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CLown

Essencial
a arte de rir de si mesmo

ALain Vigneau
A tor e clown, Alain Vigneau (Francia,
1959) é fundador e diretor da com panhia de
teatro La Stravagante, professor de Teatro e
Clown no curso de Arte terapia da A E C /
U V IC (Barcelona), cofundador do centro
Consciência e artes Cênicas de Puebla de los
Angeles (México), e colaborador em diversos
centros de desenvolvimento pessoal e artísti­
cos em E uropa e Am érica Latina. Iniciado
p o r Rosine Rochette n a união entre clown
e Gestalt, é discípulo e colaborador de Dr.
Cláudio N aranjo nos program as SAT de Es­
panha, A lem anha, México, França, Rússia,
Estados Unidos e Brasil. Artista colaborador
de Palhaços em Fronteiras, realizou muitas
atuações em G uatem ala, El Salvador, N ica­
rágua, N am íbia e Indonésia, levando o riso
a m ilhares de pessoas, desde os grandes festi­
vais até os lugares mais distantes do planeta.
Alain Vigneau

Clown Essencial
a arte de r ir de si m esm o

voltando p ara
casa pelo cam inho
do hum or am oroso

Ia edição

S im ões Filho, m a rç o 2018


Copyright © A lain Vigneau, 2018
T e x to rev isad o se g u n d o o novo A cordo O rto g rá fic o d a L ín g u a
P o rtu g u e sa . T o d o s os d ire ito s reserv ad o s. O s d ire ito s m o rais d a a u to r
e stão a sseg u rad o s.

T radução: LÊDA OLIVEIRA DOS SANTOS, JUVENAL BERNARDES


Revisão: ELIANA MOURA
Ilustração Capa: SU SA N R O U Z IE
Fotos: OLGA BATISTE, SERGE CORNILLET, ANTONIO FORTEA,
TONI LOSAS E CARLOS MATEO

13Edição

í CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃOS


EMDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
V737c
V igneau,A lain
Clown e sse n cia l: a a r te d e rir de si m esm o /A la in Vigneau;
Q xadução Lêda Oliveira d o s S a n to s, Ju v e n a l B ern ard es^].-l.ed .-
Sim õesFilho[]B A ]:K alango,2018.
132p.:il.;21cm

T ra d u ç ã o de: Clown esencial: El a rte d e re írse d e s í mis mo


ISBN 978-85-5335-002-5

l.T eo ria do a u to c o n h e c im e n to . 2.A utorrealização(P sicologia).


S.M otivação
(Psicologia). I.S an to s, L êdaO liveirados. II.B e rn a rd es, Juvenal.
III.T Ítulo.

18-48340 CDD: 158.1


CDU: 159.947

M eri Gleice R o d rig u es de Souza - B ibliotecária C R B-7/6439

E d ito ra K alango
R od Ba 093 K m 07 C p 029 - Sim ões F ilho, Ba - 4 3 7 0 0 -0 0 0
c o n ta to @ E d ito ra k a la n g o .c o m .b r
w w w .e d i t o r a k a l a n g o .c o m .b r
Dedicado a minha esposa Leda Oliveira dos Santos,
a nossa querida andorinha Ainara,
e a todos Hotxuás (palhaços sagrados) do Brasil.
Agradecimentos
Aos meus pais, Claude Vigneau e Josette
Costedoat, que me entregaram a vida com a
melhor das intenções.
À minha esposa Lêda Oliveira dos Santos,
por seu amor e benevolente paciência ein
compartilhar-me com tanta gente.
A minha amiga Guadalupe M aurer Espinosa,
por me deixar as chaves da sua casa de infância,
onde me retirei para escrever este livro.
Sumário

PREFÁCIO 9
PRÓLOGO n
APRESENTAÇÃO 13

CAPÍTULO 1 CAPÍTULO 7
A CELEBRAÇÃO DA A POÉTICA DO
TRAGICOMICIDADE DO SER SIMBÓLICO 61
HUMANO 19
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 2 AS ÁGUAS CLARAS DA
AS FERRAMENTAS DO CLOWN INFÂNCIA 79
ESSENCIAL 25
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 3 O EGO EM JOGO 91
O OLHAR DO OUTRO 33
CAPÍTULO 1 0
CAPÍTULO 4 O CORPO
A PROPRIEDADE DO GENEALÓGICO 103
INÚTIL 39
CAPÍTULO 1 1
CAPÍTULO 5 O CONTRATO COM
O ECO DO MUNDO 45 DEUS 115

CAPÍTULO 6 CAPÍTULO 1 2
O ABRAÇO ANCESTRAL 53 O CONSOLO DA ALMA
CAPÍTULO 1 3
BAILANDO COM AS
SOMBRAS 139
PREFÁCIO

A lain V igneau não só é um hom em de g ra n d e talento, m as


tam bém um g ra n d e a rtista m ovido p o r um a vocação tão específi­
ca que o faz sen tir-se inspirado p o r um a missão. A ssim com o ex ­
plica em seu prólogo, precisou ap ren d er a rir em resp o sta à d o r
de sua infância, e desde então vem ensinando o u tro s a fazerem
o mesm o. N ão só a m an ter a aleg ria na presença da dor, m as a
am ar a si próprios.
C onheci A lain quando en tro u em m inha escola e realizou os
diversos m ódulos do P ro g ra m a SAT, que dirijo em com panhia
de um a série de colaboradores. E com o naquela época ele tin h a
um circo, era n atu ra l que, quando term in asse seu processo for-
mativo, convidasse-o a colaborar em m eu p ro g ram a, com o já ha­
via convidado an terio rm en te a R am ón Resino, Juan C arlos Co-
razza e o u tro s g ra n d e s d ireto res de teatro. D e ta n ta qualidade
foram suas contribuições que o convidei para todo o m undo, da
C alifórnia a M oscou, A lem anha, B rasil, M éxico etc.
Parecia-m e im provável que um a pessoa tão te rn a como
Alain fosse capaz de to car pro fu n d am en te o coração de pessoas
tão endurecidas com o as que cum prem penas p o r hom icídios,
mas, em um a ocasião na qual fiz a p ro p o sta de in c o rp o ra r ao
P ro g ra m a SA T algum as pessoas em liberdade condicional, m eus
o u tro s colab o rad o res propuseram que deveríam os ev itar que es­

9
tivessem ju n to s o g u ard a de um a prisão, que havia p erm itid o a
en tra d a de um g ru p o de hom ens na cela de um a m ulher à qual
p reten d iam violentar, e a p ró p ria m ulher, que conseguiu m atar
aqueles hom ens. M as A lain insistiu que participassem ju n to s em
um g ru p o seu. E, sem o u tras arm as além da doçura, da com ­
p reensão e da sinceridade, conseguiu tocá-los profundam ente.
N ão m e parece que devo acrescen tar nada ao que o p ró ­
prio A lain já disse sobre seu trabalho. E u o aprecio en orm em en­
te com o alguém que privilegia o resg ate da criança in te rio r das
pessoas e, através disso, a recuperação do am or que, antes de
esten d er-se aos dem ais, deve com eçar p o r si mesm o. M as assim
com o é difícil re d u zir em fórm ulas o trab a lh o de um verdadei­
ro artista, creio que tam pouco se deva esquem atizá-lo de form a
teórica.
Hoje em dia, A lain é alguém que não apenas ri p ara não
te r de sofrer, m as um a pessoa que tam bém resg ato u o sofrim en­
to do seu passado. E isso não invalida o que teve de ap ren d er
desde criança p ara viver com a experiência de algo terrível. A s­
sim com o um g rã o de areia cria um a irritaç ão na o stra da qual
se defende tran sfo rm an d o -a em um a pérola, ocorre no m elhor
dos casos que aquilo de que necessitam os p a ra atravessar nosso
sofrim ento não so m en te sirva a nós m esm os, m as tam bém aos
demais. P areceria, inclusive, que por tal capacidade de serviço se
ju stificaria o m al que atravessam os.
U m a ú ltim a coisa: sem pre soube que A lain era um g ra n d e
clown e um a pessoa que ajuda aos o u tro s a se curarem p o r meio
da aprendizagem de sua arte, mas, ao ler este livro, dei-m e conta
de que tam bém é um poeta - e, em bora isso não me ten h a su r­
preendido, fiquei m uito feliz.

C l á u d io N a r a n jo

io
PRÓLOGO

Q uando m inha m ãe m orreu, eu era criança, e pensei, naque­


le m om ento, que era um castigo de Deus. A creditei em m inha
alma infantil que Ele, que não m e conhecia pessoalm ente, casti-
gava-m e assim p o r com er aqueles insipientes ranhos que tirava
cuidadosam ente do m eu nariz de 7 anos. N aquele m om ento nin ­
guém me co n trad isse, e foi assim que, p o r incrível que pareça,
aquela crença perm aneceu fixada em algum lu g ar d en tro de m im
d u ra n te m u ito tem po. L ogo sim plesm ente deixei de p en sa r nis­
so: o crim e já tin h a culpado, o caso já estava resolvido.
Passou m uito tem po até que, finalm ente, pude re cu p erar
m inha inocência e, quando isso aconteceu, perdi tam bém m uito
da m inha im portância. D e algum a form a, ser culpado havia sido
m ais su p o rtáv el que não ser nada. Se diante da dor havia feito
m inha p ró p ria acusação, foi p orque aceitar que eu não havia po­
dido salvá-la teria sido ainda m ais terrível.
Do m eu assom bro diante dessa viagem oculta e da p o sterio r
com preensão das suas conseqüências na m inha vida su rg iu pau­
latin am en te m inha inquietude p o r ex p lo ra r a alm a das crianças e
en ten d e r em que m edida, com suas férteis florestas e seus áridos
desertos, com seus te rritó rio s secretos e seus céus sem lim ite,
continuam sendo o n o rte das nossas vidas adultas.

n
Pois bem. M in h a mãe, de g ra n d e sensibilidade artística,
am ava pintar. P in tav a palhaços, com chapéus de alta copa e ale­
g re s g rav atas borboletas. Porém , foi assassinada, deixando subi­
tam en te seus palhaços sem nenhum a m usa, tristes a m o rre r de
ta n ta orfandade.
Eu sobrevivi e, e n tre utopias e silêncios, cheguei até a ado­
lescência. Com o coração sem âncora e ten d o com o bússola a fé
em m eus sonhos. F ugi, abandonei os estudos e me to rn ei p a sto r
de ovelhas. B uscava nas m ontanhas um lu g a r fora do alcance de
m inha d o r e de m inha loucura, e assim perm aneci escondido p o r
m uitos anos. M as a lo u cu ra finalm ente m e en co n tro u e tive de
v o ltar ao m undo. E n tã o me fiz palhaço, com esperança de p o d er
co n v erter m eus to rm e n to s em um a a rte que m e devolvesse a
infância roubada. A ssim o fiz e, com o p assa r dos anos, fui ad­
qu irin d o um bom conhecim ento sobre os m ecanism os do h u m o r
e da vergonha. Pouco a pouco, tal conhecim ento foi desenhando
um m apa cada vez m ais conciso que, p o r sua vez, e com o tra n s ­
c o rre r de m ais anos, foi m e convertendo em um intuitivo acom ­
p an h a n te terapêutico. A té que um dia realizei um trab alh o com
pessoas que se enco n trav am presas p o r assassinato e coloquei
nelas um n ariz de palhaço. Elas se viram despidas e choraram .
E u tam bém chorei. Fechou-se o ciclo, eu en tre i nele e m e fui.
E ste é o livro.

Puebla de lo s Á n geles, M éxico, junho de S2015

12
APRESENTAÇÃO

O livro que se e n c o n tra ag o ra em suas m ãos su rg e das


observações, reflexões e experiências que tenho re g istra d o ao
longo dos últim os 25 anos no universo artístico -terap êu tico do
clown. M in istrei oficinas p ara dezenas de gru p o s em distin to s
países, em diferen tes circunstâncias e sob vários enfoques; fo­
ram , so bretudo, h o ras e horas de convivência para explorar, es­
conder ou revelar, com partilhar, rir ou chorar, nos com over e
surp reender, e m esm o nos en treg ar, no m elhor dos casos; nos
re n d er fin alm ente a nós m esm os, na nossa realidade m ais p ro ­
funda. T u d o isso o co rre num a busca de algo maior, de um a vida
plena e assum ida, acolhendo com hum or, am or e rig o r nossas lu­
zes e nossas som bras, nossos m istérios, nossos segredos e nossas
evidências. U m a celebração da nossa tragicôm ica intenção de rir
de nós m esm os e de en x e rg ar algo de bom nessa vida, g eralm en ­
te tão desco n certan te.
Com o palhaço profissional, tive o privilégio de atuar, ao
longo de m ais de 20 anos, em lu g ares m uito diversos de toda a
E uropa e do m undo. Dos festivais teatrais da E spanha ao deser­
to da N am íbia ou na selva da G uatem ala, dos teatro s do G abão
aos da V enezuela ou do M éxico, passando pelos leprosários de
M anágua. M in h a profissão tem m e levado a fazer rir m ilhares
de pessoas. N essa sin g u lar p ereg rin aç ão internacional, sem pre

>3
m e cham ou à atenção a evidência do sofrim ento hum ano, m as
tam bém a esperança e a busca co m u n itária da felicidade p o r
todas as pessoas. P ro g re ssiv a m e n te e de form a natural, fui me
dando conta de que, basicam ente, e em todos os cantos do pla­
neta, são as m esm as coisas que nos causam d o r e sofrim ento e,
tam bém , pelos m esm os m otivos sentim os felicidade e bem -estar.
M as além das nossas evidentes diferenças culturais, as m esm as
dores e as m esm as aleg rias m arcam nossos ro sto s e corações de
igual form a. E ssa convicção foi alim entando m inha criatividade,
e as m ilhares de pessoas que em todos esses anos assistiram aos
m eus espetáculos se foram encontrando, p o r um breve m om en­
to, num espaço com um , feito de hum anidade e emoção.
Com o especialista no m anejo das fe rram e n ta s próprias que
conjugam o h u m o r e a a rte cênica, ten h o acom panhado cen te­
nas de pessoas, desde o Sul do Brasil até o N o rte do M éxico,
B arcelona, Rom a, B ruxelas, de San F rancisco a M oscou, M adri
ou Paris. Cada vez ten h o tido a o p o rtu n id ad e de assom brar-m e
da m isteriosa alquim ia das pessoas, assim com o de sua com um
inquietude pela aceitação de si m esm as, p o r sua busca de poder
p erte n cer ao m undo e o descanso que isso lhes traz.
F oram m uitas experiências que n u trira m m eu p ró p rio cu r­
rículo artístico profissional, afinando m inha percepção e am ­
pliando m inha visão. T odas elas se foram entrelaçando com
m eu p ró p rio processo terapêutico pessoal, desenhando um m apa
sem pre em m ovim ento, porém , de n o rte cada vez m ais seguro.
Ao ch eg ar a este m om ento da m inha busca p a rtic u la r no univer­
so do clown com o enfoque revelador da personalidade, senti a
necessidade de fazer um a pausa e colocar no papel um pouco de
tudo q u an to havia observado ao longo desses anos.
E xistem no m ercado m uitos livros —assim com o m uita in­
form ação na in te rn e t — sobre terapias de índole artística, nas

14
quais a rte e d esco b erta pessoal dialogam , usando num erosas e
diversas técnicas, de enfoques e en q u ad ram en to s distintos. A in­
da que em m en o r m edida, o leito r poderá, inclusive, e n c o n tra r
tex to s sobre clowns, palhaços e o u tro s a rtista s do riso e do au-
toconhecim ento. Porém , não encontrei nenhum te x to que falas­
se sobre o que ten h o visto em todos esses anos de viagens e
encontros. F o ram ta n ta s as pessoas que foram se aproxim ando
do Clown Essencial, de condições, form ações, profissões, cu ltu ras
ou religiões distin tas, buscando um m esm o bem -estar, que me
pareceu im p o rta n te decifrar aquela m isteriosa alquim ia e com ­
p a rtilh a r com o g ra n d e público as vivências de um a aventura
que, p ara m uitos dos participantes, re su lto u em algo que desen­
cadeou um a m udança significativa em suas vidas.
T en h o dedicado os últim os 15 anos de viagens e acom pa­
nham en to de g ru p o s a in v estig ar e a refletir sobre um a ques­
tão central: P o r que e, sobretudo, com o fazer p ara rir de nós
m esm os? C om o fazer isso de um a form a saudável e benéfica?
Como am arm os ta n to a nós m esm os que possam os rir de nos­
sos so frim entos e glórias com a m esm a doçura, com a m esm a
com paixão? Com o reco n q u istar o consolo do hum or am oroso
para cu rar feridas que foram causadas, algum as delas, pelo hu­
m or sarcástico, hu m ilh ante dos o u tro s? Como re c o n s tru ir em
nós, atrav és do hum or, o que o u tro s d estru íra m com a m esm a
ferram en ta? P o rq u e a raiva, a d o r ou o m edo tam bém podem
ser tran sm itid o s encobertos de risos e piadas: Com o um presen ­
te envenenado sob um papel cintilante, disfarçam -se da m esm a
m aneira e com peculiar sutileza de hum or corrosivo, invasivo e
cruel, que fere e se crava no o u tro com o um golpe certeiro com
um punhal afiado, assim com o o h u m o r irônico que envergonha
e deprecia sem p u d o r nem piedade. São arm as m ortíferas, que
deixam um tris te cortejo de cicatrizes em q u alq u er alm a sen­

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sível. Assim , quais são as gargalhadas que podem dissolver as
couraças do ego, apaziguar os m onstros, c u ra r as feridas m ais
íntim as e devolver-nos nossa verdadeira essência? Q ual o lu g ar
em nosso coração de onde b rotam lág rim as e risadas num a m es­
m a ex pressão de vida?
Com o ap o d erar-se do riso com o um fiel em baixador da vida
e aceitar que celebrá-la a p a rtir do hum or (o bom hum or!) é tam ­
bém re sp eita r sua dim ensão m isteriosa, d olorosa e, geralm ente,
p ro fu n d am en te trág ica? Com o ab rig a r em nosso coração, com
profundidade e valor, essas dim ensões da existência, ap a ren te­
m ente tão d istan tes um a da o utra? C om o festejar com a leg ria
a v erg o n h a que nos envolve até con v ertê-la em um a p o n te de
união com o m undo? Com o devolver ao nosso ser toda a sua
d ignidade e o p o d er de pertencer, e de celebrar, ao m esm o tem po,
suas p ertu rb açõ es e patetices?
Se é certo que a m aioria de nós vive com a difusa sensação
de estarm o s exilados de nós m esm os, qual é o hum or, tão p ró x i­
m o do am or, que nos pode m o stra r o cam inho de volta à nossa
casa in terio r? U m sábio anônim o disse, com g ra n d e lucidez, já
faz m uito tem po: “B em -aventurados os que riem de si m esm os,
p o rq u e nunca lhes faltarão m otivos p ara rir ”. Com o alcançar tal
n irv an a? U m n irv an a onde reina a consciência clara e simples,
capaz de en te n d e r um a bela garg alh ad a com o a expressão so­
nora de um o lh ar que en x erg a o m ais p ro fundo da vida e das
pessoas, e que, depois do barulho dessa sua gargalhada, convida
ao silêncio e ao co n ten tam en to .
T ais são as p e rg u n ta s que alim en taram m inha vontade de
escrever este livro, com a esperança de que em suas páginas flo­
resçam algum as respostas.
H á lug ares no m undo de onde olham os o céu, e outros, m ui­
to m enos freqüentes, de onde o céu é que nos olha. O povoado


de C holula, no M éxico, é um desses lugares. Acim a de sua antiga
pirâm ide, o a r suave, a im ponente presença do vulcão Popocaté-
petl, a luz do entardecer, as dezenas de pipas de papel dos m eni­
nos voando no céu... Ali tudo su ssu rra a nossos ouvidos palavras
que so m en te nossa m ente pode decifrar. U m discurso de sons,
cheiros e im agens exclusivam ente acessíveis. C ontudo, se neste
m om ento silenciam os nossa m ente, nosso coração suspira e in s­
tin tiv am en te sorri.
D a m esm a form a, desejo que o coração do leito r possa s o rrir
em algum m o m en to da sua viagem ao longo dessas páginas, e
que este liv ro fale à sua intuição, à sua im aginação, à sua criativi­
dade laten te, à sua sensibilidade hum ana, ao seu curioso coração,
m ais que à sua m en te racional. Q ue em algum lu g ar de seu m un­
do in te rio r ele ressoe suavem ente, com a esperança de que essa
p a rte in tu itiv am en te sábia que todos trazem os d en tro de nós
saberá ca p ta r os sinais em itidos pelas palavras, pelos silêncios
e pelas estó rias aqui descritos. A ssim , espero que o le ito r possa
se reco n h ecer nessas linhas e en co n trar, na leitu ra de cada uma
delas, m otivos suficientes p ara re n o v ar sua relação de am o r g e­
nuíno consigo m esm o, sorrin d o da sua m ediocridade e olhando
com claridade, profundidade e benevolência para suas som bras,
dem ônios e o u tra s p edras nas quais costum a sem pre tropeçar.
M in h a abordagem é b astan te arte san al e tenho pouco in te­
resse pelas explicações teóricas; desejo do cu m en tar e testem u ­
n h ar a realidade dos processos de m udança que tenho v isto nas
pessoas, tan to s “pequenos m ilagres" que tenho presenciado du­
ra n te as sessões de Clown Essencial. E ste é o testem u n h o de um a
viagem ex p erim en tal na qual o le ito r e n c o n tra rá m eus pensa­
m entos, investigações e com preensões sobre o processo terap êu ­
tico através do clown, assim com o algum as considerações téc­
nicas básicas desse trabalho. Os títu lo s dos diferentes capítulos

i?
são associações de palavras nascidas no tra n sc u rso do trab alh o
e que, pouco a pouco, ao longo de sucessivos en co n tro s com os
particip an tes, foram to m an d o corpo e plena significação, até che­
g ar a definir poeticam ente, m as com b astan te clareza, aspectos
co ncretos dessa busca.
G o staria de p o n tu a r que, se ten h o usado na m aioria das ve­
zes a palavra “m enino”, no m asculino, é unicam ente para sim pli­
ficar a leitu ra, e obviam ente esse te rm o deve ser lido com preen­
dendo tan to seu sentido fem inino qu an to m asculino.
P or fim, g o staria de dedicar este livro às centenas de pes­
soas que em m im confiaram para navegar ju n to s pelos incertos
m ares do Clown Ksse.7ic.ial. M unidos apenas de um nariz de pa­
lhaço, pequena m áscara verm elha b rilh an te com o um farol que
ilum ina nossa busca p o r e n c o n tra r um lu g ar de descanso, e sem
nenhum a o u tra bússola, com fé em que um a profunda aceitação
de nós m esm os nos levaria até as doces águas de um a vida m ais
plena, en tre g ara m -m e sua confiança e carinho para realizarm os
ju n to s essa m aravilhosa viagem . Com isso, fizeram de mim um
m arin h eiro expert em estrelas, ventos e m arés, e um hom em ple­
no de gratidão.
D edico tam bém ao m eu m estre C láudio N aranjo, que sem ­
pre confiou em m im m uito mais que eu m esm o, m o stran d o -m e o
cam inho ainda invisível aos m eus olhos, tendo sido o p rim eiro a
in cen tiv ar-m e a d o cu m en tar m eu trabalho.
CAPÍTULO 1

A C E L E B R A Ç Ã O DA T R A G I C O M I C I D A D E
DO S E R H U MA N O

D os heyokas —loucos sag rad o s e n tre os índios D akota am e­


ricanos — aos anões da co rte de M o n tezu m a na nação asteca,
dos clowns ingleses con tem porâneos de Shakespeare aos bufões
das co rtes im periais chinesas, egípcias ou europeias, das piadas
filosóficas de N asru d in , surgido na tradição sufi, à severa poética
dos m o d ern o s palhaços russos, todas as civilizações hum anas,
sem im p o rta r sua antiguidade, sua localização geográfica, seus
costum es, crenças religiosas ou m odos de vida, têm necessidade
de criar, p ro te g e r e re sp eita r esses seres gro tesco s e irre v ere n te s
que lhes falassem de si m esm os com to tal liberdade. U ns perso ­
nagens que, dançando na finíssim a linha que separa a lo u cu ra da
prudência, a a leg ria da tristeza, o so rriso da careta e o profano
do sag rado, to rn a ra m -se espelhos deform adores, nos quais os
seres hum anos foram refletindo, de form a côm ica e pública, suas
im agens m ais secretas, m esquinhas e ridículas, cum prindo, as­
sim, um e te rn o rito de hum ildade e consciência coletiva.
Esses p erso n ag en s foram respeitados com o atores que
encarn am um a sabedoria nascida do inconsciente popular, cla­
m ando em voz alta ou re p resen ta n d o em m ímicas sem e r r a r as
som bras de reis e cortesãos, de cam poneses, de soldados e até
dos p ró p rio s xam ãs. A utorizados a evidenciar em suas re p resen ­
tações algo que nin g u ém se atrevia a m ostrar, a dizer verdades

19
que n inguém ousava form ular, a rid icu larizar os m ais hipócritas
co m p o rtam en to s hum anos e os pom posos ares de glória, reve­
laram a céu ab erto ru m o res que os hom ens prefeririam silenciar
d en tro de si, e celeb raram que, de algum a m aneira, esse negócio
de viver, de nascer e de m o rre r carece ce rtam en te de sentido e,
p o rtan to , de seriedade.
Ao eq u ilib rar as forças em jo g o na sociedade e seus equiva­
lentes, g an h aram de form a n atu ral o d ireito de sobreviver à fúria
real, de escapar da condenação social, e obtiveram a benevolên­
cia até m esm o dos deuses, p o r m ais cruéis que estes fossem. F a­
zendo da irreverência sua profissão e das trevas do espírito hu­
m ano sua m o rad a habitual, d iv ertin d o -se sem p u d o r nem m edo
nas cloacas dos p ensam entos m ais secretos de nobres e súditos,
o b servando e re p ro d u zin d o sem tabus nem m oral os vícios es­
condidos de seus contem porâneos, celeb raram e festejaram que
até as som bras m ais loucas são p arte do ser hum ano.
T ais p erso n ag en s foram respeitados, protegidos, adm irados;
porém , foram so b retu d o adm itidos. Com o quem não se atreve a
d e sp e rta r um sonâm bulo ou com o quem não pode c o rrig ir com
severidade os m odos ex tra v ag an te s de um deficiente m ental. O
que acontece é que o m undo tem necessidade da presença desses
seres, deixando-lhes assoviar os seus desejos com o exóticos pás­
saros num a gaiola, usar e abusar de suas vaidades e até m esm o
in frin g ir certas re g ra s sociais ou religiosas.
E u m esm o ten h o com provado isso várias vezes em m inha
ca rre ira de palhaço profissional. Q uando a polícia parava m eu
ca rro — sem pre carreg ad o de estram bólicos adereços —p ara al­
gum a fiscalização ro tin eira, nunca deixavam de p erg u n tar, m ui­
tas vezes em tom de surpresa: “E você, com o que trab a lh a?”.
E a m inha re sp o sta — “eu sou palhaço” — sem pre desencadeava,
invariavelm ente e em p rim eiro lugar, um o lh ar incrédulo, acom ­

20
panhado de um m eio so rriso na boca do agente da lei - em bora
a o u tra m etade da boca se sacrificasse no a lta r da seriedade re-
gim entar. T u d o isso g eralm en te seguido de p erg u n ta s sobre um
oficio tão estran h o . Recebi até conselhos p atern alista s p ara que
eu m udasse de profissão, ou pelo m enos deixasse de te r de via­
ja r ta n to p a ra realizar m eus espetáculos: “Você deveria atu ar em
lug ar fixo, e não viajar tanto!”, disse-m e ce rta vez um policial.
N ão segui seu conselho e, pouco tem po depois, en co n trav a-
me em B anda A ceh (Indonésia), onde o tsunam i de dezem bro de
2004 havia devastado um a província inteira, deixando m ilhares
de vítim as. A tuei nos cam pos de refugiados que pouco a pouco
foram co n stru in d o os sobreviventes daquele cataclism o. O único
lug ar onde se pod eria a p resen tar um espetáculo —p o rq u e tin h a o
piso feito de m adeira e era elevado sobre o te rre n o —era um es­
paço reserv ad o a cultos e, p o r m otivos religiosos, não se poderia
pisar ali com sapatos. L em bro de com o o im am e nos livrou dessa
obrigação e nos p erm itiu e n tra r no recinto com nossos enorm es
e e x tra v ag an te s sapatões, sob o o lh ar incrédulo do público ali
reunido, descalço.
N o u tra ocasião, em N am íbia, num a viagem de ap resen ta­
ções p ara a O rganização N ão G o v ern am en tal (O N G ) Palhaços
Sem F ro n te ira , pude me livrar, no ae ro p o rto da capital, da m ulta
co rresp o n d en te ao excesso de peso de m inha bagagem artística
com um a breve rep resentação de alguns pequenos núm eros. A
pedido dos p ró p rio s agentes de co n tro le aduaneiro, m inhas pa­
lhaçadas se to rn a ra m m oeda de tro ca p ara os quilos a m ais de
nossas caixas. E se, atuando em um teatro de Libreville, capital
de Gabão, no m arco das atividades cu ltu rais da E m baixada E s­
panhola, fiz-m e levar nos braços pelo próprio em baixador com
toda a carg a côm ica que a cena inevitavelm ente gerou, foi p o r­

21
que antes eu já m e havia ridicularizado a m im m esm o o suficien­
te e à vista de todos.
N unca deixou de su rp reen d er-m e ver com o m inha profissão,
dedicada a “d e sd ram atizar” a condição hu m an a e seus afazeres, a
d essacralizar nossa insignificante seriedade, to rn o u -se um a es­
pécie de laisser passer, d esp ertan d o um a clara benevolência - às
vezes adm iração —, com o se os côm icos seguíssem os sendo uns
seres estran hos, meio e x tra te rre ste s, m eio loucos e, definitiva­
m ente, meio sábios. Em q u alq u er caso, um a espécie à p a rte que,
por algum invisível — porém firm e — c o n tra to com a sociedade
que nos cerca, tem direito a p rerro g ativ as especiais, perm issões
exclusivas e dem ais privilégios, visto ser p o rta d o ra de um ele­
m ento sag rad o da vida hum ana: o hum or.
Sem te rre n o s proibidos nem tem as tabus, a função m ais p ro ­
funda do h u m o r é ju sta m e n te a de apagar as diferenças e n tre o
aleg re e o triste da vida, e n tre o g ra n d io so e o ridículo da con­
dição hum ana, reu n in d o esses conceitos sob o m esm o aspecto
de considerações, um a espécie de celebração últim a, num a só e
sublim e oferenda à tragicom icidade hum ana: o sorriso do cora­
ção. U m so rriso consciente, hum ilde, m as b rilhante, que aceita
e concorda, abaixa a cabeça e levanta o o lh ar para celebrar que
tam bém , p o r pior que as coisas estejam , assim som os e assim são
as coisas. Sem dúvida, é necessário p ara isso aproxim ar-se das
feridas; é preciso refo rçar a fé na vida e na sua ordem caotica­
m ente perfeita. H á todo um cam inho a p e rc o rre r (que no Clown
Essencial denom inam os de “o cam inho do clow n), suavem ente
acom panhado, passo a passo, sem pressa, p ara que o indivíduo
possa ch eg ar à capacidade de aceitar se r com o é e ser o ato r p rin ­
cipal de um a d esco n certan te epopeia. Q uando finalm ente isso
acontece, o riso se tran sfo rm a em canto do coração e bálsam o
da alm a, n um a com passiva celebração de nossas polaridades e
contradições.
Q uando, p o r fim, chega-se a esse ponto, algo d en tro de nós
se en treg a, um esforço se dilui, algo instintivo nos devolve à nos­
sa ju s ta m edida. F az-nos m ais parecidos uns com os o u tro s e cria
uma catarse in te rn a que afugenta nossos piores dem ônios: os da
solidão e da v erg o n h a de ser com o somos. Ver nossas m isérias
em cena e p e rm itir que possam os rir dessa nossa p a rte que está
lá sendo re p re se n ta d a tem um efeito transform ador, com o se p o r
isso já não fôssem os tão maus, nem tão m esquinhos, tão im por­
tan tes ou tão azarados. S urge um a visão m ais equilibrada, real
e hum ana de nós m esm os, liberada de falsas im portâncias, ridí­
culos o rg u lh o s e g ra n d eza s ilusórias, incitando-nos a ocupar um
lug ar m ais sereno d en tro de nós m esm os. T enho visto pessoas,
no Clown Essencial, dar-nos tu d o isso em um só o lh ar pausado,
daqueles que chegam d iretam en te da alm a do público com o um a
flecha que alcança o cen tro do alvo. A beleza de um m om ento
dessa n atu re za é tal que deixa fora de lu g ar qualquer palavra ou
intenção de não ser alcançado pela verdade escancarada diante
da pessoa.
Q uando alguém , sem nos m o s tra r um dedo acusador nem
nos co n d en ar aos infernos, lança luz sobre nossos segredos, des­
vela nossos co m p o rtam en to s inconfessáveis, legitim a nossas do­
res íntim as; q u ando se faz eco de tudo aquilo que fica silenciado,
levando-nos a rir de tu d o que está escondido em nós, devolve-se
a dig n id ad e a nossos próprios olhos. D essa form a, traz -n o s de
volta a sensação de p erten cim en to e, de form a im plícita, devolve-
nos um lu g a r ju s to na ordem das coisas e da vida.
D as ta n ta s experiências que m e tem oferecido m inha c a rre i­
ra profissional de clown, tenho percebido, tam bém , com o antes
já o fizeram m eus an cestrais bufões, palhaços e loucos sagrados,

23
algo sobre essa necessidade universal de rirm o s de nós m esm os:
m e dei conta de que nós rim os das m esm as coisas em todas as
p arte s do m undo e de que choram os pelo m esm o em todos os
lugares. D e algum a form a, todos rim os e choram os no m esm o
idioma.
Não há tem a m ais universal nem mais in tem p o ral que a es­
tupidez hum ana, seu fu ro r egoico e sua to rp ez a ao viver, seu
m edo do am o r e da liberdade, sua intenção de parecer algo que
não é ou seu esforço para esconder d e n tro o que se é de ver­
dade. C heguei a co g itar que talvez não sejam os tão diferentes
e n tre nós com o pensam os e que haja m ais coisas que nos to rn am
iguais do que aquelas que nos diferenciam , se é que desejam os
p re s ta r atenção a essa ideia. E m b o ra isso ocorra, não há, a m eu
ver, fonte m ais g en ero sa nem m ais e n te rn e c e d o ra para alim entar
nosso im aginário e lib era r nossa criatividade do que a celebração
liv re e poética, consciente e com passiva, da nossa tragicom édia
p articular: esse desesperado desejo de serm os nós m esm os e de
e n c o n tra r um sen tid o tangível para nossa c u rta e insignificante
presença pessoal sobre a face da T erra.
C A P ÍT U L O 2
AS F E R R A M E N T A S DO CLO W N E S S E N C IA L

E necessário reparar o amor a nós mesmos,


pois, reparando esse amor, todo o demais tios chega.
C l á u d io N a r a n jo

Coloca uma máscara e ela te dirá a verdade.


O sc a r W il d e

Há, em cada pessoa, um lu g ar de onde saem estas três for­


ças: a to rp eza hum ana, a lo u cu ra divina e o o lhar do m undo.
Q uando alguém percebe essa en cru zilh ad a e pode p erm an ecer aí
com confiança, p ro teg id o p o r essa ínfim a m áscara do aqui e do
agora, p o r alg u n s in stan tes volta ao p o n to cen tral da p ista circu­
lar do circo e da condição hum ana. E isso, inexplicavelm ente, é
tão assu stad o r q u an to m aravilhoso.
A credito que foi o vício nessa em briaguez o que me levou a
atuar tan to e, finalm ente, a q u erer co m p artilh ar m inha ex p eriên ­
cia com o u tra s pessoas. P ara isso, à m edida que ia avançando em
meu p ró p rio p rocesso terapêutico, fui criando pouco a pouco um
m étodo de ex p lo ração p ara con tem p lar a busca pessoal da feli­
cidade desde o caleidoscópio do n ariz de palhaço. U m a m an eira
que pudesse p e rm itir a q u alq u er pessoa, indep en d en tem en te das
suas circu n stân cias e da sua h istó ria de vida, a reveladora expe­
riência de ce le b rar am o rosam ente a tragicom icidade do viver e
de sua p ró p ria existência. D e ilum inar o cenário de sua p ercep ­
ção cotidiana com a luz acrescentada e tão p artic u la r do p ro je to r
dessa pequena m áscara.
Q uero d estac ar que, d u ra n te esse percurso, foi p a rtic u la r­
m ente rev elad o r p ara m im o en c o n tro com R osine R ochette, an ­
tig a atriz do T e a tro do Soleil de A riane M nouchkine, e g ra n d e
dam a do clown em Paris. N osso reconhecim ento m útuo e espon­
tânea am izade que se seguiu foram definindo em m im um estilo
que, pouco a pouco, foi su tilm en te deixando sua m arca no m eu
cam inho.
Com o p assa r do tem po e das experiências, essa busca foi
tom ando o nom e de Clown Essencial, de form a n atu ra l e sim ples.
C erto é que não m e satisfaziam o u tras definições utilizadas p ara
n o m ear esse cam po de investigação, tais com o clown terapêutico
—ainda que esse trab alh o leve a profundas m udanças na pessoa
- ou clown g e s ta lt- ainda que as fe rram e n ta s do aqui e ag o ra se­
jam tam bém pilares básicos da experiência. A lgo d en tro de m im
dizia que o que eu via em m inhas sessões, essa m istu ra de jogo
cênico do clown, de corações liberados e m istérios desvelados, de
an tig as feridas acarinhadas e olhares erguidos, de m úsicas ins­
piran d o e su sten tan d o reparações in tern a s, todo esse processo
era o u tra coisa. E ssa alquim ia era algo m ais m isteriosa. O que
acontecia ali resp o n d ia a outros conceitos, g eralm en te tão en­
g raçad o s com o com oventes, tão g ro tesco s qu an to sutis, às vezes
quase xam ânicos, e o conjunto das sessões nas quais nos su b m er­
gíam os, os p artic ip a n te s e eu, tinha um o u tro sabor. Ali surgiam
a inocência, a ingenuidade e a am orosidade (com ponentes habi­
tuais do jo g o do clown), porém , tam bém brotava a dor, a v erg o ­
nha e a sua raiva. U m a e stre ita e sutil relação se fazia evidente
com o desejo de contato, com a ânsia de e n c o n tra r um lu g ar no
m undo, no g ru p o , com a d o r do o lh ar do outro, com a dignidade
reconquistada, com as lim itações próprias, com a d o r das antigas
fratu ras ab ertas n o u tra s épocas da vida e um longo eiecelem de
to rm en to s interiores. Ao m esm o tem po, re ssu rg ia nossa cone­
xão in stin tiv a com a centelha da vida, com o desejo m ais íntim o
de viver e ser, com as águas claras e g enerosas da infância, tan to
com o com as águas escuras e dolorosas de nossos seg red o s e de
nosso m edo de m o s tra r aos dem ais o que som os realm ente.
Levava tem po deixando-m e g u iar e in sp irar p ara e n c o n tra r
um a denom inação acertada p a ra a m inha busca e, quando esta
apareceu, soube em seguida que era a co rreta. F ui deixando que
o p ró p rio desenvolver do trabalho, ao longo dos anos, dos países,
das cu ltu ras e das diferentes circunstâncias, se fosse elaborando
como um m étodo de trabalho seg u ro e preciso, deixando que
as dezenas de sessões realizadas fossem desenhando um m apa,
confiável e detalhado. A este m apa é que fui dando o nom e de
Clown Essencial.
Clown (palavra inglesa que em sua origem designava um
perso n ag em g ro tesc o e rude da farsa) haveria de ser m antido,
em v irtu d e do uso tão d esgastado que se faz da p alavra “palhaço”
na lin g u ag em com um , quando m ais parece um insulto que um a
designação ca racterística de quem realiza um trab a lh o de arte,
tão an tigo q u an to o p róprio m undo. “E ssencial”, p o r sua origem
no latim “esse” (ser) e p orque realm en te através desse processo
criativo buscam os a essência da pessoa, buscam os ch eg ar a seu
ser m ais p u ro e g en u in am ente desnudo. P ara quem se en tre g a a
essa busca, Clown Essencial se parece com algo com o su b m erg ir-
se em um m erg u lh o num líquido revelador, com o se fazia an ti­
gam ente com os film es fotográficos. Aqui tam bém o negativo,
que até en tão parecia em branco, vai pouco a pouco deixando
em erg ir um a form a, um sentir, um a m aneira de ser, um a loucura
própria. A p equena m áscara do clown revela, então, num ritm o
próprio, a alm a da pessoa. D a m esm a form a, vai aparecendo um a
silhueta com um a característica própria, um tipo de o lh ar sin g u ­
lar, uns sons únicos. A ssim nasce nosso palhaço.
D e alg u m a m aneira, não se tro ca nada; nada m uda; apenas
se revela o que já estava, e de um a form a natural, quase eviden­

27
te, às vezes asso m brosam ente rápida. Q uando isso acontece -
m esm o que talvez só se possa ca p ta r p o r uns poucos segundos
no o lh ar suspenso e n tre atores e público, no silêncio su sten tad o
d ian te do g rupo, em um so rriso p o r baixo do nariz verm elho —,
a pessoa percebe com to ta l claridade a g ra n d e z a do m om ento.
T en h o visto pessoas m udarem e seus ro sto s se tra n sfo r­
m arem em p ra zo de tem po reduzido, sim plesm ente p o rq u e dei­
xam cair a m áscara do ego, da farsa do p erso n ag em cotidiano, e
tam bém deixam de em p reg ar en erg ia em su ste n ta r essa figura.
Q uando alguém sente que pode se pertencer, sendo com o é, com
sua bagagem , com suas luzes (tão expostas), porém tam bém com
suas som bras (tão m antidas na obscuridade da intim idade), en ­
tão este alguém , im perceptivelm ente, relaxa-se, o suficiente p ara
que a en ergia flua novam ente e que a respiração, tan to tem po
afogada, renasça em um sim ples suspiro. A pessoa se sente li­
vre de esconder, de ta p a r com esforço seus segredos. Já não é
necessário. D e algum a form a, o indivíduo vai, pouco a pouco,
ap o derando-se de sua p ró p ria tragicom édia. É um processo len­
to, às vezes doloroso, e m ais de urna vez ten h o visto os pequenos
narizes de plásticos se tran sfo rm arem em depósito de m eleca e
lágrim as. P orque a m áscara revela tan to , p o rq u e é delicado en­
sin ar tão de re p en te e d eixar e n tra r a luz onde sem pre reinou a
escuridão; parece ser com o d ar um salto no vazio. A inda assim a
pessoa nos oferece seu sorriso, su sten tan d o -o com o o lhar ab erto
que su rg e quando coloca a m áscara da com icidade. E ssa m ínim a
m áscara que tap a ju s to o suficiente do m eu ro sto p ara que me
possa atre v er a sen tir-m e outro, som ente o necessário p ara que
eu possa falar de m im desde o u tra identidade: “Veja: não sou eu!
E ele, é ela que lhes conta o que aconteceu comigo! E, em seu
olhar, p erm ito que vocês m e descubram um pouco mais; em seu

2S
gesto, descubro algo m ais dos m eus castelos, dos m eus sonhos,
das m inhas b atalh as”.
U m elem ento tam bém im p o rtan te nessa av en tu ra é o uso
da m úsica com o “acelerador de íons”! W illiam Shakespeare, que
antes de tudo era um hom em do teatro , disse acertadam ente: “A
m úsica é o alim en to da alma, o re sto é silêncio”. Só um g ra n d e
conhecedor do esp írito hum ano com o ele poderia en te n d e r tan to
sobre o alcance da música. Com esse m esm o objetivo em pre­
gam os a m úsica em Clown Essencial, p erm itin d o que, de form a
fluida, a pessoa seja levada p ara além de suas lim itações m entais,
insp iran d o -a em sua evolução cênica e acendendo nela todo o
seu potencial criativo. P ara aquele que abre as janelas do coração
e deixa a m úsica p e n e tra r em cada esconderijo secreto do seu
interior, re su lta m uito m ais fácil a en tre g a ao re ssu rg im e n to de
uma em oção lib erad o ra de um m ovim ento co rp o ral sem lim ites,
capaz de nav eg ar para mais além dos re g istro s habituais e das
proibições infligidas pela m ente cotidiana. Q uando a m úsica fala
diretam en te com seu corpo, a m ente se acalm a e a inspiração
volta a to car à nossa porta.
O que d istin g u e claram ente o Clown Essencial de o u tras li­
nhas de trab a lh o do universo do clown — talvez m ais p u ristas
ou trad icion ais — é que aqui a busca é global, perm itin d o que
a pessoa se revele em seu sentido m ais com pleto, na busca p o r
um a am pla in teg ra ção consigo m esm a. P or isso esse trabalho, às
vezes, ap ro x im a-se m uito do bufao, este ser mais livre, que não
tem e o g ro tesc o nem a livre ex pressão da verdade. E n q u an to
o u tras linhas de exploração buscam re ssa lta r a inocência, a vul­
nerabilidade da pessoa através do clown, aqui o convite é outro.
Além desses com ponentes já m encionados, buscam os celebrar
a totalid ad e do ser, com tudo que ele possui: luzes e som bras,
purezas e lu x ú rias variadas, bondades e m aldades - tu d o da m es­

29
m a form a. A qui, falam os de v estir um n ariz verm elho, falam os
dessa nossa p a rte m enos capacitada para viver bem, p ara viver
com o todo m undo, p ara en carar as n o rm as sociais, da nossa p a r­
te não so m ente m ais ingênua ou m ais calm a, com o tam bém de
todas as que conform am o leque de nossas som bras, tão escon­
didas no fundo de nossa intim idade, tem erosa de ver-se assim
tran sb o rd ad a p o r sem elhantes energias. A qui são benvindos os
m edrosos, os rígidos, os tím idos, os orgulhosos, os entediados,
os p ertu rb ad o s, os confusos e os invejosos. T odos escondem o
m esm o m aravilhoso potencial côm ico em seu interior, p o r m ais
sérios que se vejam a si m esm os em sua vida cotidiana. Eu não
en co n trei pessoa nenhum a que não o tivesse. Inclusive, pode-se
d izer que, q u an to m ais séria seja a pessoa, m ais côm ico será o
seu clown: da seriedade com o nariz verm elho surge, de form a
su rp reen d en te, um a form osa cum plicidade conciliadora, assim
com o tam bém su rg e da emoção, porque é n orm al, em Clown E s­
sencial, num m om ento chorarm os do riso e, no m inuto seguinte,
rirm o s do p ran to , num in stan te de g ra n d e benevolência, abrindo
espaço p ara tu d o que su rja do nosso interior, sem nenhum tipo
de ju lg am ento. L em bro-m e de um dia, quando um a p articip an te
chorava. Ofereci a ela um lencinho de papel, e continuou ch o ran ­
do. Comecei a despejar sobre ela a caixa in teira, com o se nevasse
lencinhos, e eram ta n to s que ela não poderia usá-los todos; eles
se foram am ontoando ao seu re d o r com o tarefas acum uladas,
esp eran d o fu tu ra s lágrim as. Ela olhou tu d o aquilo e im ediata­
m en te com eçou a rir. H avia com preendido algo intuitivam ente, e
esta com preensão a tra n sp o rto u de um estad o a outro, passando
das lág rim as ao sorriso, sem m eia-palavra ou explicação algum a,
n um a deliciosa liberdade de expressão reconquistada, deixando
p ara trás seu p ró p rio ju lg am en to interno. N um a fração de se­
gundos, ela conseguiu desapegar-se da sua triste z a para, final­

30
m ente, sem fa lta r com respeito a si m esm a, co n sid erar a p a rtir
de o u tro p o n to de vista a sua história, e d ar a ela um lu g a r justo.
Porque, talvez, sequer o que eu penso sobre m im m esm o
seja tão im p o rtan te. T alvez seja preciso lib era r algo disso, algo
que m e p re n d e m uito m ais que q u alq u er opinião alheia sobre
mim. E tão cansativo to m ar-se tão a sério, exige ta n to esforço
ficarm os ag a rra d o s a essa ou àquela im agem que tem os de nós
mesmos, com as unhas cravadas na b o rd a do precipício, g rita n d o
para o eco: “Ju ro p o r m inha m ãe que eu sou assim , ou assado, ou
daquela o u tra m aneira, e que eu penso assim , e digo aquilo... E
ju ro p o r m eus m o rto s que defenderei este castelo até o fim!”. Po­
rém , en q u a n to nos distraím os com isso, o castelo se esvaziou e os
exércitos inim igos foram há m uito tem po buscar o u tras batalhas
mais excitantes. Porém , alguns se descobrem assim , congelados,
guardiões inúteis e cansados de sonhos fixados em papel cartão,
perdidos no tem po, sem valor e com data de validade vencida.
Assim , pode-se d izer que Clown Essencial é a com ovedora
com icidade de quem , utilizando o nariz de palhaço, re to rn a a si
mesm o e veste de um verm elho vivo as feridas de sua in tim id a­
de, seus anseios e pesadelos m ais secretos, desvelando ao públi­
co seu m undo in te rn o e recebendo de volta, p ara tão gen ero sa
entrega, o am o r incondicional de um m undo que lhe diz: “Sim!
T ens d ireito a ser com o já és! P ara nós, já é o suficiente. P ara nós,
tal com o és, está bem ”. Esse é o p o n to de p artid a de um novo ca­
m inho porque, ao o u v ir essas palavras, ao perceber essa co rren te
de aprovação incondicional, algo se assen ta d en tro da pessoa e
oferece a condição prim ária p ara um m ovim ento tran sfo rm ad o r:
aceitar-m e com o sou, com o o m undo m e vê e com o m e reconhe­
ce. U m p ro v érb io po p u lar brasileiro adverte: “H á n a vida dois
desafios: o p rim eiro é se conhecer; e o segundo é ficar c o n ten te
com o que você e n c o n tra r”.

31
Esse cam inho pessoal e íntim o se vê, em Clown Essencial,
apoiado pela presença do g ru p o e sua atitu d e aberta, que ofere­
ce de m aneira g en ero sa as condições necessárias a um proces­
so de m udança verdadeira. E stou convencido de que, se chorar,
g rita r e d e sc arre g ar a agressividade é g eralm en te necessário e
p ro fu n d am ente curativo, tam bém é o rir com o riso consciente
e brilhante, alto e claro, sem culpas. E ste, sem dúvida, quebra
couraças m usculares, deixando que p o r suas frestas e n tre um a
luz nova, pura, um a energia renovadora. Rom pe velhos c o n tra ­
tos estabelecidos na infância, ju ra m e n to s silenciosos, de apatia,
de ódio ou de sofrim ento. D issolve-os à luz do m undo, em um a
espécie de cerim ônia in te rn a que, sem dúvida, se fortalece q u an ­
do co m p artilhada com o grupo, num ritu a l com unitário em que
cada um se reconhece e en c o n tra de form a n atu ra l seu lugar.
Clown Essencial é o so rriso do coração quando este, depois
de m uito lid ar com as batalhas de ch o ra r e de rir, descansa por
fim em algum lu g a r p ara além de q u alq u er emoção, e aceita com
acolhim ento seu gen u ín o p erten cim en to ao poderoso rio da vida.
N ão serem os nunca quem sonham os ser se não celebrarm os
prim eiro quem som os hoje.

32
C A P ÍT U L O 3
0 O L H A R DO O U T R O

E x istim o s pelo outro. Sabem os que sua presença, de algum a


m aneira, justifica a nossa e lhe dá um sentido. Sou em função
<le tu. N esse p erp étu o m ovim ento de atração e repulsão, só um a
solidão p ro lo n g ad a e co nscientem ente aten ta nos pode devolver
a um a id en tid ad e real. No en tan to , oscilam os e n tre esses dois
polos e sua p a rtic u la r m ensagem : o polo da confirm ação ou o da
negação do m eu lu g a r no m undo. P orque o o lh ar do o u tro é o
que, em cada in sta n te e em prim eiro lugar, dá a m im o ansiado
veredicto; é ele que o u to rg a a validade de m inha relevância ou,
ao co n trário , am eaça-m e de exclusão.
Por isso, em Clozvn Essencial, o o lh ar é a via de com unica­
ção pela qual tra n s ita quase toda a inform ação. Ele é o elem ento
vital que me une ao exterior. O público necessita receber o meu
olhar p ara saber o que me acontece p o r dentro, o que me ocorre.
Eu necessito do o lh ar do público, p o r ser ele o cordão um bilical
que me m an tém vivo, p o rque o clown som ente existe p o r e para
o outro. O o lh ar m e tra z de volta a inform ação, e esta é o que
perm ite à pessoa p assa r da sim ples expressão à transform ação.
Isso seria m arav ilh osam ente p razero so não fosse o fato de
que vivem os e n tre fantasm as. M eus olhos te veem, porém , do
meu m undo in te rn o su rgem velhas figuras do m eu passado,
aquelas pessoas que lançaram sobre m im seu o lhar e m e ju lg a ­

33
ram , ou tam bém as que não me olharam quando eu ansiava p o r
sua aprovação, ou sim plesm ente p o r sua p resen ça e atenção. G e­
ralm en te aparecem alg u n s fam iliares, professores da infância, ou
um trib u n al de juizes de um a com petição d esp o rtiv a etc., e sua
im agem , ainda p re se n te em m im, desencadeia um a reação in stin ­
tiva ao o lh ar do grupo.
Assim disse um participante: “N unca tive ideia, em m ais de
36 anos de vida, de com o sabotava m inhas relações com os o u tro s
p o r causa dos m eus m edos de m o stra r com o realm ente sou. D ei-
me conta, em dois m inutos daquela dinâm ica realizada diante do
grupo, de q u an to trab alh o me havia custado m an ter-m e isolado
d en tro dessa to rre à qual subi desde que tin h a m ais ou m enos 5
anos. M an ter-m e lá em cim a havia sido m uito côm odo sob um
po n to de vista, e infinitam ente triste sob todos os dem ais”.
Para algum as pessoas, costum a ser tão doloroso p erceber o
q u an to escondem e com qu an to esforço, que se veem de im edia­
to arran cad as de seus antigos infernos, m uito além de q u alq u er
en ten d im en to racional. É im perceptível e fulm inante, e pode le­
vá-la a refugiar-se em suas velhas trin ch e iras escavadas na in­
fância, de onde será necessário u rg e n te m en te —e com delicadeza
— retirá-las. T a n to é assim que, quando isso acontece, prefiro
sem pre en trar, eu tam bém , na trin ch eira, e ali aconchegar-m e
com a pessoa, o lh ar com ela com o se vê o m undo daquele lugar.
T alv ez seja m ais fácil colocar a cabeça p a ra fora se o fizerm os
em dupla...
Com o dizer ao público: “Veja! Sim, isso está sinceram ente
acontecendo d en tro /d e m im neste m om ento!”? Como, se isso foi,
em o u tro s tem pos, m otivo de castigo, de exclusão, de condena­
ção à diferença, à inadequação e, p o rtan to , à vergonha e à culpa?
Assim , pouco a pouco, de d en tro das trin ch eiras e com as
fe rram en tas do Clown Essencial, acom panho a pessoa até que ela,

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proteg id a atrás da pequena m áscara do nariz verm elho, vá apazi­
guando len tam en te seus dem ônios e seus terro res, tra n sfo rm a n ­
do, pouco a pouco, o tem ido o lh ar do outro, vinculado às antigas
m ensagens e suas feridas, em um verdadeiro canal de inspiração
para sua p ró p ria criatividade.
E q u ando depois de um delicado processo isso finalm ente
acontece, o prêm io é enorm e. P orque quando to rn o legítim o o
que sin ceram en te sinto d en tro de mim, quando dou este lu g ar
à m inha em oção e quando consigo m an d ar a m ensagem ao pú­
blico, ao m undo, m esm o que seja com um tím ido e ainda frágil
olhar, essa m ensagem diz: “Isso está acontecendo com igo” — e
im ediatam ente o público responde: “E stam os com você”. O p ú ­
blico está d isp o sto a receber-m e com m inha loucura, com o que
seja, com m eus sonhos e m eus pesadelos, m eus desejos e m i­
nhas confusões, sem pre que percebe que estou dando-lhe m inha
verdade do m om ento. T enho visto olhares suprim irem o tem po,
tocarem no lu g a r m ais profundo, p arare m a respiração do grupo,
que in tu itiv am en te sabe reconhecer e re sp eita r o profundo ato
que está presenciando: ver alguém desnudar-se.
R ecordo que, na m inha infância, a v ergonha de ser órfão
era ainda m ais fo rte que a d o r de sê-lo. Isso acontecia na saída
da escola, q u an d o os o u tro s m eninos tinham suas m ães espe­
rando-lhes e eu não. E u era diferente e m inha diferença saltava
à vista. T em ia q ue o o lhar dos o u tro s pudesse m edir o tam anho
do buraco d essa ausência e que, de algum a form a, eles pudessem
ver o pro fu n d o desam paro que eu experim entava. D esconfiava
- p o r aquela d o r tão g ra n d e que eu sentia e eles não —de que ia
ser de novo abandonado, desprezado em m inha solidão, à vista
de todos.
O que vem os no o lh ar do o u tro não é m ais do que o que nos­
sas vozes in te rn a s nos dizem sobre nós m esm os, e é p o r isso que
tem os tan to m edo dele, já que esse o lh ar poderia confirm ar em
voz alta, sobre nós, o que já ouvim os co n stan te m e n te su ssu rra d o
em nosso íntim o. E sse o lh ar poderia elim inar to talm e n te a pos­
sibilidade de que so m en te nós sabem os ta n to sobre nós m esm os,
e to rn a r público o que m antem os na privacidade m ais absoluta,
confirm ando-nos definitivam ente nossos autoconvencim entos
sobre nossas m otivações, qualidades ou potencial criativo.
M in istrei, ce rta ocasião, um a oficina na R iviera M aya, no
M éxico, p ró x im o às m aravilhosas ru ín as de T ulurn. U m a p ar­
ticipante, M., p o r n atu re za tím ida e pouco expressiva, realizou
um a m aravilhosa im provisação plena de espontaneidade, frescu­
ra e liberdade. Ao term in ar, su rp reen d id o p o r essa m etam orfose,
p erg untei-lhe: “A onde você foi?”, ao que ela respondeu, com ovi­
da: “Fui a um lu g a r sem olhos”.
U m lu g ar sem olhos! Que m aravilhosa fórm ula p ara des­
crever um estado de plena liberdade! D eixando-se g u iar pela
inspiração que nasce desse lu g ar in tern o , onde o m undo de fora
não tem q u alq u er poder; sem o peso da aprovação alheia nem
da am eaça do ju ízo ex tern o , ela havia ex p erim en tad o um gozo
verdadeiro, fluido e ligeiro, um p ra z e r arcaico e infantil; havia
reco n q u istado seu d ireito natu ral de ser sim plesm ente feliz -
ainda que fosse p o r alguns m inutos! Pelos sorrisos ilum inados
no ro sto dos dem ais participantes, era óbvio que aquele estado
de g ra ça havia enriquecido a ela, mas tam bém ao re sta n te do
g ru p o , testem u n h a cúm plice de um a leg ítim a segunda chance de
c o n q u istar sua vitalidade.
E sse episódio no qual o o u tro deixa de e x istir com o elem en­
to ju lg a d o r e c a stra d o r da m inha espontaneidade, e que se pode
v er rep ro duzido em diversas ocasiões, parece-m e que ilu stra
p erfeitam ente o estado de liberdade re en co n trad a, em que um a
pessoa se reap ro p ria de sua criatividade num a fluidez natural,
prazerosa e liv re de culpas, pro fu n d am en te curativa e reconfor­
tante.
D e m odo definitivo, o que o o u tro pensa de m im é indepen­
dente da m inha vontade; apenas, sim, é m eu assunto. O realm en ­
te decisivo, p o r sua capacidade de fazer-m e cam balear e causar-
me danos, o que v erd ad eiram en te configura m eu m undo in tern o
é o que eu, p o r m inha vez, penso sobre o que o o u tro parece opi­
nar sobre mim. E isso, graças à sorte, depende apenas de mim.
Assim m e dizia um participante: “M e dei conta de que o m edo do
olhar dos o u tro s não é m ais que o m edo do m eu p ró p rio olhar;
era o m eu p ró p rio ju lg am en to que eu m esm o havia projetado
para fora”.

37
C A P ÍT U L O 4
A P R O P R I E D A D E DO I N Ú T I L

Das experiências humanas,


talvez a mais devastadora seja a da inutilidade.
H arold S earles

A exclusão é o pior que pode haver para nós.


Ao contrário, nosso maior be?n é o pertencimento.
B ert H e l l in g e r ,

Felicidad que permanece

A grandeza humana e a verdadeira compaixão


não vêm de sentirmo-nos bons, mas sim de sabermo-nos
maus e imperfeitos e amarmo-nos e amar com isso.
E através da imperfeição que nos igualamos aos demais.
J oan G a r r ig a ,

Vivir en el alma

T o dos utilizam os estra té g ias de m anipulação p ara serm os


vistos, atendidos, levados em conta, queridos etc. Com o pas­
sar do tem po, nos to rn am o s exím ios em diferentes e variadas
m odalidades delas, destacando-se algum as: as estratég ias para
seduzir, as estratég ias para se fazer de vítim a, as estra té g ias de
intim idação... N as m inhas oficinas, nos dédicam os a festejá-las
iité seu lim ite m ais absurdo, em vigorosos trabalhos de ex p res­
são que desvelam com força o que todos sabíam os, m as nunca
falávamos. N essa catarse, a pessoa tom a consciência da m en tira
c do esforço g asto p ara sustentá-la. E ainda que tam bém cele­
brem os sua legitim idade, tem os v isto m uitas pessoas en tra rem

39
su b itam en te em um profundo processo em ocional ao ouvir a se­
g u in te frase: “Com o se só ser íòsse suficiente...”.
M in h a percepção é que habita no fundo de nós um cansa­
ço íntim o, quase vergonhoso, que apenas podem os reconhecer
na intim idade de nosso cam arim particu lar, quando se apagam
as luzes do cenário da vida cotidiana. Q uando alguém , em sua
solidão, vai tiran d o a m aquiagem do p erso n ag em da vida social,
profissional ou familiar, e suspira, percebendo, de form a difusa,
q u an ta en ergia gasto u d u ra n te o dia p ara parecer um excelente
profissional, um p ad re rigoroso, um a boa e am orosa esposa, um a
pessoa in teligente, am ável, seg u ra e eficiente, que corresponde
à norm a e cum pre com tudo aquilo que se espera dela... nesse
m om ento, lo n g e dos olhares e das exigências de um m undo im ­
placável, no silêncio da verdade que se im põe, com o a claridade
ao am anhecer, a pessoa suspira. N esse suspiro su ssu rram nossos
desejos de serm os nós m esm os, sem ta n to esforço, sem tan tas
cobranças. N esse ligeiro m ovim ento de om bros descansa nosso
desejo de p o d er ser sem fingir, de p o d er e x istir sem d ar nada em
tro ca de nosso direito de p erte n cer ao m undo: como se ser fosse
suficiente...
Por isso, através da busca do Clown Essencial a pessoa pode
reclam ar seu d ireito à inutilidade, o d ireito a não serv ir p ara
nada e a não ser condenado ao inferno p o r isso. Com o um direito
à estupidez, um a reivindicação surgida das profundas regiões do
sen tim en to instintivo e natural. Porque, em Clown Essencial, ser
felizm ente estúpido ou fracassado se to rn a verdadeiram ente um
vínculo de com unicação com o público, que se reconhece nele e
descansa, p o r sua vez, num breve in stan te em que essa possibili­
dade se fez realidade.
T enho visto, em certas ocasiões, algum as pessoas se despi­
rem de form a absoluta dian te do o lh ar do grupo, su sten tan d o

40
seu d ireito à inutilidade profissional, à falta de adaptação social,
à confusão do saber. V alidando seu cansaço in te rn o de in te rp re ­
tar em vez de ser, elas congelam o tem po p o r um instante. Elas,
com um o lh ar firm e que encara o público sem q u alq u er vacilo
e com um a p resença enraizada que se alim enta .da respiração,
su sten tam sua verdade in te rn a e a proclam am ao m undo, sem se
preocupar se ele vai ou não g o s ta r disso.
São m om entos de um a poesia absolutam ente com ovedora e,
ao m esm o tem po, de um a verdade que todas as pessoas presentes
fazem sua. O público retém seu p ró p rio alento, enq u an to o olhar
afiado do clown p en e tra sua alm a, deslizando p o r seu im aginário
e, ju n to s, de algum a form a, descansam p o r um breve m om ento.
Esses m om entos, frágeis e im ponentes de beleza, são um verda­
deiro regozijo p ara o espírito, um a celebração do inútil, re sg ata­
do de suas regiões m ais solitárias p o r um instante.
A inda que às vezes nossos clowns tam bém se rebelem - num
to rp o r de heroísm o e com toda sua força e ím peto - co n tra as
injustiças su p o rtad as pelas pessoas, o principal eixo de Clown
Essencial não é o da vingança. Não é nosso pensam ento a ideia
de q u erer que algum suposto culpado pague pelo que passou,
pelo m enos não com o objetivo do processo. Em troca, inapelável
a presença festiva, há a satisfatória com em oração de uma certa
revanche, na qual a pessoa volta a p erte n cer ao m undo, sendo
como é, re sg atan d o o sentido verdadeiro de seu sen tim en to mais
autêntico. E voluindo diante de seu público', com seu nariz verm e­
lho aju stad o ao ro sto e seu coração palpitando de em oção, com
seu o lh ar b rilh an te su sten tan d o as dores do passado, a pessoa
en tre g a a v itó ria à sua criança abandonada, hum ilhada ou queri­
da, que nesse in stan te recobra sua confiança e poder, saboreando
a dignidade do in ú til e a an tig a glória de quem m erece só p o r ser.

41
É com um um a revanche sobre esses juízos e com entários,
g eralm en te irônicos e denegridores, que ouvim os de form a
rep etid a na infância ou pré-adolescência, desses que rotulam ,
excluem , sentenciam e condenam . A queles que m uitos de nós
tem os recebido p o r p a rte de fam iliares, professores, vizinhos,
pais ou de o u tras pessoas próxim as que rep resen tav am a nossos
olhos um a au to rid ad e ou um saber inquestionável. A experiência
d em o n stra que alg u n s deles, claram ente, nos m arcaram a alm a e
o corpo com o um ferro em brasa. C ertas frases afiadas com o lâ­
m inas, que de um só golpe am p u taram n o ssa criatividade, nossa
seg u ran ça em nós m esm os ou nossa sensualidade. C ondenações
p rem o n itó rias sobre nosso fu tu ro na vida ou nossa form a de ser
que, p o r seu im pacto, deixaram im pressões difíceis de apagar, na
form a de falta de confiança sobre nossas p ró p ria s capacidades in­
telectuais, nosso corpo, nossa eficiência. E m várias situações, às
vezes anônim as e em o u tras especialm ente delicadas, um adulto
com algum tipo de au to rid ad e lançou sobre nós seu veredito cas-
trad o r, em g eral p ro jetan d o sua p ró p ria repressão interna.
Segundo os relatos que ten h o conseguido com pilar ao longo
das m inhas oficinas, isso ocorre m uitas vezes p o r causa de um
incidente dom éstico sem im portância, ou em um m om ento no
qual a criança descobre seu corpo e seus p rim eiro s prazeres, ou
m esm o num m om ento de expressão criativa com algum tipo de
público, com o d u ra n te um a dança, a leitu ra de um poem a ou a
e n tre g a de um desenho. E ssas últim as circunstâncias, que co stu ­
m am o c o rrer no meio escolar ou fam iliar, são m om entos p a rtic u ­
larm e n te sensíveis, nos quais o paraíso e o inferno cam inham de
m ãos dadas e quando tu d o pode virar em um segundo. Nelas, a
criança está p a rtic u la rm e n te sensível, já que se e n c o n tra buscan­
do a g ló ria da aprovação e da consideração, com o um cãozinho
g en u in am ente feliz, ao dem onstrar, assim , seu perten cim en to ao

42
grupo. P o r isso, sua alm a ab e rta não duvida de que alcançará
sucesso; m as, quando a rejeição se sobrepõe à aprovação, o que se
produz é um verdadeiro cataclism o. A escuridão eclipsa a luz em
um a b rir e fechar de olhos, a expansão se contrai, o corpo se con­
gela, a ex p ressão é castrada, a ce rteza titubeia e o que poderia
ser com unicação e reconhecim ento se tran sfo rm a em silêncio e
solidão. Q uan d o se ouve a sentença - “Você não serve p ara nada,
nunca fará nada de bom, você só cria problem as!” ou “isso não se
faz, isso é errad o , seu corpo é feio!”, ou ainda “você nos envergo­
nha! você é um inútil, um zero à esquerda!” - , algo im pacta com
du reza o sensível m undo de uns seres que ainda não entendem
de explicações cognitivas ou o u tro s racionalism os justificantes.
0 m enino se sente, nesse m om ento, in ju stam en te exposto, ou
posto em evidência, abusado ou envergonhado, desqualificado no
seu im pulso criativo ou desnudo na sua intim idade. E x p erim en ta
a fria vivência de quem não se sente aceito com o é, e já sabe que,
de alg u m a m aneira, não o será. N essa circunstância, a sensação
de v erg o n h a é terrív el, e se converte em uma experiência de te r­
ríveis conseqüências, com o a queda de um m eteoro de aço na
te rra fértil de um jard im virgem ; com o um raio que fulm ina o
coração de um a árvore jovem em plena prim avera.
A gora, m uitos anos depois, ainda seguim os re p ara n d o as
brechas desde então abertas em nosso am or próprio, gastando
p arte da nossa en erg ia em com bater aquelas m ensagens p ara de­
m o n strarm o s a nós m esm os que não, nãò som os assim . Porém ,
a m arca foi profunda e a tarefa não é nada fácil. D e tam anha im­
p o rtân cia é o trab alh o de desfazer os padrões de p en sam ento aí
in crustados que alguns desistem e sim plesm ente nadam a favor
tia co rren te. D eixam que a vida os leve pelas trilh as já traçadas e,
com boa vo n tad e e excelentes resultados, d em o n stram ao m un­
do que sim, são uns inúteis, uns fracassados de coração congela­

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do. D essa m aneira, concordam com a m ensagem recebida, p ara
a plena satisfação de quem a enviou (“E u já te dizia isso...”) e da
p ró p ria vítim a, que assum e sua fidelidade à autoridade gover­
n an te em seus tem pos de criança.
N essas condições entende-se m elhor o im enso e re p ara d o r
descanso que é p ara as pessoas o fato de descobrir que podem
pertencer, ser am adas p o r seu público (que atua em Clown E s­
sencial com o re p re se n ta n te do m undo) sim plesm ente estando aí,
sem fazer nada, sem m anipular, sem seduzir, sem se im por, sem
im plorar, som ente olhando e respirando... P odem ser aceitas em
sua to rp e criatividade, exibir seu vacilante trein am en to na a rte
do p ra z e r e e n tre g a r à sua platéia seus prim eiros passos titu -
b eantes na busca de reco n q u istar sua dignidade. Sem im p o rta r
a idade - já que ten h o visto acontecer com pessoas de até 80
anos —, e sem im p o rta r a condição física —p o rq u e nos m eus se­
m inários tenho visto pessoas cegas, m ancas, com aparelho de
assistência resp irató ria 011 de m obilidade reduzida oferecerem o
m esm o e d eslu m b ran te espetáculo ao colocar seu nariz verm e­
lho e realizar sua cam inhada até a liberdade.
H á no ser e pertencer um en o rm e consolo de alma, um a cura
íntim a que restabelece na pessoa o sen tim en to de ser m erecedo­
ra de um lugar, de p e rte n c e r ao m undo. L eg itim ar essa necessi­
dade p ara além das com petências, m éritos, esforços ou caracte­
rísticas p róprias de cada pessoa é um dos principais objetivos do
Clown Essencial. E um p o rta l im prescindível que abre cam inho
p ara chegar ao potencial cósm ico da pessoa, onde está guardado
esse especialíssim o Santo Graal que aqui nos interessa: a capaci­
dade de rirm os de nós m esm os, de nossa form a de ser, de nos­
sas m azelas e de nosso destino, a p a rtir de um lu g ar consciente,
am oroso e transform ador.

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C A P ÍT U L O 5
0 E C O DO MUNDO

Nada do humano me é alheio.


T ERÊNCIO

D e m odo geral, e tal com o o estipulam as re g ra s básicas de


sua arte, os clowns buscam te r no seu público um in terlo cu to r
direto, com a finalidade de estabelecer um diálogo no qual am ­
bos se poderiam en c o n trar e reconhecer. N ecessitam perceber no
olhar do público o eco da sua p ró p ria voz, tan to p ara o reflexo
dos seus m ais delicados g esto s q u an to para o m o stra r da sua ir­
rev eren te careta, buscando, no fundo, a sim ples confirm ação do
sentido da sua existência: “Só em vossa presença eu realm ente
ex isto”, é o que parece dizer o clown a seus interlocutores...
P ara que aconteça essa com unicação, o principal vínculo
en tre am bos é o o lh ar (cf. capítulo 3: “O o lhar do o u tro ”), as­
sim com o o u tro s códigos corporais, energéticos e rítm icos que
p ertencem à g ram ática p a rtic u la r do jo g o do clown. U m bom
exem plo disso são as p o stu ras de “m aior” e, em contraposição,
de “m en o r”, nas quais o clown a lte rn a m om entos de verdadeira
ab e rtu ra até seu público ou, quem sabe, m om entos em que, sem
d eixar o palco, recolhe-se em um lu g ar m ais privado.
Porém , em Clown Essencial, o vínculo en tre a pessoa e o g ru ­
po, e n tre clown e seu público, não se estabelece som ente a p a rtir
do o lh ar e da lin g u ag em estrita m e n te corporal, m as tam bém de
um estad o in te rn o de tran sp a rên c ia e necessidade de com uni­
cação a p a rtir de um lu g ar interiorizado, um espaço v irgem e
disponível, p resen te no peito com um a respiração ab erta e suave,
assim com o na m ente, relaxada e sem julgam entos. P or isso, a
presença do g ru p o , com um a atitude ab erta e receptiva, é tão

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im p o rtan te, m esm o quando este se m o stra aten to e m uito exi­
g e n te com a verdade. E um fato r indispensável ao processo de
trabalho. A sensibilidade do g ru p o é aquilo que, im plicitam ente,
desencadeia um a g ra n d e batalha, na qual o que se põe em jo g o
é de v ital im p o rtân cia p a ra a pessoa que está atrás do nariz v er­
m elho: é, às vezes, o p rom etido céu da aprovação e a am eaçadora
tem pestade da recusa ou do engano. P o r isso, é preciso en ten d e r
e cultiv ar a percepção de que, o que o co rre com o o u tro tem m ui­
to a ver com igo. E m m aior ou m enor m edida posso reconhecer,
nele ou nela, m inhas luzes e m inhas som bras, m eus desejos, m eus
esforços p ara p arece r este ou outro, m eu afà de gostar, m inhas
arm adilhas, m eu cansaço, m eu tédio ou m inha confusão. Posso
perceber quão d ista n te de sua essência ele está e sen tir que essa
d istância é tam bém a m inha. As vezes, p o rq u e m e vejo tão igual
em m inha m aneira de sentir, p en sa r ou atuar, em o u tras ocasiões
p o rq u e posso reconhecer no o u tro todo o esforço que eu m esm o
pago p ara não ser assim , ou qu an to g o staria de ser assim , ou
quem sabe sim plesm ente porque em sua presença diante de nós
posso reconhecer p arte s de mim, assum idas ou não, em m inha
relação com o m undo. A ssim , alguns podem saborear o secreto
alívio de não ser o único, de não ser um espécim e tão ra ro qu an ­
to pensava. Isso p ro d u z um conforto en o rm e e aproxim a m uito
as pessoas um as das outras. T enho dito co n stan te m e n te a m eus
alunos: “Aqui, em Clown Essencial, de algum a form a o o u tro é a
salvação, ainda que isso doa um pouco ou m uito em meu eg o ”.
O uando alguém leva essa riqueza do o lh ar até o outro, este
deixa de ser um a am eaça a tem er, um in q u irid o r do qual se deve
desconfiar, um a concorrência a elim inar ou um a presa a conquis­
tar. Assim , to rn a -se um a o p o rtu n id ad e de cum plicidade ou de
conflito, e é sem pre um a fonte de inspiração p ara meu próprio
m ovim ento. U m am igo m eu, g ra n d e palhaço, dizia que o so rriso

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é a d istância m ais c u rta e n tre duas pessoas. C ertam en te que sim,
porém , se além disso o so rriso o co rre ao reconhecerem -se um a
pessoa na o u tra, o lucro é ainda maior. R ecordo-m e de alguns
p articip an tes que, finalizando um a im provisação p artic u la rm en ­
te d esa stro sa e pouco côm ica, foram tran sfo rm an d o seu pequeno
g ru p o em um a m anifestação de clowns, que finalm ente deixaram
o palco can tan d o aleg rem en te e em uníssono este solidário slo­
gan: “P atéticos unidos, jam ais serão vencidos!”. Isso provocou
g ra n d es garg alh ad as em seu público, coisa que eles aproveita­
ram de im ediato para v o ltar ao palco e provar novam ente sua
sorte.
A qui, o g ru p o , cultivando um a atitu d e ab e rta e não ju lg a ­
dora, volta-se à rep resentação de um m undo ideal que, distan te
— na m edida do possível — da contam inação da m ente, p erm ite
que a pessoa perceba o que de fato é verdade quando deixa a
m entira. N esse espaço do g ru p o , valendo-se de seu p ró p rio sen­
tim ento, o g ru p o pode e x p ressar com o recebe a pessoa, perceber
sua tran sp a rên c ia e d istin g u ir q u an to é da pessoa e q u an to é do
personagem . Porque há, e eu ten h o visto isso repetidas vezes,
um sen tim en to de ju stiç a na opinião do grupo. Sem e n tra r em
julgam entos nem avaliar se algo está bom ou não, sem classificar
nem castrar, o g rupo, a p a rtir de um a atitude de escuta ab erta e
bo n d o sam en te disponível, tem de form a in stin tiv a um a percep­
ção afinada do que diz a pessoa. D essa form a, re stitu i-lh e uma
espécie de eco do m undo a p a rtir do respeito e do acolhim ento
genuínos, sem d eix ar de refletir a necessidade de tra n s p a rê n ­
cia e de c o n fro n tar a pessoa n a fuga das suas p ró p rias verdades.
D esse m odo, a raiva sabiam ente disfarçada de sedução, a confu­
são in te rn a m aquiada de g esto s desnecessários, o m edo sufocado
por um a respiração ausente e o u tra s ta n ta s form as de escapar da
presença genuína serão rap id am en te desm ascaradas pelo públi­

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co, que, m esm o assim , não d eixará de acom panhar a pessoa na
sua busca pela autenticidade.
N esse in tercâm b io im perceptível p a ra uns olhos não tre in a ­
dos —po rém evidente quando aprendem os a decifrar os códigos
do olhar, da voz, do corpo, do que é falado e do que é silenciado
—, alguns ouvem claram en te o m u rm ú rio sutil do grupo, que lhe
diz: “Eu te dou perm issão de ser com o qu eres ser e, em troca,
peço sua verdade, seja ela qual for. Se não for assim , você deixa
de me interessar. Se não for assim , eu não estou disposto a pag ar
o preço de tua m e n tira ”. N esse re p en tin o espaço de liberdade
absoluta, aberto dian te de nós com o um lu g ar de mil possibili­
dades, a pessoa pode to m a r a m edida de seus enganos e certezas,
sep a rar as verdades e as ilusões.
P ara que se possa lid ar com toda a beleza desse frutífero in­
tercâm bio e n tre o g ru p o e a pessoa, re tira r dele todo proveito e
sentido, é preciso c o n v e rter a experiência g ru p a i em uma espécie
de ú tero da hum anidade, tão incondicionalm ente acolhedor com o
o colo de um a mãe. É necessário cu ltiv ar de form a re c o rre n te
nas pessoas p resen tes um a atitude não ju lg ad o ra , convidá-las e
conduzi-las até um “o lh ar gen ero so ” do outro. Isso dará à pessoa
ex p o sta um a perm issão, im plícita e solidária, para m o strar-se,
desvelar-se e, se preciso, até rebelar-se c o n tra si m esma, num a
form osa batalha com o drag ão interno . N esse acom panham en­
to, a pessoa se se n tirá respeitada em suas neuroses, agasalha-
da em seus to rm en to s, e se perceberá suficientem ente confiante
p ara arriscar-se. P oderá en treg ar-se, m o strar-se, equivocar-se,
assu star-se ou entediar-se, num m ovim ento no qual e n c o n tra rá
liberdade, força e fluidez p a ra p o d er atrev er-se a ir além de seus
te rritó rio s conhecidos.
Poucas vezes na vida cotidiana terem os o portunidade de
esc u ta r a voz do m undo num espaço de respeito e consciência,

48
para que essa voz possa m e d izer com o me percebe, o que lhe
tra n sm ite m eu corpo, m inha atitude, m eu tom de voz, m eu olhar,
m eu estar. Infelizm ente, perdem os assim valiosas inform ações
sobre nós m esm os, m antendo-nos envolvidos em nossa m en tira
e nosso autoengano, deixando aos que são m ais íntim os de nós
a tarefa de devolver-nos algo de nosso reflexo, quando pode ser
que esses não sejam os m elhores inform ados nem os mais capa­
citados p a ra realizar essa tarefa.
E m Clown Essencial, o g ru p o é o catalizador da experiência
da pessoa. Se em suas risadas o clown e n c o n tra a senha de seu
êxito e, no silêncio, as indicações de que anda p o r um cam inho
equivocado, é no o lh ar do g ru p o que ele ex p erim en ta a certeza
de que p erte n ce ao m undo. O m esm o m undo do qual se sentiu
apartado, rechaçado, ag o ra lhe dá boas-vindas. A atitu d e do “clã”
que recebe a pessoa, em um clim a de acolhim ento e respeito,
p erm ite essa su til viagem da escuridão dos to rm e n to s em ocio­
nais ao p o d er da criação artística, re ten d o a atenção do público e
enchendo seus olhos de um a dignidade finalm ente reencontrada.
U m a p artic ip a n te de um a oficina na capital do M éxico havia
deixado o balé anos atrás, decepcionada. Em um a im provisação,
sem q u alq u er em baraço, já am parada pelo seu n ariz verm elho,
pôs-se a bailar um a passagem de 0 lago dos cisnes, de P io tr T h a -
cikovisky. Isto foi o que ela disse em seguida: “C om eçou a m úsica
e sim p lesm en te m e transform ei: eu era novam ente a prim eira
bailarina que tenho d en tro de mim; todos os prejuízos negativos
caíram en terrad o s. S entia-m e no A uditório N acional diante de
um g ra n d e público, que se su rp reen d eu e m e viu tal com o sou,
um a pesso in h a ín te g ra , que só precisa d an çar p a ra se n tir que
nela tam bém há am o r e leveza. Os saltos to m aram a ltu ra até dei­
xar ver esta m ulher, ainda que a cada passo m inha m enina apro­
veitasse mais. Senti-m e plena. N unca pensei que po d eria voltar

49
a e n c o n tra r esse teso u ro que o balé havia deixado em mim, que
ag ora me p erte n cia de novo e brilhava p a ra m eu público”.
P ara co m p letar o relato desse esplêndido m om ento, devo
acrescen tar que, espontaneam ente, boa p a rte das m ulheres do
g ru p o havia levantado p o r conta p ró p ria e, colocando seus n ari­
zes verm elhos, seguiu seus passos e saltos. E sse baile de narizes
verm elhos, que incluía a prim eira bailarina e o corpo de baile,
era um q uadro im ensam ente belo, charm oso e g enuinam ente
su rrealista, que nos em ocionou p ro fu n d am en te a todos, a mim
inclusive.
Fica evidente a sem elhança que há tam bém com a vida coti­
diana: Q u an ta seg u ran ça em nós m esm os readquirim os quando
alguém sim plesm ente nos tra ta bem, nos olha com generosida­
de? E quando ex p erim en tam o s esse ganho de confiança, qu an to
potencial se m anifesta na nossa criatividade, na nossa capacidade
hum ana? M uitas vezes, não necessitam os de m ais que um o lhar
apro v ad o r p ara nos fazer confiar em nossos im pulsos e n u trir
nossos sentim entos. U m a espécie de autorização que, m esm o
sutil ou silenciosa, nos financia nosso se n tir e valida nossa liber­
dade de ser.
P or sua vez, esse fenôm eno re su lta ig u alm en te certo no ou­
tro sentido: se a pessoa ten ta, ainda que seja com toda leg iti­
m idade, fugir, en g a n ar-se e nos enganar, o g ru p o se m o stra de
certa m aneira frio e desinteressado, deixando a pessoa sozinha
em seu jogo, presa em sua p ró p ria arm adilha. O g ru p o parece
dizer: “Se você te n ta m e vender um p erso n ag em falso, d istan te
da sua verdade, não m e interesso p o r você”. T en h o visto m uitas
vezes com o esse preciso m om ento é o princípio de um a íntim a
b atalha e n tre a pessoa e seus perso n ag en s internos. U m a dis­
p u ta que o h u m o r com passivo de Clown Essencial contribui para
en cu rtar, não p o r q u e re r o m itir o que está dizendo o m undo,
mas p o r p e rm itir à p ró p ria pessoa e n x e rg ar m ais rapidam ente.
P ara co n v id ar-lh e a ser o p rim eiro a reconhecer o fato de haver
fabricado, no seu dia a dia, todos esses personagens. Porque, em
algum m om ento, foram necessários p ara sobreviver, p a ra serem
vistos, p a ra a le g ra r um a m ãe depressiva, p ara p ro te g e r seus ir­
mãos de um pai violento, p a ra receber m igalhas de am or e se
encaixar num a família, p o r m ais louco que isso seja. T odos esses
p erso n ag en s ocos são, em geral, repletos de raiva, de vergonha,
de frieza ou de medo, e perm anecem g ru d ad o s em nossa alm a
com o sanguessugas. Eles ca stram nossa liberdade e espontanei­
dade, nosso gozo e poder, nossa confiança e tran sp arên cia, nos­
sa capacidade de escolha. A seg u n d a fase consiste em devolver
dignidade ao que ficou encoberto, àquilo que, no coração da dor,
do esp an to ou da confusão, foi reprim ido, silenciado, castrado,
proibido.
N a m inha opinião, a verg o n h a de sen tir o que sentim os nos
faz m uito m ais m al do que aquilo que sentim os de verdade. A
luta já não está no m undo, e eu estou em um en fren tam en to ju s ­
to e claro, senão e n tre eu e eu, acendendo a g u e rra d en tro de
mim, num lu g ar inacessível onde não pode haver nem vencidos
nem vencedores, p o rque eu sou os dois exércitos e todos os seus
generais.
N a nossa infância, tem início um a longa e difícil viagem que
se esten d e até a nossa idade adulta quando, finalm ente confor­
mados, ap rendem os a conviver com nossos personagens. E se em
nossos m elhores m om entos conseguim os negociar com eles al­
guns m in u to s de liberdade e um a efêm era espontaneidade, nossa
realidade co tidiana é m ais triste m e n te a de ap ren d er a sortear,
com m ais ou m enos azar, o cam po de batalha in tern o , h um ilhan­
te e desolado.
C o n sertar esse lu g a r tom a tem po, p recisa de cuidados res­
peitosos, de consciência e de paciência, de valentia e de reconhe­
cim ento p o r nós m esm os. P or m inha experiência ao longo dos
anos, não ten h o dúvida de que o h u m o r com passivo de Clown
Essencial é um a p o derosa e efetiva fe rram e n ta p ara devolver, a
este lugar, sua serenidade. P ara fincar nele a bandeira da digni­
dade, que legitim a o que aí se sentiu, o que se viveu, p ara pouco
a pouco poder finalm ente e n tre g a r um acordo de paz, bom p ara
os dois lados.
C A P ÍT U L O 6

0 ABRAÇO A N C ES T R A L

Se é certa a ideia de que o amor é o que nosf a z felizes, o


importante não é que consigamos ser amados, mas sim que
alcancemos compreender e superar os obstáculos que nos
impedem mobilizar nosso potencial amoroso.
C l á u d io N a r a n jo ,

Cosas que vengo diciendo

C oncordo com essa ideia da epígrafe e, depois de acom pa­


n h a r ta n ta s pessoas através de Clown Essencial, tam bém acredito
firm em en te que, de algum a form a, o que m ais nos faz sofrer não
é ta n to o fato de não nos sen tirm o s queridos, m as sim o de não
p o d er am ar tan to q u an to sentim os que nosso coração está natu­
ralm e n te im pulsionado a fazê-lo.
H á alg u n s anos, observei com assom bro com o m inha filha
A inara, en tão com apenas 2 anos, abraçava com profundo con­
te n ta m e n to seu bichinho de pelúcia favorito, que p o r sua vez não
lhe dava nenhum a m o stra de afeto recíproco, o que não parecia
te r a m ínim a im p o rtância p a ra ela. Sabendo quão im p o rtan te é
em n o ssa vida afetiva ad u lta o reto rn o , e sabendo que às vezes
até reclam am os com algum escândalo a tro ca de nossas m ani­
festações de amor, carinho e te rn u ra , comecei a p e rg u n ta r p o r
que essa viagem afetiva tão sim ples de m inha filha resu ltav a tão
n u tritiv a p ara ela. P or que só necessitava da m etade do cam inho
e eu o ansiava inteiro? Eu a fui observando com discrição em
rep etid as ocasiões e pude perceb er que nesse ato genuíno ela
en co n trav a a p len itude do dar. F lu ía um a sin to n ia com um m o­
v im ento n atu ra l de seu pequeno coração, g eneroso p o r natureza,
sem necessidade de nen h u m a resp o sta im ediata, de devolução ou

53
de g ratificante receber. Ela não reclam ava nada a ninguém e se
co n ten tav a com o a leg re p ra z e r de e n tre g a r seu am or a o u tro
ser, ainda que fosse inanim ado. E, de algum a m aneira, esse m o­
v im ento era suficiente p ara d ar a ela o que tam bém necessitava.
N essa época, eu dedicava algum tem po utilizando bichinhos
de pelúcia e o u tra s coisinhas confortáveis em algum as das mi­
nhas dinâm icas, com um su rp re en d en te im pacto em ocional nos
p articip an tes, e sabia que, tecnicam ente, isso era o que D onald
W oods W in n ic o tt classificava com o objeto transicional, elem en­
to sim bólico da p rim eira relação. Porém , foi a aten ta reflexão
com a qual me brindava m inha filha, tão pequena ainda, a que me
p erm itiu decifrar m elhor o que o corria com as pessoas d u ra n te
as sessões de Clozvn Essencial.
U m sim ples bichinho de pelúcia, cúm plice do prim eiro abra­
ço oferecido p o r um a criança, que expressa assim sua capacidade
am orosa, seu dom de afeto, tran sfo rm a-se 110 prim eiro objeto
inanim ado que convertem os em um ser com alm a própria; exa­
tam en te com o o co rre no te a tro de objetos, no qual a base do p ro ­
cesso é d a r vida —e, p o rta n to , poder de relacionar-se —a objetos
ou p arte s de objetos correntes.
Assim , a criança abraça o bichinho de pelúcia, elaborando de
form a gen uína e indelével o que defino em m eu trabalho com o
o “abraço a n c estral”. E sse gesto re co n fo rtan te, espontâneo, e o
sen tim en to p rim ário de necessidade de co n tato com ele parecem
e sta r gravados, re g istra d o s em nossas células, em algum a p ro ­
funda zona de nosso interior. No nosso p rim eiro ato de autêntica
m agia, essa sim ples bola de pelos é convertida em um ser vivo
que apreciam os, beijam os e abraçam os. Com o passar do tem po,
to rn a -se tam bém um in terlo cu to r incondicional a quem con­
fiam os nossos seg red o s e dores m ais íntim as, com partilhando
anseios, decepções, sofrim entos ou alegrias, to rm en to s e ilusões

54
em um ex tra o rd in ário e rico diálogo de sentido único. São si­
lenciosos, porém , fiéis com panheiros de aventuras; testem unhas
m udas, m as com passivas, das nossas férteis im aginações, confi­
den tes leais das nossas vinganças secretas, aliados inabaláveis de
nossas esperanças: “E sta noite papai não voltará bêbado”. “A m a­
nhã, m am ãe dirá que me am a”, “U m dia, ninguém g rita rá em
casa”.
São nossos confidentes, e esse silêncio respeitoso, essa p re­
sença não ju lg ad o ra, não ce n su rad o ra e, p o rtan to , favorecedora
de um a profunda liberdade expressiva, é, de algum a form a, a
m esm a que logo en c o n tram os aprendizes de Clown Essencial 110
público quando este os olham com bondade em suas ex tra v ag an ­
tes im provisações. E sse abraço ancestral p erm ite nossa prim eira
lib erd ad e de expressão, a de m o strar-n o s tão am orosos com o
realm en te som os em nosso estado m ais puro, e me parece que
se pode co n sid erar com o nossa p rim eira criação, nosso prim eiro
g ra n d e ato criativo, do tan d o um objeto to talm e n te inanim ado
de presença, caráter, sentim entos, desejos, necessidades e medos.
E ssa fig u ra fica g u ard ad a na m em ória dos nossos prim ei­
ros laços afetivos, e toda riqueza e significado desse m ovim ento
infantil in te rn o ressurgem , anos m ais tarde, q uando o utilizo
com o re p re se n ta n te da nossa criança interior. Com sua pequena
e s ta tu ra e sua te x tu ra agradável, chega a sim bolizar excelente­
m en te essa criatu ra in tern a , a quem o adulto pode reconhecer,
d a r consolo e reconfortar, aten d e r e- honrar. T en h o visto m uitas
pessoas vivenciarem processos curadores ao to m ar em seus b ra­
ços esse objeto simbólico, d irig in d o a ele um o lhar im pregnado
de an tig as lem branças ou sensações, acariciando-o com um ges­
to su rg id o de o u tros tem pos, o qual b ro ta com natu ralid ad e de
um lu g ar ainda p reserv ad o em seu coração adulto. T u d o ocor­
re com o se, nesse contato, a pessoa de im ediato pudesse tom ar

55
consciência da presença ainda viva da criança cm sen interior,
com todo o seu m undo im aginário, suas fantasias, <■tam bém seus
anseios. R essurgem recordações, im agens, bate-papos secretos,
confidências e bailes festivos. Com o se o objeto em si tivesse o
p o d er de falar d ireta m e n te ao ouvido dessa criança, sem passar
pelos filtros m entais do adulto. P or isso, a m iúdo utilizo em meu
trab alh o a p resença de alguns ursinhos de pelúcia para acom pa­
n h a r os adultos nesse m ovim ento de en c o n tro e reconhecim ento.
No tra n sc u rso das sessões de trab a lh o que ao longo do ci­
clo do Caminho do Clown dedicam os especialm ente ao tem a da
escuta, realizam os um a exploração que eu cham o <le "cuidados
intensivos”, um a espécie de U nidade de T erap ia Intensiva, uma
U T I em ocional. N ão a descreverei aqui cm profundidade; so­
m ente explicarei que se tra ta de um a escuta aten ta na qual várias
pessoas cuidam energeticam ente, através de um sutil, sincero e
respeitoso contato físico, de o u tra pessoa que, poi sua ve/., m an­
tendo os olhos fechados, en tre g a-se a essa vivência to m total in­
tim idade, deixando-se levar pelo que su rg e do seu |>i óprio m un­
do interior. N essas sessões tenho observado com o esse cuidado
de sentido único tra n s p o rta a pessoa a profundo.', e sensíveis
estados de alm a, ta n to levando-lhe ao b em -estar .......... frequen­
tem en te, provocando em sobressalto suas r e s p o s t a s autom áti­
cas: “Eu não m ereço ta n to ”, “Isso não vai d u ra r muito", "Vao me
p ed ir algo em tro c a ” — essas são algum as das mar. li «•quentes.
E stabelece-se, então, um a lu ta in te rn a e n tre o p r a /i‘i de receber
e o de não ser m erecedor, co rren d o o risco de não se aproveitar o
que sin ceram ente está o correndo nesse m om ento «!• fíu ma real
e verdadeira.
Q uando os “cuidadores” sentem que \ú term inaram seu
atencioso processo e que é o m om ento de d eixar .1 pessoa "dige­
rir ” o que acaba de acontecer e, de algum a Ibrma, deixa la pas­
sear pela solidão de sua p ró p ria intim idade, aconchego a ela um
u rsin h o de pelúcia. D eixo a m inha intuição dizer qual é o m ais
adequado —p o r sua form a, tam anho ou tato —e o coloco em seus
braços com estas palavras: "Agora, você cuida de si”. A penas essa
frase é suficiente p ara levar a pessoa a um. estado de profundo
reconhecim ento, abraçando im ediatam ente sua criança interior,
re p resen ta d a p o r um objeto. E um espaço tão propício e pessoal
que, em geral, a pessoa com eça espontaneam ente a conversar
com ele ou ela, cuidando-lhe, acariciando-lhe de form a suave e
g en u in am en te am orosa, num profundo e re p ara d o r abraço an ­
cestral. São m om entos de g ra n d e beleza, que in sp iram respeito
pelo m istério do que se passa, sem necessidade algum a de saber
o q ue ex atam en te aconteceu, nem de p e rg u n ta r que feridas p re­
cisam en te estão sendo curadas ali. A reparação é evidente, e os
cuidadores p resen tes tam bém se com ovem , co m p artilh an d o esse
estado de g ra ça a p a rtir do respeito e do silêncio.
É tam bém , sem dúvida algum a, a o p o rtu n id ad e de resg a­
ta r nossa capacidade de cu id ar de nós m esm os e de aproveitar,
sem prejuízo nem fronteira, de um espaço de liberdade própria
e de nossa p ró p ria história. D u ra n te um a de m inhas oficinas em
A licante (Espanha), um a p articipante, d ire to ra de um a g ra n d e
escola infantil, depois de longo tem po no chão recebendo cui­
dados e conversando com seu bichinho de pelúcia, levantou-se
e com eçou a g ira r pela sala, dançando com ele, num m ovim en­
to esp o n tân eo e rápido, sem se preocupar com o fato de e sta r
num g ru p o ; algo v erd ad eiram en te pessoal e curador. E ste foi seu
co m en tário em seguida: “T ra b a lh o e convivo com crianças pe­
quenas diariam ente; tem os na escola m uitos ursinhos, e som ente
ag o ra m e dei conta de que eu nunca havia brincado de verdade
com um que fosse m eu”. E la nos explicou, m ais tarde, que essa
experiência foi para ela reveladora e substancial, com o pessoa e
com o profissional de educação infantil.
N um sentido parecido, uma de m inhas alunas do curso de
A rte -T erap ia da A ssociação p ara a E x p ressão e a C om unicação
de B arcelona — A E C com entou que, desde pequena, tra n sfo r­
mava qu alquer objeto em m ascote, e cantava e bailava p ara seu
público, com posto de u rsin h o s de pelúcia, além de m eninos e m e­
ninas desenhados no papel de parede da sua casa. Porém , o que
m ais m e cham ou a atenção de seu relato foi que, ao final, quando
saudava a seu entusiasm ado público, ela os ouvia aplaudir. P are-
ce-m e um a bela im agem da vida que nossa fantasia atribui aos
objetos inanim ados em nossa ten ra infancia, na qual realidade e
ficção dançam abraçadinhas, num espaço sem lim ites claram ente
estabelecidos.
Se p re sta rm o s atenção, há em nossa consciência adulta um
m ovim ento sem elhante, alim entado pela im aginação e com pai­
xão n atural. A quela linha que, na infância, ligava-nos àqueles bi­
chinhos de pelúcia segue viva na idade adulta, levando o coração
m ad u ro até o cuidado e reconhecim ento da criança interior. A
beleza tra n sp a re n te do abraço ancestral e sua força reparadora
perm anecem presentes no im pulso de um ad u lto que, por fim,
abraça a sua criança in te rio r de form a n atu ra l e com passiva, da
m esm a m aneira que em o u tro s tem pos a criança là/ia com seu
bicho de pelúcia.
Na m inha percepção, esse abraço an cestral revela nossa ne­
cessidade n atu ra l de amar, que é tão ou m ais vital que a de ser­
m os am ados e na qual talvez possam os e n c o n tra r a m aior repa­
ração de nós m esm os. Revela nossa necessidade de alcançar um
certo consolo, o de p o d er ex p ressar nosso afeto de lórm a rápida
e sem culpa, dando rédea solta ao nosso pobre e lem lo coração
que, assim , to rn a -se n a tu ra lm e n te am oroso e generoso. I lá uma
ânsia ín tim a de e x p e rim en tar o repouso de um a aceitação in­
condicional, tan to tem po esperada, na qual nossa solidão poderá
finalm ente d escansar no re en co n tro com o cúm plice com passivo
que esteve ali, à espera de nossa volta p ara casa. E m sua p re­
sença silenciosa, porém su tilm en te reconfortante, a pessoa sente
seu peito m ais cheio de vida. A lguns alcançam , então, o p ra z e r
de d eix ar fluir um a c o rre n te natu ral, um m anancial vivo que, de
alg u m a form a, b ro ta do coração de qualquer ser hum ano quando
pode acessar o delicado m ecanism o da com paixão.

59
CAPÍTULO 7

A P O É T I C A DO S I M B Ó L I C O

O palhaço é o poeta em ação.


H enry M il l e r

G ra n d e p arte da cativante beleza de Clown Essencial provém


de sua força poética. P orque, se um ator in terp re ta, o clown ilus­
tra, e, q u ando o u tras arte s cênicas relatam , o palhaço som ente
sugere. O nde alguns recitam , ele divaga, e tropeça d istraid am en ­
te en q u a n to o u tro s esbanjam elegância e leveza. O nde alguns
rep ro d u zem , ele inventa, deixando a fidelidade à realidade p ara
o u tra vida, m esm o que n esta conquiste sua independência. O nde
o u tro s desenham com fineza, ele rascu n h a com um traço g ro sso
seu p ró p rio sentir. A pesar disso, toda a sua contribuição é de
um a trem e n d a sensibilidade.
A ssim é sua visão do m undo que o rodeia e ao qual ele ten ­
ta p e rte n c e r sem nunca conseguir, perm anecendo à m argem de
um a h istó ria e stritam en te co rreta, em absoluta discordância
com seu en to rn o . N ão lhe in teressa ta n to falar-nos de seus fei­
tos, tal com o os enxergam os nós, m as de sua percepção sin g u lar
dos m esm os. Sem pre se m an tém um pouco alheio da leitu ra que
todos po d eriam fazer da situação, e dela prefere en tre g ar-n o s
sua visão p articular. N osso clown sabe, em algum lu g ar de sua
alm a caótica, que essa é sua única riqueza, sua razão de ser, e que
co m p artilh ar sua experiência conosco nos enriquecerá a ambos.
Sabe que, dessa form a, sua p resen ça em beleza o m undo.

ói
P ara ele, um a de suas principais lin g u ag en s é a poética do
simbólico.
Com seu gesto provocador, seu o lh ar firm e, seu co m porta­
m en to ab solutam ente infantil e suas em oções à flor da pele, o
clown in sp ira a im aginação do público p a ra que esle, por sua vez,
p erco rra a o u tra m etade do cam inho até ch eg ar à ideia, à vivên­
cia do espírito, p ara que, de algum a m aneira, alcance o enredo, o
encontro, com seus p ró p rio s pés. E ntão, am bos param o tem po
p o r um m om ento, esfarelando-o em segundos tran sb o rd an tes de
um im enso silêncio e, ao m esm o instante, plenos de com unica­
ção. N esse espaço aberto, agora disponível, é a própria fanta­
sia do público que, de form a natural, alça voo. Kl a se expande,
criando suas próprias perspectivas, esp an tan d o suas recordações
e seus fantasm as, dando boas-vindas aos seus próprios anseios,
ag ora convidados para e n tra r em cena. N a nudez sim bólica des­
ses seres torpes, ridículos, na escassez de seus recursos intelec­
tuais e bem estabelecidos - ta n to de ideias brilhantes com o de
corajosas certezas - , o público se aproxim a e en co n tra tam bém
seu p róprio descanso. De um a form a im plícita, ele pode aconche­
g ar aí sua p ró p ria im becilidade e acalm ar sua própria confusão.
A inda dança em m inha cabeça as palavras que escutei de um
xam â hopi, d u ra n te um a cerim ônia espiritual indígena, sobre o
gig an tesco círculo de pessoas que se form ava ao re d o r da foguei­
ra sag rad a que havia no ce n tro da roda: “N ão olhem uns p ara os
outros. O lhem p ara o fogo, porque ele olha p ara todos". Assim
tam bém é a poderosa poética visual de um clown-. olhando ju n to s
p a ra ele chegam os a urn lu g ar com um , no qual cada um celebra
com gen ero sidade o fazer p a rte da estupidez hum ana.
Presenciei em B rasília, d u ra n te um sim pósio sobre en eag ra-
m a p ara o qual havia sido convidado pelo dr. C láudio N aranjo a
p artic ip a r colaborando com o Clown Essencial, um a cena de g ra n ­

Ó2
de poesia: sobre um colchonete, um a fam ília de clowns estava em
sua balsa, no meio do oceano, com um a vassoura com o m astro e
um pedaço de papelão com o bandeira, oferecendo-nos urna im a­
gem de g ra n d e força visual. Podíam os contem plar um re tra to
tan to da solidão com o tam bém da união de um a família, cujo pai,
um sen h o r de o rig em inglesa, cantava em sua língua nativa uma
velha balada de N eil Young. Q uem não pode reconhecer nele
algo de sua p ró p ria família? U nidos no meio do nada, sem rum o
e sem m apa, porém , ju n to s em to rn o de um pai hipoteticam ente
conhecedor do mar.
U m tu b o de papelão será a lança de um g u e rre iro guardião
de um a caverna íntim a inviolável e, da m esm a form a, um pedaço
de caixa e um guardanapo de papel serão o tap ete m ágico no
qual nosso paladino in te rn o realizará suas viagens de iniciação.
Um sim ples vaso de plástico com um pouco de água será o cálice
de p ra ta que devolverá forças ao exausto com batente depois de
sua lu ta com os m onstros. Porém , será a bênção de um pai, re en ­
con tran d o , no com panheiro vestido sim plesm ente com um nariz
verm elho, o filho que passou m uito tem po longe de seu coração.
D a m esm a m aneira, num e n te rro clown são usadas bolachas
que esm igalham os sobre o corpo estendido no solo, im itando o
ato de jo g a r um pouco de te rra sobre o caixão no m om ento em
que será en te rra d o num cem itério. Ali estão os clowns, com seus
n arizes verm elhos e seus lam entos, que não são tan to pelo m o r­
to, m as p o rq u e se desperdiçam as últim as bolachas esbanjan­
do-as de tal m aneira. U m m om ento de g ra n d e tragicom icidade
que, de algum a form a, une aquilo que é irreconciliável num só
golpe de poesia.
N um o u tro sem inário, e tra ta n d o de um tem a parecido, usá­
vam os ce rta vez um a g ra n d e quantidade de papel branco para
co b rir o corpo do clown defunto, que rep resen tav a um hom em

63
que, de verdade, havia m o rrid o congelado no alto de um a m on­
tan h a sozinho, dois anos antes. E n q u an to nossa neve de papel
ia cobrindo pouco a pouco seu corpo, sua viúva, p articip an te do
sem inário, deixava-se levar por um sim bólico baile, expressão
am ável de um a despedida que não lhe foi possível realizar no
m om ento oportuno. T u d o vai se fazendo de m odo m uito so­
lene, sem p erd er sua ingenuidade de clown, enq u an to ela se ia
m istu ran d o ao papel, deixando que sua te x tu ra delicada e sua
b ra n cu ra acariciasse seus dedos e seus olhos, em briagando seus
sentidos, até deixá-la exausta, m as feliz, com ovida e, de algum a
form a, leve, suavem ente conform ada com o que havia aconte­
cido. Essa cena pro fu n d am en te poética desenhou diante de to­
dos nós o que sua m en te rep etid am en te havia im aginado sem
co n seg u ir rep resen tar, devolvendo ag ora a satisfação de haver
conseguido, a p a rtir daquele doloroso m om ento, estar ao lado
de seu esposo, de algum modo, quando ele m orreu. P or cima dos
narizes verm elhos, brilhava no o lh ar de todos a m esm a emoção:
a em oção clown do trab alh o bem feito, seja qual for esse trabalho,
e tam bém o silêncio respeitoso de quem ap ren d e a estar sem pre
ao lado, com seu coração.
Assim , em Clown Essencial são m uitos os exem plos banais
da vida cotidiana que tom am o u tro significado: os guardanapos
de papel são vestidos de alta co stu ra ou finos lençóis para a noite
de núpcias, ou, ainda, as caixas de papelão se tran sfo rm am em
castelos, cavernas ou berços. Que im agem tão poética a do clown,
com seu nariz verm elho e seu o lhar oscilando de lado a lado,
apenas sobressaindo p o r cima das bordas da caixa, refugiando-
se de um m undo in seg u ro e hostil! Q u an tas o u tras pessoas não
gostariam , nesse m om ento, de sa lta r p a ra d en tro daquela caixa
e sen tir-se protegidas, ainda que banalm ente, de tudo e de todos,

64
até m esm o da m orte? Q uem não gostaria, p o r um m om ento, de
to rn a r-s e invisível ao o lh ar do m undo inteiro?
As vezes, uso o conteúdo in teiro da lixeira m ais próxim a,
sem m e p reo cu p ar com o que há dentro, despejando-o no meio
de um a im provisação. O m aravilhoso é que,* autom aticam ente e
neste m esm o in stan te, o im aginário do grupo, ou seja, dos de­
m ais p articip an tes do sem inário, ajusta-se com o m eu e ninguém
se esconde ou lam enta. N o m eio do caos, tu d o está em ordem ,
e as en erg ias dos atores fluem com facilidade, seguindo o cu r­
so de suas em oções num c o n stru ir form oso, vivo, ra d ia n te de
en erg ia e intuição. D o fundo da lixeira vão su rg in d o os restos
de um a vida esfarrapada, as palavras arran cad as de um discurso
inconfessável, os silêncios de um a d o r ainda m uito íntim a. E spa­
lhados pelo chão, os desperdícios são, agora, um pequeno oceano
de confusões, de anseios, de desejos ocultos nos quais cada um
pode reco n h ecer seu p ró p rio caos interno. No m ar de m isérias
íntim as, os clowns, sem problem as, rem am em sua balsa com fé
no h o rizo n te, clam ando, sem resultados, aos deuses e aos ven­
tos favoráveis p ara não se afundarem nelas. Em seguida, confor­
m ando-se finalm ente com sua infeliz condição de seres hum anos
p e rtu rb a d o s e frag m entados, vão recolhendo, pouco a pouco, um
a um, os pedaços de sua dignidade, de seus am ores vazios ou
de suas infâncias sabotadas, com seu o lh ar g eneroso cham an­
do a atenção do seu público, que apenas respira, saboreando a
delicadeza desses corações artesãos de um in stan te mágico, tão
efêm ero no tem po com o esplêndido de etern id ad e no simbólico.
U m a sim ples p alavra distorcida solta no ar p o r um corpo
em to tal a b e rtu ra pode ser um g rito de g u erra, a celebração de
um a leg ítim a v itó ria na qual todos, clowns e público, são heróis
de um a sonhada revolução. A inda ten h o p re sen te a im agem de
um p artic ip a n te de um sem inário na Espanha. E le gritav a, com

65
os braços abertos e o peito vibrante: “V iva a m erluza livre! Viva
a m erluza livre!”. F oram tan tas vezes, com tal força, vitalidade
e determ inação, que o público pontuava com um sonoro “Viva!”
a cada novo g rito seu. N inguém sabia do que ele estava falando,
que diabos significava aquela m erluza, porém , aquilo não nos
im p o rtav a ern absoluto, porque em sua voz todos estávam os ce­
leb ran d o nossa v itó ria pessoal sobre um hipotético ditador, um
o p resso r invisível não nom eado, m as percebido e tom ado como
seu p o r cada um dos m em bros do grupo.
A poesia da im agem nos une e nos fala a m esm a linguagem
a todos. Ela resg ata e valida o fundo das coisas, dando-lhes m ais
im p o rtân cia que a form a, que a sim ples ex p ressão das m esm as.
In stin tiv a m e n te ancorada num lu g ar com um a todos, h arm o n i­
zando as percepções em um só sentim ento, indefinido, m as uni­
form e, em um m esm o código, no qual tu d o pode ser qualquer
coisa e, q u alq u er coisa, um m undo diferente. A ssim , nossas m en­
tes deslizam ju n ta s pela m esm a ladeira, p en e tran d o em unís­
sono um m undo no qual essas im agens re g istra m , com m uito
m ais riqueza de detalhes que nossas palavras poderiam fazê-lo,
nossas vivências m ais íntim as. N esse vocabulário visual, em g e­
ral terriv e lm e n te im pactante p o r sua dor, algo com um a todos
nós se reconhece, se une ao ato poético dos clowns, en tre g an -
do-lhes um aconchegante abraço m udo em que podem depositar
seus seg redos tran sfo rm ad o s em luz, seus absurdos to rm en to s
tran sfo rm ad o s em gestos, olhares, suspiros ou caretas. Assim ,
ao finalizar a contenda, su rg e um a delicada união na qual todos,
p o r fim, descansam os, calados, aliviados pelo ato sim bólico que
nos devolve o p o d er da celebração e da criação, tão p artic u la r da
poética dos clowns. Com o destaca o renom ado p siq u iatra francês
Jean P ie rre Klein, em sua visão da a rte -tera p ia, “a representação
do sofrim ento já é p a rte de sua cu ra”.

66
A lain VigiKuui durante 1111 espatáculo
ü
na Europa.
A lain in te rp re ta n d o M estre clow n.
M a q u ia n d o -se a n te s de um a a tu ação n a selva de E l Salvador.
A lain em um a a tu ação em Spitzkoppe, N am ibia.
D u ra n te um e sp e tá cu lo em B anda A ceh, Indonésia.

E sp e tá cu lo em P ad an g , Indonésia,
P a rtic ip a n te s da oficina sa b o re a n d o a infância rescatada.
U m m o m e n to do e sp etácu lo A larm .
A lain m in istra n d o um a oficina de C low n E sen cial no E stú d io C orazza, M a d rid .
Foto: O liv er R om a
A lain nas asas do clow n.
Q u a d ro p in ta d o p o r Jo s e tte
C o ste d o at, m ãe d e A lain (1963)
C A P ÍT U L O 8

A S Á G U A S C L A R A S DA I N F Â N C I A

Pode-se dizer que alguém não ama a si mesmo se não ama


a sua criança interior ou mesmo o.seu animalzinho interior,
pois a criança pequena que continua sendo nossa psique mais
arcaica é um ser instintivo.
C l á u d io N a r a n jo ,

Cosas que vengo diciendo

E m referência ao m undo dos clowns, do hum or e de sua rela­


ção com a origem , há um a g ra n d e confusão, em g eral aceita sem
conhecim ento prévio: a de ac red itar que um adulto que e n tra em
co n tato com sua criança in te rio r se to rn a m ais infantil e que essa
é a m eta de tal busca. As pessoas que se aproxim am do enfoque
dado p o r Clown Essencial rapidam ente se dão conta de que esse
não é o ru m o nem o espírito de nossa exploração. Porque um
ad u lto que revisa e re sta u ra sua relação com a criança in terio r
não se to rn a m ais infantil; to rn a-se, isso sim, m ais com pleto. De
m odo m ais claro, sente seu peito mais plenam ente cheio, e é isso
o que desencadeia, p o r sua vez, o u tro s tipos de m udanças p ara
ele e seu ento rn o . A dquire a liberdade de poder acionar a energia
e as riq u ezas que lhe eram p ró p rias em sua infância, fazendo-o
de um a form a consciente, quando desejar ou necessitar, e de m a­
neira m ais coerente com sua experiência interior. E x tra i de sua
h istó ria pessoal, ex p lo ran d o neste m om ento da vida toda sua ri­
queza e ensinam entos, e indo m uito além da sim ples classificação
das experiências em boas ou más.
F ui d u ra n te vários anos professor de teatro e clown num
m estrad o de arte -tera p ia da U niversidade de Vic, próxim o a
Barcelona. D u ra n te o tem po que durou esse ciclo, observei como
um a aluna, enq u an to seus com panheiros anotavam apontam en­
tos d u ra n te m inhas aulas, dedicava-se unicam ente a desenhar o
que ela percebia das m inhas palavras e com entários, traçando
sobre o papel sua visão p ró p ria do que acontecia ao seu redor.
Ao final do ano, en tre g o u -m e todos os seus desenhos. D e n tre
eles, um me cham ou especialm ente a atenção: no corpo estilizado
de um a m ulher adulta, à a ltu ra de seu peito, havia um poço. Na
p a rte superior, no que se via com o solo, um as flores. N o fundo do
poço, sentada, um a m enina que dizia p ara a m u lh er adulta: “M an ­
da-m e o balde!”. N esses sensíveis traços, en ten d ia que a m enina
pedia à ad u lta que lhe m andasse o balde p a ra p o d er enchê-lo com
as águas da infância a fim de que, p o r sua vez, a m ulher m adura
p udesse re g ar com elas as flores de sua m aturidade. E ssa aluna
havia com preendido perfeitam ente o enfoque de Clown Essencial
P orque é óbvio que não som os crianças. O que passou, pas­
sou, e passou com o passou. N ão se trata, em absoluto, de q u erer
nos desfazer de nossa consciência de adultos e de suas conse­
q ü en tes responsabilidades, hum anas e sociais. V iver com o adul­
to é um assu n to sério, de um a profunda e n tre g a e de g ra n d e
transcendência. P recisa de todas as nossas faculdades e recursos,
sendo o co ntato com a criança interior, seg u n d o a perspectiva
do Clown Essencial, um desses recursos, e da m aior im p o rtân ­
cia. Porque se tra ta de p o d er v o ltar a beber desse m anancial de
inspiração que é a infância, no que ela tem de espontaneidade,
despreocupação, co n tato verdadeiro, criatividade, capacidade de
assom bro e o u tras riquezas. É re g ar com a le g ria as te rra s ári­
das e solitárias do adulto —em geral com balido de resignação e
desconfiança —com as águas vivas e claras da infância, ricas em
fé e intuição, que co rrem m o n tan h a abaixo sem se preocupar em
saber onde fica o m ar. E ssas águas sabem que vão em boa d ire­
ção, não necessitam de m apas nem de G PS. P o r sua vez, as te rra s

8o
adu ltas se en co n tram re g en erad as e novam ente férteis, saciadas
de um a água generosa que, p o r fim e depois de tudo, re ssu rg e
de suas p ró p rias en tra n h a s e da qual podem germ inar, agora,
sem entes frescas que, com os devidos cuidados, d arão bons fru­
tos. F ru to s de liberdade e consciência, expansão, criatividade e
plenitude...
A ssim descreveu um a p artic ip a n te de M adri: “Ali, naquele
espaço sem lim ite no tem po, voltei a m e e n c o n tra r com a criança
p erd id a que tive de ab an d o n ar p ara assum ir responsabilidades.
E aquele personagem , não é que não fora nada, tal e qual eu o
tem ia, m as era m eu núcleo essencial, m eu ser m ais autêntico,
m inha en e rg ia m ais verdadeira. A p a rtir dele voltei a e n tra r em
co n tato com a inocência, com a abertura, com um a aleg ria ili­
m itada, com o am o r e o desejo de contato. Senti que eu tinha
mais força, sabedoria, p o d er e fem inilidade do que sou capaz de
m ostrar. C onectei-m e com esse self, escondido e tem eroso, e p er­
cebi quão assustada se põe m inha m enina quando faço algum a
troca. Ali comecei a en te n d e r o que é reconhecer a nossa criança
in te rio r e ser um adulto m ais inteiro. Eu o com preendi perfei­
tam en te p o rq u e m e senti m uito adulta. Vendo a m inha m enina,
sin to -m e adulta. E posso ver a realidade da vida m elhor, com
m ais am plitude. N ão m e lim ito ao que a m enina pode ver ou sen­
tir, p o rq u e o que ela viveu está fixado naquele m om ento, quando
não tin h a m ais recursos p ara en te n d e r a vida e o m u n d o ”.
O u tra pessoa escreveu: “A visualização de m inha criança
pequena, de m eu eu quando era um a m enina, perm anece em
m im com o se tivesse sido um enco n tro real. A casa, o quarto,
os m o m entos que passam os ju n tas, seu rosto precioso. E stáv a-
m os brincando, eu a abracei e acariciei. E m ociono-m e só com o
escrevê-lo. A m ensagem que ela me deu foi a de que me divertia.
C onectou-m e com a aleg ria de viver. Q uase nada! E m eu rosto

81
tam bém m udou, m inha en erg ia m udou. Senti que fluía com m ais
espontaneidade, aleg ria e seg u ra de m im m esm a”.
D essa viagem de exploração, nem sem pre isenta de m om en­
to s difíceis, renasce um a com preensão m aior sobre nossa m aneira
de o lh ar a vida em nossa idade adulta. Q uando isso se dá, certos
m o n stro s voltam aos confins das te rra s habitadas, esfum ando-se
ao longe, desaparecendo nas neblinas que, algum dia, faz m uito
tem po, v iram -lhe nascer. D e n tre as dezenas de experiências que
tenho podido ir com pilando ao longo de todos esses anos, p ro s­
seguirei citando algum as, p artic u la rm en te significativas.
A ssim o viveu M ., de profissão advogado, depois de um a
sessão de Clown Essencial no M éxico, ce n trad a no enco n tro com
a criança interior: “H á q uatorze anos, eu contava então doze,
m eu m elh or am igo p erd eu a m ão em um acidente com um a
‘bom ba’ d u ra n te um acam pam ento de verão (nota: trata -se de
um artefato pirotécnico n o rm alm en te usado pelas crianças, no
M éxico, apesar de sua g ra n d e potência e perigo). Eu a encontrei
no solo, m as a en tre g u ei a ele, em cuja m ão ela explodiu. N a e x ­
plosão, ele perdeu vários dedos. Após o acidente, os professores,
horro rizad os, não se atrev eram a co n tar p ara sua m ãe o que se
havia passado. E n ca rre g ara m -m e de fazê-lo. O bviam ente, estava
m uito nervoso e tentei fazê-lo da m elhor m aneira possível, sem
ch o ra r e sem a lterar-m e m ais do que já estava. P o ste rio rm en ­
te, depois do aviso à mãe, o p rofessor seguiu as indicações do
m édico e fom os em busca dos dedos, ou pelo m enos dos seus
fragm entos, p ara te n ta r re c o n stru ir a mão, novam ente um tra ­
balho nada p ró p rio p a ra um m enino. Porém , não encontram os
nada. A g o ra m eu am igo vive um a vida n orm al, m as desde esse
dia eu m e culpava pelo que se passou. Ao lo n g o dos anos, havia
m e desculpado várias vezes com ele, e ele sem pre m e livrava de
q u alq u er culpa, dizendo que eu nunca deveria carregá-la, o que
po d eria te r me deixado tranqüilo. E n treta n to , não foi isso que se
passou. D e form a repetida, seguia sonhando com aquela ligação
para sua casa e com a voz de sua m ãe me atendendo.
“D epois da sessão de Clown Essencial, tive um sonho m uito
significativo: nele, revivi toda a cena da explosão, até o m om ento
da ligação. N o en tanto, nesse m om ento, não me atendeu a mãe,
com o sem pre ocorria em m eus pesadelos, mas m eu p ró p rio am i­
go, que sim plesm ente me disse: ‘E sto u bem ’. Pela m anhã, des­
p erte i p ro fu n d am en te em ocionado. S entia em m eu corpo um a
g ra n d e liberação e, por fim, a inocência que havia perdido tan to s
anos a n te s”.
M. prossegue: “P ara m im , soa estranho, agora, que eu te­
nha escolhido com o profissão a advocacia, que se dedica a lib erar
culpas e reafirm ar a inocência das pessoas, já que o caso m ais
im p o rta n te que tin h a p a ra reso lv er era o m eu próprio. O de um
m enino que se sente culpado e usa um a m áscara de adulto en­
durecido p ara escondê-lo. A gora, sinto que ganhei o caso m ais
im p o rta n te da m inha vida e m eu cliente pode novam ente brincar
em um a inocência até então inalcançável”.
T ã o im p o rtan te foi esse processo p ara M. que, em segui­
da, p erd eu o in teresse pela advocacia, a qual não lhe dava mais
satisfação, e em nosso en co n tro seg u in te estava buscando uma
nova ocupação. Esses tipos de casos sem pre me soam assustado­
res, p o rq u e ilu stram com o a m ente de uma criança segue cami­
n h ando em nós de m ãos dadas com a consciência do adulto em
d iferentes processos da vida, com o o de escolher um a profissão.
A crescen to que em m ais de um a ocasião tem os descoberto, na in-
fancia dos profissionais de advocacia que foram p articip an tes de
m inhas oficinas, g ra n d e s culpas assum idas p o r acidentes casei­
ros que tiveram conseqüências dram áticas p a ra o u tras crianças
ou fam iliares. A contecim entos pelos quais foram culpados pelos
m ais próxim os. O u eles m esm o se autocondenam , num a deses­
p erad a intenção de p ag a r pelo acontecido. D escobrim os, com as­
som bro, que em m uitos casos o afa de defender, de fazer justiça,
tom ava seu im pulso num profundo sen tim en to de injustiça, de
lim par um a “culpa” pró p ria, num ju lg a m e n to íntim o, arraigado
naquelas d istan tes circunstâncias. Aí, nos subsolos da infância,
foi sem eada um a árvore, que logo cresceu e foi socialm ente m ui­
to bem aceita, e que não deixava de te r em sua selva um am argo
sabor de culpa e de v erg o n h a sofrida em um a te n ra idade.
T iv e um aluno que era, com o profissional, an estesista de u r­
gências. N o tra n sc u rso de nossa exploração, deu-se conta de que
a ra iz da escolha de sua profissão estava tam b ém em sua infância:
q u ando a m o rte levou dele um ser querido, m uito próxim o, ju ro u
a p a rtir daquele m om ento que agora havia um assunto pessoal
e n tre a m o rte e ele, e que iria vencê-la com toda a sua força. O
m esm o aluno m e disse que, sem pre que salvava um a vida em
um a sala de cirurgia, voltava a sentir, m uito além do que uma
satisfação lógica, a aleg ria infantil de tira r da m o rte um a alegria;
e assim seguia h o n ran d o seu pacto secreto.
Porém , se as águas claras da infância são férteis em ex u ­
b eran tes peixes de m il cores, são tam bém águas sensíveis e
profundas, das quais podem su rg ir com facilidade inquietantes
m o n stro s m arinhos. Q uando são abertas ao m ar da im aginação,
fazem -se propícias ao nascim ento de todo tipo de juram entos...
T al com o foi dito an te rio rm e n te no capítulo 4, “A propriedade
do in ú til”, não são poucas as circunstâncias em que essas águas
podem tin g ir-se de um a cor ou o u tra e até, em algum as oca­
siões, convertê-las em redem oinhos escuros nos quais a criança
verá sua liberdade e sua confiança engolidas. N o m eu entender,
a am eaça de “exclusão p o r inadequação” pode ser a pior de to­
das elas. E se esta se faz p re sen te diante de um grupo, com suas

84
g arg alh ad as ou sua cum plicidade silenciosa confirm ando a con­
denação, a situação to rn a -se p io r ainda.
Ao longo dos anos e dos m eus sem inários, ten h o recolhido,
g raças aos particip antes, dezenas de cenas que falam dessas si­
tuações com toda a clareza, alguns anos depois. T en h o observado
que, d e n tre as m ais traum áticas, costum a em g eral in terv ir, além
do “v erd u g o ” (esse adulto que em ite o veredicto) e do m enino ou
da m enina, o u tro elem ento: o g ru p o que, m uitas vezes através do
riso e n o u tras p o r meio do silêncio, ratifica o parecer. Se a cena
se situ a no âm bito escolar, com o ocorre frequentem ente, os risos
irônicos dos com panheiros de colégio ou de o u tro s professores
g rav am ainda m ais p ro fu n d am en te a m ensagem de inadequação,
de m enosprezo, de não m erecim ento. O u tra s vezes, é a própria
fam ília ou os dem ais adultos —com suas brincadeiras ap aren te­
m ente inofensivas e m uito en g raçad as p ara eles m esm os —que
confirm am a queda em d esg raça da criança, sem se d ar co n ta de
que esse g rupo, que deveria ser sinônim o de seg u ran ça e am or
incondicional, to rn a-se am eaçador e indigno de confiança.
A criança ex p erim enta, então, a sensação de um a in ju sta
desvalorização p o r ser diferente, e quase sem pre um a p rofunda
inadequação. T alv ez esta ú ltim a seja a p io r das am eaças, já que
c a rre g a o perig o da exclusão, que p o r sua vez pode ser o mais
terrív e l dos m o n stro s infantis. A ssim o confirm a B e rt H ellin g er
em Felicidade que permanece-, “U m a criança faz de tu d o p ara fazer
p arte. P ertencer, p ara ela, é m ais im p o rtan te que a p ró p ria feli­
cidade e a p ró p ria vida”. E sse assunto é de tal im p o rtân cia que,
em alg u n s casos, se finalm ente alguém escolhe não pertencer,
vai rap id am en te fazer p a rte de um o u tro grupo: o dos excluídos,
que é um clube a mais, e que de algum a form a lhe dá o d ireito de
p e rte n c e r que seu g ru p o de o rigem negou.
N o entanto, na m aioria dos casos, c e rtam en te a criança está
d isp o sta a sacrificar q u alq u er coisa p ara perten cer: alegria, vita­
lidade, espontaneidade, criatividade e, às vezes, está até ag red in ­
do o p ró p rio corpo. Q u an to s têm deixado de rir p ara não ofender
um a m ãe tris te e depressiva? Q uantos têm preferido co n ter sua
v italidade n atu ra l p a ra não aborrecer um pai co n stan tem en te
preocupado? Q uantos têm calado seu canto para não desafinar
com o pesado am biente reinante? P ara não aborrecer, p ara não
fazer som bra a ninguém , e p ara que não haja m ais brigas, grito s,
golpes, am eaças ou m ais injustiças, as crianças aceitam m u rch ar
e b rilh a r m enos. D o m esm o modo, o co rre o inverso: para que
não haja m ais silêncios e m ais tristeza s na m esa de jan tar, alguns
fabricam de bom g ra d o um duende aleg re que logo só saberá
ch o rar às escondidas. Q u an to s têm inventado um a felicidade
m o m entânea com a esperança de co n seg u ir um so rriso no ro sto
adulto deprim ido?
S er diferente leva à verg o n h a de não ser adequado, de não
ser o suficiente, de não m erecer um lu g ar ou um a proteção para
si m esm o, e isso prevalece sobre o p ró p rio sen tim en to e a p ró ­
p ria necessidade. A ssim , afogado e n tre vergonha, im potência,
culpa e raiva, a criança se congela, algo se fixa no tempo.
A contece que, nesses m om entos de profundo im pacto, se
estabelece um a espécie de c o n tra to in te rn o que num erosos tes­
tem u n h o s verbais de particip an tes vêm docum entando: expli­
cam como, antes de te r de pag ar o alto preço da inadequação, a
criança, fiel à disposição de sacrificar o que seja p ara p erten cer
e ser com o os dem ais, enuncia e firm a d e n tro de si um te rrí­
vel co n trato. Cito, em seguida, alguns dos m ais m encionados:
“N in g u ém me ouve; ju ro que não falarei nunca m ais”; “O m undo
não é um lu g ar seguro, não confiarei nunca m ais em nada”; “Se
sou excluído, nunca m ais saberão o que acontece com igo”; “N ão

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há lu g ar p ara mim! Acabou, vou me to rn a r invisível”; “N ão sou
criativo”; “Vão me ver à força”; “S u p o rtarão m inha tris te z a ” etc.
C o n trato s secretos, forçosam ente m utiladores, que com andam a
co n stru ção de um ego doente, astu to e m anipulador.
E p o rq u e a ideia da inadequação pode ser terriv e lm e n te
im p actan te e decisiva na infância é precisam ente esta que, em
Clown Essencial, p rocuram os celebrar. Porque ser palhaço é ju s ­
tam en te b rilh a r diante do m undo a p a rtir da p ró p ria inadequa­
ção social, física ou intelectual. E a generosidade de fazer rir
nosso público com nossos problem as, de m ostrar, com os braços
abertos, o que aprendem os a esconder. Porém , quando a pessoa
consegue finalm ente ex p o r-se diante de seu público, p ro teg id a
p o r essa m áscara tão verm elha q u an to o p ró p rio coração, e n tre ­
gando no palco a loucura que sai de dentro, sabendo que não será
ju lg ad a nem tran sg red id a, sua dignidade é devolvida à sua m e­
nina ou m enino interior. E as claras e sonoras g arg alh ad as dos
com panheiros, que agora recebem e celebram as inadequações
do adulto, dissolvem aquelas trapaças que em brutecem a ino­
cência, silenciam aquelas vozes condenatórias dos inquisidores
trib u n ais da infância.
Aí su rg e nosso m enino, nossa m enina, que segue aqui, vi­
g en te em sua totalidade. N o tra n sc u rso das dinâm icas em pre­
gadas em Clown Essencial, posso p e rg u n ta r ao g rupo, enq u an to
um a pessoa fala: "Q uantos anos tem a criança que está aí?”. S ur­
p reen d en tem en te, o g ru p o em ite em geral um a opinião com um :
“Cinco, seis anos”, ou talvez, num o u tro caso, “D ez, doze anos”.
C aso p e rg u n te se oco rreu algo de im portância riessa etap a da
vida, quase sem pre a resp o sta da pessoa é “Sim ”. A parecem de
im ediato situações que, em seu m om ento e de algum a form a,
m arcaram : divórcio dos pais, m udanças, m o rtes ou separações,
longos períodos de in ternações hospitalares etc. T u d o acontece

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com o se, 20, 30, 40 anos m ais tarde, a vida seguisse com essa
circu n stância aparecendo facilm ente, com o um a m arca na casca
de Lima árvore ou um a velha ferida mal cicatrizada. A lgo se m an­
teve fixado no olhar, um a m ensagem no corpo ficou selada, um a
atitu d e tom ou form a, fazendo com que ainda sigam os colocando
os sinais de algum a p re m a tu ra reação a um a situação m al vivida.
Com o conclusão, e n tre g o ao leito r um com ovente relato de
um a p artic ip a n te de Clown Essencial que, depois de e n tra r em
co n tato com sua m enina in terio r através de um relaxam ento
guiado, decidiu c o m p artilh ar um antigo sonho de sua infância.
Penso que ilu stra com força e poesia a su sten tação e reparação
que o diálogo e n tre a psique adulta e o arquétipo do m enino in­
te rio r estabelecem .
“U m a viagem de volta no tem po m e levou ao cam inho ag ri-
doce que se abria em m inhas recordações. A ndava por ele p er­
cebendo seus cheiros, sentindo o golpe da raiva e da fru stra n te
sensação de culpa de alguém que não sabia quem era, andando,
não sabia p o r onde. Ria, revivendo aleg rias e doçuras de en­
co n tro de vital inocência. C heguei à m inha casa e a m enina que
m e recebeu estava tão viva, tão decididam ente bonita, com suas
tran ças m eio desfeitas e seu sorriso sem dentes... Segui a m inha
preciosa m enina sem tro c a r palavras até seu quarto, seu refúgio.
S entam os na cam a, m uito ju n tin h as. E la estava serena, ab e rta a
esse m undo que não deixava de assom brá-la, um m undo que eu
im aginava sem luz e cor, e que ela coloria com sua aceitação, com
a essencial aleg ria que tran sfo rm av a sua solidão num im aginário
piquenique no campo.
“M inha m enina esbanjava vida, m inha m enina ria. E la me
p erg u n to u : ‘O que tem feito com m eus sonhos?’. E ntão, o tem ­
po parou... ‘Q ue ten h o feito com seus sonhos, m inha preciosa
criança? Q uase não m e recordo deles! E stão en te rra d o s em um a
opacidade asfixiante, óxidos insossos os cobrem e é tão pesado
o fardo que pareço um co rcu n d a’. A m enina se levantou e pegou
sua caixinha de tesouros, abrindo-a: ‘T om a - disse-se —, é um
p re sen te p ara ti’, e colocou na m inha mão um nariz de palhaço.
A com panhou-m e até a p o rta e m e ofereceu seu im enso sorriso.
Voltei pelo cam inho da m inha vida ap ertan d o esse m inúsculo
p o n to de apoio, essa en o rm e possibilidade de m udança. E u a ou­
via dizer: ‘Ria de você m esm a, ame, viva!’.
"Foi en tão que decidi p re sen tear-m e com urn velho sonho
que agitava m inha m em ória de m enina: ver um a au ro ra boreal.
0 desejo era tão fo rte que já desde o princípio da viagem falava
baixinho p ara m im m esm a do m eu desejo, dando corpo, com mi­
nhas palavras, à esperança de sua visão...
“Branco, era tu d o branco. Q uilôm etros de b ra n cu ra su r­
preen d iam m eus olhos e alargavam m eu espírito, devolvendo-lhe
um a paz antiga. O silêncio envolvia tudo, a m inha com panheira
de viagem e a mim; nos envolvia um recolhim ento im p reg n a­
do pela presen ça de um te rritó rio nevado onde tu d o se calava e
falava ao m esm o tem po. Os sam is nos recebiam com so rriso s e
olhares quentes, calor hum ano em um te rritó rio gelado. Escuro,
tu d o era escuro. U m a noite sem lua e cheia de estrelas d istan tes
se esten d ia até onde alcançava a vista. Foi então que revontuli1
com eçou sua dança celeste. Verde, brilh an te e m ovediça, oferecia
m il form as que se refletiam em nossas pupilas. Silêncio, um g rito
de em oção e um espanto reverenciai diante de sua beleza. O co­
ração m e estalava de co n ten ta m e n to e m inha m enina ria às g ar­
galhadas. M eu corpo de m ulher dançou levado pelo m ovim ento
da au ro ra; m inha aleg ria de m enina fixou a au ro ra em m inhas

1 N. do T. Revontuli é a palavra finlandesa que define a aurora boreal. Vem de uma lenda
e significa, ao pé da letra, o fogo da raposa. Segundo a lenda, a cauda das raposas que cor­
riam pelas montanhas batia contra os montes de neve, e as faíscas surgidas daí refletiam
no céu, formando a aurora boreal.
pupilas e, quando fecho os olhos, vejo sua dança interm inável
que alim enta m eu cam inho de m ulher adulta.
“A inda agora ouço estas palavras: ‘R ia de você m esm a, ame,
viva!’”.

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C A P ÍT U L O 9

0 E G O EM J OGO

Quem superou seu apego ao ego atravessa uma e outra vez os


limites do mundo, e entra e sai do dragão como um rei que
perambula pelos aposentos de seu palácio.
J o seph C a m pbell,
Encontro com a sombra

N ão podem os m udar o que passou. Porém , podem os con­


s e rta r n o ssa visão do que ficou: d izer o não dito, concluir o não
concluído, rev elar o escondido, lib era r o que foi silenciado e re ­
c o n s tru ir a p a rtir de nossa p o derosa e in tu itiv a criatividade de
adu lto s o que foi su p o rtad o com silencioso sofrim ento p o r nos­
sas alm as infantis, m uito m ais indefesas. Podem os re d esen h a r os
co n to rn o s e o colorido, reescrever os diálogos ou d eix ar ren as­
cer os g estos; podem os, de algum a m aneira, re in v e n tar o final da
novela e dessa form a nos ap ro p riarm o s de nosso passado num a
p ro fu n d a aceitação, em um a in teg ra ção curativa que tra r á alívio
e co n fo rto ao nosso coração. T ra ta -s e de colocar toda a nossa
consciência e o nosso conhecim ento de adultos a serviço da cura
das feridas que, naquele m om ento, d eixaram em nosso in terio r
as d o lorosas experiências da infancia. P or m inha p ró p ria expe­
riência, esse m ovim ento, ainda que seja longo e necessite de uma
paciência segura, não deixa de ser um a das m aiores alegrias no
p rocesso de autoconhecim ento, e concede, a quem o ex p erim en ­
ta, um a doce plenitude, algo assim com o um “d escansar em p az”,
porém , sem te r sido necessário m o rre r antes p ara g o za r de tal
privilégio. É preciso coragem e fé p a ra afro n tar essa viagem ,
m as não são poucos os que sentem um a necessidade profunda
de re alizar esse p artic u la r C am inho de Santiago in tern o , sendo

91
n u m ero sos os relatos e testem unhos que, p ara d ar fé, poderia
descrever aqui. T odos tra ria m ao leitor, sem nenhum a dúvida,
novos elem entos de com preensão sobre a contribuição tra n s ­
fo rm ad o ra que, nesse sentido, tra z a p erspectiva do enfoque do
Clown Essencial.
Se m eu trab alh o tem desenvolvido algo len tam en te ao lon­
go de vários anos e de diferentes lug ares nos quais ten h o sido
convidado a expô-lo, um dos m ais im p o rtan tes é, sem dúvida, o
P ro g ra m a SAT do dr. C láudio N aranjo. N esse m étodo intensi­
vo que une m editação, eneagram a, T erap ia G e sta lt e o u tras téc­
nicas corporais e de exploração da consciência, esse incansável
pesq u isador introduziu, faz tem po, as fe rram e n ta s da re p resen ­
tação com fins terap êu tico s em suas várias facetas: teatro, m ás­
caras, clown etc. N esse con ju n to de perspectivas, verdadeiro co­
quetel explosivo p ara o ego, que se realiza em vários países dos
cinco co ntinentes, o su p o rte vital de Clown Essencial tem sido
som ado às técnicas já em pregadas com o um a eficaz fe rram en ta
p a ra acessar a neurose, buscando seu p erd ão a p a rtir de um a
irre v e re n te e tragicôm ica celebração da própria.
A ssim me p ontuou um dia um participante: “O clown é um
aten tad o co n tra o ego, algo que não se pode a n o ta r em um a ca­
d e rn e ta ”.
T ra n scre v o a continuação dos relatos que m e parecem mais
ilu strativ o s da desidentificação do ego que se pode conseguir
com essa proposta. O p rim eiro pertence a um a particip an te para
a qual, segundo o m étodo de autoconhecim ento do eneagram a,
o m edo constitui o assu n to cen tral de seu caráter. E la relata a
experiência que viveu em um a sessão de Clozvn Essencial, d en tro
do P ro g ra m a SAT.
N esse dia, a p ro p o sta consistia na representação, a p a rtir do
clown, de um tem a de abordagem difícil, elaborando num palco

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um q u ad ro em m ovim ento no qual os diferentes elem entos inte­
rag em e n tre si, a p a rtir da criação do m esm o até sua resolução.
N esse caso, os p articip an tes elegeram com o tem a a re p re se n ta r
“a am eaça”. U m tem a que, à p rim eira vista — só até aí —, p are­
ce de m en o r p rep o nderância em nossas -vidas adultas e que é,
em geral, um assu n to c e n tral em nossa infância. A p articipante,
com cerca de 30 anos, a qual cham arem os de Ana, p ara resp eitar
sua intim idade, escolheu re p re se n ta r um aspecto da am eaça, em
g eral p róxim o dela: o castigo. E la in terp re taria, pois, a p a rtir
seu p ró p rio sen tim en to e em to ta l liberdade, p ro teg id a apenas
p o r seu pequeno nariz de clown, a am eaça do castigo. E ste é seu
testem unho:
“Ao a d e n tra r o espaço cênico, en trei no papel com g rito s,
acom panhados de m ão acusadora e ju stic e ira que apontava p ara
o a r e am eaçava m eus com panheiros: ‘Vai ficar sem sair!’, ‘Já p ra
cam a e sem com er!’, ‘D e castigo p ro quarto!’, ‘Você não vai com
a gente!’, ‘Vai ficar sem férias!’, ‘T á de castigo!’.
“Pouco a pouco, foi aparecendo em m im a im agem de um a
no ite em que, com o em m uitas outras, tin h a m edo de ir p a ra a
cama, te rro re s n o turnos. Im aginava com vivacidade v er vários
m o n stro s que vigiavam na escuridão do meu q u a rto quando to­
dos dorm iam . Estavarn debaixo de m inha cama, no chão, em vol­
ta de mim... E u m e cobria até a cabeça, m o rta de m edo, encolhida
e sem atre v er a m over-m e ou a re sp ira r forte. E ra insuportável
para m im s u s te n ta r essa sensação d e perigo. D o rm ia com m inha
irm ã, três anos m ais velha, m as quando ela se deitava e apagava
a luz eu sen tia que estava à m ercê de todo esse im aginário de
fan tasm as e seres abom ináveis. Q uando em algum as n oites eu
já não podia m ais aguentar, cham ava m inha mãe, sem lev an tar
m u ito a voz, ch o ran do e pedindo que viesse. N ão q u eria desp er­
ta r n inguém , m as às vezes não suportava o medo. Pedia água ou

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um a ida ao banheiro várias vezes na m esm a noite, p ara com pro­
v ar que não estava sozinha diante do perigo. U m a vez esgotado
to d o esse arsenal de desculpas, pedia p a ra que m am ãe se deitasse
em m inha cam a até que eu dorm isse.
“A noite em qu estão ocorreu num a época em que m eu pai
trab alh av a m uito e se levantava cedo. Eu, envolvida na m esm a
dinâm ica de pânico, de suores, encolhida e chegando a ver os
m o n stro s, inclusive ouvi-los re sp ira r a m eu lado, comecei a cha­
m a r m inha m ãe com voz trêm ula, desesperada, com o nas o u tras
noites. Ouvi com o m inha m ãe acendia a luz e discutia um pouco
com m eu pai, m as veio m e v er e m e acalm ei um pouco. D eixou a
luz do co rred o r acesa e voltou à sua cam a p ara dorm ir. O pânico
ia aum entando, e eu continuava sem coragem p ara m e mover;
p ara piorar, não podia sair da cam a (o chão era o lu g ar m ais
vulnerável e perigoso), trem en d o e chorando debaixo do cober­
tor. N ão queria ch am ar de novo, pois m e sentia culpada de não
d eix ar m inha m ãe descansar; en tre tan to , quando ficou insupor­
tável, eu a cham ei de novo.
“Ouvi os p ro te sto s e os g rito s de m eu pai, que se levantou
furioso e g rito u do c o rre d o r com voz m uito dura: ‘O que foi?’,
ele b errou. A única coisa que consegui dizer foi: ‘E que eu tenho
m edo’. N esse m om ento, ele veio até m im com o um b ru tam o n tes
e m e deu dois tapas n a bunda, com m uita força, com o se estivesse
possuído pela raiva, en q u a n to gritava: 'E ssa loucura vai acabar
agora!’. E m seguida, apagou todas as luzes (m inha única espe­
ran ça p ara m a n te r um pouco afastados os m o n stro s) e fechou as
portas.
“Pensei que enlouquecia. M eu pai n u n ca tin h a me batido,
nem antes nem depois dessa noite; sem pre o considerei m eu ído­
lo, pois me dava seg u ran ça e m e encantava e sta r com ele; cari­
nhoso, ainda que m uito ocupado com o trab alh o ; adorável e con­

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fiável. Ao m e b ater e m e d eix ar sozinha, senti-m e abandonada,
in adequada p o r aborrecer, in seg u ra em seu am or e, sobretudo,
em perigo, co m pletam ente sozinha diante dos m onstros. Além
disso, a culpa de não poder su p e ra r a situação, de não poder d o r­
m ir com o todo m undo, de não p o d er m e sobressair.
“T am b ém não podia m ais c o n ta r com m inha m ãe, já que
soube de im ediato que ela não iria desobedecer m eu pai diante
de sua decisão de não me p ro te g e r mais.
“Ao recordar, ainda agora, vem a m im um nó na g arg an ta,
invade-m e um m edo irracional e sin to que me encolho. S into no
peito algo que m e re to rce e m e faz pequena. T alvez seja o medo,
a culpa, a insegurança, não sei, pois m e custa identificar clara­
m en te as emoções, m as essa sensação me cansa. N ão sei com o
fui capaz de sobreviver a essa noite. Foi p ara m im a traição das
pessoas em que mais confiava nesse m undo: m eu pai com força
e ju stiç a e m inha m ãe com o cuidadora que sem pre me pro teg ia.
S enti q ue não iam nunca m ais e sta r ao m eu lado. A im agem de
ap agar a luz do co rred o r e fechar a p o rta se fixou em m im como
sím bolo de seu abandono.
“E n tão, ouvi e vi os m o n stro s, senti m overem -se debaixo da
m inha cama, crescidos, com p o d er e to ta l im punidade, na escuri­
dão. Suponho que, quando já não conseguia m ais chorar, acabei
dorm indo.
“Ao re p re s e n ta r esse dia — o e le m e n to da am eaça de cas­
tig o - , e n q u a n to ia e n tra n d o cada vez m ais n esse papel, de
re p e n te se ap o d e ro u de m im o velh o pânico, essa sen sação de
p e rig o im in e n te e de d esespero.
“Fiquei paralisada, agachei trem endo, com os braços escon­
didos sobre o peito, os punhos cerrados, os olhos fechados, cho­
ra n d o d esesperadam ente, possuída pelo medo.

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“Voltei a me se n tir aquela m enina frágil, abandonada, so­
zinha, sem recursos de defesa e em um a espiral de pânico cada
vez maior. Pensei que fosse desm aiar. As p ern as quase não me
susten tavam , o p ra n to era cada vez m ais desesperado, respirava
com dificuldade, suava, estava to n ta e era incapaz de pedir aju­
da. A té que, e n tre os com panheiros, m ilag ro sam en te surgiu uma
pessoa que, p o r sua vez, estava in terp re ta n d o o u tro elem ento do
quadro. E la me abraçou e m e su sten to u com seu corpo.
“Senti um resg ate dessa situação in sustentável, das g a rra s
do pânico. Com o quando m inha m ãe vinha d u ra n te as noites na
m inha infância. Fui m e acalm ando pouco a pouco, e pude v o ltar
a re sp ira r com m ais norm alidade, to m an d o consciência de onde
estava; fui deixando de trem er. D u ra n te esse estado de transe,
aconteceram m ais coisas ao m eu redor, das quais não m e ha­
via percebido, e todo o quadro estava ag o ra em plena evolução:
a som bra da am eaça, re p resen tad a p o r um com panheiro m uito
alto e corpulento, tin h a tom ado conta da sala, g rita n d o violenta­
m ente c o n tra os dem ais. T odos o rodearam e, não sei como, aca­
b aram - sim bolicam ente - m atando-o no m om ento em que eu
estava em m eu processo de acalm ar-m e e de re to m a r m eu con­
trole. C om eçou nesse in sta n te um ritual, o de e n te rra r a som bra
da am eaça, ag o ra d erro tad a, m o rta no chão, vencida. Jogaram
sobre ele água, lixo, papel; esfarelaram bolachas sobre seu corpo,
todos em círculo ao seu redor. Os dem ais foram re g ressan d o ao
n o rm al e sen taram -se em volta do m orto. M as eu não conseguia
m e mover. Fiquei p arad a ali, com o um a criança de 6 anos, sem
p o d er desviar m eus olhos do corpo sep u ltad o debaixo daquele
m o n te de escom bros, sem poder sair dali sozinha, encolhida, m as
em pé. S entia-m e presa p o r essa figura, e incapaz de fazer o u tra
coisa senão vigiar, p ara v er se se m overia, se iria ressurgir, se
iria re g re s sa r para me buscar. Alain viu que eu não poderia sair

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p o r m ini m esm a dessa situação, ancorada na m enina em perigo,
sozinha, abandonada e sem recursos, p aralisada p ara continuar,
em choque. Veio até mim, deu-m e um a arm a poderosa: um a lan­
ça — na verdade, não era m ais que um rolo feito com papel de
em brulho. M as, então, aconteceu a m agia.'
“N ão lem bro ex atam en te as palavras que ele usou, porém ,
fizeram com que eu recuperasse m inha força, m eu poder, e as­
sum isse na cena o m eu novo papel, o qual surgiu nesse preciso
m om ento: o de guardiã. Bela, forte, poderosa. N otei com o m eu
corpo m udava, de m enina desesperada e assustada, to rn ei-m e a
m u lh er com p o rte de lu tad o ra, com potência, com segurança.
A lgo p erm itiu , em m eu interior, que m eus om bros se lev an tas­
sem p a ra erg u e r m inha cabeça e m inha espada, e to m a r cons­
ciência de todo o m eu corpo, bem su sten tad o sobre m inhas p e r­
nas. Senti o espaço ao m eu redor, comecei a ver a luz que en tra v a
pelas co rtin as, m inha a ltu ra em relação, à sala, tom ei consciência
de m im e de tudo o mais. S u ste n tan d o m inha lança, pois era ne­
cessário seg u rá-la com as duas mãos, com a certeza de que não
p erm itiria que nenhum perigo m e vencesse, vigiava de p e rto a
tu m b a da som bra da ameaça. N ão deixaria nunca m ais que ela
me vencesse. Senti que esse era m eu papel, que poderia fazê-lo,
não era difícil; seria a guardiã da am eaça, atenta, o rg u lh o sa, for­
te, garbosa, g ran d e, sem medo.
“M eus com panheiros lev an taram o olhar, sentados no chão;
vi sua adm iração e ao m esm o tem po sua tran q ü ilid ad e ao me
olharem . Senti que alguns m e olhavam com novos olhos, com o
se m e descobrissem pela p rim eira vez. Tom ei um com panheiro
pela cin tu ra p a ra d ar-lhe o m esm o apoio e segurança, pois sen­
tia em m eu in terio r um a calm a e um a força inesgotáveis. E ali
perm anecem os ju n to s, com o poder, com o o lhar desafiante para
a tum ba, po rém móveis, capazes, donos de nós, acim a do medo...

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“Hoje, as palavras que disse Alain fazem re s su rg ir de novo
esse po d er em mim: “Bela, poderosa, guardiã, digna, m enina p re­
ciosa!”.

Parece-m e que se en c o n tram nesse relato todos os in g re ­


d ien tes necessários p a ra e n ten d e r com o a psique de nossa crian­
ça interior, com sua desm edida sensibilidade e suas velhas feri­
das abertas, ainda tom am as rédeas de nossos com p o rtam en to s
adultos, eclipsando n ossa consciência e p riv an d o -n o s de um a sã
independência até de nós m esm os. Ela im pede que tenham os au­
to n o m ia de ação e decisão, p ara nos d eixar sim plesm ente anco­
rados num velho autom atism o, obsoleto e estreito. D ian te disso,
não me cabe a m enor dúvida de que o nariz de clown dá, quando
v este de ingenuidade a todos os que o experim entam , um a p ro ­
teção eficaz p ara tra n s ita r p o r esses delicados territó rio s, sem
se ap eg ar às emoções, sem d eix ar que o d ra m a nem qualquer
o u tra em oção nos engula, e sem p erd er de vista esse lu g ar in­
tern o , neutro, im perturbável, que so rri de tu d o e nos devolve a
liberdade.
P ara com plem entar a ilustração desse fenôm eno, tenho
aqui, novam ente, um tex to escrito p o r o u tra p articip an te do
P ro g ra m a SAT —nós a cham arem os Elena; nesse caso, é a inveja
o m o to r cen tral de seu caráter.
“A té o exercício de clown no SAT, eu considerava que a in­
veja era um a paixão que m e dom inava. E ra o m ais nuclear em
m eu caráter, e eu pouco podia fazer, exceto vê-la, to m ar cons­
ciência dela em m eu dia a dia. N o entanto, A lain nos propôs que,
d esta vez, tom aríam os as rédeas do assu n to e ocuparíam os um
lu g ar diferente. D esta vez, decidiríam os como, quando e onde

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nos deixaríam os d esfru tar de nossas paixões. N a ocasião, não
seriam os sim ples m arionetes m ovidas p o r um a paixão cega e
tom aríam o s co n ta do lu g ar que, na verdade, nos correspondia:
o de d ireto re s da cena. E u fiquei p o r um m om ento em silêncio
e evoquei essa sensação tão conhecida p ara mim. T ro u x e à m e­
m ória to d as as ocasiões em que invejava os que convivem co­
m igo e tam bém o ódio posterior, quando sinto que, diante eles,
sem pre saio perdendo. D eixei-m e ocupar conscientem ente por
essa sensação e, então, dei-lhe m inha voz, dei- lhe m inha força.
E m poucos segundos eu já estava cam inhando e n tre os demais,
m ostran d o -lh es, com rabo de olho, m inha raiva, m inha profun­
da sensação de carência. Eu lhes cham ava aos g rito s, com os
pu n h o s m u ito ap ertados e a im pressão de ser um cão raivoso e
doente. Fiquei assim , m ovendo-m e pela sala d u ra n te alguns mi­
nu to s e, de repente, A lain in terro m p e u o exercício. D etive-m e,
parada. E n co n trav a-m e exausta, com a respiração en tre co rtad a ,
e apenas podia me su ste n ta r em pé. Foi então que vi claram ente:
aquela inveja que me dom inava co n stan tem en te não era eu. Ela
se alim entava da m inha força e da m inha voz, do m eu tem po e
das m inhas células; ela era quem se identificava com igo. D e fato,
eu era o u tra. Eu era a que havia decidido d ar-lh e m inhas costas
d u ra n te esses m inutos de duração do exercício e, então, com a
respiração en tre c o rta d a e quase sem ar p ara respirar, parecia vê
-la d ian te de mim, enorm e, feita de fum aça e de espanto, olhando
d ireta m e n te nos m eus olhos, com o ro sto tris te de um g u erreiro
sem m áscara”.
Se essas experiências podem parecer, em um prim eiro m o­
m ento, b astan te diferentes de q u alq u er experiência que nos faça
rir de nós m esm os, é porque o h u m o r de Clown Essencial não é
um h u m o r que esconde, e sim um h u m o r que vê e, p o rq u e vê,
se ri. E rindo-se, segue p erg u n ta n d o na busca da paz in tern a ,

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sem d eix ar nada que e n c o n tra pelo cam inho, sabendo que a cura
só pode v ir de um processo tão consciente q u an to com passivo,
com o ver e o reconhecer o que realm en te som os p o r dentro. De
C láudio N aran jo escutei essa frase, que m e foi m uito im pactante,
sem ainda saber com ce rteza se lhe devo a trib u ir sua autoria: “A
p o rta do paraíso só se abre p o r d en tro ”.
E se um dos principais benefícios da m editação é o de nos
levar a to m ar distância de nós m esm os, fazendo-nos desaparecer
desde dentro, esse é tam bém o p ro p ó sito que busca alcançar o
Clown Essencial, porém , p o r sua vez, fazendo-nos su rg ir até aqui
fora, p ro teg id o s p o r um a pequena m áscara verm elha. C onsidero
que nos d esapegarm os de nós m esm os e p o d er rir da dependên­
cia de nossos p ró p rio s m o n stro s é um considerável propósito
que, sem d eixar dúvidas, o nariz de clozvn p erm ite realizar com
um a ex tra o rd in á ria m escla de profundidade e ligeireza.
O hu m or de Clozvn Essencial se parece com o am or; em bora
se assem elhe, a princípio, com um m ovim ento p ara fora, não tem
de fato fundam ento nem verdade se não nasce da pessoa p ara ela
própria. No en tan to , essa é um a longa tarefa, tal com o me ensi­
nou um dia um lam a com um a só palavra. Sabendo que ele fora
convidado a assistir a um a sessão de Clozvn Essencial d u ra n te o
P ro g ra m a SAT do B rasil, o Lam a Sunam - assim ele se cham a
- aceitou o convite de bom g ra d o e pôde p re sen ciar várias dinâ­
micas de trabalho, em especial um a im provisação realizada em
um fundo espiritual dionisíaco p o r três hom ens do grupo, p ro ­
vidos de seus narizes verm elhos de clown. D evo salien tar que o
trab alh o desses p articip an tes foi intenso, alte rn a n d o m om entos
m ais su rreais do que se p ossa im aginar e o u tro s de um patetism o
p ro fu n d am ente hum ano, inclusive, m ais p ro p ria m e n te m asculi­
no. Enfim , foi um trab a lh o bonito, um a vez que foi côm ico e tra ­
g icam ente com ovedor, p a ra g ra n d e p ra z e r do Lam a Sunam , que

100
havia assistido, com um aten to estado de co n ten ta m e n to pon­
tu ado p o r um as sonoras gargalhadas, toda a evolução daqueles
p o bres hom ens.
Ao finalizar a im provisação, p erg u n tei se ele g o sta ria de fa­
zer um com entário sobre o que acabava de contem plar. A ceitou,
encantado; porém , em bora eu esperasse dele g ra n d es frases so­
bre a com paixão do buda ou a delicadeza da flor de lótus, em um a
m etáfora sublim em ente bela e espiritual, ele os olhou fixam ente
e lançou no ar uma só palavra seguida de um a larga, sonora e
v ib ra n te gargalhada: “Paciência!”, exclam ou Lam a Sunam , dei-
x an d o -n o s a todos boquiabertos...
Sem se m o s tra r em absoluto im pressionado pelo que acaba­
ra de ver, em um a só palavra ele havia resum ido p o r com pleto!
Sem atrib u ir valor, sem pontuar, a p a rtir do respeito e da clarivi­
dência de quem enxerga m ais além e entende o espírito hum ano,
a busca de p lenitude e das lim itações hum anas.
D esde então, aquela frase —“Paciência, disse o lam a” —rea­
p arece am iúde no espaço de Clown Essencial, com o uma espé­
cie de koan2 tão d esco n certan te qu an to alentador, que consola a
uns e o u tro s em d eterm inados m om entos de sua g u e rra co n tra
o ego, e recorda-nos um a sábia lição que, um dia, um lam a deu a
três palhaços em busca da felicidade e ao seu terapeuta.

2 N. do T.: Koan é uma narrativa, diálogo, charada ou afirmação usada no zen budismo e
que traz em si aspectos não racionais. O koan tem como objetivo propiciar uma ilumina­
ção espiritual do praticante do budismo.
C A P ÍT U L O 1 0

0 CORPO GENEALÓGICO

Som os um livro aberto. Só tem os que reconhecer o tex to


que o com põe e decifrar as palavras inscritas em nossa m uscu­
latu ra, em nossa m aneira de andar, nossa energia corporal, na
inten sid ad e de nosso olhar, em nossa m aneira de v ira r a cabeça
para um lado ou o queixo p a ra o alto, de cu rv ar nossas costas
ou no som de nossos passos... N ossa história está g ra v ad a em
nosso corpo, com o bem sabem os desde m uito tem po. Porém ,
m uito su rp reen d en tem en te, se lhe prestam os a devida atenção,
descobrirem os que aí está tam bém re g istra d a, em filigranas, a
saga familiar. P or exem plo, no que se refere a algum as profissões
especialm ente, com o m ilitares, artistas, religiosos, açougueiros,
juizes ou cam poneses, a acontecim entos dolorosos, com o graves
enferm idades ou lutos, e tam bém a circunstâncias específicas da
família, com o separações, pessoas com deficiência tísica, com de­
pressão ou distú rb io s m entais...
D u ra n te anos, observei o fenôm eno e o fui docum entando
através dos com entários dos p articipantes, em m inhas oficinas,
to m an d o n o ta de alguns casos realm en te assom brosos, porém ,
sem co n seg u ir decifrar alguns códigos de tão sin g u lar feitio.
Apenas m ais recentem ente, depois de um a sessão de trab alh o
com um g ru p o em B rasília, seus m ecanism os se fizeram m ais
claros p ara mim.
P ara p o d er explicar isso m elhor, é necessário fazer algum as
pontuações acerca de um a técnica que utilizo em Clown Essen­
cial: a representação em casais de nossos p ró p rio s personagens
a p a r tir de um a ab e rtu ra, e n tre g a e não ju lg a m e n to por p arte
das pessoas. Ou seja: um a pessoa se põe a serviço de o utra, ha-
vendo-se escolhido m u tu am en te antes. A p a r tir desse m om ento,
um a se to rn a rá in té rp re te da ou tra, confiando em sua intuição
e qualidades criativas p a ra representá-la. Ao m esm o tem po que
sua ilu stração dará a seu modelo urna valiosa inform ação sobre
a percepção que o m undo pode te r dele ou dela, o in térp rete,
p o r sua vez, usa esse tra b a lh o p ara si, ex p lo ran d o -se a si m es­
mo, aproveitando a o p o rtu n id ad e de criação p a ra ir m ais além de
seus lim ites expressivos cotidianos. C o n sid erar o o u tro em sua
dim ensão de p erso n ag em dram ático e re p resen tá -lo dá, tam bém ,
à pessoa, a capacidade de falar de si m esm a n este espaço onde
há proteção. D a m esm a form a, o outro, encarnando-m e, poderá
talvez d izer o que eu não m e atrevo a d eixar de ver, a revelar o
que m eu p u d o r não m e p erm ite ex p ressar ab ertam ente. Se num a
colaboração do T ea tro da R em iniscência, de J. P. Klein, consiste
a rep resen tação do eu pelo outro, em Clown Essencial se dá a
o p o rtu n id ade, pela p rim eira vez, de que o eu seja rep resen tad o
p o r um palhaço, esse ser to rp e e infiel à realidade, porém , am igo
ín tim o do m istério do não dito.
In co rp o ran d o a essa base de trabalho um a técnica corporal
específica, que não descreverei aqui p ara não e n tra r em conside­
rações talvez dem asiadam ente técnicas, in stig o os p articipantes
a re p re s e n ta r a pessoa que escolheram com o m odelo, em um pas­
seio que envolve desde sua aparência n orm al até o ser bufao que
todos carregam os. E ssa exploração ca rre g a consigo um a inevi­
tável p a rte de projeção (porque evidentem ente eu não sou você),

104
que acaba aceita de antem ão p o r am bas as p artes e que ra ra m e n ­
te em pobrece a obtenção de alguns assom brosos resultados.
E m b o ra seja verdade que em m eu corpo esteja escrita com
evidência a m inha p ró p ria vida, certam en te figuram , p o r sua vez
e de m an eira cam uflada, m uitas passagens-da epopeia familiar. A
h istó ria à qual pertenço, e que às vezes me pesa m uito, e à qual
sigo serv in d o de algum a m aneira im plícita. P or isso, eu não pos­
so d ar to talm e n te vida aos perso n ag en s ou acontecim entos que
se escondem d en tro de m im, já que, ao fazê-lo, sairiam flutuando
laços de referências não n ecessariam ente adm itidos. D e algum a
form a, m inha le a ld a d e - p o r o u tro lado legítim a (cf. o capítulo “A
p ro p ried ad e do in ú til”) —faz-m e presa da história.
N o en tan to , a pessoa que m e re p resen ta não tem esse peso;
ela está livre onde eu tenho lim itações, pode falar onde eu prefiro
calar, pode d eixar o m ovim ento livre onde eu aprendi a sufocá-lo,
d ar voz à ten são dos m eus m úsculos, so ltar a energia onde eu
a quero d o m ar 011 d eixar su rg ir a rebelião subjacente onde eu
p reserv o um a form a socialm ente aceitável.
D essa m aneira, ela pode, deixando-se g uiar p o r sua própria
expressividade, d ar livre curso ao m ovim ento que se esconde em
mim, d eix ar vir, à luz do dia, o que só escuto nos m u rm ú rio s de
m inha intim idade. P ro g ressiv am en te, d u ra n te sua re p resen ta­
ção, m eu com panheiro to rn a m ais largos os gestos pró p rio s de
m eus m ovim entos, estendendo-os em toda a sua am plitude, acen­
tu an d o m inha rigidez 011 ex a g eran d o a curva de m inhas costas.
T alvez deixe seu o lh ar p erd er-se com pletam ente no horizonte;
pode ser que ten sio ne ainda m ais m eus braços ou que deixe cair
de todo o peso dos m eus passos, p erm itin d o que apareça diante
de m eus pró p rio s olhos um ser certam en te deform ado, porém ,
em que posso reconhecer facilm ente m inhas loucuras m ais se­
cretas. A parece, então, na superfície, um m aterial escondido que
ap o n ta m inha fidelidade a um m em bro da fam ília com um a p ro ­
fissão particular, ou a um a d o r m uito g ran d e, ou à presença na
fam ília de uma pessoa com um destino especial, ou à vivência de
um a situação p a rtic u la rm e n te im pactante. A ssim , nasce diante
de nós, com o a esc u ltu ra que len tam en te su rg e de um bloco de
p ed ra b ru ta, a m arca de uns antigos laços que seguem sendo
p a rte de m inha tram a adidta.
A queles que deixaram aí sua im pressão são, m uitas vezes,
fam iliares um pouco m ais afastados da criança que os próprios
pais, que estavam com ela a um a distância suficiente p ara que se
sen tisse livre p a ra recolher ou não o encargo, quase sem perce­
b er o convite. M as, apesar disso, d epositaram nela sua história, e
a criança captou seu perfum e. D e algum a form a, deixaram um a
n o ta escrita sobre um m óvel e a criança sim plesm ente a reco­
lheu.
T alvez algum m em bro da família de o lh ar bondoso e so rriso
d iscreto tenha deixado assim seu legado, sem p ed ir nada em tro ­
ca, p o rq u e sabe que os olhos que lhe veem são aten to s e, as o re­
lhas que lhe escutam , sensíveis. A lgo se tra n sm ite no silêncio da
presença, no eco da voz escutada. Assim , pode-se v er quando em
um a fam ília há artistas, ou sim plesm ente pessoas de sensibilida­
de artística, sem chegar forçosam ente a fazer disso seu principal
trabalho. Fossem pintores, poetas ou músicos, esses sonhadores
d eix aram a im pressão de sua fantasia em nossos sentidos. Fos­
sem ju izes ou carcereiros, d eixaram em nós a san ta in teg rid ad e
da fro n te ira e n tre o que está certo e o que e s tá errado. Fossem
hom ens ou m ulheres do cam po, com sua peleja em te rra firm e
e am anheceres trabalhosos, sem earam em nós ce rto o lhar claro
que ainda en x erg a no h o rizo n te o am or à boa colheita. São avós
ou avôs, tios ou tias, pessoas tam bém ligadas de form a íntim a
ao e n to rn o familiar, m as que não p re te n d e ra m ex ercer d ireta -

íoó
m en te um a influência tão p oderosa com o a dos pais. É algo m ais
relaxado, tran sm itid o sem g ra n d e s discursos, nem conselhos,
nem exigências, m as com partilhado a p a rtir da confiança de que
tu d o será com o tem de ser. D ian te desse te rritó rio ab erto e sem
barreiras, a criança pode d eixar sua criatividade expandir-se,
d esen h ar m undos novos e sem ear, generosam ente, sem entes de
sonho, em um sutil m ovim ento de resiliência. Sem se se n tir o b ri­
gada nem exigida, com o alguém que pudesse saborear o perfum e
do feno recém -co rtado sem tem er ficar preso a um sítio p o r toda
a vida.
P o r isso, nem sem pre, os pais podem fazer essa transm issão
de valores form a ligeira, um a vez que são mais rig o ro so s com a
passagem de seu estilo de vida, desejando e quase exigindo que
as crianças sigam sua linha vocacional, seja ela religiosa, a rtís­
tica, m ilitar, do âm bito da ju stiça, da educação ou de q u alq u er
o u tra profissão que peça um a e n tre g a particular.
T u d o isso perm anece oculto sob as altas g ra m a s da corpo-
reidade cotidiana, até que um dia aparece nosso clown, confiante,
ingênuo e curioso p o r natureza.
G uiado p o r seu coração ab erto e bonachão, ele pode p erco r­
re r esse cam inho ascendente sem medo, com o um m enino que
p e re g rin a e n tre recordações e antigas fotografias, abraçando
sem ju ízo esses velhos legados, in teressando-se m ais pela abun­
dância de sabores que d eixaram do que p o r um ju ízo lim itan te e
em p obrecedor sobre as coisas úteis e das que não servem . Como
todo bom poeta, ele sabe e x tra ir a riqueza dessa linhagem , ainda
que no m eio dos velhos fantasm as, com o um hábil ap icu lto r que
recolhe o m el saboroso em meio a mil abelhas.
Com o fru to desse legado que de p ro n to re ssu rg e d ian te dos
outros, dessa im pressão que, rep en tin am en te, se faz visível e é
celebrada, a pessoa ex p erim en ta um a suave liberação, alim enta­

107
da pela aceitação benevolente dessas influências que desenharam
sua infância. O corpo se sacode com o m esm o m ovim ento que de
um cão ao sair do rio, liberando recordações, anseios e imagens.
N esse m om ento, é possível que a pessoa veja, com certa tristeza,
afastarem -se seus sonhos de originalidade, suas ilusões de ser
alguém livre e m uito especial; no entanto, em troca, seu sorriso
deixa v er o suave descanso que é aceitar a h eran ça que, de algu­
m a form a, chegou até nós. D a m esm a m aneira, podem os ouvir o
lam en to dessa avó que p erd eu um a filha, presenciam os o corpo
q u eb rad o do tio paralítico, reconhecem os a esforçada in te g ri­
dade do pai coronel, a inclinação obediente da tia devota ou os
passos resig nados de quem esteve p o r m uitas h o ras em salas de
esp era de um hospital...
Em o u tras ocasiões, a pessoa ex p erim en ta um verdadeiro
re en co n tro com um a an tig a fonte de inspiração até então quase
esquecida, fato que lhe deixa o doce sabor de um a reconciliação
in tern a.
Q uando esse belo processo acontece, o re s ta n te do g ru p o
d esfru ta com a pessoa o reconhecim ento daquele fam iliar que,
anos antes, deixou sua im pressão - sem sabê-lo - n esta alm a
infantil: aquele vizinho poeta, o avô músico, a tia da roça...
E m algum as ocasiões pode acontecer que, d u ra n te o desen­
volvim ento desse processo de exploração, a pessoa que está re­
p re sen tan d o um com panheiro não consiga d a r a seu m ovim ento
a am p litu d e ju sta , o som ilustrativo; algo im pede a aparição da
inform ação. Isso pode e sta r ligado às próprias lim itações expres­
sivas da pessoa, m as g e ra lm e n te se tra ta de o u tra coisa: de form a
in stintiva, o im itad o r não e n tra no assunto da o u tra pessoa. U m a
espécie de válvula de seg u ran ça faz com que o in té rp re te não
se atrev a a re p re se n ta r o que está em ergindo. A contece desse
m odo, tal com o tenho presenciado em várias ocasiões, em casos
de abuso sexual, de m o rtes trág icas ou de o u tras circunstâncias
p a rtic u la rm e n te difíceis. P arece-m e que esse fenôm eno ilu stra
com clareza a seg u in te reflexão de B ert H ellinger, em seu livro
Felicidade que permanece: “Às vezes, percebem os que não pode­
mos, nem estam os autorizados. A lgo d en tro de nós nos proíbe.
E ntão, tem os de reconhecer que alcançam os o lim ite”.
L ogicam ente, alguém pode p erg u n ta r: P or que a pessoa re­
p re sen tad a não dá, ela própria, essa inform ação? Porque, apesar
de g u a rd a r d en tro de si o m ovim ento desenhado, ele fica inaca­
bado com o sinal de respeito ao clã, através de um pacto com o
silêncio, no que não é dito. C ito novam ente H ellinger: “P orque
isso não resolve obrigações dos m em bros da família e da segu­
rança. E a seg u ran ça de c o n tin u ar p e rte n cen d o ”.
Sabem os que tem os arm azenado, no corpo, todo um m ate­
rial arcaico feito de recordações, vivências, emoções, experiências
de todo tipo, im pulsos etc. A pesar de ser, nas profundezas, um
m agm a fértil em choques e explosões, o conjunto dessas forças
vai, pouco a pouco, en co n tran d o um equilíbrio próprio. D e for­
m a g rad u al, todos os elem entos vão en co n tran d o um lugar, um
ju s to com prom isso que p erm ite à pessoa sobreviver no re g is tro
habitual, que engloba corpo, em oções e pensam entos, e no qual
cada in g re d ie n te foi se acom odando ao longo do tem po. T odos
eles conform am , ao final, uns p arâm etro s conhecidos, e n tre os
quais a pessoa vai co n stru in d o um precário —m as tran q u ilizad o r
—ru m o p ara sua vida. São certo s elem entos fundam entais desse
percu rso quase geológico que, em geral, aparecem na re p resen ­
tação que, de mim, pode fazer o outro, segundo sua inspiração
clownesca, levando, com hum or e inocência, luz aos nossos q u a r­
tos escuros.
N u m a ocasião, no M éxico, p e rg u n te i a um jovem p artic i­
pante, ex tre m am en te m ag ro e sem energia, se em sua infancia

109
precisou p re s ta r serviços p a ra alguém . Ele disse que sim, que
coube a ele cuidar de sua mãe, que sofria de esclerose m últipla. A
sensação do g ru p o in teiro era de um sacrifício da p ró p ria ener­
gia v ital no a lta r de um leg ítim o am or filial. E m suas posteriores
im provisações com o clown, pude u tilizar a m ag re za de seu corpo
com o um a liberdade e um a força cósm ica até en tão inalcançáveis
p ara ele.
E m B ruxelas, um a p articip an te é re p resen ta d a com ares de
ra in h a quando, efetivam ente, se m antém p o r cim a do re sta n te do
g ru p o , sem poder incluir-se no clim a geral. P erg u n to -lh e onde
estava seu castelo, e ela responde de im ediato: “N a Suíça. M eus
pais tinham um castelo e não nos deixavam b rin ca r com as ou­
tra s crian ças”. M uito su rp resa, acrescenta: “A g o ra me dou conta
de que, ainda hoje, m oro nu m a rua que se cham a ‘Rua C onde
de...’”. A p a rtir desse m om ento, nós a batizam os com o nossa con­
dessa oficial, e seu jo g o cênico foi enriquecido p o r autênticos
ares aristo crático s que, vistos pela perspectiva do nariz verm e­
lho, tom avam a dim ensão de um surrealism o engraçadíssim o.
N um a oficina no B rasil, um a pessoa está rep resen ta n d o ou­
tra , fazendo um m ovim ento que m o stra sofrim ento, algo pareci­
do com o sofrim ento de alguém que está preso, que se a g a rra a
b a rro te s e quer sair. O p artic ip a n te re p resen ta d o está olhando a
cena boquiaberto. E u lhe p e rg u n to se alguém esteve preso. Ele
me diz que seu pai foi m ilitar e p o r diversas vezes esteve em
p risão m ilitar. O p articip an te é, p o r profissão, fiscal, e é m uito
com um que m ande p re n d e r pessoas. A gora, seu clown pode cele­
b ra r sua d u reza com m ais liberdade, com ce rto desapego, porque
todos sabíam os de onde ele a havia roubado.
N o en tanto, em alguns casos ocorre o co n trário : é o abando­
no de q u alq u er m ovim ento na representação o que deixa aflorar
as referências que m ais nos m arcaram e às quais, de algum a for­

no
ma, seguim os dedicando intim am en te nossa fidelidade. D escre­
vo, a seguir, um exem plo p a rtic u la rm e n te significativo.
A conteceu em Barcelona, alguns anos atrás. U m p artic i­
pante, com cerca de 40 anos, ao qual cham arei Pedro, tem um
am plo h istó rico de graves dependências quím icas que o deixa­
ram , várias vezes, à beira da m orte; está realizando um dos m eus
exercícios, cham ado clown zen. N essa proposta, a pessoa deve­
rá se ap re se n ta r diante do público para dizer um te x to m ínim o
e, su p o stam en te, b astan te su rrealista. O exercício se baseia no
nada: n ada de ação, nada de expressão, nada de intenção, nada de
justificação, e daí seu ca rá te r zen. Ao m esm o tem po, não deixa
de ser cômico, de tão g ra n d e que é o desam paro que dá a leitu ra
de um te x to absurdo aliado ao fenôm eno da exposição que sen­
te a pessoa ao e star sim plesm ente ali, fren te ao público. N essas
condições, a pessoa toda, seus p ensam entos e suas em oções, se
to rn am m ais tran sp a ren tes, e da observação de sua presença po­
dem s u rg ir valiosas inform ações.
Foi o que aconteceu com Pedro, que naquele dia estava dian­
te de nós, p ro cu ran d o dizer com naturalidade seu pequeno texto.
O bservo-o em toda a sua am plitude, cham ando-m e especialm en­
te a atenção seu corpo: g ra n d e e corpulento, porém , sem en er­
gia, com o desconectado da en e rg ia vital. D e repente, aparece em
m im a im agem nítida desses corpos de vacas pen d u rad as nos
ganchos dos m atadouros e que se balançam por cim a de poças
de sangue. Ao m esm o tem po, me im pressiona a ex pressão de
seu olhar, vazio, olhando-nos, m as sem nos ver, sem elhante ao
o lh ar de um corpo m orto. D e pro n to , perg u n to : “Q uem m atava
as vacas? ”
O g ru p o me olha, perplexo, to talm e n te su rp reen d id o por
m inha p e rg u n ta , que ap aren tem en te nada tinha a v er com a si­
tuação: P edro está diante de nós, em pé e sem fazer nada m ais

ni
que d izer seu banal te x to de duas frases sem entonação específi­
ca. E le m e olha tam bém e, em seguida, responde: “M eu avô pa­
te rn o tin h a um açougue e m atava gado, so b retu d o porcos. M eu
pai o ajudava. M ais tarde, m eu pai m ontou um negócio relacio­
nado com a carne: fabricação de p rato s p re p ara d o s com carne.
Eu trab alh o com ele”.
T odos ficamos mudos. No silêncio, que se m anteve d u ran te
vários segundos, podia perceb er p o r p a rte do g ru p o um senti­
m ento de respeito e de conform idade, um a aceitação de que essas
coisas nos acontecem , em um a concordância tácita e não ju lg a ­
dora. Ao m esm o tem po, dian te de Pedro ia su rg in d o a im agem
clara de com o suas overdoses estavam tran sfo rm an d o seu corpo
n um corpo sem vida, colocado em um gancho. Ao dar-se conta
de q u an to seu próprio percurso, de form a evidente, seguia sendo
fiel à p a rtic u la r energia que envolve um açougueiro, foi para Pe­
dro o que desencadeou um a tom ada de consciência im portante,
que o levou, p o sterio rm en te, a m u d ar de profissão, a em preender
a re sta u raç ão da vitalidade p erd id a d u ra n te anos em prol de sua
lealdade à saga familiar.
P arece-m e im p o rtan te realçar que esses m ovim entos reve­
ladores se podem d ar em Clown Essencial p o rq u e se considera
a pessoa em sua totalidade, dando valor a tu d o o que ela traz,
p erm itin d o que se sinta acolhida num lu g ar de confiança e sem
ju lg am en to s. A confrontação com o que su rg e q uando o nariz de
clown o to rn a evidente se realiza a p a rtir de um lu g a r onde o ego,
tão h ab ilm ente astu to e tão bem p rep arad o p ara liv ra r batalhas
e quase sem pre ganhá-las, se e n c o n tra desarm ado, desam parado
e sem o recurso de suas habituais estratég ias de defesa, de p re­
venção ou agressão. D isse m inha esposa, Leda, n um a avaliação
m uito co rreta, que esse enfoque de acom panham ento pega o ego
desprevenido. E n q u an to ele está en tre tid o em defender velhos

112
castigos e v in g ar antigas feridas, a essência da pessoa se revela,
silenciosam ente, e sem m ais histórias, aparecendo diante de nós
pela p o rta que en controu, su rp reen d en tem en te, aberta. Q uando
depois o ego aparece, já é tarde, a pessoa já se m ostrou! Já re­
velou seu seg red o , ou realizou seu ato de poder, ou dançou com
toda a sua sensualidade, ou deu corda à sua espontaneidade!
E n q u an to isso, diante de nós, Pedro segue ali, so rrid en te,
aliviado e m u ito m ais presente. N o grupo, soam agora g a rg alh a­
das de lucidez e assom bro, p ró p rias da com icidade que envolve a
evidência do que não vemos, de tão próxim o que o tem os diante
de nossos olhos. P edro nos havia assom brado, en tregando-nos,
com a tran sp a rên c ia de sua “não re p resen ta ção ”, um elo vital de
sua h istó ria, que ninguém conhecia. E m troca, ele havia recebi­
do, p o r p a rte do público, o genuíno acolhim ento suficiente p ara
que, com um ju s to distanciam ento em ocional, pudesse e x tra ir
dessa experiência toda a sua riqueza tran sfo rm ad o ra, liv ran d o -
se da carg a que levava sozinho e que estava próxim a de m atá-lo.
C A P ÍT U L O 1 1

0 C O N T R A T O COM D E U S

A fam ília é um universo, o p rim eiro que a criança conhe­


ce, com suas re g ras, sua ordem e seu caos. T em suas harm onias
elípticas, seus choques nucleares, seus com etas m isteriosos que o
cruzam sem d eixar rastro, seus buracos n eg ro s onde tu d o d esa­
parece, seus sóis b rilhantes que ilum inam tudo. As crianças são
pequenas e esse conjunto de pessoas, circunstâncias, relações,
ritm o s e sons provoca, em seu interior, coisas tão indecifráveis
e x atam en te com o provoca, em nós, o cosmo. D a m esm a form a
que as leis m atem áticas não conseguem explicar a to talid ad e dos
seus m istérios, no sistem a fam iliar não será suficiente a visão de
um ou do o u tro p ara en ten d er ta n ta com plexidade. D e q u alq u er
form a, passados tan to s m ilhares de anos, seguim os com m uitos
enigm as.
Em Clown Essencial, tal e qual p u d eram perceber na leitu ra
dos capítulos anteriores, não tem os m edo de sen tir o u tra vez
essa perp lex id ade infantil, ainda dissim uladam ente viva no adul­
to. Sua leg ítim a celebração é, inclusive, um a de suas g ra n d e s
virtudes. C om unicar, em um ato de g ra n d e sinceridade, nos­
so d esam paro d ian te da com plexidade do m undo é algo m ais
co n stru tiv o que m aquiá-lo com g ra n d e s ares de sabe-tudo, de
su p er-h o m em ou superm ulher. A poética côm ica do clown p e r­
m ite, ju stam en te, com infinita sensibilidade e profunda beleza,
to rn a r esse sen tim en to n a tu ra l de confusão num a g ra n d e fon­
te de inspiração e vínculo com um a sutil in terro g a ção sobre o
sen tid o d a vida. O clown, refém do caos, das coisas da vida e dos
sen tim entos, pequeno e n tre tan to s infinitos, in terp e la seu públi­
co pedindo-lhe, com um inconfundível olhar, um a resp o sta p ara
sua a n g u stian te p erg u n ta: “M as quem é o responsável p o r tudo
isso?”. As gargalhadas cúm plices dos com panheiros que rece­
bem o clown, com o única re sp o sta a seu enigm a, são um bálsam o
p a ra a alm a infantil, um a cura sutil para um to rm e n to íntimo.
P o rq u e essa p e rg u n ta vem de um lugar antigo, em geral de deli­
cada abordagem , no qual a resp o sta que em seu tem po lhe dem os
d eterm in o u de m aneira significativa nossa relação com o m undo.
D e form a instintiva, n a nossa infância, tem os buscado res­
ponsáveis para explicar situações fam iliares dolorosas, com por­
tam en to s con trad itó rio s, circunstâncias incom preensíveis que
nos con fro ntam em nossa cotidianidade. T em os necessidade de
resp o stas que ninguém nos soube dar, tem os ten tad o decifrar
m an u scrito s invisíveis, desesperadam ente tem os precisado de
um a ordem com preensível, de saber quem está na regência des­
sa g ro tesc a p a rtitu ra . P or am o r e p o r fidelidade, não desejam os
b uscar as possíveis resp o stas com o papai ou a m am ãe, que são
fu n d am en talm ente bons e que, ainda que não m e digam nem o
dem o n strem , m e querem m ais que a n inguém e a nada neste
mundo.
“E ntão, se não são eles, quem é? Se eles não são os culpados
pelo que acontece com igo, então, tenho que o lh ar um a categoria
acima. Se não são eles, en tão é Deus! N ão pode se r outro!”, diz a
si m esm a a alm a infantil em busca de certezas. E sse m esm o D eus
que, m uitas vezes, nossos p ró p rio s pais usavam com o um curin-
ga que serve p ara tudo, q uando finalm ente seus lacônicos “p o r­


que sim ” ou “p o rque não” não enco n trav am m ais saídas d ian te de
nossas acertad as e d iretas perguntas.
Assim , fom os confeccionando nossa p artic u la r negociação
com o divino, em que, e n tre culpas, m éritos e vinganças, seguía­
mos conseguindo c o n stru ir um a ce rte z a do p o rq u ê das coisas e,
sobretudo, a convicção de nosso lu g ar no tabuleiro de x ad rez da
vida e na m edição das forças em jogo. Fom os tecendo um a rede
de causas e efeitos, desenhando um m apa celeste no qual tudo
se encaixa à perfeição em um silencioso bailado de plan etas re ­
dondos e lógicos, o rq u estrad o s p o r esse alguém que nos vê p o r
inteiro, nos en ten d e por com pleto e que, m orm ente, sabe o que
nós fazemos.
Eu m esm o fui vivendo em m eus pensam entos a elaboração
dessa equação instintiva; tam bém os relatos que ten h o escutado
p o r p a rte dos p articip an tes de Clown Essencial me confirm am
que eu, pelo m enos, não fui o único a fazê-lo. A lguns deles podem
recordar, algum a vez com su rp re en d en te precisão, inclusive o
m om ento no qual fizeram esse pacto, esse co n trato com Deus.
D e form a m u ito sutil, disseram algo assim : “Se tenho que viver
no meio dessas coisas que vejo ao m eu redor, tudo bem , vive­
rei; m as não será de graça, e alguém terá que pag ar o preço do
sacrifício que estarei fazendo. Ou me pagarás tu (Deus), ou me
pagarão eles (o m undo)”.
E m m inha percepção, firm a-se nesse m om ento o co n tra to de
desam or com o m undo, um pacto íntim o, secreto, que desem boca
num a elaboração “louca” de m inha relação com o m undo. U m a
espécie de S an ta C ruzada unipessoal que devolverá à m inha d o r
seu ju s to pagam ento: a infelicidade dos demais. D essa deform a­
ção do vínculo su rg e um a form a de ser egoica, com sua m an eira
específica de relacionar-se com os dem ais, na qual, e n tre ap erto s
e afrouxam entos, sem pre haverá um p ro d u to que se vende e um

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preço que se cobra em troca. U m a m anipulação poderosa, aberta
ou en co b erta, evidente ou perniciosa, de mil ro sto s e o u tra s ta n ­
tas fatu ras a pagar.
G raças ao olhar bondoso que o clown leva sobre seu cora­
ção dolorido, tan to q u an to sobre sua m ente enferm a, g raças ao
p o d er que a rep resentação cênica possui e à altern ân cia das di­
nâm icas utilizadas, com ou sem nariz de palhaço, m uitas pessoas
conseguem form ular com palavras alguns destes pactos:
“E u vou vivendo, m as vocês nunca vão saber o que ex ata­
m en te se passa com igo e, se quiserem saber, terão que adivi­
n h a r”, ou ainda: “Sem pre vou m anipulá-los e, m ais cedo ou m ais
tard e, vocês terão que se d a r conta da m inha superioridade”, ou
ainda: “Vou vivendo, m as sem pre vocês terão que conviver com
m in h a tris te z a ”; ou: “N unca vão saber da m inha fragilidade, nem
de m inha vulnerabilidade. Só e n tra rã o em m eu reino os fortes
com o eu”; ou tam bém : “E u serei perfeito, m ais que você, D eus, e
a todos lhes obrigarei a serem tam bém . E sse será o preço do meu
esforço, de m inha im pecável retid ão ”.
H á um testem u n h o que ilu stra bem o que pode ser o con­
tra to com D eus e sua conseqüência na elaboração do tipo de re­
lação que alguém te rá com o m undo. O relato abaixo p erte n ce a
um a m u lh er que p articip o u de um a oficina de Clown Essencial em
B rasília, e que revela aqui, com suas p ró p rias palavras, com o foi
co n stru in d o seu ca rá te r o rg u lh o so e superior:
“P erdi a hum ildade q uando tin h a provavelm ente cinco anos,
um a época em que m inha m ãe saía a tra b a lh a r em sua noite es­
p iritu al, deixando-m e sozinha em casa, cuidando de m inha irm ã
de três anos e meio e de m eu irm ão de três meses. A contece que,
num desses dias em que estava sozinha cuidando deles, tive que
tro c a r as fraldas de m eu irm ão m enor; no q u a rto havia uma m esa
red o n d a com urna toalha g ra n d e branca de renda, e sobre a m esa
havia um a vela acesa. M inha irm ã bateu na vela, acidentalm ente,
e a to alh a com eçou a incendiar-se; p o r sorte, m inha irm ã e eu
conseguim os ap ag ar o fogo e não houve um acidente m ais grave.
“M inha mãe tin h a em sua cam a um Jesus C risto em sua cruz
de m adeira. R ecordo-m e bem de que estava todo esculpido em
m adeira, não havia ro sto nem detalhes, ou eram bem pequenos
detalhes, m as m inha m ãe rezava com igo todas as noites e sem pre
me dizia que ele era o “Pai dos céus” e que ele nos cuidava e nos
protegia.
“E ntão, naquela noite do incêndio refleti: ‘Que papai do céu
é esse que leva m inha m ãe para longe de mim e m e deixa sozi­
nha cuidando de m eus irm ãos?’. Pensei que ele não era nada, e
que eu era m uito m elhor que ele, porque, neste m om ento, quem
havia salvado e cuidado de m inha vida e de m eus irm ãos era eu, e
não ele. C reio que, a p a rtir desse m om ento, comecei a sen tir-m e
m elhor que Deus, porque ele não havia sido capaz de g u a rd a r e
cuidar de m eus irm ão s”.
N a m inha opinião, fazem os o m undo pagar, de form a sutil
e encoberta, o preço de nossa p ró p ria sobrevivência. “Se não foi
g rá tis p ara mim, não vai ser p ara vocês” —esse é o p ertu rb a d o
discurso que su rg e da ferida ainda aberta. “O que eu paguei me
será devolvido, custe o que cu sta r”, ru m o reja a raiva silenciosa
da im potência. “M eu esforço será o vosso”, su ssu rra em se g re ­
do a lu ta do controlador. “O que D eus me tirou eu vou co b rar
com ju ro s, p o rq u e esse é m eu direito!”, clam a a sedução do falso
santo. “M eu m edo será seu esp an to ”, g rita a am eaça do a g res­
sor. “M eu peso será seu freio”, suspira o gem ido do apático. “Sua
v erg o n h a será m eu o rg u lh o ”, deleita-se a satisfação do superior.
“M eu silêncio será sua an g ú stia”, cala o invisível...
E stas são as esclarecedoras palavras de um a p a rtic ip a n te de
Barcelona:
“M e vejo ali, sobre o sofá de couro sintético am arelo cor
de frango, um a pequena m enina que espera. Os adultos estavam
to d o s reunidos fora, algo acontecera, eu estava intrigada. F i­
nalm ente, chegou m inha m ãe e me revelou o g ra n d e m istério.
O papai havia sido levado pelos anjinhos, agentes especiais que
D eus enviou para que estivesse com ele no céu. ‘Papai agora está
nas estrelas, naquela, a m ais brilh an te do firm am e n to ”, explicava
m am ãe.
“N o entanto, era ce rto que, se eu explicasse aos anjos que
necessitava de m eu papai, eles, que são tão bons e que têm in­
críveis poderes especiais, deixariam que ele voltasse p ara casa.
Eu sabia que papai estava fazendo um a viagem estelar, porém ,
tam bém sabia que D eus e seu filho Jesus, que tin h am gran d es
poderes, o ressuscitariam , o que p ara eles era fácil, já que tinham
feito isso várias vezes. E p o r que não iriam fazer com m eu pai,
que era a m elhor pessoa do m undo? Cada noite eu pedia isso a
D eus, sabia que ele m e tin h a consideração, e que, se pedisse de
verdade e me com portasse bem, ele me atenderia. Sonhava com
m eu papai descendo do céu e sabia que um dia ele voltaria p ara
casa. Porém , p assaram os anos e papai nunca regressou: D eus
não teve consideração com igo. T a n ta s orações e tão pouco re­
sultado... U m g ra n d e m entiroso! T u d o era um a g ra n d e m entira, ,
um a ilusão que me fazia ac red itar em coisas que não existiam .
C om o pude viver num m undo isolada da realidade? S om ente
agora, aos m eus 33 anos, pude e n ten d e r m inha preguiça com
a ingenuidade, com a inocência, quando a vejo em mim e nos
dem ais. Se eu perdi m inha inocência, não p erm itirei que o u tro s a
g uardem . Seria dem asiado in ju sto ”.
E m algum lu g ar do ser, a d o r se tran sfo rm o u em vingança,
às vezes de form a quase im perceptível; outras, a g rito s abertos.
A ssim , a au toagressão e o sacrifício são rum os possíveis desse

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d oloroso m ecanism o. T ra n scre v o aqui p a rte do relato de uma
p artic ip a n te de A licante que, adulta, não conseguia g o za r de boa
saúde e, em conseqüência, em endava uma doença atrás de outra.
N a capela do hospital onde sua m ãe g rav em en te enferm a encon-
trav a-se in tern a d a, ela, sendo um a m enina de uns 8 anos, está
rezando: “D eus, se salvas m inha mãe, eu serei a enferm a. T om a
m inha saúde e salve-a”. E, pelo visto, D eus salvou a mamãe...
N a C alifórnia, um a jovem p articipante, de c a rá te r rebelde
e com um longo h istórico de ten tativ as de suicídio e desafios à
m orte, revelou-nos finalm ente seu p ró p rio contrato, dirigido ao
m undo e, m ais especialm ente, a seus pais. “Se não querem me
ver viva com o eu sou, terão que m e ver m o rta de um je ito ou de
outro. T erão que ir ao m eu e n te rro ”. U m a terrível transação...
P arece-m e de vital im portância nos darm os conta de como
esses pactos, legítim os em seus fundam entos, são os andaim es
que su sten tam nosso ego doente e que ainda com andam nossa
relação p a rtic u la r com o m undo, tran sfo rm an d o -se, pouco a pou­
co, nas g ra d es de uma velha cela onde seguim os dando voltas,
num a profunda estre ite za de pensam ento e m ovim ento. A lgo
que nos im pede de nos relacionarm os com o m undo e £que m ol-
d a ] nossos sem blantes desde então, e só nos deixa fazer qual­
q u er coisa d en tro de seus limites.
E n tre ta n to , um dia aparece nosso clown, arm ad o de valor
e coragem . E sbanjando bizarrice e inutilidade p ara todo lado,
aproxim a-se na p onta dos pés do cen tro do desam paro dessa
criança ainda viva no coração. P ara não assustar, apenas esboça,
no ar, sua intenção am igável, p o rq u e sabe, em seu coração, que
som ente o que pode ser reconhecido e validado na alm a infantil
p erm ite à consciência adulta desfazer o pacto e d esapegar-se do
contrato. Sabe que é preciso, prim eiram ente, validar, re sp e ita r e,
de algum a form a, h o n ra r o que a alm a infantil, na sua dor, im­
potência ou confusão co n stru iu . Sabe que a alm a infantil fez isso
p o r causa de sua im periosa necessidade de tra n sfo rm a r um caos
in ju sto num quebra-cabeças ordenado e aceitável, pelo menos,
ainda que fosse esse o preço de um a p rofunda dúvida no tem po
in g ên u o da vida. Sabe que não se troca o que se nega, e que aqui­
lo em nosso in te rio r que se sente rejeitado não cede diante de
n en h u m a prece. O m ovim ento é outro, e nosso clown, em bebido
de sua inocente curiosidade p o r tudo e de sua n atu re za bene­
volente d ian te dos fenôm enos da vida, in stin tiv am en te assim o
reconhece.
E p o r isso que, quando nosso clown expõe, genuinam en­
te, seu c o n tra to com D eus em cena, d esdobrando-o sob os focos
acesos da com paixão e da consciência, respeitando-o e alim en­
tan d o o público com sua sensibilidade natu ral, algum a coisa cede
em sua inviolabilidade. Am pliado, agora, p o r vários com panhei­
ros do g rupo, que p o r sua vez usam seus n arizes verm elhos e
seus fig u rinos bizarros, o elenco dessa tru p e m uito esquisita de
com ediantes pode, agora, nos b rin d ar com esta en g raçad a tra -
gicom édia: Deus, eleg an tem en te vestido, p o rta n d o tam bém seu
p ró p rio n ariz verm elho, discutindo com a M o rte, igualm ente ca­
racterizad a, sobre o com ércio de almas, os prazo s de entrega, de
preços baixos e de ofertas de dois por um e o u tro s detalhes do
além , sob o olhar de um a criança feita refém e n tre sua família,
seu d estin o e sua im aginação...
C ausa realm ente m uito im pacto p ara a pessoa ver aí re p re­
sen tad o o que ela sem pre sentiu de form a secreta em algum lu­
g ar de seu peito, to car com o dedo todos esses perso n ag en s su r­
gidos de um a alm a infantil presa na dor ou na confusão. D iante
das coisas sem sentido da vida, se vai organ izan d o um m undo
em ocional num cenário de ilusões, crenças, esperanças e perso­
n agens ex trao rd in ário s. N este m esm o cenário e com a m esm a

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linguagem , com características próprias do im aginário e do m is­
tério criativo, é que a consciência adulta agora pode elab o rar o
elix ir capaz de desfazer o feitiço.
Ao ser com p artilhado e celebrado, em geral em um a com o­
vedora com unhão e n tre o clown e o público, e n tre a p essoa e o
g rupo, algo do pacto celebrado no passado perde vigência, uma
couraça se q u eb ra sutilm ente, urna convicção se to rn a débil, um a
velha vingança se apazigua: a pessoa pode, então, te r um d istan ­
ciam ento e sab orear o descanso de um a nova liberdade, de um a
p ro m isso ra hesitação, e sen tir-se ab e rta a o u tra form a de ser. É a
beleza desse percurso, conciliador em sua essência e corajoso em
sua execução, o que p e rm itirá que nossos passos acreditem em
novos cam inhos para p eram b u lar p o r esse universo com m enos
com prom issos assinados e m ais liberdade p ara viver.
R econheço que eu m esm o fiz, em m inha infância, uns im­
p o rta n te s co n tra to s corri um D eus ao qual não consultava m uito,
m as que tive de inventar às pressas para d ar ao m undo, com
seus incom preensíveis fatos, um dono. T enho de confessar que,
e n tre tais co n tratos, um, da m ais alta santidade, foi o que firm ei,
dando a p alav ra de h o n ra de um m enino de sete aninhos, sobre a
seriedade da vida. D izia algo como: “A vida é séria e, se alguém
se descuida, essa seriedade se ofende e se tran sfo rm a num m ons­
tro escuro que tudo engole, pai e m ãe inclusive, e que deixa as
crianças sozinhas no meio de um m undo m uito vasto, 110 qual
não há nin g u ém m ais”. Algo terrível! T a n to é assim que, d u ra n te
meu tem po de a rtista profissional dedicado ao hum or, a fazer rir
meu público, p o r incrível que possa parecer, foram necessários
10 lo ngos anos de apresentações p ara que eu conseguisse rir de
m im m esm o em cena. A té então, eu era um clown, ce rtam en te
engraçado, m as p artic u la rm en te aten to a todos os detalhes do
espetáculo, co n trolando tudo, desde o cenário: ao m esm o tem po
em que atuava, observava se certo foco de luz ilum inava o lugar
m arcado, se a m úsica e n tra v a em seu devido tem po, se o con-
tr a r r e g r a havia deixado m eus objetos de cena no lu g ar certo...
N o final das contas, era com o um m enino dom inado, p o r dentro,
pelo pânico, que não q u eria d ar ao m o n stro a m en o r opção pos­
sível de e n tra r p o r algum a p o rta deixada ab e rta p o r descuido, e
de ap arecer assim , de novo, sem m ais nem m enos, no meio de um
m undo de fantasia, p ara a rru in a r com tudo o u tra vez.
A té que, num a noite de apresentação, em um te a tro na Es­
panha, eu ri. O espetáculo estava acabando; eu, cansado e m o­
lhado de su or devido ao esforço físico e ao calor dos focos de
luzes, ten tav a subir em um m onociclo m uito alto, com a ajuda de
espectadores voluntários que, com o eu, levavam nariz de palha­
ço. N ossa p recária pirâm ide hum ana foi desm o ro n an d o pouco a
pouco. A p esar de nossos g ra n d e s esforços, p a ra a aleg ria do pú­
blico, tudo ia mal. A conteceu um m ilagre! Eu ri de m im m esm o
e da situação cômica criada em cena. Eu ri, abandonei o controle,
aceitei... P ara mim, foi realm en te com o abdicar, re n d er-m e a uma
festividade cósm ica da vida, concordar com um a dim ensão da
ex istên cia que estava fora do m eu controle e da m inha satisfação
egoísta. N esse m om ento, se desfez m eu velho contrato. Recordo
m uito bem de que senti um a espécie de ducha d o u ra d a deslizar-
se ao lo n g o de m eu corpo, desde a cabeça até os pés, num a sen­
sação que nunca havia sentido antes, nem m esm o nas cerim ônias
de cu ra dos xam ãs, que naquela época eu freqüentava. E n q u an to
isso, eu ria às gargalhadas, em sin to n ia com o público, que fazia
o m esm o, celebrando com ele, num a bonita com unhão, m inha
v itó ria ín tim a que não era o u tra senão a de p o d er d eixar para
trás a g u e rra santa que m eu p ró p rio m enino, legitim am ente, ha­
via em preendido contra a seriedade da vida, m uitos anos antes.
A inda agora, ta n to tem po depois, guardo aquele m om ento como

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um dos m ais sublim es que jam ais m e havia concedido na m inha
ex ten sa ca rre ira artística de clown.
C A P ÍT U L O 1 2

0 C O N S O L O DA A L M A

Ao invés de buscar o que não tens,


encontra o que nuncaperdeste:
N isa r g a d a t t a M ahraj

U m a das prim eiras coisas que m e im porta conhecer das


pessoas que buscam m eus sem inários com o p articip an tes são as
razões que as levaram a isso: O que vocês vieram buscar aqui?
P or que não foram a o u tro lu g ar ou sim plesm ente ficaram em
casa p ara descansar? Q ual é a p a rte do m eu trab alh o que lhes
atrai? E, se lhes fui recom endado p o r algum fam iliar ou am igo
que já havia exp erim entado an tes m eu trabalho, m arin h eiro s de
p rim eira viagem , p o r que aceitaram o convite? o que lhes disse
sua intuição sobre o que poderiam e n c o n tra r aqui de bom?
A lgum im pulso in tu itiv o lhes fez v ir — aquilo que e sc u ta ­
ram e o m otivo p o r que confiaram . In teressa-m e m u ito sab er
m ais so b re esse m ecanism o. Sei que nele terei um valioso alia­
do, p ro p rie d ad e ex clusiva de cada indivíduo, que me p e rm itirá
tê-lo à m ão q u an d o o p a rtic ip a n te tro p e ç a r nas areias m ovedi­
ças do ego.
E n tre as resp o stas m ais freqüentes a essas p erg u n ta s figu­
ram , p rincipalm ente, a busca de b em -estar e o desejo de fazer
as pazes consigo m esm o, de acabar com as estressan tes g u e rra s
in tern a s das quais a pessoa p re te n d e livrar-se. A necessidade de
d eixar p ara trá s as escuras to rm en tas, de re co n stru ir um a ponte
com o m undo, de ro m per um íntim o isolam ento que causa feri­
das e, de algum a m aneira, deixar-se a si m esm o em paz. Porém ,
essas m etas são tam bém , em m aior ou m enor m edida, finalidades
de o u tra s p ro p o stas expressivas inseridas no âm bito do autoco-
nhecim ento. E ntão, p o r que re c o rre r especificam ente ao perso­
nagem do clown?
A lg u m a coisa em seu im aginário ficou g u ard ad a sobre esse
ser afastado da realidade, sím bolo da liberdade e da fantasia, em
co n tato com algo essencial que não figura em nen h u m dicio­
nário, m as que nosso sen tim en to in te rn o reconheceu com váli­
do. Seu vínculo privilegiado com o hum or o converte, a nossos
olhos, instin tivam ente, em um am igo incondicional do inalcan-
çável. U m ser simbólico, sem idade e que não caduca, sem princí­
pio nem fim, cuja existência nos dá certeza e alegria, num efeito
parecido com o da sim ples contem plação do brilho das estrelas
em um a noite de verão. D e algum a forma, o clown e seu cósmico
d esam paro revelam a nossa ju s ta m edida diante da assom brosa e
gen ero sa árv ore da vida. Seu m odo de ser é um reflexo em cores
de um m undo em p reto e branco.
E se no tran sc u rso da viagem tran sfo rm ad o ra do Clown E s­
sencial pred o m ina um elem ento chave para esse processo é o de
um a c e rta revanche íntim a, o consolo de um a alm a que im perio­
sam en te necessita reconciliar-se com a vida. E um m ovim ento
tão vital com o lento, que p recisa de tem po e de cuidado, de pa­
ciência e de fé. N o entanto, há, nos m urm úrios de um a força viva
renovadora, im placável, o su ssu rro de um riacho que pouco a
pouco recom eça a fluir, com e n tre g a e alegria, p o rta d o r de um a
p ro m isso ra criatividade e da reapropriação do gozo instintivo de
viver. “V iver é incom preensível, m as viver é bom ”, can ta o olhar
do clown quando alcança nossos corações.
O cineasta Federico Fellini, d ire to r do antológico filme I
clowns (Os palhaços), foi um g ra n d e conhecedor da a rte dos pa­
lhaços, aos quais ele definia com o os “a risto cratas” dos atores. A

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ele se atribuem essas palavras: “D epois de ver um bom clown, a
lavadeira co rre feliz p ara lavar a roupa, o bêbado re to rn a à sua
g arrafa com paixão, o p in to r a g a rra o pincel no voo”. Q u er di­
zer, de alg u m a m aneira, nada m uda, m as tam pouco nada é com o
antes. Porque, se a transform ação talvez não se faça visível na
form a das coisas, é em seu fundo que ocorre o verdadeiram ente
renovador, e onde a pessoa, tendo visto o reverso de seu p ró p rio
desenho, p o d erá re sp ira r um ar to talm e n te novo, ainda que se­
guindo o m esm o caminho.
E x iste in stin tiv am en te em todos nós, talvez nesse lu g ar
m ais saudável de nossa psique, um im pulso que segue p ro fu n ­
dam ente fam into de vida, que busca n atu ra lm e n te a felicidade,
com o o rio busca o m ar, apaixonado p o r experiências e plenitude.
M u ito além das características e do c a rá te r de cada um, m uito
além do que o rd in ariam en te podem os nos atrever a form ular,
algo v ib ra em nosso in terio r que nos im pulsiona a buscar o que
nos ajudará a co n seguir bradar: “E sto u vivo! E stou viva!”.
Q uando a pessoa retom a contato com esse lu g ar de si, ocor­
re com n atu ralid ad e a restauração de um a prazerosa e verdadei­
ra co rren te in tern a , que flui em h arm onia com as capacidades
criativas e as circunstâncias de cada um. P ara perm itirm os, em
Clown Essencial, a liberação do im pulso do corpo, aceitam os a ce­
lebração do lado escuro, p orque são rios poderosos, ce rtam en te
cheios de in q u ietan tes correntezas, m as que, p o r sua vez, tra n s ­
p o rtam valiosas pepitas de ouro. E sem pre m uito benéfico d eixar
de lado a m en te que tudo filtra e ceder à experiência vital que
ainda v ib ra no corpo! N esse m ovim ento, o organism o e n tra em
ação, desen ro lan d o-se de sua faceta m ais antiga e en c o n tran d o
o m anancial onde se restabelece um a en erg ia maior, expressão,
prazer, e n tre g a e rendição. P or isso, em Clown Essencial, não te­

129
m os m edo do caos e celebram os com alegria sua anárquica fer­
tilidade.
T ra ta -s e de criar o m arco favorável à aparição de um a cons­
ciência m ais orgânica, subjacente à form a cotidiana de ser. Fo­
m en tan d o um estado de fluidez p ara o qual a aceitação, o não
p en sa r e a confiança se unem , levando, suavem ente, a pessoa à
ex p ressão do silenciado, à liberação do que foi retido. Surge, en­
tão, a p a r tir da vitalidade, da espontaneidade e da ab e rtu ra, o
im pulso de e n tre g ar-se ao que está ocorrendo nesse m om ento,
aproveitando, em toda a sua riqueza, de um profundo estado de
fé, tan to em si m esm a com o nos demais. E ssa é a form a pela qual
é possível e n c o n tra r o ego desprevenido, en tre tid o com o u tras
necessidades, enquanto a pessoa, liberada p o r um m om ento de
seus ju lg am en to s au to lim itan tes do dia a dia, pode fazer o p er­
curso que deseja o seu interior. O consolo da alm a não acontece
se não vencerm os, antes, a co rrid a do ego.
E n tre ta n to , quando o conseguim os, ocorre, m uito amiúde,
que a pessoa se su rp reen d a de haver sido capaz de realizar esta
ou aquela façanha cênica dian te do grupo, de um a form a m ui­
to d iferen te do seu c a ráter habitual, p ara um público entregue,
asso m b rad o e feliz. Q u an ta beleza surge quando o ego, em bria­
gado de m ovim ento, de suor, m úsica e emoções, cai finalm ente
rendido, en q u an to a essência da pessoa se esboça d ian te de nós,
guiada p o r esse pequeno facho de luz no meio de seu rosto.
U m a m u lh er com cerca de 60 anos, de p resen ça discreta e
tem p eram en to reservado, p articip a de um a oficina de iniciação
ao Clown Essencial, no M éxico, quando as pessoas têm a o p o rtu ­
nidade de realizar um as im provisações de clown sobre tem áticas
variadas, nas quais o que re su lta ser realm ente im p o rta n te é o
seu p ró p rio jo g o cênico, m uito m ais que qualquer ro te iro prem e­
ditado ou p reviam ente ensaiado que elas pudessem seguir.

!3°
N essa ocasião, e à m edida que vai tran sc o rre n d o e desen-
rolando-se sua intervenção, esta sen h o ra cresce em sua en erg ia
e nos ap resen ta um a g u erreira, am alucada, pouco a pouco inal-
cançável, u ltrap assan d o até m esm o as re g ra s técnicas da p ro ­
po sta de trab a lh o que lhes havia feito previam ente. Eu a deixo
fazer, in tu in d o q u an ta su rp resa nos pode tra z e r sua atuação. Ela
está linda, liv re e desenfreada, incontrolável de inspiração e be­
leza b ruta. O re sto do g ru p o fica refém de um riso contagioso
(que sacode, ao ritm o de sonoras gargalhadas e de form a quase
alarm an te, a en o rm e b arriga de o u tra participante, g rá v id a de
mais de oito meses!); olhos com o g ra n d es pratos, olhando para
o palco, sem p o d er crer no que estão vendo. A senhora segue
ali, com sua en erg ia implacável, assum indo a batuta de toda a
im provisação com sua vontade, brilhando com todo o seu esplen­
d o r infantil, criativo, livre e provocador. Seu nariz verm elho lhe
havia convertido em um a espécie de superaposentada, p ro ta g o ­
n ista da g u e rra das galáxias, e sua energia vital enchia a sala p o r
com pleto. Seus m ovim entos eram rápidos, aco rren tad o s num a
su rp re en d en te fluidez, sua força irradiava p o r todo o espaço...
Seus com panheiros de cena, na escuta, entendem que n este m o­
m ento ela está no com ando da rep resen tação e que seu p ro ta g o -
nism o é inevitável. In tu itiv am en te conscientes do que isso pode
re p re se n ta r p ara ela, dedicam -se a seg u ir seu jogo, dando ainda
mais v alo r à sua atuação, com o um a o rq u e stra bem disciplinada,
acom panhando, c o n tra os ventos é m arés, os com passos de um
d ire to r ex trav ag an te. A cena é su rre alista , delirante, porém , tão
cheia de vida, do p ra z e r vital de brilhar, de respirar, de existir!
P or m inha experiência, sei que um a atuação dessa qualidade
tem na raiz a expressão de um a revanche íntim a. Por sua força,
sua beleza e seu código tão pessoal, não m e resta dúvida dc que
há n esta sen h o ra a aleg ria de quem se sabe ra in h a de um a só
noite e de quem teve sonhos de ser artista.
A ssim , ao term inar, p erg u n to : “Você, o que q ueria ser quan­
do era peq u ena?”.
N esse m om ento ela nos dá esta bela frase, que contém toda
a sua satisfação: “Q uando pequena, eu ia m uito ao teatro; eu que­
ria sem p re e sta r lá em cim a (no palco), m as estava em baixo (no
meio do público)”. A gora, obviam ente, ela acabava de e sta r em
cima, em p leno centro dos focos e da m aneira m ais livre possível.
E sse é exatam en te o esp írito de revanche que n u tre a tra n s ­
form ação que podem os alcançar através de Clown Essencial. A
im provisação à qual acabávam os de assistir e ra um a boa de­
m o n stração disso e, m uito além da sim ples façanha expressiva
e ex tra o rd in a ria m e n te côm ica d esta pessoa, fez-se p aten te a
profunda satisfação de quem realizava um sonho de infância, de
quem fazia, p o r fim, o que ta n to desejava fazer, ainda que fosse
60 anos depois. Isso é m aravilhoso para a pessoa, e é tam bém
p ro fu n d am en te com ovedor p a ra o público, que percebe perfei­
tam en te o alcance de sem elhante vitória, que eu considero um
desses pequenos m ilagres que o Clown Essencial nos concede
p resen ciar em seus m elhores m om entos. São verdadeiros tesou­
ros que nos enriquecem a todos.
N ão se tra ta de refazer to d a um a infância, de re co n stru ir
suas recom pensas p o r com pleto ou de q u erer trocá-la p o r outra,
m as sim de nos conform arm os com reaver algum as centelhas
de prazer, reescrever passagens da história ou tro c a r o final de
alg u n s capítulos. Porque, agora, som os adultos e é quando tem os
as fe rram e n ta s p a ra fazê-lo.
E sse é o caso de um p articip an te, que parece desprovido de
vitalidade nas diferentes sessões de trabalho. Seu corpo, m uito
fraco, p arece acom panhar a en erg ia baixa, assim com o de sua
respiração, quase im perceptível, num a espécie de câm ara len ta
generalizada. N o en tanto, quando passa pelo cam arim e coloca
sua m áscara de clown sobre o nariz, o co rre um a su rp re en d en ­
te transform ação. Seu jo g o se to rn a fresco e vigoroso; podem os
ver-lhe ap ro v eitar ao m áxim o, ex p e rim en tan d o p ra z e r e leveza.
O c o n tra ste m e cham a a atenção. P ara m im , algo não se encaixa
em ta n ta diferença de ânimo. Ao finalizar sua im provisação, p er­
gunto: “Se tudo que você toca brilha, quem te fez v ira r so m b ra?”.
A resp o sta veio num instante, sem nenhum a dúvida: “M eu irm ão
gêmeo. M u d aram -m e de escola p orque eu era m ais in te lig e n te ”.
N esse m om ento, todos percebem os como, p o r am or a seu irm ão,
ele havia delib erad am ente m inguado, castrad o sua p ró p ria en er­
gia vital. U m a en erg ia que ag o ra se p erm itia revisitar, fazer n o ­
v am ente sua, go zan do-a com o um a criança que se deixa levar
pelas voltas de um carrossel onde sobe pela p rim eira vez.
E m Clown Essencial, o enfoque ex perim ental está isento de
q u alq u er ânim o de vingança. N ão é o m om ento e nem o lu g ar
de q u erer fazer p ag a r a ninguém o que se passou conosco, nem
de buscar culpados que pudessem a rcar com a responsabilida­
de pelo m odo com o as coisas tran sc o rre ram . Ao contrário, está
p len am en te p resen te, de form a ab erta e reconhecida, o espírito
de revanche, a reivindicação de algo que na infância e p o r várias
circunstâncias não se pôde realizar, que foi castrado ou sim ples­
m ente proibido. A lgo que, de algum a m aneira, não pôde ser.
E sse fenôm eno, com o o descrevia com m uita intuição Fe-
derico Fellini, pode to m ar vários m atizes, desde a reparação da
criatividade até p ro fundas m udanças n a sim ples energia cotidia­
na de viver.
E ste é o com entário de um a participante, aficionada pela
p in tu ra, que há m eses não tocava em seus pincéis: “A lgo se m o­
veu em mim; ver-m e a m im m esm a com o m e veem os dem ais, eu

133
vista de fora, com o espectadora do meu próprio ser, o que há por
d e trá s e eu não quero m ostrar. Ao chegar em casa, à m inha vida,
às m inhas atividades ro tin eiras, eu, sem cerim ônias, depois de
nosso fim de sem ana de Clown Essencial, en trei em m eu dim inuto
q u a rto de arte, esse espaço que em outros tem pos serviu de ade­
ga. A com odei-m e, organizei m eus pincéis e p in tu ras, peguei um a
tela e decidi p in ta r um qu ad ro cheio de m ulheres, sob a chuva,
com som brinhas. £...]] E n tre i em contato com o fem inino, com as
m u lh eres da m inha vida, com a m inha m ulher, m inha p a rte d u ra
e m inha p a rte sensível, e não pude resistir à ideia de capturá-lo
em um quadro. A gora me sin to em ocionada e entusiasm ada para
ch eg ar em casa, e n tra r em m eu pequeno quarto, to m ar o pincel,
peg ar um a tela e colocar nela o que eu sinto”.
N u m a ocasião, ao finalizar um a dinâm ica p a rtic u la rm e n te
vital e em conexão com a en e rg ia da criança interior, percebi
que, sobre m inha mesa, com m eus cadernos de trab alh o e re p ro ­
duções de m úsica, encontravam -se uns óculos. P erg u n tei em voz
alta a quem perten ciam e, nesse m om ento, um a p artic ip a n te se
aproxim ou de mim: “São m eus!”. E la acabara de realizar toda a
sessão sem os óculos, sem se d a r conta de que não os usava como
de costum e e, tal com o havia com entado com igo a n te rio rm e n ­
te, não podia viver sem eles sobre o rosto. Ela acrescentou esta
frase, que me pareceu m aravilhosa: “Eu havia esquecido de que
não via...”.
E stas são as palavras de um a particip an te de Barcelona:
“Vou cam inhando, sentindo to d a a força que n u tre m eu ser e
desejando a vida como antes nunca o fiz”.
U m m úsico de j a z z com enta com igo: “D epois de nossa ses­
são de dom ingo, tive um a apresentação à noite e, no palco, senti-
m e tão bem com o nunca antes havia m e sentido, m uito p resen te
e pró x im o ao público”. O u tra pessoa escreve: "E ra sábado à tard e
e me p reparei p ara fazer um a apresentação. Vestida com um a
larg a saia roxa, tipo flam enca, um su éter n eg ro ajustado e com
g ra n d e elegância, cabeça erguida. M eu nariz verm elho era a ce­
reja sobre o bolo. C antei e cantei tal qual um a can to ra de ópera.
A força que m e tran sm itiu esse in sta n te foi enorm e. C onectei-
m e com m inha força interior, m eu p ró p rio dizer ‘aqui estou eu ’,
aju stando o que p reten d o ser com o que m ostro. £../] U m fato
que m udou o tra n sc u rso de m eu cam inho v ital”.
N ão m e re sta dúvida de que há, em todos esses m ecanism os,
a elaboração de um a profunda reconexão com a vida, um a reco n ­
ciliação com o que não pôde ser em d eterm in ad o m om ento, um a
reg en eração da autoconfiança e das possibilidades da pessoa.
T u d o ocorre, e assim o percebo em geral, d u ra n te o tra n sc u rso
dos sem inários, com o se uns m inúsculos cabos elétricos in te rn o s
se reconectassem . N o princípio, são apenas umas pequenas faís­
cas in term iten tes, tím idas e ainda tem erosas de seu p ró p rio bri­
lho, até que, a p a rtir de determ in ad o m om ento, com eça a p assar
a co rren te da vida, um a cham a intensa, inquebrantável, segura;
um a certeza de que viver é, de algum a m aneira, fun d am en tal­
m ente bom , ainda que m antenham os clara a consciência de que
a vida nem sem pre é fácil e, em m uitos casos, pro fu n d am en te
dolorosa.
A través do Clown Essencial e, com o se pode com provar, a
p a rtir de nu m ero so s casos, ocorre esse fenôm eno re p a ra d o r de
reconciliar-se com a vida. T enho visto pessoas deixarem de fu­
mar, recu p erarem a fertilidade, d eixarem profissões insatisfató­
rias, co n se rtare m relações com pais ou o u tro s fam iliares p ró x i­
mos, realizarem velhos sonhos de infância e, de um a form a mais
am pla, em p reen d erem im p o rtan tes m udanças em suas vidas.
E screvo isso com todo o cuidado, p o rq u e quase nunca toco
d iretam en te nesses temas. N ão dou conselhos, não digo a nin ­
guém o q ue tem de fazer ou d eix ar de fazer. C onsidero que não
sou quem deva dizê-lo, pois todos têm m esm o m uito para re ­
solver em sua p ró p ria vida e m ais ainda p ara e n te n d e r sobre
si m esm os; prefiro som ente acom panhar e cam in h ar ju n to , no
espaço de um tem po, pelas trilh as do Cloivn Essencial. É suficien­
te e ten h o fé em que a m era experiência da vida reen co n trad a
d u ra n te o sem inário levará, intuitivam ente, a pessoa a fazer as
tran sfo rm açõ es que busca e a to m a r as m elhores decisões, em
um a concordância natu ral com seu m om ento.
E m co n tato com a en e rg ia vital recobrada em seu corpo,
com o espelho p erm a n en tem en te m u tan te do o lh ar do público e
com o m ovim ento dançante de suas emoções, a pessoa ensaia os
p rim eiros passos de um p ercu rso vital que só pedia um a opor­
tu n id ad e de p ô r-se em m ovim ento. A confiança e o acolhim ento
que en c o n tra no g ru p o para a expressão de nossos to rm e n to s e
anseios, a celebração a p a r tir do burlesco nariz verm elho para
confessar nossas penas e desesperos, as asas que liberam em nós
o cheiro das te rra s da infância reconquistadas, o canto das ri­
sadas e dos silêncios, a m úsica, o respeito, a lucidez... tudo isso
to rn a possível um a d istan te m eta, em seu tem po proibida e, hoje,
p o r fim, concedida: a bendita tran sp arên cia de serm os nós m es­
m os e descansarm os com isso.
Poucos sabem que o g ra n d e C harles C haplin, que foi p ara o
h u m o r o que Jobann Sebastian Bach foi para a m úsica, teve uma
infância m arcada pelas dificuldades de um a fam ília em situação
precária, conhecendo em prim eira pessoa e p o r longos tem pos
os som brios am bientes dos o rfanatos infantis lo n d rin o s de fins
do século X IX . T alvez p o r isso, já em sua idade m adura, p ro ­
nunciou esta bonita frase que, p ara mim, sim boliza m uito bem
o consolo de alm a que a pessoa pode ex p e rim en tar em Clown

136
I

Essencial: “N u n ca é tard e p ara te r um a infância feliz, e a seg u n d a


vez só depende de você”.

137
C A P ÍT U L O 1 3

B A I L A N D O COM A S S O M B R A S

Talvez não se trate de expulsar os demônios,


mas de colocá-los a serviço da vida.
J oan G a r r ig a B a c a r d í,
Vivir en el alma.

P rovavelm ente, um a de nossas m aiores som bras, e que abri­


ga todas as dem ais sob sua copa, com o um im enso g u ard a-c h u -
vas escuro, seja a vergonha. N ão so m en te a que todos conhe­
cemos, em m aior ou m enor m edida, e costum am os associar a
um a c e rta tim idez m esclada com um ta n to de tem or, m as uma
o u tra, de m aior peso, a que g era o m edo de não nos darm os bem,
de p arecerm os ridículos, inadequados, errados, o receio de nos
d estacar ou de que sejam os vistos demais. O medo, afinal, de
serm os diferentes, únicos, e m o strarm o s o m odo com o realm en­
te reconhecem os que som os deste nosso in terio r e n este exato
m om ento.
A v erg o n h a é um poderoso an tíd o to p ara o aqui e o agora,
m uito im p o rtan te p ara a T erap ia G e sta lt, porque nos m antém
num hipnótico sonho de invalidez e inadequação. Ou, o que dá
no m esm o, 11a im inência da exclusão. De todo modo, observando
aten ta m e n te este fenôm eno no tra n sc u rso de m eus sem inários,
ten h o co n seguido d istin g u ir que, ainda m aior que o dado supos­
tam en te causado pelo que sentim os em si é a v ergonha de s e n tir
o que sentim os, o que realm ente nos c a stra e nos faz m inguar.
Sentim os raiva ou nojo, m as parece que isso não é bom , que
isso não convém . Sentim os cansaço, esgotam ento ou confusão,
m as algo nos diz que isso tam pouco está correto, que devem os

‘39
ser fo rtes e sabe-tudos, p o d er com tudo e um pouco mais, se
for necessário. Sentim os ciúm es ou pavor da solidão, porém , isso
parece ser de nossa n atureza, e parece que é preciso escondê-lo.
N ecessitam os de um sim ples abraço e, em troca, nos lançam os
a g ra n d e s discursos sobre o am or. A brigam os v alen tia e atrevi­
m ento, m as nos acovardam os; é claro que não irem os d esp e rtar
o d rag ão do ju lg am en to alheio, que sem pre d o rm e com um olho
aberto.
R ecordo estas palavras, que ouvi certa vez de C láudio N a-
ranjo: “Som os águias e vivem os com o galinhas”.
A realidade é que, desde o princípio e p ara a g ra n d e m aio­
ria, não nos ensinaram a viver de acordo com nosso sentim ento
in tern o . N a prim eira universidade na qual a vida nos inscreveu
p o r om issão, e que se cham a família, nós saltam os este capítulo
e apren d em o s a nos adequar ao tom geral. E, se tivem os algum
so b ressalto de espontaneidade, de ab ertu ra, de confiança ou de
criatividade, alguém se apressou a nos censurar; é claro que não
irem os ser m ais que nossos pais, é claro que não irem os ser m ais
felizes ou te r m ais op o rtu n id ad es de vida que eles. D e qualquer
modo, e ap esar de tudo, me parece im p o rtan te leg itim a r tam bém
este fato: intencionalm ente, eles, p o r sua vez, foram a uma uni­
versidade na qual a ca rre ira do “seja você m esm o” não figurava
nos estu d o s oferecidos. P ara eles, isso co rrespondia a realizar
o u tro aspecto de seu trabalho, e tam bém aquilo era indispensá­
vel. D o m esm o modo que, agora, nós estam os fazendo nossa p ró ­
pria p a rte do percurso, tal com o caberá a nossos filhos e netos
fazer a p a rte deles. A eles, desejo que esta (parte) seja ainda mais
bela e ap aix onante que a nossa.
A m im , parece, tudo isso se dem arca num a co n stan te evo­
lução da consciência hum ana, num a m isteriosa cadeia em que
cada g eração cum pre com sua tarefa, num a longa cam inhada que

140
nos une a todos, século depois de século. N esse sentido, estou
convencido de que o m elhor âinda está p o r vir e que, p a ra isso,
tem os de ocu p ar nosso espaço, ag radecendo o que nos foi legado
e certo s de n o ssa p ró p ria função. D e resto, e no que a m im se
refere, não vejo em nenhum a geração a n te rio r à m inha nada que
pudesse me haver feito preferir nascer em outro m om ento do
espaço-tem po, em tu d o que me foi dado viver...
E, en q u a n to estes gigantescos ciclos vão cam inhando a pas­
so de form iga pelos cam pos da h istó ria hum ana, nós, form igas de
sonhos gigantescos, buscamos, incansavelm ente e d en tro de nos­
sa d im in u ta p a rte no cam inho, a felicidade. E n tre vales e m o n ta­
nhas, com m ais ou m enos sorte, cam inham os em direção ao a r­
co-íris da plenitude, que com o bom arco-íris que é se distancia à
m edida que nos aproxim am os. P orque presos à nossa p a rte m ais
egóica, aquela que se n u tre com voracidade de brigas in tern as,
diálogos e n tre su rdos e o u tras v irtu d es pessoais, seguim os ne­
gociando a d u ras penas com a v erg o n h a m adre, enq u an to o ego
se d iv erte esfregando as mãos satisfeito ao im aginar que, cedo
ou tarde, todo o benefício deste com bate será para ele. T am bém
sabendo que, q u an to m ais dure essa batalha, m aiores serão seus
lucros. Sendo assim , ele é paciente, e não se im p o rta em te r de es­
perar, certo de que suas artim anhas são sábias e de que som ente
a m o rte pode ser seu im placável rival. N e sta batalha está claro
que vam os perder, enq u an to ao nosso re d o r a vida debulha seus
dias e suas noites n u m bilhete de idà comum...
D essa batalh a fala Jam es H illm an em Vivir com la sombra,
usando as seg u in tes palavras: ‘A m ar-se a si m esm o não é um a
tarefa fácil p o rq u e isso significa am ar tu d o que existe em nós,
até m esm o nossas som bras que nos fazem sen tir inferiores e so­
cialm ente inaceitáveis. £../] Sendo assim , p ara en c o n trar a cura
é preciso o reco n h ecim ento m oral dos aspectos m ais desprecia-

141
dos de nós m esm os e a aceitação am orosa e a leg re dessa nossa
existência.”.
A o u tra p a rte dessa d isp u ta íntim a vem do ju lg a m e n to do
m undo, que em algum as vezes é visível e, em outras, prejudicial
e difícil de d istinguir. Pode ser que sua m ensagem am eaçadora
nos peg u e de golpe, d iretam en te no rosto, e faça com que este­
jam o s d ispostos a fazer o que for para não sofrer nenhum tipo
de exclusão. M as, em o u tras vezes, seu cochicho, su tilm en te ali­
m en tad o p o r um a sociedade que necessita de bons seguidores,
de boas ovelhas, infiltra-se p o r nossas g re ta s de dúvidas, de falta
de au to estim a e por nossos costum es de tra ta r m al a nós m es­
mos. Sem perceber, abandonam os nossa unicidade em prol de
um adap tad o anônim o. A ssim sentenciava C arl Jung: “N ascem os
o riginais e m orrem os cópias”.
N a m inha opinião, essa v erg o n h a-raiz é que faz com que nos
m an ten h am o s enclausurados em nós m esm os; ela nos faz ta n ­
to m al que preferim os m an tê-la com o um com ponente da vida
diária com o qual precisam os conviver, e nada mais. Preferim os
estabelecer pactos, negociando com ela na nossa intim idade. “Eu
te dou um pouco disto ou daquilo e, em troca, você m e deixa
viver com um pouco de tran q ü ilid ad e”. Com o bons e fiéis con­
trib u in tes, pagam os d iariam en te nossas dívidas a essa som bra
sanguessuga.
N ão o b stan te, em Clown Essencial decidim os um dia p a ra r
de p agar im postos. Juntos e encorajados, lançam o-nos ao vazio
de ir m ais além , de arriscar, de fracassar, de revelar. P ara isso,
decidim os ab raçar a vergonha-raiz, d ese n te rrá -la das catacum ­
bas do nosso interior. D ar-lh e voz e oferecer-lhe um espaço de
reconhecim ento. N ós a convidam os p ara bailar. C ontudo, ela
m erece n o ssa atenção e, de algum a form a, nosso respeito. Em
certa m edida, ela apareceu de form a legítim a, um a vez que foi

142
elaborada com o um a proteção que nos p erm itiu tam bém so b re­
viver e ch eg ar até onde chegam os. N ão nascem os com ela, m as
a elaboram os à base de mil in g red ien tes e com ponentes da vida
que nos coube viver. D e algum a form a, é nossa criação e m erece
ser tra ta d a com o tal.
“Só ex iste am o r e dores de am o r”, reza um a bela frase com a
qual concordo plenam ente. Q uando consideram os nossa v erg o ­
n ha sob este enfoque, nossa percepção sobre ela se m odifica de
im ediato. D e resto, assim contem plada, atreve-se a m o stra r-se
mais, a sair do bosque onde são gu ard ad o s os m onstros e ou­
tro s fantasm as, todos gerados p o r ela, e a su b ir com os clozvns ao
palco do m undo visível. Ali, ela sucum be p ro g ressiv am en te ao
p o d er da pequena m áscara da com icidade com passiva, este nariz
de clown que ilum ina o ro sto de quem o leva, sem pedir nada em
troca, sem p ed ir justificativas ou conceder perdões, sem co b ra r
dívidas nem p ro ferir acusações. Ali, a pequena m áscara dissolve
a gran d e, que pode, pouco a pouco, re tira r-se e descansar, satis­
feita do dever cum prido ao longo de todos esses anos, já m erece­
d o ra de um e te rn o repouso.
N esse m ajestoso baile a três - e n tre m inhas neuroses, o
m undo e eu - , n este processo em g eral longo e não isento de
m om entos difíceis, p aulatinam ente a pessoa se vai relaxando, ao
sen tir-se validada e acolhida no que g enuinam ente acontece no
seu interior. E a p a r tir deste m om ento, e não antes, que pode
su rg ir o u tro processo transform ador: o de em p reg ar em o u tro s
assuntos m ais g ratifican tes a energia que o u tro ra alim entava a
sanguessuga. A ssim , e tal com o o ten h o descrito ao longo das
páginas d este livro, são m uitas as tran sfo rm açõ es que ten h o tido
o privilégio de p resen ciar no tra n sc u rso de todos esses anos.
T en h o visto pessoas recuperarem a alegria, mas, sobretudo, te-
nho-as visto devolver dignidade à sua dor, ao seu sofrim ento.

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R eadquirindo a legitim idade de sua elaboração, a pessoa pode
e x tra ir da som bra sua potência vital, celebrar o en c o n tro e en­
riq u ecer-se de sua integração. E isso faz uma diferença consi­
derável no tran sc u rso da m udança. Porque, ao valo rizar o que
sente, a pessoa pode fazer uso disso, liberar os velhos co n tra to s e
d eix ar de o b rig ar os o u tro s a p agarem o preço p o r sua ansiedade.
Cada m astro su sten ta sua vela, seja ela branca e linda ou suja e
esburacada, ou desfiada de cim a a baixo. N ão im porta. Assim,
colocado no m ar, todo veleiro é belo e o oceano in teiro lhe há de
respeitar.
A ssim , tenho visto pessoas reatarem -se com sua sensualida­
de, criatividade, com seu entusiasm o, tendo fé em si m esm as, nos
dem ais e na vida. T enho visto reconciliarem -se profundam ente
consigo m esm as, ao ponto de m elh o ra r sua saúde, deixando de
lado hábitos d estru tiv o s ou overdoses. A lgum as, que de um a hora
p ara o u tra puderam e n ten d e r com o escolheram errad o um a p ro ­
fissão, apenas p ara a g ra d a r a so m b ra ou cu m p rir an tig o s pactos
dos tem pos de criança, sem m aiores explicações decidem m u­
d ar de rum o. O u tro s se arriscam na arte ou em dem ais cam pos
incertos. P assam a confiar em seus dons naturais ou afinidades
p artic u la res p a ra co n stru ir um novo intercâm bio com a socie­
dade que os rodeia. E se tenho visto, com o m encionei, algum as
pessoas recu perarem até a fertilidade, é, no m eu entendim ento,
p o rq u e este abraçar novam ente a vida recebida com tudo que ela
tra z p erm ite tran sm iti-la, p o r sua vez, ao curso do rio natural,
no qual a pessoa aceita com benevolência o b arquinho que lhe foi
dado a nav egar e d en tro do qual co m p artilh a sua vida.
“A vida abre cam inho sem p ed ir licença”, dizia R am ón Re­
sino. Q uando o velho sinceram ente, já não serve, o novo encon­
tra seu lugar, pelo puro m ovim ento evolutivo in eren te à própria
vida.

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C onsidero que p e rc o rre r este im enso processo - apaixonan-
te e com ovedor —é a m aior vitória que poderem os o b ter ao nos
iniciarm os na a rte de rir de nós m esm os.
Porque a pessoa se habita p o r com pleto, ocupa sua casa in­
teira, pode ab rir p o rta s e jan elas e dizer ao m undo: “Vejam! E sta
é m inha casa e está de novo habitada! Aqui vive alguém que vale
a pena: eu! Se são am igos, podem en tra r, p o r um tem po m ais ou
m enos longo; eu lhes convido. E sta é m inha casa e é preciosa,
in d ep en d en tem en te de com o foi co n stru íd a, é m inha e eu m oro
nela, com to d a consciência e com m uito o rg u lh o ”.
Bailando com as som bras, voltam os p ara casa. E v o ltar p a ra
casa é co n v e rter nosso passado em nosso patrim ônio. Com o este
percurso, a pessoa se to rn a, de algum a form a, invencível, p o rq u e
se enraíza no m ais íntim o de si m esm a e ex trai, com suas p ró ­
prias mãos, a p lan ta da vida desde o fundo dessa m esm a te rra . A
pessoa se assen ta sobre algo que é seu e único, algo que lhe tem
tran çad o tal com o ela é, com o n in g u ém m ais a conhece. A lgo
que, depois de ser visto, indagado, p erco rrid o e finalm ente reco­
nhecido com o próprio, tran sfo rm a suas circunstâncias pessoais
p ara m uito além de um a re s trita classificação em boas ou más,
em uma fonte de inspiração, g ra tid ã o e conhecim ento. A inda que
essa tarefa term in e som ente uns segundos antes da nossa m orte,
eu acredito que, en q u an to a realizam os, nosso potencial criativo
se m ultiplica, n o ssa consciência nos faz m ais hum anos, e assim
vam os buscando com o m undo a m élh o r relação para o bom de­
senvolvim ento dos dois. Podem os crescer n a reciprocidade que
alim en ta e satisfaz a ambos, serm os úteis p ara o m undo e, em
troca, receber dele sua generosa com pensação.
A lgo em nós se to rn a certo e, de algum a form a, nos to rn a
indom áveis, tan to que assim podem os, finalm ente, realizar aqui­
lo p ara o qual fom os cham ados à vida e p ara o qual nos fizeram
nossos pais, verd ad eiram en te com a m elhor intenção, ainda que
nem sem pre - e pode ser que talvez nunca - nos ten h am conse­
guido d izer isso.
A o em p reen d er essa viagem , algo acontece; as coisas se
aju stam e sim plesm ente alcançam os um a vida m ais plena. Eu
desejo que este livro, em m aior ou m enor m edida, ten h a podido
contribuir, ou pelo m enos d a r pistas ao leitor, p a ra que tu d o isso
aconteça em sua vida, e ju n to s possam os celeb rar nossa bendi­
ta trag ico m éd ia particular. Q ue da celebração côm ica de nossa
san ta seriedade nos venham calm a e sossego. Que, com um riso
lúcido e sonoro, possam os v estir nosso coração com a luz do
n ariz verm elho, e que essa luz brilhe sem pre, até nas noites mais
escuras, com o um farol de fé e lucidez nas costas da alm a, e ilu­
m ine nosso cam inho de volta p a ra casa.

146
plante uma arvore
N ão h á tem a mais universal nem mais
intem poral que a estupidez hum ana, sua
fúria egocêntrica e sua torpeza no viver,
seu m edo do am or e da liberdade. N ão há,
p ra mim, fonte mais generosa nem mais
enternecedora para alim entar nosso im a­
ginário e liberar nossa criatividade do que
a celebração livre e poética, consciente e
compassiva da nossa tragicom édia particu­
lar: este desesperado desejo de sermos nós
mesmos e de encontrar um sentido tangível
p ara nossa curta e insignificante presença
pessoal sobre a face da terra. Acredito que
seja m uito saudável exercitar essa hum ilda­
de coletiva e, assim, devolver à nossa santa
seriedade seu justo lugar. Clown Essencial é
o sorriso do coração quando este, depois
de muito lidar com as batalhas de chorar e
rir, descansa, por fim, em algum lugar que
vai além de qualquer emoção, e recebe com
acolhim ento seu genuíno pertencim ento ao
poderoso rio da vida.
TERAPIA E ARTE SE UNEM NA CELEBRAÇÃO DA
TRAGICOMICIDADE DA VIDA, DAS MÃOS DE UM
CÉLEBRE PALHAÇO DEDICADO A CURAR FERIDAS
ATRAVÉS DO HUMOR.

“Alain Vigneau não é somente um hom em de grande talento, mas tam ­


bém um exímio artista inspirado p o r um a missão. Precisou aprender a rir
em resposta à dor da sua infância, e desde então passou a ensinar outras
pessoas a fazerem o mesmo. N ão somente m anter a alegria n a presença
da dor, mas tam bém am ar a si mesmos.”
C lá u d io N a ra n jo

“Eu espero poder ter em breve a oportunidade de participar de algum


trabalho de Alain Vigneau e, com sorte, rir compassivamente de m inha
própria estupidez, e, quem sabe reconhecer e desfazer-me de algum pacto
infantil que ainda se m antém tirânico, e alcançar um pouco esse sorriso
do coração que percorre todo o livro junto com um a grande ternura,
hum or e profundidade. Digo de coração que Clown Essencial é um a joia
preciosa.”
J o a n G a rrig a

“Alain Vigneau, com sua delicada poesia, nos oferece um nariz verm e­
lho para reconciliar nossa grandeza infinita e miséria infinita. C ada pági­
na desse livro honra a alm a da nossa criança interior e do nosso adulto,
do palhaço e do poeta que todos levamos dentro. De sua m ão é possível
am ar nossa som bra e fazer com que dela nasçam sorrisos de compaixão
e criatividade.”
J u a n C a rlo s C o ra z z a

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' ISBN 9788553350025 '

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