Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
CENA 0 – ENTRADA
Como proposta em andamento: no chão está uma lona de circo, caracterizada como o Brasil, uma
releitura da bandeira ou mapa desenhado.
Público é recebido pelos artistas e pelas artistas do Grupo Charanga Pindorama, como ainda
acontece em alguns circos do Brasil. Artistas podem vender pipoca, brindes, comentar sobre as
atrações, circo teatro, etc.
Ao entrarem ouve-se música executada pela charanga e palco ainda vazio. Durante a entrada:
passagens rápidas de artistas, alguns ainda se aprontando, passando pelo palco picadeiro,
comentários rápidos que desafinam a charanga, etc. Situação fora do normal, estranha.
O número de artistas aumenta no palco à medida que o público entra. Inicia-se uma conversa
cotidiana, a charanga começa a descompassar a música, confusão no palco até que se nota certo
acordo.
CENA 1 – AVISO AO PÚBLICO OU A NOVA MORTE DE REPUBLIC
2
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
MÁGICO – Eu sou o que parece ser, mas não é. Sou a fumaça, a neblina, a cortina entre você e a
realidade...sou o MÁGICO!
PADRE SEM IGREJA – Eu não tenho casa! Segundo o Evangelho de Jesus Cristo lido por homens,
eu fui expulso. Sou o Padre sem Igreja. Que hora que é a benção da morta? Tenho que celebrar um
casamento na Praça Roosevelt...
HOMEM BALA PERDIDA- Eu estou em todas a cidades, nas periferias... sempre com endereço
certo. Eu sou o Homem Bala Perdida.
ATIRADOR DE FACAS – com sotaque “portunhol” Jo soy El Atirador de Facas. Nas noites, nas
esquinas... Faca nelas!
DOMADOR DE FERAS - Eu sou a força do costume! O amor à família! A tradição encarnada! Sou
o Domador de Feras!
DRAG QUEEN – Eu sou... repara se alguém a interromperá. Percebe que não. Respira aliviada e
volta a falar – Eu sou... é interrompida.
CORO ATW – falam em coro, cantando e dançando Nós seremos a American Theatre World. Nós
entraremos aos poucos. Fiquem aí e aguardem! Agora é hora de sair! Saem coreograficamente. Uma
das atrizes volta cotidianamente chamando o foco e interrompendo a apresentação. “Que foi? Eu
Esqueci de pegar o figurino. Pronto! Saindo reclamando. Não pode errar não? Vamo gente! Continua
aí logo pra acabar rápido pra que ir pra casa depressa e dormir bem devagar. Volta a apresentação
A charanga, antes de ser apresentada, para o som. Todos olham para a charanga esperando a
apresentação dos componentes, mas estão distraídos.
3
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
PESSOA MAIS CURIOSA DO MUNDO – sem notar que está sendo notada pergunta ao maestro.
Nossa! Por que tem tantas teclas se você só tem dez dedos?
PALHAÇA GRAÇA – repreendendo – Aff! Será que você não percebe o óbvio? Que é pra ser tocada
por mais de uma pessoa? Todos concordam menos o maestro que percebe o foco na discussão e
retoma a ação de apresentação.
CHARANGA PINDORAMA – num jogo em que integrante apresenta integrante “Com vocês ela,
que tenta desvendar os mistérios do passado para entender o presente e bagunçar o futuro. A Cigana
Madalena”; “Desconcertante, questionadora, causadora de embaraços a Pessoa Mais Curiosa do
Mundo”, “Agora, aquela que trabalha por obrigação abandonou sua parceira no altar do picadeiro a
Palhaça Graça” “Palhaça Desgraça esboça apresentação “e Desgraça...” Palhaça Graça retoma Nem
vem! Nem vem! Que eu não tô pra piada! “E ele, formado em música, mestre em música, doutor em
música...cansado de tocar em churrascaria o nosso Maestro” todos da charanga “Dando o tom do
espetáculo, nós somos a Charanga Pindorama!
ACONTECE NO PICADEIRO
TODOS ATUAM
O TEMPO INTEIRO
SEM SABER
SEM SABER
SEM SABER O SEU PAPEL
PADRE SEM IGREJA – Aqui jaz, vítima de um golpe terrível, nossa matriarca, potencialmente boa,
justa, mas esquecida: ideias abandonadas, muitas vezes não praticadas. A charanga toca. O Padre diz
o texto como se estivesse num rito religioso, mas o texto é inspirado nos valores da república do
Brasil. Ele lê, em papeis que são distribuídos e dados aos outros atores e atrizes que rasgam ao longo
da cena e fazem uma chuva de papel. A luz pode ser alterada para mudar o clima. A charanga
acompanha a mudança.
4
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
VOLTA A MÚSICA
NESTE MOMENTO
ESTÃO TODOS CHORANDO
MADAME REPUBLIC MORTA
MADAME REPUBLIC MORTA
5
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
ATRIZ QUE FAZ MADAME REPUBLIC - Ô, pessoal! Será que dá pra revezar aqui? Não é fácil
ficar com esse braço erguido segurando essa carta aqui... tem que tá muito viva pra poder interpretar
morta! Alguém se prontifica? Depois de um tempo de silêncio.
CIGANA MADALENA – Eu vejo aqui que esse poderia ser o meu destino, se não fosse pela minha
função aqui na Charanga... maestro interrompe.
MAESTRO – Não por isso. Pode ir... sem problemas! Às demais integrantes da banda. Se alguém
quiser ir ajudar a segurar o braço, fique à vontade!
CIGANA MADALENA – Eu vejo que minha vida ficará um tanto parada agora! Monta-se como
Madame Republic.
ATRIZ QUE FAZIA MADAME REPUBLIC – Isso! Indicando a postura. Assim mesmo! Agora o
olhar... olhar impactante, um pouco menos, um pouco mais... menos... mais... metade disso... isso!
Não! Olha! Vamos lá! Você vai interpretar a Madame Republic, Republic é uma metáfora da
República Morta, dos valores corrompidos, sabe? Você tem que lembrar que a república foi instaurada
neste picadeiro num momento de decadência, de revolta. Foi um “cala boca social” instituído pelos
poderosos com frases bonitas, com ideias maravilhosas que nunca vingaram, mas isso tem que ficar
subentendido, entende? Não pode ser entregue de bandeja ao público, compreende? Aqui nesta peça
você interpretará um misto de metáfora e personagem... a Matriarca da Companhia Pindorama é
também a representação da morte desta ideia neste picadeiro Pindorama... entende? Então faz! Cigana
tenta. Isso! Mostra a carta!
CIGANA MADALENA - Cadê a carta? Procura pela carta.
PESSOA MAIS CURIOSA DO MUNDO - falando à palhaça graça. Então quer dizer que o
conteúdo desta carta só será revelado no final da peça?
PALHAÇA GRAÇA – É...
PESSOA MAIS CURIOSA DO MUNDO – E porque você tá assim?
PALHAÇA GRAÇA – Porque falta muito!
PESSOA MAIS CURIOSA DO MUNDO – Pra acabar a peça ou pra ler a carta?
ATIRADOR DE FACAS – Sai da frente que eu já tenho alvo!
HOMEM BALA PERDIDA – Me atira nela e fala que eu estava perdido!
Pequena confusão.
APRESENTADORA – Dá aqui essa carta! Ninguém saberá o que Madame Republic nos escreveu até
o fim desta função. Não percebem que esse é nosso “chamariz”? Nossa carta na manga?
ATRIZ QUE FAZIA MADAME REPUBLIC para Cigana Madalena – Isso! Segura a Carta. Assim
tá bom!
APRESENTADORA – Todos a postos! Música maestro! Começa a tocar e o espaço de
representação é invadido por representantes públicos.
GESTOR PÚBLICO – Com licença! Com licença!
APRESENTADORA – O que é isso!? Será que não dá pra parar de acontecer surpresas aqui? Indica
à Drag, ao Domador de Feras e a Cigana Madalena. Vocês vão se aprontar para o próximo número.
Cigana deixa o posto de Madame Republic que é retomado pela atriz anterior.
ATRIZ MADAME REPUBLIC – Ninguém se aprofunda em mais nada... reclamando e montando a
morta novamente.
1
Calderon de La Barca
6
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
7
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
CENA 04 A
REPRESENTANTE ATW 1 – Vejam só o e-mail que recebemos de terras Pindorama dando conta
do local...
REPRESENTANTE ATW 2 – E desta vez as notícias foram escritas pelos habitantes de lá...
REPRESENTANTE ATW 3 – A ideia de desestabilizar o espaço Pindorama funcionou
perfeitamente. Já temos total apoio do governo atual e campanhas estão sendo montadas para nossa
chegada e assalto...
OUTROS DOIS – corrigindo – Apoio! Apoio!
REPRESENTANTE ATW 1 - Aqui está. Lê o e-mail. Referência a Carta de Pero Vaz de Caminha.
“Pindorama, espaço privilegiado. Espaço amplo que vai da ponta sul à norte do quarteirão. Ainda não
8
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
foi confirmada a existência de metais preciosos no solo, mas nota-se nascentes d´água, conhecida
como aquífero Guarani. O ouro branco. Os habitantes artistas são inocentes, não falamos a língua
deles, mas eles se esforçam em falar a nossa. Andam nus pelas coxias mostrando suas vergonhas.
Elegeram um novo chefe e as negociações para a compra de Pindorama estão a todo o vapor!”
REPRESENTANTES ATW – Iniciar reformas!
Cena coreografada em que vemos ser montada uma alegoria de figuras representativas de direitos e
lutas em forma de “bonecos alvo”. A cena é inspirada no jogo “Tiro ao Alvo”. Em cena vemos os
donos ou donas do brinquedo e das armas, um ou mais trabalhadores e trabalhadoras que pagam
para atirar em seus próprios direitos e ou lutas, representados por bonecos “movidos a corda” que
carregam espelhos na altura do rosto, refletindo o rosto do público. A cena evolui até que todos os
alvos são acertados e as trabalhadoras e trabalhadores que antes atiravam, viram alvos de outras
trabalhadoras e trabalhadores pagantes.
9
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
Em cena vemos atores e atrizes contratados se aquecendo, fazendo maquiagem. Tudo coreografado.
Alguns entoam com sotaque “ O Brasil não conhece o Brasil”. Conversam enquanto se maquiam.
2
LUIZA ROMÃO
10
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
Mostram um pouco do ensaio. Coreografia ainda em construção. Mostram um trecho com base na
paródia de “Fame”.
REMEMBER MY NAME
HEY!
VAMOS BRILHAR FOREVER
FAZER TODO MUNDO APLAUDIR
HEY!
VAMOS COM MALAS E TUDO
TRAZENDO O AMERICAN DREAMS
HEY!
PIRUETAS, FUMAÇAS E PLUMAS
VERDE, AMARELA E ANIL
HEY!
NÓS SOMOS A ATW
VAMOS CONQUISTAR O BRASIL
DIRETORA – Está péssimo! Ah! Mas pra onde é, talvez sirva! Arrumem as malas. Partiremos em
breve.
Todos saem.
ATRIZ QUE FAZ MADAME REPUBLIC – voltando ao posto de morta fala ao público – Olha,
gente! Eu acho muito chato quando vou assistir uma peça e os artistas ficam explicando a história
sabe. Não é chato? Já imaginou... se de repente eu chegasse aqui e começasse, “olha a gente tá fazendo
uma peça que nunca acontece, que começa bem”, explicando que vai fazer uma homenagem a
Madame Republic que morreu... aí já pensou se eu tentasse explicar que aqui não tem regra de tempo,
que a gente faz o público assistir como se fosse num dia de espetáculo, mas a história acontece em
vários dias, tem esse negócio da carta que vai ser aberta... dessa empresa ATW que tá tentando
comprar o espaço... Pra falar a verdade eu só sei que ainda faço a morta e a carta ainda tá aqui...
Artistas da Companhia PINDORAMA entram numa grande confusão para preparação da próxima
cena. Uma espécie de número cômico de arrumação que uma coisa depende da outra ou inspirada no
ditado popular “quando o cobertor é curto, cobre-se a orelha e descobrem-se os pés”.
11
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
Entra a comitiva ATW composta pelo Triunvirato da cena V e três tradutores/tradutoras que fazem
tradução simultânea. Abaixo o texto falado em português pelas tradutoras e tradutores e que será dito
em língua estrangeira pelos representantes da ATW.
ATW 1, 2 E 3 – Hello! Um outro músico assume o teclado e toca para a entrada da comitiva ATW.
12
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
ATRIZ – fala pelo Tablet Espelho – Não sei! Não tô entendendo mais nada. Acho que não tem fim,
não! Chegaram uns gringos aqui! Que português? Americanos! Americanos! Eles querem comprar
tudo aqui... 5 milhões! Não sei! Mas pelo menos agora tem conflito, né? Tava ficando chato, já...deixa
eu desligar que eu preciso morrer! Não! Interpretar a Republica Morta, Republic, desculpe... tchau!
APRESENTADORA – Acabou?
ATRIZ QUE FAZ A MADAME REPUBLIC – Acabou? Posso abrir a carta?
APRESENTADORA – Não! Vá para seu posto! Senhoras e Senhores! Agora um número espetacular
que acontece não só em Pindorama, mas em muitas partes do mundo. Senhoras e Senhores, com
Vocês o Domador de Feras!
Cena inspirada no número “Domador de leões” Na cena vemos o domador tentando domar uma
mulher e depois a Drag Queen. Para isso, ele utiliza de cantadas machistas, tentativas de abuso,
frases senso comum, radinho com vozes de Bolsonaro e outras frases reconhecidamente machistas,
palavras religiosas usadas com fins escusos, etc. No ápice da cena o Domador é domado por cantigas
de ninar que embalam primeiro o domador e depois outros homens/atores. Exemplo de cantigas:
13
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
ME QUIERO CASAR
COM UMA SEÑORITA
DE PORTUGAL
QUE SEPA COSER
QUE SEPA BORDAR
QUE SEPA ABRIR LA PUERTA
PARA IR A JUGAR
CON ESTA SÍ
CON ESTA NO
CON ESTA SEÑORITA
ME CASO YO
Cena onde vemos o mágico e talvez outros artistas de Pindorama voltando da conversa/jantar.
Toda a companhia está reunida para discussão sobre as negociações com a ATW.
14
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
EMPÓRIO CULTURAL! Um grande shopping center e nele um, um não, “O” teatro American
Theatre World... equipado com tudo que há de mais moderno, mais novo... movido com recursos
naturais que estão debaixo de nossos pés, água, petróleo, ouro e tudo mais... é perfeito. Nós que não
víamos! Todos se empolgam. Aqui em minhas mãos está o contrato! 5 milhões!
TODOS – ÊÊÊ!
APRESENTADORA – Porém...
MÁGICO – Porém, esse dinheiro já foi depositado nas contas dos poderes públicos para quitação de
dívida com a própria ATW.
APRESENTADORA – Ou seja...
MÁGICO – Estamos fudidos! Pequeno silêncio, todos se olham.
PESSOA MAIS CURIOSA DO MUNDO – Não entendi...
ATRIZ QUE FAZ MADAME REPUBLIC – Assim não dá... desse jeito daqui a pouco a gente vai
criar um personagem pra ficar explicando pro público as nossas histórias... será que você não percebeu
ainda que no início da peça vieram os representantes do poder público cobrar de nós uma dívida
impagável? E que depois apareceu uma empresa cultural internacional querendo comprar o espaço
como salvadora da pátria... e que agora com o dinheiro da venda do espaço, nós vamos pagar o público
que vai jogar o dinheiro na privada, quer dizer no privado?
TODOS – Ahhhhh!
PESSOA MAIS CURIOSA DO MUNDO – Eu só não entendi... enraivecida. Por que a gente fez
esse acordo tão legal?!
MÁGICO – Foi um golpe!
COXINHA – Pera lá, gente! Pergunta que eu faço: todo mundo aqui se acha prejudicado?
MORTADELA – Claro!
COXINHA – Quantos de vocês aqui algum dia tiveram a curiosidade em saber e se inteirar dos
recursos existentes nessas terras? Quantos de vocês se preocuparam em preservar e investir neste
espaço?
Inicia-se um jogo em que os integrantes hora estão do lado de uma cabeça e hora da outra.
MORTADELA – Companheira, eu preciso discordar: todo mundo aqui sempre trabalhou por esse
lugar e a gente nunca quis e nunca pensou em ter mais do que precisava.
COXINHA – Pensamento pequeno! Não via o futuro. Mana, esse lugar tá velho! O mundo mudou e
pra melhor!
MORTADELA - Pra quem?
COXINHA – Pra todo mundo que não se fecha para o novo!
MORTADELA – O novo é só uma face do que é velho!
COXINHA – Vai começar a citação...
MORTADELA – A gente nasceu e cresceu aqui... por aqui, por este picadeiro passaram grandes
artistas... Pindorama sempre foi um celeiro cultural...
COXINHA – Celeiro de burros que nunca souberam se auto promover, se auto sustentar... agora o
mundo tem a oportunidade de avançar e por causa de meia dúzia de descontentes como você a gente
vai impedir?
MORTADELA – Você é uma capitalista! Tudo isso é ilusão! Esse dinheiro internacional é o câncer
do mundo... esses imperialistas de merda que querem roubar nossa cultura, querem roubar a nossa
casa...
COXINHA – Mas eles estão pagando... silêncio. Tá vendo? De quem é a culpa?
15
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a
amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo
porque está atrasado. A ler o Jornal no ônibus porque não pode perder o tempo de viagem. A comer
sanduíches porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus
porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que
haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E
não aceitando as negociações de paz aceita ler todo dia, de guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as
pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios, a ligar a televisão
e assistir comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado,
lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar por ganhar o dinheiro
com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as
coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais
dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na
luz natural. Às bactérias da água potável, à contaminação da água do mar, à lenta morte dos rios. Se
acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galos na madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não
colher fruta do pé, a não ter sequer uma planta. 3
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai
afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta
na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só o pé e sua
o resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim
de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre
sono atrasado.
A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas,
sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para
poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Porque o tempo antigo acabou e agora é um tempo novo [...] as civilizações são estreitas e as cabeças
também.
Mas agora vejam o que se diz: se as coisas são assim, assim não vão ficar.
Tudo se move, meu amigo (...) e surgiu um grande gosto pela pesquisa da causa de todas as coisas (...)
Pois, onde a fé teve mil anos de assento, assentou-se, agora, a dúvida. Todo mundo diz: é, está nos
livros, mas agora nós queremos ver com os próprios olhos. 4
Parte a – início das obras: Entram em cena funcionários e funcionárias que arrumam o espaço,
limpam, organizam com a função de preparar tudo para a inauguração do “Brazil Space Empório
Cultural” enquanto arrumam tudo conversam. Deixam diversas cadeiras no espaço.
3
MARINA COLASSANTI
4
BERTOLT BRECHT - A VIDA DE GALILEU
16
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
2 – Parece que é.
3 – Se vão demolir, pra quê arrumar?
4 – Eu não gosto de fazer nada com espaço bagunçado... é bom arrumar.
5 – Mas aqui vai deixar de ser Pindorama e vai ser Brazil!
6 – Brazil Space!
7 – Vem cá! Vocês não ficam assim...cheio de orgulho em saber que tão fazendo algo pela nação...
8 – Eu tô fazendo pelo dinheiro.
1 – Eu não! Eu faço por amor...e pelo dinheiro
2 – Parece que vai ter um show de inauguração antes da explosão.
3 – É pra chamar atenção!
4 – Põe a dinamite aqui?
5 – Isso! E é tudo artista estrangeiro. Vem aqui apresenta e vai embora...
6 - Ô! Você acha que esses artistas estrangeiros têm tempo pra perder? Tem não! É tudo esperto! Time
is Money!
7 – Passa o fio aqui! Alguém já tinha entrado aqui antes?
8 – Eu não. Nem a minha família. Aqui é tudo maconheiro!
5 – Eu já! Eu gostei!
6 – Gostou? Gostou do que?
5 – Do que eu vi!
3 – Gostou nada! Você nem deve ter entendido...
4 – Olha só esses artistas vendo as fotos
2 – Apontando pra um deles. Esse é bom... o nome dele é... não se lembra que fez....
Os outros: “isso”, “isso”
1 – Põe o detonador ali! Embaixo dessa estátua!
ATRIZ QUE FAZ MADAME REPUBLIC – Estátua não! Estou interpretando Republic Morta e
espero logo que chegue ao fim antes da explosão. Volta à posição.
7 – Que tecnologia... olha tem uma carta. Vai em direção pra pega-la.
ATRIZ QUE FAZ MADAME REPUBLIC – Só no final da peça!
3 – Deve ser brinde.
TODOS – é... é brinde sim.
8 – Vamo ficar pra ver?
6 – Ô! A gente tá trabalhando, não tem tempo pra perder com isso não... é por isso que eu digo: “um
povo sem cultura é um povo sem nenhum caráter”.
3 – Diz aonde que eu nunca ouvi você dizer isso...
4 – Eu também não...
6 – É um papelzinho que eu achei ali e tava escrito isso, eu achei bonito e resolvi falar...
2 – Tudo pronto?
1 – Tá quase...
3 – Vamo tirar uma foto pra fazer o antes e depois...
4 – Aperta o botão! Alguém vai apertar o botão do detonador.
TODOS – Não!!!
7 – Tá doido? A explosão é a última coisa.
ATRIZ QUE FAZ MADAME REPUBLIC - Agora eu tô perdida! A carta não era a última coisa?
Perdeu o efeito. Explosão é muito mais chamativo... esses estrangeiros entendem de espetáculo, viu!
Parte b – vemos cadeiras espalhadas pelo espaço ou bancos atores e atrizes entram embalando bebês
imaginários.
ATIRADOR DE FACAS – Senhoras e senhores! Apresentaremos agora um número pouco
comentado, pouco visto, mas de fortes emoções. O TRUMPolim!
Atores e atrizes sobem nas cadeiras embalando seus bebês que aos poucos são retirados. Sugere-se
que cada bebê seja representado por um par de sapatos infantis que aos poucos serão jogados no
chão. A cena toda é mostrada enquanto se canta a música:
17
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
Contratadas e contratados pela ATW entram em cena e utilizam as mesmas cadeiras da cena anterior
para fazer a cena. É possível que os participantes da cena anterior permaneçam caídos no chão. A
Companhia ATW veste figurino militar e apresenta sua coreografia completa. Todos sentados em
duplas, dispostos como no interior de um avião. Reflexivos, sonhadores, cantam seguindo a
coreografia com as mãos:
18
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
CAPITAIN – STOP! Ladies and gentlemen! Se acomodem em seus assentos, apertem os cintos e
preparem-se, pois já estamos pousando em terras pindoramas. Remember my name!
TODOS – Hey!
Música – paródia da canção Remember My Name – Musical Fame. Todos se levantam, cantam e
dançam e ao fim da música formam uma pose.
Aqui se inicia o fim. Pode ser realizado com aviso ao público de dois finais. Um fora: Companhia
Pindorama e outro dentro: inauguração BRAZIL SPACE. A escrita está em sequência cênica. Mas
durante a encenação pode ser alterada.
Os artistas da charanga arrumam suas coisas. Os artistas ATW estão em pose com trajes militares.
Aos poucos vão desmontando vendo o que acontece.
Forma-se uma espécie de carroça com tudo que antes tinha no Espaço Pindorama.
DIRETORA CAPITÃ – Vamos! Vocês têm um contrato! Cantem até que explodam!
19
PINDORAMA OU COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM BRAZIL
EPÍLOGO
PINDORAMA – Na saída do público. Aos poucos atores e atrizes que interpretavam ATW retiram
suas maquiagens e se incorporam à “carroça pindorama”.
INCIDENTAL:
Agora tudo acaba
O real e a ficção se encontram
Na saída deste salão
D C G
NÃO QUERO REGRA NEM NADA
D C EM
TUDO TÁ COMO O DIABO GOSTA, TÁ,
D C G
JÁ TENHO ESTE PESO, QUE ME FERE AS COSTAS,
C D
E NÃO VOU, EU MESMO, ATAR MINHA MÃO.
D C G
JÁ TENHO ESTE PESO, QUE ME FERE AS COSTAS,
C D EM
E NÃO VOU, EU MESMO, ATAR MINHA MÃO.
G D/F# G D/F#
O QUE TRANSFORMA O VELHO NO NOVO
G D/F# EM
BENDITO FRUTO DO POVO SERÁ.
C D
E A ÚNICA FORMA QUE PODE SER NORMA
C EM
É NENHUMA REGRA TER;
G D/F# G D/F#
É NUNCA FAZER
G D/F# EM
NADA QUE O MESTRE MANDAR.
G D/F# G D/F# G D/F# EM
SEMPRE DESOBEDECER. NUNCA REVERENCIAR.
20