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Everaldo Vasconcelos

TEATRO PARA DOIS

Edição do autor
BOOKESS
ISBN 978-85-919859-0-6
TEATRO PARA DOIS
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BOOKESS

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EVERALDO VASCONCELOS

TEATRO PARA DOIS

2º edição

João Pessoa
Edição do Autor
Bookess
2015
Teatro para dois - 2º edição - 2015
primeira edição - 2011

Capa: Emmanuel Vasconcelos


Revisão: Eva

Todos os direitos reservados. Lei nº 9.610

contato com o autor


everaldovasconcelos@hotmail.com

BOOKESS
www.bookess.com

CDD B869.2
Vasconcelos, Everaldo.
Teatro para dois. João Pessoa: Edição do
Autor,São Paulo: Bookess. 2015.
200 p.
1. Dramaturgia I. Título

ISBN - 978-85-919859-0-6
Dedico este livro aos atores e atrizes.
verso da dedicatória
APRESENTAÇÃO

São textos escritos para atender a demanda de ter algo


para montar com dois atores.

Amor bárbaro é um texto que dá um rumo diferente às


personagens de Medeia. Foi primeiramente represen-
tado por Jaqueline Nascimento, no papel de Medéia e
Gabriel no papel de Jason, em 2002, numa produção
da Oficina Básica de Teatro do Curso de Comunicação
Social da UFPB e depois pelo Grupo Válvula Teatral.

Tontura foi escrito para experimentação com teatro-


-dança. Foi apresentado pela primeira vez no Tea-
tro do Movimento da Escola de Dança da UFBA, em
1998, com duas atrizes-dançarinas alunas daquela
escola, como trabalho final da disciplina de Labora-
tório de Performance do Programa de Pós-graduação
em Artes Cênicas da UFBA, quando estava cursan-
do o mestrado em teatro naquela instituição. Depois
foi encenado pelas atrizes Camila Perez, no papel de
branca e Sara Sousa no papel de Antônia, em 2002,
numa produção da Oficina Básica de Teatro do Curso
de Comunicação Social da UFPB e depois pelo Grupo
Válvula Teatral.

Vingança de Hera é para experimentar espaços


muito reduzidos. Foi primeiramente representada pe-
las atrizes Daniele, no papel de Jacinta e Renata no
papel de Hera, em 2002, numa produção da Oficina
Básica de Teatro do Curso de Comunicação Social da

7
UFPB e depois pelo Grupo Válvula Teatral.

A última camélia é para a experimentação do estere-


ótipo do melodrama mexicano no estilo da telenovela
Maria do Bairro. O texto é a cena do último capítulo
de uma hipotética telenovela inspirada na ópera La
Traviata. Foi primeiramente representada por Marcos
Cunha, no papel de Edmundo e Jaqueline Nascimento
no papel de Margarida, em 2002, numa produção da
Oficina Básica de Teatro do Curso de Comunicação
Social da UFPB e depois pelo Grupo Válvula Teatral.

Pequena estrada entre eu e tu foi primeiramente


representado pela atriz Iana Marinho e o ator Léo
Castro, Direção de Bemvindo Sequeira e Humberto
Hollanda, no Rio de Janeiro em 2006.

Coração de Perfume foi representado pela primeira


vez por Damar Marvid e Zoraide Gesteira na Escola
de Teatro da Bahia em 1995 sob a direção de
Roberto Lucio. Depois teve outra montagem fei-
ta pela atriz Lorena Campelo em Teresina, Piauí, em
1998.

Marylin aborda o universo dos shows de transfor-


mistas tão próximos da realidade de muitos de nossos
atores e evoca a grande personagem deste mundo. Foi
primeiramente representado pelos atores Neto Ribei-
ro no papel de Patrick e Vladimir Santiago no papel
de Vicente, no Teatro Santa Roza, em João Pessoa,
2004.

Está tudo certo mamãe? Foi representada pela primei-

8
ra vez pelo Eliete Matias e Dario Junior em 1986, numa
produção da Piollin Dramas e Comédias de João Pes-
soa, depois por Paulo Dantas e Fátima Araújo, pelo
Grupo de Teatro Vivo de Campina Grande,Paraiba,
direção de Hermano José, em 1990; depois por Neusa
barros e Carlos Alberto Betoca, pelo Grupo de
Teatro Chama do Rio de Janeiro em 1994.

A Cacaria foi escrito para a experimentação dos cacos


que são colocados pelo ator em suas falas. Cacos são
as falas improvisadas incluidas pelo ator ao texto ori-
ginal durante a apresentação do espetáculo. O texto
é dedicado ao ator marcelo Marques e a atriz Silvana
XXX; teve uma primeira leitura dramática feita por
Tainá Macêdo e Emerson Leal em 2015.

Bozó é um texto para dois atores ou duas atrizes ou


misturados. A idéia é que a composição das persona-
gens seja completada pelos atuantes. A cena se inspira
em um jogo de dados chamado Bozó ou Yam.

9
10
AMOR BÁRBARO, 13
TONTURA , 19
VINGANÇA DE HERA , 27
A ÚLTIMA CAMÉLIA, 33
PEQUENA ESTRADA ENTRE EU E TU, 39
CORAÇÃO DE PERFUME, 51
MARYLIN, 73
ESTÁ TUDO CERTO, MAMÃE?, 103
A CACARIA, 145
BOZÓ, 187

11
12
AMOR BÁRBARO

Personagens:
Jason
Medéia

( NO QUARTO DE MEDÉIA )

JASON
Medeia, vim te dizer que as coisas mudaram e que eu
preciso aproveitar as novas oportunidades, por ti e
pelo nosso filho. Precisas sair daqui até ao amanhecer.

MEDÉIA
Por ti, somente por ti, porque o cargo de herdeiro do
trono, não dará ao meu filho o destino de príncipe.

JASON
O nosso filho será príncipe com igual direito!

MEDÉIA
Tu mentes para mim, pois sabes que o nosso filho,
aqui nesta cidade, está condenado à morte.

JASON
Tu exageras em teus temores. Ao casar-me com a filha
de Creonte, me tornarei sucessor natural e governarei
esta cidade com todos os poderes. A minha palavra
será a lei.

MEDÉIA
Estás cego. A lei de um homem ambicioso não é maior
que o costume de uma cidade. O meu filho terá a sua

13
carne rasgada debaixo de tuas barbas.

JASON
Jamais isto se sucederá, pois eu serei um rei forte.

MEDÉIA
Falas como rei, mas não passas de um pretendente
cheio de cobiça. O meu filho será morto, pela morte
natural, que o ímpeto da juventude alimenta com o
nome de acidente. E tu, nunca terás um assassino,
mas ele estará lá, à espreita, para conferir o resultado
de seu trabalho.

JASON
Tu és uma mulher má ao prever semelhante destino
para o nosso filho.

MEDÉIA
Maldade foste tu teres me tirado de minha terra; te-
res me inebriado com o calor de teu corpo e o doce de
tuas palavras apaixonadas, a mim, que tu sabias que
estava trocando o meu destino pelo teu. Como é que
agora tu dizes que eu não faço parte de tua vida?

JASON
Mas é que a sorte mudou para mim e eu sinto que
não devo desperdiçar esta oportunidade. Eu não es-
tou apaixonado pela filha de Creonte. A única pessoa
que eu amo é você.

MEDÉIA
Então tu não a amas?

14
JASON
Não, sequer beijei a sua face. Vi a filha do rei a distân-
cia. Ele me propôs o casamento, o que eu achei um
preço justo para os serviços de um general. Além do
mais o rei está velho e querendo netos para colorir a
sua velhice. É um homem bom e tolo.

MEDÉIA
Tu sabes como chantagear um homem.

JASON
Sou um general. Não preciso usar de artifícios vulga-
res.

MEDÉIA
Tu tens um exército acampado fora da cidade.

JASON
E tu me tomas por um homem perverso. Sou apenas
um bom comerciante.

MEDÉIA
Vendes terror!

JASON
Medéia, tu te encantaste com este homem nômade,
que andava pelos lugares do mundo com o seu exér-
cito.

MEDÉIA
Eu te perguntei se eras um guerreiro.

15
JASON
E eu te disse que sim.

MEDÉIA
E eu te pedi que fizesses guerra contra a minha gente.

JASON
E eu subjuguei o teu povo aos teus pés.

MEDÉIA
E fostes aclamado rei.

JASON
E tu a minha rainha.

MEDÉIA
Reinamos pouco. Destruímos a nossa cidade e saímos
a vaguear pelo mundo, a saquear cada pequeno po-
voado. E aqui, nesta cidade sem exército, paramos, e
um rei velho te derrotou com os encantos enfeitiçados
de sua jovem filha. Pode uma mulher derrotar a força
de um exército?

JASON
Tu já o fizeste, quando me desviaste de meu caminho
para dobrar os teus parentes diante de ti e eu me apai-
xonei por ti . Eu poderia não ter escutado os teus la-
mentos e a tua sede de vingança, mas me apaixonei e
fiz jorrar o sangue de gente inocente para satisfazer os
teus caprichos. Aqui nesta cidade, ao contrário , irei
ser rei sem derramar uma gota de sangue.

16
MEDÉIA
E os teus soldados ?

JASON
Ficarão comigo.

MEDÉIA
Pelo soldo miserável de um soldado regular, quando
ganhavam muito mais com os saques?

JASON
O que estás insinuando?

MEDÉIA
Que não irei embora.

JASON
Vais me afrontar?

MEDÉIA
Já o fiz.
( CRAVA O PUNHAL EM JASON )
O teu rei velho está morto. Aqui está a sua coroa.
( DESCOBRE UMA BANDEJA )
Aqui tens a cabeça de tua princesa.
( RI MUITO ENQUANTO JASON CAI )
O meu filho será rei.

FIM

17
CITAÇÃO INTERCAPÍTULO

18
TONTURA

Personagens:
Branca
Antônia

(SEMPRE EM MOVIMENTO, COMO ELETRONS


AO REDOR DO NÚCLEO DE UM ÁTOMO)

BRANCA
( SEMPRE TENDENDO AO CENTRO )
Mamãe, porque é que eu estou tão tonta? A casa roda.
Na minha cabeça tem uma pressão. Porque é que
acontece isso comigo? Antes eu não tinha isso.

ANTÔNIA
( SEMPRE SE MANTENDO AFASTADA DO CEN-
TRO )
Vai melhorar. Tenha paciência que esse tempo ruim
vai serenar.

BRANCA
Mamãe , pára , olha para aqui. Olha. Eu estou sentin-
do o chão fugindo dos meus pés.

ANTÔNIA
Deixe de besteira. Vá fazer alguma coisa que isso pas-
sa.

BRANCA
Fazer o que? Eu não consigo fazer nada. Não consigo
mais estudar, nem sair para ir a uma festa ou à praia.

19
ANTÔNIA
Tenha calma que passa.

BRANCA
O tempo está passando. Eu estou perdendo a minha
vida e ninguém me ajuda. Meu deus, o que é que eu
devo fazer para melhorar disso?

ANTÔNIA
Acho que você está sendo injusta e fazendo tempes-
tade em copo d’água. Eu já levei você ao médico. Ele
fez todos os exames. Você não tem nada.

BRANCA
( APROXIMANDO-SE DO CENTRO )
Mas eu sinto uma pressão aqui na cabeça e aí passa
um filme numa velocidade muito grande. Olhe, é as-
sim , ele vem , e veja ele passa , passa , rápido demais .
( CHEGA AO CENTRO, RODOPIA E CAI )
É uma coisa que me prende.
( AFASTA-SE DO CENTRO )

ANTÔNIA
Isto é ansiedade. Não há cura para o teu mal fora de
teu coração. Estamos sozinhas. Tão sós que existimos
somente nós no universo.

BRANCA
Mas eu sinto algo fora de mim que me atrai!

ANTÔNIA
Procure se ocupar com outro pensamento. Arranque
o coração. Não tenha sentimentos. Somos mulheres!

20
( SILÊNCIO LONGO ENQUANTO O MOVIMENTO
TORNA-SE FRENÉTICO )

BRANCA
A culpa é sua.

ANTÔNIA
Minha culpa?

BRANCA
Você destruiu a minha essência. Eu era feliz, até você
me obrigar a revelar a minha vida. Eu gostava de
mim com os meus segredos. Alguns guardados até de
mim mesma. Você fez perguntas demais, como quem
acende uma fogueira para queimar uma herege.

ANTÔNIA
Foi melhor cortar o mal pela raiz. . .

BRANCA
Mas estou a um passo da insanidade. O que é uma
árvore sem a sua raiz, como ela pode ir buscar o seu
alimento?

ANTÔNIA
Mas filha, um noivado desfeito não é motivo para tan-
to sofrimento. Existem outros homens, mas o melhor
é esquecê-los.

BRANCA
Que mal havia se tanto eu o queria?

21
ANTÔNIA
Era um canalha!

BRANCA
Que mal havia se tanto eu o queria?

ANTÔNIA
Era casado!

BRANCA
Então para que me pariu? Se estava condenada à san-
tidade para que nascer um animal que sente forte o
desejo da carne ?

ANTÔNIA
Não blasfeme contra a sua vida, que deus castiga.

BRANCA
Não quero saber de deus.

ANTÔNIA
Não diga isto, que pode cair um raio na tua cabeça.

BRANCA
Invade a minha cabeça um vendaval, uma grande
tempestade no deserto árido de mim.
( APROXIMANDO -SE DO CENTRO )
Eu queria que não tocasse a nossa música, que os
meus ouvidos estourassem e eu ficasse surda, melho-
rar dessa sinfonia que passa através de meu corpo.
Escute. Está mais forte. Escute. Ai, dói o meu ouvido.
( CHEGA AO CENTRO, RODOPIA E CAI )
Essa coisa toma posse de mim.

22
( AFASTA-SE DO CENTRO )
( SILÊNCIO LONGO ENQUANTO O MOVIMENTO
TORNA-SE FRENÉTICO )

ANTÔNIA
É preciso crer numa força superior que nos salva de
todas as nossas aflições.

BRANCA
Mas esta força superior está me esmagando. Eu odeio
os meus sete irmãos que podiam fazer tudo e eu não .
Quando eu era pequena ficava dentro de casa, ficava
dentro de mim, esperando que um homem me que-
brasse o encanto do mundo.

ANTÔNIA
Você era a mais mimada.

BRANCA
Eu era e ainda sou uma prisioneira.

ANTÔNIA
Mas você era uma mocinha. Eles eram homens...

BRANCA
No mundo não devia haver esta separação entre ho-
mem e mulher que não são opostos, mas uma coisa
só. Esta ordem é um castigo para quem for mulher. Eu
não devia ter nascido.

ANTÔNIA
Eu não agüento mais essa sua repetição doentia e sem
esperança. As mulheres são a luz do mundo, por isso

23
sofrem tanto.

BRANCA
Não agüenta? Porque, velha, já se arrependeu do cri-
me que cometeu me fazendo vir para esta existência?

ANTÔNIA
O que você quer que eu faça? Também estou à mercê
de forças maiores do que eu.

BRANCA
E sou eu quem tem que saber? A borrasca se aproxi-
ma novamente de mim.
( APROXIMANDO-SE DO CENTRO )
Eu quero não salivar quando a tua lembrança me vier
na mente, que os meus sentidos endureçam e eu fique
encruada, distante como uma pedra na profundidade
no mais profundo poço.
( CHEGA AO CENTRO, LUTA PARA MANTER-SE
DE PÉ )
Está vindo de novo aquele amargor na minha boca.
Uma coisa ruim na minha boca.
( COMEÇA A VOMITAR. RODOPIA E CAI.
Eu sonhei sonhos tão lindos!
( AFASTA-SE DO CENTRO )
( SILÊNCIO LONGO ENQUANTO O MOVIMENTO
TORNA-SE FRENÉTICO )

ANTÔNIA
Fico pensando onde foi que eu errei, porque tudo o
que fiz foi para proteger você. Se eu falhei, peço des-
culpas.

24
BRANCA
Desculpas? O girassol está seco porque cortaram-lhe
a raiz.

ANTÔNIA
Então me perdoe.

BRANCA
Eu não perdôo. Mas eu gostaria. . .

ANTÔNIA
O que adoece você é este seu ódio. Esqueça o passado.

BRANCA
Esquecer? É tão fácil esquecer! É assim como uma má-
gica, não é? Mas não é assim. As coisas ficam vindo
e me perturbando . O tempo passa através de mim.

ANTÔNIA
Se eu soubesse que você iria adoecer tanto, eu teria
permitido que ficasse sendo a amante daquele cana-
lha, mas eu não tinha uma bola de cristal e a minha
religião não permitia esse tipo de comportamento.

BRANCA
Está acontecendo novamente. Eu estou sentindo arre-
pios. Estou caindo mais uma vez.

ANTÔNIA
Desta vez vou cair com você.

BRANCA
Não.

25
( APROXIMANDO-SE DO CENTRO )

ANTÔNIA
Vamos! Para mim não será a primeira vez!

BRANCA
Afaste-se de mim.

ANTÔNIA
Eu mereço sofrer o que você está sofrendo.

BRANCA
O meu corpo lateja. Há um prazer. Depois uma ago-
nia. Depois uma frieza, indo e vindo, cortando tudo e
eu sinto a casa rodar.
( NO CENTRO, RODOPIAM JUNTAS E CAEM UMA
SOBRE A OUTRA ).

ANTÔNIA
(LEVANTANDO-SE)
Eu sinto um cheiro ácido de homem.

FIM

26
VINGANÇA DE HERA

Personagens:
Hera
Jacinta

HERA
A vista daqui de cima é muito bonita, não é?

JACINTA.
É

HERA
Quando eu vim morar neste edifício a primeira pessoa
que vi foi você. Eu simpatizei contigo. Pensei comigo:
Esta vai ser a minha melhor amiga.

JACINTA
Eu também gostei de você, mas você era muito chati-
nha no começo.

HERA
É que eu não conhecia ninguém. E sou muito tímida
até hoje. Não era por mal que eu ficava calada num
canto sem falar com quem falava comigo, ou me recu-
sando a participar das brincadeiras.

JACINTA
Mas você também entregava a gente para a sua mãe
e ela contava para os nossos pais e a gente apanhava
por sua causa.
27
HERA
Eu era muito insegura, mas hoje não faço mais isso,
desde que você me salvou de morrer afogada na
praia, quando estávamos brincando de mergulhar. O
mar estava forte e me puxou para o fundo.

JACINTA
Ainda bem que você mudou para melhor.

HERA
Daqui, a cidade parece um céu estrelado com discos
voadores indo de um canto para o outro.

JACINTA- Hera, o que é que está acontecendo? Você


está muito estranha comigo, cheia de evasivas e uns
olhares diferentes.

HERA
Eu soube que você salvou Andreza de morrer afogada
na piscina do prédio. Eu não gostei disso.

JACINTA
Mas Hera, você queria que eu deixasse ela morresse
só porque tomou o teu namorado? Ciúme tem limite,
sabia?

HERA
Não foi pelo Edgar, que eu nem gosto tanto dele as-
sim. Foi por pelas outras coisas. Eu soube que você fez
respiração boca-a- boca nela. E que até repetiu várias
vezes.

28
JACINTA
Que onda! Que papo mais furado?

HERA
Não fuja da raia, que eu sei que você gosta de mulher.

JACINTA
Hera , vamos parar por aqui, que eu não gosto desse
papo não . Não tem nada a ver!

HERA
Jacinta, você me paga!

JACINTA
Me solta. Cuidado que a gente pode cair.

HERA
É isso mesmo que eu quero.

JACINTA
Tá bem eu peço desculpas. Eu exagerei na respiração
boca-a-boca , mas é que eu fiquei assustada com a ou-
tra morrendo ali na minha frente.

HERA
Eu já fui boazinha demais com você. Tolerei quando
me roubaram o Flávio, que eu tinha marcado para
mim, para ser a minha primeira noite como mulher.

JACINTA
Hera, solte os meus cabelos.

29
HERA
Você sabia que eu ainda sou virgem?

JACINTA
Desculpe !!!

HERA
Não tô nem aí para os comentários de vocês.

JACINTA
Isso já passou dos limites.

HERA
Não estou nem aí se vocês ficaram com o Flávio. De-
pois me tomaram o Gilson, o Rubinho. Perdi namo-
rados para você e para Andreza , um depois do outro
..Tudo bem . Eu achava que era porque eu era incom-
petente mesmo, mas sábado passado eu estava como
babá do irmãozinho de Andreza . Estava sozinha em
casa , no quarto do guri , quando vocês chegaram bê-
badas , de madrugada , e eu vi tudo . E ouvi tudo.
Como vocês se divertiam com a boba do prédio. To-
mavam-me os namorados, somente para eu ficar sem
nenhum homem. Vocês estavam tão bêbadas que fi-
zeram sexo no seu quarto com a porta aberta que fica
em frente ao quarto de seu irmãozinho. E tem mais
, pela fresta da porta eu fotografei vocês que é para
mostrar ao pessoal do prédio quem são vocês duas.

JACINTA
Hera, pelo amor de deus, você não está falando sério,
está?

30
HERA
Esta á aqui a foto. Quer conferir.

JACINTA
Devolve-me isso.

HERA
Está vendo aqueles meninos brincando no pátio do
edifício. O que é que vão pensar quando verem estas
fotos ?
( JOGA AS FOTOS )
Pode pegar são suas.

JACINTA
Não !
( SE ATIRA DO PRÉDIO )

HERA
Agora, só falta Andreza .

FIM

31
CITAÇÃO INTERCAPÍTULO

32
A ÚLTIMA CAMÉLIA

Personagens :
Edmundo
Margarida

MARGARIDA
Que faz você aqui?

EDMUNDO
Nada! Vim somente para contemplar um pouco a ru-
deza de teu coração.

MARGARIDA
Não tens o direito de me pedir perdão.

EDMUNDO
Não quero ser perdoado. Quero que me castigues.

MARGARIDA
Tu não mereces nem isso.

EDMUNDO
Quando te conheci, não pensei nos rumo que as nos-
sas Vidas iriam tomar.

MARGARIDA
É muito fácil teres ao teu dispor as proteções todas
que sociedade usa para dar segurança a pessoas como
você.

33
EDMUNDO
Eu insisto em que mudes esta tua forma de pensar.
Foi este ódio que te adoeceu.

MARGARIDA
Tu entraste hoje aqui porque não tenho mais forças
para te expulsar.

EDMUNDO
Minha querida, eu sei que é tarde, mas ainda pode-
mos renovar os nossos sentimentos .

MARGARIDA
É hipocrisia estas tuas palavras. Eu estou aqui agoni-
zando e você vem me dizer que nós precisamos reno-
var os nossos sentimentos. Como posso fazer isso de-
pois de ter visto todos os meus sonhos irem por água
a baixo.

EDMUNDO
Naquele primeiro momento eu era muito jovem e não
poderia decidir pela minha vida à revelia de meu pai.

MARGARIDA
Mas tu me fizestes ir contra a minha família. Tu me
prometeste que se casaria comigo e eu acreditei em
ti e fui toda tua e, no entanto quando engravidei tu
fugistes e eu fiquei sozinha para enfrentar o precon-
ceito de meu pai . Fui expulsa de casa. Solta na rua da
amargura. Com o teu filho no bucho.

EDMUNDO
Não é bom recordar isso!

34
MARGARIDA
o que então deveríamos recordar ? Muitos anos de-
pois quando tu me encontrastes na zona e me contra-
tastes como prostituta e eu fui para a cama contigo
por míseros 10 dinheiros ...

EDMUNDO
Não quero recordar aquele momento.

MARGARIDA
Porque não?

EDMUNDO
Eu fiz muitas besteiras! Dói muito ver você aqui neste
Estado.

MARGARIDA
Prefiro morrer. É mais honesto para com as pessoas
todas que me rejeitaram.

EDMUNDO
Não quero mais ficar sem você.

MARGARIDA
Não diga isso. Tu és um fraco. No cabaré, eu pensava
que ainda teria uma chance de viver um grande amor
.Aí você voltou e me iludiu novamente e eu até aceitei
a minha condição de mulher da zona tendo um caso
com um homem grã-fino .

EDMUNDO
Deixe-me tirá-la daqui e levá-la para um hospital me-
lhor.

35
MARGARIDA
Perca as esperanças. Não há mais médico para o meu
mal. A tuberculose é só uma fachada.

EDMUNDO
É a sua vingança, não é?

MARGARIDA
Porque vingança? Tu não és independente, livre de
qualquer Compromisso?

EDMUNDO
Eu sabia que você não iria me perdoar se eu me casas-
se com outra mulher.

MARGARIDA
Mas ainda assim me manteve como uma escrava ao
seu serviço me iludindo que iria me tirar daqui. Eu fui
tão boba que acreditei.

EDMUNDO
Eu precisava me casar. O meu pai estava pressionan-
do.

MARGARIDA
O seu pai. Grande desculpa! Este homem agora é o
culpado de todos os teus defeitos!

EDMUNDO
Admito. Eu sou um fraco.

MARGARIDA
Vá-se embora daqui, por favor.

36
EDMUNDO
Mas eu te amo.

MARGARIDA
Ama o próprio conforto, isso sim.

EDMUNDO
Hoje eu sei que te amo e que deveria ter enfrentado
o meu pai já naquele primeiro momento, mas agora
é tarde.

MARGARIDA
Mentiroso. Tu és o melhor na arte da mentira.

EDMUNDO
Queres uma prova. Eu me separo de Raquel!

MARGARIDA
Desta vez você se superou!

EDMUNDO
Eu não quero viver se não for com você.

MARGARIDA
Porque todo este drama, quem está morrendo é so-
mente uma prostituta que não pode ser apresentada
nos salões da sociedade. Lembra do que me disse ?

EDMUNDO
Vou te pedir desculpas mesmo que digas que é cinis-
mo de minha parte. Desculpa, eu não tinha idéia de
quanto você era importante para mim.

37
MARGARIDA
Você é um cínico doentio. Já passei por esta cena tan-
tas vezes .

EDMUNDO
Agora é diferente!

MARGARIDA
Porque , o que mudou ?

EDMUNDO
Eu posso perder você definitivamente.

MARGARIDA
Já perdeu.

EDMUNDO
Antes eu preciso lhe provar que te amo verdadeira-
mente.

MARGARIDA
Então me beija. Na boca.
(ELE TENTA BEIJA-LA MAS É REJEITADO )

EDMUNDO
O que foi?

MARGARIDA
Apesar de tudo eu ainda amo você!
(TOSSE CONVULSIVAMENTE E MORRE)

FIM

38
PEQUENA ESTRADA ENTRE EU E TU

Personagens:
Haruê Bach, uma mulher de 30 anos, está sentada na
quarta cadeira da décima fila da platéia de um teatro.
Luis Pagliaccio, um homem de 30 anos, entra e
toma o seu lugar na segunda cadeira da primeira fila.

Este teatro que também pode ser o mundo. As corti-


nas estão fechadas e o público vai tomando os seus
lugares conversando na algaravia de sempre.

( AS PESSOAS ENTRARAM E TOMARAM OS SEUS


LUGARES)
(UM MOMENTO DE SILÊNCIO)

HARUÊ
(FALA COM ALGUÉM DA PLATÉIA)
Por favor, que horas são? Vai demorar a começar?

ESPECTADOR
(RESPONDE DE IMPROVISO)
Etc...

HARUÊ
Eu marquei um encontro aqui neste teatro, mas pode-
ria ter sido em qualquer outro lugar. Poderia ter sido
numa praça. Eu conheci um rapaz no metrô hoje à tar-
de. Nós conversamos, fizemos planos e ele me falou
que outrossim estaria aqui.
(FALA A LUIS QUE ESTÁ NA PRIMEIRA FILA)

39
Ei, você aí... Estou falando contigo que está na primei-
ra fila. Aí, na segunda cadeira.
(ATIRA UMA PEQUENA PETECA DE PAPEL E
ERRA O ALVO ACERTANDO A CABEÇA DE OU-
TRO ESPECTADOR)
Desculpe, minha senhora, desculpe a má pontaria. Eu
nunca treinei tiro ao alvo, muito menos peteca. Des-
culpe. Você me desculpa? Desculpado. Ótimo!
(CONTINUA SE DIRIGINDO A LUIS )
Ei, psiu, é com você. Sim, com você mesmo. Puxa,
eu acho que não é ele... Eu acho que é ele. Não tenho
muita duvida, nem muita certeza. Quem é que pode
ter certeza de todas as coisas? A gente se viu tão rápi-
do. Marcou um encontro. Pode ser que seja ele. Inclu-
sive... Ele está com a mesma roupa. Ah, que besteira
a minha, mas pensando bem eu vou tentar somente
mais um arremesso. Ei, psiu!
(ATIRA UMA SEGUNDA PETECA DE PAPEL E
ERRA NOVAMENTE O
Ah, minha senhor desculpe, não foi por querer, foi
por falta de habilidade mesmo que eu acertei a se-
nhor, mas faça-me um favor: Está vendo este rapaz aí,
que está sentado na segunda cadeira? Esse mesmo aí
próximo de você. Cutuque ele, por favor.
(UM ESPECTADOR CUTUCA LUIS )
Ei, está me reconhecendo?

LUIS
Não.

HARUÊ
Não? Puxa, eu tinha certeza que era você que eu en-
contrei no metrô.

40
(MAIS UM MOMENTO DE SILÊNCIO)
( ACERTA UMA PETECA DE PAPEL EM LUIS QUE
COLOCA UM NARIZ DE PALHAÇO)

LUIS
Moça, a senhorita me machucou.

HARUÊ
Não era você, eu temia isso, mas é que não dava para
ver direito daqui de trás.

LUIS
Você é a moça do metrô. Não se assuste. É que eu me
visto de gente somente até à hora do espetáculo co-
meçar.

HARUÊ
Não estou te reconhecendo.

LUIS
Você não é a cantora?

HARUÊ
Quase cantora...

LUIS
Muito prazer dona quase mulher, dona quase gente,
estamos quase aqui, nesta quase hora, ao lado destas
quase pessoas quase esperando... O que mesmo?

HARUÊ
Você ficou muito diferente com este nariz de palha-
ço. Não era o que estava esperando.Desculpe me se

41
te ofendi.

LUIS
Não me ofendeu. Quase. Estou brincando contigo.
Mas se você é uma cantora não deve ficar repetin-
do que é quase qualquer coisa. Deve cantar e cantar
e cantar.

HARUÊ
Eu não tenho tempo para viver de cantar.

LUIS
Ah, mas eu tenho tempo, não me falta nenhum tempo
para ser o que sou.

HARUÊ
Desculpe-me... A nossa conversa no metrô me deixou
confusa. Desculpem-me vocês todos que estão aqui e
não tem nada a ver com as minhas frustrações e fan-
tasias.

LUIS
Não se desculpe tanto. Você não fez nada de errado.
Não existe melhor lugar para encontrar todo o poder
de nosso ser que uma platéia de teatro antes do es-
petáculo. Este silêncio é rico de vozes secretas que
gritam os nossos mais íntimos sonhos. Escute-os...
Meus senhores e minhas senhoras, caldeirôes e caça-
rolas, dêem-me a vossa licença nestes poucos minu-
tos antes da função começar.

(LUIS VAI ATÉ ONDE ESTÁ HARUÊ)

42
A senhorita me dá o prazer desta contradança?

HARUÊ
Mas não há música alguma.

LUIS
Aí é que você se engana. Sempre há uma música to-
cando em nossa cabeça. É a nossa música secreta da-
quele momento. Portanto, basta que você sintonize
com a minha música. Está escutando?

HARUÊ
Não.

LUIS
Claro. Sentada aí como é que você poderia escutar.

HARUÊ
Qualquer música escuta-se com o ouvido, não estou
certa?

LUIS
A música de nossas vidas escuta-se com o corpo in-
teiro em movimento. Venha. Fique de pé. Você é uma
cantora, uma artista, não foi isso que você me disse no
metrô?

HARUÊ
Desculpe-me, mas acho que a nossa conversa no me-
trô me deixou hipinotizada, mas agora diante das
pessoas vejo que agi como uma boba. Não pretendia
perturbar você. Me desculpe.

43
LUIS
A senhora não me pertubou, a senhora me acordou e
uma vez acordado quero o meu pagamento. Quero a
sua energia de artista, quero que os aplausos encham
esta sala e você saiba que é uma pessoa muito espe-
cial, que me encontrou por acaso no banco do metrô,
mas que veio para este teatro acreditando em algo
precioso dentro de você.

HARUÊ
Quem é você para me falar essas coisas?

LUIS
Puxa vida! É verdade! Na pressa de vivermos; esque-
cemos de nos apresentar, eu sou Luis Pagliaccio, um
palhaço, minha verdadeira e ordinária natureza, tão
forte que não posso evitar. E a senhorita?

HARUÊ
Meu nome é Haruê Bach.

LUIS
Estimada Haruê, não se intimide com o poder de meu
nariz vermelho. Apenas aceite este convite para uma
pequena contradança.

HARUÊ
Não quero dançar. Já me desculpei pelo incômodo.

LUIS
Não houve incômodo algum, mas se me recordo no
metrô, foi você quem começou com a nossa conversa.

44
HARUÊ
Não foi bem assim. Eu estava cantando sozinha no
meu canto, você me interrompeu e me perguntou se
eu era cantora. Eu disse que ainda não, que não tinha
tempo de parar tudo para me dedicar ao canto, pois
tinha que ganhar dinheiro. Então você me convidou
para vir a este teatro. Eu vim, mas esperava outra coi-
sa. Estou muito confusa e acho que fui arrebatada por
uma espécie de loucura momentânea.

LUIS
E esta loucura já passou?

HARUÊ
Passou, quando vi você com este nariz de palhaço. Eu
compreendo que você esteja querendo me pagar o
mico com uma brincadeira, não é?

LUIS
E se eu lhe garantir que este nariz é a minha primeira
natureza, que sem ele eu sou somente mais uma coisa
na multidão, um objeto falante, mais um número dilu-
ído entre os números da civilização. É por este nariz
que eu sou único. Na multidão este nariz se torna
invisível, pois deixo de ser alguém para ser somente
mais uma coisa.

HARUÊ
Não me parece nem um pouco racional esta sua ma-
neira de pensar.

LUIS
Quando eu ouvi você cantar eu percebi que estava

45
diante de uma artísta. Foi por isso que te convidei
para vir ao teatro. Foi por isso outrossim que você
veio, porque conseguiu enxergar a minha verdadeira
natureza, e ali eu não te pareci estranho. Agora quan-
do o medo do ridículo tomou conta de você, é que
você percebeu o meu nariz, mas ele estava lá o tempo
todo em mim.

HARUÊ
Se arrependimento matasse o chão se abriria e eu
afundaria até o centro da terra.

LUIS
Não seja trágica. Ainda Está de pé o meu convite para
uma contradança.

HARUÊ
Não, já disse.

LUIS
Ao menos pode ficar de pé...

HARUÊ
Com certeza, mas para ir-me embora daqui.
(HARUÊ LEVANTA-SE, MAS LUIS SEGURA-LHE
A MÃO)

LUIS
Que bom que aceitou o meu convite. Vamos dançar
enquanto você canta.

HARUÊ
Desculpa, mas preciso ir.

46
LUIS
Desculpo não. Brincadeira. Desculpo tudo o que você
fizer.

HARUÊ
Adeus.
(DESVENCILHA-SE DA MÃO DELE E TENTA FU-
GIR, MAS É AGARRADA PELO TORNOZELO DE
FORMA ESPALHAFATOSA COMELE ESTENDIDO
NO CHÃO)

LUIS
Não vá. Não me abandone.

HARUÊ
Largue o meu pé.

LUIS
Somente se você cantar um pouquinho.

HARUÊ
Somente um pouquinho...

LUIS
Um pouquinho.

( HARUÊ CANTA BAIXINHO UMA CANÇÃO)

HARUÊ
Satisfeito? Pode soltar o meu pé agora?

LUIS
Não.

47
HARUÊ
Mas eu fiz o que você me pediu...

LUIS
Mas eu não escutei direito. Você cantou muito baixo.
Poderia cantar mais uma vez?

(HARUÊ CANTA MAIS UMA VEZ)

HARUÊ
Pronto. É o fim. Agora eu vou voltar para a minha
vidinha de sempre.

LUIS
Ainda não. Cante somente mais uma vez comigo, ali
na frente, igualzinho ao que aconteceu no banco do
metrô. Venha não se assuste. Façamos de conta que
estamos somente eu e tu.

HARUÊ
Mas depois eu prometo que irei embora.

(LUIS LEVA HARUÊ ATÉ A BORDA DO PALCO.


SENTAM-SE E É COMO SE VOLTASSEM AO BAN-
CO DO METRÔ. HARUÊ CANTA)

LUIS
A senhora é cantora?

HARUÊ
Ainda não.

48
LUIS
Pois tem uma voz muito bonita.

HARUÊ
Obrigada.

LUIS
Você deveria deixar que outras pessoas escutem a sua
voz.

HARUÊ
Isto é muito difícil e eu sou somente uma pessoa co-
mum.

LUIS
É uma pessoa comum como eu. Aceita agora dançar
comigo?

HARUÊ
Por toda a vida?

LUIS
Porque não? A vida é agora. Você é a pessoa cuja can-
ção encanta o meu coração. Posso beija-la?

HARUÊ
Claro, depois do espetáculo, porque agora somos ape-
nas dois espectadores. E te prometo que cantarei to-
das as canções que desejares ouvir.
(HARUÊ E LUIS SENTAM-SE JUNTINHOS NA
PLATÉIA)

FIM

49
CITAÇÃO INTERCAPITULO

50
CORAÇÃO DE PERFUME

Personagens:
Gardênia
Lola

(É UMA NOITE DE TEMPESTADE. RAIOS E TRO-


VÕES)

(NA CASA DE GARDÊNIA: ELA DIANTE DE UM


TELEFONE)

GARDÊNIA
Meus lábios...
Meu amor, telefona para mim,vai um toque.
A tempestade é para o- que der e vier...
(REVIVE ALGO NA MEMÓRIA)
Depois a solidão rói.
Eu sei que o nosso amor nunca vai acabar.
Anda por aqui. Está sempre aqui.
A música no ar, um bolero pesado.
Carmem, minha Carmem
Vestido vermelho, unhas vermelhas
Cabelos negros naquela pele cor de nada
Belíssimos olhos amendoados,
Quase cigana.
Minha linda
(DlRIGE-SE-SE A UMA PAREDE)
Dança comigo aquele bolero feminino.
(EXPLODE UM BOLERO)
Teus pés. Você. Sorriso.
Menina, toca o meu rosto.

51
Criatura, beija a minha boca...
Um, dois...Um, dois.
(SILÊNCIO. VOLTANDO A SI)
O que será de uma mulher?
Não será o bico do peito, nem o d e dão do pé.
A mulher será a solidão e um bombom de chocolate.
(PARA UM FANTASMA)
Meu deus! Tu l Nos somos um deus l
Tanta dor. Tanto perfume.
Tua boca, minha boca...
(ABRAÇA-SE COM O FANTASMA)
Ah, músculo delicadamente músculo, teus seios.
Liga para mim. Tão pouco, um telefonema.
Não brilha mais a luz.
Nem mesmo esta vela tem brilho algum.
Não há tempestade pior do que ficar só.
(ORDENA AO FANTASMA)
V á embora daqui.
Vá, que eu vou abrir a porta do mundo
e massacrar a minha alma.
(O TELEFONE TOCA E ELA VACILA.
TOCA UMA SEGUNDA VEZ)
Alô...
(SILÊNCIO)
Eu sei que é você que está aí.
Carmem, você embriagou a minha vida
e não tem o direito de me deixar sozinha.
Se você não vier eu me mato.
Eu vou me matar. Eu te amo.
(JOGA O TELEFONE E SAI ENLOUQUECIDA COM
UM GUARDA-CHUVA)

(NO MEIO DA RUA SOB A TEMPESTADE UMA

52
MULHER COM A FANTASIA DE CARNAVAL MO-
LHADA. ELA ESTÁ EMBRIAGADA E CANTA AN-
TIGAS MARCHAS CARNAVALESCAS)

(GARDÊNIA SURGE NUM CANTO E OBSERVA O


ESPETÁCULO)

LOLA
Fui para a cama com o meu amor fatal E amanheci
com ninguém Na rede.
(GRITA)
Lola, você não tem vergonha na cara. Rato miserável.
Você é o meu único amigo e cadê você... Cachorro.
Homem safado.Porco. Você era o meu único amigo.
Covarde, leva todo o meu dinheiro e me chuta. Ca-
chorro. Cachorro. Cachorro.
(ÀS NUVENS)
Vocês também são muito safadas.

(A CIDADE APAGA AS LUZES, OS SINOS TOCAM.


A ORQUESTRA DO BAILE DE ANO NOVO TOCA
AQUELA MÚSICA SEMPRE. CHISPA UM RAIO.
EXPLODE UM TROVÃO. LOLA VAI CAIR AOS PÉS
DE GARDÊNIA, A LUZ ABRE-SE SOBRE AS DUAS)

GARDÊNIA
Meretriz.

LOLA
O que?

GARDÊNIA
Irmã.

53
LOLA
Esta chuva é muito safada.

GARDÊNIA
Vem comigo, enxugar esta roupa e beber algo quente.

LOLA
Eu não entendi. O que foi mesmo que você disse? Re-
pete.

GARDÊNIA
Meretriz!

LOLA
O que?

GARDÊNIA
Irmã.

LOLA
Aquele cachorro vai se ver comigo.Vou castrá-lo com
uma gilete .

GARDÊNIA
Calma. Você precisa de roupas secas.

(GARDÊNIA LEVA LOLA PARA A SUA CASA,


AJUDA A TROCAR AS ROUPAS, OFERECE-LHE
VINHO. BEBEM E CHOVE MUITO LÁ FORÁ)

LOLA
Preciso ir.

54
GARDÊNIA
Está chovendo muito, espere um pouco.

LOLA
Tanto faz. Se eu pudesse ao menos derreter.

GARDÊNIA
Ainda há pouco estava desesperada. Saí de casa para
pular da ponte, para deixar-me atropelar por um au-
tomóvel.E não consegui nem mesmo esquecer o guard
a-chuva.

LOLA
A vida é para ir sendo vivida.Cada vez que eu penso
na felicidade,tenho vontade de derreter.

GARDÊNIA
Também esta sua vida de meretriz.

LOLA
Meretriz. Entendi o meretriz. Não, eu sou atriz.

GARDÊNIA
Então somos meretrizes.Bu também sou atriz,destino
infeliz ou não,mas desculpe-me ter sido presunçosa
com você.

LOLA
Meu nome é Lola.

GARDÊNIA
Gardênia.

55
(FITAM-SE LONGAMENTE)

(PRIMEIRO ROUND)

(GARDÊNIA DESMAIA)

LOLA
Gardênia, que houve? Você bebeu algum veneno?
Criatura, essas crises da existência passam como os
pingos da chuva, correm para o mar. Acorde, acor-
de rápido que eu já estou ficando com medo. Já sei:
enjôo. Você está enjoada, grávida. E se você bebeu
mesmo algum veneno? E se o vinho estava envenena-
do? Eu não quero morrer, prefiro a minha vida infeliz,
aliás, eu sou até muito feliz ao lado de Adolfo. Vá ver
que ele me deixou esperando porque bateu o carro,
ou furou o pneu. Acho que estou mesmo envenenada.
E quando Adolfo chegar, não me encontrará em casa
e irá para o Baile de Ano Novo sem mim. Eu estarei
aqui morta. Eu não quero morrer.
(DESMAIA)

(GARDÊNIA LEVANTA-SE DESCONFIADA)

(SEGUNDO ROUND)

GARDÊNIA
(ASSUSTADA)
Lola? Virgem Maria, a outra está pior do que eu. O
telefone está com problema. Nós precisamos de uma
ambulância. 0 diabo é quem fica aqui esperando.
(VAI SAINDO)

56
LOLA
Não me deixe aqui sozinha.

(FITAM-SE E CAEM NA GARGALHADA)

GARDÊNIA
Você me pegou...

LOLA
Amigas?

GARDÊNIA
Amigas!

LOLA
Profissionais.

GARDÊNIA
Não quer ligar para o Adolfo? O telefone está bom.

LOLA
Adolfo não existe. É uma personagem do espetáculo
“MATOU O AMANTE COM UMA FACADA”.

GARDÊNIA
“MATOU O AMANTE COM UMA FACADA “? E o
Baile de ano novo? Já estava ficando animada.

LOLA
O Baile de ano novo existe. Jorge, o meu marido, li-
gou-me do clube dizendo que já estava lá e que eu pe-
gasse um taxi. Saí animada e acabei ensopada, doida

57
de raiva, mas quando pega-lo vou fazer valer o Adol-
fo representa.

GARDÊNIA
Ele também é ator?

LOLA
Claro. Imagine se eu teria condições de casar com ou-
tra pessoa. Com um médico, seria uma tragédia. Com
um advogado, santa mãe de deus. Com um político,
nem com a promessa de um dia ser mulher de presi-
dente da república. Adoro Jorge. Eu o mantenho sob
rédeas curtas. Ali, no cabresto. E tu, mulher, cadê o
teu amor?

GARDÊNIA
Saiu. Não telefonou. Não disse nada. Essas coisas...

LOLA
Que inferno. Duas mulheres sozinhas perdidas na
tempestade.

GARDÊNIA
Quem sabe ela não está com o teu Jorge?

LOLA
Ela? Com meu Jorge?

GARDÊNIA
Rasgou o meu coração com as suas unhas de gata...

LOLA
Ouem?

58
GARDÊNIA
Carmem.

LOLA
Carmem ?

GARDÊNIA
As minhas mulheres são as mulheres, as suas bocas a
minha fonte e os seus corpos a minha metade.

LOLA
(ADMIRADA)
Mulher.

GARDÊNIA
Mulher.

LOLA
Danou-se e agora?

GARDÊNIA
Agora é deixar as coisas irem se completando.

LOLA
Comigo?

GARDÊNIA
Não, de modo algum.

LOLA
Por quê?

59
GARDÊNIA
Amo as mulheres.
(LOLA FICA SURPREENDIDA)
Livres.
(EXPLODE UM TANGO ARGENTINO. PEDAÇOS
DE MULHER CAEM DAS NUVENS)

( TERCEIRO ROUND )

LOLA
Você é atriz?

GARDÊNIA
Sim.

LOLA
Está em algum espetáculo?

GARDÊNIA
“A LOBA” .

LOLA
Claro. Já tínhamos falado sobre isto. Está chovendo
muito.”A LOBA?

GARDÊNIA
É

LOLA
Sim, sim, que horas são?

GARDÊNIA
Um pouco mais que zero hora.

60
LOLA
É?

GARDÊNIA
É.

LOLA
Meu Deus que chuva.

(LOLA FICA ACUADA NUM CANTO OLHANDO


A CHUVA)

GARDÊNIA
(CURIOSA)
Lola ?

LOLA
(ATERRORIZADA)
Não, pelo amor de Deus, por tudo o que há de mais
sagrado, não me toque, nem um dedinho, senão o
Jorge me estraçalha. Deus me livre. Qualquer coisa
menos isso. Eu sou uma mulher casada, sem nenhum
problema conjugal, sem filhos e sem empregada, que
mora num apartamento classe média, com TV e forno
microondas. Não se aproxime de mim.

GARDÊNIA
(TOCANDO LOLA)
Lola...

LOLA
(GRITANDO MELODRAMÁTICA)
Não faça isso senão o Jorge me arrebenta. Não quero

61
ser vítima de crime passional...

GARDÊNIA
Deixe de drama. Não é nada disso.

LOLA
Como não?

GARDÊNIA
Não. De modo algum. Não quero nada com você, não
é o meu tipo, não me atrai. Estou apenas fazendo uma
caridade a você.

(UM RAIO RISCA O CÉU).

(QUARTO ROUND)

LOLA
Você está pensando que eu sou o que? Sequestra-me
no meio da noite. Aprisiona-me dentro de sua casa
e agora tem a ousadia de dizer que eu não sirvo de
modo algum.
(ENFURECIDA)
Ah não, queridinha,agora eu quero ser devorada pela
“LOBA” e já. Vamos que eu tenho pressa de ser es-
traçalhada.

GARDÊNIA
Você é muito doida.

LOLA
(HILÁRIA)
Eu sou muito doida.

62
(PAUSA)

GARDÊNIA
Vamos ao baile?

LOLA
Com qual fantasia?

GARDÊNIA
Com a, pele em carne viva.

LOLA
Não. Eu de Romeu e você de Julieta.

GARDÊNIA
Sim, mas...

LOLA
Estou no baile, mas oh! O que vejo? Não é possível!
Julieta, a própria!

GARDÊNIA
Espera um pouco, não estou pronta ainda.

LOLA
(CHUPANDO OS DEDOS DE GARDÊNIA)
São as frutas mais gostosas que minha boca já provou:
Manga, sapoti, jambo, pitomba, jabuticaba, mangaba,
cajá, seriguela, carambola e pinha...

GARDÊNIA
Você está exagerando com a brincadeira. Pare por fa-
vor.

63
LOLA
Que pezinho lindo.
(MORDISCA OS PÉS DE GARDÊNIA)
Gostoso é o remédio floral, cura a alma. Os teus pés
têm sabor de queijo.

GARDÊNIA
(VAI LENTAMENTE PARA O CHÃO ENQUANTO
LOLA MORDISCA-LHE AS PERNAS E AS GOXAS)
Não faça isso. Eu não quero. Eu não posso.

LOLA
( DE PÉ DEPOIS DE UMA PIRUETA)
Julieta, vem dançar comigo.
(EXPLODE UMA SUAVE MÚSICA RENASCENTIS-
TA. LOLA E GARDÊNIA ABRAÇAM-SE. DANÇAM
COM GRAÇA E BELEZA, QUASE UM BEIJO)

( QUINTO ROUND)

LOLA
(SEPARANDO-SE BRUSCAMENTE)
Oh,uma Capuleto. Da família Capuleto, filha do ca-
peta, vem comigo.

GARDÊNIA
Debaixo dessa chuva?

LOLA
Sim e daí?

GARDÊNIA
Romeu, estou morta frio.

64
LOLA
Por causa do frio? Que bobagem, ainda está distante
de uma pneumonia.

GARDÊNIA
Porque és homem, Lola ? Ouem é você? Continuarias
sendo quem és se fosses Carmem ?

LOLA
Carmem? Homem? Enlouqueceste!

GARDÊNIA
Cala-te. Que é Gardênia? Oue é Lola? Que é um
Nome?

LOLA
Não é mão...

GARDÊNIA
Nem pé...

LOLA
Nem braço...

GARDÊNIA
Nem peito...

LOLA
Nem parte alguma que pertença ao corpo.

GARDÊNIA
Esquece o teu nome, esquece o meu nome e esqueça-

65
mo-nos uma a outra inteiramente. Minha amiga, eu
me apaixonei.

LOLA
Julieta, eu continuo sendo Romeu.

GARDÊNIA
Quero um beijo teu.

LOLA
Oh, Julieta, acabo de lembrar que ainda tenho que ma-
tar alguém da tua família. Depois eu volto, eu prome-
to...

GARDÊNIA
Mas o baile ainda não acabou. As portas estão fecha-
das. Ha muitos guardas e você é minha querida na-
morada...

LOLA
Oh, assim não dá.Preciso ir,antes que os pardais avo-
em cagando a minha cabeça.Antes que o baile acabe e
eu vire abóbora. Antes que acabe fazendo uma loucu-
ra. Oh, Julieta você é muito enrolada. Adeus, prefiro
a chuva.

GARDÊNIA
Vá embora, mas não olhe para trás.

LOLA
Adeus.

66
GARDÊNIA
Mande a conta. “A LOBA” irá pagar pessoalmente.

LOLA
Vá ver o meu espetáculo. Jasmim para você.
( SAI DEVAGAR)

GARDÊNIA
Almíscar para ti.

GARDÊNIA
(NO TEATRO FAZENDO O ESPETÁCULO)
Corações, a paixão é o que move a máquina.
Eu nasci neste canto do mundo
Para cantar a canção do meu amor,
Meu amor eu tenho uma canção
(GRITA)
Eu quero lhe cantar.
(CANTA A CANÇÃO DA SOLIDÃO IMENSA)

(A TEMPESTADE ESTÁ AINDA MAIS FORTE. A


CIDADE ESTÁ SE DERRETENDO. UM GRANDE
OLHO DESPENCA DAS NUVENS)

( SEXTO ROUND)

(NA CASA DE GARDÊNIA)

LOLA
(ENTRANDO COMPLETAMENTE ENSOPADA)
Não dá. De modo algum dá para agüentar esta chuva
no lombo. Depois você me canta. Dê-me algo quente

67
para arrombar a festa deste resfriado.

GARDÊNIA
Qualquer coisa ou algo especial?

LOLA
Cachaça. Tem ?

GARDÊNIA
Tem sim,
(PEGA A GARRAFA E UM COPO)

LOLA
(BEBE NA GARRAFA)
Situação de cadela abandonada.

PANTOMIMA: “ A LOBA “
AS DUAS INICIAM A BEBER. BEBEM.SECAM A
GARRAFA. ESTÃO TONTAS.TRANSFOR MAM-SE
EM LOBAS BELÍSSIMAS. A LOBA AMAMENTA
O FILHOTE. LATIDOS DE CÃES AVANÇAM. A
LOBA ESTRAÇALHA A MATILHA. OS CAÇADO-
RES ESTÃO ACUADOS. A LOBA DEVORA A NOI-
TE. ESTÃO ADORMECIDAS ENQUANTO A CHU-
VA PASSA E O SOL VEM COM O AMANHECER)

(LOLA E GARDÊNIA LEVANTAM-SE LENTAMEN-


TE)

LOLA
Tu me seduziste, mas foi bom. Melhor assim que es-
tar triste.

68
GARDÊNIA
A chuva passou...

LOLA
É. Quando eu chegar em casa direi ao Jorge que pas-
sei a noite na casa de um amigo.

GARDÊNIA
Não fique grilada. Esta noite não lhe arrancou ne-
nhum pedaço.

LOLA
Eu sei. Desculpe-me o jeito de Madalena arrependi-
da. A propósito, quem é C armem?

GARDÊNIA
Era o meu amor, a minha paixão.

LOLA
E não é mais ?

GARDÊNIA
Não.

LOLA
Faz-me um carinho.

GARDÊNIA
Por que?

LOLA
Gostei de você. Quando eu voltar. Não esteja aqui.

69
GARDÊNIA
Estarei aqui.

LOLA
Vou matar o meu marido e a polícia virá atrás de mim.

GARDÊNIA
Por mim, não diga isto nem brincando. Venha para
mim sem a polícia, sem o seu marido, sem mais nin-
guém.

LOLA
Você o quer?

GARDÊNIA
Não. Quero você.

LOLA
Mas pode ficar com o Jorge, ele não presta mesmo.

GARDÊNIA
Você é muito dramática. Deixe de representar, quan-
do é que...

(A MADRUGADA É FRIA)

(SÉTIMO ROUND)
(“MATOU O AMANTE COM UMA FACADA”)

LOLA
(RETIRANDO UMA PISTOLA DA BOLSA)
Você é muito doida. Como é que você, na calada da

70
noite, me traz para a sua casa, sem ao menos saber
quem eu sou...

GARDÊNIA
Lola, o que é isto. Eu não estou entendendo...

LOLA
Cala a boca...

GARDÊNIA
Lola...

LOLA
Meu nome é Beatriz. Só há uma maneira de apagar o
passado. Eu vou matar você.

GARDÊNIA
(CHORAMINGANDO)
Não faça isso,por favor.

LOLA
Você não tem o menor pingo de juízo. Para com esse
choro senão eu te arrebento. Você não merece viver.
Adúltero.Safado. Criatura abominável que não soube
respeitar uma mulher.

GARDÊNIA
Lola, deixe disso...

LOLA
(GRITA HISTÉRICA)
Beatriz.Meu nome é Beatriz,a doida.
(ATIRA EM GARDÊNIA)

71
E você Adolfo, que nunca me amou, que se aprovei-
tou de mim, agora irá pagar as suas contas no inferno.
Morre Adolfo...
(NOCAUTE)
É festim...

GARDÊNIA
(ENTRANDO NO JOGO)
Um beijo antes da morte. Beija-me.

(LOLA BEIJA GARDÊNIA E VAI SAINDO)

GARDÊNIA
Quando é que você vem me ver?

LOLA
Na próxima tempestade.

FIM

72
MARYLIN

PERSONAGENS:
Vicente / Norma / John
Patrick / Marylin

NO CENTRO DO PALCO UM CAMARIM, TEN-


DO AO FUNDO UMA CORTINA SIMBOLIZANDO
UMA BOCA DE CENA VISTA POR TRÁS.

VICENTE
(PARA A PLATÉIA)
Meu nome é Norma, meu nome de guerra.O meu
nome verdadeiro é Vicente. (PAUSA) Tenho 30 anos.
Entreguei-me ao ofício de artista e estou nesta vida
desde os 17 anos. (PAUSA) Dividia este palco com o
meu melhor amigo, ou melhor, dizendo, o meu gran-
de amor, Patrick. Nós fazíamos um show baseado no
mito da Marilyn Monroe... (PAUSA) Estou aqui so-
zinho, mas não por minha vontade. Não tive culpa de
nada. (PAUSA) Era o meu amor e companheiro de
trabalho... (PAUSA)Mas um dia esta coisa de se iden-
tificar com Marilyn ficou séria demais na cabeça de
Patrick...

(TRANSIÇÃO DE LUZ PARA O PLANO DA MEMÓ-


RIA.)

(PATRICK ESTÁ NO CAMARIM. ENTRA VICENTE)

73
VICENTE
Tudo bem gato?

PATRICK
Você está muito feliz para o meu gosto.Vê se não atra-
palha ,que hoje a maré está ruim.

VICENTE
O que houve?

PATRICK
A vida é cara demais para somente ouvirmos a mes-
ma música. Isto é uma exploração. Agora é a vez de
sermos também ajudados. Você vai ver: não vamos
receber nenhuma pipoca. É como diz o ditado depois
do temporal vem a bonança somente para alguns..Es-
tou precisando de grMARGARIDA e não vai pintar
nenhum.

VICENTE
Eu sempre fui à luta. Seria muito bom que tudo saís-
se como nós sonhamos. A música me embala a alma,
mas aposto que nada fará alterar o nosso ritmo diário.
Será mais uma vez e amanhã mais outra e depois mais
e mais.

PATRICK
Vicente, você me ama?

VICENTE
Tenha em mente que te amo. Porque você sempre me
pergunta a mesma coisa?

74
PATRICK
Eu me sinto inseguro. Passa o lápis de sobrancelha.
Puxa vida não é justo ajudarmos a levantar o moral
desta espelunca e não termos direito a nenhuma parti-
cipação nos lucros. É sempre a mesma cantiga de gri-
lo: as despesas estão altas. Altos são o meu salto e a
minha maquiagem.

VICENTE
Faremos o show hoje. Amanhã será outro dia. Iremos
para outro lugar.

PATRICK
De jeito nenhum. Somente sairei daqui com o meu
dinheiro. Já basta de tanta humilhação.

VICENTE
Aí é que você se engana o nosso destino é ser humi-
lhado mesmo. Nós somos uma peça deste jogo infer-
nal de tentar ser alguma coisa e de fugir de todo o
sofrimento.

PATRICK
Estou bonita?

VICENTE
Você está linda.

PATRICK
Estou ou sou?

VICENTE
Como Marilyn ou como Patrick?

75
PATRICK
E você está me perguntando isso como Norma ou
como Vicente?

VICENTE
E se fosse como Norma Jean Baker?

PATRICK
Eu iria dizer que Marilyn tem muito medo de olhar de
frente para Norma.

VICENTE
Você tem medo de olhar para você?

PATRICK
Tenho, mas queria não ter esse medo. Tem momentos
que me sinto impotente diante de tudo. É algo terrí-
vel, pois eu sei o que deve ser feito,mas algo me pa-
ralisa. Eu fico estatelado olhando para o mundo das
coisas impossíveis quando tudo dependeria somente
de um sopro. Eu gosto de Marilyn porque por ela eu
me sinto forte para ser alguém com firmeza de ação.

VICENTE
Você é bela!

PATRICK
Vicente, você está dizendo isso para me agradar. Está
fugindo para não me dizer a verdade. Você não é a
minha mãe para ficar me protegendo de meus defei-
tos.

76
VICENTE
Marilyn não tinha mãe.

PATRICK
Eu sei e não estava falando da desnaturada da mãe
dela, ou da minha, que eram todas farinhas do mesmo
saco. Estava falando de você...

VICENTE
Meu querido a sua peruca está fora do lugar e temos
pouco tempo para começar o show e como você já
sabe, pouco importa quem somos, pois para ser qual-
quer coisa é preciso que os outros nos aceitem como
eles querem imaginar que somos.

PATRICK
Eu não sou ninguém. Os homens preferem as louras.

VICENTE
Onde já se viu uma loura mais acetinada?

PATRICK
E dai ? Eu sou uma mulher diferente .

VICENTE
(CORTANDO) Mulher, não!

PATRICK
(COM ORGULHO) Travesti. Marylin, a loura quentís-
sima que os homens adoram.

VICENTE
Este mundo está perdido.

77
PATRICK
Na “Boate Canto da Sereia” eu sou a mulher mais so-
licitada:um drink aqui,uma pegadinha ali,um pouco
no colo de um, em outro um beijo,um beijo e outro
beijo,uma gorjeta. E se Deus quiser vou ser famosa em
Paris.

VICENTE
Pois eu sou feliz do jeito que sou. Tenho a minha mãe,
uma casa, um trabalho que eu gosto.Tenho você, que
gosta de mim de verdade.Tenho tudo o que quero ou
quase tudo.

PATRICK
Esta na hora.

VICENTE
(VERDADEIRO) Merda para você.

PATRICK
Merda para você também.

(TRANSIÇÃO DE LUZ PARA O PLANO DO PRE-


SENTE)

VICENTE
(PARA A PLATÉIA)
O nosso show não era sobre a vida de Marilyn, que
inclusive mereceria um drama trágico, mas ainda em
vida aquele mito construído por Norma Jean Baker,
este era o nome de Marilyn, se tornara uma deusa
para este mundo do espetáculo do qual faço parte.

78
O mito da mulher fatal e da sedução sem limites. Fa-
lando assim até parece loucura, mas foi deste jeito: O
meu amigo Patrick foi cada vez mais se identifican-
do com a personagem e naquele dia depois do show
ele não retirou mais a maquiagem, nem a fantasia. Ele
saiu do show e envolveu-se com um gato lindíssimo
num carro de luxo e acabaram indo para um motel
cinco estrelas.(PAUSA) E daí ? Daí,é que a coisa ficou
nebulosa,a bicha pirou...

TRANSIÇÃO DE LUZ PARA O PLANO DA MEMÓ-


RIA NO MESMO CAMARIM.

PATRICK
Norma, queridinha… quanto tempo…

VICENTE
(RÍSPIDO) Não sou Norma.

PATRICK
Ontem consegui um bofe lindo.

VICENTE
Eu também... Um cara num carro lindo. Passou .
Olhou. Gostou. Parou. Piscou para mim.Eu pisquei
para ele. Agarrou-me e deu um beijo de desentupidor
de pia e me levou para o apartamento dele. Disse-me
que só não casava comigo, porque era marido de uma
dona rica.

PATRICK
(GRITANDO COM GROSSERIA) Então, porque é que
está aqui na Boate, na vida, não ficou rica ?

79
VICENTE
O que foi que houve,Patrick ? Eu não te conheci as-
sim.

PATRICK
Marylin...

VICENTE
Tudo bem, Marylin... O que houve?

PATRICK
Nada.

VICENTE
Nada ? Não, aconteceu alguma coisa.

PATRICK
Não perturbe, tá ?

VICENTE
Você não é deste jeito.

PATRICK
Mas tem dias…

VICENTE
Ah,minha amigo, você é lindo, mas não é mulher.

PATRICK
(CHOROSA) Não fui para o motel.

VICENTE
Não diga!…O cabrinha te deu um fora e você vem

80
dizer isso para mim que sou teu namorado?

PATRICK
Fomos barrados no motel.Uma vergonha !

VICENTE
Ora, porque? Ninguém confere o que vai dentro do
carro.

PATRICK
(SOLUÇANDO) Estou com ódio de mim mesma. Tem
acontecido tanta coisa. Sabe,Vicente,eu vim para cá
hoje somente para desanuviar a cabeça, senão eu me
mato.Eu não aceito o que fizeram comigo.

VICENTE
Você está mal.

PATRICK
(CORTANDO) Nós queríamos usar a suíte Hollywood
do motel. VIP: só para gente importante, porque eu
sou Marylin. Aí entramos no quarto, que coisa linda,
uma coisa de sonho, mas aí…

VICENTE
Mas aí o que? Não estou entendendo. Você não entrou
no motel?

PATRICK
(SUSPIRANDO) Geraldinho pediu um champanhe.

VICENTE
Só por isto vocês foram expulsos? Gostei do pessoal

81
deste motel.

PATRICK
Nós estávamos na banheira de hidromassagem…
Quando a mulherzinha do serviço especial da suíte
entrou e nos viu pelados, deu um chilique, saiu ber-
rando…

VICENTE
Mulherzinha ordinária. Era para ter jogado cianureto
de potássio na água.

PATRICK
Aí, lá vem o gerente, a segurança, a telefonista. Aque-
le papo todo de que nós não devíamos ter feito aquilo,
que ia estragar a imagem do motel.

VICENTE
Bobagem do gerente, o principal estrago é o que eu
vou fazer em você.

PATRICK
A mulherzinha já fez o maior inferno. Denunciou no
rádio. Disse que foi trabalhar no motel enganada, que
era evangélica e que não iria contra a lei de Deus. Fa-
lou que pensava que era um Hotel de luxo… mulher-
zinha burra.

VICENTE
Não sei porque esta choradeira.Veja só a minha misé-
ria: Perco o meu namorado para Marilyn e não tenho
sequer um rádio. Deve estar a maior festa na rádio
Correio. (IMITANDO O PROGRAMA DE RÁDIO)

82
Bicha é pega no flagra na suíte de Hollywood e conse-
gue desaparecer do mapa…O motel 5 estrelas é imo-
ral permitindo uma safadeza dessas. Motel é coisa de
homem”.

PATRICK
(ORGULHOSA) Ah, mas não vai ficar assim não.

VICENTE
É só usar a inteligência.Volte ao motel e não peça mais
champanhe.

PATRICK
Já tentamos, mas agora eles estão pedindo os docu-
mentos para todo mundo e a suíte só pode ser usada
por casais em lua de mel, ou casada mesmo e tem que
ser gente importante. Fazer reserva e tal . E ainda por
cima a polícia prendeu a gente.Está dando o maior es-
cândalo. Você sabe, o Geraldinho, é da sociedade…
Tinha noiva…

VICENTE
O mundo ainda tem gente decente...

PATRICK
Mas eu não vou desistir.

VICENTE
(IRONIZANDO) Existem outros motéis, outras suítes,
outros gatos…

PATRICK
Não pelo gato, mas pelo desaforo. Eu quero usar

83
aquela suíte do motel 5 estrelas custem o que custar.

VICENTE
Na próxima vida você tenta novamente.

PATRICK
Eu quero logo,antes que eu morra. Eu quero aquela
suíte de Hollywood para mim.

VICENTE
(IMITANDO O PROGRAMA DE RÁDIO) “Lindo…
Bicha encontrada morta na suíte de Hollywood”.

(VICENTE LIGA UM PEQUENO RÁDIO QUE ESTÁ


NA MESINHA DE MAQUIAGEM DE PATRICK)

(ESQUETE : PROPAGANDA DO MOTEL)


OS DOIS ATORES
Você sabe o que é melhor para você.
Imagine como a sua vida é chata,
Todos os dias a mesma coisa,
Você precisa dizer que está vivo.
Venha para a suíte Hollywood
Do Motel 05 Estrelas.
Se você não vier é porque você é um bundão.
Bundão,bundão.
Mas você é você.
Porque só você é você.
Apenas você é especial.
Ou você vem ou você é um bundão.
(FIM DA ESQUETE)

(VICENTE E PATRICK VOLTAM AOS SEUS LUGA-

84
RES)

PATRICK
(ESCANDALOSA) Bundão,não. Eu não sou bundão.

VICENTE
Calma, Patrick, é só uma propaganda.

PATRICK
Norma, eu já te disse que eu não sou mais Patrick. Eu
sou Marylin. Mas você viu? Era comigo. Eles fizeram
essa propaganda se referindo a mim.

VICENTE
Chame-me ao menos de Vicente que é o meu nome.
Imagine se eles iriam saber que você tem uma cara
de bundão.

PATRICK
Não brinca comigo que eu engrosso.

VICENTE
Propaganda de motel é para todo mundo. Eles nem
sabem que você existe.

PATRICK
Mas eu sou uma estrela e do jeito que a propaganda
fala - É diretamente comigo - Porque eu tentei usar a
suíte deles…

VICENTE
Se for olhar por este lado então toda propaganda vai
ser com você. Propaganda de café : Porque não é lou-

85
ra. Propaganda de camisinha, porque não está doente.
Propaganda de calcinha, porque não é mulher. Ah,te-
nha dó!

PATRICK
Mas eu vou lá tomar satisfações.Vou bater na cara da-
quele gerente imbecil.(SAI)

VICENTE
Vai por mim,esqueça esse motel.

(ESQUETE : POEMA DE MARYLIN)


ATOR (VICENTE)
Sempre a todo homem
Sobra aos potes e ainda se esparrama pelo chão
A imagem de um deus homem.
E apesar da carne ser tão fraca,
Todos eles por um momento são este deus.
E assim quando um travesti desfila na praça,
Não é uma menina,
Mas um deus de brinquedo.
E assim vão todas para o juízo final.
(FIM DA ESQUETE)

(TRANSIÇÃO PARA O PLANO DA MEMÓRIA. EN-


TRA PATRICK AOS CACOS CARREGANDO PEDA-
ÇOS DE UM AUTOMÓVEL.

PATRICK
Norma me acuda, eles me amassaram.

VICENTE
Machucaram você. Eu bem que te avisei, mas ainda

86
bem que você aprendeu a lição.

PATRICK
Chamaram-me de bundão. A propaganda era comigo
mesmo, mas eu vou voltar lá. Quero apenas que você
avise no rádio que eu morri, mas não desisti.

VICENTE
Deixe de loucura.Vamos tomar um porre juntos…

PATRICK
(ALUCINADA) Não. Eu sou uma loura muito doi-
da…(SAI)

TRANSIÇÃO DE LUZ PARA O PLANO DO PRE-


SENTE.

VICENTE
(PARA A PLATÉIA)
Desde aquele dia que o ar ficou pesado, muito car-
regado de energia negativa. Eu senti que algo iria
acontecer. Fiquei esperando que Patrick desse a volta
por cima. Ele não era uma pessoa comum. Era uma
estrela. Sonhava em ficar famoso. Falar francês.Tinha
todas as ferramentas de um artista de alto gabarito.
(PAUSA) Mas eu também estava no meu limite...Se é
que o amor tem um limite.

(TRANSIÇÃO DE LUZ PARA O PLANO DA ME-


MÓRIA DENTRO DE UM ÔNIBUS COLETIVO. OS
ATORES COLOCAM DUAS CADEIRAS NO BAI-
XO-DIREITO DO PALCO COMO ÚNICO ELEMEN-

87
TO CENOGRÁFICO SIMBOLIZANDO O ÔNIBUS.
VICENTE ESTÁ SENTADO NO COLETIVO, QUE
FAZ CURVAS FECHADAS E MOVE-SE DE FORMA
ESTABMARGARIDADA. O COLETIVO PÁRA. EN-
TRA PATRICK , FANTASIADO DE MADAME QUE
É SACUDIDO DE UM LADO PARA O OUTRO)

PATRICK
(FORMAL) Boa noite.

VICENTE
(SURPRESA) Patrick!…

PATRICK
Você me reconheceu ?

VICENTE
Meu amigo você é inconfundível.

PATRICK
Mas,mesmo com este ar de madame, este óculos de
velha chique, este modelo de primeira dama ?

VICENTE
Mesmo assim.

PATRICK
Não há jeito de passar pela portaria do motel. Fui
assim, bem vestida.Neste disfarce eu não podera ter
sido barrada.Eu estou finérrima, melhor que muita
mulherzinha de alta roda.Pois bem,fui impedida de
entrar e ainda ficaram gritando: bicha,bicha,bicha.

88
VICENTE
Acho melhor você desistir.

PATRICK
Não, nunca irei desistir.Vou até o fim.Eu quero usar
aquela suíte de Hollywood, nem que eu tenha que me
casar.

VICENTE
Seria muito engraçado.Convide-me para ser o padri-
nho.

PATRICK
(INSIGHT) É uma idéia, não é ? Vou me casar e passar
a lua de mel na suíte.

VICENTE
Patrick, eu hoje estou um caco..Amanhã a gente se vê.
Não se esqueça de me convidar para o casamento.

PATRICK
Claro,você é a meu melhor amigo. Casamento…É isto
mesmo!

VICENTE
Te cuida Patrick. Esquece este motel. Vou descer.
(SAI)

PATRICK
(CONVENCIDO) Eu sou assim. Não sei desistir tão
facilmente das coisas que eu quero. (SAI)

89
(TRANSIÇÃO DE LUZ PARA O PLANO DO PRE-
SENTE)

VICENTE
(PARA A PLATÉIA) Até parece um pouco ridículo,
mas eu entrei no jogo de Patrick e ele me convenceu
que eu deveria me casar com ele num casamento fictí-
cio no qual eu seria John Kennedy e ele Marilyn Mon-
roe.Eu não sabia o que fazer, pois o meu grande ami-
go que amava tanto estava enlouquecendo e eu pensei
que não custaria nada participar um pouco até para
criar as condições para que ele voltasse à realidade.
Fiquei tonto e agia como uma criança brincando de
faz de conta e mesmo sabendo que tudo era uma fan-
tasia, embarquei no sonho de casar de véu e grinalda
com Marylin.

TRANSIÇÃO DE LUZ PARA O PLANO DA MEMÓ-


RIA. PATRICK, QUE ESTÁ SENTADO NUMA CA-
DEIRA LOCALIZADA NO BAIXO-ESQUERDO DO
PALCO, COSTURANDO O SEU VESTIDO DE NOI-
VA COM RETALHOS.ENTRA VICENTE.

PATRICK
Boa noite, Jonh.

VICENTE
Patrick!

PATRICK
Por favor, não me chame mais assim. Agora eu sou

90
Marilyn e noivo de Jonh.

VICENTE
Desculpe querida, eu esqueci.

PATRICK
Não importa o passado. O que o passado tem a nos
oferecer a não ser sofrimento e humilhação? Eu quero
é você amor de minha vida.

VICENTE
Como você está diferente… (IA DIZER PATRICK)…
Marilyn. Você me ama mesmo?

PATRICK
Eu te amo, meu amor, com todas as letras e acentos. O
meu amor por ti é maior que o ponto de interrogação.

VICENTE
Eu sempre quis me apaixonar. Ter uma família. Você
quer mesmo se casar comigo?

PATRICK
Eu sou uma mulher de palavra.

VICENTE
Então me beija.

PATRICK
(BEIJANDO E DESMAIANDO) Aiiiiiiiiiiiiii…

VICENTE
Meu deus, acho que foi demais para a resistência dele.

91
Patrick, querido, acorde que foi só um susto.

PATRICK
(VOLTANDO A SI MUITO MANHOSA) O que acon-
teceu?

VICENTE
Nada de tão sério,você apenas me beijou.

PATRICK
(PREOCUPADÍSSIMA) Alguém viu o nosso beijo?

VICENTE
Não, ninguém viu. Desista do casamento. Eu acho
que isto está passando dos limites da sanidade. Eu era
o seu noivo, lembra?

PATRICK
Não, desistir não. Eu beijo de novo, mas eu não sou
uma mulher leviana.

VICENTE
Estou esperando

(PATRICK DÁ UM BEIJO RÁPIDO)

PATRICK
Preciso ir falar com a imprensa.(SAI)

(TRANSIÇÃO DE LUZ PARA O PLANO DO PRE-


SENTE )

92
VICENTE
(PARA A PLATÉIA)
O que aconteceu depois ? Bem, depois nós começa-
mos firmes, devagar, de grão em grão, um abraço
apertado, andar de mãos dadas, ir para o cinema, es-
sas coisas de namorado.Eu me apaixonei por este jogo
perigoso de brincar com a fantasia.

(TRANSIÇÃO DE LUZ PARA O PLANO DA MEMÓ-


RIA NA PRAIA NUM DIA MUITO MOVIMENTA-
DO. OS ATORES ESTÃO SENTADOS NO CHÃO NO
CENTRO-BAIXO DO PALCO)

PATRICK
Você tem cócegas ?
(FAZ CÓCEGAS EM VICENTE)

VICENTE
Não faça isso que eu me arrepio todo.

PATRICK
(PUXANDO A ORELHA DE VICENTE) Cuidado
com a compostura.Você é um presidente.
VICENTE

(RECOMPONDO-SE) Eu vou conseguir. Eu vou con-


seguir.

PATRICK
Jonh você precisa sentir ciúmes e mim. Os homens
passam por mim, dão em cima de mim e você nada…

93
Você precisa ficar furioso, me empurrar, me bater, di-
zer que eu estou mentindo, dizer que me ama. Assim
eu vou sentir que tenho um homem.

VICENTE
Mas eu confio em você.

PATRICK
Você nunca teve ciúmes?

VICENTE
Já, mas é que é diferente…

PATRICK
Me abraça (ABRAÇO)…Com mais força(ABRAÇO
AINDA TÍMIDO)…Ah, não. Assim não dá.

VICENTE
Mas eu não sei abraçar desse jeito que você quer.

PATRICK
Não tem problema . Eu ensino.Vamos fazer uma cena
de cinema.
(ARMA A CENA)
Um dia, eu estou aqui na praia conversando com um
admirador. Aí, você chega e me pega no flagra. Agora
vá até ali.
(VICENTE SAI)
Agora eu estou com aquele homem…Pronto, ação,
pode vir.

VICENTE
(VOLTANDO MAGNÍFICO) Oi, tudo bem ? Que sol

94
gostoso ! Não vai me apresentar ao gato?

PATRICK
(GRITANDO IRRITADA) Errado.Volta e repete.

VICENTE
Desculpe, eu me distrai.(SAI)

PATRICK
Presta muita atenção. Pode vir.

(VICENTE ENTRA E FICA HORRORIZADO COM O


QUE VÊ)

VICENTE
(AMANTE LATINO TRAÍDO) Te peguei no flagran-
te, sua perua desclassificada, me traindo com um bofe
lindo desse. Sua ordinária, rachada, pegando homem
em plena luz do dia.(CISCANDO) Galinha, se eu lhe
pegar me traindo eu me mato. (PAUSA) Gostou ?

PATRICK
Eu estou com medo. O casamento é amanhã.

VICENTE
Falta pouco.

PATRICK
Vicente, por favor…

VICENTE
Quero que de agora em diante me chame de Jonh...
(PAUSA) Kennedy

95
(TRANSIÇÃO DE LUZ PARA O PLANO DA ME-
MÓRIA DO DIA DO CASAMENTO. OUVE-SE A
VOZ DO MAGISTRADO. RAIOS E TROVÕES)

VOZ DO JUIZ
Jonh , aceita Marilyn como a sua legítima esposa, para
o que der e vier, na alegria e na tristeza, aberta ou fe-
chada, de dia ou de noite, eternamente, até que a mor-
te os separe?

PATRICK
(CUTUCANDO VICENTE) Diz que sim homem.

VICENTE
Sim.

PATRICK
É a emoção. Continue.

VICENTE
Isto é loucura.

PATRICK
Mais vale um instante de loucura do que qualquer ra-
zão para justificar o sofrimento. Não faça um vexame
aqui, por favor.

VOZ DO JUIZ
Marilyn, aceita Jonh, do jeito que está, como o seu le-
gítimo esposo, para o que der e vier, na alegria e na
tristeza, em cima ou embaixo, de dia ou de noite, eter-
namente, até que a morte os separe?

96
PATRICK
sim,sim,sim.

VICENTE
(ARREPENDIDO) Queridinha,que tal se a gente fizes-
se um novo pacto ?

PATRICK
Meu amor!

VICENTE
Eu estou paralisado.

PATRICK
É a emoção. Beija-me.

VICENTE
Vamos deixar as formalidades para depois…

PATRICK
Não, tem que ser agora. Pense na suíte de Hollywood
do Motel Cinco Estrelas.

(VICENTE BEIJA PATRICK E DESMAIA LEN-


TAMENTE EM SEUS BRAÇOS. TRANSIÇÃO DE
LUZ PARA O PLANO DA MEMÓRIA NA SUITE
HOLLYWOOD DO MOTEL 5 ESTRELAS)

VICENTE
Enfim sozinhos. (PAUSA) Que beleza de quarto.

PATRICK
Não lhe disse que era lindo.

97
VICENTE
Ah, mas eu fazia uma idéia mais simples.Isto aqui
não existe.É um sonho de Cinderela.

PATRICK
(COM MUITO ORGULHO) É a minha suíte Jonh.
(PAUSA) Venci.

VICENTE
Vamos pedir champanhe.

PATRICK
Não,champanhe não,que dá azar.

PATRICK
Mas para mim deu sorte.Eu quero champanhe.

VICENTE
Bem, já que estamos todos felizes, vamos tomar vinho
espumante e doce.

(EXPLODE UMA MÚSICA PASSIONAL, QUE PO-


DERIA ATÉ SER UM TANGO ARGENTINO.DAN-
ÇAM ROMANTICAMENTE E PROSSEGUINDO
PATRICK PRINCIPIA A TIRAR A ROUPA NUMA
SEQÜÊNCIA DE STREAP-TEASE. VICENTE SAI.
PATRICK CONTINUA A TIRAR A ROUPA ATÉ FI-
CAR MINIMAMENTE DESPIDO. VICENTE VOL-
TA)

VICENTE
O vinho…O vinho chegou. Cadê Marilyn?

98
PATRICK
Marilyn? Apague a luz, Vicente, por favor.

VICENTE
(GRITA) Eu não posso !

PATRICK
Como não pode?

VICENTE
Fica por aqui. Acabou o nosso casamento.

(TRANSIÇÃO RÁPIDA DE LUZ. ACENDE-SE UM


FOCO NO PROSCÊNIO-DIREITO AMBIENTANDO
O PLANO UMA CASA DE SHOW )

VICENTE
(PARA A PLATÉIA) Não sei não, mas essa vida de
teatro enche o saco. (PAUSA) E como se não bastasse
ainda fui acusado de assassinato. Não matei ninguém,
somente a Marilyn, mas ela era uma personagem. É
uma grande injustiça ser acusado por um crime que
eu não cometi. Então cadê o corpo, sim por que aquele
outro que disseram que era o corpo dele estava com-
pletamente desmanchado. Só porque fui vista com
Patrick no motel? Agora vocês precisam saber que
a mãe dele nunca aprovou o nosso relacionamento,
nem reconheceu o corpo dele, foi logo desmaiando.

(ENTRA PATRICK)

99
PATRICK
Visita!Tudo bem gata?

VICENTE
Patrick ! Você está viva. Desculpe, quis dizer Marilyn.

PATRICK
Meu amor, sou eu que te devo desculpas pelas mi-
nhas asneiras, pois eu te ofendi quando não percebi
a tua dedicação e na minha loucura somente queria
enxergar a mim mesmo.

VICENTE
Você sabe que eu nunca deixei de te amar...

PATRICK
Somente depois que o tempo passa e a gente fica sozi-
nho, é que a gente percebe o quanto se perde quando
não se sabe receber a dádiva do amor.

VICENTE
Mas mesmo com o meu coração partido eu soube
guardar os nossos melhores momentos como as se-
mentes do perdão, que veio depois que os momentos
mais difíceis passaram.

PATRICK
Eu quero que você me aceite de volta.

VICENTE
Eu nunca deixei de te amar, Patrick ou Marilyn, os
dois...

100
PATRICK
Tudo bem, a Marilyn já resolveu os seus problemas
com a Norma Jean Baker. Soube que você estava sen-
do acusado de minha morte e vim te salvar. Vamos
retomar o noso show, Vicente e Patrick.

VICENTE
Você está lindérrima.

PATRICK
Agora eu sou estrela em Paris e quero que você venha
comigo para continuarmos o nosso sonho juntos, Pa-
trick e Vicente.

VICENTE
Mas eu nem sei falar francês.

PATRICK
Francês é muito fácil. É somente: Uí, nom , merci. O
resto a gente embola.

VICENTE
Seremos felizes para sempre.

FIM

101
CITAÇÃO INTERCAPITULO

102
ESTÁ TUDO CERTO, MAMÃE?

(PARA UM ATOR , UMA ATRIZ E UMA CADEIRA)

Personagens:
Elizabeth
Arthur

1 - A INTERVENÇÃO INICIAL

( ENTRAM PELA PLATÉIA, VÃO ATÉ AS MESAS,


IDENTIFICAM OS AMIGOS, CONVERSAM, SÃO
AMISTOSOS SUAVES, FLUTUANTES, RIEM, FA-
ZEM CHISTE, FLERTAM COM QUEM LHES INTE-
RESSE. DIVERTEM O PÚBLICO COM A SUA SIM-
PLES PRESENÇA )

( NO MOMENTO APROPRIADO A ATRIZ TOMA


O CENTRO DO ESPAÇO CÊNICO ONDE HÁ UMA
CADEIRA )

ELIZABETH
Senhoras e senhores, meninos e meninas, vampiros e
demais duendes presentes a este espetáculo...

2 - NA CASA DOS PAIS DE ELIZABETH

ELIZABETE
Artur,Artur, você veio !

103
ARTUR
O que é que está se passando Elizabeth ?

ELIZABETE
Eu estava estourando de saudade!

ARTUR
Não mude de assunto.

ELIZABETE
Estava sedenta de amor.

ARTUR
Elizabeth, eu não sou tolo !

ELIZABETE
Como você me faz bem... Tenho uma novidade para
você.

ARTUR
O seu telefone está quebrado?

ELIZABETE
Liguei para você o dia todo...

ARTUR
Mentira!

ELIZABETE
Artur, meu querido, vou sair de casa... Vamos morar
juntos?

104
3 - A MOSCA FOGE DA TEIA

( ELIZABETE SUSPENDE A CADEIRA E CAMI-


NHA PARA FRENTE ATÉ UMA DISTÂNCIA RA-
ZOÁVEL)

ARTUR
Elizabeth, não vá.

ELIZABETE
Eu vou. Você vem?

ARTUR
Não, eu não vou. Que loucura l Você está querendo
provar o que? Já não basta essa sua maneira ridícula
de se vestir. Já não basta...

ELIZABETE
Artur... Vem...

( ARTUR CAMINHA ATÉ ELIZABETE)

ARTUR
Elizabeth, pelo amor de deus, por mim, pelo nosso
amor, volte.

ELIZABETE
Deixe de bobagem, menino. Sei cuidar de mim.

ARTUR
Não sabe não.

105
ELIZABETE
Vou morar com uma amiga. Uma casa com dois quar-
tos, sala, cozinha, banheiro e um quintalzinho lindo.
Vamos dividir o aluguel.

ARTUR
Você não tem emprego. Como espera conseguir di-
nheiro?

ELIZABETE
Tenho um emprego sim, e você sabe que a grana dá.

ARTUR
Professora! Isso é lá emprego.

ELIZABETE
Preciso estar livre. Crescer sozinha. Quer o que você
fique comigo. Sem você...

ARTUR
Pois eu não vou e tem mais: Escolha entre o nosso
amor ou esta fuga ridícula.

ELIZABETE
Mas não e uma fuga ridícula.

ARTUR
É ridícula, mesquinha, aventureira, egoísta...

ELIZABETE
Egoísta?

106
ARTUR
Você só está pensando em si mesma. Está pouco ligan-
do para o sofrimento que está causando a seus pais e
irmãos, amigos... Abandonou a decência em troca de
nada. Acho até que eles têm razão; você está com
problemas sérios. Deixe-me ajudá-la.

ELIZABETE
Qual é a tua Artur... Parece um velho. Não estou ma-
luca. Estou lúcida. Preciso sair desta teia antes que ela
me sufoque... Vamos?

ARTUR
Espere. Pedi que escolhesse entre o nosso amor ou
esta atitude ridícula de sair de casa.

ELIZABETE
Tem alternativa?

ARTUR
Não.

ELIZABETE
Então, escolho a atitude ridícula.

4 - ALGUM TEMPO DEPOIS

ARTUR
Quem sou eu? Artur! Gostaria de preveni-los. Artur
é um homem como outro qualquer, um rapaz normal
que ama Elizabete, que quer casar-se,ter filhos e uma
vida conjugal dentro da normalidade. Não se trata de

107
uma postura reacionária querer que a sua namorada
comporte-se como uma pessoa decente. ( PAUSA ) Se
ela quiser casar-se comigo terá que me pedir descul-
pas.
(VAI ATÉ ELIZABETE)
Elizabete, onde estava você. Te procurei tanto.

ELIZABETE
Artur !

ARTUR
Você está bem?

ELIZABETE
Estou.

ARTUR
Estava com saudades de você.

ELIZABETE
Eu senti a tua falta.

ARTUR
Elizabete.

ELIZABETE
Artur!

( ABRAÇAM-SE )

ARTUR
Eu soube que você está com namorado. Ele é punk?

108
ELIZABETE
Estava. Já acabou.

ARTUR
Ah, sim... Volte para mim.

ELIZABETE
Eu nunca deixei você.

ARTUR
Eu já vou...

ELIZABETE
Quando é que você vem me ver?

ARTUR
Sempre.

(POLARIZAM-SE OPOSTAMENTE EM RELA-


ÇÃO AO ESPAÇO CÊNICO / CORTES / PLANOS
DISJUNTOS / CENA DE ENVOLVIMENTO COM O
PÚBLICO / CUTUCAR A ONÇA COM VARA CUR-
TA)

5. OUTRO DIA

(ELIZABETE VAI PARA A CADEIRA NO CENTRO


DO ESPAÇO CÊNICO)

ARTUR
( IRADO ) Porra, onde estava você? Está pensando
que eu sou otário? Ficamos te esperando à toa...

109
ELIZABETE
Eu disse que não ia.

ARTUR
Qual é, Elizabete? Está querendo me desmoralizar?
Era somente um jantar. Ninguém ia te arrancar ne-
nhum pedaço.

ELIZABETE
Adoro trepar contigo!

ARTUR
( GRITA HISTÉRICO ) Eu estou falando sério porra!

ELIZABETE
Paz!

ARTUR
A que ponto você chegou!

ELIZABETE
Calma, menino!

ARTUR
Passei a noite te procurando. Te procurei aqui nesta
merda.Onde você passou a noite?

ELIZABETE
Ah,já sei... Você gosta de armar tragédias. Eu sei...

ARTUR
Sabe o quê?

110
ELIZABETE
Você está com ciúmes.

ARTUR
Eu? Você não sabe o que está falando. Quero apenas
saber onde você passou a noite.

ELIZABETE
Saí com uns amigos e amigas...

ARTUR
Onde?

ELIZABETE
Puxa vida, passei a noite nos barzinhos da praia.

ARTUR
Você sempre me faz rastejar como um verme, aos seus
pés, mas eu sou um homem, Elizabete, e já estou che-
gando ao meu limite.

ELIZABETE
Você está tremendo de ciúmes. Admita que está fe-
rido em seu orgulha de macho.Admita que está com
ciúmes de mim. Cochiche aqui, vem,diz que está com
ciúmes.

ARTUR
Não estou com ciúmes Elizabeth.

ELIZABETE
Explodem os meus olhos vermelhos e caminho em di-
reção a você como uma cobra que serpenteia, joga a

111
língua para o ar e arma o bote.

(ELIZABETE CAMINHA EM DIREÇÃO A ARTUR)

ARTUR
(ASSUSTADO) Mandrake! Fique congelada, não faça
qualquer movimento.

(ELIZABETE FICA PARALIZADA)

6 . CREDO PROGRESSISTA

( ARTUR DIRIGE-SE AO PÚBLICO)

ARTUR
Poema de Glauco Matoso publicado no Jornal Dobra-
bil: “Creio em Deus pátria, Plenipotenciário, Criador
do espaço aéreo e das águas territoriais, do mal e do
bem, do visível e do invisível, E em Creso justo, seu
único filho, nosso senhor feudal, que é filho proce-
dente de pai, peixinho de peixe, nadador de natação,
sangue do húmus. O qual foi concebido do espírito
das leis, nasceu da mata virgem, padeceu sob o poder
moderador, foi seviciado, chacinado e seu cadáver
abandonado em local ermo, Desceu ao proletariado,
ao terceiro dia de trabalho ressurgiu dos pobres se-
gundo as escrituras definitivas de compra e venda
devidamente inscritas no cartório de registro de imó-
veis da capital; Subiu ao planalto, está sentado à mão
direitista de deus pátria, donde há de vir e julgar os
ricos e os pobres e o seu império não terá fim. Creio
no espírito das leis. Na santa aliança, no santo ofício,

112
na família, na propriedade e na traição, digo tradição,
na mancomunação, perdão, na comunhão dos santos
cassados, na cassação dos mandatos, na ressurreição
da carne de primeira e na puxa vida eterna, amém.”

( ARTUR BEBE UM POUCO D’ÁGUA,OU DE CER-


VEJA OU DE ETC. ENXUGA O ROSTO. ENRIJECE A
MUSCULATURA)

ARTUR
Voltemos ao drama.
(ESTALA OS DEDOS. ELIZABETE DESCONGELA
LENTAMENTE)
Eu suporto, isso, porque apesar de tudo eu te amo
muito, ma s de agora em diante...

ELIZABETE
Mandrake
( ARTUR FICA PARALIZADO )
(IRÔNICA) Eu morro de paixão...
( ELA CAMINHA ATÉ ARTUR, RETIRA DE SUA
ROUPA O AR FORMAL, COM A GRAVATA PREN-
DE-LHE UMA FITA NA TESTA, AMARRA-LHE A
CAMISA À ALTURA DO PEITO COMO UM BUS-
TIÊ, DESABOTOA-LHE A CALÇA, FAZENDO UM
DECOTE SEXY ABAIXO DO IMBIGO, ERGUE-LHE
A MÃO DIREITA ESPALMADA )
(DIRIGE-SE AO PÚBLICO) Todos os homens, por fa-
vor, ergam o braço direito. É o que basta ( GRITA )
Pimba!
(EXPLODE UMA MÚSICA EM PLAYBACK QUE
ARTUR DUBLA E DANÇA)

113
7 - O ENFORCADO

(ARTUR ESTÁ AO LADO DE ELIZABETE QUE


ESTÁ SENTADA NA CADEIRA. ELA ESTALA OS
DEDOS)

(ARTUR VOLTA A SI LENTAMENTE)

ARTUR
(DESCONGELANDO LENTAMENTE ) Você me sur-
preende fazendo essas coisas.

ELIZABETE
A fantasia dói mais, não é? Não precisa se justificar.

ARTUR
Não.

(AFASTA-SE PARA OUTRA EXTREMIDADE)

ELIZABETE
Não quero que você fique vigiando os meus passos.
Não quero lhe dar explicações, nem quero esperar
que você mude. Cada um com a sua vida...

ARTUR
Vida de bosta. Por que será que não consigo me se-
parar de ti?

ELIZABETE
Porque eu sou o seu único abismo. Você para mim
não tem segredos.

114
ARTUR
Eu tenho ciúmes, sim.
( ELIZABETE CAMINHA ATÉ ELE E ABRAÇA-O )
Morro de ciúmes e me tortura ver você me abandonar
como se eu fosse uma mobília estragada e ao mesmo
tempo ficar por aí, se beijando com esses aproveita
dores. Eles não querem nada contigo. Eu quero me
casar...

ELIZABETE
Pare com esse papo.

ARTUR
Preciso falar.

ELIZABETE
Que merda!

ARTUR
Eu fico puto com essa sua maneira de agir. Não aguen-
to mais, porra, me deixa em paz.

(ARTUR VAI ATÉ A CADEIRA E DEBRUÇA-SE SO-


BRE O ENCOSTO, DEIXANDO A CABEÇA CAIR
SUAVEMENTE SOBRE O ASSENTO. O SEU CORPO
FORMA O DESENHO DE UM SEMICÍRCULO)
(ELIZABETE VAI ATÉ ARTUR. INICIA A TOCAR-
-LHE O CORPO SUAVEMENTE INICIANDO PELOS
PÉS, O TENDÃO DE AQUILES, O JOELHO, A COXA,
A CINTURA. ESPALMA AS MÃOS PELO SEXO DE
ARTUR EXCITANTO-O. CONTINUA A MASSA-
GEA-LO, O PEITO, AS COSTAS, ENTÃO COMO SE
FÔSSE MONTAR PELA GARUPA DE UM CAVALO,

115
PÕE AS PERNAS SOBRE O QUADRIL DELE E CO-
BRE-LHE O CORPO. DEPOIS APOIANDO-SE NA
CADEIRA MONTA NELE ATÉ QUE OS SEUS COR-
POS FIQUEM COLADOS)

ELIZABETE
O que é que há Artur?

ARTUR
Nada.

ELIZABETE
Te conheço.Tem alguma coisa te machucando, o que
é ? Fala logo.

ARTUR
Não sei como falar.

ELIZABETE
Ah, Artur, deixe de complicação. É comigo? Tem al-
guém doente em tua casa? Algum desastre?

ARTUR
Não.

ELIZABETE
Então deixe de suspense. Se eu puder ajudar, farei
tudo o que for possível. Tudo! Tudo! Beija-me (TEN-
TA BEIJAR-LHE )

ARTUR
( RETIRANDO O ROSTO ) Elizabete!

116
ELIZABETE
Qual é, esta com nojo de mim?

ARTUR
Você me ama?

ELIZABETE
Muito.

ARTUR
Somente a mim?

ELIZABETE
Totalmente.

ARTUR
Então volte para a casa de seus pais. Aqui não é se-
guro. Você vive no meio do mundo, perto de pessoas
sem... Tendo uma vida desregrada. A pobre de sua
mãe, o seu pai, estão todos muito machucados. Aqui,
você está exposta a muitos perigos sem ninguém para
te defender...

ELIZABETE
Mas defender o que?

ARTUR
A honra. Eu me sinto responsável pela sua honra.

ELIZABETE
Que saco !

117
ARTUR
Um dia o arrependimento virá.

ELIZABETE
(FICA DE PÉ SOBRA A CADEIRA)
Não vou me arrepender

ARTUR
Vai. Quando o seu mundo cair na lama.

ELIZABETE
Garotão covarde.

ARTUR
Na lama você já está e a única pessoa que pode lhe
salvar sou eu.

ELIZABETE
Por quê? Está pensando que o fato de trepar comigo
lhe dá algum direito sobre a minha vida?

ARTUR
Porque eu te amo.

ELIZABETE
Que coisa mais doentia, meu Deus!

ARTUR
Você era virgem quando fez amor comigo.

ELIZABETE
Adeus, Artur, vá embora.

118
ARTUR
( GRITA, ) Virgem. Eu me sinto responsável.

ELIZABETE
Deixe de bobagem. Você não foi o único.

8 - CAINDO DA CASA DE DEUS

(ARTUR SAI DA POSIÇÃO QUE OCUPAVA ES-


GUEIRANDO-SE ENTRE AS PERNAS DE ELIZABE-
TE QUE PERMANECE DE PÉ SOBRE A CADEIRA.
ELE PUXA OS CABELOS DELA COM VIOLÊNCIA)

ARTUR
Não fui o único?

ELIZABETE
( SENTINDO DOR ) Artur!

ARTUR
Com quem você dormiu esta noite?

ELIZABETE
Isto é o fim, Artur.

ARTUR
Com quem?

ELIZABETE
Basta. Acabou. Vá embora.

119
ARTUR
Pelo amor de deus... Senão eu te arrebento.

ELIZABETE
De que adiantaria?

ARTUR
É um chiste. Você está caçoando de mim.

ELIZABETE
(SENTINDO DOR) Ai... Não estou. É verdade. Eu não
iria mentir para você.

ARTUR
(MAIS VIOLENTO ) Elizabeth!

ELIZABETE
( MAIS DOR ) Ai... É brincadeira. Desculpe!

ARTUR
Eu sei que é verdade.

ELIZABETE
Por que a idiotice? Sou uma mulher livre.

ARTUR
Quem foi?

ELIZABETE
Não sei.

ARTUR
Foi aquele punk?

120
ELIZABETE
Ele é como outro qualquer.

ARTUR
Você quer me destruir, mas eu vou matar os dois.

ELIZABETE
Porra, eu transei sim, e dai, vai me matar?

ARTUR
Não posso te matar, demônio.

(AFASTA-SE. PROCURA ALGO PARA BEBER EN-


QUANTO ELIZABETE COM O OLHAR ACOMPA-
NHA-O COM ATENÇÃO)

ELIZABETE
O mundo mudou...

ARTUR
Estou com a alma em pedaços.

ELIZABETE
Artur... Bobagem !

ARTUR
O meu sangue chacoalha e o meu coração se espreme
de dor. Você não compreende o que eu estou sentin-
do.

ELIZABETE
Compreendo até demais!

121
ARTUR
Por isso que as pessoas me olham com um olhar es-
tranho, corno se eu fosse um bicho e não um homem.
Não posso encarar os olhos das pessoas. Veja, Eliza-
bete, todas as pessoas me olham como se eu fosse um
homem pela metade.

ELIZABETE
Se somente você fosse assim, eu diria que você está
muito doente. O nosso primeiro compromisso é com
a liberdade.

ARTUR
E a família? Devassa...

ELIZABETE
Ha outras maneiras...

ARTUR
( COM UM GOPO DE BEBIDA NA MÃO CAMINHA
ATÉ ELIZABETE QUE ESTÁ FIXA NO HORIZON
TE )
Adúltera...
( BEBE UM GOLE )...
Olhe para o farrapo humano.
( ELA PERMANECE IMPASSÍVEL )
Não se envergonhe...
( GRITA ) Olhe para mim.
( ELIZABETE OLHA-O / ARTUR JOGA-LHE A BE-
BIDA NA CARA / ELA VIRA O ROSTO/A BEBIDA
ESCORRE/VOLTA-SE LENTAMENTE / PERMA-
NECEM PARADOS /ELA BATE-LHE VIOLENTA-
MENTE NO ROSTO)

122
( COM UM GRITO GUTURAL ) Quando os abutres
sobrevoam os campos é porque lá tem carne podre.
Você está podre. Os tempos irão melhorar. O que é
velho irá ficar novo e o que é novo está podre.

ELIZABETH
Os velhos não ficam novos. Ou se tornam transparen-
tes como a vida e renascem, ou permanecem como pe-
dras no caminho interrompendo a correnteza.

ARTUR
O nosso amor fede.

ELIZABETH
É o seu nariz meu bem.

ARTUR
O país encontrará seus caminhos. Apesar dos pro-
blemas é preciso acreditar no futuro. Fazer sacrifícios.
Pensar com grandeza de alma e patriotismo. Estes
tempos são apenas uma transição. O que è o deses-
pero? Porque saem de suas casas, renegam a família,
seus valor... Por que Elizabeth me martiriza? Por que
se prostitui? Que heroísmo há em ser uma leviana que
qualquer um compra com urna cerveja?

9 - A FRATURA EXPOSTA

ELIZABETH
Vá embora daqui!

123
ARTUR
A verdade machuca...

ELIZABETH
Desapareça daqui, já.

ARTUR
O céu está limpo. O sol brilha e queima a minha face.
A mulher que eu amo não é minha. É de todos.

ELIZABETH
Pare com isso.

ARTUR
Como você quer que eu suporte isso?

ELIZABETH
Você não me ama Artur.

ARTUR
Amo sim, desesperadamente.

ELIZABETE
Você apenas tem necessidade de mim.

ARTUR
Como um louco.
( SENTA-SE AOS PÉS DE ELIZABETE)
Tenho medo. Quando éramos menores fazíamos juras
de amor. Fomos as crianças mais bem casadas deste
mundo, lembra?

124
ELIZABETE
( ACARICIANDO-LHE OS CABELOS )
Sim. Nunca me esquecerei do seu jeito empertigado
imitando o seu avô. Você não gostava de seu pai. Ti-
nha horror a ele, mas quando ele morreu, eu me lem-
bro de você num canto de parede, prendendo o choro
a as lágrimas descendo no rosto endurecido.
( PAUSA ) No que está pensando?

ARTUR
Em minha mãe?

ELIZABETE
Velha chata!

ARTUR
Não fale assim!

ELIZABETE
Foi ela quem te estragou com essas...

ARTUR
Princípios morais.

ELIZABETE
Não me venha com princípios morais.

ARTUR
E os seus pais?

ELIZABETE
O que é que tem os meus pais?

125
ARTUR
Você tem a quem puxar. É o mesmo sangue.

ELIZABETE
Imbecil.

ARTUR
Por favor, desculpe-me, estou nervoso. Volte comigo.
Eu prometi. Ficaram todos te esperando.

ELIZABETE
( GRITANDO ) Caralho! Hipócrita!

ARTUR
O que vou dizer?

ELIZABETE
Nada.

ARTUR
Você nunca me amou.

ELIZABETE
Eu sempre te adorei, ma s não posso ficar te esperan-
do. Nós mudamos muito.

ARTUR
Você sempre faz o que vem na veneta.

ELIZABETE
Meu amor. . .

126
ARTUR
Não diga nada. Você vem?

ELIZABETE
Não.

ARTUR
Eu vou embora. ( SAI )

10 - A ANGUSTIANTE FECALIDADE

ELIZABETE
(ELA DESCE DA CADEIRA. PROCURA ALGO
PARA BEBER)
Foi o pesadelo que passou... Calma.

ARTUR
( ENTRA ALUCINADO )
Por Deus e por todos os demônios não posso ir sem
você. É tudo tão simples.

ELIZABETE
Vade retro, menino. O que passou o tatu já comeu.
(ELE SAI )
Águas passadas. Desgraça. Xô, barata. Xô, escorpiões
e lagartas. Xô, tristeza. Xô, viúva negra. Xô.

ARTUR
( VOLTANDO ) Porque você me massacra desse jeito.
Por favor, volte para casa.Eu disse que você voltaria
comigo... Pense neles Elizabeth. Eles estão te esperan-
do.

127
ELIZABETE
Porque eles não vêm até aqui?

ARTUR
Orgulho bobo.

ELIZABETE
Eu também sou orgulhosa, mas nem por isso vou dei-
xar de ir visitá-los desde que me aceitem como eu sou.
Minha casa é aqui.

ARTUR
A humilhação ainda não bastou, eu me ajoelho.

ELIZABETE
Não precisa... Diga-lhes que estou bem.

ARTUR
Por Deus, juro que você irá se arrepender. ( SAI )

ELIZABETE
Artur, Artur, apesar da nóia gosto de você.

(ELIZABETE SE RETIRA ENQUANTO ARTUR RE-


TORNA E PROSSEGUE PELA PLATEIA CONVER-
SANDO, SENDO AGRADÁVEL, TORNANDO COM
A SUA PRESENÇA O AMBIENTE MAIS FESTIVO)

11- UM VELHO BOLERO

ELIZABETE
Caríssima platéia? Vou lhes ensinar como se faz um

128
cigarro de boa palha. Cultura popular não faz mal
a ninguém. Primeiro compra- s e o fumo, que deve
ter pouca palha. Faz-se a limpeza e coloca-se numa
seda. Assim, com um pouco de habilidade, enrola- se
cuidadosamente o finório, apertando-o com um pen-
te ou com a carteira de identidade, ou então com as
unhas do polegar. Fecha-se e coloca-se por inteiro na
boca para dar mais consistência. Então torce-se a pon-
ta frontal e dá-se unia lambidinha no traseiro. Basta
pronto o ralf, a bolacha, a coisa... Agora fogo... Não
desperdicem a fumaça.
( COM A VOZ SUFOCADA ) Agora é sonhar e curtir
o barato.
( O AMBIENTE É TOMADO POR MUITA FUMAÇA)
(ENTRA ARTUR)
Artur, como você está lindo. É você Artur? Ou é um
demônio?

ARTUR
Sim, sou eu.

ELIZABETE
Que saudade, menino, eu te amo tanto.

ARTUR
Elizabete, eu quero te pedir desculpas. Fui grosseiro
com você. Eu não tenho a coragem que você teve de
sair de casa, de agir por conta própria.

ELIZABETE
Eu também preciso vencer o medo, a solidão. Quanta
estrela. Que noite linda!

129
ARTUR
Eu sou louco por ti. Apesar dos conflitos? você é a úni-
ca parte viva de mim.

ELIZABETE
Você quer? Vem me abraça.

ARTUR
( DÁ UM TRAGO E SE ENGASGA )
Não quero mais que você volte para a casa de seus
pais. Quero você esteja onde estiver

ELIZABETE
( ELA APAGA O CIGARRO )
Vem morar comigo.

ARTUR
Não posso.

ELIZABETE
Tolice. . .Claro que pode,

ARTUR
Não estou preparado para sair de casa.

ELIZABETE
Tudo bem... Temos tempo.

ARTUR
Estou com sede...

ELIZABETE
Bebe aqui o suor da minha pele. Amacia a minha face

130
como se fosse jambo.

ARTUR
( TOCA A LÍNGUA NO ROSTO DELA ) Doce e sal-
gado.

ELIZABETE
Ah, meu amigo, porque não veio antes.

ARTUR
Tive medo.

ELIZABETE
Sonhei contigo,

ARTUR
( LAMBE A PALMA DA MÃO DELA )
Elizabeth!

ELIZABETE
Preciso tanto de você.

ARTUR
O teu corpo, cabelos, olhos. Fazer amor como se fosse
a primeira vez.

ELIZABETE
Impossível, repetir a primeira vez.

ARTUR
Querida, eu não tenho vergonha mesmo. Amo-te de-
sesperadamente.

131
ELIZABETE
Na serra das confusões diz o poeta H. Dobal que
“quem ama não tem vergonha”.

ARTUR
Teus seios.
( ABOCANHA-LHE OS SEIOS )

ELIZABETE
Selvagem...Me triture!

ARTUR
Este ventre carregado de luxúria.

ELIZABETE
( PUXA ARTUR CONTRA O SEU VENTRE COM
VIOLÊNCIA )
Não espere. Rápido.

ARTUR
(AFASTANDO-SE. PONDO-SE DE PÉ. AGARRADO
POR ELIZABETE EM FÚRIA)
Calma.

ELIZABETE
Agora, meu bem, mergulhe no prazer deste corpo...

ARTUR
Elizabeth, não deste jeito.

ELIZABETE
O que é que ha ? Estou excitada. ( MORDE-O )

132
ARTUR
Ai... O que é isso. Espera um pouco. Vamos relaxar.

ELIZABETE
( GRITA ) Vem, me possui, ou eu te estraçalho, porra.

ARTUR
Sem violência!

ELIZABETE
Tire essa roupa.Vamos!
( FAZ MENÇÃO DE MORDER-LHE O SEXO )

ARTUR
Não. Pare com isso.

ELIZABETE
( AGARRANDO-LHE O SEXO )
Eu quero ser estuprada. Me estupre.
( DEITA-SE NO CHÃO )

ARTUR
Não exagere.

ELIZABETE
Abraça-me e me beija.

ARTUR
Preciso beber algo...

ELIZABETE
Artur, Artur, olha o j ato de sangue saindo da minha
boca.

133
( BEIJAM-SE FRENETICAMENTE. EXPLODE O SOM
DE UM BOLERO)

ARTUR
Como somos velhos um bolero.

ELIZABETE
Prefiro um rock nacional.

ARTUR
( CANTA ) Eu morro de paixão... ( IMPROVISA A LE-
TRA )

ELIZABETE
Vamos dançar?

( ARTUR ESTÁ DE JOELHOS / OLHA COM VO-


LUPTUOSIDADE PARA O SEXO DE ELIZABETE
/ DELIRA / DEGUSTA / A LÍNGUA LAMBE OS
BEIÇOS / A BOCA É ATRAÍDA PARA O MAN-
JAR/A MÃO SALTA E AGARRA O SEXO DELA /
OLHAM-SE PESADAMENTE / DANÇAM O BOLE-
RO / SAEM DE CENA )

12 - O EREMITA E O DIABO

ARTUR
(ENTRA. SENTA-SE E ESPERA COM NERVOSISMO
CARICATURAL)
Elizabete!

134
ELIZABETE
Faz tempo que está esperando?

ARTUR
Não muito e você como está?

ELIZABETE
Confusa. Atordoada com esta situação difícil.

ARTUR
Porque não fazem logo uma greve e resolvem tudo?

ELIZABETE
Não é assim que se faz, meu querido.

ARTUR
Se precisar de minha ajuda...

ELIZABETE
E sua mãe?

ARTUR
Esqueça de minha mãe. Já passou...

ELIZABETE
Cara, como você mudou. Nem acredito, às vezes fico
pensando: Artur pirou de vez.

ARTUR
Carmem me disse que não vai mais dividir a casa com
você. O que foi, vocês brigaram?

135
ELIZABETE
Vocês conversaram?

ARTUR
Logo que eu cheguei. Ela estava saindo e me falou ra-
pidamente.

ELIZABETE
Ela não aguentou a pressão da família.

ARTUR
Vai voltar para o lar paterno.

ELIZABETE
Fez um aborto. AÍ, você sabe, não é?

ARTUR
Sei! Fez muito mal em abortar. O aborto é um crime
contra a humanidade.

ELIZABETE
Artur, que bom se todos os dias fossem domingo.

ARTUR
Ter você permanentemente junto a mim.

ELIZABETE
Verdade que você tem uma namorada oficial e que eu
sou a outra?

ARTUR
Não. Fofoca.

136
ELIZABETE
Estou sentindo aquele fogo.

ARTUR
Quero sentir as labaredas embalarem a minha carne.

ELIZABETE
Meu amor.
( ABRAÇA-O )

ARTUR
Teu coração bate com violência. Rápido. Veloz. Mi-
nha menina, não há medida para este sentimento.

ELIZABETE
Me aperta.

ARTUR
(SUSPENDE ELIZABETE QUE FICA DE PERNAS
PARA O AR)
Vou fazer de ti, gato e sapato, te rasgar ao meio, te
deixar um trapo, te amar como um vulcão cuspindo
fogo...

ELIZABETE
Artur,cuidado.,.( ARTUR BEIJA-A )

ARTUR
Vou rolar contigo. Derrubar as paredes. Explodir...
Imenso.

(ELIZABETE VOLTA A POSICÃO DE PÉ)

137
ELIZABETE
Buuuum! Como uma bomba atômica.

ARTUR
(PERCORRENDO O CORPO DE ELIZABETE )
Teus cabelos.Teus olhos, boca, o pescoço mais lindo.
Se você não existisse, o que seria de mim, sem teus
seios lindos...teu ventre...

ELIZABETE
Sim, meu ventre.

ARTUR
Tão macio ( BEIJA-O )

ELIZABETE
Artur, você sente?

ARTUR
Sim. Sinto.
(PASSA A MÃO E DEPOIS ENCOSTA O ROSTO NO
VENTRE DELA)

ELIZABETE
Mandrake !
(ARTUR FICA CONGELADO. ELA UM PEQUENO
TRAVESSEIRO E ENCAIXA-O NO VESTIDO. VOL-
TA A POSIÇÃO INICIAL. ESTALA OS DEDOS)

13 - MORTE E JULGAMENTO

138
ELIZABETE
Artur...

ARTUR
Elizabete quanta loucura fizemos!

ELIZABETE
Eu estou grávida, Artur!

ARTUR
Ótimo. É o fruto do amor.

ELIZABETE
Vou ser mãe !

ARTUR
(BEIJANDO-LHE O VENTRE )
Um baby. Que lindo, Elizabete.

ELIZABETE
Será menino e nós...

ARTUR
Espera... Você está grávida?

ELIZABETE
Sim, é o que acabei de lhe contar.

ARTUR
Mesmo?

ELIZABETE
Sim.

139
ARTUR
Já fez todos os exames?

ELIZABETE
Claro. Está tudo certo!

ARTUR
E quer dizer que o filho e meu?

ELIZABETE
Artur, qual é?

ARTUR
Nada. Sou eu a vítima, é?

ELIZABETE
O filho é teu !

ARTUR
Como e que eu vou saber?

ELIZABETE
Acredite. Pombas! Será que você se sente incapaz de
gerar um filho?

ARTUR
Apenas um não. Vários... Mas este aí não é meu.

ELIZABETE
Você está me magoando.

ARTUR
E daí? Não sou otário, Elizabete, você transa com

140
todo mundo. Tem a sua vidinha da maneira que dá
na telha.

ELIZABETE
Este filho é teu.

ARTUR
( PROCURA ALGO PARA BEBER )
Agora essa! Eu sabia que iria sobrar para mim.

ELIZABETE
Deixe de ser fujão!

ARTUR
Bebo na hora que quiser, entendeu?

ELIZABETE
Artur, e aí, o que é que vamos fazer?

ARTUR
Faça o que bem entender.

ARTUR
Meu amor...

ARTUR
Meu amor. Um caralho!

ELIZABETE
Isso é demais. Não posso ficar sozinha com esta crian-
ça.

141
ARTUR
Aborte!

ELIZABETE
É o seu filho.

ARTUR
Não é o meu fílho. Não quero mais ouvir lamentação.
( VAI SAINDO )

ELIZABETE
( GRITA ) Artur, pois, se você não assumir é isso mes-
mo o que vou fazer. E sabe de uma coisa...
( RETIRA O TRAVESSEIRO DE DENTRO DO VESTI-
DO E JOGA-O NO CHÃO )
Pronto! Está feito.

ARTUR
( CORRE VELOZ E ATERRORIZADO RECOLOCA O
TRAVESSEIRO NO MESMO LUGAR)
Não faça isso, pelo amor de Deus!

ELIZABETE
Você fica comigo e assume o seu filho?

ARTUR
Bem... Eu... Sim... Não... Não... Bem... É que... Claro
que não, porra. O filho é seu. Não tenho nada a ver
com ele. Por que não vai atrás dos outros. Vá ver que
o filho é do punk...
( VAI SAINDO )

142
ELIZABETE
Pois então eu não vou ficar, com o seu filho na minha
barriga, não. Põe o baby dentro de mim e foge. Qual
é?
( RETIRA O TRAVESSEIRO E JOGA-O NO CHÃO)
ARTUR
( GRITA ) Não!

ELIZABETE
E tem mais... Eu cuspo nele.
( COSPE NO TRAVESSEIRO )

ARTUR
Não faça isso.

ELIZABETE
Piso em cima do seu filho.
( PISOTEIA O TRAVESSEIRO )

ARTUR
Não cometa uma barbaridade.

ELIZABETE
Covarde. Está tudo na paz, não é ?
( PEGA O TRAVESSEIRO E ATIRA-O EM ARTUR)

ARTUR
Não faça isso com este ser humano. Eu sou inocente
desta sua ação criminosa.
( SUSTENTA-O, EMBALA-O RAPIDAMENTE E DE-
POIS JOGA-O DE VOLTA )

143
ELIZABETE
Inocente uma ova! (IMPROSAM UM PING-PONG
COM O TRAVESSEIRO ATÉ QUE ARTUR , SUS-
TENTA-O COM FIRMEZA COLOCA-O NAS MÃOS
DELA)

ARTUR
O filho é teu. Faça com ele o que der na veneta. ( SAI )
( ELIZABETE COLOCA O TRAVESSEIRO NA CA-
DEIRA E SENTA-SE SOBRE ELE)
( PAUSA DE 15 SEGUNDOS/ ENTRA ARTUR COM
SUAS MALAS )
Elizabete, voltei prá você.
( ELE RECOLOCA O TRAVESSEIRO NA BARRIGA
DELA)

ELIZABETE
(DESCONFIADA) Artur, e a sua mãe?

ARTUR
Seremos felizes para sempre! Quero casar com você.

ELIZABETE
Sejamos simples que a vida é longa e boa.

(ARTUR E ELIZABETE CONVERSAM COM O PÚ-


BLICO)

FIM

144
A CACARIA

Personagens:
Maricota
Giramundo

MARICOTA
Que faz você aqui?

GIRAMUNDO
Oxê, cheguei primeiro...

MARICOTA
Com que direito?

GIRAMUNDO
Ora, com o meu.

MARICOTA
Pois, eu digo que eu cheguei primeiro...

GIRAMUNDO
Tá variando do juízo?

MARICOTA
Cheguei primeiro, e pronto.

GIRAMUNDO
E é assim, vai chegando e dizendo que chegou pri-
meiro e fica por isso mesmo? Eu tenho testemunhas
de cheguei aqui primeiro...

145
MARICOTA
Não estou vendo nenhuma câmera de segurança
aqui.

GIRAMUNDO
Nem precisa, porque tem quase exatamente(CONTA
A PLATÉIA) umas 500 pessoas olhando para nós ago-
ra.

MARICOTA
Viche, e donde está este povo, que não estou vendo
ninguém?

GIRAMUNDO
É este o problema do teatro: os artistas não veem o seu
público.

MARICOTA
Você está de gracinha comigo.

GIRAMUNDO
Garanto-lhe que tem um monte de gente olhando para
a sua cara de idiota.

MARICOTA
Idiota é você que quer me fazer de tola.

GIRAMUNDO
Vou lhe provar. Ouça,(DIRIGE-SE A ALGUÉM DA
PLATÉIA) Qual o seu nome? (AGUARDA QUE A
PESSOA LHE RESPONDA). Escutou?

146
MARICOTA
Não.

GIRAMUNDO
Fale mais alto (PEDE PARA A PESSOA FALAR MAIS
ALTO). E agora?

MARICOTA
Foi você quem fez o som. Isto é um truque de ventri-
loquismo.

GIRAMUNDO
Pode gritar( PEDE PARA O ESPECTADOR GRITAR).

MARICOTA
Um ventriloquismo muito alto.

GIRAMUNDO
Todo mundo. (PEDE PARA A PLATEIA DIZER
CADA QUAL O SEU NOME)

MARICOTA
Tudo bem escutei. Deve ser um grande número sobre-
natural, porque ainda não estou escutando ninguém.

GIRAMUNDO
Então faça de conta que tem alguém nos observando.

MARICOTA
Então faça de conta que eu cheguei primeiro.

147
GIRAMUNDO
Tudo bem, vou fazer de conta que você chegou pri-
meiro...

MARICOTA
Sim, porque o espetáculo somente começa quando eu
chego.

GIRAMUNDO
Antes que eu me esqueça, quero lhe avisar que este é
um espetáculo sério.

MARICOTA
Bem, que eu gostaria de acreditar em suas palavras,
mas...

GIRAMUNDO
Como disse a sua santa mãezinha, você é uma grande
mentirosa...

MARICOTA
Depende do ponto de vista. Se for de meu ponto de
vista eu somente falo a verdade...

GIRAMUNDO
Especialmente quando está mentindo.

MARICOTA
Finalizando esta introdução...

GIRAMUNDO
Garanto que é mentira tudo o que aconteceu...

148
MARICOTA
Hesito, foi um hesito a minha introdução.

GIRAMUNDO
Idiota, êxito começa com a letra E...

MARICOTA
Já, já, já,já..... Estou rindo antecipadamente, pois sa-
bia disto; na falta de uma palavra com a letra “H” eu
aproveitei para falar da minha inteligência vitoriosa.

GIRAMUNDO
Ka,kA,kA,kA..... E mais um pouquinho....
Ka,kA,kA,kA.....

MARICOTA
Lamento informar que apesar de sua murmuração
repetitiva o espetáculo agora pode começar...

GIRAMUNDO
Murmuração, o quê? Eu estava rindo da forma corre-
ta.... Ka,kA,kA,kA...

MARICOTA
Não me diga que foi falta de imaginação. Você rou-
bou a minha palavra...

GIRAMUNDO
Ôxe, e o dicionário agora é teu?

MARICOTA
Plebicitemos junto a este povo qual a verdade...

149
GIRAMUNDO
Que povo... Eu não estou vendo ninguém...

MARICOTA
“Ramos” conversar com dignidade...

GIRAMUNDO
Sotaque brabo esse, é de que brenha?

MARICOTA
Tive um pequeno contratempo na emissão vocal...

GIRAMUNDO
Ululo de prazer com a sua quimera inexata...
Ka,kA,kA,kA... e Já, já, já,já...

MARICOTA
Você está usando a minha risadinha patenteada...

GIRAMUNDO
Xá,Xá,Xá,Xá...

MARICOTA
Zangarreou feio...

GIRAMUNDO
Não estou zangado.

MARICOTA
Nem eu disse isso. Você toca muito mal esta viola.

GIRAMUNDO
Que viola?

150
MARICOTA
Você!

GIRAMUNDO
Eita, começou a filosofia.

MARICOTA
E por falar em filosofia, você pode me explicar para
onde vai com esta maleta?

GIRAMUNDO
O salto foi grande, de filosofia para maleta.

MARICOTA
Foi, mas a filosofia tem dessas coisas pergunte para os
filósofos aqui presentes.

GIRAMUNDO
Vou viajar...

MARICOTA
Para o sul?

GIRAMUNDO
Não.

MARICOTA
E por que não?

GIRAMUNDO
É muito azul.

151
MARICOTA
É para o norte.

GIRAMUNDO
Também não

MARICOTA
Porque o norte é forte

GIRAMUNDO
A rima é fácil e dá muita sorte, mas não irei para lá.

MARICOTA
Então você vai para o oeste.

GIRAMUNDO
Me lembra de faroeste. Não.

MARICOTA
Vai para o leste?

GIRAMUNDO
É o caminho celeste. Não.

MARICOTA
Então...

GIRAMUNDO
E adiantando quem nem para sudeste, nem o sudoes-
te, nem o noroeste e nem o nordeste.

MARICOTA
Se não vai em qualquer direção...

152
GIRAMUNDO
Vou viajar...

MARICOTA
Como então?

GIRAMUNDO
Com a minha imaginação.

MARICOTA
Então vamos ficar aqui mesmo...

GIRAMUNDO
Não...

MARICOTA
Como não?

GIRAMUNDO
Porque vou viajar, você vem comigo?

MARICOTA
Depende.

GIRAMUNDO
É pegar ou largar.

MARICOTA
Já que está neste mistério... Eu pego.

GIRAMUNDO
Eu tenho aqui na maleta duas passagens de trem...

153
MARICOTA
Muito bom... Eu gosto muito de trem...

GIRAMUNDO
Faz de conta que vamos para a estação...

MARICOTA
De braços dados...

GIRAMUNDO
Como dois namorados.

MARICOTA
Marido e mulher...

GIRAMUNDO
Já casou?

MARICOTA
Claro, eu sou uma moça atenta aos meus direitos.

GIRAMUNDO
Faz de conta...

MARICOTA
Casou, está casado. Para sempre. Vamos seguir via-
gem. Cadê o trem?

GIRAMUNDO
Espera, eu ainda nem peguei os bilhetes.

MARICOTA
Está esperando o que, marido meu.

154
GIRAMUNDO
Aqui estão os bilhetes.

MARICOTA
Em branco.

GIRAMUNDO
Para “qualquer lugar”

MARICOTA
Marido meu, “qualquer lugar” é um lugar legal?

GIRAMUNDO
“Qualquer lugar” é qualquer coisa!

MARICOTA
Marido meu, ao teu lado eu gosto de qualquer coisa.

GIRAMUNDO
Mulher minha, você vai gostar...

MARICOTA
Marido meu, eu não sou sua mulher...

GIRAMUNDO – Como assim?

MARICOTA – Há uma diferença sutil entre ser tua


esposa e ser tua mulher.

GIRAMUNDO – Tudo bem, esposa minha. Faz de


conta que chegamos na estação.

155
MARICOTA
Onde fica o trem para “qualquer lugar”?

GIRAMUNDO
A que horas chega o trem para “qualquer lugar”?

MARICOTA
“Qualquer lugar” é muito longe daqui?

GIRAMUNDO
Ouça, é o apito do trem que vem chegando.

MARICOTA
Uma coisa meio esquisita e caipira até...

GIRAMUNDO
Ele vem da Vila dos Lobos...

MARICOTA
Vem depressa

GIRAMUNDO
Vem lotado de crianças...

MARICOTA
Vem descendo a serra fria.

GIRAMUNDO
Para se encontrar com o mar.

MARICOTA
Vem correndo e apitando

156
GIRAMUNDO
Soltando fumaça no ar

MARICOTA
Vem lotado de esperança

GIRAMUNDO
Para aqui desembarcar

MARICOTA
Vem chegando o trem de ferro.

GIRAMUNDO
Vem gritando de alegria.

MARICOTA
Vai parando com jeitinho.

GIRAMUNDO
Na estação de bom dia.

MARICOTA
Sim, esta cidade se chama bom dia.

GIRAMUNDO
Bom dia!

MARICOTA
Senhor maquinista, que horas parte o trem para “qual-
quer lugar”?

GIRAMUNDO
(MAQUINISTA) A qualquer hora, minha filha.

157
MARICOTA
Pode ser agora?

GIRAMUNDO
(MAQUINISTA) Qualquer hora pode ser agora. Aten-
ção senhores passageiros, embarquem depressa, que
o trem parte agora para “qualquer lugar”.

MARICOTA
Marido meu, corre depressa, que o trem vai partir.

GIRAMUNDO
Esposa minha, vá guardando o meu lugar, que vou
pegar as malas.

MARICOTA
O trem já deu partida. Senhor maquinista espera um
pouco o marido meu.

GIRAMUNDO
(MAQUINISTA) Não posso esperar que esse é o
trem do destino e anda por vontade própria.

MARICOTA
Marido meu, Vamos somente com a roupa do couro.
Deixa a bagagem ficar que o mais importante é a gen-
te.

GIRAMUNDO
Esposa minha, embarquei as malas no vagão bagagei-
ro.

158
MARICOTA
Marido meu...

GIRAMUNDO
Esposa minha...

MARICOTA
O trem está saindo...

GIRAMUNDO
Devagarzinho...

MARICOTA
Passo a passo...

GIRAMUNDO
E de pouquinho e pouquinho...

MARICOTA
Vai ganhando velocidade...

GIRAMUNDO
Segue o trem o seu caminho...

MARICOTA
Segue rápido pelo campo...

GIRAMUNDO
Como um veloz avestruz.

MARICOTA
Corre tanto que o vento.

159
GIRAMUNDO
Apita pela janela.

MARICOTA
Célere.

GIRAMUNDO
Como um raio de luz.

MARICOTA
O que você vê pela janela?

GIRAMUNDO
Eu vejo uma casinha com uma menina na janela.

MARICOTA
E qual é o nome dela?

GIRAMUNDO
– Não sei...

MARICOTA
Então pergunta...

GIRAMUNDO
Qual o seu nome, menina bonita que está na janela da
casinha bonita enquanto o trem passa?

MARICOTA
Suelen! O seu nome é muito bonito.

GIRAMUNDO
E veja que lindo, uma cachoeira nas nuvens...

160
MARICOTA
Tão alta, tão linda,

GIRAMUNDO
Que parece que está caindo do céu.

MARICOTA
Ouça o barulho que ela faz... Chuá...Chuá...

GIRAMUNDO
Chuá...Chuá...

MARICOTA
Posso sentir o cheiro das flores que moram ao redor
da cachoeira.

GIRAMUNDO
Que cheiro bom, são flores silvestres...

MARICOTA
Que lugar maravilhoso, vamos nadar na piscina que
fica ali embaixo ...

GIRAMUNDO
Vamos!

MARICOTA
Parem o trem.

GIRAMUNDO
Não precisa parar o trem. A nossa passagem inclui o
direito a um teletransporte instantâneo. Nós pode-
mos usar agora...

161
MARICOTA
E como funciona?

GIRAMUNDO
É só desejar.

MARICOTA
Então vamos rápido que eu quero dar um mergulho
naquelas águas.

GIRAMUNDO
E depois?

MARICOTA
Depois nós voltamos para o trem.

GIRAMUNDO
Então vamos...

MARICOTA
Cachoeira agora....

GIRAMUNDO
Teletransporte ativado.

MARICOTA
E rápido como um pensamento.

GIRAMUNDO
Chegamos.

162
MARICOTA
Que cachoeira linda. Vamos entrar na água.

GIRAMUNDO
Assim desse jeito. Não vamos ficar pelados.

MARICOTA
Faz de conta que eu já estou pelada.

GIRAMUNDO
Uau, coisinha linda!

MARICOTA
E você também com esta barriga de comer pão doce.

GIRAMUNDO
Eu sou lindo por natureza.

MARICOTA
Não é o que estou vendo.

GIRAMUNDO
Se você vai ficar observando a minha beleza então eu
vou ligar para a sua mãe...

MARICOTA
Para dizer o quê?

GIRAMUNDO
Que a filha dela está fazendo um show de striptease
numa cachoeira.

163
MARICOTA
Isto é para quem pode...

GIRAMUNDO
Não pode... Não está vendo aquela placa ali...

MARICOTA
Não, não estou vendo.

GIRAMUNDO
Tem uma placa ali dizendo que não pode tomar ba-
nho na cachoeira... área de preservação ambiental.

MARICOTA
E daí? É somente uma placa perdida no meio da flo-
resta. Não tem nenhum guarda aqui.

GIRAMUNDO
E onde está a sua consciência ecológica?

MARICOTA
Deixei na maleta que ficou no trem.

GIRAMUNDO
Ouça o meu conselho: não entre nesta água; depois
aparece o dono do lugar e você está ferrada.

MARICOTA
Quero mesmo ver. Vou colocar o meu pezinho es-
querdo, depois o pezinho direito...

164
GIRAMUNDO
Pois eu vou ficar ali debaixo daquele pé de manga...

MARICOTA
Vá ficando por lá porque agora eu vou encostar o
meu bumbum na água.

GIRAMUNDO – (GUARDA) Parada aí...

MARICOTA
Quem está falando?

GIRAMUNDO
(GUARDA) Eu, o guarda da cachoeira.

MARICOTA
Lindinho. Cadê o seu crachá?

GIRAMUNDO
(GUARDA) Não preciso de crachá, já tenho a minha
cara. Minha cara é o crachá.

MARICOTA
Então você tem uma cara crachá?

GIRAMUNDO
(GUARDA) Tenho uma cara crachá que a minha mãe
me deu quando eu nasci.

MARICOTA
Posso levantar o meu bumbum da água?

165
GIRAMUNDO
(GUARDA) Ainda não, apesar do risco de contami-
nação...

MARICOTA
De meu bumbum?

GIRAMUNDO
(GUARDA)Não, das águas límpidas desta cachoeira.
E este seu bumbum fedorento é uma ameaça ao meio
ambiente.

MARICOTA
Você respeite o meu bumbum.

GIRAMUNDO
(GUARDA) Que intimidade é essa? Respeite as auto-
ridades. Me trate por senhor.

MARICOTA
E se eu não respeitar?

GIRAMUNDO
(GUARDA) Vou prendê-la na cadeia da cachoeira.

MARICOTA
Eu corro.

GIRAMUNDO
(GUARDA) Então, vão ser dois crimes ambientais,
um de bumbum na água e outro de poluição visual.

166
MARICOTA
O senhor me respeite, que já fui miss de circo...

GIRAMUNDO
(GUARDA) Tomara que não chova...

MARICOTA
Não choveu naquela noite de glória.

GIRAMUNDO
(GUARDA) Era um concurso de miss com candidata
única e muita gente pensava que era um número de
comédia...

MARICOTA
Como é que o senhor sabe disso?

GIRAMUNDO
(GUARDA) Altas tecnologias...

MARICOTA
Vou me levantar.

GIRAMUNDO
(GUARDA) Se levantar, está presa.

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA)- Deixe de ser safado. Deixe
a moça tomar banho em paz.

GIRAMUNDO
(GUARDA) quem está falando, posso saber?

167
MARICOTA
(MULHER DO GUARDA) É a sua mulher...

GIRAMUNDO
(GUARDA) E agora é assim, na rapidez, vai aparecen-
do sem avisar?

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA) Altas tecnologias femini-
nas...

GIRAMUNDO
(GUARDA) Mas isto é contra o regulamento.

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA) Já prá casa lavar a louça...

GIRAMUNDO
(GUARDA) Eu tenho os meus direitos...

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA) No tanque com a roupa
suja...

GIRAMUNDO
(GUARDA) Você é muito desalmada...Humilhar as-
sim uma autoridade diante das pessoas...

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA) E cadê a mulher que estava
com você aqui?

168
GIRAMUNDO
(GUARDA) Não sei deve ter mergulhado.

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA) Coitadinha, vai molhar a
roupa toda...

GIRAMUNDO
(GUARDA) Ela estava pelada...

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA) Pelada?

GIRAMUNDO
(GUARDA) Sim, e tinha o bumbum lisinho como um
tomate.

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA) Seu tarado.

GIRAMUNDO
(GUARDA) Que bobagem.

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA) Vou bater em você.

GIRAMUNDO
(GUARDA) Agressão doméstica não pode.

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA)Pois eu vou mergulhar e
quando eu encontrar esta sirigaita, vou arrancar-lhe
todos os cabelos e dar-lhe um monte de bolachas nela.

169
GIRAMUNDO
(MARICOTA) Estou tão feminina nestas águas sensu-
ais. Eu escutei o que a velhinha falou... A senhora ia
dar umas bolachas em quem?

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA)Posso saber quem é a se-
nhora?

GIRAMUNDO
(MARICOTA) A moça pelada, não está vendo o meu
corpo lindo exposto aos olhos curiosos?

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA) E cadê o seu marido?

GIRAMUNDO
(MARICOTA) Ele está ali debaixo daquele pé de
manga.

MARICOTA
(MULHER DO GUARDA)E ele sabe desses dotes de
quenga?

GIRAMUNDO
(MARICOTA) Ele me conheceu assim e gostou, e pa-
rece que o seu marido também.

MARICOTA
(GIRAMUNDO) Maricota!

GIRAMUNDO
(MARICOTA) Quem!

170
MARICOTA
(GIRAMUNDO) Você se comporte na frente de seu
marido.

GIRAMUNDO
(MARICOTA) E eu tenho nada contigo, vá chupar
manga!

MARICOTA
(GIRAMUNDO) Maricota das Fulôres!

GIRAMUNDO
(MARICOTA) A sua voz está muito fina. Suba o tom
da voz. Algum problema nas cordas vocais?

MARICOTA
(GIRAMUNDO) Não mude de assunto. Que estória é
essa de ficar dando bola para o guarda da cachoeira.

GIRAMUNDO
(MARICOTA) A fila anda meu bem. Largou-me por-
que quis. A manga estava doce?

MARICOTA
(GIRAMUNDO) Azêda.

GIRAMUNDO
(MARICOTA) Vamos trocar?

MARICOTA
(GIRAMUNDO) Aqui na frente de todos?

171
GIRAMUNDO
(MARICOTA) sim, uma troca sensual...

MARICOTA
(GIRAMUNDO) Uma rapidinha?

GIRAMUNDO
(MARICOTA) Rapidíssima.

MARICOTA
(GIRAMUNDO) No clima poético da cachoeira.

GIRAMUNDO
(MARICOTA) Com música romântica.

MARICOTA
(GIRAMUNDO) E como vamos fazer isso?

GIRAMUNDO
(MARICOTA) Nos abraçando!

MARICOTA
(GIRAMUNDO) E depois para onde vamos?

GIRAMUNDO
(MARICOTA) Continuamos a nossa viagem para
“qualquer lugar”.

MARICOTA
(GIRAMUNDO) Então me aperta Maricota das Fu-
lôres.

172
GIRAMUNDO
(MARICOTA) Então me aperta Giramundo.

MARICOTA
Marido meu, estamos destrocados.

GIRAMUNDO
Tudo como era no começo.

MARICOTA
Com a diferença que estamos em cima de uma nu-
vem,

GIRAMUNDO
Ou que somos nuvens.

MARICOTA
Se eu soprar em você, o que você vai ser?

GIRAMUNDO
Eu ? Não posso adivinhar, mas você seja o que quiser.

MARICOTA
(SENDO SOPRADA) Oh, Giramundo, não sopre em
mim, que assim eu posso virar qualquer coisa.

GIRAMUNDO – Qualquer coisa que o vento queira


criar.

MARICOTA
Um tigre terrível e malvado.

173
GIRAMUNDO
(CORRENDO) Senhor tigre vamos negociar uma so-
lução pacífica.

MARICOTA
Eu vou soprar e você agora vai ser um filé de carne
para eu devorar...

GIRAMUNDO
Mas um filé? E se eu não quiser virar um filé.

MARICOTA
Você não manda aqui.

GIRAMUNDO
Então vou virar um pedaço com muito osso...

MARICOTA
Melhor. Adoro roer ossos.

GIRAMUNDO
Pois eu vou soprar você novamente...

MARICOTA
Osso não assopra...

GIRAMUNDO
E quem disse que tigre fala?

MARICOTA
Eu sou um tigre que fala...

174
GIRAMUNDO
Pois eu sou um osso que assopra... (SOPRANDO)
Fuuuuuuuuu...

MARICOTA
Pois eu vou virar uma...

GIRAMUNDO
Mosca...

MARICOTA
Mosca?

GIRAMUNDO
Sim... e eu vou ser uma lagartixa.

MARICOTA
Mas eu não quero ser uma mosca...

GIRAMUNDO
Mas eu adoro ser uma lagartixa.

MARICOTA
Socorro... tem uma lagartixa gulosa querendo me en-
gulir...

GIRAMUNDO
Mosquinha bonitinha venha para a minha boquinha
gosmenta.

MARICOTA
Ui, que nojo.

175
GIRAMUNDO
Venha para dentro de minha barriguinha.

MARICOTA
Vou voar por ai.

GIRAMUNDO
Vou correr atrás de você.

MARICOTA
Não pode. Lagartixas não correm. Elas ficam esperan-
do.

GIRAMUNDO
Mas eu sou uma superlagartixa atlética.

MARICOTA
E isso existe?

GIRAMUNDO
Existe sim. Você nunca ouviu falar de academia de
musculação?

MARICOTA
De lagartixa?

GIRAMUNDO
Óbvio.

MARICOTA
Assim vamos negociar uma solução pacífica...

176
GIRAMUNDO
Ah, agora quer negociar uma solução pacífica, não é?

MARICOTA
Paz e amor...

GIRAMUNDO
Na minha barriga... (TOCANDO MARICOTA) Peguei
você e agora vou te engolir...

MARICOTA
Estou sentindo um ventinho me abalando...

GIRAMUNDO
Mentira. Está uma grande calmaria...

MARICOTA
Aquela menina ali, espirrou e fez um ventinho...

GIRAMUNDO
Quem espirrou? Eu não ouvi o espirro...

MARICOTA
Oh, eu estou me transformando numa cobra...

GIRAMUNDO
Uma cobrinha...

MARICOTA
Não, uma serpente gigante que adora lagartixas...

GIRAMUNDO
Não podia ser uma minhoca pequenininha?

177
MARICOTA
Eu sou uma serpente gigante que solta fogo pelas
ventas...

GIRAMUNDO
Um dragão?

MARICOTA
Pode ser. Eu aceito a sua sugestão.

GIRAMUNDO
Eu não dei sugestão alguma, só falei ao vento.

MARICOTA
É isto. Vento. Agora eu sou um dragão e vou fazer de
você churrasco de lagartixa.

GIRAMUNDO
Eu preciso encontrar uma solução para vencer
este dragão.

MARICOTA
E como primeira demonstração de meu superpode-
roso bafo de dragão, vou queimar a pontinha de seu
rabinho de lagartixa insolente.

GIRAMUNDO
Calma. Vamos negociar uma solução pacífica.

MARICOTA
Você quer ganhar tempo para me enganar.

178
GIRAMUNDO
Não vou mentir. È isto mesmo, mas não custava ten-
tar...

MARICOTA
Não seja menino. Não tenha medo de seu dragão pre-
ferido.

GIRAMUNDO
Menino? É isto, vou me transformar em menino.

MARICOTA
Mas não teve vento.

GIRAMUNDO
Teve sim, o seu bafo de dragão.

MARICOTA
Mas um menino não pode fazer nada contra um
dragão.

GIRAMUNDO
Eu posso domesticar o dragão.

MARICOTA
Como assim? Domesticar?

GIRAMUNDO
Sim, jogando esta bolinha de papel.

MARICOTA
Uma bolinha de papel? Faça me rir.

179
GIRAMUNDO
Draguinho, draguinho... Vamos brincar?

MARICOTA
Que estória é essa de draguinho?

GIRAMUNDO
É o seu apelido domesticado.

MARICOTA
Vou lhe torrar com uma única baforada de fogo in-
tenso...

GIRAMUNDO
Draguinho, draguinho, vamos brincar de bola de pa-
pel?

MARICOTA
Não quero brincar...

GIRAMUNDO
Mas o seu rabinho já está balançando...

MARICOTA
Oh, meu rabo de dragão está balançando...

GIRAMUNDO
Draguinho... draguinho... vamos brincar?

MARICOTA
Pare com isso, meu rabo de dragão está fugindo de
meu controle.

180
GIRAMUNDO
Ola a bolinnha de papel!

MARICOTA
Eu sou um dragão... Eu não sou um cachorrinho bo-
bão.

GIRAMUNDO
(JOGANDO A BOLINHA DE PAPEL) Pega a bolinha,
draguinhio...

MARICOTA
(CORRENDO PARA PEGAR A BOLNHA) Eu pego...
Eu pego....

GIRAMUNDO
Agora traz ela aqui....

MARICOTA
Pronto peguei... de novo...

GIRAMUNDO
(JOGANDO A BOLINHA DE PAPEL) Pega a boli-
nha...

MARICOTA
(CORRENDO PARA PEGAR A BOLNHA) Oh, eu es-
tou me transformando num cachorro vira-lata cheio
de pulgas.

GIRAMUNDO
Fique longe de mim com suas pulgas.

181
MARICOTA
Aqui está a sua bolinha de papel e um milhão de pul-
gas.

GIRAMUNDO
Ai,ai,ai, eu estou sendo devorado por um milhão de
pulgas. Eu estou me transformando numa pulga. A
pulga rei e estou ordenando a estas pulgas todas que
devorem este cachorro viralata.

MARICOTA
Pois então eu me transformo numa sapa e engulo to-
das estas pulgas.

GIRAMUNDO
Como assim?

MARICOTA
Pronto. Já engoli.

GIRAMUNDO
De uma bocada só?

MARICOTA
Claro, eu tenho uma superboca. E posso engolir você
também.

GIRAMUNDO
Assim, eu também me transformo num sapo com uma
superboca. Qual é a sua intenção agora, vai enfrentar
a minha abocanhada mortal?

182
MARICOTA
Então agora nós somos dois sapos na beira do rio.

GIRAMUNDO
Olhando a lua e as estrelas.

MARICOTA
E cantando.

OS DOIS
(CANTAM) “Sapo cururu na beira do rio, quando
sapo canta maninha é porque tem frio...”

GIRAMUNDO
Como uma sapa se sente olhando para a lua?

MARICOTA
Feliz e admirada com o tamanho dela pendurada no
ar.

GIRAMUNDO
E assim iluminada como uma lanterna de São João.

MARICOTA
Somente os sapos apaixonados sabem olhar para a lua
assim...

GIRAMUNDO
Apaixonados... Eu mesmo não. Eu sou um sapo du-
rão.

MARICOTA
Vou te contar a estória do sapo Ramilete.

183
GIRAMUNDO
E quem é esse?

MARICOTA
É você!

GIRAMUNDO
(ASSUMINDO A PERSONALIDADE DE RAMILE-
TE) Sapo, ou não sapo, eis a questão.

MARICOTA
Este é o final de nossa inesperada história?

GIRAMUNDO
Não vamos recomeçar tudo do inicio.

MARICOTA
Só se for agora.

GIRAMUNDO
Um sapo.

MARICOTA
Uma palhaça.

GIRAMUNDO
Uma pata.

MARICOTA
Um ator.

GIRAMUNDO
Como se diz...

184
MARICOTA
Estou feliz...

GIRAMUNDO
Em ver vocês aqui...

MARICOTA
Imaginando conosco...

GIRAMUNDO
Uma outra estória inesperada.

FIM

185
CITAÇÃO INTERCAPITULO

186
BOZÓ

Personagens:
Rando
Aleati

(NUMA MESA AFASTADA.POUCA LUZ. APROXI-


MAM-SE AO MESMO TEMPO RANDO E ALEATI)

RANDO
A mesa está livre?

ALEATI
Não sei. Estou chegando agora. Está livre?

RANDO
Não sei. Também cheguei agora.

ALEATI
Por favor, pode sentar-se...

RANDO
Por favor...

ALEATI
Obrigado. Está esperando alguém?

RANDO
Sim, mas não se importe, assim que chegar iremos
sair.

187
ALEATI
Também marquei um encontro aqui...

RANDO
É uma pena que exista apenas uma mesa

ALEATI
Podemos esperar. (RETIRA CINCO DADOS DO
BOLSO E JOGA-OS NA MESA. OLHAM PARA OS
DADOS. ALEATI RECOLHE OS DADOS. ELES SE
LEVANTAM E SE RETIRAM. ALEATI VOLTA E
SENTA-SE À MESA)

(ENTRA RANDO. APROXIMA-SE DA MESA

RANDO
Boa noite.

ALEATI
Noite?

RANDO
O sol já se pôs.

ALEATI
Tem razão. Estava absorto com os meus pensamentos.
Boa noite.

RANDO
Posso sentar?

188
ALEATI
Não sei. Depende.(ELE JOGA OS DADOS. LEVAN-
TA-SE E SAI)

RANDO
Os dados... O senhor esqueceu...( SENTA-SE E SEGU-
RA OS DADOS) Desejo uma seguida: Um, dois,três,
quatro e cinco. (JOGA OS DADOS E FICA EM SILÊN-
CIO).

(ALEATI ENTRA E APROXIMA-SE)

ALEATI
Posso sentar-me?

RANDO
Qual o seu número da sorte?

ALEATI
Acho que é 7.

RANDO
(JOGA OS DADOS) Veja que coicidência, temos um
sete sobre a mesa. Sente-se, será um prazer. Eu pre-
feria um quinze, mas um sete é quase a mesma coisa.
Tem razão, não é.

ALEATI
Está esperando alguém. Descupe incomoda-lo.

RANDO
Incômodo nenhum. Quem estou esperando talvez já
tenha chegado... A má sorte...

189
ALEATI
Oh, como assim, estou embaraçado com isto.

RANDO
Não o senhor. A seguida, o quinze, eu esperava por
um quinze.

ALEATI
Esperamos por muitas coisas incertas, não é?

RANDO
Pode ficar com os dados.

ALEATI
Não, obrigado.

(RANDO E ALEATI LEVANTAM-SE E SAEM POR


LADOS OPOSTOS. ELES DEIXAM OS DADOS SO-
BRE A MESA)

( ALEATI ENTRA CARREGANDO GRANDES SA-


COLAS, UM VOLUME MAIOR QUE ELE. PÁRA
DIANTE DA MESA)

(RANDO ENTRA RODOPIANDO TONTO COMO


SE ESTIVESSE COM LABIRINTITE. PÁRA DIANTE
DA MESA)

RANDO
Estes dados são seus? Estou um pouco tonto. Acho
que foi alguma coisa que aconteceu em algum lugar.
A mesa é sua? Posso? O senhor fala muito pouco, não
é? Com licença.(SENTA-SE E SEGURA OS DADOS).

190
ALEATI
Espero que dê um!

RANDO
Impossivel! Pensemos em cinco...

ALEATI
Um... Eu quero o número um.

RANDO
Uma nave impossível

ALEATI
Até as esrelas se beijam!

RANDO
Besteira. Os dados não mentem jamais.

ALEATI
São somente incertezas.

RANDO
Podemos apostar contra a tua riqueza...

ALEATI
São sacos cheios de vazios...

RANDO
Devem valer muito para os carregares assim com tan-
to cuidado. Se tens a certeza de teu um, podemos ver
para quem os dados entregam a sua fortuna. Sinto-me
compelido pela boa moral para te avisar que não há
como ter o que pedes, mas não tenho escrúpulo para

191
vencer a qualquer custo.
(RANDO JOGA OS DADOS. LEVANTA-SE E SAI)

ALEATI
Deu nove.(SENTA-SE E JOGA 0S DADOS ALGU-
MAS VEZES) Um... Eu quero o número um.

( RANDO ENTRA CARREGANDO GRANDES SA-


COLAS, UM VOLUME MAIOR QUE O DE ALEOTI.
PÁRA DIANTE DA MESA)

RANDO
Moço, este é o lugar que chamam de encruzilhada do
destino?

ALEATI
Verdade.

RANDO
Pode me dizer se aqui mora um cidadão...

ALEATI
Isto eu não sei não.

RANDO
Tenho umas contas para acertar com esta pessoa...
Passou mais alguém por aqui?

ALEATI
Neste meu tempo por aqui, você é a primeira pessoa.
O que traz nesta sua bagagem? Parece leve. Se fosse
noutro lugar iriam pensar que você é um catador de
lixo, mas aqui... Parece uma visagem.

192
RANDO
São lembranças. Carrego-as sempre comigo.

ALEATI
Devem valer alguma coisas.

RANDO
Podemos jogar a sorte e ver quanto valem.

ALEATI
Tenho sacos cheios de coisa nenhuma, mas nos dados
devem valer alguma coisa.

RANDO
Seguida.

ALEATI
Um número dificil. Eu jogo com uma quadrada: qua-
tro iguais.

RANDO
Quem ganhar leva tudo,

ALEATI
Ou quem perder, deixa tudo. General é dos dados:
cinco faces iguais não é de ninguém.

RANDO
Jogaremos duas vezes, se alguém vencer na primeira
já leva tudo, Se não, jogaremos uma segunda vez...

ALEATI
Qualquer resultado me servirá...

193
RANDO
Você quer jogar a primeira vez?

ALEATI
Sim, e quero mentalizar o que desejo com muita força,
que estes dados possam confirmar as minhas suspei-
tas...

RANDO
Isto não é um oráculo...

ALEATI
Que importa, quando desejamos o amor de alguém
secretamente, não temos outro meio de dialogar com
as nossas emoções...

RANDO
Para mim pouco importa o amor... Tenho negócios
mais importantes e mais lucrativos...

ALEATI
Venha através destes dados a vedade e me mostre se
vale a pena ama-la.

RANDO
Não há verdade, apenas estratégia e ocasião.

ALEATI
Por que não deseja encontrar o seu devedor.

RANDO
Porque tanto faz que perca ou ganhe nos dados. Con-
tinuarei obssessivamente perseguindo-o.

194
ALEATI
Precisa mesmo persegui-lo?

RANDO
De certo modo sim... Vê os meus sacos carregados de
lembranças. São cada uma delas notas promissórias
que devo resgatar.

ALEATI
Posso compreender que penses assim, mas é algo
pouco atraente para se fazer...

RANDO
Porque os teus sacos estão vazios.

ALEATI
Por que não esvazias os teus?

RANDO
São a minha riqueza, o meu chão, a minha segurança,
o meu sentido de vida. Tu tens a natureza de um per-
dedor.

ALEATI
É inevitável...

RANDO
Tu és um mau jogador.

ALEATI
Eu penso que és um jogador mal. Eu também me reco-
nheço na arrogância de poder prever os resuiltados de
uma jogada de dados e de atrelar a minha vida a algo

195
que independe totalmente do fluxo vital, uma ilusão.

RANDO
Pretendes desistir? Tenho uma nova regra: O covarde
perde tudo.

ALEATI
Então acrescento uma outra regra: Se a sorte ficar com
a mesa, os jogadores selarão um pacto de paz.

RANDO
Isto não é uma regra, é uma forma quebrar as regras
do jogo.

ALEATI
Isto? O jogo acaba.

RANDO
Devemos decidir se isto se aplica a esta ocasião...

ALEATI
Sim, devemos decidir...

RANDO
Podemos jogar pedra, papel e tesoura.

ALEATI
Mas isto seria jogar um jogo dentro de um jogo!

RANDO
Assim é a vida, jogamos o tempo todo com tudo e com
todos, jogos dentro de jogos em um laço infinito de
repetições.

196
ALEATI
Podemos acertar que jogaremos em posições inverti-
das. Se você vencer, eu venço. Se eu vencer, você ven-
ce.

RANDO
Não é usual, mas produz o mesmo efeito.

(PÕE AS MÃOS PARA TRÁS PREPARANDO-SE


PARA JOGAR PEDRA, PAPEL, TESOURA)

ALEATI
Um, dois, três...

RANDO
Pare. Uma breve correção, na minha intuição eu não
jogaria papel. Posso lhe sugerir que diga Tesoura?

ALEATI
A jogada é minha...

RANDO
Sim, mas estamos jogando em posições trocadas.

ALEATI
E daí?

RANDO
Daí, que é muito estranho jogar um jogo pela visão de
outro. Posso ao meno sugerir?

ALEATI
Sim.

197
RANDO
Eu jogaria com Pedra.

ALEATI
Tudo bem, aceito a tua sugestão.

RANDO
Então prepare-se. Um, dois, três...

(MOSTRAM AS MÃOS)

ALEATI
Pedra.

RANDO
Tesoura

ALEATI
A pedra quebra a tesoura.

RANDO
Você foi honesto comigo, isto é trapaça.

ALEATI
Os teus pontos de vista estão completamente distor-
cidos.

RANDO
A regra do jogo é a esperteza.

ALEATI
E eu fui muito esperto sendo honesto contigo.

198
RANDO
Assim não tenho como jogar...

ALEATI
O nosso jogo de dados ainda não acabou.

RANDO
Que seja, jogue os dados...

ALEATI
Insisto que os jogue primeiro...

RANDO
Tanto faz.

(RANDO JOGA OS DADOS. FICAM EM SILÊNCIO.


ALEATI JOGA OS DADOS NA SEGUNDA VEZ. FI-
CAM EM SILÊNCIO. DEPOIS SE AFASTAM SEM
DAREM AS COSTAS UM AO OUTRO E SAEM )

FIM

199
CONTATO COM O AUTOR
everaldovasconcelos@hotmail.com

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