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Essa história ele explica numa entrevista que não consta dos extras. Um tanto mal
humorado, diz que não tem qualquer apreço pela falta de comunicação. Pelo contrário.
Seus personagens se esforçam por entrar em contato uns com os outros. Apenas não
conseguem, o que é outra história. Mas existe um esforço de ligação, um traço de união
que, é verdade, nunca se completa. Todos estão irremediavelmente sós. Em especial
quando em casais, mas não apenas.
A Aventura é o primeiro desses filmes. Anna (Lea Massari) é a garota entediada que
viaja com o namorado e um grupo de amigos para uma ilha vulcânica na Sicília e…
simplesmente some. Talvez, como argumento, seja o mais surpreendente dos três. Todo
o que acontece, e o que não acontece também, se refere, de maneira direta a esse
desaparecimento que não se explica. O filme é extraordinário. E inquietante.
E mais extraordinário ainda talvez seja o depoimento que a atriz Monica Vitti dá numa
entrevista que, esta sim, está entre os extras (aliás, o DVD de A Aventura é duplo; um
só para o filme, o outro reservado aos extras). Monica conta que a situação foi tirada de
algo que aconteceu de fato entre ela e Antonioni, na época casados. Num passeio a uma
ilha, brigaram por algum motivo banal, ela embirrou e resolveu sumir do mapa. Ficou
desaparecida por umas duas horas. Quando se reencontraram, Antonioni lhe disse:
“Acho que tenho uma ideia”. E como tinha!
Outra história que Monica conta é da péssima recepção do filme em Cannes em 1960.
Vaiado, ironizado durante a sessão, na qual se conversava e se ria, A Aventura foi
desagravado no dia seguinte por um manifesto assinado por vários cineastas e críticos
de primeira linha. No texto, além de repudiar a reação pouco civilizada, diziam que
aquele era o filme mais belo que já haviam visto naquele festival. A primeira assinatura
era de ninguém menos que Roberto Rossellini; a última, de Georges Sadoul.
Talvez seja este terceiro filme o mais rigoroso, do ponto de vista plástico, dos três. O
desenho desse desfecho, com seus bons talvez sete ou oito minutos de planos tensos, é
perfeitamente geométrico; algo pensado por alguém que incluía a pintura entre as suas
referências cultas. Que aliás, são muitas e profusas.
Revi o filme ontem à noite e notei detalhes que não havia reparado em outras vezes. Há
muita coisa ali. A incomunicabilidade, certo; mas também o irrisório do capitalismo,
exposto na especulação da Bolsa, nos estragos que produz em todos e mesmo em seus
beneficiários; alguns toques estranhos como o bêbado que morre após roubar o carro de
Piero; as flores que o especulador arruinado desenha enquanto medita se deve ou não se
matar; a estranha amiga africana de Vittoria, com seus fuzis e troféus de caça. Há até
uma involuntária menção ao Brasil, na forma de uma manchete de jornal. Enfim, há
nele uma miscelânea da vida entediada da burguesia italiana, que se expõe à maneira de
um mosaico – e se oferece à nossa leitura intelectual e às nossas reações emocionais.
Não vamos nos enganar: é um dos momentos altos do cinema em todos os tempos.