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I
nicialmente, a impressão é de que a atriz Rafaela Azevedo está fazendo um simples pedido.
“Você… Sim, você mesmo. Por gentileza, poderia trocar de lugar com aquela moça?”, indaga a
protagonista do monólogo King Kong Fran para um jovem da plateia, num teatro do Rio de
Janeiro. Surpreso, o rapaz de barba concorda sem reclamar. Ele usa camisa e bermuda claras. A
atriz, posicionada no canto direito do palco, mira outro jovem e repete o apelo. Dessa vez, o alvo
resiste. Também de bermuda, o homem não pretende trocar de poltrona com mulher nenhuma.
“Ah, prefere continuar aí?”, certifica-se a artista. “Beleza. Mas você vai se arrepender…” Num
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piscar de olhos, o rapaz entende que não se trata de um pedido. É uma ordem, e só lhe resta
ceder. “Método Paulo Freire… Funciona, viu?”, zomba a atriz.
O espetáculo mal começou e a estrela da noite já tem o público nas mãos. Ela desce
languidamente do palco. Enverga uma fantasia de gorila, bem peluda. A máscara do primata, no
entanto, não lhe oculta o rosto. Repousa sobre a cabeça da artista, como um boné. Os dois rapazes
estão, agora, em poltronas vizinhas, perto de um terceiro jovem, que traja uma elegante calça
comprida. A atriz caminha até o trio, equilibrando-se num salto plataforma de 10 cm, que a deixa
com 1,80 metro de altura. Impetuosa, encara um dos homens de bermuda: “Pernão de fora, hein?
E a camisa? Aberta no peito… Por que você se vestiu assim? É um código, né? Você deseja que a
mulherada avance. Confessa! Que tal dar uma levantadinha para todo mundo admirar o
material?” Completamente sem jeito, o jovem obedece. “Hmmmm… Resolveu meter o tímido, é?”,
provoca a artista.
Ela aborda, então, o segundo rapaz de bermuda. “Outro gostosinho aqui. Você se incomodaria de
abrir as pernas? Quero checar um negócio: a sua mala está marcando?”, pergunta com voz quase
ingênua, enquanto aponta o pênis do jovem. “Está marcando ou não? Preciso saber… Abra os
pernões! Não está?! Que absurdo! Por que você saiu de casa se não planejava mostrar o que
interessa?!”
Cada vez mais afrontosa e destemida, a atriz sugere que os três homens fiquem de pé e se
acariciem mutuamente. O de calça comprida não topa. Os de bermuda, ainda que embaraçados,
aceitam compartilhar esfregadinhas nas costas. “Gosto quando vocês se pegam. Lindo, lindo!”,
incentiva a artista. “Por que não se beijam?” Os rapazes, atônitos, suspendem imediatamente os
carinhos. A atriz se agarra à oportunidade e explica: “Minha peça acontece no limiar do
constrangimento e do terror. Mas apenas para metade da plateia… Para a outra metade, é só
comédia, humor, curtição!”
Na verdade, o sarcasmo de King Kong Fran lava a alma de uns 80% do público. Desde a estreia,
em novembro, as mulheres ocuparam praticamente todos os assentos dos teatros cariocas que
receberam a montagem – o Ipanema, o Cesgranrio e o xp Investimentos, onde o monólogo estará
de novo neste mês, depois de passar por lá em março. Os poucos boys que ousam se defrontar
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com o espetáculo de setenta minutos dificilmente saem incólumes da experiência. A protagonista
inverte a ordem patriarcal e se transmuta em algoz dos “machos héteros” não somente porque
assedia parte da audiência masculina. Ela também conta histórias reais de sexismo no showbiz,
que desconcertam os marmanjos presentes. A intenção é fazê-los sentir empatia pelo sofrimento
feminino. Claro que as espectadoras se entregam freneticamente à catarse e estimulam a artista o
tempo inteiro, com uma profusão de gritos, assobios, gargalhadas e aplausos. Há, inclusive, as
que antecipam certas frases da atriz, numa demonstração de que assistiram à peça mais de uma
vez.
O boca a boca dentro e fora da internet acabou tornando a encenação um inesperado sucesso. Dez
mil pessoas já a prestigiaram – número elevadíssimo para os padrões brasileiros, sobretudo
quando a produção é de baixo orçamento. King Kong Fran custou 30 mil reais, garimpados numa
vaquinha digital.
E
scrito e dirigido pela própria atriz e por Pedro Brício, o monólogo agrega várias
linguagens: as do circo, do vaudeville, da performance e do cabaré burlesco. O espírito
justiceiro das redes sociais norteia todo o espetáculo, na medida em que a protagonista
adota um tom assertivo, lacrador, e comanda um tribunal anárquico, onde nenhum homem goza
da presunção de inocência.
A montagem não tem exatamente uma trama. Em linhas gerais, apresenta a versão alongada de
um velho quadro circense – o da Monga, mulher sensual que vira gorila e ataca a plateia. Se a
fera do passado apenas urrava, a do século XXI fala pelos cotovelos e levanta sem trégua as
bandeiras do feminismo. Curiosamente, quem se converte em gorila na peça é a palhaça Fran,
alter ego de Rafaela Azevedo. A protagonista assume, portanto, duas facetas complementares: a
da macaca tagarela e a de uma clown tão mordaz quanto egocêntrica, autoritária e perversa. Ela
inicia a encenação numa jaula e rapidamente se liberta. Logo abaixo da cintura, exibe um dildo
de 37 cm, ora utilizado como arremedo de microfone, ora como um simulacro de espada ou
porrete. A música Dona do Prazer – adaptação de Toxic, sucesso de Britney Spears, gravada pelo
grupo Forró na Veia – serve de trilha sonora. Um trechinho da letra: Bem que eu te avisei/Para não
me tocar/Cuidado, baby/Você vai se queimar/É perigoso/Provar do meu amor.
Carioca de Honório Gurgel, bairro periférico onde também nasceu a cantora Anitta, a atriz de 31
anos criou Fran em 2013, durante uma oficina de palhaçaria. Inspirou-se na mãe, que já morreu e
padecia de uma doença mental grave, o transtorno de personalidade limítrofe. “Ela não separava
a fantasia da realidade. Dizia que iria telefonar para um galã de novela, por exemplo, e
acreditava naquilo. Conversava horas pelo celular com absolutamente ninguém. Era triste,
singelo e engraçado. Tudo junto”, relembra a artista. “Minha mãe fazia coisas em casa que muitos
atores não conseguem fazer em cena.”
U
m terrível acontecimento está por trás do espetáculo que Rafaela Azevedo encabeça agora.
Quando tinha 21 anos, a atriz sofreu um estupro. Ela se tratava com um osteopata, que a
violentou durante uma consulta. “No momento da agressão, uma dúvida me atormentava:
‘Será que dei motivo para o cara se comportar assim? Será que agi de maneira
inadequada?’ Eu me culpei… Por isso, não o denunciei.”
O ataque lhe deixou marcas profundas. “Meu útero adoeceu, parei de menstruar e senti cólicas
horrorosas. Os sintomas me assombraram por um bom tempo.” Não bastasse, a moça se fechou
para as relações amorosas. “Eu me enxergava como o problema. Então, pensava: qualquer
homem que me atrair vai abusar de mim, já que sou fácil demais.”
Graças à psicoterapia e à leitura de ensaios feministas, a atriz reinterpretou o episódio.
“Compreendi que posso reagir. Os agredidos têm direito à violência. Por que nem cogitei
esmurrar o médico na hora do estupro? Não seria impossível. Faço ginástica, cultivo os
músculos, exercito minha agilidade. Só que, em vez de peitar o agressor, aceitei o papel de vítima
como inerente à mulher.” Uma década depois do ocorrido, com King Kong Fran, a artista
finalmente reagiu.
Armando Antenore
Editor da piauí, é autor de Júlia e Coió, Rita Distraída e Sorri, Lia! (Edições SM)
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02 maio 2023_21h42
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