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Salada de Repolho

Repolho simboliza união. Jéssica e eu resolvemos escrever uma crônica a quatro mãos
como quem gera uma criança. Uma menina, uma crônica XX. Meu avô índio e cego
chegou para viver conosco e me chamava de o menino da cabeça de repolho, cada fiapo
tem um piolho! Eu não tinha piolho e meu avô, violeiro, consertava: é só uma rima, meu
neto. Sua cabeça encostava-se ao teto quando ficava bravo, aquele índio de apenas um
metro e setenta, crescia... Madrasta também chegou para viver conosco, trouxe trouxas e
trouxinhas de repolho com carne moída e fez meu pai de trouxa. Esta crônica deveria
ser leve, mas a palavra ulcera rupturas na crônica, expõe os seus tecidos mais profundos
e não há repolho que feche. Fechou sim, as feridas das pernas da dona Aline, que toda
sexta-feira ia ao médico que eu auxiliava, no Posto Médico Sanitário de Éden para
trocar os repolhos. Foi um tratamento surpreendente. Tendo visto aquele tratamento,
fiquei com o conhecimento. Crônica também é conhecimento. Um dia na Rua São João
Batista um a senhora passou com sua filha e notei que seus pés estavam enfaixados com
ataduras e andava com dificuldade, quando cruzamos disse a ela: jogue um repolho
neste pé! A senhora arrepolhou-se, era daquelas que trazem respostas na ponta da
língua: eu vou jogar no meu pé e depois vou dar para você comer! Eu fiquei parado,
todo mundo olhando, a filha dela foi quem notou: mãe este homem está falando sério!
Então seu semblante mudou, desapareceu-lhe a ruga entre os olhos e me disse
humildemente: como é isso? Então fiquei todo arrepolhado, cresci para o lado da
senhora dos pés ulcerados, sentindo-me um médico e por coincidência estava de branco.
Toda sexta! Toda sexta?! Sim, toda sexta a senhora troca os repolhos. Dito isso fui
embora. Dois meses depois estava eu na mesma Rua São João Batista, porém, mais
adiante do encontro com a senhora, quando passando na calçada ouvi barulho de chaves
girando no portão. O portão era daqueles que não tocam o chão, suspenso a uma altura
que dava para sair gato e cachorro, mas o que vi foi um pezinho muito branquinho, já
com as marcas do tempo, em chinelo de dedo. Quando o portão se abriu era a
senhorinha que veio logo me abraçando e agradecendo, mostrando que agora podia
calçar sandálias graças ao repolho. Como era época de eleição, não perdi tempo: abaixo
a Repolhocracia! Repolho que se abre, salva, quando se fecha, mata!

Nos anos 70 veio morar no quintal ao lado a Dona Solange e ela não tinha filhos e
morro é rápido para apelidar, se temas pernas grande o apelido é Perna; se a boca é
grande, Boca; se é zoiúdo, Farol, se fala muito e não cumpre, Garganta. Morro não
perdoa. Dona Solange era chamada de árvore que não dá fruto. A sua barriga não
enconcava como a folha de um repolho. Isso lhe doía, mas como as mulheres são
criativas, ela surgiu com uma história do menino da cabeça de repolho que aparecia à
meia noite nos fundos do quintal dela e por isso ela não podia ter filhos. Ela era esposa
do seu Jorge grandalhão. Dona Solange mudou e depois de alguns anos encontrei a
sobrinha dela e perguntei como ela estava. Está bem, tem três filhos... Filhos?! Mas ela
falava que não podia ter filhos e era por causa do menino da cabeça de repolho!
Repolho nada, o cabeça de repolho era seu Jorge, eles se separaram e ela casou de novo
e teve filhos. Falava aos risos. A salada está terminando... Ainda não tinha me dado
conta de como o repolho me acompanhava bem de perto e não sabia, mas a poesia lança
luz na escuridade e num concurso literário do Jornal Panorama da Palavra da saudosa
Helena Hortiz, ganhei três dias gratuitos na Pousada Vale do Sereno da poeta Nilzanira
Reyes. Foram três dias poéticos, lá havia um sarau. Nilzanira me chamou para visitar
sua horta. Tudo natural. Com tantas hortaliças me fixei no repolho. Lembrei-me da tia
da minha mãe me chamando para diante de um quarto, abriu a porta e era um quarto
com vários instrumentos, ela me disse para escolher e os meus olhos, com tantos
instrumentos, se fixaram no violino. Pense em você ensimesmado como um repolho
ouvindo o escuro som de um violino. A tia da minha mãe não me deu o violino, mas
Nilzanira me deu o repolho. Decapitou-o na hora. Naquela noite comi sem carne para
sentir o gosto de um repolho natural. Senti-me único. O repolho chegava-me assim pelo
paladar e logo chegaria pela visão consciente quando a bióloga Luciane Borges entrou
no Horto Botânico da minha cidade onde eu era vigia com uma sementeira cheia de
mudas de couve imaginava eu, mas ela disse que eram repolhos. Depois descobri que o
repolho é uma couve especial. Fiquei emocionalmente impactado, mas ainda não sabia o
que fazer com aquela imagem do repolho aberto que se fechava. A centelha surgiu no
dia em que trabalhando no horto, molhando as plantas, pensei na morte de meu pai e
não queria falar com ninguém. Puxei a mangueira e chegou a vez dos repolhos serem
molhados e olhando para eles me veio um verso: Pssssssiu! Meu pai morreu. Estou
ensimesmado como um repolho. Essa comparação me rendeu seis páginas de poema. E
quando achava que tinha acabado, apareceu na internet a jovem poeta Jéssica Iancoski,
declamando meu poema num podcast, lá do Paraná, o segundo maior produtor de
repolho do país. Jéssica e eu marcamos um encontro na internet para comer yaksoba a
distância. Com repolho do Paraná e não da China. É bela a mão de uma mulher se
enconcavando lentamente como a folha de um repolho chamando para jantar.

JÉSSICA IANCOSKI e LASANA LUKATA, poetas e escritores

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