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Essencial
a arte de rir de si mesmo
ALain Vigneau
A tor e clown, Alain Vigneau (Francia,
1959) é fundador e diretor da com panhia de
teatro La Stravagante, professor de Teatro e
Clown no curso de Arte terapia da A E C /
U V IC (Barcelona), cofundador do centro
Consciência e artes Cênicas de Puebla de los
Angeles (México), e colaborador em diversos
centros de desenvolvimento pessoal e artísti
cos em E uropa e Am érica Latina. Iniciado
p o r Rosine Rochette n a união entre clown
e Gestalt, é discípulo e colaborador de Dr.
Cláudio N aranjo nos program as SAT de Es
panha, A lem anha, México, França, Rússia,
Estados Unidos e Brasil. Artista colaborador
de Palhaços em Fronteiras, realizou muitas
atuações em G uatem ala, El Salvador, N ica
rágua, N am íbia e Indonésia, levando o riso
a m ilhares de pessoas, desde os grandes festi
vais até os lugares mais distantes do planeta.
Alain Vigneau
Clown Essencial
a arte de r ir de si m esm o
voltando p ara
casa pelo cam inho
do hum or am oroso
Ia edição
13Edição
E d ito ra K alango
R od Ba 093 K m 07 C p 029 - Sim ões F ilho, Ba - 4 3 7 0 0 -0 0 0
c o n ta to @ E d ito ra k a la n g o .c o m .b r
w w w .e d i t o r a k a l a n g o .c o m .b r
Dedicado a minha esposa Leda Oliveira dos Santos,
a nossa querida andorinha Ainara,
e a todos Hotxuás (palhaços sagrados) do Brasil.
Agradecimentos
Aos meus pais, Claude Vigneau e Josette
Costedoat, que me entregaram a vida com a
melhor das intenções.
À minha esposa Lêda Oliveira dos Santos,
por seu amor e benevolente paciência ein
compartilhar-me com tanta gente.
A minha amiga Guadalupe M aurer Espinosa,
por me deixar as chaves da sua casa de infância,
onde me retirei para escrever este livro.
Sumário
PREFÁCIO 9
PRÓLOGO n
APRESENTAÇÃO 13
CAPÍTULO 1 CAPÍTULO 7
A CELEBRAÇÃO DA A POÉTICA DO
TRAGICOMICIDADE DO SER SIMBÓLICO 61
HUMANO 19
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 2 AS ÁGUAS CLARAS DA
AS FERRAMENTAS DO CLOWN INFÂNCIA 79
ESSENCIAL 25
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 3 O EGO EM JOGO 91
O OLHAR DO OUTRO 33
CAPÍTULO 1 0
CAPÍTULO 4 O CORPO
A PROPRIEDADE DO GENEALÓGICO 103
INÚTIL 39
CAPÍTULO 1 1
CAPÍTULO 5 O CONTRATO COM
O ECO DO MUNDO 45 DEUS 115
CAPÍTULO 6 CAPÍTULO 1 2
O ABRAÇO ANCESTRAL 53 O CONSOLO DA ALMA
CAPÍTULO 1 3
BAILANDO COM AS
SOMBRAS 139
PREFÁCIO
9
tivessem ju n to s o g u ard a de um a prisão, que havia p erm itid o a
en tra d a de um g ru p o de hom ens na cela de um a m ulher à qual
p reten d iam violentar, e a p ró p ria m ulher, que conseguiu m atar
aqueles hom ens. M as A lain insistiu que participassem ju n to s em
um g ru p o seu. E, sem o u tras arm as além da doçura, da com
p reensão e da sinceridade, conseguiu tocá-los profundam ente.
N ão m e parece que devo acrescen tar nada ao que o p ró
prio A lain já disse sobre seu trabalho. E u o aprecio en orm em en
te com o alguém que privilegia o resg ate da criança in te rio r das
pessoas e, através disso, a recuperação do am or que, antes de
esten d er-se aos dem ais, deve com eçar p o r si mesm o. M as assim
com o é difícil re d u zir em fórm ulas o trab a lh o de um verdadei
ro artista, creio que tam pouco se deva esquem atizá-lo de form a
teórica.
Hoje em dia, A lain é alguém que não apenas ri p ara não
te r de sofrer, m as um a pessoa que tam bém resg ato u o sofrim en
to do seu passado. E isso não invalida o que teve de ap ren d er
desde criança p ara viver com a experiência de algo terrível. A s
sim com o um g rã o de areia cria um a irritaç ão na o stra da qual
se defende tran sfo rm an d o -a em um a pérola, ocorre no m elhor
dos casos que aquilo de que necessitam os p a ra atravessar nosso
sofrim ento não so m en te sirva a nós m esm os, m as tam bém aos
demais. P areceria, inclusive, que por tal capacidade de serviço se
ju stificaria o m al que atravessam os.
U m a ú ltim a coisa: sem pre soube que A lain era um g ra n d e
clown e um a pessoa que ajuda aos o u tro s a se curarem p o r meio
da aprendizagem de sua arte, mas, ao ler este livro, dei-m e conta
de que tam bém é um poeta - e, em bora isso não me ten h a su r
preendido, fiquei m uito feliz.
C l á u d io N a r a n jo
io
PRÓLOGO
n
Pois bem. M in h a mãe, de g ra n d e sensibilidade artística,
am ava pintar. P in tav a palhaços, com chapéus de alta copa e ale
g re s g rav atas borboletas. Porém , foi assassinada, deixando subi
tam en te seus palhaços sem nenhum a m usa, tristes a m o rre r de
ta n ta orfandade.
Eu sobrevivi e, e n tre utopias e silêncios, cheguei até a ado
lescência. Com o coração sem âncora e ten d o com o bússola a fé
em m eus sonhos. F ugi, abandonei os estudos e me to rn ei p a sto r
de ovelhas. B uscava nas m ontanhas um lu g a r fora do alcance de
m inha d o r e de m inha loucura, e assim perm aneci escondido p o r
m uitos anos. M as a lo u cu ra finalm ente m e en co n tro u e tive de
v o ltar ao m undo. E n tã o me fiz palhaço, com esperança de p o d er
co n v erter m eus to rm e n to s em um a a rte que m e devolvesse a
infância roubada. A ssim o fiz e, com o p assa r dos anos, fui ad
qu irin d o um bom conhecim ento sobre os m ecanism os do h u m o r
e da vergonha. Pouco a pouco, tal conhecim ento foi desenhando
um m apa cada vez m ais conciso que, p o r sua vez, e com o tra n s
c o rre r de m ais anos, foi m e convertendo em um intuitivo acom
p an h a n te terapêutico. A té que um dia realizei um trab alh o com
pessoas que se enco n trav am presas p o r assassinato e coloquei
nelas um n ariz de palhaço. Elas se viram despidas e choraram .
E u tam bém chorei. Fechou-se o ciclo, eu en tre i nele e m e fui.
E ste é o livro.
12
APRESENTAÇÃO
>3
m e cham ou à atenção a evidência do sofrim ento hum ano, m as
tam bém a esperança e a busca co m u n itária da felicidade p o r
todas as pessoas. P ro g re ssiv a m e n te e de form a natural, fui me
dando conta de que, basicam ente, e em todos os cantos do pla
neta, são as m esm as coisas que nos causam d o r e sofrim ento e,
tam bém , pelos m esm os m otivos sentim os felicidade e bem -estar.
M as além das nossas evidentes diferenças culturais, as m esm as
dores e as m esm as aleg rias m arcam nossos ro sto s e corações de
igual form a. E ssa convicção foi alim entando m inha criatividade,
e as m ilhares de pessoas que em todos esses anos assistiram aos
m eus espetáculos se foram encontrando, p o r um breve m om en
to, num espaço com um , feito de hum anidade e emoção.
Com o especialista no m anejo das fe rram e n ta s próprias que
conjugam o h u m o r e a a rte cênica, ten h o acom panhado cen te
nas de pessoas, desde o Sul do Brasil até o N o rte do M éxico,
B arcelona, Rom a, B ruxelas, de San F rancisco a M oscou, M adri
ou Paris. Cada vez ten h o tido a o p o rtu n id ad e de assom brar-m e
da m isteriosa alquim ia das pessoas, assim com o de sua com um
inquietude pela aceitação de si m esm as, p o r sua busca de poder
p erte n cer ao m undo e o descanso que isso lhes traz.
F oram m uitas experiências que n u trira m m eu p ró p rio cu r
rículo artístico profissional, afinando m inha percepção e am
pliando m inha visão. T odas elas se foram entrelaçando com
m eu p ró p rio processo terapêutico pessoal, desenhando um m apa
sem pre em m ovim ento, porém , de n o rte cada vez m ais seguro.
Ao ch eg ar a este m om ento da m inha busca p a rtic u la r no univer
so do clown com o enfoque revelador da personalidade, senti a
necessidade de fazer um a pausa e colocar no papel um pouco de
tudo q u an to havia observado ao longo desses anos.
E xistem no m ercado m uitos livros —assim com o m uita in
form ação na in te rn e t — sobre terapias de índole artística, nas
14
quais a rte e d esco b erta pessoal dialogam , usando num erosas e
diversas técnicas, de enfoques e en q u ad ram en to s distintos. A in
da que em m en o r m edida, o leito r poderá, inclusive, e n c o n tra r
tex to s sobre clowns, palhaços e o u tro s a rtista s do riso e do au-
toconhecim ento. Porém , não encontrei nenhum te x to que falas
se sobre o que ten h o visto em todos esses anos de viagens e
encontros. F o ram ta n ta s as pessoas que foram se aproxim ando
do Clown Essencial, de condições, form ações, profissões, cu ltu ras
ou religiões distin tas, buscando um m esm o bem -estar, que me
pareceu im p o rta n te decifrar aquela m isteriosa alquim ia e com
p a rtilh a r com o g ra n d e público as vivências de um a aventura
que, p ara m uitos dos participantes, re su lto u em algo que desen
cadeou um a m udança significativa em suas vidas.
T en h o dedicado os últim os 15 anos de viagens e acom pa
nham en to de g ru p o s a in v estig ar e a refletir sobre um a ques
tão central: P o r que e, sobretudo, com o fazer p ara rir de nós
m esm os? C om o fazer isso de um a form a saudável e benéfica?
Como am arm os ta n to a nós m esm os que possam os rir de nos
sos so frim entos e glórias com a m esm a doçura, com a m esm a
com paixão? Com o reco n q u istar o consolo do hum or am oroso
para cu rar feridas que foram causadas, algum as delas, pelo hu
m or sarcástico, hu m ilh ante dos o u tro s? Como re c o n s tru ir em
nós, atrav és do hum or, o que o u tro s d estru íra m com a m esm a
ferram en ta? P o rq u e a raiva, a d o r ou o m edo tam bém podem
ser tran sm itid o s encobertos de risos e piadas: Com o um presen
te envenenado sob um papel cintilante, disfarçam -se da m esm a
m aneira e com peculiar sutileza de hum or corrosivo, invasivo e
cruel, que fere e se crava no o u tro com o um golpe certeiro com
um punhal afiado, assim com o o h u m o r irônico que envergonha
e deprecia sem p u d o r nem piedade. São arm as m ortíferas, que
deixam um tris te cortejo de cicatrizes em q u alq u er alm a sen
15
sível. Assim , quais são as gargalhadas que podem dissolver as
couraças do ego, apaziguar os m onstros, c u ra r as feridas m ais
íntim as e devolver-nos nossa verdadeira essência? Q ual o lu g ar
em nosso coração de onde b rotam lág rim as e risadas num a m es
m a ex pressão de vida?
Com o ap o d erar-se do riso com o um fiel em baixador da vida
e aceitar que celebrá-la a p a rtir do hum or (o bom hum or!) é tam
bém re sp eita r sua dim ensão m isteriosa, d olorosa e, geralm ente,
p ro fu n d am en te trág ica? Com o ab rig a r em nosso coração, com
profundidade e valor, essas dim ensões da existência, ap a ren te
m ente tão d istan tes um a da o utra? C om o festejar com a leg ria
a v erg o n h a que nos envolve até con v ertê-la em um a p o n te de
união com o m undo? Com o devolver ao nosso ser toda a sua
d ignidade e o p o d er de pertencer, e de celebrar, ao m esm o tem po,
suas p ertu rb açõ es e patetices?
Se é certo que a m aioria de nós vive com a difusa sensação
de estarm o s exilados de nós m esm os, qual é o hum or, tão p ró x i
m o do am or, que nos pode m o stra r o cam inho de volta à nossa
casa in terio r? U m sábio anônim o disse, com g ra n d e lucidez, já
faz m uito tem po: “B em -aventurados os que riem de si m esm os,
p o rq u e nunca lhes faltarão m otivos p ara rir ”. Com o alcançar tal
n irv an a? U m n irv an a onde reina a consciência clara e simples,
capaz de en te n d e r um a bela garg alh ad a com o a expressão so
nora de um o lh ar que en x erg a o m ais p ro fundo da vida e das
pessoas, e que, depois do barulho dessa sua gargalhada, convida
ao silêncio e ao co n ten tam en to .
T ais são as p e rg u n ta s que alim en taram m inha vontade de
escrever este livro, com a esperança de que em suas páginas flo
resçam algum as respostas.
H á lug ares no m undo de onde olham os o céu, e outros, m ui
to m enos freqüentes, de onde o céu é que nos olha. O povoado
ió
de C holula, no M éxico, é um desses lugares. Acim a de sua antiga
pirâm ide, o a r suave, a im ponente presença do vulcão Popocaté-
petl, a luz do entardecer, as dezenas de pipas de papel dos m eni
nos voando no céu... Ali tudo su ssu rra a nossos ouvidos palavras
que so m en te nossa m ente pode decifrar. U m discurso de sons,
cheiros e im agens exclusivam ente acessíveis. C ontudo, se neste
m om ento silenciam os nossa m ente, nosso coração suspira e in s
tin tiv am en te sorri.
D a m esm a form a, desejo que o coração do leito r possa s o rrir
em algum m o m en to da sua viagem ao longo dessas páginas, e
que este liv ro fale à sua intuição, à sua im aginação, à sua criativi
dade laten te, à sua sensibilidade hum ana, ao seu curioso coração,
m ais que à sua m en te racional. Q ue em algum lu g ar de seu m un
do in te rio r ele ressoe suavem ente, com a esperança de que essa
p a rte in tu itiv am en te sábia que todos trazem os d en tro de nós
saberá ca p ta r os sinais em itidos pelas palavras, pelos silêncios
e pelas estó rias aqui descritos. A ssim , espero que o le ito r possa
se reco n h ecer nessas linhas e en co n trar, na leitu ra de cada uma
delas, m otivos suficientes p ara re n o v ar sua relação de am o r g e
nuíno consigo m esm o, sorrin d o da sua m ediocridade e olhando
com claridade, profundidade e benevolência para suas som bras,
dem ônios e o u tra s p edras nas quais costum a sem pre tropeçar.
M in h a abordagem é b astan te arte san al e tenho pouco in te
resse pelas explicações teóricas; desejo do cu m en tar e testem u
n h ar a realidade dos processos de m udança que tenho v isto nas
pessoas, tan to s “pequenos m ilagres" que tenho presenciado du
ra n te as sessões de Clown Essencial. E ste é o testem u n h o de um a
viagem ex p erim en tal na qual o le ito r e n c o n tra rá m eus pensa
m entos, investigações e com preensões sobre o processo terap êu
tico através do clown, assim com o algum as considerações téc
nicas básicas desse trabalho. Os títu lo s dos diferentes capítulos
i?
são associações de palavras nascidas no tra n sc u rso do trab alh o
e que, pouco a pouco, ao longo de sucessivos en co n tro s com os
particip an tes, foram to m an d o corpo e plena significação, até che
g ar a definir poeticam ente, m as com b astan te clareza, aspectos
co ncretos dessa busca.
G o staria de p o n tu a r que, se ten h o usado na m aioria das ve
zes a palavra “m enino”, no m asculino, é unicam ente para sim pli
ficar a leitu ra, e obviam ente esse te rm o deve ser lido com preen
dendo tan to seu sentido fem inino qu an to m asculino.
P or fim, g o staria de dedicar este livro às centenas de pes
soas que em m im confiaram para navegar ju n to s pelos incertos
m ares do Clown Ksse.7ic.ial. M unidos apenas de um nariz de pa
lhaço, pequena m áscara verm elha b rilh an te com o um farol que
ilum ina nossa busca p o r e n c o n tra r um lu g ar de descanso, e sem
nenhum a o u tra bússola, com fé em que um a profunda aceitação
de nós m esm os nos levaria até as doces águas de um a vida m ais
plena, en tre g ara m -m e sua confiança e carinho para realizarm os
ju n to s essa m aravilhosa viagem . Com isso, fizeram de mim um
m arin h eiro expert em estrelas, ventos e m arés, e um hom em ple
no de gratidão.
D edico tam bém ao m eu m estre C láudio N aranjo, que sem
pre confiou em m im m uito mais que eu m esm o, m o stran d o -m e o
cam inho ainda invisível aos m eus olhos, tendo sido o p rim eiro a
in cen tiv ar-m e a d o cu m en tar m eu trabalho.
CAPÍTULO 1
A C E L E B R A Ç Ã O DA T R A G I C O M I C I D A D E
DO S E R H U MA N O
19
que n inguém ousava form ular, a rid icu larizar os m ais hipócritas
co m p o rtam en to s hum anos e os pom posos ares de glória, reve
laram a céu ab erto ru m o res que os hom ens prefeririam silenciar
d en tro de si, e celeb raram que, de algum a m aneira, esse negócio
de viver, de nascer e de m o rre r carece ce rtam en te de sentido e,
p o rtan to , de seriedade.
Ao eq u ilib rar as forças em jo g o na sociedade e seus equiva
lentes, g an h aram de form a n atu ral o d ireito de sobreviver à fúria
real, de escapar da condenação social, e obtiveram a benevolên
cia até m esm o dos deuses, p o r m ais cruéis que estes fossem. F a
zendo da irreverência sua profissão e das trevas do espírito hu
m ano sua m o rad a habitual, d iv ertin d o -se sem p u d o r nem m edo
nas cloacas dos p ensam entos m ais secretos de nobres e súditos,
o b servando e re p ro d u zin d o sem tabus nem m oral os vícios es
condidos de seus contem porâneos, celeb raram e festejaram que
até as som bras m ais loucas são p arte do ser hum ano.
T ais p erso n ag en s foram respeitados, protegidos, adm irados;
porém , foram so b retu d o adm itidos. Com o quem não se atreve a
d e sp e rta r um sonâm bulo ou com o quem não pode c o rrig ir com
severidade os m odos ex tra v ag an te s de um deficiente m ental. O
que acontece é que o m undo tem necessidade da presença desses
seres, deixando-lhes assoviar os seus desejos com o exóticos pás
saros num a gaiola, usar e abusar de suas vaidades e até m esm o
in frin g ir certas re g ra s sociais ou religiosas.
E u m esm o ten h o com provado isso várias vezes em m inha
ca rre ira de palhaço profissional. Q uando a polícia parava m eu
ca rro — sem pre carreg ad o de estram bólicos adereços —p ara al
gum a fiscalização ro tin eira, nunca deixavam de p erg u n tar, m ui
tas vezes em tom de surpresa: “E você, com o que trab a lh a?”.
E a m inha re sp o sta — “eu sou palhaço” — sem pre desencadeava,
invariavelm ente e em p rim eiro lugar, um o lh ar incrédulo, acom
20
panhado de um m eio so rriso na boca do agente da lei - em bora
a o u tra m etade da boca se sacrificasse no a lta r da seriedade re-
gim entar. T u d o isso g eralm en te seguido de p erg u n ta s sobre um
oficio tão estran h o . Recebi até conselhos p atern alista s p ara que
eu m udasse de profissão, ou pelo m enos deixasse de te r de via
ja r ta n to p a ra realizar m eus espetáculos: “Você deveria atu ar em
lug ar fixo, e não viajar tanto!”, disse-m e ce rta vez um policial.
N ão segui seu conselho e, pouco tem po depois, en co n trav a-
me em B anda A ceh (Indonésia), onde o tsunam i de dezem bro de
2004 havia devastado um a província inteira, deixando m ilhares
de vítim as. A tuei nos cam pos de refugiados que pouco a pouco
foram co n stru in d o os sobreviventes daquele cataclism o. O único
lug ar onde se pod eria a p resen tar um espetáculo —p o rq u e tin h a o
piso feito de m adeira e era elevado sobre o te rre n o —era um es
paço reserv ad o a cultos e, p o r m otivos religiosos, não se poderia
pisar ali com sapatos. L em bro de com o o im am e nos livrou dessa
obrigação e nos p erm itiu e n tra r no recinto com nossos enorm es
e e x tra v ag an te s sapatões, sob o o lh ar incrédulo do público ali
reunido, descalço.
N o u tra ocasião, em N am íbia, num a viagem de ap resen ta
ções p ara a O rganização N ão G o v ern am en tal (O N G ) Palhaços
Sem F ro n te ira , pude me livrar, no ae ro p o rto da capital, da m ulta
co rresp o n d en te ao excesso de peso de m inha bagagem artística
com um a breve rep resentação de alguns pequenos núm eros. A
pedido dos p ró p rio s agentes de co n tro le aduaneiro, m inhas pa
lhaçadas se to rn a ra m m oeda de tro ca p ara os quilos a m ais de
nossas caixas. E se, atuando em um teatro de Libreville, capital
de Gabão, no m arco das atividades cu ltu rais da E m baixada E s
panhola, fiz-m e levar nos braços pelo próprio em baixador com
toda a carg a côm ica que a cena inevitavelm ente gerou, foi p o r
21
que antes eu já m e havia ridicularizado a m im m esm o o suficien
te e à vista de todos.
N unca deixou de su rp reen d er-m e ver com o m inha profissão,
dedicada a “d e sd ram atizar” a condição hu m an a e seus afazeres, a
d essacralizar nossa insignificante seriedade, to rn o u -se um a es
pécie de laisser passer, d esp ertan d o um a clara benevolência - às
vezes adm iração —, com o se os côm icos seguíssem os sendo uns
seres estran hos, meio e x tra te rre ste s, m eio loucos e, definitiva
m ente, meio sábios. Em q u alq u er caso, um a espécie à p a rte que,
por algum invisível — porém firm e — c o n tra to com a sociedade
que nos cerca, tem direito a p rerro g ativ as especiais, perm issões
exclusivas e dem ais privilégios, visto ser p o rta d o ra de um ele
m ento sag rad o da vida hum ana: o hum or.
Sem te rre n o s proibidos nem tem as tabus, a função m ais p ro
funda do h u m o r é ju sta m e n te a de apagar as diferenças e n tre o
aleg re e o triste da vida, e n tre o g ra n d io so e o ridículo da con
dição hum ana, reu n in d o esses conceitos sob o m esm o aspecto
de considerações, um a espécie de celebração últim a, num a só e
sublim e oferenda à tragicom icidade hum ana: o sorriso do cora
ção. U m so rriso consciente, hum ilde, m as b rilhante, que aceita
e concorda, abaixa a cabeça e levanta o o lh ar para celebrar que
tam bém , p o r pior que as coisas estejam , assim som os e assim são
as coisas. Sem dúvida, é necessário p ara isso aproxim ar-se das
feridas; é preciso refo rçar a fé na vida e na sua ordem caotica
m ente perfeita. H á todo um cam inho a p e rc o rre r (que no Clown
Essencial denom inam os de “o cam inho do clow n), suavem ente
acom panhado, passo a passo, sem pressa, p ara que o indivíduo
possa ch eg ar à capacidade de aceitar se r com o é e ser o ato r p rin
cipal de um a d esco n certan te epopeia. Q uando finalm ente isso
acontece, o riso se tran sfo rm a em canto do coração e bálsam o
da alm a, n um a com passiva celebração de nossas polaridades e
contradições.
Q uando, p o r fim, chega-se a esse ponto, algo d en tro de nós
se en treg a, um esforço se dilui, algo instintivo nos devolve à nos
sa ju s ta m edida. F az-nos m ais parecidos uns com os o u tro s e cria
uma catarse in te rn a que afugenta nossos piores dem ônios: os da
solidão e da v erg o n h a de ser com o somos. Ver nossas m isérias
em cena e p e rm itir que possam os rir dessa nossa p a rte que está
lá sendo re p re se n ta d a tem um efeito transform ador, com o se p o r
isso já não fôssem os tão maus, nem tão m esquinhos, tão im por
tan tes ou tão azarados. S urge um a visão m ais equilibrada, real
e hum ana de nós m esm os, liberada de falsas im portâncias, ridí
culos o rg u lh o s e g ra n d eza s ilusórias, incitando-nos a ocupar um
lug ar m ais sereno d en tro de nós m esm os. T enho visto pessoas,
no Clown Essencial, dar-nos tu d o isso em um só o lh ar pausado,
daqueles que chegam d iretam en te da alm a do público com o um a
flecha que alcança o cen tro do alvo. A beleza de um m om ento
dessa n atu re za é tal que deixa fora de lu g ar qualquer palavra ou
intenção de não ser alcançado pela verdade escancarada diante
da pessoa.
Q uando alguém , sem nos m o s tra r um dedo acusador nem
nos co n d en ar aos infernos, lança luz sobre nossos segredos, des
vela nossos co m p o rtam en to s inconfessáveis, legitim a nossas do
res íntim as; q u ando se faz eco de tudo aquilo que fica silenciado,
levando-nos a rir de tu d o que está escondido em nós, devolve-se
a dig n id ad e a nossos próprios olhos. D essa form a, traz -n o s de
volta a sensação de p erten cim en to e, de form a im plícita, devolve-
nos um lu g a r ju s to na ordem das coisas e da vida.
D as ta n ta s experiências que m e tem oferecido m inha c a rre i
ra profissional de clown, tenho percebido, tam bém , com o antes
já o fizeram m eus an cestrais bufões, palhaços e loucos sagrados,
23
algo sobre essa necessidade universal de rirm o s de nós m esm os:
m e dei conta de que nós rim os das m esm as coisas em todas as
p arte s do m undo e de que choram os pelo m esm o em todos os
lugares. D e algum a form a, todos rim os e choram os no m esm o
idioma.
Não há tem a m ais universal nem mais in tem p o ral que a es
tupidez hum ana, seu fu ro r egoico e sua to rp ez a ao viver, seu
m edo do am o r e da liberdade, sua intenção de parecer algo que
não é ou seu esforço para esconder d e n tro o que se é de ver
dade. C heguei a co g itar que talvez não sejam os tão diferentes
e n tre nós com o pensam os e que haja m ais coisas que nos to rn am
iguais do que aquelas que nos diferenciam , se é que desejam os
p re s ta r atenção a essa ideia. E m b o ra isso ocorra, não há, a m eu
ver, fonte m ais g en ero sa nem m ais e n te rn e c e d o ra para alim entar
nosso im aginário e lib era r nossa criatividade do que a celebração
liv re e poética, consciente e com passiva, da nossa tragicom édia
p articular: esse desesperado desejo de serm os nós m esm os e de
e n c o n tra r um sen tid o tangível para nossa c u rta e insignificante
presença pessoal sobre a face da T erra.
C A P ÍT U L O 2
AS F E R R A M E N T A S DO CLO W N E S S E N C IA L
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te, às vezes asso m brosam ente rápida. Q uando isso acontece -
m esm o que talvez só se possa ca p ta r p o r uns poucos segundos
no o lh ar suspenso e n tre atores e público, no silêncio su sten tad o
d ian te do g rupo, em um so rriso p o r baixo do nariz verm elho —,
a pessoa percebe com to ta l claridade a g ra n d e z a do m om ento.
T en h o visto pessoas m udarem e seus ro sto s se tra n sfo r
m arem em p ra zo de tem po reduzido, sim plesm ente p o rq u e dei
xam cair a m áscara do ego, da farsa do p erso n ag em cotidiano, e
tam bém deixam de em p reg ar en erg ia em su ste n ta r essa figura.
Q uando alguém sente que pode se pertencer, sendo com o é, com
sua bagagem , com suas luzes (tão expostas), porém tam bém com
suas som bras (tão m antidas na obscuridade da intim idade), en
tão este alguém , im perceptivelm ente, relaxa-se, o suficiente p ara
que a en ergia flua novam ente e que a respiração, tan to tem po
afogada, renasça em um sim ples suspiro. A pessoa se sente li
vre de esconder, de ta p a r com esforço seus segredos. Já não é
necessário. D e algum a form a, o indivíduo vai, pouco a pouco,
ap o derando-se de sua p ró p ria tragicom édia. É um processo len
to, às vezes doloroso, e m ais de urna vez ten h o visto os pequenos
narizes de plásticos se tran sfo rm arem em depósito de m eleca e
lágrim as. P orque a m áscara revela tan to , p o rq u e é delicado en
sin ar tão de re p en te e d eixar e n tra r a luz onde sem pre reinou a
escuridão; parece ser com o d ar um salto no vazio. A inda assim a
pessoa nos oferece seu sorriso, su sten tan d o -o com o o lhar ab erto
que su rg e quando coloca a m áscara da com icidade. E ssa m ínim a
m áscara que tap a ju s to o suficiente do m eu ro sto p ara que me
possa atre v er a sen tir-m e outro, som ente o necessário p ara que
eu possa falar de m im desde o u tra identidade: “Veja: não sou eu!
E ele, é ela que lhes conta o que aconteceu comigo! E, em seu
olhar, p erm ito que vocês m e descubram um pouco mais; em seu
2S
gesto, descubro algo m ais dos m eus castelos, dos m eus sonhos,
das m inhas b atalh as”.
U m elem ento tam bém im p o rtan te nessa av en tu ra é o uso
da m úsica com o “acelerador de íons”! W illiam Shakespeare, que
antes de tudo era um hom em do teatro , disse acertadam ente: “A
m úsica é o alim en to da alma, o re sto é silêncio”. Só um g ra n d e
conhecedor do esp írito hum ano com o ele poderia en te n d e r tan to
sobre o alcance da música. Com esse m esm o objetivo em pre
gam os a m úsica em Clown Essencial, p erm itin d o que, de form a
fluida, a pessoa seja levada p ara além de suas lim itações m entais,
insp iran d o -a em sua evolução cênica e acendendo nela todo o
seu potencial criativo. P ara aquele que abre as janelas do coração
e deixa a m úsica p e n e tra r em cada esconderijo secreto do seu
interior, re su lta m uito m ais fácil a en tre g a ao re ssu rg im e n to de
uma em oção lib erad o ra de um m ovim ento co rp o ral sem lim ites,
capaz de nav eg ar para mais além dos re g istro s habituais e das
proibições infligidas pela m ente cotidiana. Q uando a m úsica fala
diretam en te com seu corpo, a m ente se acalm a e a inspiração
volta a to car à nossa porta.
O que d istin g u e claram ente o Clown Essencial de o u tras li
nhas de trab a lh o do universo do clown — talvez m ais p u ristas
ou trad icion ais — é que aqui a busca é global, perm itin d o que
a pessoa se revele em seu sentido m ais com pleto, na busca p o r
um a am pla in teg ra ção consigo m esm a. P or isso esse trabalho, às
vezes, ap ro x im a-se m uito do bufao, este ser mais livre, que não
tem e o g ro tesc o nem a livre ex pressão da verdade. E n q u an to
o u tras linhas de exploração buscam re ssa lta r a inocência, a vul
nerabilidade da pessoa através do clown, aqui o convite é outro.
Além desses com ponentes já m encionados, buscam os celebrar
a totalid ad e do ser, com tudo que ele possui: luzes e som bras,
purezas e lu x ú rias variadas, bondades e m aldades - tu d o da m es
29
m a form a. A qui, falam os de v estir um n ariz verm elho, falam os
dessa nossa p a rte m enos capacitada para viver bem, p ara viver
com o todo m undo, p ara en carar as n o rm as sociais, da nossa p a r
te não so m ente m ais ingênua ou m ais calm a, com o tam bém de
todas as que conform am o leque de nossas som bras, tão escon
didas no fundo de nossa intim idade, tem erosa de ver-se assim
tran sb o rd ad a p o r sem elhantes energias. A qui são benvindos os
m edrosos, os rígidos, os tím idos, os orgulhosos, os entediados,
os p ertu rb ad o s, os confusos e os invejosos. T odos escondem o
m esm o m aravilhoso potencial côm ico em seu interior, p o r m ais
sérios que se vejam a si m esm os em sua vida cotidiana. Eu não
en co n trei pessoa nenhum a que não o tivesse. Inclusive, pode-se
d izer que, q u an to m ais séria seja a pessoa, m ais côm ico será o
seu clown: da seriedade com o nariz verm elho surge, de form a
su rp reen d en te, um a form osa cum plicidade conciliadora, assim
com o tam bém su rg e da emoção, porque é n orm al, em Clown E s
sencial, num m om ento chorarm os do riso e, no m inuto seguinte,
rirm o s do p ran to , num in stan te de g ra n d e benevolência, abrindo
espaço p ara tu d o que su rja do nosso interior, sem nenhum tipo
de ju lg am ento. L em bro-m e de um dia, quando um a p articip an te
chorava. Ofereci a ela um lencinho de papel, e continuou ch o ran
do. Comecei a despejar sobre ela a caixa in teira, com o se nevasse
lencinhos, e eram ta n to s que ela não poderia usá-los todos; eles
se foram am ontoando ao seu re d o r com o tarefas acum uladas,
esp eran d o fu tu ra s lágrim as. Ela olhou tu d o aquilo e im ediata
m en te com eçou a rir. H avia com preendido algo intuitivam ente, e
esta com preensão a tra n sp o rto u de um estad o a outro, passando
das lág rim as ao sorriso, sem m eia-palavra ou explicação algum a,
n um a deliciosa liberdade de expressão reconquistada, deixando
p ara trás seu p ró p rio ju lg am en to interno. N um a fração de se
gundos, ela conseguiu desapegar-se da sua triste z a para, final
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m ente, sem fa lta r com respeito a si m esm a, co n sid erar a p a rtir
de o u tro p o n to de vista a sua história, e d ar a ela um lu g a r justo.
Porque, talvez, sequer o que eu penso sobre m im m esm o
seja tão im p o rtan te. T alvez seja preciso lib era r algo disso, algo
que m e p re n d e m uito m ais que q u alq u er opinião alheia sobre
mim. E tão cansativo to m ar-se tão a sério, exige ta n to esforço
ficarm os ag a rra d o s a essa ou àquela im agem que tem os de nós
mesmos, com as unhas cravadas na b o rd a do precipício, g rita n d o
para o eco: “Ju ro p o r m inha m ãe que eu sou assim , ou assado, ou
daquela o u tra m aneira, e que eu penso assim , e digo aquilo... E
ju ro p o r m eus m o rto s que defenderei este castelo até o fim!”. Po
rém , en q u a n to nos distraím os com isso, o castelo se esvaziou e os
exércitos inim igos foram há m uito tem po buscar o u tras batalhas
mais excitantes. Porém , alguns se descobrem assim , congelados,
guardiões inúteis e cansados de sonhos fixados em papel cartão,
perdidos no tem po, sem valor e com data de validade vencida.
Assim , pode-se d izer que Clown Essencial é a com ovedora
com icidade de quem , utilizando o nariz de palhaço, re to rn a a si
mesm o e veste de um verm elho vivo as feridas de sua in tim id a
de, seus anseios e pesadelos m ais secretos, desvelando ao públi
co seu m undo in te rn o e recebendo de volta, p ara tão gen ero sa
entrega, o am o r incondicional de um m undo que lhe diz: “Sim!
T ens d ireito a ser com o já és! P ara nós, já é o suficiente. P ara nós,
tal com o és, está bem ”. Esse é o p o n to de p artid a de um novo ca
m inho porque, ao o u v ir essas palavras, ao perceber essa co rren te
de aprovação incondicional, algo se assen ta d en tro da pessoa e
oferece a condição prim ária p ara um m ovim ento tran sfo rm ad o r:
aceitar-m e com o sou, com o o m undo m e vê e com o m e reconhe
ce. U m p ro v érb io po p u lar brasileiro adverte: “H á n a vida dois
desafios: o p rim eiro é se conhecer; e o segundo é ficar c o n ten te
com o que você e n c o n tra r”.
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Esse cam inho pessoal e íntim o se vê, em Clown Essencial,
apoiado pela presença do g ru p o e sua atitu d e aberta, que ofere
ce de m aneira g en ero sa as condições necessárias a um proces
so de m udança verdadeira. E stou convencido de que, se chorar,
g rita r e d e sc arre g ar a agressividade é g eralm en te necessário e
p ro fu n d am ente curativo, tam bém é o rir com o riso consciente
e brilhante, alto e claro, sem culpas. E ste, sem dúvida, quebra
couraças m usculares, deixando que p o r suas frestas e n tre um a
luz nova, pura, um a energia renovadora. Rom pe velhos c o n tra
tos estabelecidos na infância, ju ra m e n to s silenciosos, de apatia,
de ódio ou de sofrim ento. D issolve-os à luz do m undo, em um a
espécie de cerim ônia in te rn a que, sem dúvida, se fortalece q u an
do co m p artilhada com o grupo, num ritu a l com unitário em que
cada um se reconhece e en c o n tra de form a n atu ra l seu lugar.
Clown Essencial é o so rriso do coração quando este, depois
de m uito lid ar com as batalhas de ch o ra r e de rir, descansa por
fim em algum lu g a r p ara além de q u alq u er emoção, e aceita com
acolhim ento seu gen u ín o p erten cim en to ao poderoso rio da vida.
N ão serem os nunca quem sonham os ser se não celebrarm os
prim eiro quem som os hoje.
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C A P ÍT U L O 3
0 O L H A R DO O U T R O
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ram , ou tam bém as que não me olharam quando eu ansiava p o r
sua aprovação, ou sim plesm ente p o r sua p resen ça e atenção. G e
ralm en te aparecem alg u n s fam iliares, professores da infância, ou
um trib u n al de juizes de um a com petição d esp o rtiv a etc., e sua
im agem , ainda p re se n te em m im, desencadeia um a reação in stin
tiva ao o lh ar do grupo.
Assim disse um participante: “N unca tive ideia, em m ais de
36 anos de vida, de com o sabotava m inhas relações com os o u tro s
p o r causa dos m eus m edos de m o stra r com o realm ente sou. D ei-
me conta, em dois m inutos daquela dinâm ica realizada diante do
grupo, de q u an to trab alh o me havia custado m an ter-m e isolado
d en tro dessa to rre à qual subi desde que tin h a m ais ou m enos 5
anos. M an ter-m e lá em cim a havia sido m uito côm odo sob um
po n to de vista, e infinitam ente triste sob todos os dem ais”.
Para algum as pessoas, costum a ser tão doloroso p erceber o
q u an to escondem e com qu an to esforço, que se veem de im edia
to arran cad as de seus antigos infernos, m uito além de q u alq u er
en ten d im en to racional. É im perceptível e fulm inante, e pode le
vá-la a refugiar-se em suas velhas trin ch e iras escavadas na in
fância, de onde será necessário u rg e n te m en te —e com delicadeza
— retirá-las. T a n to é assim que, quando isso acontece, prefiro
sem pre en trar, eu tam bém , na trin ch eira, e ali aconchegar-m e
com a pessoa, o lh ar com ela com o se vê o m undo daquele lugar.
T alv ez seja m ais fácil colocar a cabeça p a ra fora se o fizerm os
em dupla...
Com o dizer ao público: “Veja! Sim, isso está sinceram ente
acontecendo d en tro /d e m im neste m om ento!”? Como, se isso foi,
em o u tro s tem pos, m otivo de castigo, de exclusão, de condena
ção à diferença, à inadequação e, p o rtan to , à vergonha e à culpa?
Assim , pouco a pouco, de d en tro das trin ch eiras e com as
fe rram en tas do Clown Essencial, acom panho a pessoa até que ela,
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proteg id a atrás da pequena m áscara do nariz verm elho, vá apazi
guando len tam en te seus dem ônios e seus terro res, tra n sfo rm a n
do, pouco a pouco, o tem ido o lh ar do outro, vinculado às antigas
m ensagens e suas feridas, em um verdadeiro canal de inspiração
para sua p ró p ria criatividade.
E q u ando depois de um delicado processo isso finalm ente
acontece, o prêm io é enorm e. P orque quando to rn o legítim o o
que sin ceram en te sinto d en tro de mim, quando dou este lu g ar
à m inha em oção e quando consigo m an d ar a m ensagem ao pú
blico, ao m undo, m esm o que seja com um tím ido e ainda frágil
olhar, essa m ensagem diz: “Isso está acontecendo com igo” — e
im ediatam ente o público responde: “E stam os com você”. O p ú
blico está d isp o sto a receber-m e com m inha loucura, com o que
seja, com m eus sonhos e m eus pesadelos, m eus desejos e m i
nhas confusões, sem pre que percebe que estou dando-lhe m inha
verdade do m om ento. T enho visto olhares suprim irem o tem po,
tocarem no lu g a r m ais profundo, p arare m a respiração do grupo,
que in tu itiv am en te sabe reconhecer e re sp eita r o profundo ato
que está presenciando: ver alguém desnudar-se.
R ecordo que, na m inha infância, a v ergonha de ser órfão
era ainda m ais fo rte que a d o r de sê-lo. Isso acontecia na saída
da escola, q u an d o os o u tro s m eninos tinham suas m ães espe
rando-lhes e eu não. E u era diferente e m inha diferença saltava
à vista. T em ia q ue o o lhar dos o u tro s pudesse m edir o tam anho
do buraco d essa ausência e que, de algum a form a, eles pudessem
ver o pro fu n d o desam paro que eu experim entava. D esconfiava
- p o r aquela d o r tão g ra n d e que eu sentia e eles não —de que ia
ser de novo abandonado, desprezado em m inha solidão, à vista
de todos.
O que vem os no o lh ar do o u tro não é m ais do que o que nos
sas vozes in te rn a s nos dizem sobre nós m esm os, e é p o r isso que
tem os tan to m edo dele, já que esse o lh ar poderia confirm ar em
voz alta, sobre nós, o que já ouvim os co n stan te m e n te su ssu rra d o
em nosso íntim o. E sse o lh ar poderia elim inar to talm e n te a pos
sibilidade de que so m en te nós sabem os ta n to sobre nós m esm os,
e to rn a r público o que m antem os na privacidade m ais absoluta,
confirm ando-nos definitivam ente nossos autoconvencim entos
sobre nossas m otivações, qualidades ou potencial criativo.
M in istrei, ce rta ocasião, um a oficina na R iviera M aya, no
M éxico, p ró x im o às m aravilhosas ru ín as de T ulurn. U m a p ar
ticipante, M., p o r n atu re za tím ida e pouco expressiva, realizou
um a m aravilhosa im provisação plena de espontaneidade, frescu
ra e liberdade. Ao term in ar, su rp reen d id o p o r essa m etam orfose,
p erg untei-lhe: “A onde você foi?”, ao que ela respondeu, com ovi
da: “Fui a um lu g a r sem olhos”.
U m lu g ar sem olhos! Que m aravilhosa fórm ula p ara des
crever um estado de plena liberdade! D eixando-se g u iar pela
inspiração que nasce desse lu g ar in tern o , onde o m undo de fora
não tem q u alq u er poder; sem o peso da aprovação alheia nem
da am eaça do ju ízo ex tern o , ela havia ex p erim en tad o um gozo
verdadeiro, fluido e ligeiro, um p ra z e r arcaico e infantil; havia
reco n q u istado seu d ireito natu ral de ser sim plesm ente feliz -
ainda que fosse p o r alguns m inutos! Pelos sorrisos ilum inados
no ro sto dos dem ais participantes, era óbvio que aquele estado
de g ra ça havia enriquecido a ela, mas tam bém ao re sta n te do
g ru p o , testem u n h a cúm plice de um a leg ítim a segunda chance de
c o n q u istar sua vitalidade.
E sse episódio no qual o o u tro deixa de e x istir com o elem en
to ju lg a d o r e c a stra d o r da m inha espontaneidade, e que se pode
v er rep ro duzido em diversas ocasiões, parece-m e que ilu stra
p erfeitam ente o estado de liberdade re en co n trad a, em que um a
pessoa se reap ro p ria de sua criatividade num a fluidez natural,
prazerosa e liv re de culpas, pro fu n d am en te curativa e reconfor
tante.
D e m odo definitivo, o que o o u tro pensa de m im é indepen
dente da m inha vontade; apenas, sim, é m eu assunto. O realm en
te decisivo, p o r sua capacidade de fazer-m e cam balear e causar-
me danos, o que v erd ad eiram en te configura m eu m undo in tern o
é o que eu, p o r m inha vez, penso sobre o que o o u tro parece opi
nar sobre mim. E isso, graças à sorte, depende apenas de mim.
Assim m e dizia um participante: “M e dei conta de que o m edo do
olhar dos o u tro s não é m ais que o m edo do m eu p ró p rio olhar;
era o m eu p ró p rio ju lg am en to que eu m esm o havia projetado
para fora”.
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C A P ÍT U L O 4
A P R O P R I E D A D E DO I N Ú T I L
Vivir en el alma
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su b itam en te em um profundo processo em ocional ao ouvir a se
g u in te frase: “Com o se só ser íòsse suficiente...”.
M in h a percepção é que habita no fundo de nós um cansa
ço íntim o, quase vergonhoso, que apenas podem os reconhecer
na intim idade de nosso cam arim particu lar, quando se apagam
as luzes do cenário da vida cotidiana. Q uando alguém , em sua
solidão, vai tiran d o a m aquiagem do p erso n ag em da vida social,
profissional ou familiar, e suspira, percebendo, de form a difusa,
q u an ta en ergia gasto u d u ra n te o dia p ara parecer um excelente
profissional, um p ad re rigoroso, um a boa e am orosa esposa, um a
pessoa in teligente, am ável, seg u ra e eficiente, que corresponde
à norm a e cum pre com tudo aquilo que se espera dela... nesse
m om ento, lo n g e dos olhares e das exigências de um m undo im
placável, no silêncio da verdade que se im põe, com o a claridade
ao am anhecer, a pessoa suspira. N esse suspiro su ssu rram nossos
desejos de serm os nós m esm os, sem ta n to esforço, sem tan tas
cobranças. N esse ligeiro m ovim ento de om bros descansa nosso
desejo de p o d er ser sem fingir, de p o d er e x istir sem d ar nada em
tro ca de nosso direito de p erte n cer ao m undo: como se ser fosse
suficiente...
Por isso, através da busca do Clown Essencial a pessoa pode
reclam ar seu d ireito à inutilidade, o d ireito a não serv ir p ara
nada e a não ser condenado ao inferno p o r isso. Com o um direito
à estupidez, um a reivindicação surgida das profundas regiões do
sen tim en to instintivo e natural. Porque, em Clown Essencial, ser
felizm ente estúpido ou fracassado se to rn a verdadeiram ente um
vínculo de com unicação com o público, que se reconhece nele e
descansa, p o r sua vez, num breve in stan te em que essa possibili
dade se fez realidade.
T enho visto, em certas ocasiões, algum as pessoas se despi
rem de form a absoluta dian te do o lh ar do grupo, su sten tan d o
40
seu d ireito à inutilidade profissional, à falta de adaptação social,
à confusão do saber. V alidando seu cansaço in te rn o de in te rp re
tar em vez de ser, elas congelam o tem po p o r um instante. Elas,
com um o lh ar firm e que encara o público sem q u alq u er vacilo
e com um a p resença enraizada que se alim enta .da respiração,
su sten tam sua verdade in te rn a e a proclam am ao m undo, sem se
preocupar se ele vai ou não g o s ta r disso.
São m om entos de um a poesia absolutam ente com ovedora e,
ao m esm o tem po, de um a verdade que todas as pessoas presentes
fazem sua. O público retém seu p ró p rio alento, enq u an to o olhar
afiado do clown p en e tra sua alm a, deslizando p o r seu im aginário
e, ju n to s, de algum a form a, descansam p o r um breve m om ento.
Esses m om entos, frágeis e im ponentes de beleza, são um verda
deiro regozijo p ara o espírito, um a celebração do inútil, re sg ata
do de suas regiões m ais solitárias p o r um instante.
A inda que às vezes nossos clowns tam bém se rebelem - num
to rp o r de heroísm o e com toda sua força e ím peto - co n tra as
injustiças su p o rtad as pelas pessoas, o principal eixo de Clown
Essencial não é o da vingança. Não é nosso pensam ento a ideia
de q u erer que algum suposto culpado pague pelo que passou,
pelo m enos não com o objetivo do processo. Em troca, inapelável
a presença festiva, há a satisfatória com em oração de uma certa
revanche, na qual a pessoa volta a p erte n cer ao m undo, sendo
como é, re sg atan d o o sentido verdadeiro de seu sen tim en to mais
autêntico. E voluindo diante de seu público', com seu nariz verm e
lho aju stad o ao ro sto e seu coração palpitando de em oção, com
seu o lh ar b rilh an te su sten tan d o as dores do passado, a pessoa
en tre g a a v itó ria à sua criança abandonada, hum ilhada ou queri
da, que nesse in stan te recobra sua confiança e poder, saboreando
a dignidade do in ú til e a an tig a glória de quem m erece só p o r ser.
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É com um um a revanche sobre esses juízos e com entários,
g eralm en te irônicos e denegridores, que ouvim os de form a
rep etid a na infância ou pré-adolescência, desses que rotulam ,
excluem , sentenciam e condenam . A queles que m uitos de nós
tem os recebido p o r p a rte de fam iliares, professores, vizinhos,
pais ou de o u tras pessoas próxim as que rep resen tav am a nossos
olhos um a au to rid ad e ou um saber inquestionável. A experiência
d em o n stra que alg u n s deles, claram ente, nos m arcaram a alm a e
o corpo com o um ferro em brasa. C ertas frases afiadas com o lâ
m inas, que de um só golpe am p u taram n o ssa criatividade, nossa
seg u ran ça em nós m esm os ou nossa sensualidade. C ondenações
p rem o n itó rias sobre nosso fu tu ro na vida ou nossa form a de ser
que, p o r seu im pacto, deixaram im pressões difíceis de apagar, na
form a de falta de confiança sobre nossas p ró p ria s capacidades in
telectuais, nosso corpo, nossa eficiência. E m várias situações, às
vezes anônim as e em o u tras especialm ente delicadas, um adulto
com algum tipo de au to rid ad e lançou sobre nós seu veredito cas-
trad o r, em g eral p ro jetan d o sua p ró p ria repressão interna.
Segundo os relatos que ten h o conseguido com pilar ao longo
das m inhas oficinas, isso ocorre m uitas vezes p o r causa de um
incidente dom éstico sem im portância, ou em um m om ento no
qual a criança descobre seu corpo e seus p rim eiro s prazeres, ou
m esm o num m om ento de expressão criativa com algum tipo de
público, com o d u ra n te um a dança, a leitu ra de um poem a ou a
e n tre g a de um desenho. E ssas últim as circunstâncias, que co stu
m am o c o rrer no meio escolar ou fam iliar, são m om entos p a rtic u
larm e n te sensíveis, nos quais o paraíso e o inferno cam inham de
m ãos dadas e quando tu d o pode virar em um segundo. Nelas, a
criança está p a rtic u la rm e n te sensível, já que se e n c o n tra buscan
do a g ló ria da aprovação e da consideração, com o um cãozinho
g en u in am ente feliz, ao dem onstrar, assim , seu perten cim en to ao
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grupo. P o r isso, sua alm a ab e rta não duvida de que alcançará
sucesso; m as, quando a rejeição se sobrepõe à aprovação, o que se
produz é um verdadeiro cataclism o. A escuridão eclipsa a luz em
um a b rir e fechar de olhos, a expansão se contrai, o corpo se con
gela, a ex p ressão é castrada, a ce rteza titubeia e o que poderia
ser com unicação e reconhecim ento se tran sfo rm a em silêncio e
solidão. Q uan d o se ouve a sentença - “Você não serve p ara nada,
nunca fará nada de bom, você só cria problem as!” ou “isso não se
faz, isso é errad o , seu corpo é feio!”, ou ainda “você nos envergo
nha! você é um inútil, um zero à esquerda!” - , algo im pacta com
du reza o sensível m undo de uns seres que ainda não entendem
de explicações cognitivas ou o u tro s racionalism os justificantes.
0 m enino se sente, nesse m om ento, in ju stam en te exposto, ou
posto em evidência, abusado ou envergonhado, desqualificado no
seu im pulso criativo ou desnudo na sua intim idade. E x p erim en ta
a fria vivência de quem não se sente aceito com o é, e já sabe que,
de alg u m a m aneira, não o será. N essa circunstância, a sensação
de v erg o n h a é terrív el, e se converte em uma experiência de te r
ríveis conseqüências, com o a queda de um m eteoro de aço na
te rra fértil de um jard im virgem ; com o um raio que fulm ina o
coração de um a árvore jovem em plena prim avera.
A gora, m uitos anos depois, ainda seguim os re p ara n d o as
brechas desde então abertas em nosso am or próprio, gastando
p arte da nossa en erg ia em com bater aquelas m ensagens p ara de
m o n strarm o s a nós m esm os que não, nãò som os assim . Porém ,
a m arca foi profunda e a tarefa não é nada fácil. D e tam anha im
p o rtân cia é o trab alh o de desfazer os padrões de p en sam ento aí
in crustados que alguns desistem e sim plesm ente nadam a favor
tia co rren te. D eixam que a vida os leve pelas trilh as já traçadas e,
com boa vo n tad e e excelentes resultados, d em o n stram ao m un
do que sim, são uns inúteis, uns fracassados de coração congela
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do. D essa m aneira, concordam com a m ensagem recebida, p ara
a plena satisfação de quem a enviou (“E u já te dizia isso...”) e da
p ró p ria vítim a, que assum e sua fidelidade à autoridade gover
n an te em seus tem pos de criança.
N essas condições entende-se m elhor o im enso e re p ara d o r
descanso que é p ara as pessoas o fato de descobrir que podem
pertencer, ser am adas p o r seu público (que atua em Clown E s
sencial com o re p re se n ta n te do m undo) sim plesm ente estando aí,
sem fazer nada, sem m anipular, sem seduzir, sem se im por, sem
im plorar, som ente olhando e respirando... P odem ser aceitas em
sua to rp e criatividade, exibir seu vacilante trein am en to na a rte
do p ra z e r e e n tre g a r à sua platéia seus prim eiros passos titu -
b eantes na busca de reco n q u istar sua dignidade. Sem im p o rta r
a idade - já que ten h o visto acontecer com pessoas de até 80
anos —, e sem im p o rta r a condição física —p o rq u e nos m eus se
m inários tenho visto pessoas cegas, m ancas, com aparelho de
assistência resp irató ria 011 de m obilidade reduzida oferecerem o
m esm o e d eslu m b ran te espetáculo ao colocar seu nariz verm e
lho e realizar sua cam inhada até a liberdade.
H á no ser e pertencer um en o rm e consolo de alma, um a cura
íntim a que restabelece na pessoa o sen tim en to de ser m erecedo
ra de um lugar, de p e rte n c e r ao m undo. L eg itim ar essa necessi
dade p ara além das com petências, m éritos, esforços ou caracte
rísticas p róprias de cada pessoa é um dos principais objetivos do
Clown Essencial. E um p o rta l im prescindível que abre cam inho
p ara chegar ao potencial cósm ico da pessoa, onde está guardado
esse especialíssim o Santo Graal que aqui nos interessa: a capaci
dade de rirm os de nós m esm os, de nossa form a de ser, de nos
sas m azelas e de nosso destino, a p a rtir de um lu g ar consciente,
am oroso e transform ador.
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C A P ÍT U L O 5
0 E C O DO MUNDO
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im p o rtan te, m esm o quando este se m o stra aten to e m uito exi
g e n te com a verdade. E um fato r indispensável ao processo de
trabalho. A sensibilidade do g ru p o é aquilo que, im plicitam ente,
desencadeia um a g ra n d e batalha, na qual o que se põe em jo g o
é de v ital im p o rtân cia p a ra a pessoa que está atrás do nariz v er
m elho: é, às vezes, o p rom etido céu da aprovação e a am eaçadora
tem pestade da recusa ou do engano. P o r isso, é preciso en ten d e r
e cultiv ar a percepção de que, o que o co rre com o o u tro tem m ui
to a ver com igo. E m m aior ou m enor m edida posso reconhecer,
nele ou nela, m inhas luzes e m inhas som bras, m eus desejos, m eus
esforços p ara p arece r este ou outro, m eu afà de gostar, m inhas
arm adilhas, m eu cansaço, m eu tédio ou m inha confusão. Posso
perceber quão d ista n te de sua essência ele está e sen tir que essa
d istância é tam bém a m inha. As vezes, p o rq u e m e vejo tão igual
em m inha m aneira de sentir, p en sa r ou atuar, em o u tras ocasiões
p o rq u e posso reconhecer no o u tro todo o esforço que eu m esm o
pago p ara não ser assim , ou qu an to g o staria de ser assim , ou
quem sabe sim plesm ente porque em sua presença diante de nós
posso reconhecer p arte s de mim, assum idas ou não, em m inha
relação com o m undo. A ssim , alguns podem saborear o secreto
alívio de não ser o único, de não ser um espécim e tão ra ro qu an
to pensava. Isso p ro d u z um conforto en o rm e e aproxim a m uito
as pessoas um as das outras. T enho dito co n stan te m e n te a m eus
alunos: “Aqui, em Clown Essencial, de algum a form a o o u tro é a
salvação, ainda que isso doa um pouco ou m uito em meu eg o ”.
O uando alguém leva essa riqueza do o lh ar até o outro, este
deixa de ser um a am eaça a tem er, um in q u irid o r do qual se deve
desconfiar, um a concorrência a elim inar ou um a presa a conquis
tar. Assim , to rn a -se um a o p o rtu n id ad e de cum plicidade ou de
conflito, e é sem pre um a fonte de inspiração p ara meu próprio
m ovim ento. U m am igo m eu, g ra n d e palhaço, dizia que o so rriso
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é a d istância m ais c u rta e n tre duas pessoas. C ertam en te que sim,
porém , se além disso o so rriso o co rre ao reconhecerem -se um a
pessoa na o u tra, o lucro é ainda maior. R ecordo-m e de alguns
p articip an tes que, finalizando um a im provisação p artic u la rm en
te d esa stro sa e pouco côm ica, foram tran sfo rm an d o seu pequeno
g ru p o em um a m anifestação de clowns, que finalm ente deixaram
o palco can tan d o aleg rem en te e em uníssono este solidário slo
gan: “P atéticos unidos, jam ais serão vencidos!”. Isso provocou
g ra n d es garg alh ad as em seu público, coisa que eles aproveita
ram de im ediato para v o ltar ao palco e provar novam ente sua
sorte.
A qui, o g ru p o , cultivando um a atitu d e ab e rta e não ju lg a
dora, volta-se à rep resentação de um m undo ideal que, distan te
— na m edida do possível — da contam inação da m ente, p erm ite
que a pessoa perceba o que de fato é verdade quando deixa a
m entira. N esse espaço do g ru p o , valendo-se de seu p ró p rio sen
tim ento, o g ru p o pode e x p ressar com o recebe a pessoa, perceber
sua tran sp a rên c ia e d istin g u ir q u an to é da pessoa e q u an to é do
personagem . Porque há, e eu ten h o visto isso repetidas vezes,
um sen tim en to de ju stiç a na opinião do grupo. Sem e n tra r em
julgam entos nem avaliar se algo está bom ou não, sem classificar
nem castrar, o g rupo, a p a rtir de um a atitude de escuta ab erta e
bo n d o sam en te disponível, tem de form a in stin tiv a um a percep
ção afinada do que diz a pessoa. D essa form a, re stitu i-lh e uma
espécie de eco do m undo a p a rtir do respeito e do acolhim ento
genuínos, sem d eix ar de refletir a necessidade de tra n s p a rê n
cia e de c o n fro n tar a pessoa n a fuga das suas p ró p rias verdades.
D esse m odo, a raiva sabiam ente disfarçada de sedução, a confu
são in te rn a m aquiada de g esto s desnecessários, o m edo sufocado
por um a respiração ausente e o u tra s ta n ta s form as de escapar da
presença genuína serão rap id am en te desm ascaradas pelo públi
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co, que, m esm o assim , não d eixará de acom panhar a pessoa na
sua busca pela autenticidade.
N esse in tercâm b io im perceptível p a ra uns olhos não tre in a
dos —po rém evidente quando aprendem os a decifrar os códigos
do olhar, da voz, do corpo, do que é falado e do que é silenciado
—, alguns ouvem claram en te o m u rm ú rio sutil do grupo, que lhe
diz: “Eu te dou perm issão de ser com o qu eres ser e, em troca,
peço sua verdade, seja ela qual for. Se não for assim , você deixa
de me interessar. Se não for assim , eu não estou disposto a pag ar
o preço de tua m e n tira ”. N esse re p en tin o espaço de liberdade
absoluta, aberto dian te de nós com o um lu g ar de mil possibili
dades, a pessoa pode to m a r a m edida de seus enganos e certezas,
sep a rar as verdades e as ilusões.
P ara que se possa lid ar com toda a beleza desse frutífero in
tercâm bio e n tre o g ru p o e a pessoa, re tira r dele todo proveito e
sentido, é preciso c o n v e rter a experiência g ru p a i em uma espécie
de ú tero da hum anidade, tão incondicionalm ente acolhedor com o
o colo de um a mãe. É necessário cu ltiv ar de form a re c o rre n te
nas pessoas p resen tes um a atitude não ju lg ad o ra , convidá-las e
conduzi-las até um “o lh ar gen ero so ” do outro. Isso dará à pessoa
ex p o sta um a perm issão, im plícita e solidária, para m o strar-se,
desvelar-se e, se preciso, até rebelar-se c o n tra si m esma, num a
form osa batalha com o drag ão interno . N esse acom panham en
to, a pessoa se se n tirá respeitada em suas neuroses, agasalha-
da em seus to rm en to s, e se perceberá suficientem ente confiante
p ara arriscar-se. P oderá en treg ar-se, m o strar-se, equivocar-se,
assu star-se ou entediar-se, num m ovim ento no qual e n c o n tra rá
liberdade, força e fluidez p a ra p o d er atrev er-se a ir além de seus
te rritó rio s conhecidos.
Poucas vezes na vida cotidiana terem os o portunidade de
esc u ta r a voz do m undo num espaço de respeito e consciência,
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para que essa voz possa m e d izer com o me percebe, o que lhe
tra n sm ite m eu corpo, m inha atitude, m eu tom de voz, m eu olhar,
m eu estar. Infelizm ente, perdem os assim valiosas inform ações
sobre nós m esm os, m antendo-nos envolvidos em nossa m en tira
e nosso autoengano, deixando aos que são m ais íntim os de nós
a tarefa de devolver-nos algo de nosso reflexo, quando pode ser
que esses não sejam os m elhores inform ados nem os mais capa
citados p a ra realizar essa tarefa.
E m Clown Essencial, o g ru p o é o catalizador da experiência
da pessoa. Se em suas risadas o clown e n c o n tra a senha de seu
êxito e, no silêncio, as indicações de que anda p o r um cam inho
equivocado, é no o lh ar do g ru p o que ele ex p erim en ta a certeza
de que p erte n ce ao m undo. O m esm o m undo do qual se sentiu
apartado, rechaçado, ag o ra lhe dá boas-vindas. A atitu d e do “clã”
que recebe a pessoa, em um clim a de acolhim ento e respeito,
p erm ite essa su til viagem da escuridão dos to rm e n to s em ocio
nais ao p o d er da criação artística, re ten d o a atenção do público e
enchendo seus olhos de um a dignidade finalm ente reencontrada.
U m a p artic ip a n te de um a oficina na capital do M éxico havia
deixado o balé anos atrás, decepcionada. Em um a im provisação,
sem q u alq u er em baraço, já am parada pelo seu n ariz verm elho,
pôs-se a bailar um a passagem de 0 lago dos cisnes, de P io tr T h a -
cikovisky. Isto foi o que ela disse em seguida: “C om eçou a m úsica
e sim p lesm en te m e transform ei: eu era novam ente a prim eira
bailarina que tenho d en tro de mim; todos os prejuízos negativos
caíram en terrad o s. S entia-m e no A uditório N acional diante de
um g ra n d e público, que se su rp reen d eu e m e viu tal com o sou,
um a pesso in h a ín te g ra , que só precisa d an çar p a ra se n tir que
nela tam bém há am o r e leveza. Os saltos to m aram a ltu ra até dei
xar ver esta m ulher, ainda que a cada passo m inha m enina apro
veitasse mais. Senti-m e plena. N unca pensei que po d eria voltar
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a e n c o n tra r esse teso u ro que o balé havia deixado em mim, que
ag ora me p erte n cia de novo e brilhava p a ra m eu público”.
P ara co m p letar o relato desse esplêndido m om ento, devo
acrescen tar que, espontaneam ente, boa p a rte das m ulheres do
g ru p o havia levantado p o r conta p ró p ria e, colocando seus n ari
zes verm elhos, seguiu seus passos e saltos. E sse baile de narizes
verm elhos, que incluía a prim eira bailarina e o corpo de baile,
era um q uadro im ensam ente belo, charm oso e g enuinam ente
su rrealista, que nos em ocionou p ro fu n d am en te a todos, a mim
inclusive.
Fica evidente a sem elhança que há tam bém com a vida coti
diana: Q u an ta seg u ran ça em nós m esm os readquirim os quando
alguém sim plesm ente nos tra ta bem, nos olha com generosida
de? E quando ex p erim en tam o s esse ganho de confiança, qu an to
potencial se m anifesta na nossa criatividade, na nossa capacidade
hum ana? M uitas vezes, não necessitam os de m ais que um o lhar
apro v ad o r p ara nos fazer confiar em nossos im pulsos e n u trir
nossos sentim entos. U m a espécie de autorização que, m esm o
sutil ou silenciosa, nos financia nosso se n tir e valida nossa liber
dade de ser.
P or sua vez, esse fenôm eno re su lta ig u alm en te certo no ou
tro sentido: se a pessoa ten ta, ainda que seja com toda leg iti
m idade, fugir, en g a n ar-se e nos enganar, o g ru p o se m o stra de
certa m aneira frio e desinteressado, deixando a pessoa sozinha
em seu jogo, presa em sua p ró p ria arm adilha. O g ru p o parece
dizer: “Se você te n ta m e vender um p erso n ag em falso, d istan te
da sua verdade, não m e interesso p o r você”. T en h o visto m uitas
vezes com o esse preciso m om ento é o princípio de um a íntim a
b atalha e n tre a pessoa e seus perso n ag en s internos. U m a dis
p u ta que o h u m o r com passivo de Clown Essencial contribui para
en cu rtar, não p o r q u e re r o m itir o que está dizendo o m undo,
mas p o r p e rm itir à p ró p ria pessoa e n x e rg ar m ais rapidam ente.
P ara co n v id ar-lh e a ser o p rim eiro a reconhecer o fato de haver
fabricado, no seu dia a dia, todos esses personagens. Porque, em
algum m om ento, foram necessários p ara sobreviver, p a ra serem
vistos, p a ra a le g ra r um a m ãe depressiva, p ara p ro te g e r seus ir
mãos de um pai violento, p a ra receber m igalhas de am or e se
encaixar num a família, p o r m ais louco que isso seja. T odos esses
p erso n ag en s ocos são, em geral, repletos de raiva, de vergonha,
de frieza ou de medo, e perm anecem g ru d ad o s em nossa alm a
com o sanguessugas. Eles ca stram nossa liberdade e espontanei
dade, nosso gozo e poder, nossa confiança e tran sp arên cia, nos
sa capacidade de escolha. A seg u n d a fase consiste em devolver
dignidade ao que ficou encoberto, àquilo que, no coração da dor,
do esp an to ou da confusão, foi reprim ido, silenciado, castrado,
proibido.
N a m inha opinião, a verg o n h a de sen tir o que sentim os nos
faz m uito m ais m al do que aquilo que sentim os de verdade. A
luta já não está no m undo, e eu estou em um en fren tam en to ju s
to e claro, senão e n tre eu e eu, acendendo a g u e rra d en tro de
mim, num lu g ar inacessível onde não pode haver nem vencidos
nem vencedores, p o rque eu sou os dois exércitos e todos os seus
generais.
N a nossa infância, tem início um a longa e difícil viagem que
se esten d e até a nossa idade adulta quando, finalm ente confor
mados, ap rendem os a conviver com nossos personagens. E se em
nossos m elhores m om entos conseguim os negociar com eles al
guns m in u to s de liberdade e um a efêm era espontaneidade, nossa
realidade co tidiana é m ais triste m e n te a de ap ren d er a sortear,
com m ais ou m enos azar, o cam po de batalha in tern o , h um ilhan
te e desolado.
C o n sertar esse lu g a r tom a tem po, p recisa de cuidados res
peitosos, de consciência e de paciência, de valentia e de reconhe
cim ento p o r nós m esm os. P or m inha experiência ao longo dos
anos, não ten h o dúvida de que o h u m o r com passivo de Clown
Essencial é um a p o derosa e efetiva fe rram e n ta p ara devolver, a
este lugar, sua serenidade. P ara fincar nele a bandeira da digni
dade, que legitim a o que aí se sentiu, o que se viveu, p ara pouco
a pouco poder finalm ente e n tre g a r um acordo de paz, bom p ara
os dois lados.
C A P ÍT U L O 6
0 ABRAÇO A N C ES T R A L
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de g ratificante receber. Ela não reclam ava nada a ninguém e se
co n ten tav a com o a leg re p ra z e r de e n tre g a r seu am or a o u tro
ser, ainda que fosse inanim ado. E, de algum a m aneira, esse m o
v im ento era suficiente p ara d ar a ela o que tam bém necessitava.
N essa época, eu dedicava algum tem po utilizando bichinhos
de pelúcia e o u tra s coisinhas confortáveis em algum as das mi
nhas dinâm icas, com um su rp re en d en te im pacto em ocional nos
p articip an tes, e sabia que, tecnicam ente, isso era o que D onald
W oods W in n ic o tt classificava com o objeto transicional, elem en
to sim bólico da p rim eira relação. Porém , foi a aten ta reflexão
com a qual me brindava m inha filha, tão pequena ainda, a que me
p erm itiu decifrar m elhor o que o corria com as pessoas d u ra n te
as sessões de Clozvn Essencial.
U m sim ples bichinho de pelúcia, cúm plice do prim eiro abra
ço oferecido p o r um a criança, que expressa assim sua capacidade
am orosa, seu dom de afeto, tran sfo rm a-se 110 prim eiro objeto
inanim ado que convertem os em um ser com alm a própria; exa
tam en te com o o co rre no te a tro de objetos, no qual a base do p ro
cesso é d a r vida —e, p o rta n to , poder de relacionar-se —a objetos
ou p arte s de objetos correntes.
Assim , a criança abraça o bichinho de pelúcia, elaborando de
form a gen uína e indelével o que defino em m eu trabalho com o
o “abraço a n c estral”. E sse gesto re co n fo rtan te, espontâneo, e o
sen tim en to p rim ário de necessidade de co n tato com ele parecem
e sta r gravados, re g istra d o s em nossas células, em algum a p ro
funda zona de nosso interior. No nosso p rim eiro ato de autêntica
m agia, essa sim ples bola de pelos é convertida em um ser vivo
que apreciam os, beijam os e abraçam os. Com o passar do tem po,
to rn a -se tam bém um in terlo cu to r incondicional a quem con
fiam os nossos seg red o s e dores m ais íntim as, com partilhando
anseios, decepções, sofrim entos ou alegrias, to rm en to s e ilusões
54
em um ex tra o rd in ário e rico diálogo de sentido único. São si
lenciosos, porém , fiéis com panheiros de aventuras; testem unhas
m udas, m as com passivas, das nossas férteis im aginações, confi
den tes leais das nossas vinganças secretas, aliados inabaláveis de
nossas esperanças: “E sta noite papai não voltará bêbado”. “A m a
nhã, m am ãe dirá que me am a”, “U m dia, ninguém g rita rá em
casa”.
São nossos confidentes, e esse silêncio respeitoso, essa p re
sença não ju lg ad o ra, não ce n su rad o ra e, p o rtan to , favorecedora
de um a profunda liberdade expressiva, é, de algum a form a, a
m esm a que logo en c o n tram os aprendizes de Clown Essencial 110
público quando este os olham com bondade em suas ex tra v ag an
tes im provisações. E sse abraço ancestral p erm ite nossa prim eira
lib erd ad e de expressão, a de m o strar-n o s tão am orosos com o
realm en te som os em nosso estado m ais puro, e me parece que
se pode co n sid erar com o nossa p rim eira criação, nosso prim eiro
g ra n d e ato criativo, do tan d o um objeto to talm e n te inanim ado
de presença, caráter, sentim entos, desejos, necessidades e medos.
E ssa fig u ra fica g u ard ad a na m em ória dos nossos prim ei
ros laços afetivos, e toda riqueza e significado desse m ovim ento
infantil in te rn o ressurgem , anos m ais tarde, q uando o utilizo
com o re p re se n ta n te da nossa criança interior. Com sua pequena
e s ta tu ra e sua te x tu ra agradável, chega a sim bolizar excelente
m en te essa criatu ra in tern a , a quem o adulto pode reconhecer,
d a r consolo e reconfortar, aten d e r e- honrar. T en h o visto m uitas
pessoas vivenciarem processos curadores ao to m ar em seus b ra
ços esse objeto simbólico, d irig in d o a ele um o lhar im pregnado
de an tig as lem branças ou sensações, acariciando-o com um ges
to su rg id o de o u tros tem pos, o qual b ro ta com natu ralid ad e de
um lu g ar ainda p reserv ad o em seu coração adulto. T u d o ocor
re com o se, nesse contato, a pessoa de im ediato pudesse tom ar
55
consciência da presença ainda viva da criança cm sen interior,
com todo o seu m undo im aginário, suas fantasias, <■tam bém seus
anseios. R essurgem recordações, im agens, bate-papos secretos,
confidências e bailes festivos. Com o se o objeto em si tivesse o
p o d er de falar d ireta m e n te ao ouvido dessa criança, sem passar
pelos filtros m entais do adulto. P or isso, a m iúdo utilizo em meu
trab alh o a p resença de alguns ursinhos de pelúcia para acom pa
n h a r os adultos nesse m ovim ento de en c o n tro e reconhecim ento.
No tra n sc u rso das sessões de trab a lh o que ao longo do ci
clo do Caminho do Clown dedicam os especialm ente ao tem a da
escuta, realizam os um a exploração que eu cham o <le "cuidados
intensivos”, um a espécie de U nidade de T erap ia Intensiva, uma
U T I em ocional. N ão a descreverei aqui cm profundidade; so
m ente explicarei que se tra ta de um a escuta aten ta na qual várias
pessoas cuidam energeticam ente, através de um sutil, sincero e
respeitoso contato físico, de o u tra pessoa que, poi sua ve/., m an
tendo os olhos fechados, en tre g a-se a essa vivência to m total in
tim idade, deixando-se levar pelo que su rg e do seu |>i óprio m un
do interior. N essas sessões tenho observado com o esse cuidado
de sentido único tra n s p o rta a pessoa a profundo.', e sensíveis
estados de alm a, ta n to levando-lhe ao b em -estar .......... frequen
tem en te, provocando em sobressalto suas r e s p o s t a s autom áti
cas: “Eu não m ereço ta n to ”, “Isso não vai d u ra r muito", "Vao me
p ed ir algo em tro c a ” — essas são algum as das mar. li «•quentes.
E stabelece-se, então, um a lu ta in te rn a e n tre o p r a /i‘i de receber
e o de não ser m erecedor, co rren d o o risco de não se aproveitar o
que sin ceram ente está o correndo nesse m om ento «!• fíu ma real
e verdadeira.
Q uando os “cuidadores” sentem que \ú term inaram seu
atencioso processo e que é o m om ento de d eixar .1 pessoa "dige
rir ” o que acaba de acontecer e, de algum a Ibrma, deixa la pas
sear pela solidão de sua p ró p ria intim idade, aconchego a ela um
u rsin h o de pelúcia. D eixo a m inha intuição dizer qual é o m ais
adequado —p o r sua form a, tam anho ou tato —e o coloco em seus
braços com estas palavras: "Agora, você cuida de si”. A penas essa
frase é suficiente p ara levar a pessoa a um. estado de profundo
reconhecim ento, abraçando im ediatam ente sua criança interior,
re p resen ta d a p o r um objeto. E um espaço tão propício e pessoal
que, em geral, a pessoa com eça espontaneam ente a conversar
com ele ou ela, cuidando-lhe, acariciando-lhe de form a suave e
g en u in am en te am orosa, num profundo e re p ara d o r abraço an
cestral. São m om entos de g ra n d e beleza, que in sp iram respeito
pelo m istério do que se passa, sem necessidade algum a de saber
o q ue ex atam en te aconteceu, nem de p e rg u n ta r que feridas p re
cisam en te estão sendo curadas ali. A reparação é evidente, e os
cuidadores p resen tes tam bém se com ovem , co m p artilh an d o esse
estado de g ra ça a p a rtir do respeito e do silêncio.
É tam bém , sem dúvida algum a, a o p o rtu n id ad e de resg a
ta r nossa capacidade de cu id ar de nós m esm os e de aproveitar,
sem prejuízo nem fronteira, de um espaço de liberdade própria
e de nossa p ró p ria história. D u ra n te um a de m inhas oficinas em
A licante (Espanha), um a p articipante, d ire to ra de um a g ra n d e
escola infantil, depois de longo tem po no chão recebendo cui
dados e conversando com seu bichinho de pelúcia, levantou-se
e com eçou a g ira r pela sala, dançando com ele, num m ovim en
to esp o n tân eo e rápido, sem se preocupar com o fato de e sta r
num g ru p o ; algo v erd ad eiram en te pessoal e curador. E ste foi seu
co m en tário em seguida: “T ra b a lh o e convivo com crianças pe
quenas diariam ente; tem os na escola m uitos ursinhos, e som ente
ag o ra m e dei conta de que eu nunca havia brincado de verdade
com um que fosse m eu”. E la nos explicou, m ais tarde, que essa
experiência foi para ela reveladora e substancial, com o pessoa e
com o profissional de educação infantil.
N um sentido parecido, uma de m inhas alunas do curso de
A rte -T erap ia da A ssociação p ara a E x p ressão e a C om unicação
de B arcelona — A E C com entou que, desde pequena, tra n sfo r
mava qu alquer objeto em m ascote, e cantava e bailava p ara seu
público, com posto de u rsin h o s de pelúcia, além de m eninos e m e
ninas desenhados no papel de parede da sua casa. Porém , o que
m ais m e cham ou a atenção de seu relato foi que, ao final, quando
saudava a seu entusiasm ado público, ela os ouvia aplaudir. P are-
ce-m e um a bela im agem da vida que nossa fantasia atribui aos
objetos inanim ados em nossa ten ra infancia, na qual realidade e
ficção dançam abraçadinhas, num espaço sem lim ites claram ente
estabelecidos.
Se p re sta rm o s atenção, há em nossa consciência adulta um
m ovim ento sem elhante, alim entado pela im aginação e com pai
xão n atural. A quela linha que, na infância, ligava-nos àqueles bi
chinhos de pelúcia segue viva na idade adulta, levando o coração
m ad u ro até o cuidado e reconhecim ento da criança interior. A
beleza tra n sp a re n te do abraço ancestral e sua força reparadora
perm anecem presentes no im pulso de um ad u lto que, por fim,
abraça a sua criança in te rio r de form a n atu ra l e com passiva, da
m esm a m aneira que em o u tro s tem pos a criança là/ia com seu
bicho de pelúcia.
Na m inha percepção, esse abraço an cestral revela nossa ne
cessidade n atu ra l de amar, que é tão ou m ais vital que a de ser
m os am ados e na qual talvez possam os e n c o n tra r a m aior repa
ração de nós m esm os. Revela nossa necessidade de alcançar um
certo consolo, o de p o d er ex p ressar nosso afeto de lórm a rápida
e sem culpa, dando rédea solta ao nosso pobre e lem lo coração
que, assim , to rn a -se n a tu ra lm e n te am oroso e generoso. I lá uma
ânsia ín tim a de e x p e rim en tar o repouso de um a aceitação in
condicional, tan to tem po esperada, na qual nossa solidão poderá
finalm ente d escansar no re en co n tro com o cúm plice com passivo
que esteve ali, à espera de nossa volta p ara casa. E m sua p re
sença silenciosa, porém su tilm en te reconfortante, a pessoa sente
seu peito m ais cheio de vida. A lguns alcançam , então, o p ra z e r
de d eix ar fluir um a c o rre n te natu ral, um m anancial vivo que, de
alg u m a form a, b ro ta do coração de qualquer ser hum ano quando
pode acessar o delicado m ecanism o da com paixão.
59
CAPÍTULO 7
A P O É T I C A DO S I M B Ó L I C O
ói
P ara ele, um a de suas principais lin g u ag en s é a poética do
simbólico.
Com seu gesto provocador, seu o lh ar firm e, seu co m porta
m en to ab solutam ente infantil e suas em oções à flor da pele, o
clown in sp ira a im aginação do público p a ra que esle, por sua vez,
p erco rra a o u tra m etade do cam inho até ch eg ar à ideia, à vivên
cia do espírito, p ara que, de algum a m aneira, alcance o enredo, o
encontro, com seus p ró p rio s pés. E ntão, am bos param o tem po
p o r um m om ento, esfarelando-o em segundos tran sb o rd an tes de
um im enso silêncio e, ao m esm o instante, plenos de com unica
ção. N esse espaço aberto, agora disponível, é a própria fanta
sia do público que, de form a natural, alça voo. Kl a se expande,
criando suas próprias perspectivas, esp an tan d o suas recordações
e seus fantasm as, dando boas-vindas aos seus próprios anseios,
ag ora convidados para e n tra r em cena. N a nudez sim bólica des
ses seres torpes, ridículos, na escassez de seus recursos intelec
tuais e bem estabelecidos - ta n to de ideias brilhantes com o de
corajosas certezas - , o público se aproxim a e en co n tra tam bém
seu p róprio descanso. De um a form a im plícita, ele pode aconche
g ar aí sua p ró p ria im becilidade e acalm ar sua própria confusão.
A inda dança em m inha cabeça as palavras que escutei de um
xam â hopi, d u ra n te um a cerim ônia espiritual indígena, sobre o
gig an tesco círculo de pessoas que se form ava ao re d o r da foguei
ra sag rad a que havia no ce n tro da roda: “N ão olhem uns p ara os
outros. O lhem p ara o fogo, porque ele olha p ara todos". Assim
tam bém é a poderosa poética visual de um clown-. olhando ju n to s
p a ra ele chegam os a urn lu g ar com um , no qual cada um celebra
com gen ero sidade o fazer p a rte da estupidez hum ana.
Presenciei em B rasília, d u ra n te um sim pósio sobre en eag ra-
m a p ara o qual havia sido convidado pelo dr. C láudio N aranjo a
p artic ip a r colaborando com o Clown Essencial, um a cena de g ra n
Ó2
de poesia: sobre um colchonete, um a fam ília de clowns estava em
sua balsa, no meio do oceano, com um a vassoura com o m astro e
um pedaço de papelão com o bandeira, oferecendo-nos urna im a
gem de g ra n d e força visual. Podíam os contem plar um re tra to
tan to da solidão com o tam bém da união de um a família, cujo pai,
um sen h o r de o rig em inglesa, cantava em sua língua nativa uma
velha balada de N eil Young. Q uem não pode reconhecer nele
algo de sua p ró p ria família? U nidos no meio do nada, sem rum o
e sem m apa, porém , ju n to s em to rn o de um pai hipoteticam ente
conhecedor do mar.
U m tu b o de papelão será a lança de um g u e rre iro guardião
de um a caverna íntim a inviolável e, da m esm a form a, um pedaço
de caixa e um guardanapo de papel serão o tap ete m ágico no
qual nosso paladino in te rn o realizará suas viagens de iniciação.
Um sim ples vaso de plástico com um pouco de água será o cálice
de p ra ta que devolverá forças ao exausto com batente depois de
sua lu ta com os m onstros. Porém , será a bênção de um pai, re en
con tran d o , no com panheiro vestido sim plesm ente com um nariz
verm elho, o filho que passou m uito tem po longe de seu coração.
D a m esm a m aneira, num e n te rro clown são usadas bolachas
que esm igalham os sobre o corpo estendido no solo, im itando o
ato de jo g a r um pouco de te rra sobre o caixão no m om ento em
que será en te rra d o num cem itério. Ali estão os clowns, com seus
n arizes verm elhos e seus lam entos, que não são tan to pelo m o r
to, m as p o rq u e se desperdiçam as últim as bolachas esbanjan
do-as de tal m aneira. U m m om ento de g ra n d e tragicom icidade
que, de algum a form a, une aquilo que é irreconciliável num só
golpe de poesia.
N um o u tro sem inário, e tra ta n d o de um tem a parecido, usá
vam os ce rta vez um a g ra n d e quantidade de papel branco para
co b rir o corpo do clown defunto, que rep resen tav a um hom em
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que, de verdade, havia m o rrid o congelado no alto de um a m on
tan h a sozinho, dois anos antes. E n q u an to nossa neve de papel
ia cobrindo pouco a pouco seu corpo, sua viúva, p articip an te do
sem inário, deixava-se levar por um sim bólico baile, expressão
am ável de um a despedida que não lhe foi possível realizar no
m om ento oportuno. T u d o vai se fazendo de m odo m uito so
lene, sem p erd er sua ingenuidade de clown, enq u an to ela se ia
m istu ran d o ao papel, deixando que sua te x tu ra delicada e sua
b ra n cu ra acariciasse seus dedos e seus olhos, em briagando seus
sentidos, até deixá-la exausta, m as feliz, com ovida e, de algum a
form a, leve, suavem ente conform ada com o que havia aconte
cido. Essa cena pro fu n d am en te poética desenhou diante de to
dos nós o que sua m en te rep etid am en te havia im aginado sem
co n seg u ir rep resen tar, devolvendo ag ora a satisfação de haver
conseguido, a p a rtir daquele doloroso m om ento, estar ao lado
de seu esposo, de algum modo, quando ele m orreu. P or cima dos
narizes verm elhos, brilhava no o lh ar de todos a m esm a emoção:
a em oção clown do trab alh o bem feito, seja qual for esse trabalho,
e tam bém o silêncio respeitoso de quem ap ren d e a estar sem pre
ao lado, com seu coração.
Assim , em Clown Essencial são m uitos os exem plos banais
da vida cotidiana que tom am o u tro significado: os guardanapos
de papel são vestidos de alta co stu ra ou finos lençóis para a noite
de núpcias, ou, ainda, as caixas de papelão se tran sfo rm am em
castelos, cavernas ou berços. Que im agem tão poética a do clown,
com seu nariz verm elho e seu o lhar oscilando de lado a lado,
apenas sobressaindo p o r cima das bordas da caixa, refugiando-
se de um m undo in seg u ro e hostil! Q u an tas o u tras pessoas não
gostariam , nesse m om ento, de sa lta r p a ra d en tro daquela caixa
e sen tir-se protegidas, ainda que banalm ente, de tudo e de todos,
64
até m esm o da m orte? Q uem não gostaria, p o r um m om ento, de
to rn a r-s e invisível ao o lh ar do m undo inteiro?
As vezes, uso o conteúdo in teiro da lixeira m ais próxim a,
sem m e p reo cu p ar com o que há dentro, despejando-o no meio
de um a im provisação. O m aravilhoso é que,* autom aticam ente e
neste m esm o in stan te, o im aginário do grupo, ou seja, dos de
m ais p articip an tes do sem inário, ajusta-se com o m eu e ninguém
se esconde ou lam enta. N o m eio do caos, tu d o está em ordem ,
e as en erg ias dos atores fluem com facilidade, seguindo o cu r
so de suas em oções num c o n stru ir form oso, vivo, ra d ia n te de
en erg ia e intuição. D o fundo da lixeira vão su rg in d o os restos
de um a vida esfarrapada, as palavras arran cad as de um discurso
inconfessável, os silêncios de um a d o r ainda m uito íntim a. E spa
lhados pelo chão, os desperdícios são, agora, um pequeno oceano
de confusões, de anseios, de desejos ocultos nos quais cada um
pode reco n h ecer seu p ró p rio caos interno. No m ar de m isérias
íntim as, os clowns, sem problem as, rem am em sua balsa com fé
no h o rizo n te, clam ando, sem resultados, aos deuses e aos ven
tos favoráveis p ara não se afundarem nelas. Em seguida, confor
m ando-se finalm ente com sua infeliz condição de seres hum anos
p e rtu rb a d o s e frag m entados, vão recolhendo, pouco a pouco, um
a um, os pedaços de sua dignidade, de seus am ores vazios ou
de suas infâncias sabotadas, com seu o lh ar g eneroso cham an
do a atenção do seu público, que apenas respira, saboreando a
delicadeza desses corações artesãos de um in stan te mágico, tão
efêm ero no tem po com o esplêndido de etern id ad e no simbólico.
U m a sim ples p alavra distorcida solta no ar p o r um corpo
em to tal a b e rtu ra pode ser um g rito de g u erra, a celebração de
um a leg ítim a v itó ria na qual todos, clowns e público, são heróis
de um a sonhada revolução. A inda ten h o p re sen te a im agem de
um p artic ip a n te de um sem inário na Espanha. E le gritav a, com
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os braços abertos e o peito vibrante: “V iva a m erluza livre! Viva
a m erluza livre!”. F oram tan tas vezes, com tal força, vitalidade
e determ inação, que o público pontuava com um sonoro “Viva!”
a cada novo g rito seu. N inguém sabia do que ele estava falando,
que diabos significava aquela m erluza, porém , aquilo não nos
im p o rtav a ern absoluto, porque em sua voz todos estávam os ce
leb ran d o nossa v itó ria pessoal sobre um hipotético ditador, um
o p resso r invisível não nom eado, m as percebido e tom ado como
seu p o r cada um dos m em bros do grupo.
A poesia da im agem nos une e nos fala a m esm a linguagem
a todos. Ela resg ata e valida o fundo das coisas, dando-lhes m ais
im p o rtân cia que a form a, que a sim ples ex p ressão das m esm as.
In stin tiv a m e n te ancorada num lu g ar com um a todos, h arm o n i
zando as percepções em um só sentim ento, indefinido, m as uni
form e, em um m esm o código, no qual tu d o pode ser qualquer
coisa e, q u alq u er coisa, um m undo diferente. A ssim , nossas m en
tes deslizam ju n ta s pela m esm a ladeira, p en e tran d o em unís
sono um m undo no qual essas im agens re g istra m , com m uito
m ais riqueza de detalhes que nossas palavras poderiam fazê-lo,
nossas vivências m ais íntim as. N esse vocabulário visual, em g e
ral terriv e lm e n te im pactante p o r sua dor, algo com um a todos
nós se reconhece, se une ao ato poético dos clowns, en tre g an -
do-lhes um aconchegante abraço m udo em que podem depositar
seus seg redos tran sfo rm ad o s em luz, seus absurdos to rm en to s
tran sfo rm ad o s em gestos, olhares, suspiros ou caretas. Assim ,
ao finalizar a contenda, su rg e um a delicada união na qual todos,
p o r fim, descansam os, calados, aliviados pelo ato sim bólico que
nos devolve o p o d er da celebração e da criação, tão p artic u la r da
poética dos clowns. Com o destaca o renom ado p siq u iatra francês
Jean P ie rre Klein, em sua visão da a rte -tera p ia, “a representação
do sofrim ento já é p a rte de sua cu ra”.
66
A lain VigiKuui durante 1111 espatáculo
ü
na Europa.
A lain in te rp re ta n d o M estre clow n.
M a q u ia n d o -se a n te s de um a a tu ação n a selva de E l Salvador.
A lain em um a a tu ação em Spitzkoppe, N am ibia.
D u ra n te um e sp e tá cu lo em B anda A ceh, Indonésia.
E sp e tá cu lo em P ad an g , Indonésia,
P a rtic ip a n te s da oficina sa b o re a n d o a infância rescatada.
U m m o m e n to do e sp etácu lo A larm .
A lain m in istra n d o um a oficina de C low n E sen cial no E stú d io C orazza, M a d rid .
Foto: O liv er R om a
A lain nas asas do clow n.
Q u a d ro p in ta d o p o r Jo s e tte
C o ste d o at, m ãe d e A lain (1963)
C A P ÍT U L O 8
A S Á G U A S C L A R A S DA I N F Â N C I A
8o
adu ltas se en co n tram re g en erad as e novam ente férteis, saciadas
de um a água generosa que, p o r fim e depois de tudo, re ssu rg e
de suas p ró p rias en tra n h a s e da qual podem germ inar, agora,
sem entes frescas que, com os devidos cuidados, d arão bons fru
tos. F ru to s de liberdade e consciência, expansão, criatividade e
plenitude...
A ssim descreveu um a p artic ip a n te de M adri: “Ali, naquele
espaço sem lim ite no tem po, voltei a m e e n c o n tra r com a criança
p erd id a que tive de ab an d o n ar p ara assum ir responsabilidades.
E aquele personagem , não é que não fora nada, tal e qual eu o
tem ia, m as era m eu núcleo essencial, m eu ser m ais autêntico,
m inha en e rg ia m ais verdadeira. A p a rtir dele voltei a e n tra r em
co n tato com a inocência, com a abertura, com um a aleg ria ili
m itada, com o am o r e o desejo de contato. Senti que eu tinha
mais força, sabedoria, p o d er e fem inilidade do que sou capaz de
m ostrar. C onectei-m e com esse self, escondido e tem eroso, e p er
cebi quão assustada se põe m inha m enina quando faço algum a
troca. Ali comecei a en te n d e r o que é reconhecer a nossa criança
in te rio r e ser um adulto m ais inteiro. Eu o com preendi perfei
tam en te p o rq u e m e senti m uito adulta. Vendo a m inha m enina,
sin to -m e adulta. E posso ver a realidade da vida m elhor, com
m ais am plitude. N ão m e lim ito ao que a m enina pode ver ou sen
tir, p o rq u e o que ela viveu está fixado naquele m om ento, quando
não tin h a m ais recursos p ara en te n d e r a vida e o m u n d o ”.
O u tra pessoa escreveu: “A visualização de m inha criança
pequena, de m eu eu quando era um a m enina, perm anece em
m im com o se tivesse sido um enco n tro real. A casa, o quarto,
os m o m entos que passam os ju n tas, seu rosto precioso. E stáv a-
m os brincando, eu a abracei e acariciei. E m ociono-m e só com o
escrevê-lo. A m ensagem que ela me deu foi a de que me divertia.
C onectou-m e com a aleg ria de viver. Q uase nada! E m eu rosto
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tam bém m udou, m inha en erg ia m udou. Senti que fluía com m ais
espontaneidade, aleg ria e seg u ra de m im m esm a”.
D essa viagem de exploração, nem sem pre isenta de m om en
to s difíceis, renasce um a com preensão m aior sobre nossa m aneira
de o lh ar a vida em nossa idade adulta. Q uando isso se dá, certos
m o n stro s voltam aos confins das te rra s habitadas, esfum ando-se
ao longe, desaparecendo nas neblinas que, algum dia, faz m uito
tem po, v iram -lhe nascer. D e n tre as dezenas de experiências que
tenho podido ir com pilando ao longo de todos esses anos, p ro s
seguirei citando algum as, p artic u la rm en te significativas.
A ssim o viveu M ., de profissão advogado, depois de um a
sessão de Clown Essencial no M éxico, ce n trad a no enco n tro com
a criança interior: “H á q uatorze anos, eu contava então doze,
m eu m elh or am igo p erd eu a m ão em um acidente com um a
‘bom ba’ d u ra n te um acam pam ento de verão (nota: trata -se de
um artefato pirotécnico n o rm alm en te usado pelas crianças, no
M éxico, apesar de sua g ra n d e potência e perigo). Eu a encontrei
no solo, m as a en tre g u ei a ele, em cuja m ão ela explodiu. N a e x
plosão, ele perdeu vários dedos. Após o acidente, os professores,
horro rizad os, não se atrev eram a co n tar p ara sua m ãe o que se
havia passado. E n ca rre g ara m -m e de fazê-lo. O bviam ente, estava
m uito nervoso e tentei fazê-lo da m elhor m aneira possível, sem
ch o ra r e sem a lterar-m e m ais do que já estava. P o ste rio rm en
te, depois do aviso à mãe, o p rofessor seguiu as indicações do
m édico e fom os em busca dos dedos, ou pelo m enos dos seus
fragm entos, p ara te n ta r re c o n stru ir a mão, novam ente um tra
balho nada p ró p rio p a ra um m enino. Porém , não encontram os
nada. A g o ra m eu am igo vive um a vida n orm al, m as desde esse
dia eu m e culpava pelo que se passou. Ao lo n g o dos anos, havia
m e desculpado várias vezes com ele, e ele sem pre m e livrava de
q u alq u er culpa, dizendo que eu nunca deveria carregá-la, o que
po d eria te r me deixado tranqüilo. E n treta n to , não foi isso que se
passou. D e form a repetida, seguia sonhando com aquela ligação
para sua casa e com a voz de sua m ãe me atendendo.
“D epois da sessão de Clown Essencial, tive um sonho m uito
significativo: nele, revivi toda a cena da explosão, até o m om ento
da ligação. N o en tanto, nesse m om ento, não me atendeu a mãe,
com o sem pre ocorria em m eus pesadelos, mas m eu p ró p rio am i
go, que sim plesm ente me disse: ‘E sto u bem ’. Pela m anhã, des
p erte i p ro fu n d am en te em ocionado. S entia em m eu corpo um a
g ra n d e liberação e, por fim, a inocência que havia perdido tan to s
anos a n te s”.
M. prossegue: “P ara m im , soa estranho, agora, que eu te
nha escolhido com o profissão a advocacia, que se dedica a lib erar
culpas e reafirm ar a inocência das pessoas, já que o caso m ais
im p o rta n te que tin h a p a ra reso lv er era o m eu próprio. O de um
m enino que se sente culpado e usa um a m áscara de adulto en
durecido p ara escondê-lo. A gora, sinto que ganhei o caso m ais
im p o rta n te da m inha vida e m eu cliente pode novam ente brincar
em um a inocência até então inalcançável”.
T ã o im p o rtan te foi esse processo p ara M. que, em segui
da, p erd eu o in teresse pela advocacia, a qual não lhe dava mais
satisfação, e em nosso en co n tro seg u in te estava buscando uma
nova ocupação. Esses tipos de casos sem pre me soam assustado
res, p o rq u e ilu stram com o a m ente de uma criança segue cami
n h ando em nós de m ãos dadas com a consciência do adulto em
d iferentes processos da vida, com o o de escolher um a profissão.
A crescen to que em m ais de um a ocasião tem os descoberto, na in-
fancia dos profissionais de advocacia que foram p articip an tes de
m inhas oficinas, g ra n d e s culpas assum idas p o r acidentes casei
ros que tiveram conseqüências dram áticas p a ra o u tras crianças
ou fam iliares. A contecim entos pelos quais foram culpados pelos
m ais próxim os. O u eles m esm o se autocondenam , num a deses
p erad a intenção de p ag a r pelo acontecido. D escobrim os, com as
som bro, que em m uitos casos o afa de defender, de fazer justiça,
tom ava seu im pulso num profundo sen tim en to de injustiça, de
lim par um a “culpa” pró p ria, num ju lg a m e n to íntim o, arraigado
naquelas d istan tes circunstâncias. Aí, nos subsolos da infância,
foi sem eada um a árvore, que logo cresceu e foi socialm ente m ui
to bem aceita, e que não deixava de te r em sua selva um am argo
sabor de culpa e de v erg o n h a sofrida em um a te n ra idade.
T iv e um aluno que era, com o profissional, an estesista de u r
gências. N o tra n sc u rso de nossa exploração, deu-se conta de que
a ra iz da escolha de sua profissão estava tam b ém em sua infância:
q u ando a m o rte levou dele um ser querido, m uito próxim o, ju ro u
a p a rtir daquele m om ento que agora havia um assunto pessoal
e n tre a m o rte e ele, e que iria vencê-la com toda a sua força. O
m esm o aluno m e disse que, sem pre que salvava um a vida em
um a sala de cirurgia, voltava a sentir, m uito além do que uma
satisfação lógica, a aleg ria infantil de tira r da m o rte um a alegria;
e assim seguia h o n ran d o seu pacto secreto.
Porém , se as águas claras da infância são férteis em ex u
b eran tes peixes de m il cores, são tam bém águas sensíveis e
profundas, das quais podem su rg ir com facilidade inquietantes
m o n stro s m arinhos. Q uando são abertas ao m ar da im aginação,
fazem -se propícias ao nascim ento de todo tipo de juram entos...
T al com o foi dito an te rio rm e n te no capítulo 4, “A propriedade
do in ú til”, não são poucas as circunstâncias em que essas águas
podem tin g ir-se de um a cor ou o u tra e até, em algum as oca
siões, convertê-las em redem oinhos escuros nos quais a criança
verá sua liberdade e sua confiança engolidas. N o m eu entender,
a am eaça de “exclusão p o r inadequação” pode ser a pior de to
das elas. E se esta se faz p re sen te diante de um grupo, com suas
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g arg alh ad as ou sua cum plicidade silenciosa confirm ando a con
denação, a situação to rn a -se p io r ainda.
Ao longo dos anos e dos m eus sem inários, ten h o recolhido,
g raças aos particip antes, dezenas de cenas que falam dessas si
tuações com toda a clareza, alguns anos depois. T en h o observado
que, d e n tre as m ais traum áticas, costum a em g eral in terv ir, além
do “v erd u g o ” (esse adulto que em ite o veredicto) e do m enino ou
da m enina, o u tro elem ento: o g ru p o que, m uitas vezes através do
riso e n o u tras p o r meio do silêncio, ratifica o parecer. Se a cena
se situ a no âm bito escolar, com o ocorre frequentem ente, os risos
irônicos dos com panheiros de colégio ou de o u tro s professores
g rav am ainda m ais p ro fu n d am en te a m ensagem de inadequação,
de m enosprezo, de não m erecim ento. O u tra s vezes, é a própria
fam ília ou os dem ais adultos —com suas brincadeiras ap aren te
m ente inofensivas e m uito en g raçad as p ara eles m esm os —que
confirm am a queda em d esg raça da criança, sem se d ar co n ta de
que esse g rupo, que deveria ser sinônim o de seg u ran ça e am or
incondicional, to rn a-se am eaçador e indigno de confiança.
A criança ex p erim enta, então, a sensação de um a in ju sta
desvalorização p o r ser diferente, e quase sem pre um a p rofunda
inadequação. T alv ez esta ú ltim a seja a p io r das am eaças, já que
c a rre g a o perig o da exclusão, que p o r sua vez pode ser o mais
terrív e l dos m o n stro s infantis. A ssim o confirm a B e rt H ellin g er
em Felicidade que permanece-, “U m a criança faz de tu d o p ara fazer
p arte. P ertencer, p ara ela, é m ais im p o rtan te que a p ró p ria feli
cidade e a p ró p ria vida”. E sse assunto é de tal im p o rtân cia que,
em alg u n s casos, se finalm ente alguém escolhe não pertencer,
vai rap id am en te fazer p a rte de um o u tro grupo: o dos excluídos,
que é um clube a mais, e que de algum a form a lhe dá o d ireito de
p e rte n c e r que seu g ru p o de o rigem negou.
N o entanto, na m aioria dos casos, c e rtam en te a criança está
d isp o sta a sacrificar q u alq u er coisa p ara perten cer: alegria, vita
lidade, espontaneidade, criatividade e, às vezes, está até ag red in
do o p ró p rio corpo. Q u an to s têm deixado de rir p ara não ofender
um a m ãe tris te e depressiva? Q uantos têm preferido co n ter sua
v italidade n atu ra l p a ra não aborrecer um pai co n stan tem en te
preocupado? Q uantos têm calado seu canto para não desafinar
com o pesado am biente reinante? P ara não aborrecer, p ara não
fazer som bra a ninguém , e p ara que não haja m ais brigas, grito s,
golpes, am eaças ou m ais injustiças, as crianças aceitam m u rch ar
e b rilh a r m enos. D o m esm o modo, o co rre o inverso: para que
não haja m ais silêncios e m ais tristeza s na m esa de jan tar, alguns
fabricam de bom g ra d o um duende aleg re que logo só saberá
ch o rar às escondidas. Q u an to s têm inventado um a felicidade
m o m entânea com a esperança de co n seg u ir um so rriso no ro sto
adulto deprim ido?
S er diferente leva à verg o n h a de não ser adequado, de não
ser o suficiente, de não m erecer um lu g ar ou um a proteção para
si m esm o, e isso prevalece sobre o p ró p rio sen tim en to e a p ró
p ria necessidade. A ssim , afogado e n tre vergonha, im potência,
culpa e raiva, a criança se congela, algo se fixa no tempo.
A contece que, nesses m om entos de profundo im pacto, se
estabelece um a espécie de c o n tra to in te rn o que num erosos tes
tem u n h o s verbais de particip an tes vêm docum entando: expli
cam como, antes de te r de pag ar o alto preço da inadequação, a
criança, fiel à disposição de sacrificar o que seja p ara p erten cer
e ser com o os dem ais, enuncia e firm a d e n tro de si um te rrí
vel co n trato. Cito, em seguida, alguns dos m ais m encionados:
“N in g u ém me ouve; ju ro que não falarei nunca m ais”; “O m undo
não é um lu g ar seguro, não confiarei nunca m ais em nada”; “Se
sou excluído, nunca m ais saberão o que acontece com igo”; “N ão
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há lu g ar p ara mim! Acabou, vou me to rn a r invisível”; “N ão sou
criativo”; “Vão me ver à força”; “S u p o rtarão m inha tris te z a ” etc.
C o n trato s secretos, forçosam ente m utiladores, que com andam a
co n stru ção de um ego doente, astu to e m anipulador.
E p o rq u e a ideia da inadequação pode ser terriv e lm e n te
im p actan te e decisiva na infância é precisam ente esta que, em
Clown Essencial, p rocuram os celebrar. Porque ser palhaço é ju s
tam en te b rilh a r diante do m undo a p a rtir da p ró p ria inadequa
ção social, física ou intelectual. E a generosidade de fazer rir
nosso público com nossos problem as, de m ostrar, com os braços
abertos, o que aprendem os a esconder. Porém , quando a pessoa
consegue finalm ente ex p o r-se diante de seu público, p ro teg id a
p o r essa m áscara tão verm elha q u an to o p ró p rio coração, e n tre
gando no palco a loucura que sai de dentro, sabendo que não será
ju lg ad a nem tran sg red id a, sua dignidade é devolvida à sua m e
nina ou m enino interior. E as claras e sonoras g arg alh ad as dos
com panheiros, que agora recebem e celebram as inadequações
do adulto, dissolvem aquelas trapaças que em brutecem a ino
cência, silenciam aquelas vozes condenatórias dos inquisidores
trib u n ais da infância.
Aí su rg e nosso m enino, nossa m enina, que segue aqui, vi
g en te em sua totalidade. N o tra n sc u rso das dinâm icas em pre
gadas em Clown Essencial, posso p e rg u n ta r ao g rupo, enq u an to
um a pessoa fala: "Q uantos anos tem a criança que está aí?”. S ur
p reen d en tem en te, o g ru p o em ite em geral um a opinião com um :
“Cinco, seis anos”, ou talvez, num o u tro caso, “D ez, doze anos”.
C aso p e rg u n te se oco rreu algo de im portância riessa etap a da
vida, quase sem pre a resp o sta da pessoa é “Sim ”. A parecem de
im ediato situações que, em seu m om ento e de algum a form a,
m arcaram : divórcio dos pais, m udanças, m o rtes ou separações,
longos períodos de in ternações hospitalares etc. T u d o acontece
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com o se, 20, 30, 40 anos m ais tarde, a vida seguisse com essa
circu n stância aparecendo facilm ente, com o um a m arca na casca
de Lima árvore ou um a velha ferida mal cicatrizada. A lgo se m an
teve fixado no olhar, um a m ensagem no corpo ficou selada, um a
atitu d e tom ou form a, fazendo com que ainda sigam os colocando
os sinais de algum a p re m a tu ra reação a um a situação m al vivida.
Com o conclusão, e n tre g o ao leito r um com ovente relato de
um a p artic ip a n te de Clown Essencial que, depois de e n tra r em
co n tato com sua m enina in terio r através de um relaxam ento
guiado, decidiu c o m p artilh ar um antigo sonho de sua infância.
Penso que ilu stra com força e poesia a su sten tação e reparação
que o diálogo e n tre a psique adulta e o arquétipo do m enino in
te rio r estabelecem .
“U m a viagem de volta no tem po m e levou ao cam inho ag ri-
doce que se abria em m inhas recordações. A ndava por ele p er
cebendo seus cheiros, sentindo o golpe da raiva e da fru stra n te
sensação de culpa de alguém que não sabia quem era, andando,
não sabia p o r onde. Ria, revivendo aleg rias e doçuras de en
co n tro de vital inocência. C heguei à m inha casa e a m enina que
m e recebeu estava tão viva, tão decididam ente bonita, com suas
tran ças m eio desfeitas e seu sorriso sem dentes... Segui a m inha
preciosa m enina sem tro c a r palavras até seu quarto, seu refúgio.
S entam os na cam a, m uito ju n tin h as. E la estava serena, ab e rta a
esse m undo que não deixava de assom brá-la, um m undo que eu
im aginava sem luz e cor, e que ela coloria com sua aceitação, com
a essencial aleg ria que tran sfo rm av a sua solidão num im aginário
piquenique no campo.
“M inha m enina esbanjava vida, m inha m enina ria. E la me
p erg u n to u : ‘O que tem feito com m eus sonhos?’. E ntão, o tem
po parou... ‘Q ue ten h o feito com seus sonhos, m inha preciosa
criança? Q uase não m e recordo deles! E stão en te rra d o s em um a
opacidade asfixiante, óxidos insossos os cobrem e é tão pesado
o fardo que pareço um co rcu n d a’. A m enina se levantou e pegou
sua caixinha de tesouros, abrindo-a: ‘T om a - disse-se —, é um
p re sen te p ara ti’, e colocou na m inha mão um nariz de palhaço.
A com panhou-m e até a p o rta e m e ofereceu seu im enso sorriso.
Voltei pelo cam inho da m inha vida ap ertan d o esse m inúsculo
p o n to de apoio, essa en o rm e possibilidade de m udança. E u a ou
via dizer: ‘Ria de você m esm a, ame, viva!’.
"Foi en tão que decidi p re sen tear-m e com urn velho sonho
que agitava m inha m em ória de m enina: ver um a au ro ra boreal.
0 desejo era tão fo rte que já desde o princípio da viagem falava
baixinho p ara m im m esm a do m eu desejo, dando corpo, com mi
nhas palavras, à esperança de sua visão...
“Branco, era tu d o branco. Q uilôm etros de b ra n cu ra su r
preen d iam m eus olhos e alargavam m eu espírito, devolvendo-lhe
um a paz antiga. O silêncio envolvia tudo, a m inha com panheira
de viagem e a mim; nos envolvia um recolhim ento im p reg n a
do pela presen ça de um te rritó rio nevado onde tu d o se calava e
falava ao m esm o tem po. Os sam is nos recebiam com so rriso s e
olhares quentes, calor hum ano em um te rritó rio gelado. Escuro,
tu d o era escuro. U m a noite sem lua e cheia de estrelas d istan tes
se esten d ia até onde alcançava a vista. Foi então que revontuli1
com eçou sua dança celeste. Verde, brilh an te e m ovediça, oferecia
m il form as que se refletiam em nossas pupilas. Silêncio, um g rito
de em oção e um espanto reverenciai diante de sua beleza. O co
ração m e estalava de co n ten ta m e n to e m inha m enina ria às g ar
galhadas. M eu corpo de m ulher dançou levado pelo m ovim ento
da au ro ra; m inha aleg ria de m enina fixou a au ro ra em m inhas
1 N. do T. Revontuli é a palavra finlandesa que define a aurora boreal. Vem de uma lenda
e significa, ao pé da letra, o fogo da raposa. Segundo a lenda, a cauda das raposas que cor
riam pelas montanhas batia contra os montes de neve, e as faíscas surgidas daí refletiam
no céu, formando a aurora boreal.
pupilas e, quando fecho os olhos, vejo sua dança interm inável
que alim enta m eu cam inho de m ulher adulta.
“A inda agora ouço estas palavras: ‘R ia de você m esm a, ame,
viva!’”.
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C A P ÍT U L O 9
0 E G O EM J OGO
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n u m ero sos os relatos e testem unhos que, p ara d ar fé, poderia
descrever aqui. T odos tra ria m ao leitor, sem nenhum a dúvida,
novos elem entos de com preensão sobre a contribuição tra n s
fo rm ad o ra que, nesse sentido, tra z a p erspectiva do enfoque do
Clown Essencial.
Se m eu trab alh o tem desenvolvido algo len tam en te ao lon
go de vários anos e de diferentes lug ares nos quais ten h o sido
convidado a expô-lo, um dos m ais im p o rtan tes é, sem dúvida, o
P ro g ra m a SAT do dr. C láudio N aranjo. N esse m étodo intensi
vo que une m editação, eneagram a, T erap ia G e sta lt e o u tras téc
nicas corporais e de exploração da consciência, esse incansável
pesq u isador introduziu, faz tem po, as fe rram e n ta s da re p resen
tação com fins terap êu tico s em suas várias facetas: teatro, m ás
caras, clown etc. N esse con ju n to de perspectivas, verdadeiro co
quetel explosivo p ara o ego, que se realiza em vários países dos
cinco co ntinentes, o su p o rte vital de Clown Essencial tem sido
som ado às técnicas já em pregadas com o um a eficaz fe rram en ta
p a ra acessar a neurose, buscando seu p erd ão a p a rtir de um a
irre v e re n te e tragicôm ica celebração da própria.
A ssim me p ontuou um dia um participante: “O clown é um
aten tad o co n tra o ego, algo que não se pode a n o ta r em um a ca
d e rn e ta ”.
T ra n scre v o a continuação dos relatos que m e parecem mais
ilu strativ o s da desidentificação do ego que se pode conseguir
com essa proposta. O p rim eiro pertence a um a particip an te para
a qual, segundo o m étodo de autoconhecim ento do eneagram a,
o m edo constitui o assu n to cen tral de seu caráter. E la relata a
experiência que viveu em um a sessão de Clozvn Essencial, d en tro
do P ro g ra m a SAT.
N esse dia, a p ro p o sta consistia na representação, a p a rtir do
clown, de um tem a de abordagem difícil, elaborando num palco
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um q u ad ro em m ovim ento no qual os diferentes elem entos inte
rag em e n tre si, a p a rtir da criação do m esm o até sua resolução.
N esse caso, os p articip an tes elegeram com o tem a a re p re se n ta r
“a am eaça”. U m tem a que, à p rim eira vista — só até aí —, p are
ce de m en o r p rep o nderância em nossas -vidas adultas e que é,
em geral, um assu n to c e n tral em nossa infância. A p articipante,
com cerca de 30 anos, a qual cham arem os de Ana, p ara resp eitar
sua intim idade, escolheu re p re se n ta r um aspecto da am eaça, em
g eral p róxim o dela: o castigo. E la in terp re taria, pois, a p a rtir
seu p ró p rio sen tim en to e em to ta l liberdade, p ro teg id a apenas
p o r seu pequeno nariz de clown, a am eaça do castigo. E ste é seu
testem unho:
“Ao a d e n tra r o espaço cênico, en trei no papel com g rito s,
acom panhados de m ão acusadora e ju stic e ira que apontava p ara
o a r e am eaçava m eus com panheiros: ‘Vai ficar sem sair!’, ‘Já p ra
cam a e sem com er!’, ‘D e castigo p ro quarto!’, ‘Você não vai com
a gente!’, ‘Vai ficar sem férias!’, ‘T á de castigo!’.
“Pouco a pouco, foi aparecendo em m im a im agem de um a
no ite em que, com o em m uitas outras, tin h a m edo de ir p a ra a
cama, te rro re s n o turnos. Im aginava com vivacidade v er vários
m o n stro s que vigiavam na escuridão do meu q u a rto quando to
dos dorm iam . Estavarn debaixo de m inha cama, no chão, em vol
ta de mim... E u m e cobria até a cabeça, m o rta de m edo, encolhida
e sem atre v er a m over-m e ou a re sp ira r forte. E ra insuportável
para m im s u s te n ta r essa sensação d e perigo. D o rm ia com m inha
irm ã, três anos m ais velha, m as quando ela se deitava e apagava
a luz eu sen tia que estava à m ercê de todo esse im aginário de
fan tasm as e seres abom ináveis. Q uando em algum as n oites eu
já não podia m ais aguentar, cham ava m inha mãe, sem lev an tar
m u ito a voz, ch o ran do e pedindo que viesse. N ão q u eria desp er
ta r n inguém , m as às vezes não suportava o medo. Pedia água ou
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um a ida ao banheiro várias vezes na m esm a noite, p ara com pro
v ar que não estava sozinha diante do perigo. U m a vez esgotado
to d o esse arsenal de desculpas, pedia p a ra que m am ãe se deitasse
em m inha cam a até que eu dorm isse.
“A noite em qu estão ocorreu num a época em que m eu pai
trab alh av a m uito e se levantava cedo. Eu, envolvida na m esm a
dinâm ica de pânico, de suores, encolhida e chegando a ver os
m o n stro s, inclusive ouvi-los re sp ira r a m eu lado, comecei a cha
m a r m inha m ãe com voz trêm ula, desesperada, com o nas o u tras
noites. Ouvi com o m inha m ãe acendia a luz e discutia um pouco
com m eu pai, m as veio m e v er e m e acalm ei um pouco. D eixou a
luz do co rred o r acesa e voltou à sua cam a p ara dorm ir. O pânico
ia aum entando, e eu continuava sem coragem p ara m e mover;
p ara piorar, não podia sair da cam a (o chão era o lu g ar m ais
vulnerável e perigoso), trem en d o e chorando debaixo do cober
tor. N ão queria ch am ar de novo, pois m e sentia culpada de não
d eix ar m inha m ãe descansar; en tre tan to , quando ficou insupor
tável, eu a cham ei de novo.
“Ouvi os p ro te sto s e os g rito s de m eu pai, que se levantou
furioso e g rito u do c o rre d o r com voz m uito dura: ‘O que foi?’,
ele b errou. A única coisa que consegui dizer foi: ‘E que eu tenho
m edo’. N esse m om ento, ele veio até m im com o um b ru tam o n tes
e m e deu dois tapas n a bunda, com m uita força, com o se estivesse
possuído pela raiva, en q u a n to gritava: 'E ssa loucura vai acabar
agora!’. E m seguida, apagou todas as luzes (m inha única espe
ran ça p ara m a n te r um pouco afastados os m o n stro s) e fechou as
portas.
“Pensei que enlouquecia. M eu pai n u n ca tin h a me batido,
nem antes nem depois dessa noite; sem pre o considerei m eu ído
lo, pois me dava seg u ran ça e m e encantava e sta r com ele; cari
nhoso, ainda que m uito ocupado com o trab alh o ; adorável e con
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fiável. Ao m e b ater e m e d eix ar sozinha, senti-m e abandonada,
in adequada p o r aborrecer, in seg u ra em seu am or e, sobretudo,
em perigo, co m pletam ente sozinha diante dos m onstros. Além
disso, a culpa de não poder su p e ra r a situação, de não poder d o r
m ir com o todo m undo, de não p o d er m e sobressair.
“T am b ém não podia m ais c o n ta r com m inha m ãe, já que
soube de im ediato que ela não iria desobedecer m eu pai diante
de sua decisão de não me p ro te g e r mais.
“Ao recordar, ainda agora, vem a m im um nó na g arg an ta,
invade-m e um m edo irracional e sin to que me encolho. S into no
peito algo que m e re to rce e m e faz pequena. T alvez seja o medo,
a culpa, a insegurança, não sei, pois m e custa identificar clara
m en te as emoções, m as essa sensação me cansa. N ão sei com o
fui capaz de sobreviver a essa noite. Foi p ara m im a traição das
pessoas em que mais confiava nesse m undo: m eu pai com força
e ju stiç a e m inha m ãe com o cuidadora que sem pre me pro teg ia.
S enti q ue não iam nunca m ais e sta r ao m eu lado. A im agem de
ap agar a luz do co rred o r e fechar a p o rta se fixou em m im como
sím bolo de seu abandono.
“E n tão, ouvi e vi os m o n stro s, senti m overem -se debaixo da
m inha cama, crescidos, com p o d er e to ta l im punidade, na escuri
dão. Suponho que, quando já não conseguia m ais chorar, acabei
dorm indo.
“Ao re p re s e n ta r esse dia — o e le m e n to da am eaça de cas
tig o - , e n q u a n to ia e n tra n d o cada vez m ais n esse papel, de
re p e n te se ap o d e ro u de m im o velh o pânico, essa sen sação de
p e rig o im in e n te e de d esespero.
“Fiquei paralisada, agachei trem endo, com os braços escon
didos sobre o peito, os punhos cerrados, os olhos fechados, cho
ra n d o d esesperadam ente, possuída pelo medo.
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“Voltei a me se n tir aquela m enina frágil, abandonada, so
zinha, sem recursos de defesa e em um a espiral de pânico cada
vez maior. Pensei que fosse desm aiar. As p ern as quase não me
susten tavam , o p ra n to era cada vez m ais desesperado, respirava
com dificuldade, suava, estava to n ta e era incapaz de pedir aju
da. A té que, e n tre os com panheiros, m ilag ro sam en te surgiu uma
pessoa que, p o r sua vez, estava in terp re ta n d o o u tro elem ento do
quadro. E la me abraçou e m e su sten to u com seu corpo.
“Senti um resg ate dessa situação in sustentável, das g a rra s
do pânico. Com o quando m inha m ãe vinha d u ra n te as noites na
m inha infância. Fui m e acalm ando pouco a pouco, e pude v o ltar
a re sp ira r com m ais norm alidade, to m an d o consciência de onde
estava; fui deixando de trem er. D u ra n te esse estado de transe,
aconteceram m ais coisas ao m eu redor, das quais não m e ha
via percebido, e todo o quadro estava ag o ra em plena evolução:
a som bra da am eaça, re p resen tad a p o r um com panheiro m uito
alto e corpulento, tin h a tom ado conta da sala, g rita n d o violenta
m ente c o n tra os dem ais. T odos o rodearam e, não sei como, aca
b aram - sim bolicam ente - m atando-o no m om ento em que eu
estava em m eu processo de acalm ar-m e e de re to m a r m eu con
trole. C om eçou nesse in sta n te um ritual, o de e n te rra r a som bra
da am eaça, ag o ra d erro tad a, m o rta no chão, vencida. Jogaram
sobre ele água, lixo, papel; esfarelaram bolachas sobre seu corpo,
todos em círculo ao seu redor. Os dem ais foram re g ressan d o ao
n o rm al e sen taram -se em volta do m orto. M as eu não conseguia
m e mover. Fiquei p arad a ali, com o um a criança de 6 anos, sem
p o d er desviar m eus olhos do corpo sep u ltad o debaixo daquele
m o n te de escom bros, sem poder sair dali sozinha, encolhida, m as
em pé. S entia-m e presa p o r essa figura, e incapaz de fazer o u tra
coisa senão vigiar, p ara v er se se m overia, se iria ressurgir, se
iria re g re s sa r para me buscar. Alain viu que eu não poderia sair
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p o r m ini m esm a dessa situação, ancorada na m enina em perigo,
sozinha, abandonada e sem recursos, p aralisada p ara continuar,
em choque. Veio até mim, deu-m e um a arm a poderosa: um a lan
ça — na verdade, não era m ais que um rolo feito com papel de
em brulho. M as, então, aconteceu a m agia.'
“N ão lem bro ex atam en te as palavras que ele usou, porém ,
fizeram com que eu recuperasse m inha força, m eu poder, e as
sum isse na cena o m eu novo papel, o qual surgiu nesse preciso
m om ento: o de guardiã. Bela, forte, poderosa. N otei com o m eu
corpo m udava, de m enina desesperada e assustada, to rn ei-m e a
m u lh er com p o rte de lu tad o ra, com potência, com segurança.
A lgo p erm itiu , em m eu interior, que m eus om bros se lev an tas
sem p a ra erg u e r m inha cabeça e m inha espada, e to m a r cons
ciência de todo o m eu corpo, bem su sten tad o sobre m inhas p e r
nas. Senti o espaço ao m eu redor, comecei a ver a luz que en tra v a
pelas co rtin as, m inha a ltu ra em relação, à sala, tom ei consciência
de m im e de tudo o mais. S u ste n tan d o m inha lança, pois era ne
cessário seg u rá-la com as duas mãos, com a certeza de que não
p erm itiria que nenhum perigo m e vencesse, vigiava de p e rto a
tu m b a da som bra da ameaça. N ão deixaria nunca m ais que ela
me vencesse. Senti que esse era m eu papel, que poderia fazê-lo,
não era difícil; seria a guardiã da am eaça, atenta, o rg u lh o sa, for
te, garbosa, g ran d e, sem medo.
“M eus com panheiros lev an taram o olhar, sentados no chão;
vi sua adm iração e ao m esm o tem po sua tran q ü ilid ad e ao me
olharem . Senti que alguns m e olhavam com novos olhos, com o
se m e descobrissem pela p rim eira vez. Tom ei um com panheiro
pela cin tu ra p a ra d ar-lhe o m esm o apoio e segurança, pois sen
tia em m eu in terio r um a calm a e um a força inesgotáveis. E ali
perm anecem os ju n to s, com o poder, com o o lhar desafiante para
a tum ba, po rém móveis, capazes, donos de nós, acim a do medo...
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“Hoje, as palavras que disse Alain fazem re s su rg ir de novo
esse po d er em mim: “Bela, poderosa, guardiã, digna, m enina p re
ciosa!”.
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nos deixaríam os d esfru tar de nossas paixões. N a ocasião, não
seriam os sim ples m arionetes m ovidas p o r um a paixão cega e
tom aríam o s co n ta do lu g ar que, na verdade, nos correspondia:
o de d ireto re s da cena. E u fiquei p o r um m om ento em silêncio
e evoquei essa sensação tão conhecida p ara mim. T ro u x e à m e
m ória to d as as ocasiões em que invejava os que convivem co
m igo e tam bém o ódio posterior, quando sinto que, diante eles,
sem pre saio perdendo. D eixei-m e ocupar conscientem ente por
essa sensação e, então, dei-lhe m inha voz, dei- lhe m inha força.
E m poucos segundos eu já estava cam inhando e n tre os demais,
m ostran d o -lh es, com rabo de olho, m inha raiva, m inha profun
da sensação de carência. Eu lhes cham ava aos g rito s, com os
pu n h o s m u ito ap ertados e a im pressão de ser um cão raivoso e
doente. Fiquei assim , m ovendo-m e pela sala d u ra n te alguns mi
nu to s e, de repente, A lain in terro m p e u o exercício. D etive-m e,
parada. E n co n trav a-m e exausta, com a respiração en tre co rtad a ,
e apenas podia me su ste n ta r em pé. Foi então que vi claram ente:
aquela inveja que me dom inava co n stan tem en te não era eu. Ela
se alim entava da m inha força e da m inha voz, do m eu tem po e
das m inhas células; ela era quem se identificava com igo. D e fato,
eu era o u tra. Eu era a que havia decidido d ar-lh e m inhas costas
d u ra n te esses m inutos de duração do exercício e, então, com a
respiração en tre c o rta d a e quase sem ar p ara respirar, parecia vê
-la d ian te de mim, enorm e, feita de fum aça e de espanto, olhando
d ireta m e n te nos m eus olhos, com o ro sto tris te de um g u erreiro
sem m áscara”.
Se essas experiências podem parecer, em um prim eiro m o
m ento, b astan te diferentes de q u alq u er experiência que nos faça
rir de nós m esm os, é porque o h u m o r de Clown Essencial não é
um h u m o r que esconde, e sim um h u m o r que vê e, p o rq u e vê,
se ri. E rindo-se, segue p erg u n ta n d o na busca da paz in tern a ,
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sem d eix ar nada que e n c o n tra pelo cam inho, sabendo que a cura
só pode v ir de um processo tão consciente q u an to com passivo,
com o ver e o reconhecer o que realm en te som os p o r dentro. De
C láudio N aran jo escutei essa frase, que m e foi m uito im pactante,
sem ainda saber com ce rteza se lhe devo a trib u ir sua autoria: “A
p o rta do paraíso só se abre p o r d en tro ”.
E se um dos principais benefícios da m editação é o de nos
levar a to m ar distância de nós m esm os, fazendo-nos desaparecer
desde dentro, esse é tam bém o p ro p ó sito que busca alcançar o
Clown Essencial, porém , p o r sua vez, fazendo-nos su rg ir até aqui
fora, p ro teg id o s p o r um a pequena m áscara verm elha. C onsidero
que nos d esapegarm os de nós m esm os e p o d er rir da dependên
cia de nossos p ró p rio s m o n stro s é um considerável propósito
que, sem d eixar dúvidas, o nariz de clozvn p erm ite realizar com
um a ex tra o rd in á ria m escla de profundidade e ligeireza.
O hu m or de Clozvn Essencial se parece com o am or; em bora
se assem elhe, a princípio, com um m ovim ento p ara fora, não tem
de fato fundam ento nem verdade se não nasce da pessoa p ara ela
própria. No en tan to , essa é um a longa tarefa, tal com o me ensi
nou um dia um lam a com um a só palavra. Sabendo que ele fora
convidado a assistir a um a sessão de Clozvn Essencial d u ra n te o
P ro g ra m a SAT do B rasil, o Lam a Sunam - assim ele se cham a
- aceitou o convite de bom g ra d o e pôde p re sen ciar várias dinâ
micas de trabalho, em especial um a im provisação realizada em
um fundo espiritual dionisíaco p o r três hom ens do grupo, p ro
vidos de seus narizes verm elhos de clown. D evo salien tar que o
trab alh o desses p articip an tes foi intenso, alte rn a n d o m om entos
m ais su rreais do que se p ossa im aginar e o u tro s de um patetism o
p ro fu n d am ente hum ano, inclusive, m ais p ro p ria m e n te m asculi
no. Enfim , foi um trab a lh o bonito, um a vez que foi côm ico e tra
g icam ente com ovedor, p a ra g ra n d e p ra z e r do Lam a Sunam , que
100
havia assistido, com um aten to estado de co n ten ta m e n to pon
tu ado p o r um as sonoras gargalhadas, toda a evolução daqueles
p o bres hom ens.
Ao finalizar a im provisação, p erg u n tei se ele g o sta ria de fa
zer um com entário sobre o que acabava de contem plar. A ceitou,
encantado; porém , em bora eu esperasse dele g ra n d es frases so
bre a com paixão do buda ou a delicadeza da flor de lótus, em um a
m etáfora sublim em ente bela e espiritual, ele os olhou fixam ente
e lançou no ar uma só palavra seguida de um a larga, sonora e
v ib ra n te gargalhada: “Paciência!”, exclam ou Lam a Sunam , dei-
x an d o -n o s a todos boquiabertos...
Sem se m o s tra r em absoluto im pressionado pelo que acaba
ra de ver, em um a só palavra ele havia resum ido p o r com pleto!
Sem atrib u ir valor, sem pontuar, a p a rtir do respeito e da clarivi
dência de quem enxerga m ais além e entende o espírito hum ano,
a busca de p lenitude e das lim itações hum anas.
D esde então, aquela frase —“Paciência, disse o lam a” —rea
p arece am iúde no espaço de Clown Essencial, com o uma espé
cie de koan2 tão d esco n certan te qu an to alentador, que consola a
uns e o u tro s em d eterm inados m om entos de sua g u e rra co n tra
o ego, e recorda-nos um a sábia lição que, um dia, um lam a deu a
três palhaços em busca da felicidade e ao seu terapeuta.
2 N. do T.: Koan é uma narrativa, diálogo, charada ou afirmação usada no zen budismo e
que traz em si aspectos não racionais. O koan tem como objetivo propiciar uma ilumina
ção espiritual do praticante do budismo.
C A P ÍT U L O 1 0
0 CORPO GENEALÓGICO
104
que acaba aceita de antem ão p o r am bas as p artes e que ra ra m e n
te em pobrece a obtenção de alguns assom brosos resultados.
E m b o ra seja verdade que em m eu corpo esteja escrita com
evidência a m inha p ró p ria vida, certam en te figuram , p o r sua vez
e de m an eira cam uflada, m uitas passagens-da epopeia familiar. A
h istó ria à qual pertenço, e que às vezes me pesa m uito, e à qual
sigo serv in d o de algum a m aneira im plícita. P or isso, eu não pos
so d ar to talm e n te vida aos perso n ag en s ou acontecim entos que
se escondem d en tro de m im, já que, ao fazê-lo, sairiam flutuando
laços de referências não n ecessariam ente adm itidos. D e algum a
form a, m inha le a ld a d e - p o r o u tro lado legítim a (cf. o capítulo “A
p ro p ried ad e do in ú til”) —faz-m e presa da história.
N o en tan to , a pessoa que m e re p resen ta não tem esse peso;
ela está livre onde eu tenho lim itações, pode falar onde eu prefiro
calar, pode d eixar o m ovim ento livre onde eu aprendi a sufocá-lo,
d ar voz à ten são dos m eus m úsculos, so ltar a energia onde eu
a quero d o m ar 011 d eixar su rg ir a rebelião subjacente onde eu
p reserv o um a form a socialm ente aceitável.
D essa m aneira, ela pode, deixando-se g uiar p o r sua própria
expressividade, d ar livre curso ao m ovim ento que se esconde em
mim, d eix ar vir, à luz do dia, o que só escuto nos m u rm ú rio s de
m inha intim idade. P ro g ressiv am en te, d u ra n te sua re p resen ta
ção, m eu com panheiro to rn a m ais largos os gestos pró p rio s de
m eus m ovim entos, estendendo-os em toda a sua am plitude, acen
tu an d o m inha rigidez 011 ex a g eran d o a curva de m inhas costas.
T alvez deixe seu o lh ar p erd er-se com pletam ente no horizonte;
pode ser que ten sio ne ainda m ais m eus braços ou que deixe cair
de todo o peso dos m eus passos, p erm itin d o que apareça diante
de m eus pró p rio s olhos um ser certam en te deform ado, porém ,
em que posso reconhecer facilm ente m inhas loucuras m ais se
cretas. A parece, então, na superfície, um m aterial escondido que
ap o n ta m inha fidelidade a um m em bro da fam ília com um a p ro
fissão particular, ou a um a d o r m uito g ran d e, ou à presença na
fam ília de uma pessoa com um destino especial, ou à vivência de
um a situação p a rtic u la rm e n te im pactante. A ssim , nasce diante
de nós, com o a esc u ltu ra que len tam en te su rg e de um bloco de
p ed ra b ru ta, a m arca de uns antigos laços que seguem sendo
p a rte de m inha tram a adidta.
A queles que deixaram aí sua im pressão são, m uitas vezes,
fam iliares um pouco m ais afastados da criança que os próprios
pais, que estavam com ela a um a distância suficiente p ara que se
sen tisse livre p a ra recolher ou não o encargo, quase sem perce
b er o convite. M as, apesar disso, d epositaram nela sua história, e
a criança captou seu perfum e. D e algum a form a, deixaram um a
n o ta escrita sobre um m óvel e a criança sim plesm ente a reco
lheu.
T alvez algum m em bro da família de o lh ar bondoso e so rriso
d iscreto tenha deixado assim seu legado, sem p ed ir nada em tro
ca, p o rq u e sabe que os olhos que lhe veem são aten to s e, as o re
lhas que lhe escutam , sensíveis. A lgo se tra n sm ite no silêncio da
presença, no eco da voz escutada. Assim , pode-se v er quando em
um a fam ília há artistas, ou sim plesm ente pessoas de sensibilida
de artística, sem chegar forçosam ente a fazer disso seu principal
trabalho. Fossem pintores, poetas ou músicos, esses sonhadores
d eix aram a im pressão de sua fantasia em nossos sentidos. Fos
sem ju izes ou carcereiros, d eixaram em nós a san ta in teg rid ad e
da fro n te ira e n tre o que está certo e o que e s tá errado. Fossem
hom ens ou m ulheres do cam po, com sua peleja em te rra firm e
e am anheceres trabalhosos, sem earam em nós ce rto o lhar claro
que ainda en x erg a no h o rizo n te o am or à boa colheita. São avós
ou avôs, tios ou tias, pessoas tam bém ligadas de form a íntim a
ao e n to rn o familiar, m as que não p re te n d e ra m ex ercer d ireta -
íoó
m en te um a influência tão p oderosa com o a dos pais. É algo m ais
relaxado, tran sm itid o sem g ra n d e s discursos, nem conselhos,
nem exigências, m as com partilhado a p a rtir da confiança de que
tu d o será com o tem de ser. D ian te desse te rritó rio ab erto e sem
barreiras, a criança pode d eixar sua criatividade expandir-se,
d esen h ar m undos novos e sem ear, generosam ente, sem entes de
sonho, em um sutil m ovim ento de resiliência. Sem se se n tir o b ri
gada nem exigida, com o alguém que pudesse saborear o perfum e
do feno recém -co rtado sem tem er ficar preso a um sítio p o r toda
a vida.
P o r isso, nem sem pre, os pais podem fazer essa transm issão
de valores form a ligeira, um a vez que são mais rig o ro so s com a
passagem de seu estilo de vida, desejando e quase exigindo que
as crianças sigam sua linha vocacional, seja ela religiosa, a rtís
tica, m ilitar, do âm bito da ju stiça, da educação ou de q u alq u er
o u tra profissão que peça um a e n tre g a particular.
T u d o isso perm anece oculto sob as altas g ra m a s da corpo-
reidade cotidiana, até que um dia aparece nosso clown, confiante,
ingênuo e curioso p o r natureza.
G uiado p o r seu coração ab erto e bonachão, ele pode p erco r
re r esse cam inho ascendente sem medo, com o um m enino que
p e re g rin a e n tre recordações e antigas fotografias, abraçando
sem ju ízo esses velhos legados, in teressando-se m ais pela abun
dância de sabores que d eixaram do que p o r um ju ízo lim itan te e
em p obrecedor sobre as coisas úteis e das que não servem . Como
todo bom poeta, ele sabe e x tra ir a riqueza dessa linhagem , ainda
que no m eio dos velhos fantasm as, com o um hábil ap icu lto r que
recolhe o m el saboroso em meio a mil abelhas.
Com o fru to desse legado que de p ro n to re ssu rg e d ian te dos
outros, dessa im pressão que, rep en tin am en te, se faz visível e é
celebrada, a pessoa ex p erim en ta um a suave liberação, alim enta
107
da pela aceitação benevolente dessas influências que desenharam
sua infância. O corpo se sacode com o m esm o m ovim ento que de
um cão ao sair do rio, liberando recordações, anseios e imagens.
N esse m om ento, é possível que a pessoa veja, com certa tristeza,
afastarem -se seus sonhos de originalidade, suas ilusões de ser
alguém livre e m uito especial; no entanto, em troca, seu sorriso
deixa v er o suave descanso que é aceitar a h eran ça que, de algu
m a form a, chegou até nós. D a m esm a m aneira, podem os ouvir o
lam en to dessa avó que p erd eu um a filha, presenciam os o corpo
q u eb rad o do tio paralítico, reconhecem os a esforçada in te g ri
dade do pai coronel, a inclinação obediente da tia devota ou os
passos resig nados de quem esteve p o r m uitas h o ras em salas de
esp era de um hospital...
Em o u tras ocasiões, a pessoa ex p erim en ta um verdadeiro
re en co n tro com um a an tig a fonte de inspiração até então quase
esquecida, fato que lhe deixa o doce sabor de um a reconciliação
in tern a.
Q uando esse belo processo acontece, o re s ta n te do g ru p o
d esfru ta com a pessoa o reconhecim ento daquele fam iliar que,
anos antes, deixou sua im pressão - sem sabê-lo - n esta alm a
infantil: aquele vizinho poeta, o avô músico, a tia da roça...
E m algum as ocasiões pode acontecer que, d u ra n te o desen
volvim ento desse processo de exploração, a pessoa que está re
p re sen tan d o um com panheiro não consiga d a r a seu m ovim ento
a am p litu d e ju sta , o som ilustrativo; algo im pede a aparição da
inform ação. Isso pode e sta r ligado às próprias lim itações expres
sivas da pessoa, m as g e ra lm e n te se tra ta de o u tra coisa: de form a
in stintiva, o im itad o r não e n tra no assunto da o u tra pessoa. U m a
espécie de válvula de seg u ran ça faz com que o in té rp re te não
se atrev a a re p re se n ta r o que está em ergindo. A contece desse
m odo, tal com o tenho presenciado em várias ocasiões, em casos
de abuso sexual, de m o rtes trág icas ou de o u tras circunstâncias
p a rtic u la rm e n te difíceis. P arece-m e que esse fenôm eno ilu stra
com clareza a seg u in te reflexão de B ert H ellinger, em seu livro
Felicidade que permanece: “Às vezes, percebem os que não pode
mos, nem estam os autorizados. A lgo d en tro de nós nos proíbe.
E ntão, tem os de reconhecer que alcançam os o lim ite”.
L ogicam ente, alguém pode p erg u n ta r: P or que a pessoa re
p re sen tad a não dá, ela própria, essa inform ação? Porque, apesar
de g u a rd a r d en tro de si o m ovim ento desenhado, ele fica inaca
bado com o sinal de respeito ao clã, através de um pacto com o
silêncio, no que não é dito. C ito novam ente H ellinger: “P orque
isso não resolve obrigações dos m em bros da família e da segu
rança. E a seg u ran ça de c o n tin u ar p e rte n cen d o ”.
Sabem os que tem os arm azenado, no corpo, todo um m ate
rial arcaico feito de recordações, vivências, emoções, experiências
de todo tipo, im pulsos etc. A pesar de ser, nas profundezas, um
m agm a fértil em choques e explosões, o conjunto dessas forças
vai, pouco a pouco, en co n tran d o um equilíbrio próprio. D e for
m a g rad u al, todos os elem entos vão en co n tran d o um lugar, um
ju s to com prom isso que p erm ite à pessoa sobreviver no re g is tro
habitual, que engloba corpo, em oções e pensam entos, e no qual
cada in g re d ie n te foi se acom odando ao longo do tem po. T odos
eles conform am , ao final, uns p arâm etro s conhecidos, e n tre os
quais a pessoa vai co n stru in d o um precário —m as tran q u ilizad o r
—ru m o p ara sua vida. São certo s elem entos fundam entais desse
percu rso quase geológico que, em geral, aparecem na re p resen
tação que, de mim, pode fazer o outro, segundo sua inspiração
clownesca, levando, com hum or e inocência, luz aos nossos q u a r
tos escuros.
N u m a ocasião, no M éxico, p e rg u n te i a um jovem p artic i
pante, ex tre m am en te m ag ro e sem energia, se em sua infancia
109
precisou p re s ta r serviços p a ra alguém . Ele disse que sim, que
coube a ele cuidar de sua mãe, que sofria de esclerose m últipla. A
sensação do g ru p o in teiro era de um sacrifício da p ró p ria ener
gia v ital no a lta r de um leg ítim o am or filial. E m suas posteriores
im provisações com o clown, pude u tilizar a m ag re za de seu corpo
com o um a liberdade e um a força cósm ica até en tão inalcançáveis
p ara ele.
E m B ruxelas, um a p articip an te é re p resen ta d a com ares de
ra in h a quando, efetivam ente, se m antém p o r cim a do re sta n te do
g ru p o , sem poder incluir-se no clim a geral. P erg u n to -lh e onde
estava seu castelo, e ela responde de im ediato: “N a Suíça. M eus
pais tinham um castelo e não nos deixavam b rin ca r com as ou
tra s crian ças”. M uito su rp resa, acrescenta: “A g o ra me dou conta
de que, ainda hoje, m oro nu m a rua que se cham a ‘Rua C onde
de...’”. A p a rtir desse m om ento, nós a batizam os com o nossa con
dessa oficial, e seu jo g o cênico foi enriquecido p o r autênticos
ares aristo crático s que, vistos pela perspectiva do nariz verm e
lho, tom avam a dim ensão de um surrealism o engraçadíssim o.
N um a oficina no B rasil, um a pessoa está rep resen ta n d o ou
tra , fazendo um m ovim ento que m o stra sofrim ento, algo pareci
do com o sofrim ento de alguém que está preso, que se a g a rra a
b a rro te s e quer sair. O p artic ip a n te re p resen ta d o está olhando a
cena boquiaberto. E u lhe p e rg u n to se alguém esteve preso. Ele
me diz que seu pai foi m ilitar e p o r diversas vezes esteve em
p risão m ilitar. O p articip an te é, p o r profissão, fiscal, e é m uito
com um que m ande p re n d e r pessoas. A gora, seu clown pode cele
b ra r sua d u reza com m ais liberdade, com ce rto desapego, porque
todos sabíam os de onde ele a havia roubado.
N o en tanto, em alguns casos ocorre o co n trário : é o abando
no de q u alq u er m ovim ento na representação o que deixa aflorar
as referências que m ais nos m arcaram e às quais, de algum a for
no
ma, seguim os dedicando intim am en te nossa fidelidade. D escre
vo, a seguir, um exem plo p a rtic u la rm e n te significativo.
A conteceu em Barcelona, alguns anos atrás. U m p artic i
pante, com cerca de 40 anos, ao qual cham arei Pedro, tem um
am plo h istó rico de graves dependências quím icas que o deixa
ram , várias vezes, à beira da m orte; está realizando um dos m eus
exercícios, cham ado clown zen. N essa proposta, a pessoa deve
rá se ap re se n ta r diante do público para dizer um te x to m ínim o
e, su p o stam en te, b astan te su rrealista. O exercício se baseia no
nada: n ada de ação, nada de expressão, nada de intenção, nada de
justificação, e daí seu ca rá te r zen. Ao m esm o tem po, não deixa
de ser cômico, de tão g ra n d e que é o desam paro que dá a leitu ra
de um te x to absurdo aliado ao fenôm eno da exposição que sen
te a pessoa ao e star sim plesm ente ali, fren te ao público. N essas
condições, a pessoa toda, seus p ensam entos e suas em oções, se
to rn am m ais tran sp a ren tes, e da observação de sua presença po
dem s u rg ir valiosas inform ações.
Foi o que aconteceu com Pedro, que naquele dia estava dian
te de nós, p ro cu ran d o dizer com naturalidade seu pequeno texto.
O bservo-o em toda a sua am plitude, cham ando-m e especialm en
te a atenção seu corpo: g ra n d e e corpulento, porém , sem en er
gia, com o desconectado da en e rg ia vital. D e repente, aparece em
m im a im agem nítida desses corpos de vacas pen d u rad as nos
ganchos dos m atadouros e que se balançam por cim a de poças
de sangue. Ao m esm o tem po, me im pressiona a ex pressão de
seu olhar, vazio, olhando-nos, m as sem nos ver, sem elhante ao
o lh ar de um corpo m orto. D e pro n to , perg u n to : “Q uem m atava
as vacas? ”
O g ru p o me olha, perplexo, to talm e n te su rp reen d id o por
m inha p e rg u n ta , que ap aren tem en te nada tinha a v er com a si
tuação: P edro está diante de nós, em pé e sem fazer nada m ais
ni
que d izer seu banal te x to de duas frases sem entonação específi
ca. E le m e olha tam bém e, em seguida, responde: “M eu avô pa
te rn o tin h a um açougue e m atava gado, so b retu d o porcos. M eu
pai o ajudava. M ais tarde, m eu pai m ontou um negócio relacio
nado com a carne: fabricação de p rato s p re p ara d o s com carne.
Eu trab alh o com ele”.
T odos ficamos mudos. No silêncio, que se m anteve d u ran te
vários segundos, podia perceb er p o r p a rte do g ru p o um senti
m ento de respeito e de conform idade, um a aceitação de que essas
coisas nos acontecem , em um a concordância tácita e não ju lg a
dora. Ao m esm o tem po, dian te de Pedro ia su rg in d o a im agem
clara de com o suas overdoses estavam tran sfo rm an d o seu corpo
n um corpo sem vida, colocado em um gancho. Ao dar-se conta
de q u an to seu próprio percurso, de form a evidente, seguia sendo
fiel à p a rtic u la r energia que envolve um açougueiro, foi para Pe
dro o que desencadeou um a tom ada de consciência im portante,
que o levou, p o sterio rm en te, a m u d ar de profissão, a em preender
a re sta u raç ão da vitalidade p erd id a d u ra n te anos em prol de sua
lealdade à saga familiar.
P arece-m e im p o rtan te realçar que esses m ovim entos reve
ladores se podem d ar em Clown Essencial p o rq u e se considera
a pessoa em sua totalidade, dando valor a tu d o o que ela traz,
p erm itin d o que se sinta acolhida num lu g ar de confiança e sem
ju lg am en to s. A confrontação com o que su rg e q uando o nariz de
clown o to rn a evidente se realiza a p a rtir de um lu g a r onde o ego,
tão h ab ilm ente astu to e tão bem p rep arad o p ara liv ra r batalhas
e quase sem pre ganhá-las, se e n c o n tra desarm ado, desam parado
e sem o recurso de suas habituais estratég ias de defesa, de p re
venção ou agressão. D isse m inha esposa, Leda, n um a avaliação
m uito co rreta, que esse enfoque de acom panham ento pega o ego
desprevenido. E n q u an to ele está en tre tid o em defender velhos
112
castigos e v in g ar antigas feridas, a essência da pessoa se revela,
silenciosam ente, e sem m ais histórias, aparecendo diante de nós
pela p o rta que en controu, su rp reen d en tem en te, aberta. Q uando
depois o ego aparece, já é tarde, a pessoa já se m ostrou! Já re
velou seu seg red o , ou realizou seu ato de poder, ou dançou com
toda a sua sensualidade, ou deu corda à sua espontaneidade!
E n q u an to isso, diante de nós, Pedro segue ali, so rrid en te,
aliviado e m u ito m ais presente. N o grupo, soam agora g a rg alh a
das de lucidez e assom bro, p ró p rias da com icidade que envolve a
evidência do que não vemos, de tão próxim o que o tem os diante
de nossos olhos. P edro nos havia assom brado, en tregando-nos,
com a tran sp a rên c ia de sua “não re p resen ta ção ”, um elo vital de
sua h istó ria, que ninguém conhecia. E m troca, ele havia recebi
do, p o r p a rte do público, o genuíno acolhim ento suficiente p ara
que, com um ju s to distanciam ento em ocional, pudesse e x tra ir
dessa experiência toda a sua riqueza tran sfo rm ad o ra, liv ran d o -
se da carg a que levava sozinho e que estava próxim a de m atá-lo.
C A P ÍT U L O 1 1
0 C O N T R A T O COM D E U S
nô
que sim ” ou “p o rque não” não enco n trav am m ais saídas d ian te de
nossas acertad as e d iretas perguntas.
Assim , fom os confeccionando nossa p artic u la r negociação
com o divino, em que, e n tre culpas, m éritos e vinganças, seguía
mos conseguindo c o n stru ir um a ce rte z a do p o rq u ê das coisas e,
sobretudo, a convicção de nosso lu g ar no tabuleiro de x ad rez da
vida e na m edição das forças em jogo. Fom os tecendo um a rede
de causas e efeitos, desenhando um m apa celeste no qual tudo
se encaixa à perfeição em um silencioso bailado de plan etas re
dondos e lógicos, o rq u estrad o s p o r esse alguém que nos vê p o r
inteiro, nos en ten d e por com pleto e que, m orm ente, sabe o que
nós fazemos.
Eu m esm o fui vivendo em m eus pensam entos a elaboração
dessa equação instintiva; tam bém os relatos que ten h o escutado
p o r p a rte dos p articip an tes de Clown Essencial me confirm am
que eu, pelo m enos, não fui o único a fazê-lo. A lguns deles podem
recordar, algum a vez com su rp re en d en te precisão, inclusive o
m om ento no qual fizeram esse pacto, esse co n trato com Deus.
D e form a m u ito sutil, disseram algo assim : “Se tenho que viver
no meio dessas coisas que vejo ao m eu redor, tudo bem , vive
rei; m as não será de graça, e alguém terá que pag ar o preço do
sacrifício que estarei fazendo. Ou me pagarás tu (Deus), ou me
pagarão eles (o m undo)”.
E m m inha percepção, firm a-se nesse m om ento o co n tra to de
desam or com o m undo, um pacto íntim o, secreto, que desem boca
num a elaboração “louca” de m inha relação com o m undo. U m a
espécie de S an ta C ruzada unipessoal que devolverá à m inha d o r
seu ju s to pagam ento: a infelicidade dos demais. D essa deform a
ção do vínculo su rg e um a form a de ser egoica, com sua m an eira
específica de relacionar-se com os dem ais, na qual, e n tre ap erto s
e afrouxam entos, sem pre haverá um p ro d u to que se vende e um
117
preço que se cobra em troca. U m a m anipulação poderosa, aberta
ou en co b erta, evidente ou perniciosa, de mil ro sto s e o u tra s ta n
tas fatu ras a pagar.
G raças ao olhar bondoso que o clown leva sobre seu cora
ção dolorido, tan to q u an to sobre sua m ente enferm a, g raças ao
p o d er que a rep resentação cênica possui e à altern ân cia das di
nâm icas utilizadas, com ou sem nariz de palhaço, m uitas pessoas
conseguem form ular com palavras alguns destes pactos:
“E u vou vivendo, m as vocês nunca vão saber o que ex ata
m en te se passa com igo e, se quiserem saber, terão que adivi
n h a r”, ou ainda: “Sem pre vou m anipulá-los e, m ais cedo ou m ais
tard e, vocês terão que se d a r conta da m inha superioridade”, ou
ainda: “Vou vivendo, m as sem pre vocês terão que conviver com
m in h a tris te z a ”; ou: “N unca vão saber da m inha fragilidade, nem
de m inha vulnerabilidade. Só e n tra rã o em m eu reino os fortes
com o eu”; ou tam bém : “E u serei perfeito, m ais que você, D eus, e
a todos lhes obrigarei a serem tam bém . E sse será o preço do meu
esforço, de m inha im pecável retid ão ”.
H á um testem u n h o que ilu stra bem o que pode ser o con
tra to com D eus e sua conseqüência na elaboração do tipo de re
lação que alguém te rá com o m undo. O relato abaixo p erte n ce a
um a m u lh er que p articip o u de um a oficina de Clown Essencial em
B rasília, e que revela aqui, com suas p ró p rias palavras, com o foi
co n stru in d o seu ca rá te r o rg u lh o so e superior:
“P erdi a hum ildade q uando tin h a provavelm ente cinco anos,
um a época em que m inha m ãe saía a tra b a lh a r em sua noite es
p iritu al, deixando-m e sozinha em casa, cuidando de m inha irm ã
de três anos e meio e de m eu irm ão de três meses. A contece que,
num desses dias em que estava sozinha cuidando deles, tive que
tro c a r as fraldas de m eu irm ão m enor; no q u a rto havia uma m esa
red o n d a com urna toalha g ra n d e branca de renda, e sobre a m esa
havia um a vela acesa. M inha irm ã bateu na vela, acidentalm ente,
e a to alh a com eçou a incendiar-se; p o r sorte, m inha irm ã e eu
conseguim os ap ag ar o fogo e não houve um acidente m ais grave.
“M inha mãe tin h a em sua cam a um Jesus C risto em sua cruz
de m adeira. R ecordo-m e bem de que estava todo esculpido em
m adeira, não havia ro sto nem detalhes, ou eram bem pequenos
detalhes, m as m inha m ãe rezava com igo todas as noites e sem pre
me dizia que ele era o “Pai dos céus” e que ele nos cuidava e nos
protegia.
“E ntão, naquela noite do incêndio refleti: ‘Que papai do céu
é esse que leva m inha m ãe para longe de mim e m e deixa sozi
nha cuidando de m eus irm ãos?’. Pensei que ele não era nada, e
que eu era m uito m elhor que ele, porque, neste m om ento, quem
havia salvado e cuidado de m inha vida e de m eus irm ãos era eu, e
não ele. C reio que, a p a rtir desse m om ento, comecei a sen tir-m e
m elhor que Deus, porque ele não havia sido capaz de g u a rd a r e
cuidar de m eus irm ão s”.
N a m inha opinião, fazem os o m undo pagar, de form a sutil
e encoberta, o preço de nossa p ró p ria sobrevivência. “Se não foi
g rá tis p ara mim, não vai ser p ara vocês” —esse é o p ertu rb a d o
discurso que su rg e da ferida ainda aberta. “O que eu paguei me
será devolvido, custe o que cu sta r”, ru m o reja a raiva silenciosa
da im potência. “M eu esforço será o vosso”, su ssu rra em se g re
do a lu ta do controlador. “O que D eus me tirou eu vou co b rar
com ju ro s, p o rq u e esse é m eu direito!”, clam a a sedução do falso
santo. “M eu m edo será seu esp an to ”, g rita a am eaça do a g res
sor. “M eu peso será seu freio”, suspira o gem ido do apático. “Sua
v erg o n h a será m eu o rg u lh o ”, deleita-se a satisfação do superior.
“M eu silêncio será sua an g ú stia”, cala o invisível...
E stas são as esclarecedoras palavras de um a p a rtic ip a n te de
Barcelona:
“M e vejo ali, sobre o sofá de couro sintético am arelo cor
de frango, um a pequena m enina que espera. Os adultos estavam
to d o s reunidos fora, algo acontecera, eu estava intrigada. F i
nalm ente, chegou m inha m ãe e me revelou o g ra n d e m istério.
O papai havia sido levado pelos anjinhos, agentes especiais que
D eus enviou para que estivesse com ele no céu. ‘Papai agora está
nas estrelas, naquela, a m ais brilh an te do firm am e n to ”, explicava
m am ãe.
“N o entanto, era ce rto que, se eu explicasse aos anjos que
necessitava de m eu papai, eles, que são tão bons e que têm in
críveis poderes especiais, deixariam que ele voltasse p ara casa.
Eu sabia que papai estava fazendo um a viagem estelar, porém ,
tam bém sabia que D eus e seu filho Jesus, que tin h am gran d es
poderes, o ressuscitariam , o que p ara eles era fácil, já que tinham
feito isso várias vezes. E p o r que não iriam fazer com m eu pai,
que era a m elhor pessoa do m undo? Cada noite eu pedia isso a
D eus, sabia que ele m e tin h a consideração, e que, se pedisse de
verdade e me com portasse bem, ele me atenderia. Sonhava com
m eu papai descendo do céu e sabia que um dia ele voltaria p ara
casa. Porém , p assaram os anos e papai nunca regressou: D eus
não teve consideração com igo. T a n ta s orações e tão pouco re
sultado... U m g ra n d e m entiroso! T u d o era um a g ra n d e m entira, ,
um a ilusão que me fazia ac red itar em coisas que não existiam .
C om o pude viver num m undo isolada da realidade? S om ente
agora, aos m eus 33 anos, pude e n ten d e r m inha preguiça com
a ingenuidade, com a inocência, quando a vejo em mim e nos
dem ais. Se eu perdi m inha inocência, não p erm itirei que o u tro s a
g uardem . Seria dem asiado in ju sto ”.
E m algum lu g ar do ser, a d o r se tran sfo rm o u em vingança,
às vezes de form a quase im perceptível; outras, a g rito s abertos.
A ssim , a au toagressão e o sacrifício são rum os possíveis desse
120
d oloroso m ecanism o. T ra n scre v o aqui p a rte do relato de uma
p artic ip a n te de A licante que, adulta, não conseguia g o za r de boa
saúde e, em conseqüência, em endava uma doença atrás de outra.
N a capela do hospital onde sua m ãe g rav em en te enferm a encon-
trav a-se in tern a d a, ela, sendo um a m enina de uns 8 anos, está
rezando: “D eus, se salvas m inha mãe, eu serei a enferm a. T om a
m inha saúde e salve-a”. E, pelo visto, D eus salvou a mamãe...
N a C alifórnia, um a jovem p articipante, de c a rá te r rebelde
e com um longo h istórico de ten tativ as de suicídio e desafios à
m orte, revelou-nos finalm ente seu p ró p rio contrato, dirigido ao
m undo e, m ais especialm ente, a seus pais. “Se não querem me
ver viva com o eu sou, terão que m e ver m o rta de um je ito ou de
outro. T erão que ir ao m eu e n te rro ”. U m a terrível transação...
P arece-m e de vital im portância nos darm os conta de como
esses pactos, legítim os em seus fundam entos, são os andaim es
que su sten tam nosso ego doente e que ainda com andam nossa
relação p a rtic u la r com o m undo, tran sfo rm an d o -se, pouco a pou
co, nas g ra d es de uma velha cela onde seguim os dando voltas,
num a profunda estre ite za de pensam ento e m ovim ento. A lgo
que nos im pede de nos relacionarm os com o m undo e £que m ol-
d a ] nossos sem blantes desde então, e só nos deixa fazer qual
q u er coisa d en tro de seus limites.
E n tre ta n to , um dia aparece nosso clown, arm ad o de valor
e coragem . E sbanjando bizarrice e inutilidade p ara todo lado,
aproxim a-se na p onta dos pés do cen tro do desam paro dessa
criança ainda viva no coração. P ara não assustar, apenas esboça,
no ar, sua intenção am igável, p o rq u e sabe, em seu coração, que
som ente o que pode ser reconhecido e validado na alm a infantil
p erm ite à consciência adulta desfazer o pacto e d esapegar-se do
contrato. Sabe que é preciso, prim eiram ente, validar, re sp e ita r e,
de algum a form a, h o n ra r o que a alm a infantil, na sua dor, im
potência ou confusão co n stru iu . Sabe que a alm a infantil fez isso
p o r causa de sua im periosa necessidade de tra n sfo rm a r um caos
in ju sto num quebra-cabeças ordenado e aceitável, pelo menos,
ainda que fosse esse o preço de um a p rofunda dúvida no tem po
in g ên u o da vida. Sabe que não se troca o que se nega, e que aqui
lo em nosso in te rio r que se sente rejeitado não cede diante de
n en h u m a prece. O m ovim ento é outro, e nosso clown, em bebido
de sua inocente curiosidade p o r tudo e de sua n atu re za bene
volente d ian te dos fenôm enos da vida, in stin tiv am en te assim o
reconhece.
E p o r isso que, quando nosso clown expõe, genuinam en
te, seu c o n tra to com D eus em cena, d esdobrando-o sob os focos
acesos da com paixão e da consciência, respeitando-o e alim en
tan d o o público com sua sensibilidade natu ral, algum a coisa cede
em sua inviolabilidade. Am pliado, agora, p o r vários com panhei
ros do g rupo, que p o r sua vez usam seus n arizes verm elhos e
seus fig u rinos bizarros, o elenco dessa tru p e m uito esquisita de
com ediantes pode, agora, nos b rin d ar com esta en g raçad a tra -
gicom édia: Deus, eleg an tem en te vestido, p o rta n d o tam bém seu
p ró p rio n ariz verm elho, discutindo com a M o rte, igualm ente ca
racterizad a, sobre o com ércio de almas, os prazo s de entrega, de
preços baixos e de ofertas de dois por um e o u tro s detalhes do
além , sob o olhar de um a criança feita refém e n tre sua família,
seu d estin o e sua im aginação...
C ausa realm ente m uito im pacto p ara a pessoa ver aí re p re
sen tad o o que ela sem pre sentiu de form a secreta em algum lu
g ar de seu peito, to car com o dedo todos esses perso n ag en s su r
gidos de um a alm a infantil presa na dor ou na confusão. D iante
das coisas sem sentido da vida, se vai organ izan d o um m undo
em ocional num cenário de ilusões, crenças, esperanças e perso
n agens ex trao rd in ário s. N este m esm o cenário e com a m esm a
122
linguagem , com características próprias do im aginário e do m is
tério criativo, é que a consciência adulta agora pode elab o rar o
elix ir capaz de desfazer o feitiço.
Ao ser com p artilhado e celebrado, em geral em um a com o
vedora com unhão e n tre o clown e o público, e n tre a p essoa e o
g rupo, algo do pacto celebrado no passado perde vigência, uma
couraça se q u eb ra sutilm ente, urna convicção se to rn a débil, um a
velha vingança se apazigua: a pessoa pode, então, te r um d istan
ciam ento e sab orear o descanso de um a nova liberdade, de um a
p ro m isso ra hesitação, e sen tir-se ab e rta a o u tra form a de ser. É a
beleza desse percurso, conciliador em sua essência e corajoso em
sua execução, o que p e rm itirá que nossos passos acreditem em
novos cam inhos para p eram b u lar p o r esse universo com m enos
com prom issos assinados e m ais liberdade p ara viver.
R econheço que eu m esm o fiz, em m inha infância, uns im
p o rta n te s co n tra to s corri um D eus ao qual não consultava m uito,
m as que tive de inventar às pressas para d ar ao m undo, com
seus incom preensíveis fatos, um dono. T enho de confessar que,
e n tre tais co n tratos, um, da m ais alta santidade, foi o que firm ei,
dando a p alav ra de h o n ra de um m enino de sete aninhos, sobre a
seriedade da vida. D izia algo como: “A vida é séria e, se alguém
se descuida, essa seriedade se ofende e se tran sfo rm a num m ons
tro escuro que tudo engole, pai e m ãe inclusive, e que deixa as
crianças sozinhas no meio de um m undo m uito vasto, 110 qual
não há nin g u ém m ais”. Algo terrível! T a n to é assim que, d u ra n te
meu tem po de a rtista profissional dedicado ao hum or, a fazer rir
meu público, p o r incrível que possa parecer, foram necessários
10 lo ngos anos de apresentações p ara que eu conseguisse rir de
m im m esm o em cena. A té então, eu era um clown, ce rtam en te
engraçado, m as p artic u la rm en te aten to a todos os detalhes do
espetáculo, co n trolando tudo, desde o cenário: ao m esm o tem po
em que atuava, observava se certo foco de luz ilum inava o lugar
m arcado, se a m úsica e n tra v a em seu devido tem po, se o con-
tr a r r e g r a havia deixado m eus objetos de cena no lu g ar certo...
N o final das contas, era com o um m enino dom inado, p o r dentro,
pelo pânico, que não q u eria d ar ao m o n stro a m en o r opção pos
sível de e n tra r p o r algum a p o rta deixada ab e rta p o r descuido, e
de ap arecer assim , de novo, sem m ais nem m enos, no meio de um
m undo de fantasia, p ara a rru in a r com tudo o u tra vez.
A té que, num a noite de apresentação, em um te a tro na Es
panha, eu ri. O espetáculo estava acabando; eu, cansado e m o
lhado de su or devido ao esforço físico e ao calor dos focos de
luzes, ten tav a subir em um m onociclo m uito alto, com a ajuda de
espectadores voluntários que, com o eu, levavam nariz de palha
ço. N ossa p recária pirâm ide hum ana foi desm o ro n an d o pouco a
pouco. A p esar de nossos g ra n d e s esforços, p a ra a aleg ria do pú
blico, tudo ia mal. A conteceu um m ilagre! Eu ri de m im m esm o
e da situação cômica criada em cena. Eu ri, abandonei o controle,
aceitei... P ara mim, foi realm en te com o abdicar, re n d er-m e a uma
festividade cósm ica da vida, concordar com um a dim ensão da
ex istên cia que estava fora do m eu controle e da m inha satisfação
egoísta. N esse m om ento, se desfez m eu velho contrato. Recordo
m uito bem de que senti um a espécie de ducha d o u ra d a deslizar-
se ao lo n g o de m eu corpo, desde a cabeça até os pés, num a sen
sação que nunca havia sentido antes, nem m esm o nas cerim ônias
de cu ra dos xam ãs, que naquela época eu freqüentava. E n q u an to
isso, eu ria às gargalhadas, em sin to n ia com o público, que fazia
o m esm o, celebrando com ele, num a bonita com unhão, m inha
v itó ria ín tim a que não era o u tra senão a de p o d er d eixar para
trás a g u e rra santa que m eu p ró p rio m enino, legitim am ente, ha
via em preendido contra a seriedade da vida, m uitos anos antes.
A inda agora, ta n to tem po depois, guardo aquele m om ento como
124
um dos m ais sublim es que jam ais m e havia concedido na m inha
ex ten sa ca rre ira artística de clown.
C A P ÍT U L O 1 2
0 C O N S O L O DA A L M A
128
ele se atribuem essas palavras: “D epois de ver um bom clown, a
lavadeira co rre feliz p ara lavar a roupa, o bêbado re to rn a à sua
g arrafa com paixão, o p in to r a g a rra o pincel no voo”. Q u er di
zer, de alg u m a m aneira, nada m uda, m as tam pouco nada é com o
antes. Porque, se a transform ação talvez não se faça visível na
form a das coisas, é em seu fundo que ocorre o verdadeiram ente
renovador, e onde a pessoa, tendo visto o reverso de seu p ró p rio
desenho, p o d erá re sp ira r um ar to talm e n te novo, ainda que se
guindo o m esm o caminho.
E x iste in stin tiv am en te em todos nós, talvez nesse lu g ar
m ais saudável de nossa psique, um im pulso que segue p ro fu n
dam ente fam into de vida, que busca n atu ra lm e n te a felicidade,
com o o rio busca o m ar, apaixonado p o r experiências e plenitude.
M u ito além das características e do c a rá te r de cada um, m uito
além do que o rd in ariam en te podem os nos atrever a form ular,
algo v ib ra em nosso in terio r que nos im pulsiona a buscar o que
nos ajudará a co n seguir bradar: “E sto u vivo! E stou viva!”.
Q uando a pessoa retom a contato com esse lu g ar de si, ocor
re com n atu ralid ad e a restauração de um a prazerosa e verdadei
ra co rren te in tern a , que flui em h arm onia com as capacidades
criativas e as circunstâncias de cada um. P ara perm itirm os, em
Clown Essencial, a liberação do im pulso do corpo, aceitam os a ce
lebração do lado escuro, p orque são rios poderosos, ce rtam en te
cheios de in q u ietan tes correntezas, m as que, p o r sua vez, tra n s
p o rtam valiosas pepitas de ouro. E sem pre m uito benéfico d eixar
de lado a m en te que tudo filtra e ceder à experiência vital que
ainda v ib ra no corpo! N esse m ovim ento, o organism o e n tra em
ação, desen ro lan d o-se de sua faceta m ais antiga e en c o n tran d o
o m anancial onde se restabelece um a en erg ia maior, expressão,
prazer, e n tre g a e rendição. P or isso, em Clown Essencial, não te
129
m os m edo do caos e celebram os com alegria sua anárquica fer
tilidade.
T ra ta -s e de criar o m arco favorável à aparição de um a cons
ciência m ais orgânica, subjacente à form a cotidiana de ser. Fo
m en tan d o um estado de fluidez p ara o qual a aceitação, o não
p en sa r e a confiança se unem , levando, suavem ente, a pessoa à
ex p ressão do silenciado, à liberação do que foi retido. Surge, en
tão, a p a r tir da vitalidade, da espontaneidade e da ab e rtu ra, o
im pulso de e n tre g ar-se ao que está ocorrendo nesse m om ento,
aproveitando, em toda a sua riqueza, de um profundo estado de
fé, tan to em si m esm a com o nos demais. E ssa é a form a pela qual
é possível e n c o n tra r o ego desprevenido, en tre tid o com o u tras
necessidades, enquanto a pessoa, liberada p o r um m om ento de
seus ju lg am en to s au to lim itan tes do dia a dia, pode fazer o p er
curso que deseja o seu interior. O consolo da alm a não acontece
se não vencerm os, antes, a co rrid a do ego.
E n tre ta n to , quando o conseguim os, ocorre, m uito amiúde,
que a pessoa se su rp reen d a de haver sido capaz de realizar esta
ou aquela façanha cênica dian te do grupo, de um a form a m ui
to d iferen te do seu c a ráter habitual, p ara um público entregue,
asso m b rad o e feliz. Q u an ta beleza surge quando o ego, em bria
gado de m ovim ento, de suor, m úsica e emoções, cai finalm ente
rendido, en q u an to a essência da pessoa se esboça d ian te de nós,
guiada p o r esse pequeno facho de luz no meio de seu rosto.
U m a m u lh er com cerca de 60 anos, de p resen ça discreta e
tem p eram en to reservado, p articip a de um a oficina de iniciação
ao Clown Essencial, no M éxico, quando as pessoas têm a o p o rtu
nidade de realizar um as im provisações de clown sobre tem áticas
variadas, nas quais o que re su lta ser realm ente im p o rta n te é o
seu p ró p rio jo g o cênico, m uito m ais que qualquer ro te iro prem e
ditado ou p reviam ente ensaiado que elas pudessem seguir.
!3°
N essa ocasião, e à m edida que vai tran sc o rre n d o e desen-
rolando-se sua intervenção, esta sen h o ra cresce em sua en erg ia
e nos ap resen ta um a g u erreira, am alucada, pouco a pouco inal-
cançável, u ltrap assan d o até m esm o as re g ra s técnicas da p ro
po sta de trab a lh o que lhes havia feito previam ente. Eu a deixo
fazer, in tu in d o q u an ta su rp resa nos pode tra z e r sua atuação. Ela
está linda, liv re e desenfreada, incontrolável de inspiração e be
leza b ruta. O re sto do g ru p o fica refém de um riso contagioso
(que sacode, ao ritm o de sonoras gargalhadas e de form a quase
alarm an te, a en o rm e b arriga de o u tra participante, g rá v id a de
mais de oito meses!); olhos com o g ra n d es pratos, olhando para
o palco, sem p o d er crer no que estão vendo. A senhora segue
ali, com sua en erg ia implacável, assum indo a batuta de toda a
im provisação com sua vontade, brilhando com todo o seu esplen
d o r infantil, criativo, livre e provocador. Seu nariz verm elho lhe
havia convertido em um a espécie de superaposentada, p ro ta g o
n ista da g u e rra das galáxias, e sua energia vital enchia a sala p o r
com pleto. Seus m ovim entos eram rápidos, aco rren tad o s num a
su rp re en d en te fluidez, sua força irradiava p o r todo o espaço...
Seus com panheiros de cena, na escuta, entendem que n este m o
m ento ela está no com ando da rep resen tação e que seu p ro ta g o -
nism o é inevitável. In tu itiv am en te conscientes do que isso pode
re p re se n ta r p ara ela, dedicam -se a seg u ir seu jogo, dando ainda
mais v alo r à sua atuação, com o um a o rq u e stra bem disciplinada,
acom panhando, c o n tra os ventos é m arés, os com passos de um
d ire to r ex trav ag an te. A cena é su rre alista , delirante, porém , tão
cheia de vida, do p ra z e r vital de brilhar, de respirar, de existir!
P or m inha experiência, sei que um a atuação dessa qualidade
tem na raiz a expressão de um a revanche íntim a. Por sua força,
sua beleza e seu código tão pessoal, não m e resta dúvida dc que
há n esta sen h o ra a aleg ria de quem se sabe ra in h a de um a só
noite e de quem teve sonhos de ser artista.
A ssim , ao term inar, p erg u n to : “Você, o que q ueria ser quan
do era peq u ena?”.
N esse m om ento ela nos dá esta bela frase, que contém toda
a sua satisfação: “Q uando pequena, eu ia m uito ao teatro; eu que
ria sem p re e sta r lá em cim a (no palco), m as estava em baixo (no
meio do público)”. A gora, obviam ente, ela acabava de e sta r em
cima, em p leno centro dos focos e da m aneira m ais livre possível.
E sse é exatam en te o esp írito de revanche que n u tre a tra n s
form ação que podem os alcançar através de Clown Essencial. A
im provisação à qual acabávam os de assistir e ra um a boa de
m o n stração disso e, m uito além da sim ples façanha expressiva
e ex tra o rd in a ria m e n te côm ica d esta pessoa, fez-se p aten te a
profunda satisfação de quem realizava um sonho de infância, de
quem fazia, p o r fim, o que ta n to desejava fazer, ainda que fosse
60 anos depois. Isso é m aravilhoso para a pessoa, e é tam bém
p ro fu n d am en te com ovedor p a ra o público, que percebe perfei
tam en te o alcance de sem elhante vitória, que eu considero um
desses pequenos m ilagres que o Clown Essencial nos concede
p resen ciar em seus m elhores m om entos. São verdadeiros tesou
ros que nos enriquecem a todos.
N ão se tra ta de refazer to d a um a infância, de re co n stru ir
suas recom pensas p o r com pleto ou de q u erer trocá-la p o r outra,
m as sim de nos conform arm os com reaver algum as centelhas
de prazer, reescrever passagens da história ou tro c a r o final de
alg u n s capítulos. Porque, agora, som os adultos e é quando tem os
as fe rram e n ta s p a ra fazê-lo.
E sse é o caso de um p articip an te, que parece desprovido de
vitalidade nas diferentes sessões de trabalho. Seu corpo, m uito
fraco, p arece acom panhar a en erg ia baixa, assim com o de sua
respiração, quase im perceptível, num a espécie de câm ara len ta
generalizada. N o en tanto, quando passa pelo cam arim e coloca
sua m áscara de clown sobre o nariz, o co rre um a su rp re en d en
te transform ação. Seu jo g o se to rn a fresco e vigoroso; podem os
ver-lhe ap ro v eitar ao m áxim o, ex p e rim en tan d o p ra z e r e leveza.
O c o n tra ste m e cham a a atenção. P ara m im , algo não se encaixa
em ta n ta diferença de ânimo. Ao finalizar sua im provisação, p er
gunto: “Se tudo que você toca brilha, quem te fez v ira r so m b ra?”.
A resp o sta veio num instante, sem nenhum a dúvida: “M eu irm ão
gêmeo. M u d aram -m e de escola p orque eu era m ais in te lig e n te ”.
N esse m om ento, todos percebem os como, p o r am or a seu irm ão,
ele havia delib erad am ente m inguado, castrad o sua p ró p ria en er
gia vital. U m a en erg ia que ag o ra se p erm itia revisitar, fazer n o
v am ente sua, go zan do-a com o um a criança que se deixa levar
pelas voltas de um carrossel onde sobe pela p rim eira vez.
E m Clown Essencial, o enfoque ex perim ental está isento de
q u alq u er ânim o de vingança. N ão é o m om ento e nem o lu g ar
de q u erer fazer p ag a r a ninguém o que se passou conosco, nem
de buscar culpados que pudessem a rcar com a responsabilida
de pelo m odo com o as coisas tran sc o rre ram . Ao contrário, está
p len am en te p resen te, de form a ab erta e reconhecida, o espírito
de revanche, a reivindicação de algo que na infância e p o r várias
circunstâncias não se pôde realizar, que foi castrado ou sim ples
m ente proibido. A lgo que, de algum a m aneira, não pôde ser.
E sse fenôm eno, com o o descrevia com m uita intuição Fe-
derico Fellini, pode to m ar vários m atizes, desde a reparação da
criatividade até p ro fundas m udanças n a sim ples energia cotidia
na de viver.
E ste é o com entário de um a participante, aficionada pela
p in tu ra, que há m eses não tocava em seus pincéis: “A lgo se m o
veu em mim; ver-m e a m im m esm a com o m e veem os dem ais, eu
133
vista de fora, com o espectadora do meu próprio ser, o que há por
d e trá s e eu não quero m ostrar. Ao chegar em casa, à m inha vida,
às m inhas atividades ro tin eiras, eu, sem cerim ônias, depois de
nosso fim de sem ana de Clown Essencial, en trei em m eu dim inuto
q u a rto de arte, esse espaço que em outros tem pos serviu de ade
ga. A com odei-m e, organizei m eus pincéis e p in tu ras, peguei um a
tela e decidi p in ta r um qu ad ro cheio de m ulheres, sob a chuva,
com som brinhas. £...]] E n tre i em contato com o fem inino, com as
m u lh eres da m inha vida, com a m inha m ulher, m inha p a rte d u ra
e m inha p a rte sensível, e não pude resistir à ideia de capturá-lo
em um quadro. A gora me sin to em ocionada e entusiasm ada para
ch eg ar em casa, e n tra r em m eu pequeno quarto, to m ar o pincel,
peg ar um a tela e colocar nela o que eu sinto”.
N u m a ocasião, ao finalizar um a dinâm ica p a rtic u la rm e n te
vital e em conexão com a en e rg ia da criança interior, percebi
que, sobre m inha mesa, com m eus cadernos de trab alh o e re p ro
duções de m úsica, encontravam -se uns óculos. P erg u n tei em voz
alta a quem perten ciam e, nesse m om ento, um a p artic ip a n te se
aproxim ou de mim: “São m eus!”. E la acabara de realizar toda a
sessão sem os óculos, sem se d a r conta de que não os usava como
de costum e e, tal com o havia com entado com igo a n te rio rm e n
te, não podia viver sem eles sobre o rosto. Ela acrescentou esta
frase, que me pareceu m aravilhosa: “Eu havia esquecido de que
não via...”.
E stas são as palavras de um a particip an te de Barcelona:
“Vou cam inhando, sentindo to d a a força que n u tre m eu ser e
desejando a vida como antes nunca o fiz”.
U m m úsico de j a z z com enta com igo: “D epois de nossa ses
são de dom ingo, tive um a apresentação à noite e, no palco, senti-
m e tão bem com o nunca antes havia m e sentido, m uito p resen te
e pró x im o ao público”. O u tra pessoa escreve: "E ra sábado à tard e
e me p reparei p ara fazer um a apresentação. Vestida com um a
larg a saia roxa, tipo flam enca, um su éter n eg ro ajustado e com
g ra n d e elegância, cabeça erguida. M eu nariz verm elho era a ce
reja sobre o bolo. C antei e cantei tal qual um a can to ra de ópera.
A força que m e tran sm itiu esse in sta n te foi enorm e. C onectei-
m e com m inha força interior, m eu p ró p rio dizer ‘aqui estou eu ’,
aju stando o que p reten d o ser com o que m ostro. £../] U m fato
que m udou o tra n sc u rso de m eu cam inho v ital”.
N ão m e re sta dúvida de que há, em todos esses m ecanism os,
a elaboração de um a profunda reconexão com a vida, um a reco n
ciliação com o que não pôde ser em d eterm in ad o m om ento, um a
reg en eração da autoconfiança e das possibilidades da pessoa.
T u d o ocorre, e assim o percebo em geral, d u ra n te o tra n sc u rso
dos sem inários, com o se uns m inúsculos cabos elétricos in te rn o s
se reconectassem . N o princípio, são apenas umas pequenas faís
cas in term iten tes, tím idas e ainda tem erosas de seu p ró p rio bri
lho, até que, a p a rtir de determ in ad o m om ento, com eça a p assar
a co rren te da vida, um a cham a intensa, inquebrantável, segura;
um a certeza de que viver é, de algum a m aneira, fun d am en tal
m ente bom , ainda que m antenham os clara a consciência de que
a vida nem sem pre é fácil e, em m uitos casos, pro fu n d am en te
dolorosa.
A través do Clown Essencial e, com o se pode com provar, a
p a rtir de nu m ero so s casos, ocorre esse fenôm eno re p a ra d o r de
reconciliar-se com a vida. T enho visto pessoas deixarem de fu
mar, recu p erarem a fertilidade, d eixarem profissões insatisfató
rias, co n se rtare m relações com pais ou o u tro s fam iliares p ró x i
mos, realizarem velhos sonhos de infância e, de um a form a mais
am pla, em p reen d erem im p o rtan tes m udanças em suas vidas.
E screvo isso com todo o cuidado, p o rq u e quase nunca toco
d iretam en te nesses temas. N ão dou conselhos, não digo a nin
guém o q ue tem de fazer ou d eix ar de fazer. C onsidero que não
sou quem deva dizê-lo, pois todos têm m esm o m uito para re
solver em sua p ró p ria vida e m ais ainda p ara e n te n d e r sobre
si m esm os; prefiro som ente acom panhar e cam in h ar ju n to , no
espaço de um tem po, pelas trilh as do Cloivn Essencial. É suficien
te e ten h o fé em que a m era experiência da vida reen co n trad a
d u ra n te o sem inário levará, intuitivam ente, a pessoa a fazer as
tran sfo rm açõ es que busca e a to m a r as m elhores decisões, em
um a concordância natu ral com seu m om ento.
E m co n tato com a en e rg ia vital recobrada em seu corpo,
com o espelho p erm a n en tem en te m u tan te do o lh ar do público e
com o m ovim ento dançante de suas emoções, a pessoa ensaia os
p rim eiros passos de um p ercu rso vital que só pedia um a opor
tu n id ad e de p ô r-se em m ovim ento. A confiança e o acolhim ento
que en c o n tra no g ru p o para a expressão de nossos to rm e n to s e
anseios, a celebração a p a r tir do burlesco nariz verm elho para
confessar nossas penas e desesperos, as asas que liberam em nós
o cheiro das te rra s da infância reconquistadas, o canto das ri
sadas e dos silêncios, a m úsica, o respeito, a lucidez... tudo isso
to rn a possível um a d istan te m eta, em seu tem po proibida e, hoje,
p o r fim, concedida: a bendita tran sp arên cia de serm os nós m es
m os e descansarm os com isso.
Poucos sabem que o g ra n d e C harles C haplin, que foi p ara o
h u m o r o que Jobann Sebastian Bach foi para a m úsica, teve uma
infância m arcada pelas dificuldades de um a fam ília em situação
precária, conhecendo em prim eira pessoa e p o r longos tem pos
os som brios am bientes dos o rfanatos infantis lo n d rin o s de fins
do século X IX . T alvez p o r isso, já em sua idade m adura, p ro
nunciou esta bonita frase que, p ara mim, sim boliza m uito bem
o consolo de alm a que a pessoa pode ex p e rim en tar em Clown
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C A P ÍT U L O 1 3
B A I L A N D O COM A S S O M B R A S
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ser fo rtes e sabe-tudos, p o d er com tudo e um pouco mais, se
for necessário. Sentim os ciúm es ou pavor da solidão, porém , isso
parece ser de nossa n atureza, e parece que é preciso escondê-lo.
N ecessitam os de um sim ples abraço e, em troca, nos lançam os
a g ra n d e s discursos sobre o am or. A brigam os v alen tia e atrevi
m ento, m as nos acovardam os; é claro que não irem os d esp e rtar
o d rag ão do ju lg am en to alheio, que sem pre d o rm e com um olho
aberto.
R ecordo estas palavras, que ouvi certa vez de C láudio N a-
ranjo: “Som os águias e vivem os com o galinhas”.
A realidade é que, desde o princípio e p ara a g ra n d e m aio
ria, não nos ensinaram a viver de acordo com nosso sentim ento
in tern o . N a prim eira universidade na qual a vida nos inscreveu
p o r om issão, e que se cham a família, nós saltam os este capítulo
e apren d em o s a nos adequar ao tom geral. E, se tivem os algum
so b ressalto de espontaneidade, de ab ertu ra, de confiança ou de
criatividade, alguém se apressou a nos censurar; é claro que não
irem os ser m ais que nossos pais, é claro que não irem os ser m ais
felizes ou te r m ais op o rtu n id ad es de vida que eles. D e qualquer
modo, e ap esar de tudo, me parece im p o rtan te leg itim a r tam bém
este fato: intencionalm ente, eles, p o r sua vez, foram a uma uni
versidade na qual a ca rre ira do “seja você m esm o” não figurava
nos estu d o s oferecidos. P ara eles, isso co rrespondia a realizar
o u tro aspecto de seu trabalho, e tam bém aquilo era indispensá
vel. D o m esm o modo que, agora, nós estam os fazendo nossa p ró
pria p a rte do percurso, tal com o caberá a nossos filhos e netos
fazer a p a rte deles. A eles, desejo que esta (parte) seja ainda mais
bela e ap aix onante que a nossa.
A m im , parece, tudo isso se dem arca num a co n stan te evo
lução da consciência hum ana, num a m isteriosa cadeia em que
cada g eração cum pre com sua tarefa, num a longa cam inhada que
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nos une a todos, século depois de século. N esse sentido, estou
convencido de que o m elhor âinda está p o r vir e que, p a ra isso,
tem os de ocu p ar nosso espaço, ag radecendo o que nos foi legado
e certo s de n o ssa p ró p ria função. D e resto, e no que a m im se
refere, não vejo em nenhum a geração a n te rio r à m inha nada que
pudesse me haver feito preferir nascer em outro m om ento do
espaço-tem po, em tu d o que me foi dado viver...
E, en q u a n to estes gigantescos ciclos vão cam inhando a pas
so de form iga pelos cam pos da h istó ria hum ana, nós, form igas de
sonhos gigantescos, buscamos, incansavelm ente e d en tro de nos
sa d im in u ta p a rte no cam inho, a felicidade. E n tre vales e m o n ta
nhas, com m ais ou m enos sorte, cam inham os em direção ao a r
co-íris da plenitude, que com o bom arco-íris que é se distancia à
m edida que nos aproxim am os. P orque presos à nossa p a rte m ais
egóica, aquela que se n u tre com voracidade de brigas in tern as,
diálogos e n tre su rdos e o u tras v irtu d es pessoais, seguim os ne
gociando a d u ras penas com a v erg o n h a m adre, enq u an to o ego
se d iv erte esfregando as mãos satisfeito ao im aginar que, cedo
ou tarde, todo o benefício deste com bate será para ele. T am bém
sabendo que, q u an to m ais dure essa batalha, m aiores serão seus
lucros. Sendo assim , ele é paciente, e não se im p o rta em te r de es
perar, certo de que suas artim anhas são sábias e de que som ente
a m o rte pode ser seu im placável rival. N e sta batalha está claro
que vam os perder, enq u an to ao nosso re d o r a vida debulha seus
dias e suas noites n u m bilhete de idà comum...
D essa batalh a fala Jam es H illm an em Vivir com la sombra,
usando as seg u in tes palavras: ‘A m ar-se a si m esm o não é um a
tarefa fácil p o rq u e isso significa am ar tu d o que existe em nós,
até m esm o nossas som bras que nos fazem sen tir inferiores e so
cialm ente inaceitáveis. £../] Sendo assim , p ara en c o n trar a cura
é preciso o reco n h ecim ento m oral dos aspectos m ais desprecia-
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dos de nós m esm os e a aceitação am orosa e a leg re dessa nossa
existência.”.
A o u tra p a rte dessa d isp u ta íntim a vem do ju lg a m e n to do
m undo, que em algum as vezes é visível e, em outras, prejudicial
e difícil de d istinguir. Pode ser que sua m ensagem am eaçadora
nos peg u e de golpe, d iretam en te no rosto, e faça com que este
jam o s d ispostos a fazer o que for para não sofrer nenhum tipo
de exclusão. M as, em o u tras vezes, seu cochicho, su tilm en te ali
m en tad o p o r um a sociedade que necessita de bons seguidores,
de boas ovelhas, infiltra-se p o r nossas g re ta s de dúvidas, de falta
de au to estim a e por nossos costum es de tra ta r m al a nós m es
mos. Sem perceber, abandonam os nossa unicidade em prol de
um adap tad o anônim o. A ssim sentenciava C arl Jung: “N ascem os
o riginais e m orrem os cópias”.
N a m inha opinião, essa v erg o n h a-raiz é que faz com que nos
m an ten h am o s enclausurados em nós m esm os; ela nos faz ta n
to m al que preferim os m an tê-la com o um com ponente da vida
diária com o qual precisam os conviver, e nada mais. Preferim os
estabelecer pactos, negociando com ela na nossa intim idade. “Eu
te dou um pouco disto ou daquilo e, em troca, você m e deixa
viver com um pouco de tran q ü ilid ad e”. Com o bons e fiéis con
trib u in tes, pagam os d iariam en te nossas dívidas a essa som bra
sanguessuga.
N ão o b stan te, em Clown Essencial decidim os um dia p a ra r
de p agar im postos. Juntos e encorajados, lançam o-nos ao vazio
de ir m ais além , de arriscar, de fracassar, de revelar. P ara isso,
decidim os ab raçar a vergonha-raiz, d ese n te rrá -la das catacum
bas do nosso interior. D ar-lh e voz e oferecer-lhe um espaço de
reconhecim ento. N ós a convidam os p ara bailar. C ontudo, ela
m erece n o ssa atenção e, de algum a form a, nosso respeito. Em
certa m edida, ela apareceu de form a legítim a, um a vez que foi
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elaborada com o um a proteção que nos p erm itiu tam bém so b re
viver e ch eg ar até onde chegam os. N ão nascem os com ela, m as
a elaboram os à base de mil in g red ien tes e com ponentes da vida
que nos coube viver. D e algum a form a, é nossa criação e m erece
ser tra ta d a com o tal.
“Só ex iste am o r e dores de am o r”, reza um a bela frase com a
qual concordo plenam ente. Q uando consideram os nossa v erg o
n ha sob este enfoque, nossa percepção sobre ela se m odifica de
im ediato. D e resto, assim contem plada, atreve-se a m o stra r-se
mais, a sair do bosque onde são gu ard ad o s os m onstros e ou
tro s fantasm as, todos gerados p o r ela, e a su b ir com os clozvns ao
palco do m undo visível. Ali, ela sucum be p ro g ressiv am en te ao
p o d er da pequena m áscara da com icidade com passiva, este nariz
de clown que ilum ina o ro sto de quem o leva, sem pedir nada em
troca, sem p ed ir justificativas ou conceder perdões, sem co b ra r
dívidas nem p ro ferir acusações. Ali, a pequena m áscara dissolve
a gran d e, que pode, pouco a pouco, re tira r-se e descansar, satis
feita do dever cum prido ao longo de todos esses anos, já m erece
d o ra de um e te rn o repouso.
N esse m ajestoso baile a três - e n tre m inhas neuroses, o
m undo e eu - , n este processo em g eral longo e não isento de
m om entos difíceis, p aulatinam ente a pessoa se vai relaxando, ao
sen tir-se validada e acolhida no que g enuinam ente acontece no
seu interior. E a p a r tir deste m om ento, e não antes, que pode
su rg ir o u tro processo transform ador: o de em p reg ar em o u tro s
assuntos m ais g ratifican tes a energia que o u tro ra alim entava a
sanguessuga. A ssim , e tal com o o ten h o descrito ao longo das
páginas d este livro, são m uitas as tran sfo rm açõ es que ten h o tido
o privilégio de p resen ciar no tra n sc u rso de todos esses anos.
T en h o visto pessoas recuperarem a alegria, mas, sobretudo, te-
nho-as visto devolver dignidade à sua dor, ao seu sofrim ento.
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R eadquirindo a legitim idade de sua elaboração, a pessoa pode
e x tra ir da som bra sua potência vital, celebrar o en c o n tro e en
riq u ecer-se de sua integração. E isso faz uma diferença consi
derável no tran sc u rso da m udança. Porque, ao valo rizar o que
sente, a pessoa pode fazer uso disso, liberar os velhos co n tra to s e
d eix ar de o b rig ar os o u tro s a p agarem o preço p o r sua ansiedade.
Cada m astro su sten ta sua vela, seja ela branca e linda ou suja e
esburacada, ou desfiada de cim a a baixo. N ão im porta. Assim,
colocado no m ar, todo veleiro é belo e o oceano in teiro lhe há de
respeitar.
A ssim , tenho visto pessoas reatarem -se com sua sensualida
de, criatividade, com seu entusiasm o, tendo fé em si m esm as, nos
dem ais e na vida. T enho visto reconciliarem -se profundam ente
consigo m esm as, ao ponto de m elh o ra r sua saúde, deixando de
lado hábitos d estru tiv o s ou overdoses. A lgum as, que de um a hora
p ara o u tra puderam e n ten d e r com o escolheram errad o um a p ro
fissão, apenas p ara a g ra d a r a so m b ra ou cu m p rir an tig o s pactos
dos tem pos de criança, sem m aiores explicações decidem m u
d ar de rum o. O u tro s se arriscam na arte ou em dem ais cam pos
incertos. P assam a confiar em seus dons naturais ou afinidades
p artic u la res p a ra co n stru ir um novo intercâm bio com a socie
dade que os rodeia. E se tenho visto, com o m encionei, algum as
pessoas recu perarem até a fertilidade, é, no m eu entendim ento,
p o rq u e este abraçar novam ente a vida recebida com tudo que ela
tra z p erm ite tran sm iti-la, p o r sua vez, ao curso do rio natural,
no qual a pessoa aceita com benevolência o b arquinho que lhe foi
dado a nav egar e d en tro do qual co m p artilh a sua vida.
“A vida abre cam inho sem p ed ir licença”, dizia R am ón Re
sino. Q uando o velho sinceram ente, já não serve, o novo encon
tra seu lugar, pelo puro m ovim ento evolutivo in eren te à própria
vida.
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C onsidero que p e rc o rre r este im enso processo - apaixonan-
te e com ovedor —é a m aior vitória que poderem os o b ter ao nos
iniciarm os na a rte de rir de nós m esm os.
Porque a pessoa se habita p o r com pleto, ocupa sua casa in
teira, pode ab rir p o rta s e jan elas e dizer ao m undo: “Vejam! E sta
é m inha casa e está de novo habitada! Aqui vive alguém que vale
a pena: eu! Se são am igos, podem en tra r, p o r um tem po m ais ou
m enos longo; eu lhes convido. E sta é m inha casa e é preciosa,
in d ep en d en tem en te de com o foi co n stru íd a, é m inha e eu m oro
nela, com to d a consciência e com m uito o rg u lh o ”.
Bailando com as som bras, voltam os p ara casa. E v o ltar p a ra
casa é co n v e rter nosso passado em nosso patrim ônio. Com o este
percurso, a pessoa se to rn a, de algum a form a, invencível, p o rq u e
se enraíza no m ais íntim o de si m esm a e ex trai, com suas p ró
prias mãos, a p lan ta da vida desde o fundo dessa m esm a te rra . A
pessoa se assen ta sobre algo que é seu e único, algo que lhe tem
tran çad o tal com o ela é, com o n in g u ém m ais a conhece. A lgo
que, depois de ser visto, indagado, p erco rrid o e finalm ente reco
nhecido com o próprio, tran sfo rm a suas circunstâncias pessoais
p ara m uito além de um a re s trita classificação em boas ou más,
em uma fonte de inspiração, g ra tid ã o e conhecim ento. A inda que
essa tarefa term in e som ente uns segundos antes da nossa m orte,
eu acredito que, en q u an to a realizam os, nosso potencial criativo
se m ultiplica, n o ssa consciência nos faz m ais hum anos, e assim
vam os buscando com o m undo a m élh o r relação para o bom de
senvolvim ento dos dois. Podem os crescer n a reciprocidade que
alim en ta e satisfaz a ambos, serm os úteis p ara o m undo e, em
troca, receber dele sua generosa com pensação.
A lgo em nós se to rn a certo e, de algum a form a, nos to rn a
indom áveis, tan to que assim podem os, finalm ente, realizar aqui
lo p ara o qual fom os cham ados à vida e p ara o qual nos fizeram
nossos pais, verd ad eiram en te com a m elhor intenção, ainda que
nem sem pre - e pode ser que talvez nunca - nos ten h am conse
guido d izer isso.
A o em p reen d er essa viagem , algo acontece; as coisas se
aju stam e sim plesm ente alcançam os um a vida m ais plena. Eu
desejo que este livro, em m aior ou m enor m edida, ten h a podido
contribuir, ou pelo m enos d a r pistas ao leitor, p a ra que tu d o isso
aconteça em sua vida, e ju n to s possam os celeb rar nossa bendi
ta trag ico m éd ia particular. Q ue da celebração côm ica de nossa
san ta seriedade nos venham calm a e sossego. Que, com um riso
lúcido e sonoro, possam os v estir nosso coração com a luz do
n ariz verm elho, e que essa luz brilhe sem pre, até nas noites mais
escuras, com o um farol de fé e lucidez nas costas da alm a, e ilu
m ine nosso cam inho de volta p a ra casa.
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plante uma arvore
N ão h á tem a mais universal nem mais
intem poral que a estupidez hum ana, sua
fúria egocêntrica e sua torpeza no viver,
seu m edo do am or e da liberdade. N ão há,
p ra mim, fonte mais generosa nem mais
enternecedora para alim entar nosso im a
ginário e liberar nossa criatividade do que
a celebração livre e poética, consciente e
compassiva da nossa tragicom édia particu
lar: este desesperado desejo de sermos nós
mesmos e de encontrar um sentido tangível
p ara nossa curta e insignificante presença
pessoal sobre a face da terra. Acredito que
seja m uito saudável exercitar essa hum ilda
de coletiva e, assim, devolver à nossa santa
seriedade seu justo lugar. Clown Essencial é
o sorriso do coração quando este, depois
de muito lidar com as batalhas de chorar e
rir, descansa, por fim, em algum lugar que
vai além de qualquer emoção, e recebe com
acolhim ento seu genuíno pertencim ento ao
poderoso rio da vida.
TERAPIA E ARTE SE UNEM NA CELEBRAÇÃO DA
TRAGICOMICIDADE DA VIDA, DAS MÃOS DE UM
CÉLEBRE PALHAÇO DEDICADO A CURAR FERIDAS
ATRAVÉS DO HUMOR.
“Alain Vigneau, com sua delicada poesia, nos oferece um nariz verm e
lho para reconciliar nossa grandeza infinita e miséria infinita. C ada pági
na desse livro honra a alm a da nossa criança interior e do nosso adulto,
do palhaço e do poeta que todos levamos dentro. De sua m ão é possível
am ar nossa som bra e fazer com que dela nasçam sorrisos de compaixão
e criatividade.”
J u a n C a rlo s C o ra z z a
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' ISBN 9788553350025 '