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A trilogia da incomunicabilidade de Antonioni

Luiz Zanin Oricchio


06 de agosto de 2012 | 00h11

Qualquer cinéfilo digno deste nome conhece de cor a chamada Trilogia da


Incomunicabilidade de Michelangelo Antonioni. A Aventura (1960), A Noite (1961), O
Eclipse (1962). Vimos esses filmes em diversas ocasiões, às vezes em cópias
lamentáveis, e aprendemos a admirá-los. Mais que isso. Aprendemos a amá-los. Depois
os revimos em VHS e, mais tarde, nos DVDs que foram saindo no mercado. De raros,
tornaram-se familiares. Estão agora agrupados numa caixa caprichada da Versátil, com
cópias de excelente qualidade e extras. Vêm com esse nome geral, de que o próprio
Antonioni não gostava muito – Trilogia da Incomunicabilidade.

Essa história ele explica numa entrevista que não consta dos extras. Um tanto mal
humorado, diz que não tem qualquer apreço pela falta de comunicação. Pelo contrário.
Seus personagens se esforçam por entrar em contato uns com os outros. Apenas não
conseguem, o que é outra história. Mas existe um esforço de ligação, um traço de união
que, é verdade, nunca se completa. Todos estão irremediavelmente sós. Em especial
quando em casais, mas não apenas.

A Aventura é o primeiro desses filmes. Anna (Lea Massari) é a garota entediada que
viaja com o namorado e um grupo de amigos para uma ilha vulcânica na Sicília e…
simplesmente some. Talvez, como argumento, seja o mais surpreendente dos três. Todo
o que acontece, e o que não acontece também, se refere, de maneira direta a esse
desaparecimento que não se explica. O filme é extraordinário. E inquietante.

E mais extraordinário ainda talvez seja o depoimento que a atriz Monica Vitti dá numa
entrevista que, esta sim, está entre os extras (aliás, o DVD de A Aventura é duplo; um
só para o filme, o outro reservado aos extras). Monica conta que a situação foi tirada de
algo que aconteceu de fato entre ela e Antonioni, na época casados. Num passeio a uma
ilha, brigaram por algum motivo banal, ela embirrou e resolveu sumir do mapa. Ficou
desaparecida por umas duas horas. Quando se reencontraram, Antonioni lhe disse:
“Acho que tenho uma ideia”. E como tinha!

Outra história que Monica conta é da péssima recepção do filme em Cannes em 1960.
Vaiado, ironizado durante a sessão, na qual se conversava e se ria, A Aventura foi
desagravado no dia seguinte por um manifesto assinado por vários cineastas e críticos
de primeira linha. No texto, além de repudiar a reação pouco civilizada, diziam que
aquele era o filme mais belo que já haviam visto naquele festival. A primeira assinatura
era de ninguém menos que Roberto Rossellini; a última, de Georges Sadoul.

Em A Noite, Lidia (Jeanne Moreau) e Giovanni (Marcello Mastroianni) são um casal


cansado, exausto de si mesmo, que visita um amigo à morte no hospital. Depois, vão a
uma festa burguesa, uma longa noite de encontros e experiências que termina com os
dois no jardim. Aquilo talvez pudesse ser uma reconciliação, mas não ficamos muito
seguros disso. Reconciliamo-nos depois de uma briga, quando os ânimos ficam
exaltados e falamos coisas que não sentimos para valer. Mas como se reconciliar
quando a fadiga é do próprio material que compõe aquele relacionamento? O tédio,
apenas o tédio parece, de alguma forma misteriosa, dar liga àquele casal. Eles talvez
continuem, mas nem isso é animador.
O Eclipse é meu favorito, se é que é possível eleger preferências em obras desse nível.
Em todo caso, é o que mais me toca. Monica Vitti (Vittoria) termina um relacionamento
e acaba por se envolver com um jovem operador da Bolsa de Valores, Piero (Alain
Delon). Mas o romance, para os dois, não pode ser normal. Ou natural. Nesse ambiente
de angústia do pós-guerra, da ameaça nuclear, da angústia, nada pode fluir
naturalmente. Acho o desfecho um dos mais extraordinários da história do cinema,
como se os humanos fossem deixando espaço para que as coisas e a natureza falassem e
tomassem o seu lugar. Lugar num mundo em que a humanidade talvez não tenha
merecido viver. É como um suspiro, que dizem os astrônomos, é o jeito como as estrelas
morrem.

Talvez seja este terceiro filme o mais rigoroso, do ponto de vista plástico, dos três. O
desenho desse desfecho, com seus bons talvez sete ou oito minutos de planos tensos, é
perfeitamente geométrico; algo pensado por alguém que incluía a pintura entre as suas
referências cultas. Que aliás, são muitas e profusas.

Revi o filme ontem à noite e notei detalhes que não havia reparado em outras vezes. Há
muita coisa ali. A incomunicabilidade, certo; mas também o irrisório do capitalismo,
exposto na especulação da Bolsa, nos estragos que produz em todos e mesmo em seus
beneficiários; alguns toques estranhos como o bêbado que morre após roubar o carro de
Piero; as flores que o especulador arruinado desenha enquanto medita se deve ou não se
matar; a estranha amiga africana de Vittoria, com seus fuzis e troféus de caça. Há até
uma involuntária menção ao Brasil, na forma de uma manchete de jornal. Enfim, há
nele uma miscelânea da vida entediada da burguesia italiana, que se expõe à maneira de
um mosaico – e se oferece à nossa leitura intelectual e às nossas reações emocionais.

Porque se vemos bem um filme não dispensamos a primeira e nem as segundas.


Antonioni é uma fonte inesgotável de estímulo ao nosso crescimento interior e à nossa
compreensão do mundo. Mais uma vez: uma coisa não nega a outra; ambas se
completam na fruição de grandes obras como é o caso desta Trilogia.

Não vamos nos enganar: é um dos momentos altos do cinema em todos os tempos.

Confira análise filme a filme de Michelangelo Antonioni


Um dos cineastas que fez a Itália ter o melhor cinema do mundo entre os anos 60 e 70

Luiz Zanin Oricchio, do Estadão,


07 de julho de 2031 | 19h15

Que é isso, 2007? Um dia anunciamos a morte de Ingmar Bergman e no seguinte, a de


Michelangelo Antonioni. Vão-se, praticamente juntos, dois dos últimos mestres de uma
fase áurea do cinema. Antonioni tinha 94 anos, estava doente havia muito tempo e
morreu em sua casa, em Ferrara, na terça, 31. Não falava desde quando sofreu um
acidente vascular cerebral em 1985. Já nessas condições visitou o Brasil, em 1994.
Esteve em São Paulo e daqui seguiu para o Festival de Gramado, onde foi
homenageado. Foi personagem principal de uma noite inesquecível, a projeção, no
Palácio dos Festivais, de uma de suas obras-primas, A Noite. A Aventura (1959), A
Noite (1960), O Eclipse (1961), filmes que formavam a chamada "trilogia da
incomunicabilidade" e fizeram a fama de Antonioni naquela virada dos anos 50 para os
60. O curioso é que o rótulo de "cineasta da incomunicabilidade", bem acolhido durante
algum tempo, depois passou a enfastiá-lo. Dizia, com razão, que tudo o que procurava
com seus filmes era justamente se comunicar com o público. Mesmo que essa
comunicação falasse exatamente dessa impossibilidade de um encontro completo e
pleno entre as pessoas. Veja também: Galeria de fotos Trecho de 'Michelangelo
Antonioni', de Caetano Veloso Trailer de Blow-up - Depois Daquele Beijo Cena de 'O
Deserto Vermelho' Blog do Zanin: Morreu Antonioni 'Cinema sente-se órfão', diz
presidente do Festival de Cannes Morre o cineasta sueco Ingmar Bergman Casal
moderno Antonioni, assim como seus amigos Fellini e Visconti, veio da escola neo-
realista, a mais fértil do cinema italiano dos anos 40-50. Mas, em seguida desenvolveu
estilo e preocupações temáticas próprias. Assim como Bergman, tinha interesse pelas
situação do homem em sociedade e, sobretudo, as complicadas relações do casal
moderno. Também como o mestre sueco, Antonioni tentou compreender a alma
feminina, mesmo sabendo que tal tarefa é sempre destinada ao fracasso, como aliás já
sabia o próprio Freud. Muitos outros são seus filmes importantes, como o angustiado
Deserto Vermelho, com Mônica Vitti, ou o formidável Passageiro: Profissão Repórter,
que filmou com Jack Nicholson no papel principal. E que papel! Nicholson nunca fez
nada melhor do que esse personagem que troca de identidade com outro e leva a farsa
dessa segunda pele até as últimas conseqüências. Parceria com Wenders Outros pontos
altos de Antonioni são Blow Up - Depois Daquele Beijo (1966), livre adaptação do
conto de Julio Cortázar, Las Babas Del Diablo, e Zabriskie Point (1969), com seu final
apocalíptico. Faria ainda as primeiras experimentações com vídeo em O Mistério de
Oberwald (1980), voltando ao seu universo preferencial com Identificação de Uma
Mulher (1982). Depois do longo silêncio causado pela doença, retorna à direção, mas
desta vez a quatro mãos, com Wim Wenders, com Além das Nuvens, a adaptação de um
texto próprio, Bowling Sul Tevere. Já bastante doente, em cadeira de rodas, comparece
ao Festival de Veneza de 2005 para acompanhar a projeção e o debate de Eros, no qual
assina o episódio O Fio Perigoso das Coisas. É o último que se vai do grande grupo de
diretores que fizeram a Itália ter, entre os anos 60 e 70, o melhor cinema do mundo.
Confira análise filme a filme As AmigasBaseado num texto de Cesare Pavese,
Antonioni coloca sua câmera no mundo da moda de uma cidade industrial como Turim.
No interior desse microcosmo, surge um tema inesperado, o suicídio, que era, como se
sabe, uma questão crucial para o próprio Pavese. Na vida das amigas que se dedicam à
moda, todas conseguem resolver-se, de maneira melhor ou pior. Menos uma, Rosetta
(Madeleine Fischer), a mais sensível, talvez a melhor de todas e que, por isso, não
encontra seu lugar no mundo. O impossível lugar no mundo - um tema de Antonioni,
por definição. A AventuraA vida dissoluta dos ricaços é mostrada neste passeio a uma
ilha vulcânica. Um misterioso acontecimento perturba o ambiente: Anna (Lea Massari)
desaparece na ilha e ninguém consegue encontrá-la. O que poderia ser apenas um
thriller, transforma-se, sob o toque de Antonioni, em um campo de batalha existencial,
no qual os personagens se confrontam com suas ambigüidades, sua fragilidade, seu
egoísmo, sua relação sempre insuficiente em relação ao outro. A NoiteMarcello
Mastroianni e Jeanne Moreau formam esse belo par, porém já bastante entediados pelo
simples motivo de estarem juntos. No início da história, eles visitam um amigo, que está
à morte em um hospital. Confrontam-se com o inevitável, com o término de toda
experiência humana, mas nem por isso deixarão de entediar-se, com tudo e em
particular, um com o outro. São bonitos, não têm grandes problemas de sobrevivência e,
no entanto, não encontram um lugar no mundo. Essa é uma questão de Antonioni: que
lugar ocupamos num mundo hostil? O EclipseMonica Vitti vem de um relacionamento
complicado e tenta um novo affair com um jovem corretor de bolsa de valores, vivido
por Alain Delon. Mas o caso não progride. Há uma cena antológica, quando se faz um
minuto de silêncio na bolsa de Milão em honra de um corretor que morreu, e logo a
seguir a balbúrdia do pregão se impõe. O final é um dos mais belos - e melancólicos -
da história do cinema. Não há saída para o casal, nem para nada. E a própria natureza
parece morrer quando o eclipse solar vai causando o escurecimento da cidade. O
Deserto VermelhoUm dos grandes trabalhos de Monica Vitti, atriz com quem Antonioni
foi casado. Ela faz a dona de casa angustiada, que não sabe direito de onde lhe vem
tanto mal-estar diante do mundo. A trilha sonora inusual, a fotografia em cores de Carlo
Di Palma, valem ao filme uma ambientação muito marcante. É mais uma tentativa de
retratar a vida alienada na sociedade contemporânea. Monica não sabe a razão da sua
infelicidade. E essa é a tese de Antonioni, não sabemos o porquê, ele está oculto e faz
parte da própria alienação. Blow Up - Depois Daquele Beijo David Hemmings e
Vanessa Redgrave estão no elenco deste que é um dos mais emblemáticos títulos dos
anos 1960. Hemmings faz o fotógrafo de moda que, casualmente, descobre um crime
quando revela uma de suas fotos, feita num parque público. O filme capta a agitação da
Swinging London, mas é muito mais do que um documentário de época. Adaptado de
Las Babas del Diablo, conto do argentino Julio Cortázar, procura ser um estudo sobre
aquilo que vemos e deixamos de ver na sociedade contemporânea. É também uma
reflexão sobre o olho moderno - o da câmera por excelência. O crime, "oculto", se
desvela apenas para as lentes de Hemmings. O cinema também teria essa função, de
olhar contemporâneo, testemunha da imagem num mundo que não quer ver. Zabriskie
PointÉ o único filme norte-americano de Antonioni e representa sua imersão nos valores
da contracultura próprios da época. O filme tem um aproach não-realístico dessa
realidade social e esse ponto foi apontado como motivo para o seu fracasso comercial.
Usa na trilha sucessos da época dos Rolling Stones e Pink Floyd. O apocalipse nuclear,
ainda um fantasma da época da época da guerra fria aparece no horizonte deste filme
ousado, talvez não tão rigoroso do ponto de vista formal como os outros, mas ainda
assim encantador. Como tudo o que Antonioni fez, presta-se (também) como
comentário à sua época. O Passageiro - Profissão: RepórterTalvez o melhor trabalho de
Jack Nicholson no cinema seja neste filme de Antonioni. Inspirado em O Finado Mattia
Pascal, de Pirandello, trata da troca de identidade. Nicholson faz o personagem dado
como morto e assume a identidade de outro. Passa a viver a vida alheia até descobrir
que está metido numa aventura perigosa e que pode terminar mal. Mesmo assim a leva
até as últimas conseqüências. Um dos trabalhos mais brilhantes de Antonioni no plano
formal, tem um dos finais mais conhecidos entre os cinéfilos, um longo plano em que a
câmera passeia do interior de um quarto de hotel, sai à pracinha e volta ao aposento,
como se atravessasse as grades da janela. Além das Nuvens. Esse filme de episódios é
co-dirigido por Wim Wenders, pois Antonioni, já doente, não poderia assumi-lo
sozinho. John Malkovich faz o papel de um diretor e funciona com elo entre as
histórias. É obviamente, um alter ego de Antonioni. Nesses episódios prevalece a
atmosfera básica que costumamos encontrar em seus filmes: a angústia, o sentimento de
estranheza do mundo, a falta de sentido das coisas. As histórias são tiradas de um livro
do próprio Antonioni, Quel Bowling Sul Tevere: Crônica de um Amor Que jamais
Existiu, A Garota, O Delito, Este Corpo de Lama e não Me Procure. Eros (Episódio ‘O
Fio Perigoso das Coisas’)Último trabalho de Antonioni, neste filme de episódios,
partilhado com Wong Kar Wai e Steven Soderbergh. No de Antonioni, temos a história
de um casal, que fica fascinado pela mesma mulher. Não sabemos bem como Antonioni
o dirigiu, doente e envelhecido que estava. No entanto, o filme tem pontos de contato
com sua obra, em especial na temática, mas também no clima levemente perverso que
se desencadeia assim que o homem e a mulher acabam caindo na mesma rede erótica da
estranha. O interessante é que o filme utiliza a canção Michelangelo Antonioni,
composta por Caetano Veloso em homenagem ao mestre.

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