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21o festival do filme

documentário e etnográfico
fórum de antropologia e cinema
O azul do céu – novembro-dezembro 2001
Raymonde Carasco  151

Conversa sobre filmes e paisagens


Frederico Sabino  161

Era uma vez Brasília: conversa com Adirley Queirós


Cláudia Mesquita  167

Pode o cinema abrir uma passagem?


sobre Quilombo Rio dos Macacos, de Josias Pires
Fabio Rodrigues Filho e Amaranta Cesar  175

A dor, esse eterno riso de melancolia


sobre Festejo muito pessoal, de Carlos Adriano
Roberto Cotta  179

Conselheiro Crispiniano: descortinando os espaços


sobre filme de Yudji Oliveira
Leonardo Amaral  182

Em busca da palavra plural


sobre Abissal, de Arthur Leite, e Luiza, de Caio Baú
Glaura Cardoso Vale  185

Entre rostos, entre imagens


sobre O Cavalleiro, Elyseu, de Iulik Lomba de Farias
Pedro Veras  189

Lírios não nascem da lei


sobre filme de Fabiana Leite
Carla Maia  193

Transa do cinema, transe do mundo


sobre Baronesa, de Juliana Antunes
Victor Guimarães   197

A tão sonhada liberdade


sobre Corpo Delito, de Pedro Rocha
André Novais Oliveira  100

As miragens de Modo de produção


sobre filme de Dea Ferraz
Mariana Souto  203

"Eis que busco Lélia e meus processos semelhantes aos seus"


sobre Em busca de Lélia, de Beatriz Vieirah
Amália Coelho e Paula Kimo  206

Em nome da América
sobre filme de Fernando Weller
Julia Fagioli  209

A política de um corpo invisível


sobre A Gis, de Thiago Carvalhaes
Tatiana Carvalho Costa  213
por Victor Guimarães*

Como filmar uma mulher que dança? Como, num só gesto, fazer justiça à sensu-
alidade e ao prazer que se desprendem de seus movimentos, sem transformá-la
num pedaço de carne, mas sem reduzi-la tampouco a um parágrafo dirigido à
boa consciência burguesa? No primeiro plano de Baronesa (Juliana Antunes,
2017), é preciso começar por filmá-la de lado, num arranjo formal que reúne a
barriga (onde se resolve o complicadíssimo jogo do quadradinho), o braço, parte
do quadril e dos seios; acompanhar o ritmo do funk e o frêmito do corpo em
sinuosos reenquadramentos laterais que exalam energia; e então enquadrar
o rosto de Gabriela (o colar cuidadosamente ajustado no pescoço nos diz seu
nome), seu olhar inteiramente imerso no próprio corpo e entregue à delícia da
música, até que a câmera volta à posição inicial, a canção se encerra, a moça sai
de quadro e surge o emblemático título do filme.
Já na abertura, Baronesa recusa tanto a objetificação grosseira quanto a
sintomatologia frígida, mas o olhar da realizadora se afirma não pelo que rechaça,
e sim porque encontra no mundo uma força viva e forja com ela uma proeza a
um só tempo formal e política. O filme começa como um retrato vivaz do coti-
diano de Andreia e Leidiane, moradoras da Vila Mariquinha, em Belo Horizonte,
e de seu amigo Negão. Em uma montagem que reúne fragmentos precisos e
íntegros, vemos os três em momentos de ócio, a falar sobre a vida e sonhar
com o futuro, a jogar capoeira na rua e a improvisar uma piscina na caixa d’água.
De forma cada vez mais intensa, o peso da tragédia brasileira se adensará
como uma sombra escura, que paira sobre os momentos mais lúdicos, mas
por enquanto quem reina é o desejo – na frente e atrás da câmera. Bem longe

* Crítico, professor e programador. Colaborador da Cinética e de revistas como Senses of Ci-


nema, Desistfilm e La Furia Umana. Programou mostras no Cineclube Comum, Caixa Cultural
RJ, CachoeiraDoc, Semana dos Realizadores e Janela Internacional de Cinema do Recife. 197
do distanciamento asséptico que embaça o que há de pior em certo cinema
de observação contemporâneo, que parte da não-intervenção para reduzir o
olhar à mera constatação ou à celebração automática de uma excentricidade
qualquer, Baronesa é um filme de olhares implicados e de proximidades mútuas.
Os planos são quase sempre próximos e a aposta é em uma performance que
se dá fundamentalmente para a câmera, e nunca a despeito dela.
Não se trata de fazer um diagnóstico (eis a tese vulgar), nem de embe-
lezar a vida dos pobres (eis a cosmética), nem de contemplá-la sobriamente
à distância (eis a assepsia), mas de construir, bem junto dessas pessoas, uma
forma cinematográfica que esteja à altura de sua potência de invenção. Andreia
e Leidiane são as mulheres ilustres que o filme deseja elogiar, mas para isso é
preciso ir além do reconhecimento; é preciso invenção, risco, cinema. Talvez a
forma mais justa de filmar o outro seja tirá-lo para dançar.
Na primeira metade, a alegria do encontro vaza da tela em jorros constantes,
e a riqueza da experiência popular brasileira se traduz com uma raríssima inten-
sidade de prazer: a deliciosa conversa sobre masturbação entre as mulheres da
favela, o sex appeal que exala do malandríssimo Negão. Por momentos, Baronesa
lembra algumas de nossas melhores comédias populares, como a obra-prima
As Aventuras Amorosas de um Padeiro (Waldir Onofre, 1975). Não há risada de
escárnio ou de canto de boca. Enquanto tantos filmes afoitos pela excentrici-
dade instigam o riso em um espectador que se sente superior ao que vê, em
Baronesa é a frequência do humor que circula entre as personagens que nos
contagia do lado de cá.
Mas se não é distanciado, Baronesa tampouco é condescendente. Andreia
reage com exaltação diante de uma possível situação de abuso sexual entre os
filhos pequenos de Leidiane. No primeiro momento, toda a violência acontece
nas adjacências da cena, e não diante do espectador (no extremo oposto do
voyeurismo, o filme retém o afã da exposição e a circunscreve rigorosamente
ao fora-de-campo). No plano seguinte, Andreia explode em fúria diante das
crianças, e aqui está o gesto mais arriscado: como sustentar o plano frente a esse
momento em que a personagem expõe suas fragilidades e seus preconceitos
(ao nosso olhar, claro) de forma tão rasgada? No momento em que a maioria de
seus contemporâneos preferiria cortar; numa época em que certo cinema – e
certa crítica – parece preferir uma tese adequada a uma encenação que encara
de frente as contradições que nos atravessam (e não apenas as personagens,
parece ser necessário lembrar), a realizadora prefere sustentar a tensão e cons-
truir uma protagonista espessa, cheia de contrastes, enfim, uma personagem de
cinema e não um aforismo. Há ainda um terceiro plano: o relato da protagonista
198 sobre sua infância de abandono e de incontáveis estupros sofridos por parte do
padrasto, que culminaram numa facada no pescoço do estuprador quando ela
tinha onze anos de idade, à vista do irmão menor. A violência irrepresentável é
mediada pela memória, o que mantém sua potência de pensamento, despindo-a
do efeitismo do choque. O despudor de Baronesa, sua maneira franca de encarar
as entranhas abertas de uma experiência humana sem dourar a pílula, é sua maior
força e ao mesmo tempo o que não cabe (e ainda bem) na boa consciência de
uma crítica ávida por uma representação lisa, higiênica, correta – e inofensiva.
No decorrer da projeção, a iminência de uma guerra do tráfico – que faz
Andrea decidir fugir do bairro e terminará por ceifar a vida de Negão – se infiltra
na carne do filme como metástase. Juliana Antunes passa a filmar a sombra
trágica que se projeta sobre a exuberância de uma forma de vida – e o faz
em tom menor, atenta aos silêncios, sem afetação alguma, como uma longa
e dolorosa despedida. Baronesa começa como um filme que se deixa imantar
pela vivacidade de suas personagens, um convite para construir junto delas
uma transa cinematográfica, mas no meio do caminho o cinema é (literalmente)
atropelado pela violência do extracampo, e o transe do mundo se impõe como
força imparável. A certa altura, Andreia e Leidiane se põem a refletir sobre a
desigualdade brasileira, sentadas na porta de casa. Elas se lembram de “Povo
da periferia”, de Ndee Naldinho, e começam a cantar o rap. É então que uma
rajada de tiros de grosso calibre intervém com violência na banda sonora. As duas
fogem num rompante, a câmera cai, e o que até então era de uma visualidade
franca é ameaçado pela desfiguração: violentamente esburacada pelo real, é
a carne do filme que se despedaça diante de nossos olhos.
Para mim, que comecei a acreditar em milagres quando vi Stromboli (1950)
de Rossellini, é impossível não qualificar esse momento de Baronesa como um
milagre cinematográfico. Não apenas a junção cósmica entre um desejo de filme
e uma orquestração exata do mundo num momento irrepetível, mas a decisão
de montagem de situá-la nesse lugar (uma ruptura dramática importante, mas
longe ainda do final), que mantém a brutalidade da violência sem se render à
tentação do choque, ao mesmo tempo em que expande os sentidos da ruptura
ao integrá-la à dramaturgia do filme.
Quando Andreia se mudar para a casa nova e encarar o horizonte – e Leidiane
devolver o olhar no plano seguinte, sentada num telhado da Vila Mariquinha –,
os olhares brotarão não da vontade soberana de dizer algo, mas de um terreno
dramático singular, que vinculava as personagens e agora as separa no espaço
e na vida. É por ser fiel à sua própria ficção que Baronesa se ergue com altivez
frente a seus contemporâneos; é por ser justo ao mesmo tempo com quem filma
e com seu próprio desejo que o olhar de Juliana Antunes sobressai de maneira
tão evidente. É impossível ser fiel ao outro sem ser fiel a si mesmo. 199

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