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Programa de estréia de O BEIJO NO ASFALTOI,
apresentada no Teatro Ginástico, Rio de Janeiro,
em 7 de julho de 1961.

A SOCIEDADE TEATRO DOS SETE


apresenta

o BEIJO NO ASFALTO
Uma tragédia carioca de Nelson Rodrigues
em 3 atos e 13 quadros

Elenco por ordem de entrada em cena:

UMA PROSTITUTA Marilena de Carvalho


o INVESTIGADOR ARUBA Renato Consorte
o REPÓRTER AMADO RIBEIRO Sérgio Britto
UM FOTÓGR..?O N.N.
O DELEGADO CUNHA ha!o Rossi
APRÍGIO Mário Lago
SELMINHA Fernanda Montenegro
DÁLIA Suely Franco
COMISSÁRIO BARROS Labanca
ARANDIR Oswaldo Loureiro
D. MATILDE Zilka Salaberry
WERNECK Francisco Cuoco
PIMENTEL Ivan Ribeiro
D. JUDITH Suzy Arruda
A VIú',"A Carrninha Brandão
O VIZINHO Henrique Femandes

AÇÃO Rio de Janeiro

Cenários de Gia.nni Ratto. Direção de Femando Torres

1. A inclusão da personagem "uma prostírutc" e a assimilação das falas ào personagem Sodré às


dos outros "colegas de trabalho" foram artifícios usados pelo diretor na primeira montagem desta
peça. (N.E.)
PERSONAGENS

o INVESTIGADOR ARUBA /
O REPÓRTER AMADO RIBEIRO -'
<, UM FOTÓGRAFO

O DELEGADO CUNHA -
APRÍGIO ~

SELMINHA -
D.ÁL!A ;-

'- COMISSÁRIO BARROS


ARANDIR .---
D. MATlLDE __

WERNECK ..-
SODRÉ ,-

PIMENTEL
D. JUDITH ./
A VIÚVA ./

O VIZINHO
10 ATO

1" QUADRO Delegaria -Saia do delegado Cunhn


2° QUADRO Casa de Selminha, no Grajaú
3° Q'UADRO Delegacia - Sala do comissário Barros
4° QUADRO Casa de Seunintia - mesmo cenário do 2° quadro

1° QUADRO Casa de Setminho, no Graiaú - mesmo cenário do 1° ato


- quadr"os 2° e 4°
2° QUADRO Escritório da firma onde trabalha Arandir
3° QUADRO rasa de Selminna - mesmo cenário dtrI" ato-quadros 2° e
4° - 20 ato - quadro 10
4° QUADRO Casa de Selminha - Quarto de dormir

3;) ATO

10 QUADRO Casa na Boca do Mato


0
2 QUADRO Casa de Seíminha - mesmo cenário do 10 ato-quadros 2° e
0
2 ato - quadros 1° e 3
0
4 -
0

3° QUADRO Quarto do repórter Amado Ribeiro, de Última Hora


4° QUADRO Casa de Selminna -mesmo do 10 ato-quadros 2° e4°- 20
ato - quadros 10 e 3" - 3° ato - quadro 20
5° QUADRO Quarto de hotel
_. -r r- _ _ • A •• _

fI
PRIMEIRO ATO

(Distrito polici<ll correspondente à Praça da Bandeira. Sala do delegado Cunha. Este,


em mangas de camisa, os suspensórios aniados, com um escandaloso rc"úlve,' na cinru-
ra. Entra o detetive Aruba.)

ARUBA (sôfrego e exultante) - O Amado Ribeiro está lá embaixo!


(Cunha, que estava sentado, dá um pulo. Faz a volta da
mesa)
CUNHA - Lá embaixo?
-MW-BA-- Com o.comissário. Disse que.

CUNHA (agarrando o detetive) -Anibinha, olha. Você vai dizer a


esse moleque!
ARUBA - Está com fotógrafo e tudo!
CUNHA - Diz a ele, ouviu? Que se ele. Porque ele não me co-
nhece, esse cachorro! (Amado Ribeiro aparece. Chapéu na
cabeça. Tem toda a aparência de um cafajeste idionisíaco)
AMADO (abrindo o gesto) - O famoso Cunha!
CUNHA (quase chorando de ódio, e, ainda assim, deslumbrado com
o descaro do outro) - Você?
-AMADO - Eu.
CUNHA (hlrioso) - Retire-se!
,uIADO - Cunha, um-memeeeo! Escuta!
~eUNHA (apoplético) - Saia!
AMADO -Tenho uma bomba pra ti! Uma bomba!
-A-R-B-BA_(quer. puxar Amado pelo braço) - Vem, Amado!
AMADO (desprendendo-se num repeião) - Tira a mão+
CUNHA (arquejante de indignação) - Escuta aqui. Ou será que
você. (fala aos arrancos) Então, você me espinafra!
AMADO (com cínico bom humor) - Ouve, Cunha!
CUNHA - Me espinafra pelo jornal. E ainda tem a coragem!
AMADO - Com licença!
CUNHA (num berro) - Não dou licença nenhuma! (muda de tom)
~\1 besta, besta! om o leu caradurismo! Tem a cora-
gem de pôr os pés no meu gabinete! E.u devia, escuta .
-Devia, bom+ (quase cf[õrando ) Por tua causa, o chefe me
chamou!
AMADO - Cunha, deixe eu falar!
CUNHA - O chefe me disse o que não se diz a um cachorro! Na
mesa dele, na 1'IR"S"a, estava a tua reportagem. e IeeOí te
da...tuareportagem! ..
AMADO - Cunha, tenho uma bomba!

S9 o BEIJO NO ASFALTO
CUNHA (,em (l!n'i-Io) - De mais a rnars, roce sabe, Amado. O -8:P.-i-~m:amedfddOl~-e- si'ifiictHHf) -
1 ':l-o-pense que. Vo '
An:b.a também sabe ..Aquilo que você escreveu é mentira! não se ofende.rmas eu me ofendo.
AMADO - O Cunha, sossega! O que é que há? ~.""I70 (joClmdo) - Senta! (Ctmha obedece novnmenrc)
CUN riA (num crescendo) - Mentira, sim, senhor! mentira' Eu CUYPA (com um esgarde cllOro)-.Tedou um tiro!
não dei um chute na barriga da mulher! Mentira sua+ É AMADO - Você não é de nada. Então, dá. Dá! Quedê?

mentira! Dei um tapa! Um tabefe! Assim. O Aruba viu. cux HA - Qual é o caso?
Não fOI em tapa? AMADO - Olha. Agorinha, na Praça da Bandeira. Um rapaz foi
ARUBA (grm'ememe) - Um tapa! atropelado. Estava juntinho de mim. ~'P distância.
CUNHA (triunfame) - Um tapa. Ela abortou, não sei por quê. e-fato é -que·TaTu. Vinha um lotação raspando. Rente
Azar. Agora ~ eu não admito. , Tão admito, Iice-sa- ao meio- fio. Apanha o cara. Em cheio. joga longe. H1i-
~ Que eu seja esculachado, 9t'e receba um escula= aquele bafafá. Corre pra cá, pralá. O sujeito estava lá,
cho por causa de um moleque, de" um patife como você! estendido, morrendo.
~ti~ . CUN I!A (que perece beber' as palavras do repórter) - E daí)
AMADO (com crizm/al descoro) - Eu não me ofendo' AMADO (\J(llori~al1do o deito cutminctue} - De repente, um outro
CU!\ HA tdescsperado com o cinismo) - Pois se ofenda'. cara aparece, ajoelha-se no asfalto, ajocl!.a !e. Apanha a
AMADO - Acabou? cabeça do atropelado e dá-lhe um beijo na boca.
i:UNHA (num derradeiro espasmo) - Amado Ribeiro, escuta. Eu CUNHA (confuso e 'nsatisfeiro) - Que mais)
tenho LIma filha. Noiva, Uma filha noiva. Agradeça à-
AMADO (rindo) - Só.
I'
(desorientado) - Quer dizer que. Um sujeito beija outro
I minha filha, eu não te dar um tiro na cara.
CUNHA
na boca e. Não houve mais nada. Só isso? (Amado er,gl/e-
I: A.\1ADO (~>Yh r)J'i"!ci"(ll'e~ \'iolen~n) - Deixa de ser burro. Cunha!
se. Allda de> lllll lado para outro. iswca, alarga U pCIlO)
(Cunha desmorona-se em cima.da cadeira. Pas!-a o lenço no
AMADO - Só isso!
suor aouruitmt«, Arqueja)
CUNHA - Não entendo.
Ct;~';HA. (vf~:gü.lIu?,quase sc;n 1"0;:) - Suma!
AMADO (aUt'indo os braços para o teto) - SUjeito burro' (para o de-
AMADO (subitamente dono da situação) - Quem vai 5;;';, é o Aruba!
l2gGdo) ESCllt.1, escuta: 'Você não q~cr se limpar? Hein?
ARUBA (puluiiJo) - Você é besta!
Não quer se limpar?
UNHA (resm 11l00ando)- Não admito ...
CUNHA - Quero!
AMADO (para o Cunha) - Manda ele cair fora! (para o detetive)
AMADO - Pois esse caso.
Vai, vai! Desinfeta!
Cl'~'!I.\ I\4tts ...
ARUBA (para o cara) - Quem é você, seu!
AMADO - Não interrompe! Ou você não p~rc~ber. Escuta, rapaz!
CUNHA (incoerente, berrando} - Desinfeta!
-Esse €a5-e pode ser a tua reabilitação e olha: - eu vou
ARUBA (desoriemado) - Mas doutor!
vender jornal pia burro!
CUNHA (histérico) - Fora, daqui! (An/ba sai) CUNHA - Mas como reabilitação?
AMADO (exultante, puxando a cadeira) - Vamos nós, AMADO -Manja. Quando eu vi o rapaz dar o beijo, Homem bei-
CUNHA - Não quero conver-a.
jando homem. (descritiw) No asfalto. Praça da Bandeira.
AMADO -- Senta ... (Cunha obedece, sem conscíéncm da própria Gente assim. Me deu um troço, uma idéia genial.-&
docuuuuie) l'€-pen-t-e.Cunha, vamos sacudir esta cidade! Eu e você,'
AMADO (nn sua euforia profiSSi 11101) - Cunha, escuta. Vi um caso nós dois! Cunha.
agora, Ali, na Praça da Bandeira. ~ CUI'HA (de<;/wnurado) - Nós dois? ("v'.alOdo dá-Ihe-fi{f~ cosrcs um
~. Esse caso pode ser; tua salvação! tape; tr'emfa!. E começa a rir)
CUNHA (num lamento) - Estou mais sujo do que pau de zali- AMADO - Nós dois' Olha: - o rapaz do beijo, sim o que beijou,
nheiro! b
está aí embaixo, prestando declarações! (ri mais forte,
AMADO (incisivo e jocundo) - Porque você é uma besta, Cunha. apomandu com o dedo para baixo) - Embaixo' (primeiro.
Você é o delegado mais burro do Rio de Janeiro. (Cunha ri Amado. Em seguida, Cunha o acompanha. Acaba a cena
ergue-se) com a fusão de duas gargalhadas)

60 TRAGEDIA, CARIOCAS II 61 o BEIJO NO ASFALTO


(Casa de Selminha no Grajaú. Presentes o pai de Selminha, "seu" Aprígio, e a própria APRÍGIO - Na hora. Morreu. Pau pra burro. Mas enfim! É por
moça. Esta é a imagem fina, frágil de uma moça, de uma intensa feminilidade.) isso que eu ...
..oÁLIA - Uns criminesos esses lotações. Andam qupl
APRÍGIO - Vim só te dar um recado do teu marido. APRÍGIO - Teu marido foi servir de testemunha.
SELMINHA - Mas entra, papai, entra. SELMINHA - Mas papai, olha. Hoje eu fiz, Escuta. Fiz aquele en-
APRÍGIO - Selminha, escuta. Minha '::Jha, o táxi está esperando. sopadinho de abóbora. Deixa eu falar.-A criada está de .
SELMINHA - Despede o chofer! folga e eu fuí-psa-coeínha, papai!
APRÍGIO - Escuta! APRÍGIO - Hoje, eu não estou me sentindo bem. Sério. Escuta,
-S-&hM!-NHA fpa-r.fl-.dentro) - Dália! Dália! (FU o pai) Eu fico zanga- Vamos fazer o seguinte.
da! (para dentro) Dáha+ SELMINHA - O senhor é amigo-da-onça.
AP;;' GIO (angustiado) - Outro dia ... Pron.eto, Outro dia. Ai'-RÍGIO - Um cafezinho, aceito. Café, topo.
-5-ELMINHA - Não senhor. S.ELMINHA - Dália, faz unrfresquinho.
APRÍGIO (querendo vender rapidamente o seu peixe) - Teu marido. M'RÍGIO - Mas depressa que o táxi está~
Escuta. Eu estive com teu marido na Caixa Econômica. SELMINHA - Depressa! .
Teu marido mandou avisar. (Dália entra. Adolescente cuja fMtM - Não demora. Um instantinho. (e então, sozinho com
graça leve parece esconder uma alma profunda) a filha mais velha, AprígiO anda de um lado pra Olmo e vai
DÁLIA - Papai. falando. Sente-se, em tudo o que começa a dizer, uma certa
APRÍGIO - Coração! (Dália lança-se nos braços do pai) perplexidade e,mesmo, uma surda irritação)
SELMINHA - Pensei que Arandir viesse com o senhor! APRÍGIO - Sabe que teu marido ficou tão. E teve um choque!
APRÍGIO (sem ouvi·la e dirigindo·se à caçula) - Pálida, minha filha? Interessante. Ele correu na frente de ...
DÁLIA - Lavei ú rosto! SELMINHA (interrompendo com outra irritação) - Uma coisa, papai.
SEL~.•U~':HA - Dália qüase não come. Belisca. O senhor sabe que, desde o meu namoro, o senhor nun-
APRÍGIO - :'1a5 tinha um apetite tão bom' ca chamou Arandir pelo nome) Sér.c! Duvido! Papai!
D . \LlA - Estômago, sei JáI O senhor dizia "seu namorado". Depois: - "seu noivo."
APRÍGIO - :-:ào abuse, minha filha, não abuse. Olha que a saúde' Agora é "seu marido" ou, ~11tão, "meu genro". Escuta,

_DÁLIA
E não te esqueças - o que resolve é a "Flora Medicinal".
- Não tem perigo!
I APRÍGIO
papai!
(meio desconcertado) - Ora, minha filha, ora!
APRÍGIO -Bem, mas. O que é mesmo que eu estava dizendo? Ah,
-1 SELMINHA (enfática) - Tenho observado!
sim! Teu marido. ·1
APRÍGIO - Você acha então que. Nunca, minha filha! E por quê?
SELMINHA
D ..\LlA
APRÍGIO
- Mas o senhor janta com a gente.
- janta, sim!
- Selminha, ó minha filha! Não faz confusão. Seu mari-
I SELMINHA (triunfante)- Quer fazer uma aposta? Uma aposta?
Quero ver o senhor dizer "Arandir" Diz: - "Arandir,"
Diz, papai!
do mandou avisar que vem mais tarde, hoje. Mais tarde. APRÍGIO (realmente confuso) - Não tem cabimento e olha: - dei-

SELME':
APRÍGIO
A
Teve que ir ao distrito.
- Distrito?
- Calma!
I
!
xa eu contar. Perdi o fio. Ah! Teu marido correu na fren-
te de todo o mundo. Chegou antes dos outros. (com uma
tristeza atônita) Chegou, ajoelhou-se e fez uma coisa que
j
- Por quê?
DÁLIA
Pelo seguinte. Nada demais. Teu marido assistiu um
I até agora me impressionou pra burro.
- Mas o que foi que ele-fez?
I
APRÍGIO - SELMINHA
desastre. Quer dizer, assistimos. Eu também. Um de- APRÍGIO (contido na sua cólera) - Beijou. Beijou o rapaz que esta-
sastre horrível, na Praça da Bandeira. Vimos um lotação I va agonizante. E morreu logo o rapaz.
passar por cima de um sujeito. SELMINHA (maravilhada) - O senhor viu?
SELMINHA - Morreu?
1 APRÍGIO (sem ouvi·la e com mais vivacidade do que desejaria) - Você
APRÍGIO - O cara? não acha? Não acha que. Eu, por exemplo. Eu não faria
D ..\LI.-\ ~ Que coisa chata" isso. Não faria. Nem creio que outro qualquer. Ninguém

62 TP.AGÉD!AS CAR!QCAS 11 63 o BEIJO NO ASfALTO


faria isso. Rezar. -es+á--be:n. está-certo, Mas o que me im- SELMI!'<HA - Ou o senhor duvida? Um momento. Quem vai res-
pressiona. realmente me impressiona. É o beijo. ponder. (grita para dentro) Dália! Eu seu su~itil+-Mas-
SELMINHA (cor'"! !l'lgústia) - Mas eu até acho bonito! (Dália entra) Dália. (Pália apureec) Vem cá. Chega aqui:
--a-M.-fA O lI:a! -B~"LtA .~ Está quase bom,
'S-rI_M I N HA - O quê? ífiõi=M-I-;';HA (entre parcll!f'ses) - Diminuiu o fogo)
r>ÁUA - Aeabee-o-eafé, O pó: DÁLIA - Diminui!
S-f:ioMINHA -r- Mas tinha! SELMINHA (novamente cxciw!Ía) - Papai. hoje! Responde. Eu sou
APRÍGIO - Não precisa! feliz?
f>ÁtrA - Eu me esqueci de. DÁLIA (meio arônita) - Por quê?
SEl!\lINHA - Pede na vizinha. SELMINHA (pam o pai)-fàla! Eolha! Dália veio para cá logo depois
APRÍGIO - Escuta. da lua-de-mel. Vive COI11 a gente. Nâe sai daqui. Fala.
IYÁUA - Chamei pelo muro, mas-rrãu tinha ninguém. Sou feliz?
s-P-"LMINHA - Dá um puro: DÁLIA (c0111pearnÍs)-Parece.
APRÍGIO - Ouve elminha.
Até é bom. Não estou berne o café. SEL!\.tlNHA (atoni:a) - Parece ou sou?
-(na SlIfr agonia de dona-de-casa) - Mas tinha pó. papai.
.. 3"E"LMI-'NHA APRÍGIO (crurlmer,tc divertido) - Tenho que ir.
(p~ra a inl1ã. nwdandode iam) Vê lá o fogo. O bolo que eu SEU,UNHA (vivamente) - Papai, um momento.
ia fazer para o senhor. (Aprigio está de costas para a }iiha e APRÍGIO -Olha o táxi.
de freme para a plaréia. Dália saiu) SELM INHA (desesperada, para o \:('Iho) - Papai. faço questão. (para a
APRÍGIO (retomando no ponto interrompido) - Você acha bonito. irmã) Escuta. Você respondeu como se ...
SELMINHA (com \'ivacidade) -.A....h. o senhor não conhece Arandir. DÁLIA (com evidente irritação) - Feliz. Fclicíssima. Pronto.
APRÍGIO (com mais vivacidade do que desejaria) - E você. Conhe- SEL.\\INHA (com C'J(:rgw. agGrmndo-a pelo pul,;o) - Vem cá. Diz aqui-
ce? Diga: - conhece seu marido? lo. Aquilo que você me disse. Naquele dia. Repete.
SELMTNHA -Oh. papai! -9-ÁLIA - Não aborrece!
APRÍGIO - Conhece? S-EL.\;\!NHA -Aqudo, dIz.!.
SELMTNHA - Ou o senhor acha que. DALI.-\ (b:ltCl:dc CO~!~ o pé. numa Qfc:a~~(' dt" :~~.~n~1t:!idcide)
- Você
APRÍGIO - Responda. - é pau!
SELMINHA - Evidente. SELMINHA (triunfante) -'Papai, a Dália disse que, se eu morresse.
APRÍGIO - Vem cá. Você tem de casada um ano. Um ano? -Nã-o-foi3 Você disser
SELMINH,\ - Mas conheço Arandir, desde garotinho! "!):rrIA - Mentira'
APRÍGIO ,(vivamente) - Quero saber como marido! (muda de tom) SELMIN HA (.;;edianrc) - Dis-se-que se eu morresse, ela se casaria com
De casada, tem um ano. nem isso. Menos. Pois é. Minha' o Arandir! '
filha. é pouco. Isso não é nada. Para um casal. minha fi- APRÍGIO - Dália, escuta.
lha. Pouquíssimo, um ano ou menos. Mas vamos lá. Você DÁLIA - Foi brincadeira minha! Eu estava brincando' Papai,
tem mesmo certeza que conhece seu marido? olha'
SELMINHA - Mas absolutal Eu conheço tanto o Arandir, tanto que. APRÍGIO (ent!'e divcrtuio c preocupado) - Você. Escuta. Você é
Nem ele me esconde -iada. Papai, olha. Confio mais em criança. Nem deve dizer isso. Certas coisas. Sabe como
Arandir que em mim -nesma. No duro! E Q'"fenhor fata.: é o mundo,
Engraçado! Fala come se duvidasse, como se. DÁLIA (começando a chorar) - Papai, é mentira de Selminha!
APRÍGIO (um pouco vacilante) - Não é bem assim. APRÍGIO (remo) - E nem chore'
SELMiNHA - Papai. eu amo Arandir. DÁLIA (pasu c inrlà: - Voce me paga' (pam o pai. cem certo fero
APRíGIO (incerto) - Sei. Acredito. Mas digamos que seu marido. ver e mio com sofrimen;o) Papai, o que eu disse foi que eu
Uma hipótese. Que seu marido não fosse. sim, exata- não me casaria nunca porque. (com mais veemência) Não
mente, como você pensa. Você gosta de seu marido a quero. nem me interessa.
ponto de aceitá-Ia mesmo que. (mais incisivo) Numa APRÍGIO - E teu namorado?
palavra: -você é feliz? D •.\.LIA - Brigamos.

64 TRAGÉD'~S CARIOCAS 11 65 O BEIJO NO ASFALTO


SELMHHIA ml?-S-me-tetn-po)- Essa bobona agora
(f-GltJ-I-ld.(J-q.Ua~e-ao
CUNHA ---: Casado. Muito bem. (vira-se para Amado, com segunda
.chora por qualquer coisinha!-v
intenção) O homem é casado. (para o comissário Barros)
APRÍGIO (puxando o relógio) - lh, já é tarde! Casado.
SELMINHA (agarrando-o) - Papai, eu sou a mulher mais feliz do BARROS :"- Eu sabia.
"mundo!
ARANDIR (com sofrida humildade) -O senhor deixa-dar um telefo-
nema rápido para minha mulher?
(Lu: sobre Q distrito policial. Arandir acaba de ser interrogado. Uma figura jovem, de CUNHA (rápido e incisivo) - Gosta de sua mulher, rapaz? (Arall
uma sofrida simpatia que faz pensar num coração atom. entado e puro. AranJir ergue-se dir-,per-um-momentD,..acompanhd o movimento do jú[t';afo
no momento em que aparecem, TIO sala do comissário, c Cunha e o Amado Ribeiro.) . que se prepara para bater uma nova fotografia)
ARANDIR -Naturalmente!
ARANDIR -Posso ir? CUNHA (com agressividade policial) - E não usa nada no dedo,
,-€eM+SSÁRIO BARROS - Pode: por quê?
A*ANDIR (recuando, com sofrida humildade) - Então, boa tarde, ARANDIR (atarantado) - Um dia, no banheiro, caiu. Caiu a alian-;
boa tarde." ça. No ralo do banheiro.
CUNHA - Um minutinho. AMADO' - O que é que você estava fazendo na Praça da Ban-
ARANDIR (incerto) - Comigo? deira?
CUNHA - Um momento. ARANDIR - Bem. Fui lá e ...
BARROS -Já prestou declarações. CUNHA (num berro) - Não gagueja, rapaz!
CUNHA (f'ntre divertido e ameaçador) - Sei. Agora vai conversar ARANDIR (falando rápido)- Fui levar uma jóia.
comigo. CUNHA (alto) - Jóia!
;..R-\::JB.-'. (b·~ixo e veemente- para Arunciir) - O delegado. ARANDIR - Jóia. Aliás, empenhar uma jóia na Caixa Econômica.
AMADO - Senta. (Amado e Cunha cru.::am as perguntas para confundir e le-
ARANDIR (sentindo a pressão de novo ambiente) - Mas é que eu var Arandir ao desespero)
estou com um pouquinho de pressa. (Arondir começa a AMADO -Casado há quanto tempo?
rer medo. Ele próprio não sobe de quê) ARANDIR -Eu?
cu N HA (com o riso ofegante) - Rapaz, a polícia não tem pressa. CUNHA - Gosta de mulher, rapaz?

AMADO - Mas senta. (Arandir olha em tomo, como um bicho apa- ARANDIR (desesperado)-Quase um ano!
vorado. Senta-se, finalmente) CUNHA (mais forte) - Gosta de mulher?
ARANDIR (sem ter de quê) - Obrigado. ARANDIR (quasé 'chorando) - Casado há um ano. (Cunha muda de
IU.R.R.O..5_ (bai.xo e cvercnre, para o delegado) - Ele é apenas teste- voz, sem transição. Põe a mão no joelho do rapaz)
munha. CUNHA (caricioso e ignóbil) - Escuta. 6--q-tie-s.ignifica para-a,
CUNHA - Não te mete. (Arandir ergue-se, sôfrego)
Si-m; o que significa para "você" uma mulher!?
ARANDIR - Posso telefonar?
ARANDIR (lento e olhando em torno) - Mas eu estou preso?
CUNHA - Mais tarde. (Amado cutuca (> fotógrafo)
CUNHA (sem ouvi-Ia e sempre melífluo) - R:apax;-escuta! Uma-
Al •.I.ADO - Bate agora! (flash estoura. Arandir toma um choque)
-hipótese. Se aparecesse, aqui, agora, uma mulher, uma
"boa". Nua: Completamente nua. Qual seria. É uma cu-
ARANDIR - Retrato?
riosidade. Seria a tua reação? (Arondir olha. ora o Cunha.
AMADO - Nervoso, rapaz? (Arandir senra-se, une os joelhos)
ora o Amado, silêncio) -
A-RANDIR -Absolutamente!
AMADO -Com medo, rapaz?
CUNHA (lançando a pergunta como uma chicotada) - Você é casa-
CUNHA - Fala!
do, rapaz?
AMADO - Não fala? (Cunha sC:;"Jrao braço de Arandir)
ARANDIR - Não ouvi.
CUNHA (falando macio) - Conta pra mim. G,eRt!l. C@H$.o que
CUN HA (num berro) - Tira a cera dos ouvidos!
você fez na Praça da Bandeira.
AMADO (inclinando-se para o rapaz) - Casado ou solteiro?
ARANDIR (ainda contido) - O lotação foi o culpado. (ClInha er-
ARANDIR - Casado.
gue-se)

66 TRAGÉDIAS CARIOCAS 11
67 O BEIJO NO ASFALTO
CtJ~HA - um momento! C UN HA ((lUS berros) - Você não perdeu. Você jogou fora a aliança!
AR..~NDíR -'- M-as doutor! Já estava aberto o sinal amarelo quando o AMADO (furioso) - Escuta! Se um de nós, aqui, fosse atropelado.
lotação. Se o lotação passasse por cima de um de nós. (Amado
CUNHA - Ó rapaz' O lotação não interessa. errmpre-em:ieu) Não começa Q rir com ferocidade) Um de nós. O delegado. Diz
inteFessa. O que interessa é você. pra mim? Você faria o mesmo? Você beijaria um de nós,
lrA'ltl(os-'fconra Siffl- obtusa e gem'TDsa ,falra detatcrj-=- Quer ver o rapaz? (riso abjeto. Arandir rem W71 repelão 5el<'Q5e1l1)
depoimento do rapaz? ARAl'DI R - Era alguém! Alguém' Que morreu! Que-eu vi morrer'
CUNHA (para o comissário) - Não dá palpite! (para Amnctir)
O que me põe besta é como você, um sujeito casado. (Trems na delegacia. Luz na casa de Se/minha. Em cena, as duas irmãs.)
• Casado. Tem mulher em casa. Bonitinha talvez.
AMADO - Há quanto tempo você conhecia o cara? SELMINHA - Você entende papai?
ARANDlR - Que cara? D..\LIA - Papai mudou.
A:-'1.'\00 - O morto. SELMINHA - É outra pessoa!
ARANDlR -- Não conhecia. DÁLIA --€o1'l'Hl-mor-te de mamãe; desque mamãe morreu, mu-
CUNHA - Que piada é essa? dou tanto'
AMADO (para o delegado) - Cunha, um momento. Um instante. SELMINHA (C0111 certo desespero) - Mudou com o meu casamento.
Ó rapaz! Olha pra mim! No local, eu lhe perguntei se 'For o-meu casamento. Foi, sim, Dalia. Eom o meu casa-
você era parente da vítima. mento.
'I
"
AR..4.N01R - Não sou. -BÁ-hiA- - Sei lá.
:I, AMADO - Vamos por panes. Não é parente: Amigo?
AR..4.NOlR - Nada.
SEL:-.,\1
~ HA - Te digo mais .. l",s vezes, e u-pe.r.l-S 0. Penso q 'e papai
sentiu mais o meu casamento que a morte de mamãe.
AMADO - Mas se conheciam de 'vista? Ele não vem aqui, nem telefona. Soueu que telefono.Ou ..
ARANDrR - Nem de vista. f'n~". Evita Arandir.
I1 CUNHA (ao.> óerru,) - Nem de vista? DÁLIA - Não gosta de Arandir.

I AMADO - Você nunca. Presta atenção. Nunca, em sua vida, você


viu o morto?
SELMTNHA (fl.'hril) -&l0J.9 são as cr+;as' Veja você. Arandir me.dís-
~oje~ ''...Vouaproveitar o negócio da-Caixa Econômica
A R..4.N
DI R - Juro! Quer qHe eH jure? Dou-lhe a minha palavra! e passo no teu pai. Ele conhece lá.um cara. Vamos na
\ '
*MAnO - Verrrcár Caixa e eu convido teu pai pra jantar." Não adiantou.
ARANDlR (desesperado) - Doutor, eu preciso telefonar pra minha Adiantou? Pois é. Papai não dá pelota p.1ra Arandir. Nem
casa! bola!
CUNHA (exagerando) - Por essas e outras é que a polícia baixa o D.Á.LIA - Papai me assusta.
pau. E- tem que baixar! SELMINHA - Não gosta de Arandir-por quê?
AMADO - Cunha, espera! Se você não era nada do cara. DÜIA (raxariva) - Ciúmes.
ARANDIR -Nunca vi. SELMINHA. (virando-se atônita) - De mim?
AMADO - Então explica. Como é que você, casado há um ano. DÁLIA - De ti. (Selminha repete, lentamente. com espanto e uma
Um ano? nascenre angústia)
A.RANDIR -Quase. SELMINHA -({ttitmc/v para si mesma)-- Ciúmes de-mim')
AMADO - Praticamente, em lua-de-mel. Em Itla se
mel! Você DÁLIA - Ou você é cega?
larga a sua mulher. E vem beijar outro homem na boca, SELM!NHA (com frí~'olo arrebatamento) - Que bobagem, ciúmes de
rapaz! mim! (muda de tom e novamente angustiada) Você acha?
(atónito) - O senhor está pensando que ... DÁLIA - Acho! Acho! (Selminha, de frenre para a platéia. costas
(exalradíssimo) - E você olha. Fazer isso em público! para a irmã e urna infiexuu dI:! ~lÍr,Ílü)
TInha gente pra burrer+é; Cinco horas da tarde. Praça -SELMINHA--(meio elada) - Ciúmes de mim. (Dália vem por trás e fella
da Bandeira. Assim de pGVB. E você dá um show! Bm-a por cima do ombro da irmã. que permanece de cosras parll
cidade inteira viu! ela)

68 TRAGÉDIAS CARIOCAS II 6 ':.i o 6EIJO NO ASFAlT.o


>DÁLIA -Outro?
DÁLIA (repetindo) - De ti. No teu casamento eu pensei tanto na
SELMINHA (falQndo ao mesmo tempo) - Não chama Dália de anjo,
morte de mamãe. Mas no teu casamento quem morria
era papai. Na igreja, de braço contigo, papai ia morrendo.
que ela vai embora. I
SELMINHA
Tive a sensação, te juro! de que ...
(num apelo, quase sem voz) - Não fala assim!
ARANDIR
DÁLIA
-Daqui?
(doce e firme) - Amanhã. il
ARANDIR (atõnito) - E vai corno? De vez?
D ..\ LI A (com mais veemência) - E outra vez. Aquele dia!
-Quando?
I SE-LMINHA - Diz que vai morar com vovó e que. Uma chata!
SELMINHA
DÁLIA - No dia em que vim para cá. Vocês tinham chegado da i ARANDIR (com surdo sofrimento) - Dália. você tem coragem?
lua-de-mel. Eu me lembro. Papai me trouxe e até você
SELMINHA - Um momento. Meu bem, voe" vai comer alguma coisa.
-MMNDIR -Sem fome:
estava com aquele-qairnono, aquele, como é?-
~1INHA - Uma boquinha você faz? -
SELMIl'HA -'O azul?'
IrR-ANDIR - Nada. Mais tarde. Depois. Depois eu como. (ArQndir;
DÁLIA - Não. Aquele que a vovó te deu. Papai me trouxe. Não
queria vir. Insisti. Veio. E chegou aqui, você sentou-se no
nu SUQvo/ubilidQde febril, conrinuc)"
ARANDIR - Mas isso é batata?
colo de Arandir. Se você visse a cara de papai! ~
DÁLIA -Batata!
'SELMI:"HA - Não me lembro.
D ..\LIA - Cara de ódio! Saiu imediatamente e ...
ARANDIR - Dália, chega-aqui" Por quê? De repente e sem motivo? .
- Você está imaginando! Isso é imaginação! (com súbitQ Parece incrível que eu chegue da polícia e a primeira no-
SELMINHA
ternura) Mas eu ainda tenho você e. - tícia que me dão. É que você vai embora? Escuta. Lá no
- Selminha, amanhã vou-me embora! distrito. (Arandir anda de um lado para outro),
DÁLIA
- Meu filho, você está cansado.,
-5ELMI:'\'HA - Você?
DÁLIA - Não fico mais aqui. - Na policia, ainda agora·. Eu me senti, de repente, tão
só. Foi uma sensação tremenda. Naquele momento, eu
SEL!\1!!':HA - Mas escuta. Por quê?
D.ÁLIA (sãfrega) - Olha Arandir! (Arandir aparece. Vem cansado tive assim uma vontade de gritar: - Selminha! Dália!
e febril. Se/minha IQnçQ-se nos seus braços) (com desespero estrangulando a voz) Quase grito, quase!
SELMI:'\'HA (na SUQternura ansiosa) - Demorou, meu bem! (mudando de com) Cheguei aqui e sei que você vai. ..
ARANDIR - A polícia, sabe como é. (Se/minha PQssa a mão pelo
(com certa violência) - Você não precisa de mim!
rosto do marido) (olhando ora a mulher ore a cunhada) - Quem sabe?
(C0111 falsa e frívola naturalidade) - Precisa de Selminha.
SELMINHA (amorosa) - Pálido! (Selminha tire o lenço do marido e
(Arandir agarra Q mulher, C0111 violência)
eTLwgQ o rosto)
ARASDIR - Morto de sede!' (estrangulQndo a voz) - Responde. Haja o que houver.
Voe' nunca me deixará-? Nunca? Nào me abandone
.&ELMIl'HA (para Q innci) - Água! ,
nunca.
ARANDIR - Polícia é uma gente que: Dália, meu anjo. Agua, sim?
oSELMINHA (pQra a irmã) - Gelada. (angustiadQ) - Meu bem. Mas claro. Nunca. Ou você..
- Você viu o rapaz morrer?
ARANDIR (para a cunhadQ) - Gelada.
(crispoâo) - Quem?
DÁLIA - Está suado.
(sôfrega) - Era rapaz?
·SELMINHA - Mistura do filtro e gelada. (Dei/ia SQi)
- Tira o paletó. - Meu anjinho, esse assunto. Não interessa. (com falsa
SELMINHA
(tirando o PQlrtó) - Calor. euiorio) - Falemos de outra coisa. Você vai amanhã? É
ARANDIR
an~anhã!? Ótimo! Magníficu! Eu ajudo a fazer as malas!
SELMINHA -Gravata.
ARANDIR (tirando a grQvata) - Duas horas lá. (Da/iQ entra com o (muda de tum) Só não quero que toquem nesse desastre!
D..\LIA - Eu mesma arrumo as malas.
copo)
D.ÁLIA - Fresquinha. (Arandir scgllra () cnpo com QSduas mãos)
ARANDIR (incoerente) - Escuta. Vi o rapaz morrer, sim. Da minha
idade, mais ou menos. Selminha, ele estava em cima
J\.RA·NDIR (antes de beber) -Água linda! (Arandir bebe, de uma vez
do meio-fio. Esperando que o sinal abrisse. (repete) Em
só. Devolvendo o copo)
cima do meio-no. De repente, não sei como foi: - ele
ARANDIR - Você é um anjo!

71 O BEIJO NO ASFALTO
70 TRAGÉDIAS CARIOCAS 11
perdeu o equilíbrio. Caiu para frente e... Vinha um lo-
SeGUNDO ATO
tação a toda velocidade. Bateu no rapaz, atirou numa
distância como daqui ali.
D ..\LiA - Gritou?
AP~4.!'i D I R - O rapaz?
(Casa de Selminha. A pequena. de custas, QPQrl'CI'e1Hretidl1 numa ocupação ruscirc.
SELMINHA (querendo aplacá·lu) - Meu bem: ..
Dal,Q, Ja de saída, surge com WIIU IlItlldtl. Vai ckiXur a c(j~tl.;
ARANDTR - O atropelado não grita. Ou grita? Esse não gritou.
DÁLIA - Era bonito?
DALIA - Estou pronta.
ARANDIR (sem responder) - O lotação passou por cima. Mas moro SELMINHA (com espQnco) - Já vai?
reu logo. Ainda viveu um minuto. talvez. eu ffiefl85, UIfl
~Ã '(qlii:' já pousou Q maia no cizliu) - Diz o numero do láxi:l-
~ (Sc/minha esrá com o quimono por cima da camisola)
SELMINHA - E você que não pode ver sangue.
~LMIWHA - Escuta, Dália! )
ARANDIR - Eu corri. €heguei primeiro qUE!osnutres. Me abaixei, D . \LIA (ara .,i ll!esl11n) - 28-31... Como é. Selminha? 43?'
peguei a cabeça do rapaz. Gente assim. Peguei a cabeça -SELMiNHA (li.:lilllldo) - Deixa de ser espírito de porco!'
do rapaz c...
D.ÜIA (com uma n{etaçàn d,; illfanrilidade, barendo com o pé)
SELMINHA - Beijou. (Arandir voirc-se, com uma cerro ira)
-,Meu Deus, como é o número?
ARANDIR (ogressivo) - Você também sabe? .(desesperado) Todo SELMI;';H.. (puxando-a pelo br(lço) - Vem cá. Arandir me pediu. Es-
mundo sabe!
cuta, Dália.
SELMINHA - Papai contou.
DÁLIA -M, bom!
AR.t\.NDIR (fremenre) - Teu pai. É mesmo! Estava comigo e viu. SELMINHA \ -- Antes de sair me pediu e eu prometi.
(com desespero) Teu pai disse que eu ... (muda de tom) DALIA _. Que coisa chata.
Antes de morrer. O rapaz ainda estava vivo. (incoerente) SELMINHA - Ouve. Arandir me pediu pra te f.'llar. Dália, escuta. E
O interessante é que na polícia só me falaram nisso! -rnandou dizer. Se ele chegar, logo I:lJ.iS, você não estiver
SELM!NHA - Meu bem, agora chega. Descansa um pouco. aqui, ouve: - ele corta relações contigo.
ARANDIR (sem ouvi·IQ) - Dália. a polícia pensa. Ainda está pen- DA~I";' (.:cn:~~;:;'~:::o;-Ch?. ...
o sando. ElTão-se-etHWenee, Dália, Pensa que eu conhecia 'SELMINHA - Escuta. Dália, escuta. Troca de mal contigo.
o rapaz. Tomaram meu nome, endereço. Fui interrogado DÁLIA - Chama o táxi.'
-duas vezes. E vão me chamar outra-vez. SELMI;';HA - Você é-Í:eimosa!
DÁLIA - Você conhecia?
D..\LIA - Quer chamar o táxi? (mudQ de 10m) SeI minha eu disse
ARANDIR - Oh, Dália!
que ia, vovó está me esperando!
DÁLIA - Nem de vista?
SELMINHA (numa explosão) - Então que se dane e ... (d. MQcilde
ARANDIR (na sua cólera, apontando para a cunhadQ) - Era assim entra com um iorna! na mão)
que a polícia perguntava. Nem de vista, nem de nome? D.MATILDE - Licença?
Martelavam. Mas-olha! O ·que foi. O rapaz estava moro SELMINHA - Ah, entre d. Matilde. (d. Macilde entra e fa::. um cumpri-
rendo. Morrendo junto ao meio-fio, Mas ainda teve voz mento apressado}
para pedir um beijo. Agonizava pedindo um beijo. Na po-. D. MATILDE . - Bom dia! Bom dia!
lícia, o repórter disse que era hora de muito movimento, -DÁLIA (com frívola desenvolrura) - Estou de saída I
Toda a cidade estava ali, espiando. E viu quando eu ... D. MATlLDE (índi~ando ()jomal) - Já leu? ~
SELMINHA - O resultado das misses?
TREVAS -l'>.,-~1ATILDE - Não leu?
'S~LMINHA (já com umn cunosídcde nova e inquieta) - Não vi O
FIM DO PRIMEIRO ATO jornal! . . .
D. MATILDE (radiQnte por ser portadora dQ novidade) - O' retrato do
seu marido, d. Selminha!
SELMINHA (QO mesmo tempo que QPQnha o jornal) -·Onde?·

72 TRAGÉDIAS CARIOCAS II
73 o BEIJO NO ASFALTO
SELMINHA - Na minha casa?
'BÁLIA - De Arandir?
.....fh-MATILDE - Na sua casa! Aqui!
D. MATILDE (apoplética de satisfação) - Primeira página!
SELMINT-\A (fremen(e) - A senhora está me chamando de menti-
s-&LMINHA (sôfrega) - É mesmo! (Dália olhando por cima do ombro
rosa, d. Matilde?
-da irmã) f D. MATILDE - Deus me livre! A-senhora não entendeu, Eu não po-
_D.ÁLIA (no seu espanto) - Última Hora!
nho em dúvida. Absolutamente. (repece) Em absoluto!
D. MATILDE (eufórica) - O título'
-Não ponho. Mas há uma parte no jornal. A senhora leu
SELMINHA (lenta e estupefata) - O beijo no asfalto! (muda de tom) O
tudo?
retrato do atropelado! E aqui o Arandir na delegacia!
SELMINHA - Tudo!
D. MATI LDE (melíflua e pérfida) - Aí diz uns troços que!
-O.-MATILDE ~ Leu aquele pedaço no final ... ·
- DÁLIA - Deixa eu ler!
-SELMINHA - Tudoê-
SELMII"HA - Dália, não amola!
D. MATILDE - Essa parte acho que.a senhora não leu. "I
-BÁLIA . - Então lê alto! (Sc!minha começa a ler para si, d. Marilde
~(fre.mente) - Quer me fazer um favor?'
. eonrinuo na mesma euforia)
D. MATILDE - J:ffi.-vf>tl-lerpar-a-a-s~ra-: Eu leio .
D. MATILDE (mexericando para Dália) - Olha, escuta. Tem um repór-
ter na rua:
SELMINHA -= PQr obséquio, d. Matilde,
IJ.MATILDE --Leio. (d. Matiide apanha o jornal de Dália)
-DÁLIA .- Repórter!
~DÁLIA - Mas eu estou lendo! -
-D. MATILDE - Com fotógrafo! Entrevistando' Ouviu, d. Selminha?
D. MATILDE (melíflua) - Dá licença.
SELMIl"HA (que continua lendo) - Um momento!
-ElÁLIA (desabrida) - Ora, d. Matilde,
-D-MATILDE , (voltando-separa Dália) - E o repórter está querendo sa-
D; MATILDE - Um minutinho!
" .ber'se d. Selminha vive bem com "seu" Arandir. Eu disse:
-:"S.ÚM r N HA (na sua-Qbsessào) - Era um desconhecido! Um desconhe-
- "vive!"
-e-iEl·gl
~.!"itH':A t~~n~Qexpl-es-ão} --~,hi-n-cu! Nunca!
D. MATILDE (irredlltível) - É essa parte. Aqui. Acho que a senhora
-DÁr,IA - Mas que é que diz) .
- não leu!' )
SELMfNHA (desatinada) - Diz que. Olhe que ele diz. Onde é que-
-El,4;1:IA - Arandir vai lá na redação e quebra a cara do repórter'
.está? Aqui. mentira! Tudo mentira! .
SELMINHA (frenética) - Não leia nada! Não quero' Não quero, d.
~ DÁLIA (vivamente) - Dá aqui+
- Matilde. Não quero ouvi.'l"'!Tcrcla-:-
SELMINHA - Ainda não acabei! (para d. A'fatilde) Estou que. Tinin-
D. MATILDE (implacável, nítida, incisiva} - O jornal diz: (ergue a voz)
-de, d. Matilde, tiB-i-flàe! Como é que um jornal! (para
"Não-foi o primeiro beijo! (triunfante) Nem foi a primei-
Dália) Diz que o Arandir beijou o rapaz na boca'
ra vez!"
•~ MATILDE - Esse jornal é muito escandaloso!
SELMINHA (atônita) - Não foi o primeiro beijo! Nem foi a primei-
SELMINHA (fora de si) - Toma! ~ (entrega o jornal a Dalia) Não
rJ vez?
quero ler mais nada! Estou até com nojo! ~(Dália
•• começa a ler o jornal)
(Trevas sobre as três. Luz na fir4na, onde Arandir trabalha. O rapaz acaba de chegar. É
-D. MATILDC' - Caso sério!
cercado pelos colegas.)
...,' • S~U.1INHA - Se meu marido, d. Matilde+ E na boca! -Meu marido
nem conhecia' Era um desconhecido, d. Matilde!
WERNECK (com um humor bestial) - Mas então, seu Arandir! O
-D. MATI LDE (pérfida) - Desconhecido?
senhor!
·SELM1NHA - Desconhecido! -
SODRÉ -Você não diz nada pra gente?
D. MATIl:DE (melíflua)-Tem certeza?
ARANDIR (já inquieto) - O que é que há?
-5ELMINHA - Mas d. Matilde!
WERNECK - Você fica viúvo e não avisa, Rãs ~af'tieipe:?
D. MATILDE - Claro que! Evidente! Acredito na senhora, nem se
ARANDiR - Isola! I i
discute. Mas interessante, d. Selrninbe. Sabe que. Pela
PIMENTEL (bate~do-Ihe nas costas) - Nem me convidou!
fot~grafia do jornal, a fisionomia do rapaz não me parece
estranha -,(bruscamente e com vivacidade) O morto não é
ARANDIR (atônito e me.io acuado) -Que piada é essa? I
WERNECK - Piada, uma oval Batata! ,
Ir,
um que veio aqui, uma vez?

7S o BEIJO NO ASFAlTÕ
74 TRAGEDIAS CARIOCAS"

79 O BEIJO NO ASFALTO
\\'ER;\,ECK -- Chega aqui. d. [udith, Vem cál
SODRÉ - Viúvo; rapaz! (\Verneck com as duas màos apanha"
ARANDIR - D. Iudith, é verdade que.
aperta a de A.randir)
fpara Arandir) - Um momento' A senhora vai tirar aqui
\\'êr::'~ECK - Meus para-choques!
uma dúvida!
ARA:-:DIR - Mas qual é a graça? E isso não é brincadeira! (olhan-
do as caras que o cercam) Não faz assim que eu não ARANDIR (sôfrego) - D. [udith ...
gosto! Werneck, pára, sim? Essas brincadeiras comigtr.- i'iMENTEL - Fala um de cada vez!
_ D. [udith, e que foi que .1 senhora me disse. Um mo-
(\\-ernéck rompe. com umtl boçalidade fero: L jOClll!da) WERl'ECK
mento' Quando a senhora viu o jornal. a senhora não
W~RNECK - Rapaz' A tua viuvezestáaqui! Em manchete! (\\éneck
sacode o jornal) 1m! mallchlt@. rapal! disse. Não disse que. Disse que unha visto o morto aqui.
ARANDI R (exasperado) - Você t'ir:l ou não pára!? Fala. d. [udith, pode falar'
WERNECK (triunfante) - Lê! Lê! Beijo no asfaltõt Está aqui! Traz no D. JUDITH (crispada de timide:) - O que eu disse foi. ..
jor ai! O título é - "Beijo no asfalto" PI~1ENTEL - Não tenha medo!
ARANDIR -Que jornal? D.IUDITH _ Realmente. pela fotografia. parece.
'WERNECK - Aqui. (Arandir ilpanha o iornal) WERNECK _ Continua. d. [udith! Parece ou)
t:
ARANDiR (Iélldo. estupefato) - Beijo no asfalto! "" D. jUDITH (em brasas) - Parece um moço que esteve aqui. na se-
\\'ERKECK . (numa euioria brutal) ~ Teu retrato! Teu e o do cara. mana passada. Um moço. ,
PIMENTEL (baixo) - Fala baixo! WERNECK _ Procurando por quem. d. [udith, procurando por quem?
WERNECK (exuírcnre) - Viuvez. siml Perfeitamente, viuvez- (num D. JUDITH . (de olhos baixos)'::'- Seu Arandir!
repetão fi1rioso contra o companheiro) Não chateia. Pi- ARANDIR (desafinado) - Procurando por mim? Por mim?
rnentel! (Arandir. cstupefa o. lê a matér:a. Fala para si D. jUDITH (depois de um olhar fll\'il'SGan) - O sen hor não estava!
mesmo) ARANDIR (desesperado, para os outros) - Mas é mentira' Mentira!
ARANDIR (com li 1:0:: estrangulada) - Mentira! Mentira' Simplesmente. eu nunca vi esse rapaz' Nunca, na minha
',l.'ER!'JECK (apor:ta.ndo) - Viúvo de atropelado! 011 viúva! Beijou 0 vida! Juro' Escuta. d. [udith!
sujeito na boca. O sujeito morreu. É a viuvez. Batata' D. :t-DITH
_ Com licença' (cL }l1clith nbandona a eoiO. meio espavo-
ARA!\'DIR (por« si mesmo. sem nada ollvir) - Não' Não. (Arandir lê rida, num passinno rápido e muito miüdo)
com exclamações abafadas) WERNECK (insuliante) - Viú';-o!
WERNECK (para os outros. com uma certeza feroz) - E o morto vi.nha ARAND!R _ Eu não admito. Sou casado e não admito!
aqui! Veio aqui! WERNECK _ Há testemunha' Viram o rapaz aqui! V-iram~
ARANDIR (erguendo a cabeça) -Quem vinha aqui? ARANDIR (desatinado) - Cala a boca!
WERNECK - O morto! O atropelado! _ Quem é você. Voce pra me mandar calar a boca?
. ( ARANDIR (estupefato) - Vinha aqui?
WERNECK
P!MENTEL _ Vamos parar com isso! (quer segurar Werneck)
WERNECK (exaltado) - Falar contigo. - Ou você nára ou eu ...
ARANDIR
ARANDIR (com toda a fúria do seu protesto) - Nunca! Eu não (0- -'fira a mão! (para Aranclirj O que é que você faz?
WERNECK
nhecia o cara! _ Te parto a cara! (os outros querem separar; \Vemeck os
ARA ·DiR
WERNECK (rindo) - Não conhecia. seu vigarista! (muda de tom)
empurra)
Quer ver? (precipita-se. aos berras) D. Iudith! D. Judith! =-Então, parte! (para Pimente!) Nãe te-mete! (para Arun-
WERNECK
(para Arundír) Eu provo!
dir) Parte a minha cara'
ARANDIR - Era um desconhecido! Desconhecido! Eu. nunca!
(estrançrulando avo::) - Não quero'
(d. ludith aparece. Tipo convencionc! ,Ia clurilógmfa. Inclu-
ARANDIR
WERNECK
'"
(num berro) - Ou tu parte a minha cara ou eu parto a tua. ,
sive os óculos)
WERNECK - Eu não-minto! eu não minto! .
(Trevas. Luz sobre a c.:;sa d(; Se/minha. Aprígio e a filha. O velho está chegando. Se/mi-
ARANDIR (para os outros) - Desconhecido!
WERNECK (sempre esbravejante) - Quando digo uma coisa. é bata- nha junto do telefone)
ta! (para a datilógrafa) Ah, d. Iudith!
SELMINHA (sôfrega) - Papai, t:tm mintltinhQ.,.
D. JUDlTH (um pouco intimidada) - Me chamou?

77 o BEIJO NO ASFALTO
76 rRftG~D!A~ CARIOCAS II
APRÍGIO - Eu espero! SELMINHA (atônita) - O senhor quer dizer que -isso, isso que o
SELMINHA - Estou falando com Arandir. Foram chamar. _jornal publicou. Esta nojeira! O senhor quer dizer que é
APRÍGIO - Fala, minha filha. verdade?
SELMINHA (desesperada) - Estão passando trotes para cá! (muda de APRÍGIO - Um momento!
tom) Alô! Alô! Arandir? Sou eu. O telefone está ruim! SELMINHA (fora de si) - O senhor admite que.
Ah, sim! Você leu? Bem? 'leu! Meu filho, olha: - fala APRÍGIO - Selminha, olha! O repórter, esse Amado Ribeiro;
mais devagar. Não ouço nada. Vem pra cá? Vem, sim, escuta, Selminha. (incisivo) - O repórter estava lá! Viu
vem. Papai chegou agora. Toma um táxi. Um beijinho! tudo!
(Selminha abandona o telefone. Vem sôfrega, para o pai) SELMINHA (estupefata) - Viu o quê?
APRÍGIO - Escuta, Selminha. APRÍGIO - O que se passou .
..sE-LMINHA - Papai, oh, meu Deus! Tenho-que deixar o telefone SELMINHA - Então, o senhor vai me dizer. O senhor vai me dizer o
desligado. que foi que se passou. Quero saber! Quero!
APRÍGIO - Trote?
APRÍGIO (persuasivo) - Meu anjo, ontem eu não te contei?
SELMINHA -'- Trote. Nunca ouvi tanto palavrão na minha vida. Su=
SELMINHA (furiosa) - O senhor não me contou nada!
jeito telefonar, papai. E até mulher! (voz de menina) \
. APRÍGIO (doce, mas finne) ~ Contei .
elefonar para dizer nome feio. Deve ser, aposto. Aposto,
SELMINHA - Papai, pelo amor de Deus, escuta!
papai. Gente da vizinhança! É gente da vizinhança!
APRÍGIO -Selminha ...
Tenho certeza!
SELMINHA - Tenho mais confiança em Arandir que em mim mes-
APRÍGIO - Não liga!
ma. Se tivesse acontecido o que o jornal diz Um mo-
SELMINHA (sófrega)-Comprou o jornal?
mento, papai. (com mais violência) Arandir me contaria.
APRÍGIO - Comprei. (Aprígio lira O jornal do bolso)
Arandir não me esconde nada. Arandir me conta tudol
-SELMINHA -Leu?
APRÍGIO -Nem tudo. '
APRÍGIO -Li.
SELMINHA - Tudo!
SEL:\-IlNHA (começando a chorar) - Papai, olha.
APRÍGIO -- Ontem, eu perguntei se você conhecia o seu marido.
APRÍGIO -Chorando. por que?
_S.E.LMINHA - Tenho que chorar! Estou chorando de raiva! Eu e SELMINHA (exaltada) - Mas claro! Ou o senhor se esquece que eu
Dália! (mudando de tom) Dália não vai mais, papai! Não sou a mulher. Que eu. Papai, Arandir, não pode nem me

vai mais,
. I trair. Porque viria me contar tudo, tudinho. Outro dia. A
APRÍGIO - Por quê?
fechadura do banheiro estava quebrada. Arandir empur-
SELMINHA - Fica! Leu esse pasquim! Leu e resolveu ficar. ra a porta e vê Dália nua. Sem querer, naturalmente, e
- APRÍGIO - Onde está ela? _n~e-Ic podia imaginar qu~. Mas compreendeu? Pelada. -
SEU.IlNHA (sem responder) - Como é que um jornal, papai' O se- Completamente! Tinha acabado de tornar banho. Pois -
nhor que defendia tanto o Samuel Wainer! E como é que -AFaB4i-f. veio, imediatamente, He-ffiesmo minuto. No ..
um jornal publica tanta mentira! mesmo minuto, papai. Dizer: - olha acaba de acontecer
isso, assim assim ... Eu nem disse nada a Dália, porque
(Aprígio anda de um lado para outro. Luta consigo mesmo. Ao ouvir falar em mentira, ela ia ficar sem jeito. Mas a sinceridade de Arandir! O
volta-se para a filha com vivacidade:) senhor sabe que eu adorei! Adorei!
APRÍGIO - Posso falar?

APRÍGIO - Não é mentira! SELMINHA (frenética) - E o jornal põe que o meu marido beijou
SELMINHA --Esse título "Beijo no asfalto"! (reagindo fora do tempo) outro homem na boca'
O que foi que o senhor disse? (atônita) Não é mentira? APRÍGIO - É verdade!
APRÍGIO - Nem tudo' SELMINHA (atônita, quase sem voz) -Arandir me diria ...
SELMIKHA (repetindo) - Não é mentira? APRÍGIO (triunfante) - Beijou.
APRÍGIO - Selminha, escuta, scuta, miaba {;jlh&+Você está ner- SELMINHA (recuando) - O senhor não pode dizer isso! Não tem
vosa' esse direito!

78 r;;'AGÉOiAS CARiOCAS II 79 o BEIJO NO ASFALTO


APRÍC!O Eu sou pai!
(('.{eg'J,~rt~;- APRÍGiO -Amei!
SELMINHA (num esgarode choro) - Não. Não- SELMINHA (num crescendo de fúria eXl/franre) - Mamãe morreu há
APRiGIO - Eu vi e sou pai.~ '..... ), arrastou-o
Vi meu genro. O loiacão tanto tempo e o senhor continua só. NlrigUém pode vi--
o sujeito. -ver sem ninguém. Papai, uma pergunta.
SELMINHA (fero:) -Fet-o rapaz que. Antes de morrer. O rapaz pe- APRÍGIO -Adeus.
dia um beijo, SELM;>.;HA -\'emca,papail
APRiGIO (cxultãTlfc) --0 sujeito-caiu-Ele-·b~fen-te-ae·-me-iC7- APRÍGIO -Adeus. t

-furi)e bruços. Teu marido foi lá e virou o rapaz. E deu o SEL~l I l' HA _ - Não, senhor! O senhor já me ofendeu e tem que rne
beijo. Na boca. escutar. É 50 uma pergunta. Eu preciso saber. Está ou-
SELMINHA (fora de ;i) - Meu marido diria. Ele não esconde nada' vindo? Preciso saber se meu pai é capaz de gostar. (supli-
(Aprígio segura a filha, pelos dois braços) cance) Neste momento, o senhor gosta de alguém? Ama
APRÍGIO (com subire energia) - Vem-ci:-Responde' Você viu o alguém, papai?
retrato do atropelado? (suplicQlICe e vrolento) Diz! Vocé APRÍGIO - Quer mesmo saber?
-u-reeenheceu) Preciso saber. Olha! Errtre as amizades do SELMINHA -Quero!
-teu marido. (nwis forre) Entre as relações masculinas APRÍGIO (com o olhar perdido) - Querida, neste momento, eu ...
do teu marido, tinha alguém parecido? Alguém-parecido- (esboça Unia carícia na caheça da filha) eu amo alguém.
cem-esse retrato) Olha bem!
SELMIN HA (atônita) - O senhor está insinuando que. (Treva sobre a cena. Ll12 no velório do atropelado. Amado Ribeiro, Aruba e a viúva.)
I
APRÍGIO (desespcrado)-O morto nunca veio aqui?
SEL;\\l:-;HA - Mas eles não se conheciam) Meu marido, nunca VI ÚVA - Quer falar comigo)
nunca! AMADO RIBEIRO -A senhora é que é a viúva?
APRÍGIO (violemo) - Escuta! Deixa eu falar, meui.,«: On~C'. " eu VIÚVA (chorosa. amarrotando o lenço) _. O senhor é da polícia?
VilJ1 dyui, pessoalmente. Podia ter dado o recado, rele) A~lAOO RIBEIRO (sintPricn e ina[lplável) - Somos da polícia. Mandei cha-
telefone. Mas vim pra te perguntar se. Selminha, eles se mar a senhora porque é o seguinte.
conheciam? \"ll;\-A (araranrada) - Mas o enterro já vai sair!
SELMINHA (espantaâa e ofegante) - Mentira! M1ADG-RfBEIRO- =-Um jnínutinhol.
APRÍGIO (com violência total) - Não foi o primeiro beijo! Não foi VIÚVA (em ânsias. olhando para trás) -r- Vão fechar o caixão!
a primeira vez! AMADO RIBEIRO (para a vilh·a) - Não afoba! O Aruba vai lá! (para o com-
SELMINHA (na sua cólera) - Dália tem razão! panheiro) Arubâ, vai lá! E diz para agüentar a mão.
APRÍGIO (sem entender) - Por que Dália? -VIÚVA (sa/i·er-:a) - Avisa, Seu como é mesmo)'
SELMINHA -O senhor tem ciúmes de mim. _-RUBA -Aruba.
APRÍGIO (atanito) -Eu?-- VIÚVA - Seu Aruba, avisa que eu não demoro. Mas pra não
, J SELMINHA - Odeia Arandir! deixar sair o enterro.
APRÍGIO (desati :1C:O) - Juro! AMADO - Chispa!
SELMINHA - O senhor foi contra meu casamento-Geeeee+ 1'tt1'l'A - Um momento! Seu Aruba, o senhor fala C01[1 um-se--
APRrGIO (violento e suplicante) - Eu sou pai. Pai. Preciso saber se nhor alto, de espinhas. Um que tem espinhas, ~lto. Diz·
, eram amigos e que espécie de amizade! que. É meu cunhado. Diz pra não fechar o c.dxâo=Só -
SELMINHA - O senhor não gosta de ninguem! com a minha pr~sença. (sai o An.bc. assoando ig_ irnmen-
APRÍGIO - Sou um velho! re) - Pronto.
SELMINHA -Nem de mim. O senhor não sabe amar. Escuta, papai! AMADO RIBEIRO (sucinto e incisivo) - Minha senhora-Nãrrvamos-perder.
APRÍGIO - Você não me entende. . tempo. Tomei informações, a seu respeito. -Sei, de fonte
SELMINHA - Papai, escuta, papai! (num rompanre Imterico) Deixa +impa. Um momento. Sei de fonte limpa que a senhora
eu falar! (com cruel euforia) O senhor já amou algum dia? tem um amante!
Amou alguém? VIÚVA (sob o impacto brutal) - Eu?

80 TRAGÉDIAS CARIOCAS II 81 o BEijO NO ASFALTO


---_._-~ •...

ARUBA - Fala, meu chapa!


AMADO (implacável) - Tem um amante! Cheio da gaita! Não VIZINHO (tímido) - É que.
faça comentários! Nenhum! AMADO - Desembucha.
VIÚVA - O senhor está me ofendendo! VIZINHO - Pode fechar o caixão?
AMADO - Ofendendo, os colarinhos! AMADO - Mas oh nossa amizade! Agüenta a mão!
VIÚVA (entre a indignação e o pânico) - Mas eu sou uma senhora! VIZINHO (para Amado) - Doutor, o corpo está exalando! (rnfáti·
AMADO - Cala a boca! Ea:ia a-beea+ (muda de tom) Escuta. Você -co) Exalando! -
tem um amante e com toda a razão. -Cem toda a razão., AMADO (furioso) - Vamos fazer o seguinte. Olha aqui, nossa+
Conheço a sua vida, de fio a pavio. A senhora arranjou, amizade! Manda fechar o caixão! Manda fechar-Ordem
cala a boca. Arranjou um cara quando percebeu, err= da polícia! Fecha e toca o bonde! Por minha conta!
tende? Ao perceber que seu marido mantinha relações ARUBA (enxotando o vizinho e com total pouco-coso) -Acaba com
anormais com outro homem, a senhora. Não é fato? isso! Acaba com isso!
VIÚVA (depois de olhar para os lados e já incerta) - O senhor está VIÚVA (com nostalgia e perplexidade) -Mas é um morto!
falando alto! AMADO (com riso curto e ofegante) - Morto e te traía não com
AMADO - Você leu o jornal? . uma mulher, mas com um cara! Na hora de morrer, ain-
VIÚVA - O jornal? Li. da levou um chupão!
AMADO (tirando o jornal do bolso) - Muito bem. ~resta atenção. ARUBA (alvar)-Legal!
(à Queima-roupa) Olha bem esse retrato. E o sujeito que
beijou o seu marido. A senhora, naturalmente, já viu (Trevas. Luz no quarto de Arandir e Selminha. Arandir acaba de chegar.)
esse camarada, claro!
,
VIt;"VA (vacilante) - Não. SELMINHA -Até que en~m!
AMADO (ameaçador) - Madame. Nunca viu? .A•. P..l·.ND!R - ..â lJ., querida (Arandir apanha entre as suas mêos as de
VIUVA - Nunca! (Aruba aparece) Selminha)
ARUBA - Já falei lá. SELMINHA - Por onde você andou?
AMADO (para a viúva)- Viu, sim! Viu! ARJ\='DIR - Mãos frias+
VIÚVA (em pânico) - Juro! SELMINHA - Febre!
AMADO - Você está mentindo! mentindo! ARANDIR (febril também) - Demorei, porque. Há uma hora que
ARUBA (interferindo) - Amado, olha. O cadáver. eu rondo a casa. Passei três vezes pelo portão e não en-
-- A~tADO - Não orrvir: . trei, porque. (com um esgar de medo) Tinha um cara na
--ARUBA (ba íxo) - O cadáver.
\
AMADO - Fala alto!
esquina. I
SELMINHA -Que cara?·' I
'ARUBA - Devido ao calor, o cadáver. Já tem mau cheiro. (encerrado no seu medo, sem ouvi-Ia) - Olhando pra cá.
AMADO (furioso) - Que se dane. (para a viuvc) Olha aqui. Ou a
ARAND.IR
SELMINHA (sôfrega) - Você fala como se estivesse fugindo, meu "
I
senhora diz a verdade: "Â-flGHcianão tem esse negócio bem! (Arandir estaca. Volta-se vivamente) I
de mulher, não. Mulher apanha também+ (muda de tom) ARANDIR (com limofalsa (llegria, uma falsíssima naturalidade) - Fu-
Sua burra' Põe na tua cabeça o seguinte. Você tem um gindo, eu? (riso de angústia) a troco de quê? Eu não fiz
amante. E por quê, por que tem um amante? Porque seu _ nada. Não sou nenhum criminoso. Eu apenas. (sem tran-
.marido, escuta, escuta', Seu marido mantinha relações sição, já em tom de lam.ento) Telefonei para cá. Sempre
anormais. Relações anormais com um cara. Entendeu? ocupado!
(melífiuo) Seu marido tinha um amigo chamado Arandir; SELMINHA (querendo ser natural) - O telefone, meu bem. Tive de
amigo esse que a senhora está reconhecendo pela foto- desligar, claro! Ligavam pra cá e diziam horrores! Ouvi
grafia. ' palavrões que eu não conhecia!
VIÚVA (olhando para os lados) - O senhor fala mais baixo! (a ARANDIR - Escuta, Selminha, olha. Se me procurarem. Avisa à
viúvc olha as fotografias. Aparece um vizinho que está fa-
_Dália e dá ordem à criada- Eu não estou pra ninguém.
:endo velório) Pra ninguém.
VIZINHO - Com licença.
83 O BEIJO NO ASFALTO
82 TRA.CÉOI.S CARIOCAS II
SELMINHA (sem ouvi-Ia) - Você leu? SELMINHA (frenérical -Ao menos. responde!
ARANDIR (desesperado e suplicanre) - Pelo amor de Deus.Esetree- ARANDIR - Senta comigo.
Esse assunto, não! SELMINHA - É verdade quê?
SELMINHA - Uma pergunta só. ARAND!R - Um beijo.
ARANDIR =-Não. Se/minha, não! Eu nãoestouemestado,cempreen- SELMINHA (com surda irritação) - Primeiro, responde. Preciso s
de? Eu não estou em estado de. ber, O jornal botou que você beijou.
S ELMINHA (doce-mas irredutíve/l - Arandir, olha pra mim, olha. ARANDIR - Pensa em nós.
ARANDIR (com sofrida doeilidade) - Fala! , SELMINHA' ~ Com outra mulher. Eu sou tua mulher. Você beijou
SELMINHA - 8·que-e jornal-diz. É só isso-qtre-eu quero saber. Só na ...
. isso, meu bem. O que o jornal diz é verdade? ARANDIR (sôfrego) - Eu te contei. Propriamente. eu não, Escuta.
ARANDIR (dando-lhe as c,ostas) - Saí do emprego, Quando eu me abaixei. O rapaz me pediu um beijo. Um
SELMINHA +- Te despediram? beijo. Quase sem voz. E passou a mão por trás da minha
ARANDIR - Eu me despedi. (andando de um lado ptu« outro, com cabeça, assim. E puxou. E, na agonia; ele me beijou,
uma exciwçt'io progressiva) Hoje, cheguei no emprego. SELMINHA -Na boca?
-f:;ogo que cheguei, começaram com piadinhas. (mais ARANDIR - Já respondi.
exa/rado) - piadinhas. (subitamente?m pânico, pondo-se -SELMI~HA trecuandoj-« E por que é que você, ontem.!
à escuta) Parou um automóvel! na porta' Não parou um ARAND!R - Sclrnínha-
automóvel na porta? (crispando a mão no braço da mu- SELMINHA (chorando)-Não foi assim que você me contou: Discuti
lher) Não está ouvindo) com meu pai. Jurei que você não me escondia nada!
SELMINHA -1 'ão é aqui' ARANDIR - Era alguém! Escuta! Alguém que estava morrendo.
AR.'\8DIR (quase sem l'O;:) - Não é aqui? Selminha. Querida, olha' (Arana!r agarra tl mulher.
SELMINHA (um pouco contagiada pelo medo) - No 'Vizinho! (com sú- Procura beijá-Ia. Se/minha foge com-o rosto) Um beijo.
bito desespero, agarrando o mando) Mas que piadinhas? SELMiNHA (debatendo-se) - Não! (Se/minha desprende-se com vio-
ARA,NDIR (de costas para a mulher e com a voz nítida e l'ibral1lf')- lência. Instintivamente, sem consciência do próprio gesto,
Eles me chamaram de viúvo! j'iHSsaas cosias da mào nos lábios, como se os limpasse)
SELMINHA - De quê? ; ARANDIR - Você me nega um beijo?
ARANDIR (com desesperado cinismo) - Viúvo! Do rapaz que mor- SELMINFtA -Na boca, não!
reu! Entende? Você acha que depois disso? ARANDI R (sem se aproximar e estendendo as duas mãos crispadas)-
SED1L 'HA (atônita) - E você? Coração, olha. No emprego e aqui na rua. Eu sei que aqui
ARANDIR -Eu? na rua. Ninguém acredita em mim. E, hoje, quando eu
\ SELMINHA (fora de si) - Você reagiu? saí do emprego. Meu bem, escuta. Fiquei andando pela
ARANDIR - Eu não podia! Eu não!
'.
_-_o -~---- .~ Tive a impressão de que todo mundo me olhava.
S ELMINHA (furiosa) - Você devia ihe ter quebrado a cara! No lotação, em todo lugar, eu acho que me reconheciam
ARANDIR -Até o chefe. Falou comigo, e olhava para mim. Estava pelo retrato, Eu saltava de um lotação e apanhava outro,
espantado. Espantado. Eu tive a impressão. É um 00m A mesma coisa. Eu então pensei: - "Sem: Mas eu tenho
-sujeito. Um homem de bem. Não sei, mas tive a impres- S'elminha!" Escuta, Selminha-cescurak Eu quero ~
são de que tinha nojo de mim, como se-eu! saber, entende! Saberque você está comigo, a meu lado!
SELMINHA (segumndo-o com energia) - Arandir! Você é tudo que eu tenho! (Selminha ,,,lá chorando com o
ARANDIR - Querida! rosto coberto por uma das mãos)
SELMINHA - Como tua mulher, eu te peço. Você vai lá amanhã e SELMINHA (soluçando) - Oh, cala a boca!
quebra, Quebra mesmo! A cara do sujeito! ARANDIR (com súbito pânico) - Barulho. Está ouvindo?
ARANDIR - Eu acho, entende? Acl:!9,que, nunca mais, em empre- SUMI HA -Nada.
-go nenhum. Acho que em todos os empregos, os caras ARANDIR (recuando) -Abriram o portão, Alguém entrou.
vão me olhar como se. As mesmas piadinhas, em toda a SELMINHA (com surda irritação) - Não é ninguém. (Dá/ia aparece)
parte. ARANDIR - Oh, Dália. .

84 TRAG[OI.AS CARIOCAS II 85 o BEiJO NO ASFALTO


DÁLIA (surpresa para a irmã) - Chorando por quê?
TERCEIRO ATO
ARANDIR - Nervosa.
DÁLIA (para Arandir)-Eu não vou mais, Arandir. (para a innã)
Sua boba! ~at-é nem-sei! Faz como eu. Glha! Agora -
-mesme.veu disse à d. Matilde. Ouviu, Arandir? Quando
~u vinha voltando-da-igreja, encontrei a d. Matilde. D. (O delegado Cunha e Amado Ribeiro estão na casa de um amigo, em Boca do Mato.
Matilde, essa de. Disse a ela o que não se diz a um cachor- Entram o investigador Aruba e Selminha. (Esta vem assustadíssima.) Só vê-Ia, o delega-
ro. Quase que: Di~se:- Olha! Limpe a boca, limpe a boca. do Cunha, em mangas de camisa, os suspensórios arriados, um vasto revólver na cinta,
E fique sabendo que meu cunhado é muito mais, mas vem ao seu encontro. Exuberante e sórdida cordialidade de cafajeste.)
muito mais homem que seu marido! (toca a campainha)
ARANDIR (sob o impacto) -Agora estão batendo! CUNHA - Tenha a bondade, minha senhora! Tenha a bondade!'

SELMINHA (também em sobressalto) - Dália, vai atender, vai. Aran- SELMINHA (quase chorando) - O senhor que é o comissário?
dir não está. CUNHA (numa mesura subserviente) - Delegado!
D.Ü1A - Não está? -ARUBA -O doutor!
AR.4.ND!R -Ninguém, pra ninguém! SELMINHA (fremente) - Eu fui ameaçada! Ameaçada!
SELMINHA -Anda. (Dália abandona a sala) CUNHA - Mas minha senhora!

ARAl'DlR (sôfrego) - Diz que me ama!


, SELMINHA (apontando) - Esse moço me ameaçou'
SELMI:-';hA (saturada)- Você sabe.
I ARUBA (numa gesticulação de cafajeste) - Ela quis botar banca!

I
ARANDIR - Mas eu queria que você repetisse. Me ama? Você não Não queria vir! Resistiu, já sabe!
.é capaz de repetir que me ama? (entra Dália) SELMINHA (ora para um, ora para outro)-Mentira. (pi/ra delegado)
DÁLIA - Polícia!. .. i Doutor, eu apenas. olha. Apenas perguntei: - "Pra onde
o senhor me leva?"
TREVAS CUNHA (com um descaro grandiloqüente) - Aruba! Você maltra-
tou essa senhora, hem, Aruba?
FINAL DO SEGUNDO ATO ARUBA -Não'
SELMINHA (chorando de humilhação) ~ Disse que. Disse! Que se eu
gritasse, que eu apanhava na boca! E me torceu o braço.
(para investigador) - torceu!
AMADO (intervindo pela primeira vez) - Minha senhora, isso é
um cavalo! Uma besta!
/ ARUBA (impulsivamente)- Besta é você'
/ AMADO - O cara não dá uma dentro!

CUNHA (aos berras e espetando o dedo na cara do atcâliar) - Cala a


boca! (muda de tom, para Selminha) - Infelizmente, mi-
nha senhora, a polícia tem elementos que, (para Arubo,
com uma falsa cólera) Retire-se! (para Se/minha. com hu-
<fl1ildade)-Peço-lhe, creia que (para Arub«) - Saia.!.
ARUBA - Mas doutor!

CUNHA - E olha! Vou lhe meter uma suspensão!


ARUBA (numa confusão total) - Cumpri ordens!
CUNHA - Eu não admito, entende? Não admito' Cai fora!
(Anlba sai. Cunha volro-se para Seiminn«. Faisissuna }IU-
mildade. Selminha olha em tomo)
SELMINHA - Eu reclamei porque (mais incisiva) - Isso aqui não é
distrito!

86 TRACÉDIAS CARIOCAS II
I
<: 87 o BE!JO NO ASFALTO
A.MADO - Calma, d. Sei minha! - A~!ADO - D. Sclrninha, com licença]-
SELMINHA (pró.\ima da histeria) - Isso é uma casa! ~iN-H-."'--( desorienUldaJ~ Não-é isso' O senhor não me entendeu.
CUNHA (melífluo) - Exa-o. exato. Casa. Não nego. Escuta, minha Nervosa!
senhora. --é'e:-';HA (rilldo ainda .'com cerra feroridaci,,) - Diz pra ela. Amado.
SEU,1JNHA - Mas doutor' Conta! (andando de um luciu pura outro l' Sl'lliprf exageran·
---;tMABO- ({/pa::i~7'/lGdor)- Urrrrnomermr' do) Medo de mim, qual'
CCXHA - Pra evitar escândalo. Escuta. Pra evitar escândalo eu A:-1ADO ;ilic/,iro) - D. Selminha. aqui o Cu.l'l-ha. Ouviu J. SeI-
preferi que fosse aqui. minha? Está ouvindo? O Cunha não é C{)n10 os out rosj-
SELMINHA (olhando em ramo) - Aqui onde? CU!'IHA (andando de um lado para outro, numa agiração j':runaa)
CUNHA (com um prirlcípio de irritação e jti. insilllwndo Ulllli urnec- - Fala, Amado, fala!
ça) - Aqui, d. Selrninha, aqui! Na delegacia, -prop-ria- AMADO - Posso falasporque. ~OO-mettdo--o-pau~nd polícia.'
mente, não se pode trabalhar. Está assim de repórter, de Ma~':o Cunha é um dos raros. I_'m :los ra=.
entende?
fotógrafos! Não há mistério, d. Selminha. 'Es;amos em (cínico c enfático) - Humano! (Cunha vern senrcr-se, no-
"São João de Meriti, Essa casa é de um amigo do Amado vamente, com os dois)
~beiro. °
(vouando-se para repórter) Amado Ribeiro, da CUt--lHA - Menina, escuta. Pra mim você é uma menina: M-iS

li -S'E1.MINHA
Ultima Hora'
AMADO (cínico) - Prazer.
(disparando, numa volubilidade febril) - O senhor é que é
SELMINHA
escuta.
(querendo desculpor-se) - Em absoluto, eu!
CUNHA .- E, de mais a mais, eu sou pai. Antes de tudo, Se/ti pai.
Samuel Wainer? .é} Amade, sa-l3e-. Eu tenho uma filha. -émett:-
AMADO - Amado Ribeiro. ~\~IADO - NOÍ·'·:a..
SEL1\IINHA (desorientoâo por Wií dera lhe imprevisto) -Mas o Samuel CUNHA - Noiva. Vai se casar. E quando eu olho pra você, penso
Wainer não trabalha .. : C~lrirnaHora? na minha filha. Nunca se sabe e Eli-a-de amanhã, VaH-lOS
AMADO - Exato. -
que o meu genro. Essas coisas, sabe como é. Casamenro-
SELMINHA (confusa) - Ah, é. E o Carlos Lacerda na Tribuna da Im- .• . ,,1 -.
e !Ot~!"!J.,!!1J.S eu, que!"o que voce, entencer (P~~~-~!'.: :t'PQ~
~pFeR-Sa. rer j Vocé não acha, Amado:' (para Se/minha novcmeruez.,
CUNHA (de superdo e chocado peÍa surpresa) - D. Selrninha, onde Quero que você me veja como um pai. Agora responda:
está seu marido?
- ainda tem medo de mim?
SELMINHA (crispando·se) - Meu marido?
SELMIKHA - Não.
CUNHA (mudando de tom e com uma satisfaçào gratuita, exage-
A~iADO - Natural.
rada) -Não responda já! (sem transição) Amado, escuta.
CUNHA (com um riso surdo e ofegallte) - Podemos conversar?
(para Selminha) Temos um barzinho, ali. A senhora não
SELMINHA (com Lima doei/idade de menina) - Podemos.
toma nada? Por exemplo: - não quer tomar um.
SELMIN'HA - Nada.
AMAPO (baixo e persuasivo) - Pode confiar no Cunha.
Jt1MDO - Nem agüínha>:
CUNHA (docemente) - É uma pergunta. Uma perguntinha só. O

CUNHl\---Apanha lá, Amado. seguinte.


SELMINHA (olhando ora um ora outro) - Pois não.
"'Et-M-IN-tf:>r' (vivamente) - Não, não! (sójrega) Muito obrigaêfã.
CUNHA (de supetão e com uma a.~'essividode inesperada) - Onde
CUNHA (plH'a Amado) - Não precisa, Amado. (para Srlminha.
está seu marido? (pausa. S+ninha olha um c depois curro)
novamenre m€,líflllO) Mais calma?
SELMJNHA _. Sim. SELMI!'<HA (crispada) - Não sei.
CUNHA (com um riso surdo) - Ou tem medo? AMADO (persuasivo) -Sabe. D. Seln.inha,
CUNHA (já ameaçador) --Ai o meu cacete! (mudando de tom) Me-
SELMINHA (realmente apavorada) - Um pouce. (Cunha jaz, ali, um
nina, eu lhe falo como um pai! -Eomo\:tm-pailE !i~
pe'1uellO e divertido escândalo. Estava sentado, ergue·se)
CUNHA (com um riso exagerado e bestial) - Medo de mim? você!
(abrindo os braços para o repórter) - Tem medo de mim, SELMINHA -- Juro! (Cunha vire-se para Amado. Agarra-o pelos dois
Amado' De mim' braços)

88 TR;CÉD!A<; CARIOCAS li 89 o BEIJO NO ASFALTO


CUNHA - .Q.&-per--qne-é que ~u tenho urna filha! É minha Fi VIÚVA - De fato. Uma vez, ele foi lá em casa.-Fei lá em casa e
-lha que-me impede de! (larga o repórter e volta-se para os dois. (pára, em pânico, olhando para o aelegado, ora o
SelminhaJ Menina, pense bem antes de responder! repórter, ora Selminha)
SELMIl\;HA (numa espécie de },i~i~,.iu) - Eu não sei onde está meu AMADO - as dois. Continue!
marido! VIÚVA (sôfrega de um jato) - as dois tomaram banho juntos.
CUl\;HA - Você está diante da polícia. E--olha! Vai dizer a ver- SELM INHA (atônita) - Meu marido?
dade. A-verdade! (muda de tom, novamente caricioso) Não AMADO (já despedindo a viúva) - Madame, muito obrigado. Po-
se engana a polícia! t' de ir.
SELMINHA - Escuta, doutor! Meu marido saiu de casa ... SELMINHA (precipitando-se) - Mas escuta. Ven: cá! (Cunha barra a
CUNHA (furioso) - Seu marido fugiu! passagem de Selminha)
SELMINHA - Fugiu como? CUNHA - Não, senhora. Quem interroga somos nós! -A--senhora <

CU~HA - Fegiu.entende? Está-fuginde+Fugindo da polícia! não se mete! <

AMADO - NãQllie parece que a fuga ~el-miillra:;-escuta. A AMADO (feroz ~ erultante) - D. Selminha, o banho é um detalhe
.fuga é a confissão. Confissão! mas que basta! -Pra-mim basta. a resto a senhora pode
SELMINHA -Mas meu marido! Afinal de contas! deduzir.
CUNHA (apertando a cabeça entre as mãos) - Não é possível! SELMINHA (lenta e estupefata) - a senhor quer dizer que meu ma-
SELMINHA "(erguendo-se e com exaltação) - o. senhor está enga- rido! ...
nado. AMADO (forte) - Exatamente!
CUNHA (num berro) - Fugiu! CUNHA (também feroz) - Seu marido, sim! Seu marido! Batata!
--A~1P_~() {para o dc1cgado) - Cunha, calma' (p,.r<; S~!mill!,(j) Um (Se/minha olha, ora um, ora outro. Está lívida de espante)
AMADO (ofegante) - Ou a senhora prefere que eu fale português
SEL~iI~}ÍA
momento! (pam CliTitlaj Caima!
- Fugir por quê, se ele não fez nada? Nem conhecia o
i claro?
morto!
! SELMINHA ((Fie se crispa para uma crise de histeria) - Prefiro. Fale,
sim! Fale português claro!
CUNHA (rápido e agressivo) - Tem certeza? Note bem: - certe-
za? (e/t'l"LJnâu (I l'O~) Tem!?
I
i <\ M -\ DO - Bem. É o seguinte.-

(afirmalil'a, embora desconcertada) - Tenho! (Cunha tem


i CUNHA (bestial) - Escracha! Escracha que eu já estou de saco
SELM I N HA
um lance teatral) I cheio!

CU/'.'EA '(e.mltaTHP) - Amado, manda entrar a moça! (para Se/- J AMADO - A polícia sabe que havia. Havia entre seu marido e a
vitima uma relação íntima.
minha) Vali lhe pro\'ar que: Ri melhor quem ri por úl- -\ -&EtM-tN-HA : no seu espanco) - Relação íntima?
timo.
AMADO - {].r:na-intimic!aoo,.compreendeu+ Um tipo de inti-
\" AMADO
CJjNHA
(J~lZum ,{!CSlO para dentro) - Pode vir! Vem, vem!
(para a moça que vem entrando) - Tenha a bondade. (a
vilíVfl do atropeiado é moça) - Aqui é a viúva do rapaz,_
I
·1
I
midade que não pode existir entre homens. Um instan-
_ te, Cunha. A viúza já desconfiava. a negócio do banhei-
I ro, entende? E quando leu o beijo no asfalto, viu que
atropelado. A viúva. a tal que seu marido beijou. a tal! I
era batata. Basta dizer o seguinte: - ela. Sim, a viúva!
AMADO -A senhora vai repetir aqui. (indica Selminha, sem dizer-
lhe o nome) A senhora conhece o Arandir? J
I (triunfante) não foi ao cemitério!

VIÚVA -Conheço. i
I
CUNHA, (com uma satisfação bestial) -Menina, olha-Está na cara
que seu marido não é _homem. (Selminha vire-se com sú-
.,
r
AMADO (pura Sdminha) .....,.Connece~ (pura u viúvaj E conhece de bita agressividade)
I
I

I
! ~'
onde? SELMINHA - Eu estou grávida! l'
ViÚVA __- De minha casa. AMADO -Quel'l'l7'""
I

AMADO - Freqüentava a sua casa. Muito bem. (para Se/minha) I SELMI~HA (fcro~) - Eu! É homem: &.restou grávida! (para um e
~(para a viül'a) Agora conta aquilo. Aquilo que a se- outro) E-etitra~. Agora vocês vão me 011\"Ír.Vão me
nhora me contou. Aquilo, sim!- ouvir. a meu marido foi à Caixa Econômica. Um mo- .
C :-. HA (para St'll1i!nha) - Presta atenção. mento! Foi lá pôr uma jÓid no prego!

91 o BEIJO NO ASFALTO
CUNHA - Escuta-:- APRÍGIO (agOlTando a filha e COII1 'Jn:Tõ:,ü.:i - Pra onde? (Dáiw repge
--AM:.-'l.-BG-(para o delegado) - Deixa da falar.-- corno umc menina reclmenre rraumati::adQ)
SELMINHA -E falo. sim! Foi pôr a jóia, sabe praqué? Porque ele DÁLiA (numa explosão) - Sei lá! Papai' Sei lá'
rr;e pediu pra tirar, Tirar o filho. Meu marido acha que APRÍGiO (noramt.ll,e furioso)'---l\lenina chata! Pára de chorar!
a gravidez estraga a lua-de-mell-Prejudica-I E como eu. {sem rr(iT1$ição (' desriando (i sua jlÍTlll) - E meu genro?
Eu nunca tive barriga. Seria uma pena que a gravidez. Onde é que está o meu genro?
-Be-el'\t-ão preferia que mais tarde e já não. Foi na Caixa D..\LlA - Papai, quando a policia chegou! Ouviu. papai~_
Econômica apanhar o dinheiro do aborto. APRÍ G 10 (prag1/citl11do ~('tII sentido j - O cúmulo!
AMADO - Mas e daí?
DÁLIA - Arandir escondeu-se no meu quarto!
SELMINHA (desesperada com a ironiQ ou incompreensão) - Ou o se- APRÍGIO - Escondeu-se?
nhor não entende quê? Eu conheço muitas que é uma DÁLIA - Escuta, aqui. Ficou lá até qu@. (incoereme e com vee-
vez por semana, dmts--e, até, 15 em 15 dias. Mas meu mênciQ) Ou o senhor queria que Arandir fosse preso?
marido todo o dia! 'rode o dia! Tecle dia-!-(~ull1 berro sel- APRÍGIO (furioso) - Meu genro não pode ser preso, minha filha
vagem) Meu marido é homem! Homem! (Selminha esrá pode!
numQ histeria medonha. Soluça. CllnhQ Q segura pelos dois DÁLIA (desoricnwda) - Papai. não é isso' I
braços e a domina, sol~dQmellte) APRÍGIO (Clme~çando não se sabe o qtH' ('U (l 'l'/em) - Mas olha!
CUNHA (com um riso sórdido). - Você nunca ouviu falar em gile- Olha'
;.e? Em barca da cantareira? -DÁLIA (egOlTando o velho) -':Papai, escuta' .
SEL""M1-NHA (subitamente hirta) - O quê? APRÍGIO (urrQrMo) - Onde está o canalha do meu genro?
-Ct::-rHA (n:<1'1 (ilmhlFHlIrrrfJrr:;-=- Cilete ' Bai-CJ da cantareira! D."LIA (rCCUQll(!O com!' dionre rir '1Ono bl<l,jrn;aj) - O quê).
(~;lmillha desprende-se com violênciQ. Desfigurada pela APRÍG!O ,m.,is (erre) - O canalha de meu genro!
Cútera, t::sgalllça t1 vo::) D.ÁLiA (ressentida)-Arandir nãoé canalhà.
SEL?'.fr~~HÃ
-~ -
S~.. r-
\..I.Ã..J
;'O't....io
•.•• "-. iI....
.•. I-T
CC[1l..cs .
-...l- • ~
.1~uceetlt-cs. 1:; VOCê.
er /
\.jjil.l.rcunJu lJ Jt::- APRfG!o (nfçgrrl1t(J <:('nl rnm;-lPrnr,)
(J - Vncê ainda!

legado) Você que é pai! Sua filha é noiva e olha! Tomara D,Á.LlA - O senhor não! Não pode chamar!
que o noivo de sua filha seja tão homem como o meu APRÍG r6 (t~""funfantc) - Chamo! Posso chamar! Perfeitamente!
ma~ido! (Cunha Qtira-se contra Selminha) Um canalha que. Se esconde e larga a mulher! Dá o fora, a
CUNHA - O sua! Lhe quebro os cornos! mulher que se dane! E tudo por quê) Porque esse pulha!
AMADO (imerpondo-se) - Espera! Calma! (para Setminh«, fero::.) D_-ÜIA (quase sem voe) --: Não, papai, não!
Tira a roupa! Fica nua. Tira tudo! - APRÍGlO - Esse pulha. Na minha frente. Nem respeitou a minha
presença. Na minha frente, sim! Na frente de toda a
(Trevas. Casa de Se/minha. O pai entra. Dália precipitQ-se.) cidade. Toda a cidade estava lá, vendo, espiando! (exul-
I
runte e fero:) E ele beijou na boca um homem! Por isso,
DÁLIA -Oh, papai! Selrninha. Sei minha foi presa 1
APRÍGIO (sôfrego) - Onde está tua irmã? DÁLIA' - Papai, o se-nhor não entende!
D.Á.UA
(soluçando) - Presa! APRÍGlO (esireouctianc ..c) - Um genro que! (Dália atraca-se com o
-.l\PRÍGIO -Quem? . pai)
DÁUA (num começo de hisleriQ) - Presa! D.Á.L1A (desesperQda - Ouve, papai. Arandir explicou!
APRÍGIO
(e~wpt:rar(}J - Prenderam? (furioso) Não chora! tmuâa APRÍGlO (I-iolenro e cor:anr.:) - Mentira!
de tom) Fala! D.Á.LlA - Eonheço;-p;-," ól-.F A rmdir, eIJ1a,...;;;e-fe"isso-Papai, e-s.-
DÁLIA -A polícia esteve aqui! +cuta, Fez isso porque. Teve pena! roi-a caridade, Arilfl4 .•
APRÍGIO
(repetindo)-Não chora! A polícia?' tem um coração, papai! -
DÁLIA
(repellildo) - Esteve aqui e perguntou, primeiro. Primei- APRÍGIO (como se desse cusparada) - Humilhou a minha filha.
ro perguntou por Arandir. (tomando respiração) Eu dis- DÁLIA - E o rJ.paz antes de morrer. Ele não podia recusar. Antes

se que Arandir não estava. Então, levaram a SeI minha! de morrer, o rapaz pediu o beijo: Arrees-de.morres-

9\2 TRAGÉDIAS CARIOCAS tI


93 o BEIJO NO ASFALTO
APRÍGIO (na sua euforia) - Pensei que. (abrindo o riso) Mas quem
APRÍGIO (agarra a filha. Está sinistrameme-di·\I€#iJe) - Antes de
sabe? Talvez você tenha. (muda de tom, com uma serie-
morrer?
dade divertida) Realmente, quando uma filha se casa, o
D'\LIA - Pediu.
pai é um pouco traído. Não deixa de ser traído. O sujeito
APRÍGIO (com súbita energia) - Agora você vai me ouvir. cria a filha para que um miserável venha e. (muda de
DÁLIA - Papai, eu! ('
. tom, novamente, com uma ferocidade jocunda) Em certo
APRÍGIO (dese.~perado) - Cala a boca! (muda de tom e falando com sentido, Selminha cometeu um adultério contra mim!
súbita ferocidade) Eu estava junto de meu genro. Quando (numa gargalhada selvagem e canalha, que ninguém enten-
ele se abaixou, eu estava ao lado. Juntinho, ao lado. E vi e de) Boa! boa! (termina a cena com as gargalhadas do pai e
ouvi tudo. (baixo e violento) Oiha! Ninguém pediu beijo! 'os soluços da filha)
. (radiante) O rapaz já estava morto!
DÁLIA \ quase sem \'0:: e nWI<espanro bnaal) - Morto? (Trevas. Luz no quarto de Amado Ribeiro. O repórter está sem paletó com a fralda da
APRÍGIO - Morto. Meu genro te contou que. Mentira! O rapaz camisa para fora das calças. Empunha uma garrafa de cerveja. De vez em quando bebe
não disse urna pala:rra. Estava morto. De olhos abertos e pelo gargalo com uma sede feliz. O repórter está, na melhor das hipóteses, semibêbado.)
morto.
D.ÁLIA (ainda sem \:0;:) - Não acredito. AMADO :.-. Quem? Quem? Falar comigo?--eHnr!- Manda subir.
APRÍGIO (,,-mltante) - Meu genro mentiu pra ti e pra Selminha. Sobe, sobel. .. (Aprígio entra)
D.ÁLIA (cara a cara com o pai) - Arandir não mente! AMADO (incerto) - O senhor é?
APRÍGIO - Beijou porque quis e não era um desconhecido. (agar- APRIGIO (formal) - O sogro de.
ra a filha pelos dois braços. Fala cara com cara) Eram AMADO -O sogro, exatamente. Eu estava reconhecendo. Graças
amantes! (pausa) . a Deus, sou bom fdonomista.
D ..\LIA ~5~;5s~;rrando)-l\'ão! Não! APRÍGIO (com uma grave amabilidade) - Boa noite. (Amado faz um
APRÍGIO (rriunfa/) - Amantes' (Dália rl",PTPnri",-se rt'l,.,~ i)~e~p!'rada ge5io circular, que ubrange ludu o uuurto}
violéncia) _AMADO - Desculpe sculhambação. O quarto está uma ba--
DÁLIA (com súbita ferocidade) - Papai, descobri o seu segredo. gunça.
APRÍGIO -(realmente em pânico) - Que segredo!? (rápido, segura a APRÍGIO =-Absolutamente.
filha pelo pulso) . AMADO - Estou safado da vida. Imagine que, a arrumadeira, uma
DÁLIA - Descobri! -, preta gorda. (baixo e sórdido) Ernprenhou. Ela faz aborto
APRÍGIO (desatinado) - Não tenho segredo nenhum! (com um es- em si mesma. Com talo de mamona. (com fina malícia)
~ gur Je chum) - Nem admito. Ouviu? . 'em admito' Não deixa de ser uma solução. (mllda de tom) Mas parece
DÁLIA (cruel e lenra) - Quer qlle eu diga? que, desta vez, houve perfuração. Perfuração. Está moro
APRÍGIO (num berro) - Cala essa boca' (l1:uda de tom. Quase sem re, não morre. Vai morrer. (pigarreando e COIll rer.o quê de
\:0::) Ou, então, diz, Pode dizer. Se você sabe, diz. (com culpado) Mas olha cá: - eu não tenho nada com o peixe.
a \'0::: estrallgulada) Qual é o meu segredo? O filho não é meu! (muda de tom, um puuco peauroodo)
Vamos nós. Qual é o drama?
DÁLIA (lema E' má) - O senhor não gosta de SeI minha como pai.
APRÍGIO - Seu Amado, eu desejava, aliás.
APRÍGIO (cssombrcdo) - Corno o quê?
AMADO - É sobre o beijo do asfalto?
DÁLIA (hina) - Gosta como. É amor. Amor de homem por
APRÍGIO (incerto) - Propriamente.
mulher. (dianre da afirmati~'a de Dália, o velho tem uma
AMADO - Meu amigo, com licença. Um momento. O senhor
reação que, de momento, o especrador não vai compreender.
veio me cantar?
Essa reação é de uma euforia brusca. TocaI, sem nenhuma
APRÍGIO (pertlJrbado)-Mas cavalheiro!
motivação aparente)
AMADO - Veio me cantar. Um momento. Claro. Veio me cantar.
APRÍGIO (começando a rir) - Amor de homem por mulher? E é
,
I

E eu não quero. Em absoluto. Meu amigo. eu sou batata,


esse o segredo? (repete. recuando (I ("pamo pcro a ;h!ha)
entende? E não me vendo!
Meu segredo é esse?
APRÍGIO - O senhor não me entendeu.
DÁ,LIA (esganiçando a voz, num frenético desespero infantil) - Por
isso o senhor odeia Arandir! .,1 A~1ADO - Sou macaco velho!

95 o Et..Ju NO ASFAt TO
94 Tf\AGEOiAS CARIOCAS II
APRÍGro (.<.1.h·f'go) - Queria apenas, 'entende" Ter uma conversa, APRÍGiO - Tem ccrtcz .. :?
Uma conversa, a propósito de ... -, AMADO - Ou duvida?
.-'''IADO - Escuta. nossa amizade. eSaHa+-Fala um de cada vez. APRÍGIO (mais incisivo) - Tem certeza?
Essa conversa, é velha pra chuchu! !\ Ias olha: --dinheiro- AMADO (sJrdido) - São outros quinhentos! Sei lá! Certeza, pro-
não me compra. -priamente. A única coisa que sei é que estuu vendendo
APRÍGIO (1IlCISl\'O) - Nem eu, ora! jornal como água, Pra chuchu.
AMADO - Com liG@cIl.(ja. O senhor está aqui por causa de seu APRÍGIO (satllradn de tanta miséria) - Já vou.
genro e de sua filha. Batata! Mas escuta! A única coisa AMADO (fa::endo uma insinuação evidente de miserável) - Vem
que me compra é mulher! (fa:;;o adendo rápido e incisíro) cá. Escuta aqui. 'Sabe que. Sinceramente. Se eu fosse
. E-magra' você. Um pai. Se tivesse L\l11a filha e minha filha casasse
APRÍGlO - Seu Arriado. com um cara assim eorne o. Entende? Palavra de honra!
--,\.,\1ADO (uo setrdcs!twlbl(H1Ien1O erÓrlco) - As magras! Asrnagras- Dava-lhe um tiro na cara!
(-reriJictlj Sem -alusão-â-sua fi lha. (com uma a1?labliidade- APRTGlO - Você 'iúêf vender mais jornal?
obscena de bébado) Magrinha, sua filha. (muda de tomi- - AMADO (com (l 511f! setiedoâe de bêbado) -Fora de brincadeira;
Võu lhe contar uma passagem:-Eu tive uma dona. urna Não é piada. Sério. E olha. A absolvição seria a maio.
cara, nem sei que fim levou, (novamente. cxultonre) barbada. Nenhum juiz te condenaria, nenhum! «(a-
O corpo de sVa filha; direitinho. Sem barriga nenhu- rici'osoi Escuta. Aprígio. O Arandir não é homem pra.
ma. (com um riso vi/j-Na cama, era bárbara' (ri) Subia _ lfão é homem pra tua filha. Ela é magra e tão sem. Sem
pelas paredes assim como uma lagartixa profissional! -barriga. Um certo histerismo na mulher. E d. Selminha.
1\lagrinha. ossuda' (enfático) Esse cara não agüenta o repuxo com tua filha"
APRÍC,IO (C01!l surda irrÍfaçúo) - O senhor quer me ouvir? APRÍGIO (, c"esperado de ódiO) - Bêbado imundol'\Ap'igio (iA,,·
~AM,\rv) - Como é mesmo sua graça? dona o quarto, como se ,<Ugisse.Sempri! com a garrafa n.a
APRÍGIO -;--Aprígio. ilião, Amado avança cambaleante)
AMADO ~ Aprigio, agora é tarde! 'Tarde! AMADO - "Vem cá, seu! Vem cá! ( erido o Di4trO 5lnnir) Filho
APRÍGiO - Mas eu ainda não disse nada! Eu UULr;ü. ;u~;ail.CI.~C, da. (ri'!d,. '.l<TJa) Seu bêbado. Bêbado e pau-de-arara.
AMADO - O senhor vai dizer que é mentira'. Que é uma mi~ (Amado rem um súbito J'úmptinte trümj~'dj
, ficação colossal, não sei o que lá. Não adianta. O jornal AMADO (num ben-o)-Mas parei a cidade! 'Só se fala do "Beijo no
está rodando, Rodando. Tem urna manchete do tamanho asfalto"', Eles têm que respeitar! Têm que respeitar! Eu
de um bonde. Assim: - "O beijo no asfalto foi crime' não dou bola! Não dou pelota! (Amado parte o grito num
Crime!" ' soluço)
APRÍGIO (apavorado) - Crime)
AMADO - Crime! E eu provo! Quer dizer, sei lá se provo, nem (Trevas. Luz na casa de Se/minha. Dália vai entrando. Sente-se em tudo o que Se/minha
me interessa, Mas a manchete está lá, com todas as le- diz ou faz, o trauma da polícia. Ela, que está lendo um jomal, ergue-se ao ver Dália)
tras: - CRLv!E!
APRÍGIO -- Mas eu não entendo! SELMINHA . (srmpre em tensão) - Quem era?
AMADO (exuuante e feroz) - Aprígio, você não me compra-Pede DÁLIA (sutTega) - Arandir!
me cantar. Me canta! Canta! (rindo, reli::) Eu não me ven- SELM!NHA C~ nética e esganiçando) - E só telefona agora?
-àe-!-fHlllda de tom) Eu botei que. Pr~sta atenção. O negó-. D!\:UA (q ,tlendo,jcaimrr-ia:r--Selminha,-:,ocê está nervosa,
-cio é bem bolado pra chuchu! Botei que teu genro es- SELMINHA (anda de um lado para outro numa angústia de imana e na
barrou no rapaz. (triunfame) Mas não esbarrou! Aí é que sua o;lrra \ - Passa uma noite e um dia sem telefonar!
-está. Não esbarrou. (lento e ta:mtivo) Teu genro empur- - DÁLIA (gruanáo também) - O telefone aqui está desligado!
rou o rapaz, o amante, debaixo do lotação. Assassinato. SELMINHA (mais contida) - Fala!
Ou não é? (maravilhado) Aprígio, a pederastia faz vender D..\LIA =-Arandir telefonou.
jornal pra burro! Tiramos, hoje, está rodando, trezentos SELMINH \ (varada de arrepios) -Arandir.-
mil exemplares! Crime, batata' DÁLIA - Escuta. Está num hotel.

96 TRAGÉDIAS CA~IOCAS " 97 o BEIJO NO ASFALTO


--SE.LMINHA (repetindefla-Him mecanismo de angústia) - Hotel F" DÁLIA (com violência) - Nem se conheciam!
DÁLIA (sôfrega) - Mandou dizer que. SELMINHA (sem ouvi-Ia e só escutando a própria voz interior) - Uma
SELMINHA (com brusca irritação)- Mas que hotel? -G0i·sa que me dá vontade de morrer. Como é que um ho-
DALlA - E te espera lá. Disse que. mem pode desejar outro homem. (veemente e voltando-se
SELMINHA - Onde? para a innã) Dália, você entende? Entende eu~ Sei que,
DÁLIA - O endereço. Eu tornei -nota. É no. (sente-se, pé :1(0 Q agora, quando um homem olhar para o meu marido.
~ma-mflneira cada-ve-z-mais-nítida,..que Se/minha Vou desconfiar de qualquer um, Dália! (com uma brusca
-Rãe-qtterirJ initação) Aliás, Arandir tem certas coisas. Certas delica-
_ SEU.IINHA (para s+mesmn wm--\lez surda) - E quer que eu vá lá. dezas! E outra que eu nunca disse a ninguém. Não disse
DÁLIA --ArClft4i.r-pediu. Olha, Selminha, pediu que você fosse -por vergonha. (com mais veemência) Mas você sabe que a
imediatamente. Agora. Fosse agora. O endereço. Está primeira mulher que Arandir conheceu fui eu. AcI;o iss~
escondido num hotel. A rua é. -tão! Casou-se tão virgem como eu, Dália!
SELMINHA (cortando) - Dália, escuta. É claro que eu. Mas todo o DÁLIA -Arandir só tem vocêl
mundo! Thdo o mundo acha, tem certeza. Certeza! Que SELMINHA (numa explosão) - Se eu for, já sei. Ele vai querer beijar.
os dois eram amantes! --Na certa: Eu não quero um beijo sabendo que. (hirta de
DÁLIA (com desprezo) - É uma gente que nem sei! nojo) O beijo do meu marido ainda tem a saliva de outro
_ SELMINHA (na sua obsessão)-Amantes' homem!
DÁLIA - M.as, D Arandir mandou dizer que o hotel. O hotel
é pertinho do' largo de São Francisco. Olha. Escolheu,
(Trevas. Quarto de hotel ordinário, onde Arandir está hospedado. Jornais pelo chão.
de propósito, está ouvindo, Selminha? SeI minha, ouve,
Supõe-se que Dália acaba de chegar. Arandir segwa a cunhada pelos dois braços.)
escolheu um hotel ordinário, porque dá menos na vista.
Agora vai, Selminha, vai. j ARA;-.;'DIR (na sua angústia) - Selminha não veio?
SE!..~.1!:-:}!i\ ~ Vou.
DÁLIA (sem saber como dar a.notícia) - Arandir, olha.
D..\LlA (sãfrega) - Apanha um táxi. (Se/minha nào se mexe)
ARANDIR (fora de si) - Não vem? \
SELMINHA (com súbita revolta) - E se a polícia me seguir?
-B.ÁUA (meio arônira e áiante do desespero iminente) - Eu acho
DÁLIA (com in-iraçào) - Arandir está esperando!
que.
SELMINHA . (com cfrta malignidade) - E daí?
ARANDIR (violentíssimo) - Minha mulher não vem? Não quer vir?
D..\LlA - Você é a mulher!
SELMINHA (gritando) - Mas se eu for presa. (desatando a chorar) Fala! (muda de tom) Olhe-pee-rainn (com voz súplice, en-
Você quer que eu seja presa. (com desespero) E que façam tre o desespero e a esperança) Ela não vem? Diz pra mim?
outra vez aquilo comigo, outra vez? Não vem?
-90ÜIA ("onciliatólia)- Selrninha! DÁLIA (a medo) - Espera.
SELMINHA (rrinulIldo us demes) - Nunca pensei que. Me puseram ARANDIR (com violência) - Dália, eu preciso de minha mulher.
nua! Fiqueil'lUa pra dois sujeitos! Preciso. O jornal me chama de assassino. Assassino, Dália!
-BÁLlA - Mas-eão vá contar isso.pra o ArandtF!- (com um esgar de choro) Você acha que eu sou assassino?
SELMINHA - E o miserável, o cacR8ffo ainda me disse que me quei- D.ÁLlA - Arandir, eu só acredito em você.

mava o seio com o cigarro! (soluçando) J::>!.Ha! Htla! (Dália ARANDIR - Mas eu preciso de Selminha! Vai, Dália e diz à Selrni-.
agarra a innã pelos dois braços com súbita energia) nha. Pede. Traz Sei minha. Não tenho ninguém. Estou só.
DÁLIA - Você vai? D.ÁLlA - E eu?
r
SELMINHA (ofegante e caindo em si) - Vou: Claro que vou. Eu disse- ARANDIR (brutal) - Ninguém! Olha o que o jornal diz. Está aqui. I
I

que ia e vou. Mas olha. (muda dc tom) E se ele quiser me (Arandir apanha o jornal) I'; r
beijar? DÁLIA (exasperada) - Joga fora esse jornal! (Arandir atira fom (l í
D.ÁLlA (sem enrender) - Ora, Selminha! jornal)
SELMINHA (com angústia) - Vai me beijar e eu! (conrmuc sem coe- ARANDIR - Diz lá que eu empurrei o rapaz. Como se eu. E não
rência) Quando a viúva disse, cara a cara comigo, que entendo a viúva. (falando para si mesmo) Será que esbar-
tinham tomado banho juntos. rei no rapaz? Sem querer, claro. Mas, nem isso. Tenho

98 TRAGÉDIAS CARIOCAS 11 99 o BEIJO NO ASFALTO


(

certeza, 'Dália. Não toquei no rapaz.. (memorizar.do paru DÁLIA - Selminha não quer mais ser tua mulher!
si mesmo) Uma senhora vinha em sentido contrário. O' ARANDIR (sem entender) - Não quer?
rapaz estava em cima do meio-fio. Aqui. Eu me desviei -oi LIA .- Arandir, esc}lta. Selrnirrhame disse. Ouve, meu bem.
da senhora. Mas não cheguei a tocar no rapaz. (num ARANDIR (esrranglllado) - Selminha tem que!
repente) Dália, vai chamar Selrninha! É minha mulher! DÁLIA ("iolenra)-Selminha disse que você e o rapaz eram aman-
Quero Selminha aqui! tes. Amantes!
doce; - Não vem.
(1I11/1rÕ ARANlJIR (nU/lIu Úlll(illa~ão) - Dália, faz o seguinte. Olha, o se
ARANDIR (com um mínimo de vo:)-Quem? guinte: - diz a Selminha. (\'io!ento) Diz que, em toda
DÁLIA =-Selmínha. minha vida, a única coisa que se salva é o beijo no asfal-
ARAN'DlR -Não\·em. to. Pela primeira YeZ. Dália, escura' Pe:.;. primeira vez,
DÁLIA (mais incisiva) - Arandir, Selminha mandou dizer. Não na vida' Por um momento, eu me senti bom! (furioso)
vem. (Arandir agarra a cunhada pelos dois brnços) -Eu me :;:.'n:i quase, nem sei' Escuta, escuta' Quando
ARANDIR (estupefato) - Nunca mais? eu te vi no banheiro, eu não fui bom, entende? Desejei
DÁLIA (com pena e medo) - Arandir, olha .. você. Naquele momento, você devia ser a irmã nua, E
ARANDIR (violento e grirando) - Responde! (estranguumáo a \"0:) eu desejei. Saí logo. mas desejei a cunhada. Na Praça da
Nunca mais? . Bandeira. não. Lá. eu fui bom. É lindo! É lind , eles não
DÁLIA (chorando) - Nunca mais. (Calia desprende-se. Afasra-se entendem. Linda beijar quem está morrendo! (grita) Eu
ligeiramenre do cunhado) não me arrependo! Eu não me arrependo. ,
ARANDIR (reperindo para si mesmo) --Nunca mais. Quer dizer DÁLIA - Selminha te odeia! (Arandir volra para a cunhada, cam-
que. Me chamam de assassino c. (com ~LÍbitú ira) Eu sei balcallfL. Pussa (l niehl na bocc crlchcrcada)
o que "eles" querem, esses cretinos! (bate no peito com ARANDI R (com voz estrangulada) - Odeia. (rTlllda de rom) Por isso
a miin aberta) Querem que eu duvide de mim mesmo! e que recusou. Recuso •• o meu beijo. Eu quis beijar e ela
Querem que eu duvide de um beijo que. (baixo f' atóniro. negou. Negou a boca. Não qUIs o meu beijo.
para a cunhada) Eu não dormi, Dália, não dormi. Passei D ..\L.iA - Eu quero!
a noite em claro' Vi amanhecer. (com tunr'o sentimento)
ARANDIR (atónito) - Você?
Só pensando no beijo do asfalto'! (co-m mais violencia)
DÁLIA (sofrida) - SeI minha nào te beija. m~s eu.
Perguntei a mim mesmo, a mira, mil vezes: - se en-
ARANDIR (contido) - Você é uma criança. (Dália apena entre as
trasse aqui, agora, um homem. Um homem. E. (numa
mdos o rosro de Arandir)
especie de uivo) Não! Nunca! Eu não beijaria na boca um
ARANDIR - Dália. (Dália beija-o, de lcc-c, nos labias)
homem que. (Arandir passa as costas da mào na própria
DÁLIA - Te beijei.
boca, com um nojo fero:) Eu não beijaria um homem que
ARANDIR (maravilhado) - Menina!
não estivesse morrendo: Morrendo aos meus pés! Beijei
D..\LIA (quase sem 1'0:) - Agora me beija. Você. Beija.
porque! Alguém morria! "Eles" não percebem que al-
AR..i\.NDIR . (desprende-se com violenc!a) - Eu amo Selminha!
guém morria?
DÁLIA (!csesperada) - Eu me ofereço €-_Sel.minha não veie--@-
DÁLIA (muiro doce e muito triste) - Eu vim para.
e» vim.c,
ARANDIR (sem om'i-Ia) - Mas eu acredito em mim! (brutal sem
ARANDIR _. Dália, eu mato tua irmã. Amo tanto que. (muda de tom)
transiçào) Por que Selminha não vem?
_. Eu ia pedir. Peffirà Selminha para morrer comigo.
DÁLIA - Não gosta de você!
ARANDIR (com uma cer c:a cândida e fanática) - Gosta! Ama! (sô- =--D.4.LIA -- ~1orrer?-
frego e ingênuo) É um amor de infância! De infância. &Y.~ ARANDIR (dese:,perado) - Eu e Serminha! Mas ela não veio!
era menino, menino. E ela garotinha. Já gostava de mim.
DÁLIA (agalTa o cunhado. Quase boca com boca, sôp'ega) - Eu
E eu dela. D2Jia, você não entende. ninguém entende. morreria.
Selminha só teve um namorado, que fui eu. Só,~Dália. AR..i\.NDIR -Comigo?
E eu nunca, nunca. Deus me cegue se. Nunca tive outra DÁLIA (sel\lagem) -Contigo! Nós dois! OmtigoL Eu te amo!
namorada. Só gostei de Selminha. ARANDIR (num sopro) - Morrer.,

100 TRAGÉDIJ..S CAR:C~AS II 101 o BE'JO NO ASFALTO


DÁLIA (feroz) - Eu não te julgaria nunca. -fu.w..~rdoaria sem- APRÍGIO - Cínico! (muda de tom, com uma ferocidade) Escuta!
_p.r~'-Acredito em ti. Só eu acredito em ti. Você conhecia o rapaz. Conhecia' Eram amantes! E vo-
cê matou. Empurrou o rapaz!
ARANDIR (violento) - Oh, graças! graças!
ARANDIR (violento)-Deus sabe!
DÁLIA (macia, insidiosa, com uma leve, muito leve malignidade)
APRÍGIO - Eu não acredito em você. Ninguém acredita. Os jor-
- Diz pra mim. Eu não te julgo. Não te condeno. Res-
nais, as rádios! Não há uma pessoa, uma única, em toda
ponde: - Você o amava?
a cidade. Ninguém!
ARANDIR (atônito) - O quê?
ARANDIR (com a voz estrangulada) - Ninguém acredita, mas eu!
DÁLIA (numa espécie de histeria) - Amava o rapaz? Pode dizer.
Eu acredito, acredito em mim!
-Escuta.Você era amante do rapaz? ge-ak-0f>@lass?
--'\PRÍGIO - Você, olha!
ARANDIR (recuando)-Amante?
ARANDIR - Sélminha há de acreditar!
DÁLIA - Q!:ieFido! Pode dizer a mim. A mim, pode dizer.
APRÍGIO (fora de si) - Cala a boca! (muda de tom) Eu te perdoaria
~essar. Escuta, escuta! Meu bem, eu não sou como
tudo! Eu perdoaria o casamento. ~Ainda agora,
Selminha. Seiminha não compreende, nem aceita. Eu eu estava na porta ouvindo. Otll"Í ttl8S. Você tentando
aceito. Tudo! Fala. Eu não mudo. Serei a mesma' Fala! seduzir a minha filha menor!
(Dália quer abraçar-se ao cunhado. Arandir desprende-se ARANDIR - Nunca!
com violência) APRÍGIO - Mas eu perdoaria, ainda. Eu perdoaria que você fosse
ARANDIR (gritando) - Você é .como os outros- Igual aos outros. espiar o banho da cunhada. Você quis ver a cunhada nua.
Não acredita em mim. Pensa que eu. Saia daqui. (mais ARANDIR -Mentird'!-
forre num berro de louco) - Saia! (Aprígio entra) APRÍGIO (ofegante) - Eu perdoaria tudo, (mais violento) Só não
APRÍGIO - Saia, Dália! (Dália abandona o quur:», correndo, em perdôo o beijo no asfalto. Só não perdôo o beijo que você
desespero. Sogro e genro, face a face) Vim aqui para. deu na boca de um homem!
ARANDIR (para n ,n?,T0' quase chorando) - Está satisfeito? ARA~DIR (para si mesmo) - Selrninha!
APRÍGIO - Vim aqui. APRÍGIO (muda de tom, suplicante) - Pela última vez, diz! Eu
AR.-\NDIR (na .lua cólem) - Está satisfeito? O senhor é um dos • preciso saber! Quero a verdade' A verdade' Vocês eram
responsáveis. Eu acho que é o senhor. O senhor que está amantes? (sem esperar a resposta, furioso) Mas não res-
.por trás ... ponda. Eu não acredito. Nunca, nunca, eu acreditarei.
APRÍGIO - Quem sabe? (numa espécie de uivo) Ninguém acredita!
ARANDIR - Por trás desse repórter. O senhor teve a coragem, a- AR.-\NDIR - Vou buscar minha mulher. (Aprígio recua, puxando o
coragem de. Ou pensa que eu não sei? Selminha me con- revólver)
tou. Contou-tudo! O senhor fez insinuações. Insinuações! APRÍGIO (apontando) - Não se mexa! Fique onde está!
A meu respeito! ARANDI R (atônito) - O senhor vai.
APRÍGIO - Você quer me. APRÍGIO - Você era o único homem que não podia casar com a

ARANDIR (sem ouvi-lo) - O senhor fez tudo! Tudo pra me separar minha filha' O único!
I '
de Seiminha! AR.-\NDIR (atônito e qUG.e sem voz) - O senhor me odeia porque.
APRÍGIO - Posso falar? Deseja a própria filha. É paixão. Carne. Tem ciúmes de
ARANDIR (erguendo a voz) - O senhor não queria o nosso casa- Selminha.
mento' APRÍGIO (num berro) - De você! (csmmgulando a \'0::) Não de
APRÍGIO (violento) - Escuta! Vim aqui saber! ~ Você co- minha filha. Ciúmes de você. Tenho! Sempre. Desde o
nhecia esse rapaz? teu namoro, que eu não digo o teu nome. Jurei a mim
~AL-\~ DI R (desesperado) - Nunca vi.
mesmo que só diria teu nome a teu cadáver. Quero que
_APRÍGIO - Era um desconhecido?
você morra sabendo. O meu ódio e amor. Por que beijas-
AR.-\NDIR - [urol Por tudo que há de mais! Que nunca, nuncal
te um homem na boca? Mas eu direi o teu nome. Direi
APRÍGIO - Mentira!
teu nome a teu cadáver. (Aprígio atira, a primeira vez.
ARAN D 1R (desesperado) - Vi pela primeira vez! Arandir cai de joelhos. Na queda. puxa uma folha de jor-

103 o BEIJO NO ASFALTO


102 TRAGÉDIAS CARIOCAS 11
.' I
/lal. que estava abena nn cama. Torcendo-se. abre o jornal,
como uma espécie de escudo ou de bandeira. Aprígio atira.
novamente. varando o papel impresso. Num espasmo de
dor, Arandir rasga a folha. E tomba. enrolando-se 110 jornal:
Assim morre)
APRÍGIO - ~djr! (mais forte) Arandir! (um último canto)
Arandir!

(Cai a luz. em resistência, sobre o cadáver de Arandir. Trevos.y


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FIM 00 TERCEIRO E ÚLTIMO ATO V1

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104 TRAGÉDI~., CARIOCAS"

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