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Ie ne fay r i e n

sans
Gayeté
(Montaigne, D es livres)

Ex Libris
José M i n d l i n
Cinemafographo
OBRAS DO A U T O R

As Religiões no Rio, 7. edição.


0

A alma encantadora das Ruas.


Jornal de Verão (chronica de Petropolis).
Dentro da.Noite (contos).
O Momento Literário.
Cincmatographo (chronicas).
Snobismos (chronicas).

TRADUCÇÕES :

Pensamentos para a Mocidade, Oscar Wilde.


Oscar Wilde, por Harborough Sherard.
O Leque de Laãy Windermere, Oscar Wilde.
Salomé, poema dramático de Oscar Wilde.

THEATRO:

Ultima Noite, episódio dramático em 1 acto representado


no theatro Recreio no dia 8 de março de 1907.
3oão do T^io
7oõo ôo Rio

Cinemafographo
(Chronicas cariocas)

* * * PORTO - 1909 * * *
€ 3 i f o r e s : liIVRFlRIfl C f i f I R D R O n , 9e lici-
to & Irmão — Rua 9as Carmelifas, 144
O accordo assignado n o R i o de J a n e i r o , em 9 de Se-
t e m b r o de 1889, e n t r e o B r a z i l e P o r t u g a l , assegurou o d i -
r e i t o de p r o p r i e d a d e literária e a r t i s t i c a em ambos os
paizes.

A presente edição está d e v i d a m e n t e registada nas Bi-


bliothecas Nacionaes, de L i s b o a e R i o de Janeiro.

Imprensa moderna, 3e ITianoel bello


R. 3a Rainha D. Amélia, 61 — PORCO
Uma fita, outra fita, mais' outra... Não no
agrada a primeira ? Passemos á segunda. Não
nos serve a segunda ? Para deante então ! Ha
fitas cômicas, ha fitas, serias, ha melancholicas
picarescas, fúnebres, alegres — algumas prepa-
radas por adores notáveis para dar a reprodu-
ção idealisada de qualquer fado, outras toma-
das nervosamente pelo operador, á passagem do
fado. Umas curtas, outras longas. Podes dei-
xar em meio uma d'ellas sem receio e procurar
a diversão mais além. Talvez encontres gente co-
nhecida que não te falia, o que é um bem. Talvez
vejas desconhecidos que não te faliam mas
riem conforme os tomou a machina. perpetuan-
do esse symptoma de alegria. Com pouco tens
a agregação de vários fados, a historia do anno,
a vida da. cidade numa sessão de cinemaiogra-
pho, documento excellente com a excellente
qualidade a mais de não obrigar a pensar,
senão quando o cavalheiro teima mesmo em
querer ter idéas.
VI

Dizem que a sua melhor qualidade essa é.


Quem sabe ? O paniw. a sala escura, uma pro-
jecção, o operador tocando a manivella e ahi
temos ruas, miseráveis, politicòs, actrizes, lou
curas, pagodes, agonias, divórcios, f\omes,
festas, triumphos, derrotas, um bando de gente,
a cidade inteira, uma torrente humana —que
apenas deixa indicados os gestos e passa leve
sem deixar marca, passa sem se deixar pene-
trar...
— Interessante aquella fita. dizes. E dois mi
nutos depois não te lembras mais.
— Viste a fita passada ?
— Não, aproveitei-a para beijar a mão d'a-
quella senhora que não conheço.
E prompto. Não ha mal nenhum no caso.
Isto é, no beijo talvez possa haver porque o
beijo tem uma grande importância relativa. Em
não ver a fita é que não. A historia fez-se, o la-
do subsiste, o operador gosou em compôl-o e
talvez outros tivessem reparado. E como nem
VII

o Destino, autor dos principaes quadros da vida


não tem preterição, éomo o operador também não
se imagina úm ser excepcional, e os que lá estão
a assistir ao perpassar das fitas não se julgam na
obrigação' de julgar ver coisas importantes para
dar a sua opinião definitiva — dessa despreten-
cão geral nasce o grande panorama da vida, fi-
xado pela illusão, que é a única verdade resis-
tente no mundo subsolar.
Alguns esthetas de atrazada percepção des-
denham do cinematographo. Esses esthetas são
quasi sempre velhos críticos ankilosados cuja
vida se passou a notar defeitos nos que sabem
agir e viver. Nenhum d'esses homens, graves ci-
dadãos, comprehende a superioridade do alli-
viante progresso d'arte. O cinematographo é bem
moderno e bem d'agora. Essa é a sua primeira
qualidade. Todos os gêneros de arte perdem-se
no tempo distante. Todas as sciencias tem raízes
fundas na negridão clássica das eras. Não ha
princípios de boa philosophia que os Aryas não
VIII

tivessem lixado, feição d'arte que o oriente ant


go não fá tivesse creaclo e instrumento de utili
dade dos mais modernos que não tivesse sido
descoberto pela China, muitíssimos annos antes
de Christo. A China é realmente énervadora
nestes assumptos. O Cinematographo ao con-
trario. E' doutro dia, é extra-moderno, sendo
como é resultado de uma resultante de um re-
sultado scienlifico moderno.
Ao demais, se a vida é um cinematographo
collossal, cada homem tem no craneo um cine-
matographo de que o operador é a imaginação.
Basta fechar os olhos e as filas correm no cor-
tical com uma velocidade inacreditável. Tudo
quanto o ser humano realisou, não passa de
uma reprodução ampliada da sua própria ma-
china e das necessidades instinctivas d'essa ma-
china. O cinematographo é uma d'ellas.
Ora como os factos succedendo-se não se pa-
recem e que ninguém pôde exactamente repetir
com a mesma emoção e o mesmo estado d'alma
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IX

um acto da existência, o cinematographo fica


modesta e gloriosamente çomq o arrolador da
vida actual, como a grande historia visual do
mundo. Um rolo de cem- metros na caixa de um
cinematographista vale cem mil vezes mais que
um volume de historia — mesmo porque não tem
commentarios philosophicos. E isso, porque no
fundo o cinematographo é uma serie de novellas
e de impressões pessoaes do operador á procura
do «bom momento)), é a nota do seu tempera-
mento a escolher o assumpto já feito, e a procu-
rar as posições para tomar a fita.
Uáhi a multidão abandonar tudo pelo cine-
matographo, porque além dessas qualidades,
com elle não se cança e não se fatiga. D'ahi, fá
assustados, romancistas e dramaturgos a escre-
ver scenarios para os cinematographos. D'ahi
não haver pequena de rampa que não queira ser
reproduzida pelo apparelho. E' uma feição scien-
tifica da arte —- arte que o é quando o querem,
arte que declina dessa honra quando meia dúzia
X

de prevenidos protesta, mas a única que repro-


duz o polijmorpliismo integral da vida, e que
não melindra ninguém por não passar de re-
flexos.
A chronica evoliu para a cinematographia.
Era reflexão e commentario, o reverso desse si-
nistro animal de gênero indefinido a que cha-
mam: o artigo de fundo. Passou a desenho e a
caricatura. Ultimamente era photographia reto-
cada mas sem vida. Com o delírio apressado de
todos nós, é agora cinematographica, — um ci-
nematographo de letras, o romance da vida do
operador no labirinlHo dos factos, da vida alheia
e da fantasia —- mas romance em que o operador
é personagem secundário arrastado na torrente
dos acontecimentos. Esta é a sua feição, o des-
dobramento das fitas, que explicam tudo sem re-
flexões, e como o século está cançado de pensar,
e como a frase verdadeiramente exacla da huma-
nidades na fartura dos casos é o clássico: — já
vi! o operador escreve despreocupado, pouco
XI

lhe importando que vejam a fita, que a compre-


hendam ou não, ou que tornem a vel-a.
Segue-se d'ahi que nem a jila se revê, nem a
pagina parecida com a vida se torna a lêr. Su-
premo óonsolo ! Desagradou ou encantou. Não
houve tempo de reler para notar defeitos — mes-
mo porque não ha tempo para nada. A grande
idéa dos que mudam o aparelho da reprodu-
ção da vida seria que os espectadores esqueces-
sem o que já disseram na fita passada para sen-
tir a novidade da próxima. Assim poderiam con-
tradizer-se sem escândalo — o que é um goso in-
tellectual superfjno, e parecer sempre novo — o
que, apesar de accendrados reclamos, não o con-
segue ser agora nem mesmo o velho e decadente
Destino...
Gente de Music-Hall

O CASINO p a l p i t a v a . T a n l a n B a l t y , n o seu

u l t i m o n u m e r o , dissera, c o m québros de
olhos e p e r v e r s i d a d e s n a vóz, u m a cançoneta ex-
t r a o r d i n a r i a m e n t e velhaca. A sala, sob a c l a r a
luz das lâmpadas electricas, acendia-se, g a n i a
luxurias. Senhores t o r c i a m o bigode com o olhar
v i t r e o , as d a m a s e n v o l v i a m os braços nas p l u -
mas das boas c o m u m a r m a i s a c a r i c i a d q r . N ó s
estávamos todos. N a o r l a dos camarotes, p i n t a -
dos de v e r m e l h o , p o u s a v a m e m a t i t u d e s de aca-
demia, e x p o n d o v e s t i d o s de t o n a l i d a d e s v a g a s
e anneis e m t o d o s os dedos as m a i s encanta-
d o r a s c r e a t u r a s da estação. P o r t r a z dos cama-
rotes s u r g i a m p a n a m ás, m o n o c u l o s , faces esca-
nhoadas, b i g o d e s á kaiser, e os garçons passa-
v a m de c o r r i d a l e v a n d o g a r r a f a s e bandejas. Em
b a i x o , na platéa, velhos freqüentadores t o m a n -
do boc.ks. r e p o r t e r s , c a i x e i r o s , m o ç o s do com-
2 CINEMATOGRAPHO

mercio batendo as bengalas nas folhas das me-


zas, uma ou outra mulher entristecida e a claque,
uma-claque absurda, berrando chamadas deante
dos copos vasios, quasi no f i m da sala.
Tantan Balty voltara, resfolegara, e com as
duas grossas mãos no lábio rubro, parecia que-
rer beijar toda a multidão. Afinal, a campainha
retiniu e o velario correu, cerrou-se sobre uma
ultima graça de Tantan. T i n h a acabado a segun-
da parte. Havia um r u m o r de cadeiras, de es-
tampidos de rolha, de copos entrechocados, por
todo o hall. As lâmpadas clectricas t i n h a m uma
medonha trepidação, como se fossem grandes
borboletas de luz presas de agonia a bater as
azas brancas.
No camarote de bocca, solitários e de smo-
king f u i encontrar o barão Belfort e o conde
Sabiani. O conde era u m homem alto, de torso
largo, bigode espesso. T i n h a a physionomia fa-
tigada e flacicla. Olhando o seu turvo olhar,
logo me vieram á mente as coisas tenebrosas que
a respeito correm. O barão, porém, contava com
u m ar desprendido, a historia de Tantan Balty,
que elle conhecera numa bodega de Toulouse,
em m i l oitocentos e noventa, já velha e já gorda."
Parou, s o r r i u : — Seja bem vinda a virtude en-
tre o crime e o vicio...
•O conde Sabiani estendeu a sua m ã o cheia
de anneis, consultou o p r o g r a m m a preguiçosa-
mente.
CINEMATOGRAPHO 3

— Temos agora a princeza Verônica. Per


dio ! Quelle \emme, mon petit!
Disse isso como um obséquio, endireitou o
punho, recostou-se. Usava uma pulseira de pe-
quenas opa!as com fecho d oiro. O b a r ã o sorrira
novamente, endireitando os cravos da botoeira.
- Conhece a princeza Verônica ?
— A princeza ? Ha de concordar, barão, que
de certo tempo para cá, o Rio tem uma epide-
mia de "titulares exóticas...
— Que quer? E' a civilisação. E quasi todas
mais ou menos âuthenticas ! São as titulares de
Byzancio, meu caro. Consulte os programmas
dos casinos e as notas dos jornalécos livres. Ha
princezas valacas, príncipes magyares, condes-
sas italianas, márquezas húngaras, duquezas
descendentes de Coligny, fidalgas do Papa •— a
marqueza de Castellane, a princeza russa, a con-
dessa de Bragança, a princeza Tolomei, Gladys
Wright, mulher de um lord, a princeza Thrasny,
todas com um titulo que lhes doura a arte e a
renda. O Rio não seria cosmopolis se não as
tivesse. A grande preocupação dessas admirá-
veis creaturas é convencer os amigos com do-
cumentos fartos de que são mesmo descendentes
de familias illustres, e a sociedade fica conven-
cida porque isso satisfaz a sua immensa vaida-
de. Nós estamos exactamente como na côrte de
Justiniano, em que Theodora, dançarina de
circo. e:1a imperatriz. E isso é prodigiosamente
t CINEMATOGRAPHO

agradável ao burguez que paga, á t u r b a que


olha, e ao principio immanente da belleza e
da democracia. Não ha commerciante triste de-
pois de ter pago jóias a princezas. Estas for-
mosas deusas, que o povo admira e inveja, po-
zeram os brazões ao alcance de todos os lábios.
São as princezas de Byzancio, caro. Sagrou-as
o bispo de Hermapolis.
O conde Sabiani sorriu com perversidade e
literatura.
— O barão faz a iniciação dos puros ?
Belfort não respondeu. Já começara a ter-
ceira parte. O bombo dera uma pancada gros-
sa, e os violinos da orchestra faziam uma escala
de pizzicati, sustentados pelas longas e sensuaes
arcadas dos violoncellos e do contra-baixo. O
velario de p u r p u r a descerrou-se p o r sobre uma
paysagem lunar. Os scenarios estavam tão apa-
gados á luz de leite das lâmpadas, que todo o
palco parecia alongar-se numa infinita brancura.
Na platéa appareciam faces de homem, mulhe-
res ajustavam o face à main, e a claque ao fun-
do, deante dos mesmos copos vasios, berrava:
— Verônica ! Verônica !
— Faça a iniciação, meu amigo, como diz.
o Sabiani, faça...

Sim tutelar, ó Lua


Margem da Alegria
Onde abordam as barcos das almas puras..,
CINEMATOGRAPHO 5

Houve u m t r i l o de flauta como u m trinado


de pássaro, o bombo reboou, caiu n u m choque
de pratos, e de u m pulo s u r g i u no meio do pal-
co, a princeza Verônica. E r a magra, desossada,
com a face afiada das divindade egypcias. Sor-
rindo mostrava os dentes irregulares, e tinha
a cor das múmias, como se a sua pélle fosse
queimada p o r lentos óleos bárbaros. Vestia
meias de seda côr de carne; os pés, enluvados
de branco, de tão finos e minúsculos recorda-
vam a graça dos lirios a desabrochar, e o seu
corpo de serpente ondulava dentro de u m estojo
de lantejoulas de prata.
— E' uma creoula !
— Da Jamaica, filha de um velho rei índio.

Bizarre deite, brune comme les nuits,


An parfum mélangé de musc et de havane
GSuvre de quelque obi...

O barão citava Beaudelaire, o barão amava !


Verônica bateu as palpebras, a b r i u os olhos
luxuriosos, e numa reviravolta, adejou. A mul-
lidão inteira ofiegava, com a alma presa áquella
visão cie sylphide perversa. Não era o bailado
clássico das dançarinas do Scala e da Opera,
com violências de artelhos e sorrisos pregados
nos lábios, não era o québro idiota das danças
húngaras o u a choréa alacre dos bailes inglezes
— era uma dansa inédita. Havia no seu meneio
2
6 CINEMATOGRAPHO

ã graça das aves, no sorriso a volúpia de u m


outro mundo, no l a u g u o r com que abria os
braços, o deliquio da paixão. Os grossos dia-
mantes que lhe escorriam dos lobulos pareciam
aquecer-se na sua pelle ardente; as flores, presas
á earapinha de negra, aureolavam-na de des-"
maios de p u r p u r a . E l l a fluetuava, pássaro, ser-
pente lendária, adejando n u m esplendor de prata.
— Oh ! barão deu-lhe agora para o exotismo.
Essa Verônica é uma preta como outra qualquer,
que se intitula princeza.
Callei-me porém. O barão fallava, sussurrava
as phrases cía sua admiração.
— Como ella dança ! A dança é tudo, é o
desejo, a supplica, a raiva, a loucura... Ella
dança como uma sacerdotisa, como uma estreita
perdida nas nuvens. T e m desde o salto medroso
das féras até o vôo medroso das pombas. Ha nos
seus gestos a orgia sanguinária de uma leoa e
a maravilha constellada de uma ave do paraizo.
Ao vêl-a recorda a gente Salomé deante de He-
rodes, dançando a dança dos sete véus para
obter a cabeça de S. João; deante desse ondear
de vida que no a r se desfaz em sensualidades,
sonha-se o tetrarcha de W i l d e , ebrio de amor
«Salomé ! Salomé ! Os teus pés, a dançar, são
como as rosas brancas que dançam sobre as
arvores !»
Verônica t e r m i n a r a o bailado, toda ella r o -
dopiante,. desapparecida no halo argenteo do
CINEMATOGRAPHO 7

saióte, e a s s i m g y r a n d o v e r t i g i n o s a m e n t e , c o m
os seus d o i s pés finos e estranhos, p a r e c i a u m a
flôr de p r a t a , u m a e s t r a n h a p a r a s i t a caída d o s
espaços n a q u e l l e a m b i e n t e de nevoas. A s p a l m a s
r e b e n t a r a m n u m c h u v e i r o . E l l a p a r o u , a b r i u os
braços, d e i x o u e s c o r r e g a r v a g a r o s a m e n t e os pés,
tão de v a g a i ' q u e p a r e c i a ir-se a f u n d a n d o , até
que c a i u n o g r a n d e éçart, a m ã o n a testa sor-
r i n d o . O p u b l i c o , porém, c n e r v a d o q u e r i a m a i s ,
b a t i a c o m as m ã o s , c o m o s pés; as m u l h e r e s
nos c a m a r o t e s e r g u i a m - s e e Verônica t o r n o u a
apparecer, f a z e n d o gestos de a g r a d e c i m e n t o q u e
e r a m c o m o s u p p l i c a s de a m o r .
— Danses américuines ! disse.
E irnmediatamente, n o miúdo compasso da
o r c h e s t r a , o seu c o r p o , da c i n t a p a r a b a i x o , co-
m e ç o u a d e s a r t i c u l a r - s e , a m e x e r . O s pés esta-
l a v a m no chão, rápidos, h a v i a s a p a t e a d o s e cor-
r i d a s ; as ancas m a g r a s c r e s c i a m , a u g m e n t a r a m
rebolando; o ventre ondulava; aquelle corpo que
f u g i a e avançava c o m m e n e i o s negaceados, con-
f u n d i u - s e n a h a r m o n i a dos c o m p a s s o s e m ade-
jos. A m u l h e r d e s a p p a r e c i a n u m a e x a s p e r a n t e
combinação d e sons g e s t i c u l a d o s , d e vibrações
de c a n t h a r i d a , de crises d a m n a d a s de e s p a s m o .
Era perturbadora, infernal, incomparavel !
Q u a n d o ella acabou, o barão e r g u e u - s e rá-
pido.
— V a m o s vêl-a...
O conde Sabiani, que olhava para baixo,
8 CINEMATOGRAPHO

acompanhando o movimento febril da multidão,


fez u m vago gesto, ficou cheirando o seu cravo.
Nós descemos a escada pequena que dá no
botequim. Já a orchestra tocava u m fandango
e a bella Carmen, uma antiguissima hespanhola
de meias rubras, soltava olés roufenhos. O pu-
blico desinteressava-se. O barão p a r o u u m ins-
tante como á espera de u m homem gordo, que
caminhava amparado á bengala. O homem v i -
nha conversando com dois rapazes de frack e
chapéu de palha, que recuavam estendendo as
mãos como a abotoar invisiveis inimigos e caíam
para a frente, mimando cabeçadas cruéis.
O homem gordo acabou p o r encostar-se ao ba-
laustre e disse sem r i r :
— Cest drôle ça !
Um dos moços, com o collarinho inverosimil-
mente alto, afastou o o u t r o na anciã de acu-
m u l a r as attenções e segurando a gola do gor-
ducho, m u r m u r o u :
— Então eu segurei o cabra...
O barão seguiu.
— São os elegantes valentes ! N ã o acabam
mais com as historias. Vamos ver a Verônica...
Sabes que ella se perfuma de sandalo ?
Seguimos para o fundo do j a r d i m onde só
havia, na illuminação de nevoa, entre as arvo-
res, duas mulheres de grande manto a conver-
sar: subimos a entrada de sarrafos da caixa.
O regisseur, u m italiano l o i r o de face i n t e l l i -
CINEMATOGRAPHO 9

gente, comprimentou-nos com um sorriso cama-


rario e nós fomos andando, entre creados de
blusa azul e varredores. A um canto, um duo
americano preparava-se para entrar em scena.
A's portas dos camarins abertas, as chanteuses
esperavam todas pintadas, as mãos nervosas.
O barão bateu á porta do camarim da princeza:
— Go in...
E nós entramos. O pequeno espaço rescen-
dia todo a um enebriante perfume de sandalo,
e havia por toda a parfe uma orgia floral ! —
rosas vermelhas, rosas brancas, catléascripi es-
tendendo os tentáculos de neve, lirios vermelhos
com os pistillos amarellos, angélicas, anemonas,
cravos, tuberosas — e enramando a olencia des-
se deboche de ffôres, o fino desenho, a renda
anêmica das avencas verdes. Na redolente
atmosphera, afundada no divan, envolta numa
toalha de felpo, surgia a figurinha de bronze
da prmceza indiana, e a princeza chorava. Gros-
sas lagrimas corriam dos seus olhos de deusa
Isis e adejando as mãos ella soluçava.
— Oh ! my dear, sweet heart, ce chien... cllc
não veiu.
— Quem ?
— O de hontem, aquelle de hontem. E não
pagam. Dizem que é pela minha cor. Ha mui-
tos aqui. I t is very, Belfort? Mon petit, cest
vrai ? Abriu os braços como uma boneca, em-
borcou num choro convulso:
10 CINEMATOGRAPHO

— Malhereuse. I'm malhereurese...


Ella fallava todas as línguas da E u r o p a numa
ingênua e horrível confusão. O barão l i m p o u o
monoculo, pegou-lhe no braço paternal e phi-
losophico.
— Estranha creatura, ainda continuas a te
perfumar de sandalo ? Ainda és o sonho ener-
vante do Oriente, o fluido das florestas bizar-
ras?... Deixa lá... Acalma-te. N ã o te compre-
hendem, pequeno idolo amado. E' como se esses
homens podessem diffefençar o sabor que tem
u m licor quando bebido n u m maravilhoso vaso
trabalhado pelos bárbaros, cio mesmo licor tra-
gado em qualquer copo. Elles são homens. E
tu — tu és a princeza dos sandalos...
E ficamos alli vendo a creaturinha chorar,
emquanto lá fóra nos ruidos da musica, no
bruhaha da multidão, subia mais forte a onda
da l u x u r i a .
No paiz d o s Gênios

I j o s corredores da Câmara u m mundo ner-


JLCi voso e febril. T u d o cheira a interesse, a
combinação, a negocio. Ha os farejadores de
grandes emprezas, ha cobradores, ha cavalhei-
ros que querem ser empregados, ha viuvas cho-
rando pensões, ha actrizes passando benefícios
com sorrisos de que beneficiam mesmo os ca-
pazes de regeitar cartões — uma exquisita ga-
leria que passa, repassa, torna a passar, gruda-
se aos reposteiros, lança olhares compridos para
os sitios vedados ao publico.
E, exactamente ahi, nessa confusão, encon-
tro Tancredo Pereira, um sujeito desagradável.
Infelizmente, conheço-o ha dez annos e Tancre-
do diz-se meu amigo intimo. Quando o v i pela
vez p r i m e i r a era repórter. Depois passou a so-
l i c i t a d o r , a f i s c a l de b o n d e s ; reconheci-o certa
noite, bombeiro; li-lhe o nome como pasSaclor
12 CINEMATOGRAPHO

de nota falsa; descobri-o, n u m circo, palhaço


cantador de modinhas. E' u m sujeito variável.
Variável e m a l arranjado.
Entretanto, Tancredo, longe de explodir ale-
grias excessivas, como em geral tem p o r habito
fazer, apertou-me a dextr.a, de lado, com uma
intimidade de quem se entrega e m u r m u r o u *
apenas:
Como vais t u ?
— Eu. bem. E o sr. ?
— Como Deus é servido.
Havia na sua voz u m lamento e a sua m ã o
continuava inexoravelmente agarrada á minha.
— Que se faz ?
— Espero a boa vontade dos srs. deputados !
Os nossos representantes são sempre assim !
Muito amáveis antes da eleição, uns ingratar-
rões depois de trepar.
Mentalmente, julguei Tancredo cabo eleito-
ral. Mas não. Tancredo, que ainda não me lar-
gara a m ã o e era acompanhado de u m grave
cidadão de sobrecasaca poída, deu-me u m safa-
não de súbito e bradou:
— T u é que poderias servir ! N ã o digas que
não ! Preciso de uma apresentação a alguns de-
putados, preciso que o Arsenal fabrique o meu
invento: o «salva pedras».
— O «salva-pedras ?»
— Sim, o «salva-pedras». Como deves saber,
a nossa bahia está cheia de arrecifes. E u ima-
CINEMATOGRAPHO 13

ginei um apparelho magnético negativo, sensí-


vel ás pedras que as barcas e as lanchas terão
á prôa. A o a p p r o x i m a r da pedra, vibração i m -
mediata correspondente á guarita do mestre da
barca. E' maravilhoso.
Esfreguei os olhos, tornei a esfregal-os. Tan-
credo inventor ! O sujeito desagradável não me
deu tempo a reflexões:
— E ainda não te apresentei ao sr. Clodo-
m i r o Alexandre César, um outro caipora, que
teve a infelicidade de ter nascido brasileiro.
— Mas porque ?•
— Porque ? fez soturnamente Alexandre Cé-
sar, porque ha dois annos tenho no Ministério
da Industria o «Arado Maravilhoso», e não me
deram a patente de invenção.
— E' m á u .
— E' horrível. Se me roubam os planos?
O sr. é que podia se empenhar com esse joven
ministro...
— Empenha-se, assegurou Tancredo, é mui-
to amigo do ministro e ainda mais meu. Empe-
nha-se ! Deixa-te apresentar o dr. Zelio Alcân-
tara, auctor do «Abridor Sebastianista».
O auctor do «Abridor Sebastianista» era u m
homem magrinho, de pastinhas e unhas gran-
des. Estava alli havia dez minutos como quem
não espera nada.
- Havia m u i t o tempo que esperava a sua
apresentação, diz-me todo melloso. E u fiz, eu
14 CINEMATOGRAPHO

inventei um abridor de latas de manteiga, que


abre sósinho. Como, porém, chamo-me Alcân-
tara, denomine.-o «sebastianista»'. Será p o r isso
que o desprezam ?
— Porque não o denominou m i n e i r o ?
O dr. Zelio Sebastianista fez u m gesto de
lastima, arrepanhando em rugas no alto da testa,
toda a pelle da sua face de inventor...
— A h ! O sr. conhece bem o mundo... E'
verdade. Se Santos D u m o n t tivesse ficado no
Brasil não teriamos a navegação aérea...
Deante da calamidade d'aquelle Zelio e d'a-
quelle Alexandre, accrescidos do detestável e
polyprofissional Tancredo, percebi que era dif-
ficil escapar. Tentei entretanto:
— Pois não tem duvida... H e i de fallar.
— Não, hoje. Fallas hoje por nós tres.
— O meu prestimo fraco...
— E' sempre uma pedra.
Furioso, mas com o sorriso no lábio, espe-
r e i a passagem da p r i m e i r a victima da repre-
sentação nacional — um deputado gordo a quem
trato de você, porque s. ex. me trata p o r .tu,
a

mas de quem até hoje ignoro o nome — e arru-


mei-lhe o inconcebível Zelio. Dei mais tres pas-
sos e larguei Alexandre com u m rio-grandense.
E não sabia como apresentar o i m m o r a l Tan-
credo, quando Tancredo disse:
-Não, obrigado, não te aborreças mais.
Por hoje basta. O meu invento pôde esperar.
CINEMATOGRAPHO 15

Fiquei contentissimo. Mas de certo os deuses


tinham apenas naquelle dia pensado em advertir-
me do perigo — porque na tarde seguinte f u i per-
s e g u i d o por tres gênios mais nos corredores da
Câmara, dois dias depois tinha apresentado dez
inventores, tres semanas depois o meu cé-
rebro hesitava num dilemma atroz: ou a ci-
dade é um ninho cfaguias ou um vasto mani-
cômio. Uma multidão de gênios ignorados pas-
seava incógnita pelos corredores e arredores da
Câmara. Inventores de uma infinidade de cousas
frivolas e inverosimeis, algumas já apparecidas,
reaes, palpáveis e inúteis, esperavam-me até á
esquina da rua do Ouvidor para desdobrar so-
nhos de gloria ou de fortuna, que seriam também
minhas. Alguns desses cavalheiros superiores t i -
nham abandonado o emprego pelo invento. Co-
nheci, sobraçando as Viagens Aéreas de Flam-
marion e alguns compêndios de physica elemen-
tar, vinte e cinco rivaes de Santos Dumont. Um
delles fora copophone no Café J á v a ; outro era
inspector de policia, autuava presos e fazia ao
mesmo tempo desenhos de dirigiveis. Mas se
esses andavam no ar, outros mais práticos que-
riam a facilidade da vida terrena. Dentistas,
negociantes, guarda-livros, músicos, apparece-
ram-me sob essa auréola de gênios inventivos.
Tive que aturar meia hora a descripção do Ne-
cropole-esmalte, invento de um senhor da praça
da Batalha para substituir os mármores das
10 CINEMATOGRAPHO

sepulturas; aturei u m dentista a demonstrar o


motu-continuo p o r meio de tambores de metal,
examinei uma l y t o g r a p h i a de seis côres de um
praticante dos Correios, o problema econômico
da diminuição dos acetylenes, oitenta machinas
de álcool, o invento collossal com desejo de pa-
tente de u m cavalheiro que fazia do capim al-
faia, pondo óculos verdes nos burros, uma es-
pécie bizarra de papel para apanhar moscas,
uma ratoeira ideal...
Essa ratoeira ideal de u m hespanhol cha-
.mado Prates gastou-me algumas horas. E m
compensação tinha-lhe gasto a elle parte da
vida.
E' espantosa. A ratoeira tem uma portinho-
la. Q rato entra p o r essa portinhola attrahido
pelo cheiro do toucinho. A portinhola fecha com
estrepito, assusta o rato, que pensa escapar pelo
outro lado de vidro transparente. Mas recebe o
choque, o soalho fende e o rato cáe em baixo
numa vasilha de sublimado, emquanto de novo
a portilhola se escancára. Prates bradava:
— Vamos ganhar uma fortuna !
E u recuava tremulo. Mas dessas invenções
tive até uma inteiramente fracassada, que era
preciso reerguer. A invenção tivera privilegio,
a invenção tentara uma firma commercial, e não
dera resultado: — era a admirável descoberta
dos phosphoros de duas cabeças !
Uuando eu chegava á Câmara não deixava
CINEMATOGRAPHO 17

nunca de encontrar um inventor e u m gênio


á minha espera. Comecei a entrar p o r outras
portas, a metter-me no recinto receioso dessa
notabilidade que se cifrava apenas nisso: eu
fora o único infame capaz de apresentar tantos
assombros aos pobres deputados. Os represen-
tantes da Pátria, já quando me encontravam,
sorriam:
— Temos algum privilegio ou a l g u m gênio
para ho je ?
E alguns:
— Quantos gênios estão á tua espera ?
Afinal, uma vez, depois de attender ao au-
tor da «Aza de Neptuno», apparelho destina-
do a voar pelo" oceano; e ao «Scaphandro So-
cial», navio de investigação submarina para dez
pessoas — acabei sendo atacado por um.sujeito
que desejava o meu interesse para as «armações
sociaes».
Essas armações sociaes de que o typo pre-
tendia t i r a r privilegio, eram uma serie de gua-
ritas d'armas, expostas em cada esquina e com
communicação secreta com o Quartel General.
Se p o r acaso corresse a noticia da invasão do
extrangeiro, «as armações sociaes» apresentavam
armas e começavam a disparar á vontade e se-
gundo a direcção, imposta no Quartel p o r qual-
quer electricista. E r a a guerra sem soldados.
O inventor, porém, dizia-me:
—-V. hoje vai apresentar-me ao ministro da
Guerra.
18 CINEMATOGRAPHO

— Mas si o não conheço ?


-Tem que i r . H o m b r o ! A r m a s ! Marche !
— Mas cavalheiro...
— Recusa o seu auxilio ás «armações so-
ciaes ?»
— A's sociaes como a qualquer outra es-
pécie de armações.
— Gobarde !
— Idiota !
E eu ia lutar, lalvcz pela pacificação univer-
sal, quando dois secretas agarraram o mavor-
tico cidadão: — era u m louco, um doido do Hos-
pício, que graças ao open-door, sahia todo o
dia a tratar dos seus inventos na Câmara.
F u g i então, deixei de apparecer naquelles
corredores onde a Invenção Nacional estrebu-
cha pedindo privilégios e concessões e dinheiros.
()h ! a minha fraqueza ! Como essa qualidade,
triplicada pela bondade e pela paciência, mos-
Irara-me o gemo ignorado do meu paiz ! E eu
acumulava notas, cortava as patentes de inven-
ção publicadas pelo Diário Oficial, quando hon-
tem encontrei novamente o detestável sujeito
Tancredo, — m e u amigo intimo. Quiz fugir. Não
foi possivel. Tancredo ria, e estava bem vesti-
do, com u m annel de brilhante no dedo minimo,
— Não fujas. Já não sou inventor. Pateta !
— Pateta ?
— Pois está claro. Essa cousa de invenção
é uma loucura endêmica na cidade. Falho de
CINEMATOGRAPHO 19

tndo, resolvi exploral-a. A r r a n j e i u m invento,


bem inventado e comecei a «cavar» ao lado dos
idiotas, mordendo-os regularmente. Depois a
m i n h a influencia apresentou-os á tua boa von-
lade e eu servia-me sempre de ti para lhes absor-
ver alguma c o u S a . — V o u f a l l a r a Fulano que
fallará ao ministro. E zás ! agia.
-E agiste m u i t o ? Interroguei livido deante
do ladrão.
— A g i tão bem que me estabeleci na minha*
ultima e definitiva profissão. Sou agora, ao teu
dispor, prestamista a doze p o r cento ao mez...
— E partiu, alegre, como o superior que
nessa leva de gênios inventores tinha sabido
explorai- a única invenção pratica do mundo:
a mconimensuravel palermice humana.
Eis porque, outro dia, lendo nos jornaes
a lista das novas patentes de invenção, eu senti
um arrepio de pavor correr-me os membros
a-.custados.
A Cura Nova

E o i s que ! Ainda doente ?


— E' verdade, meu caro amigo, ainda
doente — cousa aliás natural porque ha muita
gente que passa mais tempo em peior estado.
Aqui, onde me vês, venho de consultar o vigé-
simo quinto medico illustre. Nunca houve no
Rio tanto medico illustre como agora. E' tal-
vez por isso que, com vinte e cinco médicos,
eu tenho até o presente momento vinte e cinco
diagnósticos differentes. Parece-te extraordiná-
rio ? A verdade neste mundo é sempre extraor-
dinária. Tantos diagnósticos, pronunciados p o r
vinte e cinco - cidadãos formados pela mesma
Escola deante de um corpo examinado pelos
mesmos processos, causaram-me uma confusão
absoluta.
Tenho as idéias baralhadas, falha-me a fé,
o escudo precioso da ignorância... Imagina que
eu sou forcado a um dilemma: o u esses médicos
3
22 CINEMATOGRAPHO

são umas proeminentes cavalgaduras, o u eu


soffro de u m m a l mysterioso como os que ata-
cavam certos senhores feudaes no tempo de Gil-
les de Rais o u de L u i z X I . Naturalmente, o meu
temperamento, pouco dado a violências e pro-
penso ao mysterio, preferirá o m a l mysterioso,
mesmo porque, haja dilemma o u não, o fato
é que eu estou no meio e que m o r r o deixando
de perfeita saúde os vinte e cinco facultativos.
Se é fatal a morte, morramos de um m a l es-
tranho. E' muito mais bonito.
— Deixa de dizer tolices. Se ainda estás
doente é porque queres. E u estive peior e sal-
vei-me sem tomar uma droga, graças ao Jero-
nymo de Albuquerque. N ã o conheces o Dr. Al-
buquerque ?
— Não.
— O notável Dr. Jeronymo ?
— Não, filho, não.
— O Dr. Jeronymo é uma verdadeira sum-
midade. A base do seu tratamento é dieta, quês-
tão de regimen contínuo. E u estou sempre em
tratamento. Vês as minhas faces? 0 sangue
torna-as rosadas. Vês a minha lingua ? Sem sa-
burra. Queres vêr os músculos do meu braço?
Estávamos na ^calçada» do Castellões, ás
4 horas da tarde de u m dia cheio de sol. Havia
um formigamenlo de genle ao redor da nossa
mesa. Como o cavalheiro, com o gesto paten-
teador, já desaboloava o punho, percipitei-riic
* CINEMATOGRAPHO 23

— Acredito, homem, acredito. Mas, dize lo-


go, que regimen é esse ?
— O mais commodo possível. Bebo, ás 8 da
manhã, uma chicara de leite convenientemente
esterilisado. A's onze cômo uma aza de frango,
assado sem gordura, com duas ou tres folhas de
alface também esterilisacla.' A's 5 janto.
- T u jantas ás 5, sem luz, como os empre-
gados públicos do século passado ?
-A hygiene, filho, o regimen. Mas a essa
hora cômo ainda menos: apenas u m pedaço de
gallinha com pão torrado. E ás 7 da noite, uma
chicara de chá.
— Para desgastar ?
— Para desgastar.
— E ha quanto tempo vives assim ?
— Ha u m anno.
Apalpei o cavalheiro, ferrei bem os olhos no
seu rosto, baixei-lhe a palpebra inferior a vêr
se tinha sangue, e, aríando enthusiasmado:
— Onde mora o Dr. Jeronymo ?
— Rua Direita.
C o r r i á rua Direita, e mais uma vez, sentado
numa cadeira, aturei, repugnado, a promiscui-
dade dolorosa de uma sala de consultório. Fe-
chados entre as quatro,paredes, deante de uma
porta que tomava lentidões irritantes para se
descerrar, o mundo era para nós, desconheci-
dos ligados de súbito pelo traço da moléstia,
inteiramente outro, e os nossos olhares impa-
4
24 CINEMATOGRAPHO

cientes perscrutavam os recem-vindos como a


dizer-lhes: T a m b é m este! n u m t o m de mofa,
de raiva e de vago contentamento. Eu, entre-
tanto, contando os doentes do Dr. Albuquer-
que, imaginava o prejuizo que os mercados te-
r i a m em breve. Adeus conservas, adeus cama-
rões, adeus trufas ! Nesse momento, o notável
facultativo, descerrando a porta, m u r m u r o u o
meu nome, e eu desappareci com elle, sob a
ira contida dos consultantes.
— Muito obrigado, doutor.
— Sente-se. Aprecio-o muito.
— Desvanecido. Tamanha honra...
— Deite-se. V o u examinal-o. A sua moléstia
é realmente exquisita. Mas a questão é de regi-
men. Se seguil-o á risca, fica bom. Seguil-o-á ?
— Sigo.
— Pois é este. Nada de café, nada de chá,
nada de chocolate. Abandone os restaurantes,
os molhos, os peixes, as caças, e as manteigas.
Não me côma nada de latas, de foie-gras, becas-
ses, salmão, não i n g i r a pimentas. Gosta de vi-
nho ? E' o veneno. Bordeaux, Sauterne, Bourgo-
gne, Clarette ? T u d o isso — veneno.
— E champagne ?
~ Champagne ? O senhor falia de champa-
gne ? E' a morte.
— Então, doutor, que hei de fazer ?
— Durante dous annos o seu regimen será
o seguinte: tres chicaras de leite p o r dia, leite
CINEMATOGRAPHO 28

de estabulo, esterilisado. Ao almoço e ao jantar,


cem grammas de gallinha assada, cincoenta de
pão torrado, com tres copos d'agua — u m pela
manhã, outro ao meio-dia, outro ao deitar.
— E uma costelleta, um bee\ ?
— E as toxinas, homem de Deus ? A carne,
quando é de b o i — é veneno. Quanto ao carneiro
e ao porco são a morte para os arthriticos como
o senhor. Vá, experimente...
E, magestosamente, estendeu-me a dextra.
Nesse mesmo dia comi u m p e r n i l de frango
com uma torrada tão dura que quasi me quebra
um dente. No dia seguinte, com dores de estô-
mago, e uma sêde de explorador africano em
pleno areai, não trabalhei.
Só tinha uma preocupação: a hora da co-
mida, a hora do copo d'agua. O criado do res-
taurante, com a macabra philosophia de que são *
únicos possuidores no mundo os velhos criados
de restaurante, sorria da avidez com que eu
me atirava ao sêco pernil de u m frango sêco,
e ainda mais secamente engulia o copo d'agua.
Uma semana depois, tive u m deliquio. Estava
pallido, anciado...
F o i precisamente quando encontrei a vene-
randa M. Teixeira, o u t r o r a gordissima e hoje
me

esgalgada e elegante.
— Que é isso, menino ? fez, maternal, a velha
dama. Assim doente ? Qual, a mocidade, a extra-
vagância... Se você tivesse u m regimen...
26 CINEMATOGRAPHO

— Não me fale nisso, M. T e i x e i r a !


me

— Mas eu sou u m exemplo, uma prova, uma


trombeta da fama do illustre Dr. F i r m i n o , essa
notabilidade que assombraria mesmo os gran-
des centros da Europa...
— A senhora pôde ser uma trombeta, o Dr.
F i r m i n o pôde ser uma notabilidade. E u é que
não posso deixar de comer !
— Mas quem fala em não comer ? E u era
gorda — g o r d u r a arthritica. Soffria de dyspe-
psia, de varizes e de rheumatismo. F u i ao Dr.
F i r m i n o de Souza, uma gloria nacional. E sabe
você como estou radicalmente curada ? Apenas
com o regimen !
— Que regimen, M. me
T e i x e i r a ? indaguei
num suspiro — o suspiro de todo o doente, de-
sejoso de rechassar o mal.
— De manhã, u m mingaosinho.
— Sempre melhor que o Dr. Jeronymo.
— Almoço, u m copo d'agua.
— Que ? u m copo d'agua ?
Agarrei-me á esquina, para não cahir. M. me

'Peixeira estava elegante,, alegre, sadia, interes-


sante. E r a espantoso.
— E ao jantar, ás 4 7 da tarde, uma ge-
2

ma de ovo, uma colher de feijão e outro copo


d'agua filtrada.
No dia seguinte eu acamava com uma febre
de quarenta gráos.
Quarenta gráos, precisamente? não sei. 0
CINEMATOGRAPHO 27

thermometro do Dr. Pereira — não conhecem o


Dr. Pereira? o extraordinário m e d i c o ! — m a r -
cava trinta e nove e oito décimos; o do Dr. José
de Vasconcellos — u m sábio, u m t h a u m a t u r g o !
- t r i n t a e nove e sete décimos; o do Dr. Eve-
rardo Duchner — curso nos hospitaes de V i e n n a
e Berlim, cçlebre, que digo ? archi-celebre —
quarenta gráos e dous décimos; o do meu cria-
do de quarto, trazido de Santos, quarenta justos.
No semi-delirio da febre, aceitei o u l t i m o —
refletindo que não tinha segredos para o servo
atento, e principalmente porque todas essas
M i m m i d a d e s descompunham os thermometros
dos collegas, elogiando o próprio.
Alas no leito, requeimado pela febre insidio-
sa, que só augmentava com as eminentes recei-
tas prescriptas para debellal-a, recebendo a cada
instante cartões de pessoas que me i a m visitar,
eu era forçado, pelo habito bem nacional, pela
tyrannia da intimidade, a receber cheio de agra-
decimentos os mais camaradas. E cada um, de-
pois de contar a sua ex-molestia, dava-me u m
conselho. — Doente assim? P o r q u e não consul-
ta o grande Dr. Duarte ? E u fiquei b o m de
uma febre apenas com a dieta rigorosa. Tres
dias comia, tres dias jejuava t o m a n d o sal de
, frutas, e, como a semana t e m sete dias, ao
domingo almoçava, mas não jantava, systema
m i x t o . — T ã o m a l ? E' porque q u e r ! Consulte
o Dr. L e a n d r o Gomes, u m talento extraordina-
28 CINEMATOQRAPHO

rio. Elle é severo. A dieta é tão rigorosa que


eu em vinte dias perdi 18 kilos. Mas, como me
sinto bem, que prazer !
Então eu, que passava com uma chicara de
.chá e uma torrada, comprehendi que a medi-
cina inventara uma nova cura, a cura da fome,
cura tão radical que se estenderia aos vermes
forçados a só encontrar ossos e peites nos fu-
turos cadáveres... Reagi, fugi dos médicos, subi
a montanha a vêr se, num hotel em plena flo-
resta, escapava á obsessão fetichica do doente,
que acredita quand-même no saber do faculta-
tivo. E, estrompado, exhausto, reclinado numa
dormeuse, mandei chamar o dono do hotel.
— Diga-me cá, muitos hospedes ?
— Um bando. Ouasi todos neurasthenicos,
campo curioso para a observação de V . Ex. a

— A minha observação, deixe-a em paz. Neu-


rasthenicos, diz você ?
— Mandados pelo Dr. Jeronymo, o celebre...
— Hein ? Jeronymo ? o celebre ? Jeronymo ?
a nova cura ? o regimen ? a dieta ? um copo de
leite? nada de manteigas ? Volto. Parto áma-
nhã. Prepare a conta. Esse homem...
— Qual regimen ! O senhor se engana. Com
effeito, elles chegam cá munidos de regimen.
Hervas, menos repolho, couve, agrião, aze-
dinha, etc... isto é, hervas menos hervas igual
a zero, gallinha sem gordura, tres chicaras de
leite... Mas ao cabo de tres dias, o ar puro, o
CINEMATOGRAPHO 29

oxygenio da floresta, abrem tão violentamente


o apetite, que elles comem tudo, devoram, dão-
me um trabalho tremendo, ficam bons, afinal,
quando não rebentam de indigestão. O cardá-
pio do jantar de hoje é: creme de aspargos.
— Aspargos ? Fará m a l ?
— E' excellente. Lagosta com molho picante.
— Que h o r r o r !
— Abre o apetite. Carneiro com môlho de
alcaparras.
— E u sou arthritico.
— Que tem o arthritismo com o carneiro ?
E um sumptuoso assado para concluir, além
de queijos, fructas, doces e um excellente cura-
çáo para o café.
CahT na dormeuse outra vez. A minha antiga
alma renascia, hesitante. Escovei o «smoking»
tremendo. Mas sempre cheguei á mesa redonda.
O bando das victimas da cura nova, sem febre
e com apetite, recobrava na sopa de aspargos,
vorazmente, os jejuns anteriores e forçados. F o i
então que revoguei para sempre as curas, adian-
do por algum tempo o negro final de todos
nós — íinal a que chegam fatalmente, para equi-
dade da vida, as lagostas, os carneiros, os bois,
os doentes e também os médicos...
As cnianças q u e m a t a m ...

m AS é assombrosa a proporção do crime

nesta cidade, e principalmente do cri-


me praticado por creanças ! Estamos a precisar
de uma liga para a proteção das creanças, como
a imaginava o velho Júlio Vallés...
«— Que houve de mais ? indagou Sertorio
de Azambuja, eslirando-se no largo divan for-
rado de brocado côr d o i r o velho.
- V ê o jornal. Na Saúde, um bandido de
treze annos acaba de assassinar um garotito de
nove. E' horrível!
O meu amigo teve um gesto displicente.
— Crime sem interesse...
A menos que não se dê um caso de genia-
lidade, um homem só pôde commeter um bello
crime, um assassinato digno, depois dos deze-
seis annos. Uma creança está sempre sujeita
aos desatinos da edade. Ora, o assassinato só
CINEMATOGRAPHO

se t o m a admirável quando o assassino fica im-


pune e realiza integralmente a sua obra. Desde
Caim nós temos na pelle o gosto apavorador do
assassinato. N ã o estejas a olhar para m i m assim
assustado.' As mais frágeis creaturas procuram
nos jornaes a noticia das scenas de sangue.
Não ha homem que, durante u m segundo ao
menos, não pense em matar sem ser preso.
E o assassinio é de tal fôrma a inutilidade
necessária ao prazer imaginativo da humanida-
de, que ninguém se abala para vêr u m homem
morto de morte natural, mas toda gente corre
ao necrotério o u ao local do crime para admirar
a cabeça degolada o u a prova inicial do crime.
Dado o g r a u de civilização atual, civilização que
tem em germen todas as decadencias, o crime
tende a augmentar, como augmentam os orça-
mentos das grandes potências, e com uma per-
centagem cada vez maior de impunidade. Lem-
bra-te das reflexões de Thomaz de Quincey na
sua pedagogia do crime ! E' delle esta phrase
profunda: — «O publico que lè jornaes conten-
ta-se com qualquer coisa sangrenta; os espíri-
tos superiores exigem alguma coisa mais...»
Humilhadamente, dobrei o j o r n a l :
— Então só os espíritos superiores?...
— Podem idealizar um crime brilhante. Esse
caso da Saúde não tem importância alguma.
E' antes um exemplo c o m m u m da influencia do
bairro, desse bairro rubro, cuja historia som-
CINEMATOGRAPHO 33

bria passa através cios annos encharcada em


sangue. Nunca foste ao b a i r r o r u b r o ? Queres
lá i r agora ? São 8 horas. Vamos ? V e m dahi...
Descemos. Estava uma noite ameaçadora.
No céu escuro, carregado de nuvens, relâmpa-
gos acendiam clarões fugazes. A atmosphera
abafava. Uma agonia vaga pairava na luz dos
combustores. Insensivelmente vinham-me á me-
mória as estrophes de Alhert Samain:

II est des nuits de doute oú Vangoisse vous tord,


Oú Vâme, au bont de la spirale descendue,
fale et sur 1'infini terrible snspendue;
Sent la cent de Vabime et recule éperdue!
II est des nuits de doute oú Vangoisse vous tord,
Et ces nuits-ld, je suis dans Vombre com me un mort.

Sertorio de Azambuja ia de chapéu molle,


com um lenço de seda á guiza de gravata. Ao
chegar ao largo do Machado, chamou u m carro,
mandou tocar para o começo da r u a da Impe-
ratriz.
— Que te parece o nosso passeio ? Estamos
como Dorian Gray, partindo para o vicio i n -
confessável.
L o r d Henry dizia: «Curar os sentidos p o r
meio da alma e a alma p o r meio dos sentidos.
Vamos entrar no outro mundo...
E u atirara-me para o fundo da victoria de
praça e via vagamente a illuminação das casas,
os grandes pannos de sombra das ruas pouco
34 CINEMATOGRAPHO

illuminadas, a multidão, na escuridão ás vezes,


ás vezes queimada na fulguração cie uma luz
intensa, os risos, os gritos, o barulho de uma
cidade que se atravessa. Na r u a Marechal Flo-
riano, Sertorio pagou ao cocheiro, dizendo:
— Saltaremos em movimento.
E para mim:
— Não vale dar na vista...
Um instante depois saltou. Acompanhei-o.
O carro continuou a rodar. O b a i r r o r u b r o não
é um districto, uma freguezia: é uma reunião
de ruas pertencentes a diversos districtos, mas
que mysteriosamente, para além das forças hu-
manas, conseguiu criar a rede tenebrosa, o en-
cadeamento l u g u b r e da miséria e do crime, in-
saciáveis. A r u a da Imperatriz é um dos corre-
dores de entrada.
O b a i r r o onde o assassinato é natural abraça
a r u a da Saúde, com todos os becos, viellas
e pequenos cáes que delia partem, a r u a da
Harmonia, a do Propósito, a do Conselheiro
Zacharias, que são parallelas á da Gamboa, a
do Santo Christo, a do Livramento e a atual
rua do Acre. Naturalmente as ruas que as li-
mitam ou que nellas terminam — S. Jorge, Con-
ceição, Costa, Senador Pompeu, America, Vidal
de Negreiros e praia do Saco — p a r t i c i p a m do
estado de alma dominante.
Toda essa parle da cidade, uma das mais
antigas, ainda cheia de recordações coloniaes,
CINEMATOGRAPHO 35

tem, a cada passo, u m traço de historia l u g u -


bre. A r u a da Gamboa é escura, cheia de pó,
com u m cemitério entre a casaria; a da Harmo-
nia já se c h a m o u do Cemitério, p o r t e r a h i »
existido a necropole dos escravos vindos da
costa da África; a da Saúde, cheia de trapiches,
irradiando ruellas e becos, trepando m o r r o
acima os seus tentáculos, c o caminho do deses-
pero; a da Praínha, mesmo hoje aberta, c o m
prédios novos, causa, á noite, u m a impressão
de susto.
( orno dizia o m e u guia, estávamos n u m novo
inundo...
A r u a da Imperatriz, ás oito e meia, c o m
uma porção de casas commerciaes velhas e tão
juntas, tão trepadas n a calçada, que parecem
despejadas na rua, estava em plena febre. Os
botequins reles, as barbearias sujas, as tascas
immundas g a r g o l e j a v a m gente, e essa gente
era curiosa — trabalhadores em mangas de ca-
misa, carroceiros, carregadores, fumando «mata-
ratos» infectos, cuspinhanclo cachaça e m altos
berros, n u m calão de imprevisto, e rapazes,
mulatos, brancos, de grandes calças a balão,
chapéu ao alto, a se a r r a s t a r e m bamboleando
o passo, o u em tabernas barulhentas. A nossa
passagem era acompanhada com u m o l h a r de
ironia, e bastava p a r a r dois segundos defronte
de u m a taberna, para que de dentro todos os
olhos se cravassem c m nós.
*
36 CINEMATOGRAPHO

E u sentia acentuar-se u m mal-estar bizarro.


Sertorio ria.
— A vulgaridade da .populaça ! H a p o r aqui,
entre esses marçanos fortes, gente boa. Ha tam-
bém r u i m . Estão fatalmente destinados ou a
apanhar ou a dar, desde creanças. E' a vida.
Alguns são perversos: provocam, matam. Vais
vêr. Nasceram aqui, de pais trabalhadores...
Tínhamos chegado á r u a Camerino, esquina
da da Saúde. Ha ahi uma venda com u m pe-
queno terraço de entrada. O prédio desfaz-se~
mas dentro redemoinha uma turba estranha:
negralhões ás guinadas, inteiramente bebedos,
adolescentes ricos de músculos, embarcadiços
foguistas.
Fala-se uma língua babelica, com termos
da África, expressões portuguezas, frases i n -
glezas. Uns cantam, outros rouquejam insultos.
Sertorio aproxima-se de u m grupo. Ha um
mulato de tamancos, que parece um harenque
ensalmonado, no meio da roda. O mulato cus-
pinha:
— Gò on, go on... já, jarewell! já!
E' brasileiro. Está aprendendo todas essas
lingúas extrangeiras com os práticos inglezes.
Ha um veneravel ancião, da Colônia do Cabo,
tão alcoolizado que não consegue senão fazer
um gesto de enjôo; ha um copta, apanhado por
um navio de carga no Mar Vermelho; ha dois
negrinhos retinlos, com os dentes de uma al-
vura estranha, que bradam:
CINEMATOGRAPHO 37

— Eli oui, petit mossieur, nous somrnes do


Conçfo. Etudiéz avec pere<$ blancs...
Todos i n c o n d i c i o n a l m e n t e a b o m i n a m o R i o :
querem partir.
S e r t o r i o p a g a m a d u r o s ; elíes f a z e m r o d a . O
m u l a t o b r a s i l e i r o está d e l i c a d o .
- H i p ! h i p ! c a m b a d a ! p a r a m o s t r a r a vo-
cês q u e cá n a t e r r a h a g e n t e p a r a e m b r u l h a r
1 i n g u a d i r e i t o ! Agüente, n e g r a d a !
—- Sai burrique ! g r u n h e o ancião.
Dando guinadas c o m os copos a escorrer o
l i q u i d o s u j o d o m a d u r o , essa t r o p a p a r e c i a t o d a
v a c i l l a r c o m a casa, c o m a s l u z e s , c o m o s c a i -
x e i r o s . S a h i antes, m e i o t o n t o . S e r t o r i o l i v r a -
va-se da m a t i l h a d i s t r i b u i n d o n i c k e i s .
Quando conseguiu não ser acompanhado,
tnetteu-se p e l o b e c o .
S e g u i - o e, de r e p e n t e , nós d e m o s n o s t r e c h o s
s i l e n c i o s o s e l u g u b r e s . N a s r u a s , a escuridão e r a
quasi completa. U m transeunte ao longe annun-
ciava-se p e l o r u i d o cios p a s s o s .
D e vez e m q u a n d o u m a r o t u l a a b e r t a e d e n t r o
uma sombra. Que logares eram aquelles ? O ou-
tro m u n d o ! A o u t r a cidade ! A a t m o s p h e r a e r a
a q u e c i d a p e l o c h e i r o p e n e t r a n t e e. p e s a d o d o s
grandes trapiches. E m alguns trechos a treva
era t o t a l . N a p a s s a g e m d a e s t r a d a d e f e r r o , a
luz e l e c t r i c a , m u i t o f r a c a , e s p a l h a v a c o m o u m
sudario de angustias.
F o i então q u e c o m e ç á m o s a e n c o n t r a r e m
38 CINEMATOGRAPHO

cada esquina, o u sentados nas soleiras das por-


tas, o u em plena calçada, uns rapazes, alguns
crescidos, outros pequenos. A' nossa passagem
calavam-se, r i a m . Mas nós iamos seguindo, cada
vez mais curiosos.
Afinal, demos no largo da Harmonia, deserto
e lamentável. A' porta da egreja uma outra roda,
maior que as outras, confabulava. Aproxima-
mo-nos.
— Boa noite !
—• Boa noite ! respondeu u m pretalhão, er-
guendo-se com os tamancos na m ã o .
Os outros ficaram hesitantes, desconfiando
da amabilidade.
— Que fazem vocês ahi ?
—• Nós ? indagou u m rapazola já de buço,
gingando o corpo. Contamos historias: ora ahi
tem ! Interessa-lhe muito ?
— H i s t o r i a s ! mas eu gosto de historias.
Quem as conta ?
— Isso é costume cá no bairro. Ha rapazes
que sabem contar que até dá gosto. A q u i quem
estava contando era o José, este caturrita...
Era u m pequeno, franzino, magro, com uma
estranha luz nos olhos.
Talvez matasse amanhã, talvez roubasse!
Estava ingenuamente contando historias...
Sertorio insistia, entretanto, -para ouvil-o.
Elle não se fez de rogado. Tossiu, poz as mãos
nos joelhos...
CINEMATOGRAPHO 39

— E r a u m dia, uma princeza, que tinha uma


estreita de brilhantes na testa...
A roda cahira de novo n u m silencio atento.
A escuridão parecia augmentar, e, involuntaria-
mente, eu.e o meu amigo sentimos n'alma a emo-
ção inenarrável que a bondade do que julga-
mos mau sempre nos causa...
Hontem e hoje

ÇJT questão palpitante é a r e f o r m a do ensino.


á?JL A ignorância clamorante da mocidade f o i
subitamente decretada, e só ha u m meio de re-
vogal-a: reformar. A Câmara agita-se, os pos-
síveis professores interessam-se, as velhas no-
tabilidades pedagógicas escrevem artigos, escre-
vem livros, fazem discursos, b r a d a m que é i m -
possível continuar essa inenarrável miséria.
Outro dia, á noite, encontro u m deputado.
— Oue ha de novo ?
— A r e f o r m a da instrução. V e n h o da casa
de um coliega, onde estivemos a lêr o esboço
do u l t i m o projecto. E' severíssimo. Desta vez,
a coisa v a i .
— Então, graças ao céo !
— Mesmo porque é impossível c o n t i n u a r
como está ! Nós chegamos a u m g r a u de des-
moralização absoluta.
42 ClNbMATOGRAPHO

Deixei o deputado convencido de que a


instrução do meu paiz chegára á vergonheira
mais completa do globo, e ia pensando na pos-
sibilidade de ninguém saber ler no Brasil, mes-
mo antes da reforma da orthographia, quando
me l e m b r o u i r consultar u m velho professor
dotado de grande cérebro e de u m generoso
coração.
T o m e i u m t i l b u r y , atirei-me pelas ruas mal-
tratadas na dynastia Aguiar, saltei na casa do
velho lente, mesmo na occasião em que elle
sahia.
— Você...
— E u mesmo, caro mestre. Venho consultal-o
sobre a indecência da nossa instrução. E u te-
nho u m temperamento tão fantasista que ain-
da acredito nas correntes urbanas das opiniões,
e estou neste momento prestes a achar a instru-
ção publica atual uma escandalosa immora-
lidade.
— Pois venha dahi. E u v o u dar u m passeio
pelo cáes a olhar u m pouco o mar, o «grande
laboratório» como diziam devmatoriamente os
Aryas ao vêl-o pela vez primeira. Conversare-
mos. A coisa não é tão feia. E talvez eu ó possa
afirmar — porque ha quarenta ànnos ensino me-
ninos...
Gravemente, o velho lente poz-se a andar.
Tristemente, acompanhei-o.
Com u m leve sorriso, o lente disse:
CINEMATOGRAPHO 43

— Está uma noite linda.


E depois, sem transição, c o n t i n u o u :
— Esta r e f o r m a está nas condições de todas
as outras realizadas pelo poder t e m p o r a l d a
nossa pátria desde 1854. Isto é: visa crear ca-
deiras o u d i v i d i r as existentes com o f i m de po-
der empregar meia dúzia de filhotes.
— Ha muitos desses nas passadas reformas ?
— N ã o citemos nomes. O governo n a sua
mensagem, m e u caro discipulo, fala da des-
organização do ensino secundário p o r elle mes-
mo administrado, do m a u preparo da geração
atual. Precisam dizer qualquer coisa de atroz
para justificar reformas, justificáveis apenas
com a evolução e a progressão do saber. D a h i
commeterem a grande falsidade.
— E a grande falsidade ?
— E' a de assegurar que a geração atual
nada sabe e passa através de u m t u n n e l de em-
penhos, absolutamente incapaz. O h ! Deus ! que
exagero ! A c r e d i t a você que o empenho seja
de hoje e acabe ámanhã ? N ã o ! o' empenho
sempre existiu, e m todas as gerações passam
protegidos mais o u menos felizes, realizando
cursos scientificos graças apenas á proteção
dos maiores. -
S o r r i u de novo e c o n t i n u o u :
— Para bem j u l g a r da grande falsidade, basta
comparar dois grupos: p o r exemplo, a m i n h a
e a sua geração.
44 CINEMATOGRAPHO

— Oh ! mestre.
— E u falo sempre sem lisonja. E m primeiro
logar o grupo de protegidos da minha geração
era de t a l ordem, que u m notável lente, após
a aprovação de u m delles, na Escola Central,
levantou-se, f o i á janella e g r i t o u para a rua:
«Afastem-se ! V a i sahir u m B u r r o !» Oh ! não
ria. Assisti na Escola de Medicina á defeza de
these de u m estudante, hoje notável cidadão, de
que ainda guardo uma resposta. Onde fica a
célula biliar ? indagava o examinador. — No cé-
rebro ! respondeu elle. Esses factos eram com-
muns. N ã o me esqueço de u m exame oral, cujo
ponto tinha sido dado vinte quarto horas antes.
Era de astronomia e o professor protegia o exa-
minando. — Qual é o seu ponto ? — A resolução
do triângulo espherico A. B. C. — E se fosse o
triângulo D. E. F. ? O examinando respondeu:
Não era o meu ponto ! E f o i aprovado, e hoje
dá cartas em engenharia e com certeza acha que
o ensino d'agora é o cumulo da immoralidade.
São sempre , esses os que mais g r i t a m contra o
mau preparo da atual geração...
Pelo Parlamento, meu amável discipulo, sem-
pre se aferiu a mentalidade de uma raça. Se
hoje o Parlamento tem Heredias. e meia dúzia
de chefes eleitoraes representantes da força da
cabala, percorra os annaes antigos. E m 1867 um
deputado justificava u n i projecto no qual entrava
o peso da atmosphera. Quando o deputado falou
CINEMATOGRAPHO 45

do peso do ar, uma porção de collegas estalou


a r i r e houve este aparte: — Ora, o ar pesado ! !
Com a atual nevrose de conferências futeis,
falam muito na sciencia educativa das passadas
conferências da Gloria. Pois eu ouvi, numa des-
sas conferências, um senador, ex-ministro dos
extrangeiros, ex-presidente da Câmara, dizer:
«A lua, cuja superfície Iodos nós conhecemos,
cm virtude delia gyrar em torno do seu eixo...»
Qual a creança de escola publica que não
sabe hoje mostrar a lua sempre a mesma face
á terra ?
Oh ! os exemplos, as anedotas não faltam !
A sciencia não se difundira, estava entregue a
um limitado grupo de homens, de modo que tal
ou tal sciencia só era ensinada mal aos rapazes
que se destinavam a uma determinada profis-
são. Assim, cada doutor conhecia apenas os fa-
tos mais geraes de um só departamento do
conjunto do saber humano, de modo que a sua
completa ignorância a respeito do mundo e do
homem era perfeitamente justificável. E por
isso, os erros que lhe apontei mostravam até
esforço de assimilação...
Veja, porém, agora. Os protegidos de. hoje
são como os do passado. Em maior numero, é
verdade, porque o numero dos que estudam .
hoje é quasi 2.300 vezes maior do que o do meu
tempo. No ensino secundário só se faziam exa-
mes geraes em S. Paulo, na Bahia, em Pernan-
CINEMATOGRAPHO

buco, nos cursos annexos e aqui. Hoje até em


Campos, terra do Dr. Nilo, e em Nictheroy.
Mas cumpre dizer que o numero dos protegidos
de hoje, incapazes de saber a disciplina cujo
exame prestam, é, no fundo, extremamente limi-
tado. E a razão é simples: a sciencia difunde-
se, o menino nasce aprendendo e aos oito
annos sabe, com um livro de lições de coisas, o
que só aos vinte os meus contemporâneos iam
saber na Botânica do Bomfim, por exemplo,
quando já acadêmicos. A lição de coisas ! Um
petiz de agora define a cubatura da esphera,
conhece os fatos geraes da physica, da chimi-
ca, da biologia. Por mais destituído de intelli-
gencia que o possamos imaginar, é impossivel
comparal-o nos conhecimentos geraes aos do
meu tempo. Ainda ante-hontem ouvi uma crean-
ça de nove annos explicar o calor do sol no verão
dos paizes do norte do equador. Na minha gera-
ção, eram sábios os que estudavam astronomia
e só se aprendia esta coisa, hoje abaixo dos
almanachs, dos 20 annos em deante. Os profes-
sores da atualidade têm uma grande cópia de
conhecimentos abstractos. Transmittidos esses
conhecimentos á geração de pirralhos de agora,
os pirralhos aos 15 annos serão sábios em re-
. lação aos sábios da minha geração.
Eu rio. A sua fina ironia pesponta grave-
mente os argumentos de uma blague a frio,
que desconcerta um pouco. O meu ex-lente fica
sério.
CINEMATOGRAPHO 47

— Não faço troça, meu amigo. Estou plena-


mente certo que nenhum dos sábios da minha
geração é capaz de contestar o que lhe disse.
No grupo dos felizes da proteção da minha
época, ha uma grande diferença para melhor
em favor da atual geração. Ou os governos e
os scientistas que auxiliam os governos nas re-
organizações de ensino estão em erro, ou calum-
niam para arranjar os protegidos formados nas
reorganizações elaboradas.
E' um crime falar da desmoralização da mo-
cidade, meu caro discipulo. O ensino não che-
gou a essa baixeza. Para me justificar, basta
examinar de leve os diferentes departamentos
do nosso saber e notar o grande numero de mo-
ços cheios de cultura de moralidade.Veja os ta-
lentos nas escolas, veja o numero dos que apa-
recem violentamente, examine os que ocupam
logares de responsabilidade dando resultados
brilhantíssimos, estude o jornalismo, a arte, as
sciencias d'agora, comparando com os de trinta
annos atrás. E' a mocidade, a sagrada mocida-
cle sempre incomparavelmente melhor do que
nós, a mocidade que nos arranca o facho para
lhe dar á chamma vida maior, luz maior, brilho
mais intenso...
— Oh ! professor...
Estávamos na Avenida Beira-Mar, sombria,
deserta, naquelle trecho que foi o Russel. O
capim crescia como o desleixo do b l u f f prefeitu-
48 CINEMATOGRAPHO

r a l , r a r o s automóveis c o r u s c a v a m c o m i n t e r m i -
t e n c i a e, s o b r e o s i l e n c i o , o céo d e i n v e r n o es-
t e n d i a o v e l l u d o s o n e g r o r d a n o i t e p a l p i t a n t e de
estrellas. O v e l h o m e s t r e estava c o m m o v i d o .
L i m p o u as lentes, p a r o u u m i n s t a n t e , s o r r i u .
— Ne nous emhallons pas... R e s u m a m o s . E'
m e l h o r . A r e f o r m a é u m r e s u l t a d o d a evolução.
A r e f o r m a , , m e s m o m á , é u m a tendência para
m e l h o r . C o i m b r a e S a l a m a n c a m o r r e m p o r não
se r e f o r m a r e m . A r e f o r m a , além disso, empre-
gará a l g u n s c a v a l h e i r o s necessitados. M a s para
r e f o r m a r n ã o é p r e c i s o v i r d i z e r q u e o ensino
c a h i u e que, agora, a desmoralização c h e g o u ao
auge.
E' m e n t i r a , é t o l i c e , é c a l u m n i a . E m p e n h o s
s e m p r e os h o u v e e haverá; gente' i d i o t a que-
r e n d o s e r b a c h a r e l e passando, n o s cursos, sem-
• p r e h o u v e e haverá; mas, c o m p a r a n d o a m i n h a
geração c o m esta d e q u e f a z e m p a r t e você e
m e u s filhos, e u não tenho, c o m o esses patetas,
a estultice, o a t r a z o , o lamentável e d e s h u m a n o
e s q u e c i m e n t o dos velhos. Antes, p e l o c o n t r a r i o .
Enche-me o coração um. g r a n d e o r g u l h o , por-
q u e v e r i f i c o t e r c o o p e r a d o p a r a a formação de
u m a geração dez vezes m a i s f o r t e , m a i s sabida, .
m a i s capaz d o q u e a m i n h a — geração q u e fará
dos m e u s netos aos q u i n z e a n n o s a m a r a v i l h a dos
sábios avós. E isso é u m consolo, m e n i n o ! Re-
f o r m e m o s , r e f o r m e m o s , r e f o r m e m o s q u a n t o fôr
possível a o s l e g i s l a d o r e s . Mas, d a n d o a César
CINEMATOGRAPHO 49
« i

o que Gesar pôde fazer, respeitemos a verdade


e o orgulho da vida, que é a juventude.
Depois, l i m p o u o lábio, repôz as lentes e,
como de certo Platão fazia nos jardins de Aca-
dernus, após uma sábia verdade, continuou a
andar e disse, com doçura e prazer:
— Está uma noite linda !
O 20:025!

C OMO tivesse assistido ao pavoroso incêndio,


desde a hora do p r i m e i r o alarma até o mo-
mento em que se retirou o heróico Corpo de
Bombeiros, comprei pela manhãsinha todos os
jornaes. Não é que a leitura das folhas alguma
coisa adeantasse. Ao contrario. A leitura atra-
palha ás vezes. Mas o incêndio fora n u m a pen-
são conhecida, freqüentada p o r mim, eu assistira
á fúria devastadora das chammas, salvára mes-
mo aos pedaços uma vitrine de salão que u m
bravo bombeiro atirára da janella do segundo
andar, e sentia a necessidade i r r e p r i m i v e l de
rever a noite ardente na descripção dos jornaes.
Nada mais humano e menos prejudicial.
F u i para o quarto, abri o bico de gaz, aban-
quei e dispuz-me a l e r as informações dos re-
porters. Que serviço admirável! Todos os jor-
naes abriam duas columnas com uns títulos ver-
5Z CINEMATOGRAPHO

dadeiramente incendiarios e as notas de -repor-


tagem acumulavam-se em períodos cerrados
por mais uma columna sem títulos. Como pode-
r i a m aquelles rapazes ter tempo para vêr tudo
aquillo e escrever embellezando os menores in-
cidentes ? Era espantoso. A leitura das noticias
é que me avivava a memória u m pouco cançada.
Estava nos jornaes tudo: a creada que dera o
alarma, o visinho que tentára durante dez mi-
nutos extinguir o fogo, enquanto não vinha im-
mediatamente, com a presteza habitual, o bravo
Corpo de Bombeiros, o ataque ao fogo, a falta
d'agua, tudo !
U m noticiarista mesmo descrevêra assim o
escorchamen-to da fogueira: «Então, quando os
bravos Bombeiros sentiram agua, pozeram as
bombas em posição, soaram toques de corneta
e o commandante, que chegava com um pe-
queno atrazo, deu ordem de ataque. A agua
entumesceu a borracha, roquejou nas bombas, e
de súbito, o brazeiro estalou ao quádruplo ata-
que dos jactos violentos ! A agua cahia por
quatro lados, como fantásticos alfanges de crys-
tal, esphacelando a fogueira numa nuvem de
fumaça».
Era exactamente o que eu sentira, era a mi-
nha impressão. Quem poderia deixar de fazer
o melhor juizo da reportagem? Acontece sem-
pre isso quando os jornaes são da nosSa opi-
nião...
CINEMATOGRAPHO 5.?

0 sentimento agradável, porém, não durou


muito. Os meus olhos viam em letras norman-
das este subtitulo:

0 20:025 !

«No meio da confusão, ouviu-se um grilo


angustioso: — Minha filha ! E r a unia das crea-
das da pensão, Jesuiná Pereira, de 30 annos,
què deixara a d o r m i r no 2.° andar, sua inno-
cente filhinha Odalisca de 7 annos, u m formoso
anjinho. Houve um grito de h o r r o r na multidão.
-Onde está? perguntou uma voz. E r a a voz
de um bombeiro, um rapazola, nervoso. — No
2.° a n d a r ! — V o u buscal-a ! E meteu-se na fo-
gueira. Houve um silencio atroz em toda a rua.
Que se iria passar, deuses celestes ? O bombeiro
desaparecera na chamma armado de uma
bomba. E r a como um bicho estranho. De re-
pente Jesuina, que olhava a scena semimorla
gritou: Ella ! Sim, era ella, a sua filhinha nos
braços do heróico rapaz, que apenas com leves
queimaduras nos braços á depoz aos pés da m ã e
feliz, voltando logo ao incêndio.
O povo fez uma estrondosa ovação ao moço
heróico. Conseguimos saber-lhe o numero; é o
20.025».
Como? seria possível? Mas eu estivera no
incêndio do começo ao f i m e não vira nada disso !
Qual : Abri outro jornal. Lá estava a scena.
54 CINEMATOGRAPHO

A b r i mais outro: a scena lá estava. Todos, abso-


lutamente todos, davam, com mais o u menos
detalhes, o acto heróico do 20.025. N ã o havia
duvida. Escapára-me o melhor trecho do incên-
dio. Se todos os jornaes t i n h a m visto, eu é que
não prestára bem atenção. Talvez o 20.025
fosse o rapaz que atirára a vitrine da janella do
2.° andar. Uma creanca e uma vitrine ! Valoroso
homem ! E como eu salvára os pedaços da v i -
trine senti uma intima ligação mysteriosa com
o salvador, senti-me u m addendo ao acto bravo.
T a m b é m eu estivera ligado á acção heróica !
Era preciso que os jornaes soubessem !
Olhei-me ao espelho, v i que tinha uma pal-
lidez romântica de quem acorda de uma resaca,
verifiquei a belleza do acto mais uma vez, e parti
para as redações a pôr em evidencia o meu
nome — ao lado do numero.
Nada mais fácil.
Os jornaes da tarde diziam com entrelinhas:
«O Sr. Eleuterio Barroso, que esteve presente
ao incêndio e v i u a coragem sobrehumana do
20.025, trouxe-nos a idéa de uma subscripção
para ser dada uma medalha de ouro ao bravo
rapaz. A subscripção, que reputamos justissima,
fica aberta no escriptorio de u m dos nossos col-
legas da manhã. O Sr. Fleuterio abre as assi-
gnaturas com o donativo de 50$000».
E eu f u i o homem do 20.025 ! O j o r n a l em
que eu abrira a subscripção chamou-me distinto
CINEMATOGRAPHO 55

e digno: os meus amigos s o r r i a m de inveja,


algumas senhoras pediram-me detalhes.
— Mas o senhor v i u mesmo ?
— Como estou vendo V. Ex. . N u n c a pensei,
a

minha senhora. O rapaz entrou desabaladamente


no fogo. Os corações estavam pequeninos de
medo. I m a g i n e quando elle apareceu, simples
e calmo, sobraçando a innocentinha !
— Depois de ler atirado a vitrine ?
-Depois, excellentissima. A h ! esses heroes
que salvam a vida do próximo é que deviam
ter mais que a nossa admiração, o nosso res-
peito.
Uma tarde, no Club dos Diários, durante
uma sauterie de creanças, repeti dez vezes a
emocionante anedota. E como freqüente (secre-
tamente em v i r t u d e da minha posição de h o m e m
casado) o Club dos Democráticos, todas as noi-
tes deliciava esse remanso da A l e g r i a c o m a
historia commovente do 20.025. A l g u m a s das
raparigas, p o r sentiméntalismo, pediram-me
mesmo o retrato do heroe.
E eu de tanto cantar o heroismo, capacitei-
me de que o tinha visto. T o d o eu, da cabeça
aos pés, era o 20.025. Pintei-o como u m heróe
antigo, indiferente ás glorias mundanas; des-
cobri-lhe u m a f a m i l i a modesta, sustentada á
custa do seu labor, insinuei nos jornaes entre-
vistas e descripções.
A subscripção a t i n g i u a uma somma colos-
56 CINEMATOGRAPHO

sal. F u i p r o c u r a r u m dos afamados desenhistas


e encommendei-lhe a medalha com os seguintes
dizeres: «Ao heróico 20.025 — A cidade do Rio
de Janeiro». O ouro em que ella f o i moldada
era dos mais finos, e para tornal-a mais impor-
tante, mandei-a cravar de rubis.
Só faltava descobrir o bravo e modesto ra-
paz. Atirei-me ao Corpo.
— Faz o obséquio dizer se o 20.025 está ?
— N ã o sei, respondia a sentinella.
Esperava do lado de fóra algumas praças.
— O 20.025 ?
— N ã o conheço, não senhor.
C o r r i assim todas as estações de Bombeiros,
inclusive a marítima. Os valentes rapazes — é
singular como ha rapazes valentes neste paiz !
— respondiam-me invariavelmente.
— Ó 20.025? Não conheço.
Alguns s o r r i a m com ironia. Que se teria da-
do. Deus misericordioso ? A subscripção fechára,
a medalha estava prompta, o povo esperava con-
sagrar o heroe, a minha situação complicava-
se. Tomei uma resolução também heróica (era
a idéa do joven) e f u i decidir o dia da
cerimonia — honra ao mérito — com o com-
mandante. F u i até de sobrecasaca e chapéo
alto, apezar do horrível calor, para dar u m aspe-
cto grave á deliberação.
Recebeu-me immediatamentc u m official. Eu,
sentei-me,
CINEMATOGRAPHO 57

— Sr. official, devo dizer-lhe antes de tudo


que, como todo bom carioca, admiro esta
admirável instituição federal de que V. Ex. faz a

parte.
— Muito obrigado.
— V. Ex. deve lembrar-se, apezar de serem
a

tão constantes os incêndios no Rio que, ha tres


mezes, no incêndio de uma pensão, o Corpo se
portou heroicamente. De resto, os jornaes fa-
laram, e falaram principalmente de uma praça,
que a esta hora já deve estar promovida. Para
agradecer á praça em questão, um j o r n a l a b r i u
subscripção a que o povo concorreu em massa.
A medalha está prompta e eu vinha pedir-lhe
marcar -o dia da cerimonia.
— Que numero tem ella ?
— 20.025.
— Hein ? A h ! o senhor deve estar enganado.
Nunca existiu o 20.025. Ha aqui o 225. Mas este
estava na enfermaria no dia do incêndio. E'
engano.
Ergui-me, abri a boca, quiz falar, pedi u m
copo dágua, enguli-o de um trago, tratamudeei:
— E agora Y
Olhei em de redor. Estava suando frio. Sim.
O 20.025 era um symbolo ! E u não vira o acto !
Xinguem vira ! Cumprimentei como quem vae
M i i c i d a r - s e e fugi, f u g i r u a a fóra, encerrei-me
no meu quarto, tracei rapidamente esta noticia
tremenda: — Falleceu hontem repentinamente o
58 CINEMATOGRAPHO

heróico 20.025, a praça que salvou duas míseras


creanças no incêndio da Pensão X, ha tres me-
zes. Paz á sua alma e honra ao mérito.
E nunca mais, juro-o, nunca mais direi que
vi u m acto heróico de qualquer- numero, nem
abrirei* subscripções mesmo que seja eu o sal-
vado da fatal voragem...
Mascaras de t o d o anno .

L£ ALTAM tres dias para o Carnaval. Para o


JLL Carnaval e para o cortejo solemne das
frases conselheiraes, que nunca deixa de acom-
panhal-o. E' curioso mas verdadeiro. Inexora-
velmente o aparecimento da p r i m e i r a mascara
num armarinho combina com o resurgimento
no cérebro carioca de uma sentença moral.
Quando todas as casas vendem «confetti», mas-
caras e cornetins, é certo que em todos os lares
e em todos os jornaes revivem aquellas profun-
das máximas de desconsolante scepticismo: —
«No Carnaval é que a gente se desmascara».
«Tristezas não pagam dividas». «O Carnaval é
uma loucura». ((Quando a gente perde o juizo
perde a hypocrisia». «Este mundo é uma men-
tira com tres dias de verdade» e outras ainda
mais importantes e ainda mais fastidiosas.
60 CINEMATOGRAPHO

Nada mais fastidioso realmente do que en-


contrar, assim, de repente, n u m canto de rua,
um senhor grave que diz:
-Ah, meu amigo ! Já estou preparando as
malas para f u g i r a esse barulho infernal ! Não
posso agüentar! O Carnaval é uma loucura.
Quando se desafivella a mascara da alma... E'
da gente a g a r r a r o homem pelo gasnete e des-
afivellar-lhe a mascara da glotte n u m impeto, —
tanto mais quanto o homem que não gosta do
Carnaval e vae p a r t i r philosophicamente para
não m o r r e r de zabumbas, passa os tres dias
numa pândega maluca, dando á perna no thea-
tro São Pedro e mascarando o cérebro de álcool.
Como não é possivel, porém, estrangulal-o, a
máxima seguinte vem que' parece até puxada
a cordel:
— N ã o me diga isso. O mundo é uma grande
mascarada que só descansa no Carnaval.
Depois desta frase só o suicídio. Mas não
ha quem não a diga e quem não se veja obri-
gado, reconhecendo a sua imménsa sandice, a
dizel-a quando se aproxima" o Carnaval com
o seu cortejo de sentenças.
Eu, entretanto, d i v i r j o dessa opinião, tantas,
vezes secular. O Carnaval é uma crise de ale-
gria néurasthenica, é a loucura, é a porneia
organisada e cynica, é delicioso o u infame, é
o que quizerem os definidores. O mascara, po-
rém, o mascara propriamente, é u m caso em-
CINEMATOGRAPHO 61

p o l g a n t e de variação de p e r s o n a l i d a d e , u m caso
de doença. N a s g r a n d e s mascaradas, o d e l i r i o
é idêntico ás crises desvairantes d a E d a d e M é -
dia e da E d a d e q u e c h a m a m o s A n t i g a , p o r m a i s
que ella n o s pareça s e m p r e m a i s m o ç a . N o
mascara i s o l a d o h a t o d o u m t r a t a d o de patho-
psychologia. U m h o m e m que trabalha o anno
. inteiro p a r a se vestir de «princez» o u de «rei de
diabos», e q u e sahe p o r a h i convencido n a f a -
tiota m u l t i c o r , não pôde ser m u i t o certo, e u m
pobre rapaz, capaz de se f a n t a s i a r de «Pae João»
e de t e n t a r fazer e s p i r i t o não é u m p r o d i g i o de
sensatez. A l g u é m m e s m o já d e s c o b r i u q u e a
fantasia c o r r e s p o n d e q u a s i s e m p r e á p e q u e n a
racha q u e o t i p o t e m n a m i o l e i r a , o u a q u a l i -
dade p r e d o m i n a n t e d a s u a alma, c o n t a n d o o s
dominós p e l a . h y p o c r i s i a ; os princezes pelo efe-
m i n a m e n t o , os reis dos diabos pelo desvaira-
mento delirante, os palhaços pela gente s e m
personalidade o u de p e r s o n a l i d a d e complacente.
E esse alguém não d e i x a v a de m e d i z e r :
— N ã o h a u m r e i d o s diabos q u e não seja
u m capoeira v a l e n t i s s i m o , u m p r i n c e z s e m l a n -
guores f e m i n i n o s , e r e p a r a n o g r a n d e n u m e r o
de m u l h e r e s alegres u s a n d o as r o u p a s de pa-
lhaço q u e ellas d e n o m i n a m de clovis.
T u d o n o m u n d o se e x p l i c a . A m a s c a r a u m
. desvio transitório d a p e r s o n a l i d a d e , u m accesso
que passa e m tres dias de papelão, bisnagas e
côres v i o l e n t a s . A moléstia g e r a l vae-se, m a s
62 CINEMATOGRAPHO

ficam andando p o r ahi alguns casos que nunca


pozeram na face u m pedaço de seda ao menos.
São os mascaras de todo o anno, os autô-
matos humanos.
Os mascaras de todo o anno ! Os senhores
já de certo repararam nesses homens que mu-
dam de andar de semana em semana, apropriam
gestos e modos de pessoas de certa-notoriedade,
e são u m dia pelas costas exactamente Fulano
de T a l para no seguinte passarem a Cicrano ?
Os senhores com certeza já tiveram dó desses
transformistas espontâneos ?
E' positivamente uma nevrose a acumula-
ção de sósias propositaes. Nós temos tido varias
doenças moraes muito próximas de manicômio
e do «open-door», mas nenhuma como essa cu-
riosa moléstia de despersonalisação consciente,
a acommodação de u m duplo que nos apaga
ou nos exagera. Ha uma porção. Espio de ha
muito u m cavalheiro que é o Dr. Carlos Peixoto
tal qual, usa até uma gravata de velludo roxo;
conheço ü m cidadão que anda fantasiado de Da-
vid Campista, falando p o r periodos curtos a
brincar com o pince-nez; já c o r r i atraz de um
moço que fingia de James Darcy á meia noite,
saliindo de u m theatro e conheço vários Bilac,
vários Guimarães Passos, dois o u tres Raul e
pelo menos meia dúzia de Calixto.
U m homem que vos diz no Hospicio, grave
ou a s o r r i r : — e u sou o Corcovado ? o u eu sou
CINEMATOGRAPHO 63

o sapo ? é muito menos perigoso do que esses


mascaras de todo o anno soltos em plena praça.
Para que afinal arranja um homem a cara e o
passo do Dr. Affonso Penna, finge o andar do
Guimarães Passos, fala como o José Ricardo
e anda na rua vestido de Calixto ? Admiração ?
Mas só a admiração leva alguém a reproduzir
as atitudes phisicas de outrem ? Será a com-
prehensão imitativa da originalidade ? Hoje está
provado que nós só usamos gravata por uma
questão de imitação. Mas a imitação vae até á
escolha dos gestos, á entonação vocal, ás frases,
ao andar sem indicar da parte do imitador uma
verdadeira doença, um estado latente de carie
irremediável da personalidade? Uma atitude,
já dizia o admirável Oscar W i l d e , ' n ã o se orga-
niza num dia.
E' preciso acumular paradoxos e excentri-
cidades para criar a legenda, que é sempre como
o corpo odico da fantasia. A imitação criou essa
espécie de tipo das classes e que fez as classes,
as agremiações e as fardas: o soldado com
tacões altos, o poeta de chapelão, o pintor de ca-
belleira. O século xix que foi por excellencia
o nivelador da nulidade, deu o apetite de
Iodos se parecerem, depois de uma certa edade,
ao hurguez comedido. Os sujeitos fóra dessa
regra são excepções raras, ou casos de atavis-
mo ou casos de violenta personalidade, capazes*
de impôr uma atitude. Os que os imitam —
64 CINEMATOGRAPHO

emasculaclos da imaginação, frustes da fantasia,


que na mediocridade como no gênio, começa
pela fatiota.
Nas observações dos alienados sabe-se o de-
licado prazer que os pobres têm ao vêrem-se
tratados como se fossem os tipos em que se
talharam.
— Meu caro sapo, você é um sapo esperto.
O doido arredonda ó gesto, fica contente, r i .
E' sapo da cabeça aos pés.
Mas o doente da personalidade solto é um
fugitivo, um medroso, um agoniado. Ha no seu
cérebro a noção do plagio, da ladroeira do phi-
sico que elle imaginára. Nunca rouba todo o
individuo de pancada e nunca se fixa definitiva-
mente num único heróe. Ha sujeitos que come-
çam pela barba, pelo feitio da barba. Depois
tomam o andar. Em seguida apropriam o cha-
péo, o gesto de saudar. Quando conhecem o
imitado, em breve ha uma verdadeira absor-
pção: o riso é o mesmo, as palavras as mes-
mas, como num cinematographo as figuras exa-
geradas. E se alguém lhes diz: você imita fu-
lano, elles ficam realmente furiosos, ou balbu-
ciam tímidos.
— E' uma mentira ! E' uma calumnia !
Mas a novidade desvaira-os. Ha duas clas-
ses desses sósias illusionistas: os Íntimos e os
•desconhecidos!
Os íntimos são as victimas fracas da suges-
CINEMATOGRAPHO 65

tão d i r e c t a . P e n s a m d o m e s m o m o d o , a g e m
do m e s m o m o d o , t ê m a m e s m a r o u p a e a s
mesmas frases. V e s t i r e g u a l é p a r a elles o
s u p r e m o grão, a u n i f o r m i d a d e i n t e g r a l . H a
annos conheci u m sujeito que i m i t a v a o falle-
cido O r l a n d o Teixeira, e andava d e h o m b r o
derreado, tossindo, escarrando, falando rouco
c o m a r e s d e t i s i c o só p a r a s e p a r e c e r c o m o
m a l o g r a d o p o e t a . E n a s r o d a s literárias, d e q u e
é s e m p r e p r u d e n t e f u g i r , já v a r i a s vezes t e n h o
e n c o n t r a d o t r e s o u q u a t r o Piaues c o n v e r s a n d o
c o m c i n c o o u seis G r a ç a A r a n h a s d e p a n c a d a .
O s d e s c o n h e c i d o s , o s a n ô n i m o s são o s q u e
r o u b a m c o m medo. N ã o pedem emprestado,
s u b t r a e m , e vão p e l a s r u a s f i n g i n d o d o t i p o
q u e c o p i a m , satisfeitíssimos m a s p r o m p t o s a
d o b r a r a p r i m e i r a e s q u i n a se são d e s c o b e r t o s .
O u t r o dia,, e u v i p e l a m a n h ã d e c h a p é o d e
• castor cinza, sapato b r a n c o e r o u p a d e b r i m ,
o c a r i c a t u r i s t a C a l i x t o . E r a elle, n ã o h a v i a d u -
vida. Calixto i a devagar.
Chamei-o, m a s a o p r i m e i r o apello C a l i x t o
apressou o passo. A p r e s s e i o m e u t a m b é m , cha-
mei de novo e c o m grande pasmo v i Calixto
correr, enfiar n u m tilbury. Que tal, hein ? Que
desaforo ! D u a s horas depois encontro Calixto
de p r e t o c o m chapelão p r e t o .
— M e n i n o , você h o j e está extraordinário.
A i n d a h a p o u c o cie b r i m , n ã o q u e r e n d o c u m p r i -
mentar-me; a g o r a de preto...
— H a e n g a n o , h o m e m . S a i o a g o r a d e casa...
66 CINEMATOGRAPHO

Seria outro Calixto? Era. A' noite Calixto


passava pelo L y r i c o vestido de preto.
Bradei p o r elle. Calixto apressou o andar.
— Não, desta vez não me escapa !
E, decidido, deitei a correr. Na frente Calixto
corria em direção ao m o r r o de Santo Antônio.
Por fim, parou exausto. Avancei, rindo, mas
logo fugiu-me o riso dos lábios. Deante de
mim, com a roupa exaclamente egual á do ca-
ricaturista, o gravatão, as caveiras, tudo quanto
fôrma o aspecto de Calixto, um homem da mesma
altura, mais claro, porém, e com a fisionomia
mudada — olhava-me.
— Perdão ! Pensei que o senhor fosse Calixto
Cordeiro.
O homem descerrou o lábio.
— Para que o senhor anda a brincar? E''
uma coincidência apenas — a minha roupa
egual... N ã o quero imitar, não... Descanse...
Depois, que tem com isso ?
Curvei-me. Pedi desculpas. Quasi dou-lhe
um abraço. Porque, afinal, o homem commo-
via-me. Na eterna curiosidade da vida urbana
era bem u m caso, o caso típico desse desvio da
personalidade que faz de anno em anno o Car-
naval, desse desvio que faz p r o c u r a r a multi-
dão o seu ideal numa data fixa, mas que solta na
rua diariamente, grotescos, tímidos, dolorosos,
autômatos, os sósias conscientes da gente conheci-
d a — os mascaras sem mascara de todo o dia...
C h u v a de land-trotters

Q U E R O apresentar-lhe um homem original.


— Ainda haverá um homem nestas con-
dições depois do peccado ?
— Ha: é um sujeito que viaja a pé, apenas
por prazer, sem se annunciar nos jornaes e sem
tenções de vencer records excessivos. Chama-se
Justino Moreira. E' um bohemio, o typo sui-
generis do chemineau com dinheiro. Conhece o
Estado do Rio aldeia por aldeia, estrada por
estrada, e Minas e S. Paulo. Muito exquisito.
Hoje aqui; ámanhã talvez esteja em plena flo-
resta, com um saco ás costas...
Vinha na minha direção um sujeito sim-
ples, com um fato lambem simples e talvez mais
cançado do que elle. O meu amigo chamou-o,
fez uma apresentação commovente, chamando
o cavalheiro de tandtrotter, e o cavalheiro sorriu
sem a menor pretenção.
os CINEMATOGRAPHO

— C o m effeito, é espantoso d e i x a r o asfalto


das avenidas, p a r a i r p o r essas e s t r a d a s esbura-
cadas,' cheias de m a u s e n c o n t r o s e t a l v e z de b i -
chos ferozes.
— E u n ã o t e n h o m e d o d e b i c h o s . D e resto
lia m u i t a g e n t e q u e f a z o m e s m o . N ã o lhes falo
de a r t i s t a s dramáticos q u e a p p a r e c e m de aldeia
e m aldeia, u s a n d o c o m o n o m e de g u e r r a o nome
dos a c t o r e s p o p u l a r e s d o R i o . H a u m a grande
q u a n t i d a d e d e Brandões, M a c h a d o s , O l y m p i o s
N o g u e i r a s , Pepas, tão falsos c o m o a n o t a mais
falsa.
— E' a truquage d a a r t e t h e a t r a l .
— Já p o r a h i o s e n h o r percebe q u e as estra-
das d a roça e n t r a m n a civilisacão. H a o u t r o s
land-trotters, e n t r e t a n t o . O s n e g o c i a n t e s de bu-
g i g a n g a s e q u i n q u i l h a r i a s , p o r e x e m p l o . Esses
dão p r e f e r e n c i a p e l o s a r r a i a e s e l o g a r e j o s habi-
tados p o r m e n o s d e c e m pessoas. A n d a m a pé,
p o r e c o n o m i a e conveniência d o s negócios, e,
q u a s i sempre, u m , dous, tres j u n t o s .
— Mas n i n g u é m dirá !
— J u n t e a esses os v e n d e d o r e s de. jóias de
plaquei, os músicos a m b u l a n t e s , o h o m e m do
p h o n o g r a p h o de galeria e tubos de borracha, o
da l a n t e r n a mágica c o m as vistas multicôres e
i m m o v e i s , os r e l i g i o s o s q u e v e n d e m v e l a s bentas
p a r a se acender d u r a n t e as súplicas a o Se-
n h o r , os m e r c a d o r e s d e m e d a l h a s santas, os de
orações, os d e i m a g e n s l i t h o g r a p h a d a s , o s de
CINEMATOGRAPHO 69

enfeites de biscuit, os d a p h o t o g r a p h i a instantâ-


nea, os p r o p a g a n d i s t a s do E v a n g e l h o , os m e n d i -
gos ( q u a n d o a p o l i c i a p r o h i b e a profissão a q u i
no Rio)...
— Mas d e c i d i d a m e n t e as estradas s u j a s e fe-
rozes são u m p r o l o n g a m e n t o , q u a n t o ao m o r a l ,
das nossas r u a s !
— O h ! H a de t u d o , m e s m o - g a t u n o s . E u já
ouvi g r i t a r em Congonhas do Campo o Namoro
do caixeiro e da mulata e a Creada revoltosa !
A s relações desse pessoal c o m os v e n d e d o r e s de
aves são intensas. A v e n d a faz-se, ás vezes, p r i -
mitivamente, pela t r o c a : «Deixa vêr a i m a g e m
de S. José e t o m a u m a dúzia cie ovos». E os
ovos têm u m a g r a n d e extração, p o r q u e , mes-
mo velhos, vendem-se. A h ! é c u r i o s o v i r a gente
só, pelas estradas desertas, e de r e p e n t e en-
c o n t r a r n u n i c a v a l i c o q u e ordinário, s e g u i d o d o
camarada, u m cometa cie casa c o m m e r c i a l . ((Sal-
ve-o Deus ! B o m d i a !» Sabe tão b e m esta sim-
ples saudação ! E mesmo, q u a n d o é u m turco,
com o s e u cesto cheio de sabonetes b a r a t o s , o u
u m m e n d i g o o s c i l l a n t e e l e p r o s o estendendo a
m ã o na s o m b r a das arvores... F i q u e o c a v a l h e i r o
sabendo: não ha, p a r a a m a r os homens, c o m o
vêr p o u c o s homens.
— Mas deve ser h o r r i v e l d o r m i r ao relento...
— N a s noites cie l u a r até é b o n i t o . S ã o t a n -
tos, porém, os q u e t e n t a m essas v i a g e n s julga-
das irreaiisaveis no Rio ! O b r a s i l e i r o é, p e l a
6
70 CINEMATOGRAPHO

h e r e d i t a r i e d a d e , u m a v e n t u r o s o . D e p o i s de Pe-
dro A l v a r e s C a b r a l , não i m a g i n a q u a n t a gente
tem descoberto o B r a s i l . . .
O S r . J u s t i n o M o r e i r a e r a evidentemente
u m o r i g i n a l e u m h o m e m de r e l a t i v o espirito.
Convidei-o a t o m a r café. A c e i t o u simplesmente
e, s o r v e n d o a v a l o r i s a d a r u b i a c e a , c o n t i n u o u :
— E u conheço u m c r e o u l o d a B a h i a que teve
u m d i a a f a n t a s i a de v i r a pé do caes Dourado
ao l a r g o d a C a r i o c a . C o m p r o u e m S. Salvador
cerca de c e m m i l réis de a r t i g o s de biscuit e se-
g u i u para V i l l a N o v a da Rainha e desta para
Joazeiro. Depois ganhou a margem do São
F r a n c i s c o até P i r a p o r a . Levòu c i n c o e n t a e cinco
dias a p a s s a r pelas povoações q u e m a r g e i a m o
f a m o s o r i o , s e m t e r u m d i a de c h u v a ; passou
p o r todas as estações d a C e n t r a l c, ao cabo de
sete mezes, alcançou a s u a méta, t e n d o n a algi-
b e i r a o i t o contos de réis !
— O i t o contos ? (recuei a cadeira, l a r g u e i a
c h i c a r a ) . O u nós e n t r a m o s n o d o m i n i o das his-
t o r i a s árabes o u diverte-se c o m n o s c o !
— Os o i t o c o n t o s não e r a m p r o d u c t o da mer-
c a d o r i a ; e r a m o r e s u l t a d o d o j o g o d o caipira, o
t a l de — quem mais bota mais tira, e d o Sete da
Bahia, q u e o n e g r o e x p l o r a v a simultaneamente.
— Então... o j o g o ?
— Grassa v i o l e n t a m e n t e e n t r e as gentes dos
povoados. E u conheço m e s m o a l g u n s jogadores
que a d o p t a r a m o sistema das v i a g e n s : L u i z Ita-
CINEMATOGRAPHO 71

tiano, José M u l a t i n h o , P i c a p a u , Antônio Peque-


no, o P a r a i z o cia Saúde. O b a n d o de a v e n t u r e i -
ros não falta ás festas de C o n g o n h a s do Campo,
ás quaes afine gente de v i n t e léguas e m r e d o r ;
a da Penha, de S. P a u l o , q u e d u r a u m mez;
á de B o m Jesus do T r e m e m b é ; á de S. S e n h o r a
do C a r m o do R i o V e r d e : á de S. B e n t o do Sapu-
eahy e a m u i t a s o u t r a s .
A m i n h a c u r i o s i d a d e e r a t a l , que o landtrotter
quiz r e t i f i c a r o excesso de t a l impressão.
- Meu caro senhor, e u não s o u o único
nestas condições. N ã o sei até* se já l h e fiz s e n t i r
esta f a l i a de o r i g i n a l i d a d e . A l é m dos n e g o c i a n -
tes, dos j o g a d o r e s , dos e x p l o r a d o r e s , h a os can-
tores de m o d i n h a s , q u e f e c h a m os olhos, a f i n a m
o violão e c a n t a m no duro:

Eu agora vou-me casá


Com uma dúzia de muiê:
Tres Thereza, tres Maria,
Tres Lniza, tres Zabé.

Quantos?! Lembro-me que, uma vez, indo de


v i a g e m de Taparú p a r a S. P e d r o d'Aldeia, en-
c o n t r e i dous conhecedores do E s t a d o ; o G u i l h e r -
me e o Aurélio, a m b o s e x p l o r a d o r e s do p h o n o -
g r a p h o . D e r e p e n t e c a h i u u m a f o r t e p a n c a d a de
chuva, e, q u a n d o elles p r o c u r a v a m a b r i g o , v i -
ram-se n u m a c a m p i n a i n u n d a d a . E r a o caso de
dilúvio. T r e p á m o s os tres, m a i s o p h o n o g r a p h o ,
p a r a u m a a r v o r e , e passámos a s s i m cinco h o r a s
72 CINEMATOGRAPHO

em pleno lago... Não é preciso ter dinheiro para


viajar a pé. A hospitalidade salva da fome. Al-
guns mesmo fazem dinheiro sem o ter. U m tal
Jayme atravessou o norte e oeste de S. Paulo
remetendo a toda a gente envelopes côr de rosa
com qs seguintes dizeres: «Devoção. Tendo feito
promessa a N. S. da Apparecida, vem muito res-
peitosamente .pedir a V. S. uma esportula em
troco deste registo — O creado Jayme Silveira».
Dentro havia chròmosinhos ! A religião é uma
fonte de capitães magnifica. Com uns milhares
de orações vive-se regaladamente. Devo dizer,
entretanto, que nem todas as religiões. Os pro-
testantes, apesar de chamarem toda a gente de
irmãos, levam de vez em quando pedradas.
— O senhor é u m homem fabuloso !
— Ha outros. A r t h u r Pereira já fez cinco
tournèes. A maior f o i de trinta e tres dias, indo
de Nictheroy até F r i b u r g o e voltando ao ponto
de partida. O Jacobino, u m preto feio, já veiu
a pé, de S. Paulo, e voltou em trinta e sete dias.
O Guimarães tem a mania de v i r de Nictheroy
até aqui. Já veiu tres vezes. Ha land-trotters de
todos os temperamentos. Conheço um, mesmo,
o José dos Santos, com medo do sacy, das almas
do outro mundo e do diabo. Pois bem. José tem
medo; mas o instincto de liberdade é tal, que
não resiste a arriscar-se nas florestas, para dor-
m i r entregue ao diabo, ao sacy e ás almas.
O Sr. Justino Moreira levantou-se.
CINEMATOGRAPHO 73

— E, agora, tem algum novo passeio em


vista ?
— Não sei. Talvez vá á Bahia. Pretendo levar
uns oito mezes.
E rindo do nosso pasmo:
— Quantos, concluiu elle, através das flores-
tas luxuriantes sofrem uma infinidade de p r i -
vações, sujeitos sempre á chuva, á intempérie,
ao cáustico do sol... e sempre felizes ! Quantos,
emquanto. reverbera no azul o meio-dia, param
á beira dos rios, lavam a camisa única e comem,
com apetite e saúde, carne sêca e pirão de
farinha... quantos? E' uma vida nômade, uma
vida de surprezas ignoradas, mas livre e solta —
a dos pássaros, a dos animaes da mata e do
ar...
Ainda uma vez olhei o homem estranho.
Tinha as mãos e a tez queimadas da adusta
reverberação do sói. E, como elle se sumisse
erntim, voltei de vagar, convencido de que é
sempre preferível ser street-trotter, l i m i t a r os
passeios a pé nas avenidas cheias de confeita-
rias, de críticos theatraes e outros phenomenos.
Mesmo porque nem as próprias estradas per-
didas, nem os próprios povoados, nem as pró-
prias florestas selvagens estão livres, neste for-
midável começo de século, de jogadores, explo-
radores, enganadores, músicos ambulantes e
phonographosassusladores...
A f u t i l i d a d e d e informação
e os seis m i n i s t r o s

O publico quer sempre curiosidades. As mul-

tidões meridionaes são mais ou menos ner-


vosas. A curiosidade, o apetite de saber, de
estar informado, de ser conhecedor são os p r i -
meiros symptomas da agitação e da nevrose. E m
Roma, a antiga, sabia-se sempre muito bem da
vida alheia e principalmente da vida dos d i r i -
gentes.
Essa curiosidade, cuja psychologia está de
certo p o r fazer, presiste na alma da multidão
e talvez tenha agora u m período de recrudescen-
cia aguda. A curiosidade é uma anciã... Desde
que um homem commette uma acção fóra do nor-
mal ou é guindado a um cargo de responsabili-
dade, mata outro, atira contra a esposa, suici-
da-se ou se faz ministro, subitamente esse ho-
mem não se pertence mais, começa por perten-
76 CINEMATOGRAPHO

cer ao publico e acaba pertencendo exclusiva-


mente á fantasia dos jornaes p a r a p a r a r em-
íim, o u n u m apagado inquérito o u n u m indice
que, á p r i m e i r a vista, parece curto mas, na rea-
lidade, é vasto — o indice dos antigos ministros.
A m o n a r c h i a tinha as crises de gabinete; a
republica tem a fatalidade dos quatriennios. Um
bello dia u m j o r n a l , p o r pilhéria, diz que o fu-
turo presidente já pensa nos futuros ministros.
Ha palpites, h a apostas. Os homens práticos e
interesseiros passam affiictos p o r não saber a
quem m e l h o r b a j u l a r . Os antigos ministros, ner-
vosos, fazenl nomeações a torto e a direito. E'
de repente m i n i s t r o u m cavalheiro* com quem
ninguém conta. M i n i s t r o ! Quanta cousa u m mi-
nistro pôde fazer ! A p r e a m a r do interesse afo-
ga-o, as deliquescencias da lisonja lambusam-
lhe os pés, o h u m i l d e deputado de hontem, o
provinciano da véspera, vê abrir-se com os ar-
canos nunca desvendaveis de u m a secretaria
todas as bôcas n u m sorriso, todas as mãos num
gesto rapace-affectuoso, e a porta da r u a a um
repórter que indaga, também sorrindo e talvez
lambem rapace-affectuoso:
— Q u a l o plano de v. ex. ? a

Na sua confusão e no seu maravilhamento,


o novo d i r e c t o r dos destinos da pátria ainda não
se l e m b r o u de concertar u m plano, mas orga-
niza tres o u quatro últimos planos de pintura
com escapadas de perspectiva immensa, o u põe
CINEMATOGRAPHO 77

deante do i u t e r v i e w e r Ires ou quatro próximos


actos que entram pelos olhos como. as figuras
da frente nas fitas cinematographicas e no dia
seguinte lê nos jornaes cousas interessantes,
acreditando que o povo inteiro se encommoda e
pensa com as suas idéas.
Engano ! Desastroso engano ! A multidão,
o povo, quando qualquer tipo chega a uma po-
sição notável, o u gosta de saber qual a cana-
lhice que o fez galgar tão rapidamente o alto
posto bu, quando não ha canalhice, só se pre-
ocupa de como vive o cidadão em plena eviden-
cia. E' a curiosidade da vida alheia, a heredita-
riedade latina. Um jornalista pratico não per-
derá nunca o seu tempo em inventar uma inter-
view para esses mgratalhões de quatro annos.
Um jornalista pratico v a i ao peior i n i m i g o do
homem ex-desconhecido e pede-lhe um dossier
de calumnias, ou então mune-se de um book-
notes e em plena apotheose do funcionalismo
saudador, indaga: -
— Quantas horas dorme v. ex. ? Qual o seu
a

livro de cabeceira ? O seu prato preferido ? Pas-


seia a pé, de bicycleta, em fiacre o u d'auto-
movel ?
E com essas immensas futilidades tem a cer-
teza de que o publico todo, ávido e nervoso, se
preocupa muito mais com o modo de passear
do ministro que com o seu plano, aliás sempre
irivalizado, de salvação do paiz...
78 CINEMATOGRAPHO

Com esta opinião entranhada, outro dia no


Minislerio do Interior, eu descobri que conhecia
mais ou menos a vida dos actuaes ministros, os
seus temperamentos, o seu trato familiar, e que
esse ministério é a mais desencontrada serie das
periódicas arithmeticas da politica quanto a gos-
tos e a modos de vida.
O ministro do Interior, o sr. Tavares cie Ly-
ra, eü o conheci deputado, morando num quarto
que era também gabinete de trabalho, no Gran-
de Hotel, e tratando da questão eterna do sal
com o Estado do Ceará. A primeira vez que me
recebeu na sua casa foi em chinelas e tratando-
me por tu.
Ainda não era celebre mas já era intelligente,
bom, simples e familiar. A sua qualidade social
irreductivel é que continuará a ser o mesmo Ta-
vares de Lyra, calmo, reconhecendo a intelli-
gencia e o valor alheio, vestindo a mesma sobre-
casaca e a mesma gravata de laço dado, inca-
paz um instante de se deixar seduzir pela verti-
gem das grandezas. No dia*em que não fôr mais
ministro, Tavares de Lyra voltará naturalmente
ao seu quarto do Grande Hotel com uma gran-
de simplicidade. A sua vida é a de um funcio-
nário publico attento, a sua modéstia obriga-o
a evitar entradas sensacionaes nas grandes fes-
tas, indo sempre na mesma occasião do presi-
dente para ficar pequeno na luz do astro rei.
A sua bondade faz um prazer a estadia no seu
CINEMATOGRAPHO 79

gabinete, onde não se encontra s. ex. , o minis-


a

tro, mas o homem simplesmente amável.


Se eu lhe perguntasse qual o seu prato pre-
ferido, Tavares cie Lyra dir-me-ia, sem preten-
cão, um modesto prato do norte.
A pasta da Fazenda é o mais violento con-
traste da pasta cio Interior. O seu titular, David
Campista, tem de Brummel, tem de Rivarol e é
um dos tipos mais agudamente modernos que
eu conheço pela cultura, pela maneira de falar,
pelos gostos, pelas atitudes da vida. Pinta, com-
põe, anda de bicvcleta, fala, creio que mais de
metade das linguas vivas e parece entender pro-
fundamente de tudo. Pelo menos, após um se-
gundo de atenção ao interlocutor, desenvolve
vertiginosamente um principio em que a clareza
e a synthese se juntam para encantar. Que idéa
faz elle do mundo ? Que pensa elle de você com
quem acabou de conversar ou de mim a quem
acaba de dizer com a sua voz ácida de divino
egoísta: Viva ! não ha mais ninguém que o veja ?
Mysterio ! E' apenas possivel affirmar a sua intel-
ligencia sempre muito maior que os seus cargos
e notar dahi uma ambição afiada por todos os
instinctos de refinamento, de esthesiá, de aris-
tocracia. E essa ambição, a ambição de gloria,
cie brilho, de fulgor, que faz o orgulho da vida
actual, dá-lhe á vida uma trepidação assusta-
dora, uma actividade de pasmar, sempre prom-
pio, sempre sabedor de tudo, sempre muito
80 CINEMATOGRAPHO

cuidado na sua elegância, á hora e m todas as


dependências do seu ministério, á hora nos thea-
tros, á hora nas recepções, e mesmo á hora no
seu salão da Caixa de Conversão, onde con-
versa ás cinco com os amigos e de leve se
abandona ao exercicio de uma o u outra ironia
que corta, escalpella, assassina. Se eu inda-
gasse a esse homem que prato prefere, elle fi-
caria sério e diria:
— Conforme. V. comprehende que é grave.
E de certo não escolheria u m prato mi-
neiro... E' o mais parisiense dos brasileiros.
Mas se o sr. D a v i d Campista é assim o
oposto do sr. Tavares de L y r a , o sr. Miguel
Calmon é integralmente diverso de ambos. Na
edade em que os cariocas fazem versos babo-
sos, o sr. Calmon viajava pela índia, estudan-
do a irrigação de Calcuttá e de Bombaim; na
edade em que todos nós aspiramos a u m logar
no povoamento do solo, caçando e apanhando
um emprego nessa cobiçada repartição, elle é
solteiro e é ministro. Austero, sêco, com a ca-
beça quasi branca, deita-se em geral ás 10 horas
da noite, acorda ás 4 o u 5, trabalha até ás 11,
sác para o serviço exterior do -ministério, en-
cerra-se na secretaria até ás 8, dando u m tra-
balho b r u t o aos funcionários, janta depois de
tudo isso e dorme logo em seguida. O sr. Lauro
Müller fez a Avenida Central. Elle quer cortar
o Brasil de norte a sul de estradas de ferro e
CINEMATOGRAPHO 81

povoar, encher de gente, a b a r r o t a r de braços,


os seus nove milhões de k i l o m e t r o s quadrados.
E', evidentemente, m u i t o mais. A vontade tor-
na-o despegado do mundo, indiferente ao amor,
ao prazer, ás blandicias da vida. Aos t r i n t a
annos é feito de* aço, todo de aço, com u m cé-
rebro que t e m a força de Querer, Querer so-
mente e de Dominar. Deve t e r u m o r g u l h o for-
midável, uma noção de si mesmo elevadíssima,
e essa qualidade diamantina fal-o o eterno victo-
noso na p o l i t i c a g e m dos velhos chefes cavilosos
e na sã politíca de emprehendimento e capaci-
dade.
Se eu perguntasse a C a l m o n qual o seu
prato preferido, elle de certo não o saberia d i -
zer. E' u m h o m e m sem os apetites de toda a
gente: quer o m u n d o quando os outros querem
jantar.
O ministro da Guerra, entretanto, o mare-
chal Hermes, dir-me-ia logo, acrescentando:
— A i menino, olha que é gostoso.
Porque o marechal reúne as qualidades m á -
ximas do soldado b r a s i l e i r o : a coragem, a fi-
nura da campanha e a franqueza rude. N a sua
casa entra toda a gente que l h e quer falar.
Nada de orgulhos, nada de vaidades. E l l e é o
Hermes, marechal, ministro, m a s u m h o m e m
como outro qualquer. Disciplina, respeito, s i m
senhor. Mas nada cte effeito, de scenario.
— O marechal Hermes está ?
— Está, diz o ordenança. Pôde entrar.
82 CINEMATOGRAPHO

Entra-se pelo jardim, bate-se á porta da


sala de espera, que p o r signal está aberta. A'j
vezes é o próprio marechal que aparece de
calça de b r i m branco e casaco de alpaca, fu-
mando u m charuto.
— Entre. Acabei de jantar, "é servido? Va-
mos lá. Que deseja ?
Fica o sujeito muito lisonjeado, pensando
que é u m favor pessoal de s. ex. o ministro.
a

Não é. E' apenas o sentimento de hospitalidade


patriarchal que torna delicioso e incomparavel
o l a r brasileiro. N o ministério, Hermes é sêco
c responde de pé:—-a disciplina.
Até hoje foi o único h o m e m com que eu não
íiz uma entrevista sensacional, mesmo porque
para uma entrevista sensacional, o processo é
sempre fazel-a. E a razão é simples. Quando
fui indagar dos seus planos, o marechal disse-
me simples, carinhoso e franco:
- E u tenho u m plano de mobilisação, de
defeza de fronteiras, de preparo de soldados.
Se conversar com você digo tudo. Mas acho
que qualquer cousa publicada faria mal ao
Brasil.
— Pois pôde ter a certeza que não escre-
verei uma linha.
E p e r d i de boa vontade o meu dia — sem
ter de resto a idéa de que o marechal viesse a
a me ser utii p o r qualquer motivo.
E' o que não se pôde pensar acedendo a uma
CINEMATOGRAPHO 83

opinião do almirante Alexandrino de Alencar.


Como acontecia com o sr. Seabra, desde que
se trata com o t i t u l a r da Marinha, tem-se a im-
pressão de que se lhe vai ficar a dever u m fa-
vor. Qual ? Ninguém sabe. Talvez não se saiba
nunca e só o ministro tenha realmente u m re-
sultado pratico. Mas é definitivo. O almirante
Alexandrino de Alencar tem a elegância da ma-
rinha, rodeia-se de moços que vestem bem, tem
gestos bellos, e recebe no seu gabinete como se
estivesse n u m salão em noite de baile. Todo
elle sorri, todo elle é amabilidade, gentileza, e
todo elle nos dá uma grande intimidade — que
realmente não existe.
A lisonja e o elogio parecem ser para a sua
alma o perfume inebriante, o seu gesto con-
sente, acolhe, anima, as suas frases são largas.
Entretanto, toda essa aparência encobre uma
vontade de aço, que sacudiu e faz c u m p r i r u m
programma ruidoso, e se fortifica numa vida
solitária — porque o almirante Alexandrino gos-
ta de passear só, de chapéo mole e bengala,
como qualquer mortal.
Se eu lhe indagasse de que prato gosta, ha-
via de responder:
— De todos, meu bem.
Quando realmente só gosta de alguns e só
desses se alimenta.
Finalmente, ha u m que é immenso, é gran-
de, é bom, e que a fantasia da informação
84 CINEMATOGRAPHO

pócle pintar com todos os exageros sem con-


seguir pintal-o um homem tremendo, que já
deu ao Brasil pedaços do tamanho da França e
que o faz, com calma e altivez, no mundo.
Esse homem é o barão do R i o Branco. Não
se sabe quando dorme, quando trabalha, a que
horas come. E' irregular. Trabalha quarenta
e oito horas a fio, o u passa a noite tomando
sorvete de fruta e conversando, almoça ás dez
da manhã ou ás tres da tarde, mas é grande
Senhor, aquelle a quem os Deuses bemdita-
mente deram os destinos do Brasil e os desti-
nos de uma porção de meninos pretendentes á
diplomacia. O seu palácio é a morada do Luxo;
o seu quarto tem u m simples cabide, a mesa
atulhada de papeis e pingos de espérmacete por
todos os, lados — porque na noite alta, o esta-
dista admirável diverte a sua insomnia ou a
sua preocupação caçando moscas com a vela.
Oh ! essa intimidade, desvendada pelos seus
amigos, e que o torna bem superior, bem o
irreal homem capaz de esculpir no momento a
estatua futura do maior dos brasileiros d'agora !
Essa intimidade e todas as outras em que se
misturam o orgulho do mundo, a posse de tudo,
o bohemio antigo e o espirito clarividente ! Es-
sas e todas as seguintes que o completam e
fazem de cada acto seu, simples e calmo, mais
para o Brasil do que todos nós a gritar.
Mas a esse — oh ? a esse — francamente eu
CINEMATOGRAPHO 85

j u r o q u e se l h e p e r g u n t a s s e m qual o prato fa-


vorito, não a d i v i n h a r i a , emquanto durasse o
seu silencio, o q u e m e d i r i a elle...
T a n t o a multidão c u r i o s a , c o m o e u n o v i d a -
deiro. verificaríamos q u e t a n t o m a i o r e s o s ho-
mens e de v i d a m a i s p u b l i c a e de m a i o r s t o c k
de frases e gestos n o d o m i n i o p o p u l a r — me-
nos a nós p e r t e n c e m n o s t e m p o s m o d e r n o s . E
assim, certos, n e m a multidão se i n t e r e s s a r i a
pela v i d a i n t i m a dos notáveis, q u e l h e é sem-
pre i m p o s t a , n e m os j o r n a e s i n d a g a r i a m essas
futilidades. esses m o l d e s d o s h o m e n s q u e são
sempre a causa d o s g r a n d e s factos, essas f e i -
ções de c o n t a c t o c o m os seis h o m e n s q u e con-
duzem o B r a s i l agora no infinito caminho do
futuro.
Uas o m u n d o q u e r c u r i o s i d a d e s s e m p r e . Os
m i n i s t r o s pertencem-lhe. E a c i d a d e d i s c u t i r i a
uni mez. e a d e m o c r a c i a r e j u b d a r i a se o m i -
n i s t r o do E x t e r i o r declarasse s o l e m n e m e n t e o
seu gosto pela cozinha abundante do r e s t a u -
rante d o M i n h o . —
A f u t i l i d a d e d a informação...
Um problema

e o-Mo tosse hontem visitar o meu

c o n s e l h e i r o Azevedo, (Guimarães Azevedo,


amigo

antigo cônsul da D i n a m a r c a ) t i v e o d e s p r a z e r
de encontral-o f u r i o s o . A s s i m que, c o m p r u -
dência e c o n f o r t o , e u me afundei num vasto
d i v a n da sua sala de f u m a r , Azevedo, antigo
cônsul da D i n a m a r c a , d e s a b a f o u :
- Oh ! os filhos ! os filhos ! Meu amigo,
mate-se, mas não tenha filhos. E' preferível
morrer !
Deus misericordioso ! Seria possível que
Azevedo, c o n s e l h e i r o , r i c o , feliz, a n t i g o cônsul,
com dois filhos desempenados e cinco rapari-
gas tão l i n d a s q u e e r a p a r a j u l g a r cinco as g r a -
ças r e d i v i v a s , seria p o s s i v e l m e s m o q u e a s s i m
fosse a m a r g u r a d o pela próle ?
- N ã o é pela próle, é só pelos m e n i n o s !
b e r r o u elle, A s m e n i n a s são u n s anjos, os r a -
88 CINEMATOGRAPHO

pazes é que só nos clarão desgostos. Mate-se,


mas não tenha fdhos !
E entre exclamações de cólera, naquelle
gabinete feito para o sonho embrutecido dos
fumantes, Guimarães Azevedo, conselheiro, pae
de sete fdhos, meu amigo e antigo cônsul da
Dinamarca, contou-me a causa da sua fúria.
Essa causa encerra u m dos mais graves pro-
blemas do Brasil, porque resume, num exem-
plo único e perfeito, u m m a l geral.
Guimarães Azevedo, riquíssimo, teve desde
muito cedo a mania do estrangeiro. 0 Rio de
Janeiro f o i sempre para elle u m logar de so-
frimento, u m a espécie* de prisão. Uma aldêa
horrível da Bretanha c o m camponezes mais
selvagens que os nossos selvagens, tinha para
elle mais encantos do que Petropolis, sem di-
plomatas. Londres era o typo da cidade i d e a l .
Paris fazia-o revirar os olhos e lamber os bei-
ços só com a sua lembrança, e, a propósito de
qualquer coisa, sempre da sua cachola saíam
similes estrangeiros:
- Ora vejam, este pão assim redondo ! Em
Bruxellas, o pão era mais oval.
E quando gostava de alguém, logo comu-
nicava ao universo: — N ã o sabem vocês-por-
que sympathiso com F u l a n o ? Porque tem um
ar estrangeiro, u m ar lavado...
U m dia, Azevedo encontrou e m D. Carlota
Pereira, (Yayá para os íntimos), esse a r éstran-
CINEMATOGRAPHO 89

geiro, esse ar lavado por uma porção de cen-


tenas de contos do velho commendador Pereira.
\i casou. Desde então dividiu o anno: seis me-
zes aqui, na prisão, no forno,, tratando dos ne-
gócios, seis mezes lá, no paraiso. Os filhos fo-
ram nascendo nesse perpetuo passeio. Abigail,
a mais velha, nascera na Escossia, na região
dos lagos, e era^em gasa a miss, apesar de ser
uma cabocla de olhar ardente e negra crina
seivagem; Antonietta nascera em Sorrento, após
uma crise sentimental de D. Yayá pela Graziel-
la, de Lamartine, e havia uma até que nascera
no pólo, numa croiserie feita por Azevedo e
um negociante dinamarquez pelas costas da
Scandinavia, até ao archipelago de Loffoden.
Na intimidade, a familia Azevedo achava
maravilhoso jogar com cinco linguas. Se o pae
perguntava em allemão, D. Yayá respondia em
italiano, e as meninas exclamavam em francez.
Isso era para elles muito chie e ainda hoje quem
freqüenta a sua linda casa deve pelo menos com-
prehender meia dúzia de idiomas. Mas o facto
é ([iie os desprendia da sua própria terra, do
seu paiz, sem lhes dar outro. Azevedo já era
um homem sem pátria, mas restava-lhe a fami-
lia. Que fez elle com o seu estrangeirismo ?
Matou-a. As meninas educadas em casa ainda
guardam por elle um certo amor, no curto des-
canso que lhes concede a flirtation; os meninos,
esses, que deviam ser os seus amigos, logo
90 CINEMATOGRAPHO

que poderam soletrar o alphabeto, Azevedo jo-


gou-os num internato suisso.
— Vão vêr que educação elles terão ! bra-
dava em varias linguas. E de seis em seis me-
zes ía vêl-os a Lucerna. Um dia encontrou Octa-.
vio, o mais velho, com a cabeça quebrada. Fôra
o professor que lh'a r a c h á r a . Ficou furioso e re-
moveu os meninos para um collegio de padres
da Áustria, mas ahi a colônia de meninos ricos
brasileiros que se desnacionalizavam era tal
que, aterrorizado, Azevedo atirou os meninos
definitivamente na Inglaterra.
Os meninos ficaram. A pouco e pouco foram
criando uma outra alma e vendo no pae tudo
menos um pae. A família começou a ser para
elles um grupo de senhoras desconhecidas em
varias pensões de tourismo, e eu creio bem
que pelo entrainement habitual, nos minutos em
que se viam, havia quasi o flirt familiar, de tal
fôrma eram artificiaes a s momices e as fra-
ses estrangeiras das conversas.
Um bello dia Azevedo lembrou-se de que
os filhos deviam trabalhai'. Trabalhar onde?
No Rio, neste forno infernal.
Meninos, sabendo linguas, lendo feito exer-
cidos de composição grega em Oxford, com
uma solida educação physica, estavam aqui,
estavam com bellos logares. Octavio, o mais
velho, apesar da pratica do %oot-ball e do remo
que sucessivamente na Suissa e na Inglaterra
CINEMATOGRAPHO 91

lhe deformara o corpo, tinha uma alma femi-


nina e passiva. Chegou, empregou-se.
— E u não gosto disso, não, papai.
E Azevedo cruel, porque nada como a se-
paração para fazer pensar aos paes que a pa-
ternidade confere-direitos de posse e de escra-
vidão:
— Nada de reclamações. Dei-lhes educação,
gastei dinheiro. Trabalhem.
Jorge, porém, o mais moço, além de u m
gênio voluntarioso, e másculo, herdára as ma-
nias do pae. O snobismo de Azevedo transfor-
mára-se em verdadeiro h o r r o r pelo Brasil, na
sua alma joven. Dois dias depois elle disse:
— Meu pae, não posso ficar aqui. Esta gente •
causa-me nojo. Não posso ficar.
O horror, longe de decrescer, augmentou.
Quando Azevedo preparava as malas para i r
passar o nosso verão em Londres, aos soluços,
o pequeno, que tem apenas quinze annos, j u r o u
que não ficava, que não podia ficar. F o i em
vão. Azevedo deixou-os morando no seu pala-
cete das Laranjeiras, ambos empregados. E, ao
voltar, ha quatro ou cinco dias, tivera a fatal
noticia pelo Octavio. Jorge fugira. Tinham-no
visto a conversar com u m despenseiro da Royal
Mail, no largo do Paço, uma noite, e pela ma-
nhã Jorge não aparecera. Assustado, Octavio
julgára a principio que o irmão seguira como
creado de bordo para a Inglaterra, fôra á agen-
92 CINEMATOGRAPHO

cia da companhia, inquirira, daqui partiram


perguntas para I o d o s os pontos, cujo serviço é
feito pela companhia c, quando Azevedo che-
gára, Octavio, tremendo, entregou-lhe uma
carta datada de Punia Arenas, na Patagônia.
Essa carta era escripta em hespanhol e dizia
assim: ((Encontrámos seu irmão, afinal. O po-
bre rapaz esteve a principio na T e r r a do Fogo,
vem depois para aqui, e passou fome e frio.
Exhausto, com o nome trocado, f o i ao cônsul
inglez, que tem u m estabelecimento commer-
cial, e disse ser inglez, filho de inglez com uma
brasileira. Ghama-se agora Georges Bender e
é caixeiro do cônsul. Quando o fomos procurar
pediu-nos quasi de joelhos que não lhe desven-
dássemos o segredo. Prefere a miséria aqui ou
no deserto, á opulencia ahi. Saiba v. s. que seu
a

irrríão não gosta do Brazil».


Quando acabei de lèr a carta, no fumoir do
meu amigo Azevedo, antigo cônsul da Dinamar-
ca, eu tinha os olhos rasos de agua.
- C a n a l h a ! Canalha! bradava o Azevedo
como se tivesse sido roubado. Que achas disso?
Vou-lhe mandar a roupa que aqui deixou ! Não
quero o u v i r falar mais nesse malandro !
E. emquanto Azevedo vociferava, eu recor-
dava outros casos dolorosos, outras conclusões
fataes da educação de rapazes ricos do meu co-
nhecimento, lembrava meninos fortes, adolescen-
tes, vigorosos, mais estrangeiros na sua terra
CINEMATOGRAPHO 93

(jLIO os próprios estrangeiros, mais deslocados e


frios no próprio lar que numa rua de Londres
— produetos glaciaes do 'snobismo ou da tolice
dos paes, que acabam odiando a própria pátria
e renegando a família; eu resumia com amar-
gura todos os exemplos desse grande problema
da desnacionalização da classe elevada do Bra-
sil, emquanto o Brasil é desnacionalizado pelas
grandes correntas immigratorias...
- E diz V . que c preferível morrer a ter
filhos? Que dirão então elles, homem cie Deus,
dos paes — que os puzeram no mundo para
não lhes dar nem família nem pátria ? Que di-
rão elles dos paes ?
Azevedo olhou para mim sem comprehen-
der, tomou um calix de porho-wine, pigarreou,
atirou-se no divan:
-Estou a vêr que viraste sentimental. Não
lia problema nenhum. Um bandidozinho aban-
dona a sua terra, a casa de seu pae, e julgas
nossa a culpa ? Parece até pilhéria. Vaes vêr
entretanto como sou generoso. Mando-lhe a
roupa e cem libras para endireitar a vida.
Patife !
E fomos dalli vêr M . Yayá, a antiga con-
m e

suleza, que coitada ! apesar do snobismo de uma


vida inteira, e apesar de afastada ha muito do
filho, tinha os olhos vermelhos de chorar...
[Mova vocação

E ADA mais difficil que descobrir a própria

vocação. Muitos cavalheiros, aliás traba-


lhadores, passam a vida acidentada á procura,
sem resultado, de um officio definitivo que se
coadune com o próprio temperamento, e ha
individuos que depois de uma peregrinação pu-
blica por todas as profissões imagináveis mor-
rem sem ter persistido em nenhuma. A d m i r o
e respeito esses cidadãos em perpetua anciã
de sensações novas, e mais do que todos venero
c estimo o cidadão F u r t u n a t o Gonzaga, homem
de quarenta e dois annos, bom humor, philo-
sophia complacente, que com o bom humor, os
quarenta e dois e a philosophia, já passou p o r
umas vinte profissões e ainda hesitava na vo-
cação definitiva.
Fortunato Gonzaga f o i com effeito solici-
tador, estudante, actor, artista de café cantante,
96 CINEMATOGRAPHO

organisador de reclamos, ensaiador theatral,


jornalista, escriptor, conductor de bond, eleitor
dos partidos dominantes, apontador de obras,
moço bonito, empreiteiro, clown, engenheiro,
carnavalesco, o diabo. Ultimamente, depois de
ser pintor, oscillava entre a propaganda na Eu-
ropa e um logar nos trabalhos da Exposição.
Hontem, tive o prazer de encontrar o in-
teressante homem.
— Então, já foi nomeado ?
— Para que ?
— Para a Exposição, para a Europa...
— Qual ! não penso mais nisto. A minha vo-
cação é outra. A minha vocação é a vocação
nacional. O amigo r i , porque não quer com-
prenhender a minha philosophia e os meus es-
tudos. E u sou u m psychologo social.
— Outra vocação.
— P o r dilettantismo apenas, mas vocação
não rende muito.
— Dahi?
— «Dahi guiar-me pelas correntes sociaes
da nação. E' bonita a frase, hein ? Ora, a
nossa nação (o cavalheiro deve saber) tem os-
cillado, como eu, neste negocio de vocação.
Qual é a vocação nacional? Ninguém sabia,
ninguém sabe até agora, senão eu, que estu-
do e aprofundo estas questões.
A primeira vocação, que o B r a s i l imaginou
ter, f o i a agrícola. V e m dessa illusão a frase
CINEMATOGRAPHO 97

amargamente irônica: o Brasil é u m paiz essen-


cialmente agricola. T a m b é m logo depois dessa
tamanha mentira, creou-se u m qualificativo
para a agricultura: a abandonada. De modo
que o paiz começou logo por abandonar a vo-
cação, e até hoje é o caso único de indimissi-
bilidade p o r abandono de emprego.
Depois o paiz teve a irreprimível vocação
republicana, para cair na vocação patriótica,
uma vocação muito interessante de que eu tam-
bém fiz parte: A America é dos americanos, o
Brasil é dos brasileiros, e t c , rolos, meetings,
jacobinismo. Mas essas eram propriamente vo-
cações transitórias, passageiras. As duas gran-
des correntes do paiz eram o bacharelismo c
a poesia. Toda a gente neste paiz ou é doutor
ou é poeta, e ás vezes os doutores são lambem
poetas e os poetas são chamados de doutores.
Neste periodo da minha vida, passei atro-
zes crises de consciência. .0 cavalheiro não ima-
gina como custa seguir a vocação de seu
paiz. E u consultava veneraveis paes de fa-
milia:
— Doutor, que vae fazer de seus filhos ?
— Homem, o José quer ser doutor em en-
.genhana; o Dudú mais o Maneco doutores em
direito, e o Tônico vou fazel-o medico. E' uma
vocação.
— Que edade tem o Tônico ?
— Quatorze mezes, mas bebe os remédios
98 CINEMATOGRAPHO

sem t o r c e r o n a r i z e a sua m a n i a é t o m a r o
p u l s o á ama.
A s próprias m e n i n a s e n t r a v a m nessa propen-
são n a c i o n a l . U m a vez q u e e u t e n t a v a a voca-
ção de contínuo do G y m n a s i o , c o n t e i fazendo
exames de preparatórios, sessenta m e n i n a s que
se d e s t i n a v a m ao d o u t o r a m e n t o , abandonando
a c o s t u r a pelos autos e os d i r e i t o s do l a r pela
arte de f o r m u l a r e pela álgebra.
U m compensação, a c o r r e n t e poética era tão
intensa q u a n t o a d o u t o r a i . D u r a n t e dois mezes
em que me exercitava c o m o r/arçon de café,.
no B r i t o , c o n t e i de p a s s a g e m pelas mesas re-
c i t a n d o poesias, p e l o m e n o s dez m i l poetas, que
o s c i l l a v a m entre os dez e os q u a r e n t a annos de
edade.
Que f a z e r ? S e r poeta o u d o u t o r ? N ã o seria
eu o p r i m e i r o garçon q u e resolvesse alçar-se a
esses títulos de c o l l e g a de Virgílio, de M i g u e l
do Couto, do F r o n t i n o u do c o n s e l h e i r o Ruy
Barbosa. Mas e u t e n h o escrúpulos e a con-
fusão e r a g r a n d e : Q u a n d o eu c h a m a v a u m ca-
v a l h e i r o de poeta, elle d i z i a :
- Poeta, eu ? E u s o u d o u t o r ! Poesia é d i -
• versão...
E se atacava o u t r o :
— O s e n h o r é u m b a c h a r e l de m ã o cheia !
- Qual ! respondia o homem, bacharel é
a f a t a l i d a d e . D e vocação s o u poeta.
O m e u caso é idêntico ao do G u e r r a J u n -
CINEMATOGRAPHO 99

queiro e ao de Mario de Alencar. De modo


que eu, fazendo o gyro das pequenas vocações,
não sabia o que devia ser. Poeta ou doutor?
Era esta a questão...»
Ahi eu interrompi o polyprofissional For-
tunato Gonzaga, homem de minha admiração.
— Mas Gonzaga, realmente, pela estatísti-
ca, a verdade é patente. O paiz é essencial-
m e n t e bacharel e poeta. Como o Brasil é gran-

de, a vocação é dupla. Só vejo um meio: ado-


ptares nos cartões a poesia e o doutoramento.
— Oual ! bradou elle. Depois disso o paiz
atirou-se todo, definitivamente, a uma nova vo-
cação: a de fazer conferências. Toda a gente
fazia conferências de Botafogo á Saúde, do
Amazonas ao Prata. Não havia cavalheiro ou
dama que não fosse conferente, conferencista
ou conferencionista. Bom ! estamos no paiz das
conferências ! dizia eu, e logo lancei em tiras
largas o titulo da primeira oração, destinada
a um grande êxito: A minha vida privada. O
publico havia de mteressar-se vivamente com
a minha vida, e além do mais privada. .
Mas, quando eu já anunciára a palpitante
conferência, com o meu nome, o meu pseudo-
nymo e a promessa do batalhão de infanteria
de Marinha, para tocar no saguão, as confe-
rências começaram a não se realisar, por falta
de concorrência, e um moço elegante assegu-
rou-me;
100 CINEMATOGRAPHO

— C h e r Fortunato, conferências não são


mais up to date nem smart. Moda, o c/i/'c, sweet-
hearlh, é o corso, é vestir bem, é dar five-o-clo-
eks. Você não é um homem derniers ressorts,
é .pouco petrolette...
Não comprehendi muito bem o esperanto no
p r i m e i r o momento, mas depois os jornaes eram
de ponta a ponta escriptos nesta linguagem, e
eu verifiquei por uma chroriica fulminante do
sr. Antônio Salles, que tudo isso se chamava
sntobismo.
Snobismo"! ai de m i m ! E r a outra vocação
nacional ! Toda a gente era snob ! Que paiz!
Decididamente, com enthusiasmo, inaugurei
uma Virgínia smoking conversa nove no sotão
que tem a honra de ser habitado por mim na
rua Fresca; e estava resolvido a ser por voca-
ção snob.
Mas, chegando a este ponto, entrou-me pelos
olhos, a única,' a verdadeira vocação- nacio-
nal!... E' dar um passeio p o r este tempo de
férias e é encontrar um coltegio em festa. Cada
collegio tem u m fardamento. Os meninos mar-
cham de carabina ao hombro; ha coronéis de
seis annos com o peito mais coberto de meda-
lhas que as photographias do fallecido Hervai.
Onde o cavalheiro vá, encontra uma farda, uma
farelinha, uma fardeta. Ha uma infinidade de bor-
dados no ar. Os próprios institutos de ensino civil
passam fardados pela r u a do Ouvidor, com um
CINEMATOGRAPHO 101

garbo de meter inveja ás legiões do Kaiser. T u d o


indicava neste paiz a vocação m i l i t a r até nas
creanças, que logo depois de andar querem uma
espada e uma pistola. Alas isso ainda não ti-
nha sido • dito em letra impressa quando q
sr. Victorino Monteiro e o general Pires Fer-
reira, muito em breve marechal, (resolveram
afirmar que este paiz, apesar de erroneamente
agricola, necessita de soldados, de muitos sol-
dados. E esta aífirmação foi a luz, foi a revela-
ção para a minha alma atribulada. Achar, caro
amigo, a única, a primeira, a excellente voca-
ção, a vocação nacional, depois de quarenta e
dois annos de lueta e de estudos.
— Vae ser então soldado, Gonzaga?
Fortunato Gonzaga impertigou-se digno:
-Que p e r g u n t a ! H a muito que eu o era
por dilettantismo, como toda a Nação, cava-
lheiro. Eu sou da guarda nacional...

s
O barracão das r i n h a s

C_S <T.iu A cie c e m m e t r o s d a estação d o S a m -


A ? J L p a i o íica o barracão. Q u a n d o saltámos ás
3 d a t a r d e d e u m t r e m d e subúrbio a t u l h a d o
de gente, i a m o s c o m o s e m i - a s s u s t a d o p r a z e r
da sensação p o r g o s a r . E r a a l l i , n a q u e l l c b a r -
racão, q u e se c u l t i v a v a o sport f e r o z d a s b r i g a s
de g a l l o . E u já e s t a v a u m p o u c o f a t i g a d o d o s
matches d e foot-hall. cios law-tennis familiares,
da a r d e n t e p e l o t a basca, d e t o d a essa d i v e r s i -
dade d e j o g o s a q u e se e n t r e g a o cidadão c i v i -
l i z a d o p a r a m o s t r a r q u e v i v e e se d i v e r t e . A b r i g a
de g a l l o s s e r i a u m a s p e c t o n o v o , t a n t o m a i s
q u a n t o , c o m o n o s t e m p o s d o s Césares, o p r a z e r
do chefe d e v e s e r o p r a z e r a c l a m a d o d o povo...
L o g o á e n t r a d a , i m p r e s s i o n o u - m e a multidão.
E r a m todos homens, h o m e n s enclomingados, de
c a r a t o s t a d a d e sói, h o m e n s e m m a n g a s d e c a m i -
sa, a p e s a r d a t e m p e r a t u r a q u a s i o u t o m n a l , r a p a -
104 CINEMATOGRAPHO

zolas com essas caras de vicio que parecem


ter tido u m a prévia educação de actos illicitos
extra terrena, velhos cégos de enthusiasmo, dis-
cutindo, bradando, berrando, e cavalheiros
graves, torcendo o bigode, pallidos. Como que
fazendo u m corredor, dois renques de gaiolas,
com acommodaçôes para quarenta e oito gallos,
todas numeradas. Através das télas de arame
eu presentia a agitada nervosidade dos animaes,
talvez menor que a nevrose daquella estranha
gente. U m cheiro exquisito, m i x t o de suor, de
gallinheiro e de folhas silvestres,, empapava a
atmosphera doirada da tarde. A o centro da
grande praça, cujo capim parecera arrancado
na véspera, quatro circos de paredes acolchoa-
das,. sujas- de poeira, de luz e de manchas de
sangue. Entre o segundo e o terceiro circo, com
uma face de j u l g a d o r de baixo relevo egypcio,
um sujeito imponente escreve n u m livro gran-
de, e t e m deante do l i v r o uma balança memo-
rável e uma r u m a de pesos.
Atrevo-me a p e r g u n t a r a u m cidadão:
— Quem é aquelle ?
— E' o Porto Carreiro, o director e o juiz.
— E a balança ?
O cidadão olha para mim, sorri cheio de
piedade.
— A apostar que o sr. não conhece a briga
de gallos ?
— Exactamenle, não conheço.
CINEMATOGRAPHO 105

— A balança é p a r a p e s a r o s g a l l o s . E s t e
gênero de diversão t e m o s seus habitués d i s t i n -
ctos. Olhe, p o r e x e m p l o , o e x . sr. g e n e r a l P i -
mo

nheiro Machado, o poeta Dr. L u i z Murat.


— E l l e s estão a h i ?
— Vamos agora mesmo ver u m a briga de
u m g a l l o d o D r . M u r a t , p e l o q u a l s. s. r e j e i t o u
a

cento e v i n t e m i l réis. Estão n o b o t e q u i m .


A c o m p a n h e i o cidadão até a q f u n d o , — u m
tosco balcão encostado á parede, e m q u e se
vendiam, s e m animação, café, sandwiches c o m
cara de p o u c o s a m i g o s , e u m a l i m i t a d a série
de bebidas alcoólicas. L á estava, c o m effeito,
o l y m p i c o e sereno, c o m a m e l e n a c o r r e c t a e
um a r e l e g a n t e m e n t e e s g a l g a d o , o g e n e r a l d o -
m i n a d o r . A o l a d o , d e sobrecasaca, p a l l i d o e
grave, o poeta d a s Ondas; e, g r i t a n d o , d i s c u -
tindo c o m tão altas p e r s o n a l i d a d e s d a p o l i t i c a
e das letras, c a v a l h e i r o s q u e m e a p o n t a v a m
como sendo o d r . T e i x e i r a B r i t o , o d r . A l f r e d o
Guimarães, o M a n u e l P i n g u e t a , c h a r u t e i r o , o
Mo rales, o T e i x e i r a P e r n a d e P a u , o R o s a G r i -
tador, o M a n u e l Padeiro... E r a democrático,
era bárbaro, e r a p a n d e m o n i c o . N a a l g a z a r r a ,
o sr. R o s a p a r e c i a u m l e i l o e i r o a v e r q u e m d á
mais n a hasta p u b l i c a , e r e p a r a n d o b e m , e u
vi que além d a t u r b a movediça d o c a m p o , h a v i a
uma "dupla g a l e r i a c h e i a d e espectadores.
Ia começar u m a b r i g a . — V o u t o d o n o Nilo,
b e r r a v a u m s u j e i t o . — N o Frei Satanaz, n o
106 CINEMATOGRAPHO

Frei Satanaz ! b r a d a v a m lá l o n g e , faço j o g o no


Frei Satanaz ! c o n t r a q u a l q u e r o u t r o . — E' ga-

b a r o l i c e ! — E' p e r d e r . — J o g o n o Nilo! N o Nilo!


C u i d a d o , o l h a o q u e te a c o n t e c e u c o m o Madre-
silva. Nilo ! Nilo ! A g r i t a e r a enorme.
— Q u e N i l o é esle ? i n d a g u e i ao mesmo ci-
dadão.
— N ã o é o Pessanha, não senhor. E' outro,
é um gallo.
— Os g a l l o s a q u i têm n o m e ?
— Está c l a r o . Olhe, o Frei Satanaz é um
g a l l o de fama. A g o r a h a o Madresilva, o Nüo,
o Rio A/ú, o Fonfon, o Victoria, o General...
— A h ! m u i t o bem, é c u r i o s o .
O cidadão t o r n o u a olhar-me c o m pena, e
disse:
— V e n h a p a r a p e r t o . V ã o realizar-se os dois
últimos combates.
Os dois últimos c o m b a t e s realizavam-se nos
c i r c o s n u m e r o d o i s e n u m e r o tres. No Ires de-
v i a m s o l t a r Frei Satanaz c o n t r a Nilo, e no dois,
Viciaria c o n t r a Rio Nú. Furámos a custo a
massa dos apostadores, p a r a c h e g a r á mesa do
j u i z , q u e me deitou um o l h a r de Teutatés, se-
v e r o c a v a l i a d o r . E no m e i o de u m a l a r i d o atroz,
deante da p o l i t i c a , das letras, d o proletariado,
da c h a r u t a r i a , c de r e p r e s e n t a n t e s de outras
classes sociaes, não m e n o s i m p o r t a n t e s , come-
çou o c o m b a t e do c i r c o dois.
O h ! esse c o m b a t e ! Os d o i s g a l l o s tinham
CINEMATOGRAPHO 107

vindo ao collo dos proprietários, com os pes-


coços compridos, as pernas compridas, o
olhar em chamma.
Tinham-nos soltado ao mesmo tempo. A
principio os dois bichos erriçaram as raras pen-
nas, ergueram levemente as azas, como certos
mocinhos erguem os braços musculosos, esti-
caram os pescoços. Um em frente do outro,
esses pescoços vibravam como dois estranhos
floretes conscientes. Depois um aproximou-se,
o outro deu um pulo á frente soltando uns sons
roucos, e pegaram-se num choque brusco, ás
bicadas, peito contra peito, numa desabrida fú-
ria impossivel de ser contida.
Não evitavam os golpes, antes os recebiam
como um incentivo de furor; e era dilacerante
vêr aquelles dois bichos com os pescoços de-
pennados, pulando, bicando, saltando, espo-
reanclo, numa anciã mutua de destruição. Os
apostadores que seguiam o combate estavam
transmudados. Havia faces violaceas, conges-
tas, havia faces lividas de uma lividez de cêra
velha. Uns torciam o bigode, outros estavam
immoveis, outros gritavam dando pinchos como-
os gallos, torcendo para o seu gallo, acotovel-
lanclo os demais. Uma vibração de coleras con-
tidas polarizava todos os nervos, anunciava a
borrasca do conflicto.
E os bichos, filhos de brigadores, nascidos
para brigar, luxo bárbaro com o único instin-
108 CINEMATOGRAPHO

cto de destruição c u l t i v a d o , e s p e r n e a v a m agar-


r a d o s á c r i s t a u m d o o u t r o , n u m desespero
s u p e r a g u d o d e acabar, d e e x g o t a r , d e san-
g r a r , de m a t a r . N o inchaço p u r p u r e o dos dois
pescoços e das d u a s cristas, as contas ama-
r e l l a s dos o l h o s .de u m , as contas sanguino-
l e n t a s d o s o l h o s d e o u t r o s t i n h a m chispas de
incêndio, e o s b i c o s d u r o s , agudos, perfuran-
tes, l e m b r a v a m u m t e r c e i r o esporão, o espo-
rão da destruição.
D e r e p e n t e , p o r é m os d o i s b i c h o s separa-
ram-se, r e c u a r a m . H o u v e o h i a t o de u m segun-
do. L o g o após, s a c u d i r a m os pescoços, e, fin-
g i n d o m a r i s c a r , fbram-se a p r o x i m a n d o deva-
g a r . D e p o i s o da e s q u e r d a s a l t o u c o m os espo-
rõcs p a r a a f r e n t e . O o u t r o p a r e c i a esperar a
agressão.
S a l t o u t a m b é m d e l a d o , simplesmente, na
m e s m a a l t u r a d o o u t r o , e q u a n d o o o u t r o des-
cia, f o r m o u d e súbito p u l o idêntico ao do pri-
m e i r o c o m os esporões e m p o n t a . F o r a m assim,
nessa e x a s p e r a n t e c a p o e i r a g c m , até ao canto
do c i r c o . E r a a caçada trágica dos olhos, o
g o l p e d a c e g u e i r a . O s d o i s b i c h o s atiravam-se
aos o l h o s u m do o u t r o c o m o s u p r e m o recurso
da v i c t o r i a . E a t u r b a e x p e c t a n t e , v e n d o que
u m delles, q u a s i e n c o s t a d o a o c i r c o , tolhido
nos p u l o s , só t i n h a d e s v a n t a g e m , scindiu-se em
dois g r u p o s r a n c o r o s o s .
- N ã o p o d e ! não pôde! - - I s t o a s s i m não vai.
CINEMATOGRAPHO 109

— Estai a vêr que perdes ! — Ora vá dormir !


— Segura Frei! Segura, Nilo ! — Bravos ! Es-
túpidos ! E' elle ! — Ora vá dormir ! — Espera
um pouco ! E no rumor de resaca colérica, a
voz do Rosa Gritador tomava proporções de
fanfarra, a berrar: Ora vá dormir ! Ora vá dor-
mir !
O juiz, entretanto, consultara o relógio. J á
passara o prazo de quinze minutos. Ia borri-
íar os luctadores com agua e sal. Isso inter-
romperia a rinha. Os que pendiam para o gallo
a se debater entre o inimigo e o acolchoado
do circo, começaram logo a aplaudir; os ou-
tros gritaram: não p ô d e ! A celeuma ameaçava
acabar em «rolo». O juiz foi inflexível — bor-
rifou. A lucta interrompeu-se, os dois gallos
voltaram para o meio da arena. Mas como acon-
tece, ás vezes, realizar-se mais depressa aquillo
(jue muitos desejam evitar, a rinha travou-se
logo com redobrada violência e uma fúria de
extinção que não. deixou duvidas.
Os dois gallos pulavam, bicavam-se, pula-
vam, um de fronte do outro, medindo os effei-
íos. tomando medida do espaço numa alluci-
naiile movimentação do pescoço, — para arre-
meter ás esporas. E iam rodando, iam voltan-
do lentamente, porque ambos fugiam da parede
do circo e ambos desejavam encostar o adver-
s á r i o ao acolchoado para mais facilmente f u -
rar-lhe os olhos.
110 CINEMATOGRAPHO

Esse desespero d u r o u tres minutos, no má-


ximo. De repente, o menos alto a b r i u o bico
que fendera. e sangrava, pareceu decidir-se ao
impossível e correu para o outro numa série
de saltos consecutivos, immediatos, instantâ-
neos, que o encostaram, o deixaram sem de-
feza. aturdido. E ahi, continuou, continuou, es-
poreando-lhe o pescoço, a principio, depois o
craneo, depois o bico e, finalmente, de repente
— u m dos olhos. Quando o sangue espirrou,
u m UITO sacudiu a massa barbara. O gallo
triumphante descrevia hemicyclos exhaustos na
arena, aparentando a victoria e o outro cego,
n u m horrendo e h o r r i v e l furor, atirava-se, bi-
cava o ar,, procurava o inimigo. Vão-se matar!
Vão-se matar ! bradavam uns. — Deixa, deixa !
Quem venceu? i n q u i r i a m outros. Para que ser-
vem mais ? Deixa ? deixa !
O gallo cego conseguira agarrar a crista
em sangue do seu vencedor e feriu-a, feriu-a
mettendo-lhe as esporas ao acaso, até que o
l a r g o u tão cheio de terror, que o outro fugiu,
recuou, fechou as azas, p r o c u r o u sumir-se.
O cego, então, sentindo a derrota alheia,
soltou u m kocoricó cheio de rouquidão e de
orgulho. Dois homens, os proprietários, pre-
cipitaram-se. Estava terminada a lucta.
— Mas é estúpida e barbara esta coisa ! bra-
dei eu na algazarra do povareo ao cidadão
informador.
CINEMATOGRAPHO 111

— Acha ?
— Acho, sim.
- Pois os circos gallisticos estão muito em
moda na Hespanha.
— Que tenho eu com isso ?
— E o general Machado gosta.
Não discuti. O sujeito desaparecera. No
circo ires, ia começar outra lucta. Mas muita
gente sahia — os proprietários dos ex-valiosos
gallos, o poeta das Ondas, o general Pinheiro.
Rompi a multidão a custo, e, já na rua, encon-
trei de novo o cidadão informante que cami-
nhava gravemente atraz da poesia e do senado,
carregando o gallo sem bicos.
— Era seu o animal !
— Não senhor. Eu venho ás rinhas para
comprar os ((bacamartes». Este seu bico valia
duzentos mil réis ha duas horas. Comprei-o
por mil e quinhentos réis e cômo-o ámanhã ao
almoço. O sr. não gosta de gallos?
- Muito, principalmente dos gallos que se
limitam a anunciar a madrugada e a fazer
ovos,
E com o s u j e i t o do gallo, logo atraz do
poeta- d a s Ondas e do vencedor dos pampas,
deixei para todo o sempre a sensação feroz d o
barracão das rinhas. Tinha ganho o meu dia.
Entrevira o sport de manhã em toda a cidade
— se o Bloco foi até a o s sp.orls, ou não acabar
grandes intuitos políticos antes da victo-
os s e u s
ria definitiva de qualquer sport.
A valorisação d a s p a l a v r a s

C ONHEÇO, ha cerca de quatro annos, u m


cavalheiro da mais fina- sociedade, que
tem uma especial maneira de m o s t r a r a sua
amizade. Quando começa a gostar da gente,
é certo dizer, naturalmente, e m p u b l i c o :
— Então como vaes, patife ?
Se a victima não reage, u m mez depois o
cavalheiro está de u m a absoluta inconveniên-
cia. Esteja onde estiver, abre os braços e brada:
—- Grande animal, então como v a i a infame
carcassa ? T u és mesmo u m miserável ! Pre-
parei-te outro dia u m j a n t a r que te m a t a r i a a
fome atrazada e tu, ladrão, fugiste.
Esse cavalheiro tem alguns amigos Íntimos.
Ouvil-os é o u v i r os insultos mais soezes das viel-
las sórdidas, é pasmar h o r r o r i s a d o deante de u m
vocabulário estranho e macabro, em que o i n -
sulto se contorciona e m expressões íundamen-
114 CINEMATOGRAPHO

talmente inéditas. Após duas o u tres sessões d e


tão ímprevislo conversar, resolvi fugir da ami-
zade incipiente do cavalheiro, e nada pôde ex-
p r i m i r o meu terror, uma vez, nos corredores
do Lyrico, ao ouvil-o berrar:
— O' miserável, então não me falas?
Ha dons dias, porém, como .tomasse um
«tramway» do J a r d i m Botânico, depois de estar
sentado n o banco, depois de ter aberto um
1

jornal, depois de começar a lêl-o, ouvi ao meu


lado uma voz amável:
— O illustre amigo vai bem ?
V o l t e i o rosto e tive uma exclamação fria,
uma dessas exclamações exquisitas e m que o
pasmo se revolta do imprevisto. E r a o tal ca-
valheiro, correcto, elegante, corado, bem dis-
posto.
— Não o tinha visto...
— Felizmente. Se o senhor me tivesse visto,
certamente não estaria a meu lado...
— Oh ! p o r quem é ! Até com prazer...
— E eu não lhe daria uma explicação que
- conservo engatilhada ha m u i t o tempo.
— Uma explicação ?
— De certo. O meu illustre amigo começou
a evitar-me logo que eu comecei a chamal-o
de patife. Evidentemente foge de mim.
— Eu?
— Não negue ! Ora, é preciso que eu lhe
explique a razão dessa m i n h a exquisitice.
CINEMATOGRAPHO 115

Olhou para todos os lados, receiando ser


observado, curvou-sè* para o meu ouvido e mur-
murou:
— Eu sou um homem sincero.
Olhei para tjodos os lados, abri mais os
olhos, ferrei-os bem no cavalheiro e sussurrei
assombrado:
— Oue me diz ?
— A verdade. Sou o ultimo abencerragem
desse antigo sentimento. Como deve saber, é
difficil um homem viver com qualidades extraor-
dinárias. Eu vivia na sociedade como um em-
paredado. Situação de tal fôrma anormal des-
envolveu-me estranhas qualidades de observa-
ção e, de psychologia. Da observação á fanta-
sia vai um passo — da psychologia á metaphy-
sica menos do que isso. A acuidade dos meus
nervos dava-me o estado de sub-delirio em que
os grandes vates compõem os poemas épicos
e os philosophos redigem os seus ensinamen-
tos. Não compuz poemas nem redigi ensina-
mentos. Fiz bem, porque ninguém m'os leria.
Mas cheguei por deduções fataes a estudos so-
bre a transmutação dos valores das palavras.
— A transmutação dos valores das pala-
vras ? repeti dobrando o jornal, meio enleado e
meio grave.
-Acha curioso, pois n ã o ? E' um estudo em
<pie a philologia, a historia, a philosophia, a
sociologia se confundem. Apezar disso é claro.
116 CINEMATOGRAPHO

A palavra tem uma vida própria. Ha palavras


que com o tempo chegam a mudar de sexo.
— Ha pessoas assim ?
— Pois, de certo. As palavras são mesmo
androgynas. Se folhear um elucidario, verá o
senhor que algumas por ahi pimponas perde-
ram por completo a significação primitiva; se
as observar na vida commum, terá a certeza
de que o valor expressivo de cada uma se trans-
muda com o tempo, os costumes e os usos.
E' que as palavras de muito empregadas esta-
lam, deixam de comportar a idéa primitiva que
encerravam. «Miserável», por exemplo, perdeu
da sua ferocidade. Em compensação: «caro e
illustre»—já não têm mais côr. ((Ladrão» era
atrós. Hoje «ladrão» tem varias significações.
<(Meu ladrãosinho» — numa entrevista amorosa,
é amável. «Ai que l a d r ã o ! » — quando um su-
jeito faz um passe bem feito, é um elogio. A
múltipla synonimia de ((gênio», esfarelou-lhe o
valor potencial. A humanidade faz agora a gran-
de reforma da significação das palavras.
— E' realmente curioso.
— Muito obrigado. Eu estava exactamente
nesta fase dos meus estudos quando o co-
nheci. Repugnava-me tratar, como toda a gente,
o próximo de: — meu bem, minha flôr, meu
coração, .illustre, caro, querido — eu que já
lhes sentia a desvalorisação da significação.
Dahi o arranco reformador do meu estylo in-
CINEMATOGRAPHO 117

timo, aquella abundância de palavras que os


nossos avós j u l g a v a m insultuosas, mas que e m
breve futuro serão de elogio.
- Os taes patifes, miserável, infame ?
-Exatamente. N a palavra tudo v a i da i n -
flexão. A inflexão é a alma do som. Parta do
principio, da interjeição, do «oh !» fundamen-
t a l ! «Oh !» é terror, é asco, é assombro, é ca-
rinho, é dôr, é magua, é amor; «oh» é tédio e
pôde ser vontade de dormir...
— Mas o senhor é delirante !
— Quando eu lhe digo que as minhas obser-
vações nascem de u m estado de sub-delirio ! En-
tretanto ha u m facto positivo e m tudo isso —
a desvalorisação dos adjectivos.
— E' de espantar, agora, nesta época de
valorisações.
— Mas ás palavras acontece o que aconte-
ceu ao café. O abuso e o excesso é que fazem
a desvalorisação.
E sério, grave, o cavalheiro t o m o u do j o r n a l
que eu tinha entre as mãos, indagou como u m
professor:
— Que julga o senhor uma cousa surpre-
hendente ?
— Uma cousa maravilhosa, nunca vista !
-Pois façamos a leitura desses annuncios.
Ha hoje no «Moulin Rouge» u m espectaculo.
Esse espectaculo vai ser surprehendente.
— Ora esta !
9
118 CINEMATOGRAPHO

— Cá está. E com uma grandiosa estreia,


igual a todas as outras, de dous tocadores de
pandeiros, denominados panderetologos, que se
dizem afamados apezar de não serem conheci-
dos senão do emprezario. Haverá mais um rui-
doso* sucesso de u m duo que canta para as
cadeiras vazias. Veja o senhor: — panderetolo-
gos, afamados, grandes, grandiosa, ruidoso —
palavras que perdem a sua significação, Pas-
semos á companhia lyrica. Cá está o Tornesi
indigitado como notável, uma senhora modesta
arrebicada com o titulo de celebre, e se formos
mais adeante encontramos uma comedia deno-
minada magnifica... E' Tartarin-Reclamo como
um menino insolente, espalhando as palavras
e prostituindo-lhes a significação. Quer i r ás
paginas de redação ?
— Oh ! não...
— O senhor sabe melhor do que eu a des-
valorisação do adjectivo nessa colmeia de pro-
gresso. Ha horrores gentis, ha gatunos honra-
dos, ha desconhecidos celebres. E' a desvalori-
s a ç ã o — não só aqui como em toda a parte do
mundo. O producto barateado e abundante está
desvalorisado. P o r isso já ninguém se comove
quando é chamado de illustre o u de distincto.
Eis porque eu trato os meus pelas palavras de
amabilidade futura.
O cavalheiro dobrou o jornal, entregou-m'o,
grave e sério. 0 «tramway» chegava á Avenida
Central.
CINEMATOGRAPHO 119

— Tenho razão ?
— O senhor ou é doido ou é um admirável
observador.
— Sou doido. Admirável, observador é toda
a gente. Posso então tratal-o com sinceridade?
— Pôde.
Saltámos. A estação estava cheia. O cava-
lheiro agarrou-me da m ã o .
— Adeus, patife !
— Adeus, infame !
E cada um de nós, depois desse desabafo
intimo e valorisador, mergulhou na. sociedade
— onde as palavras de elogio começam a per-
der a sua antiga significação
O d i t o d a crua»

E A agora pelas ruas da cidade u m 'novo

dito do populacho. Esse dito é ouvido


em cada canto e não exprime particularmente
cousa alguma. E' antes uma das m i l íaces da
irreverência arrogante da canalha. 0 malandro
pára, ginga, diz mordaz:
— E eu, nada ?
E' a sargeta impondo-se, é o riso despreo-
cupado do garoto estabelecendo p o r troça o seu
alto lá ! invasor de ultimo estado prestes a li-
quidar os superiores. Nada mais irônico, de
chocarrice mais áspera. O cavalheiro conta uma
mentira e sente a interrupção corrosiva: — E
eu, nada ? O cavalheiro leva uma conquista, e
por traz ou de cara desnorteia-o a frase: — E
eu, nada ? O cavalheiro ganha ao jogo, esbra-
veja, tem sorte, deplora-se, elogia-se. A frase
vem como o obstáculo: — E eu, nada ?
E eu, nada ? para todas as cousas pergunta
122 CINEMATOGRAPHO

camaleão, ultimo grito da lingua verde e do


calão !
E eu amo o calão. Propriamente, cada classe
social tem o seu, calão como as profissões o
teem, original e exclusivista. Um idioma é uma
floresta extensa com uma infinita variedade de
espécies botânicas. O empregado publico fala
de certo modo, o militar de outro, os pintores
também de outro. Ha grandes famílias: o calão
dos gatunos e assassinos, o calão do «high-life»,
o calão do meretrício. Um observador pene-
trante, Raul de le Grasserie, assegura que a
«glosa», isto é, o calão, não passa de ser o
reflector poderoso da moral que o inventa, e
de quem o emprega correntemente. E' o instin-
cto cryptologico, o instincto animal perseguido
que leva o criminoso a refugiar-se no segredo á4
uma linguagem mysteriosa; é o desejo do con-
creto, a necessidade de materialisar, de «vêr» as
idéas, que fôrma a «cataglosa», ou a maneira
de falar da gente baixa; é a cecoglosa, a expres-
são habitual dos burguezes; é o desejo de gru-
par, de excluir importunos, o amor próprio de,
se reconhecer por um certo costume oral, de
se distinguir, cie fazer mundo áparte, que cria
o calão da gente chie.
O • calão é a seleção natural das espécies
sociaes; e, ao ouvir um veranista de Petropolis
ou um f r e q ü e n t a d o r do Lyrico, póde-se afirmar
que o seu falar «select» é tão calão como as
CINEMATOGRAPHO 123

piadas imprevistas dos malfeitores da Gamboa


ou dos rufiões da rua de S. Jorge.
Como, porém, ha calão e calão, o da cana-
lha é para mim muito mais curioso pela dóse
admirável de psychologia latente e pela ma-
neira por que se ímpoei O numero, a quanti-
dade, assoberbam fatalmente e obrigam o do-
mínio do calão canalha. Não ha memória de uma
frase, de um qualificativo de salão que che-
gue á rua sem perder a significação. A ralé
invade tudo com essa turbilhão de qualificati-
vos e de frases que tudo exprimem, e nascem,
morrem, brotam em novas frases, incessante-
mente. Nos ditos que correm as ruas verifica a
gente que as cidades ainda são verdadeiras mo-
radas da alegria...
Nós podemos fazer aqui um aprofundado
estudo de raça e de costumes apenas com estas
chispas vivas da lingua verde. Não ha compa-
rável em expressão. O debique, a troça, o pouco
caso, a despreocupação, a blague, a intelligencia
parecem juntar-se para fazer um desses ditos. O
dito sáe espontâneo, péga, porque tem uma certa
cadência, uma certa correlação com o ambien-
te, e não ha um cuja vida efêmera não seja
a vibração de um latego.
O primeiro valdevinos que indagou:
— Quem foi que disse que eu chorava ?
Devia tel-o dito a gingar, mãos abertas, ba-
tendo a chinela entre desafiante e desprezador.
124 CINEMATOGRAPHO

E' o mesmo caso dessa outra frase, que


parece u m gesto.de braço espalhando gente:
— «Se h a diferença, desmancha-se já!» Com
meia dúzia de ditos da r u a constrôe-se o ma-
landro carioca. E l l e entra onde reina o rolo,
diz logo:
— N ã o ha novidades. O delegado é o mesmo !
O delegado é o mesmo ! Como não ha de
pegar u m a frase de synthese de t a l ordem?
O delegado é o mesmo, isto é, continua cama-
rada, se f o r preso sáe logo, o homem fecha
os olhos, a r r u m a e não pensa no dia de áma-
nhã — o delegado é o mesmo, do mesmo rela-
xamento... Mas é admirável!
Se v e m alguém com conversas e «presepa-
das», o m a l a n d r o chupa o cigarro, balança o
corpo e t e m tres frases, que são como rolha-
das. A p r i m e i r a é de deboche:
— «Talvez te escreva...»
A segunda acentua-o:
— «Não venhas de borzeguins ao leito».
terceira é mais grave:
— «Não sei ler, m e u chefe !»
E' definitivo. N ã o vai, não quer comprehen-
der. A i m a g e m é de u m a evidencia absoluta.
E. quando o outro se encoleriza, estas tres pa-
lavras: «Suspenda o pranto!...»
«Suspenda o pranto !» é talvez melhor que
«o delegado é o mesmo».
Muitas dessas frases v e m de certos habi-

9
CINEMATOGRAPHO 125

tos que os malandros quasi não uzam. E' cu-


rioso saber que nas rodas baixas o aperto de
mão jamais tem a significação do nosso meio.
Na gente réles é u m contacto raro e sem expres-
são; entre capoeiras, rufistas e jogadores de ver-
melhinhas, chega a não existir. Dois malandrins
I iodem atravessar uma r u a inteira de mãos da-
das como crianças. Nunca as apertam quando se
encontram. O cumprimento mesmo,'a aproxima-
ção diária é sêca, fria, desconfiada o u inexis-
tente. Dahi todas essas expressões de «blague»
e de escarneo, exagerando o cumprimento, que
se tornaram ditos populares.
— «Como passou, já se casou? A feridinha
do pé já sarou ? Bapüsou seu filho e não me
convidou !»
E com as mulheres, apezar do dengue, con-
servam a troça:
— ((Gente, carapicu tem dente que morde
a gente ! Menina, o trem na curva apita ? Está
bom, deixe, quando papai vier, m a m ã i faz quei-
xa...»
Nasce-lhe da incomprehensão do gesto todo
o sabor da frase, e é ahi, na difficuldade de
comprehender que, como dizem elles, — o Chico
chora...
Nesse torvelinho de frases, algumas v i -
vendo dias apenas, outras immortaes, ha" u m
certo numero de expressões typicas, de philo-
sophias de sargeta em tres palavras, quasi im-
126 CINEMATOGRAPHO

mortaes. Ninguém sabe quem as disse primeiro,


ninguém sabe a sua p r i m e i r a significação. 0
facto é que servem para tudo, amoldam-se em
casquinada a todas as cousas, e são por exem-
plo aquelle: «oh ! ferro ! nunca v i tanto aço»
de que a cidade vivia cheia ha tres annos, o
imprevisto «cheirava-te», e esta agora: — «E
eu, nada ?
«E eu, nada ?» é uma frase que pinta um
gesto, uma situação, u m momento. 0 reverso
desta formidável época de avanço não pôde ser
outro senão a indagação de alto lá ! irônica e
debochativa: «E eu, nada?»
No amor, no goso, no prazer, no trabalho,
na ambição, na gloria, no mando, os que che-
gam depois, com algum atrazo, e não teem co-
ragem para j o g a r a cabeçada, teem na ponta
da l i n g u a a frase fatal.
O general Pinheiro Machado, vendo que lhe
tomam tudo, toca para Campos, cruza os
braços:
— «E eu, nada ?»
Os meninos do j a r d i m da infância vêem a
rédea na m ã o dos velhos. Cada um por si
exclama:
— «E eu, nada ?»
O conselheiro Affonso Penna assiste, impas-
sível, ao enthusiasmo dos seus secretários. No
fim, diz:
— «E eu, nada ?»
CINEMATOGRAPHO 127

Pi frase pôde ser a divisão de metade maior,


como dizem as crianças, quando pedem a re-
partição de u m bolo. porque a humanidade
sempre se dividiu numa parte que come, e na
outra que espera a vez. A que espera a vez está
mesmo a dizer o — «E eu, nada ?»
Frases taes valem p o r poemas e p o r tra-
tados de sociologia. Quem a fez? ninguém
sabe. Nascem do anonymo, o anonymo fal-a
saltar ao ar de toda a parte, p o r todos os can-
tos, e agora, no Rio, cidade de ambições des-
vairadas, de riso, de troça, de luxuria, para
todas as cousas, só ha uma frase: — «E eu,
nada ?» pergunta camaleão, ultimo grito dos
sem vintém, da lingua verde e do calão !
*
A decadência d o s «chopps»

O UTRO dia, ao passar pela r u a do Lavradio,

observei com pesar que em toda a sua ex-


tensão havia apenas tres casas de chopp. A
observação fez-me l e m b r a r a rancorosa antipa-
thia do m a l l o g r a d o A r t h u r Azevedo pelo chopp,
agente destruidor do theatro, e dessa lembrança,
que evocava tempos passados, resultou a certeza
profunda da decadência do chopp.
Os chopps m o r r e m . E' comovedor p a r a
quantos recordam a breve refulgencia desses
estabelecimentos. H a uns sete annos, a inven-
ção partira da r u a da Assembléa. A l g u n s esthe-
tas, imitando Montmartre, t i n h a m i n a u g u r a d o
o prazer de discutir l i t e r a t u r a e falar m a l do
próximo nas mesas de mármore do Jacob. Che-
gavam, t r o c a v a m frases de p r o f u n d a estima
com os caixeiros, faziam enigmas c o m phos-
phoros, enchiam o ventre cie cerveja e estavam
sufficientemente originaes. Depois apareceram
130 CINEMATOGRAPHO

os amigos dos esthetas, que em geral desco-


nhecem a esthetica mas são bons rapazes. Por
esse tempo a Iwonne, mulher barytono, mon-
tou o seu cabaret satânico á rua do Lavradio,
um cabaret com todo o sabor do vicio parisien-
se, tudo quanto ha de mais rive-gauche, mais
butte-sacrée. Ia-se á Iwonne como a um su-
premo prazer de arte, e a vóz da pythia d'a-
quella Delphos do goso extravagante recitava
sonoramente as Neuroses de Ilollinat e os tre-
chos mais profundos de Beaudelaire e de
Bruant.
O Chat-Noir morreu por falta de dinheiro,
mas a tradição ficou. Iwonne e Jacob foram
as duas correntes creadores do chopp nacio-
nal. As primeiras casas apareceram na rua
da Assembléa e na rua da Carioca. Na
primeira, sempre extremamente concorrida, pre-
dominava a nota popular e pândega. Houve
logo a rivalidade entre os proprietários. No
desespero da concorrência os estabelecimentos
inventaram chamarizes inéditos. A principio
apareceram num pequeno estrado ao fundo,
acompanhados ao piano, os imitadores da Pepa
cantando em falseie a estação das flores, e al-
guns tenores gringos, de collarinho sujo e luva
na m ã o . Depois surgiu o chopp enorme, em
fôrma de hall com grande orchestra, tocando
trechos de operas e valsas perturbadoras, de-
pois o chopp sugestivo, com sandwiches de
CINEMATOGRAPHO 131

caviar, acompanhados de árias italianas. Certa


vez uma das casas apresentou uma harpista
capenga mas formosa como as fidalgas fforen-
tinas das oleographias. No dia seguinte um
emprezario genial fez estrear- um cantador de
modinhas. Foi uma coisa louca. A modinha
absorveu o publico. Antes para ouvir uma mo-
dinha tinha a gente de arriscar a pelle em
baiucas equivocas e acompanhar serestas ainda
mais equivocas. No chopp tomava logo um far-
tão sem se comprometer. E era de vêr os mu-
latos de beiço grosso, berrando tristemente:

Eu canto em minha viola


Ternuras de amor,
Mas de muito amor...

e os pretos baritonos, os Bruants de nankin,


maxixando cateretés apoplecticos.
0 cUopp tornou-se um concurso permanente.
Os modinheiros celebres iam ouvir os outros con-
tractaclos, e nas velhas casas da rua da Assem-
bléa, á hora da meia noite, muita vez o prin-
cipe da nénia chorosa, o Catullo da Paixão
Cearense, erguendo um triste copo de cerveja,
soluçava o
Dorme que eu vélo, seductora imagem,

com umas largas atitudes de Manfredor fatal.


E emquanto o burguez engulia^o prazer po-
pular que lhe falava á alma, na rua da Carioca
132 CINEMATOGRAPHO

vicejavam as pocilgas literárias, com uma por-


ção de cidadãos, de grande cabelleira e fato
no fio, que iam ouvir as musas decadentes, pe-
quenas morphinomanas a recitar a infallivel
Chariogne, de Beaudelaire, de olhos extaticos
e queixos a bater de f r i o . . .
Depois os dois regatos se fundiram num
rio caudaloso. A força assimiladora da raça
transformou a importação franceza numa coisa
sua, especial, • única: no chopp. Desaparece-
ram as cançonetas de Paris e triumpharam os
nossos prazeres.
Onde não havia um chopp ? Na rua da Ca-
rioca contei uma vez dez. Na rua do Lavradio
era de um lado e de outro, ás vezes a seguir
um estabelecimento atraz do outro, e a praga
invadira pela rua do Riachuelo a Cidade Nova.
Catumby, o Estacio, a praça Onze de Julho...
Os emprezarios mais ricos fundavam casas com
idéas de casinos, como a Maison Moderne, o
Hicjh-Li$e, b Colyseu-Boliche, mas os outros,
os pequenos, viviam perfeitamente.
Não havia malandro desempregado. Duran-
te o dia, em grandes" pedras negras, os transeun-
tes liam ás portas dos botequins uma lista de
estrelias maior que a conhecida no Observa-
tório, e era raro que uma dessas raparigas, cuja
fatalidade é ser alegre toda a vida, não pergun-
tasse aos cavalheiros:
- Não f e conhece, não ? eu sou do chopp,
do 37.
CINEMATOGRAPHO 133

Oh ! o chopp ! Quanta observação da alma


sempre cambientc desta estranha cidade ! Eram
tiespanholas arrepanhando os farrapos da bel-
leza em iolés roufenhos, eram cantores em deca-
dência, agarrados ao velho repertório, ganindo
o celeste Aida, e principalmente os modinheiros
nacionaes, cantando maxixes e a poesia dos
trovadores cariocas — essa poesia feita de re-
bolados excitantes e de immensas tristezas, em-
quanto nas platéas aplaudiam rufiões valentes,
biraias medrosas de pancada, trabalhadores
maravilhados, e soldados, marinheiros a gastar
em bebida todo o cobre, fascinados por esse
vestígio de bambolina grátis.
Tudo isso acabára. O High-Life ardeu, a
Maison Moderne cresceu de pretenção. creando
uma espécie de casmo popular com aspectos de
feira, os outros desapareciam, e eu estava exa-
ctamente na rua onde mais impetuosamente v i -
vera o chopp...
Entrei no que me ficava mais próximo, de-
fronte do Apoio. A' porta, uma das chanteuses,
embrulhada num velho fichú, conversava com
um cidadão de calças abombachadas. A con-
versa devia ser triste. Mergulhei na sala lugu-
bre, onde o gaz arfava numa anciã, preso ás
únicas Auer já estragadas. Algumas meninas
lom o ar murcho fariscavam de mesa em mesa
consumações. Uma dellas dizia sempre:
— Posso tomar groselha ?
134 CINEMATOGRAPHO

E corria a buscar u m copo grosso com agua


envermelhecida, sentava-se ao lado dos fregue-
zes, sem graça, sem atenção. Do tecto desse
espaço de prazer pendiam umas bandeirolas
sujas, em torno das mesas havia muitos claros.
Só, perto do tablado, chamava a atenção um
g r u p o de sujeitos que, m a l acabava de cantar
uma senhora magra, rebentavam em aplauso
dilacerãntes. A senhora voltava nesse momento.
Trazia u m resto de vestido de cançonetista com
algumas lantejoulas, as meias grossas, os sa-
patos cambados, Como se não visse os mar-
manjos do aplauso, estendia para a sala as duas
mãos cheias de beijos gratos. E, de repente,
poz-se a cantar. E r a horrível. Cada vez que,
esticando as guelas, a pobre soltava um mâ
piú! da sua desesperada romanza, esse mal
piú ! parecia u m silvo de lancha, á noite, pe-
dindo socorro.
A menina desenxabida já trouxéra para a
minha mesa u m copo de groselha acompanli;i-
do de u m canudinho, e ahi estava quieta, muito
direita, olhando a porta a vêr se entrava outra
victima.
— Então esta cantora agrada muito ? per-
guntei-lhe.
— Qual o que ! Até queremos vêr se vai
embora. O diabo é que tem tres filhos.
— A h ! muito bem. Mas os aplausos?
— O sr. não repare. A q u i l l o é a claque,
sim senhor. E l l a paga as bebidas,
CINEMATOGRAPHO 135

— E quanto ganha a cantora ?


— D e z m i l réis.
Saí c o n v e n c i d o d e q u e a s s i s t i r a a u m d r a -
m a m u i t o m a i s c r u e l q u e o Mestre de Forjas,
mas já a g o r a e r a p r e c i s o vêr o f i m e c o m o m e
tinham denunciado u m a roleta d a r u a d e Sant'
A n n a , o n d e v e g e t a o u l t i m o vestígio d o chopp,
f u i até lá.
Chama-se o a n t r o C o l y s c u - B o l i c h e . A i m -
pressão d e s o r d i d e z é inacreditável. D e v e l h o ,
de s u j o t u d o a q u i l l o p a r e c e r e b e n t a r , s o b a l u z
pálida d e a l g u m a s l â m p a d a s d e a c e t y I e n e s . A
cada passo e n c o n t r a - s e u m b r i n q u e d o d e a p a -
n h a r d i n h e i r o a o p r ó x i m o e sente-se e m l o g a - '
res o c u l t o s a s r o d a s d o s jaburus e x p l o r a n d o a
humanidade. N o theatrinho, separado d o resto
da f e i r a p o r u m s i m p l e s corrimão, h a v i a n o
m á x i m o u m a s v i n t e pessoas. E r a m I I h o r a s d a
noite e u m vento f r i o d e t e m p o r a l s o p r a v a .
J u n t o ao e s t r a d o , u m p i a n i s t a d e u o s i g n a l e u m
m o c i n h o lésto, d e s a p a t o s b r a n c o s , calça p r e t a
e dolman a l v i n i t e n t e , t r e p o u o s t r e s d e g r a u s d a
escada, fez t r e s o u q u a t r o rapapés c o m o s e
adejasse, e c o m e ç o u c o m c a r e t a s e p i r u e t a s a
dizer u m a cançoneta aérea:

Sabes que dos dois balões


O do Gosta é maior
A minha afeição está posta
Cada um come do que gosta I..,
136 CINEMATOGRAPHO

Deus do céo ! Era nevralgicamente estúpido,


mas a vozinha metálica do macaco cantador
fazia r i r dois ou tres portuguezes cavouqueiros
com tal ruido que o pianista sacudia as mãos
como renascendo de alegria.
Foi ahi, vendo o ultimo vestígio do passado
esplendor dos chopps, que eü pensei no fim de
Iodos os números sensacionaes dos defuntos
• caharets. Onde se perde a esta hora o turbilhão
das cançonetistas e dos modinheiros ?
Quanta vaidade delirante, quanta miséria
acrescida ! De certo, a cidade, a mais infiel das
amantes, já nem se recorda desses pobres typos
que já gosaram um dia o seu sucesso e tive-
ram por instantes o pabulo do aplauso, e, de
certo, os antigos triumphadores ficaram para
sempre perdidos na illusão do triumpho que,
sempre breve, é para toda a vida a inutilizados
das existências humildes..
J u n h o de o u t r ' o r a

I A delicia perfumada destas noites de junho,


JLíi tão luzentes d'astros, tão alacres de pra-
zeres, ha, no olhar das avós e no olhar das ma-
mas de todos nós, uma nevoa de nostalgia.
Que sentem ellas quando a natureza se offerta
cheia de graça e de abandono ? Nenhum de nós
indaga, nem tempo tem de indagar. Ha um jan-
tar elegante com espáduas núas e casacas, na
casa de um titular do Vaticano; a mulher de
um alto financeiro espera-nos para não ouvir
em qualquer theatro as estrellas viajantes; e
talvez, após o theatro, tenhamos um baile do
escol, ou — o que é peor ! — uma ceia longa
com pequenas caras. Como indagar as vagas
tristezas silenciosas dos olhos das nossas maio-
res ?
Entretanto, ellas estão tristes e talvez não
saibam porque — tristes recordações que ficam
presas á vida como os farrapos de um nevoeiro,
138 CINEMATOGRAPHO

tristes da nostalgia, a ultima vibração do pas-


sado que se faz harmonia presente.
— Então, avó, não quererás vêr hoje a ope-
reta ?
— E m junho, pequeno ?
E, pobresinhas ! ellas são, á beira dos cos-
tumes desaparecidos, como os espelhos mági-
cos da saudade. Curvai-vos para os seus olhos.
Toda a historia antiga do grande mez -dos san-
tos mvernaes, modesta e caseira, desabotoa na3
pupilas de cada uma. Olhai a sua face. A me-
lancolia empalidece-a. Senti o seu coração.
Chora de certo baixo, em surdina, ignorando
porque chora. E as avós e as doces mamãs de
cincoenta annos sentem apenas a mente a re-
cordar o mez de junho d'antanho, — mez de
fogos e de frio, em que ellas passaram crean-
ças a pensar nos brincos, moças a pensar no
futuro noivo, m a m ã s a temer desastres para os
filhos.
A h ! o mez de junho ! Santo Antônio, São
João, São Pedro, a Senhora SanfAnna, a pu-
reza dos lares com muito namoro, muitos fo-
guetes, e bailes, e carás e melado, o encanto
do céo todo aceso nas pupilas cégas dos ba-
lões soltos ! Jesus ! Ha quanto tempo isso foi...
Certo, com algum esforço, nos lembramos
que tivemos uma barraquinha o u uma cesta de
fogos, com pistolões e rodinhas. Talvez nol-a
tivesse mandado o namorado da mana, hoje
CfNEMATOGRAPHO 139

casado com outra e p a i de rapazes já feitos.


Era bom ? E r a como tudo que não volta mais.
Em algumas casas as meninas deitavam
sortes, emquanto os rapazolas enchiam balões.
E era a gota de chumbo quente indicando o
futuro e a clara d'ovo ao sereno mostrando se
as pequenas partiam para a cathedral o u para
o cemitério. Gomo era grave a analyse e quanto
riso de diamante se desnastrava no ar, sono-
roso e meigo ! Depois, entre o baile e a ceia —
a ceia tradicional com melado, havia o fogo, o
sagrado esplendor do fogo com fogueiras altas
para se pular e chuvas de ouro liquido e chis-
pas de rodinhas, e jorros de rojões, e tiros co-
loridos de pistolões da Pérsia. E a animação,
a alegria, mãos que se tocavam, com o pretexto
de arrebatar as pistolas, beijos vagos aprovei-
tando a ocasião de amparar uma quéda...
Quantas vezes, a cair de somno e carran-
cudos, fômos ao cólo da avósinha !
— Mas, o que temos ? O José que não te
quer darás rodinhas? Espera, meu filho...
E a boa senhora lá ia t i r a r rodinhas para
queimarmos em honra de Santo Antônio, que
lhe dera, em moça, u m marido, e, em velha, a
luz daquelles netos.
Um baile de j u n h o ! A i ! como os rapazes
daquelle tempo gostavam e aproveitavam ! N ã o
havia cartões de convite com termos em inglez,
nem «cotilons» e. «flirts». Os burguezes convi-
140 CINEMATOGRAPHO

davam «para u m a brincadeira lá e m casa». A


dona do l a r talvez aparecesse de «matinée»,
mas a ceia era farta, estava-se como na pró-
pria casa e a alegria simples parecia r i r em
cada lábio e e m cada olhar. Fóra, no quintal ou
no jardim, os meninos pintavam; na sala, a
valsar, as moças namoravam, e o fogo era den-
tro e fóra de casa, porque havia os fogos de
salão, a fonte bouquet, a chuva de ouro, e
prata, as pérolas Fontaine, as serpentes voa-
doras, os phosphoros electricos, as cobrinhas
de Pharaó, as borboletas e as estrellinhas, re-
bentando com u m leve r u i d o de sêda, estrellas
como que feitas de sêda luminosa... As borbo-
letas davam u m estalo e tinham u m verso. Ser-
viam para o namoro, o puro irmão mais velho
desse doente «blasé» que se chama o «flirt».
— D. Maria, quer p u x a r ?
— Vá lá.
U m estalo, e saía o verso :
Cupido exige de todos
Um penoso sacrifício
Se quer assim, vamos bem
Mas se não quer, outro officio.

Gargalhadas... arrufos, inquietações... Ha-


via versinhos intrigantes:
As pessoas que vos amam,
Que só sabem vos gabar,
Dizem que do vós segredos
Já ninguém pôde fiar.
CINEMATOGRAPHO 141

Havia indiscretos:
Oh! quanto prazer te deu
Meu coração inflammadol...

Havia até patriotismo nas quadras:


E' tão grande pela Pátria
Este vosso fanatismo,
Que não ha quem não respeite
O vosso patriotismo.

Essas tolices todas aprendiam as almas no


laço perpetuo do casamento !
E, se o aspecto i n t i m o de j u n h o e r a tão b o m
e tão casto, o aspecto lá fóra, nas ruas, sob o
docel do céo, tinha da m a r a v i l h a de u m a p a i -
zagem nocturna do Oriente, de u m a festa ára-
be. Ruas inteiras se coagulavam de b a r r a q u i -
nhas com lanternas de papel multicôr, ajuntan-
do grupos de crianças a soltar busca-pés á
bahiana, bombas, trepanoleques, zig-zags de
chama, súbitos estrondos. Das janellas de m u i t o s
prédios, n u m polvilho perpetuo de favillas, gol-
favam em arrancos as notas azues, verdes e
rubras, dos pistolões; dos quintaes subiam r o -
jões rasgando o velludo do espaço, alguns
num longo assobio, para rebentar lá e m cima
ramalhetes de luzes variegadas. A illuminação
refvmal dos combustores d i m i n u i a , de vergo-
nha. Havia quarteirões que, e m momentos,
davam o aspecto de u m a g u e r r a de fantasia ar-
142 CINEMATOGRAPHO

dente, com grandes fogueiras lambendo o ca-


sario de reflexos amarellos, illuminações inter-
mitentes de. fogos de bengala, o r a verdes, ora
rubros, e aquelle tecido de flor de fogo, de
tenda de fogo, de franja de fogo, que se desdo-
brava, trechos e trechos, de sacada para saca-
da, como mantos irreaes e inconsuteis, de re-
iulgençias inauditas.
Para além das casas, no céo sereno, de um
azul côr de tinta, riscado pelo arabesco dos
foguetes, pelas longas fitas de ouro que se pren-
diam e m laços momentâneos, para escorrer em
fitas luzentes, o carnaval dos fogos soltava a
illuminação dos balões. E r a m dois, eram dez,
e r a m vinte, e r a m duzentos, eram mil, subindo
de todas as direções, caindo alguns atacados
de vertigem, galgando as immensidades outros,
em fila, e m marcha, em desencontro, obedecen-
do ás correntes das variadas camadas de ar,
parecendo, a confundir-se com as estrellas, a
dança das lanternas dos santos á procura do
bem na treva. A noite immensa era silen-
ciosa, mas feita desses silêncios abalados
de m i l estalos e m i l rumores, porque se
o céo estalava aos rojões, os barulhos dos fo-
gos v i v i a m i i a cidade até cantarem os gallos
e ainda perto do alvorecer as badernas do ga-
rotilho c o r r i a m aos balões caídos aos grites
de: — «Tasca ! Tasca !» — o u a cantar em côro:
CINEMA! OGRAPHO 143

Cáe, cáe, balão


A q u i na m i n h a m ã o I

Santos clementes do mez de inverno, muito


boa senhora SanfAnna, cujo nome desde o
berço ouvimos para esquecel-o depois de ho-
m e n s — que saudades! Ha'quanto tempo foi
isso em que sentiamos o frio dos grandes mo-
mentos~vendo um balão cortar obliquamente a
escuridão do firmamento ? Ha quanto tempo nós
tínhamos, como supremo ideal da innocencia,
que um balão caísse na nossa mão ? Hoje, nem
mais as creanças pensam em balões senão diri-
giveis... O doce mez de Junho antigo com o seu
rosário de folguedos simples, acabou, morreu.
Ha agora outro, um junho bonito, de sobretudo
de pelles, neurasthenico, febril, com surmena-
gem de pândegas e snobismo. E como nós so-
mos . este junho, por isso não sentimos •— oh !
não ! — na delicia perfumada destas boas noi-
tes, tão alacres de prazer, tão brilhantes de
astros, o olhar das avós e das pobres m a m ã s
cheio da saudade do iunho de antanho...
Ludus Divinus

S RAM dez h o r a s da n o i t e . T o d a a praça pa-

r e c i a v i v e r n a e s t r i d u l a illuminação do
music-hall, u m a illuminação v i o l e n t a de lâmpa-
das electricas e m candelária pelas duas faces e de
holophotes escandalosos q u e i n v e s t i g a v a m e a l a -
n h a v a m a s o m b r a do square de s e g u n d o em
segundo. A' p o r t a , e n t r e a e n t r a d a p a r a o j a r -
d i m e u m b r i c o e t e e s t r e i t o onde se installára o
bilheteiro, a multidão acotovellava-se n e r v o s a
e f e b r i l : rapazes de sport, de c a r n e e s p l e n d e n t e
e grandes gestos, s u j e i t o s c o m c a r a de azaris-
tas, b u r g u e z e s pacatos, cocottes do a l t o t r a f i c o ,
fufias com os boas magros a escorrer pelo
pescoço, s u j e i t i n h o s c u j o m o r a l o s c i l l a e n t r e o
miché e o a m a n t e grátis. D e n t r o , a b a n d a m i -
l i t a r s a c o l e j a v a a s a r a b a n d a do cake-walk e t o -
dos os sons m e t a l l i c o s da banda pareciam em
i n t i m a correspondência c o m as c r u a s n o t a s d a
146 CINEMATOGRAPHO

luz como n o mesmo desejo de galvanizar a


turba.
Estávamos no M o u l i n Rouge, a vêr a lucta
romana. O barão Belfort promettera-me uma
noite de enthusiasmo, u m a noite de Neuilly
com algumas notas intimas sobre os luctado-
res. E r a elle quem me conduzia,- abrindo ca-
m i n h o p o r entre o povaréu.
— V a m o s p o r alguns momentos voltar á an-
tigüidade, á admiração da força hábil e destra
dos g l a d i a d o r e s ! Nestas épocas de nevrose e
de maldade, os gladiadores são o Tabernaculo
onde se aninhou a gloria da força. Talvez por
isso sejam os homens mais simples do mundo.
Guarda-os das perversidades terrenas o halo da
energia.
Tínhamos quasi a soco vencido a entrada,
e iamos de vagar abrindo caminho e a ouvir as
palavras vagas do barão. Um,momento não foi
possível andar. Sujeitos cnthusiasmados faziam
uma roda que interceptava a passagem. O meu
guia esticou o pescoço.
— E' o negro, disse, o Amalhou. Como sa-
bes, nós temos a,coqueluche da lucta romana
Os luetadores passam a animaes irresistíveis,
e os negros então não são coqueluche, são
uma verdadeira e geral bronchite. E' uma ques-
tão de vaga solidariedade ethnica...
A t i r o u a frase e f o i f u r a n d o com os hom-
bros a turba compacta, até chegarmos dean-
CINEMATOGRAPHO 147

da mesa, onde repousava, como n u m altar, o


preto formidável.
— Amalhou !
Na caraça côr de chocolate desdobrou-se u m
largo riso. Evidentemente, o luetador gosava
a admiração de todos aquelles curiosos olhares.
— Toi? fez com familiaridade africana. O n
boit ?
O baião sentou-se, e para mim, em portu-
guez:
— Não imagina. Este que aqui está vendo,
em dez dias de cidade é perseguido por. deze-
sete mulheres. Não ha perigo, porém, nem para
as mulheres nem para elle. A m a l h o u tem juizo,
contenta-se com a paixão platônica. V e j a como
bebe o vinho.
Voltou-se para o negro cujos olhos riam.
— Et les femmes ?
- A h ! les femmes... ohé ! les petites fem-
mes, elles sont folies !
E de repente queixou-se do clima, falou
saudoso de Paris. Aqui, levava a gente a suar.
Nem era possivel s''entrainer. U f ! L i m p o u a
face inundada de suor, quedou-se sem vêr, com
um sorriso na beicama, e u m cheiro de barata
a lhe sair do corpo. O barão ergue-se. E m
torno o povo parecia invejoso da nossa i n t i m i -
dade.
— Toi, tu vas payer ça.
— Pago ! pago !
148 CINEMATOGRAPHO

E arrastou-me para ver o novo L c Bouchcr,


o que adoptou o nome de valentão feroz já
apreciado no Rio, que uma g r i p p e matára aos
vinte e dois annos, o anno passado.
O novo Le Boucher deixava-se admirar. No
seu olhar liquido e ingênuo, havia uma fra-
queza pueril. Dois minutos depois de ouvil-o
tem-se a impressão de conversar com um pe-
queno no paiz dos gigantes. E' como os bebês
que a p r i m e i r a impressão domina e logo a es-
quecem, quando lhes aparece outra.
Nasceu mais para ser admirado que para
a lucta. Duas o u tres vezes hesitou com um
pedido nos lábios. P o r fim, não poude mais.
— Lê-me esta carta, sim ?
E r a u m pedido ao barão, que com calma e
sangue frio se prestava a esse papel de secre-
tario. A carta estava em hespanhol. Le Bou-
cher não a comprehendia. Belfort correu a assi-
gnatura.
— Maria !
— A h ! Maria ! fez o luctador engulindo a
saliva, leia, leia... o sr. pôde ouvir... não co-
nhece... tanto faz.
Aproximámos as cadeiras em torno da mesa.
O barão entalou o monoculo, curvou-se, leu de
vagar.
((Meu queridinho. Que esta carta te encon-
tre cheio de victorias, deseja-o muito a tua Ma-
ria. N ã o imaginas o que tenho sofrido. Sem
CINEMATOGRAPHO 149

t i , o q u e será d e m i m ? L e m b r a - t e d o s d i a s q u e
passaste a o l a d o d a t u a escrava...»
E r a lamentável e i d i o t a . O l u t a d o r e s t a v a
emocionado.
Mas ouvia-se o r e t i n i r das c a m p a i n h a s cha-
m a n d o o p u b l i c o a o r e c i n t o , e elle, c o m o r e s -
p o n d e n d o ao n o s s o o l h a r c r a p u l o s o , d i s s e ape-
nas, m e r g u l h a n d o a c a r t a e n t r e as o u t r a s , q u e
n a t u r a l m e n t e l h e t r a z i a m paixões e s c a l d a n t e s :
— Tão boa ! Tão boa !
E foi-se. N ó s , g u i a d o s p e l o s e c r e t a r i o d a em-
presa, s u b i m o s ao c a m a r o t e .
O hall r e v e r b e r a v a n u m incêndio b r a n c o .
V i n t e l â m p a d a s elétricas d e r r a m a v a m d o a l t o
uma l u z egual e cegadora. N a galeria, a m u l t i -
dão a n c i o s a , — h o m e n s , m u l h e r e s , h o m e n s co-
l a d o s aos b a l a u s t r e s — p a l p i t a v a . N o s c a m a r o -
tes, n a platéa, u m a agitação d e v e s t o n s , d e
chapéus de p a l h a , d e gazes, de t u l e s , d e c o r e s
claras, de c o r p o s o n d u l a n t e s d e m u l h e r e s , e p o r
todas as dependências d o c i r c o , a palpitação
dos g r a n d e s a c o n t e c i m e n t o s , e m q u a n t o n o t a -
blado, o g y m n a s i a r c h a , o juiz, g o r d o , c o m u m a
barbinha em bico, apresentava os lutadores e
os g o l p e s p r o h i b i d o s .
A musica tocava. O s tremendos homens
apresentavam-se nus, apenas c o m u m leve cal-
ção n e g r o a l h e s r e s g u a r d a r o b a i x o v e n t r e . O
•publico b a t i a p a l m a s . O barão, c a l m o , l i m p a n -
do o m o n o c u l o , d a v a - m e informações:
11
150 CINEMATOGRAPHO

— Esses d i a b o s c o m e m copiosamente e fa-


zem exercícios todas as m a n h ã s . Os q u e come-
ç a m a d o r a m o aplauso, os q u e estão e m pleno
f u l g o r são-lhe i n d i f e r e n t e s , os q u e decáem têm
inveja. Odeiam-se alguns mortalmente. Mas
v e j a P a u l o Pons. T e m q u a r e n t a e dois annos.
Começou a lutar, v a i para vinte. E m 1890
obteve a p r i m e i r a victoria sobre T o n Canan,
no Casino de P a r i s , v e n c e n d o e m seguida os
terríveis K a r a O s m a n e Y o u s s o u . O i t o annos
ganhou o primeiro c a m p e o n a t o d o mundo, e
desde então é f a t a l m e n t e o v i c t o r i o s o . A mul-
tidão adora-o cegamente. C o m o o odiará no
dia em que lhe assistir á p r i m e i r a derrota !
Um a p i t o t r i l o u . A m u s i c a cessára. Estavam
e m f r e n t e u m do o u t r o P a u l o P o n s e L e Bou-
cher.
P o n s é l a m i n a r , d e s v e n t r a d o , t o d o múscu-
los, c o m a p e l l e s e m b r i l h o e u m a t a t u a g e m no
braço. L e Boücher é f e i t o de congestões mar-
móreas. N e m u m p e l l o l h e m a c u l a a maciez da
epiderme. A s pernas, grossas, rijas, a cinta
estreita, l a c e d e m o n i c a , p a r e c i a o cálice donde
desabrocha o s e u l a r g o t r o n c o , o vasto ventre
e os g r a n d e s p e i t o r a e s . D i r e i t a s c o m o cachaço,
as espáduas b r i l h a v a m c o m u m brilho mine-
r a l de m á r m o r e rosa, e c o r o a n d o essa beleza
de carne, a face t i n h a u m o l h a r de apache
e de bal des uaches.
Os d o i s e n f r e n t a r a m m e d i n d o forças, apal-
CINEMATOGRAPHO 151

pando o terreno em movimentos felinos. Pons,


sem um gesto inútil, analysc, arte, tacto. Bou-
cher, uma torre com gestos nervosos talvez.
De repente Pons estalou as mãos no toutiço
do outro. Era o ataque. E a luta começou si-
nuosa, cheia de extremos e de recursos babeis.
Dos camarotes viam-se as flexões dos múscu-
los dos braços e do dorso. O espetáculo em-
polgava o povo. No camarote ao lado da es-
querda uma mulher de grandes plumas, torcia
o leque com os olhos cravados no contendor de
Pons, e na primeira fila de cadeiras, um cida-
dão de paletó cor de canela, erguia-se e senta-
va-se febrilmente.
— Le Boucher ! Le Boucher ! gritavam das
lorrinhas.
Súbito, o campeão agarrou o moço pelas
costas. Le Boucher desvencilhou-se, correu per-
seguido, remou, agitou-se, caiu de barriga
para baixo, voltando a face rubra.
— Pons ! Pons ! Le Boucher !
Era uma hecatombe de gritos, de pragas, de
frases cacologicas. Pons, por cima de Le Bou-
cher, apalpava-lhe a anatomia, metia o braço
entre o braço e o- peito do adversário. O outro,
vibrante de atenção quando sentia o contato
do campeão, curvava o braço como uma tenaz,
e Pons recuava, tornava a tentar, calmo como
um medico que espera o momento fatal de dar
o golpe decisivo. Le Boucher, porém, deu de
152 CINEMATOGRAPHO

repente uma volta, apanhou o contendor que


tentava erguer-se e caíram ambos de ventre
para o ar, sem tocar com as espáduas no chão.
E, á luz das lâmpadas, sustentando os troncos
triangulares com um dos braços, forcejando
com o outro para dominar, ficaram assim por
segundos, até que Pons se desprendeu.
— Le Boucher ! Le Boucher ! berrava a mul-
tidão rouca de agonia.
Então o corpo de Le Boucher, molhado e
lustroso de suor, tentou um impetuoso esforço,
e lento, vigoroso, forte, tremendo, se foi alçan-
do, emquanto os braços do'outro pareciam uma
cadêa de serpentes ensopadas de sangue em
torno do seu ventre branco.
O delírio rebentou frenético. J á tinham
decorrido dez minutos. A multidão uivava. Ana-
cleto ! Cochons ! Fóra ! Cala a bôca, idiota!
Pons ! Le Boucher !
Parecia que a força se desprendera dos lu-
tadores dando ao hall o aspeto de um com-
bate.
No trovejar das aclamações havia violên-
cias de socos e de taponas.
Pons e Le Boucher, afinal encolerizados, ati-
raram-se furiosamente um contra outro, Pons,
com a tática dos çachações para entontecer o
inimigo, colando a cabeça á cabeça de Le Bou-
cher. Era despedaçante. As mãos agarravam os
músculos com Ímpetos de rasgal-os, os braços
CINEMATOGRAPHO 153
*

enlaçavam os troncos como se os fossem sepa-


rar, uma vermelhidão tingia a atmosphera, e
os dois lutadores com cada flexão de braço
pareçiam alucinar mais a galeria.
Mas u m u r r o rebentou, atroou, ecoou lon-
ge. Pons atirára ao chão o adversário. Em-
quanto o campeão do mundo fazia esforços para
dominar, o tronco de Le Boucher foi-se erguen-
do de vagar, firmando-se nos joelhos, nas pon-
tas dos pés. A tentativa falhou. Caiu de novo,
cruzou os braços em torno do pescoço, e como
um titã erguendo um mundo, a cara vermelha
escorrendo suor, o povo v i u esse corpo v i r sur-
gindo até levantar-se de todo n u m supremo ar-
ranco.
Um indescriptivel furor rebentou no recinto.
A mulher das plumas levantara-se nervosa. T i -
nha as unhas em sangue. O cidadão do paletó
eôr de canela estava já perto da orchestra
dando vivas. Assobios riscavam o ar, gritos
confusos gargolejavam do alto entre as palmas.
E no meio de tudo isso u m homem de pince-nez,
muito magro, muito feio, gania quasi a chorar:
— Heroe ! Heroe !
Mas o esforço aniquilára o aclamado. Cal-
mo, imperturbável, cruel, leve como u m florete,
forte como u m rochedo, o campeão do mundo
atirou-se de novo. Le BouCher tombou, tentan-
do* o ultimo recurso de defeza. Quando Pons
lhe ía deitando as espáduas em terra, o joven
154 CINEMATOGRAPHO

gladiador reunia toda a energia, e com a bôca


sêca, o olhar esbogalhado, erguia-se, salvava-
se. Pons não desfalecia porém, e de prompto
repetia o ataque... de modo que, quando nin-
guém esperava, Le Boucher estatelou os hom-
bros numa ponta do tapete.
A multidão então desencadeou a sua fúria
em palavradas, em aplausos, em vaias, um
verdadeiro frenesi histérico. E u estava ater-
rado. O barão exclamava:
— Como na antigá Roma, o ludus divinus!
A multidão vocifera !
E naquella tempestade de ódios e de admi-
rações, Pons e Le Boucher saudaram, desapa-
receram, indiferentes aos urro:, ás pragas e
ás aclamações.
Tinhamos assistido ao mais excitanle espe-
táculo dos tempos *modernos...
A solução d o s transatlânticos

ESTAÇÃO de inverno está oficialmente aber-


ia..
Esta frase, de cuja elegância social nin-
guém duvida, significa c o m amplidão que a
cidade, farta de descançar das violências cani-
culares, resolve entregar-se, doidivana e perdu-
lária, ao oceano do agitado prazer. O prazer
é estar em toda a parte onde a gente se diverte
ou unge d i v e r t i r : nas regatas, nos prados, nos
campos de foiot bali, nos restaurants chies, nas
recepções de etiqueta, nos theatros, na a l u -
vião de companhias estrangeiras que nos che-
gam p o r todos os vapores. E, cousa curiosa !
é possivel que o dinheiro ande arredado da bol-
sa dessa comandita da pândega urbana, é
possivel que n e m sempre os sports, inclusivé os
da freqüência aos restaurants e ás pretensas
recepções, sejam hurU e animadores. H a u m
156 CINEMATOGRAPHO

p r a z e r a q u e o p u b l i c o , c o m d e l i r i o , se e n t r e g a :
o theatro !
S i m ! o t h e a t r o . P a r e c e incrível, m a s é ver-
d a d e . M e s m o n o m o m e n t o e m q u e o s actores
n a c i o n a e s se q u e i x a m d a ingratidão d o p u b l i c o ,
m e s m o neste m o m e n t o , o s theatros rebentam
de g e n t e , c o m a s s a l a s a b a r r o t a d a s . A scena é
l u g u b r e m e n t e cômica. A o p r i m e i r o a n u n c i o
das a n d o r i n h a s estrangeiras, os m a m b e m b e
que f u n c i o n a v a m hesitantemenle, tiveram u m
d e s m a i o ; á c h e g a d a d o b a n d o , r e c u a r a m espa-
v o r i d o s e a g o r a a b a n d o n a r a m t o d o s o s postos,
n u m a confessada derrota, cheia d e resentimen-
tos m c o m p r e h e n s i v e i s . E, e m q u a n t o a m a i o r
p a r t e a b a l a p a r a a peregrinação e s t a d u a l , —
c a d a c a s a d e espetáculos o f e r e c e p e r m a n e n t e -
m e n t e o espetáculo d e u m a e n c h e n t e e g a n h a
dinheiro a zarzuela, g a n h a m dinheiro o drama
e a o p e r e t a i t a l i a n a , g a n h a m d i n h e i r o a s por-
luguezas.
P o r q u e ? O s a r t i s t a s n a c i o n a e s queixam-se;
os a r t i s t a s n a c i o n a e s t ê m o a r d e q u e o p u b l i c o
e l e v a o s e u f r i v o l i s m o a s e r i m p a t r i o t a , e é caso
p a r a p e r g u n t a r se h a razão p a r a t a l p r o c e d i -
m e n t o p o r p a r t e d o s freqüentadores d o s thea-
t r o s . E, q u a n t o m a i s o b s e r v o , m a i s m e certifico
de q u e é o p u b l i c o o único a t e r razão.
Q u e d e s e j a q u a l q u e r p e s s o a q u a n d o v a i ao
t h e a t r o ?" O m e s m o q u e q u a n d o v a i a o restau-
rante a o a l f a i a t e o u a o b a r b e i r o , c o m o q u a l i d a -
CINEMATOGRAPHO 157

de'primordial: limpeza no serviço. Nada mais


terra a terra. Como o restaurant, o alfaiate e o
barbeiro, só ganha dinheiro o theatro que sabe
bem servir o seu publico.
Entretanto, que fazem os nossos artistas ?
Os nossos artistas agremiam-se em associações
com o dominio dos carranças ou a inconscien-
eia pastrana dos pedantes, a sufocar os verda-
deiros talentos, e resolvem empresas propria-
mente de exploração de scenarios velhos. Eu
só me capacito de que esta cidade tem mesmo
um milhão de habitantes boníssimos quando
vejo anunciado ainda o Remorso Vivo e á noite
encontro num scenario inaudito o velho Dias
Braga, urrando para centenas de espefadores
a horrenda moxinifada.
Não se faz nada de novo, não se trabalha,
não ha direção, não ha elan. Só se augmenta
em pretensão e em defeitos, e de tal fôrma, que
as constas passaram a se denominar ensemblis-
tas — (é gaiato, hein ?) e que as associações se
dissolvem, quasi sempre tendo por base o con-
flito das estrelas e dos estrelos. Ide ao assom-
broso Dias Braga. Esse homem é o prodígio da
sorte. O publico dispensa-lhe uma simpathia
ardente. De «que fôrma corresponde elle? Re-
montando a Graça de Deus e o M\onte Chrisío.
Ide ás outras companhias que exploram o
gênero alegre e o maxixe. Ainda há pouco,
Cinira tentou os espetáculos por sessões. O
15S CINEMATOGRAPHO

p u b l i c o v i u u m a c o u s i n h a m o d e s t a m a s nova e
c o m p e n s o u l o g o . Q u e se íaz n a e m p r e s a e m que,
se h a v i a a C i n i r a c o m v o n t a d e d a novidade,
h a v i a n o a r c h i v o o l i b r e t o d o Rio Nú ? P a r a cor-
r e s p o n d e r á b o a v o n t a d e d o s freqüentadores,
t o m e Gran-Via, c o m s c e n a r i o s velhos e sem
ensaios, t o m e Joven Telemaco, t o m e Tim-Tim,
t o m e Capital Federal c o m tres coristas apenas!
H a q u a r e n t a a n n o s o nosso repertório dra-
mático é o m e s m o . H a q u i n z e é o mesmo o
nosso repertório leve. O s artistas a n t i g o s e fei-
tos n ã o se q u e r e m d a r ao t r a b a l h o de estudar
peças novas, e os a r t i s t a s novos, s e m escola,
s e m e n s a i a d o r , s e m d i s c i p l i n a , têm p o r ideal
f a z e r os p a p e i s d a s peças velhas c o m o con-
f r o n t o . D e m o d o q u e a h i temos, c o m excepção
da s r . L u c i l i a Peres, q u e r e s o l v e u confrontar-
a

se c o m Duse, a Réjane, a T i n a e a A n g e l a Pinto


— c o m o peças escola: o Remorso vivo, o Mar-
tyr do Calvário, o Tim-Tim por Tim-Tim ! E'
i m e n s a m e n t e d i v e r t i d o o u v i r essas meninas
dizerem:
— N ã o v e i u -hontem? P o i s e ufizpela pri-
m e i r a vez o colorao picante do Tim-Tim.
O u ainda:
— H o n t e m n o Marlyr q u e m fez a Verônica
f u i eu...
C o m o se t i v e s s e m d a d o u m a p r o v a clássica,
r e p r e s e n t a n d o a C e l i m e n e o u a Chimêne. Que
faz o p u b l i c o ? O p u b l i c o a i n d a v a i , a i n d a atura
CINEMATOGRAPHO 159

o Tim-tim, ainda se senta tres horas, pagando


com o seu dinheiro para olhar a mobília impé-
rio que no Dias Braga serve para todas as peças
ha dez annos e' os scenarios transparentes do
Silva Pinto.
Apenas, v a i pouco... Quando não ha com-
panhias estrangeiras, enche os cinematogra-
íos de tal fôrma que enriquece os proprietá-
rios inúmeros em alguns mezes; quando as
companhias vem, vão á ellas.
E' que essas companhias de tournée, sejam
compostas de gênios, tenham mise-en-sccne de
causar inveja ao Antoine, á Réjane, o u ao Gui-
try, vozes fantásticas, repertórios inteiramen-
te novos? Não. Nada disso. As nossas platéas
não são exigentes. Mas ha em cada troupe
ordem, disciplina, u m esforço contínuo, persis-
tente, desesperado de agradar. Os artistas tra-
balham, dão tudo quanto têm, guardam o orgu-
lho da sua profissão e.a vontade louca de su-
bir no conceito do publico para voltar, ganhar
mais dinheiro. Ide á companhia ialiana do mo-
desto e inteligente Vergane. A ultima novida-
de elle mesmo a traduz e o seu g r u p o modesto
representa-a com u m enirain que nós qualifi-
caríamos de admirável se fosse nacional. I d e
ás companhias portuguezas. Estão trabalhando,
ensaiando, cada actor querendo sobresaír mais.
O publico compara, o publico é cruel, o pu-
blico v a i ao estrangeiro. Os actores nacionaes
160 CINEMATOGRAPHO

de valor, vendo-se na dura contingência de não


poder lutar contra a corrente, correm aos trans-
atlânticos: Mattos, Medina de Sousa, Olympio
Nogueira, Rangel, Grijó, o dessus du panier
theatral, incorporou-se ao batalhão de lá. Raros
são os que ainda resistem heroicamente, solitá-
rios comovo Peixoto, ou em toumées estaduaes
como o Ferreira. As companhias estrangeiras,
que eram raras, começaram a vir aos magotes,
passaram a demorar mais tempo, quasi todo o
anno, e positivamente agora nós temos o es-
treitamento das relações com a Itália e com
Portugal, através de um bando de artistas que
passam lá quatro mezes e oito cá, — artistas
transatlânticos, theatro transatlântico.
E' a solução da decadência theatral — so-
lução que só espera a abertura do Municipal
para ter o beneplácito oficial — porque mesmo
os organizadores do projeto, mesmo o incul-
cado diretor, são todos convencidos da neces-
sidade de contratar o elenco em grande parte,
«pelo menos para começar», no theatro portu-
guez.
Talvez isso não agrade aos artistas nacio-
naes ? Mas a culpa é só desses artistas e fo-
ram elles que pelas suas próprias mãos trou-
xeram o theatro nosso a esse lastimável estado
que seria a perpetua escandalosa ruina se não
fosse a solução moderna: a solução dos trans-
atlânticos.
A r e f o r m a das coristas

E RURALMENTE nós todos começamos a r i c

A pequena tinha geito para a cousa. Cada


gesto seu era u m modelo de topete e de cynis-
mo, desse cinismo de «bonbonniere» em mon-
tra de confeiteiro, um. cinismo que se ofere-
cia, que se ofertava, que estava a l i . No meio
das outras, os cabelos loiros repuxados para
traz como a crina de uma poldra, o dorso c i -
Ihado pelas barbatanas do colete que lhe co-
miam o ventre, pondo em relevo as linhas das
ancas, o busto empinado, as mãos adejantes,
a garota dansava como ninguém a vertigem do
«cake-walke». F o r a Cinira Polônio, a estrela
eoniscante, que com o seu faro de theatro des-
cobrira na linha de vinte coristas aquelle diabo.
-Olhem, fazia ella, porque não dansam
vocês como a pequena ? Imediatamente, todos
162 CINEMATOGRAPHO

os olhos convergiram para o bichinho, minu-


tos antes anônimo. O maestro parou: —Ho-
mem, realmente, eslava vendo isso mesmo; o
empresário coçou a cabeça, e lodo o theatro]
naquela hora de ensaio, em que a crua vio-
lência do sol do terraço tomava u m esmorecido
ar ceruleo para os lados do palco, esperou com
um sorriso pregado na face. As coristas, algu-
mas conservavam as mãos no ar e eram uma
galeria de caras empapuçaclas ainda do somno
da manhã, mas moças bem moças, bem fortes.
Ciniria Polônio fez u m gesto.
— Venha cá você. •
A pequena sorriu e aproximou-se num
passo de «footing», o passo sport inaugurado
por ceHas cocottes nas fatigantes cxhibições
do Casfellões. Tinha um enorme chapéu de
palha do Chile com fitas de velludo c- era a
única de lábios pintados.
— Prompto.
—• Nunca trabalhaste em theatro ?
— Não senhora, agora é que estreio.
. — Ah l estréias agora, sorriu a estrela acen-
tuando o verbo. E donde vens?
— Venho da casa da Chica Pereira, estou
lá p o r causa de u m sujeito que me queria ex-
plorar. Comprehende, eu não sou dessas. Foi
!á que eu aprendi o «cake-walke» com os inl
glézes. uns diabos, madame, que é chegar e é
vestirem-se com a roupa da gente.
CiNEMATOGRAPHO 163

— E que edade tens t u ?


— E u v o u fazer quinze.
- Bom, fez o empresário, vamos vêl-a dan-
sar o negocio, mas só.
O maestro fez soar os primeiros acordes, e
ella empinou-se, e como estava sendo observa-
da, exagerou, caricaturou a dansa n u m deli-
do que era uma pândega, brandindo a sombri-
nha e gritando «away !» Naturalmente, então,
nós começávamos a r i r , quando u m empregado
trouxe desdobrado um papel da justiça para o
ensaiador.
Em baixo, na platéa, u m magote de agentes
secretos e de soldados da policia, olhava o en-
saio.
— Quem é*aqui a Etelvina dos Santos? i n -
dagou o ensaiador.
— Sou eu, sim senhor. Ainda esses cana-
lhas !...
— E', o juiz manda entregal-a aos agentes.
Você é menor, vai ser depositada numa casa
de família.
— Imbecis !'Já me mandaram buscar tres
vezes á casa da Chica. Não querem deixar a
gente ser o que deseja. Mas eu os arranjo !
Todo o pessoal do theatro, coristas e car-
pinteiros, actrizes e actores, não teve uma p i -
lhéria. A pequena tomou o seu ar mais arro-
gante, desceu á platéa, sumiu-se no terraço
com os agentes, como quem vai esbofetear al-
guém.
164 CINEMATOGRAPHO

— Mas que juiz esse que deseja moralizar


uma pequena de tanta força.
— O diabo é que a rapariga tem geito. Bom !
a postos, minhas senhoras. Maestro, repita.
De novo o piano começou o «cake-walk» c
as mulheres de capa larga, a face desbotada
pela noite em claro, moveram-se num rumor
de sedas roçadas. Eu, a um canto, vendo passar
no palco aquelle punhado de mulheres que á
noite acenderia desejos na platéa, pensava na
vida curiosa das coristas nacionaes. Ah, as co-
ristas ! Neste paiz em que as mulheres não tem
grandes necessidades, o posto de corista era
positivamente dado ás infelizes. Os autores
nada lhes faziam nas peças alegres, nem as
punham em relevo. Eram damas*ou muito gor-
das ou muito magras, lamentavelmente sem
graça. Quando aparecia uma criatura mais
moça, ou não demorava, ou morria ou era
logo artista empurrada pelos cômicos-, jungida
ás ligações violentas. E era uma tristeza vêr mu-
lheres velhas com famílias numerosas, o ventre
enorme, o corpo numa elephantiasis de linhas,
cambando os sapatos c sujando as gazes, cla-
marem nos revistões cariocas: «nós somos as
nimfas», ou outra qualquer afirmação ainda
mais escandalosa, para ganhar cinco mil réis...
Era angustioso. Nos ensaios, os ensaiadores
esguelavam-se para fazel-as comprehender um
gesto comesinho; nos inlei-valos, algumas da-
CINEMATOGRAPHO 165

vam de m a m a r aos filhos émquanto as outras


se rcmordiam numa inconsciente miséria entre
os carpinteiros bastante máos para atirar-lhes
scenarios e maços de corda. As coristas ! E r a m
os canhões de bucha, émquanto a estrela mu-
dava de roupa e o actor principal punha outro
colarinho. E não havia quem quizesse ser co-
rista. Algumas tinham vinte annos de trabalho
efectivo, talvez mais. A l g u m a s eram contem-
porâneas da p r i m e i r a revista nacional...
E agora, com a transformação das ruas, a
cidade escancarava de súbito' a indignidade e
o vicio, mostrava todas as furnas do caftismo
c nós viamos, ao desejo do luxo, ao contato
com o horror, uma flora precoce de pequenas
' depravadas, galgando o tablado com uma an-
ciã de bachanal e piscando de lá o olho, n a
edade em que deviam b r i n c a r o «siranda-siran-
dinha» das estalagens onde nasceram... E r a o u
não a civilização, era o u não o R i o reflexo de
P^ris, era ou não a cidade egual a todas as
outras cidades, com as mesmas necessidades,
a choréa de cinismo c o mesmo apetite pelos
frutos ácidos, pela mocidade que todas as c i -
dades velhas possuem ? De embrulhada, o thea-
tro também se transformava, e no gênero ale-
gre nós iriamos o u v i r as graças — ( s i m ! as
graças, tudo é possivel...) — dos revisteiros api-
mentadas, esquentadas p o r todo aquelle exces-
so de provocações fesceninas...
12
166 CINEMATOGRAPHO

Mas que iriam fazer as outras, as velhas, as


mães de familia ? Que iriam fazer esses bone-
cos de musica desafinada, que durante decê-
nios se estatelaram em scena, cantando como
que a mesma cousa sempre ? Como se ali-
mentariam as pobres, agora, depois de uma
vida inteira passada a dizer — «nós somos, nós
somos...», num côro vasio e lamentável, vestin-
do em metins baratos todas as fantasias desde
a de flôr á de animal ?
Oh ! era a reforma das coristas, reforma de-
soladora apenas para as reformadas, mas com
um bando de recrutas, em que se sentia todo
um exercito feito por um sorteio indireto e.
lambaceiro.
O «cake-walk» acabava. Deixei o theatro,
subi a rua do Espirito Santo. Mais adeante ou-
tro buraco dramático. Enfiei, e oh ! Deus do
céo. Dei exactamente noutro escândalo da re-
forma.
No terraço, sob o riso dos carpinteiros e do
pessoal barato, um tipo baixinho, magro, de
calça larga e bigode torcido, espumava pragas
contra uma menina de vestido curto, mal ajam-
brada, ainda pouco mulher, ainda pouco limpa,
com os olhos de animal e uma bôca vermelha,
uma bôca sangrenta, uma bôca que parecia
um fruto. J á linha mandado chamar o diretor
o tipo. Estava decidido.
— Mas o que é ? fiz, intervindo.
CINEMATOGRAPHO 167

- Que tem com isso ? indagou elle. .Venho


buscar minha mulher.
— Quem é sua mulher ?
— Sou eu, chorou a pequena. Sou eu, mas
estou separada ha seis mezes delle, porque ma-
ma disse que homem sem trabalho não é ma-
rido. E u casei, não foi p o r gostar; foi porque
o delegado obrigou. B u r r o !
— Desavergonhada !
— Mas que é isto ? Você, menina, que edade
tem ?
— Quatorze, s i m senhor, mas já. sou m a i o r
e separada; e não vou, não vou, porque quero
•representar e ganhar a minha vida.
Deu uma rabanada e p a r t i u para o palco,
num bamboleio feroz de todo o corpo, émquan-
to o marido batia o pé, damnado.
Neste momento, porém, apareceu o diretor.
— Não repares, filho. São as coristas novas.
E' a reforma. Tudo voluntário, mas uma des-
organização feroz.
- Sinto pelas outras e comprehendo a misé-
ria, o vicio, o h o r r o r desses destroços precoces.
-Bonita frase! Anda dahi, vamos tomar
um grog. O' José, ponha esse marido lá fóra...
E fomos tomar g r o g gelado com algumas
actrizes maduras e loucas de riso — porque os
incidentes da reforma eram realmente alegres —
émquanto o marido, empurrado pelos carpin-
teiros, saía aos trancos, praguejando...
A critica nos bastidores

© CAVALHEIRO (|ue a t e n t a m e n t e l i a o j o r n a l ,

e r g u e u os olhos, s u s p i r o u e disse:
— Você, é u m c r u e l !
— P o r que, c a v a l h e i r o ?
— P o r q u e é. V o c ê l e v a a f a l a r m a l d o s
grandes trabalhos nacionaes, escolheu a posi-
ção c ô m o d a d e n ã o sêr c r i t i c a d o . A h ! você v a e
p a g a r c a r o . D i z e m q u e você está a r r a n j a n d o
c o m o u t r o c o l e g a u m a pilhéria e m 1 a c t o p a r a
u m t h e a t r o de trololó. P o i s b e m . O u você es-
creve u m a tragédia s h a k s p e a r e a n a , o u t e m
ahi t o d a a c r i t i c a a a t a c a l - o .
— Mas porque, cavalheiro ?
— P o r q u e você é i n c l e m e n t e .
0 cavalheiro dizia a q u i l o depois de t e r l i d o
a l e n t a m e n t e o j o r n a l . Mas, s o r r i a . E e u p e r c e -
bendo que o amável h o m e m e r a i n c o n t c s t a v e l -
a i e n t e u m a p a r t e d a opinião p u b l i c a , t o m e i - l h e
o braço e f u i a n d a n d o c o m e l l e . .
170 CINEMATOGRAPHO

— Meu caro, a apostar que você leu isso


ainda agora. Como eu não me abalanço ás
vertigens da critica senão para fazer noticias
theatraes e inserir reclamos de toda a gente,
segue-se que no jornal ainda um descontente
falou. Ora, excelente cavalheiro, eu vou fazer
uma confissão que o assombrará: em theatro,
ainda não falei mal de ninguém, por que não
é possível. O estado da praça theatral é tão
precário que seria um atentato de lesa-existen-
cia uma opinião desfavorável. Quando vou ás
«primeiras», estou convencido de que a casa
está cheia a transbordar e que os artistas foram
excelentemente. E' o máximo da isenção de
animo: julgar antes de vêr. E acho que pro-
cedo bem, porque depois de vêl-os, se lhes no-
tasse defeitos, augmentaria a fama de maldi-
zente e a vaidade ofendida do cômico. Sou mes-
mo o mais formidável dizedor de elogios de
que ha memória nos fastos theatraes, e isto por-
que se eu dissesse que a D use ás vezes repre-
senta sem vontade ou que a corista Fulanita
guinchou de mais, o theatro em peso desanda-
ria a cortar-me na pelie, em nome da tradição
e da pobre coitadinha. No dia que um sujeito
atrevido quizesse ter o trabalhão de escrever
contra o theatro, devia antes suicidar-se. A cri-
tica não adeanta nada e se o elogio não faz ir
aos theatros, a má vontade de uma noticia faz
com que a falta de publico seja imputada á fa-
CINEMATOGRAPHO 171

tal noticia. E, você, cavalheiro, comprehende


o horror, o remorso de um homem de bom co-
ração vendo desde o empresário até o varredor,
amarguradamente, todos a dizer em olhares,
que variam entre a cólera furibunda e a tristeza
lancinante: — Foste t u ! A culpa é tua...
— Caramba !
— Não sei se você já espaireceu o espirito
pela Legenda dos Séculos, de Victor Hugo.
Pois a situação do que diz mal é durante oito
dias pelo menos a do Caim do grande vate.
Depois... (quer você tomar uma limonada? Está
fazendo um calor de rachar !) depois, eu estou
que só por inteiro afastado do ambiente é- que
se pôde fugir ás sugestões de mutuo auxilio.
A média dos nossos artistas, e na média não
incorporo os primaciaes, o Brandão e o Macha-
do, na revista de anno, o Peixoto nos vaude-
villes, a Cinira nas revistas, a Lucilia Peres no
drama — são capazes de dar muito mais do que
dão. O publico abandona o theatro, o empresário
aflito recorre á bambochata. E' justo censurar?
Nunca ! E, naturalmente, exagera-se o elogio.
— Isso não é critica !
— E' a critica de toda a parte — da França,
da Inglaterra, da Itália, dos Estados Unidos.
0 elogio começa a ser feito com á inserção
de pequenas locaes, pagas nos outros paizes e
aqui grátis, no fiem, como diz pitorescamente
a giria consagrada pelos escriptores. ü público
172 CINEMATOGRAPHO

fica s a b e n d o q u e n a peça t r a b a l h a u m batalhão


de g e n t e , q u e o s n ú m e r o s d e m u s i c a são lindis-
s i m o s , q u e n o s e n s a i o s o s r i s o s são s e m fim.
Q u a n d o a peça v a e já se s a b e t u d o , e os críti-
cos n a «primeira», após o p r i m e i r o acto o u o
s e g u n d o , traçam n e r v o s a e apressadamente:
« A c a b o u o 2.° a c t o . A p l a u s o s d e l i r a n t e s . O u
m u i t o n o s e n g a n a m o s , o u esta peça chega ao
m e i o centenário» — centenário q u e é p a r a nós
a meta do agrado excepcional. -
D i z e m q u e o p u b l i c o c o n h e c e a condescen-
cia. T o d o o t h e a t r o também. S ó u m limitado
n u m e r o d e a r t i s t a s lè. O s o u t r o s n ã o têm tempo
o u só lêem q u a n d o : n ã o se d i z t o t a l m e n t e bem.
Então, é u m h o r r o r , u m a tragédia. — «Fulano
n ã o g o s t o u d o t r a b a l h o d e C i c r a n o . P o i s se
estão z a n g a d o s ! A h ! a q u e l e a n a l f a b e t o !» Está
o cavalheiro admirado ?
— Realmente...
— ' P o i s a i n d a o u t r o d i a e u t i v e u m caso
h i l a r i a n t e p a r a a coleção. C e r t o órgão achára
os v e s t i d o s d a s c o r i s t a s u m p o u c o fanés. A' noi-
te, n o s bastidores,, p a l e s t r a d e j o r n a l i s t a s , e
u m a d a s c o r i s t a s , i n d i g n a d a : q u a l d o s senhores
é d o j o r n a l t a l ? E u q u e r o m o s t r a r q u e o ves-
tido é b o m e custou b o m dinheiro... F o i um
tout petit scandale /... A h ! e x c e l e n t e c a v a l h e i -
r o , a v i d a d o s b a s t i d o r e s , o r e s u m o d a existên-
c i a cá d e fóra, a p l a c a s e n s i v e l d o m u n d o ! Os
n o s s o s r o m a n c i s t a s d e v i a m traçar esse t r e p i d a m
CINEMATOGRAPHO 173

te existir de riso de amargura, de sentimentos


hyperestisados, e de sofrimento em que tudo
se confunde. O theatro só é bem nosso, bem
local nos bastidores, e eu que o amo (ha certos
sentimentos contra os quaes não se luta) cada
vez sou mais complacente e mais amigo desses
artistas que hoje muito camaradas, estão furio-
sos ámanhã para depois de novo se tornarem
excelentes...
— Alas não se trata dos artistas; trata-se
dos escriptores. Dizem que você os ataca.
— Eu?*Mas, creatura, eu elogiei até uma
peça assignada pelo Fonseca Moreira !
Foi o record mais desabalado da minha vida,
mas venci-o. Está claro que limito a minha
admiração incondicional a Coelho Netto e ao
mestre incontestável que é o Arthur Azevedo,
mestre na comedia, mestre na pièce. mestre na
burleta, mestre na revista, o autor não só do
Dote, como dessa delicia que é a Fantasia e
desse encanto que é a Fonte Castalia. Arthur
e Netto impõem-se pelo trabalho e o valor. To-
dos os outros, porém, vivem no elogio das mi-
nhas linhas. E, de resto, são pouçoS. Nós não
temos, representados, muitos dramaturgos. Ha
apenas tres ou quatro burletistas ou, antes, tres
ou quatro capital-iederalistas que demonstram
muito espirito mas prendem a burleta ao mesmo
enredo do casamento, depois de algumas cabe-'
çadas do rapaz.
174 CINEMATOGRAPHO

— Pois asseguram que você vae contra o


êxito alheio...
— Escrevendo aquellas notas de que já dei
um exemplo ?
— Não, atacando os budistas. Veja você
este artigo.
O cavalheiro desdobrou o jornal e eu vi o
fatal artigo. Com a modéstia humuristica de
sempre, o desopilaníe e por mim louvado escri-
ptor do Povoamento do Solo, assegurava aos
•povos que eu fora cruel e pérfido —para nós
os burletista, ai de nós, para nós os bur-
letistas, chovem inimigos! E por que fôra
eu cruel e pérfido, pae do céo ? Porque num
pequeno artigo de analise social, pretendia exa-
minar o estado da nossa sociedade para com o
theatro, permitindo a este, depois de muitos
annos, apenas a observação, do rapaz estroina
e conservando fixos e inalteráveis todas os ou-
tros tipos, alguns dos quaes já defuntos na
mesma sociedade, como o moleque, o pequeno
chorão e a mulata irmã de leite da smházinha...
Deuses que povoam os céos ! Era decidida-
mente o melhor artigo pilherico do inesgotável
humorista. Estive quasi a telegrafar-lhe pedin-
do repetil-o como qualquer das suas espantosas
conferências. E só podia julgar assim, porque
não me passaria jámais pela cabeça que um
escnptor íisongeado pela critica levasse a sus-
ceptibilidade desconfiante a ponto de achar
CINEMATOGRAPHO 175

ataques á sua obra p r i m a n u m artigo com exem-


plos sobre certo caso de observação social.
Era a mesma coisa que se eu dissesse: «no
verão chove á tarde», e noutro dia u m cidadão
assegurasse estar eu a desmoralisar o clima do
Rio de Janeiro, com uma grande perfídia; era
a mesma coisa que se eu assegurasse: «as mo-
cas casam dos 17 aos 20 annos» — e, no outro
dia aparecesse u m artigo assegurando o meu
insulto á pátria e á familia — era, afinal, u m
disparate de vaidade, se não fosse uma engra-
çadissima caçoada.
O cavalheiro', porém, que l i a o j o r n a l e
era uma parcela cia opinião publica, terminava.
— Mas a sua peça? Você ha de ter tipos
novos ! Se não tiver tipos novos, arrebentam-
no !
— Cavalheiro, você sabe o que é a minha
peça, a peça que c i e resto nunca farei? Uma re-
vista. Ora uma revista com tipos novos é mais
uma pilhéria, uma revista sem compadres a ne-
gação do que eu tenho escripto ha quatro annos
achando eme o molde da revista é a franceza,
com compadres e sem comedia. D'ahi almejar
fazer uma revista t a l qual a dos outros, dei-
xando os tipos novos e arte pura e a enverga-
dura, ás tragédias até agora inéditas, p o r culpa
empresaria, cio Bapiista Coelho.
— Dahi?...
— D'ahi dar-me uma gana enorme de se-
176 CINEMATOGRAPHO

guir, embora sem engenho, as pégadas de toda


a gente. E, só não me moldo pelo modelo novo
de <(nós outros, ai de nós, os burletistas auto-
res!», só não me restrinjo ao Povoamento do
Solo, porque, infelizmente, o novo clichê das
burletas (ai de nós, os escriptores theatraes que
têm a pérfida e a impiedade de quatro ou cinco
artigos elogios dos críticos !) — foi povoar o po-
rão superaborrotado desse camaradão incondi-
cional que se chama Dias Braga, ivias vamos
tomar uma limonada. Os bastidores da critica
são esses.
Legendas, vaidades e desconfianças. Como
quer você que se tente uma opinião geral sem
passar por pérfido ? Eis a razão porque revogo
as disposições de analise, e retomo sempre a
frase das primeiras ((Theatro cheio. Aplau-
sos delirantes. Ou muito nos enganamos, ou a
peça tem cincoenta representações seguras»...
A peça vae dez vezes, mas não ha descontentes.
E o ideal da vida, cavalheiro, é tomar uma li-
monada, com a consciência de não ter azedado
o trabalho glorioso dos contemporâneos...
C^natho

C HOVIA muito á tarde de hontem. No largo


da Lapa, os grossos cordões d'agua ba-
lem Io no asfalto, davam á praça uma expres-
são de oceano agitado e os carros que passa-.
vam, os automóveis em disparada, as tipoias e
os tilburys m a l abrigando os passageiros, fa-
ziam uma perpetua e contínua debandada. Exa-
tamente àquela hora, com o guarda chuva v i -
tima das coleras do vento, eu corria á estação
de tilburys, quando senti que alguém ao meu
encalço se precipitava:
— Excelentíssimo ! Excelentíssimo !
Parei, voltei-me e deparei com o sorriso nos
lábios e todo alagado aquelle celebrado perso-
nagem da comedia grega que dá pelo nome de
Gnatho. Gnatho era, como toda a gente sabe,
o parasita das comédias de Menandro, encar-
regado de viver de lisonjas baixas aos generaes
178 CINEMATOGRAPHO

fanfarrões. Como esses personagens são imor-


tacs, o amável Gnatho passou a Roma com as
mesmas funções e tomou tal incremento que
de simples tipo de comedia de Terencio acaba
.entre nós influencia política c homem de con-
ceito.
Apenas, tendo casado e sendo a família
maior que a do Dr. Accioly, Gnatho muda de
nome ás vezes e quando assigna, acrescenta
ao seu nome, que vale por um programa, esta
modesta conclusão: «da Conceição». Eu estava
pois, naquela tarde de chuva, em presença do
pae da formidável arvore do engrossamento,
Gnatho da Conceição.
Estendi-lhe a m ã o :
— Amado homem !
— Caríssimo doutor, vi-o passar e senti um
tal desejo de ouvir-lhe a voz que não resisti, e,
atirando-me á chuva, corri ao seu encalço. Bem
disposto, sempre ? A família toda boa ? E a
senhora ? Ah ! desculpe, V . E x . não é casado.
a

Está dando o seu passeiosinho ?...


No tempo do general Thrasão, eu daria al-
gumas drachmas a Gnatho ou convidal-o-ia a
jantar, sentindo sob a sua lisonja muita fome.
No tempo do general Pinheiro Machado, Gna-
tho é muito mais, é o ambicioso político, é o que
aspira a tudo, é o que consegue remir a nomea-
ção para o Povoamento e a simpathia do chefe
do resistente Bloco e ter, através das opiniões
CINEMATOGRAPHO 179

divergentes e dos tempos desiguaes uma única


opinião definitiva: a de servir bem á sua pessoa.
Percebi, sem dificuldade, que o admirável
Gnatho da Conceição queria apenas orientar
essa opinião, e, generosamente, interroguei:
— Então as coisas não vão bem ?
Gnatho s o r r i u :
— 0 excelentissimo é arguto. Devo dizer,
entretanto, que para m i m em toda a parte do
mundo as coisas vão sempre bem. E u sou imor-
tal porque sou a lisonja. A lisonja é tudo,
é a ambrosia enganadora servida aos humanos.
Viver é sempre possivel quando se dispõe de
engenho para uma polyanthéa e para se mos-
trar a outro homem esta coisa theatral que se
chama admiração. Estou, com efeito, u m tanto
desequilibrado.
— Ah !
— Mas um desequilíbrio momentâneo, e isto
sabe por que ? P o r causa da politica, meu ilus-
tre amigo, p o r causa da lealdade politica. Nun-
ca se meta em politica. E' u m inferno !
A chuva continuava a cair. Os carros, com
os cocheiros ávidos p o r freguezia. faziam em
torno de nós circulos perigosissimos. Quiz par-
tir, deixar o doce Gnatho atribulado. Mas não
sei p o r que, vinha-me u m desejo imenso de
interrogal-o. Então, tomei o carro, fil-o subir
também.
— Gnatho, v o u para a T i j u c a .
ISO CINEMATOGRAPHO

— Acompanho-o, excelentíssimo.
- Sc quizeres, deixo-lc á poria do general
Pinheiro.
.Gnatho esticou-se no carro.
i— Não, não precisa. Eu não sei mesmo se
lenho relações com esse general. Depende, de-
pende muito. Não ria. Eu explico. Esse general
é antes de tudo um produto meu. Póde-se dizer
que eu lancei o blufl do Bloco. Diga-me o exce-
lentíssimo que seria o general Pinheiro Machado
sem presentes cie gaios, mandados por uma
porção de pessoas, aliás fiadas umas nas outras,
desde o filosofo mais elegante ao poeta mais
ardente ? O general Pinheiro seria exatamente
o general Pinheiro sem presentes de gaios?
Diga !
— Com franqueza, os presentes de gaios
eram realmente...
— Ora bem. Quem mandava os presentes?
A lisonja virilisada neste paiz com o nome de
engrossamento, eu, afinal, eu, Gnatho da Con-
ceição, para o servir ! Ha mais, porém. Que
seria o general Pinheiro sem manifestações,
bandas de musica e cliscürseira e landau e pres-
i d o e illuminação a giorno sempre que voltava,
mesmo que fosse de Nictheroy ? O excelentís-
simo deve ter a mesma opinião. O general assim
era um pinheiro sem ramos, um pinheiro hi-
bernai.
— Devo dizer-te, caro Gnatho, que começas
a ser má língua.
CINEMATOGRAPHO 181

— 0 engrossador vinga-se sempre, excellen-


tissimo.
— Com cinismo.
— E' uma qualidade quando aproveitado.
Mas, ha mais.
— Ainda ?
— Ainda. Que seria o general Pinheiro sem
os telegramas passados p o r mim, sem as fan-
tasias idealisadas p o r mim, sem as cartas escri-
ptas por m i m ? Os deuses e as magestades são
feitas pelo pavor. No meu tempo de Latium,
um poeta escreveu:

Primus in orbis, Deus fecit timor.

Com a maioria desse pessoal que nós en-


grossamos, o engrossamento é que os fez. E u
creei o «eminente», o «illihade». eu trombeteei
a sua enorme força quando estava longe d'elle
para aproximar-me, quando estava perto da
roda, do circulo da intimidade, para que inve-
jassem a minha importância. Só os patetas não
reparam em taes cousas. E o p r o p r i o Terencio
s

faz-me dizer numa das suas comédias: «Que


distancia entre os homens de espirito e os idio-
tas!» Este oficio agora é dos mais l u c r a t i v o s !
— Gnatho, você está damnado.
— Não é para menos. Sabe um dos últimos
telegramas que eu passei para um dos Estados ?
Este apenas: — « - D e volta da amistosa conferen-
13
182 CINEMATOGRAPHO

cia que se d i g n o u ter com o sr. Affonso Penna,


o eminente senador P i n h e i r o Machado teve á
sua disposição u m vagon especial cedido pela
Leopoldina. S. E x convidou o ministério a
a

descer em sua companhia)). Está admirado? Eu


escrevi isso e isso devia t e r sido publicai Io.
Pois bem. E' neste momento e m que me com-
prometia afinal com o digno moço, Dr. Car-
los Peixoto, (uma joia, u m brilhante sem jaça
a quem pessoalmente só devo gentilezas), que
o general despe o ponche e recolhe.
— Mas Gnatho, quanto ganhaste t u em fa-
zer com os gallos, os ponches, as manifesta-
ções, as discurseiras, a lenda de Pharaó bra-
silico ao eminente prócere do Bloco?
— Nada, m e u amigo, nada. Esse guerreiro
era engrossado sem interesse. E u engrosso
sem interesse. E' instintivo, é o meu natural.
Aos meus filhos e afilhados, está claro que o
general deu muitas cadeiras de deputado. Houve
tempo mesmo que e u temi a concorrência ás
marcenarias nacionaes, fóra os empreguinhos.
Mas a m i m — nada. J u r o .
O carro rodava. Gnatho espiou u m pouco
a rua.
— Lá vae o senador Vasconcellos mudo e só.
— Salta a conversar.
— E u só converso com gente que tem roda.
Mas, excellentissimo, a m i n h a idéa, o que eu
ía dizer-lhe...
CINEMATOGRAPHO 183

— E' verdade.
— Nós precisamos explicar as coisas. Para
que brigas? Para que tantas complicações?
Não ha duvida que o nosso carissimo amigo
i larlos Peixoto...
— Você já é amigo ?
— Ainda não, mas serei... O nosso eminen-
tissimo Carlos m u r c h o u a crista do velho.
— Que expressões, Gnatho !
— Aprendi-as com o Pinheiro, excellentissi-
mo. Para que insistir, porém ? O Pinheiro ain-
da serve. Que bellos jantares ! Que discursos
sobre os destinos da pátria ! Que fumo goyano !
0 general tem de todas as cores, u m arco-iris
de tabaco. Ora, podiamos entrar numa com-
binação, e os partidos não balançariam a esta-
bilidade da nação com oposições nefastas. O ge-
neral recuou, p o r isso. E u não v o u lá com
medo. Não ha mais ninguém. Queria então
definir a minha posição.
— Que desejas t u , Gnatho ?
— 0 Pinheiro, coitado! é u m bom velho.
Mas precisamos ter o coração desanuviado.
— Desanuvia-o !
- O excellentissimo era capaz de fazer o que
eu peço ?
— Fala sempre.
Gnatho curvou-se para m i m cheio de ter-
nura :
— 0 excellentissimo é uma flôr ! Então man-
184 CINEMATOGRAPHO

de voltar o carro. Mande voltar o carro, e veja


se o Dr. Carlos Peixoto pôde receber o seu
mais humilde admirador...
E nós voltámos, á toda, para a Lapa, onde,
á porta do hotel, Gnatho saltou a apertar a
mão de um batalhão de dedicados Íntimos do
general Pinheiro — ha dois mezes...
Uma exposição

S o subir as escadas da Exposição Latour,

encontrei, que lambem subia, Helios Se-


linger. E Helios, segurando-me o braço, mur-
murou :
— Sim senhor; vaes vêr coisa. O Latour é
gente.
Continuei a subir radiante. E' prazer e gran-
de, poder dizer com razão bem dos contempo-
râneos. Um homem contente com a sua época
torna-se, naturalmente, contente comsigo mes-
mo. E nada mais agradável do que, em vez de
suspirar recordando o passado, exclamar cheio
de alegria: — ah ! incomparavel tempo o nosso
de atividade e de talento !
Eu nunca tive a nostalgia hereditária que
acha sempre o tempo passado bom tempo. Para
mim" hoje, é sempre melhor do que hontem e
peor do que á m a n h ã . De modo que a certeza
186 CINEMATOGRAPHO

do triunfo de um contemporâneo me faz quasi,


por um fenômeno reffexo, participar desse triun-
fo. Latour triunfava e quem lá fosse ía sentir
a influencia misteriosa da belleza. Era um con-
forto para quantos vivem da instrumentação di-
fícil de impressionar o publico e de dominar a
massa pela vibração especial de uma intelligen-
cia maior. Quando cheguei ao alto, estava dis-
posto até a suportar com alegria os freqüenta-
dores de exposição e essa terrível raça de en-
tendidos que ha dez annos vejo desfilar pelos
salons e pelos ateliers cada vez mais pedante e
mais ignorante.
A raça estava toda. Havia a dama amadora
que pinta nas horas vagas entre os trabalhos
de agulha e os exercicios ao piano, tomando
posições scientificas para observar as pinturas
de face-à-main no nariz, havia os rapins espe-
rançados do Montmartre carioca que fica ali
pelos lados da travessa Leopoldina; havia a col-
leção de mestres oficiaes tratados com as con-
siderações de Budhas ambulantes, havia os crí-
ticos desde os velhos até os pequenos de fralda
que nunca viram um quadro e chamam de idiotas
garndes artistas, havia a onda polimorfa do bur-
guez achando sempre'melhor o peor e dizendo
que se fosse o pintor teria feito assim... Era a
freqüência habitual. Deante de um Bemardelli,
essa gente diz sempre:
— Que retrato parecido! E a technica!...
CINEMATOGRAPHO 187

Deante de u m A i u o e d o é fatal e x c l a m a r :
— Que pena não t r a b a l h a r m a i s !
Deanie de u m P a r r e i r a s não passa da frase:
— A f i g u r a é fraca, m a s que p a i z a g e m !
Deante dos q u a d r o s d e L a t o u r , a i n d a n ã o
havia a frase feita: E e r a isso que i m p r e s s i o -
aava como a p r i m e i r a n o v i d a d e — a p r o c u r a d a
classificação fácil e c ô m o d a p a r a u m t a l e n t o que
chega. E u m t a l e n t o que chega, não a r r a n j a d o
pela proteção amiga, m a s v i g o r o s o , i n d i v i d u a l
e ,iaposto pelo seu próprio v a l o r .
Que artista c o m p l e x o esse ! N o seu salon
ha mais de setenta t r a b a l h o s , g r a n d e s télas,
pequenas télas, paizagens, composições filosófi-
cas, alegorias, retratos, fantasias, c a r i c a t u r a s .
E e m cada pedaço d e p a n n o e n q u a d r a d o sen-
te-se a marca, a empreinte d o artista, esse quid
especial que faz p a r a r , faz e x c l a m a r : — h e i n !
ha a q u i q u a l q u e r coisa ! e que é no f u n d o a cor-
respondência eletiva do B e l l o , a c o r r e n t e miste-
riosa que fixa p a r a u m sentimento p e r s i s t e n t e
da alma, o gesto fugace da v i d a e a ondulação
brevissima da natureza. C o m e ç o pela c a r i c a t u r a
meio ingleza dos Touristes em Roma, s e m o
cuidado d e s e g u i r o c a t a l o g o : e dessa v e r g a s t a
bufa os meus olhos p a s s a m p a r a a simbolisação
da Inveja, u m h o r r o r d e h a r p i a pávida e m de-
sesperado a m b i e n t e a m a r e l l o , contrahindo-se
c o m o m e d o o d i e n t o de vêr a v i c t o r i a dos o u -
tros, d i l a t a d o o olhar, s a n g r e n t a a face. D e a n t e
188 CINEMATOGRAPHO

d a figura u m f r i o v o s c o r r e a e s p i n h a , c o m o
d e a n t e d o Veneno o u d a q u e l l a ensangüentada
Cabeça de S. João Baptista q u e H e l i o s S e l i n g i r
faz a p r e s e n t a r p o r u m braço f a t a l d a o b s c u r i -
d a d e d o N a d a . S ã o d u a s impressões i n t e g r a l -
m e n t e d i v e r s a s . L o g o d e p o i s h a o u t r a , a das
g r a n d e s composições, c o m o a Soror Materna, e m
q u e d o m i n a a n o t a u m p o u c o b a n a l d o senti-
, mentalismo socialista.
M a s essa p a s s a g e m , q u e m e r e p o u s a d a f u n -
d a b e l l e z a trágica d a Inveja, l e v a - m e ás paiza-
gens e aos retratos de mulher, e L a t o u r é prin-
c i p a l m e n t e o p a i z a g i s t a d e l i c a d o e o s u b t i l re-
t r a t i s t a f e m i n i n o , c a s a n d o c o m o m e s m o refi-
n a m e n t o o e n c a n t o d a n a t u r e z a e o encanto
perturbador da mulher.
C o m o p a i z a g i s t a , L a t o u r , q u e n o s surge
a b s o l u t a m e n t e s e n h o r d a t e c h n i c a , t e m u m a con-
cepção d e a r t e m u i t o e s p e c i a l , sente a n a t u r e z a
i n t e n s a m e n t e , c o m u m a visão própria, m a s atra-
vés d e u m t e m p e r a m e n t o f r a n c e x . E f r a n c e z mo-
d e r n o . A s u a p a s s a g e m p e l a Itália f o i a d e u m
prix de Rome d a E s c o l a d e B e l l a s A r t e s de
Paris, bastante forte para apreciar, admirar,
aprender, s e m a m o l d a r o seu temperamento á
i n f l u e n c i a i t a l i a n a — i n f l u e n c i a contemporânea,
está b e m d e vêr. A p a i z a g e m t e m u m a a n i m a -
ção p a r t i c u l a r , é u m m o m e n t o d a n a t u r e z a , u m a
expressão fixada c o m u m e l e m e n t o tão j u s t o e tão
i n t i m o q u e t e m q u a l q u e r c o i s a d e psicológico.
CINEMATOGRAPHO 189

Essa palavra i m p o r t a n t e de psicologia talvez


seja de m o d e r n a aplicação ás coisas inani-
madas.
Mas o h o m e m fez-se para emprestar u m a
alma ao que o cerca. H a objectos que t e m his-
toria, casas que vos dizem mistérios, horas fa-
talmente alegres o u inexoravelmente tristes,
arvores amorosas e arvores puritanas e auste-
ras. A natureza multiplica-se nessas expressões
em que as côres falam e sugerem... -
L a t o u r reproduz os grandes momentos, a
virgindade das manhãs e a lassidão de dona
t honesta de certos ocasos, apanha nos campos
e nas praias de Itália as vibrações, os senti-
mentos da paizagem, e quasi sempre as anima
com figuras. Quando assim faz, os quadros não
são apenas o que dizem os titulos: — são har-
monias, correspondências de sentimentos, acor-
des musicaes de almas apanhadas pelo seu
pincel.
Céos claros em que o verde se faz azul,
romaria- de primavera, terrenos rosas batidos
de sol, pedaços de lagunas chapeados do re-
flexo achamalolado da luz, velas que se retezam
molhadas d'oiro liquido, vegetações que escor-
regam pelas lombadas dos morros, servem de
ambiente instrumental onde aparecem certas fi-
guras cie mulher, que têm a personalidade espe-
cial, o riso, a nervosidade moderna, o aban-
dono, qualquer coisa de tão exacto que a gente
190 CINEMATOGRAPHO

d e i x a de p e n s a r n u m a r r a n j o d o p i n t o r c o m o
m o d e l o f i r m e , a l i , h o r a s e h o r a s , p a r a crêr que
e l l e viu a s c e n a e a s e n t i u c o m o n o b o m t e m p o
d o i m p r e s s i o n i s m o f a r i a m p o r s e n t i l - a Manet,
Degas ou Prssarro.
E q u a n d o a p a i z a g e m desaparece e ficam
a p e n a s o s m o d e l o s , a h i t e n d e s o m a i s encan-
t a d o r r e t r a t i s t a f e m i n i n o d à geração m o d e r n a .
E' t u d o q u a n t o h a d e m a i s aristocrático e de
mais delicado.
Sente-se a i n f l u e n c i a d o v e l h o C a b a n e l atra-
vés d a i n f l u e n c i a d o n o s s o g r a n d e A m o e d o ?
Sente-se t o d a a a c u m u l a ç ã o d e observações de
r e t r a t o s de m u l h e r d o s a r t i s t a s de n o m e a d a da
F r a n ç a — H e n n e r , B o u n a t , W e n c k e r até os
m a i s m o d e r n o s , esse admirável d a G a n d a r a , o
c u r i o s o Zo, o psicológico W a t e l e t ? Sente-se
q u e L a t o u r , o p o r t a d o r d e u m n o m e varias
vezes notável n a a r t e , é u m d o s élos d o s en-
feitiçados d a g r a n d e m a r a v i l h a t e r r e n a q u e é a
Vlulher ?
S i m ? Póde-se d i z e r q u e e l l e e s t u d o u o s ar-
t i s t a s , póde-se d i z e r q u e e l l e é u m d o s envoulés
n ã o s e i se d e E v a , p e r s o n a g e m d e c a d e n t e e pot-
au-feu, m a s d e L i l i t h , d e S a t a n i a q u e n o s d e u
a r o n d a s e d u t o r a das m u l h e r e s d'agora. Enfei-
tiçado, p o r é m , enfeitiçado d o s g e s t o s , d o s ador-
nos, d e t o d a s as b e l l e z a s i n ú m e r a s e e n v o l v e n -
tes d e c a d a m u l h e r , e l l e p o z s e u s g r a n d e s r e -
c u r s o s t e c h n i c o s e a s u a a l m a a o serviço d e
CINEMATOGRAPHO 191

lixal-as originalmente com uma acuiclade es-


tranha. E, aceitando aquelle conselho do T i n -
toreto:

Sempre si fa il mare maggiore,

como que eleva a simbolos de perdição, o gesto


sedutor, as bocas Sangrentas e os sorrisos cas-
tos, as cabelleiras leves e os olhos luminosos
dessas creaturas postas no mundo para que
todo o esforço do homem tivesse como causa
primaria e causa final o seu hipothetico amor,
E basta vêr aquelle tipo de italiana moça, que
calça as luvas, tão claro, tão atrahente, em que
os tecidos são como a caricia de uma carne
que se sente, basta olhar a bôca de cravo ver-
melho da Electra, basta enlevar-se a gente no
sorriso casto de uma Cabeça de Estudo, obra
de mestre, basta parar deante dessa maravilha
de perturbação que é . a Diva, para se sentir o
enamorado da mulher, o psicólogo da alma
feminina, o delicado capaz de exprimir na téla
essas fisionomias em que a Graça vive e vive
a Fascinação !
E, encantado, eu esqueci a multidão e pensei
na frase de Helios:
— Vaes vêr coisa. O Latour é gente.
Gente, sim. Ha dois annos impõe-se com
êxitos seguidos a geração dos pintores novos.
Não tem espalhafatos escandalosos de guerra
192 CINEMATOGRAPHO

aos mestres, nem vem destruir. V e m apenas


mostrar quanto pôde fazer com o carinho dos
já gloriosos. E a h i temos Helios, o tempera-
mento mais fundamente o r i g i n a l da pintura bra-
sileira, o bárbaro e o muscular, o creador dos
Faunos e *da apoteose da Chama; e ahi temos
Malaguti, a sensibilidade refinada, e ahi temos
L u c i l i o de Albuquerque e os irmãos Chambel-
Iand e os irmãos Timotheo. e ahi temos Latour
que, de volta de Paris, é, com a sua exposição,
de chofre, no espirito publico — dos primeiros.
Um pintor que, como Carrière, sabe escre-
ver pensamentos admiráveis, depois de dizer: —
«a obra não é senão o éco de todos os paraizos
perdidos que dentro de nós se guardam», sen-
tenciou que «o artista não pôde vêr a seme-
lhança da sua obra senão quando estiver do
outro lado do mundo». Talvez. Mas vê o pu-
blico p o r elles, vêm os que gostam de admi-
rar, e esses fazem em torno delles a apoteose,
porque o triunfo de u m contemporâneo é, por
u m fenômeno reflexo, o triunfo de toda a sua
geração.
E na exposição L a t o u r eu tive a encanta-
dora illusão, o sonho bello que eu lambem
triunfava...
Os humildes

S STA greve do gaz, que poz em tréva a c i -

dade tantos dias, deixa-me apenas mais


radicado um sentimento doloroso. E esse sen-
timente doloroso, nascido de longa observação,
é tão banal que talvez toda a gente o tivesse,
se observasse.
Quando pensou a cidade que havia, com
efeito, por traz daquella sinistra fachada do
Gaz, homens a suar, a sofrer, a m o r r e r para
lhe dar a luz que é civilização e conforto ?
Ouando esses homens, desesperados, l a r g a r a m
as pás, enxugaram o suor da fronte e não q u i -
zeram mais continuar a morrer, que idéa fazia
a cidade — aquella elegante menina, este rapa-
xola de passo inglez, o negociante grave, o
conselheiro, o empregado publico, os apanigua-
dos da Sorte, daquelle bando de homens, ne-
gros de lama do carvão e do suor, torcionados
pelo Peso e pelo Fogo ? Nenhuma. Esses pobres
194 CINEMATOGRAPHO

diabos, h o m e n s c o m o nós, c o m família, c o m


filhos, c o m ideaes talvez, n ã o e x i s t i a m p r o p r i a -
m e n t e ; e r a m c o m o o coke, c o m o o s aparelhos
de dislilação, c o m o o s f o r n o s u m a q u a n t i d a d e
c o m p o n e n t e d o f a c t o e s t a b e l e c i d o neste p r i n c i -
p i o b r e v e : ex f u m o dare lucem. M a i s nada. S ó
ao a c e n d e r o b i c o de g a z e m vão é q u e s u r g i u
a idéà d o operário, d o h o m e m p r e s o n a s malhas
de f e r r o de u m s i n d i c a t o p o d e r o s o , c o m a f r a s e :
— Os operários f i z e r a m gréve...
E' a noção d e u m a classe d e o p r i m i d o s .
classe d i m i n u t a , classe anônima, c o m a sua
v i d a i n t e i r a a m a r r a d a á polé d o t r a b a l h o hor-
r i d o , e que, de repente, só ao c r u z a r os braços,
punha e m sombra u m a cidade inteira.
Estes c o n h e c i m e n t o s f o r a m rápidos e rapi-
d a m e n t e desaparecerão. A m a n h ã , a r r a n j a d a s
d e f i n i t i v a m e n t e as cousas, o b a n d o v o l t a ao hor-
r o r , n i n g u é m ao p a s s a r p e l o edifício lembrará
l a n t a g e n t e n o t r a b a l h o desesperado, e o pró-
p r i o b a n d o estará r e s i g n a d o . P o r q u e ? P o r q u e
é a vida, p o r q u e é preciso trabalhar, porque
não h a remédio...
Nada mais simples. Nada mais insignifi-
cante. P r e s t e m o s atenção a o s c o n d u t o r e s de
h o m e n s , e d e i x e m o s a m o r r e r o s f r a c o s e hu-
m i l d e s — m e s m o p o r q u e elles s e r i a m incapazes
de s a i r d a e n g r e n a g e m , d a m a c h i n a fabulosa
de c a r n e e de aço d e q u e são u t e n s i l i o s !
E, e n t r e t a n t o , a nossa v i d a , o nosso con-
CINEMATOGRAPHO 195

forto, tudo quanto é agradável, assenta na re-


signação, inconsciente quasi, dos humildes e
nessa tremenda fúria com que a sociedade os es-
tnígalha, sem o l h a r ã o menos á sua agonia final.
(>s humildes ! J á leste o noticiário sem im-
portância dos jornaes? J á andaste por ahi nas
descargas, nas ilhas, nos grandes trabalhos?
P o i s lê e vai vêr. Se tens um pouco de comi-

seração pela velhice o um pouco de-amor pela


m o c i d a d e e m flor, os teus olhos ficarão para
sempre pasmados dessas aglomerações sob o
regimen brulo de um trabalho de animaes e da
maneira por que a morte mastiga, engole, de-
gluta vorazmente as vidas desses homens que
não são homens já — são as cabeças de um
enorme rebanho.
Nas notas da Santa Casa e do Necrotério
lia lodo o dia farta mésse de informações. Oi-
tenta por cento dos entrados para a autópsia
do Necrotério são pobres diabos desconhecidos,
mortos no trabalho e que ninguém tem curio-
sidade de vêr. Para a Santa Casa, com guia •
do delegado, entram também, todo o dia, os
feridos e os estropiados do trabalho. Os jornaes
dão as notas curtas: Hontem, quando conduzia
a carroça, Manuel, de 20 annos, caiu, quebran-
do a perna; — hontem, Joaquim, de 60 annos,
carregador, na ocasião em que conduzia um
saco... Ninguém imagina a estatística trágica
de pobres rapazes, de adolescentes, estropiados,
196 CINEMATOGRAPHO

feridos, mortos, esmigalhados pelo trabalho fe-


* roz, e ninguém pensa e m t e r pena de u m sexa-
genário que arrebenta sob o peso de u m saco
em plena calçada.
Elles, coitados, não sabem. São os humil-
des, são os ignorantes. Todas as emoções se
lhes embotaram. Os paes trabalhavam de sol a
sol. Aos dez annos já trabalham. E' preciso tra-
balhar para ganhar, com medo do patrão po-
deroso, do feitor, do espia, de toda a genle,
para não perder aquella certeza assustada e
m o r t a l do pão.
Humildes ! Quanta cousa se vê e se ouve
(que é impossível contar) de miséria, de senli-
timento, de irreparável, de infinita candura nes-
sas pobres almas sem luz, nesses sêres em que
o próprio instinto se encurta ao movimento do
a n i m a l de carga ! H o u v e u m tempo em que on
me preocupei com a grande tragédia, e no meu
cérebro até hoje f i c a r a m gravados os scenarios
enormes e as pequenas scenas.
Das pequenas scenas, duas voltam-me á me-
mória constantemente. E f o r a m simples. Na pri-
meira u m rapazola, carroceiro, caíra da boléa
f r a t u r a n d o a perna. Havia sangue, gente em
t o r n o e o coitado gemia. Émquanto o carro da
Assistência não v i n h a — e esse carro tornou-~i
notável p o r não v i r , u m a autoridade qualquer
aproveitava para interrogal-o.
— Que edade tem ?
CINEMATOGRAPHO 197

— Saberá v. s. que vinte e poucos, ai !


a

— T e m família ?
— A i ! a mãe... m i n h a mãe.
I n t e r r o m p i a autoridade com uma .curiosi-
dade imprevista.
— Ha quanto tempo é voce carroceiro ?
— Ha muito... desde criança... ha dez annos,
paia a m ã e que é viuva.
E de repente em pranto:
— A i ! a minha vida, que v o u perder o em-
prego, a i ! que não trabalho mais...
Essa criança moída de trabalho para uma
criatura miserável que era a sua mãe, empas-
'tada de sangue, nunca mais me saiu da retina.
A outra foi n u m bonde da Saúde, á noite.
No bonde deserto vinham tres trabalhadores das
Obras do Porto, a conversar.
— 0 João m o r r e u hoje.
— 0 caixão caiu e elle afundou.
— Conte-me lá isso, i n t e r v i m eu. *
— Sei lá ! Mais o u menos todo o dia m o r r e
um. Que quer? E' preciso.
E era verdade. Nem os jornaes davam noti-
cia, nem é possivel dar. Morrem nas pedreiras,
morrem na estiva, m o r r e m no minéreo, m o r r e m
sob as carroças, u m hoje, ámanhã outro. E'
fatal. Só quando m o r r e m muitos é que se fala.
Quando morrem o u quando fazem gréve —- por-
que o trabalho interrompe, o patrão dá o su-
premo desespero e a sociedade sente falta.
14
198 CINEMATOGRAPHO

Para os humildes, porém, morrer é fácil.


A gréve é que é um problema assustador. Em
certos sitios deste Rio de Janeiro gritalhão e
meetingueiro, ha regimens que seriam o inferno'
.para os servos da gleba da edade média e que
só podem ser comparados á allucinante visão da
Historia dos Tempos Futuros, de Wels. A al-
gumas braças de Nictheroy, ha uma ilha que se
intitula suavemente de Fome Negra. Os homens
nessa região viraram apenas machinas. São apa-
relhos da grande machina de levar o minéreo,
o piquiry, para os navios de carga. Quanto des-'
cança essa gente? Quando dorme? Quando
pensa? E' impossivel saber. Estão ali com as"
mãos rotas dissorando uma gosma amarella, a
pelle gretada, os olhares desconfiados. Para che-
gar até elles em trabalho é preciso uma espécie
de assalto á vontade do feitor, á vontade dos
espias. E quando a gente, entre as descargas,
lhes dirige a palavra, os mais espertos dizem,
olhando de soslaio:
— Olhe o feitor. Pelo amor de Deus, não
fale, que eu sou demitido !
E os fracos, os tímidos, os covardes ganem
com medo de tudo, do feitor, do patrão, sím-
bolo molocheano que elles não conhecem, dos
companheiros, de nós mesmos:
— Para que quer saber meu nome ? Não sei!
Deixe-me trabalhar ! Estou muito bem !
E' ali, a dois passos, um dos trusts de expio-
CINEMATOGRAPHO 199

ração da vida humana, do exgotamento de po-


b r e s diabos, que nasceram pobres, que vivem
p o b r e s e que morrerão, abreviados pelo traba-
lho, ainda pobres, sem ao menos essa compen-
s a r ã o magna: — o dinheiro... O messias que se
erguer nesse ambiente está perdido. A suspeita
pesa-lhe como u m grilhão, faz-se e m t o r n o u m
cordão de isolamento contra a idéa nova e m
que o patrão tece, para a segurança dos seus
interesses, todas as forças possiveis: o t e r r o r
dos companheiros, a vigilância da policia, o con-
servatorismo dos jornaes, a hostilidade da massa.
De vez e m quando, u m desses devotados,
lambem h u m i l d e mas possuído da vontade f r a -
ternal de m e l h o r a r a sorte dos companheiros,
surge, fala de «-emancipação do operariado» e
de outras cousas graves, solemnes e vazias. E'
um homem ao mar. N e m tu, n e m aquelle cava-
lheiro proprietário o conhecem. Mas a policia
já sabe que o bandido é u m anarchista infame,
os feitores não o l a r g a m c o m o olhar, os com-
panheiros o evitam o u chasqueiam na sua igno-
rância das suas idéas de associações de classe,
c o diretor da Companhia, a Companhia, o
Sindicato, o Trust, a entidade absoluta e po-
derosa que detém as energias humanas emfim,
tem o seu retrato c o m u m a cruz n o g r u p o f o -
tográfico dos operários, recebe informações d a
sua pessoa, faz o dossier do crime para esma-
gal-o com u m a patada na p r i m e i r a ocasião.
200 CINEMATOGRAPHO

Naquelle inferno do gaz, velho e atróz, em


que os homens são como os pistons de uma
enorme machina saindo de uma temperatura de
ar livre, á chuva com frio o u com calor, quasi
mis, para entrar numa temperatura de caldeira
e de novo sair e t o r n a r a entrar, sem parar,
durante horas e horas; naquelle h o r r o r em que
as fornalhas l e m b r a m olhos de ciclopes fantás-
ticos numa fixação de hipnose — quantas vezes
terá aparecido o revolucionário, quantas vezes
terá aparecido já o desejoso de melhorar a vida
daquella pobre gente? Muitas de certo... A ti-
midez da humildade, porém, a timidez dos sim-
ples, que os faz eternamente explorados, extin-
guia os generosos sob o bridão insolente das exi-
gências da Companhia. E ninguém sabia que
ali, n u m trabalho que vos dá a impressão de um
delirio permanente, de u m circulo infernal es-
quecido pelo Dante, havia homens, homens
como nós, a penar, a morrer, para escas-
samente comer e gentilmente nos dar, com lu-
cros para todos, menos para elles, o bico de gaz
civilizado. F o i preciso a gréve, para que se ou-
visse u m protesto de tréva, u m protesto mudo
a soluçar nos combustores semi-apagados, um
enorme espasmo de sombra cobrindo a cidade
inteira a indicar que elles existiam...
A gréve ! A gréve é ainda uma anomalia entre
nós, quando a exploração do capital é u m facto
tão negro como na Europa. Mas é que lá os
CINEMATOGRAPHO 201

humildes começam a se reconhecer e a q u i elles


ainda são tão pobres, tão tímidos, carne de bu-
cha da sociedade, tão ignorados delia que se
ignoram quasi totalmente a elles mesmos.
E lembrar, a propósito de u m caso, tanta
aflição humana, tanto trabalho tremendo, tantos
casos: a m a i o r parte da espécie é imensamente
comovente, posto que incorrigivelmente român-
tica e de u m pieguismo collegial...
A l g u n s p o e t a s d o hospício

ONTEM, n u m bonde vertiginoso da Escola


Militar, o diretor do Hospício indaga-me:
— Queres lêr alguns versos dos malucos ?
— Deve ser interessante.
— Pois salta, e vem até ao meu gabinete.
Salto. O diretor conduz-me até u m salão
encerado, manda v i r café, abre uma gaveta e
espalha dessa gaveta, em cima da mesa, uma
porção de papeis. E' a Musa db Hospício. Bebo
o café, agradeço, faço u n i embrulho da versa-
lhada e parto.
E' sempre muito grave afirmar a maluquice
alheia. Os doidos têm a sua razão como os sãos
têm as suas manias e as manias dos sãos, com
a razão dos doidos, dão em regra geral u m ho-
mem normal. Infelizmente, essas condições de
normalidade andam quasi sempre separadas.
Qual de nós agora, com calma è reflexão, é

*
204 CINEMATOGRAPHO

capaz de se considerar u m desequilibrado ? Qual


de nós não terá bem dissimulado na alma algum
vinco mais íorte da besta inconsciente ?
Os brutos, no p r i m e i r o momento, mostram
o delirio do sangue, os civilizados sofrem todas
as vesanias, todos os delirios que os oscilam
entre os dois paroxismos modernos: a Moda
e a Sexualidade; os grandes homens são sem-
pre malucos. Christo, toda a gente sabe, tinha
um evidente delirio progressivo, e, depois deite,
não ha Deus o u heróe que não tenha suportado,
através a historia, a aguda dissecação dos alie-
nistas. Entre a loucura e a razão tudo é vago,
inexplicável, e, como dizia o celebre ironista, o
limite de ambos é talvez u m verso.
Este verso, que antigamente era u m farto
hexametro, tem diminuído no conceito publico.
A extravagância dos poetas atrapalha o normal.
Hoje, quando se descobre que u m homem con-
siderável faz versos, é como se de repente o
vissemos na r u a e m fralda de camisa, cometando
actos irregulares.
Os poetas agem quasi ao contrario de toda
a gente, têm a fantasia, amam, cantam as ama-
das c o m estranhas palavras rutilantes — são
anormaes. E tanto o são que não ha nada mais
fácil que t r a n s f o r m a r u m a escola literária em
certamen de maluquice. Outra coisa não faz
Max N o r d a u na sua Degenerescencia. Talvez
por isso o Hospício abunda e m poetas, talvez
CINEMATOGRAPHO 205

por isso eu carregasse o embrulho da musa mor*


bida com um respeito tão cheio de filosofias ex-
travagantes, talvez p o r isso, depois de desem-
brulhal-o e de lêl-o, a minha extravagância
amarga augmenle.
Ha no vasto manicômio da Praia da Sau-
dade toda a casta de sonhadores fabricantes de
quadras. O Hospicio é u m resumo da Cidade,
excepcionalmente demonstrativo, o Hospicio é
o trecho mais romântico da urbs, porque só ali
se acredita habito ainda nestes tempos de u t i -
lidade — enlouquecer e m o r r e r de amor...
Nessa casa da dôr e do delirio abundam os
loucos de amor. Ha lá dentro hellenistas, médi-
cos, inventores do motu-contínuo, do e l i x i r da
longa vida, da telegrafia semfio,de aparelhos
funerários, de reformas ortográficas, de relo-
gios-moscas, autores de dicionários, aviarios,
balões, inovadores dramáticos... Os loucos de
amor são os mais tocantes. U m delles, C..., pin-
tor italiano, já ía obtendo fama entre nós, quan-
do subitamente se apaixonou p o r uma senhora
da nossa alta sociedade. Convidado a d a r expli-
cações na policia pelas suas audaciosas ma-
neiras, C... perdeu o juizo, falando de socialis-
mo, amor livre e outras coisas abundantes em
brochuras vermelhas. O delegado mandou-o
para o Hospicio, e lá, nos momentos de calma,
elle escreve versos como este a respeito do mio-
sotis:
206 CINEMATOGRAPHO

E il piciolflore,confuso e vergognoso,
Ove nessun la vide, si nascose
E guarda il cielo ove dimora fddio '
E dice a tutte Vore:
— Non té scordar di me, povera flore!

Versos tão emotivos deram logo ao sr. Tava-


res Bastos, u m tradutor a que não escapou nem
o soneto de Anvers, esta tradução:

E, então ella, confusa e envergonhada,


De onde ninguém a vê, sempre escondida,
Contempla o céo e a abobada estreitada,
E assim longe de Deus que nella móra
Do seu recanto-, tremula, perdida
"•Não te esqueças de mim, repete agora... „

Tanto o original como a tradução estão


longe de indicar uma doença mental. C... tem
entretanto alguns pensamentos nietzcheanos. As
máximas do venerando marquez de Maricá, são
lamentáveis á vista destas idéas:

" 1."— A caridade é a antithese do homem.„


2.°—Homem é a encarnação do Eu.„
cc

"8."—0 beijo mais bello que o Homem possa rece-


ber da natureza é a morte, lembrando-lhe assim um novo
passo no Universo que é a Vida.,,
É morte o que foi; é vida o futuro.„
a

"4."—0 amor é sublime por ser sinônimo do odio.,,

E em italiano:

I/hnmns d'onde nasce, cresce, germoglia e frutUflca


1'vmore é il Bene. Le due parole se confondano.. .
CINEMATOGRAPHO 207

Outro poeta cTamor é o paranóico Dr. P...,


um engenheiro enlouquecido p o r u m a tremenda
paixão. P... t e m a m a n i a da perseguição acen-
tuadissima, vive no Hospicio ha quasi dez annos
e agora c o m o sistema d a open 'dooz, passeia,
vai aos ministérios, pede, caceteia o Dr. L y r a e
deseja empregos do Dr. Calmon. Apesar disso
é lirico. Cada verso seu parece u m rosário de
adorações, e ninguém dirá lendo taes endeixas,
que esse h o m e m está irremediavelmente sem
razão.
Leiam esta sonatina:

Hontem, quando carpia


0 sino da freguezia
Tangendo a Ave-Maria
Em compassado lamento,
Eu vi teu batei esguio
Passar triste e vasio
Mui vagaroso e sombrio
Dos mares no isolamento.
Do sino os tristes queixumes
Da vaga os inquietos lumes
Fosforescentes cardumes
Das ondas carpindo a dôr }

Levam ao barquinho algente


Que passa triste e silente
Da saudade a dor pungente
Que suporta o trovador.

IV.. tem tres l i v r o s : Confissões e Fragmen-


ins, Harpa Quebrada e o Livro Negro.
208 CINEMATOGRAPHO

A paixão t r a n s f o r m o u esse e n g e n h e i r o rude


n u m m i s t i c o a m o r o s o q u e n o s fala com poses
fataes de M a n f r e d o . N i n g u é m deixará de sentir
a s i n c e r i d a d e desta q u a d r a :

Regina-ccele, fonte de Blandicias I


Para louvar-te toda a prece è pouca,
Porque teve o baptismo de caricias
Na pia baptismal da tua boca...

O celebrado sabiá das nossas selvas deu-lhe


á a l m a esta comparação enternecida:

Si eu fosse um sabiá, iria agora


ficar preso em teu lar, do mundo alheio,
jjra contar-te, sem medo, sem receio,
a tristeza cruel que me devora.

Por não ser sabiá minh'alma chora,


pois não pôde dizer-te num gorgeio
a saudade que mora no meu seio
ao chegar do crepúsculo a doce hora.

Si eu fosse um sabiá, terno, cantando


bem juntinho á gaiola, eu te veria
trazer-me o alimento, suspirando.

Eu, então, tuas mãozinhas beliscando


c'o biquinho entre-aberto, pediria
um beijinho dos teus de quando em quando.

A lista d o H o s p i c i o não é, e n t r e t a n t o , só de
poetas q u e ficaram m a l u c o s d e t a n t o amar. Ha
CINEMATOGRAPHO 209

de todos os gêneros. O mais estranho é o sim-


bolista Hermano Paiva, autor da Cura Eterna,
que imprime os seus volumes e os manda ás
redações dos jornaes. Esse homem inventou um
gênero — o dramatativo.
0 dramatativo é, diz elle, um drama recita-
tivo. Por émquanto tem dois: a Cura e a Opera
Lirica. Esta ultima começa com algumas pala-
vras explicativas, isto é: um antifetido, porque
— precede-lhe um intuito particular que será em
toda a parte a ultima comunhão figurada.
Como se vê, puro simbolismo. Opera Lirica
é de resto escnpta em versos livres com uma
preocupação de ironia constante. Eis um dos
seus trechos:

Inda mais esta reticência


Tu bem sabes que a voz, o sentimento de espirito ê
0' Rethoriquinho, retoriquito !
Émquanto a gramática, realmente, com toda a verdade,
E sem mentira alguma, não a sabemos não !

Qual o poeta que ao brigar não diz o mesmo


do rival ? Até na Academia Maior de Letras, e
digo maior porque ha no Brasil, todas de letras,
mais de quarenta—-até na Academia as dis-
cussões acabam sempre assim. Mas o dramata-
tivo tem outras reflexões importantes. Esta, por
exemplo:
210 CINEMATOGRAPHO

Affonso e Pedro o Grú, a triste e mesquinha


Que depois de morta foi rainha !. ..
Camões. .. Antônio José, depois de uma discussão literária,
Com o conde de Oeiras na masmorra!
Só estes tres fados históricos nos bastariam
Para vêr os homens no Estado e na egreja.

Todos os poetas são imensamente orgulho


sos. C. J . . . , positivista, fala s e m p r e nas suas
composições e põe asteriscos n a s poesias, fazen-
do c h a m a d a s p a r a l a m e n t a r a falta d a Biblio-
theca. E ' dclle este c h r o m o :

Tototó... soa a sala de espera, a quem porta


Que passa o atriosinho de pétrea escada
De dois lances... Em um folga o bêco do Cruzeiro
Em outro a cidade. Largos rústicos, entrada.

Ha outros jocosos, o A... por exemplo que


i m p l i c a c o m o b a r b e i r o e escreve malvadas
q u a d r a s contra elle:

As navalhas do barbeiro
Estão mui cégas e embotadas.
E as epidermes dos malucos
Quasificamesfoladas.

Esse senhor, do oficio


Nunca aprendeu a barbear;
Afez-se por muito favor,
A essa vida de raspar.
CINEMATOGRAPHO 211

Oh ! No Hospicio ha o resumo da Cidade.


Todos esses poetas entretanto não seriam bem
o esgare trágico dos de cá, se não tivessem as
qualidades primordiaes de exhibicionismo tão
estridentes no parnaso contemporâneo. E' só
a l u i r o masso de documentos e acho o reclamo,

o escandaloso reclamo — a obra intitulada: A


perna esquerda de Ignacio Pinheiro:

"As assignaturas desta importante obra, diz ollo,


acham-se abertas nas redações do jornal de maior cir-
culação e da casa moisaica e Diário Oficial. O autor,
pela sua modéstia reconhecida pela família Acciolg,
m

etc.
10
a
mil exemplares serão pagos pelo autor si por ven-
tura a dita obra não for a escolhida pelo publico res-
peitável das 5 partes do mundo.
"0 autor precisa não receber quantia alguma„.

Ê foi assim que eu mais me afirmei no


principio fundamental de que é sempre muito
grave assegurar a maluquice dos malucos.
Porque, afinal, idênticos versos e quasi idên-
ticos reclamos já tenho lido de cavalheiros ge-
niaes que nunca moraram na Praia da Saudade
o têm a nossa admiração.
© velho Mercado

S C A B O U de mudar-se hontem a praça do


Mercado. Naquelle abafado e sombrio dia
de hontem era um correr de carregadores, car-
roças e carrinhos de m ã o pelos squares rentes
ao Pharoux levando as mercadorias da velha
Praça abandonada para a nova installação ca-
lda do largo do Moura, e, ao passo que ahi
'uma vida ainda desnorteada estridulava e en-
chia de ruido o silencio do sinistro largo, na
alegre e bonancheirona Praça ía uma desola-
ção de abandono, com as casas fechadas e o
arrastar de utensilios para o meio das ruas su-
jas. A mudança ! Nada mais inquietante do que
a mudança—> porque leva a gente amarrada
essa esperança, essa tortura vaga que é a sau-
dade. Aquella mudança era, entretanto, m a i o r
do que todas, era uma operação da c i r u r g i a
urbana, era para modificar inteiramente o Rio
15
214 CINEMATOGRAPHO

de o u l r o r a , a mobilisação do próprio estômago


da cidade para outro tocai. Que nos resta mais
do velho R i o antigo, tão curioso e tão carateris-
tico ? l i m a cidade moderna é como todas as
cidades modernas. O progresso, a higiene, o
confortável nivelam almas, gostos, costumes, a
civilisação é a igualdade n u m certo poste, que
de c o m u m acordo se julga admirável, e, a s s i m
como as damas ocidentaes usam os mesmos
chapéos, os mesmos tecidos, o mesmo andar.
assim como dous homens bem vestidos hão de
fatalmente ler o mesmo feitio da gola do casaco
e do chapéo, todas as cidades modernas têm
avenidas largas, squares, mercados e palácios
de ferro, vidro e cerâmica. As cidades que não
são c i v i l i s a d a s são exóticas, mas quão mais
agradáveis. N ã o ha avenidas, ha outras cousas
e quem vinha ao R i o gozàva o interesse de uma
cidade diferente das outras e tão curiosa no seu
feitio, como é Toledo na sua maneira, como é
o Porto, como o são algumas cidades da Itália.
onde ainda não entrou o progresso, que estende
logo u m caes, destroe vinte ruas e solta sobre
as ruinas u m automóvel.
O Rio, cidade nova — a única talvez no
mundo — cheia de tradições, foi-se dellas des-
pojando com indiferença. De súbito, da noite
para o dia. comprehendeu que era preciso ser
tal qual B u e n o s Aires, que é o esforço despeda-
çante de ser Paris, e m i r a m casas e estalaram
CINEMATOGRAPHO 215

igrejas, e desapareceram ruas e até ao m a r se


poz barreiras. Desse descombro s u r g i u a urbs
conforme a civilisação, como ao carioca bem
carioca, s u r g i a da cabeça aos pés o reflexo c i -
nematográfico do homem das outras cidades.
Foi como nas mágicas, quando h a mutação
para a apoteose. Vamos tomar café? Oh ! filho,
não é civilisado ! Vamos antes ao chá ! E tal
qual o homem, a cidade desdobrou avenidas,
adaptou nomes estrangeiros, comeu á franceza,
\ iveu á franceza.
Só a praça do Mercado ainda resistia. A
Praça ! Essa velha bonancheirona que era o
Ventre do Rio, levara a escolher o seu local
muitos séculos. E m m i l seiscentos e sessenta e
tantos, a rua da Quitanda, era da Quitanda
Velha, porque lá se installara a Praça. Pouco
depois a rua da Alfândega era da Quitanda do
Marisco, porque lá a Praça tentara o mercado.
E nos tempos do Brasil colônia, a Praça, já se
aproximando do seu logar, ficava p o r traz da
Gamara e incomodava nos seus palácios os vice-
reis, porque desprendia muito m á o cheiro.
Só em 1836 é que ella se abeirou do cáes
Pharoux e lá fixou as p r i m e i r a s estacas das
primitivas cabanas. Não ha u m século ainda.
Alguns dos homens que a v i r a m assim começar
ainda vivem. Mas esses setenta annos bastaram
para fazel-a u m símbolo, na sua força, na sua
originalidade, no espirito de cohesão, e na vida
216 CINEMATOGRAPHO

própria dos seus h a b i t a n t e s . O l o c a l fôra durante


muito tempo motivo de discussão de proprie-
dade, m a s a gente de lá s e m p r e v i v e u como
n u m a praça sua, n o f o r t e do estômago, organi-
sando festas, batendo-se c o n t r a a policia, i n -
cendiando-se, continuando.
Q u e m não s e n t i u a i n f l u e n c i a da Praça, quem
não p a l p o u a q u e l l a p l e t h o r a de v i d a ? N a Praça
h a v i a a abundância, a r i q u e z a , a miséria e a
v a g a b u n d a g e m . A o l a d o de r a p a z o l a s q u e mou-
ro j a v a m desde p e l a m a d r u g a d a e n t r e monta-
n h a s de vegetaes e m i n a s sangrentas de carne,
r a s t e j a n d o p o r e n t r e as f o r t u n a s feitas ás bra-
çadas n o d e s e n c a i x o l a r das cebolas e dos alhos,
viviam e morriam c o m f o m e g a r o t o s esquáli-
dos, v a g a b u n d o s estranhos, t o d a a vasa do c r i -
me, do h o r r o r da prostituição, b e m idêntica á
vasa cheia de d e t r i t o s d a velha doca e dà
r a m p a . N o i t e e d i a a q u e l l a gente, q u e tinha um
calão próprio e v i v i a s e p a r a d a d a cidade, labu-
tava, e e r a u m a sensação e x q u i s i t a sentir-lhe os
vários aspectos...
O h ! os aspectos d a Praça ! S e r i a preciso
p e r t e n c e r a t o d a s as classes sociaes p a r a apre-
henclel-os e enfeixal-os. A's p r i m e i r a s horas da
noite, q u a n d o a i n d a h a n o céo a l g u m a luz dei-
x a d a pelo sol, as casas de pasto c o m a c r u a ilu-
minação d o gaz, os b o t e q u i n s b a r a t o s , as casas
de louças, as b a r r a c a s de f r u t a s e de aves, as
b a n c a s de* peixe, os açougues, a praça d o s le-
CINEMATOGRAPHO 217

guines cheia de montanhas vegetaes — passa-


vam p o r uma crise de nervos. E r a m os donos
(Jas falúas, e r a m carregadores, catraeiros, ga-
rotos, gente de hotéis, homens das bancas de
peixe, suando, gesticulando, gritando. Na rampa
desciam p o r pranchas tipos hercúleos carre-
gando caixões, os caixões passavam para outras
cabeças e havia, ininterrupta, uma corrente viva
de trabalho exhaustivo, émquanto pelas bodegas
comiam outros em mangas de camisa, mas cal-
mo- e já prósperos, o u de camisa de meia,
suando e saudáveis, - entre o íarisaismo dos ci-
ganos á cata de cousas grátis e o bando de ma-
landros parasitas, desde o garoto do recado ao
m e n d i g o falso.
Depois tudo era sombra, escuridão, obscu-
ridade complacente e u m a atmosfera feita de
relentos de cozinha, d o , cheiro das aves, d a
maresia da vasa, dos animaes, das couves e m
montanhas, toda u m a orchestração impalpavel
de cheiros afrodisiacos, espalhando u m a vaga,
indizivel l u x u r i a . Homens que nunca sentiram
o mal de viver, nem o mal, m o r a l da duvida,
nem a dôr phisica, d o r m i a m quasi m i s nos
parallelepipedos, sobre as soleiras das portas,
e não havia canto escuso e m que não se encon-
trasse u m a creatura a r o n c a r — o u gente de
labuta, o u gente parasita. N a sombra, indeci-
samente sombras deline'avam-se e na atmosfera
pesada de tantos cheiros u m r u m o r subtil, feito
218 CINEMATOGRAPHO

de mil rumores de suspiros, de roncos, de pios,


de grunhidos, excitava ainda mais.
.V meia-noite, p o r e m , começavam a chegar
os vendedores, a s c a r r o ç a - d e verduras das
hortas distantes e as íalúas pesadas do outro
lado da bahia.
Os proprietários, o s compradores caminha-
vam sempre com u m páosinho na mão, á guiza
de bengala; os outros, carroceiros, deixaxam a
carroça e recoslavam a d o r m i r mar- um pouco.
E o trabalho c o m e ç a v a d a descarga da quitar)
da. ligava-se das íalúas para a rampa outra cor-
r e n t e humana, na alegria dos hm.iens.— Eh,
José, eu já carreguei I r e s ! — A apostar c o m o
eu levo m a i s ! — D u v i d o ! E e m cada uma. ém-
quanto o chefe d i r i g i a a collocação por ordem,
os cestos de tomates com os cestos de tomates,
o s m o l h o s de s a l s a s c o m o s m o l h o s d e salsas,
sempre havia o «espirituoso» encarregado de
dizer graça, o u o pequeno vagabundo que ás
vezes trabalha mais que o- outros para matar
o tempo.
la a madrugada em fóra, e a luz da- estrel-
las o u s o b a chuva a scena se repetia. A u m
certo momento, os vendedores de peixe e de
ostras aquartelavam com as latas enferrujadas e
os cestos, acendendo côtos de vela a iluminar
em derredor. Defronte sempre abria uma casa
d e p a s t o . E r a \\ hora e m que bordejavam be-
bedos, á espera d e b o l e , as blusas v e r m e l h a s
CINEMATOGRAPHO 219

dos fuzileiros navaes, era a hora em que apare-


ciam os seresteiros p a i a tomar vinho branco e
comer ostras, era a hora em que, á saída dos
bailes carnavalescos, paravam lipoias transbor*
dantes de mulheres alegres e de rapazes diver-
tidos para o fim da orgia.
-Vamos comer ostras ao Mercado 7
Quem não leve esta pergunta lamentável
uma vez na sua vida ?
Quândo, p o r e m , o s retardatarios davam p o r
si, já no r o o se fizera a transfusão da luz e era
a Aurora que abria sobre o m a r e sobre as
o u s a s como uma grande casa, a renovação da
vida. E t u d o parecia acordar, fervilhar, brilhar:
aves, animaes, escamas de peixes, latas, pratos,
homens, pássaros, numa grita infrene, que tinha
da Arca de Noé e de uma alluvião de leilões.
Apagando os mendigos, apagando os garotos,
apagando o somno misterioso, entrava a grande
massa dos compradores, saíam as levas dos
vendedores ambulantes, todos na grande agi-
tação que d á a compra da vicia, émquanto ho-
mens saudáveis brandiam machados em cepos
sangrentos, montes de verdura desapareciam
em cabazes, peixes rolavam, cães ladravam,
aves cacarejavam e, doirando tudo, alindando
tudo, o sol cobria a ruina sórdida das barracas,
envolvia as íalúas e a sujeira da doca, arrastava
p e l o mar a rêde de lhama de oiro da sua luz.
E era assim até ao meio-dia em que sempre
220 CINEMATOGRAPHO

havia tempo para uma palestra e u m descanço


em todos os múltiplos r a m o s dessa babel do
estômago.
Quantas vidas se passaram ali, sem o u l m
desejo, naquella apoteose da abundância que
fechava o apetite e devia d a r saúde ? Quantas
lutas, quantas intriguinhas, quantas discussões,
quantos combates, porque a gente da praça
. sempre foi valente ? Quantos l i m i t a r a m as festas
aós coretos da Lapa, com ornamentações, lei-
lões de prendas e outros brincos primitivos ?
Quantos t i v e r a m aquelles quatro portões como
os portões de uma cidadella que não se sentia ?...
Com essas tristes reflexões deixei o novo
Mercado pela velha e amada Praça. Havia, como
eu, m u i t o cavalheiro discreto a armazenar na
retina pela u l t i m a vez a topografia do Mercado.
E o Mercado era desolador. O quadrilátero onde
p a r a v a m as carroças de verdura estava deserto.
A parte central, onde havia bancas de peixe,
frutas, casas de cebolas e de loucas também
deserta e j u n t o ao chafariz sêco u m soldado
de ar triste. Pelas ruas estreitas, uma o u outra
casa ainda aberta a carregar os utensilios para
o novo edifício, onde ninguém dormê* e ás dez
horas fecha. N o mais, portas batidas, portões
de grade mostrando a r u i n a vasta das paredes
e o anceio interminável de múdança. Paramos
emfim na rampa. A l g u n s homens conversavam
em mangas de camisa. Para elles e r a impôs-
CINEMATOGRAPHO 221

sivel deixar de aproveitar a rampa. Mas a doca


estava quasi vasia. Só, amarrada a u m dos
grossos e gastos argolões de ferro, uma falúa
balouçava. Era a ultima. D'alli a minutos ella
partiria, deixando abandonada a velha bonan-
cheirona antiga, cuja historia já tinha da le-
genda. Era a derradeira. A atmosfera estava
carregada. E além da falúa tão cançada e triste,
arabesCando o horizonte de treva, u m bando de
corvos em circulos concentricos alastrava u m
pedaço do céo.
Chers confrères

0 H ! você!... F o i o céo que o mandou.


Tenho a apresentar-lhe um collega
muilo distinto do jornalismo hollandez. V e i u
dar-nos a honra de uma visita de recreio. M.
flupíman, o nosso collega...
Um homem curva-se, a m ã o direita do ho-
mem estica-se, uma voz guluralisa:
— Cher conlrère /...
Prompto. Não é preciso dizer mais. Esta-
mos deante de um exemplar da epidemia pro-
pagandista. A ])rincipio, esse caso de ter ao
nosso lado um repórter do Malin o u do gravís-
simo Temps dava-nos um certo receio. Que
dirá o collega? Pensará como a Réjane o u
como a Sarah da primeira vez ? E era u m cui-
dado excessivo, como acontece com as visitas
nas casas nobres e pretenciosas. U m jornalista
francez ou belga ali, no Hotel dos Estrangeiros
224 CINEMATOGRAPHO

ou no Hotel Caboclo, e nós sem procura]' in-


formal-o, sem procurar apagar a má impres-
são da poeira, das ruas sujas, dos bondinhos da
Carris com a vista direta do Corcovado, do
Corpo de Bombeiros e da implacável pedra de
Itapuca na não menos implacável belleza ica-
rahyneana ! Imediatamente um mais ousado atd-
rava-se á «interview» e o jornalista em tournès
dava as suas impressões aliás parecidissimas
com as dos anteriores.
— Muito interessante. Nunca pensei. E não
é que me diziam haver índios de tanga e su-
rucucus pelas ruas ? Estive com o presidente.
O café não dará mais nada ? E as haciendas ?
Realmente, muito bonito: o Corcovado, les pom-
pieres...
E nós com açodamento:
— Mas ainda não viu a pedra de Itapúca
nem o Ipanema ?'
Em geral, o collega europeu — (que nos pre-
venia modestamente e mostrando algumas con-
decorações pretender viajar incógnito como os
soberanos) — não tinha visto todas as nossas
bellezas naturaes. O interviewer virava em ci-
cerone e passava uma semana cornacando o re-
pórter pelas confeitarias, os bars, os restau-
rantes e os sitios bellos.
Ao cabo de um certo tempo, o homem to-
mava um vapor e, passados alguns mezes, o
ousado intervistante via nos jornaes uma chro-
CINEMATOGRAPHO 225

nica, citando com o qualificativo de gentil, o


seu nome, as mais das vezes estropiado. Não
raro acontecia não vêr coisa alguma, nem chro-
nica nem nome estropiado. Mas não' se inco-
modava — porque nenhum de nós tinha ainda
n alma o cumulo do patriotismo que é a vaidade
suprema de aparecer lá fóra como os de lá
de fóra.
Agora, entretanto, o eslado mórbido de
impor a nossa avenida aos boülevards parisien-
ses, a o s squares londrinos e ás perspelivas rus-
sas, acentuou-se de tal fôrma que fizemos nosso
intendente honorário um intendente de Paris c
que esse adendum francez ao conselho do
sr. Mendes Tavares conseguiu laffçar as nos-
sas ações de companhia nova em plena bolsa
universal. As ações fôram lançadas e imediata-
mente, como uma praga — praga aliás benéfica
cie toda a parte do mundo caíram os cour-
ii.crs e os jornalistas. O governo não resolve
apenas a superprodução do café. Resolve tam-
bém a superprodução de jornalistas amigos dos
estrangeiros. E' uma súbita crise de enxerto
internacional, que p o r esse mesmo internacio-
nalismo sc poderia chamar de graft propagan-
'lista, se a gente se fosse meter entre os boss
ocultos do movimento.
Não ha vapor que não nos traga u m pelo
menos; não ha ponto da cidade em que elles
não estejam a observar o nosso progresso e
226 CINEMATOGRAPHO

a grande força de ce feune pays. Todos tem


idéas, querem falar ao barão do Rio Branco e
ao Miguel Calmon, todos são de grandes jor-
naes.
— Ch&f cònfrère...
l i a francezes, desde o pessoal empregado da
rua Druot até os bohemios de Montmartre; ha
belgas, que consideram este paiz como o rei
Leopoldo nos considera e já considerou, entre
outras, a Liana de Pougy; ha americanos, ha
húngaros, ha turcos. A propaganda passou até
o janizarismo egoistico da Sublime Porta; ain-
da outro dia, num club de prazer, atentando
para dois homens íinos que jogavam com ele-
gância, o diretor arredondou-se e apresentou*
me aos dois homens — jornalistas liberaes, fu-
gidos da macabra ferocidade do Sultão, p a i a
que elles murmurassem o — Chcr cònfrère,
fatal.
Cbérs confrcres ! Xós somos os chers co/i-
frères de uma porção de gente. Pensando bem,
nunca uma pessoa poderia imaginar ter tantos
chers confrcres dedicados ao Brasil. Como-nós
estaríamos outros se elles tivessem aparecido
antes ! 0 diabo lambem é que as idéas de cada
um delles estão sempre em oposição umas ás
outras, e em conjunto a todo o movimento. As-
sim, um assegura-nos:
— Dar 30.000 francos ao F i g a r o ! Mas é
uma loucura ! O Turof, você comprehende,
CINEMATOGRAPHO 227

c o m a q u e l l a q u e i x a d a de l o b o e s f o m e a d o , cher
con$rère, e d a n d o - s e a r e s d e t e r d e s c o b e r t o o
B r a z i l ! E' h u m i l h a n t e ! A f i n a l d e c o n l a s , é h u -
m i l h a n t e ! A p r o p a g a n d a d e v i a s e r feita e m e n -
Lrelinhâdos n o s j o r n a e s d a s províncias d o s p a i -
zes q u e e m i g r a m .
— M a s o P a u l a Ramos...
— La propagainde de For ? c o m u m p r e s i -
dente q u e não sabe b e m trance/. ? O h ! cher con-
frerc'.E u p o d e r i a a j u d a r o g o v e r n o deste j o v e n
pai/, c o m u m a s idéas q u e b r e v e e x p o r e i a o
liarão...
Outro, encontra a gente, e l o g o :
-O D o u m e r , você v i u ? A q u e l l e cacete —
(elles d i z e m / ove///- e eu I r a d u z o cacete c o m u m a
i m e n s a v o n t a d e de e m p r e g a r o s u p e r l a t i v o q u a n -
do me l e m b r o d a s c o n f r e n c i a s cio g e n i a l A c c a -
cio do I n d o - C h i i i a ) — não v i u n a d a e v a e escre-
ver d o i s v o l u m e s a r e s p e i t o d o v o s s o p a i z ! Q u e
desastre ! Será v e r d a d e q u e D o u m e r v a e f u n d a r
um j o r n a l c o m f u n d o s b r a s i l e i r o s ? Q u e e r r o !
que imenso e r r o ! A h ! cher con\rere ! E u , e n -
t r e t a n t o , l i n h a u m a idéa. Q u e p r e c i s a m vocês?
De c a p i t a l ! O r a , e u c o m a s relações d e q u e
disponho na Bolsa, poderia...
Mas l o g o o u t r o a g a r r a - n o s n a p r i m e i r a es-
quina.
— T e m o s então a h i o Destez!... A h ! cher
, on$rère !
— 0 Deslez, p o r é m , s a b e coisas, t e m o s e u
nome todo o d i a nos j o r n a e s de Paris..,
228 ClNliMATOORAPHO

—• Que illusão ! Elle pôde ter tudo isso, mas


as suas opiniões sobre o café e a transplanta-
rão de capitães são uma fantasia. O meu plano
é que realmente é bom. Ora, imagine um pe-
queno guia .com as vistas das Avenidas, do Cor-
covado?... Tenho que falar ao barão.
Todos esses chers confrères — por mais que
a gente queira illudir-se — não vêem pelos nos-
sos bonitos olhos, vêem simplesmente pelo ouro.
Na boas profissões hoje em dia ainda, isto é,
lucrativas. Fazer cartolas, p o r exemplo. 0 fa-
bricante fal-as por 2 f r . 50 e vende a 25 francos,
isto é, tem logo de lucro 1.000 °/ -
0

Não só cartolas. Os dentes postiços, a soda


water, a agua de cal, a farmácia, as cadeiras
de deputado — dão um resultadão. A todas estas
profissões lucrativas a de propagandista vence.
E' a melhor atualmente. Os chers confrères de-
sertam os bouleuards, metem-se num transatlân-
tico, saltam neste paiz — le pays des palmiers
oú chantent les sabiás, e estão convencidíssimos
que vão ganhar dinheiro e que sem elles o bro-
meliano David Campista não agüenta a Caixa
de Conversão nem o general Pinheiro Machado
perde a sua grande partida. Chegam, sabem
logo tudo e, como evidentemente o nosso go-
verno não é composto de pastranas, ao cabo de
um mez estão furiosos. Ha dias encontrei um
belga absolutamente raivoso. O homem rangia
os dentes. Tive a coragem de perguntar como
CINEMATOGRAPHO 229

iam os negócios, os businers — porque afinal


negocio é negocio. O homem revirou para m i m
um olho apunhalante, um olho dinamitoso.
- L e père Rio Branco ainda não me re-
cebeu !
— Palavra ?
— De honra, cher conjrère. Pensam elles
que eu v i m para aqui vêr a Avenida Central
c o corpo de infanteria de Bombeiros?
— Ainda não temos o de cavallaria.
<» |>i opagandista não me-ouvia, porém. Toda
a -na propaganda estalava deante da «cavação»
perdida.
Eu que sou importante ! E u que tenho
vários jornaes ! O h ! paiz famoso ! Mas também
o lies me pagam ! V o u escrever para todos os
meus jornaes que este R i o é u m fóco de epide-
mias. Não querem as minhas idéas? L e père
Rio Branco não me recebe? Pois bem. V ã o
vêr...
— Mas, cher confrère. não faça isso. Ainda
ha pouco tivemos aquelle repórter do Matin pa-
recido com u m gatuno, que f o i preso aqui e
conduzido depois com todas as honras para
bordo, mas que não tendo mostrado documento
n e n h u m que provasse não ser elle amigo d o
alheio mas amigo de todos nós — é capaz de
cair colericamente contra os nossos costumes.
Basta esse...
— Qual ! Tenho que mostrar a minha força.
o\
230 CINEM A T O G R A P h U

E então o Pierre L o t i não vem, não vem o


d'Annunzio, não vem o autor do Quo Varfis, não
vem mais ninguém.
— Pois que? vinha toda essa gente?
— Vinha, sim. 0 L o t i para fazer um romance
com uma das vossas indias vestida de parisiense,
propaganda da fusão das raças: o d'Anmin/in
para documentar-se sobre o Bello Natural e o
autor do Quo Vadis para transportar todos os
polacos com o seu verbo inflamado para as cul-
luras do Sul. Mas não vem mais ninguém —
porque eu não quero...
A propaganda! O h ! interessante coisa !
t l m a crise louvável de patriotismo que nos trouxe
o gva$t da publicação e uma epidemia tal de col-
legas que vocês não podem dar um passo na
rua sem lembrar que m i l olhos de Paris, para
informar Paris, os olham nas orbitas de um
batalhão de chers confrères. Porque, em suma,
não ha hoje no Rio um estrangeiro recem-chr-
gado que não queira fazer propaganda e não
seja cher con\rere.
A Casa d o s Milagres

© CONVENTO dos missionários capuchinhos

é uma v e l h a casa em r u i n a . E u , q u e ha
minto l e m p o não v i a f r e i L u i z Piazza, me per-
m i t i r a incomodal-o á h o r a da sua m o d e s t a r e -
feição, e, pela p r i m e i r a vez a c o l h i d o c o m o só
os bòns sabem acolher, passeava pelos c o r r e -
dores e salas do vetusto casarão. O a r l a v a d o e
puro e n t r a v a pelas janellas, e t u d o e r a tão p o b r e
que c o n f r a n g i a a alma. N e m o o u r o de u m a
m o l d u r a , n è m a belleza histórica de u m movei
antigo, nada que denotasse sequer a simples
satisfação b u r g u e z a . A p e n a s catres, d u r o s ban-
cos de páo, mesas de p i n h o , g r a v u r a s e p i n -
turas edificantes p e n d u r a d a s das paredes, em
caixilhos d e s c o n j u n t a d o s . N a cella do s u p e r i o r ,
unia e s c r i v a n i n h a modesta, o grábato e u m cru-
c i f i x o ; na b i b l i o t e c a , l i v r o s santos, m a l encader-
nados; no j a r d i m , rosas q u e f l o r e s c e m e n t r e
çouves e alfaces, ao l a d o de u m tanque onde
232 CINEMATOGRAPHO

cada frade lava a sua própria roupa. Ahi, cur-


vado, esquecido do mundo, u m leigo esfregava
velhos trapos, e só p o r nós deu quando frei
Piazza pediu mais u m prato ao jantar p a i a
h o n r a r o hospede.
Esta sensação de miséria satisfeita afastava-
me infinitamente da cidade que, e m baixo, se
pulverizava douro. Todas as ambições humanas
pareciam vagas. A custo falei das riquezas dos
jesuítas.
— Veja você, meu filho, como são fanta-
sistas os homens. Riqueza nas galerias ! E' des-
m o r o n a r o m o r r o atoa. Mas, vão lá dizer-lhes
que não existem aqui apóstolos douro, c h e i o s
de gemas preciosas ! Nós temos, sim, a g o r a
uma nova riqueza. Esta alegra a alma.
E u venero frei Piazza. Esse velho de l o n g a s
barbas cândidas soube, numa cidade em que a
calumnia é a praga maior, ser forte e bom,
sentir todos os contatos e delles sair illeso,
perdoar o m a l dos homens e dominar a -na
influencia. E' exemplar; Deus. deu-lhe à túnica
da crença e, Luiz, ancião superior dos capu-
ebos, todo o dia a agitar-se na obra da cari-
dade: tem a alma de L u i z criança, feita de
encanto e de maravilhas. Perguntei, com curio-
sidade:
— A l g u m thesouro de fé ?
— Tres solidéos de Santo Ubaldo. Depois
de jantar v o u mostral-os.
CINEMATOGRAPHO 233

Entramos no refeilorio e as rezas começa-


r a m . Fóra, o dia tinha um esplendor de tur-
queza ao sol.
Ma tres frades no convento, além do su-
perior:— um velho de óculos, quarenta verões
já ali passou; outro, de larga face, intelligente,
e barba grisalha; outro, apenas moço, corado,
com uma leve barba negra, tão negra como a
dr S. Francisco de Assis. Pareceu-me que o
primeiro vivia a vida vegetativa dos antigos
mosteiros; que o segundo se ocupava de con-
testar o espiritismo, que o terceiro era mais
orgulhoso. Não garanto a verdade dessas obser-
vações. E' preciso perdoar aos humanos a ma-
ma de julgar tudo.
Émquanto, porém, comiamos uma sopa de
grande alimento, foi agradável ao meu espirito
pensar que recuava milhares de annos e que
me encontrava num dos conventos da peninsula,
antes dos excessos dos papas e anti-papas, antes
do terror do fim do mundo. Os frades deviam
miniaturar letras "de missaes, apagar os versos
clássicos e contar, como os romanos, as horas
do dia. Elles tinham acordado pelo gallinicium,
á hora em que canta o gallo. Quando chegava
o conticinium, —hora em que o gallo deixa de
cantar, — cada um na sua cella, a oração lhes
dulciíicára os lábios. De manhã, antelucem,
haviam ouvido missa, ad meridiem chegara eu.
Jantávamos agora, meridies. Quando eu dali
234 CINEMATOGRAPHO

saísse, recolhidos de novo, elles esperariam a


suprema e, de Certo, chegariam aoterraçopara
louvar iYlaiia, na hora véspera, antes de nascer
a estrella que Plauto chama vesperugo,. Ennius
vesper, e Virgílio hesperon...
O meu sonho, entretanto, morreu. Era pre-
ciso divertir os convivas e frei Piazza c o n t a v a
anedotas de u m cômico edificante.
— Havia em certa aldôa um homem, coi-
tado, que maltratava os filhos. Mas tinha um
nariz muito grande...
Terminada a historia, r i a ruidosamente. 0
velho de óculos também. Os outros dois s o r r i a m
e eu estava triste.
Dahi a concluir que éramos nós tres os úni-
cos capazes de j u l g a r o m a l irremediável.
Acabado o jantar, elles levantaram-se e re-
zaram. Depois, na egreja, nos altares lateraes,
de novo os v i prostrados. E u inventariava os
santos, uns m a l feitos, outros helios e invejava
principalmente o bem estar de algumas velhas
que p o r lá andavam arrumando os paramentos,
como por sua casa. Quando u m dos frades
erguia-se, logo uma dellas corria, n u m miúdo
passo, a beijar-lhe a palma, e eram pergunli-
nhas ociosas, com uma voz lambareira: «Pódé-
se pôr u m ramo de rosas no altar de S. Felix ?»
«E uma toalha de crivo no de Nossa Senhora?'»
«Ai! que rico esteve o ensaio do côro, hoje!»
«Póde-se a r m a r o côro aqui ?» E davam c o r r i -
CINEMATOGRAPHO 235

dinhas, num rumor de baratas p o r papel


novo.

Cômodo, de Gaza, aconselhava separar o


bom do falso — discite quaeso bonum, eives,
simulacYa: frei Piazza julga o fingimento já
talvez um começo para o arrependimento... Na
sua m ã o os beijos das beatas, sinceros o u falsos,
íicavam; e, abertas, as mãos tudo consentiam
e tudo davam. Na capella, os santos, com u m
ar de familia, sorriam, como á espera, que as
beatas varressem a sala, para recolher ás cellas.
O superior parou deante da bella anatomia de
S Felix.
— Este santo tem feito espantosos milagres,
disse. Na egreja, é o santo que mais pessoas
tem a seus pés. Não imagina o numero de mi-
lagres. Doenças, paralisias, vidas desarranja-
das, tudo elle cura e salva...
— Até da morte tem salvo criancinhas, sus-
surrou uma das velhas. O filho da Joanna
estava a m o r r e r de peste e a pobre g r i t o u :
«Salva o meu íilhò, que é a m ã e que t o pede».
E quando chegou á casa, o rapaz era outro.
O santo, no altar, guardava uma atitude
severa, capaz de aplacar dores e angustias e de
continuar impassivel ás oferendas e aos exvotos.
Receiando o exagero, o superior foi até á porta
mostrar-me o p r i m e i r o marco da cidade de
S. Sebastião, fincado p o r Estacio de Sá, que
na egreja tem o seu túmulo, e, quando de novo
236

entrámos na nave, apenas os pingentes de um


candelabro tintinabulavam claros sons de cristal.
— Vamos vêr a gruta de Lourdes.
Seguimos por a l i até ao terraço, e, ahi, sob
a intensa luz do sol, eu v i a miniatura da gruta
afamada, feita de cimento pintado. E' catita, é
falsa, mas, apesar do seu ar de cascata de
jardim, o que se guarda no seu bojo, assusta.
A primeira visão- é a de Nossa Senhora, engas-
tada na argamassa, lavada das chuvas, a des-
maiar.
Depois, p o r todos os lados, os clamores mu-
dos das lapides comemorativas e dos exvotos.
Graças á Nossa Senhora que me salvou da
m o r t e ! — Para que todos saibam, gloria á N.
S. de Lourdes. — Uma operação era o meu
a

fim, e Nossa Senhora me salvou ! gritam as


letras dos mármores ! E, no fundo da gruta,
o espetáculo ainda mais empolga, como ani-
mado de uma estranha vida. Estão a l i os ex-
votos, as promessas no chão o u enfiadas num
arame, ao alto, cercando a fonte.-
São pernas de cera, cabeças de crianças,
braços, velas, coroas de biscuit, corações, mãos
defeituosas.
De vez em quando, derretidos pelos raios
solares, um coração o u uma perna despenca-se
do arame e cáem, com um som fôfo, no cimento.
A gruta recorda o monturo de u m cemitério
e, cada braço, cada mão, cada perna, espap " 9
CINEMATOGRAPHO 237

çada no solo, parecem g u a r d a r a gratidão de


uma alma viva e ardente.
— E os solidéos, frei Piazza ? digo, quasi
sem voz.
— Na sacristia.
Apressámos o passo pelos corredores hu-
mildes da casa dos milagres.
Com u m grande cuidado o frade a b r i u uma
das gavetas do arcaz de jacarandá—o unicq
movei de estilo no convento, e t i r o u tres bar-
retes de sêda lilaz, debruados de ouro.
— São os solidéos de Santo Ubaldo, disse.
Mandaram-m os de Roma; Santo Ubaldo, que foi
bispo e salvou a sua cidade das fúrias de Bar-
ba-russa, conserva, morto, a elasticidade dos
músculos e o perfeito estado da carne.
I )epois de muitas provas e observações, che-
gou-se a concluir que um solidéo, passando tres
horas na cabeça do santo, adquiria a proprie-
dade do milagre, curava as dores de cabeça i n -
curáveis e enchia de formosas idéas os cére-
bros, desde que a cabeça doente lhe sentisse o
contato p o r alguns instantes. Tenho feito a ex-
periência.
Mais de 500 pessoas já têm sido curadas
aqui com o solidéo de Ubaldo.
E u olhava com respeito os pedaços de sêda
e as barbas alvas do frade.
Santo Ubaldo vivera na época da crise da
Egreja, em que os condes de Tusculum entre-
238 •> CINEMATOGRAPHO

g a r a m o p a p a d o ás cortezãs c aos bandidos;


íôra contemporâneo de João x n , p a p a aos dese-
sete annos, q u e l i n h a u m h a r e m e consagrava
bispos nas estrebarias-; e de B e n e d i t o i x , papa
aos doze annos, q u e r e p r o d u z i a na cadeira de
S. P e d r o a v i d a de Heliõgabalus.
S a n t o U b a l d o r e s i s t i r a ao m a l , f o r a apenas
p u r o e, q u a s i m i l annos depois, tres solidéos
seus faziam, no B r a s i l , n o alto do Castello, o
milagre !
CJue n o s a d e a n t o u a Sciencia, se os prodí-
g i o s se dão tão c o n t i n u a d a m e n l e como dantes ?
O u c a d e a n t o u ao h o m e m d e s c o b r i r o automó-
vel, p a r a m o r r e r m a i s depressa, se neste mun-
do c o n t i n u a m a d i r i g i r a fatalidade, as carto-
mantes, os feiticeiros, os santos e aquelles que
são c o m o o J o a q u i m do D a n t e ?

Di spirito profético dotato ?

Mas, frei Piazza sorria. Como é bom ter


crença ! A q u e l l e v e l h o a c r e d i t a n a v i r t u d e dos
solidéos, c o m o t e m a certeza de que no azul
o s o l b r i l h a p o r v o n t a d e de Deus. Intermediá-
r i o e n t r e os santos que ascendem ao paraíso e
a h u m a n i d a d e a n g u s t i a d a , a sua o b r a é acalmar
esta c o m a u x i l i o daquelles, — e lá está c o m a
firme convicção de q u e a b o n d a d e de Santo
U b a l d o , i m p r e g n a d a no leve tecido, curará to-
das as c e f a l a l g i a s e todos os m a u s pensamentos.
CINEMATOGRAPHO 239

Ter princípios filosóficos é sempre mau. Não se


pôde duvidar da própria lógica. Eu poderia
negar, com a vaidade scientifica, o milagre do
p e d a ç o de seda: poderia rir, como fazem os
inconscientes que riem do que lhes parece in-
acreditável: eu poderia Crer, com um pouco de
artificialismo literário ou como o bruto que in-
gere agua benta em logar de fenacetina e passa
bentinhos na testa, por não encontrar cristal ja-
ponez. Nunca, porém, poderia acreditar sim-
plesmente, piamente, como as crianças, na ma-
gia dos -olidéos...
E foi por isso que na casa dos milagres,
diante do miraculoso pedaço de sêda, querendo-
me convencer de que elle encerrava o bem dos
pensamentos e o final das cefalalgias, comecei
a sentir a dúvida amarga e o começo de uma
grande dôr de cabeça...
m e l h o r pistolão

MEU m a i s íntimo a m i g o é, neste m o m e n t o ,


o cidadão J u s t i n o .
0 cidàdão J u s t i n o fala rápido, e n g o r o l a n d o
as palavras, o q u e é a g r a d a b i l i s s i m o q u a n d o
se está c o m pressa; o cidadão J u s t i n o parece
intelligente p o r q u e s o r r i c o m desdém d a q u i l l o
que n u n c a v i u ; o cidadão J u s t i n o t e m evidente-
mente deante de s i u m g r a n d e f u t u r o : — é m i -
neiro. Essa esplendida qualidade, de q u e afinal
o cidadão J u s t i n o não t e m c u l p a n e n h u m a , é o
seu mais b r i l h a n t e o r n a m e n t o .
No d i a e m que c h e g o u d o Paraíso — (o Pa-
raíso não f o i senão e m Minas) — J u s t i n o Co-
nhecia dois o u tres representantes federaes d o
seu Estado, inclusivè o s e n a d o r Bueno, elejto
por t o c a r b e m c l a r i n e t a . Apenas. O i t o dias de-
pois f u i encontral-o n a C â m a r a a s e r o u v i d o ,
com i n t i m i d a d e , p o r a l g u n s leaders de u m a o p i -
242 CINEMATOGRAPHO
_ i

m ã o publica, que não deixou nunca de ser a


mais pessoal das opiniões. Que v i r i a fazer nesta
cidade Justino? Justino veio empregar-se.
— Preciso ganhar a vida, disse-me o ho-
mem agradável, mastigando tanto a primeira
e a ultima palavra que eu só o u v i o imperioso
infinito do verbo.
— Vens j o g a r na bolsa ?
— Não.
— Vens r e f u n d i r a primeira e única tragédia
do velho Guanabarino ?
— Não. Venho a r r a n j a r um emprego pu-
blico. O diabo é que só ha de quatro centos e
eu quero mais, quero de oito centos para cima.
Aristóteles dizia: todos os animaes têm o
gosto c o tacto, excepto aquelles que são imper-
feitos na memória. E u tive o tacto e o gosto de
guardar a memória da frase lapidar. E fiquei
realmente triste p o r não ser mineiro.
Ser mineiro hoje é realisar o ideal da sua
vida; ser mineiro é ser feliz, é ter o pão asse-
gurado e assegurada a consideração, é viver,
é triunfar; ser mineiro é poder contar com
todas as sortes, a dos empregos, a dos bilhetes
de loteria, a do elogio universal. -
Antigamente o mineiro era u m matuto aus-
tero que sabia latim e mesmo grego. Hoje, o
mineiro não sabe l a t i m nem mesmo grego (coisas
de resto inteiramente inúteis) mas sabe tudo e
sobe acima de tudo,
CINEMATOGRAPHO 243

Contara de Thalès de Mileto — que dando-


lhe alguém como causa da própria miséria a
Sus imensa sabedoria, Thalès, fiado nos conhe-
cimentos meteorológicos, previu uma grande
colheita de azeitonas, alugou a preço reduzido
todos os lagares de Chio e Mileto e, assim,
quando se fez a colheita, poude realugal-os
a preços loucos, ganhando uma fortuna.
Sc Thalès fôsse vivo, não precisava alugar
coisa alguma. Bastava ler dito com tempo ás
multidões:
— E u sou mineiro...
Estaria, pelo menos, nomeado diretor da
Caixa de Conversão, nomeação que seria a mais
acertada escolha do fulgurante David Campista.
Ser mineiro é ser o romano na Grécia con-
quistada, é ser Guilherme ir, em Tanger, é ser
francez no Tonkin. Nós somos, com delicia e
prazer, uma colônia magnífica dos heróes des-
cendentes dos caçadores de diamantes. E' m i -
neiro o presidente da Republica, é mineira a
fazenda, é virtualmente mineira a Central, é
mineira a presidência da Câmara, é mineira a
policia, vae ser mineiro o ministério da A g r i -
cultura. Todos se voltam, p o r u m glorioso fenô-
meno de heliotropismo social, para Minas altiva.
Já seis armarinhos passaram a chamar-se Bello-
Horizonte, todas as casas de leite são de Campo
Bello, de Itatiaya, acabam de fundar uma so-
ciedade beneficente Dr. Affonso Penna; o ve-
244 CINEMATOGRAPHO

nerando Bettencourt da Silva prepara o diplo-


ma de sócio do Liceu para vários mineiros, já
ha uma casa de doces, simbolicamente chamada
A Família Mineira.
N ã o é só. Outro dia l i u m anuncio que se
achava á disposição do publico uma cartomante
mineira (era uma franceza desejosa de réclame):
e Nené Gama, uma rapariga que toda a gente
sabe do Pará e que eu tenho a fraqueza de
admirar, resolveu chamar-se ha cinco noites
no High-Life: Nené Mineira.
Por que isso ? Mas é não querer comprehen-
der as superstições colletivas da multidão. Ser
mineiro eqüivale a usar u m fetiche, a ter um
breve, a guardar comsigo a boa sorte. E' tolice?
A multidão vive de certas idéas fixas que são
tolices. Tudo no mundo é mistério. Nós temos
u m dedo que de tanto usar anel passou a cha-
mar-se anular, e é até*hoje o anular que anun-
cia aos povos o autor de passaportes para o
outro mundo, o engenheiro e o inofensivo ba-
charel. P o r que ? Porque, diz Apião nas Egy-
pcias, dissecando o corpo humano viu-se um
nervo tenuissimo indo desse dedo ao coração, a
parle nobre do homem. Como, todos os seuhti-
res sabem, não ha nervo nenhum, nem grosso
nem tênue, que se dê ao trabalho de sair dô
«fura-bolos» para a «região altiva do pêndulo
da vida», como podia dizer o ex-deputado Eduar-
do Ramos. E, entretanto, até hoje, o anel con-
CINEMATOGRAPHO 245

tinúa a ser enfiado no indicador, p o r uma ra-


zão que ninguém procura saber.
Assim, ser m i n e i r o foi, a principio, para os
cavadores da vida, chegar ao fraco da sensi-
bilidade governadora. Depois o habito alastrou.
Hoje é uma agradabilissima doença.
Também, quando se é m i n e i r o de verdade,
ha sempre um ou dois ou mesmo tres empregos
em espectativa. O Dr. chefe de policia mandou
buscar os escrivães a Minas, o chefe dos agen-
tes é da Matta, o chauffeur do palácio é mineiro,
o porteiro, os professores, os funcionários da
i'iii baixada de oiro, os esforçados empregados

do Povoamento todos são mineiros pelo menos


honorários — para serem parcellas nomeaveis
do glorioso Estado.
Quando de manhã a gente acorda para to-
mar o clássico café, que para ser bom, apezar
do Convênio, deve ser de iMinas, só tem uma pre-
ocupação:
— Quantos mineiros foram hoje nomeados ?
Não se discute se ha vagas, se houve con-
cursos, se ha deuses adversos protestando e
lutando contra a harmonia desse espetáculo
admirável. A's vezes não foi» nenhum descen-
dente dos gloriosos conquistadores de diaman-
tes. Mas o habito, a nevrose do dia, a minei-
rite está de tal fôrma na nossa alma que nem se
discute o contrario.
— Veja você. Mas mineiros empregados!
Mais patricios. 1 7
246 CINEMATOGRAPHO

— Que? Você é também de Minas? Você


que ainda outro dia se dizia paulista da gema.
— Outro dia, protesto. E u disse isso, por
brincadeira, mas ha pelo menos dois annos.
Ha dois annos esse cavalheiro não se em-
pregou.
Talvez aconteça o mesmo neste quadrienio,
mas a opinião fica de pé e neste caso antes pa-
recer do que ser.
E é isso u m m a l ? Não. Antes pelo contrario.
As nomeações mineiras, esse curioso caso de
acyohsmo federal, requerem uma série de qua-
lidades prudentes e excellentes. A primeira é
que o melhor é governar com a prata de casa.
A segunda está até no Evangelho: Matheus,
p r i m e i r o os teus. A terceira proclama os senti-
mentos de cordialidade e intima harmonia da
famdia mineira. Estado onde nunca houve re-
voltas, terra de paz onde o respeito mutuo é
u m traço de civilisação. A quatta é o resurgi-
mento de uma velha lição da politica aristotelica
que faz nascer os governos das familias — lição,
aliás sempre abundante em exemplos. Um ho-
mem que chega a uma secretaria, não precisa
mandar o seu cartão, informa ao porteiro: «Diga
ao m i n i s t r o que é u m mineiro». U m .cavalheiro
que queira ser bem tratado no hotel não dá mais
a profissão, põe apenas no cartão: «Fulano de
tal, mineiro», e não ha ninguém que não per-
ceba numa roda a prolongada interjeição admi-
CINEMATOGRAPHO 247

rativa quando u m feliz m o r t a l diz ser patrício


do Dr. Sabino Barroso o u do cavaignacudo
Manuel Fulgencio.
Eis porque, neste momento, o meu mais ín-
timo amigo é o cidadão Justino. Justino que
sorri com desdém da Avenida, é forte, fala de-
pressa e quer u m logar de oitocentos m i l réis,
sendo mineiro.
Aristóteles dizia: todos os animaes teem o
tacto e o gosto, menos aquelles que são imper-
feitos na memória. E u tive o tacto, o gosto e a
memória de conservar a frase do meu illustre
amigo. Quando Justino tiver o seu logar — é
por estes dias com c e r t e z a — a p r o x i m o - m e e digo:
— Justino, preciso de u m emprego.
— Olha que é difícil arranjar, dirá Justino.
— T u arranjas.
— Só ha de quatrocentos para baixo... l a -
deará Justino.
— Acredito, meu Justino.
— Mas que qualidades apresentas ? insistirá
o bom Justino.
E u então — não d i g a m nada a ninguém ! é
a confissão prévia de u m sonho que ainda hei
de realizar! — eu então direi, abrindo os bra-
ços, n u m suspiro sentido, como resumo das
minhas qualidades passadas, presentes e futuras:
— Justino, eu sou mineiro de coração !
E talvez consiga o posto de guarda-civil ex-
tranumerario.
Horas d a biblioteca

a M cavalheiro com que encontro

me cheio de enthusiasmo:
anuncia-

— Afinal, meu amigo, a Biblioteca vae ter


um extraordinário palácio que já está p o r cinco
mil contos! A nossa pobre preciosidade está
numa t a l barafunda, com o pessoal brigado,
a confusão dos Catálogos, a confusão das es-
tantes, a confusão dos leitores, que só a mu-
dança a salvará.
A biblioteca ! Quanta recordação !
Como estivesse u m dia bonito, eu indaguei:
— A Biblioteca continua no mesmo l o g a r ?
— Por dois annos mais, pelo menos.
— Pois v o u vêl-a.
E f u i matar saudades daquelle l o g a r onde
eu passara ha annos u m tempo de voraz e obs-
cura leitura.
A Biblioteca é u m dos aspectos mais curió- <
sos do Rio.
250 CINEMATOGRAPHO

Secções ha, como a de numismatica e de es-


tampa, fechadas ás 3 da tarde, que podiam
estar fechadas toda a vida. Ninguém as visita.
Na de numismatica os visitantes são acompa-
nhados com uma vigdancia inculculavel; na de
estampas, os raros que de anno em anno apa-
recem, não entendem nada do ássumpto. O ama-
nuense o u o chefe de secção, quasi sempre em
mangas de camisa em tão suave remanso, quan-
do chega o cavalheiro curioso, passeiam-n'o
pelas duas salas, mostram como se guardam as
gravuras, e só. O cavalheiro curioso tem um
ar de profunda e satisfeita surpresa, u m a r de
quem diz:
— Que paiz esta minha pátria. Até gravuras
tem !
As duas secções realmente concorridas são
a de manuscriptos e de impressos. Na de manus-
criptos ha sempre u m o u outro historiador, um
ou outro curioso a l e r trechos da vida oculta
dos reis portuguezes e a verificar mapas; na
dos impressos aflue a m a i o r parte da concor-
rência. E' esta a secção, com sala de leitura pu-
blica, onde se passa a vida intensa da biblio-
teca, em cujos boletins se aferem as tendências
literárias da cidade, os livros que ella mais ama
e mais estuda, as manias e os tics dos freqüen-
tadores. Pelos boletins eu v i que eram as mes-
mas leituras, os mesmos livros que deliciavam
os mesmissimos freqüentadores e de súbito, em-
CINEMATOGRAPHO

quanto o funcionário amigo repetia que feliz-


mente a Biblioteca ia deixar de ficar entalada
entre um salão de baile e uma farmácia, imagi-
nei a cara que os freqüentadores não farão
quando a Biblioteca mudar...
Ha diversas espécies de freqüentadores. Das
dez da manhã até ás tres da tarde, aparece a p r i -
meira leva. As mesas ficam cheias de uma socie-
dade mais ou menos ruidosa, que se levanta a
cada passo para beber agua, lavar as mãos e
fumar em certos retiros fácilitadores de neces-
sidades urgentes... A freqüência da p r i m e i r a
enchente é em geral de estudantes, meninos
ainda nos preparatórios que posam o curso
nas faculdades. Nenhum delles se contenta en-
chendo apenas um boletim: enchem logo tres.
Durante alguns annos eu observei os tres pe-
didos de cada consultante e noventa e nove
vezes em cem, l i a Phisica,. de Ganot: Geome-
tria, de F. I . C.; Chimica, de Langlebert, no
primeiro boletim, e nos outros: A Rainha Mar-
got. Os Tres Mosqueteiros, O Guarany, Os Fan-
toches de M. Diabo, Luciola, Nana.
me

Que fariam os consultantes sentados ao mes-


mo tempo com o Ganot, os Fantoches de Mon-
tepin e as aventuras de Dumas ?
Os consultantes folheavam o Ganot, i a m
beber agua, encostavam no Ganot a Rainha
Margot o u a Nana e estudavam regaladamente
as aventuras dessas senhoras em péssimas t r a -
252 CINEMATOGRAPHO

duções portuguezas até ás tres da tarde, a hora


em que é preciso começar a passear pela rua
do Ouvidor.
Desse momento em deante a concorrência
amortece, os livros vão descançar e só ás 6
recomeça o movimento.
A sociedade é a mesma — estudantes em
maioria. Alguns ainda palitam os dentes do
jantar, outros vêem aos pares para estudar jun-
tos. O longo corredor, que é o salão de leitura,
fica repleto. Ganot, Langlebert, F. I . C. voltam
ás mesas. Estudar em companhia numa biblio-
teca publica, tendo defronte da gente outro ci-
dadão a ler, é pelo menos impertinente. Os
siamezes do saber susurram a principio, falam
depois baixinho e conversam finalmente quasi
alto, conversam de tudo menos de estudo, en-
chendo de u m r u m o r surdo a Biblioteca, onde
é do regulamento g u a r d a r silencio. Na sua ca-
deira alta o amanuense de dia olha com afli-
ção o relógio e parece que todos os freqüenta-
dores, ás vezes p o r motivos opostos, seguem
com anciã o curso dos ponteiros para a hora
em que as campainhas elétricas despacharão os
retardatarios.
Esta é a impressão em grosso. Nas duas
grandes enchentes diárias aparecem, entretanto,
tipos interessantissimos. Ha o freqüentador eru-
dito, que entra, circula pelos assistentes um
olhar superior através do pince-nez, desde Mon-
CINEMATOGRAPHO 253

tesquieu, símbolo em portuguez do saber, e


enche Ires boletins, em que pede livros ilegíveis
ha séculos; ha o poeta, que v a i lêr o próprio
livro de versos e fala alto para o funcionários.
— Ainda não achou ? As Canções de Sousa
Peres, um l i v r o tão procurado !
Ha os coitados, que desconfiam da existên-
cia dos autores, mas não lhe sabem o titulo
das obras.
— Verlaine, que obra q u e r ?
— Não sei, Verlaine, poesias, qualquer
um...
Ha os transitivos, senhores de passagem,
que passam e entram para matar o tempo e
dizem ingenuamente:
— E' verdade, não sei o que pedir. Deixe
vêr qualquer coisa...
Ha os imoraes que escrevinham, com sor-
rizinhos equívocos, o pedido de Alfredo Gallis,
da Martinhada o u dos tratados de Garnier; os
poliglotas exigindo para meia hora u m l i v r o
em allemão, outro em hebraico, outro em suéco;
os namoradores, aproveitando a mesa, a tinta
e a caneta da casa para escrever ás futuras
esposas; os sensacionaes, que após o pedido
dizem alto:
— E' o ultimo l i v r o que me falta lêr deste
autor. E u leio muito !
E levam dez minutos a folheal-o. E ainda os
estudantes de latim indo buscar a tradução de
254 CINEMATOGRAPHO

Ovidio no francez de Nisard, e os ledores de


folhetins-romances que lêm o dia inteiro roda-
pés do Jornal de 1855...
Entre os anônimos, ha naturalmente os ín-
timos, que entram p o r toda a parte cumpri-
mentados pelos contínuos com perguntas pela
saúde. O mais notável é o Dr. Capistrano de
Abreu.
Este nunca vai á sala publica. Entra com o
chapéozinho molle debaixo do braço, levanta
os reposteiros das diversas secções; conversa
com os funcionários, agarra os livros, lê, toma
notas como se estivesse na sua casa. Quasi sem-
pre freqüenta as secções de impressos e de ma-
nuscriptos.
Nesta ultima leva horas e horas a escrever
é m pequenas tiras, que v a i atirando a esmo-.
No dia seguinte volta:
— Sabe que perdi aquellas notas ?
E os funcionários, que muito justamente
prezam o grande erudito:
— Qual, Capistrano ! Estão aqui todas!
Como você as esquecesse, guardamol-as.
Outro também assíduo é o Dr. Felisbello
Freire. O eminente homem sobe diretamente
aos manuscriptos e faz da sala uma espécie
de consultório. Certa vez em que eu lá estive
uma hora, o Dr. Felisbello fôra procurado por
oito pessoas, e eu descia as escadas quando
u m cavalheiro subindo indagou com simplici-
CINEMATOGRAPHO 255

dade, como se perguntasse ao porteiro, na casa


de s. ex. .
a

— O Dr. Felisbello está ?


Noto ainda entre as secções de manuscriptos
e de impressos, o senador Dr. Manuel Barata,
que ha dez annos extráe documentos para a
sua formidável Historia do Pará, o sr. Caldas
Brito a investigar coisas de viticultura, o li-
vreiro Paiva a farejar negócios, o sr. Chichorro
da Gama, do Archivo, o antigo diplomata
Araújo...
O sr. Chichorro da Gama é u m autor da
sinopse dos Historiadores, regenerador teatral,
admirador da actriz Ismenia, e lê peças manus-
cnptas tendo já feito uma, felizmente impressa,
a Nuvem Desfeita.
Este Chichorro, depois de A r t h u r Azevedo
é o mais temivel combatente da regeneração
teatral. A actriz Ismenia será u m dos seus meios
eficazes, e é pena que ainda não esteja vivo
João Caetano...
O sr. Araújo gasta os ocios diplomáticos
lendo roda-pés do Jornal de 1860. E n t r a ás 10
horas, pede as colleções, e, bem lavado, com ,
os cabellos muito penteados, as unhas afiadas,
mergulha no folhetim.
Ema vez eram tres da tarde, os contínuos
viram-no muito branco, estatelado nas velhas
paginas do velho órgão. Acudiram, b o r r i f a r a m -
lhe o rosto, deram-lhe a cheirar ether. O folhe-
256 CINEMATOGRAPHO

tim do Jornal linha dado uma sincope ao velho


diplomata !
A h ! os leitores da Biblioteca !... Que estranho
romance, como os de Jerome, se faria daquelle
remanso onde o saber impenetravelmente dorme!
Quantas historias, quantos diálogos, quantos
aspectos, quantas figuras, cujo destaque se torna
mais intenso na sombra dos in-folios perdidos
para todo o sempre ! E' uma vida especial,
dupla, a desse casarão tranquillo o apodrecido
de livros, em que o l i v r o separa o freqüentador
do funcionário, mas os liga imperceptivelmente.
Poder-se-ia escrever nos capitulos a vida de
ambos ao mesmo tempo, a r i r um do outro
com a mais feroz ironia...
Hei de l e m b r a r sempre que uma vez, tendo
subido á sala publica, encontrei certo mocinho
de óculos a discutir furioso com u m auxiliar de
farta bigodeira.
O a u x i l i a r dizia, batendo no boletim:
* — Como quer o sr. que eu saiba o que de-
seja, se escreve Larousse em duas palavras e
sem u m s ? Como quer que eu descubra o La-
rousse no L a Ruse ? .
— F o i u m lapso, u m lapso claro, berrava
o mocinho. E de repente:
— Bom, não quero mais Larousse, quero
Hugo, Chatirnents de Hugo.
Em torno já havia curiosos e nós esperava-
mos a conclusão da scena, como no teatro.
CINEMATOGRAPHO 257

O a u x i l i a r l i m p o u o bigode.
— Está direito.
Desceu o estrado, meteu-se na gaveta dos
cartões, remexeu.
— Não temos.
— Não é possivel. N ã o ter os Chatiments do
grande Hugo, de V i c t o r Hugo...
— Só ha Os Miseráveis e em italiano.
— Hein ? E u já l i aqui os Miseráveis em por-
tuguez.
— Está enganado.
— Não estou.
— Hom'essa ! o senhor começa a ser imper-
tinente. Duvida? pois venha vêr...
O mocinho precipitou-se, meteu o nariz na
gaveta e a sala v i b r o u logo com a sua voz vio-
lenta:
— Ora ! tenho o u não tenho razão ! O senhor
eslava procurando V i c t o r Hugo na letra U...
E tudo isso continúa ! Continua o F. I . C,
continua o Ganot, continuam os estudantes, os
íntimos, continúa a Rainha Margot.
Émquanto o funcionário falava, * eu medi de
alto a baixo as paredes forradas de volumes,
olhei fixamente a capa velha dos Tres Mosque-
teiros e deplorei do fundo da alma o futuro re-
moto em que tudo aquillo dali tiver de sahir.
Santo Deus ! Que farão os leitores da Biblio-
teca em quanto estiveram a a r r u m a r a outra na
Avenida ?
O c h a r u t o das Filipinas

E A nas Filipinas um costume muito o r i g i -

nal. Esse costume assim o r i g i n a l i n t i t u -


la-se o costume do charuto familiar.
Como acontece para todos os costumes, mes-
mo os mais rebarbativos, houve u m observador
capaz de se interessar pelo charuto f a m i l i a r a
ponto de descrevel-o ao pasmo ouvido da Civi-
lisação. O charuto é u m movei importantíssimo
nas regiões em que o ministro da guerra dos
Estados Unidos f o i ha pouco afundar a illusão
de predomínio. E' também o maior charuto do
mundo — o maior e o mais grosso. Mede pé e
meio de comprimento e tem uma pollegada de
grossura.
Um charuto com taes proporções não se
fuma assim de uma vez, e quando não o fumam,
o charuto f a m i l i a r repousa n u m buraco propo-
sitalmente preparado nas columnas de bambu
260 CINEMATOGRAPHO

dos cantos da casa, e feito em altura que qual-


quer creança o pôde agarrar. Porque nas F i l i -
pinas todo o mundo fuma: o velho patriarcha,
o moço patriarcha, o filho do patriarcha e mes-
mo os netos. U m fdipino de tres annos não
deixa de p u x a r a sua fumaça no charutão des-
conforme. As creanças de mama variam a chu-
pação entre a mamadeira e o charuto. Quando
aparece u m hospede, não se pergunta como
entre nós nos tempos remotos em que não havia
five-ó-clocks e snobismo:
— E' servido de café ?
Não ! Agarra-se o formidável charuto, pu-
xa-se u m trago e oferece-se logo ao visitante:
• r — Queira servir-se ! T e m tres mezes !
Ora, o u t r o dia, passeando pela Avenida, á
hora em que acendem as illuminações cegadoras
dos cinematografos e do céo foge a luz do dia,
encontrei u m camarada de jornal, fino, discreto
e elegante. Naturalmente falámos m a l da vida
alheia, e estávamos a desancar uma pessoa
qualquer, quando o joven saudou um cidadão
que passava.
— Que é ?
— Jornalista.
— N ã o conheço.
— A h ! parece que começou agora. E' re-
pórter e estudante.
A idéa de u m repórter também estudante
pareceu-me exquisita. Mas não tive tempo de
CINEMATOGRAPHO 261

comentários. Passava u m homem grosso, um


desses homens que cheiram a bockmakers, e a
viagem de ida e volta a Manáos. O joven cama-
rada t o r n o u a saudar.
— E esse ?
— D i r e t o r do j o r n a l x que vae sair.
— Santo Deus !
— E está vendo aquelle sujeito grave ? Tam-
bém nosso collega. E' o diretor de o u t r o jor-
nal que já levou a bréca.
Puz as mãos na cabeça ! A Avenida estava
coalha de jornalistas que eu não conhecia.
O meu camarada r i a . Resolvi r i r também.
Estávamos ambos indiferentes ao fenômeno,
posto que elle nos trouxesse prejuízos moraes
e materiaes. E o fenômeno, apezar da nossa
indiferença, era alarmante. Para ser jornalista,
em qualquer parte do mundo civilisado, é pre-
ciso ter vocação, e prática. Já se dispensa o
bom senso, como se dispensa o estilo e a im-
pertinente gramática. A q u i não ha estilo, não
ha gramática, não ha pratica, não ha bom senso,
não ha vocação. U m pequeno estudante, natu-
ralmente poeta, tem uma crise monetária. A re-
visão incomoda-o. E' difícil emendar o que os
outros escrevem, quando não se tem absoluta
certeza. O povoamento do solo já não tem em-
pregos, nem para os mineiros. Que fazer? O
pequeno estudante arranja u m empenho poli tico
e amanhece repórter, redator, jornalista. U m c i -
18
262 CINEMATOGRAPHO

claclão qualquer fracassou em todas as profis-


sões, quebrou, f o i posto fóra de u m club de
jogo. Que faz? E' jornalista. Aquelle moço bo-
nito, cuja bolsa parca só se compara á opulen-
cia de vontade de freqüentar as rodas chies.
vê-se a beira do abismo ? Não ha hesitações.
Faz-se jornalista. O idiota que quer gastar di-
nheiro, o industrial esperto, o politico com ape-
tites de chefe, estão em crise? Surge imediata-
mente o j o r n a l para lançal-os, lançado por elles.
O publico, o publico que não lê os jornaes
feitos, ve atônito essa floração de folhas im-
pressas e de novos jornalistas; todas as classes
sociaes, dos barbeiros aos gentlemen do Club
dos Diários, estão na perpetua espectativa, quan-
11
do falam com u m desconhecido, que esse des-
conhecido seja jornalista.
Os jornaes aparecem. Quem é o secretario ?
U m cidadão que nunca na sua vida escreveu
tres linhas. Quaes são os redatores? Um moço
que é advogado, um almirante, um engenheiro,
um ocioso. Jornalistas é que não ha. Esses dis-
tintos cavalheiros aparecem, fazem um jornal
idiota, o j o r n a l rebenta; e com elle desaparece
a vocação dos redatores. A u m destes que re-
bentara em certo j o r n a l da tarde, eu indaguei
dois mezes depois:
— Que se faz agora ?
— Voltei á cavação antiga: sou bicheiro.
E p o r que essa lamentável situação ? Pela
CINEMATOGRAPHO 26.Í

indiferença, pelo scepticismo dos jornalistas


proíissionaes, pelo laisser-aller com que deixam
de defender e até encorajam todas as.manifes-
tações jornalísticas do paiz. Os engenheiros de-
fendem-se do pratico; os médicos fazem uma
guerra de morte ao curandeiro; os dentistas
com diploma desenvolvem uma campanha tão
feroz contra os sem diploma, que todos os an-
nos vemos na Instrução Publica homens de
quarenta annos aflitivamente desejosos de pas-
sar em francez, para poder collocar a sua placa
á porta; os actores esmagam os amadores. N ã o
ha profissional que não se defenda. E' huma-
no, é animal e é também altamente moral.
0 jornalista carioca é o único que não ,se
defende. Quando é u m deites a fundar u m novo
diário, os pedidos de quanta influencia politica
ha são logo atendidos, preterindo nomes ho-
nestos de profissionaes. Quando é u m cidadão
qualquer, deputado o u bolsista, que funda o
jornal sem saber o seu valor, então é uma las-
tima: a lista do pessoal é do começo ao fim de
estreantes transitórios.
Isso desmoralisa. Apesar da evolução dos
nossos costumes, evolução vertiginosa que f o i
logo das sobrecasacas conselheiraes ao smar-
tismo mais sandeu, ninguém se atreverá a dizer
numa roda conservadora:
— E u sou jornalista ! — sem ter como res-
posta a. pergunta:
264 CINEMATOGRAPHO

— Já é profissão o j o r n a l i s m o ? porque in-


felizmente esse exhaustivo trabalho, esse rude
e honesto labor i n g r a t o para os mais dedicados,
é na m a i o r i a a «cavação» passageira de uma
porção variada de cavalheiros á espera de ou-
tra coisa...
Nós, entretanto, continuávamos a passear
p e l a Avenida, quando encontrámos um sujeito,
cuja profissão eu sempre i g n o r e i , mas que veste
e conversa bem. O meu excellente camarada fez-
lhe uma serie de gentilezas. Depois, amável,
batendo-lhe no hombro:
— Você talvez não saiba. O alegre Eusebio
vae ser nosso collega.
— Que ! T a m b é m jornalista ?
— E'. Tomei a secção mundana e os teatros
do novo j o r n a l .
— Meus parabéns.
E u estava com uma louca Vontade, não de
lhe perguntar se elle sabia o que vinha a ser
teatro, mas ao menos se sabia escrever tres
linhas com sentido. E u sempre f u i um homem
pouco exigente. Afinal, não me contive. Cortei
u m pouco mais o desejo e indaguei:
— Mas, Eusebio, você entende de jornal?
— Ora, meu filho, f e z elle. Não queiras
vender caro o peixe. Quem não entende d e s s e
negocio de j o r n a l ? Jornalismo é como o ci-
garro. N ã o ha quem não tenha experimen-
tado.
CINEMATOGRAPHO 265

E olhou-me bem cTalto, com a superioridade


dõ forte cavador que estraçalha u m pobre diabo.
Foi então que me lembrei do charutão das
Filipinas. A imprensa carioca é bem esse cha-
rutão que toda a gente chupa, que anda p o r
todas as bocas,- dos pirralhos de mama aos ve-
lhos cretinos. Apenas, nós é que guardamos o
charuto e que lhe chupamos as pontas. E como
decididamente a amargura (talvez o sarro) desse
fenômeno trágico elevava-me a vertigens sim-
bólicas, deixei a Avenida, com medo de vêr mais
jornalistas, mais fumadores, nos barbeiros, nos
garçons de café, nos transeuntes, nos cocheiros,
nos motoristas, até nos cinematografos, onde
se avolumava a onda de populares...
© c i o u d a Exposição

RANCAMENTE. Nos íuturos números sensa-


cionaes da Exposição, o que mais me
agradava a principio era vêr o m a j o r Dias Bra-
ga, mostrando ao vulgo o que é nesta terra a
arte teatral. O interessante homem, porém, lar-
gou a prebenda diminuida de verba, ás mãos de
outros regeneradores mais desinteressados, e
eu passei logo a castellar imaginações nos fogos
japonezes, recorrendo ao saber matemático
para verificar quanto se ganharia p o r minuto
a queimar rodinhas que apezar de niponicas
não deixarão de ser rodinhas como quaesquer
outras. No momento, entretanto, da mais inútil
e intruncada elocubra, s u r g i u a noticia de uma
banda de bororós" dos sertões de Matto-Grosso
e eu ainda não voltára a m i m de admiração,
quando se anunciou simplesmente este facto:
durante o certamen u m menino prodígio se
exbibirá dando alguns concertos...
268 ClNEMATOúRAPHO

U m menino prodígio ! Alguns concertos ! Era


de f u l m i n a r u m homem patriota e de sentimen-
tos estéticos. E u tenho u m imenso respeito por
essa arte ascensional e eterea que se chama a
musica. Já alguém disse que ella adoçava os
costumes. Os sábios naturalistas verificam o seu
poder de sugestão sobre os animaes de todas
as espécies, inclusivè nós. Com uma orchestra,
o homem tem presa a natureza, porque as car-
pas e as tainhas gostam de o u v i r tocar flauta,
as aranhas são loucas pelo piano, os canários
belgas pelas sopranos, os cavallos pelas trom-
betas, os cachorros v a r i a m de predileção e ha
mesmo bichos que a d m i r a m e veneram o bombo.
Ninguém i g n o r a que o tambor é uma invenção
pessoal dos chimpanzés.
Mas se a musica é a essência da belleza, se
todos os instrumentos são para m i m os porta-
dores da poesia impalpavel, mesmo os pratos
e os timbales, eu gosto muito menos de aturar
os seus virtuosi proüssionaes. A vaidade de se-
rem sacerdotes da vibração sonora, os inspi-
rados da harmonia, dá-lhes até quando desafi-
nam uma violenta susceptibilidade e u m ar per-
feitamente impertinente.
Já conversaram com u m tenor, antes ou
depois de cantar? Já aturaram u m violinista
celebre em iournée, o u u m simples tocador de
piano ? O a r que elles têm olhando para os mi-
seráveis ignorantes da clave de fá o u da clave
CINEMATOGRAPHO 269

de sol, o t o m com que agradecem os cumpri-


mentos ! Parece até moléstia inherente á pro-
fissão.
O menino prodígio do certamen é para m i m
o meio de desfazer a contrariedade que me causa
a atitude dos virtuosi na admiração que em
minha alma se alastra cada vez mais extensa
pela musica sugestionadora. U m menino não
tem pretenções. Toca bem como quem pula *
corda ou faz gangorra, esbodega Beethoven o u
Gluck como quem torce a cabeça aos bonecos
do amigo. A gente está á vontade para gozar
sem se arreliar.
Depois, se a musica é tudo, é a vida, é a
exteriorisação sonora da alma* da natureza i n -
teira, se Asclepiades curava os enraivados a r r u -
mando-lhes em cima uma sinfonia, e nós não
endoidecemos ouvindo tanta musica, é preciso
saber que Pytagoras, sujeito de muito valor,
admitindo duas espécies de-gestações ao tratar
da origem do homem, não só lhes deu para
uma sete e para outra dez mezes como dias
diversos para sua conformação, creando assim
a origem musical do fatus pela teoria das con-
sonâncias. Para Pytagoras nós nascíamos em
virtude de consonâncias musicaes, com inter-
vallos, pausas, fermatas, e toda uma sciencia de
contra-ponto e de harmonia. D'ahi a dedução
natural de que musica não se aprende p r i n c i -
palmente em creança, porque não se ensina
270 CINEMATOGRAPHO

uma p a r t i t u r a inspirada. E d'ahi também a quasi


certeza de que na escala dos meninos prodígios,
o prodígio musical é sempre o mais espontâneo.
Um menino prodígio ! U m petiz de tres an-
nos que toca magniíicamente ! Mas é qualquer
coisa de fenomenal, de imprevisto e de glorioso
para a nossa terra !
Neste instante em que a Europa tem os
olhos cravados na politica do J a r d i m da Infân-
cia e que alguns senhores despeitados falam
de homens de quarenta annos fazendo-os de
babys ingênuos ainda em fralda mas já geniaes,
era preciso u m menino nosso verdadeiramente
menino e verdadeiramente prodígio para expli-
car, com provas, aleivosias irônicas e ser o
ciou da Exposição.
0 c/ou, eil-o, ahi está.
Esse menino da Exposição assegurará aos
estrangeiros o nosso papel na America do Sul
de emulos da America do Norte. 0 menino pro-
dígio era um caso raro aparecendo sporadica-
mente em cada paiz. Hoje, os Estados Unidos
absorvem de tal modo o prodígio que o enleia-
r a m n u m trust.
E m N e w Y o r k não ha petiz que não seja
prodígio. E m Chicago, além da conserva de
porco salgado, o usual é o pequeno espantoso.
Para começar, esses traquinas, com o aplauso
dos jornaes, resolveram dar uma nova interpre-
tação á historia como o fez o eminente Ferrero
CINEMATOGRAPHO 27f

com o nariz de Cleopatra e outros narizes an-


tigos. A i n d a outro dia, n u m exame de geogra-
fia e historia, os babys geniaes tiveram destas
w

respostas:
— Que me diz do tratado de Utrecht, que
poz íim em 1713 á g u e r r a de sucessão da Hes-
panha ?
— A h ! esse tratado f o i uma batalha entre
os zulús e os inglezes.
— Por quem f o i descoberta a America ?
— Por Shakspeare, que vivia no reino de
Jorge I I I e f o i assassinado p o r u m 'sujeito cha-
mado Caliban.
E como na America ha religião, u m garoto
indagado a respeito destas tres personagens bí-
blicas: Esaú, Aarão e Isaias, respondeu grave:
— Esaú era u m homem que escrevia fábu-
las. Aarão vendia lentes e acabou d i r e t o r da
Central do R i o de Janeiro City, Isaias era u m
grande profeta que atualmente toca violino...
Disparates? N ã o ! Interpretação. U m me-
nino prodigio começa logo p o r alterar os factos
históricos. A historia é uma fantasia invero-
simil.
Esses meninos, além de historiadores,
odeiam a poesia. N u m inquérito que a respeito
de versos se organisou em certo collegio, ao
contrario do que ainda fazem os anciãos de
quarenta annos no nosso paiz, t e m estas m á -
ximas profundas:
272 CINEMATOGRAPHO

— A poesia é uma linguagem cifrada para


a leitura da qual é preciso ter uma chave.
— E m r e g r a geral não é preciso procurar
sentido no que está escripto em verso.
Quando aparece u m gênio infantil, imedia-
tamente os managers alugam-no p o r tempo in-
determinado e o menino acaba antes de crescido
ou de morto, gênio americano.
A g o r a não. Graças aos céos, agora não. A
Exposição vae revelar ao côro das nações que
também nós cultivamos o menino prodígio. 0
J a r d i m da Infância, dominador político, não
era bastante, mesmo porque neste jardim ha
m u i t o jequitibá frondoso de cincoenta annos,
não contando com as bananeiras ante-diluvianas
que f u g i r a m da chácara do general José Gomes
Pinheiro Machado ao p r i m e i r o toque de reco-
lher. Os meninos de dezoito annos, que fazem
versos — oh ! bichos fóra da m o d a ! — n ã o da-
vam bem a-sensação de precocidade; as meni-
nas que casam quando deviam jogar o law-tennis
e b r i n c a r com bonecas, não e x p r i m i a m senão
uma sensualidade faunesca e irreprimível por
parte dos cavalheiros. E r a preciso, na Expo-
sição, além da banda dos bororós, que ex-
prime a educação wagneriana do selvicola,
o pequeno de tres annos, que ao acabar
de engatinhar, senta-se ao piano e executa com
a mesma felicidade a Sonata ao Luar o u o Vem
cá, mulata.
CINEMATOGRAPHO 273

Era esse menino que faltava. E' esse menino


que vae ser a peça mais r a r a do fulgurante cer-
tamen.
Gomo tudo neste paiz é questão de imitação
e de moda, a semente desse menino fará brotar
do solo abençoado da pátria verdadeiras flo-
restas de meninos prodígios. Dentro de pouco
tempo os paes> felizes não dirão mais aos seus
produtos:
— Juquinha, diga u m verso para o moço. .
Esses paes tomarão, dos braços da ama o
petiz enfaixado e com austeridade:
— Doutor, -explique aqui ao velho amigo a
quadratura do circulo.
Nós havemos de vêr ainda garotos de cinco
annos trabalhando com açodamento revistas de
anno, tragédias shakspereanas e romances da
vida ante-terrestre, havemos de v i t o r i a r maes-
tros de anno e meio, havemos de encontrar, na
rua, deputados, banqueiros, ministros, canto-
ras de café cantante na edade em que n ó s —
desgraçados ! - - perdíamos o tempo jogando a
malha.
E quando, n u m futuro remoto, depois da
Humanidade ter perdido os cabellos, as unhas,
os dentes, depois da Humanidade t e r descas-
cado completamente, na época em que viver
dez annos fôr u m excesso de longevidade, q u i -
zerem notar casos típicos de precocidade antiga,
os músicos velhos do momento, em vez de citar
274 CINEMATOGRAPHO

Mozart, citarão comovidos a terra admirável


e o bebê bonito que toca Chopin^ e toca Schu-
mann, e toca Bach, e qual novo Orpheu, levará
á Exposição o publico sequioso de prodigios.
Não. O precoce tocador é a inicial da nova
raça de gênios. N ã o nos enganemos. E a sua
aparição no certamen mostra o quanto Miguel
Calmon é capaz de fazer para demonstrar que
os meninos valem mais do que os anciãos.
Mesmo porque, émquanto o bebê, com tres
annos, toca tudo, — nem Affonso Penna, o pre-
sidente, nem Calmon, nem o J a r d i m da Infância
inteiro, nem mesmo o general José Gomes com
alguns lustros mais, nem eu até somos capazes
de tocar ao menos berimbáu, sem pôr em de-
bandada todos os circumstantes.
Quando o brasileiro
descobrirá o B r a s i l ?
kÍ4, l! üi h i .• ;; : '• ?

m A s , então. Minas não tem um porto


de m a r ?
— Infelizmente, minha senhora. Apesar do
Brasil ter as costas largas, Minas é um dos
quatro Estados centraes, sem porto de mar.
— Quatro, só ?
— Infelizmente, quatro só. Apesar do Brasil
ter muitos Estados, os outros não aderiram
ao movimento de h o r r o r ao oceano.
Esta interessante e erudita palestra, era num
salão perfeitamente intellectual. Havia damas de-
liciosamente vestidas e cavalheiros superior-
mente installados na vida. Os que em torno da
mesa do chá, preparado á russa, com limão,
ouviram as minhas revelações, t i n h a m o ar im-
pertinente e fatigado com que se permite a u m
toleirão mostrar as suas habilidades, e a pró-
pria dama que perguntava, fazia-o apenas p o r
276 CINEMATOGRAPHO

u m desfastio civilisado. Que se importava ella


com os Estados do Brasil, e que Minas fosse
u m Estado central ?
Neste momento, porém, a u m canto, o conde
papal Rodrigo Azambuja, que vinha de fazer
uma estação no Egypto, como toda a gente que
se presa, começou a contar as suas impressões
do N i l o e das areias. Dentro em pouco, metido
pelo deserto, Rodrigo Azambuja, falava do bai-
xo Niger.
— Esse N i g e r é muito interessante.
— Alais que o nosso Amazonas ?
— Oh ! meu amigo, o Amazonas... Falo pro-
priamente dos costumes. Imagine que ha um
meandro do Niger que nasce perto de Idda, e
desemboca no Otnicha. Subindo esse curso
d'agua, encontra-se uma aldeia de nome Egga-
Mambara. O r e i desse paiz tem o nome de rei
do r i o . E sabem porque? Porque matou mais
inimigos e mais ammaes ferozes. Nesse paiz,
o homem que mata uma pantera ou um caimão
tem o direito de usar u m laço de fita no torno-
zello. A cada acto de bravura, acrescentam-lhe
u m laço. Quando o tornozello está cheio de de-
corações, o homem é nomeado r e i do rio !
A roda toda r i a encantada e o conde Rodrigo
trunfava.
— A' margem dos nossos rios, também ha
costumes muito interessantes. N ã o sei se as
senhoras leram os estudos do esforçado Dr. Bar-
bosa Rodrigues..^
CINEMATOGRAPHO 277

Houve u m f r i o . E o cavalheiro de mais i n t i -


midade, i n t e r r o m p e u :
— Oh ! creatura, não assustes as damas com
os indios. Mas que mania a nossa de falar de
selvagens ! Deixa os indios em paz, rapaz.
Cheio de vergonha, enguli de uma vez só
uma sandwich de caviar, eu que não gosto de
caviar, e, como era preciso afinar pelo diapasão
geral, interroguei de face uma das senhoras:
— Dessas historias, não o u v i u V. Ex. na a

sua ultima croisserie, pela Scandinavia !


— Mas ouvi e v i cousas tão interessantes !
fez ella, demorando os olhos no teclo do hall com
um ar de maravilha. E, imediatamente começou
de falar das cidades da Dinamarca, da situa-
ção politica da Suécia, das vias de comunica-
ção no arquipélago de Loffoden, como se nunca
tivesse saído de lá.
Esta interessante palestra, que pôde ser con-
siderada u m exemplo de progresso e a demons-
tração de u m mal, era na sua essência, o es-
tado exato do brasileiro, desde que o brasileiro
é brasileiro. O nosso patriotismo limita-se ao
estridente espalhafato, sempre que nos julga-
mos ofendidos p o r qualquer paiz, seja a Ingla-
terra, seja a Itália, seja a Argentina. No fundo,
porém, temos a idéa de que somos fenomenal-
mente inferiores, porque não somos tal qual os
outros, e ignoramo-nos p o r completo. Naquella
roda as senhoras conheciam a Scandinavia, e
19
278 CINEMATOGRAPHO

p e r g u n t a v a m se Minas era porto de mar. Como


os daquella roda, somos todos nós. Para o bra-
sileiro ultra-moderno, o B r a s i l só existe depois
da Avenida Central, e da Beira-Mar, que, como
vocês sabem, é a p r i m e i r a do mundo. O resto
não nos interessa, o resto é inteiramente inútil...
A base do estudo de u m paiz — e eu c r e i o
não avançar u m paradoxo assustador, — é a
corografia desse paiz. Cada nação faz q u e s -
tão capital de que os seus filhos a conheçam.
A própria França, bem conhecida p o r não saber
geografia, pôde teimar em j u l g a r o Rio de Ja-
neiro capital de Buenos Aires e o Brasil um
dos mais ricos departamentos do Chile. Mas
não ha francez que ignore o seu paiz, a sua
divisão politica, a sua produção e a sua histo-
ria. No B r a s i l dá-se absolutamente o contrario.
Os filhos de gente rica vão estudar na Europa.
V ê m de lá, falando varias linguas e tendo isto
aqui, não como pátria, mas como a cidade,
onde é preciso ganhar u m pouco mais, ou me-
l h o r — • como o logar onde m o r a a familia. Os
remediados, cuja ambição e m toda a parte é
i m i t a r os ricos, seguem o curso, geral, e os
pobres, como que marcados mentalmente por
essa bizarra sensação de inferioridade, não
têm outra opinião.
E' curioso assistir aos exames na Instrução,
exemplo médio cios ginásios oficiaes e semi-
oficiaes. 0 exame de geografia geral e da gep*
CINEMATOGRAPHO 279

grafia do Brasil é feito de uma só vez, assim


como o de historia. Os pontos são sempre muito
mais carregados nas cousas de fóra — mesmo
porque os professores estão convencidos de que
o n o s s o lado nada tem de interessante. Eu acom-
panhei, cm tempo, esses exames. Raro era o
rapaz que sabia o seu ponto do Brasil c havia
muitos que discorriam sobre a Ilollanda, a
Sibéria ou o Turkestân, com uma certeza de
éhervar o examinador. Os estudantes faziam de
certo má c a i a aos rarissimos examinadores que
se interessavam pelo Brasil, c quando Moreira
Pinto indagava do joven:
— De que Estado é o senhor? de que ci-
dade ? Diga-me alguma cousa da sua terra.
Os estudantes murmuravam á bôca pe-
quena:
— Lá está o Moreira Pinto tomando notas
para augmentar a corografia ! Que secante!
Terminado o curso preparatório, os rapazes
nunca mais abrem um compêndio, mas o virus
do universalismo, o apetite de ir viajar fal-os
abrir quanto guia europeu ha por ahi, ao passo
que lhes mata por completo o desejo de co-
nhecer o seu paiz. Quantos rapazes intelligentes
ha nesta cidade que ignoram, por completo,
quantos metros de altitude tem o pico do Ita-
liaya, onde nasce o Amazonas, e têm de cór os
lagos dos Estados Unidos, e um conhecimento
matemático dos Alpes? Um dos abundantes
280 CINEMATOGRAPHO

propagadores a tanto a linha ultimamente apa-


recidos, dizia-me aborrecidissimo:
— E' espantoso, mon chér confrère. Todos os
seus compatriotas conhecem Paris como se lá
tivessem estado, e ignoram por completo o ca-
minho mais simples para ir a um arrabalde.
Digo mais. Foi preciso perguntar a dez pes-
soas, para obter informações impressas sobre
o Kio de Janeiro.
Esse cavalheiro, querendo informações sobre
o nosso paiz, estava alienando gravemente os
leitores brasileiros. Não um, mas muitos, a
propósito do relatório de Miss Wright, ou da
palpitante e magnífica reportagem de Manuel
Bernardez, confessaram-me:
— Agradável a pa/rte "referente á reforma
do Rio. Mas quantos dados sobre os Estados.
quantas informações fatigantes.
E isto, porque? Porque, brasileiros, esse-
cavalheiros acham inteiramente inútil conhecer
o Brasil. Um livro sobre a geologia da França
é para cada um delles muito mais interessante
que a descripção do esplendor no qual vivemos
sem o conhecer, e ha mais gente conhecendo,
por exemplo, *o sistema de irrigação de Calcutá
do que o togar de onde nos vem a agua bebida
no Rio, que, como a Avenida Beira-Mar, é tam-
bém a primeira do inundo.
Em taes condições, para que o brasileiro
atacado de pastacuerismo cerebral, em plena
CINEMATOGRAPHO 281

Avenida Central, imaginando gratte-elels new-


yorkenses nos prédios de cinco andares e as
elegâncias tioulevarditres nas terrasses dos ca-
fés — descobrisse o Brasil, não havia propa-
ganda nem embaixada de ouro.
Veiu o esfomeado Tourot? Veiu o prolixo
Doumer ? Vieram as damas reporters e o tur-
bilhão de admiradores ? Que importa ? Veiu os
Estados Unidos na pessoa do seu ministro?
Já tivemos um rei americano, com o seu yatch
nas águas do Guanabara ? Isso, longe de fazer
com que nos olhássemos, deu-nos mais tremen-
do o apetite da desnacionalisação, reduzindo o
Brasil ás transformações materiaes da cidade.
E nós, o .brasileiro, admirável, estávamos assim,
quando alguém se lembrou de uma exposição,
cuja organisação de trabalho e de esforço eleva
os seus autores mais que os guerreiros de Troya.
A Exposição vai abrir-se. E' a grande amos-
tra do Brasil. Cada Estado expõe as suas rique-
zas naluraes e os tentamens da sua industria.
O estrangeiro admirará e aproveitará, g r a ç a s
ao céo. O brasileiro descobrirá. E eu estou a
ver o pasmo das cariocas e dos cariocas deante
do ouro, das pedras, das madeiras, dos tecidos,
dos aproveitamentos da natureza assombrosa,
pelo homem vagaroso. Isto é do P a r a n á ? Real-
mente, o mate é tão bebido e apreciado ! Isto é
do Amazonas ? Ora, diga-me, oncle fica Matto
Grosso !
282 CINEMATOGRAPHO

Alas é estupendo, que Minas lenha, alem


de S. João d'El-Rey e de Bello Horizonte, esta
estupenda riqueza ! O Espirito Santo fica ao
norte o u ao sul ?
E só talvez na Exposição o brasileiro des-
cobrirá o Brasil — o que será talvez direito seu,
depois de Cabral, de T u r o t e de M. Touché.
me

E descobrirá com a pilula bem dourada e bem


cara. Todos irão vêr a Exposição, não pelo
Brasil que lá está, mas pelas diversões com
que se arrebica.
Como a interessante dama, que me fizera
pensar no nosso curioso estado moral, esgo-
tava a Scandinavia — francamente, que nos im-
porta a Scandinavia — atrevi-me, modesto, a
insinuar a Exposição. Toda a roda mostrou um
contentamento de b o m tom.
— - V a i ser a salvação dos prazeres da pri-
mavera ! disse o insuportável e papal Ro-
< I rigo.
—• T e m todas as diversões imagináveis, o
chateau-d'eau, restaurants exóticos, concertos
em que ouviremos, pela p r i m e i r a vez, os maes-
tros russos tão em moda, agora.
— E o Brasil, minhas senhoras, e o Brasil,
também.
— O cavalheiro está insuportável. Querem
vêr que v i r o u jacobino ? Deixe-se disso ! Mas
a Exposição v a i ser mesmo um encanto. Meu
marido que lá deu u m pulo, o u t r o dia, de auto-
CINEMATOGRAPHO 283

movei, assegurou-me. T e m tudo. Vae ser talvez


melhor que a de Paris...
E eu senti que, substituindo o Pão de Assu-
car a T o r r e Eiffel, o brasileiro ainda depois da
Exposição ignora o B r a s i l . Mesmo porque o
Pão de Assucar está apagado...
0 M i l a g r e da M o c i d a d e

K o segundo d i a da Exposição, desde que


a luz se acendeu, t r a n s f o r m a n d o a cidade
• dos palácios em cidade da maravilha, eu resolvi
andar sósinho. Para sentir-, para gosar, para
perceber a v i d a com todas as faculdades da
intelligencia, andar só é excellente. U m psiquia-
tra meu amigo, dando-me o u t r o d i a o esboço
de uma l e i sobre psicologia das multidões,
demonstrava claramente que, n u m a reunião de
quatro o u cinco homens intelligentes, a pales-
tra é menos intelligente, porque as consciências
descançam umas nas outras. E u precisamente
não descanço e irrita-me a corrente geral, quasi
sempre p r o d u t o de u m erro, ou, o que é peor
— de u m pedantismo consciente. Para gosar,
porém, aquelle encantamento de luz, aquella
-orgia de sol domado pela intelligencia, enla-
çando da terra ao m a r uma cidade na cambiante
da Cor, era m e l h o r passear só.
286 CINEMATOGRAPHO

E a m i m parecia-me que a V i d a se fizera


sonho e que e u ía conduzido como u m escu-
deiro de mágica para u m desses paizes de arre-
bol, onde as mulheres se t r a n s f o r m a m em flores
e as fadas, saindo das grutas, transformam em
r u t i l a n c i a s divinas a simples escuridão.
Que estavam os meus olhos mortaes admi-
rando e louvando ? A o b r a i m o r t a l de uma
geração incomparavel. A q u e l l a Exposição era
simplesmente a M a r a v i l h a . Delia, dessa grande
prova universal, quantas conseqüências enor-
mes ! O Brasil, errada e pretenciosamente des-
coberto p o r quanto cavador europeu tem apa-
recido, desoobria-se elle próprio, descobria-se
n u m a apoteose extraordinária, amontoando as
riquezas incomparaveis d a terra e as riquezas
estranhas d a sua intelligencia e da sua ener-
gia. Naquelle certamen e m que os pavilhões
são palácios e cada sala assombramentos su-
cessivos, e r a ao mesmo tempo a sensação do
B r a s i l n u m mòstruario colossal para o mundo
e para o próprio B r a s i l ; e os resultados do co-
nhecimento exacto do estrangeiro, com a entrada
de capitães para a exploração das riquezas na-
turaes e o desenvolvimento das industrias, e as
conseqüências do i n t i m o conhecimento inter-
estadual, feito na ligação dos halis, seriam tão
grandes, que o m e u cérebro se recusava a pen-
sar com medo ao exagero fantasista.
A m i n h a admiração ficava apenas na obra
CINEMATOGRAPHO 287

germinada e concluída, naquillo que os meus


olhos v i a m e meus nervos sentiam, e, vendo e
sentindo, de toda a minha alma subia a admi-
ração pela geração que realizara tal obra. Quem
a fez ? U m punhado de moços, — os moços que
afirmam o B r a s i l de modo extraordinário, no
momento em que elle começa a ser falado. H a
um íacto evidente: do governo de Rodrigues
Alves é que sé começou a conhecer o Brasil,
e desse governo data a ingerência dos moços
de modo dominador nas administrações e nos
negócios públicos. F o i talvez p o r isso que as
reformas, as transformações se fizeram tão r a -
pidamente, é talvez p o r isso que repentinamente
a'nossa energia e a nossa decisão ao próprio
paiz aturdem, acordando os nobres instintos do
patriotismo, que é a consciência da própria
força.
Que está fazendo essa geração de moços
dos vinte aos trinta e cinco annos? Essa gera-
ção desfez a politiquice de camarilha, i n t r i g u i -
nha e inutilidade, não teve nunca o acesso
histérico de u m patriotismo de agressão, e i m -
põe a sua pátria pela obra da paz e do saber,
pelo puritanismo sem espalhafato e pelo talento
demonstrado em acção. Os moços acompanha-
ram F r o n t i n e Passos na transformação da c i -
dade; os moços transformaram alguns dos nos-
sos serviços de assistência, como o Hospicio,
a ponto de o b r i g a r e m os sábios allemães a
288 CINEMATOGRAPHO

v i r e m vêr o modelo aqui; os moços são do valor


de Carlos Peixoto o u de M i g u e l Calmon; e
nesta cidade, quando qualquer cousa é real-
mente boa e digna de elogio, é também certo
ser feita p o r moços, que no tempo da monar-
quia faziam, no máximo, esluclantadas.
Aquella cidade da maravilha, erguida em
oito mezes, quem a fizera? Dois moço-: M i g u e l
Calmon e Sampaio Correia. De Miguel Calmon,
o benjamin do ministério, póde-se bem dizer
que a ousadia dos seus projetos, a sua retidão
e a multidão de idéas que o seu cérebro con-
tinha, espantaram u m instante. Mas e r a um cé-
rebro de matemática. Os resultados foram fa-
taes, e elle continúa impassivel no elogio e na
agressão, como u m sujeito certo do seu fim.
De Sampaio Correia só ha u m a dificuldade:
encontral-o para ad.miral-o bem e amal-o mais.
A atividade intellectual desse homem tem do
prodigio. A o mesmo tempo que dirigia as Obras
Publicas, como ellas nunca fôram dirigidas,
inaugurando uma série de trabalhos e provi-
denciando para o já chronico abastecimento
d água da cidade, Sampaio Correia, o melhor
collaborador de Calmon, d i r i g i a pessoalmente
os trabalhos da Exposição, e esses trabalhos em
oito mezes fôram apenas: projeto geral com di-
visão da área, ornamentos, ajardinamenlos;
preparo da área com aterro- e desaterro; demo-
lição dos edifícios antigos, dependências da Es-
CINEMATOGRAPHO 289

c o l a M i l i t a r e d o z e prédios p a r t i c u l a r e s ; c o n s -
trução d e u m cães q u e c o m p l e t a a A v e n i d a
B e i r a - M a r até fóra d a b a r r a , c o m u m a p o n t e
de c i m e n t o c o m v i n t e m e t r o s d e v ã o ; o u t r a
v

p o n t e d e a l v e n a r i a p a r a atracação d e b a r c a s ,
o a s s o m b r o s o château dCeau, a q u e l l e pórtico d a
m a r a v i l h a q u e é o portão m o n u m e n t a l , o p a -
lácio m a n u e l i n o d e P o r t u g a l , c e r c a d e t r i n t a
pavilhões, o t e a t r o , o s r e s t a u r a n t e s , a s r e d e s
de c x g o t o s e á g u a s f l u v i a c s , a distribuição d a
a g u a e d a illuminação, q u e só p o r s i é u m a
p r o v a d e t a l e n t o e d e a r t e , o calçamento, a a r -
b o r i z a ç ã o — q u e s e i eu, deuses fortes d a H e l -
lada m o r t a ? o a s s o m b r o d a energia, d a ativi-
dade, cia c a p a c i d a d e , o prodígio d e u m a c i d a d e
c r i a d a e m 130 d i a s , o m i l a g r e d a força i n t e l -
ligente !
C o m o n ã o se s e n t i r a g e n t e p a r t i c i p a n d o
u m p o u c o dessa g l o r i a i m e n s a ?
O u t r o r a e r a c h i e e p o d i a t e r a s u a razão
de ser, p o s a r d e p o u c o b r a s i l e i r o , t e n d o o p a -
t r i o t i s m o c o m o u m a espécie d e a t a q u e i n t e r m i -
t e n t e d e j a c o b i n i s m o . H o j e , só q u e m n ã o t e m
a f a c u l d a d e s i m p l e s d e p e n s a r o q u e sente, só
q u e m , e m v e z de s a n g u e , t e m n a s v e i a s o r c h a t a
o u a g u a d e L u b i n , é q u e se pôde c o n s e r v a r
impassível n a q u e l l e r e c i n t o .
P a t r i o t i s m o n ã o é manifestação d e b a n d e i r a ,
nem g r i t o s c o n t r a estrangeiros, q u a n d o elles
afirmam, a sua s u p e r i o r i d a d e ; p a t r i o t i s m o não
290 CINEMATOGRAPHO

é a f a n f a r r o n i c e de ficar e t e r n a m e n t e n a sujeira,
d i z e n d o q u e nós s o m o s u n s h e r o e s , p o r q u e os
voluntários d a Pátria f i z e r a m prodígios na
g u e r r a do P a r a g u a y . P a t r i o t i s m o é demonstrar,
n o c o n c e r t o d a s nações, o s e u v a l o r e g u a l o u
m a i o r d o q u e os o u t r o s , n a i n d u s t r i a , n a arte,
n o p r o g r e s s o . F o i a s s i m q u e se fez a R e p u b l i c a
d o s E s t a d o s U n i d o s : é a s s i m q u e n o s fazemos
nós t e r r a d a A m e r i c a , t e r r a n o v a , terra de
energias novas, terra d e deslumbramento. Na
c i d a d e l u m i n o s a , d e a n t e d e u m a população de
8:500 e x p o s i t o r e s , v e n d o r i q u e z a s q u e n e n h u m
p a i z t e m e I o d a s as ind-uslrias imagináveis, repre-
sentação de d e z o i t o regiões nossas, t e n d o S. Pau-
l o á f r e n t e , c o m o m a i o r e x p o s i t o r , o estran-
g e i r o tourisie v e r i f i c a q u e i s t o é u m p a i z o n d e lia
a l i b r a d o p r ó x i m o domínio de g r a n d e potência,
o e s t r a n g e i r o d o m i c i l i a d o sente-se c o n t e n t e , p o r
t e r e m p r e g a d o a s u a a t i v i d a d e n u m a terra
assim, e o b r a s i l e i r o diz, emfim, c o m orgulho:
— E u sou brasileiro !
O h ! vocês n ã o i m a g i n a m a e m b r i a g u e z d i -
vina de poder dizer civilizadamente, sem o
a v a t a r d a naturaleza e d a g u e r r a d o P a r a g u a y ,
sem a v e r g o n h a da s e l v a g e r i a — a sua naciona-
lidade ! Vocês não p o d e m conceber o prazer
d e l i c i o s o , n a G r a n d e Mágica, de c o m p r e h e n d e r
q u e R i d o a q u i l l o s o m o s nós, q u e t u d o a q u i l l o
é o B r a s i l , q u e a q u e l l a illuminação n u n c a teve
r i v a l e m lodo o mundo, que aquellas industrias
CINEMATOGRAPHO 291

são tão perfeitas como as melhores do mundo,


que aquellas riquezas naturaes o u são melhores
que as dos outros paizes o u não têm r i v a l e m
todo o mundo. E' u m enervamento perturbador,
é u m sentimento de alegria paroxismada. E eu
só, caminhando p o r aquelle alluvião cie gente,
linha vontade, a vontade p u e r i l que cada u m
dos touristes soubesse que eu e r a brasileiro -
não já o brasileiro das operetas do Meillac,
mas o tipo que allia ao afinamento latino a
energia prodigiosa da America.
Fui assim até ao terraço que deita para o
oceano, desejoso de acalmar os nervos. E ahi,
pela p r i m e i r a vez, eu tive o medo de envelhecer,
— de envelhecer sem impôr a m i n h a persona-
lidade no m á x i m o de energia util ao meu paiz,
sem aproveitar a atividade e a força da mo-
cidade;. inteiramente, na construção de uma vida
que me désse a m a i o r quantidade de prazer são,
cooperando para a integração do progresso da
minha terra.
E patriota, eu, o frivolo, o sceptico, deante
do oceano, que os aryas consideravam o labo-
ratório da vida, louvei mais uma vez, com o
h o r r o r de envelhecer, a obra portentosa desse
punhado de cérebros e de energias assombrosas
que realizavam, na terra de Santa Cruz — o m i -
lagre da mocidade...
p
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!*

m
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li
le
pi
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t|
II
A c a r t a de um delegado
á Exposição

í%J(mo estivéssemos no bar vendo o prazer


VS' convencido com que a humanidade se en-
venena, á roda agregou-se Getulio de Azam-
buja. T a m b é m chegou, emborcou um copo de
cerveja, exclamou que aquillo tudo era uma
belleza, e ao abaixar os olhos, deu com uma
carta no chão.
— Estão a vêr? E n t r o e descubro logo
coisas !
A carta, evidentemente, caíra de uma algi-
beira poucos momentos antes. Nem o envolu-
cro estava sujo. E, caso que nos aguçou a cu-
riosidade maldosa, estava ainda aberta e p o r
sellar. U m p o r u m dos cavalheiros em torno á
mesa sopezou a carta, o l h o u o sobrescripto,
sorriu, disse uma frase. E todos pareciam aca-
nhados, porque a vontade geral era a b r i r a carta
e lêl-a. Ha quem resista á leitura de uma carta ?
20
294 CINEMATOGRAPHO

Se até as anônimas são irresistíveis ! Quanto


mais uma epístola aberta, n u m bar de Expo-
sição ! Getulio comprehendeu o estado d'alma
da roda.
— E se nós a lêssemos?
—- E' u m crime !
— Fôssemos nós não fazer tudo quanto a
nossa imaginação chama crime, a vida seria de
uma insulsez lamentável. Leiamol-a !
— P o r tua conta ?
— Está bem. Acarreto com as responsabi-
lidades e com a possibilidade de aparecer por
abi o autor.
0
Rimo-nos, olhando para os lados, por causa
das duvidas. Getulio já desdobrara o papel. A
carta era longa e dizia assim:

«Minha querida Nathalia. — Em primeiro


logar u m beijo muito longo á minha mulher-
zinha, de quem cada vez sinto mais saudades.
E que esse beijo se reflita nos pequenos, frutos
do nosso amor. Reconfortado o coração, tão
só nesta vasta cidade, com o pensamento em
t i , aproveito a ocasião em que os trabalhos da
Exposição me deixam u m pouco tranquillo e
l o g o pego da pena para mandar aq sêr querido
toda a alma.
Com efeito, cara esposa, ha quasi um' mez
que não te escrevo. As tuas cartas são em parte
CINEMATOGRAPHO 295

justas. Alas como escrever? N ã o ha tempo, tenho


passado uma vida de cão. I m a g i n a ! Estou numa
pensão de famílias da r u a Voluntários da Pátria
para ficar mais perto da Praia Vermelha. A
p e n s ã o é de uma velha paralitica e nunca v i
gente tão leia e tão sem graça como o resto
dos hospedes. E digo o resto — porque sou e u
a maior parte. A comida é péssima, a cama
dura e o crcado não me dá o café sem e n t o r n a r
metade da chicara no pires.
A principio, logo que cheguei, f u i forçado
a acompanhar o nosso senador, que como já
deves saber volta á presidência brevemente ém-
quanto o actual estiver no Rio, a senalorisar um
pouco. O nosso senador, aliás muito amável,
não me largava. Assim p e r c o r r i a cidade c andei
em vários logares. Escusado é dizer-te que com
todo o respeito. Mas queres saber a m i n h a im-
pressão sincera ? Isto fica m u i t o áquem do que
eu pensava.
Como a vida parte do estômago, dir-te-ei
que a cidade é, quanto a hotéis, u m a fabrica de
mortes. Andei pelos mais afamados, sempre com
o senador, h o m e m muito austero como t u sabes.
Pois, minha filha, é u m a grande miséria. Os
creados são insolenles. m a l vestidos, c o m os
p u n h o - sujos; as lislas parecem-se todas, p r i -
meiro pela língua arrevezada de quem as faz,
segundo pelos pratos que são sempre os mes-
mos, terceiro porque o que a gente quer sempre
já acabou,
296 CINEMATOGRAPHO

E' fatal, Nathalia. Uma vez — um pouqui-


nho tarde talvez, porque o senador estivera con-
versando comigo e vários deputados — depois
de consultar a lista, já muito enjoado, disse
ao garçom
— Dê-me p ã o .
E sabes o que respondeu elle? Respondeu
simplesmente:
— J á acabou !
Nem pão, quando a gente quer 1
\lal comido, um homem não tem vontade de
coisa nenhuma.
As diversões e os passeios também não agra-
dam, porque a cidade, depois das avenidas e
das lâmpadas elétricas, mais os automóveis,
é de uma grande pretenção, e parece que toda
a gente tem falta de dinheiro, principalmente
as senhoras. E senão vê t u : recebi um cartão de
convite para uma sessão magna em certo club,
graças ao senador, c em baixo do convite a di-
retoria pedia que eu fôsse de casaca. Como
se eu não soubesse ! De resto, ha homens que
mudam de roupa tres vezes por dia como nos
romances, c vão sempre ao teatro de smoking.
Coitados delles, Nathalia ! Os teatros são detes-
táveis. Os artistas não sabem os papeis e quando.
a gente vae á caixa distribuem cadeiras de be-
neficio. Eu também f u i iima vez só e saí esfo-
lado, porque o senador obrigou-me a ficar com
alguns bilhetes em atenção a um seu camarada
de collegio, que deu para cômico.
CINEMATOGRAPHO 297

Ao sair do teatro não se tem onde ir, quero


dizer que uma pessoa com insomnia fica a tro-
c a r as pernas pela cidade deserta. As condu-
ções custam caríssimo, e os passeios ao Leme
(logar m u d o sério, onde se reúnem varias fa-
mílias) custam os olhos da cara. T a m b é m já o
Leme não é moda. U m juiz da alta dizia-me
outro dia:
- A civilisação caminha. Esteve no bar de
Botafogo, no Pavilhão Mourisco, no Leme. Está
agora na Exposição. Para onde irá ámanhã ?
Talvez para a ilha Raza.
— E V. Ex. acompanha-a ?.
a

— Que se ha de fazer?
Muito aborrecido, pensando em t i , abando-
nei um pouco o senador e travei relações com
um viuvo distinto, pae de cinco filhos, que tive
o prazer de conhecer no M o u l i n Rouge, teatro
de variedades, uma espécie de circo, onde le-
vara os filhos para vêr os cachorros sábios. E'
o meu único camarada. Chama-se Júlio Gui-
marães.
Ao demais, o trabalho da Exposição aper-
tava. F o i uma inferneira. A comissão executiva
parece que tem m á vontade com o estado. Os
volumes são os últimos a serem descarregados
e ainda não inauguramos o nosso pavilhão. Que
trabalho o de delegado, minha boa amiga !
Acordo cedo, deixo o Júlio ainda a tomar
café e parto para a praia Vermelha. Júlio, mais
298 CINEMATOGRAPHO

os filhos, que moram na mesma pensão, vão


vêr-me. E ficam admirados. Estou lá traba-
lhando firme ás vezes em mangas de camisa.
A' hora do almoço, cômo qualquer coisa e con-
tinúo até á tarde. Volto á noite é trabalho ainda,
tenho que aparecer, conversar, tratar de fazer
conhecidos os produtos do meu Estado...
Ah ! quem me déra na minha terra, no meu
jardim, ao lado de minha mulhersinha que-
rida, vendo os pequenos a brincar ! Que sau-
dades ! Estou até magro. O senador ainda outro
dia disse-me:
— T u trabalhas de mais...
Infelizmente as coisas sáem sempre ao con-
trario do que se pensa. Eu desejava partir já,
mas ao que consta esse horror da Exposição
caiu no vicio da população, e o ministro talvez
a prorogue até dezembro. Sendo assim, só em
janeiro lá estarei. A minha tristeza é tanta que
pensei em te mandar buscar. Mas a epidemia
de varíola é grande e tenho medo, por t i e pelas
creanças. Eu não, que sou homem e estou tra-
lando do futuro.
São duas horas da madrugada. A fadiga
vence-me, porque tivemos de mostrar a um ca-
pitalista americano os tecidos de fibra da ba-
naneira. Mas não quiz demorar mais um dia,
a caiia longa em que vaé o meu coração.
Adeus, Nathalia ! Até breve. Beija Renato
e Euriclice. Não te esqueças de dizer a teu pae
CINEMATOGRAPHO 299

que mande a ordem para a casa bancaria antes


do íim do mez. E perdoa que te escreva o u l t i -
mo adeus quasi sem poder conter as lagrimas.
Teu marido do coração — OSCAU».

Todos nós sorriamos, quando Getulio acabou.


— Que força a desse snr. Oscar, hein ?
— Quem sabe lá! E' uma impressão.
— E u guardo a carta. E' u m documento !
fez Getulio metendo-a no envolucro.
Nesse momento precisamente u m cavalheiro
de casaca, muito córado e lépido, chegou com
uma dama de manto de pelle de cisne e scintil-
lante de jóias. C i r c u m v a g o u o olhar em torno,
desfechou para nós:
— PerdãOj senhores, esta carta...
— Achamol-a agora mesmo no chão.
' — E ' minha. Deixei-a cair pensando tel-a
posto no bolso da casaca. E se não andar de
pressa ainda hoje perco o Correio da Exposi-
ção. Obrigado.
E foi-se apressado. N ó s continuamos o riso.
Então Getulio ergueu-se, e, solemne, r e u n i u a
impressão geral:
— Pobre D. N a t h a l i a ! Coitado d e seu ma-
rido ! Lá vae elle, m a g r o e ralado de saudade,
em companhia d o Júlio Guimarães, mostrar ao
capitalista americano as fibras das bananei-
ras !...
© s a n i m a e s na Exposição

ONTEM, o acaso fez-me passar o dia entre


animaes. Esta sensação para o homem
urbano que limita a sua vida ao salão onde se
intriga e á praça onde se calumnia, é absolu-
tamente rara. Eu, pelo menos, nunca a tivera,
e. pela concorrência de cavalheiros e damas
e crianças que em torno ás "gaiolas e em
torno ás baias soltavam gritosinhos e excla-
mações de pasmo, é muito provável que noventa
por cento da cidade esteja nesse interessante
desconhecimento dos animaes.
Ha animaes e animaes. Ha cidadãos e cida-
dãos. A comprehensão que o homem tem do
animal é em. extremo variada. O animal f o i
e é o nosso grande exemplo desde o pecado
estudado p o r Adão ao vivo no paraiso entre os
animaes até a vida socialista apanhada pelos
sonhadores nas colmeias, entre as abelhas.
*02 CINEMATOGRAPHO

Tudo, desde a s fôrmas da ligação: a monoga-


mia e a poligamia, até os mais aperfeiçoados
meios de obter o sustento, o homem apanhou
do bioho-inselo, quadrúpede, ou ave, m a s sem-
pre bicho. E até mesmo qualidades que o nosso
entendimento dividiu em boas e m á s fôram a
tal ponto copiadas dos animaes que até hoje os
fazemos simbolos deltas.. O cachorro ha de ex-
p r i m i r sempre fidelidade p o r m a i s que morda;
a formiga ha de ser sempre o trabalho; a ra-
p o s a continua atravez os séculos a representar
a manha. Alguns animaes, aliás honestos e de-
licados, suportam a calumnia séculos e sécu-
los. Haja vista o veado...
O homem, com u m fundo de poesia, que
não é mais do que o grito incoherente e contí-
nuo da natureza, vae ao ponto de quando ama
o seu semelhante comparal-o sempre com os
animaes. As senhoras têm olhos de gazella,.
andar de garça, collo de pomba, pescoço de
cisne; os homens são fortes como os leões, fe-
rozes como os tigres. Homero comparava os
olhos das mulheres aos olhos dos bois, e u m
sujeito de talento é fatalmente águia, posto que
o talento da águia seja muito discutível. O a n i -
mal está de facto a cada instante na nossa vida
moral e mesmo no físico, porque segundo Ra-
bier e as suas caricaturas, não ha sêr humano
que não lembre u m bicho.
Essa intimidade, entretanto, é apenas su-
CINEMATOGRAPHO 303

bjeliva e v a g a m e n t e a s t r a l , p a r a dizer c o m o o s
oculistas. O h o m e m da c i d a d e o l h a o b i c h o c o m
uni o d i o secreto, q u a n d o elle é selvagem, e
quando o a m a n s a p a r a fazel-o elemento deco-
rativo e p a r a espancal-o. N a d a m a i s i n s t i n t i v o
do que d a r 'pancada n u m b i c h o feroz, quando
elle está preso. A o v e r u m s u j e i t o m e t e r a ben-
gala pelas g r a d e s de u m a j a u l a p a r a enfuriar
um Leão, l o n g e de j u l g a l - o c o m m a u caráter,
eu a d m i r o o h o m e m q u e a i n d a t e m n o s a n g u e a
fúria do p i t e c a n t r o , c o n t r a os c o m p a n h e i r o s de
floresta q u e e r a p r e c i s o vencer.
De resto é essa u m a das c a r a t e r i s t i c a s da
espécie egoistica. A caça é u m a das faces acen-
tuadas, as o u t r a s vê a gente o u n o s j a r d i n s
zoológicos o u nas exposições de pecuária. N o s
jardins olha-se c o m u m o r g u l h o i n s t i n t i v o :
— [Jm jacaré ! E nós p r e n d e m o s esse b i c h o
perigoso !
U m p o u c o m a i s e lá v a i pedrada, porque
eada u m de nós t e m b e m n i l i d a a certeza de
<pie o jacaré, estando do l a d o de fóra, não se
l i m i t a r i a á pedrada, m a s s a l t a r i a a devorar-nos.
Nas exposições é o p r a z e r de t e r feito o b r a
nossa:
— Que lindo c a v a l l o ! E' c r u z a m e n t o do
inglez com o árabe ? E aquelle zebú ! Q u e
bielião !
N ó s m o n t a m o s o cavallo, sabemos-lhe a fa-
mília, c o n h e c e m o s o p a e d o b o i , d i s c u t i m o s a
304 CINEMATOGRAPHO

sua qualidade de reprodutor, emfim: cavallo,


boi, cachorro, gallinha, canário, tudo isso não
passa de elemento decorativo da nossa vida, de
prazer da domeslicidade. Tem-se um cão bonito
como se tem u m lacaio de farda.
Estou a dizer mesmo que o homem da ci-
dade de tal modo vive separado do animal que
o não conhece e o não vê, senão por excentri-
cidade. A eletricidade domina a condução. Os
carros puxados p o r animaes são hipomoveis e
ninguém separa o t i l b u r i do cavallo — a não ser
quando se é membro da Sociedade Protetora
dos animaes. Os cachorrinhos são como que
ornamentos das damas. Os, gatos, uma espécie
de cacoete lilosofo-literario. E quanto aos
outros, a idéa é ainda mais vaga, fica restrita
aos criadores. Quem se lembra da gallinha e do
boi vivos, quando os pede n u m - restaurante ?
Eu, por exemplo, abomino os gatos, os ca-
chorros, os passarinhos, as gallinhas. Um gato
ronronando em cima de uma poltrona enfeza-
me; u m cachorro saltando n u m salão, faz-me
doente, e nada mais desolador do que vêr uma
gaiola com alguns bichinhos, incapazes de voar,
a t r i n a r vagamente árias vagas, ás vezes tristes.
Na Exposição, em meio áquellas senhoras
de grandes chapéos emplumados e de cava-
lheiros de luvas, tomando informações com os
tratadores inglezes ou argentinos, f o i como se
de novo travasse relações com essas variedades
CINEMATOGRAPHO 305

dn vida. E, de repente, senti como uma gri-


serie, senti-me integralmente animal. F u i a
principio á exposição de canários, uma porção
de gaiolas, todas do mesmo feitio. As avesitas
pareciam assustadas com tanta gente, não can-
tavam, e eram quasi côr de creme algumas,
outras amarello d'ouro, outras d'açafrão e cas-
tanha, outras côr de gema d'ovo, tão delicadas,
tão aéreas, tão imateriaes que pareciam leves
[rócos animados de um sopro a perder-se mi-
nutos depois. Em seguida vieram os pombos.
Como era possivel haver uma tão grande va-
riedade de pombos? Ha-os todos brancos e to-
dos cinza e todos salmon, e todos côr dc hâ-
vana: ha-os como encrespados artificialmente.
com a cauda abrindo em leque e a cabeça per-
dida num cocar de penas; ha-os com rebrilhos
d'aço que parecem saídos das fantasias de um
torno de faianças do golpho Juan. Alguns são
enormes, abrindo as remiges fortes; outros po-
dem caber na palma da mão de uma donzella.
E vendo os cartões com as informações dos
cruzamentos, gosando-lhes o olhar — o olhar
dos pombos que olham como.se não vissem, —
a .fascinação do arruino prendia-me. Como se
comprehende a Hellade. e Venus, e o velho
Virgílio e o prudente Enéas, deante de uma
gaiola de pombos ! Certo, Enéas não teria des-
c i d o 'aos infernos, se Venus n ã o o fizesse con-
duzir pelas suas pombas brancas...
306 CINEMATOGRAPHO

Os pombos levaram-me até ao local da ex-


posição de bois, de cavallos c de louros. One
aspeto inédito ! O sol, a b r i n d o na p o r c e l a n a
azul do céo, dardejava uma poeira de diamante
cegadora. E, naquelle brilho impalpavcl, aco
tovelava-se a multidão. Eram empregados do
comercio, eram operários, eram sujeito- I t e m
postos, eram sportmen e estrangeiros, mulheres
do povo e senhoras de alto tom, cabeças em
cabello e grandes chapéos á Gainsbourg, crian-
ç a s endomingadas e babys como escapados aos
íigurinos, de luva de seda branca e gestinhos
lemos. A luz tirava chispas e fulgurações das
jóias, dava um cunho de apoteose a tudo. Era
como se estivéssemos na pesagem de um prado,
em dia de grande prêmio.
Os animaes estavam na sombra c a curio-
sidade era toda para elles. 'Damas flexíveis e
delicadas paravam em exlase deante dos bois
formidáveis, crianças queriam pegar, passar a
mão, c os tratadores, perfilados, davam infor-
mações.
— Esse cavallo ?
— E' do snr. barão do P a r a n á .
— E aquella zebra ?
. — A h ! isso é cruzado. O snr. barão tem
dezenove. Este é filho de um cavallo e de uma
zebra. Com aquelle deu-se o contrario. E são
menos maus que os burros, os zebroides.
Os cavallos pareciam orgulhosos daquella
CINEMATOGRAPHO 307

admiração. Alguns desenhavam atitudes como


se fossem liraT o retraio, e essa desconfiança
eín num se acentuava porquê pelo menos aquel-
le- pareciam comprehender perfeitamente o que
se lhes dizia. E r a m cavallos de raça, cavallos
fidalgos. Os cartazes noticiavam o seu sangue,
a sua liliação e até mesmo o que atualmente
fazem os paes — cousa que o papa não per-
gunta quando erige cm condes os vaidosos.
Todos,. ao demais, sabiam corno se chama-
vam.
— Pachá ?
E Pachá alazão voltava-se.
— Sultão ?
E Sultão, negro como azeviche, esticava as
orelhas.
Os bois não tinham orgulho. E r a m mages-
losamente paternaes. O olhar amistoso de um
desses animaes consola a alma. Havia-os de
Iodas as edades, de todas as raças, de todos
os pesos. Um, formidavelmente negro, pesava
mais de m i l kilos, e parecia u m divan da casa
Mapple: dava vontade da gente se deitar p o r
cima. Alguns, com sete mezes, t i n h a m tamanho
e carne para deixar u m homem envergonhado
de crescer tão de vagar.
Mas a estranha sensação daquelle ambiente !
0 cheiro saudável dos bois, aquellas cabeças
tão bellas e graves em que o rosa tem desmaios,
o pello macio e lustroso, a fartura, a plenitude,
308 CINEMATOGRAPHO

a pujança d a q u e l l e s e x e m p l a r e s , t u d o se l i g a v a
p a r a i n f i l t r a r n a s a n e m i a s u r b a n a s e n a s neu-
r a s t e n i a s p r e s e n t e s a «griserie» d e u m a o u t r a
v i d a , o d e s e j o d e t e r m u i t a saúde, d e n ã o co-
n h e c e r p e r f u m e s e f a t u i d a d e s , d e v i v e r c o m o os
I r a t a d o r e s d o r m i n d o no feno, a m a n d o l i v r e -
mente, refocilando c o m o s bichos. A s damas
a i n d a r e s i s t i a m em p a s s a r a m ã o p e l o d o r s o
d o s t o u r o s . O s h o m e n s i a m f a t a l m e n t e d o de-
s e j o a o g e s t o . A s crianças, q u e estão m a i s p e r t o
da n a t u r e z a , p e d i a m . . .
E n t ã o eu, disfarçadamente, d e s c a l c e i as l u -
vas, e e x p e r i m e n t e i . 0 p e l l o e r a m a c i o , d e u m a
s u a v e e inédita m a c i e z . N e m as p e l l e s q u e as
d a m a s a c o n c h e g a m , n e m as g a z e s q u e as ves-
t e m são tão m a c i a s — p o r q u e l h e s f a l t a a v i d a .
F i q u e i p e r t o d e u m zebú c i n z e n t o e gostosa-
m e n t e a c a r i c i e i - l h e a a n c a . O t o u r o voltou-se,
olhou-me pachorrentamente, a d m i r a d o daquelle
ser a r t i f i c i a l , tão c h e i o d e r o u p a s e tão f r a c o .
P a s s e i a o u t r o , q u e n e m se v o l t o u , e c o m o u m
c r i a d o r m e assegurava q u e u m n o v i l h o de dois
mezes e d o m e u t a m a n h o e r a manso, pedi-Uio
que o tirasse d a b a i a — a passeial-o.
A g r a d e c i d o , o n o v i l h o , a o vêr-se l i v r e , es-
t e n d e u a cabeça. A c a r i c i e i - o e e l l e b e a t a m e n t e
e s t e n d e u - a mais, d e m o d o q u e o s e u f o c i n h o
r o s a roçou a m i n h a f a c e p a l l i d a . E e u senti-me
p r o f u n d a m e n t e b o m , tão b o m , tão c o n t e n t e d e
m i m m e s m o q u e p o r lá fiquei até q u e o s o l t r a n s -
CINEMATOGRAPHO 309

m o n l o u , e n a a t m o s f e r a d e a g a p a n t o a s lâm-
p a d a - e l e l r i c a s f u l g u r a r a m . E r a c o m o se t i v e s s e
de n o v o e n c o n t r a d o a v i d a . A h i s t o r i a h u m a n a ,
a h i s t o r i a d a evolução d o s h o m e n s s e m o s a n i -
maes n ã o p o d e r i a s e r c o n t a d a . O s p o m b o s são
o a m o r , o s g a l l o s são o s n a t a e s d a v i d a , a s
aves d o s a r e s a m u s i c a d o v i v e r , o s cães a
defeza, o s b o i s o c o n f o r t o e o b e m p e r p e t u o
da existência. P o r isso J e s u s n a s c e u n u m a es-
t r e b a r i a sob o hálito d e u m b o i , p o r i s s o c o m
a pellè d e u m b o i se fez C a r t h a g o , p o r isso o s
m e r o v i n g i o s s e g u i a m v i t o r i o s a m e n t e e m car-
ros de b o i s .
E n o reslaurant, m a l s e r v i d o , e n t r e a n i m a e s
de calças, c o m i o d o s o s h o r r o r e s q u e n ã o t ê m
os a n i m a e s , q u a n d o o garçon i n f a m e i n d a g o u
se e u q u e r i a u m òeef — o q u e r e s t a v a d o c a r -
dápio — o garçon ficou atônito c o m o m e u o l h a r .
P o r q u e eu, até áquelle m o m e n t o i g n o r a n t e d e
q u e o beef e r a d e u m a n i m a l tão b o m , ficava
a g o r a , só c o m a lembrança d a ignorância, apa-
v o r a d o de tão t a r d e t e r c o n h e c i d o a p o e s i a d e s s a
criação de v i g o r r e s i g n a d o , de b e m e d e pujança
tranquilla...

21
Os snobs e a Exposição

E lo sei se os senhores conhecem a definição


do snob p o r Georges Griffey. Esse Griffey
tem espirito e sabe inglez. Dahi a admirável de-
finição:— «Toma-se u m pouco de todos os ri-
dículos da natureza humana aos quaes se j u n t a m
alguns gráos cie estupidez, muita fanfarronada,
uma certa dose de trivialismo e de pretenção,
espessura de espirito, mesquinhez de gosto, e
principalmente uma ausência total do que é
bello, nobre e distinto. Essa mistura dá u m
snob perfeito».
Não era possivel que esta cidade, porto de
mar destinado a todas as adaptações, deixasse
de possuir uma colleção de snobs. A colleção
é formidável, a colleção augmenta todos os dias,
e como o Destino, o mais terrível e o único
Deus respeitado, tem caprichos atrozes, os snobs
Cariocas são em tão grande quantidade que um
312 CINEMATOGRAPHO

homem simples não deixa de conhecer pelo


menos cinco dúzias. Cinco dúzias? Talvez mais,
talvez dez, talvez vinte. Quando era moda fazer
citações e m latim dizia-se nessa lingua morta
que o numero dos idiotas é infinito.
Eu, p o r exemplo, que tenho poucos conhe-
cimentos, conheço pelo menos sessenta dúzias,
e devo dizer que esses cavalheiros e essas damas
têm a propriedade de divertir-me. Como já
Thackray o afirmava, ha snobs relativos, c po-
sitivos. Quando encontro u m positivo eu passo
l o g o a relativo, fazendo o que o cameleão nunca
fez, isto é, tomando a côr da planta em que
estou. E é delicioso de sandice. H a gente (pie
toma ether para ter a sensação de que paira
no espaço, de que se desloca da terra. E u con-
verso com o pessoal snob para ter o prazer
de não estar em parte alguma. Chega a - c r
capitoso de vasio.
A p r i m e i r a qualidade pela qual se conhece
a pastranice, é a pretenção a não ser brasileiro.
O supremo chie, a nota verdadeiramente up-lo-
date é passear pelas avenidas com o ar imperti-
nente dos secretários de legação que proliferam
sob o olhar pesquizador do barão do l>i<>
Branco. H a snobs de todos os gêneros, desde
o literário até o policial, mas as variedades tem
todas a grande força fundamental de esfrangei-
rice balofa. Se o homem é das letras, acha
Coelho Netto insuportável, e põe o olho em
CINEMATOGRAPHO 3í3

alvo falando de Keats, de Verlaine, de Mauclair


ou do fogoso d'Annunzio, que aliás não leu
como não leu Coelho Netto — porque o snob
não lê nem os jornaes, limitando a sua instru-
ção ás figuras do Fcerniria, e ás notas munda-
nas do Figaro. Se o snob é policial, acha im-
pertinente o civil e admira o policeman e o
ai/eni de sureté.
— Cest chie ça, lin ? l'agent de sureté !
Müito melhor que secreta...
Uma conversinha em roda snob descança o
espirito na Região de Parte-Nenhuma. Elles e
ellas estão todos estudando atitudes, copiando
gestos, e dizendo coisas: — Então, a Renata foi
a Paris? — E' verdade. Ainda não mandaste
fazer as tuas encomendas ao alfaiate parisiense
que corta para os principes russos ?
— Ah ! sweet-heart, o colis trouxe-me os ves-
tidos da viuva Paquin. Que ousadia ! E' lá pos-
sivel usal-os neste paiz ! E' verdade que é moda
agora ir ao Egypto ?
E quando chega algum estrangeiro é o aço-
daniento, seja elle quem for. Se um cidadão
aparecer aqui dizendo-se o fallecido Khediva do
Egypto, tem logo a acolhel-o uma roda smart,
que terá prazer em se mostrar conhecedora do
Nilo, dos antigos coptas, da Esfinge, das pi-
r â m i d e s — ah ! as pirâmides !... —das avenidas
modernas, do Cairo... Brasil é que não, nem
rachado !

V
314 CINEMATOGRAPHO

Ora, u m a vez, antes da inauguração, eu vol-


tava fascinado c o m as experiências de l u z da
P r a i a V e r m e l h a , e entrei n o L i r i c o . L á estavam
os snobs d i s c o r r e n d o de L o p o de Vega, Tysso
de M o l i n a , Velasquez, ílespanha, M a d r i d , t o i -
radas, Alcalá. E r a a g e n i a l M a r i a G u e r r e r o en-
v o l v e n d o aquelles patetas n u m c o n h e c i m e n t o da
civilisação castelhana m a i s transparente que a
gaze. do D e K a n — p o r q u e através daquelle
p a p a g u e a r via-se a i n d i g e n c i a dos conheci
mentos. E n t r e i n u m a roda, sem l e m b r a r que
eslava e m P a r t e N e n h u m a , e u m dos cavalhei-
ros, desejando c o n v e r s a r c o m i g o , iudagou:
— N a Cavé, a m a n h ã , ás 5 ?
— O h ! f i l h o , n a Exposição.
Elle impertigou-se:
— E u v o u lá á Exposição !
.Eu f i n q u e i o pé, a r r e g a l e i os olhos, abri a
bôca: . *
— P o i s t u não vaes á Exposição ?
E l l e teve r e c e i o de q u e não fosse chie deixar
de i r , p a s s o u o lenço pela face, b a l b u c i o u aó
cabo de segundos:
— V o u , m a s v o u á n o i l e , de casaca, ceiar
c o m o s e c r e t a r i o de Honduras...
Essa i n t e r e s s a n t i s s i m a p a l e s t r a deu-me o
apetite de observal-os n a C i d a d e d a M a r a v i l h a ,
que é a Exposição. E, realmente, elles são es-
pantosos. T o d a essa gente t e m nas artérias agua
de L u b i n , e c o m o m i o l o s , a l g u m a s folhas do
CINEMATOGRAPHO 315

( ; i de Paris amassadas. D e a n t e do esplendor,


da magnificência, d a q u e l l e g r a n d e m i l a g r e de
progresso, i d e vôl-os — elles c o n t i n u a m todos
n u P a r t e N e n h u m a . N a inauguração, depois de
ter caçado c o m anciã u m c o n v i t e p a r a aparecer,
eu e n c o n t r e i tres o u q u a t r o .
— Então v e m c o l l a b o r a r p a r a o t r i u n f o d o
Brasil ?
— E'. Q u e c a l o r ! Está m u i t o quente. Este
paiz já não t e m estações.
— O h ! ao c o n t r a r i o . I n a u g u r a m - s e mensal-
mente a l g u m a s . P e r g u n t e ao Aarão.
— E a l o de estações c l i m a t e r i c a s .
— Essas são q u a t r o apenas e se as não te-
mos a c u l p a é do Souza Bastos, q u e as encai-
x o u no Tim-tim.
Depois n a v i s i t a p r e s i d e n c i a l , t o d o s elles cor-
rendo atraz dos d i p l o m a t a s o u p r o c u r a n d o posi-
ções estratégicas p a r ^ s e r e m v i s t o s pelas leading-
beauties, p a s s a v a m d i s t r a h i d a m e n t e pelos halh.
— V e j a você c o m o o B r a s i l t e m i n d u s t r i a ,
tem força, t e m e n e r g i a !
-Mas q u e poeira, f i l h o , q u e p o e i r a .
— Todas as exposições têm p o e i r a ; A de
Paris t i n h a .
— Serio ?
— Palavra.
— Então é o u t r a coisa.
F i n a l m e n t e á noite, t o d o s elles lá estavam,
s o l e m n e m e n t e de casaca, p e i t i l h o reluzente, ges-
316 CINEMATOGRAPHO

tos fatigados de gente que se enfara. Em torno,


era a apoteose da maravilha, uma fulguração
de astros. Os pavilhões, que são palácios, ves-
tiam de luz da base ao alto das torres; nas ave-
nidas os arcos voltaicos abriam clareiras de luz
branca na luz de metal dos pavilhões; pelos
relvados, aos tufos de verdura, espreguiça-
vam-se desmaios de luz na morticor do espectro:
e as águas eram de côres luzentes e tudo era
côr, era luz, era como se a multidão se encer-
rasse dentro do Koh-i-noor — a montanha da
luz, no âmago de um diamante colossal.
Elles passeavam entretanto, como se o go-
verno tivesse insistentemente mandado pedir o
seu conselho e a sua opinião, passeavam como
árbitros da belleza e professores de chie, irre-
dulivelmente agressivos.
— Olhe aquelle canteiro. Que belleza de luz !
— E', mas apagou uma lanterninha.
— Onde ?
— Ali, a 10 metros.
— E que me diz do Acre da Entrada ?
— Os calçamentos ainda não estão feitos.
— Veja aquelle fogo que se queima. Lindo.
não ?
—• Acho fumaça de mais.
— J á examinou as nossas cerâmicas ?
- - Coisas de indios, hein ?
— Não, senhor, coisas modernas de uma
fa' rica como as do golfo Juan.
CINEMATOGRAPHO 317

— Não ha de ser tão bom.


— E a vitrine de pedras preciosas em que
o H ugo Brill expõe o assombro ?
— Pedras brasileiras ?
— Sim. que a rainha Alexandra ama...
— Ah !
— Mas você não se admira afinal, não sente
nada, não vibra deante desta apoteose ? Mas
você tem decididamente oleo de oriza nas veias.
Nem a cidade da exposição, nem o assombro
de illuminação mais bello que o do Palais Auto-
mobile em Paris, nem os trabalhos expostos,
nem as diversões, nada você acha digno de uma
aprovação sua ?
— Não, é bonitinho, não ha duvida. Mas o
exagero patriótico não é chie.
— Então não venha mais aqui.
-Impossível. Janto com o secretario de le-
gação X, na quinta, ceio sexta com duas prin-
cezas valacas dansarinas nas horas vagas, tenho
que trazer cinco jornalistas estrangeiros que
são muito importantes, sábado, e como essa
gente quer vêr — eu venho...
Uma confusão inteira de vasio cerebral com
grandes ares.
E são todos assim. Vão lá fatalmente, po-
sando uma desnacionalisação de bom tom pas-
sear as casacas e os smokings, acham defeito
em tudo porque não pódem sorrir, sorriem por-
que não pódem rir,' falam baixo porque já não
31S CINEMATOGRAPHO

pódem gritar. Naquelle trecho de maravilha,


c u j a construção os d e i x o u indiferentes, se lhes
a p o n t a r e m u m h o m e m simples, de cabello c o m -
p r i d o com a b a r b a p o r fazer e o casaco empoei-
rado, d i z e n d o :
— E' aquelle o S a m p a i o C o r r e i a .
E l l e s não correrão a s a u d a r a energia ad-
mirável, p o r q u e talvez não s a i b a m q u e S a m p a i o
Correia fez a C i d a d e da Maravilha em oito
mezes. Se lhes disserem q u e C a l m o n já via-
jou o mundo inteiro c o m a preocupação do
B r a s i l , elles abrirão a bôca de p a s m o — elles
que v i v e m a q u i s o n h a n d o c o m os brasões do Va-
t i c a n o e os i n t e r n a c i o n a l i s m o s elegantes gênero
montana...
Mas são m á o s ?
Não ! c e m vezes não ! E l l e s c u m p r e m o seu
d e v e r — vão lá. A d m i r e m - s e o u hão, q u e im-
porta ?
De todos os i d i o t a s são os m a i s inofensivos,
p o r q u e são de u m paiz á p a r t e p a r a q u e todas
as f e r r a s c o n c o r r e m : o p a i z da i n s i g n i f i c a n c i a ,
o paiz de P a r t e N e n h u m a .
Na Exposição, q u a n d o elles p a s s a m discor-
rendo, sem o l h a r as bellezas o u o l h a n d o apenas
para decretar impertinencias sem importância
ou fazer comparações d i s p a r a t a d a s c o m o fim
de a c h a r m e l h o r t u d o q u a n t o não fôr do nosso
território, eu l o u v o os deuses misericordiosos
p o r t e r e m p e r m i t i d o q u e e n t r e os snobs ainda
CINEMATOGRAPHO 319

seja desconhecido o snobismo patriótico — por-


q u e e n t ã o seria a calamidade...
(> s n o b é u m animal com todos os ridículos
e Iodas as vulgaridades pretenciosas. 0 nosso
tem mais uma: acha feio ser brasileiro.
E na Exposição, deante da montra mara-
\ilhosa da Energia de u m Grande. Paiz, eu
tenho vontade de abraçar o snob pelas suas con-
vicções. Ou bem que se é integralmente pas-
trana, ou bem que se não é.
A policia de c o s t u m e s

D EPOIS de ter concordado com Alfredo Pinto,


que é preciso quanto antes levar a cidade a
bom caminho e defender com calor a salvação
da dignidade urbana que, sabe-o toda a gente,
assenta na policia de costumes, fui d a r u m giro
pela r u a do Senhor dos Passos. Essa v i a pu-
blica das mais movimentadas, se não é u m a
rua de maus costumes, é pelo menos u m a r u a
douda. P o r lá habita parte da colônia syria, mas
ha lá também a séde de u m distrito policial, e
como o distrito é todo de gente que entretem re-
lações com marinheiros, soldados vulgares e
malandrins de toda a espécie, a séde t e m de
instante a instante a erupção de praças trazen-
do presos aos berros, mulheres em fúria o u
homens ensangüentados. São as crises de insa-
nia de rua tão respeitavelmente apelidada.
Fazia luar, os botequins sórdidos fechavam,
322 CINEMATOGRAPHO

e e u ía p o r a l i p e n s a n d o n a m o r a l i d a d e d a s
coisas e assobiando u m t r e c h i n h o d a linda
o p e r e t a Tosca. Tosca o u Bohemia? N ã o s e i
b e m . P u c c i n i é u m gênio tão g r a n d e ( p i e as
s u a s o b r a s se c o n f u n d e m . P u c c i n i o u L e o n c a -
v a l l o ? T a m b e i n ã o sei. D e r e s t o , o f a c t o essen-
c i a l é (pie e u i a a s s o b i a n d o e p e n s a n d o , q u a n d o ,
b e m e m f r e n t e á d e l e g a c i a , u m a vez autoritá-
ria chamou:
— Olá, cidadão !
Cidadão é u m a p a l a v r a i m p l i c a r t t e , cidadão
só p o r d e s a f o r o o u e m p l e n o d e l i r i o r e v o l u c i o
n a r i o , d e p o i s d e l e r e s t r a n g u l a d o q u a r e n t a ho-
mens, E u serei incapaz de m e t e r a chave numa
das c a i x a s d e s o c o r r o m a n d a d a s v i r p e l o ge
n e r a l Antônio G e r a l d o , m e s m o c m caso de
m a i o r perigo, apenas p o r q u e n a l i n h a d o ori-
fício h a eslas p a l a v r a s : — c h a v e , cidadão. V o l -
lei-mc, e n l r e l a n t o , e v i q u e e r a u m c a b o .
— Que temos ?
— O cidadão eslá a r m a d o ?
— Armadissimo.
— Então d e i x e vêr o revólver.
— Q u e m l h e d i s s e q u e e r a u m revólver?
— D e i x e vêr a f a c a .
— A faca !
() h o m e m a p r o x i m o u - s e .
- N a d a d e d e b o c h e s c o m i g o . E' c o n t r a a
lei e s l a r a r m a d o . E se você põe-'-*' c o m pilhé-
rias vae direitinho para o xadrez,
CINEMATOGRAPHO 323

A esse tempo, com a sua autoridade, metia-


me a m ã o na cava do collete e a outra —
— a disponível, a que lhe restava, porque duas
estavam no chão e á outra na cava — no bolso
da calca.
Eu podia g r i l a r o «não pôde !» ou perguntar
classicamente; «você sabe com quem está fa-
lando ?»
Mas era interessantíssimo um transeunte
pacifico ser assim revistado pela autoridade em
plena rua do Senhor, particularmente dos Pas-
sos. Deixei-o fazer. O homem estava carran-
cudo.
-Bom, pôde ir, não tem nada. Então por-
que disse que estava armado ?
— Saberá vosmecê que eslava e estou —
estou armado de paciência !
E dito que f o i esse desabafo, saí rápido
com medo á justa cólera da autoridade.
Sim, porque, francamente, não havia mo-
tivo de queixa. Afinal, aquella scena já antes
repetida com outros cavalheiros, que era em
síntese? Uma das faces da policia de costumes.
Para que o cabo perguntava se eu estava ar-
mado ? Para que eu, cem revólver o u faca, não
lizesse a minha desgraça matando alguém. Ha
maior perigo do que u m h ornem armado ? Maior
só dois homens. Assim agindo, a policia estava
no seu direito de defeza preventiva da socie-
dade. Talvez metade das mortes que se têm dado
324 CINfcMATOGRAPHO

não tivesse acontecido se os cabos o u mesmo


os soldados rasos andassem a revistar os ho-
mens nas calçadas publicas.
Então, já longe do cabo, continuei o meu
passeio evitando a garantia urbana p o r u m mes-
quinho sentimento de medo individualista e
imaginando ao mesmo tempo o que será a cam-
panha de policiamento de costumes conduzida
puritanamente pelo severo Alfredo.
Com uma boa policia de costumes, a c i d a d e
dentro cm pouco estará regenerada. Com que
direito age a policia? C o m o direito da previ-
são., que é o alicerce da sua utilidade. Não é
depois do crime que se é util. E' antes. De
posse desse principio, a autoridade procede
como u m cultivador n u m j a r d i m . Firme p a r a
impedir o crime, empalma as armas.
— Deixe vêr o revólver !
— Mas eu não v o u matar ninguém...
-Para que serve a arma ? N ã o é para aca
riciar. P o r conseqüência evite o desastre !
E m pouco tempo as delegacias exportarão
revolvers e facas, como as fabricas de maior
cotação. Restam os negociantes de armas. U m
bello dia, o inspetor chega e diz:
— Cidadão, você está intimado a transfor-
m a r o seu negocio em casa de brinquedos.
Restam os páos, as bengalas. Prohibe-se as
bengalas fortes e usa-se apenas badines, etiks,
ou mesmo bengalas grossas de papelão, inofen-
CINEMATOGRAPHO 325

-ivas. Ninguém perde nada com isso segundo


• o principio de que nada se cria e nada se perde
n a natureza, mas em compensação lucra a
moral. Os assassinatos diminuem e as cabeças
quebradas passam a casos sensacionaes.
Como para o decrescimento do crime, a po-
licia agirá nos outros casos. O alcoolismo, por
exemplo. Um homem está muito bem bebendo.
A policia á porta, ou mesmo dentro, vigia-o. Ao
segundo copo, bate-lhe no hombro:
— Cidadão, basta! Um copo pôde passar
como alimento respiratório. Dois é degradação.
Se os alcoólicos insistirem, manda-se fechar
os botequins ou ordena-se, em nome do bem pu-
blico, que o vinho do Porto seja orchata, o Col-
lares xarope de groselhas e os vinhos brancos,
precioso mate do P a r a n á . Tudo é illusão, os ha-
bitantes da cidade deixam de tomar cãmpeche
para tomar xarope, pensando que tomam vinho.
Assim inhibido de matar e de beber alcools,
o carioca ainda tem o excesso das comidas, das
mulheres, e o direito de passear — ou jogar.
A policia de costumes fecha os clubs, aliás imo-
ralissimos, trancaíia os profissionaes do jogo,
destribue um sermão edificante para mostrar os
estragos do burro e da bisca em familia e tal-
vez acabe com baralhos. Evitado o jogo, ou pelo
menos reduzido, póde-se contar com a interpel-
lação em praça publica dos agentes:
— O' cidadão, diga-me cá o que jantou hoje ?
22
326 CINEMATOGRAPHO

— Hoje, para que ?


— Para seu bem.
— A h ! Tomei uma bisque, comi um pedaço
de gallo que me asseguraram ser íaisão, um
pouco de paté de $ois-gra&, queijos... não sei
mais.
— H o r r o r ! Porque não come você feijão
preto, hervas, arroz ? Olhe os mineiros, homens
fortes, olhe o ür. Murtinho e os vegetaristas.
Feijão prelo é bom para a neuràsthenia e paté
é um veneno para o artritismo...
E dentro em pouco, os hotéis terão o cardá-
pio com o visto da policia de costumes, em
quanto toda a cidade exultará, sem dispepsias
e forte.
Ha ainda dous pontos graves. P o r mais
cedo que se fechem os estabelecimentos, só por
teimosia nós teremos a mania de ficar na rua
até tarde. Os batalhões da moral sairão á rua
a convencer.
— Que faz você, cidadão ?
— Nada !
— Pois então vá dormir. Está perdendo o
repouso, talvez assustando a família, dando um
triste espetáculo da moralidade da cidade. Vá,
ande...
Como essas senhoras companheiras ocasio-
naes estão todas com a porta fechada e ordem
de não sair, o homem recolhe a penates muito
corrçcto. T a m b é m , se não quizer i r por bem
CINEMATOGRAPHO 327

vae por mal como as creanças renitentes, c cm


breve, ás 10, toca-se o sino nos quartéis regio-
haes, nas centraes, nas sedes dos distritos, e
a < ssa hora a cidade inteira apaga a luz.
Ouc linda coisa ! A vida pura do campo em
plena c a p i t a l ! E o estrangeiro, pasmado, vendo
de dia homens fortes e calmos a trabalhar c á
noite todos dormindo, sem beber, sem pande-
gar, sem licenças de espécie alguma, desde
andar armado a andar na r u a a horas mortas,
indagará:
— Como esse prodigio ?
— Graças á policia de costumes, cidadão !
< )h ! suprema delicia, gozo pastoral de ino-
cência e pureza !
A sonhar a cidade assim, dentro de dois
annos, eu f u g i r a entretanto da parte central
para evitar outros cabos e outros distritos in-
trometidos... Deuses ! Seria o meu outro eu ne-
gando-se a collaborar na grande obra regene-
raclora da policia de costumes ? Seria a revolta
do meu organismo contra a autoridade ? Nunca !
A autoridade não pôde ser excessiva. Nos Esta-
dos Unidos, a pátria da liberdade — será ella
mesmo? U m a autoridade acaba de publicar
uma lei prohibindo os cachorros de u i v a r o u
ladrar depois das seis horas da tarde. E nin-
guém r i u . Nem os próprios cachorros.
Se os cachorros dos Estados Unidos obede-
cem tão cegamente á l e i — q u e devemos fazer nós?
328 CINEMATOGRAPHO •

Obedecer ! Cooperar para a policia de cos-


tumes, ir á Central pedir desde já um regula
mento de vida para a grande regeneração. E, o
que é mais, cumpril-o !
Esfreguei os olhos, olhei a rua que em breve
estaria deserla e, decidido a cooperar, armei-me
do maior sangue frio, chamei um carro arriado
e toquei a comprar um revólver de seis balas.
Nunca na minha vida eu pensára em comprar
um revólver...
Epitafios'

0 n ! o d i a de finados ! Que curioso e inex-

g o t a v e l p a n o r a m a d a indiferença h u m a -
na ! A c o r d o cedo, t o m o u m p o u c o de café c o m
leite l e n d o o s j o r n a e s , q u e t o d o s f a l a m d a t r i s -
teza g e r a l , d a s a u d a d e , d e l a g r i m a s e d e t o c h a s .
A t o c h a d o dessa l i t e r a t u r a inconsciente e banal,
feita de f o c i n h a d a s a o s v e l h o s n ú m e r o s d e a n n o s
anteriores, visto u m f r a c k preto, t o m o u m a r
a l e g r e e v o u p e r c o r r e r o s cemitérios. H a v e r á
passeio m a i s filosófico d o q u e essa p e r e g r i n a -
ção e n t r e as t u m b a s d e p a r e n t e s a l h e i o s ?
(>s t e m p e r a m e n t o s g r a n d e m e n t e s e n s i v e i s são
na v i d a as v i t i m a s d e s s a h i p e r a c u i d a d e d e e m o -
ção. A' s e n s i b i l i d a d e r e f i n a d a c o r r e s p o n d e q u a s i
sempre u m a semi-revolta contra a banalidade
a p a g a d a d a s sensações d o v u l g a r . E u e s t o u c o n -
v e n c i d o d e q u e s o u i m e n s a m e n t e sensível. N a d a
m a i s t r i s t e p a r a m i m q u e u m pic-nic d o high-üle
330 CINEMATOGRAPHO

o u u m b a i l e carnavalesco — duas cousas imen-


samente gostadas. T a n t o dos pic-nic como des-
ses bailes d e n o m i n a d o s forrobodós, venho febril,
nervoso, a m a r g o , c o m u m a tristeza que se a b r i r a
do cemitério e d o suicídio deanle cia irremediável
sandice h u m a n a .
E m compensação, de v o l t a de u m enterro,
de u m a visita de pêsames o u de u m berve pas-
seio pelo cemitério, sinto u m a a l e g r i a satânica,
a vontade de c a n t a r e dançar o vem cá, mulata !
e dizer c o m provocação chutas aos transeuntes.
E p o r q u e ? P o r q u e eu s o u m a u ? O h ! n ã o !
P o r q u e a indiferença dos q u e deviam, sofrer não
corresponde n u n c a ao g r a u de piedade consola-
d ora q u e lhes reserva o m e u coração. E' u m a
a l e g r i a de despeito, é u m espalhafato n a s c i d o
da desillusão, é u m escândalo q u e se abebera
e envenena e se a n i m a da observação amarga.
A civilisação impõe a supressão d o pranto.
A seíyageria esbate todas as possibilidades de
u m sentimento digno. A sociedade é estupida-
mente egoísta, feita de classes que p e n d e m umas
p a r a o m á x i m o d a civilisação, o u t r a s para o
h o m e m p r i m i t i v o . E tantos são os casos de dôr
f i n g i d a <pie eu desconfio sempre, não compre:
bondo mais. c o m u m a g r a n d e vontade de r i r .
Por isso, l o g o de m a n h ã , de f r a c k preto, v o u
v i s i t a r os cemitérios. Estão s e m p r e cheios. A
direção, q u e e n c o n t r o á p o r t a , faz questão da
enchente, d a n d o notais aos r e p o r t e r s . Cada ce-
CINEMATOGRAPHO

tniterio c o r e s p o n d e a u m a c e r t a classe. O j o v i a l
cemitério d e C a t u m b y é b e m d o s r i c o s m o r a d o -
res d o H a d d o c k - L o b o e T i j u c a ; o Cajú é v u l g a r ,
é t n i x t o c o m o a C i d a d e Y o v a e as r u a s c e n t r a e s :
tem i m e n s a m e n t e d e t u d o ; o s d o i s o u t r o s d a s
o r d e n s c h e i r a m a S. C h r i s t o v a m ; e h a u m up-to-
date, p o s i t i v i s t a , n e f e l i b a t a e e l e g a n t e : o d e S.

Eu goso esses camaradões educadores. Logo


á p o r t a , o n d e h a a l g u m a s pilhérias l u g u b r e s t

taes c o m o u m i n s u l s o reverlere ad tocum tum,


as c o r u j a s d e P a l l a s A t h e n a e — a t i r a m - n o s d o
a l i o das g r a d e s u m o l h o s a b e d o r . E n t r a - s e . A
direção, l o u c a p o r u m e l o g i o s i n h o n a i m p r e n s a ,
é amabilissima:
— Então, p o r a q u i ? H a q u a n t o t e m p o ? J á
viu c o m o está isso l i m p o ? F i z e m o s o p o s s i v e l
p a r a p r e p a r a r tudo...
l i a p o r é m atrás d a direção u m h o m e m d e
s o b r e c a s a c a e face t r i s t e .
Espere, e x c l a m a o a d m i n i s t r a d o r , v o u apre-
sentar-lhe o r e p r e s e n t a n t e d o barão d e S o u t o , q u e
o r n a m e n t o u m u i t o b e m o s a r c o f a g o . d a família.
— A h ! m e u s parabéns...
- S e v. e x . p e r m i t e , e u m o s t r o . E' t o d o d e
a

flores n a t u r a e s e t e m c a n d e l a b r o s d e b r o n z e
verde c o m a c e t i l e n e .
— Que acetilene ?
As velas c o m o vento fazem m a u efeito.
E s p e r o q u e v. s. n ã o se esqueça d e m i m .
a
332 CINEMATOGRAPHO

De frack preto e chapéu na cabeça (porque


já ninguém tira o chapéu no cemitério quando
vai pela aléa principal) vou conduzido pelo re-
presentante do b a r ã o . E vejo os túmulos, e vejo
• os vivos. Oh ! o estranho espetáculo, a calma
sinistra de moças aparando as velas por cima
das lapides brancas; os velhos sepulcros com ra-
minhos de manjericão guardados apenas por
creados. Em alguns túmulos de família, ha fa-'
niilias que conversam e eu não esquecerei nunca
que uma vez encontrei, em Catumby, uma se-
nhora reclinada á entrada do túmulo, numa ca-
deira de balanço, lendo com interesse os Fanto-
ches de M.™ Diabo.
De vez em quando um riso, uma corrida:
são as crianças que brincam de <dempo-será».
E ha .senhoras que vieram de coupé. cobertas
de crepe, cheirando a violeta; ha cavalheiros de
sobrecasaca e huit-reflets carregando com gra-
vidade uma corbeille; ha conhecidos que se en-
contram, trocam apertos de mão por entre os
túmulos, émquanto á beira da artéria principal,
o povo miúdo, a gente baixa, sentada no chão,
come frutas e doces, discutindo cousas ou la-
nientando-se.
O homem do sepulcro do barão mostra-me
o aparelho do acetilene dentro do túmulo que
encerra os antepassados do grande.Souto, como
se me mostrasse uma téla celebre, dá-me o seu
cartão, e corre outra vez á administração, e
CINEMATOGRAPHO 333

eu, de frack preto, começo a passear e a vêr


os epitafios.
Os epitafios fôram, pelo menos na Grécia,
de uma sugestiva delicadeza. Os poetas da an-
tologia deixaram-nos epigramas funerários de
uma gentileza encantadora, e os romanos —- nas
inscnpções, posto que mais graves, crearam o
epitafio que faz pensar. J á nesse tempo nem
Iodos os fallccidos tinham epitafios porque até
na morte é fatal a desigualdade, mas ha nos
que chegaram á nossa época, escriptos para
creanças, homens, mulheres ou animaes, tanta
poesia, tanta melancolia que se fica a amar es-
ses mortos remotos. Assim de uma creança se
diz: «Brinquei toda a minha vida, f u i amada
de toda gente, tinha os cabellos loiros soltos nas
espaduas». Assim morto o negociante ufana-se
do seu credito, um correeiro diz que ama a
à caça, e as dançarinas bellas asseguram aos pos-
teros a sua lindeza, dizendo-se filhas das musas.
0 epitafio não evoluiu muito. E' talvez mais
tolo e mais reclamista apenas. As honras pre-
gam-se ás lapides, e ha sempre poetas, filósofos
e gente sem juizo para mandar gravar no már-
more opiniões, sentenças e crenças*e a passageira
Saudade, que só assim dura um pouco mais.
Entre o correeiro Vitalis, dizendo-se autor
do próprio epitafio, e o epitafio de Fabricio no
«Pére Lachaise», ha tempos dado á publicidade:
334 CINEMATOGRAPHO

Aqui jaz
Conhecido negociante parisiense,
A sua inconsolavel v i u v a
c o n t i n u a c o m o mesmo
ramo de negocio

ou o de Smith já conhecido de impressos:

Aqui jaz John Smith


que se suicidou c o m u m revolver
systema "Colt,,
A melhor marca para os desesperados

ou o do Belton também nolado pelos reporters


de extravagâncias:

Debaixo desta pedra


repousará u m dia James Belton
que presentemente dirige
na 5." avenida n.° 127, a bem conhecida
casa de cabedaes e utensílios
para sapateiros

ha apenas a notar o predomínio dos instintos


práticos sobre a vaidade o u h i p o c r i s i a .
Nas mansões dos m o r t o s b r a s i l e i r o s não ha
ainda tanta ousadia, c o m o não h a a belleza dos
epitaíios gregos. H a sentimentaes, poéticos, i n -
f o r m a t i v o s . O a m o r c o n j u g a i c o r r e p a r e l h a com
os d i m i n u i t i v o s , os n o m e s gravam-se entre adje-
tivos fataes. .Mas o lastimável é q u e n e m depois
da morte, n e m n a pretensa paz dos túmulos, o
CINEMATOGRAPHO 335

homem escapa á convenção do seu meio, á so-


ciedade, á vida social, e arrosta, e carrega, e
I o d o s os annos toma parte e todos os dias mos-
tra uma lapide em que o exagero, e o ridículo,
6 as vaidades humanas se intensivam. Os epi-
tafios ! Mas que capitulo entre o assustador e o
altamente pilherico se poderia escrever apenas
com esses dizeres de mármore ! Elles são assus-
t a d o r e s pelo que fazem pensar. Quantas pedras
ha c o m esses dizeres:

Aqui jaz
José Antônio Pereira

E em baixo para dizer quem pôz a pedra:

Amor conjugai.

Quantas dessas senhoras não estão casadas


outra v e z Não é possivel lêr uma dessas con-
9

fissões sem o desejo de conhecer o confessado.


lia outros, porém, menos preocupados. Põem
o nome do defunto e em baixo:

ürae por elle!

Quer dizer: 1 ratem vocês disso se tiverem


tempo porque nós francamente... São melhores,
entretanto, do que os egoístas, tão egoístas que
a"lé nas pedras deixam pedidos:
336 CINEMATOGRAPHO

A q u i j a z Marocas
A n j o feliz no céo

Para o pedido enrico:

Pede a Deus pelos que to


quizeram bem.

E os biográficos, os biográficos sempre em


monumentos importantes com horrendos anjos
a tocar trombetas ou a depositar grinaldas ?

Aqui jaz D. fulana de tal,


filha do conselheiro Cicrano e
esposa do Dr. Beltrano, medico,
advogado, oficial da Ordem da Rosa,
ex-deputado
pela e x - p r o v i n c i a de. .

E os religiosos, os que afirmam a sua


crença para além da sepultura e collocam le-
gendas positivistas o u írazes espiritas á porta
da campa naturalmente quente no mez de no-
, vembro ? E os poéticos? Que tristeza. Deus do
céo !
A morte inspira particularmente os vates e
os que não o são. Os cemitérios estão cheios
de poesias. Ha o filosófico:

Quo te importam os ossos meus


O' t u que me estás lendo
Émquanto fôres vivendo
R i do m u n d o e teme a Deus.
CINEMATOGRAPHO 337

Ri do mundo e teme a Deus... Oh ! L a Re-


chefaucaul ! E' isso mesmo. Riamos tristemente
d e s s a grande feira de vaidade e vamos vêr mais
adiante como m o r r e u Alice:

Como um lyrio ainda em botão


Desfolhado pelo v e n t o
Assim m o r r e u A l i c e ,
A o som de u m t r i s t e lamento.

Muito bem. Foi um fallecimento delicado e


harmônico, assim uma espécie das conferências
da Exposição... Pobre Alice ! Mas qual o morto
que a poesia t u m u l a r não compara a flores?
Na vida tudo são flores, porque mesmo com
a saudade a vida é melhor que a morte.
Todos os'túmulos tem a marca dos de cá, a
marca que é um pedido: — «Descansa em p a z !
Paz á sua alma ! Roga a Deus pelos teus!» o
que significa: «Não nos aborreças m a i s ! Fica
descançado ! Se realmente estás no céo ajuda-
nos cá na terra».
Sim, definamos a situação. Nada de confu-
sões. Se os mortos governam cada vez mais os
vivos, os mortos estão muito mais seguros onde
estão. E de certo nada mais sincero do que este
cpilafio de uma esposa e de uma filha ao esposo
e pai morto:

Esposo e pai, foste tão bom e justo


Que só para p r a n t e a r a t u a m o r t e
Queremos v i v e r m u i t o . . .
,338 CINEMATOGRAPHO

Oh ! Enganou-se positivamente aquelle gran-


de poeta espiritualista que escreveu:

Borné dans sa riature, infini dans ses vooux


L'homme est un dieu tombe qui se se souvientdes cieuw

Não ! Não se lembra absolutamente. Caído.


o seu maior desejo é ficar cá e deixar o céo
no mais completo abandono. Todos nós que-
remos ficar e viver.
Viver ! sim, viver muito. Da visita aos ce-
mitérios resalta sempre nestes dias fixos, o
triunfo de viver. Nesse verbo está toda a alegria
humana,- todo o segredo das sociedades que se
constituíram, todo o horror dos sentimentos
egoisticos, toda a indiferença da taboletagem
choraminga. Nos dias de finados, os mortos
aparecem á vida de novo para augmentar a
renda cias companhias de bondes, dos floristas,
dos vendedores ambulantes — para augmentar
o sentimento salvador da espécie.
E, gravemente, lendo epitafios, eu não falho
ás grandes recepções annuaes, á espera do dia
em que hei de carregar uma pedra com uma
tolice memorável por cima, para não falhar ao
Costume (pie é a força, á Tradição que é a
energia e ao mascaramento do Egoísmo que
é a vida e todos fazem e constituem a socie-
dade.
Mesmo porque, vendo epitafios, eu sinto um
CINEMATOGRAPHO 339

g r a n d e f r i o e u m g r a n d e m e d o q u a n d o passo
p o r e n t r e as t u m b a s , s e m nome, esquecidas,
anônimas, e s t i c a n d o apenas p a r a a gente u m
n u m e r o que é como u m apello de grilbeta d o
e s q u e c i m e n t o a o p r a z e r de c o n t i n u a r a afirmar
pelo m e n o s n u m e p i t a f i o a p a s s a g e m p o r c i m a
da ferra...
© pavilhão d e P o r t u g a l n a
Exposição

a M homem de triste pensar disse u m dia:

— O sentimento da belleza desaparece


do mundo !
Esse homem de triste pensar era u m infeliz.
0 sentimento da belleza cada vez mais é o guia
da perfeição dos sêres ha terra e o seu consolo
e o seu escopo. Basta que alguém queira a bel-
leza para que as mais secundarias acçõès hu-
manas se toquem de uma luz de arte, basta que
a arte se enuncie vagamente mesmo para que
o ambiente seja o u t r o e os homens procurem
comprehender. A r t e é tudo quanto faz o homem
comprehender bellamente a vida e nobremente
vivel-a o u extinguil-a. Belleza é a harmonia
entre os homens e as cousas prolongando a i l l u -
são. E este sentimento é cada vez maior no
mundo moderno, porque não ha paiz de raça
antiga em que não seja notado o renascimento,
23
342 CINEMATOGRAPHO
* ' . - , , •

não ha paiz de raça nova em que não se de^


abotoe a flôr da arte.
Quando se pensou na Exposição Nacional,
houve quem tivesse a grata idéa de associar
Portugal, o ascendente veneravel, ao certamen.
Era a homenagem justa e era também o interesse
de conhecer o progenitor com a sua vida — por-
que as exposições são grandes cursos de educa-
ção universal.
Que sabiamos nós de Portugal, nós tão in-
timamente a elle ligados ? Os seus artistas, os
seus escriptores são aqui quasi desconhecidos,
e quando a snr. Maria Bordallo Pinheiro man-
a

dava-nos amostras de renda, quando Collaço


trazia a maestria dos azulejos, o u quando Ma-
lhôa mostrava-nos a pujança velasqueana das
suas télas, era uma admiração.
— Pois que ! Portugal moderno não desme-
rece artisticamente do Portugal antigo !
E õ pasmo acentuava-se
A Exposição veiu dar ao Brasil a amostra
do renascimento das artes em Portugal, e foi
bom que começasse delicadamente p o r essa ce-
rimonia de vernissage do pavilhão anexo da
terra de Affonso Henriques.
Portugal tem dois pavilhões. No inaugurado
hontem, estão na sua maioria obras de arte —
de arte chamada nobre e de artes aplicadas.
São quatro halls imensos e duas salas cheias
de quadros, de azulejos, de objetos artisticos,
CINEMATOGRAPHO 343

decoradas c a r r a n j a d a s c o m u m s e n t i m e n t o de
gosto, de l u x o e de arle, p o r J o r g e Collaço,
v e r d a d e i r a m e n t e admiráveis. S ó esse h o m e m é
um atestado da vibração s u p e r i o r de u m mo-
mento, pelo s e u talento e pela e n e r g i a do seu
trabalho — porque nesse pavilhão é forçoso
a d m i r a r tanto as o b r a s c o m o a decoração e a
die posições d o s o b j e t o s .
\o p r i m e i r o hall, entraes sobre tapetes
confortáveis. H a télas, ha g u e r i d o n s c o m obje-
los. ha p r e c i o s i d a d e s . L o g o ao f u n d o se v o s
depara o retrato de D. M a n u e l , p i n t a d o p o r
Columbanq, e dos d o i s o u t r o s l a d o s os r e t r a t o s
de D. C a r l o s e de D. Amélia. Mas se o l h a r d e s
os tectos haveis de v o s m a r a v i l h a r c o m q u a t r o
painéis de Collaço e, se o vosso o l h a r descer
um pouco, t o d a u m a sugestão d a g l o r i a de Por-
tugal se v o s deparará n u m f r i s o e n c a n t a d o r de
J o r g e Collaço — u m a fita interminável de cara-
vellas e b a r c o s sobre a o n d a encapellada, p i n -
tada a duas côres. E assim n o segundo, e a s s i m
no t e r c e i r o . A' sáída h a v e i s de t e r a sensação
nitida do r e n a s c i m e n t o d a arte p o r t u g u e z a , de
uma arte que, após u m período de estagnação,
soube a p r e n d e r fóra p a r a se r e v e l a r a g o r a a d m i -
rável e p r o f u n d a m e n t e nacional.

Q u a n t a s télas h a e x p o s t a s ? C e r c a de du-
zentas. O nosso salão g e r a l ás vezes não t e m
344 CINEMATOGRAPHO

tantas. Nesses duzentos trabalhos ha uma pai-


zagem de D. Carlos, um carro de bois da rainha
D. Amélia, magniíico, e avultam as télas de
Malhôa: os admiráveis Bêbados que nos fazem
lembrar d o s borrachos, a deliciosa procissão,
de uma frescura de vida e de verdade infinita,
a «a ilha dos Amores», a «compra do voto»;
as télas de Coumbano, o qual, se não nos agra-
dou no retrato de D. Manuel, expõe verdadeiras
obras primas com aquella sua feição tão origi-
nal, como o «outono», o retrato de João Rosa,
o retrato do Valle e um esplendido «interior de
cozinha»: Carlos Reis com o seu retrato de
D. Carlos; Sousa Pinto com uma série de télas;
José Vaz, que, entre outros trabalhos, tem uma
paizagem de especial destaque: ((margens do
Sado»; o notável José Velloso Salgado.
Mas quantos pintores de talento ! E são a
notar Almeida e Silva com a «apanha do fo-
lhado» de uma tão sugestiva poesia e a deliciosa
«viuvas em oração»; a condessa do Alto
Mearim com o seu «ultimo raio de luz»; o
curioso e verista temperamento artistico de
Júlio Teixeira Bastos com os seus trabalhos:
«os cinco sentidos)); José de B r i t o um decorador
na «vaga» e u m evocador na «procissão dos
milagres»; Antônio Carneiro, discípulo de J. P.
Laurens, e que nas suas paizagens consegue
conservar u m absoluto cunho t e r r i t o r i a l ; Ernesto
Condeixa, o p i n t o r dos movimentos da multi-
CINEMATOGRAPHO 345

dão com a «feira dos arredores de Lisboa»;


José Girão com as suas paizagens; Thomaz de
Mello, com as suas impressões do m a r em tipos
e em marinhas; a p i n t u r a pessoal e carateris-
ticamente portugueza de Manuel Henrique Pinto;
Manuel da Saúde, Ribeiro Júnior, Torquato
Pinheiro, com as suas lindas paizagens...
quantos !
0 visitante tem impressões parcelladas, gosta
mais de u m do que de outro, descobre u m
talento que se liga mais á sua emoção p o r uma
série de afinidades, e tem também uma impres-
são geral, a impressão de que ha uma escola
de pintura moderna em Portugal, com influen-
cias vagas da Hespanha e da Hollanda do Re-
nascimento nuns tons de Paris, que são o cor-
rosivo e infiltrante pó da «parisina», mas pes-
soal, mas portugueza, mas sua, feita dos mo-
vimentos como que extaticos dos seus tipos e
da poesia indefmivel da paizagem, dessa poesia
em que se condensaram a calma, a saudade e
a força dos instintos como que virginizados.
Não se dá nunca u n i grande movimento ar-
tístico sem u m sentimento mais forte de culto
á terra e aos maiores. O movimento estético dos
meiados do século passado na Inglaterra, o mo-
vimento actual da Itália nasceram da cultura
do eu encalgado na tradição da raça. Os gênios
c os artistas são produtos de gerações, cadeias
que ligam os tempos e desenvolvimentos da
alma de u m povo.
346 CINnMATOGRAPHO

Assim, haveis de vêr nas âquarellas, em que


se notam Alfredo Roque Gameiro, Ribeiro
A r t h u r c Joaquim Marinho, nos desenhos e n a
pintura a pastel, em que é necessário acentuar
Mattoso da Fonseca, com o seu «O A m o r dos
Homens» e vários outros trabalhos; nos proje-
tos de arquitetura, na esculptura, em que figu-
ram a duqueza de Palmella com tres trabalhos
em bronze admiráveis, principalmente a «Ca-
beça de preta»; Costa Motta com o busto em
bronze do actor Taborda; Thomaz Costa e o
admirado Teixeira Lopes; na arte aplicada, a
mesma nota regional se patenteia e impõe.
A arte aplicada é dar a tudo quanto nos
cerca o nobre cunho da arte. Houve um mo-
mento em que o mundo latino não fez mais do
que copiar as gerações antigas, e ás vezes,
como aconteceu a Portugal, chegou mesmo a
esquecer o passado. Na Exposição mostra o
renascimento da sua grande arte decorativa na
marcenaria, nos azulejos, na tapeçaria, na ouri-
vesaria, nas faianças, nas rendas.
Nos azulejos não é .só de notar Jorge Col-
laço, com o «Sinite parvulos ad me» e « U m a es-
trophe de Camões», duas peças esplendidas; e
também Joaquim Luiz Cardoso, com o «retrato
de D. Carlos», «Os Músicos», «Moendo café»,
((Tocando rabeca»; e Battistini com « U m a passa-
gem dos «Luziadas»; nas rendas, é a grande ar-
tista D. Maria Bordai to Pinheiro, dando-nos uma
CINEMATOGRAPHO 347

série de amostras das maravilhas de sua fabri-


cação, em que o antigo ponto de Peniche evolue
nacionalisando-se, modemisando-se; na ourive-
saria são os snrs. Leitão, renovando em prata
cinzelada e .em ouro os estilos antigos, guarda-
dos pelos feitores de Gondomar, e em marcena-
ria e em poteries uma porção de reveladores
surgem.
Que dizer desse trecho da Exposição ?
Os deuses sugeriram aos homens, como
uma nota de amizade grata e de respeito fami-
liar, chamar ao certamen em que o Brasil asse-
gura a pletora da sua energia e a força da
sua vitalidade a representação de Portugal. E
todos haviam de crêr que P o r t u g a l mandaria
produtos de simples industria e riquezas natu-
raes desse solo que, segundo bases autorizadas,
foi o Paraíso terreal, e, segundo o poeta Antô-
nio Corrêa de Oliveira, t e m ainda a marca dos
cinco dedos da m ã o de Deus, espalmada sobre
elle.
Portugal mandou-nos os produtos naturaes
e industriaes e, carinhosamente agradecido, en-
viou também a prova palpável do renascimento
da sua arte, dando-nos esse pavilhão anexo, em
que palpita parte do nobre engenho e do nobre
sentir de uma raça sempre joven e sempre nova.
Graças sejam dadas aos deuses ! Porque, se
naquelles tres halls de encantamento na pai-
zagem, nos tipos, nos motivos escolhidos pelos
348 CINEMATOGRAPHO

artistas, a cada passo se v a i descobrindo uma


lôa á terra abençoada, persistente e dominante
irradia como atestado do renascimento da arte
portugueza — o sentimento da Belleza, guia dos
homens na terra, seu consolo e seu escopo...
Impressões bororós

a M dos meus grandes desejos foi não vei-

os bororós. Logo ás primeiras noticias


de que um padre inexoravelmente civilizador
domesticára meia dúzia de g u r y s bravios ensi-
nando-os a tocar bombardão e flautim — a mi-
nha alma, se é que temos alma, confrangeu-se.
Ha caricaturas lugubres. Os bororós arregi-
mentados, soprando instrumentos da banda mi- *
litar, lembravam um desses esgares jocosos dos
macacos, esgares que dão vontade de chorar.
E eu acompanhava a aproximação dos bororós
com verdadeiro m a l estar.
— E os bororós ?
— Estão ainda longe.
— Graças aos deuses!
Os bororós estavam sendo passeados em
S. Paulo, passeados como ursos amestrados pela
movimentação do triângulo e as redações dos
350 CINEMATOGRAPHO

jornaes. O padre inexorável guiava a teoria


côr de braza a caminbo da Civilisação pelas
ruas da Paulicéa, e vinha vindo. E m breve esta-
ria cá, em breve eu os veria grandalhões, de
grande cabelleira, soprando a enubia feroz, com
o tacape e as frechas envenenadas ao lado.
Pobre gente! Que infinita inconsciencia, que
obtusidade bem satisfeita da vida pôde imaginar
uma obra de bondade f o r m a r no sertão de Matto-
Grosso u m regimento de bororós para v i r exhi-
bil-os na praça publica como collegio equipa-
rado no dia da distribuição de prêmios ? Que
estado de alma incapaz de comprehender a vida
pôde j u l g a r mérito nessa deslavada passeiata de
b u r l a n t i m nômade a passear a sua companhia
de fenômenos ?
A primeira cousa que eu fazia pela manhã
era correr aos telegramas de S. Paulo, a vêr
o que tinham feito os bororós, e uma infinita
tristeza mais no meu espirito avolumava a des-
favorável impressão da passeiata ao vêr que na
terra civilisada, onde desabrocham as mais
bellas ffôres do Brasil, os bororós murchavam
e feneciam doentes da bruma, doentes do ba-
r u l h o elétrico, doentes de saudade da taba. No
dia em que l i a morte do p r i m e i r o quasi tive-
cie amparar-me. F o i u m choque. Sentia-me va-
gamente co-réo naquelle assassinato urbano.
O padre inexorável disparara com a sua orques-
tra para outro ponto. Desse ponto vinha a no-
CINEMATOGRAPHO 351

tócia de o u t r a m o r t e . E eu eslava v e n d o q u e o
v c n e r a v e l c i v i l i z a d o r c h e g a v a só á Exposição
e, p a r a não p e r d e r o beneficio, d i z i a :
- E u s o u a q u e l l e q u e de u m b a n d o de bo-
rorós fez u m a b a n d a de m u s i c a .
Mas i n f e l i z m e n t e não f o i assim. U m bello
dia e u t i v e a sensação de q u e o p a d r e e os
bororós restantes estavam na cidade.
— V i s t e os bororós ?
— N ã o . índios c i v i l i z a d o s só conheço os d a
professora D a l t r o . S ã o nevrálgicos.
— P o i s os bororós, c o i t a d i t o s ! a n d a m p o r
a h i c o m u m a porção de gente atraz.
S ó então comecei a c o m p r e h e n d e r como
esta cidade é g r a n d e . I n v a d i d a p e l a aldêa bororó,
ainda assim e u c o n s e g u i a t e r a sorte de passear,
de andar, cie m o v i m e n t a r - m e sem vêr u m bo-
roró sequer c o m o a m o s t r a . Mas e m compensa-
ção l i a os a r t i g o s dos j o r n a e s f a l a n d o d a o b r a
de civilização dos salezianos missionários, do
beneficio de estréa q u e a b a n d a f e n o m e n a l ía
dar, e l i a m e s m o n a i n t e g r a , u m a h i s t o r i a l a -
mentável q u e o m e n o r dos g u r y s domesticados
dissera n o p a l c o o n d e a L u c i l i a Péres s a p a t e i a
o seu gênio dramático ao l a d a d o s embezerra-
mentos «smarts» do g o r d a l h u d o Marzullo. O
p a d r e virará os bororós e m c a b o t i n o s e fazia
l o g o o m e n o r p r e c i p i t a r - s e n o vórtice d a o r a -
tória p o p u l a r d i z e n d o cousas m e l l o s a s e néscias
a propósito d a civilização.
352 CINEMATOCiRAPHO

Pobres bororós ! O concerto fora uma cousa


incolôr, mas esse discurso do mais moço do
bando escripto c o m toda a literatura missio-
nária do reverendo Mallan, valia como o ates-
tado d o b i t o da deplorável idéa exhibicionista,
e e u estava contente p o r sentir que os bororós
p a r t i a m sem p o r m i m serem encontrados. Con-
versava, porém, outro dia, n a câmara, a uma
janella do gabinete da presidência, quando em
baixo, na calçada, rebentaram uns sons doentes
que hesitavam entre a filarmônica recreativa-
mente massante das villas e a orquestra do ho-
mem dos sete instrumentos. Olhei. Olhámos.
Estavam lá em baixo os bororós soprando as
gaitas, e no meio delles, severamente de chapéo
na mão, o coronel Serzedello. A musica cessou.
os bororós enfileiraram-se e t r e p a r a m pela câ-
m a r a a dentro até o gabinete, onde Carlos Pei-
xoto os esperava. E eu v i de perto os bororós,
mólles, d'olhos baixos, balofos, e tão tristes,
coitaditos! e tão comuns que, se u m delles
saísse só, ninguém para elle o l h a r i a pensando
passar p o r u m pobre petiz órfão com a farda
e o n u m e r o de u m asilo-oficial de proteção á
infância. Talvez estivessem vexados. O u talvez
não comprehendessem nada. Sim, elles não
comprehendiam, não deviam mesmo compre-
hender, pobres crianças, órfãos de u m a raça...
O reverendo blandicioso já chamára o pe-
queno encarregado dos números de efeito para
CINEMATOGRAPHO 353

'Ir/cr o d i s c u r s o , laboriosamente decorado d e s d e


Matto-Grosso. 0 p e q u e n o ía d i z e r , como qual-
quer actriz em toumée, q u e estava encantado
c o m o Rio de Janeiro...
Tomei um d o s bororós á janella e indaguei:
— Você sabe lêr?
Elle r i u , como se íôsse pregar-me uma
partida.
— Sim.
- Então diga-me aqui, o que significa esta
frase do j o r n a l : — • «A Exposição esteve muito
concorrida». Sabe o que vem a ser?
— Não.
Era a civilização entre os bororós musicaes !
Padre Mallan, entretanto, movia-se, agitava-se,
distribuindo pela representação nacional umas
brochuras. Mesmo sem ser representante, acei-
tei uma. Os bororós saíam machinalmente, ba-
lofos, pequenos, de olhos baixos, tristes. O ga-
binete da presidência da câmara ficava com o
ar de um «foyer» de teatro durante o intervallo.
A b r i a brochura. E r a m simplesmente infor-
mações de propaganda sobre a língua dos bo-
rorós.
Então, u m raio aclarador illuminou-me o
cérebro. Eu, que antipatizava u m pouco com
os processos do padre Mallan, percebi de u m
golpe toda a sua formidável ironia. Homem
intelligente, sotaina deliciosa ! Suavemente, as-
sucaradamente, todo elle um fabricante de ga-
354 CINEMATOGRAPHO

rapa, havia no seu gesto missionário u m tal ni-


velamento de bororós e de deputados, que tinha
do prodigio. Sim, era isso. Padre Mallan dis-
tribuía nas tabas barbaras instrumentos de
musica, e nas representações civilisadas com-
pêndios da lingua tupy. Aos selvagens dizia:
soprem e entrarão na civilisação !
Aos deputados dava-lhes um numero de re-
gras para aprender rapidamente a lingua dos
selvagens, aconselhando: talvez assim melhor se
possam comprehender. Toda a civilisação de
padre Mallan se resumia nestes dois elementos:
bombardões e aglutinações selvagens para a
gloria de Deus, Nosso Senhor. E a sintaxe da
câmara era-lhe tão incoherente, o portuguez
uma lingua tão difícil, que ao seu coração só
parecia conveniente o tupy como lingua oficial
dó Congresso. Certo, todos os deputados pen-
sariam que aquillo era uma simples demonstra-
ção. Mas, não ! Nunca ! Padre Mallan fazia aquil-
lo com uma requintada preocupação das cou-
-sas. E r a impossível que não houvesse ironia...
Cheguei á janella, para saudal-o. A teoria
de archanjos bororós ía longe. Então voltei ao
recinto, imaginando que todo aquelle pessoal
falava a l i n g u a dos bororós, que, além de paes
da pátria, eram paes dos bororós. A o velho
Gonçalo Souto, do Ceará, o u v i distintamente
um regougo de pagé e m delirio, ao Heredia,
uma exclamação de guerra alisando o papo de
CINEMATOGRAPHO 355

tucano de u m m o n s t r u o s o collete, e, c o m o toda


a câmara c o r r i a a o u v i r o Cassiano do Nasci-
mento, g o r d o , r o u c o , suado, t a l o g u e r r e i r o a
decidir da t e r r a , eu imaginei o conselho da
t r i b u dos bororós, s e g u n d o as i m a g e n s d o Gon-
çalves D i a s e d o f a l l e c i d o A l e n c a r , a o u v i r a
p a l a v r a de T u p a n .
E quando, fatalmente, l i m p a n d o o suor, a
enubia r o u q u e n h a de N a s c i m e n t o a t r o o u o re-
cinto dizendo c o m a p o m p a c o s t u m e i r a :
— Estou autorisado a declarar que o alto
conceito do governo...
O u v i isso tão c l a r a m e n t e e m bororó, q u e saí
s o r r a t e i r a m e n t e d o r e c i n t o , t o m e i o chapéo do
bororó p o r t e i r o , e abri n u m elétrico bororó-
mente a l l u c i n a d o .
E r a u m d o s m e u s g r a n d e s desejos, não vêr
os bororós.

As i n f e l i z e s m e n i n a s d a
Exposição

E RECISAMENTE, ás 9 da noite, encontrei, que

palmilhava, vestida de rôxo com


grande chapéo de velludo rôxo, á Avenida dos
um

Pavilhões, Clementina de Souza.


— Por aqui, com esta noite de chuva ?
— Não ha mais onde i r . Na Exposição reúne
o carioca toda a diversão. A n d a r pela cidade
agora, á noite, é ter a exquisita idéa de que a
cidade está vasia. E depois, meu caro, na Expo-
sição quanto mais vêm a gente mais aprende.
— Com efeito, os mostruarios...
- Qual mostruarios, qual historias. E n t r e i
no Palácio dos Expositores uma única vez, para
vêr a exposição de pintura. N ã o é para isso
que venho cá. E' para vêr o vivo, o animado.
— E vae vêr o que ?
— V o u ao teatro.
Clementina de Souza é uma dessas rapari-
24
358 CINEMATOGRAPHO
m

gas intelligentes a quem o destino se compraz


em satisfazer, e que longe de ser pedante sabe
valorisar a sua belleza com certo espirito, um
pouco de arte e algumas observações justas.
Mas a par dessas qualidades, Clementina apai-
xona-se. A sua paixão é rápida, passa, e reco-
meça em outro caso dias depois. De modo que
quando eu soube da sua visita ao teatro temi
que Etelvina, já em tempo louca de amor por*
u m jockey inglez, estivesse apaixonada por
a l g u m galã da companhia regeneradora da arte
nacional.
— Com que então, paixão ?
— Não, melancolia. O. Teatro é o meu lado
melancólico da Exposição. Não perco um espe-
táculo. Venho ouvir, cada vez mais comovida, a
historia das pobres meninas...
Clementina t i r o u o lencinho do seio.e enxu-
gou uma lagrima na reticência. E u olhei-lhe o
gesto, cocei a cabeça e indaguei aflito:
— Mas que pobres meninas ?
— Oh ! filho ! As infelizes cuja historia fa-
zem o stock maior do repertório. São as pobres
meninas da Exposição. T a m b é m são as únicas.
E é quanto basta para merecer toda a atenção.
Estendeu a destra enluvada, serpenteou como
faz D. Lucilia Peres quando representa de
joven cândida e partiu, vestida de rôxo, com
u m grande chapéo de velludo rôxo, caminho
do templo da arte.
CINEMATOGRAPHO 359

Eu parei. Essa historia das infelizes meninas


da Exposição era para pensar. Realmente. Na
sociedade são raras as meninas infelizes. A i n -
felicidade como n o r m a é o impossivel. As me-
ninas, conforme a sua classe, tendem todas
para o casamento e a maioria, o h ! homens ou-
s a d o s ! — c a s a . Qual o cavalheiro que não co-
nhece muitas meninas ? Ellas crescem, apren-
dem linguas o u vão para a Escola Normal, na-
moram, são levadas ou tímidas, recebem e es-
crevem cartas, tem confidentes, e dez annos de-
pois ou são as bellezas profissionaes do grande
mundo, escondendo os filhos (ás vezes o marido)
e expondo os maravilhosos vestuários; o u são
matronas feias, cheias de bebês e de queixumes.
A menina infeliz é positivamente a excepção ra-
rissima. A mulher é uma flôr, a menina é o botão
— já disse uma vez em discurso memorável certo
deputado. Desfolhar o botão é o máximo da
perversidade.
Mas no teatro da Exposição assim não se
dá. Aquelle palco é o inicio da comedia nacio-
nal. Houve a l i em dois mezes uma serie de re-
velações. A p r i m e i r a f o i a da nossa boa vontade
para uma coisa que não existia até então — o
teatro; a segunda f o i a pletora de talento de
escriptores, de lances dramáticos e descomedi-
dos da estrella que a força das circumstancias
faz de p r i m e i r a grandeza ha dez annos, a u l t i -
ma f o i de esperança geral pela regeneração.
360 CINEMATOGRAPHO

Alas ninguém lembrára a observação justa: o


curioso acorde dos escriptores de todos os tem-
pos sobre as meninas no drama, isto é, tornal-as
sempre infelizes.
A exposição teatral é realmente curiosa.
Todas as meninas são caiporas. Pelo teatro do
certamen, u m homem de coração não poderá
encontrar uma pessoa de sexo contrario na qua-
dra risonha da primavera, como dizia o poeta,
sem pelo menos dizer:
— Pobre creatura ! Moça, m u l h e r ! Quanto
caiporismo junto !
Assiste um homem ao Deus e á Natureza
e vê que uma rapariga teve o m á o gosto de se
apaixonar p o r u m padre, e o que é mais em
crise de consciência com indigestão filosófica.
Vae assistir As azas de um anjo e, além da hesi-
tante gramática do venerando Alencar, assiste
ao despenhar de uma pobre rapariga no tur-
bilhão da infelicidade.
Espera ancioso as peças modernas. Nas
peças modernas as meninas devem dominar.
Mas não. Ha um tipo, talvez o mais fundo e
verdadeiro da scena brasileira, a Elisa da He-
rança, da Snr. D. Julia Lopes de Almeida. A
a

Elisa casa com u m tisico, sofre tisica na casa


dos parentes do marido, vae-se tisica, sob o
temporal, m o r r e r n u m catre de caridade, moça
e na flôr dos annos. Ha uma pequena cheia de
vontades, intelligente, digna, na peça de A r t h u r
CINEMATOGRAPHO 361

Azevedo. Chama-se Adozinda e casa com u m


tisico. Pobre moça ! U m m a l a n d r i m saltou-lhe
a janella do quarto e ella tem que contar ao
marido o que elle fez. Mesmo que o m a r i d o
perdoe no fim, como Adozinda é sem sorte!
Ha outra, ultra-moderna, ultra-elegante, a do
Quebranto, do snr. Coelho Netto. Do primeiro
acto tem-se a idéa:
— Bom. Esta pelo menos vence! O velho
está apaixonado.
O velho é um tipo' meio selvagem, pouco fa-
miliarisado com o bluff permanente da socie-
dade e p o r conseqüência fácil de enganar. Pois
não. O velho resiste e a pobre menina fica po-
sitivamente sem solução.
Certo essas meninas não têm a infelicidade
da Antigona de Sophocles nem a dos drama-
Ihões do d'Ennery. A' primeira eram os deuses
a fazer chorar; as segundas tem infelicidades
transitórias para .fazer chorar as cozinheiras e
terminar á meia-noite com a prisão dos algozes
e o decreto da sorte para todo o resto da vida.
As meninas do teatro da Exposição, não. Ellas
são todas boas, ellas são todas honestas no fun-
do d'alma, a grande maioria acaba teatralmente
bem. Mas a sua infelicidade perdura, o segredo-
cancro da sua alma continúa a corroel-as e nós
temos a impressão de frutos magnificos que de-
vem ter na polpa o verme.
Desanimados, apellamos outra vez para o
362 CINEMATOGRAPHO

tempo antigo. Os rapazes tem do tempo antigo


uma ignorância tão cheia de desprezo e p o r
conseqüência tão parva. Os velhos acham p
tempo antigo sempre o hom tempo, tão bom !...
Vejamos o bom tempo. Vae-se á Historia de uma
moça rica. Para que, deuses superiores? Para
vêr mais uma infeliz menina, prendada, de alma
honesta e rica, (o que lhe augmenla sobremodo
a falta de sorte) descer ao desatino.
Depois dessas graves observações, um ho-
mem que tem bom senso não generalisa, não
se permite reilexõcs. Seremos nós líricos? Se-
remos nós misoginos ? Teremos pena o u raiva
das raparigas ? Talvez o amor e o odio, as duas
faces da mesma moeda do sentimento. E' pro-
vável que o publico não tenha a opinião dos
dramaturgos que acirram o destino contra as
suas creações; mas os dramaturgos não fazem
as suas obras sem obedecer a correntes miste-
riosas, sem ter o desejo de reproduzir o meio.
E todos elles ao contrario querem pintar o mo-
mento.
O momento mudou, as figuras secundarias
também. Os namorados são mais práticos; os
creados deixaram de ser os escravos escuros
para até, ás vezes, usaram casaca; os encarre-
gados de encher tempo conversam de outro
modo. A menina porém não mudou: — E' a v i -
ctima.
A victima ! Sim. São todas victimas ! Cami-
CINEMATOGRAPHO 36.1

nhei para o teatro templo. Que se havia de


fazer? E r a a opinião que teria de ficar. P o r
mais que desejasse reagir, eu tinha a idéa de
que as meninas, coitadas ! deviam nascer ve-
lhas já, para não sofrer lanto...
Entrei a sala verde da regeneração. Lá es-
tava a actriz encarregada de encarnar todas as
meninas debatendo-se numa serie de horrores
escriptos e imaginados p o r u m homem de ta-
lento. E r a a Moça Rica do 2.° império, como
fôra as pseudo-ricas da Republica. A platéa
ouvia comovida. Clementina assoava-se discre-
tamente.
Então eu lembrei a frase do filosofo român-
tico a respeito da Grande Revolução. Se a mi-
nha opinião fôra sempre agradável, talvez fosse
por tel-a sempre em bloco. Os dramaturgos ana-
lisam. De Alencar á admirável D. Julia Lopes
de Almeida as meninas na d r a m a t u r g i a nacio-
nal eram infelizes. Certo a razão estava da parte
dellas. Para achar qualquer coisa na vida sem
taras, é preciso ter uma opinião em bloco. Por-
que quando o detalhe se impõe, encontra-se
v

uma pessoa na obrigação de acreditar nas i n -


felizes meninas da Exposição...
O Bairrismo

MA exposição é c o m o u m a e n o r m e p e d r a
atirada n u m grande lago!
Esta frase, d i t a pelo jornalista, depois de
u m l o n g o silencio, fez-nos s o r r i r . Estávamos n u m
canto sórdido da área das diversões, n u m bar
bem de u l t i m a ordem. E não havia motivo
algum para sentença tão concludente e tão
misteriosa.
— E u e x p l i c o . A p e d r a a t i r a d a ao l a g o c r i a
u m a série de c i r c u l o s c o h c e n t r i c o s , q u e se vão
a l a r g a n d o , a l a r g a n d o , até se p e r d e r e m n o acha-
m a l o t e a r das águas. A. exposição é o grande
c a l h a u q u e r e s u m e o i n c e n t i v o da vida, e q u e
ás vezes se c h a m a v a i d a d e e ás vezes.se c h a m a
o r g u l h o . A t i r a - s e a p e d r a . O turbilhão de pe-
q u e n o s c i r c u l o s é o dos e x p o s i t o r e s , q u e se de-
g l a d i a m a vér q u a l b r i l h a mais. Os o u t r o s c i r -
c u l o s m a i s l a r g o s , o das cidades, q u e d e s e j a m
366 CINEMATOGRAPHO

superar, umas ás outras, em progresso. Os


outros,, bem nítidos, grossas circumferencia>
em relevo: o bairrismo dos Estados. E, final-
mente, os últimos, o resultado de todas essas
vaidades cumuladas: a repercussão do paiz no
exterior. E' o u não verdade ?
—'E', pelo menos, engenhosa a imagem!
exclamou Theotonio Freire, u m elegante bohe-
mio. Podes chamar lambem o sleeple-chase do
egoísmo o u da pretenção.
— Não. Para m i m o orgulho de superar é
a íorça das nações. 0 Brasil ainda não é colos-
salmente forte, porque certos elementos ainda
não têm o orgulho de superar. U m homem que
quer vencer é admirável, e o seu meio, natu-
ralmente, é o meio que quer vencer. Lembrem-
se do exemplo clássico. Uma vela acesa está em
continuidade com o meio no qual arde e com
o qual entretem relações físicas — as radiações,
e chimicas — alimentação, produto da combus-
tão. E u ficaria muito triste, se a nota do certa-
men não fôsse essa.
— Estás a fazer a filosofia da Exposição !
— Nada mais inócuo do que fazer filosofia
e principalmente n u m bar. Mas uma filosofia é
sempre u m resultado de reflexão, que depende
de observação dos factos. O que se dá aqui e
que o grosso publico não vê, no maravilha-
mento da luz ! As lutas, as raivas, os delírios d<>-
vencidos. Chego a dizer mais: o orgulho é de
CINEMATOGRAPHO 367

homem para homem. Ha uma casa com duas


montras. O autor das montras acha que os
objetos brilham, porque é elle o autor do logar
onde brilham. Os arranjadores disputam-se a
primazia do gosto e dizem: — «Noto a v. que
quem a r r u m o u esta f u i eu». O proprietário
considera-se insuperável. E a frase é habitual:
— «Francamente, neste salão nós somos os
primeiros!» Parece infantil. Não é. Se fosse o
contrario, não havia o incentivo, não se faria
nada, porque a individualisação é tudo, desde
que o homem representa o paiz, numa das suas
forças vivas.
— Mas, que paradoxo !
— V e m depois as cidades. Se os homens
fossem pensar na Exposição, seria uma cala-
midade. E' preciso que elles pensem apenas nos
concorrentes, na exposição de produtos idên-
ticos aos que expõem. Se as cidades fossem
pensar n u m certamen brasileiro, seria u m
desastre. Ellas l i m i t a m o seu ideal a se ven-
cerem umas ás outras, com u m sentimento de
aposta. E' Bárbacena o u Juiz de Fóra? Para
os habitantes destas duas cidades o certamen
cifra-se nisso. V e m depois a grande corrida dos
vinte e um.
— Ah ! nessa corrida dos Estados...
— Ha alguns paupérrimos de energia, de
acordo. Mas esses têm a riqueza natural e o
seu p r i m e i r o entrainement é a Exposição. Cor-
368 CINEMATOGRAPHO

rendo na bagagem, elles se remõrdem mas não


se renegam. O Espirito Santo inveja violenta-
mente a surpresa de Alagoas, mas Alagoas quer
ser um dos grandes Estados. O Ceará, Goyaz
estão eá longe, na poeira dos primeiros prê-
mios, mas com vontade de um dia ser gente;
e o Paraná, triunfante, imagina um pavilhão
seu. Na recta da chegada, em que estão quatro
ou cinco, é tremenda a rivalidade.
O honiem do R i o Grande exclama: «E nós
que não contávamos que o Pará tivesse cria-
ção de cavallos e industrias de resistência tão
desenvolvidas!» O homem do Paraná examina:
«Mas então a Bahia dá assim uva?» Os pavi-
lhões, cada u m tem u m apellido collado pelos
rivaes. O Distrito Federal é o neto do Monroe;
o da Bahia é a cantimplora festiva; o de S. Pau-
lo, a mesquita de Mahomet; o de Minas, e com
quanta razão ! sarcofago de comendador no ce-
mitério de Caiumby.
A luta para a escolha dos logares foi agu-
dissima. Minas fazia questão de estar primeiro
que S. Paulo, ou, antes, queria o logar de
S. Paulo, que é o ponto dominante da praia da
Saudade, como que o centro da Exposição,
visto da enseada de Botafogo. E ha perguntas
constantes: N ã o acha o nosso melhor? Não o
j u l g a o mais bello ? Venha vêl-o daqui... O Rio
Grande, o Pará íicaram naturalmente sem esse
motivo de mais um enraivamento. Bahia,
*
CINEMATOGRAPHO 369

S. P a u l o , Minas, o D i s t r i t o F e d e r a l c o r r e m n a
l o u c a d i s p u t a . E cada u m e x p r i m e bem, n a fe-
deração, u m t i p o de h o m e m e q u a s i u m a raça.
0 D i s t r i t o , n o seu d e l i r i o de vencer, a r r a n j o u ' sa-
lões c o m os m o v e i s e os tapetes do M u n i c i p a l , to-
dos de procedência e s t r a n g e i r a , M i n a s j o g a c o m
S. P a u l o até ao d i a da inauguração. E a B a h i a ,
b e m a B a h i a , c o m p o m p a e d i s c u r s o , começou
l o g o p o r se j u l g a r intangível.
— E S . Paulo?
— Vocês v i r a m as salas de S. P a u l o . S ã o
tantas q u e só p e l o n u m e r o S. P a u l o v e n c e r i a .
Mas ha a afirmação d o h o m e m q u e a i n d u s t r i a
e n e n h u m paiz desta aglomeração de paizes t e m
a i n d u s t r i a de S. P a u l o . Q u a n t o ao pavilhão,
R a m o s de Azevedo, o g r a n d e R a m o s de Aze-
vedo, fez j o i a da Exposição. Mas não d i g a m o s
isto a q u i . O nosso dever p a t r i o t a é acrisolar
bairrismo. O b a i r r i s m o é o desenvolvimento dos
Estados e c o n s e q u e n t e m e n t e d o paiz. Desta de-
sesperada c o r r i d a á e v i d e n c i a h u m a n a e sagra-
da, nasce a e v i d e n c i a da pátria n o e s t r a n g e i r o .
E p a r a este u l t i m o c i r c u l o de expansão é q u e
todos nós estendemos os braços, m o s t r a n d o a
nova.
— L i n d a frase !
— A h ! vocês v ê m á Exposição porque é
um ponto da moda, vêr as crianças a t e n t a r
rir com os t r i s t e s divertimentos do Paschoal
Segreto, jantar o u fivc-ó-clodiar n o P ã o de
370 CINEMATOGRAPHO

Assucar,, assistir á representação loa Irai o u á


estupidificação do café cantante no Teatro de
Variedades. Não têm patriotismo, são cariocas,
de u m a cidade de desembarque, transito de
todas as raças. Vocês são uns «snobs» de cáes.
— E tu?
— E u observo, examino, maravilho-me. E
cada dia que se passa é para m i m a certeza de
que mais funda se faz a convicção alheia na
gloria do meu paiz, porque precisamente a ex-
posição demonstra que já. se f o i a época das
crises intermitentes de patriotismo arruaça.
Hoje, os brasileiros querem ser brasileiramente
uns mais evidentes do que os outros pela exhi-
bição do trabalho. As cidades fazem o mesmo,
e os Estados, cuja soma é Brasil, cada vez mais
intensamente afirmam o bairrismo, que é a
couraça de todas as energias. Vocês não ima-
ginam. Outro dia eu resolvi fazer, pelos mos-
truarios, a experiência desse admirável senti-
mento. Era, num, certa frase vaga; noutro, uma
recordação de cidade; mais além, uma pérgunta
súbita, e pelo clarear da fisionomia dos dele-
gados, p o r mais frios que elles quizessem pa-
recer, havia tido uma revelação. Então, o snr.
já esteve lá ? Quando ? A q u i l l o agora está muito
melhor...
Muito melhor ! Muito melhor ! Qual é o fim
da vida, em sintese ? E' ser muito melhor do
que os outros. E quem tem esse escopo Ira
CINEMATOGRAPHO 371

balha, digniíica-se, livra-se dos sentimentos sór-


didos da inveja, é cada vez mais muito m e l h o r !
E u terminei a visita, depois de percorrer as
inúmeras salas de S. Paulo, onde as industrias,
as artes, as riquezas naturaes deslumbram, no
território do Acre. Estava um pequeno louro e
mal posto a tomar conta e a mostrar meia dúzia
de cousas. Mas essa meia dúzia de cousas, tan-
tos eram os pormenores, que pareciam muitas.
Indaguei interessado: « O menino é daqui?» —
«Não snr., disse elle com orgulho, sou do Es-
tado do Acre». Já o Acre era Estado no seu
lábio infantil. E com o m i n i m o dó Acre, es-
tuante de riquezas inauditas, e o máximo de
S. Paulo, irradiando o esplendor da terra e a
intelligencia dominante do homem, eu tive a
lição proveitosa de que o bairrismo é a força
propulsora do progresso de u m paiz.
Houve u m silencio. De repente, Theotonio
indagou:
— Mas, é verdade, de onde és t u ?
— Ora, esta ! D é onde havia de ser eu'? De
S. Paulo ! fez o jornalista grave.
Então, como nós, posto que lhe déssemos
razão, sorríssemos, Theotonio ergueu-se so-
lemne.
— A q u i está, meus senhores, até que ponto
arrasta o \orà do bairrismo. Quando chega a
hiperestesia, como em S. Paulo, não se con-
tenta de fazer o p r i m e i r o Estado do Brasil em
372 CINEMATOGRAPHO

tudo. Cria também uma filosofia ! Só assim se


chega do lago iranquillo que o calhau agita ao
baratro tremendo !
E todos nós desatámos a r i r na noite lumino-
samente rumorejante.
Noturno Policromo

— STOU cançado !
N ó s tínhamos c h e g a d o cedo á E x p o -
sição. A v i s i t a fôra d e m o r a d a a m e i a dúzia de
salas. H a v i a m u i t a coisa q u e vêr de u t i l q u e não
se v i a b e m e m u i t a coisa f r i v o l a q u e os exposi-
tores m o s t r a v a m a b u n d a n t e s de detalhes demo-
rados. Depois, fóra h a v i a p o e i r a . N ó s sentíamos
- p o e i r a n a s r o u p a s e nas m ã o s . Sentámos a custo
no bar. E a c o n v e r s a v a r i a d a d a q u e l l a gente
enervava.
— E u cá, d i z i a u m s u j e i t o pançudo, não acre-
dito na i n d u s t r i a n a c i o n a l !
— Mas, Praxedes...
— I n d u s t r i a nossa c o m t u d o de lá ! E' c o m o
. os fósforos. A i n d u s t r i a cifra-se e m m o l h a r o
palito feito lá n a massa f o s f o r i c a t a m b é m fã
feita.
—-E os fósforos de duas cabeças?
as
374 CINEMATOGRAPHO

— Brincas ? Pois olha, se ha tanta industria,


porque não se industria os negociantes a vender
os produtos como nacionaes ?
— Porque ha muitos Praxedes no mundo...
Mas adiante um grupo de senhoras e uma
pequena magrinha a comentar:
— U m chapéo de palha de-banana ! Que
exotismo ! E' preferível a fruta.
— A quem o dizes !
O cansaço e as palestras em de redor pu-
nham-me de m a u humor. E eu começava a
o
notar defeitos, a irritar-me contra a poeira, os
pavilhões p o r acabar, a falta de mais diverti-
mentos. As falhas da grande obra apareciam e
augmentavam, e naquelle entardecer feito de
seda rosa e seda azul o incompleto do trabalho
surgia insuperável. Ergui-me.
*— Que vaes fazer ?
— V o u jantar _.
— Deixas a Expozição ?
— Deixo.
O meu amigo sorriu.
— Aposto que estás a achar o certamen, a
tua cidade maravilha, u m pouco menos bri-
lhante ? E' um resultado da fadiga e do ener-
vamento das palestras sem significação. \ão
só. E' o- resultaclo da hora. A o cair da noite,
meu caro, o sônho mais bello é tristemente la-
mentável. Ha poetas que sentem vontade de cho-
rar a essa hora turva como u m copo de absin-
•>

ONEMATCGRAPHO 375

ío. E os próprios animaes olham com saudade


a ausência do sol.
— E' pelo menos uma hora literária. Desce
W n u s na opala dos céos e canla-se a Avè-Maria,
— Mas fica um instante mais.
— Para que ?
— Não sei se te lembras da tragédia grega
de Eschylo. Ha na noite escura uma sentinella
á espera. E a sentinella anceia pelo brilho de
um fanal que lhe noticie a quéda de Tróia. U m
fanal ! um fanal ! brada elle. A luz sempre f o i
a portadora de todos os sentimentos, porque a
luz é a vida e a vida é o sol. Toda a terra prende
avaramente pedaços de luz, e são luz as pedras
preciosas e são luz as flores e tudo é luz, até a
própria tréva, que não existiria se não houvesse
a luz. O mito de Prometheu descobrindo o
fogo perpetua-se e hoje todos os progressos
humanos grandiosos anunciam-se pela alegria
da luz.
Nunca viste illuminar-se a Exposição ? E' o
anuncio aos astros de que aqui ficou u m pe-
daço do sol. Não partas. E garanto que a tua
tristeza passará, os nervos cançados se galya-
nisarão e de novo admirarás. Fica.
Fiquei. E r a uma impressão a sentir.
Naquelle momento indeciso em que a atmos-
fera se tornava de violeta e a luz fugia do céo,
parecia que os palácios brancos, os gramados
verdes, o friso ondeante do mar se envolviam
376 CINEMATOGRAPHO

de u m a imponderável tristeza. A natureza i n -


teira, n u m único t o m de â m b a r gris, diluia-se
n u m a v a g a aspiração melancólica, e n a própria
t u r b a , o a r r i p i o da h o r a t r a n s f o r m a d o r a p u n h a
cansaço e u m v i n c o de i n d i v i d u a l tristeza. Á s
s o m b r a s desciam d o b l o c o n e g r o das monta-
nhas, estendiam-se e m t a r l a t a n a s pesadas e i a m
ascendendo da t e r r a aos espaços, de m o d o que
s t e r r a já estava q u a s i a p a g a d a e ainda á p r i -
m e i r a palpitação de u m a estreita t r e m u l a , havia
bocejos de sol no ocaso côr de lilaz.
De r e p e n t e . no pavilhão d a Sociedade de
A g r i c u l t u r a b a t e u n a tréva b e i r a n d o a f r o n t a r i a
u m a descarga d e l u z a estender u m friso de
fogo. L o g o adeante, n o pavilhão d o D i s t r i t o
F e d e r a l e s p o u c a r a m o i t o lâmpadas elétricas.
E r a c o m o u m ataque de g u e r r a . A o f u n d o cor-
r e u n o palácio das I n d u s t r i a s a escala infindá-
vel das lâmpadas. O pavilhão anexo de P o r t u -
gal ardeu, p e r t o o teatro f u l g u r o u , m a i s além
as lâmpadas a b r i r a m nos bars. A conquista
l u m i n o s a se fazia cerco. U m a n i m a l misterioso
s u r g i r a do solo e ía estendendo os tentáculos,
a c a r i c i a n d o as cúpulas, r a s t e j a n d o no a r u m a
c a u d a de escamas ardentes. D o i s m i n u t o s de-
p o i s e r a a cidade l u m i n o s a . N a s r u a s amplas
o gaz e m c a n d e l a b r o s de tres bicos e as lam-
pelas elétricas d e u m a fixidez d'aço f a z i a m o
dia. L a d e a n d o as ruas, baloiçavam-se Ínterim-
n a v e l m e n t e g i i u a l d a s e festões de lâmpadas ele-
CINEMATOGRAPHO

Iricas. Nos canteiros, em meio das plantas, nos


balaustres dos jardins, beijando a relva, o u pen-
dendo do arvoredo, vivia a reticência côr de
sangue, côr do céo, côr de esmeralda, côr de
leite de outras lâmpadas. A luz vestia inteira-
mente os pavilhões de fulgores de sol, tauxeava
d o i r o os palácios, punha vibrações de labareda
no ambiente, espalhava no céo u m opaco re-
flexo de chama enorme, mergulhava na agua
baloiçante da enseada e como que repercutia
além, para fóra, para o outro lado, p o r todo
o caes, pela cidade a dentro, ardendo em outras
m i l lâmpadas ardentes.
Então, comecei a andar sentindo-me como
um personagem de Wells, a fazer uma longa
peregrinação dentro de u m diamante collossaí
que desafiasse o fulgor e o tamanho do Gran-
Mogol. A lq£ fazia-me como u m ambiente de
pompa, em que scintillavam diluidos e confun-
didos todos os mineraes do mundo. E r a u m pe-
sadello do Oriente, u m sonho de O p h i r e de
.Golconda imponderável. O céo parecia feito de
hematites com ura n e g r o r brumoso que se to-
cava de tons verdes e lustrosos como as pedras
da Amazônia. Cada guirlanda de lâmpadas era
uma escala de côres, cada grande lâmpada u m
gong de luz, cada pavilhão u m tremendo acorde
de scintiIlações. A Exposição inteira era a sin-
fonia do sol, a marcha gloriosa á estrella, com
cavalgatas de w a l k y r i a s em fogo, trinos e mur-
378 u
CINEMATOGRAPHO

nrurios de fadas de fogos-fatuos e de gnomos


cambiantes, procissões e candelárias de anjos
brancos, córos de arcanjos erdrechocando gla-
dios de ouro e de cristal.
Ao incendiar da luz tudo se embellezava e
animava. O m a r era como u m tecido mara\ i-
llioso que ondeasse e adejasse o peso de pedra-
rias ignoradas; a noite esten lia-se como uma
tapeçaria trabalhada p o r artistas de Stambul
para os espasmos sensuaes de u m sultão or-
giaco. Os pavilhões p o r acabar, os restaurantes,
os palácios rutilavam. Cada luz era p o r si só
u m conjunto de emoções, o conjunto das luzes
dava áquelle amplexo da eletricidade nas trévas,
não o tom chinez de uma c o r r i d a de balões dan-
çarinantes, não o ar exquisito das festas lumi-
nosas dos ritos judaicos, não a sensualidade
expressiva de uma illuminação veneziana, mas
<o aspecto inédito de uma torrente cie brilhante-
que jorrasse do céo uma infinita variedade de
brilhos, desde a porta monumental, onde sara-
bandam todas as cores, até a montanha
negra que aos milhões de reflexos parece u m
formidável topazio côr de fogo. E era positiva-
mente u m deboche de colorações, uma porneia
de tons incandescentes, u m vulcão de arco-iris.
\a porta monumental, porta de Byzancio
como feita de laca, havia luzes vermelhas com
o -surdo esplendor das granadas e o sangue
quente dos rubis da Birmânia, luzes amarellas
CINEMATOGRAPHO 379

cegarloras com o f a iscar dos diamantes do Cabo


e a opaca luz das lumachellàs, feitas de madre-
perolas e de conchas, verdes do sombrio das
turmalinas e do desmaiado das águas marinhas,
roxas do rôxo azul das ametistas. E nesse bra-
zeiro de gemas carbunculantes a luz do mer-
cúrio tombava em cascatas de adularias, de safi-
pas. d e reflexos de lapis-lazzuli da Sibéria es-
liiado-d'oiro.
Dessa apoteose de v i t r a l mágico como que
nascia todo o esplendor da Cidade Maravilha.
As opalas, as sardonicas, os crisoprasos conti-
nuavam as reticências luminosas pelos canteiros
floridos; as esmeraldas, as safiras, os diamantes
subiam em trepadeiras, em arborescencias fan-
tásticas pelos pavilhões acima, e o chateaa cTeau
reproduzia a cambiante inicial do frontal versi-
color, j o r r a n d o n u m redemoinho de espumas,
cascatas côr de vinho de Chio e côr de vinho de
Svracusa, espanejamentos d'oiro liquido, rever-
beros auroraes de turmalinas rosas, de prata,
de esmeraldas, de jacintos, esplendia de sú-
bito, icebergs diamantinos.
No turbilhão de luz a feira agitava-se. As
vestes das mulheres, os chapéos vistosos, o corte
severo do trage masculino aquecidos, esfrega-
dos, embebidos de tanta luz, lembravam uma
exquisüa mascarada, um quadro de fantasia
em que se englobassem os apetites de luxo
d r varias raças. K as orquestras tocando, as
380 CINEMATOGRAPHO

bandas militares fazendo soar os metaes, os


gritos desencontrados da t u r b a pareciam as
vozes de todas aquellas luzes. Andava-se numa
embriaguez de olhar, n u m a fascinação de re-
brilhos, n u m a visão de iris quebrados.
Como d e i x a r a catedral da chama? Quanto
mais os olhos viam, mais q u e r i a m vêr, e quan-
do cançados estavam da violenta ardencia, havia
as sombras quietas onde os lampeões inglezes
espalhavam m o r n o s mistérios, quando se far-
tavam do arabesco contínuo desses lampejos
suaves, de novo se voltavam para as aureolas
rutilantes dos pavilhões.
De repente, porém, alguém g r i t o u :
— O fogo ! vae começar o fogo !
A multidão c o r r e u e m direção á ponte, as
janellas do palácio animaram-se de gente, e
foi como a correspondência da p o r t a e da fonte
em pleno céo. Os rojões subiam fazendo curvas
para estalar lá em cima, creando na espaço uma
vegetação de sonho nipão. Havia repuchos de
estreitas, ramalhetes de flores luminosas, ondu-
lações de véos d o i r o . T o d a u m a flóra parasi-
taria estriava o firmamento, e os rubins, os
crisoprasos, os berillos, as adularias, as turma-
linas, as esmeraldas, os brilhantes que nós v i -
ramos n a porta sólidos, e líquidos n a fonte,
diluiam-se preguiçosamente na atmosfera, crean-
do u m docel maravilhoso para a própria ma-
ravilha.
>
CINEMATOGRAPHO 381

— Enlão ? indaga o meu companheiro.


— E' de sair daqui com os olhos fechados
para não os entristecer com a illuminação cos-
tumeira da o u t r a cidade.
— E' que a luz é tudo: a suprema creadora
do contorno e da fôrma, a inicial da belleza e
da vida, a impalpavel e existente realidade da
illusão 1
E de novo na alma do diamante collossal
nós voltamos para o céo os olhos pasmados a
vêr numa lenta descida que se diluia a quéda
dos astros e a chuva infinita das estrellas.
i
A pressa de acabar

E VIDENTEMENTE nós sofremos agora em

o mundo de uma dolorosa moléstia: — a


todo

pressa cie acabar. Os nossos avós nunca tinham


pressa. Ao contrario. Adiar, augmentar, era
para elles a suprema delicia. Como os relógios,
nesses tempos remotos, não eram maravilhas de
precisão, os homens mediam os dias com todo
o cuidado da atenção, e eram eljes que diziam
do dia 13 de dezembro
Le j o u r croist le saut d'ime puco

e que contavam, cheios de prazer, o augmen-


tar dos dias nesse dezembro europeu pelos pu-
los, saltos "e passos* de diversos animaes:
A la saint Thomas le j o u r croist
Le saut d'un chat;
A l a Noél
L e saut d'un baudet;
A u n o u v e l an
Le pas d'un sergent.

Até o dia 17 de janeiro em que o dia crescia


— o jantar de u m frade...
\ c n h u m de nós gosaria a vida observando
384 CINEMATOGRAPHO

a delicia dos dias augmentarem. Nem dos dias,


nem das noites. Estamos no mez em que as
noites começam a encompridar, c ninguém ainda
se lembrou de dizer que a 13 a noite cresce o
pulo de uma pulga e que p o r Santo Antônio
a noite será tão comprida que fartará u m casal
amoroso... E isto p o r que? Porque nós temos
pressa de acabar, g i m ! E m tudo, essa estranha
pressa de acabar se ostenta como a marca do
século. N ã o ha mais livros definitivos, quadros
destinados a não morrer, idéas imortaes, amo-
res, que se queiram assemelhar ao simbolo de
Philèmon e Baucis. Trabalha-se muito mais, pen-
sa-se muito mais, ama-se mesmo muito mais,
apenas sem fazer a digestão e sem ter tempo
de a fazer.
Antigamente as horas eram entidades que os
homens conheciam imperfeitamente. Calcular a
passagem das horas, era tão complicado como
calcular a passagem dos dias. Inventavam-se
relógios de todos os moldes.e fôrmas. As horas
nesses relógios deixavam uma vaga impressão,
e foi de S. Luiz, rei de França, a idén de con-
tar as horas das noites pelas candeias que acen-
dia. E r a confundir as horas.
Hoje, não. Hoje, nós somos escravos das
horas, dessas senhoras inexoráveis que não
cedem nunca e cortam o dia da gente numa
triste migalharia de minutos e segundos. Cada
hora é para nós distinta, pessoal, carateristica,
porque cada hora representa para nós o acu-
CINEMATOGRAPHO 385

mulo do várias coisas que nós temos pressa de


acabar. O relógio era u m objeto de luxo. Hoje
até os mendigos usam u m marcador de horas,
porque têm pressa, pressa de acabar.
Ouem hoje não tem pressa de acabar? E'
possível que se perca tempo — oh ! coisa dolo-
rosa ! -— mas com a noção de que o estamos
perdendo. Perde-se tempo como se perde a vida
— porque não ha remédio, porque a fatalidade *
o exige. Mas com que raiva !
Vêde o homem da bolsa. Esse homem podia
andar de vagar. Entretanto anda a correr,
suando, a consultar o relógio, querendo fazer
em quatro horas o que em. outro tempo se fazia
em quatro mezes. Vêde o jornalista. Dispara
por essas ruas aflito, trepidante, á cata de
uma porção de factos que em sintese, desde
o assassinato á complicação politica, são de-
vidos exclusivamente á pressa de acabar. Vêde
o espétador teatral. L o g o que o u l t i m o acto
chega ao meio, eil-o nervoso, damnado p o r sair.
Para que? Para tomar chocolate de pressa. E
porque de pressa ? Para tomar o bond onde o
vêmos febril ao p r i m e i r o estorvo. £or que ? Por-
que tem pressa de i r dormir, para acordar
cedo, acabar de pressa de d o r m i r e continuar
com pressa as breves funções da vida breve !
( (Dar tempo ao tempo», é uma frase feita
cujo sentido a sociedade perdeu integralmente.
Já nada se faz com tempo. A g o r a faz-se tudo p o r
falta de tempo. Todas as descobertas de ha vinte
386 CINEMATOGRAPHO

annos a esta parte tendem a apressar os actos


da vida. O automóvel, essa delicia, e o fono-
grafo, esse tormento encurtando a distancia e
guardando as vozes para não se perder tempo,
são bem os simbolos da época.
O homem mesmo do momento actual num
futuro infelizmente remoto, caso a terra não
tenha grande pressa de acabar e seja levada
na cauda de um cometa antes de esfriar com-
pletamente— o homem mesmo será classificado,
afirmo eu já com pressa^ como o Homus cine-
maiographicv s.
Nós somos uma delirante sucessão de fitas
cinematográficas. Em meia hora de sessão tem-
se um espetáculo multiforme e assustador cujo
titulo geral é: — Precisamos acabar de pressa.
O homem-cinematografico acorda pela ma-
nhã desejando acabar com varias coisas e deita-
se á noite pretendendo acabar com outras tan-
tas. E' impossível falar dez minutos com qual-
quer sêr vivo sem ter a sensação exquisita de
que elle vae acabar alguma coisa. O escriptor
vae acabar o livro, o repórter vae acabar com
o segredo de uma noticia, o financeiro vae
acabar com a operação, o valente vae liquidar
um sujeito, o político vae acabar sempre varias
complicações, o amoroso vae acabar com aquillo.
Dahi um verdadeiro tormento de trabalho. Cada
um desses sujeitos esforça-se inutilmente — oh !
quanto !... —para acabar com o lendário Sisy-
pho, com o lendário rochedo. O homem cine-
3
CINEMATOGRAPHO 387

matografico, comparado ao homem do século


passado, é u m gigante de atividade. O comer-
ciante trabalha em dois mezes mais do que o
seu antecessor em dez annos; o escriptor es-
creve volumes de tal modo, aqui, na França, na
Inglaterra, que os próprios collegas (aliás com
a mesma moléstia) ficam a desconfiar de que o
tipo tenha em casa u m batalhão de profissio-
naes anônimos: os amorosos ageitam-se de t a l
fôrma que a paixão me dá hoje a impressão de
u m bailado desvairado que se denomina: o can-
can dos beijos. A pressa de acabar torna a
vida um torvellinho macabro e é tão forte o
seu dominio que muitos acabam com a vida
ou com a razão apenas p o r não poder acabar
de pressa umas tantas coisas...
Quem será capaz de dizer hoje sinceramente:
— eu vivo para o teu a m o r ? Vive-se dois mi-
nutos porque ha pressa de outros amores que
também se hão de acabar. A i n d a outro dia uma
joven senhora casada de fresco dizia-me:
— Oh ! não ! não desejo ter filhos.
— Mas, minha senhora, o fim da vida...
— Não venha com frases. Preciso dizer-lhe
que eu teria saudades de ter mesmo muitos
filhos. Mas falta-me o tempo e elles ainda levam
nove mezes a chegar cá...
Felizmente, os petizes já começam a nascer
nos automóveis, na terceira velocidade e é pro-
vável que com a l g u m esforço se consiga apres-
sar o sistema actual da gestação.
3H8 CINEMATOGRAPHO

Antes mesmo disso nós conseguimos acabar


com a reflexão e o sentimento. O homem de
agora é como a multidão: activo e imediato.
Não pensa, faz; não pergunta, obra; não reflete,
julga.
Cada homem vale p o r uma turba. A turba é
inconsciente, o homem começa a sêl-o nessa
nevrose.
— Quantas mulheres amas neste momento ?
— Pelo menos, tres, fóra as passadas. Mas
vou acabar porque tenho outras.
— Por que escreveste u m l i v r o que é inteira-
rhente o oposto do publicado uma semana antes?
— Porque era moda e eu precisava acabar
mais u m volume.
— P o r que te suicidas, t u ?
— Porque não posso acabar com o amor que
dura ha tres mezes !
A pressa de acabar! Mas é uma fôrma de
histeria difusa ! Espalhou-se em toda a multi-
dão. Ha nos simples, nos humildes, nos moure-
jadores diários; ha nos inúteis, ha nos futeis,
ha nos profissionaes da coquetterie, ha em todos
esse delirio lamentável. Qual é o fito principal
de todos nós ? acabar de pressa ! O homem cine-
matográfico resolveu a suprema insanidade:
encher o tempo, atopetar o tempo, abarrotar
o tempo, paralisar o tempo para chegar antes
delle. Todos os dias, (dias em que elle não vê
a belleza do sol o u do céo e a doçura das ar-
vores porque não tem tempo, diariamente, nesse
CINEMATOGRAPHO 3SV

n u m e r o de h o r a s r e i a l i a d a s em m i n u t o s e se-
g u n d o s q u e u m a população de relógios m a r c a ,
r e g i s t r a e desíia — o p o b r e d i a b o sua, labüta,
desespera c o m os o l h o s fitos nesse hipotético
poste de c h e g a d a q u e é a m i r a g e m da illüsão.
Os q u e assistem, c o m a pressa de acabar, g r i t a m
i n c l e m e n t e s a frase m a i s r e p r e s e n t a t i v a do mo-
mento :
— Está n a h o r a !
()s q u e r e p r e s e n t a m (e são os mesmos) tem
no cérebro a idéa f i x a :
— E' a h o r a ! V a e c h e g a r a hora...
fins acabam pensando que encheram o
tempo, q u e o m a t a r a m de vez. O u t r o s desespe-
r a d o s vão p a r a o h o s p i c i o o u p a r a os cemité-
r i o s . A c o r r i d a continúa. E o T e m p o também,
o tempo insensivel e incomensuravel, o T e m p o
i n f i n i t o p a r a o q u a l t o d o o esforço é inútil, o
T e m p o q u e não acaba n u n c a ! E' s a t a n i c a m e n t e
d o l o r o s o . M a s q u e f a z e r ? A c e n t u a r a moléstia,
passar a d i a n t e l o g o e r e c o r d a r , nestas noites
l o n g a s - l o n g a s ? N ã o ! Brevíssimas ! — de mais
o b o m t e m p o de a n t a n h o e m q u e os nossos avós,
sem relógios assegurados, s e m a pressa de aca-
bar, n o s p r e p a r a v a m este presente v e r t i g i n o s o
c o n i t e m p o a i n d a p a r a v e r i f i c a r c o m o os dias
a u g m e n t a v a m o p u l o de u m gato, o passo de
s a r g e n t o o u o f a r t o j a n t a r de u m frade...

FIM
26
no LeiTOR

E tu leste, e t u viste tantas fitas...


Se gostaste de alguma, fica sabendo que
fôram todas apanhadas ao natural e que mais
não são senão os factos de u m anno, as
idéas cie u m anno, os comentários de um
anno — o de 1908, apanhados p o r u m aparelho
fantasista e que nem sempre apanhou o bom
para poder s o r r i r á vontade e que nunca che-
g o u ao m u i t o m á u para não fazer chorar. A
sabedoria está no meio termo da emoção.

Vale.
INDICE

PAG.
Introdução v
Gento de Music-Hall 1
No paiz dos Gênios 11
A Cura N o v a " . . . 21
A s crianças que m a t a m 31
H o n t e m e hoje 41
0 20:0251 51
Mascaras de todo anno 59
Chuva de l a n d - t r o t t e r s 67
A f u t i l i d a d e de informação e os seis m i n i s t r o s . . 75
U m problema 87
N o v a vocação . . • 95
O barracão das rinhas 103
A valorisação das palavras -. . 1 1 3
"Dito„ da Rua 121
A decadência dos chopps „
a
129
J u n h o de outr'ora 137
Ludus Divinus 145
A solução dos transatlânticos . 155
A r e f o r m a das coristas 161
A c r i t i c a nos bastidores 169
Gnatho 177
0 PAG.

U m a exposição 185
Os humildes 193
A l g u n s poetas do hospicio "203
O velho Mercado 213
Chers confrères . 223
A Casa dos Milagres 231
O melhor pistolão 241
Horas da bibliotheea . . . . 1 21 l
(

O c h a r u t o das F i l i p i n a s . 25ÍJ
O ciou da Exposição 267
Quando o brasileiro descobrirá o Brasil ? . . . . 275
O M i l a g r e da Mocidade 285
A carta de u m delegado á Exposição . „ . . 2!'3
Os animaes n a Exposição 301
Os snobs e a Exposição 311
A policia de costumes 321
Epitafios 329
O pavilhão de P o r t u g a l na Exposição 341
Impressões bororós ' • 349
As infelizes meninas da Exposição. . . . . 357
O Bairrismo . 365
N o t u r n o Policromo 373
A pressa de acabar 383
Ao Leitor ,390
ü:iarciFÍa Qhavô ro n
De IÍZIÍTÍQ & IRffiS[0
* * Rim DOS c f l R i n e i s i T r i s , 144-PORTO* 4=

G A R C I A REDONDO THOMAZ LOPES


Salada de f r u c t a s 5f)0 Paysagens d'Hespanha .. no prélo' i
A t r a vez da Europa.. ... .. 000
Cara alegre .'. no prélo TAVARES BASTOS
A m u l h e r — m a n i a s e ea- Instituições jurHJleas Üia Re-
coetas n o prélo p u b l i c a ... .. '.. ..Kl. no prelo
MANOEL ARÃO JOÃO DO RIO
Transfiguração, 1 v o l . .. 1$000
Frivola-City ... .. • fy> prélo I
COELHO NETTO
BENTO CARQUEJA
Esphynge,, .. „ 600-
Sertão., .. .. .. O Capitalismo Moderrio e •
•000
A g u a de .Inventa .. •suas O r i g e n s em Pprtligaí; i
A B i c o de penna.. .. .. 700
1 vol. broeh
Kouianceiro .. .. - ,. .. .. 700 de
O F u t u r o de Portugial, 1
Theatro v o l u m e .. .. ,, ,, J, h o prélo.
5<»0
J a r d i m das O l i v e i r a s .. .. 400 EUCLYDES DÀ CUNHA
Quebranto (theatro), 1 vol. A' 1 m a r g e m da h i s t o r i a ,
Fabulàrio noo
M i r a g e m , romance. 1 v o l . .. 500 v o l u m e .. .. „ „ „ n o prélo
Anologos ... .. '.. •.. n 500 SYLVIO ROMERO
000 Discursos. 1 vo! . 500
JOÃO GRAVE
prélo M a r t i n s Penna, 1 v o l . .. 400
Os f a m i n t o s .. .. ... 500 A m e r i c a l a t i n a . 1 v o l . ..
prélo 50Ç
A eterna mentira 000 ProvocaçOes e debates, 1
O ultimo fauno.. 500 prélo
O Passado.. .. n o prélo LUIZ MURAT

SHAKESPEARE Ondas, 1 vol: ., „ „ no prílo


Sonho d'uma n o i t e de S. VICENTE DE CARVALHO'
João, 1 v o l . .. 000 Versos da Mocidade .. t .. )ío PJjjfÍP?
Rei Lear, 1 v o l . .. .. 400 Poemas e.* Canções.. .. • „. n o p r J f d
R o m e u e .Tulieta, 1 v o l . no prélo
I l a m l e t . . ... .. ., .. .. no prélo PINTO DÁ*4ÍOCHA
Othçllo.. .. .. nó prélo Talitha, 1. vol 4)00
OSCAR LOPES
TUDE DE SOUZA
Conferências, 1 vol... .. no prélo
MAYER GARÇAO
Excelsior , 500 MANOEL DÀ SILVA GAYOfx
CARMEN DOLORES T o r t u r a d o s , romance.. .. rio. préfò

Ao esvòâçar da idéia.. ;.. no prélo THÒMAZ DA FONSECA \Ã


A l m a cofflprexa ... ., . no prélo Os DesherdteSÒst (versos) .. •'• 500
1HERING ' • ^
ALCIDES'. MAIA
;
?M'Â'£-
Lucta pelo direito.. .. . no prélo Ruinâs V , ' * . . .

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