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EDITORA MULTIFOCO

Rio de Janeiro, 2011


EDITORA MULTIFOCO
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20230-152

CAPA E DIAGRAMAÇÃO
Guilherme Peres

Meu cartão vermelho & outras crônicas


LUKATA, Lasana

1ª Edição
Maio de 2011
ISBN: 978-85-7961-393-7

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.
E se deus me fez torto
Quem poderá endireitar-me?

O lodo se arrasta sempre, e quando sobe é apoiado na parede


LASANA LUKATA
AGRADECIMENTOS

Ronaldes Melo e Souza, Rozimar Silva Ferreira, Carlos de Serpa Cou-


tinho, Cristina, Marcos Pasche, Cláudia Márcia, Carmen Tindó, Ângela Be-
atriz, José Lopes (Careca); Waldir Matemático, Patrícia Aniceto, Ferraço,
Bigode, Pretinha e Branquinho.
ADVERTÊNCIA

Estas crônicas deveriam ter por título “Os Desprezados” ou “Os Em-
purrados”, ficando óbvia a temática do desprezo começado em “Caçada ao
Madrastio”, entanto, optei por “Cartão Vermelho & Outras crônicas”, título
que também não me deixa muito longe do pensamento inicial.
Ao leitor peço que não se espante com um livro de crônicas costurado
com poesia. Não, não é uma colcha de retalhos. Basta apenas o leitor ima-
ginar que o vento de outono passou para derrubar folhas, mas não havia
árvores; mas havia crônicas que caíram do caderno como pétalas no rio.
PREFÁCIO

O Cartão Vermelho de Lasana Lukata é, sem dúvida, um mo-


saico que preenche com simplicidade, mestria e mordacidade
as mais diversas lacunas do disforme plano sociocultural visto no
cotidiano de um poeta que vagamundeia com sua câmera à cata de
momentos mágicos.
Milhões de cores, nuanças infinitas, em busca da tonalidade
certa, vez ou outra, ofuscam-se e não permitem “discernir entre o
claro e o escuro, a luz e a sombra.”
E é justamente da procedência fascinante, memorialista, lúdi-
ca, subversiva e sedutora do autor-poeta que se edifica um cartão-
-vermelho mor, do qual se emanam cartõezinhos multicoloridos
com que ele caçoa no reino encantado das palavras.
E assim permite que uma preciosa tessela combine harmonio-
samente o mármore cristalino do seu ser com a arte decorativa de
seu fazer. E esse arranjo ajunta o sabor de “cajá ferido de raio”, ex-
perimentado da rua para o espaço da sala de aula, onde os meninos
estão adormecidos da responsabilidade das mães, à sutileza d”o
homem dos olhos verdes”, somados à avareza da mulher do pastor,
a paciência do burguês visitado pelo sol, e a representatividade do
taxista com o seu Aerowillys, escolhido pelo patriarca da família
para levá-los para o morro da Caixa D’água, onde brincar no barro
em tempos chuvosos era a diversão da meninada. Foi com as desli-
zadas barrentas do carro de praça que o autor começou a aprender
que o “ideal para um país é ter tração nas quatro rodas”.

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Enquanto os tipos vão desfilando aprumados ou acanhados
os cartões vermelhos são distribuídos no bem emoldurado espa-
ço brasileiro.
E com a perícia artística de quem há muito aprendeu a decorar
interiores de almas, transformam-se, em pedras semipreciosas, os
seixos, as pastilhas de vidro, as caixas de papelão, os farrapos de
cobertas, as lascas de madeira, os cartões amarelo e azul que se
vislumbram diante dos olhos, e acerta-lhes as arestas com a candu-
ra melancólica de um coração que amarga e denuncia a injustiça,
a corrupção e a maldade, esmerilando-as para que se moldem na
massa compacta e resistente da realidade da vida.
É no cartão vermelho que os olhares do autor e da mídia, na
mais plena comunhão com o terceiro poder, plainam, emaranhando
fatos que decolam do âmbito da notícia para o universo da ficção.
E eis que surge o mosaico, não uma colcha, nada de retalhos,
mas flashes plenos de valiosos artefatos para edificação de uma
obra-prima, construto da dedicação, rejuntada com um modo ga-
lhofeiro de olhar, a ser apreciada como arte que decora em novo
estilo a abóboda da crônica literária contemporânea.

Rozimar Gomes da Silva Ferreira


Professora, Mestra em Literatura Brasileira,
membro da Academia de Letras de Viçosa, MG.

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I

e a garça voou
sumiu nos telhados
do antigo cinema
e voou na cidade
às cinco da tarde
e me trouxe um poema

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II

os olhos do rio escureceram


como próteses vieram as garças
e pelos olhos delas observam os homens
com decepção 

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MEU CARTÃO VERMELHO

V inha de comprar livros na Feira de Antiguidades na Praça XV.


O céu miscigenado de nuvens, manhã abafada e moscas pou-
sadas na esperança. A luz do sol querendo sair, libertar-se, mas
nuvens brancas, negras e cinzas não deixavam. Ia, de costume,
entrar na rua próxima à Bolsa de Valores do Rio e contornar para as
barcas, quando uma brisa me trouxe aos pés uma página de jornal
vermelha, móvel, retardada, de 30 de agosto de “O Globo”. A brisa
também trazia um ar salgado, mas por ser brisa, soprando alterna-
damente e em dois sentidos opostos, eu não conseguia distinguir:
de onde vinha tanto sal? Da terra ou do mar? Se fossem alísios,
que sempre sopram na mesma direção, seria mais fácil! Peguei a
página de jornal que em grandes letras dizia: “Vermelho Neles!”. Na
página, poetas, atrizes, compositores, entre outros, davam cartões
vermelhos para pessoas, instituições ou atitudes. Contei 31. Meus
senhores! 31 cartões vermelhos num só domingo? Ficou corriquei-
ro. Nem no futebol isso acontece. Isso dá crônica… Mas quem sou
eu para rir do cartão vermelho que o senador Suplicy deu ao se-
nador Sarney em plenário? Logo eu, o rei do efeito retardado, que
nunca poderei ser chamado de intelectual porque intelectual vê o
que ninguém viu e eu só consigo rir das piadas depois que todo
mundo riu… É um oligofrênico! Ou Epimeteu?!
Então o meu cartão vermelho vai para mim mesmo que estou
solteiro até agora por culpa do meu efeito retardado. A moça ia para
a nebulização no Posto de Saúde onde eu trabalhava, mas, antes,

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apertava-me a mão com muito gosto, conversava, sorria, e seus
olhos jabuticabavam de brilhantes e levei seis meses para decidir
colocar um bilhete na sua mão:
- Mas agora é que você vem falar em namoro? Já estou noiva
e para casar!
Dos cartões vermelhos na página vermelha me incomodou o
do músico Marcos Valle, que deu cartão vermelho para os chatos
que não enxergam nada de bom nos dias presentes.
Lida a página, avancei um pé a pisar na Rua do Mercado quan-
do, agora, a brisa me trouxe um choro de criança que saía do Arco
do Teles e me desviei para lá, disposto a enxergar algo de bom nos
dias presentes. Quem quer ser chato? Mas dei com as lágrimas. Sal-
gadas. A criança chorava e pedia esmola com a mão em riste: Tio,
dá um real aí! Sim... Era dali que a brisa andava colhendo o seu sal
de cada dia. Nem o mar produziu um ar salgado como este.
Dei e segui para as barcas, ansioso por retornar ao lar e ler os
livros, mas não foi um dar jogado. Enquanto a boca pedia, nossas
mãos se tocaram e me comovi profundamente em espírito, como se
há duzentos anos conhecesse o Arco do Teles, aquelas pedras… E
os olhos da criança eram olhos de Alice, perguntando: “Você pode-
ria me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?”,
mas sem talentos para gato nem guru nem ONGueiro explorador
de crianças segui para as águas. (Sabes o que é um pastor de As-
sembleia de Deus numa ONG colocar três crianças para comer num
prato só e receber a verba de três pratos? Ou uma professora assinar
contrato de R$400 e receber R$150? Que mão amiga é essa, senho-
res? Vermelho nesse também!). Por que segui para as águas? Por-
que talvez procurando um caminho menos duro, mas as crônicas
de pedra existem. Desculpe, mas embarquei, não resisti e comecei
a ler na barca mesmo o primeiro livro que me veio à mão: “O Rio
de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis”. E a barca deslizava. Vez por
outra os olhos a pastar nas verdes águas. Verde salgado. Já vem o

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chato com um parágrafo salgado. É pedra, é sal, pedras de sal…
Mas chega um tempo, amigo, de cair umas pedras de sal em nossa
feijoada. Sal que nós mesmos produzimos. E como fazer crônicas
com açúcar se o preço disparou? Oh Índia, onde está o teu açúcar?
Meus cajuzinhos andam salgados. E lá pela página 19 me apareceu
uma ilustração salgada, a ilustração do Arco do Teles: vários escra-
vos velhos, quase nus, cheios de feridas, dizia a História. Escravo
de mão em riste e dava para ouvir a sinfonia dos abandonados:
uma esmolinha pelo amor de Deus! Ali, no tempo dos vice-reis e,
digo eu, dos vice-mortos, na boca do Arco do Teles os mendigos
nem se derramavam nem eram engolidos. Ficavam como dentes
estragados… E a boca do Arco do Teles doía, gemia: uma esmolinha
pelo amor de Deus!
E duzentos anos se passaram… No século XX, até a década de
80, ouvia-se o pregão: Uma esmolinha pelo amor de Deus!
Hoje, mais contidos, os mendigos tiraram Deus dessa história
e buscaram outro caminho, o do homem, e deste se aproximaram
por um grau de parentesco, laço: Tio. 
Um raio pode não cair duas vezes no mesmo lugar, já quanto à
miséria não podemos dizer o mesmo…
Mas repara! Apesar disso, tem razão Marcos Valle, porque
há algo de bom a enxergar nos dias presentes:
A pretinha que agora pede esmolas no Arco do Teles, além de
nova, é sem feridas e ainda veste a camisa do Flamengo.

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MEU CARTÃO AMARELO

A quele mês de junho de 2006 daria muito que falar: Copa do


Mundo, Dia dos Namorados, Dia de Santo Antônio, São João,
tanto assunto… Como tinha que escolher, o cronista falou sobre a
Copa do Mundo e falaria sobre outro assunto que não fosse o Dia
dos Namorados nem Santo Antônio, já que a moça por quem se
apaixonou casou-se no primeiro sábado da Copa.
A moça lhe deu um cartão amarelo: vai arrumar uma garota
para você falar isso! Vou contar para o meu noivo! Eu conto tudo
ao meu noivo! E saiu empurrando o cronista... Respondeu furio-
sa, porque através de e-mail tinha recebido esses versos: “Beijo as
orquídeas dos prados, relvados secos… Mulher! Me deixa apenas
beijar orquídeas dos teus becos”. E disse mais: Você é a minha Or-
quídea Lilás! O cronista não sabia. A moça do cartão amarelo não
andava com aliança. Estava noiva, mas a distância entre ela e o cro-
nista era sempre diminuta. Olho no olho. Na sala de aula, quando
o cronista chegava, ela vinha do canto, sem pedir licença, pulando
as pernas das amigas… Sabia que deveria ter feito uma pergunta
filosófica para ajudar a este mundo, mas era crônica, o dia-a-dia
e a pergunta poderia ser grande ou pequena. Foi pequena. O que
era aquilo então? O pular as pernas das amigas, saltando feito uma
rema, os olhos frente a frente? Havia uma disputa oculta e ninguém
percebia ou ela desejava apenas testar o seu poderzinho de sedu-
ção? Poder é a melhor resposta. Poder… Passando numa banca de
revista da Avenida Rio Branco no centro do Rio de Janeiro, toda a

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vitrine era Poder: Poder Pentecostal, Poder Pós-Pentecostal, Poder
dos Anjos, Poder das Ervas, Poder da Magia, Poder dos Cristais…
E o Poder do Amor.
A ironia dessa vez era para o cronista. O cronista que todos
os dias ironizava… Ah, chegou a vez de cair umas pedras de
sal na sua feijoada. Não é fácil ver um cronista passar o que ele
passou e por isso estou sendo lírico nesta tarde de orquídeas
lilases espalhadas pela cidade. Palavras com mel e colibris para
amenizar as pedras de sal…
E o cronista contemplava as bolas golpeando a trave, a hemor-
ragia de breu dos balões, as vitórias, as bolas golpeavam seu peito,
os balões não subiam pingando breu; subiam chorando, moribun-
dos, derrotados. A lua minguante. Pássaros quietos. Zéfiro calado.
E ficou estendido no colchão verde como um jogador caído no gra-
mado, desconsolado por ter perdido não um jogo, mas uma família.
Que família seríamos, moça!
Bem, perdida a pessoa amada lhe restaram a decepção e a con-
solação do Espírito Santo, mas o Espírito Santo olhou de banda
e disse: olha, a minha graça te basta! E os balões choravam pelo
cronista, lembrando que na mitologia do zodíaco era cronista de
peixes, regido por Netuno. Que coincidência! Logo Netuno!
Entre os deuses gregos não houve deus mais decepcionado do
que Netuno. Perdeu Corinto para o Sol; Delfos para Apolo; Argos
para Juno; Egina para Júpiter; Naxos para Bacos; Atenas e Trezena
para Minerva. Os deuses têm as suas decepções. Veja, Cristo perdeu
para César. Não temos outro rei senão César! Perdeu até para Bar-
rabás. Barrabás! Barrabás!
- Jerusalém, Jerusalém! Quantas vezes… Quis vos ajuntar
como uma galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas…
Aquele mês de junho de 2006 daria muito que falar… Mas o
humorístico cronista emudeceu. Sua crônica foi que o Brasil per-
deu. Crônica triste. Pobre cronista!

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Por ironia, o que lhe deixava ainda mais o coração ensanguen-
tado, era querer esquecer e ter que ouvir naquela Copa, dia e noite,
o nome de um estádio de futebol que lembrava de pertinho o nome
da moça por quem se apaixonou: Munique.

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MEU CARTÃO AZUL

E ntramos na Primavera e saí a ver as flores. Sentei-me num ban-


co de praça e fiquei vendo um jogo de futebol de salão jogado
por moças. Era a Primavera em movimento… Todas em rabo de
cavalo, coloridinhas e astuciosas como as flores. Astuciosa? Sim…
Não se engane. Mulher e flor quase sempre estão pescando e só
pescam de garateia, aquele aparelho de pescar geralmente com três
anzóis; aparelho de pescar 3 em 1. Difícil escapar, diz o peixe. A flor
se não pega o besouro pelo anzol da cor, pega pelo anzol do cheiro
ou pelo anzol da astúcia. E de primavera em primavera o besouro
cai na mesma cilada, mas é uma cilada boa, espalha o colorido, a
vida. Lá vai o besouro voando, banhado de sementes. Já o homem,
chega um tempo em que deixa de ser besouro, e enxerga a garateia;
que as cores e os cheiros são ilusões, mas vai assim mesmo porque
reconhece: a primavera e a ilusão não podem deixar de existir. O
cronista é um besouro consciente, inclusive da sua ganância…
Disse a pouco que tinha saído a ver as flores, mas não foi bem
assim. A mando da Primavera uma planta é que lançou o seu anzol
colorido na minha janela e me arrancou de casa. Na minha infân-
cia, eu gostava de sair da baixada onde morava e ir à casa da minha
tia Maria, à noite, no alto do morro e de lá ficar olhando a Dutra,
onde a Primavera não cessava nos letreiros luminosos e coloridos,
espalhados nas margens da rodovia.
Mas foi olhando o jogo das Flores que me veio uma analogia
da crônica e a quadra de futebol de salão. Não sei se a analogia é

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forte ou fraca, filósofo, mas julgue você mesmo, porque na crônica
e no futebol de salão é tudo muito rápido, o espaço é apertado, e
os dribles são curtos.
Na crônica e na quadra, raramente as jogadas são aéreas; é um
futebol de bola no chão; não de chuteiras com aquelas travas nas
alturas, mas de tênis de sola plana; ao rés-do-chão como diz Cândi-
do. Mas veja: vez por outra cronista faz gol de cabeça.
Outro dia li que a crônica difere da notícia e da reportagem
porque não tem o fim de informar, mas refletir sobre o acontecido,
entanto, refletir é pensar demoradamente, e demoradamente é pa-
lavra que não cabe na crônica nem na quadra de futebol de salão.
O refletir, em ambas, tem que ficar entre o rebaixamento e o G4; a
precipitação e a prudência. E isso não é fácil. Melhor é fazer Medi-
cina ou Matemática.
Essa Primavera se inaugurou com chuvas, chuvinha, mas es-
tando resfriado fui me recolher numa Lan House e ler meus e-mails.
Um deles era da Monique, que estava no computador ao lado e dis-
farçadamente lia o início dessa crônica, e veio escrito assim:
Sr. Lukata, lendo as suas crônicas “Meu cartão vermelho” e
“Meu cartão amarelo”, vi que você fala de mim, então gostaria de
usar o meu direito de resposta e vê-lo publicado também.
“Ora, Lukata, se a crônica é um texto ao rés-do-chão, então não
me venha jogar de chuteiras. É trazer os calçados certos: tênis de sola
plana. Se a crônica é uma quadra de futebol de salão, onde tudo é rá-
pido, dribles curtos, pouco espaço, por que você demorou seis meses
para me entregar um bilhetinho? Eu avisei: já estava noiva e para ca-
sar. Você leva seis meses e ainda reclama um coração ensanguentado?
Não dá! Você errou de futebol. Era de salão e não de campo.
Eu ia ao Posto de Saúde, não esperando uma jogada de profun-
didade, mas de palavras com peso de bola de futebol de salão; que
não ficassem quicando dentro de mim. Frivolidades com a crônica
sim, comigo, não!

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A cada ida, sem nem precisar nebulizar, perdi as contas dos
cartões azuis que lhe dei na esperança de que ao retornar você acer-
tasse a jogada, partisse para o ataque, mas você ali, parado… É um
oligofrênico! Veio um Prometeu roubou a bola e chutou no ângulo.
Olha, você deveria ouvir o músico Marcos Valle: “Eu preciso
aprender a ser só”. Nada de Gilberto Gil: “Eu preciso aprender a
só ser”. O melhor para você é ficar só. Ou nunca passou pela sua
cabeça que eu poderia ser uma Pandora abrindo uma caixinha na
sua vida?
É! Não passou! Você é um Epimeteu. Mas pára de me dar car-
tão azul no teu peito, Lukata. “Solta logo esse cartão vermelho e me
empurra desse corpo para nunca mais voltar.”

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III

     paralela ao rio
     a biblioteca 
     uma vidraça os separa 
     do lado de lá
     a garça vadeando
     pelo rio vazio
     do lado de cá
     o poeta vadeando
     pela folha vazia
     os dois
     como quem não quer nada
     mas namorando
     a garça  o rio
     o poeta  a folha
     pela lógica
     a garça espera o peixe do rio
     o poeta aguarda o poema entrar pela caneta
     no entanto há um instante em que as paralelas se cruzam
     e pela vidraça
     o poeta vê o rio vazio
     e a garça se estica para a folha vazia
     o poeta compra o peixe para a garça
     e o bico apunhala o peito do rio
     rabiscando um açude de palavras

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     para saciar a sede de alguns versos
     e ajudar o poeta que se debate na barriga da biblioteca
     para vir à luz
     e nessa hora corro
     porque o peixe é sólido
     mas a água logo cicatriza as suas feridas
     e não posso apresentar-me a este mundo
     de mãos vazias

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TRAÇÃO NAS DUAS RODAS DIANTEIRAS

N inguém há de ver na manchete de um jornal: CRÔNICA ACHA


PETRÓLEO. Mas acha. Ninguém há de ver: CRÔNICA VAI
ALÉM DA CAMADA DE PRÉ-SAL. Mas vai. Quem disse que crônica
não escava? Não escava muito a ponto de sair no Japão, mas esca-
va. Crônica bebe todo o Dry Martini, escava o fundo da taça, fura, e
vai por haste abaixo, descendo, descendo… Crônica bebe petróleo.
Em 1974, mal grado o alto preço do petróleo, a inflação e o
declínio do “milagre brasileiro”, muitas pessoas saíam a fazer com-
pras no sábado. Nos supermercados, filas enormes realizavam o
milagre do consumo. Não havia sacolas plásticas, mas um papel
duro, cinza-chumbo, envolvia as compras amarradas com barban-
tes, sisal e os embrulhos vinham nas mãos, nas costas. Subir mor-
ro… Poucos eram os que podiam pagar um táxi. Apesar de pobre,
meu pai se esforçava.
- Taxista, toca para o morro da Caixa D’água! Morávamos nes-
se morro. Puro barro. Na chuva, já dá para imaginar. Esquiávamos.
Os meninos por diversão, os homens com objetivos utilitários…
Hoje se faz uma fila e você pega o táxi da vez, mas em 1974
escolhia-se. Meu pai tinha o seu taxista preferido. Entanto, qua-
se sempre ele não estava. Era muito procurado. Quem sempre
estava no ponto era um Aerowillys. Quase não realizava corri-
das. Desprezado.
Um sábado chupamos a laranja. Embarcamos no Aerowillys e
meu pai: Toca para o morro da Caixa D’água!

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Chovia. Os táxis subiam normalmente pela Rua da Penha, por
ironia, de barro como todo o morro. Como os homens são incoe-
rentes: hoje a rua tem nome de homem, o homem de barro, e a rua
é de pedra.
Mas o Aerowillys subiu o morro. Rabeando. Subiu um pouco.
Depois, não mais. O motorista acelerando, lutando com o volante
e explicando:
- Tração nas duas rodas dianteiras…
E nunca mais a frase me saiu do espírito: tração nas duas ro-
das dianteiras. O carro rabeando feito peixe; a vida rabeando de
uma a outra margem da rua sem meio-fio não subia… E desco-
brimos o porquê do desprezo: tração nas duas rodas dianteiras.
Laranja azeda.
Para ninguém perceber que morávamos no morro, andávamos
com os sapatos envoltos em sacos plásticos. No quartel, o sargen-
to orientava a portar escovinha e garrafinha d’água na bolsa para
(tratar) o barro quase na alma grudado. Ninguém precisa saber que
você mora no morro, soldado! Nos furos das cáries jogava-se algo-
dão com álcool ou perfume. Sempre houve uma espécie de pequena
ciência para os pequenos problemas.
Para o Aerowillys a pequena ciência recomendou um acessó-
rio, um botijão de gás na traseira, no porta-malas, fazendo peso. O
Aero, como era chamado, tinha um porta-malas grande.
Mas por que acordei esta manhã pensando no Aerowillys? De
que me serve um Aerowillys em pleno século XXI se não sou cole-
cionador? Qual o mistério?
Fiquei lembrando… Meu pai dando novas oportunidades ao
motorista do Aerowillys. Para o morro, Senhor? Meu pai tinha lá a
sua bondade. Não falava táxi, dizia carro de praça. O taxista colo-
cando o botijão de gás na traseira e a gente subindo… Com dificul-
dades. Que dificuldade! Ah, chuva. Funciona bujão de gás! E pati-
nava… E o João-Motorista, aposentado, gritando: O ideal é colocar

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um saco de farinha de 60 kg , que aí assenta bem a traseira! Aí ele
vai! Mas, quem era o João? Aposentado até hoje não é ninguém.
Quem lhe dá ouvidos?
Fui navegar na internet à procura dos Aerowillys. Fiquei olhan-
do as fotos, a evolução, o apogeu, a decadência. De um lado minha
prima anotava as placas e dizia para eu apostar no jogo do bicho;
do outro, outra prima da Assembleia de Deus dizia que era um sinal
de que Deus ia me dar um carro e em forma de agradecimento eu
colocasse aquele adesivo bem grande: “Deus me Deu!”, mas tenho
visto muitos carrões que passam com os adesivos “Deus me deu!”
e daí a pouco passa a polícia, os alcança e diz, Deus mandou pegar
de volta! Não. Não era isso de bicho nem carro, ainda não era o
calcanhar de Aquiles à mostra; estava além de um Dry Martini; era
algo mais por baixo; o Aerowillys, a imagem repetitiva do taxista
sempre colocando o botijão de gás na traseira para subir, a chu-
va, a dificuldade em subir, o carro rabeando… E eu olhava cada
Aerowillys, de perfil, no interior, pela traseira, dianteira… Modelo
por modelo, desde o primeiro. Mas foi lá pelo desistir da pesquisa
que, na dianteira, no capô de um deles, me apareceu uma palavra
como um sinal: Itamaraty. Também chamado de “um palácio sobre
rodas”, batizado de Itamaraty numa referência ao Palácio em Bra-
sília, dizia a internet. Itamaraty e Brasília. Fiquei com essas duas
palavras martelando o meu juízo. De súbito sumiu o Itamaraty. E
martelava Brasília! Brasília! Brasília! Que encolheu para Brasil! Bra-
sil! Brasil! E me veio a iluminação: o Aerowillys é o Brasil; o botijão
de gás, o Bolsa Família.
O ideal para um país é ter tração nas quatro rodas, mas en-
quanto não encostarmos nesse ideal, quem dera Aquiles encontras-
se a tartaruga, vamos de acessório, colocando um botijão de gás na
traseira do Aerowillys.

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SE O FOTÓGRAFO É FIEL

D izem que a fotografia reproduz o real da forma mais exata


possível; possível porque entre a lente e a forma há um rabo
de palha…
Machado de Assis viu com bons olhos a chegada da gravura
aos jornais em 26 de maio de 1895. Reconheceu que as palavras
não davam conta de tudo, bem ao contrário da idéia absoluta de
hoje que diz: imagem é tudo. Absoluta?
 Entanto, em 13 de janeiro de 1901, Olavo Bilac, substituindo
Machado cronista, não viu com bons olhos essa chegada, porque
chegaram demais, e desenhistas, caricaturistas, ilustradores já es-
tavam tomando os espaços dos jornais. Chegaram empurrando.
Ninguém estava ligando para a leitura. Eram gravuras e gravuras,
fotografias e meia dúzia de palavras. Pobres cronistas! Essa ameaça
estava presente no seu tempo, mas hoje há espaço para gregos,
troianos, espartanos, tebanos, persas, todos.
Vejam que existiu um tempo em que Joana, Maria Betânia, Gal
Costa, Elba Ramalho brilharam ao mesmo tempo e não houve pro-
blemas entre elas; só Tom Zé e o saudoso Torquato Neto, quando se
perceberam numa disputa de espaço, confessou o próprio Zé, não sou-
beram administrar essa disputa e cada um foi para um lado. E ficou
pensando consigo: A vida, para cima, é um jardim de exuberantes
flores para os olhos; para baixo, uma intensa batalha de raízes.
Mas pulemos essa disputa de espaço porque na crônica de Bi-
lac a perplexidade veio dessa fala: “as palavras são traidoras e a

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fotografia é fiel. A pena nem sempre é ajudada pela inteligência; ao
passo que a máquina fotográfica funciona sempre sob a égide da
soberana verdade…”. Não é verdade. Rabo de palha. Querem ver?
Primeiro vamos ao rabo de palha de um pastor que ninguém
é de ferro e a crônica nos dá uma liberdadezinha para rir; depois
iremos ao rabo de palha da fotografia: viva Machado de Assis! Ha-
via numa Assembleia de Deus um pastor que vivia ameaçando do
púlpito: Quem tem rabo de palha cuidado comigo porque eu piso,
risco um fósforo e toco fogo! E ria! Como ria! E a igreja ria da parte
A da fala dele, porém, agradava-me mais a parte B: “E se eu tiver
rabo de palha, podem pisar e tocar fogo!” Cláudio jamais faria isso,
mas eu, Lukata descobri logo quatro rabos de palha no pastor, pisei
e toquei fogo! Rabos dos grandes. E quando ele reclamou, a igreja
toda foi unânime:
- Mas pastor, o senhor mesmo autorizou a tocar fogo se o se-
nhor tivesse rabo de palha! O menino obedeceu! E o pastor balan-
çou a cabeça, confirmando: é verdade! E nunca mais falou em rabo
de palha naquela igreja. E viva Machado de Assis!
Mas pisemos rabo de palha da fotografia: o rabo de palha da
fotografia chama-se homem. Bilac viu mal. A soberania da fotogra-
fia, como a soberania de muitos países, é de palha. As palavras não
são traidoras. A fotografia é fiel se o fotógrafo é fiel. As palavras
são traidoras se o homem é traidor. O fotoshop não é o melhor, mas
pode ser o melhor anti-ruga do planeta, depende do Web Designer.
Dependendo do traidor, uma imagem pode dizer mais ou menos. Se
o traidor é amigo, tira rugas, se inimigo, mesmo não as tendo, põe.
A fotografia não é fiel, pois das poucas vezes em que advoguei
de um caso não me esqueço: Uma mulher teve seu imóvel defor-
mado por um vizinho e o convidamos a ir ao juiz reparar os danos.
No dia da audiência não pude estar presente. Um amigo me
substituiu. Ao chegar de viagem encontrei a mulher triste. Disse
que quase saiu presa da mesa do juiz. As fotos, Dr. Lukata! Advo-

30
gado não é doutor. De fato as fotos no processo tinham arte. Obra
prima. Verdade. Imagem é tudo. Tanto que convenceram ao juiz. A
sentença sairia em breve, mas o barulho da carruagem era favorável
ao adversário. As fotos tiradas à noite, de uma espécie de oitava à
esquerda, oblíquas, de ladinho, eliminavam os sinais de ataque ao
imóvel. Gostei. Agora eram Palavras versus Fotografias.
Achei o oficial de justiça Joel que se compadeceu da mulher,
foi até o local, constatando os rabinhos de palha da fotografia, ha-
via danos e lavrou aquela certidão, finalizada com o tradicional: O
referido é verdade e dou fé. As palavras ganharam das fotografias
nas 1ª e 2ª instâncias.
Outra foto infiel pode ser vista na página VII do livro Antologia
II, 2004, da ALAM (Academia de Letras e Artes de São João de Me-
riti), onde o professor de história, professor G, aparece numa foto-
montagem ao lado dos fundadores da academia, Professor Moysés
Henrique dos Santos e Maria das Graças G. Neves. Na foto original
G não aparece. Só depois do adultério é que surge o imponente
professor G ao lado dos fundadores, ferindo a história da Academia
de Letras. Penso que um livro de uma Academia de Letras é um do-
cumento, mas pelo lado da poesia, agora G além de ser professor de
história, é poeta da fotografia. Seja bem-vindo: A Arte é o mundo
dos adúlteros.
Por ser crônica, não dá para colocar aqui as fotos, mas creio,
bastam palavras para dizer:
- Ora, Bilac! Perdeste o senso? Perdão do trocadilho, mas con-
tra fotos há argumentos.

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LARANJAS-DA-TERRA

Quando se popularizou o microônibus disse a mim mesmo:


eis mais uma imagem para a crônica. Ambos se parecem. São vizi-
nhos. Na crônica cabem poucos personagens, no microônibus pou-
cos passageiros; a crônica é curta e leve; o microônibus pelo próprio
prefixo grego “Micro” já indica que é pequeno, curto. Microcéfalo,
por exemplo, é o que tem a cabeça muito pequena ou curta, depen-
de do sentido; microcosmo é um mundo pequeno e microcorrupção
é uma coisa que não existe no país. Quiçá, no mundo.
Quanto à leveza, na crônica resolve-se no sentido figurado das
palavras, a leveza é do pensamento, porém, no microônibus essa le-
veza é literal e foi resolvida retirando-se do veículo o pobre cobrador
e diminuindo-se o espaço para idosos e estudantes e amortecendo o
salário do motorista-júnior que faz dupla-função: dirige e cobra.
Quando embarco num microônibus sempre tenho a sensação
de estar viajando numa crônica; ainda mais quando ergo os olhos e
leio o aviso na plaqueta: “Fale ao motorista somente o indispensá-
vel”. Quem leu Ezra Pound sabe que no seu livro ABC da Literatura
ele aconselha a verificar quais e quantas são as palavras inúteis na
composição dum texto. E aqui entra novamente a plaqueta, só que
agora parafraseada: Fale ao leitor somente o indispensável. Ocorre
que os motoristas são seres humanos e às vezes eles são quem acor-
dam com vontade de falar mais do que o indispensável.
Não é fácil dar de 4 a 7 viagens num microônibus, monologan-
do de si para si. Ora, deu-se o caso de uma tarde um motorista da

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Baixada Fluminense trocar o monólogo pelo diálogo e começou a
dizer a dois estudantes que Nilópolis foi o maior produtor de laran-
ja do Estado do Rio de Janeiro em 1940. Isto ele tinha ouvido numa
igreja. De fato a Baixada foi muito rica em laranja no passado, tanto
que existem umas laranjinhas na bandeira da cidade de Nova Igua-
çu. E dizia o motorista: “Passa lá hoje pra ver se você vê um pé de
laranja?!”. Eu que durante a viagem monologava sobre a questão
dos deficientes visuais, disse com voz do tamanho de microônibus,
de crônica: pobre motorista-júnior! Não consegue enxergar um pé
de Laranja! Assim vai ser júnior para o resto da vida!
Bom. Hoje não sei quem é o maior produtor de laranja, mas
sei que o motorista parece o moço de Eliseu. Eliseu era um profeta
que fazia saber ao rei de Israel todos os planos do rei inimigo, o rei
da Síria, que chegou a pensar haver traidores no seu reino, porém,
um dos seus servos lhe disse: “Há um profeta por nome Eliseu que
faz saber ao rei de Israel as palavras que tu, Oh rei da Síria, fala na
câmara de dormir!”.
À noite, o rei sírio mandou um exército cercar a cidade onde
estava Eliseu. Bem cedo quando o moço se levantou e saiu, viu-se
cercado por um grande exército com cavalos e carros e disse a Eli-
seu: Ai, meu senhor! Que faremos? E Eliseu respondeu: não temas;
porque mais são os que estão conosco do que estão com eles. E
orou Eliseu: Senhor, peço-te que lhe abras os olhos, para que veja.
E o Senhor abriu os olhos do moço, e viu; e eis que o monte estava
cheio de cavalos e carros de fogo em redor dele e de Eliseu. Veja o
leitor que o moço de Eliseu só via o inimigo; não via em volta de si
o exército que os protegia. Se bem que certos pastores também não
andam vendo, não. Andam cercados de homens armados até os
dentes. Que show da fé é esse? Esse espetáculo já é paisagem de
todos os dias. Apoteótico seria, já pensou que belo, os pastores
cruzando a Avenida Presidente Vargas cercados de cavalos e car-
ros de fogo?!

33
Mas voltando ao moço, foi preciso Eliseu orar, pedindo a Deus
que abrisse os olhos do rapaz. Pois inspirado nessa história resolvi
fazer a mesma oração pelo motorista de Nilópolis, dentro do mi-
croônibus cheio: “Ó Senhor, peço-te que lhe abras os olhos para
que veja…” E o Senhor abriu os olhos ao motorista, e ele viu; e
eis que a Baixada Fluminense era um lindo pomar, cheia de pés de
Laranja. Pés de Laranja 34/35/36/37/38/39/40… 

34
NO CHÃO DA PRAÇA DA MATRIZ

E ncontrei um espírito vagando pelo mundo desde os tempos de


Montaigne. E como não vivemos totalmente no mundo do invi-
sível, precisamos dar um corpo a esse espírito.
Todo conceito é um espírito e Montaigne nos deixou esse con-
ceito de avareza, vagando sem corpo por aí: De vray, ce n’est pás la
disette, c’est plustot l’abondance qui produict l’avarice (Na verdade,
não é a fome, e sim a abundância que produz a avareza). E como
só espírito é intemperança, vamos ao corpo:
Assistia a um filme na velha TV preto e branco quando deu
problema no contraste. Fui ao botão em busca da tonalidade, mas
este já não discernia entre o claro e o escuro, a luz e a sombra.
Girava o botão para a esquerda e a imagem era escuro-clara; girava
para a direita e era uma luz negra.
Não havendo mesmo bons programas desliguei e saí ao portão a
ver se encontrava um corpo para o espírito de Montaigne. De repente me
vem o Celso correndo, trazendo uma escuridade nos olhos e na boca:
- Há uma viúva com fome na igreja!
Como? A igreja transcendia, o dízimo transcendia, a oferta
transcendia… Ora, porque não acendia a vida daquela viúva? De-
veria ser falta de comunicação com o serviço social. Isso! E disse
ao Celso que procurasse o pastor Presidente; que havia um quarto
grande, cheio de comida até o teto. Celso era novo convertido e sor-
ridente saiu a exercitar aquela humanidade e voltei a olhar a rua, a
caçar um corpo para o espírito de Montaigne.

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Era noite de segunda-feira. Mal virei e lá veio o Celso de novo,
correndo, de longe as lágrimas nos olhos. O que foi Celso? Sabe o
que o pastor Poupança me disse:
- Celso, fica quieto que assim sobra mais pra gente!
- Hummmm…
- Não entendi o hummmm!
- Celso, achei o corpo de que precisava. Um corpo na medida
para o espírito de Montaigne. O corpo desse pastor Poupança. Pas-
tor, permita-me presenteá-lo com minha frase veludosa: A avareza
avaria o avarento.
Mas não se perca a esperança. Não há medalhas sem rever-
so. Se há pastor mendigo, há mendigo pastor porque hoje mesmo,
Celso, à tarde (Retine até agora aqui dentro), eu estava no alto da
passarela olhando a Rua da Matriz, antiga Rua do Encanamento na
Década de 20, no século XX, quando uma mendiga saiu da padaria
em frente à praça principal da cidade com uma bolsa abundante de
salgados. Vendo os outros mendigos da praça se aproximar, apertou
a bolsa contra o peito, muniu-se de um porrete. Quero ver quem
vem! Vem! Vem! Gritava. Os mendigos mantiveram distância.
Hoje é uma segunda-feira azul, Celso. Tenho dinheiro no bolso.
E foi com parte desse dinheiro que desci até a padaria e comprei
duas enormes bolsas de pães doces fresquinhos para distribuir aos
não-contemplados. Do alto da passarela tinha me decidido a come-
çar pelo mendigo azul, porque a tarde transfigurava-se em noite e
no céu surgia uma cor em degradê. Azul escuro, claro, clarinho. E
aquela profusão de azuis, conforme fui arriando os olhos foi emen-
dar-se ao azul do terno quase cinza do mendigo no chão da Praça
da Matriz.
Ao me dirigir a ele vi que não queria conversa e ficou de perfil.
Mas se me escondeu os olhos, não pôde esconder o ouvido:
- Amigo, eu trouxe pão doce fresquinho, saiu agora!
Nem era com ele. Então apertei:

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- Quem lhe está oferecendo pão, um dia precisou, e houve mão
que se estendesse e me ajudasse.
E ele puxou o olhar para o meu lado que para surpresa era azul
brilhante no fundo das espessas sobrancelhas. Caminhou até mim,
abaixou-se a pegar o pão e pegou apenas um, ia sobrar, comprei
muitos e lhe disse:
- Pode pegar mais! É tudo para vocês.
Mas o mendigo endireitou a coluna, ereto cavalo-marinho, e
me olhando profundamente replicou:
- Basta um! Há muitas praças pela frente!
E erguendo o pãozinho agradecia ao Deus do céu azul.

37
IV

houve uma tarde em que as garças vieram todas


e emprestaram suas asas ao rio
e ele voou como um passarinho
e gostou de voar e voou até tarde
e as garças sem asas ficaram no leito
e houve um dia, uma tarde
que o rio era branco delírio

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ZORRO VERSUS DOM QUIXOTE

P assei a infância e juventude ouvindo, lendo e respeitando que


a rosa como tudo o que é belo vive pouco. E belo, belo, muito
belo era o chamado do vendedor de pirulito. Chamava a criançada
fazendo tátátátá. O Brasil – acabava de ser tricampeão – amolecia
os corações dos pais que nos davam centavos de cruzeiro novo para
comprar.
O vendedor de pirulito vinha à nossa porta, sabíamos a histó-
ria dele, que se aposentou por surdez – o ouvido! Não deixa a voz
passar pro cérebro e o coração! – e vendia pirulito para completar o
sustento da família. Parece que não mudou muita coisa porque hoje
muitos aposentados continuam trabalhando para sobreviver. Se não
cuidarmos, aposentadoria será palavra vazia.
Nesse período disputava com ele um pirulito muito famoso
cujo dono nunca vimos a cara. O pirulito Zorro era um mascarado.
Zorro chamava a gente de diversas maneiras, até pela televisão, ao
passo que a única propaganda do vendedor de pirulito era a ma-
traca, uma tabuinha com um ferrinho móvel, fazendo tátátátá no
choque de um corpo contra o outro.
Mas não tenham compaixão do vendedor de pirulito, não. No
meu coração era uma verdadeira batalha entre Deus e o diabo. Na
proporção de 2 contra 1. Na rebelião Satanás arrastou 1/3 dos an-
jos, logo, 2/3 ficaram com Deus. Pois era assim a batalha entre
esses pirulitos. Em suas propagandas, Zorro não trazia mais que
um tambor e duas cornetas; anjos barulhentos, arranhando a tarde

39
feito serra; entanto, com o pirulito de matraca vinha um exército de
asas de galos, trotes, chocalhos, músicas das carroças, águas des-
cendo das torneiras, cantando, despindo os pirulitos e o farfalhar
dos vestidos da Monique no varal, a falinha da Monique no ouvido:
Me dá um pedaço!
O pirulito Zorro tinha a forma retangular e o pirulito de matra-
ca era uma lança de Dom Quixote feita de açúcar e fantasias que
a gente descascava na água da torneira. Os meninos da Rua Abílio
Machado nunca viram como era feito o pirulito Zorro. Era um mas-
carado mesmo, mas quem fosse à Rua Capitão Arruda, na humilde
casa do vendedor de pirulito, veria o açúcar derretido caindo do
bico da chaleira como um fio de sonho dentro das forminhas.
Crescemos e durante o tempo em que fomos para os quartéis,
marchar de ombro arma, o vendedor de pirulito, firme pelos becos
e ruas da cidade, carregava no ombro um cabo de vassoura,
cheio de pirulitos. Enquanto da ponta da arma saía fogo, da pon-
ta do cabo de vassoura saía alegria; enquanto nossas matracas
faziam o tátátátá da morte; a matraca do vendedor de pirulito
fazia o tátátátá da vida.
Com ele aprendemos a perceber o ritmo dos nossos índios:
Itinga, Tanguá e Tinguá; Turiaçu, Iguaçu, Cabuçu; Andaraí, Icaraí,
Bracuí; Paracambi, Japeri, Meriti…
Um dia desses almoçava numa pensão quando ouvi um baru-
lho familiar que me regressou aos cinco anos. Larguei a comida e
antes que o barulho dobrasse a esquina corri para ver e era aquela
velha matraca, sendo agitada pela mesma mão negra. Há quarenta
anos vendendo aquela miniatura de lança de Dom Quixote que os
Sanchos Pança insistiam em comparar a um guarda-chuva, mas a
meu ver, metáfora pobre. E desde pequeno eu dizia, não… É uma
lança de Dom Quixote! E me chamavam de doido, Quixote, porque
não enxergava o que os Sanchos viam claramente: um guarda-chu-
va. Como se na palavra coubesse apenas uma fantasia. A palavra

40
é igual a escola de samba, sempre traz uma fantasia diferente. Os
poetas põem curvas nas palavras. Palavra de poeta só faz curva e
no corpo das palavras cabem quantas curvas um poeta quiser. A pa-
lavra no dicionário é um corpo de modelo, magro, reto, sofrendo de
anorexia nervosa e são as curvas do poeta que as salvam da morte
e do esquecimento, mas às vezes nos deparamos com aqueles que
não nos permitem enriquecer a língua e nos acusam de retóricos.
Quem sabe tivessem, eles, visto a lança de Dom Quixote no pirulito
não seria uma Eureka, um achado?!
Comprei todos os pirulitos. Queria conversar com ele e a minha
infância. Pedi a matraca, mas fiz um tátátátá meio torto. Em vez de
sair Itinga, Tanguá e Tinguá, saiu Éden, Tanguá e Tinguá. Quebra o
ritmo. Éden desritma. Vendo o meu desacerto, pôs a mão na minha
e foi ritmando como um pêndulo de um relógio e depois soltou mi-
nha mão de passarinho, flutuando os tátátátás e as crianças vieram.
O vendedor disse que eu já poderia ser um Dom Quixote. Está com
78 anos, cabelo alvo como a folha branca em que escrevo.
Lembro que todos tinham pena dele, neste claro e eterno jogo
de Gigantes x pequenos, achando que o pirulito Zorro iria esma-
gá-lo sob as patas da industrialização em pouco tempo. Tempo…
E os anos deram uma resposta. Agora o pirulito Zorro não existe
mais, enquanto que o vendedor de pirulito continua a agitar sua
matraca. E apesar do seu tátátátá ficar sufocado pelos tátátátás
das armas nos computadores, sempre haverá crianças amando
os Dons Quixotes.
E hoje, observando melhor, percebo, nem tudo o que é belo
vive pouco: A Rosa de Saron não murcha; Dom Quixote fez 400
anos; Dom Casmurro mais de cem; a Arte não morreu; o Verso
está vivo e na minha rua ainda passa o vendedor de pirulito fa-
zendo tátátátá.

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AS MOEDAS DE 25 CENTAVOS

D eu no jornal: Pedir esmolas deixa de ser crime no Brasil. Ouvi


dizer que há projeto para acabar com o Terminal Rodoviário
Coronel Américo Fontenelle e no lugar nascerá um Shopping. Não
sei. Outrora sei é que nesse terminal rodoviário, enquanto aguarda-
va o ônibus a mendiga pediu-me 25 centavos. Saquei a nota de 10
reais para dar, mas um motorista, eta sociedade intervencionista,
desviou minha mão, dizendo: “Manchinha é mendiga abusada! Só
pede 25 centavos! Mendigam e ainda se acham no direito de deter-
minar a quantia! Ora, mendigo é qualquer coisa e qualquer trocado
serve. Onde já se viu exigir 25 centavos? Vai embora, Manchinha!
Vai!”. Porém, Manchinha que cantarolava, afiando uma moeda de
25 centavos numa pedra de amolar, defendeu-se que só pedindo
esmola sistemática de 25 centavos os mendigos fariam o Índice de
Gini (que mede a desigualdade de renda) recuar mais e mais. O
Índice de Gini, – afirmava a menina – é um Golias a ser derrubado.
Precisamos cortar a cabeça do Índice de Gini. Por isso afio minha
moeda. Quem lhe deu essa inteligência?
Quanto aos motoristas e cobradores pedi que ouvissem porque
lhes tinha a contar essa história: fiz a faculdade com fome e falta de
dinheiro de passagem e certa noite caminhava para o fim do curso
de Direito, chovia muito e não tinha o dinheiro para voltar à Baixa-
da Fluminense. É longe do centro do Rio à minha cidade. Conhecia
o fiscal e confiei na carona que ele sempre me dava, mas ao chegar
aqui na rodoviária, dei com uma enxurrada de placas escritas em

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vermelho: Proibido dar Carona. Além do fiscal, agora havia o fiscal
do fiscal para evitar caronas. Pedi assim mesmo, contudo, nenhum
de vocês teve a coragem de me ajudar e então fui para a estação
Pedro II porque lá, num certo horário, com seu latão de lixo, o ho-
mem da limpeza passava por um portão que dava acesso aos trens
e quem estivesse ali era beneficiado. Quanta gente aquele homem
ajudou! Entretanto, naquela noite o homem estava lá, o portão se
abriu, dava para passar, porém, os trens estavam impedidos de
circular de tanta chuva que era. Netuno, Rei dos Mares, com seu
tridente, furioso, furava nuvens e nuvens sem parar, lutando para
deter o Dragão da Inflação que cuspia fogo a uma altura de 3.700%
sobre o país. E o Rio cujo hábito é de pernas para o mar, naquele
verão estava de pernas para o ar.
Quis voltar à rodoviária, mas a rua já estava alagada e um ver-
sátil camelô simultaneamente vendia guarda-chuvas e sombrinhas
e com uma espécie de carro de madeira sobre rolimãs cobrava 1
real para quem quisesse passar com os pés em seco, amedrontan-
do com doenças como leptospirose e outros tipos. Uma senhora
chorou uma promoção e subimos naquele altar improvisado e atra-
vessamos os dois pelo preço de um, todavia, só até ali a senhora
pôde me ajudar. Com os pés em terra firme, agora era esperar
o dia e ver se chegava algum conhecido que me emprestasse
dinheiro. Se era terrível o combate entre Netuno e o Vulcano
Dragão Inflacionário, cujo fogo já ultrapassava os 3700%, den-
tro de mim travava-se outra batalha não menos pior entre duas
vozes, pondo os neurônios em tormenta já que a voz da direita
afirmava existir um caminho na tempestade e a da esquerda me
fazia olhar as placas “Proibido Dar Carona”, lembrar dos trens
fora de circulação e arrematava: Teus caminhos estão fechados.
De repente avistei uma mendiga e pensei comigo se ela poderia
conhecer algum motorista amigo e pudesse me dar uma carona.
Com muito jeito me aproximei e perguntei se…

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Usava um vestido branco de alcinhas sobre o corpo negro e
acanaveado. Pedia esmolas, mas corpo e voz tinham a paz finan-
ceira para escrever um romance com arte. No colo, a menina. Mãe
e filha agarradinhas, dígrafo inseparável. Ela ergueu a cabeça e
devagar afundou os olhos em mim; olhar que nunca mais recebi
na vida. Um dos braços desamparou a filha, estendendo-se e sua
mão se foi inclinando até ficar arrampada, abrindo-se lenta como
flor e várias moedas lhe desceram às pontas dos dedos como água
escorrendo, formando um mar de prata. E como reluzia! Ela nada
perguntou nem desconfiou, somente disse: “Toma! Vai pra casa!” E
fiquei inchado feito um sapo, com uma força que poderia me levar
para casa andando, mas um motorista que havia encostado o ôni-
bus, sem percebermos, tinha ouvido a conversa e ao lhe perguntar
se poderia me dar uma carona, sem pestanejar, disse: sobe! Nas
mãos daquela mendiga havia muito mais do que o valor da passa-
gem e me ofereceu tudo, mas não precisei e ela voltou a fechar a
mão de flor com todas as moedas, todas de 25 centavos, azuladas
por relâmpagos. E esta, a quem chamam de Manchinha, naquela
noite, enquanto a mãe me oferecia esmola, sorria para mim com
esse mesmo sinal no olho esquerdo, parecendo o mapa da África e
não tive dúvidas: Podem acabar com o Terminal Rodoviário, posso
não me lembrar da existência de uma rodoviária, mas da mendiga
que me ofereceu toda a sua esmola como poderei esquecer se as
ruas andam cheias delas?! O vírus da desigualdade é como vírus da
Aids: não tem cura.

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OLHOS VERDES

C erto homem bom dos olhos verdes encontrou pela manhã em sua
calçada um mendigo, dormindo embaixo de jornais e tremia. 
Meu Deus, que vida é essa? Vai que passam alguns garotos
desses que têm dinheiro e nunca têm intenção de matar, ape-
nas buscam uma nova forma de diversão, e põem fogo nesse
mendigo?!
Meu pai ainda era assim. Com os outros era: Chamou madras-
ta, também das vistas verdes, redondinhas uvas verdes, e recomen-
dou que o acolhesse, comida, roupa limpa e dinheiro para fazer
barba, cabelo e bigode.
Na calçada, durante as noites polvilhadas de estrelas cadentes,
eram vistas agora três cadeiras: o ex-mendigo, o Homem Bom dos
Olhos Verdes e a esposa. E às vezes sentavam o Homem Bom dos
Olhos Verdes, o ex-mendigo e a esposa; o Homem Bom dos Olhos
Verdes, a esposa e o ex-mendigo.
Vendo sempre esta cena, passou um mais velho que disse ao
Homem Bom dos Olhos Verdes:
Se encontrares uma raposa morta na estrada
arranca-lhe setes dentes sem anestesia
antes de levá-la para casa.
- Por aqui passa de tudo: desde o carro da pamonha aos pa-
monhas filosofistas-filosofantes-filosofastros com suas filosofices e
filosofismos. Hahaha! Com essa maximazinha, no máximo, velho,
ficarás no folclore da cidade. É uma figura!

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- Homem Bom dos Olhos Verdes, é verdade que já existe o chip-
-neurônio e as células vão demorar a envelhecer, você alcançará tudo
isso, mas essa maximazinha é fruto de toda uma vida em combate
com as raposas. Desde as secretas, discretas, às de dentes à mostra.
- Vade Retro, velho! O folclore te espera!
Tentei insistir, porém, o Vade Retro metralhava-me as palavras
e o Homem Bom dos Olhos Verdes não pôde ouvir que o homem é
sempre homem.
Um dia, fazia novamente frio, vinha eu pela Rua do Homem
Bom dos Olhos Verdes e percebi que o mendigo tinha voltado a
dormir na calçada sob jornais. E pensei: mendigo não tem jeito
mesmo! Olha só! Cara-de-pau! E o mundo ainda reclama a falta de
ajuda! Voltou para a fria calçada. Feito um cão que volta ao seu pró-
prio vômito. Gosta da sarjeta. Ou será que a casa do Homem Bom
dos Olhos Verdes é igualzinha a esses inóspitos abrigos?

Era tarde da noite. Rua mal iluminada apesar de bem paga a infe-
liz da CIP (Contribuição para a Iluminação Pública). Muito escuro
mesmo. Da casa do Homem Bom dos Olhos Verdes vinha música
romântica sob meia luz e aroma de perfume escapava pela fresta
da janela. Acendi o isqueiro para olhar bem dentro dos olhos do
mendigo e lhe dizer umas verdades. Quando levantei as folhas de
jornal: o mendigo tinha os olhos verdes e tremia.

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TUDO, MENOS OVO

O avô com a neta no colo murmurou, recordando… Tudo, Menos


Ovo.
- O que é Tudo, Menos Ovo?!
- Tudo, Menos Ovo? Bem… É uma filosofia de vida. Praticada por
muitos nessa vida minha netinha. No quartel Vô era conhecido como 25
e meu amigo como 74. Era um dia de primavera e eu estava de serviço
na Marinha quando 74, cabo cozinheiro, passou no seu opala para casa.
Daí a pouco chegou uma ligação dos fuzileiros do portão da guarda para
o oficial de serviço, dizendo que havia gatos no opala de 74. Gato é gíria
marinheira e significa furto. O oficial mandou 74 retornar e quando fez
menção de entrar no carro e pegar os gatos, o oficial de uniforme bran-
co, interrompi rapidamente: Meu chefe! Meu chefe! Ô meu chefe! Não
entre nesse opala sujo, não é preciso se sujar, deixe que eu entre! E já foi
entrando. O oficial afastou-se, lisonjeado, deixando a inspeção com 25
e foi para a sala de estado. Lanterna acesa, verificando tudo, de repente
saltei do opala com duas plaquetas de ovos. Aqui, chefe! Duas plaquetas
de ovos que esse descarado estava levando pra casa! Mas, oh, ele diz
que é para fazer o bolo de aniversário da filha dele!
- Ô cabo, você não tem dinheiro para comprar duas plaquetas
de ovos para o aniversário da sua filha?
- Tá brabo, tenente! Um cabo ganha pouco… O senhor sabe!
De fato houve um tempo na Marinha em que um cabo ganhava
menos que um policial militar. Muitos cabos saíram da Marinha
nesse tempo. Foram enpurrados. Houve esse tempo na Marinha.

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- Mas duas plaquetas de ovos?! Olha, só não vou lhe prender
porque é aniversário da sua filha; some daqui antes que eu me ar-
rependa! 25, pode liberá-lo. E lá se foi o 74 em seu opala rebaixado.
Depois que um oficial faz inspeção num carro quem é louco de
pará-lo? A Marinha ainda é dos oficiais. Já não é tanto porque se
um oficial chama um marujo de “viado” paga danos morais, mas
ainda é dos oficiais e 25 e os fuzileiros sabiam muito bem disso;
que ainda em muitos casos, dez irracionalidades de um oficial va-
lem mais que mil razões de um soldado. E dizem que a autoridade
repousa sobre a razão, mas que razão é essa que coa o mosquito e
engole o camelo? Condena três reais e absolve milhões? E quando
condena o camelo absolve o elefante?
Tempos depois, 25, já aposentado, o genro chegou falando de
um 1º sargento, sargentão cozinheiro que estava comandando o
rancho: Quem for pego roubando vai preso, expulso e antes de sair
vai se encontrar comigo…
Curioso, 25 perguntou ao genro: como é o nome dele?!
- Sidiney, mas o chamam de 74!
- 74?! Então você vai chegar perto dele e dizer apenas isso:
Tudo, menos ovo! E vai embora.
Assim fez o genro de 25 e mais tarde o sargento foi atrás dele
e perguntou o porquê da frase: Tudo, menos ovo!
- Sou o genro do 25!
O sargento tirou o quepe e o genro ficou sabendo que na noite
do aniversário ao chegar a casa, cercada pelas amiguinhas, a filha
logo perguntou se ia ter de tudo na festa dela. E papai 74, de testa
franzida, disse: Tudo, menos ovo! E da mala do carro foi tirando
carne seca, contrafilé, refrigerantes, Balatines, Contreau, lagosta,
coelho ao vinho… Tudo, Menos Ovo.

48
V

sábado
vai dar uma da tarde
e o rio não desencarde
água boa para afundarmos nossas tormentas
nossos navios de guerra
água boa para se abandonar Raquel  Ana Bolena  Ana Belona
nele o narciso não sacia nem vaidade nem rugas
nele não se vê peixe
mas ele está lá
já cadáver
jogados pelos feirantes
nele não se vê deus
mas ele também está lá
dentro da escuridade
e se ficarmos de longe
sem olhos hamulares
sem mãos de garatéia
a vida não desencarde
vão dar duas da tarde
e do rio
a graveolência que sobe
não pula como um verso saltitante
não marcha como o verso doutrinado
caminha como um rio abandonado

49
domingo. o domingo começa com uma garça num galho
sobre o rio
mas o rio não tem mais peixe
e nem os peixeiros vieram
e nem sempre onde há garça há peixe
pode ser o costume, pode ser teimosia
aguardando ressurreição
à margem  do rio
uma árvore  com suas flores vermelhas
tinge o mês de março
e justapõe o vermelho da pétala ao negro da água
enquanto isso: branca, branca, branca
a esperança muda de galho

50
A LENDA DO SOL PARA UNS

N uma terra longe, muito longe, fora do espaço e do tempo, o sol


nascia para todos. E a terra girava e o sol entrava na casa de
todos. Entrava sem ser chamado. Bebia café, suco, leite... Furtava o
verde das frutas e empalidecia o azul, as cores das toalhas de mesa
e as cortinas. E essa era a sua rotina até que um dia o sol entrou na
casa de um burguês, quando ainda não o chamavam assim, e be-
beram vinho grego, café, sucos, cores, regalaram-se como podiam
entre porcelanas e talheres de prata. Mas, quando quis ir embora,
sua mão amarela estava presa na fruteira. Sua mão amarela, por
mais que usasse vigor do seu calor, não conseguia amarelar as fru-
tas. Fez força e libertou a mão. Então, andando de um lado para o
outro, confuso sem saber o porquê, tomou mais um gole de café,
lambeu manteiga, chocolate, e enfiou sua unha quente no queijo,
descansando nas asas de um colibri, ouvindo um clássico e disse:
- É questão de honra. Enquanto não amarelecer essas frutas,
daqui não sairei. E novamente sua mão encobriu de luz as frutas.
E o burguês, sorrindo, alisava na fruteira as suas frutas de plástico.

51
VOTAR AO ENTARDECER

O impacto da crise financeira internacional atingiu o preço da


farinha e do pãozinho e agora está atingindo a crônica.
Antes minha mão escrevia de 45 a 50 linhas, depois da cri-
se, trinta, trinta e cinco, porque estando o pãozinho mais caro, eu
como menos, vejo menos, penso menos, escrevo menos, embora
seja da alma da crônica a economia de palavras.
Comendo menos e querendo continuar a comer a mesma coisa
mudei a hora do almoço, almoço mais tarde, quando o preço cai para
R$0,69. Descobri esse preço andando de mãos dadas com a crise, en-
trando, como de costume pela Rua da Bolsa de Valores, Rua do Merca-
do a ziguezaguear ali por dentro, atravessando a Travessa do Comércio
para atingir o Centro Cultural Banco do Brasil. Haver restaurantes com
placas de almoço nas calçadas por lá é natural, estratégico.
Foi uma dessas placas de almoço exposta na calçada que me
fez lembrar o entardecer. Nela estava escrito: 100 gramas -> R$
1,30; após às 14:00 H, 100 gramas -> R$0,90; após às 15:00 H, 100
gramas -> R$0,69.
Com uma placa dessas não é difícil imaginar uma conversa
numa daquelas salas de escritório nos sobrados:
- Você vai almoçar agora?!
- Não, não! Não estou com fome! Gosto de almoçar tarde, bem
tarde porque amo o entardecer.
À feira também há muitas mulheres que gostam de comprar à
tarde, bem tarde porque amam o entardecer. Já na feira de meninas

52
o entardecer é na segunda-feira e aí os homens correm a comprar
os melões, melancias, coxas e batatas de pernas por R$0,69. Veja,
comprando milho se descobrem essas coisas. Comprava milho e um
dos compradores foi abordado por uma dessas meninas e a dica do
entardecer veio na boca do vendedor de milho:
- Hoje é segunda, é fraco! A Crise! Dá um milho que ela vai! E
me veio um verso duro, mas um verso: 100 gramas de menina ao
entardecer. Uma Vênus de Milho chama o trocadilho.
Olhando esses três casos, dos restaurantes, da feira e da feira
de meninas, parece que ao entardecer tudo fica mais barato. Não,
não. O vinho entardecido não é mais barato; o voto entardecido não
é mais barato, porque enquanto na feira de domingo uma alface co-
meçava com o preço lá em cima e à tarde ia caindo; paralelamente
na feira de voto dessas eleições, o voto começou com R$30; após o
meio dia, R$40; após as 15:00H, R$70.
Logo é de se esperar para as próximas feiras de voto, que es-
ses feirantes votem sempre ao entardecer. Até os aposentados com
mais de setenta estão se preparando e não querem deixar de votar,
ninguém sabe a trajetória do dólar!
- R$70 ou R$80 é mais um que vai entrar – dizem eles- para
ajudar na compra do pãozinho.
E o político velho ensina ao político novo:
- Rapaz, rapaz, não fique trabalhando o ano inteiro, gastando
o seu dinheiro. Eu vou ganhar a eleição no dia...
E o eleitor ao entardecer...

53
FILOSOFIA DE GIBEONITAS

H á dois morros separados no espaço e no tempo, não tão sepa-


rados assim. Não depois da minúscula analogia que descobri
entre eles. São os morros da Caixa D’água em Vila Tiradentes ,
Ocidente, e o morro onde ficava a cidade de Gibeon, atual Al-Jib,
Oriente. Por conta da arqueologia poderíamos dizer que Gibeon foi
o morro do vinho: acharam caves de 95.000 litros . Por minha conta
acrescentaria, Morro do vinho e das raposas.
No morro da Caixa D’água, onde hoje é uma escola, foi
outrora um descampado e nele ficava o cômodo da minha dona,
Zailde, construído de latas de 20 litros abertas feito folhas de
jornal e ripas de caixote de feira. Não fui cão primogênito, sou
secundogênito e por isso tive de sair pelo mundo à conquista
do meu feudo e conquistei esse pedacinho de terra e de gente
chamado Zailde que pensa é minha dona, mas eu é que sou
dono dela. Fui usucapindo Zailde no peito e na raça, apesar da
minha raça. Os outros cachorros me respeitam de Paulinho, mas
antes de chegar aqui, fui cachorro de igreja, de porta de cadeia,
tenho bagagem…
Zailde como era conhecida, nunca soubemos seu nome real.
Era mulher carnalmente sozinha, abandonada, jornais embaixo do
braço, lido nos mínimos detalhes; corpo dominado por rugas, sujei-
ras, monólogos e a ela juntavam-se os cães abandonados. Acompa-
nhavam-na àquela altura 16 cães. Eu no comando. Zailde tinha um
marido invisível, falava com ele, andava abraçada com ele. Tinha

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também uma irmã invisível e metia o malho nela pelas costas. Um
malho com amor que nós, os cães, entendíamos:
- Acelera o passo. Preciso fazer feijão. Eu amo minha irmã,
mas ela fala pelos cotovelos… Também, não tem marido, não tem
filho, Não tem cachorro, não tem cronista de conversa comprida…
Acelera o passo. Preciso fazer feijão. Eu tenho marido…
E era romântico ver a lua cheia no meio do céu e a silhueta de
Zailde abraçada ao marido invisível, em quem chegava a se escorar,
andando pela noite com aquela comitiva canina atrás dela. Eu lide-
rando sempre. Sim… Era romântico até o raiar do sol sobre aquela
quase morte.
Dissemos quase morte porque no botequim do Joaquim era
a viva mais esperada para onde descia a comprar um cigarro, às
vezes café, às vezes vinho. Não pagava nada. Não que gostassem
dela. Por interesse e conveniência é que o mau cheiro era tolerado.
É que Zailde depois do café, do vinho ou cigarro escolhia um no
bar, se aproximava e murmurava-lhe uns números. Às 14 horas era
batata: dinheiro no bolso. Milhar na cabeça.
Mas Zailde escolhia categoricamente um enforcado. Quase dei-
xando de ser gente. Um empurrado. E não adiantava astúcia de
gibeonitas que ao ouvirem o que Josué fizera a Muralha de Jeri-
có, a Jericó e a cidade de Ai, tiveram medo, usaram de estratégia,
apresentaram-se a ele com sacos velhos, odres velhos, sapatos ve-
lhos, roupas velhas, pão seco e bolorento, tudo velho, parecendo
uns pobres coitados e arrancaram do ingênuo Josué um pacto de
aliança. Logo Gibeon, cidade no alto de um morro melhor do que
o morro da Caixa D’água, rica em pastagens, vinhas, pomares, oli-
veiras… Não… Zailde não era ingênua… No botequim do Joaquim
apareciam uns camaradas de dar dó, o jogo de sinuca chegava a
parar a ouvir cada história mais triste do que a outra; lágrimas…
Mas Zailde olhava-os e soltava asperezas:
- Sai daqui, Raposa! Fora, Ulisses! Detesto Minerva!

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No botequim do Joaquim apareceu até um garotinho de san-
dália velha, short velho, camiseta velha e chupeta velha. Zailde en-
trou e ficou olhando o menino… Geralmente as mulheres começam
olhando os homens pelos pés. Disfarçam é claro. Principalmente as
que fumam: jogam a fumaça para cima e arriam os olhos em nós,
escaneando de baixo para cima. Por um instante Zailde se como-
veu, porém, aproximando-se mais, perguntou:
- Cadê teu pai?
- Em casa.
- Menino mentiroso! Ide dizer àquela raposa…
E o garotinho despencou para o Land Rover do pai que o aguar-
dava rua abaixo. Treinados desde pequenos… Como tem gibeonitas
nesse mundo…
Ah, minha Zailde morreu… Gostaria que estivesse viva para
olhar bem nos olhos dos donos dos bancos e dessa crise. Parece
astúcia de gibeonitas. Senhores, a dúvida é um direito filosófico.
Ainda que a filosofia seja de 2ª categoria, de botequim do Joaquim.
É que tem muitos gibeonitas nesse mundo e qualquer filosofismo
os detecta, por exemplo, em Davos, no início do ano, dizia a notí-
cia: “Menos caviar, mais presunto. Crise muda cardápio em Davos,
Suíça. O tradicional banquete de caviar e lagosta, regado a cham-
pagne, oferecido pelos grandes bancos nos salões de Davos deve ser
substituído por queijo, presunto e vinho branco no Fórum Mundial
Econômico com medo de passar uma imagem de ostentação num
momento em que empresas demitem aos milhares…”. A raposa é
bicho de muitos esconderijos. Aqui, no mesmo passo, alguns pas-
tores, com medo de passar essa imagem de ostentação, alugam
vagas em postos de gasolina, onde deixam seus carrões do ano,
Land Rover, Land Rouber, Corollas e saem de lá para as igrejas num
fusca velho, Brasília velha, caindo aos pedaços. Em vez de imi-
tar a Cristo, imitam Davos. Gibeonitas! Por que imitar Davos? Não
consta nas Escrituras Sagradas que Cristo tenha ido até Jerusalém

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de cavalo branco como os grandes reis e lá arrumado um burrinho
para fugir à ostentação.
Além de Zailde, gostaria que estivesse vivo o meu xará, Pauli-
nho, o Paulo Mendes Campos que em sua crônica, “O Carioca e a
Roupa”, disse: “Não conheço outra cidade em que a roupa tenha
tanta importância como aqui no Rio”. Se estivesse entre nós, ele
veria que o medo mudou o cardápio em Davos e aqui no Rio mudou
a moda. O carioca adotou a moda gibeonita de se vestir, a moda da
raposa. O carioca não tem sido gibeonita por persuasão, mas por
medo e o medo, como a guerra, não persuade, coage. É a crônica do
medo. O medo é pai do Gibeonismo e, por favor, Gibeonismo é in-
venção de cronista, não sou filósofo, sou um cão e vira-lata. Porém,
vira-lata que discorda da filosofia do livro “Temas de Filosofia”, 3ª
edição, que diz não existir razão alguma para a moda; o porquê de
um estilo, tecido, tipo de roupa ser decretada como “moda” não é
explicado, apenas se pode “constatar”. Au! Au!Au! Engana-se quem
pensa haver na moda apenas o ponto-de-vista objetivo de proteger
o corpo. Quem disse que vocês são apenas corpo?! A moda protege
o corpo e alma, daí estilistas indicarem tecido desta ou daquela cor.
Para uns não basta o tecido, mas o tecido amarelo de Oxum; para
outros o azul de Oxaguiã, Iemanjá… Um vestido curtinho não pro-
tege todo o corpo, mas a proteção é completada com couro, botas
de couro até as coxas… Protege inclusive o vendedor de couro da
falência. Só não protege a vaca e o jacaré, infelizmente, mas au! au!
au! Olha aqui o mercado como razão para a moda: numa estação
quem vende tecido, vende mais tecido, noutra, quem vende couro,
vende mais couro. Uma outra razão, como vimos, é o medo. É olhar
o carioca e verificar: gibeonitas com medo de Josué.
- Se o povo tem sido ingênuo Josué fazendo aliança com os
gibeonitas? Quem me faz essa pergunta? Ah, sim, o Pitt Bul da pata
quebrada que foi jogado fora. Pitt, o que foi uma estratégia, hoje é
filosofia… A filosofia de gibeonitas. O próprio Joaquim do botequim

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traz o pano da mesa de sinuca sempre roto, o botequim encardido
igual aos rios desse planeta e na própria boca do Joaquim a mesma
velha frase à beira do balcão: tá brabo, rupaz! Digo que sim, o povo
tem sido ingênuo. Ingênuo ou despreparado? Despreparados diz o
Professor. E os gibeonitas e seus cachorros têm ficado com as gran-
jas de ricas pastagens, as vinhas, os Dom Pérignon, os pomares, as
oliveiras, o caviar… E vamos vivendo assim de máscara em másca-
ra. Se estiver cinza, máscara azul; se estiver azul, máscara cinza…
Por falar em máscara me lembrei do “Tira o dedo do pudim”, um
dos mais famosos clubes de morro no Rio Antigo, frequentado por
minha tataravó, Layka, onde o Carnaval esquentava, o morro bai-
lando à luz dos lampiões e gibeonita que não acabava mais, todo
mundo mascarado porque na portaria tinha um bom aviso para os
dias de hoje: “É proibida a entrada de ladrões conhecidos…”
Gostaria que fosse uma analogia fraca, mas depois de tanto
vinho: pus o dedo no pudim.

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O DELEGADO DO MEC

N o tempo em que orelhão funcionava à ficha, apareceu na TVE o


ministro da Educação, Maurílio Hegel, anunciando a abertura do
Crédito Educativo e as inscrições poderiam ser feitas nas faculdades.
Dláucio Velas entrou na faculdade. Como ele, muitos se desfize-
ram dos bens de família, cama, fogão… Para suportar as mensalidades
até o possível crédito. Vendeu, creiam, a cafeteira para inteirar…
No seu ouvido zumbia a voz da mãe de uma amiga: Seu ma-
luco! Não vê que vende tudo e você, no máximo, só vai até ali e
pronto? E o enrugado indicador da mulher, rígido como ferro, deli-
mitava a pequena distância.
- Mãe, deixa o menino tentar! Mas D. Leocádia insistiu:
- Que garantia você tem de que será contemplado com o crédi-
to, rapaz? Você é vidente por acaso?
- E a senhora é vidente por acaso? Que garantia a senhora tem
de que não serei contemplado?
Na faculdade de Direito foi uma alegria a notícia do crédito.
Dláucio e a galera ficaram esperando a colocação dos cartazes nas
vidraças da faculdade, mas o tempo foi passando e nada. Velha ma-
nia da última hora e quando fomos perguntar a secretária jogou um
balde de água fria, dizendo que a faculdade não estava inscrita no
Programa do Crédito Educativo. O Diretório Acadêmico confirmou.
A secretária acendeu um cigarro, nublando os olhos. A fumaça
formava o sorridente rosto de D. Leocádia. A secretária voltou à
burocracia. Ah, o olhar! Os olhos arregalados da secretária do Di-

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retório Acadêmico, somados aos da secretária da faculdade me dis-
seram algo. Todos desceram de elevador para embebedar a derrota
no bar ao lado, menos Dláucio que preferiu a escadaria, pensando
em ir ao MEC, verificar, mas àquela hora o expediente já estava
encerrado e era o último dia de inscrição.
Importunar um juiz com um pedido de Liminar com uma sus-
peita no olhar… Onde estaria o “Fumus Bonis Iuris” (Fumaça de
Bom Direito)? Embora nunca soubesse na vida de um mau direito.
A única fumaça que eu tinha era a do cigarro da secretária. Naquele
tempo a faculdade estava recebendo visita de alunos estrangeiros e
conforme Dláucio descia, uma coisa estranha foi acontecendo.
Subindo passou por ele uma francesinha, loirinha, e lhe dis-
se: “A corsaire, corsaire et demi”, mas ele não sabia francês. No
andar seguinte, subindo uma inglesinha, loirinha, lhe disse: “To
catch a thief, another thief”, mas ele não sabia inglês. De re-
pente veio subindo uma brasileira loura, louro-passageiro, corpo
cheio de curvas que dançava de degrau em degrau, parou cinco
degraus acima e feito uma deusa, traduziu: “O que as outras
loirinhas disseram é que “Para maluco, maluco e meio”. Pôs um
beijo no indicador e soprou para ele e subindo, fez a curva. Toda
cheirosa. Só nos cremes.
Quando Dláucio virou já era o fim da escada e deu de cara com
o orelhão que tinha um ovo branco em cima, em pé, chamando a
atenção. Ali tive a ideia maluca e meia de ser o Delegado do MEC,
mas lá fora um homem de terno e bíblia na mão, gritava: “Ficarão
de fora os cães, os feiticeiros, os adúlteros, os idólatras, e todo o
que ama e pratica a mentira”. No mesmo instante desciam dois
alunos que discutiam sobre o filósofo Immanuel Kant e um deles
vociferava: Jamais mentir, seja qual for a circunstância!”, porém a
morena-loura os expulsou e me olhando, cantou: “advogado que se
preza não se espante, não é crente, nem lê Kant e seu meio a todo
instante, justifica-o seu fim!”.

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Juro, até queria ter, como Sócrates, um caminho reto, mas
quando erguia os olhos via que a própria escadaria da Faculdade
de Direito fazia curva… Arrematei: Deus escreve certo por linhas
tortas mesmo! Ora, na Grécia com os gregos, em Roma com os ro-
manos, no Brasil com os brasileiros, era questão de sobrevivência.
E que mal há nas mentiras positivas, Desembargadores?
Usou a única ficha e ligou para a secretária da faculdade e com
uma voz de Bulldog, trovejou:
- Boa tarde! Aqui é o delegado do MEC e quero saber por que
vocês ainda não afixaram os cartazes do Crédito Educativo?
E com voz reprimida, pediu a raposa:
- Por gentileza, o senhor poderia ligar daqui a uns dez minuti-
nhos que eu vou descer para verificar no departamento?
- Está bem. Dez minutinhos. Trovejou de novo. Nem foi preci-
so. No térreo, logo apareceu a secretária, arrastando atrás de si uma
cauda longa e felpuda de seis funcionários tão cúmplices quanto
ela, e desesperados, abriam os pacotes e colando, colaram cartazes
até nos banheiros.
Dláucio chamou o pessoal que estava no bar, fizeram as ins-
crições e 32 deles, Dláucio também, foram contemplados com o
crédito. Mas o que os 31 contemplados nunca souberam é que do
choque entre duas mentiras nasceu uma verdade.
E à noite, Dláucio Velas ficou pensando: não sou delegado
do MEC, mas estou preparado para ser político e principalmente,
advogado. Transformar o quadrado em redondo, retângulo, tri-
ângulo, acutângulo…

61
VI 

 Garça! Garça!
a vida farpada de anzol
o corpo cheio de garatéias
por um tempo ficou preso
marionete
mas todas as linhas rebentaram
o peso do sonho era maior
seu dever de casa é a poesia 

62
CAJÁ FERIDO DE RAIO

S erei escritor, nem que seja por usucapião.


Caiu um raio no pé de cajá de uma vizinha e um cajá ferido de
raio veio parar na rua e o apanhei. Era o único no pé.
- Come não, moço, que é cajá ferido de raio! Disse a vizinha.
O pé de cajá secou todinho.
Durante esses quarenta e cinco anos de vida, sempre reclamei
que ninguém nunca fizera a minha vontade. Pois eu vinha desde o
centro do Rio com vontade de comer uma coisa diferente, mas não
sabia bem o que era. Quando a dona do cajá falou “come não que é
cajá ferido de raio”, disse a mim mesmo: “taí a coisa diferente: Cajá
ferido de raio”. Era cajá – manga.
Fiz a minha vontade. Levei-o para casa, lavei-o e o comi com raio
e tudo. Fiquei perto do banheiro para o caso de uma reação; afinal,
não é todo dia que se come um cajá ferido de raio e as ciências nem
as filosofias ainda não puderam prever o que acontece a alguém que
ingere cajá ferido de raio. Nada aconteceu. De repente uma tremedeira
tomou conta de minha mão. Imaginei que fosse o efeito retardado do
Stugeron 75 mg do qual fiz uso em alto mar nos tempos de marujo. Eu
parecia o Mister Parkinson, mas não era nem remédio nem Parkinson.
Descobri ao tocar numa caneta. Minha mão saiu escrevendo papéis e
mais papéis: crônicas, poesias, prêmios literários, homenagens… Aí
começaram a me convidar para os tais “Encontro com o escritor” e
as perguntas que eu mais temia eram: como você fez essa história?!
Como é que você fez? Como foi que… Outro dia me dei conta que a

63
resposta era: “depois que comi cajá ferido de raio”. Mas que raios de
escritor é esse que nos fala uma bobagem dessas? Cajá ferido de raio?!
Pois é! Quando me perguntam como é que eu escrevi, ninguém
aceita minha resposta de que foi depois de ter comido cajá ferido
de raio, mas quando vão aos encontros com escritores famosos e
fazem a mesma pergunta: “como você escreveu essa história?” e
a escritora famosa desvia daqui e dali e, após uns cinco minutos,
olha para quem perguntou e dispara: “Eu fiz 9 anos de análise.”;
ninguém diz que é bobagem. Pelo contrário, há um monte de jo-
vens indo a terapias e analistas para se tornarem escritores, como
se Literatura fosse apenas autoajuda, terapia, psicologia…
Literatura pode não ser cajá ferido de raio, mas também não é
autoajuda, terapia, psicologia… Há outros pontos de vista.
Ora, você já comeu cajá ferido de raio? É mais saboroso e mais
barato do que 9 anos de análise.
Por falar em psicologia, já falei sobre outras falácias aqui na co-
luna, que crônica não é texto cheio de nove-horas, mas, pelo amor
de Deus, crônica também não é remédio. A crônica não é como a
Pomada-de-Peixe-Elétrico que cura pé destroncado, espinhela caída
pelo marido… Se curar, curou por tabela.
É que outro dia vieram me chamar para fazer um trabalho de
crônicas numa escola. A conversação ia bem, até que disseram: vai
ser bom! Hummmm… Nós temos duas 5as séries terríveis. Olha, a
crônica também não doma leões. Seu chicote não deixa marcas; seu
estalar é suave no chão da alma.
E surge algo novo no céu da responsabilidade que é preciso de-
senfarruscar. Lá para trás, no Jardim do Éden, quando Deus perguntou
para Adão, querendo um responsável pelo pecado, Adão transferiu a
responsabilidade para Eva que a transferiu para a serpente.
Hoje as mães transferem a responsabilidade para a escola, e
agora há escolas, transferindo essa responsabilidade aos poetas e
cronistas, artistas. Tudo bem, mas não como remédio.

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Não sei se ainda é assim, mas li num livro que na Alemanha se
ensina poesia a partir da 4a série do fundamental. Para todas as 4as
séries e não só para as problemáticas.
Por favor, não me chamem mais para domar alunos terríveis de
5ª série, principalmente se for de graça.

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A MULHER DO PASTOR

I nconsolável chorava a mulher de um pastor, e as outras irmãs em


Cristo se condoeram:
- Está triste, irmã Gilalbina?
- Sim, minha filha! Muito triste, mesmo!
- E o que houve pra senhora ficar assim, santo Deus, a igreja
toda está reparando!
- A irmã Ângela foi embora da igreja!
- Por quê?!
- Não sei! Não sei!
- Mas irmã Gilalbina, muitas irmãs foram embora da igreja e a
senhora nem ligou!
- Ah, mas essa é a irmã Ângela, entende?! Gostava muito da
Ângela. Vou sentir tanto a falta dela. Dava o dízimo tão direitinho!

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TESTA DE TANQUE

H oje não falarei de Aquiles lá fora, furioso com Troia, mas da


fúria de Ulisses dentro de suas próprias águas. Falarei sobre
tanques de guerra, mas de guerra doméstica. Tanques de lavar rou-
pa. Roupa suja bem.
Nos fundos de minha casa Seu Gumercindo fazia tanques de
cimento para o dono de uma loja de material de construção que
também era o nosso locador. Como vendiam os velhos tanques.
Seu Gumercindo era pouco para tantos tanques. Espalhava como
modelo pelo chão e ia enchendo de Cimento para depois com os
grampos de vergalhão UNIR como contraditório. Eis o poeta. Nunca
me esqueci da cena: tanques esquartejados no chão e de repente as
mãos de Seu Gumercindo unindo um osso e os nervos de vergalhão
ligando tudo. Que cirurgião-ortopedista! Aprendi.
Hoje os anúncios chamam para comprar tanquinhos de diver-
sas marcas, entanto, naquele tempo, nenhum tanque saia com uma
marca “Seu Gumercindo”. Nem por isso ele deixava de rir para a
vida. Ria e como ria, ocasião em que eu o chamava de Seu Gumer-
cindo Testa de Tanque. Sua testa fazia as mesmas ondulações de
um tanque de roupa. Sob o sol, às vezes coincidia de mamãe estar
esfregando uma roupa nas ondulações do Tanque e Seu Gumercin-
do esfregando o lenço nas ondulações da testa. Mamãe estendia
uma roupa limpa não varal e Seu Gumercindo guardava o lenço
sujo e com dinheiro suado não Bolso honesto. Mas uma Testa de
Tanque tem lá a sua polissemia e servir para outras ocasiões: sem

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botox, o senador Pedro Simon fez Testa de Tanque em Plenário para
o caso Sarney. O povo tem feito Testa de Tanque para o Senado
desse país…
Lembro que para os meninos, os tanques pareciam vindos do
nada. Só sabia que o meu caderno Seu Gumercindo fazia tanques.
Os meninos pensavam que os tanques caíam prontinhos do Céu,
já instalados em suas casas. Lembro como eu acordava cedo para
acompanhar Seu Gumercindo, fazendo meus tanques em miniatu-
ra. Ele fazia o buraco por onde passaria uma torneira com uma lata
de leite e eu com tampinha de refrigerante. Os meus tanquinhos
ficavam encalhados. Os meninos queriam brincar de bola, carrinho
e de repente viram um Maluco chegar com tanques em miniatura.
Eram meninos sem roupas… Ainda sem idade para lavar roupas…
Eu comecei uma lavar roupa suja muito cedo. Da minha mãe, da
minha madrasta, do meu pai, desse país…
Mas por esses dias foi que indo à casa de um amigo dominado
pela artrose, lá estava um velho tanque, cheio de lodo. E notei, uma lis-
tra de lodo verde-clara Subido zebrando tinha uma parede, alcançando
o prédio da vizinha e foi embora até o lugar mais alto onde encostava
o peito amarelo de um bem-te-vi para cantar todas as manhãs. No
chão, uma queda Folha de jornal com uma foto do presidente Lula
abraçando o ex-presidente Collor. Tinha chegado para visitar o amigo
pela manhã. Depois de uma conversinha caseira, à tarde, passei a mão
na escova e fui remover o lodo das paredes do tanque para o amigo.
Enquanto esfregava, não tinha como não olhar a foto. Os sorrisos, o
abraço do ex-presidente não … Se bem que os falsos se abraçam e se
beijam, mas não era o caso. Eis uma frase: “Quero fazer justiça ao
comportamento do senador Collor e do senador Renan, que têm dado
uma sustentação muito grande aos trabalhos do governo no Senado”.
Não. Não era abraço de Tamanduá. Era um abraço sincero.
– E o presidente Lula se arrastou por 20 anos para chegar ao poder
… Ainda bem que Mário Pedrosa, nem Drummond estão aqui …

68
À tardinha, com as garças indo embora, olhamos para cima e
a listra verde-clara na parede já estava verde-escura como as azei-
tonas verdes que maduras, escurecem. Muitos pensam que as azei-
tonas verdes e pretas são de pés diferentes. Não. Não. São do mes-
mo pé. Como verdes são verdes porque são colhidas antes; como
escuras são as maduras. Mas veja que a minha analogia é fraca.
Nunca comparar uma azeitona com o lodo totalmente. Ambos es-
curecem… só isso.
Diante da foto e da listra verde-escura fiz Testa de Tanque e
virei para o amigo com uma arzinho de filósofo e disse: o lodo se
arrasta sempre e quando sobe é apoiado na parede.

69
AS QUATRO BALEIAS ESTÃO JUNTAS

A s garças, garças brancas, chegam ao Rio Meriti às 05h40min


e saem às 17h40min. Chegam e saem sempre em bando. E
alguém pode pensar que o Rio Meriti fica vazio entre 17h40min
e 05h40min. Não, não. Eu também pensava assim até passar
ali uma noite de folga para ver. Vem outro bando: o do socó.
Dizem que é primo das garças. Meio pardo e pintas pretas,
também chegam em bando. E o mundo passou a imitar os so-
cós e as garças: G7, G8, G20, Brics... Andam em bando. Até a
quebradeira é em bando.
Mas apesar da quebradeira causada por essa crise e choque
daqui, choque dali, são 9 horas da manhã e nem preciso abrir os
jornais para o sol entrar que as manchetes já trazem notícias verdes
e me alegro. Realiza-se a fotossíntese.
Geralmente lemos crônicas em que o passado é melhor do que
presente, o passado é alegre e o presente é triste, a nostalgia nos
captura, mas hoje é diferente, o presente está melhor do que o pas-
sado. Desculpem a rima. Eu quis rimar.
No passado de 1995 falava-se de quatro baleias soltas em
alto mar. Essas baleias têm nome: Brics. Brasil, Rússia, Índia
e China. Falava-se que essas baleias ficarem assim, soltas em
alto mar, era perigoso. (A profecia se cumpriu, as quatro baleias
estão juntas, olha aí o Brics) Falava-se que a Rússia seria cha-
mada para o então G-7, pelo poder bélico; que a China e a Índia
seriam as próximas a ser convidadas, formando o G-10 porque

70
tinham bilhões de pessoas, bomba atômica, isso era estratégico.
Profetizava-se que o Brasil, apesar de ter água e verde, ficaria de
fora: 180 milhões de brasileiros numa guerra não é nada. Meu
Deus, um país é preciso ter gente para morrer... Assim, na Guer-
ra. Lembro da foto de um homem numa guerra. Irreconhecível.
Parecia carne moída. Que passado triste. Que século triste aquele
Século XX.
Mas estes dias de Século XXI estão sendo mais agradáveis, ao
menos nos jornais, na Voz do Brasil... Num dia vem que o G-8 mor-
reu (Mas na Voz do Brasil); no outro que o Brics é a solução impul-
sionadora da reforma financeira global (Mas na Voz da Rússia). E
as outras vozes? Aliás, a Rússia entra na conta como o pau de dois
bicos dessa história, joga aqui e lá, G8 e Brics. Judas? Eis um tempo
em que se supõe praticável agradar a gregos e troianos. Não sei... A
Rússia aparece como a ponte entre os Brics e o G-8, mas espero não
seja uma ponte de madeira e cupim.
E não é só na Rússia que se crê na força periférica. Aqui no
Rio de Janeiro acredita-se que a solução virá também da peri-
feria, inclusive na Literatura, Música, Artes. Esperam tanto das
periferias que me inquieto... Muitos estrangeiros vêm para a Bai-
xada Fluminense como se tivéssemos uma solução. Somos tão
messiânicos assim? Ou estamos sendo usados por este “déspota
esclarecido”, Mister Business? E há periferias tão ingênuas afir-
mando soluções que a esperança começa a saracotear no papel.
Lembra a velha classe média que vinha para a Baixada nos dar
curso, abrir os nossos olhos, ensinar a “Mais Valia”, usava, na
verdade, a classe pobre para se aproximar da elite na pirâmide
social e conseguida a meta nos esquecia por completo até a pró-
xima ameaça de rebaixamento.
Nesse país em que o Presidente sempre diz que não sabe, não
sabe, eu sei que estas 9 horas da manhã de agora são melhores do
que aquelas 9 horas da manhã de 1995. As baleias estão juntas. No

71
papel. Brasil, Rússia, Índia e China. Se se juntarem pra valer, diz o
velho livro de Eclesiastes: o cordão de três dobras não se quebra tão
depressa. No caso do Brics há uma vantagem: O cordão é de quatro
dobras. Assim, pelo menos teremos mais esperança. Mas não foi o
que sempre tivemos?
 
* Cogita-se a África do Sul no lugar da Rússia.

72
VII

no rio
há  garças esperando a terra girar
até  a constelação de peixes passar perto
para engolir uma estrela
mas a garça pesqueira
não espera o peixe
provoca-o à superfície com espertezas
o tempo da apanhadura
é ela quem faz 

73
MINHA PRIMEIRA METÁTESE

T udo bem que na Literatura, digo, na Retórica eu já tinha ouvido


nomes estranhos como Homeoteleuto, Poliptoto, Mesoteleuto,
Paragoge, mas Metátese? Parece coisa de Linguística! Porém, não
se assuste. Se o nome é estranho, a prática é bem conhecida pelo
mundo. É mais simples do que está por vir aí. Segundo a Koogan/
Houaiss, metátese é a troca de fonemas no corpo de um vocábulo.
O latim semper deu origem ao português, sempre. Desvariar
deu origem a desvairar, tenro a terno.
Ouvi esse nome pela primeira vez numa palestra do poeta Gil-
berto Mendonça Telles, sobre Drummond, apontando uma metáte-
se no verso: Tinha uma pedra no meio do caminho. A palavra pedra
deu origem à palavra perda. Segundo o poeta, referindo-se à morte
do filho de Drummond, uma perda. Metátese.
O tempo passou e a palavra adormeceu em mim. Porém , a cri-
se desses nossos dias a despertou. A imaginação foi longe. Rodeou
a terra. Deu uma passadinha em Brasília. Quantas metáteses!
Minha primeira metátese se deu recente, parafraseando o poeta
português, Fernando Pessoa. No seu verso “Tudo vale a pena se a alma
não é pequena”, metateseei e deu origem ao meu Tudo vale a pena
se a mala não é pequena. Notaram a diferença?! A palavra alma deu
origem à palavra mala. Uma outra palavra. Fácil, não?! Até porque o
momento político levado à exaustão pela mídia, reforça o aprendizado.
Mas se esse exemplo não ficou claro, talvez este: o político se en-
tregou de corpo e alma à prostituta. Na metátese, o político se entregou

74
de corpo e mala à prostituta. Perceberam?! Só o homem tem esse dom
de mudar o nome das coisas pela palavra. Ele não só nomeia como
muda e renomeia. Por exemplo, no meu tempo, quem tirava proveito
da prostituição alheia era chamada de cafetina e prostituta era prosti-
tuta, mas hoje, não. Já existe a versão atualizada.
Por esses dias, por favor, não me julguem, sou apenas um nar-
rador que como um guia turístico fez uma visita técnica ao local,
entrei na Vila Mimosa e fui recebido por uma mulher, sentada, à
mesa, cigarrete entre os dedos. Trazia no seio esquerdo um piercing
que segurava um crachá onde estava escrito: Promotora de Even-
tos. Nas outras mesas as garotas com piercings nos seios, crachás e
escrito: Eventos. Perceberam a atualização?!
Mas voltando à metátese, muitos não vendem a alma ao diabo,
entretanto, vender a mala ao diabo é caso de negociação. Se o pre-
ço diabólico for superior ao que vai dentro da mala, por quê não?
O meu medo é que se alastre uma onda de metáteses e os pobres
gastem seu dinheirinho publicando nos jornais aquelas preces para
receber uma Graça das 13 Malas Benditas. Sim. São mais. Bem
mais, mas para os pobres bastam 13.
A metátese é tão fácil que pode se dar até no democrático re-
médio jurídico Habeas Corpus, quando se trata de certos indivídu-
os. Nesse caso, Habeas Corpus dá origem a Habeas Porcus.
Para terminar, as pesquisas mostram que 68% dos brasi-
leiros são analfabetos funcionais, isto é, não sabem ler direito.
É verdade. Muitos políticos não entenderam nada do que disse
Jesus: Antes temei aquele que pode fazer perecer no inferno a
alma e o corpo. E eles entenderam: Antes temei aquele que pode
fazer perecer no inferno a mala e o corpo. A polícia federal está
aí mesmo. Por isso esses Malocratas vão às igrejas, tornam-se
cristãos...Quem quer perder a mala? E alguns irmãos, não menos
interesseiros, oram para santificar a mala. Esquecem que alma
dá mala e se esticarmos dá lama. Mas que alma estará preocupa-

75
da, se ao abrir a mala, tem milhares das escassas notas de cem
para limpar a lama?

OBS.: Cientistas brasileiros foram convocados em caráter de


emergência para clonar um espírito que atende pelo nome de Tranca
Rua das Almas. Seu clone será chamado de Tranca Rua das Malas,
porque o problema do Brasil não é servidor público, aposentado ou
previdência. Nosso planeta tem um sério problema é com Malas,
Meias e Cuecas.

76
ETA REPOSTA PORRETA!

C om uma rima sepulcral vou contar a historieta local do de-


putado federal Bento Borboleta, que no trabalho social fazia
o genial nunca visto no planeta: andava por tudo o que é bairro,
trocando perna mecânica por um par de muletas.
E se dissessem algumas coisas, olhava com cara de mau, de
comigo-ninguém-pode, de assustar o capeta. Sou o deputado fede-
ral Bento Borboleta! Nessa mão trago pistola, na outra uma caneta.
Se a caneta não resorve, arresorvo na espoleta. Esse era o deputado
federal Bento Borboleta. Fazia o que era certo, o certo da sua vene-
ta. Vivia cercado de gente que não lhe fazia careta, de gente pobre
e humilde, levando uma vida perneta; que de dia comia ovo, à
noite sonhava xuleta. Gente imediatista, que trocava seu voto, meu
Deus!, até por camiseta. Bento Borboleta às vez andava de terno,
às vez trajava jaqueta, mas nunca mudava o discurso, onde quer
que ele entrasse não respeitava etiqueta: Sou o deputado federal
Bento Borboleta: não bato antes de entrar, ignoro essa plaqueta!
Falava tão retumbante que sacudia brincando um poderoso cometa.
E borboleteava daqui, borboleteava dali com fantásticas piruetas. E
o tempo escorria escondido na areia da ampulheta. E desde já peço
perdão por tentar uma crônica e sair essa croniqueta.
Mas crônica não é fragata, transatlântico e em geral não traz
escopeta. Quase sempre é uma água-de-flor, uma suave cançoneta,
mas pode vir com soldados empunhando baionetas. A crônica é
miudinha. A crônica é uma corveta. Do tamanho da minha amada

77
que aqui chamo Julieta. A crônica canta o rico, o pobre e até a
sarjeta. A crônica acima de tudo corre atrás do cupim infiltrado na
pobre daminha gaveta. Cronista, em vez de lanterna, procura com
lanterneta. Mas no Fórum de Meriti, chegou o dia e a hora em que
Bento viu a coisa preta. Tão preta, mais preta que a bata do Zé de
Anchieta. Seus olhos ficaram vermelhos, ardendo que nem mala-
gueta. Mas também achou de entrar na sala de um juiz-comigo-
-não-se-meta! Um juiz virginiano, meio francês, que não gostava
de graça e muito menos de treta. O deputado pensava que todos
se intimidavam com o toque da sua corneta. Girou a maçaneta,
saiu entrando e cornetando, barulhando mais que marreta: sou o
deputado federal Bento Borboleta! A tropa atrás de si parecia mi-
lhões de carretas. Da tropa um trazia baqueta, outro trazia tarol e
quando rufavam os tambores, ele entrava como um Sol expulsando
as silhuetas: Sou o deputado federal Bento Borboleta! E o juiz sem
sequer erguer os olhos, eta resposta porreta, disse em tom educado
para o deputado, limpando as suas lunetas: Muito prazer! Pedro
Paulo Mendes Arouet: Juiz para sempre! O deputado saiu da sala
com a tropa meio zureta. Mas ninguém se assanhou em sorrir se
não ficava maneta. Porém, um não resistiu e tocou a história pela
trombeta. Sinceramente esse juiz, nesse mundo de estátuas buscan-
do status, merecia uma estatueta, mas as medalhas do país, agora,
modernamente, vão até pros picaretas.

78
GATONET OU COMUNITARIONET?

C aro Lukata, meu nome é Tuberculose e me indicaram um psi-


cólogo para me ajudar, mas como sempre fui amiga dos escri-
tores resolvi passar antes por aqui para saber sua opinião. Ocorre
que ressuscitei e não quero continuar sendo chamada pelo mes-
mo nome do passado; quero que me chamem de nome suave, por
exemplo, “Amiga do Peito”.
Os velhos são chamados de “Melhor Idade”; o ajudante de car-
ga e descarga de caminhão é “Auxiliar de Transporte”; as prostitutas
são “Promotoras de Evento”; o Dia dos Mortos é delicadamente o
Dia de Finados. Quando na 2ª série (tá pensando o quê, estudei,
meu filho) eu estava agarradinha ao pulmão de um aluno caren-
te da 2ª série e ouvi o Juca dizer que o pai do Ari era lixeiro e a
professora nos deu a primeira aula de delicadeza: O pai do Ari era
funcionário da limpeza urbana.
As escolas e os governos estão sempre ensinando, mas o povão
não aprende. Ora, por que não podem me chamar de “Amiga do
Peito?” Na sala de aula, se alguém tinha lepra, não tinha lepra, era
“Mal de Hansen”; se morria, não morria, viajava para “Os Campos
Santos”, embora, surgissem àqueles alunos igualzinho aos discí-
pulos de Cristo: Professora, na rodoviária há ônibus para Campos
Elíseos, Campo dos Afonsos, Campo Grande, mas Campos Santos,
não! Explica outra vez? E a professora Miriam, imitando Cristo,
dizia: Até quando vos sofrerei? Depois dizem que brasileiro burro
nasce morto! E Miriam Paroxítona não usava o termo Eufemismo,

79
falava em delicadeza. Dizer Mal de Hansen e não lepra, Campos
Santos e não morte.
Mais tarde andei em pulmões finos, mas eu gostava mesmo era
dos pulmões dos meninos lá do alto, onde se dizia morreu mesmo,
mas os poetas do morro foram melhorando o nome da morte para
“Viajou para a Terra dos Pés Juntos” ou “Vestiu Paletó de Madeira”.
Nos pulmões finos do asfalto eu sofria. Acordava de manhã com
baldes de ampicilina na cara, mas nos meninos do morro eu era
vitaminada com fumaça e falta de comida. Que paraíso!Lembro
que entrei no pulmão de um camarada e fui estagiar na Defensoria
Pública e vi a dificuldade para dizer às pessoas que assinassem
a Declaração de Pobreza, mas ali também chegou a delicadeza e
mudamos para Declaração de Hipossuficiência Jurídica. Belo nome,
não?! Mas o prefixo grego hipo significa – posição inferior.
Também lembro num ônibus que ia para Bonsucesso e três
sacaram de suas armas e a cobradora perguntou se era um as-
salto e olhando para nós eles disseram que não, tratava-se ape-
nas de um empréstimo compulsório. Apesar do boné, reconheci
a voz de um dos alunos da Miriam Paroxítona, aquele pulmão já
havia sido meu. Como os governos já estavam habituados a fa-
zer empréstimos compulsórios no povo, não sentimos tanto.
Por falar em governo, outra delicadeza nos fez a ministra da Eco-
nomia do governo Collor, quando disse na TV que não estava ha-
vendo aumento e sim um realinhamento de preços. Veja Lukata,
todos, menos eu, são chamados por nomes delicados, leves como a
crônica. O que devo fazer para ser chamada de “Amiga do peito”?
Desprezada Tuberculose, não sei explicar o porquê da discrimina-
ção, mas posso adiantar que você não está sozinha nessa briga.
Recebi por esses dias um e-mail do diabo, onde ele reclama a
falta de delicadeza para com ele também. Segundo o evangelho de
João, 8:44, ele é o Pai da Mentira, mas os seus filhos que praticam
a mentira, em vez de “Filhos da Mentira” são tratados por “Filhos

80
que Faltam com a Verdade”; a Gatonet também me escreveu pedin-
do ajuda; que o povo quando perguntado sobre TV a Cabo, só fala
em Gatonet. Você diz, o povo não aprende. É muito sincero. E é,
minha Cara.
Um professor meu de EPB, General-de-Exército, já dizia que
o exemplo é de cima para baixo. Recentemente tivemos um belo
exemplo de cima quando, para a aprovação da CPMF na Câmara,
acusaram o governo de estar fazendo barganha, negociata com os
cargos da Petrobras. Na mídia, um dos líderes governistas saiu em
defesa, dizendo que não estávamos entendendo. Não se tratava de
barganha, negociata, mas de, olha a fineza, “Partilha de Gestão”.
Cara Tuberculose, não acho que deva procurar um psicólogo
porque ele, pretensiosamente, vai dizer quem você realmente é; o
cronista só vai ouvi-la e depois publicar uma crônica. Sinceramen-
te, acho que você, o diabo e a Gatonet devem procurar um líder go-
vernista, pois quando a chamarem de Tuberculose, ele dirá “Amiga
do Peito”; quando chamarem o diabo de “Pai da Mentira”, ele dirá
“Pai dos que Faltam com a Verdade” e quando disserem Gatonet,
ele dirá com delicadeza: Comunitarionet.  

81
BALA PERDIIDA

C hamou-me a atenção no jornal uma notícia de que uma pessoa


famosa escreveu seus pedidos de Ano Novo nuns papéis e os
enfiou na sua calcinha branca. Foi mulher viu gente! Mas que pedi-
dos foram esses, hein?! Vai parecer aberração, mas existe um lado
bom nas balas perdidas, um ladinho que seja, mas existe. E que
o digam os irmãos Laninha e Daniel que brincam como qualquer
criança no interior da casa. De repente Daniel lança uma bola de
gude verde nas costas de Laninha, mas esta se desvia e a bolinha
atinge a vidraça, fazendo um redondo buraquinho. A casa dos me-
ninos fica entre dois morros: Morro da Alegria e Morro da Felici-
dade. Laninha e Daniel juram-se segredo na cumplicidade. Daniel
pode contar com a irmã. Ele vai para os fundos da casa e começa
a chapinhar um pouco de barro na água e logo está em suas mãos
uma bonequinha de barro. Laninha colabora indo para a máquina
de costura e prepara um vestidinho e véu. Bala perdida não é coisa
difícil de achar no quintal, mas só precisam de duas, pronto: lá
está a santinha deles, com as mãozinhas estendidas com as palmas
viradas para cima e nelas as duas balas perdidas. O nome da Santa,
óbvio: Nossa Senhora das Balas Perdidas. Daniel cava um buraco
no muro e enfia a santa, pondo na caverna uma luzinha verde. Faz
a Santa com uma boca enorme, mas lhe está perdoada a falta de
talento para as artes plásticas. Terminam antes do almoço. À tarde
Laninha e Daniel já estão de joelhos perante a imagem da santinha,
fazendo pedidos. Pedem baixinho. Pedem uma chuva de balas per-

82
didas que lhes sirva de bode expiatório no caso do furo da vidraça.
Num país cheio de bodes, um bode a mais, um bode a menos não
fará diferença. Talvez você esteja daí censurando esse tipo de pe-
dido, mas pedidos condenáveis já se faziam desde há muito, por
exemplo, havia a Deusa romana protetora dos ladrões, trapaceiros,
patifes, fraudadores cujo nome era Laverna e que era venerada em
um bosque sagrado e invocada sempre em voz baixa, pois os pedi-
dos que lhe eram feitos referiam-se a atos condenáveis. E segundo
um besourinho, o bosque de Laverna era muito frequentado, tinha
até distribuição de senhas para entrar e até vendas de senhas pelos
mais espertinhos. Não era muito diferente de hoje em que muitos
vão aos terreiros pedir aos espíritos, através de magias negras, para
tirar fulano da Marinha porque quer vê-lo na miséria; tirar o cargo
de Beltrano porque ele é quem tinha que estar naquele cargo; tirar
Fulana de Sicrano porque ela é muita mulher para ele; quebrar a
perna do próprio namorado porque está com outra; tirar o marido
da outra; Fazer Fulano perder o cargo de prefeito, sair da política...
Esses pedidos não aparecem na TV nem na imprensa escrita até
porque ninguém acredita que alguém possa fazê-los numa época de
reconciliação e amor. Os que aparecem são os politicamente corre-
tos ou moralmente incompletos: arrumar namorado, sorte no amor,
atrair dinheiro, paz, felicidade... Mas e os Pedidos Condenáveis?
Esse seria um bom subtítulo para esta crônica, mas voltemos à
historinha: a tarde começa a dar sinais de despedida e o milagre
que Laninha e Daniel rogaram não acontece: Nenhuma troca de
tiro entre policiais e bandidos ou entre bandidos e bandidos. Como
dizer que foi bala perdida? Chegam a mãe e o pai e lá está o bura-
quinho. Mesmo que as perguntas sejam penetrantes como espadas
afiadas permanecerão fiéis ao pacto de silêncio. Mas como dizem:
Deus tarda, mas não falha. O telejornal anuncia a intensa troca de
tiros entre policiais e bandidos. O tiro comendo solto na TV parece
que está sendo ali, no quintal. A mãe sai par catar roupas e volta

83
correndo. Balas Perdidas! Cada um procura se entrincheirar como
pode. Um colorido de balas com traçantes cor de rosa, azul, amare-
lo, desenhando no céu o arco-íris da morte. O pai e a mãe apavora-
dos e Laninha e Daniel sorrindo. Se possível, iriam lá fora dar uns
beijinhos na imagem da santinha que já fazia seu primeiro milagre
com menos de vinte e quatro horas de vida. Que vidão! Cada um
dormiu na sua trincheira. Pela manhã, ao serem acordados para o
café, nem precisaram usar a desculpa. A própria mãe comenta que
uma das balas perdidas furou a vidraça da porta. Estão livres. A
mãe pede a Laninha que varra a casa para ver que tipo de bala é. Já
conhecem a de fuzil AR15, AK47, pistolas de tudo quanto é tipo...
Na casa há até uma estante só de revistas especializadas em armas
e munições. Os chaveirinhos são enfeitados com balas perdidas;
Laninha anda com dois balangadãs de balas perdidas nas orelhas; a
árvore de Natal é única e original na comunidade com bolas e balas
perdidas e as datas em que elas caíram no quintal. É aquela velha
história: me dê um limão e faço uma limonada. Quando Laninha
vai levantar, de alegria, Daniel dá um salto e diz: deixa que eu var-
ro! Volta rapidamente para a cozinha com uma bala de canhão 127
mm . Os pais sorriem pelo bom humor do filho. E a mãe também
brincando: Daniel, meu amor, não está vendo que o furo na vidraça
não é maior que uma bolinha de gude verde?! Quando os pais saem
para o trabalho, Daniel vai e desmancha a santinha e faz outra,
agora com a boca pequena, pequenininha, quase sem boca e para
garantir futuros segredos: amordaça-lhe.

84
VIII

tardes de transfusão
que para não te espantar
virava garça
e a mão
um ancinho de ternura
saneava palavras a serem ditas
e juntava teus cabelos num canto do ombro
para beijar-te no pescoço fingidamente desnudo
um jardim em estado líquido gasoso
enquanto o rio associado aos teus lábios de batom
incendiava-se de flamboyants
transbordando um vermelho varrido pelos olhos
para dentro de um peito sem sangue
e a vida refluía
e eu voava
capinava peixes no rio
e por mais que os arrancasse pelas raízes
feéricos
renasciam feito capim
feito um sonho  

85
DOS PEDIDOS CONDENÁVEIS

U ma leitora disse que gostou da crônica passada, mas fez uma


observação de que este cronista havia sido parcial. Célia, a
observação não foi parcial, é que o cronista não tem todo o espaço
do mundo no jornal, então ele vai esquartejando homeopaticamen-
te o que quer dizer. Como estamos no verão, tempo de caju, um
cajueiro pode chegar a 15 metros de altura, mas essas crônicas
só podem chegar a 15 centímetros . É pegar a régua e conferir.
Se a crônica fosse um caju, digamos que semana passada servi
uma cajuada e hoje vou servir a castanha, trilhada no fogo, de-
vidamente assada e quebrada.
Iniciamos falando dos pedidos condenáveis, aqueles, por
exemplo, que não vêm nas revistas de entretenimento. Nunca vi
uma revista dessas que ensinasse simpatias do tipo: Para tomar o
marido da outra; para tomar o cargo de Beltrano, para Fulano per-
der a política... Quem quer ser visto como antiético, antiestético?
o fato é que esses pedidos existem e muitas divindades os aten-
dem como a deusa romana Laverna já descrita na outra crônica. Vi
alguns desses se realizarem: um rapaz abandonou a farda da Ma-
rinha; uma mulher perdeu o marido para uma mulher de tromba;
um rapaz quebrou a perna. Já teve até Presidente da República que
abandonou o governo obrigado, segundo ele, por Forças Ocultas. É
claro que nem todos esses pedidos são atendidos. Há políticos que
gastaram fortunas fazendo pedidos para se tornar prefeitos, deputa-
dos, derrubando os concorrentes, mas não conseguiram.

86
Creio essas pessoas não procurem a justiça para reclamar os
seus direitos quando não obtêm os resultados pretendidos por-
que aí virá à luz o pedido condenável. Imagine o leitor, alguém
ingressando na justiça pleiteando danos materiais e morais por-
que a mãe Fulana de Oxóssi prometeu que traria a pessoa amada
em 3 dias e não trouxe e essa pessoa amada é o marido da sua
melhor amiga! Tudo relatado nos mínimos detalhes na petição
endereçada ao juiz! Sim, porque Juiz é igual ao cronista e advo-
gado: tem que saber tudo.
- Mas onde está a parcialidade do cronista que até agora não vi?
Sou um leitor ocupado em trabalhos, aproveitando esse tempinho que
venho ao banheiro para matar dois coelhos de uma vez, mas o coelho
dessa crônica não sai da toca! Será que ele é daqueles escritores que
enrolam, enrolam e só no finalzinho é que falam do assunto?
- Desculpe amigo, eis a castanha: a suposta parcialidade está
em que nem todos os que fazem pedidos condenáveis os fazem
num terreiro, há os que os fazem, não se assuste, numa igreja e ao
Deus cristão, Deus ético, Deus bom, Deus que se manifestou para
deter o Ladrão que veio para matar, roubar e destruir. Para percebê-
-los é preciso ter ouvidos, quem tem ouvidos ouça e também olhos
para ver, eu era cego, agora vejo. Nenhum evangélico fará um pe-
dido condenável abertamente como: quebra a perna dele(a). É na
sutileza das palavras ao apresentarem as orações a Deus, o tom da
voz, ameaçador; as sobrancelhas arriadas com ruga entre os olhos
que se nota: Olha ele aí, Jesus! Ele é todo seu, Jesus! Toma ele nas
tuas mãos, Jesus! A tradução literal é: Arrebenta ele, Jesus! Quebra
a perna dele, Jesus! Acaba com ele, Jesus! Na boca desses cristãos,
Jesus parece um lutador de vale tudo. E seguem os pedidos conde-
náveis: Me dá o marido dela pra mim, Jesus! Me dá o emprego dele
pra mim, Jesus! É o popular crente macumbeiro, que faz oração ao
contrário. Se estes pedidos são atendidos? Muitos, mas quem os
atende são divindades como Laverna que adora um ato condenável.

87
Na crônica anterior dissemos que uma pessoa famosa enfiou
seus pedidos de Ano Novo numa calcinha branca, porém, há as
que enfiam na fria água da praia e até no congelador. Estes últimos
são feitos por mulheres, já vi até cristã, que têm aqueles maridos
fogosos e que para eles suas mulheres não bastam e saem mundo
afora atrás de outras. Elas pegam as sungas sujas dos maridos e en-
fiam no congelador e pedem para dar uma esfriadinha neles. Como
disse é verão, El Ninho, calor, sol de rachar, até a lua é de rachar,
muita sede e as geladeiras dessas mulheres funcionando que é uma
maravilha. Ora leitor, não custa nada perguntar: aceita um copo d
água com umas pedrinhas de gelo?!

88
NAS ÁGUAS DE DURBAN

O texto vai saindo em itálico não por questão de realce; é o ven-


to adernando as palavras como a tempestade adernou o meu
navio até afundá-lo nas águas de Durban. A Durban de Fernando
Pessoa. Espero a crônica não afunde. Mar de prooooooaaaaa! Má-
quinas avante! Manter o leme! Quebrar onnnnnndaaaaas!
O navio em que fui aspirante a poeta e marujo era um Destróier,
(A necessidade faz poeta ir parar num Destroyer). Olha lá o Camões
piscando o olho direito, confirmando! Chamava-se D37, Contrator-
pedeiro Rio Grande do Norte, apelido, “Zé do Norte” e dorme agora
no fundo do mar, dorme profundamente nas águas de Durban, mas
boiam lembranças... Cardumes de lembranças me chegam à beira
desta praia no Arpoador.
Entanto, a pesca não será com rede, vou lançar o anzol. Hoje o
mundo só pesca com redes. E não me chamem de peixe-reacionário,
peixe-da-Idade-Média. Vou lançar o anzol como um Pedro obediente
a Cristo e pescar somente o necessário, não sendo nem religião, nem
filosofia ou sociologia... É que a crônica não requer muitos peixes...
Basta um para pagar ao leitor o tempo que aqui gastar. A crônica
já foi arpão, hoje é anzol. E de que adiantaria mil peixes se não
estiverem em cardume? Mas veja, o navio da crônica pode ficar à
deriva inesperada; a onda azul entontece, desarruma os cardumes,
mistura e pode vir parar no cardume da crônica um peixe da poesia.
Pesquemos. Para quê muros entre as artes? A vida já traz tantos Mu-
ros... Seja bem-vindo, navio da Poesia. Durban é cidade portuária e

89
a crônica um texto portuoso. Sim, pesquemos, mas pesquemos com
o pequeno e leve anzol, logo não falarei dos pesados canhões de 127
mm , metralhadoras antiaéreas... Isto está afundado. Nem dos meus
vômitos em alto mar, do mareado. No estômago só parava gelatina
e um cozinheiro não se furtava em me ajudar. Não, não falarei, mas
se em algum momento eu for pesado, salgadiço, vulnerante como
um anzol, lembre-se de que o meu navio era cinza, de guerra, con-
tratorpedeiro, e por mais branco seja um navio, ele também solta
fuligem e é preciso desenfarruscar as tardes de nós mesmos. Tirar
a fuligem do céu é fácil, Vento! Limpar a fuligem dos metais: caol.
E brilha. Porém, tirar a fuligem, ser escafandrista de si mesmo...
Ao longe ouço o mar e em tempos de paz há pequenos silêncios nos
navios de guerra, então berra a musa: escreva! Serás escritor nem
que seja por usucapião. Serei escritor nem que seja por usucapião. E
o mar batendo, fecundava as flores de ferrugem nos bordos do navio
e descíamos na chalana como jardineiros do mar para cuidar dessas
flores sem magoar o navio. A ferrugem é a flor do tempo nos navios.
E talvez você pense: esta é uma crônica de um marujo sobrevivente
em um naufrágio. Não. Concha vazia era o meu navio. Velho, foi
vendido a uma empresa europeia para ser desmanchado, mas quem
desmancha a memória afetiva? Embora de guerra, de espada, cinza,
foi o meu primeiro navio, minha primeira casa depois de expulso de
casa, dormir no mato, mendigar o pão. Madrasta, gente, madrasta:
não tive a sorte de um Machado de Assis. Não é lei para ser bom
escritor, a madrasta, mas a madrasta só em não ser pedra, ajuda
muito nesse navegar...
E navegar sozinho meu navio já não podia. Como um velho
guiado por outra pessoa, andava a reboque, e em junho de 1997
afundou nas águas de Durban ao enfrentar mau tempo a caminho
da Índia onde seria desmanchado. Por que “Zé do Norte” o afundar
tão longe, em mau tempo alheio, e não logo aqui, na boca da bar-
ra, em suas próprias águas? No Rio há tanto mau tempo. O navio

90
afunda onde quer, pois há navios que gostam muito de afundar nas
águas de Durban, mas não em suas próprias águas. Há doutores em
águas de Durban, mas não em suas próprias águas.
O marujo Carlos só aos 72 anos está conseguindo encarar sua
gosma, ficar frente a frente consigo mesmo, em rota de colisão em
suas próprias águas e se dizer: Carlos, você pintou e bordou; Carlos,
você é um Bola Sete, um marujo rebarbado; Carlos, por que você
fez isso, Carlos? Sansão venceu a mil homens com uma queixada
de animal, mas não venceu a si mesmo diante de Dalila. E Carlos,
afundado em suas águas vai se vencendo...
E eu ficava de vigia de mar no navio. Binóculo, fuzil, baioneta,
mas usava a caneta: Eu jogava tintura Márcia no bigode branco do
navio, e o tempo passava ao largo, distante da proa e de mim. À
noite, o navio em movimento, formava-se na sua proa uma espécie
de bigode de espuma o qual chamávamos de bigodeira. Joguei nes-
se bigode a tinta da poesia.
Entanto, um dia não foi poesia o que ouvi da boca do coman-
dante do navio ao ser criticado por um marujo: o que vem de baixo
não me atinge. E o marujo feito um peixe-trombeta lhe deu a cente-
nária resposta para todos ouvirem. Senta no formigueiro. Dez dias
de prisão rigorosa para você, marujo – e dizia o comandante – dez
dias não pelo abuso, mas pela resposta. Se fosse uma resposta cria-
tiva, diferente, não lhe daria dez dias. Daria cinco. Sabe como é: a
Marinha é dos oficiais! E eu com a minha mania de peixe-papagaio
gargarejei ao comandante-peixe-rei que tinha a resposta diferente.
Mal abri o bico e vi meu rosto no espelho do mar se transformando
em cara de peixe-zebra. Ia dar zebra. Olhou-me de cima para baixo
como quem apedreja o sol no ocaso e disse: Sabe que se não for di-
ferente, dez dias para você também, filho, todavia, se for diferente,
seu amigo estará livre. Não comandante, eu não tenho uma respos-
ta diferente, tenho um pensamento diferente, aliás, um ponto de
vista diferente. O ponto de vista do peixe. No mundo dos peixes não

91
se fala “O que vem de baixo não me atinge” porque a rede cerca, o
arpão fere de cima para baixo e em qualquer parte do corpo, mas o
anzol só fere de baixo para cima e sempre na cabeça. Exímio pesca-
dor, o comandante puxou no cachimbo e baforou duas enguias de
fumaça, mas o mar não tossiu. Naquele instante levantou-se uma
hemorragia de peixes-voadores e muitos batiam nas anteparas dos
canhões de proa e caíam mortos no convés. O comandante cami-
nhou até ficar entre eles e com o cabo do cachimbo apontado para
o peito como se fosse um dedo a mais na mão, falou: Pois é! Estes
têm olhos, mas não veem.
Quanto a você, musa: pode contar comigo, pode vir quando
quiser que me agrada uma crônica zebrada de poesia. Enriquece.

92
CEGUEIRA CRÔNICA

A pressão alta de um amigo obeso e poeta afetou-lhe a visão do


olho esquerdo. Nada mais triste para um poeta do que perder a
visão ou vê-la diminuída, por mínima que seja. Creio que seja esse
o principal medo de todo escritor.
Várias são as causas da perda de um olho. Meu avô perdeu os
dois: Um com faísca e o outro com espinho no roçado. No nosso
caso, como vocês podem ter percebido, foi a pressão alta que dei-
xou caolho o meu amigo e agora amigo de vocês também. Não sei
se ao final dessa história vocês continuarão a chamá-lo de amigo.
Eu aprendi a conviver com ele assim mesmo.
Por ser homem de muitas leituras, ficou angustiado, triste,
aparelho de pressão no braço, permanentemente, como se já fosse
uma extensão do corpo. Um apêndice externo. A perinha na mão
da mulher, verificando, segundo a determinação médica e um mar
vermelho de adalat sobre a cama pronto para ser aspirado por ele.
Por um instante olho para ele, que me recebe mal, e lembro de João
Cabral de Melo Neto e a sua angústia com a homeopática perda
da visão. Sua fala é áspera. Compreendo: eu diante dele com dois
olhos, funcionando, escala 20X20, perfeita, e ele, vesgo. Não era
pra menos. Despedi-me logo. Tinha que enfrentar processos, dissa-
bores, ingratidão e o desprezo da vida.
Passado quatro dias, recebi a notícia de um prêmio literário de
poesia. 2o colocado e um dinheirinho na minha conta. Não. Não
era uma notícia. Era uma boa notícia para quem não tinha recebido

93
o décimo terceiro. Naquele instante de alegria, não sei por quê,
lembrei dos tempos em que eu trabalhava em hospitais...Getúlio
Vargas, Albert Shwaitzer e as enfermeiras de branco entre paredes
azuis, a pedir aos parentes para só dar notícias boas aos enfermos
para ajudar na recuperação.
Ah! Era isso! Notícia boa! Dar a boa notícia ao amigo! Aju-
dá-lo a se recuperar. Logo ele que nas reuniões do grupo de
poetas, sempre declinou que a vitória de um amigo era a vitória
dele. Merecia. Telefonei. Disse tudo. Ele fez Hummm! E desli-
gou. Esse Hummm eu já conheço e logo em seguida parti pra
casa dele para mostrar o e-mail, o documento, ao seu olho bom,
olho de Tomé, que só crê vendo e tocando. Saí na esperança de
encontrá-lo com o olho ruim, curado. Ora, notícia boa, ajuda! Lá
no Getúlio e no Albert vi casos concretos de recuperação. Quan-
do cheguei à porta da casa dele, quem me recebeu afoita foi a
mulher, a dizer que depois do telefonema ele já não estava mais
caolho. Ficou cego dos dois olhos.
Tempos depois, ele está no hospital acometido de várias doen-
ças: Câncer no cérebro, câncer no estômago, câncer na garganta...
e ao lado dele um médico que só espera dele o fechar os olhos. Em
cima da cama ele não fala nada. Seus olhos já não acompanham o
que se movimentava a sua frente porque, vocês lembram, ele ficou
cego. O cabelo só tinha a metade. A quimioterapia tinha comido
a outra. Ele que era obeso, agora fica bem coberto por um lençol-
zinho de neném. Uma coisinha de nada para quem viu 146 kilos
mórbidos a poetizar por aí.
Foi ele quem me transmitiu o conhecimento de Mário Quinta-
na: “quer tornar-se conhecido, participe de concursos”. Ele sempre
participa e é muito premiado. Embora como diz Ferreira Gullar, o
escritor não escreve para ganhar prêmio, nem entrar para a Aca-
demia de letras. Mas fato é que alguém pobre que não tem como
publicar, só em ser lido nesses concursos já é um paliativo.

94
Certa tarde o médico chega e diz que ele não passa do outono.
O ano explodiu com vários concursos pelo Brasil e Exterior. Inscre-
vi-me em quase todos. As respostas começam a chegar. Sou premia-
do em uns e eliminado em vários. Volto a lembrar das enfermeiras
de branco entre paredes azuis, da recomendação da “notícia boa”.
Como um homem de literatura subverte, subverto: Eu não vou dar
notícias boas! Darei as ruins.
Ligo para o hospital. Peço à acompanhante que ponha o celu-
lar no ouvido dele. E começo: Fui eliminado no concurso da Itália,
amigo; fui eliminado no concurso de São Paulo, amigo; no de Foz
de Iguaçu também, amigo; na Espanha e em Guaratinguetá e em
Imperatriz do Maranhão, amigão! Dessa vez ele não faz hummm!
Na tarde seguinte, quando vou visitá-lo, há uma multidão de
médicos e fotógrafos para ver aquele milagre em cima da cama,
com seus 146 kilos mórbidos de volta, da noite para o dia, comple-
tamente curado, lendo Mário de Andrade, Vinícius e Jorge de Lima.
Estava de alta.

95
A BOLA DE CINCO PONTAS

C omo Deus é bom! Deus vê lá na frente. Há muito, muito tempo,


quando os bandidos corriam da polícia, Fuzino se interessou
por uma mulher e Deus que não gosta de ver seus filhos sofrerem,
logo usou várias pessoas perto dele, advertindo-o que aquela mu-
lher não era para ele. Mas nem Deus consegue deter um coração
apaixonado. É vontade schopenhauriana. Por isso Deus inspirou o
homem a criar o Tempo para ajudá-lo nessa batalha contra os ma-
les da paixão e da vontade. Deus chegou a permitir que o demônio
atravessasse no caminho de Fuzino para dizer: “Essa moça não é
pra você, rapaz! O demônio levou um fora que foi parar no abismo.
Muitos passaram por ele dizendo: “Fuzino, Fuzino, você tá forçan-
do o dedo na aliança e ela vai rebentar!”. Fez ouvido de mercador.
Casou-se com a mulher que não ficou nem um mês debaixo do
mesmo teto com ele. Fuzino chorou, esperneou, blasfemou contra
Deus terríveis barbaridades. Mas Deus é bom. Deus vê lá na frente
e compreendendo o coração apaixonado, disse: Tempo, toma conta
disso. Dois anos depois da separação, Fuzino cruzou com a mulher
por quem se apaixonou perdidamente, que ironia, na rua do Amor
Eterno. E olhando para ela percebeu o quanto Deus tinha sido bom
com ele. E de coração arrependido, pediu perdão e confirmou: Deus
vê lá na frente. Deus se preocupa com seus filhos nos mínimos de-
talhes. A mulher, a quem dissera o amor jamais acaba, estava com
mais de trezentos quilos. Os braços nem arriavam. Ela quando o
viu, largou fogo primeiro: tá ficando careca, hein?! E você sua gorda

96
ipitanguyzável?! Tá parecendo uma bola!” “Ipitanguyzável é você,
feioso! Careeeca! Mas vem cá, o que é uma mulher ipitanguyzável,
hein?!”E Fuzino: “ipitanguyzável, querida, é assim: há gordas que
tomam uns remedinhos para emagrecer e tudo bem, mas há gordas
que além de tomar uns remedinhos para emagrecer têm que procu-
rar um Pitanguy. Infelizmente existem as gordas ipitanguyzáveis, ou
seja, nem Pitanguy dá jeito! Conserta de um lado, estraga do outro e
assim... ah, seu cachorro... E Fuzino seguiu caminho, agradecendo o
livramento. Aliás, Deus está sempre livrando o ser humano.
Mas como existe homem teimoso sobre essa terra! O mesmo
Fuzino cismou de entrar no serviço público. Inscreveu-se em cinco
simultaneamente. Queria ser uma autoridade. Passou nos cinco:
Bombeiro, Polícia Civil, Polícia Federal, Polícia Militar e Polícia Ro-
doviária de Belo Horizonte. Certo amigo lhe disse que ele estava
jogando para o alto uma bola de ferro de cinco pontas e, do jeito
que caísse, uma delas encravaria no chão do emprego estável.
Na Polícia Federal passou dentro das vagas, no psicotécnico,
exames médicos... Aí veio a última prova, a física. Eis o problema:
não subia meio metro na corda. Tinha que subir cinco. Treinou na
bela arquitetura do Quartel Central dos Bombeiros o método cadei-
rinha. Não subia nem minhoquinha. No dia da prova apareceu um
pára-quedista que lhe ensinou um macete e na hora subiu feito um
gato. Nada o deteria agora. Porém, o que ele não contava era com
uma dor na corrida de 100 metros em 16 segundos. Mesmo se ar-
rastando chegou próximo de dezesseis segundos e quatro décimos.
O policial quis alterar o cronômetro, mas o fiscal estava de olho e o
jeito foi reprová-lo. Nos Bombeiros ficou reprovado na prova prática
de motorista. O carro nem saiu do lugar. Mas nos Bombeiros o pro-
blema não era esse e sim que o seu padrinho era um tenente e o dos
outros, coronéis. Na Polícia Civil quem o reprovou foi o psicotécni-
co. Na Polícia Rodoviária tinha ficado em 5o lugar. Mas os cariocas,
segundo o sargento mineiro, estavam dando problemas e eles já

97
estavam expulsando vários. Se quisesse fazer os exames poderia,
mas no quartel não tinha como ficar. Que alugasse um hotel até o
dia marcado, cinco dias depois. Fazia um frio de lascar. Só com o
dinheiro da passagem, desistiu. Na Polícia Militar do Rio tinha que
ter 1, 68 de altura. Havia um travessão já na medida e todos passa-
vam por ele. Estava apto. O sargento mandou seguir adiante para os
outros exames. Todavia, no exame médico acusou hérnia umbilical
e o doutor colocou na ficha: inapto. Reprovado. E ficou pensando
no amigo. Na bola de cinco pontas. Nem uma encravou. Que chão
duro era aquele que seus pés percorriam? Sumiu por seis meses da
casa do amigo, quando haveria nova prova para a Polícia Militar do
Rio. Passou mais uma vez. Na hora dos exames tinham mudado a
ordem e primeiro não era mais a altura e sim o exame médico. Fu-
zino tirou a roupa já com cara de eliminado. Mas para sua surpresa
o médico afundou o dedo no seu umbigo e colocou na ficha: apto. E
lhe desceram lágrimas de alegria. Finalmente a bola encravaria uma
das suas cinco pontas. Agora, o próximo exame era a altura, todos
estavam na fila. Nem se preocupou pois já tinha sido medido no
concurso anterior pelo mesmo sargento e passado! Porém, na sua
vez, o mesmo sargento disse que Fuzino não tinha altura e colocou
na ficha: inapto. Reprovado. Fuzino tentou falar com o sargento,
mas este se dependurou no travessão e disse: “Meu filho, será que
você ainda não entendeu que o seu lugar não é aqui?!” Nem lhe
passava pela cabeça que aquele sargento pudesse ser Deus falando
cara a cara com ele. Partiu inconformado e de quando em quando
blasfemava contra Deus e homens porque não deixaram que a bola
de cinco pontas encravasse uma pontinha no chão dessa vida.
Hoje, no entanto, ao passar os olhos nos jornais, vendo a ma-
tança de policiais e até bombeiro, olha para o céu e agradece, dizen-
do: Deus vê lá na frente! Deus não dá benção para seus filhos serem
destruídos. Oh! Nessa hora eu poderia estar morto ou casado com
uma mulher de trezentos quilos. Deus vê lá na frente.

98
IX

em 2000
numa tarde fria de outono
um bibliotecário perguntou
se eu não colheria um poema
de uma garça pousada num flamboyant vermelho
intimou-me a sentar à  janela da biblioteca
e foi almoçar, fechando a porta
olhei a garça sobre o flamboyant
havia o branco o vermelho o verde
e ao lado um rio sujo
havia as palavras graça, esgarça
mas essas já pertenciam a outros poetas
deixaram uma garça vazia um vermelho vazio um verde vazio
um rio vazio
e a difícil missão de renovar um assunto gasto
caro bibliotecário
passei a vida arrancando
poeta não colhe, arranca
e não é caso de arrancar um poema
mas de penetrar poesia nessa garça
e eu não sou grande
o sonho maior que tive foi um chevetinho 82
e me disseram; teu sonho é  pequeno
coitada da grande poesia

99
por tua causa a tua cidade será pequena. o teu rio estreito
quando o teu navio vai se lançar ao mar?
em 2000 o mundo não acabou 

100
OS PORCOS DO ENGENHEIRO

A o ver na tevê a história dos porcos da ciência, porcos fosfo-


rescentes, verdinhos, lembrei duns porcos de há muito tem-
po. Não é mentira de marinheiro. A Base Naval do Rio de Janeiro
avançava heroicamente, tomando, aterrando, ampliando seu espa-
ço, empurrando Netuno para trás. Qualquer dia desses a Baía de
Guanabara ou vira uma grande Base Naval ou uma grande Praça
XV. Obra feita por uma empresa particular. Eu estava de rancho
quando se deu o caso. Ranchar no quartel é “comer; almoçar ou
jantar”. Aconteceu na hora da janta. Havia sobrado duas caldeiras
de salsichão. Quando saía pagamento quase ninguém ficava para
ranchar. Enchi o carrinho-de-mão de salsichão e o despejei no lixo.
Na segunda viagem tive a impressão de ter ouvido o chacoalhar
de algo na água. Parei. Outro chacoalhar. E mais outro. Voltei. Fiz
sinal para o vigia do cais que logo encurtou a bandoleira do fuzil
e veio. Surpreendemos um homem nordestino. Sentado com uma
lata de 20 litros cheia d’água sobre um fogão improvisado de dois
tijolos e lenha. De olhos arregalados, contou que estava apanhando
os salsichões para os porcos do engenheiro, responsável pela obra.
Os porcos, segundo ele, estavam sendo engordados para a festa,
quando terminasse o “seuviço” (Serviço). Disse assim me fazendo
lembrar outros nordestinos que já me disseram: dificulidade e fal-
cudade. A obra estava isolada por tapumes tão alto que só sabíamos
que havia gente trabalhando por causa do barulho das máquinas.
Não sei agora, mas naquele tempo, na Marinha, não podíamos dar

101
nada a ninguém. Bem, agora creio nem para os marujos... Certa
vez, quando eu servia no contratorpedeiro “Zé do Norte”, na Bahia,
entornamos um latão de duzentos litros fora, cheio de bife com
ovos que sobrou do almoço e não pudemos dar a uns necessitados
que rondavam pela área do cais.
Advertimos ao nordestino da proibição, mas que estava tudo
bem, a noite escondia tudo. O vigia voltou ao cais e eu me fui em-
purrando o resto de carrinho-de-mão. Mas no meio do caminho, ao
ouvir um novo chacoalhar nasceu-me veio a anagnorisis: porcos co-
mendo salsicha passada na água quente?! Que porcos frescos, hein!
Hoje pode até existir porcos assim, que só comem comida limpa;
porcos que sofrem de stress, porcos com depressão, porcos que se
separam de suas porcas por incompatibilidade de gênio, psicólogos
para porcos, mas naquele tempo, anos oitenta?! Dei meia volta. Fiz
sinal para o vigia e mais uma vez surpreendemos o nordestino. Foi
horrível a cena|: pegamos quando ele levava o salsichão à boca. O
fogo iluminando seu rosto que parecia um mapa riscado de sofri-
mento e ruas por asfaltar. Duas lágrimas em vez de escorrerem, sal-
taram-lhe dos olhos como dois atletas de salto em distância, tentan-
do quebrar recorde. Esconderam-se na água quente. Não é exagero.
Quem já chorou assim conhece. Pedimos a verdade. Ele levantou e
pediu que o seguíssemos. Do outro lado do tapume, mais homens
de rosto riscado de sol e falta de pagamento. Não tinham o que co-
mer. As famílias mandavam cartas pedindo dinheiro. Um deles se
aproximou e disse: moço, se eu pudesse mandava essa linguiça por
carta! Perguntamos pelos porcos. Não havia porcos. Pude ver nos
olhos do vigia um coração ensangüentado como o meu. Retornei ao
rancho e contei aos outros. Fizemos um pacto. Desobedecer à Ma-
rinha. Era costume dizer quando alguém fazia algo diferente: você
está querendo mudar a Marinha?! Pois naquela noite mudamos a
Marinha. Por uns minutinhos, mas mudamos. Como disse Platão,
toda cidade tem duas cidades, a dos ricos e a dos pobres. A Marinha

102
dos pobres encheu vários sacos de lixos novinhos e lavados para
não despertar suspeita na Marinha dos ricos e caminhava em dire-
ção a caçamba de lixo, mas passava direto. Foi uma festa do lado de
lá. Do lado de cá, voltamos ao normal. O vigia foi para o cais, o mar
era de almirante, o céu de brigadeiro e os navios dormiam sobre
brancos lençóis de espuma. No alojamento, os outros rancheiros e
eu, olhávamos para o teto, pensando na possibilidade de mandar
linguiça p por carta.

103
CHURRASQUITE CRÔNICA DO DR. PICANHA

P ara não fugir ao jargão, agora é lei. Os remédios têm que vir com
duas bulas. A que ninguém entende e a que todos entendem, mas
poucos entendem porque é alto o índice de analfabetismo no país.
Porém, a dona Lei tinha mesmo era que obrigar os médicos escreve-
rem duas receitas para eles parar de chamar o pessoal da farmácia de
burro: uma que só eles, e às vezes nem eles, entendem e outra que
todos entendam. É o caso do Dr. Carlos Picanha. Vejamos: Ausenti-
no Bezerra é do tipo distraído. E bota distraído nisso. Se você quiser
conversar com ele tem que bater palmas pertinho do seu nariz para
trazer o seu olhar de volta das terras que ficam para lá do azulado do
horizonte, lá, onde você imagina que existe até felicidade e ministro da
economia que não faça gol contra as finanças e o povo do seu país. O
caso é tão grave que outro dia ele ia atravessar a rua e a gente gritou:
“Olha o caminhão, Ausentino!” E o Aéreo continuou atravessando a
rua, perguntando: Cadê? Onde? Escapou por pouco. Já teve dois tios
mortos por atropelamento e vários primos fraturados.
Ausentino só percebeu a malandragem da quadrilha porque a
vítima era sempre ele. Quando se aproximava o fim do ano. Outu-
bro. Sempre aparecia no quadro de aviso do posto de saúde, onde
trabalhava, um convite: festa no sítio do Dr. Picanha. Novembro.
Ausentino nunca foi a essa festa, porque também não podia ir. Fi-
cava de plantão no lugar do Flausino. E o lerdão nem se dava con-
ta disso. Mas é como diz o ditado: de tanta água mole em pedra
dura... Até Ausentino percebe.

104
Naquele outubro não foi diferente. O Aviso estava lá. Festa no
sítio do Dr. Picanha. Em novembro, Ausentino andava mergulhado
nas profundezas da internet, namorando sereias eletrônicas, esca-
pando de tubarão virtual, cavalgando cavalos marinhos, vivendo
novas aventuras sobre o mouse, quando lhe perturbou o celular.
Era o administrador. O mesmo administrador dos outros anos, fa-
lando que o Flausino estava doente com atestado médico e tudo.
Ausentino mais uma vez teria de ficar de plantão no lugar de Flau-
sino. No sábado.
No início esbravejou, mas subordinado só obedece e pronto.
No entanto, dentro de si ficou a impressão de que tudo era repeti-
do. Desconfiou vagamente. Todavia, montar quebra-cabeça não era
seu forte. Não seria um bom detetive. Para ser um bom detetive,
antes o sujeito tem que ser cronista; passar uns bons anos no exer-
cício da observação. Treinar o olhar e o raciocínio. O quebra-cabeça
montou-se. Sozinho. Pela manhã, Ausentino saía de plantão, do-
mingo chuvosinho, e vinha chegando o Tião Gordo. Ausentino, em
tom de brincadeira, disse ao Tião que achava engraçado o Flausino
ficar doente todo ano, no mesmo mês, no mesmo dia. Tião Gordo,
não querendo fazer inferno, comentou apenas que vira o Flausino
sendo consultado pelo Dr. Picanha na quinta- feira e o espertalhão
havia ganhado três dias de dispensa: sexta, sábado, o dia da festa
e o domingo para descansar, coitado. Dizem as más línguas que o
Dr. Picanha já adiantava os atestados para o Flausino, mas ele os
perdia. Caramba! Eu já tinha visto cheque pré-datado, mas doença
pré-datada é coisa nova. Flausino é reconhecido como excelente
churrasqueiro. Nos outros anos descobrimos, “foto não mente”, ti-
nha sido ele o churrasqueiro das festas no sítio do Dr. Picanha.
Por curiosidade cronística, somente, fomos ver nos arquivos o
que o Dr. Picanha colocava nos boletins de atendimento. Os Diag-
nósticos eram enormes, quase ilegíveis. Entretanto o que dava para
ler, justificava: “O paciente Flausino sofre de Churrasquite crônica”.

105
PORTA GIRATÓRIA

-T em celular?
- Tenho!
A porta não girou
-Tem chave?
- Tenho!
A porta não girou
- Tem alicate de unha?
- Tenho!
A porta não girou
- Tem tesourinha?
- Tenho!
A porta não girou
- Tem MP4?
- Tenho!
A porta não girou
- Por favor me dê os brincos!
A porta não girou
- Por favor a aliança!
A porta não girou.
- Por favor a fivelinha na sandália!
A porta não girou.
- Por favor o piercing no umbigo!
A porta não girou.
- Tem piercing no seio?

106
- Tenho.
A porta não girou.
- Por gentileza, o prendedor de cabelos!
A porta não girou.
- Por favor o relógio!
A porta não girou.
- Por favor essa platina na sua perna!
A porta não girou.
- Por favor, pare de mancar, limpe o sangue. Tem marca passo?
- Tenho.
A porta não girou.
- Por favor pare de girar!!!
A mulher parou.

107
BONECA DE CHUMBO

N os tempos de Machado de Assis a mulher de 30 anos já era ve-


lha. O conto “Missa do Galo” retrata bem isso. Consideravam-
-na assim porque desde cedo largavam as bonecas e se casavam
aos 14, 15, 16 aninhos. Depois mudaram. Resolveram brincar um
tempo de boneca.
Porém, no início dos anos 60, Renato e seus Blue Caps, numa
versão de “I Should Have Know Better” de Lennon e MacCartney,
pediam e como pediam um favor a “Menina Linda”. “Ah! Deixa essa
boneca faça-me o favor! Deixa isso tudo e vem brincar de amor”.
De imediato não fizeram o favor, não. Brincaram mais um pouco
de boneca. Mas de água em água, tanto bateu que furou a pedra.
Fizeram o favor. Que favor! Que Favorzão!
Hoje, o que tem de meninas largando as bonecas para brincar
de amor é de arrepiar. Se bem que a gente já não se arrepia com
quase nada. As Bonecas de Chumbo lembram as Nereidas da Ilha
do Amor camoniana, passeando em nossas praias e adjacências!
Nos pacotes de turismo elas, sem nos darmos conta, são assim
meio sem sabermos, oferecidas como “Prêmio” e os turistas vêem
e vêm. Doidos para descansar depois de Lusitânicas, Italiânicas,
Francesânicas, Alemânicas fadigas. E aqui, eles partem para as Bra-
siliânicas fadigas. E olha que já não existe Renato e Seus Blue Caps,
pedindo esse favor.
Hoje essas meninas deixam suas bonecas não para casar, mas
para brincar de amor mesmo. O mais triste de tudo é que brincam

108
de amor até por um milho cozido. Essa aconteceu com Raulino
Onze Letras. Ele comprava um milho e uma menina mordia um,
delicadamente, perto dele. Raulino perguntou-lhe o nome. Camila.
Tinha cabelos e rostinho de Cleópatra. Raulino indagou se ela estu-
dava, se queria trabalhar.
- Já trabalho para velhos. Há muitos velhos que gostam de
brincar com bonecas na 6a série como eu.
- Mas...
- Você vai pagar minhas contas? O celular de última geração?
Olhar irônico. Camila afastou-se dele e foi para junto das ! outras bo-
necas. Suas idades? Não passavam da 6a série. Enquanto o vendedor
untava o milho na manteiga e sal, Camila fingia murmurar: “Vou bem
sair com aquele homem!”. Espantado Raulino olhou o vendedor como
quem diz: “É verdade mesmo?’ E as bonecas riram. E o vendedor, bom
intérprete de olhares deu aquele empurrãozinho.”:
- Que nada, rapaz! Hoje tá fraco! É segunda! Dá um milho que
ela vai!”
Raulino olhou Camila. Moreninha. Olhinhos negros. Jabutica-
bosos. Aproximou-se e perguntou se ela não tinha medo do Conse-
lho Tutelar e ela disse, não.
- Nem da Guarda Municipal?
- Não.
- Da Supervisão Escolar da PM?
- Não
- Nem de mim?
- Riu.
E para ver se ela desistia, mentiu, Raulino:
- Nem de mim com AIDS?
- Não. Chumbo trocado não dói.

109
X

junto ao rio
um vermelho flamboyant
sobre o flamboyant
mais de cem garças
e passa o frio vento do outono
derruba as flores vermelhas
as garças guardam suas cabeças
embaixo das asas
até  aqui não é poesia
é só adulto observando
observação não é poesia
uma garça fria não é poesia
vermelho frio não arrepia
mas de dentro do adulto
salta aquele menino que
olhando a mesma cena diz:
as flores vermelhas caindo
são placas de sangue
das garças degoladas
pelo vento do outono 

110
PEITÓFILOS E FILEZUDAS

C aro poeta, hoje quando se tira o sutiã, os seios já não caem como
dois enforcados. Avolumam-se e não é talho austero de nenhum
escultor. É o sol da ciência. Às bundas: Paciência!Vão dividir estrelas.
Peito! Peito! Peito! Eis o nosso novo deus, eis a nossa nova necessida-
de, nova ordem, novo progresso, transbordando pelas blusas, transbor-
dando em nossas mãos e não podemos contê-los.
Se fôssemos filmar por debaixo dos cobertores, encontraríamos
uma legião de homens que amanhecem encolhidinhos feito bebê,
agarradinhos aos bicos dos peitos das suas mulheres. Outro dia a
esposa de um amigo perguntou a ele: “Vem cá, você não mamou
na sua mãe quando era pequeno não, hein?!” Aproveitei e contei o
meu caso de peito.
Entraram na sala da Defensoria Pública uma jovem mãe, file-
zuda, uma mistura de filé com a antiga boazuda e um menininho
grudado no peito dela. Peitos grandes. Oh se eram! Como se diz
gigante pela própria natureza. Embora eu tenha mesmo admira-
ção por peito empadinha como o Pequeno Ismael. Peito chifre de
boi nem pensar. Recorda rodeios. E minha cidade só tem rodeios.
Antigamente centro cultural de morro era macumba. Depois ficou
sendo igreja. Agora é rodeio, sempre rodeio. Será que não bastam
os chifres da cidade.
Lembrei do sofrimento dessas mães com os seios rachados,
doloridos, feridos. Porém, recordei também que nem tudo são so-
frimentos. Certa colega, igualmente jovem mãe, disse-me que sen-

111
tia prazer quando amamentava. A cada mamada eram verdadeiros
delírios. De repente a nossa jovem mãe da defensoria começou a
revirar os olhinhos de mel e a umedecer os lábios com a língua,
confirmando o que me falou a colega. Olhava em minha direção
como se quisesse dizer algo. Clara percepção. Fiquei louquinho.
Eram lindos. Preparei um torpedinho com o telefone e e-mail, ume-
decendo os lábios como ela. Puxa! Qual estagiário não ficaria como
eu? Cheio de “amor”.
Na mesa, o processo da jovem mãe era analisado pela defen-
sora com os olhos completamente enterrados nos autos. Agora a
jovem mãe já não se continha mais. Retorcia-se toda. Parecia uma
fêmea de golfinho rodador na cadeira. O menininho puxou-lhe a
blusa toda, mamando ora num ora noutro. E ela revirando os olhi-
nhos e cada vez mais molhando os lábios. Fui atraído por um ímã,
aliás, dois grandes ímãs e quando vi, minha cadeira já havia saído
de detrás da escrivaninha e ido para frente, pertinho da jovem. Eu
já estava em estado delicado. Disfarcei com o paletó. Enxugava o
suor com a gravata. O que nos separava era só o menininho de so-
brancelhas arriadas e uma ruguinha entre os olhos, defendendo o
patrimônio. E eu cheio de água na boca. Quase hipnotizado, senti
algo quente pingar em meu braço. Arriei e era a minha baba. Quan-
do ergui a cabeça, não dava mais tempo. Dei de cara com os dois
peitões, vindo para cima de mim. Como dois prédios desabando.
Virei pizza. Amassadinho no chão. Entre mim e os dois peitões, o
menininho. Salvei-o. Chamaram a ambulância e a levaram para ser
internada. Há três dias não comia. O marido não lhe dava comida.
O processo na mesa da defensora era de Pensão Alimentícia.
A defensora me deu os parabéns e cuidou para que saísse um
elogio em Diário Oficial. Como diz o ditado: atirei no que vi e acer-
tei no que não vi.

112
IRACEMA, A PRECURSORA

P recursor, segundo o dicionário, é que ou o que anuncia com


antecedência a chegada de um acontecimento ou a chegada
de alguém. A doença da magreza ou anorexia nervosa continua
fazendo vítimas. E fiquei pensando... Se Cristo teve um precursor
como João Batista, que veio antes dele, anunciando a sua vinda,
alguém veio com antecedência, anunciando a vinda da magreza e,
por conseguinte, de tanto exagero, da anorexia nervosa. Mas quem
foi a precursora da magreza?
Lembro, ao ler, que os jornais do Rio Antigo como o Radical,
traziam, nas famosas “tirinhas de jornais”, censuras e sátiras com
as magrinhas como esta entre os anos de 1920 e 30: “Querida, você
está tão magrinha! Precisa tomar...? E dizia o nome do remédio da
época para engordar.” Nesse tempo se recomendava um remédio
natural chamado bananas porque engorda. Hoje as bananas, coita-
das, são as terríveis inimigas das magrinhas, daquelas que desejam
ser modelos. Não fosse o saudoso Braguinha com Yes, nós temos
bananas/Bananas pra dar e vender/Banana menina/Tem vitamina/
Banana engorda e faz crescer e o nosso grande Tenista Guga apa-
recer nas telas da TV, comendo bananas, as bichinhas viveriam no
esquecimento.
Mas inspiradas em quem essas meninas vão se acanaveando,
isto é, tornando o feitio do corpo em cana até desaparecer da face
da terra? Muitas delas do curso de modelo parecem canas mesmo:
Retas e esguias, sem as maravilhosas curvas tão amadas por Murilo

113
Mendes, Oscar Niemeyer e por mim. Mas vejam: Eu amo as curvas,
mas não sou adepto daquela piada machista de que “Estrada reta e
mulher sem curva só dão sono.”
Mas esta crônica desconfia que a inspiradora foi uma brasileira
de 1865. Uma morena. Muito rápida; veloz. Uma virgem. Dos lábios
de mel. A Iracema de José de Alencar:
“Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizon-
te, nasceu Iracema. ··Iracema, a virgem dos lábios de mel, que ti-
nha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que
seu talhe de palmeira... Mais rápida que a ema selvagem, a morena
virgem corria o sertão e as matas do Ipu...”
Note-se que Iracema tinha os cabelos mais longos que seu ta-
lhe de palmeira. Talhe de palmeira... Talhe quer dizer feitio ou fei-
ção do corpo ou de qualquer objeto, logo, o feitio do corpo de Ira-
cema, como a maioria das palmeiras, era reto e esguio. E Iracema,
mulher sem curvas, mulher-palmeira foi a precursora da magreza,
a precursora da mulher-cana tão em moda nos cursos de modelo.
Agora, Iracema era da tribo Tabajara ou Tábuajara?!
Não podemos afirmar que a magreza da índia Iracema tinha
causa na intensa paixão pelo português Martim, mas podemos ter
certeza que não vinha da exigência, implícita, de ser magérrima
para ser modelo. Não há nenhum vestígio histórico de que tenha
havido desfiles de modas nas selvas brasileiras por aqueles tempos.

114
SEMÁFORO

O cronista é um vendedor de jujubas no sinal. E a crônica já


começa no vermelho. É hambúrguer em lugar de almoço, é
começar perto do osso. Cuidado moço: eu disse hambúrguer, X-
-Tudo é outra coisa. Porque a crônica não é barbuda, nem peluda
como a morte de Neruda. O hambúrguer não leva o verde da alface,
o vermelho do tomate e do presunto, o branco da clara, o amarelo
do queijo, da gema e batata palha. Mas tem que ser colorida, ao
menos com catchup e mostarda. A crônica deve ser como o pregão:
simples, direta, fácil, atraente, de um modo que se torne perma-
nente. E o vendedor de jujubas no sinal são passos rápidos e leves
pelos corredores claros e curtos, iluminados por sol, lua, faróis.
Ele é menos que um vendedor de doces no ônibus. O vendedor de
doces chega com a cangalha sortida e a pendura e oferece, sem a
ameaça da luz verde espertar-lhe os olhos. E quem diria: Um verde
que ameaça! Há ônibus que só sai depois da última venda. Mas o
vendedor de jujubas só tem uma caixinha e o breve espaço de tem-
po entre o vermelho e o verde para fazer rir, emocionar ou pensar.
Convencer sem muito dizer o máximo de carros no sinal. E o sinal
vermelho não aceita saquinhos de amendoim, bananada ou jujuba
para se demorar nos olhos dos volantes.
O cronista é um vendedor de jujubas no sinal, mas o sinal da
1o de março, onde sequer dá tempo de um pregão, saudoso pregão
a oferecer refresco de limão: “Aê o limão do Mato Grosso/ Casca
fina caldo grosso!”. No sinal, só dá para falar “Caldo grosso”. Meio

115
pregão. O semáforo oprime a crônica. E não importa se o cronista
levanta com o pé esquerdo ou direito, ele é sempre um pé na cova.
E vive tentando tirá-lo, enxertando o literário.
Eis o desafio do cronista: carregar a crônica numa caixinha, tal
qual o vendedor de jujubas no sinal. E ela reclama não poder esten-
der as pernas. Recorre à história e mostra como as filhas de Macha-
do mostravam as suas. Mas o pai, carinhosamente, diz à filha que
suas pernas são lindas, mas é tempo de cama curta e lençol estreito.
Até Raquel dorme encolhida e espremida no poema: no máximo 30
versos. A crônica responde que isso é duro. O cronista silencia. O
pior ele não diz. Não diz que luta feito um desesperado para que ela
seja como um poema e nela não venha como nas jujubas, tatuada
a frase: PRAZO DE VALIDADE.

116
MEU AVÔ NÃO ERA BIG JOHN

O avô chegou para a sua casa e Pequeno Ismael ficou espantado


porque ele não tinha vistas. Eram dois buracos como dois bu-
racos de balas. Mas logo passaram uns dias e viu que a suas vistas
eram na verdade os seus ouvidos:
- Pequeno Ismael! Você está varrendo a casa com a vassou-
ra em pé, meu neto! Deita a vassoura que assim você arrasta
mais poeira...
Como seu avô sabia que ele varria com a vassoura em pé. Fi-
cou maravilhado com a sensibilidade, digo, a percepção dos seus
ouvidos. Foi com ele que aprendeu a comer carne crua?b Viera ape-
nas para passar o Natal, mas acabou ficando. Com a vinda do avô
começou a entender o estranho desejo que tinha de comer carne
crua. À noite Pequeno Ismael atacava a geladeira como um verda-
deiro neto de índio comedor de carne crua, a pouquíssima carne
crua, que agora ele e o avô comiam escondidos no quarto. Por isso,
a casa logo chegava à etapa de só ovo.
Vô tinha o costume de ficar sentado, cabeça coberta, a coberta
ficava parecendo uma cabana de índio. Quando chegou ensinou-lhe
umas canções indígenas que hoje não lembra uma sequer. Reco-
nhece esse seu madrastio. Em vez de guardar as canções indígenas
ficava pedindo a seu pai para comprar rifles de algemas para ajudar
O ex-oficial da Guerra da Secessão John Cannon ou “Big John” a
eliminar os apaches e quem mais viesse no seriado Chaparral, sem-
pre à noite, “The High Chaparral”.

117
Seu pai comprou dois rifles de plástico e do sofá como o meni-
no ajudava a matar os índios. Uma devassa. Os cavalos correndo,
na sua mente e boca patas de cavalos faziam pugudápugudápugu-
dá, as molas do sofá sofrendo Toing! tóim! bóim! póim! A madrasta
doida para plaft! Plaft! Plaft! A música hipnotizante, e ele atiran-
do, cavalgando, pugudápugudápugudá, empurrando os índios para
trás, índios caindo, a música hipnotizante, Tan! Tan! Tandandan-
dan! Tan! Tandandandan! Tan!Tanran!Tanran...; pugudápugudápu-
gudá, e quando olhou para o lado viu dos buracos onde existiram
olhos em seu avô, descerem lágrimas. Vô o que foi?! E bam! Bam!
Bam! Atirando! Derrubando apaches. Não podia parar... a música,
os tiros, bam! Bam! Bam! Big John precisava de ajuda. As balas
ricocheteando na sala zim! tzim! Índio tem que sair das terras, ter-
ras são de Big John, pugudápugudápugudábambambam, índio cara
feia, sempre cara feia, índio não sair, índio morrer. Fala vô! Fala
logo! Você está matando seu avô, rapaz? Uhn! Hã! Não, vô! Estou
matando apaches. Matando índios meu neto, matando a mim. Foi
assim que lhe veio uma das primeiras consciências: vovô era índio.
Índio para ele era uma coisa longínqua, lá na TV, lá no Arizona,
nos altos das montanhas, podiam dar tiros à vontade. Exterminar.
Quem iria escutar? Chamou seu avô para o quintal. Guiou-o pelas
mãos, acendeu uma fogueirinha que iluminou o rosto do índio, um
rosto bonito cuja cegueira não teve o poder de entristecer. Além de
bonito era sorridente, alegre, talvez foi isso que manteve aquela jo-
vialidade, o riso. Quando eu sorria, não sorria, madrasta calava-me
o riso com um tapão. Vô Cantava e tornou a cantar umas canções,
agora não mais as indígenas, isso já tinha passado, cantou para ele,
por exemplo, a canção do Menino da Cabeça de Repolho: vem cá
Menino da Cabeça de Repolho, cada fiapo tem um piolho. A rima
é de cuspir, mas era para ser cuspida mesmo e seu avô foi tirando
esses piolhos grudados na cabeça do menino e cuspindo Pfft! pfft!
phfpt! E o primeiro piolho a sair na unha de seu avô tinha um nome

118
engraçado: Matar índios. Pfft! pfft! phfpt! Pequeno Ismael foi para
dentro e de lá voltou com os rifles novinhos, davam para muito uso,
furar muitos índios; jogou-os na fogueirinha e naquela noite os dois
atacaram juntos a geladeira e comemoraram comendo carne crua.
Seu avô não deixou que Pequeno Ismael usasse - como queria -, os
rifles contra Big John. Pai João – esse era o nome de seu avô - abai-
xou a cabeça e fez um bonc! Bonc!, na cabeça do neto e aquelas
ideias se foram para longe da cabeça do menino,
pugudápugudápugudá.

119
XI

pensei a minha estrada


seria gordura e muita lã
mas a vida me ofereceu
uma perna de garça
fincada na água fria
suja

120
OS VENTOS CONTRÁRIOS

E u Pequeno Ismael estava um domingo à tarde, na Praça XV e


um velhinho xingava os ventos contrários que não deixavam
seu barquinho atracar. Ora, velhinho, já não era para xingar mais...
O velhinho experiente tentava bordejar e colocar o barco a favor
dos ventos contrários, falsamente, claro, para em seguida desviar-
-se para o outro lado e pouco a pouco se aproximar do cais. Os ven-
tos contrários deixavam o barco chegar perto, mas sempre cuspiam
o velhinho para longe. Vendo-se impedido, foi abrigar-se numa ilha
vizinha e esperar que os ventos amainassem ou soprassem noutra
direção. E me veio à memória Camões, Os Lusíadas, o piloto de
Vasco da Gama que, antes de chegar às Índias, tentou atracar a frota
portuguesa no porto da Ilha de Quíloa, mas os ventos contrários
impediram e o jeito foi seguir viagem. Não sei se Vasco da Gama
xingou os ventos contrários. O texto poético nada diz e não pode-
mos ir além do texto. Porém, xingar numa hora dessas é plausível,
mas um grande capitão é grande porque na adversidade encontra
um minuto para se perguntar: que tipo de vento contrário é esse?
Cristo, depois da multiplicação de pães, disse aos discípulos para
entrarem no barco e passar a outra banda. Porém, o barco ficou pre-
so no meio do mar, sendo açoitado pelas ondas porque o vento era
contrário. Cristo foi por cima d’água mesmo e quando embarcou o
vento parou e puderam chegar à outra margem. Ora, Cristo só quer
o bem dos homens, logo o vento contrário era de natureza negativa.
Tentava impedir o Filho de Deus de ajudar um povo desprezado

121
não só com o pão que perece como fazem certos governos, mas
também de ensiná-lo a pescar.
  Parece, mas nem todo vento contrário é negativo. O piloto
que guiava a frota de Vasco da Gama era bifronte, falso e objeti-
vava atracar em Quíloa porque ali a esquadra seria atacada, presa
ou morta pelos inimigos. No entanto, a deusa Vênus usando ven-
tos contrários desviou os amados portugueses da cilada. Vasco da
Gama pode não ter entendido e xingado, mas um vento contrário
pode estar nos salvando a vida e não percebemos. Há marujos que
por insistirem em navegar com ventos contrários perderam a carga
do barco; outros a carga e o barco; outros, a carga, o barco e a vida.
Há marujos que até conseguem atracar, mas não ficam. A fúria do
vento contrário parte as amarras por mais grossas que sejam.
É! Há no mundo dois tipos de ventos contrários: contrários
negativos e positivos. E a primeira vez que desconfiei da existência
dos ventos contrários positivos, como se pode notar, foi na Lite-
ratura, nOs Lusíadas, Canto I, estrofe 100: (Vênus desvia a Frota
do Falso Rumo em que Pusera o Piloto)...Mas a Deusa em Citere
celebrada,/Vendo como deixava a certa rota/Por ir buscar a morte
não cuidada,/ não consente que em terra tão remota/Se perca a
gente dela tanto amada./E com ventos contrários a desvia/Donde o
piloto falso a leva e guia. E dizem: a Literatura não serve para nada;
é coisa de romântico, mas antes de ler essa estrofe, para mim todo
vento contrário era negativo. Adquiri esse conhecimento graças à
Literatura. Eu, cuja mãe não tinha tempo de ensinar coisas sobre
a vida por causa dos múltiplos encontros amorosos; eu, cuja ma-
drasta não ensinava nada sobre a vida por ser o “Filho da Outra”,
só em Camões fui descobrir que nem todo vento contrário era do
contra. E que não era loucura dizer: vento contrário-favorável. Um
vento duplamente positivo e negativo. Positivo para os portugueses
e negativo para Baco e seu piloto traidor. A segunda vez foi com a
minha própria vida. Eu havia manifestado o desejo de viver com

122
uma jovem, mas se interpôs entre mim e ela um Vento Contrário,
dizendo que ela não era mulher para mim. Mandei-o sair da frente e
fomos viver. Eis uma diferença entre os ventos contrários positivos
e negativos. Estes não obedecem a ninguém, contudo, podem ser
vencidos como foram por Cristo ou seduzidos, por exemplo, pe-
las Ninfas de Vênus, cheias de grinaldas coloridas. Não há Bóreas,
Noto, Zéfiro que resistam. Já os positivos são invencíveis, mas se
dispensados, deixam entrever o que nos espera e vão soprar noutra
direção. A jovem e eu não casamos. Foi um inferno.

123
AS MOEDAS DE 5 CENTAVOS 

T iradentes foi traído em vida e continua sendo traído em morte.


Onde? Na pequena Vila Tiradentes de São João do Meriti.
Com o passar do tempo, certos feitos, tidos como grandes feitos,
vão perdendo a sua grandiosidade. Seja de uma forma ou de outra.
Hoje o feriado de Tiradentes já dá carona à Brasília e Tancredo Ne-
ves. Quem mais virá? Por favor, quando Lasana Lukata morrer, só de-
clararei a sua morte no dia 21 de abril. Ele Também quer pegar carona.
Mas quem leu “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, vê que
no capítulo XXI, o almocreve salva Brás Cubas de sérias contusões,
quiçá a vida. Brás Cubas resolve lhe dar três das 5 moedas de ouro
que tinha, mas no pequeno tempo de ir ao alforjes, viu ser a gra-
tificação excessiva. Decidiu dar uma, mas acabou dando mesmo
foi uma de prata e partiu. Enquanto se distanciava, concluiu ao
perceber no bolso do colete moedas de cobre, que deveria ter dado
os vinténs ao almocreve.
Tiradentes foi traído em vida por José Silvério dos Reis e
vem sendo em morte por Brás Cubas. Quem lembra de um jo-
guinho de capas de pano ou plástico que as mulheres vendiam
antigamente de porta em porta? Era um joguinho de três peças
que não era vendido separado. Vinha com uma capa para liqui-
dificador, botijão e filtro. Pois São João de Meriti possuía o seu
joguinho, não de pano, nem de plástico, mas um joguinho histó-
rico: Grupo Escolar Tiradentes, minha primeira escola; o bairro
Vila Tiradentes e a Estrada de Minas.

124
Mas apareceu um Brás Cubas por aqui também e começou a
avaliar que o sacrifício de Tiradentes não foi lá grande coisa, não
merecendo moedas de ouro e o G. E. Tiradentes deixou de ter esse
nome e passou ser chamado de Alzira dos Santos Silva.
Depois veio outro Brás Cubas e viu que não era nada mesmo
o feito do Joaquim da Silva Xavier, então para quê moeda de prata?
Trocou o nome da Estrada de Minas para Avenida Getúlio de Moura
e só ficou o solitário nome de Bairro Vila Tiradentes, no valor de
uns vinténs de cobre.
Havia forma e poesia em Grupo Escolar Tiradentes , Vila Tira-
dentes, Estrada de Minas, mas que forma há em Vila Tiradentes e
Getúlio de Moura? Vila Tiradentes e Alzira dos Santos Silva? Meus
respeitos às mulheres, mas não combina!
A Política precisa saber que as palavras não estão soltas no
ar por mais distantes que estejam geograficamente. Poeticamente
estão combinas como as Três Marias. Nossos índios não nomearam
em vão: Itinga, Tinguá e Tanguá; Turiaçu, Iguaçu, Cabuçu; Icaraí,
Andaraí, Bracuí. Quem tem ouvidos ouça!
No entanto um político surdo trocou Itinga por Éden, de-
formando o joguinho, Itinga, Tinguá e Tanguá. Só pode ser um
Brás Cubas!
Menos mal a coisa estar apenas na terra, mas a qualquer ins-
tante se desloca para o céu, se aparecer um vereador-astrônomo
para mudar o nome das Três Marias para Duas Marias e Izildinha,
porque a mãe dele se chama Izildinha. E aberta a porta da vaidade
celeste, pode vir um segundo e trocar Duas Marias e Izildinha para
Uma Maria, Izildinha e Aline, porque a amante se chama Aline.
Tiradentes na minha infância era nota de 5000 (Cinco mil
cruzeiros); veio um Brás Cubas e o jogou para 5 cruzeiros novos;
depois veio outro Brás Cubas e Tiradentes, o Mártir da Indepen-
dência, é hoje moedinhas de 5 centavos, perto dos bueiros do
bairro onde nasci.

125
Confesso, não entendo o mundo das moedas: Tiradentes
é moedinha de 5 e D. Pedro I de 10 centavos. Quem dá a vida,
vale menos.

126
HOJE: LULA AO MOLHO DE ALCAPARRAS

Q uando a carne está boa vamos comendo, mas deu sinal de


ranço é hora de parar. A não ser que sejamos hienas ou queira-
mos imitar o pessoal da Idade Média que recorria às alcaparras para
disfarçar o ranço das carnes passadas. As hienas não precisam de
alcaparras. Nunca vi uma hiena no mercado, comprando alcaparra
para despistar o cheiro desagradável dos restos do leão.
Na crônica anterior falei que a alcaparra abre o apetite, mas
não disse tudo. A alcaparra além de abrir o apetite e mascarar o
gosto ruim das carnes, é também digestiva, acalma, diurética, afro-
disíaca... E pode deixar você rico.
Se as alcaparras podem durar uns 30 anos e a maioria das crô-
nicas não duram 30 horas e se separam no tempo, ambas carregam
duas semelhanças e se aproximam: sobrevivem na pouca profundi-
dade e multiplicam-se facilmente.
Segundo Heitor Cony, para fazer uma crônica basta abrir a ja-
nela. Quanto a abrir a janela tenho dificuldade porque a minha dá
direto na parede da vizinha e já pedi, implorei para ela fazer que
fosse uma janelinha, um buraquito, já daria uma crônica, mas ela
tem resistido bravamente ao meu pedido a pedido de seu pai. Se eu
insistir vou acabar virando o cronista do olho roxo.
Essa vizinha é uma paisagem perfumada, mas a parede é de
tijolo dobrado, recomendação dos pais, tijolo maciço, mas à tarde
ela encosta do lado de lá e a parede fica suada do lado de cá porque
os mesmos tijolinhos se transformam em esponjas e jogam para a

127
minha janela a bela vizinha em estado gasoso. E vivo um misto
de anfíbio da dor e da ternura por essa Flor de alcaparra-cheirosa,
protegida por espinhos: irmão e pai.
Não se engane: um buquê de pedras também murcha e a crô-
nica também tem espinhos, mas... Distanciemo-nos das paixões, da
paixão pela vizinha que o riso e a reflexão reclamam o seu pedaço
de pão e nesse instante ambos oram a mim: Pai nosso que estás no
texto... O pão nosso de cada dia nos dá hoje. E qual pai se o filho
pedir pão, dará um escorpião, serpentes? Pois tomem lá meus fi-
lhos. Hoje lhes darei lula ao molho de alcaparras. Vamos ao molho.
Sei em nosso país o comum é salmão ao molho de alcaparras,
onde não há disfarce, mas casamento entre o doce e o salgado. Sei
também não é nosso hábito tirar o ranço das carnes com alcaparras,
mas vou recuperar essa prática da Idade Média lá em casa, porque é
a terceira vez que esses maîtres e garçons querem me oferecer lula.
E com ranço! Ora, só com alcaparras!
Estou inclusive pensando em mudar de negócio e me tornar um
alcaparreiro e ficar rico. O grande negócio não é canavial nem etanol, é
alcaparral, alcaparrol. Breve teremos carros movido a alcaparra e nem
vem, a receita é minha e só vai dar esse prato nos restaurantes: Hoje:
Lula ao molho de alcaparras. E pelo jeito vou exportar a idéia: Hugo
Chávez ao molho de alcaparras; Evo ao molho de alcaparras; Rafael ao
molho de alcaparras; Kichner ao molho de alcaparras...
Alcaparras à parte, a desculpa desses que desejam perpetuar-
-se no poder, mexendo na Constituição, é a da não continuidade de
seus projetos por outros governos. E qual o projeto que o PT trouxe
para o Brasil? A política do Canguru de amarrar milhões de cangu-
ruzinhos às bolsas? Esperávamos mais do que paliativo, mas já que
aquilo tem o nome de projeto, a solução seria mexer na Carta Mag-
na para inserir punição para os Atos Políticos como ocorrem com os
Atos Administrativos. E isso não é novidade. Qualquer professor de
Direito Constitucional ou Administrativo sabe disso.

128
Se já houvesse punição para os Atos Políticos não haveria esse
mundo de obras abandonadas pelos governos, Federal, Estaduais e
Municipais. Muitas delas só porque foi iniciada pelo governo ante-
rior: “Vou colocar azeitona na empada do outro?!”. Mas parece que
os políticos não gostam de punição. Seria atirar no próprio pé. Olha
o cronista dando uma contribuição ao seu país. Daqui a pouco vão
bater à minha porta perguntando se não quero ser um politiqueiro.
Já foram. Vade retro, Satanás! Sou um Evangelista. Amo a crônica,
a poesia, evangelizar las mujeres com versos, nada mais.
O que eu não disse ainda à amiga e ao amigo sobre lula é que
boa parte da minha vida passei trabalhando para os chineses numa
lanchonete. E qual o prato que era sempre servido no almoço? Lula!
O velho cozinheiro chinês girava a colher na panela, provava o cal-
do, fazendo ar de saboroso; batia três vezes na testa e dizia (Chinês
não fala o R): lula bom pala o céleblo!
E hoje em chinês ablasileilado lespondo: bom pala o céleblo
de quem?
- Dos banqueilos e glandes emplesálios.
E quase esqueço de dizer, antes da Idade Média as alcaparras
já eram muito apreciadas no Grande Império Romano e antes do
Império Romano existiram Grandes Impérios e lá estavam as peque-
ninas alcaparras, antes de Adão, e belo é isso: Os Impérios passam,
as alcaparras ficam.

129
XII

tarde em S
de frente fria
flamboyants vermelhos
folhas verdes
garças brancas
 
garça de pescoço em S
de solidão
e nem a poesia te socorre

130
TRINDADES DA VIDA

Q uando Trindade se preparava para a Primeira Comunhão, dizia


que seu sonho era ser padre, mas não por vocação, isso ele não
dizia, pois se havia de um lado a Santíssima Trindade o acolhendo na
igreja, em casa enfrentava a Maligna Trindade, Falso Profeta, a Besta
e sua Madrasta, que desde os seus cinco anos de idade, esperava o
pai sair para trabalhar e o atormentava, mandando-o embora de casa.
Então queria ser padre para ter a Trindade, casa, salário e filosofia.
E foi nas aulas de catecismo que aprendeu a ver na natureza os
símbolos da Santíssima Trindade. Por exemplo, a raiz, o caule, os
ramos formam uma só planta; no sol: o foco, a luz, o calor, formam
um só astro. Quando a professora Dulcinéa disse que na família,
o pai, a mãe e a criança era uma espécie de Trindade na terra, a
coisa complicou porque no Grupo Escolar Tiradentes, na sala 1,
havia três meninas, a Trindade da Beleza, Arlete, Maria de Fátima
e Damiana.
Escolheu a de cabelos negros que veio sentar-se ao seu lado,
nas antigas carteiras de dois alunos e davam três com boa vontade
se a professora tivesse as pernas bonitas. Escolheu a de cabelos
negros e a convidava com ternura, todas as tardes para formar uma
Trindade na terra, mas nem toda a terra aceitou o convite para
apoiar aquela Trindade e numa noite em que um lençol de corvos
enfarruscava as estrelas, seus pais mudaram de repente, levando-a
para escuridades incertas e não sabidas. Triste Trindade! Tão cedo
buscou Trindade e já tão tarde não a tem. Formou Trindades é certo,

131
mas Trindades apócrifas. Trindade é três em um, tri-uno como Os
Três Mosqueteiros: “Um por todos e todos por um”.
Trindade é três em um, Trindade crônica, Trindade Conto, Trin-
dade poesia e de sua caneta-tridente nem sempre dá para separar e
o texto sai meio conto, meio crônica, meio poesia; meio sério, meio
humor, meio amor. E quem disse que ele veio separar terra, céu e
mar? É a oportunidade de usarmos a nossa Trindade e o lermos com
vontade, intelecto, sentimento.
Enquanto o parzinho dele não aparece para formar uma Trin-
dade, ansiedade para quê? Tornou-se catador de símbolos na natu-
reza. O símbolo representa alguma coisa por convenção. A aliança
é um anel simbólico de noivado ou casamento, mas o símbolo pode
representar mais de uma coisa como a água que simboliza a trans-
parência (Tão em falta), a inconstância e o batismo. E os símbolos
não ficam reduzidos a duas ou três representações. Dependendo
do talento o símbolo pode representar muitas coisas. Desde a maçã
que simboliza o pecado, símbolos surgem para representar uma ou
outra coisa.
Um símbolo criado recentemente para representar a esperan-
ça da família brasileira foi a Árvore de Natal Bradesco Seguros e
Previdência. Pelo menos foi o que ouvi no rádio durante o tempo
em que observa a árvore. Que mudança. A esperança simbolizada
pelo verde, agora será também pelo vermelho do Bradesco. Olha, já
estou cheio de esperança vermelha.
A árvore este ano está mais alta, 85 metros . Que maravilha.
Está alta mesmo e este mês o governo resolveu diminuir as tarifas
bancárias (um tapinha), mas essas medidas só irão vigorar a partir
de 30 de abril, quando os bancos só poderão aumentar as tarifas de
6 em 6 meses. Oxalá até abril, no mesmo lugar da Árvore da Bra-
desco Seguros, não cresça outra árvore, a Árvore das Tarifas Bancá-
rias, também com 85 metros . Acreditemos na esperança vermelha,
Trindade! Isso não vai acontecer. Se acontecer, o povo vai enxergar

132
no próximo Natal e seguintes, uma Trindade, três árvores, três em
uma: a Árvore de Natal da Bradesco e Seguros, a Árvore das Tarifas
Bancárias e a Árvore dos Juros que por mais digam os jornais está
caindo, sempre é a mais alta entre os países.
Se a raiz, o caule e os ramos formam uma só planta; se o sol,
foco, luz e calor formam um só astro, semelhantemente, na Lagoa
Rodrigo de Freitas, a Árvore de Natal da Bradesco e Seguros, a Ár-
vore das Tarifas Bancárias e a Árvore dos Juros formam uma só
conta e quem paga não são os Três Reis Magos.

133
ELOGIO DA CHUVA  

C aro Lukata, meu nome é Aedes Aegypti de Souza, tenho 6000


anos, mas só de uns tempos para cá é que nós, os Aedes, graças
a Andy Warhol e um pouco da nossa maldade, começamos a nos
tornar midiáticos.
Vejamos, nós os Aedes, entramos na festa de ser respeitado
pelo mal que podemos causar. Já somos sucesso estadual e com a
ajuda da Nossa Senhora dos Mosquitos a nossa fama vai ser nacio-
nal e internacional!
Mas não é a mim que desejo elogiar. Entre os dias 14 e 21 de
março, Dia Nacional e Internacional da Poesia, respectivamente,
mais exato, dia 17, jornais e TVs acusavam a Chuva de ter deixado
53 feridos em todo o estado. Não há nenhuma poesia nisso. Aliás,
aqui no rio a Chuva não é poesia. Aqui a chamam de tragédia, de
estraga prazer nos finais de semanas... Já a chamaram até de chu-
va assassina! Chuva assassina? Chuva assassina é essa chuva de
ogivas que fica trovejando, ameaçando, passando para lá e para cá
nos céus da mídia. A própria França anunciou, através de Sarkozy,
que vai diminuir a sua chuva de ogivas nas Forças Armadas: menos
de 300. O tamanho exato ela não diz, porque considera segredo de
Estado. Ingênua França! Espera que os outros países digam o ta-
manho aproximado dos seus arsenais. É claro que todos vão dizer:
menos de 300. E não dirão o tamanho exato por ser considerado se-
gredo de Estado. Parece que estamos no meio de meninos medindo
o tamanho dos seus pintinhos; Quem falará o verdadeiro tamanho

134
do seu arsenal? O tamanho exato do meu pintinho não digo a nin-
guém. É segredo de Estado.
O que deve ou não, ser segredo de Estado, depende de cada
cultura, cada país. Uns entendem segredo de Estado no sentido
Stricto Sensu, outros no sentido Lato Sensu. O Brasil é o país do
Lato Sensu: até tapioca é segredo de Estado. Mas a França pede,
ainda, à China e aos Estados Unidos para não brincarem com armas
nucleares, mas nessa chuva os Estados Unidos não querem se mo-
lhar de jeito algum, e sonha com o seu guarda-chuva atômico. Isso
sim é uma chuva assassina, Lukata. Quer mais assassina do que
a chuva de balas perdidas? Assassina é a chuva de fraudes, e que
chuveiro! Assassina é a chuva de Aedes Aegypti, que por acaso sou
o Aedes chefe, e mato mesmo, mato até criancinhas, mas a chuva,
coitada... Nada a ver.
Agora, aparece um monte de feridos, de mortos por esse mun-
do e a culpa é da Chuva? Das águas de março? Da poética água de
março? Bando de Adão e Eva! Reclamam da Chuva, mas vocês de
cérebro e razão também têm as suas chuvaradas! Nós damos 15,
20, 25 picadas em vocês até matar mesmo e assumimos, mas vocês,
não! Dão 15, 20, 25 tiros noutro ser humano e saem por aí alegando
legítima defesa, bala perdida...
Vocês chamam a Chuva de água de assassina, mas amam a
Chuva de Sangue. É no cinema, é na vida real... Meu santo deus dos
mosquitos! Eu estava outro dia mordendo o joelho de um garota,
quando ouvi na TV a chamada de Rambo IV e começava assim:
“Muito sangue, tiros...”. E nos jornais? “Sangue, tiros e muita tes-
tosterona...”; e na vida real é 30, 40, 80 tiros em Fulano, em Bel-
trano... Assassina ! Tá! Assassina é quem tem cérebro! Assassina
é essa chuva de raposas na política. E ainda exigem que os livros
doados às bibliotecas nos presídios sejam livros que não estimulem
a violência, a astúcia. Olha aí a raposa! A astúcia é tratada com
dois pesos e duas medidas nesse país. Para um lado ela é livre,

135
aplaudida e incentivada por padres, pastores, políticos, advogados,
mas para outros, não! Só mesmo na cabeça de raposa que cabem
essas coisas! Que padre? Baltasar Gracián! Que pastor? É só ver TV
e ouvir rádio! Que político e advogado? Perdi as contas!
Liga, não, Aedes de Souza! Aqui nesse Rio de Janeiro eu sou
mal vista, mas ainda bem que o ponto de vista não é um só. Lá
para o Nordeste me chamam de Chuva-de-Caju; Chuva-dos-cajuei-
ros; Chuva-dos-imbus; Chuva-dos-imbuzeiros; lá em Goiás eu sou
Chuva-de-manga! Aqui mesmo eu deveria ser chamada de Chuva-
-dos-morangos, chuva-das- melancias... Quando eles vão à feira em
dezembro, encontram morangos robustos, melancias enormes, vin-
das do interior do estado e, no entanto, ingratidão! Chuva-de mo-
rangos! Quer mais poesia do que essa?! A poesia cada vez mais se
afasta desse mundo, olha a notícia: “morre o músico cubano Israel
“Cachao” Lopez, pai do mambo”. O que você acha, Aedes?
- Acho que mais um pouquinho e a notícia seria diferente:
“Morre..., pai do Rambo”

136
INDEPENDÊNCIA OU BOLSA!

L ogo após a vinda do Papa ao Brasil para promover o Frei Galvão


de Beato a Santo, o “Santo-Mor” saiu pela Europa (França, Ho-
landa, Malta, Polônia), promovendo outros beatos como foi noticia-
do. A notícia não trazia informações se os Advocatus Dei europeus
(Advogados de Deus), defensores da canonização, reclamaram as
promoções como têm reclamado, aqui no Brasil, os Taifeiros da Ae-
ronáutica a promoção que lhes é devida, baseada não em milagres,
mas na Lei Federal 3953/61 que deixou de ser cumprida e agora
lutam na Justiça.
Se o seu problema é promoção
Tome as pílulas do Frei Galvão!
Promovido um dia desses ao posto de coronel e financeira-
mente a general foi o assassinado e ex-guerrilheiro capitão Carlos
Lamarca cuja família receberia (cortaram) 300 mil reais de indeni-
zação. Um dos taifeiros da Aeronáutica manda a um jornal um e-
-mail indignado de como pode o país promover um militar desertor
que furtou armas para se levantar contra o governo?
Ora, meu caro taifeiro, olhando o reverso da medalha, do seu
ponto de vista ele é bandido, covarde, mas o outro lado da medalha
o chama de herói, corajoso. Lutou contra a ditadura. Ademais, o
país é rico em assistencialismo, mas anda carente de promoção.
Veja pelo bom lado que é mais um general no país.
Não é só a sua promoção que anda atrasada, o Brasil anda
atrasado, pensa que foi promovido ao BRIC (Brasil, Rússia, Índia

137
e China), países emergentes, mas a prática nos mostra que a sigla
é RIC... Aumente a sua percepção e verá que ainda estamos cha-
mando o saudoso João Cândido de marinheiro, almirante é só na
música, meus parabéns ao seu xará João Bosco que tão bem home-
nageou esse humilde desertor da chibata.
Se o seu problema é honestidade
Tome as pílulas do Frei Galvão
E adeus corrupção!
Olha Taifeiro, observando a sua situação e a do Cândido, preciso
lhe contar um pequeno caso ocorrido no Posto de Saúde em que eu
ficava de plantão à noite. Era um sábado quando chegou um rapaz
de cabelos enroladinhos, empurrando uma das macas com um corpo
em cima e gritando sai da frente que meu pai está morrendo, eu sou
terceiro-tenente da Marinha do Brasil! Não morreu. Para azar dele e
riso nosso, o médico também era 2o tenente-médico da Marinha e eu,
cabo-marujo recentemente saído de baixa. Tratamos o rapaz o tempo
de Senhor Terceiro-Tenente. “Cuida bem do meu pai, hein?!” E respon-
díamos rimando e rindo à socapa: “Perfeitamente Terceiro-Tenente!”.
Ao preencher o boletim de atendimento vi que seu pai era um cabo
velho, taifeiro como você meu caro taifeiro indignado da Aeronáutica.
Suponho que ainda seja cabo por estar no mesmo problema que você.
Não sei. Sei que não existe nas forças armadas o posto que o rapaz dos
cabelos enroladinhos vociferava pelo corredor e a minha preocupação,
taifeiro, dessa vida que a gente tem levado modernamente é de você
e o marinheiro João Cândido serem promovidos a Terceiro-Tenente.
Outra preocupação tão legítima quanto a sua é que muitos jovens não
conseguem ser promovidos a adultos e as autoridades no assunto re-
clamam que esses jovens estão morrendo no auge da sua intelectu-
alidade. Vendo os jornais e as conversas dos jovens nas ruas não há
como não concordar. De fato, os jovens estão morrendo no auge da
sua intelectualidade: Sex Hot, K-1 GP, MAX FIGHT I, UFC (ULTIMATE
FIGHTING CHAMPIONSHIP), Sílvio Santos...

138
Mas sobre essa sua crise de promoção, ouça o conselho da sua
ministra do Turismo: “relaxa e goza!” Sim. Alegre-se. Promovo-o
a Marechal-do-Ar. Há muita gente sendo promovida de cavalo a
burro; você agora é marechal, promovido, agorinha, por esta crô-
nica. Pior seria ser promovido a um “Bolsa Família”. Orvalho não
enche poço! Veja: também estou tentando uma promoção de sátiro
para ironista e até agora nada. Não é fácil. Leva tempo. A crônica
aguarda a sua promoção à Literatura. Não quero com isso levá-lo a
um conformismo, mas são muitos pelo Brasil e mundo, aguardando
uma promoção.
Fique tranqüilo que os céus e a terra passarão, mas esta crô-
nica não passará porque promoção é assunto que atravessa gera-
ções. Promoção e assistencialismo. Duas coisas tão parecidas e tão
distintas sobre esse chão: a primeira emancipa, liberta; a segunda
prende, escraviza.

139
XIII

garça! garça!
aonde anda o seu bando
o que faz aqui tão sozinha
se os nossos modos mudaram?
o mundo anda em cardumes
Nafta, Mercosul e G 8
daqui a pouco é G 10
Índia e China talvez...
 
garça! ô garça!
por que o voar sozinha
e o desprezo ao bando
se ao voar muitas asas
a vida machuca menos?
não. não eleve o pescoço
os nossos modos mudaram
os nossos russos voltaram
o mundo voa em bandos
e os garceiros aderiram
e andam em bandos famintos
por todos os cantos atentos
às garças que abrem o bico
bicos esses compridos
que perfuram o imediato

140
e alcançam coisas profundas.
 
corre corre branca neve
o mundo anda em cardumes
de integrados excluídos
resistentes, marginais
e os que são proibidos
por onde anda o seu bando,
o que faz aqui tão sozinha,
tão sozinha como eu ?

141
MÔNICA, CASCÃO E CEBOLINHA...

É surgir nos meios de comunicação podre de algum evangélico,


denunciado por outro evangélico, que certos pastores correm
para pregar o texto da Carta do apóstolo Pedro: “O amor encobre
multidão de pecados”.
Como prova desse amor citam o caso de Noé, o da arca, para adver-
tir que o que se passa dentro da igreja deve ficar dentro da igreja, den-
tro de casa. Concordo se não for corporativismo, porque não é menos
verdade que o interesse tem encoberto multidões de cebolas. Réstias e
réstias de cebolas, todas ligadinhas pelo fio condutor da corrupção.
Noé, bêbado, peladão estava dentro de casa e seu filho, Cão,
quando viu o pai naquele estado, riu, fê-lo saber fora. Mas seus ou-
tros dois filhos, Sem e Jafé, agiram diferente: tomaram uma capa e
de costas, para não ver a nudez do Patriarca lançaram-na sobre ele.
Eis a questão dessa crônica: a capa. meu país parece o para-
íso das capas. Como sabermos quando a capa é capa de amor ou
capa de omissão, acobertamento, cumplicidade? No caso de Noé foi
uma bebedeira isolada, não habitual, não era um alcoólatra. Pode-
-se afirmar que a capa lançada sobre ele era uma capa de amor. O
problema é quando lançamos capas em cebolas. A cebola como
imagem literária não é nenhuma novidade que Machado de Assis e
Autran Dourado não tenham explorado. Porém, nessa tarde, tomo
emprestadas essas cebolas a esses grandes escritores, primeiro para
falar das minhas cebolas e segundo porque um gigante só se torna
gigante se subir nos ombros de outro gigante. É fato.

142
A primeira cebola que vi conscientemente na minha vida era
enorme, um cebolão, menor, claro, que o cebolão da corrupção, e
dava para três pessoas. Eu saía da minha rua Abílio Machado para
uma rua vizinha, a Guimarães, onde caçava peixinhos de vala.
Certo dia esperava que os peixinhos dourados caíssem na armadi-
lha e de repente ao erguer os olhos vi o tal cebolão num pires sobre a
mesa de um casebre marrom, onde tudo era marrom: Dona Ziza e Dona
Joaquina, que moravam ali, sozinhas e desamparadas, eram marrons,
as cadeiras e a mesa eram marrons, eu mesmo cheio de pintas marrons
no corpo, parecendo um sorvete de flocos, herança da negra Guiomar,
minha avó, embaixo das muitas vagens marrons dos flamboyants que
incendiavam as tardes de uma infância desnutrida de grandes sonhos.
 Meu maior sonho de criança era caçar uma peixinha vermelha
que morava na rua Guimarães e por diversas tardes ela se deixou
apanhar na antiga banheira, atrás da sua casa, onde me mostrava
para mim as suas guelras e suas nadadeiras que estavam crescendo.
Eu me sentia na tranqüilidade do fundo do mar. Tinha os pezinhos
bonitos e cabelos negros, negros, a minha peixinha vermelha.   
Não sei qual das duas velhinhas, sei que uma tinha um dente
de ouro e foi este dente brilhante que me convidou a comer o cebo-
lão que entrou branquinho e saiu marrom da panela. Tentei disfar-
çar o meu estômago arrepiado, mas nos sorrisos delas a vida tinha
embutido tanta ternura que só escapei com uma pergunta típica de
criança de cinco anos, dos anos 70, perguntando como ela conse-
guia gastar seu dente de ouro com cebola. E o que mais se vê hoje
em dia são pessoas gastando ouro com cebolas. Paguei a língua. O
que mais entra lá em casa é cebola e por minhas próprias mãos.
Que a Vida me livre de lançar capas em cebolas. Cebola é capa em
cima de capa, logo é lançar capa sobre capa. Quando Dona Ziza e
Dona Joaquina terminaram com a cebola fiquei surpreso. Pensei
que a cebola era como os meus preferidos amêndoa e abacate que
no final deixavam um caroço, mas no pires só ficou o vazio.

143
Há de se ter cuidado com essa prática de lançar a capa porque
podemos transformar um Noé numa cebola, um homem pode virar
cebola se toda vez que ele aprontar lançarmos uma capa sobre ele.
Talvez seja por isso que haja tantos crentes-cebola, tanta gente-
-cebola por aí.
Ora, Deus é amor, mas há um momento que até do armário de
Deus se esgotam as capas e tudo vem à luz. E o Todo-Poderoso em
vez de enviar pessoas para lançar uma capa, envia para descascar
a cebola, tirar a capa. E quando ele começa a descascar cebola não
cansa e nem chora. Os olhos de Deus são espíritos.
Esse tempo de cebolas não é de espantar. Cristo já havia falado
que o amor de quase todos esfriaria; haveria homens amantes de
si mesmos... E não é verdade? Não temos votado em cebolas, cho-
rado por cebolas, ajoelhado para um deus-cebola, apaixonados por
cebolas no Baile da Cebola? Eu mesmo andei a escrever poemas-
-cebola! Sem dizer que as cebolas do Egito estão entre nós. Quanta
gente suspirando pelas cebolas do Egito. O Anticristo é uma cebola
e virá entre as cebolas do Egito. Cheio de capas. Acho que já é
muita cebola para uma crônica só. Espero que essa não seja uma
crônica-cebola, pois escrevo na esperança de que me sobre ao me-
nos um caroço de abacate. Por hoje encerro com uma curiosidade
que ninguém se dá conta da metáfora que existe por trás da Môni-
ca, Cascão e Cebolinha: A Mônica é o grande símbolo de resistência
que com o seu coelhinho sempre bate na Sujeira do Cascão e no
Vazio do Cebolinha.

144
XIV

     o rio
     era um poema em linha curva
     todo em S
     e branco
     as águas escorregavam feito cobra
     entre lilases mata-cabras
     pássaros abriam asas
     sem se preocupar com as margens
     remos encompridavam e sobre eles
     saltavam peixes de aquário e frigideira
     mas o homem entorta o reto
     retiliniza o que nasceu para ser torto
     o torto existe
     e se deus me fez torto
     quem poderá endireitar-me?
     fui lateral direito que ia reto até o meio do campo
     e lá curvava para a ponta esquerda
     cruzava a bola com a perna direita     
     quantas curvas!
     como serão as ruas da minha cabeça?
     estreitas como as da minha cidade?
     vieram as máquinas
     para me retilinizar como o rio
     porque diziam esse menino nasceu atravessado

145
     manda cartinhas para Maria de Fátima
     e nelas pinta um coração azul com flechinha vermelha
     coração é vermelho, capeta
     e a psicologia passou o seu trator no meu cérebro
     o quartel fez lavagem no meu cérebro
     só  as professoras beijavam meu cérebro torto
     hoje o rio
     é uma garça de pescoço esticado
     e preto
     nunca mais voará com o pescoço em S
     mas quando tem jogo dos veteranos
     continuo indo até o meio do campo
     curvando para esquerda
     e da linha de fundo fazendo gol olímpico com a perna direita
     a melhor distância entre dois pontos
     em mim é uma curva  

146
DAL E OS PEIXINHOS DOURADOS

C hamei meu amigo para caçar peixinhos dourados nas antigas


valas negras rua abaixo. Ele se riu, dizendo:
- Peixinhos dourados em valas negras?! Parecia Natanael falan-
do de Cristo: pode vir alguma coisa boa de Nazaré? E eu disse a Dal
o que os discípulos disseram a Natanael. Vem e vê.
Naquele tempo eu já dava sinais de detalhes barroco, pois
quando Dal me pareceu para caçar peixinhos, veio com uma lata de
salsicha. Não, não! Joguei a lata de salsicha fora e lhe dei uma de
sardinha. Dal, as coisas têm que combinar. Cheiro de boi não dá!
Não pesca peixe. Se ao menos fosse peixe-boi... Mas são dourados.
É mais fácil o peixe pescar você conforme Jonas foi pescado pelo
grande peixe. Como hoje, no tempo de Jonas muitos concursos e
histórias de pescadores existiam, mas era sempre o homem pes-
cando o peixe: uns pegando peixe de 60 metros , outros de 500
quilos, mas era sempre o homem pescando peixe. Deus até quis
se comunicar com Jonas para ele não escrever mesmices do mar,
mas o homem não dá ouvido a Deus. Não restou alternativa para
o Altíssimo senão o de inspirar o grande peixe (aceitemos baleia) a
engolir Jonas.
 Li na internet que “O Departamento de Letras da PUC-Rio ofe-
rece habilitação em três anos: Formação de Escritor. Este curso de
Graduação busca capacitar o aluno a dominar técnicas e estratégias
de escrita, através de oficinas de produção textual: roteiros para
cinema e televisão, dramaturgia, ficção, poesia, textos técnicos e

147
para a web. Além dessas disciplinas específicas, o curso proporcio-
na uma sólida formação em língua e literatura.”
Note-se que são três anos. Eis aqui a diferença entre o homem
e Deus: Deus é mais rápido. Intensivo. Conciso. Com apenas três
dias e três noites de curso no ventre da baleia e Jonas saiu de lá
escritor. Criativo. O peixe me engoliu. Aliás, Jonas não saiu, foi
vomitado. Com o PROUNI há muitas baleias vomitando cardumes
de Jonas por aí.
Mas voltemos para Nínive, pois como Jonas a crônica já fugiu
bastante da presença do Senhor para Társis. Mostrei a Dal um car-
dume de peixinhos dourados na vala.
- Dourados?! Onde?
- Tá bom! Pesquei um, pus na água limpa e em seguida na mão.
- Aqui! Douradinho!
E ele:
- Cadê?! Esse é cinza!
Daí porque o chamo de Dal. Ele é daltônico. Foi um sacrifício
para ele passar nos testes de cores para ingressar na Marinha.
Um dia, já grandes, fomos parar num lugar chamado Bom Pas-
tor. Era domingo. Lugar desprezado como a Nazaré de Cristo. Fo-
mos para a beira do campo e Dal já chegou olhando o lugar feito
um Natanael. A bola rolava e chovia. O campo era vala negra. Acin-
zentava as peles, mas as camisas amarelas, azuis e calções pretos e
vermelhos pareciam peixinhos dourados.
- Peixinhos dourados?! Em Bom Pastor , Lukata? Não exagera.
De repente um preto cansou e deu a vaga e veio sentar-se ao pé
de nós. Com um, bom dia!
Estava imundo. Mas quem liga para isso se a pelada é gostosa?
É tomar banho e pronto.
Meu amigo Dal começou a puxar assunto com o preto:
- Pois é, rapaz! A vida é difícil! Se a gente não estudar...
O preto ergueu os olhos e fez:

148
- É!
E Dal continuou:
A vida passa rápido, é muito curta, se a gente não estudar...
O preto ergue os olhos mais uma vez e: É!
Aquele bando de desocupados, jogando ali o tempo fora. Cris-
to pelo menos era carpinteiro... E incomodado com os perdidos,
querendo salvar ao menos aquele que veio sentar-se ao pé dele.
Ele agora sargento da Marinha do Brasil, elo entre a oficialidade
e as praças, desejava ser o elo entre aquele preto e a civilização...
Champanhe Moe Chandon, Cabernet Sauvignon, curso de francês
na Aliança Francesa... E Dal saiu com essa:
- Pois é, rapaz! Eu estudei... Hoje estou na Marinha... Sou sargento!
O preto deu um salto e sorridente disse:
- Muito prazer, sou capitão! Passa amanhã na minha unidade
militar para almoçar comigo!
E voltou a sentar que a pelada era dourada. Um tempinho para
disfarçar e Dal foi se afastando do campo com aquele daltonismo.

149
DE CABELOS SOLTOS

E la era a minha professora de Literatura. Na verdade não era. É


que uma vez a professora titular passou mal e a chamou para
ficar no seu lugar, à noite, até sarar. A infeliz sarou. Quando a vi
chegar, de vestido salmão e meias brancas, pensei em jogar umas
alcaparras sobre aquele salmão e devorá-lo. Ela, doce feito salmão.
Carinhosa. E fiquei interessado nas leis que regiam aquela professo-
ra de cabelo preso, sempre de cabelo preso e muito ágil no quadro.
Em silêncio, guardava as aulas dela nos meus rins, não aquelas que
dos livros ensinava, mas as aulas bem escritas sob o jeans...
Daquela noite em diante estava resolvido a estudar à tarde
também. Tornei-me seu aluno oficioso com a coerente desculpa de
a professora da noite ser muito exigente e precisava de reforço, ou-
vir mais de uma vez a mesma coisa por sofrer do efeito retardado.
Citei para ela Murilo Mendes: ver, rever, ver, rever... Baixou a cabe-
ça, com a língua umedeceu os lábios e consentiu a minha presença.
A cada aula terminada eu ia para casa ruminando a sua ima-
gem, procurando nos movimentos algo que me desse uma certeza
para dar mais um passo até a Kelly. Professora Kelly Cristina.
Os primeiros vestígios vieram da turma vespertina, quan-
do nas tardes as meninas da “turma do gargarejo” disseram estar
a Kelly andando muito bonita em sala de aula e coisas estavam
acontecendo. Reparei no seu vestido preto, no colar dourado sa-
telitizando-lhe o pescoço. As meninas faziam tais comentários e
olhavam para mim, para ela e sorriam, mas para um Tomé não

150
basta ver, é preciso tocá-lo. Tomé nunca ligou para Platão e seu
mundo das idéias. O negócio era tocar, apalpar a professorinha. Eu
precisava de mais, mais, entende? Até porque diz a mulher, que
se arruma para si mesma. A elefanta rebola para o elefante, mas
a mulher saracoteia para si mesma. Não tem nada a ver de atrair
os homens, não! Tá bom! Deveria andar nas ruas com dois gran-
des espelhos, um na frente e outro atrás. O da frente para fun-
cionar como retrovisor e ver no de trás o seu narcíseo rebolado.
Mas precisava observar os sinais por mim mesmo e foi nos meus
atrasos involuntários que me veio a certeza: ela também estava tra-
balhando do lado de lá para eu me aproximar. Eu não estava viven-
do unilateralmente. Havia um tácito acordo, um amor bilateral se
desenvolvendo, ainda passarinho sem asas, precisando de alimento
na boca. O passarinho dessa literatura se alimentava dos cabelos e
cantava cada tufo perfumado, imaginado em seu nariz.
Os sinais vieram: Fiquei sabendo que ela dava aulas pela manhã e
também me tornei seu aluno da manhã. O trem de Belford Roxo atrasa-
va sempre e quando eu chegava, a aula já estava pela metade. Sentada,
lá estava ela de cabelos presos. Bastava eu entrar e mal sentar, num
piscar de olhos, como as mulheres fingem! Kelly Cristina já estava de
cabelos soltos: Uma índia tamoio de cabelos negligenciados sobre os
ombros, parecendo nunca arados pelos dedos de um homem. Seus
cabelos eram um Ipiranga transbordando, desobedecendo as margens
dos ombros. Diante dela eu era um Sansão que perdeu as tranças.
Passei a chegar atrasado de propósito para verificar se o fe-
nômeno se repetiria. Fingi não vir a algumas aulas, mas ficava da
outra sala vazia, observando e Kelly Cristina passava a aula inteira
de cabelos presos. Sentada. Pedra sem forma, porém, no momen-
to em que eu chegava, Kelly virava uma estátua viva de Rodin,
movimentando-se por toda a sala e suavam a enlouquecida Camile
e seus mamilos eretos. Sempre de cabelos soltos. Ah, essa não sol-
tava os cabelos para si mesma, não...

151
E nos seus cabelos soltos estava a minha força. A certeza de
que haveria uma confluência, mas ao avançar na tese, com ternura,
alisando a minha mão, rindo, a professora Kelly confessou que os
seus cabelos soltos disfarçavam apenas a cabeça chata.

152
PELO AVESSO (MEMÓRIAS DE ITINGA)

À noite eu ficava olhando o Trem de Prata passar pela Estação de


Éden (Antiga Parada de Itinga). Éden antes se chamava Itinga
(Águas Claras). Não era uma estação no estilo parisiense. Era uma
estaçãozinha. O trem vinha feito um jabuti sobre os trilhos da RFF-
SA. Vinha tão jabuti que dava para ver a toalha vermelha, os copos
de cristais, talheres de pratas e eu de cima da estação observando,
um homem, talvez marido, sempre com a cara enfiada no Jornal
do Comércio, na ida e na volta, nem olhava para fora, só a loura
em frente a ele. Também ver o quê? Resmungava o homem atrás do
jornal. Miséria? Descaso?
Mas a loura olhava. Naqueles breves segundos olhava a esta-
çãozinha abandonada há uns 30 anos, sem saber que havia proje-
to de se tornar Biblioteca; que era um patrimônio cultural; que o
governo meritiense, quem era mesmo o prefeito em 2003, hein?! Ô
povo sem memória! E o Subsecretário de Cultura?! Não a tombaria
coisa nenhuma, tudo conversa aleijada, de política manca. E ain-
da se diz preocupado com a Memória do Recônvavo Fluminense!
Hipócrita! Custava tombar o prédio! No passeio histórico de São
João do Meriti sempre se apontava para a estaçãozinha de Éden, mas
agora... Iria ser uma pequenina e confortável biblioteca, mas não foi,
porque então ela seria mais tarde, em 2003, tombada literalmente no
chão, porque em vez de biblioteca, ali estava se tornando uma ma-
conhoteca. Estaçãozinha de Éden... Destruída. Sobraram apenas os
tijolinhos maciços, o piso antigo, as telhas... Já carregaram.

153
Mas quando passava o Trem de Prata, a loura olhava sem sa-
ber que era olhada por mim. Era por trás do sofá que eu ficava e a
espiava. Sim... Tinham levado um sofá para a velha e pequenina es-
tação. As velhas telhas francesas o protegiam da chuva. Servia para
eu ver a loura e um mendigo dormir o resto da noite. Muitas vezes,
esperando o Trem de Prata, jantei ali mesmo, atrás do sofá. Comida
quentinha feita no fogareiro. É preciso dizer: que loura! Apesar de
minha preferência por mulheres de cabelos negros.
Às vezes jantávamos juntos: ela no vagão restaurante, pas-
sando e eu atrás do sofá, espiando, mastigando. Aprendi a masti-
gar com essa loura. Devagar. Quando o Trem de Prata passava em
Éden, geralmente oito da noite ou da manhã, ela sempre estava no
vagão-restaurante. Lembro que pela manhã sua mesa era ensolara-
da de suco de laranja, maracujá e manga, contrastando com os seus
olhos verdes.
Uma noite deixei que me visse. Ela apertou os olhos. Entre
mim e ela os vaga-lumes acendiam um desejo. Da minha parte ao
menos. Restava saber se ela também... Agora eu já ficava sentado
no sofá assistindo TV até o horário de ela passar. O mendigo quase
sempre chegava tarde.
O fim do Trem de Prata foi se dando a partir duma manhã de
novembro de 1998. O trem veio cortando a manhã e a loura já até me
sorria com meio corpo para o lado de fora e o suposto marido com a
cara enfiada no Jornal do Comércio. Eu estava no mesmo lugar...
Ela me viu, apertou aqueles olhos verdes outra vez, recolheu-
-se e vi que num guardanapo escrevia algo e, sem saber que era a
última viagem do Trem de Prata, eu me disse: Agora vai. Ai, essa
loura está querendo! E o camarada com a cara enfiada no Jornal do
Comércio. O trem passou da Estação de Éden. Fiquei olhando. De
repente ficou metade da loura do lado de fora da janela novamente.
O bilhete na mão. Ela acenando. Balançando o bilhete. Corri atrás
do trem. Ia fazer a curva. Sumir para os lados de Tomazinho, São

154
Mateus e dali, Leopoldina, mas o bilhete... Ah, o bilhete... Soltou-o
enfim e o bilhete veio cavalgando no dorso do vento que me trouxe
também o seu perfume. Mulher cheirosa! Eu iria mostrar a ela que
eu não sou de ficar lendo o Jornal do Comércio, não. Não mesmo.
Apanhei o bilhete ainda no alto, bailando. Letras maiúsculas. Abri
depressa e li: SUA CAMISA ESTÁ PELO AVESSO.

155
XV

minha poesia é uma garça branca


mas não se engane
ela tem um quê de urubu
come verme rato peixe
mas quando falo urubu
não te espantes
dicionários não dizem tudo sobre urubus
urubus comem maçãs
apaixonam-se
são fiéis
mas a minha poesia
ainda não come maçã
não se apaixonou
é poesia de carniça       
vingativa
                     agressiva
                     depreciativa
       eixo do mal
surreal
imoral
           seqüestra do real
     e mata
     mata para não morrer
  mas não posso matar a vida inteira

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     poesia é vida abundante
     preciso caminhar para lá
     como uma lua lutando
     para fugir do nevoeiro  
     minha poesia é uma perna de garça
     ora sobe às brancas nuvens das penas
     ora afunda na lama
     e como um açougueiro
     pede licença para vender-te este contrapeso 
     minha poesia é um pescoço de garça
     ora alonga ora encolhe
     quando encolhe
     voa melhor 
     minha poesia golpeia teus ouvidos com som de flores
     e a cada pausa
     espera teus murmúrios
     desejo firmar meu nome no teu coração 

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Este livro foi composto em ITC Slimbach e Futura Std pela
Editora Multifoco e impresso em papel offset 75 g/m².

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