembranças daquele ataque que ainda
parecem vivas na minha memória, por Ann-Marie, que também foi agredida,
e pelo inferno que deve ter sido seus dias, porque Emilien me conta que, além
da agressão, o desgraçado a manteve em cárcere no próprio quarto. A pobre
coitada conseguiu escapar e ligou para Marie pedindo ajuda. Como os dois
estavam juntos, ele a abrigou na sua cobertura. Bernardo chegou de viagem,
foi avisado do caso e desde então ela está no apartamento de Dousseau,
refugiada, escondida até decidir fazer um boletim de ocorrência.
— Alguém precisa parar esse homem — murmuro, sentindo o medo
subir pela minha espinha.
Emilien acena em positivo e retoma o assunto anterior:
— Enfim, a questão é que não tenho mesmo ninguém para ir comigo e
não quero ser deselegante em aparecer sozinho em um evento que já me
pediram para ir acompanhado. Você é a pessoa mais próxima que tenho de
uma amiga.
— Que tipo de evento é? Preciso ir com saltos ou roupas muito
elegantes? Porque meu guarda-roupa não é renovado há algum tempo e não
aguento mais do que meia hora dentro de um scarpin com essa barriga.
Ele dá uma pequena risada.
— Pode ir com algo mais confortável, não se preocupe. É apenas uma
confraternização no Necker-Enfants Malades. Estou apoiando a pesquisa de
um neurocirurgião e ele dará início aos estudos na próxima segunda. Será
algo bem pequeno.
Uma vozinha na minha cabeça grita para que eu recuse o convite. Não
porque não quero acompanhá-lo, ou porque não temos intimidade o bastante,
mas porque é o mesmo evento do irmão do Pierre, e meu namorado vai estar
lá. Ele já não me convidou exatamente porque não poderíamos simplesmente
aparecer juntos, porque isso levantaria suspeitas e poderia nos comprometer.
Mas então a paranoia de mais cedo volta com mais força e não gosto de
imaginar Pierre e Francine próximos um do outro, não gosto de pensar no que
disse mais cedo, sobre ela estar o ignorando e isso significar que tentou
conversar com ela, por algum motivo. Todo bom senso dentro de mim diz
que preciso dizer não a Emilien, dar qualquer pretexto e não ir, porque é o
correto a se fazer. Mas não consigo dizer não. A verdade é que me aproveito
desse convite para vigiar o meu namorado.
Sinto-me uma estúpida quando digo sim para ele.
— Ótimo. Venho te buscar às sete.
— Vou estar te esperando.
Eu o acompanho até a porta. Emil se vira para mim, abre um pequeno
sorriso e agradece por tudo antes de me dar dois beijos no rosto e ir embora.
Quando retorno para dentro, minha consciência diz que já que fiz a besteira
de aceitar o convite, devo ao menos comunicar Pierre, avisá-lo de que estarei
na comemoração, para que eu não chegue de surpresa. Não é isso o que faço.
JULIETTE
Preciso de uma massagem nos pés. Definitivamente. Inspiro fundo e
molho o rosto, ignorando minha imagem frente ao espelho que mostra meu
rosto um pouco mais redondo, provavelmente por causa do inchaço da
gravidez, e meus seios que também aumentaram no último mês. Nunca tive
qualquer problema com minha autoestima, mas por algum motivo me
incomoda o reflexo do meu corpo em constante mudança. É nítido que
engordei, e não gosto do que vejo no espelho.
Afasto os pensamentos bobos da minha cabeça e jogo outra porção de
água no rosto para me ajudar a despertar e voltar para o escritório consciente
o bastante para continuar meu trabalho. Olho no meu relógio de pulso. Não é
nem remotamente perto do horário do almoço. Só quero ir para casa. É sexta-
feira, o cansaço da semana já está acumulado. Depois que sair daqui, preciso
comprar algo para amanhã. Mesmo que Emil tenha me dito que é um evento
pequeno, não vou aparecer ao lado dele, que sempre veste ternos que custam,
provavelmente, o que ganho no ano, com um vestido qualquer. Preciso de um
que esteja ao menos à altura.
Conformada que ainda tenho umas oito horas de trabalho até o fim do
meu expediente, viro nos calcanhares para retornar ao escritório. Estou
alcançando a porta quando ela abre e traz para dentro a última pessoa que
esperava ver aqui. Meu corpo congela instantaneamente enquanto a mulher
abre um pequeno sorriso para mim, reconhecendo-me.
Não consigo reagir num primeiro momento, confusa com a presença
dela; amedrontada também. O que diabos estaria fazendo aqui? Descobriu
sobre nós e veio contar tudo aos nossos superiores? Um segundo depois, o
medo dá lugar ao sentimento de ciúmes. Não vejo outra explicação a não ser
que veio atrás de Pierre.
— Senhorita Gautier — Francine me cumprimenta, com uma voz
calma e suave. Mal a vejo se aproximar, tocar nos meus braços e se inclinar
para dar um beijo no meu rosto. — Como você está?
Leva um ou dois segundos para meu cérebro processar sua pergunta.
Leva mais dois até que eu consiga me recompor e me lembrar de que preciso
respondê-la e como se faz isso.
— Estou bem — respondo, forçando um sorriso, e levo a mão até
minha barriga.
Os olhos dela caem para essa direção e vejo seu sorriso aumentar.
— O tempo passou tão rápido! Olha como você já está. Já sabe o que
é?
— Menino — digo, com uma pitada de orgulho. O medo irracional está
indo embora pouco a pouco e o ciúme também se dissipa.
Pierre me disse que ela é uma pessoa complicada, que tiveram um
namoro conturbado marcado por inseguranças e paranoias dela. Mas aqui,
enquanto tagarela alguma coisa na minha frente e esbanja simpatia, recordo-
me de que essa mulher me tratou muito bem quando estive internada, embora
eu tenha mesmo sentido uma tensão entre os dois na época e não soubesse o
motivo. Agora sei. Mesmo assim, não consigo ter a imagem ruim que meu
namorado pintou.
Se tem uma coisa que aprendi é que não posso me deixar ser
influenciada por ninguém. Pierre me deu a versão dele, mas não posso
simplesmente tomar isso como uma verdade absoluta sem ao menos conhecê-
la. Já fiz isso com Antony, acreditando cegamente no que me dizia a respeito
da esposa, e no final era tudo mentira. Não acho que ele possa ter mentido
para mim, até porque o homem dificilmente me falou da ex-namorada, mas
ainda assim prefiro não tomar partido nem a odiar de graça sem conhecê-la.
— Valentin — respondo quando me pergunta se já escolhi o nome.
Os olhos dela me analisam por um segundo; tem um misto de surpresa
e parece refletir alguma coisa.
— É um nome muito bonito — elogia, aproximando-se da pia e
conferindo sua imagem no espelho. Afofa os cabelos soltos e me olha do
reflexo, perguntando: — Veio para consulta ou trabalha aqui?
Engulo em seco, procurando uma resposta. Não sei se minto ou se digo
a verdade. A clínica não tem só o Pierre de ginecologista, mas a mulher não
deve ser burra o suficiente para não ligar um ponto ao outro se disser que vim
me consultar. Ela provavelmente vai entender que é com Laurent. Talvez não
desconfie de que estamos juntos, ou talvez desconfie. Nem sei. A verdade é
que ela também deduziu de que trabalho aqui e se confirmar pode ser que a
ajude a constatar alguma suspeita. Não vejo muita saída a não ser dizer a
verdade:
— Trabalho aqui.
Francine sorri, terminando de ajeitar os cabelos, e se vira para mim.
— Não precisa me olhar dessa maneira — diz, encostando-se no
mármore da bancada. — Não vou contar a ninguém que você está namorando
o doutor Laurent.
Dou um passo atrás e cubro meu corpo com os braços, não sabendo
como me portar diante dela. Como ela soube? Como se para responder meu
questionamento mental, ela diz:
— Só liguei os pontos. Sei que Pierre está namorando. Você trabalha
justamente aqui, na mesma clínica que ele. Aposto que foi ele quem arrumou
pra você, com o Gustave. — Suspira, cruzando os braços. — Étienne, o
irmão dele, mencionou o seu nome um dia desses, numa ligação para o
irmão, que sem querer ouvi quando estava chegando na ala da nossa
pesquisa. E o seu bebê… Valentin era o nome do irmãozinho dele que
morreu com quinze dias.
Molho o lábio inferior, tentando apenas não surtar com a última parte.
Não porque ele sugeriu o mesmo nome do irmão, mas porque é uma
informação que nunca compartilhou comigo. É o tipo de informação que só
uma ex-namorada que significou muito na vida dele saberia. Isso me faz
questionar o nível de importância que tenho na vida de Pierre.
— Aliás… — continua, tornando a virar para frente. Abre a torneira e
lava as mãos. — Gostaria de pedir desculpas pelo comportamento de
Édouard. Pierre comentou comigo que ele foi mal-educado com você, por
minha causa. Juro que nunca disse qualquer coisa ao menino para colocá-lo
contra você. Ele é muito agarrado a mim, sabe? Nós convivemos por um
tempo desde que a mãe sumiu. O tio dele e eu morávamos juntos e tomamos
conta do menino porque Étienne não estava nada bem e…
Francine desembesta a falar sobre como foi uma figura quase materna
para o garoto durante um tempo, que cuidou dele, das necessidades físicas e
psicológicas e que, na ocasião de quando o viu, dias antes de ele me
conhecer, estava apenas tentando explicar porque o tio e ela não estavam
mais juntos ou algo assim. Não me atento muito a isso porque minha mente
se prendeu em “Pierre comentou comigo…”. Ele andou falando com ela e,
por algum motivo, sinto-me incomodada com o fato.
— Enfim… — A mulher suspira, secando as mãos com o papel-toalha.
— Não queria causar atrito entre vocês. Nunca foi minha intenção.
— Tudo bem — digo, embora quase não tenha prestado atenção no que
me disse.
— Não precisa se preocupar. Não direi nada a ninguém sobre vocês.
Sei que é uma relação meio proibida.
— Não dirá? — indago, erguendo uma sobrancelha. Ela move a cabeça
em negativa e pergunta por que acho que diria qualquer coisa. Penso um
segundo antes de responder, mordendo o lábio inferior. — Pierre me disse
que você é uma pessoa complicada. — Sou sincera e fujo dos seus olhos por
um segundo.
Ouço um suspiro escapar dela.
— Ele deve me pintar como uma pessoa horrível — murmura.
— Na verdade, ele pouco falou de você — confesso. — Só disse que
poderia querer nos prejudicar caso soubesse porque nunca aceitou o término
do namoro e que o relacionamento de vocês acabou por causa de
inseguranças e ciúmes exagerados.
Sinceramente, espero por uma reação defensiva e histérica, onde ela vai
negar o que ele disse, que vai dizer “não foi bem assim” e vai me dar a sua
versão dos fatos. Mas, não é dessa maneira que Francine reage. Ela se
mantém calma, não se abala, e acena em positivo.
— É, ele está certo. Eu realmente o sufoquei com ciúmes e
inseguranças. Mas, em minha defesa, Gautier, Pierre nunca colaborou muito
para que me sentisse mais segura e menos ciumenta.
Troco o peso do corpo e mordo o lábio inferior. Não compreendo muito
a sua colocação. Francine se aproxima um pouco mais, leve como pluma,
sem nenhuma postura intimidadora ou desvairada. Realmente a mulher não
parece ser nada do que meu namorado descreveu.
— Tenho um péssimo histórico com homens — conta, analisando as
cutículas impecáveis da mão direita. — Quase todos os meus namorados
foram babacas comigo, e Pierre foi o único que não pisou na bola. —
Francine ergue os olhos para mim, apertando os lábios. — Ele é maravilhoso,
em muitos aspectos. Concorda?
— Oui — concordo, porque é verdade mesmo. Não tenho nem como
listar as coisas incríveis que esse homem fez por mim desde que nos
conhecemos. Eu ainda era uma completa estranha para ele quando os
pequenos gestos começaram.
— Eu tinha medo de perder o que tínhamos. Pela primeira vez em
muito tempo, tinha encontrado alguém bom pra mim, então foi natural que
sentisse medo, ficasse insegura e tivesse ciúmes. Juliette… Posso te chamar
de Juliette, não é? — Aceno em positivo. — Pierre é bonito, sociável ao
extremo. Ele sabia das minhas inseguranças e dos meus medos, e o que o
homem fazia? Pouco se importava, vivia para cima e para baixo com as
colegas do internato, depois com as amiguinhas da residência e, quando se
especializou em ginecologia, piorou ainda mais, porque ele é de passar o
número pessoal para as pacientes. Já viu algum médico fazer isso?
Nego com um gesto e preciso concordar que ela está certa. Tem pouco
mais de um mês que estamos juntos, mas não é segredo para mim nem para
ninguém que Pierre é receptivo, caloroso, que vive respondendo mensagens
das pacientes, atendendo ligações, tirando suas dúvidas, principalmente das
gestantes. Durante esse tempo, nunca me importei realmente, porque é o
trabalho dele, porque é o Pierre. Não seria ele se não desse esse tipo de
atenção.
— Pois é. É claro que eu ficava com ciúmes. Ele é bonito, simpático,
lida todo santo dia com mulheres, mulheres que já o paqueraram… Mulheres
muito mais bonitas do que eu. Como poderia não sentir ciúmes dele? Ainda
mais sabendo que se apaixona com facilidade. Veja só, nós tivemos uma vida
juntos, foram oito anos de relacionamento e só faz uns quatro meses que
terminamos. Quatro meses e já está envolvido com você. Dá pra notar que
Pierre está apaixonado. Eu temia tanto que acontecesse isso enquanto
estávamos juntos, que ele se apaixonasse por outra como aconteceu quando
estava na faculdade.
Não preciso perguntar do que está falando, porque sei exatamente sobre
o que é. Pierre comentou comigo sobre ter começado a se encontrar às
escondidas com outra garota mesmo tendo uma relação aberta.
— E para alimentar ainda mais minhas paranoias — a mulher continua
e torno a dar atenção ao que diz —, Pierre some quando surge algum
problema. Ele simplesmente não se importa em dar notícias, dizer que está
tudo bem. Imagine, uma pessoa insegura como eu, que tinha de lidar com um
namorado que trabalhava vinte e quatro horas por dia rodeado de mulheres,
sem notícias dele? No dia em que terminamos, ele tinha ido fazer um parto
humanizado. Foi de última hora e já tinha saído do hospital. Ele poderia ter
me avisado, dado uma ligação, mas preferiu passar horas sem se comunicar
comigo e alimentar minhas paranoias.
Balanço a cabeça em positivo, reconhecendo o comportamento. Pierre
fez o mesmo não muito tempo atrás, quando o sobrinho foi atropelado. E
quando está enfurnado no trabalho, percebo agora, ele só me manda
mensagens respondendo as minhas. Não me recordo, dentro desse mês que
estamos juntos, de qualquer iniciativa sua de manter contato enquanto
precisássemos ficar sem nos ver. Não sei se estou com a memória fraca ou se
de fato nunca aconteceu. Sempre fui eu quem mandei mensagens primeiro.
Aperto os olhos, tentando afastar esses pensamentos descabidos da
cabeça. Não vou me importar com isso agora.
— Posso ter sido a doida que ele deve dizer que fui — Francine
murmura e finaliza: —, mas ele nunca fez muito para aplacar meus
sentimentos ruins. Pelo contrário. Parece que os alimentava de propósito.
Abaixo os olhos e não digo mais nada. Não tenho o que dizer. Prometi
a mim mesma que não tomaria partido de ninguém sem antes conhecer as
duas versões. Agora, eu conheço. Pierre disse que ela era uma pessoa
complicada e ciumenta, e Francine alegou que ele não fazia muito por onde
para ajudar. Não sei quem está certo ou quem está errado nessa história e a
verdade é que não me importo. Minha única preocupação no momento é que
ela não conte nada a ninguém sobre nós.
— Não vai mesmo dizer nada a ninguém? — pergunto, como para
confirmar.
— Não — responde. — Sei que prejudicaria o Pierre e não quero isso.
Ainda mais agora que estou trabalhando em uma pesquisa com Étienne. Não
vou me queimar com nenhum dos Laurent por tão pouco. Já aceitei que nossa
relação acabou, assumo parte da culpa e só posso desejar que sejam felizes —
diz e, por algum motivo, sinto sinceridade nela. Talvez esteja mesmo dizendo
a verdade.
— Desculpe perguntar, mas o que está fazendo aqui?
— Estou com Étienne. O diretor da neurologia vai apoiá-lo na pesquisa
também. Viemos para uma pequena reunião e eu já enrolei demais nesse
banheiro. Vim fazer xixi e acabei me esquecendo — diz, batendo a mão na
testa.
Digo que vou deixá-la sozinha e me despeço, retornando para meu
trabalho. Francine parece ser uma pessoa legal. Não sei por que Pierre pouco
fala dela e, quando fala, não é todo elogios.

Confiro meu telefone pelo que deve ser a centésima vez em uma hora.
Daqui a pouco será o horário de almoço e enviei uma mensagem para Pierre,
perguntando se podemos almoçar juntos, uma vez que está por aqui hoje. Já
são cinquenta e sete minutos que mandei, mas o homem não respondeu. Nem
mesmo visualizou. Tudo bem. Não vou surtar por causa disso porque ele está
trabalhando. Talvez nem tenha tido tempo de pegar no celular.
Esforço-me para pensar em outra coisa em vez de ficar alimentando
medos sem sentido e continuo fazendo meu caminho até a lanchonete da
clínica. Estou na minha pausa de vinte minutos e precisando urgentemente de
um sanduíche de cottage. Guardo o telefone no meu bolso e ergo o olhar para
o caminho à minha frente, parando bruscamente quando chego ao meu
destino, incomodada com a cena que se desenrola diante dos meus olhos, o
gosto amargo do ciúme subindo instantaneamente.
Pierre está de costas para mim, sentado em uma das mesas da cantina,
conversando animadamente com uma garota loira. As palavras de Francine
avançam sobre minha mente sem minha permissão enquanto assisto à cena.
Digo a mim mesma que não é nada. É só meu namorado conversando com
outra mulher e não há nenhum problema nisso.
Nesse instante, uma batalha dentro de mim se dá início. A voz da ex-
namorada dele dizendo como é sociável, receptivo e amigável, que se
apaixona com facilidade, em um embate com a voz do meu namorado,
pedindo para que confie nele, que sem confiança não vamos sustentar esse
relacionamento. Decido que vou confiar nele, na sua palavra, e preciso
realmente me esforçar para não avançar e ir até os dois como uma cadela
raivosa. Só que, como Francine bem disse, Pierre não colabora muito para
aplacar sentimentos ruins. Imediatamente um segundo depois que decido
confiar nele, vejo-o esticando a mão em direção à moça — que só agora
reconheço como uma das recepcionistas da fisioterapia — e pedindo algo.
Sem hesitar, ela pega o celular e entrega para ele.
Confesso que meu coração erra uma batida nesse instante. Se eu não
queria alimentar paranoias infundadas, a imagem à minha frente contraria
todo meu desejo. Pierre pega o telefone dela e, sem tirar o sorriso, digita
rapidamente, o que dá a entender que está gravando o próprio número na
agenda da moça. Parada no meio do caminho, apoio-me na quina da parede,
em uma posição que me esconde e me permite acompanhar o que está
acontecendo ali. Meu namorado devolve o aparelho da garota, entregando o
seu em seguida. Ela também digita, o que suponho ser o número dela. Pierre
guarda o celular no bolso e continuam em uma conversa animada.
Engolindo a bile amarga, eu me afasto.
São quinze e quarenta quando Michéle me chama para entrar no
consultório. A consulta está atrasada em apenas quarenta minutos, mas a
recepção hoje estava especialmente cheia, repleta de mulheres, em sua
maioria grávidas. Entro com cuidado na sala de Pierre. Ele está atrás da mesa,
dentro do seu jaleco habitual, o estetoscópio pendurado atrás do pescoço,
sorriso acolhedor que não revela o que somos e o que temos, porque ele sorri
assim para qualquer uma. Para todas.
Não retribuo o sorriso e me acomodo na cadeira à sua frente, remoendo
a cena de mais cedo, na cafeteria. Passei a tarde toda em uma ansiedade que
nunca senti, minha cabeça doendo de tanto que pensei no que vi, de tanto que
me preocupei com a aparente aproximação dele com outra mulher. Nunca fui
de sentir ciúmes exagerado, mas também não me lembro de algum homem ter
alimentado esse sentimento descabido tanto quanto meu atual namorado vem
fazendo.
— Não vi você no almoço — menciona, e ergo o olhar em sua direção.
Depois observo ao redor e me dou conta que sua assistente se retirou; por isso
tocou no assunto. — Fui te procurar, mas não te encontrei.
— Fui almoçar sozinha. Achei que não ia querer minha companhia —
respondo, mais áspera do que eu gostaria.
Estou me esforçando aqui para não soltar os cães em cima dele. Pierre
já deixou claro que não gosta de demonstrações exageradas de ciúmes e que
isso pode levá-lo a romper comigo. Não quero perdê-lo, não quero que vá
embora, e é por isso que tento de toda forma sufocar minhas inquietudes.
Pierre franze o cenho.
— Por que achou isso?
— Porque você ignorou minha mensagem — respondo, o que é
verdade.
Meu namorado rapidamente pega o celular sobre a mesa, em cima de
uma pilha de cinco livros de medicina, destrava a tela e suponho que confere
as mensagens. Suspira quando se dá conta de que não viu a minha, que
mandei cerca de seis horas atrás.
— Me perdoe — pede, jogando o telefone de volta ao lugar. — O dia
está tão corrido hoje, nem tive tempo de pegar no telefone direito.
Forço um sorriso e sei que ele nota o descontentamento na minha face.
Quero dizer que não teve tempo para pegar no celular hoje, exceto quando
anotou o telefone de outra mulher e passou o próprio número para ela. Por
mais difícil que seja segurar minhas palavras, eu seguro.
— Está tudo bem? — pergunta.
Apenas abano a cabeça em positivo. Vejo-o pronto a perguntar outra
coisa, mas Michéle ressurge, dizendo que a sala do ultrassom já está pronta.
Pierre assente e pede cinco minutos. Antes de seguirmos, me faz as perguntas
habituais da consulta e anota tudo na caderneta de pré-natal. Depois disso,
seguimos até a sala à meia-luz, onde eu me peso antes de me ajeitar na maca
para ver meu bebê.
Pierre me analisa com cuidado enquanto prepara o equipamento. Sigo
emudecida e noto que até sua assistente está sentindo a tensão entre nós.
Quando ele apoia o transdutor na minha barriga e a imagem de Valentin se
faz diante dos meus olhos, me esqueço por um momento de qualquer mágoa
com meu namorado, qualquer sentimento ruim, qualquer paranoia, e
simplesmente me concentro na tela do ultrassom. Ele fala do tamanho, do
peso, a posição que está — atravessado de tanto que mexeu hoje —, e, em
dado momento, até contorna na tela o que é o rostinho do bebê. Um sorriso
enorme nasce em mim, mesmo que a imagem esteja toda borrada, em ver
meu neném.
Finalizamos o exame com Pierre me pedindo para redobrar a atenção
daqui para frente, agora que entrei definitivamente no sexto mês de gestação,
porque não é incomum ocorrer um parto prematuro. Alerta-me dos sintomas
e me instrui sobre como proceder caso um desses sinais apareça no meu
corpo. Mesmo com raiva dele, aprecio ainda mais seu cuidado, zelo e
preocupação. Não sei se é uma instrução que ele dá a todas as pacientes ou se
foi algo meio que exclusivo para mim. Se bem o conheço, aposto na primeira
opção.
Voltamos para a sala principal, onde ele finaliza a consulta, anotando o
restante das informações na minha caderneta e me dando outro frasquinho da
minha vitamina, que acabou há dois dias e só o informei cinco minutos atrás.
— Está tudo bem mesmo? — pergunta, esticando o ultrassom de hoje.
Sorrio um pouquinho para a imagem e o contorno do rosto de Valentin.
Estou montando um álbum só com essas impressões.
— Está — respondo, mas minha voz contraria minha resposta.
Só quero finalizar a consulta e ir embora, porque se ficar aqui sei que
vou acabar dizendo coisas que não quero.
— Julie — murmura meu apelido só porque sua assistente não está por
perto. — Sinto que não está sendo sincera comigo. — Sua mão desliza sobre
a mesa de vidro, a mesma mesa em que trepamos gostoso dias atrás, e segura
nos meus dedos. — Me conta o que está acontecendo.
Aperto o lábio inferior e balanço a cabeça em negativo. Não quero
dizer nada. Não quero surtar, nem o irritar, mas ele insiste, pede para confiar
nele, argumenta que estamos numa relação e precisamos ser abertos um com
outro e, seja lá o que esteja me incomodando, devo contar para que a gente
resolva no diálogo, em vez de ficar remoendo mágoas, criando conflitos.
Com tudo que há em mim, e Deus sabe que é verdade, me seguro para
não dizer nada, para simplesmente esquecer e me convencer de que o que vi
mais cedo não tem nada demais, era só uma conversa entre amigos e que
trocaram telefone apenas para manter contato. Mas, por mais que tente me
convencer disso, não consigo. Não consigo nem mesmo ser uma pessoa
civilizada e ponderada para dizer a Pierre o que está me incomodando e,
quando noto, entre um sorriso histérico e uma risada de deboche, digo:
— Vi você mais cedo, com outra mulher, todo íntimo. Foi por isso que
ignorou minha mensagem? Estava ocupado demais com ela, não é? Me disse
que nem teve tempo de pegar no telefone, mas não foi o que pareceu quando
anotou o seu número no celular dela e entregou o seu para que ela fizesse o
mesmo.
Pierre me olha, por longos segundos, primeiro com uma expressão
neutra, mas que depois se transforma, juntando levemente as sobrancelhas,
apertando os lábios, desviando os olhos. Quero que fique bravo comigo e
esclareça a situação, porque é melhor do que esse seu silêncio absoluto. Ao
invés disso, diz:
— Nossa consulta já acabou, senhorita Gautier.
Sua indiferença me acerta com a mesma força de um soco. Ele profere
cada palavra sem me olhar, atento a organizar os objetos sobre sua mesa,
mesmo que estejam devida e perfeitamente organizados. No final, Francine
tem toda razão. Ele não faz muito para acalmar nossas paranoias. Parece que
gosta de alimentá-las.
— Pierre. — Tento, mas o homem se levanta, contornando a mesa e
indo em direção à entrada.
— Nosso tempo acabou. Tenho outras pacientes e meus horários estão
todos atrasados. Então, s’il vous plait… — pede, em um tom formal que me
desagrada, e abre a porta.
Sem muitas opções, eu me levanto. Olho-o um segundo antes de me
retirar e não vejo nenhum traço de hesitação na sua íris azul. Esse homem é
firme e decidido quando quer e, confesso, isso me irrita.
— Au revoir, doutor Laurent — digo e ouço a porta bater às minhas
costas em seguida.
JULIETTE
Invento uma desculpa qualquer para Gustave e peço para me deixar ir
embora uma hora antes do fim do meu expediente. Ele me libera e quer saber
se precisa avisar Pierre. Digo que passo uma mensagem quando chegar em
casa, porque não quero alarmar, e vou para casa, sentindo toda a dor do
mundo no meu coração.
Ele me tratou com uma frieza que até então não tinha experimentado.
“Nossa consulta já acabou, senhorita Gautier”. Isso dói em mim, mas não dói
mais do que ter que admitir que em partes está certo. Outra vez, fui grossa,
demonstrando um ciúme exagerado que não reconheço. Enquanto faço meu
caminho de volta para casa, não consigo afastar da mente a porção de
pensamentos e conflitos que me tomam. Francine me dizendo que parte da
culpa por todo o seu descontrole e ciúme vinha de Pierre, eu tentada a
concordar porque o vi de conversinha com outra mulher e ele nem se deu o
trabalho de se explicar.
Meus pensamentos só se dissipam quando chego e encontro Adrien
estirado no meu sofá, televisão ligada, comendo um pedaço de pizza
enquanto assiste a um videoclipe no Youtube. Ele abre um sorriso pequeno
quando me vê e confere as horas no relógio de pulso.
— Chegou mais cedo hoje — observa.
Arrasto-me em sua direção e me deito nas suas pernas, sentindo-me a
pior pessoa do mundo, com uma confusão dentro de mim que não sou capaz
de explicar, nem entender. Nunca fui essa criatura insegura que estou
manifestando no momento, com medo de que Pierre me troque por qualquer
par de pernas que não tenha um filho a tiracolo, dependente do carinho e da
atenção dele, apegada demais no homem a ponto de saber que nossa relação
pode prejudicar sua carreira e mesmo assim não conseguir abrir mão dele
como médico. Parece que há algo forçando-me a sempre tomar atitudes
estúpidas, mesmo sabendo que estou errada na maioria das vezes, agindo com
egoísmo e histeria, procurando desculpas, pretextos, motivos para justificar
meus comportamentos: “Pierre é incrível, tenho medo de perdê-lo e por isso o
ciúme exagerado.” “Pierre é bonito, inteligente e sociável, se apaixona com
facilidade, por isso o ciúme exagerado.” “Eu estou grávida de outro homem,
ele vai se cansar de mim e se interessar por outra, por isso a insegurança
descabida.” “Ele trabalha o tempo todo com mulheres, mulheres mais bonitas
do que eu, por quem facilmente se interessaria, por isso o ciúme exagerado.”
— O que foi? — Adrien pergunta, acariciando meu cabelo depois de ter
deixado seu pedaço de pizza no prato e limpado as mãos com um guardanapo
de papel, trazendo-me de volta à realidade.
Ajeito-me em suas pernas e o olho de baixo para cima, abrindo um
pequeno sorriso.
— Não é nada — digo, decidida a não o trazer para meio da minha
intriga com meu namorado. — Só estou com péssimo humor de grávida —
brinco, colocando a mão na barriga.
Meu primo ri comigo e me toca no abdômen, sentindo o bebê mexer
um pouco. Ele abre aquele seu sorriso esplêndido, como se fosse a primeira
vez que sente Valentin pular dentro de mim, o que claramente não é o caso.
Pergunto do dia dele, que me responde com o de sempre, dizendo depois que
não vê a hora de terminar logo o doutorado. Rio dos seus resmungos, porque
ele começou a defender sua tese esse ano, então não está nem perto de acabar.
O videoclipe na televisão — o terceiro desde que cheguei — acaba e,
antes que outro da playlist dele comece, a plataforma exibe um rápido
comercial, onde Marjorie aparece. Os olhinhos dele brilham na frente da tela,
e Adrien até para de falar comigo, atento no anúncio de trinta segundos.
— Será que vou morrer sem ter o gosto de ver você chegar nessa
mulher, Adrien? — brinco, puxando-o pela gravata para fazê-lo desviar os
olhos da tela.
Ele se vira para mim, com um leve sorriso, envolve uma mecha do meu
cabelo no seu indicador e diz:
— Falei com ela, esses dias.
Um segundo depois, estou sentada sobre meus pés, surpresa com a
informação.
— Quando?
Ele dá de ombros:
— Pouco mais de um mês. Na noite que fui te buscar no restaurante,
lembra? Eu tinha acabado de deixá-la no edifício dela.
Dou um tapa no seu ombro.
— Por que não me contou antes?
— Eu me esqueci, Julie — responde. — De qualquer forma, foi uma
conversa rápida, sem relevância. Não pude nem me apresentar. — Faz bico,
ficando estranho de repente, meio distante, evitando meus olhos. Sei que tem
alguma coisa que não está me contando. Fico curiosa sim e exijo saber, mas
ele me diz que não é nada, só que teve de levar Marjorie para falar com um
cara com quem aparentemente ela está saindo.
Coitadinho. Ficou todo remoído de ciúmes. Mas ele não pode culpar
ninguém além de si mesmo por não se aproximar dela, dizer o que sente. Ela
é uma mulher bonita, é claro que a concorrência é forte, e ele está sendo bobo
em não tentar investir. Meu primo me pede para esquecer o assunto e
engatamos em outra conversa, que me faz esquecer por bastante tempo minha
mágoa com Pierre.
Até que ele está aqui. Tocou a campainha antes de girar a sua cópia na
fechadura e entrar. Para no limiar entre a sala e a cozinha, onde Adrien e eu
estamos agora, terminando de preparar o jantar, perto de nove da noite, e nos
observa, parecendo hesitante. Ele me olha sem o sorriso bonito que costuma
olhar quando chega, mas também não vejo raiva ou desapontamento. Está
simplesmente neutro.
Meu primo abre a boca para cumprimentá-lo, mas nota a tensão entre
mim e meu namorado e prefere ficar em silêncio, terminando de preparar a
salada. Também não sei o que dizer, o que fazer. Não esperava que Pierre
viesse, não depois dessa tarde. Pensei mesmo que fosse me dar um gelo por
algum tempo. Ele não está com a mesma roupa da clínica, o que dá a
entender que foi para casa antes de vir para cá.
— Oi — digo apenas, torcendo o pano de prato entre meus dedos, sem
saber mais o que fazer, tendo vontade de me aproximar e beijá-lo. Só não sei
se é apropriado ou se retribuiria.
— Oi — responde, seus lábios curvando-se num sorriso pequeno.
Meu coração dá um pulinho de felicidade com essa pequena
demonstração e eu me vejo me aproximando dele. A primeira coisa que faz é
tocar na minha barriga, abaixar a cabeça e dizer “oi” para o bebê. Tento ter
raiva desse homem, mas ele não colabora. Rio quando pergunta se “a mamãe
está mais calma”. Ele me olha, engolindo em seco, segura-me por trás da
nuca e me puxa para um beijo calmo.
— Precisamos conversar — diz, contra meus lábios.
— Me esperem ir embora antes, pelo amor de Deus — Adrien protesta.
Meu rosto cora, Pierre ri, do seu jeito rouco e gostoso.
— Nós vamos mesmo conversar, Adrien — meu namorado esclarece.
— Não é eufemismo para “quero transar com sua prima”.
Meu rosto esquenta mais ainda quando meu primo gargalha
escandalosamente e vem até nós, finalmente apertando a mão do meu
namorado e o cumprimentando, deixando um beijo em seguida na minha
têmpora.
— Vou dar privacidade pra vocês. Já notei que estão brigados e querem
se reconciliar. O que significa que, de um jeito ou de outro, “precisamos
conversar” foi sim eufemismo para “queremos trepar, vá embora”.
— Meu Deus do céu! — exclamo, tentando acertá-lo com um murro,
mas meu primo já está longe o bastante, rindo como uma hiena, enquanto
meu namorado se diverte na mesma medida.
De repente, estamos sozinhos, frente a frente, na sala, e uma atmosfera
mais pesada se põe entre nós. Ele se senta no sofá, deixando o telefone na
mesinha de centro, e dá alguns tapinhas ao seu lado, chamando-me. Vou sem
resistência e sem compreender esse seu comportamento. Mais cedo me tratou
com frieza, mas agora parece mais calmo.
— Vai me explicar por que trocou telefone com aquela mulher? —
pergunto, só que dessa vez sou mais passiva do que agressiva.
— Non — responde, fazendo-me enrugar o cenho. Então por que
diabos está aqui? — Não vou me explicar, Julie. Já te pedi para confiar em
mim.
— Como confio depois do que eu vi, Pierre? — Suspiro, passando a
mão no rosto e odiando o amargor que sobe pela minha boca.
— Não é o que você viu, mas o que está interpretando. Por que não se
aproximou da mesa? Por que não foi nos cumprimentar? Eu teria te
apresentando a moça, teria esclarecido o que estávamos conversando. Mas
preferiu tirar suas próprias conclusões e depois fazer uma insinuação pouco
agradável.
Não tem nenhum traço de irritabilidade na voz dele. Pierre está calmo,
calmo como não estava hoje no seu consultório, quando chegou a
praticamente me pôr para fora. Mas vejo que está cansado. E sou eu quem
está fazendo isso. Fecho os olhos, apertando-os com força, sentindo-me a
pessoa mais estúpida do mundo, e, contraditoriamente, não conseguindo não
tirar da cabeça o que vi mais cedo, querendo uma explicação que ele já
deixou claro que não vai dar.
— Por favor — suplico. — Me conta quem era ela, por que trocaram
telefone. Estou paranoica, Pierre. Não vou me sentir melhor enquanto não
esclarecer a situação.
— Eu não vou — diz, veemente.
Abro os olhos e o encaro, mordendo o lábio e sentindo que as lágrimas
de novo estão se forçando contra mim. Nem sei por que estou com vontade
de chorar. Amo minha gravidez, mas odeio esses efeitos colaterais. Estar toda
sensível assim, querendo chorar com qualquer coisinha.
— Por quê? — questiono.
Ele vem para mais perto de mim, passando o indicador na minha
pálpebra inferior e capturando uma gota.
— Quero que confie em mim. Quero que confie quando digo que não
houve nada demais entre mim e aquela mulher, que o que você viu não é
nada do que está pensando.
— É só me contar, homem.
Pierre suspira, inclinando-se na direção do meu pescoço e roçando o
nariz na minha pele. Estou prestes a dizer alguma outra coisa, mas me
esqueço do que é e, mesmo se lembrasse, minha voz teria saído tremida por
causa do contato gostoso e ousado que me causa, arrastando a pontinha do
nariz em mim, deixando um beijo delicado na minha pele.
— Não é. Se estiver decidida a não acreditar em mim, não importa o
que eu diga, não vai acreditar em mim.
— E a sua solução é me deixar ainda mais paranoica com essa história?
Pierre se afasta, levantando-se em seguida.
— Acho que já te dei provas suficientes de que você é a pessoa mais
importante para mim nesse momento, Juliette. Que não há a menor chance de
outra mulher me atrair tanto quanto você me atrai. Que quero um futuro com
você, com Valentin, quero um futuro onde nós três somos uma família. Se
isso não é o bastante para que confie em mim, que acredite nas minhas
intenções, não vou ficar tentando te provar mais nada.
Engulo em seco, amedrontada com a firmeza desse homem. Ele vai
embora, sem hesitar. Em vez disso, de repente, está ajoelhado na minha
frente, segurando-me pelas duas mãos, olhando-me do seu jeito amoroso que
me conquistou dia após dia.
— Não quero esse tipo de cobrança na nossa relação, nem esse ciúme
doente. Mas também sei que sua insegurança, as suas desconfianças, os
ciúmes, seja lá por que está sentindo isso tão de repente, podem ser
trabalhados com ajuda psicológica. Parou de se consultar há algum tempo,
não foi?
Balanço a cabeça em positivo.
— Eu estava bem. Não vi necessidade de continuar pagando pelas
sessões.
— O que acha de voltar? Procurar a raiz desse problema? Tratar isso da
forma correta para que não reflita mais no nosso relacionamento e nos
desgaste? Quero mesmo ficar com você, Juliette. Se soubesse o quanto eu…
gosto de você.
Jogo-me nos braços dele, comovida com sua oferta, com como
realmente se importa comigo, e eu aqui, sendo uma vaca com ele.
— Eu sei — digo, mordiscando o lóbulo da sua orelha e o apertando
um pouco mais contra mim. — Também gosto muito, muito de você, Pierre.
Suspiro, preferindo ter dito outras palavras, com um significado mais
forte. Só que não vou dizer, não enquanto ele próprio continuar descrevendo
o que sente por mim com gostar. É a segunda vez que me diz isso e não vou
meter os pés pelas mãos, me declarar e assustá-lo, ou ainda fazê-lo se sentir
na obrigação de retribuir.
— Então?
Afasto-o de mim, namorando seus olhos claros.
— Eu estou bem. Essas reações exageradas… — digo, traçando o
indicador pelo contorno do seu rosto. — São meus hormônios falando por
mim, não são?
— Julie… — murmura, cansado, mas não o deixo continuar.
— Tudo bem — concedo, e ele sorri pequenino. — Vou voltar a falar
com a minha psicóloga. Amanhã cedo marco uma consulta para a próxima
semana.
Ele vem até mim, beijando-me com urgência e paixão, prensando-me
mais contra o sofá e mantendo-se longe o bastante apenas para não distribuir
o peso na minha barriga. Sua mão corre pela minha cintura, entrando por
dentro da minha camisa e chegando até os meus seios, onde ele aplica a
pressão certa e deliciosa no bico dos meus seios. Arranco sua camisa preta,
acariciando suas costas largas, sentindo a pele macia na ponta dos meus
dedos enquanto distribui beijos quentes e molhados no meu pescoço e
ombros.
— Só tem camisinha lá em cima — digo, com dificuldade em respirar.
Pierre encosta sua testa na minha, um sorriso safado e convencido
curvando-se vagarosamente na sua boca deliciosa. Ele enfia a mão no bolso
de trás da calça e me mostra um pacote de preservativo.
— Um bom soldado sempre vai para a guerra preparado — brinca,
rasgando a embalagem com os dentes.
— Então “conversar” era mesmo eufemismo para sexo, seu safado —
digo, abrindo o botão da sua calça.
Um minuto depois, estou por cima dele, suas mãos na minha cintura,
ajudando-me a cavalgar.

Pierre beija o topo da minha cabeça, seu braço me rodeando e me


grudando mais no corpo dele. Viro-me o quanto posso no sofá apertado,
ficando de frente para ele, minha barriga contra seu abdômen durinho, e enfio
o dedo nos seus cabelos grossos que estão levemente úmidos de suor. Beijo o
canto da sua boca, o gosto salgado vindo para a ponta da minha língua.
— Preciso de um banho — diz, arrastando o nariz na minha bochecha.
— E estou com fome.
Saio do aconchego dos seus braços e pego sua camisa jogada no chão,
vestindo-a em mim e fechando os botões. Procuro minha calcinha jogada
perto do seu celular e a subo pelas pernas.
— Toma um banho — digo, puxando-o pelo pulso até estar de pé. —
Vou esquentar a comida de novo para jantarmos.
Ele concorda com a cabeça, deixa um último beijo em mim e, todo nu,
vai tomar um banho, levando o preservativo usado para ser descartado. Na
cozinha, lavo as mãos e prendo o cabelo melhor antes de separar um prato
para mim e para Pierre e aquecer no micro-ondas. Tempero a salada que
Adrien não chegou a terminar, estico a toalha na mesa e preparo uma jarra de
suco. Da sala, ouço seu telefone tocar e, movida pela curiosidade, vou até lá.
Aproximo-me do objeto que toca e vibra sobre a mesinha de centro e meu
coração entala na garganta quando vejo o nome de outra mulher no
identificador.

Alizée
Forço-me a não atender, a respeitar sua privacidade, a confiar na sua
palavra. “Não tem nada entre mim e aquela mulher”. Inclusive, Alizée pode
ser só uma paciente dele. Respiro fundo e me afasto do telefone, que na
mesma hora para de tocar. Dez segundos depois, ouço o som de notificação
de mensagens. Com um pretexto que não convence nem a mim mesma —
“pode ser uma paciente que precisa de atendimento urgente” —, me
aproximo do maldito celular de novo, tomo-o nos meus dedos e desbloqueio
a tela com facilidade. O nome de Alizée aparece no topo das últimas
mensagens e tem uma única palavra antes mesmo que eu abra: Combinado.
O que diabos eles combinaram? Outra vez o ciúme e a desconfiança
sobem pela minha garganta, queimando. Hesito um segundo antes de clicar
sobre a mensagem e ler a conversa deles. Lágrimas vêm aos meus olhos e não
consigo evitar a raiva e a mágoa avançando sobre mim enquanto leio. A
primeira mensagem é dela. Pouco mais de uma hora atrás:

“Não quero parecer desesperada, mas já temos um dia, hora e


local?”

Pierre respondeu quinze minutos depois:

“Oui. 58 Tour Eiffel. Próximo sábado, às dezenove.”

58 Tour Eiffel é um restaurante nada barato na Torre Eiffel. O preço


mínimo é 99 euros. Por pessoa. Eles marcaram um encontro. Na droga de um
restaurante chique e caro. E ele tentando me convencer de que sou a maluca
nessa história!
Minhas mãos ainda tremem de raiva, meus olhos fixos nas mensagens
trocadas, quando Pierre ressurge na sala, vestido com roupas limpas. Ele para
no meio do caminho, chamando-me e perguntando o que estou fazendo. Olho
em sua direção, não segurando as lágrimas em mim.
— Por que está mexendo no meu celular, Juliette? — pergunta, com
um suspiro cansado.
— Vi que combinou de sair com aquela loira — digo, jogando o
telefone dele no sofá. — Tentou esse tempo todo me fazer pensar que o
problema está em mim, quando você está mesmo agindo pelas minhas costas.
— Outra vez você está tirando conclusões precipitadas — argumenta,
suspirando pesadamente. — Qual o seu problema em perguntar antes de me
acusar?
— Antony agia do mesmo jeito — solto, e Pierre recua um passo,
franzindo o cenho. — Me fazia sentir que eu estava errada, mas estava certa
em pressioná-lo a largar da esposa, a não querer continuar sendo só a amante.
Está agindo igual. Querendo me convencer de que meu ciúme é sem
fundamento, só que está parecendo que não é. No final das contas, talvez até
a Francine tivesse razão em ter tido ciúme de você.
Pierre não responde nada, só me encara por longos segundos, rosto
encrespado, lábios apertados. Por fim, balança a cabeça em negativo e pega a
calça que usava quando chegou e ainda está jogada pelo chão da sala. Ele vai
embora. E dessa vez não vou impedir, nem implorar para tal, embora cada
maldita célula do meu organismo esteja me forçado a isso. Abraçando os
pertences, suspira, o rosto ainda contrariado.
— Me explica… — peço, mordendo o lábio inferior.
Quero mesmo que tenha uma explicação, que seja só alguma coisa da
minha cabeça e que eu esteja realmente tirando conclusões precipitadas. Só
que ele precisa me explicar o que está acontecendo, quem é essa mulher, por
que marcaram um encontro. Não tem como eu tirar essas paranoias da minha
mente se esse homem não esclarecer a situação.
— Para quê? — responde, com um leve tom de desdém. — Você já
tirou suas conclusões, Juliette. — Ele suspira, pegando as chaves do carro no
bolso da calça que veio. — Já disse que não vou me explicar, não enquanto
continuar se comportando desse jeito, me acusando sem antes me perguntar,
sem estar se esforçando para confiar em mim. Não sei por que está
reproduzindo esse comportamento abusivo, mas minha oferta de te
acompanhar com a psicóloga continua em pé. Vou embora agora. Descanse,
pense um pouco. Quando estiver mais calma, a gente conversa.
Pierre vai embora, e mesmo que eu queira impedi-lo, agir como uma
desvairada, pedir para que fique, me explique, socar aquela cara bonita dele,
consigo me controlar e só vê-lo partir.

— Você parece tensa — Emil diz, a porta do passageiro aberta, sua


mão esticada na minha direção.
Pisco duas vezes para voltar ao mundo real, porque me perdi em
pensamentos durante toda a viagem até aqui. Pierre não faz contato desde
ontem, eu tampouco tentei falar com ele, e aqui estou, prestes a entrar com
Emilien em uma pequena confraternização onde meu namorado também vai
estar, sem que ele saiba. Se Pierre vai ficar magoado ou talvez com raiva
porque vim e nem sequer o avisei? Vai, sei disso. Mas vim mesmo assim. Se
pudesse, teria desistido. Só não desisti porque estava muito em cima da hora
e não queria furar com Dupont.
Abro um sorriso quase sem vida e seguro na mão dele, saindo do carro.
— Estou bem — garanto. — Merci.
Emilien me estuda por um ou dois segundos antes de acenar e oferecer
o braço. Enrosco-me nele e seguimos até a ala da confraternização, que,
como soube, é onde será desenvolvida a pesquisa de Étienne.
O local está todo arrumado, com algumas mesas decoradas com toalhas
brancas e cadeiras distribuídas no local. Não tem muita gente, como Dupont
disse que não teria, há uma música suave de fundo e apenas dois garçons
servindo os convidados. Meus olhos percorrem todo o ambiente, em busca
dele. Primeiro encontro Étienne, todo formal dentro de um terno que, admito,
ressalta muito a sua beleza. Meu cunhado conversa animadamente com um
pequeno grupo formado por um homem e duas mulheres. Depois, encontro
Francine e preciso admitir que ela está incrível nos seus Louboutin e um
vestido preto de lantejoulas. Ela segura uma taça de champanhe nas mãos e
troca algumas palavras com um homem que não reconheço. Vou passando os
olhos por todo local, mas não encontro Pierre.
Ele não veio?
— Bienvenue, monsieur Dupont — uma moça bonita nos recepciona na
entrada. — Mademoiselle Gautier — mesura, indicando o salão e nossa mesa
reservada, para que prossigamos.
Emilien agradece e me conduz até nossos lugares. Durante percurso,
finalmente o vejo.
Pierre surge de um corredor, está maravilhoso dentro de um terno todo
preto e camisa branca. Não está sozinho. A mulher da cantina e da mensagem
está o acompanhando, apoiada aos braços dele, os dois rindo como se
conhecessem há séculos, uma taça de champanhe entre os dedos deles. A
festa não era apenas para o pessoal da neurocirurgia? Ele é convidado do
irmão, o responsável pela pesquisa, mas essa mulherzinha nem médica é!
Olha eu aqui, a convidada de última hora falando isso.
Suspiro e tento não me sentir atingida pela presença dela, pelo fato do
meu namorado estar junto com outra mulher, uma mulher com quem marcou
encontro na porcaria de um restaurante caro, cheio de risadas, confidências,
conversas e intimidade.
— É o obstetra que te atendeu, não é? — Emil murmura no meu
ouvido. Se eu não fosse tão loucamente apaixonada por Laurent, teria me
derretido toda com essa voz.
Estou pensando em balançar a cabeça em positivo quando, de repente,
Pierre me nota. Ele para de caminhar no meio do percurso e me analisa, o
rosto um misto de surpresa e confusão. Um segundo mais tarde, vejo o que
esperava ver quando decidi vir a essa festa sem avisá-lo: mágoa.
PIERRE
Sinceramente não sei direito o que sinto quando vejo Juliette
acompanhada de Emilien. Não é ciúme. Definitivamente, não é ciúme, mas
talvez mágoa e tristeza, sim. Não sei o que ela está fazendo aqui, mas
suponho que, por qualquer motivo, Dupont a convidou. Minha namorada
aceitou o convite e não me disse nada.
Inocentemente, fico tentado a acreditar que foi algo muito de última
hora, não deliberado, e, como estamos sem nos falar desde ontem à noite,
Juliette não pôde me avisar.
— Você se sente bem? — Alizée pergunta, contornando-me e ficando
de frente para mim. Seus olhos azuis estão ligeiramente confusos enquanto
me analisam.
Pisco um par de vezes, pensando na confusão que isso vai dar. Juliette
acha que estou tendo um caso com a mulher, e agora me vê aqui, junto dela.
Torço para que não aja como Francine agiria, fazendo um escândalo.
— Estou — respondo, pigarreando, e vejo Juliette se aproximar com
Emil de outros convidados. — Só reconheci um dos patrocinadores — digo,
abrindo um sorriso forçado.
Ela olha por cima do meu ombro, na direção de Emilien, e depois se
volta para mim. Não consigo parar de olhar para Juliette, que faz o mesmo.
Encontro o olhar de Étienne, fazendo-me uma pergunta silenciosa de “o que
ela faz aqui?”. Ergo os ombros, também não tendo respostas.
— Vem, vou te apresentar para ele — digo, puxando-a pelos pulsos.
Emil agora está indo até meu irmão, e nós dois o alcançamos juntos.
Ele sorri ao me ver e aperta minha mão.
— Que surpresa te ver, doutor Laurent — diz, e seus olhos vão de mim
para Étienne, talvez só agora ligando nossos sobrenomes. — Vocês têm um
grau de parentesco?
— Somos irmãos — Étienne responde, colocando-se do meu lado.
Apresento Alizée para Dupont. Ela é da fisioterapia, mas a convidei
para vir comigo como um pretexto de aproximá-la de Étienne, aos poucos,
sem que ele saiba, e para que não fique muito surpreso no próximo sábado,
quando se encontrar com a mulher. Eu a conheço já tem algum tempo. É
nova na clínica e fizemos amizade rápido um dia desses, quando se consultou
comigo para pegar uma receita de anticoncepcional. Na quinta-feira, ela teve
uma consulta, levou alguns exames que solicitei e, quando encerramos, era
perto do horário da pausa. Fomos até a lanchonete juntos, ela me contou que
esbarrou com Étienne pelos corredores e que, pelo sobrenome, achou que era
algum parente meu. Confirmei e a moça demonstrou interesse. Nele.
Não há mais nada no mundo que eu queira do que ver meu irmão bem
de novo. Alizée é bonita, ainda muito jovem, na casa dos trinta anos, e faz o
tipo dele. É o total oposto da esposa e pensei que seria uma boa ele conhecer
alguém novo. Então, sim, dei uma de cupido e disse para ela que poderia
arranjar alguma coisa. Quando Juliette me viu pegando o telefone dela, estava
sim colocando meu número nele, só para que mantivéssemos contato
enquanto arranjava um encontro com Étienne, e também gravei o número
dele na sua agenda.
Em casa, conversei com meu irmão, disse que tinha alguém
interessado, que queria um encontro às escuras e perguntei se poderia marcar.
Étienne recusou um pouco e até deu uma leve surtada com a minha função
cupido, mas, no fim, aceitou e disse que queria ir ao restaurante 58, na Torre
Eiffel. Não sei se quer impressionar a moça (que nem faz ideia de quem seja)
ou se só quer ir até lá porque sei que é um dos seus restaurantes favoritos em
Paris, apesar de caro.
Poderia ter esclarecido essa situação para Juliette? Poderia. Mas se tem
uma coisa que aprendi no meu relacionamento com Francine é a não ceder.
Quanto mais você cede, quanto mais tenta mostrar que está sendo
completamente fiel, mais desconfiada elas ficam. Não importava o quanto me
explicasse ou provasse que não ia trai-la, nada era suficiente. Não me importo
de me explicar. Não mesmo. Se Julie tivesse se aproximado da mesa, ou se,
mais tarde, tivesse perguntado, sem nenhuma insinuação por trás, teria
respondido, explicado tudo. Contudo, ela tirou suas próprias conclusões, e
sei, por experiência, que esse comportamento é um caminho sem volta. Ela
ficaria cada vez mais paranoica, mais desconfiada, mais ciumenta.
Só que eu gosto de Juliette, mais do que posso tentar explicar, e embora
tenha dito que se não confiasse em mim não íamos funcionar, ainda ofereci
ajuda. Da mesma maneira que ofereci para Francine, dizendo como isso
estava desgastando nosso relacionamento e que deveria procurar um
profissional para trabalhar os ciúmes patológico. Perrot se recusou, negando
que precisava de qualquer tipo de ajuda, e eu fui embora quando passou de
todos os limites ateando fogo nos meus pertences.
Juliette aceitou voltar às consultas com sua psicóloga, mas ao ver as
mensagens de Alizée no meu telefone, achou que eu estava a manipulando,
tentando convencê-la de que ela é quem está errada ou maluca. Como Antony
fez. Doeu a comparação porque não tenho nada daquele desgraçado. Ainda
assim, ela me comparou e fui embora sentindo toda a dor do mundo. Tinha
em mente que ela se acalmaria e conversaríamos depois. Pela última vez, ia
tentar convencê-la a falar com sua profissional, porque gosto dela demais
para cumprir minha promessa de ir embora. Entretanto, se continuar
negando-se, eu vou. Não vou me submeter a outro relacionamento tóxico em
nome desse sentimento. O amor não tem que suportar tudo. O amor suporta
tristezas, dificuldades, contratempos, má fé, distância. O amor não tem que
suportar alguém com o potencial de acabar com seu psicológico.
— Olha só — Emil exclama, cumprimentando Alizée com um beijo no
rosto. — Não imaginei que Pierre fosse seu irmão. Laurent é um sobrenome
tão comum. — Ele se vira para mim, trazendo Juliette mais para frente. —
Suponho que se lembre de Gautier.
Olho para ela e me praguejo por admirar o vestido no seu corpo e como
isso a deixa muito bonita. Ela me olha, as íris castanhas fixas e atentas em
mim, exalando um misto de apreensão e ansiedade. A mulher sabe que não
deveria ter aparecido sem me avisar.
— É claro que me lembro. Nem poderia me esquecer, uma vez que
estou acompanhando sua gravidez — digo, aproximando-me dela. Toco sua
cintura, respeitosamente, e beijo seu rosto, arrastando de leve o nariz na sua
pele.
— Estamos cheios de surpresa essa noite — Emilien graceja e me
afasto de Juliette, que engole em seco.
Trocamos mais algumas palavras, Étienne falando do seu projeto e de
como está animado para retomar as pesquisas na próxima semana. Sinto meu
corpo tenso por baixo do terno, desejando apenas poder arrastar Juliette para
um canto qualquer para conversarmos sobre essa droga toda. Leva algum
tempo até que Emilien e meu irmão peçam licença e vão ao encontro de
outros patrocinadores. Juliette também se afastou até sua mesa reservada com
Dupont e roubou alguns aperitivos oferecidos pelo garçom. Alizée comenta
algo sobre meu irmão e sobre o encontro às escondidas, mas estou disperso
demais para prestar atenção como ela merece. Tudo que faço é sorrir e
acenar.
— Você está bem mesmo, Pierre? — pergunta, tocando meu braço.
Estudo seu toque e depois ergo o olhar para a mesa onde Julie está, já
prevendo que ela estará me olhando com fúria nos olhos. Quase. Não vejo só
aquela raiva que bem conheço por causa de estar interagindo com outra
mulher. Vejo além disso. Tem uma tristeza crua e real no modo como me
olha, como se estivesse se sentindo traída.
Suspiro e viro o restante do meu champanhe, deixando a taça na
bandeja quando o garçom passa por mim.
— Estou bem, sim, Alizée. Só um pouco cansado. Meu dia foi meio
puxado hoje. Como costumeiramente é — digo, e em partes é verdade.
Decido me esquecer de Juliette por um momento e torno a dar atenção
à minha companhia, caminhando para longe da minha namorada, sabendo
que isso provavelmente só vai alimentar seu ciúme. Não posso fazer nada no
momento. Todo o assunto entre mim e Alizée é sobre Étienne. Ela quer saber
um pouco mais do meu irmão e conto o que posso, falando do sumiço da
esposa, de como isso o deixou mal, mas evitando falar das suas negligências
com o filho.
Não sei quanto tempo passa até que peço licença para ela e vou ao
encontro de Emilien terminando de beber uma taça de champanhe e
encerrando uma conversa com o diretor da neurocirurgia do hospital.
Abordo-o antes que alcance a mesa com Juliette, que agora está acompanhada
de uma segunda mulher e conversando com ela.
— Se importa se te fizer uma pergunta? — interpelo-o, levando-nos até
um canto mais reservado.
— De jeito nenhum — responde, ajeitando a gravata do terno.
— Como a Désirée está?
Tenho a impressão de senti-lo tenso sob seu conjunto caro. Os olhos
dele nublam levemente, o tom azul ficando mais forte, pupilas dilatadas,
reparo que sua respiração desregula por um instante. Emil olha ao redor, os
dedos contra a gravata outra vez, mas agora parece que se sente sufocado.
Pisco um par de vezes, estranhando sua reação. Foi alguma coisa que eu
disse?
— Conheceu a Désirée? — pergunta, engolindo em seco.
Aceno em positivo.
— Conheci. Na época do internato. Passamos uma noite juntos e depois
eu… fiz a curetagem nela — digo, molhando o lábio inferior.
A postura de Emilien vacila por um mísero segundo. Não sei se ele não
sabe do que estou falando e foi pego de surpresa ou se sabe exatamente do
que estou falando e está incomodado com o rumo do assunto. De qualquer
maneira, nunca foi minha intenção me intrometer ou deixá-lo desconfortável.
Mas desde que teve alta do hospital e foi levada pelos familiares, não tive
mais notícias dela. Étienne disse que Dupont banca as despesas dos cuidados
com ela, é claro que o homem sabe algo a respeito da mulher.
— Désolé — peço, sentindo-me um estúpido por tocar no assunto sem
saber se era ético da minha parte ou não. — Você não sabia…
— Do aborto? — me interrompe, meio rígido, mas não ríspido. —
Sabia, claro. Ela… — Sua voz falha um segundo e precisa pigarrear para
conseguir terminar sua frase. — É minha melhor amiga. Eu sabia, sim. Só
estou surpreso de que você a conheça.
Abro um pequeno sorriso e desvio o olhar para meus pés por um
segundo.
— É. Mundo pequeno, não acha? Não sabia que vocês eram amigos até
Étienne mencionar seu interesse na pesquisa dele. Acha que isso pode ajudar
a reverter as sequelas dela, não é?
— Oui — diz, também suspirando. — Tenho interesse particular na
pesquisa do seu irmão. Se há uma mínima chance de dar uma vida melhor a
Désirée, quero me arriscar.
— Como ela está?
Seus olhos se abatem por um segundo, sua postura de derrota durando
alguns segundos.
— Bem, na medida do possível. Obrigado por perguntar.
— Da próxima vez que a vir, pode mandar cumprimentos meus a ela?
Emil sorri, de um jeito fúnebre e limitado, e concorda. Ele está abrindo
a boca para me dizer alguma coisa, mas para no meio do caminho, seus olhos
fixos por sobre meus ombros. Toda sua postura abatida e os olhos tristes vão
embora e um sorriso mais sincero se manifesta nos seus lábios. Olho para trás
e reconheço a mulher negra que conversa com a recepcionista e tenta passar
por ela. Os olhos de Marie encontram os de Emil, e ela acena freneticamente
para ele. A recepcionista olha para trás, Dupont assente, como se permitindo
a entrada dela. A mulher se aproxima de nós, animadamente,
cumprimentando algumas pessoas no caminho.
— Marie não sabe sobre Désirée — diz, rapidamente, com um tom
meio tenso, e eu volto minha atenção para ele. — Poucas pessoas sabem, na
verdade. Gostaria que não mencionasse nada com ela a respeito da minha
amiga. É algo particular demais para compartilhar com uma mulher que só
dorme vez ou outra na minha cama, entende?
Não tenho tempo de concordar, porque a essa altura Marie já nos
alcançou e está tomando os lábios dele em um beijo que indica que ela é mais
do que apenas uma mulher que dorme vez ou outra na cama dele. Pode até
ser casual a relação dos dois, que não haja nada além de sexo e amizade, mas
está mais do que na cara que estão apaixonados um pelo outro. Não sei por
que não se assumem.
Marie finalmente me vê e me cumprimenta, do seu jeito espalhafatoso e
invasivo, dando-me um abraço apertado e me chamando de “meu gineco
favorito”. Conversamos por uns dois minutos, a mulher explicando a Emilien
que conseguiu voltar de uma viagem de trabalho a tempo de vir lhe fazer
companhia. É nesse instante que descubro que Dupont convidou Juliette
porque inicialmente a jornalista não poderia vir. Ela procura pela minha
namorada ao redor e, ao encontrá-la, diz que vai cumprimentá-la.
— Alguma novidade sobre Antony? — pergunto.
Emil se vira para mim.
— Não. Infelizmente. Soube que Ann-Marie fez um boletim de
ocorrência hoje e procurou um advogado. Ela pediu o divórcio dias atrás, o
homem não reagiu muito bem e a agrediu — informa, passando a mão pelos
cabelos. — Está com Bernardo, no apartamento dele, em segurança. Talvez
agora, depois da agressão, consigamos alguma coisa.
Sinto uma raiva esquisita subir pela minha espinha. Nunca fui dado a
violência, e mesmo quando soube o que ele fizera a Juliette e me senti na
obrigação de tirar qualquer satisfação ou dar uns socos no desgraçado, fui
contido pelo pedido dela. Contudo, no lugar de Emil, sendo chantageado de
ter seu passado exposto, e Bernardo, que tem sua integridade e a integridade
da mulher que ama ameaçadas, já teria feito qualquer merda. Mesmo que isso
me custasse caro.
— Espero que sim. Tenho tanta raiva dele, Emilien, pelo que fez a
Julie… — digo, sem nem perceber que dou detalhes demais e ainda a chamei
pelo apelido.
O homem me olha com atenção e curiosidade, inclinando levemente a
cabeça. Eu me dou conta da bobagem que fiz e estou prestes a dizer alguma
coisa, tentar consertar meu deslize, mas ele toma a palavra primeiro:
— Vocês estão juntos. — Não é uma pergunta.
Nem posso negar. Digo que sim e comento meio por cima sobre nossa
relação, que apenas aconteceu, e peço discrição porque meus superiores ainda
não sabem.
— Ela é uma boa moça — diz, olhando na direção dela. Juliette está
um pouco mais distraída agora, conversando com Marie e a mulher de antes.
— Merece alguém bom como você, Laurent — completa, dando-me um
aperto amigável no ombro.
Emil se retira em seguida, indo em direção às moças. Cochicha algo no
ouvido de Marie, que abana em positivo, se despede das duas e o acompanha
para fora do local. Desejo fazer o mesmo com Juliette, mas preciso me
conter. Os olhos dela, de repente, encontram os meus, e nesse momento
encontro uma brecha. Maneio a cabeça levemente, indicando um corredor
logo atrás de mim. Saio em seguida e a espero por uns três minutos. Ela surge
a passos cautelosos e para a meio metro de mim. Inspeciono por cima do seu
ombro, abro uma porta depois de me certificar que estamos sozinhos e entro,
ela vindo em seguida. Acendo a luz, e o local revela um almoxarifado.
— Pierre… — começa.
Estou sim com raiva, magoado e entristecido por ela ter vindo sem me
avisar.
— Não. Nada de “Pierre” — digo, com um suspiro exasperado. Não
quero discutir porque nem o momento, nem o local são apropriados para isso.
Só quero uma conversa civilizada. — Decidiu vir no mesmo evento que eu e
nem pensou só por um segundo em me avisar, Juliette?
Ela brinca, meio desconcertada, com o tecido do vestido, enrolando-o
no indicador.
— Por que deveria? Se você soubesse que eu vinha, não teria trazido
sua amiga? — dispara, a voz saindo embargada, as lágrimas acumulando nos
seus olhos.
Mordo o lábio inferior, movendo a cabeça de um lado a outro. Não sei
por que ainda me surpreendo que ela esteja vendo coisa onde não tem,
tirando suas próprias conclusões.
— Não tem nada entre mim e Alizée — esclareço, embora não devesse.
Juliette não diz nada. Uma lágrima solitária escapa do seu olho e
escorre pela sua bochecha levemente vermelha. Eu me aproximo, capturando-
a com o polegar, e analiso toda a expressão de dor no seu rosto.
— Só queria que você me explicasse — diz, baixo, quase inaudível,
afastando-se um passo de mim. — Não gosto de me sentir assim, Pierre,
desconfiada de você, mas eu… não consigo evitar. E você não ajuda! Em vez
de me dizer quem ela é, por que marcaram um encontro, prefere alimentar
minhas paranoias e inseguranças.
— Não percebe? — murmuro, aproximando-me de novo dela. Juliette
abraça o próprio corpo, como um escudo, e ergue os olhos para mim. — O
problema não é eu me explicar. São suas acusações infundadas, o modo como
insinua que estou te enganando. Não gosto disso e não vou me explicar
enquanto continuar se comportando dessa maneira, me acusando antes de
pedir uma explicação.
Minha namorada se afasta de mim de novo, cortando nosso contato
visual, olhos virados para baixo.
— Me acompanha na consulta? — pergunta, molhando o lábio diversas
vezes e se negando a me olhar. — Não quero ser a versão feminina do
Antony, Pierre. Ele também me sufocava e estou me comportando igual. Não
quero isso, não quero me comportar igual a ele. Nunca fui possessiva assim e
não entendo por que estou refletindo esse comportamento. Acho que uma
especialista pode me ajudar a entender essa confusão dentro de mim.
Minha namorada finalmente me olha, o brilho castanho das suas íris
intensificado pelas lágrimas acumuladas. Tomo-a em meus braços enquanto a
ouço dizer que não quer me magoar, nem me sufocar com ciúme descabido,
tampouco me perder. Ela me aperta contra seu corpo, ligeiramente
desesperada, caindo em um pranto emotivo. Acaricio seus cabelos e beijo seu
rosto, dizendo que tudo bem, eu a acompanho a uma consulta.
Julie se afasta, limpa as lágrimas, sorri um pouco e me beija,
profundamente. Torna a me abraçar e ficamos um tempo assim. Parece uma
eternidade, mas acredito que não deve ser mais do que um minuto.
— Pode me indicar para outro médico? — pede, pegando-me de
surpresa. — Não quero… te prejudicar.
Ela pede, mas sinto uma hesitação na sua voz. Juliette pede, mas não
está convicta disso. Sinto na sua voz, na sua postura, como me olha. É um
pedido difícil para ela. Sorrio um pouco, afago seu rosto.
— É isso mesmo o que você quer?
Há um instante de silêncio entre nós. Vagarosamente, ela balança a
cabeça em negativo.
— Não. Mas é o certo a se fazer, Pierre. Já nos arriscamos demais. Não
quero abrir mão de você como médico e, acredite, te pedir isso é uma das
coisas mais difíceis que já fiz na vida. Dói de um jeito que não sei explicar,
mas sei que é o certo.
Nesse momento, sei que deveria concordar com ela. Era o que queria
desde o começo, não só para não me comprometer, mas porque nunca quis
esconder nosso relacionamento. Agora seria o momento, embora, mesmo que
a indicasse para outro médico, ainda sofreria uma consequência ou outra.
Uma advertência, suspensão. Algo assim. Suspiro, porque parece que sou eu
que não quero abrir mão disso agora. Luto contra todos os meus desejos e
racionalizo nesse momento.
— Tudo bem. Na próxima semana, vemos isso, pode ser? — digo,
tomando seus lábios nos meus de forma singela.
Juliette me dá um sorriso pequeno, entristecido, e esconde o rosto
contra a curva do meu pescoço.
Foi uma decisão difícil, mas necessária.

— Agora que nos entendemos — diz, o rosto ainda escondido contra


meu pescoço —, pode me dizer quem é aquela mulher?
Desfaço nosso abraço e acaricio seu rosto. Explico quem Alizée é,
esclareço a situação da cantina no outro dia, por que a trouxe para o evento e
sobre a mensagem em que “marcamos” um encontro. Nunca me importei em
esclarecer uma situação que pudesse gerar mal-entendidos entre nós, o que
estava me desagradando eram as acusações; era ela me acusar primeiro e
querer uma explicação depois. Por experiência própria sei que isso não é
saudável. Talvez uma vez ou outra seja inevitável porque somos falhos, mas
não é bom quando isso se torna um comportamento padrão. Demorei a notar
em Francine essas mesmas atitudes. Isso me desgastou mentalmente, faliu
nosso relacionamento e fez com que eu fosse embora. Não quero viver isso
tudo de novo e é por esse motivo que não estou cedendo. Já cedi demais no
meu último namoro e, em vez de ter paz, só gerou mais conflitos, porque
nenhuma explicação é boa o bastante, porque sempre estou mentindo, ou
traindo, ou enganando, ou sendo um babaca.
— Estamos entendidos agora? — pergunto, assim que termino de me
explicar.
Ela balança a cabeça em positivo.
— Podia ter me explicado antes, evitado essa confusão entre nós.
Suspiro, deixando um selinho nos seus lábios.
— Não me importo de me explicar, Juliette. Não gosto das acusações.
Entende?
— Entendo. Mas você precisa entender que eu… estou cheia de
hormônios, Pierre, e que tive uma experiência ruim com aquele traste do
Antony.
— Francine vivia dizendo o mesmo — digo, exasperando. — Que teve
relações ruins, que era natural que ficasse desconfiada de mim, mesmo nunca
tendo me comportado igual os outros namorados dela. Você acha que dou
sinais igual o Antony? — pergunto, afastando-me um passo.
Ela nega, rapidamente.
— Não. Mas não gosto quando você some, ignora minhas mensagens,
me deixa às escuras, alimenta minhas paranoias e desconfianças. Como
quando seu sobrinho foi atropelado, ou ontem, quando insistiu que eu
contasse o que estava me incomodando e, quando contei, você simplesmente
me ignorou e praticamente me expulsou da sua sala.
Nem sei como recebo essas palavras. Só sei que dói. Fui estúpido e sei
disso agora. Mas na hora, fiquei com raiva e magoado com a insinuação dela.
Realmente não vi sua mensagem e não fiz por mal em não a responder. Não
estava me engraçando com outra mulher, mas Juliette me acusou disso.
Naquele momento, fiquei aborrecido e preferi que não discutíssemos aquele
assunto no meu ambiente de trabalho. Principalmente porque meus horários
estavam todos atrasados. Não ia deixar minhas pacientes esperando enquanto
discutia a relação. Tudo bem que poderia ter dito a ela ao menos que não era
o local para discutirmos e que íamos conversar mais tarde ao invés de ter
agido com frieza e indiferença. Na hora da raiva, agi sem pensar. Ela não
pode me crucificar por isso.
— Pardon — peço, apertando-a contra mim. — Não parei para pensar
nisso. Sobre meu sumiço quando Édouard foi atropelado, já expliquei o que
houve — digo, afastando-me e a encarando nos olhos. — E ontem… fiquei
entristecido, Julie. Não era o local apropriado para falarmos do assunto e
estava com meus horários todos apertados. Não justifica ter sido um babaca,
me desculpe. Prometo tomar cuidado com esse meu comportamento daqui
por diante.
Juliette me dá um sorriso pequeno e concorda. Toma-me em outro
abraço de novo, reforçando que vai marcar uma consulta com sua psicóloga e
que quer que eu vá junto.
— Vou voltar para lá agora — diz, apoiando a mão sobre a barriga. —
Antes que sintam nossa falta e desconfiem.
— Vá na frente. Vou dar uns minutos e logo vou atrás — digo,
puxando-a para mim e colocando a mão sobre seu abdômen. Sinto Valentin
mexer e sorrio com a sensação. É boa e sinto uma conexão diferente com ele.
Não sei explicar, só sei que já amo esse garoto antes mesmo de conhecê-lo,
mesmo que não seja meu filho.
Juliette se despede uma última vez antes de ir.
Espero dar uns três minutos para voltar para a confraternização. Meu
telefone toca quando falta um minuto para o fim do tempo que me dei Não
reconheço o número na tela e me pergunto quem diabos está me ligando às
nove da noite de um sábado. Atendo e a voz do outro lado me é estranha.
— Monsieur Pierre Laurent?
— Oui, c’est moi — confirmo, tentando me lembrar se conheço essa
voz masculina. Não preciso de muito esforço. Ele se apresenta logo em
seguida, causando-me um sentimento de raiva quase instantaneamente.
— Sou Roger Moreau, oficial de justiça.
— Oficial de justiça? — indago, trincando o maxilar. Só consigo
pensar que isso é coisa da Francine. Só pode ser. Não tem outra explicação.
— Desculpe pelo horário. — Não, não desculpo. — Estive no seu
endereço mais cedo, duas vezes, e não encontrei o senhor nas duas vezes.
Gostaria de informar que há uma audiência marcada para terça-feira, às
quinze horas, para tratarmos sobre a custódia de Édouard Olivier Laurent.
Quero xingar. Quero mesmo mandar esse oficialzinho para a puta que o
pariu. Só não faço isso porque o homem está apenas trabalhando. Se tem
alguém que preciso soltar os cães em cima é em Francine. Ela quem começou
essa porra toda e está me infernizando. Sabia que essa mulher estava quieta
demais para o meu gosto. Étienne comentou comigo, em particular, outro dia,
que o responsável pelo caso do sumiço de Jeaninne entrou em contato com o
resultado da triangulação do sinal daquela maldita ligação. A área é grande e
abrange parte do bairro onde Perrot mora. Ele me disse que acredita que é só
uma coincidência terrível, e acabei concordando, porque é impensável para
mim que a mulher tenha passado um trote dessa magnitude só para
desestabilizar meu irmão e provocar qualquer mal ao meu sobrinho. Contudo,
começo a repensar nessa possibilidade. Se tudo o que ela quer é a guarda
definitiva de Édouard, para me atingir, me manipular, me chantagear, ou seja
lá por quais motivos esteja me perturbando dessa maneira, seria de se esperar
que fizesse qualquer coisa para provar que nenhum de nós dois têm
condições de cuidar do menino. Inclusive passar um trote desses para deixar
Étienne sem estrutura.
— Precisa comparecer no horário, com seu advogado.
Mordo com toda força o interior da minha bochecha. Chego a sentir o
gosto ocre do sangue. Mas que inferno!
— Merci — agradeço e desligo em seguida.
Deixo o almoxarifado, meio fora de controle, minha visão turva de
raiva. Para minha sorte, ou não, encontro Francine. Um sentimento ainda pior
sobe por toda a minha espinha quando a vejo de conversinha com Juliette.
Não duvido nada que esteja plantando dúvidas na cabeça dela. Eu me
aproximo e a puxo pelo braço, com força, fazendo-a se assustar.
— Que porra você pensa que está fazendo? — questiono, entre os
dentes, fechando os dedos no seu braço quase de forma inconsciente.
— Pierre, você está me machucando — protesta, tentando se soltar de
mim.
Aperto-a mais e, meio fora de mim, dou um único solavanco na mulher.
— Você só pode estar ficando louca se acha que vai conseguir tirar
meu sobrinho de mim — digo, um pouco mais alto que o normal.
Ela reclama de novo, diz que estou a machucando e chamando atenção
de todos ao redor. Pisco duas vezes e olho à nossa volta, constatando que
realmente somos o centro das atenções nesse momento. Merde. Étienne me
encara sem entender nada e se aproxima, querendo saber do que é que estou
falando. Eu a solto, praguejando-me por ter perdido o controle. Meu irmão
agora sabe e isso só vai gerar mais confusão.
Massageio as têmporas, ignorando a voz dele me pedindo uma
explicação, perguntando a Francine que história é essa de tirar Édouard de
mim. Quando abro os olhos e os ergo para dizer que sua querida parceria de
pesquisa quer mesmo é me tirar a custódia do menino, finalmente me dou
conta de Juliette aqui, olhando-me como se não me reconhecesse. Ela gira
nos calcanhares e caminha para longe. Vou atrás dela, desvencilhando-me de
Étienne que tenta me segurar, e a pego pelos punhos.
— Aqui não — pede, com a voz baixa, embargada, os olhos cheios de
lágrimas. — As pessoas estão olhando.
— Juliette… — Tento, sabendo que está fazendo mau julgamento de
mim. Mas que merda, perdi o controle uma única vez e agora ela acha que
sou a porra de um homem descontrolado. — Eu não…
— Aqui não, Pierre — reforça, voltando a caminhar até Emilien, que
está na sua mesa, junto com Marie, assistindo à cena que se desenrola. Ela
troca algumas palavras com ele. Seus olhos azuis vêm aos meus e se
sustentam por um segundo antes de abanar a cabeça, dizer algo à sua
companheira e sair com minha namorada.
Ele vai levá-la para casa.
Engulo em seco e me viro, vendo Étienne e Francine em uma pequena
discussão, ele a arrastando para um canto mais reservado. Inspiro fundo e vou
atrás deles, embora eu quisesse mesmo ir atrás da minha namorada.
Ótima maneira de terminar a noite.
JULIETTE
Rolo na cama e bato a mão no criado-mudo, tateando em busca do meu
telefone que grita escandalosamente, avisando-me que segunda-feira chegou
e é hora de me levantar e ir para o trabalho.
Não quero ir para o trabalho.
Pierre tem escala essa semana lá e ainda não estou preparada para
encará-lo. Não depois de sábado à noite, da cena agressiva que vi dele contra
Francine. Nunca o vi descontrolado daquela maneira e não sei se não o
conheço como gostaria ou se foi só um momento de acesso de raiva que
qualquer pessoa teria em uma ocasião ou outra. De qualquer maneira, sua
atitude me incomodou, ativou um gatilho dentro de mim, levando-me às
lembranças de Antony me agredindo verbal e fisicamente.
Assim que Emilien me deixou em casa e eu estava na segurança do
interior dessas paredes, caí no sofá e chorei. Com toda força. Por minutos
seguidos. As lembranças dolorosas daquele ataque tão vivas na minha mente.
Presenciar a atitude raivosa do meu namorado, vê-lo falar grosso com
Francine e chacoalhá-la daquela maneira desencadeou um sentimento ruim
que até então vinha sufocando. Não sei bem como consegui bloquear todas as
minhas emoções nos últimos quase seis meses desde o ataque de Antony, mas
a verdade é que minhas reações ao trauma foram bem poucas. Não me
lembro de nenhum episódio de ataque de pânico ou qualquer coisa do tipo.
Muito por isso parei com minhas consultas na psicóloga. Estou bem, mesmo
que, às vezes, tenha esses momentos de vulnerabilidade onde as lembranças
retornam e me permito sentir.
Desligo o alarme e vejo que tem duas mensagens não lidas. São de
Pierre. Ele me mandou uma de madrugada e outra meia hora atrás.

“Podemos conversar?”

É o que diz nas duas mensagens. As anteriores, de sábado à noite e


domingo à tarde são o mesmo pedido. Ignorei a primeira, a segunda respondi
apenas dizendo que precisava ficar sozinha, o que era mentira porque só de
pensar em ficar sozinha senti um pânico incontrolável e tive que ligar para
Adrien. Ele passou o domingo todo comigo o quanto pôde, revezando-se
entre me fazer companhia e atender os chamados do patrão.
Levanto-me e vou tomar um banho. Enrolada na toalha, quando pego
no telefone de novo. Tem uma nova mensagem.

“Justo me ignorar, fiz o mesmo com você umas duas vezes. Agora
sei como é horrível ficar sem notícias suas, saber que você viu minha
mensagem e não me respondeu. Meu deus, é terrível. Por que não me
deu um soco na cara nas vezes em que fiz isso com você, mon amour?”

Rio e fico meio boba com o vocativo no final. Ele é mais dado de me
chamar de “meu coração” do que de “meu amor”. Respondo apenas com um
emoji rindo. Termino de me preparar e vou tomar meu café da manhã.

“Podemos?”

O homem insiste. Suspiro e decido respondê-lo.

“Tudo bem. Hoje depois que eu encerrar meu expediente. Vem


aqui em casa.”

“Combinado”.

Não o respondo mais e termino de me alimentar. Na pia, junto toda a


pouca louça que sujei e sigo até a estação do metrô. Tem uma mulher
comendo um delicioso macaron e, de repente, Valentin inventa que quer.
Aquele desejo incontrolável tão comum na gestação. Tive algumas vontades,
nada exagerado, e esse deve ser meu quarto ou quinto desejo. Enquanto o
trem me leva até meu destino, engulo meu orgulho e envio uma última
mensagem para Pierre:

“Desejo de grávida. Macarons. Pode comprar para mim e levar lá


em casa quando for? Te pago assim que chegar. Eu mesma compraria,
mas já estou no metrô e acabei de ver uma mulher comendo. Valentin
quer porque quer.”

Ele responde com um emoji chorando de rir e:

“Compro. Bisous.”

O dia passa e quase não sinto. Gustave me atolou de trabalho. Tive que
dar conta do meu e do dele porque o homem estava resolvendo não sei o que
com o diretor da clínica e ficou a manhã toda ausente. Faço uma pausa rápida
para o almoço e logo volto porque é isso ou não vou encerrar meu expediente
no horário. Assim que entro no escritório, deparo-me com a caixinha de
guloseimas sobre minha mesa, com uma fita dourada delicada amarrando a
embalagem e um bilhete escrito a punho.
“Não ia deixar uma grávida com desejos esperar até o final do dia.
Faça bom proveito. Pierre”.

Sorrio nesse instante, desfazendo o laço, e como um bolinho,


saboreando bem devagar o doce. Envio uma mensagem agradecendo e
reafirmando que vou reembolsar o valor assim que nos virmos mais tarde. Ele
não responde. Confesso que fico meio aborrecida, reconhecendo o padrão
dele de simplesmente sumir, mas trato de não me afligir com isso. Volto ao
meu trabalho e, na companhia da caixa de doces, organizo tudo o que preciso.
Estou finalizando um último relatório quando Gustave surge. Sua
postura está completamente diferente da que costumo ver. O homem parece
esbaforido, meio tenso. Ele para de frente à minha mesa e força um sorriso.
Olho no relógio por cima do seu ombro. Quatro horas. Apenas uma hora para
o fim do meu expediente.
— Vou te dispensar mais cedo, Juliette — diz.
Enrugo o cenho, não compreendendo nada.
— O que houve? — pergunto.
— Nada demais. Vi que você tem algumas horas acumuladas. Pode sair
mais cedo hoje.
Outra vez, fico confusa com sua colocação. Não, eu não tenho hora
acumulada na casa. Sei disso porque lido com os pontos e contabilizo as
jornadas de trabalho. Inclusive as minhas. Se tenho extras, é coisa pouca, mas
não chega a ser mais de uma hora. Tento argumentar, mas Legrand apenas
começa a juntar minhas coisas e a dizer para eu ir embora e aproveitar para
descansar.
— Está bem. — Rendo-me, levantando-me e pegando minhas coisas.
Vinte minutos depois, já estou no metrô, de volta para casa, sem
entender nada do que aconteceu. A viagem dura cerca de uma hora. Desço na
minha estação e caminho até minha casa, revirando a bolsa atrás da caixinha
de macaron. No percurso, pego meu telefone para mandar uma mensagem
para Adrien, querendo saber dele. Noto algumas chamadas perdidas dele, de
alguns minutos atrás, que não ouvi porque meu sistema está no mudo. Reparo
também em algumas ligações de Pierre. Cinco, no total. Um senso de alerta
grita dentro de mim. Os dois me ligaram em horários próximos, mais de uma
vez, ligações seguidas de outras, o que indica urgência. Mon Dieu, o que
aconteceu?
Já parada frente à minha porta, pego minhas chaves rapidamente e
enfio na fechadura, enquanto seguro o telefone com os ombros, retornando a
chamada do meu primo. Contudo, sinto uma pegada firme no meu braço,
girando-me e me fazendo perder o equilíbrio. Meu celular espatifa no chão, a
bateria escapando e quicando pelo concreto.
— Olá, chérie — ele me cumprimenta com toda naturalidade e, de
repente, sinto como se tivesse perdido a firmeza das pernas. Antony me
analisa de cima a baixo, o sorriso meio cínico estampado nos lábios, os olhos
fixando-se por um momento longo demais na minha barriga gestacional. —
O bastardo está quase nascendo — diz e corrige-se em seguida: — Ou seria
bastarda?
Eu não tenho reação nenhum por muitos segundos, sentindo apenas
uma compressão forte no peito, meus olhos queimando pelas lágrimas, um
sentimento de pânico e medo ameaçando vir à superfície. Seus dedos se
fecham com mais força em torno do meu braço, seu sorriso maldoso
aumentando à medida que vê o efeito negativo que causa em mim.
— Calma, amor. Não vou te fazer nada — pede, tentando me abraçar.
Eu o afasto, repelindo-o como se fosse um inseto asqueroso, mas
Leclerc me traz de volta, segurando-me com mais brutalidade, seus olhos
faiscando de raiva.
— O que quer comigo, Antony? — esbravejo entre soluços e lágrimas.
— Me deixa em paz!
Sua face se transforma, os contornos do seu rosto tomando traços
bestiais. Raiva chispa dos seus olhos castanhos e se materializa no modo
como me aperta cada vez mais forte. Antes que possa processar seu
movimento, a mão forte dele está na minha boca, calando meus protestos. Ele
me ameaça, diz para que não faça escândalo ou verei do que realmente é
capaz.
Tenho a sensação de que começo a hiperventilar, mas me obrigo a ficar
calma, mais pelo meu filho do que por mim. Antony avisa que vai tirar a mão
da minha boca, mas se eu der um grito ,vou me arrepender. Abano a cabeça
em positivo, lágrimas rolando pelos meus olhos. O homem cumpre sua
promessa enquanto me diz para engolir o choro e parar de drama. Esforço
para isso e é uma das coisas mais difíceis que já fiz na vida.
Cubro meu corpo, como se para proteger a mim e a Valentin dele, e
recuo um passo, mas Antony torna a me segurar e a me trazer para ele.
— Só uma pergunta, Juliette — murmura, tentando me trazer para seu
abraço. — Há quanto tempo sabe que Ann-Marie trepa com Dousseau?
Arregalo os olhos, surpresa que tenha descoberto. Não faço ideia de
como descobriu sobre o caso da esposa com outro homem e sinceramente não
me interessa saber, porque, de repente, estou com medo. Muito medo. Medo
por mim, por Bernardo e por Ann-Marie. Se Antony descobriu as traições da
mulher, com toda certeza não vai deixar barato. A integridade do meu ex-
patrão e da mulher que ele ama está em risco por causa desse maluco.
— O quê? — sussurro de volta, sentindo o gosto salgado de uma
lágrima remanescente descendo até meus lábios. — Eu não sabia de nada,
Antony, juro por Deus! — minto, como uma forma de me preservar.
Ele me encara por longos segundos, o aperto em torno do meu braço
aumentando.
— Mentira. Você sabia. Ele era a porra do seu chefe e estava trepando
com minha esposa, na porra do meu escritório! — o homem grita,
completamente descontrolado, dando-me solavancos. — Ele só atravessava a
rua para comer a minha mulher, Juliette. Duvido muito que você nem mesmo
desconfiasse.
Balanço a cabeça em negativo, freneticamente, a ansiedade, o pânico, o
medo e todo trauma que Antony me causa socando forte no meu peito. Tento
me concentrar, em ficar bem, mentalmente falando, em não desabar, em
gritar na cara dele para me deixar em paz, dizer que merecia os chifres, que
nunca teve moral para cobrar fidelidade da esposa. Quero ser forte o bastante
para empurrá-lo, esbofeteá-lo, gritar e pedir socorro. Mas não consigo nada
disso porque estou simplesmente travada, só podendo receber as
chacoalhadas dele enquanto grita comigo, acusando-me de mentirosa,
perguntando desde quando sabia e por que nunca disse nada.
Súbito, a pegada se desfaz, e Antony está longe de mim. Ergo os olhos
no momento que ouço Pierre bradar:
— Não toca na minha mulher!
Ele dá outro empurrão em Antony, que não tira o sorriso cínico por
nada. Pierre coloca-se na minha frente, como um escudo, protegendo-me.
Confesso que, nesse instante, parte da dor no meu coração, parte do pânico e
do medo vão embora.
— “Minha mulher” — Antony debocha, procurando pelo meu olhar.
— Olha só, você não perdeu tempo, não é? Tratou logo de arrumar um
macho para sustentar você e sua cria.
Pierre dá um passo à frente e, de repente, sua mão está no colarinho de
Leclerc, pegando-o com toda sua força. O deboche deixa o rosto dele, dando
lugar à cólera e ao ódio.
— Fica longe dela — Pierre avisa, maxilar trincado, todo seu corpo
retesado.
— Ou o quê? — Antony o desafia.
Encosto-me contra a porta de entrada, ainda amedrontada o suficiente
para não ter reação nenhuma, nem mesmo puxar Pierre para longe desse
homem que pode fazê-lo mal.
— Mato você — meu namorado pronuncia.
Sua voz firme e convicta envia uma onda estranha pelo meu corpo. As
palavras que diz, tão determinadas, parecem-me mais do que só uma ameaça
da boca para fora. Não sei se Pierre teria mesmo coragem de tirar a vida de
uma pessoa, mas diante dele agora, vendo toda sua postura, a raiva que exala
dele, só parece haver uma resposta certa: sim, ele teria coragem de matar
Antony. Pensando nisso, consigo dar um passo à frente e tocá-lo nas costas,
pedindo para que se afaste. Mas ele não me escuta. Não sei se não falo alto o
bastante ou se me ignora.
— Deveria tomar cuidado com suas ameaças — Leclerc retruca, sem
mover um músculo fora do lugar, nem revidar a pegada de Pierre. — Sou do
tipo com sangue frio o bastante para cumprir, e você só me parece inflado de
raiva porque mexi com a vadiazinha da sua namorada.
Pierre o gira com toda sua força, e eu sobressalto para o lado no mesmo
instante que Antony é prensado contra a parede externa da minha sala.
— Não tenho medo de você, Antony. Pode intimidar sua esposa, pode
ter Bernardo na palma da mão, pondo em risco a integridade deles, pode
conseguir manipular o Emilien ameaçando expor seu passado, mas você não
me conhece. Nem mesmo sabe meu nome. Não há nada que possa usar para
me atingir. Então, não, não tenho medo de você. — Pierre o desencosta da
parede e o joga para longe da minha casa. — Fica longe da minha mulher. Se
ousar ameaçá-la de novo, considere-se um homem morto.
Pierre vem para perto de mim outra vez, ficando na minha frente.
Antony o encara um segundo a mais, com um olhar repleto de fúria e
promessas de vinganças, porque sei que é isso o que ele vai fazer, se vingar,
antes de girar nos calcanhares e partir.
Mal vejo meu namorado juntando meu celular espalhado pelo chão e
vindo até mim, pegando minha bolsa, atrás das chaves e me levando para
dentro. Meu corpo treme levemente quando Pierre me acomoda no sofá. Ele
some por um segundo e retorna com um copo com água, ajudando-me a
beber, pedindo-me para ficar calma. Escondo meu rosto no peito dele. O
calor do seu corpo e o cheiro da sua pele, aos poucos, vão me acalmando.
— Está tudo bem agora — murmura contra meu ouvido, acariciando
meus cabelos. — Antony não vai mais te perturbar.
Leva algum tempo até que esteja mais calma. Ergo meus olhos aos dele
e colo nossas bocas, sentindo uma saudade insólita e súbita. Horas atrás,
estava aborrecida, ignorando-o, mas agora surge uma necessidade urgente
dele. Eu o quero tanto. Nem me importo com a conversa que teríamos. Monto
nos seus quadris, trazendo-o mais para mim, querendo dissipar o restante do
medo e do pavor, que ainda estão me atormentando fazendo amor com ele.
Mas Pierre me afasta. Ele me nega. Quando o olho, vejo dor nas suas íris
azuis. A expressão no rosto não é de preocupação, é dor. Tem algo mais.
Alguma coisa aconteceu.
— Pierre…
Ele engole em seco e seus olhos marejam. Só o vi chorar uma vez na
vida e foi quando perdeu uma paciente. O homem pisca, as lágrimas rolando
pelo seu rosto marcado. Seguro seu rosto com as duas mãos, tentando
entender o que está acontecendo. Penso que tem a ver com o sobrinho.
Francine conseguiu a custódia do menino? Tento beijá-lo de novo, mas
novamente sou repelida. Ele me tira do seu colo e se levanta.
— Juliette — diz, e meu nome sai embargado na sua voz. Parece que
tem toda a dor do mundo nos seus olhos nesse momento. Ele engole em seco
e mais lágrimas rolam pelo seu rosto quando pronuncia: — Precisamos
terminar.
PIERRE
Étienne não fala comigo desde sábado à noite. É compreensível sua
raiva porque eu deveria tê-lo alertado sobre as intenções de Francine, mas ele
poderia tentar ao menos compreender um pouco o meu lado. Tudo o que quis
foi privá-lo de qualquer dor de cabeça com aquela mulher.
A confraternização da sua pesquisa acabou da pior forma possível. Meu
irmão e Francine discutiram, eu discuti com Francine, Étienne discutiu
comigo. Até teve acusação de Perrot ter se passado pela mulher dele naquela
ligação para exatamente conseguir desestabilizá-lo e usar suas negligências
contra ele. A mulher negou, como era de se esperar, mas a essa altura, com a
merda de uma audiência marcada, ficou difícil dar qualquer credibilidade à
palavra dela. Foi uma droga. O homem deixou o hospital repleto de fúria,
dizendo-me que era para ficar longe do filho dele, como se eu fosse a porra
de um pedófilo.
Fiquei ainda mais desesperado quando cheguei em casa, horas depois, e
ele não estava lá, em parte alguma. Nem ele, nem meu sobrinho. Tudo o que
passou pela minha cabeça foi que meu irmão havia pegado o menino e
sumido no mundo. Liguei uma porção de vezes no seu telefone e ele só
atendeu na décima segunda tentativa, rosnando que era para parar de
atormentá-lo. Quis saber onde estava e me informou que estava num quarto
de hotel e precisava de um tempo sozinho, longe de mim, porque ainda sentia
muita raiva.
— Não sou negligente dessa maneira — falou, contrariado, quando
suspirei aliviado e disse que achei que ele tinha sumido com o garoto.
Foi a última vez que nos falamos. Ele voltou para casa no domingo,
depois de umas trocentas mensagens minhas, pedindo para que voltasse
porque, como a guarda era minha, e ele, teoricamente, não estava em
condições de cuidar do menino, isso poderia piorar nossa situação e ajudar
Francine a ganhar a causa, além de ele poder ser acusado de sequestro.
Sequestro do próprio filho.
Meu Deus, como foi que minha vida deu essa reviravolta?
Étienne voltou, mas me ignora tanto quanto pode. Como se não
bastasse, Juliette também está sem falar comigo, ignorando minhas
mensagens. Ela acha que sou a porra de um homem descontrolado porque viu
uma cena em que meio que perdi a cabeça com Francine. Apertei-a com um
pouco mais de força e lhe dei um único solavanco, coisa que me arrependi
logo depois, e, um segundo antes da nossa discussão, me desculpei.
Desculpas que ela ignorou.
Confiro meu celular de novo, enquanto Michéle prepara uma paciente,
em busca de qualquer outra mensagem dela. A última foi me pedindo para
comprar macarons quando fosse em sua casa para conversarmos. Coisa que
fiz antes, no meu intervalo para o almoço.
Não há nada.
Só espero que ela me perdoe por ter agido como um ogro e acredite de
que não sou violento. Perdi a paciência com Francine pela primeira vez e sei
que não justifica dizer que estava farto dela e das suas investidas. Não só com
essa maldita história de me tirar a custódia de Édouard, mas como tudo o que
vivi no meu relacionamento com ela. Achei que teria um pouco de paz
quando rompemos, mas não foi o que de fato aconteceu.
Inferno.
Suspiro e deixo meu celular de lado quando minha assistente me
chama, dizendo que a paciente já está pronta para o exame. Despeço-me dela
com um aperto de mão assim que finalizamos a consulta e a acompanho até a
porta. Gustave está do outro lado, como se me esperando, e abre um sorriso
nervoso.
— Doutor Laurent, pode vir comigo, por favor? — pede, em tom
extremamente formal.
Enrugo o cenho, estranhando seu pedido, e olho por cima do seu
ombro, vendo a sala cheia de mulheres para serem atendidas.
— Gustave, tenho um monte de pacientes aqui. Tem que ser agora?
Ele pigarreia um instante.
— Sim. Já falei com a recepcionista e chamei o doutor Collet para
cobrir você. Ele está vindo para cá, e suas pacientes estão cientes e de acordo
em serem atendidas por ele hoje.
Sinto urgência na sua voz e não vejo alternativa a não ser ceder e
acompanhá-lo. Ele caminha rapidamente por entre corredores da clínica até
pararmos frente à porta da diretoria. Eu o olho, interrogativamente,
estranhando que tenha me trazido aqui. O que diabos o diretor quer comigo?
Gustave bate na porta e abre, pedindo licença e me dando espaço
primeiro. Assim que entro na sala espaçosa, branca e bem-arejada, a primeira
pessoa que vejo me faz juntar mais as sobrancelhas, confuso com sua
presença. O doutor Guillot é da psicologia. Ele está em pé, atrás da mesa,
junto do diretor da clínica, doutor Vasseur, que é a segunda pessoa que vejo
quando entro.
A terceira pessoa no ambiente que cruza na frente dos meus olhos —
confortavelmente sentada na poltrona disposta na mesa do escritório — faz
tudo ficar às claras. Ela veio aqui e me delatou. Contou que estou me
envolvendo com uma paciente. O motivo dessa reunião fica óbvio. Francine
não presta. Seguro a raiva nos meus punhos e termino de entrar, tentando
manter a calma e ignorando a presença da minha ex-namorada insuportável.
— Mandei te chamar, Laurent — Vasseur diz, abotoando uma casa do
seu jaleco. — Porque temos um assunto de extrema delicadeza para
tratarmos.
Lanço um olhar para Francine por um segundo antes de voltar minha
atenção ao diretor e forçar um sorriso. Jardel aponta para a cadeira ao lado de
Perrot, mas recuso, preferindo me manter em pé. Vasseur coloca os óculos no
rosto e dou outra olhada em Guillot, sem entender a presença dele. Gustave
fica logo atrás; quase consigo sentir a tensão que emana dele.
— Você está se envolvendo com uma paciente — diz, sem rodeios.
Não é uma pergunta. É uma afirmação.
Nem estou surpreso. Por um instante não sei o que dizer. Não posso
negar, não vou dizer o famigerado “posso explicar” e ficar calado não é uma
boa ideia. Então, não me resta opção a não ser confirmar.
— Oui. Sei que é contra as regras e…
— É antiético, doutor Laurent — o diretor me interrompe. Nem posso
ficar desgostoso com sua interrupção porque ele está certo. — Ainda mais
nas circunstâncias da senhorita Gautier.
Sinceramente, não entendo sua colocação, mas suponho que esteja se
referindo à gravidez. Coisa que nunca realmente me importei. Tento expor
isso, mas sou outra vez interrompido, Vasseur me dizendo que o fato de ela
estar grávida de outro homem é o que menos importa no momento. Se “as
circunstâncias da senhorita Gautier” não é sobre sua gravidez, de que diabos
ele está falando, afinal?
— Não bastasse se envolver com uma paciente, você agravou sua
situação com isso — alega, girando o notebook sobre sua mesa na minha
direção.
Meu corpo trava assim que vejo o vídeo pausado. Reconheço o local, as
vestimentas, o que estávamos fazendo, mesmo que a imagem em questão não
mostre nada de obsceno. Sinto meu coração entalado na garganta. Por que
tem a porra de uma câmera de vídeo no meu consultório? Pisco diversas
vezes, agora realmente sem palavras. Não tenho o que dizer. Só aceitar que
vou ser demitido.
— Sinto muito. — É tudo o que posso dizer no momento.
Vasseur suspira, retira os óculos e aperta os olhos.
— Vou ter que te demitir — anuncia, mas já esperava por isso.
— Tudo bem — digo, engolindo em seco. Estudo Francine outra vez,
com um monte de perguntas na cabeça, e depois torno a olhar para o
psicólogo que não disse uma palavra até o momento, também sem
compreender qual sua função aqui. — É justo. Mas Juliette… Gostaria que
não a penalizasse. Pode mantê-la no emprego? — pergunto, virando-me para
Gustave logo atrás de mim. Ele não responde nem que sim nem que não
porque não tem poder nenhum nesse momento.
— Isso será analisado depois — Jardel responde. — O que precisamos
nos concentrar no momento aqui, Laurent, é esse seu envolvimento descabido
com a senhorita Gautier. Você sabe que pode ter sua licença cassada se for
indiciado por estupro de vulnerável?
Recebo isso como se tivesse sido atingido por um tiro. Estupro de
vulnerável? De onde foi que tirou um absurdo desses? Nunca forcei Julie a
qualquer coisa. Tudo entre nós sempre, sempre foi consensual. Arfo por um
segundo sem quase nem perceber, atônito com suas palavras. Não respondo
nada e nem tenho tempo porque ele dá play no vídeo pausado. Juliette e eu
estamos conversando, é o momento em que está insegura em transarmos no
consultório.
— Está bem claro que ela não quer fazer isso — o diretor pronuncia,
com uma calma que me deixa ansioso. — Mas você conversa, diz algo para
ela, você a coage ao sexo, Laurent. Sabe que isso é estupro.
— Meu Deus, não! — protesto imediatamente. A porra do vídeo não
tem som, então ele está apenas supondo o que aconteceu. — Não coagi
ninguém a nada. Pelo contrário. Estava dizendo exatamente que se não
estivesse se sentindo confortável, íamos parar — explico, meio desesperado.
— E por que raios tem uma câmera de vigilância no meu consultório?
Gustave dá um passo à frente depois de um comando de Jardel.
— O pessoal do sistema de segurança notou uma movimentação
estranha em algumas ocasiões nos últimos dois meses. O alarme era
desativado fora de hora, algo muito incomum. Aconteceu umas duas vezes.
Isso foi relatado ao diretor, que pediu para a equipe responsável averiguar o
que estava acontecendo.
Fecho os olhos, sentindo toda culpa nos meus ombros. As vezes que ele
mencionou foi quando eu trouxe Juliette para um ultrassom, logo depois da
ameaça do aborto, tarde da noite, só para tranquilizá-la porque seu próximo
exame ia demorar, e o baile privativo. Também tarde da noite.
— Analisaram imagens do estacionamento — continua, e só agora me
recordo das câmeras do local. A clínica é localizada num local muito seguro,
por isso a vigilância com câmeras ocorre só no lado externo. — As duas
vezes que o alarme foi desativado, seu carro estava estacionado lá. Numa
delas até viram você descer com a Juliette. Além de termos identificado seu
cartão de acesso na entrada. Também nas duas vezes.
— Eu desconfiei — Vasseur prossegue —, mas não disse nada a
ninguém. Mandei instalar a câmera no seu consultório para saber o que
exatamente você vinha fazer tarde da noite aqui com uma mulher grávida.
Investiguei, descobri que é sua paciente, você a atendeu no Necker com
sinais de agressão física. Temos outras gravações que mostram interação
entre vocês muito além da médico-paciente. Demoramos algum tempo para te
abordamos para analisarmos melhor essa relação entre vocês.
Dou uma risada meio histérica. Fui tão descuidado. Só noto isso agora.
Passei parte do meu relacionamento com Juliette preocupado em sermos
descobertos, amedrontado que sua recusa de procurar outro obstetra nos
comprometesse, mas aceitei mesmo assim, porque estava cego. Eu me
envolvi demais a ponto de não agir direito, de ser cegado pelos meus
sentimentos e não medir nem um pouco das consequências. No final, nossa
relação amorosa veio à tona e a culpa nem foi dela. Foi minha, que insisti em
realizar a maldita fantasia. Que a trouxe para cá fora de hora, sem pensar que
isso ia sim chamar a atenção da central de segurança. Não raciocinei direito
porque estava envolvido demais. É por esse motivo que médico e paciente
não podem ter um relacionamento amoroso.
— Tudo bem — concordo, suspirando em seguida, ainda sem
compreender boa parte dessa conversa. — Assumo essas “invasões” e
assumo que foram erros da minha parte, imperdoáveis. Mas me acusar de
estupro? Meu Deus, monsieur Vasseur, pergunte a Juliette, nunca a forcei ou
a coagi a qualquer coisa. Nossa relação é completamente consensual.
— Mas ela tem condições de consentir alguma coisa, Pierre? —
Francine se pronuncia pela primeira vez, virando-se para mim. —
Psicologicamente falando? — completa, deixando-me ainda mais confuso.
— O que você está fazendo aqui? — pergunto, ao invés de responder
sua pergunta absurda, porque já entendi que ela não me delatou. Toda culpa
foi minha. Então não entendo sua presença.
— Fui médica dela também, se esqueceu? O doutor Jardel Vasseur me
ligou assim que puxou a ficha dela e conversamos sobre o caso. Ela é uma
paciente em estado vulnerável, sabe disso, não é? Ou ao menos deveria saber.
Quando Francine diz que Juliette é uma paciente em “estado
vulnerável”, começo a compreender o rumo dessa conversa. Parece que
minha mente clareia de uma hora para outra, e meus olhos se abrem como se,
até segundos atrás, estivesse com uma venda neles. Pestanejo, absorvendo
toda a informação, a revelação diante de mim. Como não pensei nisso antes?
— Doutor Laurent — a voz agora é de Guillot —, você diz que a
relação sexual entre vocês foi consensual, mas a questão que a doutora Perrot
bem colocou é: ela tinha condições psicológicas de consentir qualquer coisa?
Ela é uma mulher grávida, que foi covardemente espancada, muito
provavelmente sofreu violência doméstica, e isso causaria um trauma, mesmo
que pequeno, nela.
— Resumindo, depois desse episódio, Juliette dificilmente ia querer ver
um homem estranho perto dela, interagir com ele, se envolver com ele, mas a
moça fez exatamente isso com você, Pierre. O médico, o homem que, na
cabecinha dela, salvou sua vida e a do seu bebê — Francine finaliza.
Dói em mim a constatação que estão fazendo e eu, como médico de
Juliette, deveria ter percebido. Os sinais. Os malditos sinais. Ela deu
pequenos e sutis sinais que não percebi. Porque estava envolvido demais,
cego demais. É por isso que paciente e médico não se relacionam
amorosamente!
— Ela me endeusa — constato, por fim, sentindo um nó na minha
garganta. — Juliette criou um vínculo forte comigo porque cuidei dela e do
bebê. Porque, teoricamente, salvei a vida dos dois — murmuro, desviando os
olhos para baixo, sentindo a dor prensar o meu peito.
— Oui, doutor Laurent — Jardel suspira, sentando-se na sua cadeira.
— Você não estranhou nem por um segundo o fato de ela não ter tido reações
ao trauma? Crises de pânico, medo de ficar sozinha, pesadelos, medo de
homens estranhos?
Meus olhos enchem de lágrimas à medida que compreendo tudo o que
estão me dizendo. O que Juliette sente por mim não é real. É um vínculo
forte, criado do trauma, onde ela me vê como a figura que salvou sua vida, a
vida do seu bebê. O que ela sente é gratidão, admiração, endeusamento, mas
não é real. É onde compreendo quando me perguntam se ela tinha mesmo
condições de consentir sexo comigo. E a resposta é que eu não sei.
Sinceramente, não sei. Deixei que minha paixão e o meu amor por Juliette
obstruíssem meu julgamento, minha razão, e tudo me levou aqui. Levou-me a
me relacionar amorosa e sexualmente com uma paciente que nunca esteve
bem psicologicamente para consentir sexo comigo.
Meu Deus, o que foi que eu fiz?
— Ela bloqueou as emoções — o psicólogo prossegue, mas não preciso
mais que me explique. Já compreendi tudo. Até mesmo o seu comportamento
abusivo, o ciúme exagerado, as desconfianças e inseguranças têm a ver com o
trauma. E eu não notei! — Foi o modo como encontrou para lidar com
ocorrido, mas isso não significa que ela não sentia nada. Ela bloqueou as
emoções e refletiu isso em outros comportamentos.
Balanço a cabeça em positivo, já sabendo disso.
— Eu quis indicá-la para outro médico — digo, segurando as lágrimas.
Não acredito que fodi com tudo. Com tudo. — Juliette não quis. Chegou a
reagir muito mal com a sugestão.
— Se ela tem uma visão endeusada de você, se você é a figura que a
salvou e que, diferente do que a agrediu, a acolheu, cuidou dela, é uma reação
comum ela não confiar em mais ninguém e resistir a abrir mão da relação
médico-paciente — Francine intervém, e me vejo concordando com seu
argumento. — É tudo reflexo do trauma, Pierre. A mente humana é complexa
demais, mas você, como médico, com aptidão psicológica melhor do que a
dela, deveria ter se mantido firme na sua decisão de indicá-la para outro
obstetra. É como uma criança que quer uma faca. Mesmo que faça birra e
chore, você sabe que não pode dar a ela porque vai se machucar. Com
Juliette, com uma moça em estado vulnerável, deveria ter feito o mesmo.
Não preciso de mais nada. Já entendi tudo o que querem me dizer. E
odeio concordar que têm razão. Agora sei que, inclusive, o fato de ela
reproduzir comportamentos tóxicos depois de ter vivido um relacionamento
assim, depois de ter sido agredida de forma covarde, é parte do reflexo do seu
trauma, intensificado pelos hormônios da gravidez, e que é normal. Ela teve
um relacionamento de merda. É natural que tenha medo de perder o
relacionamento bom que temos e que suas atitudes reproduzam um
comportamento abusivo. Não só fui descuidado em não ver esses sinais como
alimentei suas paranoias e inseguranças, forçando-a a confiar em mim,
baseando-me nas minhas próprias experiências ruins. O meu coração dói
como nunca doeu em uma vida toda com o tamanho da besteira que cometi.
— Precisa se afastar dessa moça, Laurent — Jardel diz, trazendo-me de
volta à realidade. — Nenhum de nós aqui sabe como ela está lidando com o
trauma e nem o quão grande é o vínculo de admiração com você. Precisa dar
um basta nessa relação.
Abano a cabeça em positivo, concordando.
— Se ama mesmo Juliette — Francine suspira, levantando-se e ficando
de frente para mim — tem que terminar com ela, convencê-la a uma ajuda
psicológica.
— Eu sei — digo, engolindo minhas lágrimas. — Mas precisam
acreditar em mim. Nunca me aproveitaria da vulnerabilidade dela, jamais
abusaria dela ou de qualquer mulher. Jamais me aproveitaria de uma paciente
que não está bem psicologicamente para coagir a sexo, pelo amor de Deus.
Errei me envolvendo com Juliette, mas não me aproveitei dela ou do seu
estado psicológico. Em momento nenhum.
Jardel suspira e sai de trás da sua mesa, vindo em minha direção. Ele
aperta meus ombros, de forma amável e amigável. Ele me conhece. Trabalho
aqui há tempo o suficiente para esse homem conhecer minha índole.
— Laurent, vamos tratar esse caso com todo cuidado possível, está
bem? Mas por ora, vai se afastar dessa moça e vai se afastar das suas funções
aqui e no Necker-Enfants Malades até apurarmos tudo.
Concordo, ainda sentindo todo o arrependimento socar no meu peito,
dolorido com a perspectiva de ter que deixá-la. Eu a amo. Não tive
oportunidade de dizer porque só agora, ao pensar no mal que posso ter
causado nela, em pensar que tenho que deixá-la, percebo que a amo. E, Deus,
vai ser uma conversa tão difícil, mas tão difícil.
— Gustave — Vasseur diz, olhando por cima do meu ombro —,
dispense a senhorita Gautier mais cedo. Invente alguma desculpa, mas
mande-a para casa. — Ele se volta para mim, puxando-me pela gola do
jaleco, mas não de um jeito ríspido. — Espere um tempo e vá conversar com
ela. Seja franco, Laurent, exponha o que conversamos aqui. Afaste-se dela
por um tempo até resolvermos essa questão.
É o inferno na Terra para mim, mas acato a sua ordem, pensando no
bem da única pessoa que me importa nesse momento.
Juliette.
PIERRE
Deixo a clínica assim que nossa reunião termina. É definitivo que serei
afastado das minhas funções, dos meus dois empregos, e não posso culpar
ninguém mais por isso a não ser a mim mesmo. Francine estava com a razão
quando disse que o poder de escolha em indicá-la para outro ginecologista
era minha, não de Juliette. Mas me deixei me levar pelos meus sentimentos,
ceguei meus julgamentos, coisa que tinha dito a Étienne que não estava
fazendo.
Suspiro quando estaciono o carro numa vaga que encontro na avenida e
tiro o telefone do bolso, encarando a tela por um minuto inteiro antes de
discar o número de Adrien. Minha conversa com Julie não será fácil e preciso
dele para estar lá pela prima quando contar os motivos do nosso rompimento.
Sei que ela vai precisar. Faço isso também porque não quero parecer um
babaca insensível. Quero conversar com ele, explicar os motivos que estão
me forçando a esse término para que não faça nenhum mau julgamento. Não
por mim, mas porque eu realmente o considero demais um amigo meu e não
desejo nenhuma desavença gratuita entre nós.
Para minha sorte, Adrien está no seu apartamento, aproveitando um dia
de folga. Apresso-me para ir encontrá-lo e chego quinze minutos depois. Ele
me recebe vestido muito informalmente. Calça moletom, cabelos
desgrenhados, usando uma camisa preta escrito “Movido a café”. Acomodo-
me em uma cadeira enquanto ele me oferece algo para beber. Aceito cafeína.
— Você está estranho — comenta, servindo duas xícaras e arrastando
uma na minha direção. Adrien se senta de frente para mim, estudando-me
com curiosidade. — O que foi que aconteceu?
Com um nó entalado na garganta, conto tudo. Falo da minha reunião
mais cedo, do sexo no consultório, da questão de ela ser uma paciente em
estado vulnerável e que, muito provavelmente, o que ela sente por mim não é
real. É um envolvimento emocional forte, como se fosse uma ligação, um
reflexo do trauma que sofreu.
— Fui descuidado, Adrien — confesso, envergonhado, olhando para
minha xícara agora vazia. — Me envolvi tanto que nem reparei nos sinais de
que ela não está bem. É por isso que preciso me afastar, ao menos por um
tempo. Não queria ter que magoá-la, mas sei que irremediavelmente é o que
vai acontecer.
Levanto meus olhos em sua direção, e ele está calado. Permanece assim
por dois ou três segundos antes de suspirar e balançar a cabeça em positivo.
— Juro que nunca foi minha intenção me aproveitar dela. Deus, jamais
seria capaz de algo tão hediondo — digo, meio desesperado de que ele ache
que sou um babaca de merda.
— Acredito em você. Um cara que quisesse só se aproveitar dela não
teria tido a preocupação de vir até aqui me explicar isso tudo. Sei que é um
bom homem, Pierre. — Alívio percorre todo meu corpo e consigo sorrir um
pouco, mas não menos nervoso. Ainda vou precisar dizer tudo isso a Juliette.
— Não se preocupe, assim que tiverem essa conversa, vou até minha prima.
Vá na frente, vou me arrumar, dar um tempo para que conversem com calma,
e logo chego.
Agradeço sua ajuda e compreensão, e me levanto, prestes a ir até Julie e
romper nosso namoro. Dói na minha alma, mas preciso fazer o que é certo no
momento. Adrien me acompanha até a porta. Busco pelas horas. Quinze para
as cinco. Ela deve estar quase chegando em casa, considerando que Gustave a
dispensou às quatro e a viagem de metrô dura cerca de uma hora. É o tempo
exato para eu chegar lá e encontrá-la. Estamos nos despedindo quando o
telefone dele toca. Deixo-o atendendo seu telefonema e caminho em direção
ao meu carro. Mal desço dois andares quando Bourdieu me alcança, gritando
por mim, alarmado.
— O que foi? — indago, assustado com sua urgência.
— Antony — diz, as narinas inflando. — Uma vizinha me ligou e me
avisou que o desgraçado tem umas duas horas que está rodeando a casa de
Juliette. Se ela está prestes a chegar…
Não preciso que termine de dizer. Uma raiva descomunal sobe pela
minha coluna.
— Ligue para ela — digo, apertando o passo. — Avisa pra Julie ficar
longe de casa e me esperar na estação do metrô.
Ele abana em positivo e corre de volta para o apartamento. Acelero
pelas ruas, desejando que a distância entre o apartamento de Adrien, no 17º
arrondissement de Paris, e a casa de Juliette, na comuna de Montreuil, não
fosse tão longe. Minutos depois, meu telefone toca, identificando o número
de Adrien na tela. Atendo e coloco no viva-voz.
— Juliette não atende — informa, e sinto um soco de desespero bater
no meu peito. — Liguei para a vizinha dela, a senhora Clement, e ela me
disse que ainda não a viu chegar.
— Continue tentando. Vou fazer o mesmo.
Durante os próximos vinte minutos, tento me comunicar com Julie, mas
a mulher não atende o celular. O desespero começa a tomar conta do meu
corpo e enfio o pé com mais força no acelerador, nem me preocupando com
as multas que vou tomar. Quando finalmente chego, a imagem que se
desenrola me deixa tão possesso que nem me vejo estacionando de qualquer
maneira no meio-fio. Puxo Antony de cima de Juliette e sinceramente não sei
como me seguro para não o esmurrar aqui mesmo. Depois que o expulso e
Julie está na segurança da sua casa, mais calma e tentando consumar sexo
comigo, preciso afastá-la de mim, dizer por que vim.
— Pierre… — Ela tenta me chamar de volta quando nota que a nego.
Nunca a neguei, mas preciso fazer isso agora.
Meu coração dói em ter que deixá-la. Dói a ponto de meus olhos
marejarem. A iminência de ter que deixá-la, somado ao fato de que fui um
imbecil descuidado que pode ter fodido com tudo, me machuca e força as
lágrimas em mim. Engolindo em seco, consigo dizer, por fim:
— Juliette, precisamos terminar.
Nesse momento, ela me olha como se não me reconhecesse e seu rosto
expressa confusão só por um segundo. Ela se levanta do meu colo, afastando-
se de mim, rodeando o corpo com os braços como se fosse uma forma de se
proteger. Vejo a tristeza se apossar dos seus olhos.
— Terminar? — questiona.
Também me levanto, indo na sua direção. Seguro-a pelos dois braços,
fazendo-a olhar para mim.
— Pelo menos por um tempo — esclareço. Nem sei como começar a
explicar essa situação toda.
A verdade é que também tenho medo. Se ela tem essa ligação forte
comigo, que está confundindo com outro sentimento, afastar-me não pode
piorar sua situação? Deixá-la não pode desencadear reações piores? Não
estou mais seguro que romper nossa relação seja a melhor solução.
— Por quê? — Quer saber, soltando-se da minha pegada. — Está
apaixonado por outra mulher? É o fato de eu estar grávida de outro homem e
não poder lidar com isso? Se enjoou de mim? Pierre, me diz por que quer
terminar comigo — pede, seu corpo tremendo em leves espasmos.
Tomo-a em meus braços, enfiando o rosto na curva do seu pescoço. Ela
não resiste e se encaixa com facilidade no meu abraço.
— Não é nada disso, Juliette — esclareço.
Levo-a até o sofá de novo, beijando seus lábios. Engulo em seco e faço
um segundo de silêncio, preparando as palavras para começar a dizer tudo
que preciso. Juliette me pressiona, questionando-me os motivos de querer
terminar, se tem relação com Francine ou meu sobrinho. Balanço a cabeça em
negativo, pensando que agora, Perrot tem mais munição contra mim para
conseguir a guarda do menino. Se resolver citar essa maldita história de me
envolver com uma paciente, se decidir alegar que abusei e me aproveitei de
uma paciente em estado vulnerável, porra, estou fodido de vez e vou perder a
custódia de Édouard.
Tomando uma dose de coragem, começo a dizer tudo o que preciso. Ela
fica emudecida enquanto me escuta pelos próximos dez minutos. Tento
explicar da forma mais clara possível o porquê de estarmos rompendo, as
suas reações ao trauma, como isso está funcionando na sua cabeça, refletindo
no seu comportamento. Ao final, uma lágrima desce pelos seus olhos e ela
segura minha mão, apertando-me, como se pudesse me manter aqui, sem me
deixar ir embora. Mas eu preciso.
— Isso é bobagem, Pierre — nega, tentando me trazer para ela. — O
que está dizendo é absurdo. Acha mesmo que eu não te am…
— Não — interrompo-a, antes que diga. Fecho os olhos, apertando-os
com toda força. Não vou conseguir ouvi-la dizer isso. Pelo menos não agora.
— Não diz isso, Juliette. Se disser, vai me quebrar em tantos pedaços que não
serei capaz de juntar tudo de novo.
Ela se cala e desvia os olhos de mim, não terminando sua frase.
— Acha mesmo que tudo o que sinto por você é uma ilusão, que não é
real?
Balanço a cabeça em negativo.
— Acho que o que você sente por mim não é o que você pensa que é —
explico. — Por isso precisamos de um tempo, entende? Para distinguir seus
sentimentos, separar o joio do trigo. — Abaixo o olhar para nossos dedos
entrelaçados e aperto mais os seus contra os meus. — Para você ter certeza de
que todo esse sentimento aí não é só uma admiração, ou gratidão, que não é
só reflexo do que você sofreu nas mãos daquele traste.
— Não quero que você vá, Pierre — choraminga, escondendo o rosto
contra meu peito.
— Também não queria ir, chérie, mas preciso. Estou fazendo pelo seu
próprio bem, você entende? Por favor, diz que me entende e que vamos dar
esse tempo, que vai voltar a se consultar com sua psicóloga.
Ela maneia a cabeça em positivo, seu rosto ainda escondido no meu
tórax. Acaricio seus cabelos e ficamos um tempo assim, em silêncio,
aproveitando os últimos minutos que temos juntos, em uma despedida
silenciosa e dolorosa.
— Desculpe ter te prejudicado — murmura, instantes depois,
arrastando o nariz contra meu pescoço. Suspiro, praguejando-me por meu
corpo reagir ao dela com tanta facilidade. — Nunca quis que fosse afastado
das suas funções. Fui tão egoísta. Se tivesse te deixado me indicar para outro
médico…
— Não foi culpa sua, já te expliquei — digo, afastando-a de mim.
— Mesmo assim, não consigo deixar de me sentir estúpida e culpada.
Por que fui falar daquela maldita fantasia? É culpa minha, Pierre — sussurra,
deixando as lágrimas descerem pelo seu rosto.
Limpo-as com o polegar e deixo um beijo singelo no canto da sua boca.
— Não é. Não tem que se torturar com isso agora, Julie. Já está
passando por coisas demais.
Juliette me abraça de novo antes de a porta dela se abrir e trazer Adrien
para dentro. Ele permanece no umbral por um segundo, sua prima ainda
envolvida no meu abraço, no nosso último instante de despedida.
— Quando conseguir distinguir seus sentimentos e tiver certeza de
que… — “Me ama”. — Gosta de mim de verdade, pode me procurar. Vou
esperar você. O tempo que for preciso — murmuro no seu ouvido e depois
encontro seus olhos. — Caso constate que tudo não passou apenas de um
reflexo do seu trauma, que não é real tudo o que sentiu por mim, quero que
me diga, que seja franca comigo. E que seja feliz. Você e Valentin — digo,
rodeando seu abdômen e o beijando em seguida.
Juliette se joga contra mim uma última vez e soluça contra meus
ombros. Faço um pequeno esforço para me separar dela, me levantar e ir
embora. Do lado de fora, encostado na porta, permito que as lágrimas
venham enquanto ouço Juliette dizer a Adrien que tem certeza de que me ama
e que está doendo.
Duas coisas que também sinto.

Não tenho estrutura para ir para casa já, então me isolo na primeira
brasserie que encontro. Ignoro qualquer bebida alcoólica e afogo minhas
mágoas em refrigerante por uma hora. Talvez um pouco mais. Adrien me
manda uma mensagem. Na medida do possível, ela está bem. Foi uma
conversa difícil, mas mais fácil do que imaginei. Achei mesmo que ela fosse
resistir muito, talvez até fazer escândalo, mas fico ao menos aliviado que
Juliette compreendeu meus motivos e compreendeu que precisa retornar suas
consultas com a psicóloga. Acho que o fato de ter sido demitido ajudou um
pouco. Ela se sentiu culpada com isso — embora não tenha responsabilidade
nenhuma —, o que a ajudou a aceitar melhor nosso término.
A partir de hoje não vou vê-la mais. Nosso contato será cortado em
absoluto. Nenhuma ligação, ou mensagem, ou visitas. Nada. Preciso me
afastar definitivamente até toda essa merda ser resolvida, até eu saber que
rumo vai tomar minha carreira depois dos erros que cometi. Não quero nem
pensar em ter minha licença cassada por “estupro de vulnerável”. Meu Deus,
não. Fecho os olhos com toda força, tentando não pensar nisso agora. Um
passo de cada vez. Tempo ao tempo.
Faço meu caminho para casa outra vez e respondo a mensagem de
Adrien, por fim, parado frente ao apartamento do meu irmão.
“Cuida bem dela por mim.”
Abro a porta e, um segundo depois, Édouard está enrolado nas minhas
pernas, abraçando-me com todo seu carinho e inocência.
— Seu amigo está aqui — diz, assim que o pego no colo.
Franzo o cenho, sem entender de quem ele está falando.
— Que amigo, Doudou? — indago.
Não preciso que me responda. Étienne vem da cozinha, conversando
alguma coisa sobre sua pesquisa ao lado de Antony. Meu corpo congela na
mesma hora e coloco Édouard no chão, pondo-o atrás de mim, como se para
defendê-lo. O homem me olha com um sorriso malditamente cínico, e cada
célula do meu corpo vibra para avançar, agarrá-lo pelo colarinho e enchê-lo
de socos.
— Pierre! — exclama, animado, como se de fato me conhecesse, como
se fôssemos mesmo amigos.
Então, entendo sua presença. Horas atrás, disse que ele não sabia nada a
meu respeito, nem tinha nada para me ameaçar. Agora, ele tem. Deve ter ido
atrás de informações e descoberto tudo o que precisava. Diabos.
— Bom ver você. Como está Juliette?
Minhas narinas inflam de raiva e, descontrolado, avanço apartamento
adentro e o puxo pela gola da sua camisa branca. Étienne se assusta com a
minha reação e pergunta o que está acontecendo.
— Sai da minha casa agora mesmo — exijo, jogando-o até a porta.
Antony sorri, daquele seu jeito diabólico. Ele dá um passo à frente, e
meu corpo todo esquenta de raiva. Só quero socar esse maldito até virá-lo do
avesso.
— Parece que agora tenho todas as informações que precisava sobre
você — murmura contra meu ouvido. — Que terrível seria se, por acaso, seu
sobrinho ou seu irmão aparecessem mortos um dia desses.
Empurro-o com toda força na mesma hora e já estou avançando sobre
esse maldito quando meu irmão me contém, perguntando o que diabos está
acontecendo comigo.
— Sai da minha casa! — esbravejo, tentando me livrar da pegada de
Étienne.
— Adeus, doutor Laurent — diz, antes de partir.
Meu irmão finalmente me solta e me vira para ele, repetindo seus
questionamentos. Minha cabeça dói, não tenho ânimo ou psicológico para
uma conversa nesse momento. Afasto-me um passo e viro-me para Édouard
que acompanhou a cena, e me encara com seus olhinhos assustados e
arregalados. Confiro seu corpinho e pergunto se está bem. O menino acena
em positivo. Volto-me para Étienne.
— Vai me explicar o que está acontecendo, Pierre? — pergunta,
cruzando os braços, olhar preocupado sobre mim.
Inspiro fundo.
— Agora não. Só mantenha aquele homem longe. Ele não é meu
amigo, Étienne.
Antes que possa me exigir qualquer outra explicação, vou me refugiar
no meu quarto.
JULIETTE
— Levanta! — Adrien exclama, abrindo as cortinas do meu quarto.
A claridade atinge meus olhos, incomodando-me. Viro na cama,
ficando de costas para a janela e puxando a coberta por cima da minha
cabeça. Não quero me levantar. Não quero ter que encarar mais um dia. Só
quero ficar aqui, enroladinha nas cobertas, sentindo Valentin pular dentro de
mim, e me forçar a acreditar que todas as lembranças que avançam sobre
minha mente são apenas frutos de um sonho ruim.
Nego-me a acreditar que na minha realidade, agora, Pierre está ausente.
Machuca só de pensar e toda a minha vontade, reprimida sabe-se lá Deus
como, é de ir atrás dele, de implorar para que volte para mim, dizer que não
posso viver sem ele. É aí que mora o problema. Nunca me vi tão dependente
de alguém como estou dele. Mesmo quando Antony me manipulava, mesmo
quando estávamos juntos, não havia essa dependência exagerada de carinho,
atenção, amor. Nunca tive carência emocional por ninguém. Leclerc brincava
comigo como bem entendesse, é verdade, mas nunca cheguei a pensar em
“não sei viver sem esse homem”. Mas com Pierre, minha dependência
emocional me levou a agir de forma egoísta, resistindo a abrir mão da nossa
relação médico-paciente porque nunca me senti confortável e confiante em
me consultar com outro profissional. Essa dependência, também, me levou a
agir de forma descabida, histérica, explosiva, a reproduzir comportamentos
tóxicos, os mesmos comportamentos que Antony exercia sobre mim,
sufocando-me, e que tanto repudiei.
Nunca consegui entender a minha necessidade repentina por Pierre, ou
conseguir fazer meu pré-natal com outro obstetra, nem ser capaz de confiar
em mais ninguém a não ser nele para acompanhar minha gestação. Doía só de
pensar em me afastar e me batia um medo primitivo e insensato de não o ter
mais como profissional cuidando da minha gestação, como se ninguém mais
fosse suficientemente capaz disso. Os ciúmes, justificava para mim mesma
que era apenas receio de perdê-lo, porque ele era bom para mim e tínhamos
um relacionamento incrível, tão diferente da toxidade que estava inserida
com Antony.
Sozinha, jamais suporia que todos esses sentimentos e comportamentos
são reflexos do meu trauma, reflexos daquele dia que tento semana após
semana me esquecer e que por um tempo consegui. Embora tenha tido um
pesadelo ou outro, ter ficado paranoica com a segurança da casa e com coisas
do dia a dia que, antes desse fatídico episódio, jamais me incomodariam
(como a minha campainha tocar e ficar amedrontada de que fosse ele do
outro lado da porta), não tive nenhuma outra reação a esse choque. Ataques
de pânico, ansiedade, medo de homens estranhos, sensação de ser seguida.
Nada. Ou pelo menos assim eu pensava, e por esse motivo só me consultei
três ou quatro vezes com a psicóloga e depois parei.
Parei porque acreditei que estava bem. Mas não estava. Depois de ouvir
tudo o que Pierre me disse, por um instante achei que era bobagem da sua
parte, que eu não estava emocionalmente ligada a ele, nem dependente
porque criei uma visão endeusada. Contudo, conforme pacientemente me
explicava como a minha mente traumatizada estava lidando com tudo o que
aconteceu, admiti que fazia sentido porque simplesmente não me reconhecia
nas minhas ações.
Apesar disto, não queria que fosse embora, mesmo notando uma
dependência doentia, mesmo tendo ciência de que todos os meus sentimentos
por Pierre podem ser apenas uma confusão da minha mente, da ligação e do
endeusamento que criei porque, na minha cabeça, ele foi a figura que me
ajudou, salvou minha vida, cuidou do meu bebê. Entretanto, eu o deixei ir.
Por ele, eu o deixei ir, porque já o prejudiquei demais e não queria mais
comprometê-lo.
— Quero dormir, Adrien — resmungo, encolhendo-me um pouco mais.
Meu primo puxa a coberta de mim. Protesto, tentando trazê-la de volta,
mas não consigo. Ele me puxa pelos pés, arrastando-me pela cama, e, num
momento de descontração, me permito rir um pouco.
— Vamos, levanta dessa cama. São dez da manhã, vou preparar algo
para você comer. Além disso, consegui um encaixe com sua psicóloga para
hoje. Às treze. Então, levanta.
Vencida pela sua insistência, sento-me na cama, encostando-me à
cabeceira, e coço os olhos, despertando aos poucos. Só agora me dou conta
de que perdi o horário para ir ao trabalho. Gustave deve estar puto da vida
comigo. Pego meu telefone e confiro se tem alguma ligação ou mensagem
dele. Nada. Decido escrever algo, desculpando-me pela minha ausência e
justificando que não estou muito bem para ir ao trabalho hoje, o que é
verdade. Sinto uma melancolia estranha avançar sobre mim e odeio só
imaginar em pôr os pés naquela clínica e constatar que Pierre não está mais
trabalhando lá por minha culpa.
Sou uma idiota.
Dedos grossos secam lágrimas que descem sem nem que eu perceba.
Ergo os olhos, deparando-me com Adrien mais perto de mim, uma mão na
minha barriga e outra no meu rosto.
— Se ele perder a licença médica — digo, escondendo o rosto contra
seu ombro — nunca vou me perdoar, Dri.
Meu primo afaga meus cabelos, encaixando meu corpo nos seus braços
grandes, apertando-me levemente contra si.
— Não pensa assim, Juliette. Vai dar tudo certo, está bem? Você nunca
teve culpa de nada.
Não respondo, ainda refugiada no seu ombro, tentando convencer a
mim mesma que ele tem razão. Como posso me culpar pelos meus
sentimentos e comportamentos se não estou bem? Se nunca estive bem? Se
não passa de uma condição criada pela minha mente para que meu
psicológico pudesse lidar com a agressão de um homem que amei, que
confiei e acreditei nele, que fez um filho em mim? Se isso tudo é só o meu
mecanismo de defesa para não colapsar de vez? Não quero me
responsabilizar por Pierre estar prejudicado nesse momento, podendo ser
acusado de estupro de vulnerável, mas não consigo afastar a culpa do meu
coração.
Talvez se eu não tivesse parado com minhas consultas, se tivesse dado
uma chance para minha psicóloga notar que estava bloqueando minhas
emoções e as refletindo em outros comportamentos, se tivesse notado os
sinais de que meu comportamento não era o habitual de mim, talvez ele não
estivesse sendo prejudicado nesse momento.
Meus pensamentos são interrompidos quando meu celular apita sobre o
criado-mudo. É uma mensagem de Legrand respondendo a minha.

“Tire o tempo que precisar. Imagino que não está sendo fácil. Se
cuida”.

Sorrio pequeno diante das palavras na tela do meu telefone e o afasto


para longe de mim, tomando uma decisão súbita. Vou me demitir. Vou
agradecer imensamente Gustave pela oportunidade que me deu, mas vou me
demitir. Primeiro, porque não vou conseguir trabalhar naquele lugar sabendo
que Pierre foi afastado por minha causa, que algumas pessoas sabem que
transamos naquele consultório, incluindo Legrand. Jamais vou olhá-lo de
novo sem sentir uma onda de vergonha se apossar do meu rosto. Segundo,
porque acredito que preciso de um tempo para mim, um tempo que não tive
desde tudo, um tempo para cuidar da minha saúde mental como deveria estar
fazendo há tempos, para aprender a lidar com meu trauma da forma correta,
em vez de, inconscientemente, suprimi-lo.
— Podemos ir até a cafeteria de Dousseau? — pergunto para Adrien,
colocando as pernas para fora da cama, finalmente. — Quero saber como
Ann-Marie está depois que aquele traste a agrediu. A gente aproveita e toma
um café por lá. Pode ser?
Um sorriso grandioso e bonito corta o rosto do meu primo, que abana a
cabeça e diz que vai me dar espaço para me trocar. Escolho um vestido azul e
sapatilhas. Em dez minutos estou pronta, e em mais vinte chegamos ao
Avenue Coffee. Dou uma olhada para trás antes de entrar, na galeria que
pertence a Leclerc, e engulo em seco, tentando ignorar a aflição repentina no
meu peito. Adrien circunda minha cintura e me olha atentamente, passando-
me segurança. Sorrio e empurro as folhas duplas da cafeteria. Assim que
entro, sinto uma atmosfera diferente. Não sei se é meu sexto sentido dizendo
que alguma coisa não está bem ou se isso é só uma reação minha depois de
pisar aqui pela primeira vez desde o ataque de Antony.
A garota que foi minha subgerente contorna o balcão e vem me
recepcionar assim que me vê. Toma-me em um abraço não muito apertado e,
enquanto retribuo ao gesto, dou uma olhada no local. Está como sempre
esteve, mesma decoração, mesma disposição dos móveis, relativamente vazio
para o meio da semana às onze da manhã, o que é bastante normal. Ouço-a
exclamar sobre minha barriga de seis meses e como o tempo passou rápido.
Abano a cabeça em positivo, tendo que concordar. Parece que foi ontem que
descobri que seria mãe e agora falta pouco tempo para Valentin nascer.
— Bernardo está? — pergunto, depois que jogamos um minuto de
conversa fora sobre minha gestação e de eu apresentá-la a Adrien.
Os olhos dela se abatem de repente, logo após a minha menção a
Dousseau. Por algum motivo, consigo sentir que tem alguma coisa de errado.
— Você não soube? — indaga com um murmuro. — Ele está no
hospital. Foi baleado pelo monsieur Leclerc essa madrugada. Parece que
estava tendo um caso com a esposa dele e o homem descobriu.
Sinto minhas pernas bambearem. Os braços de Adrien me amparam
enquanto ainda processo o que ouvi. Lágrimas vêm aos meus olhos e meu
coração entala na garganta. Minha voz balbucia em um “como ele está?” e a
resposta que obtenho é a coisa mais desagradável do mundo. Nada bem.
Estável, mas nada bem. Meu primo me leva até uma das mesas e puxa uma
cadeira para mim. Fico letárgica por alguns segundos, horrorizada que
Antony tenha tentando matar Bernardo. Sinceramente, não sei por que me
surpreendo, ele tentou fazer o mesmo comigo. Ainda assim, saber disso me
deixa aterrorizada, em pânico, culpada.
Culpada porque ontem mesmo Antony esteve comigo, descontrolado
querendo saber há quanto tempo eu tinha conhecimento do envolvimento de
Bernardo e Ann-Marie. Eu sabia que o homem ia fazer alguma besteira.
Deveria tê-los alertado, não? Ter feito uma ligação, ter dito a Dousseau para
tomar cuidado porque Leclerc já estava sabendo do caso entre ele e Ann-
Marie. Mas não o fiz. Pierre apareceu naquele momento e rompeu comigo, o
que mexeu com a minha cabeça de uma maneira que me fez esquecer de
qualquer outra coisa. Quando Pierre foi embora, apenas me deitei nas pernas
de Adrien, sentado no sofá, chorei um pouco e adormeci.
Enquanto processo o fato de Bernardo, meu ex-patrão extravagante,
cheio de humor, mulherengo descompromissado, inoportuno nas horas mais
inconvenientes, que me ajudou o quanto pôde quando precisei dele, estar
entre a vida e a morte, a garota me conta um pouco do que sabe e um alívio
imenso invade meu coração quando me diz que Antony foi preso em
flagrante. Não presto atenção nos detalhes de como essa prisão aconteceu
porque, por dentro, estou aliviada demais que esse homem não será mais um
risco para alguém estando atrás das grades. Embora às custas de Dousseau.
Meu Deus, sentir-me assim é tão terrível.
Despeço-me dela, meu coração apertado e aflito com o momento, e
peço para Adrien me levar até o hospital onde Bernardo está internado, no
mesmo lugar onde Pierre trabalha. Trabalhava. Fico tentada a desejar que ele
esteja lá, por qualquer motivo, e a gente se esbarre. Na recepção, encontro
Ann-Marie, aflita, perto de um casal de senhores, os pais de Bernardo.
Reconheço-os de terem ido vez ou outra na cafeteria. Vou até ela e a abraço
com força, deixando que as lágrimas desçam pelo meu rosto. Sinto que, de
algum modo, poderia ter evitado essa tragédia. A mulher esconde o rosto
contra meu pescoço e desaba. Pergunto dele, do seu estado, e leva algum
tempo para me dizer que está em coma, o que já tinha sido me dito minutos
atrás. Fecho os olhos e os aperto com força, apenas desejando que Bernardo
melhore logo.
— Obrigada por ter vindo — Ann-Marie agradece, afastando-se de
mim e me segurando pelas mãos. Seus olhos marejados e repletos de tristeza
descem até meu abdômen e ela se permite um sorriso fúnebre.
— Qualquer coisa que precisar e se eu puder ajudar de alguma maneira
— digo, apertando seus dedos nos meus — pode me procurar, oui?
Ela me abraça uma última vez e agradece de novo. Então, vou embora.
As visitas ainda não estão liberadas, exceto para os familiares, e não tenho
nenhuma utilidade aqui no momento. Em casa, me refugio no quarto,
deitando-me na cama e abraçando meus joelhos, permitindo mais uma vez
que meu pranto venha e me inunde, dando-me aquela sensação de culpa e
remorso. Adrien se deita do meu lado, abraçando-me e escondendo o rosto
contra minha nuca. Ele não diz nada, só fica aqui comigo, deixando-me
descarregar todos os meus sentimentos, sabendo que preciso me libertar de
cada maldito sufocamento. Não é só por Bernardo. É por mim, por Pierre,
pelos erros idiotas que cometi, pela culpa da qual ainda não consigo me
livrar, pelo arrependimento de tanta coisa que fiz ou deixei de fazer batendo
na minha porta.
Preciso desabar nesse momento, como uma forma de lavar minha alma,
livrar-me desse peso, nem que seja somente um pouco, para que eu possa
recomeçar minha vida da melhor maneira que encontrar. Não vai ser fácil, vai
doer e preferia que Pierre estivesse aqui comigo.
Mas vou conseguir.

Sinto-me a pessoa mais horrível do mundo por um pingo de felicidade


se apossar do meu coração nesse momento. Não compreendo como posso
estar feliz com isso e parece, inclusive, desumano da minha parte. Entretanto,
não posso evitar o alívio e o leve sorriso no meu rosto, junto com o balbuciar
das minhas pernas que me fazem afundar no sofá, quando do outro lado da
linha Emilien me dá essa notícia.
Antony está morto.
Meus olhos marejam e nem é de tristeza. É aquela pontinha de
felicidade de saber que o mundo se livrou de alguém tão podre, sem-caráter e
desalmado como Antony Leclerc. Lá no fundo da minha consciência, porém,
tem uma vozinha me dizendo que sentir-me feliz pela morte de uma pessoa é
cruel, que isso demonstra que não sou nem um pouco evoluída
espiritualmente. Dane-se. Aquele homem me espancou, agrediu a esposa e
tentou matar um homem. Piedade para quê?
Emil me explica meio por cima, falando apressadamente porque em
dois minutos tem uma reunião. Só sei que o canalha se envolveu em uma
briga na prisão e foi espancado até a morte. Quando encerro a ligação, abraço
meu celular por um segundo, deixando uma lágrima escorrer pelo meu rosto.
Procuro pelas horas e constato que ainda tem uns quinze minutos até minha
sessão com a psicóloga. Levanto-me do sofá de espera e corro até o toalete.
Encaro meu rosto mais arredondado, agora que já tem dois dias que
entrei no oitavo mês de gestação. Trinta e uma semanas. A nova obstetra que
está me acompanhando é uma boa médica, ela mesma quem entrou em
contato comigo naquela semana do meu rompimento com Pierre, por causa
de um pedido dele para que acompanhasse meu último trimestre, caso fosse
do meu interesse. Não vou mentir, pesquisei sim sobre a mulher e descobri
que é uma das melhores ginecologistas de Paris, o que me deixou bem mais
confiante para entregar a saúde minha e do meu bebê nas suas mãos.
Pierre. Eu não o vejo ou falo com ele desde aquele dia. Cortamos
contato radicalmente e sei que ele fez isso para que eu conseguisse “separar o
joio do trigo”, como me disse sete semanas atrás. Tenho feito minhas sessões
de terapia e preciso admitir que, desde que nos separamos, meu
comportamento mudou. Eu via nele um porto seguro, alguém em quem
confiava cegamente, e muito por isso estava bloqueando minhas emoções, o
que colaborava para que não tivesse nenhuma reação crítica ao trauma,
embora tenha refletido isso em uma postura abusiva e numa dependência
emocional nada saudável.
Os pesadelos com Antony retornaram desde que Pierre se afastou, nada
muito crítico, mas que não deixava de ser terrível para mim. Fiquei levemente
mais paranoica, conferindo todo o tempo as trancas de portas e janelas, não
conseguindo ir à padaria a duzentos metros de casa sozinha. Quando me
forçava a isso, tinha sempre uma sensação de estar sendo perseguida, mesmo
sabendo que o desgraçado estava atrás das grades. Adrien tornou a dormir no
meu sofá porque só conseguia me sentir mais segura com ele lá.
Tenho, aos poucos, trabalhado tudo isso nas sessões com a psicóloga e
já notei uma melhora. Diminui a quantia de vezes que confiro as trancas e
não mais me assusto tanto quando minha campainha toca.
O que não mudou, contudo, foi a falta que aquele homem causa em
mim. Estamos trabalhando isso também, esse sentimento de gratidão e
endeusamento que criei com Pierre, desfazendo, gradualmente, minha
dependência emocional. Não sei se não estamos fazendo progressos, porque
sinto saudades dele todos os dias, ou se o fato de sentir saudade é uma prova
de que gosto dele de verdade.
Seja como for, não o vejo desde então. Soube, ouvindo uma conversa
clandestina de Adrien pelo telefone, que ele está em Rennes, passando um
tempo com o pai e a madrasta. Não sei o que aconteceu com sua carreira,
nem com a guarda do sobrinho. Preferi não saber, com medo de que,
dependendo do que descobrisse, isso atrapalhasse meu progresso nas
consultas. Jardel, o diretor da clínica com a qual não tenho mais nenhum
vínculo empregatício, quis me contar, mas preferi me abster. Durante umas
cinco semanas, também conversei com Guillot, o psicólogo da instituição,
enquanto apuravam meu envolvimento com Pierre. Conversei umas três
vezes na semana com o doutor, ao menos, como parte da apuração. Nunca
soube se nossas conversas nessas sessões, se o meu “diagnóstico”, o
condenaram por estupro de vulnerável ou se o absolveram.
E prefiro me manter assim. Ao menos por enquanto.
São quase dois meses sem contato nenhum com ele, mas agora,
enquanto me encaro no espelho, penso seriamente em quebrar essa regra. Só
uma mísera ligação para contar que Antony não é mais uma ameaça para
nenhum de nós. Demoro cerca de cinco minutos para decidir se ligo ou não,
vagando em pensamentos, lembranças, levantando pós e contras do que me
causaria uma contato desses. Inspirando fundo, tomo minha decisão.
Retiro o telefone de dentro da minha bolsa e disco seu número. Toca
uma porção de vezes antes de cair na caixa-postal. Tento de novo, mas
obtenho o mesmo resultado. Uma parte de mim sabe que ele está ignorando
minha chamada, forçando-nos a continuar sem nenhum contato. Outra parte
de mim só quer acreditar que ele não está por perto. Tento uma terceira vez e,
assim que sou direcionada para a secretária eletrônica, deixo um recado:
— Pierre, sou eu. — Faço uma pausa relativamente longa, olhando para
meu reflexo, organizando minhas palavras. — Desculpe entrar em contato.
Sei que não deveria. Só queria te dizer que estamos bem e sentimos sua falta.
Valentin… ele sente sua falta, falta da sua voz, de conversar com ele. —
Engulo em seco, sabendo que não deveria estar falando nada disso, apesar de
ser verdade. Era para ser uma ligação onde apenas informaria a morte
daquele traste. — Também gostaria que soubesse que Antony está morto.
Parece que se envolveu numa briga na prisão. Ele… não poderá mais causar
nenhum mal a ninguém. — Outra pausa longa, meus pensamentos levando-
me para Bernardo, que está bem e acabou de voltar do Brasil, recuperado e ao
lado da mulher que ama.
Decido não me despedir e encerro a ligação. Uma lágrima desce pelo
meu rosto, meus hormônios de grávida ainda me subjugando. Forço-me a ser
forte nesse momento e a voltar para a recepção.
Tenho uma consulta em cinco minutos.
PIERRE
Confiro meus pertences pela vigésima vez dentro da caixa, só para
garantir que não estou me esquecendo de nada ou levando algo que não seja
meu, porque a sala de atendimento não é só minha; divido-a com outros dois
colegas da área. É meu primeiro ritual do dia, e ainda terei mais um, quando
tiver de buscar minhas coisas no consultório da clínica. Confirmando que
tudo o que é meu está comigo, dou uma olhada pela última vez ao meu redor,
sentindo falta daqui antes mesmo de ir embora.
Suspiro, pegando o jaleco acomodado no espaldar da minha cadeira.
Fixo os olhos no meu nome bordado levemente desbotado, porque a peça já
tem algum tempo que foi confeccionada, coisa da minha madrasta que fez
questão de me dar meu primeiro jaleco depois de ter me especializado. Sorrio
para mim mesmo, meio fúnebre com as lembranças, sentindo falta do meu
velho. Talvez deixe Paris por um tempo, se tudo der certo, e vá me refugiar
na casa do meu pai, em Rennes.
Pego a caixa entre meus braços e saio do consultório, batendo a porta
suavemente com o pé para que feche. Caminho devagar até a sala dos
atendentes. Ainda tenho coisa ou outra por lá que preciso pegar antes de ir
embora. Ignoro alguns cochichos pelos corredores quando passo, não me
dando o luxo de me importar com que as pessoas, que já estão sabendo do
meu afastamento e muito provavelmente do motivo dele, ainda que tenham
ouvido algo distorcido, e não a versão verdadeira dos fatos, pensam de mim.
Minha consciência está tranquila em relação ao meu envolvimento com
Juliette. Em nenhum momento me aproveitei do seu estado vulnerável para
assediá-la.
Deixo o papelão aos meus pés quando chego e vou direto para meu
armário. Tem mais um jaleco, uniforme do hospital, alguns itens de higiene
pessoal, desodorante, escova de cabelos, carregador de celular, algumas fotos
do meu sobrinho penduradas na portinhola. Junto tudo e jogo na caixa,
esvaziando o meu lado do armário e sentindo como se estivesse esvaziando
minha própria vida.
Sento-me em torno da mesa redonda por um instante, forçando as
lágrimas a ficarem nos meus olhos e me forçando a pensar que tudo vai ficar
bem. Só que é um pouco difícil ter esperanças agora, com essa droga de
audiência com Francine pela custódia de Édou e o processo da clínica em
apurar minha relação com Julie. E se tudo nessa merda der errado? E se
constatarem que me aproveitei dela e cassarem minha licença médica? E se
isso for um fator determinante para o juiz familiar conceder a guarda do meu
sobrinho àquela mulher?
Tento não pensar negativo. Minha madrasta já dizia que pensamentos
ruins atraem coisas ruins. Esforço-me para me manter positivo, o que é
bastante difícil e, de repente, demoro a notar que estou com o rosto entre as
mãos, cabisbaixo, cotovelos na mesa, apertando os olhos e deixando as gotas
salgadas escapulirem de mim. Sozinho, permito-me chorar e pensar que tudo
vai dar errado, sofrendo antecipadamente por isso. Permito-me imaginar
perdendo minha licença e procurando outra área para trabalhar, embora não
me veja fazendo outra coisa a não ser medicina, ginecologia, obstetrícia.
Sempre amei minha profissão, o que escolhi para minha vida, e nunca pensei,
nem por um momento, como seria sem ela. A verdade nua, crua e cruel
agora, bem diante os meus olhos, pensando pela primeira vez que é uma
possibilidade real não poder exercer mais meu ofício, é que vou entrar em
desespero se tiver de me afastar do que tanto amo fazer.
Meu choro dura um ou dois minutos, carregado como poucas vezes é.
Inspiro fundo, secando o rosto com as costas das mãos, e endireito a postura,
recuperando-me do meu breve e necessário momento. Penso que é hora de
me despedir e ir embora quando a porta se abre e nem me surpreendo que
seja Francine quem entra, seus cabelos perfeitamente amarrados em um rabo
de cavalo, de uniforme e jaleco. Ela para ao me ver, analisa a caixa comigo e
se aproxima. Só quero ir embora. Preciso passar na clínica, depois ir para
casa e me preparar para a maldita audiência à tarde. Ainda nem entrei em
contato com meu advogado.
— Gostaria de te lembrar…
— Me poupa — interrompo-a, saindo do meu lugar e pegando minha
caixa. — Não precisa me lembrar. Não é como se eu fosse me esquecer dessa
maldita audiência, Francine. Estarei lá, não se preocupa.
Ela não responde nada, apenas abana a cabeça em positivo, contrariada,
e se afasta em direção ao seu armário. Observo-a por um segundo,
perguntando-me, pela primeira vez, por que diabos está fazendo isso. Por
mais que eu queira ir embora, decido ficar e questioná-la.
— Por que está tentando tomar Édouard de mim?
Francine se vira na minha direção, tirando o jaleco. Ela o dobra
delicadamente e guarda no seu lado do armário, enquanto responde:
— Porque me importo e só quero o melhor para ele. E o melhor para
ele com toda certeza não é viver em um lar negligenciado.
Dou uma risada histérica, não podendo acreditar que ela realmente
argumentou isso.
— Lar negligenciado? — indago, inconformado com essa acusação
absurda. — Sériux?
— Vejamos, Pierre. Étienne perdeu o juízo quando a esposa sumiu e
passou, sim, a negligenciar o menino. Tanto é que, quando notou que não
estava bem para cuidar dele, passou a guarda para você. Mesmo sabendo que
seu irmão não tinha nenhuma condição de ficar com o menino, você o
deixava sob seus cuidados para ir se encontrar com sua namorada, que não
por acaso era uma paciente sua. Uma paciente de quem você se aproveitou de
um momento de fragilidade…
— Nem se atreva a terminar esse absurdo — digo, entre os dentes, e no
rosto dela cresce um sorriso vitorioso.
— O fato é que — continua — você o deixou com o pai negligente por
mais de uma vez e num desses episódios o menino foi atropelado. Poderia ter
morrido. Então acho que sim, Édouard está em um lar negligente.
Vou até ela, furioso, mas me contenho dessa vez porque não vou
mesmo perder o controle para ela distorcer tudo na frente do juiz e ainda
alegar que sou um cara violento. Paro a um passo dela e respiro fundo, seus
olhos me encarando despreocupadamente. De repente, é como se todas as
respostas clareassem minha mente. Sei exatamente por que Francine está
fazendo isso. Não é porque se preocupa com meu sobrinho — embora saiba
que, apesar de tudo, realmente se importa com o menino —, nem porque
afirma que estamos o negligenciando. Perrot sabe que não é bem assim,
mesmo que, em algum nível, esteja certa. Errei diversas vezes confiando a
segurança de Édouard ao pai, que já tinha se mostrado uma porção de vezes
incapaz de assegurar o mínimo ao menino, mas, ainda assim, não há
negligência de minha parte.
Não. Ela não está com essa maldita história de querer a custódia do
garoto porque se importa com ele, e a mulher também não é burra o bastante
para usar isso como chantagem. Sabe que não funcionaria comigo tentar
barganhar a guarda dele em troca de reatarmos. Lutaria até o fim pelo meu
sobrinho, mas não me submeteria a um relacionamento com ela outra vez,
além de que essa sua atitude só intensificaria minha raiva e asco por ela.
Agora, enquanto fito seus olhos suaves e o sorriso pequeno de vitória,
entendo perfeitamente seus motivos. Ela não está preocupada com o menino
nem quer barganhar a custódia dele. Tudo o que Francine Perrot quer é
simples e puramente me atazanar, me ver desesperado, fora de controle, sem
rumo. A maldita quer me fazer perder a guarda do garoto só para me ver
definhando e entrando em conflito com meu irmão. Édouard é meu ponto
fraco, ela sabe disso e está mexendo na parte que mais me atinge.
— Só quer infernizar minha vida, não é, Francine? Nunca aceitou nosso
término, sabe que chantagem nenhuma funcionaria comigo, que eu jamais
voltaria para você. Está me punindo. Essa história de querer a guarda de
Édouard é só o seu modo de me punir, não é porque está preocupada com a
integridade dele.
Perrot fica um longo segundo em silêncio, sem expressar emoção
nenhuma, apenas fitando-me fixamente. Até que, pouco a pouco, um sorriso
de escárnio vai surgindo na sua boca. Ela se vira de costas e tira o jaleco,
jogando-o no seu compartimento.
— Não esqueça de levar seu advogado — diz, tornando a virar para
mim, cada traço do seu rosto, o modo como me olha, como sorri, sendo uma
resposta positiva e silenciosa para o meu questionamento.
Francine sai da sala e tudo que desejo é ter algo para socar.

Acomodo a caixa com meus pertences no porta-malas e a encaro por


dois segundos antes de descer a porta. Estou contornando meu carro quando
vejo Emilien ao longe, caminhando de cabeça baixa, vestido de um jeito
informal demais que, embora não sejamos amigos íntimos, pouco vi, com
calça jeans e camisa preta. Estranho sua presença aqui e caminho na sua
direção, abordando-o:
— Dupont?
Quando o homem ergue os olhos azuis para mim, tem uma profunda
tristeza neles, toda a sua postura demonstrando que tem algo o perturbando
nesse momento. Não sei por qual motivo, mas meu coração vem parar na
garganta.
— Oi, Laurent — diz, com um suspiro cansado, passando os dedos
pelos fios desgrenhados.
— Aconteceu alguma coisa? — pergunto, preocupado com o estado
dele.
— Antony tentou matar o Bernardo — dispara, sem nem mesmo me
preparar antes. — Descobriu que a esposa estava dormindo com ele.
Uma bile sobe pela minha garganta, amargando a boca, e meu corpo
estremece. Lembro-me da sua ameaça velada quando esteve no meu
apartamento, demarcando que agora sabia tudo sobre mim e poderia usar
minha família para me atingir. Engulo em seco, murmurando em seguida um
“Meu Deus”, estarrecido com a crueldade sem limites desse homem. Ele
claramente é um perigo à sociedade. Quero saber do estado clínico de
Bernardo. Emil me diz que estável e em coma. Sei que os dois são amigos e
que o abatimento em Dupont é compreensível, mas, ainda assim, algo em
mim diz que tem outra coisa o perturbando.
— Não é só isso, não é? — interpelo.
O homem deixa um suspiro exasperado e angustiado escapar do fundo
da sua garganta.
— Antony está me chantageando. De novo. Quer um bom advogado
para tentar amenizar sua pena ou vai expor o meu passado. Eu… estou num
maldito conflito interno. Não posso ajudar uma pessoa que fraudou minha
empresa, espancou uma mulher grávida, agrediu a esposa e tentou matar um
homem, mas também não posso arriscar ter meu passado trazido à tona.
Desvio o olhar por um segundo, sentindo uma raiva insana me
consumir. Não por Emil, que também está nas mãos desse desgraçado e está
fazendo o que pode, mas por Antony, pela ameaça que ele representa a todos
nós.
— Onde ele está agora? — pergunto, olhando por cima do seu ombro,
trincando os dentes com tanta força que parece que vou rachá-los ao meio.
— Na delegacia. Parece que vai ser transferido para a penitenciária
amanhã.
Peço o endereço exato do local onde Leclerc está detido, e Emil,
mesmo meio ressabiado, recita a informação. Entro no meu carro, batendo a
porta com toda força e ignorando os questionamentos dele sobre o que é que
vou fazer.
Dou ré e manobro o veículo, deixando o estacionamento do hospital,
enquanto o pneu canta. Um ódio estranho toma cada conta de mim, nublando
minha visão, meu julgamento, minha razão. Seria capaz de jogar esse maldito
carro em cima dele se estivesse atravessando a rua. Leva só dez minutos até
eu chegar à delegacia. Peço algumas informações e demora mais cinco
minutos até que consigo entrar para vê-lo. Ele está numa cela, seu olhar
cínico sobre mim. O homem se aproxima, enfiando os braços por entre as
grades.
— Que visita inesperada — debocha.
Pergunto-me como pode agir assim. Tentou matar um homem e não
tem mesmo nenhum traço de arrependimento nos seus olhos.
— Como consegue ser tão podre, Antony? — questiono, segurando a
raiva atrás dos dentes.
Ele nem se esforça para tentar entender do que estou falando.
— Bernardo estava comendo a minha mulher.
Uma risada de nervoso escapa de mim. Maldito hipócrita.
— Como se você tivesse moral para isso.
Ele não diz nada, encarando-me por longos segundos com um olhar
desinteressado e tedioso.
— O que veio fazer aqui, Laurent? — pergunta, arqueando as
sobrancelhas.
Dou um passo à frente, ficando um pouco mais próximo dele.
— Vim abrir uma queixa contra você. Duas, na verdade. Por ter ido até
a minha casa ameaçar fazer algum mal para meu irmão e meu sobrinho, e por
ter espancado Juliette. Já a convenci a te denunciar — blefo a última parte. —
Isso deve ajudar a agravar a sua pena. Talvez nem mesmo o melhor advogado
de Emilien seja capaz de reduzir sua punição.
O cinismo vai embora dos olhos dele no mesmo instante. No lugar, fica
só raiva desenfreada, ódio puro e genuíno.
— Faça isso — encoraja-me, dentes cerrados, um sorriso maldoso
manifestando-se gradualmente. — Mas saiba que, uma hora ou outra, vou
ficar livre. E quando isso acontecer, Pierre, vou me lembrar das vezes que me
afrontou e vou atrás de quem você ama. Do seu irmão, do seu sobrinho,
daquela puta e do bastardo. Ou talvez nem precise esperar tanto. Posso
mandar alguém fazer isso por mim.
Uma onda de náusea e cólera apossa do meu corpo, deixando-me
levemente tonto. Nunca duvidei da capacidade cruel desse homem e fico
insano só de pensar que ele tem mesmo coragem de cumprir uma ameaça
como essa.
— Você não vai durar o suficiente para isso, Leclerc — digo apenas,
girando nos calcanhares.
Corro de volta para meu carro, literalmente, sentindo adrenalina e medo
nas minhas veias sanguíneas. No lugar do motorista, descarrego toda fúria no
volante, um grito alto escapando de mim a cada soco que invisto. Obrigo-me
a ficar calmo, esfriar a cabeça, pensar direito. Inspiro e expiro uma porção de
vezes até que estou no controle da situação de novo. Giro a chave na ignição
e tomo as ruas da capital pensando no que precisa ser feito para proteger
aqueles que amo.

— Trouxe o queijo que te pedi? — meu pai pergunta, frente ao fogão,


terminando de preparar o arroz.
Coloco as sacolas do supermercado sobre a mesa e confiro se realmente
trouxe. Da última vez que fui às compras, passei o produto no caixa, paguei,
mas na hora de embalar devo ter me esquecido e ficou por lá mesmo. Acho
que era um vinho.
Encontro a embalagem do queijo brie.
— Sim, tudo aqui — digo, desembalando os produtos.
Meu telefone começa a tocar dentro do bolso. No visor, o número dela
identificado faz todo o meu corpo vibrar. Juliette e eu não nos falamos desde
aquele dia na casa dela, em que rompemos. Decidi que precisávamos nos
afastar completamente. Encaro o seu número piscando na frente dos meus
olhos e é uma luta árdua simplesmente deixá-lo tocar. Não vou atender.
Embora sinta que faz séculos que estou longe de Julie, só tem dois meses.
Ainda é cedo para qualquer coisa. Suspiro e deixo o celular sobre a mesa,
tocando, e começo a guardar a compra.
— Não vai atender? — Joseph pergunta, secando as mãos em um pano
de prato. Ele se aproxima e dá uma espiadela. O semblante do meu pai
enruga e ele se vira para mim. — É aquela moça que quase afundou sua
carreira?
— Pai — advirto-o, com um suspiro —, eu quase afundei minha
carreira.
Ele passa a me ajudar com os alimentos, organizando-os a seu modo no
armário, tudo separado devidamente, colocando os novos produtos atrás dos
antigos, que vencem primeiro. Meu pai não diz nada por um tempo, e eu
tampouco. Afasto-me, deixando-o organizar a comida porque sei que gosta
que tudo esteja da sua maneira, e limpo a mesa, preparando-a para o almoço
em breve. Estico a toalha e separo os talheres.
— Por que não atende? — resmunga, quando meu telefone toca pela
segunda vez.
Suspiro e me encosto à mesa, observando-o tornar às suas panelas.
— É cedo para nos falarmos. Não quero interferir em nada ainda.
Prefiro assim.
Meu velho me estuda com um sorriso pequeno, paternal, que não sei
dizer se é de compreensão, de compaixão, de tristeza. É claro que ele rezou
um belo de um sermão quando apareci aqui, quase um mês atrás, de mala e
cuia, perguntando se poderia passar uma temporada com ele e minha
madrasta, e tive de explicar por que fui afastado das minhas funções. Apesar
de ter me advertido como se eu fosse uma criança de cinco anos, me acolheu
com todo amor e disse que me apoiaria no que fosse preciso.
Só vim também depois que parte da minha vida entrou nos eixos.
Francine não conseguiu a custódia de Édouard. Logo depois da audiência e
de o juiz ter entendido que não havia provas suficientes de negligência contra
o garoto, uma assistente social começou a acompanhar a rotina do meu
sobrinho para avaliar se não estava mesmo sendo negligenciado. Foi quase
um mês até a audiência que determinou que a guarda continua comigo. Acho
que se ela tivesse alegado que abusei de uma paciente, tivesse ganhado a
causa, mas Perrot não fez isso. Não sei por quê. Talvez porque sabe que
jamais seria capaz de algo tão desprezível e ela não seja capaz de se rebaixar
a tanto. Não sei. E a verdade é que nem quero tentar entender a cabeça
daquela mulher. Meu sobrinho continua sob meus cuidados e do meu irmão,
é isso que importa.
Em paralelo a isso, tive que enfrentar a apuração da clínica e do
hospital sobre meu envolvimento com uma paciente. Soube que Juliette
conversou com Guillot ao menos três vezes por semana por praticamente um
mês. Exaustivamente, três vezes por semana, Jardel dissecava meu
depoimento, queria saber diversas vezes sobre como me envolvi com Juliette,
quando, por quê. Junto com o psicólogo, com quem também conversei,
muitas vezes repassando a história de sempre. No final, fui absolvido de uma
iminente acusação de estupro de vulnerável. Segundo o diagnóstico de
Guillot, e o no entendimento de Jardel, não houve nenhum abuso da minha
parte, não houve nenhum indício de que me aproveitei do vínculo emocional
que Juliette criou para coagi-la a sexo comigo. O que não significa que fiquei
impune. Eles ainda compreendiam que, apesar de não ter me aproveitado da
sua situação psicológica, não muda o fato de que me envolvi com uma
paciente vulnerável, que fui contra as regras éticas da clínica, do hospital, do
conselho médico. Fui demitido, mantiveram minha licença, mas estou
impedido de trabalhar em qualquer instituição pública ou privada por um ano.
— Você sempre foi ajuizado, Pierre — meu pai diz, pegando a panela
de arroz e a apoiando sobre o descanso na mesa. — Não sei onde estava com
a cabeça quando foi se envolver com uma paciente. Grávida de um filho
quem nem é seu.
Eu me abstenho de resposta. Semanas atrás, ele me questionou o
mesmo e quase disse que não só estava namorando uma mulher grávida como
queria um futuro onde ela e o garoto tinham o meu sobrenome. Não disse
nada porque tive medo do julgamento de Joseph. Não que me importe com o
que meu pai pensa sobre eu querer assumir um filho que não é meu, mas a
questão é que prefiro evitar qualquer discussão boba com meu velho.
Meu telefone toca pela terceira vez e enrugo o cenho quando vejo o
nome dela outra vez na tela. Será que é alguma coisa urgente? Fico tentado a
atender, mas resisto. Vou ligar para Adrien e saber o que está acontecendo, se
é alguma emergência, se ela precisa de mim para qualquer coisa. Um minuto
depois da sua última ligação, a operadora me informa que tenho uma
mensagem na caixa-postal. Meu coração erra uma batida. Juliette deixou uma
mensagem na caixa-postal. Com as mãos um pouco trêmulas, pego meu
telefone e decido ouvir a mensagem.
Meu pai termina de pôr à mesa quando minha madrasta chega da horta,
com um monte de hortaliças nas mãos, tagarelando alguma coisa para o
marido, e eu estou escutando a mensagem dela. Sinto minhas pernas darem
uma bambeada quando ela diz que Antony está morto. Que se envolveu em
alguma briga na cadeia e morreu. Uma dor lancinante de repente atinge meu
estômago e minha visão embaça, a pressão arterial caindo. Deixo o celular
despencar dos meus dedos e saio em disparada, Joseph gritando meu nome e
perguntando se me sinto bem.
Alcanço o banheiro da sala, me ajoelho em frente ao vaso sanitário e
despejo todo o café da manhã. O vômito vem em ondas fortes, forçando meu
estômago, expulsando toda a minha refeição como se fosse uma intrusa
indesejada. Meu pai adentra o ambiente, apoia a mão no meu ombro,
querendo saber o que há comigo.
Meio cambaleando, me levanto e me escoro à pia, olhando-me no
espelho. As lágrimas queimam meus olhos, o gosto amargo de conteúdo
gástrico na minha língua. Minha cabeça começa a doer e sei que é peso na
consciência.
— Pierre? — papai insiste.
Pisco duas vezes e suspiro. Uso uma medida pequena de enxaguante
bucal para tirar o gosto ruim da boca. Depois de cuspir na pia e fazer um
bochecho com água, viro-me para meu pai, cabisbaixo, e respondo.
— Estou bem. Deve ser algo que comi.
Joseph tenta perguntar mais alguma coisa, quer me examinar, pede para
eu abrir a boca. Coisa de médico. Mas asseguro que estou bem. Com minha
insistência, ele apenas acena em positivo e me diz que qualquer coisa que
precisar é só dizer. Ao deixar o banheiro, fecho a porta rapidamente e passo a
tranca.
Inspiro fundo, todo meu corpo levemente trêmulo. Lavo o rosto, a água
gelada ajudando a diminuir a temperatura do meu organismo que subiu de
repente. Devagar, ergo o olhar para o espelho, encarando meu reflexo. O
rosto que vejo de volta é de alguém que vai ter de lidar com o que cometeu
pelo resto da vida, sozinho, sem poder dizer a ninguém seu segredo mais
profundo e sujo, levando-o para o túmulo consigo mesmo, não permitindo
que ninguém saiba.
Ninguém pode saber. Nem Étienne, nem Adrien, nem Juliette, nem
meu pai. Ninguém. Absolutamente ninguém pode saber que eu…
… mandei matar o Antony.
PIERRE
Tento me convencer de que estou fazendo a coisa certa enquanto o
espero. Estou nervoso como nunca estive em toda uma vida, mas a raiva, o
ódio e o medo sobressem a qualquer coisa nesse momento. É o que me
moveu até aqui, com essa ideia absurda, criminosa, necessária…
Jurei salvar e trazer vidas ao mundo, contudo, estou aqui agora,
rebaixando-me ao nível daquele ser humano desprezível, prestes a contrariar
o juramento que fiz na minha formatura. É ele ou a pessoas que amo. Prefiro
que seja ele. Suspiro, estralando os dedos, meu estômago doendo.
Um minuto mais tarde, o agente penitenciário surge acompanhado de
um segundo homem, alto, pele branca bronzeada, cabelos escuros, bíceps
grossos que facilmente partiriam um homem como eu ao meio. Othon é posto
à minha frente, algemado, e seus olhos se arregalam quando me reconhece.
Um sorriso fácil nasce à medida que o agente me dá algumas instruções e se
retira em seguida, dando-me privacidade com o prisioneiro.
— Doutor Laurent — diz, surpreso, e se recosta à cadeira, que range
ligeiramente com seu peso, já que ele é um homem enorme em altura e
largura. — Sua visita me intriga.
Puxo a carteira do bolso, abro-a e retiro uma fotografia, que arrasto na
sua direção em seguida. Othon a toma com as mãos algemadas e vejo como a
postura desse homenzarrão vacila quando reconhece e entende que é a filha
de quatro anos, uma menina negra, de cabelos crespos, bem-vestida. Ele
ergue os olhos para mim, marejados, e engole em seco, tentando recompor
sua compostura.
— Ela foi adotada por um casal de médicos amigos meus. É uma
menina feliz, com pais adotivos que a amam e que suprem todas as suas
necessidades — digo. Seus olhos se abaixam para a fotografia da menina.
— Como ela se chama?
— Aimée.
O homem suspira, arrastando a foto de volta para mim.
— Mantiveram o nome dela — observa.
Aceno em positivo, estudando a emoção genuína no seu rosto sofrido e
envelhecido. Lembro-me bem como o conheci. Era um dia chuvoso em Paris
e eu estava de plantão. Não tinha nem um ano direito que acabara de me
especializar e já tinha visto casos curiosos demais, mas o dele me intrigou em
especial. Dou uma leve risada, enquanto as recordações passam pela minha
cabeça: a esposa dele chegando na emergência com contrações, toda molhada
pela chuva, com um ferimento de bala no ombro esquerdo, sangrando aos
montes. Ele adentrou o hospital como um mamute desesperado, segurando a
mão da esposa enquanto sustentava, na mão direita, uma sacola preta de
tecido, que mais tarde viemos a descobrir que estava cheia de joias furtadas
de uma famosa joalheira da capital.
Eu não quis acreditar que uma mulher grávida estava assaltando uma
joalheria, em trabalho de parto, e trocou tiros com a polícia. Enquanto tentava
fugir, foi atingida por uma bala, mas ainda assim seu marido — e
companheiro de crime — acelerou o carro e a levou para o hospital. Com a
prova do delito na mão direita. Enquanto uma equipe cuidava do projétil
alojado no seu ombro, fiz o parto cesárea dela. Othon estava recebendo
ordem de prisão quando fui dar a notícia que sua filha tinha nascido. Ele
resistiu à prisão com facilidade e, com seu corpo enorme, mesmo com as
mãos algemadas para trás, desvencilhou-se dos dois policiais e veio na minha
direção perguntando pela esposa e por Aimée. Demorei a entender que a
última se referia à sua filha.
Othon foi preso; sua mulher, depois de alguns dias de recuperação,
também foi levada à penitenciária feminina. A criança, então, ia entrar para o
sistema de adoção. Quatro dias depois desse fato incomum, recebi uma
ligação da delegacia, onde Othon estava detido até ser transferido. O homem
queria falar comigo. Seu pedido era simples: que eu cuidasse bem da filha
dele, que encontrasse um bom lar, com pais que iam amá-la e que ela não
passasse de lar em lar. Sei que era um absurdo prometer uma coisa dessas,
mas prometi. De qualquer maneira, conhecia um casal de médicos no
Hospital da Salpêtrière que não conseguia conceber e estava ponderando
adoção.
Fiz um favor a ele quatro anos atrás. Talvez agora seja hora de eu pedir
algo em troca.
— Preciso de um favor seu, Othon — digo, minha voz saindo
levemente trêmula. Já tem uma maldita semana que Antony tentou matar
Bernardo. Foi transferido para La Santé três dias depois, então só faz quatro
que ele está aqui. — Conhece alguém aí dentro com sangue frio o bastante
para matar uma pessoa?
A expressão que ele faz é altamente compreensível. O homem se
inclina mais na minha direção, curioso, enrugando o cenho, as linhas de
expressão ao redor dos seus olhos mais acentuadas.
— Tem um grupo. Sempre tem. Os caras são barra pesada. Ninguém
nunca mexe com eles. Os que mexem se arrependem. Os que não mexem,
também. — Ele suspira, molhando o lábio inferior. — Às vezes estupram os
caras, só por diversão, com o pênis ou com qualquer objeto que tiverem.
Mesmo se o cara tiver entrado aqui porque roubou um pão. Eles não ligam
para essa merda.
Meu coração acelera um pouco mais dentro do peito e suspiro outra
vez, externando vagarosamente o nervosismo que ainda soca no meu interior.
— Receberam uma pessoa nova esses dias. Leclerc.
— O riquinho esnobe? — Parece reconhecer o sobrenome com
facilidade. — Ele fica numa ala especial, porque tem dinheiro e estudo, mas
se junta com todo mundo no banho de sol. Ele é na dele, não fala com
ninguém, acha que tem o Rei Sol na barriga.
Há um silêncio denso demais entre nós. Seus olhos escuros analíticos
encaram-me seriamente, a expressão no seu rosto não demorando a mostrar
que já entendeu quem é o alvo. Othon olha por cima do meu ombro, talvez
para a pequena e retangular janela de vidro na porta, por onde o agente
penitenciário pode nos ver, mas não ouvir, porque a sala tem isolamento
acústico. Inclina-se mais na minha direção.
— Quer comprar a morte dele? — sussurra, curioso, surpreso,
espantado.
Estou tudo isso também, Othon, não acreditando que estou mesmo
fazendo isso.
— Ele tentou matar um amigo meu, agrediu a esposa, chantageou outro
amigo, ameaçou machucar meu sobrinho, meu irmão, minha mulher e meu
filho — digo, entre os dentes, quase não me dando conta da última parte. —
Ele espancou minha namorada grávida, Othon — reforço. — Esse homem
um dia vai sair daqui e prometeu cumprir todas as suas ameaças. Não quero
pagar para ver. Só quero proteger as pessoas que amo, você me entende?
O homem grande me encara outra vez, seu rosto agora não mais curioso
e intrigado, mas estarrecido.
— Laurent… — Tenta dizer, mas o interrompo, arrastando a foto de
Aimée de volta na sua direção.
— Sua filha está bem. Tem uma família que a ama e que jamais vai
deixá-la passar por qualquer dificuldade. Mas e você, Othon? Quando sair
daqui, vai recomeçar como? Sabe que não vai ser fácil. Só se você tiver
alguma economia. Talvez uns dez mil euros, o que acha?
Othon arregala os olhos, recostando-se de volta na sua cadeira. Sei que
é uma jogada arriscada, que se ele quiser chamar agora mesmo o diretor do
presídio e me denunciar, ele pode. Mas do pouco que o conheci quatro anos
atrás, sei que tem um código moral e vai cumpri-lo. Ajudei a filha dele.
Aimée não ficou anos na adoção, nem pulou de lar e lar, tampouco cresceu
no orfanato. Ela está bem, não poderia estar melhor. Ele me deve essa. Só o
que estou pedindo não é nem para que mate Antony com suas próprias mãos,
mas que induza um grupo cruel o bastante para isso.
— Vai precisar, Othon — argumento. — Sei que pegou doze anos.
Cumpriu quatro. Em oito, você estará livre. Se aplicar esse dinheiro todo,
imagine o quanto vai render nesse período.
— Aplicar onde?
— Conheço um investidor que pode cuidar disso para mim — respondo
sem mais detalhes. — Invisto dez mil euros no seu nome. Em oito anos, vai
ter o suficiente para recomeçar sem passar necessidade nenhuma.
O homem engole em seco, olha de um lado a outro, umedecendo os
lábios.
— Tudo o que precisa fazer — murmuro — é dar um jeito para que
Antony arrume confusão com esse grupo. Uma confusão das grandes, que
gere raiva o suficiente para que receba uma surra que… — Não termino. Não
consigo terminar porque ainda não concebi que estou aqui, fazendo esse tipo
de pedido. — Não vai ser difícil. Como bem disse, ele acha que tem o rei na
barriga — finalizo.
Outros longos segundos se passam entre nós, Othon não sei se
analisando minha oferta ou se assustado com minha oferta. Talvez não
esperasse isso de mim. Eu mesmo não esperava isso de mim. Mas não vou
arriscar. De jeito nenhum. Antony já mostrou do que é capaz e, inclusive,
soube que tinha alguém a seu mando rodeando o hospital onde Bernardo
ainda se recupera. Está determinado a tirar a vida de Dousseau e nem mesmo
preso isso está o impedindo. Ele não pensaria duas vezes em me fazer algum
mal, ele não pensou duas vezes em fazer mal a Juliette, em espancá-la ainda
grávida. Talvez meus fins não justifiquem os meios, mas não vou ficar
parado, sem fazer nada, só esperando que mande alguém para machucar os
que eu amo.
— Dez mil euros? — Othon pergunta, trazendo-me de volta ao mundo
real.
— Isso. Deixarei em títulos no seu nome numa empresa de
investimentos. Quando sair daqui, basta requerer.
— Quando?
— Não agora. Espere uns dois meses mais ou menos. Não quero
ninguém levantando desconfianças.
Vagarosamente, ele acena e se ergue do seu lugar, toda a sua altura e
musculatura me dizendo que seria fácil demais ele mesmo fazer o serviço.
Apesar do tamanho desse homem, ele não me parece do tipo assassino.
Ladrão de joalherias, sim. Assassino, não. Othon não diz mais nada e começa
a caminhar em direção à porta, em um aceite silencioso à minha proposta. Ele
vai fazer isso.
— Posso confiar no seu sigilo, Othon? — pergunto, antes que chegue à
porta, que se abre e traz para dentro o agente penitenciário. Ele se vira na
minha direção e abre um leve sorriso.
— Por sua causa, Aimée está numa boa família. Pode contar comigo,
doutor Laurent. — É tudo o que diz antes de ser levado de volta à sua cela.

Saio do banheiro sentindo minhas pernas ainda bambas. Ouço o tilintar


das panelas vindo da cozinha, minha madrasta perguntando ao meu pai se
sabe o que há comigo. A resposta dele é a mesma que dei. Clandestinamente,
escoro-me na escada e vou subindo os degraus devagar, minha consciência
me atormentando.
Eu mandei matar um homem.
Quando enfiei isso na cabeça e fui até La Santé comprar a morte de
Antony, estava nervoso, mas não imaginei que quando isso de fato se
concretizasse, ia me deixar tão fora de órbita. Minha boca está amarga e nem
é pela sessão de vômito. Sinto o arrependimento na ponta da língua.
Termino os degraus e me refugio no meu quarto. Enfio-me debaixo das
cobertas e cubro a cabeça, meu coração batendo forte, descompassado, minha
consciência me mandando me acostumar com esse sentimento a partir de
hoje.
Eu mandei matar um homem.
Fecho os olhos e tento me convencer de que livrei a sociedade de
alguém perigoso. Tento me convencer de que protegi as pessoas que mais
amo nessa vida. Suspiro, encolho-me e tento não pensar como essa droga
aconteceu, como Othon coagiu e influenciou que Antony fosse espancado até
a morte. Não sei e nunca vou querer saber.
Já é suficiente que isso seja a mando meu.
JULIETTE
— Bernardo me ligou, avisou que vocês viriam, mas… Ainda não
entendi o motivo da visita — digo para Ann-Mare depois de servir ela e
Dousseau com o café posto na mesinha de centro.
Eles voltaram do Brasil há dois meses, onde meu ex-patrão esteve se
recuperando do ataque covarde de Leclerc e da ameaça que, mesmo preso,
representou aos dois, através de Apollon, um primo dela que não é boa
pessoa, segundo ela mesma me disse. Soube que estão de casamento
marcado, mas sei que não vieram aqui para me convidar porque já recebi o
convite dias atrás. Bernardo também não quis adiantar o assunto na ligação.
— Preciso te dar uma coisa — Ann-Marie informa, tomando um gole
do café. Revira a bolsa em seguida e retira um cheque. Arrasta-o na minha
direção e diz: — Isso é parte do dinheiro de Antony. Um pouco do que tinha
em conta mais metade do valor da casa que vendemos, no mês passado. É
para você.
Olho o cheque por segundos inteiros, com uma expressão espantada.
Aquele homem está morto agora e, como morreu ainda casado com ela, é
natural que sua herança fosse para a esposa. Ou filho. Um filho que ele
renegou.
— Desculpe… E até agradeço, mas não posso aceitar — recuso
educadamente.
— Por que não? Esse bebê é filho dele. É um herdeiro. Tem direito —
explica.
— Eu sei. Só… não acho correto. — Suspiro, desviando o olhar por um
segundo.
Ann-Marie se inclina e me pega pelas mãos.
— Depois de todas as atrocidades de Antony contra seu bebê e contra
você, é o mínimo que devo fazer. Se estivesse aqui, nunca assumiria seu filho
e as responsabilidades. Mas ele não está e deixou uma pequena fortuna. Não
sou como meu ex-marido, Juliette. Você é mãe do filho dele e merece esse
cheque. Então quero que, por favor, aceite.
Essa mulher é um anjo. Bernardo não poderia ter arrumado uma pessoa
melhor, essa é a verdade. Embora não mereça nada dela, nem esse dinheiro,
nem sua amizade, nem sua compreensão, porque dormi com o marido dela e
a julguei sem nem mesmo conhecê-la, ainda assim, ela está aqui, oferecendo
tudo isso para mim. Um enorme sentimento de gratidão me invade e, movida
por uma ação mecânica, abraço-a muito forte, agradecendo-a quase sem
parar.
— Não precisa me agradecer — murmura, afastando-se de mim. —
Estou feliz que vocês estejam bem — diz, colocando a mão sobre minha
barriga gestacional de nove meses. — Valentin, não é? — pergunta,
recordando-se com facilidade de quando contei para ela, meses atrás, em uma
das visitas que fiz a Bernardo no hospital. Deve ter sido um ou dois dias
depois que ele acordou.
— Valentin… — confirmo. — Significa “guerreiro”. É isso que ele é.
Um guerreiro. Foi tão forte em suportar as agressões daquele que deveria
protegê-lo — sussurro, divagando, lembrando-me daquele dia e conseguindo
suportar as recordações sem sentir um medo incontrolável. — Somos só nós
dois, mas darei todo o amor que ele precisar — digo, e essa parte sim dói.
Não era para sermos só nós dois. Esperava que Pierre estivesse na
equação, mas ele não está. Não o vejo desde que terminamos e nunca nem
retornou minha ligação de quando o avisei sobre a morte de Antony, cerca de
dois meses atrás.
— Não duvido disso — ela diz, levantando-se, pronta para ir embora.
— Espero você no nosso casamento, dentro de uma semana.
Eu os acompanho até a porta. Despeço-me com beijos e abraços, mas
antes de Bernardo seguir a noiva, impeço-o, segurando pelos punhos.
— Acho que nunca te agradeci… por ter me ajudado meses atrás.
— Não tem o que me agradecer, Juliette. Você precisava de socorro. Eu
te socorri.
Abano positivo, meus olhos juntando lágrimas. Lembro-me de como
fui estúpida chantageando-o na época. Ele só queria me ajudar, e fui baixa em
ameaçar falar do envolvimento dele com Ann-Marie para aquele traste.
— Me desculpe a ameaça que te fiz. — Balanço a cabeça em negativo.
— Estava tão desesperada e com medo de que… — Dousseau não me deixa
terminar, abraçando-me forte.
— Passou, Gautier. Antony estava ameaçando todos nós. — Afasta-se,
segura-me pelos punhos e me olha nos olhos. — Passou. Esqueça isso. Viva
sua vida, cuide do pequeno Valentin. Tente ser feliz. E não se esqueça dos
amigos.
Sorrio um pouco e aceno, abraçando-o outra vez.
Ann-Marie também não poderia ter encontrado alguém melhor que
Bernardo.

Faço uma careta e rolo na cama quando outra contração me acerta.


Aperto os olhos e suspiro, fechando o lençol nos meus dedos.
— Quando foi a última? — Adrien pergunta, angustiado,
aparentemente fazendo um esforço tremendo para permanecer na poltrona ao
lado em vez de vir até mim. Ele veio nas três últimas contrações, com seu
jeito exageradamente aflito, sua preocupação deixando-me ainda mais
nervosa e ansiosa do que já estou, e eu disse que não precisava se aproximar
cada vez que tiver uma contração. Sou eu que estou dando à luz aqui, preciso
de alguém que fique calmo por mim. Meu primo claramente não é essa
pessoa.
Olho no relógio.
— Sete minutos — digo, apertando os lábios com os dentes, e a dor vai
sumindo devagarinho. Suspiro, aliviada, quando se vai por completo.
O homem se levanta e começa a andar de um lado para o outro,
passando a mão pelos fios loiros bagunçados.
— Não quer mesmo ir ao hospital, Juliette? Você só pode estar doida
em querer ter essa criança aqui em casa.
Tento me levantar e um segundo mais tarde meu primo está tentando
me fazer deitar de novo. Protesto e, vencido, segura na minha mão e me ajuda
a sair da cama.
— Já falamos sobre isso, Adrien. Valentin vai nascer aqui. Se chama
parto humanizado — contesto, saindo do quarto e indo até a cozinha.
Ele vem logo atrás de mim e me olha como se não me reconhecesse
quando me vê preparando um sanduíche. Estou me trabalho de parto, não
morta. E com fome. Vou comer enquanto a dor é suportável. Aliás, durante
toda a gestação fui orientada sobre minha escolha — primeiro pelo Pierre,
depois pela minha nova obstetra. Recebi informações sobre os riscos, o
tempo de trabalho de parto que pode durar horas. Vou me mover enquanto
puder, comer enquanto puder.
— Aliás, pode ligar para a equipe que vai fazer o procedimento —
digo, engolindo o pedaço de pão com um pouco mais de força.
Tento ignorar a dor dentro do meu peito, porque queria mesmo que
Pierre estivesse aqui, que fizesse meu parto, ou ao menos que acompanhasse.
Mas ele não está. Pensei nisso ainda ontem, depois que Bernardo e Ann-
Marie foram embora. Sinto saudades dele, da voz, do sorriso, das suas mãos
em torno do meu abdômen, conversando com Valentin. Ele sempre teve um
carinho especial pelo menino e fico triste que não poderá ver esse momento.
— E para Juliene. Ela pode pegar um voo ainda hoje — complemento.
Adrien abana a cabeça em positivo, meio resignado, e se retira.
Uma hora depois, a equipe de enfermagem está aqui, preparando tudo
para quando minha dilatação estiver suficiente para o nascimento. Minha
irmã chega quatro horas depois, nervosa, eufórica, ansiosa. Minhas dores
aumentaram um pouco mais e a bolsa estourou. No instante que ela atravessa
a porta, estou na sala, estirada no sofá, apertando os olhos quando a segunda
contração em menos de cinco minutos me atinge outra vez. É mais intensa
que as da última hora.
Ando pela casa, do quarto para a sala, da sala para a cozinha. Meu
primo e minha irmã ficam o tempo todo comigo. De hora em hora, uma
enfermeira faz o exame de toque, ouve meus batimentos cardíacos e os de
Valentin. A equipe tem um cuidado eficiente comigo, zelando pelo meu bem-
estar e do meu filho.
Quando estou com sete centímetros de dilatação, a dor já é algo que me
beira o insuportável, e nesse momento estou na minha cama, apertando o
rosto contra um travesseiro, tentando suportar a nova onda de contração que
me atinge. Adrien está andando de um lado para o outro, e Juliene afaga
minhas costas, dizendo que já, já toda a dor passa.
Está dolorido demais para que eu preste atenção no que me diz e nem
me importo quando para de me acariciar e se afasta. No segundo seguinte,
quando um novo toque sobe pela minha pele das costas despidas, porque uso
só um top preto, eu reconheço. Reconheço a aspereza dos seus dedos, seu
calor, a brandura do seu contato. Reconheço, um instante depois, seu aroma
natural, o perfume dos seus cabelos.
Tiro o rosto de encontro ao travesseiro, a contração ainda me atingindo,
e encontro os olhos azuis de Pierre.
Ele sorri para mim, o toque nas minhas costas não se desfazendo à
medida que sua mão desocupada segura a minha mão direita. Pisco duas
vezes só para ter certeza que é ele mesmo aqui, bem diante dos meus olhos,
agachado na minha frente, tocando-me como há meses não me tocava, da
forma que tanto me fez falta. Meus olhos lacrimejam, um pouco por causa da
dor, um pouco porque ele está aqui.
Como ele pode estar aqui?
— Adrien me ligou — sussurra, como se tivesse ouvido meus
pensamentos. Ou eu disse em voz alta? — Peguei o primeiro voo, duas horas
depois de saber. Não pude vir antes porque precisei falar com o conselho
médico, saber se eu podia vir fazer o seu parto. Isso demorou mais do que
previa.
Engulo em seco e nem me vejo me arrastando na cama para ficar mais
perto do seu corpo. Ele me envolve com seus braços grandes e quentes,
trazendo meu rosto para o seu tórax. Seu cheiro suave adentra minhas narinas
e acalma meu coração. Choro baixinho contra sua pele — sua pele que me
acalenta, que me dá a sensação de aconchego e proteção. Deus, como amo
esse homem.
— Você pode? — pergunto. Mesmo que não possa, já significa demais
ele poder acompanhar.
— Posso — responde, e sua afirmativa me faz apertá-lo mais contra
mim. — Esse garoto não poderia vir ao mundo por outras mãos senão as
minhas — diz, arrastando o nariz nos meus cabelos emaranhados, inspirando
fundo o meu cheiro.
Então, ele passa as próximas seis horas do meu lado. Cada significativo
segundo. Anda atrás de mim quando estou caminhando pela casa, tentando
suportar a dor. Deixa-me apertar sua mão, murmura palavras de acalento, me
abraça, beija meu rosto suado, me ajuda a testar posições confortáveis que ao
menos diminuam o desconforto das contrações, conversa comigo, tentando
manter meu foco nele, ouve o coração de Valentin, me ajuda com alguns
banhos quentes na banheira. Ele fica surpreso que meu banheiro agora tenha
uma banheira. Não tinha, mas Adrien readaptou o lugar para caber uma
depois de ter visto um parto em casa no Youtube. Achou que seria uma boa
eu fazer o mesmo. Juntamos algumas economias e readaptamos o ambiente.
Agora estou aqui, a água quente me rodeando, o local à meia-luz, com
todo aparato necessário para o parto, Pierre dentro da banheira comigo, às
minhas costas, rodeando minha barriga com seus braços calorosos, depois
que já fiquei em todas as posições possíveis dentro da banheira, enquanto a
enfermeira faz o exame de toque e informa em seguida:
— Dez de dilatação, doutor.
Pierre se move com cuidado, colocando-se na minha frente e se
sentando na borda da banheira, suas mãos nos meus joelhos dobrados.
— Precisa fazer força, mon coeur — diz suavemente. — Valentin quer
vir ao mundo agora.
Uma mão quente segura a minha e, ao olhar para o lado, Adrien está
aqui, Juliene posicionando-se atrás de mim. As lágrimas começam a descer
descontroladamente pelo meu rosto e nem é de dor. Eles estão aqui, todos
aqui. Valentin vai vir ao mundo rodeado de uma família que o ama. Juliene
segura meus ombros, dando-me a estabilidade que preciso, e faço força. Dói
de um jeito que não posso nem mensurar, e me recordo de Pierre fazendo
uma comparação horas atrás: a mesma dor de vinte ossos do nosso corpo se
quebrando. Ao mesmo tempo. Arfo, desistindo, chorando, dizendo que não
consigo.
— Consegue, chérie — Pierre incentiva. — Esse momento é seu. Vai
conhecer nosso garoto. Só precisa de um pouco mais de força.
Forço, um grito de dor saindo de dentro da minha garganta à medida
que atendo os comandos da equipe. Tem uma mão acariciando-me na testa,
mas não sei de quem é. São dez minutos intermináveis de carícias e incentivo
até que, num último esforço, Valentin nasce, Pierre eufórico dizendo que ele
está vindo, que meu filho está vindo. Gemidos de dor e emoção escapam dos
meus lábios quando vejo meu menino nas mãos de Pierre, que
imediatamente, um segundo depois, o traz para meus braços. Valentin não
chora e seu rostinho se aconchega no meu colo.
Ele não chora. Mas eu sim. As lágrimas caem pelo meu rosto sem
cerimônia enquanto ouço um monte de vozes ao meu redor, mas não dou
atenção a nenhuma delas, concentrada apenas no meu menino. No meu lindo
menino. Acaricio sua cabecinha, seu corpinho, suas mãozinhas, e beijo seu
rostinho delicado. Ele é tão lindo. E tão cheiroso. Meu garoto é perfeito.
— Parabéns, mamãe — Pierre diz, agora atrás de mim, seu rosto colado
no meu, seu indicador grande passando levemente nas bochechinhas do bebê.
Fecho os olhos, jogo a cabeça para trás e sinto a dureza do seu tórax.
É o momento mais perfeito da minha vida.

Estou na minha cama, deitada, recuperando-me do parto, Valentin ao


meu lado, depois de nós dois termos feito todo o procedimento pós-parto.
Está vestido, com uma roupinha quente e confortável, e dormindo. Ele
mamou sua primeira vez ainda na banheira. Vinte minutos atrás, mamou a
segunda. Agora, dorme feito o anjinho que é. Sorrio e acaricio seu rosto,
seguindo o contorno do seu rostinho perfeito, como se quisesse gravar cada
detalhe dele na ponta dos meus dedos. O quarto está mergulhado na
semiescuridão para deixá-lo mais confortável.
Um leve bater na porta interrompe o momento. Pierre para no umbral,
colocando as mãos nos bolsos. Está dentro de roupas secas e limpas, e
reconheço uma camisa de Adrien.
— Posso? — pergunta, baixinho.
Assinto e ele se aproxima, parando na lateral da cama. Ergo meus olhos
na sua direção e não gosto da distância entre nós. Por isso, indico o outro lado
do colchão. Pierre hesita, mas, por fim, se deita, deixando o pequeno entre
nós dois. Não diz nada por longos segundos, sua atenção totalmente no
garotinho que está com o rostinho virado para mim, seu narizinho arrebitado
respirando contra meu seio. Ele leva um indicador até a cabecinha de
Valentin e o acaricia vagarosamente, em silêncio.
— Prazer em te conhecer, carinha — murmura, inclinando-se sobre o
menino, deixando seus lábios a alguns centímetros do ouvidinho dele.
Então, inesperadamente, Valentin sorri. Eu olho para Pierre na mesma
hora, e ali vejo toda emoção nos seus olhos.
— Ele reconheceu sua voz? — pergunto, baixinho.
Pierre segura na mãozinha dele, na mesma carícia suave, paternal e
amorosa de sempre.
— Talvez. Ou pode ser só um reflexo natural. Ele está dormindo e seu
cérebro está em intensa atividade neurológica, que estimula esses sorrisos.
— Pierre… — cicio em advertência. O homem sabe como frustrar
alguém.
Ele ri baixinho, notando o que disse.
— Désolé — pede, seus olhos encontrando os meus. — Tudo bem. Ele
sorriu porque reconheceu minha voz.
Melhor assim. Prefiro assim.
Não dizemos mais nada um ao outro. Nem sei quanto tempo ficamos na
cama, observando Valentin dormir, nós dois trocando carinhos no garotinho
recém-nascido, beijando-o vez ou outra. Lembro-me de Pierre me dizendo
para descansar, dormir um pouco, repor as energias, que ele ia ficar aqui e
vigiar o menino. Recordo-me de ter me ajeitado na cama, me aproximado
mais do rapazinho e fechado os olhos para descansar. Acordei algum tempo
depois e vi Pierre do meu lado, sereno, cochilando, enquanto Valentin estava
todo enroladinho sobre seu peito.
Foi a imagem mais linda que vi naquela noite.
PIERRE
Puxo o freio de mão da caminhonete estacionada nos fundos da casa do
meu pai e solto o cinto de segurança. Desço com um pulo, minhas botas de
montaria batendo no barro agora seco. De ginecologista para cowboy. Rio de
nervoso com meu pensamento, contorno o veículo e puxo o caixote com
algumas laranjas que monsieur Joseph me fez colher. Não sei se meu pai está
me enchendo de trabalho porque quer me ver de saco cheio para que eu volte
para Paris, ou se só quer me ajudar a ocupar a cabeça enquanto não posso
voltar a exercer minha profissão.
Só faltam mais três meses para acabar meu castigo.
Carrego o caixote de madeira até a cozinha e o deixo no chão. Meu pai
vem logo com um copo d’água gelado, que aceito de bom-grado, e bebo tudo
em um gole só. Meu velho se aproxima das frutas cítricas, agachando-se para
analisá-las melhor.
— É uma boa safra — comenta com uma laranja em mãos, seu olhar
analítico sobre ela. — E você escolheu as melhores do pé. A molecada vai se
esbaldar — comenta, erguendo-se de novo e se virando para mim.
Meu pai cultiva algumas coisas na fazenda, mais como um passatempo
para sua aposentadoria, e na maioria das vezes não vende um pé de alface,
mas doa sempre que pode. A propriedade fica na parte rural de Rennes, com
quase uma hora de viagem até o centro urbano. Por isso, sempre que um
vizinho ou outro precisa de algo, ele cede. Uma laranja aqui, uma alface ali,
um tomate acolá. Sempre que colhe frutas em geral, ele vai para a frente da
fazenda e distribui para as crianças, que se sentam às margens da estrada e se
esbaldam.
— Está desanimado, parece — observa, pegando o caixote e o
colocando na despensa.
— Só cansado — digo, o que não é mentira. Não é cansaço físico,
contudo. É emocional.
Tenho saudades dela. De Valentin.
Após o parto, fiquei dois dias em Paris, dormindo na sua sala. Tive que
ir embora depois disso. Tinha cerca de dezessete semanas que não nos
víamos e sabia que ela ainda precisava de mais espaço, por isso voltei para
Rennes. Estou aqui desde então, sendo um sacrifício diário não ceder aos
meus desejos, pegar o telefone e ligar para ela, saber como ela está, como
nosso garoto está.
— Suba, vá tomar um banho e descanse — papai aconselha.
— Acho que preciso mesmo espairecer — contesto. — Tem dias que
não vou à cidade. Não me esperem para o café da tarde — digo,
aproximando-me dele e deixando um beijo no seu rosto.
Tomo um banho e troco de roupa. Na cidade, ando pelas ruas que
passei a conhecer com mais afinco nos últimos seis meses, cumprimento
alguns moradores e lojistas com quem fiz amizade e vou até um dos meus
restaurantes favoritos. Volto para casa perto de cinco horas, depois de passar
a tarde toda no centro urbano, e estou conferindo uma mensagem de Adrien
quando adentro a sala de estar.

“Já se deparou com sua surpresa hoje?”

Enrugo o cenho, sem compreender o que ele quis dizer com isso.
— Pierre! — A voz da minha madrasta ressoa pelo cômodo. — Que
bom que você chegou. Olha só quem veio te ver!
Ergo o olhar na sua direção e sinto meu coração dar uma batida mais
forte quando a vejo parada a menos de dois metros de mim. Está dentro de
um jeans lavado e camisa branca. Repicou os cabelos e usa uma maquiagem
leve. Pisco uma porção de vezes só para ter certeza de que não é uma ilusão.
— Julie… — murmuro, vencendo o espaço que nos separa.
Não espero por uma resposta sua. Nem me importo com isso. Tomo-a
me seus braços assim que a distância entre nós acaba. Aperto-a com força,
pela primeira em muito tempo, escondendo o rosto na curva do seu pescoço,
inspirando fundo o aroma da sua pele.
Nunca esqueci o cheiro dela.
Juliette se encaixa no meu abraço com a mesma facilidade de sempre,
também pressionando seu corpo contra o meu. Afasto-me e me viro para
minha madrasta, que segura um rapazinho loiro nos braços, balançando-o
vagarosamente.
— Valentin — digo, sem sair do lugar. — Meu Deus, como ele está
grande! — Juliette apenas sorri e faz um leve movimento de cabeça, um
incentivo para eu me aproximar. Faço-o, tomando o garotinho para o meu
colo. — E pesado — exclamo, enquanto o ajeito nos meus braços e tento
absorver cada detalhe dele.
Envolvo seu pequeno corpo com meus braços grandes, arrastando o
nariz pelo seu pescocinho. Seu cheiro de bebê é o aroma mais incrível que já
senti. Não consigo explicar o que sinto por essa criança. Eu o “conheci” ainda
no ventre da mãe, depois só o vi por dois dias, e agora, seis meses depois,
mesmo que não tenhamos nenhum laço sanguíneo, sei que amo esse menino
como se fosse meu.
— Ei, carinha, bom te ver de novo — digo, apertando suas mãos
rechonchudas. O garoto abre um sorriso enorme, chega a gargalhar, e rio
junto com ele, contagiado por uma emoção diferente.
— Veja só — minha madrasta protesta. — Faz vinte minutos que estou
com esse rapazinho no colo e ele não me deu um sorriso. Mas com você até
gargalhou.
Olho para minha madrasta, meio surpreso com a informação, e depois
para Juliette, que está apenas sorrindo, acariciando os cabelinhos finos do
filho. Procuro por Valentin, que também me olha com um sorriso gostoso.
— Pierre sempre teve o dom de deixar o Valentin agitado — Julie
comenta, e seus olhos encontram os meus, seu braço esquerdo no meu braço
direito que contorna o pequeno. O toque é suave, gentil, e me traz
lembranças, junto da saudade que ainda sinto dela.
Minha madrasta se aproxima de novo, pegando o menino de mim,
fazendo-me sentir uma falta imensa dele.
— Vou deixar vocês conversarem — ela diz e, olhando para Julie,
indaga: — Posso dar uma voltinha com ele pela fazenda?
Com um sorriso complacente, ela acena em positivo. Um segundo mais
tarde, estamos sozinhos, frente a frente. Respiro com um pouco de
dificuldade, admirando-a, analisando de novo seu rosto, seu corpo. É
estranho vê-la sem a barriga gestacional. Acostumei-me com ela o tempo
todo entre nós. Literalmente. Sorrio com as lembranças doces de cada
momento que passamos juntos, de como vi o desenvolvimento de Valentin e
de como me sinto estranhamente privilegiado por isso. É uma pena que tive
de me afastar no último trimestre.
— Podemos ir até seu quarto? — pergunta, com um sussurro,
quebrando minha linha de raciocínio.
Aceno em positivo e, fechando meus dedos nos seus, levo-a até meus
aposentos. Fecho a porta atrás de mim. Quando me viro, Juliette está
observando meu ambiente, os olhos fixos em um porta-retratos perto da
cama. É dela, com Valentin aos quatro meses nos seus braços, os dois com
sorrisos estampados. Ela toma a fotografia em mãos e um sorriso doloroso
cruza seus lábios.
— Suponho que isso é coisa do Adrien — murmura.
Aproximo-me e me sento na beira da cama.
— Oui — confirmo. — Ele me enviou no celular. Só mandei
emoldurar.
Ela apenas balança a cabeça em negativo e se vira para mim, depois de
recolocar o objeto no lugar. Prendo a respiração. Sinto-a diferente, mas não
sei dizer por que ou o que a faz diferente. Não sei, parece-me outra Juliette,
uma versão melhor dela mesma. Mais bonita, mais madura, mais confiante.
Ela se senta ao meu lado, sobre a perna esquerda.
— Como você está? — pergunto para quebrar o silêncio entre nós.
— Bem, na medida do possível. Estou trabalhando no Recursos
Humanos da Chevalier Arch. Adrien conseguiu uma vaga para mim.
Abaixo os olhos, mirando sua mão sobre a coxa, deslizando
vagarosamente na minha direção. Ela continua me contando as novidades.
Bernardo e Ann-Marie se casaram e estão grávidos, ela acha que a esposa de
Dousseau já entrou no oitavo mês. Emilien foi embora do país na noite
posterior à festa de casamento do amigo, depois de dormir com Marie, e nem
se despediu dela.
— Sei lá, acho que ele gosta da Marie, mas tem medo de
relacionamentos e fez essa babaquice — comenta, casualmente. Abano a
cabeça em positivo, concordando. — E você? Tudo bem por aqui?
Solto um suspiro longo.
— Sim, mas sinto falta de Paris. — Ela me olha atentamente, esperando
que eu diga mais alguma coisa.
De verdade, amo meu pai, gosto do ar fresco e da tranquilidade da
fazenda, mas essa vida não é para mim. Se me obriguei a ficar exilado aqui
foi simplesmente porque na capital, por mais que seja enorme e cheia de
gente, havia a chance de nos encontrarmos. Não queria isso até que ela
estivesse pronta para me ver de novo.
— Nenhuma pretendente? — questiona, com um leve tom de
brincadeira, seus olhos me espiando.
— Ah não — digo, abrindo um sorriso acanhado. — Bem, teve uma
garota, mas foi coisa do meu velho. Ele simplesmente apareceu com ela aqui
e não quis fazer desfeita. Caminhamos pela fazenda, conversamos, jantamos
com meu pai e minha madrasta e só. Não rolou mais nada. Fui franco com
ela. Disse que estava esperando alguém.
Um sorriso ilumina o rosto dela, seus olhos caindo para as mãos em seu
colo, os olhos cabisbaixos denunciando uma timidez que nela é gracioso.
— Quase um ano atrás — murmura — me pediu para te procurar
quando tivesse certeza do que sinto por você.
— Sim — confirmo, minha voz saindo trêmula.
Tenho medo, essa é a verdade. Porque na época não disse apenas para
me procurar caso gostasse de mim realmente, mas também caso não gostasse.
Agora ela está aqui. Pode ter vindo me dizer que está bem de novo, que
apesar de todo abalo psicológico e da ligação que criou comigo, ela me ama,
como pode ter vindo dizer que se enganou o tempo todo.
— Pois bem… — cicia, aproximando-se um pouquinho mais de mim.
— Já tem meses que estou em consulta com a psicóloga e trabalhamos muito
esse vínculo que inconscientemente criei com você. Foi um processo lento,
até doloroso, mas consegui separar o joio do trigo, Pierre — diz, pescando
meus dedos e me acariciando.
Sinto isso como um sinal. O seu carinho em mim é um sinal, não é? Ou
ela não faria isso comigo, sabendo que o que eu sinto é real. Juliette não se
prezaria a me dar falsas esperanças assim com esse toque. Porque ela sabe.
Sabe que me apego nesse contato íntimo mais do que deveria.
— O vínculo foi embora. A visão endeusada que tinha de você foi
embora. Minha extrema dependência emocional foi embora. O amor ficou.
Engulo em seco, lágrimas pinicando meus olhos. Meu coração está tão
acelerado que desconfio que vou ter uma taquicardia aqui e cair duro nessa
cama.
— Aprendi a diferença entre amor e dependência emocional — segue
dizendo, seus dedos ainda enroscados amorosamente nos meus. — Na
dependência emocional, tinha um medo extremo de te perder, irracional, que
me fazia me comportar de um jeito nada saudável. Sentia como… se meu
mundo girasse em torno de você, sabe? Que você era o homem da minha
vida e eu desaprenderia a respirar se te perdesse.
Ela faz uma pausa aqui, erguendo os olhos para mim. Julie sorri,
aproxima sua boca do meu rosto e captura uma lágrima que inesperadamente
escorreu dos meus olhos.
— O amor é diferente — sussurra, rente aos meus lábios, seus olhos
nos meus, desviando em seguida para minha boca. Meu coração dá outra
errada de batida, lembranças do gosto, da textura e da suculência do seu beijo
me bombardeando. — Vim para cá sabendo que você simplesmente poderia
ter seguido em frente e poderia estar com outra pessoa. Isso doeu. Doeu
muito. A ideia de perder você doeu. Mas, ao mesmo tempo, sabia que era
capaz de superar isso, de desejar que você fosse feliz e isso seria o suficiente
para mim. Ainda te vejo como o homem da minha vida porque nunca amei
alguém como amo você, a diferença é que não te ponho mais no centro do
meu mundo. Você está nele, como Valentin está, como Adrien, como Juliene,
mas não no centro.
Não tenho tempo de responder qualquer coisa. Quando abro a boca,
Juliette avança sobre mim, encaixando a sua na minha, seus dedos voando
para a minha nuca e se embolando nos meus cabelos. Ela é exigente,
buscando minha língua, mais fundo, inspirando com dificuldade. Só leva um
quarto de segundo para eu ceder e corresponder, puxando seu corpo para meu
colo, minhas mãos subindo por dentro da sua camisa branca. O calor da sua
pele me estremece todo e causa uma onda de aflição que não sei explicar,
mas que se manifesta nos meus olhos, em forma de lágrimas.
— Ah, Deus, senti tanto a sua falta — digo, demorando a perceber que
choro um pouco. — Tive tanto medo de você não sentir o mesmo que sinto
por você, Juliette. Je t’aime — declaro de repente, pescando sua boca de
novo, nem lhe dando tempo de resposta. — Je t’aime beaucoup — digo,
repetindo mais três vezes. Há meses tenho isso dentro de mim, há meses quis
dizer essas palavras, mas não pude.
— Je t’aime — responde, abrindo vagarosamente os botões da minha
camisa. — Sempre amei, Pierre. O sentimento só estava escondido,
camuflado, mas ele sempre existiu. Nasceu da minha dependência emocional,
mas sempre existiu. Precisei desse tempo para encontrá-lo. Não há mais
nenhuma dúvida de que amo você — diz, passando minha camisa pelos
ombros, depois pelos braços, até meu tronco estar nu.
Seus olhos analisam meu peito desnudo, as palmas escorregando
lentamente pela minha pele enquanto diz o quanto teve saudade de me tocar.
Sua boca atrevida desce até meus mamilos, e meu corpo começa a reagir com
o simples toque. Ela puxa a camisa pela cabeça, ficando só de sutiã na minha
frente, que logo também está no chão. Então, ela esmaga o seu peito no meu,
causando-me uma eletricidade incrível de excitação. Suspiro, abraçando-a,
curtindo o calor da sua pele na minha.
— Não tenho camisinha aqui — digo quando seus dentes arranham o
lóbulo da minha orelha em uma provocação excitante.
— Não precisamos — alega, arrastando suas mordidas pelo meu
ombro, retornando em seguida para meu ouvido e cochichando: — Quero
sentir seu pau dentro de mim sem nenhuma barreira.
Putain.
Eu a tiro do meu colo na mesma hora, desabotoando sua calça jeans,
livrando-a dela e da sandália de tiras nos pés. Toco sua boceta por cima da
calcinha e levanto o olhar de novo em sua direção; Juliette de pé, na minha
frente, eu ainda sentado na cama. Faço contato visual enquanto acaricio sua
intimidade. Aos poucos, coloco-a de lado e encontro seu clitóris.
— Pierre… — choraminga enquanto movimento para frente e para trás
o indicador entre seus lábios vaginais, vez ou outra circundando seu fecho de
nervos.
Abaixo sua calcinha até os calcanhares e a trago mais para mim,
enfiando o rosto entre suas pernas. Ela coloca um pé na cama, ao meu lado, e
eu a chupo, puxando seu quadril em direção aos meus lábios desesperados.
Ela geme baixinho, contorcendo-se à medida que minha língua trabalha no
seu clitóris, e meus dedos, na sua boceta, deslizam vagarosamente para
dentro dela.
— Goza na minha boca — peço, rouco, sentindo meu pau apertado na
maldita calça jeans. — Sei que você gosta da minha língua na sua boceta. —
Seus dedos se fecham com força nos meus cabelos, forçando meu rosto mais
contra o meio das suas pernas.
Ela cantarola, seu quadril movendo-se rapidamente contra minha boca,
e sei nesse instante que encontrou o ápice. Não a deixo se recuperar. Jogo-a
na cama, desfazendo-me do meu tênis, da minha calça e cueca, pondo-me
entre suas pernas, minha ereção tão dolorida que não sei como estou
aguentando.
— Anticoncepcional? — pergunto, antes de entrar nela.
Juliette levanta as pálpebras, seus olhos castanhos em puro deleite.
— Não. Nenhum. Mas pela minha tabelinha, hoje pode — diz,
abraçando minha cintura com as pernas, forçando minha bunda com os
calcanhares, num claro pedido de que me quer logo dentro dela.
— Veremos isso quando voltarmos a Paris — imponho, um instante
antes de deslizar para dentro dela.
A carne úmida e quente da sua boceta me contorna e, de todas as
formas que imaginei como seria transar com ela sem o látex nos protegendo,
não cheguei nem perto de adivinhar a sensação. Deus, é bom. É tão bom que
quero passar o resto da vida aqui, enterrado nela, sentindo sua boceta se
contrair no meu pau à medida que invisto.
— Me coloca de quatro — pede, passando as unhas nas minhas costas.
Meu pau lateja com seu pedido e não leva nem um segundo para
estarmos assim. Seguro sua nuca, pressionando seu rosto contra o colchão
enquanto me arremeto de forma alucinada atrás dela e toco furiosamente seu
clitóris. Ela anuncia o segundo orgasmo, fazendo-me investir com mais
dedicação e afinco no meu dedo e nas batidas dos nossos quadris. Juliette
goza, abafando o grito no travesseiro, seu corpo tremendo sem cerimônia. Eu
me liberto dentro dela exatamente um segundo mais tarde, segurando o
quanto posso meus gemidos roucos.
Caio na cama e a puxo para mim, suas costas no meu tórax,
controlando a respiração, inspirando profundamente. Ela se acomoda nos
meus braços, roçando os pés nos meus.
— Pierre — me chama, baixinho.
— Hum? — murmuro de volta, olhos fechados, meu corpo ainda
assimilando a onda de dopamina, endorfina e oxitocina que foi liberada na
minha corrente sanguínea.
— Vem morar comigo e com Valentin?
Viro-a para mim, seu corpo nu e ligeiramente suado grudando no meu.
Seus olhos brilhosos combinam com o sorriso nos seus lábios inchados.
— Achei que nunca fosse me pedir isso — brinco, e Juliette ri,
aconchegando-se no meu abraço um pouco mais.
Fecho os olhos de novo, apertando-a mais contra mim, ansioso para
que, finalmente, nós três sejamos uma família. Do jeito que sempre idealizei.
PIERRE
— Atrapalho? — pergunto, dando uma leve batidinha na porta.
Étienne ergue o olhar para mim, tirando a concentração do seu cérebro
de mentira. Ele sorri ligeiramente, livrando-se do microscópio acoplado nos
seus óculos de proteção. Olho ao redor e vejo que está sozinho, o que é uma
novidade, uma vez que sua pesquisa com os estimuladores cerebrais demanda
de uma equipe de ao menos mais dois médicos. Parecendo ler meus
pensamentos, enquanto repousa o instrumento de trabalho delicadamente
sobre um livro aberto, ele diz:
— Cheguei antes de todo mundo.
— Ah — suspiro, adentrando mais na sala e encostando a porta atrás de
mim. — Vim perguntar se posso passar o final de semana com Édouard.
Bem, quero dizer, só estarei lá por meio período, mas Juliette pode cuidar
dele o restante que eu não estiver. Valentin gosta muito dele.
Meu irmão gira nos calcanhares, indo até uma mesa computadorizada,
cheia de livros e papéis, sentando-se na cadeira. Mexe no mouse e digita
alguma coisa rapidamente, talvez anotando alguma informação da sua
pesquisa para não esquecer, uma vez que o interrompi.
Étienne está focado. Nós ficamos longe por um tempo, eu em Rennes,
ele aqui em Paris com seus estudos, e mantivemos contato depois que nos
entendermos da discussão por conta da guarda do menino, tantos meses atrás.
É claro que ele achou um absurdo eu simplesmente me mudar para Rennes
por mais de algumas semanas e todo dia me ligava querendo saber quando eu
ia retornar, dizendo que sentia minha falta, que Édouard sentia a minha falta.
Logo após a segunda audiência que determinou que a guarda do garoto
continuava comigo, tratei de ter uma conversa séria com meu irmão e disse
que, por mais que não fosse nenhum problema ter a custódia do meu
sobrinho, ainda assim não era minha responsabilidade.
Um pouco de burocracia aqui e ali, alguns meses de acompanhamento
com a assistente social, e a guarda é de Étienne outra vez, o pai de Édouard, o
homem que nunca deveria ter aberto mão desse direito.
Ele está focado. Nunca o vi tão focado assim desde o sumiço da esposa.
É claro que existe uma linha muito tênue entre foco e obsessão pelo trabalho,
e foi este último o responsável por derrocar seu casamento, mas pelo que vim
acompanhando nesses três meses desde que voltei para a capital, é que ele
está sabendo muito bem equilibrar a vida. Além do mais, meu irmão está
bem. Sozinho, porque ele se nega a ter qualquer relacionamento amoroso.
Mesmo com Alizée, soube depois, que nunca passou do jantar daquela noite.
Sei muito bem que ele não precisa de ninguém para fazê-lo feliz, seu
“casamento” com o trabalho parece tudo o que precisa no momento. Se meu
irmão está satisfeito e feliz, eu também estou.
— Não só pode, como inclusive ia te telefonar hoje para saber se
poderia cuidar dele para mim na quarta-feira, que não tem aula. Sabe aquele
artigo sobre minha pesquisa que publiquei mês passado? — pergunta, e
abano a cabeça em positivo. — Surgiram mais alguns interessados em
patrocínio. Temos uma reunião na quarta para eu fazer uma apresentação
formal de tudo que já foi desenvolvido nessa primeira fase.
Realmente fico feliz por meu irmão. Esse estudo sempre foi um sonho
muito pessoal dele, interrompido quando toda sua vida virou de ponta-
cabeça. Vendo-o agora animado com a perspectiva de novos apoiadores, que
lhe trarão aparatos tecnológicos, bolsas de estudos e financiamento, sinto-me
orgulhoso dele.
Étienne suspira, passando a mão pelos cabelos e saindo de trás da sua
mesa, sentando-se à beirada. Ele me olha com as sobrancelhas levemente
franzidas, o semblante meio duro.
— Não é nada garantido — informa. — A instituição escolhe só os
melhores projetos para financiar. Tenho alguns concorrentes, é claro, e
Francine está entre eles.
Nem me abalo à menção do nome dessa mulher. Acho que a
tranquilidade da fazenda em Rennes me ajudou a colocar a cabeça no lugar e
descarregar toda aflição e angústia que ela me causou um dia. De volta ao
Necker-Enfants Malades, é inevitável que, vez ou outra, a gente se esbarre
pelos corredores. Limito-me somente a um cumprimento rápido, e ela
também não me atormenta mais.
— Deve saber que ela está com uma pesquisa voltada ao mal de
Parkinson.
— Eu soube — respondo, desinteressado. — De qualquer maneira —
remanejo o assunto, não querendo me deter em Francine mais do que é
necessário —, fico com o garoto na quarta e no final de semana.
Étienne balança a cabeça em positivo, recolocando seu microscópio e
voltando para o cérebro-simulador, que está todo conectado aos
computadores e é semelhante a um cérebro humano. Não sei exatamente o
que está fazendo, porque o equipamento é usado para simular uma
neurocirurgia, principalmente as de alto risco. Lembro-me da risada alta de
Valentin, no outro dia quando estive aqui para assinar minha recontratação,
que assustou meu irmão, na mesma posição de agora. O movimento abrupto
da sua mão firme fez o equipamento apitar: paciente morto.
Ele abana a mão, dizendo que precisa voltar a trabalhar e praticamente
me expulsa. Rindo, volto rapidamente para minha ala para cumprir o resto do
meu turno. Estou terminando de me trocar quando Céline, a chefe da
ginecologia, surge, vindo até mim para me cumprimentar. Ela tem um jeito
bastante irreverente e espaçoso, o que estranhei logo no meu primeiro dia de
volta. De alguma forma, me identifiquei com ela, porque é uma pessoa fácil
de se sociar e conversar. A mulher também está encerrando o plantão e, assim
que pega todas as suas coisas, deixamos o hospital juntos.
Durante o caminho falamos um pouco sobre uma paciente de doze anos
que chegou esses dias. Vítima de estupro. Grávida. Deu entrada no hospital
para fazer o aborto. É um assunto que me deixa muito desconfortável, então
prefiro falar de outra coisa. Dois minutos depois, estou rindo de uma situação
constrangedora que ela passou e me conta.
— Não é a sua namorada? — Céline diz, apontando.
Ergo os olhos, mirando para a direção que aponta. Juliette está a dez
metros de mim, perto do meu carro, segurando Valentin nos braços. Despeço-
me de Céline, ela indo para outro caminho, e vou ao encontro da minha
namorada, sem entender exatamente a sua presença.
— Oi — digo, apoiando a mão na sua cintura e beijando sua boca
delicadamente. Ela sorri contra meus lábios e responde enquanto deixo um
selinho em Valentin e o pego para mim. — Adrien não ia ficar com ele hoje?
— pergunto, olhando para o garotinho e enfiando meus dedos grandes nas
suas costelinhas. O menino de nove meses se contorce e gargalha do seu jeito
gostoso.
— Ia — responde, enfiando a mão no bolso da minha calça e pegando
as chaves do carro. — Estaria de folga e por isso não mandei Valentin para
creche, mas parece que Ferdinand mudou de ideia e o requereu outra vez.
Será que você pode ficar com ele para mim, Pierre? — pergunta, conferindo
as horas no relógio. Sei que ela começa às nove e são pouco mais de sete. —
Sei que ficou de plantão a noite toda, mas vou tentar cumprir só meio período
e…
— Fico — digo imediatamente. Não seria a primeira vez, de qualquer
forma. Sábado ou outro ele fica comigo porque a mãe precisa estar no
trabalho. Às vezes, preciso levá-lo comigo para o hospital, mas me viro bem
me revezando com as enfermeiras que o adoram. — Sabe que nem precisa
me pedir assim, como se ficar com ele fosse um problema para mim.
Não queria mesmo que ela tivesse esse tipo de sentimento. Gosto de
Valentin. Eu o amo, e tudo que faço por ele é de bom coração. Sei que parte
disso é culpa minha. Tem três meses que nós começamos uma vida a três e,
apesar de em grande parte eu fazer o papel de pai, nunca conversamos sobre
essa convivência paternal que tenho com o pequeno. Não tenho nenhuma
denominação para esse vínculo com o garoto. Quando estava grávida, ela
sempre se referia a mim como “tio Pierre”. Claramente não sou tio dele. Nem
quero ser. Quero mais do que isso. Hoje, entretanto, não sou tio, nem
padrasto. Só apenas “Pierre”. Algo que realmente me desagrada e já tem
umas semanas que venho trabalhando para mudar isso.
— Sei que não é — responde, molhando o lábio inferior. Sinto que
Juliette acha que Valentin me incomoda e por esse motivo sempre tenta fazer
tudo sozinha, pedindo minha ajuda o mínimo possível, embora eu me
prontifique na maioria das vezes para ajudá-la com um banho, uma troca de
fraldas, uma mamadeira na madrugada. — Mas é que não é sua obrigação…
Simplesmente abano a mão no ar e tomo as chaves dela outra vez,
desativando o alarme do carro e abrindo a porta. Acomodo Valentin no
assento apropriado.
— Já disse que fico com ele, Julie — respondo, mais incisivo,
terminando de prendê-lo. Deixo outro selinho nos seus lábios e fecho a porta.
— Entra no carro que vou te levar até o trabalho e depois vou pra casa. —
Um sorriso singelo cruza sua boca gostosa e ela me dá um beijo profundo e
gostoso antes de atender meu comando.
A viagem até Chevalier Arch leva cerca de meia hora. Levaria menos
se não tivesse parado para comprar um copo de café e um croissant para ela,
que saiu de casa sem comer nada. Juliette se despede de mim com um beijo
úmido e um abraço apertado. Faz o mesmo com Valentin, deixando um beijo
estalado na sua bochecha. Vou para casa, conversando o caminho todo com
meu garoto. Ele ri e bate braços e pernas todo o trajeto.
Valentin não é uma criança difícil de cuidar. Em casa, arrumo uma
coisa outra, lavo uma louça da noite passada e pego alguns brinquedos do
chão. Quando ele tira um cochilo no meio da manhã, aproveito para
descansar um pouco. Dormimos juntos, seu rostinho escondido no meu peito,
o corpinho aconchegado nos meus braços grandes. Acordamos juntos pouco
depois do horário do almoço. Encontro uma papinha congelada, que aqueço
no micro-ondas, e o alimento, eu mesmo só forrando o estômago com um
sanduíche de frango e queijo. Passamos o resto da tarde brincando e
passeando nas redondezas. Perto do horário de Juliette chegar em casa, nós
voltamos. Dou um banho quente em Valentin e alguns mililitros de leite.
Penso que com isso o garotinho vai dormir mais um pouco, mas sou
terrivelmente contrariado.
— Vou te mostrar uma coisa — digo a ele, terminando de ajeitar a
jardineira que coloquei no seu corpinho rechonchudo.
Pego-o no colo e o levo até o meu quarto. Reviro o guarda-roupa,
tateando os bolsos do meu paletó até que sinto a firmeza do objeto. Tomo-o
em mãos e o coloco na frente dos olhinhos cor de mel. Valentin estica as
mãozinhas, querendo pegá-lo. Tiro do seu alcance.
— No momento certo, Valentin — murmuro, abraçando suas costas e
deixando um beijo no topo da sua cabeça.
Leva mais algum tempo até que ouço Juliette chegando. A porta da
frente abre e fecha com um bater natural, e a voz dela ressoa pela casa,
chamando meu nome. Grito um “aqui no quarto” e leva dois minutos para
que apareça, o que me dá tempo suficiente para esconder o objeto no
bolsinho da jardineira do bebê. Ela surge, afofando os cabelos, descalça.
Deve ter largado os saltos na entrada, o que me deixa possesso porque
sempre tropeço naquelas porcarias.
— Oi, meninos — diz, indo até Valentin primeiro e dando um beijinho
nele. Tenta pegá-lo de mim, mas não deixo. Sai. É meu. Ela ergue uma
sobrancelha e ri, balançando a cabeça em negativo. Por fim, encosta seus
lábios nos meus, e suspiro conforme o aroma da sua pele vai tomando conta
do meu olfato.
— O que você está aprontando, Pierre? — pergunta, afastando-se
apenas o bastante para me olhar nos olhos.
— Bem — digo, dando um passo atrás, e ajeito o menino melhor no
meu colo, de modo que fique de frente para a mãe, meus braços por baixo das
suas perninhas. — Há algo que Valentin quer te dar.
Juliette olha de mim para o filho, arqueando uma sobrancelha, mãos na
cintura. Informo onde está — no bolso da jardineira — e ela se aproxima,
enfiando o dedo no espaço. Seu corpo trava na mesma hora quando parece
reconhecer pelo tato do que se trata. Vagarosamente, ela o tira do seu
esconderijo.
— Pierre — murmura, assustada, os olhos enchendo de lágrimas e fixos
na aliança.
— Tivemos uma conversa séria de homem para homem — pronuncio,
arrancando dela uma risada em meio às suas lágrimas tímidas. — Disse que
só tenho boas intenções com a mãe dele, que, para esse relacionamento dar
certo, preciso que esteja de acordo e nos dê a sua benção.
Juliette ri de novo, secando as gotas que escorrem pelo seu rosto,
dizendo que não tenho jeito. Sei que está prestes a dizer sim, mas há uma
segunda coisa que também quero pedir e vou aproveitar o momento. Por esse
motivo, antes que diga qualquer coisa, eu tomo a frente:
— Valentin quer saber se você aceita se casar comigo e se me deixa ser
o pai dele.
Os olhos dela se arregalam. A boca, entreaberta, não emite som algum.
O instante de silêncio entre nós faz com que eu tenha a impressão de que meu
coração vai parar, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, sinto-o bater
nos meus ouvidos. Ela nem fica tanto tempo assim sem me dar uma resposta,
mas na minha cabeça parece um espaço temporal grande demais para
aguentar. Embora minha vontade seja de pedir para, pelo amor de Deus, dizer
alguma, deixo que tome o tempo necessário para processar meu pedido.
Não só o de casamento, visto que, tecnicamente temos pouquíssimo
tempo juntos, mas o meu desejo de assumir Valentin, que só carrega o
sobrenome dela. Julie precisa concordar que Valentin Laurent soa bem, não
melhor do que Gautier, mas soa bem.
— Não sei o que dizer — confessa, baixinho, deitando a cabeça no meu
ombro.
— Sou um bom partido, sabe disso — brinco, e outra onda sonora da
sua risada invade o quarto, preenchendo-me de uma sensação boa.
— Para a primeira pergunta, é sim. Para a segunda é que não sei o que
dizer. — Juliette ergue a cabeça, seus olhos ainda úmidos encarando os meus.
— Diga sim também — murmuro, arrastando meu rosto no seu. —
Amo esse garoto desde muito antes de ele ter nascido, Juliette. Mesmo que
esse menino não tenha meu sangue, sinto que sou pai dele. Quero ser o pai
dele. Mas só se você deixar. Caso você não queira, finjo demência e esqueço
que essa conversa aconteceu — gracejo para aliviar um pouco a tensão entre
nós.
A resposta que recebo é um beijo profundo, ela quase se pendurando no
meu pescoço para procurar mais espaço na minha boca, querendo me
devorar, me possuir, buscando tudo de mim. Retribuo na mesma medida até
me recordar do garoto no meu colo.
Olha a indecência perto da criança.
— É isso mesmo o que você quer? — pergunta, ligeiramente receosa.
Nem posso julgar o seu medo, mas não sou esse tipo de cara. Se me
permitir assumi-lo, jamais vou jogar na cara dela qualquer coisa relacionada a
isso. Assim que registrá-lo, Valentin vai ser meu filho, independente se
somos consanguíneos ou não. Ele pode não ter o meu sangue, mas tem o meu
amor, o que é mais do que suficiente.
— Nunca tive tanta certeza na minha vida — afirmo, seguro do que
realmente quero. — Quero dar meu sobrenome para você e para o seu filho.
Nosso filho. Nosso garoto.
Da melhor maneira que pode, Juliette me abraça apertado, escondendo
o rosto no meu pescoço, inspirando fundo o meu cheiro. Também me
aconchego nela, trazendo Valentin para o nosso meio. A mãe joga um braço
em torno dele, e então estamos em um abraço triplo.
— Sim e sim — diz, baixinho, a voz ainda carregada de emoção.
Eu os aperto mais contra mim, meu peito transbordando de amor.
Minha mulher. Meu filho. Minha família.
Família Laurent.
Não há nada mais no mundo que eu queira nesse momento.
PIERRE
Isso é autoflagelo.
Prometi a mim mesmo que não buscaria saber como aconteceu, mas
aqui estou eu, esperando Othon, mais de um ano depois desde a última vez,
às vésperas do meu casamento com Juliette. Meu coração bate igual àquele
dia, descompassado, nervoso, quase entalado na garganta. Até parece que
vim pedir outro “favor”.
Prometi nunca querer saber, mas eu vim. Nos últimos meses, foquei no
que realmente interessava para poder lidar com isso. Enquanto estive em
Rennes, ocupei a cabeça com o trabalho que meu pai designava, li inúmeros
artigos sobre tecnologias e estudos na minha área, eu mesmo escrevendo um
breve ensaio sobre a reação do corpo feminino quando tem um orgasmo.
Tentava não pensar muito no que fiz e, sempre que pensava, me convencia de
que era Antony ou as pessoas que amo, tentava me convencer de que não
hesitei da mesma maneira que ele não hesitaria, que livrei o mundo de
alguém perigoso. Pensei que, dentro de alguns anos, Valentin poderia andar
em segurança, Juliette poderia andar em segurança. Fiz pensando neles.
Prefiro lidar com a culpa a lidar com qualquer um que eu ame machucado por
causa daquele homem.
Quando Juliette me procurou e fomos morar na mesma casa, meu foco
foi nela e em Valentin. Joguei tudo para a parte mais obscura da minha
mente, me concentrei em ter uma boa vida ao lado dos dois, e segui em frente
da melhor maneira que pude. Ainda sigo em frente da melhor maneira que
posso.
Meus pensamentos são levados embora quando o agente penitenciário
traz Othon e o coloca de frente para mim. Recebo instruções, que não
mudaram desde um ano atrás, e somos deixados sozinhos.
O enorme homem me encara por alguns segundos, o semblante
demonstrando que não compreende minha visita. Nunca disse que jamais
voltaria, mas também não disse que voltaria. Há um traço de hesitação nos
seus olhos, que ele desvia de mim, cortando o contato visual por motivos que
não compreendo. Othon está ligeiramente estranho, parece nervoso e
indeciso. Ou só está enojado de mim.
Tudo bem, porque foi assim que me senti nos primeiros dias.
Amasso a beira do papel pardo que trago comigo, descarregando um
pouco da aflição que sinto.
— Trouxe alguns relatórios do dinheiro que investi e… — Quebro o
silêncio com um sussurro, não sabendo exatamente como iniciar essa
conversa, mas sou logo interrompido.
— Não quero seu dinheiro, Laurent. — Sua voz sai baixa, rouca, mas
não ameaçadora, nem desdenhosa. Reconheço uma nota de vergonha.
— Por quê? — questiono, enrugando o cenho.
Othon se vira para mim.
— Não fiz o que me pediu. — Meu coração erra uma batida e fico
perdido com sua informação. — Estava esperando os dois meses que me
aconselhou. Leclerc arrumou confusão com aquele grupo antes que eu tivesse
tempo de planejar qualquer coisa. Ele morreu, mas não foi porque fiz o que
combinamos.
De repente, uma onda de alívio perpassa meu corpo, fazendo-me
afundar na cadeira em que estou. Minha boca seca e meus olhos ardem com
as lágrimas que ameaçam descer. É hipócrita da minha parte me sentir
aliviado porque ele não morreu a mando meu, mas morreu porque procurou
seu próprio destino.
— Eu poderia ter dado um jeito de entrar em contato com você —
Othon prossegue —, mas a verdade é que fiquei quieto porque queria o
dinheiro. Preciso do dinheiro quando sair daqui, Laurent. Eu… Me desculpe
— pede, evitando o contato visual de novo.
Balanço a cabeça em negativo, dispensando suas desculpas e também
para afastar as lágrimas de mim. Alivia um pouco saber que Antony se
afundou sozinho, encontrou o que estava procurando; ainda assim, não me
exime da culpa de ter vindo comprar sua morte. Mesmo ligeiramente aliviado
em saber que não causei a morte dele, vou continuar tendo que lidar que
cheguei ao extremo uma vez na vida.
— Mas estava disposto — digo, com um amargo na voz, mais pela
minha atitude de pedir algo tão desprezível do que por ele ter se disposto a
cumprir. — O dinheiro é seu, Othon.
Ele se volta para mim, lentamente. Antes que me diga qualquer outra
coisa, levanto-me, pronto a ir embora.
— Os títulos vão continuar no seu nome — informo apenas.
Do lado de fora do presídio, fecho os olhos e deixo a brisa gelada
acertar meu rosto.

— Preciso admitir que ela é uma boa moça — papai diz, ao pé do meu
ouvido, enquanto termina de ajeitar alguns petiscos na bandeja. — Tudo bem
aquele garoto ser meu neto.
Sorrio, parando um segundo com a minha tarefa de ajudá-lo com os
aperitivos da badeja, e ergo o olhar para Juliette. Minha esposa. Ela está
alguns metros longe, papai e eu na área de lazer preparando mais tira-gostos
para os convidados. É um dia ameno em Rennes, numa pequena
confraternização entre amigos e familiares depois que me casei ontem, em
Paris.
Édouard passa correndo por ela, fazendo Valentin gargalhar e querer
descer do colo dela, que o mantém sobre suas pernas e volta a conversar
animadamente com Juliene e Ann-Marie. Bernardo está ao lado da mulher,
mas a atenção está no carrinho de bebê perto dele, conversando com o filho
de uns quatro meses.
Estou feliz que tenham vindo. De verdade. São meus amigos e gosto
deles por perto num momento feliz como esse. A gargalhada alta de Marie,
conversando com Étienne num outro canto, é trazida pelo vento, fazendo meu
pai erguer o olhar em sua direção e balançar a cabeça em negativo. Ele não
gosta muito de pessoas escandalosas.
— Ela é — respondo-o, por fim.
No começo, Joseph resistiu um pouco a esse relacionamento. Não tinha
só pela questão pela qual passamos meses antes, mas por causa da minha
decisão de assumir Valentin. O velho Laurent criou uma resistência boba
com Juliette, desde o dia que ela veio aqui “me buscar”. Fez cara feia igual
criança, sim, mas entendo que, na cabeça dele, estava pensando no melhor
para mim. Mas precisava que ele aceitasse a mulher que amo fazendo parte
dessa família, então fui os aproximando aos poucos nesses últimos meses.
Pelo menos uma vez por mês vim visitá-lo e trouxe minha namorada e meu
filho juntos. No aniversário de um ano de Valentin, duas semanas atrás, meu
pai ligou, desejou felicidades, pediu para colocar o garoto na linha, que
reconheceu a voz dele e ficou agitado. Dias depois, o correio entregou um
presente para ele, com remetente no nome do meu pai.
Faltando uma semana para me casar, Joseph enfiou na cabeça que
precisávamos de uma confraternização. Não íamos fazer nada além de um
pequeno almoço em família, com os mesmos amigos mais próximos que
estão aqui. Meu pai, contudo, insistiu que deveríamos vir para Rennes, passar
um final de semana e hospedar esse povo todo na fazenda. Espaço não falta.
Juliette e eu concordamos porque vimos que foi o modo dele de dizer que ela
era da família agora. Ela e Valentin.
Meu velho limpa as mãos no pano de prato e se vira para mim,
apoiando a direita no meu ombro.
— Sei que não fui muito compreensível no começo, mas entenda que
só estava preocupado com você. — Seu olhar se perde um instante no meu
irmão, rindo com Juliene de alguma coisa que conversam. — Veja o que uma
mulher fez com Étienne.
— Pai…
Ele nem me deixa terminar. Apenas abana a mão, dispensando qualquer
comentário que eu pense em fazer.
— O que passou já não importa. Importa somente agora, e agora
estamos comemorando seu casamento — diz, apoiando as duas mãos nos
meus ombros, com um sorriso paternal e carinhoso. — Me prometa que vai
me visitar com mais frequência agora. Não me faça ir à capital matar a
saudade do meu neto caçula.
Sorrio, abanando em positivo, com uma alegria diferente tomando
conta de mim. O modo como ele pronuncia meu neto. Tem tanto amor e
carinho nas suas palavras. Ele considera Valentin seu neto com o mesmo
amor que eu o considero meu filho. Avanço sobre meu pai e o abraço forte,
prometendo que viremos sempre que possível. Ele me afasta, espanando
meus ombros, e sorri outra vez antes do nosso momento ser interrompido
pela minha madrasta, que chega elogiando Adrien aos montes, com um
sorriso de orelha a orelha, depois de passarem um tempo conversando.
Joseph enruga o cenho severamente, direcionando o olhar para
Bourdieu, que agora está com meu filho no colo, brincando com ele. Tem
alguém com ciúmes. Meio mal-humorado, papai entrega as bandejas com os
petiscos para a esposa e decide ir com ela distribui-los. Olha ele marcando
território.
Rio da situação e lavo as mãos, até que sinto braços me contornando.
Os lábios dela pousam no meu rosto e giro no mesmo instante, pressionando
sua boca na minha.
— Oi, marido — murmura, arrastando o nariz no meu pescoço.
— Oi, esposa — devolvo, apertando sua cintura.
— Precisa de ajuda? — oferece, olhando para o balcão cheio de louça
para lavar.
Antes que eu responda, ela se prontifica a dar uma organizada na
bagunça que Joseph e eu fizemos. Vou secando os copos e pratos enquanto
conversamos amenidades. O dia passa de forma agradável, recheado de
conversas fáceis, risadas e companheirismo. Valentin é o centro das atenções,
como era de se esperar. Ainda mais agora, que está tentando andar. Ele sai
escorando em tudo e em todos, nas suas passadas rápidas e desengonçadas.
Em certo momento, até fazemos uma competição. Juliette e eu ficamos lado a
lado, meu pai atrás do neto que dá passos cambaleantes, e nós dois o
incentivando, ela com “vem para a mamãe”, e eu com “vem para o papai”.
Teve até aposta em dinheiro entre Adrien e Bernardo. Dousseau apostou que
o garoto ia para a mãe, enquanto Bourdieu apostou em mim.
É nesse momento, num fim de tarde em Rennes, com um sol agradável
nas nossas peles, enquanto brincamos com o menino, que ele faz duas
grandes “primeiras vezes”. Valentin consegue andar sozinho os dois metros
que nos separam, suas perninhas aceleradas na minha direção. Vibro quando
o vejo ajustando o caminho para mim, o que me faz intensificar mais o meu
“vem, garoto!”. Então, quando meu filho está entre meus braços, ele gargalha
e solta um:
— Papai.
Ele já diz mamãe. Diz desde os oito meses, mas como tem
relativamente pouco tempo que entrei na vida dele como pai, é natural que
demorasse um pouco mais para dizer. Mas ele disse. Esperei por esse
momento cada segundo desde o dia que decidi que o queria como meu filho.
Incentivei-o sempre que podia, repetindo a palavra. Valentin nunca disse. Até
hoje. Até agora. Simplesmente não sei lidar com isso sem ser juntando
lágrimas nos olhos e beijando seu rosto, deixando transbordar toda a emoção
que sinto nesse instante.
Juliette se aproxima, envolve-me em seus braços quentes e beija meu
rosto, um sorriso nos olhos e nos lábios que revela a mesma emoção minha.
— Agora diz “vovô” — meu pai incentiva, e todos nós rompemos em
gargalhadas.
Valentin me abraça, deitando o rostinho no meu ombro, seus bracinhos
curtos em torno do meu pescoço. Afago suas costas, deixando um beijo na
sua bochecha corada e o apertando mais contra meu peito.
Esse garoto veio ao mundo para ser meu filho.
Ninguém nunca poderá contestar isso.
JULIETTE
Ann-Marie me abraça em despedida, apertado. Bernardo não para de
buzinar na frente de casa, infernizando a esposa para irem embora.
— Se deixar, passam a tarde tricotando — grita, quando a mulher o
manda esperar um pouco. — Até Jean-Luc está entediado.
Ela revira os olhos e ri discretamente, pegando-me pelas mãos e me
olhando nos olhos. Nunca vou entender por que ela se aproximou tanto assim
de mim a ponto de cultivarmos uma amizade sincera. Nunca vou entender e
nem quero. É suficiente que seja minha amiga e tenha perdoado as besteiras
que fiz um dia.
— A festa estava linda — elogia, olhando por cima do meu ombro, as
bexigas e balões de número dois enfeitando a minha sala atrás de mim. —
Obrigada por tudo.
Balanço a cabeça em negativo. Não há o que agradecer. Valentin fez
dois anos. O pai dele quis uma pequena festa entre os familiares, porque
nenhum de nós dois gosta de qualquer coisa grandiosa. Ainda mais para um
bebê de vinte e quatro meses. Pierre, contudo, quis comemorar o nascimento
dele. Chamei os amigos mais próximos, o que se resume a Ann-Marie e
Bernardo, Adrien, Étienne, meu sogro com a esposa, e Juliene que saiu às
pressas quinze minutos atrás ou ia perder o voo de volta à Inglaterra, onde
está cursando o último semestre do seu curso. Marie também ficou de vir,
mas avisou que não poderia por conta do trabalho. Enviou uma lembrancinha
por Dousseau que é a coisa mais linda.
Despeço-me da minha última convidada uma última vez antes de fechar
a porta e começar a limpar a bagunça. Jogo pratos e garfos descartáveis no
lixo, limpo a mesa, o chão, junto brinquedos e balões. Uma hora depois,
minha sala está devidamente organizada de novo. Vou até o quarto de
Valentin, a passos cautelosos, e, à medida que me aproximo, posso escutar a
voz grossa de Pierre cantando uma canção de ninar. Afasto um pouquinho a
porta entreaberta e lá dentro o vejo com o menino no colo, segurando uma
mamadeira com a mão direita enquanto o balança preguiçosamente. Nunca
vou me acostumar com esse carinho dele com Valentin e sempre vou me
sentir boba em vê-lo cuidando do filho. Cada troca de fralda, cada conversa,
cada banho, cada madrugada que levanta para acalmar o pequeno chorando
no berço, cada vez que prepara a mochila da creche, cada vez que fica em
estado de nervos quando o menino está doente.
Nunca vou sentir que ele não faz mais que sua obrigação, porque ele
não tem obrigação nenhuma. Mesmo depois de ter assumido Valentin, de ter
dado seu sobrenome ao meu filho, não consigo cobrar nada de Pierre. Às
vezes, me deixo sobrecarregar de tarefas com o menino por causa disso, por
não conseguir pensar que, como pai dele, Pierre tem suas obrigações. É claro
que isso gera longas conversas de como ele não gosta que me desdobre para
fazer tudo sozinha porque ele tem, sim, seus deveres paternais. Aos poucos,
estamos trabalhando isso, e estou me sentindo mais confortável e confiante
em deixá-lo cumprir a rotina e as tarefas com o garoto.
Pierre finalmente nota minha presença e se vira para mim, abrindo um
sorriso pequeno. Sustenta meu olhar só por um segundo antes de voltar a
cantarolar e ninar o filho. Encosto a porta de novo e vou para nosso quarto.
Tomo um banho e preparo um filme para passarmos o restante desse
domingo gostoso.
Ele surge dez minutos depois, cabelos desgrenhados e cara de cansado.
Veio de um plantão hoje cedo e passou o dia me ajudando a organizar o
aniversário de Valentin. Cai na cama, ao meu lado, enfiando o rosto no meu
pescoço e jogando os braços pesados por cima de mim.
— Ele dormiu?
— Finalmente — responde. — Nunca vi menino para ter tanta energia.
Rio e acaricio seus cabelos pretos — que até hoje, na verdade, não sei
são pretos ou castanho-escuros. Nunca perguntei. Pierre fica um tempo
aconchegado em mim, respirando lentamente; acho até que cochilou. De
repente, solta “eu te amo muito”, o que nem me surpreende porque ele é
dessas aleatoriedades. Sorrio e giro meu corpo por cima do dele, dizendo que
também o amo e massageando seus ombros.
Penso em oferecer sexo, mas desisto porque noto que meu marido já
está dormindo. Saio de cima das suas costas, colocando-me ao seu lado,
deixando meu rosto rente ao seu. Jogo minhas pernas na sua cintura e com o
indicador, começo a traçar o contorno do seu rosto bonito.
— Descanse, mon amour — murmuro, beijando seus lábios. — E
obrigada por tudo.

FIM
Proibido e Irresistível
(Amores em Paris — Vol. IV)

Sinopse: Desde os treze anos, Adrien Bourdieu é apaixonado pela filha


do patrão, sete anos mais velha. O sentimento que começou como uma
paixão de pré-adolescente nunca morreu dentro dele. Muito pelo contrário.
Contudo, o rapaz sempre foi invisível aos olhos de Marjorie, separados talvez
pelas realidades díspares ao qual pertencem e pela diferença de idade.
Agora, um homem adulto e feito, há somente duas coisas que ame mais
do que a garota de olhos castanhos: sua família e sua profissão. Embora aos
28 anos seja doutor em arquitetura, Adrien ainda não conseguiu seu lugar ao
sol e batalha diariamente para isso. A oportunidade perfeita surge por acaso
ao mesmo tempo em que, de repente, seu amor da adolescência está de volta
a Paris e finalmente parece notá-lo. Nesse momento, ter a atenção e o amor
dela seriam um sonho se realizando se não estivesse sendo obrigado a
escolher entre a mulher que ama e a ascensão da sua carreira.
ADRIEN
Sempre fui um homem que nunca teve grandes ganâncias na vida.
Todos os meus sonhos podem ser resumidos em me formar, ter um bom
emprego, fazer carreira e dar um lugar digno para minha mãe morar e viver
sua aposentadoria. Madeline Bourdieu me criou sozinha porque meu pai foi
canalha o bastante para não dar nenhuma assistência. E por que era casado.
Deve ser até hoje. Nunca soube quem ele é, nunca nem fiz questão nem
mesmo de saber seu nome. Minha mãe tampouco fez questão de me dar mais
detalhes. Melhor assim.
Quando me apaixonei pela primeira vez, por uma garota sete anos
mais velha do que eu e filha do patrão da minha mãe, na época, eu tinha treze
anos. Marjorie Chevalier integrou minha pequena lista de sonhos e foi a
primeira a ir para a sessão de conquistas impossíveis. Eu, na minha inocência
de garoto entrando na puberdade, sonhava com dias com ela, é claro, mas
tinha meus pés no chão e sabia que aquela garota — noiva de um homem da
sua idade — nunca ia reparar em um pivete que estava com a sexualidade à
flor da pele e que ainda por cima nem mesmo pertencia ao seu status social.
Me conformei que aquele sentimento todo por Marjorie eram apenas os meus
hormônios e que, um dia, ia superá-la, encontrar uma garota da minha idade,
alguma coisa assim. Não foi o que aconteceu. À medida que eu crescia, meus
sentimentos por ela se intensificavam.
Consegui me formar em arquitetura. Quando terminei a graduação,
engatei em um mestrado e logo depois um doutorado. Apesar da minha
formação, e apesar de trabalhar em uma empresa do meu ramo, há pouco
tempo eu era um simples motorista de Ferdinand. A oportunidade de integrar
sua equipe de arquitetos surgiu dois meses atrás. Uma semana depois, eu
estava em um bom emprego, com a oportunidade de, finalmente, começar a
fazer carreira na minha área. A única coisa que eu não esperava, de jeito
nenhum, era que a única conquista impossível fosse, inesperadamente, estar
na minha cama hoje.
Em uma ocasião pouco comum, Marjorie finalmente tinha me notado.
Não sei dizer se foi o Universo conspirando a favor, destino, acaso, sorte. O
que importa é que, na semana em que ganhei uma boa promoção, a mulher
por quem sempre fui apaixonado tinha reparado na minha existência.
Hoje, aos vinte e oito anos, tenho um emprego com possibilidade de
carreira, ganho o suficiente para pagar as contas, consigo poupar um pouco
para dar uma casa para minha mãe no futuro e namoro a garota dos meus
sonhos há um mês.
Eu não poderia querer mais nada.
Sorrio quando sinto suas mãos atrevidas correndo pelo meu peito,
descendo perigosamente para o ponto que sempre a deseja. Ela está chegando
lá, e não contesto. Marjorie está abraçada em mim, em uma conchinha
invertida, e a posição permite que seus lábios estalem nas minhas costas,
enquanto seus dedos se fecham ao meu redor.
— Já em pé? — ela graceja, me masturbando levemente.
É um pouco difícil respirar e responder, porque a suavidade da sua
pele na minha me impossibilita de pensar qualquer coisa minimamente
coerente, quem dirá dizer. Leva cinco ou dez segundos para que eu consiga
responder, com um maneio de cabeça. Ela questiona se quero transar. Deus,
que pergunta. Eu digo que sim. Marjorie se vira por cima de mim, montando
meus quadris, inclinando-se sobre a mesinha na cabeceira da minha cama,
pegar uma camisinha e rasga a embalagem com os dentes. Ela desliza o
preservativo por toda a minha extensão e se senta sobre mim, muito devagar,
como se quisesse aproveitar cada segundo sem pressa nenhuma. Ela cavalga,
começando lentamente, até que aumenta o ritmo. Quando gozamos, minha
mão direita está na sua coluna, ajudando-a nos movimentos, meus quadris
batem contra os seus, e meu polegar esquerdo toca furiosamente seu clitóris.
No banho, conversamos amenidades enquanto esfrego suas costas e
depois tomamos café da manhã juntos. Marjorie pergunta se podemos passar
a noite no apartamento dela hoje. Ela tem planos de maratonarmos uma
franquia de filmes que é fã, beber muita cerveja e comer pizza.
— Tudo bem. Passo por lá às oito. Vou ver minha mãe, antes.
Seu pé, por baixo da mesa, sobe pela minha perna, e um sorriso
bonito surge em seu rosto.
— Combinado.
Marjorie me dá uma carona até a Chevalier Arch. Me despeço com
um beijo e asseguro que chegarei no horário em seu apartamento. Sigo até
minha mesa e, enquanto o computador liga, corro até a copa pegar uma xícara
de café. Tenho alguns projetos para revisar e faço isso na parte da manhã,
antes de uma reunião marcada para às onze, com um novo cliente. A equipe
de projetos se reúne na sala de reuniões dez minutos antes do horário, e a
reunião acaba meia hora depois do previsto.
— Adrien, garoto — Ferdinand me aborda assim que estou deixando
a reunião enquanto converso com uma colega. — Pode vir até minha sala, s’il
vous plait?
Eu o sigo até a sala da presidência, quatro andares acima. Ele me pede
para sentar em uma das poltronas confortáveis frente à sua mesa de vidro.
— Como foi seu final de semana? — pergunta, mexendo em algumas
pastas, papéis e documentos sobre sua mesa, sem me olhar.
— Très bien. — “Muito bem”, digo, me lembrando do sexo lento e
gostoso debaixo dos lençóis com Marjorie, dos nossos corpos jogados sobre
meu sofá apertado assistindo um reality show culinário, da bagunça de
pipoca, chips e chocolate ao nosso redor, das risadas, dos beijos trocados, das
carícias feitas, dos segredos confidenciados. — Marjorie estava comigo —
informo.
Não é segredo para ninguém nosso namoro, muito menos para
Ferdinand. No começo, fiquei inseguro que isso fosse se tornar um problema
para mim, mas Chevalier pareceu se mostrar bastante favorável com minha
relação com sua filha.
— Ela avisou mesmo que passaria o final de semana com você. —
Ferdinand finalmente ergue o olhar para mim, cruzando as mãos na frente do
queixo. — Te chamei aqui por outro motivo.
Ele pega uma pasta e retira uma única folha impressa, arrastando-a na
minha direção. Tomo-as nas minhas mãos e leio o que está escrito. É uma
proposta de trabalho. Não. É mais do que isso. É uma ótima proposta de
trabalho. Uma promoção para um cargo que, admito, não esperava ocupar tão
cedo. Tem gente nessa empresa com muito mais experiência do que eu que
poderia ocupá-lo. Não entendo porque Ferdinand está me privilegiando dessa
maneira.
— Supervisor de projetos — ele diz, embora seja desnecessário. —
Vai ter sua própria sala, sua própria equipe, seus próprios clientes. E o salário
— menciona, apoiando o indicador na cifra descrita na proposta — está
bastante acima do que costumo pagar, mesmo para esse cargo.
Eu sei!, penso, meio assustado com o valor na frente dos meus olhos,
a euforia começando a tomar conta de mim.
— Acredito que você queira essa promoção — ele diz, recostando-se
na sua cadeira, estudando-me com atenção.
Encaro-o por um segundo antes de voltar a olhar para o papel em
minhas mãos.
— É claro que quero! — respondo, eufórico.
Ferdinand sorri e se curva sobre a mesa.
— O cargo será seu, Adrien — garante. Tem uma hesitação estranha
na sua voz, um brilho diferente nos olhos.
Eu conheço Ferdinand desde os meus treze anos, trabalho com ele
desde os meus dezoito. Sei quando tem algo o entristecendo, ou o chateando,
ou o irritando, ou o incomodando. Nesse momento, mesmo com um sorriso
no rosto, quase posso dizer com toda certeza que tem alguma coisa
perturbando esse homem, que apesar da sua oferta, me oferecer esse cargo
não é algo que realmente queira fazer.
Não sei exatamente por que tenho essa sensação. Só… tenho.
— Mas para que consiga essa promoção, precisa fazer um pequeno
sacrifício. Sabe, na vida, às vezes, precisamos abrir mão de uma coisa ou de
outra.
— Não se pode ter tudo, já diria minha mãe — completo, e ele
assente. Penso por um segundo, tentando compreender do que teria que abrir
mão. — O que preciso fazer? — indago, por fim.
Ferdinand sorri de novo, encostando-se outra vez à sua poltrona,
aquele mesmo sorriso e o mesmo olhar de quem não está feliz com a decisão
prestes a ser tomada. Sem tirar o humor estranho no rosto, sentencia:
— Para conseguir esse cargo, tudo o que precisa fazer é se afastar da
minha filha.

Em breve…
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