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Nunes
Capas: Ge Benjamim – Design Editorial
Revisão e diagramação: Amanda Nunes
Revisão Final: Victória Gomes
Todos os direitos reservados.
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Box Amores em Paris: Pecado Irresistível, Paixão Irresistível, Desejo
Irresistível
Nunes, A.C.
Campos do Jordão/SP – 1ª edição.
1. Romance.
2. Literatura Brasileira.
3. Série.
Já tem dois dias que Antony está de viagem. Sinto falta dele nessa
casa imensa. Meus dias são preenchidos pela mesma rotina de sempre. Criei e
costurei algumas peças novas para meu vestuário na maior parte do tempo.
Sinto falta de trabalhar, de exercer minhas habilidades aperfeiçoadas com
meu curso de designer de moda, de ocupar minha cabeça e meu tempo com
coisas de que realmente gosto.
Furo o dedo em uma agulha quando tomo um susto com o soar alto do
meu celular. No visor, o número é de uma amiga de longa data, com quem
converso pouco, infelizmente.
— Salut, Giselle — atendo, deixando minha mesa e saindo do ateliê.
Caminho até a área aberta, pois é uma manhã bonita e agradável.
— Salut, ma chère amie — responde-me, animada. Sento-me em um
dos bancos do jardim e aproveito o calor matutino contra meu rosto. —
Desculpe te ligar assim, mas estou precisando de um favor. É urgente,
amiga.
Endireito minha postura.
— Em que posso te ajudar?
Giselle então me explica a situação. Ela tem uma empresa de porte
médio que celebra e organiza casamentos. Uma das madrinhas da noiva teve
um pequeno incidente com seu vestido e agora está sem, faltando apenas
algumas horas para a cerimônia.
— Angeline está quase tendo um ataque de nervos — minha amiga
comenta, referindo-se à noiva. — Ela quer as madrinhas todas vestidas
iguais, como foi planejado, e os modelos foram todos sob medida. A
costureira responsável pelos vestidos não está na cidade e não encontramos
mais ninguém que faça dentro do prazo que precisamos. Para dentro de, no
máximo, quatro horas.
Olho no relógio, já entendendo qual o propósito desta ligação. São
dez da manhã. Ela precisa do vestido para, no máximo, duas tardes. Para
mim, é tempo até de sobra.
— Pensei em você, Ann-Marie. Sei que tem um dom nato para a
costura e poderia me ajudar. Por favor, apenas desta vez!
Sequer penso duas vezes ao responder:
— Claro, Giselle! Será um prazer. Preciso apenas do modelo do
vestido e as medidas da madrinha. Se ela puder vir aqui em casa para
experimentar será ainda melhor. E, claro, do tecido.
— Oh, mon amie! Você é espetacular. Eu já consegui o tecido na
mesma cor da peça. Vou mandar alguém levar pra você. Merci beaucoup!
Apenas trinta minutos depois, recebo uma caixa com tudo que preciso
e corro até meu ateliê. Sou boa no que faço, modéstia à parte, e, em pouco
mais de duas horas, o vestido já está pronto. Ligo para Giselle e a informo do
trabalho finalizado. Em mais vinte minutos, ela e a referida madrinha estão
no meu ateliê, embasbacadas olhando para o vestido no manequim. A moça o
experimenta, faço apenas pequenos ajustes na costura e voi là! Está
belíssima.
— Nem sei como agradecer você por essa ajuda imensa! — Giselle
diz, abraçando-me. — Depois me passe o valor de sua mão de obra e…
Afasto-me dele no mesmo instante e abano a cabeça em negativo.
— Não é nada, Giselle. Não se preocupe com isso.
— Imagine! — protesta. — Você fez um trabalho incrível.
— Isso foi apenas um favor para uma amiga. Mas, olhe, já que você
insiste nisso, me pague um café um dia desses e estamos quites, o que acha?
Ela me abre o sorriso mais lindo do mundo antes de responder:
— Combinado! Pode ser amanhã à tarde? Será meu único dia mais
folgado. Depois disso tenho mais um milhão de casamentos para organizar —
diz, toda alegre e exagerada, soltando uma risada contagiante. Afirmo em
positivo e marcamos um horário mais específico. Acompanho-a até à porta
quando me dá um ponto de encontro mais exato antes de ir embora: —
Amanhã, às três, no Avenue Coffee. Te mando o endereço por mensagem.
Levo um segundo inteiro para assimilar onde foi que Giselle
combinou de se encontrar comigo. Ao finalmente processar, abro a boca para
contestar e implorar para que nós nos encontremos em outro lugar, mas a essa
altura Giselle já está entrando em seu carro e partindo.
Nem consigo dormir à noite com a ideia de pôr os pés naquela
cafeteria. Antony me alertou a não ir lá. Eu não quero ir lá e, por algum azar,
encontrar aquele homem. Penso, por várias vezes, em ligar para minha amiga
e desmarcarmos, ou marcarmos em outro ponto. Entretanto, tal sentimento
não é forte o suficiente. Quero ir ao Avenue Coffee, esta é a verdade, e revê-
lo. Revirando na cama com meus pensamentos e desejos em conflito,
levanto-me instantes depois e caminho até o closet, na minha mania ridícula e
estúpida de pegar essa joia ainda mais ridícula e estúpida e ficá-la
namorando.
Em um momento de criatividade às duas da madrugada, corro até meu
ateliê, pego meu caderninho de inspirações e desenho um vestido rodado,
vermelho, com um decote discreto, mas não que cubra todo meu colo, para a
gargantilha ficar mais à mostra. No dia seguinte, cedo, encomendo o tecido.
Logo quando chega, costuro a peça em pouco mais de uma hora e meia.
Experimento-a de frente ao espelho e dou mais alguns ajustes pequenos.
Ficou bom em meu corpo e valorizou minhas curvas. Fico tentada a
pegar a gargantilha e vesti-la para combinar com a peça, como esbocei no
desenho. Contenho-me, entretanto; pelo menos pelas primeiras horas.
Quando vai dando o horário de me encontrar com Giselle na cafeteria de
Dousseau, recebo a mensagem de minha amiga, informando-me
(desnecessariamente) o endereço de nosso ponto de encontro. No closet, já
vestida e maquiada, a joia está entre meus dedos e, pela primeira vez desde
que a ganhei, eu a visto.
Resfolego um segundo ao ver o adorno em meu pescoço esguio.
Ficou tão lindo… Levo a mão à joia e a toco com carinho; sem quase
perceber, sorrio, recordando-me do sorriso e os olhos de Dousseau. Tento
tirá-la de mim, afinal, não posso ir à sua cafeteria trajando esta joia. Não
quando a ganhei de um galinha galanteador e quando sou uma mulher casada.
Tento tirá-la, juro que tento. Perco as contas de quantas vezes levo as mãos
até o fecho e quero abri-lo e tirá-la do meu pescoço. Mas não consigo.
Nenhuma das vezes.
Quais são as chances de usá-la e me encontrar com Bernardo na
cafeteria? Ele é um homem ocupado, talvez nem esteja por lá hoje.
Contrariando todo o bom senso, decido que a usarei hoje,
aproveitando que Antony não está na cidade.
Puxo a caneca ao meu lado e bebo mais um gole do meu café, sem
desgrudar os olhos da planilha. Preferia estar revisando isso em casa, bem
acomodado e confortável na minha cama, talvez com uma taça de vinho e um
filme qualquer na televisão apenas para não ficar em silêncio. Mas o
expediente acabou e Deus mandou uma chuva torrencial que me deixou preso
aqui dentro. Poderia ter ido embora meia hora atrás, quando a tempestade por
fim deu uma trégua. Todos meus funcionários aproveitaram essa folga
correram para suas casas. Não eu. Tive a brilhante ideia de enrolar mais dez
minutos e acabou que a chuva veio com mais força de novo. É impossível ir
lá fora e chegar seco ao carro.
Agora estou aqui, completamente sozinho — exceto pelas planilhas
—, há vinte minutos, esperando essa droga de chuva passar. É tarde da noite,
quase onze horas. Estou cansado, ao menos não com fome, e entediado.
Minha maior vontade é deixar esses papéis sobre minha mesa e me estirar no
sofá logo ali, chamando-me, embora seja meio desconfortável para tirar
mesmo um cochilo. Entretanto, não posso me dar ao luxo de atrasar ainda
mais esses relatórios.
Um barulho contra o vidro me desconcentra da minha leitura. Ergo os
olhos e os fixo no nada, pois é a minha audição que estou apurando. Deve ter
sido apenas uma pedrinha que bateu na janela ou na vidraça da fachada.
Torno a analisar os documentos quando outro barulho chama minha atenção.
Meu coração começa a ribombar dentro do peito. Nunca fui assaltado ou
roubado em minha própria cafeteria, mas não dizem que há uma primeira vez
para tudo?
Agarro meu celular e deixo o teclado de discagem pronto para ligar
para o 112, caso seja necessário, enquanto me levanto com cautela e sigo até
o salão principal. As luzes estão apagadas, o local à meia-luz por conta da
iluminação pública que adentra pela vidraça da fachada. Na porta de entrada,
debaixo da tempestade impiedosa, vejo uma silhueta de estatura média, sendo
fustigada pela água, trajando um moletom e com a cabeça coberta por um
capuz.
Continuo me aproximando a passos pequenos, não sabendo quais as
intenções da pessoa do outro lado. Pode ser apenas um pobre coitado que está
com fome e sem um teto. Estou a um metro da porta quando a figura ergue a
cabeça e retira o capuz. No mesmo instante, me apresso e destranco as portas
duplas. Mal as abro e ela se joga em meus braços, sem se importar em me
molhar, me abraçando com força enquanto soluça em meu peito.
— Bernardo… — murmura. Pela primeira vez desde que a conheci,
me chama pelo primeiro nome. — Por favor, me ajude.
Afasto-a do meu corpo. Avalio, assustado, toda a sua situação.
— O que aconteceu com você, Ann-Marie?
ANN-MARIE
Meu marido retorna de sua viagem em pouco mais de duas semanas.
Durante sua ausência, me dedico a ir à igreja, à casa dos meus pais, a
desenhar alguns novos modelos de vestidos e a, principalmente, ficar longe
da cafeteria de Dousseau. Sabia que era uma péssima ideia ir até lá me
encontrar com Giselle. Havia uma grande chance de nós nos encontrarmos, e,
mesmo assim, eu fui. Usando a gargantilha idiota.
Bernardo ter me seguido e me abordado daquela maneira na galeria
me deixou surpresa e assustada. Pude sentir, pela primeira vez, o calor da sua
pele na minha. Não posso explicar a sensação que passeou em cada
centímetro do meu corpo com esse rápido contato. E depois, quando apoiei
minhas mãos em seu peito para empurrá-lo, senti a consistência do seu tórax
e a mesma sensação inexplicável de antes.
A perseguição e o assédio de Dousseau desde o início me
desagradaram. Embora muitas das vezes tenha consentido suas aproximações
abusadas e isso mexesse comigo de uma maneira indizível, ainda assim, me
incomodavam. Pedi algumas vezes para parar; ele, claro, insistia em me
perseguir. Duas semanas atrás, quando pedi novamente para cessar suas
investidas, vi algo estranho em seu olhar, como se, finalmente, tivesse se
dado conta do quanto estava sendo impertinente comigo. Então,
simplesmente se foi, depois de me pedir desculpas, e desde então não o vejo
mais. Quero dizer, o vi em uma única ocasião, em Notre-Dame, no domingo
passado, na missa pela manhã. Estava acompanhado da mãe, me viu junto de
uma amiga e sequer me cumprimentou. Escolheu outro banco e se afastou.
Levei isso como um sinal de respeito ao meu pedido e meu estado civil.
Na noite em que Antony está para chegar, cheia de desejo e saudade
do meu marido, arrumo nosso quarto e preparo um jantar especial para
recepcioná-lo. Às oito da noite, ele está atravessando a sala, trajando um
casaco creme pesado por cima do terno todo preto. Está chuviscando lá fora,
por isso os ombros e as costas trazem resquícios das gotículas caídas do céu.
Corro até ele e o abraço, enquanto o ajudo a se desfazer do casaco pesado e
da valise.
— Salut, mon chéri — cumprimento-o, beijando seus lábios.
Ele retribui abraçando minha cintura e sorrindo em minha boca.
— Senti sua falta, mon ange — declara, acariciando minha bochecha.
— Estou exausto e com fome. Quero comer uma boa comida e dormir.
Preciso dormir — diz. Estas poucas palavras já me desanimam.
Encaro-o seriamente por longos segundos, perguntando-me o que está
acontecendo com esse homem. Já estamos caminhando para mais de um mês
e meio sem sexo. Cada vez é uma desculpa diferente. Canseira, trabalho,
viagem. O problema é ele? Ou seria eu? Já nem sei mais o que pensar.
— Chérie, você não vem? — pergunta. Só então me dou conta de que
ele já está a caminho da cozinha.
Jantamos, mas pelo menos não em silêncio como em algumas vezes.
Antony me conta sobre sua viagem a Lyon e às outras cidades, dos novos
parceiros que firmou para a Dupont Investimentos e fala, animadamente,
sobre o novo projeto da empresa. Vejo algum brilho em seu olhar em
conversar comigo sobre esse projeto que está engajado com Emilien. No
começo, fico feliz por ele, de verdade. É bom vê-lo ocupar a cabeça com
outros empreendimentos além da galeria. Um instante depois, sinto que isso é
péssimo. Estar envolvido em um novo trabalho significa menos tempo em
casa e, consequentemente, menos tempo para mim e mais pretextos para não
ter tempo para nossa vida conjugal e sexual.
Tento demonstrar alguma animação e fingir que o apoio em todas as
suas decisões, mas, por dentro, estou impaciente, com meu corpo em chamas,
clamando para ter meu desejo saciado, enquanto este homem está aqui, na
minha frente, tagarelando sobre negócios e economia, um monte de coisas
que não compreendo.
Decidida a fazê-lo saciar meu desejo, ergo o pé por baixo da mesa e
resvalo em sua virilha, olhando-o com um sorriso pequeno de malícia.
Antony devolve o sorriso e pega em meu pé, direcionando-o mais para o
meio de suas pernas. Sinto seu membro e sorrio, mordendo o lábio inferior.
— Preparei o quarto pra nós — digo, com um sussurro.
— Ótimo — fala, com um sorriso. — Vamos subir e tomar um banho
depois do jantar.
Sua declaração me deixa um pouco mais animada. Após comermos,
subimos até a suíte principal. Ele toma banho primeiro enquanto escolho
minha melhor lingerie.
— Estou te esperando, ma chérie — diz, deitando-se na cama apenas
com uma cueca boxer. Animada, corro tomar um banho e me preparar.
Hidrato a pele com um creme e borrifo um pouco de perfume.
Saio para o quarto, à meia-luz, e o chamo baixinho. Antony não
responde, sequer se move na cama. Aproximo-me mais, a passos cautelosos,
chamando-o mais uma vez. Só quando estou mais perto noto que está…
dormindo. Suspiro e contorno a cama, deitando ao seu lado. Tento acordá-lo,
mas o homem resmunga e me dá as costas.
Nesse instante, minha cabeça começa a criar paranoias, talvez não tão
infundadas. Começo a desconfiar. Desconfiar de que Antony Leclerc tem
uma amante.
Desisti de ter qualquer relação sexual com meu marido. Logo depois
de retornar de Lyon, não demorou muito e Antony já estava engajado em
outras viagens de negócios com Dupont, um pouco mais curtas, mas que,
ainda assim, tomaram dele alguns dias esporádicos. Quando finalmente achei
que poderíamos tirar o atraso de quase dois meses sem sexo, minha
menstruação resolveu descer. Qualquer outro homem teria implorado por
outros meios de satisfação nestes dias, mas meu companheiro pareceu muito
tranquilo quanto a isso. Sua atitude, de não me procurar e sequer mostrar
interesse, começou a despertar minha paranoia e desconfianças.
Nem desconfianças são mais, na verdade. Quase tenho certeza de que
ele tem uma amante. É a única explicação para estar se privando desta
maneira de ter sexo comigo. O pensamento de estar me traindo me deixa com
os nervos à flor da pele, sem saber o que fazer caso minhas suspeitas sejam
confirmadas. Uma pessoa qualquer pediria o divórcio e, embora eu seja muito
religiosa, confessor ter ponderado por este caminho caso o problema do meu
marido seja estar em pecado da fornicação e adultério, mas descartei a ideia
logo em seguida. As Sagradas Escrituras são bem claras quanto a divórcio,
mesmo que haja um “adendo” para traição e permita o divórcio ao cônjuge
traído. Além disto, fiz um juramento diante Deus e diante à igreja quando nos
casamos: na saúde e na doença, até que a morte nos separe.
O que Deus uniu, o homem não separa.
Não sei o que fazer e como lidar diante essa situação. Não quero
aborrecer Antony e fazer acusações infundadas, mas também não posso
simplesmente aceitar que se deite com outra mulher e não tomar qualquer
atitude.
Querendo buscar algum conselho, depois da minha costumeira missa
aos domingos em Notre-Dame com meus pais, decido acompanhá-los de
volta à casa. Papai se retira para um cochilo depois de tomarmos um café da
manhã reforçado. Mamãe e eu nos reunimos no jardim, sentando-nos ao sol
matutino em torno da mesa, com outra xícara de café.
— Maman, preciso de um conselho — digo, apoiando a xícara no
pires. — É sobre Antony.
Mamãe me olha por cima da borda da sua xícara um segundo antes de
abaixá-la.
— Que conselho, ma fille?
Ajeito-me em meu lugar, procurando como começar a abordar esse
assunto com mamãe. Nós nunca realmente tivemos esse tipo de conversa,
nem mesmo com papai eu tive, e me sinto incomodada, se não envergonhada,
de falarmos sobre tal coisa.
— Acho que Antony está me traindo.
Simonie Fleury me encara seriamente por um segundo inteiro.
— Por que acha isso? — indaga, erguendo uma sobrancelha.
Mordisco o lábio inferior e desvio o olhar por um segundo. É
constrangedor para mim proferir isso.
— Bem… Ele anda frio e distante, me evita… — praticamente
gaguejo. — Me evita, à noite, sabe?
Simonie não diz nada por alguns instantes. Continua bebendo seu café
calma e vagarosamente, como se o fato de seu genro estar traindo a própria
filha não a incomodasse de forma alguma. Umedeço os lábios, nervosa com a
situação e com seu silêncio súbito.
— Não está fazendo suposições infundadas, chérie? — indaga,
deixando a xícara sobre a mesa outra vez.
— Eu queria, mamãe. Mas nós… — Fecho os olhos e respiro fundo.
— Não nos tocamos há bastante tempo. Não sei mais o que pensar se não que
ele tem uma amante.
— E se realmente tiver, o que pretende fazer? — pergunta aquilo que
vim buscar resposta.
— Não sei. Por isso vim pedir seu conselho, maman.
Mamãe se levanta do seu lugar e traz a cadeira para mais perto de
mim, sentando-se ao meu lado.
— Antes de tudo, precisa conversar com seu marido, ma fille.
Tento não dar uma risada sarcástica.
— Se ele estiver saindo com outra, acha que irá me dizer?
— Não, mas você saberá se seu marido está mentindo ou não.
Abano a cabeça em positivo, vagarosamente, assimilando suas
palavras.
— Independente do que esteja acontecendo em seu casamento —
mamãe continua —, precisa lutar. Ter fé em Deus e pedir a Ele discernimento
para lutar pela sua vida com Antony.
— Devo me manter casada mesmo se Antony estiver me traindo?
Mamãe abana a cabeça em positivo.
— Sim, Ann-Marie, porque Deus escreve certo por linhas tortas —
aconselha. — Muitas vezes coisas ruins acontecem conosco para pôr à prova
nossa fé, pois é muito fácil crer e ser fiel a Deus nos bons momentos. Isto se
chama provação, querida. E você precisa ser forte para passar por ela.
— Sim, tem razão — concordo, apertando seus dedos aos meus.
Simonie me dá um sorriso antes de finalizar:
— De qualquer maneira, chérie, converse com seu marido e tente
entender o que está acontecendo antes de tomar suposições como essa.
Antony chega mais tarde do que o comum, beirando dez da noite. Ele
liga, avisando de seu atraso por conta do trabalho. Minha paranoia e suspeitas
não param de me atormentar de que esse atraso é, na verdade, porque está
com outra mulher.
Estou no quarto, deitada, trajando calça e blusas de moletom,
pensando na conversa que tive com mamãe no dia anterior. Lá fora, a chuva
cai pesadamente, sem dar sinais de trégua. Levanto-me e ando de um lado a
outro, pensando em como abordar meu marido sobre o assunto. De ontem
para hoje, já conversei com Deus e lhe pedi sensatez e calma para essa
conversa.
Pela janela, vejo os faróis cortarem a noite. Antony chegou. Controlo
meus batimentos cardíacos e repasso tudo que ensaiei dizer a ele. Preciso tirar
essa questão a limpo. Dois minutos depois, meu marido entra no quarto,
praticamente encharcado. Estou perto da janela, os braços cruzados,
encarando-o seriamente. Ele percebe meu olhar duro em sua direção e
expressa confusão.
— Salut… — diz, fechando a porta e tirando o casaco molhado. Não
respondo. Antony me olha, sobrolho franzido. — Está tudo bem, mon
amour?
Levo mais dois segundos até disparar, sem cerimônias:
— Você tem uma amante?
Antony arregala os olhos. Sua fisionomia, por um mero instante, é de
susto. Logo, porém, relaxa e volta a tirar a roupa molhada.
— De onde você tirou esse absurdo, Ann-Marie? — inquire, a voz
calma.
Permaneço em meu lugar, na mesma posição, esmagando meu lábio
inferior.
— Você ainda pergunta, Antony? — devolvo, sentindo cada parte do
meu corpo tenso.
Meu esposo não me dá resposta alguma. Uma sobrancelha se ergue às
minhas palavras. Chutando a roupa molhada para um canto, profere:
— Precisa ser mais específica. E devo dizer que não gosto deste tipo
de acusação.
— Você não me toca há semanas. Não consigo pensar em outra coisa
a não ser que tem matado seus desejos com outra mulher — confesso de uma
vez, segurando as lágrimas dentro dos meus olhos.
Os olhos dele, calmos, se chocam aos meus.
— Ah, então é isso.
Pisco. Que diabos mais poderia ser?
De forma mecânica, balanço a cabeça em positivo enquanto se
aproxima de mim a passos pequenos, trajando apenas a cueca branca
molhada. Sua mão fria toca em meu rosto quente; me esquivo por conta da
diferença brusca de temperatura. Os lábios dele formam um mínimo sorriso.
— Confie em mim, mon amour. Estar algum tempo sem ter sexo com
você não significa que tenho uma amante.
Engulo em seco.
— Então significa o quê? Não consigo compreender, Antony.
Ele parece pensar um minuto na resposta antes de me dizer:
— Há algum tempo, se lembra de que eu te acompanhei a uma das
missas em Notre-Dame? — Balanço a cabeça em afirmativo. Embora seja
católico, suas idas à missa são sempre muito raras. Semanas atrás, foi uma
destas raras vezes. — E se lembra de que o sermão do padre foi sobre
sacrifícios e abrir mão daquilo que mais nos faria falta pra alcançar alguma
graça?
Franzo o cenho, não compreendendo onde Antony quer chegar.
Embora confusa, e ainda sem proferir palavra alguma, faço um gesto
positivo.
— Pois bem — continua e segue afagando meu rosto. — Há algumas
semanas, eu e Emilien já estávamos estudando esse projeto que agora estou
engajado. Queria muito que desse certo, ma chérie, e naquela manhã na
igreja, decidi por fazer um sacrifício a Deus para ter essa graça. Minha vida
sexual com você é a coisa que mais me faz falta. — Pestanejo segundos
inteiros, assimilando suas palavras. Por que simplesmente não me contou? —
Por isso me afastei de ti. Sei que é difícil, é difícil pra mim também, mas
preciso ser forte na promessa se eu quiser ter minha graça concedida. Já
obtive uma parte, mas não é tudo. Assim, te peço paciência, chérie. Agora
falta pouco.
Sinto-me uma tola por ter desconfiado de Antony, ter cogitado que
tenha uma amante. Ele pode ser explosivo e controlador, mas não é infiel.
Aliviada, abraço-o de repente, e o choque da diferença de temperatura entre
nossos corpos nos causa arrepios. Peço desculpas por minhas tolas
desconfianças e meu esposo me diz que está tudo bem. Afasto-me e o beijo
pacificamente.
— Só não entendo por que não me disse nada. Teria feito essa
promessa contigo. Juntos, seríamos mais fortes — falo, segurando suas
mãos.
— Eu… achei que você não fosse concordar em ficar algum tempo
sem sexo.
Reviro os olhos e o abraço outra vez.
— Bobo. Quando se trata de nossa fé sabe que faço qualquer coisa.
Agora, vá tomar um banho antes que fique doente — digo, empurrando-o
para o banheiro. — Enquanto isso, te farei uma sopa de cebola bem
quentinha.
Ele sorri, me beija amorosamente nos lábios e adentra o banheiro. Na
cozinha, separo os ingredientes e começo o preparo da sopa. Já está quase
tudo pronto quando Antony aparece, o semblante transtornado, vestindo
apenas as calças. Ergue meu celular na altura dos meus olhos e brada:
— Posso saber que porra é essa, Ann-Marie?
— Do que está falando, Antony? — indago, realmente confusa com
tal abordagem. Não sei o que possa ter visto em meu celular para deixá-lo
nesse estado.
— Uma mensagem de Giselle — esclarece, a voz ainda alta. — “Ann-
Marie, devemos repetir nosso encontro no Avenue Coffee. Foi bom conversar
com você. Podemos marcar para essa semana ainda?” — lê a mensagem.
Seus olhos tomam tons avermelhados e sinto medo de sua reação. — Você
foi lá sem meu consentimento? Quando claramente te disse para ficar longe
de Dousseau?
Encosto-me à borda da pia, meu coração a ponto de sair pela boca. É
a primeira vez que vejo meu marido nesse estado de raiva. E tudo por minha
culpa. Eu sabia que não deveria ter ido à cafeteria. Fecho os olhos, ainda sem
reação, meu corpo todo tremendo por dentro e por fora. Abro-os, assustada,
quando sinto uma pegada em meu braço.
— Me responde, mulher! — grita, completamente fora de si. — Por
que foi lá?
— Eu… Antony, me deixe te explicar.
— Foi atrás dele? Enquanto eu estava em viagem foi procurar outro
macho?
As lágrimas começam a despontar dos meus olhos, tal qual a chuva
impiedosa lá fora.
— Por favor, chéri, me deixe esclarecer a situação.
Com sua pegada forte em meu braço, ele me desencosta da pia e gira
nossos corpos. Os dentes trincam, o maxilar parece ficar mais tenso, os olhos
tomam proporções da loucura que Antony carrega quando está com ciúmes.
— Não há o que esclarecer. Você foi lá! Quando te disse pra não ir.
Cheio de raiva e descontrole, Antony joga meu celular no chão e
passa a esmagá-lo a pesadas, ainda gritando um monte de coisas desconexas
que não consigo compreender. Tento impedi-lo, peço, em meio às minhas
lágrimas, por favor, para parar e me ouvir, me deixar explicar. Não é o que
está pensando! Ele se vira e, em um átimo, me empurra. Desequilibro-me e
caio sentada, com toda força.
Olho-o, estarrecida por sua atitude. Seu semblante, ao se dar conta do
que fez, é de pavor. Antony dá um passo para se aproximar, mas neste
interim já me levantei e saí em disparada. Ouço-o gritar meu nome à medida
que me afasto e alcanço a porta da sala. Saio em meio à chuva, deixando as
lágrimas verterem cada vez mais fortes e se mesclarem às gotas caindo do
céu.
— Ann-Marie! — meu esposo me chama. Olho para trás, já no meio
do pátio de nossa casa, e ele está na porta, enquanto a chuva me fustiga sem
piedade.
Eu não lhe dou atenção e torno a correr debaixo d’água, sem saber
exatamente para onde ir.
Não quero ser encontrada. Não neste momento. Ainda estou perplexa
de como Antony teve coragem de me agredir daquela maneira. Continuo
andando sem rumo pelas ruas, tremendo de frio por causa da chuva feroz que
segue caindo sobre Paris. Peso todas as minhas opções de refúgio e descarto
cada uma delas, porque sei que meu marido facilmente me encontrará. Nesse
instante, porém, preciso ficar sozinha.
Minhas pernas então me levam, sem que eu perceba, para o local
causador disso tudo. Repreendo minha mente idiota por ter me trazido a este
lugar. Nada disso teria acontecido se tivesse ficado longe desta cafeteria. Paro
frente à fachada de vidro e fico aqui, longos minutos, com as lágrimas
rolando e o praguejando por esse conflito em meu casamento. Fecho os olhos
e, por um segundo de insanidade, penso que ele pode ser meu refúgio.
Antony jamais pensaria em me procurar na casa dele.
Oh, Deus, que é que estou pensando? Só posso estar ficando louca em
ponderar em ficar na casa deste homem, o causador dessa desgraça toda.
Contorno a cafeteria, saindo em uma rua logo atrás, pensando apenas em
continuar andando sem rumo. Então, vejo uma luz acesa no prédio do café.
Pisco muitas vezes observando a luminosidade, indicando que tem alguém no
local. Pode ser algum funcionário que tenha ficado até mais tarde. Ou… pode
ser Bernardo. Meu peito dói só de pensar na ideia rondando meus
pensamentos. Não tenho para onde ir essa noite. Está chovendo. Estou sem
dinheiro. Sem um lugar para ficar.
Situações desesperadas exigem atitudes desesperadas, não é o que
dizem?
Engolindo todo meu orgulho, volto para a avenida principal e bato à
porta de vidro, mantendo minha cabeça baixa com o capuz me escondendo.
Primeiro, quero ter certeza de quem está aqui. Se não for ele, então virarei as
costas, irei embora e darei meu jeito. Engraçado pensar que só nele posso
confiar para vir aqui e pedir ajuda. Não quero arriscar que algum de seus
funcionários me reconheça e depois diga a Antony. Seria apenas mais
confusão.
Demora um pouco até alguém surgir, atraído pelo meu bater na porta,
e quando vejo que é Bernardo, me sinto até mais aliviada e segura em erguer
a cabeça e retirar o capuz para ser reconhecida. No mesmo instante, ele se
apressa a me abrigar em sua cafeteria e em seus braços — onde me jogo e o
aperto contra meu peito, impulsionada por uma atitude desesperada e pelas
emoções que esse homem desperta em mim.
— Bernardo… — murmuro. Agora, aqui, acolhida em seu abraço,
num ato tão íntimo, não vejo necessidade de formalidades. Em meio ao
desespero do momento, ainda assim gosto de como seu nome se forma em
minha boca. — Por favor, me ajude — peço.
Ele afasta seu corpo quente do meu, molhado e frio. Sinto seus olhos
me avaliarem, a expressão assustada.
— O que aconteceu com você, Ann-Marie? — pergunta.
Só então me dou conta de que terei que falar a ele sobre a agressão de
meu marido.
Deus, por que diabos eu vim procurá-lo?
BERNARDO
Seu corpo treme levemente em meus braços, enquanto a encaro,
esperando-a me dar uma explicação para sua situação — embora eu possa ter
alguma ideia do que aconteceu.
— Antony e eu… discutimos — diz; a voz é um fiapo quase
inaudível. Seus dentes batem um contra o outro.
Contorno seus ombros com um abraço e a levo até meu escritório,
ignorando, por ora, suas justificativas. Meio receosa, ela me segue e olha meu
ambiente de trabalho enquanto pego meu blazer pendurado a um cabide e lhe
entrego.
— Tire essa roupa molhada e vista o paletó para se aquecer. Vou te
fazer algo quente para beber. Prefere chá, café, cappuccino?
Ela me olha por um instante, abraçada ao próprio corpo como uma
forma de se esquentar.
— Quer que eu tire toda minha roupa e vista apenas o seu paletó? —
pergunta, apreensiva. Seus olhos frenéticos esporadicamente encontram os
meus, os dentes moem o lábio inferior, um claro sinal de nervosismo.
— Melhor do que ficar com esses trajes molhados e se arriscar a
pegar uma hipotermia, n’este-ce pas? — devolvo, calmo. — Vista-se, Ann-
Marie. Vou te fazer um chá.
— Cappuccino — solicita, quando já estou na porta. Viro-me em sua
direção, abro um pequeno sorriso e então vou lhe preparar a bebida.
Dois minutos depois, ela aparece na área vital da cafeteria. Estou
terminando de colocar uma espuma de leite em sua caneca quando a vejo. O
esforço físico e mental que faço diante à visão é devastador. Eu,
definitivamente, não estava preparado para vê-la dessa maneira. Seu corpo
curvilíneo é bem recebido no meu casaco, que está todo fechado e abotoado,
cobrindo-a de um palmo acima dos seus joelhos para cima. Os cabelos louro-
acobreados continuam uma bagunça molhada e, ainda assim, a mulher
consegue ser exuberante.
Ela me encara, muito incomodada, com certeza pelo meu olhar sobre
seu corpo. Discrição. Aproximo-me e lhe estico a caneca com o cappuccino.
Ela aceita a oferta, mesmo ainda muito sem jeito com a “vestimenta” e minha
presença. Encosto-me ao balcão e a assisto dar pequenos goles na bebida
quente.
— Pode me contar agora o que houve, exatamente? — peço, em tom
ameno.
Ann-Marie continua cabisbaixa, sem coragem de me encarar.
— Antony te fez alguma coisa? — pergunto, já supondo que o
problema é o traste do marido dela.
Finalmente, a mulher ergue seu olhar apavorado.
— Ele me proibiu de vir aqui… — confessa, sussurrando.
Sua afirmação me deixa surpreso. E furioso. Quem diabos aquele
inútil pensa que é para proibir sua mulher de qualquer coisa que seja?
— … sozinha. Sem ele, entende? — A voz fica cada vez mais baixa.
— E eu vim, algumas vezes, sem ele ter conhecimento disto. A última, foi
com uma amiga. Você deve se lembrar. — Cruzo os braços na frente do tórax
e maneio a cabeça, apesar de ela ainda se negar a me olhar. — Antony
descobriu, ficou furioso, deu um ataque de ciúmes em casa, quebrou meu
celular e… — Seca uma lágrima e continua na mesma posição cabisbaixa e
reclusa. — Fui tentar impedi-lo, queria explicar, mas aí ele… me empurrou.
Com muita força. Fiquei assustada, saí de casa como estava, debaixo de
chuva. — Por fim, decide me olhar nos olhos. — Tive medo de Antony me
bater.
Meu corpo está tenso e rígido no lugar. Esforço-me além do normal
para não sair daqui agora mesmo, procurar esse imbecil e enchê-lo de
porrada. Meus dentes se forçam tanto dentro da minha boca que tenho medo
de quebrá-los. Ficamos em silêncio por vários segundos depois da situação
ser esclarecida. Quero lhe dar algum conforto, acolhê-la, levá-la para casa e
cuidar dela. Farei isso, depois que essa raiva por Leclerc passar. Ando de um
lado a outro, tentando acalmar meus nervos. Só não vou atrás dele agora
mesmo por causa de Ann-Marie, que precisa de cuidados e de um lugar para
ficar.
— Eu não queria ter te incomodado — diz, por fim, tirando-me do
meu modo raivoso. Meu corpo relaxa por um segundo e decido me esquecer
de Antony no momento, focando em ajudá-la. — Me desculpe.
Com dois passos largos, estou próximo dela, tocando seu rosto ainda
gelado com minhas mãos.
— Não se desculpe por isso.
Ela acena em positivo, mas não me encara de volta. Termina seu
cappuccino e deixa a xícara sobre o balcão.
— Posso passar a noite aqui? Vi que você tem um sofá no seu
escritório. Prometo ir antes de vocês abrirem a cafeteria.
Mas nem por um caralho ela fica aqui.
— Que pedido mais absurdo, Ann-Marie. É claro que você não pode
ficar aqui.
Seus olhos se abatem diante minha sentença.
— Não tenho pra onde ir — profere, em um tom humilhante de
súplica. Até demoro a perceber que me chamou pelo primeiro nome pela
segunda vez. — Em qualquer das minhas opções para me refugiar, Antony
me encontra facilmente. Na casa dos meus pais, na casa de minhas amigas.
Nem em uma vida ele pensaria em me procurar aqui. Por favor, por favor…
Juro que não vou…
Calo-a colocando dois dedos sobre seus lábios roxos de frio.
— Você não pode ficar aqui, mas isso não significa que eu não tenha
um lugar mais seguro pra te levar — esclareço.
Mais uma vez, seus olhos se arregalam perante minhas palavras.
— Vai me levar para sua casa? — inquire, baixinho.
A ideia mexe comigo. Não seria a pior de minhas decisões.
— Não. Se bem conheço Antony, e se vocês brigaram por minha
causa, não duvido nada que te procure no meu apartamento. Vou te levar a
outro lugar.
— Certo… — murmura. Imediatamente um segundo depois, suas
feições tomam proporções de puro pavor. — Não! Não posso. — A cabeça se
movimenta de um lado para outro. Penso em perguntar o motivo, entretanto,
ela responde antes de pôr minhas dúvidas em palavras: — Não posso passar a
noite fora! Que vou dizer a Antony amanhã? Não poderei dizer que passei a
noite com… — Suas íris azuis se levantam em minha direção. Há medo
genuíno nelas. — Com você… E se eu mentir, ele vai saber a verdade!
Agradeço sua ajuda, mas não posso. Melhor voltar para casa e enfrentá-lo…
— Ann-Marie faz menção de se virar e partir, porém, impeço-a segurando em
seu punho e a puxando para mim. A força do meu movimento a traz para
junto do meu tórax. Gosto de sentir sua pele fria na minha, quente. Dá a
sensação de que posso aquecê-la e protegê-la. E gosto disto.
— Minha mãe costuma dizer que se dá jeito para tudo, menos para a
morte. Não se preocupe, ma chère. Já tenho uma ideia de como enganar seu
marido.
— Ele vai descobrir — choraminga, aconchegando-se em meus
braços. Embora envolvida no paletó, acredito que ainda esteja com frio. Esta
mulher precisa de um banho quente, de roupas confortáveis e decentes
capazes de aquecê-la de verdade.
Apoio o queixo sobre sua cabeça, tendo a impressão de que ela não
nota como se aproxima e se aconchega em meus braços.
— Não vai. Confie em mim.
Ela emite um “tudo bem” quase inaudível. Ficamos assim, abraçados
um ao outro, eu lhe servindo como um porto seguro quente e aconchegante,
por vários segundos. Depois, me afasto, dizendo que preciso fazer algumas
ligações. Resolvo os problemas dela em dez minutos e então volto ao salão,
onde continua no mesmo lugar, o olhar perdido para a noite através da
vidraça.
— Podemos ir — digo-lhe, surgindo logo atrás dela e a fazendo se
sobressaltar. Ela se vira em minha direção e faço outro daqueles esforços
sobre-humanos para não deslizar meus olhos para suas pernas despidas.
Também não vou negar estar imaginando seu corpo por debaixo do
meu paletó. Porra, ela está sexy demais nesse terno.
— Tudo bem — sussurra em resposta.
— Vamos pelos fundos — oriento-a. Saímos pela porta do escritório,
que desemboca em uma rua secundária à avenida principal da cafeteria. —
Meu carro não está muito longe — informo, enquanto caminhamos pelo
trajeto semiescuro e silencioso. Não recebo resposta.
Ann-Marie se acomoda no banco do passageiro em silêncio e
permanece assim toda a viagem até um condomínio localizado no 7ème
arrondissement de Paris. Na guarita, me identifico e o porteiro me dá
passagem livre. Estaciono o carro na garagem subterrânea. Antes de descer,
eu a olho. Continua cabisbaixa e emudecida.
— Vem, vamos. — Ela desce e me espera guiá-la.
A viagem de elevador também é feita em completo silêncio.
— Que lugar é este? — finalmente a mulher decide se pronunciar.
Giro a chave na fechadura e lhe dou passagem, entrando em seguida e
fechando a porta.
— É o apartamento de um amigo. Do meu sócio, na verdade.
Ela se vira em minha direção, os braços cruzados fazem a vestimenta
se erguer um pouco mais e me dando a visão de mais pele de suas pernas
brancas.
— Bernardo… — começa, pronta a me advertir, porém, eu a corto.
— Não se preocupe, ele não mora aqui. Mantém o apartamento para
quando vem à França — explico, caminhando até a cozinha. — Um monte de
anos atrás, nós morávamos juntos. Eu o conheci na faculdade, quando aquele
cretino foi mandado para cá por ter dormido com a namorada do irmão mais
velho. — Começo a revirar as panelas nos armários e a retirá-las do lugar. —
Dividíamos o aluguel de um apartamento bem pequeno perto da
Universidade. Quando nos formamos e o Avenue Coffee nos dava lucros
suficientes, ele comprou esse lugar. Claro, com uma boa e generosa ajuda da
mãe. Ele vem de uma família bem abastada, dona de uma empresa
alimentícia enorme no Brasil. Enfim… — Suspiro, virando-me de volta em
sua direção. — Acho que estou falando demais, não é? — Ela exibe um
sorrisinho e balança a cabeça em positivo. — Com isso tudo, só quero dizer
pra você não se preocupar, meu sócio não vai aparecer por aqui, de surpresa.
Tenho uma cópia da chave para vir de vez em quando e abrir o lugar, dar uma
arejada, porque aquele mão-de-vaca nem para pagar alguém pra isso.
Retiro alguns ingredientes da despensa e apoio sobre o balcão. Por
sorte, Alfredo mantém mantimentos não-perecíveis por aqui que dá para fazer
algo para comermos. Quando a olho de novo, vejo-a com um sorriso maior e
ainda mais encantador.
— Ninguém vai te achar aqui — finalizo. Apenas faz um gesto em
positivo e olha ao redor, como se estivesse deslocada. Começo a preparar
uma coisa rápida para comermos e digo:
— Pegue um cobertor no quarto, ao fim do corredor, para se aquecer
até suas roupas chegarem.
Ann-Marie me fita com curiosidade, os braços cruzados na frente do
tórax.
— Liguei pra um funcionário e pedi para passar em meu apartamento
e me trazer alguns pares de roupa. Espero que não se importe em vestir uma
cueca, calça e camisas minhas — brinco, exibindo um sorriso galante.
Vejo o rubor cruzar suas bochechas. Adorável. Ainda se negando a
falar comigo, ela se afasta e volta instantes depois enrolada na coberta.
Enquanto cozinho um macarrão, noto-a andando pela sala e observando os
retratos espalhados pelo cômodo. O telefone toca algum tempo depois. É da
portaria. Entregaram-me uma mala. Desço, busco e retorno cinco minutos
mais tarde. Retiro uma cueca branca, uma camisa preta, calças de moletom
cinza e lhe entrego.
— Tome um banho e se agasalhe. A comida está quase pronta.
— Merci — agradece, tomando os trajes de minhas mãos e se
retirando até o banheiro.
Minutos depois, ela está de volta. A visão que tenho dela é tão linda e
adorável quanto a última, quando estava vestida apenas com meu paletó. Os
cabelos ainda estão molhados, mas penteados e cheirosos. A roupa toda fica
enorme nela no que se refere ao comprimento. O importante, contudo, é estar
confortável e aquecida. Ela se senta no sofá, cruza as pernas e enfia as mãos
no bolso da blusa.
— Bernardo — chama. Coloco um pouco de macarronada no prato e
a olho em seguida. — Se importa se perguntar como você resolveu a questão
de… o que vou dizer a Antony amanhã, quando me perguntar onde passei a
noite?
— Liguei para Deschamps. Ele tem uma rede de hotéis, deve saber
disso. Conversamos. Ele vai inserir informações de check-in e check-out em
um dos seus hotéis e depois mandar a conta para Antony. Para todos os
efeitos, você chegou pedindo hospedagem, toda molhada, sem documentos e
dinheiro e, como te conhece, te cedeu um quarto. Você não deu maiores
informações, apenas pediu hospedagem. O horário da entrada será à meia-
noite, o da saída, quando você puder ir pra casa.
A mulher se encolhe ainda mais no sofá.
— Falou com o Deschamps? — Seu tom é de pavor, alarmante, e
combina com sua expressão. — Os dois são amigos! Ele vai contar tudo a
Antony! Vai contar que estou com você! — Dá um pulo do sofá, como uma
gata arisca. Corro para conter uma provável fuga e a seguro pelos braços.
— René não vai contar nada… Expliquei a situação, disse que Antony
está alterado demais e pode te machucar caso te encontre. Ma chère, confie
em mim. Não teria ligado para ele se não confiasse no meu amigo.
Vejo-a engolir em seco e hesitar por um segundo inteiro. Por fim,
abana em positivo e fica mais calma. Torna a sentar no sofá e volto buscar
nossos pratos de macarronadas. Comemos, sentados um lado do outro, em
completo silêncio de novo.
— Notei que só tem um quarto neste apartamento… — comenta, após
terminar sua refeição.
— Eu sei — digo, com um pequeno sorriso. — Não se preocupe, você
dorme no quarto. Vou ficar nesse sofá… — Olho para o móvel por alguns
instantes. — Onde o Alfredo transou com um monte de mulher,
provavelmente.
Ela gargalha da minha frase e da minha expressão.
— Obrigada — agradece, sorrindo para mim. Não sei se percebe,
mas, de repente, suas mãos estão nas minhas. — Muito obrigada mesmo,
Bernardo.
Não contenho a felicidade se manifestando em meus lábios e olhos
por me chamar pelo primeiro nome. Significa que avançamos uma escala no
nível de nossa intimidade. Significa que ela deve me considerar um amigo. É
um bom passo.
— Não me agradeça — falo apenas, aproximando-me e deixando um
beijo em seu rosto.
Levanto-me, recolhendo nossos pratos e os levando para a pia. Busco
pelas horas e vejo que passa da uma da manhã.
— Vá descansar. É tarde. Amanhã… vemos como fica sua situação
com Antony, tudo bem?
Ela também se levanta do sofá e abana a cabeça em positivo,
afastando-se até o quarto e agradecendo mais uma vez. Lavo os pratos. Ela
retorna não muito tempo depois, com lençóis, cobertores e travesseiros. Não
digo nada quando a vejo arrumar o sofá para mim. Não digo nada quando se
aproxima, me abraça forte e me beija no rosto, perto demais do canto da
minha boca. Não digo nada quando ela retorna ao quarto.
Levanto-me bem cedo no dia seguinte. Aliás, nem sei se posso dizer
que cheguei a dormir. O sofá é uma droga, mal preguei os olhos. O fato é que
me levantei primeiro do que Ann-Marie para ir até o Avenue Coffee para,
um: buscar suas roupas, pois não pode sair andando por aí com meus trajes de
dormir; dois: trazer para ela alguma coisa para um café da manhã reforçado.
O ambiente já está movimentado quando chego. Cumprimento alguns
clientes rapidamente e me dirijo até o escritório, onde as peças dela
continuam jogadas e molhadas. Coloco tudo dentro da bolsa que trago
comigo e escolho diversas guloseimas da vitrine enquanto uma funcionária
prepara os cafés para viagem.
As portas duplas da entrada se abrem abruptamente, trazendo um
Antony transtornado para dentro. Não mexo um músculo enquanto ele avança
cafeteria adentro e para bem na minha frente, tendo apenas o balcão nos
separando.
— Onde está minha mulher? — brada, mal contendo a ira em sua
voz.
Abro um sorriso cínico.
— Antony… se você não sabe, por que eu deveria saber? É sua
esposa, não minha.
— Não passou a noite no seu apartamento — aponta, trincando os
dentes. — Ann-Marie não dormiu em nossa casa. E aquela abusada veio aqui
no outro dia! — grita, de repente. — Sem minha permissão, quando disse
para ficar longe de você!
Tenho de fazer outro esforço descomunal para não pular por cima do
balcão e socar o desgraçado até virá-lo do avesso.
— Escute, Antony, o que faço da minha vida ou deixo de fazer não te
diz respeito. Mas para que eu possa sair daqui sem precisar te dar um soco na
cara por sua insolência, vou esclarecer as coisas: não passei a noite em meu
apartamento porque estive na casa de uma das minhas amantes. Marie está
em viagem com Dupont e sou um homem que precisa de sexo, então procurei
na minha lista de fodas casuais alguma disponível. Quanto à sua esposa, te
aconselho a ser um marido melhor, talvez assim não a perca de vista.
Pego a caixa cheia de guloseimas e os cafés com minha funcionária e
saio pela porta dos fundos.
São quase dez da noite quando o táxi encosta no edifício onde ele
mora. Penso em voltar e desistir dessa ideia estúpida. Foi um erro vir aqui.
Você é uma mulher casada, pelo amor de Deus!
Já estou abrindo a boca para pedir ao taxista me levar embora, mas o
porteiro do prédio vem nos abordar.
— Identificação, por favor.
Estou ridícula com um lenço enrolado no meu pescoço e cabeça e
usando óculos escuros à noite, na tentativa idiota de não ser reconhecida.
— Ann-Marie — digo, evitando o sobrenome. — Vim ver o monsieur
Dousseau.
O porteiro se retira um segundo e retorna com uma prancheta em
mãos.
— Ann-Marie Leclerc? — pergunta. Afirmo com a cabeça. — Pode
subir. A senhora está na lista de pessoas autorizadas. Quer que interfone ao
senhor Dousseau e avise que está subindo?
— Não precisa, obrigada. — Admira-me que Bernardo já tenha
deixado minha subida autorizada.
Pago minha corrida em espécie e subo de elevador até o andar dele
enquanto me desfaço do meu disfarce ridículo. Penso bastante antes de
colocar a chave na fechadura e girá-la. Quando abro a porta, a imagem que
vejo não sei se me dá medo, arrependimento ou asco.
Na sala, ele está com Marie.
A bela mulher está usando uma camisa dele. Estão em pé, bem
próximos um do outro, como se eu tivesse interrompido um beijo. Bernardo
está vestido, segurando-a pela cintura e mostrando um daqueles seus sorrisos
charmosos.
Noto isso tudo no segundo após abrir a porta. Então, interrompidos
por mim, se viram em minha direção. Ele arregala os olhos em uma
expressão de surpresa. Marie, a princípio, faz o mesmo, mas em seguida,
lança a ele um olhar e um sorriso maliciosos.
— Ann-Marie? — ele indaga, tirando-me do meu torpor e medo que
me paralisaram.
Agora Marie sabe. Ela sabe que estamos envolvidos. E vai contar tudo
a Antony, não vai? Ou vai comentar com Dupont e este, sendo fiel amigo de
meu esposo, contará tudo.
Isso só pode ser Deus me castigando.
— Me desculpem, eu não… — Não consigo sequer formar uma frase
coerente.
Viro os calcanhares para ir embora daqui, mas ele me puxa de volta e
fecha a porta.
— Espere — pede. — Aconteceu algo? Você usou a chave e …
— Sim, eu sei — falo, mandando um olhar a Marie.
Um sentimento estranho cresce dentro de mim. Bernardo disse que
abriria mão de todas as mulheres se pudéssemos ficar juntos. Mas veja só,
não é o que parece. Mas também, o que eu deveria esperar de um mulherengo
como ele?
— Só vim pra conversarmos — explico. — Liguei para Antony;
quem atendeu foi uma mulher. Acho que você tem razão. Meu marido deve
ter uma amante — despejo tudo de uma vez, segurando minhas lágrimas. Ele
me puxa para um abraço e acaricia meus cabelos. Olho por cima dos seus
ombros e não vejo mais Marie. Afasto-me e fico cabisbaixa, mordendo o
lábio inferior. Tocando-me no rosto, ergue meu olhar para o seu.
— Marie não vai contar nada — sussurra.
— Como pode ter tanta certeza? — devolvo no mesmo tom.
— Porque ela é minha amiga e sabe que Antony é um idiota
agressivo.
Abano em positivo, não muito segura disso. A mulher surge
novamente no segundo seguinte, vestida agora com as próprias roupas. Vem
até mim e me dá um sorriso complacente.
— Nem mesmo você resistiu a esse pedaço de mal caminho? —
brinca, sem traços de julgamento na voz.
Fico completamente desconcertada e sem encontrar resposta para dar.
— Eu te entendo, se posso ser franca — continua, no mesmo tom de
brincadeira.
De repente, ela me abraça.
— Não vou contar nada a ninguém, não se preocupe — assegura;
sinto uma forte sinceridade nela. Não deveria, mas confio em Marie.
Ela se afasta e me olha ainda sorrindo.
— Mas não fique nessa situação a vida toda, está bem? — aconselha.
Enrubesço sem quase notar. Ela se volta a Bernardo, abraça-o e diz: — E
você ainda vai me explicar essa história direitinho.
Dousseau ri e abana em positivo. Marie se despede e se vai em
seguida.
Meu corpo ainda está meio tenso por conta desse encontro repentino.
Embora ela tenha garantido que não contará nada, sentir receio é inevitável.
Seus braços me contornam na cintura e então o olho com um pequeno
sorriso. Que foi que vim fazer aqui, mesmo? Ele me puxa mais para dentro e
me acomoda no sofá. Oferece algo para comer ou beber, mas recuso.
De repente, não consigo mais olhá-lo, meu interior se remexendo ao
pensar no que estariam fazendo agora caso não tivesse os interrompido.
Bernardo senta ao meu lado e segura minha mão, mas continuo não querendo
contato visual.
— Ei, o que há? — pergunta. Sou incapaz de conter uma risada
irônica.
— Você disse que abriria mão de todas as mulheres pra ficar comigo.
Praticamente no mesmo dia, estava prestes a se deitar com uma de suas
amantes.
Ele ergue uma sobrancelha e exibe um sorriso sacana.
— Bem — diz, suavemente —, você não me disse se quer ficar
comigo ou não. — Quero argumentar, mas ele está certo. Contra fatos não há
argumentos. Além do mais, ele é um homem livre. Diferente de mim. Sou
mesmo uma estúpida. — E eu não estava prestes a transar com Marie. Pelo
contrário. Estava justamente dizendo a ela que não quero mais encontros
casuais entre nós, não até ter uma resposta sua.
Não evito sorrir diante sua resposta.
— É sério? — pergunto.
Sua mão macia encosta em meu rosto e ali deixa uma carícia gostosa.
— Claro que é sério… Te disse que sou um homem de palavra.
— Você disse a ela sobre nós?
— Não. Apenas contei que estou saindo com alguém e quero algo
mais, mas ela ainda está indecisa. Então, até que essa mulher decida se fica
comigo ou não, prefiro me manter fiel. De qualquer forma, isso não importa
mais. Marie já sabe sobre nós, mas não se preocupe, ela não vai dizer nada.
Fiel.
Algo que não estou sendo com meu marido. E muito provavelmente
nem ele comigo.
— Se não aconteceu nada — me pego perguntando — por que ela
estava praticamente seminua com uma de suas camisas?
Dando-me um sorrisinho convencido, explica:
— Ela tem as chaves. Quando cheguei, Marie já estava aqui, vestida
com uma das minhas camisas. É uma mania, meio invasiva, mas é uma
mania. Já estou acostumado com o jeito dela. — Segura-me pelas mãos e
completa: — Mas não tem mais que se preocupar. Vou pedir para me
devolver a chave; teria feito isso hoje, se não tivesse chegado… De qualquer
forma, enquanto não tiver uma resposta sua, não terei nada com Marie.
Sorrio e o beijo de leve no canto da boca. O telefone dele toca para
quebrar o pequeno momento entre nós. Ele se levanta, me pedindo licença, e
vai atender sua ligação. Conversa com alguém por uns dois minutos apenas.
Não entendo sequer uma palavra, pois não fala em francês.
— Você fala português — digo, quando Bernardo retorna ao meu
lado. Recebo outro daqueles seus sorrisos e responde:
— Sim. Sou filho de uma brasileira. Cresci no Brasil até os oito anos.
Meu pai precisou voltar para cá, então tivemos de vir junto.
— Não sabia disso sobre você. É por isso que tem um nome tão
incomum para um francês.
Ele sorri um pouco mais e aproxima sua boca da minha.
— Talvez um dia possa te levar para conhecer o Brasil.
Não o respondo. Venço a distância que separa nossas bocas e o beijo.
Ele retribui, segurando-me pela nuca e me levando mais para seus lábios.
No seu sofá, nós fazemos amor.
Finjo que estou dormindo quando Antony chega. Passa bem de uma
da manhã e agora, sabendo que realmente tem uma amante, me pergunto se
não estava junto de Juliette até a essa hora, em vez de estar com Emilien,
como afirmou que estaria.
Meu marido entra esbarrando nos móveis ao redor, não sei se por
estar escuro ou, provavelmente, bêbado. Talvez pelos dois. Continuo imóvel
em meu lugar até que se deita ao meu lado e me abraça. Seu sopro quente
contra minha nuca cheira fortemente a uísque. Suas mãos geladas sobem por
dentro da minha camisola, e tento ao máximo manter a minha farsa. Talvez,
se perceber que estou dormindo, me deixe em paz.
Mas Antony não deixa. Continua me tocando, seus lábios agora
roçam meu lóbulo da orelha.
— Ann-Marie… — murmura.
Remexo-me na cama e tiro suas mãos do meu alcance. Meu esposo,
entretanto, é um teimoso. Seu toque gélido logo está em minha pele quente
outra vez, obrigando-me a me afastar um pouco na cama.
— Estou cansada, Antony — digo, tentando forçar uma voz de sono.
— Sou seu marido, venha fazer seu papel de esposa — fala. Pelo seu
tom, noto que realmente está bêbado.
Preciso me controlar muito para não soltar poucas e boas.
— Eu não quero! — Sou mais incisiva. Ele bufa e se vira de costas na
cama, resmungando alguma coisa inaudível.
Por fim, o silêncio toma conta do quarto; meu marido não demora a
dormir.
No dia seguinte, refugio-me em meu ateliê durante o horário do café
da manhã. Quero conversar com Antony a despeito do pedido de divórcio,
mas antes preciso tomar um pouco de coragem e ensaiar meu discurso. Não
direi que sei sobre sua amante; Antony vai negar, com toda certeza, arrumar
pretextos, talvez até envolva Bernardo no processo, e dessa maneira, não tem
como isso acabar bem.
Dedico-me à costura por horas, com afinco. Minha coleção de estreia
está quase pronta. Isso me faz lembrar que preciso resolver sobre o local onde
será minha butique. Antony pelo jeito ainda não sabe da minha decisão de
ficar com a loja 02 da nossa galeria. Quando pedir o divórcio, não sei como
isso será resolvido. Ele não aceitará nem um nem outro.
Almoço sozinha. À tardezinha decido falar com meu marido sobre o
espaço que quero transformar no meu negócio. Arrumo-me com o tradicional
— saia, camisa e saltos — e chamo um táxi. No percurso, outra ideia me
surge: tirar minha carteira de motorista. Já chega de Antony controlando
todos os aspectos da minha vida.
Na galeria, não o encontro em seu escritório. Pela hora, deve estar na
cafeteria de seu costume. Meu coração dá uma batida a menos só em pensar
em ter de procurá-lo lá. Não porque Dousseau me desagrada como era no
começo, mas porque sei que será um fator para Antony ficar ainda mais
nervoso. Todavia, tenho o direito de ir e vir. Homem nenhum — muito
menos o meu marido — vai me impedir de entrar em uma cafeteria.
Decidida, marcho até lá e o procuro por entre as mesas.
Ele não está. Meus olhos então estacionam em Gautier, que está
falando com uma das subalternas, dando, acredito eu, alguma orientação. Um
segundo depois, se volta para mim. Sorrio e vou em sua direção, criando um
esforço sobre-humano dentro de mim para não perder a compostura. Em
outra ocasião, o fato de ela estar dormindo com meu esposo seria o bastante
para sequer olhar em sua cara. Hoje, vendo-me apaixonada por Bernardo, sair
com Antony é um favor que me faz.
— Madame Leclerc — cumprimenta, com um pequeno sorriso. —
Em que posso ajudar?
— Sabe se Antony veio aqui hoje? Estou o procurando, mas não o
encontrei na cafeteria.
Ela não tem chances de me responder, pois nesse momento as folhas
duplas de vidro da entrada se abrem, trazendo para dentro um Emilien rindo
juntamente com Antony. Os olhos dele encontram os meus um segundo mais
tarde, o largo sorriso se desfaz no mesmo instante. Agradeço Juliette e sigo
na direção dele, que também vem ao meu encontro. Abro a boca para falar
com ele, mas me agarra pelo braço e indaga, entre os dentes:
— Que diabos está fazendo aqui?
Pestanejo por um segundo. Agora a dúvida me bate. Antony nunca
quis que eu viesse aqui por causa de Dousseau ou por causa de sua amante?
— Vim te procurar — respondo, mantendo a calma. Olho por cima do
seu ombro e vejo Emilien me encarando com um semblante neutro. Ele
desvia o olhar de mim e puxa uma cadeira da mesa que escolheu para se
acomodar e consumir.
— É a mim mesmo que veio procurar? — questiona, os olhos
tomando uma cor avermelhada.
— E quem mais eu viria procurar, Antony? — devolvo, de forma
altiva. Acabou o tempo em que esse homem vai me subjugar.
Ele se aproxima mais do meu rosto.
— Quantas vezes já te pedi pra não vir aqui?
Empino o nariz.
— Tenho o direito de ir e vir, caso não saiba.
Os olhos dele semicerram diante de mim; o maxilar fica tenso e a
pressão em meu braço aumenta. Um segundo mais tarde, Dupont está ao seu
lado.
— Devíamos nos sentar — aconselha, apoiando a mão sobre o ombro
do amigo. — Estamos atrapalhando a circulação.
— Não se meta — Antony rechaça, o que faz nós dois arregalarmos
os olhos. Ele nunca falou nesse tom com Emilien.
Dupont dá um passo atrás, o rosto agora contraído de desprezo e,
talvez, raiva.
— Escute… — Tento dizer, mas sou interrompida quando ele fala um
pouco mais alto:
— Você é uma insolente! Saia agora mesmo daqui. Em casa
conversaremos.
Antony me dá as costas, para se juntar com o amigo, mas permaneço
no mesmo lugar. Não vou “obedecê-lo”. Não mais. Quando nota que não me
movi um centímetro, meu marido se vira para mim e me encara com ainda
mais raiva.
— Se mexa!
— Não. — A resposta me surpreende. Dificilmente o contrario. —
Vim pra conversar com você, então vou conversar com você! — A essa
altura, alguns clientes nos assistem.
Ele dá uma risada sem humor, esganiçada, e com dois passos, está me
encurralando contra o balcão. Por cima dos seus ombros, vejo Emilien dar
um passo à frente, como que para impedi-lo de alguma coisa, mas recua um
instante depois, parecendo indeciso. Minha respiração falha, meus olhos
voltam para os do meu frenético marido.
— Você vai pra casa, e lá, nós vamos conversar — diz, quase sem
separar os lábios.
— Vou conversar com você agora! — Ergo a voz, impondo-me.
Antony dá um passo atrás, encarando-me. Passo por ele, dizendo que
vou esperá-lo em seu escritório na galeria, mas outra vez sou impedida. Mal
dou dois passos e sou puxada de volta, agora ele ficando de costas para o
balcão, onde os funcionários assistem a esse seu escândalo.
— Veio aqui atrás de macho, sua desgraçada? — A voz se eleva.
Sinto-me completamente atingida pelo modo como me chama. Antony
sempre foi controlador e explosivo, mas essa é a primeira vez que se dirige a
mim desta maneira.
Sinto alguém às minhas costas, pedindo-lhe calma, mas estou
paralisada demais para me atentar quem seja. Meu marido se aproxima de
mim e me agarra pelo braço de novo.
— Me responde! Veio atrás dele, não é? Sua vadia! — Estalo um tapa
em seu rosto no mesmo instante. As lágrimas queimam meus olhos e mal
percebo.
Emilien agarra Antony pelo braço e pede para se acalmar, pois está
chamando a atenção. Um funcionário também aparece e pede que se contenha
ou se retire.
Ele afaga o local do tapa, seus olhos queimando de fúria.
— Nem sei por que estou dizendo isso — fala no exato instante em
que Bernardo surge atrás dele, acompanhado de Juliette, que com certeza foi
chamá-lo para nos enxotar daqui e parar de espantar seus clientes. — Que
homem ia querer você, além de mim? Olhe só pra você. Está gorda,
malcuidada, nem mesmo a maquiagem esconde suas rugas!
Cada palavra sua é como uma facada no peito. Não sei como ainda
consegue abalar minha autoestima.
— SAIA DA MINHA CAFETERIA AGORA MESMO! — A voz de
Dousseau soa como um trovão. Assusto-me junto com Antony quando
esbraveja dessa maneira. Contornando o balcão, fica frente a frente com meu
marido. Meu coração está na boca. Eles não podem sair no soco aqui. Dupont
se põe entre os dois; pede calma a Bernardo e manda Antony sair, mas o
teimoso fica estacionado onde está, desafiando a ira do dono do local.
Dou um passo atrás até esbarrar em Juliette, que me acolhe com um
sorriso. É mesmo uma falsa. Um segundo depois, sinto pena dela. Será que
Antony é assim agressivo com ela também? Se não é, e se se assumirem
algum dia, será.
— Não se intrometa, Bernardo — meu esposo ruge, empurrando-o.
Ele quer, a todo custo, começar uma briga.
— Antony, cala essa boca e sai daqui! — Emilien exige.
— Eu me intrometo — devolve, gritando mais alto. — Não vai
ofender e humilhar uma mulher dessa maneira na minha cafeteria. Saia ou
vou chamar a polícia pra você.
Contrariado, Antony se livra de Emilien, que ainda o segura, e vem
até mim, arrastando-me, enquanto reluto a acompanhá-lo. Dousseau e Dupont
intercedem por mim, graças a Deus.
— Nesse estado de raiva, a madame Leclerc não vai te acompanhar
— diz, afastando-o de mim enquanto Emilien me abraça pelos ombros.
— Ela é minha esposa!
— E você está alterado! — devolve. — Vá pra casa, se acalme. Em
algumas horas, Emilien vai levá-la até você. — Antony ainda reluta um
pouco. — Agora!
— Isso não vai ficar assim, Dousseau — ameaça antes de sair,
pisando firme.
Ele se volta para mim, olhando-me cheio de preocupações. Ainda
estou acolhida nos braços de Emilien, chocada demais para qualquer outra
reação. Bernardo se aproxima e pergunta se estou bem. Pergunta ridícula,
claro que não estou bem. Estou letárgica demais para responder com palavras
ou gestos. Não consigo. Minhas lágrimas vertem timidamente, sem nem
reparar.
— Vem comigo — sussurra, aconchegando-me em seu abraço. —
Merci — diz para Dupont, que sussurra um “de rien” de volta.
Acompanho-o até sua sala na gerência. Ele fecha a porta e a tranca.
Abraça-me de novo e ficamos assim por minutos infinitos. Nunca me senti
tão acolhida e amparada nos braços de alguém como nos dele.
— Ann-Marie… — Seu hálito sopra contra meu pescoço.
— Vou pedir o divórcio — digo, quase de forma inaudível. — Mas
tenho medo da reação de Antony. Tenho medo de que me faça algum mal.
Bernardo me afasta e me segura pelo rosto com as duas mãos. Depois
me beija na boca e nos olhos, secando minhas lágrimas.
— Não vou deixar. Eu não vou deixar — murmura.
Sou beijada de novo. E, pela primeira vez, sinto que sou beijada com
amor.
BERNARDO
Sempre repudiei violência. Meus pais sempre me orientaram a nunca
revidar qualquer coisa com violência, exceto em caso de legítima defesa.
Certa vez, quando ainda morava no Brasil, empurrei dois colegas durante
uma brincadeira em que nos desentendemos. Um deles, era, na verdade, uma
garota. Minha mãe foi chamada na escola e, em casa, ela teve uma conversa
séria comigo sobre agressão física a qualquer ser humano, mas, sobretudo,
agressão física à mulher. No dia seguinte, me desculpei com meus amigos e
os abracei. Desde então, até me tornar adulto, meus pais sempre tiveram um
foco bem intenso nessa parte da minha educação. É claro que, em algumas
ocasiões, me envolvi em brigas. Mas no geral, detesto qualquer ato violento,
a qualquer tipo de pessoa e não sou um homem agressivo. Neste instante,
contudo, enquanto Ann-Marie está nos meus braços com medo de pedir o
divórcio ao marido, cresce dentro de mim um desejo quase insano de ir atrás
daquele desgraçado e arrebentá-lo na porrada.
Separo nossos lábios e a olho dentro dos olhos, reafirmando minha
promessa:
— Não vou deixar que ele te faça qualquer mal, está me entendendo?
Você estará em segurança comigo.
Ela abana em positivo e me abraça de novo. Eu a aperto um tanto
mais em meus braços e suspiro pesadamente.
— Não quero voltar pra casa hoje. Estou com tanto medo, não sei o
que fazer.
Afasto-a, mas mantenho minhas mãos em seus braços.
— Vamos dar um jeito. Se Alfredo não estivesse na cidade, sabe que
poderia ficar no apartamento dele. E também não quero envolvê-lo nisso tão
cedo. Ainda não contei a ele sobre nós.
— E se eu ficasse no seu apartamento? — pergunta, puxando minha
mão para entrelaçar nossos dedos.
— Óbvio demais. Tenho medo de ele aparecer por lá. Mesmo que a
segurança seja boa e a portaria jamais o deixe subir sem minha autorização,
nada o impede de espiar da rua. Se te vê saindo de lá, será pior ainda.
Devemos pensar em outra solução.
Ela abana em positivo e torna a me abraçar. Apoio o queixo sobre sua
cabeça e permanecemos assim por alguns minutos, procurando uma solução.
Não vou deixar mesmo que ela volte para sua casa com Antony naquele
estado alterado. Não disse nada, mas também sinto medo do que possa fazer
contra sua integridade física. Só de pensar nisso me dá asco e um nó
intragável na garganta.
— Quero tirar minha carta de motorista — diz de repente. — E ter um
espaço para expor minhas criações. Quero fazer um monte de coisas que não
fiz esses anos todos por ter sido controlada pelo meu próprio marido.
Sorrio e acaricio seus cabelos.
— Terá sua autonomia, ma chérie. E do que depender de mim, vou te
apoiar em tudo. Te quero ver livre, independente… E de preferência que
esteja ao meu lado, pra comemorar contigo cada conquista sua.
Sinto seus braços me esmagarem mais em torno da minha cintura.
Ficamos em silêncio por mais alguns instantes até que uma ideia se
forma na minha cabeça. É absurda, é estúpida e provavelmente vou me
arrepender no futuro. Contudo, parece ser a única solução viável no
momento. E segura, o que é o mais importante no momento. Antony jamais
pensaria em procurá-la lá. Respiro fundo e digo:
— Já sei onde poderá ficar.
Quando chego à casa de meus pais, mamãe já está sabendo que passei
a noite fora. Já era de se esperar. Antony deve ter vindo aqui à minha
procura. Mamãe quer saber o que houve ente mim e meu marido e onde
estive a noite toda. Decido ser sincera e conto sobre a confusão do dia
anterior na cafeteria.
— Passei a noite na casa de Marie, uma amiga de Bernardo — minto.
No percurso até aqui, pensando que deveria ter uma mentira para dizer onde
fiquei, liguei para Julien e pedi para me encobrir. Por sorte aquela mulher é
uma pessoa maravilhosa e aceitou me acobertar. — Vou ligar para Antony
agora e dar sinal de vida. Nós precisamos ter uma conversa séria.
Enquanto espero a chegada de meu marido, tento contato mais um par
de vezes. Preciso de certeza que ele estará mesmo ao meu lado e me dando ao
apoio quando pedir o divórcio a Antony. Preciso de sua segurança caso meu
esposo tenha uma reação raivosa e exagerada com o pedido — o que
certamente acontecerá. Contudo, continua a não atender minhas chamadas.
Começo a me preocupar e a pôr em dúvida o futuro da nossa relação,
fazendo-me questionar: ele vai cumprir sua promessa?
Antony chega cerca de meia hora depois. A expressão não é nada do
que esperava ver. Está assustado, com olheiras, cabelos desgrenhados e roupa
engomada. Seus braços me esmagam em um abraço sufocante.
— Pour l'amour de Dieu! Onde você esteve? Fiquei tão preocupado.
Queria tanto me desculpar e…
Ergo a mão e o impeço de continuar falando.
— Aqui não, Antony. Precisamos de um lugar mais reservado.
— Vamos para casa — diz, já me puxando pelo punho.
Dou um passo atrás e o encaro.
— Não quero ficar sozinha com você.
Antony me olha com cuidado e franze o cenho.
— Acha que sou capaz de te fazer alguma coisa? — indaga, o tom de
quem está ofendido.
Tempos atrás eu o defendia, dizia a mim mesma que ele não seria
capaz de me machucar. Agora tenho sérias dúvidas. Antony já provou que em
acessos de raiva e descontrole é ainda mais agressivo.
— Vamos conversar em um local mais reservado, por favor. E aqui.
Vou pedir ao papai que permita usar o escritório dele.
Viro nos calcanhares e vou ao encontro de papai, na cozinha junto de
minha mãe. Ele libera o escritório no segundo andar para conversarmos. O
local é seguro, com grades nas janelas e câmera de segurança interna. Só
assim me sinto confiante o suficiente para chamá-lo e dizer tudo o que
preciso.
Ele adentra o local com cara de contrariado, observando tudo ao
redor. Fecho a porta, mas, por segurança, não a tranco.
— Você ainda não me respondeu. Acha mesmo que seria capaz de te
agredir?
— Você já o fez em outras ocasiões — devolvo, pondo-me atrás da
mesa no escritório.
Mais uma vez, sua expressão é de ultraje.
— S’il te plaît… Aquilo nem pode ser considerado agressão! Te
apertei com um pouco mais de força, talvez, mas porque estava bastante
irritado com você. E todas as vezes em que me exaltei foi por sua culpa, por
insistir em ficar perto de Dousseau quando claramente te mandei se afastar
dele.
— Agora você quer me culpar pelos seus acessos de raiva e ciúmes
descabido? Você me empurrou, me intimidou, quebrou meu celular, me
manipulou e sempre controlou todos os aspectos da minha vida! Isso tudo
configura violência, se não física, certamente psicológica e patrimonial.
Então não me culpe por ter medo de ficar perto de você.
Há um instante de silêncio entre nós, denso, quase palpável. Meu
esposo me analisa por segundos inteiros, talvez não me reconhecendo. Eu
mesma não me reconheço. Em outras ocasiões jamais teria falado com ele
desta maneira, sequer teria essa consciência que tenho agora. Demorei a notar
o relacionamento tóxico em que estava inserida. Graças a Bernardo, que me
abriu os olhos, hoje sou capaz disto, e tudo que mais quero na vida é me
livrar de Antony e viver minha vida em paz e melhor ao lado de alguém que
realmente me valorize. Alguém este que está longe, não me retorna e me
deixou insegura quanto sua palavra de estar ao meu lado nesse momento
decisivo.
— Tem razão — Antony confessa, deixando-me surpresa. — Mon
Dieu, tu as raison. — “Você tem razão.” — Pretendo mudar, chérie. Juro que
nunca mais isso vai acontecer. Vou me esforçar para ser menos ciumento e
controlador. Como prova disso… vou te ajudar com a loja na galeria. Meu
assistente me disse que você quer o local para expor seus modelos. Vou te
ajudar, mon amour.
Quando li a matéria a respeito de homens abusivos, uma das
características era a promessa de mudanças de comportamento. Não é a
primeira vez que pede desculpas por me magoar, nem a primeira vez que
promete mudar. Conheço o padrão. Se decidir por perdoá-lo, dentro de breve
repetirá sua postura abusiva e agressiva — às vezes até pior —, me pedirá
desculpas de novo até conseguir acabar com meu psicológico e me enfiar
numa depressão.
Desvio meus olhos dos seus. Deveria abrir a boca e pedir o divórcio
agora mesmo, dizer que sei que tem dormido com Juliette. O medo, contudo,
me refreia. Preciso esperá-lo voltar de Orleans e saber se estará mesmo ao
meu lado se precisar de apoio.
— Comprei duas passagens para Marselha — Antony diz de repente,
tirando-me dos meus devaneios. — Nosso voo é amanhã. Acho que
precisamos de umas férias, descanso… — Aproxima-se de mim e faz carinho
no meu rosto. — Uma segunda lua de mel, o que acha?
Acho terrível. Não consigo respondê-lo de imediato. Minha cabeça
está tão confusa…
— Tudo bem… — concordo com um murmuro, quase sem nem
perceber, e me arrependo um segundo depois.
Antony me toma em um beijo singelo e me convida a irmos para casa.
Abano em positivo, ainda sem acreditar que aceitei essa viagem estúpida. Só
torço para Bernardo entrar em contato comigo. Apenas se me assegurar que
estamos bem terei coragem de cancelar com meu marido e pedir o divórcio
ainda hoje. Do contrário, me farei refém de meu próprio medo até pensar em
outra solução de me livrar deste homem.
— Quando você volta? — pergunto, antes que ele vá. Antony veio me
deixar na cafeteria antes de seguir para o aeroporto. Coloco a chave na
fechadura da porta dos fundos, que dá direto para o escritório da gerência, e a
giro para destrancá-la.
— Em três dias — responde, olhando para o outro lado da rua,
praticamente vazia às dez para seis da manhã, onde seu carro está
estacionado.
— Certo… — É só o que digo.
Um silêncio esquisito nos ronda novamente. Mordo o lábio inferior,
sentindo-me uma estúpida por ainda não ter contado sobre a gravidez. Quanto
tempo mais devo esperar? Quando a criança nascer? Perco-me em meus
pensamentos e inseguranças que sequer o vejo se aproximar e me abraçar a
cintura. Beija-me serenamente e indaga em seguida:
— Juliette, preciso que seja franca comigo e conte exatamente o que
está acontecendo com você. Não sou tolo, já percebi que está estranha. Me
conte de uma vez e vamos resolver isso juntos.
Olho-o, sentindo-me a pessoa mais insegura do mundo. O medo
começa a se formar em meu estômago e a subir vagarosamente até a
garganta, quase me sufocando. Ele não vai ficar feliz com a notícia. Tenho
certeza. Mon Dieu. Como fui estúpida, irresponsável e precipitada em
engravidar de propósito para segurar homem!
Inspiro profundamente e, sem mais rodeios, solto:
— Estou grávida.
Antony se afasta com um passo atrás, de modo súbito. Seu semblante
se transforma instantaneamente, aquela expressão sombria e intimidadora
tomando posse dos seus traços.
— O quê? — murmura, entre os dentes. — Está brincando comigo,
não é?
Engulo em seco. Nem percebo minhas mãos tremendo levemente.
— Não. Eu realmente… estou grávida.
Um silêncio denso recai sobre nós outra vez. Antony está
completamente transfigurado nesse momento. O homem que conheci —
pacífico e amoroso — simplesmente não existe. O homem na minha frente
agora é outro. É alguém que não conheço. Ele afaga o rosto e anda de um
lado a outro, emudecido. Permaneço igualmente calada, apenas o esperando
reagir a notícia e saber que tipo de decisão tomará.
— Conheço uma clínica particular que pode… fazer o procedimento
de aborto — diz, fazendo-me arregalar os olhos. Involuntariamente, envolvo
meu abdômen. Deus, ele não sugeriu isso, sugeriu? Lágrimas se formam em
meus olhos. Esperava que a gravidez o forçasse a pedir o divórcio, a me
assumir de uma vez por todas e formarmos uma família. Sua sugestão de
aborto me pega desprevenida e me deixa perplexa. — E depois do
procedimento, vamos tomar mais cuidado para não acontecer de novo.
— Não — digo, firme e convicta, a voz saindo levemente rouca. —
Não vou abortar.
Antony me olha como se eu tivesse apedrejado a cruz de Cristo.
— Juliette… — O tom é de advertência.
— Eu fiz de propósito! — confesso, praticamente cuspindo cada
palavra. — Achei que uma gravidez ia te forçar a largar sua esposa!
O que vem a seguir é inesperado até para mim. Antony ri. Uma risada
áspera, lunática e sem nenhum traço de humor.
— Você só pode ter ficado louca — dispara, dando um passo à frente
e me segurando pelos braços. — Como você é idiota, Gautier. Jamais
deixaria minha esposa, uma mulher de verdade, pra ficar com uma vagabunda
interesseira igual a você. Ainda não entendeu que sempre foi e sempre será a
outra?
O barulho da minha mão contra seu rosto é ensurdecedor. Quando
Antony me olha de novo, há fúria e loucura em suas íris escuras. Só então me
dou conta de quem ele realmente é. Não é o homem que eu sempre pensei
que fosse. Não, não. Longe disto. É apenas mais um escroto, lobo revestido
de cordeiro, que conseguiu me manipular e me colocar contra uma mulher
que sequer conheço direito, me fez julgá-la e repudiá-la. Aqui e agora, diante
seu olhar bestial, sei quem é Antony Leclerc. Sua máscara caiu, posso ver sua
verdadeira face.
— Só quero ver a cara que sua esposa fará quando souber que o
marido dela é um maldito traidor — provoco, a frase saindo entre meus
dentes. — Você queria ficar com sua esposa e com a vagabunda interesseira
ao mesmo tempo, mas depois que eu contar a Ann-Marie sobre nós e sobre a
gravidez, não terá nenhuma das duas.
Giro nos calcanhares, pronta a entrar na cafeteria e deixar esse
maldito sozinho, mas ele é mais rápido do que eu. Segura-me pelo punho e
me puxa com toda força, jogando-me contra uma parede no segundo
seguinte. Seus dedos fortes se fecham contra meu pescoço, apertando sem
piedade e me sufocando.
Rebato-me e tento sair de seu aperto, mas o homem é muito mais
forte do que eu. O máximo que consigo é apenas me sufocar mais. Com
violência, me bate contra a parede umas três vezes, enquanto ainda segue me
asfixiando. Prazer e insanidade indescritíveis atravessam a loucura que são
seus olhos nesse momento.
— Experimente abrir essa boca de boqueteira que você tem para ver o
que faço com você, sua vagabunda desgraçada. — A ameaça tão direta me
deixa assustada. — Você não dirá nada à minha esposa, entendeu? —
pergunta, fechando mais o dedo em meu pescoço. Começo a perder a lucidez,
mas consigo acenar em positivo. — ENTENDEU? — grita, batendo-me
contra o concreto outra vez. Meus pulmões parecem que são esmagados
ainda mais.
— En…t… — Tento dizer.
Antony me solta de repente. Caio estatelada no chão, puxando
desesperadamente ar para os pulmões. Então, começo a chorar, assustada
com a agressão de um homem com quem cogitei passar a vida ao lado.
Um soco atinge meu abdômen de repente. Uma dor lancinante viaja
pelo meu corpo, que jogo para trás. Mal tenho tempo de processar o que está
acontecendo quando mais socos e chutes me atingem sem piedade, com uma
força esmagadora. As agressões se espalham, atingindo costela e meu rosto.
Quando finalmente acaba, estou dolorida, semiconsciente, preocupada apenas
com meu bebê. Sinto uma respiração quente contra meu ouvido.
— Se por acaso te encontrarem e ainda estiver viva, que isso fique
como um recado: abra a boca e diga qualquer coisa a Ann-Marie e juro por
Deus que termino o que comecei com você e com esse bastardo.
Um segundo depois, não vejo e nem sinto mais nada.
— Juliette — alguém murmura meu nome. Demoro a reconhecer que
é Bernardo. Oh meu Deus, finalmente alguém me encontrou. Nem sei quanto
tempo se passou desde a agressão de Antony, mas balbuciei entre a
inconsciência e a lucidez, sentindo a dor em cada centímetro do meu corpo,
preocupada com meu bebê, enfraquecida demais para me levantar e buscar
ajuda. — Preciso de uma ambulância. Agora! — grita para alguém.
Uma comoção se instala à minha volta. Pessoas gritando e correndo.
Delicadamente, uma mão quente toca a minha.
— Juliette, por favor, aguente só mais um pouco — pede, a voz cheia
de preocupação.
Esforço-me o máximo que consigo. Ele precisa saber que estou
grávida. Os médicos que vão me atender precisam priorizar meu bebê. Não a
mim, mas meu bebê. POR FAVOR! Contudo, não consigo dizer nada, nem
mesmo uma palavra. Minha boca parece inchada demais para isso, minhas
energias são insuficientes. Tudo que consigo fazer é resmungar algo
incompreensível.
— Shh… — Dousseau tenta me tranquilizar. — Vai ficar tudo bem.
Vamos te ajudar e você vai ficar bem. Não se preocupe. — Sua voz me
acalenta por um instante, mas não o bastante. Não posso perder meu bebê.
Não posso.
Minha próxima lembrança é de ser socorrida pelos profissionais. O
caminho até o hospital é um borrão. Depois, só me recordo do movimento da
maca deslizando pelos corredores. Um par de olhos azuis encontram os meus.
O médico usa uma máscara cirúrgica. Tento dizer alguma coisa, porém, tem
algo obstruindo meus lábios. Faço menção de erguer a mão, mas também não
consigo. O médico dos olhos azuis parece sorrir pequenino para mim no
mesmo instante em que sinto um calor em minha pele. Desvio os olhos para
baixo. Uma mão enluvada segura a minha.
— Está tudo bem — sussurra. — Os paramédicos encontraram um
exame de farmácia na sua bolsa. Vamos cuidar muito bem de você e do seu
bebê. Tudo bem?
Vagarosamente, aceno em positivo.
— Doutor Pierre, os batimentos cardíacos… — alguém diz,
longínquo, mas não consigo compreender o restante da frase, porque outra
vez apago. Antes o nome dele fica gravado em minha mente.
Doutor Pierre.
Lívia ajeita minha gravata pela centésima vez. A meu pedido. Ela dá
um passo para o lado, para que eu possa me ver no espelho.
— Está bom agora? — pergunta, segurando uma risadinha. — Não
que não estivesse bom das últimas três vezes.
Apalpo a gravata borboleta, ainda não muito satisfeito. Parece que
essa merda está torta. Por que tenho a impressão de que essa merda está
torta?
— É o nervosismo — Alfredo diz, sentado numa poltrona no quarto.
— Não se preocupe, as coisas só pioram depois que você casa.
Lívia pega uma almofada do sofá oposto e joga no marido, que ri e
devolve a almofadada. Não seguro uma risadinha, juntando-me a eles.
Obrigo-me a ficar calmo e respiro fundo. Em meia hora estarei casado.
Mamãe fez questão de que a cerimônia acontecesse em sua casa, no jardim, à
luz do dia. Ann-Marie preferia em uma igreja, mas as duas acabaram
entrando em algum tipo de acordo.
Confiro minha aparência novamente no espelho e aliso o terno. Meu
melhor amigo sai de seu lugar e vem até mim. Segura nos meus ombros e me
vira em sua direção. Não consigo encará-lo nos olhos.
— Você deveria mesmo estar de salto? — pergunto à Lívia, em
português, olhando com atenção para sua barriga gestacional de quatro
meses. — Não dizem que grávidas não podem usar saltos?
— Não quer que eu seja sua madrinha de tênis, não é? Não se
preocupe, estou bem. Depois da cerimônia vou vestir a sapatilha que trouxe
— assegura.
Volto a olhar meu amigo, que continua na minha frente e com a mão
nos meus ombros.
— Você foi meu padrinho de casamento duas vezes — diz. — Mas
não quero ser o seu padrinho de casamento mais do que uma vez, entendeu?
Abano em positivo e rio.
— Ann-Marie vai ter de me aturar quando eu tiver oitenta anos e for
um velho muito charmoso.
Nós rimos por alguns instantes, aliviando a tensão.
Mon Dieu, hoje é o dia mais importante da minha vida.
Nosso momento é interrompido quando alguém bate à porta. Marie
surge dentro de um vestido longo e bonito, na cor branca, igual ao de Lívia,
aliás, junto de Emilien, que traja um smoking como do meu melhor amigo.
— Viemos requisitar sua presença, monsieur Dousseau — brinca,
adentrando o recinto. — Já podemos nos posicionar. A cerimônia começa em
vinte minutos.
— Certo. Me deem um minuto apenas — peço. Todos se despedem
de mim com beijos no rosto e abraços, deixando-me sozinho.
Dois minutos depois, deixo o quarto e esgueiro pelos corredores até a
suíte principal, onde minha futura esposa está se aprontando. Eu sei, eu sei.
Não deveria vê-la antes da cerimônia, mas não acredito em superstições. Bato
na porta e a abro em seguida, dando uma espiadela. Minha noiva está de
frente ao espelho. Sozinha. Sorri ao me ver. Entro e fecho a porta, girando a
chave na fechadura. Uma sobrancelha dela se ergue à minha atitude.
— Não está pensando em consumarmos…
— Não estava. Mas agora que você sugeriu… — provoco,
aproximando-me dela e pousando as mãos em ambos os lados de sua cintura.
Ela ri e me estapeia, aconchegando-se em meus braços.
Aperto-a contra meu peito, olhando seu reflexo. Encosto meu queixo
em seu ombro esquerdo e passo segundos inteiros admirando sua beleza. Ela
traja um vestido marfim, ombro a ombro, com algumas pedrarias no busto,
costurado por ela mesma. É longo, escondendo os pés, com uma cauda curta.
A maquiagem é suave, os cabelos estão presos com uma tiara adornada de
pedrinhas brancas. Usa o colar de brilhantes que lhe dei ano passado. O
símbolo do início da nossa história.
— Tu es si belle. — Você está tão bonita. Um enorme sorriso se
manifesta em seu rosto, deixando-a ainda mais bela. Beijo a curva do seu
pescoço delicadamente e aspiro seu ar. Minhas mãos deslizam até seu
abdome. — Me diga, Ann-Marie, quando é que você vai me contar que está
grávida?
Sem tirar meus lábios do seu pescoço, olho seu reflexo e sorrio.
Minha noiva pestaneja seguidas vezes e entreabre os lábios.
— Como soube? — sussurra.
— Vejamos… — murmuro contra sua pele. — Um: já tem alguns
dias que você está com os seios doloridos. Dois: nós transamos bastante nas
últimas semanas, inclusive sem interrupção por conta do seu ciclo. Três: essa
semana te vi desesperada ao experimentar o vestido e ver que não servia
como antes e teve que reajustá-lo quase em cima da hora. Quatro: você me
fez comprar sorvete de baunilha às três da manhã para comer com banana,
dias atrás. Cinco: está mais emotiva do que o normal. Chorou assistindo um
filme de terror. Seis…
— Tudo bem, já entendi que você é um noivo muito observador e me
conhece mais do que imaginei — diz, abrindo um leve sorriso e colocando
suas mãos sobre as minhas ainda em seu ventre. — Ia te contar depois da
cerimônia. Estragou a surpresa, Bernardo Dousseau.
Eu a giro de frente para mim.
— Olha nos meus olhos e me diz que está grávida de um filho meu —
peço.
Ela me enlaça pelo pescoço, deixa um beijo suave em meus lábios e,
olhando-me nos olhos, profere:
— Estou grávida de um filho seu.
A emoção aflora em minha pele. Nem mesmo vejo lágrimas se
acumularem em meus olhos. Tomo-a em outro beijo, envolvendo seu corpo
com os braços e a trazendo mais para mim. Depois, me ajoelho e beijo seu
ventre.
— Hoje é mesmo o dia mais feliz da minha vida — sussurro,
abraçando-a outra vez. — Prestes a me casar com a mulher que amo, grávida
de um filho meu. — Afago seu rosto. — Nossa felicidade está completa
agora. No fim das contas, talvez exista mesmo um Deus.
Ela sorri, segurando minhas mãos contra sua barriga e então me beija.
Acariciando meus cabelos, sussurra:
— Vou agradecer a Deus todos os dias por ter posto você em minha
vida. Por ter me dado a dádiva de finalmente ser mãe, de estar me casando
com um homem incrível como você. E mesmo que agradeça todos os dias,
ainda não me será suficiente. Eu te amo tanto… Tenho medo de acordar e ser
tudo um sonho.
— Não é, ma chérie. E tenha certeza que farei de tudo, pelo resto dos
meus dias, para que você seja feliz ao meu lado.
— Já sou, mon amour — pronuncia, abraçando-me e encostando a
cabeça em meu tórax. — Eu já sou.
— Preciso ir agora — sussurro em seu ouvido. — A cerimônia
começa em breve. — Beijo seus cabelos, depois seus lábios e por fim seu
abdômen. — Não demore, mon ange. Quero que seja minha esposa logo.
Ela ri enquanto me afasto e garante que não vai se atrasar.
“Chérie, sei que depois desse bilhete você vai me odiar. A intenção é
realmente essa. Não me leve a mal. Gosto de você e do nosso sexo e por esse
motivo preciso fazer isso. Não quero e nem posso cultivar nada por você,
nem te deixar derrubar minhas barreiras e entrar. Não posso. Acredite, você
merece alguém melhor do que eu. Por isso… decidi ir embora. Foi o único
modo que encontrei pra te afastar de vez da minha vida. Juro que tentei
outras maneiras, Marie, mas você conseguiu me contaminar de tal maneira
que não vi outra solução a não ser uma radical. Comandarei a Dupont
Investimentos da sua sede em Nova Iorque. Espero que possa me perdoar um
dia.
Adeus.
Emilien”
São oito e dez da noite. Deveria estar no restaurante que escolhi para
encontrar com Emilien, mas estou em casa, debaixo dos lençóis, lendo um
livro. Bastante plena. Não darei o braço a torcer para aquele homem. Não, ele
não pode simplesmente quebrar meu coração e depois querer um encontro.
As coisas não funcionam dessa maneira.
Viro a página, concentrada na leitura. Meu celular vibra sobre o
criado-mudo. Olho-o por um segundo antes de desbloquear a tela e ver a
mensagem dele. Como sou uma idiota orgulhosa, ainda tenho seu número em
minha lista de contatos.
“Você não vem, não é?”
Ignoro sua mensagem e torno a ler.
E assim, de repente, sinto um pequeno incômodo no coração. É uma
pontada de leve, mas insólita, que me desconcentra da minha leitura, me
deixa inquieta e me faz pensar em Emil sozinho no restaurante, à minha
espera. Suspiro, o livro caindo sobre meu colo. Seja forte, Marie! Ele não
pensou duas vezes em se levantar e ir embora, dois anos atrás.
Outra mensagem chega. Confiro imediatamente.
“Tudo bem. Compreendo sua raiva. Quando estiver disposta a
conversar, pode me ligar?”
Engulo em seco, a pontada incômoda e chata apertando-se ainda mais
em torno do meu coração mole e idiota. Exaspero, sentindo raiva de mim
mesma enquanto digito:
“Estou a caminho. Imprevisto no trabalho. Chego em meia hora.”
Saio do conforto da minha cama, sentindo-me uma estúpida por isso.
Como posso ter qualquer tipo de compaixão ou empatia por Emilien Dupont?
Tomo um banho rápido depois de chamar um Uber. Frente ao espelho,
analiso minha aparência. Não houve tempo para maquiagem além de um
delineador e máscara para cílios. Ajeitei meus cabelos na altura dos ombros o
tanto quanto pude com as mãos e um creme específico. Pus um vestido preto,
frente única, até os joelhos e sem decote, e sandálias de tiras.
Estou terminando de me arrumar quando o interfone toca e o porteiro
me avisa da chegada do meu carro. Agarro minha bolsa e saio apressada,
repreendendo-me por ter voltado na minha decisão. Espero apenas que a
noite não seja um desastre total, ou seja, espero não amanhecer na cama
daquele gostoso ordinário.
A viagem dura vinte minutos. No percurso, envio outra mensagem a
Emilien, pois já ultrapassei minha meia hora, dizendo que estou a caminho e
quase chegando. Apenas para ele não pensar que estou mentindo, envio
minha localização. Ele me responde dez segundos depois:
“Ansioso para te ver, ma belle.”
Mordo o lábio inferior e guardo o celular na bolsa.
Finalmente, chego ao meu destino. Pago a corrida e desço do carro.
Encaro o restaurante à minha frente por um instante antes de entrar. Tem uma
fachada de vidro elegante, luzes baixas e uma recepcionista na porta.
Vagarosamente, meus olhos vão passeando pelo estabelecimento. Meu corpo
congela um segundo depois quando, por entre as mesas delicadas, com sua
própria iluminação sofisticada, através da vidraça, eu vejo Emil. Não está
sozinho. Uma mulher — que não consigo dizer quem é, pois está de perfil —
lhe faz companhia, ao que me parece conversando, segurando uma taça de
vinho. Ela sorri o tempo todo, toca-o nas mãos. Emilien não se esquiva do
toque, mas também não sorri como sua “companheira”. Não consigo ler sua
linguagem corporal diante à situação. Não sei se a companhia o agrada ou
não.
Um nó tremendo se forma em minha garganta quando a moça se vira
e nossos olhos se encontram. Eu a reconheço. É a mesma da foto que vi no
dia anterior, no perfil do Facebook de Nicole Dupont. A mesma que estava
com ele no baile de Silvia Ferreira. Emilien acompanha seu olhar e
finalmente me nota a dez metros dele, do outro lado do restaurante. Seus
olhos azuis transformam-se. Ele se levanta do seu lugar, muito bruscamente,
e eu me viro para sair daqui. Caminho rapidamente, tanto quanto meus saltos
me permitem. Olho para os lados, à procura de um táxi.
— Marie! — Dupont me chama, ao longe. Viro-me apenas para vê-lo
a trinta metros de distância, vinte e nove, vinte e oito… e aproximando-se a
cada passada larga.
Inspiro fundo, aumento o passo e finalmente encontro um táxi. Faço
sinal ao motorista, que para na faixa da direita para que eu possa entrar. Abro
a porta traseira do passageiro e já estou jogando meu corpo para dentro do
veículo quando uma mão quente e forte me impede. Sou puxada suavemente,
desequilibro-me por um segundo e preciso me escorar nele. Seu perfume
amadeirado invade meu olfato, deixando-me zonza. Seu tórax é duro como
ainda me recordava.
Ele bate a porta do carro e diz ao motorista, tudo sem me largar:
— Désolé, monsieur. A senhorita aqui não precisará mais. Je vous
remercie. — “Obrigado”.
O condutor me olha atentamente, como se para confirmar.
— Tudo bem. Ele é um amigo. — Bem, nem tanto. Sem nada a dizer,
aciona a seta e sai vagarosamente, tomando as ruas de Paris. Consigo me
livrar da pegada de Emilien e volto a caminhar, sem olhá-lo.
Novamente me agarra pelos braços e me vira em sua direção.
— Marie, quer, por favor, me escutar?
— Não, eu não quero! Sou uma estúpida por ter vindo… Deveria ter
ignorado sua mensagem e ter ficado em casa, lendo meu livro. Teria evitado
presenciar sua ceninha.
Mon Dieu, o que é isto? Por que preciso demonstrar todo esse ciúme
para ele, para que saiba como ainda mexe comigo?
— É só uma amiga — explica, puxando meu queixo. Virei o rosto
para o lado e nem percebi.
— Chamou uma amiga para nosso encontro? — indago, perfurando-o
com um olhar quase mortal.
— Não. Nos encontramos por acaso. Ela está na mesa ao lado, com
Silvia Ferreira e mais algumas modelos.
O vento gelado parisiense acaricia meu rosto e braços, dando-me
arrepios. Tremo sem quase perceber. Desvio o olhar de novo, não sendo
capaz de encará-lo. Burra. Já disse que sou burra? Havia necessidade de
deixar tão à vista como sinto ciúmes dele? Isso com toda certeza alimentará
seu maldito ego. Pisco e volto ao mundo real quando sinto um calor em meus
braços. Viro a cabeça novamente e vejo Emil terminando de ajeitar seu paletó
em mim.
Golpe baixo.
— Está frio aqui fora e você não trouxe nada — explica, como se
fosse realmente necessário. — Lá dentro está mais quente e agradável. Vem
comigo? — Sua voz é doce e baixa.
Eu agi como uma cadela raivosa e ciumenta e ele continua calmo.
Balanço a cabeça, concordando.
Emilien me conduz de volta ao restaurante.
Só quando chegamos, percebo que percorremos os quarenta metros
com ele abraçado à minha cintura.
EMILIEN
“Você não vem, não é?”
Envio a mensagem para Marie quando seu atraso beira os dez
minutos.
Bem, eu previa que ela falharia comigo. Não tiro sua razão.
Meu corpo parece tenso debaixo do terno enquanto encaro o celular, à
espera de uma resposta dela. Embora eu já esperasse por isso, tinha ainda
certa esperança de que considerasse e viesse mesmo me encontrar. Mas acho
que a subestimei. Talvez seja orgulhosa o suficiente para não dar o braço a
torcer. E quer saber? Compreendo-a perfeitamente. Minha atitude foi
cafajeste, covarde e egoísta. Entretanto, só queria uma chance de me explicar,
para que entendesse meus motivos.
A mulher não responde. Suspiro e aceno para a garçonete. Enquanto a
moça vem em minha direção, digito outra mensagem, pronto a pagar meu
único consumo — uma taça de água — e voltar para minha cobertura.
“Tudo bem. Compreendo sua raiva. Quando estiver disposta a
conversar, pode me ligar?”
Deixo meu telefone sobre a mesa quando a funcionária chega. Ela
sorri educadamente e pergunta se preciso de alguma coisa. Estou para abrir a
boca e pedir a conta quando meu celular notifica uma mensagem. Erguendo o
indicador, peço um instante e confiro a resposta dela.
“Estou a caminho. Imprevisto no trabalho. Chego em meia hora.”
Um sorriso desponta em mim ao mesmo tempo em que uma
alfinetada atinge meu coração. Ela está mesmo a caminho ou quer que eu
fique aqui, sozinho, à sua espera, enquanto continua não tendo pretensões de
vir apenas como modo de se vingar? Engulo em seco e decido dar um voto de
confiança. Ajeito a gravata que começa a me incomodar e inspiro fundo.
— Un autre verre d'eau , s’il vous plaît .
Com um aceno de cabeça, a garçonete recolhe minha taça e volta
instantes depois trazendo outra com água, perguntando:
— Gostaria de fazer seu pedido agora, monsieur?
— Ainda não. Minha companhia já está chegando. Je vous remercie.
Com um sorriso candente, ela se afasta, e eu tomo um gole generoso
da minha água. Aguardo mais alguns instantes, suando sob o terno,
apreensivo demais. O medo de que ela não venha me incomoda e passeia
pelas minhas veias junto do oxigênio. Um novo grupo de clientes — quatro
ou cinco pessoas — chega no restaurante, a hostess encaminhando-o até a
mesa reservada. Não me atento a eles e confiro meu e-mail pelo celular,
respondendo aos mais urgentes. Mais dez minutos e o tempo de Marie vence.
Então aceito que ela não virá, que me fez de bobo e terei de me desdobrar
para conseguir uma hora da vida dela. Quando novamente estou desistindo de
esperá-la, uma segunda mensagem chega:
“Estou a caminho”. Junto, sua localização. Pela distância, apenas mais
uns quinze minutos e estará aqui. Meu coração se alivia, até parece que tiro
um peso de cima dos meus ombros, voltando a respirar normalmente. Marie
virá.
“Ansioso para te ver, ma belle”, respondo.
Tomo o restante de minha água, agora mais confiante de sua vinda.
— Ela furou com você? — uma voz sussurra em meu ouvido. Sinto o
calor dos seus lábios contra meu ouvido, assustando-me levemente.
Ela deixa minhas costas e se põe à minha frente, sentando-se no lugar
vago, no lugar de Marie. Segura uma taça de vinho branco e sorri do seu jeito
meigo. Olho ao redor. O grupo que chegara minutos atrás, só agora percebo,
traz algumas modelos e uma pessoa conhecida: Silvia Ferreira.
— Do que você está falando? — desconverso, guardando o celular no
bolso interno do meu paletó.
Seu sorriso aumenta. Revira os olhos.
— A sua companheira. Isso é um encontro, não é?
— Por que o interesse? — Continuo a não lhe dar resposta.
— Me preocupo com você — responde, tomando uma pequena dose
de seu vinho.
Tento segurar uma risada sem humor, mas sem sucesso. Desvio meu
olhar do seu por alguns segundos, pego minha taça com água e bebo o
restante. Não quero pensar no assunto neste momento, mas sei que ela vai
abordá-lo da mesma maneira.
— É casual ou é sério?
Não disse?
— Não importa — respondo apenas, tornando a olhá-la.
Ela dá de ombros.
— Importa. E você sabe. Se for casual, tudo bem, mas se for algo
mais sério… — Sua frase fica no ar. Os lábios bonitos entornam um pouco
mais de vinho. — Você não tem nenhum relacionamento sério há… hum…
— Finge pensar. Ela sabe mais sobre isso do que eu mesmo. — Onze ou doze
anos?
Engulo em seco. Continuo encarando-a sem emoção alguma.
— Por aí — respondo, quase sem nem mesmo mover o maxilar. —
Pode me deixar em paz, agora? Minha companhia está para chegar.
— É ciumenta? — segue especulando.
Deus, dê-me paciência.
— Non, chérie, mas ficará um clima estranho se ela chegar e você
estiver aqui, toda íntima comigo. Intimidade, aliás, que não temos há bastante
tempo. Só… por favor, volte para sua mesa.
A mulher não atende ao meu pedido. Continua olhando-me com seu
sorriso meigo, a taça delicada e elegantemente entre seus dedos.
— Como lidará com seu segredo se isso for uma relação séria, do
tipo… vocês serem namorados?
Meu corpo retesa por debaixo do terno. Meu maxilar trinca com tanta
força que tenho a impressão de que quebrarei meus dentes. A respiração falha
por tensos segundos enquanto a encaro seriamente, perguntando-me como…
Merde! A mesma pessoa que provavelmente vazou minhas informações para
Antony vazou para ela também. Mas que inferno! O que ela quer, afinal de
contas? Eu nem deveria estar surpreso, uma vez que as duas são amigas. Até
acho que demorou bastante tempo para isso acontecer. Contudo, ela garantiu!
Garantiu que não contaria a ninguém e estaríamos seguros. Isso é uma
punição. Ela adora me punir. Mesmo quando não há motivos para tal.
— Quando Elizabeth te contou? — pergunto, empertigando-me sobre
a mesa, meu tom de voz baixo, rouco, meio desesperado. Oh, mon Dieu! A
última coisa que quero é estar nas mãos dessas duas!
— Sua mãe? — A moça parece surpresa. — Não foi ela quem me
contou, Emilien.
Desespero bate à porta do meu peito. Deixa-me insano ponderar que
mais pessoas sabem sobre meu passado. Não, não é possível!
— Antony Leclerc — revela, aliviando-me no mesmo instante. — Ele
quem me contou. Não deliberadamente, claro. Eu tinha feito um boquete nele
e estava meio bêbado, de qualquer maneira.
Faço uma cara de nojo ao imaginá-la chupando Leclerc.
— Foi minha mãe então quem confidenciou meus segredos para
Antony?
— Não — responde, sem me dar muita segurança disso. — Antony
era esperto, Emil. Ele te observava, sempre estava na sua cobertura, no seu
escritório. Você confiava nele cegamente. — Isso é bem verdade. Meu maior
erro foi ter posto minhas mãos no fogo por aquele cretino. Eu deveria saber
que não era boa pessoa quando mostrava sinais de ser um marido abusivo
para com Ann-Marie. — Leclerc percebeu que você sempre tinha três
compromissos não nomeados na sua agenda. Horários e dias alternados. Um
dia ele te seguiu, descobriu que um dos seus compromissos era em um
consultório psicológico. Os outros dois, em Nanterre. Não foi difícil
descobrir a pessoa que você mantém praticamente isolada e escondida da
sociedade parisiense. Revirou um pouco seu apartamento, seu escritório,
documentos pessoais e… voi là. Todo seu passado era do conhecimento dele
também.
Maldito desgraçado!, praguejo mentalmente. Um pavor toma posse
do meu corpo, deixando-me quase irracional. Suo frio por debaixo do terno.
— Emilien — me chama suavemente, tocando em minha mão —, não
precisa se preocupar, não direi nada a ninguém.
— Vai me chantagear — constato, voz embargada.
Ela move a cabeça em negativo.
— Não sou sua mãe, Emil. Não vou te expor. Nem usar isso contra
você. Como prova, Antony deixou todo o dossiê que ele ergueu sobre seu
passado comigo. Em breve, estará em sua mesa e você poderá dar fim nesses
documentos. Não terei como provar nada, mesmo se quisesse.
— Quem me garante que você não tem cópia de cada maldita prova?
— Nada, apenas minha palavra. Há mais de dois anos sei sobre seu
segredo e nunca te chantageei. Não fiz nada para te prejudicar. Se eu
quisesse, poderia não ter te dito nada, ou ter te exposto, mas não o fiz.
Porque, apesar de tudo, apesar do nosso passado, sou sua amiga. Não guardo
rancor de você.
Olho-a sem expressão alguma, inclinado a acreditar em sua palavra.
Mas com Antony aprendi, da pior forma, uma lição valiosa: não confiar em
ninguém. Hoje, não confio nem em mim mesmo. Aceito suas palavras, mas
ficarei com um olho aberto. Ela já foi de minha extrema confiança, mas não
sei como está seu coração agora, depois que o quebrei pedacinho por
pedacinho. E se ainda tiver raiva de mim, mesmo após tantos anos? E se o
que ela quer é me ver de guarda baixa e, no momento mais propício e
inesperado, trazer à tona esse passado que me amedronta e me atormenta?
— Tudo bem… — murmuro, ainda meio desconfiado. A moça sorri
ainda mais para mim, e só então percebo que sua mão toca a minha. Quando
bebe mais do seu vinho, digo: — É um encontro. Eu gosto dela, de verdade.
— O sorriso em seu rosto não se abala, talvez já tenha mesmo me superado.
É claro que superou. Ela andou chupando o Antony. Inferno, isso nem
mesmo significa alguma coisa. — E pela primeira vez em muito tempo,
quero tentar um relacionamento. Estou com trinta e cinco anos, entende? Não
quero ficar sozinho o resto da minha vida… Não quero terminar sozinho…
— repito, entristecido, abaixando o olhar para sua mão na minha.
— Você não vai, Emilien. Tenho certeza que essa moça, seja lá quem
for, é a mulher ideal para você.
Sorrio um pouco e tão logo torno a ficar sisudo.
— Mas isso só será possível se minha mãe continuar neutra na minha
vida. Se ela souber que estou tentando me reerguer e quero… namorar essa
garota, que depois de mais de dez anos desde… — Trinco o maxilar e fujo
dos seus olhos castanhos. — Você sabe — completo, evasivo. — Se
Elizabeth Dupont souber que estou tentando ser feliz, vai me atormentar, me
infernizar até que eu fique sozinho de novo. Porque é isso o que ela quer.
A mulher à minha frente me encara como se eu tivesse proferido um
monte de exageros. Sei que vai me dizer que não é bem assim e que minha
mãe quer, de fato, me ver bem, feliz e casado. O problema é que Elizabeth já
escolheu por mim com quem eu deveria me casar, formar uma família e ser
feliz. Qualquer “escolha” minha que a contrarie é motivo para ser
importunado até o final dos meus dias. Desta maneira, nunca mais namorei.
Por isso minha relação com Marie — se eu conseguir seu perdão e uma
segunda chance — precisa estar fora do radar daquela megera que me gerou e
me criou.
— Não contarei nada à sua mãe, não precisa se preocupar — garante,
ainda acariciando minha mão e olhando-me com um sorriso, mas não consigo
sorrir de volta.
Lentamente, sua cabeça se vira para o lado e permanece ali. Sigo seu
olhar, encontrando os olhos âmbar de Marie do outro lado do restaurante. Ah,
droga! Levanto-me bruscamente ao mesmo tempo em que ela vira as costas e
sai andando às pressas. Mal dou dois passos quando meu punho é segurado
delicadamente.
— Boa sorte — me deseja, deixando um beijo cálido no meu rosto.
Não a respondo; um segundo depois vou atrás de Marie.
Puxo uma cadeira para ela, que se acomoda ao passo que retiro meu
paletó de sobre seus ombros. A temperatura aqui dentro é mais confortável.
Coloco-o no espaldar do meu assento e me ajeito em meu lugar. Ergo o
indicador e finalmente chamo a garçonete para anotar nossos pedidos.
Marie analisa o menu, o rosto sereno, mas com uma leve ruga entre
suas sobrancelhas. Está bonita com um vestido preto que ressalta suas curvas
generosas. De entrada, pede patê de foie gras, enquanto prefiro cogumelos
recheados. Para o prato principal, peço carne de coelho com purê, e ela opta
por sopa de cebola. O vinho é rose para ela — seu preferido — e tinto para
mim.
Quando a garçonete se retira para trazer nossos aperitivos antes da
entrada e prato principal, finalmente a encaro, sem saber exatamente como
iniciar nossa conversa. Tenho tanto a falar, mas não sei por onde começar.
— Quem era ela? — pergunta suavemente, tomando a palavra antes
de mim.
Não preciso indagá-la sobre quem pergunta.
— Já disse. Uma amiga.
Marie faz uma careta de quem não está satisfeita com a resposta.
— Quero saber o nome dela — especifica.
Abro um pequeno sorriso e desvio o olhar para a mesa dela. Está ao
lado de Silvia Ferreira, sua taça de vinho branco ainda entre os dedos,
conversando com a famosa estilista enquanto ri discretamente de alguma
coisa.
— Por quê? — questiono, realmente curioso com seu interesse.
Marie dá de ombros e olha para as próprias mãos sobre seu colo.
— Era a mesma com você no baile, sábado à noite.
Franzo cenho e sorrio pequenino. Bem, acho que alguém andou me
observando mais do que deveria.
— Não importa, ma jolie. O assunto do nosso encontro não é ela.
Ela me dá um pequeno sorriso e abana em positivo. Nossos aperitivos
chegam, juntamente das taças de vinho. Bebo um pequeno gole após mastigar
o torsade folhado antes de dizer:
— Como você está? — É uma pergunta sincera. Talvez apenas um
meio de quebrar o silêncio incômodo entre nós. Sinto falta das nossas
conversas. Marie sempre foi uma boa companhia. Recordo-me de algumas
noites, enquanto ainda estávamos na África, pelados debaixo do lençol,
depois de uma rodada de sexo, rindo, conversando e tomando sorvete, mesmo
sendo tarde.
Uma de suas sobrancelhas sobe diante minha pergunta.
— Bem, na medida do possível — responde, sorvendo um gole de sua
água na taça. Em seguida, degusta do vinho. Ela não devolve a pergunta.
Olha-me um instante e diz: — Viemos aqui uma vez, se recorda?
— Sim — digo, com um pequeno sorriso. — Duas noites antes de
nossa viagem. Nos reunimos com a equipe e acertamos os últimos detalhes.
Ela abre outro do seu singelo sorriso e confirma. Falo mais do que
Marie, porque a maior parte do tempo a mulher prefere ficar em silêncio.
Evita me olhar diretamente nos olhos, suas respostas são sucintas, sorri muito
pouco, quase sempre forçado. Tento falar sobre os dois últimos anos, focando
mais em trabalho. Marie nunca se importou, quando estávamos juntos, que eu
abordasse sobre meu trabalho. Aliás, ela alegava gostar. Dizia que dava tesão
e eu ficava muito gostoso agindo como o Emilien Dupont investidor e
presidente de uma grande empresa de investimentos. Quase sempre depois
desse tipo de conversa, transávamos bem à beça. Rio interiormente,
recordando-me de uma ou duas ocasiões em que brincamos de chefe e
secretária.
Mas agora, Marie Julien parece desinteressada no que tenho a dizer.
Não estou falando apenas de mim, ou do meu trabalho. Tento abordar nossos
amigos, Bernardo e Ann-Marie, ou o evento de sábado passado, ou ainda seu
trabalho como jornalista no La Parisienne. Ela, entretanto, não parece
disposta a conversar muito. Diz apenas que o filho de Dousseau é lindo, o
baile de máscaras estava esplêndido e não trabalha mais naquele jornal, sem
me dar mais detalhes.
Um garçom vem nos entregar o prato principal, uma vez que as
entradas já foram entregues enquanto tentava fazê-la se abrir comigo. Marie
brinca por um instante com o indicador na borda da sua segunda taça de
vinho, e eu a observo atentamente.
— Escute — digo. Ela ergue seus olhos para mim. — Você não está
se sentindo confortável comigo — constato. Odeio essa situação, de verdade.
Era bom quando não havia essa tensão pairando entre nós, quando ficávamos
confortáveis um na frente do outro. Nossa conversa fluía, os sorrisos eram
sinceros, assunto não faltava. — Vou compreender se quiser ir embora.
Ela molha o lábio inferior; os olhos âmbar se fixam em algum ponto
atrás de mim antes de voltar para os meus.
— Não espere que eu aja naturalmente depois de tudo, não é? —
profere. Não há nenhum traço de raiva ou acusação. Seu tom saiu ameno,
natural.
— Não. Por isso, não se sinta obrigada a ficar. Entenderei se preferir
ir embora. Quando estiver disposta a conversar, se um dia estiver disposta a
conversar, me ligue e terei o prazer de te encontrar de novo. — Embora com
todas as forças do meu coração eu queira que me escute, não desejo que isso
seja feito enquanto se sinta obrigada ou desconfortável. Se quero reconquistar
sua confiança, sua amizade, sua paixão por mim, devo fazê-lo de forma
honesta, espontânea e consentida.
Diante minhas palavras, pela primeira vez na noite eu a vejo sorrir de
forma mais franca. O sorriso dura apenas um segundo. Logo, sua expressão
fria retorna aos seus traços femininos e delicados.
— Eu vim e quero ficar. Mas preciso que você vá direto ao ponto,
Emilien, em vez de ficar dando voltas, mostrando interesse em minha vida
como se realmente se importasse.
Penso em dizer que me importo, sim, mas me contenho, já supondo
que tipo de resposta receberei: “Se você se importasse, não teria ido embora
depois de uma noite maravilhosa de sexo.”
— Tudo bem — concordo. Mastigo um pedaço da minha carne e bebo
um gole do meu vinho para ajudar a descer pela garganta. — Me deixe pensar
por onde começo. Tenho tanto a te dizer… — murmuro, meus pensamentos
dispersos.
Marie se ajeita em seu lugar e ingere uma colherada de sua sopa.
Após limpar os lábios com o guardanapo de pano, sugere:
— Comece me explicando algo que nunca entendi depois de nosso
retorno da África. — Faço uma expressão de quem está confuso. A
explicação vem em seguida: — Por que você se afastou, Emilien? Por que
ficou frio, distante…? — Noto um traço de tristeza em seu tom de voz. —
Enquanto estávamos trabalhando na reportagem, por dois meses nós
transamos. Literalmente todos os dias. Dormimos por um mês no mesmo
quarto, na mesma cama. Mas quando desembarcamos em Paris… — Sua
cabeça se movimenta de um lado a outro, os cachos bem hidratados e
perfumados movendo-se juntos. — Você simplesmente se distanciou.
Preciso de uma dose de coragem e de ar para conseguir responder.
Nosso tempo juntos no continente africano foi ótimo, e eu acabei me
envolvendo mais do que gostaria. Dificilmente me envolvo com alguém. Não
depois dela. Desde ela tenho aversões a relacionamentos amorosos. Muito
por causa da minha mãe, que não poderia nunca saber que eu estava tentando
ser feliz que fazia o inferno na Terra para me abalar; muito porque eu de fato
não conseguia retribuir aos sentimentos de mulher alguma e a última coisa de
que precisava era uma fila de ex-namoradas com o coração partido. Dessa
forma, preferia sempre uma mulher aqui, outra ali, e nunca estender nossos
encontros a mais do que três. Três era um número bom para dormir com uma
mulher sem que ela se envolvesse comigo ou vice e versa.
Com Marie, a coisa toda foi diferente. Acreditei piamente de que seria
suficiente levá-la para cama três vezes. Não foi. E quando ela diz que nos
dois meses em que estivemos agindo na África nós transamos literalmente
todos os dias, não é uma mentira. Não nos privamos de sexo nem mesmo
durante o seu fluxo, quando incrivelmente ela também estava mais sensível e
repleta de tesão.
Peguei-me apaixonado, da mesma maneira que me vi mais de dez
anos antes. Mas eu não podia trazê-la para minha vida, não enquanto tivesse
uma relação complicada com minha mãe — que faria de tudo para nos
separar —, não enquanto eu fosse um caos e tivesse de manter meus segredos
guardados no mais profundo do meu ser — e odeio ter de me relacionar com
alguém e não poder ser cem por cento sincero —, não quando tinha medo de
mim mesmo, medo no que poderia me transformar caso perdesse o controle.
Então, quando desembarcamos em Paris, admito, estava apaixonado
por Marie Julien. Tinha de fato sentimentos por ela. Mas nós dois nunca
íamos funcionar, por causa da minha mãe, do meu passado, do meu
segredo… Minha decisão, nesse caso, foi me distanciar, ficar frio, cortar
nossos encontros sexuais… Apesar disso, não queria parar de vê-la, queria
ser ao menos seu amigo, porque isso me afagava o ego e acalmava meu
coração. Se não podia tê-la como minha mulher, queria ao menos sua
amizade. Essa perspectiva me consolava, de um jeito ou de outro, e tornava
meus dias sem ela um pouco mais suportáveis. Assim, nos víamos vez ou
outra, não só para trepar. Mantivemos uma boa amizade. Logicamente, era
Marie quem mais me ligava sugerindo sexo, e eu nunca dizia não quando
esses convites chegavam. Eu, porém, dificilmente fazia o mesmo. E
acreditem, tive que ter muita força de vontade para conseguir não pegar o
telefone, ligar para ela e pedir que fosse até minha cobertura para fodermos a
noite toda.
— Não podia me envolver com você — explico, por fim, voltando à
realidade. Marie me olha atentamente, esperando uma explicação mais
plausível e convincente. — Já te disse, chérie… Minha vida é complicada.
Não poderia te trazer para o meio dela. Isso ia te quebrar e ia me quebrar
junto. — Faço uma pausa, umedecendo o lábio inferior e criando coragem
para proferir: — Eu… realmente gosto de você. — Desvio levemente meus
olhos dos seus. — Depois de dois meses na África, todos os dias ao seu lado,
me vi mais apegado do que deveria. Me distanciar de ti, quando voltamos
para cá, foi minha maneira de continuar te protegendo de mim e da minha
vida complicada.
Com um pequeno suspiro, ela toma seu vinho e foge do meu olhar por
alguns segundos. Sei que deveria falar sobre minha mãe — uma megera
manipuladora que não nos daria sossego —, mas não quero espantá-la nesse
momento. Pelo contrário. O que mais desejo é trazê-la para minha vida
complicada, para o caos que eu sou, mesmo que isso signifique enfrentar a
fúria de Elizabeth e tomar o dobro de cuidado com meu passado e meus
segredos.
— Por que foi embora? — questiona-me, quase impassível e rígida
em seu lugar, olhando-me com algum ar de superioridade.
— Porque ter me distanciado de você não resolveu, Marie. Juro que
tentei lutar contra meus sentimentos, me distanciar, sermos só amigos… Mas
falhei. Mesmo que nossos encontros tivessem diminuído muito, cada vez que
nos víamos era ainda mais arrebatador, mexia ainda mais comigo… —
Minha voz se reduz a um mero sussurro. — Ir embora de vez foi a única
solução que encontrei.
— E agora? Por que voltou? Sua vida por um acaso não é mais
complicada? E você não está mais tentando fugir do que sente por mim?
Como um pouco mais de meu coelho com purê antes de respondê-la:
— Minha vida continua o mesmo caos de sempre. A diferença é que
estou disposto a enfrentar tudo o que nos impede de ficarmos juntos… por
você, ma belle. Percebi, Marie, enquanto estive em Nova Iorque, que não
importa quanto tempo ou quão longe eu esteja, nada será suficiente… pra te
esquecer.
Engulo em seco sob seu olhar firme e sem emoção. Seus olhos
vacilam por um segundo, desviando-se para baixo. A mulher permanece em
silêncio, mirando sua sopa de cebola.
Com cuidado, digo:
— Voltei para que me dê uma chance… e me perdoe. J'ai besoin de
ton pardon. — “Eu preciso do seu perdão”.
— Não vai ser fácil te perdoar — diz, encarando-me. — Ter ido
embora, depois de ter transado comigo uma noite antes… foi a atitude mais
covarde que alguém poderia tomar. — Quero concordar, mas escolho ficar
quieto. — Você deveria ter sido sincero comigo, ter me falado que não queria
se envolver, que estava apaixonado, mas não queria. Pelo amor de Deus, eu
teria entendido seus motivos. Sou uma mulher adulta, não uma adolescente
histérica. Você teria sido apenas mais um na minha vida a me dar um fora.
Bernardo, Alfredo, Jacques, Leroy, Antoine, Claude… Todos eles algum dia,
por algum motivo, não quiseram mais encontros comigo. E tudo bem, porque
a vida é assim. Mas nenhum deles me magoou como você. Era só ter sido
sincero, Emilien.
Era só ter sido sincero .
Porra, ela tem razão. Mas Marie precisa entender uma coisa:
— O problema jamais foi você, chérie — explico, com um sussurro.
— Sabia que se estivéssemos tão perto, eu não ia resistir à tentação. E veja
só, nem mesmo ter passado dois anos longe, sem te ver, sem nos falarmos,
resolveu alguma coisa. Continuo apaixonado por você tanto quanto estava no
dia que tomei a decisão estúpida de deixar Paris.
Seus olhos me analisam, ainda sem emoção. Não importa o que eu
diga, nada parece o suficiente para mexer com ela, para convencê-la a me dar
uma chance de me redimir, de me perdoar. Nunca pensei que Marie pudesse
ser tão inflexível e impenetrável. Não, essa mulher à minha frente, de sorriso
forçado e expressão sisuda não é a mesma mulher alegre, cheia de vida, bem-
humorada que conheci anos atrás; aquela que me conquistou com tão pouco.
Engulo em seco diante seu silêncio e tomo o resto do meu vinho.
— Quero… ir embora — diz, com um sussurro, mordendo o lábio
inferior. Ela fica cabisbaixa por alguns segundos. Nossos pratos ainda estão
pela metade.
Suspiro e respeito sua decisão. O clima está mesmo esquisito,
desconfortável até para mim. Será mais difícil do que pensei reconquistar a
confiança, a amizade dela…
— Tudo bem. Posso ao menos te levar para casa?
Marie termina sua taça de vinho e limpa os lábios no guardanapo.
Chamo um dos funcionários para pedir a conta. Então, responde:
— Não precisa. Chamo um Uber. Ou táxi.
— Táxi — sugiro, meio incisivo. — É mais seguro. — Ela balança a
cabeça, concordando. — Se importa se eu pagar sua corrida?
— Me importo, sim — responde.
O garçom se aproxima. Peço a conta. Não insisto mais no assunto.
Marie se levanta para ir ao toalete. Nesse interim, pago nosso consumo e a
espero, em pé, ao lado da nossa mesa, meu paletó jogado em meus braços, o
celular entre meus dedos. Seguimos juntos até o lado de fora do restaurante.
Coloco minhas mãos dentro dos bolsos enquanto a espero pedir seu táxi,
sentindo-me deslocado. Olho para a rua movimentada, observando a noite, as
pessoas, os casais.
— Pronto — diz, guardando o celular na bolsa. — Cinco minutos
para meu táxi chegar.
— Se importa se eu esperar aqui com você?
Ela dá de ombros. Sorrio um pouco e volto a observar a noite
parisiense. Os segundos passam, e cada vez parece que a tensão e o
desconforto entre nós aumentam, pairando sobre nossas cabeças.
— Obrigado por ter vindo — agradeço; sou sincero, mas também é
uma forma de quebrar essa quietude incômoda e insólita entre nós. — Por ter
me escutado. Por ter vindo. Significou muito pra mim.
— Tudo bem — devolve, abrindo o segundo sorriso natural na noite.
— Acha que um dia poderá me perdoar? — pergunto, olhando para
meus pés arrastando na calçada.
— Não sei, Emilien — responde, sincera. — Mas acho que sim, não
sou de guardar rancor.
Bem, mas já se foram dois anos e ainda nada… Penso em dizer, mas
guardo minhas palavras para mim. Não sei o que se passa em seu coração, e
ela está muito certa em me odiar, em algum nível. Fecho os olhos e sinto a
brisa noturna acariciar meu rosto. Se pudesse voltar atrás e corrigir meus
erros… Quando torno a olhar para ela, vejo-a abraçando os próprios braços
para se proteger do frio.
— Me deixe te oferecer meu paletó? — indago, já o jogando sobre
suas costas, sem esperar respostas.
Marie sorri de novo, pequeno, singelo, mas sincero. Pela terceira vez.
Acho que aos pouquinhos posso, sim, reconquistá-la.
— Merci — agradece.
Não respondo. Assim, tão perto dela, fico apenas a observando,
alternando entre seus olhos âmbar e os lábios bonitos. Minha respiração
parece falhar por alguns segundos enquanto minha memória me leva aos
momentos em que experimentei da sua boca. Perdido em pensamentos
longínquos, desejando apenas saboreá-la outra vez, findar essa distância
torturante e acabar com minha vontade de tê-la em meus braços de novo, nem
percebo que, vagarosamente, me inclino em direção aos seus lábios.
— Emilien… — sussurra. Não ergo meu olhar de encontro ao seu.
Estou fixado na sua boca, quase salivando de vontade de querer tomá-la para
mim. — Estou com alguém, por favor… — informa, para minha surpresa.
Isso me tira do meu torpor e só então a olho nos olhos.
Pisco, seguidas vezes, absorvendo a informação. Ela está com
alguém. Claro que estaria. Já se passaram dois anos, seu babaca idiota. Marie
tocou a vida dela. Engulo o nó na minha garganta e me afasto lentamente,
minha cabeça zunindo, o coração descompassado.
— É sério? — exclamo e me corrijo logo em seguida: — Quero
dizer… Esse cara, com quem você está. É uma relação séria, do tipo namoro
monogâmico, ou é casual, como você e eu estávamos juntos anos atrás?
Marie ajeita meu paletó sobre seus ombros e desvia o olhar,
preferindo contemplar a movimentação nas ruas e calçadas.
— É um namoro sério — informa apenas.
Balanço a cabeça em positivo, recolhendo-me em seguida ao meu
silêncio constrangedor. O táxi chega um segundo depois. Marie tenta me
devolver meu paletó, mas o recuso.
— Está frio, fique com ele. Em uma outra oportunidade, você me
devolve.
Não mentirei dizendo que não fiquei surpreso por ela aceitar ficar
com o blazer. Com um pequeno sorriso, agradece e entra no veículo. Vejo-o
se distanciar, tomando as ruas da capital.
Inspiro e expiro profundamente, pensando na batalha que terei pela
frente.
MARIE
Maldito homem cheiroso. Posso fingir demência e não devolver mais
o paletó dele? Penso seriamente nisso.
Fecho os olhos, o balançar suave do táxi embalando-me às
lembranças passadas. Emilien sempre foi cheiroso. Uma mistura amadeirada
— proveniente de seu perfume favorito — e chocolate ao leite, algo mais
natural nele. É, Emil cheira a chocolate ao leite. É uma delícia.
Tento me repreender quando aperto mais seu paletó em meus braços,
os pensamentos vagando nos momentos em que estive em sua cama,
observando-o de bruços, suas belas costas à mostra, a pele macia, quente,
deliciosa… Velando sua respiração calma e ritmada, perguntando-me que
tipo de segredo obscuro um homem tão lindo como ele poderia guardar
dentro de si.
Suspiro e levanto as pálpebras, esvanecendo da minha mente essas
recordações dolorosas.
Eu disse a Emilien que estou com alguém. Claramente, foi uma
mentira. Precisei dizer isso se não quisesse aquela boca saborosa na minha. A
verdade é que queria muito beijá-lo, agarrá-lo no meio da calçada, no centro
de Paris. Mas sou orgulhosa demais para me render ao seu charme de novo. É
necessário manter um limite seguro entre nós, e, naquele instante, Dupont
estava prestes a avançar esse limite. Sinceramente, se tivesse ultrapassado tal
distância, se tivesse me beijado, muito capaz de eu ter ido parar na sua cama.
Mentir dizendo que estou namorando sério foi a minha solução para resistir à
tentação.
O táxi encosta frente ao meu condomínio. Dispersei-me tanto em
meus pensamentos que nem reparei em como a viagem durou pouco. Pago a
corrida e, ainda enrolada no paletó dele, subo até meu apartamento, no sétimo
andar. Acendo as luzes ao entrar e me encaminho até a cozinha. Já tive minha
cota necessária de vinho do dia, mas talvez precise de mais uma taça. Sirvo
uma dose pequena e me sento à bancada, tentando encontrar alguma coragem
para tirar essa peça ridícula de sobre meus ombros e despachá-la de volta ao
seu dono.
Puxo a lapela e inspiro profundamente o aroma de Emilien, o que me
traz boas e más recordações. Balanço a cabeça fortemente em negativo, bebo
o restante do meu vinho em apenas um gole e finalmente arranco o blazer de
mim, deixando-o sobre o espaldar de uma cadeira na minha sala. No
banheiro, tomo um banho longo e quente, pedindo a Deus para minha mentira
ser suficiente para manter aquele homem longe de mim…
Quando durmo, tento não o idealizar em meus sonhos. Mas minha
mente é traiçoeira demais e, confabulando junto de meu coração, me faz
sonhar a noite toda com Emil.
Quando ela abre a porta, paro de olhar as fotos, ergo minha câmera
profissional para a entrada e bato um retrato dela. Assim, bem espontânea.
Adoro pegar momentos espontâneos.
Désirée sorri e coloca uma mecha do seu cabelo ruivo atrás da orelha,
enquanto ajeita a alça da bolsa no ombro direito e fecha a porta.
— Sabe que eu odeio tirar foto — fala, sentando-se do meu lado e
conferindo o retrato que acabei de tirar. Sorrio e a olho. — Uau, ficou boa!
— exclama.
— Ficou. Você é bonita. Ajuda muito — respondo.
Um lindo sorriso ilumina seu rosto. Um segundo depois, estou
capturando esse momento. Ela gargalha e me estapeia no ombro,
empurrando-me em seguida. Então, se recosta no sofá onde estou sentado e
arranca os tênis, colocando os pés sobre a mesinha de vidro no centro da
sala.
— Como foi seu curso hoje? — pergunto, voltando a conferir as fotos
que tirei mais cedo, no Champs de Mars.
Com um suspiro, Désirée Lacroix discorre sobre seu dia. Embora eu
esteja com os olhos grudados nas imagens da minha câmera, presto atenção a
tudo que me diz. Gosto dela, como amigo, claro. Ela foi a pessoa que me
estendeu a mão quando decidi sair da casa dos meus pais, ano passado.
Estudamos na mesma universidade — a Vincennes-Saint-Denis —, mas
cursos diferentes. Ela faz Economia e Gestão, enquanto eu estudo Fotografia.
Além disso, dividimos o apartamento. Pago um aluguel mensal a ela, que
herdou tudo dos pais. Brinco, às vezes, que ela é um clichê ambulante. A
garota rica que perdeu os familiares em um acidente. Não de carro, mas de
avião. Eles morreram dois anos atrás, quando voltavam de uma segunda lua
de mel e o avião caiu no oceano. Nunca recuperaram os corpos deles.
Os Lacroix são uma família conhecida em Paris. Eles têm um império
de redes de supermercados, empresas alimentícias e de cosméticos.
Cinquenta por cento de todas as ações estão em poder da família dela. Na
verdade, com o falecimento dos pais e sendo filha única, esses cinquenta por
cento estão nas mãos dela. Mesmo que não precise me cobrar aluguel — e
tenha se negado a receber nas primeiras vezes e eu tenha tido que enfiar
dentro de sua bolsa —, faço questão de pagá-la. Papai disse que me daria um
apartamento, mas gosto da companhia e da amizade de Désirée, então
agradeci, mas neguei. Nós nos conhecemos ainda na adolescência. Sendo da
alta sociedade de Paris, era comum nos esbarrarmos nos mesmos eventos.
Aos poucos, estreitamos nossos laços e nos tornamos bons amigos, daqueles
de fazermos todos os programas de finais de semana juntos.
—… e o seu? — me questiona ao terminar de falar do seu dia.
Abro um sorriso enorme. Estou realmente animado com meu curso.
Amo tanto o que faço. Já estou no segundo semestre e cada dia mais sei que
fiz a escolha certa para a minha carreira. Ajeito-me no sofá e falo sobre
minhas aulas do dia. Da mesma maneira, ela presta atenção em mim,
interessada no assunto. No final, mostro algumas fotos que tirei na volta para
cá.
— Estão todas lindas, Emil. Você realmente tem o dom — elogia,
enquanto continuo passando as fotos.
— Opa! — exclamo ao me deparar com algo mais comprometedor.
— Mas que porra…
Désirée ri enquanto vou avançando nas fotografias, uma pior do que a
outra. São selfies minhas fazendo careta, segurando garrafas de cerveja
pilsen, abraçando uma garota morena — ou outras delas —, rindo com alguns
amigos, fotos aleatórias de pernas, paisagens, braços, colos…
— Você estava tão bêbado nesse dia — minha amiga diz, em meio à
sua risada.
Franzo o cenho, não me recordando de ter batido tais fotografias.
Fecho os olhos e inspiro fundo. Odeio me embriagar por causa disso. Nunca
me lembro de nada. Apago as imagens comprometedoras enquanto ela se
recupera da sua crise de risos. Então, um silêncio meio tenso. Olho para o
lado e a vejo com a expressão franzida.
— Precisa se controlar. Sei que não é por mal e é só quando está
bêbado, mas você fica muito instável quando bebe muito.
— Eu sei — digo, suspirando.
— Nessa festa, você estava superbem, mesmo bêbado. A gente se
divertiu. Mas mais lá pro final da noite, você mudou, ficou meio agressivo,
começou a discutir com uma garota. — Leva a mão à boca, abafando uma
risada. — Se eu não te tiro de lá, capaz de ter apanhado dela.
Jogo minha cabeça para trás, rindo exageradamente dessa parte. Mas
Désirée tem razão. Preciso maneirar na bebida — não que eu seja um
alcoólatra — ou ainda vou arrumar dor de cabeça por causa do meu
temperamento, que fica oscilante quando bebo além do limite.
— Vou ouvir seus conselhos — digo, desligando a câmera
fotográfica. — Aliás, vou passar esse final de semana na casa dos meus pais.
Désirée me oferece um sorrisinho sacana.
— Vai visitar a mãegera — caçoa.
Mãegera. Uma mistura de mãe e megera, uma palavra que define
bastante Elizabeth Dupont. Dou uma risada meio sem graça e abano em
positivo.
— Não vejo meu pai nem minha irmãzinha já tem uns três meses.
Apenas ligações. Sinto saudades deles.
— Sinto muito precisar ter se afastado deles por causa da sua mãe.
Ela nunca aceitou tratamento, não é?
— Non — nego, suspirando em seguida. — Maman jamais sequer
aceitou o diagnóstico dela, quanto mais tratamento.
Um breve silêncio paira sobre nós. Não é desconfortável, é até
comum entre nós dois. Por fim, levanto-me, inclino-me para minha amiga e a
beijo no rosto, dizendo que vou preparar algumas coisas para minha ida à
casa dos meus pais no dia seguinte. Ela devolve o beijo e me deseja sorte.
De fato, precisarei.
Nicole bate à porta do meu quarto, avisando que está de saída para ir
buscar a namorada e volta em meia hora. No closet, grito de volta, dizendo
que já estou me arrumando. Tomei um banho e aparei um pouco a barba.
Como é algo mais íntimo, opto por algo elegante e casual ao mesmo tempo.
Visto uma camisa branca, uma malha cinza fina e calça alfaiataria azul-
escuro. Ajeito a gola sobre a blusa frente ao espelho e esborrifo um perfume.
Calço sapatos pretos e penteio os cabelos com os dedos.
Busco pelas horas em meu celular sobre o criado-mudo. Ainda tem uns
vinte minutos até minha irmã chegar. Desço até a cozinha, onde a janta já está
pronta — aperitivos, entrada, prato principal e sobremesa — e a mesa posta.
Enquanto espero Nicole e sua namorada, tento me distrair com uma
leitura. Minha mente, porém, não me deixa me concentrar. Está insistindo em
projetar uma certa mulher de pele chocolate, macia como algodão, olhos
âmbar encantadores e que provavelmente perdi para um bom-partido.
Pensando nisso, me recordo do dia anterior, quando a procurei na
internet. Reluto alguns segundos antes de tomar a decisão besta de me
levantar e pegar o celular de Nicole sobre o balcão. A tela não tem senha ou
trava de segurança. Basta que deslize o dedo e consigo ter acesso a suas redes
sociais. Acesso seu perfil no Instagram, ignorando as dezenas de notificações
que surgem quando abro o aplicativo. Minha boca se entreabre ao notar que
Nicole tem mais de vinte mil seguidores. Rolo algumas fotos. Paisagens,
pratos de comida ou xícaras de café, selfies. Ela também não tem nenhuma
foto com a namorada. Mordo o lábio inferior, minhas esperanças de que
Marie e Héron não estejam juntos caindo por terra outra vez. Bem, talvez
Lorraine não goste de se expor, assim como eu.
Navego por mais algumas imagens até encontrar uma foto antiga —
não de data de publicação, mas quando foi tirada. Minha garganta seca.
Nicole sabe que odeio ter minha vida privada postada na internet, mas pelo
jeito não se importa muito. A publicação tem uns três anos, e traz uma foto
minha, aos vinte anos, com ela no colo, em uma de suas festas de aniversário.
A legenda: “Saudades desse bastardo.”
Rio comigo mesmo e decido parar de vasculhar suas publicações e
procurar o que de fato me interessa. No campo de busca, digito “Héron
Poirier”. Diferente de Marie, encontro-o com mais facilidade. Um número
considerável de seguidores. Poucas publicações. E nada frequente. A última
tem meses. Nenhuma delas com Marie — ou com qualquer outra mulher. No
Facebook, faço a mesma pesquisa, procurando pelos dois. Embora encontre
seus respectivos perfis, não tiro proveito algum, pois não são públicos.
— Ei, bisbilhoteiro. — A voz de Nicole chama minha atenção. Ela está
parada à porta, um sorriso divertido brincando em seus lábios. Ao seu lado,
uma mulher de beleza exótica. O completo oposto de minha irmã.
Ligeiramente mais alta, olhos escuros feito a noite, os cabelos, soltos e
extremamente lisos, são tão pretos que beiram o azul, lábios cor de pêssego,
seios fartos. Magra, mas um pouco mais encorpada que minha irmã, usando
saltos e trajando um vestido preto dois dedos acima dos joelhos.
Imediatamente, deixo o celular sobre o balcão e me aproximo das duas,
explicando-me:
— Estava só fazendo uma pesquisa.
— E por acaso você não tem celular? — minha irmã rebate, segurando
o riso.
Olho para Lorraine e abro um pequeno sorriso.
— Era no Instagram. Sabe que não tenho essas coisas — respondo,
retornando o olhar para ela.
— Esqueci que você é antissocial.
Dou uma risadinha e por fim me apresento para Lorraine.
— Emilien Dupont.
— Lorraine Meyer. — Ela tem sotaque do sul do país.
Trocamos um aperto de mão e dois beijos na bochecha.
A moça parece tensa no seu lugar, sem saber como agir direito. Nicole
a convida para entrar e ordena que eu pegue uma taça de vinho para nós.
Enquanto elas se acomodam na sala, pego as taças que lavei e a garrafa de
vinho. Sirvo-as e me sento no sofá oposto, de frente às duas.
— Nicole me fala muito de você — Lorraine diz, colocando uma mão
delicada e de unhas bem-feitas na perna despida de minha irmã e a olha com
ternura. — Confesso que estava ansiosa e amedrontada para esta noite. São
só vocês, não é…? Um é a família do outro.
De certa forma, isso é verdade.
Tomo um gole do meu vinho e abano a cabeça em positivo.
— Nosso pai morreu há bastante tempo. Com minha mãe, eu sempre
tive uma relação complicada, diferente de Nicole. — Olho um instante para
minha bebida. — O que parece ter mudado depois que ela se assumiu. —
Suspiro. Levanto-me e me sento ao lado da minha pequena, deixando-a entre
mim e a namorada. — Isso não importa mais, de qualquer maneira. Temos
um ao outro agora. — Seguro suas mãos e deixo um beijo em sua têmpora.
Nicole sorri de volta e deita a cabeça em meu ombro.
— Fico feliz que possamos contar com sua aprovação, Emilien. É
importante demais para nós duas esse apoio.
— Não me importo com quem Nicole esteja, desde que a faça feliz —
digo, sincero.
Lorraine fica esquisita de repente. Seus olhos se abatem, os ombros
caem. Não entendo o que eu possa ter dito de errado. Compreendendo a
confusão em meu rosto, Nicole explica:
— Lorraine ainda não se assumiu para a família. — Outro instante de
silêncio perturbador. Nicole se vira para a namorada e a pega por ambas as
mãos. — E estamos com medo de que, assim como mamãe, a família dela
também não a aceite. São religiosos e tradicionais, entende? — Vira-se para
mim. — A família dela mora em Provença. Vamos viajar para lá dentro de
quinze dias. — E então, volta para a namorada. — E finalmente você vai se
assumir, não é, mon amour? Nos assumir.
Bem, isso explica o fato de não haver nenhuma foto delas juntas nas
redes sociais. Lorraine acena em positivo, dando-lhe um rápido beijo nos
lábios e acariciando-a no rosto e cabelos.
Jogamos mais cinco ou dez minutos de conversa fora até decidirmos
servir o jantar. Em volta da mesa, ouço histórias de como elas se conheceram
— pouco mais de dois anos atrás, mas o relacionamento começou há um ano
e meio —, depois Lorraine conta como saiu de Provença e veio para Paris,
estudar nutrição, assim como Nicole, que engata falar de sua infância, mas
evita os anos difíceis sem papai, quando ela sequer tinha doze anos.
Passa da meia-noite quando minha irmã e minha cunhada, depois de
um jantar agradável e que me deixou alegre — como não me sentia havia
bastante tempo —, decidem voltar para casa. Nicole usa o toalete antes de ir e
volta minutos mais tarde, com um ar meio misterioso, mãos para trás.
— Preciso te fazer um pedido, Lorraine — diz, trazendo as mãos para
frente, revelando uma caixinha de veludo. — Quero saber se casa comigo.
O pedido pega até a mim despreparado. No meu lugar no sofá, giro tão
rápido para minha irmã como se estivesse desviando de uma bala. Ela sorri,
seus olhos brilham de uma forma que nunca vi. Nicole ama Lorraine, é feliz
com ela e quer um futuro, uma família, uma companheira… Não posso estar
mais satisfeito e alegre pela minha irmãzinha. Algo aperta meu coração,
fazendo-me ofegar por um mísero segundo. Acho que nunca aceitei direito
que aquele projetinho de gente, loirinha e peralta cresceu, se tornou uma bela
mulher, se apaixonou e quer se casar.
Volto meus olhos a Lorraine, estática no lugar, a boca tampada,
surpresa, os olhos arregalados. Um segundo depois, ela dá um salto no lugar
e abraça a noiva fortemente depois de beijá-la.
— Aceito! Nem precisava pedir — diz, eufórica e emocionada. — Eu
aceito, ma blonde.
Nicole se vira para mim, olhos marejados.
— Emil… você aceita ser nosso padrinho?
Como resposta, apenas me levanto e a abraço forte, praticamente
esmagando-a em meu peito.
— Ficaria muito chateado se não me pedisse isso — sussurro em seu
ouvido.
Ela ri e beija meu rosto. Abraço Lorraine, pedindo que não magoe
minha petite soeur.
Saudações e felicitações trocadas, é hora de nos despedir. Com um
beijo sereno na noiva, Nicole pede que ela vá à frente pois quer ter um
minuto comigo. Olhando-me com ternura e amor, ela me abraça de repente,
dizendo:
— Quando você vai arrumar alguém, Emil?
Pestanejo diante sua pergunta, sentindo-me atingido. A perspectiva de
uma vida sozinho não me agrada. Na verdade, me amedronta. Não que eu
ache que não possa ser feliz sozinho ou dependa de uma companheira para
isso. Mas eu quero estar com alguém. De preferência com Marie. Entretanto,
há tanta coisa em meu caminho que parece me impedir de ser feliz ou ter uma
mulher ao meu lado, como Nicole tem.
— Nic… Não vamos falar disso.
Ela se afasta e me toca no rosto.
— Qualquer uma, menos aquela sem-sal com quem a mamãe queria
que você se casasse, entendeu? Tem de escolher alguém que você ame. E
você nunca a amou, Emilien.
— Eu sei. Mas tenho medo de me envolver com qualquer outra pessoa
e mamãe me infernizar. Sabe por que ela sempre respeitou meu espaço e
nunca me procurou na última década? Porque me mantive solteiro. Se eu
arrumar uma namorada… se cogitar me casar um dia com alguém que não
seja com quem mamãe quer, ela vai me atormentar… Vai me infernizar como
quando descobriu que eu e Dés… — Paro de falar abruptamente, dando-me
conta de que Nicole não sabe sobre essa parte da minha vida.
Jurei jamais mentir para ela ou manter segredos entre nós. Mas há
certas coisas que precisam permanecer enterradas.
— Com quem? — pergunta, curiosa.
— Ninguém. Esqueça — falo, desviando o assunto rapidamente. —
Talvez eu tenha que esperar ela morrer para arrumar uma namorada —
brinco, meio fúnebre, dando uma risada melancólica.
Nicole me acompanha por um segundo. Pega em minha mão e me
acaricia.
— Não há nenhuma maneira de enganá-la?
Meu corpo tensiona no lugar.
— Talvez. E até estou disposto a enfrentá-la. Só preciso consertar
algumas bobagens que fiz dois anos atrás e reconquistar a confiança de uma
mulher que quero muito.
Os olhinhos de minha irmã emitem um brilho esperançoso. Abraçando-
me novamente, me deseja toda sorte do mundo. Algo que nós dois vamos
precisar. Com um último beijo de despedida, ela vai ao encontro da noiva.
Vou direto para meu quarto, tomo outro banho e visto meu pijama. Fico
tentado a mandar ao menos um “Boa noite” a Marie, mas desisto.
Preciso respeitar o espaço dela. E seu namoro.
Esse suposto namoro que tem me deixado cheio de dúvidas.
MARIE
Héron não fala comigo desde sábado, depois da estupidez de tê-lo
beijado na intenção de provar a Emilien que estou em uma relação séria.
Claro que o peguei desprevenido e só me dei conta da burrada quando minha
boca já estava na dele. Ao me afastar, seus olhos escuros passavam a
mensagem de que ele, no mínimo, ia apertar meu pescoço. Bem rente aos
seus lábios, sussurrei para apenas fingir e depois explicaria tudo.
Naquele instante, não pensei que tal pedido fosse atendido. Para
minha surpresa completa, Héron não me desmentiu na frente de Dupont, mas
também não tirou a carranca durante todo o resto da festa. Emilien pareceu
acreditar na farsa e se retirou, claramente atingido por eu ter um
“companheiro”. Assim que atravessou a porta de volta para o hall do hotel, já
estava prestes a abrir a boca e explicar tudo, de forma rápida, desesperada e
seguida de um milhão de pedidos de desculpa. Poirier, entretanto, ergueu um
dedo em riste antes mesmo de eu pronunciar uma só sílaba. A expressão
severa era acentuada em seus traços bonitos. Então simplesmente me agarrou
pelo braço e me direcionou para a recepção do hotel. Ainda tínhamos um
evento para participar.
Por mais que tenha tentado falar com ele, fui interrompida em todas
as minhas investidas. Meu editor sequer conseguia me olhar e suas
interrupções pareciam rosnados de cão com raiva. Acabei aceitando de que
fiz burrada e era melhor não insistir no assunto. Passei o restante do evento
emudecida, conversando com alguns conhecidos e ignorando Héron e seu
mau humor. Ao menos, ele continuou sustentando a farsa de um namoro
comigo na frente de Emilien, que depois de me ver beijando outro, manteve
distância.
No final da festividade, ele me levou para casa, ainda me ignorando.
Hoje já é quarta-feira. Desde então, o homem não me deu uma
oportunidade de conversarmos sobre o que aconteceu e de lhe pedir
desculpas. Na redação, se mantém praticamente inalcançável, enfurnado
dentro do escritório. Esbarramo-nos algumas vezes pelos corredores e
trocamos apenas cumprimentos. “Bonjour”. “Salut”. “Ça vá?”.
Agora estou aqui, esperando dar meu horário de ir para a redação,
encarando minha xícara de café preto sem açúcar, pensando em como,
provavelmente, estraguei tudo para Isabelle. Ela veio aqui no domingo, toda
animada me entregar uma cópia impressa do seu original, para que eu
entregue a Héron avaliar, como havíamos combinado.
Contudo, não tive a cara de pau para isso, uma vez que ele nem
mesmo está falando comigo direito. Merda. Estraguei tudo! Deveria ter dito a
Emilien que estava solteira, mas indisponível para ele e ter exigido, com um
pouco mais de rispidez e autoridade, que parasse de me atormentar e tentar
conseguir meu perdão. Mas não, eu tive que ter a ideia idiota de beijar o meu
chefe e pôr tudo a perder.
Minha porta se abre no instante seguinte, trazendo uma Isabelle
eufórica para dentro. Meus olhos abatidos se erguem em sua direção, já
esperando o que sua visita logo cedo representa.
— Entregou Sanctus para Héron? O que ele disse? Chegou a dar uma
folheada? Sabe, um editor como ele só termina a avaliação de um original se
as cinco primeiras linhas o fisgarem. Do contrário, esqueça. E então? —
dispara, como uma metralhadora de palavras e euforia.
Olho-a um longo instante, pensando em como vou decepcioná-la — e
irritá-la com toda certeza — se contar que estreguei a oportunidade da sua
vida. Ela me encara com expectativa, aguardando a tão esperada resposta.
— Ainda não — respondo, com cuidado, pegando meu café e
sorvendo uma dose. Ela vinca as sobrancelhas. — Eu me esqueci de levar na
segunda-feira, e ontem Héron esteve o dia todo ocupado, nem o vi. Vou levar
hoje. Já está na minha bolsa. — Mentira. O original continua no mesmo lugar
onde o coloquei domingo à noite: na gaveta da minha escrivaninha.
— Ah, certo. Estou muito ansiosa pelo feedback dele. Em quanto
tempo você acha que Héron lê? Uma semana? É um romance pequeno, só
tem cem mil palavras.
Suspirando pesadamente, respondo:
— Não sei, Isabelle. Ele é um homem ocupado. Mas acredito que até
no sábado da próxima semana ele envie as impressões que teve no seu e-mail.
Você anexou seu endereço eletrônico junto do original, não é?
— Oui. Claro. — Contornando o balcão que nos separa, minha irmã
vem em minha direção e me abraça apertado, dando um beijo suave nas
minhas bochechas e me agradecendo pela força.
Depois, ela vai embora, para cumprir seu compromisso diário.
Decido esperá-lo. Preparo outro café para mim e volto à minha mesa,
ligando o computador e tentando me concentrar em algumas pesquisas.
Quinze intermináveis minutos se passam até a porta da sala de Poirier se
abrir. Ele e Emilien saem juntos, conversando alguma coisa que não consigo
captar.
Dou um salto imediato da minha cadeira, já pronta a qualquer coisa,
se necessário. Os olhos de Emil vêm até mim, surpresos pela minha presença.
Seus lábios suculentos se abrem em um pequeno sorriso.
— Bonsoir, Marie. — Deseja-me boa-noite, enfiando as mãos no
bolso.
Analiso Héron. Ele não está com cara de pitbull raivoso. Sinal de que
não foi demitido, certo?
— Bonsoir, Emilien — respondo, soltando lentamente o ar dos
pulmões.
Héron me olha, molhando o lábio inferior.
— Chérie, você vem lá para casa?
Oh Céus! Ele ainda quer manter essa farsa na frente de Dupont. Que
raios esses dois conversaram no escritório dele? Troco o peso da perna e
ajeito meu cabelo. Quando procuro por Emilien, ele está estático no seu
lugar, a cinco metros de distância de mim, o corpo parecendo tenso debaixo
do terno, os olhos analisando-me como um predador destemido.
— Vou ficar mais um pouco — respondo, por fim. — Quero terminar
um trabalho que comecei. Espero que não se importe.
— C’est bon — Poirier responde, vindo até mim e deixando um beijo
casto em minha testa. Seus olhos abaixam-se para os meus. Sem dizer mais
nada, ele se vira e vai embora.
Um instante mais tarde percebo que estou sozinha com Emilien na
redação da revista.
Droga.
Estou encrencada.
Emilien permanece longe e em silêncio, apenas olhando-me. Seus
olhos agora estão meio abatidos e tristonhos, as mãos continuam dentro do
bolso, mantendo a postura casual e despreocupada. O que não parece
combinar nada com a expressão tensa e triste.
— Você vai demitir o Héron? — É a única coisa que consigo
perguntar para quebrar o silêncio entre nós.
Suas belas e grossas sobrancelhas vincam diante meu
questionamento.
— Eu tenho motivos para demiti-lo? — responde com outra pergunta.
Passo a língua pelos lábios, desviando meu olhar do dele. Outra vez,
uma quietude desconfortável recai sobre nós. Sou orgulhosa demais para
admitir em voz alta que achei que ele demitiria Poirier por causa do nosso
namoro de mentira. Entretanto, Emil é um homem inteligente e com toda
certeza sabe minhas razões para ter feito uma pergunta tão idiota e narcisista
dessa maneira.
— Não sou esse tipo de cara, Marie — diz, suavemente. Olho-o outra
vez. — Entenda, eu quero muito uma chance com você. — Pausa. Olha para
os lados, molhando o lábio inferior. — E sei que insistir nisso, enquanto você
está comprometida com ele, é muito errado, mas não posso evitar. — Então,
os olhos azuis estão nos meus de novo. — E quero fazer isso da maneira
certa. De um jeito honesto. Se demiti-lo por sua causa, pelas razões que estão
se passando nessa sua cabecinha, não seria justo e seria um tiro no pé. E, de
qualquer maneira, não sou assim — repete, desta vez enfatizando.
— Sei que não — concordo, maneando a cabeça. Emilien permanece
em seu lugar, quase sem se mover. — Por que está tão longe? — murmuro,
não podendo acreditar que realmente fiz isso. A última coisa que quero é este
homem muito perto de mim.
Ele arregala os olhos e respira ruidosamente. As pernas parecem
vacilar por um segundo enquanto suas íris estão cravadas em minha direção.
Com um suspiro trêmulo e longo, Emilien responde:
— Estou resistindo. — A resposta me deixa confusa. Cruzo os braços
na frente do tórax e troco o peso da perna. — Estou resistindo à vontade de
me aproximar, te pôr em meus braços e roubar um beijo, porque
desesperadamente sinto falta da sua boca na minha. E a última coisa de que
preciso — sua voz agora desce uma oitava e os olhos fitam o chão, como um
garotinho envergonhado — é que você mova um processo de assédio sexual
contra mim ou a empresa.
Pestanejo seguidas vezes, querendo gritar com ele para que se
aproxime e me tome em um beijo, sim! Que me coloque nos seus braços e
enfie sua língua na minha boca, porque, assim como ele, também sinto sua
falta e falta dos seus lábios suculentos, do seu toque, do seu calor. Esforço-
me para evitar as lágrimas e soltar que tenho saudades.
— Preciso ir agora, termino meu trabalho em casa, mesmo —
informo, virando-me de costas para que ele não veja o estado que sua
declaração me deixou, e nem que o sentimento e a vontade são recíprocos.
Pego minha bolsa na cadeira e guardo meu celular e outros pertences.
— Precisa de um táxi ou uma carona? — pergunta, baixo e rouco. —
Está tarde.
— Estou com meu carro. Merci. — Jogo a alça da bolsa no ombro e
me viro para ele. Inspiro fundo uma última vez antes de tomar coragem e
mover minhas pernas para ir embora.
Odeio admitir. Mas está sendo cada vez mais difícil deixá-lo.
EMILIEN
Dezesseis anos antes
— EMIL! — A voz alta, estridente e infantil de Nicole reverbera pela
mansão assim que atravesso a porta de entrada.
Ela vem correndo em minha direção, abraçada a uma boneca Barbie, e
pula no meu colo. Uma gargalhada escapa de mim enquanto a aperto em
meus braços e beijo sua bochecha.
— Petite soeur! Que saudade de você, pirralhinha! — exclamo,
bagunçando seus cabelos áureos.
Mamãe aparece na sala, caminhando como uma soberana dentro de
sua roupa elegante, o cabelo impecável e a maquiagem leve. Seus olhos azuis
e frios me analisam de cima a baixo. O sorriso é conciso e quase sem vida.
Inspiro fundo e desço minha irmã do meu colo, que se mantém agarrada à
minha cintura.
Elizabeth se aproxima de mim, segura-me firme pelos braços e me
olha nos olhos um segundo antes de me dar um abraço apertado.
— Emilien — diz apenas, afastando-se, mas ainda mantendo os dedos
em meus ombros.
— Salut, maman — cumprimento-a de volta e lhe dou um beijo na
bochecha.
Mais uma vez, ela me analisa, erguendo uma sobrancelha
inquisidora.
— Tem se alimentado direito, querido? Parece tão magro e desnutrido
— aponta.
Suspiro e bagunço um pouco mais os cabelos de Nicole.
— Oui, maman. Estou comendo direito, não se preocupe.
Ela faz uma careta de quem não está muito convencida de minha
resposta, mas a aceita, de qualquer maneira. Segurando em meu pulso e no de
Nicole, nos leva até a sala de jantar, onde a mesa do café da manhã está
posta. Elizabeth se senta à cabeceira enquanto me acomodo no primeiro lugar
ao seu lado esquerdo e minha irmã à minha frente.
— Acredito que aqui se alimentará melhor durante sua estadia —
mamãe diz, servindo-me com leite morno. — Não me surpreenderia se
soubesse que convivendo com aquela sua amiga… — Faz uma pausa, talvez
tentando se recordar do nome em questão. — Désirée Lacroix… você esteja
apenas a base de frituras, refrigerantes e fast food.
Minha mãe é um poço de exagero quando quer. Mas conheço sua
estratégia. Isso é seu modo de tentar me convencer a voltar a morar aqui. Sei
de cor e salteado o padrão de Elizabeth Dupont. Ela começa a pôr defeitos e
obstáculos na minha vida fora dessas paredes e depois enaltece os benefícios
que seria se eu tornasse a viver junto dela.
— Mère, não se preocupe comigo. Tenho mantido uma alimentação
saudável, durmo oito horas por dia, faço exercícios físicos e não assisto
pornografia — brinco, arrependendo-me da última parte. Esqueci-me
completamente de Nicole na nossa presença.
— O que é pornografia, Emil? — a menina pergunta um segundo
depois, distraída, amaciando os cabelos da sua Barbie.
Engulo em seco e olho para minha mãe, que já está pronta para comer
meu fígado. Pigarreio um segundo enquanto procuro por uma explicação que
satisfaça a curiosidade sagaz e praticamente insaciável da minha irmã caçula.
— É uma coisa feita para adultos que nem mesmo adultos deveriam
ver.
Suas pequenas sobrancelhas se vincam e ela me olha atentamente,
confusa com minha resposta.
— Se é feita para adultos, por que adultos não deveriam ver?
— É isso que estou te dizendo, petite soeur. É algo muito feio.
Mesmo para adultos. Por isso, os bons adultos não assistem a essa coisa feia.
Entendeu?
Parecendo satisfeita com minha resposta, torna a se entreter com sua
boneca enquanto toma um copo de leite e come alguns biscoitos de chocolate.
Mamãe se serve com café, a carranca ainda em suas expressões levemente
envelhecidas, não sei se por causa do assunto pornografia na frente da minha
irmã ou se porque mais uma vez tentou me convencer a voltar para casa e
mais uma vez estou negando.
Tomo um gole do meu leite, ignorando por ora seu mau humor, e
corto um pedaço de bolo.
— Onde está o papai? — pergunto alguns segundos depois.
Limpando os lábios com um guardanapo, mamãe informa:
— No escritório no andar de cima. Teve uma reunião de última hora.
Pediu desculpas por não poder te receber, mas estará na mesa conosco no
horário do almoço.
O restante do café da manhã, entre mim e mamãe, é feito sem assunto
algum. Ela come quieta sua porção de fibras, carboidratos bons e proteínas.
Nicole me conta todas as novidades da escola e as coisas que está
aprendendo, os livros que leu no último mês, as amizades recentes feitas na
nova turma e pratica um pouco de seu inglês comigo. Depois, me pede para
falar do meu curso. Nesse momento, mamãe pigarreia furiosamente à mesa,
tentando atrapalhar o assunto. Sei que é de propósito.
— Em vez de te falar, que tal eu te mostrar? — falo, balançando as
sobrancelhas.
Terminada minha refeição, pego minha irmã pelos punhos e a levo até
meu quarto. Minha pequena bagagem, que um dos funcionários da casa
trouxe para cá, está em cima da cama. Reviro-a até encontrar minha câmera
fotográfica e levo Nicole para o extenso jardim atrás da mansão.
— Que tal um ensaio fotográfico, irmãzinha?
A menina se anima com a ideia, pulando e batendo palminhas. A
próxima hora é recheada de risadas, poses, cliques e alguns malabarismo para
que eu consiga pegar um ângulo bem bacana para as fotos. Nicole leva jeito
para a coisa. É bonita, muito sorridente e espontânea, além de fotogênica.
Nem faz esforço para sair bonita nas imagens e consegue essa proeza mesmo
fazendo caretas. Minha irmã é uma fofa.
Estamos fazendo uma série de imagens na piscina quando mamãe
surge:
— Você continua com essa ideia tola de ser fotógrafo, Emilien? —
Quando a olho, ela está se acomodando em uma das espreguiçadeiras,
trajando um maiô preto e óculos escuros. Sem me encarar, passa o protetor na
pele, com movimentos elegantes e suaves. — Que desperdício de talento.
— Já falamos sobre isso, mère. — Solto um suspiro cansado e caio na
espreguiçadeira ao lado. Nicole, de cara fechada e braços cruzados, vem até
mim, frustrada com a interrupção. Estávamos nos divertindo. Acolho-a em
meu abraço e beijo sua bochecha.
— Já — confirma, virando-se para mim. Retira os óculos escuros e
me encara seriamente. — Contudo, você prefere não me dar ouvidos e insiste
nessa besteira. Está jogando toda a oportunidade de uma vida por causa…
disso? — indaga, desdenhosa, apontando para a câmera pendurada em meu
pescoço.
— Está vendo por que não volto a morar aqui? Tem três meses que
não me vê e, quando venho fazer uma visita, tudo o que sabe fazer é me
criticar! — protesto, levantando-me do meu lugar e passando a mão pelos
cabelos.
— Não briguem, por favor — Nicole pede, agarrando-se às minhas
pernas.
Na mesma velocidade, Elizabeth também se levanta, apontando um
dedo indicador em minha direção, bradando:
— Você é um ingrato! Seu pai e eu batalhamos uma vida para te dar a
oportunidade de ser alguém, uma pessoa importante, para batalhar conosco,
mas você quer ser um fotógrafo inútil! Pense, Emilien, quantos rapazes na
sua idade não gostariam de ter a oportunidade de ser um empresário
importante? Você tem isso e está jogando pela janela.
Abano a mão no ar, arrependendo-me de ter vindo. Talvez eu vá
embora ainda hoje e não volte mais. Quando eu quiser ver meu pai e minha
irmã, marcamos um lugar para isto. Mas não posso. É toda vez a mesma
história. Basta estar dez minutos no mesmo ambiente que minha mãe e que
eu não esteja cumprindo seus desejos para ela me atormentar e me tirar do
sério.
— Para mim já deu, maman. Vem, Nicole, vamos entrar — falo,
puxando minha irmã pelo punho.
Às minhas costas, Elizabeth grita comigo, me manda voltar, a não a
ignorar ou lhe dar as costas. Faço cada uma delas, pouco me importando. Ela
grita cada vez mais alto à medida que me afasto, quase consigo sentir sua
garganta arranhando. Mulher histérica.
— Maman! — Nicole esbraveja, soltando-se do meu apego e
correndo na direção oposta.
Tento impedi-la e quando me viro para onde estávamos, vejo minha
mãe estirada no chão, inconsciente.
Um casal se beijando indicava que ele sentia falta dos meus beijos.
Um casal se abraçando, sua saudade era do nosso abraço. No metrô, um
homem cabisbaixo e triste — e a foto em preto e branco — revelava seu
arrependimento por ter feito o que fez.
Agora, depois de já ter perdido as contas de quantas imagens Emilien
me enviou, estou curiosa para saber que fotografia representa o quê.
Encostada ao balcão da copa, ainda esperando a cafeteira processar os grãos,
retiro a nova foto de dentro. Então, sou pega de surpresa. Ergo meu olhar,
averiguando o local, estranhamente tendo uma sensação de ser perseguida.
Abaixo os olhos para o papel entre meus dedos e me reconheço na fotografia.
Foi tirada ontem, depois do almoço. Deixando a cafeteria de Bernardo,
segurava um copo de isopor com uma mão, e com a outra, o celular. Ria de
alguma coisa olhando para a tela, parada na calçada.
Engulo em seco, perguntando-me se Emilien chegou a ponto de
contratar alguém para me seguir e me fotografar. Os retratos anteriores não
me foram uma preocupação porque ele deve ter encontrado as imagens na
internet e mandado revelar. Mas agora… ele mandou me fotografar? Não
gosto do sentimento na minha garganta.
Puxo a caneca e bebo um gole generoso do meu café. Cumprimento
alguns colegas da redação que ali chegam e me retiro para minha mesa.
Apoio a xícara perto do computador e só então tenho coragem de virar o
verso e ler a mensagem de hoje.
Marie se afasta dos meus braços e beija o canto dos meus lábios.
— Agora você vai me dizer por que estava indo embora na surdina?
— pergunto, sereno, colocando um cacho do seu cabelo atrás da orelha.
— Eu vim para Loches a trabalho, Emil… — confidencia. Não
admito em voz alta, mas gosto quando me trata pelo apelido. — Preciso
voltar e terminar meu artigo.
— Vai mesmo trabalhar em pleno final de semana e deixar seu
namorado sozinho? — Faço um bico dramático. Marie dá uma risada
graciosa e beija meus lábios.
— Se quiser, pode vir comigo. Trabalho um pouco… almoçamos
juntos… fazemos uma rodada de sexo… depois eu trabalho mais um pouco e
à noite podemos fazer algum programa.
— Adorei a parte de fazermos sexo… — brinco, balançando as
sobrancelhas.
Ela cai nos meus braços, gargalhando, e me abraça, acariciando meus
cabelos.
— Vamos. Quanto mais rápido terminar meu trabalho, mais tempo
teremos para aproveitar um ao outro — diz, puxando-me pelo punho.
Descemos juntos as escadas, combinando de irmos no carro dela e
que, mais tarde, me trará de volta e passará a noite na minha cama — se nada
atrapalhar, ou seja, se minha mãe não puser empecilho. Mal chegamos à sala
principal quando Elizabeth me aborda, enviando olhares nada agradáveis à
minha companheira.
— Posso falar um instante com você?
Quero dizer que não, mas minha mãe vai me atazanar se não fizer
suas vontades. Além do mais, precisamos mesmo dessa conversa. Marie e eu
estamos juntos agora — finalmente, como um casal — e a última coisa que
quero é Elizabeth infernizando nossa vida, tentando nos separar.
Aceno em positivo, deixo um beijo suave em Marie e peço que me
espere. Saio na frente, indicando uma saleta ao final do corredor, e mamãe
me segue no mesmo instante. Enquanto entra e encosta a porta, já me preparo
psicologicamente para ouvir seus dramas.
— O que você tem com essa moça é sério? — pergunta, a quatro
passos da porta.
Viro-me em sua direção e suspiro, encostando-me à borda da mesa
logo atrás de mim.
— Oui. Estamos juntos.
— E por que ela estava indo embora na surdina mais cedo? —
especula, erguendo uma sobrancelha inquisidora. Seus dedos longos,
adornados de anéis, ajeitam os cabelos louros impecáveis, sem nem mesmo
um fio fora do lugar. — Além do mais, ela mesmo me informou que entre
vocês é apenas sexo casual.
— Até dez minutos atrás, era mesmo. Mas não a conheço de hoje e
não é de hoje que estou apaixonado por ela. Lá em cima, nos entendemos e
estamos juntos. Somos um casal agora, mãe — falo essa última parte com
cuidado, inclinando meu corpo ligeiramente para frente.
Elizabeth parece estremecer no lugar quando alego que meu
relacionamento é sério, de que estou apaixonado. Inspiro fundo, esperando
pelo surto.
— Você merece mais, Emilien… — diz, rígida em seu lugar. —
Merece mais do que uma moça da classe trabalhadora. Você merece alguém
como Marjorie, da elite e…
— Pare — interrompo-a, elevando a voz mais do que é considerado
respeitoso. — Já sou um homem adulto e tenho direito de fazer minhas
próprias escolhas. Então, pare! Continuarei com Marie, queira a senhora ou
não.
Estou para encerrar essa conversa, antes que vire outra de nossas
discussões, e voltar para minha garota quando mamãe se põe no meu
caminho, espalmando contra meu tórax. Ela é bem mais baixa do que eu, mas
nem por isso o modo como me olha deixa de ser intimidador.
— Aproveite o final de semana com ela. Façam tanto sexo quanto é
possível. Mas na segunda-feira, afaste-se dela — murmura, como se estivesse
no seu direito de controlar a porra da minha vida. — Afaste-se dessa moça,
Emilien Dupont, ou eu a afastarei de você. — Meu maxilar trinca na mesma
hora, entendendo sua ameaça. — Sabe muito bem que eu tenho meios para
isso — complementa, dando um passo atrás.
— Meu passado — constato. Dificilmente minha mãe usa do meu
segredo para me chantagear, porque sabe que me expor não manchará só
minha imagem, mas também o sobrenome Dupont, o que não seria nada bom
para nossos negócios. Não sei por qual razão, neste momento, ela acredita
que poderá me manipular usando deste artifício. — Você não faria isso,
Elizabeth. Sabe que sujar minha imagem é um tiro no seu pé.
Minha mãe abre um sorriso malicioso.
— Não preciso divulgar sua vida passada para toda a imprensa, mon
chéri. Posso apenas pintar para Marie o monstro que você foi. Ela é uma
mulher inteligente, tenho certeza que se dará conta de que, uma hora ou outra,
você fará com ela o que fez com Marjorie e Désirée.
Eu nem me vejo dando um passo para a frente, agarrando-a pelo braço
e o apertando com força desnecessária.
— Não sou esse monstro que você pensa que sou — falo entre os
dentes, a raiva tremendo-me quase por completo. — Não perco o controle
tem muito tempo! E você sabe, sabe que nunca foi de propósito!
— Será? — desdenha, remexendo-se no meu aperto. — Está bastante
descontrolado agora, machucando a sua mãe, a mulher que te pôs no mundo!
Afasto-me subitamente, como se tivesse tomado um tiro no peito.
— Mesmo assim — rebato, um tanto mais calmo. — Contar a Marie
meu passado não é a melhor das ideias. Se ela souber… vai me expor. Vai me
odiar com tanta força, que vai querer me ver manchado, arruinado… Já até
consigo imaginar uma matéria que ela escreveria a meu respeito. — A
concepção me dá medo e fico levemente trêmulo. — Não vai dizer nada a ela,
Elizabeth, nem a ninguém, porque de nenhuma maneira você pode revelar
meus segredos e sair ilesa. Se eu cair, você cai junto.
Outro dos seus sorrisos de deboche nasce nos seus lábios
delicadamente pintados.
— Vejamos… Você já a magoou uma vez, dois anos atrás, estou
correta? — pergunta, pegando-me de surpreso. Seu sorriso aumenta. — Você
subestima sua mãe, Emilien. Já fiz minhas devidas pesquisas sobre essa moça
e sei que você já a machucou uma vez. Não sei exatamente o que fez, mas fez
algo. Então, retomemos ao meu raciocínio. Você a magoou, mas conseguiu o
perdão dela… E aí ela trabalha justamente para a revista do grupo editorial
que você é dono. Se ela descobrir seu passado e espalhar isso, eu tenho poder
e dinheiro o suficiente para manipular as coisas a nosso favor, sabe bem
disso, não sabe, chéri? Usei destes mesmos recursos anos atrás para encobrir
seus erros quase fatais, se recorda?
Fecho os olhos e inspiro fundo, tentando não pensar nisso.
— Tudo o que as pessoas vão achar é que Marie continua magoada
com você e, desesperadamente, inventou uma história maluca dessas para se
vingar, tentar manchar a imagem do filantropo parisiense que você é. Mas eu,
você e ela saberemos a verdade. Ninguém acreditará numa mulher que teve
seu coração quebrado, Emilien… principalmente se ela parecer uma histérica,
o que pode acontecer quando descobrir as coisas que você esconde por baixo
desse seu rostinho bonito.
Nesses anos todos, mantive-me solteiro para evitar suas chantagens e
o inferno que faz na minha vida. Afastei-me de minha família por causa dela,
fiz escolhas péssimas por causa dela e do seu narcisismo. Mas agora… Agora
estou cansado de ser uma marionete em suas mãos. Nunca tive um motivo
forte para enfrentá-la. Preferia fazer suas vontades e ter um pouco de paz (o
que nem sempre acontecia e comprometia ainda mais minha saúde mental)
porque seria o melhor para todo mundo. Hoje, entretanto, eu tenho Marie. E
por ela vou enfrentar essa megera que chamo de mãe.
— Não vou deixar você contar nada para minha namorada. Nem que
para isso eu precise me casar com ela e me mudar da França, levando-a
comigo para algum país em que você jamais nos encontre outra vez! Não vai
mais decidir por mim, Elizabeth, nem interferir mais na minha felicidade! —
Imponho-me de uma maneira que nunca me impus de verdade, pois era mais
fácil atender seus desejos ou fugir.
— Você não ousaria! — rebate, verdadeiramente incrédula.
— Ah, eu ousaria, sim. Marie é mais importante para mim do que
você pode imaginar, mère. E eu faria qualquer coisa, qualquer coisa mesmo,
para protegê-la do meu passado e de você.
Elizabeth me segura com firmeza pelos dois braços e me perfura com
seu olhar.
— Não sabe o que está fazendo, Emilien!
Solto-me do seu aperto e caminho até a porta, dando um basta nessa
conversa.
— Eu sei, sim. Estou tomando as rédeas da porra da minha vida. —
Miro minha mãe uma última vez, sabendo que não é aconselhável contrariá-
la, e me retiro em seguida.
A ideia de me casar com Marie e nos mudar para nos proteger nunca
foi tão forte.
MARIE
Sigo até a cozinha enquanto Emilien vai conversar com a mãe-barra-
jararaca. No caminho, repreendo-me pelo apelido, porque agora conheço a
história por trás da mulher megera e dura que ele tem como mãe. É claro que
Elizabeth não pode usar da sua condição psicológica para atazanar o filho e
fazer dele um homem infeliz para atender seus caprichos narcisistas. Por mais
dolorosa que seja sua história, nada justifica o modo como culpa e pune o
próprio filho. Ela deveria mesmo passar por um acompanhamento com o
psicólogo.
Na cozinha, torço para encontrar Nicole ou Lorraine enquanto espero
por ele, mas deparo-me com a última mulher que gostaria de ver nesse
momento. Marjorie está sentada à mesa já limpa, com apenas uma xícara
pequena de café. Meu estômago aperta quando ela me dá um sorriso
pequeno. Inspiro fundo.
— Ainda tem café? — pergunto, parada na entrada do cômodo.
Minha vontade por cafeína é maior que meu orgulho. Se não fosse por isso,
teria a ignorado e voltado para a sala principal.
Com um único movimento, Marjorie me indica a cafeteira e completa:
— É expresso. As cápsulas você encontra na segunda gaveta.
Prefiro grãos moídos, mas não posso me dar ao luxo de exigir algo.
Por isso, preparo um expresso em cápsulas assim mesmo.
— O Emilien está bem? — Ela quer saber.
Reluto um segundo em responder. Continuo de costas para ela,
esperando meu café ficar pronto. Demoro a dar uma resposta porque sua
pergunta é difícil para mim. Emilien está bem? É tão difícil saber os
sentimentos dele. É claro que ele deixou a mesa do café da manhã bastante
atormentado, então conversamos, ele desabafou, mas não sei se seu desabafo
o ajudou a aliviar. Não sei o que se passa naquela cabecinha dele com tanta
manipulação da mãe — com quem está conversando agora sabe-se lá o quê.
Talvez ela esteja o atormentando mais uma vez.
Por fim, pego minha xícara e me viro para Marjorie.
— Acredito que esteja. O Emilien não é muito de pôr os sentimentos
para fora, não é? — alfineto, remoendo um ciúme por esse homem. Não
gosto de pensar que tiveram intimidade o bastante a ponto de ela conhecê-lo
assim tão bem. Dessa maneira, fica impossível não me perguntar se ela
conhece o passado dele.
— Não, não é — diz, forçando um sorriso.
Por mais que tente não o fazer, acabo por me sentar à mesa, no lugar
de frente para Marjorie. Emilien não me respondeu quando lhe perguntei,
mas posso perguntar à sua ex-noiva, não posso? Se o homem não se abre
comigo, se não me conta mais sobre sua vida, então preciso conversar com
pessoas que podem me contar sobre ele.
— Por que vocês romperam o noivado? — indago, tentando não
demonstrar muita curiosidade. Bebo um gole do meu café para disfarçar o
leve tremor nos meus lábios.
A moça ergue uma sobrancelha e apoia sua xícara na mesa.
— A versão que ele conta é por conta da morte do pai. Thierry faleceu
um mês antes do nosso casamento.
— Por que você dá a entender de que não acredita nessa versão?
Ela abre um sorriso amargo e desvia o olhar para o líquido preto.
— No dia do enterro do pai dele, eu o peguei beijando outra mulher.
Marjorie já mostrou mais cedo, ao redor da mesa, que superou
Emilien. Não sei quanto tempo faz que os dois foram noivos, mas acredito
que foi há tempo suficiente para que seguisse em frente. Mas agora, ao falar
que o viu a traindo, demonstra um sentimento que pareceu ter escondido a
vida toda.
Não sei o que dizer, realmente. Isso explica por que não me contou os
motivos de romperem. Ele não queria que eu soubesse que um dia já foi um
traidor? Ou talvez seja até hoje? Não me agrada o pensamento, porque decidi
confiar nele mais uma vez, entregar meu coração de novo, o mesmo que Emil
já o tenha quebrado em outra ocasião.
— Compreendo. — É tudo que consigo dizer por alguns segundos. —
Eu também não perdoaria uma traição.
— Mas eu estava disposta — responde. Olho-a com atenção,
querendo entender seu posicionamento. — Ora, foi apenas um beijo. E ele me
disse que não tinham nada, que foi algo de momento. Acreditei nele. Emil
ficou arrasado com a morte de Thierry. Entendo que, em um momento de
dor, tenha cometido um erro.
Não acredito que um momento delicado possa justificar uma atitude
tão errada como uma traição — mesmo que com apenas um beijo —, mas não
me manifesto. Espero-a terminar seu raciocínio.
— Emilien, entretanto, terminou comigo mesmo assim.
Imediatamente um minuto depois de ter o visto beijando a melhor amiga,
com a desculpa que te contei, somada ao fato de que só aceitou nosso
casamento por causa da mãe.
Sem dificuldade, entendo o porquê de sua desconfiança.
— Você acha que ele terminou com você por causa dessa melhor
amiga que ele beijou?
— Eu tenho certeza. Na época, ele escondeu, por causa de Elizabeth,
mas Emilien e Désirée tiveram um relacionamento longo, acredito que por
uns três anos.
Não me surpreende que Emil tenha conseguido namorar por três anos
sem ninguém saber disso. O homem é o rei da discrição.
Processando suas palavras, meus lábios se abrem para perguntar:
— Essa Désirée… é a garota que Elizabeth mencionou mais cedo? A
garota que… Emil fez algum mal? — Ela me encara com uma expressão
hesitante, como se, assim como o ex-noivo, não quisesse tocar no assunto.
Apesar disso, acena em positivo. — O que ele fez? — pergunto, com a voz
quase esganiçada e trêmula. Ela sabe o passado de Emilien, que agora
desconfio ter a ver com essa Désirée. Nem mesmo Nicole tem ciência disso.
Quão grave pode ser?
Marjorie suspira e bebe o restante do seu café antes de me dizer:
— Não sei os detalhes — revela, passando a língua no lábio inferior.
Algo me diz que está mentindo. — Mas, resumidamente, fez o mesmo com
Désirée. Emilien a traiu.
A confissão tem o mesmo efeito de um murro no meu estômago. Não
quero acreditar que Emilien seja esse tipo de homem. Mas por quais motivos
ela mentiria sobre esse assunto? Não quero estereotipá-la como a ex-noiva
histérica que quer a todo custo separá-lo da atual. Além do mais, embora eu
tenha a impressão de que sabe mais do que quer admitir, a moça me parece
estar sendo bastante sincera.
— E não foi traição com um beijo — continua, olhando para os lados.
— Pelo que sei, foi com mais de uma mulher, e ele não fazia questão de
esconder que a traía. Isso mexeu demais com o psicológico da Désirée. —
Voltando-se para mim, completa: — O Emilien foi tóxico com ela.
Tudo o que eu menos queria ouvir. Que Emil é um cara tóxico. Um
abusador. Não quero acreditar nisso. Esforço-me para manter minhas
lágrimas para mim e não demonstrar que estou abalada com essa revelação.
— Não quero parecer a ex rancorosa — Marjorie diz, com cuidado
—, mas Emilien vai fazer com você o que fez comigo e com a melhor amiga.
Em algum momento, ele vai te trair. Se quer meu conselho, deveria se afastar
dele.
— O que aconteceu com a Désirée? — pergunto, ignorando por ora
seu conselho.
— Se ele não te contou, não serei eu a fazer isso, Marie. Mas o que
posso te contar é que, depois dela, Emilien se tornou mais recluso e evitou
relações amorosas por medo de antigos hábitos. Não sei se foi o trauma da
morte do pai, ou as constantes manipulações da mãe, mas ele se tornou uma
pessoa tóxica com a melhor amiga, coisa que comigo, durante o tempo em
que o conheci e estivemos juntos, não foi. Por que você acha que ele faz
acompanhamento com o psicólogo e evita relacionamentos? Emilien vai te
dizer que é por causa da mãe, mas não é. É porque ele tem medo de se
envolver com alguém e fazer o mesmo mal que fez à melhor amiga.
Engulo em seco e só então me lembro do meu café, que já está frio.
Tomo-o mesmo assim, fazendo uma careta por conta da falta de temperatura
adequada. Deixo a xícara pela metade e a afasto, pensando no que me disse.
Faz algum sentido, devo admitir. Será por esse motivo que Emilien deixou o
país dois anos atrás? Ele nunca realmente foi claro sobre isso, mas se de fato,
em algum nível, se importava comigo e não queria repetir o mesmo erro, isso
explica ter ido embora. E quando retornou e nos encontramos no restaurante,
alegou que sua vida era um caos e estava disposto a enfrentar as coisas que
ficariam entre nós. Penso agora que essas coisas nada mais são que sua
vontade de me fazer mal.
— Merci — agradeço, quase com um sussurro. Seus relatos podem
me dar algum norte sobre meu namorado.
Marjorie está abrindo a boca para me dizer algo, mas Emil surge na
cozinha, expressão indecifrável, corpo ereto e meio rígido. A conversa com a
mãe não deve ter sido das melhores. Os contornos do seu rosto tomam formas
mais sombrias ao me ver junto da ex-noiva. Pigarreia e então vem até mim.
— Podemos ir agora — enuncia.
Abano a cabeça em positivo e me levanto. No mesmo instante, ele
abraça minha cintura, com um aperto fora do comum. Despeço-me de
Marjorie. Emilien não faz o mesmo, mas antes de deixarmos a cozinha, ele
lança um olhar discreto e esquisito à ex-noiva que não me passa
despercebido.
Vamos ter uma conversa.
Emilien não diz nada sobre o assunto por todo o resto do dia. Ele se
aconchega na minha casa e fica comigo o tempo todo enquanto trabalho.
Confesso que foi difícil me concentrar no arquivo do projeto, porque todo o
relato de Marjorie ia e vinha com frequência na minha mente. Quando o
olhava por cima da tela do notebook, não conseguia acreditar que aquele
homem, estirado no meu sofá e lendo um livro que encontrou numa das
prateleiras do escritório, pudesse ser um cara tóxico.
Eu já convivi com caras assim. Já tive relacionamentos abusivos. A
regra é: nos primeiros meses, ele é perfeito. Não demonstra ser um idiota
manipulador que vai acabar com sua autoestima e psicológico. Com o passar
do tempo, ele mostra quem realmente é. Com Emilien, não vi esse padrão.
Muito pelo contrário. Sempre se mostrou uma ótima pessoa, apesar de todo o
mistério em torno da sua vida pessoal e do seu passado. Marjorie também
alegou que ele faz acompanhamento psicológico. Talvez um profissional
tenha o ajudado a ser uma pessoa melhor? E se for isso, o que ele foi no
passado pode ser perdoado, esquecido, superado? Mesmo que hoje não seja
mais tóxico, posso fechar os olhos para seu passado?
Sinceramente, não sei a resposta. No meu interior, porém, torço
profundamente para que Marjorie tenha apenas mentido, na intenção de me
afastar dele. Não consigo conceber a ideia de Emilien ser esse tipo de pessoa.
Ele prepara o almoço e paro por uma hora para comer. Ao redor da
mesa, não abordamos o assunto. Emil fala de alguns projetos filantrópicos ao
quais dará atenção quando retornarmos à capital; por mais que eu queira
questioná-lo sobre o que Marjorie disse a seu respeito, decido que farei isso
em um momento mais adequado. Após o almoço, deixo-o com a louça e
retomo ao meu escritório. São seis da tarde quando surge novamente (ele
sumiu por todo o restante da tarde) e fecha meu notebook.
— Ei! — protesto. Emilien me olha com o sorriso mais lindo. — Eu
estava escrevendo!
— São seis da tarde, mademoiselle Julien. Hora de me dar atenção, e
outra coisa — diz, contornando a mesa e puxando-me pelo punho direto para
sua boca e seu tórax definido.
Não resisto e me entrego, retribuindo seu beijo à medida que acaricio
seu peito. Suspiro contra seus lábios quando sua mão vai descendo pelo meu
corpo e alcança o meio das minhas pernas. Delicadamente, o afasto.
Precisamos de uma conversa aberta e sincera antes de qualquer coisa.
— Emilien… nós precisamos conversar.
Ele me olha com suas pupilas dilatadas de luxúria, com uma
expressão de quem não está acreditando de que eu o interrompi num
momento como esse. Expirando lentamente, se encosta à borda da minha
mesa e cruza os braços.
— O que Marjorie te falou a meu respeito? — pergunta, sem rodeios
e sem me olhar.
Tomo um pouco de ar para os pulmões e digo:
— Que você é um cara tóxico. — Ele se volta para mim com tanta
rapidez que quase não vejo o movimento do seu pescoço. — Ela me falou da
Désirée. — Seu maxilar trinca e os músculos do seu rosto parecem ficar
rígidos.
— O que exatamente ela te falou da Désirée?
— Não muito — confesso, baixando o olhar e molhando os lábios. —
Apenas que você rompeu o noivado e logo depois namorou sua melhor amiga
por um bom tempo até trai-la tanto que a abalou. Me disse que o que você fez
com elas, fará comigo também. — Levanto o olhar em sua direção e
pergunto: — Você teria coragem de me trair ou de me magoar, Emilien?
Seu silêncio por intermináveis segundos me tortura; os olhos azuis
cravados em mim.
— E você acreditou na versão da minha ex-noiva?
— Não sei. — Sou sincera novamente. — Mas quero ouvir sua versão
dos fatos.
— E se eu não estiver disposto a dizer?
Balanço a cabeça em negativo e inspiro fundo.
— Então serei obrigada a acreditar nas palavras da Marjorie. —
Silêncio entre nós outra vez. — Emil… — falo com cuidado, vencendo a
distância de um passo que me separa dele. — Somos um casal agora. Tem
que confiar em mim e se abrir. Me deixar às escuras sobre quem você foi no
passado só vai nos atrapalhar.
Ele me encara sem nada dizer, hesitante em olhar para mim ou para os
bíceps fortes, enquanto seus lábios se entreabrem na mesma velocidade que
se fecham.
— Não sou esse homem que Marjorie pintou — revela, com um tom
de voz tão baixo que quase não o compreendo. — Nunca fui.
— Me conte o que aconteceu — falo suavemente.
Emilien suspira antes de prosseguir:
— Désirée e eu realmente passamos um tempo juntos. Tive de
esconder nosso namoro por conta da minha mãe. Ela nunca aceitou que eu
tivesse terminado com Marjorie. Estávamos bem… até Elizabeth descobrir
tudo. Ela passou a me infernizar, eu… tomei uma atitude errada e…
— Que atitude? — interrompo.
— Não importa.
— Importa, Emilien! — Elevo a voz, cansada dos seus segredos.
— Não, não importa! — Ele também se altera um pouco. — Fiz uma
coisa errada que desencadeou um monte de eventos ruins na nossa relação, é
só o que precisa saber — fala rudemente, desviando seus olhos de mim. —
Depois disso, nosso namoro declinou. Houve mal-entendidos que a levaram a
me trair. Eu fiquei… — Ele engole em seco, apertando o maxilar. — Fiquei
possesso…
Emilien faz uma pausa drástica. Eu fico estática no lugar, apenas
pensando o pior. Será que ele… a agrediu por causa dessa traição?
— Fiquei possesso com minha mãe… porque ela armou isso tudo,
entende? — Algum alívio percorre meu corpo. — Mesmo que tenha sido uma
armação e eu tenha a perdoado, não voltamos a ser o casal de antes. Não sei o
que houve. De repente, ela ficou afastada… reclusa, me evitava de todo
modo, mal conversava comigo. Parou de trabalhar, vivia pelos cantos,
abatida, melancólica. Tentei conversar com ela, entender o que estava
acontecendo, mas ela não se abria comigo. — Emil faz outra pausa, agora sua
feição tomando contornos sombrios e dolorosos, como se ele soubesse sim do
motivo pelo distanciamento da namorada, só não quer comentar. — No final,
decidimos cada um seguir a sua vida, terminarmos. Eu… realmente a amava,
Marie. E nosso rompimento mexeu comigo, então fiz o que qualquer outro
homem estúpido faria: procurei refúgio no sexo com outras mulheres. Eu
nunca a traí. Te dou minha palavra.
— Por que Marjorie e sua mãe acham que você a traía e por isso
causou esse mal nela?
Ele pestaneja seguidas vezes.
— Porque não contei a elas do meu rompimento com Désirée. Se
soubesse que tínhamos terminado, maman tornaria a insistir no meu
casamento com Marjorie. — Baixa o olhar para os bíceps novamente, seus
braços ainda cruzados. — Acredite, eu não a traía.
— Era tóxico com ela? Abusivo? Talvez por isso tenha se afastado de
você?
Emilien move a cabeça.
— Ela se distanciou por outro motivo. Descobri algum tempo depois.
Penso em perguntar qual foi a razão, já que ele sabe, mas desisto.
Emilien não vai dizer se não quiser.
— Désirée estava grávida — revela, pegando-me completamente
desprevenida. — Eu não sabia. Ela ia me contar, mas no dia, tivemos uma
discussão bem acalorada, saí de casa e passei dois dias fora. Ela sofreu um
aborto espontâneo por conta do stress.
— Ela se distanciou de você porque te culpava pela morte do bebê —
concluo, entendendo o resto da história. Ainda assim, há algumas lacunas que
ele não preencheu, e talvez nunca vá preencher.
Emil balança a cabeça devagar, como se ainda carregasse a dor e a
culpa nos próprios ombros.
Começo a compreender que é esse o mal que Emilien causou. Não
que eu concorde totalmente com Elizabeth. Ele não sabia da gravidez,
discussões todo casal tem. Foi apenas uma fatalidade, não foi?
Sem me dar conta, me encaixo no abraço dele e recebo um beijo entre
meus cabelos.
— Nunca quis causar nenhum mal a ela. Je jure devant Dieu!
Aperto-o em meus braços e não digo mais nada. Nesse pequeno gesto,
ele entende o que não proferi em palavras.
Eu acredito nele.
EMILIEN
— Acredito em você — diz ao pé do meu ouvido, apertando-me forte
entre seus braços.
Suspiro, trêmulo, tentando afastar meus próprios demônios. Não fui
completamente sincero com Marie sobre minha relação com Désirée e isso
me atormenta de um jeito insano. Não posso contar para ela, não toda a
verdade. Isso a faria me odiar, mesmo que eu me explicasse… explicasse que
jamais foi intencional. Não suportaria seu ódio, seu desprezo. Não agora
quando dei por mim de que a am…
— Você está bem? — pergunta, quebrando minha linha de
raciocínio.
— Estou — respondo, desfazendo nosso contato. Então sorrio e
acaricio sua bochecha. Ela se agrada com o carinho, pois fecha os olhos e
sorri, como em êxtase. — Mas se pudermos parar de falar sobre esse assunto,
Marie… Eu ficaria imensamente grato.
A expressão em seu rosto não me agrada. Está no DNA desta mulher
ser curiosa. Ela não vai parar até desenterrar meu passado. É por isso que
preciso me precaver, jamais deixá-la chegar a descobrir meus segredos.
— Tudo bem. — Seu rosto, entretanto, diz o contrário.
Passo o polegar sobre sua boca, desviando sua atenção para outra
coisa. Sei como fazê-la se esquecer do assunto. Enquanto meu dedo desliza
por entre seus lábios suculentos, minha outra mão escorrega pela lateral do
seu corpo até estacionar na cintura. Ela suga meu polegar com força, sensual,
e já a imagino em torno do meu pau, mamando da maneira que só ela sabe
fazer para me levar ao meu êxtase mais esplêndido.
Entendendo onde quero chegar, Marie resvala seu nariz em meu
pescoço ao passo que distribui beijos cálidos e úmidos na minha pele. Os
dedos macios vão abrindo devagar os botões da minha camisa, sua boca
nunca me deixando. Entre minhas pernas, meu companheiro ganha vida e já
quero jogá-la sobre essa mesa e comê-la até que esteja toda dolorida.
Perco a camisa no interim em que estou imaginando-a gemer meu
nome, meu corpo sobre o seu, meu pau fundo e cravado nela, minhas mãos
apertando-a com força pela cintura. Nem reparo que solto um suspiro quase
estrangulado quando essas imagens rodam em minha mente, incentivado pelo
seu beijo em meu tórax despido. Marie vai tecendo seus beijos em meu peito,
escorregando para baixo devagar, sexy, ora olhando para mim, ora
concentrada no caminho que percorre. Então ela está agachada à minha
frente, de joelhos, mordendo o lábio inferior enquanto desabotoa minha calça
e a abaixa.
— Já te disse que você tem um belo de um pau? — pergunta, sua voz
rouca de desejo, sedutora, pronta para me arrebatar e me envolver em sua
luxúria.
Não consigo responder porque sinto uma pulsada violenta em meu
pênis quando essas palavras deixam sua boca. Antes que eu tenha tempo de
qualquer resposta, Marie já puxou minha cueca e está me abocanhando,
levando-me até o fundo de sua garganta vagarosamente e o suficiente para me
fazer quase cambalear para trás. Inclino-me para frente e espalmo contra a
mesa de trabalho dela, fechando os olhos e apenas apreciando o momento,
precisando admitir que nunca uma mulher me deixou de pernas bambas tanto
quanto ela.
— Porra… — murmuro, quase sem perceber. Então já me afastei da
mesa e estou segurando seus cabelos crespos entre meus dedos, que se
afundam com facilidade nesse mar revolto, sua marca registrada, uma das
partes mais lindas do seu corpo. Acaricio-a ali um instante, gostando da
sensação, desse contato com seus fios macios. Mas o prazer que atinge cada
célula do meu corpo é forte demais para que eu fique sem comandá-la.
Assim, um segundo mais tarde, travo seu maxilar, aperto seu cabelo um
pouco mais e movo meu quadril para frente e para trás, devagar, sentindo
meu pau bater no fundo da garganta dela.
Meu corpo todo está rígido de tesão enquanto a vejo me chupar,
segurando minhas bolas e as acariciando. Seguro sua cabeça com as duas
mãos, separo levemente as pernas para dar um pouco mais de estabilidade e
fico imóvel, deixando-a me engolir em seu ritmo. Ela é tão boa nisso.
— Não há qualquer outro lugar no mundo que eu quisesse estar senão
aqui, com você — falo entredentes, afagando sua nuca. Ela me olha, ainda
me engolindo, e a visão é esplêndida o suficiente para me deixar ainda mais
duro. Marie abre um leve sorriso e escorrega sua boca até a ponta,
circundando minha glande como se brincasse com um pirulito suculento.
Puxo-a bruscamente para mim, encosto-a à mesa, e a beijo ao me
encaixar entre suas coxas. Desço meu indicador até o vão das suas pernas,
travando uma batalha com minhas calças até que, por fim, consigo me livrar
da peça em meus pés, chutando-a para longe, ao mesmo tempo em que a
penetro com três dedos. Ela se agarra aos meus braços, fincando a unha em
minha carne e gemendo desesperadamente em minha boca colada à sua.
Mantenho os dedos dentro, meus lábios aos seus e, de qualquer maneira,
arrasto para o lado todos os pertences sobre o móvel.
Impulsionando seu corpo leve, ponho-a sentada sobre a mesa, separo
seus joelhos e apoio seus pés na superfície de madeira.
— Mantenha suas pernas abertas — oriento, quase com um rosnado.
Fecho minha mão direita em torno do meu pau e me masturbo por dois
segundos enquanto a observo exposta para mim, sua boceta úmida para me
receber.
— Emilien… — Sua voz é um suplício. — Venha aqui e me coma —
pede, levando dois dedos até o clitóris e o circundando.
Seguro seu punho e afasto seus dedos do ponto sensível, substituindo-
os pelos meus, rudes e duros. Ela se contorce sobre a mesa e murmura uma
porção de obscenidades que me estimulam.
— Quando estiver comigo — sussurro, apertando na medida certa o
pequeno órgão. Marie grita de prazer e rebola contra minha mão. — Não vai
precisar se dar prazer, embora eu goste muito de te ver se tocando. Mas mais
lindo, prazeroso e excitante do que ver você com os dedos nessa boceta
apertada, é ver os meus dedos nela. Meus dedos, minha boca e meu pau.
Então, chérie — murmuro mais baixo, penetrando-a com o indicador e o
médio virados para baixo, dando-me assim a oportunidade de, ao mesmo
tempo, tocá-la com o polegar —, quando estivermos juntos a função de te dar
prazer é minha.
Marie sequer tem tempo de responder — nem sei se chegou a
processar minhas palavras — porque levo meus lábios até sua boceta e a sugo
com a mesma intensidade com que sugou meu pau. Movo minha língua em
um ritmo frenético, juntando-a aos meus dedos que a fodem e ao polegar,
acionando suas terminações nervosas. Quando seu corpo treme e os gemidos
altos e incontroláveis preenchem o cômodo, sei que teve um orgasmo.
Rapidamente, ponho-me entre suas coxas e a penetro, indo tão fundo
quanto a posição me permite. Seguro suas pernas ao redor da minha cintura
porque ela claramente não tem condições neste momento para mantê-las
dessa maneira. Preciso firmar seu corpo ao meu, pois Marie parece exausta e
fraca. Diminuo o ritmo e acaricio seu rosto.
— Você está bem? Quer que eu pare? — pergunto, preocupado com
sua mudança brusca de ânimo.
Como resposta, ela aperta meu pau com a boceta e finca a unha no
meu braço.
— Continua… Estava quase tendo um orgasmo duplo. Pelo amor de
Deus, só… continua — pede, desesperada.
Mais confiante de que ela está bem, torno a me arremeter como se
fosse nosso último dia na Terra. Não demora para Marie chegar ao segundo
orgasmo. A expressão que ela faz, o modo como me aperta com a boceta, os
gemidos chegando ao meu ouvido, essa combinação perfeita é a minha
perdição. Saio de dentro dela quando estou gozando, bombeando-me forte e
despejando uma quantia considerável de sêmen entre sua barriga e a vagina
enquanto gemo entrecortado e descontrolado. Um segundo mais tarde, estou
abraçado a ela, meu rosto enfiado em torno do seu pescoço, suas mãos macias
e delicadas afagando minhas costas despidas.
— Marie… — falo, baixo e com um suspiro contra sua pele quente e
deliciosa. — Eu não tenho muita certeza do que será da minha vida, dos meus
dias daqui para frente. O amanhã é incerto demais. Ainda assim, tenho uma
única certeza. — Neste instante, cesso nosso contato e a olho, afagando suas
bochechas, como sei que a agrada. — Não importa como será meu futuro, eu
quero você nele. É a minha única certeza.
Insira a senha :
______
Penso por vários segundos em uma combinação que possa dar certo.
As possibilidades são o quê… uma em um bilhão?
— O que está fazendo aí? — Sua voz potente soa logo atrás de mim.
Viro nos calcanhares para encontrar um Emilien usando apenas cueca,
braços cruzados na frente do tórax, expressão sisuda, maxilar trincado. Bem
cara de poucos amigos. Penso rápido em uma resposta:
— Estava procurando algo para usar para dormir. Gosto das suas
camisas.
— Você esteve nessa cobertura por tempo suficiente para saber onde
minhas camisas ficam, Marie — adverte, caminhando até a parte exata onde
guarda essas peças. Pega uma de um azul suave e joga em minha direção.
Agarro-a no ar, fazendo o lençol em torno do meu corpo cair aos meus pés.
Emil me come com os olhos, parecendo se esquecer por um segundo
da sua raiva comigo. Visto-me com sua camisa e digo:
— Me dei conta de que não conhecia o restante do seu closet. Estava
apenas olhando suas roupas. — Olho para trás, para o cofre, depois volto a
ele e completo: — Por acaso descobri o cofre. O que você guarda aí?
Uma sobrancelha dele sobe. Novamente, cruza os braços.
— Talvez uma reserva de dinheiro em espécie.
— Você não parece o tipo de homem que precisa de dinheiro em
espécie.
— Nunca se sabe quando precisarei — afirma, sua voz ficando cada
vez mais tensa.
— Pode me mostrar? Não gosto que você me esconda as coisas.
— Então é sobre isso. — Suspira pesadamente, fugindo do meu olhar.
— Continua insistindo. — Com três passos, ele está perto de mim, seus dedos
rodeando meus braços. — Por que insiste nesse assunto? Por que insiste em
tentar me desvendar? Droga, Marie. Você é tão curiosa. E teimosa. Pare de
procurar.
Esquivo-me do seu aperto e dou um pequeno passo atrás, minha
bunda encontrando o armário.
— Por que não me mostra o que tem dentro do cofre, Emilien? —
pressiono. — Porque aí tem alguma coisa do seu passado, não é? Tem o seu
terrível segredo. Não sei se podemos manter uma relação se você me esconde
as coisas! — cuspo, mal percebendo as lágrimas em meus olhos.
Com o rosto marcado de raiva, ele vem até mim, bufando como um
touro. Por algum motivo, fecho meus olhos, amedrontada com sua reação.
Um instante mais tarde, ouço a porta do cofre sendo aberta.
— Veja — ordena, rude. Viro-me e tudo que há lá dentro é o que já
me disse: uma reserva de dinheiro em espécie. — Veja — praticamente rosna.
Aproximo-me mais e analiso todo o interior. Tateio, observo. Não há nada
comprometedor. Apenas dinheiro.
Minha cara queima de vergonha.
— Emil, je suis dé…
Ele ergue a mão, interrompendo meu pedido de desculpas, e sai do
closet sem dizer mais nada. Vou atrás dele um segundo depois. A mesa
redonda em um canto do quarto está delicadamente arrumada com um jantar
improvisado — completamente não-saudável —, mas amo a intenção dele.
Emilien está vestindo sua calça social e se nega a me olhar.
Fico parada no limiar entre o closet e o quarto, pensando se vou
embora, se tento me desculpar ou se o espero se acalmar. Ele termina de se
vestir e se põe à mesa. Então me olha, pega um garfo e aponta para o lugar
vazio.
— Não vem comer? Precisa repor as energias. — Um passo de cada
vez, me aproximo, mas não me sento. Seu olhar encontra o meu. Ele suspira.
— Está tudo bem. Não estou bravo com você.
— Não? — indago, duvidosa. — Sua carranca diz o contrário.
— Não é com você. É justa a sua desconfiança. Só… odeio essa
situação, Marie.
— Me conte, Emilien… — peço suavemente, pondo-me na cadeira
vazia e tocando sua mão. — Confie em mim e me conte. O que aconteceu no
seu passado, o que aconteceu com a Désirée?
Seu corpo fica tenso e rígido como sempre quando toco nesse assunto.
Ele engole um pouco de água na taça e desfaz nosso contato.
— Não insista. Ela sequer está em Paris. Podemos esquecer esse
assunto? Marie… só quero viver em paz contigo. Insistir na minha vida
passada é colocar conflito na nossa relação. Vamos seguir em frente, oui?
Quero contrariá-lo, mas decido por não. Decido que vou usar dos
meios que forem necessários para descobrir mais sobre ele, seu passado e
Désirée. Não é correto, não é ético, mas preciso saber. Preciso descobrir.
Preciso desvendá-lo.
MARIE
Durante a primeira semana do meu namoro com Emilien, passo mais
tempo no apartamento dele — e debaixo dele — do que na minha própria
casa. Sua agenda estava mais folgada nessa ocasião, o que nos permitiu
passar bastante tempo juntos. Nas duas semanas seguinte, porém, seus
compromissos tomam quase as vinte e quatro horas do seu dia. Ele tem
algumas viagens, diversas reuniões e videoconferências e um Congresso em
Lisboa no terceiro sábado depois de Loches, para qual me convida para lhe
fazer companhia.
Estamos caminhando para vinte e um dias de compromisso sério, e eu
já perdi as contas de quantas vezes quebrei os princípios de confiança em um
relacionamento revirando a vida particular dele. Qualquer brecha que eu tinha
sozinha, vasculhava suas roupas, gavetas, livros, celular, notebook. E nada.
Não encontrei uma mísera pista. Marjorie me garantiu que eu encontraria as
provas do passado dele em seu apartamento. Entretanto, Emilien deve ter se
precavido ao quadrado e levado essas tais “provas” para qualquer outro lugar.
Um cofre no banco talvez?
Chevalier também me advertiu a observar a agenda dele. Algo que
não consegui inteiramente. Tentei arrancar algumas informações de Emilien,
mas suas respostas eram sempre iguais: reunião, viagem, reunião,
conferência, viagem, reunião. Não me deu nenhum detalhe a mais, exceto
pelos locais.
Começo a desconfiar de que Marjorie só me disse aquilo tudo para me
deixar paranoica e me fazer invadir a privacidade do meu namorado. Se Emil
descobrir que ando tentando desenterrar seu passado, com certeza ficará
furioso. É isso o que aquela mulher quer, não é? Ver nosso relacionamento
abalado pela falta de confiança.
Então deveria deixar para lá, desistir e, ao invés de invadir sua
privacidade, fazê-lo confiar em mim para se abrir. Quem disse que consigo?
Se ele não contou nem mesmo para a irmã — alguém em quem já
demonstrou ter uma enorme confiança —, não será para mim que contará.
Suspiro alto, afastando os pensamentos da cabeça e tentando me
concentrar no meu trabalho mais uma vez. Quero adiantar o tanto quanto for
possível e ficar mais tranquila para aproveitar a capital portuguesa com meu
namorado sem estar pensando em minhas obrigações — e ele que faça o
mesmo ou vai perder as bolas. A última coisa que quero neste sábado é vê-lo
enfurnado dentro de uma sala de reuniões ou escritório. Já basta as longas
horas que passa durante a semana…
Então, de repente, algo passa pela minha cabeça. Talvez eu já saiba
onde procurar por essas provas, tentar conferir sua agenda e ver o que posso
encontrar. Ligo para ele e pergunto se tem um horário livre depois do meu
expediente. Emil diz que tem uma última reunião às dezenove — um jantar
de negócios num restaurante nos arredores da Dupont Investimentos. Estará
livre às vinte e uma.
— Se importa se nos vermos no seu escritório? — pergunto,
brincando com um lápis e mordendo o lábio inferior. É baixo eu usar sexo e
uma fantasia sexual como pretexto para estar em seu ambiente de trabalho e
vasculhar cada centímetro que eu puder? É. Sei disso. Mas não posso evitar.
Que Emilien nunca descubra, amém. — Tenho um look de secretária bem
interessante, monsieur Dupont.
A linha fica muda de repente, e só posso ouvir a respiração ruidosa
dele. Seguro uma risadinha. Aposto que já está duro ao imaginar o que vamos
fazer em cima da sua mesa. Nunca transamos no seu ambiente de trabalho,
apesar de já termos fantasiado algo do tipo.
— Me espere na portaria do edifício às vinte e uma.
No horário combinado, já estou à sua espera, sob o letreiro enorme da
empresa de sua família. Uso um casaco longo — o mesmo que vesti quando
apareci em sua porta semanas atrás, na noite do coquetel — que o faz
arregalar os olhos enquanto se aproxima depois de estacionar ao lado do
meio-fio e entregar as chaves ao manobrista. Abro um sorriso malicioso,
adivinhando o que se passa em sua cabeça.
— Você não…? — indaga baixinho, parando à minha frente e
olhando-me de cima a baixo. Não sei dizer se suas pupilas dilatadas são de
luxúria ou ciúme.
— Se estou nua por baixo do casaco? — provoco, erguendo a perna
direita até alcançar seu quadril. Emilien me segura com firmeza e faz uma
carranca dura, olhando para os lados. Há um segurança na guarita do prédio
que nos observa.
— Preciso admitir: a perspectiva de você estar sem roupa por baixo
desse casaco me deixa excitado e enciumado ao mesmo tempo.
Sorrio contra sua boca e o beijo singelamente. Por fim, segura minha
mão e nos leva até o último andar. Ele tenta me agarrar no elevador e tirar a
dúvida se estou ou não despida, mas não deixo. Uma vez em sua sala, jogo-o
contra a mesa de trabalho e esfrego nossos corpos, beijando-o, sôfrega e
verdadeiramente necessitada do seu toque. Emilien agarra minha bunda e a
aperta, enviando excitação através do meu organismo. Afastando-me
bruscamente, desabotoa o casaco, quase de forma desesperada.
— Você quer acabar comigo… — murmura, os olhos passeando pelo
meu corpo.
— Com certeza, chéri — devolvo, dando um passo atrás, tirando o
sobretudo e o jogando para o outro lado.
Divirto-me com a expressão de volúpia em seu rosto e o modo como
me come com os olhos.
Trajo uma saia de couro bastante curta e justa, que contorna meu
corpo e salienta minhas curvas. A camisa de seda é frente única; as duas tiras
do tecido fazem um decote profundo e deixam a lateral dos meus seios soltos
à mostra. Aproximo-me dele com o polegar nos lábios e sorrio de um jeito
safado, gostando de exercer algum poder sobre seu corpo.
Viro-me de costas e esfrego-me na ereção que já marca sua calça
social. Seus lábios encontram a pele do meu pescoço ao mesmo tempo em
que o enlaço com meus braços e jogo a cabeça para trás, dando-lhe mais
espaço. As mãos deslizam pelo meu tórax, passam pelos seios, abdômen e
chegam até o vão das minhas pernas. Então ele volta, enveredando por dentro
do decido e encontrando meus mamilos entumecidos.
Por algum tempo, ele dá atenção a esta parte do meu corpo, beijando-
me indecentemente no pescoço, roçando sua barba na minha pele e
murmurando obscenidades em meu ouvido que me deixam cada vez mais
úmida. Num rompante, estou encurvada contra a mesa, minha bunda
empinada em sua direção, um tapa estalando com força.
— Você me provoca, mulher — cicia, descendo sua boca suculenta
nas minhas costas expostas. Tudo que posso fazer é suspirar enquanto ele me
toca e se agacha à altura da minha bunda. — E por me provocar, seu castigo
será eu te comer gostoso.
— Adoro esse castigo — murmuro, mordendo o lábio inferior.
Emilien abaixa minha saia e beija cada lado das minhas nádegas, rosnando
alguma coisa sobre minha calcinha finíssima.
Ele se põe às minhas costas e esfrega sua ereção em mim enquanto os
dedos enroscam na tira fina da calcinha. Emilien a puxa e a solta, estalando
na minha pele. Um tapa esquenta minha bunda, forte, estalado, que faz
percorrer uma sensação maravilhosa pelo meu corpo.
Gemo meio descontroladamente, principalmente quando agarra minha
calcinha e a esfrega para frente e para trás, lentamente, roçando o tecido em
meu clitóris e enviando sensações esplêndidas para cada célula do meu corpo.
Emilien separa minhas pernas e me faz inclinar mais sobre sua mesa de
trabalho, de um jeito meio duro. Sinto-me completamente exposta e devassa,
aumentando a umidade entre minhas coxas. Seus dedos habilidosos colocam
minha calcinha de lado e um segundo mais tarde deslizam para dentro de
mim, entrando e saindo devagar, mas igualmente delicioso. Choramingo o
nome dele, quase em tom de súplica, querendo logo que me coma com força,
como me prometeu segundos atrás.
Ele ainda me fode com os dedos quando beija meu pescoço, lenta e
sensualmente, sua boca suculenta resvalando pela minha pele e enviando
arrepios na minha coluna e entre as pernas. Novamente, Emilien vai tecendo
seus beijos pelas minhas costas, descendo e deixando o rastro úmido e quente
dos seus lábios até estar à altura do meu sexo.
Um segundo mais tarde, sua língua está no meu ponto mais sensível,
fazendo as maravilhas que somente Emilien Dupont parece ser capaz de
fazer. Agarro-me à borda da mesa com força em um ato desesperado de
aguentar o prazer que está me dando.
Dois dedos se juntam às suas chupadas maravilhosas, enquanto o
polegar da outra mão acaricia meu clitóris com a pressão perfeita. Começo a
sentir a onda do primeiro orgasmo. Emilien mantém o ritmo e o prazer até
que meu corpo estremece e eu gozo com sua língua e indicador dentro de
mim. Meu grito é trêmulo e esganiçado. Desabo sem forças sobre a mesa,
sentindo o relaxamento proporcionado.
Ele se põe atrás de mim e me abraça, segurando meus seios com
firmeza, penetrando-me devagar, centímetro por centímetro.
— Porra de mulher apertada — rosna no meu ouvido, movendo-se
lentamente.
Então é tudo o que diz pelos próximos minutos enquanto me fode
com toda sua potência, as mãos fortes segurando-me pela cintura, firmes,
apertando-me conforme entra e sai de mim em um ritmo enlouquecidamente
rápido. Nossos gemidos se misturam, nossos corpos grudam um no outro, o
suor escorrendo de nossas peles. Ofegante, Emilien diminui a velocidade,
mas sem deixar de socar fundo e alcançar aquele ponto maravilhoso que me
leva às alturas. De repente, sinto o toque do seu polegar na área que
pouquíssimos homens tiveram acesso. Ele me massageia ali, com
movimentos circulares e suaves, lubrificando-o com minha própria essência.
A sensação de prazer é intensificada quando, vagarosamente, seu polegar me
penetra. Fecho os olhos e o recebo com agrado, gostando, além do que posso
admitir, que me foda dessa maneira.
Emil apoia o pé direito sobre a mesa e, num rompante, impulsiona seu
quadril contra o meu. A mão livre me segura firme pelos cabelos e me leva a
encontrar sua boca em um beijo rude, sua barba marcando a pele do meu
rosto. Gemo alto contra seus lábios, sem pudor, sem controle sobre meu
próprio corpo, sem vergonha de mostrar o estado que me deixa. A posição é
magnífica e se torna ainda mais quando a outra mão solta meu cabelo para
tocar no meu ponto sensível.
— Emilien, vou gozar de novo… — anuncio, sentindo os trancos que
seu quadril causa no meu.
— De novo, ma belle? — indaga, e tenho certeza que está exibindo
um sorrisinho convencido.
— Não tenho culpa se me come gostoso — devolvo, trincando os
dentes por causa das suas investidas atrás de mim. Seguro-me com mais força
à borda da mesa e relaxo o corpo, deixando o segundo orgasmo estremecer
todas as minhas bases.
No mesmo instante, o peso do porte dele cai todo sobre mim. Tenho
certeza que gozamos juntos. Permanecemos conectados, recuperando a
respiração por algum tempo. Emilien sai de dentro de mim e me vira em sua
direção, tomando-me em um beijo amoroso e me cobrindo com seus grandes
braços.
— Vai dormir lá em casa? — pergunta, afastando-se e subindo as
calças. Pego meu casaco jogado do outro lado e o visto, fechando as laterais e
as segurando.
— Preciso pegar mais uns pares de roupa se eu for.
— Passamos no seu apartamento, então.
Olho ao redor. O local está à meia-luz. Preciso de uma oportunidade
para revirar alguns cantos.
— Tudo bem. Estou com fome. Podemos pedir alguma coisa? —
indago, aproximando-me dele e o pegando pela gola da camisa, o que me
obriga a soltar o sobretudo, que se abre e revela meu corpo seminu e suado.
Emilien desce seus olhos para mim e abre um leve sorriso.
— O que você quiser, ma jolie.
— Peça e mandem entregar aqui. Vou repor as energias e acho que
deveríamos ter mais uma rodada, dessa vez no seu sofá — sugiro, descendo a
mão até o vão das suas pernas.
A expressão em seu rosto me dá a certeza de que a ideia o agrada.
Emilien pega o celular e pede comida italiana para nós. Enquanto esperamos
pela entrega, trocamos mais alguns beijos indecentes no seu sofá. Minutos
depois, o telefone dele toca, a portaria avisando da entrega. Ele deixa um
beijo no meu rosto e me diz que volta logo. Emil mal atravessa a porta e já
estou em pé, olhando atentamente ao redor. Acendo todas as luzes e começo
pelas gavetas. Encontro algumas pastas de documentos que nada tem a ver
com o que procuro. A verdade é que aqui não há muito onde procurar. Seu
escritório é praticamente desprovido de móveis. Ainda assim, olho algumas
prateleiras, entre os livros. Encontro um pequeno cofre, mas está destravado e
vazio. Vasculho sua mesa e encontro um tablet. Ligo-o e acesso sua agenda,
seguindo o conselho de Marjorie.
Analiso-a minuciosamente. Um monte de reuniões como sempre,
viagens marcadas, inclusive, para dentro de meses, jantares e almoços de
negócio, visitas a algumas instituições que ele mantém com as filantropias,
eventos beneficentes, palestras, congressos…
Duas especificações, contudo, chamam minha atenção. Uma delas
está apenas com a letra “N” num espaço de quase duas horas. A outra é a
letra “P” e dura pouco mais de uma hora. Não há mais detalhes do que seriam
esses seus compromissos. Analiso as semanas anteriores e confiro que os
eventos “N” e “P” são constantes, apesar de serem em horários e dias
alternados. Em algumas ocasiões, “N” aparece duas vezes na mesma semana.
— Procurando alguma coisa? — a voz de Emilien soa no meio do
silêncio, assustando-me. Quase deixo o tablet despencar da minha mão para o
chão. Ergo o olhar e o vejo adentrando mais o cômodo, trazendo nossa
comida. Ele coloca tudo no sofá e me olha novamente, cruzando os braços na
frente do tórax.
— Só queria saber como está sua semana. E vi que está lotada, como
sempre. Tem uma viagem para Lyon antes de Lisboa. — Emil sempre está
em Lyon. É um dos maiores polos de seu negócio.
Sento-me no sofá e pego uma das caixas, abrindo-a. Meu estômago
ronca de verdade ao ver a lindeza de um risoto bem-feito.
— Como se eu não tivesse te dito que tinha compromissos à beça —
rebate, pondo-se ao meu lado e pegando a sua refeição. Emilien optou por
lasanha.
Dou uma garfada no risoto e pergunto, como quem não quer nada:
— O que são seus compromissos “N” e “P”?
— “N” de não é da sua conta e “P” de pare de vasculhar minha
vida .
Assustada com seu tom rude e mal-educado, paro de comer na mesma
hora. Seu semblante é tão duro quanto sua voz e frase. Levanto-me, deixando
a comida praticamente intocada, e caminho até minha saia, que continua
jogada no meio do seu escritório. Visto-me sem que ele diga uma palavra.
— Você veio aqui só para procurar alguma coisa? — questiona, seu
tom de voz denunciando chateação e raiva.
“Oui” seria a resposta mais verdadeira, mas não posso ser sincera
com ele nesse momento. Bem, ele não é sincero comigo, não tenho obrigação
nenhuma de também ser.
— Non. Eu vim porque realmente queria trepar com você na sua
mesa, Emilien — respondo, odiando ter de mentir assim. — Me desculpe se
mexi na sua agenda, não sabia que era segredo de Estado os seus
compromissos.
O maxilar dele trinca. Seus olhos praticamente faíscam. Ele deixa a
comida de lado e vem até mim, mas me esquivo do seu toque. Ele não vai ser
um estúpido comigo e depois me amansar.
— Acho melhor eu ir para meu apartamento — falo, contornando seu
corpo e caminhando para a porta.
Emilien me segura pelos punhos e me impede de continuar meu
caminho.
— Desculpe minha grosseria. Mas está me irritando essa sua mania de
procurar coisas onde não tem.
— Não estou procurando nada, Emil — respondo, desfazendo-me do
seu toque. — Peguei sua agenda apenas como uma forma de passar o tempo,
não fiz por mal nem por segundas intenções. Mas pelo jeito, até alguns dos
seus compromissos você gosta de manter em segredo. E quer saber? Odeio
isso. Você me conhece como ninguém, eu sempre me abro para você, e não
só no sentido sexual, e em compensação você se fecha cada vez mais.
Ele passa a mão pelos cabelos e suspira.
— Está errada. Você sabe mais de mim do que qualquer outra mulher.
Eu me abri em Loches… Te contei segredos que nem mesmo Nicole sabe.
Mas certas coisas prefiro manter para mim. Por que simplesmente não pode
respeitar isso?
— Se abriu depois de muita pressão! Você nunca me conta nada por
vontade própria. Como agora. O que tem de mais me contar do que se tratam
dois compromissos? Se o fizer, será porque estou aqui te pressionando. Não
vamos funcionar dessa maneira, Emilien. Não posso conviver com um monte
de segredos rondando nosso relacionamento.
— Uma relação é baseada em amor, confiança e respeito. Você parece
que não tem nenhum dos três por mim — diz, entre os dentes, em um tom de
raiva e tristeza.
Sua frase é como um tapa na minha cara. Remoo suas palavras,
sentindo uma dor insana no coração.
— Como você espera que eu ame, respeite e confie em alguém que é
uma incógnita para mim, que mente e me esconde as coisas?
— Por que isso agora? Sempre respeitou meu direito de não te falar
da minha vida, meu passado, meu segredo. Mas agora, depois de Loches,
depois de Marjorie, tudo o que faz é me pressionar, vasculhar e tentar invocar
meus demônios!
— Porque agora somos um casal! — grito, apontando um dedo na sua
cara.
— Sermos um casal não tira o meu direito de ter privacidade! —
Emilien devolve, pegando meu dedo e abaixando minha mão com violência.
Ele afaga o próprio rosto, visivelmente abalado com nossa discussão.
Respiro fundo e fecho os olhos, recuperando o ar e tentando não chorar em
sua frente. Mon Dieu, por que estou agindo dessa maneira, como uma
namorada louca e paranoica? Não sou assim, odeio pessoas assim e odiaria se
os papéis fossem invertidos. Emilien tem razão. Por mais curiosa que eu seja,
mesmo quando era só sexo entre nós, sempre respeitei seu espaço, sua
privacidade, seus segredos…
— Psicólogo — murmura, de repente, ainda cabisbaixo. — É “P” de
psicólogo. Você deve saber que tenho a mente meio fodida por causa da
minha mãe.
— Por que está abreviado?
Ele dá de ombros.
— Era eu mesmo quem marcava minhas consultas. Para evitar que as
funcionárias que tinham acesso à minha agenda soubessem da terapia, eu
colocava apenas um “P”. Acho que é algo particular demais para as pessoas
saberem. Mesmo que agora uma ou duas pessoas saibam que esse
compromisso é com um psicólogo, mantive por hábito.
— E a letra “N”?
Seu rosto toma as mesmas proporções sombrias, a expressão que não
consigo ler.
— É particular…
— Emilien… — suspiro, cansada disso. Não vou insistir. Não vai
resolver pressioná-lo e só colocará mais tensão no nosso namoro. Não quero
isso. Quero viver em paz com ele. Dou um passo à frente e o envolvo em
meus braços. — Tudo bem. Se não quer dizer, não diga.
— Nanterre — confessa, acariciando meus cabelos. — Tenho uma
reunião lá amanhã. Estou estudando algumas instituições para manter.
Penso em perguntar por que está abreviado, mas desisto. Desisto
porque sei que ele está mentindo. Toda semana ele tem reunião em Nanterre?
Desde a sua volta? Não é possível que seja isso. Tem alguma coisa lá… e ele
está me escondendo. Por sorte, memorizei o horário desse seu compromisso e
sei exatamente o que fazer para descobrir o que ele de fato fará na comuna.
Eu vou segui-lo.
“Talvez seja hora de inverter os papéis, chéri. Você pode não saber
meu número de manequim, nem ter ideia do que me comprar. Eu não te culpo
nem te julgo por isso. Realmente não me importo. Mas eu já dedilhei tantas
vezes o seu corpo, já vesti tantas camisas suas, já te observei atentamente por
tanto tempo, que fica fácil saber o que cairá perfeitamente em você. Também
conheço seu gosto: confortável, sofisticado, que transmita mistério,
elegância, ao mesmo tempo que te deixe gostoso e irresistível. Exatamente o
que tem nessa caixa. Faço questão que você seja o homem mais bonito e
bem-vestido desse jantar, embora eu pretenda arrancar sua roupa quando
chegarmos na suíte. Te esperarei no saguão. Ansiosa para te ver, mon joli.”
Deixo o bilhete de lado e pego o smoking de dentro da caixa. É um
conjunto de três peças, todo preto — da calça à gravata-borboleta.
Surpreendo-me pelo fato de ela realmente ter acertado meu manequim. Não é
nada sob medida como meus ternos habituais, mas me servirá com perfeição.
Tomo um banho longo e faço a barba. Frente ao espelho, ajeito minha gravata
e me perfumo. Encaro meu reflexo por um instante, perguntando-me como
Marie estará. Confesso que meu coração bate descompassado para vê-la.
Ao descer até o saguão do hotel, procuro-a rapidamente e a encontro
com facilidade. Minha respiração falha quase na mesma hora.
Inconscientemente, até paro de caminhar, sendo arrebatado pela beleza dela.
Ela usa um vestido longo e vermelho de costas trançadas, muito justo, de
corte reto, que realça sua cintura e todas as suas curvas sublimes; o decote
profundo até perto do umbigo deixa à mostra os seios pequenos; a fenda nada
discreta na perna direita semeia minha imaginação: tudo o que quero é me
enterrar nela.
Com um sorriso sexy, fatal e convencido ela caminha em minha
direção, triunfal, arrebatadora, que faz todo meu mundo parar de girar. Meu
coração erra umas vinte batidas e paro de respirar por alguns segundos sem
nem perceber. Enquanto vem até mim, termino de avaliar sua beleza
encantadora: olhos esfumados em preto e marrom, cílios alongados, lábios
pintados fortemente de vinho. Os cabelos estão presos de lado, lisos até a
metade e cacheados na outra metade, que cai por cima do ombro esquerdo.
Quando chega até mim, apoio ambas as mãos em sua cintura
enquanto ela me abraça pela nuca.
— Gostoso — diz, saliente, observando-me de cima a baixo. —
Como eu achei que ficaria.
Abro um sorriso pequeno e deixo um beijo suave no seu rosto. Desvio
os lábios lentamente até o lóbulo da sua orelha, minha mão deslizando até sua
cintura, no ponto onde sei que provoca arrepios por todo seu corpo, e
murmuro:
— Exuberante sem nem fazer esforço. Ah, Marie… — exclamo,
sentindo uma pontada insólita no peito. Parece algo como medo e aflição. —
Você com toda certeza será a mulher mais linda desse jantar e preciso
admitir: estou com um ciúme descabido e irracional.
Beijando suavemente minha boca, ela murmura:
— Não importa quantos homens me olhem ou quantos me desejem.
No final da noite, acabarei na sua cama, com você entre minhas pernas,
porque você é o único com quem realmente me importo. — Sua mão macia
me acaricia no rosto, em movimentos brandos e suaves.
Eu não poderia ter me apaixonado por ninguém mais a não ser por
ela.
Minha campainha toca mais à noite, mas tudo que quero é continuar
enfurnado no meu escritório, usando o trabalho como uma válvula de escape
para esquecer o desastre que foi o dia de hoje e que, muito provavelmente,
perdi a mulher da minha vida, a mulher que amo, para sempre.
Como achei que perderia.
Massageio minha têmpora e ignoro o primeiro toque. Só há duas
pessoas nesse mundo que podem subir à minha cobertura sem serem
anunciadas: Marie ou Nicole. Duvido muito que seja a primeira opção, e a
última coisa que quero nesse momento é encarar minha irmã mais nova. Não
no estado em que estou: cabelos desgrenhados, cara de quem chorou e
externou toda a raiva por um longo tempo, roupa amassada e semblante
cansado.
Mas a menina é irritantemente persistente e continua afundando o
dedo no maldito botão. Bufo, abaixo a cabeça e tento ignorar mais uma vez.
Um segundo mais tarde, o celular vibra ao meu lado. É uma mensagem dela.
“Emil, sei que está aí dentro. Abra essa porta. Ou vou descer na
portaria e dizer que você está passando mal e vão dar um jeito de
arrombar.”
Não duvidando de que ela realmente seja capaz disto, deixo meu
escritório e a recebo. Nicole olha-me de cima a baixo, sua expressão
complacente e compadecida de mim. Minha irmã se joga nos meus braços,
apertando-me forte. Antes que eu tenha tempo de compreender sua atitude,
sou puxado para dentro e acomodado no sofá, ela logo ao meu lado, olhando-
me com seus olhos suaves e sem julgamento.
— Marie… — começa, umedecendo os lábios e falando com cuidado.
— Eu a procurei para saber se tinham conversado… E ela me contou. Sobre
você, sobre… Désirée. — Nicole balança a cabeça, provavelmente muito
confusa com toda a história.
Sua confusão é natural. Para Nicole — e para a maçante maioria —,
Lacroix sofreu um acidente doméstico e nós nunca tivemos uma relação além
da amizade. Então minha petite soeur me olha de um jeito diferente, um jeito
que não sei explicar, mas não é o modo habitual que me olha: com amor,
carinho e admiração. Meu peito dói. Ela vai me desprezar da mesma maneira
que Marie fez sem nem mesmo me ouvir?
— Vim ouvir o que tem a dizer a respeito disso — diz, para minha
surpresa. Um alívio toma meu corpo dos pés à cabeça.
Inspiro fundo e, olhando para minha irmã, começo a contar tudo
desde o início.
“ Sente falta de tocar no meu corpo como eu sinto falta de ser tocada e de te
tocar?
Quero tanto fazer amor com você. Tenho saudades. Com carinho,
Marie.”
Traidora.
Deixou-me sozinho e foi zanzar por aí com Lorraine. Tudo bem, ela
me convidou para virmos juntos, mas já vim segurando vela o caminho todo.
Não vou competir a atenção de Nicole com a noiva, mas se tivesse me dito
que teria a trazido, eu não viria. Odeio segurar vela.
Caminho por entre a multidão. A mansão Dupont está cheia, cerca de
cem convidados, e me desvio dos corpos como posso, segurando firme uma
taça de champanhe. Encontro alguns conhecidos com quem passo alguns
minutos conversando. Ao menos, me distrai. Como alguns petiscos e bebo
água para me manter hidratado.
Encontro-me com Héron, que me cumprimenta calorosamente e diz
estar feliz por eu ter vindo.
— Você e Marie…? — pergunta, com cuidado.
Apenas balanço a cabeça em negativo e observo ao redor. Desde que
cheguei, ainda não a vi. Sinceramente, não consigo me decidir se isso é bom
ou ruim. Poirier deseja que a gente se entenda e diz torcer pela nossa relação.
Apenas ofereço um sorriso de agradecimento e digo que vou cumprimentar
um outro conhecido que avisto perto dos jardins, o que é uma tremenda
mentira. Faço isso apenas para escapar de um momento meio constrangedor
com meu editor-executivo.
Estou chegando na área externa para inspirar um pouco do ar noturno
quando uma mão firme segura meu punho. Viro-me e me deparo com Nicole
levemente assustada. Meu corpo fica em alerta no mesmo instante.
— Me encontra na suíte principal em cinco minutos? — pede,
completamente alarmada.
— O que aconteceu? — Estou preocupado. Que raios houve para
deixá-la nesse estado?
— Te explico depois. Me encontra na suíte principal em cinco
minutos, por favor! — Seu pedido é quase um grito esganiçado.
— Está bem! — concordo, assustado.
Os próximos cinco minutos são os mais longos da minha vida.
Quando vence o tempo que Nicole impôs, vou ao seu encontro, tentando não
alarmar os convidados. Saio calmamente, apesar de por dentro estar
apavorado, e, quando termino os degraus, corro como um louco pelo corredor
vazio porque essa parte da mansão não está acessível. Entro na suíte em um
rompante, ofegante.
— Nicole?! — chamo-a, a porta batendo atrás de mim, mas um
segundo mais tarde, noto que está tudo quieto e escuro. Acendo as luzes e
vejo o quarto vazio.
Mas que diabos…
A imagem a minha frente me deixa confuso. Há um balde com gelo,
duas taças e champanhe em cima da cama delicadamente arrumada com
lençóis, fronhas e edredons brancos. Há algumas pétalas de rosas espalhadas
pelo local, o ambiente está aromatizado e tem algumas caixas de bombom
junto da bebida.
Estou para virar nos calcanhares e procurar pela minha irmã para que
me explique que porra está acontecendo aqui, mas a porta se abre de novo,
trazendo para dentro uma mulher exclamando:
— O que quer me mostrar, Nicole?
Ela se vira um segundo depois, os olhos arregalando ao me ver.
— Só vão sair daí quando se entenderem — minha irmã fala, enfiando
a cabeça por entre a fresta da porta um instante antes de fechá-la. Ouço a
chave virar na fechadura. — Tem camisinha na gaveta do criado-mudo, caso
precisem — informa, sua voz saindo abafada e seguida de uma risadinha.
Levo um bocado de tempo para notar que Nicole nos prendeu dentro
do quarto. Quando noto, corro até a porta e a testo, batendo contra a madeira
e chamando-a para que venha aqui agora mesmo!
Marie se junta a mim para chamar pela desgraçada da minha irmã,
mas é igual a nada. Estamos mesmo presos um com o outro aqui dentro.
Engulo em seco e me distancio alguns passos. Ao me virar para ela, o ar para
de circular nos meus pulmões. Ela está exuberante em um vestido preto e
longo. Toda a parte de cima é feita em renda e tule, em uma trama intricada
de fios cor de areia que descem pelas laterais da sua coxa até quase o meio da
vestimenta. Nas barras, a renda no mesmo tom de areia adorna a calda de
sereia.
— Não tenho nada a ver com isso — Marie se defende, encostando-se
na porta.
Acho engraçado seu posicionamento.
— Eu sei. Isso tudo é muito a cara da Nicole — falo, virando-me para
a champanhe. Estouro a garrafa e sirvo duas taças. Entrego uma a Marie. Ela
resiste um pouco, mas aceita.
— Isso não era para abrirmos caso nos resolvêssemos? — pergunta.
Dou de ombros e me sento na cama, pegando uma pétala de rosa e rindo
baixinho. Mon Dieu, em que momento Nicole foi promovida a cupido
reconciliador?
— Era — respondo, abrindo a caixa de bombons. Pego um e entrego
para Marie. Ela balança a cabeça em negativo, se aproxima, pega o chocolate
e se senta do meu lado. — Aliás, gostei da foto de hoje — murmuro, virando-
me lentamente em sua direção.
Seus olhos tomam um brilho diferente após dizer isso.
— Não sou tão talentosa quanto você, mas o importante é a intenção,
não é?
Não respondo, mas admito mentalmente que a imagem ficou boa.
Minutos inteiros se passam e nos mantemos em silêncio, tomando a
champanhe e comendo o bombom. De repente, ela me toca na mão,
chamando minha atenção. Olho-a, sentindo todo o meu interior estremecer
com esse contato. Ela faz tanta falta nos meus dias, na minha cama, na minha
vida.
— Desculpe — pede com um murmuro e segue acariciando-me. —
Mas estou com saudades da sua pele… do seu calor, do seu toque… — Como
se percebesse que está cometendo um erro, cessa o contato rapidamente e
desvia o olhar.
Guiado pelo meu instinto mais primitivo, ergo a mão direita e acaricio
seu pescoço. O toque envia uma onda de excitação extrema para entre minhas
pernas, principalmente quando ela geme baixinho e suspira, fechando os
olhos. Resvalo meus dedos para de encontro a sua nuca e a puxo para perto
da minha boca, esquecendo-me da minha mágoa e dos nossos
desentendimentos.
Meu coração bate acelerado e minha respiração falha quando Marie
abre os olhos e separa ligeiramente os lábios, como se aspirasse um beijo
meu. Falta tão pouco para eu ceder, para esquecer completamente de todo
mal que nos rondou, deitá-la nessa cama, montar em seus quadris e amá-la do
jeito que nós dois merecemos.
— Jure para mim — peço, vencendo vagarosamente a pequena
distância de nossas bocas. — Jure que não me procurou só porque descobriu
que nunca fui uma pessoa ruim.
Ela resfolega.
— Je jure, Emilien — responde, seus olhos deslizando para minha
boca. — Quando te mandei a mensagem te convidando para um café, já tinha
intenção de nos entendermos. Eu ainda não sabia… Sua mãe apareceu meia
hora depois e me contou. — Marie pisca algumas vezes, evitando as
lágrimas. — S’il te plaît, crois moi et pardonne moi. — “Por favor, acredite
em mim e me perdoe”.
Estou tão cansado. Cansado mesmo. Passamos por muita coisa juntos.
Levei algum tempo para reconquistá-la, depois de nos assumirmos mamãe
nos infernizou, tinha o meu “segredo”, a pressão dela de querer que eu me
abrisse, o que nos levou a rompermos com menos de um mês de namoro. Por
fim, íamos nos entender e tudo pareceu desandar novamente. Neste momento,
tudo está esclarecido. Meu segredo que nunca foi meu já não é uma ameaça,
nem minha mãe, nem Marjorie, nem ninguém. O único que está ameaçando
minha felicidade ao lado dessa mulher sou eu mesmo, sendo teimoso e
orgulhoso. Ela me perdoou meses atrás depois que a magoei. Por que não
posso fazer o mesmo? Por que não esquecer o passado, todas as nossas
desavenças, as mágoas, a falta de confiança? Por que não simplesmente
recomeçar? Sem segredos sombrios, sem mãe narcisista nos atrapalhando. Eu
lutei por ela quando havia pedras no caminho, vou mesmo desistir justo
agora, depois que a tempestade já passou?
— Je te pardonne — murmuro em sua boca e a tomo em um beijo
forte, repleto de desejo, saudade e amor.
Imediatamente, ela me agarra pela nuca, puxando-me mais para si,
num ato completamente desesperado. Deixo nossas taças de champanhe
sobre o criado-mudo e volto para seus lábios. Fico em pé e a trago junto,
colocando suas costas no meu peito.
— Je t’aime — diz quando coloco seu cabelo de lado e desço o zíper
escondido pela costura até na altura da sua cintura. Abaixo uma alça e depois
a outra, até despi-la e a peça cair aos seus pés.
— Je t’aime — respondo, depositando um beijo no seu ombro. Marie
geme ao meu toque, que sobe para seu pescoço e a provoca ali. Encosto
minha ereção na sua bunda, minhas mãos abraçando seus seios e meus lábios
dedicando-se a deixar uma trilha de beijos por todo o seu pescoço e ombros.
— Eu te amo e vou te amar sempre.
Ela se vira para mim e sorri, abraçando-me em seguida e escondendo
o rosto contra meu tórax. Marie inspira meu cheiro profundamente antes de
se afastar e começar a tirar minha roupa. Quando estou só de cueca, eu a
deito na cama, as pétalas grudando no seu corpo. Ajoelho-me no colchão e
abro bem suas pernas, admirando seu sexo debaixo da calcinha preta. Meu
pau lateja tanto que chega a doer. Como senti falta de me enterrar nela…
Toco sua boceta por cima do tecido, e ela se contorce e geme, separando mais
as pernas.
— Vamos mesmo trepar aqui, quando há uma festa de gala lá
embaixo?
— Chérie — respondo, abaixando sua calcinha até nos calcanhares
—, estou tão louco de saudade de você que te comeria inclusive na frente
daquelas pessoas.
Ela dá uma risadinha e morde o lábio inferior. Não cesso nosso
contato visual quando direciono minha boca até sua boceta e a sugo sem
delicadeza, passando a língua por toda sua extensão e dando uma atenção
merecida no seu feixe de nervos tanto com meu polegar quanto com a boca.
Marie se afunda no colchão e agarra meus cabelos, apertando minhas
têmporas com os joelhos.
— Eu morreria sem me esquecer do gosto da sua boceta, ma belle —
cicio, colocando um dedo dentro dela. — Sempre tão molhada, tão saborosa,
tão fácil para receber meu pau.
— Emilien… — implora, contorcendo-se cada vez mais. — Te quero
tanto.
Sorrio pelo canto da boca quando uma ideia surge na minha cabeça.
Trago-a para mim e a levo até o banheiro. Nós dois expressamos surpresa ao
notarmos algumas velas acesas espalhadas no ambiente, sais de banho,
roupões, toalhas e bombons sobre a bancada da pia.
Marie me mostra um óleo lubrificante para sexo anal que Nicole
deixou aqui. Dou uma risada exagerada, perguntando-me se minha irmã
realmente existe. Isso chega a ser constrangedor.
— Deveríamos usar — sugere, passando a língua pelo lábio inferior e
derramando um pouco por entre seus seios. Sua pele de ébano brilha na
mesma hora, fazendo meu cacete ficar ainda mais duro.
Meio desesperado, me aproximo e a beijo, escorregando meu dedo
pelo rastro do óleo até chegar à sua entrada e penetrá-la novamente. Um
gemido preenche minha garganta.
— Entre na banheira — ordeno.
— Está vazia — constata.
— Por enquanto. — E sorrio. Ela faz o que eu mando. Coloco suas
pernas uma em cada lado da borda da banheira que fica no meio do ambiente,
os pés pendidos no lado de fora, deixando-a toda exposta. — Puta que pariu.
Que visão esplêndida a de você aberta para mim, ma jolie.
Marie fecha os olhos e geme ao som das minhas palavras sujas.
Sento-me na borda, mantendo-me fora, e pego a ducha de mão. Ela me olha
quando aciono o jato quente e molho seus pés. Meus olhos não desgrudam
dos seus enquanto vou subindo o esguicho vagarosamente. Ela geme e
resfolega de um modo alucinante, já conhecendo minhas pretensões. Quando
a água atinge seu clitóris sensível, solta um grito escandaloso, suas pernas
abertas tremem e a cabeça vai para trás. Para intensificar o prazer, coloco
dois dedos dentro dela e a fodo assim. Agarrando-se com firmeza às bordas
da banheira, seus gemidos são adoráveis e deliciosos. Porra, estou quase
batendo uma e gozando só de ver essa imagem maravilhosa.
— Emil… — geme meu nome de novo, os quadris dando leves
solavancos causados pelo prazer da ducha no seu ponto sensível e meus
dedos a comendo. — Isso… oh, sim. Você é tão gostoso. — Então,
exatamente um minuto mais tarde, ela goza. Eu deveria ter eternizado seu
rosto neste momento com uma fotografia maravilhosa. Talvez eu o faça em
uma outra ocasião.
Acaricio sua boceta suavemente e beijo sua boca com a mesma
intensidade enquanto se recupera do orgasmo.
— Fique em pé na outra ponta — pede, ainda ofegante.
Ergo uma sobrancelha, curioso com sua sentença, e a atendo.
Mudando de posição, vem para mim, de quatro. Sem que eu espere, ela me
põe todo em sua boca, indo até o fundo da garganta e voltando em uma
sucção perfeita.
— Porra. — O gemido escapa de mim, incontrolável e alto.
Ela me chupa forte, passando a língua em círculos pela cabeça do meu
pau e depois lambendo-me como se eu fosse um picolé. Aperto os olhos e
tento me segurar para não esporrar agora mesmo. Marie se deita na banheira e
joga a cabeça toda para trás, olhando-me de ponta-cabeça. Caralho. Só a
imagem me deixa ainda mais duro. E, assim, eu me aproximo e fodo sua boca
de novo, conseguindo alcançar um ponto na sua garganta que achei ser
impossível. Movo-me devagar para não a engasgar, gemendo entrecortado
conforme sou engolido por essa boca gulosa. Marie abre as pernas de novo,
colocando-as da mesma maneira que as dispus antes; a posição me permite
receber um boquete e tocar seu clitóris ao mesmo tempo.
Decido que preciso fodê-la. Saio de dentro da sua boca e ponho a
banheira para encher. Jogo alguns sais de banho e sabonete líquido na água
ao passo que ela me olha atentamente, de um jeito bem safado, enquanto a
água vai ganhando níveis. Minha imaginação já idealiza essa mulher de
quatro, água e sabão rodeando sua cintura e espirrando para o piso porque a
como com força. Enquanto esperamos, ela se toca e eu bato uma, um
gemendo para o outro. Finalmente, posso imergir na água e colocá-la de
joelhos.
Encaixo meu pau na entrada da sua boceta e me preparo antes de
penetrá-la. Quando me sinto dentro dela de novo depois de tanto tempo, a
sensação é a mesma de ter ido para o Céu. Aperto sua cintura e me movo
devagar, ainda assimilando que estou comendo essa mulher de novo, que vou
comer para o resto dos meus dias.
— Casa comigo — peço, aumentando o ritmo. Fico ainda mais duro
quando a imagem que idealizei segundos atrás se forma: Marie de quatro para
mim, toda molhada e ensaboada. Puta merda de tesão do caralho. Não escuto
sua resposta, concentro-me apenas em foder rápido e com força. — Porra,
Marie, casa comigo!
Em um segundo, não sei como, estou subjugado, debaixo dela. Ela se
senta com força no meu pau e me tira o fôlego.
— Eu caso — responde, subindo e descendo em uma cavalgada
intensa. Esticando os braços, pega o óleo lubrificante na pia ao lado, se
levanta, deixando-me frustrado e de pernas moles, e joga pelo corpo,
começando no colo. Inclinando-se para frente, espalha o produto nas costas e
na bunda. Perco o ar só de pensar que ela vai… Não consigo terminar de
raciocinar. Vagarosamente, ela já está encaixando-me na sua entrada apertada
que nunca tive acesso até hoje.
Meus dentes rangem de prazer, meu pau dói de tão duro que estou.
Aos poucos, Marie me acomoda dentro dela e sobe e desce em mim bem
lentamente, gemendo de forma despudorada ao passo que se acostuma
comigo.
— Se estiver doendo… — começo a avisar.
— Não está… — responde, aumentando a velocidade da cavalgada.
— Na verdade… Está muito bom. Está tão… — Fecha os olhos e morde o
lábio. — Me come, Emil…
Meu polegar voa para seu clitóris e o toco furiosamente enquanto bato
meu quadril contra o dela. O som dos nossos gemidos em uníssono é a
sinfonia mais linda que ouvi na vida. Cinco minutos depois, nós dois
gozamos juntos, nossos corpos trêmulos, as vozes esganiçadas, os gritos altos
de prazer, nossa conexão esplêndida, o orgasmo estupendo rasgando-nos de
ponta a ponta.
É tão bom gozar com ela.
Marie se deita sobre meu tórax, recuperando o fôlego. Abraço-a forte
contra mim e deixo um beijo cândido no seu rosto molhado. Ficamos assim
por minutos inteiros, curtindo a água quente e a presença um do outro.
Nicole seja louvada.
MARIE
— A água está esfriando — Emil sussurra ao pé do meu ouvido, seus
braços fortes contornando minha cintura. Sorrio e deito minha cabeça no seu
tórax, querendo ficar mais um pouquinho assim com ele. Passamos algumas
semanas separados, mas finalmente nos entendemos.
Devemos muito isso a Nicole. Apesar da sua boa intenção, vou
agradecê-la e ao mesmo tempo adverti-la. Onde já se viu me deixar presa
com seu irmão em um quarto todo romanticamente arrumado?
— Será que notaram nossa falta? — pergunto, referindo-me aos
convidados do coquetel de lançamento, lá embaixo.
Emilien beija atrás da minha orelha.
— Provavelmente.
Rimos juntos ao imaginar o constrangimento que será nos reunirmos
novamente na festa depois de mais de uma hora “sumidos”. Levanto-me, a
água esparramando pelo piso do banheiro, e me enrolo em um dos roupões.
Entrego outro a Emilien, que faz o mesmo. No quarto, nos servimos de mais
uma taça de champanhe e comemos o restante dos bombons. Ligo a televisão
para fazer algum barulho enquanto nos vestimos novamente para voltarmos
para a festa.
Uma programação qualquer é interrompida por um plantão de
notícias.
— Emilien — chamo-o, assustada. Ele está no banheiro fazendo sabe-
se lá o quê. — Venha ver!
Ele aparece um segundo depois com uma toalha secando os cabelos.
Aponto para a televisão. O repórter noticia uma catástrofe natural em
Moçambique, em várias partes do país, mas o foco é na cidade de Beira, que
foi a mais atingida, enquanto um helicóptero sobrevoa o local e filma
imagens estarrecedoras de como a cidade ficou após a passagem de um
ciclone horas antes.
— Mon Dieu! — exclama, aproximando-se e aumentando o som da
televisão.
Cinco minutos depois, quando a reportagem acaba, afirmando sobre a
situação crítica da cidade, Emilien pega o celular e faz uma ligação pedindo
para prepararem um jatinho particular para a meia-noite. Ao desligar, penso
em perguntar para que ele quer um jatinho, mas não tenho tempo, pois
profere:
— Arrume as malas e depressa.
— Para onde vamos? — pergunto, vendo-o terminar de se vestir
rapidamente.
Ele me olha por um breve instante e responde:
— Ajudar aquelas pessoas o tanto quanto pudermos.
FIM
PIERRE
Meu celular vibra dentro do meu bolso pela vigésima vez no dia, que
mal começou. Forço um sorriso para a paciente — uma menina de dezessete
anos, grávida — e prescrevo a medicação, tentando ignorar o maldito
telefone. Mesmo se pudesse, não atenderia.
— Não sei como vou contar isso à minha mãe — a adolescente diz,
enquanto assino a prescrição. — Quando ela chegar aqui, provavelmente
serei uma adolescente morta. Por que teve que ligar para ela, docteur
Laurent? — pergunta em tom magoado, como se o que fiz fosse o maior erro
da face da Terra.
— Você chegou sozinha essa madrugada, com dores de parto aos seis
meses de gestação, é menor de idade e seus pais não sabem da sua gravidez.
É o procedimento do hospital, Hellene — explico-me, arrancando a receita
médica e a entregando. — Terá alta assim que sua mãe chegar. Uma
enfermeira irá me avisar, e vamos conversar com ela, eu e você, juntos. Se for
preciso, terão acompanhamento de uma assistente social. — Aproximo-me da
menina, acariciando seus cabelos morenos. Sorrio e praguejo pelo celular que
torna a tocar. — Vai ficar tudo bem.
Hellene acena em positivo, apesar da expressão contrariada.
Saco o celular do meu bolso, irritado de como vibra. O nome pisca
insistentemente na tela. Suspiro e deslizo o dedo pelo botão vermelho,
ignorando sua chamada. A última coisa de que preciso é de ser atazanado no
meu plantão. Caminho rapidamente até as salas de descanso e agradeço por
encontrar uma vazia. Preciso de um cochilo. Fecho a porta e me recosto na
madeira, afagando o rosto. O maldito volta a tocar. Irado, arranco a bateria e
o jogo na mesinha de cabeceira do beliche. No meio da escuridão, consigo
ouvir meu coração descompassado, minha respiração ruidosa. O plantão que
já está virando quarenta e oito horas cobra seu preço sobre meu corpo e
mente. Nunca mais prometo cobrir turnos que não são meus.
Só mais algumas horas, Pierre, penso comigo, e poderá ir embora.
Deito-me na cama debaixo, debruço, agradecendo o momento que
posso fechar meus olhos. Meu cochilo não dura muito. O bip no meu bolso
me chama ao dever. Levanto-me rapidamente e saio da salinha, encontrando-
me com uma enfermeira.
— Emergência chegando, doutor Laurent — informa, andando
rapidamente.
— Não estou cobrindo a emergência — rebato, meio mal-humorado. —
É Menard quem está lá.
— O plantão dela acabou há meia hora, mas o plantonista da vez ainda
não chegou.
Tento me recordar quem está na escala. Morin. Sempre ele. Ainda não
sei por que a administração não o afastou de suas funções. Sempre chega
atrasado e deixa os plantões pela metade para trepar com enfermeiras ou
internas.
— Qual o caso? — pergunto, querendo me esquecer do irresponsável.
A enfermeira olha a prancheta em suas mãos, enquanto paro no
corredor para vestir luvas, máscara e vestimenta adequada.
— Juliette Gautier, vinte e oito anos. Foi encontrada espancada atrás de
uma cafeteria. Os paramédicos encontraram entre os pertences dela um
exame de farmácia. Positivo. Está grávida de oito semanas.
Olho imediatamente para a enfermeira, assustado com a informação.
Não tenho tempo de questionar se o que ouvi é realmente que uma mulher
grávida foi espancada, pois os paramédicos que a socorreram entram
correndo, empurrando-a na maca.
Decido esquecer isso por ora e vou em direção à paciente, recebendo
todas as informações da moça: idade, gênero, pressão arterial, batimentos
cardíacos, principais pontos onde foi machucada e sua situação de gestante,
enquanto a minha equipe troca de lugar com os paramédicos.
Arrasto a maca, empregando certa velocidade, pois cada segundo é de
extrema importância para salvarmos a paciente. A moça tem hematomas por
todo corpo, principalmente no rosto, que está bem inchado, em especial a
face direita.
— Vamos para a ressonância magnética. Chamem o neurologista de
plantão! — ordeno, virando a maca em uma curva à esquerda. Internos,
médicos, residentes e enfermeiras vão abrindo caminho conforme avanço.
Ao olhar para baixo, vejo-a recobrando a consciência. Seus olhos
machucados e castanhos estão abatidos e confusos. Muito provavelmente está
perdida com tudo o que está acontecendo. Ela me olha fixamente,
provocando algo inexplicável dentro de mim. Parece tentar dizer alguma
coisa, mas os tubos que a auxiliam na respiração não permitem. Um
movimento débil dos seus dedos chama minha atenção. A moça está tentando
dizer alguma coisa. Por algum motivo, sorrio para ela e seguro sua mão, o
que a faz olhar para meu toque.
— Está tudo bem — acalento-a e só então me dou conta de que posso
simplesmente estar dando esperanças falsas a essa mulher. Ainda assim,
entendo o seu questionamento, a preocupação nos seus traços feridos. — Os
paramédicos encontraram um exame de farmácia na sua bolsa — falo, para
que saiba que faremos o possível por ela e pelo seu filho. — Vamos cuidar
muito bem de você e do seu bebê. Tudo bem?
Com dificuldade, ela acena em positivo.
— Doutor Pierre, os batimentos cardíacos dela estão caindo — uma das
enfermeiras diz.
Cravo meus olhos nela, que tornou a ficar inconsciente, enquanto ainda
corremos loucamente pelos corredores até a ressonância magnética.
Pergunto-me o que justificaria uma ação tão bárbara contra uma mulher, uma
mulher grávida. A enfermeira me chama de novo, informando-me o mesmo.
Passado o horror do momento, de atender uma paciente nessas condições,
volto ao meu modo normal e ministro uma medicação para regular seus
batimentos cardíacos.
JULIETTE
Cometi um erro terrível.
Só me dou conta disso quando rolo na cama e sinto seu corpo
masculino quente e nu roçar no meu. Abro os olhos e me deparo com ele já
acordado, a cabeça apoiada na mão direita, olhando-me com um leve sorriso.
Seus cabelos curtos e volumosos estão bem bagunçados, os olhos ainda
inchados de sono. Não posso negar que Antony Leclerc é um homem bonito,
com uma beleza particular. Os fios pretos têm alguns brancos, denunciando
que beira os quarenta anos.
Mas é um homem casado.
Meu Deus! Dormi com um homem casado.
Devo expressar algum tipo de arrependimento, porque ele franze as
grossas sobrancelhas e estica um indicador longo para me afagar a bochecha.
— Imagino o que está pensando — sussurra, sem deixar sua carícia no
meu rosto.
Pisco algumas vezes, ainda absorvendo essa situação toda. Um
sentimento insólito se instala no meu coração; não sei se é arrependimento ou
repulsa de mim mesma. Deve ser repulsa. Eu me deixei ser seduzida por ele,
pelo seu sorriso contagiante, pelas vezes em que apareceu na cafeteria,
transtornado, cheio de olheiras e cansado, dizendo que não aguentava mais o
casamento fracassado.
Eu o conheço já tem algum tempo. É um frequentador assíduo da
Avenue Coffee, a cafeteria que gerencio. Nossa “relação” sempre foi
estritamente profissional. Até alguns meses atrás, ainda o chamava pelo
sobrenome. Depois, pegamos algum nível de intimidade, o que é natural
quando se cria um vínculo de amizade com um cliente regular.
Certa noite, ele apareceu quando já estávamos fechando. Eu me
desatentei da planilha do caixa e ergui os olhos para me deparar com um
Antony abalado, de olhos abatidos, cabelos bagunçados e gravata
desgrenhada. Não parecia bêbado, apenas… perturbado. Ele se debruçou
sobre o balcão e me olhou com alguma súplica, como se estivesse pedindo
desculpas pela sua situação.
— Precisa de alguma coisa, Antony? — perguntei, preocupada.
Com um suspiro agoniado, lançou um olhar a uma das funcionárias que
fazia a higienização da máquina de expresso.
— Ficaria muito brava comigo se te pedisse um café? — E forçou um
sorriso. — Preciso mesmo de uma dose de cafeína.
Virei-me para a menina e a dispensei, juntamente dos demais
funcionários que ainda estavam ali. Quando saíram, fechei as portas duplas,
tranquei-as e coloquei a plaquinha de “fechado”. Voltei para atrás do balcão e
preparei o café dele. Servi-o e o observei sorvar lentamente a bebida quente.
— O que aconteceu? — Quis saber.
Antony deu outro suspiro agoniado.
— Discuti com minha esposa. É meu casamento. — Sua voz tinha o
tom de quem queria muito desabafar. — Estou infeliz nele, entende?
“Não, não entendo”, quis responder, “porque sou solteira”. Ao invés
disso, aconselhei:
— Por que não pede o divórcio? — Parecia o mais óbvio.
O homem balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Não é tão simples. Por ora, não posso pedir o divórcio.
Pensei em perguntar o porquê, mas Antony não deixou. Continuou
desabafando suas mágoas comigo, fazendo-me estender meu horário até mais
do que realmente estava acostumada. Falou-me coisas terríveis sobre a
esposa, sobre o ciúme exagerado dela, as histerias, as humilhações. Nem me
dei conta de como fiquei horrorizada com a imagem ruim que ele pintou da
mulher.
Ao final, tomou o resto do seu café, já frio, se levantou, pagou o
consumo e me deu vinte euros de gorjeta.
— Obrigado por ter me ouvido — disse, já na porta, virando-se para
mim, que o acompanhei para destrancá-la. — E desculpe pelo desabafo.
Precisava falar com alguém e você é a única amiga que tenho.
Abri um pequeno sorriso, estranhamente feliz pela sua confiança em
mim. É claro que Antony tem outros amigos. Ele vive vindo aqui com um
político e um jovem investidor. Talvez só precisasse que outro tipo de pessoa
o ouvisse. Foi o que fiz. Apenas ouvi, sem ousar aconselhá-lo novamente a se
separar depois da sua primeira negativa. Era um homem adulto, sabia o que
está fazendo. Além do mais, ainda não conhecia os motivos por não poder se
separar dela. Então, apenas ofereci meu ombro amigo e disse a mentira
universal que qualquer outra pessoa no meu lugar teria dito: “vai ficar tudo
bem”. Provavelmente não ia ficar tudo bem, mas era tudo o que tinha a
oferecer naquela noite.
Dias depois, Antony tornou a me procurar, trazendo-me um colar
simples, mas muito bonito, em sinal de agradecimento por tê-lo ouvido
algumas noites antes. Na hora, achei inadequado demais. Perguntei se tinha
se acertado com a esposa; ele me disse que não, que continuavam discutindo
com frequência.
Os dias foram passando, e Antony e eu fazíamos contato frequente. Ele
me enviava mensagens simples — bonjour, bonsoir, ou perguntava como
tinha sido meu dia. Por vezes, conversávamos sobre a situação do seu
casamento, o homem cada vez mais infeliz por ter se submetido a uma
relação que foi somente para agradar seu pai e seu sogro. Sem perceber, fui
criando uma simpatia, uma empatia muito forte por ele. Com a mesma
frequência, me enviava presentes singelos, principalmente depois que eu o
ouvia e tentava lhe dar algum conselho.
Ontem à noite, ele disse que está apaixonado por mim. Eu já o vi sofrer
tanto em um casamento falido, com uma mulher que, claramente, não dá o
devido valor ao homem ao seu lado, que pensei que ele merece uma pessoa
melhor. Movida por um sentimento incompreensível, eu o beijei.
E acabamos aqui.
Nossa primeira noite juntos.
Dormi com um homem casado.
— Você não está assustado com o que fizemos? — indago, puxando
mais o lençol para cobrir meu corpo.
Ele move a cabeça em negativo.
— Não. O que fizemos não foi errado. Foi para você?
— Você é casado, Antony.
— Com uma mulher que nunca me amou — aponta. — Com uma
mulher que já me magoou mais vezes do que sou capaz de contar.
Suspiro e viro na cama, pesando suas palavras. Se está tão infeliz, por
que simplesmente não se divorcia? Mesmo que seu casamento esteja em
crise, ainda assim não acho correto o que fizemos. Pretendo não repetir.
Pareço balbuciar na minha decisão quando ele sobe sua mão quente
pela minha pele e me acaricia entre os seios, em um movimento suave e
delicado. Odeio admitir, mas me agrado com a carícia, ainda mais quando
Antony move seus lábios na pele do meu pescoço subindo para o lóbulo da
minha orelha e beijando-me num lugarzinho ali atrás que ele já sabe ser meu
ponto mais fraco, o que me causa um arrepio na coluna.
— Tenho que ir trabalhar. — Tento dizer, mas mais gemo do que digo.
Carinhoso, ele roça seu nariz no meu pescoço e cola mais seu corpo no
meu.
— Fica só mais cinco minutos comigo.
— Abro a cafeteria de Dousseau, Antony… — rebato, fazendo algum
esforço para escapar da sua pegada. A verdade é que, por mais errado que
seja, quero continuar enrolada nos lençóis com ele, talvez transarmos mais
uma vez. Ele desperta algo bom em mim, diferente. É sempre todo gentil e
carinhoso, algo que foi difícil encontrar nos meus relacionamentos passados.
Ele se afasta, parecendo contrariado, mas não bravo. Levanta-se, pega
sua roupa jogada no chão e começa a se vestir. Faço o mesmo. Quando já
estamos vestidos, ele vem até mim e coloca uma mecha do meu cabelo atrás
da orelha, sorrindo.
— Se eu deixasse minha mulher para ficar com você…
Não espero nem mesmo que termine sua frase; já estou assustada
colocando um indicador nos seus lábios.
— Não, por favor. Isso não vai mais se repetir.
Uma sombra de tristeza trespassa seus olhos. Cabisbaixo, diz:
— Eu não a amo. Meu casamento está falido há muito tempo. —
Erguendo seus olhos em direção aos meus, completa: — Amo você, Juliette.
— A declaração me pega desprevenida. — Dê uma chance para nós — pede,
colando sua boca delicadamente na minha. — Eu só quero… ser feliz,
entende? Sei que posso ser com você ao meu lado.
— Antony… podemos conversar sobre isso depois? Estou atrasada para
o meu turno — desconverso. Não quero ter de pensar nisso agora. Não quero
ter de lidar com ele nesse momento.
— Posso te ver hoje à noite, então? — indaga, seus olhos brilhando
meio esperançosos. — Para conversarmos?
Droga! Não era para este rumo que eu queria levar nossa conversa.
— Tudo bem — cedo, repreendendo-me em pensamento logo em
seguida.
Sorrindo, Antony deixa um beijo casto no canto da minha boca, se
despede e volta para sua vida. Sua vida de casado.
Rapidamente, pego meu celular do bolso e envio uma mensagem para a
única pessoa com quem posso confidenciar isso.
Bato na porta antes de entrar. Ela está na cama, comendo alguma coisa.
Olho no relógio. É quase meio-dia. Parece tanto tempo, mas só faz algumas
horas que ela chegou aqui.
— Salut — cumprimento-a, mantendo-me a uma distância respeitável.
Juliette me dá outro dos seus sorrisos fúnebres. — Não queria ter te
incomodado. Quando terminar… chame uma enfermeira para fazermos o
ultrassom.
Seu rosto machucado parece se iluminar com a menção.
— Mas termine primeiro — digo, vendo-a afastar o prato.
— Já estou satisfeita — diz baixinho. — Quero ver meu filho, doutor
Laurent. Só quero… ver meu bebê — murmura, passando a mão pela barriga.
Dou um passo adiante e a ajudo a se levantar.
— A sala não é muito longe — informo.
Ela responde apenas com um mover de cabeça e caminha ao meu lado.
Quando chegamos, peço para que vista uma roupa mais adequada para o
exame e depois ajudo-a a se deitar, ela o tempo todo em silêncio. Não sei se é
uma mulher de poucas palavras ou se está assim por causa de todos os
recentes acontecimentos. Pego-me curioso para saber mais dela, não só do
que aconteceu, mas tudo. Seus gostos, sua cor favorita, com o que trabalha,
onde mora…
Fico introspectivo nos meus próprios pensamentos enquanto preparo o
ultrassom.
— Relaxe, tudo bem? — peço. — Vai se sentir um pouco incomodada
no começo, mas logo passa.
Juliette acena e cora levemente quando ergo um pouco sua vestimenta e
introduzo o transvaginal. Sinto-a se retesar com o contato e me apresso em
confortá-la, dizendo que está tudo bem, baixando novamente sua vestimenta
e olhando-a, mas ela não me olha de volta, sua atenção presa na tela ao seu
lado.
Um minuto depois, tenho a imagem perfeita. Na tela, está seu tempo
gestacional, previsão do parto e informações do feto, como tamanho e peso.
Com o mouse, vou detalhando o exame.
— Nessa fase — explico, mantendo meu tom de voz baixo. Juliette
ainda não me olha, concentrada na imagem em preto e branco — seu bebê é
um feto, muito pequeno. Ele tem apenas vinte milímetros. O peso… não
passa de um grama.
— Tão pequeno — murmura, ainda sem me olhar.
— Oui. E aqui… — Estico a mão livre e ajusto o doppler. As batidas
rápidas do coraçãozinho preenchem a sala à meia-luz. — Os batimentos
cardíacos do seu bebê.
Vejo os olhos dela se encherem de lágrimas novamente. Os dedos ao
lado do corpo mexem-se freneticamente, como se em busca de alguém. Por
algum motivo, com a mão esquerda livre, eu seguro a dela. Juliette me olha
por um longo instante, depois vira-se para meus dedos nos seus. Então os
aperta e torna a olhar para a tela.
Um minuto depois, finalizo o exame, e ela vai se trocar novamente.
Quando retorna, ergue seus olhos para mim e indaga:
— Com quanto tempo consigo saber o sexo?
Caminhamos de volta para seu quarto enquanto respondo:
— Pelo ultrassom, por volta da décima terceira semana. Alguma
preferência?
Gautier para frente à porta do seu quarto e olha por cima dos meus
ombros. Remexe um pouco nos cabelos e molha os lábios inchados antes de
responder:
— Menino.
Então é tudo o que diz. Adentra o cômodo e, com um pouco de
dificuldade por conta das costelas, se acomoda em seu leito novamente.
— Deu tudo certo com a ressonância — informo. — Não há com que
se preocupar.
— Merci, doutor Laurent.
— Não precisa me agradecer.
Em um ato meio impensado, eu me aproximo e seguro suas mãos. Não
é a primeira vez que faço isso com um paciente. Às vezes, eles precisam. Ser
médico não é apenas curar ou medicar. Ser médico também é ser humano e
saber quando o paciente precisa mais do que um exame, é saber quando ele
precisa não só do médico, mais de um amigo, alguém com quem contar, com
quem desabafar. Mas o modo como me aproximo de Juliette, a vontade
desconhecida que tenho de tocá-la, me assusta e me parece muito antiética.
— Vai ficar tudo bem. Qualquer coisa que precisar, estarei aqui.
Juliette faz menção de abrir um sorriso e, talvez, me agradecer, quando
a porta se abre e interrompe o momento. Eu me afasto em um passo brusco,
como se o ato de estar tão próximo dela fosse algo muito errado.
Olho para trás. Uma das enfermeiras entrou acompanhada de um agente
da polícia.
— Bonjour — o homem cumprimenta, retirando os óculos escuros e os
pendurando à gola da camisa. — Meu nome é Antoine Macron, agente
policial. — Ele estica a mão para mim e eu a aperto, apresentando-me em
seguida. — Vim retirar o depoimento da senhorita Gautier.
Ao olhar para trás, o sangue dela parece ter sido sugado. Está pálida
como papel.
— Se ela tiver condições para isso, tudo bem. Do contrário,
infelizmente não poderei permitir. Ela passou por um trauma, está grávida e
precisa de descanso.
O policial apenas acena em positivo e direciona um olhar para minha
paciente.
— Foi um assalto — diz de repente, caindo em lágrimas.
— Gautier… — Tento interrompê-la. Está nítido que o acontecimento
ainda mexe com ela e a última coisa que quero é vê-la sob pressão e estresse.
Entretanto, a moça ignora-me e continua:
— Eu cheguei no meu trabalho e… — Ela soluça. Aproximo-me
rapidamente e seguro suas mãos, pedindo para que mantenha a calma e
respire fundo. Antoine a acalenta, afirmando que se não tiver condições de
falar agora, não precisa. — Eu reagi — informa. — Ele queria levar minha
bolsa, não deixei, reagi. Foi o que aconteceu.
Troco um olhar com Antoine. O modo como está atento à Juliette me
diz que compartilhamos do mesmo sentimento: o de não acreditar nessa
versão.
— Senhorita Gautier, tem certeza de que foi um assalto? — o policial
pergunta. — Aparentemente, nada foi levado dos seus pertences, nem do
cofre da cafeteria onde você trabalha. Conversei com o monsieur Dousseau,
ele me garantiu que não há nenhum sinal de roubo no estabelecimento.
— Estou dizendo… — Juliette tenta soar firmeza, mas a voz chorosa,
trêmula e os olhos lacrimejados não colaboram. — Foi um assalto.
Antoine balança a cabeça em positivo e faz algumas anotações em um
bloco que traz consigo.
— Conseguiria fazer um retrato falado dele?
Ela balança a cabeça em negativo, freneticamente.
— Estava com o rosto tampado.
— Pelo quê?
Aqui, ela faz uma pausa, pega pela surpresa do questionamento. Seus
lábios se entreabrem algumas vezes, como se estivesse pensando em uma
resposta convincente.
— Uma máscara de lã. Eu acho… Eu não… — Um choro convulsivo a
toma de novo. Envolvo-a em meus braços e tento acalmá-la, dizendo que vai
ficar tudo bem.
Lanço um olhar ao policial e digo:
— Acho que já está bom de perguntas por hoje.
Antoine balança a cabeça em um gesto afirmativo, agradece a atenção,
deseja melhores à paciente e se retira.
De repente, sinto seus dedos se fecharem com força no meu jaleco,
trazendo-me mais para perto dela, seu rosto escondido no meu peito, o choro
convulsivo transformando-se em algo mais tímido. Acaricio seus cabelos
macios e deixo um beijo no topo da sua cabeça.
— Estou aqui — murmuro apenas, e ela se agarra com mais força em
mim.
O que aconteceu com ela não foi assalto coisa nenhuma.
JULIETTE
Essa noite parece que não vai acabar. A conversa chata em torno da
mesa entre Bernardo, René e os Leclerc não é a pior parte. Nem sei se
podemos chamar isto de conversa, porque parece mais um monólogo de
Deschamps. A situação é meio tensa e constrangedora. Antony está rígido no
seu lugar, e a causa com toda certeza é o meu chefe — este que aparenta estar
com a cabeça no mundo da lua, mas com os olhos discretos bem em cima de
Ann-Marie. A pior parte é ter de ver o homem que amo ao lado de uma
mulher que não o valoriza. Deus, ela é tão descarada… Mas preciso admitir
que disfarça bem quando olha para Dousseau.
Ela deve estar achando que ninguém em torno da mesa percebe, mas eu
percebo. Percebo, porque precisei aprender a ser discreta igual ela se quisesse
observar Antony sem levantar suspeitas. Só alguém como nós duas — que
tem um amante e precisa mantê-lo em segredo — reconhece uma troca de
olhar, por mais discreta que seja. O marido está bêbado o suficiente para não
notar o que está bem embaixo do seu nariz. Outra vez, sinto uma vontade
imensa de abrir seus olhos, talvez isso o incentive a pedir de vez o divórcio,
mas então recuo. Ela pode não valer nada, mas Bernardo, por mais
mulherengo que seja, é uma boa pessoa. Sei que mencionar para meu amante
sobre minhas suspeita poderá prejudicá-lo. A última coisa que quero é vê-los
metidos em uma confusão.
Preciso de um gole de champanhe. Generoso.
Sempre que penso que Leclerc se irritaria se descobrisse algum caso da
mulher me dá um gosto amargo na boca. Esforço-me para compreendê-lo em
algum nível, afinal, é um casamento longo, e em algum momento ele a amou,
então seria compreensível que se irritasse e se magoasse se descobrisse uma
traição da esposa — apesar de não ter moral nenhuma. Esforço-me para
compreendê-lo, mas não consigo. Só queria que se divorciasse de uma vez e
me assumisse. Não aguento mais dividi-lo, nem encontrá-lo às escondidas.
Um tempo depois, Bernardo pede licença e se retira. René faz o mesmo
em menos de um minuto, dizendo que irá falar algo com Emilien. Então,
ficamos apenas nós três. Antony não me olha — ele tem um autocontrole
muito melhor do que o meu. Não aguento essa situação mais do que cinco
segundos. Incomoda-me ficar na mesma mesa do meu amante na companhia
da esposa. Levanto-me, peço licença e me retiro, caminhando em direção ao
toalete. Lá, lavo as mãos e molho um pouco a nuca. Encaro-me no espelho
por um longo tempo, perguntando-me o rumo que tomou a minha vida.
Dormindo com um homem casado. Não tem um só dia que esse conflito
interno, essa crise moral, não me acometa. Sei que é errado, por mais que a
mulher mereça; ainda assim, não consigo me afastar dele.
Estou voltando para minha mesa, já pensando em convidar Bernardo
para irmos embora — esses saltos estão me matando — quando o vejo se
aproximar também, os olhos fixos nas costas de Antony, que diz alguma
coisa à mulher. Estou longe o suficiente para não compreender do que se
trata, mas pela cara de Dousseau, ele escutou e não gostou nem um pouco;
noto isso pela expressão do seu rosto, a rigidez do seu corpo. Ann-Marie, um
tanto quanto abalada, é verdade, com o que seja que o marido falou, entreabre
os lábios para dizer alguma coisa, mas então repara em Bernardo logo à sua
frente e desiste na mesma hora. Ela diz alguma coisa, levanta-se rapidamente
e se distancia dos homens, a passos apressados.
Pestanejo seguidas vezes, tentando entender o que está acontecendo.
Antony nota meu chefe logo atrás, e os movimentos débeis do seu corpo e
cabeça denunciam seu estado bêbado. Ele também se levanta e se retira em
seguida, quase trançando as pernas por entre as pessoas, em direção a Emil
em uma mesa junto de Marie.
Meus olhos viram de volta para Bernardo, que agora sobe as escadas da
mansão pulando dois degraus de cada vez, seguindo Ann-Marie que fez o
mesmo caminho. Está mais do que na cara o caso desses dois.
Suspiro e molho os lábios, frustrada que não poderei ir embora tão já.
Olho ao redor, à procura de Leclerc, que já não está mais perturbando
Emilien. Rodo a mansão um pouco até encontrá-lo perto da piscina, as mãos
dentro do bolso, postura vacilante — típica de quem exagerou no álcool.
Ponho-me ao seu lado e não digo nada por algum tempo.
— O que aconteceu lá na sua mesa? — pergunto, com um sussurro.
Antony sequer me olha.
— Não foi nada.
— Você disse alguma coisa a Ann-Marie que…
Ele vira o pescoço em minha direção num movimento brusco e rude,
seus olhos murchos analisando-me com raiva. O homem é bipolar, porque um
segundo mais tarde suaviza a expressão e se aproxima de mim, pegando meu
rosto e me dando um beijo profundo como se não se importasse com mais
nada no mundo. Afasto-o alarmada, olhando ao redor e limpando a boca.
Deus, alguém poderia nos ver!
— Nunca me rejeitou… — reclama, dando um passo cambaleante para
frente. Preciso segurá-lo pelo blazer ou cairia dentro da piscina.
— Estamos em público, Tony, com um monte de gente conhecida ao
redor. Está sendo imprudente.
Antony suspira e passa a mão no rosto, acenando em positivo e
murmurando um “Je suis désolé”.
— Como está aquele seu negócio com Emilien? — pergunto, tocando
rapidamente seu braço, sentindo a falta do nosso toque. — Quero tanto que
isso dê certo para que possa se divorciar dela.
O homem fica em silêncio por longos segundos, como se não tivesse
me ouvido, ou como se estivesse me ignorando. Não sei por qual razão, mas
considero muito a segunda opção.
— Antony… — insisto, com cuidado.
— Tenha paciência, Juliette. — Sua voz contraria o que me pede. — O
negócio ainda é novo. Já disse que para me divorciar preciso de segurança
financeira. O projeto está no começo, não espere que eu consiga me
estabilizar tão rápido.
Não gosto de sua resposta, o tom com que me dirige a palavra.
Ultimamente, tem perdido a paciência comigo com muita facilidade, o que
nunca aconteceu antes. No começo desse… relacionamento…, ele sempre se
mostrou uma pessoa amorosa, paciente. Apesar de não gostar de como fala
comigo, eu relevo, afinal, ele está bêbado. É a primeira vez que o vejo nesse
estado.
— Tudo bem, me desculpe — peço e me sinto estranha um segundo
depois. Antony tem um poder diferente sobre mim. Não é só no sentido
sexual, é o modo como, facilmente, consegue me fazer sentir culpa, perceber
que estou errada sempre que o pressiono. Não me agrada a sensação. Sinto
que não estou completamente errada, mas também tenho a impressão de que
não estou totalmente certa em pressioná-lo, exigir o divórcio quando ele já
me explicou os motivos por ainda se manter casado.
Merde.
É tão contraditório isso tudo.
— Em três dias — diz de repente, despertando-me para o mundo real
outra vez. — Em Lyon. Vou te mandar a passagem, o endereço do hotel e
deixarei um quarto reservado para você, tudo por minha conta.
Abro um pequeno sorriso. Isso significa que os negócios com Emil
estão caminhando para dar tudo certo.
— Vou adorar passar um tempo com você — murmuro, arriscando
outro toque no seu braço.
Sem se preocupar em sermos vistos, Antony se aproxima. Sinto cheiro
forte de álcool. Ele deixa um beijo rápido nos meus lábios e sussurra algo
obsceno que me faz ficar úmida. Então, se afasta o mais rápido que suas
pernas de bêbado permitem, voltando lá para dentro. Permaneço por um
longo tempo no meu lugar antes de procurar por Bernardo e convidá-lo para
irmos embora.
Essa noite parece que não vai acabar.
São oito da noite quando chego no hotel indicado na mensagem que
Antony me enviou. No dia seguinte à festa na casa de Emilien, ele me
mandou a passagem área para Lyon, flores, bombons e um post-it azul escrito
apenas um je t’aime. A viagem de Paris até aqui foi rápida, cerca de uma
hora. Faço o check-in e subo até meu quarto, estrategicamente reservado ao
lado do dele. Desfaço as malas e envio uma mensagem:
“Acabei de chegar.”
— Quando você volta? — pergunto, antes que ele vá. Antony veio me
deixar na cafeteria antes de seguir para o aeroporto. Coloco a chave na
fechadura da porta dos fundos, que dá direto para o escritório da gerência, e a
giro para destrancá-la.
— Em três dias — responde, olhando para o outro lado da rua,
praticamente vazia às dez para seis da manhã, onde seu carro está
estacionado.
— Certo… — É só o que digo.
Um silêncio esquisito nos ronda novamente. Mordo o lábio inferior,
sentindo-me uma estúpida por ainda não ter contado sobre a gravidez. Quanto
tempo mais devo esperar? Quando a criança nascer? Perco-me em meus
pensamentos e inseguranças que sequer o vejo se aproximar e me abraçar a
cintura. Beija-me serenamente e indaga em seguida:
— Juliette, preciso que seja franca comigo e conte exatamente o que
está acontecendo com você. Não sou tolo, já percebi que está estranha. Me
conte de uma vez e vamos resolver isso juntos.
Olho-o, sentindo-me a pessoa mais insegura do mundo. O medo
começa a se formar em meu estômago e a subir vagarosamente até a
garganta, quase me sufocando. Ele não vai ficar feliz com a notícia. Tenho
certeza. Mon Dieu. Como fui estúpida, irresponsável e precipitada em
engravidar de propósito para segurar homem!
Inspiro profundamente e, sem mais rodeios, solto:
— Estou grávida.
Antony se afasta com um passo para trás, de modo súbito. Seu
semblante se transforma instantaneamente, aquela expressão sombria e
intimidadora tomando posse dos seus traços.
— O quê? — murmura, entre os dentes. — Está brincando comigo, não
é?
Engulo em seco. Nem percebo minhas mãos tremendo levemente.
— Não. Eu realmente… estou grávida.
Um silêncio denso recai sobre nós outra vez. Antony está
completamente transfigurado nesse momento. O homem que conheci —
pacífico e amoroso — simplesmente não existe. O homem na minha frente
agora é outro. É alguém que não conheço. Ele afaga o rosto e anda de um
lado a outro, emudecido. Permaneço igualmente calada, apenas o esperando
reagir à notícia e saber que tipo de decisão tomará.
— Conheço uma clínica particular que pode… fazer o procedimento de
aborto — diz, fazendo-me arregalar os olhos. Involuntariamente, envolvo
meu abdômen. Deus, ele não sugeriu isso, sugeriu? Lágrimas se formam em
meus olhos. Esperava que a gravidez o forçasse a pedir o divórcio, a me
assumir de uma vez por todas e formarmos uma família. Sua sugestão de
aborto me pega desprevenida e me deixa perplexa. — E depois do
procedimento, vamos tomar mais cuidado para não acontecer de novo.
— Não — digo, firme e convicta, a voz saindo levemente rouca. —
Não vou abortar.
Antony me olha como se eu tivesse apedrejado a cruz de Cristo.
— Juliette… — O tom é de advertência.
— Eu fiz de propósito! — confesso, praticamente cuspindo cada
palavra. — Achei que uma gravidez ia te forçar a largar sua esposa!
O que vem a seguir é inesperado até para mim. Antony ri. Uma risada
áspera, lunática e sem nenhum traço de humor.
— Você só pode ter ficado louca — dispara, dando um passo à frente e
me segurando pelos braços. — Como você é idiota, Gautier. Jamais deixaria
minha esposa, uma mulher de verdade, pra ficar com uma vagabunda
interesseira igual a você. Ainda não entendeu que sempre foi e sempre será a
outra?
O barulho da minha mão contra seu rosto é ensurdecedor. Quando
Antony me olha de novo, há fúria e loucura em suas íris escuras. Só então me
dou conta de quem ele realmente é. Não é o homem que sempre pensei que
fosse. Não, não. Longe disto. É apenas mais um escroto, lobo revestido de
cordeiro, que conseguiu me manipular e me colocar contra uma mulher que
sequer conheço direito, que me fez julgá-la e repudiá-la. Aqui e agora, diante
seu olhar bestial, sei quem é Antony Leclerc. Sua máscara caiu, posso ver sua
verdadeira face.
— Só quero ver a cara que sua esposa fará quando souber que o marido
dela é um maldito traidor — provoco, a frase saindo entre meus dentes. —
Você queria ficar com sua esposa e com a vagabunda interesseira ao mesmo
tempo, mas depois que eu contar a Ann-Marie sobre nós e sobre a gravidez,
não terá nenhuma das duas.
Giro nos calcanhares, pronta a entrar na cafeteria e deixar esse maldito
sozinho, mas ele é mais rápido do que eu. Segura-me pelo punho e me puxa
com toda força, jogando-me contra uma parede no segundo seguinte. Seus
dedos fortes se fecham contra meu pescoço, apertando sem piedade e me
sufocando.
Debato-me e tento sair de seu aperto, mas o homem é muito mais forte
do que eu. O máximo que consigo é apenas me sufocar mais. Com violência,
me bate contra a parede umas três vezes, enquanto ainda segue me
asfixiando. Prazer e insanidade indescritíveis atravessam a loucura que são
seus olhos nesse momento.
— Experimente abrir essa boca de boqueteira que você tem para ver o
que faço com você, sua vagabunda desgraçada. — A ameaça tão direta me
deixa assustada. — Você não dirá nada à minha esposa, entendeu? —
pergunta, fechando mais o dedo em meu pescoço. Começo a perder a lucidez,
mas consigo acenar em positivo. — ENTENDEU? — grita, batendo-me
contra o concreto outra vez. Meus pulmões parecem que são esmagados
ainda mais.
— En…t… — Tento dizer.
Antony me solta de repente. Caio estatelada no chão, puxando
desesperadamente ar para os pulmões. Então, começo a chorar, assustada
com a agressão de um homem com quem cogitei passar a vida ao lado.
Um soco atinge meu abdômen de repente. Uma dor lancinante viaja
pelo meu corpo, que jogo para trás. Mal tenho tempo de processar o que está
acontecendo quando mais socos e chutes me atingem sem piedade, com uma
força esmagadora. As agressões se espalham, atingindo costela e meu rosto.
Quando finalmente acaba, estou dolorida, semiconsciente, preocupada apenas
com meu bebê. Sinto uma respiração quente contra meu ouvido.
— Se por acaso te encontrarem e ainda estiver viva, que isso fique
como um recado: abra a boca e diga qualquer coisa a Ann-Marie e juro por
Deus que termino o que comecei com você e com esse bastardo.
Um segundo depois, não vejo e nem sinto mais nada.
Já tem uns quatro dias que estou aqui. Sinto falta dele. Estranhamente,
sinto falta dele. Deus, por que estou sentindo falta dele? O plantonista dos
dois últimos dias é bom, como Laurent me disse que seria, e confio nos seus
cuidados comigo e com meu bebê. De um jeito estranho, por algum motivo
eu preferia que fosse Pierre. Eu acabei me lembrando dele, de dois dias atrás,
quando cheguei aqui. Os olhos azuis e seu nome voltaram às minhas
lembranças de repente e soube que foi ele quem me atendeu, quem segurou
minha mão e prometeu cuidar de mim e do meu bebê. Prometeu e cumpriu.
Talvez por isso preferisse que fosse Laurent o plantonista.
Alguém bate à porta, interrompendo meus pensamentos absurdos que
nem mesmo a televisão ligada foi capaz de me impedir de existir. Coro de
vergonha quando noto que se trata de Ann-Marie. Não é a primeira vez que
vem me visitar. Ela entrou aqui na ocasião em que fui internada, logo depois
de Bernardo e Emilien. Mas eu estava com tanta vergonha de encará-la que
preferi fingir que estava dormindo.
— Salut, Gautier — cumprimenta-me com um sussurro. Encosta a
porta e se aproxima de mim a passos vagarosos, segurando um buque de
girassóis.
Ainda sinto meu rosto queimar quando respondo, mantendo um sorriso
de vergonha.
— Bonjour, madame Leclerc — respondo, murmurando quase de
forma inaudível. Ainda não sei como encará-la depois de tudo.
Ela está aqui agora, se importou o bastante para vir visitar a amante do
marido. Ann-Marie não é nada do que Antony disse que era. Claro que não é.
Ele mentiu como sempre fez e conseguiu me enganar, me colocar contra uma
mulher que eu sequer conhecia direito. Sou tão estúpida. Meu Deus, eu sou
tão estúpida!
Ela sorri e contorna a cama, colocando as flores em um vaso. Depois,
puxa uma cadeira e se senta de frente para mim, perguntando:
— Como você está?
— Bem, na medida do possível. Obrigada por perguntar.
— E seu bebê?
A pergunta me incomoda. Desvio o olhar e mordo o lábio inferior.
Respondo, ainda sem coragem de fazer qualquer contato visual:
— O doutor Pierre Laurent me garantiu que está tudo bem.
Um silêncio recai sobre nós duas. Sigo com o olhar baixo, recusando-
me a encará-la, tão envergonhada que estou. De repente, sinto medo. Medo
de que tenha vindo aqui me julgar, me humilhar, dizer como sou uma vadia
desgraçada por abrir as pernas para um homem casado, por ser a responsável
por destruir seu casamento. De novo, sinto vontade de chorar. Malditos
hormônios de grávida, transformaram-me em uma chorona.
— Comprei para você — ela diz, esticando um pequeno embrulho. —
Na verdade, é para o bebê.
Pego o presente de suas mãos. Não evito a emoção em meus olhos
quando desembrulho o pacote. Sorrio, abraço a pequena peça e deixo uma
lágrima escorrer pelo meu rosto.
— Obrigada, Leclerc… — agradeço, e minha voz sai embargada. —
Não deveria ter se incomodado com isso. É tão… inapropriado.
— Por que esse bebê é do meu marido? — questiona-me, suavemente.
Não há nenhum traço de julgamento em sua voz, mas mesmo assim
meu rosto ruboriza.
— Pardon — peço, a voz chorosa e arrependida.
Quando finalmente tenho coragem de olhá-la, lágrimas descem pelo
meu rosto. Preciso me desculpar com Ann-Marie, sinto essa necessidade. Não
posso simplesmente receber seu presente, sua preocupação, sua boa vontade
de vir me ver e saber como estou e não me desculpar. Dói assumir que errei,
que fiz um mau julgamento de sua pessoa, que acreditei em um homem
mentiroso e manipulador, apesar de todos os sinais, mas tenho caráter
suficiente para admitir isto e me redimir. — Não deveria ter me envolvido
com ele. Sabia que era casado e… — Não consigo terminar de falar. Tapo a
boca com mão.
Sem que eu espere, ela me segura e tenta me acalmar.
— Não justifica… — Tento dizer.
— Juliette, por favor, não diga mais nada — pede, calma.
— Eu preciso, Ann-Marie. — Aperto meus dedos nos seus, quase como
um ato de súplica. — Sei que não justifica, mas… nunca foi minha intenção
me envolver com seu marido! Ele era cliente da cafeteria, vivia por lá, e, com
o passar do tempo, nos tornamos bons amigos. Apenas isso! E apenas dentro
do meu local de trabalho. Certa vez, ele chegou quando já estávamos
fechando, visivelmente abalado. Tinha olheiras, cabelo desengonçado… —
Fecho os olhos, tomando um pouco de ar para os pulmões. — Me disse que
vocês tinham discutido e não estava bem. Antony ficou no café até pouco
depois de fecharmos, conversando comigo, dizendo que… — Mordo o lábio
inferior e inspiro antes de prosseguir: — Não estava feliz no casamento, de
que não te amava, que o casamento de vocês foi arranjado… — Um gemido
agoniado escapa de mim. Fui tão burra e me arrependo tanto! — Ele me disse
tantas coisas terríveis a seu respeito. Que você era histérica, ciumenta,
possessiva… acomodada e preguiçosa. Que, enquanto trabalhava duro pra
sustentar seus luxos, você só sabia criticá-lo e gastar dinheiro.
Ann-Marie entreabre os lábios, horrorizada com meu relato.
— Eu acreditei nele! — digo, soluçando um pouco mais, o
arrependimento socando meu peito como uma marreta forte. — Não te
conhecia pessoalmente, pouco te via, então foi fácil ter sido enganada dessa
maneira. Eu ainda o aconselhei a pedir o divórcio… — Rio sem humor e seco
algumas lágrimas. — Depois disso, algum tempo se passou e ele de novo me
procurou… Me envolveu aos poucos, com elogios, presentes singelos… E
junto vinham mais as reclamações do casamento… Certo dia, disse que
estava apaixonado por mim.
Faço um instante de silêncio. Solto minhas mãos das suas e as coloco
sobre meu colo, entrelaçando meus dedos. Ainda envergonhada com essa
situação toda, baixo o olhar e continuo:
— Acabei acreditando que você merecia… merecia que Antony te
traísse. E ele também me prometeu que pediria o divórcio e me assumiria. Só
precisava… Não sei… Dizia algo sobre algum projeto com Dupont. Que
esperava dar certo e só então ficaríamos juntos. Fui burra em acreditar nele.
Por favor, me perdoe!
— Se ele não tivesse…? — murmura, baixando os olhos.
Entendo o seu questionamento e disparo:
— Jamais, Ann-Marie! Jamais me envolveria com um homem casado.
Não sou assim. Mas Antony… me passou uma imagem tão ruim sua, me
convenceu de verdade que estava infeliz no casamento… Confiei e acreditei
nele. Achei que você merecia ser traída. Por favor, me desculpe.
— Não tenho o que te desculpar — diz, olhando para mim. — Sabe
que… — Suspira. — Bernardo conseguiu me seduzir dessa maneira, me
mostrando que eu estava infeliz e Antony era um homem perigoso e cheio de
defeitos e… trai-lo era o que ele merecia. Então, não tenho o que te
desculpar.
— A diferença é que ele realmente conhecia Antony. Ele viu sinais
dessas coisas ruins que ele tinha. Ao contrário de mim. Nunca te vi… Como
pude te julgar e te condenar sem ao menos conhecer o seu lado da história?
Ela torna a segurar minhas mãos.
— As pessoas são falhas, Gautier. Nós erramos. Você errou. E eu te
perdoo.
Trocamos um abraço apertado, enquanto eu a agradeço, sentindo um
alívio enorme no peito. A emoção aflora em minha pele, toma conta da minha
voz e dos meus olhos, transformando-se em lágrimas.
— E Antony… tinha esses sinais violentos com você? — questiona,
baixinho, como se não tivesse certeza se faz bem tocar no nome dele perto de
mim.
Afirmo com um mover de cabeça e profiro:
— Começou sutilmente. Quero dizer, no começo era… tão romântico,
atencioso, dedicado. Ficava me perguntando por que você não o valorizava.
Viajamos algumas vezes juntos — confesso, corando levemente e desviando
o olhar dela outra vez. — Ele… me comprou presentes, mandou preparar um
quarto de hotel para nós com champanhe, pétalas de rosa. Era perfeito… —
murmuro e me engasgo com minha própria saliva.
Meu coração dói com essas lembranças. Amei aquele homem, de
verdade, mais do que amei qualquer outro um dia. Mesmo depois de ontem,
das suas ameaças, da sua agressão, sei que em algum nível o sentimento
ainda existe. Não vou mentir, não vou ser hipócrita em dizer que o amor foi
embora do dia para a noite, porque não foi. Talvez seja essa a parte mais
dolorida. Ser capaz de amar, de sentir qualquer coisa por alguém que tentou
me machucar é o que mais dói em mim.
Ela abana a cabeça lentamente, talvez recordando-se de ter vivido algo
parecido, reconhecendo o padrão de comportamento de Antony.
— Mas aí um dia… — continuo. — Ele me ofendeu durante uma
discussão, quando pedi para se divorciar de vez. No dia seguinte, Antony me
ligou, pediu perdão, mandou flores e bombons lá pra casa. E assim
começou… Verificava meu telefone, minhas mensagens, criticava minhas
amizades e até tentou me afastar de um primo a quem sou muito apegada…
Certa vez até disse que, quando me assumisse, não me deixaria trabalhar com
Dousseau ou em qualquer outro lugar. Não notei esses sinais de um homem
desequilibrado e violento, batia de frente com ele, dizia que não ia parar nem
de trabalhar, de nem ter amigos. O homem ficava contrariado, mas sabia que
não poderia fazer nada.
— Não enquanto você fosse apenas a amante… — constata.
Com um sorriso fúnebre, completo:
— Isso.
Outro instante de silêncio nos envolve.
— Então engravidei. Confesso que foi de propósito. Pensei que um
filho finalmente o forçaria a sair de um casamento em que vivia dizendo não
estar feliz. Antony foi até minha casa uma noite antes de viajar para Nova
Iorque. Ele te disse que ia pegar o voo noturno? — Concorda com um gesto
de cabeça. — Passamos a noite juntos, eu… estava me preparando para
contar. Antony me levou até meu trabalho e lá… Antes de ir embora… dei a
notícia. Ele ficou petrificado e branco por um segundo. Depois começou a me
falar sobre aborto e um monte de coisas que não consegui mais entender
porque fiquei pasma demais com sua sugestão de tirar o bebê. Começamos a
discutir. Novamente me ofendeu com uma porção de palavreados… —
Preciso de um instante de pausa. Lembrar dessas coisas me machuca tanto.
Só queria esquecer e seguir em frente. Farei isso depois que contar tudo a ela.
— Eu deveria ter deixado pra lá, mas… Fiz a burrada de ameaçar contar a
você sobre nosso caso e a gravidez. Antony perdeu a cabeça e então… —
Engulo em seco e, não podendo mais segurar, permito que novamente as
lágrimas me tomem. — Fez isso comigo.
Ann-Marie senta-se na cama e me abraça com força, deixando-me
chorar em seus ombros e desabar toda a minha dor. Ela afaga meus cabelos e
tenta me acalentar de novo.
— Está tudo bem agora. Antony não vai mais te fazer mal. E, de mim,
você tem perdão e tudo que precisar para o seu bebê.
Mon Dieu, ela é tão boa. O total oposto do que aquele miserável me
disse. Tento controlar minhas lágrimas, mas elas vêm com força, lavando
minha alma, levando embora toda a aflição, a vergonha, o arrependimento. É
um choro de medo, de pavor por tudo que vivi, das lembranças que ainda me
acometem, mas também é alívio e gratidão.
— Merci beaucoup! — agradeço, ainda sem poder controlar minha
emoção.
Ficamos abraçadas mais alguns minutos, por tempo suficiente até
minhas lágrimas não existirem mais e meu coração voltar a bater
normalmente outra vez. De repente, a porta abre, trazendo para dentro um
Pierre de jaleco, estetoscópio e aparelho para medir a pressão. Sua presença
parece mandar embora toda a tensão e a tristeza que, segundos atrás,
pairavam sobre mim. Estou feliz por ele estar aqui. Ele nos olha por um
segundo e se desculpa.
— Pardon. Não sabia que a senhorita Gautier estava com visitas.
Desfazemos nosso abraço e Ann-Marie se levanta, dizendo:
— Já estou de saída, doutor… Pierre Laurent. — Ele sorri para ela e
lança um olhar para mim. Não desfaço nosso contato visual. Ele me transmite
segurança, proteção. Gosto da sensação boa que me causa. — Pode cuidar
bem da minha amiga e do bebê dela?
— Estou aqui para isso — alega, vindo até mim, solicitando o braço
direito para tirar minha pressão arterial.
Ann-Marie sorri e se despede. Eu mal a respondo porque estou ocupada
demais prestando atenção no que Pierre me diz:
— Soube que andou recebendo visitas durante minha ausência.
Algo em meu interior se remexe. Se ele soube das visitas que recebi
significa que andou perguntando por mim?
— Só os amigos de sempre — respondo apenas.
Pierre me abre um leve sorriso e mede minha pressão. Um silêncio
confortável recai sobre nós. Tento conter meus olhares para ele, mas é quase
impossível. Ele é bonito. Tem pálpebras dobradas, dando a impressão de que
seus olhos claros são levemente puxados, cabelos que ainda não decidi se são
castanho-escuros ou pretos, cavanhaque ralo, pele branca, rosto oval e
covinha no queixo.
— Pelo menos não está completamente sozinha — fala, retirando o
instrumento do meu braço. — Sua pressão está normal. Como está se
sentindo hoje? — pergunta, retirando uma pequena lanterna do bolso e a
acionando contra minhas pupilas.
— Bem. — Olho no relógio perto da parede. É cedo, perto das dez da
manhã. O médico de plantão passou aqui pouco depois das seis, me fez as
perguntas habituais, conferiu os batimentos do bebê, conferiu minha pressão,
testou meus reflexos, me medicou. Essa ronda de Pierre me parece atípica. —
A que horas começou o seu plantão? — indago, com cuidado, não querendo
parecer interessada demais.
Ele me dá um sorriso pequeno, até meio encabulado, eu diria. Coloca o
estetoscópio no meu peito e responde:
— Ainda não começou.
Pisco seguidas vezes, quieta, processando sua resposta. Se ele não está
de plantão, por que está aqui? Pierre se afasta, colocando o instrumento em
torno do pescoço de novo.
— Meu plantão hoje só começa às sete da noite. Estava passando por
perto e… — Faz uma pausa pequena, olhando-me com seu sorrisinho meio
contagiante. — Quis ter certeza de que a equipe está cuidando bem de você.
— Seus olhos me analisam rapidamente. — Pelo jeito, estão mesmo.
Desfaço nosso contato visual, um pouco mexida com sua atitude. Ele
não tinha obrigação nenhuma de estar aqui, mas está. Engulo em seco e fico
meio tensa, tentando desvendar o efeito que isso causa em mim. Pela visão
periférica, vejo-o mover-se pelo quarto e pegar os girassóis que Ann-Marie
trouxe.
— Da sua amiga? — questiona, indo até o banheiro no quarto. Ouço
água corrente. Ele volta com o vaso cheio e torna a pôr o ramalhete no seu
lugar.
“Amiga” não é bem a palavra. É a esposa do meu amante, que me
espancou. Quero dizer a verdade para Pierre, mas prefiro manter essa
informação comigo.
— Oui. É uma cliente da cafeteria. — Olho para a roupinha branca que
ela atenciosamente comprou para o bebê. Abro um pequeno sorriso e brinco
com a delicada peça entre os meus dedos. Não vejo a hora de poder sair desse
hospital. Vou começar a preparar tudo para a chegada do meu bebê.
— Atencioso da parte dela vir te visitar. — Pierre mantém a conversa,
contornando a cama e parando de frente para mim de novo.
— É… — Consigo murmurar apenas, o remorso por ter me envolvido
com o marido dela batendo em mim novamente.
Um bater suave na porta interrompe nosso momento. Ergo os olhos ao
mesmo tempo em que Pierre gira o corpo para ver Emilien adentrar o recinto,
mãos no bolso, o rosto meio em um sorriso aparentemente forçado.
— Bonjour, Gautier — ele me cumprimenta, parando a um metro da
porta. Ele se vira para Laurent e estica a mão, pois ainda não se conhecem. —
Emilien Dupont.
Por um segundo, tenho a impressão de que Pierre hesita. Seus olhos
estão fixos em Emil, como se o avaliando ou com os pensamentos perdidos.
Parecendo voltar ao mundo real, ele o cumprimenta:
— Pierre Laurent. — Virando-se para mim, diz: — Vou deixar você
com sua visita. Te vejo à noite.
Abano a cabeça em positivo, Pierre se despede e deixa o quarto.
Emilien encosta a porta e estranho sua atitude. A passos vagarosos, ele se
aproxima de mim. Mantém as mãos dentro dos bolsos, a expressão
indecifrável. Não entendo o motivo de sua visita. Ele veio na ocasião da
minha internação, não ficou mais do que dois minutos, disse que se eu
precisasse de qualquer coisa faria questão de me ajudar, me perguntou do
bebê e desejou melhoras. Não somos do tipo íntimos a ponto de vir me visitar
mais do que uma vez, mas aqui está ele, molhando o lábio inferior como se
quisesse me contar alguma coisa e não tivesse ideia de como começar.
— Está tudo bem? — Rompo o silêncio entre nós. Devagar, seus olhos
azuis direcionam para os meus.
— Queria dizer que sim. — Suspira. Pega uma cadeira e a põe perto da
cama, onde se senta, apoiando os cotovelos nos joelhos e o rosto entre as
mãos. — Afastei Antony da minha empresa.
A mera menção desse nome me deixa em choque. Engulo em seco e
faço um esforço tremendo para não chorar de medo na frente dele.
— Era o mínimo que deveria ter feito — respondo. Demoro a notar que
sou um pouco rude com Emilien. Estou abrindo a boca para me desculpar
pela minha atitude mal-educada, mas ele me interrompe quando profere:
— Fiz uma investigação e descobri que ele estava fraudando a minha
empresa e a cafeteria de Bernardo.
Fico assustada com a informação. O mau-caratismo dele não tem
limites. Fui uma estúpida por acreditar na bondade e na índole dele. Quero
perguntar como Antony fazia isso, mas decido por ficar na ignorância. Chega
de decepções relacionadas a esse homem.
— Reuni provas o suficiente para denunciá-lo por corrupção, caixa-
dois, lavagem de dinheiro e superfaturamento. Podíamos fazê-lo pagar pelo
que fez a você sem te colocar em risco, como Bernardo prometeu.
Um alívio instantâneo toma conta do meu coração quando Emilien diz
isso. O alívio, porém, dura pouco. Dura muito pouco. A expressão dele não é
de alguém que está feliz por conseguir resolver um problema. Tem algo a
mais aí que ainda não me contou.
— Tem um “porém” nessa história, não tem? — questiono, já perdendo
as esperanças de Antony não sair impune.
De repente, Emilien parece mais triste a abatido. Por dez segundos, ele
abaixa a cabeça, depois de acenar em positivo, e fica em silêncio. Quando
ergue os olhos para mim, vejo dor no seu semblante.
— Tem, sim — responde, enfim. — Ele me ameaçou. Antony…
descobriu algo sobre mim, sobre meu passado, e ameaçou me expor caso eu o
denunciasse. Juliette, je suis vraiment désolé. — “Eu sinto muito, muito
mesmo”. — Mas não posso deixar que ele me exponha. Isso seria
catastrófico, me entende? Mancharia minha imagem, a imagem da minha
empresa, atrapalharia os negócios, as causas sociais e filantrópicas que estão
vinculadas ao meu nome.
Tem um tom de súplica em sua voz, na sua postura de derrota,
completamente o oposto do que estava costumada a ver quando ia à cafeteria
rotineiramente. Mas eu entendo o medo nos seus olhos. Leclerc também me
ameaçou. Leclerc ainda é uma ameaça para mim.
— Está tudo bem, Emilien… — murmuro, esticando minha mão para
pegar a dele. — Entendo perfeitamente, não se preocupe.
Ele se levanta da cadeira e vem até mim, apertando mais seus dedos
nos meus, olhos nos olhos.
— Vamos encontrar outro jeito, está bem? Vou resolver essa questão,
descobrir um modo de não estar mais vulnerável às ameaças dele.
— Emilien, talvez o jeito seja apenas não mexer com Antony — digo,
aceitando que não há maneira de enfrentarmos esse monstro. Ele tem todos
sob controle e ameaças. Está usando nossos maiores medos para conseguir
levar a melhor. — Ele já mostrou do que é capaz de fazer. Talvez o mais
aconselhável seja não mexermos no vespeiro, me entende?
Seus olhos me encaram com um misto de confusão e empatia.
— Não podemos deixar que esse homem saia impune, Juliette.
— Acredito em justiça divina, acredito na lei do retorno, acredito que
aqui se faz, aqui se paga. A justiça será feita, Emilien, mais cedo ou mais
tarde. Enquanto isso não acontece, é melhor prezarmos pela nossa segurança.
Ele me fita por alguns longos segundos, até por fim concordar que, no
momento, o mais sensato é não provocarmos Antony.
— Você tem razão. Caso precise de qualquer coisa, pode me contatar.
Melhoras, Juliette — deseja-me, antes de sair, seu corpo grande parecendo
pequeno perto do sentimento de ter fracassado em fazer justiça.
Fecho os olhos logo quando ele sai, tentando não pensar no assunto.
Cometi erros terríveis, sei disso agora, e ter me envolvido com um homem
casado foi o pior deles. Acredito na lei do retorno, e talvez esse momento de
impunidade seja apenas o meu carma.
PIERRE
Torço para não encontrar Francine. Ela vai me infernizar se souber
que estou aqui fora do meu plantão e vai querer saber os motivos. Não vai
levar mais do que um segundo para compreender e me infernizar. Ando
rapidamente para a sala dos atendentes. Vou me trocar e dirigir de volta para
a clínica até que meu plantão realmente comece.
Eu menti para Juliette.
Não estava passando aqui por perto coisa nenhuma. Simplesmente
acordei e, aproveitando que duas pacientes cancelaram o horário, decidi vir
vê-la. É claro que eu não poderia aparecer em seu quarto todo informal como
se fosse uma visita, então minha ideia genial foi vestir o jaleco. Mas também
não achei que ela fosse ser observadora o suficiente para notar que eu não
estava no meu turno.
Estou chegando à sala quando meu telefone toca. No visor, reconheço o
número da clínica. Atendo, e é uma das recepcionistas me perguntando se
posso vir para cá, pois uma das minhas pacientes particulares deu entrada no
trabalho de parto e já está a caminho do hospital. Digo que já estou por aqui e
vou me preparar para recebê-la.
A paciente chega rápido.
— Bonjour, Charlotte — digo, aproximando-me dela enquanto visto
luvas de látex.
A mulher me dá um sorriso enfraquecido e fecha a cara quando outra
contração a acerta. O marido, um homem ruivo e alto, que me parece ter
origens irlandesas ou escocesas, segura na mão da esposa quando ela se
contorce na cama, resmungando de dor. A contração vai embora, e ela
suaviza a expressão. Seus cabelos já estão bagunçados e levemente suados.
— Quando as contrações começaram? — pergunto, colocando-me aos
pés da cama.
— De madrugada. Umas cinco da manhã.
Aceno em positivo e peço licença ao marido. Ele me dá espaço com um
passo ao lado.
— Sabe me dizer a intensidade com que elas começaram e quanto
tempo duravam as contrações?
— Parecia dor de… cólica menstrual. Incômoda, mas suportável.
Durava menos de um minuto — responde, inspirando profundamente. — E
voltava cerca de dez ou quinze minutos depois. Mal dormi à noite por causa
do desconforto. Senti a barriga muito dura.
— Sua bolsa rompeu?
— Não.
— Sabe precisar de quanto em quanto tempo a dor vem agora?
Juliette não tem mais motivos clínicos para continuar internada. Seu
bebê está bem e saudável, os hematomas no rosto diminuíram
consideravelmente e o restante da recuperação — inclusive das costelas
lesionadas — poderá ser feita em sua casa. Os exames de reflexo estão
ótimos, o que significa que a concussão não resultou mesmo em sequelas
piores. O teste de AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis deu
negativo, o hemograma está dentro do esperado, a glicemia também está em
bons níveis, exames de urina e fezes não detectaram nenhuma infecção ou
parasitas, os testes de anticorpos não identificaram nenhuma doença que
possa comprometer a saúde do feto. Inclusive a psiquiatria considerou que ela
pode receber alta, apesar da sugestão de acompanhamento psicológico fora
do hospital.
Ela está completamente saudável.
Enquanto caminho até seu quarto, sinto o coração aflito por ter que
assinar sua alta. Por algum motivo desconhecido, estou com essa aflição.
Aperto mais a pequena sacola de academia entre meus dedos, perguntando-
me se foi mesmo uma boa ideia trazer isto. Parece inadequado demais. Penso
em desistir, em deixar em qualquer canto, mas quando me dou conta, já estou
aqui.
Ela se vira para mim, notando minha presença. Está em pé, terminando
de ajeitar uma pequena bolsa com os pertences pessoais e itens de higiene
que alguém trouxe para ela. Já está vestida com roupas próprias e limpas —
camisa de gola e botões, jeans e um cardigã vermelho.
— Bonjour — cumprimenta-me, puxando o zíper da bolsa. — Uma
enfermeira me avisou que vou ter alta hoje.
— Oui — afirmo, soltando o ar e terminando de me aproximar. Ergo o
papel assinado. — Vim trazê-la para você. Está livre — brinco um pouco. —
Também vim para fazermos seu relatório de internação.
A mulher fica levemente tensa, porque o relatório inclui ter que
informar o que exatamente aconteceu que a trouxe para cá. É o processo de
qualquer hospital público do país. Nele, constarão também todos os
procedimentos e exames. Dentro de algumas semanas, ela receberá uma carta
com esse relatório e o valor a ser pago pelo serviço, a segurança social
arcando com quase oitenta por cento dos gastos. Como ela é beneficiária da
Mutuelle — um seguro de saúde privado, com vários preços e modalidades
—, o recurso vai cobrir outra parte dos gastos do hospital. Dessa maneira, ela
pagará um valor quase irrisório, se chegar a pagar.
— Tudo bem — cicia, olhando para minhas mãos, que ainda seguram a
sacola de poliéster.
Parecendo me lembrar de por que trouxe isso, eu a estico em sua
direção.
— Trouxe para você.
Ela me olha com cuidado ao dar um passo à frente e pegar a mochila.
Tem um kit bem básico de maquiagem — supus que deva gostar — e escova
de cabelos que ouvi-a dizer ontem que o primo esqueceu de trazer. Juliette
confere o conteúdo, e acho adequado explicar por que tive essa atitude tão…
sem cabimento? Não sei. Confesso que é a primeira vez a me preocupar com
uma paciente assim, a ponto de me mobilizar a trazer algo. Já recebi outras
pacientes que entraram e saíram sem uma escova de cabelo por não ter
nenhum familiar, e eu incumbi alguém de arranjar o necessário. Mas Juliette
tem o primo, que, mesmo esquecendo uma coisa ou outra, trouxe o básico.
— Merci — agradece, parecendo desconcertada, enquanto ainda
confere os itens e retira a escova.
— Desculpe se soou inadequado — peço. — Só achei que gostaria de
usar.
Juliette ergue seu olhar para mim.
— Você acertou, na verdade. Não pedi a Adrien para me trazer porque
ou ia esquecer, ou ia trazer tudo errado.
Fico feliz por ter feito a coisa certa. Pigarreio um segundo mais tarde,
olho para o formulário em minhas mãos e sou obrigado a iniciar todas as
perguntas pertinentes para o relatório. Nervosa, ela mantém sua versão dos
fatos. Continuo inclinado a não acreditar nela e até tentado a pedir que se
abra comigo e me conte a verdade, mas esforço-me para não ultrapassar essa
linha. Afinal, por que diabos me contaria a verdade? Sou praticamente um
desconhecido.
Vou fazendo as perguntas enquanto ela escova os cabelos e se maquia.
Como a grande maioria das francesas, Juliette prefere algo mais simples,
usando apenas uma base, blush e batom claro que ajudam a esconder alguns
pontos amarelados do seu rosto. Confesso que não sou nenhum entendedor
do mundo feminino e precisei de ajuda de uma vendedora para comprar a
base no tom correto da pele dela. Também trouxe um lápis delineador, mas
ela não usa porque seus olhos ainda estão meio inchados, embora não como
quando chegou aqui.
Finalizo o questionário quando uma batida leve na porta aberta anuncia
um homem alto no recinto. Ele abre um pequeno sorriso e se aproxima com
as mãos dentro dos bolsos da calça de uniforme.
— Ei, Julie — diz, aproximando-se de nós. Dá-me um sorriso
complacente e me cumprimenta. — Consegui uma hora livre e vim te buscar.
— Não precisava, Adrien — devolve suavemente. — Te disse que ia
embora de táxi.
— Até parece que ia deixar você ir sozinha depois que… — Faz uma
pausa pequena, como se estivesse escolhendo as palavras. — Foi atacada.
Pela expressão no rosto dela, noto que não se agradou da menção. Ou
talvez do tom dele. Pareceu-me um pouco irônico. Talvez ele também não
acredite em sua versão da mesma maneira que eu.
Juliette se vira para mim.
— Então… já posso mesmo ir?
Pisco duas vezes.
— Claro. Sua alta está assinada — digo, entregando o documento.
Adrien pega os pertences dela, se despede de mim e deixa o quarto, a
prima acompanhando-o em seguida. Ele continua seu caminho pelo corredor,
mas Gautier para no umbral da porta, segurando os girassóis que uma amiga
trouxe no outro dia, e se vira para mim. Há um instante de hesitação da parte
dela, a língua molhando timidamente os lábios. Estranho sua postura inquieta
e até quero perguntar se aconteceu alguma coisa, mas de repente ela dá um
passo à frente, abraçando-me com o braço desocupado.
— Merci. Merci beaucoup. Por ter cuidado de mim e do meu bebê.
Abraço seu corpo, divagando um momento com nosso contato, seu
aroma suave e natural subindo pelo meu nariz. É tão bom. Quase não me vejo
apertando sua cintura e a trazendo para mim um pouco mais, com cuidado
por causa das suas costelas machucadas.
— Não me agradeça. Fiz apenas a minha obrigação.
Ela se afasta, olhando-me nos olhos.
— Não, você fez muito por mim — diz, desviando o olhar rapidamente.
Em um movimento inesperado, ela segura minha mão direita. — Fez bem
mais do que apenas sua obrigação, Pierre. Teve um cuidado comigo que,
confesso, não esperava. Foi muito atencioso e se preocupou de verdade com
meu bem-estar. — Faz uma pausa e tenho medo de que possa ouvir como
meu coração bate descompassado. — Se preocupou como poucas pessoas se
preocuparam um dia…
Não sei o que falar nesse instante. Antes que tenha tempo de formular
qualquer resposta, ela solta minha mão e se afasta. Está para sair de novo
quando a impeço, segurando levemente seu punho. Retiro um cartão de
visitas do bolso do meu jaleco e entrego para ela.
— É da clínica onde trabalho. Se ainda não tiver um ginecologista para
um pré-natal, pode me procurar. Tenho acordo com o seguro social, então…
parte do valor da consulta pode ser reembolsado.
Juliette pega o cartão e o analisa um segundo.
— Você é exceção em meio à regra — murmura, em tom de
brincadeira, referindo-se ao fato de que a maioria dos médicos especialistas
não têm esse acordo com o governo. — Obrigada, Pierre — agradece pela
segunda vez, inclinando-se nos pés e deixando um beijo afetivo.
Eu a acompanho com os olhos enquanto se distancia, apressando os
passos no corredor para alcançar o primo que já está longe. Meu coração dá
uma batida a menos quando Juliette olha para trás e sorri.
JULIETTE
Entro em casa pela primeira vez em mais de uma semana. Tudo está
exatamente como deixei naquela manhã ao ir para o trabalho. Adrien surge
atrás, colocando a mão no meu ombro e perguntando se me sinto bem. Aceno
em positivo e termino de entrar. Ele coloca o pouco dos meus pertences sobre
o sofá e me avalia com cara de preocupado.
— Vou fazer alguma coisa para comermos — diz, pegando minha mão.
— Não deveria se incomodar, Adrien. Vou me virar bem — murmuro
de volta, dizendo isto muito por educação porque a verdade é que não vou me
virar bem.
Sempre gostei do fato de morar sozinha, de ter minha liberdade e
privacidade. Mas agora estou com um pressentimento ruim dentro do peito só
de pensar que vou passar a noite sem alguém por perto. Não quero que ele vá,
mas sei que meu primo tem sua vida, seu trabalho, seus estudos. Não quero
atrapalhá-lo.
Seus dedos me acariciam suavemente.
— Você não incomoda. Não se preocupe. O que quer comer?
— O que você fizer está ótimo — respondo.
Ele sorri e se retira para a cozinha. Fico na sala mais algum tempo,
tentando afastar da minha mente as lembranças da última vez em que estive
aqui. Pego minhas coisas e, vagarosamente, o tanto quanto minhas duas
costelas quebradas permitem, vou até meu quarto. A cama da noite que passei
com Antony continua desarrumada. Uma aflição intensa e insólita se instala
no meu coração. Memórias me invadem, mas só quero esquecer. Arranco os
lençóis e fronhas, e os jogo num canto. Por alguns longos segundos, fico
apenas olhando para o embolado de tecido, pensando seriamente em tacar
fogo porque tenho a impressão de que não importa quantas vezes eu os lave,
vão continuar sujos, com o cheiro dele, o suor dele, resquícios dele. Não
quero lembrança nenhuma desse homem na minha casa.
Uma lágrima escorre pelo meu rosto quando me dou conta de que isso é
simplesmente impossível. Estou grávida dele. Se tem algo que vou carregar a
vida inteira junto de mim, será uma parte de Antony. Aperto as pálpebras e
me esforço para não pensar assim. Meu filho não tem pai. Terá uma mãe que
vai fazer de tudo por ele, matar e morrer, dar todo o necessário, do emocional
ao material, mas ele não vai ter um pai.
Balanço a cabeça em negativo, afastando os pensamentos, e troco a
roupa de cama por novas. Demoro além do normal porque não posso fazer
muito esforço. Quando termino, vou até o banheiro. Está seco, mas sujo. As
toalhas que usamos naquela manhã continuam jogadas no mesmo lugar, perto
da porta, com sinais de bolor; o shampoo aberto está na cantoneira. Somente
agora, analisando todo o cenário e me recordando daquela manhã com ele,
debaixo do chuveiro enquanto me penetrava sem eu estar suficientemente
preparada, me dou conta de uma coisa. Antony não só me agrediu
fisicamente momentos depois, como nós não fizemos sexo. Eu não fiz sexo
com ele. O homem me violou. Não estava preparada para aquilo naquele
momento, tentei argumentar, mas fui ignorada. Ele apenas rosnou um “vai
estar…” e entrou em mim, sem se importar se eu queria, se estava pronta.
Engulo em seco e novamente preciso de um pequeno esforço para me
livrar das lembranças. Só quero esquecer e seguir em frente. Limpo o
banheiro o tanto quanto é possível. Jogo as toalhas sujas junto com os
lençóis, reorganizo a pia e coloco no lixo a escova de dentes que ele tinha
aqui. Volto para o quarto e abro gavetas e portas do armário. Há algumas
coisas dele. Blazers. Calças. Camisas. Meias. Cuecas. Gravatas. Com um
ódio justo e descontrolado, junto tudo e jogo na pilha de roupas. Tudo que
Antony me deu de presente nos últimos sete meses, eu me desfaço, colocando
no montante.
Adrien aparece quarenta minutos depois e me vê sentada na cama, o
olhar perdido, expressão abatida, as mãos na minha barriga. Ele se aproxima
e se senta do outro lado do colchão.
— A comida está pronta.
Não sinto fome, mas penso mais no meu bebê do que em mim, por isso,
decido me alimentar. Ele me ajuda a me levantar. Olha para a pilha de roupas
e objetos perto da porta e depois me indaga com um olhar curioso.
— Pode descartar para mim depois?
Com um sorriso, meu primo acena em positivo. Embola tudo e enfia
em um saco de lixo, descartando-o em seguida quando já estamos na cozinha.
Ele fez algo simples e rápido, mas ajeitou a mesa de modo a ter uma
atmosfera mais aconchegante e familiar. Estamos terminando de comer
quando o celular dele toca. Adrien confere a ligação.
— É o seu Ferdinand… — cicia, olhando fixamente para a tela do
telefone.
— Pode ir. Eu vou ficar bem.
— Tem certeza? — Confirmo. — Eu volto à noite, para te fazer
companhia.
Ele se levanta, deixa um beijo na minha testa, me manda trancar a porta
e ligar para ele, caso precise. Termino de comer, junto a louça na pia e subo
para o quarto. Ligo a televisão e deixo em um canal qualquer. Fecho as
cortinas, não querendo a luz do dia. Deito-me na cama e tento me concentrar
na televisão, passando um comercial qualquer de creme dental.
Por um instante de paz, me esqueço de tudo e consigo apenas pensar no
meu bebê. Envolvo meu abdômen de novo, desejando já poder senti-lo. É
incrível como sou capaz de amar um ser que não conheço, que sequer sei o
sexo, que ainda nem vi. Fecho os olhos, planejando uma porção de coisas
para meu futuro. Tem um quarto ao lado do meu que pode ser do bebê
quando tiver mais idade, e já penso em decorá-lo. Colocar uns ursos de
pelúcias, poltrona de balanço, cômodas recheadas de roupinhas dobradas,
perfumadas e passadas. Livros infantis para ler para ele antes de dormir.
Sistema de som com músicas suaves.
Fazendo esse tipo de planejamento, pego no sono. Desperto aos poucos,
não sei quanto tempo depois, por causa de um barulho vindo da sala.
Remexo-me na cama e puxo o edredom no meu corpo, sentindo o cansaço
massacrar meu corpo e ignorando o barulho. O gemer da porta dispara meu
coração, os passos pesados pelo quarto me deixam nervosa. Abro os olhos,
assustada, no mesmo instante em que uma mão grande tapa minha boca e seu
corpo pesado recai sobre o meu.
Pavor toma conta de mim quando nossos olhos se encontram. Ele está
aqui! Seu sorriso é perverso para mim. Tento gritar, mas sua mão pesada
abafa qualquer tentativa.
— Não vou te fazer mal — Antony diz, mas seus olhos dizem o
contrário. — Não digo o mesmo sobre o bastardo no seu útero. — Com isso,
ele ergue um canivete à altura dos meus olhos.
Tento gritar, a plenos pulmões, e lágrimas escorrem dos meus olhos,
entretanto, sua mão continua impedindo que eu peça qualquer tipo de ajuda.
Quero implorar, por tudo quanto é mais sagrado, que não faça nada ao meu
bebê. Começo a ficar sem ar, me debato debaixo dele, mas Antony sequer se
move, não dando nenhuma brecha de que vai se afastar mesmo que seja um
centímetro para eu respirar.
— Quero garantir que não abra a porra da boca e conte a Ann-Marie —
murmura, encostando a lâmina fria no meu rosto e descendo.
Ela já sabe, seu idiota! Não, por favor, por favor, não. Não-não-não-
não-não. NÃO!
— Eu também nunca gostei de crianças, Julie. São serezinhos irritantes
e nojentos que só dão prejuízo. — Com a mão desocupada ergue meu
cardigã. Sinto a temperatura quente da sua pele na minha e em seguida a
frieza do canivete estacionado na altura do meu útero.
Berro ainda mais, o ar ficando cada vez mais escasso, a inconsciência
ameaçando me dominar. Meus pulmões doem, a garganta arranha.
— Vou te fazer um favor e um dia você ainda vai me agradecer.
Sem que eu espere, ele crava o canivete em mim.
Eu grito estrondosamente, encurvando o corpo para frente e acordando
de um pesadelo real demais para suportar.
Estou em lágrimas, apalpando desesperadamente meu abdômen.
Intacto.
— Julie! — Adrien aparece, todo alarmado, e vem até mim.
Eu caio nos seus braços, chorando como uma criança que perdeu os
pais. Ele me abraça forte, murmurando palavras que não têm o poder de me
acalentar. De repente, eu me afasto do conforto e da segurança dos braços
dele e torno a averiguar minha barriga, olhando para meus dedos à procura de
sangue de uma ferida que não existe.
— Juliette, o que aconteceu?
— Ele estava aqui! — explico, toda desesperada e aos prantos. Minhas
mãos estão trêmulas e seguem examinando minha pele.
Bernardo vem para uma visita uma semana depois. Estou sozinha nessa
ocasião, uma vez que Adrien me faz companhia somente à noite. Ele vem,
prepara o jantar, conversa comigo e dorme no quarto ao lado do meu. Ainda
não me sinto preparada para ficar sozinha na minha casa outra vez, mesmo
assim, disse ao meu primo que se ele quisesse, poderia voltar a dormir em seu
apartamento e seguir a vida. O homem me escuta? Não. Ele já trouxe alguns
pertences e itens de higiene pessoal, e tem ficado comigo desde então. Disse
que ficará quanto tempo for necessário.
Durante a primeira semana, foi um pouco mais difícil retomar a rotina.
Eu me afastei do trabalho e, em casa, durante o dia, sozinha, não consegui
repousar como queria. Adrien chegava e fazia uma coisa ou outra para que eu
apenas repousasse no dia seguinte, mas confesso que não tive paciência para
ficar de molho na cama o dia todo, então fiz algo aqui ou ali, o quanto minhas
costelas permitiam. Meu rosto está quase cem por cento recuperado. O
inchaço foi embora, o corte na boca fechou, os hematomas roxos sumiram
quase por completo, restando apenas algumas poucas e pequenas manchas
amareladas que também devem sumir nos próximos dias.
— Como você está, ma chère? — pergunta, acomodando-se no sofá.
Sento-me ao lado dele, entregando-lhe uma xícara de café.
— Me recuperando, merci.
Molho os lábios, tentada a perguntar se ele tem notícias de Leclerc, se
encontraram uma maneira de puni-lo por ter me espancado e por ter fraudado
duas empresas. Se Bernardo veio aqui, talvez seja porque tem novidades
sobre o caso?
— E seu bebê?
Abro um sorriso pequeno e desvio o olhar por um segundo.
— Estamos bem, Bernardo. Obrigada por perguntar.
Ele toca minha perna.
— É bom ouvir isso. — Apoiando a xícara sobre o pires na minha mesa
de centro, prossegue: — Vim porque preciso resolver com você sua situação
lá na cafeteria. Não pense que quero que volte logo, não é isso. Tire o tempo
que precisar para se recuperar.
— Não sei se quero voltar — respondo, com sinceridade.
— Eu entendo. Supus que não gostaria mesmo de continuar. E quer
saber? Faz muito bem. Não pode ser presa fácil para Antony, porque sabe lá
Deus o que ele é capaz de fazer. Mas quero que continue comigo. Posso te
transferir para uma das filiais na cidade vizinha, onde ele não vai te
encontrar.
Fico tocada com o gesto e com as intenções de Dousseau. Ele está
mesmo preocupado comigo, com meu bem-estar, mas eu não vou deixar
minha cidade por causa de Antony. Paris é grande o bastante para que eu viva
bem e em paz. Se for necessário me mudar de casa, de bairro, ainda faço isso,
embora eu prefira optar por um sistema de segurança; contudo, mudar-me da
minha cidade natal está fora de cogitação. Aquele homem não vai me
controlar.
— Agradeço muito, Bernardo, e desculpe se vou parecer ingrata, mas
não quero deixar Paris. Não vou me mudar por causa de Antony. Nesse
momento, prefiro deixar a cafeteria, talvez arrumar outro emprego… Não sei
se conseguirei isso por causa da gravidez. Mas, de qualquer maneira, tenho
uma reserva de dinheiro e posso me manter até poder dar entrada na licença-
maternidade. Espero que possa me compreender.
— É claro que compreendo, Juliette. Mas sabe que eu não posso te
demitir, por causa da estabilidade, e se você pedir demissão, perde os
benefícios do seguro-desemprego.
— Estou ciente disso, não se preocupe.
Bernardo balança a cabeça em positivo e termina seu café.
— Vou te dar uma carta de recomendação. Se não conseguir nada
agora, pode conseguir depois que ganhar o bebê e puder ingressar o mercado
outra vez. E saiba que se uma hora quiser voltar a trabalhar comigo, sempre
terei uma vaga para você. Basta me procurar.
Eu me aproximo dele e o abraço, sentindo minha emoção na garganta,
os olhos queimarem. A gente sabe quem é nosso amigo de verdade em
momentos como esse. Bernardo e eu sempre mantivemos uma relação muito
estritamente profissional. Ele tem um jeito excêntrico demais para um
francês. É quente no sentido de ser muito receptivo, algo avesso aos
parisienses, talvez por causa da sua metade brasileira. O tempo todo que
trabalhamos juntos, ele manteve um limite de intimidade entre nós, nunca
deixando que seu lado excêntrico e brasileiro ultrapassasse esse limite. Não
me lembro de alguma vez ter chegado na cafeteria e perguntado como foi
meu dia de folga. Esse tipo de comportamento até pode transparecer que
nunca se importou de verdade, mas aqui está ele, mostrando que, apesar de
nunca ter demonstrado qualquer tipo de preocupação, se preocupa, sim.
— Merci, Bernardo. Por tudo. Tudo mesmo.
Ele me afasta e deixa um beijo no meu rosto.
— Qualquer coisa que precisar, me ligue, oui?
Eu o acompanho até a porta.
— Oui — afirmo. — Bernardo… — chamo-o com cuidado. Ele se vira
para mim. — Alguma novidade? — Não preciso explicar, ele sabe do que
estou falando.
— Infelizmente não. — Suspira. — E isso me atormenta também,
sabe? Ann-Marie ia pedir o divórcio, para finalmente ficarmos juntos, mas
teve que adiar porque ficamos com medo de Antony achar que você contou
alguma coisa e pudesse tentar te fazer algum mal de novo por causa disso.
— O Antony também a agredia…? — pergunto, quase com um
sussurro.
— Não como fez com você — menciona, baixando o tom de voz.
Inspiro fundo, tentando afastar lembranças doloridas. — Mas ele a agredia,
sim. Agredia sua autoestima, a agredia com palavras. Ele a privava de ter um
trabalho, suas próprias finanças, tirava sua liberdade, a afastava das amigas.
Uma vez chegou a empurrá-la. Antony nunca bateu nela, mas não anula o
fato de que continua sendo tóxico e violento. A violência física sempre
começa com a psicológica, Juliette.
Reflito um momento, tendo de concordar com ele.
— Como ela está? — Sou sincera. Quero mesmo saber do estado dela
com essa história toda. Fui estúpida em julgá-la. Agora vejo que ela se
aproximou de Bernardo muito provavelmente porque o marido era um idiota.
É claro que era. Ele me dizia que tinha de sustentá-la porque era uma
acomodada. Mentiroso dos infernos! A verdade, noto somente agora, é que
ele a proibia de trabalhar, de ter sua independência e autonomia.
Essa mulher estava vivendo um casamento de merda e de repente
conhece o Bernardo, que deve ter colocado sua autoestima em um pedestal e
demonstrado como é o completo oposto de Antony.
— Ann-Marie está bem, na medida do possível. Com medo de ficar sob
o mesmo teto dele, claro, mas não podemos fazer nada no momento. Não
enquanto for uma ameaça para todos nós.
— Sinto muito — falo, sentindo-me levemente responsável por isso. Se
eu não tivesse tido a ideia absurda de engravidar, ou de confrontá-lo,
ameaçando contar tudo a esposa, talvez não tivéssemos chegado a esse ponto.
— Isso é minha culpa, não é?
Ele dá um passo para frente e me segura pelas mãos.
— Não. Nunca será.
Um nó se forma na minha garganta.
— Eu me envolvi com ele. Engravidei para tentar afastá-lo da mulher,
depois ameacei trazer nosso caso à tona, e foi onde me espancou e saiu
impune, colocando todo mundo sob ameaça. Se eu não tivesse…
Seu dedo indicador toca meus lábios.
— Nem pense em terminar esse absurdo. Você não tem culpa de nada.
Pode ter errado, Juliette, e todos nós erramos, mas foi ele quem cometeu um
crime, não você, oui?
Sorrio e abano a cabeça em positivo.
— Espero que dê tudo certo para você e Ann-Marie
Bernardo sorri e me dá um último abraço e um beijo no rosto antes de ir
embora.
Mesmo que Étienne não tenha concordado com a ideia, decido colocar
o nome de Jeaninne no mausoléu da família Laurent no Cemitério do Père-
Lachaise, localizado na Boulevard de Ménilmontant, no 20º arrondisement
de Paris, cerca de meia hora da minha casa.
Aproveito para levar flores para minha mãe e colocar uma foto nova, já
que a daqui o tempo desgastou. Acendo uma vela ou outra e rezo pelas almas
delas. Passo algum tempo no cemitério, talvez não mais do que vinte
minutos. Não venho aqui com frequência. Talvez duas vezes ao ano: em dois
de novembro e dez de janeiro, dia dos mortos e aniversário de morte da
minha mãe, respectivamente.
Busco pelas horas. Oito da manhã. Preciso me apressar para começar o
atendimento na clínica e depois para meu plantão no hospital público, às sete
da noite. Puxo a gola do casaco para proteger meu pescoço do vento gelado
que sopra contra minha pele e caminho entre as lápides em direção à saída do
cemitério.
Então, nas mais improváveis das hipóteses, eu a vejo. Está ao longe,
segurando um ramalhete de flores, entre túmulos e mausoléus, em um
corredor apertado onde passam mais pessoas. Juliette está cabisbaixa, posso
vê-la apenas de perfil, ajoelhando-se devagar para colocar as flores sobre a
cripta. Demoro a notar que sorrio levemente para mim mesmo, observando-a.
Forço minhas pernas a continuarem meu caminho, mas não me obedecem e
permanecem no mesmo lugar, meus olhos fixos nela. Talvez eu devesse me
aproximar e dizer um olá, ou talvez não. Tenho medo de parecer que estou a
seguindo quando o encontro é por acaso.
Por fim, consigo forçar minhas pernas e torno a fazer meu trajeto. Já
estou cruzando o portão de saída quando ouço sua voz:
— Doutor Laurent?
Giro lentamente nos meus calcanhares. Juliette está a quatro metros de
mim. Cabelos soltos, maquiagem leve, uma boina, echarpe, casaco e vestido
preto.
— Juliette… — digo suavemente, sem forçar surpresa em minha voz e
sem perceber que a chamo pelo primeiro nome. Ela dá três passos para frente,
vencendo a distância entre nós. — Que bom ver você.
— Está sozinho? — indaga, olhando ao redor.
— Sim. Vim visitar o túmulo da minha mãe. — Não entro em detalhes
sobre Jeaninne. Acho desnecessário no momento.
— Sinto muito — murmura, parando do meu lado por um segundo e
tornando a caminhar. Eu a acompanho, segurando com mais firmeza do que o
necessário a alça da minha bolsa.
— Foi há muito tempo — respondo, abrindo um sorriso fúnebre. — E
você, quem veio visitar?
Ela suspira.
— Meus pais.
Um silêncio denso recai sobre nós enquanto continuamos caminhando.
Deixei meu carro a duas quadras daqui para poder caminhar um pouco. Tento
encontrar algo além do habitual “sinto muito”. Não consigo não pensar que
ela terá de lidar sozinha com a maternidade sem o apoio da mãe. Minha
mente me leva para Étienne, que se virou quando Édouard nasceu, porque a
esposa também não tinha nenhuma figura materna. Na primeira semana, uma
enfermeira do hospital onde meu sobrinho nasceu ajudou nos primeiros
cuidados; depois disso, meu irmão contratou uma para acompanhá-la no
primeiro mês.
Fico pensativo se Juliette vai ter o mesmo. Muito provavelmente, fará o
curso que o governo oferece aos pais para lidar com a dor do parto, a
amamentação, os cuidados com o recém-nascido, mas nada disso supre a
presença de uma figura que estará ao seu lado para ajudá-la de fato. Sorrio ao
me lembrar de Jeaninne chegando no meu apartamento que dividia com
Francine e me pedindo, quase de forma desesperada, para ficar com o menino
porque ela queria dormir, tomar um banho mais longo, ou simplesmente se
sentar no sofá, se empanturrar de guloseimas e assistir a um filme qualquer.
Se eu podia ficar com ele, ficava, sem reclamar, porque sabia que ela
precisava realmente de um tempo.
Odeio pensar que poucas mulheres podem de fato contar com alguém
para esse tipo de coisa. Na maioria das vezes, estão sobrecarregadas,
cumprindo jornada dupla ou tripla de trabalho, mal tendo tempo para comer
sossegadas. Então, me pego pensando nela, na rotina maluca que sua vida vai
se tornar, em tudo que terá de abrir mão, nas noites mal dormidas, em como
terá que se virar para conciliar vida pessoal (se ainda tiver), trabalho e os
cuidados com o filho. Pensar nisso me deixa meio triste.
— O que vai fazer agora? — pergunto e só neste momento percebo que
ela segura uma bolsa transversal contra o tronco, parecida com a minha.
— Ia entregar alguns currículos apenas — confessa, desviando os olhos
rapidamente.
— Quer tomar um café? — ofereço. — Por minha conta. — Ignoro sua
leve contradição sobre trabalho. Uma semana atrás, me disse que deixou a
cafeteria de Dousseau para cuidar do filho.
— Laurent… — Ela suspira, e já sei que vai negar meu pedido, talvez
achando inadequado. — Não quero incomodar.
— Se estou convidando é porque você não me incomoda. Vamos? —
reforço o convite, ignorando meu horário apertado para chegar à clínica.
Juliette aceita e caminhamos até o Café Ménilmontant, na mesma rua
do cemitério e a seis minutos de caminhada. Escolhemos uma mesa para dois
no ambiente externo e nos sentamos um de frente para o outro. Uma pessoa
vem nos atender; ela opta por chocolate quente e um croissant. Escolho suco
e salada de frutas.
— Visita o túmulo dos seus pais com frequência? — pergunto,
retomando nosso assunto anterior.
— Não como gostaria — admite. — Mas hoje me deu aquela saudade
que aperta, sabe? Eu… acho que minha mãe não ia ficar muito feliz com a
minha gravidez, dadas as circunstâncias e… — Para de falar de repente,
como se estivesse revelando algo que não deveria.
Sorrio, fingindo que seu deslize não despertou ainda mais curiosidade
em mim. O que quis dizer com “dadas as circunstâncias”? Já entendi que a
figura paterna é nula, então penso que sua mãe não ficaria feliz com a filha
grávida de um idiota que não assumiu as responsabilidades. Juliette leva
apenas um segundo para consertar seu erro:
— Ainda assim, ela me ajudaria, porque não conseguiria ficar muito
tempo com raiva de mim. É uma pena nunca poder conhecer o neto.
— Se importa se eu perguntar o que houve com sua mãe? — indago,
esforçando-me para não questionar o que realmente quero saber.
— Câncer de pulmão. Morreu aos quarenta e cinco anos, eu tinha
quinze. Ela fumava desde os doze.
— Um mal hábito do nosso povo — pontuo, e ela concorda com um
pequeno sorriso.
— Eu também fumei, por algum tempo. Sei lá, dos quinze aos dezoito.
Consegui me livrar do vício — completa.
— Seu pai também faleceu… — Deixo a frase no ar, com um sussurro.
— Sim. Teve um AVC hemorrágico, três anos atrás.
Nossos pedidos chegam. Ela beberica seu chocolate quente e não deixo
de achar gracioso quando o chantilly faz um bigode nos seus lábios. Juliette
limpa, passando a língua algumas vezes e saboreando o creme ao mesmo
tempo.
— E sua mãe? — Se vira para mim e pergunta.
Brinco um instante com a minha salada de frutas antes de responder:
— Faleceu por negligência médica. Eu tinha uns onze anos quando isso
aconteceu. Meu pai ainda é vivo. Se casou de novo, há uns nove anos, e vive
em Rennes, numa pequena fazenda.
Ela sorri, os lábios rentes à xícara, e bebe um gole do seu chocolate.
Como minha salada de frutas, saboreando o instante de silêncio sobre nós.
Quando ela se manifesta de novo, mudamos de assunto. Gautier me pergunta
sobre meu trabalho e depois, meio resignada, posso sentir, comenta sobre o
trabalho que tinha na cafeteria de Dousseau. Eu sinto que ela sente falta de lá,
da rotina, do trabalho, dos colegas. Sinto pelo modo cabisbaixo que me conta
sobre os últimos anos, pelo tom de voz carregado, o olhar meio perdido,
postura ligeiramente abatida. Ela não deixou o emprego para se dedicar ao
bebê. Tem algo por trás dessa decisão que não está me contando.
— Disse que ia entregar alguns currículos — menciono, terminando
meu suco. Ela come o último pedaço do seu croissant e abana em positivo. —
Mudou de ideia? — questiono-a, e Juliette me olha de soslaio. — Digo… na
semana passada me contou que tinha deixado o emprego para cuidar do filho.
— Ela parece notar a contradição que caiu e faz uma expressão engraçada. —
Está tudo bem — acalento. — Não tem motivos para me contar por que
decidiu deixar o emprego.
A moça sorri, em agradecimento.
— Não sei se vou encontrar outro com facilidade. Na minha condição,
entende? — brinca, mandando olhares para a barriga.
É então que uma ideia absurda passa pela minha cabeça.
— Posso te conseguir alguma coisa.
Ela me analisa, curiosa e resignada.
— Não tem que se incomodar com isso, Laurent…
Em um ato meio impensado, toco sua mão sobre a mesa. Juliette olha
de mim para nosso contato, e demoro a notar a aproximação ousada. Sua mão
está quente, na temperatura de quem a aqueceu com a xícara de chocolate. É
gostoso. Mesmo quando percebo o contato, não me desfaço dele. Não
consigo.
— Vamos pular a formalidade, que tal? Não me importo que me chame
pelo primeiro nome.
— Tudo bem — murmureja, direcionando um rápido olhar para mim.
— Ainda assim, não precisa se incomodar.
— Não é incômodo algum. Pelo que entendi, na cafeteria você cuidava
da parte administrativa, certo? — Juliette concorda. — Há uma vaga no RH
da clínica. É um trabalho fácil, horário comercial, que não vai te exigir muito.
Posso conversar com o responsável pela seleção… Ele me deve um favor,
então, não vejo por que não te indicar.
— E você acha que ele vai aceitar uma mulher grávida que, dentro de
alguns meses, terá de tirar uma licença, e ele precisará fazer outra seleção?
— Em nome da amizade que nós temos, ele vai, sim. Se você quiser,
posso arranjar isso.
Juliette desvia o olhar por um momento, fixando-o no prato vazio e
com migalhas do salgado folhado.
— Eu aceito — diz, um segundo depois. — Não terei nunca como te
agradecer, Pierre.
Aperto seus dedos nos meus.
— Não tem que me agradecer. Deixe um currículo comigo, entregarei
ao meu colega ainda hoje.
Sem esperar muito, ela retira um da sua bolsa, junto com a cópia de
uma carta de recomendação assinada por Bernardo, e guardo na minha bolsa.
Juliette olha a hora no relógio de pulso.
— Tenho que ir. Muito obrigada pelo café e pela ajuda. Muito obrigada
mesmo. — A moça se levanta da sua cadeira e vem até mim, envolvendo-me
naquele seu abraço gostoso e apertado. Eu a sinto inclinar a cabeça levemente
para o lado, roçando o nariz no meu pescoço. Meu coração acelera nesse
instante. Correspondo ao seu gesto, apertando-a contra a mim mais do que
deveria.
— Não precisa me agradecer. Vou pagar a conta e… talvez te dê uma
carona? — sugiro, chamando a garçonete e entregando meu cartão de crédito.
— Vou de metrô, Pierre, não se preocupe. Moro em Montreuil.
Insiro a senha na maquininha e digo:
— Posso te acompanhar até o metrô, então?
Ela concorda com um sorriso. Pego meu cartão e a via do cliente, enfio
tudo no bolso de trás e deixamos a cafeteria. A caminhada até a estação
Ménilmontant é rápida, menos de cinco minutos. Conversamos durante o
rápido percurso, ela me contando que já vai começar os preparativos para
montar o enxoval.
— Espero que esteja certo sobre o sexo do bebê — brinca — porque já
estou planejando montar tudo azul.
— Meninas também podem usar azul — devolvo, no mesmo tom de
brincadeira. Ela ri e é obrigada a concordar. — Já escolheu o nome?
— Ainda não. Estou procurando por algo que tenha algum significado
especial, sabe?
Balanço a cabeça em positivo e faço um segundo de silêncio antes de
soltar:
— Valentin.
Juliette para de caminhar e me olha, curiosa com a sugestão.
— É um nome bonito e significa “forte” e “valente”, como os
guerreiros. E sabe… — suspiro, tornando a andar lentamente, minhas mãos
nos bolsos; ela me acompanha. — De certa forma seu bebê foi forte. — Não
gostaria de entrar no assunto, mas acaba sendo inevitável. — Depois de tudo
pelo que você passou… ele sobreviveu, lutou pela vida dele.
Juliette fica cabisbaixa outra vez, caminhando e olhando para suas
sapatilhas. Engulo em seco, não sabendo se foi certo me intrometer assim e
fazê-la se lembrar do ataque que sofreu.
— Olha… — Tento dizer alguma coisa, mas sou interrompido.
— Gostei da sugestão — alega, virando-se para mim e sorrindo. —
Valentin. Valentin — repete, como se experimentando a sonoridade do nome.
— Vai se chamar Valentin.
Juliette olha ao redor. Chegamos à estação.
— Obrigada, Pierre — agradece, dando um passo em minha direção.
Meus batimentos cardíacos falham de novo, como quando acontece quando
essa mulher se aproxima assim e sei que vai me abraçar. — Fico te devendo
um café — murmura, meio hesitante.
Estou quase findando a distância entre nós dois para eu mesmo abraçá-
la, mas ela, por fim, deixa de resistir e me abraça. Fecho os olhos por um
segundo, concentrando-me no aroma da sua pele, do seu cabelo, da sua
temperatura corporal.
— De rien — murmuro em seu ouvido. “De nada”.
Juliette se afasta aos poucos, mas para quando nossos olhos se
encontram, seu nariz tão perto do meu que posso sentir sua respiração quente.
Então, ela deixa um beijo no meu rosto, meio úmido, sorri pequenino,
despede-se com um murmúrio e segue seu caminho.
JULIETTE
A porta se abre antes que eu possa pôr a chave na fechadura. Adrien
está do outro lado, com um sorriso enorme, calças jeans velhas, camisa
branca com manchas antigas de tinta e um cinto com algumas ferramentas
penduradas à cintura. Olho-o de cima a baixo, curiosa do porquê estaria
vestido assim.
— Bonjour — cumprimento-o, e ele me puxa para dentro, respondendo
com uma alegria que parece atípica do meu primo.
— Bonjour. Onde estava? Acordei e não te vi.
Jogo minha bolsa no sofá e me sento em seguida enquanto respondo:
— Fui ao cemitério visitar o papai e a mamãe. — Meu tom sai meio
melancólico. Sinto saudades deles.
Estou esticando minhas pernas para apoiá-las na mesinha de centro,
mas Adrien me puxa pelo punho, pondo-me em pé outra vez. O desânimo me
acerta com força, quase me arrastando de volta para o estofado. Preciso
descansar. Minha barriga nem realmente pesa ainda e já estou fadigada,
credo.
— Vem, tenho uma coisa para te mostrar — fala, levando-me para o
quarto onde tem dormido.
Pois é. Já tem mais de um mês que tudo aconteceu e ele continua aqui.
Eu já o mandei embora, mas meu primo me conhece bem o bastante para
saber que ainda não estou preparada para ficar sozinha de novo, então se
mudou para cá temporariamente já tem cinco ou seis semanas e não tem
previsão de voltar para seu apartamento. Serei eternamente grata por todo seu
apoio.
Adrien para frente à porta do quarto, que está fechada, e me olha com
um semblante superanimado. Fico contagiada com o jeito dele e estou
sorrindo abertamente sem nem saber o motivo. Ele põe a mão na maçaneta e
vai abrindo devagarinho. Lá dentro, por fim, me revela o motivo por fazer
tanto suspense. Está uma bagunça e já quero matá-lo. Adentro o ambiente,
desviando-me de algumas latas de tintas, madeiras, ferramentas, rolos e
pincéis. A cama dele está desmontada e encostada em um canto, o colchão
enrolado em um plástico improvisado. Viro-me para ele, compreendendo o
que está acontecendo aqui. Fico balançada com sua atitude e, se segundos
atrás queria matá-lo agora, quero colocá-lo em um potinho.
— Adrien… — Nem sei como começar.
Meu primo dá um passo à frente e me toma em seus braços fortes.
— Vamos começar a preparar o quarto para esse pivetinho, tá bem?
Rio contra seu peito duro quando ele chama Valentin de pivetinho. E
rio ainda mais quando noto que já me habituei ao nome do bebê. Um segundo
mais tarde, estou pensando em Pierre, no momento agradável que tivemos na
cafeteria uma hora atrás.
— Você não tem que fazer isso … — murmuro, não querendo parecer
uma ingrata, mas também não querendo me aproveitar da boa vontade dele.
— Não tem obrigação nenhuma.
Ele me afasta e me olha.
— Não estou fazendo por obrigação. Estou fazendo porque quero,
porque você é minha prima, porque esse garotão aqui… — Coloca a mão no
meu abdômen. — É minha família.
— Mesmo assim — cicio, ainda sem jeito com esse seu gesto. — Não
tinha que gastar com isso, Adrien. Você já tem suas despesas e…
Ele cala meus lábios com dois dedos.
— Não tem que se preocupar com minhas finanças. Considere isso
como… — Adrien pensa por um segundo, entortando a boca de um modo
engraçado que sempre faz quando está refletindo. — Presente de padrinho.
— Presente de padrinho? — devolvo, enquanto ele me contorna e pega
uma lixa. — Quem disse que você será padrinho do Valentin? — debocho.
Adrien está lixando a parede da janela quando se vira para mim, o
cenho enrugado.
— Valentin?
— O nome dele — falo, colocando a mão na minha barriga — será
Valentin.
— Lindo nome — elogia. Balança os ombros em seguida,
completando: — E queira você ou não, eu serei o padrinho dele.
— Precisamos arrumar uma madrinha.
O atrito da lixa com a parede, um rec-rec-rec, causa um arrepio
esquisito na minha coluna. Pessoas têm arrepios com mãos molhadas em
plásticos, o risco do giz na lousa, quando o garfo arranha o fundo do prato de
vidro, e eu acabei de descobrir que tenho arrepios com o atrito da lixa. Adrien
raspa o concreto, retirando os resquícios da antiga pintura, com rapidez e
habilidade. O cara é um verdadeiro faz-tudo. Está agachado agora, lixando o
rodapé.
— Não tem nenhuma amiga?
Penso por um segundo e descarto qualquer uma que me venha à mente.
Nenhuma delas têm o mesmo nível de importância que Adrien tem. E
entendam, quero alguém presente na vida do meu filho. Não digo para mimar
com coisas materiais e enchê-lo de bajulações. Quero alguém que se
comprometa com o garoto e o ame de verdade. Como sei que meu primo vai
amar. Com muita dor no coração, penso que ele será a única figura paterna
que Valentin terá. Seco uma lágrima que escorre quase sem que eu perceba e
afasto esses pensamentos bobos. A figura de Bourdieu será a melhor que meu
filho poderá ter. Tenho muito orgulho do meu primo, do seu esforço, do seu
caráter.
— Nenhuma que mereça o posto ao seu lado — respondo,
aproximando-me e me sentando sobre uma lata de tinta azul-bebê. Observo-o
trabalhar e só então me ocorre que: — Espera, hoje não é o seu dia de folga?
Quando Adrien olha para mim, seu rosto, cílios, sobrancelhas e barba
estão cheios de pontinhos brancos. Ele dá de ombros e torna a realizar sua
tarefa de preparar a parede para receber a demão de tinta.
— É, sim.
— Adrien! — advirto-o e tomo a lixa da sua mão. — Você deveria
estar descansando!
Ele consegue recuperá-la com um golpe muito baixo: prende minha
cintura e faz cócegas nas minhas axilas. Caio na gargalhada enquanto a rouba
de volta.
— Se eu não fizesse isso hoje, não sei mais quando faria. Sabe que
minhas folgas não têm dia fixo.
— O Ferdinand te explora, sabia? — rebato, sentando-me novamente
na lata de tinta. — Acho muito injusto você não ter uma folga por semana.
Aliás, antes dessa, quando foi que você folgou? No dia em que foi me ver no
hospital, não é? Adrien, você está ciente que isso está muito errado e…
— Olha, Julie, não precisa se preocupar comigo, certo? — interrompe-
me suavemente. — Tenho um horário flexível com o seu Ferdinand, ganho
muito acima do piso de motorista e recebo regalias porque ele me estima
muito. Não há motivos para eu reclamar.
Decido não insistir no assunto, mas que acho injusto, eu acho.
— Mesmo assim — digo —, você deveria estar aproveitando sua folga
para, sei lá, dormir, fazer nada, ver série, sair com alguma garota. — A essa
última sugestão ele bufa e balança a cabeça em negativo, e eu preciso segurar
uma risada maior. — Ou até se dedicar ao seu doutorado. Não tinha que estar
aqui, fazendo isso por mim.
— Eu durmo à noite; sabe que dificilmente fico sem fazer nada; odeio
séries de televisão; não tenho nenhuma pretendente e não quero nem saber de
doutorado nas minhas folgas; já me preocupo o bastante com ele nos outros
vinte e nove dias do mês. — O maldito tem resposta para tudo. Adrien para
seu trabalho, bate as mãos na bunda para limpá-las e vem até mim de novo,
agachando-se à minha altura. — Se eu não quisesse estar aqui, fazendo isto,
sabe que eu não estaria, Juliette. Então… me deixa estar aqui, pode ser? Me
deixa fazer o quarto do Valentin, porque faço de bom grado.
Meus olhos juntam tantas lágrimas que mal consigo enxergá-lo. Nem
sei o que fiz para merecê-lo na minha vida. Se não fosse meu primo, com
toda certeza ia segurá-lo para mim, porque Adrien é uma raridade nesse
mundo. Deixo um beijo no seu rosto e abano a cabeça em positivo. Ele sorri,
afaga minha bochecha e então volta para a sua tarefa.
— Vou pedir alguma coisa pra comermos. Tem alguma preferência?
Menos chinesa e afins, sabe que eu odeio — digo, sacando o celular e
acessando o aplicativo delivery.
Ele dá uma risada e responde:
— O que pedir, para mim está ótimo. Mas, olhe, deve pedir coisa
saudável, por causa do bebê.
— Mas Valentin está muito a fim de um hamburguer enorme, porção
de batata frita, um refrigerante e de sobremesa um crème brûlée delicioso —
brinco, pedindo realmente hamburgueres, batatas fritas e refrigerante para
almoçarmos.
Adrien gargalha e balança a cabeça em negativo.
— Por que escolheu esse nome? — pergunta, terminando sua tarefa
nesse ponto e passando para a próxima parede. Preciso girar meu traseiro
sobre a lata de tinta para vê-lo trabalhando.
— Sugestão de um amigo — respondo.
Meu primo se vira para mim. A sujeira branca no seu rosto e cabelos o
deixa engraçado.
— Amigo? Que amigo?
Desvio o olhar. Às vezes me esqueço que Adrien me conhece melhor
do que qualquer outra pessoa. Ele sabe que tenho poucos amigos e, se um do
nosso círculo tivesse mesmo dado essa sugestão, eu teria sido mais
específica. Ele inclusive conhece todos os sinais de quando estou mentindo,
ou me esquivando, ou sendo sucinta.
Ele espera por uma resposta, mão na cintura, olhar fixo em mim.
— O doutor Pierre — respondo, torcendo para que Adrien não junte
“a” mais “b”. Mas ele não é estúpido nesse nível. Claro que não.
— O mesmo que cuidou do seu caso? — Agora ele se aproxima e se
senta na outra lata de tinta, de frente para mim, altamente curioso.
— Oui. Ele mesmo. Inclusive, é o obstetra que está fazendo meu pré-
natal na clínica particular. Não mencionei nada para você?
Adrien me dá um empurrão amigável.
— Seu cinismo me admira, sabia? — fala, rindo um pouquinho. Então
o sorriso vai indo embora pouco a pouco. Um silêncio recai sobre nós e sei
que está matutando. — Quando foi que ele te deu essa sugestão?
— Hoje. Nos encontramos por acaso, no cemitério.
Meu primo pestaneja um monte de vezes.
— Tanto lugar em Paris para vocês se esbarrarem, foram fazer isso
justamente no cemitério? — Gargalho sem poder me controlar. Pensando
nisso agora, realmente foi muito esquisito. Ao me recuperar, Adrien me diz
algo que faz minha momentânea felicidade se esvair: — Não acha que é cedo
demais, Julie?
Meus olhos viram para baixo, mirando meus pés sobre o assoalho
forrado com alguns jornais. Noto agora que ele precisa ser encerado.
— Não sei do que está falando … — desconverso.
Ele suspira e pega minhas mãos.
— Está gostando dele, não é?
Abro e fecho a boca, procurando por uma resposta mentirosa e
convincente, não para dar ao meu primo, e sim para mim mesma. Como
posso gostar de Pierre? Tudo bem, ele é uma pessoa que te cativa com
facilidade, tem carisma e é… tão bom. Mas ainda não sei como… como
posso gostar dele, praticamente um desconhecido para mim e sem que
tenhamos tido qualquer contato além da relação médico-paciente, exceto pelo
café mais cedo.
— Acho que sim… — admito com um sussurro envergonhado.
O aperto dos seus dedos se intensifica contra os meus.
— Juliette, você acabou de sair de um relacionamento e…
— Eu sei — murmuro, odiando ter de concordar com o raciocínio dele.
—… e é cedo demais, entende? — completa.
Olho-o com atenção, assimilando suas palavras, estudando meus
sentimentos, tentando entender os batimentos desregulados do meu coração
nesse momento, pensando nele. Adrien tem razão. Há menos de dois meses,
estava envolvida com Antony, tão cega de amor que não conseguia enxergar
o mau-caráter que ele era e sempre foi, e agora estou aqui, tendo de ouvir do
meu primo que é cedo demais para eu estar sentindo qualquer coisa por outro
homem, por um homem que nem sequer conheço, por um homem que é o
meu médico.
— Adrien, não é nada demais — falo com a voz trêmula, não tão
segura da minha frase. — É só…
—… uma palpitação no peito, mãos suando frio, dificuldade em
respirar?
— Isso me parece taquicardia, não amor.
Ele ri, dando-me outro daquele empurrão que só amigos dão uns aos
outros.
— Estou falando sério, Julie. Conheço os sinais porque…
Inspiro profundamente e é minha vez de interrompê-lo:
— É como você fica quando vê a Marjorie?
Pela primeira vez no dia, é ele quem fica desarmado. Seus olhos claros
correm para um ponto qualquer acima dos meus ombros e fica em silêncio.
— Não torne isso sobre mim — responde. — Eu nem deveria estar te
dando esse tipo de conselho. Você é uma mulher adulta, que acabou de sair
de uma relação de merda que inclusive te levou para o hospital. — Sua voz
está firme, meio autoritária e completamente em advertência.
Levanto-me em um movimento brusco, não gostando muito do jeito
que me dirige a palavra. Adrien se ergue junto, segurando meus pulsos com
um pouco mais de firmeza, como se tivesse percebido que foi rude comigo.
— Pierre não é o Antony — rebato, livrando-me do seu toque.
Ele dá uma risada cínica e me observa como se não me reconhecesse.
— Como pode ter tanta certeza? Você nem o conhece!
Quero abrir a boca e dizer para ele parar com sua paranoia e
desconfianças sobre todos os caras de quem me aproximo, mas desisto.
Desisto, porque da última vez não lhe dei ouvidos. Desisto, porque estava
certo sobre Leclerc o tempo todo e simplesmente o ignorei. Pisco uma porção
de vezes, tentando afastar minhas lágrimas.
— Me desculpa… — pede, segurando-me pelos punhos de novo, agora
em um toque mais suave, a expressão mais branda. — Não queria ter gritado
contigo. Eu só… me preocupo, Julie.
Balanço a cabeça em positivo.
— Eu sei, Adrien. Você tem razão. Não conheço Pierre como gostaria.
E o fato de ele ser médico…
— Julie… sabe quantos casos de médicos que abusavam das suas
pacientes existem?
Dou uma risadinha amargurada e encosto o rosto no seu peito.
— Já disse que você tem razão, quantas vezes terei de repetir para
inflar o seu ego?
Ele me afasta e tem um sorriso lindo.
— E eu já te disse que me preocupo com você. — Sua mão acaricia
meu rosto. — Não estou te pedindo para nunca mais se envolver com alguém.
Estou te pedindo para ser cautelosa, para não confiar cegamente, não se
deixar levar pelas aparências e…
— … ficar atenta aos sinais?
— Sim — responde em meio a uma única risada, ainda me acariciando
no rosto. — Fique atenta aos sinais.
Uma moto buzina na rua, anunciando que nosso almoço chegou. Antes
de ir buscar a comida, eu o abraço forte de novo, refletindo todas as suas
palavras e tendo de concordar que tem razão. É cedo demais para deixar
qualquer outro homem entrar na minha vida assim. É pensando nisso que
decido que preciso me manter protegida, manter meu coração protegido,
fechado.
Longe de Pierre.
JULIETTE
Eu me forço a não torcer por um esbarrão nos corredores da clínica.
Prometi a mim mesma que manteria meu coração fechado e protegido, é meu
propósito de vida agora e tenho que me esforçar um pouco — ou talvez muito
— para conseguir inibir meus pensamentos de me levarem até ele.
Como prometido, Pierre me conseguiu uma vaga no RH da clínica onde
trabalha. Não demorou nem dois dias e fui chamada para uma entrevista. Não
que houvesse concorrência. Esperava ver alguém mais velho, mas Gustave
Legrand não deve ter mais do que trinta e cinco anos. Fez-me as perguntas
habituais, querendo saber das minhas experiências profissionais, formação
acadêmica, e fez perguntas idiotas, como por exemplo, como farei para
trabalhar quando o bebê nascer, com quem meu filho ficará e coisas que ele
não perguntaria a um homem prestes a ser pai. Mas tudo bem, é algo, acredito
eu, muito enraizado na sociedade patriarcal, não é mesmo? No geral, ele é um
cara legal comigo e temos nos dado bem durante esses cinco primeiros dias
de trabalho.
Ainda não pude agradecer Pierre pela ajuda. Ele não apareceu na
clínica, ou, se apareceu, não o vi, porque fico trancafiada em um escritório o
dia todo — exceto nos horários de pausa. É por esse motivo que preciso me
repreender por torcer para me esbarrar com ele por algum corredor. O homem
é meu médico, acabei de sair de uma relação abusiva, estou grávida e a última
coisa de que preciso é me envolver emocionalmente com alguém. Eu o verei
em breve, dentro de no máximo duas semanas, quando será minha próxima
consulta, então sossegue, Juliette.
— Gautier, horário de almoço — Gustave avisa, surgindo na frente da
minha mesa. Ergo meus olhos para me deparar com seu jeito casual e
despojado, mas elegante e profissional. Veste um blazer marrom, camisa
social azul e jeans escuros. Os cabelos são pretos, curtos e encaracolados, e
ele opta por um cavanhaque âncora, que lhe dá um charme à parte. — Faça
uma pausa, garota. O primeiro turno já acabou há quinze minutos.
Olho no relógio, do outro lado da parede, e constato o que disse.
— Me concentrei demais no trabalho — digo, levantando-me e
pegando minha bolsa.
— Olha… — diz, e noto certo cuidado na sua voz quando fala comigo.
Gustave molha os lábios mais vezes do que é necessário. — Eu normalmente
almoço em casa, moro aqui perto, mas não deixei nada pronto hoje, então…
— Pausa rápida. — Estou indo a um restaurante. Você quer vir comigo?
Diga não, Juliette!, minha cabeça manda. Eu realmente quero dizer
não, mas ele é meu chefe. No que um “não” acarretaria?
— Não é um encontro ou qualquer coisa do tipo — explica-se. —
Estou te convidando como um amigo e porque notei que você almoça sozinha
na maioria das vezes. O pessoal do RH é meio antissocial mesmo.
— Você notou, é? — indago, não gostando muito do rumo dessa
conversa.
Ele ri, meio desconcertado.
— Não é o que está pensando, Gautier. Você almoça em um restaurante
que fica na minha rota. Foi impossível não te ver sentada no mesmo lugar nos
últimos cinco dias. — Gustave olha para os lados, percebendo como tentar se
explicar só está o complicando ainda mais. — Tudo bem não aceitar, tá? Só
quis ser gentil.
Ajeito minha bolsa no ombro e cedo, afinal, ele só está tentando ser
legal, certo?
— Eu vou. Désolée se pareci desconfiada demais, é só que…
— Não precisa se explicar — interrompe-me suavemente. — Vamos?
Nós deixamos o escritório, Gustave perguntando-me o que tenho
achado do trabalho. Caminhamos lentamente pelo corredor enquanto
respondo que estou gostando, e é verdade. Não tem a loucura da cafeteria de
Dousseau, e não que eu não gostasse da loucura da cafeteria, mas a
tranquilidade do RH está me fazendo bem. Ao sairmos na recepção da
clínica, na ala da ginecologia, meu coração dá aquela disparada quando o
vejo. Pierre está terminando de dizer alguma coisa à recepcionista. Vira-se
em nossa direção, um sorriso surge nele e, ao mesmo tempo, em mim; ele
vem até nós. Troca um cumprimento com Gustave e me olha em seguida,
cumprimentando-me. Leva mais de um segundo para encontrar as palavras do
meu vocabulário e cumprimentá-lo de volta.
— Estamos indo almoçar — Legrand informa. — Quer vir junto?
Pierre nos avalia por um segundo antes de confirmar. Seguimos até um
restaurante local, não muito longe da clínica. Preciso confessar que fico feliz
que ele nos acompanhe, embora não devesse. Minha meta de não desejar esse
homem está falhando miseravelmente. Para minha sorte — ou talvez não —,
ele se senta de frente para mim no restaurante, e Gustave se senta ao meu
lado.
O telefone de Legrand toca de forma discreta enquanto ainda estamos
escolhendo o que comer. Ele pede um segundo, vira-se em sua cadeira e fala
com quem quer que seja, murmurando um merde! antes de finalizar a ligação.
— Peço desculpas — diz, guardando o telefone no bolso interno do seu
blazer —, mas surgiu uma emergência e vou ter que sair. Tudo bem para
vocês?
Quero implorar para que ele não me deixe aqui sozinha com Pierre,
mas nem isso posso fazer.
— Bien sûr. — “Claro”, Pierre responde. — O que aconteceu?
— Minha ex-mulher quer que eu vá buscar nossa filha na escola, parece
que está reclamando de dor no estômago. — Já em pé, pronto a sair, ele me
olha com um semblante de quem está realmente sentido em não poder
almoçar. Bem, eu entendo, estaria sentindo a mesma coisa. — Sinto muito.
Nosso almoço fica para uma próxima oportunidade.
Consigo apenas sorrir e acenar, estranhando o fato de me dizer isso
olhando apenas para mim.
— Não te vi esses dias para poder te agradecer — falo, assim que
Gustave deixa o restaurante, meus olhos presos no menu porque não tenho
coragem de olhá-lo nos olhos.
— Está gostando do emprego? — questiona. Quando dou uma rápida
olhada por cima do cardápio; ele está concentrado no dele, mordendo
levemente a unha do indicador. No instante em que me olha de volta, paro de
encará-lo e torno a me concentrar nas opções de pratos. Ops, pega no flagra.
Culpada.
— Estou, sim — respondo, por fim. — Gosto do ambiente calmo. Fazia
tempo que não trabalhava nessa tranquilidade toda.
— E Gustave… — Pierre menciona o nome do meu chefe com um tom
de cuidado, meio pausadamente, e abaixa o cardápio em suas mãos para me
olhar. — Tem te tratado bem?
— Gustave está sendo ótimo comigo.
— Se ele te fizer qualquer coisa que te desagrade, me avise e eu quebro
o nariz dele — brinca, abrindo um sorriso em seguida.
Gosto do humor de Pierre.
— Por quê? Ele é do tipo idiota? — pergunto.
— Ele é chefe, Juliette. Todo chefe, por mais gente boa que seja,
sempre vai ter o seu momento babaca.
Dou uma risada e preciso concordar.
— De fato. Já fui chefe, sei bem como é.
Ele aponta o dedo para mim e diz:
— Viu só.
Rimos um instante e a atmosfera fica mais leve. Pierre tem um poder
diferente sobre mim. É claro que às vezes sinto o coração bater mais rápido e
as mãos suarem frio quando estou perto dele, mas dura pouco e logo estou à
vontade. Chamamos o garçom, que anota nossos pedidos. Enquanto
aguardamos, falo um pouco sobre os últimos cinco dias e como estou me
habituando bem ao novo ambiente de trabalho.
— Tem uma coisa que está me deixando intrigada — comento,
brincando com o purê de batata um momento antes de comer. — Ainda não
chegou a conta do hospital pra mim. Meu seguro não cobriu tudo, ficou uma
pequena quantia a ser paga, mas a cobrança nunca chegou.
Pierre bebe um pouco da sua água.
— Ele não tem contou? — questiona, fincando o garfo na sua carne.
— “Ele” quem e não me contou o quê?
O homem faz uma carranca de quem está pensando, talvez tentando se
recordar de algum nome.
— Dupont. Emilien Dupont… O dia em que esteve no hospital, para te
fazer uma visita, sabe? Foi quase uma semana depois que você chegou.
Balanço a cabeça em positivo, recordando-me do referido dia. Ele tinha
ido me ver para dizer que não podia fazer nada contra Antony porque
também estava sob suas ameaças.
— Sim, me recordo.
— Então… depois que ele saiu do seu quarto, acabei ficando no
hospital por causa de uma paciente em trabalho de parto que estava
chegando. Enquanto esperava por ela, eu o vi na recepção, pedindo para a
funcionária colocar toda a conta do hospital no nome dele.
A informação me pega de surpresa, até solto minha colher. Eu não
sabia que Emilien tinha feito isso por mim. Por que raios não me contou?
— Você não sabia? — pergunta, mastigando seu pedaço de carne.
Suspiro, respondo e torno a comer.
— Não tinha ideia. Preciso procurá-lo para agradecê-lo pessoalmente.
— Vocês se conhecem do seu antigo trabalho, suponho.
E porque ele era amigo do homem que me espancou, quero adicionar,
mas faço minhas palavras descerem junto com o suco de uva na minha taça.
— Sim. É outro cliente da cafeteria.
— Você tem bons amigos. Bernardo, Emilien, aquela moça dos
girassóis, o seu primo, Marie…
— Marie… — murmuro, e me forço a ignorar que ele sabe da
informação, uma vez que ela só apareceu por lá no dia em que não estava de
plantão. Isso me abre um leque de possibilidades: ou Pierre pediu para que o
deixassem informado sobre mim e minhas visitas, ou esteve no hospital
mesmo fora do seu plantão, o que não seria nenhuma surpresa porque ele fez
isso uma vez. — Você a conhece?
— Sim. Sou ginecologista dela também. — Isso explica como a
conhece, mas não como soube que ela foi me ver. — Todos foram te visitar.
É difícil encontrar amigos assim.
Abro um pequeno sorriso e desvio o olhar para minha comida, já pela
metade. Todos eles foram realmente muito bons comigo. Não recebi
nenhuma outra visita além dessas. Nenhum dos meus colegas de trabalho, ou
dos os antigos — e escassos — amigos da escola com quem ainda mantenho
algum contato. E quer saber? Não os culpo, de verdade. Aquela cafeteria
deve ter virado de ponta-cabeça sem mim, embora a subgerente seja bem
competente e tenha habilidade o suficiente para comandar a equipe. Mas
mesmo assim, cada um deles lá tem o seu trabalho, o seu turno, sua vida e
suas próprias preocupações. Recebi algumas ligações dias depois que recebi
alta, me perguntaram como eu estava, me parabenizaram pela gravidez
(devem ter sabido por Dousseau) e me desejaram melhoras.
— Acho que tenho sorte — digo finalmente, erguendo meus olhos para
Pierre — em ter amigos como eles, apesar de não sermos tão próximos. São
boas pessoas.
— Esse Emilien… — pergunta com cuidado, depois de concordar com
minha última frase. — Ele cobriu seus gastos no hospital… Isso é normal?
Ou você acha que pode ter uma outra intenção por trás?
Acho engraçado o seu posicionamento. E fofo. Talvez tenha uma
nuance de ciúme empregado na pergunta, e isso me dá uma sensação boa, ao
mesmo tempo que esquisita. Ele está preocupado que Emilien seja um
pretendente ou estou interpretando errado? Talvez eu que esteja louca.
— É normal. Dupont tem muitas causas filantrópicas vinculadas ao
nome dele. — Quero adicionar que, provavelmente, ele também fez isso
porque, de alguma forma, se sente responsável pela atitude covarde de
Antony, ou para amenizar um pouco o fato de não poder punir meu agressor
da forma como merecia. — Duvido muito que ele saia por aí pagando contas
em hospitais, mas… nos conhecemos. Pode ser isso.
— Pode ser? — indaga, erguendo a sobrancelha de leve.
Deixo uma risadinha no ar.
— Pode. Não se preocupe que ele não teria outras intenções comigo. Se
tivesse, teria me contado, não acha? — Pierre pondera minha resposta. —
Além do mais, aquele homem deve ser assexuado.
Laurent ri quase de forma exagerada. Precisa beber mais da sua água
para ajudar a descer os pedaços de carne pela garganta.
— Por que você acha isso?
Dou de ombros.
— Nunca o vi com alguém, homem ou mulher. Sabe, se você procurar
pelo nome dele na internet, só vai ver coisas relacionadas a negócios. Não vê
uma fofoca, um escândalo, sempre sozinho. Ele é discreto demais.
— E como sabe disso? — pergunta, meio debochado. — Sinal de que
andou procurando por ele na internet.
Meu rosto enrubesce quase sem perceber. Culpada de novo.
— Bem, não posso negar de que ele é um espécime de homem muito
bonito e atraente.
— Concordo — brinca, o que me faz rir junto dele.
— E quando apareceu por lá na cafeteria, pela primeira vez, eu era uma
moça solteira, com os hormônios à flor da pele. Ele pagou em cartão, então
descobrimos o nome dele.
— “Descobrimos”? — interrompe, ainda com um tom debochado.
— Você acha que eu era a única interessada no homem? Todas as
mulheres daquela equipe ficaram ovulando.
Ele ri um pouco mais e juro: poderia passar o dia ouvindo a risada dele
que eu não reclamaria.
— Então, pesquisamos pelo nome e sobrenome dele na internet, e não
conseguimos descobrir muita coisa e nem o mais importante: status de
relacionamento e orientação sexual. Porque, convenhamos, de nada adiantaria
o homem ser solteiro se fosse gay. Conforme Emilien frequentava a cafeteria,
fui descobrindo um lado muito discreto dele. Nunca o vi acompanhado de
qualquer pessoa que não fossem homens de negócio. Por isso acho que é
assexuado.
— Nunca o ter visto com alguém não significa que seja assexuado.
Talvez muito discreto, mas não assexuado.
— É, tem razão — concordo apenas, preferindo não mencionar minha
teoria de que ele e Marie têm um caso.
— Acho que o conheço de algum lugar — Pierre declara, afastando seu
prato, agora já vazio. — O rosto dele não me é estranho.
— Ele não é nenhuma celebridade de Hollywood, mas é bem
conhecido em Paris. É CEO de uma das maiores empresas de investimentos
do país e tem as filantropias, que sempre estão em matérias de revistas.
Parece que atualmente está produzindo um documentário sobre uma ação que
ele fez na África.
Laurent reflete sobre o que eu disse. O garçom se aproxima de novo e
anota a sobremesa. Se estou louca por uma xícara de café? Sim, mas ouvi
dizer que é bom evitar cafeína na gestação. Verdade ou mentira, prefiro não
me arriscar e prezar pela saúde de Valentin.
— Pode ser, ainda assim tenho a impressão de que o conheço de algum
outro lugar.
Quando nossas sobremesas chegam, mudamos de assunto outra vez.
Dez minutos depois, pagamos a conta e caminhamos de volta à clínica. Ainda
tenho cerca de meia hora até meu segundo turno, então me despeço dele na
recepção da ginecologia, sigo pelos corredores até o escritório e retiro um
livro da minha bolsa para ler enquanto espero dar o meu horário.
Na maior parte do tempo, consigo me concentrar na leitura. Mas em
alguns instantes de distração, minha mente me leva para o almoço com Pierre
e me pego sorrindo quase nem perceber.
Liguei para cá antes de vir e me confirmaram que ele estaria aqui, mas
eu precisava ser rápida porque haveria um jatinho particular o esperando às
sete e quinze. Ele deixaria o prédio perto de seis e meia, e então só retornaria
a Paris dentro de quatro dias. Meu expediente acaba às cinco e parece
bastante tempo, mas talvez não fosse se eu ficasse presa no trânsito caótico
da cidade. Chego ao prédio da Dupont Investimentos beirando seis horas da
tarde.
Minha entrada é liberada sem muita demora. Dentro do seu terno,
elegante como sempre, Emilien vem ao meu encontro, mantendo um sorriso
amigável e receptivo.
— Gautier, que surpresa você por aqui — cumprimenta-me, parando à
minha frente e apontando para um sofá logo ao lado.
Minha conversa com Pierre sobre ele ser assexuado rebobina na minha
cabeça e preciso fazer dois esforços: o primeiro é para não rir que nem uma
louca na frente desse homem, porque seria a coisa mais constrangedora da
minha vida ter que explicar isso pra ele; o segundo é inibir pensamentos de
Emilien transando com a secretária dele justamente nesse sofá. Por que penso
nele transando com a secretária nesse sofá? Nem eu sei. Sofás, CEOs,
escritório e secretárias meio que fertilizam a imaginação, né? Deve ser isso.
Aceito sua oferta e me sento, Emilien pondo-se ao meu lado.
— Vim pessoalmente te agradecer. — Ele me olha sem me entender.
— Por ter pagado os gastos do hospital. Não precisava ter se incomodado.
— Era o mínimo que eu poderia fazer depois que… não pude te ajudar
a colocar aquele desgraçado atrás das grades.
Como pensei. De alguma forma, ele sente por também estar sob ameaça
de Antony e não ter podido fazer nada.
— Nenhuma novidade? — Não evito a pergunta. Mesmo que eu tenha
decidido não fazer nada contra Leclerc, muito por medo, lá no fundo quero
sim que pague por tudo que fez.
Emilien abana a cabeça em negativo.
— Sinto muito.
— Está tudo bem. E mais uma vez, muito obrigada.
Levanto-me, pronta a ir embora. Emilien me acompanha até a porta.
— Você e seu bebê estão bem?
— Estamos ótimos. É um menino — digo, toda orgulhosa, colocando a
mão na barriga. — Valentin.
Emilien me dá um sorriso pequeno.
— Se precisar de qualquer coisa, sabe que pode me procurar, não é?
— Eu sei, sim. Muito obrigada, Emilien. — Preciso me erguer nos pés
para abraçá-lo rapidamente.
Em casa, tiro o tênis, jogo minha bolsa no sofá e corro até a cozinha
preparar algo para comer. Minutos depois, minha campainha toca. Meu
coração dá aquela batida a menos. Adrien tem a chave, então não teria
necessidade de me chamar. São seis e meia da tarde, quem poderia ser?
Engulo em seco, com medo que seja ele. Inspiro fundo e vou atender quem
quer que esteja do outro lado.
— Pierre? — indago, surpresa ao vê-lo do outro lado da minha porta.
Com um sorriso, ele ergue um livro na frente dos meus olhos. Demoro
a notar que é o meu livro. O que ele está fazendo com meu livro?
— Você esqueceu na clínica. Achei que deveria te trazer porque…
poderia querer lê-lo. — Faz uma pausa enquanto ainda estou surpresa demais
com esse homem na minha porta, seus olhos me analisando. — Ou talvez seja
só um pretexto pra te ver.
Meu rosto enrubesce, mas não deixo de apreciar o gesto, mesmo que
seja apenas um pretexto para me ver. Principalmente porque é apenas um
pretexto para me ver. Dou um passo para o lado e convido:
— Quer entrar?
Ele entra, e eu fecho a porta, mantendo-me encostada à parede.
— Não posso ficar muito tempo. Tenho plantão em uma hora — alega,
esticando o livro em minha direção.
— Como sabia que era meu?
Pierre abre as primeiras páginas e o vira em minha direção.
— Tem um autógrafo no seu nome assinado por um tal de Theo
Venturini. Brasileiro, né? Vi as informações na orelha da capa.
Desencosto da porta e tomo o livro em mãos, o primeiro de uma série,
traduzido para o francês.
— Sim. Ele esteve em um evento literário aqui em Paris, uns dois anos
atrás. Eu fui e consegui um autógrafo. Mas me diga… — murmuro, tomada
pela curiosidade. — Como soube que esqueci o livro na clínica?
Pierre dá de ombros.
— Fui me despedir de você, mas não tinha ninguém no escritório além
desse livro na sua mesa, que, aliás, me chamou muita a atenção. Folheei e vi
seu nome nele.
Coro levemente, abraçando o exemplar contra meu peito. A capa é um
pouco chamativa mesmo, que entrega completamente o teor erótico da
história.
— E aí resolveu usá-lo como pretexto para vir me ver?
O homem abre um sorriso desavergonhado.
— Aqui estou eu, não é?
Por um instante, simplesmente não sei como reagir a isso. Pierre está
deixando bastante claro que me deseja, e o sentimento é mais do que
recíproco. Então, me recordo dos conselhos de Adrien, de que é cedo demais,
e tem o fator de ele ser meu médico, então isso soa como inadequado ou
antético, não?
— Aceita um café?
— Vai ficar para uma outra oportunidade. Só vim mesmo te trazer o
livro… como um pretexto para te ver. — E me dá outro do seu sorriso.
Abro a porta novamente. Pierre para ao meu lado. Nossos olhos se
encontram e meu coração dá aquele tranco de sempre quando o assunto é esse
homem. Ele se aproxima e deixa um beijo no canto da minha boca. Minha
respiração falha. Antes que tenha tempo de processar, ele já está caminhando
em direção ao seu carro.
Nos dois dias seguintes, não leio mais o meu livro da mesma maneira,
pensando sempre na atitude de Pierre. Não o vi mais desde então. Ele faz
plantões de doze horas no hospital, em turnos que podem variar nas escalas, e
sua agenda na clínica é elaborada de acordo com sua disponibilidade, o que
normalmente o faz estar aqui duas ou três vezes por semana.
Gustave aparece cinco minutos antes de encerrar meu expediente. Traz
um cupcake rosa, senta-se à borda da minha mesa e arrasta o bolinho na
minha direção.
— Pelo seu aniversário de uma semana na clínica.
Olho para o doce e depois para ele. Pisco algumas vezes, tentando
entender o que isso significa. Pego-o e dou uma mordida, sentindo o chantilly
grudar no meu lábio superior.
— Merci. Você costuma fazer isso com todos os funcionários?
— Na verdade, não — confessa, esticando um guardanapo de papel que
estava enrolado no bolinho e limpando minha boca.
Engulo em seco, pego o guardanapo da sua mão e termino eu mesma de
limpar meus lábios.
— Por que está fazendo isso? — questiono, levantando-me e juntando
meus pertences.
— O bolinho não te dá nenhuma pista? — devolve, abrindo um
pequeno sorriso e roubando um pedaço de papel-rascunho para fazer um
origami. Ele também se levanta enquanto ainda estou pensando no que
responder. — Até amanhã, Gautier — despede-se, deixado o escritório.
Encaro o cupcake mordido e o significado que traz junto. Bem, sou
uma mulher grávida que está mesmo com fome e não recusa nada doce.
Suspiro, termino de comê-lo e vou pra casa, esquecendo por ora o fato de ter
um novo pretendente.
Chego fatigada o bastante para me deitar no sofá e não querer fazer
nada. Tem louça que meu primo deixou de ontem à noite, minha cama que
não tive coragem de arrumar pela manhã e um cesto de roupas sujas a serem
lavadas, mas não quero fazer nada além de deitar, talvez tirar um cochilo,
assistir a dois ou três episódios da minha série e pedir comida italiana porque
não estou a fim de cozinhar.
Meu celular notifica uma nova mensagem do meu primo.
“Seu currículo”
“Que trapaceiro!”
Talvez tenha sido por isso. Então, como meu médico, me lembro de
que preciso informá-lo sobre meu atual estado.
Sorrio com a mensagem, mas não tenho cabeça para responder. Guardo
o celular no bolso e retorno para a o quarto de Édouard assim que amanhece.
Ele já está acordado, o neurologista de plantão nos informa do seu quadro
clínico e, mesmo que Étienne seja um especialista na área e saiba, pelos
testes e imagens computadorizadas, que o menino está bem, não consegue se
sentir mais tranquilo, nem menos preocupado.
Outra mensagem apita no meu telefone assim que o plantonista nos
deixa a sós. Confiro e é de Juliette novamente.
“Ei, não apareceu na clínica hoje, sei que não é seu dia, mas só
queria saber de você. Está tudo bem?”
“Bonsoir”.
“Sei que vai compreender meu furo porque você é mãe. Lembre-se
da nossa conversa dois dias atrás.”
“Ei, que bom que ela foi compreensiva. Não que estivesse
duvidando disso. Minha escala mudou, plantão de trinta e seis horas no
hospital. Só vou conseguir te ver na quarta-feira de tarde :/ prometo
manter contato. Fica bem, Julie. Você é importante demais pra mim.”
“Amour de ma vie”.
“Pra você se lembrar que é o motivo dos meus sorrisos. Feliz um ano
de namoro.”
Confiro meu telefone pelo que deve ser a centésima vez em uma hora.
Daqui a pouco será o horário de almoço e enviei uma mensagem para Pierre,
perguntando se podemos almoçar juntos, uma vez que está por aqui hoje. Já
são cinquenta e sete minutos que mandei, mas o homem não respondeu. Nem
mesmo visualizou. Tudo bem. Não vou surtar por causa disso porque ele está
trabalhando. Talvez nem tenha tido tempo de pegar no celular.
Esforço-me para pensar em outra coisa em vez de ficar alimentando
medos sem sentido e continuo fazendo meu caminho até a lanchonete da
clínica. Estou na minha pausa de vinte minutos e precisando urgentemente de
um sanduíche de cottage. Guardo o telefone no meu bolso e ergo o olhar para
o caminho à minha frente, parando bruscamente quando chego ao meu
destino, incomodada com a cena que se desenrola diante dos meus olhos, o
gosto amargo do ciúme subindo instantaneamente.
Pierre está de costas para mim, sentado em uma das mesas da cantina,
conversando animadamente com uma garota loira. As palavras de Francine
avançam sobre minha mente sem minha permissão enquanto assisto à cena.
Digo a mim mesma que não é nada. É só meu namorado conversando com
outra mulher e não há nenhum problema nisso.
Nesse instante, uma batalha dentro de mim se dá início. A voz da ex-
namorada dele dizendo como é sociável, receptivo e amigável, que se
apaixona com facilidade, em um embate com a voz do meu namorado,
pedindo para que confie nele, que sem confiança não vamos sustentar esse
relacionamento. Decido que vou confiar nele, na sua palavra, e preciso
realmente me esforçar para não avançar e ir até os dois como uma cadela
raivosa. Só que, como Francine bem disse, Pierre não colabora muito para
aplacar sentimentos ruins. Imediatamente um segundo depois que decido
confiar nele, vejo-o esticando a mão em direção à moça — que só agora
reconheço como uma das recepcionistas da fisioterapia — e pedindo algo.
Sem hesitar, ela pega o celular e entrega para ele.
Confesso que meu coração erra uma batida nesse instante. Se eu não
queria alimentar paranoias infundadas, a imagem à minha frente contraria
todo meu desejo. Pierre pega o telefone dela e, sem tirar o sorriso, digita
rapidamente, o que dá a entender que está gravando o próprio número na
agenda da moça. Parada no meio do caminho, apoio-me na quina da parede,
em uma posição que me esconde e me permite acompanhar o que está
acontecendo ali. Meu namorado devolve o aparelho da garota, entregando o
seu em seguida. Ela também digita, o que suponho ser o número dela. Pierre
guarda o celular no bolso e continuam em uma conversa animada.
Engolindo a bile amarga, eu me afasto.
São quinze e quarenta quando Michéle me chama para entrar no
consultório. A consulta está atrasada em apenas quarenta minutos, mas a
recepção hoje estava especialmente cheia, repleta de mulheres, em sua
maioria grávidas. Entro com cuidado na sala de Pierre. Ele está atrás da mesa,
dentro do seu jaleco habitual, o estetoscópio pendurado atrás do pescoço,
sorriso acolhedor que não revela o que somos e o que temos, porque ele sorri
assim para qualquer uma. Para todas.
Não retribuo o sorriso e me acomodo na cadeira à sua frente, remoendo
a cena de mais cedo, na cafeteria. Passei a tarde toda em uma ansiedade que
nunca senti, minha cabeça doendo de tanto que pensei no que vi, de tanto que
me preocupei com a aparente aproximação dele com outra mulher. Nunca fui
de sentir ciúmes exagerado, mas também não me lembro de algum homem ter
alimentado esse sentimento descabido tanto quanto meu atual namorado vem
fazendo.
— Não vi você no almoço — menciona, e ergo o olhar em sua direção.
Depois observo ao redor e me dou conta que sua assistente se retirou; por isso
tocou no assunto. — Fui te procurar, mas não te encontrei.
— Fui almoçar sozinha. Achei que não ia querer minha companhia —
respondo, mais áspera do que eu gostaria.
Estou me esforçando aqui para não soltar os cães em cima dele. Pierre
já deixou claro que não gosta de demonstrações exageradas de ciúmes e que
isso pode levá-lo a romper comigo. Não quero perdê-lo, não quero que vá
embora, e é por isso que tento de toda forma sufocar minhas inquietudes.
Pierre franze o cenho.
— Por que achou isso?
— Porque você ignorou minha mensagem — respondo, o que é
verdade.
Meu namorado rapidamente pega o celular sobre a mesa, em cima de
uma pilha de cinco livros de medicina, destrava a tela e suponho que confere
as mensagens. Suspira quando se dá conta de que não viu a minha, que
mandei cerca de seis horas atrás.
— Me perdoe — pede, jogando o telefone de volta ao lugar. — O dia
está tão corrido hoje, nem tive tempo de pegar no telefone direito.
Forço um sorriso e sei que ele nota o descontentamento na minha face.
Quero dizer que não teve tempo para pegar no celular hoje, exceto quando
anotou o telefone de outra mulher e passou o próprio número para ela. Por
mais difícil que seja segurar minhas palavras, eu seguro.
— Está tudo bem? — pergunta.
Apenas abano a cabeça em positivo. Vejo-o pronto a perguntar outra
coisa, mas Michéle ressurge, dizendo que a sala do ultrassom já está pronta.
Pierre assente e pede cinco minutos. Antes de seguirmos, me faz as perguntas
habituais da consulta e anota tudo na caderneta de pré-natal. Depois disso,
seguimos até a sala à meia-luz, onde eu me peso antes de me ajeitar na maca
para ver meu bebê.
Pierre me analisa com cuidado enquanto prepara o equipamento. Sigo
emudecida e noto que até sua assistente está sentindo a tensão entre nós.
Quando ele apoia o transdutor na minha barriga e a imagem de Valentin se
faz diante dos meus olhos, me esqueço por um momento de qualquer mágoa
com meu namorado, qualquer sentimento ruim, qualquer paranoia, e
simplesmente me concentro na tela do ultrassom. Ele fala do tamanho, do
peso, a posição que está — atravessado de tanto que mexeu hoje —, e, em
dado momento, até contorna na tela o que é o rostinho do bebê. Um sorriso
enorme nasce em mim, mesmo que a imagem esteja toda borrada, em ver
meu neném.
Finalizamos o exame com Pierre me pedindo para redobrar a atenção
daqui para frente, agora que entrei definitivamente no sexto mês de gestação,
porque não é incomum ocorrer um parto prematuro. Alerta-me dos sintomas
e me instrui sobre como proceder caso um desses sinais apareça no meu
corpo. Mesmo com raiva dele, aprecio ainda mais seu cuidado, zelo e
preocupação. Não sei se é uma instrução que ele dá a todas as pacientes ou se
foi algo meio que exclusivo para mim. Se bem o conheço, aposto na primeira
opção.
Voltamos para a sala principal, onde ele finaliza a consulta, anotando o
restante das informações na minha caderneta e me dando outro frasquinho da
minha vitamina, que acabou há dois dias e só o informei cinco minutos atrás.
— Está tudo bem mesmo? — pergunta, esticando o ultrassom de hoje.
Sorrio um pouquinho para a imagem e o contorno do rosto de Valentin.
Estou montando um álbum só com essas impressões.
— Está — respondo, mas minha voz contraria minha resposta.
Só quero finalizar a consulta e ir embora, porque se ficar aqui sei que
vou acabar dizendo coisas que não quero.
— Julie — murmura meu apelido só porque sua assistente não está por
perto. — Sinto que não está sendo sincera comigo. — Sua mão desliza sobre
a mesa de vidro, a mesma mesa em que trepamos gostoso dias atrás, e segura
nos meus dedos. — Me conta o que está acontecendo.
Aperto o lábio inferior e balanço a cabeça em negativo. Não quero
dizer nada. Não quero surtar, nem o irritar, mas ele insiste, pede para confiar
nele, argumenta que estamos numa relação e precisamos ser abertos um com
outro e, seja lá o que esteja me incomodando, devo contar para que a gente
resolva no diálogo, em vez de ficar remoendo mágoas, criando conflitos.
Com tudo que há em mim, e Deus sabe que é verdade, me seguro para
não dizer nada, para simplesmente esquecer e me convencer de que o que vi
mais cedo não tem nada demais, era só uma conversa entre amigos e que
trocaram telefone apenas para manter contato. Mas, por mais que tente me
convencer disso, não consigo. Não consigo nem mesmo ser uma pessoa
civilizada e ponderada para dizer a Pierre o que está me incomodando e,
quando noto, entre um sorriso histérico e uma risada de deboche, digo:
— Vi você mais cedo, com outra mulher, todo íntimo. Foi por isso que
ignorou minha mensagem? Estava ocupado demais com ela, não é? Me disse
que nem teve tempo de pegar no telefone, mas não foi o que pareceu quando
anotou o seu número no celular dela e entregou o seu para que ela fizesse o
mesmo.
Pierre me olha, por longos segundos, primeiro com uma expressão
neutra, mas que depois se transforma, juntando levemente as sobrancelhas,
apertando os lábios, desviando os olhos. Quero que fique bravo comigo e
esclareça a situação, porque é melhor do que esse seu silêncio absoluto. Ao
invés disso, diz:
— Nossa consulta já acabou, senhorita Gautier.
Sua indiferença me acerta com a mesma força de um soco. Ele profere
cada palavra sem me olhar, atento a organizar os objetos sobre sua mesa,
mesmo que estejam devida e perfeitamente organizados. No final, Francine
tem toda razão. Ele não faz muito para acalmar nossas paranoias. Parece que
gosta de alimentá-las.
— Pierre. — Tento, mas o homem se levanta, contornando a mesa e
indo em direção à entrada.
— Nosso tempo acabou. Tenho outras pacientes e meus horários estão
todos atrasados. Então, s’il vous plait… — pede, em um tom formal que me
desagrada, e abre a porta.
Sem muitas opções, eu me levanto. Olho-o um segundo antes de me
retirar e não vejo nenhum traço de hesitação na sua íris azul. Esse homem é
firme e decidido quando quer e, confesso, isso me irrita.
— Au revoir, doutor Laurent — digo e ouço a porta bater às minhas
costas em seguida.
JULIETTE
Invento uma desculpa qualquer para Gustave e peço para me deixar ir
embora uma hora antes do fim do meu expediente. Ele me libera e quer saber
se precisa avisar Pierre. Digo que passo uma mensagem quando chegar em
casa, porque não quero alarmar, e vou para casa, sentindo toda a dor do
mundo no meu coração.
Ele me tratou com uma frieza que até então não tinha experimentado.
“Nossa consulta já acabou, senhorita Gautier”. Isso dói em mim, mas não dói
mais do que ter que admitir que em partes está certo. Outra vez, fui grossa,
demonstrando um ciúme exagerado que não reconheço. Enquanto faço meu
caminho de volta para casa, não consigo afastar da mente a porção de
pensamentos e conflitos que me tomam. Francine me dizendo que parte da
culpa por todo o seu descontrole e ciúme vinha de Pierre, eu tentada a
concordar porque o vi de conversinha com outra mulher e ele nem se deu o
trabalho de se explicar.
Meus pensamentos só se dissipam quando chego e encontro Adrien
estirado no meu sofá, televisão ligada, comendo um pedaço de pizza
enquanto assiste a um videoclipe no Youtube. Ele abre um sorriso pequeno
quando me vê e confere as horas no relógio de pulso.
— Chegou mais cedo hoje — observa.
Arrasto-me em sua direção e me deito nas suas pernas, sentindo-me a
pior pessoa do mundo, com uma confusão dentro de mim que não sou capaz
de explicar, nem entender. Nunca fui essa criatura insegura que estou
manifestando no momento, com medo de que Pierre me troque por qualquer
par de pernas que não tenha um filho a tiracolo, dependente do carinho e da
atenção dele, apegada demais no homem a ponto de saber que nossa relação
pode prejudicar sua carreira e mesmo assim não conseguir abrir mão dele
como médico. Parece que há algo forçando-me a sempre tomar atitudes
estúpidas, mesmo sabendo que estou errada na maioria das vezes, agindo com
egoísmo e histeria, procurando desculpas, pretextos, motivos para justificar
meus comportamentos: “Pierre é incrível, tenho medo de perdê-lo e por isso o
ciúme exagerado.” “Pierre é bonito, inteligente e sociável, se apaixona com
facilidade, por isso o ciúme exagerado.” “Eu estou grávida de outro homem,
ele vai se cansar de mim e se interessar por outra, por isso a insegurança
descabida.” “Ele trabalha o tempo todo com mulheres, mulheres mais bonitas
do que eu, por quem facilmente se interessaria, por isso o ciúme exagerado.”
— O que foi? — Adrien pergunta, acariciando meu cabelo depois de ter
deixado seu pedaço de pizza no prato e limpado as mãos com um guardanapo
de papel, trazendo-me de volta à realidade.
Ajeito-me em suas pernas e o olho de baixo para cima, abrindo um
pequeno sorriso.
— Não é nada — digo, decidida a não o trazer para meio da minha
intriga com meu namorado. — Só estou com péssimo humor de grávida —
brinco, colocando a mão na barriga.
Meu primo ri comigo e me toca no abdômen, sentindo o bebê mexer
um pouco. Ele abre aquele seu sorriso esplêndido, como se fosse a primeira
vez que sente Valentin pular dentro de mim, o que claramente não é o caso.
Pergunto do dia dele, que me responde com o de sempre, dizendo depois que
não vê a hora de terminar logo o doutorado. Rio dos seus resmungos, porque
ele começou a defender sua tese esse ano, então não está nem perto de acabar.
O videoclipe na televisão — o terceiro desde que cheguei — acaba e,
antes que outro da playlist dele comece, a plataforma exibe um rápido
comercial, onde Marjorie aparece. Os olhinhos dele brilham na frente da tela,
e Adrien até para de falar comigo, atento no anúncio de trinta segundos.
— Será que vou morrer sem ter o gosto de ver você chegar nessa
mulher, Adrien? — brinco, puxando-o pela gravata para fazê-lo desviar os
olhos da tela.
Ele se vira para mim, com um leve sorriso, envolve uma mecha do meu
cabelo no seu indicador e diz:
— Falei com ela, esses dias.
Um segundo depois, estou sentada sobre meus pés, surpresa com a
informação.
— Quando?
Ele dá de ombros:
— Pouco mais de um mês. Na noite que fui te buscar no restaurante,
lembra? Eu tinha acabado de deixá-la no edifício dela.
Dou um tapa no seu ombro.
— Por que não me contou antes?
— Eu me esqueci, Julie — responde. — De qualquer forma, foi uma
conversa rápida, sem relevância. Não pude nem me apresentar. — Faz bico,
ficando estranho de repente, meio distante, evitando meus olhos. Sei que tem
alguma coisa que não está me contando. Fico curiosa sim e exijo saber, mas
ele me diz que não é nada, só que teve de levar Marjorie para falar com um
cara com quem aparentemente ela está saindo.
Coitadinho. Ficou todo remoído de ciúmes. Mas ele não pode culpar
ninguém além de si mesmo por não se aproximar dela, dizer o que sente. Ela
é uma mulher bonita, é claro que a concorrência é forte, e ele está sendo bobo
em não tentar investir. Meu primo me pede para esquecer o assunto e
engatamos em outra conversa, que me faz esquecer por bastante tempo minha
mágoa com Pierre.
Até que ele está aqui. Tocou a campainha antes de girar a sua cópia na
fechadura e entrar. Para no limiar entre a sala e a cozinha, onde Adrien e eu
estamos agora, terminando de preparar o jantar, perto de nove da noite, e nos
observa, parecendo hesitante. Ele me olha sem o sorriso bonito que costuma
olhar quando chega, mas também não vejo raiva ou desapontamento. Está
simplesmente neutro.
Meu primo abre a boca para cumprimentá-lo, mas nota a tensão entre
mim e meu namorado e prefere ficar em silêncio, terminando de preparar a
salada. Também não sei o que dizer, o que fazer. Não esperava que Pierre
viesse, não depois dessa tarde. Pensei mesmo que fosse me dar um gelo por
algum tempo. Ele não está com a mesma roupa da clínica, o que dá a
entender que foi para casa antes de vir para cá.
— Oi — digo apenas, torcendo o pano de prato entre meus dedos, sem
saber mais o que fazer, tendo vontade de me aproximar e beijá-lo. Só não sei
se é apropriado ou se retribuiria.
— Oi — responde, seus lábios curvando-se num sorriso pequeno.
Meu coração dá um pulinho de felicidade com essa pequena
demonstração e eu me vejo me aproximando dele. A primeira coisa que faz é
tocar na minha barriga, abaixar a cabeça e dizer “oi” para o bebê. Tento ter
raiva desse homem, mas ele não colabora. Rio quando pergunta se “a mamãe
está mais calma”. Ele me olha, engolindo em seco, segura-me por trás da
nuca e me puxa para um beijo calmo.
— Precisamos conversar — diz, contra meus lábios.
— Me esperem ir embora antes, pelo amor de Deus — Adrien protesta.
Meu rosto cora, Pierre ri, do seu jeito rouco e gostoso.
— Nós vamos mesmo conversar, Adrien — meu namorado esclarece.
— Não é eufemismo para “quero transar com sua prima”.
Meu rosto esquenta mais ainda quando meu primo gargalha
escandalosamente e vem até nós, finalmente apertando a mão do meu
namorado e o cumprimentando, deixando um beijo em seguida na minha
têmpora.
— Vou dar privacidade pra vocês. Já notei que estão brigados e querem
se reconciliar. O que significa que, de um jeito ou de outro, “precisamos
conversar” foi sim eufemismo para “queremos trepar, vá embora”.
— Meu Deus do céu! — exclamo, tentando acertá-lo com um murro,
mas meu primo já está longe o bastante, rindo como uma hiena, enquanto
meu namorado se diverte na mesma medida.
De repente, estamos sozinhos, frente a frente, na sala, e uma atmosfera
mais pesada se põe entre nós. Ele se senta no sofá, deixando o telefone na
mesinha de centro, e dá alguns tapinhas ao seu lado, chamando-me. Vou sem
resistência e sem compreender esse seu comportamento. Mais cedo me tratou
com frieza, mas agora parece mais calmo.
— Vai me explicar por que trocou telefone com aquela mulher? —
pergunto, só que dessa vez sou mais passiva do que agressiva.
— Non — responde, fazendo-me enrugar o cenho. Então por que
diabos está aqui? — Não vou me explicar, Julie. Já te pedi para confiar em
mim.
— Como confio depois do que eu vi, Pierre? — Suspiro, passando a
mão no rosto e odiando o amargor que sobe pela minha boca.
— Não é o que você viu, mas o que está interpretando. Por que não se
aproximou da mesa? Por que não foi nos cumprimentar? Eu teria te
apresentando a moça, teria esclarecido o que estávamos conversando. Mas
preferiu tirar suas próprias conclusões e depois fazer uma insinuação pouco
agradável.
Não tem nenhum traço de irritabilidade na voz dele. Pierre está calmo,
calmo como não estava hoje no seu consultório, quando chegou a
praticamente me pôr para fora. Mas vejo que está cansado. E sou eu quem
está fazendo isso. Fecho os olhos, apertando-os com força, sentindo-me a
pessoa mais estúpida do mundo, e, contraditoriamente, não conseguindo não
tirar da cabeça o que vi mais cedo, querendo uma explicação que ele já
deixou claro que não vai dar.
— Por favor — suplico. — Me conta quem era ela, por que trocaram
telefone. Estou paranoica, Pierre. Não vou me sentir melhor enquanto não
esclarecer a situação.
— Eu não vou — diz, veemente.
Abro os olhos e o encaro, mordendo o lábio e sentindo que as lágrimas
de novo estão se forçando contra mim. Nem sei por que estou com vontade
de chorar. Amo minha gravidez, mas odeio esses efeitos colaterais. Estar toda
sensível assim, querendo chorar com qualquer coisinha.
— Por quê? — questiono.
Ele vem para mais perto de mim, passando o indicador na minha
pálpebra inferior e capturando uma gota.
— Quero que confie em mim. Quero que confie quando digo que não
houve nada demais entre mim e aquela mulher, que o que você viu não é
nada do que está pensando.
— É só me contar, homem.
Pierre suspira, inclinando-se na direção do meu pescoço e roçando o
nariz na minha pele. Estou prestes a dizer alguma outra coisa, mas me
esqueço do que é e, mesmo se lembrasse, minha voz teria saído tremida por
causa do contato gostoso e ousado que me causa, arrastando a pontinha do
nariz em mim, deixando um beijo delicado na minha pele.
— Não é. Se estiver decidida a não acreditar em mim, não importa o
que eu diga, não vai acreditar em mim.
— E a sua solução é me deixar ainda mais paranoica com essa história?
Pierre se afasta, levantando-se em seguida.
— Acho que já te dei provas suficientes de que você é a pessoa mais
importante para mim nesse momento, Juliette. Que não há a menor chance de
outra mulher me atrair tanto quanto você me atrai. Que quero um futuro com
você, com Valentin, quero um futuro onde nós três somos uma família. Se
isso não é o bastante para que confie em mim, que acredite nas minhas
intenções, não vou ficar tentando te provar mais nada.
Engulo em seco, amedrontada com a firmeza desse homem. Ele vai
embora, sem hesitar. Em vez disso, de repente, está ajoelhado na minha
frente, segurando-me pelas duas mãos, olhando-me do seu jeito amoroso que
me conquistou dia após dia.
— Não quero esse tipo de cobrança na nossa relação, nem esse ciúme
doente. Mas também sei que sua insegurança, as suas desconfianças, os
ciúmes, seja lá por que está sentindo isso tão de repente, podem ser
trabalhados com ajuda psicológica. Parou de se consultar há algum tempo,
não foi?
Balanço a cabeça em positivo.
— Eu estava bem. Não vi necessidade de continuar pagando pelas
sessões.
— O que acha de voltar? Procurar a raiz desse problema? Tratar isso da
forma correta para que não reflita mais no nosso relacionamento e nos
desgaste? Quero mesmo ficar com você, Juliette. Se soubesse o quanto eu…
gosto de você.
Jogo-me nos braços dele, comovida com sua oferta, com como
realmente se importa comigo, e eu aqui, sendo uma vaca com ele.
— Eu sei — digo, mordiscando o lóbulo da sua orelha e o apertando
um pouco mais contra mim. — Também gosto muito, muito de você, Pierre.
Suspiro, preferindo ter dito outras palavras, com um significado mais
forte. Só que não vou dizer, não enquanto ele próprio continuar descrevendo
o que sente por mim com gostar. É a segunda vez que me diz isso e não vou
meter os pés pelas mãos, me declarar e assustá-lo, ou ainda fazê-lo se sentir
na obrigação de retribuir.
— Então?
Afasto-o de mim, namorando seus olhos claros.
— Eu estou bem. Essas reações exageradas… — digo, traçando o
indicador pelo contorno do seu rosto. — São meus hormônios falando por
mim, não são?
— Julie… — murmura, cansado, mas não o deixo continuar.
— Tudo bem — concedo, e ele sorri pequenino. — Vou voltar a falar
com a minha psicóloga. Amanhã cedo marco uma consulta para a próxima
semana.
Ele vem até mim, beijando-me com urgência e paixão, prensando-me
mais contra o sofá e mantendo-se longe o bastante apenas para não distribuir
o peso na minha barriga. Sua mão corre pela minha cintura, entrando por
dentro da minha camisa e chegando até os meus seios, onde ele aplica a
pressão certa e deliciosa no bico dos meus seios. Arranco sua camisa preta,
acariciando suas costas largas, sentindo a pele macia na ponta dos meus
dedos enquanto distribui beijos quentes e molhados no meu pescoço e
ombros.
— Só tem camisinha lá em cima — digo, com dificuldade em respirar.
Pierre encosta sua testa na minha, um sorriso safado e convencido
curvando-se vagarosamente na sua boca deliciosa. Ele enfia a mão no bolso
de trás da calça e me mostra um pacote de preservativo.
— Um bom soldado sempre vai para a guerra preparado — brinca,
rasgando a embalagem com os dentes.
— Então “conversar” era mesmo eufemismo para sexo, seu safado —
digo, abrindo o botão da sua calça.
Um minuto depois, estou por cima dele, suas mãos na minha cintura,
ajudando-me a cavalgar.
Alizée
Forço-me a não atender, a respeitar sua privacidade, a confiar na sua
palavra. “Não tem nada entre mim e aquela mulher”. Inclusive, Alizée pode
ser só uma paciente dele. Respiro fundo e me afasto do telefone, que na
mesma hora para de tocar. Dez segundos depois, ouço o som de notificação
de mensagens. Com um pretexto que não convence nem a mim mesma —
“pode ser uma paciente que precisa de atendimento urgente” —, me
aproximo do maldito celular de novo, tomo-o nos meus dedos e desbloqueio
a tela com facilidade. O nome de Alizée aparece no topo das últimas
mensagens e tem uma única palavra antes mesmo que eu abra: Combinado.
O que diabos eles combinaram? Outra vez o ciúme e a desconfiança
sobem pela minha garganta, queimando. Hesito um segundo antes de clicar
sobre a mensagem e ler a conversa deles. Lágrimas vêm aos meus olhos e não
consigo evitar a raiva e a mágoa avançando sobre mim enquanto leio. A
primeira mensagem é dela. Pouco mais de uma hora atrás:
“Podemos conversar?”
“Justo me ignorar, fiz o mesmo com você umas duas vezes. Agora
sei como é horrível ficar sem notícias suas, saber que você viu minha
mensagem e não me respondeu. Meu deus, é terrível. Por que não me
deu um soco na cara nas vezes em que fiz isso com você, mon amour?”
Rio e fico meio boba com o vocativo no final. Ele é mais dado de me
chamar de “meu coração” do que de “meu amor”. Respondo apenas com um
emoji rindo. Termino de me preparar e vou tomar meu café da manhã.
“Podemos?”
“Combinado”.
“Compro. Bisous.”
O dia passa e quase não sinto. Gustave me atolou de trabalho. Tive que
dar conta do meu e do dele porque o homem estava resolvendo não sei o que
com o diretor da clínica e ficou a manhã toda ausente. Faço uma pausa rápida
para o almoço e logo volto porque é isso ou não vou encerrar meu expediente
no horário. Assim que entro no escritório, deparo-me com a caixinha de
guloseimas sobre minha mesa, com uma fita dourada delicada amarrando a
embalagem e um bilhete escrito a punho.
“Não ia deixar uma grávida com desejos esperar até o final do dia.
Faça bom proveito. Pierre”.
Não tenho estrutura para ir para casa já, então me isolo na primeira
brasserie que encontro. Ignoro qualquer bebida alcoólica e afogo minhas
mágoas em refrigerante por uma hora. Talvez um pouco mais. Adrien me
manda uma mensagem. Na medida do possível, ela está bem. Foi uma
conversa difícil, mas mais fácil do que imaginei. Achei mesmo que ela fosse
resistir muito, talvez até fazer escândalo, mas fico ao menos aliviado que
Juliette compreendeu meus motivos e compreendeu que precisa retornar suas
consultas com a psicóloga. Acho que o fato de ter sido demitido ajudou um
pouco. Ela se sentiu culpada com isso — embora não tenha responsabilidade
nenhuma —, o que a ajudou a aceitar melhor nosso término.
A partir de hoje não vou vê-la mais. Nosso contato será cortado em
absoluto. Nenhuma ligação, ou mensagem, ou visitas. Nada. Preciso me
afastar definitivamente até toda essa merda ser resolvida, até eu saber que
rumo vai tomar minha carreira depois dos erros que cometi. Não quero nem
pensar em ter minha licença cassada por “estupro de vulnerável”. Meu Deus,
não. Fecho os olhos com toda força, tentando não pensar nisso agora. Um
passo de cada vez. Tempo ao tempo.
Faço meu caminho para casa outra vez e respondo a mensagem de
Adrien, por fim, parado frente ao apartamento do meu irmão.
“Cuida bem dela por mim.”
Abro a porta e, um segundo depois, Édouard está enrolado nas minhas
pernas, abraçando-me com todo seu carinho e inocência.
— Seu amigo está aqui — diz, assim que o pego no colo.
Franzo o cenho, sem entender de quem ele está falando.
— Que amigo, Doudou? — indago.
Não preciso que me responda. Étienne vem da cozinha, conversando
alguma coisa sobre sua pesquisa ao lado de Antony. Meu corpo congela na
mesma hora e coloco Édouard no chão, pondo-o atrás de mim, como se para
defendê-lo. O homem me olha com um sorriso malditamente cínico, e cada
célula do meu corpo vibra para avançar, agarrá-lo pelo colarinho e enchê-lo
de socos.
— Pierre! — exclama, animado, como se de fato me conhecesse, como
se fôssemos mesmo amigos.
Então, entendo sua presença. Horas atrás, disse que ele não sabia nada a
meu respeito, nem tinha nada para me ameaçar. Agora, ele tem. Deve ter ido
atrás de informações e descoberto tudo o que precisava. Diabos.
— Bom ver você. Como está Juliette?
Minhas narinas inflam de raiva e, descontrolado, avanço apartamento
adentro e o puxo pela gola da sua camisa branca. Étienne se assusta com a
minha reação e pergunta o que está acontecendo.
— Sai da minha casa agora mesmo — exijo, jogando-o até a porta.
Antony sorri, daquele seu jeito diabólico. Ele dá um passo à frente, e
meu corpo todo esquenta de raiva. Só quero socar esse maldito até virá-lo do
avesso.
— Parece que agora tenho todas as informações que precisava sobre
você — murmura contra meu ouvido. — Que terrível seria se, por acaso, seu
sobrinho ou seu irmão aparecessem mortos um dia desses.
Empurro-o com toda força na mesma hora e já estou avançando sobre
esse maldito quando meu irmão me contém, perguntando o que diabos está
acontecendo comigo.
— Sai da minha casa! — esbravejo, tentando me livrar da pegada de
Étienne.
— Adeus, doutor Laurent — diz, antes de partir.
Meu irmão finalmente me solta e me vira para ele, repetindo seus
questionamentos. Minha cabeça dói, não tenho ânimo ou psicológico para
uma conversa nesse momento. Afasto-me um passo e viro-me para Édouard
que acompanhou a cena, e me encara com seus olhinhos assustados e
arregalados. Confiro seu corpinho e pergunto se está bem. O menino acena
em positivo. Volto-me para Étienne.
— Vai me explicar o que está acontecendo, Pierre? — pergunta,
cruzando os braços, olhar preocupado sobre mim.
Inspiro fundo.
— Agora não. Só mantenha aquele homem longe. Ele não é meu
amigo, Étienne.
Antes que possa me exigir qualquer outra explicação, vou me refugiar
no meu quarto.
JULIETTE
— Levanta! — Adrien exclama, abrindo as cortinas do meu quarto.
A claridade atinge meus olhos, incomodando-me. Viro na cama,
ficando de costas para a janela e puxando a coberta por cima da minha
cabeça. Não quero me levantar. Não quero ter que encarar mais um dia. Só
quero ficar aqui, enroladinha nas cobertas, sentindo Valentin pular dentro de
mim, e me forçar a acreditar que todas as lembranças que avançam sobre
minha mente são apenas frutos de um sonho ruim.
Nego-me a acreditar que na minha realidade, agora, Pierre está ausente.
Machuca só de pensar e toda a minha vontade, reprimida sabe-se lá Deus
como, é de ir atrás dele, de implorar para que volte para mim, dizer que não
posso viver sem ele. É aí que mora o problema. Nunca me vi tão dependente
de alguém como estou dele. Mesmo quando Antony me manipulava, mesmo
quando estávamos juntos, não havia essa dependência exagerada de carinho,
atenção, amor. Nunca tive carência emocional por ninguém. Leclerc brincava
comigo como bem entendesse, é verdade, mas nunca cheguei a pensar em
“não sei viver sem esse homem”. Mas com Pierre, minha dependência
emocional me levou a agir de forma egoísta, resistindo a abrir mão da nossa
relação médico-paciente porque nunca me senti confortável e confiante em
me consultar com outro profissional. Essa dependência, também, me levou a
agir de forma descabida, histérica, explosiva, a reproduzir comportamentos
tóxicos, os mesmos comportamentos que Antony exercia sobre mim,
sufocando-me, e que tanto repudiei.
Nunca consegui entender a minha necessidade repentina por Pierre, ou
conseguir fazer meu pré-natal com outro obstetra, nem ser capaz de confiar
em mais ninguém a não ser nele para acompanhar minha gestação. Doía só de
pensar em me afastar e me batia um medo primitivo e insensato de não o ter
mais como profissional cuidando da minha gestação, como se ninguém mais
fosse suficientemente capaz disso. Os ciúmes, justificava para mim mesma
que era apenas receio de perdê-lo, porque ele era bom para mim e tínhamos
um relacionamento incrível, tão diferente da toxidade que estava inserida
com Antony.
Sozinha, jamais suporia que todos esses sentimentos e comportamentos
são reflexos do meu trauma, reflexos daquele dia que tento semana após
semana me esquecer e que por um tempo consegui. Embora tenha tido um
pesadelo ou outro, ter ficado paranoica com a segurança da casa e com coisas
do dia a dia que, antes desse fatídico episódio, jamais me incomodariam
(como a minha campainha tocar e ficar amedrontada de que fosse ele do
outro lado da porta), não tive nenhuma outra reação a esse choque. Ataques
de pânico, ansiedade, medo de homens estranhos, sensação de ser seguida.
Nada. Ou pelo menos assim eu pensava, e por esse motivo só me consultei
três ou quatro vezes com a psicóloga e depois parei.
Parei porque acreditei que estava bem. Mas não estava. Depois de ouvir
tudo o que Pierre me disse, por um instante achei que era bobagem da sua
parte, que eu não estava emocionalmente ligada a ele, nem dependente
porque criei uma visão endeusada. Contudo, conforme pacientemente me
explicava como a minha mente traumatizada estava lidando com tudo o que
aconteceu, admiti que fazia sentido porque simplesmente não me reconhecia
nas minhas ações.
Apesar disto, não queria que fosse embora, mesmo notando uma
dependência doentia, mesmo tendo ciência de que todos os meus sentimentos
por Pierre podem ser apenas uma confusão da minha mente, da ligação e do
endeusamento que criei porque, na minha cabeça, ele foi a figura que me
ajudou, salvou minha vida, cuidou do meu bebê. Entretanto, eu o deixei ir.
Por ele, eu o deixei ir, porque já o prejudiquei demais e não queria mais
comprometê-lo.
— Quero dormir, Adrien — resmungo, encolhendo-me um pouco mais.
Meu primo puxa a coberta de mim. Protesto, tentando trazê-la de volta,
mas não consigo. Ele me puxa pelos pés, arrastando-me pela cama, e, num
momento de descontração, me permito rir um pouco.
— Vamos, levanta dessa cama. São dez da manhã, vou preparar algo
para você comer. Além disso, consegui um encaixe com sua psicóloga para
hoje. Às treze. Então, levanta.
Vencida pela sua insistência, sento-me na cama, encostando-me à
cabeceira, e coço os olhos, despertando aos poucos. Só agora me dou conta
de que perdi o horário para ir ao trabalho. Gustave deve estar puto da vida
comigo. Pego meu telefone e confiro se tem alguma ligação ou mensagem
dele. Nada. Decido escrever algo, desculpando-me pela minha ausência e
justificando que não estou muito bem para ir ao trabalho hoje, o que é
verdade. Sinto uma melancolia estranha avançar sobre mim e odeio só
imaginar em pôr os pés naquela clínica e constatar que Pierre não está mais
trabalhando lá por minha culpa.
Sou uma idiota.
Dedos grossos secam lágrimas que descem sem nem que eu perceba.
Ergo os olhos, deparando-me com Adrien mais perto de mim, uma mão na
minha barriga e outra no meu rosto.
— Se ele perder a licença médica — digo, escondendo o rosto contra
seu ombro — nunca vou me perdoar, Dri.
Meu primo afaga meus cabelos, encaixando meu corpo nos seus braços
grandes, apertando-me levemente contra si.
— Não pensa assim, Juliette. Vai dar tudo certo, está bem? Você nunca
teve culpa de nada.
Não respondo, ainda refugiada no seu ombro, tentando convencer a
mim mesma que ele tem razão. Como posso me culpar pelos meus
sentimentos e comportamentos se não estou bem? Se nunca estive bem? Se
não passa de uma condição criada pela minha mente para que meu
psicológico pudesse lidar com a agressão de um homem que amei, que
confiei e acreditei nele, que fez um filho em mim? Se isso tudo é só o meu
mecanismo de defesa para não colapsar de vez? Não quero me
responsabilizar por Pierre estar prejudicado nesse momento, podendo ser
acusado de estupro de vulnerável, mas não consigo afastar a culpa do meu
coração.
Talvez se eu não tivesse parado com minhas consultas, se tivesse dado
uma chance para minha psicóloga notar que estava bloqueando minhas
emoções e as refletindo em outros comportamentos, se tivesse notado os
sinais de que meu comportamento não era o habitual de mim, talvez ele não
estivesse sendo prejudicado nesse momento.
Meus pensamentos são interrompidos quando meu celular apita sobre o
criado-mudo. É uma mensagem de Legrand respondendo a minha.
“Tire o tempo que precisar. Imagino que não está sendo fácil. Se
cuida”.
Enrugo o cenho, sem compreender o que ele quis dizer com isso.
— Pierre! — A voz da minha madrasta ressoa pelo cômodo. — Que
bom que você chegou. Olha só quem veio te ver!
Ergo o olhar na sua direção e sinto meu coração dar uma batida mais
forte quando a vejo parada a menos de dois metros de mim. Está dentro de
um jeans lavado e camisa branca. Repicou os cabelos e usa uma maquiagem
leve. Pisco uma porção de vezes só para ter certeza de que não é uma ilusão.
— Julie… — murmuro, vencendo o espaço que nos separa.
Não espero por uma resposta sua. Nem me importo com isso. Tomo-a
me seus braços assim que a distância entre nós acaba. Aperto-a com força,
pela primeira em muito tempo, escondendo o rosto na curva do seu pescoço,
inspirando fundo o aroma da sua pele.
Nunca esqueci o cheiro dela.
Juliette se encaixa no meu abraço com a mesma facilidade de sempre,
também pressionando seu corpo contra o meu. Afasto-me e me viro para
minha madrasta, que segura um rapazinho loiro nos braços, balançando-o
vagarosamente.
— Valentin — digo, sem sair do lugar. — Meu Deus, como ele está
grande! — Juliette apenas sorri e faz um leve movimento de cabeça, um
incentivo para eu me aproximar. Faço-o, tomando o garotinho para o meu
colo. — E pesado — exclamo, enquanto o ajeito nos meus braços e tento
absorver cada detalhe dele.
Envolvo seu pequeno corpo com meus braços grandes, arrastando o
nariz pelo seu pescocinho. Seu cheiro de bebê é o aroma mais incrível que já
senti. Não consigo explicar o que sinto por essa criança. Eu o “conheci” ainda
no ventre da mãe, depois só o vi por dois dias, e agora, seis meses depois,
mesmo que não tenhamos nenhum laço sanguíneo, sei que amo esse menino
como se fosse meu.
— Ei, carinha, bom te ver de novo — digo, apertando suas mãos
rechonchudas. O garoto abre um sorriso enorme, chega a gargalhar, e rio
junto com ele, contagiado por uma emoção diferente.
— Veja só — minha madrasta protesta. — Faz vinte minutos que estou
com esse rapazinho no colo e ele não me deu um sorriso. Mas com você até
gargalhou.
Olho para minha madrasta, meio surpreso com a informação, e depois
para Juliette, que está apenas sorrindo, acariciando os cabelinhos finos do
filho. Procuro por Valentin, que também me olha com um sorriso gostoso.
— Pierre sempre teve o dom de deixar o Valentin agitado — Julie
comenta, e seus olhos encontram os meus, seu braço esquerdo no meu braço
direito que contorna o pequeno. O toque é suave, gentil, e me traz
lembranças, junto da saudade que ainda sinto dela.
Minha madrasta se aproxima de novo, pegando o menino de mim,
fazendo-me sentir uma falta imensa dele.
— Vou deixar vocês conversarem — ela diz e, olhando para Julie,
indaga: — Posso dar uma voltinha com ele pela fazenda?
Com um sorriso complacente, ela acena em positivo. Um segundo mais
tarde, estamos sozinhos, frente a frente. Respiro com um pouco de
dificuldade, admirando-a, analisando de novo seu rosto, seu corpo. É
estranho vê-la sem a barriga gestacional. Acostumei-me com ela o tempo
todo entre nós. Literalmente. Sorrio com as lembranças doces de cada
momento que passamos juntos, de como vi o desenvolvimento de Valentin e
de como me sinto estranhamente privilegiado por isso. É uma pena que tive
de me afastar no último trimestre.
— Podemos ir até seu quarto? — pergunta, com um sussurro,
quebrando minha linha de raciocínio.
Aceno em positivo e, fechando meus dedos nos seus, levo-a até meus
aposentos. Fecho a porta atrás de mim. Quando me viro, Juliette está
observando meu ambiente, os olhos fixos em um porta-retratos perto da
cama. É dela, com Valentin aos quatro meses nos seus braços, os dois com
sorrisos estampados. Ela toma a fotografia em mãos e um sorriso doloroso
cruza seus lábios.
— Suponho que isso é coisa do Adrien — murmura.
Aproximo-me e me sento na beira da cama.
— Oui — confirmo. — Ele me enviou no celular. Só mandei
emoldurar.
Ela apenas balança a cabeça em negativo e se vira para mim, depois de
recolocar o objeto no lugar. Prendo a respiração. Sinto-a diferente, mas não
sei dizer por que ou o que a faz diferente. Não sei, parece-me outra Juliette,
uma versão melhor dela mesma. Mais bonita, mais madura, mais confiante.
Ela se senta ao meu lado, sobre a perna esquerda.
— Como você está? — pergunto para quebrar o silêncio entre nós.
— Bem, na medida do possível. Estou trabalhando no Recursos
Humanos da Chevalier Arch. Adrien conseguiu uma vaga para mim.
Abaixo os olhos, mirando sua mão sobre a coxa, deslizando
vagarosamente na minha direção. Ela continua me contando as novidades.
Bernardo e Ann-Marie se casaram e estão grávidos, ela acha que a esposa de
Dousseau já entrou no oitavo mês. Emilien foi embora do país na noite
posterior à festa de casamento do amigo, depois de dormir com Marie, e nem
se despediu dela.
— Sei lá, acho que ele gosta da Marie, mas tem medo de
relacionamentos e fez essa babaquice — comenta, casualmente. Abano a
cabeça em positivo, concordando. — E você? Tudo bem por aqui?
Solto um suspiro longo.
— Sim, mas sinto falta de Paris. — Ela me olha atentamente, esperando
que eu diga mais alguma coisa.
De verdade, amo meu pai, gosto do ar fresco e da tranquilidade da
fazenda, mas essa vida não é para mim. Se me obriguei a ficar exilado aqui
foi simplesmente porque na capital, por mais que seja enorme e cheia de
gente, havia a chance de nos encontrarmos. Não queria isso até que ela
estivesse pronta para me ver de novo.
— Nenhuma pretendente? — questiona, com um leve tom de
brincadeira, seus olhos me espiando.
— Ah não — digo, abrindo um sorriso acanhado. — Bem, teve uma
garota, mas foi coisa do meu velho. Ele simplesmente apareceu com ela aqui
e não quis fazer desfeita. Caminhamos pela fazenda, conversamos, jantamos
com meu pai e minha madrasta e só. Não rolou mais nada. Fui franco com
ela. Disse que estava esperando alguém.
Um sorriso ilumina o rosto dela, seus olhos caindo para as mãos em seu
colo, os olhos cabisbaixos denunciando uma timidez que nela é gracioso.
— Quase um ano atrás — murmura — me pediu para te procurar
quando tivesse certeza do que sinto por você.
— Sim — confirmo, minha voz saindo trêmula.
Tenho medo, essa é a verdade. Porque na época não disse apenas para
me procurar caso gostasse de mim realmente, mas também caso não gostasse.
Agora ela está aqui. Pode ter vindo me dizer que está bem de novo, que
apesar de todo abalo psicológico e da ligação que criou comigo, ela me ama,
como pode ter vindo dizer que se enganou o tempo todo.
— Pois bem… — cicia, aproximando-se um pouquinho mais de mim.
— Já tem meses que estou em consulta com a psicóloga e trabalhamos muito
esse vínculo que inconscientemente criei com você. Foi um processo lento,
até doloroso, mas consegui separar o joio do trigo, Pierre — diz, pescando
meus dedos e me acariciando.
Sinto isso como um sinal. O seu carinho em mim é um sinal, não é? Ou
ela não faria isso comigo, sabendo que o que eu sinto é real. Juliette não se
prezaria a me dar falsas esperanças assim com esse toque. Porque ela sabe.
Sabe que me apego nesse contato íntimo mais do que deveria.
— O vínculo foi embora. A visão endeusada que tinha de você foi
embora. Minha extrema dependência emocional foi embora. O amor ficou.
Engulo em seco, lágrimas pinicando meus olhos. Meu coração está tão
acelerado que desconfio que vou ter uma taquicardia aqui e cair duro nessa
cama.
— Aprendi a diferença entre amor e dependência emocional — segue
dizendo, seus dedos ainda enroscados amorosamente nos meus. — Na
dependência emocional, tinha um medo extremo de te perder, irracional, que
me fazia me comportar de um jeito nada saudável. Sentia como… se meu
mundo girasse em torno de você, sabe? Que você era o homem da minha
vida e eu desaprenderia a respirar se te perdesse.
Ela faz uma pausa aqui, erguendo os olhos para mim. Julie sorri,
aproxima sua boca do meu rosto e captura uma lágrima que inesperadamente
escorreu dos meus olhos.
— O amor é diferente — sussurra, rente aos meus lábios, seus olhos
nos meus, desviando em seguida para minha boca. Meu coração dá outra
errada de batida, lembranças do gosto, da textura e da suculência do seu beijo
me bombardeando. — Vim para cá sabendo que você simplesmente poderia
ter seguido em frente e poderia estar com outra pessoa. Isso doeu. Doeu
muito. A ideia de perder você doeu. Mas, ao mesmo tempo, sabia que era
capaz de superar isso, de desejar que você fosse feliz e isso seria o suficiente
para mim. Ainda te vejo como o homem da minha vida porque nunca amei
alguém como amo você, a diferença é que não te ponho mais no centro do
meu mundo. Você está nele, como Valentin está, como Adrien, como Juliene,
mas não no centro.
Não tenho tempo de responder qualquer coisa. Quando abro a boca,
Juliette avança sobre mim, encaixando a sua na minha, seus dedos voando
para a minha nuca e se embolando nos meus cabelos. Ela é exigente,
buscando minha língua, mais fundo, inspirando com dificuldade. Só leva um
quarto de segundo para eu ceder e corresponder, puxando seu corpo para meu
colo, minhas mãos subindo por dentro da sua camisa branca. O calor da sua
pele me estremece todo e causa uma onda de aflição que não sei explicar,
mas que se manifesta nos meus olhos, em forma de lágrimas.
— Ah, Deus, senti tanto a sua falta — digo, demorando a perceber que
choro um pouco. — Tive tanto medo de você não sentir o mesmo que sinto
por você, Juliette. Je t’aime — declaro de repente, pescando sua boca de
novo, nem lhe dando tempo de resposta. — Je t’aime beaucoup — digo,
repetindo mais três vezes. Há meses tenho isso dentro de mim, há meses quis
dizer essas palavras, mas não pude.
— Je t’aime — responde, abrindo vagarosamente os botões da minha
camisa. — Sempre amei, Pierre. O sentimento só estava escondido,
camuflado, mas ele sempre existiu. Nasceu da minha dependência emocional,
mas sempre existiu. Precisei desse tempo para encontrá-lo. Não há mais
nenhuma dúvida de que amo você — diz, passando minha camisa pelos
ombros, depois pelos braços, até meu tronco estar nu.
Seus olhos analisam meu peito desnudo, as palmas escorregando
lentamente pela minha pele enquanto diz o quanto teve saudade de me tocar.
Sua boca atrevida desce até meus mamilos, e meu corpo começa a reagir com
o simples toque. Ela puxa a camisa pela cabeça, ficando só de sutiã na minha
frente, que logo também está no chão. Então, ela esmaga o seu peito no meu,
causando-me uma eletricidade incrível de excitação. Suspiro, abraçando-a,
curtindo o calor da sua pele na minha.
— Não tenho camisinha aqui — digo quando seus dentes arranham o
lóbulo da minha orelha em uma provocação excitante.
— Não precisamos — alega, arrastando suas mordidas pelo meu
ombro, retornando em seguida para meu ouvido e cochichando: — Quero
sentir seu pau dentro de mim sem nenhuma barreira.
Putain.
Eu a tiro do meu colo na mesma hora, desabotoando sua calça jeans,
livrando-a dela e da sandália de tiras nos pés. Toco sua boceta por cima da
calcinha e levanto o olhar de novo em sua direção; Juliette de pé, na minha
frente, eu ainda sentado na cama. Faço contato visual enquanto acaricio sua
intimidade. Aos poucos, coloco-a de lado e encontro seu clitóris.
— Pierre… — choraminga enquanto movimento para frente e para trás
o indicador entre seus lábios vaginais, vez ou outra circundando seu fecho de
nervos.
Abaixo sua calcinha até os calcanhares e a trago mais para mim,
enfiando o rosto entre suas pernas. Ela coloca um pé na cama, ao meu lado, e
eu a chupo, puxando seu quadril em direção aos meus lábios desesperados.
Ela geme baixinho, contorcendo-se à medida que minha língua trabalha no
seu clitóris, e meus dedos, na sua boceta, deslizam vagarosamente para
dentro dela.
— Goza na minha boca — peço, rouco, sentindo meu pau apertado na
maldita calça jeans. — Sei que você gosta da minha língua na sua boceta. —
Seus dedos se fecham com força nos meus cabelos, forçando meu rosto mais
contra o meio das suas pernas.
Ela cantarola, seu quadril movendo-se rapidamente contra minha boca,
e sei nesse instante que encontrou o ápice. Não a deixo se recuperar. Jogo-a
na cama, desfazendo-me do meu tênis, da minha calça e cueca, pondo-me
entre suas pernas, minha ereção tão dolorida que não sei como estou
aguentando.
— Anticoncepcional? — pergunto, antes de entrar nela.
Juliette levanta as pálpebras, seus olhos castanhos em puro deleite.
— Não. Nenhum. Mas pela minha tabelinha, hoje pode — diz,
abraçando minha cintura com as pernas, forçando minha bunda com os
calcanhares, num claro pedido de que me quer logo dentro dela.
— Veremos isso quando voltarmos a Paris — imponho, um instante
antes de deslizar para dentro dela.
A carne úmida e quente da sua boceta me contorna e, de todas as
formas que imaginei como seria transar com ela sem o látex nos protegendo,
não cheguei nem perto de adivinhar a sensação. Deus, é bom. É tão bom que
quero passar o resto da vida aqui, enterrado nela, sentindo sua boceta se
contrair no meu pau à medida que invisto.
— Me coloca de quatro — pede, passando as unhas nas minhas costas.
Meu pau lateja com seu pedido e não leva nem um segundo para
estarmos assim. Seguro sua nuca, pressionando seu rosto contra o colchão
enquanto me arremeto de forma alucinada atrás dela e toco furiosamente seu
clitóris. Ela anuncia o segundo orgasmo, fazendo-me investir com mais
dedicação e afinco no meu dedo e nas batidas dos nossos quadris. Juliette
goza, abafando o grito no travesseiro, seu corpo tremendo sem cerimônia. Eu
me liberto dentro dela exatamente um segundo mais tarde, segurando o
quanto posso meus gemidos roucos.
Caio na cama e a puxo para mim, suas costas no meu tórax,
controlando a respiração, inspirando profundamente. Ela se acomoda nos
meus braços, roçando os pés nos meus.
— Pierre — me chama, baixinho.
— Hum? — murmuro de volta, olhos fechados, meu corpo ainda
assimilando a onda de dopamina, endorfina e oxitocina que foi liberada na
minha corrente sanguínea.
— Vem morar comigo e com Valentin?
Viro-a para mim, seu corpo nu e ligeiramente suado grudando no meu.
Seus olhos brilhosos combinam com o sorriso nos seus lábios inchados.
— Achei que nunca fosse me pedir isso — brinco, e Juliette ri,
aconchegando-se no meu abraço um pouco mais.
Fecho os olhos de novo, apertando-a mais contra mim, ansioso para
que, finalmente, nós três sejamos uma família. Do jeito que sempre idealizei.
PIERRE
— Atrapalho? — pergunto, dando uma leve batidinha na porta.
Étienne ergue o olhar para mim, tirando a concentração do seu cérebro
de mentira. Ele sorri ligeiramente, livrando-se do microscópio acoplado nos
seus óculos de proteção. Olho ao redor e vejo que está sozinho, o que é uma
novidade, uma vez que sua pesquisa com os estimuladores cerebrais demanda
de uma equipe de ao menos mais dois médicos. Parecendo ler meus
pensamentos, enquanto repousa o instrumento de trabalho delicadamente
sobre um livro aberto, ele diz:
— Cheguei antes de todo mundo.
— Ah — suspiro, adentrando mais na sala e encostando a porta atrás de
mim. — Vim perguntar se posso passar o final de semana com Édouard.
Bem, quero dizer, só estarei lá por meio período, mas Juliette pode cuidar
dele o restante que eu não estiver. Valentin gosta muito dele.
Meu irmão gira nos calcanhares, indo até uma mesa computadorizada,
cheia de livros e papéis, sentando-se na cadeira. Mexe no mouse e digita
alguma coisa rapidamente, talvez anotando alguma informação da sua
pesquisa para não esquecer, uma vez que o interrompi.
Étienne está focado. Nós ficamos longe por um tempo, eu em Rennes,
ele aqui em Paris com seus estudos, e mantivemos contato depois que nos
entendermos da discussão por conta da guarda do menino, tantos meses atrás.
É claro que ele achou um absurdo eu simplesmente me mudar para Rennes
por mais de algumas semanas e todo dia me ligava querendo saber quando eu
ia retornar, dizendo que sentia minha falta, que Édouard sentia a minha falta.
Logo após a segunda audiência que determinou que a guarda do garoto
continuava comigo, tratei de ter uma conversa séria com meu irmão e disse
que, por mais que não fosse nenhum problema ter a custódia do meu
sobrinho, ainda assim não era minha responsabilidade.
Um pouco de burocracia aqui e ali, alguns meses de acompanhamento
com a assistente social, e a guarda é de Étienne outra vez, o pai de Édouard, o
homem que nunca deveria ter aberto mão desse direito.
Ele está focado. Nunca o vi tão focado assim desde o sumiço da esposa.
É claro que existe uma linha muito tênue entre foco e obsessão pelo trabalho,
e foi este último o responsável por derrocar seu casamento, mas pelo que vim
acompanhando nesses três meses desde que voltei para a capital, é que ele
está sabendo muito bem equilibrar a vida. Além do mais, meu irmão está
bem. Sozinho, porque ele se nega a ter qualquer relacionamento amoroso.
Mesmo com Alizée, soube depois, que nunca passou do jantar daquela noite.
Sei muito bem que ele não precisa de ninguém para fazê-lo feliz, seu
“casamento” com o trabalho parece tudo o que precisa no momento. Se meu
irmão está satisfeito e feliz, eu também estou.
— Não só pode, como inclusive ia te telefonar hoje para saber se
poderia cuidar dele para mim na quarta-feira, que não tem aula. Sabe aquele
artigo sobre minha pesquisa que publiquei mês passado? — pergunta, e
abano a cabeça em positivo. — Surgiram mais alguns interessados em
patrocínio. Temos uma reunião na quarta para eu fazer uma apresentação
formal de tudo que já foi desenvolvido nessa primeira fase.
Realmente fico feliz por meu irmão. Esse estudo sempre foi um sonho
muito pessoal dele, interrompido quando toda sua vida virou de ponta-
cabeça. Vendo-o agora animado com a perspectiva de novos apoiadores, que
lhe trarão aparatos tecnológicos, bolsas de estudos e financiamento, sinto-me
orgulhoso dele.
Étienne suspira, passando a mão pelos cabelos e saindo de trás da sua
mesa, sentando-se à beirada. Ele me olha com as sobrancelhas levemente
franzidas, o semblante meio duro.
— Não é nada garantido — informa. — A instituição escolhe só os
melhores projetos para financiar. Tenho alguns concorrentes, é claro, e
Francine está entre eles.
Nem me abalo à menção do nome dessa mulher. Acho que a
tranquilidade da fazenda em Rennes me ajudou a colocar a cabeça no lugar e
descarregar toda aflição e angústia que ela me causou um dia. De volta ao
Necker-Enfants Malades, é inevitável que, vez ou outra, a gente se esbarre
pelos corredores. Limito-me somente a um cumprimento rápido, e ela
também não me atormenta mais.
— Deve saber que ela está com uma pesquisa voltada ao mal de
Parkinson.
— Eu soube — respondo, desinteressado. — De qualquer maneira —
remanejo o assunto, não querendo me deter em Francine mais do que é
necessário —, fico com o garoto na quarta e no final de semana.
Étienne balança a cabeça em positivo, recolocando seu microscópio e
voltando para o cérebro-simulador, que está todo conectado aos
computadores e é semelhante a um cérebro humano. Não sei exatamente o
que está fazendo, porque o equipamento é usado para simular uma
neurocirurgia, principalmente as de alto risco. Lembro-me da risada alta de
Valentin, no outro dia quando estive aqui para assinar minha recontratação,
que assustou meu irmão, na mesma posição de agora. O movimento abrupto
da sua mão firme fez o equipamento apitar: paciente morto.
Ele abana a mão, dizendo que precisa voltar a trabalhar e praticamente
me expulsa. Rindo, volto rapidamente para minha ala para cumprir o resto do
meu turno. Estou terminando de me trocar quando Céline, a chefe da
ginecologia, surge, vindo até mim para me cumprimentar. Ela tem um jeito
bastante irreverente e espaçoso, o que estranhei logo no meu primeiro dia de
volta. De alguma forma, me identifiquei com ela, porque é uma pessoa fácil
de se sociar e conversar. A mulher também está encerrando o plantão e, assim
que pega todas as suas coisas, deixamos o hospital juntos.
Durante o caminho falamos um pouco sobre uma paciente de doze anos
que chegou esses dias. Vítima de estupro. Grávida. Deu entrada no hospital
para fazer o aborto. É um assunto que me deixa muito desconfortável, então
prefiro falar de outra coisa. Dois minutos depois, estou rindo de uma situação
constrangedora que ela passou e me conta.
— Não é a sua namorada? — Céline diz, apontando.
Ergo os olhos, mirando para a direção que aponta. Juliette está a dez
metros de mim, perto do meu carro, segurando Valentin nos braços. Despeço-
me de Céline, ela indo para outro caminho, e vou ao encontro da minha
namorada, sem entender exatamente a sua presença.
— Oi — digo, apoiando a mão na sua cintura e beijando sua boca
delicadamente. Ela sorri contra meus lábios e responde enquanto deixo um
selinho em Valentin e o pego para mim. — Adrien não ia ficar com ele hoje?
— pergunto, olhando para o garotinho e enfiando meus dedos grandes nas
suas costelinhas. O menino de nove meses se contorce e gargalha do seu jeito
gostoso.
— Ia — responde, enfiando a mão no bolso da minha calça e pegando
as chaves do carro. — Estaria de folga e por isso não mandei Valentin para
creche, mas parece que Ferdinand mudou de ideia e o requereu outra vez.
Será que você pode ficar com ele para mim, Pierre? — pergunta, conferindo
as horas no relógio. Sei que ela começa às nove e são pouco mais de sete. —
Sei que ficou de plantão a noite toda, mas vou tentar cumprir só meio período
e…
— Fico — digo imediatamente. Não seria a primeira vez, de qualquer
forma. Sábado ou outro ele fica comigo porque a mãe precisa estar no
trabalho. Às vezes, preciso levá-lo comigo para o hospital, mas me viro bem
me revezando com as enfermeiras que o adoram. — Sabe que nem precisa
me pedir assim, como se ficar com ele fosse um problema para mim.
Não queria mesmo que ela tivesse esse tipo de sentimento. Gosto de
Valentin. Eu o amo, e tudo que faço por ele é de bom coração. Sei que parte
disso é culpa minha. Tem três meses que nós começamos uma vida a três e,
apesar de em grande parte eu fazer o papel de pai, nunca conversamos sobre
essa convivência paternal que tenho com o pequeno. Não tenho nenhuma
denominação para esse vínculo com o garoto. Quando estava grávida, ela
sempre se referia a mim como “tio Pierre”. Claramente não sou tio dele. Nem
quero ser. Quero mais do que isso. Hoje, entretanto, não sou tio, nem
padrasto. Só apenas “Pierre”. Algo que realmente me desagrada e já tem
umas semanas que venho trabalhando para mudar isso.
— Sei que não é — responde, molhando o lábio inferior. Sinto que
Juliette acha que Valentin me incomoda e por esse motivo sempre tenta fazer
tudo sozinha, pedindo minha ajuda o mínimo possível, embora eu me
prontifique na maioria das vezes para ajudá-la com um banho, uma troca de
fraldas, uma mamadeira na madrugada. — Mas é que não é sua obrigação…
Simplesmente abano a mão no ar e tomo as chaves dela outra vez,
desativando o alarme do carro e abrindo a porta. Acomodo Valentin no
assento apropriado.
— Já disse que fico com ele, Julie — respondo, mais incisivo,
terminando de prendê-lo. Deixo outro selinho nos seus lábios e fecho a porta.
— Entra no carro que vou te levar até o trabalho e depois vou pra casa. —
Um sorriso singelo cruza sua boca gostosa e ela me dá um beijo profundo e
gostoso antes de atender meu comando.
A viagem até Chevalier Arch leva cerca de meia hora. Levaria menos
se não tivesse parado para comprar um copo de café e um croissant para ela,
que saiu de casa sem comer nada. Juliette se despede de mim com um beijo
úmido e um abraço apertado. Faz o mesmo com Valentin, deixando um beijo
estalado na sua bochecha. Vou para casa, conversando o caminho todo com
meu garoto. Ele ri e bate braços e pernas todo o trajeto.
Valentin não é uma criança difícil de cuidar. Em casa, arrumo uma
coisa outra, lavo uma louça da noite passada e pego alguns brinquedos do
chão. Quando ele tira um cochilo no meio da manhã, aproveito para
descansar um pouco. Dormimos juntos, seu rostinho escondido no meu peito,
o corpinho aconchegado nos meus braços grandes. Acordamos juntos pouco
depois do horário do almoço. Encontro uma papinha congelada, que aqueço
no micro-ondas, e o alimento, eu mesmo só forrando o estômago com um
sanduíche de frango e queijo. Passamos o resto da tarde brincando e
passeando nas redondezas. Perto do horário de Juliette chegar em casa, nós
voltamos. Dou um banho quente em Valentin e alguns mililitros de leite.
Penso que com isso o garotinho vai dormir mais um pouco, mas sou
terrivelmente contrariado.
— Vou te mostrar uma coisa — digo a ele, terminando de ajeitar a
jardineira que coloquei no seu corpinho rechonchudo.
Pego-o no colo e o levo até o meu quarto. Reviro o guarda-roupa,
tateando os bolsos do meu paletó até que sinto a firmeza do objeto. Tomo-o
em mãos e o coloco na frente dos olhinhos cor de mel. Valentin estica as
mãozinhas, querendo pegá-lo. Tiro do seu alcance.
— No momento certo, Valentin — murmuro, abraçando suas costas e
deixando um beijo no topo da sua cabeça.
Leva mais algum tempo até que ouço Juliette chegando. A porta da
frente abre e fecha com um bater natural, e a voz dela ressoa pela casa,
chamando meu nome. Grito um “aqui no quarto” e leva dois minutos para
que apareça, o que me dá tempo suficiente para esconder o objeto no
bolsinho da jardineira do bebê. Ela surge, afofando os cabelos, descalça.
Deve ter largado os saltos na entrada, o que me deixa possesso porque
sempre tropeço naquelas porcarias.
— Oi, meninos — diz, indo até Valentin primeiro e dando um beijinho
nele. Tenta pegá-lo de mim, mas não deixo. Sai. É meu. Ela ergue uma
sobrancelha e ri, balançando a cabeça em negativo. Por fim, encosta seus
lábios nos meus, e suspiro conforme o aroma da sua pele vai tomando conta
do meu olfato.
— O que você está aprontando, Pierre? — pergunta, afastando-se
apenas o bastante para me olhar nos olhos.
— Bem — digo, dando um passo atrás, e ajeito o menino melhor no
meu colo, de modo que fique de frente para a mãe, meus braços por baixo das
suas perninhas. — Há algo que Valentin quer te dar.
Juliette olha de mim para o filho, arqueando uma sobrancelha, mãos na
cintura. Informo onde está — no bolso da jardineira — e ela se aproxima,
enfiando o dedo no espaço. Seu corpo trava na mesma hora quando parece
reconhecer pelo tato do que se trata. Vagarosamente, ela o tira do seu
esconderijo.
— Pierre — murmura, assustada, os olhos enchendo de lágrimas e fixos
na aliança.
— Tivemos uma conversa séria de homem para homem — pronuncio,
arrancando dela uma risada em meio às suas lágrimas tímidas. — Disse que
só tenho boas intenções com a mãe dele, que, para esse relacionamento dar
certo, preciso que esteja de acordo e nos dê a sua benção.
Juliette ri de novo, secando as gotas que escorrem pelo seu rosto,
dizendo que não tenho jeito. Sei que está prestes a dizer sim, mas há uma
segunda coisa que também quero pedir e vou aproveitar o momento. Por esse
motivo, antes que diga qualquer coisa, eu tomo a frente:
— Valentin quer saber se você aceita se casar comigo e se me deixa ser
o pai dele.
Os olhos dela se arregalam. A boca, entreaberta, não emite som algum.
O instante de silêncio entre nós faz com que eu tenha a impressão de que meu
coração vai parar, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, sinto-o bater
nos meus ouvidos. Ela nem fica tanto tempo assim sem me dar uma resposta,
mas na minha cabeça parece um espaço temporal grande demais para
aguentar. Embora minha vontade seja de pedir para, pelo amor de Deus, dizer
alguma, deixo que tome o tempo necessário para processar meu pedido.
Não só o de casamento, visto que, tecnicamente temos pouquíssimo
tempo juntos, mas o meu desejo de assumir Valentin, que só carrega o
sobrenome dela. Julie precisa concordar que Valentin Laurent soa bem, não
melhor do que Gautier, mas soa bem.
— Não sei o que dizer — confessa, baixinho, deitando a cabeça no meu
ombro.
— Sou um bom partido, sabe disso — brinco, e outra onda sonora da
sua risada invade o quarto, preenchendo-me de uma sensação boa.
— Para a primeira pergunta, é sim. Para a segunda é que não sei o que
dizer. — Juliette ergue a cabeça, seus olhos ainda úmidos encarando os meus.
— Diga sim também — murmuro, arrastando meu rosto no seu. —
Amo esse garoto desde muito antes de ele ter nascido, Juliette. Mesmo que
esse menino não tenha meu sangue, sinto que sou pai dele. Quero ser o pai
dele. Mas só se você deixar. Caso você não queira, finjo demência e esqueço
que essa conversa aconteceu — gracejo para aliviar um pouco a tensão entre
nós.
A resposta que recebo é um beijo profundo, ela quase se pendurando no
meu pescoço para procurar mais espaço na minha boca, querendo me
devorar, me possuir, buscando tudo de mim. Retribuo na mesma medida até
me recordar do garoto no meu colo.
Olha a indecência perto da criança.
— É isso mesmo o que você quer? — pergunta, ligeiramente receosa.
Nem posso julgar o seu medo, mas não sou esse tipo de cara. Se me
permitir assumi-lo, jamais vou jogar na cara dela qualquer coisa relacionada a
isso. Assim que registrá-lo, Valentin vai ser meu filho, independente se
somos consanguíneos ou não. Ele pode não ter o meu sangue, mas tem o meu
amor, o que é mais do que suficiente.
— Nunca tive tanta certeza na minha vida — afirmo, seguro do que
realmente quero. — Quero dar meu sobrenome para você e para o seu filho.
Nosso filho. Nosso garoto.
Da melhor maneira que pode, Juliette me abraça apertado, escondendo
o rosto no meu pescoço, inspirando fundo o meu cheiro. Também me
aconchego nela, trazendo Valentin para o nosso meio. A mãe joga um braço
em torno dele, e então estamos em um abraço triplo.
— Sim e sim — diz, baixinho, a voz ainda carregada de emoção.
Eu os aperto mais contra mim, meu peito transbordando de amor.
Minha mulher. Meu filho. Minha família.
Família Laurent.
Não há nada mais no mundo que eu queira nesse momento.
PIERRE
Isso é autoflagelo.
Prometi a mim mesmo que não buscaria saber como aconteceu, mas
aqui estou eu, esperando Othon, mais de um ano depois desde a última vez,
às vésperas do meu casamento com Juliette. Meu coração bate igual àquele
dia, descompassado, nervoso, quase entalado na garganta. Até parece que
vim pedir outro “favor”.
Prometi nunca querer saber, mas eu vim. Nos últimos meses, foquei no
que realmente interessava para poder lidar com isso. Enquanto estive em
Rennes, ocupei a cabeça com o trabalho que meu pai designava, li inúmeros
artigos sobre tecnologias e estudos na minha área, eu mesmo escrevendo um
breve ensaio sobre a reação do corpo feminino quando tem um orgasmo.
Tentava não pensar muito no que fiz e, sempre que pensava, me convencia de
que era Antony ou as pessoas que amo, tentava me convencer de que não
hesitei da mesma maneira que ele não hesitaria, que livrei o mundo de
alguém perigoso. Pensei que, dentro de alguns anos, Valentin poderia andar
em segurança, Juliette poderia andar em segurança. Fiz pensando neles.
Prefiro lidar com a culpa a lidar com qualquer um que eu ame machucado por
causa daquele homem.
Quando Juliette me procurou e fomos morar na mesma casa, meu foco
foi nela e em Valentin. Joguei tudo para a parte mais obscura da minha
mente, me concentrei em ter uma boa vida ao lado dos dois, e segui em frente
da melhor maneira que pude. Ainda sigo em frente da melhor maneira que
posso.
Meus pensamentos são levados embora quando o agente penitenciário
traz Othon e o coloca de frente para mim. Recebo instruções, que não
mudaram desde um ano atrás, e somos deixados sozinhos.
O enorme homem me encara por alguns segundos, o semblante
demonstrando que não compreende minha visita. Nunca disse que jamais
voltaria, mas também não disse que voltaria. Há um traço de hesitação nos
seus olhos, que ele desvia de mim, cortando o contato visual por motivos que
não compreendo. Othon está ligeiramente estranho, parece nervoso e
indeciso. Ou só está enojado de mim.
Tudo bem, porque foi assim que me senti nos primeiros dias.
Amasso a beira do papel pardo que trago comigo, descarregando um
pouco da aflição que sinto.
— Trouxe alguns relatórios do dinheiro que investi e… — Quebro o
silêncio com um sussurro, não sabendo exatamente como iniciar essa
conversa, mas sou logo interrompido.
— Não quero seu dinheiro, Laurent. — Sua voz sai baixa, rouca, mas
não ameaçadora, nem desdenhosa. Reconheço uma nota de vergonha.
— Por quê? — questiono, enrugando o cenho.
Othon se vira para mim.
— Não fiz o que me pediu. — Meu coração erra uma batida e fico
perdido com sua informação. — Estava esperando os dois meses que me
aconselhou. Leclerc arrumou confusão com aquele grupo antes que eu tivesse
tempo de planejar qualquer coisa. Ele morreu, mas não foi porque fiz o que
combinamos.
De repente, uma onda de alívio perpassa meu corpo, fazendo-me
afundar na cadeira em que estou. Minha boca seca e meus olhos ardem com
as lágrimas que ameaçam descer. É hipócrita da minha parte me sentir
aliviado porque ele não morreu a mando meu, mas morreu porque procurou
seu próprio destino.
— Eu poderia ter dado um jeito de entrar em contato com você —
Othon prossegue —, mas a verdade é que fiquei quieto porque queria o
dinheiro. Preciso do dinheiro quando sair daqui, Laurent. Eu… Me desculpe
— pede, evitando o contato visual de novo.
Balanço a cabeça em negativo, dispensando suas desculpas e também
para afastar as lágrimas de mim. Alivia um pouco saber que Antony se
afundou sozinho, encontrou o que estava procurando; ainda assim, não me
exime da culpa de ter vindo comprar sua morte. Mesmo ligeiramente aliviado
em saber que não causei a morte dele, vou continuar tendo que lidar que
cheguei ao extremo uma vez na vida.
— Mas estava disposto — digo, com um amargo na voz, mais pela
minha atitude de pedir algo tão desprezível do que por ele ter se disposto a
cumprir. — O dinheiro é seu, Othon.
Ele se volta para mim, lentamente. Antes que me diga qualquer outra
coisa, levanto-me, pronto a ir embora.
— Os títulos vão continuar no seu nome — informo apenas.
Do lado de fora do presídio, fecho os olhos e deixo a brisa gelada
acertar meu rosto.
— Preciso admitir que ela é uma boa moça — papai diz, ao pé do meu
ouvido, enquanto termina de ajeitar alguns petiscos na bandeja. — Tudo bem
aquele garoto ser meu neto.
Sorrio, parando um segundo com a minha tarefa de ajudá-lo com os
aperitivos da badeja, e ergo o olhar para Juliette. Minha esposa. Ela está
alguns metros longe, papai e eu na área de lazer preparando mais tira-gostos
para os convidados. É um dia ameno em Rennes, numa pequena
confraternização entre amigos e familiares depois que me casei ontem, em
Paris.
Édouard passa correndo por ela, fazendo Valentin gargalhar e querer
descer do colo dela, que o mantém sobre suas pernas e volta a conversar
animadamente com Juliene e Ann-Marie. Bernardo está ao lado da mulher,
mas a atenção está no carrinho de bebê perto dele, conversando com o filho
de uns quatro meses.
Estou feliz que tenham vindo. De verdade. São meus amigos e gosto
deles por perto num momento feliz como esse. A gargalhada alta de Marie,
conversando com Étienne num outro canto, é trazida pelo vento, fazendo meu
pai erguer o olhar em sua direção e balançar a cabeça em negativo. Ele não
gosta muito de pessoas escandalosas.
— Ela é — respondo-o, por fim.
No começo, Joseph resistiu um pouco a esse relacionamento. Não tinha
só pela questão pela qual passamos meses antes, mas por causa da minha
decisão de assumir Valentin. O velho Laurent criou uma resistência boba
com Juliette, desde o dia que ela veio aqui “me buscar”. Fez cara feia igual
criança, sim, mas entendo que, na cabeça dele, estava pensando no melhor
para mim. Mas precisava que ele aceitasse a mulher que amo fazendo parte
dessa família, então fui os aproximando aos poucos nesses últimos meses.
Pelo menos uma vez por mês vim visitá-lo e trouxe minha namorada e meu
filho juntos. No aniversário de um ano de Valentin, duas semanas atrás, meu
pai ligou, desejou felicidades, pediu para colocar o garoto na linha, que
reconheceu a voz dele e ficou agitado. Dias depois, o correio entregou um
presente para ele, com remetente no nome do meu pai.
Faltando uma semana para me casar, Joseph enfiou na cabeça que
precisávamos de uma confraternização. Não íamos fazer nada além de um
pequeno almoço em família, com os mesmos amigos mais próximos que
estão aqui. Meu pai, contudo, insistiu que deveríamos vir para Rennes, passar
um final de semana e hospedar esse povo todo na fazenda. Espaço não falta.
Juliette e eu concordamos porque vimos que foi o modo dele de dizer que ela
era da família agora. Ela e Valentin.
Meu velho limpa as mãos no pano de prato e se vira para mim,
apoiando a direita no meu ombro.
— Sei que não fui muito compreensível no começo, mas entenda que
só estava preocupado com você. — Seu olhar se perde um instante no meu
irmão, rindo com Juliene de alguma coisa que conversam. — Veja o que uma
mulher fez com Étienne.
— Pai…
Ele nem me deixa terminar. Apenas abana a mão, dispensando qualquer
comentário que eu pense em fazer.
— O que passou já não importa. Importa somente agora, e agora
estamos comemorando seu casamento — diz, apoiando as duas mãos nos
meus ombros, com um sorriso paternal e carinhoso. — Me prometa que vai
me visitar com mais frequência agora. Não me faça ir à capital matar a
saudade do meu neto caçula.
Sorrio, abanando em positivo, com uma alegria diferente tomando
conta de mim. O modo como ele pronuncia meu neto. Tem tanto amor e
carinho nas suas palavras. Ele considera Valentin seu neto com o mesmo
amor que eu o considero meu filho. Avanço sobre meu pai e o abraço forte,
prometendo que viremos sempre que possível. Ele me afasta, espanando
meus ombros, e sorri outra vez antes do nosso momento ser interrompido
pela minha madrasta, que chega elogiando Adrien aos montes, com um
sorriso de orelha a orelha, depois de passarem um tempo conversando.
Joseph enruga o cenho severamente, direcionando o olhar para
Bourdieu, que agora está com meu filho no colo, brincando com ele. Tem
alguém com ciúmes. Meio mal-humorado, papai entrega as bandejas com os
petiscos para a esposa e decide ir com ela distribui-los. Olha ele marcando
território.
Rio da situação e lavo as mãos, até que sinto braços me contornando.
Os lábios dela pousam no meu rosto e giro no mesmo instante, pressionando
sua boca na minha.
— Oi, marido — murmura, arrastando o nariz no meu pescoço.
— Oi, esposa — devolvo, apertando sua cintura.
— Precisa de ajuda? — oferece, olhando para o balcão cheio de louça
para lavar.
Antes que eu responda, ela se prontifica a dar uma organizada na
bagunça que Joseph e eu fizemos. Vou secando os copos e pratos enquanto
conversamos amenidades. O dia passa de forma agradável, recheado de
conversas fáceis, risadas e companheirismo. Valentin é o centro das atenções,
como era de se esperar. Ainda mais agora, que está tentando andar. Ele sai
escorando em tudo e em todos, nas suas passadas rápidas e desengonçadas.
Em certo momento, até fazemos uma competição. Juliette e eu ficamos lado a
lado, meu pai atrás do neto que dá passos cambaleantes, e nós dois o
incentivando, ela com “vem para a mamãe”, e eu com “vem para o papai”.
Teve até aposta em dinheiro entre Adrien e Bernardo. Dousseau apostou que
o garoto ia para a mãe, enquanto Bourdieu apostou em mim.
É nesse momento, num fim de tarde em Rennes, com um sol agradável
nas nossas peles, enquanto brincamos com o menino, que ele faz duas
grandes “primeiras vezes”. Valentin consegue andar sozinho os dois metros
que nos separam, suas perninhas aceleradas na minha direção. Vibro quando
o vejo ajustando o caminho para mim, o que me faz intensificar mais o meu
“vem, garoto!”. Então, quando meu filho está entre meus braços, ele gargalha
e solta um:
— Papai.
Ele já diz mamãe. Diz desde os oito meses, mas como tem
relativamente pouco tempo que entrei na vida dele como pai, é natural que
demorasse um pouco mais para dizer. Mas ele disse. Esperei por esse
momento cada segundo desde o dia que decidi que o queria como meu filho.
Incentivei-o sempre que podia, repetindo a palavra. Valentin nunca disse. Até
hoje. Até agora. Simplesmente não sei lidar com isso sem ser juntando
lágrimas nos olhos e beijando seu rosto, deixando transbordar toda a emoção
que sinto nesse instante.
Juliette se aproxima, envolve-me em seus braços quentes e beija meu
rosto, um sorriso nos olhos e nos lábios que revela a mesma emoção minha.
— Agora diz “vovô” — meu pai incentiva, e todos nós rompemos em
gargalhadas.
Valentin me abraça, deitando o rostinho no meu ombro, seus bracinhos
curtos em torno do meu pescoço. Afago suas costas, deixando um beijo na
sua bochecha corada e o apertando mais contra meu peito.
Esse garoto veio ao mundo para ser meu filho.
Ninguém nunca poderá contestar isso.
JULIETTE
Ann-Marie me abraça em despedida, apertado. Bernardo não para de
buzinar na frente de casa, infernizando a esposa para irem embora.
— Se deixar, passam a tarde tricotando — grita, quando a mulher o
manda esperar um pouco. — Até Jean-Luc está entediado.
Ela revira os olhos e ri discretamente, pegando-me pelas mãos e me
olhando nos olhos. Nunca vou entender por que ela se aproximou tanto assim
de mim a ponto de cultivarmos uma amizade sincera. Nunca vou entender e
nem quero. É suficiente que seja minha amiga e tenha perdoado as besteiras
que fiz um dia.
— A festa estava linda — elogia, olhando por cima do meu ombro, as
bexigas e balões de número dois enfeitando a minha sala atrás de mim. —
Obrigada por tudo.
Balanço a cabeça em negativo. Não há o que agradecer. Valentin fez
dois anos. O pai dele quis uma pequena festa entre os familiares, porque
nenhum de nós dois gosta de qualquer coisa grandiosa. Ainda mais para um
bebê de vinte e quatro meses. Pierre, contudo, quis comemorar o nascimento
dele. Chamei os amigos mais próximos, o que se resume a Ann-Marie e
Bernardo, Adrien, Étienne, meu sogro com a esposa, e Juliene que saiu às
pressas quinze minutos atrás ou ia perder o voo de volta à Inglaterra, onde
está cursando o último semestre do seu curso. Marie também ficou de vir,
mas avisou que não poderia por conta do trabalho. Enviou uma lembrancinha
por Dousseau que é a coisa mais linda.
Despeço-me da minha última convidada uma última vez antes de fechar
a porta e começar a limpar a bagunça. Jogo pratos e garfos descartáveis no
lixo, limpo a mesa, o chão, junto brinquedos e balões. Uma hora depois,
minha sala está devidamente organizada de novo. Vou até o quarto de
Valentin, a passos cautelosos, e, à medida que me aproximo, posso escutar a
voz grossa de Pierre cantando uma canção de ninar. Afasto um pouquinho a
porta entreaberta e lá dentro o vejo com o menino no colo, segurando uma
mamadeira com a mão direita enquanto o balança preguiçosamente. Nunca
vou me acostumar com esse carinho dele com Valentin e sempre vou me
sentir boba em vê-lo cuidando do filho. Cada troca de fralda, cada conversa,
cada banho, cada madrugada que levanta para acalmar o pequeno chorando
no berço, cada vez que prepara a mochila da creche, cada vez que fica em
estado de nervos quando o menino está doente.
Nunca vou sentir que ele não faz mais que sua obrigação, porque ele
não tem obrigação nenhuma. Mesmo depois de ter assumido Valentin, de ter
dado seu sobrenome ao meu filho, não consigo cobrar nada de Pierre. Às
vezes, me deixo sobrecarregar de tarefas com o menino por causa disso, por
não conseguir pensar que, como pai dele, Pierre tem suas obrigações. É claro
que isso gera longas conversas de como ele não gosta que me desdobre para
fazer tudo sozinha porque ele tem, sim, seus deveres paternais. Aos poucos,
estamos trabalhando isso, e estou me sentindo mais confortável e confiante
em deixá-lo cumprir a rotina e as tarefas com o garoto.
Pierre finalmente nota minha presença e se vira para mim, abrindo um
sorriso pequeno. Sustenta meu olhar só por um segundo antes de voltar a
cantarolar e ninar o filho. Encosto a porta de novo e vou para nosso quarto.
Tomo um banho e preparo um filme para passarmos o restante desse
domingo gostoso.
Ele surge dez minutos depois, cabelos desgrenhados e cara de cansado.
Veio de um plantão hoje cedo e passou o dia me ajudando a organizar o
aniversário de Valentin. Cai na cama, ao meu lado, enfiando o rosto no meu
pescoço e jogando os braços pesados por cima de mim.
— Ele dormiu?
— Finalmente — responde. — Nunca vi menino para ter tanta energia.
Rio e acaricio seus cabelos pretos — que até hoje, na verdade, não sei
são pretos ou castanho-escuros. Nunca perguntei. Pierre fica um tempo
aconchegado em mim, respirando lentamente; acho até que cochilou. De
repente, solta “eu te amo muito”, o que nem me surpreende porque ele é
dessas aleatoriedades. Sorrio e giro meu corpo por cima do dele, dizendo que
também o amo e massageando seus ombros.
Penso em oferecer sexo, mas desisto porque noto que meu marido já
está dormindo. Saio de cima das suas costas, colocando-me ao seu lado,
deixando meu rosto rente ao seu. Jogo minhas pernas na sua cintura e com o
indicador, começo a traçar o contorno do seu rosto bonito.
— Descanse, mon amour — murmuro, beijando seus lábios. — E
obrigada por tudo.
FIM
Proibido e Irresistível
(Amores em Paris — Vol. IV)
Em breve…
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